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Anais Instituto de Artes – UERJ

Rio de Janeiro, 10 a 13 de novembro de 2009


Marcelo Campos e Vera Beatriz Siqueira
Organização

Anais da III Semana de Pesquisa em Artes

1ª Edição

Rio de Janeiro
Instituto de Artes – Universidade do Estado do Rio de Janeiro
2009
Instituto de Artes III SPA – Semana de Pesquisa em Artes

Diretor Comitê de Organização


Roberto Conduru Aldo Victório Filho
Cristina Salgado
Vice-diretora Marcelo Campos
Vera Beatriz Siqueira Vera Beatriz Siqueira

Coordenador de Graduação Equipe de Organização


Marcelo Campos Agnaldo Rego
Ana Carolina dos Santos Silva
Coordenadora de Pesquisa e Pós-graduação Caroline Tinoco
Vera Beatriz Siqueira Felipe Abdala
Jovita Santos
Coordenadora de Extensão Larissa Carvalho
Denise Espírito Santo Leidiane Carvalho
Melryken Tosta
Michelly Gomes Araújo
Nilzeleide dos Anjos
Tamara Lombardi

Programação Visual
Mariana Maia
Catalogação na fonte
UERJ/REDE SIRIUS/CEHB

U58 Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Semana de Pesquisa em Artes (3. : 2009 : Rio de Janeiro)
Anais da III Semana de Pesquisa em Artes / Marcelo Campos e Vera Beatriz Siqueira,
Organização. – Rio de Janeiro : UERJ, Instituto de Artes, 2009. – 1.ed.
462 p. : il.

Bibliografia: p. 462
ISSN 2177-0433

1. Arte – Congressos. 2. Arte – Historiografia – Congressos. 3. Arte – Estudo e ensino – Congressos.


I. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de Artes. III.Título.

CDU 7 (063)
Sumário

A arte e seus circuitos

08 Camilla da Rocha Campos


Para conhecer o mundo basta entrar na loja: os indícios de uma investigação

16 Marcelo Simon Wasem


Práticas colaborativas em arte pública: especificidades e conflitos

27 Tarcila Soares Formiga


Quando as vanguardas vão para a galeria: o caso do Instituto Brasil-Estados Unidos

Arte e cultura urbana

37 Alexandre Henrique Guimarães


Visualidade e caráter mutante da escadaria Selaron

51 Gabriel Barbosa dos Santos


A história dos Beatles na História

62 Maíra Mendes Clini e Arley Andriolo


Arte no Cotidiano: Repercussões da produção artística em jovens grafiteiros

72 Marcelo Araújo
Por uma linguagem visual alternativa: discursos, interferências e a cidade como suporte

82 Neyva de Lima Santiago e Isis Braga


Burle Marx e o jardim do MAM-RJ: Arte e Ciência na Construção do Espaço Moderno

90 Raphael Tupinambá, Tahiba Melina e Victor Hugo Oliveira


Cidades furtivas: análise da relação entre corpo, imagem e produção de discursos
Arte, religião e tradições

101 Elaine Rodrigues Perdigão


Rima e improviso na arte do Repente

110 Luciana Alvarenga


Imagem, memória e identidade: uma etnografia visual da Vila de Itaúnas/ES

117 Rafael Eduardo Santana de Sousa


Farnese de Andrade: artista como profanador

124 Victor Hugo Neves de Oliveira


Um ato de fé em festa: análise do encontro entre Devoção e Diversão na dança de São
Gonçalo de Amarante

Ensino de arte e cultura

134 Artur de Almeida Malheiro


A construção da nação nos quadros de história do século XIX: uma visão pedagógica

145 Bruno Rodolfo Martins


“Paixão pela nossa cor”: o Mineiro-pau e a Educação Física

153 Carolina Gonçalves Alves


O choro que se aprende no colégio: a formação de chorões na Escola Portátil de Música do
Rio de Janeiro

163 Heloisa Lyra Bulcão


Luiz Carlos Mendes Ripper e a formação de cenógrafos e figurinistas

174 Pâmela Souza da Silva


“Grandes merda”! A relevância do ensino de artes nas escolas públicas do Rio de Janeiro
Arte e conceitos

186 Beatriz Morgado de Queiroz


O estado de comunicação na obra de Lygia Clark

200 Carolina Gomes Paulse


Cantando a resistência, construindo identidade: análise das canções de Chico Buarque

Identidades, alteridades

217 Giseli Ribeiro


Arte e Alteridade em Medéia

222 Monica Cauhi Wanderley


Inovação e tradição na pintura de Reismarques

Leituras contemporâneas

233 Carla Guimarães Hermann


Da cor à aspereza tátil: a materialidade e o adverso nos Bólides de Hélio Oiticica

248 Leidiane Carvalho


Arqueologia da imagem: a tradição pictórica na obra de Daniel Senise

256 Mariana Gomes Paulse


Crítica, forma e cultura: a série Releitura da Bíblia de Léon Ferrari
Processos Artísticos Contemporâneos

266 Alessandra Porto da Silva


A Memória do Objeto: Imagens Ressonantes

270 Alexandre Emerick Neves


Arte do espaço e do tempo

279 Ana Luiza Ferreira Hupe


A autobiografia pela fotografia em práticas artísticas de Sophie Calle

289 Breno Bitarello Sad e João Queiroz


Tatuagem e novas aplicações biotecnológicas

295 Davi Silva Pereira


O mundo como museu; o artista como conservador e restaurador da vida

302 Isabel Carneiro


Os hypomnemata e os fragmentos da ação através das Notas de tempos inconciliáveis

312 Isabelle da Motta Pacheco


Reptília Tereftálica

321 Jimson Vilela


Entre nomes: por onde passamos e por quem passamos

329 Jorge Langone


Cuidado: a esquematização do conhecimento para a disseminação do papel educacional

337 Leandro Furtado


Desenho como da-sein

342 Leonardo Motta Campos


Caminho Plural, o percurso da desmaterialização à materialização do objeto

353 Luana de Oliveira Aguiar


Situações limítrofes
364 Mariana Maia
Primeiro ato do artista: Performance e Literatura

374 Melina Almada Sarnaglia


Agenciamentos e Aproximações: Santiago Sierra e a estetização política do outro

387 Rejane Afonso Fonseca


Estudo do processo de criação da artista plástica Nelma Pezzin

395 Renata Ribeiro dos Santos


Estudo do processo de criação de artistas contemporâneos capixabas

Teoria e Historiografia da Arte

403 Agnaldo Rego de Matos Junior


Sobre a importância das Brillo boxes para o conceito de arte de Arthur Danto

415 Danielle Rodrigues Amaro


Arte e História após o anúncio do “fim”, segundo Arthur Danto e Hans Belting

427 Leandro Souza


A representação simbólica nas Artes Visuais

Tradições, territórios, cruzamentos

437 Fernanda Marinho


Eugenio Battisti e o Antirrenascimento

443 Larissa Sousa de Carvalho


Sandro Botticelli: Vestuário e Arte

454 Renato Menezes Ramos


A arquitetura eclética egipcizante no Rio de Janeiro
III semana de pesquisa em artes
10 a 13 de novembro de 2009 art uerj
a arte e seus circuitos

Para conhecer o mundo basta entrar na loja: os indícios de uma


investigação

Camilla da Rocha Campos

Mestrado em História e Crítica da Arte – UERJ

Em seu trabalho intitulado Le must de Rembrandt1, o artista alemão Hans Haacke utiliza de
métodos investigativos para recompor relações sociais veladas por um poder simbólico. O texto
busca, no sistema indiciário analisado pelo antropólogo e historiador Carlo Guinzbourg e em
conceitos de percepções sociais do sociólogo francês Pierre Bourdieu, uma linha de leitura que
tal qual Haacke percorre pistas e sinais afim de evidenciar atitudes que discutem e renegociam
valores sociais.

Haacke; investigação; sociedade.

The German artist Hans Haacke, in his piece of art Le Must of Rembrandt, uses investigative
methods to rearrange social relations hidden by a symbolic power. The text tries to reach,
through an evidence system analyzed by the anthropologist and expert in history Carlo
Guinzbourg and by the French sociologist Pierre Bourdieu’s concepts of social perceptions, a
guideline that, such as Haacke, goes through clues and signs evincing attitudes that discuss
and renegotiate social values.

Haacke; investigation; society.

A busca por indícios que esclareçam determinado mistério é prática evidente


tanto em médicos guiados pelos sintomas de seus pacientes quanto em detetives
que rastreiam pistas para encontrar um criminoso. No entanto o historiador e
antropólogo italiano Carlo Ginzbourg relata, em seu livro Mitos, emblemas e sinais o
quão numerosos são os tipos de pessoas que “operam no vasto território do saber
conjetural”2, sobretudo em ações cotidianas simples como a leitura. Guinzbourg
8
inclui historiadores, políticos, carpinteiros, caçadores, pescadores, dentre outros,
num campo em que Freud e Sherlock Holmes são apenas dois exemplos ilustres de
pessoas que releram as regras de um jogo no qual os pormenores revelam mais do
que a dedução. Em meio a essa sociedade construída através da leitura de sinais que
revelam e orientam cotidianamente suas ações é que o artista alemão Hans Haacke
estabelece um campo de contato.
Le must de Rembrandt foi montado pela primeira vez em 1986 no centro
cultural Georges Pompidou em Paris, e remontado no mesmo local para uma
exposição individual de Haccke em 1989. Local e data de exibição não caracterizam
aqui, como parece, informações meramente descritivas sobre o trabalho, são na
verdade um primeiro indício de entrada, o contexto simbólico escolhido pelo artista
afim de maximizar, colocando a olho nu, os valores das relações sociais ali existentes.
Haacke organiza suas pistas:
Uma porta aberta para a rua. Mas não a porta de casa, uma porta dessas do
tipo em que se percebe pelos enfeites colocados do lado de fora sua clara intenção
de receber do lado de dentro alguém apto a se interessar e se envolver com aquilo
que está sendo oferecido. Um bonito nome associado a uma bonita imagem numa
bonita fachada. O convite certo. Do lado de fora o conteúdo ainda é confuso. Claro
são as epígrafes: palavras e imagens. Entre, veja:

Frente da loja Cartier,


Paris, 1973.

Frente “Les must de


Rembrandt”, instalação
(concreto, toldo pré-
fabricado, madeira,
fotografia pb, plaquetas
de metal), Hans
Haacke, 1986, Centro
Georges Pompidou,
Paris, França.

9 art uerj III semana de pesquisa em artes


À direita, a loja de Haacke guarda certa semelhança com a loja da Cartier,
não por acaso ambas as lojas se aproximam na intenção de atrair o público para o
seu interior afim de que conheçam sua história através de pequenos objetos, outros
indícios, que se antecipam a fixar-se em seletos círculos sociais através de relações
exclusivas. A exclusividade dos artigos, tanto daqueles fabricados pela Cartier quanto
daqueles gerados pela arte, são tangentes. Tal exclusividade é gerada por círculos
relacionais que pressupõem na diferença o objeto de desejo de seu consumidor. A
diferenciação social reforça o que o cientista social francês Pierre Bourdieu chama de
capital social, o

“conjunto de recursos atuais ou potenciais que estão ligados à posse


de uma rede durável de relações mais ou menos institucionalizadas de
interconhecimento e de inter-reconhecimento ou, em outros termos, à
vinculação a um grupo, como conjunto de agentes que não somente são
dotados de propriedades comuns (passíveis de serem percebidas pelo
observador, pelos outros ou por eles mesmos), mas também são unidos
por ligações permanentes e úteis.”3

O capital social mantêm a exclusividade e afirma a diferença, elementos


essenciais para a compreensão da loja, pois eles mobilizam a estrutura social com
a qual Haacke joga a fim de compreender e visualizar o jogo político e econômico
no qual a Cartier participa. Enquanto a Cartier desenvolve cobiçados itens de
luxo, Hans Haacke constrói através de uma espécie de quadro de informações as
relações econômicas estabelecidas pela marca durante o processo de manufatura
dos objetos que coloca à venda. Os itens de luxo representam na loja de Haacke
mais um pormenor, valorizado por Guinzbourg, capaz de trazer atrelado a si a ponta
de um mistério que se desenrola por trás dos panos, nesse caso específico, que se
desenrola para fora da loja, para longe da consciência de seus consumidores em
potencial, bem distante de operar “no vasto território do saber conjetural”4.
O quão ilusório pode ser o movimento daquele que entra na loja afim de
encontrar preciosidade? Numa inversão dessa situação o olhar para o raro e

10 art uerj III semana de pesquisa em artes


exclusivo levanta a cabeça para aquilo que é comum, e sobre os ombros do vendedor
da loja enxerga o mapa que ao excluir informações revela o fundo de relações
embaçadas numa janela exterior à loja. Le Must de Rembrandt é jogado para fora da
instituição arte ao mesmo tempo que a reativa como território político, considerando
um campo social preparado não para validar ou reproduzir relações e valores
estáticos de uma sociedade, mas para recebê-los e discuti-los.
De uma porta à outra:
Em 1973, foi criado o conceito Les Must de Cartier que consistia em
desenvolver produtos modernos, mas com a tradição Cartier. Foi o momento
da ampliação da oferta de produtos (artigos de couro, canetas e isqueiros) e,
conseqüentemente de clientes da loja de artigos de luxo.
Les must = necessidade, o que todos devem ter.
Em 1984 a Cartier criou a Fundação Cartier de arte contemporânea, uma
instituição para investir em arte e artistas contemporâneos num “espaço livre e
diferente”5. Alain Dominique Perrin, presidente da Cartier e criador da Fundação,
declarou na época de abertura do espaço que o “mecenato”6 artístico seria
um “formidável instrumento de comunicação; muito mais do que isto, ele é um
instrumento de sedução da opinião”7, o que foi identificado mais tarde por Bourdieu
como uma espécie de “conta bancária simbólica”8 da empresa. Segundo o sociólogo,
tornou-se prática comum grandes empresas vincularem na imprensa através de
apoios culturais uma boa imagem de si. “Uma fundação que faz doações acumula
um capital “simbólico” de reconhecimento” que lhe proporcionará num futuro próximo
“lucros indiretos” e “lhe permitirá, por exemplo, dissimular certas ações”9.
Olhar para um episódio a princípio insignificante pode ser revelador se
encarado como “conhecimento indiciário”10. Haacke busca esse saber e reproduz
dentro de sua loja um sistema de rede guiado pela interrogação, pelas suspeitas
enxergadas em sinais. Ao percorrer o trabalho cada pessoa também busca os sinais
que interligam os símbolos dispostos pelo artista, refazendo o caminho indicado a
Haacke pelas próprias pistas. Hans Haacke estimula o olhar investigativo, desconfia
dos detalhes, da fala de Perrin. Le must de Rembrandt é apresentado através de
índices não tão evidentes, mas que impulsionam o olhar daquele que se depara com

11 art uerj III semana de pesquisa em artes


a obra, mantendo a ambigüidade sugerida pela própria ação da Cartier em apoiar a
cultura, apostando numa metafórica dissimulação.
Rembrandt, o pintor e gravador holandês, viveu entre os anos de 1606
e 1669. Na esfera da arte Rembrandt é um forte símbolo, seu nome carrega a
genialidade de um artista institucionalizado de relevância indiscutível. Fora da esfera
da arte os olhares para o pintor e sua obra não são admirados de forma diferente,
o reconhecimento de seu talento é indispensável a qualquer “homem culto”. O
maior grupo de negócios da África, leva o nome do artista, e foi criado mais de 300
anos depois se seu nascimento. O truste Rembrandt possui negócios em setores
diversificados que vão da indústria do tabaco, petróleo, bancos e outros à indústria
dos bens de consumo de luxo: Cartier. Como num ato repetido, a referência à arte
parece garantir por si mesmo certa credibilidade àqueles que dela se mostram
íntimos. A visibilidade da superficialidade desses valores simbólicos sugerida por
Haacke faz cair por terra a invisibilidade de conceitos estipulados de maneira a
manipular qualquer tipo de público.
O mundo é dois.
Da porta se vê uma enorme foto no centro, entre dois pilares gregos. A foto
preta e branca aparenta ser uma aglomeração de pessoas, tantas que a imagem
parece não dar conta das inúmeras cabeças. Semiologicamente uma fotografia
pesada, capaz de comportar o peso dos trabalhadores da segunda maior mineradora
da África do Sul, a Gencor, a qual o Grupo Rembrandt possui 25% dos investimentos.
A empresa reprime as greves de seus operários com bombas de gás lacrimogêneo,
cachorros, violência. Movimentos de greve são proibidos. Mortes. Gencor é parceira
mineradora da Total South África companhia francesa de petróleo controlada pela
Rembrandt. A foto no centro da loja, entre os pilares. Abaixo da Cartier, abaixo da
Total. O que sustenta o nome, assegura uma marca.
Dentro da loja de Haacke, mais de perto:
Entre os dois pilares gregos estão as pistas finais encontradas pelo artista,
essas necessárias para aproximação maior à obra. Ele as dispõe para o fora, afim de
que sejam vistas de dentro. Aproximação preciosa. Num embate íntimo a extensão
ampla. A ação daquele que vê, a atitude daquele que compra. Um percurso de

12 art uerj III semana de pesquisa em artes


(Detalhe interior) Les
must Rembrandt,
1986, Hans Haacke.
Instalação; madeira,
fotografia pb, concreto,
toldo pré fabricado,
plaquetas de metal.
Centro Georges
Pompidou, Paris,
França.

descoberta, tão minucioso quanto o detetive que tenta mostrar sua pesquisa para
a verdade, tão objetivo e sutil quanto o paleontólogo que lustra a fios de pena seu
achado afim de, quem sabe um dia, trazer à luz algo que pode desviar minimamente
o curso de uma história. Sustentando os pilares Haacke escreveu os nomes das
empresas que são administradas pelo holding financeiro formado pela companhia
financeira suíça Richemont e pela Richemont S.A., de Luxemburgo. Dentre essas
13 art uerj III semana de pesquisa em artes
empresas estão o truste Rembrandt e a Cartier.
Todos na vitrine da loja: Les Must de Cartier, Grupo Rembrandt, Gencor,
Total South África, Trabalhadores Africanos. O comum de vários. O investigador
desembaralha as pistas expondo ao interessado na investigação as possíveis
relações inerentes aos seus atos. Carretel de notas de interesses.
Um mistério numa profusão de informações, formas, imagens. Pistas que
percorrem os continentes na exposição de um caso que amarra personagens
díspares. Pequenos mundos individuais sugados pelo particular interesse. O vestígio
de um efeito: borboleta, tubarão, dominó.
O giro no mundo, de volta ao interior da loja. Os mundos são um.
Les must = Coisa que deve ser ouvida, vista.
Scherlok Holmes e Freud liam as pistas fornecidas respectivamente por
criminosos e pacientes, uma vez resolvido o mistério os envolvidos se viam obrigados
a lidar com uma espécie de verdade antes velada, encoberta, que os possibilitava
viver de certa forma passíveis a certo tipo de ignorância. No entanto, com a resolução
do caso, aparece uma nova circunstância sob a qual aqueles antes envolvidos na/
pela investigação deverão viver. Seguindo um rigoroso paradigma indiciário Hans
Haacke recoloca num caminho possível esse saber cogniscivo. Um convite para
o raciocínio, um convite sobretudo para o olhar atento às relações sociais e às
maneiras em que seus valores estão sendo negociados, a começar pelo mundo
que comporta a loja. A associação das pistas integram a subversão da imagem, das
relações. Todas as da vitrine, todas na vitrine. De uma loja à outra. Da loja real à
loja real. O convite é certo. Entre na loja, compre uma exuberante experiência ideal,
olhe para o mundo. Decifrar os sinais pode ser apenas um passo para adquirir as
ferramentas necessárias para uma palpável transformação.

Bibliografia
GINZBOURG, Carlo. Sinais: raízes de um paradigma indiciário. In: Mitos, emblemas e sinais. Ed.
Companhia das Letras, São Paulo, 1989.
HAACKE, Hans e BOURDIEU, Pierre. Livre troca. Ed. Bertrand Brasil, 1995.
GRASSKAMP, Douglas e HAACKE, Hans. Hans Haacke. Ed. Phaidon, 1a edição, 2004.
BOURDIEU, Pierre. 1993. How can one be a sports fan? In: The Cultural Studies Reader, org. DURING,

14 art uerj III semana de pesquisa em artes


Simon. Ed. Routledge, Londres, 2a edição, 1999.
BOURDIEU, Pierre. O Capital Social: notas provisórias. In: Escritos de Educação, org. NOGUEIRA,
Maria Alice e CATANI, Afrânio. Ed. Vozes, Petrópolis, 1998.

Notas
1 O maior grupo africano de negócios é o truste Rembrandt que está na África do Sul. No entanto esse
truste tem ações financeiras controladas por uma companhia suíça de negócios que possui cotação nas
bolsas de valores de Genebra, Bale, Zurique e Johannesburgo. A Richemont S.A. permite a Rembrandt
escapar das sanções da África do Sul e defender seus interesses na União Européia. A financeira detém
a maioria das ações de empresas de tabaco, canetas Montblanc, 77,3% da Cartier Mundo (incluindo o
must Cartier), sem contar porcentagens menores como, por exemplo, em “maisons” de alta costura como
Valentido e Yves Saint-Laurent. O Grupo Rembrandt se beneficia de antigos acordos da antiga política do
Apartheid. Na África do Sul está fortemente ligado a setores de mineração, bancos, serviços financeiros,
alimentos, petróleo e exploração florestal. Ela submete seus trabalhadores a tratamentos brutais e ainda
os reprime politicamente repreendendo violentamente suas greves. Em 1986, esses abusos e negligências
de segurança mataram 177 mineiros negros. Como logomarca a empresa utiliza um auto retrato do artista
Rembrandt e apóia as artes plástica na África do Sul assim como a Cartier o faz na França.
2 GINZBOURG, Carlo. Sinais: raízes de um paradigma indiciário. In: Mitos, emblemas e sinais. Ed.
Companhia das Letras, São Paulo, 1989, pg. 152.
3 BOURDIEU, Pierre. O Capital Social: notas provisórias. In: Escritos de Educação, NOGUEIRA,
Maria Alice e CATANI, Afrânio. Ed. Vozes, Petrópolis, 1998, p.67.
4 GINZBOURG, Carlo. Sinais: raízes de um paradigma indiciário. In: Mitos, emblemas e sinais. Ed.
Companhia das Letras, São Paulo, 1989, pg. 152.
5 Perrin, Alain Dominique. Retirado de uma entrevista à Fabrice Bousteau no site da Fondation Cartier
pour l’art contemporain:. http://fondation.cartier.com/?_lang=fr
6 Expressão utilizada pelo próprio Perrin em sua entrevista.
7 HAACKE, Hans e BOURDIEU, Pierre. Livre troca, ed. Bertrand Brasil, 1995, pg.28
8 Id. Ibid, pg.29
9 Id. Ibid, pg.29
10 GINZBOURG, Carlo. Sinais: raízes de um paradigma indiciário. In: Mitos, emblemas e sinais. Ed.
Companhia das Letras, São Paulo, 1989, pg. 166.

15 art uerj III semana de pesquisa em artes


III semana de pesquisa em artes
10 a 13 de novembro de 2009 art uerj
a arte e seus circuitos

Práticas colaborativas em arte pública: especificidades e conflitos

Marcelo Simon Wasem

Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais – Linha Poéticas Interdisciplinares – UFRJ

A presente pesquisa está focada em investigar as especificidades de projetos de arte pública


centradas na colaboração entre artistas e não artistas. Neste nivelamento relacional, no
entanto, conflitos e situações imprevistas configuram importantes processos, que colocam
questões de ordem ética, tanto na apresentação dos registros resultantes destes processos
nos circuitos da arte quanto na própria execução destes.

Arte pública; colaboração; empoderamento.

This present research is focused in investigate the specificities of public art projects centered
in collaboration between artists and nonartists. In this relacional leveling, however, conflicts
and impredictable situations configure important processes, that put out ethics issues, both
in the presentation of records resulting from these processes in art´s circuits and in their own
execution.

Public art; collaboration; empowerment.

1. Introdução
O presente texto irá dissertar sobre as especificidades de projetos de arte
pública centradas na colaboração entre artistas e não artistas. Tal procedimento não
é algo completamente novo, mas a forma como esta característica colaborativa vem
sendo empregada em diversos projetos ressaltam especificidades próprias. Dois
projetos atuais de arte pública serão trazidos para a discussão a fim de demonstrar
como tais pensamentos são articulados na prática. O primeiro foi o processo de

16
criação de uma rádio comunitária na cidade de Florianópolis (SC) e o segundo é a
experiência de construção coletiva de um parque e diversas atividades na cidade de
Hamburgo, na Alemanha, chamado Park Fiction. Estas reflexões dão continuidade as
discussões expostas na dissertação “Processos colaborativos, contaminações e jogos
de alteridade em arte pública: experiências na criação de uma rádio comunitária”
(2008)1, defendida na Universidade do Estado de Santa Catarina.

2. Colaborações e colaborações
Pode-se notar que dentro do campo da arte pública atualmente há muitos
projetos em desenvolvimento e, em diversos deles, a palavra “colaboração” surge
como um termo chave para a realização de tais práticas. A qualidade colaborativa
não é nova dentro da história da arte, e pode ser apontada desde a idade média
nas práticas de arte realizadas pelas escolas de artes e ofícios. O crítico Grant H.
Kester, no texto intitulado “Peças de conversação: colaboração e identidade artística”2
(2000), contextualiza este processo de colaboração enquanto um procedimento
comum entre artista (aquele que idealiza determinada obra de arte), e outros agentes
ao seu redor que interagem em diferentes graus para a confecção desta (ibidem,
sem página). Este fazer está distribuído em diversas escalas: desde os ajudantes
técnicos e artesões (como exemplo, podemos citar algumas práticas de gravura),
passando pelos agenciadores de espaços para a exibição e circulação das obras
e fomentadores financeiros, até chegar aos espectadores, que mesmo no fim da
cadeia, se apresentam como fundamentais para o funcionamento do todo. Neste
esquema, no entanto, os agentes que constituem este sistema maior, exercem papéis
e ações muito bem estabelecidos, formando assim campos de atuação próprios e
isolados e deixando que o contato aconteça em zonas de interação previamente
determinadas. Dessa forma, Kester aponta para formação de um estereótipo do
artista, que sai do anonimato das guildas medievais para se tornar o centro de uma
luta pelo seu sucesso e reconhecimento individual, ainda que esta batalha se dá
exatamente contra todos os conformismos de todas as diferentes sociedades. Surge
o caráter marginal do artista, que não se encaixa dentro de uma cultura, e, ao mesmo
tempo, necessita de algum grau de reconhecimento de sua genialidade.

17 art uerj III semana de pesquisa em artes


Paralelamente a esta forma de sistema artístico, Kester defende outro tipo de
colaboração. O autor fala existe toda uma produção subterrânea com o foco em uma
autoria dispersa ou coletiva, ou em formas de produção baseadas no processo e na
interação colaborativa, que periodicamente emerge na consciência da arte do mundo,
mas que são taxadas de kitsch, ativismo, teatro ou qualquer outro termo pejorativo
para aqueles trabalhos que não seguem a lógica autoral citada anteriormente.
São trabalhos que desafiam a identidade e estabilidade tanto do artista
quanto do espectador através de engajamentos colaborativo de longo prazo. Neles,
predominam diferentes procedimentos, resultando em outros graus de relação:
práticas baseadas no imprevisto, formas não-profissionais do uso da criatividade,
uma consciência comunitária e resolução coletiva de problemas, exemplificando o
que o artista Ian Hunter chama de práticas “imersivas”. Segundo Kester, este artista
argumenta que as disciplinas convencionais tendem a “esteticizar” problemas,
reduzindo-os a domínios fechados, onde são empregadas soluções elegantes,
porém demasiadamente simplistas diante de situações que são complexas e estão
interconectadas com outras áreas.
Outro autor que busca esta discussão é Reinaldo Laddaga. No livro “A estética
da emergência” (2006) ele identifica que o presente das artes atualmente está
embebido por uma proliferação de projetos, onde são iniciados ou intensificados
processos abertos de conversação, com a preocupação em dilatar o tempo e
o espaço das experiências propostas3. São projetos nos quais suas formas e
contornos vão surgindo lentamente, através dos mais diferentes meios e que, por
estas características, provocam uma constante instabilidade nos limites e regras das
artes. Poderiam ser confundidas com práticas da educação que também utilizam
a arte como um meio, mas tais projetos estão mais interessados nos processos,
agenciamentos e negociações entre seus agentes, importando não só a maneira
como se organizam os saberes e dados, mas a capacidade destes de improvisar
e lidar com o imprevisível4. As formas de como proceder possuem uma extrema
importância em tais processos, pois além de fundar as bases das relações com o
meio externo onde são desenvolvidas, estabelecem internamente as dinâmicas entre
os agentes envolvidos e acabam formando propostas diferenciadas de organização

18 art uerj III semana de pesquisa em artes


e ação destes grupos. Resumindo nas palavras de Laddaga: “[eles] implicam
colaborações entre artistas e não artistas”5.
Retomando o texto de Grant Kester, este chega a questionar a composição
de uma “nova estética colaborativa”, colocada pelos artistas Peter Dunn e Loraine
Leeson nas ações do coletivo The Art of Change, de Londres. “Os artistas
colaborativos estão interessados na própria experiência de colaboração interativa”
(diferindo aqui já da noção de colaboração entre artista e artesão citados no começo
deste texto), “em novos entendimentos e novas formas de conhecimento que são
catalisadas através desta interação, durante a criação de um produto físico” (2000,
sem página). É interessante salientar que Kester aponta que a obra de arte se dá
mais no processo ao invés do produto, sem, no entanto, renegar a confecção de
objetos: é durante a confecção de algo material, nas relações que se estabelecem
entre as pessoas que está o foco da “estética colaborativa”. A ênfase está voltada
mais para qualidade da interação do que na integridade formal de determinado
artefato, ou mesmo na experiência individual do artista em produzi-lo.
É esta qualidade de interação que provoca uma diferenciação entre os
trabalhos de colaboração onde os agentes permanecem separados e a percepção do
outro para o artista não ultrapassa a condição de inspiração ou de público consumidor
de sua obra, e aqueles que realmente começam a desafiar a própria autonomia
defensiva da posição artística subjetiva. Segundo Kester “[o conceito da] colaboração
assim carrega uma orientação ética implícita na relação com a diferença”. Ela evoca
assim uma forma de prática artística definida por sua abertura e vulnerabilidade (ou,
ainda permeabilidade) intersubjetiva e de escuta, e pode eventualmente ir contra a
imagem do artista heróico. Reinaldo Laddaga reforça que o papel do artista passa a
ser de

originadores de processos nos quais intervém não somente em serem


possuidores de saberes de especialista ou sujeitos [dotados] de uma
experiência extraordinária, senão como sujeitos quaisquer ainda que
situados em lugares singulares de uma rede de relações e fluxos.6

Desta maneira, nota-se que há um nivelamento relacional entre artistas e não

19 art uerj III semana de pesquisa em artes


Vista aérea
do Bairro Monte
Cristo. Na área
azul, a comunidade
Chico Mendes e
na verde, Novo
Horizonte. Também
estão assinalados
pontos de referência
importantes, assim
como alguns
locais onde foram
realizadas as
transmissões.

artistas, e a atuação do artista é incorporada como mais um elemento dentro de um


universo maior. Mas é importante ressaltar que este nivelamento não acontece de
um modo pacífico ou simples. Este exercício de convivência demanda uma duração
estendida no tempo, pois cada participante possui um histórico de vivências diferente
e maneiras próprias de lidar com o caminhar deste processo.

3. Criando uma rádio (ou um estado de contaminação constante)


Baseado nesta linha de pensamento sobre o fazer artístico no espaço público
que foi desenvolvido o projeto de criar uma rádio comunitária no bairro Monte Cristo,
região metropolitana de Florianópolis (SC) (ver figura 1). Este se configurou por um
conjunto de ações realizadas por moradores, principalmente das comunidades Chico
Mendes e Novo Horizonte, e ativistas com propostas multidisciplinares (artísticas,
educacionais de âmbito não-formal e de comunicação alternativa) na formação de
um grupo com o objetivo de montar uma rádio comunitária (também chamado de
“Coletivo da Rádio”). Apesar de sempre ter permanecido aberto à participação de
todos os moradores da região, o grupo foi formado por integrantes mais assíduos e
que, mesmo assim, tiveram diferentes momentos de envolvimento e participação.
Além das ações mais ligadas à Rádio, alguns integrantes (artistas/ativistas/
educadores) estiveram envolvidos em oficinas de mídia-educação entre junho e
dezembro de 2007 junto a dois grupos de um programa social para adolescentes
20 art uerj III semana de pesquisa em artes
(chamado “Agente Jovem”). Desde o princípio, este espaço de encontro entre
moradores das comunidades do Monte Cristo e não moradores interessados em
construir esta rádio se apresentava como um espaço plural, onde pessoas de origens
e opiniões diferentes se uniam em torno deste objetivo maior e dialogavam na
estruturação de como realizar tal desejo. No decorrer do processo, com os diversos
acontecimentos que se sucederam nesta construção coletiva, estas diferenças e os
conflitos de opiniões foram os maiores espaços de discussão e amadurecimento dos
membros do Coletivo da Rádio, como será relatado a seguir.
O primeiro objetivo que pode ser observado nas primeiras transmissões e
que pautaram as ações do Coletivo da Rádio neste período foi pensar o momento
da transmissão enquanto um canal de livre comunicação, onde todos poderiam
ter voz para expressar sua opinião e que poderia gerar novos espaços de debate
crítico entre as comunidades. Deste debate, o intuito maior por parte dos integrantes
não moradores do Coletivo é que os próprios moradores formassem a base de
um grupo autônomo e horizontal na hierarquia de responsabilidades que pudesse
gerir o funcionamento da rádio. Este objetivo pode ser associado ao conceito de
empoderamento, colocado por Peter Oakley e Andrew Clayton (2003). Segundo
os autores “um processo de empoderamento busca intervir nestes desequilíbrios e
ajudar a aumentar o poder daqueles grupos desprovidos de poder, relativamente aos
que se beneficiam do acesso e uso do poder formal e informal”7.
Em diversas ocasiões, por exemplo, o objetivo de proporcionar mais união entre
as comunidades do Monte Cristo foi ouvido entre os participantes das reuniões e na
voz dos diferentes locutores, moradores e não-moradores, durante as transmissões
(ver imagem 2). Um tema nem sempre expresso com todas as palavras, mas que está
relacionado diretamente com os conflitos territoriais devido à presença de grupos de
narcotráfico. O conceito de “união” aqui colocado se relaciona com um discurso muito
associado a diversos trabalhos sociais desenvolvidos por todo o país nestes tipos de
ambientes, e não deixa de ser uma reivindicação legítima diante das precariedades
de todas as espécies nestas áreas urbanas. Mas, a intenção de agrupar pessoas com
qualidades e peculiaridades distintas está quase sempre pautada em resolver um
problema pontual que se tem em comum, baseado em um aspecto igualitário (mesmo

21 art uerj III semana de pesquisa em artes


que sempre parcial) que se sobrepõe às diferenças de cada envolvido. A diferença,
neste sentido, é um obstáculo a ser inicialmente reconhecido, para num segundo
momento, após um período de diálogo ser respeitada, e, se possível, superada
pelo convívio. Tanto entre habitantes de comunidades vizinhas quanto na atuação e
interação entre moradores e não-moradores, a diferença tem um papel fundamental na
construção da própria identidade, onde as idiossincrasias podem ser mantidas desde
que haja vontade e abertura de trocar com o outro a ponto de poder influenciar e ser
influenciado, ou, como coloca Suely Rolnik (2003) contaminar e ser contaminado. De
acordo com a autora

contaminar-se pelo outro não é confraternizar-se, mas sim deixar que


a aproximação aconteça e que as tensões se apresentem. O encontro
se constrói – quando de fato se constrói – a partir dos conflitos e
estranhamentos e não de sua denegação humanista.8

O conceito de contaminação possui maior pertinência para estes tipos de


projetos de arte do que a noção de empoderamento, onde relações de poder

Fotomontagem com
diversas atividades
(transmissão, shows e
oficinas).

22 art uerj III semana de pesquisa em artes


baseadas nos saberes envolvidos podem se estabelecer e criar hierarquias que
bloqueiem uma troca mais igualitária entre todos. Para que este exercício de lidar
e aprender com o outro (um exercício de alteridade) seja possível em experiências
deste porte, podemos resgatar também o conceito de coeficiente de transversalidade,
criado por Félix Guattari nos anos 60. A autora Suely Rolnik explica que este

(...) refere-se ao grau de reconhecimento ou de cegueira em relação à


alteridade que predomina no contexto em que se quer intervir, o grau
com a subjetividade, neste contexto, se permite ser atravessada pela
singularidade de universos diferentes do seu e redesenhar a si e ao
mundo a partir daí.9

Este conceito possuiu uma importância fundamental nas experiências


proporcionadas pela criação da rádio comunitária, pois foi a partir dele que algumas
das investigações foram aqui apresentadas e como as situações de encontro e
conflito foram enfrentadas e superadas.

4. Criando um parque (ou uma produção coletiva de desejos)


Todo este projeto de criação da Rádio Comunitária do Monte Cristo teve grande
repercussão na experiência pessoal de cada participante do Coletivo. Moradores
e não moradores saíram modificados deste processo coletivo, e atualmente,
os principais materiais resultantes se encontram na dissertação “Processos
colaborativos, contaminações e jogos de alteridade em arte pública: experiências
na criação de uma rádio comunitária”. As fotos, vídeos, áudios e, inclusive, a própria
dissertação se encontram disponíveis no próprio bairro do Monte Cristo, na ONG
Casa Chico Mendes, e se acredita que o principal meio de circulação dos registros
deste processo seja a própria localidade.
Outro formato de desenvolvimento e posterior exibição dos produtos
resultantes foi o projeto “Park Fiction”, iniciado pelos artistas Christoph Schaefer
e Cathy Skenes, no bairro de St. Pauli, na cidade de Hamburgo (Alemanha). Tal
localidade estava sendo visada por empreendimentos do setor imobiliário (similar
ao processo de gentrificação), quando a dupla começou a se envolver em eventos
que tinham como foco os usos do espaço público. O primeiro deles chamado
23 art uerj III semana de pesquisa em artes
“Park Fiction 3 ½, parques e políticas” foi realizado em 1995 e incluía uma série de
palestras sobre parques, onde começou a ser pensada na ocupação de uma área
abandonada que certamente viraria um novo empreendimento. Na continuação
realizou-se “Park Fiction 4 – um dia os desejos sairão das casas e ocuparão a rua”,
onde esta área foi ocupada por exposições e oficinas, promovendo um espaço de
encontro de membros de dentro e fora da região. A partir daí foram promovidas outras
atividades de planejamento urbano participativo, necessitando de uma dedicação
tanto para se envolver com a diversidade de grupos implicados quanto para negociar
com os poderes públicos, sem perder sua dimensão criativa e lúdica, “como um jogo
imaginativo”10. Dentro do campo mais institucional da arte, o projeto participou da
mostra de arte Documenta 11, em 2002 na cidade de Kassel, com a preocupação de
mostrar os registros do processo em um espaço expositivo mais interativo. O projeto
se definia enquanto uma “produção coletiva de desejos”, e neste sentido o conceito
de desejo estaria próximo das concepções de Felix Guattari e Gilles Deleuze, onde
este processo é visto “não como algo que sucede entre o encontro entre pessoas,
senão o que se sucede entre uma singularidade desterritorializada e um fora
desformalizado”11. Ou seja, se dá na presença efetiva e comprometida com o outro –
um processo de alteridade.
O conjunto de imagens produzidas no processo de construção do Park
Fiction, de acordo com Laddaga é definido como “imagens que marcam rotas, que
são atratores nessas rotas que vinculam espaços e estão destinados em colocar
em contato grupos e indivíduos”12. Esta idéia de pensar as imagens não como
produtos finais e objetos artísticos em si, fechados e autônomos, mas enquanto
indicadores de rotas de encontro é fundamental para pensar em uma forma de expor
os resultados. Uma vez que haverá uma seleção de todo o material registrado e
resultante das diversas ações, este conjunto reduzido formado por fotos, cartazes,
vídeos e áudios possuem este caráter de chamar a atenção. Uma sedução que,
no entanto, não se almeja ficar no plano da atitude contemplativa ou individual do
espectador, e sim pautar uma discussão sobre os assuntos que estiveram presentes
no desenvolvimento dos projetos artísticos.

24 art uerj III semana de pesquisa em artes


5. Dispositivos relacionais e de contraste
É neste sentido que podemos traçar uma relação direta com o conceito de
dispositivo relacional, postulado por Nicolas Bourriaud em seu livro “Estética Relacional”
(2006). Nele, o autor busca enfatizar o caráter relacional de projeto de arte atuais,
mesmo que grande parte dos seus exemplos seja de artistas que tem o espaço da
galeria e/ou museu como local de partida e chegada para tais relações entre artista,
obra e espectador. Para explicar o caráter constitutivo de uma obra de arte, Bourriaud
retoma a questão da “forma” como base para sua configuração no mundo. É pela
forma – ou por sua materialidade – que o artista mostra algo na medida em que há um
espectador para ver. Nesta relação já se estabelece, para Bourriaud, uma negociação
entre agentes para que uma obra de arte aconteça (e esta não necessita ser
exatamente um objeto, mas precisa existir em alguma instância). Nas suas palavras

a essência da prática artística residiria assim na invenção de relações


entre os sujeitos; cada obra de arte em particular seria a proposta para
habitar um mundo em comum e o trabalho de cada artista, um feixe de
relações com o mundo, que geraria por sua vez outras relações, e assim
sucessivamente até o infinito.13

Resumidamente, Bourriaud enfatiza a ação do artista de se apropriar da


função da obra de arte enquanto um dispositivo relacional, na medida em que busca
se aproximar do espectador e colocar outros agentes (fora também da esfera da
arte) em contato, metaforicamente como “uma máquina que provoca e administra
encontros individuais ou coletivos”.14
Como colocado anteriormente, são encontros que não se configuram de
maneira fortuita. Exigem dos envolvidos uma disposição de entrega e confiança,
tendo em vista que a realização de um objetivo (seja ele de cunho artístico ou
não) se dá pela soma de diversos momentos do processo maior. Estes momentos
compreendem desde a alegria de notar a existência de um grupo ampliado, com
as necessidades e desejos muito parecidos, até a compreensão das diferenças de
perspectiva que cada integrante carrega dentro do todo. É por contraste que nos
diferenciamos do outro e compreendemos nossa própria existência.

25 art uerj III semana de pesquisa em artes


Referências bibliográficas
BOURRIAUD, Nicolas. Estética Relacional. Buenos Aires: Adriana Hidalgo, 2006. 144 p.
KESTER, Grant H. Conversation pieces: collaboration and artistic identity. In: Unlimited Partnerships:
Collaboration in Contemporary Art, CEPA Gallery. Buffalo: New York, 2000. Disponível em: <http://
digitalarts.ucsd.edu/~gkester/Research%20copy/Partnerships.htm> Acesso em 31 de maio de 2008.
_____________. Colaboração, arte e subculturas. In: HARA, Helio. (Org.) Caderno Videobrasil
02 - Arte Mobilidade Sustentabilidade. São Paulo: Associação Cultural Videobrasil, SESC São
Paulo, 2006. Disponível em: <http://www.sescsp.org.br/sesc/videobrasil/vbonline/bd/index.asp?cd_
entidade=483578&cd_idioma=18531> Acesso em 30 abr 2008.
LADDAGA, Reinaldo. Estética de la emergência: la formación de otra cultra de las artes. Buenos Aires:
Adriana Hidalgo, 2006.
ROLNIK, Suely. Alteridade a céu aberto: O laboratório poético-político de Maurício Dias & Walter
Riedweg. In: Posiblemente hablemos de lo mismo, catálogo da exposição da obra de Mauricio Dias e
Walter Riedweg. Barcelona: MacBa, Museu d’Art Contemporani de Barcelona, 2003. Disponível em: <http://
www.pucsp.br/nucleodesubjetividade/Textos/SUELY/alteridadewalter.pdf> Acesso em 7 mar. 2007.
WASEM, Marcelo Simon. Processos colaborativos, contaminações e jogos de alteridade em arte
pública: experiências na criação de uma rádio comunitária – Florianópolis, SC, 2008. Dissertação de
mestrado (Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais) – Universidade do Estado de Santa Catarina,
Florianópolis.

Notas
1 WASEM, Marcelo Simon. Processos colaborativos, contaminações e jogos de alteridade em arte
pública: experiências na criação de uma rádio comunitária – Florianópolis, SC, 2008. Dissertação de
mestrado (Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais) – Universidade do Estado de Santa Catarina,
Florianópolis.
2 Nossa tradução para o título “Conversation Pieces: Collaboration and Artistic Identity”.
3 ibidem, p.21.
4 ibid., p.14-5.
5 ibid., p.15.
6 2006, p.43.
7 ibidem, p.9, grifo dos autores.
8 ibidem, p.6.
9 ix ibidem, p.41.
10 KESTER, Grant H. Colaboração, arte e subculturas, 2006, p.25.
11 LADDAGA, 2006, p.83.
12 Tradução nossa de “imágenes que marcan rutas, que son atractores em esas rutas que vinculan
espacios y están destinados a poner em contacto a grupos e individuos”, ibidem, p.88.
13 BOURRIAUD, 2006, p.23.
14 ibidem, p.33.

26 art uerj III semana de pesquisa em artes


III semana de pesquisa em artes
10 a 13 de novembro de 2009 art uerj
a arte e seus circuitos

Quando as vanguardas vão para a galeria: o caso do Instituto Brasil-


Estados Unidos

Tarcila Soares Formiga

PPCIS – UERJ

Entre 1940 e 1960, grandes transformações se processaram no campo artístico brasileiro.


Nesse momento, o IBEU se destacou por valorizar os artistas não consagrados e as correntes
artísticas consideradas vanguardistas. O objetivo deste trabalho é analisar como o discurso em
torno da revelação de novos artistas foi mobilizado pelo instituto como uma forma de agregar
legitimidade cultural.

IBEU; campo artístico; arte moderna.

From the middle of the decade of 40 to the beginning of the decade of 60, great transformations
were processed in the Brazilian artistic field. On that moment, the IBEU stood out for valuing no
consecrated artists and the avant-garde artistic currents. This work intends to investigate how
the speech of revealing new artists was mobilized by the institute to conquer cultural legitimacy.

IBEU; artistc field; modern art.

Em 1962, foi inaugurada na galeria do Instituto Brasil-Estados Unidos (IBEU)


a exposição Alguns Novos, exposição esta que passou a ser realizada anualmente
e que permanece até hoje como símbolo de uma atitude inovadora por parte do
instituto1. Nos objetivos propostos pelos membros da comissão de arte ao sugerir tal
exposição – que contou com obras da artista até então desconhecida, Anna Bella
Geiger – é possível vislumbrar algumas características que foram atribuídas à galeria
IBEU e que marcaram sua trajetória, tais como a valorização de artistas ainda não

27
consagrados e das correntes artísticas consideradas vanguardistas. Nesse sentido,
a galeria IBEU seria destacada enquanto um espaço destinado à propagação do que
havia de mais inovador no campo das artes, inserindo-se, assim, no intenso debate
em torno das diversas manifestações da arte moderna.
O IBEU, que foi inaugurado em 1937 e patrocinou sua primeira exposição em
1940, passou a contar com uma comissão de arte em 1944 e seus integrantes seriam
responsáveis pela escolha da programação cultural do instituto. Dentre os membros
dessa comissão, é importante ressaltar o trabalho de Marc Berkowitz, responsável
pela criação das exposições Alguns Novos e O Rosto e a Obra, mostras estas que
se tornaram uma marca registrada do instituto. De acordo com o próprio Berkowitz
(1985), a origem dessa comissão de arte, em substituição àquela que havia sido
criada em 1943, é explicada pela preocupação do primeiro presidente do instituto,
Afrânio Peixoto, em fazer a balança pender progressivamente para os grupos
vinculados à arte moderna. Além de Berkowitz, essa nova comissão contou com a
presença de Augusto Rodrigues e Alcides da Rocha Miranda.
No discurso dos membros da comissão de arte do instituto, o destaque garantido
aos artistas modernos só seria possível em um espaço cuja preocupação não fosse
apenas com o lucro. Somente a ausência de vínculos com o mercado ofereceria
liberdade suficiente para a escolha dos artistas mais antenados com as linguagens
contemporâneas da arte. Nesse sentido, Berkowitz ressaltou o caráter “puramente
cultural” da galeria IBEU, em contraste com as galerias mais comerciais, o que
possibilitou a criação de um espaço para as correntes artísticas mais inovadoras. Além
disso, para reforçar uma suposta despreocupação com o lucro, o instituto não cobrava
dos artistas uma comissão pela venda de suas obras, como acontecia em outras
galerias. Essa distinção entre dois tipos de galeria – uma cultural e outra comercial –
aparece nesse depoimento da atual curadora da galeria IBEU, Esther Emilio Carlos:

Hoje em dia o IBEU é considerado a única galeria que existe que lança a
arte contemporânea e que não cobra nada. Porque é uma galeria cultural
(...) A única coisa que eles pedem agora é uma obra para o IBEU, a
critério do artista2.

28 art uerj III semana de pesquisa em artes


Nessa idéia de uma galeria “puramente cultural”, preocupada apenas com a
revelação de novos artistas, fica implícita uma oposição entre a galeria comercial,
que adota uma política cultural mais agressiva, concentrando-se em um grupo ou
nos artistas já consagrados, e a “galeria filtro” que funciona como uma vitrine para os
novos talentos (Bueno, 1999). No caso da galeria IBEU, os membros da comissão
de arte deixavam saliente o aspecto cultural da galeria quando desejavam se
diferenciar daquelas que mantinham contrato com seus artistas. Porém, ao adotar
uma estratégia diferenciada de atuação, a galeria nem sempre conseguiu colher os
frutos de seu investimento nos artistas não consagrados: quando estes conquistavam
reconhecimento, passavam a expor em espaços inseridos no mercado de arte.
A estratégia dos membros da comissão de arte para legitimar suas escolhas
passava pelo reconhecimento de seu próprio altruísmo, ao consagrar artistas que
não possuíam nenhum espaço para expor e não cobrar deles nenhuma comissão
pela venda de suas obras. Além disso, a imagem do IBEU seria sempre reforçada
tendo em vista a ausência de espaços para exposições de arte moderna em um
momento em que as galerias de arte no Rio de Janeiro eram escassas e os museus
de arte moderna e a Bienal ainda não haviam sido inauguradas. Para enfatizar sua
imagem de espaço destinado aos valores modernos, o IBEU patrocinou as primeiras
exposições individuais no Rio de Janeiro de vários artistas considerados abstratos,
dentre eles Almir Mavignier, Ivan Serpa, Franz Weissman, Iberê Camargo, entre
outros.
A presença desses artistas em diversas exposições realizadas pela galeria
IBEU revela uma aproximação, ainda que não abertamente assumida pelos membros
da comissão de arte, com a corrente abstrato-geométrica. Esse posicionamento da
galeria em relação ao abstracionismo contrastava com outros espaços destinados à
valorização da arte moderna que ainda assumiam uma postura “tradicional”, como é
o caso do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro cuja preocupação em facilitar a
comunicação com o público fez com que se concentrasse em obras de arte de valor
assegurado. De acordo com Baptista (2007), essa preocupação estava intimamente
relacionada com o processo de afirmação da arte brasileira e com a consolidação
de um mercado de arte. A presença de obras dos artistas já reconhecidos nas

29 art uerj III semana de pesquisa em artes


exposições realizadas no MAM, por exemplo, expressava, principalmente, o interesse
em comercializar as obras expostas. O IBEU, ao contrário, desde o início da década
de 50 investiu naqueles que, de acordo com Mário Pedrosa, seriam os representantes
da primeira vanguarda brasileira. A ligação do IBEU com o concretismo foi de tal
forma flagrante que culminou na primeira exposição do Grupo Frente realizada no
instituto.
O interesse dos membros da comissão de arte, ao realizar exposições de
artistas não consagrados, era garantir a legitimidade cultural do instituto entre seus
pares. Enquanto algumas galerias ficavam encarregadas de expor os artistas mais
antigos e consagrados, outras se especializavam nos artistas mais jovens, criando
assim uma divisão do trabalho no interior do campo artístico (Bourdieu, 1996). Nessa
divisão, a galeria IBEU abrigou os artistas considerados vanguardistas e, para justificar
a prioridade garantida a esses artistas, construiu um discurso marcado pela recusa
da lógica comercial que predominava no comércio de arte. É possível perceber essas
características no convite da exposição 7 novíssimos, realizada em 1968:

Mais uma vez a Galeria IBEU apresenta artistas novos ao público


carioca. Muitos foram os artistas que estrearam sob os auspícios
do IBEU, nos vinte e cinco anos que existe a sua Comissão de Arte.
E muitos destes artistas estão hoje na vanguarda da arte brasileira
(...) Uma tradição que nada tem a ver com interesses comerciais
ou ideológicos; procura apenas, promover jovens artistas de talento
(Berkowitz, 1968).

Porém, ainda que o objetivo dos membros da comissão de arte fosse


apresentar os artistas ligados aos movimentos de vanguarda, nem sempre aqueles
que eram escolhidos para expor na galeria representavam de fato o que havia de
mais contemporâneo no campo das artes plásticas. A idéia da exposição Novíssimos,
por exemplo, cujo objetivo seria apresentar artistas desconhecidos e que estivessem
produzindo algo inovador, chegou a ser questionada pelos críticos de arte. Muitos
deles alertaram que essa mostra não cumpria com sua proposta, e não deixava

30 art uerj III semana de pesquisa em artes


claro se os artistas participantes deveriam propor inovações estéticas, ou se bastava
ser novo em relação à idade. Ademais, os artistas participantes dessa exposição
mostravam um desconhecimento em relação às manifestações pós-modernas da
arte – não havia, por exemplo, representantes da pop art ou da arte cinética –, o que
significava que a “novidade” tão pregada pelos membros da comissão de arte não
passava de uma escolha do que seria de fato inovador; e essa escolha passava,
obviamente, por seu crivo.
A realização da mostra Novíssimos, a partir da década de 60, fez parte de
uma mudança importante nos rumos da galeria IBEU: entre as décadas de 40 e
50, a galeria valorizou as exposições individuais de artistas não consagrados; após
esse período, essas exposições foram suplantadas pelas mostras temáticas. Nessas
mostras, artistas de diversas tendências – consideradas inovadoras ou não – estavam
reunidos na mesma exposição. Associada inicialmente aos artistas abstratos, quando
as primeiras exposições individuais desses artistas foram realizadas na galeria do
instituto, com a ênfase nas mostras temáticas esses artistas passaram a conviver com
os representantes das primeiras gerações modernistas, como aconteceu na exposição
O retrato como tema, realizada em 1962, onde foi possível ver artistas como Volpi e
Ivan Serpa expondo juntamente com Portinari, Lasar Segall e Di Cavalcanti.
Em um momento em que as galerias começaram a se especializar – ora
expondo artistas antigos e consagrados, ora expondo os mais jovens – o IBEU
passou a se destacar por um certo ecletismo, visível nas diversas tendências
representadas em uma mesma exposição. Para ilustrar a importância que as
exposições temáticas adquiriram na programação da galeria, é necessário citar a
mostra O Rosto e a Obra, inaugurada em 1960, que é considerada um marco da
história da galeria pela repercussão que ela obteve na crítica. Na sua primeira edição,
a mostra contou com artistas como Aluísio carvão, Décio Vieira, Ivan Serpa, Tomie
Otake, Fayga Ostrower, Oswaldo Goeldi, Volpi, Iberê Camargo, entre outros.
Em 1960, com a inauguração da galeria IBEU, a realização de mostras
temáticas tornou-se mais freqüente. Até aquele momento, as exposições patrocinadas
pelo instituto eram realizadas em espaços improvisados como a sede do Instituto dos
Arquitetos do Brasil (IAB) e, a partir de 1951, na sede do IBEU no Flamengo, quando

31 art uerj III semana de pesquisa em artes


as exposições ocupavam o corredor do instituto. A inauguração da sede do IBEU em
Copacabana, juntamente com um espaço próprio para a realização de exposições3,
coincidiu com um aumento expressivo do número de galerias localizadas no mesmo
bairro e em outras áreas da zona sul da cidade4. Diferentemente das galerias
existentes no início do século XX – vinculadas a livrarias e antiquários –, a partir da
década de 60 elas passaram a se constituir enquanto espaços autônomos e suas
atividades tornaram-se regulares.
É justamente nesse momento, com a expansão das galerias e o surgimento
dos leilões de arte, que teve início a formação de um mercado para as obras de
artes plásticas, principalmente no eixo Rio-São Paulo5. Como característica desse
mercado incipiente, criou-se uma divisão do trabalho entre as galerias particulares
e os artistas passaram a se vincular a elas por meio de contratos (Durand, 1984).
Ademais, a diversificação das instâncias de consagração possibilitou que os artistas
premiados nas Bienais e nos Salões, e elogiados pela crítica passassem a expor
com regularidade nas galerias que já operavam em maior número. Se no período
anterior à formação do mercado de arte, os artistas desprovidos de capital simbólico
não tinham possibilidade de ascender, com o aumento dos espaços de exposição e
das premiações, suas chances de reconhecimento no campo artístico se elevaram.
No dizer de Durand, “um bom número de artistas vivos, incluindo vários jovens, passa
a ser objeto uma aceitação comercial que lhes autoriza uma profissionalização bem
mais precoce do que a de seus colegas da geração anterior” (Durand, 1990: 107).
Desse modo, com a expansão do número de galerias e a formação de
um mercado de arte, a galeria IBEU deixou de ser o espaço privilegiado da arte
moderna. Se sua atuação inicial foi marcada pelas exposições individuais de artistas
desconhecidos, muitos daqueles que iniciaram sua trajetória sob o auspício da galeria
acabaram sendo contratados por outras galerias quando adquiriram prestígio. Em
um momento em que a racionalização nas formas de distribuição e organização da
cultura criou hierarquias não só entre artistas e correntes estéticas, mas também
entre os próprios espaços de exposição, a galeria IBEU teve que optar por deixar de
lado as exposições individuais, já que grande parte dos artistas desejava associar sua
imagem aos espaços com uma atuação mais voltada para o mercado.

32 art uerj III semana de pesquisa em artes


Como exemplo dessas hierarquias criadas entre os espaços de exposição,
é possível citar a atuação das galerias Bonino e Petite Galerie, que investiram nos
artistas das primeiras gerações modernistas. Outras galerias tiveram dificuldade
para atrair os artistas mais reconhecidos dessa geração e criaram estratégias para
se inserir no mercado, como foi o caso da galeria Relevo, cujo sócio, Jean Boghici,
investiu nas obras antigas dos grandes pintores modernos e resgatou artistas que
estavam desvalorizados no período, como Tarsila do Amaral, Ismael Nery e Anita
Malfatti.
Com efeito, a ascensão de determinadas correntes estéticas só foi possível
através de determinadas instituições, como os museus e galerias, que viabilizaram
sua afirmação no campo artístico. No caso da galeria IBEU, como os artistas
modernistas e acadêmicos marcavam presença em grande parte das instituições
artísticas, sua saída estratégica foi investir nos artistas abstratos que ainda não eram
um foco de atenção dos galeristas e marchands, mas que já despontavam como uma
nova tendência prestes a dominar o campo artístico. No entanto, a partir de meados
da década de 50, quando a corrente abstrata foi devidamente reconhecida, e a
discussão com o figurativismo foi deixada de lado para dar lugar a uma disputa entre
vertentes da linguagem abstrata, esses artistas também passaram a ser disputados
pelas galerias. Até o momento em que os artistas ligados a essa corrente tiveram que
lutar para garantir sua legitimidade no campo artístico, a galeria IBEU serviu de abrigo
para as suas primeiras exposições individuais. Quando os espaços de legitimação e
consagração aumentaram, esses artistas foram finalmente incorporados e passaram
a expor em outros espaços.
Além das galerias, que juntamente com os críticos eram os principais agentes
na construção do valor das obras de arte, os marchands também adquiriram
importância nesse momento, transformando obras de artistas esquecidos em artigos
de luxo. A ascensão desse novo agente no campo artístico esteve intimamente
relacionado, segundo Durand (1984), aos efeitos gerados pela fundação das Bienais
e dos museus de arte moderna, que possibilitaram uma maior aceitação dessa arte
entre os círculos burgueses. Sobre a atuação desses marchands, Berkowitz (1962)
destaca que sua influência aumentou de tal modo que eles passaram a intervir na

33 art uerj III semana de pesquisa em artes


escolha dos artistas para as mostras oficiais. No entanto, ele via com desconfiança
essa intervenção, já que os marchands poderiam escolher os artistas ligados a sua
galeria com o intuito de valorizá-los no mercado.
Esses novos intermediários culturais seriam os principais responsáveis pela
transformação do valor estético em valor econômico (Becker, 1982). Desse modo,
quando Berkowitz ressaltou os problemas ligados à atuação desses agentes, ele
fez uma crítica à intervenção do mercado no campo das artes plásticas. Enquanto
a maioria dos galeristas optava por comprar a produção antiga dos modernistas a
um baixo custo com o intuito de valorizá-la e vendê-la, a galeria IBEU se destacava
pela “retórica de exorcismo do lucro econômico” (Durand, 1990). Assim, enquanto
as outras galerias se especializavam em determinadas correntes como parte de sua
estratégia comercial, a galeria IBEU procurou não priorizar tendências, reforçando
um discurso em torno da qualidade das obras, como é possível ver neste trecho do
convite da mostra Coletiva Brasileira:

Aqui se encontram artistas consagrados, outros menos consagrados e


alguns novos. Pertencem às mais diversas tendências e escolas. São
pintores, gravadores, escultores e desenhistas. O seu denominador
comum é a qualidade, e o fato de que todos contribuem para a evolução
da arte brasileira. Arte ainda nova, hesitante, influenciável – mas já com
pontos muito altos, sobretudo, real e palpitante de vida (Berkowitz, 1966).

Em muitos casos, o discurso que priorizava os valores novos da arte não era
abandonado, mas surgia juntamente com o novo critério adotado, qual seja, aquele
que previa a qualidade das obras de arte expostas. No dizer de Berkowitz, por
ocasião da abertura do I Salão Nacional de Artes Plásticas do instituto:

O verdadeiro sentido de um Salão não deve ser a consagração de


artistas já conhecidos, mas sim a revelação de valores novos, ou pelo
menos sua reafirmação. Acredito que o júri deste Salão IBEU fez bem
em ser severo na seleção, porque o importante era estabelecer um nível

34 art uerj III semana de pesquisa em artes


elevado, sem favorecer nenhuma corrente ou defender algum “ismo”.
A procura foi puramente de qualidade, dentro dos diversos moldes
estabelecidos pelos artistas. Dentro dessas exigências de nível elevado,
este Salão apresenta algumas revelações – na pintura, na gravura e no
desenho (Berkowitz, 1960).

O discurso dos membros da comissão de arte do IBEU em torno da ausência


de interesses comerciais e da valorização da qualidade das obras revela as
“múltiplas manifestações estratégicas, altamente simbólicas, que contribuem para
a especificidade do mercado artístico” (Moulin, 2007: 10). Enquanto a galeria IBEU
valorizava o ecletismo das mostras e os artistas não reconhecidos como uma forma
de agregar legitimidade cultural, as outras galerias tiveram como principal estratégia
a recuperação de determinados artistas esquecidos e a transformação de suas obras
em artigos comercializáveis.
A valorização dos artistas não consagrados era apenas uma das formas
encontradas pelos membros da comissão de arte do IBEU para se diferenciar de
outros estabelecimentos artísticos. Ao contrário dos outros espaços de exposição, a
galeria IBEU não tinha vínculo com os artistas por meio de contratos; não cobrava
comissão pela venda das obras; estava inserida em um espaço de valorização da
cultura norte-americana, principalmente por meio da difusão da língua inglesa; e não
investiu nos artistas oriundos do “modernismo histórico”, ainda que eles tivessem
marcado presença em algumas exposições da galeria. O discurso principal do
instituto girava em torno da valorização de artistas que não tinham espaço para expor
e que se destacavam pela qualidade e pioneirismo de suas obras.
Diante da peculiaridade desse discurso, que foi fundamental para que o IBEU
conquistasse um lugar destacado no campo artístico, é possível afirmar que os
membros da comissão de arte do instituto tiveram um papel importante na imposição
de novas classificações estéticas. A disputa que tinha por objetivo definir o que
seria de fato arte moderna envolveu não somente os artistas e críticos de arte, mas
também os museus de arte moderna recém-inaugurados e as galerias de arte. Nesse
contexto, o IBEU se destacou por tentar legitimar os artistas que não desfrutavam

35 art uerj III semana de pesquisa em artes


de prestígio. Embora não tivessem se posicionado explicitamente frente aos debates
travados na época, ao defenderem os valores novos na arte, os membros da
comissão de arte do IBEU estavam tomando partido dos artistas ligados à abstração.

Bibliografia
BAPTISTA, Anna Paola. Absolutamente modernos? A arte brasileira das Bienais e dos MAMs e os desafios
de uma coleção particular. Revista Brasileira de Museus e Museologia, Rio de Janeiro, n. 7, p. 67-78, 2007.
BECKER, Howard. Art Worlds. Berkeley e Los Angeles: University of California Press, 1982.
BERKOWITZ, Marc. 25 anos da galeria IBEU. Rio de Janeiro: IBEU, 1985. Catálogo de exposição.
______. 7 novíssimos. Rio de Janeiro: IBEU, 1968. Convite da exposição.
______. I Salão Nacional de Artes Plásticas do IBEU. Rio de Janeiro: IBEU, 1960. Folder.
______. Duas Exposições Norte-Americanas. O Globo. Rio de Janeiro: 09/04/1962.
______. Coletiva Brasileira. Rio de Janeiro: IBEU, 1966. Convite de exposição.
BUENO, Maria Lúcia. Artes plásticas no século XX: modernidade e globalização. Campinas: Editora
Unicamp, 1999.
______. O mercado de galerias e o comércio de arte moderna: São Paulo e Rio de Janeiro nos anos 1950-
1960. Revista Sociedade e Estado, Brasília, v. 20, p. 377- 402, 2005.
DURAND, José Carlos. Arte, privilégio e distinção: artes plásticas, arquitetura e classe dirigente no Brasil,
1955/1985. São Paulo: Perspectiva: EDUSP,1989.
______. Expansão do mercado de arte em São Paulo, 1960-1980. In: MICELI, Sérgio (Org.). Estado e
cultura no Brasil. São Paulo: DIFEL, 1984.
______. Mercado de arte e campo artístico em São Paulo, 1947-1980. Revista Brasileira de Ciências
Sociais, São Paulo, v. 13, n. 13, p. 101-111, 1990.
MOULIN, Raymonde. O mercado da arte: mundialização e novas tecnologias. Porto Alegre: Zouk, 2007.

Notas
1 Em 1967, essa exposição passou a se chamar Novísssimos.
2 Depoimento de Esther Emilio Carlos. 26/08/1999. IBEU nas artes visuais 1940-2000. Rio de Janeiro:
IBEU, 2000.
3 A galeria foi projetada pelo arquiteto Wit Olaf Prochnick, e na época foi considerada um dos melhores
espaços de exposição da cidade.
4 Sobre a localização das galerias na cidade, Bueno escreve: “No rio, elas se estabeleceram na Zona
Sul, próximas a orla marítima, nos bairros de Copacabana e Ipanema, que concentravam a vida social da
burguesia, o fluxo turístico e parte do comércio de luxo” (Bueno, 2005: 388).
5 Sobre esse período, Roberto Pontual escreve: “A abertura da década de 1960 trazia mudanças
sensíveis no comportamento do mercado nacional de arte, sobretudo no eixo Rio-São Paulo. Incipiente e
ambíguo, mas ao menos operoso, ele começava a funcionar através de galerias condignas e marchands
de olho na contemporaneidade. A galeria Bonino, inaugurada no Rio em 1960, e a ação de Jean Boghici,
bem como de Franco Terranova, na mesma cidade, exemplificavam um novo estado de coisas” (Pontual,
1967, apud Durand, 1984: 182).

36 art uerj III semana de pesquisa em artes


III semana de pesquisa em artes
10 a 13 de novembro de 2009 art uerj
arte e cultura urbana

Visualidade e o caráter mutante da escadaria Selaron

Alexandre Guimarães

PPGARTES – UERJ

A presente pesquisa, inserida na linha arte, cognição e cultura do programa de Mestrado em


Artes da UERJ, busca abrir campo de entendimento sobre a visualidade e o caráter mutante da
Escadaria Selaron, articulando conceitos e idéias de Aby Warburg, Georges Bataille e Marcel
Mauss. Situada no Rio de Janeiro, interligando o Largo da Lapa e a ladeira de Santa Teresa,
a referida intervenção urbana apresenta, além do fascinante mosaico colorido, a intrigante
substituição periódica de azulejos, conferindo à obra exterioridade particular e diferenciada.

Despesa; potlatch; serpente.

The present research, inserted in the line art, cognition and culture of the program of Master in
Arts of the UERJ, search open field of understanding about the visual aspect and the character
mutant of the “Stairway Selaron”, articulating concepts and ideas of Aby Warburg, George Bataille
and Marcel Mauss. Situated in the Rio de Janeiro, interconnecting the Square of the Lapa and the
Santa Teresa´s slope, it referred urban intervention presents, beyond the fascinating colorful mosaic,
intriguing periodic substitution of tiles, conferring to the work differentiated outward appearance.

Expenses; potlatch; snake.

1. Construção e destruição da Escadaria Selaron: a despesa e o ‘potlatch’

“Não basta que as jóias sejam belas e deslumbrantes, o que tornaria


possível a substituição pelas falsas: o sacrifício de uma fortuna, à qual se
preferiu um rio de diamantes, é necessário para a constituição do caráter
fascinante desse rio.”
Georges Bataille
37 art uerj III semana de pesquisa em artes
Causaria o mesmo impacto, encanto ou efeito, a colorida escada de azulejos
situada entre o Largo da Lapa e a Ladeira de Santa Teresa no Rio de Janeiro,
conhecida como a Escadaria Selaron, caso deixasse de revelar na sua constituição
e no seu caráter o expediente da perda contínua? Desconsiderando o propósito da
renovação de azulejos, seu autor atingiria o mesmo resultado? O conceito de “despesa
improdutiva” 1 admitido e defendido por George Bataille como concernente e próprio
do domínio das artes, no caso especial desta intervenção, não suscitaria questões
importantes a serem problematizadas acerca da arte pública e contemporânea? Nestes
termos, como buscar entender quais as razões que levariam um artista a realizar uma
intervenção urbana recobrindo caprichosamente com inúmeros azulejos uma extensa
escadaria pública para depois refazê-la, recriando, nela mesma, diferentes arranjos
de tempos em tempos? Como buscar compreender esta obra e as ações de seguidas
despesas, decorrentes de iniciativa e engenho particulares, aplicadas em reduto
ocultado por prédios e sobrados, situado em um dos corredores que remontam antigos
e periféricos acessos da cidade? Além disso, uma vez realizada, qual seria a melhor
explicação para a destruição deliberada desses azulejos já engastados e fixos à escada
de modo esmerado, com a subseqüente substituição periódica por outros exemplares?
O que justificaria tamanho empreendimento, tanto esforço e dedicação, incluindo o ato
voluntário de troca do revestimento constituído da referida matéria plástica pelo mesmo
material, já que ostenta, além do luxo, da beleza de cor e de brilho, a propriedade física
de longa durabilidade? Não à toa esta obra passou a ser referida e conhecida como
a “Grande Loucura” de seu criador. Ora, uma vez considerando o extenso percurso
da escada, tal prodígio por si só, já justificaria para muitos a expressão. Além disso, a
prática de substituição de azulejos por outros exemplares, só faz parecer para muitos o
termo ainda mais apropriado. O próprio título de tombamento municipal conferido a esta
intervenção artística na cidade do Rio de Janeiro, torna-se um tanto quanto sui generis,
contraditório, caso consideremos os termos do Decreto-Lei 25 de 1937. De modo
excepcional, admite tanto a preservação como a possível alteração de sua aparência.

Art. 1º. Ficam tombados, provisoriamente, por seu valor cultural, nos
termos do art. 5º. Da Lei 166, de 27 de maio de 1980, a escadaria

38 art uerj III semana de pesquisa em artes


Escadaria Selaron,
Lapa. RJ

39 art uerj III semana de pesquisa em artes


situada à Rua Manoel Carneiro, ligando a Rua Joaquim Silva à Ladeira
de Santa Teresa, no Bairro de Santa Teresa, XXIII Região Administrativa,
bem como os trabalhos e azulejaria executados no local, de autoria do
artista plástico Jorge Selarón.
Art. 2º. Qualquer obras e intervenções na escadaria de que trata o artigo
anterior deverão ser previamente analisadas pelo Conselho Municipal de
Proteção do Patrimônio Cultural do Rio de Janeiro.
Art. 3º. Os trabalhos artísticos em azulejaria referidos no art. 1º. Só
poderão ser modificados, alterados ou complementados, a qualquer
tempo, pelo próprio autor, ou, em situações especiais, pelas mãos
de terceiros, através de sua autorização expressa, e nesse caso,
encaminhada à analise e decisão do Conselho Municipal de Proteção do
Patrimônio Cultural.2

Ora, a Escadaria Selaron, apesar de causar grande impacto em quem a vê,


arrebatando o olhar pela festa visual causada pelo grande mosaico de azulejos de
diversas cores, motivos e origens, procedentes de diferentes localidades do mundo,
ou mesmo, para alguns, pela sua condição estética esdrúxula ou destoante junto à
cidade, certamente perderia um dos seus mais fantásticos e fascinantes sentidos
caso acontecesse sem o recurso da troca. Parece razoável desde o início admitir que
seu caráter esteja intimamente relacionado à renovação periódica do material que a
constitui, já que existem despesas de recursos programadas, investimentos e raciocínio
plástico que se sobrepõe aos anteriores, além do dispêndio de tempo útil associados à
renovação, por parte do autor e responsável por esta obra, de tal modo que não se pode
ignorar a força destes dados, a somar, certamente, parcela importante no entendimento
da exterioridade dessa intervenção artística, instalada em recanto obscuro da cidade e
talvez por isso ainda desconhecida de muitos cariocas e do próprio mundo da arte.
Talvez uma das chaves de entendimento dessa particularidade da escadaria
resida na natureza do próprio objeto artístico. Neste mérito, é importante observar
que Jorge Selaron inscreve seu maior feito de modo a se opor à lógica tradicional
das obras artísticas que ocupam as galerias de um museu, ou mesmo dos

40 art uerj III semana de pesquisa em artes


grandes obras públicas tradicionais alocadas em pontos chaves da cidade, como
os monumentos de bronze em logradouros públicos. De fato, pois tais obras para
existirem devem se conservar no tempo da mesma forma - foram feitas para durar (O.
Paz) 3 -, devendo ser apreciadas de acordo com sua aparência original. A Escadaria
Selaron, ao contrário, para de fato existir, promove a alternância de sua aparência
e por isso problematiza qualquer projeto ou intenção de tombá-la nos moldes do
Decreto-Lei 25/ 1937 que, em seu artigo 17, estabelece que “As coisas tombadas
não poderão e em caso nenhum, ser destruídas, demolidas ou mutiladas (...)”. Para
Selaron, o expediente da troca constitui uma característica fundamental de sua obra,
expressa em seu próprio discurso, reproduzido em cartões e na própria escadaria:
“só terminarei no dia da minha morte!” - sentencia. Trata-se, portanto, de uma
obra assumidamente mutante, como é anunciado e informado em texto assinado
pelo autor no painel de azulejos localizado à direita logo no principio da grande
intervenção. Assim sendo, o artista faz e refaz sua escadaria, não pela intenção de
restauro ou pela necessidade de algum reparo, mas porque é de sua própria ordem,
de sua própria natureza. Cabe notar, que, com essa demanda ou exigência irrefreável
por parte do artista, o sentido da perda de Bataille cresce sobremaneira, pois passa
converter-se no sentido da própria obra, de modo a torná-la inseparável da despesa,
que sempre virá, já que se estabelece de maneira continuada.

“Esta obra de arte começou no ano de 1990 como uma grande


homenagem minha ao povo brasileiro, usando as cores da bandeira
do Brasil, verde- azul e a amarelo. No ano de 1998, quando esta obra
estava quase pronta conheci um lugar onde vendiam azulejos europeus
antigos (na praça XV aos sábados) para colecionadores e decoradores:
fiquei impressionado, eu tinha que comprá-los nem que fosse um a
um. Conforme trazia os novos azulejos importados, já não tinha lugar
para mais nada. Então inventei de trocar sempre os azulejos, uma
substituição permanente dos mesmo. Foi um invento inédito, uma
obra de mutante, uma obra de arte viva.” 4
Jorge Selaron

41 art uerj III semana de pesquisa em artes


Portanto é a despesa contínua que irá permitir o verdadeiro sentido e
significado desta obra. Com efeito, sua exterioridade, em sentido amplo, se ajusta
mais à arte dita contemporânea que à arte pensada para “durar milênios” (O. Paz), e
zomba da prática pretérita que diz que a obra deve ser realizada e não mais alterada.
A Escadaria Selaron frustra essa expectativa daqueles que ainda a possuem. Trata-se
de um feito sempre re-feito, que de tempos em tempos assume novos arranjos, novas
faces, novas configurações. Para tanto, os arranjos de azulejos, cuja permanência
junto à obra possa alcançar tempo considerável, a qualquer hora podem ser
descartados, cedendo lugar a outras soluções de bricolagem a serem definidas pelo
artista. Se observarmos bem, não se trata de um trabalho de um engenheiro, mas
resulta da elaborada junção e combinação criativa de materiais ‘heteróclitos’ (C. Levi-
Satrauss), no caso, estranhos entre si, alguns frutos da indústria, outros artesanais,
uns históricos e antigos, outros recentes, comemorativos e representativos de algum
país. Além desses tipos de exemplares, Selaron, ao criar com a matéria azulejar não
se furta em utilizar, além dos azulejos, louças variadas, tais como pratos, relevos
de cerâmica para jardins, além das peças produzidas pela indústria destinadas a
integrar banheiros ou cozinhas. Compõe, portanto, a partir da reunião de recursos
materiais diferenciados, integrando-os e harmonizando-os segundo lógica visual
definida cuidadosamente pelo artista-bricoleur, onde “(...)elementos são recolhidos
ou conservados em virtude do princípio de que isso sempre pode servir.” 5 Não
obstante, deve-se sublinhar, mesmo investindo na coleta de recursos ‘heteróclitos’ e
no pensamento plástico harmonizante, ao compor cada parte da escada, investindo,
enfim, na construção de sua arte, não se importa de causar também a sua destruição.
Elaboração, empenho, resultado obtido, tudo sacrificado.
Assim sendo, o espetáculo mutante de Selaron também guarda a noção de
sacrifício, de perda, de morte. Nas palavras de Bataille, cujo pensamento se ancora
em Marcel Mauss, também se propõe, esta intervenção, promover “destruições
espetaculares de riqueza”. De tempos em tempos, como ocorreu nos primeiros
meses de 2009, uma leva enorme de azulejos, até então participantes do grande
feito de Selaron, foi sacrificada a marteladas, quebrada, sem que o artista deixasse
transparecer qualquer tipo de apego àquilo que outrora havia realizado com tanto

42 art uerj III semana de pesquisa em artes


esmero e que por algum tempo muitos pararam para olhar, admirar e fotografar.
Assim, azulejos variados, somados a um sobre-valor - por participarem de um
trabalho plástico manual, no qual o raciocínio plástico atuou -, são impiedosamente
destruídos.
Evidentemente, Selaron ao adotar esta prática da destruição de azulejos
desmonta a idéia tradicional da necessidade de conservação para sobrevivência de
uma obra, contrariando o “tempo sem tempo dos museus” (O. Paz), bem como a
intenção de guarda das coleções tombadas pelo patrimônio. Paradoxalmente, Selaron
“conserva” a existência de sua obra, na idéia de destruição, não obstante, para poder
usufruir da possibilidade de renovação e, com isso, se aproximar do que fora vivenciado
tão intensamente por várias tribos do noroeste americano estudadas por Marcel Mauss.
Assim, a troca de azulejos não deixa de remeter a antiga prática do “potlatch”. Nela, a
“perda ostentatória”, como trata Georges Bataille, significaria a sua própria essência.

A destruição de azulejos

43 art uerj III semana de pesquisa em artes


Como o próprio Bataille explica, ao traduzir pensamento de Marcel Mauss,
a riqueza “(...) é inteiramente dirigida para perda, no sentido em que esse poder é
caracterizado como poder de perder.”. Em outras palavras, só muito destrói, aquele
que muito tem.
Assim sendo, a fama, a glória e o reconhecimento conquistado por Selaron
pela escadaria, não se daria “apenas” em decorrência do grande feito de cobrir com
azulejos cada espelho de degrau da escada como bem lhe aprouvesse e com isso
considerar a obra definitivamente acabada. De modo algum, pois, cumpre notar que
a prática da construção e da destruição sustentada pela conta e interesse do artista,
também denota a ambição do próprio de tornar seu feito insuperável, a exemplo
do que ocorria com os antigos clãs por Mauss analisados. Selaron, ao propor o
espetáculo da escadaria, inclui neste mesmo empreendimento, como já fora dito,
o expediente da renovação, da mudança, da troca, no qual despesas contraídas
e aplicadas são “queimadas”, jogadas fora. Ora, com isso, passa a reeditar, esta
intervenção, a antiga prática do “potlatch”. Torna-se válida a correspondência ou
a analogia, na medida em que o artista-ladrilheiro da Lapa propõe dois modos de
anunciar seu feito, ambos dispendiosos e impactantes: a intervenção na escadaria
como uma grandiosa realização e a mesma escadaria modificada de tempos em
tempos, situação esta gerada somente depois de submetida a obra à quebra e à
perda. Construção ostentatória e destruição. Suntuosidade e ruína, ingredientes
fundamentais do “potlatch”.

“O ‘potlatch’ é esta instituição, até aqui tido como especial do Noroeste


americano, onde clãs e fratrias confrontados rivalizam entre si e em
despesas, mesmo em destruições de riqueza (...).”6

A obra da Escadaria da Lapa, desse modo, não deixa de reproduzir o propósito


de desafio do “potlatch”, se colocando como uma verdadeira provocação ao outro e
a quem atrever-se a superá-la. Ao pensar a escadaria, talvez Selaron quisesse cobrir
o desafio de tantos sacrifícios de despesas improdutivas, ofuscá-las. Nas palavras
de Bataille, seria como a “finalidade de fazer com que um outro perca essa posição.”

44 art uerj III semana de pesquisa em artes


Por isso, é comum escutar o artista considerar seu feito de modo sempre superlativo,
grandioso, quando comparado ao de qualquer outro artista. Talvez seja mais correto
dizer que o gesto da destruição de Selaron se associe a uma categoria de “potlatch”
difuso, amplo, onde não existiria um competidor oficial. De todo modo, a perda, a
destruição, portanto, seria para Selaron um ganho, a garantia de uma autoridade, de
uma supremacia.
Neste sentido, a noção de perda defendida por Georges Bataille, multiplicada
deliberadamente por Selaron, associa-se à escadaria na forma do “potlatch”, uma
vez que tal obra pode ser dimensionada em função da ambição do artista de querer
conquistar um prestígio inatingível e inserir-se no mundo da arte de modo reinante.
Prestígio este, somente garantido pela escadaria modificada, mutante, e não apenas
construída para permanecer intacta.

(...) as destruições, no noroeste norte-americano, chegam a incêndios


de aldeias, a afundamento de frotas de canoas. Lingotes de cobre
brasonados, espécies de moedas às quais por vezes se atrubui um tal
valor fictício, que eles constituem imensa fortuna, são quebrados ou
jogados ao mar.” 7 (Bataille)
Independente do modo como cada um tome conhecimento da troca de
azulejos, o fato é que o sentimento de encantamento ou de estranhamento perante
a escadaria atinge outra dimensão, sua exterioridade adquire outra escala e medida,
certamente um significado maior do que a se despesa improdutiva conhecesse um
resultado plástico final e definitivo.

2. A Escadaria Selaron: despesa e o pensamento mítico da serpente

“Ela experimenta ao longo do curso de um ano o ciclo de vida completo,


desde o mais profundo, letárgico e mortal sono à total vitalidade. Ela
muda superfície e permanece a mesma.”
Aby Warburg

45 art uerj III semana de pesquisa em artes


A dobra da Escadaria As ações de “despesa improdutiva” associadas à Escadaria Selaron poderiam
Selaron
se justificar ou encontrar um contrapeso de sentido não apenas pela idéia de
“potlatch”, mas também pela evocação de uma outra vivência, curiosamente,
também manifesta em determinadas culturas dos povos indígenas do noroeste norte-
americano – no caso nas tradições antigas dos índios Pueblo, cujos costumes e
modos de vida ensinavam a reverenciar a serpente. A possibilidade de vinculação da
obra analisada com esta simbologia não seria mera atribuição, significaria para Aby
Warburg - nome emblemático e de grande influência na historia cultural e na própria
história da arte -, indício importante da sobrevivência da cultura pagã ao longo da
história da humanidade. Ora, seguindo o estimulo desse ilustre pesquisador, passa a
acolher, esta breve análise, o pensamento mítico e simbólico da serpente.
Na verdade, o que se busca dizer é que o “potlatch” de Selaron se soma à
simbologia da serpente, que se faz notar por algumas evidências que abrem para

46 art uerj III semana de pesquisa em artes


questões importantes sobre a interioridade e a exterioridade da obra. Neste âmbito,
tornam-se preciosas as palavras de Erwin Panofsky quando diz que “conteúdo
pode ser descrito como aquilo que a obra denuncia, mas não ostenta”. Ora, entre
as evidências, podemos destacar o modo extenso, alongado como tal intervenção
urbana se anuncia, se estendendo na metragem monumental que perfaz o caminho
dos mais de duzentos degraus que compõem a grande escadaria, alongando-se em
seu trecho final após a dobra do arruamento-escada que nos conduz até a Ladeira
de Santa Teresa, junto ao Convento deste lugar histórico. Ora, o idealizador desta
obra poderia ter se intimidado com o tamanho do suporte escolhido, poderia ter
ignorado alguns degraus ou lances da escada, mas sentiu a necessidade e o dever
de completar o trajeto de toda a subida sem interrupções, anunciando sua obra
de modo uniforme, constituindo um corpo físico único e coerente. Assim, mesmo o
percurso sendo extenso, o artista não se furtou em intervir nos últimos lances da
escada, de modo a emprestar à sua configuração, inegável caráter orgânico, aderindo
e respeitando os acidentes, as dobras, enfim, os desvios ou “curvas” do suporte
escolhido.
A serpente serve a esta análise pois também é signo de dois meios, de duas
instâncias, assim como a própria escada é signo que interliga terra e céu - como a
casa-mundo dos Pueblo apontada e analisada por Warburg. Curiosamente, neste
caso existe a sobreposição dos dois signos: escada e serpente. Ambos se remetem,
interligando dois meios. No caso da escadaria Selaron, a conexão que parece
ser interessante de estabelecer, seria entre tradição e contemporaneidade. Ora, a
exterioridade da escadaria é marcada por um material da tradição, outrora muito
requisitado e destinado a embelezar, dignificar um determinado espaço, integrando
ambientes religiosos ou palacianos. Entretanto do modo como é empregado, estimula
pensar sobre as suas relações com a arte dita contemporânea, pois como já fora
dito anteriormente, causa à ruína do argumento antigo que obrigava as obras de arte
se perpetuar no tempo. A obra de Selaron é dinâmica e, em certo sentido, também
efêmera.
Além disso, cabe argumentar, que os azulejos são fortes signos da tradição,
remetem à história da arquitetura, sobretudo à história de nosso passado colonial, aos

47 art uerj III semana de pesquisa em artes


nossos conventos e igrejas setecentistas. Entretanto, foram utilizados na escadaria
da Rua Manoel Carneiro - lugar onde Selaron vive e atua -, de modo independente
da lógica histórica, sofrendo uma ação de deslocamento de ordem física e estética. O
que era comum aos ambientes interiores migra para a rua de inusitado, submetendo,
o artista, o material caro à estética do sagrado a um espaço de circulação livre e
intensa, a uma ordem pública aberta ao profano. A escada de azulejos de Selaron
rompe com a arte do passado, pelo modo como se estabelece, mas também, não
deixa de estar presa e conectada à estética pretérita. Os azulejos não são estranhos
à nossa história, apenas o modo como foram emprestados à escada é que pode
ser considerado distinto de nosso passado colonial. O material é antigo, mas seu
emprego plástico é que pode ser chamado de novo e até de contemporâneo.
Combina, interliga e comporta, portanto, dois meios, passado e presente, céu a terra,
sagrado e profano.
No campo simbólico, também estabelece elo entre passado e presente,
recupera o “potlatch” e a ideia da serpente, ambas caras aos povos antigos do
noroeste americano. Ambas também ancoradas na ação de construção e destruição.
Sobre este paralelo com a serpente, é fundamental estarmos atentos a outras
correlações não menos importantes. Embora estabeleça uma identidade visual
marcante, a exterioridade permanente da escadaria está condicionada a um sentido
mutante, a uma exterioridade dinâmica, pois dela, como foi visto, não pode escapar,
estando, a qualquer tempo – pela decisão do artista –, sujeita a mudanças. Ao mesmo
tempo quando a obra assume a exterioridade dinâmica, paradoxalmente se submete
à exterioridade permanente, pois, mesmo tendo-se a oportunidade de alteração,
se mantém o sentido geral de sua visualidade. A exemplo da natureza da serpente,
também, a escadaria, cede à troca de “pele”, mantendo sua forma e sua aparência.
Assim ocorre o conceito de simetria criativa, pelo qual o artista cria novos arranjos
dentro da mesma ordenação ou encaminhamento estético. As instâncias reguladoras
- a obediência das faixas de cores e a visível tendência simétrica – não cerceiam
a capacidade do artista de se reinventar. Selaron cria novas composições a cada
lance da escada, e mesmo em cada painel-degrau. O resultado, paradoxalmente,
é diferente e igual. Diferente no específico e semelhante no geral: o olhar próximo

48 art uerj III semana de pesquisa em artes


percebe e se encanta com nuances e diferenças na bricolagem e conforme o olhar
torna-se distante ou aos poucos se afasta, vai percebendo a unicidade e a coerência
de todo o trabalho. Neste sentido, a escada apresenta o mesmo expediente ou
recurso da serpente que para Warburg é ser que “muda sua superfície e permanece a
mesma.”
Por fim, outro aspecto importante da prodigiosa intervenção pública de Selaron
é a de que tal obra oferece uma face visível e outra invisível. Diante da escada ou
ante a subida, ela acontece e revela toda a força e esplendor de sua exterioridade,
a face da despesa. Ao descermos, “magicamente”, a maior parte dela se oculta,
se confundindo com a natureza de pedra da cidade na qual se inscreve. Isso se
deve, evidentemente, ao fato de que, foram as superfícies verticais dos degraus - os
espelhos da escada - que receberam os inúmeros azulejos que a revestem, e, por
isso, na descida, se não virarmos o corpo ou alterarmos a direção de nosso olhar
para trás, somos impedidos de vê-los. A face invisível da escadaria, o piso do ângulo
da descida, mantém-se apenas de pedra, sem a ostentação e o impacto dos azulejos.
Assim, tal qual a serpente, a escadaria se também incorpora a camuflagem, condição
esta também confirmada por sua localização na cidade, ainda incógnita, oculta e
desconhecida por muitos.

Bibliografia
BATAILLE, Georges. La Part Maudite. Paris: Editions de minuit, 1967. “La notion de dépense”, 25- 48.
LEVI-STRAUSS, Claude. O pensamento selvagem. Campinas: Papirus, 1989.
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Notas
1 A atividade humana não é inteiramente redutível a processos de reprodução e de conservação,
e o consumo deve ser dividido em duas partes distintas. A primeira, redutível, é representada pelo

49 art uerj III semana de pesquisa em artes


uso do mínimo necessário, para os indivíduos de uma dada sociedade, à conservação da vida e ao
prosseguimento da atividade produtiva: trata-se, portanto, simplesmente da condição fundamental desta
última. A segunda parte é representada pelas despesas ditas improdutivas: o luxo, os santuários, os jogos,
os espetáculos, as artes, a atividade sexual perversa (isto é, desviada da finalidade genital) representam
atividades que, pelo mesmo nas condições primitivas, têm em si mesma seu fim. (BATAILLE, Georges. La
Part Maudite. Paris: Editions de minuit, 1967. “La notion de dépense”, 25- 48).
2 Título de tombamento Municipal assinada pelo então prefeito do Rio de Janeiro, César Maia. Abril de
2005.
3 Octávio Paz. “O artesanato não quer durar milênios, nem está possuído pela pressa de morrer
logo. Transcorre com os dias, flui conosco, desgasta-se pouco a pouco, não busca a morte nem a nega:
acerta-a. Entre o tempo sem tempo do museu e o tempo acelerado da técnica, o artesanato é a palpitação
do tempo humano. É um objeto útil, mas também belo; um objeto que dura, mas que acaba e se resigna a
acabar; um objeto que não é único, como a obra de arte, e que se pode substituir por outro objeto parecido,
mas não idêntico. O artesanato nos ensina a morrer e, assim, nos ensina a viver”.
4 Transcrição de texto assinado pelo autor em azulejos contidos na própria obra.
5 LEVI-STRAUSS, Claude. “O bicoleur está apto a executar grande número de tarefas diferentes (...),
seu instrumental é fechado e a regra de seu jogo é a de arranjar-se sempre com os meios limites, isto é,
um conjunto, continuadamente restrito, de utensílios e de materiais, heteróclitos. (...) O conjunto dos meios
do bricoleur não se pode definir por um projeto; define-se somente por sua instrumentalidade, para dizer de
maneira diferente e para empregar a própria linguagem do bricoleur, porque os elementos são recolhidos
ou conservados em virtude do princípio de que isso sempre pode servir.” (In. O pensamento selvagem. p.
38)
6 MAUSS, Marcel. Ensaios de sociologia. São Paulo: Editora Perspectiva, 1999.
7 BATAILLE, Georges. La Part Maudite. Paris: Editions de minuit, 1967. “La notion de dépense”, p. 35.

50 art uerj III semana de pesquisa em artes


III semana de pesquisa em artes
10 a 13 de novembro de 2009 art uerj
arte e cultura urbana

A história dos Beatles na História

Gabriel Barbosa dos Santos

Graduação em História – UFF

Um exercício de extrema dificuldade é tentar encontrar características que resumam a


sonoridade, a aparência e os aspectos estéticos dos Beatles. Grandes mudanças em um
espaço de tempo curtíssimo é um fator relevante. Mudanças essas que deixam bastante
aparente a influência dos acontecimentos políticos, econômicos, sociais e culturais da época
de atividade. Propõe-se, desta forma, analisar a forte influência do contexto histórico em alguns
aspectos da carreira dos fab four.

Beatles; rock; História.

It’s very hard to find some characteristics that summarize the sound, the look and the esthetic
aspects of the Beatles. Great changes in a short time are a relevant factor. Those changes
leave very apparent the influence of the political, economic, social and cultural events of the
time of activity. It suggests, therefore, to analyze the strong influence of the historical context in
some aspects of the fab four career.

Beatles; rock; History.

Introdução
Lembro-me da primeira vez que ouvi os Beatles. Foi na minha infância, junto
a grandes amigos. Um deles tinha conhecido através de seu pai e quis mostrar para
os demais. Help! e Yellow Submarine foram suficientes para que eu percebesse a
unicidade da banda. Foi a única experiência de amor a primeira vista que tive em toda
minha vida.
O tempo e a maturidade me fez atentar para a grandeza e a importância
51
dos Beatles na cultura ocidental do século XX. Como era considerável a sua
presença, mesmo depois de décadas do seu término, em nossa rotina. Mesmo
inconscientemente. Como a sua música influenciou grande parte – ou porque não
tudo? – que ouvimos hoje. Eu só não conseguia entender o porquê.
Partilho a idéia dos Beatles – isto vale para qualquer outra banda – como
resultado de duas forças notáveis: a conjuntura e o talento. Muitos falam de uma
terceira força. A propaganda, segundo alguns estudiosos, seria a causa de todo
fervor causado sobre e pela banda1. Porém, julgo insuficiente. Muitos artistas,
principalmente os mais atuais, têm um apelo comercial e mercadológico tão ou mais
intenso que os Beatles tiveram na década de 1960. Nenhum deles, no entanto,
chegou perto das cifras alcançadas por esta banda inglesa – pensando estritamente
no viés mercadológico e não considerando as questões mais voltadas para o social,
como quantidade de bandas cover, celebração de datas comemorativas, número de
fãs e de decibéis do grito coletivo delas2.
O talento da banda é inegável. Há um sem-número de literaturas retratando-o,
e como que a partir dele – habilmente utilizado para compor sucessos – os Fab Four
chegaram ao patamar de banda mais influente do século XX. A quantidade de hits
é tão grande – e em tão pouco tempo – que coube numa compilação de 27 faixas3.
Mais ainda, não era um talento coletivo – ou seja, fracos talentos individuais que,
juntos aos dos demais, formavam um todo forte. Eram quatro talentos particulares
e ímpares, que acharam caminhos para serem transpostos em notas musicais e
vocalizações impecáveis (em minha opinião, estes “caminhos” eram, na verdade, um:
George Martin4). Mas como o quesito “talento” já foi amplamente discutido em outros
trabalhos, ater-me-ei na outra força.
Inserir a obra no contexto do artista é, para nós, historiadores, essencial
para se ter uma análise, no mínimo, aceitável. Porém, nem todos os autores têm
esta preocupação. Como muito da literatura sobre a carreira dos Beatles é feita por
jornalistas ou produtores musicais, esta inserção não ganha a merecida atenção.
Estou longe de julgar se está errado ou certo. Se é ruim ou bom. Creio apenas que tal
exercício - ainda mais se tratando de um trabalho de cunho histórico - deixa o estudo
e suas análises mais fundamentadas e, conseqüentemente, completas.

52 art uerj III semana de pesquisa em artes


Roger Chartier fomenta a base teórica para a importância do contexto social
numa produção artística/intelectual. Para ele, não se pode atribuir a criação intelectual
unicamente à capacidade de invenção individual. Ignorar a influência da “estrutura
do pensamento” (Zeitgeist) que paira sobre a sociedade do criador é um erro que o
historiador não pode praticar5. É preciso levar em conta o que Febvre chamará de
“utensilagens mentais” do período estudado. Ou seja, não se deve isolar o fundador
de uma idéia das idiossincrasias de sua época6.
E é isto que pretendo nas páginas seguintes. Se os demais trabalhos, grosso
modo, focam seus esforços na influência da banda na sociedade, proponho aqui
o inverso. Perceber as influências históricas/conjunturais na carreira dos Beatles é
historicizar os campos que os projetaram como banda, e, mais ainda, como um dos
conjuntos mais importantes da cultura pop de todos os tempos. Se por um lado temos
os talentos individuais, de outro encontramos as forças sociais que os modelaram. Se
podemos atribuir a criação de Help! e Yellow Submarine (para usar como exemplo as
canções de minha infância) à genialidades particulares, não podemos nos esquecer
do contexto político, econômico, social e cultural do final da década de 50 e de toda a
década de 60 como influência.
Um recorte é necessário. Até mesmo porque nem todos os acontecimentos
históricos da época são aparentes o suficiente para se tecer uma análise. De
todo jeito, recortar é focar a atenção em temas que são mais relevantes e mais
interessantes para a nossa visão de século XXI – além de evitar um trabalho
demasiadamente extenso e superficial. Portanto, os temas históricos aqui sugeridos
são: a ascensão econômica dos Estados Unidos no pós-II Grande Guerra, a Pop Art e
a Guerra do Vietnã.

A riqueza de Tio Sam e os Fab Four


É sabido que os Estados Unidos saíram da II Grande Guerra (1939-1945)
como a primeira potência econômica mundial. E um dos fatores que provocaram
esta ascensão foram os empréstimos feitos à Inglaterra devastada por investidas
alemãs. Empréstimos foram feitos, porém com ressalvas impostas pelos credores:
“as autoridades americanas sacaram da Inglaterra as reservas de ouro e seus

53 art uerj III semana de pesquisa em artes


investimentos estrangeiros e restringiram exportações inglesas no mundo inteiro.
Negociantes americanos expandiram sua presença em mercados antigamente
controlados pelos ingleses”7.
Essas e outras medidas favoreceram o fortalecimento do empresariado
americano, que começou a controlar quase inteiramente a economia do país. Esse
controle proporcionou maiores salários aos trabalhadores. Receber mais no final do
mês era quase um sinônimo de “consumir mais”8.
Com a prosperidade econômica, maiores oportunidades de emprego e a
conseqüente melhora da situação financeira das famílias de classe média do país,
começou a se desenvolver - com muito apoio e propaganda do governo vigente
- o estilo de vida americano. Tinha-se a família como núcleo e calcava-se no
consumismo e na valorização da moral e bons costumes9. A melhora no nível de
renda do trabalhador mediano do país, deste modo, provocou o aumento considerável
do número de jovens nas escolas e universidades, espaço propício para a troca de
idéias e questionamentos. Esses espaços de aglomeração de jovens que dividem,
mais ou menos, a mesma idade, favoreceram o fortalecimento da identidade grupal e
consciência coletiva de si10. O rock surgiu neste e deste ambiente11.
Não importa aqui entender como que o rock’n’roll brotou deste meio, mas sim
estar ciente que daí ele saiu. Convém também saber que o otimismo do american
way of life influenciou os letristas da era clássica do estilo. Segundo Paul Friedlander,
“as letras contavam histórias adolescentes sobre amor, dança, escola, música e sexo
– somente histórias simples sobre o cotidiano”12. Isso porque, pela primeira vez, os
jovens não precisavam trabalhar. O crescimento econômico do país proporcionou a
seus pais o poder de bancá-los na escola, sem os obrigar a arranjar emprego. Além
disso, sobrava dinheiro para financiar a sua diversão13.
A explosão do rock, porém, deu-se também pela identidade que o seu público
tinha com a música. Identidade esta fortalecida principalmente por questões de
conflitos de gerações: os adolescentes não mais queriam ouvir as mesmas músicas
que seus pais. Não mais queriam se vestir como seus pais. Não mais queriam se
comportar como seus pais. Não mais queriam amar como seus pais!
Tanto o estilo de vida americano - tão defendido e exportado por Washington

54 art uerj III semana de pesquisa em artes


– quanto a identidade do jovem para com o rock ajudam-nos a entender a ligação do
crescimento econômico norte-americano com os adolescentes de uma “cidadezinha”
no norte da Inglaterra chamada Liverpool. Bob Spitz, em sua biografia sobre
os Beatles, afirma que foram as músicas e a mística sobre Elvis Presley14 que
catalisaram os anseios de John e Paul e os juntaram. E ainda acrescenta.

Todo sábado e domingo à noite o serviço de língua inglesa da [Rádio


Luxembourg] apresentava uma lista de músicas que trazia no bojo uma
mistura de sucessos de rockabilly e rythm and blues de Bill Halley, Fats
Domino, Lavern Baker, Carl Perkins, The Platters e dezenas de outros
astros americanos cujos petiscos picantes serviam para estimular
a insípida dieta da música européia ocidental. [...] cada um dos três
garotos que mais tarde se tornariam os Beatles sintonizavam o sinal
cheio de estática da emissora, enquanto os prodígios DJs apresentavam
[...] os discos de rock’n’roll que estavam subindo nas paradas
americanas.15

Fica clara, então, a influência deste fato histórico da sociedade norte-


americana na história dos Beatles. Não é um fato direto, mas está relacionado. Em
suma, o fortalecimento econômico dos Estados Unidos deu meios para que surgisse
o rock e a mudança comportamental dos jovens. Somado ao exportado “modo de
vida americano”, estes dois fatores chegaram, via rádio, aos ouvidos de John, Paul,
George e Ringo. Daí, a gente já sabe...

Art, Pop e Sgt. Pepper’s


A antológica capa do álbum de 1º de junho de 1967 dos Beatles, Sgt. Pepper’s
Lonely Hearts Club Band, é uma das mais satirizadas e comentadas figuras da
cultura popular. E ela é só uma parte de um complexo e instigante quebra-cabeça que
é a história do álbum. Mas diz muita coisa.
Tudo que envolve o encarte de Sgt. Pepper’s não é isento de uma idéia básica
a priori. Muitos creditam todo o conceito e concepção do disco quase exclusivamente

55 art uerj III semana de pesquisa em artes


a Paul McCartney. Segundo Clinton Heylin em “Sgt. Pepper’s Lonely Heart Club
Band: um ano na vida dos Beatles e amigos”, Lennon passava por uma crise –
principalmente por conta do afundamento nas drogas – que o impossibilitava de
compor. Sendo assim, McCartney acabou pondo em prática suas idéias para o álbum
– que inicialmente, tratava-se de um conjunto de canções sobre a vida no norte da
Inglaterra – e foi autor da maioria das músicas.
Uma dessas idéias era que o encarte deveria representar o tema do álbum.
Foi escolhido, então, um artista plástico premeditadamente para que a ela fosse
realmente e integralmente concretizada. Através de colagens de fotos de pessoas
famosas16 sob uma foto da banda trajando roupas marciais numa espécie de velório,
Peter Blake constituiu a primeira visão de uma obra de arte17. Considerado um dos
pionerios da pop art inglesa, Blake trouxe os conceitos desta nova forma artística
– à época, claro – para compor e interligar a concepção do disco do Sargento
Pimenta
Para alguns, Sgt. Pepper’s não pode ser encarado apenas como um álbum
de música pop; ele em si é um manifesto artístico, uma arte, que se completa pelas
músicas e capas. E foi o primeiro álbum que trazia um conceito inerente (apesar das
músicas não estarem diretamente conectas uma com as outras)18.
Este conceito foi exteriorizado em forma de arte. Arte pop. Pop art.

A guerra do Vietnã
A investida norte-americana no Vietnã19 teve início a partir das diretrizes do
pós-II Grande Guerra, ou seja, com as premissas da Guerra Fria. Desta forma, o que
se priorizou inicialmente foi impor um regime clientelista no país - de maneira pacífica
– como forma de evitar a “contaminação” pelo “vírus” comunista20. O pacifismo, no
entanto, transformou-se em terror, e uma ditadura militar foi imposta, em 1963, (com
apoio dos Estados Unidos), em resposta a ineficiência do então presidente de conter
a ameaça vermelha21.
Quanto mais os comunistas do norte, em conjunto com os Viet Congs,
ganhavam território e apoio popular, mais soldados do exército norte-americano
eram mandados à guerra. Esta durou até 1972, quando os vietnamitas conseguiram

56 art uerj III semana de pesquisa em artes


paralisar militarmente seu inimigo. O saldo da guerra foi milhares de mortos e
feridos nos dois lados e a opinião pública – tanto de dentro quanto de fora dos
Estados Unidos – insatisfeita com o governo de Washington, produzindo sentimentos
antiimperialistas contra o país.
No final da década de 1960, uma série de movimentos pacifistas começou a
reivindicar a retirada das tropas norte-americanas do Vietnã. Juntando à cartilha a
defesa pelos direitos civis, negros, estudantes e os hippies representavam o começo
de uma nova esquerda nos país22. Pode-se dizer que este último grupo ganhou uma
atenção especial, principalmente, pela pregação do pacifismo. Com os slogans “Faça
amor, não faça guerra” e “Paz e amor”, os hippies, de forma bem peculiar e pacífica,
negavam toda e qualquer forma de violência e repressão. O seu ponto mais alto foi
no festival de Woodstock, em 1969, onde a pregação do amor, da paz e da liberdade
ganhou proporções imensuráveis.
Dessa nova esquerda americana, sobretudo o movimento hippie - que é onde
vamos nos ater –, podemos fazer algumas ligações com os Beatles. Apesar de não
serem ativistas declarados, a banda deixou bem clara a sua posição em relação à
guerra e ao movimento pacifista. A letra de All you need is Love23 é bastante elucidativa.
Além da clara evidência de uma valorização do amor como uma entidade máxima, a
letra ainda faz referências à liberdade e à não-repressão, como nas passagens

There’s nothing you can do that can’t be done /


Nothing you can sing that can’t be sung /
Nothing you can say but you learn how to play the game24.

A música foi composta para um programa revolucionário que a BBC1 tramava.


Esta emissora de televisão inglesa intentava fazer a primeira transmissão ao vivo
de todos os tempos para vários países. No programa, chamado Our World [Nosso
Mundo], cada país participante deveria transmitir algo relacionado com a sua cultura.
Como envolvia culturas distintas, a proposta era passar uma mensagem em comum
para todas elas. Nada mais emblemático e universal do que uma canção enaltecendo
o amor em tempos de guerra.25

57 art uerj III semana de pesquisa em artes


As comparações entre o contexto histórico e esta (linda) canção dos Beatles
são corroboradas por uma declaração de John Lennon. Ela foi dada ao jornalista da
revista Rolling Stone, Jann Wenner, em 1971, e já introduz, explica e conclui por si
mesma o tema em questão. Lennon diz:

Acho que no fundo, qualquer que seja o problema, ele geralmente tem a
ver com o amor. Então, penso em All You Need Is Love como uma real
entidade. Não estou dizendo “você tem que fazer isso”, porque All You
Need surgiu no tempo da geração Flower Power. Ela não significa que
tudo que você tem que fazer é pôr um sorriso falso na cara e usar roupas
floridas e tudo estará bem. Amor não é só alguma coisa que você cola
em cartazes ou cola na traseira do carro ou prende na sua jaqueta ou no
emblema. Estou falando do verdadeiro amor, então ainda acredito nisso.
Amor é apreciação do próximo e o permite ser o que é. Amor é permitir
as pessoas serem elas mesmas e isso é tudo que precisamos26.

Conclusão
Vimos, a partir destas três fatos históricos/sociais, que os Beatles não estavam
isentos das forças conjunturais. Seja na formação da banda, na estética de um disco
ou na letra de uma canção, percebemos influências da História na história dos Fab
Four. Pois ao mesmo tempo em que um episódio pode influenciar toda sua geração,
ele não é livre das influências que marcam a sua época. Ou seja, ele influencia e é
influenciado concomitantemente. É ativo e passivo simultaneamente.
Porém, deixo claro que estes acontecimentos históricos são insuficientes para
explicar o fenômeno Beatles. Primeiramente, porque eles não foram os únicos; alguns
outros poderiam ter sido salientados27. Depois, conforme dito outrora, ela – a banda
– é composta por duas forças. E esta outra força – o talento – é tão valiosa quanto o
zeigeist dos anos 60. Por mais que esteja também inserida nas barreiras sociais, sendo
limitada pelas mesmas28, não se pode negar a sua peculiaridade no caso dos Beatles.
Tanto o é que nenhuma outra banda conseguiu alcançar o seu patamar. Até agora.

58 art uerj III semana de pesquisa em artes


Capa do álbum Sgt.
Pepper’s Lonely Hearts
Club Band

Bibliografia
CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Lisboa: Memória e Sociedade, 2002.
CHACON, Paulo. O que é Rock. São Paulo: Brasiliense. 1985.
CHOMSKY, Noam. Camelot: os anos Kennedy. São Paulo: Scritta Editorial, 1993.FRIEDLANDER, Paul.
Rock and Roll: uma história social. Rio de Janeiro: Editora Record, 2008.
GRAMSCI, Antonio. Literatura e vida nacional. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968, p.5.
HEYLIN, Clinton. Sgt. Pepper’s Lonely Heart Club Band: um ano na vida dos Beatles e amigos. São Paulo:
Editora Conrad, 2007.
KARNAL, Leandro; FERNANDES, Luiz Estavam; MORAIS, Marcus Vinícius; PURDY, Sean. História dos
Estados Unidos: das origens ao século XXI. São Paulo: Editora Contexto, 2007.
SPITZ, Bob. Beatles: a biografia. São Paulo: Larousse do Brasil, 2007.
PEREIRA, Carlos Alberto M. O que é contracultura. São Paulo: Editora Brasiliense, 1986.

Apêndice
Love, love, love, love, love, love, love, love, love.
There’s nothing you can do that can’t be done.

59 art uerj III semana de pesquisa em artes


Nothing you can sing that can’t be sung.
Nothing you can say but you can learn how to play the game
It’s easy.
There’s nothing you can make that can’t be made.
No one you can save that can’t be saved.
Nothing you can do but you can learn how to be you in time - It’s easy.

All you need is love, all you need is love,


All you need is love, love, love is all you need.
Love, love, love, love, love, love, love, love, love.
All you need is love, all you need is love,
All you need is love, love, love is all you need.
There’s nothing you can know that isn’t known.
Nothing you can see that isn’t shown.
Nowhere you can be that isn’t where you’re meant to be.
It’s easy.
All you need is love, all you need is love,
All you need is love, love, love is all you need.
All you need is love (all together now)
All you need is love (everybody)
All you need is love, love, love is all you need.

Notas
1 Cf. PESTANA, Marco M. Os Beatles revolucionam a música pop. Revista A Roda, n. 7. Universidade
Federal Fluminense, 2008, p. 20.
2 O Shea Stadium nunca mais foi o mesmo depois do dia 15 de agosto de 1965. Neste dia, os Beatles
realizaram o primeiro show num estádio aberto de os tempos. Além disso, bateram o recorde de público até
então: mais de 50 mil pessoas. Dizem os músicos – e quem mais estivesse lá – que o barulho oriundo da
platéia, sobretudo a feminina, era tão alto que eles não conseguiam se ouvir cantando nem tocando. Nem
os 50 amplificadores de 100 watts disponibilizados para o show deram vazão. SPITZ, Bob. The Beatles: a
biografia. São Paulo: Larousse, 2007, pp. 569-72.
3 Em 2000, foi lançado um álbum com todos os singles da banda que alcançaram o 1º lugar nas paradas
de sucesso. O nome é altamente sugestivo: “1”. São um total de 27 faixas, que abarcam toda a sua carreira.
4 Produtor dos Beatles desde o primeiro (Please Please Me, 1962) até o penúltimo álbum (Abbey Road,
1969). É considerado por muitos como o “quinto beatle” pela sua presença mais que notável nas músicas
da banda (além das normais de um produtor musical).
5 CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Lisboa: Memória e Sociedade,
2002, p. 35.
6 Ibidem, pp. 36-38.
7 KARNAL, Leandro; FERNANDES, Luiz Estavam; MORAIS, Marcus Vinícius; PURDY, Sean. História
dos Estados Unidos: das origens ao século XXI. São Paulo: Editora Contexto, 2007, p. 219.
8 Ibidem, p. 218.

60 art uerj III semana de pesquisa em artes


9 Sobre a ascensão econômica dos Estados Unidos na segunda metade dos anos 40 e do american
way of life, cf. KARNAL, Leandro; FERNANDES, Luiz Estavam; MORAIS, Marcus Vinícius; PURDY, Sean.
História dos Estados Unidos: das origens ao século XXI. São Paulo: Editora Contexto, 2007, pp. 230-34.
10 PEREIRA, Carlos Alberto M, op. cit., pp. 26-28.
11 CHACON, Paulo. O que é rock. São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 22.
12 FRIDLANDER, Paul. Rock’n’roll: uma história social. Rio de Janeiro: Editora Record, 2008, p. 46.
13 Ibidem, p. 38.
14 Para Friedlander, Elvis faz parte da 2ª geração do rock: a geração do rock branco. A primeira, no
entanto, foi a do rock negro, com Chuck Berry, Fats Domino e Little Richard.
15 SPITZ, Bob. The Beatles: a biografia. São Paulo: Larousse, 2007, p. 34.
16 Entre os mais célebres estão: Karl Marx, Oscar Wilde, Bob Dylan, Sigmund Freud, os personagens
Gordo e Magro, Marlon Brandon, Aleister Crowley, Marilyn Monroe, Carl Gustav Jung, William Burroughs,
Edgar Allen Poe, Fred Astaire, Albert Einstein e o ex-Beatle Stuart Sutcliff.
17 Imagem da capa do álbum no apêndice I
18 HEYLIN, Clinton. Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band: um ano na vida dos Beatles e amigos. São
Paulo: Editora Conrad, 2007, pp. 167-172.
19 “O Vietnã era uma ex-colônia francesa que foi divida em duas pelo tratado que finalizou a Guerra da
Coréia. O exército guerrilheiro comunista de Ho Chi Minh, que tinha derrubado os franceses, contralava a
parte Norte do país e contava com numerosos seguidores na parte Sul, organizados pelo grupo guerrilheiro,
o Viet Cong. No Sul, o ditador Ngo Dinh Diem governava com ajuda militar e conômica dos Estados Unidos”.
KARNAL, Leandro; FERNANDES, Luiz Estavam; MORAIS, Marcus Vinícius; PURDY, Sean. op. cit., p. 240.
20 Ibidem, p. 240-42.
21 CHOMSKY, Noam. Camelot: os anos Kennedy. São Paulo: Scritta Editorial, 1993, pp. 47-50.
22 PEREIRA, Carlos Alberto M. O que é contracultura. São Paulo: Brasiliense, 1986, p. 76.
23 7ª faixa do álbum Magic Mystery Tour, em 27 de novembro de 1967 nos Estados Unidos (a versão
inglesa do álbum tem leves distinções). Letra no apêndice II.
24 Tradução: Não há nada que você possa fazer que não possa ser feito / Nada que você possa cantar
que não possa ser cantado / Nada que você passa dizer, mas você aprende a jogar o jogo.
25 SPITZ, Bob. op. cit., p. 695.
26 Texto original: I think if you get down to basics, whatever the problem is, it’s usually to do with love. So I
think ‘All You Need is Love’ is a true statement. I’m not saying, ‘All you have to do is...’ because ‘All You Need’
came out in the Flower Power Generation time. It doesn’t mean that all you have to do is put on a phoney smile
or wear a flower dress and it’s gonna be alright. Love is not just something that you stick on posters or stick on
the back of your car, or on the back of your jacket or on a badge. I’m talking about real love, so I still believe that.
Love is appreciation of other people and allowing them to be. Love is allowing somebody to be themselves and
that’s what we do need. Retirado do website http://www.beatleswiki.com/wiki/index.php/All_You_Need_Is_Love
27 ...e não o foram por questões de afinidade e espaço neste trabalho.
28 Cf. GRAMSCI, Antonio. Literatura e vida nacional. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968, p.5.

61 art uerj III semana de pesquisa em artes


III semana de pesquisa em artes
10 a 13 de novembro de 2009 art uerj
arte e cultura urbana

Arte no Cotidiano: Repercussões da produção artística em jovens grafiteiros

Maíra Mendes Clini

Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social, Laboratório de Estudos em


Psicologia da Arte, Instituto de Psicologia da USP

Arley Andriolo

Professor Doutor, Departamento de Psicologia Social, Instituto de Psicologia da USP

Baseado no método fenomenológico de pesquisa, esse trabalho pretende trazer à tona o


mundo vivido dos próprios grafiteiros, a partir do qual pretende-se compreender a experiência
da arte e da estética. A relevância desse trabalho encontra-se na possibilidade de discutir-se a
relação arte e vida a partir do ponto de vista do próprio artista.

Artes visuais; fenomenologia; graffiti.

Based on phenomenological research method, this paper intends to bring out the life-world of
graffiti artists themselves, as they seek to understand the experience of art and aesthetics. The
relevance of this work is the possibility to discuss the relationship between art and life from the
viewpoint of the artist himself.

Visual Arts; phenomenology; graffiti.

O objetivo desse trabalho é compreender quais são as repercussões do contato


com a arte no cotidiano de jovens grafiteiros. Através do meu trabalho na OSCIP
Projeto Quixote1, passei a ter contato com o mundo do graffiti, o que despertou meu
interesse para as repercussões que o trabalho com arte, a partir do grafitar, possam
ter no cotidiano de cada um dos grafiteiros.

62 art uerj III semana de pesquisa em artes


O graffiti é oriundo da cultura hip hop, que surgiu nos guetos de Nova Iorque, nos
Estados Unidos, na década de 1970. Scandiucci (2006, p.226) define hip hop da seguinte
maneira: “Trata-se de um empreendimento coletivo e abarca manifestações artísticas
nos campos da música (RAP, sigla derivada de rhythm and poetry – ritmo e poesia, uma
espécie de canto falado ou fala rítmica), das artes visuais (grafite) e da dança (break).”
O autor afirma que esse movimento chegou ao Brasil na década de 1980, época de
redemocratização, que, em virtude do milagre militar, teve como uma das conseqüências
o aumento da população pobre do país em virtude da crise econômica. O movimento Hip
Hop se manifesta, principalmente, em comunidades que moram nas periferias da cidade,
ou em partes marginalizadas de grandes centros urbanos, locais esses que, na maior
parte das vezes, são a origem dos jovens que freqüentam o Projeto Quixote.
O graffiti é uma das formas de manifestação artística na qual os espaços
urbanos são o suporte e a inspiração, inclusive muitos autores relacionam a
experiência estética individual com as relações que cada indivíduo tece com a cidade
na qual habita. Para compreender como o jovem compreende sua relação com sua
arte e com sua cidade, precisaremos aprofundar o olhar sobre qual arte e qual cidade
estamos falando. Iniciaremos refletindo sobre a definição de arte. Frayze-Pereira
(2005) problematiza os termos referidos à arte, e, inclusive afirma que o próprio termo
“arte” é semanticamente incerto, difícil de ter uma definição fixa, positiva. Ele afirma
que os próprios teóricos têm dificuldade em definir o termo, pois “(...) de um lado a
Arte não teve sempre, nem em toda parte, o mesmo estatuto, o mesmo conteúdo e
a mesma função”. De outro lado, ele afirma que o campo abrangido pelo conceito
é extenso: “(...) entre a obra-prima e o esboço, o desenho do mestre e a garatuja
infantil, o som e o ruído, o canto e o grito, o objeto e o acontecimento, é difícil traçar
uma fronteira e até poderíamos nos perguntar se vale à pena traçar essa fronteira”
(pp. 38-39). Para o autor, a arte é um fazer, que tem em comum com todas as
atividades humanas esse lado de execução. Mas a arte é um fazer específico. “É uma
atividade na qual invenção e execução caminham paralelamente, simultaneamente
e de modo inseparável” (p. 43). A partir dessa afirmação invertigar-se-á, no presente
trabalho, as diferenças de repercussões cotidianas entre o fazer artístico e outros
fazeres. Pelo fato da arte ser um fazer formativo, ela é trabalho. Mas por ser também

63 art uerj III semana de pesquisa em artes


um fazer significante, é linguagem. A arte, para Frayze-Pereira (2005) “(...) como
símbolo exprime justamente um tipo de estruturação onde a ação visa ao que está
ausente, a linguagem e o trabalho podem aparecer no mundo humano e com elas
a dimensão do sentido” (p.48). Read (1975 citado por Escobar, 2001) afirma que
as obras de arte cumprem o papel de nos abrir os olhos, de provocar novas formas
de ver as coisas. Para ele, as experiências estéticas têm a função de abrir mundo
(p.73). Assim, será tarefa desse trabalho indagar como a produção de arte manifesta
sentido no cotidiano do jovem que passa a ter contato com ela. Andriolo (2006)
também recorre a Frayze-Pereira (1995) e nos lembra que “(...) a obra de arte é
dotada de uma dimensão fundamental de ‘reflexão’ acerca da experiência do mundo,
uma operação de interiorização e exteriorização que entrega ao mundo uma obra
expressiva”. Através da concretude de uma produção artística, revela-se o homem e
o mundo que a produzem. Por isso é possível fazer o caminho inverso e se indagar
qual é a marca que tal produção deixa em tal homem e em seu mundo.
Furtado e Zanella (2007, p.02) afirmam que a experiência estética faz parte
da vida do sujeito no contexto urbano, e é uma das formas de apropriação dessa
realidade. Essa experiência pode estar relacionada às paisagens, arquitetura,
objetos industriais e artesanais, tanto quanto à arte como objeto privilegiado no
universo estético. Para os autores, apesar de ainda vivermos uma estética urbana
que é racional, funcional, moderna e restritiva, na qual o tempo é dominado pela
dinâmica da economia, e os lugares são, na maioria das vezes, privatizados, é
possível que outras formas de relação estética surjam por meio da arte urbana e
da valorização dos espaços públicos, da arquitetura e da cultura local.. Furtado e
Zanella (2207, p.09) recorrem a Certeau (2000) para dizer que a cidade não pode
ser descrita apenas como uma máquina, ela é uma construção social histórica, e o
ser humano que nela habita não é somente um ser da razão, mas ser criativo, que
estabelece relações afetivas, imaginárias e estéticas com a cidade, constituindo-a
e constituindo-se nela. O grafiteiro habita a cidade e nela imprime marcas, deixa
indícios nítidos de ter passado por lugares públicos. Porém, quais são as marcas que
carrega em si ao marcar sua cidade? Para compreender o percurso pessoal de cada
grafiteiro, deve-se levar em consideração todo o contexto social e histórico no qual

64 art uerj III semana de pesquisa em artes


se encontra, evitando-se assim uma visão individualizante ou idealista da arte e de
suas repercussões na vida de cada um. Não há predomínio do ambiente, tampouco
do indivíduo: acentuam-se as relações como forma de compreensão. Gonçalves
e Estrella (2007, p.103) chamam a atenção para o papel da arte na cidade como
possibilidade de quebra do que já é automatizado e dominante. Apontam o graffiti
como forma de expressão dos indivíduos na cidade, como maneiras de apropriação
do espaço vivido no cotidiano. Os autores também enfatizam a maneira como
produzimos o espaço público e na mesma medida somos produzidos por ele. Essa
compreensão exige que se “descole” as formas de existência de seu aspecto indivi­
dual, e se perceba que, na relação conosco mesmos e com os outros, essas formas
assumem determinadas configurações em cada época, encarnando práticas sociais
e comunicativas sempre mutáveis (p.99). Para os autores é próprio das cidades a
experiência da rua, e ao lançarmos sobre a cidade um “olhar oblíquo” quebra-se o
hábito e o automatismo, e assim é possível que nos lembremos da possibilidade de
uma incessante negociação com a realidade (p.102). Silva (2006, p.39) ressalta que
o jovem grafiteiro não age apenas na sua vida intimista, mas sim no palco teatral que
ele mesmo monta pelas ruas da cidade.
Furtado e Zanella (2007) referem-se à arte na cidade como maneira de
organizar a experiência do entorno e a experiência dos sujeitos que nela se implicam,
provocando, para que novas significações do espaço aconteçam (p.11). Assim,
cabe à arte instaurar um movimento outro que não apenas ajustar-se fielmente ao
contexto, mas sim permitir a circulação e o deslocamento de sentidos em torno dela,
deslizes que ressaltem as aproximações e os distanciamentos entre as pessoas
e as possibilidades infinitas de transformação e superação de uma condição dada
(p.11). Para superar uma dada condição é necessário que, de alguma forma, tal
condição se torne evidente. O graffiti pode explicitar o abandono como problema
social nos grandes centros urbanos. Estrella (2006, p.15) relaciona o graffiti com
outros símbolos de exclusão social que a geografia capitalista produz, e ressalta que
o graffiti carrega em si a insígnia do risco por desafiar o padrão hegemônico visual da
cidade. Silva (2006, p.42) complementa que os jovens grafiteiros, quando em situação
de vulnerabilidade e abandono, “[...] sentem na pele as marcas da exclusão. Seus

65 art uerj III semana de pesquisa em artes


desejos habitam as estrelas, mas seus pés pisam esgotos a céu aberto.”
O graffiti é uma das formas de resistência e de contra-racionalidades dominantes,
segundo Gonçalves e Estrella (2007, p.105) sua quali­dade consiste na competência de
se agenciar visualmente como um choque e uma provocação comunicativa. Os autores
recorrem a Walter Benjamim e ao fenômeno denominado por ele de “experiência de
choque”, na qual há uma relação entre o choque físico, a cidade e a possibilidade de uma
recepção renovada da obra de arte como fenômeno de comunicação. Tal experiência de
choque se caracteriza historicamente por combater a ordem social vigente. Para Estrella
(2006, p.21), “A tensão poética que o graffiti provoca é entre os padrões globais de
consumo e a singularidade dos relevos culturais e sociais da cidade.”
Outro autor importante citado por Gonçalves e Estrella (2007, p.106) é Jean
Baudrillard, que se refere ao graffiti como uma desconcertante invasão contra a
predominância da cidade como fluxos canalizados do capital. A possibilidade da
atividade do graffiti poder ser utilizada pelos jovens como fonte de renda, torna
relevante a discussão sobre a diferença entre a produção artística e outros modos
de produção características do capitalismo. Para tanto será necessário discorrer
sobre a concepção de trabalho e suas decorrências na sociedade contemporânea,
e comparar essa concepção com a de produção artística. Um dos autores que
estabelece essa comparação é Gorz (1987). Ele caracteriza a produção artística
propriamente dita como sendo uma “atividade autodeterminada”, que “cria objetos
destinados ao consumo ou à utilização das próprias pessoas que as produzem ou das
que lhe são tão próximas” (p.10). Para o autor, essa atividade não tem como principal
objetivo a troca pelo tempo de quem a produz. Ela é, em si mesma, seu próprio fim.
Em contrapartida, o autor refere-se ao “trabalho assalariado” como uma troca de
tempo, pois “é feito principalmente visando a um salário que consagra sua utilidade
para a sociedade e que dá direito a uma quantidade de trabalho social equivalente
à que se fornece” (p.10). O autor entende as “atividades autoderterminadas” como
privilegiadas, em oposição ao “trabalho socialmente necessário”, que por melhores
condições que tenha nunca se aproximará das primeiras:

Mesmo que, seguindo a tendência atual, unidades de produção

66 art uerj III semana de pesquisa em artes


relativamente pequenas e descentralizadas substituam os mastodontes
industriais do passado; mesmo que as tarefas repetitivas e
embrutecedoras sejam abolidas ou, quando não possam sê-lo, sejam
repartidas por toda a população, o trabalho socialmente necessário
nunca será comparável à atividade dos mestres-artesãos ou dos artistas;
uma atividade autodeterminada, de que cada pessoa ou equipe define
soberanamente as modalidades e o objeto, o toque pessoal, inimitável,
que imprime sua marca particular ao produto (Gorz, 1987, p.17).

Alguns autores afirmam que o graffiti não tem conteúdo nem mensagem.
Segundo Baudrillard (apud Gonçalves e Estrella, 2007), é justamente no vazio
do graffiti que está sua força, pois assim os mídia são atacados em seu modo de
produção e difusão, e através de uma intuição revolucionária, a ofensiva total sobre
a forma vem acompanhada por uma recessão dos conteúdos (p.106). Costa-Moura
(2005) afirma que o grafiteiro não empenha seu esforço na matéria verbal, mas na
decisão de escrever (no corpo da cidade e correndo todos os riscos). E essa escritura
não explora um saber, não veicula um sentido nem ilustra um tema. Sua força
não está no conteúdo ou na mensagem, mas no gesto que a produziu. (p.3) Cabe
investigar o quanto os jovens escolhem a forma e o conteúdo das marcas que deixam
pela cidade, e como compreendem o sentido disso, para além do gesto.
A partir da implicação arte e cidade, podemos pensar a estética como uma
forma específica de relações humanas com o mundo. Furtado e Zanella (2007, p.06)
salientam que essa forma de relação é tão importante como qualquer outra, sendo
muito importante para a constituição de todo e qualquer sujeito. Para os autores
olhar esteticamente a realidade amplia as possibilidades de relação com o mundo
em geral, incluindo nessas relações aquelas que estabelecemos conosco mesmos.
Para Gonçalves e Estrella (2007, p.99) a arte interessa menos pelo que expressa
e mais pelas marcas que pode deixar em nós, por seu poder de nos engajar em
processos de invenção; já a cidade, é importante menos em relação com a geografia
dos espaços produzidos e mais em sua relação com o tempo da experiência, ou seja,
pela qualidade das experiências subjetivas que seus espaços podem suscitar.

67 art uerj III semana de pesquisa em artes


Quando falamos da relação indívíduo-cidade, somos levados a pensar qual o
sentido dessa relação para os grafiteiros. Estrella (2006, p. 14) afirma que as ações
dos grafiteiros pela cidade lhe dão garantia poética: “o ato de grafitar na cidade é
uma estratégia poética para manter o diálogo constante com a origem. A cidade
concreta é a essência da imaginação do grafiteiro.” Para a autora a batalha cotidiana
do graffiti se expressa numa espécie de cruzada visual para lembrar à cidade a sua
humanidade. Muitas vezes a humanidade fica esquecida na aridez das periferias das
grandes metrópoles, regiões privadas de recursos e de investimentos públicos. O
graffti pode ser um oásis de cores e mensagens que brota no seio dessas regiões.
Scandiucci (2006, p.73) afirma que “Esse colorido de imagens vivas – muitas vezes
de dor e protesto – dá uma outra roupagem à alma periférica. [...] em geral, tem
caráter denunciativo e contestador da realidade daquele lugar.”
A maior parte dos autores, quando abordam o tema do graffiti, refere-se às
relações entre os artistas e a cidade, às relações entre a arte e a cidade, às marcas
que os grafiteiros deixam na cidade. Alguns autores falam do graffiti como forma de
expressão, muitos deles referem-se ao graffiti como forma de resistência contra as
forças globalizantes e homogeneizantes do capital. Como foi visto anteriormente,
também há autores que caracterizam o graffiti como gesto, no qual não há
importância de conteúdo. A partir da revisão bibliográfica feita por mim pude perceber
que ainda não foi investigado qual o impacto do contato com a arte no cotidiano
dos jovens grafiteiros. Assim, torna-se relevante o presente trabalho, que pretende
contribuir com a compreensão dos próprios grafiteiros acerca das transformações
que o ato de grafitar imprimiu ao seu cotidiano, ampliando assim a compreensão
dos impactos do graffiti na sociedade como um todo. Dar voz aos jovens grafiteiros é
tentar compreender como vivem essa trama descrita acima, como se compreendem e
como caracterizam sua experiência como grafiteiros, no cotidiano das suas ações.

Metodologia
Para compreender quais são as repercussões da produção artística no cotidiano
de jovens grafiteiros, será utilizado como método a pesquisa fenomenológica, que se
caracteriza por ser qualitativa. Nesta perspectiva, a tarefa do pesquisador é desvelar

68 art uerj III semana de pesquisa em artes


o fenômeno em questão, trazê-lo à luz, desvelando-lhe o significado, trazendo à tona
seus sentidos. A postura do pesquisador guia-se pela idéia de ser uma clareira na
qual tomará espaço o fenômeno em questão. Segundo Martins e Bicudo, (1989, p.92)
O investigador pergunta-se pela natureza do que vai investigar, e isso requer que
se exclua do campo de pesquisa qualquer compreensão prévia do fenômeno. “[...]
Ele não possui princípios explicativos, teorias, ou qualquer indicação definidora do
fenômeno. Inicia seu trabalho interrogando o fenômeno.” O que se mostra, portanto,
está sempre inacabado e sob uma determinada perspectiva, dependendo do olhar do
pesquisador e do seu encontro com o fenômeno, para que possa aparecer desta ou
daquela forma, sempre partindo do que é revelado pelos depoentes.
Assim, na pesquisa fenomenológica, parte-se daquilo que se mostra tal como
se mostra, prescindindo de teorias pré-concebidas e de certezas inabaláveis. Através
da observação e investigação do fenômeno pretende-se chegar à sua compreensão.
O processo de encontro entre pesquisador e depoentes, e a relação que se constrói
a partir disso é que ajudará a desvendar o sentido da experiência dos jovens
como grafiteiros. Não há posição de saber ou de ignorância, há olhares curiosos e
interessados voltados para o mesmo tema. O modo como se desenrolará os encontros
com o grafiteiro levarão a pesquisadora a caminhos de pesquisa por autores variados,
e os temas levantados nesses encontros serão aprofundados através de leituras.
Num primeiro momento decidiu-se que seriam convidados a participar da
pesquisa três jovens grafiteiros que passaram pelo processo inteiro de oficinas de
graffiti oferecidas pelo Projeto Quixote, e hoje fazem parte da Agência Spray Arte,
sediada no mesmo projeto e parte integrante dele. Apenas um desses jovens aceitou
participar da pesquisa, e, portanto, será feito um estudo de caso desse grafiteiro em
questão. O jovem será entrevistado longitudinalmente ao longo do tempo, até que se
possa tecer uma compreensão sobre a sua vivência cotidiana e os impactos da arte.
Não há número de encontros pré-definido ou tempo específico para esta tarefa, o que
definirá o momento em que os encontros poderão se encerrar será a compreensão
tecida por nós ao longo das horas e dos dias. Está incluído no plano de pesquisa
acompanhar o grafiteiro em trabalhos que ele venha a fazer (segue um exemplo de
trabalho que foi acompanhado pela pesquisadora no final do texto: figura 1). A previsão

69 art uerj III semana de pesquisa em artes


de término da coleta de dados é em Dezembro de 2009. A partir de questões abertas
pretende-se investigar qual foi o impacto do contato com a arte no cotidiano do jovem,
como se deu o processo de aproximação com meios de produção ligados à arte e que
mudanças isso trouxe para o seu dia-a-dia. O objetivo é que possa vir à tona como é o
seu cotidiano e as influências que o contato com a arte nele produziu.
Os encontros serão gravados e transcritos posteriormente, com o
conhecimento do participante da pesquisa. As fitas, depois de transcritas, serão

Figura 1: graffiti em
muro da cidade de São
Paulo, Setembro de
2009

armazenadas em arquivo pessoal da pesquisadora, e mantidas sob sigilo.


Serão garantidos os aspectos éticos, tais como sigilo aos depoentes, termo
de consentimento, e fidedignidade na transcrição das entrevistas. Será assegurado
também um espaço de acolhimento caso o jovem se sinta abalado emocionalmente
por te participado da pesquisa, com o intuito de dar respaldo a questões pessoais que
possam ser mobilizadas durante os relatos.
Os relatos e a compreensão destes serão devolvidos ao jovem para que possamos

70 art uerj III semana de pesquisa em artes


pensar juntos o rumo das investigações, para que assim ele participe ativamente da
pesquisa, e valide os seus resultados. Ao participar da pesquisa o jovem poderá se
apropriar do conhecimento construído, e a partir dessa apropriação será possível que ele
seja agente multiplicador dessa postura em sua comunidade de origem. Assim, pretende-
se que o resultado dessa pesquisa não fique estanque dentro das bibliotecas, mas sim,
que possa entranhar-se na comunidade, tanto acadêmica como social, disseminando o
poder de ter nas mãos a verdade sobre sua própria realidade.

Bibliografia
ANDRIOLO, A. (2006). O silêncio da pintura ingênua nos ateliês psiquiátricos. Psicologia: Teoria e
Pesquisa, 22, (2), 227-231.
COSTA-MOURA, Fernanda. Manifestos de quem não tem o que dizer: adolescentes contemporâneos e os
graffiti de rua. Estilos clin., jun. 2005, vol.10, no.18, p.116-130. ISSN 1415-7128.
ESTRELLA, C., A visualidade de São Paulo e o vocabulário popular do graffiti – a poética dos gêmeos.
Imaginario, (São Paulo), 2006, 12-23.
FRAYZE-PEREIRA, J.A. (2005). Arte, Dor. Inquietudes entre estética e psicanálise. Cotia, SP: Ateliê
Editorial.
FRAYZE-PEREIRA, J.A. (1995). O enigma arte-dor. Em J. Frayze-Pereira (Org.), Colóquio Arte-Dor (pp.
18-21). São Paulo:Instituto de Psicologia-USP/Museu de Arte Contemporânea-USP. (p. 6).
FURTADO, Janaina Rocha e ZANELLA, Andréa Vieira. Artes visuais na cidade: relações estéticas e
constituição dos sujeitos. Psicol. rev. (Belo Horizonte), dez. 2007, vol.13, no.2, p.309-324. ISSN 1677-1168.
GONÇALVES, F. N., ESTRELLA, C. Comunicação, arte e invasões artísticas na cidade. LOGOS 26:
comunicação e conflitos urbanos. Ano 14, 1º semestre 2007.
GORZ, A. (1987). Adeus ao proletariado – para além do socialismo. Rio de Janeiro: Forense-Universitária.
BICUDO, M.A.V., MARTINS, J. (1989). A Pesquisa Qualitativa em Psicologia: Fundamentos e recursos
básicos. São Paulo: Morais/Educ.
SCANDIUCCI, G. Cultura hip hop: um lugar psíquico para a juventude negro-descendente das periferias de
São Paulo. Imaginario, (São Paulo), 2006, 12 (12), 225-249.
_______________. O lugar do Hip Hop em São Paulo e os desenhos grafitados como marcas das
periferias. Imaginario, (São Paulo), 2006, 71-73.
SILVA, I. J.O. Graffiti – Criptografias do desejo. Imaginario, (São Paulo), 2006, 39-45.
SILVA, R. L. Escutando a adolescência nas grandes cidades através do grafite. Psicol. cienc. prof., dez.
2004, vol.24, no.4, p.2-11. ISSN 1414-9893.

Notas
1 O Projeto Quixote é uma OSCIP ligada à Universidade Federal de São Paulo, que atua desde 1996
e tem como missão transformar a história de crianças, jovens e famílias em complexas situações de risco,
através do atendimento clínico, pedagógico e social integrados, gerando e disseminando conhecimento.

71 art uerj III semana de pesquisa em artes


III semana de pesquisa em artes
10 a 13 de novembro de 2009 art uerj
arte e cultura urbana

Por uma linguagem visual alternativa: discursos, interferências e a cidade


como suporte

Marcelo Araújo

Doutorando em Antropologia Cultural – PPGSA – UFRJ

A comunicação aborda os grafites de muros, assumidos como produções artísticas urbanas


que ressignificam visualmente este ambiente. Proponho, para sua interpretação, uma
metodologia autoral que tem por referência as funções da linguagem estabelecidas por Roman
Jakobson, objetivando, deste modo, delinear uma contribuição teórica que se coloca como
ferramenta de leitura desta e de manifestações afins nos espaços públicos contemporâneos.

Grafite de muros; metodologia; funções da linguagem.

This comunication discusses the graffiti walls assumed as artistic productions urban that
resignify visually this environment. I propose a self methodology for its interpretation, with
reference to the language functions established by Roman Jakobson. I intend to delineate a
theoretical contribution that put like a engine for its reading and related events in contemporary
public spaces.

Graffiti walls; metodology; language functions.

“O que eu admiro no Picasso é o estilo que ele criou: ele ‘chutou o balde’. Se
esse cara fosse vivo, ele seria grafiteiro”.
(AKUMA, 15/06/2002)

Com as imagens do grafite, produções que se instalam como interferências


na cidade, há que se fazer, se quisermos entendê-las, uma detida contemplação,

72
sujeitando-as ao ritmo de nossa observação. Considerando sua especificidade, é
necessário lembrar que sua interpretação consiste mais na tarefa de intermediação
dos significados nelas presentes do que num processo de significação propriamente.
Nesse sentido, o espectador/intérprete faz existir a imagem.
Há, sem dúvida, na atualidade, uma linguagem visual de grande abrangência
compondo o espaço das cidades contemporâneas. Nesse sentido, a comunicação
por imagens é uma das principais características da vida moderna, sendo aspecto
essencial da experiência do ser urbano.
Enquanto linguagem urbana, o conjunto dos grafites pesquisados pode reunir
algumas funções que possibilitam uma aproximação analítica de sua aparição. Sua
linguagem conforma um canal alternativo de comunicação, cujas linhas básicas de
apresentação podem ser compreendidas através de uma perspectiva interpretativa
das pinturas em seu contexto.
Nesse prisma da comunicação, é possível estabelecer algumas características
das pinturas, a partir da observação de seus motivos temáticos, de suas cores e de
suas formas eleitas para a confecção. Assim, enquanto linguagem gráfica, urbana e
multicolorida, os grafites pesquisados podem ser discutidos a partir da abordagem de
funções específicas e restritas à linguagem comunicativa dos muros urbanos.

A linguagem dos muros e suas funções no espaço urbano


Na análise da imagem, inclusive da imagem artística, pode haver o
desempenho de variadas funções. Essas funções podem ser muito diferentes,
possibilitando perfazer um caminho que tanto pode proporcionar prazer ao
contemplador, quanto aumentar os seus conhecimentos, ensinar, ou tudo isso junto
quando permite ler ou conceber com maior eficácia mensagens visuais culturalmente
determinadas.
Sendo a imagem uma linguagem, que se mostra específica e heterogênea,
compondo-se de diversos signos (lingüísticos, icônicos, plásticos), é necessário definir
os objetivos específicos de uma análise sua, pois eles vão determinar em grande
medida as conclusões da mesma, face à não existência de um método absoluto para
análise, mas sim de opções a serem feitas ou inventadas em função dos objetivos.1

73 art uerj III semana de pesquisa em artes


A opção por trabalhar com estas categorias vem do fato de que a dimensão
da linguagem moderna tem uma conotação intrinsecamente visual. Ela materializa-
se na infindável produção de sinais, tornando perceptível a relação intrínseca entre
consumo e comunicação visual, em que estas duas facetas da vida contemporânea
se interpenetram incessantemente.
No caso em análise, as funções da linguagem, tais como delineadas por
Jakobson, servirão de aporte metodológico para a abordagem do conjunto das
imagens aqui estudadas, considerando uma ou mais representativas imagens por
função.2 Na maioria das vezes, não é tão facilmente possível isolar uma função
específica no estudo das imagens. Assim, é importante que notemos que diversas
funções podem ser detectadas simultaneamente nas imagens do grafite.
Portanto, é necessário efetuar a distinção, para efeito analítico, de cada
mensagem em particular, a fim de nos aproximarmos de uma forma mais segura das
imagens em questão.
Assim, sendo estas funções em número de 6 (além das apresentadas, há ainda
as funções conativa, fática e metalinguística), exploraremos neste texto 3 de seus
tipos, aqueles que podem ser notados de forma mais recorrente entre os grafites de
muros, atribuindo para cada uma delas uma imagem específica.

Função expressiva ou emotiva: o discurso do(s) eu(s) e a conotação simbólica


A função expressiva centra-se no emissor da mensagem, ou seja, na 1ª
pessoa, no grafiteiro. Deste modo, a mensagem - para nós, a imagem - terá um

Figuras 1 e 2: muro
coletivo no bairro do
Barreto. Digitalizada
a partir do original do
autor.

74 art uerj III semana de pesquisa em artes


conteúdo mais manifestamente subjetivo, que expressa um desejo, um estado de
espírito, até mesmo uma exteriorização psíquica.
A composição é de um intenso fundo azul medindo aproximadamente 1,80m de
altura X 3,00m de largura. Nela, a pintura narra um estilizado lance de basquetebol
estadounidense. Os jogadores são os próprios grafiteiros, têm seus nomes
nos uniformes, que parecem trazer para si a mesma fama e/ou importância dos
conhecidos praticantes daquele esporte.
As formas dotadas de características humanizadas são uma escolha estilística
que discursa acerca do ideal ou da necessidade de reconhecimento alheio. A
funcionalidade da pintura parece residir no fato não somente circunscrito à decoração
do muro (em vista da correção do seu aspecto um tanto acidentado pela ação do
tempo), mas também de dar-lhe uma maior durabilidade e resistência, dirigindo-se ao
público de um modo geral.
É possível efetuar uma interpretação que prime pelo caráter pedagógico
da composição, se considerado o desdobramento da cena desse mural. Como a
finalização da pintura é planejada para demonstrar a também finalização do lance de
ponto do jogo, os grafiteiros ensinam, de modo resumido mas didático, a evolução da
jogada.
A imagem em destaque, enquanto referência de função expressiva para o
universo dos grafites, condensa algumas das características básicas presentes
em outras manifestações imagéticas aqui aludidas. Exprime indícios fartamente
encontrados no campo pesquisado que apontam para um estilo de grafite que se
poderia chamar informalmente de auto-centrado e de promoção. Isso se mostra claro
principalmente quando da intensa recorrência ao próprio nome, o que estabelece uma
tentativa de individuação de seu trabalho, possibilitando uma logotipificação que o
registra no espaço da cidade.

Função referencial: recortes realistas em projeções criativas


Este aspecto apresenta uma íntima aproximação com a reprodução do real.
Os grafiteiros que compõem pinturas que podem ser submetidas a uma análise
baseada na função referencial procuram ser objetivos nas suas composições

75 art uerj III semana de pesquisa em artes


Figuras 3: muro
coletivo no bairro
de Venda da Cruz.
Digitalizada a partir do
original do autor.

urbanas. Eles primam pela significação mais básica possível da pintura sem deixar
de lado - e essa é a sua especificidade - o investimento de sua dose de criatividade.
Baseando-se numa orientação que privilegia o contexto, as imagens que
seguem a tendência ao referente, àquilo sobre o que está falando, não podem ser,
entretanto, isoladas da ocorrência concomitante de outras funções, mesmo estando
em grande quantidade no campo pesquisado.
As dimensões são aproximadamente 1,25m de altura x 3,10m de largura. A
riqueza de detalhes e a vivacidade das cores transformam a composição numa
reprodução bastante aproximada da realidade sensível, dos referenciais da natureza
para os quais a pintura se volta.
Além do realismo investido nas pinturas, o que parece também impressionar
é o recorte que separa uma parte da outra na pintura. O corte geométrico que as
separa assemelha-se às películas de filme fotográfico, que separam os quadros das
poses. A ‘fotografia’ dos elementos da natureza parece ser, a partir das reproduções
realistas que a pintura apresenta, o ideal buscado pelos grafiteiros. Fotografia
que, apesar de privilegiar o aspecto do real visível, não deixa de ter seus traços
impressionistas bem marcados pelas manchas que são impressas no fundo da
pintura, em ambas as partes.
76 art uerj III semana de pesquisa em artes
Juntam-se ainda aqui duas outras funções que se manifestam na composição
de modo também importante: a função conativa e a função poética. Na primeira,
o apelo ao espectador é uma forma de dirigir a preocupação quanto ao tema
tratado para as atitudes dos outros indivíduos. O foco no destinatário é a maneira
de os grafiteiros contribuírem, com sua pintura, para a conscientização quanto à
conservação dos bens naturais, aqui curiosamente objetivados na casa de shows,
que deve ser uma prática abrangente e constante.
Quanto à função poética, a valorização da própria produção (em suas palavras,
da arte), da poesia que as palavras contêm e o fato de valorizar diferencialmente o
suporte freqüentado pelos habituais usuários é invocada, quando da aliança entre
imagem e texto.
A função poética aqui investida lembra também a adequação entre o tipo de
pintura e a natureza do suporte em que ela se encontra. O caráter de entretenimento
da casa promove um hiper-dimensionamento do conceito de arte aplicado pelos
próprios grafiteiros, face não somente à sua visibilidade ampliada mas também pela
música ser uma forma de arte, sendo oportunamente complementada por uma outra,
a pintura.

Função poética: o grafite como valorização e transcendência dos suportes


urbanos
A função poética investida nas imagens do grafite pode ser verificada quando
o enfoque da mensagem visual incide nela mesma, explorando recursos de retórica,
tais como metáforas e metonímias, no discurso imagético.
Ao manipular as suas particularidades, efetuando experiências com seus
detalhes, suas formas e, por vezes, com o espaço em que se instalou, a imagem do
grafite, quando investida de uma função inerentemente poética, aprofunda toda a sua
potencialidade artística. Iguala-se, deste modo, ao que Jakobson chamou, para o
plano lingüístico, de “arte verbal” (JAKOBSON, 1971:161), mas na sua condição de
produto da interação entre palavra e imagem.
Como afirma Jakobson (idem:123), “a diversidade reside não no monopólio
de alguma dessas diversas funções, mas numa diferente ordem hierárquica delas”.

77 art uerj III semana de pesquisa em artes


Deste modo, a estrutura e a narratividade possíveis em uma imagem dependem
basicamente da função predominante que ela apresenta.
Suas medidas perfazem dimensões de aproximadamente 3,50m de altura x
11m de largura. A autoria da pintura é de Ema e ela foi confeccionada num evento
que reuniu, segundo depoimentos, em torno de 30 grafiteiros.
Mesmo as infiltrações da parede do viaduto sobre a pintura são adições à
poética da mesma: o trabalho da imagem com o que seria a decrepitude natural da
cidade reforça a noção, ou melhor, a constatação de efemeridade da composição.

Figuras 4: muro
coletivo no bairro do
Alcântara. Digitalizada
a partir do original do
autor.

Partindo da esquerda para a direita, temos, no primeiro quadro, a


representação de um braço humano que acena através do vidro que lhe barra a
passagem. Na seqüência, já com o seu rosto em primeiro plano, a personagem sorri,
aparentemente satisfeita com a sua posição. O passante parece receber um eterno
sorriso deste sujeito, sorriso do qual nunca saberá o tom reinante: se é a expressão
de uma satisfação ou de sarcasmo.
De “costas” para ele, está o segundo quadro, que representa uma figura sem
feições, sem uma expressão que possa indicar algum estado de espírito ou postura

78 art uerj III semana de pesquisa em artes


específica perante a sua condição. Suas cores, um marrom em dois tons e um leve
contorno em preto, apontam para uma filiação étnica distinta: parece ser negro.
Seus traços leves e quase apagados podem sugerir que ele está adormecido pois
seu semblante plácido não transmite nem preocupação nem sentimento. Soma-se
ainda à imagem, o interessante corte que lhe é dado pela sombra do madeirame
na diagonal, quase o atravessando milimetricamente, como que anunciando
simbolicamente uma espécie de interdição (semelhante às placas de trânsito que
proíbem algo): proíbe-se (?) o sujeito de ser ele próprio.
No terceiro quadro, uma cena de aparente opressão é reproduzida. Entre
os múltiplos significados que tem esta imagem, uma possível aproximação poderia
ser entendê-la como sugestão de ausência de liberdade, que se dá pela aparente
expressão desolada da personagem, que comprime o rosto contra uma vidraça, num
semblante de desencantamento e de agonia.
Os limites do quadro, arredondados, não parecem sugerir nada de tão
facilmente interpretável. Considerando o grafite como produção urbana crítica, crítico
do ambiente urbano tal como ele se apresenta, segregado, caótico, socialmente
segmentado, a pintura pode estar aludindo à falta de perspectiva em uma cidade com
estas características.
O menino, cuja expressão assustada assiste à passagem dos veículos e
pessoas pelo ambiente a sua volta, parece estar confinado numa redoma - como
poderia simbolicamente ser interpretada uma vida sem perspectivas, sendo o amarelo
a falta de vitalidade, de pulsação, de “sangue”.
Mas pode também estar, por algum motivo, fugindo da expressão maléfica do
quadro ao lado, o quarto. Este parece ter intenções negativas em relação ao vizinho,
simbolizadas por um sorriso aterrador que é expresso pelos seus traços de maldade
no olhar.
Tais intenções já não são observadas no quadro seguinte. Pelo contrário,
a aparência sofrida da personagem lembra a figura dos nordestinos - até mesmo
pelo desenho característico da cabeça - que vêm “tentar a sorte” no sudeste e não
conseguem realizar satisfatoriamente os seus planos, ficando muitas vezes aquém do
minimamente desejado.

79 art uerj III semana de pesquisa em artes


Cansado e frustrado, parece não ter mais ânimo para ouvir os discursos
provenientes de administradores ou de candidatos a algum cargo eletivo que a tudo
pretendem resolver, em propagandas eleitorais veiculadas na televisão. Aliás, ele
próprio enclausurado em um suporte que lembra uma televisão: será sua vida uma
novela? Novela que é literalmente assistida de perto por um olho atento, que capta o
desenrolar dos acontecimentos e que olha, ao mesmo tempo, para o que acontece no
viaduto - ou seria no céu?
A arte seqüencial impressa no muro não propõe verdadeiramente interrogações
gráficas, como as representadas, mas sim interrogações de sentido, de significado.
Interrogações que são aditivadas não somente pelo conteúdo manifestamente
ligado ao funcionamento urbano mas também pela ação das forças naturais e do
tempo: cada intensidade dos raios de sol que batem nesse espaço e cada sombra lá
projetada redesenham a sua visualidade, redefinem e recontam a sua história.

Considerações finais
Esperando ter contribuído para uma possível forma de interpretação
destas imagens urbanas, este texto enfatiza, mais uma vez, que as opções
de enquadramento das imagens sob uma função da linguagem (visual) só
têm pertinência quando se reconhece que esta é uma postura arbitrária e
deliberadamente posicionada a partir de e por um propósito pedagógico e didático.
Para finalizar, quero advogar em benefício da utilização acadêmica das
imagens do grafite de muros na constituição de um campo que merece ser explorado,
uma vez que sua discussão se vale de elementos que ativam a interlocução entre
produção artística e sua moldagem plenamente social.

Referências bibliográficas
ALMEIDA, Lívia de. “Telas de Pedra - a arte de colorir as ruas”. In: Veja Rio, ano 10, nº 9, RJ, 28 fev./5
mar. 2000.
ARAUJO, Marcelo da Silva. “Juventude e grafite: imagens, comunicação e vitrines de concreto na cidade”.
In: Anais do 8º Encontro do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Escola de Belas
Artes/UFRJ, RJ, Editora UFRJ, 2002.
ARGAN, Giulio Carlo. “O espaço visual da cidade”. In: História da arte como história da cidade, 3ª ed.,

80 art uerj III semana de pesquisa em artes


SP, Martins Fontes, 1995.
BARTHES, Roland. “Semiologia e urbanismo”. In: A aventura semiológica, Lisboa, Edições 70, 1987.
FABRIS, Annateresa. “A rua como uma das belas artes”. In: Anais do 8º Encontro do Programa de Pós-
Graduação em Artes Visuais: “Cidade-galeria: a arte e os espaços urbanos”, EBA-UFRJ, 2001.
FRANÇOIS, Frédéric. “Le langage et ses fonctions”. In: MARTINET, André (org.). Le langage, Paris,
Encyclopédie de la Pléiade, 1970.
GITAHY, Celso. O que é graffiti, SP, Brasiliense, 2000.
JAKOBSON, Roman. Lingüística e comunicação, SP, CULTRIX, 1971.
JOLY, Martine. Introdução à análise da imagem, Campinas, Papirus, 1996.
SZAJMAN, Abram (org.). Arte Pública, SP, SESC, 1998.
RAMOS, Célia Maria Antonacci. Grafite, pichação & cia, SP, Annablume, 1994.

Notas
1 JOLY (1996:50). Isto reforça o caráter artesanal do método, no sentido de sua adequação ao objeto,
que se torna uma ferramenta ad hoc no estudo da imagem, sobretudo das imagens visuais constantes do
espaço urbano.
2 Na acepção de JAKOBSON (1971), essas funções estão presentes em todo ato de comunicação e,
para tanto, a linguagem só pode ocorrer na presença de um contexto a que se refira, quando passível de
verbalização e quando possuir um canal físico para o contato. Ver também FRANÇOIS “Le langage et ses
fonctions”, in MARTINET (1970:3-19).

81 art uerj III semana de pesquisa em artes


III semana de pesquisa em artes
10 a 13 de novembro de 2009 art uerj
arte e cultura urbana

Burle Marx e o jardim do MAM-RJ: Arte e Ciência na Construção do


Espaço Moderno

Neyva de Lima Santiago

Pós-graduada Latu Sensu em Técnicas de Representação Gráfica EBA – UFRJ

Isis Braga

Orientadora, Prof.ª D.Sc. Pós-graduação Latu Sensu em Técnicas de Representação Gráfica


EBA – UFRJ

A pesquisa tem como objetivo compreender o processo de concepção e desenvolvimento


do projeto paisagista do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro de Roberto Burle Marx
dos anos de 1950. Investiga-se a influência do Concretismo e do Neoconcretismo no projeto
de paisagismo do MAM-RJ. Conclui-se que as tendências das Artes Modernas estiveram
presentes nas idéias paisagísticas de Burle Marx, que permitiram o pintor-paisagista-arquiteto
integrar a Arte e a Ciência na construção do paisagismo moderno.

Concretismo e Neoconcretismo; Paisagismo Moderno; Planta de Jardim.

The research aims to understand the process of conception and development of landscape
gardening of the Museum of Modern Art in Rio de Janeiro by Roberto Burle Marx in the 1950s.
Investigates the influence of the Concretismo and Neoconcretismo in the landscape gardening
project of the Museum of Modern Art in Rio de Janeiro (MAM-RJ). Concludes that the landscape
design by Burle Marx has trends of modern art, because he got join the project painting -
landscape- architecture to integrate Art and Science in the construction of modern landscape
gardening.

Concretismo and Neoconcretismo; Modern landscape gardening; Garden Plant.

82
Introdução
A partir de observações e estudos baseados nos projetos de modernização
do espaço urbano da cidade do Rio de Janeiro, o jardim do Museu de Arte Moderna
do Rio de Janeiro (MAM-RJ) foi escolhido como tema por ser um jardim público que
faz parte da história nacional, exclusivamente pensado e projetado pelo arquiteto-
paisagista Roberto Burle Marx nos anos de 1950, que teve a ânsia de transferir a
imagem do nacional de suas telas pictóricas para o espaço urbano, introduzindo a
flora nativa no paisagismo.
O presente artigo tem como o enfoque a compreensão do processo de
concepção e desenvolvimento do projeto do jardim do Museu de Arte Moderna (MAM-
RJ). de Burle Marx na elaboração da planta de jardim.
Pretende-se aqui abordar o objeto de análise com o objetivo de delimitá-lo
dentro dos seguintes contextos:
• Identificar a influência do Concretismo e do Neoconcretismo no projeto do
jardim do MAM;
• Pontuar as linguagens e as técnicas gráficas e artísticas que Burle Marx
utilizou na elaboração da planta de jardim do MAM – RJ.  
A metodologia baseia-se na investigação do uso do diálogo arte-ciência-técnica
na organização do espaço por Burle Marx, referente à elaboração da planta de jardim
do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM-RJ). O processo metodológico
está organizado nas seguintes etapas: (1) Levantamento e revisão bibliográfica
com a consulta em livros, dissertações, periódicos; (2) Levantamento de materiais
iconográficos como mapas, fotos, desenhos e projetos de arquitetura paisagística.
Conta-se também, a visitação a exposição “Roberto Burle Marx 100 Anos – A
Permanência do Instável” como fonte de consulta dos trabalhos realizados por Burle
Marx1; (3) Comparação, interpretação e análise dos dados e materiais selecionados;
(4) Pesquisa de campo; (5) Reprodução de imagens geradas durante a pesquisa.

1. A Arte e a Ciência na construção do paisagismo moderno de Burle Marx
O espaço moderno da cidade do Rio de Janeiro dos anos de 1950 situa-se no
período histórico de renovação e afirmamento da nacionalidade em todos os aspectos

83 art uerj III semana de pesquisa em artes


da vida social, tendo a cidade como principal espaço de manifestação cultural,
cabendo a “cultura, por meio das técnicas, politicamente controladas, desempenhar
as funções de integração, regulação e enquadramento social” (CORRÊA, 2003:175).
No âmbito nacional, o paisagismo expandiu-se e consolidou-se no processo
de urbanização dos anos 50 com o ideal de transformação social incorporado na
crença modernista de gerar uma nova forma de edificação que permitisse reeducar
os hábitos e a percepção visual da população. As cidades brasileiras demandaram
por espaços públicos de lazer para a população urbana como as praças e os parques
deixaram de ser redutos das elites locais.
O modernismo buscou, principalmente, superar a arte clássica no
relacionamento entre as dimensões comunidade e indivíduo. A Arte passou adquirir
novas funções e significados (ARGAN, 1992). No segmento de “arte aplicada”,
se distinguiu das demais por não utilizar apenas a expressão artística como base,
buscou-se a ação criadora através da Ciência, que permitiu ao artista do Concretismo
ser um observador e um investigador de novos recursos técnicos e de novos
materiais e suportes.
Neste contexto moderno e artístico que o paisagismo renovador de Burle Marx
significou um marco na história do paisagismo brasileiro, seu trabalho se caracterizou
pela linguagem das vanguardas artísticas modernistas.
Burle Marx diferenciou-se da tradição cultural brasileira, entre o final do século
XIX e o início do século XX, apresentou-se fortemente influenciada pelas tradições
européias francesas e inglesas. Segundo Terra (2000), estas culturas européias
atuaram na configuração do projeto paisagístico nacional, com destaque o francês
Auguste François Marie Glaziou, que atuou durante o Império, em sua composição
usou a mistura de formas, materiais e vegetação exótica com o clima tropical. 

1.1. As características do Concretismo e do Neoconcretismo identificadas no


projeto do jardim do MAM-RJ
Os movimentos concretistas e neoconcretistas tornaram-se inevitáveis para
Burle Marx, levou-o a introduzir o pensamento destes movimentos nas plantas-baixas
de seus projetos. Segundo Motta (1983), Burle Marx no projeto do paisagismo do

84 art uerj III semana de pesquisa em artes


Figura 1 – O jardim
ordenado de Burle
Marx

MAM – RJ considerou a topografia, o rigor geométrico configurado em retângulos,


círculos e quadrados que aparecerem no emprego de mosaicos nos planos de
concretos, pedras, esculturas, lajes.
Marx (1987) nos fornece uma explicação de como os projetos remetiam à
lembrança das pinturas modernas combinadas com os elementos da natureza:  

“(...) Decidi-me a usar a topografia natural como uma superfície para


composição e os elementos da natureza encontrada – minerais e
vegetais – como materiais de organização plástica, tanto e quanto
qualquer outro artista procura fazer sua composição com a tela, tintas e
pincéis.”( MARX, 1987:11). 

Observa-se a influência do concretismo e do neoconcretismo no projeto do jardim


do MAM – RJ pela presença dos conteúdos plásticos.  Para Marx (1987), o jardim
está além de ser um instrumento de lazer, ele define-o como uma manifestação de arte
com características próprias. Enfatiza que a presença de cor, forma, dimensão, tempo e
ritmo na composição paisagística se diferencia das demais artes por destacar os aspectos
de “tridimensionalismo, temporalidade e dinâmica dos seres vivos” (MARX, 1987:25).
85 art uerj III semana de pesquisa em artes
Na figura 1, nota-se que as formas geométricas surgem com o encontro de
linhas horizontais e linhas verticais, os espaços criados são preenchidos e realçados
por cores primárias, assim, presentes na composição de Mondrian. A interações de
cor com a forma geométrica simples estão trabalhados na planta de jardim, para
exemplificar destaca-se os espelhos d’água localizados em frente ao museu.
Burle Marx introduziu novos conceitos de ajardinamento em espaços livres
públicos, utilizou recursos simples do plano pictórico, associou ao mobiliário e
introduziu inúmeras espécies vegetais no paisagismo urbano, privilegiando as cores
e as formas da vegetação nativa ao ordenar e organizar como fossem quadros
pictóricos.
O Jardim Ordenado de Burle Marx, exemplificado na figura 1, retrata
da distribuição dos espelhos d’água que remete ao equilíbrio através da forma
retangular organizada em planos horizontais com níveis diferenciados e de tamanhos
desproporcionais, considerando a assimetria como a base do equilíbrio. De acordo
com Argan (1992), o Princípio de Mondrian é notado na obra de Burle Marx quando
se busca aplicar na planta de jardim a pura forma geométrica com o mínimo de
técnica mínima e o uso de cores primárias.
A proposta do “jardim ordenado” (MARX, 1987: 34) ao redor do Museu de
Arte Moderna - MAM-RJ, concebido pela materialização das formas geométricas
e pelo emprego de elementos da natureza. Evidencia o cuidado de Burle Marx
com o paisagístico moderno e descrevem a influência da linguagem pictórica do
Concretismo e do Neoconcretismo de dimensão internacional no conjunto que
compreende Le Corbusier, Bauhaus e grupo Stijl com fontes inspiradoras.
Segundo Peccinini (1999), nos anos de 1950 manifestava-se o Concretismo na
cidade do Rio de Janeiro o que correspondia às influências internacionais. Os artistas
concretistas exerciam o papel sociocultural, caracterizado pelo aspeto da relação
homem e meio ambiente, que permitiu uma liberdade na escolha de temáticas e de
técnicas, sem a preocupação com o estilo. Destaca-se o Grupo Frente, em especial,
o Ivan Serpa como representante do concretismo carioca que buscou reduzir a
diferença entre a forma e o conteúdo.
No grupo dos concretistas paulistas, destaca-se o suíço Max Bill por sua

86 art uerj III semana de pesquisa em artes


contribuição funcionalista ao concretismo paulista, idealizado em construir a arte
como técnica de base geométrica afirmada em oposição ao figurativismo.
O Concretismo dos artistas brasileiros do eixo Rio – São Paulo apresentou uma
licença poética com várias tendências que permitiu Burle Marx dialogar com o espaço
urbano através do uso de formas geométricas e cores livres, representadas por
diversificados tipos de superfícies e materiais empregados no plano bidimensional,
como a elaboração da planta de jardim2 e no plano tridimensional, as ideias são
executadas com a transferência do projeto no papel para o terreno jardim (figura 2).
Após os anos de 1950, segundo Brito (2002), se estabeleceram pontos centrais
de polêmica entre o concretismo-neoconcretismo na linguagem visual e na literatura.

Figura 2 – Burle Marx e


o Neoconcretismo

Os neoconcretos direcionaram criticas ao reducionismo tecnicista e lutaram contra


a exteriorização das linguagens geométricas utilizadas pelo concretismo. Com o
esgotamento do Concretismo, o Neoconcretismo assumiu a posição de destaque
nos grupos dos jovens artistas, representou a ruptura nas relações entre os artistas
concretistas cariocas dogmáticos e os artistas concretistas paulistas ortodoxos.
Entre os neoconcretistas brasileiros, considera-se as obras de Hélio Oiticica
como resposta ao processo de transição entre as ideias do concretismo e do
neoconcretismo. Hélio Oiticica buscou libertar suas pinturas do plano rente à parede
e criou ambientes em que o espectador pudesse penetrar e habitar em sua obra.
Segundo Braga (2008), “Magic Square nº 5” é uma réplica da maquete que integra ao
87 art uerj III semana de pesquisa em artes
conjunto de sete praças futuristas projetadas por Hélio Oiticica. Esta obra sintetiza a
pesquisa do artista do início dos anos de 1960. (figura 3)
A intenção do arquiteto-paisagista-pintor Burle Marx se aproxima dos ideários
de Hélio Oiticica ao combinar arquitetura e pintura, na transferência da ideia
contida na superfície monocromática da tela pictórica para a construção do espaço
tridimensional com a correspondência entre a cor e a forma geométrica.
Ao examinar a influência do concretismo e o neoconcretismo no projeto
paisagístico do MAM-RJ, verificou-se que Burle Marx, como um dos artistas
modernos buscou através de suas artes - arquitetura, pintura e escultura - induzir
o espectador a modificar o modo de ver e sentir um mesmo objeto em diferentes
representações, a partir da estruturação da cor e do uso das formas geométricas
básicas inseridas no paisagismo moderno.

Considerações Finais
Concluiu-se que as idéias paisagísticas de Burle Marx no projeto do MAM-RJ
foram influenciadas pelo Concretismo e pelo Neoconcretismo. Avaliou-se a Planta de

Figura 3 – Hélio
Oiticica. Magic Square
nº 5, Museu do Açude -
Rio de Janeiro.
Fonte:
Revista de História da
Biblioteca Nacional,
ano 4,nº39, 2008

88 art uerj III semana de pesquisa em artes


Jardim como uma técnica de representação distinta do convencional por combinar
aspectos artísticos com os aspectos do desenho técnico. Portanto, verificou-se que
a modernidade de Burle Marx foi dialogar as idéias paisagísticas em três diferentes
superfícies: o papel, a tela pictórica e o terreno do jardim, integrando a Arte com a
Ciência na construção do espaço moderno.

Referências Bibliográficas
ARGAN, G. C.. O Modernismo. In: Idem. Arte Moderna. Tradução: Denise Bottmann e Federico Carotti. São
Paulo: Companhia das Letras, 1992, p.183 – 225.
BRAGA, P. O quadro que virou praça. In: Revista de História da Biblioteca Nacional, ano 4,nº39,2008. p 72
-77
BRITO, R. Neoconcretismo: vértice e ruptura do projeto construtivo brasileiro.1ª ed. 1ª reimp..São Paulo:
Cosac & Naif Edições, 2002.
CORRÊA, L. R.. A Geografia Cultural e o Urbano. In: CORRÊA, L. R. & ROZENDAHL, Z.(orgs). Introdução
à Geografia Cultural. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003. p. 167-186.
MARX, R. B.. Arte & Paisagem: conferências escolhidas. São Paulo: Nobel,1987.
MOTTA, F. L.. Roberto Burle Marx e a visão da paisagem. São Paulo: Nobel, 1983.
MOUTINHO, M. Foto de Burle Marx. Disponível em :http://www.marcelomoutinho.com.br. Acessado em:
20/01/2009.
PECCININI, D.. Figurações: Brasil anos 60, neofigurações fantásticas e neo-surrealismo, novo realismo e
nova objetividade. São Paulo: Itaú Cultural, Edusp, 1999.
MONDRIAN. Disponível em: www.artknowledgenews.com. Acessado em: 08/10/2008
SANTOS, E. O paisagismo de Burle Marx e a moderna Arquitetura Brasileira. Dissertação de Mestrado. Rio
de Janeiro: PROARQ/UFRJ, 2004.
SIQUEIRA, V.B..Burle Marx. São Paulo: Cosac & Naif Edições, 2002.
TERRA, C. G.. Os jardins no Brasil do século XIX: Glaziou revisitado. 2ªed..Rio de Janeiro: EBA/UFRJ,
2000.

Notas
1 A exposição celebrou o centenário de Roberto Burle Marx (1909-1994) com os objetos, pinturas e
projetos paisagísticos. Foi realizada no Paço Imperial, RJ, no período de novembro de 2008 a abril de
2009, com a curadoria de Lauro Cavalcanti.
2 Com base na exposição do Paço Imperial sobre o centenário de Burle Marx, o termo citado por Planta
de Jardim refere-s à e denominação dos trabalhos paisagísticos de Burle Marx que apresentam a aplicação
da técnica de pintura sobre o desenho técnico do jardim.

89 art uerj III semana de pesquisa em artes


III semana de pesquisa em artes
10 a 13 de novembro de 2009 art uerj
arte, religião e tradições

Cidades furtivas: análise da relação entre corpo, imagem e produção de


discursos

Rafael Delphino Tupinambá

Bacharel em Artes Cênica – UNB

Tahiba Melina Leismann de Sá Chaves

Pós-Graduanda em Terapia pelo Movimento/ Angel Viana e Bacharel em Artes Cênicas – UNB

Victor Hugo Neves de Oliveira (Orientação e Supervisão de Pesquisa)

Mestrando em Ciência da Arte – UFF e Bacharel em Dança – UFRJ

A pesquisa apresentada neste artigo busca observar e examinar a partir da tríade arquitetura,
imagem e movimento possibilidades de composição e investigação que estruturam a criação
de discursos na cena contemporânea, tendo por fundamento a análise dos elementos de
trabalho adotados pelo Projeto Ateliê Coreográfico 2009 na concepção e elaboração do
espetáculo Cidades Furtivas. Adotando como referências de estudo o tríptico O Jardim das
Delícias Terrenas de Hieronymus Bosch, trechos da obra Cidades Invisíveis de Ítalo Calvino e
a dupla experiência de percorrer e conviver no ambiente da Casa da Glória (cenário utilizado
para o desenvolvimento de ensaios, confecção e realização da performance) com propósitos
de familiarização, apoderamento e apreensão de sua complexidade estrutural, a pesquisa
propõe uma aliança entre os elementos promotores e articuladores da concepção coreográfica
engendrando e movimentando esforços para a apreensão do conteúdo artístico como
expressão de saberes coletivos e híbridos e, por consequência, como meio de construção para
alternativas de resolução de determinadas questões sociais.

Dança; corpo; imagem.

This research tries to observe and examine the triad architecture, image and movement as
possibilities of composition and research that structure the speech creation in the contemporary
90
scenario, based on work elements analysis adopted by “Projeto Ateliê Coreográfico 2009” in
the creation of “ Cidades Furtivas”. Adopting as study references the triptych: “O Jardim das
Delícias Terrenas” by Hieronymus Bosch, parts from the book “Cidades Invisíveis” by Italo
Calvino and the double experience of visiting and cohabiting at “Casa da Gloria” (place used
to the rehearsal development, creation and performance action) for purposes of familiarization,
incorporation and understanding of its structural complexity, the research proposes an alliance
between the promoters and articulators elements of the choreographic creation, proposing and
moving efforts to the understanding of the artistic content as an expression of collective and
hybrids knowledge and as way to create alternatives to solve some social issues.

Dance; body; image.

Introdução
A pesquisa proposta neste trabalho busca investigar as relações construídas
entre corpo e imagem na produção, elaboração e representação de discursos à cena
contemporânea, examinando traços compositivos que fundamentam a construção
da obra coreográfica Cidades Furtivas (Projeto Ateliê Coreográfico/ 2009) tais como
o descentramento do espaço cênico, a introdução do acaso no fazer artístico, a
não dependência estabelecida entre música e movimento, a autonomia do olhar na
apreensão da obra; propomo-nos, porém, simultaneamente, a promover um estudo
acerca dos arranjos simbólicos, elementos estruturais, que articulam-se à concepção do
espetáculo, quais o tríptico Jardim das Delícias Terrenas de Hieronymus Bosch, trechos
da obra Cidades Invisíveis de Ítalo Calvino e a experiência de trabalhar e (con)versar,
percorrer e (con)viver na Casa da Glória, desenvolvendo discussões e análises acerca
de seus valores e interferências no empreendimento criativo, situando-nos, desse
modo, na fronteira entre propostas coreográficas e abordagens conceituais.
A recomposição destas redes densas de significações e interações que tramam
a complexa unidade do processo de criação artística faz-nos apreender a relevância
de um estudo pautado no fenômeno dialógico dos elementos sensíveis e técnicos
para o levantamento de apontamentos que se desdobrem para além dos limites
de um debate que se circunscreva ou detenha a descrição de processos criativos;
exortando-nos, assim, não ao estabelecimento de testemunhos que resgatem
experiências, mas, sobretudo, a um caráter de imersão, pautado na análise do ato
91 art uerj III semana de pesquisa em artes
coreográfico, que possibilite-nos o encontro com a idéia de cientificidade e sua
aplicação em nossas propostas de estudo.
A pesquisa, assim, aproxima-nos de um processo de familiarização entre
ciência e arte, avizinhando-nos da produção de uma reflexividade mais consistente
nos procedimentos de análise de obras artísticas e revelando-nos, à medida que
nos possibilita reconhecer a parcialidade e provisoriedade constantes em todo
ato de investigação, a idéia de que a “totalidade de qualquer objeto de estudo é
uma construção do pesquisador, definida em termos do que lhe parece mais útil
para responder ao seu problema de pesquisa”1, o que nos faz perceber ser irreal
a pretensão que determinadas investigações sustentam de descrever e descobrir
a relevância teórica de todo o universo pesquisado. Por isso, partimos, aqui, da
perspectiva de que o trabalho proposto não abarca, de maneira alguma, o complexo
de questões e problematizações disponíveis em nosso setor de pesquisa, tampouco
liquida ou extingue todo o arcabouço metodológico e linhas de investigação
possíveis a um melhor e mais amplo entendimento da obra Cidades Furtivas;
entretanto, conquanto limitado, é a luz deste representativo nicho de pensamento
que nos propomos a contribuir com a elaboração e o desenvolvimento das formas
de organização do pensamento nos círculos do fazer coreográfico, dispondo-nos
a examinar o processo relacional entre corpo e imagem e avaliando a repercussão
de cada um dos fatores que estruturam a obra Cidades Furtivas, seus elementos
simbólicos e dimensões compositivas, na produção de discursos.

Casa da glória: Ponto de partida


“... a casa abriga o devaneio, a casa protege o sonhador, a casa nos per-
mite sonhar em paz.” (Bachelard)

As relações produzidas entre arquitetura e movimento no processo de


construção do espetáculo Cidades Furtivas baseadas na prática de percorrer,
conversar, trabalhar, analisar e conviver no ambiente da Casa da Glória – localizado
na Ladeira da Glória, em um espaço de transição entre o centro e a zona sul da
cidade do Rio de Janeiro – nos possibilitam identificar pontos elementares às nossas

92 art uerj III semana de pesquisa em artes


experiências e práxis artísticas. A partir de dois movimentos de espacialização,
aparentemente opostos, concentrados em conhecer a espacialidade da vida social
no entorno de nosso âmbito espacial – analisando sistemas de ações, de objetos
e de comportamento, e percebendo edifícios vizinhos, ruas e becos – e em reunir
informações sobre a estrutura íntima da Casa e seus percursos, apreendemos
a necessidade de aproximarmo-nos de uma construção estética propositiva de
discursos e diálogos entre o conteúdo da arte e os elementos da vida social.
Tal compreensão permite-nos apreender na arquitetura da Casa da Glória
elementos paradoxais em estado de hibridação, aproximando estruturas diferenciadas
e rearranjando-as em um novo contexto a partir de uma proposta Mobius, (con)fundindo
dentro e fora, abrigo e paisagem, casa e rua e integrando esferas em oposição;
percebemos, desse modo, um formato de sinuosidade que na intimidade da Casa
tranforma-se em labirinto e fornece uma experiência que se liga à ignorância ou à
incerteza de se estar dentro ou fora, fundindo ao mesmo tempo arquitetura e paisagem.

Essa inquietude em relação à interioridade e à exterioridade constitui a


própria experiência: não sabemos jamais se ali, entramos ou não, pois o
labirinto não tem começo nem fim fixos, ele está sempre no meio, é um
meio (JACQUES, 2001: 93).

Apreendemos, desse modo, a estrutura arquitetônica do espaço como


agente fomentador de imagens diretamente relacionadas à prática gestual cuja
intenção compositiva é constantemente atravessada pelo lugar, exortando-nos ao
redimensionamento do corpo, do olhar e a elaboração de discursos. A imagem do
espaço – estímulo sensorial – passa a ser compreendida não mais como tecido fixo
e sim maleável que segue um movimento vertiginoso e nos induz a perdição, a um
estado de perder-se que desloca-nos para o labirinto sempre aberto e renovado pela
experiência; assim, a Casa da Glória, antes de ser cenário e/ou espaço cênico para
nossas atividades artísticas, nos induz ao aprendizado da dança cujo estado estético
fundamental é a própria embriaguez.
Na obra Cidades Furtivas percebemos, assim, a possibilidade de o labirinto –

93 art uerj III semana de pesquisa em artes


enquanto experiência sensorial – se aproximar do espectador que do interior da Casa
visiona a expressão coreográfica que ocorre no exterior, capturando com binóculos
imagens furtivas da cidade e perdendo-se enquanto observador e observado.
Através da possibilidade de apreender a imagem dos corpos em cena a partir de
novos “óculos”, os espectadores – propositores autônomos – selecionam minúcias,
detalhes e adornos a observar, assim como esferas da vida social – edifícios, ruas e
espaços aparentemente externos a Casa da Glória – criando a partir da experiência
de percorrer o espaço jogos de composição coreográfica. O caráter interpretativo
dos artistas bailarinos adquire versatilidade construindo traços de possível
reconhecimento simbólico e aproximando o púbico – agora participante – da fruição
dos bens simbólicos.
A obra coreográfica, cuja própria elaboração faz-se inconclusa e dependente do
olhar de quem olha e é olhado, demonstra desta maneira o desejo e a necessidade
do outro e, com isso, a valoração da alteridade. Afinal, “(...) toda grande obra se abre
para quem a vê e ao se abrir não se desvenda, mas convida o espectador a criação”2.
(Miranda, 2009).
O espetáculo passa a ser considerado como espaço de convívio, espaço para
viver; com ele, o artista passa a ser menos o criador e mais aquele que propõe a ação
coletiva; não se limitando a produção cênica, ele se estende (de várias maneiras)
a fim de provocar reflexões sobre o fazer artístico e as possibilidades de interação
entre sujeitos em plena ação, reflexões e interações que, por ora, adquirem dimensão
textual e ressignificam a prática coreográfica.
Por isso, a seguir, nos propomos a continuar a investigação da configuração
poética e estrutural do espetáculo, examinando, porém, as contribuições da obra de
Calvino neste árduo processo de construção e representação de espacialidades que
conquanto fundamentem a vida dos homens, se tornam em muitos casos furtivas: as
cidades.

Cidades: as invisíveis e as furtivas


“... jamais se deve confundir uma cidade com o discurso que a descreve.
Contudo, existe uma ligação entre eles.” (Calvino)

94 art uerj III semana de pesquisa em artes


Em Cidades Invisíveis, o escritor italiano Ítalo Calvino, antecipa poeticamente
a declaração das qualidades, que só a literatura poderia salvar, por ele feita nas
conferências que compõem as seis propostas para o milênio em que vivemos: leveza,
rapidez, exatidão, visibilidade poética, multiplicidade e consistência3. Através do diálogo
fantástico entre o famoso viajante veneziano Marco Polo, que descreve as cidades que
percorrera dentro do território do imperador dos tártaros Kublai Khan, ao próprio monarca
ora maravilhado, ora melancólico, pelo orgulho de possuir um território tão vasto e a
dor de não poder percorrê-lo e desvendá-lo, Calvino traça as cinqüenta e cinco cidades
agrupadas em curtos blocos de onze temas, lugares imaginários, nomeados somente por
palavras femininas e tão interessantes quanto a complexidade da vida humana.
Nesta obra literária, assim como no nosso objeto cênico/coreográfico de
estudo, o total se confunde com as partes e as partes encerram em si características
que as totalizam e trazem consigo um caráter marcante do que chamamos cidade:
a produção de signos e significados. Afinal, “a cidade se nutre de tudo que serve
de signo porque tudo é chamado a funcionar como signo, de uma forma fugidia ou
durável. Este sobrepeso de signos e de suas potencialidades passa traçar condições
da aventura da percepção cotidiana da cidade”4, a fim de não nos perdermos em
indagações emaranhadas que se tornariam improfícuas, centramo-nos à presente
análise no tema “As Cidades e as Trocas”5, pela sua relevância no processo
compositivo do espetáculo Cidades Furtivas.
A primeira cidade descrita por trocas em seu território é Eufêmia, onde além
das mercadorias, que podem ser encontradas em outras paragens, é a troca de
histórias e imaginários que nos interessa, esta é “a cidade em que se troca memórias
em todos os solstícios e equinócios”6. Igualmente, na composição coreográfica, os
corpos contam suas histórias e traçam territórios únicos, servindo-se de horizonte
e arranjando-se de forma a demarcar limites que a olhos nus indicam o que há
fora deles. A segunda cidade em que buscamos adentrar em suas redes de
significações é Cloé, a mais casta das cidades, onde as pessoas se vêem, mas não
se reconhecem, trazendo à dança uma condição “esquiza”, onde se está presente
e ausente ao mesmo tempo, tanto na esfera espacial quanto afetiva do traço
coreográfico e da construção de significado via intérprete criador. Faz-se da própria

95 art uerj III semana de pesquisa em artes


desterritorialização pelo contato com o outro um território de subjetividade onde a
troca de olhares por segundos furtivos e os encontros sem contato físico funcionam à
guisa de “linhas que ligam uma figura à outra e desenham flechas, estrelas, triângulo,
até esgotar num instante todas as combinações possíveis”7 e promover a luxúria e o
desejo qual um carrossel de fantasias ilimitadas e provocativas.
Também visto pelo prisma do quadro coreográfico de nosso espetáculo de
estudo, a terceira cidade visitada é Eutrópia, a cidade única dos múltiplos territórios.
A potência de vida da multidão no seu misto de inteligência coletiva, afetação
recíproca, capacidade de invenção de novos desejos, crenças, associações e
formas de cooperação marca essa cidade, que nos propõe a pluralidade única da
multidão, refratária – por essência – à unidade política, o que certamente inspira o
viajante a ver não apenas “uma mas muitas cidades, todas do mesmo tamanho e
não dessemelhantes entre si, espalhadas por um vasto planalto”8. Estes territórios
são ocupados por turnos, demarcados por funções e desejos, desierarquizados em
riqueza ou autoridade, esta cidade/quadro coreográfico repete-se pela mudança
espacial em um território que se assemelha a um tabuleiro vazio.
Nossa quarta parada é a cidade ruína. Ercília, onde as pessoas arranjam-se
através de ligações para orientar a vida da cidade. Vemos aqui a falência da lógica da
fortaleza e ao mesmo tempo sua afirmação, mas a efemeridade dessas construções
é o que nos chama atenção, pois, são estendidos fios que demarcam as relações
entre seus habitantes e quando se tornam opacos aos atravessamentos as arestas
são desfeitas e todos se mudam deixando um rastro humano sem vida. Na aquática
Esmeraldina os trajetos são infinitos, as distâncias são relativas e o tédio é ignorado
pelas possibilidades de novos direcionamentos, “os habitantes se dão o divertimento
diário de um novo itinerário para ir aos mesmos lugares”9. As ruas enredadas
sobrepõem-se num sobe e desce de escadas, pontes e ruas suspensas, formando
um labirinto conhecido por todos, mas incapaz de ser decodificado, resguardando os
segredos e as possibilidades de encontros e desencontros. “É a idéia de uma roda
do tédio que arruína o homem e contra o qual o deus luta, cada vez inventando um
expediente novo, mais engenhoso ou alambicado, seja de diversificação, de tortura,
de elevação, de aspiração, de humilhação”10.

96 art uerj III semana de pesquisa em artes


Tendo assim perpassado pelas cidades invisíveis, que por ora se constituem
furtivas, permeadas pelo desejo, agora sob o ponto de vista da hecceidade
deleuziana, vê-se a necessidade, da constituição de um campo de imanência ou de
um “corpo sem órgãos”, definido somente por zonas de intensidade, de limiares, de
gradientes, de fluxos, sendo esse corpo tanto biológico quanto coletivo e político;
é sobre ele que os agenciamentos se fazem e se desfazem; configurando-se no
portador das pontas de desterritorialização dos agenciamentos ou linhas de fuga.
Passemos, pois, a seguir a analisar a relevância da obra artística de Bosch, o tríptico
Jardim das Delicias, em nosso objeto de estudo, analisando as relações do corpo no
espaço do jardim.

Como nos deliciamos no jardim


“O jardim é simples; aí penetrando sente-se logo que não foi um hábil
jardineiro que lhe traçou o plano, mas um coração sensível, desejoso de
concentrar-se em si mesmo naquele recanto.” (Goethe)

O tríptico Jardim das Delícias de Hieronymus Bosch, um dos elementos


estruturais do espetáculo Cidades Furtivas – produzido entre 1500 e 1510 –
assemelha-se a um resumo plástico e complexo da mitologia e do folclore da
Idade Média, onde se cruzam falsas donzelas, cavaleiros, mendigos, penitentes,
caminhantes, imagens de santos, demônios e figuras grotescas, refletindo e expondo
com humor perspicaz não só os vícios, temores e aflições de uma sociedade
assinalada pelos conflitos da fé e as forças do desejo, mas também as relações
possíveis entre corpo-espaço e imagem-movimento.
Por isso, desde o início do processo de construção da obra coreográfica
em discussão, onde investigamos as relações entre arquitetura, imagem e corpo,
buscamos, com o escopo de aprofundar as questões iniciais engendradas e
validadas pela produção de Bosch, desenvolver pesquisas de campo a determinadas
edificações da cidade do Rio de Janeiro, onde o espaço dos jardins, cujo caráter
de limiaridade relaciona a vida pública à vida privada, integra interno e externo e
vincula o homem à natureza, auxiliasse-nos no ato criativo convocando-nos a novos

97 art uerj III semana de pesquisa em artes


estados de produção gestual e induzindo-nos a apreender em nosso ambiente de
exploração e ensaios – a Casa da Glória, cuja arquitetura peculiar apresenta o jardim
como fenômeno sensível à experiência artística – um referencial polidimensional ao
espaço adimensional das imagens, produzidas em nossa intimidade através da leitura
da obra de Bosch, gerando, desse modo, ambiências físicas às imagens, ou seja,
lugares para dança e o pensamento em relação.
Torna-se, pois, altamente compreensível o valor do encontro estabelecido entre
o quadro Jardim das Delícias e as inquietações dos intérpretes criadores do Ateliê
Coreográfico em torno da relação homem/natureza. O processo de criação de uma
expressão que englobe várias áreas artísticas só pode ser concebido a partir de uma
reflexão sobre a possibilidade de deslocamento de elementos de uma linguagem
para outra, de um código para outro ou de uma obra artística para outra. Um aspecto
importante da criação parece ser o momento da transposição das características
formais para a dinâmica expressiva que se homizia na forma estática encontrada no
objeto.
Assim como o quadro, a Casa da Glória também possui um jardim dividido
em três níveis. O primeiro nível é visto logo na entrada principal, mais arborizado e
com caminhos que levam a outros lugares da casa. O segundo nível é uma grande
varanda que circunda a casa, com uma área livre e com acesso a sala principal.
O terceiro espaço desse imenso jardim é a piscina. Daí, cada espaço com seus
respectivos intérpretes, baseia-se em um painel do Jardim das Delícias, onde a
segmentação da Casa – extremamente útil aos nossos propósitos coreográficos –
auxilia-nos a empreender ambiências que gerem interação e referência aos painéis
de Bosch.
Decupando cada painel do Jardim das Delícias, paralelamente ao estudo do
livro Cidades Invisíveis surgem as composições coreográficas de cada um dos três
espaços. O primeiro espaço, assim como o primeiro painel representa o paraíso
terreno. Nesta curiosa e original “cena” do quadro aparecem Deus, Adão e Eva.
Junto ao primeiro homem e a primeira mulher aparece a “Árvore do bem e do mal” já
que ao redor dela se envolve a serpente tentadora e a “Árvore da vida”, dado que é
representado no seguinte espaço um mundo luxurioso, este primeiro momento, logo

98 art uerj III semana de pesquisa em artes


na entrada do público, é interpretado como o prelúdio do que há de advir no porvir.
No entanto, se à primeira vista o painel-cena semelha-se ao típico Éden, associado à
idéia de paz e sossego, logo observamos que esse idílico palco se trunca situando-
nos em faixas onde vários signos de flagelamento irrompem, como se os bailarinos
enfrentassem-se uns aos outros.
No segundo espaço do jardim da Casa da Glória acontece o Jardim das
Delícias Terrenas, propriamente dito. Um falso paraíso no qual a humanidade
sucumbe em pleno pecado, especialmente à luxúria, e dirige-se à sua perdição.
Dezenas de símbolos e estados performáticos diferentes, povoam este espaço
opressivo e angustiado no qual a loucura se apodera do mundo. Um “corpo de baile”
que ora dança junto ora se degladeia, evidenciando que já não há “mundo”, há
apenas fragmentos de um universo fragmentado, massa amorfa de uma infinidade de
“lugares” mais ou menos neutros onde o homem se move, forçado pelas obrigações
de toda existência integrada à sociedade, estruturam a cena.
O terceiro espaço, na piscina, representa o inferno há apenas um bailarino
dentro da água enquanto os demais se concentram ao redor, na borda, sendo
atraídos por essa “entidade”, abordando na estrutura dos jogos coreográficos
um mundo onírico, demoníaco, opressivo, de inumeráveis tormentos onde a
movimentação com um fluxo temporal mais dilatado produz texturas de movimentos
escuras e estados afetivos lúgubres e sombrios.
Certamente, o processo de análise do movimento baseado em estudos
de Rudolf von Laban auxilia-nos no desenvolvimento dessa teatralidade corporal
indispensável ao processo de criação de Cidades Furtivas à medida que, indica-
nos através de arcabouços técnicos e de uma prática corporal coerente às nossas
necessidades, caminhos de transposição cênica das atitudes internas que se
expressam na gestualidade de uma determinada personagem fomentando, desse
modo, a construção de um idealismo metafísico que subdivide a existência em duas
metades: a dimensão espiritual e a dimensão material e uma unificação, através do
movimento artístico, das duas partes do símbolo: a alma e o corpo expressivo.
Por fim, depreendemos que, certamente, a transposição de conceitos,
informações e conteúdos expressivos expande a experiência estética não apenas

99 art uerj III semana de pesquisa em artes


no sentido de exercício da apreensão das qualidades intrínsecas a obra, mas,
sobretudo, a compreensão da dilatação do fenômeno sensível através de estruturas
cujas fronteiras dúcteis possibilitam o diálogo e cruzamentos entre formas de saber
onde as interações entre corpo e imagem propiciam-nos um entendimento pautado
em interpretações que orienta-nos, cada vez mais, a perceber o que não nos pode
escapar nas atividades artísticas contemporâneas: a elaboração de discursos.

Referências Bibliográficas
ALBUQUERQUE, Ivan Cavalcanti. “A Cidade como Palco e Suporte de Expressões Artísticas – Uma
Idéia de Cidade”. In.: Grafite: A Intervenção Estética Urbana Destas Crônicas a Deriva. Niterói, 2008. 82p.
Dissertação (Mestrado em Ciência da Arte) – Universidade Federal Fluminense, 2008.
CALVINO, Ítalo. As Cidades Invisíveis. São Paulo: Cia das Letras, 1990.
ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
GOLDENBERG, Mirian. A Arte de Pesquisar. Rio de Janeiro: Record, 2003.
JACQUES, Paola Berenstein. Estética da Ginga. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2001.
MINAYO, Maria Cecília de Souza. Pesquisa Social. Petrópolis: Vozes, 2004.
MIRANDA, Regina. “Idealização de Projeto”; palestra concedida ao Projeto Ateliê Coreográfico. Rio de
Janeiro, 2009.
PELBART, Peter Pál. Vida Capital. São Paulo: Iluminuras, 2003.
SILVA, Soraia Maria. Profetas em Movimento. São Paulo: Edusp, 2001.
SIMONDON, Gilbert. “A Gênese do Individuo”. In.: LANCETTI, Antonio. (Org.). Cadernos de Subjetividade –
O Reencatamento do Concreto, São Paulo: Hucitec, 1993

Notas
1 GOLDENBERG, 2003:51
2 Trecho extraído de palestra concedida por Regina Miranda, em março de 2009, ao Projeto Ateliê Co-
reográfico.
3 Ítalo Calvino. Seis propostas para o próximo milênio.
4 JEUDY apud Albuquerque, 2008: 24.
5 CALVINO, 1990.
6 CALVINO, 1990: 38.
7 CALVINO, 1990: 57.
8 CALVINO, 1990: 62.
9 CALVINO, 1990: 83.
10 PELBART, 2003: 111.

100 art uerj III semana de pesquisa em artes


III semana de pesquisa em artes
10 a 13 de novembro de 2009 art uerj
arte, religião e tradições

Rima e Improviso na arte do Repente

Elaine Rodrigues Perdigão

Mestranda em Antropologia – UFF

O cantador entoa as primeiras rimas. Na encenação, a representação do papel dá vida ao


poeta genuíno. Poeta de tradição. Posto isto, reflito sobre o repente enquanto prática poética.
Prática que nos diz sobre um modo de apresentação do artista em que prevalecem as nuance
vocais, as expressões corporais, os risos que compõem o arsenal performático deste narrador.

Repente; performance; tradição.

Le chanteur chante les premiers vers. Pendant la scène, son rôle donne vie au poète véritable.
Un poète de la tradition. Ainsi, je refléchis sur le repente entant que des pratiques poètiques. Ou
soit, la pratique qui nous revèle une façon de présentation de l’artiste dont les nuances vocales,
les expressions corporales, les rires qui composent l’arsenal performatique de ce narrateur.

Repente; performance; tradition.

Apresentação
A performance do repentista constitui o elemento principal do cenário. Cria-se
uma atmosfera que propõe aludir às raízes e às tradições nordestinas, para isso,
todo um recurso verbal e gestual deve ser solicitado para conferir a dimensão de
“realidade nordestina” que a narrativa impele. A fim de reconstruir essa realidade, os
poetas seguem um conjunto de regras, como um roteiro a ser seguido pelo ator. A
atuação performática pressupõe exatamente isso, um manual de ações, um repertório
de práticas que configura o estilo do intérprete e que define a obra a ser apresentada.
Vejamos esta obra: o repente1. Seus versos veiculam informações importantes
101
na forma de metáforas sobre a vida social do próprio poeta e do público. Na
combinação de adjetivos e de intervenções verbais e não-verbais, o poeta aciona a
estreita conexão entre o vivido e imaginado. Como performer que é, ele seleciona os
elementos da cultura e emprega na trama contada. A narrativa transforma-se, portanto,
num produto estético, já que seus efeitos sobre a audiência se traduzem como a dança
e a música, por conseguinte, dois elementos parecem determinar a narrativa, são eles:
as imagens transmitidas à audiência e seu pando de fundo, a tradição (Scheub, 1977).
Digamos que a particularidade da história cantada é a de combinar um tempo
real com o tempo da narrativa, que recolhe a cronologia do passado e a atualiza
num tempo presente. Processos independentes que o cantador manipula de acordo
com o clímax da história. Nesta produção estética, o narrador combina todo o tempo
os elementos do mundo objetivo, real como o mundo da fantasia e suas imagens,
imagens artísticas num verdadeiro trabalho de arte, manuseando a matéria da vida
com o imaginário, o fantástico. Neste universo estético da narrativa, a performance
oral se manifesta por meio de mensagens também orais captadas pelas imagens mais
do que pelas palavras. A audiência reconhece as imagens, já que partilha de uma
experiência comum com o narrador, que recolhe da tradição os temas para contar sua
história como num mito. Esta integração se dá de maneira, sobretudo, simbólica.
Através do corpo do narrador, produz-se uma experiência estética no sentido de
sua sensualidade, de envolver o público ouvinte, neste contexto, o gesto é instrumento
total desta sensação a ser liberada. Evocando as imagens por um chamamento, uma
interpelação, o poeta convida a platéia a participar do universo de fantasia. Gestos
e movimentos estabelecem a conexão com as imagens verbais ambientadas num
contexto rítmico, de cadência, pela repetição. O corpo e a voz do artista são unificados
a fim de externalizar as ações narrativas. Gestos comunicando mesmo na ausência
das palavras. Os gestos falam ao mesmo tempo em que emudecem. A matéria da
performance são os sentimentos e as emoções, neste ambiente, a resposta emocional
da platéia é manipulada pelo artista. Todos os gestos, movimentos e imagens são
construções dos sentimentos humanos. Os membros da audiência estão imersos
nestas imagens evocadas pelo artista através desta narrativa mítica, de tradição.
Colocadas estas premissas, percebemos que a performance ─ do cantador,

102 art uerj III semana de pesquisa em artes


do improvisador de rimas ─ surge em meio a uma ação que pretende manipular com
maestria elementos essenciais da encenação: primeiramente, a voz, que conjuga a fala
no sentido de seu uso e traduzida como extensão do corpo e, por sua vez, a recepção do
público ouvinte, atento às expressões emotivas e às manipulações corporais do cantador.
Em meio a este cenário, desponta uma verdadeira engenharia teatral dissimulada na
aparente desorganização do ambiente. Conjugam-se iluminação, sonoplastia, roteiro,
figurino, diretor, ator, revelando esta cenografia teatral como evocadora dos sentidos, das
interações, dos conflitos, das cooperações (Goffman: 2007).
A arquitetura deste cenário somada à equipe que garante a execução do
espetáculo reforça o argumento apresentado por Becker (1976) em que a obra de
arte é verdadeiramente uma ação social. Mas o cenário não se apresenta somente na
apresentação oficial, mas está além, no aquecimento, nos intervalos, nos bastidores,
nos desfechos, no conjunto dos vários atos, tornando mais complexa a apreensão
do olhar inclinado pelo empreendimento etnográfico que objetiva observar esses
encontros. Desse modo, desponta o evento na completude das atitudes, na emoção
de seus atores e, na tentativa humilde de quem tece estes parágrafos, trazer para a
escrita a concretude dos atos presenciados.

O Palco
Assim, parto para o palco. Nele são mobilizados os instrumentos, a platéia e
os artistas que vão assegurar a apresentação da obra. Durante o dia, aquele cenário
é mais um dos vários que constituem a Feira de São Cristóvão, localizada no bairro
de mesmo nome no Rio de Janeiro. Ao final da tarde, um vídeo é apresentado
enquanto algumas figuras passam e o assistem por alguns minutos. Geralmente, os
trabalhadores da Feira se encontram naquele local para conversar, nada se alonga
por muito tempo, e todos voltam a circular. Mas é a partir das nove horas da noite,
nos dias de sexta e sábado, que a praça dos repentistas Catolé do Rocha, localizada
no interior da Feira, vai ganhando os contornos de cenário poético.
Os vendedores de cordéis são os primeiros a chegar. Começam a abrir suas
barracas (que são fixadas naquele local) e dispõem nos barbantes os folhetos de
cordel. Neste momento, um CD com músicas típicas nordestinas é colocado enquanto

103 art uerj III semana de pesquisa em artes


o ambiente é “organizado”. Antes que os repentistas se apresentem CDs e DVDs são
colocados para servirem de propaganda, vendidos em média por quinze reais, são
ouvidos no volume máximo, o que dificulta qualquer conversa mesmo que aos gritos.
Enquanto tudo é preparado para a grande ocasião, alguns repentistas começam
a afinar seus instrumentos, com intervalos de longas conversas e acompanhados de
cerveja, um ritual de aquecimento para o espetáculo. Não me parecem apreensivos
e ansiosos, gesticulam bastante, mantendo o volume da conversa sempre alto.
Acompanham a aproximação de pessoas e, quando a Feira começa a lotar, os
cantadores se preparam para iniciar a cantoria. Apresentam-se em duplas fixas que
chegam de duas a três por noite. Revezam a apresentação sem precisar uma quota
máxima de tempo, que geralmente acontece quando estão já cansados. As duplas
seguem estruturas métricas semelhantes, mas algumas se destacam, seja por tornarem
os versos mais divertidos, seja por conseguirem por mais tempo a atenção do público.
Para angariar mais atenções, os poetas apelam às frases provocativas e,
por um chamamento, convidam alguém da platéia para fazer parte do jogo poético.
Enquanto protagonizam os versos, as pessoas permanecem por alguns minutos
até se cansarem e irem embora, mas não antes de serem incitadas a retribuir com
dinheiro os versos destinados a ela. Esta forma de interpelação constitui mesmo
a regra do jogo poético e frases que incitam o público a retribuir com dinheiro, não
chocam a platéia quando inseridas no conjunto da performance.

O corpo no espaço da performance


Ao fazer menção à performance como um jogo poético, jogo pressupondo
troca, diálogo, retomo a idéia de enunciado proposta por Mikhail Bakthin (2003,
2008). Adotando uma abordagem semiótica, o autor expõe os aspectos estruturantes
da relação de comunicabilidade entre o falante e os ouvintes, uma referência à citada
atitude dialógica que compele os sujeitos a interagirem na prática comunicativa.
Nesse sentido, a performance emerge dos atos comunicativos considerados à luz
das atitudes da fala inscritas nos corpos dos agentes. Cabe adicionar para a reflexão
a dimensão corporal como base de qualquer evento comunicativo em que são
construídas as ferramentas para a transmissão de significado. O corpo, elemento

104 art uerj III semana de pesquisa em artes


fundante da comunicação, invoca para o espaço cênico o narrador-ator, trazendo
a dimensão de ação, de prática, de movimento, nas quais vão se coordenar os
gestos, as falas, as inclinações, as rejeições, as reverências, todos elementos de
expressividade que encontram na atitude corporal seu ambiente. Todavia, o campo
corporal inscreve-se e é inscrito no ambiente de sociabilidade que o produz. Na
ausência do corpo, se assim podemos imaginar numa atitude hipotética, as falas, os
gestos, ou mesmo o silêncio são aprisionados, uma vez que seu fio condutor, o corpo,
deixa de efetuar sua função gerativa, reprodutiva, de transferência de sentidos.
Estes últimos termos a que me referi como o de geratividade e reprodutividade,
remetem-se propositalmente à perspectiva de Pierre Bourdieu quando do seu
entendimento sobre habitus. Com referência à reflexão de William Hanks (2008)
sobre este autor, traço um paralelo entre a noção de enunciado de Bakthin e habitus
de Bourdieu como conceitos-chave que pleiteiam sobremaneira a dimensão de
corporeidade. Em consonância com uma linguagem da prática presente na obra de
Bourdieu, Hanks expõe como o habitus está relacionado à definição social, mental
e física do falante, assim como, seus modos de expressar-se, suas gestualidades
como referidas ao contexto de comunicação em que prezem práticas referenciais
cotidianas inculcadas. As disposições apreendidas são tomadas pelo corpo que
reflete uma postura e uma conduta apropriadas. Isso inclui dizer que no corpo são
referidos os valores, os consentimentos, as idéias que se expressam na prática dos
agentes sob a forma gerativa e reprodutiva. Mediante as considerações de Bourdieu,
pensemos no habitus que modela o comportamento do repentista, cujo corpo
encarna-se dessas disposições duráveis, que indicam um modo de gesticular, uma
forma de encenação característica do modo de ser desse artista na medida em que
o cantador apela a um falar carregado de sotaque, acompanhando a postura firme
assemelhando-se à atitude viril do sertanejo forte, como nos apresentar Euclides da
Cunha. Um imaginário constituído em torno dessa figura emblemática quando se fala
e se pensa na música do sertão carregada certamente dos muitos estereótipos sobre
o nordestino bravo, labutando pela sobrevivência no Sul do país.
Por seu turno, Bakthin expõe o corpo como a matéria criadora, que agrega
desde as atitudes e funções humanas aos elementos cósmicos do universo que

105 art uerj III semana de pesquisa em artes


experimenta no próprio corpo o cosmos. O corpo em movimento, em estado de
constante construção absorve as experiências, as expectativas dos homens e nele
efetuam-se a imaginação, a profanação, a sacralização, retratados na literatura
da Idade Média. O corpo referido fala por si só. Este corpo fala das atitudes
escatológicas de uma sociedade, que inscreve suas necessidades naturais na
imagem artística grotesca do corpo. Os acontecimentos cotidianos como o parto, a
morte, imprimem o drama corporal, que não desvencilha ordem, caos, valor, ética,
moral, dos corpos desses agentes e atores.
Retomo, portanto, as atitudes da fala no contexto da prática social em que
a entonação com suas possibilidades rítmicas e a corporeidade são elementos
indissociáveis que se conjugam no enunciado, ou seja, na dimensão de sua
dialogicidade entre falante e ouvinte e que remete a noção de jogo, neste contexto, de
jogo poético entre o poeta e o público. Este jogo pressupõe provocação e resposta,
mesmo que esta última seja silenciosa, a comunicação oral não é monólogo puro, ao
contrário, ela requer um interlocutor, que apesar de pouco ou nada falar, responde com
um gesto, uma expressão, uma gargalhada que indicam o clima e que é apreendido
perspicazmente por quem comanda o jogo. Assim, na praça dos repentistas, os poetas
têm sempre o cuidado de satisfazer o público, sentem quando não estão agradando
e mudam o tom e o tema da cantoria. Para um público diversificado, sabem que o
estoque de repertório deve ser bem amplo a fim de impressionar os gostos variados.
Comumente, determinadas figuras assistem ao espetáculo: São, geralmente,
homens também imigrantes das regiões Norte e Nordeste e que já conhecem os
repentistas. Estes são os mais exaltados, principalmente, quando acontecem as
interpelações mais provocativas daquelas que incitam um homem traído ou uma mulher
muito graciosa. Foi-me relatado que durante uma das apresentações (que ocorreu
durante a madrugada), já um tanto embriagado, um dos repentistas meteu-se numa
confusão por justamente provocar um rapaz com versos sobre “chifrudos”. Entretanto, a
atmosfera do espetáculo é, geralmente, tranqüila e atrai desde crianças aos mais velhos.
É bem verdade que o público vai se alternando, mas a agudez do poeta é demonstrada
na capacidade de atender à diversidade presente com rimas variadas e na imposição de
sua presença corporal que de longe convida os ouvintes e que sustenta a apresentação.

106 art uerj III semana de pesquisa em artes


Em geral, se apresentam sentados, apoiando suas violas sobre o corpo.
Mantêm-se no centro da praça num pequeno púlpito, privilegiando a sua visão e
atraindo mais olhares para o palco. Porém, estar sentado não imobiliza o poeta,
mas o mantém concentrado no instrumento melódico e também na percepção dos
ouvintes ao redor. Não desviam o olhar do público estão sempre atentos a quem
passa. Suas cabeças seguem firmes no horizonte, identificando os alvos de seus
versos. Respondem, por meio de suas faces, às deixas e aos motes oferecidos pelo
público. Seja com um sorriso ou com um olhar mais fechado por entre os contornos
da face retraídos, expressão típica de quem está prestando atenção no que o outro
tem a dizer. Tais atitudes compõem o arsenal de improvisação de que dispõe o
intérprete. São recursos imprescindíveis para capturar a atenção do público, que
por sua fugacidade parece desestabilizar a apresentação do cantador. Por isso,
o artista parece abusar todo o tempo de táticas para capturar a atenção, como
verdadeiros especialistas na arte de envolver o espectador com gestos e atitudes
reverenciadores, misturados com o cômico e provocador.
Se a posição sentada limita a extensão corporal do poeta, o corpo passa
então, a se concentrar ainda mais numa dimensão muito importante que dá vida a
performance: A voz. “(...) a voz projeta o corpo no espaço da performance”. É o que
Paul Zumthor (1993: 243) assinala ao referir-se ao poder da voz que aqui é entoada
com segurança e domínio, que não perde a fluidez e que acompanha sempre o ritmo
melódico da viola. O poeta concentra a sua energia na voz e preocupa-se em torná-la
clara e audível. Ela é o fio transmissor da mensagem e aliada aos gestos, compreende
a totalidade de recursos de que dispõe a performance. A vocalidade supõe não
somente aquele que emite, mas, sobretudo, aquele que aciona os sentidos de sua
audição, condicionando a troca mútua persistente na comunicação. Interessante
pensar como esses elementos no seu conjunto: Corpo, voz, audiência, compreendem
esse frame mais amplo em que a performance surge como elemento principal na
composição do papel do artista, na qual muitos sentidos são acionados conferindo
as deixas propositais deixadas pelo cantadores, as palavras com sentidos duplos em
que o público, em especial o masculino, mais se exalta. Pelo modelo das piscadelas
(Geertz, 2008) interpretamos melhor os muitos sentidos contidos numa ação.

107 art uerj III semana de pesquisa em artes


“(...) está o objeto da etnografia: uma hierarquia estratificada de
significantes em termos dos quais os tiques nervosos, as piscadelas,
as falsas piscadelas, as imitações, os ensaios das imitações são
produzidos, percebidos e interpretados, e sem os quais eles de fato não
existiriam (nem mesmo as formas zero de tiques nervosos as quais,
como categoria cultural, são tanto não piscadelas como as piscadelas
são não-tiques), não importa o que alguém fizesse ou não com sua
pálpebra” (Geertz, 2008: 5).

Analisando os sentidos emitidos através da linguagem, Gregory Bateson (1987)


se volta para a descrição do que denominamos como metalinguagem, duplo sentido
contido nas mensagens, conforme Geertz apresenta de modo similar pelo modelo
das piscadelas. Assim como nas piscadelas mencionadas por Geertz, Bateson
baseia-se na análise das comunicações interpessoais preenchidas de ambigüidade
e distorções, que indicam que para comunicar, devemos trabalhar com os muitos
níveis de sinais emitidos nas mensagens. Este autor nos apresenta uma análise da
comunicação no campo do ordinário, das convergências situacionais do cotidiano
em que a existência de uma metacomunicação reivindica os elementos emotivos,
as percepções e expressões executadas sob ação da atividade humana na sua
contingência. Bateson ajuda a pensar a interação social no plano do cotidiano, do
familiar e nos fornece o método de estudo de caso a fim de atentar para as falas
vulgares carregadas de muitos sentidos.
Sentidos evocados por um olhar atravessado, por um arregalar dos olhos, por
um esticar do pescoço, por um franzir entre os olhos num verdadeiro “trabalho da face”
(Goffman, 1970). Retornemos ao uso do corpo. Corpo que manipula a linguagem, que
trabalha para a transmissão da mensagem e que imprime um sentido. É o mesmo corpo
que opera todos os sinais transmitidos. Desse modo que o entendimento da performance
do repentista se apóia na análise do corpo a partir dos movimentos, das falas, dos
gestos dissimuladores, portanto, o estudo dessa linguagem corporal como mediador da
comunicação amplia a transmissão dos muitos significados emitidos na ação de versar. A
palavra, assim, se materializa, porque encontra no corpo sua ambiência primeira.

108 art uerj III semana de pesquisa em artes


Referências Bibliográficas:
BAKTHIN, Mikhail. “Os Gêneros do Discurso” in Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 4º
Ed. 2003.
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Renascimento e suas Fontes. Ed. Hucitec/Editora UNB, 6º Ed. 2008.
BATESON, Gregory. “A Theory of Play and Fantasy e “Toward a Theory of Schizophrenia” in Steps to
an Ecology of Mind: Collected Essays in Anthropology, Psychiatry, Evolution and Epistemologies. Jason
Aronson Inc. New Jersey, London, 1987.
BECKER, Howard. “Arte como Ação Coletiva” in Teoria da Ação Coletiva. Rio de Janeiro, 1976.
_______________ “Mundos Artísticos e Tipos Sociais” in Velho, G (org) Arte e Sociedade: ensaios de
sociologia da arte. Rio de Janeiro, Zahar, 1977.
BOURDIEU, Pierre. “Campo de Poder, Campo Intelectual e Habitus de Classe.” A economia das Trocas
Simbólicas. São Paulo, Editora Perspectiva, 1974.
_______________ “Espaço Social e Gênese das Classes” in O Poder Simbólico. Lisboa, Ed. Difel, 1989.
_______________ A Produção da Crença. Contribuição para uma Economia dos Bens Simbólicos. São
Paulo, Zouk, 2002.
GEERTZ, Clifford. A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008.
GOFFMAN, Erving. A Representação do Eu na Vida Cotidiana. Petrópolis, Vozes, 2007.
_______________ “Sobre o Trabajo de La Cara” in Ritual de La Interáccion. Buenos Aires, 1970.
_______________ “The Theatrical Frame” in Frame Analysis: An Essay on the Organization of Experience.
Northeastern University Press, Boston, 1986.
HANKS, William F. “Pierre Bourdieu e as Práticas da Linguagem” in Língua como Prática Social: das
Relações entre Língua, Cultura e Sociedade a partir de Bourdieu e Bakthin. São Paulo: Cortez Editora,
2008SCHEUB, Harold.”Body and Image in Oral Narrative Performance” In New Literary History. Vol. VIII,
spring 1977 nº 3.
ZUMTHOR, Paul. A Letra e a Voz: a “literatura” medieval. São Paulo: Companhia das Letras,1993.
_______________ Introdução à Poesia Oral. São Paulo: editora Hucitec, 1997.

Notas
1 Repente pode ser definido, sobretudo, como uma forma de cantoria improvisada. Os repentistas ao se
apresentarem em duplas competem na forma de pelejas, uma forma de combate, de duelo, no qual os poetas
travam uma discussão para ver quem se sai melhor na rima de improviso. Administrando um repertório
vasto, porém fixo, esses artistas se reapropriam de um estilo de poética, tendo na narrativa sua forma por
excelência, que há muito, originou-se nos trovadores por meio dos contos fantásticos, das donzelas e dos
romances de cavalaria.

109 art uerj III semana de pesquisa em artes


III semana de pesquisa em artes
10 a 13 de novembro de 2009 art uerj
arte, religião e tradições

Imagem, memória e identidade: uma etnografia visual da Vila de


Itaúnas/ES

Luciana Alvarenga

PPGAV – EBA – UFRJ

Rogério Medeiros

(Orientador da pesquisa) PPGAV – EBA – UFRJ

O registro imagético e de narrativas nos espaços de sociabilidade da vila de Itaúnas,


localizada no norte do estado do Espírito Santo, numa abordagem contextualizada através
da prática da antropologia visual, do uso da fotografia e do video, aponta sob nova
perspectiva a riqueza do processo etnográfico de interação e construção com o outro
através da imagem. 

Etnografia visual; Processo Metodológico; Vila de Itaúnas/ES.

Registration imagery and narrative in social areas of the town of Itaúnas, located in the northern
state of Espírito Santo, a contextualized approach through the practice of visual anthropology,
photography and film, points out new perspective on the richness of the ethnographic process of
interaction and construction with the other through the image.

Visual Ethnography, Methodology; village Itaúnas / ES.

1. Introdução
Saindo de Vitória, capital do estado do Espírito Santo, leva-se três horas e
meia em direção ao extremo norte do estado. Praticamente na divisa com a Bahia,
chegamos à região conhecida como Sapê do Norte.

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Um dos lugarejos do Sapê do Norte é a vila de Itaúnas - distrito de Conceição
da Barra -, que possui cerca de 2.400 habitantes (IBGE, 2009).
Este artigo apresenta uma reflexão sobre a etnografia (visual e descritiva)
desenvolvida na vila de Itaúnas no período de um ano de pesquisa de campo de
doutorado, tendo como foco a descrição e a análise do seu conjunto de cultura
material e imaterial classificados pela própria comunidade como tradicionais:
festas de cunho religioso, Ticumbi, Jongo, Alardo, Reis de Bois, além de processos
produtivos artesanais - a pesca e o extrativismo, a produção de cestos, de barcos, as
farinheiras, entre outros.
A narrativa fotográfica e descritiva do lugar, das pessoas, dos processos
produtivos, bem como das festas, apresentou-se como norteadora para o
entendimento da “construção social da tradição”, com o intuito de entender essas
formas de construção como meios de diferenciação de um grupo de pessoas em
relação a outros grupos.

2. A fotografia na pesquisa de campo


Muitos trabalhos antropológicos utilizam as imagens como fonte secundária,
apenas como ilustração do texto verbal. Malinowski (1975) relatou que a deficiência
essencial de seu trabalho de campo foi o fato dele ter tratado a fotografia como se
fosse uma atividade secundária, de agrupar ‘testemunhos’, ‘provas’, ‘evidências’, erro
que ele cita ter cometido na redação de seus dados materiais sobre os jardins em
Coral Gardens And Their Magic, publicado em 1966.
A publicação de Balinese Character: A Photographic Analysis (1942), pela New
York Academy of Sciences é considerada o marco inicial da antropologia visual, pois
pela primeira vez, a fotografia é utilizada como instrumento de pesquisa e não apenas
como apêndice demonstrativo.
Balinese character explorou verbalmente e visualmente o modo como
uma criança nascida em Bali se torna uma criança balinesa. O ethos de que fala
Bateson e Mead, representa um sistema codificado presente nas condutas e nos
comportamentos de pessoas que vivem numa determinada sociedade.

111 art uerj III semana de pesquisa em artes


3. A etnografia visual e descritiva
Na construção da etnografia visual e descritiva, utilizei o processo metodológico
de Bateson e Mead (1942).
Os equipamentos utilizados em campo foram: uma máquina fotográfica Nikon
FM 10 com uma objetiva 35-55mm, uma outra digital, Canon EOS, com objetivas
50, 70-200 e 20mm. Os filmes utilizados são o TMAX e HP5. Além disso, já foram
tomadas em campo certa de 10 horas de gravação em DVCAM.
As imagens foram organizadas em pranchas fotográficas relacionadas a cada
tema, sendo estas acompanhadas por comentários dispostos ao lado das fotografias
em um único plano visual.
As pranchas foram organizadas de três maneiras: uma consiste na exposição
de sequências fotográficas, ou seja, fotos que tomadas em intervalos de tempo muito
pequenos, segundos ou minutos; outra, que consiste no agrupamento de fotos de
um mesmo propósito temático, independentemente dos momentos em que foram
tomados; e, uma terceira diferenciada da proposta temática desses autores, onde
a apresentação das pranchas se deu através da busca de um conceito estético da
fotografia e do design da foto na página.
Seguindo a metodologia de Bateson e Mead (1942), a descrição das imagens
foi realizada no primeiro parágrafo e a citação dos nomes e as relações entre as
principais pessoas fotografadas foram apresentadas no penúltimo parágrafo. No
último parágrafo, encontra-se a citação da localidade e da data de realização da
fotografia, bem como o número de registro da foto. Como mencionado acima, estas
informações estão apresentadas no mesmo plano visual das pranchas fotográficas
como leituras complementares.
Na tomada inicial das fotografias, o “Guia Prático de Antropologia publicado
pelo Royal Anthropological Institute” se apresentou como uma importante abordagem
para a construção das narrativas, pelo fato desse guia apresentar uma série de
mecanismos para o “estudo dos diferentes aspectos da cultura material de um povo”
(ROYAL, 1971, p. 279).
Os autores apontam que tal estudo:

112 art uerj III semana de pesquisa em artes


[...] não é só pelo interesse intrínseco dos próprios artefatos, mas
também como fonte de informações sobre os problemas de invenção
e difusão. Ajuntando-se a isto a importância que têm as técnicas e os
artefatos em relação com a totalidade da organização social e com as
práticas religiosas e cerimoniais. (ibid., p. 269).

A proposta deste guia é uma descrição minuciosa que vai dos cuidados
pessoais aos adornos, da arquitetura local ao cultivo de plantas, entre outros.
Este guia se apresentou como um importante instrumento para a tomada inicial de
imagens, onde alguns elementos foram acentuados, do olhar que segue relações
processuais ao objeto em si:

Por exemplo, um tecido acabado não consiste simplesmente no produto


saído do tear; o processo completo começa com a apanha do algodão,
a tosquia das ovelhas, ou qualquer outro processo destinado a obter a
fibra; continua com as várias fases de lavagem, da cardação, da fiação,
da tecedura e da tingidura. (ibid., p. 280-281).

Esses apontamentos deram suporte ao trabalho de campo nas relações


processuais presentes desde a obtenção de matéria prima até a produção final do
produto, como por exemplo: da peneira de uruba produzida, em que o processo se
inicia com a coleta do cipó na mata, continua com as fases de manipulação deste
recurso natural e se completa com o momento do uso - no cotidiano ou em momentos
festivos.
Neste momento inicial da pesquisa, deparei-me com o primeiro problema
do uso da imagem na pesquisa: o próprio suporte imagético pode interferir nas
representações daquilo que se pensa das ‘identidades’. Se apresentando como
possibilidades de reformulação de identidades, de representações da autonomia,
integração, ou da própria (des)integração, e sobretudo, de valorização, ora dos
elementos de permanência, ora daqueles que representam mudanças.
Assim, é importante chamar atenção para a questão que ao elegermos (o

113 art uerj III semana de pesquisa em artes


pesquisador e sua interação com a comunidade) determinados aspectos dessa
cultura, também estamos selecionando o discurso desta comunidade. São formas
de expressão que podem e contam a história de um povo em determinado tempo e
espaço.
Baudrillard (2002) em seu livro “O Sistema dos Objetos”, faz observações
importantes referentes à relação com a cultura do outro: a fascinação pelo objeto
artesanal vem do fato deste ter passado pela mão de alguém cujo trabalho ainda
se acha nele inscrito: é a fascinação por aquilo que foi criado (e que por isto é único,
já que o momento da criação é irreversível). Dito isto, o fetichismo é o mesmo: todo
objeto ou manifestação tradicional é belo simplesmente porque sobreviveu e devido a
isso se torna o signo de uma via anterior.
Werner (2002) em “Photographie et dynamiques identitaires dans lês sociétés
africaines contemporaines, e, Jean Keim, em “La photographie et l’homme”, ressaltam
a significação atribuída pela produção imagética em relação às tradições, visto que
essas re-leituras e apresentações podem e interferem no processo de identificação.
Neste contexto, interagi junto aos sujeitos envolvidos na pesquisa, na
construção das pranchas fotográficas no que Gervaiseau (1995) chama de
antropologia compartilhada: “O acesso dos protagonistas à visão de sua imagem
registrada, bem como o direito dos mesmos de opinarem sobre a realização
das sequências”; e, a busca de um projeto aliado a um processo de inserção,
sensibilização, interação e intervenção dentro das comunidades, através da produção
documental “com os outros” e não “sobre os outros”. Para este fim utilizando a
metodologia trabalhada por documentaristas como Eduardo Coutinho, de tornar o
entrevistado não “objeto” de um documentário e sim sujeito de um filme, aqui no meu
caso específico, sujeito de construções de narrativas (LINS, 2004).
Tal metodologia contribuiu para um melhor esclarecimento do foco da pesquisa
às pessoas envolvidas e permitiu direcionamentos, com sugestões e comentários
sobre as fotos e sua organização na pesquisa, buscando neste sentido a
compreensão do olhar da comunidade sobre si mesma através da construção dessas
narrativas.
No contexto de interações, levei em consideração as representações que as

114 art uerj III semana de pesquisa em artes


pessoas tem de si e dos outros na produção e organização da visualidade do que é
considerado como ‘tradição local’. Uma representação que está, obviamente, ligada
à representação que se faz do outro e, como pretendo mostrar, dos vários outros
que surgem em cena num determinado contexto. Há, na verdade, uma relação de
interdependência entre a imagem que se faz de si e a imagem que se faz destes
vários outros (NOVAES, 1993).

4. A interpretação
A escolha da imagética, tanto icônica quanto textual, para situar e construir
a hermenêutica partiu do princípio de que sempre haverá alguém interpretando
a realidade. Uma coisa é um signo, porque é interpretado como um signo por
um intérprete, ou seja, o signo só existe quando existem seres capazes de dar
significação às coisas.
Assim, o que se interpreta é o fluxo do discurso social e a interpretação
envolvida consiste em tentar salvar o “dito” num tal discurso da sua possibilidade de
extinguir-se e fixá-lo em formas pesquisáveis. A vocação essencial hermenêutica não
é responder às nossas questões mais profundas, mas colocar à nossa disposição as
repostas que os outros deram – e assim incluí-las no registro de consultas sobre o
que o homem falou. (GEERTZ, 1989).
E, interpretar é um ato criativo, é uma ação ativa, não é, portanto, uma mera
reprodução de significado transmitido pelo outro. O pesquisador constrói o significado
a partir do que o outro diz. Significados estes que o informante atribui.
Neste sentido, temos acesso apenas à representação das experiências dos
outros através da observação e das narrativas dos próprios sujeitos em determinados
contextos e situações. Isto não significa que estas observações e relatos devam ser
inviabilizados, mas sim relativizados através do contexto de observação e de quem
está narrando - o conhecimento implícito do informante é, por exemplo, relativo à sua
trajetória.
Além disso, posso afirmar que ao produzir a etnografia visual e descritiva
da vila de Itaúnas, estou tratando no que Sébastien Darbon (2005) denominou de
fabricação de significados: o uso de imagens se assenta sobre convenções relativas

115 art uerj III semana de pesquisa em artes


às representações - representam somente algo que se assemelha às cenas no
momento em que são fotografadas.
Este é um ponto de análise estritamente interpretativo constituído na
experiência da construção dos significados no encontro com o outro. O que se
procura estabelecer, portanto, é uma base comum de compreensão e o que se
cria nesse encontro, assim como coloca Clifford (1998), é uma espécie de lugar
intermediário entre duas culturas (a do pesquisador e da cultura pesquisada).

Referências Bibliograficas
BARTHES, R. O óbvio e o obtuso – ensaios críticos III. 3ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 1990.
BARTHES, R. A câmara clara: nota sobre a fotografia. 11ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 1984.
BATESON, G; MEAD, M. Balinese Character: A Photographic Analysis. New York: New York Academy
of Sciences, 1942.
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CLIFFORD, J. A experiência etnográfica -Antropologia e literatura no século XX. Rio de Janeiro: Ed.
UFRJ,1998.
DARBON, S. O etnólogo e suas imagens. In: Samain, E. (org). O Fotográfico. São Paulo: Ed. Hucitec,
2005.
GEERTZ, Clifford. O saber local: novos ensaios em antropologia interpretativa. Petrópolis, RJ: Vozes,
1997.
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GERVAISEAU, H. Nanook, de R.Flaherty. In: Cadernos de Antropologia e Imagem. N.1 p. 91
IBGE. Contagem da População de 2007. http://www.ibge.gov.br/home
LINS, C. O Documentário de Eduardo Coutinho. Rio de Janeiro. Jorge Zahar Editor, 2004.
MALINOWSKI, B. Argonautas do Pacífico Ocidental. São Paulo: Abril Cultural, 1976.
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116 art uerj III semana de pesquisa em artes


III semana de pesquisa em artes
10 a 13 de novembro de 2009 art uerj
arte, religião e tradições

Farnese de Andrade: artista como profanador

Rafael Eduardo Santana de Sousa

Mestrando em Artes – UERJ

Este trabalho busca apresentar dois aspectos presentes em algumas assemblages produzidas
pelo artista Farnese de Andrade. O primeiro é o ato de profanar pequenas esculturas retiradas
do universo sagrado religioso. O segundo é a citação ao sincretismo umbandista por meio da
junção de distintos elementos.

Farnese de Andrade; Apropriação; Profanação.

This work presents two aspects of some assemblages produced by Farnese de Andrade. The
first one is the act of profaning small religious sculptures. The second one is the reference to the
religious syncretism in Umbanda through the combination of distinct elements.

Farnese de Andrade; Appropriate; Profanation.

Bruxo, mágico, vampiro, místico, estes são alguns dos nomes por meio dos
quais os críticos se referiram ao artista Farnese de Andrade, um homem recluso, de
hábitos estranhos e de idéias polêmicas, que produziu uma arte singular composta,
sobretudo, de assemblages nas quais elementos gastos, velhos e usados foram
sobrepostos na criação de objetos encharcados de morbidez e tristeza mescladas a
uma forte carga erótica e religiosa.
No exercício da leitura do que já foi escrito sobre a obra de Farnese, mais
especificamente sobre seus objetos, percebe-se uma explícita tendência daqueles
que abordam sua produção em conectá-la ao modo como o artista levava e
enxergava a vida. As crises depressivas, a morte dos irmãos antes mesmo de

117
ele nascer, a relação conturbada com a mãe, a oposição à procriação, a posição
favorável às explosões atômicas, somadas a tantos outros aspectos da vida de
Farnese, são lugares-comuns nesses escritos. Tal fato evidencia algo, como Charles
Cosac, um dos poucos amigos que o artista teve, afirma: “os que se interessam pela
história de Farnese se interessam pela sua obra; o caminho contrário também é
válido” (COSAC, 2005:17).
Nascido na cidade mineira de Araguari em 1926, Farnese iniciou sua formação
artística tendo aulas de desenho com Alberto da Veiga Guignard, na então Escola
Parque, em Belo Horizonte. Contraindo tuberculose, o artista mudou-se em 1948
para o Rio de Janeiro, onde alcançou a tão desejada saúde. Não demorou muito
e começou a trabalhar como ilustrador, atividade que desempenhou ao longo de
quase uma década, principalmente no jornal Correio da Manhã, no qual ilustrava
contos, poemas e novelas. Em 1959 começou a ter aulas de gravura em metal sob a
orientação dos gravadores J. Friedlander e Rossini Perez Museu de Arte Moderna do
Rio de Janeiro.
Simultaneamente às aulas no MAM, Farnese passou a freqüentar a Praia
de Botafogo, na época um grande receptáculo de lixo, em busca de pedaços de
madeira e borrachas maleáveis, com as quais fazia monotipias. Trazidos pelas águas
da Baía de Guanabara, elementos dos mais diversos, marcados pela passagem
do tempo, gastos pelo uso humano, pela água salgada e pelo sol, foram, aos
poucos, despertando a atenção do artista, que passou, então, a coletá-los. Mantidos
amontoados em sua casa-ateliê, esses materiais descartados, recolhidos graças ao
fascínio que suas qualidades estéticas causavam em Farnese, formaram o embrião
a partir do qual se desenvolveu mais tarde uma longa produção de assemblages.
Quase que por acaso, Farnese nos conta que, “um dia, a base de um possível
móvel em estilo antigo, um ovo de madeira daqueles de costura, uma cabeça de
santo de gesso e uma bola de gude se juntaram, e ‘aconteceu’ o meu primeiro
objeto” (ANDRADE in COSAC, 2005:181). A partir de então, as assemblages foram
crescendo em seu interesse, enquanto as gravuras perdiam sentido para ele.
A produção desses objetos era complexa e demandava em média um a dois
anos de exaustivo esforço mental. Curiosamente, por vezes, após dar a peça por

118 art uerj III semana de pesquisa em artes


pronta, o artista desmontava o resultado final e começava o processo novamente.
“Farnese vai lentamente germinando cada peça, a trabalhar e retrabalhar ad infinitum,
cria núcleos de assemblages que se permutam, até que um dia a obra se revela em
sua inteireza (e isso, para ele, é uma espécie de descoberta)” (ARAÚJO, 1999: 9).
Nesse longo processo de criação Farnese de Andrade se apegava em demasia às
assemblages, o que culminava no desagrado em vendê-las, preferindo mantê-las aos
montes em seu ateliê recluso no Rio Comprido. Aliás, não foram poucas as vezes em
que Farnese, arrependido, tentou reaver, mediante compra, objetos que ele mesmo
outrora havia produzido e vendido. Sentia sua arte como parte constituinte dele
mesmo, sentia coisas diante dela e não gostava de tê-la em mãos de pessoas que
não a entendessem e não a sentissem como ele.
A obra de Farnese causa desconforto, incomodo, repulsa, prazer; desperta
sentimentos ambíguos no espectador que se arrisca diante dela. Isso talvez se
deva à apresentação de objetos familiares em situações nas quais não se está
acostumado a ver, como as pequenas bonecas queimadas e as imagens de santos
destroçados. Estas últimas, as imagens sacras, eram adquiridas, sobretudo, por meio
de oferendas e despachos que Farnese encontrava em suas constantes caminhadas.
Curiosamente ele se apropriava dessas imagens apesar de compartilhar a crença
em entidades espirituais, seres aos quais ele, em depoimento presente no curta-
metragem de Olívio Tavares de Araújo, admitiu já ter servido involuntariamente
como meio de manifestação. Ao se apropriar das pequenas esculturas de gesso
encontradas em suas caminhadas, Farnese profanava o universo umbandista. Isso
porque as imagens presentes nos despachos são objetos carregados de significação
mágica, oferecidos pelos fiéis a uma determinada entidade que passa a ser dona
das esculturas, não sendo abertas à apropriação de outrem, como faz o artista ao
recolhê-las.
Essas imagens, entretanto, são vítimas de um segundo modo de profanação:
a tortura. Farnese, “em seu ateliê, agrupava muitas imagens sacras intactas, como
gado à espera do corte” (COSAC, 2005:31). É certo que, por vezes, as imagens já
eram encontradas rachadas ou quebradas, aliás, as imagens advindas de terreiros
de umbanda, quando despachadas, são deixadas exatamente por estarem com

119 art uerj III semana de pesquisa em artes


algum dano físico, todavia, para Farnese era uma prática comum desmembrar essas
imagens sacras.
Essas peças religiosas, ao serem esquartejadas e torturadas pelas mãos
do artista, eram vítimas de um ato que tem suas raízes fincadas na memória
católica brasileira colonial. No Brasil, também muitos santos cristãos do período
barroco carregavam deformações, pois as imagens eram tidas pelos fiéis como
presentificações de entidades míticas, que eram forçadas mediante tortura a realizar
seus desejos, geralmente ligados ao recalque e à sexualidade do habitante das terras
luso-brasileiras. Luiz Mott em seu texto Cotidiano e Vivência Religiosa: entre a capela
e o calundu demonstra que era hábito comum na sociedade brasileira católica do
século XVIII e XIX, a tortura dos santos, realizada para forçar favores das entidades:

Rosa Gomes, quarenta anos, preta-minas, forra, moradora à Rua das


Bananeiras, “certo dia, vendo-se desesperada em sua casa entre quatro
paredes, solitária e sem ventura, pedia aos santos e lha não davam e
não achando pau nem corda para se enforcar, assim desesperada e fora
de si, alienada do juízo, tirando de si as contas e bentinhos, quebrara a
machado as imagens de Nossa Senhora e Santo Antônio, arrancando
os braços e cabeça do Menino Jesus”. Quanto à mulata Ana Jorge,
moradora na Paragem dos Monsus, em Mariana, sobre ela pesava a
fama que judiava dos santos, metendo-os debaixo do colchão antes de
fornicar com seus amantes, e depois de açoitá-los, jogava-os na parede
dizendo: “já que não lhe fizeram o que pedira, que levassem socos e
açoites” (MOTT in SOUZA, 1997:190)

Em outro caso, Mott apresenta uma senhora, desta vez branca, que torturava
a imagem de Santo Antônio colocando-a deitada com a face para baixo e sob uma
pedra. A mulher justificava o ato ao afirmar que o próprio santo em vida havia optado
pelo martírio. Este ponto, o dos santos mártires, nos coloca uma nova via de acesso
ao processo criativo de Farnese. Este optou, talvez de modo inconsciente, sobretudo
por imagens de santos que, assim como Santo Antônio, são tidos como mártires,

120 art uerj III semana de pesquisa em artes


a saber: São Sebastião, São Jorge e São Cosme e Damião. Há uma coerência
implícita nesta escolha, pois esses referidos santos foram em vida torturados, como
igualmente tiveram suas imagens torturadas pelos fieis católicos no Brasil Colônia,
e mais tarde continuaram sendo martirizados, desta vez pela mão do artista. O ato
de profanar diversos objetos sagrados, assim como o de se ligar de forma diversa à
estrutura religiosa em seu processo de manipulação das imagens, cria um diferencial
e um problema central na poética de Farnese de Andrade.
O universo religioso esteve presente na vida do nosso artista desde a sua
mais remota infância, afinal, ele nasceu e cresceu em uma região imersa no
mundo católico, cravejada de monumentos arquitetônicos, escultóricos e pictóricos
produzidos para o consumo dos fiéis dessa religião. Sua própria mãe era católica
fervorosa e chegou a se indignar com a produção profanadora do filho. Entretanto,
sobre a sua relação pessoal com o universo religioso, Farnese diz: “Não tenho uma
religião definida, não acredito em nada definitivo. Também não tenho nada a ver com
candomblé. Rezo para São Jorge, que é Ogum, porque acho sua história bonita.”
(ANDRADE apud AZEVEDO, 1976:110)
Apropriando-se das imagens deixadas por praticantes da umbanda, o artista
demonstrava saber a relação sincrética entre alguns santos e orixás. Não foi uma
única vez que em entrevistas ele afirmou a conexão entre São Jorge e Ogum.
Igualmente não foram poucas as vezes nas quais se pode perceber citações a esse
sincretismo na produção farnesiana.
Na obra Sem Título (1994) Farnese oferece uma forte citação ao sincretismo
entre a umbanda e o catolicismo. Dentro de um armário de madeira cujo fundo é
vermelho, há, também em madeira, uma rica e detalhada escultura de dragão, que
ocupa praticamente toda a diagonal do móvel. A figura mitológica, entretanto, não é
o único elemento contido no armário, mas certamente é o de maior destaque. Diante
dragão estão localizados dois pequenos objetos resinados: uma cabeça branca
de cavalo e uma rosa de plástico cujas pétalas são brancas e vermelhas. Em uma
primeira vista, pode-se, sobretudo entre os desconhecedores de alguns dos pontos
básicos do sincretismo da religião umbandista, não se perceber as sutis relações que
conectam cada um dos elementos contidos na assemblage.

121 art uerj III semana de pesquisa em artes


Como se sabe, o orixá Ogum foi sincretizado, no Rio de Janeiro, com São
Jorge. Este, um dos santos mais populares da cidade, principalmente entre os
umbandistas, também foi uma das figuras sagradas mais utilizadas na produção de
Farnese. Nessa obra, entretanto, o guerreiro da Capadócia não se faz presente como
normalmente se manifesta, representado montando um cavalo branco e matando
um dragão com sua lança, mas sim por meio de quatro elementos que formam uma
mensagem cifrada cujos códigos visuais são mais facilmente compreendidos por
aqueles que compartilham da mítica da Umbanda. Ao cavalo branco e ao dragão, que
de imediato podem ser relacionados ao santo, se juntam a rosa branca/vermelha e o
fundo vermelho do armário. O Vermelho e branco são as cores símbolo de Ogum na
umbanda, além disso as rosas e os cravos dessas cores são comuns em oferendas
dedicadas à entidade. De tal modo, da parte de Farnese de Andrade, há uma clara
citação ao sincretismo entre Ogum e São Jorge, personagens que no Rio de Janeiro
se fundiram de tal modo que é difícil definir a linha tênue que divide os dois.
Outro exemplo da citação sincrética nas assemblages de Farnese é a obra
intitulada Natureza Morta (1986-1993). Nesta, temos um austero oratório de madeira
cujo fundo é ocupado por uma fotografia em preto e branco de um menino e de uma
menina, talvez gêmeos, vestidos com roupas claras, exibindo o mesmo penteado e
a mesma estatura. Colada sobre essa fotografia, mas sem cobrir as crianças, está
a imagem de um índio nu. Encostada na parte esquerda ao fundo do oratório, sem
no entanto tocar a fotografia, há uma pequena escultura em madeira representando
São Sebastião, que aparece sem o braço direito. No centro, encontramos o último
elemento constitutivo da assemblage, uma maçã de madeira pintada em vermelho.
Os elementos da obra descrita acima, em uma primeira vista, podem parecer
frutos de escolha aleatória. Todavia, não é essa a conclusão a que se chega após a
realização de uma análise mais profunda das relações mantidas por esses objetos.
São Sebastião, na cidade do Rio de Janeiro, foi sincretizado na umbanda com o orixá
Oxossi. Este, por sua vez, nesta religião diz respeito aos denominados caboclos, que
são representados como indígenas brasileiros. Neste ponto, encontra-se uma relação
entre dois dos elementos da obra: a imagem de São Sebastião e a fotografia do Índio.
Isso só já seria suficiente para se enxergar uma referência à umbanda, mas Farnese

122 art uerj III semana de pesquisa em artes


vai além e se mostra ainda mais firme nessa menção. Isso porque a fotografia das
crianças gêmeas se liga ao par São Cosme e Damião, uma vez que, também na
religião umbandista, os espíritos de crianças são identificados como Ibêjis, entidades
infantis sincretizadas com as imagens dos santos gêmeos. Esses espíritos infantis,
Ibêjis/Erês/São Cosme e Damião, têm a maçã como uma das oferendas mais comuns
dedicadas a eles. De tal modo, chegamos ao segundo par de relações internas
encontradas na obra Natureza Morta, a conexão entre a fotografia dos gêmeos e a
maçã de madeira. Existindo relações internas entre os elementos da obra de Farnese,
há a necessidade de se ir além da análise puramente morfológica do objeto.
A complexidade de relações oferecidas por esses dois exemplos evidencia
que Farnese de Andrade escolhia conscientemente cada um dos elementos dos
quais se valia. Esses elementos, particularmente os religiosos, possuem implicações
simbólicas diversas, tanto no universo pessoal do artista quanto na teia cultural onde
se inserem. Aqui, o artista é o crente que profana, e tal qual ocorria comumente em
solo mineiro durante o período colonial, a imagem do santo, objeto de devoção, se
torna objeto torturado pelas dores e pelas paixões humanas. De tal modo, a obra de
Farnese de Andrade, assim como seu processo de criação, pertence a um conjunto
de relações que apontam na direção do campo religioso brasileiro, seja católico ou
umbandista.

Referências Bibliográficas
ANDRADE, Farnese de. A grande alegria. In: COSAC, Charles (org.) Farnese objetos. São Paulo: Cosac &
Naify, 2005.
ARAUJO, Olívio Tavares. Farnese de Andrade: encantamento urgente e radical. São Paulo: Revista do
MAM, 1999.
AZEVEDO, Marinho de. Pela hecatombe. Veja, n° 394, São Paulo, 24/03/1976.
COSAC, Charles (org.). Farnese objetos. São Paulo: Cosac & Naify, 2005.
MOTT, Luiz. Cotidiano e vivência religiosa: entre a capela e o calundu. In: SOUZA, Laura de Mello e (org.)
História da Vida Privada no Brasil. Vol. 1. Cotidiano e vida privada na América Portuguesa. São Paulo:
Companhia das Letras, 1997.

Filmes:
ARAUJO, Olívio Tavares de. Farnese – Caixas, montagens, objetos. 1970.

123 art uerj III semana de pesquisa em artes


III semana de pesquisa em artes
10 a 13 de novembro de 2009 art uerj
arte, religião e tradições

Um ato de fé em festa: análise do encontro entre Devoção e Diversão


na dança de São Gonçalo de Amarante

Victor Hugo Neves de Oliveira

Mestrado em Ciência da Arte – UFF

A pesquisa proposta neste trabalho busca investigar as relações construídas entre elementos
representativos da esfera social que compõem o culto a São Gonçalo de Amarante, produzido no
povoado quilombola da Mussuca (Laranjeiras/SE): o sagrado e o profano, analisando estados de
hibridação que configuram a rede de códigos e o comportamento expressivo do ritual.

São Gonçalo; Devoção e Diversão; Cultura Popular.

The investigation introduced in this article searches to exame relations established among
representative element that compose Amarante’s worship at Mussuca (Laranjeiras/ SE) like
devotion and amusement. It is an analysis of the manners that produce seam of codes and
express a plastic bahevior on ritual.

São Gonçalo de Amarante; devotion – amusement; popular culture.

Introdução
Entre os acontecimentos e dramatizações de nossa cultura popular encontramos
a manifestação denominada Dança de São Gonçalo de Amarante: espécie de ritual
realizado todos os anos em várias regiões brasileiras com aspectos, motivos e
propósitos diferenciados e inconstantes. Caracterizada como um sistema que articula
diferentes tessituras e significações, a partir de seu contexto visual e cultural, como um
ato a revigorar-se a cada instante de atuação dos atores sociais, procuramos abordá-la
como uma estrutura não normativa e dinâmica, resultante de uma contínua produção

124
de signos. Para tanto, além da bibliografia básica, fazemos uso dos domínios da
semiologia e da etnografia a fim de compreendermos o ritual e seus elementos – que
fundem e recriam concepções de mundo, além de (re)apresentarem um acontecimento.
A partir destas linhas principais de investigação compreendemos a importância
de se suplementar o discurso estético do ritual com uma discussão profunda do seu
ambiente histórico e social, suplementar o discurso etnográfico com investigações a
respeito dos arcabouços estéticos, representações e mensagens visuais e, por fim,
compreendemos a necessidade de se perceber a natureza da expressão artística
numa perspectiva dialógica com a cultura.

A compreensão desta realidade, ou seja, de que estudar arte é explorar


uma sensibilidade; de que esta sensibilidade é essencialmente uma
formação coletiva; e de que as bases de tal formação são tão amplas
e tão profundas como a própria vida social, nos afasta daquela visão
que considera a força estética como uma expressão grandiloqüente dos
prazeres do artesanato. Afasta-nos também da visão a que chamamos
de funcionalista, que, na maioria das vezes, se opôs a anterior, e para
qual obras de arte são mecanismos elaborados para definir as relações
sociais e fortalecer os valores sociais (GEERTZ, 2006: 149-150).

Para a promoção deste estudo, torna-se imprescindível a escolha de um


campo de pesquisa e de um grupo especifico de Dança de São Gonçalo1 visto que
cada grupo tem suas histórias e objetos de maior significação para os componentes.
Tal prática de escolha e pesquisa desenvolve-se amparada em nossas vivências e
contatos estabelecidos com o grupo pesquisado, possibilitando-nos a aplicação de
técnicas referentes ao universo do etnógrafo.

O objeto das Ciências Sociais é histórico. Isto significa que as


sociedades humanas existem num determinado espaço cuja formação
social e configuração são específicas. Vivem o presente marcado pelo
passado e projetado para o futuro (...). Portanto, a provisoriedade, o

125 art uerj III semana de pesquisa em artes


dinamismo e a especificidade são características fundamentais de
qualquer questão social (MINAYO, 2004: 13)

Desse modo, a escolha de um único grupo faz-se determinante para que


compreendamos a dinâmica da lógica cultural a qual a representação artística se
insere, além de ser essencial pela necessidade da observação participante das varias
fases do ritual: técnica fundamental para o desenvolvimento da pesquisa etnográfica.
O acompanhar do grupo, o registro de sua atividade por meio de gravações (vídeo e
áudio) e fotografias para posterior análise e as entrevistas aos participantes da dança
e aos moradores do povoado são ferramentas que contribuem para inserir-nos no
universo ritual e em seus processos simbólicos.
Segundo Goldenberg (2003:12) “o pesquisador está sempre em estado de
tensão porque sabe que seu conhecimento é parcial e limitado”. Esta perspectiva se
revela em nós como um permanente questionamento a respeito dos limites de nossa
capacidade em conhecer o grupo estudado. Isto porque, como a seguir insinua-nos
Canclini, existem escalas de observação, onde o pesquisador constrói análises a
partir do que é possível a ele ver utilizando o material cultural de que dispõe.

O antropólogo chega à cidade a pé, o sociólogo de carro e pela pista


principal, o comunicólogo de avião. Cada um registra o que pode, constrói
uma visão diferente e, portanto, parcial. Há uma quarta perspectiva, a do
historiador, que não se adquire entrando, mas saindo da cidade, partindo
do seu centro antigo em direção aos seus limites contemporâneos.2

Da observação à descrição e posterior análise, conjuga-se o corpo deste


trabalho que compreende o ritual como sinônimo de ação e dinâmica cultural; daí a
provisoriedade e relativismo da pesquisa, além do olhar do pesquisador, o ensaio
é dependente dos atores sociais, que nascem e morrem e, por conseguinte, de
uma estrutura dinâmica, impossível de ser cristalizada e estender-se a símbolos
permanentes: a produção popular.

126 art uerj III semana de pesquisa em artes


Fundamentação Teórica
O presente trabalho busca identificar, examinar e valorizar a manifestação
popular Dança de São Gonçalo de Amarante analisando o processo de hibridação de
imagens sagradas e profanas no ritual e investigando o cruzamento da tradição de
culto portuguesa com as formas de culto indígena e africana como elemento seminal
da espécie de devoção multicultural que estrutura o ritual; no entanto, apesar de a
presença do culto ao santo amarantino circunscrever-se em vários estados (Alagoas,
Bahia, Goiás, Mato Grosso, Minas Gerais, Paraná, Pernambuco, Piauí, São Paulo e
Sergipe) como uma das inúmeras manifestações tradicionais brasileiras que compõe
ao lado das Folias de Reis, Congadas, Cavalhadas, Moçambiques e outros, o rico
repertório do catolicismo popular no Brasil, a pesquisa pretende observar suas
características particulares em solos sergipanos.
Lá, onde se dança para o santo no povoado quilombola de Mussuca, a versão
mais contada pelos moradores sobre a história de São Gonçalo (aliás, que lembra
muito de sua lenda em Portugal), é a de que se tratava de um sacerdote católico que
a certa altura da carreira religiosa resolveu se direcionar para missões mais populares.
Então, teria se tornado marujo e observando que nos portos das cidades portuguesas
havia sempre mulheres à espera dos marinheiros para vender-lhes o corpo, ele teria
improvisado instrumentos com bambus e madeira, e sempre no fim da tarde ia ao cais
onde tocava músicas e convidava as mulheres para dançar. As músicas continham
mensagens de devoção a Deus, que fizeram algumas prostitutas se converterem.
Dada história constrói um caráter peculiar a Gonçalo, pois, relaciona
diretamente o santo enquanto enviado divino encarregado do cumprimento de missão
com um ser – fortemente presente no imaginário da sociedade brasileira – dotado
de uma necessidade da festa, dança e música. O que justifica, provavelmente, sua
popularidade de casamenteiro, padroeiro dos violeiros e da fertilidade humana e o
quadro de expressões simbólicas que estruturam o ritual no Brasil.
Desse modo, o culto se estrutura como um ato de fé, uma devoção
profundamente enraizada, “uma longa oração que se canta e dança coletivamente”
(BRANDÃO, 2001: 198), assumindo um papel de (re)união dos laços comunitários com
o Divino. Os devotos, que, indiferentes às definições dadas sobre o que fazem, sentem

127 art uerj III semana de pesquisa em artes


a necessidade de dedicar um tempo de suas vidas à adoração do santo, através de
saídas em grupo cantando, comendo, brincando e trocando sorrisos e ofertas, são os
atores sociais que constroem sua fé a partir de uma reza que se dança.
Essa “prece dançada” possuí características distintas em Mussuca, onde
podemos ver que:

... tomam parte ativa da Dança de São Gonçalo exclusivamente elementos


do sexo masculino. A participação da mulher se limita a conduzir a imagem
do santo durante a procissão e eventualmente ajuda a tirar os cantos; não
toma, porém parte nas danças. Para esta proibição não tem os membros
do grupo nenhuma explicação especial, além do apelo à tradição: ‘Já
achei assim e continuo fazendo assim’ (Dantas apud OTAVIO, 2004: 94).

Esta forma tão perigosa de pensar instaura nos agentes que geram os
bens populares um conservadorismo retrógrado e anacrônico, tornando os
costumes e saberes locais restos de uma estrutura social que caminha para a
descontextualização, como esclarece Bruno Leonardo3:

Essa fascinação pelos produtos, o descaso pelos processos e agentes


sociais, pelos usos que os modificam, leva a valorizar nos objetos mais
sua repetição que sua transformação, a desconsiderar injustiças sociais,
tensões e interações determinantes na produção cultural popular.
O que importa não são os objetos culturais intrinsecamente ou
historicamente determinados, mas o estado do jogo das relações
culturais. A tradição, elemento vital da cultura, pouco tem a ver com a
persistência das velhas formas, mas, muito mais, com as formas de
articulação e associação de elementos.

A propósito, Canclini (2006A: 193) complementa:

O ritual sanciona então, no mundo simbólico, as distinções estabelecidas

128 art uerj III semana de pesquisa em artes


pela desigualdade social. Todo ato de instituir simula, através da
encenação cultural, que uma organização social arbitrária é assim e não
pode ser de outra maneira.

Compreendemos, obviamente, que a “participação do indivíduo em sua cultura


é sempre limitada; nenhuma pessoa é capaz de participar de todos os elementos de
sua cultura”4; entretanto, o problema não está em o fato de as mulheres não poderem
tomar parte na dança e sim na ausência de justificativas próprias a este interdito –
que além de ser um instrumento de fomento a exclusão não oportuniza espaço para
considerações importantes sobre as injustiças sociais.
Todavia, direta ou indiretamente, a interferência feminil faz-se patente na
Dança de Gonçalo tendo em vista que provavelmente, a ausência de senhoras, na
coreografia que se constrói – a partir de duas fileiras dispostas em frente ao altar
compostas por um “guia” (que toca pule, forma de reco-reco feito de bambu) e pelos
demais dançarinos – inspirou os homens a utilizarem como indumentária ritual, trajes
e adornos femininos como referência às prostitutas para as quais Gonçalo pregava.

Por cima das calças usam anáguas e saias floridas que lhes chegam até
a altura dos joelhos, traje que é completado por uma blusa cavada de cor
branca, geralmente rendada. Um xale preto colorido enfeitado de fitas
atravessa-lhes o tronco em diagonal, sendo preso na cintura. Na cabeça
usam turbante branco enlaçado de fitas coloridas. Pulseiras, colares e
brincos servem-lhes de adornos (Dantas apud OTAVIO, 2004: 92-93).

Há ainda a hipótese de que a crença proliferada pelos habitantes mais velhos


do “quilombo” – que expõe Gonçalo como um sacerdote que se tornara marinheiro
– possa explicar o fato de o “patrão” (mestre do ritual) usar trajes de marujo e da
imagem do santo ser conduzida durante a procissão à caminho do templo – onde
será realizada a dança – dentro de uma barca.
Por tais dados podemos perceber que, apesar de algumas referências portuguesas
persistirem na Dança de Mussuca, esta se apresenta como um rico repertório singular

129 art uerj III semana de pesquisa em artes


ainda que (na verdade, justamente por ser) formado de matizes culturais diversas. A
proximidade dos devotos com o santo, a relação intimista que entre eles é estabelecida
proporciona a forma peculiar de culto (que escapa à ortodoxia oficial que se busca com a
canonização) que difunde o “Bem Aventurado Amarantino” como signo de fé e festa.
Em Mussuca, vemos que é através da realização da Dança, momento central
da festa de louvor a São Gonçalo, que os devotos revigoram e atualizam num conjunto
gestual cheio de fervor religioso (como uma reza) sua fé no santo. O ato de dançar
possui, portanto, uma função sagrada por caracterizar-se como prática devocional.
Conquanto aproxime-se, coreograficamente, de danças profanas, a Dança de
São Gonçalo em sua grande alegria e movimentação, é indiscutivelmente devota,
visto que, a todo o momento e por toda parte, misturam-se uma coisa a outra. O
devoto, pois, faz circular o sagrado pelo espaço da vida cotidiana e qualifica cada
situação, entre a reza e a dança, de modo que se crie contraste em novas harmonias
e, com isto, um tipo necessariamente peculiar de celebração.

Apesar dos esforços da Igreja para separar uma parte propriamente


religiosa das outras, folclóricas ou francamente profanas, para o devoto
popular o sentido da festa não é outra coisa senão a sucessão cerimonial
de todas estas situações, dentro e fora do âmbito restrito dos ritos da
Igreja. (Brandão, 2001: 37).

Evidentemente, a capacidade de apreensão deste todo ritual lastreada por uma


estrutura mental cartesiana, nunca poderia visualizar as manifestações do sagrado e do
profano senão como elementos estanques. Porém, o fato é que se ao visitante as vestes,
movimentos e adereços denotam aspectos profanos, o ritual e seus elementos são atos de
devoção, pois, para aqueles que os vivem, festa e dança são autênticas expressões de fé.
O que move estas pessoas? Devoção, alegria de bem receber, o doar, o
expressar a gratidão por uma dádiva alcançada, uma promessa, ou simplesmente a
alegria da festa? Cada um revela, em sua personalidade, em suas atitudes, os seus
motivos e colorem, com isso, esse ser devoto de diversos significados.
O mundo para os devotos é percebido:

130 art uerj III semana de pesquisa em artes


... como uma teia de forças em iteração, forças de diferentes tipos
e intensidades que tendem ao equilíbrio. Num universo sacralizado,
qualquer ação do homem ganha caráter ritual, direcionando-se para
equilibrar a sua força vital com as demais energias do Cosmo. E convivem
em continuum o mundo dos homens, da materialidade, e o mundo
invisível, dos ancestrais e divindades. Sendo, pois, a vivência do sagrado
total e quotidiana, ela não exclui as emoções humanas, o prazer e a
alegria: a fé com festa que tanto intriga aos cronistas. (DIAS, 2001: 866).

Há, portanto, na vivência social dos devotos uma viagem do profano para o
sagrado e de retorno ao profano – de modo a mostrar a interpenetração de ambos
os reinos. A festa, pois, permeia organicamente a atitude religiosa a manifestar-se,
reunindo laços de atividades sagradas e profanas num único evento, colaborando
para que uma teia de significados seja elaborada por fios que se cruzam.
Tendo por sagrado aquilo “que vai além da compreensão e da explicação do
homem e o que ultrapassa sua possibilidade de mudá-lo” (CANCLINI, 2006A: 192), a
reunião destes laços representa uma tentativa, ou um grande esforço, para trazer ao
universo cotidiano, traços, formas, histórias, fenômenos inexplicáveis, o que faculta
uma maior aproximação entre fé e festa e, com isto, uma reorganização dos espaços
das imagens sagradas e profanas.
Não conseguimos dizê-lo com a ênfase e eloqüência de Cupertino (2006: 82):

A partir destes dados, entendemos que a dança popular tradicional ou


folclórica tem uma relação única com a religiosidade popular através
da qual contribui interferindo na elaboração, aceitação e transmissão
de seus movimentos, ritmos e coreografias. A religiosidade popular
sempre irá contribuir para o significado de seus movimentos, quer para
a comunidade que a assiste ou para os seus manifestantes, uma vez
que se utilizam de lunetas diferentes para esta leitura. Ao percebermos e
entendermos a relação do sagrado com o profano daremos um passo em
direção a compreensão das diversas formas de movimentos transmitidos

131 art uerj III semana de pesquisa em artes


através da dança folclórica no decorrer dos tempos. Não existe um sem
o outro!

Assim, podemos apreender que o que o homem é pode estar tão envolvido
com onde ele está, quem ele é e no que ele acredita que é inseparável dele. Esta
indissolubilidade permite-nos avaliar o cruzamento entre devoção e diversão como
produto de uma sociedade formada das mais diversas matizes culturais onde os
elementos da fé acompanham a festa, a diversão, o canto, a dança abrindo, desse
modo, novos roteiros e possibilidades de pesquisa em Estudos Culturais.

Á guisa de conclusão
Apesar dos inúmeros trabalhos realizados sobre a Dança de São Gonçalo de
Amarante é incontestável e evidente que a discussão acerca da questão do encontro
entre devoção e diversão no ritual foi negligenciada ou pouco desenvolvida por
muitos pesquisadores. A construção do pensamento sobre a análise do processo
de hibridação entre sagrado e profano não consome tanto o tempo de nossos
investigadores culturais quanto a descrição mecânica da dança ou do território em
que esta se efetua, o que fomenta uma lacuna que dissocia, por não relacionar, os
valores culturais à representação artística.
Partindo do pressuposto que só reconhecemos o que conhecemos, a função social
da análise da confluência entre devoção e diversão é relacionar práticas culturais cujos
suportes tendem a promover a dissociação; garantindo, assim, que o valor qualitativo das
obras seja reconhecido; sugerindo, desse modo, a arte não como um empreendimento
autônomo e sim como um subsistema pertencente a um sistema maior: a cultura.
Além disso, a possibilidade de os mestres ou artistas populares presentificarem-se
na Academia, expondo seus saberes e fazeres, através de ensaios teóricos e audiovisuais,
é de grande relevância para que compreendamos a cultura popular em um contexto mais
amplo do que o habitual e analisemos a arte não como privilégio de poucos, mas como
uma atividade global, comum ao conjunto humano e, por isso, acessível a todos tanto em
sua produção como em seu consumo, enfim,como uma representação cultural.
Ocorre-nos também que é nossa responsabilidade:

132 art uerj III semana de pesquisa em artes


(...) resgatar estas tarefas propriamente culturais de sua dissolução no
mercado ou na platéia: repensar o real e o possível, (...) reconstruir a
partir da sociedade civil e do Estado, um multiculturalismo democrático.
(CANCLINI, 2006: 226).

Faz-se necessário, então, que a capacidade de “apropriação” do material


cultural se propague para além do espaço originário como alternativa de manutenção
dos bens simbólicos, para que os saberes locais sejam “preservados” e dialoguem
com a comunidade global. Mais do que levantar características da Dança, pois,
a pesquisa busca atenuar tensões através do reconhecimento e valoração do
patrimônio cultural produzido pelos moradores de Mussuca.

Referências Bibliográficas
BRANDÃO, Carlos Rodrigues. A Cultura na Rua. São Paulo: Papirus, 2001.
CANCLINI, Néstor Gárcia. Consumidores e Cidadãos. Rio de Janeiro: UFRJ, 2006.
__________. Culturas Híbridas. São Paulo: EDUSP, 2006A.
CUPERTINO, Kátia. Nas Entrelinhas da Expressão. Belo Horizonte: Cuatiara, 2006.
DIAS, Paulo. A Outra Festa Negra. In: JANCSÓN, István (Org.). Cultura e Sociabilidade na América
Portuguesa. São Paulo: EDUSP, 2001.
GEERTZ, Clifford. O Saber Local. Petrópolis: Vozes, 2006.
GOLDENBERG, Mirian. A Arte de Pesquisar. Rio de Janeiro: Record, 2003.
LARAIA, Roque de Barros. Cultura: Um Conceito Antropológico. Rio de Janeiro: Zahar, 2006.
MINAYO, Maria Cecília de Souza (Org.). Pesquisa Social. Petrópolis: Vozes, 2004.
MORAIS, Bruno Leonardo Gomes. Patrimônio Imaterial: Uma Via para a Crise Ecológica através da Animação
Cultural. Rio de Janeiro, 2006. Monografia (Graduação em Educação Física) – Universidade Federal do Rio
de Janeiro, 2006.
OTAVIO, Valeria Rachid. A Dança de São Gonçalo: Re-interpretação Coreológica e História. Campinas,
2004. Dissertação (Mestrado em Artes) – Universidade Estadual de Campinas, 2004.

Notas
1 Aqui, investigamos o ritual realizado no povoado quilombola de Mussuca, situado no município de
Laranjeiras (SE) por ser este parte do espetáculo “Pelos Mares da Vida” da Companhia Folclórica do Rio-
UFRJ a qual o pesquisador integrou, como Bolsista de Iniciação Artística Cultural, de 2004 a 2008, e por ser
um desdobramento de pesquisas realizadas a campo no ano de 2007 ao Encontro Cultural de Laranjeiras.
2 CANCLINI, 2006A: 21.
3 MORAIS, 2006: 17
4 LARAIA, 2006: 80

133 art uerj III semana de pesquisa em artes


III semana de pesquisa em artes
10 a 13 de novembro de 2009 art uerj
ensino de arte e cultura

A construção da nação nos quadros de história do século XIX: uma visão


pedagógica

Artur de Almeida Malheiro

História – Universidade Gama Filho

Durante o reinado de D. Pedro II foi formulado o projeto de construção da nação brasileira.


Os quadros de História foram um dos meios de viabilização deste projeto. Este trabalho
propõe a utilização dessa arte no desenvolvimento de uma metodologia de ensino de História,
possibilitando ao aluno identificar teses opostas e elaborar um pensamento e uma leitura crítica
da sociedade.

Quadro de História; Segundo Reinado; Metodologia de ensino.

During the reign of D. Pedro II was formulated the project of construction of the Brazilian nation.
The pictures of History had been one of the ways to achieve this project. This work considers
the use of this art in the development of a methodology of teaching History, making possible to
the student to identify opposing theses and to elaborate a thought and a critical reading of the
society.

Picture of History; Second Reign; Methodology of education.

Em pesquisa realizada nas turmas de Ensino Médio de escolas públicas e


privadas com a qual se tentava buscar os problemas do ensino de História para
esse segmento (2008, Conhecendo o ensino médio), foram identificadas algumas
resistências quanto ao ensino de História por parte dos alunos. Os que não gostavam
da disciplina, se justificaram com as seguintes respostas: “Não gosto”, “Monótona”,
“Só fala do passado”, “Professor autoritário”, “Não gosto de decorar”, “Falta
linearidade”, “Cuspe e giz”, “Não gosto de ler”.
134
Ainda de acordo com a pesquisa, quando solicitados a elencar por ordem de
importância o que eles achavam necessário para se fazer uma boa prova de História,
a ordem das respostas indicadas foi, em primeiro lugar, “ter uma boa memória”; em
segundo, “ler o livro didático”; em seguida, “ter uma opinião crítica sobre o assunto”;
em quarto, “escrever bem”; e, por fim, “colar”. Na opinião dos entrevistados, a
disciplina é ainda vista como um amontoado de textos que devem ser decorados e
não refletidos. A reflexão, geradora de um pensamento crítico, aparece expressa na
resposta que ficou em terceiro lugar. A importância de se ter uma opinião crítica sobre
o assunto é desvalorizada em prol da memória e da leitura do livro didático.
Numa tentativa de aliar aulas mais dinâmicas com a possibilidade de
desenvolver um pensamento crítico, o trabalho com fontes iconográficas revela-se
bastante proveitoso. Sem a pretensão de querer revolucionar o ensino, a ideia é
fazer com que os alunos reconheçam a construção da História a partir da leitura de
quadros de história do século XIX, utilizando para isso um método dialético onde
ele será capaz de identificar teses opostas, possibilitando a elaboração da crítica. O
aluno terá a percepção de que o que foi pintado na tela não corresponde exatamente
à realidade dos fatos, mas sim que aqueles quadros estavam a serviço de interesses
maiores que objetivavam passar uma mensagem específica.
Deve-se ressaltar que foi durante o reinado de D. Pedro II que se formulou o
projeto de construção da nação brasileira. Após a maioridade e a partir de 1850, um
processo centralizador começa a ser articulado no império. Membros da elite saquarema,
de base conservadora, assumem os ministérios e realizam reformas judiciárias que viriam
a concentrar o poder nas mãos dessas elites. Neste momento começa-se a pensar na
construção da nação brasileira e três instituições serão fundamentais: o Colégio Pedro
II, local de formação da intelectualidade brasileira; o Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro, que propunha demarcar o território nacional e reescrever a História do povo,
valorizando o índio como o antepassado do brasileiro e propiciando o desenvolvimento
de uma literatura e de quadros que tinham por tema o indianismo; e a Academia Imperial
de Belas-Artes. Fomentando artistas como um verdadeiro mecenas, Pedro II teve à sua
disposição artistas plásticos que retrataram o Brasil idílico, por vezes, como nas pinturas
indianistas, ou forte, por outras, como naquelas que retratavam a Guerra do Paraguai.

135 art uerj III semana de pesquisa em artes


Autores como Vítor Meireles e Pedro Américo, financiados pelo governo
imperial, desenvolveram as suas técnicas no exterior e se prestaram a pintar o
Brasil que deveria ser mostrado. Suas guerras eram colossais e seus heróis eram
magnânimos. Esses quadros contavam a história do Brasil na visão do império.
Para uma definição objetiva do que se pode considerar um quadro de história,
Jorge Coli descreve:

constitui-se como o apogeu da arte de pintar, articulando-se diretamente


com o princípio da narração. Trata-se de contar histórias com clareza,
com grandeza; histórias bíblicas, sagradas; histórias dos heroísmos
humanos, presentes e passados; histórias dos poderosos em suas ações
mais magníficas, em seus triunfos soberbos.
A questão é, portanto, a de narrar visualmente. O pintor devia articular
formas visuais significantes, devia inventar cenas, poses, gestos,
ambientes (COLI, 2007, p.51)

Com o desenvolvimento do pensamento crítico, ao analisar esses quadros do


século XIX, para os quais os pintores “deviam inventar cenas”, o aluno deverá ser
capaz de fazer a mesma leitura crítica com imagens que povoam o seu universo nos
dias atuais. Procura-se, portanto, mostrar que a História, muito mais do que simples
decoreba, tem a função de fazer com que se interprete a realidade a partir de um
entendimento mais aprofundado, possibilitando uma ampliação de visão de mundo.
Conhecer é um passo em direção à preservação. Preservar é ter o
entendimento da importância do objeto para a construção da sociedade. E pensar
em sociedade é pensar em inserção. É perceber que tudo acontece a partir de uma
interação pessoal e se perceber agente ativo da História.
A aplicação de um método dialético que visa a desenvolver no aluno um olhar
crítico sobre a sociedade é de suma importância para a formação do cidadão e
está em perfeita consonância com os Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino
Médio e com a Lei 9.394, Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, de 20
de dezembro de 1996. Em diversos momentos, a LDB ressalta que a educação, de

136 art uerj III semana de pesquisa em artes


uma forma geral, deve ter por finalidade “o pleno desenvolvimento do educando,
seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho” (LDB,
artigo 2). Especificamente, a lei determina que o ensino médio seja o momento em
que deverá ocorrer “o aprimoramento do educando como pessoa humana, incluindo
a formação ética e o desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento
crítico” (LDB, artigo 35).
Para atingir os objetivos preconizados pela lei é preciso fazer com que o aluno
reflita sobre o que está estudando e não seja apenas um receptor de informações
passadas pelo professor. Por isso a utilização do método dialético, através do qual
se acredita ser possível fazer com que ele confronte várias realidades e perceba
o quão multifacetado é o mundo em que ele vive. Privilegia-se, neste caso, uma
educação humanista, baseada em princípios estéticos, políticos e éticos, conforme
indicam as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio. Para que essas
premissas sejam verdadeiras, é necessário que o aluno aprenda a conhecer, aprenda
a fazer, aprenda a conviver e aprenda a ser, conforme estabelecem os Parâmetros
Curriculares Nacionais.
Esses preceitos podem ser facilmente observados na metodologia utilizada.
A estética da sensibilidade, por meio da qual o aluno aprende a conhecer e aprende
a fazer, está no próprio objeto de viabilização metodológica, ou seja, os quadros
de História do século XIX. Como diz o PCN, é neste momento que o aluno aprende
a conhecer o seu objeto e, ao mesmo tempo, entender um pouco mais de arte
brasileira, aliada ao aprendizado de História. Aprende também a fazer, já que ele teve
a oportunidade de aplicar a teoria junto com a prática de análise de fonte, construindo
uma História a partir desta análise. O aluno aprende a conviver, visto que ele pôde
desenvolver uma percepção outra da sociedade, mais aprofundada e mais crítica. Por
fim, utilizando esses conhecimentos, pôde formar uma identidade pessoal e coletiva,
aprendendo a ser, inserido no seu tempo e no seu espaço, a partir do estudo de
tempos e espaços do passado. Importante, portanto, é a correlação entre o tempo
passado e o tempo presente nas análises das fontes históricas.
É por meio da História Cultural que se busca, então, o caminho para uma
identidade coletiva. Entendendo a História Cultural como aquela que está ligada às

137 art uerj III semana de pesquisa em artes


práticas e representações sociais, dentro da perspectiva de que as primeiras são
geradas a partir das segundas. As práticas são as ações, as atitudes, dos indivíduos
geradas por suas representações, que são as suas crenças e interpretações.
(CHARTIER, 1990).
Para isso, é importante que as aulas sejam construídas partindo do
conhecimento que o aluno traz a partir da sua experiência de vida, da sua realidade
sócio-cultural e sua visão de mundo. O professor já não é mais entendido como
o detentor absoluto do conhecimento e este deverá surgir das intervenções dos
alunos e da forma como ele entende a realidade proposta. Ao professor cabe o
papel de mediador e orientador, dialogando e trocando conhecimento. Aprendendo e
ensinando.
É no método dialógico, proposto por Paulo Freire, que este trabalho deve
buscar referência. Carlos Rodrigues Brandão, ao tratar do método, ressalta:

Paulo Freire pensou em um método de educação construído em cima da


idéia de um diálogo entre educador e educando, onde há sempre partes
de cada um no outro [...].
Um dos pressupostos do método é a idéia de que ninguém educa
ninguém e ninguém se educa sozinho. A educação, que deve ser um ato
coletivo [...] não pode ser imposta. Porque educar é uma tarefa de trocas
entre pessoas e, se não pode ser nunca feita por um sujeito isolado [...]
não pode ser também o resultado do despejo de quem supõe que possui
todo o saber, sobre aquele que, do outro lado, foi obrigado a pensar que
não possui nenhum. (BRANDÃO, 2006, p. 21).

Com esse entendimento de processo pedagógico deve-se partir para uma educação
na qual o centro da construção do conhecimento é o aluno, que participa ativamente
com a colaboração da sua própria história.
Já a aplicação do método dialético propõe a problematização do objeto de estudo,
a partir dos diversos entendimentos que podem surgir com a sua análise. Ao fazer
uma análise pela compreensão de teses contrárias, o aluno chega ao conhecimento

138 art uerj III semana de pesquisa em artes


percebendo que a construção da História não se dá por meio de afirmações
absolutamente verdadeiras ou falsas, mas, sim, por um conjunto de múltiplas visões
possíveis acerca de um objeto. Segundo Maria Circe Bittencourt, citando o filósofo
francês Henri Lefebvre,

o método dialético atribui primazia às contradições por essas serem


inerentes ao pensamento humano e manifestarem-se em toda a parte e
a cada instante. (...) A análise, ou seja, a decomposição dos elementos
faz-se pelo ‘pró e o contra, o sim e o não’, e as contradições fornecem
a possibilidade de perceber não apenas os múltiplos aspectos, mas
também os aspectos mutáveis e antagônicos (Bittencourt, 2004, p. 231).

Segundo Vigotski, a relação entre o ser e o meio social é mediada. Isso


quer dizer que o homem se relaciona com o mundo não de forma direta, mas pela
mediação de instrumentos ou de signos. Deve-se, pois, considerar a iconografia
como um signo a ser decodificado. Desta forma, o quadro, a obra de arte, é também
o meio pelo qual a pessoa interage com o mundo.

O que não estamos em condição de compreender diretamente podemos


compreender por via indireta, através da alegoria, e toda a ação
psicológica da obra de arte pode ser integralmente resumida ao aspecto
indireto dessa via. (VIGOTSKI, 1999, p. 35).

A obra de arte é, ao mesmo tempo, meio e linguagem. O aluno a utilizará


para compreender o mundo que ela simboliza. Ao mesmo tempo, ela é a linguagem
pela qual o mundo se comunica com o aluno e ele, em algum momento de sua vida,
por meio dela, se comunicará com o mundo. Mas só o fará a partir da sua leitura e
investigação que, aqui, pretende-se crítica, dialética.
Paulo Knauss lembra que ao se instaurar o processo de investigação na
aprendizagem, elimina-se uma etapa do processo que é o de fixação. A pesquisa é uma
construção do aluno e para essa atividade não é mais necessário que se decore datas

139 art uerj III semana de pesquisa em artes


ou fatos históricos, transformando o aprendizado em um processo mais orgânico.

Considerando-se que o conhecimento é produção do próprio aluno, tudo


é fixação, ao mesmo tempo em que esta perde seu sentido. Por outro
lado, a cronologia e as biografias ganham um novo sentido, pois não é
a sua memorização que interessa, mas a sua interrogação. (KNAUSS,
2007, p. 45).

Pretende-se a aproximação do aluno com a obra, por meio de alguma mídia


eletrônica, e, posteriormente, que ele seja capaz de decodificá-la para entender os
processos históricos. Para Walter Benjamin, é como que retirar a aura da obra de arte
para que ela possa estar cada vez mais próxima de seus observadores. Benjamin
diz que a partir da possibilidade da reprodução técnica da obra de arte, várias
possibilidades estão abertas aos olhos humanos. Pode-se ampliá-la, destacar uma
parte, ressaltar outra. (BENJAMIN, 1994).
Deve-se tomar o cuidado, entretanto, para que a obra de arte não se
transforme em objeto fatal contra a realidade. Arte e realidade são dimensões
distintas e é importante ter em mente a liberdade de representações que a arte pode
dar para a realidade. Segundo Vigotski,

a obra de arte nunca reflete a realidade e toda a sua plenitude e verdade


real mas é um produto sumamente complexo da elaboração dos
elementos da realidade, de incorporação a essa realidade de uma série
de elementos inteiramente estranhos a ela. (VIGOTSKI, 2004, p. 329).

Além disso, a utilização da arte no ensino de História acaba por sensibilizar


o olhar, a vida, dos alunos, a partir da sua observação e entendimento da mesma.
Mais uma vez é Vigotski quem nos chama a atenção para este fato. Ele diz que o
contato com um quadro, por exemplo, pressupõe a existência de três momentos:
a estimulação, que é o primeiro contato, no caso, visual; a elaboração, que é a
interpretação física que o espectador faz do quadro, ou seja, a identificação de que

140 art uerj III semana de pesquisa em artes


aquelas linhas e tintas formam uma paisagem; e a resposta. Esta última é a que faz a
aproximação ou não do aluno em relação ao objeto. Vigotski explica que

há muito tempo os psicólogos vêm dizendo que todo o conteúdo e os


sentimentos que relacionamos com o objeto da arte não estão contidos
nela, mas são por nós incorporados, como que projetados nas imagens
da arte, e os psicólogos denominaram empatia o próprio processo
de percepção. Essa complexa atividade da empatia consiste num
reatamento de uma série de reações internas, da sua coordenação
vinculada e em certa elaboração criadora do objeto. Essa atividade é o
que constitui o dinamismo estético básico que, por sua natureza, é um
dinamismo do organismo que reage a um estímulo externo (VIGOTSKI,
2004, p. 330).

A proposta de estruturação das aulas dá-se, primeiramente, apresentando os


quadros, fazendo uma breve explicação sobre o que eram os quadros de história e
também sobre a arte brasileira do século XIX. Os alunos passam a analisar a obra,
neste caso valorizando o conhecimento que eles trazem a partir suas vivências. Vale,
então, analisar os aspectos externos, como dimensões, formato, cores utilizadas,
nitidez da imagem, passando pelos juízos de valores, como a beleza dos desenhos,
e, principalmente, aqueles aspectos, que chamo de internos, que trazem à tona a
informação que o quadro passa para o grupo de alunos. Ou seja, o que ele “enxerga”
no quadro como meio de informação; que fato da História está sendo retratado
e assim por diante. Cabe ao professor, então, ministrar a sua aula com o auxílio
da imagem e a ajuda dos alunos. As informações preliminares passadas por eles
servirão de base para a aula, pois a partir dela, o professor deverá construir o fato,
utilizando-as como hipóteses para a formação do assunto tratado. Ao final da aula,
os alunos deverão construir um material apontando as incoerências das imagens
estudadas em confronto com o que foi visto em sala de aula junto com o professor.
Pretende-se, dessa forma, chegar a uma construção do conhecimento no seu
sentido mais literal. Como explica Ubiratan Rocha,

141 art uerj III semana de pesquisa em artes


a aprendizagem é um processo em que um sujeito assume,
invariavelmente, uma postura ativa diante do objeto que deseja
apreender, mesmo que o sujeito não tenha plena consciência disso.
É necessário que ele desmonte e torne a montar o objeto, não
necessariamente obtendo o mesmo produto final. Ao se isolar as partes
que compõem o todo, novas combinações podem ser produzidas,
criando-se as possibilidades para as emergências do novo. O
conhecimento é adquirido, desse modo, por meio da ação do sujeito
sobre o objeto que se dá a conhecer. O conhecimento histórico não foge
à regra. Ele segue este mesmo padrão de aprendizagem. (ROCHA,
2007, p. 63).

Como avaliação será solicitado aos alunos que criem uma nova obra de arte,
de livre expressão, desde que envolva imagens. Elas devem representar algum fato
que esteja acontecendo no Brasil ou no Mundo atual. Algum fato que esteja presente
nas páginas dos jornais. Os trabalhos deverão ser apresentados à turma e, da
mesma forma que os quadros do século XIX foram desconstruídos durante a aula,
essas obras produzidas pelos grupos também o serão. Assim, conclui-se o ciclo que
formará a ideia de que a arte é a representação do fato e não ele próprio.
Essa metodologia que busca a utilização da criatividade visa a sublimação
de uma energia latente que não é utilizada em atividades normais do organismo.
Segundo Vigotski,

[...] a criação é a necessidade mais profunda do nosso psiquismo em


termos de sublimação de algumas espécies inferiores de energia. A
mais verossímil na psicologia moderna é a concepção da criação como
sublimação, ou seja, como transformação das modalidades inferiores de
energia psíquica, que não foram utilizadas nem encontraram vazão na
atividade normal do organismo, em modalidades superiores. (VIGOTSKI,
2004, p. 337).

142 art uerj III semana de pesquisa em artes


Vigotski é categórico em afirmar uma espécie de salvação pela utilização
da criatividade na construção de uma obra de arte. Ele explica que a não
utilização dessa energia excedente acaba se transformando em formas anormais
de comportamento, psicoses, que “não significam outra coisa senão o conflito
da aspiração subconsciente não realizada com a parte consciente do nosso
comportamento” (VIGOTSKI, 2004, p. 338). Para ele,

o que fica sem realização em nossa vida deve ser sublimado. Para o
que não se realiza na vida existem apenas duas saídas: a sublimação
ou a neurose. Assim, do ponto de vista psicológico a arte constitui
um mecanismo biológico permanente e necessário de superação de
excitações não realizadas na vida e é um acompanhante absolutamente
inevitável da existência humana nessa ou naquela forma. (Idem, 2004, p.
338).

Os quadros de História do século XIX prestaram-se ao serviço de descortinar


uma outra História, aquela que não foi contada, aquela que o artista, em sua
licença poética, preferiu colorir com toques de imaginação, borrões de criatividade e
pinceladas de luz e sombras.
Ao perceber a construção do artista, o aluno reconstrói o seu pensar e a sua
visão de mundo. Reconstrói também o seu entendimento de História e passa a
reconstruir a sua própria. Reconstrói a leitura da sua vida e a da sociedade na qual
ele está inserido. Percebe os melindres por trás do fato, identifica os meandros dos
acontecimentos e toma consciência de que para se posicionar no tempo e no espaço,
com pleno entendimento da contemporaneidade, ele deve ter visão crítica. O aluno,
ao passo que aprende a ler a obra, passa a ler a vida.
Com uma metodologia que também privilegia a construção de outra obra
artística, o aluno põe em prática o próprio ato de moldar o Mundo como ele o
enxerga, e, assim, compreender que também é artífice de uma produção repleta de
subjetividade e que poderá, e deverá, fazer parte da leitura crítica de tantas outras
pessoas, alunos ou não.

143 art uerj III semana de pesquisa em artes


Se para Vigotski a arte é libertadora de processos psíquicos neurotizantes
(VIGOTSKI, 2004), entendê-la é libertar-se das amarras alienadoras de tantas
imagens geradas no mundo contemporâneo. É neste sentido que segue o trabalho.
Desvelar a História trazendo ao aluno a compreensão de que ele, nela está inserido.

Referências Bibliográficas
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. (Obras
escolhidas) 7. ed. 1 v, São Paulo: Brasiliense, 1994.
BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Ensino de História: fundamentos e métodos. 1. ed. São Paulo:
Cortez, 2005.
BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O que é método Paulo Freire. Coleção Primeiros Passos; n. 38. 1. ed. São
Paulo: Braziliense, 2006.
BURKE, Peter. O que é história cultural? 1. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005.
CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,
1990.
COLI, Jorge. Como estudar a arte brasileira do século XIX? (Série Livre Pensar) 1. ed. São Paulo:
SENAC, 2005.
______. Introdução à pintura de História. In: MUSEU HISTÓRICO NACIONAL, 2007, Rio de Janeiro, Anais
do Museu Histórico Nacional. Rio de Janeiro: Museu Histórico Nacional, 2007, 39 v.
FAUSTO, Boris. História concisa do Brasil. 2. ed. São Paulo: EDUSP, 2006.
KNAUSS, Paulo. Sobre a norma e o óbvio: a sala de aula como lugar de pesquisa. In: NIKITIUK, Sônia
L. (Org.). Repensando o ensino de história. Coleção questões da nossa época; v. 52. 6. ed. São Paulo:
Cortez, 2007.
ROCHA, Ubiratan. Reconstruindo a História a partir do imaginário do aluno. In: NIKITIUK, Sônia L. (Org.).
Repensando o ensino de história. Coleção questões da nossa época; v. 52. 6. ed. São Paulo: Cortez,
2007.
SCHWARCS, Lilia Moritz. As barbas do imperador: D. Pedro II, um monarca nos trópicos. 2. ed. São
Paulo: Cia da Letras, 2006.
VIGOTSKI, L. S. Psicologia da arte. 1. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
______. Psicologia pedagógica. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Lei no. 9.394, de 20 de dezembro de 1996.
Disponível em: http://portal.mec.gov.br/arquivos/pdf/ldb.pdf. Acessado em 19 de outubro de 2008.
BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais do ensino médio. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/
seb/arquivos/pdf/cienciah.pdf. Acessado em 19 de outubro de 2008.
Conhecendo o ensino médio. Pesquisa de campo realizada pelos alunos da turma 340 para a disciplina
CSO 922 – Estágio II. Rio de Janeiro, 2008.

144 art uerj III semana de pesquisa em artes


III semana de pesquisa em artes
10 a 13 de novembro de 2009 art uerj
ensino de arte e cultura

“Paixão pela nossa cor”: o Mineiro-pau e a Educação Física

Bruno Rodolfo Martins

Especialização em História da África e da Diáspora Africana no Brasil – FIS

A partir da lei 11.645 procurou-se numa escola evidenciar as marcas africanas na cultura
brasileira, trabalhando com turmas de ensino fundamental aspectos artísticos destas
influências. Na disciplina Educação Física trabalhamos noções de cultura e vivências com
tradições populares. Já neste artigo tratamos de algumas tendências pedagógicas da área, as
tradições populares como objetos de estudo, aproveitando para avaliar a aplicação da lei e as
questões que surgiram na realização da proposta.

Escola; educação física; tradições e culturas populares.

Based on the Law 11.645, there has been an effort to find evidences of the African presence in
the Brazilian Culture, through working side by side with Fundamental Level students on artistic
aspects influenced by this presence. In the course of Physical Education have been subject of
study notions of Culture and experiences with popular traditions. In this article, will be presented
some pedagogical trends of that matter, having the popular traditions as the main subject while
addressing the refered law impacts and the questions that have arisen during the mentioned
work.

School; Physical Education; popular traditions.

Introdução
Desde 2008 alguns professores do Colégio Estadual Duque de Caxias, em
Duque de Caxias/RJ vinham pensando no desenvolvimento das questões referentes
à lei 10.639, ratificada pela 11.645, alterando a LDB de 1996 e incluindo no currículo
oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-

145
Brasileira e Indígena”.1 Já em 2009, no planejamento no começo de ano algumas
idéias tomaram a forma de um evento na escola, que fora intitulado “Paixão pela
nossa cor”, enquanto culminância de trabalhos realizados no segundo bimestre.
Primeiramente foi combinado com o turno da tarde (7º, 8º e 9º anos do ensino
fundamental), mas depois o turno da manhã (6º ano e ensino médio) aderiu. Para
cada turma, um professor ficou responsável por trabalhar questões de cultura africana
e afro-descendente (em especial) através da especificidade de cada disciplina.
Neste artigo estaremos relatando a nossa experiência e nossa percepção do
andamento do projeto, assim como sua culminância, sob a ótica de um professor de
Educação Física.

Por uma “valorização” da Educação Física


Antes de aprofundar as questões do projeto e a participação desta disciplina
faz-se necessário identificar certas posições que a Educação Física tem tido nas
escolas brasileiras, públicas, e em especial neste colégio estadual.
Desde a década de 1960, passando pela ditadura militar em nosso país,
existe uma grande campanha em prol das manifestações esportivas. Num primeiro
momento, é justamente pela “valorização” da Educação Física que “questionam-se os
velhos métodos ginásticos, militaristas, e propõe-se a sua esportivização”, conforme
expõe José Finocchio.2 Hoje, ainda se confunde as duas áreas – a educação física
e o esporte – como se fossem a mesma coisa ou no mínimo, partes de um mesmo
todo. Há certa colaboração para a sustentação deste quadro por campanhas
em muitas frentes (por exemplo, pela “mídia”, sistema CREF/CONFEF, governo,
programa sociais de “inclusão” etc., assim como os próprios professores da área),
esboçando uma necessidade vital de se praticar algum “esporte”. Ciente da forte
influência que o “esporte” exerce sobre a Educação Física – esta tem proporcionado
quase uma exclusividade destas manifestações no meio escolar. Mesmo depois
de um marco na área, o livro de autoria do Coletivo de Autores3, ainda é comum
professores sendo formados numa tendência esportivista, e muitas vezes quando
no exercício do magistério, desenvolvendo aulas somente com esse foco.4 Enquanto
agravante, muitos desses professores (acomodados) têm “dado a bola”, ou seja, têm

146 art uerj III semana de pesquisa em artes


feito das aulas de Educação Física Escolar uma recreação, em que, repetidamente,
ao longo dos anos dos segmentos e séries, as aulas ficassem reduzidas a futebol
para os meninos e queimado para as meninas. Se fosse possível enquadrar estas
atitudes em alguma tendência pedagógica, poderíamos chamá-la ironicamente de
“tendência bolística”, pois até o corpo discente não reconhece outros conteúdos e
estilos de aula como “da Educação Física”... principalmente se não existe a bola em
meio às aulas (aulas?). Este é um ponto que permanentemente enfrentamos.
Um segundo ponto seria um possível dilema existente na academia sobre
o uso de tradições populares como instrumento pedagógico, que normalmente é
visto como “folclore”, algo “exótico” e que perpassa por um ensino tradicional e
informal. O não-reconhecimento de si mesmo (tanto estudantes como professores)
nas manifestações culturais afro-descendentes é visível, palpável e passível de
ser problematizado nas escolas. É comum tais culturas serem tratadas só em
datas e épocas comemorativas, como se fossem algo bem distante, material e
temporalmente, servindo estes momentos para “relembrar como as coisas eram”
(como se estas “coisas” não fossem presentes).
E quando estudar tais culturas se faz de forma acadêmica, em uma escola, e
no nosso caso, em aulas de Educação Física – emerge prontamente uma boa parte
de resistência diante deste novo. Resistências estudantis: “Por que estamos fazendo
isso nesta aula?”, “o que educação física tem a ver com isso?”, “quero jogar bola, não
quero saber disso não!”.
Vimos com isso o quanto a concepção de escola marginaliza as identidades
negras. E quando isso parte do corpo docente, especialmente? Arísia Barros explicita
isso:

“Uma das características básicas do currículo escolar é a flexibilidade,


entretanto, quando a temática é a negra o verbo mais conjugado é o
resistir. Resistir sistematicamente aos preconceitos adquiridos em um
processo de má informação e da má formação sobre a África. [...] O
corpo organizacional da escola (gestão, professoras e professores)
justifica a resistência com alegações diversas. Desde o receio de não ter

147 art uerj III semana de pesquisa em artes


informações para aprofundar o assunto, com desculpas pueris como ‘na
escola não há alunos/alunas negras... portanto não tem porque trabalhar
isso’.”5

Afinal, “o que é Educação Física?” e “por que estamos aqui (na escola)?”
Em sala de aula desenvolvemos as possíveis respostas destas perguntas
(perguntas que foram feitas nos primeiros dias de aula e não foram respondidas
pelas turmas; quando sim, de forma reducionista, por exemplo: “é esporte” ou “é
recreação”!?), com o propósito de expor as turmas para a amplitude da área e as
formas que estas aulas podem tomar. Partindo delas, foram debatidas noções básicas
de cultura e natureza, características dos seres humanos (capacidade de aprender
peculiar, capacidade de reflexão, por exemplo) e seus aspectos biológicos e culturais,
formas de aprendizado, ensino formal e não-formal, pequena história da instituição
escolar e a noção de disciplinas, e uma mostra dos possíveis objetos de estudo da
Educação Física.
Com relação à área, decidimos adotar, por questões didáticas, a noção de
culturas corporais de movimento e/ou culturas de movimento; estas noções estão
problematizadas por Jocimar Daolio em “Educação Física e o conceito de cultura”.6

O caso: “mas professor, por que a gente ta fazendo isso...?”


Esta pergunta, que traduz certo estranhamento por parte de estudantes durante
as aulas em quadra, demonstra o quanto foi “trabalhoso” propor vivências corporais
desconhecidas pelas turmas. Mesmo levantando debates em aula sobre a disciplina
e os motivos de sua existência numa escola, ou provocando um reconhecimento de
suas “práticas” atuais e de suas vidas escolares.
A escolha do Mineiro-pau7 se deu pela eminência do projeto, pelo raso
domínio possuído pelo professor sobre esta manifestação, pela disponibilidade de
material (cabos de vassoura e rádio, áudios e apostilas), pela ausência de bola e
de desportos, pelo desafio à atenção e concentração que as turmas carecem, pela
oportunidade de romper com esteriótipos da área (para citar alguns motivos).8
A maior provocação, no entanto, foi o fato de ser uma tradição, algo que

148 art uerj III semana de pesquisa em artes


não se trabalha criticamente nem de forma ordinária na escola. Uma tradição que
poderíamos dizer “afro-descendente” que traria e trouxe à tona questões clássicas de
preconceitos – algumas vezes entendidos e rompidos, outras vezes sustentados ou
simplesmente ignorados pelas turmas. Muitas vezes havia um boicote de estudantes:
ora por que queriam jogar suas bolas, ora por que não estavam disponíveis para
aquilo (por vergonha, preguiça e até por doutrinas religiosas).

Paixão pela nossa cor: reflexões sobre a aplicação da lei


Durante todo o bimestre tivemos algumas reuniões com os professores, mas
nem todos puderam participar. As discussões comuns eram: como aconteceria
o evento e o que seria apresentado. Em geral, nem entre os professores nem
entre as turmas houve um debate consistente acerca dos conhecimentos que a lei
sugere, o que provocaria o levantamento de temas como preconceito racial e social,
discriminação e racismo, diversidade cultural, respeito mútuo, entre tantos outros
como o conhecimento das histórias (e) do continente africano, de seus povos e de
suas culturas adaptadas no Novo Mundo.
Apesar da maior parte das turmas poder ser considerada majoritariamente
“afro-descendente” em algum nível, a identificação com as tarefas durante o bimestre
e com aquelas artes que estavam sendo divulgadas pelo dia do evento, com suas
“africanidades”, era mínima. Para muitos estudantes todo o projeto servira só como
um trabalho, com suas respectivas notas; as discussões que poderiam ter sido eleitas
entre os professores e entre as turmas não aconteceram. A intenção original, que era
usar a lei como respaldo para debates e tomadas de consciência sobre tantos temas,
ficou no papel.
No entanto, pela perspectiva da Educação Física, podemos avaliar
positivamente uns elementos: (1) serviu como incentivo aos professores da área
que enfrentam cotidianamente a resistência a novos conteúdos, a metodologias,
diante daquelas turmas que buscam o “mais do mesmo” (futebol e queimado),
pouco disponíveis para outros aprendizados; (2) serviu também como incentivo para
professores de outras áreas, que vêem empecilhos em trabalhos anormais com
toda turma, o que muitas vezes justifica a manutenção das situações que vivemos

149 art uerj III semana de pesquisa em artes


dentro da escola – ou seja, muitas vezes a resistência ao novo faz parte do quadro
do magistério, antes mesmo de fazer parte da molecada;9 (3) demonstrou para toda
escola que é possível trabalhar com muitos outros aspectos da atividade física,
expandindo o vivido corporal das turmas com gestuais de diversas manifestações
da cultura corporal, em especial, brasileira; (4) pela escolha do Mineiro-pau
podemos perceber o quão necessário é este trabalho em torno das questões da
lei – em se tratando de uma arte “afro” e de termos trabalhado enfaticamente com
sua música, rapidamente preconceitos e repúdios, e boicotes à participação da
aula foram praticados. E muitas vezes os professores não são/estão preparados
para debater tais questões, fugindo de discussões “polêmicas” ou simplesmente
nem tratando da temática; (5) e mostra que existem intenções e trabalhos sendo
produzidos, apesar de os PCNs da área desconhecerem “completamente a existência
dos afrodescendentes, das populações negras, na história e no cotidiano da vida
nacional.” 10

Provocações e emergências: “mas... isso é macumba?”


Pelas experiências que temos tido, qualquer manifestação “afro” que
decidamos trabalhar, que tenha gestos valorizando o baixo corporal (movimentos
com quadril e pernas, pisadas, indicações de movimentos para baixo, para a terra) e
musicalidade através de cantos e instrumentos de percussão, é considerada quase
que caricaturalmente como macumba. Ao indagar as turmas sobre o que é macumba,
muitas vezes não há uma resposta. Quando há, aponta generalizações para várias
manifestações do tipo “afro”, mas normalmente as “religiões de matriz africana”.
Com isso, podemos aproveitar o momento e problematizar diversos assuntos,
correlacionados com a lei, seja a 10.639 ou a 11.645. Investindo nesta aplicabilidade,
“o organismo escolar promove o diálogo entre os diversos atores e atrizes do
processo, paralelamente produz a argamassa necessária para a moldagem, para a
construção coletiva e dialogada de uma pedagogia capaz de superar as limitantes
idéias racistas”. 11 No geral, duvidamos que isso tenha acontecido no projeto Paixão
pela nossa cor. Chamamos a atenção para alguns temas em especial, como
preconceito e discriminação étnico-racial, social e/ou religiosa. No entanto, não se

150 art uerj III semana de pesquisa em artes


pode simplesmente discutir com as turmas, é preciso fazê-lo entre todos os agentes
escolares, principalmente entre professores. A maioria carrega consigo deficiências
em suas formações acadêmicas e sociais, acarretando na reprodução e manutenção
destes preconceitos e discriminações. Conforme Nilma Lino Gomes escreve:

“No caso específico da educação escolar, ao tentarmos compreender,


debater e problematizar a cultura negra, não podemos desconsiderar
a existência do racismo e da desigualdade entre negros e brancos
em nossa sociedade. Por quê? Porque ao fazermos tal ponderação
inevitavelmente nos afastaremos das práticas educativas que, ao
tentarem destacar essa cultura no interior da escola ou no discurso
pedagógico, ainda a colocam no lugar do exótico e do folclore.” (p.77) 12

Parece que, mais uma vez, os debates sobre “nossa cor” ficaram no âmbito
dos planos. As exposições artísticas, que foram trabalhadas em todas as disciplinas
participantes, poderiam ter provocado as questões sugeridas pelas leis, mas ficaram
reduzidas a um trabalho acrítico “valendo nota”.

Notas
1 BRASIL. Presidência da República/Casa Civil. Lei n.10.639, de 9 de janeiro de 2003. disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/2003/L10.639.htm acesso em: 25 de agosto de 2009; BRASIL.
Presidência da República/Casa Civil. Lei n.11.645, de 10 de março de 2008. disponível em: http://www.
planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2008/Lei/L11645.html acesso em: 25 de agosto de 2009.
2 FINOCCHIO, José Luiz. A educação física no Brasil. In: CONGRESSO SUL-MATO-GROSSENSE
DE ATIVIDADE FÍSICA, 4., 2001. Campo Grande. Educação, saúde, cultura: educação física, educação
e sociedade. Anais... Campo Grande: Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, 2001. p. 28-33.
disponível em: http://www.boletimef.org/biblioteca/663/A-educacao-fisica-no-Brasil acesso em: 25 de agosto
de 2009.
3 COLETIVO DE AUTORES. Metodologia do ensino de educação física. São Paulo: Cortez, 1992.
4 Para uma breve análise de caso, ver o artigo de: VILAÇA, Murilo Mariano; MARQUES, Gabriel
Rodrigues Daumas. Educação Física desportivista: considerações críticas à prática, predominantemente
vigente, de Educação Física escolar. In: ENCONTRO FLUMINENSE DE EDUCAÇÃO FÍSICA ESCOLAR,
10., 2006, Niterói. Lazer e Educação Física escolar. Anais... Niterói: Departamento de Educação Física e
Desportos, Universidade Federal Fluminense, 2006.
disponível em: http://www.boletimef.org/biblioteca/1730/Consideracoes-criticas-a-pratica-predominante-de-

151 art uerj III semana de pesquisa em artes


Educacao-Fisica-escolar acesso em: 25 de agosto de 2009.
5 BARROS, Arísia. O Brasil não quer ser africano: preconceitos e impressões dificultam a
educação cidadã em Alagoas e no país. Disponível em: http://www.overmundo.com.br/blogs/o-brasil-nao-
quer-ser-africano Acesso em: 13 de maio de 2008.
6 DAOLIO, Jocimar. Educação Física e o conceito de cultura. Campinas, SP; Autores Associados,
2004.
7 O Mineiro-pau é uma manifestação cultural de algumas cidades do interior do Estado do Rio de
Janeiro. Nossa referência básica foi o Mineiro-pau da cidade de Santo Antônio de Pádua. Realiza-se em
festas, com músicas próprias para a marcação de danças com bastões, exigindo não só ritmo mas também
muita atenção, coordenação e cumplicidade com as outras pessoas dançadoras.
8 Outros materiais de apoio: COMPANHIA FOLCLÓRICA DO RIO. Apostila de Danças e Folguedos
Brasileiros. 2ª ed. DAC/EEFD/UFRJ. Setembro de 2000. Discos produzidos pela COMPANHIA
FOLCLÓRICA DO RIO. Folclore Brasileiro: Danças e Folguedos (CDs 1 e 2), 2000.
9 Expressão “afro-descendente”, adaptada de muleke, vinda possivelmente da língua quimbundo
presente em várias etnias “angolanas”, designando a população jovem.
10 CUNHA JR., Henrique. A inclusão da história africana no tempo dos parâmetros curriculares
nacionais. In: CNTE. A cultura negra no currículo escolar. Cadernos de Educação. (biênio 97-99) p.17
11 BARROS, Arísia. O Brasil não quer ser africano: preconceitos e impressões dificultam a
educação cidadã em Alagoas e no país...
12 GOMES, Nilma Lino. Cultura negra e educação. Revista Brasileira de Educação. n.23, maio/jun/jul/
ago, 2003. p.75-85

152 art uerj III semana de pesquisa em artes


III semana de pesquisa em artes
10 a 13 de novembro de 2009 art uerj
ensino de arte e cultura

O Choro que se aprende no colégio: a formação de chorões na Escola


Portátil de Música do Rio de Janeiro

Carolina Gonçalves Alves

PPCIS – UERJ

Este trabalho tem como objetivo refletir sobre a formação de chorões na Escola Portátil
de Música (RJ). Pretende-se discutir questões relacionadas à formação do chorão e às
implicações que esse tipo de aprendizado estabelece. A Escola deve ser pensada como um
espaço formador a partir do qual compartilham-se gostos, apreendem-se regras e formam-se
redes de relações.

Música; Sociabilidade; Comportamento.

The aim of this study was analyze the formation of choro musicians in the Escola Portátil de
Música (EPM) of Rio de Janeiro. In this project of musical formation, which brings together
students interested in choro, we can see how the musicians share certain tastes and
preferences and how they undergo certain rules on how to play. The use of the skin tambourine
is one of the rules that increase the strengthening of the group. These rules, which are passed
by a group of teachers, directly or indirectly, to their students are captured and incorporated
to the daily of the School, strengthening the group identity. In short this work arises from the
attempt to evaluate the universe of rules that appears in the EPM, taking into account the
statement of identity from the difference.

Music; Sociability; Behavior.

Este trabalho tem a finalidade de analisar a formação de chorões na Escola


Portátil de Música do Rio de Janeiro1. A partir desse projeto, que reúne alunos
interessados pelo choro, é possível perceber a formação de um chorão que
compartilha gostos e que se submete a determinadas regras quanto à forma de tocar.
153
A partir de situações surgidas nas aulas de pandeiro, é possível apreender algumas
regras na formação do pandeirista do choro que o distinguem dos pandeiristas
de samba, por exemplo. Este trabalho pretende analisar um universo de regras
que se formula em torno do “tocar pandeiro”, com o propósito de pensar questões
relacionadas à formação do chorão na Escola e às implicações que esse tipo de
aprendizado estabelece. O uso do pandeiro de couro pelos alunos tem se mostrado
um aspecto interessante para analisar questões em torno do choro que se aprende
na escola, a formulação de suas regras, o fortalecimento do grupo e o distanciamento
de outros grupos que não tem a mesma formação. O uso do pandeiro de couro pelos
alunos da escola será observado em seu aspecto alegórico, ou seja, o pandeiro
de couro como um elemento simbólico, a partir do qual se estabelecem regras
que corroboram para o fortalecimento do grupo. Com a finalidade de analisar esse
universo de regras recorro à obra de Pierre Bourdieu. Em sua obra “A Distinção:
crítica social do julgamento”, o autor faz uma tentativa de examinar o gosto não como
uma característica individual, mas como algo que se estabelece coletivamente. Essas
escolhas são pautadas na classe social e na trajetória social de cada indivíduo.

“O gosto, propensão e aptidão à apropriação (material e/ou simbólica)


de uma determinada categoria de objetos ou práticas classificadas e
classificadoras, é a fórmula generalizada que está no princípio do estilo
de vida. O estilo de vida é um conjunto unitário de preferências distintivas
que exprimem, na lógica específica de cada um dos subespaços
simbólicos – mobiliário, vestuário, linguagem ou hexis corporal – a
mesma intenção expressiva.” (BOURDIEU, 2007, p. 165).

O poder a partir do qual o gosto se impõe é definido para além do poder


econômico como sinaliza Bourdieu, estando relacionado a outros determinantes.
Nesse contexto a dimensão cultural ganha importância substantiva. È nesse sentido
que Bourdieu introduz o conceito de habitus, princípio gerador e estruturador das
práticas sociais. A grande questão analisada por Bourdieu é, portanto refletir sobre o
fato de que o que segmenta o indivíduo em classes não é simplesmente seu poder

154 art uerj III semana de pesquisa em artes


econômico, mas o gosto que se compartilha e como ele mesmo apresenta, o prazer
pela simetria.
No caso da Escola Portátil de Música, percebe-se o domínio de um gosto muito
específico na formação do chorão, que ao ser vivenciado pelos sujeitos fortalece a
identidade do grupo. Abordarei nesse trabalho situações cotidianas, surgidas em
meu trabalho de campo na EPM, mais especificamente nas aulas de pandeiro, que
despertaram a atenção para esse universo de regras que se definem.
Motivada em compreender o choro que se faz atualmente na cidade do Rio,
me aproximei do projeto da Escola Portátil de Música, com a intenção de traçar o
perfil do chorão que circula pela cidade do Rio de Janeiro. No entanto, o trabalho
e a vivencia no campo redirecionaram meu olhar sobre o objeto de análise. Aos
poucos fui observando que tão interessante quanto descobrir quem era esse chorão
(seu lugar de moradia, perfil econômico e social, etc.), era compreender que tipo
de códigos estavam sendo compartilhados naquele ambiente. Mais interessante do
que perceber as motivações individuais que aproximavam do choro, era perceber as
ações coletivas que faziam parte da formação do chorão.
A fim de observar melhor a formação do chorão e as motivações de suas
escolhas pelo aprendizado do choro, matriculei-me na Escola Portátil de Música, no
curso de pandeiro. Dessa forma, neste trabalho irei concentrar minha análise sobre as
aulas de pandeiro e as questões percebidas ao longo do trabalho de campo realizado
no período de março a dezembro de 2008.
Aos poucos fui penetrando o universo da escola, com a intenção de decifrar
os códigos que se estabeleciam ao longo da formação musical do aluno de choro.
Nesse sentido recorro, às observações realizadas em sala de aula e àquelas que
se estabeleceram para além dos limites da sala de aula, na conversa com alunos
pelo pátio e pelos corredores da escola. A importância do uso do pandeiro de couro
foi percebida logo nos primeiros encontros, tendo sido os alunos em sua maioria
coagidos a comprar o pandeiro desse material, não somente porque o uso do
pandeiro de couro é obrigatório na escola, por uma questão histórica do choro e do
som que se pretende, como também porque o pandeiro de couro é a regra primordial
para a entrada no mundo do choro. Tentarei analisar aqui a importância do pandeiro

155 art uerj III semana de pesquisa em artes


de couro e os cuidados que no decorrer do curso os alunos teriam que incorporar se
quisessem se tornar pandeiristas de choro. É nesse sentido que recorro à análise
da diferenciação entre os pandeiros em seu aspecto alegórico, ou seja, para além
do material com que são confeccionados. Nesse sentido o pandeiro de couro se
diferencia dos de material sintético, não só pelo som que se tira de cada um deles,
mas também por representar formas de agir, de tocar que formulam uma noção de
grupo muito particular e que se fortalece na medida em que os membros do grupo
dominam essas regras. Discorro sobre algumas situações surgidas em campo, a fim
de elucidar de que forma essas regras se estabelecem.
Em aula do dia 17/05/08 o professor chama atenção dos alunos para que
tivessem cuidado com a postura e com a forma de segurar o pandeiro. A forma de
segurar pandeiro é muito importante para os alunos da escola. Em diversas aulas
esse assunto foi retomado, o que nos faz perceber a grande importância que essa
ação tem na formação do pandeirista de choro. Em uma das aulas, um professor
chama atenção para o fato de que o aluno que não respeitasse essa regra estaria se
assemelhando a um “pandeirista de boteco”, que segundo ele, toca com o pandeiro
baixo entre as pernas, fazendo som para as formigas. A forma correta de se portar
na aula de pandeiro é sentando na ponta da cadeira com a coluna reta e os pés
apoiados no chão. Nesse sentido, podemos perceber que forma de tocar ganha um
significado muito particular para os alunos da escola e é cobrada a todo o momento.
Em algumas turmas o professor passa diversas aulas ensinando e revendo a posição
de segurar o pandeiro e o lugar onde se deve bater para tirar o som correto do couro.
Em outro caso presenciado na sala de aula o professor ao ensinar um dos
toques do pandeiro, faz uma diferença da batida do choro em relação à batida do
pagode. Ao questionar o professor sobre essa diferença, obtenho a seguinte resposta:
“Você pode tocar de qualquer jeito, mas nós tocamos assim. Nós tocamos diferente!” 2.
De acordo com um dos alunos da aula de cavaquinho uma das professoras
da escola chama muita atenção para o fato de o samba ter perdido sua “essência”,
quando os sambistas deixaram de ser acompanhado pelos chorões. Esse mesmo
aluno chamou atenção para o fato de que na escola os sambistas e chorões não
gostam de ser chamados de pagodeiros e se fizer barulho com o pandeiro, ou

156 art uerj III semana de pesquisa em artes


qualquer outro instrumento de percussão, o aluno é chamado atenção, e nas palavras
dele “toma-lhe esporro e olho torto”. Ao escapulir, ou fugir à regra, o aluno recebe
uma sansão moral dos professores.
Ainda nos encontros da aula de pandeiro o professor cobrou dos alunos
mais empenho e estudo. Algumas vezes os alunos foram questionados se estavam
realmente estudando e se dedicando ao instrumento. Nessa aula ao revisar a
forma que cada aluno tocava o professor não ficou satisfeito e colocou a todos em
recuperação. Não uma recuperação formal, mas uma revisão geral da forma de tocar
de cada aluno. Nesse encontro observou-se a postura dos alunos, a forma de segurar
o pandeiro e como cada aluno o fazia individualmente. Cobrou-se empenho e estudo.
E ao constatar que os alunos não estavam dedicando horas necessárias ao estudo,
o professor fez com que a turma retomasse os ensinamentos básicos do pandeiro:
como segurar, treinar o lugar correto para tirar o som, a postura correta, a posição do
braço. Ouviu-se aluno por aluno para que fosse possível acompanhar o desempenho
individual de cada um.
A crítica do professor era a de que os alunos estavam tocando muito reto,
estavam se preocupando em fazer o movimento e não se preocupando com o som.
A preocupação com a técnica era maior que a preocupação com o som. Nesse
momento da aula o professor chamou atenção para a noção de intenção, que pode
ser pensada como algo da ordem do sentimento, como uma forma mais intuitiva
de tocar. A intenção é responsável por um som mais cadenciado. Há, portanto uma
preocupação com o domínio da técnica que, no entanto esteja conjugada com uma
intenção de tocar. Além de querer tocar o aluno é bastante incentivado a gostar de
tocar. Nesse sentido, o domínio da técnica, não se afasta de uma noção de tocar com
sentimento, de tocar por prazer. A emoção não é abandonada, ou seja, o domínio da
técnica deve estar combinado com essa intenção. A ênfase no aprimoramento do
prazer no ato de tocar pandeiro tem como ponto máximo a frase do professor: “Tá
faltando tocar!”. O incentivo do professor para o aprimoramento da técnica dos alunos
é mais um dos elos que corroboram para o fortalecimento do grupo.
Em outra ocasião uma das alunas da escola relatou uma situação ocorrida no
IV Festival de Choro de 2008. O festival se realizou em um Hotel Fazenda na cidade

157 art uerj III semana de pesquisa em artes


de São Paulo. Naquela ocasião depois do dia de cursos e dedicação ao choro, os
alunos e alguns professores da escola, ao anoitecer, pegaram seus instrumentos,
fizeram um samba enredo sobre a escola e saíram pelo hotel em desfile. Tendo visto
aquela algazarra um dos professores fundadores da escola chamou a atenção de
todos com a frase emblemática: “Isso é um festival de choro e não um festival de
samba.”. É interessante pensar como a idéia de algazarra está relacionada ao samba
e não ao choro. A ênfase nessa questão é muito interessante para analisarmos as
diferenças que se constituem entre sambistas e chorões, por exemplo. Torna-se
claro que não cabe aos chorões essa postura mais festiva e “descompromissada”,
característica dos sambistas.
Outra situação interessante que me leva a esses apontamentos é uma
“desavença” entre Luciana Rabello e Beth Carvalho, que tive acesso a partir do relato
de uma aluna da EPM. Ao conversar com ela sobre meu projeto, fui incentivada a
tomar cuidado com os nomes que falo dentro da escola e para quem os falo. Um
deles é o nome Beth Carvalho. Ao perguntá-la sobre o porquê da necessidade de
cautela, ela me explicou que houve um desentendimento entre Luciana Rabello e
Beth Carvalho que aconteceu quando uma vez na casa de Lucina, Beth, criticou
Elizeth Cardoso. Luciana, fã e amante da música de Elizeth, sentiu-se ofendida. A
partir desse evento as duas não mantêm relações. A veracidade dessa história não
foi comprovada por nenhuma das duas partes envolvidas no caso. No entanto essa
história é utilizada aqui para pensar mais uma vez as relações entre o universo do
choro e o mundo do samba, embora muitas vezes esses universos sejam tomados
como complementares.
O caso Elizeth Cardoso nos ajuda a pensar justamente que alguns sujeitos têm
no interior do campo a força de criar regras que serão seguidas por todos os demais.
É interessante perceber que o caso se torna marcante, porque não acontece com
qualquer um dos sujeitos no interior do campo, mas com um dos que podem ditar as
regras a partir das quais o campo se estrutura. Nesse sentido, faz-se interessante
chamar atenção para a colocação de Bourdieu de que a definição pelos limites dentro
dos quais o campo irá atuar nada tem de abstrato. Existem “pessoas que podem
classificar”. Ou seja, àqueles que no interior do campo são detentoras do capital

158 art uerj III semana de pesquisa em artes


simbólico que os permite dizer sobre as coisas. (BORDIEU, 2000). É nesse sentido
que recorro a Bourdieu, principalmente para analisar o caso sobre a cantora Elizeth
Cardoso, a partir do qual se estabelece um modo de agir no interior do campo.
É interessante percebermos com essas histórias a criação de um modo
compartilhado, de um grupo de regras comportamentais que se formulam pelo “estar
na” escola de choro. Seja nas aulas de pandeiro, seja nos limites que ultrapassam as
salas de aula.
A narrativa dessas histórias nos auxiliam a pensar o choro que se elabora no
ambiente institucionalizado da Escola Portátil. Estabelecem-se regras, formulam-se
gostos, compartilham-se formas de vivenciar o ambiente. Anulam-se as diferenças na
medida em que a turma tende a homogeneizar-se em sua forma de tocar, de segurar
o pandeiro, de se comportar. Essas regras que devem ser seguidas e incorporadas
pelo pandeirista de choro, formam um grupo coeso, pouco receptivo a diferenças e
cada vez mais homogêneo.
Nesse sentido recorro ao trabalho de Bourdieu “A Distinção: crítica social do
julgamento” para pensar a formulação de gostos comuns e a formação de grupos
que se erguem e se diferenciam de outros a partir dessas formulações. O gosto
compartilhado pode ter razões econômicas, no entanto Bourdieu apresenta uma
teoria da formação de grupos que se baseia na extrapolação da formulação do gosto
por questões econômicas. Existe nesse caso um capital simbólico que orienta as
escolhas do grupo e fortalece a coletividade.
Os conceitos de habitus e campo de Bourdieu são recursos analíticos para
pensar o social. O campo é o lugar onde as práticas ocorrem, são dimensões da vida
social presididas por lógicas diversas. O habitus por sua vez, é a capacidade de uma
determinada estrutura social ser incorporada pelos agentes no interior dos campos.
Bourdieu chama atenção para o privilégio dos dispositivos mentais. São eles que
organizam as forças que agem nos campos. Dentro dessa perspectiva, os sujeitos
possuem pouca margem de manobra para agir livremente. Suas ações de acordo
com Bourdieu estão pautadas em relações de poder. Não há margem de manobra
para ação do sujeito que não esteja pautada nas grandes estruturas.

159 art uerj III semana de pesquisa em artes


“Os <<sistemas simbólicos>>, como instrumentos de conhecimento e
de comunicação, só podem exercer um poder estruturante porque são
estruturados. O poder simbólico é um poder de construção da realidade
que tende a estabelecer uma ordem gnoseológica: o sentido imediato do
mundo (e, em particular, do mundo social) supõe aquilo a que Durkheim
chama o conformismo lógico, quer dizer, <<uma concepção homogênea
do tempo, do espaço, do número da causa, que torna possível
concordância entre as inteligências>>”. (BOURDIEU, 1989, p. 9)

Nesse sentindo, podemos perceber que Bourdieu vai valorizar uma estrutura.
Ele parte dela para entender a realidade social. Seu interesse é compreender como
os esquemas de pensamento se objetificam, se tornando a lógica a partir da qual
os campos se organizam. As estruturas se formam a partir de relações que se
estabelecem com e a partir do mundo real, onde se compartilham símbolos, regras
e significados. Trata-se, portanto de desvendar a constituição dos valores que
comandam o funcionamento do campo.
Em A distinção, Bourdieu trabalha com a noção do espaço social como
produto de uma construção, sobre a qual o pesquisador lança seu olhar. Segundo
Bourdieu “a questão desse espaço é formulada nesse mesmo espaço”. Nesse
contexto os agentes possuem posições diferenciadas, estas definem seus pontos
de vista sobre o espaço social, e seu interesse em transformá-lo ou conservá-lo. O
conceito de habitus é gerador e ao mesmo tempo diferenciador das práticas que
constituem o mundo social. Nesse sentido, podemos compreender que condições de
vida diferentes produzem habitus diferentes. A condição e a posição dos sujeitos no
interior dos campos se definem num universo relacional, que por sua vez é marcado
pelas diferenças. É a partir delas que as identidades sociais se definem.

“Os estilos de vida são, assim, os produtos sistemáticos dos habitus que,
percebidos em suas relações mútuas segundo os esquemas do habitus,
tornam-se sistemas de sinais socialmente qualificados – como “distintos”,
“vulgares”, etc. A dialética das condições e dos habitus é o fundamento

160 art uerj III semana de pesquisa em artes


da alquimia que transforma a distribuição do capital, balanço de uma
relação de forças, em sistema de diferenças percebidas, de propriedades
distintivas, ou seja, em distribuição de capital simbólico, capital legítimo,
irreconhecível em sua verdade objetiva.” (BOURDIEU, 2007, p. 164).

A identidade social, segundo Bourdieu, se constrói a partir da diferença, a partir


de tudo que se opõe a ela e é a partir dessa concepção de formação da identidade
que pretendo analisar a experiência vivenciada na Escola Portátil de Música. A
formação do chorão se formula a partir de um ambiente de regras, como às regras
alimentares que são incorporadas pelas classes sociais, trabalhadas no estudo de
caso de Bourdieu. Em sua análise sem dúvida a questão de classe está no centro
da discussão. Certamente, como percebe Bourdieu, o gosto que se compartilha
fortalece a diferenciação entre os grupos e marca a condição de classe dos sujeitos
que compartilham dos mesmos gostos. No entanto faz-se importante revalidar que
neste trabalho não se pretende a traçar o perfil do chorão a partir de sua condição
de classe, mas de analisar esse universo de regras que se estabelecem e acarretam
no fortalecimento da identidade do grupo. Nesse sentido o gosto musical, a forma de
comportar-se, a escolha dos ídolos e o tipo de música que se ouve, são regras às
quais o chorão deve se adaptar para fazer parte do grupo. No caso, dos pandeiristas,
aos quais acompanhei com maior proximidade, soma-se a essas regras a forma de
segurar o pandeiro, o lugar correto para tirar o som do couro, a postura ao tocar, entre
outras normas que se instituem. Para ser um pandeirista de choro, com aprendizado
na Escola Portátil, deve-se seguir a determinadas regras que diferenciam dos demais
pandeiristas, pela forma de se comportar e tocar. Isso porque com pandeiro de
couro não se brinca e são justamente essas questões que diferenciam o pandeirista
formado na escola para um “pandeirista de boteco que toca para as formigas.”.
Por fim este trabalho surge a partir da tentativa de avaliar o universo de regras
que surgem na Escola Portátil de Música do Rio de Janeiro, a partir das leituras em
Bourdieu sobre a afirmação da identidade a partir da diferença.

161 art uerj III semana de pesquisa em artes


Bibliografia
BOURDIEU, Pierre. A distinção – critica social do julgamento, São Paulo, EdUsp, 2007.
________________________. As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário. São Paulo:
Companhia das Letras, 1996.
________________________.O Poder simbólico. Rio de Janeiro: Ed. Bertrand Brasil S.A, 1989.
CAZES, Henrique. Choro: Do Quintal ao Municipal. São Paulo: Ed. 34, 1998.
DABUL, Lígia. Um percurso da pintura: a produção de identidade de artista. Niterói: EdUFF, 2001.
DINIZ, André. Almanaque do choro: a história do chorinho, o que ouvir, o que ler, onde curtir. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003.
ELIAS, Norbert. Os Estabelecidos e os Outsiders: sociologia das relações de poder de uma pequena
comunidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2000.
GIUMBELLI, Emerson. Para além do ‘trabalho de campo’: reflexões supostamente malinowskianas. Revista
Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 48, p. 91-107, 2002.
NAVES, Santuza Cambraia. O violão azul: modernismo e música popular. Rio de Janeiro: Editora
FGV, 1998.
NEIBURG, Ferederico. Prefácio à edição brasileira. A sociologia das relações de poder de Norbert Elias.
In: ELIAS, Norbert. Os Estabelecidos e os Outsiders: sociologia das relações de poder de uma pequena
comunidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2000.
SCHWARCZ, Lilia Katri Moritz. Complexo de Zé Carioca: notas sobre uma identidade mestiça e malandra.
In: Revista Brasileira de Ciências Sociais, nº29, out/1995.

Notas
1 A Escola Portátil de Música (EPM) é um programa de educação musical voltado para a capacitação
e a profissionalização de músicos através da linguagem do choro. Localizada no Rio de Janeiro, a Escola,
oferece cursos de instrumentos como violão, cavaquinho, flauta, clarinete, saxofone, trompete, bandolim,
acordeom, piano, canto, pandeiro, percussão e bateria, além de possuir cursos teóricos sobre teoria e
percepção musical, harmonia, composição e história do choro. A EPM foi criada pelos músicos: Luciana
Rabello, Maurício Carrilho, Celsinho Silva, Pedro Amorim e Álvaro Carrilho. Site: http://www.escolaportatil.
com.br/SiteProfile.asp. (Acesso em: 21/01/2008)
2 Quando o professor se refere a “nós” ele está falando de uma grupo de pandeiristas muito influenciado
pela técnica de tocar de Jorginho do Pandeiro, também professor da Escola, que surge no cenário musical
na década de 50, quando tocava pandeiro no Regional de Benedito Lacerda. Jorginho desenvolveu um
estilo próprio de tocar que influenciou uma geração de novos pandeiristas, inclusive seu filho e seu neto,
também professores da EPM. (ver Cazes, 2005)

162 art uerj III semana de pesquisa em artes


III semana de pesquisa em artes
10 a 13 de novembro de 2009 art uerj
ensino de arte e cultura

Luiz Carlos Mendes Ripper e a formação de cenógrafos e figurinistas

Heloisa Lyra Bulcão

Doutoranda em Artes Cênicas – UNIRIO


Orientadora Profª. Drª. Lidia Kosovski, co-orientador Prof. Dr. Aldo Victorio Filho – ART/ UERJ

A presente comunicação traz a visão geral da contribuição do cenógrafo, figurinista e diretor teatral
Luiz Carlos Mendes Ripper para o ensino da cenografia e indumentária no panorama teatral do Brasil
atual. São abordadas suas iniciativas na formação de cursos, escolas e centros culturais, com especial
referência ao emprego dos registros de seu processo de criação como instrumento de ensino.

Luiz Carlos Ripper; ensino da cenografia; processo de criação em cenografia.

This communication brings an overview of the stage and costume designer and theatre director
Luiz Carlos Mendes Ripper contribution to the stage and costume design teaching, in the
present theatrical scene in Brazil. We approach his enterprising in the creation of schools and
cultural centers, in special reference on the application of the registers of his own creation
process as an instrument to the teaching.

Luiz Carlos Ripper; stage design teaching; stage design creation process.

Luiz Carlos Mendes Ripper foi um dos mais importantes cenógrafos brasileiros,
tendo recebido diversos prêmios, tanto por sua atuação no cinema, com seis Corujas
de Ouro, da Academia Brasileira de Cinema, quanto no teatro, onde recebeu um total
de 10 prêmios, como cenógrafo, figurinista e diretor.
Ripper foi diretor de arte dos filmes Xica da Silva e Quilombo, de Cacá
Diegues, de Azyllo muito louco e Fome de amor, de Nelson Pereira dos Santos, São
Bernardo de Leon Hirszman, dentre outros. No teatro, seu trabalho mais emblemático
foi a cenografia de Hoje é dia de rock, em 1971, onde realizou uma reestruturação
163
espacial no Teatro Ipanema, transformando o palco frontal em passarela, pela qual
recebeu o prêmio Governador do Estado. Outras atuações marcantes de Ripper no
teatro foram a direção, cenografia e figurinos de Avatar, Torre de Babel, El dia que me
quieras e Extra-vagância.
Podemos ver refletida a sua importância no cinema nacional com a criação pela
Secretaria de Audivisual do Ministério da Cultura, em 2001, do Prêmio Luiz Carlos
Ripper para a categoria direção de arte para o Grande Prêmio Cinema Brasil.
Desde a produção, direção, cenografia e figurinos de Avatar, espetáculo
ambientado na sala Corpo e Som do Museu de Arte Moderna, em 1974, Ripper
se interessou pelo ensino das artes cênicas. Ele conta, em entrevista ao Jornal da
Cidade, em Campo Grande, que a falta de apoio do governo para a continuidade
da existência do grupo, com o qual desenvolvia intensa pesquisa de linguagem, o
motivou a buscar outros caminhos para a formação de novos profissionais (dossiê
sobre Luiz Carlos Ripper – CEDOC – FUNARTE).
Ripper foi, desde então, responsável por cursos de cenografia em várias
cidades do Brasil, como Vitória, Campo Grande, Belém, Fortaleza, Brasília, convidado
ora pelo então Serviço Nacional de Teatro – SNT, ora por instituições de ensino locais.
No Rio de Janeiro, ministrou diversos cursos de cenografia no Instituto de Arquitetos
do Brasil – IAB e palestras e seminários sobre teatro, cenografia e construção de
espaços cênicos.
Por ocasião de um curso em Brasília, Ripper lembra, em entrevista, que a
cenografia depende dos meios de produção e da economia do teatro. Afirmando
que a economia do teatro vai mal, Ripper coloca que esta se vê constrangida pelos
aspectos financeiros de uma produção. “A nossa improvisação caracteriza nossa
cenografia e a falta de metodologia no teatro como um todo: não temos metodologia,
a gente improvisa (...)” (Dossiê Luiz Carlos Ripper – CEDOC - FUNARTE).
Ripper coloca que o fato, resultado do pouco cuidado com a educação artística,
acaba por ser um defeito, quando deveria ser uma qualidade. Em função disso,
vê como de suma importância os cursos de informação (não de formação, declara
Ripper), que vinha desenvolvendo pelo país. Os considera também importantes
para o seu trabalho, como forma de entrar em contato com as diferentes realidades

164 art uerj III semana de pesquisa em artes


regionais e promover entre os alunos de cada local o interesse em olhar para sua
própria realidade, valorizando-a. Na época recusou convites para dirigir outros
espetáculos, se dedicando apenas à atividade didática (dossiê Luiz Carlos Ripper -
CEDOC - FUNARTE).
Vemos, por meio de suas declarações, seu interesse pelo estudo das
metodologias nas artes cênicas para a formação de novos profissionais, como forma
de desenvolver a prática cênica brasileira.
Durante curso em Vitória, Ripper fomentou entre os alunos, reiterando nas
diversas entrevistas que deu na ocasião, a união entre os grupos amadores e o
olhar voltado para o conhecimento da realidade local. Ripper confessa que muitas
vezes se via falando coisas que não eram compreendidas, talvez por um problema
de vocabulário. Vê como mais importante, no entanto, o estímulo à consciência de
classe, à união, à compreensão de que o teatro é uma atividade conjunta, fruto de
um trabalho integrado, onde todos pensam juntos. “Porque o teatro é uma festa, uma
comemoração. O ato de mostrar deve ser um ato de dar, de participar, por isso é uma
festa”. Comenta que as melhores montagens são aquelas em que não se sabe quem
fez o que (dossiê Luiz Carlos Ripper - CEDOC - FUNARTE).
André Carrera, em sua pesquisa sobre os grupos teatrais do Brasil atual,
aponta para o gradual crescimento da importância do teatro de grupo no Brasil,
segundo o autor, mais intensificado desde os anos 80 e 90. Hoje este pode ser
considerado um campo específico dentro do fazer teatral nacional, com movimentos
similares na América Latina. (CARREIRA, 2009).
O autor, a partir do que levantou dentre os grupos teatrais no Brasil atual,
coloca que estes não se caracterizam como um todo como por projetos alternativos
ao modelo empresarial, mas sim, por sua proposta estética. Desde o declínio da
militância política, presente nos grupos teatrais da época da ditadura militar, com a
ausência de modelos a seguir, os grupos se caracterizaram mais por seu conceito de
“grupalidade”. “O grupo, enquanto estrutura organizativa e forma geradora do trabalho
criativo, passou a constituir um ponto chave nesse processo”, afirma Carreira.

“Algumas características que aparecem de forma insistente quando

165 art uerj III semana de pesquisa em artes


pensamos os projetos grupais da atualidade remetem à associação
entre projetos de criação cênica, articulação de práticas pedagógicas,
referência no grupal como mecanismo de autonomia, identidade e
resistência, e, sobretudo, consciência de que este projeto se distingue
de outros procedimentos coletivos pois busca um lugar específico”
(CARREIRA, 2009:2).

Não podemos afirmar que este panorama é fruto do discurso e da prática de


Ripper em seus cursos por diversas capitais brasileiras, mas vemos que há uma
nítida relação entre a bandeira que Ripper levantava e o que nos traz a pesquisa de
André Carreira.
Em 1979 e 1980, além de coordenar a oficina de cenografia, foi assessor de
Rubem Breitman, diretor da Escola de Artes Visuais – EAV, participando do projeto de
reformulação didática da escola. Esta foi a época que produziu na escola a chamada
“geração 80”, que retoma não só a pintura, mas também o prazer da criação artística
(Jornal Sidarta, 2009).
Ripper conta, em entrevista durante temporada em Campo Grande para um
curso, que seu objetivo na EAV, como diretor da Oficina de cenografia, era dinamizar
a escola e transformá-la num centro que uniria a formação à produção teatral, num
novo processo didático. Ripper comenta que na escola tradicional, o aluno adquire
o “saber” totalmente desvinculado da realidade, das transformações da sociedade e
das necessidades do momento. Ripper tinha um projeto de unir a atividade da Oficina
de cenografia a produções teatrais profissionais, unindo o aprendizado à produção,
dentro do mercado de trabalho (dossiê CEDOC – FUNARTE).
O então diretor da EAV, Breitman, conta que a direção anterior, de Rubens
Guerchman, havia rompido com o academicismo do século XVIII e que a gestão atual
propunha “uma metodologia contemporânea do ensino de arte dentro de uma escola
livre (dossiê CEDOC – FUNARTE)”.
O projeto de Ripper e Breitman para a EAV pretendia modificar a relação do
estudante com a arte, e da própria concepção do que era a arte. Para Ripper, a
liberdade de criação, dispondo de toda a infra-estrutura necessária em ateliês bem

166 art uerj III semana de pesquisa em artes


equipados, é o que permitiria aos alunos entrarem em contato com seus processos
criativos, sem a obrigatória interrupção das férias coletivas, que seriam escolhidas
pelo aluno, mas com responsabilidade de estudo e criação. Eles pretendiam que
o espaço fosse utilizado, não como fuga ou como lazer, mas na busca do belo e
do prazer na sua produção artística. A liberdade deveria estar na criação e não na
ausência de compromisso do aluno com a escola.
A escola passava a oferecer três turnos, à escolha do aluno, e era dividida
em três níveis de aprendizagem: oficinas permanentes para iniciantes, com aulas
práticas de cor, representação bi e tridimensional e teóricas (teoria da comunicação,
da percepção, semiologia e antropologia); no segundo nível, os alunos já com
experiência artística, freqüentavam as oficinas práticas e o terceiro nível tinha,
naquele período, apenas as oficinas de cenografia e de áudio-visual. Outras estavam
planejadas para funcionar futuramente.
Em 1983, junto com a bailarina, coreógrafa e atriz Nadia Nardini, Ripper fundou
e dirigiu até 1985, o Centro de Artes do Tempo – CAT, com a intenção de formar
atores-bailarinos-cantores, numa formação integrada. Nadia Nardini conta sobre
a criação da escola, em parceria com Ripper: “Nosso objetivo era reunir todas as
formas de manifestações artísticas em um só lugar”.
A escola contava também com curso de promotores de atividades culturais,
com enfoque na formação de profissionais capazes de promover a arte voltada para a
realidade das comunidades, de forma a “resgatar na vida social valores de identidade
cultural”. A proposta do curso era realizar uma articulação

“entre o sistema de produção/circulação de bens da indústria cultural


– aí incluídas as ‘artes’ da mídia – e os sistemas correspondentes das
artes tradicionais do Ocidente (teatro, dança, música, etc) e das formas
culturais populares. E mais particularmente, realizá-la valorizando as
identidades sócio-culturais específicas de seus produtores (RIPPER,
1985 - documento de seu arquivo pessoal)”.

Em documento de apresentação da escola, encontramos mais uma vez uma

167 art uerj III semana de pesquisa em artes


estrutura que buscava o contato do aluno com o mercado de trabalho. Os alunos
freqüentariam três estágios na escola, havendo no quarto estágio uma Oficina, que
funcionaria em contato com profissionais, em trabalho dirigido para a produção
artística.
A escola funciona ainda hoje, em outro endereço de Botafogo, como escola de
musicais, com o nome Catsapá.
No ano de 1988, Ripper foi um dos principais responsáveis pela reestruturação
da Escolinha de Artes do Brasil, fundada por Augusto Rodrigues, exercendo a função
de Secretário Geral da escola, até 1990.
Em texto de Ripper sobre a proposta para reestruturação da escola,
encontramos o que pode ser considerado uma síntese de sua visão da educação
para as artes:

“- Considerar as técnicas como o ingresso em tecnologias, visando o


encontro de alternativas de sobrevivência, desocultando a artesania, as
oficinas e o resgate de ofícios.
- Considerar a lúdica da Arte como um meio, sobretudo, natural e
saudável do indivíduo se harmonizar na sua própria humanidade.
- E, por fim, considerar que estes caminhos pré-existem,
respectivamente sistematizados na cultura popular.
- Isto tudo é conscientizar uma argumentação brasileira como infra-
estrutura da Educação” (RIPPER, 1988 – documento de seu arquivo
pessoal).

Em outros documentos manuscritos de Ripper sobre a reestruturação da


Escolinha de Arte do Brasil, vemos planos para a ocupação do prédio. Havia previsão
de creche e play ground, um teatro para bonecos, num “bloco infantil”. Além disso, no
“bloco adulto”, um teatro e uma sala de exposições. No “bloco escola”, havia previsão
para o programa de oficinas técnicas com ateliês de madeira e metal, de moldes e
formas, de cor, de artes gráficas, de pano/costura/tramas/tecelagem, e de música.
Havia um setor destinado a salas de aula multi-uso, um escritório coletivo, uma sala

168 art uerj III semana de pesquisa em artes


de reunião, uma sala de estudos e consulta e um mini auditório.
Vemos em Luiz Carlos Ripper a constante preocupação em integrar a arte
à vida nas diferentes camadas sócio-culturais, refletida até na criação de creche
numa escola de arte, facilitando o acesso à educação artística. Vemos também a
constante ligação do ensino com a atividade artística, com a existência de espaços de
apresentação associados ao espaço de ensino.
Como vemos, Ripper buscava sempre referências na cultura local e na
experiência pessoal do aluno, procurando integrar o ensino à prática da realização
teatral. Em entrevista, Ripper comenta que seu trabalho didático e de criação fazem
parte de um projeto maior de busca de uma brasilidade, que considerava perdida.

”Existe uma cultura nossa que está desaparecida, sem que nada seja
feito para conservá-la. As pessoas estão muito mais preocupadas em
copiar modelos externos do que conhecer o que elas têm mais próximo
de si, que cada dia morre um pouco”, disse Ripper.
Uma cenografia baseada na utilização dos elementos naturais ou
produzidos pelos artesãos do local onde o grupo teatral atua representa,
para Ripper, um engajamento da cena numa identidade esquecida do
brasileiro, e passa a ser uma opção dentro de um contexto precário.
Para Ripper, a cultura popular, (...), seria um objetivo dos grupos
jovens, e onde eles conceituariam e fundamentariam seu trabalho. O
nosso intuito, ao pesquisar a cultura popular, é se apropriar de um tipo
específico de tradição e comportamento, aproveitando sua experiência
cultural para efetuar a criação de um teatro brasileiro, feito com o povo e
para ele’. (Dossiê Luiz Carlos Ripper – CEDOC – FUNARTE)

Desde 1986, Ripper foi convidado a dirigir a Oficina de cenotécnica


Pernambuco de Oliveira, da então Fundação Nacional de Artes Cênicas –
FUNDACEN, sendo criador do projeto de implantação do Centro Técnico da
FUNDACEN (hoje Centro Técnico de Artes Cênicas do Instituto Brasileiro de Arte e
Cultura – IBAC).

169 art uerj III semana de pesquisa em artes


Durante sua gestão como diretor do Centro Técnico, Ripper procurou formar
grupos de estudo voltados para a reflexão sobre a cenografia, a cenotécnica e a
arquitetura teatral, bem como todas as técnicas ligadas à produção das artes cênicas.
O cenógrafo J.C. Serroni, comenta, em entrevista, sobre a importância do
projeto desenvolvido por Ripper no Centro Técnico:

“Ele tentou criar uma espécie de um centro de execução de cenografia,


mas com outro pensamento, com outro caráter, voltado muito mais para
um profissional com o entendimento daquilo que fazia. Ele gostava de
ensinar, de discutir processos, de resgatar tecnologias muito simples do
próprio teatro... (entrevista a Heloisa Lyra Bulcão)”

Ripper promoveu, no Centro Técnico, o 1º. Encontro Nacional de Profissionais


de Arquitetura Cênica, Cenógrafos e Cenotécnicos, onde estes se reuniram por
aproximadamente quarenta dias, para discutir os processos, mostrar suas experiências,
trocar as experiências particulares de cada região. Após o encontro, passaram a se
reunir com freqüência com Ripper para discutir a continuidade das ações, além de
Serroni, os cenógrafos Maria Carmen de Souza e Raúl Belém, dentre outros. “Foi um
período em que a gente discutiu muito teatro, a gente discutiu muita cenografia, muito
espaço, muitas tecnologias e isso foi muito importante pra mim”, conta Serroni.
Serroni comenta como Ripper “(...) preocupado com a formação, com os
caminhos da cenografia, do figurino, da técnica, do técnico do teatro brasileiro, já
imprimia isso nos seus trabalhos”.
Ripper, em suas experiências no cinema se preocupava em resgatar as
técnicas artesanais locais, em aproveitar a mão de obra local, unindo a produção
à realidade regional. Fazia esta proposição também nos cursos e oficinas que
ministrava por diversas cidades brasileiras.
Em seus projetos de reforma e criação de espaços teatrais, como por exemplo
a reforma do Teatro Waldemar Henrique, em Belém do Pará, também buscava as
técnicas e materiais locais para que houvesse uma inter-relação entre o espaço e a
natureza, a realidade do lugar.

170 art uerj III semana de pesquisa em artes


Segundo a cenógrafa Maria Carmen de Souza, criadora do Núcleo de Arte e
Cultura – NAC, em Brasília, o processo educativo que Ripper procurava aplicar era
bastante inspirado na Bauhaus, escola de arquitetura, arte e design em Weimar, na
Alemanha dos anos 20 (entrevista a Heloisa Lyra Bulcão). Com o processo similar ao
adotado na Bauhaus, Ripper planejava a formação do cenógrafo a partir das práticas
em diversos ateliês, em revisão da relação que havia entre mestres de ofícios e
aprendizes na Idade Média.
Serroni conta sobre a visão de Ripper da formação profissional:

“Ele era muito preocupado com os sistemas artesanais, com as


possibilidades humanas do teatro, do técnico manusear, construir, botar
a mão, essa coisa humana. E já estavam chegando, principalmente na
luz, as novas possibilidades. Isso era uma preocupação dele, de que a
gente não perdesse aqueles sistemas, que são os sistemas vindos do
circo, os sistemas vindos da engenharia naval. Aquela coisa do mestre e
do aprendiz, em que o aprendiz tinha que estar à disposição do mestre,
pra realmente aprender, ele tinha que vivenciar aquele conhecimento”.

Durante a gestão do Centro Técnico, Ripper se dedicava à organização do


conhecimento. Procurava levantar e classificar as informações, como os diferentes
ateliês utilizados pela cenografia e pela indumentária, organizando planilhas,
buscando denominações comuns, sempre em grupo, unindo os profissionais
atuantes, que traziam as suas práticas. Levantava e classificava o conhecimento,
de forma a produzir material de consulta para reciclagem e aprendizado para novos
profissionais.
Em texto de apresentação do Projeto Centro Técnico, encontramos a seguinte
referência:

“(...) compreende-se a Oficina Pernambuco de Oliveira como um centro


de pesquisas, que redundará num pólo dinamizador de conhecimentos,
interagindo com a totalidade das manifestações cênicas (teatro, dança,

171 art uerj III semana de pesquisa em artes


ópera e circo) nas singularidades regionais da cultura brasileira”
(documento do arquivo pessoal de Luiz Carlos Ripper).

O Centro Técnico exercia suas funções nas seguintes linhas de ação:


pesquisa, organização da informação, planejamento, ensino-aprendizagem e apoio
à infra-estrutura de produção, atendendo à demanda de reformas e adequação de
espaços cênicos por todo o país. Atuava nos campos da cenotécnica, indumentária,
luminotécnica, administração, produção, cenografia e arquitetura.
Ripper, enquanto diretor do Centro Técnico, ao ser convidado para fazer
a cenografia e os figurinos de um espetáculo musical infanto-juvenil, O Cometa
Vassourinha, chamou o grupo de estudos para o qual estava ministrando um curso
de semiologia da cena para desenvolver o trabalho em conjunto, descrevendo todo
o processo de criação e produção. O grupo, formado por cenógrafos, designers e
arquitetos, desenvolvia estudos, desde a pesquisa para concepção dos projetos,
levantamento de materiais, união de diferentes matérias, registrando as experiências
em planilhas e croquis descritivos.
A idéia do registro de seu processo criativo, durante a criação e a produção de
um espetáculo ia de encontro ao objetivo de organização do conhecimento, criando a
possibilidade de construção de material didático para a formação dos envolvidos com
a criação e a produção de cenários e figurinos.
No início do curso de semiologia da cena com este grupo, Ripper, contando
que já havia ministrado o mesmo diversas vezes, solicitou a todos que fizessem
seus apontamentos sobre as aulas e entregassem a ele, de forma a colaborar
com a produção de um livro. A idéia de produção de material para a difusão do
conhecimento foi uma constante na atuação de Ripper no Centro Técnico.
Ao final da produção do Cometa Vassourinha, foi feita cópia das planilhas,
croquis e de parte das plantas, agrupada em encadenação. Como fiz parte deste
grupo, pois era pesquisadora contratada, tendo participado de grande parte dos
grupos de estudo do Centro Técnico, e me interessei pelo material, fiz cópia do dossiê
manuscrito.
O esforço de Ripper foi interrompido no ano de 1990, com sua destituição do

172 art uerj III semana de pesquisa em artes


cargo de diretor do Centro Técnico, no início do Governo Collor.
Hoje, no arquivo de Luiz Carlos Ripper, encontramos um dossiê apenas com
parte dos croquis originais e de apontamentos sobre o processo criativo. O dossiê
completo original, com o registro do processo da criação à produção, não se encontra
nem no Centro Técnico, nem no arquivo pessoal de Ripper. Contamos apenas com a
cópia feita na ocasião.
O uso de seus processos criativos, tanto na atividade pedagógica diretamente
ligada à sua produção prática, quanto na tentativa de produção de material didático
para o ensino da cenografia a partir de uma produção completa, são atitudes que
caminham na direção de aproximação da arte à vida, em seu cotidiano.
Vemos, nos exemplos de atuação de Ripper no ensino das artes em geral, com
maior atuação nas artes cênicas, em especial na cenografia, uma posição de forte
ligação com o resgate das culturas regionais, dos processos construtivos artesanais,
de estímulo à união entre os grupos amadores, sempre num movimento de reforço de
uma identidade brasileira, diversificada e plural e de uma humanização da sociedade
por meio de sua expressão artística genuína.

Referências
Dossiê de Luiz Carlos Ripper, do Centro de Documentação – CEDOC, da FUNARTE.
Arquivo pessoal de Luiz Carlos Ripper, sob a custódia temporária do Laboratório de Investigações
Cenográficas – LINCE – UNIRIO.
CARRERA, André. Teatro de grupo: reconstruindo o teatro? Consultado em 01 de outubro de 2009, no sítio
http://www.ceart.udesc.br/revista_dapesquisa/volume3/numero1/cenicas/prof_andre.pdf
Jornal Sidarta, 25 de maio de 2009. http://jornalsidarta.blogspot.com/2009/05/trinta-anos-da-geracao-80.
html, consultado em 01 de outubro de 2009.
Entrevista de Maria Carmen de Souza a Heloisa Lyra Bulcão, em 22 de julho de 2009.
Entrevista de J. C. Serroni a Heloisa Lyra Bulcão, em 18 de agosto de 2009.

173 art uerj III semana de pesquisa em artes


III semana de pesquisa em artes
10 a 13 de novembro de 2009 art uerj
ensino de arte e cultura

“Grandes merda!”: A relevância do ensino de artes nas escolas públicas


do Rio de Janeiro

Pâmela Souza da Silva

Bacharelado e licenciatura em História da arte – UERJ

Este trabalho foi desenvolvido com o objetivo de elaborar algumas questões referentes ao
ensino da arte, enfatizando e analisando a forma como é desenvolvido nas escolas, questões
nas quais não prestamos atenção cotidianamente por já fazerem parte constitutiva das relações
do sistema de ensino e do ensino da arte especialmente.

Ensino da arte; Educação; Cotidiano escolar.

This study was developed in order to prepare some questions about the teaching of art,
emphasizing and analyzing how it is developed in schools, these we do not pay attention
to everyday for taking part of the educational system and especially art education. So when
we look at them, see them as anomalies that must be eliminated. These issues need to be
grasped, absorbed and modified by the negative character and power of exclusion they have.
They require urgent and effective action through art professionals in front of students and their
cultural contributions. Even if teachers are not the only responsible for them.

Art Education; Education; School practices.

O título “Grandes merda!”: A relevância do ensino de arte nas escolas públicas


do Rio de Janeiro foi baseado nos alunos e suas diferentes reações ao ensino da
arte, quando este os coloca em uma posição de inferioridade. Em resposta ao que
pensamos ser a necessidade que todas as pessoas tem de estar em contato com
arte, eles dizem que a arte é: “Grandes merda!”, Enquanto os professores estão
nas salas de aula para lhes ensinar o que acreditam ser , ironicamente falando, a
174
mais “pura expressão da cultura”, passando por cima de tudo e todos, eles dizem:
“Grandes merda!”.
Esta resposta não representa a “falta de educação” e de “respeito” que os
alunos apresentam diante do sistema educacional ou dos professores diretamente,
mas sim uma defesa contra tudo a que este sistema coloca diante deles e que
condena, de uma forma ou de outra, todo o seu meio cultural, e que longe de
lhes inserir no mundo dominante, lhes mostra os seus lugares, lugares estes de
inferioridade e/ ou subalternidade.
Ao longo da vida acadêmica temos contato com diversas formas de encarar
a arte e  de ensina-la, que vão contribuir para a formação da maneira individual de
agir e pensar. Nos atemos na maior parte das vezes em como passar conteúdos
da História da Arte oficial, e vivemos envoltos de tal forma pelo misticismo da arte e
de seu universo que a maioria de nós não reflete sobre a maneira como essa arte
afeta a sociedade, e especialmente aqueles que não pertencem ao universo cultural
hegemônico, questões essenciais para aqueles que desejam trabalhar no cotidiano
do ensino. No momento em que pensamos nos indivíduos que estão “fora” do sistema
da arte, analisamos apenas formas de fazê-los ter contato com a “verdadeira” cultura
a “verdadeira” arte e como passar seus respectivos conteúdos oficializados. O que
propõe este trabalho é pensarmos para quem as culturas dominantes nos currículos
oficiais são verdadeiras, e como conseguiremos fazer as pessoas usufruírem da arte
quando estas pessoas estão fora do contexto do que é  considerado culturalmente
legítimo e verdadeiro. E, consequentemente como enfrentar o desafio que nos coloca
a diversidade cultural.
A participação no grupo de pesquisa Estudos Culturais em Educação e Arte1, além
da orientação de Aldo Victório Filho foram essenciais para a construção da linha teórica
seguida, e foram experiências determinantes para que eu pudesse perceber a importância
do cotidiano e suas riquezas de fenômenos sociais, além de significar a destruição de uma
inocência maléfica, que nesta situação nos deixa em meio a uma neblina mortal, neblina
esta que não permite que se enxergue além do que o instituído permite ver e deseja
mostrar e, portanto, mortal no sentido em que mata qualquer possibilidade de ação e
mudança, por nos impedir de enxergar nada a frente ou à nossa volta.

175 art uerj III semana de pesquisa em artes


A pesquisa de campo deste trabalho, diferentemente do que ocorre em outras
pesquisas, não foi determinada e planejada após a definição do objetivo deste, mas
foi durante a pesquisa de campo que o trabalho surgiu.
A vontade de escrever sobre os alunos surgiu primeiramente por notar a forma
como desafiam os professores diariamente, desafiam em um sentido positivo, no
sentido provocativo. No primeiro contato com eles, na escola de ensino médio formal,
assim que fui apresentada como estagiária pela professora de artes a pergunta
foi: “Você faz faculdade pra dar aula de arte?”. No primeiro momento percebi a
pergunta como uma ofensa. Por que me senti ofendida? Porque achava que eles
deveriam saber como a arte era importante. A partir desse momento passei a me
questionar se o que eu pretendia ensinar teria para todas as pessoas a importância
que lhe creditava, e se a arte lhes levaria os benefícios, de uma forma ou de outra,
prometidos nos discursos que outorgam à arte os valores mais nobres dentro de
qualquer cultura.
O segundo ponto que despertou meu interesse em focar este trabalho nos
alunos da escola pública e na importância das relações entre eles e professores
de arte foi a forma como muitas pessoas os enxergam. Falas clássicas do tipo:
“Você vai fazer estágio na escola pública? Se prepara, hein?”, me deixaram um
pouco apreensiva, fiquei mais ainda ao chegar na escola pública e não ver nada de
“normal”, normal diante do que haviam me falado, imaginava encontrar um cenário
de caos total.
Após algumas leituras outro fato referente ao ensino da arte que anteriormente
não havia chamado minha atenção e que não consegui mais ignorar, foram as
diferenças na forma de ensinar a arte. As explicações que temos para essas
contrastantes abordagens e seus freqüentes fracassos nas escolas populares
são inúmeras e vão desde a falta de materiais até a falta de vontade dos alunos,
argumentações que são quase sempre apresentadas e que anteriormente me
convenciam pois, não pensamos jamais em responsabilizar os acontecimentos
sociais que rondam a arte, ou questionamos a quem realmente importa saber a arte
como ela é, via de regra, ensinada.
As três escolas onde foi realizada a pesquisa de campo, apesar de públicas e

176 art uerj III semana de pesquisa em artes


de ensino médio tinham metodologias de ensino completamente distintas, e grandes
diferenças que ressaltam quando analisamos cada escola lado a lado. O objetivo
deste trabalho não é descrever cada escola pontualmente, apesar toda a sua rica
diversidade, concentrarei neste tópico apenas alguns padrões gerais percebidos
durante a pesquisa, e que têm relevância no seu desdobramento.
Na escola seletiva era visível que a maioria dos alunos não pertenciam a
classes sociais de menor poder aquisitivo. O ensino da arte acontece ao longo
de todas séries, e inclui história da arte e artes plásticas, porém em disciplinas
separadas. A maioria dos alunos participa dos debates acerca da arte e são bastante
cobrados pelos professores. As produções plásticas dos alunos são bastante
valorizadas, e seus autores precisam defendê-las e justificá-las segundo condições e
critérios estéticos e históricos que as envolvem. Para os professores, trabalhar nesta
escola lhes proporciona status na profissão, pois, assim como os alunos, passam por
rigorosa seleção.
Na escola não seletiva os alunos pertenciam a classes de menor poder
aquisitivo, a maioria moradores do entorno. Como acontece normalmente no ensino
público, alguns alunos nunca tiveram aula de arte e outros apenas durante uma
das séries do ensino fundamental. Durante o ensino médio as aulas aconteciam
apenas no segundo ano. Os conteúdos incluíam alguma noção de história da arte e
o desenvolvimento de atividades plásticas somente quando a escola possuía algum
material, quando não havia, improvisava-se algo, como a montagem de esquetes,
que não demandavam material. Nas avaliações eram levadas em consideração a
freqüência nas aulas e a participação. Nos trabalhos em era sugerido aos alunos
basearem-se em movimentos e artistas famosos, eram valorizados os trabalhos
que mais se aproximassem dos originais, tendo interferências mínimas da parte dos
alunos. As produções dos alunos eram expostas em um corredor, chamado “corredor
cultural”. A professora se queiava-s que: “A direção não apóia o meu trabalho e a
escola não possui materiais disponíveis para as atividades e os alunos não trazem
nenhum material solicitado, assim fica difícil!”, e mostrou-me uma maleta contendo
lápis de cor, tesouras e canetinhas, itens comprados por ela.
Na escola de ensino noturno os alunos em geral trabalhavam durante o dia.

177 art uerj III semana de pesquisa em artes


Chamou minha atenção o grande número de imigrantes nordestinos e que assim
como na escola anterior, muitos nunca tiveram aulas de arte. As aulas aconteciam
ao longo do segundo e do terceiro ano do ensino médio. O conteúdo das aulas era
exclusivamente a história da arte. Eram trabalhados os movimentos de acordo com
uma linha do tempo, iniciada na pré-história e terminada na pop art. Eram feitas
avaliações escritas, assim como nas demais disciplinas. Os alunos demonstravam à
todo tempo problemas de auto-estima e quase sempre consideravam que não tinham
conhecimentos suficientes. A direção apoiava as aulas de arte e o diretor era bastante
exigente com todos os professores, e até mesmo invasivo, pois determinava até os
conteúdos que deveriam ser trabalhados nas disciplinas.
São questionáveis as diferenças entre estas escolas, na medida em que todas
são escolas pertencentes ao estado. Por que dentro da escola seletiva os professores
são mais rigorosos e o ensino diferenciado? Por que os alunos da escola seletiva tem
aulas de arte durante todo o ensino formal e das escolas não seletiva no máximo dois
anos?
As disparidades pertencentes a essa relação vão além das comuns diferenças
cotidianas, é uma amostra do que oferece as autoridades governamentais aqueles
com menor poder econômico e como seleciona aqueles que mereceriam assistência
de melhor qualidade. Quem ocupa normalmente esses lugares?
O que Roger L. Taylor escreve sobre as práticas sociais de exclusão e como o
sucesso ou fracasso no sistema educacional envolvem classe social, responderia às
questões acima colocadas.

O sistema educacional de nossa sociedade, por exemplo, tem


considerável influência sobre nossa vida. Em maior ou menor grau, é
algo do qual todos se vêem obrigados a fazer parte. Na verdade, é a
área mais óbvia e direta de coerção praticada sobre a população. Além
disso, o sucesso ou o fracasso nesse sistema está intimamente ligado
a hierarquia social. Dessa forma, aqueles que pertencem à classe
dominante tendem,na maioria das vezes a ter sucesso no sistema (e é
claro assegurar umaa posição razoavelmente dominante na hieraquia),

178 art uerj III semana de pesquisa em artes


enquanto os que tem posições mais servis estão mais propensos a
fracassar.2

A decisão que tomei pela realização da pesquisa em escolas estaduais não


seletivas e não apenas na escola seletiva, ainda que esta seja também estadual,
foi em função do mito que há em torno delas, principalmente em relação aos
adolescentes. Resolvi encarar de uma vez o pensamento de conviver com o
problema e me preparar para o futuro, surpreendentemente, não encontrei nada
absurdo, nenhum comportamento que estivesse fora do contexto social em que esses
alunos se encontravam, a escola. A escola não é um campo neutro, e a todo tempo
é influenciada pelo contexto social, se é este o contexto em que vivemos. Por que o
medo exacerbado da escola?
A queixa dos professores sobre a falta de interesse dos alunos pelas aulas é
uma reclamação frequente. Se levarmos em consideração que esta falta de interesse
acontece principalmente por não haver relação entre os conteúdos e o ambiente
cultural em que vivem, conseguiremos entende-los. Os conteúdos difundidos pela
escola pública, longe de contribuírem para a diminuição das tensões sociais, impõem
os valores das classes de maior poder econômico e o professor de arte também
contribui ativamente para esta situação quando propõe apenas conteúdos de arte
oficial. O único momento em que o medo da escola pública me contagiou foi, quando
parei para pensar em como adequar os conteúdos acadêmicos aos alunos de
diferentes classes sociais, e se esses conteúdos eram relevantes para eles. Quando
me dei conta das distâncias culturais na compreensão do campo da arte, que é
comumente reduzido à mera apreciação da beleza, e não consegui encontrar bases
para suprir esta deficiência. Deficiência, pois deixa uma lacuna que é impossível de
ser preenchida pelos conteúdos oficiais. O autor Joost Smiers mostra do ponto de
vista econômico e social sobre quem exerce o real controle na sociedade atual.

No mundo contemporâneo, onde os conglomerados culturais são


capazes de espalhar suas idéias sobre como a cultura deveria ser, as
questões cruciais são: de quem são as histórias contadas? Por quem?

179 art uerj III semana de pesquisa em artes


Como elas são produzidas, disseminadas e recebidas? Quem controla a
produção, a distribuição e a exibição?3

Poderíamos justificar as enormes diferenças entre as escola públicas e


particulares dizendo que isso ocorre porque nestas escolas existem materiais fartos
e disponíveis, locais específicos para a prática das atividades plásticas, melhores
salários, além disso, alunos de “boa educação”, “boa família” e “cultos”. Serão essas
as motivações para que as aulas sejam melhores? E qual será a justificativa para que
estas escolas invistam e valorizem o ensino da arte?
Os alunos de menor poder aquisitivo são expostos à realidades que não fazem
parte do seu meio de convivência. Como professores nem sempre fazemos esforços
para enfrentar essas diferenças e leva-los a entender porque a forma como vivem
as diferentes classes e culturas se equivalem. Pois exigimos que aceitem o que lhes
ensinamos, semelhante à relação imposição/ aceitação/ agradecimento criada pelos
europeus em relação às outras culturas.
Para mudar essa realidade talvez fosse necessário menos um investimento
material para execução de trabalhos e mais uma mudança nas idéias, precisamos
analisar a forma como trabalhamos com a diversidade e encontrar uma forma
democrática de ensinar, que não favoreça a apenas a um grupo e contribua para
renegar ainda mais o outro, pois é nessa injusta gangorra que ronda as nossas
relações sociais. Para nos afirmarmos tem sido preciso mostrar que todo resto não é
bom, como vemos no trecho abaixo também escrito por Soucy.

Através da criação de “outros”, inventamos a nós próprios, já que


sabemos quem somos pela exclusão de quem não somos. Através da
criação de “outros” os grupos dominantes tornam-se mais poderosos. Os
professores de arte podem ver como os conteúdos da história da arte
criaram “outros”.4

Quando afirmamos para nossos alunos de classes sociais menos favorecidos


que sua cultura é ruim, além de rebaixarmos sua alto estima, os afastamos ainda

180 art uerj III semana de pesquisa em artes


mais da arte e de qualquer possibilidade de interagir com ela. Enquanto professores
devemos trabalhar para minimizar os estragos causados por essa gangorra social
ainda que seja apenas no nosso campo de trabalho, o universo da arte. Pois a arte
é apenas uma das muitas áreas onde estes conflitos acontecem, obviamente estas
ações não são apenas responsabilidade dos professores e mudanças efetivas
envolvem as outras tantas áreas que rondam o nosso sistema político e econômico.

(...) O que é afinal um sistema de ensino senão uma ritualização da


palavra; senão uma qualificação e uma fixação dos papéis para os
sujeitos que falam; senão a constituição  de um grupo doutrinário ao
menos difuso; senão uma distribuição e uma apropriação do discurso
com seus poderes e saberes? 5

Como destacado acima, o sistema de ensino é o primeiro contato dos


indivíduos com um sistema que irá vigorar por toda a vida, é na escola que ratifica-
se radicalmente que devemos ouvir aqueles que possuem o poder da palavra,
na medida em que neste sistema, a palavra é a verdade. Encontramos muitos
sujeitos da verdade os quais devemos ouvir e dar credibilidade e fazemos isso na
maior parte das vezes com bastante naturalidade, sem questionar, não porque
sejamos incapazes, mas porque esta relação é tão familiar ao ponto de não causar
estranheza. O que acontece com o ensino da arte é que a maioria dos sujeitos,
inclusive do senso comum, foram convencidos de que a arte é algo bom, porém não
sabem por que é algo bom, e as reações a “verdade” podem ser as mais diversas, de
total apatia a revolta.  Nas escolas, esses são alguns dos sentimentos com os quais
convivem os professores. Conforme com Roger L. Taylor quando escreve que:

As tradições e atividades teóricas da nossa sociedade, bem como as


teorias, colocam-se diante da massa como algo extremamente distante.
Isso produz uma sensação de ignorância e inadequação, que no entanto
é facilmente descartada por muitas pessoas com o argumento de que
essas atividades, das quais são excluídas, são todas um tanto inúteis.

181 art uerj III semana de pesquisa em artes


Há o sentimento comum de terem muito pouco a ver com o mundo real
como o vivenciam.6
 
Nenhum indivíduo fica satisfeito por estar à margem de alguma situação social,
e no caso da arte ela deliberadamente expulsa aqueles que não estão de acordo
com seus argumentos, o que seria dizer, também os que não estão economicamente
sintonizados com seu circuito, nitidamente voltado para os grupos economicamente
contemplados.
Precisamos refletir sobre nossas reais intenções, pois enquanto essas
discussões não saírem do âmbito acadêmico a arte nunca será democratizada. O
próprio sistema do ensino da arte prega que todos devem ter contato com a arte e
a cultura, mas para aceitar essa arte e cultura que ensinamos como benevolente,
não deve-se questiona-la. Isto é difundido o suficiente para que as pessoas fiquem
imóveis diante do seu rebaixamento social, pois, é como se disséssemos claramente
que a cultura do outro é ruim e fizéssemos que esse outro reagisse pacificamente
negando suas próprias raízes culturais e tentando alcançar o que é bom, ou seja, o
“erudito”.
Deixemos claro que essa falta de sentido em relação à arte e outras questões
políticas afetam principalmente as classes sociais menos favorecidas, é intrínseco a
classes de maior poder aquisitivo o lugar que a arte ocupa no mundo, daí o grande
destaque do ensino da arte nas escolas que atendem a esses indivíduos. Porque
nós, professores de arte, devemos atuar de forma diferente na escola pública e na
particular?
Enquanto não mudarmos nossas atitudes dentro do sistema de ensino, nossa
ação continuará sendo inútil, pois, continuaremos contribuindo para a desigualdade
e o desrespeito às culturas diferentes da dominante e a resposta para isso será:
“Grandes merda!”.
As questões e argumentos levantados por este trabalho não são uma forma de
renegar o ensino a arte, mas uma tentativa de lançar luz sobre problemas que são
relevantes para a área do ensino, como o respeito ás diferentes culturas, mudanças e
adaptações metodológicas e uma ampliação do campo de visão dos professores de

182 art uerj III semana de pesquisa em artes


artes. São premissas para tentarmos encontrar uma forma democrática de trabalhar
com a arte. Trabalhar estas questões além de conversar com os diferentes grupos
sociais, facilitaria nosso trabalho enquanto professores de arte e talvez diminuísse as
distâncias que encontramos para lidar com diferentes classes sociais e deixaríamos
de ser professores de uma Arte “erudita” para sermos professores de arte.
Como argumentou Irene Tourinho no texto “Transformações no ensino da arte:
algumas questões para uma reflexão conjunta”. Além das colocações feitas pela
autora, podemos ressaltar que se a arte oficial se distanciou da realidade da escola,
nas escolas públicas populares ela nunca se aproximou. Além de não dialogar com a
realidade da arte oficial, e o tratamento curricular proporcionado, e de despir-se como
diz a autora “da reflexão, da critica e da compreensão histórica, social e cultural”,
despiu-se também da compreensão do mundo e toda a sua diversidade, ao fechar-se
em conteúdos que defendem e difundem uma cultura praticamente inalcançável para
as minorias políticas, maioria numérica.

A defesa do ensino de arte na escola já reuniu inúmeros argumentos,


nenhum deles desprezível, mas quase todos alheios aos processos que
compreendem a atividade artística (conceber, fazer/ criar, perceber, ler,
interpretar), seus produtos (obras, manifestações), ações e reflexões.
Esse distanciamento entre argumentos de defesa e a realidade da escola
gerou um tratamento curricular da arte que, além de outras implicações,
despiu esse ensino da reflexão, da critica e da compreensão histórica,
social e cultural dessa atividade na sociedade.7

A realização da pesquisa de campo foi essencial para que eu pudesse me


deparar com as dificuldades dos diversos cotidianos dos professores de arte,
refletisse sobre a prática e a forma como nos posicionamos nas escolas. Os alunos
das escolas públicas populares com os quais tive contato durante este período,
eram brilhantes, o que de alguma forma, mostrou-me como estamos enganados em
subestimá-los e desvalorizar suas histórias e culturas. Culturas no plural por que não
é única, não é só “popular”.

183 art uerj III semana de pesquisa em artes


Precisamos olhar para o ensino da arte não mais como salvação, nem da
cultura e nem das demais almas que não compartilham o gosto estético “erudito”,
pois este só salva uma cultura a “erudita”, aniquilando e discriminando as demais.
O que propôs este trabalho não foi o fim do ensino da arte, mas um renascimento,
onde possam caber as demais culturas. É claro que se a democratização não
acontecer no ensino da arte, a arte continuará sendo arte, ou melhor, arte “erudita”,
defendendo os valores que sempre defendeu. É necessário pensar até que ponto isso
justo e até quando os professores de arte contribuirão ativamente para incitação da
desigualdade no campo da arte.

Ora, essa vontade de verdade, como os outros sistemas de exclusão,


apóia-se sobre um suporte institucional: é ao mesmo tempo reforçada
e reconduzida por todo um compacto conjunto de práticas como a
pedagogia, é claro, como o sistema dos livros, da edição, das bibliotecas,
como as sociedades dos sábios outrora, os laboratórios hoje. Mas ela é
também reconduzida, mas profundamente sem dúvida, pelo modo como
o saber é aplicado em uma sociedade, como é valorizado, distribuído,
repartido e de certo modo atribuído. Recordemos aqui, apenas a
título simbólico, o velho princípio grego: que a aritmética pode bem
ser assunto das cidades democráticas, pois ela ensina as relações de
igualdade, mas somente a geometria deve ser ensinada nas oligarquias,
pois demonstra as proporções da desigualdade.8

Bibliografia
BARBOSA, Ana Mae (org.). Inquietações e mudanças no ensino da Arte. São Paulo: Cortez, 2008.
_______________. Arte/ educação contemporânea: consonâncias internacionais. São Paulo: Cortez, 2005.
CORAZZA, Sandra Mara. Artistagens: Filosofia da diferença da educação. Belo Horizonte: Auntentica, 2006.
_______________. Para uma filosofia do inferno na educação: Nietzsche, Deleuze e outros malditos afins.
Belo Horizonte: Autêntica, 2002.
FOUCALT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola edições, 2008.
MARTINS, Celeste Mirian. Conceitos e terminologia. In: Inquietações e mudanças no ensino da arte.
OLIVEIRA, Inês Barbosa de. Currículos praticados: entre a regulação e a emancipação. Rio de Janeiro:
DP&A, 2005.

184 art uerj III semana de pesquisa em artes


OLIVEIRA, Inês Barbosa de, ALVES, Nilda (orgs.). Pesquisa no/do cotidiano das escolas: sobre redes de
saberes. Rio de Janeiro: DP&A, 2001.
SMIERS, Joost. Artes sob pressão: promovendo a diversidade cultural na era da globalização. São Paulo:
Escrituras, 2006.
SOUCY, Donald. Não existe expressão sem conteúdo. In: Arte educação contemporânea: consonâncias
internacionais. São Paulo: Cortez, 2005. p. 40-51.
TAYLOR, Roger. Arte, inimiga do povo. São Paulo: Conrad Editora do Brasil, 2005.,
TOURINHO, Irene . Transformações no Ensino da Arte: Algumas questões para reflexão conjunta. In: Ana
Mae Barbosa. (Org.). Inquietações e Mudanças no Ensino da Arte. São Paulo: Cortez, 2002, v. 1, p. 27-34.

Páginas da Internet
Grupo de pesquisa: Estudos Culturais em educação e arte. CNPQ: Diretório dos grupos de pesquisa do
Brasil. Acesso em: 19 de julho de 2009.
Disponível em:
http://dgp.cnpq.br/buscaoperacional/detalhegrupo.jsp?grupo=0211708X5E8HPY

Notas
1 http://dgp.cnpq.br/buscaoperacional/detalhegrupo.jsp?grupo=0211708X5E8HPY
2 TAYLOR, 2005, p. 70.
3 SMIERS, 2006, p. 196.
4 Idem.
5 FOUCAULT, 2008, p. 45.
6 TAYLOR, 2005, p. 27/28.
7 TOURINHO, 2008, p. 31.
8 FOUCAULT, 2008, p. 17/ 18.

185 art uerj III semana de pesquisa em artes


III semana de pesquisa em artes
10 a 13 de novembro de 2009 art uerj
arte e conceitos

O estado de comunicação na obra de Lygia Clark

Beatriz Morgado de Queiroz

Graduada em Comunicação Social/ Relações Públicas – UERJ;


estudante de Produção Cultural – UFF

A arte enquanto espaço de produção de sensibilidades torna-se um campo privilegiado para a


comunicação - como espaço de relação e produção de sentidos - processar novas formas de
vida. A presente comunicação propõe a discussão da obra vivencial e questionadora da artista
plástica Lygia Clark como processo relacional e estético de comunicação.

Lygia Clark; comunicação como processo; neoconcretismo.

Art as an area of production of sensibilities becomes an ideal forum for communication - as an


area of relationship and meaning production - processing new forms of life. This communication
proposes a discussion of the questioning work of the artist Lygia Clark as a relational process
and aesthetic of communication.

Lygia Clark; communication as process; neoconcretism.

Não existem coisas estáticas. Tudo é dinâmica. Mesmo um objeto aparentemente


estático não está parado. Ele está apoiado sobre uma série de suportes que por sua
vez estão sendo dinamicamente sugados pela força da gravidade.
Lygia Clark

A comunicação como processo é a base do presente artigo, que buscou entre


os intelectuais do chamado Colégio Invisível uma alternativa ao tradicional modelo
linear de estudar a comunicação. Esta escola era caracterizada por ser uma teia

186
de ligações conceptuais e metodológicas, ou seja, um consensualismo intelectual
que uniu “espiritualmente”, mas quase nunca fisicamente - daí a sua invisibilidade
- um grupo de pesquisadores norte-americanos, a partir de 1950, ao redor das
Universidades de Palo Alto e da Filadélfia, nos EUA.
Este grupo de acadêmicos contribuiu para uma nova leitura da comunicação
e do universo social. Com formação antropológica: Gregory Bateson, Erving
Goffman, Edward T. Hall e Ray Birdwhistell e, psiquiátrica: Don Jackson, Paul
Watzlawick e Albert Scheflen – eles são os precursores da superação da concepção
de comunicação do modelo shannoniano para a descoberta de uma outra, ainda
pouco explorada pelas ciências sociais tradicionais: “a concepção orquestral da
comunicação”. A definição de comunicação que compartilhavam foi indicada na
seguinte afirmação de alguns de seus membros:

“Queremos ressaltar o contexto interacional e comunicacional do uso dos


signos por parte do homem e a maneira como estes são organizados
em sistemas transacionais que integram visão, audição, tato, olfato e
paladar.”(COLÉGIO INVISÌVEL apud WINKIN, 1998, p.110)

Ao basearem as suas investigações nos axiomas: “não se pode não comunicar”


e “a realidade é criada pela comunicação”, eles colocaram em apuros um senso
comum que sempre teve como dado adquirido o real, sentido e palpável, como único
e objetivo. Neste grupo, a comunicação passou a ser estudada por uma perspectiva
que considerava sua circularidade, complexidade e diversos contextos. Para estes
pensadores, a cultura é um conjunto dinâmico de signos, o qual não podemos evitar.
O movimento estabelecido no processo comunicativo é, portanto, o que torna
viva uma sociedade. No entanto, como nos alerta René Berger, a comunicação é
um sistema complexo e “reduzida tão-somente à transmissão dos estímulos verbais,
a mensagem nada mais é do que uma caricatura.” (Op. Cit., p. 122) O autor ainda
destaca que a comunicação é a “manifestação da presença em comum”, e este
intercâmbio deve ser entendido como “o fenômeno pelo qual os seres, não apenas
comunicam, mas também se sentem em instância de se comunicar.” (Ibid.)

187 art uerj III semana de pesquisa em artes


Pensar a comunicação como produção de signos e significados foi necessário
para compreender sua relação com o campo cultural e da arte, nos quais ocorrem
processos dinâmicos e complexos de associações, conexões e relações simbólicas.
Mas é preciso ir além quando o objeto de estudo é a obra vivencial e questionadora
da artista Lygia Clark como processo de comunicação.
Essa gama de possibilidades de produção de significados permite encarar
a comunicação como um fenômeno complexo e vivo, capaz de gerar novidade e
produzir diferenças. Por isso, este artigo investiga também a dimensão política da
comunicação, ou seja, sua potencialidade de criar novos modos de vida ao romper
com modelos pré-estabelecidos de produção de sentido.
Nesse sentido, é utilizado o conceito de “micropolítica” desenvolvido por
Félix Guattari, (GUATTARI e ROLNIK, 1999), de forma a propor uma “micropolítica
da comunicação”, com o auxílio seus conceitos de “produção de subjetividade”
e de “singularidade”. A subjetividade, como micro cosmo político, seria o espaço
da negociação invisível de valores e significados que apela à singularidade para
estimular a criação e a criatividade nos fenômenos comunicativos.
Para Guattari, a micropolítica se refere aos efeitos de subjetivação, ou seja,
ao conjunto de fenômenos e práticas capazes de ativar estados e alterar conceitos,
percepções e afetos (1999, p.127). A comunicação processada nas relações sociais
seria a responsável pela formação do que o autor chama de “agenciamentos coletivos
de enunciação” responsáveis pela construção da subjetividade (Ibid., p.30). A
subjetividade, para Guattari, não estaria centrada no indivíduo, nem no grupo social,
pois ela se daria por processos ligados tanto à expressão interior quanto à expressão
exterior de cada um (Ibid., p. 31).
Todo processo de transformação, segundo o autor, passa pela singularização:
“há sempre uma espécie de multicentragem dos pontos de singularização
no processo de criação”, pois, “por essência, a criação é sempre dissidente,
transindividual e transcultural” (Ibid., p.36). Para o autor, trabalhar no nível
micropolítico é pôr em alerta tudo o que “bloqueia os processos de transformação
do campo subjetivo” (Ibid., p.135) em diferentes espaços de experimentação social,
como o da comunicação processual.

188 art uerj III semana de pesquisa em artes


Fernando Gonçalves afirma que a arte, enquanto campo de produção
simbólica, é um espaço vital para a produção de novas formas de diferença. Segundo
o autor, “como operador discursivo, a arte participa dos processos de produção
de sentido, favorecendo, a um só tempo, a investigação sobre as dimensões da
experiência do humano e o surgimento de novas ferramentas de ação” (2004, p.3).
Acreditando no potencial privilegiado da arte como forma comunicante
criativa, este artigo pesquisa o potencial artístico de Lygia Clark para produção
de sensibilidades e de processos singularizantes de comunicação na esfera
micropolítica. A arte como espaço de criação estética de novas formas de relações e
articulações e de “leitura” poética do mundo é o que interessa a este trabalho. A arte,
portanto, não se limita a um entendimento racional.
A arte é, portanto, capaz de provocar “brechas” necessárias para escapar do
sistema de subjetividade modelizantes, de constituir “linhas de fuga” aos modelos
convencionados e fazê-los refluir e vazar. (Gonçalves, 2004, p.3) René Berger já
destacava que:

“a forma da mensagem plástica (ou poética) jamais corresponde nem


pode corresponder de maneira totalmente adequada, a uma significação
preestabelecida. Existem sempre e necessariamente os hiatos. Em
contrapartida a obra de arte produz – este o seu mérito – uma nova
adequação entre os signos que a constituem e a significação de que são
portadores e que é dado a cada novo olhar promover.” (1977, p.125)

Este autor alertava sobre a potencialidade da atividade artística ao destacar


que “a arte começa sempre por uma ruptura e não pode haver arte sem ruptura” e
que “constantemente ameaçados pelo desgaste da “codificação”, os sinais passam
periodicamente pelo cadinho mediante um empreendimento de regeneração que é a
arte.” (Ibid., p.126)
Há ainda quem afirme que a capacidade artística de sensibilizar com
muito mais facilidade do que efetivamente colocar algo de objetivo e concreto na
significação humana, tenderia a uma incomunicabilidade da arte, por comunicar

189 art uerj III semana de pesquisa em artes


não à razão, mas sim aos sentidos. Mas, partindo de um ponto de vista contrário,
acredita-se que esta capacidade de sensibilizar é a principal veia comunicativa da
arte, pois assim como afirma René Berger, “a arte transforma o ato de comunicar em
uma gênese.” (Ibid., p.133) Talvez, por esse motivo, Décio Pignatari comente que “um
(bom) poema não se esgota: ele cria modelos de sensibilidade.” (Op. Cit., p. 06)
A dificuldade de se pensar a arte fora da interpretação racional ocorre
principalmente pela impossibilidade da visibilidade neste tipo de comunicação. A
comunicação na arte não está na obra de arte enquanto espaço físico, mas sim na
comunicabilidade que se processa por meio das emanações sensíveis destes objetos,
“não-objetos” ou proposições artísticas no momento em que atravessam e afetam ao
outro, tal como na obra de Lygia Clark, como veremos adiante.
Ciro Marcondes Filho ao apontar cinco teses de comunicação contemporâneas
que questionam o potencial comunicacional humano destacou os estudos de Maurice
Merleau-Ponty por estabelecerem que “as comunicações são antes extralingüísticas e
promovidas pela interação humana. A verdadeira comunicação é anterior a linguagem
e se estabelece na própria coexistência entre os seres humanos, no mundo.” (Apud
Vilalba, 2006, p.28) É exatamente por isso que defendemos que a arte é do campo do
sensível e não do racional.
Esta é a discussão proposta pela filosofa Eliane Escoubas, em “A Obra de Arte
como Comunicação não-Verbal”. Neste artigo, a partir de Merleau-Ponty, a autora
se apóia na região do sensível para investigar a obra de arte, rejeitando o primado
da polaridade sujeito-objeto (Ibid., p.59). A autora conclui que para o pensador, “a
sensação é comunicação: é inter-corporal, tece um <<entre-mundo>>.”(Ibid., p.58)
A autora sinaliza que a obra, segundo Merleau-Ponty, não estaria na qualidade
de produto, e sim no <<sentir>> (Ibid., p. 56). Para ele, a estrutura que permite
a conexão com o sensível é o corpo, enquanto meio expressivo e não objetivo,
sendo um “nó de significações vivas”, um “sistema de trocas” que permite “tecer a
comunicação”. (Apud Escoubas, 1993, p.56) É, portanto, pela plurisensorialidade
que encontramos a linguagem orgânica da arte capaz de incorporar o metafórico e o
físico. Assim, como alerta Pignatari, “o tato, o olfato e o paladar também contribuem
para o mundo das formas: há formas táteis (liso/aspero), olfativas (cheiros, perfumes),

190 art uerj III semana de pesquisa em artes


formas do sabor (doce/amargo)” (1978, p.50), permitindo a construção estética de
processos comunicativos pelos sentidos e entre os sentidos.
Arte e comunicação se fundem como campo privilegiado para a emergência
de um “corpo sensível” às vibrações e aos ritmos de outros corpos. Desta forma, a
criação artística é vista como exercício que orienta a criação de novos modos de
vida. Logo, a arte deve ser entendida em sua dimensão poética e micropolítica da
comunicação como processo relacional. A obra de Lygia Clark fala exatamente deste
“corpo sensível” que se comunica a medida que é vivenciado.
A trajetória de Lygia Clark se realizou concomitante ao desenvolvimento de
uma nova forma de pensar e fazer arte, que se distanciou dos conceitos tradicionais
modernistas e fez emergir a arte contemporânea. Em sua condição contemporânea,
a arte surge reivindicando novas formas de significação e sensorialidades,
caracterizando-se por apresentar uma ampla disposição à experimentação. E
experimentar era o tom de toda a obra de Clark.
Essa artista teve um importante papel na ampliação do campo da arte
contemporânea no Brasil, a partir da década de 1950. Ao incitar o espectador a
construir a obra, aproximar arte e vida, enquanto estratégia de interferência efetiva
na cultura e despertar uma poética sensório-corporal, suas propostas excitam
experiências estéticas e comunicativas singulares e produtoras de modos diferentes
de vida. Na visão dessa artista, a obra de arte se situava na relação de troca entre as
pessoas, em sua condição subjetiva que se estabelecia por meio da vivência de suas
propostas e experiências artísticas interativas e sensoriais.
Durante toda sua trajetória, Clark sempre buscou na arte formas inovadoras
e intensivas de uma comunicação relacional em processo, rompendo barreiras para
proporcionar um diálogo efetivo entre arte e vida. Com a quebra da moldura e a
posterior morte do plano, durante o período de produção das Superfícies Moduladas,
dos Planos em Superficie Modulada, Contra-relevos e Casulos, o espaço pictórico se
viu livre para se comunicar com o espaço real. Ao pintar a moldura, Clark desconstruiu
a zona neutra que separava obra e mundo e reclamou para o artista, implicitamente,
uma nova situação no mundo. (GULLAR in CLARK, 1980, p.10) Ela dizia: “Nunca fui
considerada pintora concreta ortodoxa. Fiz parte de grupos para depois ajudar a rompê-

191 art uerj III semana de pesquisa em artes


los; o que eu queria era outra espécie de comunicação”. (apud ROLNIK, 1999, p. 33).
Ciente de que as noções objetivas não suportavam a “realidade” da obra de
arte enquanto organismo estético vivo, Clark rompe com o formalismo concreto e
participa da fundação do Neoconcretismo, em março de 1959. Amílcar de Castro,
Ferreira Gullar, Franz Weissmann, Lygia Clark, Lygia Pape, Reynaldo Jardim e Theon
Spanúdis anunciaram uma nova maneira de pensar e produzir arte:

“Não concebemos a obra de arte nem como “máquina” nem como


“objeto”, mas como um quasi-corpus, isto é, um ser cuja realidade não
se esgota nas relações exteriores de seus elementos; um ser que,
decomponível em partes pela análise, só se dá plenamente à abordagem
direta, fenomenológica. Acreditamos que a obra de arte supera o
mecanismo material sobre o qual repousa, não por alguma virtude
extraterrena: supera-o por transcender essas relações mecânicas (que a
Gestalt objetiva) e por criar para si uma significação tácita (M. Ponty) que
emerge nela pela primeira vez.” (Manifesto Neoconcreto, 1959)

Apesar de se destacar como uma das expressões mais fortes do movimento


neoconcreto, Clark se desligou do grupo em 1961. É neste período que criou os seus
primeiros Bichos, para os quais não aceita a denominação de não-objetos proposta
por Ferreira Gullar, que considera limitada, pois se resume a uma nova classificação
da arte e não alcança o “novo sentido expressivo que a época propõe, que é um novo
conceito do belo: o da coisa viva.” (CLARK in BORJA-VILLEL, 1997, p.139)
Os Bichos são estruturas “vivas”, em que os planos estão ligados por dobradiças,
e necessitam da manipulação do espectador para ativar a obra. Em diálogo, os planos
produzem uma superfície-processo, ocupada por um equilíbrio sempre provisório.
“Na verdade, o que eu queria fazer era expressar o espaço em si mesmo e não
compor dentro dele”, explica Clark. (in BORJA-VILLEL, 1997, p.164) Sobre esta
obra, ao perceber sua iconoclastia, Clark escreve: “expresso pela primeira vez uma
comunicação através do gesto, da falta do avesso do plano, e dou ao espectador a
possibilidade dele criar uma obra de arte, se sentir dono dela.” (Ibid., p.141)

192 art uerj III semana de pesquisa em artes


Acreditamos que a comunicação almejada por Clark seja a comunicação
poética, o que nos levou inicialmente a considerar seus trabalhos como atos
complexos de comunicação. A estrutura orgânica dos bichos, por exemplo, ativada
pela ação do espectador proporcionava uma comunicação tácita e relacional, que
permitia uma metamorfose de signos.
Mas, sem a participação do espectador, seus Bichos, a espera de movimento,
transformam-se em “carcaças” abandonadas, perdendo toda sua potencialidade,
vitalidade e sentido de existir. Ao notar estas limitações, Clark propõe o Caminhando:
um par de tesouras e uma tira de papel são entregues ao público, que é convidado a
colar o papel pelas extremidades opostas de modo a transformar-se em uma fita de
Moebius e então iniciar o corte da mesma.
Nesse caso, o espectador não é apenas ativador da obra, mas o próprio
realizador. O ato faz descobrir a ausência de dentro e fora, de avesso e direito da fita.
Com o corte a tira vai se afinando e encompridando, até que a tesoura não pode mais
evitar o ponto inicial. Nesse momento, a tira separa-se em duas, readquire avesso e
direito e o ato se encerra. Com essa proposta Clark descobre uma realidade nova no
mundo. “Percebo a totalidade do mundo como um ritmo único, global, que se estende de
Mozart até os gestos do futebol na praia”, dizia Clark. (in BORJA-VILLEL, 1997, p.164)
A partir de Caminhando, suas obras perderam o caráter objetual e se
converteram em propostas. (BORJA-VILLEL, 1997, p.14) Clark revela que, diferente
do ready-made de Duchamp, que pensa dar um poder poético ao objeto usado na
vida cotidiana, no Caminhando “não há necessidade de objeto: é o ato que engendra
a poesia.” (in BORJA-VILLEL, 1997, p.153) “A obra é seu ato” (Ibid., p.151)
Em caminhando a obra está no próprio ato de comunicar, pois ao cortar a fita
de Moebius o espectador inverte a linearidade da relação de autoria da obra e imerge
em um processo dinâmico e complexo de associações simbólicas, assim “o ato
instaurador se opõe a instituição, e a completa.” (BERGER, p.129) “Artista e obra se
fazem simultaneamente, em uma inesgotável heterogênese em que ambos nascem e
renascem outros a cada vez.” (ROLNIK, 2002, p. 365).
Por isso, em 1966, Clark anuncia em forma de protesto: “Recusamos o artista
que pretenda emitir através de seu objeto uma comunicação integral de sua mensagem,

193 art uerj III semana de pesquisa em artes


sem a participação do espectador; [...] Propomos o precário como novo conceito de
existência contra toda cristalização estática na duração.” (CLARK, 1980, p.30)
Esta nova relação entre espectador, artista e obra pode ser comparada com
a participação de cada sujeito em uma orquestra, onde “todo indivíduo está em uma
rede comunicacional, como emissor e receptor ao mesmo tempo”, como fizeram os
intelectuais do Colégio Invisível ao proporem um modelo orquestral de comunicação.
(Apud WINKIN, 1998) Nesse contexto, arte e comunicação formam um conjunto
dinâmico de signos geradores de sentido.
Após explorar as possibilidades de incitar a comunicação poética pela ação
do público, Clark percebe a força do toque para atingir essa estratégia e investe na
busca de sensações pelo contato de objetos com partes do corpo do espectador.
Os objetos, desprovidos de uma definição aurática e cristalizada, estimulam nossa
capacidade criativa e geram “modelos de sensibilidade” (PIGNATARI, 1978, p.06)
Com essa convicção, Clark passa a criar novas propostas e convida o público
a vivenciá-las, afinal, “o único sentido da experiência consiste no ato de fazê-la.”
(in BORJA-VILLEL, 1997, p.151) Ao incorporar o espaço vivencial do participante a
obra da artista passa, assim, a explorar outros sentidos além do tato e reivindica o
engajamento corporal e sensorial do público na arte.
Em seu primeiro objeto relacional, Pedra e Ar, o participante é instruído a
segurar um saquinho plástico cheio de ar com as mãos, pressionando-o de forma a
fazer uma pedra, posicionada em uma das extremidades, subir e descer. A “fusão
do corpo dos materiais com o corpo humano que os explora” (ROLNIK, 2006, p.15)
permite que a obra se realize. Com Pedra e ar, a experiência supera a manipulação
que havia sido deflagrada graças aos bichos e alcança a sensação de tocar no real,
na entidade viva: “com a pressão, a pedra subia e descia por cima da bolsa de ar.
Então, de repente, percebi que aquilo era uma coisa viva. Parecia um corpo. Era um
corpo”, escreveu Clark. (in BORJA-VILLEL, 1997, p.315)
A partir dessa descoberta, Clark passou a reunir um grande número
de materiais sem nenhum valor, mas que proporcionavam, pelo toque, uma
“redescoberta tátil” que “provocava um trauma estimulante”. (Ibid.) Nesse sentido,
começa a produzir inúmeras propostas novas que chama de Nostalgia do Corpo.

194 art uerj III semana de pesquisa em artes


A fim de acordar o corpo do espectador, Clark propõe, também, vestimentas
que condicionam os movimentos do corpo do participante, máscaras que introduzem
sensações sonoras e olfativas ao olhar cego do espectador e ambientes-instalações
onde a obra se faz em um percurso de estímulos sensoriais, além de uma infinidade
de outras experiências difíceis de descrever.
A emblemática proposta A casa é o corpo construía um ambiente vivencial. O
público é convidado a entrar em uma imensa instalação-labirinto onde experimenta
uma vivência sensorial e simbólica de penetração, ovulação, germinação e expulsão,
a semelhança do processo vital que ocorre até o nascimento.
Sempre mantendo diálogo com a obra de Clark, Hélio Oiticica escreve,
em 1967, o texto “Aparecimento do suprasensorial”, em que destaca um “novo
comportamento perceptivo” na arte brasileira. O suprasensorial seria “a tentativa
de criar por proposições cada vez mais abertas, exercícios criativos” dirigidos aos
sentidos, pois apelam ao olfato, ao paladar, à audição e ao tato, “para através deles,
da percepção total, levar o indivíduo a uma “suprasensação” ao dilatamento de suas
capacidades sensoriais habituais.” (1967, p.2) Nesse texto, destaca as “ousadas
proposições criativas” de Clark como decisivas para a compreensão desse fenômeno.
Clark começa a intensificar o desenvolvimento de propostas na busca da
incorporação do objeto até o fazer desaparecer, sinalizando a passagem de uma
interatividade apenas manual ou visual para vivências que possam abranger a
escala do corpo todo e ampliar a pele à escala da casa. Fica evidente o objetivo de
desenvolver no participador uma “percepção total”, como propunha o suprasensorial
de Oiticica. (op. cit.) Clark quer chegar ao ponto mínimo da materialidade do objeto
onde ele não é senão “a encarnação da transmutação que se operou em sua
subjetividade – é nesse ponto preciso que o objeto atinge a máxima potência de
contágio do receptor”. (ROLNIK, 2002, p.368)
Ao integrar o objeto ao sujeito para criar a obra, Clark descobriu as vantagens
de chamar o corpo do espectador por inteiro para participar dessa jornada ao sensível.
Assim, podemos comparar esta descoberta de Clark com as idéias de Merlau-Ponty,
para quem o corpo, enquanto meio expressivo, é a estrutura que permite a conexão
com o sensível, tornando possível “tecer a comunicação”. (Apud Escoubas, 1993,

195 art uerj III semana de pesquisa em artes


p.56) E nessa intenção, Clark convidou dois, três, quatro, inúmeros espectadores para
interagir, despertando a vitalidade comunicativa pelo contato entre os corpos.
O tamanho do grupo “sempre cresce segundo um desenvolvimento celular
que se tornará cada vez maior conforme o número de pessoas que participarem da
experiência” (CLARK in BORJA-VILLEL, 1997, p.247), afirma Clark, referindo-se
às suas Arquiteturas Biológicas. Imersos nessa “experiência comunitária” eles se
comunicam, através das expressões corporais e desenvolvem uma “arquitetura viva
em que o homem constrói um sistema biológico que é um verdadeiro tecido celular”.
(Ibid., p.248) Nas palavras de Clark:

“Trata-se de um abrigo poético onde o habitar é o equivalente ao


comunicar... Uma folha de plástico colocada aberta no chão ainda não
é nada. É o homem que, penetrando-a, a cria e a transforma, pois
desenvolve em seu interior comunicações táteis.” (Ibid.)

O homem “cessa de ser o objeto de si mesmo para tornar-se o objeto do outro,


realizando o processo de introversão e extroversão.” (CLARK in BORJA-VILLEL,
1997, p.249) Os participantes reatam-se aos outros formando um corpo comum e
incorporam “a criatividade do outro na invenção coletiva da proposição”. (Ibid., p.249)
As experiências são vividas de forma coletiva e singular.
O potencial de desenvolvimento de formas de comunicação não convencionais
no trabalho de Clark chama atenção de uma das mais reconhecidas academias do
mundo: Clark é convidada para lecionar na Sorbonne, na década de 70. (CLARK
in ROLNIK, 2006, p.70) Agora, seus “abrigos poéticos” chegavam a envolver 60
alunos, que passaram a se expressar, também, verbalmente após as vivências. Clark
pesquisava uma comunicação relacional, criada pelo contato direto entre os corpos,
e propunha, por conseqüência, a pratica da arte “dessublimada, entendida como
processo.” (MILLET, 1992, p.144)
Nas sessões de Baba Antropofágica, Clark incitava seus alunos a descarregar
fios de um carretel de linha, colocado dentro da boca, sobre um dos membros do
grupo, que deitado de olhos vendados, era inteiramente coberto por um úmido

196 art uerj III semana de pesquisa em artes


emaranhado de linhas, formando um molde no corpo afetado. Em seguida, o grupo
enfiava as mãos nesta densa cobertura, desfazendo-a até o fim.
Forma-se uma cumplicidade entre este grupo que atua no corpo do colega,
entrelaçado de forças comunicativas e subjetivas. Para Suely Rolnik, já sem as
vendas, o participante percebe “um novo corpo, esculpido entre todos.” (ROLNIK,
1999, p.19) Desencadeia-se um “processo de contaminação”, onde cada componente
torna-se outro pela ligação imaterial que se cria entre os corpos e “produz sua
constante transformação.” (Ibid.)
Destas formas, a artista conseguia chamar atenção para estados de comunicar
intensivos até então desconhecidos. O corpo coletivo transformava irreversivelmente
a consciência e a consistência da sensibilidade, pois aguçava a capacidade de se
relacionar, não ligada à forma racional e objetiva, mas também ligada à forma expressiva
e sensível, como apontava Merleau-Ponty em sua poética do plurisensorial. (Op. cit.)
Clark percebeu que estas proposições despertavam os “fantasmas” corporais
de seus participantes - uma espécie de “trauma” desenvolvido no corpo de forma a
sacrificar a potencialidade expressiva da pessoa - que eram liberados ou “vomitados”
por meio das vivências. O interesse pela fantasmática prossegue na volta ao Brasil
com o final do curso em Paris.
Adentrando num campo cada vez mais incerto e fronteiriço, inicia uma pesquisa
com uma pessoa de cada vez, cuidadosamente acompanhada em seu enfrentamento
dos fantasmas corporais e psíquicos, abandonando as experiências coletivas.
Na última fase de sua obra, começa a utilizar seus objetos relacionais para fins
terapêuticos, em seu apartamento de Copacabana, em sessões regulares que chamou
de Estruturação do self. Dizendo-se uma não artista, ela avança em um território ainda
pouco explorado e amplia o campo da arte até a fronteira com a psicanálise.
Em contato, os objetos relacionais rompem com modelos pré-estabelecidos
de produção de sentido. Ao sentir os objetos relacionais, o espectador é forçado “a
decifrar a sensação desconhecida”, o que faz dela um signo. (ROLNIK, 2001, p.3) No
entanto, tal decifração depende da invenção “de um sentido que o torne visível e o
integre ao mapa da existência vigente, operando nele uma transmutação”.(Ibid.)
A arte, nesse contexto, tornou-se veículo para as diferenças. À medida que

197 art uerj III semana de pesquisa em artes


a obra de Clark situa-se na esfera da expansão da vida, por experimentar formas
de comunicação que estimulam a afirmação de novas visões de mundo, podemos
caracterizá-la como um fenômeno da micropolítica da comunicação. Seria o que
Rolnik caracteriza como a dimensão ética do trabalho de Clark: “o exercício de um
deslocamento do princípio constitutivo das formas da realidade que predomina em
nosso mundo.” (2002, p.375)
Como escreve Clark “antes o homem tinha uma descoberta, uma linguagem.
Podia usá-la a vida inteira e mesmo assim sentir-se vivo. Hoje, se a gente cristalizar
em uma linguagem, a gente pára, inexoravelmente. Pára totalmente de expressar.
É preciso estar sempre captando.” (In BORJA-VILLEL, 1997, pp. 227-228) As
proposições vivenciais de Clark negam qualquer de iminência de cristalização, o
espectador liberta-se de um olhar que o reduz às suas formas constituídas e sua
representação. Como ela mesmo dizia, na arte “a forma torna-se sua mortalha”,
(CLARK, 2002, p.365) o que explica a sua busca incansável pela processualidade,
pois “entre o ovo e a mortalha, não chega mais a haver intervalo, tudo é processo.”
(Ibid., p.369) A poética de Clark, em sua “busca experimental da liberdade”,
(PEDROSA Apud CLARK, 1999, p.27) forja caminhos singularizantes de comunicação
enquanto processo disposto na esfera micropolítica.
Berger caracterizava a mensagem artística pelo escape da padronização e
pela introdução de novidades em todos os momentos da comunicação. (1977, p.129)
Nesse sentido, a obra de Clark, ao desenvolver a capacidade de reciclagem de
repertório simbólico, reativa a função estética da comunicação.
A arte de Lygia Clark é o campo privilegiado de enfrentamento da comunicação
como dado objetivo, pois incentiva a processualidade, a produção de relações, a
criação de sensibilidades, a produção de diferença no nível micropolitico e geração
de novas formas de vida. Ela privilegia a comunicabilidade como saúde poética
e se lança em sua busca “para que tudo na realidade seja processo”. (CLARK in
FIGUEIREDO, 1996, p.60) Sua singularidade está na potência de experimentação
desse campo, abolindo as “formas-mortalhas” e incitando a escuta do “corpo-ovo”
criador de uma poética da comunicação como processo.

198 art uerj III semana de pesquisa em artes


Referências Bibliográficas
BERGER, René. Arte e Comunicação. São Paulo: Paulinas, 1977.
BORJA-VILLEL, Manuel J. (Edit.). Lygia Clark. (catálogo de exposição) Barcelona: Fundació Antoni
Tàpies, 1997.
CLARK, Lygia. et al. Lygia Clark. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1980.
Manifesto Neoconcreto - Disponível em:
<http://portalliteral.terra.com.br/ferreira_gullar/porelemesmo/manifesto_neoconcreto.shtml?porelemesmo>
Acesso em: 21 dez. 2007.
ESCOUBAS, Eliane. A Obra de Arte como Comunicação não-Verbal. Revista de Comunicação e
Linguagens. p.55-60. Lisboa: Cosmos, n° 17/18, 1993.
GONÇALVES, Fernando Nascimento. Comunicação, cultura e arte contemporânea. Disponível em: <http://
hdl.handle.net/1904/19613> Acesso em: 21 dez. 2007.
GUATTARI, Felix e ROLNIK, Suely. Micropolítica Cartografias do Desejo. Petrópolis: Editora Vozes, 1999.
MILLET, Maria Alice. Lygia Clark: obra-trajeto. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1992.
OITICICA, Hélio. Aparecimento do Suprasensorial. 1967. Programa H.O. # tombo: 0108/67. Disponível em:
<http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia/ho/index.cfm?fuseaction=documentos&cd_
verbete=4641&cod=133&tipo=2> Acesso em: 28 dez. 2007
PIGNATARI, Décio. Comunicação poética. São Paulo: Cortez e Moraes, 1978.
ROLNIK, Suely. (Org.) Lygia Clark: da obra ao acontecimento. Somos o molde. A vocês cabe o sopro.
(catálogo de exposição) São Paulo: Pinacoteca do Estado, 2006.
______________. Molda-se uma alma contemporânea: o vazio pleno de Lygia Clark. In: The Experimental
Exercise of Freedom: Lygia Clark, Gego, Mathias Goeritz, Hélio Oiticica and Mira Schendel. The Museum of
Contemporary Art. Los Angeles, 1999.
Disponível em: <http://www.pucsp.br/nucleodesubjetividade/Textos/SUELY/Molda.pdf>
Acesso em: 27 dez. 2007
______________. Subjetividade em Obra. Lygia Clark, artista contemporânea. Conferência proferida
no Museu d’Art Contemporani de Barcelona, por ocasião das exposições Zuch Tecura e The Prinzhorn
Collection: Traces upon the Wonderblock.Barcelona, 2001. Disponível em:
<http://www.pucsp.br/nucleodesubjetividade/Textos/SUELY/Subjemobra.pdf> Acesso em: 28 dez. 2007
______________. Alteridade e Cultura: Arte Cura? Lygia Clark no limiar do contemporâneo. In: Giovanna
Bartucci. (Org.). Psicanálise, Arte e Estéticas de Subjetivação. Rio de Janeiro: Imago, 2002, p. 365-382.
VILALBA, Rodrigo. Teoria da Comunicação: conceitos básicos. São Paulo: Ática, 2006.
WINKIN, Yves. A nova comunicação. Da teoria ao trabalho de campo. Campinas: Papirus Editora, 1998.

199 art uerj III semana de pesquisa em artes


III semana de pesquisa em artes
10 a 13 de novembro de 2009 art uerj
arte e conceitos

Cantando a resistência, construindo identidade: análise das canções de


Chico Buarque

Carolina Gomes Paulse

Produção Cultural – UFF

Por meio das análises das canções do Chico Buarque da década de 1970, este trabalho
verifica como a produção musical do artista nesse período expressou e registrou as
características de uma identidade subterrânea (expressão usada por Pollak, 1989) que resistia
à ditadura no Brasil. As músicas mostram o desespero, a esperança e o sofrimento de todos
que faziam parte dessa identidade, essas também foram um meio de denunciar, relatar fatos
censurados e enviar notícias aos que se encontravam exilados.

Identidade subterrânea; Chico Buarque; ditadura militar.

Through the analysis of Chico Buarque’s song lyrics on the 1970’s, this paper verifies how the
artist’s musical production in this periode expressed and registered the characteristics of a
underground identity (expression used by Pollak, 1989) that resisted to the ditatorship on Brazil.
The songs show the despair, hope and suffering of all who were part of that identity, those also
were the means to denunciate, to report censored facts and to send news to exiles.

Underground identity; Chico Buarque; ditatorship.

Introdução
Neste trabalho, analisaremos a construção de identidades coletivas dentro de um
período histórico brasileiro – o da ditadura militar no país, que durou de 1964 a 1984.
Relacionaremos algumas características da identidade oficial em contraposição às
características de uma identidade paralela que foi desenvolvida neste período, chamada
por Pollak (1989) de identidade subterrânea. A análise dessa identidade subterrânea se

200
fará principalmente através das canções compostas por Chico Buarque na década de 70.
Para se manter, o governo militar, além das ações repressivas a lideranças
e movimentos políticos e culturais contrários a ele, também buscava reforçar a
identidade coletiva nacional oficial através de um discurso nacionalista, numa
tentativa de deixar o mais estável possível o regime político que se instaurara através
de um golpe no país.
Para se construir uma identidade coletiva, é fundamental que os seus
integrantes acreditem que têm uma história em comum, é necessário criar um
laço afetivo, um sentimento de pertencimento que são desenvolvidos através de
elementos simbólicos, como os lugares da memória, personagens e fatos históricos,
elementos culturais, entre outros, construindo assim uma “comunidade afetiva”.
Muitas vezes, nos casos de construção de uma identidade nacional esses
elementos simbólicos nem são reais, são inventados, imaginados para criar essa
ligação afetiva e dar estabilidade a esta identidade. Essas “comunidades imaginadas”
– usando expressão criada por Anderson (apud SILVA, 2000, p.8) – são necessárias
porque “não existe nenhuma identidade natural em torno da qual se possam reunir as
pessoas que constituem um determinado grupamento nacional”.

Identidade coletiva e ditadura militar no Brasil


O processo de construção de uma identidade seja individual ou coletiva é
realizada através da seleção de fragmentos da memória, construindo uma narrativa
do passado e uma espectativa de futuro. Esse processo de seleção e organização
de fragmentos da memória pode ser chamado, em alguns casos, de enquadramento
da memória. Tal fato ocorre quando a memória coletiva é construída para atender a
função de “definir e reforçar o sentimento de pertencimento e as fronteiras” (POLLAK,
1989, p. 1). Com isso, uma memória cria uma estabilidade e coesão interna em
grupos sociais. Para conseguir essa estabilidade e para conseguir construir essa
comunidade imaginada “o governo militar instalado buscou apropriar-se dos símbolos
pátrios e impingir um nacionalismo xenófobo e truculento” (NERCOLINI, 2006 p. 126).
Em seu discurso oficial, o governo enfatizava que nos encontrávamos em
uma luta entre a civilização cristã ocidental contra o comunismo ateu, o “inimigo”

201 art uerj III semana de pesquisa em artes


estava dentro do mesmo território, a batalha era também psicológica, no coração
e nas mentes dos homens. Esses inimigos, segundo o discurso oficial, renegavam
a condição de brasileiro, tentavam estimular a luta de classes, contrariando a
característica básica dos brasileiros, que eram seres pacíficos e ordeiros. Essa
manipulação da realidade que estava no discurso do governo militar reforçava a
fronteira entre a identidade oficial e a diferença (resistência – comunismo).
Esses argumentos, além de justificar a repressão extremamente violenta a
quem conturbasse a ordem, ou melhor, fosse contra o regime militar, ainda injetava
na população um medo dos comunistas, que eram taxados como terroristas.
Segundo Fiorin (1993), há dois níveis de realidade, um da aparência, que é o
superficial, onde se encontra o politicamente correto, o que quer parecer ser. E, há
também o da essência, que é o profundo, que se compreende o que realmente se
quer transmitir.
No discurso oficial, se encontrava no plano superficial um pensamento ufanista,
de defesa e de desenvolvimento nacional. Foi construída uma memória com itens que
já faziam parte da memória coletiva daquele povo (como o samba e o futebol), o que
facilitou a identificação da população com aquele governo, além de criar um projeto em
que, na teoria, o Brasil ia crescer e se desenvolver de maneira que todos os brasileiros
teriam uma vida confortável e digna, o que fez com que grande parte da população
concordasse com aquele regime e estivesse satisfeita com ele. Podemos confirmar
tal fato na declaração do músico Chico Buarque no dvd Vai Passar: “É sempre bom
lembrar que a ditadura militar contou com um apoio muito forte do pensamento civil,
da classe média”. Mas, ao analisar o plano profundo do discurso (Cf. FIORIN, 1993,
cap. 8), percebemos as reais intenções do governo nesse discurso: tentar manter
aquela identidade da maneira mais estável possível, pois o real projeto não era uma
distribuição de renda e sim uma concentração de renda. Durante este período, o Brasil
aumentou significativamente os índices de desigualdade social.
A repressão imposta pela ditadura militar, entretanto, criou uma identidade
paralela à oficial, originando o que Pollak (1989, p.5) denomina de memória e
identidade subterrânea. A identidade subterrânea foi gerada pela repressão às
idéias diferentes das oficiais e pelas vítimas dos crimes cometidos pelo regime.

202 art uerj III semana de pesquisa em artes


Segundo Pollak, o silêncio não necessariamente gera esquecimento, mas pode gerar
resistência, como foi o caso aqui analisado. Essa identidade resistia não apenas com
armas e violência, mas também no campo simbólico, tentando questionar o sistema
de representação em que a identidade oficial se baseava e buscando, desse modo,
derrubar tanto esse sistema quanto o governo que o sustentava.
Estava, então, em constante disputa com a identidade oficial para conseguir
um meio de chegar à sociedade como um todo e difundir suas idéias e alguns fatos
ocultados pela ditadura militar. Como podemos verificar no artigo “A Música Popular
Brasileira repensa identidade e nação”, de Marildo Nercolini, “o golpe militar resultou
também um forte elemento aglutinador das esquerdas das várias áreas – política,
cultural e artística. O inimigo comum fez aflorar a necessidade de união, superando
as divergências.” (NERCOLINI, 2006, p.127)

Identidade subterrânea e MPB


Segundo Pollak (1985), a forma de manutenção e transmissão da memória
dessa identidade coletiva subterrânea normalmente é oral por meio de círculos de
amigos e familiares. No caso brasileiro, ela é registrada e transmitida, na maioria
das vezes, por meio das diversas expressões artísticas, tendo como uma das
principais formas de registro e transmissão, na época da ditadura militar, aquelas
realizadas dentro do seio da denominada Música Popular Brasileira (MPB). Por causa
disso, foi o estilo mais perseguido pela censura oficial, com destaque para alguns
compositores, como Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Geraldo Vandré e,
mais tarde, também Gonzaguinha.
Como diz Fiorin (1993, p. 38), há vários meios de expressar o mesmo
conteúdo, podendo ser mais bem expressos por algum tipo de manifestação do que
por outros, já que novos significados podem ser agregados ao discurso e outros
deixarem de ser veiculados, devido à coerção do material e dos efeitos estilísticos
da expressão. Assim, neste caso, a música foi o meio de expressão que melhor se
adaptou ao conteúdo a ser expresso.
Isto ocorreu porque os compositores, através de figuras de linguagem como ironias
e metáforas, expressavam seus conteúdos contestatários de uma maneira indireta, de

203 art uerj III semana de pesquisa em artes


modo que passasse pela censura, mas também porque através da canção popular é
“possível conhecer e refletir sobre a problemática da sociedade na conjuntura dos anos
60, pois o artista, com sua sensibilidade, foi capaz de captar as angústias presentes
naquele contexto e expressá-las em suas criações” (NERCOLINI, 1997, p.18). E isto não
serve só para o período da década de 60, mas todo o período da ditadura militar.
Soma-se a esses fatos a música possuir uma outra característica que pode reforçar
e reafirmar uma identidade, que é a repetitividade ou a possibilidade de repetição.
Judith Butler (apud SILVA, 2000), no desenvolvimento do conceito de
performaticidade, explica-nos por que a identidade e a diferença são instituídas por
meio da fala. Ela fala que, dentro da linguagem, há pelo menos “outra categoria
de proposições” (ibid., p. 92) além da descritiva, a performativa, que é aquela
que faz com que alguma coisa se efetive, que acabe produzindo a identidade e a
diferença. mesmo as proposições descritivas podem funcionar como performativas,
porque quando se fala as características de uma identidade, não se está somente
descrevendo-a, também se está reafirmando e reforçando esta identidade. Porque
“aquilo que dizemos faz parte de uma rede mais ampla de atos lingüísticos, que, em
seu conjunto, contribui para definir ou reforçar a identidade que supostamente apenas
estamos descrevendo” (SILVA, 2000, p. 93).
Cabe, no entanto, lembrar que a ocorrência de uma única proposição não tem
quase efeito numa identidade, é através da repetição ou da possibilidade de repetição
das características de uma identidade que esta é reforçada e reafirmada. Mas, do
mesmo modo que a repetitividade de proposições pode reforçar uma identidade
hegemônica, a interrupção e o questionamento destas podem causar a interrupção
destas identidades e a criação de novas e renovadas identidades
A canção, ao ser tocada na rádio, ou através dos discos gravados, ganham
essa repetitividade, o que faz com que o discurso que ela esteja transmitindo seja
difundido e reafirmado.
Ao transmitir pelas canções conteúdos considerados subversivos pelos censores,
entre 1968 e 1970, muitos artistas, principalmente músicos, foram presos, exilados ou
obrigados a se auto-exilarem para manterem, inclusive, a sua integridade física, que
também estava sendo ameaçada. Em artigo ao Pasquim em 1970, Gilberto Gil, que

204 art uerj III semana de pesquisa em artes


estava na Inglaterra, demonstra bem os sentimentos dos artistas exilados, a saudade e
a liberdade causadas pela distância: “Por isso talvez Deus tenha me tirado de lá e me
colocado numa rua fria e vazia onde pelo menos eu possa cantar como passarinho. As
aves daqui não gorjeiam como as de lá, mas ainda gorjeiam” (SILVA, 1994, p.129).
A canção, neste período da história brasileira, foi usada como forma de
comunicação e de registro. Havia sentimentos de falta, de saudade, de perda, de
desespero, de sofrimento e de luta, compartilhados por todos que sofreram exílio,
torturas, prisões e por quem queria acabar com aquele regime. Através dela era
possível passar as idéias que não eram permitidas pelo regime.

Chico Buarque de Hollanda e a resistência política


Um músico que conseguiu expressar muito bem esses sentimentos e realizar essa
comunicação foi Francisco Buarque de Hollanda, mais conhecido como Chico Buarque.
Chico Buarque nasceu em 19 de junho de 1944, no Rio de Janeiro, filho do
historiador e sociólogo Sérgio Buarque de Hollanda e da pianista amadora Maria
Amélia Cesário Alvim. Foi morar em São Paulo aos 2 anos de idade e durante a
infância e adolescência conviveu dentro de casa com conceituados pensadores
brasileiros, ligados ao mundo acadêmico, à política e às artes.
Uma das maneiras de comprovar a importância de Chico Buarque no período
da ditadura militar é resgatarmos o discurso de algumas pessoas que viveram a
época, que compartilharam com ele aqueles sentimentos, que faziam com ele parte
daquela identidade subterrânea, como no exemplo:

Chico nos vingava com o domínio mais puro e perfeito da poesia que
nos parecia perdida. Depois nos vingou com suas provocações sutis
e inteligentíssimas ao regime militar que a todos nós oprimia. Não
tínhamos voz nem talento para o enfrentamento, Chico tinha. Estávamos
todos ali, com ele, por meio dele, também repetindo que o pior ia passar
e que amanha seria outro dia. E parece que Chico nos ouvia. Pois a
cada dia compunha mais, duelava mais, nos representava mais e melhor,
nos enchia de brios e esperanças. (PIMENTEL, 2006 p. 54)

205 art uerj III semana de pesquisa em artes


Na citação acima, pode-se perceber a grande importância exercida pelos
cantores e compositores ligados à MPB. Eles tiveram papel ativo na construção dessa
identidade subterrânea e de resistência. Um dos casos exemplares é a produção feita
por Chico Buarque.
Essa produção dava força às pessoas que estavam sofrendo por causa
daquele regime para continuarem a lutar e esperanças de que aquele sofrimento
um dia iria acabar. As composições registravam alguns fatos e os sentimentos, as
angústias que eram sentidas pelo autor, buscando expressar o sentimento de todo
um grupo de insatisfeitos com a situação do país. Além disso, davam certo conforto
àqueles que não podiam, como Chico o fazia com seu talento, “gritar” o seu protesto
contra tudo o que estava acontecendo.
E, por causa desse caráter de protesto e por essa grande habilidade com as
palavras, é que ele sofreu grande perseguição pela censura, tendo várias de suas
composições censuradas, chegando ao ponto de, em entrevista, dizer que a cada três
músicas enviadas somente uma era aceita pela censura.
Ana Maria Bahiana no livro Nada será como antes mostra como a repressão
afetou o artista e as suas criações. Ela faz a seguinte observação de uma entrevista
com o músico:
Mais do que um acidente, o silêncio passou a fazer parte integrante da
vida de Chico Buarque de Holanda. Não apenas um elemento de seus
dias, mas agora, segundo as suas próprias palavras, que a expressão do
rosto confirma, um dado a mais de sua própria personalidade (BAHIANA,
2006, p.52).

No período inicial da década teve uma maior incidência de músicas que


falassem da esperança de um mundo melhor e da luta pela transformação da
realidade, com por exemplos de músicas como Apesar de você (1970), Acalanto para
Helena (1971), Bom conselho (1972) e Cordão (1971).
Por volta de 1974, a situação piora, e a peça Calabar: o elogio da traição
é censurada na íntegra, e a imprensa foi proibida de pronunciar o nome da peça
ao noticiar a própria proibição. Sua realização foi negada até a última instância,

206 art uerj III semana de pesquisa em artes


no Tribunal Federal de Recursos. O argumento utilizado foi que a peça distorcia a
história do país, Calabar era considerado oficialmente como um traidor e isto não
poderia ser questionado.
Não era só a peça de Chico Buarque que estava nessa situação, vários artistas
também não conseguiam passar seus trabalhos pela censura. Depois deste último
evento, o músico desanima diante da ditadura e passa quase um ano sem produzir nada.
É desse período a composição Cálice (1973), que expressa bem o desespero e
o cansaço com a situação que se estava vivendo.
Uma saída, entre 1974 e 1975, quando já estava mais difícil ter as
composições em seu nome autorizadas pela censura, foi a criação de dois
pseudônimos: Julinho de Adelaide e Leonel Paiva, o que permitiu a aprovação de três
músicas de Chico Buarque: Jorge Maravilha (1974), Acorda Amor (1974) e Milagre
Brasileiro(1975). Mas os pseudônimos tiveram eficácia por pouco tempo, já que logo
depois foi exigido o RG e o CIC do compositor junto com as músicas. No conteúdo
das letras dessas canções, já existe a expressão de uma maior esperança e nelas
havia uma tentativa de denunciar o que estava acontecendo.
Todos os fatos acima arrolados levam a observar o registro da tentativa de
criação de uma outra identidade brasileira, expressada por meio da música, distinta da
que foi simulada pela ditadura militar, o que ocasionou a censura das composições.
Colaborando nesse processo de registro – e até construção – de uma
identidade, algumas composições de Chico Buarque denunciam e separam a
identidade (subterrânea) da diferença (governo militar), o “nós” do “eles”. Segundo
Pollak (1989), como já foi desenvolvido anteriormente, essa separação fundamenta e
reforça os sentimentos de pertencimento.
E nesse discurso da identidade subterrânea, transmitido por meio da música,
ao contrário do que faz crer a identidade oficial, o governo militar se torna o “vilão”,
ele adquire todas as características negativas. Mas, como não se pode transmitir
estas informações diretamente, são usadas metáforas e ironias para transmiti-las.
Como exemplos de canções que demarcam essa cisão entre um “nós” e um “eles”
podem-se citar Apesar de você(1970), Deus lhe pague (1971) e Cordão (1971).
Na canção Apesar de você podemos perceber essa separação em toda

207 art uerj III semana de pesquisa em artes


a canção, já começando pelo título, em que se pode observar um “você” que se
opõe ao narrador. Um dos momentos em que o narrador identifica o “você” como
responsável por todo o sofrimento dele está no verso “Quando chegar o momento /
Esse meu sofrimento / vou cobrar com juros”. Já na canção Deus lhe Pague podemos
observar essa demarcação no título e no refrão “Deus lhe pague”, em que esse
“lhe” se refere ao “eles” e o “nós” é o sujeito que “agradece”. Em Cordão, podemos
observar que há alguém (“eles”) que quer impedir o narrador de agir (“Ninguém
vai me segurar”), e o “nós” está representado em todos que formarão junto com o
narrador uma resistência contra o “eles” (“Pois quem / Tiver nada pra perder / Vai
formar comigo o imenso cordão”).
A análise que será feita aqui se atém a algumas músicas do compositor que
demonstram a construção da identidade subterrânea no período da ditadura militar
brasileira. Apesar de haver outras temáticas nas canções do período, vamos nos
deter nas canções de resistência (ou canções de repressão, como alguns chamam),
que tratam especificamente dessa identidade subterrânea.
Observemos agora nas canções o registro dos sentimentos e as funções que
foram dadas à música durante esse período

Um olhar sobre as canções


Como já dissemos, algumas canções registram principalmente os sentimentos de
esperança, não só do autor, mas de todos que compartilham com ele aquela identidade.
A canção Apesar de você (1970), por exemplo, mostra o sentimento de quem
sofria repressões na ditadura, mas também mostra o projeto dessa identidade
coletiva, um desejo de um amanhã melhor, mais feliz.
No decorrer da primeira estrofe da canção, há o relato do tempo sombrio que
se estava vivendo (“Hoje você é quem manda/Falou, tá falado/Não tem discussão/A
minha gente hoje anda/Falando de lado/E olhando pro chão, viu/Você que inventou
esse estado/E inventou de inventar/Toda a escuridão/Você que inventou o pecado/
Esqueceu-se de inventar/O perdão”), mas a partir da segunda estrofe já aparece
uma esperança de um tempo melhor, aparece o “apesar de você”, a certeza de que
mesmo com toda essa escuridão do presente, o amanhã será um dia de “enorme

208 art uerj III semana de pesquisa em artes


euforia”, e começa a perguntar ao repressor “onde vai se esconder” e “como vai
proibir” as mudanças.
Fala-se da vitória dos que estavam sendo reprimidos, expressada por meio
das metáforas “jardim florescer”, “dia raiar”, “manhã renascer”, “céu clarear” e as
expressões “sem lhe pedir licença” e “morrer de rir”, contrapostas a expressões e
metáforas do início da canção (“você é quem manda”, “falando de lado”, “olhando
pro chão”, “toda a escuridão”, “grito contido”, “samba no escuro”). Nesse segmento
da letra, os repressores são, então, obrigados a ver essa alegria sem se manifestar
(“você vai ter que ver / A manhã renascer”) e, nesse amanhã, o repressor “vai se dar
mal”. Há um grande desejo e promessa de vingança, de se cobrar por toda a dor que
se sofreu (“vou cobrar com juros, juro” / “você vai pagar e é dobrado”).
Junto a Apesar de você (1970), a canção Quando o Carnaval Chegar (1972)
transmite uma esperança de que tudo irá melhorar, de que os culpados por tamanho
sofrimento irão pagar por seus crimes. Nas duas composições há uma espera por
uma amanhã melhor, transmitem o projeto de futuro dessa identidade subterrânea,
que inclui a liberdade de expressão, o fim da ditadura e a punição dos culpados dos
crimes que estavam acontecendo.
Na canção Quando o Carnaval Chegar (1972), essa espera fica bem clara,
manifestada pelo verso “Tou me guardando pra quando o carnaval chegar” repetido
em toda a música; dos vinte versos que compõem a música, em oito deles há
a repetição desse verso. Cria-se uma tensão na espera do “Carnaval”, que é o
momento da transgressão, da revolução, da briga, da transformação da realidade.
O narrador está “vendo, sabendo, sentindo, escutando” e não pode falar, está sendo
ofendido, humilhado e aguardando o momento de revidar (“E quem me ofende,
humilhando, pisando, pensando/Que eu vou aturar”; “E quem me vê apanhando da
vida duvida que eu vá revidar”).
O narrador está agoniado, ainda não pode revidar, não pode falar, não
pode gritar, mas aguarda esse momento, deseja-o, e acredita que este dia está
chegando... (“Eu vejo a barra do dia surgindo, pedindo pra gente cantar / Tou me
guardando pra quando o carnaval chegar / Eu tenho tanta alegria, adiada, abafada,
quem dera gritar”).

209 art uerj III semana de pesquisa em artes


Mas, ao contrário de Apesar de você (1970) e Quando o Carnaval Chegar
(1972), que só desejam e esperam o amanhã melhor e a vingança e que tem como
função principal o registro e a catarse de alguns sentimentos que são comuns a
pessoas de uma identidade subterrânea, há outras composições do autor que
propõem uma ação para alterar essa realidade e alcançar esse projeto.
Podemos observar esse incentivo à ação em canções como Acalanto para
Helena (1971), Cordão (1971), Bom Conselho (1972). A primeira (que não foi
gravada), foi escrita para a filha que nasceu nessa época. Na sua letra, o compositor
se propõe a “sair / por aí afora / atrás da aurora / mais serena” para a sua filha viver.
Em Cordão (1971), há um incentivo a todos que fazem parte dessa identidade
para se unir, para alterar o que não gostam da realidade. As palavras não e ninguém são
repetidas durante toda a canção para reafirmar que não vai se aceitar nenhuma repressão
de ninguém (“ninguém vai me segurar” / “ninguém vai me sujeitar” / “eu não vou renunciar”
/ “ninguém vai me acorrentar”). E a ação proposta é que todos se unam (“formar comigo
o imenso cordão”) e ajam (“quero ver o vendaval / quero ver o carnaval / sair”). A palavra
vendaval junto com a palavra carnaval são metáforas para a transformação, transgressão,
mas associadas a uma alegria, a uma festa, a uma celebração da vida, da vitória.
Pode-se comprovar, nesta canção, que o canto era uma forma de resistência
dessa identidade, perceptível nos últimos versos da canção onde a palavra “cantar”
é repetida várias vezes como uma forma de liberdade: “Ninguém vai me acorrentar/
Enquanto eu puder cantar/Enquanto eu puder sorrir/Enquanto eu puder cantar/
Alguém vai ter que me ouvir/Enquanto eu puder cantar/Enquanto eu puder seguir/
Enquanto eu puder cantar/Enquanto eu puder sorrir”.
Já a canção Bom Conselho (1972) dialoga com ditados populares, alterando-os de
maneira a instigar o ouvinte à ação. Ditados como “quem espera sempre alcança”, “quem
brinca com fogo se queima”, “faça como eu digo, não faça como eu faço” e “pense duas
vezes antes de agir”, que pregam a cautela, a obediência e a passividade são alterados
para “quem espera nunca alcança”, “brinque com meu fogo / venha se queimar”, “faça
como eu digo/ faça como eu faço” e “aja duas vezes antes de pensar”, como um convite
ao ouvinte para se arriscar a agir e a resistir. Toda a letra da canção é destinada ao
ouvinte com verbos de ação no modo imperativo, o que corrobora o incentivo à ação.

210 art uerj III semana de pesquisa em artes


As canções analisadas acima mostram fundamentalmente a esperança numa
sociedade melhor, com mais liberdade, mais comunhão e mais alegria, apesar de não
deixar de fazer alusão a um momento presente de dor e de opressão e demonstrar
um desejo de vingança. Mas nem sempre o otimismo e a esperança estão presentes
nas letras, outras músicas dão ênfase justamente a sentimentos mais negativos.
Em Deus lhe Pague (1971), por exemplo, podemos observar o tema do
desespero dos cidadãos com a falta de liberdade e com o excesso de controle dos
militares, manifestado pela necessidade de se ter autorização para fazer qualquer
coisa (“a concessão pra sorrir” / “por me deixar respirar, por me deixar existir”) e ainda
não se poder reclamar desses fatos.
A expressão “Deus lhe pague”, que se repete no final de cada estrofe,
mostra, ironicamente, a necessidade e a obrigação impostas de se aceitar as ações
opressoras do governo. Somente ao final da canção se propõe a única saída possível
desse tormento, dessa agonia, que é a morte, “a paz derradeira que enfim vai nos
redimir”. Mas essa expressão pode ser interpretada também como uma esperança
de justiça divina, de que aqueles que torturaram e reprimiram sejam julgados e
condenados nem que seja por uma lei divina: todos aqueles que pecaram iriam
“pagar” pelos seus crimes.
Outro exemplo de letra que mostra uma grande agonia e desânimo é Cálice
(1973), que fala do período quando houve o maior número de pessoas desaparecidas,
quando a censura agiu com extremo rigor. Foi composta em parceria com Gilberto Gil
e mostra o grande desespero sentido durante o período militar por muitas pessoas.
Nessa canção, os compositores usam de um episódio bíblico, que é o momento da
crucificação de Jesus, para expressar o que eles queriam dizer naquele momento.
Várias palavras utilizadas nessa composição mostram o sofrimento, como
“amarga”, “dor”, “morta”, “mentira”, “força bruta”, “atordoa”, entre outras. Além dessas
palavras, a palavra “cálice” (que podia ser entendida, pela identidade sonora, como
“cale-se”) é repetida durante toda a música, enfatizando a força da censura da época.
E o verso “afasta de mim esse cálice”, que no final de quatro repetições é completado
pelo verso “de vinho tinto de sangue”, dão a dimensão de como já não se aguentava
mais a censura, o silêncio que era imposto violentamente. Outras composições também

211 art uerj III semana de pesquisa em artes


mostram esse desespero, como Gota d’água (1975) e Pedaço de mim (1977-1978).
A canção, em alguns casos, é quase jornalística, muitas vezes assumia a
função de tentar transmitir notícias que os meios de comunicação não conseguiam
transmitir por causa da censura. Alguns exemplos disto são as canções Acorda Amor
(1974), Angélica (1977) e Jorge Maravilha (1974).
Em Angélica (1977), o narrador conta o caso do filho de Zuzu Angel. Ele não
fala da estilista de sucesso, mas sim da luta de uma mãe que teve o seu filho preso,
que sumiu nos porões da ditadura, sendo posteriormente assassinado pelo governo
durante a ditadura.
Podemos, por meio dessa canção, ter um relato deste caso que era semelhante
a tantos outros. A canção mostra o sofrimento da mãe que não sabe onde se encontra
o seu filho e da luta que ela travou para tentar descobrir o seu paradeiro. O sofrimento
da ausência do filho está marcado nos versos “só queria embalar o seu filho” e “só
queria agasalhar meu anjo”. Mas também podemos apreender o desejo da mãe em
tentar descobrir o que aconteceu com seu filho e de brigar para que pelo menos
seu corpo fosse restituído. A insistência dessa mãe que não se calava e buscava
descobrir o que aconteceu com o seu filho pode ser interpretada pela repetição da
palavra cantar nos versos: “que canta sempre esse estribilho”; “que canta sempre esse
lamento”; “que canta sempre o mesmo arranjo” e “que canta como dobra um sino /
queria cantar por meu menino”. Na própria letra, se tem uma sugestão do destino do
filho “dessa mulher”, que é a “escuridão do mar”, já que “ele já não pode mais cantar”.
E por intermédio do primeiro verso, que se repete em todas as estrofes (“quem
é essa mulher”), o narrador parece estar “brincando de adivinhação” com o ouvinte
e deixa algumas pistas na letra para este identificá-la. A começar pelo próprio título,
ANGÉLica, em que há uma alusão ao sobrenome da personalidade pública que perde
seu filho, além de, no meio da canção, haver uma referência ao filho como “meu anjo”
(“só queria agasalhar meu anjo”). Angel significa anjo em inglês.
No caso de Jorge Maravilha (1974), há uma explicação dada por Chico Buarque
numa entrevista do caderno Folhetim da Folha de S. Paulo em 1978, segundo o site oficial
do compositor, quanto ao fato de que brincava, por meio da música de Julinho de Adelaide,
com o fato de um agente de segurança pedir um autógrafo para a filha: “Aconteceu de

212 art uerj III semana de pesquisa em artes


eu ser detido por agentes da segurança e no elevador o cara pedir um autógrafo pra filha
dele. Claro que não era o delegado, mas aquele contínuo da delegacia...”
Esse fato mostra como Chico Buarque era conhecido e tinha muitos fãs, apesar
de toda a censura às suas composições. Nessa mesma entrevista, ele afirma que
sabe que, pelo fato de ser uma pessoa muito conhecida e adorada, tinha a garantia
de proteção em relação à polícia (“[...] o fato de que a minha popularidade era meu
guarda-costas. Eu sabia que nunca seria um Vlado. Tinha certeza de que gozava de
uma certa cobertura”). Ele sabia que, por ter essa proteção, ele também tinha um
“dever”: “Normalmente ia com essa certeza e com uma obrigação: já que tenho essa
cobertura, posso ir mais longe que outras pessoas, se não for.... ah sim, estou sendo
fraco, covarde, canalha.” (BUARQUE, 2006).
Mas essa proteção não era tão grande, ele podia mais, mas não podia fazer
tudo o que quisesse. No caso de Acorda Amor (1974), também conhecida como
Chame o Ladrão, o compositor faz menção a um caso que aconteceu com ele,
fazendo crer que até o popular Chico Buarque corria risco. Podemos confirmar isso na
entrevista que ele deu para o Pasquim em 1975 (apud SOUZA, 2009 p.45), em que o
compositor relata a experiência de ter acordado “com a polícia dentro do quarto”.
Na letra da canção, o narrador repete o verso “acorda amor”, em menção ao
fato de que ele estava literalmente dormindo quando a polícia entrou em seu quarto,
mas também é como se chamasse a atenção para que as pessoas “abrissem os olhos”
para o que estava acontecendo. O narrador também mostra esse fato como se fosse
um sonho, um pesadelo no início, mas depois vem a consciência de que aquilo estava
de fato acontecendo: “Não é mais pesadelo nada / Tem gente já no vão da escada”. A
alusão exata ao fato real ocorre no verso: “São os homens e eu aqui parado de pijama”.
Durante toda a canção, há uma repetição da expressão “Chame o ladrão”, o que
mostra, como o compositor mesmo conta no DVD Vai Passar, o clima de insegurança
que se tinha durante a ditadura militar: “É realmente o caso de chamar o ladrão porque
todo mundo tinha muito mais medo de polícia do que do ladrão. Não era nenhuma piada”.
Para além de cantar os fatos vividos que não tinham acolhida na imprensa,
a canção de Chico Buarque se tornou um meio de comunicação com os amigos. É
o caso de Meu Caro Amigo (1976), uma música-carta com remetente e destinatário

213 art uerj III semana de pesquisa em artes


– o amigo Augusto Boal, que se encontrava na Europa. Nessa música, há alguns
elementos próprios da estrutura de uma carta, como a saudação presente no primeiro
verso (“Meu Caro Amigo”) e a despedida no último, com a palavra “adeus”.
No decorrer da composição o narrador manda notícias para um amigo exilado
e, nos primeiros versos da terceira e quarta estrofes, explica a falta de notícias até
então e a razão por que estava mandando notícias por intermédio de uma fita (“Meu
caro amigo eu quis até telefonar / Mas a tarifa não tem graça” e “Meu caro amigo eu
bem queria lhe escrever / Mas o correio andou arisco”). Podemos observar, nesses
versos, uma insegurança vivida de tal modo que nem enviar cartas ou telefonar era
possível. A canção, neste caso, tornou-se uma forma “segura” de enviar notícias ao
amigo. Esse clima é corroborado pelo verso “Mas o que eu quero é lhe dizer que a
coisa aqui tá preta”, que se repete em todas as estrofes.
Essa carta tem destinatário e remetente, o que se pode apreender pelos
últimos versos. O destinatário, como dito anteriormente, era Augusto Boal, cuja
mulher, na época, chamava-se Cecília (“ Um beijo na família, na Cecília e nas
crianças”), era ele o caro amigo que estava na Europa; e os remetentes eram os
compositores da canção (Chico Buarque e Francis Hime), mas também constatável
pelos próprios versos, com a referência à Marieta Severo, a esposa de Chico Buarque
nessa época(“A Marieta manda um beijo para os seus”) e com o verso “O Francis
aproveita pra também mandar lembranças”.
A importância dessa canção, tanto para o destinatário quanto para todos que
estavam fora do Brasil, pode ser percebida no relato de Augusto Boal no livro Chico
Buarque do Brasil:

Minha mãe visitante [em Portugal] me disse que tinha trazido do Brasil uma
carta do Chico. Pusemos a carta-cassete na vitrola e, pela primeira vez,
ouvimos “Meu caro amigo”, com Francis Hime ao piano. Falávamos de
tristeza, e ouvimos um canto de esperança. Chico resistia, aqui no Brasil,
escrevendo “Apesar de você” e “Vai Passar”, e nos ajudava a resistir, lá
fora, cantando sua amizade.” (BOAL, apud FERNANDES, 2004, p.45)

214 art uerj III semana de pesquisa em artes


No DVD Vai Passar, Chico Buarque fala da falta de um meio de comunicação
bom e confiável: “Uma dificuldade que havia muito grande na época de comunicação,
falar com o Brasil era muito difícil, era caro, você mal ouvia o que se falava no telefone
e não se falava as coisas direito no telefone também porque havia sempre esse
receio...”. Então, muitas canções tomaram a feição de verdadeiras correspondências,
como foi Samba de Orly, (1970), por exemplo, outra canção que se encarregou de
mandar recados, provavelmente do próprio Chico Buarque em auto-exílio na Itália.
Havia outras composições de Chico Buarque que apelavam para a resistência,
seja dentro do Brasil ou fora dele, no exílio, como podemos ver na declaração de
Augusto Boal acima transcrita e apontavam para uma esperança.
Essa esperança e a essa resistência se encontram, por exemplo, em Até o
fim (1978), que conta a historia de um menino que, mesmo dando tudo errado na
sua vida desde o início (“Inda garoto deixei de ir à escola / Cassaram meu boletim”;
“Quebraram meu bandolim / Não querem mais ouvir as minhas mazelas / E a minha
voz chinfrim / Criei barriga, minha mula empacou”; “ Deu praga no meu capim /
Minha mulher fugiu com o dono da venda”) , vai “Até o fim”. Há um momento em
que já aconteceu tanto infortúnio que ele chega a nem saber mais o que deseja do
futuro, mas não desiste: “Eu já nem lembro pronde mesmo que vou / Mas vou até o
fim”. O verso “Mas vou até o fim”, ao ser repetido em todo final de estrofe, mostra a
insistência em continuar lutando e o desejo e a certeza de que se vai chegar ao fim
daquela situação que se estava vivendo.

Conclusão
A canção registra a história sobre um ponto de vista subjetivo, através de
sensações e sentimentos, diferentemente dos livros e dos documentos de arquivo,
em que o registro é feito de forma pretensamente objetiva. Esse registro por meio
dos sentidos e das sensações aproxima o relato das vivências do receptor, que, por
tabela, os recorda ou os vivência (mesmo não tendo deles participado). Por meio das
canções de Chico Buarque, verificamos como os desejos e os sentimentos de uma
identidade coletiva e censurada estavam expressos nessas canções.
Constatamos, nas canções analisadas, que se pode apreender a distinção do que

215 art uerj III semana de pesquisa em artes


faz ou não parte daquela identidade subterrânea. Em algumas canções, há a existência
de um projeto de futuro, um incentivo à luta para mudar a realidade e um desejo de
punição para os opressores. Em outras, somente sobram o desespero e a insatisfação.
Em outras ainda, as canções eram um registro dos fatos calados pela censura.
O importante a destacar é essa capacidade de resistência, nem sempre
explícita, mas sempre necessária, que pode ser manifestada pelos vários produtos
artísticos e culturais. Nesse caso, as canções de Chico Buarque de Hollanda se
tornaram o veículo de uma identidade subterrânea que assumiu um modo de
resistência à ditadura militar instalada no Brasil entre as décadas de 60 e 80,
refletindo, nas ações e nos movimentos históricos, todo seu dinamismo e pluralidade.

Referências bibliográficas
BAHIANA, Ana Maria. Nada será como antes: MPB anos 70. Rio de janeiro: Senac Rio, 2006.
BUARQUE, Chico. Vai Passar. DVD Coleção Chico: A série, vol.3, Emi Music, 2006 (Direção: Roberto de
Oliveira).
_____. Site de Chico Buarque. Disponível em: www.chicobuarque.com.br. Acesso em: 14/12/2008.
FERNANDES, Rinaldo (org.). Chico Buarque do Brasil. Rio de Janeiro: Garamond e Biblioteca Nacional,
2004.
FIORIN, José Luiz. Linguagem e Ideologia. São Paulo: Editora Ática, 1993.
NERCOLINI, Marildo José. A Música Popular Brasileira repensa identidade e nação. Revista FAMECOS,
Porto Alegre, PUC-RS, nº 31, dezembro de 2006, p. 125-132. Online: http://www.pucrs.br/famecos/pos/
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PIMENTEL, Luis. Com esses eu vou. Rio de Janeiro: Zit Editora, 2006.
POLLAK, Michael. Memória, esquecimento e silêncio. In: Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n. 3, 1989, p.
1-11. Disponível em: http://www.cpdoc.fgv.br/revista/arq/43.pdf. Acesso em: 14/12/08 .
SILVA, Alberto Ribeiro da. Sinal Fechado: a música popular brasileira sob censura. Rio de janeiro: Obra
Aberta, 1994.
SILVA, Tomaz Tadeu da. A produção social da identidade e da diferença. In: ______. (org.) Identidade e
diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: Vozes, 2000, p. 73-102.
SOUZA, Tarik de. O som do Pasquim. Rio de Janeiro: Desiderata, 2009.

216 art uerj III semana de pesquisa em artes


III semana de pesquisa em artes
10 a 13 de novembro de 2009 art uerj
identidades, alteridades

Arte e Alteridade em Medéia1

Giseli Ribeiro

Artes Visuais – Licenciatura – UERJ

Este trabalho procura fazer uma pequena análise da questão da Ética, da Alteridade e do
Outro, abordadas nos dois primeiros capítulos do livro Ética de Alain Badiou. As partes que
se seguem são dedicadas a Medéia, tragédia de Eurípides, representada no filme de Paolo
Pasolini, e sua relação com a questão da Alteridade.

Ética; Outro; Medeia.

This paper intends to make a simple analysis of the issue of Ethics, of Alterity and the Other,
concepts which are studied in the first two chapters of the book Ethics, by Alain Badiou. The
following parts are dedicated to Medea, the tragedy of Euripides, presented in the movie
directed by Paolo Pasolini, and its relation to the question of the Otherness.

Ethics; Other; Medea.

Quando falamos de “ética”, na concepção mais contemporânea da palavra,


estamos falando dos direitos do homem, e indiretamente falando do que é bom e
do que é justo. Ética é uma palavra que para nós está relacionada ao homem e
sua relação com o mundo2. . Ao longo da história, foi se percebendo que os direitos
naturais do homem não estavam tão garantidos como se pensava, e, para que
estes fossem garantidos, a “ética”, como uma coisa natural, não era vista com tanta
atenção, tendo passado por um processo de legitimação, através da Declaração
Universal dos Direitos do Homem.
Como pensar o homem como sujeito que age e sofre ações? Badiou (Ética -
Um ensaio sobre a consciência do mal, 1995), cita uma tríade de pensadores - Michel
217
Foucault, Louis Althusser e Jacques Lacan - que vão fazer suas considerações a
respeito dos conceitos, homem - como sujeito – e história. O que os três contestavam
era a ideia de que o homem se identificava naturalmente com a “ética”, como uma
legislação consensual referente aos homens em geral, sendo que, na verdade, este
se encontra perdido no meio de ideologias, as quais pregam a justiça e a igualdade,
e que na verdade, acabam dando errado. É neste contexto que podemos dizer que
a “Morte do Homem” (Badiou,1995) refere-se a passividade com a qual ele, Homem,
vive submisso no meio de uma sociedade desigual.
O Homem como sujeito universal, possui a capacidade a priori de distinguir o
Mal, ou seja, aquilo que fere os seus direitos. Mas o que seria o Mal? É aquilo que
dispõe do bem que há em si, e não o contrário. É a partir dessas relações que o
Homem adquire a capacidade de se identificar com o sofrimento do Outro, mesmo
que o que ele entenda por Mal faça parte de um consenso que não foi construído por
ele. Partindo do ponto de vista coletivo, sabe-se o que não deve ser feito, mas não
se sabe o porquê. Dentro dessa capacidade de identificação do Homem, a “ética”
o define como uma vitima capaz de reconhecer a si mesmo como tal, sendo que a
partir dessa definição, é possível colocá-lo não só como a vitima, mas também como
algoz, visto que a humanidade é uma espécie animal. Ela é mortal e predadora3.
Ressaltando que essas duas figuras, algoz-vítima, são abomináveis e fazem com que
o homem se veja simplesmente como objeto e não como sujeito.
Observando a “ética”, a partir do olhar algoz-vítima, das intervenções -
civilizadoras e imperialistas -, e do Homem como “ser vivo”, pode-se concluir que ela
não age como deveria agir, ou seja, dentro da sua humanidade há uma grande parte
de subumanidade4. Essa deficiência da “ética” vem da coexistência de vários sujeitos
e de várias verdades, por isso é impossível falar de uma “ética” que se propõe a
resolver todos os problemas. É esta a proposta de Badiou: evitar pensar a “ética”
como um conceito universal, mas como um conceito fluido.
É dessa forma, que no primeiro capítulo, Badiou faz uma análise biológica do
homem e das problemáticas que envolvem a “ética”.
Tratando agora da figura do Outro, podemos pensar na “ética” como ética do
Outro, e na relação formada quando se fala em identidade e diferença. Para tratar

218 art uerj III semana de pesquisa em artes


essa relação do Eu com o Outro, entraremos na questão da alteridade.
Podemos partir do princípio de que tudo o que é estranho, nós tendemos
a repudiar, por que interfere diretamente em nós e no que está ao nosso redor,
mesmo que tenhamos em mente a concepção mais contemporânea de ética que é o
“reconhecimento do outro”, ainda que esse reconhecimento venha acompanhado de
pré-conceitos. Dentro deste contexto é que Badiou faz a pergunta, O Outro existe?5
Pois é a partir desse Outro é que discutimos conceitos como: tolerância, bom senso,
identidade, alteridade, racismo e muitos outros.
Segundo cientistas sociais e antropólogos, a existência do “eu-individual” só
é possível mediante o contato com Outro, sendo assim eu apenas existo a partir
do outro, da visão do outro, o que me permite também compreender o mundo a
partir de um olhar diferenciado. Partindo tanto do diferente, quanto de mim mesmo,
sensibilizado que estou pela experiência do contato. O mesmo se dá na experiência
do respeito: eu só respeito o outro a partir do momento em que eu me vejo nele, e ele
se vê em mim. Podemos concluir que este é o princípio da alteridade.
A partir desses pontos, podemos pensar a tragédia grega de Eurípedes,
Medeia. Pode-se entender Medeia como a presença física da alteridade em Corinto,
e em vários fatores os quais a tornam mais estranha ainda, tais como: ser mulher, o
que significava estar fadada a privações; ter proveniência meio divina, meio humana,
o que lhe dava dons mágicos, os quais estabeleciam o contato entre esses dois
universos nela presentes, fazendo-a alternar entre amor e ódio.
Medeia é passional, age segundo seus sentimentos, e não segundo a sua
racionalidade. De acordo com o pensamento grego apresentado no texto de Badiou,
“agir de modo adequado supõe de inicio um domínio teórico da experiência, para
que a ação esteja de acordo com a racionalidade do ser”6, ou seja, ao cometer seus
erros trágicos, Medeia agiu segundo a sua subjetividade, uma subjetividade que
foi influenciada por uma outra, no caso a de Jasão. A partir deste contato, Medeia
reformula os seus conceitos, criando assim a sua própria verdade. Podemos concluir
assim que a existência do Outro contribui para a transformação do “Eu [Moi]” 7 em
sujeito que possui história e nome. Essa experiência de contato com a subjetividade
do Outro fez com que Medeia agisse de forma impulsiva, matando o irmão8, o rei

219 art uerj III semana de pesquisa em artes


Creonte, e sua filha, a nova pretendente de Jasão, e os filhos. Ao matar os filhos, ela
quer poupá-los da falta do pai, de uma pátria, e de respeito. Isso fica bem explicitado
na cena9 do assassinato, na qual ela declara todo seu amor aos filhos, em forma de
cuidados, através do simbólico ritual do banho.
Partindo da capacidade que o homem tem de se reconhecer como vítima,
podemos dizer que Medeia se encaixa perfeitamente nessa característica, mas não
completamente, apesar dela ter saído de sua cidade como criminosa. Ela é vítima,
do seu ponto de vista, pois está sendo expulsa de uma cidade, perdendo o cônjuge
e correndo o risco de perder os filhos. O fato de ela ter feito coisas terríveis no
lugar onde estavam contidas as suas raízes, a tornam um Outro em potencial. Ela,
enquanto um bom Outro, só foi vista como semelhante, durante o tempo em que
tinha algo a oferecer, sendo assim aqueles conceitos – tolerância e bom senso – se
aplicam a Jasão e ao Rei, Creonte.
Vendo Creonte, como rei e governante, é compreensível que ele não queira
Medeia e os filhos em Corinto – apesar das crianças terem nascido já em Corinto -,
visto que mais tarde ele não quer sofrer do dilema de ter que dar um cargo da cidade
a um filho de um estrangeiro, ainda que este seja nascido e criado na cidade. E
mesmo que ele tentasse incorporar Medeia e os filhos à cidade, essa experiência
de contato evidenciaria cada vez mais as suas diferenças. Medeia era o Outro, que
sempre estivera distante, agora estava ali presente na cidade e nos deveres do rei.
O princípio da alteridade, do ponto de vista preconceituoso, se aplica muito
bem ao caso de Medeia. Ao mesmo tempo, pensar em alteridade na Antiguidade era
uma coisa impossível, visto que ser muito recente o discurso, a noção que o homem
deve aceitar a diferença do outro. E também porque o pensamento em relação ao
próximo na antiguidade era diferente. E quando digo próximo, falo daquele que reside
na mesma cidade, dentro de mesma cultura.
Com esse exemplo da tragédia grega, é possível ver que as questões que
permeiam a ética se aplicam não somente a história moderna e contemporânea, mas
também à história clássica. Mesmo hoje, quando temos várias ideologias que têm a
ética como principal base, ainda é difícil falar sobre o assunto, porque a cada nova
tentativa de fazer com que o homem pense:

220 art uerj III semana de pesquisa em artes


em uma idéia positiva do Bem e, mais ainda, de identificar o Homem por
tal projeto, é na realidade a verdadeira fonte do próprio mal.(...) Toda
vontade de inscrever uma idéia de justiça ou da igualdade acaba dando
errado. Toda vontade coletiva de Bem faz o Mal. (Badiou, 1995, p.25)

É uma realidade bem assustadora, não há como resolver um problema sem levar
em consideração todo o seu contexto. O próprio rei ao quer afastar Medeia, achando
que isto resolveria o problema errou ao fazê-lo. Talvez conservar as coisas como elas
estão seja uma escolha acertada, ou, podemos seguir o caminho apontado por Badiou,
e lutarmos por um ideal de justiça e igualdade. Assim, corremos o risco de ir na direção
das revoluções e dos regimes totalitários, mas isto faz parte de uma outra discussão.

Bibliografia
BADIOU, Alain. Ética – um ensaio sobre a consciência do Mal. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1995.
CAIRUS, Henrique. Medeia e seus contrários. Fortaleza: Revista de Letras, nº27, 2005.
EURÍPIDES. Medeia. Trad. Maria Helena da Rocha Pereira. Coimbra: INIC, 1991.
FOUCAULT, Michel. O poder Psiquiátrico. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
LACAN, Jacques. A ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1991.

Filme:
Medeia – A Feiticeira do Amor
Diretor: Píer Paolo Pasolini
Ano: 1969
País: Itália / Alemanha / França
Duração: 110 minutos

Notas
1 Este texto foi apresentado como avaliação final da disciplina Metodologia do Ensino da Arte III
ministrada pela professora Denise Espírito Santo.
2 FOUCAULT, Michel. O poder Psiquiátrico. Martins Fontes. São Paulo, 2006.
3 BADIOU, Alain. Ética - um ensaio sobre a consciência do mal. p.23
4 Ibid.p.25
5 Ibid.p.29
6 Ibid.p.30.
7 LACAN, Jacques. A ética da psicanálise. Jorge Zahar, 1991
8 A morte do irmão de Medeia por suas mão só aparece em algumas versões.
9 Filme: Medeia - A feiticeira do amor.1969.

221 art uerj III semana de pesquisa em artes


III semana de pesquisa em artes
10 a 13 de novembro de 2009 art uerj
identidades, alteridades

Inovação e tradição na pintura de Reismarques

Monica Cauhi Wanderley

Mestranda em Artes Visuais – UFRJ

Se pararmos para observar o cenário artístico atual, veremos que a arte contemporânea atingiu
uma intensa variedade de possibilidades criativas. Entretanto, essas possibilidades criativas
nem sempre são florescimentos inéditos, pois a arte contemporânea tem também o passado
como forte fonte de inspiração; como sugere essa pesquisa sobre a obra de Reismarques.

Arte contemporânea; tradição; inovação.

If we observe the current art scene, we’ll see that contemporary art has reached an intense
variety of creative possibilities. However, these possibilities aren’t always a bloom unpublished,
because contemporary art have the past as a strong source of inspiration, as suggested this
research about Reismarques artwork.

Contemporary art; tradition; innovation.

Introdução
Desde tempos passados o fazer artístico tem oscilado em diferentes
dicotomias: certo momento a obra de arte tende a ser elaborada em acordo com a
natureza, outros não; certo momento a obra de arte possui uma finalidade específica
fora do campo da arte, outros não; certo momento o produto artístico final importa
mais que as idéias que esse suscita, outros não, etc., como nos confirma Susan
Sontag (1): “... a arte, ela própria uma forma de mistificação, sofre uma sucessão de
crises de desmistificação; antigas metas artísticas são atacadas e, ostensivamente,
substituídas”... Com isso, vemos que o passado histórico da arte foi construído (e

222
desconstruído) seguindo diferentes tendências e, talvez, por esse motivo a arte
seja uma disciplina tão rica para ser estudada, pois permite um estudo voltado para
diferentes instâncias.
A arte contemporânea, como conseqüência de todo esse passado histórico,
não difere muito deste, podendo também abarcar para si a classificação de
dicotômica, fato que (apesar de trazer grande riqueza) dificulta bastante o estudo
desta. Através de uma simples pergunta como: - O que é arte atualmente? – podemos
perceber o quão complexa é a obra de arte nos tempos atuais. Se, conforme Ricardo
Basbaum (2), a arte contemporânea apresenta uma postura totalmente renovada
em relação ao passado, ou seja, não necessita de um espaço adequado que lhe
garanta um status de artes, não necessita ser elaborada manualmente pelo artista
e nem mesmo necessita que o espectador que a observa tenha consciência que
está diante de um objeto de arte; por outro lado, conforme Hans Belting (3), a arte
contemporânea é uma possibilidade dentre tantas possibilidades já exploradas
anteriormente, ou seja, apresenta uma postura (de alguma forma) ainda em
concordância com o seu passado.
Dessa maneira, acreditamos na incapacibilidade de se encontrar uma resposta
satisfatória para o que é que se possa ser a arte contemporânea, pois, segundo Hans
Belting (4), hoje quem se manifesta a respeito da arte ou até mesmo sobre a própria
história dessa, vê de antemão sua tese invalidada por outras: “Não é mais possível
assumir absolutamente nenhum ponto de vista que não tenha sido defendido de uma
forma ou de outra”.
Isso acontece, (primeiro) porque os próprios artistas e estudiosos mudam as
suas concepções conforme o tempo e a maturidade se dão (5), pois a arte é um
produto subjetivo que, consequentemente, vai (re) agir de acordo com a construção
pessoal de cada um que a vivencia (6), construção essa que não é eterna, pois se
encontra sempre em constante transformação. E, (segundo) porque é muito difícil
perceber e caracterizar uma mudança histórica estando como contemporâneo a
esta, dessa maneira, como poderemos afirmar qual é a tendência artística que se
estabelecerá no futuro nos livros de História da Arte para com o nosso momento se
ainda estamos vivenciando e construindo esse (7)?

223 art uerj III semana de pesquisa em artes


Assim, deixando de lado (ou para um próximo estudo) a idéia de que a arte
contemporânea apresenta uma postura renovada em relação ao passado, nosso
principal interesse para com esse trabalho é refletir sobre como a arte contemporânea
pode ser “uma possibilidade dentre as tantas possibilidades já exploradas
anteriormente”. É possível pensar na presença de uma tradição artística, mesmo
quando uma obra de arte é elaborada tempos depois em que essa tradição se
concebeu?
Entretanto (como em todo trabalho científico), será antes preciso direcionar
o tema, e, por isso, trazemos como pesquisa a pintura elaborada pelo artista
“Reismarques” (“sem título”, 2007), na qual pretendemos discutir sobre a presença da
tradição e da inovação em tópicos como: composição, tema e papel do artista e do
espectador.
No entanto, é importante ressaltar que esse trabalho não tem a intenção de
limitar a produção artística contemporânea, mas sim de procurar compreender uma
pequena parte do seu universo, já que, segundo Francastel (8), por menor e mais
simples que seja uma discussão sobre arte, ela terá sua utilidade na compreensão do
todo.

O artista
A obra proposta como tema de estudo dessa pesquisa foi composta pelo artista
Robson Reis Marques (nome artístico: “Reismarques”). Robson nasceu na cidade
de Cabo Frio (RJ) e desde pequeno demonstrava interesse pelo universo artístico,
visto na facilidade (e no gosto) com a qual manuseava o lápis ao realizar desenhos
dos mais variados (9). Quando jovem mudou-se para o Rio de Janeiro para estudar e
se graduar no curso de pintura da Escola de Belas Artes na Universidade Federal do
Rio de Janeiro. Atualmente, é artista regular da feira hippie de Ipanema, onde expõe
e vende seus trabalhos todos os domingos e atua como artista plástico no circuito
artístico carioca, tendo participado de exposições como a “A Cara do Rio”, ocorrida
no Centro Cultural dos Correios no início do ano de 2009, na qual expôs a obra (sem
título) que pretendemos refletir nesse estudo.

224 art uerj III semana de pesquisa em artes


Reismarques: sem
título, 2007.
Rio de Janeiro,
encáustica, 180X160
cm.
FONTE: http://www.
acaradorio.art.br

Composição da obra
Falar de composição artística no período em que nos encontramos é algo
bastante complicado. Primeiro, porque é impossível destacar uma teoria compositiva
única que permeie toda a produção contemporânea, já que, conforme Arthur Danto
(10), a arte contemporânea é por demais pluralista em intenção e realização para se
permitir ser apreendida em uma única dimensão. Segundo, porque além das novas
técnicas desenvolvidas e empregadas nas composições artísticas temos as técnicas
desenvolvidas e empregadas no passado, que, de certa maneira, (também) se
apresentam como uma possibilidade construtiva para o artista (11).
Dessa maneira, como esse estudo pretende refletir a presença da tradição (e
da inovação) na obra de arte contemporânea, focando (nesse tópico) a composição

225 art uerj III semana de pesquisa em artes


da pintura (sem título) do artista “Reismarques”, acredito que a melhor forma de se
iniciar a discussão sobre esses aspectos seria partindo da própria obra.
Ao lançarmos um primeiro olhar para a pintura de Reismarques, vemos uma
imagem que se apresenta de forma clara e finita (de fácil reconhecimento), mas que,
no entanto, não segue uma estrutura naturalista (de acordo com as leis da natureza,
expoente do período renascentista), fato que nos permite traçar uma relação de
proximidade entre a composição dessa com o período modernista brasileiro. Pois,
no modernismo a ânsia pela busca de uma nova forma de expressão viu-se ainda
delimitada pelas questões clássicas, devido, segundo Ronaldo Brito (12), a uma
falta de maturidade dos próprios artistas, que se encontravam ainda devotos de uma
pintura que apresentasse (regularmente) um tema central e certa distinção entre
figura e o fundo; características da pintura clássica que tanto queriam se libertar.
Reismarques não anseia a novidade, mas destaca a tradição ao elaborar um
desenho (esboço da imagem final) para iniciar a composição da sua obra, ou seja,
uma forma finita é demarcada em um período inicial de seu trabalho artístico. Por
outro lado, destaca a novidade ao utilizar como material coloritivo a cera de abelha
(ao invés de tintas tradicionais), que acaba transformando o desenho inicial em uma
explosão de cores, texturas, borrões, etc.
Assim, a composição de seu trabalho apresenta características tradicionais
que podem facilmente dialogar com as teorias desenvolvidas por Leon B. Alberti
(13), teórico renascentista, que defendia que a arte pictórica deveria ser elaborada a
partir de três pontos principais: composição (que consistia na representação de uma
história), desenho (que deveria anteceder a composição) e colorido (que harmonizava
o desenho à composição e atraia o olhar do espectador). E, características
inovadoras que podem facilmente dialogar com as teorias de Duchamp (14),
teórico contemporâneo que defendia que a arte poderia ser composta por materiais
alternativos (não elaborados com a finalidade de compor um objeto de arte).
A presença marcante dessas características dicotômicas na composição da
pintura de Reismarques nos permite buscar explicações no pensamento de Anne
Cauquelin (15), quando essa exalta que:... “o que encontramos atualmente no
domínio da arte seria muito mais uma mistura de diversos elementos, sem estarem

226 art uerj III semana de pesquisa em artes


em conflito aberto, mas lado a lado trocam suas fórmulas, constituindo então
dispositivos instáveis, maleáveis, sempre em transformação”.

Tema
Sobre o tema, segundo Alberti (16), a pintura propõe aos seus espectadores
a construção de uma narrativa, que possibilita um prazer “em igual intensidade” à
leitura de um livro. Assim, para esse filósofo europeu do século XV, o resultado do
trabalho do pintor não difere muito do resultado do trabalho de um escritor, a única
diferença relevante estaria no fato de que o primeiro proporcionaria a construção de
uma narrativa a partir do pincel, enquanto o segundo proporcionaria a construção de
uma narrativa a partir das palavras.
Por possuir uma composição figurativa, onde um enredo está de fato
acontecendo (como em um livro), a obra de Reismarques nos convida a realizar
uma construção narrativa: “É um episódio doméstico. É um affair entre amantes
não casados... Como que por acaso, a mulher conhece o homem em um ambiente
social comum aos dois, e uma atração logo se concretiza. Um encontro é marcado,
mesmo que eles não saibam ao certo no que esse resultará: amor? Amizade? Ou
somente horas desperdiçadas? Após alguns goles de cerveja, o encontro resulta
em algo que talvez os dois, homem e mulher, já esperavam. Ela o convida para
mais um gole em seu apartamento, ele aceita sem questionar as suas segundas
intenções, afinal, era tudo o que desejava desde o primeiro esbarrão. E a noite se
desenrola. Beijos, abraços, toques, frases levianas, nada de reprovação, mas, pelo
contrário, tudo auxilia e engrandece o fogo do momento. Ao final só lhes resta uma
opção: um banho quente para que a limpeza dos corpos suados seja realizada e
a roupa possa ser colocada, voltando cada um para a sua rotina diária, apagando
do local a história que ali aconteceu. Na banheira, o rapaz cansado, mas ainda
excitado, pensa em se submeter a uma nova investida e desta maneira prepara-se
aguardando uma resposta. A mulher, feminina e determinada, já realizada, num gesto
de indiferentismo se levanta, vai à geladeira, pega mais uma cerveja, volta à banheira
e limita educadamente a investida de seu amante com um toque de carinho em seu
peito, realizado pelas pontas dos dedos de seu pé direito (momento em que o artista

227 art uerj III semana de pesquisa em artes


escolheu), como quem diz: - Agradeço pelo prazer que você me proporcionou, mas
agora quero descansar e curtir minha cerveja.”
Ao leitor desse trabalho (em um primeiro momento) pode até parecer
irrelevante a descrição da narrativa acima, mas quando comparada à narrativa
escrita pelo crítico Gonzaga Duque (17), em 1888, sobre a obra: “Arrufos” de Belmiro
Barbosa de Almeida, vemos uma incrível semelhança, diferenciada “apenas” na
atuação da mulher :

É um episódio doméstico, uma rusga entre cônjuges. O marido, um


rapaz de fortuna, chega em companhia da esposa à bonita habitação em
que viviam até aquele dia como dois anjos. Tudo em redor demonstra
que aquele interior é presidido por um fino espírito feminino, educado e
honesto. Ela, no encanto desse interior à bric-a-brac, depõe o toucado
de palha sobre um mocho coberto por um belo pano de seda e entra em
explicações com o esposo. E ele, muito a seu cômodo em um fauteuil de

Belmiro de almeida:
Arrufos, 1887.
Rio de Janeiro, óleo
sobre tela, 89 X 116 cm.
FONTE: http://www.
mnba.gov.br/2_colecoes

228 art uerj III semana de pesquisa em artes


estofo sulferino, soprando o fumo do seu colorado havana, responde-lhe
palavra por palavra às explicações pedidas. Há um momento em que
ela excede-se, diz uma frase leviana; ele reprova, ela retruca, ele repele;
então ela não se pode conter, é subjugada por um acesso de ira, atira-
se ao chão, debruça-se ao divã para abafar entre os braços o ímpeto do
soluço. É este o momento que o artista escolheu. Da esposa, debruçada
sobre o divã, vê-se apenas o perfil, mas ouve-se-lhe os soluços que
fazem estremecer o seu corpo... E o esposo, um guapo rapaz delicado
e forte, num gesto de indiferentismo, atende a tênue fumaça que se
desprende do charuto, levantando-o entre os dedos em frente do rosto
(DUQUE-ESTRADA, 1888).

Dessa maneira, apesar do extenso tempo existente entre a análise de Gonzaga


Duque e a análise elaborada para esse trabalho (1888-2009: mais de um século),
a construção narrativa, mesmo quando norteada por pequenas diferenças, segue
os mesmos preceitos. Dentre essas diferenças, podemos destacar a interpretação
do papel social da mulher, que em Belmiro, submissa e dependente, chora aos
pés de seu amado, instigando-lhe um pouco de atenção; enquanto na banheira de
Reismarques, decidida e nada dependente, tem aos pés o seu amado, que clama por
sua atenção.
Com isso, vemos que mesmo com uma representação tradicionalista, o tema
proposto na obra, segue uma estrutura diferenciada, em acordo com o tempo social
do artista.

O papel do espectador, o papel do artista


O início do âmbito artístico contemporâneo no Brasil foi marcado por um
movimento desenvolvido na cidade do Rio de Janeiro: o neoconcretismo (18). Nesse,
a presença do espectador voltou-se para além da postura de um simples observador
diante da obra de arte, tornando-se ativa, ou seja, essencial para provocar o
funcionamento da obra, o que fez desse um co-autor das obras.
O papel do artista e do espectador (antes definidos como a pessoa que produz

229 art uerj III semana de pesquisa em artes


a obra e a pessoa que observa a obra) indefiniram-se, mesclando-se entre si, ou seja,
o artista propunha uma obra que seria terminada pelo espectador, ato que fez do
artista também um espectador e do espectador também um artista.
Atualmente encontramos no cenário artístico contemporâneo tanto artistas
que intensificam em sua obra uma participação ativa do espectador, quanto artistas
que intensificam em sua obra uma participação passiva do espectador, limitada
exteriormente pelo simples ato de olhar e ilimitada interiormente pelas mais diversas
possibilidades de interpretações pessoais, como nos propõe a obra de Reismarques.
Esta questão nos leva a acreditar que o espectador sempre atuou como um
co-autor das obras, pois, segundo Hans Belting (19), a essência da atuação da obra
de arte sempre foi a mesma, em tempos passados, presentes ou futuros, ela sempre
necessitará de alguém que a produza (mesmo que seja só com idéias) e alguém que
a observe (mesmo que essa pessoa não esteja ciente que está observando um objeto
de arte).
A obra de Reismarques apesar de propor uma postura classicizante desses
dois agentes (artista e espectador), ou seja, um artista que produz manualmente
a sua obra e um espectador que a observa “passivamente”, estará propondo uma
atitude inovadora sempre que trouxer uma interpretação renovada, proposta pelos
diferentes espectadores que a observem.
Assim, (nesse caso) a possibilidade de inovação do passado dependerá muito
mais da bagagem artística, cultural e vivencial que o espectador trará consigo ao fruir
a obra, do que da intenção do artista; pois, segundo Duchamp (20) o público sempre
acrescenta a sua contribuição ao ato criador.

Conclusão
A partir da leitura do trabalho, é possível perceber que em uma mesma obra
de arte podemos encontrar tanto quesitos tradicionalistas como inovadores, pois,
mesmo quando uma sociedade artística apresenta uma vanguarda que clame por
novidades ou uma retaguarda que defenda a tradição; nunca teremos um objeto de
arte que traga em seu interior apenas conceitos inovadores ou apenas conceitos
tradicionalistas, já que a transição do “velho” para o “novo” não acontece de maneira

230 art uerj III semana de pesquisa em artes


brusca e imediata, mas sim lentamente.
Podemos pensar a arte, então, como um organismo vivo. Ela possui uma
história de vida que se constrói conforme os diferentes contextos que vivencia e
experimenta e que estarão sempre presentes, mesmo quando algo novo comece
a se destituir. Como um adulto que no alto dos seus quarenta anos (por exemplo)
de idade, tem em si as marcas dos seus quarentas anos vividos, a arte, com suas
questões, vive também um processo semelhante.

Referências
BARTHES, Roland. Elementos de semiologia. 6. ed. São Paulo: Cultrix, 1979. 116p.
BASBAUM, Ricardo. Além da Pureza Visual. Porto Alegre: Zouk, 2007. 158 p.
BATTCOCK, G. (Org.). A nova Arte. São Paulo: Perspectiva, 1975. 290 p.
BELTING, Hans. O fim da história da arte - uma revisão dez anos depois. 1. ed. São Paulo: Cosac e
Naify, 2006. 317 p.
BLUNT, Anthony. Teoria artística na Itália, 1450-1600. 1. ed. São Paulo: Cosac e Naify, 2001. 222 p.
BRITO, Ronaldo. Experiência crítica. 1. ed. São Paulo: Cosac e Naify, 2005. 384 p.
CAUQUELIN, Anne. Arte contemporânea: uma introdução. 1. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005. 170 p.
DANTO, Arthur C. Após o fim da arte – a arte contemporânea e os limites da história. 1. ed. São Paulo:
Edusp, 2006. 292 p.
DUQUE-ESTRADA, Luiz Gonzaga. A arte brasileira. Rio de Janeiro: H. Lombaerts, 1888. Texto com
ortografia atualizada, disponível no site: http://www.dezenovevinte.net/. Acesso em: 28 nov. 2008.
FRANCASTEL, Pierre. Pintura e sociedade. 1. ed. São Paulo: Martins Fontes. 1990. 292 p.
KRAUSS, Rosalind. Entrevista. Gávea, Rio de Janeiro, n. 13, p. 457–473, set. 1995.
LICHTENSTEIN, Jacqueline (Org.). A pintura: a idéia e as partes da pintura. 1. ed. São Paulo: Editora 34,
2004. 133 p.
PEDROSA, Mario. Acadêmicos e modernos, 3. 1. ed. São Paulo: EDUSP, 1998. 432 p.
SONTAG, Susan. A vontade radical. 1. ed. São Paulo: Cia. das Letras, 1987. 262p.

Notas
1 SONTAG, Susan. A vontade radical. São Paulo: Cia. das Letras, 1987, p. 11.
2 BASBAUM, Ricardo. Além da Pureza Visual. Porto Alegre: Zouk, 2007,p.101.
3 BELTING, Hans. O fim da história da arte - uma revisão dez anos depois. 1. ed. São Paulo: Cosac e
Naify, 2006, p.177, 273-274.
4 IBIDEM, p.17.
5 Como aconteceu com a crítica e professora de arte Rosalind Krauss que no passado concordava e
defendia a teoria da planaridade lógica do cubismo (desenvolvida por Greenberg), mas que com o passar
do tempo “se deu conta que estava errada” (KRAUSS, Rosalind. Entrevista. In: Gávea, Rio de Janeiro,
set. 1995. número 13, p. 464), quando projetava aos seus alunos slides do quadro “Paysage à Horta da

231 art uerj III semana de pesquisa em artes


Ebro” de Picasso. Mesmo querendo lhes mostrar a legitimidade da tese greenberguiana, ocorreu-lhe
um pensamento contrário quando se virou para comentar a imagem: “ao invés de planos, via abismos,
precipícios”, ou seja, uma profundidade explícita
6 BARTHES, Roland. Elementos de semiologia. São Paulo: Cultrix, 1979, p. 48.
7 Assim, do mesmo modo como o modernismo europeu só se instituiu nos livros de História da Arte
no momento contemporâneo, o momento contemporâneo só se instituirá quando um novo marco se der,
transformando esse em passado, delimitando-o, para que se possa compreendê-lo como um todo
8 FRANCASTEL, Pierre. Pintura e sociedade. São Paulo: Martins Fontes. 1990, 7-10.
9 Segundo relatos do próprio artista.
10 DANTO, Arthur C. Após o fim da arte – a arte contemporânea e os limites da história. São Paulo:
Edusp, 2006, p. 20.
11 BELTING, Hans. Opus citatum.
12 BRITO, Ronaldo. Experiência crítica: textos relacionados. São Paulo: Cosac e Naify, 2005, p.2.
13 LICHTENSTEIN, J. (Org.). A pintura: a idéia e as partes da pintura. São Paulo, Ed. 34, 2004, p.17.
14 DUCHAMP, Marcel. O ato criador. In: BATTCOCK, G. (Org.). A nova Arte. São Paulo: Perspectiva,
1975, p.73.
15 CAUQUELIN, Anne. Arte contemporânea: uma introdução. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 83.
16 BLUNT, A. Teoria artística na Itália, 1450-1600. SP, Cosac e Naify, 2001, p. 24.
17 DUQUE-ESTRADA, Luiz Gonzaga. A arte brasileira. Rio de Janeiro: H. Lombaerts, 1888. Texto com
ortografia atualizada, disponível no site: http://www.dezenovevinte.net/ . Acesso em: 28 nov. 2008.
18 PEDROSA, Mario. Acadêmicos e modernos, 3. São Paulo: EDUSP, 1998.
19 BELTING, Hans. Opus citatum, p.19.
20 DUCHAMP, Marcel. Opus citatum, p.74.

232 art uerj III semana de pesquisa em artes


III semana de pesquisa em artes
10 a 13 de novembro de 2009 art uerj
leituras contemporâneas

Da cor à aspereza tátil: a materialidade e o adverso nos Bólides de Hélio


Oiticica

Carla Guimarães Hermann

Mestrado em Artes – UERJ

O texto faz a análise de três Bólides de Hélio Oiticica sob a perspectiva de que eles constroem
um senso de adversidade através da materialidade utilizada pelo artista, especialmente no que
diz respeito às cores empregadas e ao uso de materiais retirados diretamente do cotidiano.
Compreendendo o adverso como fator estruturante e operativo, vê-se os Bólides como obras
abertas e propositivas de uma participação adversa, que é capaz de convidar o espectador e,
ao mesmo tempo, repeli-lo.

Hélio Oiticica; adverso; Bólides.

The text analyzes three Hélio Oiticica’s Bólides from the perspective that they build a sense of
adversity through the materiality chosen by the artist, especially regarding the use of colors and
objects directly taken from everyday. Understanding the adverse as a structural and operative
factor, we see the Bólides as open and operators of an adverse participation, which is capable
of inviting the observers and at the same time, repelling them.

Hélio Oiticica; adverse; Bólides.

Procuramos compreender a forma de Hélio Oiticica pelo informe (Bois, 2000),


o seu oposto, explorando como o abjeto (Krauss, 2000) aparece em suas obras:
como adverso. Embora parte da crítica de sua obra não acredite que o trabalho
de Oiticica seja construído sobre relações formais, acreditamos que a escolha dos
materiais trabalhados nos Bólides seja parte integrante da formação de uma idéia de
adversidade, onde a visualidade efetivamente se realiza através do material plástico.

233
O adverso se revela na participação áspera, inquieta e capaz de desestabilizar
o espectador/participador, através dos materiais rústicos e até mesmo “baixos”
escolhidos pelo artista. Fazendo um recorte em sua produção, trabalharemos com
o período compreendido entre os anos de 1963 e 1967 e com o desenvolvimento de
uma série de objetos que Hélio Oiticica chamou de Bólides, a partir da percepção de
que há neles uma acentuada dualidade, tornada evidente através da presença de
materiais rudes e brutos.
Entendendo o “baixo” aqui como o fator funcional da operação (KRAUSS,
2000: 249), pretendemos ver como e com quais elementos Hélio Oiticica assegura
essa condição operativa do adverso, trabalhando para além da temática do adverso,
também presente no conjunto da obra de Hélio Oiticica, através da figura do
marginal, do abjeto socialmente produzido e da própria idéia de adversidade como
marca cultural brasileira. Para tal, acreditamos ser necessário compreender, dentro
do conjunto da obra de Oiticica quais são as suas estratégias de formalização do
adverso, desvendando como a adversidade se mostra ao espectador, através do tipo
de participação proposta.
Os Bólides são objetos pensados para a manipulação, construídos na forma
de caixas de madeira ou de recipientes de vidro. Hélio parece ter pensado essas
construções como pequenas arquiteturas estruturais, pois são objetos que ainda
que se encerrem formalmente em si mesmos (são recipientes que contêm, que
delimitam, que ordenam) estabelecem diálogo tenso com o entorno. São objetos
cheios de luz – a cor é transformada em luz em seus interiores – emanada pelas
“paredes” de madeira pintadas com cores quentes (vermelhos, amarelos, laranjas)
dos Bólides-Caixa ou através dos próprios pigmentos coloridos contidos nos Bólides-
Vidro. Mas também são objetos cheios de matéria, pois a cor-luz ganha densidade
material, exposta como pigmento. Desta forma, a cor mostra-se como exterioridade,
ocupando o espaço real do mundo e da cultura. Oiticica cria um jogo de mediação
entre os Bólides e o espaço, valorizando no espaço a cor. Se os Bólides-Caixa
parecem pequenos faróis monocromáticos destacados no espaço, os Bólides-Vidro
revelam a cor a partir do centro do objeto, colocando em diálogo não apenas o objeto
e o espaço, mas também o próprio espaço interno do objeto e o entorno, através da

234 art uerj III semana de pesquisa em artes


transparência do vidro e do pigmento no seu interior.
Os referidos objetos estão num posicionamento intermediário em meio ao
conjunto da obra de Hélio Oiticica: não são pinturas (embora travem embate firme
com as questões acerca dela) nem são obras ambientais. Talvez essa confluência de
linguagens tenha favorecido os objetos em questão, criando alguma tensão formal
nessa natureza híbrida, o que, como veremos mais tarde, parece ser um artifício
usado pelo artista para arquitetar a noção de adversidade nas obras. Por seres
objetos (no sentido de construções tridimensionais, palpáveis), os Bólides revelam o
momento em que Oiticica trava diretamente o embate com a questão objetual, com
a criação de obras cuja forma acabada seriam estruturas abertas, que convidam à
participação. Por isso a escolha de materiais cotidianos para compô-los seria algo
mais que a apropriação para o artista, algo mais que a mera construção do objeto
por vontade artística. Encontramos essa idéia em um trecho de uma correspondência
enviada em 1968 por Hélio Oiticica para Lygia Clark:

Agora não sinto necessidade de construir objetos, mas uma lata cúbica
vazia me deu vontade de colocar água nela e pronto: é para que se
olhe aquela lata com água, olhe-se como num espelho, o que já não é
apropriação como antes mas o objeto aberto essencial, que funcionará
conforme o contexto e a participação de cada um. (OITICICA, 1968).

Em outro trecho da mesma correspondência encontramos o depoimento de


que a participação que Oiticica propõe coloca para o participador certa adversidade
através de sensações desagradáveis. “Tenho tido vivências incríveis justamente pelo
não compromisso mais com a ‘obra’ mas com a sucessão de momentos em que o
agradável e o desagradável é que contam, crio daí objetos ou não [...]” (OITICICA,
1978). O grifo do próprio autor coincide com nossa idéia de proposição de uma
participação adversa e da adversidade como o vetor que direciona a maneira como a
obra é composta, colocando sempre em diálogo a obra e seu objeto.
Optamos por fazer a análise de três Bólides escolhidos dentre toda a produção
do artista, sendo eles:

235 art uerj III semana de pesquisa em artes


a) B 05 Bólide Caixa 06 Egípcio” 1963-64;
b) B 12 Bólide Vidro 03 “Em memória de meu pai” 1964;
c) B 32 Bólide Vidro 15 1965-66.
A forma dos exemplos acima citados revelou qual o papel da materialidade na
composição do senso de adversidade, sendo a materialidade entendida como uso de
materiais escolhidos do cotidiano, de certa maneira abjetos dentro do objeto artístico
– por não serem inicialmente identificados como matéria prima para a arte ou por
serem, eles mesmos, em suas funções materiais cotidianas matéria extremamente
comum, as vezes até mesmo bruta, rude, crua – ou como estratégia de rebaixamento
de conceitos plásticos (luz, textura, cor, brilho) à sua condição matérica.
O uso de materiais pouco nobres – os materiais baixos – assegurou o fator
operacional do informe, tal como referido no conceito desenvolvido por Bataille. O
baixo material procura retirar o fetiche da matéria, impregnada de idealismo, até
mesmo pelo materialistas dialéticos. Segundo Bataille, os materialistas situaram a
matéria morta no topo da convenção hierárquica de tipos diversos de fatos, sem
perceber que se submetem à obsessão com uma forma que se aproxima ao que
se quer alcançar, mais do que qualquer outra matéria deveria parecer-se. Ou seja,
acabam encaixando a forma em questões formais já formuladas ou prontas, retirando
a potencialidade da matéria e da própria forma (BATAILLE apud KRAUSS 2000). O
uso dos materiais baixos pode retirar da forma todo referencial mundano, tudo que
a princípio poderia constituir a morfologia previamente conhecida, dada por certa
enquanto um contorno associado a determinado significado. Assim, a função do
adverso enquanto conceito operativo é a de rebaixamento, pois é capaz de retirar
a forma desse mundo, operando a sua re-significação pelo seu caráter residual.
É desperdício sedutor, aparentando ser o que há de mais infantil, pois o que ele
desencadeia é o baixo, o regressivo.
A dimensão escatológica dos materiais baixos está no cerne da discussão
do Modernismo e pode nos auxiliar a entender o arcabouço teórico que utilizamos
aqui. Clark (1992) chama de “o pesadelo do modernismo” o fato do projeto de
revolução modernista ter falhado tanto no sentido da mudança social quanto estética,
propostas ao tentar subverter a ordem burguesa usando e atribuindo potencialidade

236 art uerj III semana de pesquisa em artes


negativa àquilo que ela deixava de fora: o infantil, o primitivo e o abjeto. Segundo
ele, ao contrário, o Modernismo teria reforçado os valores burgueses contra os quais
pretendia lutar. Ainda Clark, citando Flaubert, William IX da Aquitânia e Pollock por
nomear suas obras com trechos da canção de Ariel na peça The Tempest – Sea
Change e Full Fathom Five – nos aponta que a arte de potencial negatividade (aqui
entendida como capacidade subversiva) não é necessariamente anárquica, escabrosa
ou, de alguma outra maneira, baixa (CLARK, 1992: 173). O potencial subversivo pode
ter caráter subterrâneo e estar na ordem ou organização aparentes, sem necessitar
da aparência caótica explícita. Entretanto, o que parece comum e mais difundido no
mundo da arte, especialmente da arte contemporânea, é a associação imediata entre
o caráter subversivo abjeto dos materiais baixos e a escatologia. O imediatismo de
associação entre fluidos corporais, dejetos biológicos, feridas e partes do corpo é
resultante de uma leitura da forma como morfologia aparente para o uso dos materiais
baixos, passando longe da proposta de Bataille com a qual estamos trabalhando.
Também o escatológico é abjeto, é sobra. Mas não só o escatológico é abjeto, pois
o abjeto é mesmo uma categoria operacional, e não apenas uma apresentação
morfológica óbvia. A produção do “ideal” gera sua própria sobra. “A produção
inevitável do monstruoso, ou do heterogêneo, pelo mesmo processo que é construído
para excluir o que não se pode generalizar, é a força que cria a diferenciação não-
lógica das categorias que são construídas para manipular logicamente a diferença”
(KRAUSS, 2000: 252, tradução nossa). Assim, todo arranjo produz uma organização
espacial, mas também o informe, um desvio, no sentido da capacidade de mudança,
percebida no uso dos materiais baixos pela alteração das qualidades materiais daquilo
que é empregado e no rebaixamento dos referenciais mundanos.
O rebaixamento nos Bólides se formaliza na estranheza com que se mostram
para o mundo e nas dificuldades que colocam. Os entraves podem frustrar a vontade
participativa, tanto pelos riscos que eles trazem quanto pela dúvida, que fazem o
espectador hesitar ao não saber se algum desses objetos é realmente manipulável,
ou ainda pela fragilidade aparente da forma. Assim, o participador pode ser rebaixado
novamente à condição de mero observador. Vejamos nos exemplos escolhidos como a
materialidade arquiteta esse senso de adverso e o rebaixamento possibilitado por isso.

237 art uerj III semana de pesquisa em artes


B06 Bólide caixa 06
“Egípcio”, 1963-64.
Madeira pintada, 56
x 24 x 57 cm. Fonte:
PHO.

a) B 05 Bólide Caixa 06 “Egípcio” 1963-64


O que nos chama a atenção neste Bólide Caixa é, antes de tudo, a intensidade
das suas cores, embora as fotografias não revelem o quão fortes verdadeiramente
são os tons de laranja empregados por Hélio Oiticica para compor o objeto. O efeito
visual no embate direto e “ao vivo” com o Bólide é impactante, e a cor é responsável
por boa parte do impacto. É evidente, entretanto, que ela não acontece sozinha.
O efeito que a cor causa no espaço se dá juntamente com o suporte material de
madeira sobre o qual a tinta é aplicada, bem como sua superfície inacabada e a
maneira bruta como Oiticica aplica a tinta, numa ausência consciente de esmero,
dando a impressão ao espectador de que o objeto efetivamente deriva de algum
material cotidiano, sem o acréscimo do gesto sublimador do artista. A imagem
de que a matéria prima do objeto artístico não só é parte do dia a dia, mas é
ainda parte rejeitada dele, leva à composição estruturante da noção de abjeto, e
conseqüentemente, de adversidade.
Outra dificuldade colocada por Egípcio é a manipulação que propõe. Por tratar-
se de uma caixa com objeto deslizante no seu interior, espera-se que o mesmo seja
“puxado” com facilidade no ato do manuseio. O bloco de madeira pintado de azul
e branco, entretanto, não se move facilmente, apesar de estar apoiado sobre uma

238 art uerj III semana de pesquisa em artes


placa de vidro colocada no “assoalho” do interior da caixa. A dificuldade posta no ato
da manipulação questiona o espectador sobre o que é esperado da sua participação,
criando um certo embaralhamento momentâneo, além de sensações desagradáveis
de potenciais cortes e quebras que ele pudesse causar à estrutura.

b) B 12 Bólide Vidro 03 “Em memória de meu pai” 1964


Esse Bólide Vidro foi escolhido por mais parecer um totem contemplativo do
que um recipiente colocado para manipulação, embora seja esta a sua finalidade. O
pote de vidro utilizado na sua composição é alto e estreito, de modo que a sua boca
(a abertura superior), que seria a porta de entrada para a mão do participador, é, por
sua dimensão, um tanto imprópria. Como se isso não bastasse, Oiticica complica
ainda mais a participação e coloca no interior do pote de vidro pigmento amarelo,
enterrando nele uma grande peça de madeira pintada também em amarelo, em tom
semelhante ao do pigmento. Como em todos os Bólides Caixa, a madeira não possui
acabamento, não foi lixada, é bastante rude. Entretanto, a adversidade colocada
pelo objeto aqui não é construída tanto em cima da materialidade palpável, e sim da
experiência que o participador faz da matéria.
O convite à participação não poderia ser mais enigmático: o que fazer com
um objeto que não revela nem mesmo por onde começar a manipulação? As
dúvidas são colocadas pela forma, indeterminada: não se sabe se ela é manipulativa
ou contemplativa. Favaretto afirma que tal indeterminação é parte operativa das
possibilidades abertas pelos Bólides e que os tornam elementos cruciais na obra de
Oiticica: “[O momento do Bólides] abre um campo de atividades, que desloca o que
se designa como ‘arte’, em que vigem a disponibilidade criadora (pela participação,
pelo improviso), o processo, o inacabamento e a indeterminação.”(FAVARETTO 2000:
91). Vencido o primeiro estranhamento causado por essa ausência de obviedade
do convite à manipulação, o passo seguinte tomado pelo participador é o de tentar
separar a parte de vidro da parte de madeira. A curiosidade, pilhada pela dúvida
do enigma posto pela forma, impele então ao movimento de separação. É preciso
estar disposto: a “tampa-totem” é um pouco pesada, e por estar enterrada dentro do
pigmento contido no vidro, não sairá sem dificuldade. Aliás, para proporcionar um

239 art uerj III semana de pesquisa em artes


B12 Bólide vidro
03 “Em memória
de meu pai”, 1964.
Madeira pintada, vidro,
pigmento. 75 x 27 cm,
diâmetro do vidro:
63 cm, diâmetro da
estrutura de madeira:
87 cm. Fonte: PHO.

240 art uerj III semana de pesquisa em artes


atrito contundente, Oiticica posicionou dentro do recipiente um pequeno retângulo
vazado de madeira, uma pequena “capa” enterrada no pigmento, dentro da qual
penetra a tora de madeira que enraíza a parte de cima do Bólide.
“Em memória de meu pai” possui um equilíbrio meticulosamente calculado na
sua composição geral, que é ameaçado pela mão de quem o manipula. A despeito da
rudeza e da solidez da madeira, tem-se a impressão de que a parte superior depende
de um encaixe muito preciso na cuba de vidro que serve de base, criando uma brecha
de fragilidade no conjunto supostamente robusto. De certa maneira, Oiticica passa
para o participador a responsabilidade do manuseio, criando a condição efêmera que
poderia levar à desintegração física do próprio trabalho. O convite à participação aqui
é não só nebuloso como também arquitetado com obstáculos que promovem o atrito,
catalizando a relação de fricção entre o próprio indivíduo e a obra.

B32 Bólide vidro


15, 1965-66. Vidro,
pigmento dentro de
sacos de plástico.
46 x 36 cm,
circunferência: 152 cm
Fonte: PHO.

c) B 32 Bólide Vidro 15 1965-66


O terceiro e último Bólide de vidro a integrar nossa análise talvez seja o objeto
onde a imagem aparente inicialmente criada entre ele e o espectador é quebrada
de modo mais contundente. Ao avistar o Bólide Vidro 15, a impressão primeira é a
de um objeto definitivamente convidativo à manipulação. A transparência do vidro
arredondado revela os diversos sacos com pigmento no interior. Os pigmentos são
de cores claras (amarelo, cinza, azul, rosa, laranja) e a imagem final do conjunto é de
certa serenidade. Está longe da agressividade visual dos Bólides caixa de madeira
já analisados, onde a cor grita para o espaço circundante a sua presença rude na
superfície do objeto.
A surpresa fica mesmo para o instante exato da participação: é bastante difícil
manusear os sacos de pigmentos, pois eles são pesados e grandes demais para
241 art uerj III semana de pesquisa em artes
levantar com apenas uma mão. O toque também não corresponde à imagem de
“algodão doce” que fazemos dos saquinhos de pigmentos, pois são embalagens
na verdade bastante compactas, meio duras. Podemos dizer que o manuseio do
conteúdo do interior do Bólide frustra as expectativas criadas pela imagem que ele
passa inicialmente ao participador.
A borda do vidro recipiente dos pigmentos também dificulta a participação,
pois foi cortada de maneira irregular, deixando a superfície desnivelada e pronta para
cortar os braços de quem se aventurar a manipular os sacos de pigmento, caso não
tome cuidado. Depois de apontar os entraves colocados por Oiticica diretamente
na morfologia desse Bólide para criar um convite atraente porém restringente de
participação, parece desnecessário dizer que, com isso, o artista cria uma situação de
adversidade.
Em texto sobre sua série de Bólides, em 1963, Oiticica afirma que se sente
como uma criança que começa a experimentar os objetos à sua volta, tentando
entender suas qualidades, tais como solidez, preenchimento, circunferência, peso
e transparência (OITICICA 1963 apud RAMIREZ 2007: 262). Tais averiguações
seriam como que o ponto de partida para perceber as qualidades dos objetos
despidos das suas qualidades conotativas, fossem elas utilitárias ou não. A intenção
de deixar os objetos na sua “pureza primitiva” se realiza através da cor. O que
Oiticica queria alcançar, nesse ponto da sua carreira artística, era uma experiência
mais abrangente do que a dissecação analítica da cor que havia alcançado com os
Núcleos (1960-62), obras anteriores aos Bólides, onde a diluição da cor no espaço
ambiental procurava formar um “sistema total”. A intenção, com os Bólides, seria a
de aproximar a visualidade de um todo expressivo, seja analítico (na procura por
texturas, na experiência do deslocamento de alguns ângulos, na combinação entre
superfícies e lâminas de cores etc.), seja mais sintético. As caixas de cor são massas
que expressam o todo cromático. O que se procura aqui é estruturar a cor a partir
da sua habilidade expressiva. Ocorre então a expressão estrutural da cor, como
um fenômeno puramente estético, em suas formas variadas (como pintura ou como
pigmento) e como um “sistema total”, que sintetiza todos os elementos estético-
visuais. O aspecto visual se une à palpabilidade enquanto força fundamental para a

242 art uerj III semana de pesquisa em artes


expressão, o visual e o tátil se tornam parte do todo expressivo aberto à imaginação,
sendo esta a mais genuína finalidade da obra de arte (OITICICA 1964). Esta
garantia da obra de arte transcendental é dada pela imaginação inerente ao homem,
exercitada sobre essas unidades de expressão significativa. A forma aqui não
perpassa nenhuma questão representativa, ela é simplesmente expressão estrutural.
Ao perceber que a nova experiência estética só se daria com a transformação
estética do objeto, Oiticica eleva a cor à forma simbólica nos objetos. “É a renovação
estética interior do nosso mundo desperdiçado dos objetos cotidianos”. (OITICICA
1963 apud RAMIREZ, 2007: 262). A escolha de objetos oriundos do dia-a-dia parece
também exercer função operacional na forma da obra, pois transformar em obras de
arte aqueles objetos ordinários seria dotá-los da potencialidade de mediação entre
o sujeito e o objeto que a abstração carrega. Em alguns Bólides uma caixa vazia
é simbolicamente transformada pela valorização espacial da cor, redescobrindo a
forma de caixa. O mesmo ocorre com os recipientes de vidro (retos ou curvos), caixas
maiores e gavetas. As conotações existentes e referentes às formas conhecidas
previamente não funcionam mais de maneira independente da nova ordem do
objeto transformado em obra e terá sua experiência vivida pelo participador. Além
disto, ao referir-se ao mundo dos objetos cotidianos como “mundo desperdiçado”
(OITICICA 1964), o artista parece encarar os objetos cotidianos como sobras do
mundo, resultados da precariedade da vida não integrada à arte. A integração entre
a arte e a vida era um dos motes centrais da produção de Oiticica, e a separação
entre as duas esferas coloca os objetos cotidianos na condição de abjetos, excessos.
Assim, mesmo sem se valer do conceito de Bataille, Oiticica pode ter optado pelo
uso de objetos cotidianos e materiais que não são comumente valorizados, tais como
pedaços de madeira, pigmentos, vidros, telas, jutas etc. por considerá-los sobras
do cotidiano e, por isso, adversos e abjetos. Da mesma maneira, ainda dentro do
mote central de integração entre arte e vida, ao promover estes objetos adversos à
condição de obras de arte, Oiticica promove a “renovação estética” (OITICICA 1964)
do nosso mundo, aproximando as duas esferas através destes objetos.
O material adverso empregado nos Bólides são as caixas feitas de
compensado sem acabamento, geralmente pintados com tinta acrílica, pedaços de

243 art uerj III semana de pesquisa em artes


telas de nylon, juta, plásticos, espelhos, pó-pigmento, garrafas, vidros circulares,
pedaços de espuma colorida, conchas, telas de arame. Por mais que tais materiais
não sejam considerados repugnantes, eles também não são considerados nobres,
e o manuseio de cada um não imprime sensações prazerosas. Ao contrário, os
elementos escolhidos, mesmo individualmente, podem proporcionar experiências
táteis adversas ou causar ao menos certo estranhamento.

Em todos esses Bólides Caixa o espectador, apesar de convidado a


explorá-los, é mantido a uma certa distância. As maneiras de abrir são
desconcertantes, e os espaços internos, remotos como o interior das
cavernas [...] A presença de um elemento natural [terra] contido em um
tipo de espaço em que geralmente guardamos pequenas coisas é muito
intrigante. (BRETT, 1969: 35).

O tratamento dado aos materiais reforça esse estranhamento. Oiticica opta por
não terminar o acabamento das tiras de madeira compensada que enquadram os
Bólides-caixa; o mesmo para a abertura de alguns recipientes de Bólides-Vidro. Se há
um convite à manipulação, parece haver também a noção de que esta manipulação
acontecerá de maneira comedida, numa negociação entre a forma do Bólide e o
participador. Por conta disso, o prazer advém de outra fonte que não a sensibilidade.
Surge da descoberta dos elementos contidos nos objetos, e talvez até mesmo da
percepção por parte do participador, de que, ao manipulá-los, se vê capaz de vencer
certa adversidade ou, pelo menos, certa resistência.
Não apenas a presença desses materiais nas obras garante a condição de
adversidade, também a maneira como eles são organizados conduz à sensação
de manipulação do adverso. O fato de Oiticica organizar nos Bólides os elementos
na forma de caixas ou recipientes de vidros faz com que cada obra constitua, de
maneira independente, um pequeno universo, que é ao mesmo tempo fechado e
passível de exploração. A própria morfologia (caixa ou pote de vidro) constitui tensão
e ambigüidade nesse aspecto: ela é e contém um ambiente pensado pelo artista,
sendo, de certa maneira, fechada. Por outro lado, ao entregá-la ao espectador, agora

244 art uerj III semana de pesquisa em artes


convidado a participar da própria forma, com o manuseio da mesma, esse ambiente
pensado pelo artista é também aberto. Ao manipular os Bólides o participador
poderá se deparar com o elemento surpresa planejado pelo artista. Alguns Bólides-
Caixa possuem painéis móveis que tencionam esconder ou revelar novos planos
cromáticos. Outros têm gavetas que guardam pigmento-pó ou simplesmente estão
pintadas em um tom diferente do resto do objeto. As possibilidades de aberturas de
compartimentos (alguns óbvios, outros nem tanto) chamam o espectador a investigar,
mas novamente, com alguma hesitação. A conformação das caixas e a possibilidade
de descobrir novos compartimentos introduz a possibilidade do inesperado, e torna
a participação hesitante. A manipulação não acontece imediatamente: talvez a
curiosidade infantil que Oiticica diz sentir ao explorar as qualidades dos objetos se
refira a um certo estranhamento diante dos mesmos, que impõe alguma resistência
em relação à curiosidade do manuseio. Quem sabe a imaginativa exploração que
a criança Hélio faria do Bólide pudesse traduzir ainda o fascínio pelo escatológico,
até mesmo desagradável, atitude típica da descoberta do mundo sensorial infantil.
Afinal, são objetos que não inspiram o toque à primeira vista, não nos prometem
experiências sensoriais agradáveis, mas são capazes de chamar e repelir ao mesmo
tempo. As cores escolhidas para preencher de luz os Bólides participam de maneira
estrutural da resistência colocada pelo objeto. Nos seis primeiros Bólides construídos
pelo artista, a escolha de cores quentes em tons muito fortes e saturados não
favorece a experiência acolhedora, ao contrário. Ao preencher o objeto com a luz da
cor, acaba fechando-o um pouco em si mesmo, criando mais um fator para se somar
à hesitação do espectador em relação a ele.
A combinação da matéria empregada com a cor desenvolve papel fundamental
no despertar da curiosidade de descobrir os Bólides, bem como na hesitação da
descoberta. “Em 1963 eu comecei os Bólides que eram peças manipuláveis de
cor, que você tinha que olhar por buracos, olhar através de frestas cores mais
fortes, que se escondiam umas por dentro das outras”. (OITICICA, 1979, grifo
nosso). A cor expressiva de Oiticica transmitiria também a noção da adversidade,
pois é energia pulsante, capaz de afastar e atrair. Ela envolve o espaço, mas não
no sentido acolhedor, não cria obrigatoriamente uma espacialidade agradável. Os

245 art uerj III semana de pesquisa em artes


Bólides envolvem mais no sentido de atingir, enchendo o ambiente de cor. Abraçam o
espectador, mas isso não é necessariamente prazeroso.
A altura dos Bólides e a disposição deles no espaço também devem ser
considerados, pois são, também, entraves para a participação a que convidam. Os
Bólides dificilmente chegam a ter 80 cm de altura, e ficavam geralmente dispostos
para o manuseio no chão, e não sobre uma mesa ou superfície qualquer que os
colocasse de maneira a proporcionar a manipulação mais cômoda para um adulto.
Assim, são objetos que pedem que a pessoa esteja agachada para tocá-los, criando
certa ambiência desfavorável. O posicionamento dos Bólides no espaço parece
paradoxalmente aumentar a curiosidade do espectador em relação a eles (tal como
as sensações de uma criança que descobre o mundo que Oiticica diz sentir ao
manipulá-los) e, ao mesmo tempo, marcar a diferença entre o espectador e a obra.
Ao colocar os Bólides no chão, o artista cria para o participador possibilidades duplas
de interpretação e que o levam a ponderar a manipulação imediata: o objeto parece
não estar posicionado como uma obra de arte, pois não está sobre um pedestal ou
mesa, mas é tido como obra devido às circunstâncias envolvidas (a sua presença em
alguma instituição de arte).

Conclusão
Entendendo o abjeto como o adverso, Hélio Oiticica utiliza a adversidade
para estruturar a tensão das suas obras, potencializando as ambigüidades internas
delas. A partir da produção dos Bólides (1963-67), onde a idéia de construção de
ambigüidades que jamais se resolvem é bastante evidente, vimos que a herança
construtiva recebida por Oiticica não foi assimilada numa leitura conclusiva da obra,
nem para o espectador, nem para a forma, que se mostra aberta. A questão formal
acompanha o leitmotiv de não-resolução das obras e dá cor, corpo ou volume a ele.
Não se trata só de aparência visível inacabada, como se os Bólides fossem pequenos
canteiros de obras dotados de cor. Trata-se mesmo da não-conclusão como operação
do informe, sem nunca resolver a tensão inerente da obra.
A arquitetura do adverso para estruturar a não-conclusão reforça o sentido de
modernidade presente nos Bólides de Oiticica, na medida em que constrói uma forma

246 art uerj III semana de pesquisa em artes


aberta, oposta à perfeição. A idéia de criar adversidade é articulada pela morfologia
pensada pelo artista. Assim, todos os elementos materiais utilizados são pensados
para marcar as questões ambíguas de “atração” e “repulsão” do participador: as cores
e materiais empregados, as rugosidades da matéria, a maneira como os materiais
são articulados (entre si e com as cores), a própria altura e o posicionamento
dos objetos no espaço. A forma, entendida além do sentido morfológico, pode
ser aparente como o universo hermético criado pelos Bólides-Caixa, mas pode
ser também velada e aberta à experimentação, como nos Bólides-Vidro, onde a
transparência guarda mais do que o primeiro olhar é capaz de desvendar.
Por conta das rugosidades colocadas, o prazer da experiência com os Bólides
não parece vir da sensibilidade tátil, e sim do vencimento da adversidade colocada
por eles para o sujeito. Ao dificultar a participação, Oiticica aproxima as esferas da
vida e da arte. Com a articulação do abjeto, induz no participador a condição a partir
da qual vivemos no dia-a-dia, organizando estruturalmente a sua idéia de que “da
adversidade vivemos” (OITICICA, 1986: 98).

Referências
BRETT, Guy. Experimento Whitechapel I. Londres, 1969 in: MACIEL, Katia (org.) Brasil experimental: arte /
vida (proposições e paradoxos). Rio de Janeiro: Contracapa, 2005. (pp. 32-36)
CLARK, T. J. Jackson Pollock’s Abstraction, in GUILBAUT, Serge (ed.) Reconstructing Modernism: Art in
New York, Paris, and Montreal, 1945-1964, Cambridge: The MIT Press, 1992, (pp. 172-243).
FAVARETTO, Celso. A Invenção de Hélio Oiticica. São Paulo: Edusp, 1992.
KRAUSS, Rosalind. The Destiny of the Informe. in: Formless: User’s Guide. New York: Zone Books, 2000.
(pp. 235-252)
_____________. Da experiência dos Bólides, 19 de setembro de 1963 – Documento no. 0007/63 in:
RAMIREZ, Mari Carmen. Hélio Oiticica: The Body of Color. Londres, Tate Publishing: 2007. (p.262)
_____________. Os Bólides e o sistema espacial que neles se revela, 8 de junho de 1964 – Documento
no. 0144/64 in: Programa Hélio Oiticica, Itaú Cultural, São Paulo.
_____________. Carta para Lygia Clark. Rio de Janeiro, 15 de outubro de 1968. in: FERREIRA, Glória
et al. Arte & Ensaios. Edição Especial / Special Issue: Correspondência Transnacional / Transnacional
Correspondence. Rio de Janeiro: PPGAV/Escola de Belas Artes, UFRJ, 2007. (pp. 351-363)
_____________.Esquema Geral da Nova Objetividade in: Aspiro ao Grande Labirinto. Rio de Janeiro:
Rocco, 1986. (pp. 84-98).
_____________. Entrevista concedida a Ivan Cardoso. Rio de Janeiro, 31/01/1979.

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III semana de pesquisa em artes
10 a 13 de novembro de 2009 art uerj
leituras contemporâneas

Arqueologia da imagem: a tradição pictórica na obra de Daniel Senise

Leidiane Carvalho

Graduanda em história da arte pela UERJ

O artista Daniel Senise conta que teve sua formação “visual” a partir de imagens impressas e
sempre as utilizou para pensar seu trabalho, mesmo sendo elas de arte ou não. Neste artigo,
trabalho sobre este recorte – sua relação com a tradição pictórica, em que se afirma numa
posição de “gerador de símbolos”, tecendo relações com os conceitos de imagem envolvidos,
aliados à presença da memória – desde as impressões de livros às impressões dos ambientes
em que trabalha.

Daniel Senise; Imagem; Tradição Pictórica.

Daniel Senise tells that grows in contact with printed images and that always use them to think
his work, even though they were art or not. This article work on this cut - its relationship with the
pictorial tradition, which states him like a “generator of symbols,” building relationships with the
concepts of image involved, coupled with the presence of memory - from books prints to printing
the environments with which it works.

Daniel Senise; Image; Pictorial Tradition.

Estar em contato direto com um artista – seu discurso e sua obra - decerto é
de grande auxílio quando se pretende analisar seu trabalho. Entender o modo como
o artista opera abre novas possibilidades de leitura de seu trabalho, portanto acredito
ser este o primeiro ponto a ser observado neste artigo. Em seguida, é preciso pensar
a problematização de questões artísticas do passado reativadas – nas ditas “imagens
de segunda geração”, citação de imagens do consciente coletivo reapropriadas e
resignificadas por um olhar contemporâneo.
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A relação de Daniel Senise com as imagens impressas é, também,
imprescindível para este trabalho. O próprio artista diz que toda sua formação foi
permeada pelo contato com impressões (de arte ou não) e que elas influenciaram
profundamente seu modo de ver o mundo e de trabalhar. Assim, a imagens
armazenadas no “banco de dados” da história não estão estáticamente disponíveis
para a apreensão, elas se transformam e ganham novos sentidos neste trânsito, são
um território onde residem as preocupações do artista. Estas relações, por fim, serão
tecidas num estudo de caso: a pintura “Reino I”, conjuga estes fatores antes citados e
os discute, apresentando algumas questões que permeiam a obra do artista.

Premissas
Daniel Senise pinta com a textura dos lugares que ocupa. Ele produz
monotipias a partir dos locais que ocupa para trabalhar. Seu atelier, sua casa, prédios
abandonados que lhe servem de “modelo”, enfim, tudo começa pela escolha deste
local. A escolha, entretanto, não se dá pela simples aparência do lugar. Antes, este
deve ter algum vínculo com o artista. Seu uso no passado, como uma escola em que
ele estudou quando muito jovem, da qual obteve uma monotipia antes que esta fosse
demolida, ou o piso da própria casa, com suas próprias marcas cotidianas.
Esta monotipia, então, se faz pela disposição de tecido no piso escolhido – o
cretone -, sobre o qual é espalhada uma grossa camada de cola PVA. Esta ação
grava na superfície do tecido a textura do chão. Mas não só isso: a superfície em si
por vezes se desprende do piso e se agrega ao tecido, uma imagem: imagem que
presentifica o ausente, imagem como morte e lembrança, imagem como aquilo que
não está lá, mas que se presentifica simbolicamente de outra maneira, porque o
ambiente gravado não está totalmente agregado ao tecido, mas, sim, nele presente
de forma parcial; e um registro de memória: registro do que era e do que estava
naquele lugar, vestígios da presença de pessoas e animais, lembranças do artista em
relação àquele ambiente, seus motivos para estar lá e para retornar.
Na obra, portanto, não existe apenas a evocação de um lugar, mas sua
presença física, de algum modo. Os vestígios se agregam e se tornam a superfície
pictórica, constituindo uma “tinta”. Utilizo o termo entre aspas porque são vários

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metros de tecido gravados por vez e cada centímetro é diferente do outro devido à
textura do chão, por isso a cor desta “tinta” nunca é uniforme. Entretanto, ela não é
o trabalho pronto. É apenas uma das cores que o artista vai utilizar-se para compor
a obra. De cada parte daquele tecido, geralmente enorme, ele extrai uma cor que
vai entrar para sua composição. Esta cor nunca se repete, porque equivale a cada
centímetro daquele assoalho acidentado e variado em tons e texturas. Existe um
fundo, um grande corte deste tecido impresso, que servirá de base e que se adere ao
suporte, o qual têm sido de madeira ou de alumínio. Sempre em grandes dimensões,
uma vez que este fundo esteja pronto, inicia-se o processo de composição, o
desenho que Daniel Senise cria a partir da disposição de partes menores do tecido,
de acordo com uma imagem previamente escolhida por ele. Uma vez que ele compõe
o desenho, a alocação destas camadas de tinta é feita por justaposição através de
etapas que o próprio artista estabelece, e que exibem o caminho cursado pelo artista
na produção da obra, ainda que materialmente pareçam estar no mesmo plano.

Composição e espacialidade
Daniel Senise, como já dito, sempre trabalhou com imagens impressas. Passa
horas vendo e revendo livros (de arte ou não) dos quais extrai idéias para seus
trabalhos. “As apropriações da história da arte são mais que citações de imagens.
O artista aborda como questões e problemas estilísticos, que sabe serem também
dimensionados numa época que constituem”1. Trabalha com uma reapropriação e
resignificação destas imagens, trazendo-as para seu tempo, buscando entender seu
sentido no passado. Sobre o significado que estas imagens recebem, o artista declara:

Preocupo-me mais com o significado original e as possibilidades de


significados nesse novo contexto que é a minha pintura. Preocupo-me
com como essa imagem vai circular no quadro, embora não queira ter o
domínio de todas as leituras, mas ter mais ou menos a noção de qual é o
território onde vai estar circulando. (...). Até hoje não tenho uma maneira
especifica de escolher as imagens. Podem vir de situações muito
diferentes, mas o que comanda é o desejo de convivência com elas.2

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Tadeu Chiarelli dirá que a escolha da imagem será o elemento de distinção
entre os artistas a partir da geração de Senise: a referência a um “banco de dados” –
um “universo de imagens produzido pela humanidade através da história, disponível
a todos pelos meios de comunicação de massa” 3 – fornece uma gama tão ampla
que a escolha será um dado de sensível importância a ser considerado na obra, é
um elemento de distinção4 de que fala Chiarelli. Digo, ainda, que o modo como esta
imagem será resignificada na obra é outro dado de distinção. Que caminhos o artista
percorre ao incorporar esta imagem em sua obra, reconhecendo que pode não ser o
primeiro nesta incursão, porque o momento dá esta permissão – de que, abandonado
o ranço modernista da necessária novidade, ele possa retrabalhar uma imagem de
segunda, terceira, quarta geração.
A tela “Reino I”, assim, funcionará neste artigo como um exemplo para alguns
pontos do pensamento pictórico do artista, tendo sido produzida quase sete anos
depois da entrevista concedida à Glória Ferreira. Esta obra conjuga as “tintas”
produzidas pelas monotipias com imagens impressas, neste caso, pertencentes ao
universo da história da arte, somando a uma opção formal do artista pelo trabalho
com a noção de perspectiva linear. Esta, se não é uma imagem reconhecível
como a de um personagem, um quadro, um evento, etc, está, por outro lado,
gravada simbolicamente em nosso imaginário como um espaço que aprendemos a
reconhecer visualmente: aquele supostamente capaz de representa nosso mundo
em sua tridimensionalidade. Então, se em Reino I, a opção por mostrar este trabalho
perspectivo se dá pela criação de um espaço que não é totalmente apreensível por
este aparato simbólico de que dispomos e, ainda assim, conseguimos identificar a
produção de espacialidade pela perspectiva, reconhecemos que o artista trabalha
com uma “imagem de segunda geração” de Chiarelli.
A perspectiva, segundo os conceitos apresentados por Omar Calabrese em
seu texto Problemi di enunciazione astratta5, está na problematização dos “atores”
da pintura figurativa, da presença do “eu-tu/ele” na pintura (o sujeito que enuncia,
o que é enunciado, o ponto de vista do observador ideal não necessariamente
correspondente ao eu-tu/ele.), em que este recurso apresenta uma estrutura
geométrica que faz coincidir a organização do espaço com uma organização

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Reino I – 2006. Acrílica
sobre colagem em
alumínio
200 x 300 cm

ótica (que é a perspectiva em si), o que manifesta um ponto de vista subjetivo. Se


considerarmos Reino I, precisamos observar de que forma se organiza este espaço
perspectivo. A perspectiva do quadro não privilegia um ponto de vista apenas.
Existem vários pontos de fuga no quadro, que convergem para seu interior e para
seu exterior. É um espaço reconhecível pela perspectiva linear, mas não exatamente
de seu modo tradicional. O momento da enunciação, neste sentido, é dado
apenas quando se observa a obra e tenta-se localizá-la espacial e temporalmente.
Sobre o uso do espaço por Daniel Senise, Dawn Ades dirá que há um “complexo
relacionamento com a representação: a ilusão do espaço tridimensional em um não-
espaço, a superfície de múltiplas camadas, a esquiva identidade do próprio projeto”.6
Nesta obra, considero que o sujeito que enuncia se forma a partir a associação do
olhar subjetivo que, não tendo um ponto de vista ideal ou fixo, precisa passear seus
olhos pela obra numa tentativa infrutífera de lhe completar o que falta, com a mão

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do artista, seu traço, mesmo sem a presença de uma pincelada, existe a escolha
do material que, para ele, é carregado de significações, evocações e presenças
fragmentadas.
Os espaços que se projetam para o interior do quadro e para o exterior dele
se fundem nesta obra. O pintor utiliza-se de recursos que chamam os olhos para o
interior da obra, pontos de fuga muito profundos, mas, ao mesmo tempo, promove
uma abertura destes pontos e os une formando junções que saltam para o espaço
do observador, fora do quadro, ao mesmo tempo. É necessário mesmo um trabalho
de tentativa de organização do olhar para compreender de que modo estes espaços
trabalham entre si. Por vezes, eles se revezam e tomam um o lugar do outro. O
espaço se fragmenta de tal modo, que não se pode reconstruir uma espacialidade
física a partir desta virtualização. Sobre o uso da perspectiva, disse Daniel Senise:

O confronto entre a afirmação quase obvia da superfície e o seu uso de


forma virtual acontece muito no meu trabalho. Quando a uso de forma
virtual, em alguns casos, utilizo até mesmo exemplos de como desenhar
perspectiva, retirados de livros didáticos. Não é uma invenção minha.
Mas o que faz o quadro funcionar é sua capacidade de se expressar
poeticamente, e não o fato de usar essas duas maneiras, a virtual e a
física.7
Ao mesmo tempo em que promove espaços que se projetam, superficialmente,
o quadro afirma-se num plano. Conforme o artista sobrepõe os tecidos para compor
suas imagens, aqueles que estavam por baixo destes são recortados para que o
mais superficial se encaixe no corte. Assim, ao observar a tela do artista de perto,
a menos que já se conheça o método de trabalho dele, não se decifra de imediato
o modo o trabalho se monta. Ao tocá-la não é possível perceber estas camadas,
porque o artista busca uma uniformidade tal que não sugira uma trama física das
camadas, mas, antes, uma trama visual, num trompe l’oeil. Entretanto, as implicações
da monotipia, da gravação dos pisos dos ambientes, evocam ao mesmo tempo,
várias espacialidades físicas na espacialidade virtual do quadro. Como ele mesmo
afirma, porém, esta capacidade poética de se manifestar a partir da relação destes

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dois espaços é o que lhe interessa. Esta trama oculta na poética acaba por adensar a
superficialidade do quadro.
A evocação da memória pela presença dos vestígios – índices agregados à
matéria, como pegadas ou o pó de locais abandonados - tem muito o que dizer no
trabalho. Na maioria das obras em que Senise utilizou-se da monotipia, reconstruiu no
quadro o ambiente do lugar gravado – como as cavalariças do Parque Lage, salas de
museus ou o ambiente de seu atelier. Em “Reino I”, entretanto, o artista não se priva
de representar um espaço tão pouco uniforme quanto os fragmentos de tecidos que
opta por utilizar, os quais parecem ter vindo de vários locais distintos. Nesta obra são
muitos os espaços representados – tanto virtuais quanto físicos, evocando imagens
que remetem à tradição da pintura, mas a uma história da arte permeada por olhares
que se relacionam e se alteram com o passar do tempo, como dito por ele, a respeito
da representação de paisagens hoje:

(...) são camadas e camadas de leituras e representações. O original


está distante... Vai-se a vários lugares, e sabe-se exatamente como são
muitos outros por meio de uma informação visual. Sabe-se até como é a
paisagem lunar. Então, pensar em paisagem dessa maneira é diferente
de como se pensava antigamente. São mantidas coisas como a ascese,
mas o objetivo não é mais trazer o verde para o salão8.

Bibliografia
ADEAS, Dawn. Daniel Senise: vestígios. In: Daniel Senise – Ela que não está, Cosac & Naify Edições, São
Paulo, em 1998. [Catálogo]
CALABRESE, Omar. Problemi di “enunciazione astratta”. In: CORRAIN, L. e VALENTI, M. Leggere L’opera
d’arte. Bolonha: Esculápio, 1999.
CHIARELLI, Tadeu. Considerações sobre o uso de imagens de segunda geração na arte contemporânea.
In: BASBAUM, Ricardo (org.). Arte Contemporânea Brasileira. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 2001.
FERREIRA, Glória. O vôo do bumerangue. In: Daniel Senise – Galeria Thomas Cohn Arte Contemporânea,
São Paulo, em 1999. [Catálogo]
HERKENHOFF, Paulo. Sudário e esquecimento. In: Daniel Senise – Galeria Camargo Vilaça, São Paulo,
1993. [Catálogo]

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Notas
1 HERKENHOFF, Paulo. Sudário e esquecimento. Texto publicado na exposição do artista na Galeria
Camargo Vilaça, em São Paulo, em 1993.
2 FERREIRA, Glória. O vôo do bumerangue. Texto extraído do catálogo da exposição do artista na
Thomas Cohn Arte Contemporânea, São Paulo, em 1999
3 CHIARELLI, Tadeu. Considerações sobre o uso de imagens de segunda geração na arte
contemporânea. In: BASBAUM, Ricardo. Arte Contemporânea Brasileira. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos,
2001. Pg. 257.
4 Idem, Pg. 266.
5 CALABRESE, Omar. Problemi di enunciazione astratta. Pg. 161 – 164.
6 ADEAS, Dawn. Daniel senise: vestígios. Texto publicado no livro do artista “Daniel Senise – Ela que
não está”, Cosac & Naify Edições, São Paulo, em 1998.
7 FERREIRA, Glória. O vôo do bumerangue. Texto extraído do catálogo da exposição do artista na
Thomas Cohn Arte Contemporânea, São Paulo, em 1999
8 FERREIRA, Glória. O vôo do bumerangue. Texto extraído do catálogo da exposição do artista na
Thomas Cohn Arte Contemporânea, São Paulo, em 1999

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III semana de pesquisa em artes
10 a 13 de novembro de 2009 art uerj
leituras contemporâneas

Crítica, forma e cultura: a série Releitura da Bíblia de Léon Ferrari

Mariana Gomes Paulse

Graduanda em Artes Visuais – História da Arte – UERJ

A presente comunicação pretende discutir a série Releitura da Bíblia, de León Ferrari, a partir
de aspectos pontuais da análise de suas colagens, de 1984 a 1990. Tratar-se-á de como
Ferrari utiliza reproduções de outras obras de arte, consagradas pela História da Arte e já
culturalizadas, como ícones para questionar a sociedade ocidental e cristã, numa releitura
crítica das narrativas bíblicas e da própria história da arte.

História da Arte; León Ferrari; colagem.

This communication intends to discuss the series “Re-readings of the Bible”, of León Ferrari,
starting from punctual aspects of the analysis of his collages, from 1984 to 1990. It will be
treated how Ferrari uses reproductions of other works of art, consecrated by the History of Art
and already culturalized as icons to question the occidental and Christian society, in a critical
re-reading of biblical stories and of history of art itself.

History of Art; León Ferrari; collage.

Visão e criação, evento primeiro que antecede o ato. Assim contam narrativas
bíblicas, narrativas históricas e biográficas sobre artistas. Abordar esses temas e
interligá-los a narrativas contemporâneas se coloca como proposta de compreensão
das três obras de León Ferrari a serem tratadas Incircuncisos [Fig.1], Helicóptero
[Fig.2] e Fecundação [Fig.3], da série Releitura da Bíblia.
O primeiro trabalho a ser abordado é Incircuncisos (1988). Neste, pode-se
verificar ao fundo, a imagem do Vaticano, cheio de fiéis, e a ela sobreposta, colada
em primeiro plano, a figura do Criador, retirada de uma reprodução do afresco
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Fig. 1 – Incircuncisos,
1988, da série Releitura
da Bíblia, colagem
27x42,5 cm, León
Ferrari. Coleção León
e Alicia Ferrari, Buenos
Aires.

Criação do Sol, da Lua e das Plantas (1511), de Michelangelo, pintado na Capela


Sistina, Vaticano. O Criador, inclinado à esquerda, diferente da sua postura no afresco
original, é incorporado a forma convexa da imagem do Vaticano escolhida por León
Ferrari, que faz alusão ao formato da abóbada da qual aquela imagem foi retirada.
Essa e outras pontuações permitem uma aproximação da arte de Michelangelo
no teto da Capela Sistina ao posicionamento crítico de León Ferrari sobre a arte e
religião.
A deformação na imagem do Vaticano mencionada não só faz alusão à imagem
de Michelangelo e às questões propostas por essa relação, mas demonstra em si
uma escolha na forma de lidar com o Vaticano também como ícone a ser pensado.
O abaloado confere ao Vaticano, local representativo da instituição Igreja Católica
Apostólica Romana – formadora de diversas ideologias da civilização ocidental e
cristã, como colocado por León Ferrari – uma posição de centralidade, não só na
colagem, mas no espaço que o Vaticano se insere, já que não se pode observar o
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entorno, omitido pelo formato da imagem. O Vaticano parece fechar-se em si, em
seus dogmas, em sua fé, em seu espaço, aparece como o mundo em si, como se não
houvesse nada além desse.
O Vaticano se coloca como elemento representativo da postura da Igreja a ser
pronunciada pelo Criador de Michelangelo, que se sabe estar dentro desse espaço
e se projeta para fora dele, sobrevoando-o. A noção de um espaço que se fecha em
si e, ao mesmo tempo, tem a possibilidade de se projetar no mundo, se alinha a uma
forma de construção de Ferrari, de pôr em evidência dicotomias. Destacado dos anjos
que o acompanham na Capela e de todo o entorno, o Criador que anteriormente
apontava para o Sol e a Lua, no ato de criação, passa a apontar para o céu com
a mão de trás e com a da frente, para a terra, para os homens, ou ainda, numa
crítica mais direta para aqueles fora da imagem, para os homens não consagrados
por ele – os consagrados se encontram dentro do Vaticano, submetidos aos seus
dogmas –, os incircuncisos, como indica a legenda. Na colagem, ao posicionar o
Criador apontando Céu e Terra, Ferrari sublinha que, conforme a narrativa bíblica,
essa é a representação do Criador de ambos, o Criador do mundo, e o coloca como
elemento de conexão entre esses dois elementos que são mais do que espaços
físicos diferentes, se dividem entre o divino e o mundano, entre o Sagrado e os não
consagrados. Posicionando o Criador de Michelangelo junto ao Vaticano, Ferrari traz
para seu trabalho o discurso do último ser um espaço de união, que se propõe a
aproximar os homens de Deus.
Destacam-se, para o estudo da colagem de León Ferrari, as conotações
provocadas pelo deslocamento do ato de criação a partir da leitura da obra de
Michelangelo na Capela Sistina e a idéia, presente na narrativa biográfica desse
artista, desde Vasari, que o coloca como artista genial, grande Criador, capaz
de transmitir em sua obra uma visão divina. Segundo Argan (2003a, p.65), para
Michelangelo, “A própria criação é um ato violento, dilacerante: separa a luz das
sombras, a terra das águas. Ao homem (Criação de Adão) Deus comunica a própria
potência criativa: o homem, dizia Ficino, pode decidir sobre a própria natureza.”.
Trazendo a afirmação de Argan para o contexto de criação de León Ferrari, pode
se perceber a apropriação desse entendimento de Michelangelo a respeito do ato

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de criação na reafirmação da imagem de um criador potente, vigoroso, retirado da
Capela. Deslocados para a obra de Ferrari, o olhar do Criador se destaca por sua
força e fúria e sua mão firme estendida não se encontra mais em ato de criação,
mas em ato inquisidor, de apontar culpabilidade. O gesto do Criador aponta
para fora da colagem, para o outro, que também pode ser o observador da obra.
Metonimicamente, o Vaticano cheio de fiéis e o Criador, conjugados, passam a
representar a postura da Igreja quanto aos que não seguem seus dogmas.
No entanto, utilizar o Criador de Michelangelo não só é crítica à postura
da Igreja, possui uma conotação sobre o estatuto da arte, sobre sua produção
e entendimento, e remete ao ato de criação artística, destacando as diferenças
entre o ato de Michelangelo ao pintar a Capela Sistina e o ato de León Ferrari ao
retomar essa imagem e reelaborá-la em seu trabalho. Para tal, traz-se o discurso
de Duchamp, no texto Ato Criador, que discute as diferenças entre a criação de um
artista tomado como gênio artístico e outro que não deseja se inserir dentro dessa
esfera de valores, ou ainda, que pretende problematizá-la:

“Ao darmos ao artista os atributos de um médium, temos de negar-lhe


um estado de consciência no plano estético sobre o que está fazendo,
ou porque o está fazendo. Todas as decisões relativas à execução
artística do seu trabalho permanecem no domínio da pura intuição e não
podem ser objetivadas numa auto-análise, falada ou escrita, ou mesmo
pensada.” (1975, p.72)

Mesmo que Michelangelo estude modelos e pense como produzir tais formas,
há um discurso que envolve a sua arte que o diviniza, que o coloca como artista
genial, deus criador e que aproxima seu trabalho, sua produção de uma noção
de uma visão divina, que o acomete e, nesse sentido, é intuição. Por não tomar a
arte como pura intuição, León Ferrari pode realizar este trabalho. Ele não expressa
através de seu pincel sua genialidade, fornecida por uma visão divina. A visão de
Deus apresentada por León Ferrari é fruto dos seus questionamentos, seu ato criador
faz parte de um entendimento das características formais aliada ao entendimento

259 art uerj III semana de pesquisa em artes


do pensamento de outros artistas sobre a arte e seus fazeres, além das possíveis
conotações críticas a serem estabelecidas entre a arte dos diferentes tempos, entre
a arte e a religião, exibidas nos seus trabalhos como os da série Releitura da Bíblia,
nos textos que escreve, no exercício da sua opinião através da arte. León Ferrari
deixa claro que esta é sua posição, assim como acredita que o mostrado na Capela
Sistina é a posição daquele artista, que se relaciona à posição da Igreja, à história
daquela religião. Não há verdade, nem para a arte, nem para a sociedade.
Ainda tratando de como a criação artística, muitas vezes, é relacionada com
a idéia de uma visão divina, celestial que seria responsável pela criação, como nas
narrativas bíblicas, na próxima colagem a ser analisada, León Ferrari se utiliza de
uma imagem do Renascimento que trata de uma visão, para realizar sua crítica ao
posicionamento político da Igreja Católica, revelando as aproximações não só entre
arte e religião, mas entre religião e política e entre arte e política.
Na colagem Helicóptero (1988), pode se identificar a imagem da Visão de
São Bernardo (1489) de Pietro Perugino, e a inserção da imagem de um helicóptero
sobre o mar dentro da reprodução do quadro. A imagem de Perugino utilizada exibe
o episódio em que São Bernardo se sentia doente e exausto e Maria aparece para o

Fig. 2 – Helicóptero,
1988, da série Releitura
da Bíblia, colagem
25x24 cm, León Ferrari.
Coleção León e Alicia
Ferrari, Buenos Aires.

260 art uerj III semana de pesquisa em artes


dar forças e ajudá-lo a continuar a escrever.
O helicóptero se coloca ao fundo, substituindo não só a paisagem para qual
convergia a imagem de Perugino, como o espaço de quatro colunas do fundo,
que proporcionavam maior sensação de profundidade à obra. O recorte realizado
por León Ferrari é relevante, pois a obra de Perugino, no uso de conhecimentos
matemáticos para construção do espaço, representou de forma arejada a cena,
através do uso da perspectiva, produzindo distanciamento entre o primeiro plano
e o último, o da paisagem, separados pelas colunas. Ao colocar o helicóptero mais
próximo, Ferrari reduz o espaço da imagem.
A “quebra” do espaço de Perugino não se dá somente pela ausência de
aproximadamente metade do espaço perspéctico da obra, mas pela ruptura de
uma construção que não é só matemática, que preza a sentimentalidade da cena
a ser transmitida. O êxtase da visão celestial da obra de Perugino vai além da
representação figurativa dos personagens, se expande na construção de toda a
obra. O olhar do observador é conduzido à contemplação, através de uma calma que
permeia os planos do quadro, conduzindo-o da cena principal, em primeiro plano,
à tranqüila paisagem ao fundo, mais distante, permitindo um descanso do olhar.
Segundo Longhi,

“Perugino saberá produzir efeitos de misticismo estático e igualmente


difuso nos homens e na natureza. Basta-lhe uma composição de ritmo
absolutamente ingênuo e superficial, de pessoas em posturas suaves e
pacatas sob uma galeria de arcos esguios, roçando o céu.” (2004, p 91)

Esse efeito de misticismo estático produzido por Perugino para a representação


de uma narrativa religiosa é reelaborado na colagem de León Ferrari. Ao inserir o
helicóptero, não permite que esse efeito próprio do trabalho de Perugino se produza
na apreensão da Visão de São Bernardo, interrompe-o. Ferrari se utiliza dessa obra
renascentista, substituindo a paralisia que envolve a contemplação e o êxtase de ver
Maria pela paralisia, pela surpresa/espanto/susto de ver um helicóptero adentrando
a cena, essa ameaça tão iminente é acentuada pela diminuição do espaço da

261 art uerj III semana de pesquisa em artes


perspectiva. Preserva, no entanto, uma noção de monumentalidade construída
na obra de Perugino através de sua arquitetura e pela forma de representação
dos personagens, de corpo inteiro, que se conjuga à monumentalidade contida na
proximidade do helicóptero.
Como afirma Argan,

“Os tipos humanos de Perugino são constantes, ou quase; e constantes,


os tipos de sentimentos que se exprimem nas figuras: na maioria,
êxtase, contemplação, devoção. Assim a arte não somente é revelação
dogmática, mas demonstração e divulgação da verdade da fé: à
contemplação corresponde uma práxis, a imposição da verdade divina
na natureza e na história, que faz a arte um instrumento do ensino
dogmático (...) sem enfrentar outros problemas que sejam de maior
eficácia persuasiva da sua oratória figurativa.” (2003, p.312)

Ferrari, sem alterar as feições dos personagens, as ressignifica, a afirmação


da verdade da visão divina é substituída pela crítica ao posicionamento da Igreja. Se
em Visão de São Bernardo, a calma nos personagens faz parte da sentimentalidade
que se expande pelo espaço, em Helicóptero, os personagens se mostram alheios ao
helicóptero tão próximo e alheios uns aos outros, olham em direções diversas, com
exceção de São Bernardo ao observar Maria. Ele a vê, mas em ato de contemplação
daquela presença, numa espécie de transe. O helicóptero que se faz tão presente
aos observadores externos, parece não ser notado pelos observadores internos
propostos por Ferrari. Isso só é posto em dúvida ao verificar o detalhe da mão de
Maria que se direciona a São Bernardo. O relaxamento da mão, sua leveza, poderia
fazer crer que ela aponta discretamente ao helicóptero atrás de si, num ato irônico
de extrema calma frente ao perigo, como quem indica sem muita importância, como
quem sabe do próprio alheamento.
Essa postura de alheamento se relaciona com a crítica que León Ferrari faz
ao posicionamento da Igreja quanto aos terrores da Guerra. A omissão da Igreja
que diz poder ver além, que narra tantas visões e, no entanto, se mostra alheia ao

262 art uerj III semana de pesquisa em artes


terror da guerra é reforçada como um não querer ver ou fingir não ver algo que se
passa tão próximo. Ferrari, no contexto geral de sua obra, atribui à Igreja – assim
como esta atribui aos homens, fiéis ou não – a culpa pela intolerância instaurada no
mundo que provoca tantas guerras. Segundo o artista, a intolerância é própria do
discurso religioso, verificável na Bíblia desde o Antigo Testamento e em pinturas do
renascimento apresentadas em outros trabalhos da série Releitura da Bíblia.
Passando à última obra a ser analisada, Fecundação (1988), pode-se observar,

Fig. 3 – Fecundação,
1988, da série Releitura
da Bíblia, colagem
30x47,5 cm, León
Ferrari. Coleção León
e Alicia Ferrari, Buenos
Aires.

ao fundo, a imagem de um livro, seção de “Ginecologia”, que explica o processo de


fecundação humana textualmente, com com destaque à função do espermatozóide,
e visualmente, através de uma imagem esquemática, didática. Sobreposta a
essa imagem, na parte central da colagem, há a imagem da pomba do Espírito
Santo na saída da Trompa de Falópio, no estágio posterior à fecundação do óvulo
pelo espermatozóide, posterior ao ato de concepção, e abaixo, a reprodução da
Anunciação (1433-34), de Fra Angélico, colocada sobre a parede do útero.
263 art uerj III semana de pesquisa em artes
A ironia de León Ferrari se manifesta na construção que exibe literalmente o
discurso bíblico e o discurso científico, mostrando sua incongruência. Ferrari levanta
assim o questionamento sobre a crença no evento bíblico e o contrapõe à ciência,
contemporaneamente tomada como verdade. Contrapõe, então, as duas verdades.
Nessa obra, verifica-se também pontos de conexão com a visão e a criação, pois
a imagem escolhida exibe o anjo Gabriel como uma visão à Maria que anuncia a
Encarnação ou a Criação de Jesus Cristo.
Ferrari coloca a Anunciação como um momento posterior à fecundação, dando
outra temporalidade ao evento da visão divina, posterior e não anterior à Criação. A
imagem de Fra Angélico escolhida exibe ainda a expulsão de Adão e Eva, lembrando
o pecado que os expulsou do Paraíso os homens. Essa imagem reforça a noção
de pecado e culpa presente na Bíblia e adotada pela sociedade ocidental e cristã,
discutida por León Ferrari em diversos trabalhos.
Formalmente, nesses trabalhos, pode-se averiguar o quanto esses duos
de imagens estabelecem uma relação de continuidade/descontinuidade e os
discursos que representam, seja pela coloração, seja pela escala, seja pelo modo
de inserção, do Criador sobre o Vaticano, do helicóptero na Visão de São Bernardo,
da Anunciação e do Espírito Santo na Fecundação. Talvez, a maior descontinuidade
esteja na qualidade desses elementos no mundo. Uns são objetos conhecidos como
parte do mundo, mundanos, e outros, exemplares de uma arte tomada ainda como
parte de uma esfera diferenciada. Essa descontinuidade anuncia a dificuldade de
aproximação entre esses elementos e amplia as possibilidades de interpretação dos
mesmos. As formas de inserção de cada imagem dão direcionamentos para análise:
o que é inserido, o que está ao entorno, o que se sobrepõe.
León Ferrari exibe a acessibilidade da História da Arte ao aproximar imagens
da contemporaneidade com imagens do Renascimento, diminuindo, cortando e
reinserindo tais imagens nas suas colagens, tratando dessa herança cultural, que
permite uma apreensão imediata desses ícones e revela, para além do imediatismo,
as diferenças entre essas esferas de valores tão distantes, discutindo até que ponto
os valores bíblicos podem permanecer na atualidade sem revisão, sem serem
questionados, como propõe a Igreja Católica. Reelaborar o sublime em Perugino,

264 art uerj III semana de pesquisa em artes


atualizar a questão da criação artística a partir de Michelangelo e “revelar” o mistério
da concepção de Jesus Cristo em termos científicos põem em questão também os
modos de apreensão dessas obras na contemporaneidade. Ferrari realiza a série
Releitura da Bíblia como releitura da História da Arte, através de outro duo – uma
crítica séria e, ao mesmo tempo, bem humorada.

Referências Bibliográficas
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LONGHI, Roberto. Breve mas verídica história da pintura italiana. São Paulo: Cosac Naify, 2004.

265 art uerj III semana de pesquisa em artes


III semana de pesquisa em artes
10 a 13 de novembro de 2009 art uerj
processos artísticos contemporâneos

A Memória do Objeto: Imagens Ressonantes

Alessandra Porto da Silva

Graduação em Artes Plásticas (Bacharelado e Licenciatura) na UERJ

Parto uma abordagem nostálgica utilizando como referente uma arte popular. Utilizo imagens
que correspondem à poética regional nordestina: a arte figurativa de Vitalino e da comunidade de
ceramistas do Alto do Moura (Caruaru/PE), na valorização  da cultura visual e da estética do sertão. 
O trabalho desenvolve um diálogo reflexivo e processos de experimentação plástica na utilização de
materiais de memória que procedem de referências anteriores, de onde podem ser definidos pela
preocupação com o tempo vivido e pelas novas significações que o passado potencialmente tem de
atuar no presente por meio da sua apropriação na combinação de objetos tradicionais e memórias
com ocorrências atuais. Neste sentido, levanto questões pertinentes como a relação entre o suporte
material da obra e a passagem do tempo, estabelecendo a construção de uma memória plural (fotos
de família) e a re-locação de traços de uma memória coletiva, tradicional, produzindo as caixas de
memórias, um novo trabalho artístico imbuído de reminiscências afetivas, imprimindo traços dos
lugares de onde foram recolhidos os fatos das minhas experiências de infância, na íntima presença
materna que se revela nos bordados e fotos, e que me levam, assim, ao território mais amplo das
minhas referencias culturais de origem, o Nordeste, as rendas e as cerâmicas.

Memória; Feminino; Apropriação.

I started by a nostalgic board, taking as reference popular art. It got images that refer to the
north-east regional poetic: the figurative art of Vitalino and the comunity of ceramic artisan of Alto
Moura (Caruaru/PE) to increase in value the backwoods visual culture and aesthetic.
The research develops a reflexive dialogue and process of plastic experimentation by using
memory material, that come from previous references, that can be defined as a concern about
the time gone and the new meaning of past in which it has to influence present by combining
traditional objects and memories to the current events. So, following this thought, I ask questions
such as the relation between material support of the work and passage of time, establishing the
building of a plural memory ( family pictures) and the re-location of traces of collective memory,

266
tradicional, making memory boxes, a new artistic work full of affectionate reminiscence, printing
traits of the places they were taken from, events of my childhood, in the very close presence of
my mother that can be seen on the embroidered and pictures, taking me, somehow to the largest
territory of my cultural references, the Noth-East, its laces and embroideredes.

Memory; Female; Appropriation (Ownership).

Esta pesquisa tem como objetivo estabelecer relações etnográficas centradas


nas imagens, as fotografias e fotogravuras. Remetendo também a semiótica do
que vem a ser apalavra e objeto Memória. Levanto aqui uma proposta de trabalho
artístico, onde me baseie numa pesquisa anterior sobre arte popular. Esta me
despertou um interesse especial e quase este familiar em construir uma obra de arte
que englobasse signos do imaginário popular que potencialmente pode permear a
arte contemporânea, sem à preocupação em nomear, definir ou conceitualizar.
A possibilidade de unir mundos distantes de si, como ponto de contatos, porém
próximos, fez com que eu construísse um percurso de imagens onde a minha poética
é revelada em fotos tiradas de um objeto – a Boneca de Barro, Arte Figurativa de
Caruaru - de uma fotografia antiga de minha mãe e relacioná-la a outras estruturas
como: a colcha de fios de algodão cru e os estudos de crochê.
Esta operação faz refletir sobre questões plásticas pertinentes: (1) como a dinâmica
de apropriação dos artistas populares quanto aos fatos do imaginário local; (2) como o objeto
de arte se localizou no espaço e no tempo, (3) como o objeto se comporta numa releitura
contemporânea; (4) e experimentação de diferentes formas de apropriação todas originadas a
partir dos objetos populares aconteceram. É durante o processo de apropriação, de imagens
do objeto, que foi constituindo estudos das ressonâncias. A presença contemporânea do
objeto do passado é bem diferenciada no contemporâneo. O ritmo de trabalho acontecido foi
em etapas necessárias, construindo um mapeamento singular e pessoal.
Sobre os Objetos a serem expostos, refiro-me ao vestígio de um cotidiano, a
Boneca de Barro reconhecida como a Dondoca, apresenta um olhar forjado e sofrido,
um corpo acentuado pela formação inicial de uma moringa onde foram modelados
seus braços e seios. Com rosto que faz, ou tenta, fazer a nítida alusão ao império da
moda, a um tipo de beleza feminina idealizada pelo industrial cultural.
267 art uerj III semana de pesquisa em artes
Adentro agora a um trabalho manual do crochê e dos trançados de fios,
objetos de uma arte popular e vestígio de um cotidiano do trabalho feminino. O tecido
resultante do crochê tem dois aspectos totalmente distintos: se for trabalhado com
linhas e agulhas finas, produzirá um tecido aberto e delicado muito semelhante à
renda. Por outro lado, se forem utilizadas linhas e agulhas grossas, o tecido resultará
espesso e firme. E é possível estabelecer uma metáfora com os fios da memória.
Neste momento ocorre à entrada da foto materna. Com a aparência envelhecida a
foto torna-se maus um elemento importante para a realização deste trabalho. Existe uma
aproximação com a Boneca de Barro, talvez seja o olhar fixo e continuo, ou até a própria
coloração que a foto tomou durante o tempo, encontrada a foto entre papéis velhos,
veio-me a necessidade de interpretá-la como objeto de uma arte popular também, não
somente como referente mais como um sentimento que tenta conectar-se a uma história.
Apego-me a tais traços e símbolos para construir uma reflexão sobre o que
significa essa cartografia, para mim absolutamente necessária, ou seja, colher dados
de um passado e ao mesmo tempo um presente que sobrevive mantendo sua tradição.
A mistura de alguns elementos de uma imagem com outra, encontrando assim
uma linha de ligação com a memória afetiva que estes objetos têm pra mim, e como
eles se relacionam com quem os vêm, é o resultado das experimentações plásticas,
as imagens ressonantes que reverberam nas caixas de memória.

Sobre as Séries
Cada série é constituída por três imagens onde se assemelham quanto
característica plástica e por ações trabalhadas.
Com a combinação do preto e branco a série Vultos/Sombras revela uma dimensão
impalpável da boneca de barro e ressalta também seu volume e contornos femininos.
Esta série estabelece uma conexão entre a apropriação dos bordados de
crochê juntamente com as fotografias, onde o comportamento traz cor e também
revela a delicadeza do trabalho feminino.
Neste momento procuro fazer cortes e é onde começa uma aproximação
das imagens, a recorte da foto 3X4 é o mesmo executado na fotografia da boneca.
Desloco a face e a deixo em evidência para revelar a expressão feminina.

268 art uerj III semana de pesquisa em artes


Série 1: Vultos/ Sombras

Série 2: Figura e Flor

Série 3: Recortes

269 art uerj III semana de pesquisa em artes


III semana de pesquisa em artes
10 a 13 de novembro de 2009 art uerj
processos artísticos contemporâneos

Arte do espaço e do tempo

Alexandre Emerick Neves

Professor de História e Teoria da Arte da UFES e doutorando em História e Crítica da Arte pelo
Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da EBA – UFRJ

Sendo indissociáveis as idéias de espaço e tempo, a pintura e a escultura anseiam representar


também o tempo. A arte contemporânea não somente assevera que a observação tem
duração, mas faz emergir o fluxo temporal como elemento constitutivo da obra. É com a
imagem-movimento nos registros fílmicos e videográficos que o tempo torna-se plenamente
representável.

Arte contemporânea; imagem-movimento; fluxo temporal.

Being inseparable the ideas of space and time, painting and sculpture also eager to represent
time. Contemporary art not only asserts that the observation lasts, but brings out the flow of
time as a constituent element of the work. With the image-movement in filmic and videographic
records the time becomes fully representable.

Contemporary art; image- movement; temporal flow.

Se, para Francastel1, a arte ocidental é uma arte do espaço, entendemos


que esta constatação contempla as categorias tradicionais de obras de arte. Com
as práticas surgidas com a arte contemporânea, ou desde os casos omissos
ao formalismo modernista, ao dado espacial deve-se inserir a reflexão sobre
as possibilidades abertas pela assimilação do fluxo temporal nas artes visuais,
acentuadamente com a pesquisa cinética, a performance, o filme e a videoarte, e
como isso contribuiu para transformar o conceito de obra, e mesmo o modo de pensar
a arte e seu campo. Para Bourriaud, a arte de hoje tem sua originalidade justamente
270
no tratamento que dá à questão do espaço e do tempo. 2
A instantaneidade disponibilizada pelo vídeo na transmissão de imagens
instaura a possibilidade de envolvimentos pessoais dos artistas com as obras
através dos recursos ofertados. Se a questão de tempo se torna premente, um meio
como o vídeo, que não precisa ser processado, ao contrário do que acontece com
o filme, potencializa a idéia de tempo presente, e oferece ao observador um convite
mais convincente à participação. O jogo entre passado e futuro faz intensificar o
dado presencial que vem do enlace entre tempo e espaço. Para Dan Graham, a
reposição de elementos colhidos do próprio ambiente potencializa as possibilidades
expressivas.

Fluxo temporal em obra


Para além de um corte imóvel do tempo, de um movimento apenas nocional,
Deleuze esclarece como o cinema nos oferece um corte móvel do tempo, uma
imagem acrescida de movimento, uma imagem-movimento3. A depuração da idéia
de duração torna-se mais premente com a imagem-movimento. Na pintura e na
escultura, os momentos são somados em distorções ou justapostos em etapas
sucessivas. Em ambos os casos uma tensão temporal se instaura pela sugestão das
ações. Na fotografia é o exato instante de uma etapa do movimento que se revela,
extrai da tensão um momento em suspensão. Mais que uma soma ou justaposição de
etapas sucessivas, no filme e no vídeo não há tensão nem suspensão, mas um fluxo
de imagens correspondente a um fluxo temporal. Ainda o mundo das aparências,
mas agora o “movimento aparente”.4 Por não ser mais apenas a aparência das coisas
e do mundo, mas das coisas e do mundo em movimento, ampliam-se os efeitos de
realidade. O movimento aparente tem como propriedade a duração, ao contrário da
sugestão de movimento gerada pelo uso dos signos substitutivos na pintura, desenho
ou escultura; a correnteza heraclitiana levando a pedra euclidiana.
A busca da verdade na representação de Courbet carecia de um elemento que
o impressionismo logo ansiou; em contraponto ao determinismo formal, espacial e
temporal, a fugacidade vívida do movimento. Isso implica em salientar que toda ação
tem uma duração, trazendo a idéia de tempo e espaço percorridos e que pressupõe

271 art uerj III semana de pesquisa em artes


em muitos casos a mudança da forma, do espaço e da matéria como substrato da
duração. Aumont dá-nos um exemplo que se encaixa bem a essa discussão; as barras
de ferro incandescentes em Ferradores, de Lumière. Impressiona a constatação
entre os primeiros espectadores do cinema de que “não há um sequer que lamente,
ao contrário, só ter visto uma imagem cinza”.5 Se artistas como Courbet adequavam
magistralmente as cores, as formas, as texturas, os gestos e os espaços à concepção
realista de suas imagens, não havia qualquer exigência quanto à clareza das formas
e a presença de cores nas primeiras imagens cinematográficas, o movimento parecia
um suficiente efeito de realidade. Não é somente uma questão de deslumbre com
uma novidade, mas uma sensação de conquista. Voar parece sempre ter instigado
o imaginário humano; percorrer por um pouco de tempo uma curta distância a uma
limitada altura do solo com uma máquina foi visto como um triunfo, de paternidade até
hoje discutida. O anseio pela imagem-movimento como efetiva representação da ação
era uma premissa desses espectadores.
Aumont, lembrando ainda de trechos de relatos sobre as primeiras projeções
Lumière, destaca a que salienta com espanto que, a respeito de Saída da fábrica,
“mais de cem personagens ou grupos animados passam, em 50 segundos, nessa
porta projetada sobre a tela”.6 Supondo que essa tela fosse uma pintura, quantos
metros quadrados seriam necessários para que pela porta passassem mais de cem
figuras? Talvez uma parede inteira, como no afresco Escola de Atenas, de 1500-11,
de Rafael, apesar desta cena pictórica conter pouco mais de cinqüenta personagens.
E como não pensar no turbilhão de corpos contorcidos pela superfície da Porta do
inferno, trabalhada por Rodin de 1880 a 1917. Na verdade, Rodin acreditava que a
“pintura e a escultura podem fazer as figuras moverem-se”, e assevera a questão
ao dizer que “algumas vezes chegam a igualar a arte dramática ao representar, num
único quadro ou num único grupo escultórico, diversas cenas sucessivas”.7 Para
encerrar a multidão vibrante a porta de Rodin deve estar fechada, com Lumière a
porta se abre. Ainda pensando em escultura, talvez fosse necessária uma coluna,
como a Coluna de Trajano, para que em toda sua superfície cilíndrica perfilassem em
relevos tantas ações. Aqui parece incidir com clareza a essência da duração: para
se registrar uma grande e heróica história de toda uma vida de façanhas e vitórias,

272 art uerj III semana de pesquisa em artes


Irmãos Lumière, Saída
da Fábrica - La Sortie
de l’Usine Lumière à
Lyon (le Premier Film)
(1895) 46 segundos

um vasto tecido de relevos se faz necessário, voltando à idéia de sequência, mas


para que passem por uma porta centenas de personagens animados em um registro
fílmico são necessários 50 segundos. Câmbio justo: de vários instantes lado a lado no
espaço plástico sugerindo longas ações, para várias ações ocorrendo a cada instante.
Partindo dessa expediência, o uso do registro fílmico, seguido do videográfico,
familiarizou a arte contemporânea com a duração dos gestos, o tempo das ações, o
exercício vívido de exploração do tempo e do espaço. Aumont cita Jean-Louis Chéfer
ao concluir que o registro fílmico é “a única experiência na qual o tempo é dado como
uma percepção”.8 Com a imagem-movimento, enfim, o tempo torna-se representável.

Auto-imagem: aparência e duração


O registro de imagens em movimento surge como possibilidade real de imersão

273 art uerj III semana de pesquisa em artes


do artista em sua obra. Joan Jonas entendeu o vídeo como “algo para eu escalar
e explorar como elemento espacial e comigo dentro dele”. 9 O auto-retrato traz a
inserção do artista em suas representações do mundo e das coisas, como na imagem
criada por Velásquez, onde o artista se inclui na cena inicialmente formada para
representar figuras da corte espanhola em As Meninas de 1590. Velásquez aparece
em sua atividade criadora, referenciando o próprio fazer artístico. Outra expectativa
é a projeção subjetiva do artista na obra, o que foi alcançado plenamente com a
abstração expressiva e seus gestos incisivos. Nos registros de Pollock trabalhando,
como nas fotografias de Hans Namuth, vemos o gesto performático do artista na
elaboração de suas obras. Todo o potencial de sua presença física tem como fim
a imagem em um quadro, e esse nos remete à ação de sua feitura. Com a arte
performática e a Body Art, o artista é parte integrante de suas criações, embora suas
manifestações sejam muitas vezes efêmeras.
O auto-retrato somado à performance e com registro fílmico ou em vídeo
aparece como uma celebração crítica da atividade artística. Em Auto-Retrato, obra de
1975, um Super-8 de 3 minutos de duração, Marcelo Nitsche propõe sua presença
no filme, que resulta no registro de sua ação como artista, e de sua presença como
obra em processo. Uma volta em torno da atividade artística gerando um estado
nodal, onde o fazer do artista é ironicamente o ponto central resultante. Com uma
câmera fixa em funcionamento, o artista começa sua atividade pictórica. Pinta o
rosto com pinceladas abstratas coloridas. Tensão entre representação subjetiva e
apresentação objetiva da imagem do artista. A presença crítica do artista na imagem
impõe questões indissociáveis do conceito de obra. Enquanto a pintura de Pollock
remete à sua feitura que depende do gesto do artista, a imagem do gesto presencial
de Marcelo Nitsche constitui a própria obra em sua duração, e não a imagem gerada
pelo gesto como materialização dele, como seu resquício material. O gesto de
Nitsche não resulta em algo materializado como uma pintura ou objeto, nem mesmo
como presença física, ainda que efêmera, como em uma performance presencial.
Como imagem mediada permanece imaterial e dependente de sua transmissão ou
projeção para audiência na retomada da duração dos gestos.
Com acentuado conceitualismo, Bruce Nauman transpõe para suas

274 art uerj III semana de pesquisa em artes


performances a negociação com o tempo, que depura o gesto e amplifica a presença
do corpo potencializando a ação de modo reflexivo intenso. O corpo aparece como
estrutura a ser trabalhada escultoricamente, ou ainda como imagem na superfície
da pele, como em Flesh to White to Black to Faesh, de 1968; conceito explorado em
Art Make-up, de 1967/68. Bruce Nauman não deixa de ser irônico em Art Make-up,
aplica sucessivas camadas uniformes de cores em seu corpo sugerindo recriações
sucessivas de sua imagem. O corpo do artista como suporte de uma pintura-
maquiagem, em um jogo ardil entre sinceridade e engano. Uma ação construtora de
imagens decididamente artificiais; apresentação e camuflagem. Em Art Make-up o
cuidado com o ritmo, quase de respiração plena e densa, assevera a simplicidade
da ação intensificadora do sentido. Cria uma atmosfera psicologicamente instável,
com um gesto decididamente construtor de uma imagem artificial pelo afastamento
da realidade. Reconstrói a presença do sujeito no espaço com um progressivo
adensamento da ação, estabelecendo relações críticas de identidade relativas ao
corpo, ao eu e ao outro, ao falso e ao verdadeiro, sinceridade e ironia. O corpo
como suporte da maquiagem, da transformação, da saturação, que tanto acentua as
possibilidades corpóreas como serve de camuflagem.
Peter Campus cria performances interativas com o dispositivo e suas
possibilidades técnicas. Em Three Transitions, de 1973, são três auto-retratos
apresentados em sequência. Diferentes das performances de Nauman e de Nitsche,
os exercícios curtos de Campus com uso de técnicas básicas de manipulação da
imagem em vídeo, são performances concisas que fazem do vídeo o veículo da
ação, indo além do simples registro. São ações que só alcançam pleno sentido no
jogo entre ilusão e realidade disponibilizado pelo vídeo. Ilusão não como o retorno ao
naturalismo, mas como trato das relações internas do espaço e do tempo do vídeo
e realidade da imagem em vídeo. A negociação com a dualidade não se dá sem que
Campus exercite também sua ironia.
No primeiro momento de Three Transitions duas câmeras registram a mesma
ação onde o artista corta um anteparo de papel. A sobreposição das imagens sugere que
o artista, ao cortar o suporte corta a si mesmo, e ao atravessar de um lado para o outro
acaba por traçar uma curta, mas densa viagem através de seu próprio corpo. Metáfora

275 art uerj III semana de pesquisa em artes


Bruce Nauman, Art de espaço interior e exterior. Já na terceira ação, Peter Campus põe fogo em seu próprio
Make-Up,
retrato que segura em uma das mãos. O retrato de Campus não se comporta como uma
1967-68
fotografia, mas, como na imagem de um espelho, é também imagem-movimento.
Pela similitude com os gestos apresentados nas obras citadas, nos deteremos
na segunda ação de Campus, pois a proximidade com o Auto-retrato de Nitsche e,
mais ainda, com Art Make-up de Nauman é evidente. O gesto é bem aproximado, mas
ao invés de aplicar cor o gesto de Campus apaga seu próprio rosto, fazendo aparecer
uma outra camada, novamente sua própria imagem. Tanto Nauman como Nitsche
acrescentam algo ao corpo que se apresenta como suporte. Para Campus o corpo é
igualmente suporte da ação, mas o corpo-imagem do vídeo que não se comporta como
superfície, mas possibilita seu desgaste e sua subtração, como em uma décollage
de Mimmo Rotella, que trata simbioticamente a relação entre suporte e imagem,

276 art uerj III semana de pesquisa em artes


subtração de imagem e desgaste de suporte imbricam-se em um mesmo gesto, como
em uma escavação arqueológica no território das imagens, o gesto aparentemente
subtrativo potencializa a obra. Em Three Transitions o corpo é imaterial, pura imagem.
Metaforicamente, quanto mais é retirado mais se revela o que foi subtraído: o auto-
retrato. Uma antimaquiagem e antipintura que desgasta a imagem superficial revelando
uma outra mais profunda, transparece um exercício ontológico da imagem como que
investigando as camadas do ser. O truque não vem da maquiagem que paradoxalmente
revela e esconde o corpo, nem do gesto pictórico que mascara o artista e suas próprias
projeções subjetivas, mas é o dispositivo que se oferece em camadas sensíveis como
meio de experimentação estética. O corpo do vídeo é percorrido em suas possibilidades
técnicas, sua densidade espacial, sua duração sensível, recebendo uma ação de
possibilidade cíclica que sugere vertiginosa profundidade na virtualidade do espaço,

Peter Campus, Three


Transitions, 1973.
Vídeo 5 min. parte 2

com correspondente e não menos desconcertante extensão do fluxo temporal.


Não é somente a negação do eu, da figura do artista, a crítica institucional,
mas também se pode rivalizar a ação no vídeo de Campus com a crítica platônica às
aparências. Aqui a aparência da aparência, criando camadas sucessivas de imagens que
se distanciam ainda mais do real ou, como que para rivalizar com o ideal platônico, da
idéia ou da verdade. O artista como criador e destruidor de aparências em seu espaço
mais virtual, e por mais que abarque todos os possíveis pontos de vista e que a imagem
não derive do artifício da mão, mas do processo operado pela luz como em nossa
retina na duração do fenômeno. Ainda assim permanece a aparência, potencializada
como imagem na imagem em aprofundamento progressivo do que seria para Platão
a impossibilidade da verdade na obra. Mas, tomando a imagem em sua infinita
possibilidade de aparição e duração, assistimos a emersão da verdade poética em obra.

277 art uerj III semana de pesquisa em artes


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Notas
1 Pierre Francastel, Arte figurativa, passim.
2 Nicolas Bourriaud, op. cit., p.66.
3 Gilles Deleuze, Imagem-tempo, p. 10.
4 Jacques Aumont, op., cit., p. 31.
5 Ibid.
6 Ibid., p. 32.
7 August Rodin, A arte [em] conversas com Paul Gsell, p. 62.
8 Ibid., p. 66.
9 Michael Rush, op. cit., 81.

278 art uerj III semana de pesquisa em artes


III semana de pesquisa em artes
10 a 13 de novembro de 2009 art uerj
processos artísticos contemporâneos

O uso da fotografia em práticas artísticas de Sophie Calle

Ana Luiza Hupe

Programa de pós-gradução do Instituto de Artes da Uerj

Este texto consiste na análise do papel da fotografia no trabalho de Sophie Calle, partindo da
ação L’hôtel. A artista trabalhou como camareira num hotel em Veneza e fez fotografias dos
pertences dos quartos dos hóspedes. A fotografia como prova de uma ação, como quebra entre
os espaços privado e público.

Sophie Calle; fotografia; intimidade.

This text consists on the analysis of the photography’s role in some works of the artist Sophie
Calle, with attention to the action L’hôtel. The artist worked as a chambermaid in a hotel in
Venice and took pictures of the guest’s possessions and their rooms. The photography is the
proof she had been there, it’s a signal of the non-limitation between public and private spaces.

Sophie Calle; photography; intimacy.

Por ocasião do lançamento de Histórias reais no Brasil, no Festival Internacional


de Literatura de Paraty (Flip 2009), levanto a questão do uso da fotografia em alguns
trabalhos da artista Sophie Calle. O livro é uma reunião de textos curtos – de cerca
de dois parágrafos cada, construídos a partir de imagens fotográficas que observadas
sem o complemento dos textos, podem ganhar sentidos bastante diversos daqueles
que a artista propõe. Os textos são ou parecem ser relatos de experiências vividas por
Calle, atividades muitas vezes premeditadas, que partem de um princípio organizador
estabelecido pela própria artista. O limite entre a realidade e a ficção permeia todas
as histórias, não há um compromisso com a verdade, os relatos podem condizer com

279
acontecimentos autobiográficos ou ser inventados.
As fotos, na maioria dos trabalhos de Sophie Calle, funcionam como provas de
performances, vivências às quais ela se atira com o propósito definido de viver e fazer
arte. As obras de Calle giram em torno de regras que ela cria para a própria vida.
“Não tenho filhos para levar à escola, posso desaparecer por seis meses amanhã se
eu quiser. As regras me tranqüilizam.” – explica a artista1. Calle transformou a própria
vida numa sequencia de jogos.
Ela aproveita-se da condição da fotografia como documento representativo do
real para demonstrar atos performáticos; usa a foto como prova. Além da noção da
fotografia como índice, que mantém uma relação direta, física, com seu referente, há
também a possibilidade de criação do fotógrafo e do observador. Calle cria a partir
das fotos-registro e a cada olhar percebe-se um detalhe novo nos episódios narrados.
Ao se deparar com os textos elaborados a partir das fotos publicadas
em Histórias reais, o espectador é induzido a crer que os eventos realmente
aconteceram, principalmente pelo caráter de realismo inerente à fotografia. A foto
funciona como rastro de uma atividade que se apresenta como obra.
Os trabalhos de Calle são considerados Arte do Cotidiano. Neste movimento,
denominado por Philippe Dubois em O Ato Fotográfico, encaixam-se os artistas que
colocam seu corpo em cena sistematicamente, ou como acrescenta Dubois:

a relação imaginária de seu corpo com tudo o que o cerca, tudo


isso sem cessar de utilizar a foto ou para elaborar por meio dela um
questionamento da arte e de nossos pequenos ritos sociais2.

Estariam nesta família de artistas Christian Boltanski, Didier Bay, Annete


Messager.
É enriquecedor para esta pesquisa atentar para a interpretação do escritor
Paul Auster sobre o trabalho de Sophie Calle. No livro Leviatã, publicado em 1994, o
romancista norte-americano toma emprestada a figura da artista para construir uma
personagem, Maria Turner. Maria é uma artista plástica que tem em sua carreira sete
obras que são trabalhos realizados por Calle, a saber: La suíte vénitienne, La garde-

280 art uerj III semana de pesquisa em artes


robe, Le strip-tease, La filature, L’hôtel, Le carnet d’adresses, Le rituel d’anniversaire.
Levando-se em conta que toda a obra de Sophie Calle é permeada por ficções
inseridas em realidades ou realidades em ficções, seguem as idéias de Auster sobre
o modo de fazer arte de Calle/ Maria.

(...)uma pessoa heterodoxa, que levava sua vida segundo um conjunto


refinado de rituais bizarros e peculiares. Cada experiência, para ela,
era sistematizada, uma aventura auto-suficiente que engendrava seus
próprios riscos e limitações. 3
Maria era uma artista, mas seu trabalho nada tinha a ver com a criação
de objetos comumente definidos como arte, alguns a chamavam de
fotógrafa, outros se referiam a ela como uma conceitualista, outros ainda
a consideravam uma escritora, mas nenhuma dessas definições era
exata e no fim, não creio que possa ser catalogada de alguma maneira.4

A obra L’hôtel realizada por Sophie Calle em 1986, em Veneza, com o intento
de elaborar um perfil característico dos hóspedes de um hotel na cidade durou três
semanas, durante as quais Calle empregou-se como camareira. Ela levava para suas
incursões diárias aos quartos, sua câmera fotográfica dentro do balde de limpeza e
um pequeno diário escondido onde registrava o que encontrava. O objetivo era criar
um imaginário sobre quem seriam aqueles hóspedes a partir dos pertences achados.
A artista se esquivou de conhecê-los pessoalmente para que suas elaborações não
se confundissem com as figuras reais. Interessavam resquícios de personalidades. As
imagens comprobatórias da passagem dela pelos aposentos permitem ao espectador
chegar a conclusões próprias a partir de outros objetos que não ganharam
importância nos escritos de Sophie Calle.
De acordo com Roland Barthes em A Câmara Clara, cada fotografia tem o que
ele chama de seu studium e de seu punctum. O studium seria aquilo que o fotógrafo
nos convida a ver, o que está relacionado muitas vezes a uma análise histórica ou
ao menos contextual da imagem. Já o punctum é o que cada espectador é pungido a
ver, aquilo que se relaciona com ele afetivamente e só com ele em particular.

281 art uerj III semana de pesquisa em artes


O exemplo a seguir são fotografias do quarto 28, visitado entre os períodos 16
e 19 de fevereiro (de 1986). No relato construído sobre as imagens, Calle observa que
para passar três dias em viagem, o casal que se hospeda no 28 levou mais pares de
sapato do que o número de pernoites. São oito pares femininos e cinco masculinos.
Sabe-se que a artista pegou um dos pares que havia sido jogado na lixeira, encontrou
também dois colares de pérolas numa necessáire, um saco em que está escrito
Fitzgerald em ponto-cruz que guarda cuecas, entre outros pertences. Há uma enorme
quantidade de bagagem: quatro malas Louis Vuitton lotadas. Os escritos transmitem
tratar-se de um casal de idade porque todas as roupas são de boa qualidade, marcas
conceituadas, nada de fast fashion. Descobre-se que o livro Games with Love and
Death de Arthur Schnitzler foi encontrado. O livro é uma compilação de quatro contos
sobre o amor moderno e talvez por isso tenha sido digno de anotação. Calle aproveita
para se perfumar com um Chanel nº 5 antes de deixar o quarto. Dentre tantas outras
informações fornecidas, o detalhe que mais chama atenção da artista é uma calça
branca de pijama que fica jogada sobre uma cadeira durante os três dias em que o
casal ocupa o quarto. Esse detalhe seria talvez o punctum para a artista.
Há outros punctums para mim. Os sapatos femininos são todos fechados, o
que me leva a pensar que trata-se de uma senhora com joanetes. Minha avó sofre
com joanetes, sempre se esforça para conseguir sapatos fechados nas laterais como
os da foto. O carpete me traz o cheiro do quarto; mesmo sendo um hotel em que os
aposentos são diariamente limpos, carpetes suscitam cheiro de mofo inevitavelmente
ao mesmo tempo em que conferem um ar de nobreza. Seria aquele hotel chique e
decadente? Pequenos detalhes que transportam para outros lugares.
Partindo dessa análise subjetiva a que a fotografia convida, conclui-se que
a câmera não é somente um dispositivo que registra presenças, mas também uma
técnica para ir ao encontro do invisível. Imagina-se um “fora de quadro” a partir das
imagens que Calle apresenta. O que Roland Barthes chamaria de “O campo cego”.
No seu processo de criação, Calle usa as forças do mundo para redesenhar a
sensibilidade. Seu impulso para criar surge da realidade, traz as marcas do imanente.
Ela procura trazer à tona a intimidade, aquilo que está no âmbito das sensações e
rotinas dos indivíduos. A artista se coloca vulnerável ao mal-estar, arriscando-se a ser

282 art uerj III semana de pesquisa em artes


flagrada remexendo nas malas dos hóspedes de um hotel elegante. Corre o risco de
sua verdadeira intenção de detetive no trabalho como camareira ser desvendada. A
obra de Sophie porta uma corporalidade, uma presença, ela esteve ali, onde aquelas
fotografias foram feitas, aventurou-se para mostrar o extraordinário no, à primeira vista,
simples. As fotos que ela faz estão imbuídas de uma estética detetive, assemelham-
se a fotos de perícia, é quase como se nos quartos um crime tivesse ocorrido e ela
precisasse registrar o lugar dos pertences sem tocar em nada, sem deixar vestígios.
Sophie Calle inventa alucinações para sair do lugar; propõe-se um
entretenimento com um quê de vouyer que de antemão ela imagina que poderá
incutir uma reformulação de questões que sustentam o homem contemporâneo.
Esse homem apresenta-se diferente nos âmbitos público e privado. A fotografia é
mediadora entre esses dois estados atestando uma intimidade entre corpos que com
a foto se torna um fato verdadeiro. A intimidade do ser observado assemelha-se à
de quem frui a obra. O espectador identifica-se com muitos dos objetos carregados
pelos hóspedes e pode reconhecer neles algumas imoralidades que se sabem tão
comuns. É através deste viés que o trabalho de Calle se liga afetivamente ao público.
O espectador sente-se na posição de violador da intimidade alheia e, portanto, torna-
se cúmplice da artista na tarefa de escarafunchar o que não quer ser exposto.
Calle ativa o exercício do sensível com o rigor formal de sua obra. Ao
apresentar sempre foto e texto de todos os quartos, ela cria um padrão de
organização de fácil acesso, a que o espectador está acostumado. Ela consegue abrir
para possíveis reconfigurações de sentido interferindo no inconsciente de um estado
de coisas. Aguçando e esmiuçando o olhar sobre a intimidade intrínsecas aos objetos
encontrados, ela ativa a sensibilidade do fruidor aproveitando-se de uma forma de
apresentação simples e conhecida. (texto e foto impressos em livro).
Ela repara que no quarto 28 está hospedado um casal de meia-idade, anota
suas leituras, as marcas chiques que eles possuem, o tíquete reservado para Milão
ao fim da hospedagem. O observador é conduzido a concluir que é um casal em
férias, com tempo para ler romances e se vestir para sair para jantar. Em nenhum
momento Calle declara essas conclusões diretamente, trata-se de intuições a partir
da descrição minuciosa. Indo mais longe, pode-se enxergar a admiração que ela

283 art uerj III semana de pesquisa em artes


nutre pelo casal anônimo, sendo eles um exemplo de cumplicidade e “amor burguês”
que deu certo. Neste ponto reside o olhar romântico da artista. A julgar por sua
última obra, “Cuide-se”, em que ela reúne 107 mulheres de diferentes profissões
para reagirem a um email de rompimento enviado por seu ex-namorado, ela parece
acreditar e gostar das relações conjugais “burguesas”. Se a arte pode algo, é tornar
sensível aquilo que atravessa o corpo da artista, a reiteração do amor romântico no
caso de Calle. Esse é um valor em que ela acredita e que procura reforçar.
Em L’hôtel funciona uma prática artística que obedece à própria lógica indicial
da fotografia5. Essa comparação deve-se ao fato de que a fotografia bem como L’hôtel
evocam o processo (performático) pelo qual foram gerados. A fotografia faz emergir a
lógica do ato, da experiência do sujeito, que constitui a própria lógica de trabalhos de arte
contemporânea. Uma das aproximações primárias entre fotografia e arte contemporânea
é o fato de ambas serem impressão, marca de um gesto. “O Ato (fotográfico ou picturial)
tornou-se absolutamente essencial, a obra é apenas um traço seu6”.
É pela memória fotográfica que sabe-se da performance L’hôtel. A fotografia
funciona como meio documental de registro, de arquivagem e de exposição do
trabalho. Cabe ainda ressaltar que o quarto e a cama são temas recorrentes na obra
de Calle, elementos que aparecem em diversos trabalhos.
As imagens e textos se realimentam, a artista coloca-se ao mesmo tempo
no lugar de quem fala, de quem escreve e de quem atua. Ela é autora-narradora-
personagem.
Na segunda parte do livro Histórias reais há uma narrativa em dez
capítulos (dez fragmentos de textos relacionados a dez imagens) que remetem ao
relacionamento de Calle com Greg Shephard. No filme No Sex Last Night, realizado
pelo casal em 1994, a mesma história é recontada de outra maneira. Calle tem a
necessidade de esgotar sua própria experiência afetiva, ela avança sobre diversos
campos, intervenção, instalação e neste caso, cinema. Apresenta-se aqui mais um
recurso da artista: reforçar uma narrativa várias vezes e em diversos meios para que
o leitor/ espectador incorpore cada vez mais a suposta verdade daquele enredo. De
tão repetidas, as histórias acabam por convencer.
No livro, todo o encontro entre Greg Shephard e Sophie Calle é narrado em

284 art uerj III semana de pesquisa em artes


Fotografias do quarto
28, L’hôtel, 1983,
Sophie Calle

primeira pessoa até o casamento e divórcio dos dois. O filme deixa claro que foi feito
para ‘salvar a relação’: o sonho de Greg Shephard era o de se tornar cineasta e o de
Sophie Calle de o acompanhar numa viagem de carro pelos Estados Unidos.
A riqueza dos detalhes da narrativa revela a obsessão por datas, precisão
de lugares e horários e pelos acessórios (Cadillac cinza/ frases entre aspas/ vinte

285 art uerj III semana de pesquisa em artes


Imagem do livro
Histórias Reais, de
Sophie Calle, p. 70
e 71

e quatro cartas). O excesso de referências à realidade assegura ao receptor a


expectativa de estar diante de algo verdadeiro. Para o crítico francês Yves-Alain Bois
esse aspecto tem também outra motivação, como ressalta Ligia Canongia no texto de
curadoria no catálogo da exposição Meias verdades:

Ele (Alain Bois) lembra que, segundo Roland Barthes, a fotografia não
é ‘proustiana’, não rememora ou celebra o passado, ao contrário, faz-
nos ver o que ele chamava de “mistério simples da concomitância”,
tudo se reduzindo ao momento específico do clique fotográfico. Assim,
Sophie Calle também estaria usando o artifício e a memória dos detalhes

286 art uerj III semana de pesquisa em artes


realistas para reafirmar a própria contingência da fotografia, que Bois
acredita ser, afinal, o ‘conteúdo manifesto’ de todas as suas obras.

Calle faz a partir de fotografias do que antes era considerado tão ordinário
e indigno de um clique (como uma ida à padaria) uma tentativa de resgatar um
significado. É como se ela gritasse ao mundo que deve-se voltar os olhos às
possibilidades que objetos sem significância remetem. Da imagem de um referente
banal como uma xícara, experiencia-se um encontro “real”:
Assim como a maior relação de Calle com a fotografia é pelo afeto, é também a
de Roland Barthes:

Imagem do livro
Histórias Reais, de
Sophie Calle, p. 52 e
p.53

287 art uerj III semana de pesquisa em artes


Como ‘Spectator’, eu só me interessava pela fotografia por ‘sentimento’;
eu queria aprofundá-la, não como uma questão (um tema), mas como
uma ferida: vejo, sinto, portanto noto, olho e penso.

Como demonstrado a partir do livro Histórias reais e da obra L’hôtel, Sophie


Calle propõe uma “arte narrativa”, das pessoas, das coisas e das situações. Essas
narrativas construídas em torno de jogos autoimpostos se expandem da literatura
incorporando objetos e fotografias como evidências de veracidade.

Referências Bibliográficas
AUSTER, Paul. Leviatã; tradução de Rubens Figueiredo. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
BARTHES, Roland. A Câmara Clara: nota sobre a fotografia; tradução de Júlio Castañon Guimarães. Rio
de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
BENJAMIN, Walter, Petite histoire de la photographie (1931)e L’ouvre d’art à l’ère de sa reproductibilité
technique (1935), em L‘homme, le langage et la culture, Paris, Denöel/ Gonthier, col. Méditatiions, 1971.
CALLE, Sophie. L’hôtel (Livre V), Ed: Actes Sud, coleção Doublés-Jeux, 1998.
CALLE, Sophie. Histórias reais, tradução de Hortência Santos Lencastre. Rio de Janeiro: Agir, 2009.
CANONGIA, Ligia. Texto em(Cátalogo) Meias Verdades – Coleção Arte e Tecnologia Oi Futuro.
CHARNEY, Leo e SCHWARTZ, Vanessa R. (orgs.). O Cinema e a invenção da vida moderna. Tradução de
Regina Thompson, editora: Cosac Naify, 2004.
DUBOIS, Philippe. O Ato Fotográfico e Outros Ensaios; tradução de Marina Appenzeller. Campinas, SP:
Papirus, 1993. – (Série Ofício de Arte e Forma)
MAMMI, Lorenzo e SCHWARCZ, Lilian Moritz (org.). 8x Fotografia: ensaios. São Paulo: Companhia das
Letras, 2008.

Notas
1 Sophie Calle em entrevista vídeo exposto em “Cuide-se”, Sesc-Pompéia, São Paulo, Setembro 2009.
2 DUBOIS, Philippe. O Ato Fotográfico e Outros Ensaios, tradução de Marina Appenzeller. – Campinas,
SP: Papirus, 1993. – (Série Ofício de Arte e Forma) Pág. 279.
3 AUSTER, Paul. Leviatã; tradução de Rubens Figueiredo. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 82.
4 IDEM, p. 88.
5 DUBOIS, Philippe. O Ato Fotográfico e Outros Ensaios; tradução de Marina Appenzeller. Campinas,
SP: Papirus, 1993. – (Série Ofício de Arte e Forma) Pág. 280
6 BENJAMIN, Walter, Petite histoire de la photographie (1931)e L’ouvre d’art à l’ère de sa reproductibilité
technique (1935), em L‘homme, le langage et la culture, Paris, Denöel/ Gonthier, col. Méditatiions, 1971.
7 CANONGIA, Ligia. Texto em(Cátalogo) Meias Verdades – Coleção Arte e Tecnologia Oi Futuro.
8 BARTHES, Roland. A Câmara Clara: nota sobre a fotografia; tradução de Júlio Castañon Guimarães.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. Pág. 39

288 art uerj III semana de pesquisa em artes


III semana de pesquisa em artes
10 a 13 de novembro de 2009 art uerj
processos artísticos contemporâneos

Tatuagem e novas aplicações biotecnológicas

Breno Bitarello

Graduando em Artes no Instituto de Artes e Design da UFJF

João Queiroz

Professor do Instituto de Artes e Design da UFJF

Através de aplicação de materiais biocompatíveis, regeneração tecidual guiada e da exploração


de novas tecnologias, pode-se pensar em modalidades inéditas de intervenções plásticas na
pele. Este trabalho explora introdutoriamente o que pode ser considerado um novo conceito de
tatuagem, baseado em intervenções dinâmicas, randômicas e reversíveis.

Tatuagem; biotecnologia; polímeros.

Through techonogical application of biocompatible materials, guided tissue regeneration and


exploitation of new technologies, we can conceive new forms of plastic interventions into the
skin. This article explore a new tattoo concept, based on dynamic, randomic and reversible
interventions.

Tattoo; biotechnology; polymers.

1. Dermopigmentação: introdução e contexto


A tatuagem é uma intervenção plástica de caráter invasivo realizada na pele.
O pigmento é introduzido na derme, a segunda camada da pele, através de micro
perfurações realizadas de diferentes modos, por meio de ossos e dentes de animais,
pedaços de madeira e através da tradicional agulha da máquina elétrica de tatuagem,
patenteada por Samuel Reilly, em 1891. (SCHIFFMACHER, 2005). Acredita-se que

289
o primeiro ato de tatuar tenha sido acidental, resultado da perfuração de um material
que produziu uma marca permanente. No entanto, não se sabe ao certo quando e
como a tatuagem teria surgido. Vestígios foram encontrados em múmias, e o mais
antigo exemplar conhecido é Ötzi, o “homem de gelo”, que viveu a cerca de 5200
anos, encontrado na região dos Alpes, entre a Itália e a Áustria, com 50 marcas de
tatuagem no corpo (ARAÚJO, 2005).
De seus primórdios conhecidos até hoje, a tatuagem passou por inúmeras
mudanças de significados e estilos. No entanto, tais variações e mudanças
ocorreram, em sua maioria, no campo estilístico da imagem registrada.
De modo geral, a dermopigmentação pode ser comparada com eficácia a um
projeto de design, ou com a confecção de um artesanato. Trata-se de um adorno
corporal concebido para determinada parte do corpo, tratando-se, na maioria das
vezes, de uma ilustração. Obviamente há exceções. Muitos tatuadores acabam por
desenvolver estilos muito particulares. Mas é um fato que o que se observa hoje,
no campo da tatuagem, pode ser considerado “tedioso”, em termos de exploração
criativa, estilística, e de motivos tatuados. Entretanto, há potencialidades radicais
associadas ao uso de novos dispositivos tecnológicos, a novos materiais e novos
aplicativos científicos.

2. Caráter estático – considerações sobre o suporte


Devido a seu caráter definitivo, a tatuagem convencional não permite
intervenções posteriores à sua realização, produzindo resultados definitivos.
Devemos pensar em novas modalidades de intervenções plásticas para desenvolver
a idéia de uma ‘nova tatuagem’. Mas qualquer discussão sobre o tópico envolve uma
discussão sobre seu suporte e sobre as novas tecnologias disponíveis. O suporte,
apesar de renovar-se intensamente, pois a reposição celular é constante1, não
absorve os pigmentos devido ao fato destes se encontrarem na derme, segunda
camada da pele, no interior dos fibroblastos. E cada um deles é circundado por uma
rede proeminente de tecido conjuntivo que prende e imobiliza a célula efetivamente.
A eliminação das partículas de pigmento é impedida devido ao restabelecimento da
membrana basal intacta2.

290 art uerj III semana de pesquisa em artes


É comum conceber a tatuagem como uma intervenção efêmera. Entretanto, sua
efemeridade aplica-se fundamentalmente a seu suporte. A tatuagem partilha o destino
do organismo que lhe serve de suporte. Mas ela segue sem sofrer grandes alterações
até seu desaparecimento. Falar, portanto, em efemeridade da tatuagem é um equívoco.

3. Uma tatuagem dinâmica e novas modalidades de intervenções


Novas modalidades de intervenções plásticas na pele devem ser planejadas
em terrenos interdisciplinares. Devem ser concebidos, ou oportunisticamente usados,
novos materiais através da aplicação de novas tecnologias, como engenharia tecidual
e nanotecnologia3. Através de aplicação tecnológica de materiais biocompatíveis pode-
se pensar em modalidades inéditas de intervenções plásticas na pele. Por meio de
regeneração tecidual guiada e exploração de novas tecnologias, a intervenção pode
se manter em desenvolvimento ativo e o resultado estético pode ser temporalmente
calculado. (BARBANTI et al., 2005). O organismo torna-se suporte e fonte de
intervenções dinâmicas, reversíveis, reguladas temporalmente ou orientadas ao acaso.

3.1 Engenharia Tecidual


“A Engenharia de Tecidos consiste em um conjunto de conhecimentos e
técnicas para a reconstrução de novos órgãos e tecidos.” (BARBANTI et al., 2005).
O procedimento pode ser sumarizado assim: o tecido do indivíduo que sofre a
intervenção estética é recrutado. Após esta fase, este é dissociado em células
e cultivado sobre suportes biológicos ou sintéticos conhecidos como scaffolds
(suportes, estruturas, etc...), para então serem reacoplados ao organismo doador.
Dentre os materiais utilizados como implantes, os polímeros se destacam, pois suas
características mecânicas se assemelham às dos materiais biológicos (BARBANTI et
al., 2005). Este fator, unido à sua maior facilidade de produção e manuseio auxilia no
sucesso do implante.
Com freqüência os conceitos de biodegradação, bioabsorção e bioreabsorção
são utilizados em engenharia de tecidos. Segundo Michel Vert, um dos pioneiros no
estudo de materiais poliméricos bioreabsorvíveis, biodegradável é um termo utilizado
para polímeros e dispositivos sólidos que devido à degradação macromolecular

291 art uerj III semana de pesquisa em artes


sofrem dispersão in vivo, mas sem a eliminação dos produtos e subprodutos pelo
organismo (VERT et al., 1992 apud BARBANTI et al., 2005). Bioreabsorvíveis
são materiais poliméricos e dispositivos sólidos que mostram degradação através
da diminuição de tamanho e que são reabsorvidos in vivo; i.e. materiais que são
eliminados por rotas metabólicas do organismo (VERT et al., 1992 apud BARBANTI
et al., 2005). Bioreabsorção é um conceito que reflete a eliminação total do material
e dos subprodutos de degradação (compostos de baixa massa molar) sem efeitos
colaterais residuais. Bioabsorvível são materiais poliméricos e dispositivos que podem
se dissolver em fluidos corpóreos sem qualquer clivagem da cadeia macromolecular
ou diminuição de massa molecular (VERT et al., 1992 apud BARBANTI et al., 2005).

3.2 Tempo controlado


A absorção do polímero pelo organismo pode ser controlada levando-se em
consideração fatores como a localização do implante (locais de alta vascularização
e solicitação mecânica aceleram a degradação), composição química e morfologia
(geometria do suporte polimérico e sua porosidade) dentre outros. É fácil supor que
a atuação regulada destes fatores causais pode produzir resultados temporalmente
controlados. Tais resultados devem indicar ‘vetores’ inéditos de desenvolvimento,
baseados em mudanças previstas, ou randômicas.

3.3 Digital Ink


E-ink, digital ink ou electronic ink são tintas digitais4. Tratam-se de matrizes
flexíveis de pixels geradas na superfície do organismo. Através de uma pequena
cirurgia, microesferas encapsuladas são inseridas na pele. A carga contida nessas
esferas é acionada em resposta a variações orgânicas. Sendo o corpo condutor e
produtor de energia elétrica, as cargas podem ser atraídas ou repelidas pelo campo
de bioeletricidade, gerando desta forma, as imagens na pele.

4. Uma nova tatuagem


Uma nova tatuagem deve possuir, como uma das principais características
distintivas, o papel ativo do acaso. Seus resultados devem combinar cálculo e

292 art uerj III semana de pesquisa em artes


regulação temporal com surpresa e imprevisibilidade estrutural. Devido ao seu
caráter dinâmico, esta, como seu suporte, estarão em denso diálogo com o espaço
em que se encontram. Pode-se falar, neste caso, de ‘sistema complexo’, altamente
responsivo a variações ambientais, e às interações com o corpo, em diversos
níveis de organização (molecular, tecidual, etc). Pode-se prever o aparecimento de
fenômenos semióticos emergentes complexos, imprevistos em termos da análise de
seus componentes tomados isoladamente. Variações endócrinas e neurais devem
afetar ativamente os resultados da ‘nova tatuagem’.
É fácil prever que certos estados (orgânicos) podem ser melhor
compreendidos, até certo ponto, a partir da observação dos padrões estéticos de
intervenções dinâmicas e altamente sensíveis ao contexto. O sujeito se hibridiza com
o objeto tatuado. Estas tatuagens (intervenções) biotecnológicas devem tender a uma
certa autonomia com capacidade de criar suas próprias leis. Intervenções complexas
em constante modificação, e suas formas, seriam a de suas próprias percepções e
interações.
Novas formas de linguagem devem se estabelecer; sinais e signos devem
surgir de uma nova bateria de interfaces, resultando em novas formas de
comunicação. Os dispositivos interativos devem permitir um novo conjunto de
exploração de novas expressões cromáticas, táteis e comportamentais. Novas
modalidades de percepção devem ser inauguradas, e padrões de sensibilidade
devem ser alterados devido à dinâmica das intervenções.
Sumarizamos introdutoriamente o que pode ser considerado o aparecimento
de uma “nova tatuagem”. Em trabalhos subsequentes, exploraremos mais
detalhadamente as tecnologias recém-empregadas, além dos efeitos produzidos por
estas tecnologias em termos de funções poéticas de comunicação e linguagem.

Referências
ARANTES, Priscila. Arte e mídia: perspectivas da estética digital. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2005.
ARAÚJO, leusa. Tatuagem, piercing e outras mensagens do corpo. São Paulo: Cosac & Naify, 2005.
DOMINGUES, Diana (org.). Arte, ciência e tecnologia: passado, presente e desafios. São Paulo: Editora
UNESP, 2009.
MAYR, Ernst. Biologia, Ciência Única. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

293 art uerj III semana de pesquisa em artes


MACHADO, Arlindo. O quarto iconoclasmo e outros ensaios hereges. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 2001.
MEYER, Philippe. O olho e o cérebro: biofilosofia da percepção visual. São Paulo: Editora UNESP, 2002.
PESSIS-PASTERNAK,Guitta. Do Caos à Inteligência Artificial: quando os cientistas se interrogam. São
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RUELLE, David. Acaso e caos. São Paulo: Editora UNESP, 1993.
SCHIFFMACHER, Henk. 1000 Tattoos. Cologne: Taschen, 2005.
Vert, M.; Li, M.s.; Spenlehauer, G. & Guerin, P. – J. Matter. Sci., 3, p. 432 (1992)
VILLAÇA, Nízia. A edição do corpo: tecnociência, artes e moda. São Paulo: Estação das Letras, 2007
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Santos Jr., A. R.; WADA, M. L. F. Polímeros biorreabsorvíveis como substrato para cultura de células e
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http://atattoo.blogspot.com/2008/05/learning-tattoo-captulo-1-fundamentos.html
http://www.design.philips.com/probes/index.page
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http://www.hangarnet.com.br/forum/lofiversion/index.php/t72118.html 
http://www.tattooilha.com.br/info9.htm
http://www.core77.com/competitions/GreenerGadgets/projects/4673
http://g1.globo.com/Noticias/Tecnologia/0,,MUL934584-6174,00-TATUAGENS+DO+FUTURO+PODEM+SE
R+MUTANTES+E+ATE+EXIBIR+FILMES+DIZEM+CIENTISTAS.html
http://english.ohmynews.com/articleview/article_view.asp?no=296497&rel_no=1

Notas
1 “Learning Tattoo” Tahttp://atattoo.blogspot.com/2008/05/learning-tattoo-captulo-1-fundamentos.html
2 “Dermatologia/Pele: Tatuagem, tintas e pele”, disponível em http://www.drashirleydecampos.com.br/
noticias/13072
3 “Electronic Tattoo”, disponível em: http://acriacao.com/2009/02/25/the-electronic-tattoo-by-philips/
http://www.design.philips.com/probes/index.page
4 “Programmable Tattoos: Digital displays for your body”, disponível em http://english.ohmynews.com/
articleview/article_view.asp?no=296497&rel_no=1

294 art uerj III semana de pesquisa em artes


III semana de pesquisa em artes
10 a 13 de novembro de 2009 art uerj
processos artísticos contemporâneos

O mundo como museu; o artista como conservador e restaurador da vida

Davi Silva Pereira

Mestrando em Ciência da Arte – PPGCA – UFF

Considerando as mudanças de paradigma entre modernismo e pós-modernismo pretende-


se investigar o esvaziamento do estatuto das obras de arte, a limitação das instituições
para uma arte pautada nas formas de comunicação e das discussões do homem em cultura
e o surgimento de um novo artista que provocará uma aproximação entre sua prática e a
comunidade na qual está inserido.

Pós-modernismo; instituições; novo artista.

Considering changes in the paradigm between modernism (self-referencial) and postmodernism


(engaged production) we intend to investigate the deflation of the artwork statute, the institutions
limitation to a kind of art based in some ways of communication and in the discussions of the man
inside a culture and the emergence of a new artist (political and social agent) that will cause an
approximation between its practice and its community without leave its poetic in the background.

Postmodernism; institutions; new artist.

“Poderia a arte superar a sua institucionalidade/nacionalidade


capitalística na recuperação de alguma aventável
estética (re)humanizante?”1

Uma das mais importantes características que norteou o modernismo foi


seu caráter auto-referencial, definindo o artista e sua obra como ser autônomo,
entrincheirados em seu próprio campo, válidos por si mesmo e não para um outro fim.
Cada arte deveria então “restringir sua área de competência, mas ao mesmo tempo iria
295
consolidar a posse dessa área,”2 uma vez que o contato com o fora suscitaria o perigo
do encontro com o desconhecido e colocaria em risco a tão almejada pureza. Preservar
a tradição e os padrões de excelência delineou-se como sendo parte integrante não só
do programa modernista como também de todo o período da história da arte no qual as
instituições tomaram a dianteira das questões mercadológicas e legitimadoras do mundo
das artes; nesse caso seria impensável um caminhar de mãos dadas entre a Arte e
algum tipo de desenvolvimento social. O que estamos pensando é que o isolamento da
arte moderna e das instituições artísticas refletiu-se em um empenho, às avessas, por
parte dessas instâncias em engajar-se nas questões inerentes à vida. Daí a pertinência
do pensamento de Andreas Huyssen quando afirma que “o museu definiu a identidade
da cultura ocidental ao desenhar as fronteiras externas e internas calcadas na exclusão

Bloco Bienal Vá de
Retro Abacaxi, 2009.

296 art uerj III semana de pesquisa em artes


e na marginalização.”3 Os museus constituíram um conjunto de premissas (arbitrárias)
atreladas ao capital para, através de suas coleções e políticas próprias, criarem um
mecanismo de controle que iria, por conseguinte, formar nosso juízo de valor.
Pensando mais à frente, o pós-modernismo caracterizou-se por uma tomada de
posição contrária àquela das grandes vanguardas históricas e requisitou uma produção
poética comprometida, associada diretamente à práxis vital. Utilizando as palavras de
Suzi Gablik: “a atividade criativa deve estar direcionada para responder uma necessidade
cultural coletiva em vez de um desejo pessoal de auto-expressão”4. Tal mudança de
paradigma, que já podíamos observar nos anos 50 e 60 do século passado nas ações
do artista alemão Joseph Beuys e do grupo do qual fazia parte, o Fluxus, provocou um
esvaziamento do culto às imagens e, por conseguinte, do estatuto das obras de arte. Os
espaços institucionais, então, tornaram-se limitados para uma arte pautada nas formas de
comunicação social e que tratava das discussões do homem em cultura.
Essa ação ampliada da arte no campo da vida, enxergada claramente no
conceito de Escultura Social de Beuys5, fez emergir um novo tipo de artista, o artista
como agente político e social. O “novo” artista é aquele que, sem relegar a segundo
plano a articulação de alguma poesia, provocará uma aproximação entre sua prática
artística e a comunidade na qual está inserido; o artista não é mais solitário e não está
mais sozinho. “O período do mestre reverenciado, do artista com uma camélia na
lapela, da poltrona do gênio acabou”6, o museu agora é o mundo. Desse modo diluem-
se as fronteiras, há tempos arraigadas pelas tradições do campo artístico, entre autor,
obra e fruidor. Assim sendo, poderíamos ressuscitar o “autor como produtor” de Walter
Benjamin, não nos moldes daquele artista-ativista russo que orientava suas atividades
em função do que fosse útil ao proletariado, mas como sujeito que estabelecerá um
contato íntimo entre seus processos artísticos e os contextos sociais vivos.
Falemos um pouco mais de Joseph Beuys; Não sabemos ao certo o quanto há de
lenda ou verdade em sua história. E talvez nesse caso isso não tenha tanta importância;
Joseph Beuys é uma lenda. Ex soldado nazista, tendo vivenciado as monstruosidades
que o homem foi capaz de produzir, o artista alemão assumiu papel de protagonista
na “tarefa coletiva de “reencantar” nossa cultura”7, na função de encontrar alguma
forma salvar o mundo. Concluiu, então, que a arte poderia ser o instrumento de que

297 art uerj III semana de pesquisa em artes


necessitava para realizar seu desejo de metamorfose do ser humano. Defendendo por
toda a vida sua crença na arte e na afirmação de que todo ser humano é um artista,
encarnou as funções de xamã, pedagogo, político, pastor, terapeuta para colocar em
prática seu programa. Transformou a rua em seu museu (as instituições sufocavam
seus ideais) para buscar, através de ações, gestos e palavras, a regeneração da vida.
Rompeu definitivamente com os limites entre arte e vida, não sendo mais possível em
sua obra marcar qualquer diferenciação entre ambas. Considerando todo o legado que
Joseph Beuys nos deixou, que caminho deveríamos seguir?

Hoje, permanecer distante tem implicações perigosas. Estamos todos juntos


no mesmo anfiteatro global. Não há mais qualquer margem. As estruturas
sociais e psíquicas nas quais vivemos se transformaram em extremamente
antiecológicas, insalubres e destrutivas. Existe a necessidade de novas
formas que enfatizem nossa interconexão essencial em vez de nossa
separação, formas que evoquem o sentimento de pertencimento a um todo
mais amplo em vez de expressar o “eu” isolado, alienado.8

A vida nesse momento chora; por todas as formas de violência física e psicológica.
Somos responsáveis pela destruição da casa que nos acolhe, somos responsáveis por
nossa destruição mútua. Poderia então a arte, pretensiosamente, enxugar algumas dessas
lágrimas? Discutir questões do mundo acarretaria num enfraquecimento da produção
artística? Acredito que não, pelo contrário, enxergar o a vida pela lente pós-modernista é
perceber que o mundo constitui-se de camadas que se entrecruzam e crenças diversas
que se roçam impossibilitando qualquer tentativa de definição de conceitos isoladamente.
Consequentemente os artistas devem pautar suas produções no modo de se
relacionar com o mundo e com os habitantes desse mundo a que pertencem. Devem,
atentos aos pequenos movimentos cotidianos que nos são oferecidos, também
estar abertos à possibilidade de troca, percebendo o “ex-espectador” como alguém
que pode contribuir de maneira efetiva em suas produções artísticas, não só como
receptor de algo que o artista irá realizar como também como produtor de saberes
artísticos. Para Beuys todos somos artistas; façamos então como ele profetizou.

298 art uerj III semana de pesquisa em artes


Davi Ribeiro, Desejo
um mundo melhor,
2008.

Numa certa tarde de domingo Bianca Bernardo, querida amiga, parceira, artista
visual e pesquisadora abriu as portas de sua casa para receber a visita de Cristina
Ribas, tão querida quanto e igualmente artista visual e pesquisadora. Como ótima
anfitriã que é, Bia preparou um chá de camomila para confortar a conversa que fluiu
agradavelmente, como de costume, em meio a livros de arte. Cris estava na casa de
Bia com o intuito de realizar um de seus trabalhos, denominado Troca de azulejos. Ela,
a “propositora” (autodenominação), troca um azulejo da casa do “participador” (como
ela mesma diz) por outro de cor azul, numa espécie de destruição criativa. A proposta
de Cris coloca em movimento uma engrenagem que origina um campo afetivo em que
a dimensão das palavras “artista” e “espectador” tornam-se sem importância. Bianca é
amiga de Cristina, mas não precisaria sê-la pois, como a mesma descreve na premissa
299 art uerj III semana de pesquisa em artes
Cristina Ribas, Troca de
azulejos, 2004-2008.

300 art uerj III semana de pesquisa em artes


de sua ação, a intervenção poderia ocorrer na casa de um desconhecido.
Relacionar-se com o outro e com a casa (sagrada para aquele que abriga)
desse outro é um ponto essencial do trabalho; como artista e cidadã do mundo
Cristina precisa de contato. Cris vai embora, mas a lembrança daqueles momentos
não se perdem; no lar de Bia ela deixou sua marca permanentemente; felizmente.

Referências bibliográficas
BACH, Christina. O Lugar Beuys. In: Gávea. Rio de Janeiro, 1996, nº 14, PUC-RJ.
BENJAMIN, Walter. Magia, técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo:
Brasiliense, 1994.
BORER, Alain. Joseph Beuys. São Paulo: Cosac Naify, 2001.
DANZIGER, Leila. Pintar = Queimar. In: Gávea. Rio de Janeiro, 1994, nº 12, PUC-RJ.
FERREIRA, Glória; COTRIM, Cecília. Escritos de artistas – anos 60/70. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006.
______. Clement Green Berg e o debate crítico, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
GABLIK, Suzi. The Reenchantment of Art. Nova York: Thames and Hudson, 2002.
GLUSBERG, Jorge. A Arte da Performance. São Paulo: Perspectiva, 2005.
GOLDBERG, RoseLee. A arte da performance: do futurismo ao presente. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
HARVEY, David. Condição Pós-moderna. São Paulo: Loyola, 1992.
HUYSSEN, Andreas. Memórias do Modernismo. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1997.
JAMESON, Fredric. Espaço e Imagem: teorias do pós-moderno e outros ensaios. Rio de Janeiro: UFRJ, 2006.
WOOD, Paul... [et alii]. Modernismo em disputa - A arte desde os anos quarenta. São Paulo: Cosac e Naify, 1998.

Notas
1 Prof. Dr. Aldo Victório por e-mail.
2 FERREIRA, Glória; COTRIM, Cecilia. Clement Green Berg e o debate crítico. Rio de Janeiro: Editora
Jorge Zahar, 2001, p. 102.
3 HUYSSEN, Andreas. Memórias do Modernismo. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1997, p. 222.
4 GABLIK, Suzi. The Reenchantment of Art. Nova York: Thames and Hudson, 2002, p. 1.
5 Em suas conferências Joseph Beuys afirmava que qualquer mudança/revolução deveria ser
necessariamente iniciada na esfera das artes, cabendo ao artista realizar o processo de re-humanização
do homem.
6 GABLIK, Suzi. The Reenchantment of Art. Nova York: Thames and Hudson, 2002, p. 2.
7 Ibid., p. 3.
8 Ibid., p. 1.

301 art uerj III semana de pesquisa em artes


III semana de pesquisa em artes
10 a 13 de novembro de 2009 art uerj
processos artísticos contemporâneos

Os hypomnemata e os fragmentos da ação através das Notas de tempos


inconciliáveis

Isabel Almeida Carneiro

PPGArtes – UERJ

A sistematização do meu processo artístico resultou nas Notas de Tempos Inconciliáveis, que
são fragmentos escritos em blocos. As Notas se aproximam do conceito dos hypomnemata
de Foucault, que se configurariam como um caderno de anotações sobre o fazer ou a ação,
e se afastariam da escrita de um diário ou “de uma narrativa de si mesmo”. Os hypomnemata
trabalham com um sistema fragmentário de anotações, mas não como um texto auxiliar da
memória, e sim, como um material que capta o já dito.

Sistema; fragmento; colagem.

La systématisation de mon processus artistique entrainê dans les Notes de Temps


Inconciliables, qui sont fragments écrits en blocs. Les Notes s´approchent du concept de
hypomnemata de Foucault, qui sont comme une ordinateur portable sur le faire et sur l´action,
e ils s´éloigment de la écrit de un journal ou « de un récit de lui-memê ». Les hypomnemata
travaillent avec un systéme fragmenté des notes, mais ils ne sont pas comme un texte auxiliaire
de la mémoire, mais si, comme un matériau qui capture la action déjá mentionné.

Sytème; fragment; collage.

“Tal é o objetivo dos hypomnemata, fazer da recordação do logos fragmentário e


transmitido pelo ensino, a audição ou a leitura, um meio para o estabelecimento de
uma relação de si consigo próprio tão adequada e completa quanto possível.”
Michel Foucault em “A escrita de si”.

302
As diversas vozes contidas nas Notas e nos Diários se confundem e se
colam, pois a forma escrita das Notas e dos Diários, ora se aproximam da primeira
pessoa do eu-artista subjetivo, ora se distanciam como uma terceira pessoa objetiva
e crítica exigida num discurso teórico, e ora existem na segunda pessoa como um
distanciamento ou contra-ponto, que aguarda a possibilidade de troca efetiva com
a subjetividade ou objetividade do discurso empregado nos diários de bordo e nas
Notas de Tempos Inconciliáveis.
A invenção de um sistema é essencial para a criação artística, por isso,
pretendo apresentar neste trabalho as semelhanças e as diferenças entre a forma
das Notas de Tempos Inconciliáveis e dos diários de bordo, tomando como referência
o conceito de hypomnemata de Michel Foucault.
As Notas de tempos inconciliáveis e os diários de bordo trabalham com o
conceito dos escritos de hypomnemata, que são registros de memórias não subjetivos
que se tornam meditações diárias e disciplinas ascéticas de escrita que funcionariam
como juizes ou interlocutores da obra artística.
Apesar de as Notas e os Diários de bordo apresentarem semelhanças na
ordem disciplinada e acética de escrita, suas diferenças e contra-pontos de vozes são
significativos porque conseguem de maneiras distintas dar maior abrangência ao meu
discurso poético.
As Notas de Tempos Inconciliáveis são escritas na terceira e na primeira voz e
existe um distanciamento crítico provocado pelo exercício diário, apesar de as Notas
também trabalharem com discursos de subjetividades. Enquanto os diários de bordo
são quase ‘narrativas de si’ que trazem a voz para a primeira pessoa, subjetiva e
individual do artista que, no entanto, também trazem discursos teóricos mais densos.
Com a vontade de dar conta de um discurso mais amplo sobre os processos
artísticos envolvidos nas minhas colagens, optei pelas duas maneiras de escritas que
se interferem, se confundem e se complementam. Os diários de bordo são uma escrita
em estado bruto, enquanto as Notas de Tempos Inconciliáveis trazem passagens
objetivas ou subjetivas que foram decantadas mais lentamente. As Notas se aproximam
de um exercício de escrita de um diário, mas elas são feitas de forma mais demorada,
enquanto nos meus diários, a escrita é corrida e sistematizada pelos dias da semana.

303 art uerj III semana de pesquisa em artes


Os fragmentos de significados nos diários de bordo são tecidos por uma
medida de tempo externa, pois os diários trabalham com uma medida do calendário,
enquanto as Notas de Tempos Inconciliáveis trabalham com medições de tempos
construídas dentro da própria obra escrita, como a idéia de aleatoriedade e de acaso
que distingue a seqüencialidade ou a não seqüencialidade do discurso das Notas.
As Notas de Tempos Inconciliáveis constroem um paralelo entre as colagens
plásticas das 90 telas em 90 dias, da série 2/1, e os conceitos teóricos sobre a
colagem. O esquema criado das notas permite o fluxo entre a obra plástica e a obra
escrita, como um sistema de fragmentos, que tenta abarcar o todo em partes, pois
cada nota é um fragmento que corresponde a um ponto relevante do meu trabalho
artístico e ao conceito de colagem.
O jogo instaurado aqui tem como objetivo colar aleatoriamente as notas
num mesmo texto-colagem. A aleatoriedade e a não seqüencialidade das Notas de
tempos inconciliáveis só podem ser conquistadas através de um sistema fechado de
possibilidades, em que não há uma narrativa a ser seguida progressivamente como
num discurso lógico. Cada nota tenta abarcar um conceito apreendido durante as
aulas do mestrado, pensadas e refletidas em relação ao meu processo artístico.
O sistema de notas ou blocos permitiu o surgimento de formas coesas sobre
o fazer artístico, pois a forma fragmentada e contida 1 em blocos impôs à pesquisa
uma ordem pré-estabelecida em que as combinações se tornaram diferenciadas
(combinatórias ou aleatórias)2, e esta situação contribuiu para uma escrita que me
parece mais sensível e flexível capaz de deslizar com certa desenvoltura entre a
práxis e os conceitos.
A sistematização do fazer artístico na forma fragmentada das notas criou
uma escrita aleatória e combinatória que instaurou um novo diálogo entre a forma
plástico-musical e a forma textual. A forma aleatória das Notas se refere ao conceito
de indeterminação no campo da música utilizadas nas obras de John Cage e Pierre
Boulez, que usavam a indeterminação em suas composições para possibilitar a
existência do acaso, do imprevisto e dos acidentes.
A forma combinatória da escrita se refere ao campo da música tonal e sua
estrutura compositiva harmônica, que é fechada aos acidentes e às aleatoriedades,

304 art uerj III semana de pesquisa em artes


pois existe aí uma sequencialidade do pensamento lógico e discursivo.
Através das Notas de Tempos Inconciliáveis, tentei capturar os processos
artísticos envolvidos no meu trabalho de maneira livre e fragmentada e, portanto,
mais atenta aos acidentes, às aleatoriedades e aos acasos envolvidos nas
construções das obras plásticas.
A forma do fragmento está alinhada historicamente ao Romantismo Alemão
e a tentativa de abarcar sistematicamente o todo. A forma fragmentada das Notas
de Tempos Inconciliáveis permite uma situação que também é utilizada comumente
nos diários de bordo de artistas, que são capturas de idéias fugazes que acontecem
durante o cotidiano criativo em momentos de imersão ou dispersão do trabalho
poético.
O fragmento proporciona uma maior liberdade na criação da escrita, pois as
formas rápidas e sintéticas de chegar ao pensamento são diferentes do peso, da
demora e dos desvios provocados por uma escrita mais fechada e retesada, que
sempre “acerta” as arestas para encaixar os conceitos numa forma textual lógica, do
antes e depois.
Se por um lado, a escrita fragmentária ajuda a capturar de forma sistemática a
maioria das idéias fugidias envolvidas na criação das obras, por outro lado impede ou
inibe que essas mesmas idéias saiam de um nível superficial e ganhem profundidade
teórica dentro do trabalho escrito.
O que pretendo mostrar aqui é como as passagens de idéias fragmentadas que
intitulei de Notas de Tempos Inconciliáveis, conseguem aprofundar os conhecimentos
envolvidos nas obras numa ordem aleatória e combinatória que podem parecer a
princípio, desligadas de um único procedimento intelectual, mas que, no entanto, são
elaboradas sistematicamente dentro de um mesmo processo que questiona a própria
forma dos textos artísticos.
As Notas de Tempos Inconciliáveis, apesar de serem fragmentadas e sintéticas,
passam por um processo de decantação intelectual diferente dos diários de bordo,
pois as Notas são como “ouriços fechados”, que têm a função de se explicarem por
elas mesmas, e pela ordem aleatória ou combinatória que se encontram dentro do
texto.

305 art uerj III semana de pesquisa em artes


“Eu tinha em mim um canto que vibrava enquanto eu trabalhava, esse canto, eu o
moldei na forma, e através dela, ela chega até vocês.”
Kurt Schwitters. ‘Mon Merz et mon moster Merz’.

Notas de Tempos Inconciliáveis:

1
A sistematização do meu processo artístico resultou nas Notas de Tempos
Inconciliáveis, que são fragmentos escritos em blocos. As Notas se aproximam do
conceito dos hypomnemata de Foucault, que se configurariam como um caderno de
anotações sobre o fazer ou a ação, e se afastariam da escrita de um diário ou “de
uma narrativa de si”. Os hypomnemata trabalham com um sistema fragmentário de
anotações, mas não como um texto auxiliar da memória, e sim, como um material que
capta o já dito e retorna o presente com a mesma intensidade do passado.

2
O fragmento de Schlegel tenta abarcar o todo, que é sempre inapreensível, por
isso o fragmento apenas tenta traduzir o todo. E é isso que busco com as notas que
são os fragmentos do todo.

3
Assim3, minha aspiração assim como a de Kurt Schwitters se torna
“criar relações entre todas as coisas do mundo”, como uma visão romântica do
conhecimento e sua tentativa melancólica de capturar o todo e traduzir os processos
artísticos em passagens textuais e subjetivas.

4
A invenção do problema se torna o sistema. Mas a obra é o sistema?

5
O problema não é o trabalho, mas o problema pertence ao trabalho, pois a

306 art uerj III semana de pesquisa em artes


física moderna já sabia que o problema não é o problema, e sim a formulação do
problema. Os cientistas descobriram no início do século XX que podemos ver a luz
como onda ou partícula, pois depende do referencial do observador, então o problema
não é o que é a luz, se ela é onda ou partícula, mas como a luz se comporta a partir
da onde observamos.

6
Os hypomnemata se diferenciam dos arquivos porque trazem a ação viva, e
não a idéia do arquivo morto, pois nos hypomnenata existem as diferenciações feitas
pelas escolhas afetivas. Entretanto, os arquivos colocam as coisas num mesmo nível
de sentido e significado, numa pluralidade informe da massa, enquanto a função do
artista é sempre buscar as pequenas e sutis diferenças e fornecer sentidos que estão
num mesmo emaranhado sem nexo.

7
A minha escrita funciona como memória, medo de esquecer, deixar passar, o
esquecimento e a memória são dois lados de uma mesma moeda, já dizia Freud os
diários e os cadernos são como remastigar, remoer e requentar tudo aquilo que já se
pensou antes.

8
A função das minhas colagens é dar sentido às coisas, então, eu as colo numa
moldura separada do mundo, em um quadrado metafísico e digo o que elas são. Não
é o deslocamento que eu provoco, e sim a apropriação de elementos domésticos e
privados causados pela minha angustia de dar formas às idéias.

9
Os hypomnemata são coleções de palavras que retornam com todo sentido
possível dentro da obra. Meus diários reforçam a idéia que foi buscada, ativada e
depois apagada. E volta a se apagar e se esvair.

307 art uerj III semana de pesquisa em artes


10
A partir da simultaneidade de pensamentos e ações, desenvolvi uma escrita
fragmentária e cíclica, pois as Notas de Tempos Inconciliáveis se referem à tentativa
romântica de Novalis e Schlegel de capturar o todo através das partes fragmentadas.

11
Anselm Kiefer diz que falar sobre arte é rodear um buraco negro. A pintura de
Kiefer é a tentativa heideggeriana de colocar tudo dentro da obra, mas Wim Wenders
diz que a imagem é tudo que se deixa de fora dela.

12
La prose de transibérian pode ser considerada como a primeira obra em que
se falou de simultaneidade. Blaise Cendrars e Me Delaunay –Terk produziram uma
experiência única em simultaneidade, escrita em cores contrastantes a fim de levar
o olho a ler de um só golpe de vista as notas colocadas acima e abaixo da barra
do compasso, ou como se lêem como único golpe de visto os elementos plásticos
impressos num cartaz.

13
O jogo é a experiência do acaso, segundo Novalis. E o acaso para John Cage
é toda a possibilidade de acontecimento.

14
A indeterminação é empregada na música como um meio de ampliar o sistema
de opções que a obra oferece, porém há a preocupação em fixar-lhe limites. Para
Pierre Boulez, a indeterminação não pode vir de fora do jogo que a obra encerra,
por isso, Boulez aceita a indeterminação como aleatoriedade dentro do campo de
possibilidades. Porém, para Cage a indeterminação como o acaso só pode aparecer
no indeterminado puro que é o silêncio. O acaso e as possibilidades para Cage estão
para além do jogo.

308 art uerj III semana de pesquisa em artes


15
O sistema fragmentário das Notas de Tempos inconciliáveis permite a
indeterminação dentro do jogo da colagem de fragmentos ou das notas, mas ao
mesmo tempo permite o vazio e o silêncio dos intervalos entre as notas e a existência
plena do acaso.

16
Na colagem Merz de Kurt Schwitters há a necessidade de criar relação
entre todas as coisas do mundo. Exploro e fixo em notas de tempos inconciliáveis
dissonantes e volto a pensar nos fragmentos, nas partes, nas relações entre elas e no
que elas significam ou nada significam.

17
O sistema das Notas de Tempos Inconciliáveis são hypomnemata. Foucault em
seu livro O que é um autor? traça a diferença de um diário confessional surgido numa
época cristã e os hypomnemata, que seriam escritos que funcionariam como textos
‘pessoais, filosóficos e acontecimentos passados’. As minhas Notas não são diários
confessionais, e sim hypomnenata, que podem trazer à tona as vozes passadas,
corrompidas que haviam sido esquecidas, pois a ‘escrita de si’ não é uma confissão, é
a própria voz da coisa morta.

18
Nietzsche em “Além do bem e do mal’ diz que a metafísica cristã morreu. A
verdade é inventada. O mais baixo é sempre o mais alto. “Os filósofos- eles são todos
advogados que não querem ser chamados assim, e na maioria defensores manhosos
de seus preconceitos, que batizam de “verdades”.

19
A distância crítica e reflexividade moderna exigem que qualquer texto, mesmo
o de um artista tenha a distância da voz na terceira pessoa.

309 art uerj III semana de pesquisa em artes


20
Colagem Merz: assim como Kurt Schwitters, o meu desejo se tornou criar
relações entre todas as coisas do mundo. Meu sonho Schwitters é que as coisas
ganhem sentido numa profusão sem sentidos. As minhas colagens trazem para
minha vida o contexto sem contexto da história. A ciência imita a arte. A arte habita as
coisas. Eu habito o todo, diferente da ciência.
“A ciência imita as coisas, mas recusa habitá-las” (Merleau-Ponty)

21
A sinestesia são os sentidos pelos olhos e pela boca. A cor dos cheiros, o
amarelo enjoativo, o vermelho temperado, o azul melado, mas poderiam existir
sinestesias mais interessantes, foi o que Wassily Kandinsky quis propor com um
azul expansivo e infinito que seria um tom fechado e redondo das escalas maiores, o
vermelho dissonante e quase laranja, com as sétimas diminutas e o amarelo retesado
como a quinta justa.

22
A diferença entre o acaso e o aleatório na obra dos dadaístas Duchamp e
Kurt Schwitters: O acaso é o encontro fortuito na concepção dos ready-mades de
Duchamp, mas ao mesmo tempo, os ready-mades deveriam ser escolhidos pelas
características não artísticas dos objetos, mas o acaso na obra de Kurt Schwitters
se processa de maneira afetiva, se encontra ao acaso aquilo que se procurava
intuitivamente. Podemos chamar de encontro fortuito na obra de Schwitters?

23
A aleatoriedade faz parte da concepção de Duchamp, da regra do jogo, de
escolher o primeiro objeto que não tenha característica artística, enquanto Kurt
Schwitters nunca escolhe, sem o acaso da paixão.

24
Na sua acepção cética, os hypomnemata podiam ser livros de contabilidade,

310 art uerj III semana de pesquisa em artes


registros notariais, cadernos pessoais que serviam de agenda. O seu uso como livro
da vida, guia da conduta, parece ter-se tornado coisa coerente entre um público
cultivado...Constituíam uma memória material das coisas lidas, ouvidas ou pensadas,
ofereciam-se assim, qual tesouro acumulado, à releitura e à meditação ulterior.

25
A pintura não como uma janela ou uma paisagem em perspectiva, mas como
um flatbed, sua tradição é escritural, como a dos pergaminhos e das iluminuras da
Idade Média.
Minhas colagens descendem da “tradição escritural” ou da “iluminação” dos
manuscritos.

26
Faca na água é uma boa sinestesia.

37
Hypomnemata: hypo é menos, menor, mnemata é memória. Os hypomnematas
‘armazenam menos memória”? Ou são como memórias anteriores?

Notas
1 Ver teoria do fragmento de Schlegel in SELIGMANN,Márcio Silva “Ler o livro do mundo”. pág. 41-42.
2 Formas aleatórias e combinatórias são paralelos conceituais que criei entre as colagens musicais e as
colagens plásticas.
3 Apesar das Notas de tempos inconciliáveis não terem uma sequencialidade do discurso narrativo, elas
podem formar nexos conceituais entre si, as Notas 1,2 e 3 poderiam ser uma única nota, mas optei por
separá-las para dar maior ênfase a cada uma em separado.

311 art uerj III semana de pesquisa em artes


III semana de pesquisa em artes
10 a 13 de novembro de 2009 art uerj
processos artísticos contemporâneos

Reptília Tereftálica

Isabelle da Motta Pacheco

Graduanda do Instituto de Artes – UERJ

Apropriando-me de resíduos da civilização industrial, mais especificamente, as garrafas PET,


utilizando-as como matéria-prima, relato o processo de construção de uma obra aberta, a partir
da repetição de um mesmo módulo. A proposta é suscitar uma nova maneira de olhar esses
objetos, dando-lhes um novo sentido artístico.

Arte; escultura; resíduo industrial.

Appropriating from industrial civilization residues, more specifically, the PET bottles and using
them as raw materials, I report the process of an open work construction, from the repetition of
the same module. The proposal is to raise a new way of looking to theses objects, giving them
one new artistical meaning.

Art; sculpture; industrial waste.

Matéria de Poesia1
(Manoel de Barros)
Todas as coisas cujos valores podem ser
disputados no cuspe à distância
servem para a poesia
O homem que possui um pente
e uma árvore
serve para poesia
Terreno de 10x20, sujo de mato – os que

312
nele gorjeiam: detritos semoventes, latas
servem para poesia.
Um chevrolé gosmento
Coleção de besouros abstêmios
O bule de Braque sem boca
são bons para poesia.
As coisas que não levam a nada
têm grande importância
Cada coisa ordinária é um elemento de estima
Cada coisa sem préstimo
tem seu lugar
na poesia ou na geral
O que se encontra em ninho de joão-ferreira:
caco de vidro, garampos,
retratos de formatura,
servem demais para poesia
As coisas que não pretendem, como
por exemplo: pedras que cheiram
água, homens
que atravessam períodos de árvore,
se prestam para poesia.
Tudo aquilo que nos leva a coisa nenhuma
e que você não pode vender no mercado
como, por exemplo, o coração verde
dos pássaros,
serve para poesia.
As coisas que os líquenes comem
- sapatos, adjetivos -
tem muita importância para os pulmões
da poesia.
Tudo aquilo que a nossa

313 art uerj III semana de pesquisa em artes


civilização rejeita, pisa e mija em cima,
serve para poesia.
Os loucos de água e estandarte
servem demais
O traste é ótimo
O pobre – diabo é colosso
Tudo que explique
o alicate cremoso
e o lodo das estrelas
serve demais da conta
Pessoas desimportantes
dão para poesia
qualquer pessoa ou escada
Tudo que explique
a lagartixa de esteira
e a laminação de sabiás
é muito importante para a poesia
O que é bom para o lixo é bom  para poesia.
Importante sobremaneira é a palavra repositório;
a palavra repositório eu conheço bem:
tem muitas repercussões
como um algibe entupido de silêncio
sabe a destroços
As coisas jogadas fora
têm grande importância
- como um homem jogado fora.

Introdução
O processo de realização desta obra teve início a partir do trabalho artesanal que
desenvolvo através da técnica de papel machê3. Neles, procuro sempre usar como estrutura,
embalagens e outros materiais descartados cotidianamente pela sociedade industrial.

314 art uerj III semana de pesquisa em artes


No caso desta obra, especificamente, as embalagens passam de simples co-
adjuvantes de peças artesanais à matéria-prima. Aproprio-me de garrafas plásticas
de refrigerante, ‘PET’ (Poliéster Tereftálico) – tidas como uma das grandes vilãs na
deteriorização das condições ambientais –, para realizar uma construção espacial por
meio de uma repetição seriada e modular de um mesmo elemento básico.
Foco o descartado, o abandonado, aquilo não se decompõe na natureza, o
inorgânico, eles tornar-se-ão os elemento constitutivo desta obra. Não pretendo aqui,
entrar no mérito de invocar uma nova função à tais objeto, não é o caso de reciclar, mas
sim, dar-lhes um sentido artístico, reinterando que tudo pode ser assimilado como arte,
mesmo o material mais ordinário. A questão é ter um olhar atento.

Segundo Kandinski: “Tudo que está morto palpita. Não apenas o que
pertence à poesia, às estrelas, à lua, aos bosques e às flores, mas um
simples botão de calça a cintilar na lama da rua... Tudo possui uma alma
secreta que se cala mais do que fala”. (JAFFÉ, 1964: 254)

Sintético X Natural
Começo contrapondo o ‘sintético’ e o ‘natural’; a forma e a matéria-prima. Em
Reptilia Tereftálica, o primeiro nome faz referência à forma, (Reptilia: classe dos
répteis, onde se inclui a serpente), e o segundo, à matéria-prima, Poliéster Tereftálico
(vulgo PET).
A história da garrafa PET tem origem no plástico, que por sua vez, é um produto
no petróleo (fruto da decomposição de materiais orgânicos - plantas e animais - que
viveram nesse planeta há milhões de anos).
Há pouco mais de cem anos, ao se mencionar o termo “plástico”, entendia-se
como algo relativo à reprodução de formas ou às artes plásticas, já que a palavra deriva
do grego “Plastikos” que significa “adequado à moldagem”. No século XX, a descoberta
de um material sintético, que tinha essa mesma propriedade de se moldar, recebeu o
nome de polímero, no entanto, ficou universalmente conhecido como plástico. O PET
nada mais é que um plástico ultra-resistente.
Portanto, o material do qual a garrafa PET é feita, já foi parte de criaturas vivas

315 art uerj III semana de pesquisa em artes


há milhões de anos, parados nas rochas sedimentares de um depósito de petróleo
por todo esse tempo. Então, se a origem desta matéria-prima é orgânica, seria ela
‘natural’? Melhor ficarmos com a definição de Jean Baudrillard:

“A oposição substancias naturais / substancias sintéticas, (...) é


simplesmente uma oposição moral. Objetivamente as substancias são o
que são: não existem verdadeiras ou falsas, naturais ou artificiais. Por
que o concreto seria menos “autêntico” que a pedra? Sentimos matérias
sintéticas antigas como o papel como se fossem inteiramente naturais,
sendo o vidro uma das mais ricas. No fundo a nobreza hereditária da
matéria existe somente por uma ideologia cultural análoga à do mito
aristocrático da hierarquia humana, e mesmo este preconceito cultural
declina com o tempo”. (BAUDRILLARD, 1968: 45)

Acumulação e Repetição
No processo de construção desta obra, a forma foi se constituindo a partir
de ações combinadas de extração e acumulação. Extração, por se retirar do objeto
(garrafa PET), uma parte, um módulo (figura 1). Acumulação, por passar a construir
uma obra que cresce a cada dia. No início, era uma “coluna” de 2 (dois) metros, sendo
que cada metro contêm 30 (trinta) módulos (figura 2). Até o presente momento, já são
16 (dezesseis) metros, ou 480 (quatrocentos e oitenta) módulos (figura 3).
São centenas de módulos acoplados e encaixados, uma repetição modular que
pode continuar infinitamente. Monta-se tal qual a feitura de um rosário, uma enfiada
de contas dispostas de maneira sucessiva, em seqüência ininterrupta. Repetições
obsessivas, semelhantes a mantras. Como mesmo diz Gilles Deleuze:

“Não acrescentar uma segunda e uma terceira vez à primeira, mas elevar
a primeira vez à ”enésima” potência” (DELEUZE, 2006: 20)

Existe uma lenda que nasceu da obra do poeta grego Homero – Odisséia – onde
ele nos conta a história do “Tapete de Penélope”. Diz a lenda que Ulisses, rei de Ítaca

316 art uerj III semana de pesquisa em artes


e marido da bela Penélope, viajou para longe ajudando outros reis em outras guerras,
demorando muito a voltar. Isso levou a outros nobres cobiçarem o trono e a esposa
de Ulisses. Penélope então, teve uma idéia: prometeu-lhes que teceria um tapete e
quando esse ficasse pronto, se Ulisses não tivesse voltado, se casaria novamente.
Todos concordaram e ela se pôs a tecer. Só que, enquanto tecia o tapete durante o
dia, o desmanchava à noite, e assim, nunca terminava. Hoje em dia, usa-se o termo
“tapete de Penélope” para indicar uma coisa que nunca fica pronta. Portanto, o “tapete
de Penélope” nos remete à idéia de uma obra sem fim, sempre em processo, que pode
ser feita e desfeita e voltar a ser feita, sem que necessariamente seja desfeita.
A repetição seriada e modular desse elemento básico, criando assim, um novo
objeto e novas interpretações sobre ele, em nenhum momento se tem a intenção de
descaracterizá-lo, muito pelo contrário, confirmo-o a todo o momento, para que todos
saibam, que o que se tem ali É uma garrafa PET, um resíduo industrial. Até mesmo o

Ilustração 1 – O Módulo

317 art uerj III semana de pesquisa em artes


Ilustração 2 – Projeto
inicial com 2 metros

Ilustração 3 – Obra em
processo (já com 16
metros)

318 art uerj III semana de pesquisa em artes


carimbo que vem de fábrica não é apagado, pois é ele que vai servir como registro da
história daquele objeto, daquele módulo. Cada um tem sua história particular, mas o
todo forma um conjunto com a mesma origem.

Escolher e Recolher
Tais objetos são escolhidos e recolhidos. Ao escolhê-lo, faz-se necessário
definir suas características. A marca do refrigerante é importante, pois apresenta as
características necessárias – transparência, sem cor, uma grande resistência, maior
leveza e um brilho intenso. O tamanho é outro item de escolha, as de 1,5; 2,0 e 2,5 litros
foram as usadas, criando uma certa harmonia do conjunto. O recolher é um momento
pós, onde junta-se o que está disperso.
Todas essas características têm um sentido de ser para a obra. Quando me
propus a fazer esta escultura usando a garrafa PET, sabia perfeitamente que trabalhava
com um material com alto grau de resistência. Não é a toa que o artista plástico Ronald
Duarte4 a chama de “mármore de luxo”.
Apesar da resistência, o material é muito leve. É dessa leveza que me utilizo
para suspender a obra, tirando-lhe assim, o pedestal que a fixaria ao solo. Os módulos
são perpassados, pelos seus bucais, por um fio de nylon resistente, que por sua vez,
só é preso ao módulo primeiro. Ao suspendê-la, a obra ganha movimento, a “coluna”
gira sobre seu próprio eixo, em movimentos sinuosos, serpenteando... Assim nasce a
idéia de Reptilia1 como primeiro nome.
A serpente é um animal reverenciado em várias culturas, desde a pré-história. É
que vem das regiões mais obscuras e que se recicla periodicamente. Simboliza a força
regeneradora, ligada à fertilidade, à sensualidade, ao poder de morte e renascimento.
A energia que liga o mundo inferior ao superior, o céu à terra.
Na dimensão corporal, a serpente se mostra associada à coluna vertebral.

“Ela (a serpente) é mortal e curativa ao mesmo tempo... para os gnósticos


ela é considerada como um representante do tronco cerebral e da medula
espinhal...” (JUNG,1986:580 )

319 art uerj III semana de pesquisa em artes


Portanto, a serpente nos remete à outra imagem importante contida na obra,
que é a coluna vertebral. A coluna vertebral como eixo em torno do qual se move a
energia da vida. O ponto de referência, de orientação no espaço e no tempo. Ela, assim
como a serpente, possibilita a comunicação entre os planos inferiores e superiores,
entre sagrado e o profano. A serpente nos mostrará, que energia que anima esse eixo
nunca se moverá retilineamente, direta, mas sim sinuosamente, em espiral, avançando
e retrocedendo, aparecendo e desaparecendo, de modo sutil.  Assim como esta obra.

Referências Bibliográficas
ARCHER, Michel. Arte Contemporânea, uma história concisa. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
BAUDRILLARD, Jean. O sistema dos objetos. São Paulo: Perspectiva, 1968.
CHEVALIER, J., GEERBRANT, A. Dicionário de Símbolos. Mitos, sonhos, costumes, gestos, forma,
figuras, cores, números. Rio de Janeiro: José Olimpio, 1996.
DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. Rio de Janeiro: Graal, 2006.
JUNG, Carl Gustav. Símbolos da Transformação. Petrópolis, RJ: Vozes, 1986.
JAFFÉ. Aniela. “O simbolismo nas Artes Plásticas.” In O Homem e seus símbolos. JUNG, C. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1964.
KRAUSS, Rosalind E. A Escultura no Campo Ampliado. Revista Gávea - Revista do Curso de Especialização
em História da Arte e Arquitetura no Brasil da PUC/RJ, Rio de Janeiro, n. 1, 1984, p. 90.
KRAUSS, Rosalind, Caminhos da Escultura Moderna. São Paulo: Martins Fontes, 1983.
LEXIKON, Herder. Dicionário de Símbolos. São Paulo: Cultrix, 1997.
WOOD, Paul. Arte Conceitual. São Paulo: Cosac & Naify, 2002.

Notas
1 Gramática Expositiva do Chão (Poesia quase toda) - Manoel de Barros - Editora Civilização Brasileira
- edição 1990.
2 Originalmente conhecida com o nome francês Papier Mâchè que significa papel esmagado, picado.
Teve seu auge entre os séculos XVI e XIX, na França, contudo, os primeiros sinais de seu uso dotam do
termo da invenção do papel, na China, no século II A.C.
3 Ronald Duarte - Mestre em Linguagens Visuais pela UFRJ. Recebeu prêmio Marcantonio Vilaça.
Editor da revista Global e editor-executivo da revista Arte e Ensaios, do Programa de Artes Visuais da
UFRJ. Realizou várias interferências urbanas, como ‘Fogo Cruzado’, ‘O que rola você vê’ e ‘Nimbo Oxalá’,
entre outros. Fundador do grupo Imaginário Periférico. (http://www.museuimperial.gov.br/como_lugar/
nome_ronald.asp)
4 Reptilia, em latim científico, é o mesmo que répteis. Os répteis foram os primeiros vertebrados a
conquistarem, com sucesso e definitivamente, o ambiente terrestre e a serpente faz parte dessa classe.

320 art uerj III semana de pesquisa em artes


III semana de pesquisa em artes
10 a 13 de novembro de 2009 art uerj
processos artísticos contemporâneos

Entre nomes: por onde passamos e por quem passamos

Jimson Vilela

Bacharelando em Artes Visuais – UERJ

Nessa comunicação apresento os registros da instalação Até (2008) e alguns trabalhos da série
Espaços Negros (2008 – 20--), com o intuito de traçar paralelos entre a poética dos trabalhos
e a relações dos indivíduos com o espaço urbano. Analiso a imagem que se tem do espaço
urbano, e como essa é mediada até chegar ao indivíduo. Posteriormente, discorro sobre como
meus trabalhos alteram a percepção dessas imagens, através de novas mediações.

Pintura; Imagem; Percepção.

In the present communication records to the Até (2008) and some works from the series
Space Black (2008 - 20 -), in order to draw parallels between the poetic work of individuals and
relations with the urban space. Analyze the image one has of the urban space, and how this is
mediated to reach the individual. Later, I wonder about my work and change the perception of
these images, through new forms of mediation.

Painting; Image; Perception.

Entre nomes: por onde passamos e por quem passamos


O tempo das relações que mantemos com o espaço e as pessoas ao nosso
redor mudou, hoje podemos sair de casa sabendo se vai chover ou não, quais as
rotas estão livres de engarrafamentos, além disso temos acesso a diversos outros
números e previsões que visam apenas uma informação objetiva, não aberta a
contestações. O que interessa é apenas o local de chegada. É incrível a nossa
surpresa quando esses números e previsões não se confirmam, fazendo com que o
objetivo da chegada não seja alcançado no tempo previsto. Estamos presos em um
321
Pausa (série espaços
negros), 2009.

engarrafamento por conta da chuva, por exemplo, nesse momento por maior que seja
o nervosismo da quebra da rotina e do atraso, começamos a perceber onde estamos,
o que nos cerca e quem nos cerca.
Em suma, não nos permitimos ficar à deriva, alias creio ser difícil ficar a deriva
hoje em dia, percebendo o espaço e as pessoas. Em primeiro lugar pela quantidade
de poluição existente nos espaços, não me refiro apenas a detritos, mas a poluição
visual e sonora, me parece que não conseguimos chegar até aquilo que vemos ou
buscamos ver, tamanhas são as camadas de informação, por exemplo, ao observar
uma pessoa qualquer que nos atraia passando pela rua lemos a priori as roupas da
pessoa, se existem estampas qual é o estilo da roupa, qual é o caimento da roupa,
a quais convenções sociais se ligam esse modo de se vestir, se esta maquiada,

322 art uerj III semana de pesquisa em artes


se possui tatuagens e assim sucessivamente, creio que demoramos a observar o
estado, o emocional, da pessoa em si. O que aponto aqui não se relaciona a um
desejo de pureza visual, mas a uma constatação, não vemos o ser humano, mas
padrões visuais de personalidade e de valor social, que mediam nosso olhar sobre o
outro. O mesmo acontece em simultâneo em diversos contextos de nossa vivência
diária.
A imagem, de algo ou alguém, sempre esteve submetida a agentes
mediadores, e esses modificam substancialmente a leitura da imagem, porém nos
dias de hoje a propaganda e os meios de comunicação são agentes mediadores
chaves para a compreensão de um espaço e sua percepção. Basta pensar nas
noticias de violência, modificando a circulação de pessoas em determinado local, ou
na especulação imobiliária gerada por propagandas de diversos segmentos, caso
barra da tijuca. Esse sistema se mantém devido à continuidade e simultaneidade
de informações, as mais diversas possíveis. Muitas informações circulam, a maioria
supérflua, o resultado é a perda a percepção das mesmas, o que elas realmente são,
necessárias ou não, não há um espaço para a contestação, pois se está atrasado
para chegar ao destino, então é essa a imagem, mal mediada, a mais passível de ser
tomada como a imagem do espaço.
Entretanto, a popularização de novas tecnologias como câmeras digitais e
mp3, ambos já embutidos em aparelhos celular, propiciam ao individuo outro tipo de
experiência sensorial com o espaço pelo qual transita. No caso da fotografia digital
a grande capacidade de armazenamento de imagens faz com que o individuo crie,
facilmente e por conta própria, marcos memoriais o que não significa que ele perceba
de maneira ativa o espaço, mas por outro lado ele ao captar esses fragmentos cria
sua própria mediação com o espaço publico, uma vez que, ele deixa de viver o fato
no tempo presente para registrá-lo e posteriormente apreendê-lo. O mp3 é outro
agente mediador igualmente interessante pois o individuo apreende o local tento uma
“trilha sonora” como mediador, o que de certa forma cria uma relação de intimidade
com o espaço, porém o individuo ainda se mantém atento a sua necessidade de
chegada, sendo essa trilha um elemento distrativo e alienador em certa medida.
Acredito que essas novas tecnologias possam ampliar e ate mesmo diversificar a

323 art uerj III semana de pesquisa em artes


experiência sensorial com o espaço desde que sejam empregadas para atingir tal
finalidade, alem de destituir o caráter hegemônico dos grandes mediadores atuais (os
já citados). Contudo nos trabalhos que apresentarei a seguir opto por um embate no
campo, em tese, mais arcaico de todos o campo da pintura.
Primeiramente a minha escolha pelo meio pintura diz respeito ao desafio
do dialogo com a historia da arte, não no sentido de continuidade ou possibilidade
de esgotamento, mas no sentido de retomada de exploração, não que a pintura
tenha sido abandonada, porém após experiências como as de Hélio Oiticica com
os penetráveis a pintura foi levada à outra dimensão, voltada para questões além
do objeto pintura, através de repertórios além do meio pintura. Em meu trabalho de
pintura me proponho inicialmente uma investigação sobre a pintura, sua materialidade
própria e seus processos e repertórios desenvolvidos ao longo de milênios e os novos
repertórios do campo expandido da pintura. E como no decorrer do tempo à pintura e
suas diversas ramificações e alteraram substancialmente a imagem que o individuo
possui sobre o mundo, em suas crenças, códigos e sistemas que o cercam.
É recorrente, nos questionamentos sobre pintura mencionar o conceito de
imagem e o conceito de percepção, como é visto em Merleau-Ponty.

“Ele está ali, forte ou fraco na vida, mas incontestavelmente soberano


em sua ruminação do mundo, sem outra “técnica” senão a que os seus
olhos e suas mãos oferecem à força de ver, à força de pintar, obstinado
em tirar deste mundo, onde soam os escândalos e as glorias da história
[...] (MERLEAU-PONTY)”

O conceito de imagem aparece em meu trabalho através da vontade de


lidar com o sistema precário de percepção do espaço. Quanto ao conceito de
percepção, lido com diversas acepções da palavra, porem duas são de fundamental
importância a primeira diz respeito a percepção, no modo de experiência sensorial do
observador com o objeto, a segunda lida com a percepção no sentido de apreensão,
compreensão e reflexão sobre o contexto no qual o observador e objeto estão
inseridos. Creio que essas duas noções de percepção que são fundamentais para

324 art uerj III semana de pesquisa em artes


minha pesquisa se inter-relacionam no ponto em que a percepção do objeto influi
na percepção do contexto e o contexto influencia na percepção do objeto. Essa
é a constatação que Anne Cauquelin, faz em seu livro A Invenção da Paisagem,
no mesmo, Cauquelin traça paralelos entre a o uso da perspectiva na pintura e a
compreensão humana do mundo real a partir de pontos de fuga, (a perspectiva não
existe ela é apenas um sistema de representação visual), em contrapartida temos
dificuldade em aceitar obras de arte que não possuem o esquema de perspectiva
pois esse introjectado em nosso contexto social de tal maneira que apresentamos
dificuldades em lidar com objetos de arte que não possuem essa lógica.
Na série espaços negros trabalho com o mecanismo da justaposição como

Veredas (série espaços


negros), 2008.

325 art uerj III semana de pesquisa em artes


agente de mediação da imagem alterando substancialmente percepção sobre
contexto da imagem. O processo começa com a retirada da imagem de seu local de
origem, páginas de jornal, geralmente imagem de paisagem urbana aparentemente
abandonadas ou em conflito, e a justaposição da mesma com outra imagem de
matriz radiográfica. As imagens contidas nas paginas de um jornal possuem o texto
jornalístico como mediador, em alguns casos a imagem apenas ilustra o texto ou
serve como chamariz para o mesmo. É o texto é que direciona a compreensão da
imagem, e essa compreensão é o que me interessa nesse trabalho, e como ela pode
alterar o sistema de relações que poderíamos desenvolver com determinado local e
com as pessoas que por ali transitam. Ao retirar o texto possuo apenas uma imagem
que já passou pelo olho do observador, e já está na memória, se não passou uma
similar provavelmente já o abordou, de maneira rápida ilustrando um texto similar
ao que foi lido. Essa imagem é justaposta a uma chapa de radiografia, criando uma
superfície negra na qual a imagem só consegue ser vista após o acostumar do olho
com a escuridão.
Em ambas imagens existe uma necessidade de ver aquilo que não se viu, ou
não se pode ver, e perturba a estabilidade de um sistema. A imagem jornalística como
índice de fatos que perturbam o equilíbrio social no espaço urbano, e a radiografia
como tentativa de visualização de que algo perturba o equilíbrio do corpo. Há uma
constante presença da idéia de corpo, seja por sua afirmação ou negação, o corpo
que participa ou participou de uma ação é o mesmo corpo que sofre outra ação.
Juntas, essas as imagens parecem se dissolver, se apagar, não se vê as imagens de
maneira nítida, é preciso observar o corpo (obra) para poder se enxergar o que está
contido na matéria, o que está contido no corpo, na memória. Memória coletiva pois
se desenvolve além do corpo através dos sistemas midiáticos, e pessoal pois deixa
em cada memória um marco distinto a respeito do espaço pelo qual se transita.
Nesses trabalhos o processo de pintura se dá através do uso de camadas,
de materiais distintos, em sua materialidade e significados, gerando novas camadas
de abordagem sobre o espaço, camadas de imagens já é familiares ao repertório de
qualquer individuo que transita pelo espaço urbano. Nesse sentindo a escala reduzida
dos trabalhos é de grande importância o observador é atraído e se aproxima do

326 art uerj III semana de pesquisa em artes


trabalho, a fim de investigar o que é o trabalho, ao passo que ao encontrar a imagem
similar a imagem que possui na memória descobre estar investigando a si mesmo, e
todos os seus preceitos e conhecimentos sobre a imagem do espaço urbano. Através
da imagem chego ao corpo e a memória, para refletir sobre o que é essa imagem e
seus efeitos sobre o corpo e sobre a memória.
A imagem do corpo (de sua presença e ausência) no espaço é um dos
motivadores da instalação Até, nesse trabalho a iluminação amarelada toma a sala
de exposição aparentemente vazia, o que se vê são apenas manchas de tinta e lápis
pelas paredes. Essas manchas não constroem nada, são somente o indicio de que
algo aconteceu naquelas paredes. Quando se espera já ter se visto tudo, ou melhor

Até, 2008.

nada, as luzes da sala toda se apagam, silhuetas humanas começam a surgir nas
paredes, quando se pensava que nada seria visto, o observador se vê cercado.
A situação é criada pela inversão lógica de se ver as coisas na luz, no caso
se vê além da luz. O espectador que antes se localizava no papel de um detetive,
atrás de pistas que desvendassem esses fragmentos, agora é o objeto central de
uma situação ambígua, pois não se tem idéia de qual é o direcionamento dessas
figuras. Enquanto elas o cercam, elas o ignoram – o repelem, se afastam. Um
movimento fantasmagórico, no qual, a percepção do espectador sobre o espaço
é redimensionada a partir da relação do eu com o outro gerando a constante
interrogação quem é esse outro e em que momento eu me tornei esse outro. Essa

327 art uerj III semana de pesquisa em artes


imagem é referente ao movimento de migração pendular da que ocorre no espaço
urbano, pessoas vem e vão de suas casas para seu trabalho e demais afazeres,
nesse movimento transitam pelo espaço publico como se o mesmo fosse apenas
um local de passagem, não vêem o espaço e quem com quem compartilham esse
espaço.
Em Até faço uso dessas silhuetas sem direcionamento para gerar esse
movimento ambíguo de ir ou de vir, o trabalho está situado na fronteira entre a não
a percepção do entrono e a percepção momentânea desse entrono. Acredito que o
mesmo corresponda a esse momento no qual se passa a perceber o onde se esta
e com quem se está. Existe um deslocamento do sujeito no sentido em que quem
passa a ver, percebe que pensava que via, e por agora realmente ver ele se torna
foco de atenção ou objeto de desprezo. A ação de perceber em última instância
significa romper com esse sistema em que a maioria já está condicionada. O uso da
fatura pictórica nesse trabalho vai de encontro às primeiras convenções pictóricas
tradicionais usadas para retratar o espaço, me refiro à perspectiva, em Até tudo o que
é pintado esta na superfície, e por conta da luz emitida pelo pigmento fotossensível
essa se projeta da parede para o espaço, indo até a retina do observador, tudo é
dado e não dado na escala do corpo. Em suma, esse embate presencial traz a tona
o dilema edipiano: é preciso ser cego para se poder enxergar, ou seja, ver pela
ausência.
Tanto na série espaços negros como em Até residem os mesmos agentes
motivadores de minha construção poética, porém a grande confluência desses
trabalhos, além do pensamento pictórico, reside na operação de escolha dos agentes
mediadores que evidenciam a presença de algo além do que se vê.

Bibliografia
CAUQUELIN, Anne. “A Invenção da Paisagem”. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
MERLEAU-PONTY, Maurice. “O Olho e o Espírito”. São Paulo: Cosac & Naify, 2004.
OITICICA, Hélio, “Hélio Oiticica: A Pintura Depois do Quadro”, São Paulo, Silvia Roesler Edições de Arte,
2008.

328 art uerj III semana de pesquisa em artes


III semana de pesquisa em artes
10 a 13 de novembro de 2009 art uerj
processos artísticos contemporâneos

CUIDADO: a esquematização do conhecimento para a disseminação do


papel educacional

Jorge Langone

Bacharelando em Artes Plásticas – UERJ;


Professor de Planos e Estratégias do Deptº de Artes e Design – PUC-RJ

Um esquema necessita de CUIDADO. Qualquer esquema é voltado principalmente para


a estratégia, ou seja, para a construção simbólica do pensamento. Ao contrário, as táticas
são relativas às experiências do nosso cotidiano. O desafio é travar um diálogo entre esses
terrenos e utilizá-lo com a intenção de esquematizar as estratégias que melhor se ajustam ao
ensino da arte. CUIDADO.

Táticas; Estratégias; Ensino da arte.

A scheme needs ATTENTION. Every scheme is turned to strategy, in other words, to the
symbolic construction of thought. On the contrary, the tactics are related to the experiences of
our quotidian. The challenge is to establish a dialogue between those fields, and use it with the
intention of schematizing the strategies that better fit to the Art teaching. ATTENTION.

Tactics; Strategies; Art teaching.

Começar do fim ou do início? É a velha história do que vem primeiro: a


estratégia cria as boas táticas ou as táticas geram uma melhor estratégia?
Ou será que é no desvio que acontece uma boa surpresa para se desenhar um
esquema eficiente?
No campo de batalha, onde residem os interstícios entre os lados opostos,
os desvios podem ser considerados partes fundamentais para a alimentação dos
desenhos das melhores estratégias, que advém da vivência das táticas do cotidiano.
329
Figura 1 – Fotografia
de placa da rodovia
Rio-Santos – 2009 –
Jorge Langone

330 art uerj III semana de pesquisa em artes


Como saber que no meio de uma estrada que liga o Rio de Janeiro a Santos
existirá um desvio se ninguém o anunciou na Internet ou em qualquer outra mídia?
Ou ainda na compra do bilhete da passagem na Rodoviária do Rio de Janeiro?
Somente através da experiência de viajar pela estrada. Diante do obstáculo, o que
fazer com a interferência do sinal visual de trânsito de CUIDADO, sendo que o cálculo
para chegar a Parati era de três horas e meia e agora passou a ser indefinido?
Nesse ínterim de desvio experimentado, pensava em como a diferença entre
estratégia, tática e – o principal – o trajeto não previsto pelo sinal de CUIDADO, pode
servir como uma boa metáfora para construir um esquema que se retroalimenta
através da vivência. E ainda como pode ser levado para o campo do ensino das artes.
Um desvio no trajeto de um ônibus, indicado através do símbolo CUIDADO, servindo
como alicerce para o início de uma antiga discussão, não obstante contemporânea.
Como o foco é um trajeto, ou seja, uma trajetória, nada mais exemplar do que a
placa encontrada no meio do caminho: CUIDADO.

Uma “trajetória” evoca um movimento, mas resulta também em uma


projeção sobre um plano, de uma redução. Trata-se de uma transcrição.
Um gráfico (que o olho pode dominar) é substituído por uma operação;
[...] Michel de Certeau, 1994, p. 46

Operação esta que se aproxima do cotidiano, que acontece no “fazer”.


Quando criamos algo mentalmente e desenhamos um plano para sua realização,
esquematizamos um funcionamento que está ligado ao campo da estratégia. Ver um
sinal de CUIDADO é uma atitude mental, apesar de visual. Esse esquema é ligado à
parte da representação da estratégia. No caso do sinal de CUIDADO, apontar para
um desvio é mais uma informação mental onde não sabemos qual a forma desse
movimento, dessa trajetória. Com a informação de que o desvio vem a cem metros,
conhecemos o ponto de partida para entrarmos no circuito ofertado. Tudo isso é uma
leitura visual intermediada pela mente.
O esquema de continuar na viagem não mudará, ou seja, a estratégia continua
sendo a mesma: chegar a Parati. Ela não muda porque o CUIDADO com o desvio se

331 art uerj III semana de pesquisa em artes


apresenta. Ela apenas terá outro desenho de trajetória, ou seja, outra forma espacial
e, consequentemente, outro tempo, neste caso, o de viagem.

Chamo de “estratégia” o cálculo das relações de forças que se torna


possível a partir do momento em que um sujeito de querer e poder é
isolável de um ambiente. [...]
Michel de Certeau, 1994, p. 46

O que mudou no esquema desenhado pela estratégia é oferecido por uma


emergência momentânea operante no presente. A mesma se apresenta no cotidiano
e sua vivência é experimentada, por fim, como uma tática.

A emergência designa um lugar de enfrentamento. É um não-lugar,


uma pura distância o fato que os adversários não pertencem ao mesmo
tempo-espaço.
Michel Foucault, 1984, p. 24

A tática possui o atributo de acontecer no campo prático. Ela não é um desenho


mental, como um reflexo visual ou verbal delineado a priori. Ela é um desenho
operante, que se modifica e se transforma no decorrer da vivência da estratégia
escolhida. Vivenciada no devir, seja ela no campo da arte ou em qualquer outro.
No meio da trajetória para Parati, com o sinal de CUIDADO relativo ao desvio a
cem metros, eu poderia tomar uma decisão de saltar do ônibus e ficar no bairro mais
próximo, dormir em um hotel e retornar para o Rio de Janeiro. É uma decisão, mas
a mesma é intermediada por uma mudança de estratégia, já que não chegarei ao
objetivo final que é Parati.
Dessa forma podemos, em meio ao desenho ofertado da trajetória, optar por
mudarmos de tática, mas não de estratégia. Poderia, igualmente, escolher descer do
ônibus e pegar um táxi no bairro mais próximo, para chegar ao centro de Parati em
menor espaço de tempo. Ou ainda – o mais provável – ficar no ônibus vivenciando
um tempo de viagem e trajetória modificada até chegar a Parati. A tática é parecida

332 art uerj III semana de pesquisa em artes


com a anterior, porém é outra, já que o trajeto e o tempo possuem outros atributos e
desenhos operados no presente. Sendo assim, a tática mudou.
Nesse intervalo entre tempo e trajetória, nesse interstício, em vez de pensar
em outro esquema estratégico, o melhor foi me adaptar. No enfretamento dessa
emergência, não escolhi a reclamação ou a desistência. Mas, sim, uma adaptação
ao meio. Resolvi viver a experiência da tática que foi ofertada pelo acontecimento
inesperado.
Denomino, ao contrário, “tática” um cálculo que não pode contar com
um próprio, nem portanto com uma fronteira que distingue o outro como
totalidade visível. A tática só tem por lugar o do outro. Michel de Certeau,
1996, p. 46

O outro significado da palavra CUIDADO: dar atenção ao tempo e ao espaço


do interstício, o espaço da operação do fazer cotidiano, onde precisamos estar
antenados com seus códigos para fortalecer o diálogo entre o esquema estratégico
escolhido e suas táticas cotidianas.
Um não-lugar que é esquecido. Muitos gostam somente de desenhar um fluxo
estratégico e esquecem em ter atenção, CUIDADO, com o lado mais importante
de um esquema: a sua operação. Nesse momento do trajeto para Parati, nesse
interstício chamado aqui de desvio, além de dialogar com Michel de Certeau e Michel
Foucault, passou pelo meu pensamento como que no ensino da arte pode haver um
descuido com a operação no fazer. Logo na arte, que precisa da relação participativa
do espectador, seja na leitura das obras, seja nas sensações por ela transmitidas ou
até mesmo na sua interação desejada.
Essa troca é de primordial importância, ainda mais no caso do ensino. Quantos
desejam somente desenhar esquemas e pedir para que outros os executem, em vez
de prestar atenção e cuidar dos sujeitos que participam da relação?
Para Foucault, o interdito é o sinal mais evidente e familiar em uma sociedade
como a nossa que possui procedimentos de exclusão.

Temos consciência de que não temos o direito de dizer o que nos

333 art uerj III semana de pesquisa em artes


Figura 2 – Fotografia
de bichinhos de pelúcia
Estrela – 2009 – Jorge
Langone

apetece, que não podemos falar de tudo em qualquer circunstância, que


quem quer que seja, finalmente, não pode falar do que quer que seja.
Tabu do objeto, ritual da circunstância, direito privilegiado ou exclusivo
do sujeito que fala: jogo de três tipos de interditos que se cruzam, que
se reforçam ou que se compensam, formando uma grelha complexa que
está sempre a modificar-se. Michel Foucault, 1971, p. 5

A grelha está sempre a se modificar. Então o CUIDADO é fundamental. O que


vemos na atuação de uma escola ou universidade é a criação de sistemas, logo,
esquemas e estratégias, sem dar atenção ou voz àquilo a que se destina: o sujeito
aluno. Quantas estratégias ainda serão desenhadas sem a compreensão de que a

334 art uerj III semana de pesquisa em artes


grelha é complexa e se modifica na operação cotidiana? Quando os alunos serão
escutados em suas necessidades de forma a dar alguma alteridade e legitimidade
aos seus papéis como estudantes e formadores de opiniões próprias? Por que criar
estratégias que afastam o aluno da compreensão das mesmas, em vez de incluí-lo
na discussão para que sejam feitos esquemas que se adequem ou cheguem mais
próximos dos seus desejos?
Por que, ao nos perguntarmos sobre os porquês, nos dizem que existe, sim,
uma forma de atuação através dos sistemas preestabelecidos -como os órgãos
eleitos pelos próprios alunos - quando sabemos que não funcionam? Por que não
escutar os que desejam falar e opinar para um ensino de melhor qualidade? Parece
que o aluno está posto como um sujeito observador de uma obra de arte, que
observa e até participa da mesma, mas sua opinião não importa muito. Não deveria
ser o contrário, já que é um operador do sistema e de fundamental importância, ainda
mais em um sistema que investiga a arte?
Sistemas de avaliação das aulas não possuem um interesse por parte das
direções. Fica uma indagação: por que? Talvez uma resposta possível: porque as
direções não estão preparadas para escutar o sujeito cuja formação é o objetivo da
instituição, e que por sua vez, nesse momento, como Foucault diria, é excluído.
Ora, se uma estratégia boa é realizada com avaliação das táticas daqueles que
não possuem vozes, que ocupam os não-lugares no campo de batalha, como criar
um sistema que se retroalimenta? Como considerar que as estratégias pensadas são
as melhores, já que a exclusão do sujeito aluno é evidente?

[...] Um dos principais problemas para realizar um sistema que se
retroalimenta é que a maior parte dos educadores desconhece a
pesquisa que pode fundamentar sua prática, além de seu apego a
crenças e preconceitos sociais sobre a educação artística. Para vencer
essa barreira, é fundamental realizar programas de pesquisa que
detectem, ordenem e expliquem os processos e as estratégias que os
indivíduos utilizam para a compreensão de objetos que fazem parte do
seu universo visual [...] Fernando Hernandéz, 2000, p.56

335 art uerj III semana de pesquisa em artes


Acredito que existem algumas saídas, inclusive já experimentadas por outros
sistemas de ensino da arte. O espanhol Fernando Hernandéz sugere que não ser
preconceituoso e não ter apego às suas crenças como educador é um caminho
para apreender o que os alunos querem expressar visualmente. A partir daí, criar
um esquema aliado às práticas e aos conhecimentos culturais dos alunos pode ser
um bom exemplo de como construir um cotidiano aliado a uma estratégia que se
retroalimenta.
A forma como isso pode acontecer no dia-a-dia de congressos, publicações,
além de no próprio ensino no qual os professores de arte estão afogados, pode ser
diversa. Basta ter CUIDADO. E querer. É possível desejar ser diferente? Optar por
analisar e ficar atento aos desvios? Sim, é possível. Como? Com CUIDADO.
Voltando à pergunta inicial – Começar do fim ou do início? É a velha história
do que vem primeiro: a estratégia cria as boas táticas ou as táticas geram uma
melhor estratégia? – pode ser respondida com uma palavra que possui os dois
significados aqui relatados: CUIDADO. A partir daí, é só construir/re-construir
os esquemas e viver suas operações com a atenção necessária para que se
retroalimentem. CUIDADO.

Referências bibliográficas:
Foucault, Michel. A microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1984.
______. A ordem do discurso. Paris: Gallimard, 1971.
Certeau, Michel de. A invenção do cotidiano, artes do fazer. Petrópolis: Vozes, 1998.
Hernàndez, Fernando. Cultura visual, mudança educativa e projeto de trabalho. Porto Alegre: Artmed,
2006.

336 art uerj III semana de pesquisa em artes


III semana de pesquisa em artes
10 a 13 de novembro de 2009 art uerj
processos artísticos contemporâneos

Desenho como da-sein

Leandro Furtado

Mestrando – PPGAV – CLA – EBA – UFRJ

A proposta aqui seria uma problematização a trazer o Desenho como uma linguagem
ontológica. Pensar o Desenho como forma de inscrição no mundo, poética, mais do que
simples trazê-lo como uma forma visível (ou visualizável) através dos sentidos é, também,
questionar seu potencial como construtor de pensamento e Sentido.

Desenho; Arte; Filosofia.

The proposal here would be an inquiry to bring the Draw as an ontological language. Thinking
Draw as a form of registration in the world, poetic, more than just bring it as a visible (or
viewable) through the senses is also questioning its potential as a builder of thought and
Meaning.

Draw; Art; Philosophy.

“Vencendo a opacidade do papel, o desenho faz um lugar.


Faz teatro.
E o lugar da visão apurada.
E um lugar em que o olhar vê a si mesmo.
Neste teatro, o desenho anuncia um mundo.
O desenho possibilita ver o outro lado do mundo.
Ver o que já esteve lá desde o começo.
Ver o que não se mostra.
Ver o que se oculta no opaco das superfícies.

337
Desenhar é de alguma forma vencer a opacidade.
O desenho é artifício de que o mundo dispõe para saber de si.”
Sérgio Fingermann. Desenho e Opacidade.

“Aceitar o desenho ampliado é correr este risco paradoxal. Não ter limites definidos.
Estancar a linha, sem achar a outra ponta. Perder os sentidos. A força dos paradoxos
reside em que eles não são contraditórios, mas nos fazem assistir à gênese da
contradição.”
Gilles Delleuze

A proposta aqui inicia abrindo uma problematização, qual, senão uma questão
historiográfica, um atentamento para uma ontologia do Desenho.
Este objeto de pesquisa de certa forma e por muito tempo dado na nossa
historiografia como um pré-condicionamento para uma obra de arte, um esboço
para as demais questões subsequentes das linguagens artísticas em especial das
artes plásticas, é realimentado como valor e classe em sua autonomia em primeiro
período modernista do século XX. Porém, na segunda metade do século XX alguns
questionamentos seriam inseridos a problematizar e a permitir novas inserções em
seus processos práticos.
Mais do que uma condição da História, esta que constrói a base, o plano
teórico a delimitar as possibilidades da linguagem, aqui será pensado uma
possibilidade outra. Talvez não sigamos o fluxo historiográfico em uma perspectiva já
traçada, caindo no risco das projeções contemporâneas. Talvez prefirimos o risco do
lançar - e de se permitir ser lançado - em aberturas que não tangenciam campos que
não da experiência própria DA arte, e não somente sobre a arte.
Talvez mesmo é preciso sair da imagem de um corredor para se criar novas
consciências, ou mesmo reacender algo que pressentimos existir fora desta suposta
segurança construída por uma historiografia.
Por fim, aqui seria um atentar à uma das possibilidades para um momento especial
que se passaria fora do que há de costume dentro de um interesse estético do lugar-
comum, partindo da cisão silenciosa criada por uma filosofia da arte, dentro do Desenho.

338 art uerj III semana de pesquisa em artes


Uma longa tradição estética, dos antigos aos contemporâneos, tende a
identificar o ato de desenhar com o pensamento em atividade, e o gesto de produzir
uma forma com o ato de conceber.
Assim poderemos tirar uma importância em questão sobre esta determinada
linguagem qual aqui trabalharemos:
- Seria o desenho o iniciar de um pensar/fazer uma coisa-de-arte, um movimento
talvez, primeiro e primário (no sentido de originar) dentre os todos outros da arte?
Mas para “pensar” o desenho não basta apenas esta disponibilidade ou
conveniência encontrada na prática, é também necessário compreender o campo
e os limites que um todo-linguagem que se relacionem e compõem como um
formalizável da experiência e da memória do desenho. É um refletir neste duplo
poético-estético, sobre e no desenho qual pretendemos.
Desenho podem ser estes riscos lógicos quais traçamos agora – a escrita – e
estas anteriores/interiores linhas que se encontram à formar a escrita – a grafia.
Mas, por que não pensar que o próprio desenho já seria formado lá, no campo do
impalpável, no verdadeiro mundo virtual:
- Por que, enfim, à construção de um pensamento já não seria um ato de...
desenhar?
É possível que este momento – da reflexão - corresponda muitas vezes a
uma crise de trabalho, a uma ruptura definitiva dos processos/produtos realizantes
do desenho. Mas por outro lado, possa ser também o seu fundamento e uma (re)
conquista.
...E que fique mesmo em suspenso, pairando mesmo no contexto da não-coisa
estas nossas divagações, pois trazer para uma suposta prova científica ou lógica de
restrito racionalismo seria a última querela de nossa poética. Pensamos que, assim como
o caminho da razão, à poética devemos também salvaguardar um caminho próprio.
A relação do pensamento com a arte coloca a questão da sua existência e da
sua realização na relação com o pensamento do indivíduo. Para o artista esta relação
é parte das solitude e não solitária - ôntica e não ontológica1 -, tanto quanto ela se
exige e se comporta como uma terapêutica do sensível, diante dos seus efeitos.
Por fim, o estudo aos desenhos e suas problematizações seriam aqui o lugar

339 art uerj III semana de pesquisa em artes


e o limiar de uma experienciação, uma abertura onde se combina a deposição do
Tempo, com as linhas que atravessam e configuram o Espaço: um risco natural pois,
e portanto, pertinente ao que origina e tanto se propõe no ambi(val)ente artístico
contemporâneo.
Aqui estaria certamente um convite ao reconhecimento da presença múltipla
do desenho - do cotidiano às fruições poéticas, do devaneio, do risco, do gesto
desinteressado e da necessidade de respostas ao enigma dos desejos.
Este trabalho não pretende dar conta dos contornos vigorosos e porosos que a
linha - estrutura óssea do desenho - capta, delineia, designa, traceja, lança, planeja,
projeta como vetores de ação que se estendem dos traços do pensamento. Também
não pretendemos dar conta do mapa e do território absolutos que o desenho capta
e projeta com possibilidades da presença humana num mundo a ser decifrado, até
mesmo porque estes mapas e territórios não existem a priori - são extensivos aos
caminhos da existência humana.
Pretendemos, sim, radiografar, trazer-à-luz (um fotografar ontológico?) a
transitividade do desenho que percorre os territórios da arte, costurando percepções
com reflexo(e)s; indéias e conceitos, engatando linhas ativas que se lançam no espaço
do imaginal, no espaço do mundo, que provocam tessituras de significados sempre
emergentes e em trânsito, instaurando novos modos no fazer-e-pensar (téchne).
O desenho aqui é discutido sob o ponto de vista dos processos de criação –
da poiesis. São representações gráficas que se mostram como um meio possível do
artista armazenar reflexões, dúvidas, problemas ou possíveis soluções, a construir
um Caminho (Busca, Sentido).
É importante destacar que o desenho, como reflexão visual, não está limitado
à imagem figurativa, mas abarca formas de representação visual de um pensamento,
isto é, estamos falando de diagramas, em termos bastante amplos, como desenhos de
um pensamento, uma concepção visual ou um pensamento esboçado. Não é um mapa
do que foi encontrado, mas um mapa confeccionado para encontrar alguma coisa. E
os encontros, normalmente, acontecem em meio a buscas intensas. Os desenhos,
desse modo, são formas de visualização de uma possível organicidade de idéias, pois
guardam conexões, tessituras, como por exemplo, deslocamentos, opções e ações

340 art uerj III semana de pesquisa em artes


mútuas e múltiplas. Tudo é feito, na maioria dos casos, por meio de grafismos “íntimos”.
Desenho, então assim, pode ser um nome dado aquilo tudo menos do visível
(ou visualizável). Podendo ser também ou mesmo do perceptível, se atentarmos
da dificuldade de discernir, distinguir ou qualquer outra metafísica, pois desenho já
estaria no momento do entre: entre o tempo e o espaço; entre o pensar e o fazer.
Poderíamos também traçar um iniciar autêntico da linguagem Desenho, como
se aqui passássemos da poiesis em auto-poiesis: um Desenho como Da-Sein.
Em outras palavras, que os elementos da imaginação do artista, o todo
imaginal em seus processos poéticos sejam possíveis de elevação sobre os
planos dos elementos racionais/irracionais. Atender esta necessidade com os
desdobramentos subseqüentes da arte – seja ela em qual tempo/espaço - é
mesmo levar a situações por vezes de uma radicalidade, um mesmo risco ainda
maior que possibilitaria ao desenho uma função destacada na arte e no ambiente
contemporâneo.
É um mesmo retirar o desenho do standart confortável de “esboço de obra-de-
arte” e compô-lo no latente estágio de Origem, de coisa-de-arte.
Para tanto, esta proposta deverá ser a expressão original desta mínima
pretensão: que lute e resiste contra a tentação do senso comum, contra a opinião
generalizada da eficácia e da reprodutibilidade, a qual formaria o consenso e o consumo.
Correr o risco contemporâneo pode ser algo que fuja de uma linear
historicidade... apesar de pensado-feito pelas linhas de um desenho.
O desenho em seu sentido mais amplo ainda é, de muito, ainda velado. E
desvelá-lo é pensá-lo em sua origem (o que em mesmo tempo pode trazê-lo a
questões futuras). Este lance, salto (que forma um duplo) origem-contemporâneo é o
risco que corremos:

“Mas, somente se nos voltarmos pensando para o já pensado, seremos


convocados para o que ainda está para ser pensado” (Martin Heidegger)

341 art uerj III semana de pesquisa em artes


III semana de pesquisa em artes
10 a 13 de novembro de 2009 art uerj
processos artísticos contemporâneos

Caminho Plural, o percurso da desmaterialização à materialização do objeto

Leonardo Motta Campos

Artes Plásticas – UERJ

A pesquisa aborda, através de um processo artístico, a presença da fotografia na arte


contemporânea. Com a efemeridade da performance, o objeto artístico se desmaterializa
dando lugar ao corpo e a ação como suporte da obra. Pensando a obra como ação na
cidade, o projeto desenvolve a pesquisa em torno da linha, como um percurso a percorrer, em
paralelo com o fluxo da cidade e seus corpos. Como resultado, o projeto desenvolverá um livro
fotográfico, no qual conterá o registro visual das ações dentro do espaço urbano.

Desmaterialização do objeto; fotografia na arte contemporânea; intervenções urbanas.

The research board, across by artistic process, the presence of photography in the
contemporary art. With the ephemeral of the performance art, the artistic object turn immaterial
give the place to body and the action like support of the work. Thinking the work like a action
into the city, the project expands the research around about the line like a route to walk, in
parallel with the flux of the city and them bodies. The result of project is a photography book,
each has the pictures of the performances into the urban space.

Dematerialize of the object; photography in the contemporary art; urban intervention.

1- Introdução
O projeto de pesquisa Caminho Plural abordar através da construção de
uma poética, baseada na reflexão critica, teórica e prática de diferentes artistas e
pensadores teóricos, discutindo a desmaterialização do objeto artístico mediante a
efemeridade das ações performáticas. Em conseqüência ao vazio provocado pela
ausência do objeto, surge a fotografia como mediadora entre a criação artística, que

342
neste novo contexto não resulta em um objeto finito e acabado, e o espectador.
Agregando a reflexão teórica ao projeto, apresenta-se como defesa pela escolha
da cidade como campo de atuação a teoria de Brian O`Doherty1 publicada na ArtForum
na década de 70, na qual o autor investiga o efeito do contexto da galeria modernista
sobre o objeto artístico e sobre o visitante; e compara os locais de exposição de galerias
e museus do século XX com as igrejas medievais, ambos criam um espaço asséptico,
atemporal e sacralizado, distanciado das vicissitudes da vida cotidiana.
Para conduzir a linha de pesquisa prática, o projeto mira a Experiência nº.
2 de Flávio de Carvalho e Trouxas Ensangüentadas e 4 dias e 4 noites de Artur
Barrio, que consistem na ação de deslocamento pela cidade, dialogando a arte com
os corpos do coletivo e seus fluxos.
Em ambos os casos, as propostas artísticas exploram a efemeridade como
uma qualidade poética, utilizando como recurso de subsistência da obra os registros
textuais dos artistas. A ação é a força da obra, que inicia e encerra. Entretanto,
mesmo após o fim, a obra cria seus desdobramentos e suas extensões, que acabam
por somar-se à ação inicial.
Diante de um novo contexto, a fotografia confirma seu lugar no campo da
arte. O vazio provocado pela efemeridade das ações performáticas é ocupado pela
fotografia. Phillippe Dubois defende em seu livro, O ato fotográfico2, o argumento que
consiste em uma arte contemporânea fotográfica. As criações artísticas passam a
incorporar conceitos fotográficos no processo de criação.
Como resultado prático o projeto consiste em quatro ações dentro do espaço
urbano que consistem na construção de quatro linhas temporais e espaciais
constituída por quatro elementos distintos (barbante, troncos de 1,8 a 2 metros de
altura em forma de Y, folhas secas de amendoeira e sementes da mesma árvore),
que denomino ato-percurso. Associado a composição da linha surge o elemento
árvore. É através da tensão provocada entre a racionalidade das linhas da cidade e a
organicidade do mundo vegetal, cria-se o desenho espacial. As quatro linhas originam
e se manifestam a partida da/ pela/ com/ através da árvore. São quatro ações
que ocorrerão em quatro pontos distintos, aproximando e estabelecendo diálogos
possíveis entre a arte e o fluxo de corpos do coletivo da cidade.

343 art uerj III semana de pesquisa em artes


2. Quadro teórico de referências
Talvez seja difícil, ter clareza precisamente sobre o objeto central de
pesquisa deste projeto, visto que inúmeras abordagens se desdobram em cima das
proposições do projeto. Entretanto, pode-se afirmar que há três principais pontos de
interesses que revezam a hierarquia entre si. São eles: a desmaterialização do objeto
artístico mediante a efemeridade das ações performáticas, a exploração do espaço
não institucional da arte (compreendendo a cidade e o espaço natural como área de
atuação) e a presença da fotografia nos processos artísticos contemporâneos. Estes
objetos de interesse são apenas o início da pesquisa, pois o projeto ao dialogar esses
três pontos abre novas discussões.
Na busca da interação entre os fundamentos teóricos e práticas artística, o
projeto Caminho Plural estabelece o dialogo entre as práticas de Flávio de Carvalho,
Artur Barrio e dos artistas de arte ambiental, ou land art, com teorias de Rosalind
Krauss3 sobre o campo ampliado da escultura, as de Brian O`Doherty sobre a
natureza do interior do cubo branco das galerias de arte do século XX e a presença
da fotografia dentro dos processos criativos contemporâneos.
Segundo Rosalind Krauss a presença da dimensão temporal é um instrumento
fundamental para a análise dos caminhos da escultura do século XX. A escultura
deixa de ser uma categoria estática e idealizada, e transforma-se, assimilando a
dimensão temporal, participando já de um campo ampliado da escultura. A dinâmica
sugerida pela escultura coloca tanto o espectador como o artista diante do trabalho e
do mundo, a fim de encontrar a reciprocidade entre artista, obra e espectador.
Publicado na Artforum, o ensaio de Brian O`Doherty, intitulado No interior do
cubo branco, investiga o efeito do contexto da galeria modernista sobre o objeto
artístico e sobre o visitante. No espaço de exposição asséptico e atemporal das
galerias, a obra de arte é individualizada e apresentada em ambiente homogêneo,
dando destaque à obra como uma coisa em si mesma. Muito da arte que se produziu,
principalmente na primeira metade do século XX, foi idealizada para ser exposta
nesse ambiente sacralizado e distanciado do mundo. A arte existe numa espécie de
eternidade de exposição.
Em meio a tantas rupturas e reformulações conceituais da arte, vê-se surgir

344 art uerj III semana de pesquisa em artes


mais uma nova linguagem artística, a arte da performance ou a arte de ação. Neste
novo contexto, insere-se a ação do artista como atividade criadora de situações
efêmeras, na qual não se resulta, obrigatoriamente, a construção de um objeto
artístico, essencialmente material, mas sim, a vivência de uma experiência temporal e
espacial.
Grande nome brasileiro é Flavio de Carvalho. Suas experiências nas ruas
paulistanas na primeira metade do século XX introduzem no Brasil as primeiras
manifestações das ações urbanas. O ato de andar. Passar pelos e aos olhos dos
outros. A Experiência nº. 2 é um ato de radical experimentação dos limites de um
evento que age, a partir do movimento de deslocamento utilizando o corpo como
principal suporte.
O desejo de deslocamento é o princípio da ação. A movimentação é a própria
pulsão de se estabelecer em outro lugar, diferente do local que se ocupa. Deslocar-se
na cidade é a possibilidade de se encontrar no outro, com outro através do outro. A
ação percorre no corpo e pelo corpo, tencionando os limites, sejam eles os corpos do
detonador, do propositor ou do coletivo.

“Contemplei por algum tempo este movimento estranho de fé colorida,


quando me ocorreu a idéia de fazer uma experiência, desvendar a alma
dos crentes. Tomei logo a resolução de passar em revista o cortejo,
conservando o meu chapéu na cabeça e andando em direção oposta
a que ele seguia para melhor observar o efeito do meu ato ímpio na
fisionomia dos crentes”. 4

Flávio de Carvalho é um nome que não deve ser classificado historicamente,


inerente a uma fase modernista, e sim, contemporâneo a nós, pois suas ações
são precursoras de um tipo de performance interdisciplinar que incorpora
conceitos de psicologia, antropologia e artes plásticas, que a partir da década
de 60 seria conceituada e vivenciada por um grande contingente de artistas. A
interdisciplinaridade proposta pela Experiência Nº. 2 expande a definição fácil de
conceituar a ação performática como uma arte que é feita ao vivo pelos artistas. 5

345 art uerj III semana de pesquisa em artes


Os reflexos das experiências de Flavio de Carvalho podem ser percebidos
na obra de Artur Barrio com suas Situação T/T,1 e 4 dias e 4 noites realizadas na
década de 60. Tencionando os limites das categorias de artes, Barrio destaca-se
pela utilização de materiais precários conjugados a efemeridade de suas ações e
experiências espalhadas pela cidade, relacionando-se diretamente com a mesma e
com seus habitantes.
A eficiência do trabalho de Barrio e Flávio de Carvalho reside na inserção do
inesperado no espaço da vida cotidiana afastada dos lugares institucionais da arte. A
efemeridade das situações e experiências proposta por ambos os artistas se perpetua
com o auxilio dos registros textuais e fotográficos de seu processo criativo.
A historia da fotografia apresenta sua invenção como o resultado da conjunção
de duas invenções pré-liminares e distintas: a primeira puramente ótica (dispositivo
de capacitação de imagem), a outra, essencialmente química, é a descoberta da
sensibilização à luz de certas substancias a base de sais de prata. Vê-se com isso
o surgimento de um novo meio mecânico, ótico-químico, pretensamente objetivo,
porém com fortes aspirações de se firmar no campo da arte.
A foto não é apenas uma imagem (um produto de uma técnica e de uma
ação, o resultado de um fazer e de um saber fazer); é também, em primeiro lugar
um verdadeiro ato referencial, a produção de uma imagem que se relaciona com
um momento passado, portanto, uma imagem ato, compreendendo que esse ato se
limita apenas à produção da imagem, mas inclui também o ato de sua recepção e
contemplação.
Phillippe Dubois em seu livro O ato fotográfico cita Walter Benjamin, ao
considerar que “tudo muda, contudo, se da fotografia como arte, passa-se à arte
como fotografia”. 6 Se o século XIX foi um período em que muito se questionou sobre
o valor artístico da fotografia, já que esta se apresenta supostamente como um
aparato tecnológico, a questão inverte-se ao longo do século XX. A pergunta feita
agora é: a arte é ou tornou-se fotográfica? Dubois aponta a arte e a fotografia como
dois campos de expressão, que tem sua relativa autonomia, mas jamais deixaram de
manter relações inextricáveis, de atração e repulsa, de incorporação ou rejeição.
A arte se apropria de certas lógicas formais, conceituais e de percepção

346 art uerj III semana de pesquisa em artes


inerente à fotografia. Há uma inversão de ponto de vista que indica não uma
fotografia como arte, mas antes a arte contemporânea impregnada em seus
fundamentos pelos conceitos fotográficos. A arte contemporânea, pelo menos uma
significativa parte do que se produziu, caminha para uma produção onde a fotografia
é o intermediário entre obra e público.
Tanto as experiências de Flávio de Carvalho quanto as de Artur Barrio
deslocam os valores da representação concebida como produto acabado de uma
atividade para o da própria atitude criadora, do processo gerador, da idéia e do
ato. Em resumo, o “percurso” das obras não como objetos (finitos), mas como um
processo (em curso).
É evidente que em um primeiro momento, a fotografia se relaciona com as
“novas obras de artes” como simples meio de documentação da ação do artista
no lugar específico. Mas o papel da fotografia não pode ser um simples registro.
Logo, esta rompe o limite de documento, e torna-se uma forma de pensamento que
influencia diretamente a concepção do projeto. Os artistas já pensam seus trabalhos
a partir dos ângulos fotográficos de sua documentação.

3. Objetivos
“De uma cidade, não aproveitamos as suas sete ou setenta e sete
maravilhas, mas a resposta que dá às nossas perguntas.”
Ítalo Calvino7

A produção a desenvolver estabelece o dialogo com o conceito de


temporalidade no campo ampliado da escultura defendida por Krauss agregando
valores das ações performáticas de Flávio de Carvalho e Artur Barrio e a escolha de
materiais naturais utilizados pelos artistas da land art, especialmente Richard Long e
Andy Goldsworthy.
A corporalidade da cidade ou a do individuo é a resultante dos processos
relacionais do corpo com outros corpos, ambientes e situações, estes processos são
justamente os elementos que reorganizam e reconfiguram tanto os corpos quanto
o ambiente que se modificam reciprocamente e simultaneamente. A cidade é um

347 art uerj III semana de pesquisa em artes


ambiente de existência do corpo, um fator de continuidade da própria corporalidade
de seus habitantes.
A cidade somente ganha corpo e torna-se “outro corpo” quando é
experimentada e vivida no espaço real e cotidiano, caso contrario, ela tem apenas
como função a cenografia de um espaço onde ações ocorrem sem qualquer tipo
de relação direta com o espaço nas quais estão inseridas. A verdadeira e clara
compreensão da cidade se dá através da relação entre corpo do cidadão e o corpo da
cidade, que consequentemente, permite uma reflexão e a possibilidade de pensar a
intervenção urbanística como ação de transformação real e necessária à cidade.
Dentro do espaço urbano ocorrerão quatro ações performáticas que consistem
na construção de quatro linhas temporais e espaciais constituída por quatro
elementos distintos (barbante, troncos de 1,8 a 2 metros de altura em forma de Y,
folhas secas de amendoeira e sementes da mesma árvore), que denomino ato-
percurso.
Associado a composição da linha surge o elemento árvore. É através da tensão
provocada entre a racionalidade das linhas da cidade e a organicidade do mundo
vegetal, cria-se o desenho espacial. As quatro linhas originam e se manifestam a
partida da/ pela/ com/ através da árvore. Linha compreendida muito além de um
infinito de pontos em um papel branco. A linha compreendida como um desenho
espacial conseqüente de um caminho percorrido, uma experiência efêmera. A tênue
linha limite, que separa e une.
São quatro ações que ocorrerão em quatro pontos distintos, dialogando a arte
com o fluxo de corpos do coletivo da cidade. Como resultado material e objetivo, o
projeto apresenta a criação de um livro fotográfico, que contará com fotos das ações
e mapas do Rio de Janeiro localizando as ações pela cidade.
Quando um artista repete a mesma forma com materiais diferentes, é de se
supor, que o conceito que o artista deseja alcançar envolve o material, diz Sol Lewit8.
Para cada material há um discurso distinto, estabelecendo relações entre o material,
o conceito da ação e o local escolhido para a realização do ato-percurso.
O primeiro ato-percurso chama-se De galho em galho, que é a materialização
da linha na tridimensionalidade, um salto da planaridade do branco do papel para a

348 art uerj III semana de pesquisa em artes


tridimensionalidade do espaço. A linha perfeita cria-se na tridimensionalidade a partir do
fio de barbante que avança no espaço natural tendo a árvore como suporte. O barbante
compõe a linha reta incomum na natureza. A linha como uma direção a caminhar.
Diante da linha visível no espaço, caminho para um novo caminho. As
possibilidades do caminho apresentam-se como um futuro prematuro. O segundo
ato-percurso é denominado Y, onde troncos em forma de y serão alinhados no chão;
os troncos revezam a dianteira da linha deslocando-se assim pela cidade. Y são as
escolhas e os desvios do caminho.
O terceiro ato-percurso, João e Maria, faz alusão à fábula infantil na qual
duas crianças marcam seu caminho com miolos de pão. Desta vez, as amêndoas
compõem o desenho que será realizado por mais uma artista ainda a ser convidada.
João e Maria fala sobre o medo do percurso sem o regresso, a necessidade que
temos de encontrar uma via possível de resgate de nossas origens. João e Maria é o
medo de se perder pelo caminho e não poder voltar. O caminho de ida necessita do
retorno. A semente como origem e veiculo da vida. Vida repleta de ação.
A cidade é feita das relações entre as medidas de seu espaço e os
acontecimentos do passado. Memória de outono é a conclusão dos quatros
atos-percursos. Com um arranjo de folhas enroladas ao corpo transitarei da pela
Avenida Rio Branco partindo da Cinelândia em direção a Candelária. O sentido
de deslocamento adotado vai contra o trânsito dos carros e as passeatas. A
memória caminhando do presente para o passado na contra mão do trânsito com
suas folhas ressecadas caindo pelo chão da cidade, que observa tudo com olhos
curiosos. Caminhar na contra mão como a resistência da memória opondo-se ao
esquecimento. Ir contra o fluxo. Nadar contra a corrente. Se opor. Resistir.
Refletindo sobre a efemeridade das performances, à inacessibilidade dos
expectadores às obras produzidas pela land art e à presença da fotografia na arte
contemporânea; e objetivando dar coesão a todo o processo de criação artística,
venho aqui elaborar o projeto de um livro de artista.
O livro fotográfico é a estratégia lançada a fim de conjugar os quatros atos-
percursos através de fotos e mapas que demonstram e localizam visualmente os
eventos na cidade. Se as ações pertencem à cidade, o livro, resultado dessas ações,

349 art uerj III semana de pesquisa em artes


AoLeo - Ir e Vir –
intervenção urbana
(barbante esticado em
árvore; Radial Oeste –
fev 09)

pertence ao campo da fotografia. O papel, a página e a fotografia todos concentrados


na mesma função: dar suporte ao registro da ação.
Deslocamentos envolvem direções. Os mapas (des) orientam, (des) constroem
um lugar outro, que remete ao lugar onde nossos corpos atuam. Assim como os
mapas, a bússola também é (des) orientadora. A cartografia (des) configura o fluxo de
ida e vinda, de parada e de acesso. Portanto, a cartografia é suporte e dá suporte ao
livro fotográfico, (des) localizando os eventos espacialmente.
Os mapas portugueses já demonstravam como os monstros ou os precipícios
sem fundo, determinavam os limites do espaço. É irônico pensar como pôde existir
um mapa com um monstro representado. Talvez em um livro de fábula infantil isso
seria mais fácil de encontrar. Mas de fato, há quinhentos anos atrás, os navegantes
portugueses temiam se deparar com criaturas ultramarinas. Portanto, me faz pensar.
O que nossos mapas dizem de nós hoje? Quais são os espaços que são permitidos
ocupar? Quais são os movimentos de deslocamentos possíveis? Estão nossos
sonhos nos mapas? Estão nossos medos nos mapas? Nós somos nossos mapas.
Através de linhas estamos representados.
O livro é um resíduo dos acontecimentos, uma estratégia a fim de suprimir a
ausência da ação depois de ocorrida. A efemeridade da ação transforma-se na ação
de paginar o livro fotográfico. É uma tentativa de subsistir a experiência vivida por
mais tempo, e conseqüentemente, entrar em dialogo com as produções e práticas de
outros artistas e pessoas
350 art uerj III semana de pesquisa em artes
4 - Considerações finais
A arte de ação contrapõe o conceito de representação realista e a idéia de
uma representação acabada. A arte, de um modo geral, fazia uso da fotografia como
simples instrumento de segunda mão (documental, registro) que por sua vez em
seguida passa a integrar a criação como elemento fundamental para concepção
da ação artística, e logo, a arte impregna-se com a lógica fotográfica; e por fim,
invertendo os papeis dando à fotografia o status de obra.
Entretanto, a ação funciona como o centro emissor da pontecialidade artística
da obra, mas aglomerado a esse pólo de força, encontra-se tudo que atravessa a
obra, como os registros textuais e fotográficos, as críticas, e em alguns casos, os
boletins policiais. Os desdobramentos que a obra provoca criam uma névoa que
fortalece obra, entretanto, estes desdobramentos geram a indefinição do que seja a
própria obra. . De algum modo, essa “poeira” pertence ao “núcleo”, e este se mantêm
forte pela presença da vizinha enevoada.

AoLeo Memória de
Outono – Folhas
secas de amendoeira
enroladas ao corpo (Av.
Rio Branco mar-09

351 art uerj III semana de pesquisa em artes


A desmaterialização do objeto artístico implica na tensão entre resíduo e
registro. A distinção entre ambos não deve ser baseada em valores hierárquicos.
O registro tem como finalidades a captura do instante e proporcionar certo nível de
descrição da ação. Os resíduos são fragmentos do acontecimento, são potencias do
movimento e da ação, na mesma medida que os objetos resultantes são partes da
extensão da ação transcorrida – a descrição do percurso enquanto atualização da
objetividade do acontecimento.
O resíduo proporciona materialidade à ação, enfatizando a densidade do
processo criativo. Portanto, a totalidade do projeto envolve a realização dos quatro
atos-percurso, que consequentemente, resultam na criação de um livro fotográfico, o
resíduo da ação.
Portanto, o que procuro afirmar, é a possibilidade em desmaterializar o objeto
artístico, e em paralelo, criar desdobramentos de uma ação, agregando outros
valores artísticos que o efêmero não produz. O livro fotográfico é a valorização das
ações per si e a estratégia que procura escapar da imaterialidade da criação artística
contemporânea.

Notas
1 O`DOHERTY, Brian. – No interior do cubo branco: a ideologia do espaço da arte; trad Carlos S.
Mendes Rosa. – 1ª ed. – São Paulo: Martins Fontes, 2002.
2 DUBOIS, Phillippe – O ato fotográfico e outros ensaios; trad. Marina Appenzeller. – Campinas SP:
Papirus, 1993.
3 KRAUSS, Rosalind E. “A escultura no campo ampliado”. In: Gávea- revista do curso de Especialização
em História da Arte e Arquitetura no Brasil, nº1. Rio de Janeiro: Pontifícia Universidade Católica.
4 CARVALHO, Flavio de – Experiência número 2, São Paulo: Nau Editora, 2004.
5 LIGIÉRIO, Zeca – Flavio de Carvalho e a rua: experiência e performance. O percevejo, revista de
teatro, critica e estética. Programa de Pós-Graduação em Teatro UNI-RIO.
6 DUBOIS, Phillippe – O ato fotográfico e outros ensaios; trad. Marina Appenzeller. – Campinas SP:
Papirus, 1993.
7 CALVINO, Ítalo - Cidades invisíveis. Cia. das Letras, 2000.
8 FERREIRA, Glória; COTRIM, Cecília (org.) – Escritos de Artistas: anos 60/70, trad. Pedro Sussekind,
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 2006

352 art uerj III semana de pesquisa em artes


III semana de pesquisa em artes
10 a 13 de novembro de 2009 art uerj
processos artísticos contemporâneos

Situações limítrofes

Luana Aguiar

Bacharelado em Artes Visuais – Instituto de Artes – UERJ

“Hiperventilação”, “Homenagem ao Olho” e “Como evitar a morte” são práticas performáticas


de minha autoria que confrontam corpo e matéria e evocam situações limítrofes. São ações
que desafiam a necessidade primeira do homem: a respiração. A finalidade desta comunicação
é traçar relações entre o pensamento materialista de Georges Bataille, filósofo do surrealismo,
e minhas práticas artísticas.

Bataille; performance; Informe.

“Hyperventilation”, “Tribute to the Eye” and “How to avoid death” are performance practices of
my own that confront body and matter and evoke threshold situations. These are actions that
defy the first necessity of man: the breath. The purpose of this communication is to draw links
between the materialistic thought of Georges Bataille, philosopher of surrealism, and my artistic
practices.

Bataille; performance; Formless.

Aqueles que têm a noção da completa insignificância do ser humano diante do


universo recebem a minha admiração. O Homem ideal já não existe há tempos, se é
que ele existiu de fato ou foi produto da sua própria imaginação. Georges Bataille é
um dos que colocam o homem em seu devido lugar: um lugar desconhecido, muito
longe dos céus e de crenças vazias que servem apenas para tornar a vida suportável
e postergar ao máximo a morte.

353
Bataille e o surrealismo
O pensamento racional era o maior inimigo das vanguardas dadaístas e surrealistas
no contexto destrutivo da I Guerra Mundial. O que aqueles artistas pretendiam era se opor
à velha atribuição de identidades às coisas como forma de ordená-las, ou seja, pretendiam
atacar a maneira racional de enxergar o mundo sob modelos universais.
O movimento surrealista tem como base a desordem proclamada pelos
dadaístas, aliada ao poder do inconsciente descoberto por Freud. Existem, no entanto,
diferenças fundamentais entre o surrealismo de Bataille e o de André Breton. Segundo
Eliane Robert Moraes, Breton idealizava a figura da mulher, defendia passionalmente
o amor e visões sublimadas da realidade e buscava ultrapassar os horrores da
guerra com uma utopia redentora. Em contrapartida, Bataille, através da bestialidade,
propunha sustentar o insustentável e pensar o impensável. As imagens bestiais deste
é o que ele próprio chama de matéria baixa e que faz deslocar a atenção do sujeito de
um mundo ideal para o mundo cruel de vivências reais que se apresentam à sua volta.
Bataille e Breton ultrapassam os limites impostos pela razão, mas o primeiro
percebeu em Breton um surrealismo disfarçadamente idealista.
As revistas Documents e Minotaure (cujos responsáveis são respectivamente
Bataille e Breton) divulgam a partir da década de 30 imagens monstruosas referente
à sacrifícios, torturas e assassinatos, que representariam, além de uma reação à arte
fascista da época, uma tentativa de refletir sobre tudo que suscita o mal no homem
e uma referência à literatura libertina de Marquês de Sade. “O romance de Sade
oferece um sistema de pensamento que desafia a concepção de mundo proposta
pelos dois principais campos filosóficos no contexto da França pré-republicana:
o religioso e o racionalista”.1 O posterior interesse dos surrealistas pelas idéias
libertárias e permissivas de Sade foi também motivado pelo testemunho dessa
geração às atrocidades ocorridas durante a Primeira Guerra e em diante.
Bataille acredita no papel da crueldade em Sade para a consciência do homem
de que ele é o próprio responsável por sua revolta e Breton também acredita na lucidez
sadiana sobre as forças que agem no homem e no princípio do mal que reside em cada
um. Eliane Robert ressalta que esse princípio está na origem do desejo e que a potência
do desejo para Sade está relacionada à violência. Ela completa com as idéias de Michael

354 art uerj III semana de pesquisa em artes


Leiris nas quais a partir do pensamento sadiano é possível intensificar a consciência
humana, ir fundo na dor com a intenção de atingir a unidade mais profunda do homem.
Eliane Robert acredita que a maior afinidade entre os artistas envolvidos com a
Documents e Minotaure era a consciência radical do corpo, de forma a afirmar a vida
humana sem confiná-la a uma forma fixa e sem destruí-la por completo. O comentário
de Rosalind Krauss sobre a desordem dadaísta pode esclarecer alguns aspectos
sobre o modo como essa consciência do corpo repercute na relação sujeito-obra:

(...) se uma estrutura ordenada é o meio de dotar de intelegibilidade uma


obra de arte, uma quebra de estrutura é o modo de alertar o observador
quanto à futilidade da análise. É um meio de estilhaçar a obra como
reflexo das faculdades racionais do seu observador, um meio de turvar a
transparência entre cada superfície do objeto e seu significado, tornando
impossível ao observador reconstituir cada um de seus aspectos por
intermédio de uma leitura única e concordante. (KRAUSS, 1998, p.128)

História do Olho, novela de Bataille publicada originalmente em 1928 como


sendo a introdução do escritor no mundo literário, exemplifica bem essa operação
descrita por Rosalind Krauss, que também se aplica ao surrealismo. A novela surgiu
a partir da recomendação do psicanalista de Bataille para que ele expressasse na
escrita suas fantasias obscena e obsessões do passado. E assim, História do Olho
é uma ficção, porém, conduzida por reminiscências autobiográficas do autor, como a
presença da figura do seu próprio pai, cego e paralítico, na narrativa. Ainda segundo
Eliane Robert Moraes:

(...) uma vez vislumbrada a possibilidade ‘libertadora’ de transformar a


substância da vida em matéria textual, o autor podia dar curso livre aos
excessos de sua imaginação, realizando no plano simbólico as estranhas
exigências que o atormentavam. Essa descoberta – que está na origem
de História do Olho – abriu para Bataille os caminhos de uma escrita
sem reservas. (MORAES, 2003, p.10)

355 art uerj III semana de pesquisa em artes


Segundo Roland Barthes, em História do Olho, “objetos aparentemente
longínquos vêem-se aprisionadas numa cadeia metafórica”.2 Nessa cadeia participam
o olho (globo ocular), o ovo, o testículo, e outros elementos que evocam formas
brancas e globulares. Barthes diz que na História do Olho, Bataille descreve “a
migração do olho rumo a outros objetos e, por conseguinte, rumo a outros usos
que não o de ver”.3 Esse processo metafórico pode ser entendido como a adesão à
imagem surrealista, isto é, aquilo que une elementos distintos com a finalidade de
provocar um turbilhão de significados. A formação da imagem surrealista é resultado
da projeção dos desejos do autor de forma a estimular as projeções do observador.
É um processo de construção de significados que vai além do intelecto, que usa o
desejo irracional do homem.
O homem, imerso num mundo de transformações e de caos, já teve seu
intelecto desmistificado por Nietzsche que afirma: “Todo conceito nasce por igualação
do não-igual. Assim como é certo que nunca uma folha é inteiramente igual a uma
outra, é certo que o conceito de folha é formado por arbitrário abandono dessas
diferenças individuais, por um esquecer-se do que é distintivo (...)”4 é nesta oposição
ao mundo dos conceitos que reside a condição do Informe descrita por Bataille.
O Informe é aquilo que busca desestabilizar o princípio organizador da forma.
Entende-se por forma, neste caso, tudo o que se relaciona à ordem e que se opõe ao
caos presente na natureza. Enquanto um verbete de um Dicionário Crítico escrito por
Bataille, a palavra Informe buscaria dar sentido a algo, ou seja, estaria ligada a um
princípio organizador, conceitualizador. Mas esse algo a que o verbete dá sentido vai de
encontro ao mundo dos conceitos, por isso informe é entendido como um anti-conceito.
Clément Rosset afirma que “a história da filosofia ocidental abre-se por uma
constatação de luto: a desaparição das noções de acaso, de desordem, de caos”5.
Ele coloca que o pensamento ocidental deu mais atenção à metafísica do que tentou
compreender o que existe, como uma espécie de fuga à matéria, como se ignorasse
a coisa real para dar atenção às identidades atribuídas às coisas. O que Bataille
propõe é dar atenção exatamente à matéria própria dessas coisas, é uma oposição
a um mundo de conceitos e formas fixas e por isso no verbete Informe ele afirma que
“o universo não se parece com nada”6. Para Bataille, que já encontrava em Nietzsche

356 art uerj III semana de pesquisa em artes


e Sade as sementes do seu materialismo, “a matéria baixa é exterior e estranha
às aspirações humanas ideais e recusa deixar-se reduzir às grandes máquinas
ontológicas que resultam dessas aspirações.”7
Nos anos 90, a exposição L’Informe: mode d’emploi, realizada no Centre
Pompidou, Paris, com curadoria de Rosalind Krauss e Yve-Alain Bois, trazia uma
releitura do modernismo através do Informe de Bataille e marcava um repúdio à
hegemonia formalista de Greenberg. Segundo Bois, “no projeto de Bataille, que ele
chama ‘ateológico’ ou ‘escatológico’, o Informe é algo como um princípio primeiro que
define aquilo que é excluído da metafísica ocidental. O informe é entendido como algo
que vai desfazer categorias.”8 É importante frizar, no entanto, que Bataille se opõe
mas não nega o suporte oferecido pela razão: “Só a razão tem o poder de desfazer a
sua obra, de destruir o que ela edificara (...) Sem o apoio da razão nós não atingimos
a ‘incandescência sombria’” 9

Meu processo de trabalho: três situações limítrofes


“Hiperventilação”, “Homenagem ao Olho” e “Como evitar a morte” têm
em comum, além da presença do corpo e da minha própria imagem, de forma a
confrontar objetos na cor branca, o desafio ao ato de respirar: a necessidade primária
do homem, aquilo que é seu primeiro sinal vital. A resistência do corpo à falta de ar é
a mínima possível e me interessa investigar nesses trabalhos como o corpo reage a
tal princípio desafiador, afinal ele, o corpo, não deseja morrer.
“Hiperventilação”, 2008, foi o primeiro trabalho desta série que desafia
a respiração. Ele foi pensado primeiramente como forma de aglutinar pintura e
performance e como uma maneira de pintar sem usar as mãos. Para a ação eu
utilizo uma mesa, uma cadeira e sobre a mesa um suporte rígido branco, um pote
de tinta branca, uma colher e um saco de papel. A ação inicia quando eu me sento
e com a colher passo toda a tinta do pote para o suporte rígido, formando uma
espécie de monte. Em seguida começo a respirar e assoprar com força crescente
o monte de tinta, até que ele vá se espalhando pelo suporte. A excessiva excreção
de gás carbônico causa um desequilíbrio do grau de acidez do sangue, o que gera
formigamento e endurecimento das extremidades do corpo. O desmaio seria a

357 art uerj III semana de pesquisa em artes


Luana Aguiar.
Hiperventilação, 2008.
Performance

próxima reação do organismo a esse desequilíbrio e para driblar a reação do corpo


eu respiro dentro de um saco de papel que ajuda repor a pressão de gás carbônico.
Antes de executar a ação eu deixo um amigo de sobreaviso caso eu de fato desmaie.
“Hiperventilação” foi o primeiro trabalho que me fez pensar na sensação
de quase morte. A partir dele eu fiz a escolha de que provocar essa sensação de
vertigem, tanto em mim quanto no público, seria o caminho da minha pesquisa
artística. É o que eu passei a chamar de situação limítrofe.
Havia em mim no momento uma grande curiosidade sobre os processos internos
do corpo submetido a uma situação limítrofe. Eu formava imagens mentais sobre como
seria um sangue mais ou menos ácido, como esse sangue chegaria ao cérebro e o que
aconteceria a partir de então. Essa curiosidade foi estimulada por um contato real com

358 art uerj III semana de pesquisa em artes


pedaços de órgãos em uma clínica patológica que eu visitei algumas vezes, na qual
trabalhava uma grande amiga. Fiz muitas imagens e até pintei algumas dessas “peças”,
dentre elas fetos, placentas, pedaços de úteros, intestinos, fígado. Percebi o quão
distante estamos dessa realidade interna, e o quanto ignoramos essas imagens. Eu
pude experimentar uma sensação de vertigem muito parecida com aquela provocada
em “Hiperventilação”: uma vertigem que anunciava a morte.
Esse contato com o corpo humano a partir de dentro, a presença, o cheiro, a
visão do manuseio das “peças” foi fundamental para mim. Eram “peças” mortas, mas
imagens vivas, reais (se comparadas com fotografias, por exemplo). E de alguma
forma eu associo esse mistério do interior do nosso corpo com o mistério da própria
morte. E assim a vertigem de ver esse mundo interno está intimamente ligada ao
medo de morrer.
A partir daí, o meu contato com a literatura bestial e escatológica de Bataille
só veio a confirmar a escolha desse caminho para minha pesquisa artística. A
performance “Homenagem ao Olho”, 2009, é uma referência à História do Olho
de Bataille. O trabalho foi primeiro concebido como foto e vídeo-performance e
posteriormente foi apresentado em espaço urbano, no Largo do Machado, Rio de
Janeiro. Era uma manhã fresca de sábado e céu nublado. Enchi um balão branco e
observei o espaço, até que escolhi um local específico para me posicionar e dar início
à ação. Fiquei de pé no centro do local da praça escolhido, onde havia um número
considerável de passantes. Eu, com os olhos fechados e braços esticados, seguro
o balão branco nas mãos. Lentamente levo o balão em direção ao rosto, ele toca
o nariz, e passo a pressioná-lo contra o rosto até chegar ao limite do sufocamento.
Afasto o balão ainda lentamente e em seguida o largo no chão.
Terminada a ação, observei que uma feira livre acontecia ao lado. Pensei em
repetir o trabalho no meio da feira, interferindo diretamente no deslocamento das
pessoas, e assim o fiz.
O primeiro título deste trabalho era “O Grande Seio”, mas no ato de pressionar
o balão ele se deformava, e o que eu chamava de seio e em alguns momentos
pensava em barriga, se tornava um ovo. Fascinada por essa mutação das formas,
intitulei o trabalho de “Homenagem ao Olho”, uma referência à história de Bataille

359 art uerj III semana de pesquisa em artes


que fala da obsessão sexual de uma personagem por ovos e olhos, formas brancas e
globulares que percorriam a narrativa.
Apresentar esse trabalho no espaço urbano foi uma experiência desafiadora. De
olhos fechados naturalmente não pude perceber a reação dos passantes. Parada no
meio do relativo vazio da praça eu me sentia vulnerável. Na feira essa sensação era um
pouco menor porque eu sentia o calor das pessoas passando ao meu lado, esbarrando
em mim e os sons eram também muito próximos. Foi através dos vídeos que percebi o
estranhamento provocado nas pessoas. Vi que muitos passantes não acompanharam o
momento do sufocamento, mas todos eles pareciam se perguntar o que era aquilo.
A experiência foi muito rica, mas percebi que o trabalho não se dava por
completo em um público disperso. Ele exige certa proximidade, que é mais bem
alcançada através das fotos. Em “Como evitar a morte”, 2009, eu aposto nessa
proximidade através do vídeo em plano fechado dos meus ombros ao rosto. A vídeo-

Luana Aguiar.
Homenagem ao olho,
2009. Performance

360 art uerj III semana de pesquisa em artes


Luana Aguiar. Como
evitar a morte, 2009.
Vídeo-performance

361 art uerj III semana de pesquisa em artes


performance foi filmada em ambiente interno interferido por sons externos (pessoas
falando, buzina de carros, etc.). A ação dura menos de dois minutos e começa
quando coloco um pedaço de algodão em uma das narinas, e em seguida na outra
de maneira a deformar o nariz. Logo depois coloco na boca um pedaço bem maior e,
percebendo que ainda não é o suficiente para tapar a respiração, coloco mais até que
eu fique de fato sufocada. Resisto alguns momentos com um pouco de dificuldade e,
dispensando o uso das mãos, expiro forte, me liberto do algodão das narinas e em
seguida cuspo furiosamente o da boca. Revivo.
Em “Como evitar a morte” eu evoco o costume de colocar algodão nas narinas
e na boca dos cadáveres, porém trata-se de um corpo vivo que quer testar a morte
e não de um corpo morto no qual se quer impedir a saída de fluídos. É um trabalho
onde eu decido encarar o espectador ou tornar-me um reflexo dele. E esse embate
substitui, em certa maneira, a presença física do meu corpo em “Hiperventilação” e
“Homenagem ao olho”.

Considerações finais
Penso na arte como meio pelo qual o homem se permite tudo, inclusive morrer.
Meu interesse é abrir uma brecha no tempo para essa experiência de morte. É intrigante
observar que a morte é sem dúvida o fato mais natural ao homem e aquele mais difícil de
encarar, o mais doloroso. Me interessa essa dificuldade em encarar a morte em última
instância, mas também as outras coisas que podem remeter subliminarmente a ela, como
a idéia do grotesco nos pedaços de órgãos por exemplo. E esse grotesco, que representa
uma ofensa aos sentidos, pode estar relacionado à idéia de transitoriedade, à ação do
tempo sobre as coisas, o que nos faz lembrar a nossa condição perecível, portanto,
mortal. Isso explica a vertigem provocada pela visão dos órgãos.
Para Bataille é na morte que se percebe a dilaceração da natureza humana.
Enquanto vivos nos contentamos com um compromisso, uma realidade comum, “o eu
que morre abandona este acordo: ele verdadeiramente percebe o que o circunda como
um vazio; o eu que vive limita-se a pressentir a vertigem onde tudo acabará.”10 Esse ponto
remonta à lucidez sadiana e o papel da crueldade para o sujeito que deseja adquirir uma
maior consciência de si. Talvez seja essa a minha busca, ou seja, essa crueldade na

362 art uerj III semana de pesquisa em artes


busca pela morte através das situações limítrofes pode ser pensada, à luz de Bataille,
como algo que de fato não é cruel, “mas é sempre um desejo de destruir”11, ele diria.
Acredito que essa destruição é muito menos da vida do que de um corpo
condicionado e fixado em modelos. E neste ponto reside a aproximação do meu
trabalho com o Informe batailleano, pois é na morte que o corpo vai se destituir
de qualquer categoria. O corpo morto abandona o nome, o sexo, a nacionalidade,
e torna-se apenas matéria. É a evocação desse corpo morto que me interessa e
Bataille é para mim um ponto de partida.

Referências bibliográficas
BATAILLE, Georges. A Experiência Interior. Tradução de Celso Libânio Coutinho et ali. São Paulo: Editora
Ática, 1992
_________. La Felicidad, El erotismo y la literatura: Ensayos 1944-1961. Buenos Aires: Adriana Hidalgo
Editora, 2002.
BARTHES, Roland. A metáfora do olho. In: História do Olho: Georges Bataille. São Paulo: Cosac Naify, 2003
MORAES, Eliane Robert. O corpo impossível. São Paulo: Iluminuras, 2002
MORAES, Eliane Robert. Um olho sem rosto. In: História do Olho: Georges Bataille. São Paulo: Cosac
Naify, 2003
NIETZSCHE, F. Sobre a Verdade e a Mentira no sentido Extra-Moral. São Paulo: Nova. Cultural, 1987
ROSSET, Clement. Lógica do pior . Trad. Fernando J. F. Ribeiro e Ivana Bentes. Rio de Janeiro: Espaço e
Tempo, 1989.
SEDOFSKY, Lauren. Down and dirty. Form in modernist art. Interview with curators Rosalind Krauss
and Yve-Alain Bois. ARTFORUM, Junho de 1996
SERRAVALLE DE SÁ, Daniel. O Marquês de Sade e o Romance Filosófico do Século XVIII. Revista
Eutomia, ano 1, número 2, dezembro. Pernambuco: EDUFPE, 2008, pp. 362-377

Notas
1 SERRAVALLE DE SÁ, 2008, p.362
2 BARTHES, 1964, p. 118
3 Ibid, p. 116
4 NIETZSCHE, 1873, p. 48
5 ROSSET, 1989, p.13
6 Apud, MORAES, 2002, p.198
7 Ibid, p. 203
8 BOIS, 1996
9 BATAILLE, 1944, p. 53
10 BATAILLE, 1944, p.77
11 id, 1949, p.121

363 art uerj III semana de pesquisa em artes


III semana de pesquisa em artes
10 a 13 de novembro de 2009 art uerj
processos artísticos contemporâneos

Primeiro ato do artista: Performance e Literatura

Mariana Maia

Mestrado em Artes Visuais – PPGArtes – UERJ

Texto, imagem e corpo se congregam e fazem surgir diversas propostas artísticas. O presente
artigo tece questionando sobre a confluência do texto, da imagem e do corpo no contexto
performático; tendo a compreensão da Narrativa como fio que perpassa essa relação.
Estabelecendo relações entre a Literatura, as Artes cênicas e as Artes visuais, alvitrando
perceber o lugar do artista-performer.

Performance; Literatura; Narrativa.

Text, image and body congregate together and bring artistic proposals. The present article
question the confluence of text, image and body in the Performance Art, understanding
Narrative as a thread that permeates this relationship. Establishing relations between Literature,
the Theater Arts and Visual Arts, opining the place of the artist-performer.

Performance Art; Literature; Narrative.

Estas páginas fazem parte de uma série de estudos sobre “as artes de si mesmo”...1

Era uma vez, ou apenas foi, ou é, o princípio de uma narrativa, que, no entanto,
é também o fim. Saturno é o deus dos camponeses, também é Cronos, aquele que
empunhou a foice contra o pai. O destino é implacável mesmo para os deuses, pois
o Céu Estrelado, pai de Cronos, perece, não mais pode fecundar, e em uma noite
solar o filho tomou a grande tarefa do pai, temer seus próprios filhos, seus atos, o
destino inelutável. O oráculo desvenda o tecer das Moiras, irrevogável. A verdade

364
Saturno. Goya,
Francisco. Óleo sobre
muro, 146 x 83 cm,
c. 1820-1823, Museu
do Prado, Madri
(Espanha).

orácular nos mostra um destino inevitável, mas também mostra que o destino pode se
dar a ver. Sobre as verdades pronunciadas pelo oráculo são todas as obras de arte.
Saturno devora um filho. A criatura é decrépita se precipitando à morte, é também
disforme e agigantada. Ele segura com todas as forças algo que se assemelha a
um corpo humano. Dilacera com os dentes. Não é o ódio ou a fúria que move o
seu ato. Saturno tem medo no olhar, de fato, ele parece apavorado. O que deixaria
um deus titânico apavorado? Saturno não é divino, mas sim um velho, já cruzando
365 art uerj III semana de pesquisa em artes
o rio Estirpe; um velho com olhos esbugalhados de medo. Cronos, o tempo, nos
persegue desde o nascimento até a morte. Saturno devora seus filhos por medo
da morte e seus filhos jazem, fadados ao tempo, cronos, aquele que empulha a
foice. Condenados à morte, a mercê de forças titânicas, buscamos conhecimento. O
homem procura entender a vida, a existência, por medo, talvez, da morte.

Aqui, neste supremo perigo da vontade, aproxima-se, como uma


feiticeira salvadora, com seus bálsamos, a arte; só ela é capaz de
converter aqueles pensamentos de nojo sobre o susto e o absurdo da
existência em representações com as quais se pode viver: o sublime
como domesticação artística do susto e o cômico como alívio artístico do
nojo diante do absurdo....2

Nietzsche3 acredita que na Antiguidade os mitos olímpicos eram uma forma


dos gregos produzirem conhecimento sobre o mundo. Os mitos eram uma forma de
representar e entender o mundo que os cercava. A mitologia se mostra como uma
forma dos gregos aceitarem a existência, que se mostrava ou ainda se mostra por
vezes efêmera e precária. Os mitos figurados através das tragédias nos grandes
anfiteatros gregos proporcionavam o apaziguamento em relação ao medo da
existência. As histórias mitológicas davam explicações para os fenômenos naturais,
até então incompreensíveis para o homem; proporcionava maior tranqüilidade
ao espírito. No entanto, mais do que isso, Nietzsche nos fala que a fruição da
tragédia, ou seja, assistir e participar do teatro proporcionava essa sensação de
apaziguamento aos medos. O escape ao pêndulo da existência através da arte,
apontado por Schopenhauer4, é visto por Nietzsche na Antiguidade Grega. O coro
do Ditirambo, parte integrante do teatro na Antiguidade grega, será o agente capaz
de levar o homem ao que Nietzsche chama de uma experiência dionisíaca. Os ritos
a Dionísio ou Baco, deus dos festejos, do vinho e da embriagues, transformados em
tragédia, onde o coro faz com que diversas vozes e egos passem a ser um, permite
ao homem grego escapar aos sofrimentos causados pelo peso da existência. Quando
o homem deixa de ser um e passa a ser um todo, através do coro, penetra no êxtase

366 art uerj III semana de pesquisa em artes


dionisíaco, onde não há o pesar da vida; onde escapamos da fome insaciável de
Cronos. Freud5 aponta a arte como uma fuga às frustrações para o homem civilizado.
No instante da contemplação da obra de arte ou, de forma ainda mais intensa,
no momento do fazer artístico, o homem se desvincula da dor e das frustrações
infringidas pela existência, onde tudo parece sempre gerar frustrações. O que dizer,
portanto, de uma linguagem artística que propõe o próprio artista como arte?

O homem não é mais artista, tornou-se obra de arte: a potência estética


da natureza inteira, para a máxima satisfação do Um primordial, se
revela aqui sob o estremecimento da embriaguez. A argila mais nobre, o
mármore mais precioso, o homem aqui é moldado e trabalhado...6

O coro do Ditirambo, através do êxtase, transforma um em todo, o que parece


apontar o artista, o ator grego, como a própria arte. No coro o homem se faz objetivar
na voz uníssona do todo. O ator não representa um personagem, ele se desfaz
de sua individualidade e se torna um todo com as outras vozes do coro. Corpos e
Vozes, no coro grego, parecem evocar a imagem ao se mesclarem em um todo. Na
Performance, de forma semelhante ao coro do Ditirambo, o artista-ator-performer irá
deixar de ser um ente individual para se tornar visualidade.
A importância dada ao coro satírico por Nietzsche aproxima Filosofia e Artes
cênicas. Através da tragédia o homem grego atingiu “verdades” sobre o mundo que o
cercava. O conhecimento sobre o mundo é dado pela vivencia dos mitos trágicos. A
contemplação da arte nas tragédias gregas parece estar distante do que se conhece
por teatro hoje nos espaços teatrais comerciais, talvez esteja mais próxima do que
seria uma Performance. O homem grego passava dias e dias sobre o sol assistindo
um espetáculo imenso onde os atores atuavam em honra a Dionísio, tentando aplacar
o medo do destino, um ritual que envolvia público e atores. Pensando o quanto à
tragédia parecia ser vital para o homem grego, enquanto forma de vivenciar os mitos,
que pautavam a vida grega; pensemos nas origens da Performance, que para Cohen7
remonta a live art, onde arte e vida estão próximas.

367 art uerj III semana de pesquisa em artes


Tomemos como ponto de estudo a expressão artística performance,
como uma arte de fronteira, no seu continuo movimento de ruptura com
o que pode ser denominado “arte-estabelecida”, a performance acaba
penetrando por caminhos e situações antes não valorizados como arte.
Da mesma forma, acaba tocando nos tênues limites que separam vida e
arte.8

A Performance, para Cohen, parece se estabelecer na fronteira das Artes


Visuais e das Artes Cênicas, por esse estabelecimento fronteiriço ela propõe
uma ruptura com os cânones artísticos, com o que estava estabelecido quando
de seu surgimento. As propostas performáticas engendram por meandros até
então inexplorados, tanto para as Artes Visuais, quanto para as Artes Cênicas. A
possibilidade de propor atos, que não passam só pela interpretação, mas que se
relacionam com a visualidade. A obra deve ser vivenciada e não apenas contemplada
ou sentida. A Performance parece ser a live art com um caráter mais cênico. A live art
que aproximava arte e vida dando ênfase no acaso em detrimento do ensaiado.
Corpo no espaço, palavras que ressoam, formas, cores e cheiros que
perpassam os participante. O grande rito de Dionísio. Falamos de teatro, talvez?
Performance aborda sobretudo – atuação. Faz necessário portanto definir o que é
Atuação e em como essa se relaciona com a Literatura através da Narração.
Os gregos antigos tinham seus Atos, que estavam, sobretudo, ligados a vida.
O Ditirambo, posteriormente, a tragédia, eram vitais. Ritos aos deuses, rogavam por
uma explicação da existência precária. Atuar não era privilégio dos “atores”, mas
todos presentes no local sagrado das representações participavam do rito e atuavam
no rogo, em dias e dias de representação, embaixo de sol, assistindo ao grande
desfilar das formas e cores que compõem a vida. Cohen propõe que a noção de
atuação será o diferenciador da Performance para as Artes Cênicas. Na Atuação há
um abandono da interpretação, por conseguinte, um abandono da cena ligada a uma
apreensão ilusionista do mundo. Atuar na Performance parece significar colocar em
ação proposições, encandear imagens formando uma certa narração.
Benjamin9 define narrar como o ato de passar experiências de uma pessoa

368 art uerj III semana de pesquisa em artes


Série Entreato,
Performance, 2009,
IFRJ.

para outra, possuíndo mesmo uma função utilitária, que consistiria em um ensinar
algo. Podemos perceber esses ensinamentos do ato de narrar como sendo
proposições de “verdade” sobre a existência. Nesse contexto podemos situar os mitos
trágicos. Benjamin ainda coloca que hoje as narrações não tem mais importância,
pois a sociedade atual dá ênfase a informação. Na Performance não parece haver
uma preocupação em informar, mas sim, propor questões dentro de um ato calcado
na narração.
Nas tragédias o destino do homem é narrado de forma visceral. Descobrimos
o que significa desafiar os deuses, ou o que acarreta a tentativa de abarcar a vida.
O homem vai de encontro ao seu destino. Ele só pode seguir a narração que o
destino lhe impõe, revelado pelos oráculos, revelado pelas histórias trágicas. Através
das narrações sabemos exatamente por onde vamos. O Ato de Narrar é a grande
revelação que potencializa a vida.
369 art uerj III semana de pesquisa em artes
A imagem é um quadro de vídeo realizado durante Performance em maio de
2009, na IFRJ. A performer entra vestida de preto enquanto um vídeo era projetado
na parede e uma roupa toda branca de onde saiam fios brancos estava depositada no
chão. O vídeo projetado mostrava uma imagem sem foco de uma mão que escrevia
alguma coisa. Nas roupas brancas pendiam fios e papeis com escritos. A performer
vestiu a roupa branca, distribuiu os fios para o público, ficando emaranhada na rede
que se formou; depois dava prosseguimento a ação de retirar os papeis e lê-los um a
um; findando os papeis ela desfez a rede de linhas e saiu do espaço de exposição.
A escrita é o personagem que permeia esse ato performático. De que forma
escrever, ler e ouvir pode significar performar, isto é, dar forma às coisas do mundo,
criando imaginários e estabelecendo uma narrativa. Escrever, ler e ouvir, atos, o
estabelecimento de um ritual imagético. Nesta proposta a Literatura se constitui no
limite com a Visualidade. Quando Joseph Kosuth realiza a obra “Uma e três cadeiras”,
em 1965, também ele caminhava pelos limites entre Literatura e Visualidade.

... a validade das proposições artísticas não é dependente de qualquer


pressuposição empírica, muito menos de qualquer pressuposição
estética acerca da natureza das coisas. Pois o artista, como um analista,
não se preocupa diretamente com a propriedade física das coisas. Ele
se preocupa apenas com o modo (...) as proposições de arte não são
factuais, mas lingüísticas, em seu caráter – isto é, elas não descrevem o
comportamento de objetos físicos nem mesmo mentais; elas expressam
definições de arte, ou então as conseqüências formais das definições de
arte.10

Neste texto Kosuth procura faz considerações acerca da acepção estética


dos objetos, pensando o que ficou conhecido como Arte Conceitual. O que
mais nos interessa nessa fala é a associação do fazer da arte com uma tomada
metalingüística. Arte se ocupa de falar, sobretudo, de arte. No trecho ele aparece
perceber que a fatura dos objetos não é o mais importante, mas sim a arte estar em
ato. Fazer arte parece significar propor atos que falem sobre o que é a arte. “Uma e

370 art uerj III semana de pesquisa em artes


três cadeiras” não é propriamente um objeto feito pelo artista, mas sim um trabalho
em ato, uma ação do artista em torno do que significa a arte. “Uma e três cadeiras”
se estabelece exatamente no limite da linguagem literária e imagética, na medida
em que coloca no mesmo patamar a definição do dicionário e da imagem cadeira. A
cadeira é o que se diz que é uma cadeira ou é a imagem?
Emaranhada na rede do conhecimento procuro entender qual é o saber da
arte. Seria a fabricação de objetos? Ou a arte para mim estaria no ato. Os objetos,
as coisas do mundo como forma de ligação com o “outro”, público. Neste trabalho o
“objeto” é a própria escrita, que ganha visualidade na fala e na roupa da performer.
O trabalho que segue proposto a partir das correspondências entre Hélio Oiticica
e Lygia Clark evidenciam essa busca pelo entendimento da obra de arte em seu
relacionamento com o “outro” público.
A saia utilizada na performance se torna à personagem principal da ação. Ou,
talvez, seria a relação dela com as personagens-público que é a persona almejada?
Agora percebo os objetos do mundo dotados de teatralidade. Eles têm vida própria e
desencadeiam ações. Os objetos animam os corpos.
Penso aqui a performance como um ato narrativo. Não excluindo as diversas
formas de acontecimento performático, mas propondo um olhar sobre as questões
suscitadas por essa linguagem tão plural. A performance parece ter duas origens
distintas, uma ligada as Artes Visuais e outra ligada ao Teatro. Proponho pensar
essas duas origens de forma concomitante. Ato e Narro, como ações que possibilitam
estabelecer noções do que seria uma produção dada pela confluência das linguagens
do Teatro, Literatura e Artes Visuais. Não é objetivo, aqui, situar a performance nas
diferentes linguagens, mas sim, pensar uma produção que eclode da justaposição de
elementos que perpassam diferentes linguagens.
Existo enquanto multiplicidade. A performance só tem a sua existência
possível no múltiplo. A contemporaneidade é povoada pela contaminação, o que
parece ser, ainda, uma reação ao mito da pureza. A performance está contaminada,
sobretudo, por vida; essa é a sua ligação possível com a tragédia da antiguidade
grega. Os mitos trágicos são uma forma de conhecer a existência. O atuar e o
narrar da performance é uma forma da existência ser a arte, enquanto essência. O

371 art uerj III semana de pesquisa em artes


Série Entreato, Objeto
performático, 2009,
UERJ e ENEARTE/
EBA - UFBA.

372 art uerj III semana de pesquisa em artes


destino atormentado do homem não é tema como no mito da antiguidade. O que a
contemporaneidade propõe não é a mesma coisa que o ocorrido na Antiguidade. A
performance não propõe a existência como tema, mas como meio. O existir, múltiplo,
trágico ou cômico, fragmentado; é o que compõe a atuação e a narração presentes
na linguagem da performance. Atuar e Narrar significam estabelecer a ligação da
arte com a existência, a tentativa de ter alguma verdade, sabendo a priori que é uma
mentira em meio aos destroços da “verdade”, sabendo que é, talvez, a única verdade
possível desde o nascimento até a morte.

Referências Bibliográficas
Bachelard, Gaston. A poética do devaneio. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 2006.
Benjamin, Walter. O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. Magia e técnica, arte e
política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994.
Cohen, Renato. Performance como linguagem. São Paulo: Perspectiva, 2007.
Freud, Sigmund. O mal-estar na civilização. Rio de Janeiro: Imago, 1974.
Foucault, Michel. “A escrita de si” in O que é um autor? Lisboa: Ed. Vega, Col. Passagens, 1992.
Kosuth, Joseph. “A arte depois da filosofia” in: FERREIRA, Gloria e COTRIN, Cecília (orgs.). Escritos de
artistas anos 60/70. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, p. 210-234, 2006
Nietzsche, Friedrich W. O Nascimento da Tragédia ou Grécia e Pessimismo. São Paulo: Editora Escala,
2007. p.62.
Schopenhauer, Arthur. A metafísica do belo in “O mundo como vontade e representação”. São Paulo:
UNESP, 2003.

Notas
1 Foucault, Michel. p.129.
2 Nietzsche, Friedrich W. p.62.
3 Idem nota 1.
4 Schopenhauer, Arthur. A metafísica do belo in “O mundo como vontade e representação”. São Paulo:
UNESP, 2003.
5 Freud, Sigmund. O mal-estar na civilização. Rio de Janeiro: Imago, 1974.
6 Idem nota 1. p.32.
7 Cohen, Renato. Performance como linguagem. São Paulo: Perspectiva, 2007.
8 Idem nota 6. p.38.
9 Benjamin, Walter. O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. Magia e técnica, arte e
política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994.
10 Kosuth, Joseph. p. 220.

373 art uerj III semana de pesquisa em artes


III semana de pesquisa em artes
10 a 13 de novembro de 2009 art uerj
processos artísticos contemporâneos

Agenciamentos e Aproximações: Santiago Sierra e a estetização política


do outro

Melina Almada Sarnaglia

Mestrado em Artes – PPGA – UFES

Aproximações entre o trabalho de Santiago Sierra e o viés da política são sempre aplicadas a
partir de questões como o campo da ética. Neste trabalho proponho uma relação a partir de
questões como o mercado de trabalho, a globalização, a noção de indivíduo e individualização.
Propondo uma reflexão sobre a inserção dos projetos de Sierra nos campos da estética
relacional e arte pública.

Espectador; estética relacional; outro.

Approaches between the work of Santiago Sierra and the political point of view are always
applied from questions like the ethical field. In this paper I intend a relation since questions like
job market, globalization, the idea of individual and individualization, the relation of overflowing
and insertion in the globalized art system and of the public sphere per se. I aim to a reflection
about the inclusion of the Sierra’s projects in fields like relational aesthetics and public art.

Beholder; relational aesthetics; other.

Arte Pública
A tentativa de definir e enquadrar propostas conhecidas pela relação com a
arte pública nos leva a questionar o que primeiro se definiria como arte pública, uma
vez que se nos referimos à história da arte este é um conceito que está em processo
de auto-reformulação.
A crítica coreana, radicada nos Estados Unidos, Miwon Kwon no texto Public
Art and Urban Identities, alerta para as mudanças ocorridas na arte pública no
374
contexto norte-americano nos últimos trinta, quarenta anos. Ainda neste texto, Kwon
esquematiza os três paradigmas que engendram a noção de arte pública. São eles:

1. Arte em espaços públicos, uma típica escultura modernista abstrata


localizada no exterior para “decorar” ou “enriquecer” os espaços
urbanos, especialmente áreas de praças em frente à prédios federais ou
torres de escritórios corporativos;
2. Arte como espaço público, uma arte menos orientada para o objeto
e mais consciente do lugar [site] que viu uma grande integração entre
arte, arquitetura, e a paisagem através da colaboração entre artistas
e membros da classe administrativa urbana (tais como arquitetos,
paisagistas, urbanistas, e responsáveis pela administração das cidades),
na construção de um projeto de (re)desenvolvimento urbano permanente
tais como parques, praças, prédios, calçadas, bairros, etc.; e mais
recentemente,
3. Arte em interesse público (ou “novo gênero em arte pública”),
freqüentemente programas de residências temporárias focando em
questões sociais mais do que no ambiente construído, que envolve
colaborações com grupos sociais marginalizados (em vez de formar
profissionais), tais como sem-teto, mulheres espancadas, jovens
urbanos, pacientes com vírus HIV, prisioneiros, e que se empenha no
desenvolvimento de eventos ou programas comunitários politicamente
conscientes1.

É justamente a última definição que nos interessa de modo que ao endereçar


suas práticas para o outro, para o espectador, a arte pública se dirige para uma
proposta em arte que seja comum, estando incluída também sob os aspectos da
Estética Relacional, proposta teórica do francês Nicolas Bourriaud.
A partir da década de 1960 as noções de arte ambiental e/ou campo
ampliado2 levam as propostas artísticas à dissolução dos limites ditados pelas
regras tradicionais da arte [pintura, escultura, etc.] de modo a configurar uma arte

375 art uerj III semana de pesquisa em artes


ampla, que abarque [ou ao menos tente abarcar] em um só conceito todas as suas
possibilidades de atuação; e isto não porque a restrinja, mas justamente, por que a
expande. Tal expansão “permite” que a obra se constitua dos mais diversos meios,
materiais, propostas, conceitos, etc. de maneira a construir poéticas que aglutinem
sentidos, independentemente de materiais. Findada, pois, a era da grande escultura
modernista, o que temos é uma proposição de escultura [campo ampliado] que
diverge das conceituações tradicionais do monumento e de arte pública.
Da típica escultura modernista descrita por Kwon no primeiro gênero de
arte pública, passamos ao segundo, que mais do que simplesmente adornar o
espaço urbano e localizá-lo no mapa “cultural”, se preocupa em otimizar as relações
estabelecidas entre seus usuários na tentativa de criar fluxos mais contínuos e, porque
não, aprazíveis, através da colaboração entre arquitetos, artistas, urbanistas, etc.
O que se processa na verdade é uma preocupação maior com o ser que
habita esse ambiente projetado do segundo paradigma [ou, do não projetado, na
maioria das vezes], de que maneira ele atua, onde ele atua; questões estas que
serão desenvolvidas no terceiro ponto descrito por Kwon. A questão da arte pública
deixou de estar em um espaço comum a “todos” e passou a se dirigir ao indivíduo,
parte representante do todo. Agrupando estes indivíduos através de critérios como
localização, raça, credo, gênero e/ou opção sexual, orientação política, entre tantos
outros possíveis, esta arte em interesse público trabalha no limite entre uma arte
interativa, algum tipo de pesquisa antropológica e o site specificity.
Podemos buscar a gênese desse processo, de direcionamento para o
indivíduo, ainda nas propostas fenomenológicas ocorridas ainda nas décadas de 60
e 70 no século XX. É em projetos ocorridos a partir da década de 1990, entretanto,
que este sujeito fenomenológico irá se particularizar. O site literal, descrito por James
Mayer, dará espaço à propostas que se utilizam do site funcional.

O site funcional pode ou não incorporar o lugar físico. É certo,


entretanto, que não o privilegia. É uma operação que acontece entre
sites, mapeamento das instituições, filiações textuais e dos corpos que
se deslocam entre eles (e do artista acima de tudo).3

376 art uerj III semana de pesquisa em artes


A noção proposta então por Meyer é deste espaço da arte em trânsito, de um
espaço não-habitável, não-coercível, um espaço que não requer nem mesmo ser
físico. As possibilidades de ação propostas por meio deste site funcional associada
às práticas de inserção do espectador na obra oriundas da década de 60, é como
podemos brevemente traçar o histórico desse “novo gênero em arte pública”.

Estética Relacional versus Antagonismos


A coletânea de ensaios escritos por Nicolas Bourriaud e publicados em 1998
refletem a tendência contemporânea [especialmente a década de 1990] de um modo
diferenciado de inserção do espectador no contexto da obra. Bourriaud define esta
Estética Relacional como “um domínio das interações humanas e seu contexto
social, mais do que a alegação de um independente e privado espaço simbólico”4,
deste modo possibilita que esta interação não se dê somente na instancia física mas
no sistema total ou, como diz Bourriaud, um interstício social capaz de reproduzir
de alguma forma um conjunto de “estados de encontros” que são, em um primeiro
momento, produzidos pela configuração das cidades5.
As possibilidades, portanto da arte contemporânea – e em especial, das obras
inseridas no contexto da estética relacional – de mais do que preparar ou anunciar um
futuro, propor modelos de universos possíveis, trabalhando com as particularidades
e ambivalências dos sujeitos que passam a dela fazer parte. Bourriaud se mune de
um grande e potente arsenal intelectual para reafirmar suas propostas, desde Marx
a Michel de Certeau e Louis Althusser, assim sua proposição6 perpassa as noções
de economia, sociologia e antropologia, nada mais óbvio uma vez que o objeto de
estudo, ou mesmo de poética, de tais trabalhos, se configura como o homem.
A proposta da Estética Relacional é que se estabeleça uma prática de
cunho mais sociológico, que possa confrontar as configurações estabelecidas pela
sociedade de consumo. As percepções em relação à obra de arte como um contra-
fluxo da sociedade de consumo – já apresentou outras versões exemplificadas na
resistência inicial ao mercado nos primeiros projetos minimalistas dos anos 1960/70
e mesmo na “desmaterialização do objeto”7 presente nas práticas conceituais. No
caso das propostas relacionais a ‘impossibilidade de comercialização’ é processada

377 art uerj III semana de pesquisa em artes


por duas razões: a primeira está ligada aos objetos utilizados em tais práticas – como
as cozinhas de Rirkrit Tiravanija, pro exemplo – não são mais do que utensílios
deslocados para a galeria a fim de exercer sua função própria, sua analogia talvez
seja mais pertinente ao conceito de índice, da mesma forma que, por exemplo, os
restos de alimentos ali consumidos pelos espectadores; na segunda questão, ainda
no exemplo de Tiravanija, a ação está associada à mitologia pessoal do artista, o
fato dele servir comida tailandesa – preparada por ele mesmo – está atrelado à sua
biografia8 e à sua atividade pessoal – cozinhar para os visitantes. Desta maneira, as
possibilidades de execução da obra estão condicionadas à presença do artista.
A aproximação com a realidade – ou seja, a obra acontece no mesmo espaço-
tempo em que é compreendida – é operado de uma maneira ainda mais drástica do
que, por exemplo, no Minimalismo. As ações propostas – novamente exemplificadas
por Tiravanija – re-executam as atividades cotidianas. De certo modo, entretanto,
esse re-executar é ainda uma representação da realidade, um duplo, uma vez que a
galeria só passa a ser um “restaurante” enquanto Tiravanija está lá. Em contrapartida,
Food 9 de Gordon Matta-Clark se apresenta efetivamente como um restaurante,
onde artistas eram convidados a cozinhar, e a comida era vendida sim, mas a preços
simbólicos. Food se caracterizava como um espaço de interação real e discussão
dos aspectos plásticos e sociais pertencentes ao universo da arte neste período. A
principal diferença se daria nessas duas situações pelo tipo de proposta que abriga
e sua consciência em estarem “consumindo” arte. Na verdade, o que se processa é
a constituição de um grupo de indivíduos como comunidade, suas semelhanças são
identificadas e o que os move são interesses particulares, entretanto universais.
Em Antagonismo e Estética Relacional, utilizando os termos de Ernesto Laclau
e Chantal Mouffe, Bishop propõe um Antagonismo Relacional, onde as relações
são problematizadas muito mais do que solucionadas. Estas práticas se localizam
como proposições que buscam o outro como material, que procuram a inserção do
espectador na obra, Bishop destaca que:

Implicitamente muitas das práticas de Tiravanija são um desejo


não somente de corroer a distinção entre os espaços sociais e

378 art uerj III semana de pesquisa em artes


institucionais, mas entre artistas e observador; a frase “muitas pessoas”
freqüentemente aparece em sua lista de materiais.10

As ácidas críticas de Bishop aos projetos relacionais descritos por Bourriaud


apresentam, para ela, sua antítese nas propostas como do suíço Thomas Hirschorn
e do espanhol Santiago Sierra, por se efetuarem em um campo pautado mais na
política e, de certa forma, em um pessimismo [oriundo da reflexão] enquanto ao
futuro. Contudo, os trabalhos de Tiravanija e Sierra, se observados sob a ótica do
“novo gênero em arte pública”, exercem em alguns casos, funções e principalmente,
resultados, muito semelhantes. Enquanto Sierra escolhe [e muda essas escolhas
a cada trabalho] um grupo específico de pessoas para “contratar”, ele destaca esta
comunidade, na verdade, ele avaliza a condição de existência deste grupo com uma
mesma identidade, passível de ser trabalhada. O limite ético do trabalho de Sierra
esbarra na aparente alienação do trabalho de Tiravanija. As práticas operadas
por Tiravanija se inserem, a primeira vista, em uma simples – e porque não dizer,
simplória – relação entre pessoas, mais do que espectadores os participantes dos
trabalhos de Tiravanija são gallery-goers11, podemos dizer então, que de algum modo,
Tiravanija também recorta e seleciona sobre que tipo de comunidade vai operar,
e faz isso da maneira mais irônica possível. Mais do que uma simples reunião de
amigos ou de usuários do mesmo sistema, Tiravanija revela a complexidade de um
sistema justaposto, imbricado, onde as relações existentes são pautadas no vazio
de possibilidades que tentam infrutiferamente se efetivar em um ambiente inerte.
Tiravanija, se utilizando da noção de serviço e de comunidade busca de alguma
forma – e para alguns talvez seja essa a forma mais aprazível – estender e projetar
as possíveis interações entre sujeito-sujeito.
Santiago Sierra também busca revelar esse sistema das relações só que
no campo estritamente do social, e ainda mais particular, das relações de trabalho
em uma economia de mercado. De uma maneira mais drástica e dramática ele
lida com a fragilidade das relações ao invés de suas potências. Sierra percebe
muito cedo que as relações estabelecidas no capitalismo tardio estão pautadas
no conceito de prestação de serviços [não é sem razão que o 3º. Setor é o que

379 art uerj III semana de pesquisa em artes


mais cresce na atualidade] ao pagar grupos de pessoas – em geral grupos étnicos,
africanos, refugiados, imigrantes, etc. – para executarem projetos desnecessários,
auto-mutilantes e até mesmo humilhantes, ele elucida a inexistência de potenciais
relações entre os indivíduos freqüentadores dos espaços especializados da arte,
ao contrário de Tiravanija. O tom de seu trabalho tem um que de apocalíptico na
tentativa de mostrar que “não existe tal coisa como uma refeição grátis, tudo e
todos tem seu preço, e ele [Sierra] sabe disso!”12 Sierra portanto, trabalha a partir
do fracasso dessas possíveis relações, destas paralelas que nunca se encontram,
dessas divergentes línguas que não se comunicam mas que possuem um único meio
de troca [ não sei ao certo troca de que], o dinheiro. As práticas de Sierra, mais uma
vez, não engendram a possibilidade de relação real entre o ser humano que é tratado
por ele como objeto, quando muito como colaborador, e o público. A interação se
dá no campo do virtual e porque não dizer, do ficcional. E é neste momento que as
narrativas de Tiravanija e Sierra se cruzam na tentativa de transpor essa realidade,
que precisa ser melhorada [Tiravanija] ou que precisa ser denunciada [Sierra].
As implicações na esfera da arte pública passam, justamente, pela utilização de
questões de ordem pública e coletiva nestes trabalhos. Entretanto, de alguma maneira
e ao mesmo tempo, tais propostas podem também ser encaradas no âmbito do privado
(e na verdade, acredito agora que qualquer trabalho de arte), uma vez que a reflexão
sobre a questão proposta é que se configura efetivamente como o trabalho, ele se torna
individual, e por isso particular, um particular passível de ser partilhado, e por isso público.

Aproximação e distanciamento em Santiago Sierra


Os agenciamentos propostos pelo espanhol Santiago Sierra – dentro de um
sistema baseado em uma economia de mercado – estão diretamente associados ao
poder legislador e da autonomia do artista propostos e descritos por Pierre Bourdieu
em O mercado dos bens simbólicos. Sem dúvida que Bourdieu se refere a uma
autonomia ainda pautada nos estreitos formais greenberguinianos dado sua origem
ainda em 1970, contudo relaciona-se de maneira muito particular com as práticas
operadas em especial quando trata da relação de artistas e não-artistas no campo de
produção de arte erudita, diz Bourdieu

380 art uerj III semana de pesquisa em artes


Da mesma forma, o processo conducente à constituição da arte
enquanto tal é correlato à transformação da relação que os artistas tem
com os não-artistas e, por esta via, com os demais artistas, resultando
na constituição de um campo artístico relativamente autônomo e na
definição da função do artista e de sua arte.13

As propostas de Sierra, em geral, atuam sobre um campo bastante


problemático em especial nesta dada relação com os não-artistas. Ou seja,
mais do que convocar espectadores e, neste sentido, convocamos o termo para
distinguir uma espécie de público especializado – tão especializado quanto
a produção erudita e seus produtores ; Sierra elege comunidades ou grupos
específicos de pessoas marginalizados do sistema comercial e também do
sistema de produção de bens culturais, e os insere neste sistema, organizando de
uma maneira arbitrária e negligente a ação daquelas pessoas como produção de
bens artísticos e culturais.
As citações de Sierra aos meandros da economia globalizada e da perda das
identidades mediante os processos exploratórios são amplamente questionadas
devido a própria ação de Sierra de também [ao oferecer o salário mínimo como
pagamento às pessoas que de seu trabalho fazem parte] ser exploratória uma vez
ainda, que os valores recebido por ele como venda dos registros dos trabalhos e
os processos comissionados destes projetos, são altos valores, incompatíveis com
os oferecidos aos que lhe prestam serviços. Operando na tênue linha que separa
o ético de sua antítese [algumas vezes impossíveis de ser tão bem e claramente
delineadas], Sierra propõe uma reflexão sobre a maneira de se lidar com o outro,
seja ela de maneira profissional ou mesmo social, em um contexto de relações
globalizadas.
No projeto, pessoas “Pessoas pagas para terem seus cabelos tingidos de
loiro”, na Bienal de Veneza de 2001, Sierra propõe uma reflexão drástica sobre a
questão da imigração e do pertencimento, ao descorar os cabelos de imigrantes
originários do Senegal, China ou mesmo do sul da Itália, já bastante descriminado.
A única exigência é que os “voluntários” tivessem os cabelos originalmente negros.

381 art uerj III semana de pesquisa em artes


Cada indivíduo – em média foram 130 – recebeu cerca de $60 (sessenta dólares)
para executar a ação. As implicações referentes a esse trabalho coincidem com
as questões de globalização e exploração, latentes na constituição dos mercados
capitalistas europeus.14 O que Sierra propõe seria então um retorno desses sujeitos
explorados em suas terras e, que, a partir de um processo migratório são novamente
subjugados e apartados da sociedade constituída, sua exclusão é novamente
um processo de exploração. Contudo, ao forçar a barreira das convenções
sociais, Sierra força a entrada efetiva destes indivíduos nessa sociedade, não só
na sociedade civil, como também no campo da arte, ainda que esta inserção –
especialmente por se dar de maneira forçosa – não tenha a potência de se efetivar.
Aproximar portanto os estrangeiros de um suposto biótipo padrão europeu [cabelos
claros] força aos visitantes da Bienal – e aí a inserção se dá no vértice oposto – a
olharem para estes estrangeiros marginalizados. Contudo, nas palavras de Sierra,
tanto os visitantes quanto às pessoas pagas para executarem as suas tarefas, estão
inseridos em um mesmo sistema indiscriminado pelo Estado. Sierra afirma que “as
pessoas são objetos do Estado e do Capital e são empregadas como tal. Isso é
precisamente o que eu tento mostrar”.15 O enfrentamento das realidades apartadas
de contato é que agrupa a todos neste mesmo sistema; não haveria mais distinção
social entre os que visitam e os que executam as ações. Todos estariam inseridos
neste perverso sistema, onde tudo e todos são utilizáveis, compráveis e, por valores
irrisórios.

Figura 1 Santiago
Sierra, pessoas pagas
para terem seus
cabelos tingidos de
loiro, Bienal de Veneza,
2001.

382 art uerj III semana de pesquisa em artes


Figura 2 Santiago
Sierra. 11 pessoas
pagas para aprenderem
uma frase. México,
2001.

Pertencimento e Globalização: o apartar pela língua


As ações dessa massa orientada e paga por Sierra encerram em si questões
da própria indústria cultural como originária de produtos produzidos para um grupo
da população que não participa em efetivo, de sua elaboração, concepção e mesmo
produção. Se pensarmos na elite cultural da qual Sierra faz parte, esse processo
se dá de uma maneira muito menos visível, uma vez que não é para as massas ou
grandes públicos que o trabalho se direciona. Sierra aponta para uma questão um
tanto quanto delicada, o pertencimento destes indivíduos a uma sociedade qualquer.
Independente das razões e dos meios por ele utilizados [se éticos ou não] ou mesmo
dos problemas que levam estes indivíduos a aceitarem essas atividades, se a
ambição ou a necessidade, se a fome ou o vício, Sierra tenta operar na fragilidade
deste pertencimento globalizado.
Em “11 pessoas remuneradas para aprender uma frase”, realizado na Casa
de Cultura de Zinacantán, em Zinacantán, México, em março de 2001; Sierra
paga 2 dólares para 11 mulheres índias de origem Tzotzil, para aprenderem
uma frase em espanhol, língua que não compreendem. A frase, uma tautologia
da própria questão, abriga a impossibilidade da comunicação em um sistema
desigual. “Estoy siendo remunerado para decir algo cuyo significado ignoro”. O
que essas onze mulheres aprenderam a dizer, todas juntas e em coro “Estou
sendo paga para dizer algo que o significado ignoro” é na verdade, uma frase
repetida muitas e muitas vezes pelas sociedades afora. Se pensarmos no campo
cultural, em especial nas artes visuais, essa frase se repete infinitamente e
atemporalmente.
A língua, neste caso, aparece como a metáfora do pertencimento frente a

383 art uerj III semana de pesquisa em artes


globalização. Àquelas mulheres índias, segregadas pela sociedade ocidental,
colonizada e explorada mexicana, talvez não seja, em suas origens segregadas.
Em suas pobres tribos podem figurar em grande importância, ainda que
mulheres.
Uma grande questão em Sierra é que estas pessoas não encenam, simulam
uma atividade “profissional” elas efetivamente as executam, trazendo consigo o
embate e a força da ação que executam.
A proposta de Sierra pode, aos olhos de tantos, parecer anti-ética, escravocrata
e humilhante. Talvez o seja, em todas as instâncias. Contudo, o choque ao
presenciar essas performances [mesmo no campo virtual, ou seja, na repetição
narrativa destas], faz com que as questões inerentes ao trabalho sejam endereçadas
diretamente a nós, espectadores, consumidores desta arte erudita e, ao mesmo
tempo, determinantes para que as situações expostas por Sierra aconteçam no
mundo real e globalizado, fora do espetacular mundo da arte.
Bourdieu classifica essa obra produzida no campo de produção erudita em três
aspectos: de obras “puras”, “abstratas” e “esotéricas”. E define:

Obras puras porque exigem imperativamente do receptor um tipo


de disposição adequado aos princípios de sua produção, a saber,
uma disposição propriamente estética. Obras abstratas pois exigem
enfoques específicos, ao contrário da arte indiferenciada das sociedades
primitivas, e mobilizam em um espetáculo total e diretamente acessível
todas as formas de expressão, desde a música e a dança, até o teatro
e o canto. Por último, trata-se de obras esotéricas tanto pelas razões já
aludidas como por sua estrutura complexa que exige sempre referencia
tácita à história inteira das estruturas anteriores. Por este motivo, são
acessíveis apenas aos detentores do manejo prático ou teórico de um
código refinado e, conseqüentemente, dos códigos sucessivos e do
código destes códigos.16

Somente os conhecedores destes códigos da arte é que poderiam então

384 art uerj III semana de pesquisa em artes


acessar estas imbricadas ironias? Sua pertinente reflexão? De qualquer maneira,
o exemplo das mulheres índias mexicanas nos parece de todo modo corroborar e
mesmo ilustrar essa questão. Aprendo a dizer algo que não faço a mínima idéia do
que se trata que não se relaciona comigo ou com os modos de operação do meu
cotidiano. Língua e conhecimento aparecem aqui como metáforas da dominação e
em conseqüência da exploração.
A ação, aqui proposta por Sierra, de estetizar a política, evoca de maneira
singular o resultado previsto por Benjamin para tal ação. A guerra. E não é
efetivamente o que se processa, silenciosa e letal nos meandros das sociedades
confrontadas com situações excludentes? Se, para Benjamin “a guerra permite
dar um objetivo aos grandes movimentos de massa, preservando as relações
existentes”17 para Sierra, esta guerra silenciosa é em si sua matéria-prima,
organizando os movimentos dessas massas para um passear dentro e fora do
sistema.

Bibliografia
BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In: Magia e técnica arte e
política: ensaios sobre literatura e historia da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994.
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Magazine, Ltd. and Massachusetts Institute of Technology.
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Perspectiva, 1978.
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EAGLETON, Terry. Introdução e Particulares Livres. In: A Ideologia da Estética. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor, 1993.
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SMITMSON, Blake (eds.) Conceptual art: a critical anthology. Cambridge: The MIT Press, 2000.
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comunicação, cultura e hegemonia. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2003.
MEYER, James. The Functional Site: or, The Transformation of Site Specificity In: SUDERBURG,
Erika. Space, Site, Intervention: Situating Installation Art. Minneapolis: University of Minnesota press, 2000.
OITICICA, Hélio. Programa Ambiental. In: Aspiro ao grande labirinto. Rio de Janeiro: Rocco, 1986.

385 art uerj III semana de pesquisa em artes


Notas
1 KWON, Miown. Public Art and Urban Identities. In: Public Art Strategies: Public Art and Public
Space. Ed. Cheryl Younger. New York: New York University, 1998. Disponível online no sítio: http://eipcp.
net/transversal/0102/kwon/en. [trad. nossa]. pg. 1
2 OITICICA, Hélio. Programa Ambiental. In: Aspiro ao grande labirinto. Rio de Janeiro: Rocco, 1986. Pg. 78
KRAUSS, Rosalind. A escultura no campo ampliado. Rio de Janeiro: Revista Gávea nº 1, 1984.
É importante perceber como as duas noções: de Arte Ambiental – proposta por Hélio Oiticica e a definição
de Escultura no Campo Ampliado – proposta pela crítica norte-americana Rosalind Krauss, se tocam em
muitos pontos, apesar do possível desconhecimento de Krauss das propostas ou textos de Oiticica. No
texto Programa Ambiental de Julho de 1966, Oiticica já diz que a “ambientação é a conseqüente derrubada
de todas as antigas modalidades de expressão: pintura-quadro, escultura, etc., propõe uma manifestação
total (...)” OITICICA, Hélio. Op. Cit.
Deste modo, com pelo menos dez anos de antecipação Oiticica já se preocupa em conceituar esta arte-
total, que só em 1979 será teorizada por Krauss em seu célebre ensaio “A escultura no campo ampliado”.
3 MEYER, James. The Functional Site: or, The Transformation of Site Specificity In: SUDERBURG,
Erika. Space, Site, Intervention: Situating Installation Art. Minneapolis: University of Minnesota press,
2000, pp. 25. [trad. Nossa]
4 BOURRIAUD, Nicolas. Estética Relacional. Buenos Aires: Adriana Hidalgo, 2006. Pg. 14
5 Op. Cit.
6 Utilizo aqui o termo proposta e proposição uma vez que o próprio Bourriaud se recusa a considerar
seus textos e a própria Estética Relacional como uma teoria.
7 LIPPARD, Lucy R. and CHANDLER, John. The Dematerialization of Art. In: ALBERRO, Alexander/
SMITMSON, Blake (eds.) Conceptual art: a critical anthology. Cambridge: The MIT Press, 2000.
8 Rirkrit Tiravanija nasceu em Buenos Aires, Argentina; é filho de pais tailandeses, foi criado na
Tailândia, Etiópia e no Canadá. Hoje é residente em Nova Iorque.
9 Restaurante aberto por Matta-Clark no SoHo, bairro de Nova Iorque, junto com Carol Goodden, Suzy
Harris, Rachel Lew e Tina Girouard, de 1971 a 1973.
10 BISHOP, Claire. Antagonism and Relational Aesthetics. October 110, Fall 2004, pp. 51-79. © October
Magazine, Ltd. and Massachusetts Institute of Technology. Pg. 56
11 Rosalyn Deutsche utiliza este termo que aplico aqui. Gallery-goers seria algo como visitante ou
freqüentador de galeria, entretanto, o termo utilizado em sua língua de origem ganha força pelo fato da
ausência da relação fonética e semântica com o termo espectador.
12 BISHOP, Claire. Op. Cit. Pg. 70
13 BOURDIEU, Pierre. O mercado dos bens simbólicos. In: A economia das trocas simbólicas. São
Paulo: Perspectiva, 1978.
14 HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: UFMG, 2003. Pg. 35
15 “Persons are objects of the State and of Capital and are employed as such. This is precisely what I try
to show.” Disponível em http://www.thetearsofthings.net/archives/2009_02.html
16 BOURDIEU, Pierre. Op. Cit. Pg. 116
17 BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In: Magia e técnica
arte e política: ensaios sobre literatura e historia da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994. Pg. 195

386 art uerj III semana de pesquisa em artes


III semana de pesquisa em artes
10 a 13 de novembro de 2009 art uerj
processos artísticos contemporâneos

Estudo do processo de criação da artista plástica Nelma Pezzin

Rejane Afonso Teixeira,

Artes Plásticas – UFES

O estudo visa à coleta e análise de documentos do processo que antecedem a obra da artista
capixaba Nelma Pezzin, o estudo está centrado na investigação dos procedimentos que
envolvem o processo de criação e sua interface como fenômeno da produção artística,  sendo
parte de um estudo sobre o processo de criação na arte contemporânea capixaba do ES. Foram
realizadas visitas ao atelier da artista, coleta de dados e o levantamento de todo o material por
meio de entrevistas informais, e registro fotográfico digital dos documentos apresentados.

Artes Visuais; Processo criativo; Crítica genética.

The study aims at gathering and analyzing documents the creative process the work of artist
capixaba Nelma Pezzin, the study focuses on investigating the procedures that involve the
creation process and its interface as a phenomenon of the artistic production as part of a study
on the creative process in contemporary art capixaba ES. Visits were made to the studio of the
artist, data collection and removal of all the material through informal interviews, and digital
photographic record of the documents submitted.

Visual arts; Creative process; Genetic criticism.

Introdução
“Todo ato criador é ação da mão que pensa e sente...”.
(Cecília Salles)

O presente trabalho está inserido numa pesquisa, que trata do processo


de criação de artistas capixabas, sendo específico desta pesquisa o estudo dos

387
documentos do processo da artista Nelma Pezzin; documentos primários que revelam
o gesto criador no frescor da ação criadora. Embora a produção artística no estado
do Espírito Santo não tenha muitos nomes de projeção nacional, conta- se com
uma tradição que remonta o período colonial, sendo capixaba uma das mais antigas
escolas de Belas Artes no Brasil1.
A investigação científica desse percurso gerativo que antecede a obra se
revela como uma tentativa de compreender o movimento gerador do processo
criativo. Quando olhamos uma obra de arte quase sempre não conseguimos detectar
os vestígios deixados pelo artista até concluir o seu projeto final. Seus gestos
muitas vezes inacabados são frutos de seu processo criativo, os rastros deixados
pelo artista oferecem meios para que o olhar científico possa captar fragmentos
de como funciona o seu pensamento criativo. Partindo deste pressuposto a crítica
genética vem acompanhar o modo como se dá a construção dessas imagens. Para
Cecília Salles2, nos rascunhos dos artistas, que são os documentos que vão sendo
arquivados pelo artista e acessados com freqüência por sua memória, existe uma
infinidade de possibilidades para tal obra que parece pronta aos olhos de quem a vê.

Critica genética? Qual o seu objeto de estudo?


Surgiu na França em 1968, com Louis Hay, que comandava um grupo de
estudiosos para avaliar os manuscritos do poeta alemão Heinrich Heine. Como estes
pesquisadores estavam enfrentando problemas semelhantes aos de outros grupos eles
se uniram e criaram o CNRS (Centro Nacional de Pesquisa Cientifica) dedicado ao estudo
exclusivo dos manuscritos literários, este estudo especifico passou a ser denominado
Critica Genética. No Brasil esse estudo é trazido por Philippe Willemart, que escrevendo
sobre Gustave Flaubert, organiza o I Colóquio de Critica Textual em 1985 na Universidade
de São Paulo e funda a APML (Associação de Pesquisadores do Manuscrito Literário),
atualmente, APCG (Associação de Pesquisadores em Crítica Genética).
A crítica que se dedicava à literatura passa então a explorar outros campos
como as Artes Plásticas. Traz-se então uma nova abordagem para a obra de arte,
ela passa a não ser um produto finalizado pelo artista, mas algo que oferece novas
possibilidades de leitura a partir de seus “percursos” de fabricação.

388 art uerj III semana de pesquisa em artes


Para a crítica genética, a obra de arte é um “processo de continua
metamorfose” 3 (Salles, 2000), já que o artista vai aos poucos se adaptando às formas
provisórias. Este vai levantando hipóteses e testando-as, o que irá gerar diversas
possibilidades convivendo em um mesmo ambiente. Por necessidade, o artista
passa a entrar em um processo de seleções, apropriações e combinações nos quais
ocorrerão transformações, como cita Salles: “... constrói-se à custa de destruições...”
acrescenta ela que “diante de cada obra de arte importante,... talvez outra, mais
importante ainda, tenha tido que ser abandonada” 4. O processo de criação passa a
funcionar como um jogo, no qual permanece a estabilidade e a instabilidade.
Esse processo de criação é lento e está aberto a alterações, não está
associado ao relógio, mas à maturação das idéias que aos poucos vão sendo
sintetizadas de acordo com a satisfação estética almejada pelo artista que é
influenciado pelo meio que o cerca para tal construção.
O crítico não tem acesso ao ato criador, mas tenta conhecê-lo melhor como um
“arqueólogo” do processo, todas as informações decorrentes desse processo são aos
poucos armazenadas e o crítico dialoga com tais informações, e tenta estabelecer
conexões entre a ciência e a arte, chegando a um sentido mais amplo da obra.
Por querer estudar a obra a partir de sua gênese, as pesquisas são baseadas
nos documentos que estão de posse do artista ou seus familiares, documentos que
demonstram o artista dialogando com ele mesmo. São diálogos internos de seus desejos,
de idéias que estão armazenadas em seus diferentes suportes como cadernos, folhas
e arquivos avulsos, que compõem obras em seu estágio de desenvolvimento. São
pensamentos, reflexões, tudo que vai sendo julgado por seu criador, que possui o poder
de interferir quando achar necessário e a partir daí gerar novas formas. Esses registros
aparentemente parecem fragmentados, mas, de posse desses documentos, o critico
genético, que busca uma ordem interna entre eles, elabora o chamado prototexto que
nada mais é do que um dossiê de documentos a serem analisados pelo geneticista.
Em uma primeira análise o prototexto, terá a função de armazenar as idéias e
experimentar combinações. Isso possibilitará identificar os suportes5, os diferentes
tipos de anotações e registros, verificar os tipos de experimentação e ainda descrever
as possíveis formas de armazenamento da informação, norteando assim o projeto

389 art uerj III semana de pesquisa em artes


poético da obra que poderá ser tomado como complexo ou não, dependendo das
hipóteses levantadas pelo crítico. Em um segundo momento, sua análise se dará a
partir de diferentes documentos de diferentes artistas o que permitirá não descartar
o caráter híbrido das experimentações presentes nos documentos do processo
das artes visuais, essas experimentações são maleáveis e classificadas como uma
taxonomia rudimentar (CIRILLO, 2004) são elas:
• Experimentação eidética ou formal;
• Experimentação cromática;
• Experimentação matérica ou material;
• Experimentação topológica ou espacial;
• Experimentação conceitual.

A artista Nelma Pezzin


O foco da pesquisa em questão está voltado para o processo de criação
da artista plástica capixaba Nelma Pezzin, nasceu em 29 de março de 1955, em
Aimorés, Minas Gerais. Em 1957 mudou-se para Vitória/ES, onde reside atualmente.
Iniciou seu percurso artístico ainda como estudante de artes plásticas, em 1976 com
a participação em exposições de arte. Graduou-se em Artes Plásticas, em 1979 pela
Universidade Federal do Espírito Santo. Desde 1980 é professora de desenho e
gravura no Centro de Artes da Universidade Federal do Espírito Santo, é especialista
em Abordagens Contemporâneas em Arte Educação pela UFES e mestre em
Comunicação e Semiótica pela PUC/SP.

Análise do processo de criação


Esta pesquisa está em estágio inicial, mas alguns passos importantes já foram
dados.
Após contato, identificação, e apresentação da proposta de estudo foram feitas
quatro visitas ao ateliê da artista, observados uma grande variedade de documentos
de seu processo de criação, seu habito de armazenar e fazer experimentações
é constante em seu trabalho; encontrados diversos documentos do tipo livros
de anotações, rascunhos e esboços. Esses documentos servem como fonte de

390 art uerj III semana de pesquisa em artes


informações, para que eu investigue e siga os rastros, vestígios deixados pelo
pensamento da artista. Nessas visitas procurei documentar através de câmera digital
todo esse material, em um total de 600 digitalizações, armazenadas em Pen-Drive e
CD-Room, sendo compostos por: caderno, papeis avulso, prova de tiragem gravura,
teste com tecido, testes com tintas e cera.
Analisando esse material com o olhar de um cientista a procura de pistas
de um processo criativo, essas pistas ou informações farão gerar um sistema
organizado, estabelecendo conexões, buscando generalizações, redundâncias e
deste modo serão formuladas teorias, estabelecendo relações entre índices buscando
a compreensão do fazer criativo que se mostra singular a cada artista.

Figura 1-
Rascunhando,
pensando seu trabalho.

391 art uerj III semana de pesquisa em artes


Figura 2 - Caderno de
Anotações, rascunho
de metas a serem
alcançadas.

Figura 3 - Folha
de rascunho
avulso, anotando
procedimentos a seguir.

392 art uerj III semana de pesquisa em artes


Algumas considerações sobre este estudo e seus desdobramentos
O material colhido tem revelado como a artista media textos verbais e visuais
para a reflexão sobre seu processo, isso se mostra claro em todas as suas anotações
demonstrando ser a reflexão, experimentação de materiais e pesquisa uma forma
constante em seus trabalhos. A artista possui um ateliê, local onde se isola para
organizar suas idéias e colocá-las em prática, local onde é processada uma gama
enorme de idéias a fim de fazer surgir o ato criador.
Esses documentos do processo de criação servirão para o desfecho do
trabalho de conclusão de curso, poderemos assim continuar nos aprofundando na
análise do processo de criação da artista.

Referências Bibliográficas
BACHELAR, Gaston. A Poética do Espaço. São Paulo : Martins Fontes, 2000.
CIRILLO, José. Pela Fresta: memória como matéria no processo de criação de Shirley Paes Leme. Farol.
Vitória: UFES, n.3, ano 3, p. 61-73, 2002
CIRILLO, A. J. (Org.) ; BEZERRA, A. G. (Org.) . Arqueologias da Criação: estudos sobre o processo de
criação. 1. ed. Belo Horizonte: C/Arte, 2009. v. 1. 213 p.
COLOMBO, Fausto. Os Arquivos Imperfeitos. São Paulo ; Perspectiva, 1991
CONTAT, Michael; FERRER, Daniel. Porquoi la critique génétique? Paris: CNRS Editions, 1998.
HAY, Louis. Pour une sémiotique du mouvemente. Gênesis, n. 10, 1996
______. A montante da escrita. Tradução de José Renato Câmara. Papéis Avulsos, Rio de Janeiro:
Fundação Casa Rui Barbosa, n. 33, p. 5 -19, 1999.
______. O texto não existe: reflexões sobre crítica genética. In: ZULAR, Roberto (Org.). Criação em
processo: ensaios sobre crítica genética. São Paulo: Iluminuras, 2002, p. 29-44.
GRÉSILLON, Almuth, Elementos de crítica genética, Porto Alegre, UFRGS, tradução de Cristina de
Campos Velho Birk.
OSTROWER, Fayga. Acasos e criação artística. Rio de Janeiro: Campos, 1990.
_____. Criatividade e processo de criação. 3ª ed. Petrópolis: Vozes, 1983.
SALLES, Cecília Almeida. Crítica Genética: uma (nova) introdução. São Paulo: Educ., 2000.
______. Gesto inacabado: processo de criação artística. São Paulo: FAPESP/ Annablume, 1998. ISBN
857419042X.
TADIÉ, Jean-Yves; Marc. Le sens de la mémoire. Paris: Gallimard, 1999.
ZULAR, Roberto (Org.) Criação em processo: ensaios de crítica genética. São Paulo: Iluminuras, 2002.
CIRILLO, A. J. (Org.) ; BEZERRA, A. G. (Org.) . Arqueologias da Criação: estudos sobre o processo de
criação. 1. ed. Belo Horizonte: C/Arte, 2009. v. 1. 213 p.

393 art uerj III semana de pesquisa em artes


Notas
1 O Instituto de Belas Artes foi fundado em dezembro de 1909.
2 Cecília Salles é professora titular do Programa de pós-graduação em Comunicação e Semiótica da
PUC de São Paulo; coordenadora do Centro de Estudos de Crítica Genética.
3 Cecília Salles - Crítica Genética pág.22
4 Cecília Salles cita em seu livro Crítica Genética pág.27 as palavras de Klee, 1990 p.190.
5 Para Louis Hay que criou a taxonomia dos estudos dos manuscritos literários, ele a classifica em dois
tipos: cadernetas (cadernos e diários) e os suportes móveis (fichas, folhas avulsas, páginas arrancadas)

394 art uerj III semana de pesquisa em artes


III semana de pesquisa em artes
10 a 13 de novembro de 2009 art uerj
processos artísticos contemporâneos

Estudo do processo de criação de artistas contemporâneos capixabas

Renata Ribeiro dos Santos

Licenciatura em Artes Visuais – UFES


Projeto com bolsa da Fundação de Apoio à Ciência e Tecnologia do Espírito Santo – FAPES

O presente texto é um relato de experiência do Projeto: Estudos dos documentos do processo


de criação dos artistas plásticos contemporâneos capixabas, realizado entre dezembro de 2008
e agosto de 2009, centrando posteriormente os estudos nos artistas plásticos Melina Almada e
Luciano Cardoso.

Crítica genética; Arte contemporânea; Crítica de processo.

The present paper is a report of experience of the Project: Study of the documents of the
creation process of the contemporary artists from Espírito Santo, accomplished between
December 2008 and August 2009, focusing afterward in the studies on the artists Melina
Almada e Luciano Cardoso.

Genetic criticism; Contemporary art; Critical process.

Introdução
O estudo do processo de criação, centrado nos documentos gerados pelo
artista durante a produção de sua obra está fundamentado na crítica genética.
Como tal, parte da constatação que uma obra é resultado de um trabalho exaustivo
de escolhas e reflexões que passam por transformações sucessivas. Ela, a obra,
surge a partir de investimento de tempo, dedicação e disciplina por parte do artista,
entretanto, passa por um processo de correções, pesquisas, esboços. Este período
e os documentos produzidos neste momento são o interesse da Crítica Genética,

395
movimento no qual está embasada esta pesquisa. Surgido na França no século XX,
a Crítica Genética (sendo assim batizada em 1979 pelo crítico Louis Hay) indaga a
obra de arte a partir de sua gênese. Seu objetivo é buscar compreender e elucidar
partes de como são criadas as obras de arte, através da investigação científica de
documentos de criação, vindos da mão do próprio artista.
Segundo Salles (1998) documentos do processo são todo tipo de vestígio
deixado pelo artista durante o processo de criação de uma obra ou de um conjunto
delas.
Assim, este estudo busca compreender nuances do processo de criação entre
os artistas contemporâneos do Espírito Santo e está vinculado ao Projeto MEMÓRIA
e CULTURA NO PROCESSO DE CRIAÇÃO: seleção, digitalização, transcrição e
análise crítica de documentos de processo de artistas capixabas e suas interfaces
com a arte contemporânea, coordenado pelo professor Doutor Aparecido José Cirilo.
Partindo de uma lista primeira de aproximadamente 40 artistas plásticos
atuantes na cena capixaba, foram realizados os primeiros contatos, onde se
confirmava a existência destes documentos em seu processo. Sendo cada contato
singular e por formas distintas (e-mail, telefone, conversas), partia-se então para
encontros onde eram registrados e/ou coletados o material disponibilizado.
Até a presente etapa, foram coletados documentos de processo dos seguinte
artistas: Nenna B, Luciano Cardoso, Melina Almada Sarnaglia, Jô Name, Juliana
Morgado, Mônica Nitz, Ricardo Maurício, Piatan Lube e João Wesley de Souza.
Abaixo segue listado abaixo uma caracterização do artista, a maneira de abordagem
e o teor e a quantidade de documentos coletados.
Nenna B: Artista atuante na cena capixaba desde a década de 70 foi um
dos primeiros a introduzir os conceitos da arte contemporânea no Espírito Santo.
Transitou por instalações, esculturas, vídeos, produção de eventos culturais etc. Em
1985 lancou o livro “Vereda Tropicália”, mesclando poesia com roteiro e em 2004
“Bíblia”, uma retrospectiva de sua obra.
Foram realizados dois encontros com o artista e a partir do contato com sua
produção foi feita a coleta de todo material disponibilizado: 23 arquivos digitais,
projetos futuros, divididos em 4 pastas: Escultura, Gravuras, Ocean Paik e R2010.

396 art uerj III semana de pesquisa em artes


Luciano Cardoso: Durante sua orientação ao Ateliê Ocupação na Galeria
Homero Massena, Vitória – ES, foram realizados diversos encontros e conversas
informais com o artistas. A partir deste contato com seu processo de produção em
pintura neste espaço, foram cedidos 8 cadernos de artista, de datas variadas. Alguns
possuem projetos, outros são somente de desenhos e outros mesclam desenhos e
texto. Todo o material foi digitalizado, totalizando 444 arquivos.
Melina Almada Sarnaglia: Foram realizados vários encontros e conversas
informais na casa da artistas, onde foi levantado seu material de processo (arquivos
digitais). O conjunto é formado 498 documentos, projetos (realizados ou por realizar),
fotografias e textos de reflexivos.
Jô Name: Artista e professor com formação em Comunicação Social têm seu
universo ligado intensamente à fotografia e vídeo (disciplinas que leciona). Possui
várias exposições coletivas e individuais, a maioria dedicada a fotografia, mas nos
últimos anos trabalha com conceitos de instalação, site-specific e intervenção urbana,
como nas exposições “Suspensão” (2002), projeto Vitrine Efêmera no Ateliê DZ9 e no
projeto “Atenção Arte” (2008) participante da VIII Bienal do Mar em Vitória – ES.
Nos dois encontros realizados com o artistas foi realizada o levantamento
e coleta do material disponibilizado, sendo estes todos documentos de processo
de realização do projeto “Atenção Arte”. Foram 302 arquivos digitais, projetos e
fotografias do local antes da intervenção e posteriores com sua interação na cidade.
Juliana Morgado: Artista e professora dos cursos de Design e Artes Plásticas
e Visuais, sua pesquisa centra-se, sobretudo, nas práticas de apropriação na arte
contemporânea, bem como seus efeitos de sentido e, produz, como artista plástica,
instalações e intervenções que se apropriam da linguagem publicitária e das práticas
cotidianas.
Depois de contatos telefônicos e por e-mail, foi disponibilizado material
para digitalização. São ao todo 124 documentos divididos em documentos avulso
(protótipos, amostras e orçamentos) e fotografias.
Mônica Nitz: Sua pesquisa gira entorno do desenho, pintura e vídeo. Realizou
duas exposições coletivas no último ano, “Construção” um trabalho que ocorre
no espaço/tempo da exposição, centrada no processo de produção da pintura e

397 art uerj III semana de pesquisa em artes


“Anagrama” realizada entre maio e agosto na galeria Casarão em Viana, ES.
Desta última exposição citada, fazem parte todos os documentos de processo
cedidos pela artista. São 9158 documentos, constando basicamente de arquivos
digitais (fotos e vídeos) divididos em pastas pela própria artista afim de melhor
“organizar” seu processo.
Ricardo Maurício: Artista e professor, tem sua pesquisa e produção voltada
para o desenho, performance. Possui ampla produção literária e exposição coletivas
e individuais.
A partir de contatos via e-mail, foram realizados dois encontros e
posteriormente disponibilizado também via e-mail, 16 documentos, estudos de
desenhos realizados pelo artista na década de 70.
Piatan Lube: Tem sua produção voltada para a intervenção urbana e site-
specific, participou com o projeto “Caminho das Águas” da VIII Bienal do Mar de
Vitória, ES e a continuação deste projeto foi selecionado no Edital Arte e Patrimônio
de 2009.
Após três encontros e conversas informais, foi disponibilizado via e-mail,
material referente à realização do projeto para o Edital Arte e Patrimônio; além
de fotografias feitas pela fotógrafa Luara Monteiro, durante a realização da obra
“Caminho das Águas” na Bienal do Mar.
João Wesley de Souza: Artista e professor, sua produção e pesquisa está
centrada na escultura e instalação. Atua também como crítico e curador.
Depois de três encontros e conversas informais, foi cedido material de
processo. Trata-se de um caderno de artista de 30 páginas, fotografado pelo artista,
contendo projetos e estudos a realizar.
A pesquisa a partir deste ponto continuará colhendo outros dados e
informações a cerca dos processos de criação de outros artistas capixabas
contemporâneos, por meio de entrevistas. Será feito um levantamento de todo o
material coletado e a catalogação dos mesmos. Todo o material digitalizado será
arquivado, objetivando a criação de um banco de dados, para uso em pesquisas
futuras.

398 art uerj III semana de pesquisa em artes


Documentos de
processo de Melina
Almada – projeto e
fotografias do trabalho
Marí(n)timo.

399 art uerj III semana de pesquisa em artes


1 - Melina Almada e Luciano Cardoso: um recorte da arte contemporânea capixaba
No desenvolvimento da pesquisa apresentada, faz-se necessário o estudo
mais específico do processo de criação dos artistas contemporâneos no Espírito
Santo. Assim, a fase atual da investigação, que resulta neste artigo, buscar entender
as tendências e intencionalidades do projeto poético de dois artistas em particular:
Luciano Cardoso e Melina Almada.

1.1 - Melina Almada: Artista capixaba, nascida em 1982 vem firmando seu
trabalho nos últimos anos. Já participou de inúmeras exposições coletivas em
Vitória e teve seu trabalho “Marí(n)timo” incluído na última Bienal do Mar (2008).
Possui um trabalho de caráter altamente conceitual, produzindo sempre a partir de
variados estudos, pesquisas, rascunhos, o que faz do estudo de seus documentos
de processo de criação, ferramenta fundamental para resgate e melhor compreensão
de sua poética. Formada em Artes Plásticas pela Universidade Federal do Espírito
Santo, cursa agora o Mestrado em Artes na mesma instituição.
Em uma primeira leitura, os documentos coletados da artista demonstram a
presença em sua produção deste caráter conceitual e fundamentalmente ligado a
escrita. Tratam-se em sua maioria de textos de projetos, reflexões sobre leituras e
também fotografias que mostram o processo de construção de trabalhos realizados.

1.2 - Luciano Cardoso: Nascido em Vitória, 1971, formado em Artes Plásticas


pela Universidade Federal do Espírito Santo e pós-graduado em Arteterapia na UCAM
/ Vitória. Realizou trabalho de docência em várias instituições de ensino fundamental e
superior e como educador social em Artes nos últimos anos. Tem uma produção de arte
intensa e farta, que toca as mais diversas especificidades artísticas: pintura, objetos,
instalações, vídeos etc. Realizou várias exposições individuais e coletivas e no último
ano foi professor orientador do Ateliê Ocupação, da Galeria Homero Massena.

Uma das características mais notáveis, em uma inicial leitura dos documentos
de processo, é a multiplicidade de meios utilizados pelo artista. Apesar de percebermos
uma forte influência da pintura e desenho nos documentos coletados, também é

400 art uerj III semana de pesquisa em artes


Documentos de
processo de Luciano
Cardoso – Caderno 07,
imagem 004 e Caderno
05, imagem 007.

401 art uerj III semana de pesquisa em artes


importante a presença de estudos de projetos de instalação e outros objetos utilizando
os mais variados materiais. Além disso percebe-se a presença constante de reflexões e
trechos de textos lidos, que fazem parte, as vezes do próprio desenho de seus projetos.

2 – Algumas considerações sobre este estudo e seus desdobramentos


A partir dos documentos levantados até agora, buscaremos recortar seu
conjunto em busca de constituir o prototexto que permitirá aprofundarmos no estudo
de cada um desses artistas.
O estudo desses casos, em particular, buscará entender um pouco da mente
criadora desses artistas, tentando revelar nuances que a obra terminada nunca
evidencia. No caso desses artistas, essa revelação pode evidenciar o caráter
processual de seus trabalhos.
Concluindo, destacamos que este é ainda um texto preliminar, cuja meta é
apresentar o estágio atual desta pesquisa importante para a construção de uma
história da arte e da cultura contemporânea no Espírito Santo.

Referências bibliográficas
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CIRILLO, José. Pela Fresta: memória como matéria no processo de criação de Shirley Paes Leme. Farol.
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COLOMBO, Fausto. Os Arquivos Imperfeitos. São Paulo ; Perspectiva, 1991
CONTAT, Michael; FERRER, Daniel. Porquoi la critique génétique? Paris: CNRS Editions, 1998.
HAY, Louis. Pour une sémiotique du mouvemente. Gênesis, n. 10, 1996
______. A montante da escrita. Tradução de José Renato Câmara. Papéis Avulsos, Rio de Janeiro:
Fundação Casa Rui Barbosa, n. 33, p. 5 -19, 1999.
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SALLES, Cecília Almeida. Crítica Genética: uma (nova) introdução. São Paulo: Educ, 2000.
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TADIÉ, Jean-Yves; Marc. Le sens de la mémoire. Paris: Gallimard, 1999.
ZULAR, Roberto (Org.) Criação em processo: ensaios de crítica genética. São Paulo: Iluminuras, 2002.

402 art uerj III semana de pesquisa em artes


III semana de pesquisa em artes
10 a 13 de novembro de 2009 art uerj
teoria e historiografia da arte

Sobre a importância das Brillo boxes para o conceito de arte de Arthur Danto

Agnaldo Rego de Matos Junior

Bacharelado em História da Arte – UERJ

O filósofo Arthur C. Danto estrutura sua definição do conceito de arte a partir do problema da
indiscernibilidade entre obras de arte e objetos comuns. O presente trabalho busca investigar
as razões que o levaram a defender a originalidade das Brillo boxes de Andy Warhol como um
problema filosófico para o conceito de arte apesar da precedência dos readymades de Marcel
Duchamp.

Conceito de arte; historicismo; filosofia da arte.

Philosopher Arthur C. Danto structures his definition of the concept of art through the principle
of indiscernibility of works of art and common objects. The current work aim to investigate the
reasons that lead him to consider the originality of Andy Warhol’s Brillo Box as a philosophical
problem to the concept of art in spite of Marcel Duchamp’s readymades.

Concept of art; historicism; philosophy of art.

São de fundamental importância para o estudo da arte contemporânea as reflexões


filosóficas de Arthur Danto sobre a crise da representação nos anos 60 e suas implicações
para as idéias de fins da modernidade, da história da arte, da estética e da própria
arte. Todos esses temas estão intrinsecamente relacionados em seu sistema filosófico,
notadamente historicista e essencialista, na formulação de uma teoria para definição
do conceito de arte. O presente trabalho tem por objetivo investigar o conceito de arte
proposto por Danto, particularmente no que diz respeito à originalidade das Brillo boxes de
Andy Warhol tendo em vista a precedência dos readymades de Marcel Duchamp.

403
Ainda no início do que poderia vir a ser uma bem sucedida carreira como
pintor, Duchamp perde o interesse pela pintura por discordar da excessiva teorização
em torno de questões formais levada a cabo por artistas de vanguarda que, segundo
ele, com exceção dos surrealistas, ainda mantinham uma relação “retiniana” com
a pintura. Em 1913 realiza um trabalho formado por uma roda de bicicleta invertida
colocada sobre um banco. Mas havia ainda algo da “mão do artista” ao unir esses
objetos que Duchamp chamava de “readymade assistido”1. Em 1914 apresenta,
então, o Porta-garrafas, objeto pronto sem nenhuma intervenção do artista. A este
objeto sucederam uma pá de neve (1915) e, finalmente, a mais famosa e controversa
de suas obras, o urinol (1917) intitulado A Fonte. Segundo Duchamp, a escolha de
seus objetos era guiada pela “indiferença visual” e “ausência total de bom ou mau
gosto” com a intenção de não produzir nenhuma “emoção estética” 2. Assumia,
assim, uma postura de independência em relação aos movimentos da época, sendo
seus gestos comumente interpretados como ataques ao sistema de arte, desafios
aos juízos de gosto e de valor ou simples brincadeiras. Sua obra, no entanto, requer
uma participação criativa e imaginativa do espectador - o que seria explorado pelos
artistas conceituais meio século depois.
Nos anos 60 nos Estados Unidos surgem as neovanguardas, como a Pop Art,
o Minimalismo e a Arte Conceitual, que se inserem no debate sobre ampliação dos
limites da arte em oposição à teoria estética modernista desenvolvida em torno do
Expressionismo Abstrato, às idéias de especificidade do meio pictórico e de essência
da pintura e à associação desta com os estados de espírito do artista.
Alguns críticos e historiadores classificaram a Pop de neodadaísta. Para Harold
Rosenberg, a Pop sofria de uma “superficialidade congênita” que “resultou numa
monotonia qualitativa que até podia despertar algum interesse como piada, mas que
estava fadada a perder a graça de um dia para o outro” 3. Para Danto, ao contrário,
por trás do aparente “espírito de brincadeira” de Warhol havia uma seriedade que
“parecia ser quase de outro mundo” 4.
Danto começou a se “interessar pela arte pop depois de ver uma tela de Roy
Lichtenstein reproduzida no Artnews” 5, mas foi após o contato com as Brillo boxes de
Andy Warhol, na Stable Gallery de Nova Iorque em 1964, que ele formulou a questão6

404 art uerj III semana de pesquisa em artes


“como um objeto adquire o direito de participar, como obra, do mundo da arte?” 7, que
vem a ser o ponto de partida para sua busca pela definição do conceito de arte.
Danto situa o trabalho de Warhol em meio às reflexões sobre o “retorno à
linguagem ordinária” empreendidas pelos “maiores filósofos do período” 8. Segundo
ele, Warhol “violou todas as condições tidas como necessárias a uma obra de arte
mas, ao fazer isso, revelou a essência da arte” 9. A essência da arte é objeto de
investigação filosófica que foge do escopo de nosso trabalho. O que pretendemos
aqui é investigar os motivos que levaram Danto a prescindir dos readymades de
Duchamp ao defender a originalidade das Brillo boxes. Tomaremos como referência
o livro A transfiguração do lugar comum, “obra rigorosamente filosófica” 10 em que
Danto estrutura sua teoria para a definição de um novo conceito de arte.
Partindo da idéia de que toda obra de arte diz respeito a alguma coisa e que,
portanto, “toda arte é representacional”, Danto fundamenta o princípio de que “a
obra de arte é um veículo de representação que corporifica seu significado”. O ponto
fundamental, “a chave para entender a corporificação”, passa a ser a interpretação.
Em seu sistema, a missão do crítico será “identificar o significado de uma obra
e mostrar como o objeto em que o significado está corporificado efetivamente o
incorpora” 11.
Danto recorre à filosofia da linguagem12 para demonstrar que assim como
o significado de uma palavra ou de um signo qualquer depende do contexto, o
significado de uma obra de arte requer uma interpretação contextualizada no
“mundo da arte”. Assim, o problema da impossibilidade de diferenciar visualmente
um objeto artístico de um comum, que não poderia ser resolvido através da análise
de propriedades formais, é resolvido a partir da interpretação da obra em termos
filosóficos mediante profundo conhecimento da história da arte. Segundo Virginia Aita:

[O livro A transfiguração do lugar comum] fornecia o elenco de condições


necessárias e (conjuntamente) suficientes para identificar uma obra
de arte: o “método dos indiscerníveis”, segmentado em cinco estágios
ou condições de possibilidade a serem satisfeitas por uma obra de
arte qualquer, a saber: 1) que são sempre sobre alguma coisa, têm

405 art uerj III semana de pesquisa em artes


conteúdo semântico; 2) projetam um ponto de vista ou atitude sobre
aquilo que são sobre; 3) projetam este ponto de vista por meio de elipses
retóricas/ metáforas; 4) requerem uma interpretação que é constitutiva
da sua identidade (artística); e finalmente, (5) esta interpretação é
historicamente localizada num mundo da arte pertinente.13

O problema da indiferença visual entre Brillo boxes e caixas de sabão


comuns nos remete aos readymades. Danto tem consciência disso ao afirmar
que “a precedência de Marcel Duchamp projeta uma certa sombra sobre todos os
subseqüentes esforços de delimitar as fronteiras da arte”14, mas conclui que:

Talvez, ao entender que um urinol podia ser um objeto de arte, ele


[Duchamp] tenha antecipado a sentença de Warhol de que “qualquer
coisa pode ser uma obra de arte”. Não levantou, entretanto, a outra parte
da questão, a saber: Por que todos os outros urinóis não eram obras de
arte? Mas essa foi justamente a estupenda questão de Warhol: Por que
a Brillo Box era uma obra de arte enquanto as caixas de Brillo comuns
eram meras caixas de Brillo? 15

Assim, Danto coloca a questão em dois tempos: em um primeiro momento


Duchamp demonstra que qualquer coisa pode ser arte; num segundo momento
Warhol transforma esse procedimento numa questão filosófica, o que demonstra um
sentido de progressão histórica da arte e teoria artística. Esse senso histórico de
Danto tem grande influência na forma como ele interpreta os trabalhos de Duchamp
e Warhol, o que mostraremos a seguir em comparação às interpretações de outros
estudiosos a respeito dessas obras.
Segundo Danto, como obra de arte, a Fonte teria “propriedades que os urinóis
em geral não têm: é ousada, insolente, irreverente, espirituosa e inteligente”16, e,
como objeto comum, o urinol seria “altamente carregado de conotações, associado
com algumas das fronteiras mais duramente defendidas na sociedade moderna, a
saber, as diferenças entre os sexos, a segregação do processo de eliminação do

406 art uerj III semana de pesquisa em artes


resto da vida, e um mais inteiro elenco de associações tendo a ver com privacidade,
saneamento, e coisas afins”17. Já uma caixa de sabão comum é algo “público, banal,
óbvio, e desinteressante”18. Será que não podemos inverter essa argumentação e
considerar o urinol algo público, banal e desinteressante, enquanto uma caixa de
sabão exposta numa galeria adquire um caráter ousado, insolente e irreverente?
Danto prossegue com a hipótese de que “Se o que transformou a Fonte numa
obra de arte fossem somente as qualidades que ela tem em comum com os urinóis, a
pergunta pertinente seria o que faz dela, e não os demais urinóis, uma obra de arte”19.
Sua argumentação revela que o significado do urinol artístico vai além da mera
semelhança com um urinol comum. Duchamp teria selecionado um objeto carregado
de conotações simbólicas, enquanto Warhol havia decidido transformar em arte
um objeto banal e desinteressante que parece testar a possibilidade de experiência
estética. Mas o que dizer então do porta-garrafas ou da pá de neve de Duchamp?
Que tipo de significado ontológico podemos extrair desses objetos? Não seria a
“revelação” das Brillo boxes para Danto uma experiência estética?
O problema da indiscernibilidade revela uma antiga questão da filosofia da arte
que nos remete a mimese de Platão e que, portanto, diz respeito aos conceitos de
imagem, de realidade e verdade. Sobre essa questão, Danto nos diz que:

Diferente de Duchamp, Warhol procurou traçar uma ressonância não


tanto entre a arte e os objetos reais quanto entre a arte e as imagens. O
que foi o seu insight (...) é que os nossos sinais e imagens são a nossa
realidade. Vivemos em uma atmosfera de imagens, e estas definem a
realidade da nossa existência.20

Segundo Marco Giannotti, Warhol talvez não estivesse querendo “resolver o


problema da dualidade entre a essência e a aparência”, porém a interpretação de sua
obra à luz da tradição platônica evidencia “a busca por uma imagem original [que] se
revela sempre incompleta”21. Assim, se as caixas de sabão dos supermercados são a
imitação da idéia que se tem de uma caixa de sabão, as Brillo boxes artísticas seriam
a imitação da imitação, distanciando-se da idéia original e da verdade. Suas séries

407 art uerj III semana de pesquisa em artes


de serigrafias feitas a partir de fotografias são a imagem da imagem. Sua estratégia
de simulacro e repetição talvez revele “aspectos contraditórios deste mundo cada
vez mais destituído de imagens originais”. Giannotti pergunta se Warhol não estaria
“seguindo a vertente duchampiana de questionar o velho mito romântico que busca
sempre uma originalidade genial” 22.
Alguns pesquisadores discordam da noção corrente compartilhada por Danto,
Lucy Lippard e outros, de que a Pop promovia uma assimilação positiva da cultura de
massa e da vida moderna. Hal Foster, por exemplo, interpreta a obra de Warhol do
ponto de vista da psicanálise lacaniana, chegando a significados bem diferentes. Em
sua teoria, as imagens de fatos reais são entendidas como uma espécie de anteparo
entre o espectador e o objeto representado, na medida em que revelam e ao mesmo
tempo ocultam o real. As cenas de desastres estariam relacionadas com o trauma
causado pela morte, cuja superexposição da imagem pela repetição seria a solução
paradoxal encontrada por Warhol para lidar com o problema - uma espécie de fuga da
realidade.
A respeito dessa relação entre arte e vida, Fernanda Torres afirma que Warhol
“reconhece sua impotência diante do que definitivamente não pode ser mudado”
23
e empreende uma retirada do significado da imagem a partir de sua repetição.
Assim, sua obra pode ser vista como uma problematização dos hábitos de consumo
americanos e da saturação da imagem veiculada nos mais diferentes meios - TV,
revistas, jornais, outdoors, etc.. Nessa perspectiva a Pop Art vai além da simples
dicotomia entre crítica ou assimilação positiva de sua época. Ela não poderia criticar
aquilo que havia incorporado em sua poética e tampouco poderia celebrar o trágico e o
inevitável. A Pop revela a padronização e homogeneização do estilo de vida americano
e a banalização e vulgarização de tudo - de imagens de celebridades a acidentes de
carro. As imagens de Warhol seriam superficiais como a própria vida moderna, um tipo
de postura do artista para com seu tempo já previsto no pensamento de Baudelaire.
Segundo Giannotti: “O artista moderno se interessa vivamente pelas coisas, por mais
triviais que sejam, e o mundo é seu domínio”24. Como verificar a possibilidade de um
artista resignado ou traumatizado ter interesse vivo pelas coisas triviais e produzir uma
arte de “celebração da vida contemporânea”25 é, portanto, um desafio.

408 art uerj III semana de pesquisa em artes


Danto se considera um essencialista e um historicista, tentando conciliar a
teoria de que “a arte é sempre a mesma – que existem condições necessárias e
suficientes para algo ser uma obra de arte invariáveis quanto ao tempo e o lugar”
com a teoria de que “o que é uma obra de arte em um certo tempo não pode sê-lo
em outro”26. Quando afirma que a “existência da arte depende de teorias” e “nada é
uma obra de arte sem uma interpretação que a constitua como tal”27 verificamos o
paradoxo entre a idéia de uma ontologia da obra de arte e sua interpretação dentro
de um contexto histórico e cultural.
Segundo Virginia Aita, a lógica hegeliana de desenvolvimento histórico da arte
utilizada por Danto revela que o problema da indiscernibilidade entre objetos artísticos
e ordinários não poderia “ter surgido como um problema filosófico num momento
anterior da história da arte”28. No ensaio “The Artworld”, escrito em 1964, Danto faz
sua primeira reflexão filosófica sobre o conceito de arte motivado pelo recém contato
com as Brillo boxes. Segundo ele:

O que afinal faz a diferença entre uma caixa de sabão Brillo e uma obra
de arte que consiste em uma caixa de sabão Brillo é uma certa teoria da
arte. É esta teoria que a leva ao mundo da arte, e impede que se desfaça
no objeto real que ela é (...). É claro, sem a teoria, é difícil vê-la como
arte, e com objetivo de vê-la como parte do mundo da arte, deve-se ter
domínio de teoria artística bem como de uma quantidade considerável
da história da pintura recente em Nova York. Isto não poderia ser arte
cinqüenta anos atrás. 29

Como as Brillo boxes não poderiam ser arte se Duchamp já havia provado que
qualquer coisa pode ser arte parece ser uma contradição. A justificativa de Danto se apóia
dentro de uma perspectiva histórica em que a arte evolui junto com a teoria artística,
sendo a década de 60 o período de “ruptura e descontinuidade”30 onde Warhol havia
demonstrado que “nenhum critério visual serviria ao propósito de definição de arte”31. A
partir daí, os artistas contemporâneos teriam “se transformado em pensadores visuais (...)
os filhos/herdeiros de Duchamp, que lhes mostrou como fazer filosofia fazendo arte” 32.

409 art uerj III semana de pesquisa em artes


Segundo Danto, as duas questões supostamente originais apresentadas pelas
Brillo boxes e que puseram fim a um século de investigações filosóficas dos artistas
modernos33 são: saber o que fez com que elas se tornassem não somente possíveis
mas inevitáveis dentro da história da arte e o que as torna arte enquanto as caixas
originais eram apenas caixas. Será que a contribuição de Duchamp para a arte não
pode ser encarada como um problema filosófico?
Segundo Yve-Alain Bois, o grande feito de Duchamp foi apresentar “o objeto
artístico como um tipo especial de mercadoria” evidenciando que “objetos de arte são
fetiches absolutos”34, ou seja, objetos essencialmente sem uso prático, sem função.
Os readymades são um problema para o juízo de gosto e de valor e contribuíram
de forma definitiva para a ampliação dos limites da arte. A tese de Danto de que
arte e teoria andam juntas implica aceitar que à época de Duchamp ambas não
estavam preparadas para interpretar o readymade como um problema filosófico, ou
seja, a possibilidade filosófica do conceito de arte surge do próprio desenvolvimento
histórico da arte. Segundo ele, as Brillo boxes demonstram que a “história da arte
não foi interrompida, mas acabada”35 e que a partir daí a arte entra em sua fase “pós-
histórica”. O desfecho da história da arte é então o resultado da autoconsciência
filosófica adquirida pela arte – aos moldes da consciência que a filosofia tem de sua
própria disciplina.
O sentimento de um fim da arte foi despertado simultaneamente em vários
artistas e teóricos a partir dos anos 70, ao mesmo tempo em que o modelo de história
da arte como seqüência de estilos e movimentos passou a ser problematizado
ou mesmo rejeitado. Para o historiador da arte Hans Belting, por exemplo, tanto
a arte quanto a história da arte são “ficções” da cultura européia e Duchamp teria
demonstrado isso através de seus trabalhos. Belting, ao contrário de Danto, parece
perceber que tentar localizar na história da arte um evento que confirme seu fim
seria um paradoxo. Seria como adotar o modelo de história que se deseja rejeitar
inserindo neste modelo um último fato, ou seja, usar um artifício historicista para
negar o historicismo. Assim, Belting procura apenas demonstrar através de exemplos
que o modelo apresenta falhas, que o conceito de arte e de história da arte são um
problema da cultura ocidental, enquanto Danto acredita na evolução teleológica

410 art uerj III semana de pesquisa em artes


da arte a confirmar simultaneamente a célebre frase de Wölfflin de que “nem tudo
é possível em todos os tempos” e a tese de Hegel de que ao fim da arte sucede a
verdade filosófica.
O conceito de arte é retomado por Thierry De Duve também com relação
a Duchamp. De Duve aponta que os artistas conceituais foram os que mais se
dedicaram a defender a separação entre arte e estética, chegando a formalizar
teorias sobre o assunto. No ensaio Arte depois da Filosofia, publicado em 1969 no
periódico Studio International, Joseph Kosuth “sustenta uma distinção entre arte e
estética e rejeita toda arte convencional desde Duchamp”36. Já não bastava o fato de
qualquer coisa poder ser um obra de arte, era preciso explorar novas possibilidades
de arte como idéia e como linguagem e suas implicações para o conceito de arte.
Desta forma a Arte Conceitual promove uma investigação mais profunda e sistêmica
a respeito da natureza da obra de arte do que a Pop Art.
Retomando a Crítica da Faculdade do Juízo de Kant tendo em vista a
revolução causada pelos readymades de Duchamp, De Duve propõe uma espécie
de ampliação do conceito de estética através do deslocamento do juízo estético
kantiano, que ele chama de “juízo clássico”, para um novo tipo de julgamento que ele
denomina de “juízo estético moderno”. Esse julgamento estético moderno repousa
sobre a afirmação de que algo é arte, ou seja, há um deslocamento do juízo do tipo
“Isto é belo” para “Isto é arte”. Como para Kant o juízo de gosto é um juízo individual
subjetivo, baseado em conceito indeterminado, supra-sensível, ou seja, é uma Idéia
da razão, De Duve conclui que podemos “considerar que a palavra “arte” conflagra
gênio e “gosto” e se refere tanto a uma “inapresentável” Idéia estética quanto a uma
“indemonstrável”37 Idéia racional. Considerar um readymade uma obra de arte é,
portanto, um exercício da faculdade de julgamento estético reflexivo.
No ensaio Marcel Duchamp e o fim do gosto, Danto afirma que Duchamp foi
o primeiro a romper com a possibilidade de julgamento da obra a partir do gosto e
conseqüentemente com a estética relacionada ao conceito de belo. Segundo ele,
foi com Duchamp que “o conceito de gosto desapareceu da avaliação crítica de
obras de arte”, pondo “um fim naquele período do pensamento e da prática estéticos
comprometidos (...) com o “Padrão do Gosto” ”38. Danto conclui que a “superação do

411 art uerj III semana de pesquisa em artes


gosto foi um efeito dos seus readymades de 1915-1917, destinados a exemplificar
a mais radical dissociação entre estética e arte”39. Mas se Duchamp rompeu com o
gosto e separou a arte da estética, não seria este o momento histórico de revisão do
conceito de arte?
A solução encontrada por De Duve - que parece se adaptar genericamente como
critério para definir ou chamar de arte qualquer objeto de qualquer época, permitindo
reafirmar esse julgamento no tempo e no espaço em função do gosto individual - parte
da aceitação do fato de que todo ser humano possui a capacidade criativa (inata ou
adquirida) de julgar, e que ao reconhecer um objeto como obra de arte, o espectador
está exercendo seu juízo estético reflexivo (o gosto) e participando do gênio artístico,
ou seja, reiterando o julgamento do artista no momento da criação ou escolha do
objeto. Neste caso, os movimentos dos anos 60 que retomaram o uso dos readymades
reiterariam a conclusão a qual Duchamp havia chegado, ou seja, de que é possível
retirar os objetos comuns da Terra para introduzi-los no “planeta da estética”40.
Afinal a pergunta “Por que a Brillo Box era uma obra de arte enquanto as
caixas de Brillo comuns eram meras caixas de Brillo?” talvez não seja a “estupenda
questão de Warhol”, mas sim a de Danto. O filósofo localiza o problema da
indiscernibilidade dentro de uma perspectiva histórica coincidindo seu insight com
as Brillo boxes com o momento de crise da estética modernista e com as primeiras
teorias a respeito do fim da arte e da história da arte. Sua abordagem teleológica da
história da arte impõe a necessidade de um marco que estabeleça esses fins. Assim,
a Brillo box é apresentada como o primeiro objeto a questionar o conceito de arte,
o que significa o alcance da autoconsciência filosófica da arte e o fim da narrativa
modernista. Fazer e interpretar a arte tornaram-se, a partir de então, exercícios
de filosofia. Tal justificativa para a originalidade de Warhol faz com que o feito de
Duchamp, 50 anos antes, seja visto como uma exceção dentro do modernismo ou
pré-condição para evolução da arte que acabaria em filosofia.
Interpretar os readymades fora do contexto historicista é condição, se não
suficiente pelo menos necessária, para perceber que a obra de Duchamp inaugura a
possibilidade de investigação filosófica sobre o conceito de arte, ainda que não tenha
sido compreendida pela filosofia da arte de seu tempo.

412 art uerj III semana de pesquisa em artes


Referências bibliográficas
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Notas
1 CABANNE, Pierre. Marcel Duchamp: Engenheiro do tempo perdido, 2008. p.92.
2 Ibid., p.80.
3 ROSENBERG, Harold. Objeto ansioso, 2004. p.31.
4 DANTO, Arthur C.. O filósofo como Andy Warhol, 2004. p.104.
5 Id. A transfiguração do lugar comum: uma filosofia da arte, 2005. p.15.
6 A procura pela resposta para essa questão o levou a publicação do ensaio The Artworld (1964) e dos
livros A transfiguração do lugar comum (1981) e Após o fim da arte (1984).
7 DANTO. Op. cit., 2005, p.16.
8 Id. Op. cit., 2004, p.111.
9 Ibid., p.100.
10 AITA, Virginia A.. Arthur Danto: narratividade histórica “sub specie aeternitatis” ou a arte sob o olhar do
filósofo, 2003. p.154.

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11 DANTO. Op. cit., 2005, p.19.
12 No ensaio O filósofo como Andy Warhol, Danto cita as obras de Wittgenstein, Investigações
Filosóficas e Tractatus Logico-Philosophicus, para afirmar a necessidade da contextualização para
obtenção do significado.
13 AITA. Op. cit., 2003, p.154-5.
14 DANTO. Op. cit., 2004, p.107.
15 Ibid., p.108.
16 DANTO. Op. cit., 2005, p.150.
17 Id. Op. cit., 2004, p.108.
18 Ibid.
19 DANTO. Op. cit., 2005, p.150.
20 Id. Op. cit., 2004, p.113.
21 GIANNOTTI, Marco. Andy Warhol ou a sombra da imagem, 2004. p.120.
22 Ibid., p.120.
23 TORRES, Fernanda Lopes. Off register: o retrato por Andy Warhol, 2007. p.117.
24 GIANNOTTI. Op. cit., 2004, p.125.
25 DANTO, Arthur C.. Encounters and Reflections: Art in the historical present, 1997. p.289. tradução nossa.
26 AITA. Op. cit., 2003, p.159.
27 DANTO. Op. cit., 2005, p.202.
28 AITA. Op. cit., 2003, p.146.
29 DANTO, Arthur C.. The Artworld, 1964, tradução nossa.
30 Id. Op.cit., 1997, p.7, tradução nossa.
31 Ibid., p.287, tradução nossa.
32 DANTO, Marcel Duchamp e o fim do gosto: uma defesa da arte contemporânea, 2008, p.27.
33 DANTO. Op.cit.Ibid., p. 288, tradução nossa.
34 BOIS, Yve-Alain. Pintura: a tarefa do luto, p.104.
35 DANTO. Op. cit., 2005, p.26.
36 WOOD, Paul. Arte Conceitual, 2002, p.43.
37 Segundo De Duve, “no vocabulário kantiano, apresentável significa “o que pode ser estabelecido
teoricamente”, demonstrável, “o que pode ser mostrado aos sentidos” ”, Ibid., p.142.
38 DANTO, Arthur C.. Marcel Duchamp e o fim do gosto: uma defesa da arte contemporânea, 2008. p.21.
39 Ibid., p.22.
40 DE DUVE. Op. cit., 1998, p.131.

414 art uerj III semana de pesquisa em artes


III semana de pesquisa em artes
10 a 13 de novembro de 2009 art uerj
teoria e historiografia da arte

Arte e História após o anúncio do “fim”, segundo Arthur Danto e Hans Belting

Danielle Rodrigues Amaro

Mestranda em Artes pelo IAR/ Unicamp (bolsista CAPES);


Graduada em História da Arte pelo ART – UERJ

Objetiva-se apresentar os trabalhos de Arthur Danto e Hans Belting, tendo em vista o contexto
do qual emergem (o lugar do discurso) para, com isso, esclarecer o que entendem por “fim”,
elucidando pontos fundamentais do pensamento de ambos.

Arthur C. Danto; Hans Belting; o fim da história da arte.

This article presents the work of Arthur Danto and Hans Belting, given the context in which they
arise (the place of speech) to thereby clarify what they mean by “end”, explaining main points of
their thoughts.

Arthur C. Danto; Hans Belting; the end of Art History.

1. Da anunciação ao apocalipse
Em 1984, o crítico de arte e professor de filosofia Arthur Coleman Danto (1924)
publicou o ensaio The End of Art [O Fim da Arte] no livro The Death of Art [A Morte da Arte],
editado por Berel Lang1. Segundo Danto, este foi o primeiro de outros ensaios sobre o fim
da arte que escreveria nos anos que se seguiram. Um ano antes, no entanto, o historiador
da arte alemão Hans Belting (1935) já publicara Das Ende der Kunstgeschichte? [O fim
da história da arte?]. Sobre o sincronismo de percepção e abordagem do tema, Danto
justificará (anos depois que ele e Belting publicaram seus textos quase ao mesmo tempo –
ainda que ignorando totalmente o pensamento um do outro) que tal simultaneidade deveu-
se à percepção vívida que ambos tiveram de que alguma mudança histórica ocorrera nas
condições de produção das artes visuais (DANTO, 2006, pp.3-4).
415
Uma década depois, Hans Belting irá publicar uma edição revisada de Das
Ende der Kunstgeschichte?. Salienta o historiador no prefácio desta nova edição
a notável diferença entre a primeira e a segunda publicação: a supressão do sinal
de interrogação (o título original, Das Ende der Kunstgeschichte?, foi modificado
para Das Ende der Kunstgeschichte: Eine Revision nach zehn Jahre [O fim da
história da arte: uma revisão dez anos depois]). Belting esclarece que aquilo que
se apresentara anteriormente para ele como uma pergunta, tornou-se certeza com
o passar dos anos e a aproximação da virada do século XX. Contudo, o historiador
salienta: “não se trata de algumas palavras de ordem convincentes, mas de juízos e
observações que precisam de espaço onde se desenvolver e que, além disso, são
tão provisórias como, afinal, é provisório tudo o que hoje vem à baila” (BELTING,
2006, p.9).
Assim como Belting, após aproximadamente uma década da declaração
original, Danto publica After the end of art: contemporary art and the pale of history
[Após o fim da arte: a arte contemporânea e os limites da história], um tratamento
expandido da temática do primeiro ensaio, como uma tentativa de atualizar a idéia,
formulada outrora ainda de modo “um tanto vago”, sobre o fim da arte.

2. O lugar do discurso
a. Hans Belting e a tradição alemã
Belting relata no prefácio da edição revisada que o ensaio originário de Das
Ende der Kunstgeschichte? e de sua ulterior revisão (uma década após) tratava-se
de uma aula inaugural que empreendera “num gesto de revolta contra as tradições
falsamente geridas”, em ocasião dos primeiros anos que lecionara na Universidade
de Munique2. O historiador ressalta que uma série de mal-entendidos surgiram com
relação ao título (e continuam a surgir). Como agravante, acrescenta-se a irritação
do público justificada pela descrição da disciplina realizada no primeiro ensaio,
apesar de não ter sido seu objetivo “uma crítica abrangente da ciência ou do método.”
Salienta ainda que, no novo ensaio, a ciência da arte não é mais colocada no centro:
“Hoje meu interesse crítico cultural encontra-se mais nas condições que formam a
sociedade e as instituições” (BELTING, 2006, p.9).

416 art uerj III semana de pesquisa em artes


Em entrevista concedida para a revista Lier & Boog: Series of Philosophy of
Art and Art Theory no ano de 1998, Belting, ao ser questionado sobre a razão que
levou-o a reescrever o livro Das Ende der Kunstgeschichte?, afirma que o fato de ter
se desligado da Universidade de Munique o colocou em uma situação muito diferente
de outrora: em 1993 deixa Munique para criar o programa de doutoramento “Ciência
da arte e teoria das mídias” na recém-fundada Staatliche Hochschule für Gestaltung
[Escola Superior de Criação] 3, em Karlsrushe, escola na qual se aposentará nove
anos depois. Em Munique, começou a escrever o que viria a ser a tese Das Ende
der Kunstgeschichte?. Com ela pretendia criticar o seu próprio domínio de atuação,
questionar as práticas que envolviam a disciplina história da arte: a tentativa do
historiador era de “virar de cabeça para baixo” todo o domínio da história da arte,
questionando a ordem instituída canonicamente, de forma a colocar em discussão
que em qualquer contexto considerado acadêmico, tem de haver progressos. Sendo
assim (adverte Belting com muita clareza) que se há progressos, mudanças, há
também algo que chega ao fim, algo que tem que “acabar”. Caso contrário, nada de
novo é possível.
Belting comenta que a ida para Karlsruhe possibilitou-lhe uma mudança
significativa de perspectiva. Já não deseja criticar a história da arte como disciplina,
mas discutir como a história da arte tem sido alterada por mudanças no mundo de
hoje, num movimento externo à disciplina: “a questão já não é se a história da arte
precisa do melhor método possível, mas se a história da arte pode reagir, pode
mover-se, pode continuar de forma a ter tanta importância em um contexto tão
diferente. (BELTING, 1998, p.23)
Anos depois desta entrevista, no prefácio de Bild-Anthropologie: Entwürfe
für eine Bildwissenschaft [Antropologia da imagem: esboços para uma ciência
da imagem], Belting narra que em seu discurso de ingresso na recém fundada
Staatlische Hochschulle für Gestaltung se referiu à “necessidade de uma história
da imagem, da qual ainda carecemos, em um momento em que a história da
arte permanece em uma tradição demasiado firme”. Afirma que em sua primeira
empreitada neste sentido, Bild und Kult: Eine Geschichte des Bildes vor dem Zeitalter
der Kunst [Imagem e Culto: uma história da imagem antes da era da arte] (publicado

417 art uerj III semana de pesquisa em artes


em 1990), o resultado já não o satisfaz, “pois esta história da imagem começa
apenas depois da Antiguidade, quando muitos dos detalhes acerca da imagem já se
haviam estabelecido” (BELTING, 2007, p.7). Em Bild-Anthropologie, um dos estudos
mais recentes de Hans Belting (publicado originalmente na Alemanha em 2001),
as diferenças entre história da arte e história da imagem são mais evidentemente
estabelecidas pelo historiador: enquanto a primeira trata da arte e especialmente
das obras de arte, que têm um lugar e uma data, e são portanto classificáveis; a
segunda, pelo contrário, abarca uma multiplicidade de imagens assim como dos
imaginários das sociedades das quais emergem, pensando a interação entre as
imagens endógenas e exógenas (no livro, argumento desenvolvido na tríade meio-
imagem-corpo). A idéia de uma “antropologia da imagem” foi (e ainda é), contudo,
recebida com restrições.

b. Arthur Danto e “o mundo da arte”


Em dezembro de 1964, Arthur Danto apresenta aquele que seria o seu primeiro
estudo sobre filosofia da arte: o artigo The Art World [O mundo da arte] é apresentado
em um simpósio sobre “A Obra de Arte”, parte da programação do 61º Encontro Anual
da Associação Filosófica Americana, num momento em que sua “criatividade filosófica
estava no auge”. Referindo-se ao mundo das obras de arte, o argumento do ensaio
era: “como um objeto adquire o direito de participar, como obra de arte, do mundo da
arte?” (DANTO, 2005, p.16) O questionamento surgira do embate que estabelecera
com a arte pop, pela qual começou a se interessar “depois de ver uma tela de Roy
Lichtenstein reproduzida na Artnews, que era então a mais importante revista de arte
dos Estados Unidos”. O embate com tal imagem ocorrera quando ainda morava na
França, em meio ao ofício de escrever a Analytical Philosophy of History (o primeiro
dos que deveriam ser cinco volumes sobre filosofia analítica, dos quais apenas foram
publicados os três primeiros), quando então tentava se atualizar a distância dos
acontecimentos da cena artística de Nova York.
Apesar de narrar que teve “a mórbida satisfação de ver que ninguém o
entendeu” na época em que foi publicado, o ensaio The Art World alcançou fama
entre os filósofos, sendo publicado e comentado inúmeras vezes e sido referência

418 art uerj III semana de pesquisa em artes


bibliográfica em cursos. No entanto, o filósofo não desenvolveu imediatamente
as idéias nele levantadas. O tema é retomado em The transfiguration of the
commonplace: a philosophy of art [A transfiguração do lugar-comum: uma filosofia
da arte] (escrito no final da década de 1970 e publicado em 1981). Poucos anos
após a publicação de The transfiguration of common-place, no ano de 1984, Danto é
convidado a escrever o ensaio principal do livro The Death of Art, editado por Berel
Lang: The End of Art. No mesmo ano, o filósofo, professor emérito da Universidade
de Columbia, encabeçou-se em uma nova carreira: convidado a escrever crítica
de arte para o The Nation, afirma (em entrevista concedida à revista CULT) que,
contando já 60 anos, buscava uma alternativa a escrever filosofia para filósofos. O
oportuno convite foi aceito, apesar de não ter planejado o exercício da crítica de
arte, sendo considerado por Danto como um marco decisivo: “um giro, pois, de
90º em relação a qualquer caminho que eu pudesse ter previsto para mim, pois eu
jamais havia tido a menor intenção de me tornar crítico de arte” (DANTO, 2006,
p.28). Profundamente criticado por seu ensaio publicado em 1984, narra ainda que
o fato de ter proclamado o “fim da arte” e depois iniciar uma carreira em crítica de
arte eram dois episódios contraditórios, de acordo com o público: “Parecia que se
as declarações históricas fossem legítimas, a prática logo se tornaria impossível pela
falta de assunto” (DANTO, 2006, p.29).

3. Revisões e diálogos
Ao que tange a possibilidade de revisitar (em meados da década de 1990)
as idéias formuladas e os trabalhos publicados há uma década, Arthur Danto e
Hans Belting condizem no fato de conseguirem ter uma maior lucidez a respeito do
tema que outrora apenas tateavam. O distanciamento criou ainda condições que
favoreceram a retomada da tese outrora discutida já em diálogo um com o outro.
Belting afirma que o tempo permitiu estabelecer “um balanço dos débitos e créditos”
a partir da compreensão da situação presente em total contraste com a chamada
modernidade. Declara ainda que a aproximação do fim do século oportunizou “um
novo exame da arte e também de todas as narrativas com que a descrevemos”.
Referindo-se a possibilidade de diálogo com Danto, Belting toma a afirmativa do “fim

419 art uerj III semana de pesquisa em artes


da arte” enquanto o fim de uma determinada narrativa da história da arte, declarada
pelo filósofo e crítico de arte, como muito acertada, na medida em que tal quadro
se configura a partir de uma perspectiva interna, “uma vez que fora do sistema não
poderia ser feito nenhum prognóstico, e portanto também não se poderia falar de
um fim” (BELTING, 2006, p.31). Danto também estabelece várias relações com
trabalhos de Belting: tanto que, para fundamentar o argumento de After of End of Art,
lança mão particularmente de Bild und Kult.
Em Bild und Kult, Belting propõe-se a escrever uma história das imagens
devocionais, das imagens sagradas produzidas no ocidente cristão desde a Antiguidade
até o Renascimento (aproximadamente entre os séculos XIV e XV d.C.), quando
então coexistiam dois tipos de imagens: uma com a noção de obra de arte, outra
livre desse conceito. De início, Belting esclarece que o objetivo do seu estudo precisa
de uma explanação, justamente por ele não pretender seguir as direções usuais de
uma “história da arte”, mas focar na “história da imagem”. A começar pelo termo
imagem, Belting afirma: “O termo designa tanto e tão pouco como o conceito de arte”
(BELTING, 1994. p.XXI). Adverte que o caminho metodológico por ele traçado foi uma
escolha pessoal, o que significa que este compreende uma entre várias possibilidades.
Previamente elucidando as vias metodológicas através do qual irá adentrar nos
campos de significação dessas imagens, acrescenta: “Por que imagens? A questão
não pode ser separada de uma outra pergunta: Quem utiliza as mesmas, e de que
forma?” (BELTING, 1994. p.42). Opta o historiador, portanto, por uma metodologia
que considera os significados sociais, políticos, religiosos e culturais nos quais estas
imagens foram produzidas. Nesse sentido, Belting não pretende “explicar” imagens,
mas baseia-se na convicção de que o significado delas melhor se revela se considerar-
se seu valor de uso, sua função no contexto no qual foram produzidas, considerando as
crenças, as superstições, as esperanças e os medos daqueles que as produziram.
Referindo-se ao subtítulo do livro, “uma história da imagem antes da era
da arte”, Belting esclarece ao leitor que para se compreender o argumento do
livro é necessário que se tenha em mente que “arte”, entendida da forma como é
estudada hoje, é uma “invenção” ocorrida após a Idade Média, com o advento do
Renascimento. A este argumento é intrínseca a urgência de se pensar uma história

420 art uerj III semana de pesquisa em artes


da imagem, já que a história da arte como uma história de estilos não consegue
suportar todo um conjunto de acontecimentos que moldaram, forjaram a produção de
imagens antes da Renascença, antes da “era da arte”. A “era da arte”, na realidade,
representa apenas um capítulo na longa história das imagens, a qual se estende
desde os remotos tempos pré-históricos até, em extremo oposto, os dias de hoje.
Belting adverte ainda sobre a dificuldade de se avaliar no presente a importância
dessa produção de imagens anterior à “era da arte” na cultura européia: a nova
função atribuída às imagens na “era da arte” as distanciam radicalmente daquelas
outrora produzidas. Em suma: “Estamos tão profundamente influenciados pela ‘era
da arte’ que nos é difícil imaginar a ‘era das imagens’. A História da Arte, portanto,
simplesmente declarou tudo ser arte, a fim de trazer tudo para dentro do seu domínio
[...] (BELTING, 1994, p.9).
Retomando o diálogo estabelecido por Danto com a obra de Belting, Bild
und Kult, o filósofo e crítico fundamenta o argumento de After the end of art nesta
possibilidade de uma produção de imagens anterior à “era da arte” (e que foram
incorporadas ao discurso da história da arte): a partir dessa perspectiva, Danto
endossa a idéia de que se há uma produção visual de imagens anterior à da “era da
arte” (na medida que “serem arte” não fazia parte da agenda de sua produção, assim
como o conceito de artista não fazia parte da explicação das imagens devocionais),
cuja prática, em determinado momento, modifica-se profundamente, ocasionando
uma “descontinuidade” entre as práticas anteriores e posteriores ao início da “era
da arte” (já que o conceito de artista se torna central na Renascença, na medida
em que um grande livro sobre a vida dos artistas é escrito por Giorgio Vasari), seria
perfeitamente imaginável a ocorrência de uma outra descontinuidade “não menos
profunda, entre a arte produzida durante a era da arte e a arte produzida após o
término desta” (DANTO, 2006, p.5). Esclarece, neste sentido, que da mesma forma
que a mudança do paradigma de produção de imagens não se deu de forma abrupta
na passagem do século XIV para o século XV, igualmente o “fim da arte”, ou melhor,
o “fim da era da arte” também não rompe bruscamente na década de 1980, mas que
deve ser compreendido tendo em vista um processo amplo o suficiente, tendo se
iniciado com o romper da modernidade.

421 art uerj III semana de pesquisa em artes


4. “Fim”?
Tanto Danto como Belting não consideram “o fim da arte” ou “o fim da história
da arte” a partir de uma perspectiva de extinção completa de ambas: afirmam, pelo
contrário, que arte e história continuam sendo produzidas. No entanto, uma mudança
fundamental na construção de ambas torna impossível pensá-las como “antes”. A
afirmativa, na realidade, se refere ao fim de uma determinada narrativa histórica da
arte: o que chega ao fim é a narrativa, e não o tema da narrativa.
Tendo em vista o desenvolvimento da história da arte até a modernidade,
Belting refere-se à crise da “antiga história da arte” como a substituição de “um
esquema rígido de apresentação histórica da arte, o qual na maioria das vezes
resultou numa história puramente estilística”. Esta “história dos estilos”, enquanto
sistema autônomo, portador de suas próprias leis, evoluiria apartada de uma visão
mais geral em relação ao homem e sua história. Do ponto de vista do historiador, a
crise da antiga história da arte, da história dos estilos (afinal, a história da arte dos
grandes modelos), começara com a emergência das vanguardas, as quais eram
fundamentadas por um discurso próprio de uma “história da arte do progresso”.
Segundo Danto, o modernismo deve ser compreendido, acima de tudo, como a
“Era dos Manifestos”, ao qual se contrapõe o momento pós-histórico da arte, “imune
a manifestos e demandando uma prática inteiramente crítica” (DANTO, 2006, 33).
Acredita que cada manifesto corresponde a um esforço de definição filosófica da
arte: os manifestos teriam como característica a necessidade de distinguir a arte por
eles justificada como sendo a arte verdadeira e única, “como se o movimento por
ela expressado tivesse feito a descoberta filosófica do que a arte essencialmente é”
(DANTO, 2006, p.38).
Danto, então, estabelece como marco do fim da modernidade precisamente
o ano de 1964 em virtude da sua experiência com a pop art, mais especificamente
diante da Brillo Box de Andy Warhol. A partir de então, não haveria uma forma
especial através da qual a arte deveria se manifestar. Tornava-se, assim, cada vez
menos evidente qualquer contraste aparente entre as obras de arte e as “meras
coisas reais”. Desta forma, “uma obra de arte pode consistir de qualquer objeto a que
se atribua o status de arte, suscitando a pergunta “Por que sou uma obra de arte?”

422 art uerj III semana de pesquisa em artes


ou “o que faz a diferença entre uma obra de arte e algo que não é uma obra de arte
quando não se tem nenhuma diferença perceptual interessante entre elas?” (DANTO,
2006, pp.17;40). Belting, como Danto, compreende que o “fim da vanguarda” ou “fim
da história”, da história como progresso para o novo, emergiu na década de 1960,
“quando nem arte nem mesmo a própria história pareciam ainda oferecer alternativas
e rumos a que se pudesse apelar. Surgiu desde então a impressão de que seria
preciso lançar-se a um balanço pós-histórico com tudo o que estivesse às mãos”
(BELTING, 2006, p.176).
Belting esclarece que o que pretende indicar com “fim da história da arte” parte
do pressuposto da compreensão da “idéia originária que está presente no conceito de
uma ‘história da arte’” (BELTING, 2006, p.8). Considera assim que talvez o “fim da
história da arte” seja “o fim de um episódio no turno tranqüilo de um percurso histórico
mais longo” (BELTING, 2006, p.9).
O historiador trata ainda da incapacidade do pretenso universalismo da história
da arte, um equívoco ocidental fundamentado por uma visão eurocêntrica. A história
da arte, enquanto invenção ocidental, elegeu uma determinada produção imagética,
certas formas de arte como historicamente imperativas. O que, inclui igualmente
práticas de interdição e exclusão, que ocorre inclusive entre os próprios ocidentais.
Ao que se refere a essas práticas, Danto alude a narrativa greenberguiana, a qual
não admite determinadas práticas artísticas por serem consideradas para “além
dos limites da história”, logo, não havendo espaço para elas na grande narrativa
moderna. O fato delas terem existido de forma alguma é negado: apenas considera-
se que não foram significativas o suficiente para o progresso da arte. Como exemplo
destas instâncias para “além dos limites da história” pode ser citada uma “espécie
capciosa de artista acadêmico”: surrealistas, neo-românticos, a arte pop, o realismo
fantástico, todos após Duchamp, o contra-exemplo por excelência. Em suma,
artistas desviados, cambiantes (GREENBERG, 2002, p.184). Diferentemente da
insistente pureza do meio endossada veementemente pela narrativa modernista
se coloca o discurso pós-moderno (ou pós-histórico): “um momento, pelo menos (e
talvez unicamente) na arte, de profundo pluralismo e total tolerância” (DANTO, 2006,
p.XVI).

423 art uerj III semana de pesquisa em artes


Ainda ao que se refere à pós-modernidade, esta se caracterizaria, segundo
Belting, pela perda do enquadramento (em vez do “fim do enquadramento”). Haveria
outrora um ajuste (ou, ao menos, acreditava-se nele) entre a imagem eleita e o
enquadramento histórico: no conceito original de “história da arte” está incutida
a relação entre o acontecimento artístico (imagem) e a história escrita da arte
(enquadramento). “A arte se ajustou ao enquadramento da história da arte tanto
quanto esta se adequou a ela” (BELTING, 2006, p.8). Sendo assim, o anúncio do
“fim” evoca a urgência de um outro discurso (enquadramento): “o discurso do “fim”
não significa que “tudo acabou”, mas exorta a uma mudança no discurso, já que o
objeto mudou e não se ajusta mais aos seus antigos enquadramentos” (BELTING,
2006, p.8). No entanto, ao contrário do que se possa prematuramente concluir,
Belting não prescindi do enquadramento. Pelo contrário: dispensar, se apartar,
abominar qualquer forma de enquadramento é um equívoco (impossível até). A
investigação histórica baseia-se em um discurso que é proferido por um indivíduo
encerrado em determinadas condições sociais, em um determinado contexto
histórico. Esse discurso só é legível no interior deste enquadramento, desta moldura
legitimadora que ele produz. O sentido de fim intenta uma noção de “descobrimento”
ou “desvendamento” de uma antiga estrutura narrativa e, em contrapartida, de
uma mudança de paradigmas. O “fim da história da arte” estaria para o fim de um
determinado enquadramento, de um determinado artefato, no sentido de “fim de
regras do jogo”. No entanto, o que se nega não é a continuidade, o prosseguimento
do jogo: é a continuidade das antigas regras, dos antigos paradigmas. O jogo
prosseguirá de uma outra forma. Com isso, Belting aparta de suas considerações
quaisquer tentativas de pensamento conclusivo em relação ao tema, já que é um
processo vivo, em contínua transformação.
O nascimento da idéia de história da arte enquanto forma de enquadramento
universal da arte, “fora dos círculos estreitos dos artistas”, afirma-se apenas no século
XIX, “na medida em que a matéria da qual ela cada vez mais se apropriava descendia
de todos os séculos e milênios precedentes” (BELTING, 2006, p.25). O que significa
que a arte já era produzida há muito tempo, sem se dar conta de que uma história
específica estava sendo construída.

424 art uerj III semana de pesquisa em artes


5. Linhas gerais
Ambos os teóricos compreendem a mudança ocorrida durante o século
XX como uma ruptura com os paradigmas tanto das formas artísticas quanto do
enquadramento histórico. E mais importante: não compreendem esta ruptura como
uma impossibilidade de se produzir arte (como se as formas que se dispunham
houvesse se esgotado), bem como de se construir história. Tanto o enquadrado (a
produção artística) quanto o enquadramento (o discurso que sobre ela se constrói)
deve se transformar na medida que seus pilares fundamentais se arruinaram no
decorrer do findado século XX.
Apesar de partirem de pontos de observação completamente diversos, Belting
e Danto chegam a mesma conclusão: o anúncio do “fim da arte” e da “história da
arte” torna imprescindível o repensar do discurso histórico devido a uma mudança
radical nas condições de produções das artes visuais. Hans Belting, importante
historiador da arte medievalista, cuja formação se fundamenta na tradição das
escolas de história da arte européia, nas quais a disciplina se estabelece, lança
o olhar sobre uma produção anterior à nomeada “era da arte” percebendo à
necessidade de uma abordagem metodológica distinta para com a produção
imagética oriunda de um contexto no qual o conceito “arte” simplesmente não
existia. Este exercício o faz despertar para a necessidade de uma “história das
imagens”, já que a história da arte não daria mais conta do repertório visual que tem
sido produzido (pós-era da arte). Arthur Danto, de filósofo analítico a crítico de arte,
forma-se em um contexto totalmente diverso: o norte-americano contemporâneo
ao movimento de ascensão dos Estados Unidos como pólo político, econômico e
cultural no período pós-guerra, deixa evidente em seu discurso a importância de ter
convivido com o despontar internacional do expressionismo abstrato nos anos 50 e,
posteriormente, com a arte pop e todos os outros movimentos artísticos que raiaram a
partir da década de 60.
Em suma: a trajetória de um é complementar ao do outro. Neste sentido,
uma apreciação comparativa das obras de ambos é oportuna e fundamental para
se compreender os caminhos e descaminhos da produção artística e da narrativa
histórica no decorrer do século XX.

425 art uerj III semana de pesquisa em artes


Bibliografia
BAUER, Hermann. Historiografía del arte. Introducción crítica al estúdio de la Historia del Arte.
Madrid: Taurus Ediciones, 1984.
BAZIN, Germain. História da história da arte. São Paulo: Martins Fontes, 1989.
BELTING, Hans. Antropología de la imagen. Buenos Aires/Madrid: Kartz Editores, 2007.
BELTING, Hans. Contradiction and Criticism. In: BALKEMA, Annette W. e Henk SLAGER (ed.) Lier &
Boog: Series of Philosophy of Art and Art Theory. The Archive of Development. Amsterdam/Atlanta, GA,
1998, 187 pp.17-26
BELTING, Hans. Likeness and Presence: A History of Image before The Era of Art. Chicago: The
University of Chicago Press, 1994.
BELTING, Hans. O fim da história da arte: uma revisão dez anos depois. São Paulo: Cosac Naify,
2006.
BELTING, Hans. The end of the history of art? Chicago: The University of Chicago Press, 1987.
DANTO, Arthur C. A transfiguração do lugar-comum: uma filosofia da arte. São Paulo: Cosac &
Naify, 2005.
DANTO, Arthur C. Após o fim da arte: a arte contemporânea e os limites da história. São Paulo:
Odysseus Editora/Edusp, 2006.
DANTO, Arthur C. Entrevista. In: DUARTE, Rodrigo. Tudo é permitido. São Paulo: Revista CULT,
edição 117. Disponível em: <http://revistacult.uol.com.br/novo/entrevista.asp?edtCode=3A4F02C2-6887-
4DCB-BC36-894C6EFC6B44&nwsCode=00798A01-2EC8-4DC1-B4A3-B7454E628EE9>. Acesso em: 25
maio 2009.
DANTO, Arthur C. The Artworld. In: The Journal of Philosophy, vol.61, nº19, American Philosophical
Association Eastern Division Sixty-First Annual Meeting (Oct.15, 1964), pp.571-584. Disponível em:
<http://www.jstor.org/stable/2022937>. Acesso em: 28 maio 2009.
KULTERMANN, Udo. Historia de la historia del arte: el camino de una ciencia. Madrid: Akal, 1996.

Notas
1 Segundo Arthur Danto, o ensaio era o principal na composição do livro, do qual o projeto era que
“vários autores fizessem sua réplica às idéias propostas no ensaio principal” (DANTO, 2006, p.3-nota 1)
2 Entre os anos de 1980 e 1993, Hans Belting leciona história da arte na Universidade de Munique,
onde ocupou a cadeira de Henrich Wölfflin (1864-1945) e Hans Selmayr (1896-1984).
3 Inaugurada em 1992, a escola centra-se na investigação e ensino interdisciplinar em New Media
e New Media Art. Em conjunto com Zentrum für Kunst und Medientechnologie [Centro de Arte e Mídia
Tecnológica], é um importante centro de discussão, produção e exposição de arte contemporânea e de
mídias tecnológicas emergentes.

426 art uerj III semana de pesquisa em artes


III semana de pesquisa em artes
10 a 13 de novembro de 2009 art uerj
teoria e historiografia da arte

A representação simbólica nas Artes Visuais

Leandro Souza

Licenciatura em Artes Visuais – UNIGRANRIO

A pesquisa tem como objetivos investigar a relação entre espectador e imagem, compreender
suas possíveis leituras, polissemia, potência e valores simbólicos, considerando seu contexto
e sua abrangência. A leitura de imagens é relevante na compreensão do ‘mundo’ e das artes
visuais, visto que são legíveis e ainda que complexas, comunicam seu espaçotempo.

Símbolo; cotidiano; comunicação.

La recherche a comme des objectifs enquêter la relation entre spectateur et image, comprendre
leurs possibles lectures, polysémie, pouvoir et valeurs symboliques, en considérant son
contexte et sa portée. La lecture d’image est importante dans la compréhension du ‘monde’
et des arts visuels, si on considére que les images sont lisibles et malgré leur complexité elles
communiquent son espace et son temps.

Symbole, communication, quotidien.

O que leva a humanidade, ao longo dos tempos, a representar seu mundo,


realidade e ideias através da imagem? Qual a motivação que conduz o homem a
produzir uma imagem? Figurativas ou abstratas, de algum modo estas produções
estéticas revelam algo sobre a ‘condição criativa humana’. Eis o primeiro desafio:
relacionar imagem e as possíveis razões para sua criação, bem como as diferentes
formas de sua recepção. No livro da Gênese (apud: FRUTIGER, 2001) diz-se que
“no princípio”, a terra era sem forma e vazia. No âmbito da produção humana, não
existiriam elementos visuais por acaso; é intrínseca ao homem a ordenação visual,

427
o que abrange até mesmo o mais simples rabisco. A criação de um símbolo não
ocorre por acaso ou acidentalmente. Sobre cada representação há uma diversidade
de elementos a serem relacionados. O caráter simbólico da obra, seus sentidos,
significados se dão como mostram os estudos sobre semiologia e gramática visual.
O símbolo é apresentado como algo que carrega um conceito anterior a si, dentro de
seu contexto; e este fator permite ao símbolo assumir diferentes possibilidades de
leitura.
Uma imagem é composta de uma sintaxe própria, uma gramática visual que
organiza a sua existência e conduz a sua compreensão. Para que esta se estabeleça,
então, são agrupados elementos, tais como ponto, que exerce uma visível e grande
atração sobre o olhar, raramente apresentado isoladamente, considerado o “átomo”
de toda expressão pictórica (idem, 2007, p. 07), a linha, que constrói as formas e
determina sua complexidade, e ainda o plano, a cor, a textura e o movimento, os
quais podem inscrever-se sobre os mais variados suportes. Todas as imagens,
da pintura à imagética virtual são constituídas e dependem da articulação destes
conceitos.
Os elementos visuais manifestam a capacidade humana de interpretar
e organizar o mundo. Desde os primórdios do que se entende por arte, esses
elementos são desenvolvidos a fim de representar as visões e as ideias dos criadores
de imagens.
Na produção estética da Pré-História percebemos nas imagens rupestres de
várias partes do mundo, as tentativas do homem de externar, de forma plástica, o
que via ao ser redor, criando assim uma gramática visual própria, uma linguagem, por
assim dizer. São exemplos desta criação, as cores a partir de pigmentos naturais, as
linhas simples e as formas estilizadas que representam realidades distantes.
Feita para ser vista (AUMONT, 1997, p.77), a imagem destaca o órgão da
visão, o qual não é neutro, simplesmente transmitindo dados de uma determinada
realidade, mas é o ponto de encontro do espectador com mundo e de como ele
será capaz de visualizá-lo e relacionar-se com ele. A cada movimentação do olhar a
imagem estará presente.
As imagens são relevantes, sobretudo, a partir do momento em que expressam

428 art uerj III semana de pesquisa em artes


nossa própria concepção do que é externo à nossa existência. Isto parece ocorrer nas
imagens mais antigas produzidas pelo homem, no desenho mais simples da criança,
ou na obra mais elaborada do pintor. Estes casos apresentam visões, ainda que
distintas, de concepções de mundo, olhares e leituras diversificados e instigantes.
A experiência visual humana possibilita a compreensão do entorno, tornando
possível reagir a ele (DONDIS, 1997, p. 07). Ver é uma experiência que ocorre
interiormente, ou seja, ao visualizar formam-se imagens mentais as quais levam
a descobertas e soluções práticas diante do mundo. O desenvolvimento da
comunicação se deu junto com o desenvolvimento das imagens. Observamos a esse
respeito que o alfabeto é a representação gráfica/visual – fonética – do som que nos
leva a compreender o que é dito. Logo, estes sistemas simbólicos, relacionam o ato
de ver, comunicar e compreender. Não seria aceitável, nem aconselhável, delimitar
a compreensão de determinada imagem, ou símbolo, a um único olhar, ou seja, é
preciso considerar o repertório particular do espectador, a possível universalidade e
particularidades da imagem. Num contraponto, a cultura artística ocidental dominante
nos ensinou a interpretar as imagens como registros e indicações da intenção do
artista (GOMBRICH, 1986). Entretanto, o ato de compreender uma mensagem/
imagem visual deve-se ao processo de utilização do mecanismo perceptivo universal
humano, relacionando interativamente os elementos visuais em conformidade
com suas significações locais, para se alcançar o resultado dessa ação, ou seja,
a composição (DONDIS, 1997). Distintamente, o ato de ver, trata da absorção da
imagem pelos olhos, onde o que a imagem representa fica a cargo do significado
compartilhado. No caso da pintura figurativa, por exemplo, a mente do observador
tem sua participação na convocação mimética, o recurso à semelhança. No processo
de ‘reconhecimento’ acessamos às imagens armazenadas em nossa mente, e desse
ponto se dá a compreensão da figura (GOMBRICH, 1986, p. 160).
Uma imagem não é feita ao acaso. Carrega consigo um objetivo, um significado
apoiados em uma gramática visual que lhe é anterior. Como vimos anteriormente,
ponto, linha e cor superam os problemas visuais desde os primórdios. Ao longo dos
tempos e eras, o homem é capaz de criar elementos visuais que representam seu
mundo, suas ideias e afirmam sua própria existência.

429 art uerj III semana de pesquisa em artes


A Pré-história apresenta os primeiros registros de representação simbólica que
temos conhecimento, e a partir desse período, podemos compreender e justificar a
produção artística humana. A informação visual é o registro mais antigo de nossa
história (DONDIS, 1997, p. 07). São nas paredes das cavernas e também fora delas
que vamos encontrar as pinturas que relatam o mundo tal como era visto há mais de
30.000 anos atrás. São expressões estéticas que demonstram as primeiras formas de
visualizar o mundo.
A fidelidade na representação paleolítica aponta para muitos momentos da
História da Arte, onde a natureza é expressa afirmativamente, lançando o conceito do
figurativo. Por volta de 10.000 a.C., no período chamado Neolítico, ocorre a primeira
modificação estilística de toda a História da Arte (HAUSER, 1997, p. 23). A atitude
figurativa e naturalista abre espaço para a estilização geométrica. Nesse momento,
as imagens poetizam mais do que reproduzem o real, são ideais, conceituais,
carregam uma possível essência formal das coisas. Ao invés de reproduções fiéis
do objeto, nascem símbolos, esquemas. A figura humana é traduzida a partir de dois
ou três esboços sintéticos, geométricos. É o ponto de partida para uma nova era
na produção estética humana. Nasce o conceito de abstração. Ao final do século
XIX, com o surgimento da fotografia, a pintura tende para a abstração, entendendo
que a representação fiel da realidade fica a cargo da imagem escrita com a luz. A
representação é conceitual, simbólica, icônica.
O processo de intelectualização e racionalização da Arte têm um novo
fôlego. As formas concretas da representação cedem espaço para sinais e
símbolos, abstrações etc. As experiências visuais diretas voltam-se aos conceitos e
interpretações (HAUSER, 1997, p.26). Ocorre a quebra de paradigmas, os discursos
outrora universais são relativizados e desconstruídos. Alegoricamente, estas pontas
de pêndulo, nos remetem à dicotomia da produção artística que se intensificaria com
os movimentos artísticos antagônicos que surgiriam mais tarde e caracterizariam, de
certa forma, o modernismo.
Cabe ao espectador a dinamização dos processos de produção/percepção
imagética, pois, é ele quem, sob diversos aspectos, produz o que frui. Assim a
imagem possibilita descobertas, onde segundo Gombrich (apud: Aumont, 2002,

430 art uerj III semana de pesquisa em artes


p. 90) garante, reforça, reafirma e explicita nossa relação com o mundo visual,
aperfeiçoando e possibilitando domínio da ‘realidade’, utilizando-se do intelecto, do
raciocínio ou apreendendo o visível de forma sensorial. Para que haja comunicação,
a linguagem verbal e a pictórica são relevantes (FRUTIGER, 2007, p. 196). Tanto
em uma quanto em outra, o vocabulário e o seu aprendizado são adquiridos e em
processo constante.
A potência simbólica de uma imagem veicula saberes e códigos
compartilhados, articulando relações sociais com o cotidiano onde foi criada e se
destina. Antes da escrita, houve um sistema de comunicação potencialmente capaz
de registrar e conectar a linguagem com o real. A fala, se houve, não se manteve,
mas o registro plástico pré-histórico nos possibilita acessar, sustentar e compreender
nossa necessidade de manifestar o que entendemos como vida, morte, futuro e
conquistas.
De acordo com Marcondes (1998), um símbolo é a representação convencional
figurada de uma ideia ou de um conceito, seja de ordem moral ou intelectual; para
que se estabeleça, tal representação é convencionada e torna-se comum. Diz
também que simbolismo é o uso sistemático de símbolos, concretos ou abstratos, em
uma imagem ou numa coleção delas, representando objetos reais ou ideias abstratas.
Chilvers (2001) afirma que por analogia, um símbolo representa ou substitui outra
coisa, se coloca no lugar de algo. Semiologicamente, uma imagem simbólica pode até
possuir certa estabilidade, mas este fator não é fixo nem constante, é refeito ao longo
dos tempos e dos espaços por onde percorre. O que representa, suas analogias, o
que motiva e suas adequações dependem de como se relacionam no espaçotempo.
A estruturação do sentido das imagens se dá no contexto ao qual pertence,
a abrangência e suas relações com o cotidiano são variáveis, afinal uma imagem
pode ser lida de diversas maneiras. São intensas as forças em jogo na compreensão
de imagens, fazem seu fruidor render-se diante delas. Para que isso ocorra, como
mencionado anteriormente, o significado compartilhado e o repertório do observador
são acessados numa atividade mental que conecta autor, espectador e o mundo
visível.
O homem é o único animal capaz de deixar registros intencionais atrás de si, e

431 art uerj III semana de pesquisa em artes


que está consciente da relação de significação entre tais registros (PANOFSKY, 2004,
p. 23). O gesto simples de cumprimentar com as mãos, provoca uma reação imediata
a partir de objetos e fatos, embora, para ser compreendido, depende da familiarização
cotidiana com este movimento e da sintonia de interpretação; possibilitando, dentro
de determinado contexto, compreender se a outra pessoa está bem, mal, triste,
etc. O significado do gesto (código) necessita ser inteligível e não simplesmente
sensível. Do mesmo modo, uma obra de arte tem seu significado apreendido de
algumas maneiras específicas segundo Panofsky (2004). Naturalmente, pelas formas
puras, de relação imediata com acontecimentos ou fatos; convencionalmente, onde
motivos e combinações relacionam assuntos e conceitos, veiculando ideias; ou por
seu conteúdo, revelando atitudes, condensadas numa obra, possuindo princípios
e determinado valor simbólico. Os elementos visuais têm um papel fundamental
nestas relações e o significado de uma produção emerge do contexto onde ela está,
e não exclusivamente nela mesma (ARCHER, 2001), portanto, os elementos visuais
guardam, em suas articulações, conexões contextuais.
Ao longo da História, podemos perceber a freqüente utilização de símbolos na
produção gráfica humana. O que significam e o que está por trás deles são questões
instigantes. Frutiger (2007) levanta a questão do conteúdo simbólico na imagem
como um valor implícito, intermediando a realidade reconhecível e o invisível, como
se o artista mediasse, cifrasse o visível e o invisível, onde a representação revela-
se ao observador e o inspira. É um signo convencional e geral, remete ao objeto,
associando suas ideias gerais, e a interpretação acontecerá por referência a esse
objeto; são signos mentais e gerais (DUBOIS, 1993, p. 64).
Um símbolo é fácil de ser lembrado; surge de nossa atividade mental
intensa, da crescente abstração que experimentamos ao longo dos tempos como
já registramos. Exprimem sem palavras, noções gerais. O objeto e o suporte em
comunhão com a inteligência do homem possibilitaram a partir de seu uso, uma
relação sobrenatural, a tal ponto desta relação elevar o objeto em questão a um
caráter simbólico e devidamente estilizado nos desenhos. Como é o caso das
imagens nos escudos medievais, moedas dos povos, etc. É a representação gráfica
de algo, a ponto de substituí-la. Um exemplo, no mundo ocidental, seria o Cristo

432 art uerj III semana de pesquisa em artes


crucificado, ou mesmo a cruz vazia – redução máxima de uma imagem simbólica,
que se assemelha à silhueta humana, e pertence à categoria dos símbolos abstratos
– que aponta para a ressurreição de Jesus, também pode simbolizar a morte ou o
seu local. Tal representação ultrapassa o cristianismo, no entanto, a expressividade
permanece e caracteriza. Como é sabido, a religião utiliza intensamente a arte para
propagar suas convicções, mitos etc. A pintura de temática cristã, por exemplo,
foi desenvolvida durante séculos a arte a serviço da igreja. As histórias bíblicas
foram registradas por diversos artistas, antes da consolidação do entendimento
contemporâneo de ‘arte’ e de ‘artista’. A Arte Bizantina, Românica, Gótica e muito
da produção paleocristã são excelentes exemplos da produção imagética a serviço
de determinado fluxo comunicativo; o Renascimento, ainda que retomando ideais
clássicos e o humanismo, foi utilizado para promover determinada concepção
de mundo; e o Barroco, foi fruto também de interesses específicos das políticas
eclesiásticas.
O homem, um ser simbólico, imerso em processos de intelectualização
e racionalização das formas, na concretização das imagens, reverbera suas
experiências diretas com os fenômenos vividos, por meio de acentuações,
exageros, distorções, reduções, etc. Portanto, essas imagens traduzem ideias,
valores, conceitos e seu próprio cotidiano (HAUSER, 1997, p. 26) repensados e
ressignificados. Como ocorreu na Pré-história e ainda vivemos na arte e imagética
contemporânea.
As considerações apresentadas fornecem o pano de fundo para pensarmos
o jogo simbólico na fotografia contemporânea, aspecto do universo imagético com o
qual interrompemos as reflexões desse trabalho.
A imagem fotográfica na cena contemporânea se desdobra em consonância
com a profusão de estímulos, formulações e práticas da atualidade. Os materiais
clássicos das artes visuais como tinta, metal, pedra cedem espaço ao ar, ao som,
às palavras, aos gestos e à luz, ratificando a força do conceito como elemento
indispensável à obra, ou seja, o status da imagem nos suportes tradicionais (pintura,
gravura e mesmo a escultura) é enfraquecido para dar lugar a novas energias
poéticas para as quais a fotografia mostra pertinência e adequação.

433 art uerj III semana de pesquisa em artes


Da série Metanóia,
2007. Leandro Souza

Na produção artística contemporânea, a profusão de elementos híbridos conduz


a uma alfabetização estética inovadora via a intensa participação do ’conceito’. Impõe-
se nesse contexto, muitas questões novas, como, por exemplo, se é o método ou a
técnica que determina algo como arte. A riqueza e diversidade de práticas artísticas
recentes partem da reinterpretação e desenvolvimento de gestos antes experimentados
nas vanguardas (ARCHER, 2001). A fotografia como uma imagem em trabalho,
envolve o ato de sua captura, de sua produção, da percepção e da contemplação, sem
desconsiderar o sujeito, o autor em processo (DUBOIS, 1993, p. 15).
Observando as considerações feitas no século XIX com o advento da
fotografia e todas as teorias advindas pós seu surgimento, conclui-se que o conceito
de fotografia como uma reprodução perfeita e objetiva do real é falha, o qual
desconsiderava a relevância do olhar fotográfico do artista. A objetiva não é um

434 art uerj III semana de pesquisa em artes


olho imparcial, o olho humano é influenciado por sentimentos e gostos pessoais, as
inclinações estéticas e psicológicas do fotógrafo, a escolha dos temas, a disposição e
iluminação dos objetos, o enquadramento e o enfoque. Os procedimentos fotográficos
são de ordem estética, assim como a pintura e a escultura. A fotografia torna-se
artística no final do século XIX, quando se desprende do compromisso pictórico,
cessando de pedir à pintura, assumindo a seu valor estético (ARGAN, 1992, p. 81).
A imagem é um dos meios pelos quais podemos transmitir nossos
pensamentos e impressões do/sobre o mundo, e que possibilita conhecer, evidenciar,
explicar, etc., uma ideia, uma emoção, um estado de ânimo, um fato, favorece a
conceituação, acessa as redes das subjetividades. Assim, a imagem simbólico-
fotográfica, ou os elementos simbólicos contidos nela, carregam consigo estes fatores
e torna possível o conhecimento, partindo do esforço realizado para estruturar a
representação, desenvolvendo novos sentidos, permitindo encontrar novas soluções,
evocar detalhes, procurar, ver e lembrar. A imagem fotográfica propicia e inspira a
percepção em pleno desenvolvimento (ZABALA, 1999, p. 88).
Assim, a leitura de imagens é relevante para a compreensão do mundo,
e neste, o papel e força das Artes Visuais, afinal, vivemos como nunca um fluxo
intenso e profuso de trânsito e diversidade visual. Identificamos nas produções
artísticas ao longo da história, a força simbólica das imagens, não apenas no sentido
primeiro de substituição ‘signica’, mas de criação a partir do e no plano simbólico.
Como observamos, sobretudo nas artes contemporâneas, nos contextos sociais,
educacionais, religiosos, etc., o quanto as imagens a despeito da intenção de seus
criadores se mantém polissêmicas e como ressignificam o mundo por meio de sua
gramática visual que, embora complexa, é legível e comunicativa no contexto de seu
espaçotempo.
Defendemos também que a leitura de imagens é, de fato, possível, ainda que
não represente algo concreto, podendo ocorrer de diversas maneiras e não apenas
por meio dos métodos mais tradicionais, pois a compreensão de uma imagem
simbólica depende do repertório do indivíduo, da sua abrangência e suas relações
com o cotidiano no qual foi criada e a que se destina. Assim, a pesquisa reconhece
a força das imagens como um poderoso elemento articulador das relações sociais,

435 art uerj III semana de pesquisa em artes


na medida em que fortalece e marca pertencimentos e trânsitos sociais. Portanto,
a leitura não é constante nem fixa, embora em muitos momentos mantenha certa
estabilidade semiótica, é refeita ao longo do tempo e dos espaços pelos quais
transita. Assim como os textos escriturísticos, as imagens também são da autoria
de seus leitores e/ou fruidores, sem que se percam seus sentidos na estruturação e
articulação social na qual se deram sua criação e leitura.
Nos recortes fotográficos os repertórios particulares do artista são articulados
codificando e tornando possível a visualização de elementos outrora não percebidos,
ou até mesmo é evocada outra realidade, diferente da fotografada. A imagem
fotográfica cede espaço à recriação de um novo mundo, proporcionando novos
olhares, a partir de novas visualidades, dependendo de sua nitidez, contraste, cores,
iluminação, um recorte carregado de sentidos, em constante diálogo com o receptor.

Referências Bibliográficas
ARCHER, Michael. Arte contemporânea: uma história concisa. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
ARGAN, Giulio Carlo. Arte Moderna. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 1992.
AUMONT, Jacques. A Imagem. 10ª edição. São Paulo: Editora Papirus, 2002.
CHILVERS, Ivan. Dicionário Oxford de Arte. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2001.
DONDIS, Donis A. Sintaxe da linguagem visual. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
DUBOIS, Philippe. O ato fotográfico e outros ensaios. São Paulo: Papirus, 1993.
GOMBRICH, E. H. A História da Arte. 15° edição. LTC Editora. 2000.
GOMBRICH, E. H. Arte e Ilusão. 3ª edição. Editora Martins Fontes, 2007.
HAUSER, Arnold. História Social da Literatura e da Arte. São Paulo: Mestre Jou, 1972.
MARCONDES, Luiz Fernando. Dicionário de Termos Artísticos: com equivalências em Inglês,
Espanhol e Francês. Rio de Janeiro: Edições Pinakotheke, 1998.
PANOFSKY, Erwin. Significado nas artes visuais. São Paulo: Perspectiva, 2004.

436 art uerj III semana de pesquisa em artes


III semana de pesquisa em artes
10 a 13 de novembro de 2009 art uerj
tradições, territórios, cruzamentos

Eugenio Battisti e o Antirrenascimento

Fernanda Marinho

Doutoranda em História da Arte (CNPQ) Instituto de Filosofia e Ciências Humanas – Unicamp

Esta comunicação concentra-se na obra L’Antirinascimento de Eugenio Battisti e


especificamente na compreensão do termo que intitula o livro: as manifestações
antirrenascentistas no seio da tradição clássica italiana, principalmente entre os séculos XV e
XVI. Pretende-se analisar aquilo que André Chastel aponta no prefácio como a epistemologia
do negativo representado pelas produções fantásticas, profanas, ditas anticlássicas em uma
tradição tão arraigada pelas métricas da perspectiva e harmonias formais.

Eugenio Battisti; Renascimento; Antirrenascimento.

This communication is about the L’Antirinascimento, written by Eugenio Battisti, and specifically
about the comprehension of its title: the antirenaissance manifestations on the Italian classical
tradition, specially during the XV and XVI centuries. Intending to analyze what Andre Chastel
called on the preface as the epistemology of the negative, represented by the fantastic
productions, profane, called anticlassical on a tradition extremely connected by the metrics of
perspective and formal harmonies.

Eugenio Battisti; Renaissance; Antirenaissance.

Compreender a totalidade produtiva de Eugenio Battisti consiste em um


vasto trabalho não apenas pela intensidade de seus estudos como também, e
especialmente, pela amplitude dos mesmos. Lecionou no curso de história da arte
da Universidade de Gênova, da Pennsylvania State University, da Universidade da
Carolina do Norte, em arquitetura nas universidades de Milão, Florença, Reggio
Calábria e Roma. Fundou sociedades como o Instituto per la Storia dell’Arte

437
Lombarda, a Società Italiana per Archeologia Industriale e a revsita Marcatrê. Um
historiador de intensas pesquisas de temas variados, interessou-se de Piero della
Francesca ao mundo da indústria e o trabalho, dedicou-se da tradição clássica à
arte contemporânea. A obra de aqui nos ocuparemos – Antirrenascimento – data a
primeira publicação de 1962, mas sua pesquisa já se anuncia no final da década de
50, com textos intodutórios a al assunto, como Mito e favola 1, Tragico e sublime 2,
Zoomorfiche e fitomorfiche figurazioni 3, Il mondo visuale delle fiabe italiane 4, Dal
totem all’allegoria 5, entre outras. Nesta mesma época, em 1963, fundou o Museo
Sperimentale d’Arte Contemporânea, em Gênova (hoje na Galleria Cívica d’Arte
Moderna de Turim), durante uma época de movimentadas manifestações culturais
que suscitavam radicais mudanças no cenário italiano incitadas por grupos de
críticos, historiadores e artistas constituídos por Edoardo Sanguineti, Nanni Balestrini,
Alfredo Giuliani, Umberto Eco, entre outros que formavam o neovanguarda Grupo
63. É, portanto, no fluxo destas atividades que se contextualiza o L’antirinascimento
e desta maneira, não parece absurdo ponderar a possibilidade de uma insurgente
postura política imbuída nesta obra frente os congelados esquemas teóricos
aplicados às produções de crítica e história da arte, nem tão pouco da vontade de
seu autor de uma renovação dos paradigmas artísticos frente o conservadorismo da
historiografia tradicional.
O título da obra já nos introduz a diversos questionamentos confrontantes à
definição do Renascimento. Trataria o autor deste período histórico sob outro prisma
ou se ocuparia de um novo conceito na crítica da arte? Na verdade, ambas as
propostas são acatadas. Os doze capítulos que dividem o livro anunciam o interesse
pelas manifestações artísticas culturais compreendidas principalmente entre os
séculos XV e XVI que não ocupam o proscênio deste palco.

Capítulo 1 – Maneirismo ou antirrenascimento?


Capítulo 2 – Por um mapa do antirrenascimento figurativo
Capítulo 3: As raízes arqueológicas das fábulas
Capítulo 4: A fábula no Renascimento
Capítulo 5: O nascimento das bruxas

438 art uerj III semana de pesquisa em artes


Capítulo 6: A magia dos elementos
Capítulo 7: Do totem à alegoria
Capítulo 8: Por uma iconologia dos autômatos
Capítulo 9: A ilustração científica na Itália
Capítulo 10: Do “cômico” ao “gênero””
Capítulo 11: Astrologia, utopia, razão
Capítulo 12: Anticlassicismo e romantismo

A definição mais abrangente do período do Renascimento está relacionada


ao significado do próprio termo que o denomina: o resgate do mundo antigo no
planejamento cultural renascentista. Tal interesse pela Antiguidade pressupõe uma
postura otimista anunciada desde o deslumbramento de Petrarca pelas ruínas
romanas e na admiração de Boccaccio pelas obras de Giotto que marcariam o
resgate do homem das trevas medievais à luz promissora do conhecimento. Como
compreender, portanto, o “anti” anunciado por Battisti? Segundo o autor o termo que
intitula seu livro deriva daquele inglês counter renaissance utilizado em relação a
Shakespeare e tornando-se posteriormente título do livro de Haydn. Faz, contudo,
uma modificação, pois diz que o termo “contra” parece anunciar uma manifestação
em oposição ao próprio período em questão, enquanto que “anti” trataria de um
confronto entre as principais tendências histórico culturais.
A primeira reflexão proposta situa-se na definição do título nos convidando
a repensar os conflitos das fronteiras históricas e conceituais trazidas pelo
Renascimento. Este debate é retomado no final do livro através da equiparação
de períodos ao analisar o romantismo, que segundo o autor, posicionava-se
antagonicamente ao neoclassicismo, repetindo a estrutura de oposição entre o
clássico e o anticlássico do Renascimento.
A sua metodologia é embasada no segundo capítulo quando propõe isolar ao
máximo as manifestações artísticas em questão, as afastando das caracterizações
genéricas do período. Como exemplo cita a tragédia teatral que ao ser estudada
sempre é relacionada ao texto clássico. No entanto, atenta que o interesse que a
cultura do quinhentos italiano buscava não repousava apenas na repetição desta

439 art uerj III semana de pesquisa em artes


forma antiga, mas principalmente na sua função político propagandística. Assim como
na comédia de costumes florentina, muito representada nos presídios, e, portanto,
imbuída de moralidade civil apresenta elevado rancor e polêmica política.
Passado este primeiro momento de compreensão da proposta da obra, Battisti
introduz os assuntos de interesse. Apresenta nos primeiros capítulos a figura da
bruxa e as fábulas na cultura renascentista, sendo a primeira contrária à idéia de
beleza e a segunda posta e oposição à crônica, mais próxima ao gosto da elite, mais
relacionada à cultura popular, de características formais menos esquematizadas, de
assimilações e mudanças pouco previsíveis e, portanto, de complexo controle de sua
natureza e origem. No entanto, Battisti, não restringe tal idéia de oposição atrelada
ao que denomina por antirrenascimento apenas às ditas manifestações populares.
Expande a mesma à esfera da cultura de corte e do campo científico: o “anti” não
se refere, portanto, ao outro em termos sociais apenas, mas também diz respeito a
uma alteridade imbuída nos próprios universos e linguagens artísticos. Analisa neste
sentido o artesanato de luxo, as fontes, a arquitetura de jardins que apresentam como
matéria prima os quatro elementos naturais, seja na pedra bruta a ser lapidada como
nos artesanatos e nos grotescos de Pirro Ligorio da Villa d’Este em Tivoli; no cálculo
do movimento e fluxo das águas para a elaboração das fontes; no controle do ar
nas criações pneumáticas, principalmente naquelas destinadas aos instrumentos de
sopro; e nos fogos de artifício, que considera ser uma das criações mais abstratas do
homem. Assinala um ponto em comum entre a perseguição às bruxas e a motivação
a esta extrema refinação e elegância da matéria: o medo do caos, do não controlado,
não calculado, não lapidado. Nas artes, diz ser um exemplo deste caos o inacabado
de Michelangelo. Se o antirrenascimento estava ligado à forma desordenada, é
porque o seu oposto pretendia o alcance do controle, do planejamento da forma e de
seus limites.
Analisa a arquitetura maneirista pautada por um racionalismo levado à última
potência, de caráter declaradamente artificial, muito oposta à forma que a sucedeu
nas construções barrocas determinantemente mais acolhedoras, segundo o autor.
O funcionalismo arquitetônico do quinhentos italiano mostra-se assim, caracterizado
como uma opção de construção particularmente simples, contraposto à arquitetura

440 art uerj III semana de pesquisa em artes


tradicional da época embasada em um excessivo racionalismo elaborado, por
exemplo, a partir das questões astrológicas que entre outras razões, garantiria a
fortuna dos oráculos a seus habitantes, uma tradição remontada aos antigos, como
considerado por Hipócrates que dizia que uma cidade bem organizada, que respeita o
sol e os ventos é menos sujeita a revoluções.
Suas reflexões estendem-se ao discurso da verdade em torno da razão e do
real, atreladas principalmente aos assuntos relativos aos desenhos científicos e às
criações mecânicas ou robóticas (autômatos), muitas vezes não reconhecidos no
léxico artístico renascentista. Ambos são problematizados neste limiar localizado
entre a uva pintada bicada pelo pássaro, citando o exemplo do autor remontado aos
diversos tratados do quinhentos, e os desenhos científicos de finalidade documental.
A uva pintada se pretendida mais real que a cartografia ou as representações de
botânica, por exemplo? A técnica utilizada nestas criações gráficas teria o mesmo
compromisso com o real que as pinturas de natureza morta, ou mesmo um retrato?
Segundo Battisti, nem sempre a técnica está em função do racionalismo e é baseado
neste argumento que desenvolve as análises das criações mecânicas, na maioria
das vezes estudadas a partir de suas relações com as necessidades humanas de
sobrevivência ou de superação de seus limites físicos, como conta a mitologia sobre
o projeto de vôo de Dédalo. As criações de tais maquinárias ultrapassavam a noção
tão prezada de realidade e natureza, partiam de uma criatividade que pretendia
superar a natureza humana.
Trata também da discussão entre o cômico e o gênero, citando como exemplo
a mudança das práticas artísticas de Brueghel, quando este abandona a cartografia
pela temática popular da vida cotidiana. Segundo o autor, na cena de gênero
teríamos um dos maiores encontros, no campo do gosto, entre o renascimento e o
antirrenascimento, devido à constante convivência no quinhentos italiano dos valores
tradicionais representados principalmente pelas comissões religiosas e os setores
sociais laicos e privados, restritos ao ambiente da corte e da oligarquia econômico
política, que colecionaram obras em sua maioria alegorias ou retratos.
Podemos dizer que suas reflexões tangenciam em muitas instâncias a
discussão do problema da imitação principalmente a relação entre a capacidade

441 art uerj III semana de pesquisa em artes


mimética do artista e o modelo imitado. A genialidade do artista renascentista era
mediada principalmente pela proximidade da sua obra com a natureza, o que
justifica a demasiada importância concedida aos conhecimentos de perspectiva
e anatomia. Entretanto, Vasari apresenta a noção de “imitar com invenção nova”
como definição daquilo que chamou de arte moderna, o que pressupunha um
traço além da observação do natural. O papel da criação do artista em relação
ao modelo foi extensamente debatido entre Pico della Mirandola e Pietro Bembo,
variando entre duas vertentes de pensamento, respectivamente: aquele que parte de
diversos modelos naturais, abordando assim a necessidade do artista desenvolver
a capacidade de escolha do que será copiado e o direito de superar a natureza;
e o do modelo único que promete fidelidade àquilo que é observado. No caso das
manifestações chamadas por Battisti de antirrenascentistas, cabe questionarmos se
haveria o modelo em primeira instância, uma vez que o assunto não é mais o natural
e sim aquilo que foge do previsível, do calculado e do almejado.
Battisti faleceu em 1989 quando terminou o segundo volume do
Antirrenascimento contendo notas relativas à sua primeira edição, trazendo novas
reflexões depois de quase trinta anos de pesquisa iniciada, demonstrando a sua
preocupação da constante renovação do pensamento.

Notas
1 BATTISTI, Eugenio. Mito e favola, in Enciclopedia Universale dell’Arte, Sansoni, Firenze, vol. IX, coll.
444-445, e 460-463.
2 BATTISTI, Eugenio. Tragico e sublime, in Enciclopedia Universale dell’Arte, Sansoni, Firenze, vol.
XIV, coll. 68-73.
3 BATTISTI, Eugenio. Zoomorfiche e fitomorfiche figurazioni, in Enciclopedia Universale dell’Arte,
Sansoni, Firenze, vol. XIV, coll. 902-914.
4 BATTISTI, Eugenio. Il mondo visuale delle fiabe italiane, in «Rivista di psicologia sociale», 6, n. 3,
luglio-settembre 1959, pp. 291-295.
5 BATTISTI, Eugenio. Dal totem all‘allegoria, in «Letteratura», 7, n. 41-42, settembre-dicembre 1959,
pp. 3-16.

442 art uerj III semana de pesquisa em artes


III semana de pesquisa em artes
10 a 13 de novembro de 2009 art uerj
tradições, territórios, cruzamentos

Sandro Botticelli: Vestuário e Arte

Larissa Sousa de Carvalho

Graduanda em História da Arte – UERJ

O presente estudo busca analisar a história da arte através de uma perspectiva pouco
explorada até o momento, i.e., sob o olhar dos questionamentos suportados pelo vestuário nas
obras de arte. Assim, Primavera e O nascimento de Vênus, principais obras do pintor italiano
Sandro Botticelli, foram selecionadas para considerações mais atentas a respeito de suas
iconologias e das possíveis questões levantadas a partir do estudo de suas indumentárias.

Botticelli; Vestuário; História da Arte.

This study must be understood as an attempt to analyze the history of art from a perspective not
so much explored until now, that is, under the gaze of questionings supported by the clothing
in the works of art. Thus, Primavera and The Birth of Venus, main works of the italian painter
Sandro Botticelli (1444/5-1510, were selected for a closer look regarding their iconology and
possible issues arising from the study of their costumes.

Botticelli; Costume; Art History.

Ao aventurar-se nas leituras referentes a Sandro Botticelli, por mais conflitantes


que se apresentem, é possível perceber um ponto de contato entre elas, ou seja,
todas concordam com a variedade de interpretações cabíveis às suas obras e
igualmente com a dificuldade de estabelecer significados precisos e confiáveis
a qualquer símbolo presente nas mesmas. Entretanto, essa capacidade de não
encerrar a obra acaba possibilitando uma nova maneira de encará-la, já que a cada
leitura um novo aspecto é levantado, quase como um processo de redescoberta.
Em seu estudo, E.H. Gombrich propõe uma leitura das mitologias de Botticelli
443
em conformidade com o simbolismo neoplatônico do quattrocento. Dando prioridade
para a figura central da Primavera, Gombrich busca aprofundar suas análises através,
especialmente, de duas fontes principais. A primeira delas é uma carta presente no
Epistolarium de Marsílio Ficino direcionada a Lorenzo de Pierfrancesco di Médici
(supostamente o mecenas da obra), de quem Ficino era mentor espiritual. Na carta,
Gombrich busca perceber qual seria o significado da figura da Vênus no quadro da
Primavera para aquele que a encomendou. Por mais incomum que a passagem
possa parecer em um primeiro momento, é nela que a noção de Venus-Humanitas
é esclarecida, pois de acordo com sua visão de alegoria moral ao lado de seus
conhecimentos sobre astrologia, Ficino esclarece o princípio representado por Vênus,
que além de servir como guia para o amor dos homens é também um “planeta
moralizante”, cuja virtude é definida através de comentários sobre sua anatomia.
Ficino ainda aconselha Lorenzo de Pierfrancesco que aceite a virtude da Venus-
Humanitas, já que pela beleza é possível chegar ao divino.
Além disso, a figura da Vênus também é descrita na segunda e principal fonte
em que Gombrich constrói sua argumentação: o Julgamento de Paris presente no
Asno de Ouro de Apuleius Madaurensis. Entretanto, Gombrich reconhece a dificuldade
de relacionar alguns de seus pontos com o que considera como o programa que
aconselhava os pintores a representarem os personagens de uma determinada maneira
em suas composições, ressaltando, ainda, a semelhança entre Apuleius e o tipo de
fonte que mais inspirava os artistas e mentores do Renascimento, ou seja, a ekphrasis.
Esta era utilizada para a descrição bem detalhada das coisas, principalmente no que se
refere à descrição de uma arte para outra, servindo não somente para visualizar, mas
quase para ser reconstruída na pintura. Acreditavam, pois, que era através da correta
representação dos atributos e aparência dos Deuses que suas verdadeiras essências
seriam reveladas. No entanto, quando Gombrich levanta a hipótese de que os autores
dos programas desrespeitaram o contexto da descrição de Apuleius e a usaram-na
exclusivamente como material visual, justificando uma certa desconexão entre texto e
imagem, ao invés de corroborar, apenas enfraquece uma possível vinculação, já que
a descrição apresenta maior semelhança com a Vênus do Nascimento, ainda que, de
fato, seja descrita como velada por um fino véu.

444 art uerj III semana de pesquisa em artes


Uma outra questão levantada por Gombrich é referente à falta de adequação
da “arte secular” ao que Botticelli estaria tentando expressar em sua arte, isto é,
a idéia da Venus-Humanitas citada por Ficino, que faz com que a figura da Vênus
desperte no espectador algo semelhante ao entusiasmo religioso proveniente de
sua beleza. Salienta, ainda, a importância de não se ater apenas ao lado pagão e
nem somente cristão de suas obras, pois é exatamente através da representação de
um assunto não-religioso pintado com um sentimento normalmente reservado para
objetos de adoração que a obra de Botticelli dá um passo adiante. Cabe destacar a
transformação pela qual os símbolos clássicos passaram a partir dessa vinculação
com os dogmas cristãos, concepção essencial do Neoplatonismo. Logo, foi no
resgate do mundo clássico de certa forma “esquecido” durante a Idade Média que
o Renascimento abre os olhos para as formas da arte greco-romana, inspirando-
se, principalmente, em sua mitologia e filosofia, onde Ficino interpreta os textos de
Platão na tentativa de relacioná-los à teologia cristã. Deste modo, é possível chegar
à compreensão da beleza divina por meio da apreciação da beleza terrena, sendo
Vênus seu arquétipo. Percebe-se também como a exaltação da beleza feminina se
afasta de sua antiga associação com o pecado (figura de Eva) e se aproxima cada
vez mais da Virgem Maria.
Neste momento é interessante apresentar um outro tipo de interlocução,
pois em contraste com Gombrich, por exemplo, que busca aprofundar seus
questionamentos sem partir de pressupostos e definições prontas, Barbara Deimling
reduz as possibilidades de significação da obra ao tomar como verdadeiro alguns
fatores que deveriam ser questionados ou, no mínimo, mostrados como incertos
(embora sua descrição minuciosa dos elementos faça o observador atentar para
detalhes que antes lhe escapavam aos olhos). Logo, apesar de mencionar Ovídio
e Poliziano, é através de uma outra fonte que a autora baseia suas concepções
sobre a obra, o De rerum natura de Lucrécio. Gombrich ao mencionar interpretações
passadas sobre o quadro considera as associações realizadas a partir das passagens
de Lucrécio, apenas coerentes quando isoladas. Contudo, o mesmo reconhece a
possibilidade de que o texto de Apuleius tenha sido descontextualizado. Neste caso,
por mais que as passagens de Lucrécio, no geral, não se relacionem ao conteúdo do

445 art uerj III semana de pesquisa em artes


quadro como um todo, é possível pensar que talvez possam ter servido como fonte
descritiva para a construção visual e pictórica da obra. Cabe ainda questionar: para
aqueles que cogitam outros significados para a obra, focando somente na figura
da Vênus – como Gombrich que menciona o episódio do Julgamento de Paris –
será mesmo que o quadro de Botticelli não esteja minimamente relacionado com a
estação da primavera? Deimling observa a identificação de quinhentas espécies de
plantas, das quais cento e noventa são flores. Por que Botticelli teria se dedicado
tanto na caracterização de cada tipo vegetal, especialmente no primeiro plano, se não
existisse algum vínculo efetivo com a chegada dessa estação do ano?
Em divergência à concepção de Deimling, Paul Barolsky defende a
insuficiência de descrição para que o processo de transformação da ninfa Clóris
pudesse, de fato, ser representado, sugerindo uma outra fonte possível: o mito
ovidiano de Apolo e Dafne. Sendo assim, Barolsky acredita que através da
metamorfose desses dois contos de Ovídio, Botticelli pôde construir na sua própria
pintura a metamorfose ocorrida em um deles – Clóris transformada em Flora, assim
como, Dafne fora transformada em árvore. Além do mais, Barolsky segue observando
outros tipos de metamorfoses recorrentes nas obras do pintor, como o broche de
uma das Três Graças que é aparentemente suportado, não por um cordão, mas pela
própria continuação de suas tranças, metamorfoseando seus cabelos em um colar.
Já na forma de Flora, não são seus seios que levantam questionamentos, como Ann
Shteir afirma ocorrer na iconografia da deusa, mas sim sua barriga arredondada
indicando uma possível gravidez. Tal comentário também pode ser encontrado em
referência a figura da Vênus (traço comum a outros quadros) que, de certa maneira,
também apresenta o ventre acentuado. Ao considerar a primavera como a estação
da renovação e da fecundidade, será mesmo que a gravidez de uma dessas duas
figuras se sustenta? Alguns críticos observam no quadro um clima de celebração,
quase como um ritual de passagem para a felicidade. Esta noção se relaciona ao
contexto do casamento, pois como evidenciado por Michael Rohlmann, o quadro foi
supostamente encomendado para celebrar a união de Lorenzo de Pierfrancesco com
Semiramide Appiani (MARMOR, 2003).
Continuando com mais um questionamento sobre a figura da Vênus na

446 art uerj III semana de pesquisa em artes


Primavera, cabe mencionar as análises de Jean Gillies em torno do que a mesma
considera como a figura central do quadro, já que é a partir da representação
incomum e não estereotipada da Vênus que a autora se abre para novas
possibilidades interpretativas, cogitando a hipótese de que na verdade seja Ísis
ali representada. Para comprovar tal afirmação, Gillies recorre a duas fontes:
uma estátua da deusa egípcia (“Isis with Jar and Sistrum” localizada nos Museus
Capitolinos, em Roma) e o Asno de Ouro de Apuleius, seguindo a mesma fonte
literária mencionada por Gombrich. Inicia, assim, contrapondo Vênus à estátua
de Ísis, bem como, à descrição de Apuleius, afirmando ser possível encontrar
similaridades, principalmente, no que se refere ao vestuário, posicionamento, gestos
e expressões faciais de ambas as figuras. Adiante, a autora menciona mais um
ponto para ratificar o vínculo que busca propor entre as deusas. A conexão está na
presença de um medalhão contendo o principal atributo de Ísis, a lua crescente.
Sendo assim, é através desse medalhão que a possível gravidez da figura também se
justifica, pois como afirma Gilles, a gestação está indicada pela reflexão da luz solar
na insígnia.
Vale ressaltar que em seu estudo, Gombrich menciona um possível vínculo
entre essas duas figuras, contudo, se refere mais em relação ao Nascimento de
Vênus do que da Primavera, como o faz Gillies. Sendo assim, Gombrich relembra
como era usual a busca por múltiplas fontes e referências para, em seguida,
combinar todas elas criando algo “novo”. No caso de Botticelli, o mesmo pode ter
ocorrido, sendo possível que a descrição de Apuleius em referência à Ísis tenha
sido transfigurada para Vênus, já que em um trecho Ísis afirma sua identidade com
a deusa. Sobre tal procedimento, ainda considera que a principal fonte em relação
ao quadro do Nascimento, ou seja, a Giostra de Poliziano, também se constitui da
mesma forma, já que apresenta trechos retirados de Homero, Ovídio, entre outros
autores clássicos. Assim sendo, o quadro representa a chegada de Vênus a Chipre,
após ter nascido da espuma do mar fertilizada pelo sêmen de Urano. Para que
chegue até a margem, Vênus é direcionada pelo sopro de Zéfiro, a quem a brisa Aura
está entrelaçada. Já no canto direito, uma das ninfas das Horas, abre uma ampla
peça de roupa, para que assim, cubra a nudez da deusa.

447 art uerj III semana de pesquisa em artes


[Imagem 1]: (c. 1482)
Sandro Botticelli,
Primavera, Têmpera
em painel, 203 x 314
cm - Galleria degli
Uffizi, Florença, Itália.

[Imagem 2]: (c.1485)


Sandro Botticelli, O
nascimento de Vênus,
Têmpera sobre tela,
172.5 x 278.5 cm,
Galleria degli Uffizi,
Florença, Itália.

448 art uerj III semana de pesquisa em artes


Como é possível perceber, esta obra não apresenta tantas divergências
interpretativas como a Primavera. Na verdade, alguns significados relativos a esta
última também são interpretados à luz do Nascimento de Vênus, como é o caso
das concepções neoplatônicas, por exemplo. Deste modo, Vênus continua sendo o
símbolo desses ideais, deixando de ser puro fruto de contemplação ou mesmo da
associação com o pecado, para representar a verdade cristã através de sua beleza
única. Botticelli, portanto, teria novamente acrescentado a um episódio mitológico-
pagão um espírito cristão, em que a deusa passaria a ser símbolo da alma cristã que
emerge das águas do batismo, assim como, todo o esquema da composição seguiria
as tradicionais representações do Batismo de Cristo, como nota Gombrich.
Ainda em relação à Vênus, mostra-se necessário acrescentar alguns
comentários a seu respeito. Primeiramente, vale notar sua ligação com a noção
clássica de Venus pudica, ou seja, da figura nua que cobre com uma das mãos sua
genitália, enfatizando exatamente o que se pretende ocultar. Uma possível inspiração
pode ter sido a estátua Vênus de Médicis, que também apresenta o mesmo gesto
pudico e despido de senso erótico da deusa de Botticelli. Em seguida, alguns
estudiosos, como Gaia Servadio e Fabienne Rousso, acreditam que a intenção do
pintor, na verdade, foi baseada no ideal de beleza das mulheres florentinas de seu
tempo, defendendo ainda, a utilização de uma modelo em especial para criação
de suas figuras, a bela Simonetta Vespucci. Por último, mas de certa maneira
relacionado ao primeiro ponto, cabe observar a cor pálida destacada pelo contorno
preto da pele de Vênus, remetendo também a cor do mármore das estátuas antigas,
o que acentua sua expressão aparentemente fria e enigmática. Além disso, a deusa
ratifica o ideal de beleza da época, apresentando ainda longas mechas de cabelo
loiro quase dourado, símbolo da castidade feminina.
Após perceber algumas das questões e interpretações possíveis a ambos os
quadros do mestre florentino, cabe ainda refletir sobre um questionamento relevante:
Por que a Vênus da Primavera levanta tantas dúvidas e diferentes interpretações,
enquanto a Vênus do Nascimento já é considerada como uma representação
compreendida e totalmente válida? Se teoricamente toda moça bonita poderia ser
Vênus, porque esta em particular é tão indagada? É evidente que o “contexto”

449 art uerj III semana de pesquisa em artes


influencia de certa maneira, pois a iconografia da Vênus surgindo do mar, inspirada
também na representação da Aphrodite anadyomene de Apelles, já era recorrente
na época, enquanto, no Jardim do Amor e da Primavera sua representação é
incomum, onde nem mesmo a presença das Três Graças e do Cúpido faz cessar
as dúvidas que recaem sobre a Vênus. Sendo assim, um elemento que corrobora
significativamente para a sua representação diferenciada, fugindo de estereótipos e
cânones, é o modo como sua indumentária é representada, bem como, as próprias
características desta vestimenta. Paul Holberton já indicara para tal direção: “Next
to them [Flora, Clóris e Zéfiro], the figure in the middle is virtually characterless: her
garments are neither classical nor contemporary, but extramundane, like those of a
Virgin Mary. Her face is not a portrait but generic. Her gestures, however, are those of
greeting – one hand raised upright on the wrist, the other lifting her robe in a curtsey”
(HOLBERTON, 1982).
Sem mesmo nomear a figura central como Vênus, Holberton foca para sua
vestimenta como elemento caracterizador da personagem. Além disso, considera este
traje extramundano, já que não pode ser completamente identificado, nem à luz do
vestuário clássico e nem ao do século XV. Essa heterogeneidade pode ser percebida
em diversos elementos de sua vestimenta: em seu traje branco acinzentado, por
exemplo, é possível observar a influência clássica, pois remete à túnica de linho
utilizada pelos antigos, denominada quitão. Entretanto esta era ajustada nos ombros
por fechos, sendo composta por uma peça única retangular amarrada, mas, no
caso de Vênus, a parte superior de seu traje não se parece com nenhum tipo de
combinação desenvolvida pelos gregos, assim como diverge dos vestidos comuns
ao século XV. Ao invés da amarração na frente, o usual da época, o vestido da deusa
apresenta uma espécie de armação nos seios de onde pendem os ornamentos, em
que a corrente de seu medalhão, profusamente adornada com pedraria esverdeada,
confunde-se com essas linhas que marcam a parte superior de sua vestimenta. Em
relação às mangas, como era comum que elas fossem maiores do que deveriam, as
pregas e amarrações faziam a correção do comprimento, formando pequenos pufes
na parte do cotovelo ao ombro, como pode ser observado, até mesmo, em Vênus.
Além dessa espécie de túnica há um outro elemento enigmático em sua

450 art uerj III semana de pesquisa em artes


indumentária: o manto vermelho que pende sobre um de seus braços e apóia-se em
uma de suas mãos. De tecido mais encorpado e volumoso, possivelmente veludo,
esse manto de inspiração grega, denominado himation, se apresenta ricamente
decorado com padrão quadricular em seu lado vermelho e, com uma espécie de
estrela ou flor, em seu lado oposto (de cor verde esmeralda), assim como, da própria
barra do manto de onde pendem formas circulares. Ao lado do quitão, o himation era
uma peça essencial do traje feminino, sendo utilizado de sete maneiras diferentes,
como avalia Herbert Norris. No entanto, nenhuma delas se assemelha à forma
utilizada pela Vênus da Primavera, pois como serviam para proteger as mulheres
das intempéries, normalmente envolviam seus ombros e até mesmo suas cabeças,
pendendo sobre seus braços e corpo. No caso de Vênus, o manto não parece
envolvê-la – é como se estivesse apenas apoiado frontalmente, precisando ser
segurado com um movimento ascensional de sua mão esquerda.
Dando continuidade, agora em relação a outro personagem, é igualmente
perceptível o vínculo entre o traje de Mercúrio e o dos clássicos. Assim, de acordo
com a maneira de vestir, seu traje se assemelharia ao peplo utilizado apenas pelas
mulheres, já que também segue por baixo do braço esquerdo sendo preso no ombro
direito. Isto faz o peito esquerdo ficar descoberto e as laterais abertas, como é
mostrado em Mercúrio. Tal “amarração” também era utilizada no quitão masculino,
entretanto, seu tecido era muito mais fino (linho, algodão), menos decorado do que as
capas e mantos e fechado nas laterais. Embora o quitão curto sem cinto fosse usado
pelos soldados por baixo da armadura, Mercúrio apresenta um traje diferenciado
deste, é possível observar, assim, uma inspiração em outra peça de roupa clássica
que ainda falta ser mencionada, a clâmide. Esta, com dimensões menores do que
o himation, era a capa de lã utilizada pelos homens, principalmente, no período de
guerra, onde os soldados e mensageiros mais novos vestiam-na sem outra peça
por baixo, o que não era comum no ambiente social. Além disso, a clâmide oferecia
liberdade dos movimentos, sendo presa apenas do lado direito do pescoço, embora
não seja visível na veste de Mercúrio que, na verdade, induz ainda um outro tipo de
amarração lateral, por baixo de sua mão esquerda. Em relação aos pés, era comum
entre homens e mulheres o uso de sandálias e botas, todos confeccionados em

451 art uerj III semana de pesquisa em artes


couro e com solado do mesmo material ou de madeira. A bota que Mercúrio calça
é semelhante a da Minerva no quadro Minerva e o Centauro, também presa aos
dedos e aparentemente sem solado. O que se diferencia é apenas a cor, que variava
de acordo com as colorações naturais do couro, assim como, o tipo de trançado
para amarrá-las, geralmente frontal. Cabe notar que o restante dos personagens se
apresentam descalços, com exceção de Vênus, que calça uma delicada sandália de
tiras muito finas, quase com se estivesse descalça como os demais.
Flora, em contrapartida, exibe um traje relativo mais ao século XV do que
propriamente a Antiguidade. Sem apresentar nenhuma jóia, são apenas as flores que
compõem a ornamentação de sua veste, totalmente bordada com padrões florais
e variados. No decote, uma guirlanda de flores e, por baixo dos seios, um ramo de
roseira: essa é a ênfase dada à parte superior de seu vestido. Em comparação com
o traje dela, a indumentária de Hora do quadro do Nascimento de Vênus também
compartilha de algumas características semelhantes, principalmente, no formato,
na presença de padrões florais bordados e nas decorações com ramos de flores
na região superior do vestido, embora as mangas, ainda se remetam as de Vênus
da Primavera. Sendo assim, tanto as vestes de Hora como o próprio manto que a
mesma estende para Vênus, são ricamente ornamentados, diferentemente, da lisa e
esvoaçante capa de Zéfiro (e Aura), também presente no quadro da Primavera. Logo,
da mesma maneira que Zéfiro se cobre somente com uma peça de roupa, Clóris
também está coberta apenas por um véu transparente, tão diáfano, que revela o
vulto das flores ao fundo. Igualmente vestindo as Três Graças, o véu aqui não parece
ser tão invisível quanto o da ninfa, embora ainda revele a silhueta das três figuras,
possibilitando que Stella Mary Pearce, ainda, atente para a suavidade com que suas
vestes foram claramente desenhadas, apesar de nem sempre serem percebidas de
imediato.
Deste modo, Pearce considera Botticelli um pintor preocupado com todos
os pormenores da indumentária, sem inventar peças de roupas fantasiosas e, nem
mesmo, esquecer de nenhum detalhe relevante. O fato de ter sido ourives no início
de sua formação pode ter influenciado essa preocupação com a minúcia, pois como
era comum desde a antiguidade enviar artigos de vestir para a ourivesaria (aplicação

452 art uerj III semana de pesquisa em artes


de ouro ou prata), Botticelli pode ter tido algum contato com tal atividade. Ademais,
Pearce ainda reforça a importância dos conhecimentos técnicos em indumentária,
já que possibilitam a reconstrução mental do que está ali representado na obra de
arte. Por fim, após evidenciar alguns posicionamentos, análises e interpretações,
principalmente, no que se refere à figura da Vênus em ambos os quadros, cabe
lembrar a continuidade de tais pesquisas para os diversos pontos ainda almejados,
buscando aprofundá-los mais e mais.

Referências Bibliográficas
BAROLSKY, Paul. As In Ovid, So In Renaissance Art. In. “Renaissance Quarterly”, Vol. 51, No. 2 (Summer,
1998), p. 451-474.
DEIMLING, Barbara. Botticelli. São Paulo: Distruibuidora de Livros Paisagem, 2005.
GILLIES, Jean. The Central in Botticelli’s “Primavera”. In. “Woman’s Art Journal”, Vol. 2, No. 1 (Spring –
Summer, 1981), p. 12-16.
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453 art uerj III semana de pesquisa em artes


III semana de pesquisa em artes
10 a 13 de novembro de 2009 art uerj
tradições, territórios, cruzamentos

A Arquitetura Eclética Egipcizante no Rio de Janeiro

Renato Menezes Ramos

Artes Visuais – UERJ


Orientadora: Evelyne Azevedo

O texto trata de questões da arquitetura eclética e suas incorporações de motivos alegóricos


egípcios, como mecanismo de decoração exótica e ferramenta de produção do “novo”. Para
isto, serão analisados edifícios de grande relevância para o repertório eclético carioca, sendo
eles, a atual sede da Escola de Artes Visuais do Parque Lage, o Sobrado Egipcizante da rua do
Ouvidor, n.° 116 e o Sobrado “Neo-Egípcio”, todos situados no Rio de Janeiro.

Ecletismo; Apropriação; Egito.

Le texte traite de question sûr l’architecture éclectique et ses incorporations allégoriques dans
les motifs egyptiens, en tant que mécanisme de décoration exotique et outil de production
du nouveaux. Seront analysés les bâtiments de grande importance au répertoire éclectique
carioca, ils sont, l´actuel École d´Arts Visuels du Parque Lage, la maison egipcizante de la rue
du Ouvidor, nº 116, e la maison «néo-égyptienne», toutes situées à la ville de Rio de Janeiro.

L’éclectisme; Appropriation; Égypte.

O Ecletismo arquitetônico surgiu na Europa, em meados do século XIX e


perdurou até o início do século XX, tendo como princípio o “uso livre do passado”1
para a produção do “novo” na arquitetura. Compreende diferentes tendências,
sendo uma das primeiras manifestações do revivalismo não-clássico, mesclando
características de variados estilos. Baseado nas então recentes pesquisas
arqueológicas, o ecletismo se apropriou de elementos iconográficos do passado na
tentativa de conferir-lhes uma nova leitura, sendo o mais importante, a fantasia e o
454
espírito imaginativo, baseados na recriação e na evocação: motivo suficiente para
inseri-lo no ideário romântico.
Foi na idealização que o ecletismo procurou atingir seu paradigma de belo
ideal, encontrando na estética da acumulação2, a melhor maneira de expressar a
individualidade do artista. Esta consistia no aspecto de liberdade criativa do arquiteto,
na mescla de decorações e formas de origens distintas para produzir, assim, um
efeito de originalidade e antiquarismo, além de agregar valores associativos entre a
aparência do edifício e a influência social de seu proprietário.
É importante ressaltar que este é um contexto de ascensão industrial, que
influenciou entre tantas áreas e técnicas, a construção civil. Isto fica visível a partir
da introdução de novas técnicas construtivas utilizando materiais como o ferro e o
aço para a estruturação do edifício. O ornamento era adquirido através de catálogos,
já que também eram produzidos em série. A partir daí, conclui-se que, caso o ornato
fosse fabricado especialmente para uma edificação, seu custo seria maior, o que
sugeria poder e riqueza ao dono do imóvel.
O zeitgeist3 relacionava-se com o tradicionalismo formal e a modernidade
material. Surgiu neste período a preocupação em se pensar em um programa
que atendesse às necessidades de uma população que presenciava uma radical
transformação nos âmbitos industrial, social e urbano. A revisão do índice se
funcionalidade e de aproveitamento dos espaços é “evidenciada pela maior atenção
a itens tais como conforto, higiene, circulação, aeração, acústica, entre outros”4. Além
disso, não se pode esquecer do volksgeist5 brasileiro, tão influenciado pelo padrão
cultural europeu.
A apropriação de elementos egípcios na arquitetura eclética se justifica
através do gosto pelo desconhecido – ou pouco conhecido – misterioso e exótico,
como ferramenta de particularização e autenticidade. Essa manifestação pode ser
caracterizada como egiptomania. Esta esteve presente ao longo do século XIX como
mecanismo de referência à Antiguidade Oriental. O gosto pelo Egito pode ser visto
desde o Império Romano até o século XX, sendo constantemente revigorados pelas
descobertas arqueológicas.
A arquitetura eclética se apropriou do Egito, capturando imagens para constituir

455 art uerj III semana de pesquisa em artes


Renato Menezes
Ramos. Detalhe da
Escola de Artes Visuais
do Parque Lage. 2009

um vocabulário exótico, visto que a freqüência de referências clássicas era muito


maior. Este fenômeno, portanto, passou a consistir uma linguagem rara como
tipologia de gosto eclético.
O atual prédio sede da Escola de Artes Visuais do Parque Lage (Mansão dos
Lage) é um casarão remodelado na década de 1920, pelo arquiteto italiano Mario
Vrodel, a pedido de Henrique Lage, para a cantora lírica italiana Gabriela Bezanzoni,
sua esposa. Trata-se de um exemplar da arquitetura residencial burguesa, que segue
em sua decoração um tratamento clássico no estilo das vilas e palácios italianos com
uma fachada totalmente revestida de cantaria. Este edifício inclui alguns elementos
de origem orientalizante, entre estes elementos está uma esfinge alada, feita de
cimento provavelmente sob forma, visto que há dois exemplares idênticos colocados
no ladeamento das escadas que dão acesso à parte superior do terraço.
456 art uerj III semana de pesquisa em artes
Hoje em péssimo estado de conservação, com sua estrutura de ferro aparente,
pode se ver, no entanto, um colar de contas caído pelo pescoço alcançando o
tórax meio leonino, meio feminino. Interessante também é a representação da
peruca com um corte de cabelo na altura dos ombros dos quais partem longas
asas. Normalmente, as esfinges eram adornadas, na cabeça, por uraeus, e não por
perucas, nem mesmo eram aladas. Outro aspecto interessante é o fato de estarem
deslocadas de sua função inicial: guarnecer os templos, sendo utilizadas aqui como
elementos decorativos.
No sobrado localizado na esquina das ruas do Ouvidor e Miguel Couto com a
Avenida Rio Branco, funcionou por algum tempo a antiga loja “Ao Rei dos Mágicos”.
Ainda pouco se sabe a respeito deste edifício, mas pode-se afirmar que ele é um dos
remanescentes da grande reforma urbana de Pereira Passos, no início do século XX.
Conta-se a seu respeito que ainda no Império, nele vivia Antônio Ribeiro Chaves, o
qual tinha uma certa vocação para inventor. Certa vez, ao ler em uma revista francesa
a descrição do invento que Graham Bell expunha em 1876, resolveu fazer um
“similar utilizando os meios disponíveis na cidade. Em 1877, já estava estabelecendo
comunicação entre sua casa, o Jornal do Commércio e a estação de bombeiros com
grandes benefícios na luta contra incêndio.”6
A adição deste imóvel a esta pequena lista se deve ao fato dele ter, hoje,
poucas, mas importantes características, que de alguma maneira, suscitam a
civilização e a cultura egípcias. Atualmente, ao olhar para a sua fachada de tom
rosado com simples pinturas murais e estuques em tom pastel, assustamo-nos
com as duas imponentes estátuas de evidente referência egípcia. São duas: uma
masculina e outra feminina; rígidas e estáticas e com o corpo sem pelos, afirmando a
clara influência da estatuária egípcia.
É interessante essa preservação do princípio de imobilidade das imagens
egípcias: mecanismo este que confere às imagens caráter de eternidade, visto que a
arte egípcia está diretamente vinculada à religião e, conseqüentemente, do Estado.
Elas trazem na cabeça o uraeus, e seguram fortemente uma espécie de taça com
uma enorme tampa, lembrando vagamente uma cariátide grega.
Em princípio, parece-nos uma ingênua composição de elementos distintos

457 art uerj III semana de pesquisa em artes


sobre uma fachada relativamente simples. Entretanto, olhando mais atentamente,
nota-se nos gradis da primeira sacada – correspondente ao segundo pavimento – um
escaravelho: importante símbolo da renovação da vida para a cultura egípcia, que
aparece com muita freqüência em seu repertório imagético. Neste caso, as patas
do escaravelho são formadas por duas serpentes, que por sua vez, também são
elementos de grande carga simbólica na cultura egípcia.
Surpreendentemente, em uma fotografia de Augusto Malta, do início do século
XX, pode ser observada uma espécie de coroamento no corpo central do edifício,
cujas estátuas são esfinges aladas. Hoje inexistente, o coroamento comprova que
havia uma certa consciência na apropriação de elementos egípcios, haja vista as
insistentes repetições desta mesma temática nos elementos de sua fachada. Esta
alteração pode ser vista na imagem comparativa abaixo, atentando que o sobrado

1. 2. Foto: Montagem –
Augusto Malta (acervo
Museu da Imagem e
do Som, sem data)
e Renato Menezes
Ramos, 2009.

458 art uerj III semana de pesquisa em artes


rosado do qual falamos é, na foto do Malta, o que está localizado à extrema direita.
Contudo, é curioso observar o diálogo com os estuques beges da fachada, que
nada têm relações com o Egito. Podem ser observados ornamentos semelhantes
a sagrados corações, capacetes de armaduras medievais, flechas nos gradis, e a
colunata dórica no último piso.
Atualmente, o edifício, como foi notado, encontra-se parcialmente modificado,
principalmente em sem interior, isto porque ele abriga uma filial de uma empresa de
plano de saúde. Ele pertence ao Corredor Cultural da Rua do Ouvidor, tendo, por
isso, sua fachada tombada.
O sobrado intitulado “Neo-egípcio”, localizado no bairro de Santo Cristo
deu origem e foi, por isso, o ponto de partida para essa pesquisa, que a partir
de uma abordagem contemporânea da História da Arte, pretendendo analisá-lo
comparativamente traçando relações entre antiguidade, o século XIX e metodologias
atuais. Devido a sua peculiaridade visual, este sobrado compreende uma raridade na
imensa gama de patrimônios ecléticos do Rio de Janeiro.
A primeira informação que se tem sobre ele é a data de término de sua
construção, que está estampada no ornato colocado na parte superior central da
fachada (conforme o costume da época de pôr o ano do fim da execução na fachada
principal), com o Francisco Alves Rollo, de origem portuguesa. Pouco se sabe
sobre sua vida, e muito menos sobre o que o levou a adotar o Egito como motivo
de decoração. É certo que dois anos depois este imóvel passa a pertencer a uma
serralheria, que se mantém no imóvel até 1935: ano de sua falência. Um libanês
chamado Arsenius Mandour compra o imóvel, deixando-o como herança em 1956
para seus sobrinhos, (já que não tinha filhos) de mesma origem, entre eles Joseph
Semman Mandur. Foi neste período que o sobrado passou a ser alvo da máfia de
criminosos de obras de arte. Foram roubadas peças de madeiras nobres como a
peroba do campo, entre outras, todas entalhadas com motivos egípcios. Em 2005
o sobrado passa por um incêndio criminal, danificando-o ainda mais. Neste mesmo
ano, ele é comprado por seu atual dono, Antônio Mendes.
A partir de 2005 o sobrado passou por uma grande obra de restauração que
recuperou, através de referências fotográficas, as esquadrias da fachada, bem como

459 art uerj III semana de pesquisa em artes


os outros ornamentos que a compõem. É também devolvida a ela a cor original (azul
– até então pintada de vermelho sobre camadas de tinta de outras cores).
Popularmente, o sobrado é vinculado à maçonaria. Este dado não
pode ser descartado visto que em João Pessoa (PB), por exemplo, há um templo
cuja fachada é azul e branca e estão presentes elementos de composição de
origem egípcias, o que realça ainda mais essa suspeita. Este vínculo se deve a

Renato Menezes
Ramos. Fachada do
Sobrado “Neo-egípcio”.
2009

incorporações egípcias no culto e na filosofia maçônica, como o culto à vida e a


recepção da morte.
A fachada principal é composta por uma grande quantidade de elementos
egípcios, entre eles, o escaravelho (colocado sobre o portão central e ao centro da
platibanda), sobre o qual já foi falado. Há a deusa Maat (acima e entre as janelas),
que constitui o princípio da verdade, harmonia e da ordem universal. É representada

460 art uerj III semana de pesquisa em artes


por uma mulher alada. Podem-se observar as pilastras com capitéis palmiformes
(as prolongadas, nas extremidades laterais) e lotiformes (nas portas laterais e nas
janelas). O deus Rá (sobre as janelas e portas laterais), que constitui o princípio
criador. É também a representação do disco solar. E no centro, como eixo de simetria,
uma estátua que traz algumas características de Ísis: a deusa mãe do Egito.
Apesar de sua fachada concentrar um projeto iconográfico de matriz
egipcizante, a estrutura do sobrado corresponde ao padrão de casa colonial, que
perdurou por quase todo o século XIX, o qual consiste em um lote estreito e profundo,
sem afastamentos laterais. A partir de então se põe em questão o título popular
do sobrado. Seria adequada a terminologia “Neo-egípcio” para um método de
apropriação como este?
A teoria de pastiche, em voga no século XIX, consistia no método de tomar um
exemplo arquitetônico para basear o sistema decorativo de um edifício, tornando-o
descontextual, formando, em conseqüência, o contexto da época, ou seja, o zeitgeist
se utilizava na retomada estilística, ou melhor, o passado se tornava uma linguagem
para reutilização no atual, instaurando um “projeto para o futuro”7. Desta maneira,
seria comum que uma igreja trouxesse motivos góticos ou românicos, ainda que
estes estilos tivessem surgido séculos antes e caído em desuso por muito tempo.
Em meio a um simples programa arquitetônico, este edifício apresenta
uma significativa quantidade de referências o Egito. Isto seria suficiente para ser
considerado um pastiche, ao invés da apropriação de ícones da cultura egípcia, como
uma pirâmide ou uma mastaba?
É importante salientar que esta pesquisa não tem por objetivo responder a
essas questões, mas sim torná-las ponto de partida para outras relativizações, tanto
nos estudos acerca da arquitetura eclética, quanto em outras categorias artísticas.
Além disso, este estudo ainda está em desenvolvimento, estando aberto para
acréscimos conceituais futuros.

461 art uerj III semana de pesquisa em artes


Bibliografia
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Janeiro: FIOCRUZ, Casa de Oswaldo Cruz, FAPERJ, 2003.
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COLIN, Silvio. Uma Introdução à Arquitetura. – Rio de Janeiro: UAPÊ, 2000.
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Rio de Janeiro: Lacerda, 2000. 5ª. ed.
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SENDYNK, Fernando (org.). Guia da Arquitetura Eclética no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Prefeitura da
Cidade do Rio de Janeiro, Secretaria Municipal de Urbanismo, Centro de Arquitetura e Urbanismo, Editora
Casa da Palavra, 2001.

Sítios Visitados
www.dezenovevinte.com.br
www.vivercidades.org.br

Notas
1 Termo criado pelo arquiteto e teórico francês César Denis Daly (1811-1893).
2 Termo sugerido por Marcos Moraes de Sá em Ornamento e Modernismo (2005).
3 Palavra alemã que significa “espírito da época”
4 (PEREIRA, 2008: 57).
5 Termo alemão que significa “espírito do povo”
6 (COHEN, 2001: 84).
7 (RICCI, 2008)

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