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tendências

Caderno de Ciências Sociais • Nº 8• 2015

Imagens, memórias e políticas de uma cidade:


Juazeiro do Norte
UNIVERSIDADE REGIONAL DO CARIRI

tendências
Caderno de Ciências Sociais

Crato, 2015
UNIVERSIDADE REGIONAL DO CARIRI
Reitor: José Patrício Pereira Melo
Vice-reitor: Francisco do Ó de Lima Júnior
Pró-reitora de Pesquisa e Pós-graduação: Allysson Pontes Pinheiro
Diretora de Centro: Lireida Maria Albuquerque Bezerra
Chefe de Departamento de Ciências Sociais: André Álcman Oliveira Damasceno
Coordenador do Curso de Ciências Sociais: Leandro de Oliveira

EXPEDIENTE
Editores:
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Leandro de Oliveira

Conselho Editorial
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• Camilo Braz (PPGAS/UFG) • César Barreira (UFC) • Eduardo Diatahy Bezerra de Menezes (UFC) • Edlaine
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(URCA) • Regina Facchini (PAGU/Unicamp) • Roberta Sampaio Guimarães (UERJ) • Roberto Marques (URCA)
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Projeto Gráfico e Diagramação: Fernando Sousa


Revisão Gramatical: Cristiane Sampaio
Revisão da Tradução de Abstracts: Michel Macedo Marques (URCA)

--------------------------------------------------------------------------------------------------------
Caderno de Ciências Sociais: Tendências. Nº8, 2015.
Departamento de Ciências Sociais da Universidade Regional do Cariri-
URCA, – Crato, 2015.
240p; il.;
ISSN: 1677-9460 [versão impressa]
1. Ciência Política 2. Filosofia Política 3. Ciências Sociais
CDD 320
--------------------------------------------------------------------------------------------------------
OS ARTIGOS SÃO DE RESPONSABILIDADE DOS AUTORES – SOLICITA-SE INTERCÂMBIO
tendências
Caderno de Ciências Sociais

Crato, 2015
SUMÁRIO

Apresentação
Juazeiro do Norte: um lugar para as Ciências Sociais  9
Roberto Marques e Leandro de Oliveira

Dossiê
Imagens, memórias e políticas de uma cidade: Juazeiro do Norte
Arte, imaginação e criação: uma etnografia das imagens em Juazeiro do
Norte 31
Rosilene Alves de Melo

Juventudes, conceitos e memórias: evocações em torno do Padre Cícero 55


Ricardo Cruz Macedo e Domingos Sávio de Almeida Cordeiro

“Dos mortos, ou se fala bem ou não se fala”: um ensaio biográfico sobre José
Marrocos (Ceará, 1842-1910) 79
Edianne dos Santos Nobre

Juazeiro sem Padre Cícero: cotidiano, memória e história no caderno de


memórias de Agostinho Balmes Odísio 115
Amanda Teixeira da Silva

Religiosidade de matriz africana: da invisibilidade aos olhos da população


juazeirense 145
Joselina da Silva e Reginaldo Ferreira Domingos

O direito à saúde: uma alternativa de combate ao racismo 165


Otilia Aparecida Silva Souza e Hayane Mateus Silva Gomes
Artigo
Paisagens da memória:os campos de concentração e a seca no Nordeste do
Brasil 197
Mary Kenny

Nominata de Pareceristas ad hoc da Revista Cadernos Tendências Nº 7, 2013


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Apresentação
Juazeiro do Norte:
um lugar para as Ciências Sociais
Roberto Marques e Leandro de Oliveira

As ciências sociais mantém uma relação produtiva e complexa


com as espacialidades que lhes inspiram. Por um lado, as formas como
as relações humanas são materializadas espacialmente são consideradas
fontes imprescindíveis de dados para o pesquisador, sobretudo quando
observados longitudinalmente. Por outro, a tentação de realizar sínteses
abstratas; o ordenamento dessas relações a partir de variáveis simples
e passíveis de generalização; a inspiração em autores que descrevem
relações em espaços bem distintos daqueles em que realizamos nossa
pesquisa sinalizam que a descrição/configuração de relações no espaço
seriam apenas o primeiro passo para a construção do conhecimento no
campo.

Said (1990) nos lembra que a experiência de textualização


dos espaços é sempre dependente de relações políticas precipitadas
pela confluência de personagens; intérpretes e agentes presentes,
condensadas e reapresentadas em novos textos. É a sucessão de
referências, de citações e intertextualidades que conferem realidade
a dizibilidades sobre os lugares, que lhes conferem uma forma de

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Juazeiro do Norte: um lugar para as Ciências Sociais

veracidade.

O livro Orientalismo, e sua repercussão no campo, é uma


afirmação pungente de que nosso imaginário espacial está sempre
marcado pela textualização, reprodução e reapresentação dessas
relações de poder. Lembra-nos também que o campo intelectual, longe
de ser o ponto de vista neutro de descrição objetiva dessas relações,
está abarcado e constituído por elas.

Quantos projetos intelectuais estarão para sempre marcados


por uma dimensão espacial, por um contexto, por um lugar no mundo?

Atendo-nos a experiência das ciências sociais no Brasil,


recordamos imediatamente da relação entre Sociologia Rural e o interior
paulista, notadamente a cidade de Cunha (CANDIDO, 2003). Vêm-nos à
mente a relação entre a Antropologia Urbana e o bairro de Copacabana
nas décadas de 1970 e 1980 (VELHO, 1978). Da Antropologia da
Sexualidade e o Largo do Arouche, na cidade de São Paulo (PERLONGHER,
1987). Todos esses produtivos campos fizeram de um contexto espacial
temporalmente delimitado um projeto intelectual que marcou e marca
de forma incontornável a história do campo em terras brasileiras.

A cidade de Juazeiro do Norte também é um desses lugares de


criação.

Foco de projetos intelectuais relevantes como a Caravana


Farkas, na década de 1960 (LUCAS, 2012; RAMOS, 2004; MARQUES,
2015), do Museu Nacional do Folclore, em 1980 (FUNARTE, 1985), do
Museu Casa do Pontal entre as décadas de 1970 e 1990 (MASCELANI,
2009). Foi também campo para as pesquisas do historiador americano
Ralph Della Cava (1976), de Luitgard Barros (1988), Marcelo Camurça

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MARQUES, Roberto e OLIVEIRA, Leandro de

(1994), Auxiliadora Lemenhe (1996), Eduardo Diatahy Bezerra de


Menezes (1986; 1990; 1993; 1995; 1997; 1998; 1999; 2005; 2007), César
Barreira (1992a; 1992b; 1998; 1999) Oswald Barroso (1982; 1989; 2010),
Oswald Barroso e Rosemberg Cariry (1982) Marco Antônio Gonçalves
(2007; 2011), Marco Antônio Gonçalves et alli (2011) Elsje Lagrou (2011),
Joselina da Silva (2012), Rosilene Alves de Melo (2010a; 2010b; 2011a;
2011b), Ewelter Rocha (2006; 2015a; 2015 b), entre tantos outros.

Restringimo-nos aqui aos projetos inspirados pelo campo das


ciências sociais. Se fôssemos citar a produção imagética sobre Juazeiro
do Norte e o Cariri por ela reapresentados, iniciaríamos uma lista
infindável de historiadores, geógrafos, cineastas, fotógrafos, escritores,
poetas, dramaturgos, entre outros.

Se espaços são produções imagético-discursivas, como nos


lembra Albuquerque Júnior (1999), Juazeiro do Norte é um lugar
complexo de produção de signos sobre a cidade, sobre Nordeste e sobre
o Brasil.

A partir de 1995, com a realização do primeiro concurso público


na Universidade Regional do Cariri, o Departamento de Ciências Sociais
dessa instituição passa a ocupar um novo lugar na produção desse campo
de conhecimento. Os trabalhos de Renata Marinho Paz (2011; 2012),
Anna Christina Farias de Carvalho (2007; 2011), Maria Paula Jacinto
Cordeiro (2011), Roberto Marques (2015a; 2015b), Domingos Sávio de
Almeida Cordeiro (2011a; 2011b; 2004), Núbia Ferreira Almeida (2013),
José Carlos dos Santos (2011) e Thiago Zanotti Carminati (2014) passam
a figurar como relevantes contribuições na reflexão sobre memória,
narrativas e religiosidades.

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Juazeiro do Norte: um lugar para as Ciências Sociais

Mais recentemente essa reflexão se estende para aspectos de


gestão, políticas públicas, hierarquias e relações de poder, tornando as
ciências sociais um valioso aliado na caracterização de dinâmicas sociais
e gestão das cidades. Nesse quesito, destaca-se a produção de Antônio
dos Santos Pinheiro (2013; 2014), Iara Maria de Araújo (2011a), Iara
Maria de Araújo et alli (2011a; 2011b), Sávio Cordeiro (2013) e Roberto
Marques (2012; 2013).

Essas linhas de reflexão se desdobram majoritariamente


mediante a interlocução da Universidade Regional do Cariri com o
Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal
do Ceará, a partir da formação dos professores do curso de Ciências
Sociais e também de outros departamentos de nossa I.E.S., assim como:
Fábio José Cavalcanti de Queiroz (2002; 2010) Titus Benedikt Riedl (2002;
2007), Evanira Rodrigues Maia (2002), José Bendimar de Lima (2003),
Pedro Ferreira Barros (2003), Emanoel Lima Ferreira (2002; 2011), Alana
Mara Alves Gonçalves (2002) e Lucas Vieira de Lima Silva (2007).

O amadurecimento de uma nova geração de cientistas sociais


formada pela URCA1 e já integrada a programas de pós-graduação na
área também alimenta essa produção. Ressalto aqui os trabalhos de
Wendel Freitas Barbosa (2014; 2011), Antônia Eudivânia de Oliveira Silva
(2013; 2014), Priscila Ribeiro Diniz (2014; 2013; 2011), Antônio Lucas
Cordeiro Feitosa (2014a; 2014b), Joice Mara César Bizerro (2014) e Ruth
Rodrigues Santos (2015).

1 O Curso de Ciências Sociais da Universidade Regional do Cariri teve início no ano


de 2006.

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A lista acima, realizada de forma pouco rigorosa, atendo-


se apenas a produção em livros, dissertações e teses, atesta um
amadurecimento institucional e intelectual do departamento de
Ciências Sociais da URCA. Dá indícios ainda do processo de interiorização
do ensino superior nas últimas décadas e o consequente processo que
James Clifford (2002) chama de “um mundo de etnografia generalizada”,
que pulveriza e complexifica relações de poder a partir do momento que
redimensiona os agentes e multiplica os pontos de vista daqueles que
possuem direito à voz, que agenciam visibilidades e dizibilidades sobre
as dinâmicas dos lugares.

Agora, não somente o olhar verticalizado do pesquisador


americano sobre nós, mas um ponto de vista construído a partir de
influências, reapresentações e inspirações amparadas na localização
espacial desses variados agentes e nas relações de poder a que estão
submetidos.

Provavelmente quando elaborada como uma lista de nomes, o


montante dessa contribuição não reflita a dinâmica em jogo com essa
multiplicação de atores.

Para não nos alongarmos em termos teóricos, digamos


apenas que temas como periferia, violência doméstica, memória
social, diversidade religiosa, criatividade, gênero e sexualidade,
interseccionalidade, geração, etnia, raça, políticas públicas, experiências
de ensino em sociologia, imagens e imaginário espacial passam a ocupar
um novo patamar na reflexão teórica sobre as práticas sociais no Cariri a
partir da multiplicação de atores caracterizada acima.

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Juazeiro do Norte: um lugar para as Ciências Sociais

O conjunto de artigos enfeixados no número 08 da revista


Tendências: Caderno de Ciências Sociais reflete os deslocamentos aqui
apontados.

Em maio de 2010, o Departamento de Ciências Sociais da


Universidade Regional do Cariri foi visitado pelos professores Daniel
Walker e Renato Casimiro, representantes da Comissão de Organização
do Centenário de Juazeiro do Norte. A comemoração do centenário, que
tomou como base a data da posse do primeiro prefeito de juazeiro em
04 de outubro de 1911, dobrou-se tanto sobre questões infra estruturais
da cidade de Juazeiro do Norte quanto de sua memória, contando com
apoio técnico e financeiro de variadas instituições.

Especificamente no que diz respeito ao Departamento de


Ciências Sociais da URCA, a comemoração do centenário de Juazeiro do
Norte contemplou a publicação das teses e dissertações de Anna Cristina
Carvalho Farias, José Carlos dos Santos, Maria Paula Jacinto Cordeiro e
Renata Marinho Paz2.

Nasceu nessa reunião a ideia de integrar-se às comemorações


do centenário de Juazeiro do Norte a edição de um dossiê da revista
Tendências sobre a cidade de Juazeiro do Norte.

O dossiê foi composto com 06 artigos de 09 pesquisadores de


09 universidade brasileiras, descrito brevemente a seguir.

Em Arte, imaginação e criação: uma etnografia das imagens


em Juazeiro do Norte, Rosilene Alves de Melo mostra como a escrita

2 O projeto de comemoração do centenário planejou a publicação de um total


de 100 livros, publicados com apoio do BNB, Banco do Brasil BIC e Governo do Estado do
Ceará.

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do cordel, prática entranhada na história de Juazeiro, está presente na


produção de objetos artísticos de autoria de escultores e gravadores
reunidos em torno do Centro Cultural Mestre Noza. Esses objetos
circulam o país e materializam a cidade, seus personagens, suas
formas, em uma experiência de “condensação imagética”. A partir do
referencial teórico da Antropologia da Arte, Melo apreende o processo
de criação das obras como ato criativo multideterminado, não a partir
de localizações geográficas, mas de formas de pensamento a partir da
experiência. Remete-nos ainda a noção de diferença como uma ideia
vigorosa no fazer antropologia.

A expressão, materialização e formas de comunicar memórias


e identidades em Juazeiro do Norte são também problematizadas por
Ricardo Cruz e Sávio Cordeiro no artigo Juventudes, conceitos e memórias:
evocações em torno do Padre Cícero. No encontro com jovens cursando o
ensino médio da cidade, os autores utilizam o termo Padre Cícero como
desencadeador de memórias e significados para esses jovens. A partir
disso retomam a discussão clássica de Michael Pollak sobre memórias
em segunda mão e formas de comunicação de identidades e invenção
da cidade.

Os artigos de Edianne Nobre e Amanda Teixeira retomam


personagens da história de Juazeiro do Norte apreendendo-os sob
renovadas perspectivas de análise. Assim em “Dos mortos, ou se fala
bem ou não se fala”: um ensaio biográfico sobre José Marrocos (Ceará,
1842-1910), Edianne Nobre revisita a fundação das casas de caridade
pelo Padre Ibiapina; o início da imprensa religiosa no Cariri; o movimento
abolicionista; a transmutação das hóstias em sangue e as disputas sobre

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Juazeiro do Norte: um lugar para as Ciências Sociais

os fatos ocorridos em Juazeiro do Norte decorrentes da divulgação


crescente da experiência de transmutação a partir de uma perspectiva
biográfica, apontando a centralidade de José Marrocos na história de
Juazeiro do Norte, tanto pelo seu campo de agência, como por sua
personalidade e estilo de escrita.

Em Juazeiro sem Padre Cícero: cotidiano, memória e história no


caderno de memórias de Agostinho Balmes Odísio, Amanda Teixeira parte
de uma instigante provocação: Poderia a cidade de Juazeiro do Norte
prosperar econômica e simbolicamente após a morte de Padre Cícero
em 1934? Com a questão, a autora tensiona as leituras excessivamente
afeitas a figura do líder político e religioso na perpetuação de um
imaginário sobre a cidade e suas possibilidades. A fonte utilizada, o
caderno de escritos do escultor italiano Agostinho Balmes Odísio,
confere ao artigo não apenas novidades sob o ponto de vista dos objetos
e temporalidades eleitos para a pesquisa, mas novidades metodológicas.
A autora revisa de forma eficiente a produção da história e das memórias
sociais a partir de diários íntimos.

As ideias de regimes de visibilidade e a força da memória


subterrânea como lócus de resistência estão também presentes no artigo
Religiosidade de Matriz Africana: da invisibilidade aos olhos da população
juazeirense, de Joselina da Silva e Reginaldo Ferreira Domingos. A autora
e o autor refletem sobre o aumento recente do número de terreiros de
Candomblé em Juazeiro do Norte, avaliando o motivo para o silencio
em relação aos cultos de matriz africana na região do Cariri. Apontam
movimentos políticos recentes como a Caminhada contra a intolerância
religiosa, que ocorre em Juazeiro desde 2010, tensionando os limites

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entre ações políticas, simbólicas e religiosas no campo do movimento


negro.

Otília Aparecida Silva Souza e Hayane Mateus Silva Gomes


discutem no artigo O direito à saúde - uma alternativa de combate ao
racismo como o Estatuto de Igualdade Racial estaria inspirando políticas
públicas. Para isso, as autoras levantam dados sobre o tratamento
devotado às populações negras em duas instituições de saúde do Cariri
cearense. As autoras cotejam a legislação em vigor sobre cuidados
relativos a populações negras em serviços de saúde com as interações
estabelecidas, ao longo da pesquisa, com os serviços, os profissionais e
os usuários das instituições de saúde. Os dois últimos artigos do dossiê
se comunicam a partir de temas caros às ciências sociais, tais como etnia,
populações estigmatizadas, silenciamento, entre outros; ao mesmo
tempo, se complementam a partir dos enfoques em torno do ativismo,
no primeiro, e das políticas públicas e seus limites, no segundo.

Ao longo dos seis artigos, memórias coletivas, imaginários


espaciais, comunicados na e pela cidade de Juazeiro do Norte vão sendo
desvelados, apontando linhas que organizam as possíveis contribuições
das ciências sociais nas formas de narrar, visibilizar e mediar ações na(s)
cidade(s).

Na sessão referente a artigos, temos a contribuição da


antropóloga americana Mary Kenny. Seu trabalho Paisagens da
Memória: Os campos de concentração e a seca no Nordeste do Brasil se
comunica de forma direta com os artigos publicados no Dossiê Imagens,
memórias e políticas de uma cidade: Juazeiro do Norte.

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Juazeiro do Norte: um lugar para as Ciências Sociais

Mary Kenny demonstra como a construção de “currais” para


a contenção de migrantes da Seca nas primeiras décadas do século XX
marcou o imaginário da cidade de Senador Pompeu, materializando
uma memória de exploração, hierarquia e expropriação do próprio
corpo pelos migrantes da seca.

Retomando questões relativas a memória coletiva, conceito


revisitado em alguns artigos desse número da revista, a autora analisa
algumas possibilidades da tomada dessa tragédia como patrimônio.
Dessa forma, tensiona as noções de patrimônio, vivências compartilhadas
e memória.

Em diálogo evidente com os destinos da folclorização e


apropriação da memória coletiva, Mary Kenny parece nos alertar sobre
a necessidade de multiplicação dos agentes que tornam a história
um campo frutífero e nem sempre uníssono, submetido à produção
econômica.

Para a autora, a cultura deve ser bem mais que um “negócio


produtivo”. E que assim seja, em Senador Pompeu, em Juazeiro do Norte
e em outros lugares em que as ciências sociais se façam presentes e
ajudem a multiplicar narrativas!

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MARQUES, Roberto e OLIVEIRA, Leandro de

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Dossiê
Imagens, memórias e políticas de
uma cidade: Juazeiro do Norte
Arte, imaginação e criação:
uma etnografia das imagens em
Juazeiro do Norte
Rosilene Alves de Melo1

Resumo
Esta pesquisa analisa a agência das imagens como produções de sentido. Palavras,
formas, sombras, luzes e cores se transformam em objetos artísticos que atravessam
as dimensões do visível e do invisível, do real e da imaginação, da memória e do
sonho. Nesse sentido, folhetos de cordel, desenhos, xilogravuras e esculturas
comunicam como os artistas elaboram, através da individuação, a cidade de Juazeiro
do Norte como espacialidade imaginada por meio da arte. A partir das imagens é
possível ouvir como artistas interpretam os processos de criação e “tecnologias do
encanto” que resultam em objetos que, através de exposições e do comércio, passam
a circular em outros circuitos como galerias e museus. A partir dos depoimentos
dos artistas, é possível conhecer as experiências de organização em cooperativas e
associações, nas décadas de 1970 e 1980, que ensejaram a criação da Associação de
Artesãos do Padre Cícero e do Centro de Cultura Popular Mestre Noza.

Palavras-chave: antropologia da arte, Juazeiro do Norte, Centro Mestre Noza.

Abstract
This research analyzes the agency of images while productions of meaning. Words,
shapes, shadows, lights and colors become art objects that traverse the dimensions
of the visible and the invisible, the real and the imagination, memory and dream.

1 Professora da Universidade Federal de Campina Grande – UFCG. Doutora em


Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da UFRJ.
E-mail: rosileneamelo@gmail.com

Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 8, 2015 ISSN: 1677-9460


Arte, imaginação e criação: uma etnografia das imagens em Juazeiro do Norte

In this sense, brochures twine, drawings, woodcuts and sculptures communicate


how artists draw through individuation, the city of Juazeiro do Norte as imagined
spatiality through art. From the pictures you can hear how artists interpret the
processes of creation and “charm technologies” that result in objects that, through
exhibitions and trade, are circulated in other circuits as galleries and museums. From
the testimony of artists can learn from the experiences of organizing in cooperatives
and associations in the 1970s and 1980s, which gave rise to the creation of the
Association of Artisans of Padre Cicero and the Center for Popular Culture Master
Noza.

Key words: art anthropology, Juazeiro do Norte, Centro Mestre Noza.

“Imagens cosmológicas” de Juazeiro do Norte


O Centro de Cultura Popular Mestre Noza, situado na Rua São
Luiz, diferencia-se das lojas contíguas do centro da cidade de Juazeiro do
Norte por características arquitetônicas. A porta de madeira ao centro e
o estreito corredor permitem o acesso a uma dezena de pequenas salas
voltadas para um pátio em formato de quadrilátero. Essa disposição
informa que aquele espaço fora construído, no passado, para servir
como uma prisão, porém atualmente possui outro uso e significado. Na
“antiga Cadeia Pública”, como muitas pessoas preferem chamar, pesados
“troncos” de madeira são conduzidos através da porta de entrada e são
transformados por um grupo de artistas em esculturas. Praticamente
todos os espaços foram tomados por imagens que se aglomeram pelo
chão, pelos corredores, sobem pelas paredes e atingem até o teto
(ANDRADE FILHO, 1991; VITORINO, 2004; CAVALCANTI, 2011).

Ao entrar pela porta da “antiga cadeia” que abriga o Centro


Mestre Noza aberturas simbólicas se descortinam. A sobreposição de
objetos esculpidos manualmente naquele ambiente ativa a presença

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Arte, imaginação e criação: uma etnografia das imagens em Juazeiro do Norte

de pássaros, lagartos, macacos, serpentes, onças. Pedaços de madeira


são transformados em índios, catirinas, caretas, jaraguás, mateus,
cangaceiros, beatas, santos e orixás. Outras figuras se apresentam
como formas híbridas, paradoxais, exigem de quem as observa projeção
mental da sua existência e sugerem a presença de espíritos, de animais,
de pessoas. Essas séries de figuras que ativam a memória, a geração de
sentido e a imaginação são índices visuais que constituem algumas das
“imagens cosmológicas” (WARBURG, 2005) de Juazeiro do Norte.

Os objetos presentes no Centro de Cultura Popular Mestre


Noza, assim como em outros espaços de produção artística existentes
em Juazeiro do Norte, a partir dos indícios apontados nesta pesquisa,
constituem o resultado de um longo processo de condensação imagética,
operação que consiste na geração de sentidos através da fusão entre
memória social e imaginação. A condensação de imagens altera formas,
cores, texturas, perspectiva e escala do mundo representado (LÉVI-
STRAUSS, 1967). Assim, objetos, animais, humanos, narrativas, sonhos
e memória, a partir da condensação, propiciam a emergência de outras
figuras. A condensação das imagens implica a alteração criativa da
realidade e, portanto, a sua criação. Conforme assinala Montes (2012),
(...) o imaginário não existe fora de um contexto
social de experiência humana, num vazio histórico
ou social, mas, ao contrário, dele depende para
sua expressão. Entretanto, suas imagens não são
reprodução dessa realidade, mas condição de sua
criação, envolvendo formas de percepção que elas
suscitam, a sensação e a emoção que delas emanam,
a maneira em que a memória as fixa, os valores e
condutas que a elas se associam. São construções
de signos, ideias, sentimentos de longa duração
histórica que a experiência atualiza em contextos

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Arte, imaginação e criação: uma etnografia das imagens em Juazeiro do Norte

específicos, mas que se conhecem de modo


exemplar quando se condensam na experiência
singular de um indivíduo. E artistas são indivíduos
privilegiados para nos fazerem entender a maneira
pela qual o imaginário se manifesta como linguagem
primordial de sua criação e poética (p. 24).

O aprimoramento técnico implicado na produção de objetos


cada vez mais ambíguos e complexos, ao articular as dimensões do
oral e do escrito, ativa aquilo que Carlo Severi conceituou como o
“princípio da quimera” (2006), mecanismo de projeção mental que
garante a eficácia mnemônica e o encantamento de determinadas
imagens. Para Alfred Gell, as obras de arte devem ser pensadas como
dispositivos que “incorporam ideias, veiculam significados”, pois evocam
“intencionalidades complexas” (1998, p. 203) que apontam para o
plano dos relacionamentos entre os seres, objetos e identidades. Nesse
sentido, o conceito de obra de arte fornece elementos para pensar a
respeito da densidade de conexões presentes em determinados objetos
(LAGROU, 2007). E mais: ao estabelecer como pressuposto a capacidade
de qualquer objeto vir a se constituir como índice de relações, a
concepção ocidental que toma as qualidades estéticas como único
parâmetro válido na definição de arte perde seu sentido (DEMARCHI,
2009). Assim, o objeto artístico atua como rede, como armadilha, como
um “ardil que impede a passagem” (1998, p. 213) porque captura o
corpo, o olhar, produzindo encantamento.

A partir do trabalho de campo realizado entre 2008 e 2012,


foi possível acompanhar como alguns dos artistas de Juazeiro do Norte
realizam essas operações cognitivas através de linguagens distintas
como o cordel, o desenho, a xilogravura e a escultura. Os depoimentos

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Arte, imaginação e criação: uma etnografia das imagens em Juazeiro do Norte

possibilitaram acompanhar, também, por meio da individuação e da auto


representação, como os artistas adicionam a criatividade pessoalizando
a “tradição iconográfica” (SEVERI, 2009) da qual fazem parte. Esse artigo
se propõe a possibilitar reflexões acerca de como algumas imagens
foram elaboradas simbolicamente e, por meio da arte, passaram a fazer
parte da cultura material de Juazeiro do Norte.

A fusão de imagens por meio da palavra


As evidências etnográficas produzidas apontaram para a
existência de conexões entre a iconografia e um modo de produção
de alegorias proveniente de outras matrizes – o cordel e a xilogravura -
solidamente enraizadas entre os artistas. Essa hipótese se tornou mais
plausível à medida que ouvia algumas entrevistas gravadas durante a
pesquisa. Num desses encontros, pedi a um escultor que explicasse
onde buscou elementos para elaborar uma determinada “peça”, como
as esculturas são chamadas, quando ouvi a seguinte resposta: “o cordel
aguçou muito o imaginário das pessoas aqui de Juazeiro em relação a
essas criaturas fantásticas, o cordel teve um papel muito forte. Isso gerava
muita coisa no imaginário das pessoas.” Essa explicação se fez presente
em outros depoimentos e os cordéis forneceram uma indicação a ser
considerada no curso das reflexões acerca das mensagens presentes na
imagética de Juazeiro do Norte.

O folheto de cordel, na qualidade de “arte da memória”


(SEVERI, 2006), pode ser definido como uma prática cultural que
estabeleceu vínculos profundos com o universo simbólico de Juazeiro
do Norte (GRANGEIRO, 2007). Prática literária que não pressupõe

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Arte, imaginação e criação: uma etnografia das imagens em Juazeiro do Norte

necessariamente familiaridade com a escrita, o cordel aciona, através


da rima, da oração e da métrica, estratégias mnemônicas e cognitivas
eficazes. Poética que se faz a partir do emprego de padrões métricos
bastante rígidos na organização dos versos – quadra, sextilha, décima,
mourão, martelo, que, não obstante, permitem ficcionar livremente as
experiências vividas.

O cordel possibilita aberturas para criação de mundos nos quais


pessoas, animais, seres imaginários, objetos e sonhos estão imbricados
de tal maneira que se dissipam quaisquer limites entre realidade e ficção.
Por meio da palavra rimada, se inventou como linguagem, exercício de
experimentação artística, veículo de comunicação e propaganda, mas,
sobretudo, como “estilo de compreender e construir pontos de vista
sobre o mundo, as coisas e as relações. O cordel evoca, por assim dizer,
uma cosmologia por meio de seu verso” (GONÇALVES, 2007, p. 23).

O primeiro folheto sobre Juazeiro do Norte foi publicado no


jornal O Rebate, periódico que circulou entre 1909 e 1911. Trata-se do
poema O Juazeiro do Padre Cícero, escrito por Leandro Gomes de Barros.

O autor da existência
Fez em seis dias o mundo
Desceu com toda ciência
Veio ao abismo profundo
Mandou a terra mover-se
Mandou o sol recolher-se
A lua tivesse enchente
Entre a planície e a serra
Me fez o deus desta terra
Deixou-me a um padre somente.

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Arte, imaginação e criação: uma etnografia das imagens em Juazeiro do Norte

E me disse fique aqui


Eu fui seu criador
Olhe que já vem ali
Rebanho que não tem pastor
Chega o órfão desvalido
Vem o pobre foragido
Que correu o mundo inteiro
Porém você diz ao mísero
Filho eu sou o padre Cícero
Chegue para o Juazeiro. (BARROS, 1914, p. 4)

O poema estabelece analogias entre o juazeiro, árvore


extremamente resistente às secas que serviu de abrigo para os grupos
de tropeiros que, no século XIX, paravam à sua sombra para descansar e
à qual se atribui a origem do povoado. Na poética em versos, a tradução
das memórias acerca da povoação de Juazeiro dá conta da existência
precisamente de três árvores que se tornaram parada obrigatória dos
comerciantes; a imagem dos “pés de Juá” é associada ao surgimento da
cidade que simbolicamente forja-se como sombra que abriga aos que
sofrem (CARVALHO, 1998).

Com os pés fincados na sombra acolhedora da árvore símbolo,


Padre Cícero convida os que sofrem a virem à cidade que cresce, floresce
e dá “pousada ao mundo inteiro”. Assim como o juazeiro que resiste às
secas, mantendo-se verde mesmo em meio à paisagem árida, a cidade
de Juazeiro se ergue fincada, em pé, como um tronco a proteger seus
moradores.

Nos versos de O Juazeiro do Padre Cícero, a árvore simbólica é


protegida por mil serpentes escondidas em suas raízes. De seus troncos
vertem águas que formam cascatas. Em suas copas, pássaros “dão,

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Arte, imaginação e criação: uma etnografia das imagens em Juazeiro do Norte

orgulhosos, mil vivas ao Juazeiro” (p. 5). Nas sombras que amenizam
o calor, todos podem descansar, pois “ali chega o estadista/ o pobre, o
capitalista/ em mim termina a viagem” (p.6). Mesmo no solo pedregoso,
o juazeiro produz “seiva pura e boa”. O gado come suas folhas, os
pássaros matam sua fome e sua copa forma um frondoso telhado que
abriga o viajante. O juazeiro é árvore forte; nem o vento nem o ferro
conseguem derrubá-lo, e seus galhos “crescem, desordenados, e se
confundem com os braços e pernas das pessoas, numa reatualização
do grotesco que a escultura popular vai retomar muitos anos depois”.
(CARVALHO, 1998, p. 22)

Durante aproximadamente um século da publicação de O


Juazeiro do Padre Cícero, cordel inaugural de todas as narrativas em verso
sobre Juazeiro do Norte, a árvore símbolo (o juazeiro) ainda permanece
presente nas artes da memória do cordel contemporâneo (GOLÇALVES,
2007). Na narrativa poética do cordel, outras associações aparecem:

Do lado, três pés de juá


Com grande sombra e beleza
Onde viajantes a descansar
Outros encontros com certeza
Três estradas juntas
Formando esta beleza.

Estas três estradas eram


Missão Velha, Barbalha e Crato
Naqueles pés de juá
Todos se encontravam de fato
Dos juás se originou o nome
Juazeiro do Norte nato. (C. NETO, 2012, p. 3)

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Arte, imaginação e criação: uma etnografia das imagens em Juazeiro do Norte

No entanto, através da poética é possível perceber os


hibridismos e ressignificações, melhor dizendo, as atualizações desse
símbolo. No folheto 100 anos de absurdo (BITU, 2012), Guto Bitu
estabelece diversas associações de personagens, objetos e situações
absurdas que são factíveis na Juazeiro imaginada. Como elementos
cruciais das narrativas eivadas de hibridismos, as três árvores míticas
estão presentes nos primeiros versos do poema:

Na praça, três pé de pau


Dão sombra pra um cometa
E, no mercado central,
Não estão te dando peta
E, se a Nasdaq cair,
A farinha vai subir
Mais o preço da trombeta.

Porém, partindo dos juazeiros cosmológicos, outras


condensações contemporâneas são produzidas:

Raul Seixas já sabia


Da arte de Mestre Noza
Stênio cantou um dia
Lampião pegou a prosa
E transformou num poema
Que falava que o cinema
Deixava Maria cheirosa.

Na Lira leram um cordel


E no espaço sideral
Esqueceram do papel
Pro cordel ser digital
Na frente do computador

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Arte, imaginação e criação: uma etnografia das imagens em Juazeiro do Norte

Não tem medo e nem tem dor


Pois todo mundo é virtual.

Um bendito foi cantado


Pra saldar Tio Patinhas
Que ficou emocionado
Com o bendito das velhinhas
Para elas distribuiu
Perucas de Bombril
E umas duas moedinhas.

Um pau-de-arara saiu
Vindo do Afeganistão
Desceu a serra com mil
Chegando ao Romeirão2
Pra ver um jogo de bola
Foi Brasil versos Angola
E pense na diversão. (BITU, 2012, p. 6 - 11)

As operações cognitivas que tornam possível articular elementos


retirados da experiência cotidiana com o plano da imaginação se
transformam, através da poética, em poderosas imagens ao estabelecer
analogias e relações de sentido (MITCHELL, 1986). Este procedimento
de condensar ficcionalmente a recordação e a imaginação, o visível e o
invisível, se constitui numa prática cultural bastante difundida entre os
artistas e se multiplica por meio de outras linguagens.

No folheto O imaginário de Lampião sobre seus leitores,


amigos e admiradores, Abraão Batista exerce a faculdade mimética, a
capacidade de, ao imitar, tornar-se outro e fabular a partir do ponto de

2 O cordel faz referência ao escultor Mestre Noza, ao xilógrafo Stênio Diniz, aos
benditos (cânticos religiosos entoados como demonstração de fé e penitência entre os
católicos) e ao Romeirão, estádio de futebol de Juazeiro do Norte.

40 Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 8, 2015 ISSN: 1677-9460


Arte, imaginação e criação: uma etnografia das imagens em Juazeiro do Norte

vista do outro (TAUSSIG, 1993).

Procurei me transportar
Como um ser imaginário
A procura de Lampião
Dentro do seu calendário
Trazendo seus pensamentos
Dentro deste vocabulário (BATISTA, 1977, p. 7).

Nas sextilhas que seguem, é possível perceber como Abraão


Batista realiza em Juazeiro do Norte o inusitado duelo entre a arte
marcial chinesa e o cangaço, através do encontro ficcional entre a
personagem kwai Chang Caine, da série norte-americana de TV “Kung
Fu”, e o cangaceiro Lampião.

Meu leitor, meu amiguinho


permita a imaginação
deste encontro imaginário
de Kung Fu com Lampião
na cidade de Juazeiro
de Padre Cícero Romão...

Pois bem, eu vou dizer


como foi que aconteceu
dizendo quem se feriu
quem matou e quem morreu
depois diga por aí
quem contou isso fui eu...

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Arte, imaginação e criação: uma etnografia das imagens em Juazeiro do Norte

Mas lembre esta história


é livre e imaginária
vem do direito do poeta
que tem na indumentária
do infinito astucioso
que não tem medo de pária. (BATISTA, 1975, p. 2)

A capa do folheto, ao associar título e imagem, compõe uma


condensação da narrativa, facilitando sua compreensão por quem lê ou
vê o cordel. Esse modo de narrar, ao reduzir as associações entre o texto
escrito e a imagem, estreita as conexões entre figuras provenientes da
memória social e da televisão, pois, segundo Abraão Batista, “aqui em
Juazeiro, virtual e realidade não se separam”. (BATISTA, 2012).

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Arte, imaginação e criação: uma etnografia das imagens em Juazeiro do Norte

Além de apresentar algumas informações necessárias como


autor, título e preço, a capa do cordel possui a função de traduzir numa
única imagem a narrativa a que o leitor tem acesso nas páginas seguintes.
Por questões de ordem comercial – para abreviar o tempo de produção
das capas dos folhetos que eram encomendadas em Recife desde as
primeiras décadas no século XX – , o editor José Bernardo da Silva passou
a encomendar matrizes em madeira aos santeiros de Juazeiro do Norte
para impressão na Tipografia São Francisco, fundada em 1932 (MELO,
2010). Assim como quase todos os escultores de sua geração, Manoel
Santeiro passou a gravar imagens nos pequenos tacos de madeira,

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Arte, imaginação e criação: uma etnografia das imagens em Juazeiro do Norte

quase que invariavelmente no tamanho de 11 x 16cm, usados na


ilustração da literatura de cordel produzida em larga escala em Juazeiro.
Além de Manoel Santeiro, Mestre Noza, Walderêdo Gonçalves, Antonio
Relojoeiro integraram a primeira geração de xilógrafos de Juazeiro do
Norte e conciliaram a gravura com a escultura em madeira (CARVALHO,
2004).

A xilogravura se tornou a técnica privilegiada pelos artistas na


ilustração da literatura de cordel produzida em Juazeiro do Norte, o que
resultou num repertório de imagens que transitaram da capa do folheto
para o plano tridimensional através da escultura. O universo das práticas
culturais relacionadas às romarias e a figura emblemática do Padre
Cícero se misturaram a figuras retiradas do reisado, das ruas da cidade,
das religiosidades africanas, do noticiário dos jornais e das experiências
pessoais dos artistas ensejaram a introdução de múltiplos elementos
simbólicos nas iconografias que emergem tendo a especialidade de
Juazeiro do Norte como referência.

Na xilogravura abaixo de autoria de Francorli, que aparece na


capa do folheto intitulado Hino de Juazeiro (apud SILVA 2012), é possível
observar como ocorre o processo de condensação operando como uma
síntese visual e cognitiva de imagens de Juazeiro do Norte: a Serra do
Horto, Padre Cícero e os três pés de juazeiro.

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Arte, imaginação e criação: uma etnografia das imagens em Juazeiro do Norte

“Quando eu começo a ler o livro, vem mais de mil imagens na


minha cabeça”
A etapa mais importante no processo de elaboração da
xilogravura é o desenho, a imagem primeira, a ideia inicial, o protótipo
da xilogravura. No processo de produção da xilogravura o desenho é
necessário e quase todos os xilógrafos utilizam-no. Entretanto, após a
transferência da imagem para a madeira quase todos os desenhos são
descartados, jogados no lixo. O escultor e xilógrafo Marcionílio Pereira
Filho (Nilo) é uma exceção dentre os artistas de Juazeiro do Norte, pois
conseguiu guardar quase todos os desenhos que produziu ao longo de
mais de vinte anos de trabalho. Esse precioso acervo de imagens foi
tomado nesta pesquisa como um diário de campo, pois é a partir das
imagens que o artista expressa seus pontos de vista, suas vivências e

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Arte, imaginação e criação: uma etnografia das imagens em Juazeiro do Norte

como pessoaliza as dimensões do visível e do invisível em Juazeiro do


Norte.

O universo imagético de Nilo se forjou ainda na infância, quando


assistiu por alguns anos as séries de televisão Perdidos no Espaço e Sítio
do Pica-Pau Amarelo, cujos personagens ficaram guardados em sua
memória. Mas, além das imagens advindas da televisão, Nilo foi um
leitor assíduo de enciclopédias – nas quais apareciam dragões, sereias,
seres mitológicos, criaturas fantásticas – que despertaram o fascínio pelo
desenho. Ainda nas incursões pelas bibliotecas do Recife, onde viveu
durante a infância e adolescência, Nilo teve a oportunidade de conhecer
as xilogravuras de J. Borges e Samico. Segundo Nilo, ao longo de muitos
anos, “essas imagens ficaram hibernando”.

Ao vir para Juazeiro do Norte na juventude, Nilo trabalhou na


primeira equipe que organizou o Memorial Padre Cícero. Sua função era
auxiliar de bibliotecário, quando transcreveu diversas cartas trocadas
entre Padre Cícero e os romeiros, sendo necessário recorrer à ajuda de
dicionários para compreender algumas expressões que desconhecia.
Durante o período em que trabalhou na biblioteca do Memorial Padre
Cícero, Nilo teve a oportunidade de ter acesso a livros acadêmicos que
posteriormente influenciaram seu trabalho. No entanto, considera que,
dentre as diversas leituras que realizou, os livros Messianismo no Brasil
e no mundo (QUEIROZ, 1965) e Os Cariris do Nordeste (SIQUEIRA, 1978),
foram aqueles que forjaram a sua visão de Juazeiro do Norte que se
traduz nas esculturas e xilogravuras.
Quando as pessoas falam de Juazeiro, dão a
impressão de que antes da fundação da cidade nada
existia. Não é verdade. O lugar já existia, mas dentro

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Arte, imaginação e criação: uma etnografia das imagens em Juazeiro do Norte

do lugar onde surgiu essa fazenda existiam negros,


existiam caboclos -- que eram descendentes dos
índios com os negros. Depois vieram os coronéis,
os capitães e só depois é que se tornou o Taboleiro
Grande, mas aí já é outro processo.

Quando eu vi esse livro (Os Cariris do Nordeste), eu


fiquei fascinado pelo livro!

Ele fala do acauã, dos animais totens dos índios. Os


animais sagrados. Porque que os índios gostavam do
carcará? Por que os índios endeusavam o carcará?
Porque o carcará mata a cobra, ela é uma ave de
rapina pra eles, pras lavouras de milho, pras lavouras
de mandioca, entendeu? A ave era como uma ave
totem.

A cabaça... Eles colocavam uma grande cabaça... O


índio saía e era uma representação do deus Warakdzã.
Ele tá com um maracá que é o instrumento utilizado
pelo pajé pra dar o som do transe. O pajé usa como
instrumento o maracá para dar o do som transe,
porque tinha que dar ritmo e associar o som. E o livro
fala também das flautas que eram feitas de osso de
aves, porque eles usavam grandes ossos para fazer
o som das flautas, além da cabaça e do maracá. E o
índio era representado pela figura de Badzé. Claro
que o ritual era mais complexo. Fala do carcará,
fala até da umburana, fala dos transportes, já entra
a questão do índio partindo para a miscigenação,
as pessoas que começaram essa descendência do
caboclo Cariri.

E é um livro que eu nunca vi outro igual na minha


vida, pra mim. Quando eu começo a ler o livro, vêm
mais de mil imagens na minha cabeça. Aí é onde
entra a questão gráfica.

Como também do livro da Maria Isaura Pereira de

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Arte, imaginação e criação: uma etnografia das imagens em Juazeiro do Norte

Queiroz. E ali já é outro processo porque vem a


coisa do beato, do messiânico, que é a coisa que me
interessa muito porque ele que faz emergir, sabe,
assim, essa maquinação para a criação. (PEREIRA
FILHO, 2012)

Esse aqui é a
“Viagem do Xamã”. Esse
trabalho do xamã se refere
ao xamã no processo do
desdobramento. Você vê
que ele está como uma
figura totalmente retorcida,
meio que dobrando. Ele
dobrando e você vê que na
frente dele ele já se encontra
em outro plano onde ele
encontra os elementais,
que são de forma meio
Desenho "A Viagem do Xamã". Autor: Nilo
indefinida. Aqui não há uma
definição como se fosse uma fada ou algo assim. Eu procurei fazer de
forma meio distorcida porque a ideia era que fosse um espírito que está
recebendo a mensagem. Ele fica por trás e outro pela frente. E ele já está
desdobrado aqui em outro plano recebendo a mensagem.

As esculturas que fazem parte do acervo do Centro de Cultura


Popular Mestre Noza demonstram como ocorre a passagem para o plano
tridimensional das diversas informações que atravessam o viver em

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Arte, imaginação e criação: uma etnografia das imagens em Juazeiro do Norte

Juazeiro do Norte. Elas constituem sínteses de narrativas e condensam


o multiculturalismo de uma cidade que se ergueu como lugar de
passagem (PAZ, 2004). A escultura de Diomar de Freitas, reproduzida
na fotografia abaixo, na qual a beata índia ostenta um colorido cocar na
cabeça, é uma dentre inúmeras imagens condensadas de ambiguidade
e complexidade que todos os dias proliferam naquele grande ateliê a
céu aberto. As esculturas em umburana desafiam o espectador a pensar
sobre como os artistas de Juazeiro do Norte experimentam condensar
numa única imagem que provêm de fontes distintas e lhes confere
outros significados.

“A índia beata”. Escultura em madeira (umburana). Autor: Diomar de Freitas

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Arte, imaginação e criação: uma etnografia das imagens em Juazeiro do Norte

Portanto, as imagens que proliferaram em Juazeiro do Norte


apontam para a multiplicidade de influências que advêm da televisão,
da leitura de cordéis e livros, da observação do cotidiano da cidade, da
dimensão religiosa. Apontam, também, para as múltiplas experiências
possíveis nesta espacialidade de trânsito de pessoas e culturas
(CORDEIRO, 2010). Aludem, ainda, a uma formação histórica plural
que, a despeito da presença marcante do catolicismo a partir do ritual
das romarias, expressa a presença de outros pontos de vista, outras
cosmologias e outras relações com o sagrado (ROCHA, 2012). Através
das imagens que emergem das mãos dos artistas, outros Juazeiros
adquirem visibilidade como elaborações simbólicas que se encontravam
até a sua materialização por meio da arte no plano do invisível.

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Arte, imaginação e criação: uma etnografia das imagens em Juazeiro do Norte

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Arte, imaginação e criação: uma etnografia das imagens em Juazeiro do Norte

Folhetos de cordel
BATISTA, Abraão Bezerra. Encontro de Lampião com Kung Fu em Juazeiro do
Norte. Juazeiro do Norte:
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Juazeiro do Norte:
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SILVA, Edjaci Ferreira da. Hino de Juazeiro. Fortaleza: Imeph, 2012. (Coleção
Centenário).

Artigo submetido em: 29/07/2013


Artigo aprovado em: 25/06/2013

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Juventudes, conceitos
e memórias:
evocações em torno do Padre Cícero
Ricardo Cruz Macedo1 e Domingos Sávio de Almeida Cordeiro2

Resumo
Propondo que as memórias sociais se deem a partir das próprias experiências e as
mediadas por outros sujeitos, apresentamo-las como expressões de vínculos entre
gerações. Essa é uma reflexão de como os jovens estudantes do Ensino Médio de
Juazeiro do Norte expõem, através da evocação de palavras, suas relações memoriais
com o Padre Cícero. Para tal, destacamos no texto os espaços e as situações que
referenciam as memórias e o mosaico de possibilidades de representá-las. Por meio
de recorte etário, consideramos jovens os sujeitos com idade entre 13 e 19 anos.
Indagamos a eles quais as primeiras coisas que lhes vêm à mente quando sugerido
o nome do Padre Cícero e, em seguida, seus porquês para pensar na forma imediata
como apontam os referenciais das suas memórias. Nesse âmbito, pensamos que as
percepções desses jovens pesquisados sobre o Padre Cícero apontam para fontes
memoriais diversas, versando esse ícone desde as perspectivas subjetivas até as
de caráter mais amplo, perpassando as evocações entre um sentido de distância
temporal e experiência própria.

Palavras-chave: juventudes, memórias sociais, Padre Cícero, Juazeiro do Norte.

Abstract
1 Mestrando em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Campina Grande -
UFCG. Bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Regional do Cariri - URCA.
2 Doutor em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará - UFC. Professor
associado do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Regional do Cariri -
URCA.

Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 8, 2015 ISSN: 1677-9460


Juventudes, conceitos e memórias: evocações em torno do Padre Cícero

Proposing that social deem memories from their own experiences and mediated by
other subjects, present them as expressions of links between generations. This is
a reflection of how young high school students from Juazeiro expose through the
evocation of words, their memorials relations with Priest Cicero. To do this, we
highlight the text spaces and situations that reference the memories and the mosaic of
possibilities to represent them. Through age cut, young people consider the subjects
aged 13 to 19 years. We asked them what the first things that come to mind when
suggested the name of Priest Cicero and then his whys to think about immediately
as the reference point of their memories. In this context, we think that perceptions
of these young people surveyed on Priest Cicero point to several memorials sources,
dealing with this icon from the subjective perspectives to the wider character, passing
the evocation of a sense of temporal distance and experience.

Key words: youths, social memories, Padre Cícero, Juazeiro do Norte.

Introdução
Os processos de socialização e a posição geracional são aspectos
imprescindíveis à compreensão das memórias, sendo necessário
sempre considerar os contextos sociais e culturais em que se encontram
personagens como Padre Cícero. Halbwachs (2010) acentua essa
perspectiva quando destaca a relação entre as dinâmicas espaciais e as
marcas sociais que os sujeitos carregam dela. Sendo as memórias traços
que, para além de referenciar um contexto social, cultural e temporal,
apontam a relação dos sujeitos com o mundo, passamos a problematizar
as memórias sociais sobre o Padre Cícero através dos jovens.

O objetivo deste estudo é oferecer uma compressão


sociológica em torno de como os jovens estudantes do ensino médio
de Juazeiro do Norte descrevem a figura do Padre Cícero a partir de
seus vários referenciais de interpretação e aproximação memorial com
ele suscitado nas lembranças imediatas. Trata-se de mostrar como essa
categoria etária expressa seu conhecimento e envolvimento com esse

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Juventudes, conceitos e memórias: evocações em torno do Padre Cícero

personagem da construção da cidade da qual faz parte.

Ao tencionarmos o discurso entre as categorias juventude


e memórias, nos cabe uma entrada contextual. Os estudos3 sobre
juventude têm sido requisitados como de interesse da Sociologia sob
diversos aspectos para a compreensão da vida social. Nesse sentido,
considera-se que não só nesse campo do conhecimento, mas ainda em
todas as Ciências Sociais, não há um consenso em torno de um conceito
único e geral sobre juventude (ROMERO, 2008).

Segundo Pierre Bourdieu (1983), a categoria estaria vinculada


a uma construção social na qual a juventude é entendida apenas como
uma palavra que marca diferenciação em relação aos sujeitos mais
velhos. Por conseguinte, José Machado Pais (2003) fornece condições
para uma reflexão segundo a qual as próprias discussões sociológicas
aparecem sob perspectivas distintas, tratando a juventude ora como
uma unidade, ora como pluralismo.

Em termos etários, por exemplo, aparecerá uma variação de


recortes de pesquisa. O Instituto Francês de Opinião Pública (IFOP) atua
com o intervalo entre 18 e 30 anos. A Organização das Nações Unidas
(ONU) lida com a faixa de 15 a 24 anos (ROMERO, 2008). O IBGE (2010)
declara como juventude o período compreendido entre 15 e 29 anos.

Essas perspectivas entrecruzam posições, situações e


demarcações do sentido conceitual do que seja a juventude. Frente a
esses aspectos, corroboramos o que diz Sedas Nunes (1969) quando,
diante das preocupações às quais ora nos dedicamos nos faz perceber

3 Ver, por exemplo, Juarez Dayrell (2010), Machado Pais (2003), Pierre Bourdieu
(1983), entre outros.

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Juventudes, conceitos e memórias: evocações em torno do Padre Cícero

os jovens em definições geracionais e sociais.

Para contexto desta análise, trabalhamos esta categoria com


os sujeitos pertencentes à coorte entre 13 e 19 anos. O recorte foi
estabelecido após a entrada nos espaços de pesquisa.

Tratando a juventude a partir das condições de posição


geracional pela idade e pelo lugar social, ela significaria um período
de transição para vida adulta, as memórias sociais são entendidas do
ponto de vista juvenil como mecanismos que carregam a influência do
processo de socialização a partir do pertencimento e do envolvimento
desses sujeitos com instituições específicas como a família e a escola.
Amparadas nesses grupos de socializações mais próximos, as expressões
memoriais evocadas vinculam-se a um pluralismo de situações sociais,
aglutinadas a uma diversidade de experiências dos grupos, dos fatos
políticos, econômicos e religiosos (CORDEIRO, 2011).

A exposição juvenil de expressões memoriais sobre o Padre


Cícero apresenta-se no campo do que podemos considerar como
subjetivo deste ícone, mesmo distante temporalmente dos jovens,
sobressaindo-se expressões como “santo”, “padre”, “político”, etc. De
outro lado, sobressaem-se aspectos ligeiramente ligados ao cenário
de Juazeiro do Norte, sob expressões como “romarias”, “religiosidade”,
“crescimento urbano”, etc.

Tais memórias expressam-se como representações sociais do


mundo que os cercam, dos contextos que compartilham nas distintas
experiências cotidianas. Esse constructo nomeado representação
social é indicador dos sentidos atribuídos por indivíduos e grupos a
fatos e aspectos da realidade social diante do processo de formação e

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Juventudes, conceitos e memórias: evocações em torno do Padre Cícero

modificação contínuas que sofrem as representações as quais derivam


dos esquemas simbólicos que nos permitem compreender o ambiente
social e as visões de mundo.

O conceito Representação Social (RS) foi proposto por Serge


Moscovici (1961), na França. O autor trabalhou as representações
da psicanálise na sociedade francesa contemporânea a partir de
uma proposta de ampliação do conceito de representações coletivas,
inaugurado por Émile Durkheim (1898). Os comportamentos individuais
ou de grupo são diretamente determinados pelas representações
elaboradas em e sobre a situação e o conjunto de elementos que a
constituem (...) (ABRIC, 2001, p.168).

De maneira didática, pode-se dizer que uma representação


social atua como um modo de interpretação da realidade que constitui
a visão de mundo, determinando comportamentos e práticas de
indivíduos e grupos.

Há dois grupos de métodos para produção de dados


com representações sociais: métodos interrogativos – entrevistas,
questionários e suportes gráficos – e métodos associativos – evocações,
associações livres e mapas associativos (SÁ, 1996, p. 107).

Entre essa variedade de procedimentos utilizados para realizar


pesquisa no campo teórico das representações sociais, optamos pelo
procedimento de evocação de palavras, que, como outros, permite
compreender o universo semântico de um grupo sobre um ou vários
aspectos da temática em tela. Utilizamo-lo ainda além de observações e
entrevistas, por se tratar de uma pesquisa inicial e, como tal, possibilitar
em pouco tempo uma aproximação com as evidências empíricas.

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Juventudes, conceitos e memórias: evocações em torno do Padre Cícero

A associação livre de palavras é também conhecida em pesquisas


de representações sociais como “evocação de palavras” ou “evocações
livres” (WACHELKE, 2009, on line). Elas são um instrumento para
avaliar a frequência, considerando a variação semântica e observando
a importância da ausência – zero estatístico. Nele, busca-se descrever
uma representação a partir da identificação de significados atribuídos e
associados.

Na prática da “associação livre” ou “evocação livre” (EVOC),


procede-se a partir de uma ou de um pequeno número de palavras
indutoras como estímulo, com objetivo de estabelecer associações
livres, ou seja, apresenta-se uma palavra geradora para o informante e
pede-o que fale palavras que lhe venham à mente (COSTA; ALMEIDA,
1999).

Nós nos direcionamos a alunos de cinco escolas do ensino


médio na zona urbana do município de Juazeiro do Norte no mês de
maio de 2012. As instituições foram: Governador Adauto Bezerra (3º
Ano), Maria Amélia (3º Ano), Moreira de Sousa (1º Ano), Polivalente
(2º Ano) e Salesiano (1º Ano). As quatro iniciais são da rede pública
municipal e a quinta, da rede particular.

Elas constituem-se no recorte de pesquisa por nos terem


concedido acesso aos espaços de trabalho com seus alunos. Como
uma pesquisa de caráter qualitativo, optamos por um número que nos
possibilitasse um quadro das instituições de ensino médio do município.

A configuração dessa representação de turmas tem também


uma preocupação em estarmos dialogando com olhares diversos quando
tratamos do ensino médio, logo, de uma perspectiva que abrangesse os

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Juventudes, conceitos e memórias: evocações em torno do Padre Cícero

três anos que compõem esse nível de ensino.

Solicitamos, em primeiro lugar, que, ao pronunciarmos o nome


do Padre Cícero, os jovens escrevessem o que lhes viesse à mente. Em
seguida, questionamos os porquês da descrição feita para pensarmos
também em quais fatores estaria pautada a lembrança.

O texto está distribuído em tópicos temáticos apresentados da


seguinte maneira: “Memórias – entre gerações”, em que convergimos
o discurso de análise, discutindo as memórias como expressões
compreendidas pelos vínculos entre as distintas gerações e as construídas
a partir das vivências em experiências e sociabilidades, considerando
também o tempo e o espaço em que os jovens estão inseridos na
dinâmica social.

Em “Interpretando as memórias pelo dito sobre o Padre


Cícero”, organizamos a discussão em torno das expressões evocadas e
os significados ligados às descrições na figura do Padre Cícero. Com os
“porquês”, apresentamos como e de que forma essa memória evocada
o significa, tencionando palavras evocadas e porquês, a fim de pensar
como os jovens transitam a apresentação evocativa do Padre Cícero com
a cidade de Juazeiro do Norte.

Por último, em “Pertencimentos: As memórias e os espaços”,


realizamos uma breve reflexão, pensando o sentido de identidade
acionado pelas expressões de memórias evocadas. Temos que o rol
dos pertencimentos espaciais e os processos de formação da memória
permitam que os saberes se manifestem considerando os interlocutores
como participantes do contexto exposto e, logo, identificáveis.

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Juventudes, conceitos e memórias: evocações em torno do Padre Cícero

I - Memórias entre gerações


Referenciar as memórias juvenis para contexto de análise é
pensar nos paradoxos e aproximações vividos pelos jovens a partir
das experiências dos seus próprios mundos e a reprodução de versões
memoriais que os precedem. Temos, para tanto, que o ato de tornar um
fato, lugar e personagens como constituintes do sentido de memória é
vinculá-los às marcas das vivências.

Podemos dizer que as memórias sociais juvenis se expressam


como recortes de experiências a partir de envolvimentos desencadeados
pelos vínculos intergeracionais. Entre outros fatores, eles evidenciam-se
através dos processos de socialização, uma vez que é aí que a juventude
aprende a viver e a dizer a vida social (MACEDO, 2013). Nesse mesmo
sentido, Martins (2011, p. 2) destaca;
Ao participar da memória, o jovem entra em
contato consigo mesmo, pois se reconhece e se
encontra com o seu espaço social de referência, na
sua individualidade. Com o auxílio da memória, ele
recupera a trajetória que orienta a elaboração da
identidade como expressão de sua unidade, que é a
complexa soma de tudo aquilo que o constitui como
homem.

As memórias são constituídas nas influências da ação


intergeracional nos variados espaços. Dessa forma, os termos evocados
que apresentam e significam o Padre Cícero são resultantes das
experiências e aproximações com os simbolismos dos espaços e com as
gerações consideradas mais velhas, portadoras de maior vivência.

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Juventudes, conceitos e memórias: evocações em torno do Padre Cícero

Podemos destacar também que esse processo de significação


está substancializado nas próprias experiências dos sujeitos jovens,
quando destacam nas memórias suas práticas sociais ligadas aos
diversos espaços. Nesse trânsito dinâmico e social, quando se entram
novos sujeitos, colaborando também para novas caracterizações da vida
social, alguns traços culturais acumulados tendem a se reapropriar4.

A casa, na presença de pais e avós, as escolas5, as igrejas,


as saídas para ruas e praças, destacam-se frente aos processos das
elaborações memoriais juvenis. Além desses marcos constitutivos, há
também os apelos nas referências sociais e imagéticas do cotidiano
na cidade. Em Juazeiro do Norte, um número considerável de distintos
estabelecimentos comerciais traz o nome do Padre Cícero. De outro
ângulo, podemos também apontar que os jovens pertencentes a esta
urbanidade convivem anualmente com o conjunto de práticas religiosas
no cenário formado pelas constantes romarias6 destinadas à cidade.

Essa recriação dos contextos memoráveis e a sua significação


são, para além do contato com as gerações passadas, quando afirmamos
a importância das relações de socializações, traços que compõem o
mosaico dos espaços, sujeitos e experiências em âmbito memorial social.

4 Nessa perspectiva, ver, por exemplo, Karl Manheim [196...].


5 Sedas Nunes (1969), problematiza que, na escola, por exemplo, os jovens
absorvem, em partes, novos conhecimentos, através do ensino que lhes é ministrado e
ainda através de outros veículos transmissores de informação, como livros, revistas, etc.
6 Destacam-se três principais romarias durante o ano em Juazeiro do Norte,
sendo elas: Romaria de Candeias, no mês de fevereiro, Romaria de Nossa Senhora das
Dores, no mês de setembro, e Romaria de Finados, considerada a maior do ano, no mês
de novembro.

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Juventudes, conceitos e memórias: evocações em torno do Padre Cícero

O cenário de pesquisa, Juazeiro do Norte, ergue-se, memorial


e discursivamente, de distintas maneiras. Segundo Della Cava (1976), a
partir do milagre de 1889, a vida do Padre Cícero e da cidade mudava
completamente, levando com sigo toda sua circunvizinhança. De um
centro de fanatismo religioso a uma importante força econômica do
vale do Cariri, foi essa a transição que se operou em Juazeiro do Norte
de forma quase imperceptível. Dessa mística religiosa citada, quando
sugerida pelo viés das romarias, a evolução de centro comercial e
turístico, as memórias se erigem sob um legado cultural diverso.

Nas vivências pela cidade, transitando entre os discursos dos


saberes que desencadeiam as memórias, os jovens afirmam posições
de imersão social frente aos contextos histórico-sociais em que se
encontram. As maneiras de falar as memórias sobre Padre Cícero e, por
conseguinte, Juazeiro do Norte, tem, assim, forte relação da juventude
com as gerações mais velhas, para as quais as ligações com as histórias
da cidade e com o próprio Padre Cícero resultam das suas próprias
experiências pessoais. Nesta perspectiva herdada, a compreensão da
relação geracional para a memória social é uma base fundamental,
colaborando problematizações de construções significantes, de conceitos
e saberes que permitem pensarmos nas memórias sociais juvenis.

II - Interpretando as memórias pelo dito sobre o Padre Cícero


Um aspecto que merece atenção para a sinalização da
centralidade memorial de Juazeiro do Norte na figura do Padre Cícero
é seu lugar na construção da cidade e a sua liderança local. Conforme
Cordeiro (2011), a invenção de Juazeiro como cidade se dá sob a liderança

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Juventudes, conceitos e memórias: evocações em torno do Padre Cícero

dele, dirigindo a ação social pelas elites descendentes de famílias com


origem agrária e conservadora do Crato e de outros municípios do Cariri,
e, de outro lado, os segmentos mais pobres, também com origem,
nascimento, descendência ou vinculação ocupacional no meio rural.
Numa outra perspectiva, defrontamo-nos com atributos memoriais que
indicam a ocorrência ora de um santo, ou mensageiro divino, ora como
pessoa comum, como aquele que beneficia as pessoas, como herói.

Entre esses aspectos, a figura do Padre Cícero e a cidade de


Juazeiro do Norte tensionam sobre um imaginário onde há uma linha de
correlação, mesmo que versada de diversas maneiras. Para pensarmos
nas memórias sociais do ícone, e, por conseguinte, da cidade, pela
juventude, nos cabe problematizar as apropriações que se indicam nas
memórias pelos fluxos geracionais.

Quando tratamos do Padre Cícero via perspectiva juvenil,


realocamos nossos olhares para uma categoria que nos fala a partir de
dados secundários, uma vez que os sujeitos jovens não participaram do
momento social de vida dele, estando ligados às suas dimensões a partir
de mediações. Além da proximidade com as memórias via interação
geracional, os jovens situam-se também em um Juazeiro do Norte
centro de uma região que se “metropolitaniza” onde há reapropriações
imagéticas e mesmo discursivas sobre este espaço urbano através do
seu crescimento vertical, de instalação de indústrias e shopping center.

Esses cenários que são motes de agenciamento dos discursos


nos colocam frente a mediações e contexturas das memórias sociais
que, do ponto de vista juvenil, confeccionam a imagem do Padre Cícero
dentro de Juazeiro do Norte, enlaçando os sentidos do ícone ao espaço

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Juventudes, conceitos e memórias: evocações em torno do Padre Cícero

e vice-versa.

Vejamos como se segue a consideração da aluna de 15 anos do


2º ano do Colégio Polivalente quando se fala do Padre Cícero:
Eu acho que ele é santo e que todas as pessoas
acham que ele fez milagres e quando essas pessoas
conseguem realizar alguma promessa é porque
creem muito (s/n, 23/05/2012).

O vínculo memorial expresso pela interlocutora se dá a partir


de experiências vividas por pessoas próximas através das quais ela teve
o contato com a história. A noção de santidade é agenciada por alguém,
e assim foi possível significar o Padre Cícero conforme o relacionamento
com essas fontes.

Seguimos ainda com outra passagem, do aluno de 16 anos do 3º


Ano do Colégio Governador Adauto Bezerra. Ao ser interrogado sobre a
primeira coisa que lhe vem à mente conforme a mesma pergunta anterior,
consta desta resposta: “Fé, oração, trabalho, honestidade, porque ele
tem muitos devotos e é símbolo de fé e devoção” (s/n, 23/05/2012).
Nessa citação, a memória estaria mediada por laços mais amplos, em que
o jovem associa a imagem do Padre Cícero às manifestações culturais e
por isso espaciais, tais como as romarias, o trabalho e as expressões de
crença que demonstram referência e aproximação.

Teremos, nestas apropriações e aproximações, um ponto


de vista já clássico sobre a cidade e seu ícone, mesmo estando eles
referenciados de forma própria e imaginada pelos contextos em que se
permitem essas elaborações. Aqui, podemos novamente perceber que
se sobressaem os laços de grupo, com suas identidades e integridades.

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Juventudes, conceitos e memórias: evocações em torno do Padre Cícero

As conceituações sobre o Padre Cícero, embora se manifestem


de forma variada de uma para outra experiência dos sujeitos, são
constituídas por entre condições que sinalizam um contexto social.
Dessa forma, mesmo aludindo e vivendo em um espaço distinto do
das gerações mais velhas, convivendo em momentos histórico-sociais
que demandam e vislumbram condições próprias, as memórias sociais,
e aqui aquelas desencadeadas pela juventude, conservam vínculos no
percurso cultural, mesmo tendendo a se reapropriar e se ressignificar.
As sociedades modernas, embora
destradicionalizadas, não perderam vínculos com
a tradição. Mesmo que esta não possua mais um
papel preponderante na modernidade, muitos
de seus elementos estão preservados, ainda que
transformados, o que parece conferir importância
à memória como possibilidade de presentificar o
passado. É através dela que a tradição pode ser trazida
e reinterpretada constantemente como construção
coletiva que organiza e dá significado ao presente,
sendo essa complexa tarefa desempenhada,
principalmente, pelos jovens (MARTINS, 2011, p.
19).

A memória como presentificação do passado pelo jovem é


também fonte de constituição das identidades e origens. Esse processo,
por sua vez, expressa na evocação o rol de possibilidades e características
da constituição do sujeito, localizado em tempo e espaço.

Sugerimos abaixo algumas expressões dessas evocações por


jovens de escolas diferentes, tratando do imaginário sobre o Padre
Cícero:

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Juventudes, conceitos e memórias: evocações em torno do Padre Cícero

Padroeiro e fundador de Juazeiro. Sinto falta de algo que nunca


ao menos vi nem presenciei (Colégio Salesiano, s/n. 22/05/2012).

Ele [O Padre Cícero] fez história na cidade de Juazeiro por ter


sido um grande homem (Colégio Moreira de Sousa, s/n. 23/05/2012).

Na primeira resposta, há uma evidenciação de quem descreve


um tempo nem ao menos vivido, mas de que sente falta. Essa ideia
de falta nos leva a compreendê-la como pertencente a um tempo que
procura se enquadrar nos imaginários das memórias, pois é ele digno de
ser revivido. No segundo caso, quando afirma ser ele, o Padre Cícero, um
grande homem que se notabilizou na construção da história da cidade
de que hoje o informante participa, ressalta-se uma elaboração de tipo
mais histórico e menos intrínseco à participação na vida particular desse
sujeito, embora de constante contribuição na vida pública do lugar.

Nos casos propostos, estas memórias são elementos que


corroboram o sentido de identidade (POLLAK, 1992). Considerando-
se juazeirenses, tais jovens manifestam o sentido de inclusão nos seus
contextos e atividades, tornando isso sinônimo de sua identificação
com as histórias e com os lugares. Nesse conjunto, as memórias
sociais constroem os sujeitos e estes as constroem significativamente,
elencando espaços e personagens que consideram relevantes.

As tipificações juvenis que descrevem o Padre Cícero como


homem, como santo, como religioso, nos colocam frente a compreensões
significantes também do fenômeno que dá origem à cidade e de como
essas descrições são expostas através dessa categoria. Conforme Geertz
(1993), a cultura é um mundo constituído de significados produzidos e
interpretados. Dessa maneira, as descrições evocadas como memórias

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Juventudes, conceitos e memórias: evocações em torno do Padre Cícero

se dão sobre significados interpretados nos simbolismos das relações


sociais nas quais transitamos.

Dessa forma, a circulação contínua de romeiros, os movimentos


religiosos e as práticas de devoção, os lugares de destaque no cenário
urbano, como a serra do Horto e as igrejas do Socorro e Matriz, são
acionados com frequência para simbolizar as memórias do Padre Cícero
e de Juazeiro do Norte.

II. I - O Padre Cícero e os espaços da cidade nos repertórios


Pretendemos agora pensar nas diferentes maneiras como
aparecem as descrições que giram em torno da figura do Padre Cícero
e dos espaços da cidade de Juazeiro do Norte. A perspectiva é enxergar
como os jovens apresentam suas interações com esse nome e com
os espaços através de conceitos expressivos. Esses aspectos nos farão
refletir em práticas de escrita congruentes com as situações de cotidiano
e por isso, de proximidade das convivências juvenis.

Para além de ver as expressões memoriais como traços


herdados dos vínculos geracionais, como já destacamos, entendemos
também que os envolvimentos com as manifestações sociais nos espaços
através de experiências dos próprios jovens são motes de interpretação
do contexto memorial. Reguillo (2000) destaca, nesse sentido, que
as culturas juvenis são expressões de novas sínteses de referenciais
simbólicos do mundo construído.

Destacamos, sobre essa lógica, de acordo com as expressões


memoriais evocadas, a distância do sujeito que fala sobre o que está sendo
expresso. Ao falar do Padre Cícero, as ações significantes expressam-se

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Juventudes, conceitos e memórias: evocações em torno do Padre Cícero

de modo distante temporalmente para quem fala, expressando uma não


ligação com o vivido. De santo a homem comum no meio dos outros,
como aquele que desce do céu, o Padre Cícero é representante de
Juazeiro, vista como centro de uma intensa prática religiosa de vários
lugares.

Seguem-se algumas descrições das pesquisas realizadas no


dia 23 de maio de 2012. A pergunta norteadora é: O que vem à mente
quando falamos o nome do Padre Cícero? Depois: Qual o porquê de tal
conceituação?

Evocação: Santo.

Por quê? Porque ele se entregou totalmente ao serviço de Deus,


e foi um mártir que lutou pelo bem até à morte.

Evocação: Religiosidade.

Por quê: Porque Padre Cícero foi um grande religioso, um


homem de muita fé, que até hoje move multidões e fiéis.

Evocação: Normal.

Por quê? Porque ele é uma pessoa normal assim como nós; a
diferença é que ele nasceu com o dom pra algumas coisas.

Por conseguinte, aparece, na mesma data, um conjunto de


descrições da cidade atrelada à noção de turismo, de desenvolvimento
com a chegada do Padre Cícero e ainda com uma descrição distante da
sua santidade.

Evocação: Desenvolvimento de Juazeiro.

Por quê? Porque foi através do fanatismo religioso em devoção

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ao Padre Cícero que o Juazeiro se desenvolveu.

Evocação: Turismo.

Por quê? Turismo religioso devido à fama do Padre Cícero.

Evocação: Político.

Por quê? Porque ele teve grande contribuição na política do


Juazeiro e porque foi um político sendo o primeiro prefeito de Juazeiro.

Acentuando apropriações diversas, essas expressões


memoriais sinalizam para construções de mundos perpassadas a partir
de socializações singulares. Manifestam também faces plurais de um
contexto e, nele, seu personagem através das interseções, intercâmbios
e influências geracionais.

As evocações memoriais sobre o Padre Cícero estabelecem-se


como baseadas numa confluência de atores e lugares, cenas e ensaios da
vida social e dos mundos de cada um que participa da vida em jogo, ao
formar arranjos de interpretações para que significados sejam expressos
e apresentados. Da mesma forma, surge Juazeiro do Norte dentro de um
conjunto de expressões significantes.

III - Pertencimentos: as memórias e os espaços


Não muito distante do que vínhamos apresentando no ponto
anterior, referenciando o Padre Cícero, cabe-nos ainda uma experiência
de perceber como a categoria jovem expressa as interpretações sobre
Juazeiro do Norte. Esse aspecto é de relevância, uma vez que foram
recorrentes os vínculos do primeiro com o segundo.

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Juventudes, conceitos e memórias: evocações em torno do Padre Cícero

Para tanto, temos que entrar em contato com as experiências


citadinas nos espaços sociais para entender os sujeitos. Neste processo,
há a interação com saberes semânticos fundadores dos conceitos que
caracterizam e que descrevem os contextos aos quais pertencem os
jovens. É situar as experiências dentro dos círculos que viabilizam os
sentidos frente às manifestações e ao cotidiano.

As memórias sociais estariam, mais uma vez, constituindo


maneiras de pertencimento. Quando o cenário de Juazeiro do Norte
se torna sinônimo de um sentido memorial vinculado ao Padre Cícero,
as memórias sociais, para além da centralidade no ícone, defrontam-se
como o espaço de relação e atuação deste. Desta forma, as menções
a cidade edificam um lugar de pertencimento desses indivíduos jovens
quando, aí, o mundo físico em seus espaços e os sujeitos em suas
experiências são peças inseparáveis na compreensão significante dos
saberes compartilhados socialmente.

Martins (2011) chama atenção, pensando na juventude, que


importa saber aquilo que se lembra, pois, mesmo em contato com as
memórias sociais, os jovens constituem-se como sujeitos ligados a novas
configurações espaciais e relações sociais em comparação a gerações
passadas, marcadas pelo acesso a bens simbólicos e dinâmicas sociais do
presente, como, por exemplo, a escola e as transformações tecnológicas.
Entre outros aspectos, entendemos, diante desta perspectiva, que
Juazeiro do Norte aparece vinculado constantemente à figura do Padre
Cícero porque este cenário serve também de mediador dos saberes,
bem como de acionador do sentido dos pertencimentos dos sujeitos às
histórias que aí se desenvolvem.

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Juventudes, conceitos e memórias: evocações em torno do Padre Cícero

Considerações finais
Entendemos que as memórias sociais são traços que, além de
carregar o passado, são fontes de presentificação da vida social. Dessa
forma, são também construções que se definem como caracterizadoras
e, ao mesmo tempo, renovadoras de formas de expressar saberes
coletivamente compartilhados. . Os trânsitos geracionais podem permitir
um exercício de abertura para a vida social que, se para os adultos
significa, ao mesmo tempo, memória e lembrança, para os jovens pode
representar aprendizagem. Para aqueles, é uma recordação de si; para
estes, recordar para si (MARTINS, 2009).

Entre próximos e distantes, os espaços de convivência e de


não convivência elencados, orientadores das expressões memoriais
aqui evocadas pela juventude, nos fazem problematizar tensões entre
gerações como novas posições, olhares e experiências, referindo o
Padre Cícero dentro da fundação de Juazeiro do Norte. Apontam ainda
para delimitações próprias que envolvem o sentido de apropriação dos
sujeitos envolvidos e seus recortes de mundo.

As memórias evocadas, ao suscitar questionamentos sobre o


Padre Cícero, nos fazem compreender que, partindo dos jovens, essas
experiências expressam continuidades ou mesmo descontinuidades do
que se tem como cristalizado sobre o mesmo e sobre Juazeiro do Norte,
quando amarra expressões de ordem subjetiva e social.

Entre outros traços, as expressões juvenis sobre o Padre Cícero,


e por extensão, Juazeiro do Norte, colocam-nos frente a um expressivo
imaginário das experiências e referências diversificadas, das percepções,

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Juventudes, conceitos e memórias: evocações em torno do Padre Cícero

falas e significados. Em suma, nas evocações memoriais juvenis, há uma


deambulação expositiva, na qual o discurso é tencionado numa ordem
de visualização do Padre Cícero desde homem comum a santo, de
político a patriarca da cidade, e Juazeiro no seu contexto de origem, na
influência das condições de romarias, e nelas, o aspecto religioso, até a
atual configuração social, cultural e política, que é onde os jovens estão
inseridos na dinâmica social.

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Juventudes, conceitos e memórias: evocações em torno do Padre Cícero

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version ISSN: 0102-7972

Artigo submetido em: 30/09/2012


Artigo aprovado em: 31/04/2014

77 Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 8, 2015 ISSN: 1677-9460


“Dos mortos, ou se fala bem
ou não se fala”:
um ensaio biográfico sobre José
Marrocos (Ceará, 1842-1910)
Edianne dos Santos Nobre1

Resumo
Neste artigo, ensaiamos um perfil biográfico do jornalista José Joaquim Telles de
Marrocos (1842-1910) através da sua produção escrita, que compreende inúmeros
artigos de jornais e uma vasta coleção epistolar. Analisamos também duas obras
que confrontam sua ação: O apostolado do embuste, do padre Antônio Gomes de
Araújo, e Em defesa de um abolicionista, do padre Azarias Sobreira. Especificamente,
analisaremos sua atuação na chamada “Questão Religiosa do Juazeiro”. Por ser
um importante personagem na trama que envolve os acontecimentos de Juazeiro
e também pela ausência de trabalhos atuais sobre sua trajetória, propomos um
novo olhar sobre esse personagem irreverente e misterioso, sendo também ele um
protagonista na História do Ceará.

Palavras-chave: José Marrocos, Juazeiro, biografia, milagres.

1 Doutora em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.


Professora adjunta do Colegiado de História da Universidade de Pernambuco.

Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 8, 2015 ISSN: 1677-9460


“Dos mortos, ou se fala bem ou não se fala”:
um ensaio biográfico sobre José Marrocos (Ceará, 1842-1910)

Abstract
In this article, we meant to trace a biographical profile of the journalist José Joaquim
Telles de Marrocos (1842-1910) through its your written output that comprising
numerous newspaper articles and an extensive epistolary collection. We use as well
the literature bibliographic about him: The apostolate of the fake by the priest Antonio
Gomes de Araújo and In defense of an abolitionist by the priest Azarias Sobreira
. Specifically, we seek to understand the role in the event known how “Juazeiro’s
Religious Question”. For being an important character in the plot that involves the
events of Juazeiro, and also by the absence of current work about his trajectory we
propose a new perspective on this irreverent and mysterious character, also a key
player in the Ceará’s history.

Key words: José Marrocos, Juazeiro, biography, miracles.

Em volta aqueles anjinhos


No meio daquele magote
Apareceu meu padrinho
E o santo Zé Marroque.
(Trova Popular)

José Joaquim Telles de Marrocos nasceu em 26 de novembro de


1842, na cidade do Crato, filho de uma relação ilícita entre o padre João
Marrocos e a mulata Maria da Conceição do Amor-divino. Foi batizado
na matriz de Nossa Senhora da Penha no Crato em 20 de dezembro do
mesmo ano, “tendo sido seus padrinhos o doutor Manuel Marrocos
Teles e D. Ana Francisca de Oliveira”2.

2 Livro de registro de Batismo da Paróquia do Crato, 1841-1842, fls. 87. No seu


processo de Ordenação do Seminário da Prainha, temos uma genealogia mais detalhada
de Marrocos: “O Segundo anista [sic] do curso teológico do Seminário Episcopal desta
Cidade da Fortaleza, José Joaquim Telles Marrocos, natural da Freguesia de N. Sra. da
Penha do Crato neste Bispado, filho natural de João Marrocos Telles e Maria da Conceição
do Amor-divino, neto paterno de José Joaquim Telles e Barbara Maria de Jesus, ambos
naturais da Freguesia de N. Sra. da Penha do Crato e neto materno de Romualdo Soares
Barbosa e Helena Maria da Conceição, ambos naturais da mesma Freguesia [...]”.
Processo de Habilitação Canônica de José Marrocos em 14.03.1866, p. 35. Arquivo da

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“Dos mortos, ou se fala bem ou não se fala”:
um ensaio biográfico sobre José Marrocos (Ceará, 1842-1910)

Apesar de sua ascendência pouco lisonjeira para a época em


que viveu, José Marrocos conseguiu se destacar na região do Cariri e no
Ceará por sua atuação em diversas frentes. Foi um ativista pela causa
das vítimas da epidemia de cólera3, doença que vitimou, entre centenas
de pessoas, o seu pai e o pai do padre Cícero Romão Batista4, em 1862.

As circunstâncias da morte do pai de José Marrocos foram,


inclusive, flagrantes do estado de calamidade que se instalou no vale do
Cariri na segunda metade do século XIX. Diante da imensa quantidade
de mortos e da insuficiência de padres na região (número que já era
pequeno antes da epidemia), as pessoas morriam sem receber os últimos
sacramentos e mesmo sem ter a alma encomendada, importante ritual

Cúria, Departamento Histórico Diocesano Padre Gomes, doravante citaremos como


DHDPG. Em realidade, a mãe de José Marrocos é referenciada na historiografia como
uma “cabra”, conceito pejorativo que indica quem é oriundo de um cruzamento entre
um mulato e um negro (Araújo, 1956,p. 53). Descobrimos ainda que a avó paterna de
Marrocos, era ela mesma, filha de um padre jesuíta português chamado Alexandre Leite
de Oliveira com uma mulata chamada Teresa de tal (Araújo, 1956,p. 03). Essa digressão
genealógica se faz necessária devido à falta de dados sobre a filiação de José Marrocos
na historiografia atual. O texto das fontes documentais teve a ortografia atualizada de
acordo com o Acordo Ortográfico de 2009.
3 O historiador Jucieldo Alexandre, em sua dissertação de mestrado, discute
as representações criadas sobre o cólera no jornal “O Araripe”, bem como as medidas
profiláticas e as práticas medicinais populares tomadas pelo governo e pela população no
momento da epidemia. Percebemos o quanto as práticas medicinais populares estavam
intrinsecamente ligadas à práticas religiosas e, especificamente, às penitências.
4 Primo de José Marrocos pelo lado materno, Cícero Romão Batista nasceu em
24 de março de 1844 na cidade do Crato, filho de Joaquina Vicência Romana e Joaquim
Romão Batista ambos cratenses. Tinha duas irmãs Maria Angélica Romana e Angélica
Vicência Romana. Foi estudar no Seminário da Diocese cearense em 1865 aonde se
formou em novembro de 1870, voltando a sua cidade natal, assumiu em 1872 a Capela
de Nossa Senhora das Dores. Foi um dos protagonistas da chamada “Questão religiosa do
Juazeiro”, sobre a qual falaremos mais adiante.

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de passagem na tradição católica5. É um fato significativo que, das mil e


cem mortes estimadas, haja apenas 269 registros de óbito no Livro dos
Coléricos existente na Cúria Diocesana da cidade do Crato, desses:
[...] duzentos e dezesseis dizem respeito a
moradores da cidade, vinte e nove a habitantes de
sítios e arredores e em vinte e quatro registros não
há informações sobre a moradia dos vitimados. Já
outros dois obituários se referem a sepulturas feitas
nos cemitérios dos coléricos dos sítios Currais e
Granjeiro (próximos da urbe), o que faz deduzir que
existiram outros campos para sepultura, já que havia
pressa em se livrar dos corpos vitimados pela peste
(Alexandre, 2010, p. 148-149).

A pressa em se livrar dos corpos infectados, não obstante, não


se deu somente entre as classes mais pobres. Mesmo aquelas figuras
importantes da cidade não tiveram direito a uma “boa morte”, posto
que o medo de contaminação fosse maior que o espírito caritativo.

O caso do padre João Marrocos, por exemplo, chocou a


população caririense. Figura ilustre da cidade, tendo sido classificado
pelo jornal O Araripe como “sacerdote virtuoso, inélito [sic] soldado
da fé que afrontou a morte, cumprindo seu mandato sagrado”6, teve
os últimos sacramentos negados por um companheiro de batina que,
apavorado com a doença, fugiu aos deveres sacerdotais, como informou

5 Além da última confissão e comunhão e da extrema-unção, a encomendação


da alma era um importante rito fúnebre das práticas do bem-morrer, na qual o padre
recomendava a alma do defunto à Deus na saída do funeral para o lugar do enterramento.
Era ainda um ritual de despedida da família para com o morto: “Era uma manifestação de
especial deferência e carinho da família para com o morto, gesto que solenizava sua saída
definitiva de casa rumo ao mundo dos mortos” (Reis, 1991,p. 132).
6 Jornal O Araripe de 23.08.1862, nº. 285, p. 01.

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o padre Antônio de Almeida ao bispo diocesano D. Luís, em 18 de julho


de 1862:
É com a maior mágoa, que participo a V. Excia de ter
sucumbido no dia 2 do corrente na cidade do Crato
o Pe. Dr. João Marrocos, vítima do cólera-morbo, ou
de sua dedicação, pois sou informado que prestou
os socorros espirituais a quem o procurava até final
prostração, achando-se acometido desde o começo
da invasão da referida peste. Corre que acabou
pedindo ao menos absolvição de seus pecados e não
a obteve. Disse-me o Rmo. Vigário, que ele mandava
rogar pelo S.S. Sacramento a um nosso Irmão para
o ouvir de confissão e ele [o padre em questão],
coitado, teve a fraqueza de negar-se absolutamente.
Com o Pe. Mestre Marrocos sucumbiram mais
quinhentas pessoas, das quais trezentas finaram sem
o pasto espiritual, pois que o Vigário [o padre Manoel
Joaquim Aires do Nascimento] teria confessado
umas cem pessoas, enquanto não foi acometido.
Os mais [outros] sacerdotes abandonaram a Cidade
inclusive o Coadjutor.7

A morte do pai foi, provavelmente, o acontecimento mais


marcante na vida de José Marrocos, que, na época, tinha 20 anos de
idade. O fato fez com que ele estabelecesse uma intensa correspondência
entre o interior, o Governo da província e a Diocese recém-criada, no
sentido de construir um cemitério especial para os coléricos. Diante
do caos instalado, sua luta naquele momento foi pela chance de poder
enterrar dignamente o seu pai e os outros milhares de mortos que o
“anjo do extermínio” deixou na sua passagem. Marrocos não descansou
até que a Diocese autorizasse a construção de um cemitério exclusivo

7 Carta do padre Antônio de Almeida ao bispo D. Luiz Antônio dos Santos, de


Juazeiro, 18.07.1862. DHDPG. Grifos nossos.

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“Dos mortos, ou se fala bem ou não se fala”:
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para os coléricos, que foi construído ainda em 1862, acerca de dois


quilômetros de distância da cidade (Alexandre, 2010, p. 145-146).

Um dos documentos que revelam um pouco sobre Marrocos é


o Caderno8, uma espécie de diário, no qual, ele colecionou excertos de
jornais, anotações sobre seu inventário de bens e, entre outros, as cópias
de algumas das cartas que escrevia. Em uma dessas cartas, enviada ao
bispo Dom Joaquim José Vieira9, encontramos um depoimento no qual
ele relembra a atitude da Diocese com relação aos seus apelos:
E um dia apelei para a sua misericórdia, como
pastor das almas, em favor das vítimas do cólera
estendidas no chão da morte sem a sombra, sem o
asilo, sem a intercessão do templo sagrado e do altar
sacrossanto – o meu venerando pontífice não se
limitou a conceder licença para edificar-se a capela
do cemitério dos coléricos do Crato; mas quis ainda
ser o padrinho dessa fundação [...]10.

8 O documento chamado Caderno Marrocos é um caderno pequeno com uma


coleção de textos escritos por José Marrocos por um período de tempo indeterminado.
O material foi transcrito pelas Irmãs Annette Dumoulin e Ana Theresa do Centro de
Psicologia da Religião (CPR) em Juazeiro do Norte. Neste trabalho foi utilizada a cópia
existente no Arquivo do DHDPG.
9 Nascido na cidade de Campinas, São Paulo em 17.01.1836 Dom Joaquim José
Vieira, era formado no Seminário Episcopal da Diocese de São Paulo (1860). Descrito
como “empreendedor, caritativo, afável, dedicado, prudente e conciliador” o padre
Joaquim Vieira, foi indicado pelo Imperador Dom Pedro II para a Sé Episcopal de Fortaleza
em 1883 e chegou ao Ceará em 1884 com 48 anos de idade e 24 anos após sua ordenação
no Seminário de São Paulo dos Capuchinhos. Dom Joaquim faleceu em 8 de julho de
1817. O processo canônico de indicação do padre Joaquim José Vieira encontra-se no
Arquivo dos Bispos Regulares (Archivo dei Vescovi Regolari) no Arquivo Secreto Vaticano,
B. 55, Fasc. 262, Doc. 10-27.
10 Caderno Marrocos, p.01-02: Artigo intitulado “Os milagres de Joazeiro – Sua
divina realidade – Uma reclamação ao reverendo Bispo Diocesano”, publicado no jornal
A província, de Recife, em 03.09.1893. DHDPG.

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“Dos mortos, ou se fala bem ou não se fala”:
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Por volta de 1865, Marrocos foi estudar no Seminário Episcopal


da Prainha, em Fortaleza, do qual foi expulso em 1868 pelo reitor da
época, o francês Pierre Auguste Chevalier (1831-1901). Muito se
especulou sobre a verdadeira razão da sua saída. O historiador Irineu
Pinheiro, que foi seu aluno algum tempo depois, conjecturava sobre a
possível falta de vocação do professor (Pinheiro, 1963, p. 129).

Já o padre Antônio Gomes, aventava a possibilidade de José


Marrocos ter tido um confronto doutrinal, pois “sustentava pontos
de vista teológicos considerados errôneos” (Araújo, 1956, p. 48). No
entanto, a hipótese mais aceita é a de que sua candidatura ao sacerdócio
foi vetada justamente por sua dupla ascendência levítica: Marrocos era
filho e bisneto de padres (Sobreira, 1956, p. 61).

O que, décadas antes, provavelmente, não seria um problema


– visto a enorme quantidade de padres de ascendência levítica que
ocupavam, inclusive, cargos políticos importantes –, na segunda metade
do século XIX, quando a Igreja Católica se achava em meio a uma
grande reforma doutrinal, conhecida como Reforma Ultramontana11,
a perpetuação daquelas práticas, se tornava um grave impedimento à
ordenação eclesiástica.

Essa frustação marcou profundamente a vida de José Marrocos,

11 A reforma que na historiografia brasileira ficou conhecida como “romanização”


ou “política ultramontana” tinha como objetivo remodelar o clero, dando ênfase à
autoridade institucional e hierárquica da Igreja, como forma de controlar a doutrina e
principalmente as manifestações fervorosas do laicato. Ítalo Santirocchi propõe uma
revisão do conceito de “romanização”, preferindo o uso do conceito “ultramontanismo”,
que, no século XIX: “[...] se caracterizou por uma série de atitudes da Igreja Católica, num
movimento de reação a algumas correntes teológicas e eclesiásticas, ao regalismo dos
estados católicos, às novas tendências políticas desenvolvidas após a Revolução Francesa
e à secularização da sociedade moderna” (2010, p. 24).

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que manteve, contudo, os hábitos rigorosos da vida religiosa: “[...] era um


homem religioso e caritativo; conservava sempre acesa uma lâmpada ao
lado de seu santuário doméstico e, ao que dizia, rezava diariamente o
Breviário, como os padres” (Sobreira, 1956, p. 30).

Voltando ao Crato, Marrocos se dedicou ao jornalismo e ao


ensino de línguas como o francês, o italiano e o latim12.Criou uma escola
para moços e, em 1868, fundou junto com o padre José Antônio Ibiapina13
o primeiro jornal cratense de cunho religioso, chamado A voz da Religião
no Cariri, que funcionou até 1870 e tinha como função principal divulgar
as obras sociais do missionário. A partir de então, Marrocos cultivou
uma série de relações com figuras importantes do corpo eclesiástico,
não só da Província cearense, mas também em outras províncias.

O jornal se destacou por ser o primeiro periódico caririense


religioso que dedicava suas páginas à vida social e religiosa da região e,
segundo Marrocos, abria “uma página para a história de nossa terra que
nos dê a conhecer o estado em que nos achamos pelo lado religioso e

12 Além disso, Marrocos colaborou com outros jornais, como:O Libertador


(Fortaleza), Cidade do Rio (Rio de Janeiro), Jornal do Cariri (Barbalha) e, mais tarde,
em 1909, fundou o primeiro jornal de Juazeiro intitulado “O Rebate”, que tinha como
objetivo retorquir as críticas feitas pelo jornal Correio do Cariri – editado no Crato – ao
Padre Cícero Romão Batista e às peregrinações.
13 José Antônio Pereira Ibiapina nasceu em 05 de agosto de 1806, em Sobral, e era
o terceiro filho de Francisco Miguel Pereira e Maria Thereza de Jesus. O nome Ibiapina
foi acrescentado depois pelo pai, em homenagem ao povoado de Ibiapina na serra da
Ibiapaba, norte do Ceará, que os acolheu quando saíram de Sobral. Ibiapina enveredou
pelo meio jurídico, estudando Direito em Olinda, chegando a ser deputado-geral na
legislatura de 1834 a 1837 no Ceará. Decidindo naquele último ano tentar a carreira
de advogado fora do Ceará, ele residiu em Areia na Paraíba e depois em Recife, onde
exerceu o cargo de juiz de paz entre 1838 e 1850, abandonando nesse último ano a vida
política e se iniciando no sacerdócio.

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moral”14.

Editado semanalmente aos domingos, possuía cerca de quatro


laudas, as quais eram distribuídas da seguinte forma: um editorial
assinado por José Marrocos, notícias relacionadas à Igreja Católica no
Brasil e no mundo, uma coluna que narrava a vida e a obra do padre
Ibiapina e uma coluna intitulada “Folhetim”, que narrava as vidas
piedosas de beatas das Casas de Caridade.15 De cunho religioso, como o
próprio nome já dizia, o jornal começou a noticiar, em 13 de dezembro
de 1868, uma série de “milagres” que ocorriam em uma fonte de água
mineral existente no lugar chamado Caldas, na cidade de Barbalha:
Luzia Pesinho, parda, casada, moradora da vila da
Barbalha, paralítica das pernas a 3 anos pede que
a levem à presença do Revdo. Missionário. No dia
20 de Junho de 1868 vê realizado o seu desejo e
achando-se ao encontro do Missionário Cearense,
JOSÉ ANTONIO DE MARIA IBIAPINA [sic] que lhe
passava na porta, roga-lhe com a mais viva instancia
que lhe ensinasse o remédio do seu mal. – Eu não sou
medico do corpo, lhe diz Venerando Padre Mestre; o
meu ministério é curar as almas. – Ah! Meu Santo
Padre, ensine-me, lhe retorquiu Luzia, sim, ensine-
me o que quiser; eu tenho fé de ficar boa. – Pois
bem, mulher, vá tomar 3 banhos na fonte do Caldas
ao sair do sol. Luzia creu, foi ao lugar indicado no

14 Jornal “A voz da Religião no Cariri”, Domingo, 05.12.1868, nº 1, Ano I. PR-SOR


00033.
15 Criadas em todo o Ceará pelo padre Ibiapina, essas Casas serviam como
recolhimentos para mulheres que desejavam seguir uma vida religiosa, mas não
possuíam condições, e, funcionava ainda como escola e orfanato, tendo ainda uma
roda de expostos, embora fosse um costume já em desuso na época, a fim de evitar o
infanticídio e o aborto. A instituição foi inspirada no modelo das Irmãs de Caridade de
São Vicente de Paula que surgiu na França, assim, apesar de ser uma instituição leiga as
mulheres que assumiam cargos na Casa de Caridade se submetiam a uma rotina e ao
regulamento inspirado no modelo vicentino já dominante na Diocese.

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meio de uma carga e acompanhada de seu marido


que também sofria de uma hérnia. Ambos foram ao
banho e voltarão bons. 16

Continuamente, em todas as edições do jornal – que era semanal


– até novembro de 1869, houve divulgação de milagres realizados pelas
águas curativas do Caldas, que haviam sido abençoadas pelo padre
Ibiapina. Logo, a Diocese foi alertada sobre as peregrinações feitas ao
local, o que acirrou o clima contra as missões de Ibiapina. A presença da
narrativa sobre os possíveis milagres de Ibiapina denuncia já uma espécie
de crença local na sacralidade do próprio espaço caririense, que aparece
como esse grande teatro da reprodução de prodígios maravilhosos.

Em julho de 1869, o bispo Dom Luís proibiu qualquer tipo de


Missão no interior, substituindo-as pelas Visitas Pastorais, com exceção
unicamente de Missões especialmente recomendadas pelo diocesano.
Iniciou-se aí uma tentativa de controle por parte do diocesano sobre
as ações de Ibiapina e podemos conjeturar que o clima de cordialidade
que permitiu ao padre missionar pelos interiores cearenses havia sido
substituído por uma animosidade que beirava a intolerância.

Desautorizando as Missões no estado, D. Luís reforçava a


importância das Visitas Pastorais, pois segundo explicava em um ofício
dirigido em 19 de julho de 1869 ao pároco do Crato, Manuel Joaquim
Aires do Nascimento (1804-1883), “alguns resultados [de Missões] tem
aparecido não pouco inconvenientes, com detrimento da disciplina
eclesiástica e daquela paz e harmonia que devem reinar entre o próprio

16 Jornal A voz da Religião no Cariri de 13.12.1868, p. 03. Grifos no original.

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Pastor e o rebanho”17.

Não obstante, três anos depois, em 1872, o padre Ibiapina era


expulso do Ceará e proibido de voltar a missionar na região do Cariri,
sendo obrigado ainda a entregar a direção das Casas de Caridade à
Diocese. O jornal A voz da religião parou de ser editado e não houve mais
menções à fonte miraculosa do Caldas18. Esse conflito entre Ibiapina e a
Diocese cearense, representada pela figura de D. Luís, dá um indício do
clima controverso estabelecido entre uma prática religiosa de herança
“penitencial” e uma concepção religiosa “romanizada” de Igreja por
parte do bispo cearense.

A partir de 1878, sua paixão foi direcionada para as atividades


da Campanha Abolicionista no Ceará conhecida como “A Sociedade
Libertadora Cearense”, entre 1878 e 1880, durante a qual ficou conhecido
por roubar e libertar escravos clandestinamente, além de brandir sua
“pena esmagadora contra os escravocratas” em diversos jornais do
país e principalmente no jornal O Libertador, veículo de divulgação do
movimento abolicionista no Ceará (Vieira, 1958, p. 92). Em fins daquela
década, Marrocos foi processado junto a outros amigos pelo Coronel
Paiva, membro do Partido Liberal na época, que os acusava de “seduzir

17 Ofício do bispo D. Luís Antonio dos Santos de 19.07.1869, registrado no Livro de


Tombo da Matriz do Crato, p. 51 apud Pinheiro, 1950, p. 160.
18 Em meados de 1873, o bispo nomeou alguns padres recém-formados no
Seminário da Prainha de Fortaleza para assumir a direção das Casas de Caridade e de
paróquias no interior do estado, entre eles os padres Fernandes Távora (1851-1916) e
Francisco Rodrigues Monteiro (1847-1912). Começaria aí uma nova fase das Casas de
Caridade, que ficaram sob o controle das irmãs vicentinas. A expulsão do padre Ibiapina
do Ceará marcou também o fim de sua trajetória como missionário. Após sua partida,
ele se fixou na Casa de Caridade Santa Fé (Arara, PB), onde faleceu em 19 de fevereiro de
1883.

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e roubar escravos”. O processo acabou por ser arquivado pela falta de


provas contra os acusados (Idem, p. 87).

José Marrocos jovem – Arquivo do Museu da Imagem e do Som (MIS - Ceará)

O venerando bispo e seu obscuro diocesano: disputas pelo


milagre
Quem estudar a fundo o drama religioso juazeirense,
que comoveu as populações católicas de nossa
pátria, de Norte ao Sul do Brasil, haverá de concluir,
em minha opinião, ter sido o professor José
Marrocos um de seus personagens centrais, seu
maior defensor não só na imprensa, mas também
perante a Santa Sé [...] (Pinheiro, 1963, p. 131).

Uma das últimas causas de Marrocos, e, provavelmente, aquela

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que lhe deu mais visibilidade foi a da defesa dos chamados “milagres de
Juazeiro”, dentre eles o sangramento da hóstia19 na boca da beata Maria
de Araújo20, em 1889:
Mas o depoimento que venho perpetuar nestas
linhas, nada tem de singular, é apenas mais uma voz
que no coro geral de todas as vozes e no concerto
comum de todas as harmonias vem afirmar que
sabe e que viu mesmo na igreja do Juazeiro a hóstia
sacramental da comunhão de Maria de Araújo
transformar-se em sangue tão natural como o
produto vivo de um corpo vivente21.

A paixão que irradia de seus escritos, independentemente do


tema que tratasse, é palpável, e pode ser sentida pelo mais insensível dos
leitores. Dotado de uma escrita que beirava o patético, Marrocos levava
suas paixões e devoções às mais funestas consequências, bradando
contra escravocratas, imperadores ou bispos. Por isso arrisco dizer que

19 Em março de 1889, a hóstia ministrada pelo Padre Cícero Romão Batista


sangrou na boca da beata Maria Magdalena do Espírito Santo de Araújo. O fato, que se
repetiu muitas vezes até o final de 1891, provocou inúmeras peregrinações e acarretou
em uma investigação empreendida pela Diocese cearense através do bispo Dom Joaquim
José Vieira. A investigação resultou na produção de um Processo Episcopal que foi
enviado à Santa Sé e, posteriormente, em 1894, foi condenado como um embuste pela
Congregação para a Doutrina da Fé. Esses fenômenos foram o estopim para o evento
que ficou conhecido como “Questão Religiosa do Juazeiro” e, segundo o padre Alencar
Peixoto, José Marrocos teria inclusive escrito um livro com esse nome que foi roubado
dos seus pertences por ocasião da sua morte em 1910.
20 Maria Magdalena do Espírito Santo de Araújo nasceu em 24 de maio de 1862,
às quatro horas da tarde, na então povoação de Juazeiro, sendo filha de Antônio da Silva
Araújo e de Ana Josefa do Sacramento. Faleceu em 17 de janeiro de 1914 e foi enterrada
na Capela de N.S. do Socorro, em Juazeiro, vestida no hábito da Ordem Terceira de São
Francisco.
21 Depoimento de José J. T. de Marrocos em 12.10.1891 in “Cópia autêntica
do processo instruído sobre os fatos do Juazeiro”, Arquivo do Departamento Histórico
Diocesano Padre Gomes, Crato-CE, pp. 67. Doravante citaremos como “Cópia autêntica...”.

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“Dos mortos, ou se fala bem ou não se fala”:
um ensaio biográfico sobre José Marrocos (Ceará, 1842-1910)

José Marrocos era, antes de tudo, um devoto de suas próprias causas:


Quem estudar a fundo o drama religioso juazeirense,
que comoveu as populações católicas de nossa
pátria, de Norte ao Sul do Brasil, haverá de concluir,
em minha opinião, ter sido o professor José
Marrocos um de seus personagens centrais, seu
maior defensor não só na imprensa, mas também
perante a Santa Sé [...] (Pinheiro, 1963, p. 131).

Ralph Della Cava, em seu já clássico Milagre em Joaseiro,


levando em consideração esse aspecto psicológico de Marrocos, afirma
que, “tendo em vista o passado de Marrocos, sua piedade e participação
política, não é de surpreender que viesse a desempenhar um papel
importante no milagre de Juazeiro” (1976, p.71).

Em 19 de julho de 1891, um pouco mais de um ano depois do


primeiro sangramento da hóstia, Dom Joaquim publicou um documento
que ficou conhecido como Decisão Interlocutória, no qual exarava
algumas ordens e instituía uma Comissão para investigar o caso. O
primeiro inquérito do Processo instruído sobre os fatos do Juazeiro foi
instaurado em 21 de julho de 189122. Entre outras peças, esse primeiro
inquérito contém os depoimentos de Maria de Araújo e de outras
oito beatas que narram a experimentação de êxtases, visões, sonhos,
revelações proféticas e viagens feitas a espaços do além – Céu, Inferno
e Purgatório23.

22 “Portaria do bispo instaurando o Processo” em 21.07.1891 in “Cópia autêntica...”,


p. 06.
23 Eram elas: Ângela Merícia do Nascimento (28 anos, assina o nome), Antônia
Maria da Conceição (30 anos, analfabeta), Anna Leopoldina Aguiar de Melo (19 anos,
assina o nome), Jahel Wanderley Cabral (31 anos, alfabetizada), Maria das Dores da
Conceição de Jesus (15 anos, analfabeta), Maria Joanna de Jesus (33 anos, analfabeta),
Maria Leopoldina Ferreira da Soledade (29 anos, alfabetizada) e Rachel Sisnando de Lima

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“Dos mortos, ou se fala bem ou não se fala”:
um ensaio biográfico sobre José Marrocos (Ceará, 1842-1910)

A negação obstinada de Dom Joaquim de que o “sangue


aparecido nas Sagradas partículas era Sangue de Nosso Senhor Jesus
Cristo, pois que não o é nem pode ser, segundo os ensinamentos da
Teologia Católica”24, deveria definir a linha de ação da Comissão
Episcopal, composta pelos padres Clicério da Costa Lobo (1839-1916)
e Francisco Ferreira Antero (1855-1929), pessoas que, segundo o bispo,
possuíam todos os “requisitos necessários”25 para analisar os fatos e
devolver o inquérito à Diocese com um relatório final que confirmasse a
opinião do bispo já exarada na Decisão Interlocutória.

O primeiro inquérito instruído sobre os fatos do Juazeiro é


uma peça documental completa, no sentido de que possui uma linha
narrativa muito clara do começo ao fim. Foi elaborado ao longo de 80
dias, entre 9 de setembro e 28 de novembro de 1891, dos quais dez
foram destinados a ouvir as testemunhas chamadas a depor, – 23 no
total. Além disso, grande parte do tempo foi dedicada às observações
da transformação da hóstia e de outros fenômenos26 que ocorriam com
Maria de Araújo, sobre os quais a Comissão nada sabia até chegar ao
Juazeiro. Nesse ponto, é preciso enfatizar que o objeto da investigação
era o sangramento da hóstia. Nesse sentido, a questão colocada pela
Comissão dizia respeito à origem do sangue e se o que brotava da hóstia

(40 anos, assina o nome).


24 “Portaria do bispo instaurando o Processo” em 19.07.1891 in “Cópia
autêntica...”, p. 05-06.
25 Idem, p. 06.
26 Tanto Maria de Araújo quanto as outras mulheres fazem referência a esses
outros fenômenos: viagens ao Purgatório, Céu e Inferno, aparecimento de hóstias
ensanguentadas, estigmas de crucificação, sangramento de crucifixos de metal maciço,
relatos de visões, profecias, êxtases e comunhões espirituais. Aprofundaremos essa
discussão ao longo da tese.

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“Dos mortos, ou se fala bem ou não se fala”:
um ensaio biográfico sobre José Marrocos (Ceará, 1842-1910)

podia ser mesmo o sangue de Cristo27.

O resultado desse primeiro inquérito surpreendeu a Diocese


cearense, pois os padres da comissão atestavam a inexistência de qualquer
farsa nos fenômenos sobrenaturais ali manifestados e afirmavam que
as beatas eram incapazes de cometer embustes28.O bispo Dom Joaquim
imediatamente recusou o primeiro inquérito, afirmando que as beatas e
especificamente, Maria de Araújo, haviam armado truques tão perfeitos
que ludibriaram vários sacerdotes, inclusive os padres da Comissão que
ele próprio escolhera e instituíra!

Após condenar o primeiro inquérito e suspender os padres da


comissão, o bispo diocesano instituiu um segundo inquérito, em abril
de 1892, cujo responsável foi o padre Antonio Alexandrino de Alencar
(1843-1903). Esse segundo inquérito, antes mesmo de ser executado,
já possuía um modelo narrativo pronto: deveria ser a narração de um
embuste. O padre deveria recolher provas de que as mulheres forjavam
os sangramentos e fantasiavam a respeito das visões e profecias que
diziam ter29.

27 Observo ainda que em nenhum momento Maria de Araújo foi alvo das romarias;
ainda que ela tenha sido considerada depois como “santa” ou “visionária” por algumas
pessoas, as romarias eram feitas para o “Sangue Precioso”. Defendo essa hipótese na
minha tese de doutorado.
28 Relatório do Delegado Episcopal padre Clicério C. Lobo em 22.12.1891 in“Cópia
autêntica...”, p. 64.
29 Em carta ao padre Alexandrino, Dom Joaquim enumera uma série de
“instruções que devem ser observadas fielmente” na busca das retratações. Assim, o
modelo narrativo deveria seguir a estratégia: tentativa de convencimento seguido de
ameaça: “Manda-lhe dizer o Senhor Bispo que si as Senhoras confessarem tudo à mim
e ao Rvdo. Capelão e a Senhora Superiora ficarão privadas e continuarão a residir nesta
Casa [de Caridade], ficando tudo em reserva; si, porém, negassem-se [sic] a confessar
suas faltas, serão expulsas [...]” in Carta de D. Joaquim José Vieira ao padre Antonio

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“Dos mortos, ou se fala bem ou não se fala”:
um ensaio biográfico sobre José Marrocos (Ceará, 1842-1910)

O segundo inquérito é uma peça documental muito incoerente


em relação à organização das peças anexadas. Esse documento, datado
de janeiro de 1893, isto é, quase dois anos depois da execução do
primeiro inquérito, é composto de três relatos de experiências feitas
com Maria de Araújo, em 20, 21 e 22 de abril de 1892, seguidos de
dois depoimentos de testemunhas que só foram feitos em agosto
daquele ano. Depois seguem alguns anexos: uma carta do Dr. Ignácio
de Souza Dias, duas cartas do Dr. Marcos Rodrigues Madeira (ambos
os médicos que atestaram a sobrenaturalidade dos fenômenos no
primeiro inquérito), duas cartas do padre Félix Arnaud (uma ao reitor do
Seminário no Maranhão e outra ao bispo Dom Joaquim), uma carta do
Dr. Ildefonso Gurgel Nogueira.

No início de 1893, provavelmente em março, o padre


Alexandrino juntou tudo o que dizia respeito à sua atividade durante
1892 na cidade do Crato e enviou ao bispo. O resultado foi a produção
do documento conhecido como o Processo instruído sobre os fatos do
Juazeiro, que compreende o primeiro inquérito conduzido pelos padres
Clicério da Costa Lobo e Francisco Ferreira Antero, em 1891, mais os
documentos enviados pelo padre Alexandrino e a Carta Pastoral de 1893.

Em maio de 1893, a documentação foi enviada para a Santa Sé,


mais especificamente para o Cardeal Rafaelle Monaco la Valleta (1827-
1896), do Supremo Tribunal da Penitenciária Apostólica, que, naquele
momento, era o órgão responsável por examinar tudo o que se referia às
doutrinas dogmáticas da Igreja Católica em conjunto com a Congregação

Alexandrino de Alencar, de 20.08.1894. Arquivo do Centro de Psicologia da Religião –


CPR, Juazeiro do Norte, CE. Identificada sob inscrição CPR/CRA: 04.01.

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“Dos mortos, ou se fala bem ou não se fala”:
um ensaio biográfico sobre José Marrocos (Ceará, 1842-1910)

para a Doutrina da Fé. E, em 1894, os fenômenos foram condenados


como “embustes vãos e supersticiosos”30.

Desde 1889, José Marrocos tomara para si a missão de divulgar


os fenômenos, e mais, de buscar ele mesmo provas que atestassem
ser o Sangue Precioso o “verdadeiro sangue” de Jesus Cristo. Escreveu,
em 1891, um relato que intitulou “Milagres de Joaseiro” e publicou em
diversos jornais no Brasil e na Europa, com o fim de propalar os “fatos
extraordinários” e buscar apoiadores para a “causa do Juazeiro”31.

Além do dom da escrita, Marrocos possuía uma audácia que


em alguns momentos supera a do padre Cícero. Desde 1889, o jornalista
tomara para si a missão de divulgar os fenômenos do Juazeiro, e mais,
de buscar ele mesmo provas que atestassem ser o Sangue Precioso o
“verdadeiro sangue” de Jesus Cristo. Em agosto de 1891, portanto, antes
da chegada da primeira Comissão Episcopal, ele começou a escrever
para padres e bispos de todo o país, narrando e pedindo opinião sobre
a ocorrência dos fenômenos e, principalmente, sobre o sangramento
da hóstia, a fim de construir um documento de defesa dos pretensos
milagres32.

30 Não entraremos no mérito da questão, pois não é o objetivo do artigo. Há uma


vasta bibliografia sobre o tema e parte dela pode ser encontrada nas referências deste
trabalho. Sobre a documentação, ver: Decreta Universa, Feria IV - Die 4 Aprilis 1894,
Decreti, Archivio della Congregazioni per la Dottrina della Fede, Vaticano, Roma; Ver
também: Carta de Dom Joaquim José Vieira ao Internúncio Apostólico D. Girolamo Gotti,
de 03.08.1894, sobre a recepção dos Decretos da Santa Sé e a escrita da Pastoral de 1894.
Busta 76, Fasc. 369, Doc. 19, Archivio Segreto Vaticano, Roma.
31 Alguns deles: Estado do Ceará, de Fortaleza, Ceará; Diário de Pernambuco, A
Província e Era Nova, de Recife, Pernambuco; Novo Mensageiro de Lisboa; A Palavra da
cidade do Porto; País do Rio de Janeiro (?).
32 Posteriormente, esse documento foi publicado no Jornal A Província de Recife,
em 3 de setembro de 1893, com o título: “Os milagres de Juazeiro. Sua Divina realidade.

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“Dos mortos, ou se fala bem ou não se fala”:
um ensaio biográfico sobre José Marrocos (Ceará, 1842-1910)

Entre alguns de seus correspondentes estavam D. Antônio


Cândido de Alvarenga (1836-1903), bispo do Maranhão; D. Joaquim
Arcoverde (1850-1930), bispo do Pernambuco; D. Jerônimo Tomé
da Silva (1849-1924), bispo do Pará; e o padre João Chanavat (1840-
1899), reitor do Seminário dos Lazaristas em Mariana, ou seja, alguns
dos mais influentes e poderosos eclesiásticos daquele momento, todos
ordenados sob o espírito reformador ultramontano que chegou ao Brasil
com os lazaristas33. Não temos muitas informações sobre as estratégias
traçadas por Marrocos para chegar a esses bispos, mas sabemos que
ele era levado a sério, na medida em que suas cartas eram respondidas,
ainda que viessem com ressalvas e críticas ao seu comportamento em
relação ao bispo cearense.

Na carta (como mesmo texto, mudando somente o destinatário)


enviada a diversos sacerdotes e bispos, Marrocos se apresentava como
“jornalista católico”, explicava (a partir de seu ponto de vista, é claro) o

Uma Reclamação ao reverendo Bispo diocesano”. O original possui 71 páginas escritas de


próprio punho por José Marrocos e está arquivado no Departamento Histórico da Cúria
Diocesana do Crato (CRB: 04, 139), mas possui um erro: a pessoa que arquivou anotou
que a data do documento era 5 de agosto de 1891. No entanto, Marrocos faz alusão no
texto à suspensão do padre Cícero “há mais de um ano”, tendo o padre sido suspenso
em agosto de 1892. Acredito que a carta-reclamação tenha sido finalizada em agosto de
1893 e então publicada em setembro.
33 Entre 1891 e 1892, ano da realização do primeiro inquérito, temos conhecimento
sobre seis consultas a bispos de todo o Brasil, sobre o fenômeno eucarístico, com o
intuito de obter respostas favoráveis ao evento de Juazeiro. Do que temos em nosso
acervo documental: a) Respostas a Marrocos: Dom Antônio, 28.08.1891, Maranhão;
Comissário Episcopal (?), 12.10.1891; padre João Chanavat, 20.10.1891, Mariana –
MG; Dom Jerônimo, 20.10.1891, Pará; Dom Tomaz, 25.11.1891, Guarda; Dom Joaquim
Arcoverde, 27.11.1891, Pernambuco; Cônego José Marcolino Bittencourt, 20.10.1891,
Porto Alegre – RS; Monsenhor Vicente Ferreira, 16.01.1892, Porto Alegre – RS. Ver, entre
outras: Carta de José J. T. de Marrocos para D. Antonio Cândido Alvarenga em 28.081891.
Pasta 33, Arquivo dos Salesianos.

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“Dos mortos, ou se fala bem ou não se fala”:
um ensaio biográfico sobre José Marrocos (Ceará, 1842-1910)

que acontecia no Juazeiro e solicitava resposta a três questões:


1ª. Segundo o Concílio Tridentino (Sessão 13, cap.
3), logo depois da consagração fica existindo debaixo
das espécies sacramentais o Corpo, o Sangue e
a Alma de Jesus Cristo e existe mesmo até a sua
própria Divindade por causa daquela sua admirável
união hipostática com o Corpo e a Alma?

2ª Si Jesus Cristo mesmo existe Deus e Homem nesse


Sacramento, assim (conforme ensina São Thomaz)
ele pode para confirmar a fé católica sobre sua
presença real no mesmo Sacramento tornar visível
aos olhos humanos o seu Corpo, o seu sangue,
reproduzindo a si mesmo, como na ultima ceia?

3ª Si, nesse sacramento, como no mistério da


Encarnação do Verbo Divino, com que se acha
intimamente ligado; tudo é sobrenatural e
miraculoso – o Sangue, em que se tem visto tantas
vezes transformar-se na Igreja do Juazeiro (Ceará) a
hóstia consagrada, conservando-se parte da espécie,
é e pode ser o Sangue de Jesus Cristo, como já se viu
em Bolsena no pontificado de Urbano IV, em Paris
em 1290 e ainda em outras partes?34

Como percebemos, as perguntas não eram diretamente


sobre os fatos de Juazeiro, mas especificamente sobre um fenômeno:
a transubstanciação eucarística. O intuito de Marrocos era se armar de
argumentos contra a Decisão Interlocutória do bispo que dizia que o
sangue das hóstias consumidas por Maria de Araújo não era nem podia
ser o sangue de Cristo.

É com esse espírito que Marrocos se dirige à Comissão

34 DHDPG/ SAL: Pasta33. Carta de José Marrocos a D. Antônio, bispo do Maranhão


em 28.08.1891.

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“Dos mortos, ou se fala bem ou não se fala”:
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Episcopal e apresenta seu depoimento escrito. Nesse sentido, somos


surpreendidos tanto pela ousadia dele quanto pela inércia dos membros
da Comissão, que em nenhum momento questionam a validade do
depoimento ou fazem perguntas, aceitando passivamente o relato como
um testemunho que seria anexado no primeiro inquérito.

Como é de se esperar, o texto defende a hipótese do milagre:


“este fato [é] maravilhoso, extraordinário, sobrenatural, divino”, e
continua, a prova do milagre seria o fato de os fenômenos não cessarem
de ocorrer desde 1889, atraindo “a curiosidade do homem vulgar e
a investigação do homem curioso, a objeção do cético e o exame da
ciência”35. É importante lembrar que, após o primeiro sangramento, em
março de 1889, a hóstia continuou a sangrar todas as quartas e sextas-
feiras e não só pelas mãos do padre Cícero, mas também com outros
sacerdotes e depois com os padres da Comissão, fato que já contraria
uma historiografia concentrada na personagem e nas ações do padre
Cícero.

Continuando sua narração, Marrocos fala sobre a relação que


possui com Cícero, seu “amigo mais próximo, os laços de sangue, as
relações desde a infância, o coleguismo dos bancos escolares, estreitado
pela vizinhança de nossas moradias, a perda de nossos pais”36, e enfatiza
como o sacerdote tentou esconder os fenômenos que aconteciam com
Maria de Araújo, mas que acabaram saindo do controle: “o segredo […]
tornava-se uma revelação que repercutia ao longe, e de longe trazia
romeiros que chegavam ao Juazeiro perguntando aonde [sic] estava o

35 Depoimento de José Marrocos em 12.10.1891 in “Cópia autêntica…”, p. 67.


36 Idem.

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“Dos mortos, ou se fala bem ou não se fala”:
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Precioso Sangue que tinham vindo adorar”37.

Essa referência ao esforço do padre Cícero em manter os


fenômenos em segredo é relevante, pois uma das reclamações da
Diocese dizia respeito à popularidade dos fenômenos e ao estímulo
dado às peregrinações. Para Marrocos, é como se as romarias fossem
algo “natural” dado ao “extraordinário” dos acontecimentos: “[…] não
obstante o padre Cícero ter guardado toda a reserva sobre tão mirífico
acontecimento, contudo foi ele de alguma sorte sempre divulgado
pelas pessoas comparecentes à mesa de comunhão e que dela foram
testemunhas presenciais”38.

O Caderno, que citamos anteriormente, é uma fonte importante,


visto que alguns jornais nos quais ele publicou não existem mais nem
foram arquivados. Também algumas das cartas transcritas se perderam
nos arquivos das Dioceses (do Crato e de Fortaleza), como, por exemplo,
a carta do Monsenhor Vicente Ferreira da Costa Pinheiro, de Porto
Alegre, que não encontramos em nenhum dos arquivos consultados.
Esse documento possui ainda transcrições de trechos da obra de São
Thomaz em latim, francês e italiano, que além de mostrar a grande
erudição de Marrocos, no fornece pistas sobre as obras que foram
utilizadas para construir uma defesa dos “milagres” e nos dá indícios da
relação existente entre ele e Dom Joaquim.

Marrocos ainda informou que os fenômenos foram divulgados


no Diário do Comércio da Corte, em 19 de agosto de 1889, e, logo
em seguida, no Diário de Pernambuco, em 29 do mesmo mês. Ora,

37 Idem.
38 Idem, p. 68.

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“Dos mortos, ou se fala bem ou não se fala”:
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mesmo com toda a dificuldade da época, no que concerne à questão da


comunicação à distância, é de surpreender que as populações do Rio de
Janeiro e de Pernambuco tenham sido informadas sobre os fenômenos
em agosto, enquanto o bispo do Ceará ainda em novembro alegava não
saber do caso.

Para Marrocos, foi a publicidade dada aos eventos que


“estabeleceu o culto” e, neste sentido, devemos atentar para uma
questão importante: sem publicidade não haveria culto, não se instalaria
nenhuma crença. Essa também era a hipótese de Dom Joaquim, mas
Marrocos parece não entender o sentido da hierarquia e o acusa, no
mesmo depoimento, de arbitrariedade, por proibir o culto ao Sangue
Precioso. O curioso na narrativa de Marrocos é a tentativa de diminuir a
autoridade do bispo, a partir de uma suposta “autonomia” do milagre.
Para ele, se era o próprio Cristo que se manifestava no Juazeiro com seu
sangue, não haveria sentido em esperar reconhecimento da Diocese ou
mesmo da Santa Sé, pois o “reconhecimento solene de sua existência
[do milagre] teve por si um poder superior e invencível”. O depoimento
de Marrocos expressava uma completa afronta à hierarquia!

Segundo Marrocos, outra “prova” de que os fenômenos


eram milagres eram as graças alcançadas pelos devotos mediante as
promessas feitas ao Sangue e as práticas de devoção, que, segundo ele,
“partiam” do próprio povo:
Mas a alma cristã do espectador nunca pode ver
esse sangue sem sentir-se penetrada de respeito e
comovida até a efusão das lágrimas! Jamais ninguém
passou por diante dele, que não genuflectasse [sic],
que não beijasse o chão, que não orasse e muitos

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“Dos mortos, ou se fala bem ou não se fala”:
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tiravam o calçado, como Moisés no lugar santo39.

Algumas décadas antes, entre 1868 e 1870, Marrocos teria feito


o mesmo esforço para validar os milagres das águas curativas do padre
Ibiapina, como vimos no capítulo anterior. Nesse sentido, conjeturamos
que há, para ele, uma “consciência” de que, se o povo crê e essa crença
é validada pelas “graças alcançadas”, não há porque duvidar.

Por outro lado, o processo de significação que Marrocos


pretende dar aos eventos de 1889 confronta os caminhos eclesiásticos
pelos quais qualquer fenômeno que se pretende “milagre” deve passar.
Aviva-se aí, como ressalta Michel de Certeau, “uma diferença (tida como
intolerável) entre a consciência religiosa dos cristãos e as representações
ideológicas ou institucionais da sua fé” (2007, p. 134. Grifos no original).
A noção de crença proposta por Certeau, na qual são consideradas
as relações de enunciação e investimento feitas pelas pessoas em
determinado objeto ou sujeito, nos ajuda a pensar o relato de Marrocos
e sua “cegueira” com relação às normas da Igreja, apesar de ele se
declarar um fiel católico.

Essa desagregação entre o sentimento de crença e a doutrina


oficial ganha contornos muito evidentes no caso de Juazeiro, na medida
em que a experiência do milagre confronta a instituição. No entanto,
diferentemente do Pe. Cícero, Marrocos parecia ter uma devoção
exacerbada ao bispo cearense que foi rompida com a publicação da
Decisão Interlocutória da qual falamos acima. Em um artigo intitulado
Os milagres de Joaseiro – Sua divina realidade – Uma reclamação ao

39 Idem, p. 69.

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“Dos mortos, ou se fala bem ou não se fala”:
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reverendo Bispo Diocesano, datado de 05 de agosto de 1891 e publicado


no jornal A Província de Recife, em 3 de setembro de 1893, no qual
José Marrocos alude a vários momentos em que Dom Joaquim teria lhe
“socorrido”.

Referindo-se a si próprio como “um obscuro diocesano”, talvez


em sinal de modéstia e humildade, ele relembra os momentos em
que o bispo veio em seu auxílio, quando, por exemplo, Dom Joaquim
testemunhou a seu favor no processo em que foi acusado de roubar
escravos; outro momento foi quando o bispo se dignou a comparecer
a um jantar em honra da libertação dos escravos no Ceará, “primeira
terra e primeira diocese livre do Brasil”, em 1884; lembrou ainda o apoio
do bispo à petição de uma verba para construção de uma capela no
cemitério dos coléricos e a concessão de uma imagem do Santíssimo
Sacramento para a Capela de Nossa Senhora das Dores do Juazeiro. Com
uma retórica inigualável, José Marrocos é um narrador erudito e poético:
Eis, pois, que pela mesma avenida dessas relações
que nunca estremeceram, nem arrefeceram, porque
nunca visaram outro fim senão o beneficiamento
do homem e a glória de Deus – eu venho hoje
confrangido pelos males e pelas desolações da
religião e da pátria, meu venerando pontífice, apelar
para o que a alma de um bispo tem de justiça e de
misericórdia, de grandeza e de bondade. [...] Ah! Meu
venerando pontífice, que quadro sombrio, pavoroso
e desolador vai ver o olho paternal de V. Ex. Revma!
[...] uma pobre virgem arrancada ao travesseiro de
sua mãe agonizante [refere-se à Maria de Araújo], o
tribunal da penitência dificultado e proibido mesmo
no Juazeiro às esposas do Senhor [as outras beatas?],
um povo inteiro enxotado e corrido para fora da fé
e da Igreja católica, o seu capelão despojado do
sacerdócio de Jesus Cristo e amordaçado para não

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dizer a palavra da salvação, que Deus lhe confiou


para a alma do povo que vem procurá-lo de todas
as partes40.

Para Marrocos, o bispo não deu oportunidade aos crentes


nos milagres de fazer uma defesa direta do caso, por isso a insistência,
através dos jornais, em defender os milagres e o julgamento da “causa”
pela Santa Sé. Ele lutou veementemente contra a Decisão interlocutória
do bispo Dom Joaquim, e foi ali, provavelmente, que as boas relações
entre os dois se encerraram. Marrocos acusou o bispo de condenar os
milagres antes mesmo de um julgamento, tirando, assim, a possibilidade
de se provar o milagre:
E, com efeito, em qualquer processo civil, criminal,
eclesiástico, primeiro que tudo trata-se de
estabelecer o fato e depois de conformidade com
as provas é que se dá a primeira sentença que versa
sobre a existência, a procedência ou a improcedência
do mesmo fato. Mas no processo de verificação do
grande milagre do Juazeiro, deixou logo imperiosa
interlocutória decidindo que o sangue do corpo
eucarístico não era e nem podia ser do Nosso Senhor
Jesus Cristo [...]41.

O que pode parecer uma atitude deliberada de manchar


a reputação do bispo se configurava também em uma tática de
divulgação dos fenômenos, uma vez que Marrocos buscava aliados que
confirmassem suas proposições. Se para o bispo não haveria dúvidas de
que o sangue nas hóstias não era o sangue de Cristo (apesar de ele não

40 Caderno Marrocos, p. 01-02: Artigo intitulado Os milagres de Joazeiro – Sua


divina realidade – Uma reclamação ao reverendo Bispo Diocesano, publicado no jornal A
província, de Recife, em 03.09.1893. DHDPG.
41 Idem.

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responder de onde provinha o sangue), para José Marrocos, o sangue


não só era de Cristo como indicava a Sua Segunda Vinda ao mundo.

José Marrocos lutou em duas frentes: junto à população


propagou e defendeu os milagres e tratou de arregimentar seguidores
para o Sangue Precioso; e, através dos jornais,empreendeu uma
ferrenha discussão teológica com bispos de várias Dioceses brasileiras.
Além disso, o jornalista também foi acusado de ter roubado os panos
manchados de sangue de dentro do sacrário da Igreja de N. S. das Dores:
Que se todo o povo desta cidade atribui o roubo
deles a José Marrocos e dizem que só ele era capaz
de semelhante atentado. Quando se fez a segunda
ou terceira experiência nas comunhões [de Maria de
Araújo], sabendo que não deram resultado algum,
calculou talvez que seriam destruídos os panos, e
então tratou de roubá-los eis o que geralmente se
pensa. Se este homem que é um verdadeiro gênio do
mal aqui não estivesse desde o começo da questão
do Juazeiro, as coisas teriam tomado outro caminho
[…]42.

Para José Marrocos, considerado por Dom Joaquim como o


“instrumento mais poderoso de que se serviu Satanás para lançar o
ridículo sobre nossa religião”43,era inegável que os fenômenos não só
eram “milagrosos” como o sangue que brotava das hóstias era mesmo
o sangue do próprio Jesus Cristo. Diante disso, a “proibição Diocesana
desapareceu [...] e anulou-se mesmo diante desse poder que pisa por
cima das duas forças invencíveis deste mundo: o poder da autoridade

42 DHDPG/CRA 04,07: Carta do padre Alexandrino de Alencar a D. Joaquim Vieira


de 28.06.1892.
43 Carta de D. Joaquim Vieira ao padre Alexandrino de Alencar de 08.08.1892 In
“Documentário”, DHDPG.

105 Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 8, 2015 ISSN: 1677-9460


“Dos mortos, ou se fala bem ou não se fala”:
um ensaio biográfico sobre José Marrocos (Ceará, 1842-1910)

que manda e a submissão do súdito que obedece”44.

Sua atuação seria objeto de disputas entre dois padres


memorialistas da região do Cariri: os padres Antônio Gomes de Araújo
(1900-1989) e Azarias Sobreira (1894-1974). Em seu livro O civilizador do
Cariri (1955), o padre Gomes de Araújo fez uma menção à atuação de José
Marrocos com relação aos supostos milagres de 1889, considerando-o
como um “burlão”, e afirmava ainda: ao lado do padre Cícero e da beata
Maria de Araújo, ele formava o trio de embusteiros que conseguira
produzir artificialmente o sangue que brotara nas comunhões da beata
entre 1889 e 1891.

Contrário a essa proposição, o padre Azarias Sobreira, que


inclusive havia sido professor de Gomes de Araújo, escreve, em setembro
de 1955, um manuscrito intitulado Em defesa de um abolicionista, que
visava justamente defender José Marrocos da pecha de embusteiro e
“fabricante de milagres”:
Aconteceu, porém, que, da página 24 por diante [do
Civilizador do Cariri], o autor mudando de rumo,
passa a ocupar-se, até o fim, de José Joaquim Telles
de Marrocos, inolvidável abolicionista, educador e
jornalista cearense. E não para apontá-lo ao apreço
da posteridade, e sim, para denegrecer-lhe [sic] a
memória (Sobreira, 1956, p. 69).

Em seguida, surge um extenso artigo intitulado O Apostolado


do Embuste, publicado na Revista Itaytera, assinado pelo mesmo Gomes
de Araújo, desenvolvendo a ideia aventada no texto citado, o Civilizador

44 Depoimento de José J. T. de Marrocos de 12.10.1891 In “Cópia autêntica...”,p.


68.

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“Dos mortos, ou se fala bem ou não se fala”:
um ensaio biográfico sobre José Marrocos (Ceará, 1842-1910)

do Cariri, agora com intenção de responder ao padre Azarias45. Nele,


Gomes de Araújo defende que José Marrocos possuía um “livro mágico”
ou “livro de fazer sangue” – um livro de química francês intitulado
Formulaire– encontrado entre seus bens após sua morte. Para o
autor, a prova irrefutável de que o sangue das hóstias era produzido
artificialmente:
[...] a solerte Maria de Araújo, o ‘instrumento do poder
divino’, de José Marrocos (caluniava a Divindade,
pois a atriz era instrumento de poder dele mesmo),
usou processos químicos no embuste do suposto
ensanguentamento sobrenatural da partícula-burla,
de origem estranha àquela do mistério sacerdotal a
qual ela consumiu antes de usar a partícula-burla,
conduzida esta, ocultamente e manobrada por trás
do manto e dos lábios cerrados (Araújo, 1956, p. 18).

O padre Azarias, apesar de admirador do Padre Cícero46, tinha


sido secretário do primeiro bispo do Crato, Dom Quintino Rodrigues, e
manteve uma atitude razoavelmente dúbia em seu texto. Ele não afirma
nem nega a veracidade dos fenômenos, deixando que o leitor tire suas
conclusões, afinal, diz ele, citando Virgílio: “De mortius aut bene aut
nihil” (“Dos mortos, ou se fala bem ou não se fala”). No entanto, ele
empreende, como o próprio título do livro sugeria, uma defesa de José
Marrocos.

É relevante, por exemplo, que o padre Azarias Sobreira tenha

45 A Revista Itaytera foi uma publicação anual do Instituto Cultural do Cariri nos
anos 1950/60.
46 Padre Cícero era seu padrinho de batismo e, posteriormente, o padre Azarias
escreveu um livro chamado O Patriarca do Juazeiro, reeditado recentemente por ocasião
das comemorações pelo Centenário do Juazeiro.

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“Dos mortos, ou se fala bem ou não se fala”:
um ensaio biográfico sobre José Marrocos (Ceará, 1842-1910)

nomeado seu livro, Em defesa de um abolicionista, destacando uma


atividade exaltadora do aspecto social e político– e não religioso – da
vida de Marrocos: o abolicionismo. Tentando evitar polêmicas com a
Diocese do Crato, na qual o bispo rejeitava os fenômenos de Juazeiro
como milagres, o padre Azarias se esforça por qualificar José Marrocos
a partir de outros depoentes de confiança e que gozavam de boa
reputação. Azarias argumentava que Marrocos teria adquirido o livro
francês porque, além de estudioso, queria comprovar que o sangue que
brotava das hóstias não era “sangue de galinha ou de anilina”, como
afirmava Gomes de Araújo.

Outro acontecimento que alimentou o debate entre os dois


padres dizia respeito ao roubo dos panos manchados de sangue da
Matriz de Nossa Senhora da Penha, no Crato. Na época, em 1892, o padre
Alexandrino de Alencar, pároco do Crato, havia guardado os referidos
panos no sacrário da igreja, por ordem do bispo Dom Joaquim. Em fins
de abril, eles sumiram misteriosamente do Sacrário. O roubo foi referido
pela primeira vez no dia 22 de abril de 1892, em carta que infelizmente
se perdeu, ou foi destruída, do arquivo do bispo Dom Joaquim (sabemos
dela através da carta de 2 de maio). Supunha-se que o roubo teria
acontecido na noite anterior:
Cumpre-me afirmar a V.Exa. que todas as precauções
foram tomadas no intuito de evitar o conhecimento
do lugar em que os panos se achavam. Mas a retirada
do caixão que se achava na Capela do Juazeiro,
embora fosse feita à meia noite e colocada na
Capela desta Matriz, muito antes do dia amanhecer,
despertou a atenção dos fanáticos que naturalmente
se puseram a fazer pesquisas a fim de conhecer o
lugar em que se achavam. [...] A chave nunca saiu
de meu poder. Verifiquei ter havido o emprego de

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“Dos mortos, ou se fala bem ou não se fala”:
um ensaio biográfico sobre José Marrocos (Ceará, 1842-1910)

chave falsa, por que encontrei vestígio de cera em


torno do buraco da fechadura no sacrário47.

As suspeitas recaíram sobre o jornalista José Marrocos, que


chegou a ser referido pelo bispo como o “principal instrumento do
qual se serviu satanás para lançar o ridículo sobre nossa religião”48.
José Marrocos havia se manifestado abertamente contra a execução
do segundo inquérito, pois estava convencido de que a causa já estava
provada e só era necessário que a documentação fosse mandada a
Roma para ser chancelada pelo Papa, uma atitude clara de desrespeito
ao bispo.

Segundo o padre Alexandrino, era de opinião geral que somente


José Marrocos poderia ter executado o plano de roubo dos panos:
Quando se fez a segunda ou terceira experiência nas
comunhões [de Maria de Araújo], sabendo que não
deram resultado algum, calculou talvez que seriam
destruídos os panos, e então tratou de roubá-los
eis o que geralmente se pensa. Se este homem que
é um verdadeiro gênio do mal aqui não estivesse
desde o começo da questão do Juazeiro, as coisas
teriam tomado outro caminho49.

José Marrocos ainda seria citado outras vezes na


correspondência do padre Alexandrino, principalmente por divulgar nos
jornais a ocorrência dos fenômenos, mas nunca ficou provado que ele

47 DHDPG/CRA 04,04. Carta do Pe. Alexandrino de Alencar a D. Joaquim J. Vieira


em 02.05.1892.
48 Carta de D. Joaquim Vieira ao Pe. Alexandrino de Alencar de 08.08.1892 in
“Documentário”, DHDPG..
49 DHDPG/CRA 04,07: Carta do Pe. Alexandrino de Alencar a D. Joaquim Vieira de
28.06.1892.

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“Dos mortos, ou se fala bem ou não se fala”:
um ensaio biográfico sobre José Marrocos (Ceará, 1842-1910)

foi o autor do roubo50.

Sobre a denúncia enfatizada por Gomes de Araújo, o padre


Azarias argumentou que Marrocos teria roubado os paninhos por sua
crença nos supostos milagres: “simplesmente, a convicção em que
estava, e em que talvez haja morrido, de ser a franca origem sobrenatural
e divina o sangue aparecido nas hóstias recebidas por Maria de Araújo”
(Sobreira, 1856, p. 77-78).Mas, nos perguntamos, com que objetivo?
Porque Marrocos se daria ao trabalho de “criar” um milagre que
envolvia tantas pessoas e estratagemas complicados de convencimento,
não só da população, mas da Igreja de um modo geral, isto é, padres,
bispos e até a Santa Sé? Para Gomes de Araújo, três motivos podiam ser
aventados:
José Marrocos teria tido em vista a projeção social
do Padre Cícero e Juazeiro e, dentro dessa paisagem,
o seu próprio destaque. Outros acham que ele agira
inspirado no jansenismo de que teria sido inquinado.
Ou ainda pelo ressentimento que lhe ficara, da saída
forçada do Seminário. Achava oportunidade para
desforrar-se da autoridade Eclesiástica. Julgo que o
inspiraram, os três motivos, com que a prevalência
do primeiro (1956, p. 21).

Retomando a argumentação do padre Azarias sobre a crença


inabalável de José Marrocos no que diz respeito aos milagres, nos
apropriamos do conceito que Michel de Certeau chama de “a fraqueza

50 Muitos anos mais tarde, em 1910, quando Marrocos faleceu, foram encontrados
alguns panos ensanguentados em sua biblioteca e desconfiou-se que a teoria de
Alexandrino era correta. É importante, entretanto, levarmos em conta também a
quantidade de panos que foram manchados pelos sangramentos nas hóstias consumidas
por Maria de Araújo, bem como por suas crucificações e estigmas. Podemos aventar que
existia uma imensa quantidade de panos, inclusive espalhados entre a população.

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“Dos mortos, ou se fala bem ou não se fala”:
um ensaio biográfico sobre José Marrocos (Ceará, 1842-1910)

do crer”:
Porque la vida religiosa no recibe su justificación
del afuera. No tiene una utilidad social por razón de
ser ni un conformismo, como si debiera estar bien
‘adaptada’ fundiéndose con la pared. Tampoco es
simples consecuencia de una doctrina. Lo que la
define no es el beneficio de la sociedad o el provecho
que de ella extraerá el religioso; sino un acto: el acto
de creer (2006, p. 27)

Analisando os escritos de Marrocos, conjeturamos que ele era


movido pela sua crença. Além disso, Marrocos tinha consciência do valor
de sua escrita e das tramas que ele tece ao escrever para bispos e padres
de outras dioceses. Ao divulgar seus escritos e apelos em jornais, denota
a invenção deliberada de um discurso que visava convencer o outro da
validade de uma causa.

Nesse sentido, a experiência de Marrocos como filho de um


padre, como religioso e como crente se transformará em linguagem
que tenta transmitir o milagre: a “experiência experienciada, como
vivida, permanece privada, mas seu sentido, a sua significação torna-
se pública” (Ricoeur, 1976, p. 28).Ambos os padres, Araújo e Sobreira,
analisam Marrocos a partir de um determinado ponto de vista e de uma
determinada experiência; não há vencedores nesta disputa. Ambos
constroem imagens de Marrocos que visam explicar uma experiência
que por si não pode ser narrada: e experiência da fé.

Uma experiência que o próprio Marrocos, apesar de toda sua


erudição, não conseguira exprimir: Quis talia fando tempera a lacrymis?,
a frase latina que ele cita várias vezes em seu texto, extraída da Eneida
de Virgílio, diz: “Quem, ouvindo isso, conterá as lágrimas?”, traduz um

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“Dos mortos, ou se fala bem ou não se fala”:
um ensaio biográfico sobre José Marrocos (Ceará, 1842-1910)

dos principais fundamentos da mística.

José Marrocos faleceu em 14 de agosto de 1910 de causas


misteriosas. O jornal O rebate, que noticiou sua morte e publicou as
exéquias em 28 do mesmo mês, afirmava que Marrocos teria sucumbido
em razão de uma pneumonia:
Acometido de uma pneumonia aos 12, faleceu
aos 14 do corrente à 1 ½ da tarde o ilustre homem
de leituras, José Joaquim Telles de Marrocos. Na
manhã desse dia tentou vestir-se para, de preceito,
ouvir a Missa. [...] E mais tarde... meia hora antes
de seu trespasso que foi um colapso, mudou as
roupas e foi descansar numa rede em um dos
compartimentos do colégio. Pediu uma chávena de
café, conferenciou com o Padre Cícero e depois de
terminada a conferência, em palestra com outros,
sem que ninguém o esperasse, entrou em agonia e
morreu. [...] Pela madrugada foi encerrado no caixão
que era de casimira preta e galões dourados51.

No entanto, circulou pela cidade o boato de que Marrocos teria


sido envenenado pelo então braço direito do Padre Cicero, o Dr. Floro
Bartolomeu da Costa (1876-1926). Os motivos seriam as constantes
disputas ideológicas entre Floro e Marrocos. A morte de Marrocos, além
de repentina e misteriosa, marcou o fim de uma fase importante na
história do povoado de Juazeiro. No ano seguinte, em 1911, Juazeiro
se libertaria do jugo da cidade do Crato. Marrocos não sobreviveu
para ver sua cidade sagrada emancipada, mas seu corpo descansa no
principal cemitério da cidade, impassível, esperando também ele uma
reabilitação.

51 O Rebate, de 28.08.1910, Ano II, n° LVIII. Arquivo do Memorial, Juazeiro do


Norte, Ceará.

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“Dos mortos, ou se fala bem ou não se fala”:
um ensaio biográfico sobre José Marrocos (Ceará, 1842-1910)

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“Dos mortos, ou se fala bem ou não se fala”:
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vida e sua atuação na campanha abolicionista e na Proclamação da República,
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Artigo submetido em: 07/05/2013


Artigo aprovado para publicação: 13/02/2014

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Juazeiro sem Padre Cícero:
cotidiano, memória e história no caderno
de memórias de Agostinho Balmes Odísio
Amanda Teixeira da Silva1

Resumo
O objetivo deste artigo é analisar o caderno de memórias de Agostinho Balmes
Odísio, escultor italiano que viveu em Juazeiro do Norte entre 1934 e 1940. Como
corre a vida após a morte de Padre Cícero? Quais são as ideias mais disseminadas
sobre Juazeiro do Norte até aquele momento? Em quais sentidos a obra de Agostinho
Odísio, escultor italiano que viveu na cidade logo após a morte de Padre Cícero, se
distancia de tais discursos centrados nas figuras de Padre Cícero, Maria de Araújo e
Floro Bartolomeu e inaugura uma nova representação sobre a cidade? O presente
trabalho discutirá algumas dessas questões.

Palavras-chave: memórias, Juazeiro do Norte, Padre Cícero, representações.

Abstract
The objective of this paper is to analyze the personal journal of Agostinho Balmes
Odísio, Italian sculptor who lived in Juazeiro between 1934 and 1940. How will
people live their lives after Father Cicero’s death? What are the most widespread
ideas about Juazeiro? In what way the work of Agostinho Odísio, Italian sculptor who
lived in the city after the death of Padre Cicero, distances itself from such discourses
centered on people like Padre Cicero, Maria de Araújo and Floro Bartolomeu and

1 Graduada em História pela Universidade Regional do Cariri – URCA. Mestre


em História pela Universidade Federal da Paraíba – UFPB. Doutoranda em História
pela Universidade Federal do Ceará – UFC. Professora do Bacharelado em História da
Universidade Federal do Cariri – UFCA. E-mail para contato: amanda.teixeira@ufca.edu.br

Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 8, 2015 ISSN: 1677-9460


Juazeiro sem Padre Cícero:
cotidiano, memória e história no caderno de memórias de Agostinho Balmes Odísio

inaugurates a new representation of the city? This paper will discuss some of these
issues.

Key words: memories, Juazeiro do Norte, Padre Cícero, representations.

Introdução
Em 1934, morre Padre Cícero. Começam, então, as especulações
dos intelectuais que escreviam sobre Juazeiro. A cidade ainda cresceria
após sua morte ou enfrentaria um momento de estagnação? O culto à
personalidade do Padre permaneceria por muito tempo ou se extinguiria
depois disso? Como passariam a viver os seguidores protegidos por ele
até aquele momento? Agostinho Balmes Odísio2 responde, a seu modo,
todas essas perguntas. Suas Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero
contêm análises políticas, sociais e culturais feitas em tom de humor
e ironia. Por vezes, Odísio parece preconceituoso, noutros momentos
surge como um sujeito que se afeiçoou à terra. É flagrante também em
sua obra a revolta relacionada ao modo como as autoridades públicas
tratam o local, embora o próprio Agostinho seja amigo das figuras mais
importantes da cidade. O presente estudo pretende tratar de tais temas
e, através deles, empreender uma viagem pela Juazeiro descrita por
Agostinho Balmes Odísio.

Em seu testamento, Padre Cícero faz um apelo:


Aproveito o ensejo para pedir a todos os moradores
desta terra, o Juazeiro, muito especialmente aos
romeiros, que depois da minha morte não se
retirem daqui nem o abandonem, que continuem
domiciliados aqui, no Juazeiro, venerando e amando

2 Escultor italiano que viveu em Juazeiro do Norte entre 1934 e 1940.

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Juazeiro sem Padre Cícero:
cotidiano, memória e história no caderno de memórias de Agostinho Balmes Odísio

sempre a Santíssima Mãe de Deus (…). Torno


extensivo este meu pedido também a todos os
meus amigos, pessoas de outros Estados e dioceses,
romeiros também da Santíssima Virgem Mãe de
Deus, isto é, que continuem a visitar o Juazeiro,
em romaria à Santíssima Virgem, como sempre o
fizeram auxiliando a manutenção do seu culto e das
instituições religiosas que aqui forem criadas (…)
(BATISTA, 1956, p. 197).

Esta pesquisa nasce do desejo de investigar a cidade de


Juazeiro no momento posterior à morte de Padre Cícero e analisar os
diferentes discursos literários produzidos sobre a localidade até então.
Existem pesquisas importantes sobre o fenômeno de Juazeiro3 e sobre
a Juazeiro contemporânea, bem como acerca das transformações no
posicionamento da Igreja diante das romarias nas últimas décadas4. É
interessante notar, contudo, que muitas obras sobre Juazeiro do Norte
se encerram em 1934, ano da morte do Padre Cícero. Os estudos mais
recentes costumam acrescentar a esse quadro uma análise da cidade
e das romarias na atualidade. Pouca atenção vem sendo dada, no
entanto, ao momento de incertezas iniciado após a morte do padrinho.
Francisco Régis Lopes Ramos lembra que “a biografia do Padre Cícero
não termina em 1934. Pelo contrário. Depois da sua morte, ele ganha
maior dimensão”. (RAMOS, 1999, p. 43). Acredito que o mesmo possa

3 Tais como os clássicos “Milagre em Joaseiro”, de Ralph Della Cava (a primeira


edição americana foi publicada em 1970), e “Juazeiro do Padre Cícero – A Terra da Mãe
de Deus”, de Luitgarde Oliveira Cavalcanti Barros (1988).
4 Recentemente surgiram novos trabalhos acadêmicos sobre o milagre e as
romarias. É possível mencionar contribuições inovadoras, ambas publicadas em 2011,
como “Para onde sopra o vento”, de Renata Marinho Paz e “O Teatro de Deus”, de
Edianne dos Santos Nobre.

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Juazeiro sem Padre Cícero:
cotidiano, memória e história no caderno de memórias de Agostinho Balmes Odísio

ser dito a respeito de Juazeiro do Norte.

O objetivo deste artigo é analisar o caderno de memórias de


Agostinho Balmes Odísio, escultor italiano que viveu em Juazeiro do
Norte entre 1934 e 1940. Os escritos dele se configuram como um
gênero híbrido de diário, caderno de memórias, obra literária e relato
histórico. O autor afirma, logo no início de seu texto, que não pretende
desenvolver um trabalho literário, mas apenas fixar impressões sobre a
cidade:
Estas memorias, escriptas ao correr da penna, não
tem valor literario, porque nelas falta forma, língua
e gramatica. Quem aqui escreveu é um simples
trabalhador o qual só procuró fixar impressões
e verdades. Quem quer leia e não proteste
depois, porque lealmente avisei. O autor, illustre
desconhecido (ODÍSIO, 2006, p. s/n).

Agostinho Odísio, “ilustre desconhecido”, apresenta-se como


um sujeito comum e defende que suas memórias não são literatura5.
É interessante notar que certos estudiosos afirmam, do mesmo modo,
que trabalhos de cunho autobiográfico não chegam a ter valor literário.
O presente estudo sustenta, entretanto, que as memórias de Odísio têm
valor literário e histórico, pois permitem que conheçamos, através do
olhar de um estrangeiro, a vida e o cotidiano de Juazeiro do Norte no
início do século XX.

O caderno de memórias de Agostinho Balmes Odísio foi


publicado em 2006 pelo Museu do Ceará. A obra recebeu uma edição
fac-similar que preserva elementos essenciais do escrito, tais como

5 Agostinho Odísio parece ter, no entanto, bastante intimidade com o trabalho


literário. Chegou inclusive a escrever peças teatrais. Cf. SIQUEIRA, 2011.

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Juazeiro sem Padre Cícero:
cotidiano, memória e história no caderno de memórias de Agostinho Balmes Odísio

similaridades com o suporte original, erros gramaticais, fotografias


e a própria caligrafia do autor. A obra de Agostinho foi prefaciada por
Francisco Régis Lopes Ramos, o qual afirma, com propriedade, que
Qualquer conhecedor do assunto encontrará aí
imprecisões em datas e fatos, além dos estereótipos
que normalmente são encontrados em posturas
racionalistas. Por outro lado, encontrar-se-á,
também, uma infinidade de detalhes sobre uma
história do cotidiano, das imagens e das religiosidades
(RAMOS apud ODÍSIO, 2006, p. 13).

Nos escritos de Agostinho Odísio aparecem acontecimentos


vividos pessoalmente e também aqueles vividos por tabela, ou seja,
“acontecimentos vividos pelo grupo ou pela coletividade à qual a
pessoa sente pertencer” (POLLAK, 1992, p. 201). Talvez por esse motivo
existam tantas imprecisões. O pensamento de Pollak será essencial para
compreender alguns aspectos das memórias de Odísio (profundamente
marcadas por eventos que nem sempre foram vivenciados pelo autor,
mas que se acoplaram à sua memória por terem adquirido profundo
significado em seu imaginário).

Juazeiro já foi vista como cidade de fanáticos ou como


campo fértil da cultura e da religiosidade popular. Há quem estude o
crescimento econômico da cidade e sua centralidade no fenômeno de
metropolização do Cariri. O Padre Cícero, personagem importante para
compreender a região, já sofreu acusações que vão da proteção aos
cangaceiros à ambição política desmesurada. Outros, ainda, estudam o
fenômeno de Juazeiro e a importância do religioso, de seus beatos e
beatas e dos romeiros na formação da cidade. São desconhecidas, no
entanto, pesquisas que deem conta do cotidiano da cidade na década

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Juazeiro sem Padre Cícero:
cotidiano, memória e história no caderno de memórias de Agostinho Balmes Odísio

de 1930, período de incertezas para Juazeiro do Norte.

História e escrita autorreferente


Segundo Angela de Castro Gomes, a partir da década de 1990,
o país viu surgir uma espécie de “boom de publicações de caráter
biográfico e autobiográfico” (GOMES, 2004, p. 7). A visibilidade dada
a esses escritos concernentes à memória acabou chamando a atenção
dos historiadores, que passaram a se preocupar com uma reflexão mais
aprofundada sobre o tema. O debate sobre a dimensão subjetiva dessa
documentação só pôde se dar graças às novas perspectivas teóricas e
metodológicas dos historiadores, que passaram a valorizar também as
fontes produzidas no âmbito privado. É preciso salientar, no entanto,
que esse tipo de documentação atualmente não é considerado apenas
como fonte, mas também como objeto da pesquisa histórica.

Antes de tratar sobre a necessidade de levar em conta as


especificidades de cada um dos gêneros autobiográficos, é importante
destacar que a autobiografia e as modalidades afins foram por muito
tempo banidas do cânone literário. Assim, esses “egodocumentos” foram
marginalizados e acabaram sendo escamoteados para uma espécie de
limbo situado entre a literatura, a crônica e o relato histórico. Embora
recentemente os historiadores tenham olhado para esses escritos com
mais atenção – dando destaque para a escrita epistolar –, cabe ressaltar
a importância das outras vertentes da escrita autorreferencial (tais como
diários e cadernos de memórias) de indivíduos “comuns”, assim como
de políticos e literatos.

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Para Mary Del Priore, a reabilitação da biografia está


intimamente relacionada à história social e à história cultural, pois
oferece oportunidade de fala aos diferentes atores históricos. Além
disso, de acordo com a historiadora, a partir da década de 1980, “a
biografia não era mais a de um indivíduo isolado, mas a história de uma
época vista através de um indivíduo ou de um grupo de indivíduos”
(DEL PRIORE, 2009, p. 9), desfazendo assim a oposição entre indivíduo e
sociedade, aspecto que será levado em consideração no decorrer desta
pesquisa.

O presente estudo estará atento às peculiaridades de um


documento que tem as marcas do diário pessoal, mas não chega a se
caracterizar como narrativa plenamente íntima ou autobiográfica6. De
acordo com Lejeune, os diários têm, entre outras coisas, o objetivo de
fixar o tempo. Assim, o memorialista, cronista ou diarista pretende, no
momento da escrita, “construir para si uma memória de papel, criar
arquivos do vivido, acumular vestígios, conjurar o esquecimento, dar à
vida a consistência e a continuidade que lhe faltam...” (LEJEUNE, 2008, p.
277). Além disso, o diário é um espaço de reflexão, de meditação.

Mary Del Priore lança uma questão importante em seu artigo


intitulado “Biografia: quando o indivíduo encontra a História”: “Mas,
afinal, a história conta uma história? Há 40 anos atrás a resposta seria:
não! Os historiadores profissionais invocariam o compromisso que
assumiram no século XIX de fazer valer a ciência contra a arte”. (2009, p.

6 Agostinho Balmes escreveu três diários, um sobre a Revolução Constitucionalista


(1932), outro sobre sua viagem para Juazeiro do Norte (escrito a bordo do navio
“Comandante Ripper”, em 1934) e o terceiro – objeto de estudo do presente trabalho –
sobre Juazeiro do Norte (escrito, aparentemente, entre 1934 e 1935). Cf. SIQUEIRA, 2011.

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12). Um dos objetivos deste trabalho é contar uma história, a história da


Juazeiro do Norte que enfrenta a fatalidade da morte de Padre Cícero.
As principais fontes utilizadas serão os escritos de Lourenço Filho, Floro
Bartolomeu e Agostinho Balmes Odísio.

Agostinho Odísio e seu caderno de memórias


A manutenção de um diário pessoal é geralmente uma
“atividade secreta”, que costuma se desenvolver a partir de uma nova
fase na vida daquele que escreve: uma viagem, um novo relacionamento
amoroso ou uma crise são momentos privilegiados para o início de
um diário. Do mesmo modo, existem diversos meios de terminar um
diário: a interrupção, a destruição, a releitura e a publicação são formas
destacadas por Philippe Lejeune, estudioso francês que se debruça
prioritariamente sobre o tema da autobiografia. Segundo o autor, certos
diários possuem, inclusive, fins programados: é o caso dos diários de
férias, de viagem, de trabalho ou de pesquisa. O diário de Agostinho
Balmes se insere nessa última categoria: sua duração é restrita ao tempo
em que viveu e trabalhou em Juazeiro do Norte.

A base do diário, segundo Lejeune, é a data. Para o autor, “o


diário é uma série de vestígios datados” (LEJEUNE, 2008, p. 296), que
sempre se inscreve no tempo, na duração. No entanto, o diário não
precisa ser escrito todos os dias: este tipo de prática costuma conviver
bem com irregularidades, fragmentações e pausas, e também com
continuidades e descontinuidades. O diário pode ainda ser coletivo,
público ou pessoal, servindo “sempre para construir ou exercer a
memória de seu autor” (LEJEUNE, 2008, p. 261). É preciso observar ainda

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que o diário é mais frequente entre pessoas instruídas, pois pressupõe


certo grau de alfabetização e de apreço pela leitura e pela escrita.

O diário pode possuir várias funções, dentre as quais as de


expressar, de refletir, de lembrar ou simplesmente a de escrever pelo
prazer de escrever, mas seus compromissos primordiais são com a
memória e a organização. Deve ser considerado como uma arte da
repetição e da variação, pois todos os diários possuem ritmos próprios,
trazendo elementos antigos e apresentando novidades. Esta modalidade
de Escrita de Si também costuma apresentar claramente algumas
“curvas de temperatura”. Às vezes pode-se escrever mais, noutras se
escreve menos. Apesar de conter todas essas variações, esse é um tipo
de escrita que obedece a formas rígidas e que geralmente não incorpora
correções: o rascunho é também a versão final.

Àqueles que questionam a dimensão literária do diário, Philippe


Lejeune responde:
Dizem que o diário não tem forma própria, é
vítima da facilidade, “a arte daqueles que não são
artistas” […]. Posso provar o contrário: não há arte
que obedeça restrições tão enérgicas, tão rígidas.
É uma escrita na qual todos os procedimentos
comuns à tarefa são proibidos: o diarista não pode
nem compor, nem corrigir. Deve escrever certo da
primeira vez (LEJEUNE, 2008, p. 300).

De acordo com Lejeune, a palavra “diário” parece ter surgido


no século XVIII, mas a prática tornou-se mais comum a partir do
século XIX, quando as meninas eram estimuladas a manterem diários
comumente inspecionados pelos educadores. Alguns autores também
apontam uma ligação entre o surgimento do diário e a constituição

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do individualismo moderno. A partir de então, nasce o conceito de


privacidade, a separação entre doméstico e público e, por outro lado, as
vidas de pessoas desconhecidas passam a ser valorizadas e vistas como
relevantes o bastante para sobreviverem na memória dos outros.

Se há predominância de elementos subjetivos, reflexões


psicológicas e “acontecimentos interiores” no diário íntimo, o diário
de viagem, embora não se destine necessariamente a disseminar
conhecimento, surge muitas vezes para provocar uma reflexão acerca
do trajeto percorrido, do cotidiano encontrado, do trabalho de campo
realizado e/ou da pesquisa desenvolvida. Não obstante, este tipo
de documento não deixa de se configurar como um diário pessoal.
O caderno de memórias de Agostinho Balmes é um gênero híbrido e
apresenta características do diário íntimo e do diário de viagem7, embora
as informações sejam apenas esporadicamente datadas8.

A memória e a narrativa, como se sabe, são necessárias para a


constituição da identidade, e o diário, na medida em que envolve tanto
uma quanto a outra, incorpora características desses dois elementos,
dentre as quais a seletividade, que o leva a reter apenas algumas facetas
dos dias vividos por aquele que escreve.

Os diários de viagem, assim como os diários públicos, são


considerados por alguns estudiosos como pré-diários, ou seja, como
diários que não devem ser inteiramente considerados como escritas
do eu, modalidade que veio à tona somente com o advento dos diários

7 De acordo com Calligaris (1998), os escritos autobiográficos podem participar


de mais de um gênero.
8 Nos outros dois diários de sua lavra há datação constante em cada uma das
entradas.

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íntimos. Para compreender melhor essa questão, basta considerar que


os diários públicos, de registro pessoal e de viagem são escritos com
a perspectiva de que provavelmente haverá um leitor, enquanto os
íntimos geralmente estão envoltos por uma aura de segredo. Este tem
como destinatário privilegiado o próprio escritor, mas poderá sobreviver
àquele que o escreveu e ser lido por seus sucessores. Os de viagem, por
outro lado,
[...] muito comuns entre os séculos XV e XVIII,
refletiam as viagens de caráter exploratório ou não,
trazendo informações sobre geografia específica,
terreno, possibilidade de rotas, fauna e flora, mas
também curiosidades sobre os povos nativos e a
expressão do sentimento associado a cada uma
dessas experiências (OLIVEIRA, 2002, p. 32-33).

Os tradicionais diários de viagem, na Europa do século XVII e


na América do século XIX, eram muitas vezes mantidos como souvenirs,
como lembranças possivelmente compartilhadas com pessoas que não
fizeram parte das comitivas, e até mesmo como livros de informações,
que seriam enviados como presentes a amigos e parentes. Esse gênero
de escrita autorreferencial foi comum em todo o mundo, tendo como
prováveis expoentes os diários de Charles Darwin: seu Journal of
Researches foi a base para a produção do revolucionário A Origem das
Espécies (OLIVEIRA, 2010, p. 34-35). Os diários de cientistas e naturalistas
apresentam as marcas do diário pessoal, mas devem ser considerados
preponderantemente como suportes para a memória e instrumentos
para a reflexão sobre o que foi visto nos lugares percorridos.

O caderno de memórias de Agostinho Odísio traz alguns desses


aspectos. O autor afirma nas páginas finais: “Dedico esta mais que

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humilde obra aos meus filhos, para que della tirem proveito, aquilatando
tudo quanto vale a instrução e a cultura na vida do homem, de um
nucleo, de uma nação” (ODÍSIO, 2007, p. 125), dando a entender que sua
obra teria como leitores preferenciais os próprios filhos. Dessa maneira,
Odísio poderia compartilhar com sujeitos ausentes as experiências
vividas em Juazeiro. É necessário notar, no entanto, que o autor encerra
seus escritos com a seguinte mensagem:
É hora de fechar este desconexo calhamasso o qual,
escripto literalmente ao correr da pena (priva as
correções aonde entra emocção até a gilette), não
pode ter absolutamente valor algum, sendo o seu
autor pobre operario que nunca estudó portuguez.
Os lumes para este pastel literario foram recolhidos
a fonte viva do auxilio do meu enseparavel candieiro
fumacento qual me foi fiel companheiro nas longas
noites de insonia causadas pelos pensamentos e por
= murrissocas = ferozes (companheiras ampliadas
dos nossos pernilongos) as quaes picam a sangue
sem misericordia (ODÍSIO, 2007, p. s/n).

Afirmando sua humildade e a ausência de pretensão literária,


Agostinho parece, de certa forma, imaginar que a obra será lida não
somente por seus filhos, mas também por destinatários desconhecidos
que devem ser informados sobre as condições em que escreveu tais
memórias. Ao fazer seu mea culpa admitindo que não conhecia bem o
idioma e que não fez correção alguma ao longo de seu trabalho, o autor
acaba estimulando o leitor a valorizar ainda mais o esforço de reflexão
levado a cabo por ele. A presente pesquisa pretende levar em conta tais
especificidades de seu caderno de memórias. É preciso destacar que
através de uma análise dos escritos de Agostinho Odísio será possível
conhecer um pouco melhor a cidade de Juazeiro do Norte no período

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posterior à morte de Padre Cícero.

Agostinho Odísio e a narrativa


A narrativa, que durante tanto tempo floresceu num
meio de artesão - no campo, no mar e na cidade
-, é ela própria, num certo sentido, uma forma
artesanal de comunicação. Ela não está interessada
em transmitir o “puro em si” da coisa narrada como
uma informação ou um relatório. Ela mergulha a
coisa na vida do narrador para em seguida retirá-
la dele. Assim se imprime na narrativa a marca do
narrador, como a mão do oleiro na argila do vaso
(BENJAMIN, 1994, p. 205).

O texto de Agostinho Balmes Odísio aborda a seca, a fome, as


condições de habitação dos juazeirenses, a arquitetura, o cenário urbano
e o abastecimento de água. Elenca ofícios que sustentavam os homens
simples e esclarece aspectos referentes à alimentação popular. Conduz
um passeio pela feira semanal e critica as condições de higiene da cidade.
Apresenta as possíveis diferenças entre Juazeiro e Canudos. Lembra os
problemas do analfabetismo, da dificuldade de acesso a hospitais e
descreve muitos elementos da fervorosa religiosidade popular. Odísio
ainda se debruça sobre a condição feminina, o trabalho infantil, as
peculiaridades políticas da cidade e a miséria de sua população.

Além de tudo, o autor nos traz causos, anedotas, histórias das


quais “ouviu falar” e, consequentemente, nos apresenta personagens
ilustres e anônimos que fazem parte de seu cotidiano na oficina e nas
ruas. Por fim, nos apresenta fotografias que considera representativas do
seu dia a dia e da vida em Juazeiro. O indivíduo sui generis, o estrangeiro,

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artista, intelectual, fala sobre homens comuns e descreve aquilo que é


rotineiro, repetitivo e usual na Juazeiro pós-Padre Cícero.

Agostinho Odísio, escultor estrangeiro e letrado, participa da


vida cotidiana. De acordo com Agnes Heller,
A VIDA COTIDIANA é a vida de todo o homem. Todos
a vivem, sem nenhuma exceção, qualquer que seja
seu posto na divisão de trabalho intelectual e físico.
Ninguém consegue identificar-se com sua atividade
humano-genérica a ponto de poder desligar-se
inteiramente da cotidianidade. E, ao contrário, não
há nenhum homem, por mais “insubstancial” que
seja, que viva tão somente na cotidianidade, embora
essa o absorva preponderantemente (HELLER, s/d,
p. 17).

Abordando temas até então negligenciados por aqueles que


se preocuparam em escrever sobre Juazeiro, Agostinho Odísio parece
romper com narrativas dicotômicas que viam a localidade ora como
um terreno de fanatismo e ignorância, ora como a cidade do milagre
ou a cidade do progresso. Assim, empreende uma aventura literária
sem precedentes, registrando o que viu e ouviu, discutindo as questões
que considera importantes e refletindo sobre as condições sociais dos
juazeirenses. Diferentemente de seus antecessores (e até de alguns de
seus sucessores), Odísio tem sensibilidade bastante para ultrapassar
maniqueísmos e tentar compreender a complexidade da cidade e de
seus habitantes:
[...] tão meigos e humildes e ao mesmo tempo
brutaes e ferozes si o tocam na sua crença, gente que
é digna de melhor sorte porque neles tudo é sincero,
a bondade e a violencia, productos do meio, como
o sertão, tão bom e generoso nos annos de chuva

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e tão aspero e asassino nas seccas que porem não


vencem o sertanejo o qual como o umbu sempre
conserva verde a esperança de um futuro melhor
(ODÍSIO, 2007, p. 93).

Odísio não é, no entanto, um homem fora de seu tempo. Ele


acredita, como seus contemporâneos, que o meio modifica o homem.
Crê ainda na medicina social e nas teorias raciais. Afirma que “era
natural que estes povos dos sertões, incultos e profundamente crentes,
carregassem, com o sangue das suas tres raças ancestraes, o fanatismo,
producto mestiço de tres crenças” (ODÍSIO, 2007, p. 14).

Assim, a narrativa de Odísio, que traz em si aspectos da


oralidade, do diário, do caderno de memórias, do relato de experiência
e mesmo da obra literária produzida com o objetivo de analisar
uma localidade, uma experiência e um povo, pode ser vista pelos
historiadores caririenses como uma obra tão rica quanto os escritos de
George Gardner e Freire Alemão9 sobre o Cariri. É surpreendente notar,
no entanto, que o lançamento de seu caderno de memórias tenha
passado, aparentemente, em brancas nuvens, visto que até agora são
desconhecidos trabalhos acadêmicos que utilizem sua obra como fonte10.

Esta pesquisa parte da hipótese de que Agostinho Odísio iniciou


uma nova tradição memorialística. As marcas dessa ruptura são o cuidado
em descrever cotidiano e, especialmente, o fato de não ter se detido

9 George Gardner e Freire Alemão foram viajantes que escreveram sobre o Cariri
do século XIX.
10 Aparentemente, seu caderno de memórias foi citado somente em “Cordel,
Almanaques e Horoscopos”: E(ru)dição dos folhetos populares no Juazeiro do Norte - CE
(1940-1960)”, dissertação de mestrado defendida na Universidade Estadual do Ceará por
Reinaldo Forte Carvalho.

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nos “grandes personagens” de Juazeiro do Norte (Padre Cícero, Beata


Maria de Araújo, Floro Bartolomeu), mas sim nos homens simples e em
seus hábitos e costumes. Sua obra reflete sobre problemas que afligem
a cidade, como as condições de higiene e saneamento, mas também traz
elementos pouco conhecidos, como os supostos (e peculiares) motivos
pelos quais a construção da igreja do horto teria sido paralisada11.

A análise de seus escritos deve levar em conta, entretanto, que


“vivemos em uma cultura onde a marca da subjetividade de quem fala
ou escreve constitui um argumento e uma autoridade tão fortes quanto
– senão mais fortes que – o apelo à tradição, ou à prova dos ‘fatos’”.
(CALLIGARIS, 1998, p. s/n). Dessa maneira, é importante ter em mente
que obras desse tipo conseguem muitas vezes produzir um efeito de
sinceridade que deve ser frequentemente colocado à prova.

Esta pesquisa investiga algumas questões que podem vir a ser


respondidas pela narrativa de Agostinho Odísio: Como corre a vida após a
morte de Padre Cícero? Quais são os discursos mais disseminados sobre
Juazeiro até aquele momento? Em quais sentidos a obra de Agostinho
se distancia de tais discursos e inaugura uma nova representação sobre
a cidade?

É importante levar em conta que


[...] o escrito autobiográfico implica uma cultura
na qual, por exemplo, o indivíduo (seja qual for
sua relevância social) situe sua vida ou seu destino
acima da comunidade a que ele pertence, na qual
ele conceba sua vida não como uma confirmação

11 De acordo com Odísio, as obras teriam sido paralisadas porque os trabalhadores


iniciaram um culto que tinha como pilar central a crença na santidade de um dos
membros do canteiro de obra, o “Profeta Elias”.

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das regras e dos legados da tradição, mas como


uma aventura para ser inventada. Ou ainda
uma cultura na qual importe ao indivíduo durar,
sobreviver pessoalmente na memória dos outros […]
(CALLIGARIS, 1998, p. S/n).

Agostinho Odísio representa bem tal cultura. Estrangeiro,


letrado, artista: o autor da obra aqui estudada é, em vários sentidos, um
sujeito que representa a exceção em Juazeiro do Norte. A cidade, que
anteriormente havia sido povoado de Crato, se emancipara em 1911 e
tinha apenas 23 anos de idade quando recebeu o escultor. Odísio foi o
autor de diversas imagens do padrinho que povoam a paisagem local:
o medalhão que encima a fachada do Museu Padre Cícero e a estátua
(muito querida pelos romeiros) presente no Largo do Socorro, por
exemplo, foram criados por ele12.

O caderno de memórias de Odísio traz elementos de escrita


autobiográfica e, ao mesmo tempo, de literatura sobre a cidade. A
preocupação do autor em apresentar sua nova morada leva a refletir
sobre as agruras da vida na Meca Nordestina. Seus escritos não têm
como objetivo apresentar o Padre Cícero (embora ele também se
detenha sobre o tema), a Beata Maria de Araújo ou Floro Bartolomeu. O
grande personagem de seu livro é uma cidade: Juazeiro do Norte:

12 É interessante notar que a estátua de bronze localizada na Praça Almirante


Alexandrino (construída por Laurindo Ramos) apresenta sentido peculiar para a
população de Juazeiro do Norte. De acordo com Régis Lopes, ela “transformou-se em um
dos símbolos do progresso da cidade” (RAMOS, 1999, p. 33). Desse modo, talvez seja a
única estátua de Padre Cícero responsável por surtir um “culto racionalizado” diferente
daquele culto devocional que os romeiros apresentam pela estátua do Socorro criada por
Agostinho Balmes Odísio.

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Poucos lugares, mesmo antigos, tem uma istória


como Joaseiro, istória de crimes, assaltos, roubos,
misterios, milagres e factos sobre naturaes; eu que
enteressei-me, escutando e recolhendo impressões
de toda fonte, posso garantir que um istoriador
poderia fazer obra volumosa... (ODÍSIO, 2006, p. 27).

Juazeiro, no entanto, não existiria sem Padre Cícero. Como


afirma Ralph Della Cava, “quando aí chegou o Padre Cícero, Joaseiro não
passava de um insignificante lugarejo que se situava na extremidade
nordeste do município do Crato” (DELLA CAVA, 1985, p. 41). A partir
de 1889, quando teria ocorrido a transformação da hóstia em sangue,
o local começou a ser visitado por romeiros que saíam de suas casas,
de suas cidades e de seus estados natais para conhecer o Padre Cícero,
a Beata Maria de Araújo e, principalmente, para ter contato com os
paninhos que teriam entrado em contato com o sangue sagrado.

O milagre transformou muitas vidas, mas também acabou


gerando conflitos religiosos e políticos. Renata Marinho Paz defende que
Para além de uma querela entre o bispo e o
sacerdote, a questão religiosa de Juazeiro traduz,
em muitos aspectos, um conflito inerente ao
processo de romanização do catolicismo brasileiro, a
saber, o confronto entre um modelo de catolicismo
fundado na obediência, na hierarquia, na doutrina
e no universalismo da igreja, e do outro as crenças
e práticas da religiosidade católica popular, onde
o clero e os sacramentos possuem importância
secundária na vivência religiosa cotidiana do fiel,
e onde a devoção afetizada aos santos e almas e o
apego às graças e milagres são alguns dos aspectos
centrais (PAZ, 2011, p. 132).

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Em meio a este conflito, os personagens centrais do milagre


foram perseguidos: Padre Cícero teve suas ordens suspensas, a Beata
Maria de Araújo passou a viver confinada na Casa de Caridade, os
paninhos ensanguentados foram destruídos. Aqueles que acreditavam
nos milagres, por outro lado, foram condenados como hereges e
apóstatas. Alguns dos clérigos que apoiavam Padre Cícero tiveram que
pedir retratação, e os fiéis que acreditavam no milagre eram vistos pela
igreja como idólatras.

Ao Padre Cícero restou, no fim da vida, a tarefa de gerir Juazeiro.


O santo e o político dividiam um só corpo. No momento de sua morte,
no entanto, foi possível perceber que a imagem sagrada se elevara acima
da função profana que o padre desempenhou. Em seu funeral estiveram
presentes milhares de pessoas que se deslocaram de suas casas para
dar adeus ao padrinho. Além disso, como afirma Francisco Régis Lopes,
“contrariando algumas expectativas, as romarias não mostraram sinais
de desânimo com a morte do Padre Cícero em 1934” (RAMOS, 1999, p.
42).

Ralph Della Cava lembra ainda que, com a morte do padrinho,


“os pessimistas começaram a cerrar as portas de suas lojas e a abandonar
a cidade, cujos verdes campos eles pensavam que iriam fenecer” (DELLA
CAVA, 1985, p. 312). Mas Juazeiro do Norte continuou a crescer e os
romeiros continuaram a buscá-la. A cidade permaneceu sendo vivida e
experimentada, embora as narrativas sobre ela tenham perdido força.

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As múltiplas histórias de Juazeiro


Joaseiro, cidade fenômeno, tipica, original, sobre a
qual muito foi dito e escripto, quer com emphasis,
enaltecendo-a como grandioso milagre do Padre
Cicero, louvando a acção umanitaria e criteriosa do
padre e o seu feito sobre natural de ter criado em
poucos annos uma cidade de mais de quarenta mil
abitantes, cidade culta, progressista e adiantada em
franca asenção; Outros consagraram Joaseiro como
cidade santa, mecca cristã surta por milagre de Deus,
aonde se encontra o cemitério espiritual e viático
para a vida futura, anjo fundador, enviado por Cristo,
ente sobre natural, messia e patriarca milagroso e
imurtal, depois de ter feito em vida a anticamara
do ceu em Joaseiro, ainda vigia e determina depois
de morto tudo quanto é vida do lugar, quem enfim
falou de Joaseiro como reducto sinistro de fanaticos
vivendo a sombra e proteção de um caudilho
rodeado de jagunços descrevendo a figura do Padre
Cicero como fomentador de desordens, protegendo
cangaceiros, bandoleiros e mesmo Lampeao com o
seu sinistro bando de cabras, apontando Joaseiro
como ultimo resto da tocaias de Canudos (ODÍSIO,
2006, p. 10).

É importante ressaltar que a obra de Agostinho Odísio guarda


uma especificidade: a de ser um caderno de memórias aparentemente de
foro privado. Assim, seu discurso possui certas peculiaridades em relação
aos outros. Além disso, Agostinho Odísio não foi um mero visitante: ele
viveu em Juazeiro, conheceu suas ruas e personagens típicas, passou
por algumas agruras e, dessa maneira, teve uma experiência da cidade
diferente daquela descrita por outros visitantes.

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De acordo com Francisco Régis Lopes Ramos, até a década de


1970,
[...] quase todas as publicações sobre Juazeiro e seu
“Patriarca” assumem uma postura maniqueísta. Uns
escrevem com a intenção – nem sempre explícita
– de defender e elogiar o movimento religioso e o
crescimento da cidade. Outros pretendem mostrar
que o fenômeno seria fruto do atraso (biológico,
racial, político, econômico, cultural, racional,
religioso...) ou de um simples embuste (RAMOS,
1999, p. 18).

Este trabalho considera a literatura de Agostinho Balmes Odísio


como uma fonte e, simultaneamente, como um objeto que pode servir
de meio para pensar sobre as representações de Juazeiro do Norte. O
próprio Odísio lembra, em seu diário de viagem (10 de outubro de 1934),
que as informações que colhera sobre Juazeiro do Norte não eram as
melhores:
As notícias que tivemos não são muito boas...
Juazeiro é um lugar formado por elementos de todo
o norte, pessoas foragidas, cangaceiro fugido da
polícia, toda sorte de aventureiros e sertanejos, à
sombra do Padre Cícero, o qual, sendo uma força que
nenhum governo podia atacar, gozavam completa
segurança. [...]. É tarde para retroceder e teremos
que aguentar até ver o que dará tudo isto (ODÍSIO
apud SIQUEIRA, 2011, p. 126).

Ao aportar na cidade, Agostinho começa um relato bem-


humorado e, ao mesmo tempo, surpreendente. Ao longo de sua
experiência em Juazeiro, tem a oportunidade de desfazer algumas das
impressões terríveis que se fixaram em sua memória graças aos relatos
de fortalezenses. Não deixou, no entanto, de tecer críticas mordazes que

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Juazeiro sem Padre Cícero:
cotidiano, memória e história no caderno de memórias de Agostinho Balmes Odísio

podem revelar algumas das misérias e tensões existentes em Juazeiro no


período imediatamente posterior à partida do padrinho.

Juazeiro narrada
Lourenço Filho descreve Juazeiro como “a Meca dos sertões
cearenses – arraial e feira, antro e oficina, dentro de orações e hospício
enorme” (LOURENÇO FILHO, s/d, p. 17). Afirma que “as habitações
quase todas se copiam por fora, em muros mal-acabados, despidos
ordinariamente de qualquer intenção estética, como se parecem no
interior, pobríssimo e imundo”. (LOURENÇO FILHO, s/d, p. 44). Mais
adiante, diz:
Por fora, quase que só as distingue a numeração:
um cartapácio com grosseiros algarismos, no geral
seguidos das iniciais – P.C. –, e de cruzes, signos-de-
salomão, ou de outros símbolos de uma cabalística
rudimentar. Não raro um “Viva o meu Padim Ciço”
sparrama-se a carvão pela parede mal caiada, com
muito fervor e nenhuma ortografia (LOURENÇO
FILHO, s/d, p. 44).

O Dr. Moraes e Barros, em visita a Juazeiro do Norte, também


teria dito que a periferia da cidade, “só de casebres e mocambos de meia
agua, é de ingrata apparencia, mais semelhando colossal e disforme
acampamento de festa de Santa Cruz” (BARROS apud BARTOLOMEU,
2010, p. 8), acrescentando ainda que existiriam mais de duas mil casas
pertencentes ao Padre Cícero.

Com efeito, a habitação em que Agotinho Odísio se instalaria


anos depois é semelhante aos casebres descritos por Lourenço Filho
e Moraes e Barros. Odísio afirma que era uma “tapera de pao a pique

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Juazeiro sem Padre Cícero:
cotidiano, memória e história no caderno de memórias de Agostinho Balmes Odísio

barro a vista, cheia de buracos os quaes nos deram um trabalho de dois


dia para concertá-los, mais ar[r]anjar um pouco o chão de terra batida e
colocar fechaduras (...)” (ODÍSIO, 2006, p. 5). Explica que moraria nessa
casa porque as melhores residências, feitas de tijolos, eram ocupadas
pelos proprietários, que construíam esses casebres para alugar às
pessoas mais pobres. Acrescenta que algumas casas possuíam apenas
fachadas de tijolos, mas o restante da estrutura era constituído por taipa.

Para Lourenço Filho, além dessa face carente da cidade,


existiriam dentro de Juazeiro duas ou três ruas calçadas, que se dariam
“ao luxo de ter alguma coisa parecida com passeios laterais, três ou
quatro construções de sobrado, casas com platibandas, ‘jacarés’ salientes
e numeração mais discreta” (LOURENÇO FILHO, s/d, p. 47/48).

Depois de apresentar o meio em que viviam os juazeirenses,


Lourenço Filho dedica um capítulo de seu livro ao Padre Cícero, outro
a Floro Bartolomeu, e outro a alguns eventos anedóticos e históricos
relativos à cidade. Conclui afirmando que as coisas de Juazeiro são
estranhas a tal ponto que “àqueles que nunca deixaram a estreita orla
de civilização litorânea, de empréstimo, há de parecer que exageramos”
(LOURENÇO FILHO, s/d, p. 177). Defende como solução para os
problemas de Juazeiro a prioridade de “uma formação de elites, na
ordem intelectual e na ordem moral” (LOURENÇO FILHO, s/d, p.178). O
ensino primário viria em segundo plano, pois “a ação das elites formadas
no cadinho dos centros superiores de cultura refletir-se-ia na consciência
popular” (LOURENÇO FILHO, s/d, p.182).

Agostinho Odísio discordaria dessa teoria. Apesar de defender


o Padre Cícero quase sempre ao longo de seu texto, resolve tecer uma

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Juazeiro sem Padre Cícero:
cotidiano, memória e história no caderno de memórias de Agostinho Balmes Odísio

crítica sobre o trato dado pelo padrinho em relação ao problema da


educação, e afirma:
Que bom si o Padre Cícero em lugar de ter gasto tanto
dinheiro em construir igrejas e mais igrejas, tivesse
ao menos fundado uma escola para o seu povo, e
em lugar de fazer política e torrentes de eloquências
em seus discursos nos quais era um mestre, tivesse
ensinado as primeiras letras aos meninos... (ODÍSIO,
2006, p. 61).

É preciso salientar, no entanto, que, de acordo com Floro


Bartolomeu, teriam existido em Juazeiro (1923) quatro escolas oficiais
(número bem menor que aquele necessário para atender uma cidade
que contava então com trinta mil habitantes): duas estaduais e duas
municipais13. O padre, para suprir a necessidade de professores, “foi
aproveitando as pessoas pobres que sabiam ler e escrever regularmente
e dellas fazendo mestre-escolas”. (BARTOLOMEU, 2010, p. 94). Floro
Bartolomeu acrescenta ainda:
Essas escolas também são frequentadas por
adultos, à noite, os quaes, para poderem ser
eleitores, tomaram essa resolução. Posso invocar o
testemunho do Sr. Daniel Carneiro, meu colega de
bancada, que, assistindo à última eleição federal ali,
viu não haver um eleitor votar sem assignar o nome.
Si não têm boa calligraphia nem por isso fazem
excepção, porquanto até lettrados não na possuem
(BARTOLOMEU, 2010, p. 95).

13 Membro da comissão incumbida pelo Governo Federal de inspecionar as


Obras do Nordeste, o Dr. Paulo de Moraes e Barros teria criticado duramente a cidade
de Juazeiro do Norte. Floro Bartolomeu, insatisfeito, resolveu escrever um “Depoimento
para a História”, com o objetivo de provar que as afirmações feitas por Moraes e Barros
eram falsas.

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Juazeiro sem Padre Cícero:
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Pelo texto do deputado, é possível perceber que haveria alguma


pressão para que os eleitores aprendessem ao menos a assinar o nome,
mesmo que com dificuldade. Por fim, ele acrescenta alguns dados
sobre as crianças que frequentavam essas escolas, afirmando que elas
compareciam sem fardamento e nas horas de folga do serviço, o que
confirma a existência de trabalho infantil em larga escala, fato também
relatado por Agostinho Odísio:
Continuamente vê-se nas ruas meninos e meninas
esfar[r]apados, quasi nus, só cobertos de trapos
immundos (…) carregando na cabeça feixes de lenha,
balaios de fructas e toda qualidade de generos,
andando o dia inteiro (...) oferecendo de porta em
porta as suas mercadorias a venda, havendo entre
eles criancinhas pequenas de cinco a seis anos ao
máximo (ODÍSIO, 2006, p. s/n).

Mais adiante, Agostinho Odísio explica que boa parte dessas


crianças não conhecera o pai, sendo sustentada apenas pela mãe, o que
agravava a situação de extrema pobreza. Sobre o tema, Odísio afirma
que as mulheres com filhos e sem maridos são comuns,
(…) encontrando-se uma delas numa casa sim e
outra também; muitos fatores são a causa deste
facto; a miseria, indo o marido a procura de trabalho
em outras zonas, as seccas, as revoluções, e mais
que tudo a ignorancia; porem, apesar de ter tantas
mulheres em disponibilidade, raro é aquella que cae
em falta, porque aqui o povo desculpa e acha natural
ser assassino, cangaceiro, ladrão, mas não aceitam
ter em família uma “femea cadela” (ODÍSIO, 2006,
p. 105).

Dessa maneira, o escultor esclarece o fenômeno de tais crianças


sem pais. Elas eram, geralmente, filhas de mães viúvas ou separadas de

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seus maridos pelas contingências da vida, mas raramente seriam filhas


de mães solteiras. É possível perceber o cuidado com a moralidade
também num trecho do diário de Odísio em que ele afirma:
A generalidade do povo não bebe álcool; não me
refiro a cerveja, a qual tem preço proibitivo e não é
vendida gelada, pois uma garrafa de prateleira custa
três mil réis; falo da ‘branca’ aqui chamada ‘água
ardente’, que, apesar de ser barata e BOA, não tem
adeptos; nunca vi um bêbado, e pode-se afirmar que
poucos ou quase ninguém ‘toma’ (...) (ODÍSIO, 2006,
p. 105).

Apesar de ressaltar esses aspectos positivos da cidade, Odísio


não deixa de se alarmar com grandes problemas urbanos que, até hoje,
povoam Juazeiro do Norte:
A higiente é pois palavra morta; existe é verdade
a “Instituição Rockfeller” com seus impregados
mata mosquitos que todas semanas visitam as
casas procurando destruir as aguas paradas e focos
de mosquitos, mas o que vale? Numa só sarjeta
aonde se empoçam as águas que saem das casas
destrói o trabalho de todos os mata mosquitos; e as
sarjetas são muitas e com águas paradas dum fedor
insuportavel na cidade toda (…) (ODÍSIO, 2006, p.
54).

Essa narrativa contém alguma atualidade. Em Juazeiro do Norte,


as condições de higiene ainda são precárias até mesmo no Centro da
cidade. A periferia vive numerosos problemas. As sarjetas mencionadas
ainda prosperam e, apesar de terem se livrado da malária, os habitantes
de Juazeiro hoje convivem com os mosquitos da dengue.

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Juazeiro sem Padre Cícero:
cotidiano, memória e história no caderno de memórias de Agostinho Balmes Odísio

Considerações Finais
Será impossível apresentar neste artigo toda a riqueza do
caderno de memórias de Agostinho Odísio e problematizar cada um dos
temas discutidos por ele. Seu texto bem-humorado e repleto de causos
traz uma leitura agradável e fluida sem perder a densidade e, por vezes,
o caráter de denúncia. Talvez seja interessante terminar este trabalho
com o sonho de Agostinho Odísio de que Juazeiro do Norte se tornasse
uma cidade maior e melhor:
(…) com Padre Cícero morto, desaparecido o porque
das visitas dos romeiros ao lugar, a cidade terá
que forçosamente tomar outro aspecto e o povo
outro rumo; o[u] Juazeiro progride tornando-se
cidade operosa, culta e progressista ou fatalmente
retrocederá ficando Ítaca do sertão nordestino
(ODÍSIO, 2006, p. /n).

A partir dessas linhas, possível levantar uma reflexão final:


a cidade continuou a crescer, a receber romeiros, a cultuar o Padre
Cícero. Mas teria se desenvolvido o bastante? Aparentemente, tal
desenvolvimento não acompanhou plenamente o crescimento da
cidade. Não é possível afirmar que Juazeiro do Norte retrocedeu, mas
ainda falta muito para que ela se torne a cidade “culta e progressista”
almejada por Agostinho Odísio.

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Juazeiro sem Padre Cícero:
cotidiano, memória e história no caderno de memórias de Agostinho Balmes Odísio

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Artigo submetido em: 25/06/2013


Artigo aprovado para publicação: 05/10/2014

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Religiosidade de matriz africana:
da invisibilidade aos olhos da população
juazeirense1
Joselina da Silva2 e Reginaldo Ferreira Domingos3

Resumo
O final da década de setenta e o início da de oitenta do século passado testemunharam,
no Candomblé juazeirense, perseguições às religiões de matriz africana e aos seus
praticantes, fato que contribuiu para o encerramento de algumas casas e o êxodo de
vários sacerdotes e sacerdotisas. Tais atitudes repressivas fizeram com que nos anos
noventa houvesse, por parte dos líderes religiosos, uma autoproteção e também
certa proteção de seus espaços de cultos, evitando visibilidade. Essas atitudes
permaneceram até pelo menos o ano de 2008. Esses espaços religiosos sempre
foram vistos com olhares racistas, segregacionistas para com seus praticantes.
Nos últimos quatro anos, vem ocorrendo um maior surgimento de terreiros de

1 Esta pesquisa se tornou possível graças à honrosa colaboração de vários


dos seguidores de Candomblé da cidade de Juazeiro do Norte, entre eles Inácio Leite,
conhecido como Pai Bira, Mãe Alice de Freitas e Pai Miguel, que são algumas das
autoridades religiosas da cidade. Agradecemos também ao iniciado Antonio Júnior
Sarmento e aos adeptos Karla Jaqueline e Diego César. Estes dois últimos – representantes
do movimento negro local – têm sido incansáveis no apoio à construção das marchas
pela liberdade religiosa.
2 Possui doutorado (2005) e mestrado (2001) em Ciências Sociais pela
Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Foi Professora Adjunta da Universidade Federal
do Cariri, atualmente é docente da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Email:
joselinajo@yahoo.com.br
3 Graduado em História (2005) e especialista em História e Sociologia (2007) pela
Universidade Regional do Cariri (URCA). Mestre (2011) e doutorando em Educação pela
Universidade Federal do Ceará (UFC).

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Religiosidade de matriz africana: da invisibilidade aos olhos da população juazeirense

Candomblé na cidade. Dessa forma, objetivamos construir um levantamento para


que se possa ilustrar a quantidade e os locais em que estão situados esses espaços
ritualísticos. Para tanto, se faz necessária a compreensão acerca do contexto que tem
permitido às religiões de matriz africana se afirmarem nesses últimos anos. Neste
artigo, abordaremos apenas as casas de Candomblé. Esta é uma pesquisa que está
sendo desenvolvida em dois âmbitos: na FACED (Faculdade de Educação), da UFC,
como trabalho de doutoramento o qual pretende investigar – por uma perspectiva
histórica e filosófica – a presença das religiões de base africana no interior caririense.
O segundo, no N’BLAC (Núcleo Brasileiro, Latino-Americano e Caribenho de Estudos
em Relações Raciais, Gênero e Movimentos Sociais), da Universidade Federal do
Cariri.

Palavras-chave: cultura negra, religiões de matriz africana, intolerância religiosa.

Abstract
The end of the seventies and the early eighties of the last century witnessed in
Juazeiro do Norte´s Candomblé, persecution of religions of African origin and its
practitioners, which contributed to the closure of some houses and the exodus
of many high-priests and priestesses. Such repressive attitudes have meant that
in the nineties there was, by religious leaders, one self-protection and also some
protection of its space services, avoiding visibility. These attitudes remained until at
least 2008. These religious spaces were always seen with racist eyes, that used to
segregate those who lived and transited there. In the last four years, there has been
a greater appearance of Candomblé in the city. Thus, we tried to build a survey so
you can illustrate the number of “terreiros” and where they are located. Therefore,
it is necessary to understanding the context that has allowed the religions of African
origin assert themselves in recent years. In this article, we will discuss only the
houses of Candomblé. This is a research being developed in two areas: in Faculty
of Education of the Universidade Federal do Ceará (UFC), as doctoral work which
aims to investigate - by a historical and philosophical perspective - the presence of
African-based religions in Cariri region. The second, in N’BLAC (Brazilian Center, Latin
American and Caribbean Studies in Race Relations, Gender and Social Movements),
in Universidade Federal do Cariri (UFCA).

Key words: black culture, religions of African origin, religious intolerance.

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Religiosidade de matriz africana: da invisibilidade aos olhos da população juazeirense

Introdução - Cultura negra e religião de base africana no


Cariri cearense
Este texto objetiva colaborar com a construção de um
levantamento sobre o número de espaços ritualísticos voltados ao
Candomblé na cidade de Juazeiro do Norte e de como seus seguidores
vêm se organizando para fazer frente às perseguições contra eles
perpetradas. Valemo-nos de entrevistas com líderes religiosos e
ativistas dos movimentos negros. Analisamos também os prospectos de
divulgação das caminhadas contra a intolerância religiosa organizadas
naquela cidade. Vimos nesses referenciais documentos nos quais a
expressão de denúncia e reação pode ser mais bem detectada.

O final da década de setenta e o início de oitenta do século


passado testemunharam perseguições às religiões de matriz africana
e aos seus praticantes no Candomblé juazeirense, fato que contribuiu
para o encerramento de algumas casas e o êxodo de vários sacerdotes e
sacerdotisas. Tais atitudes repressivas fizeram com que nos anos noventa
houvesse, por parte dos líderes religiosos, uma autoproteção e também
a proteção dos seus espaços de cultos, evitando visibilidade. Essas
atitudes permaneceram até pelo menos o ano de 2008. Esses espaços
religiosos sempre foram alvo dos olhares racistas, segregacionistas para
com seus praticantes.

Nos últimos quatro anos, vem ocorrendo um maior surgimento


de terreiros de Candomblé na cidade4. Diante disso, pretendemos
estimular a discussão para que se possa compreender a razão desse

4 Esta pesquisa foi realizada entre 2010 e 2013.

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Religiosidade de matriz africana: da invisibilidade aos olhos da população juazeirense

crescimento. Paralelamente, uma das razões da existência das


caminhadas organizadas pelos seguidores das religiões de matriz
africana deve-se à maior organização dos fiéis e seguidores.

A cidade de Juazeiro do Norte tem sido carregada do “mito”


brasileiro e cearense, dos séculos XIX e XX, de um Brasil miscigenado
sem negro e consequentemente sem racismo. É muito frequente ouvir
que “no Ceará não tem negro”, frase que traz uma carga de ironia e
marca de um equívoco histórico (CUNHA Jr., 1997; FUNES, 2004).

Esta ideia subsidiada pela crença de que a escravidão teria sido


pouco significativa compõe uma lógica incoerente e perversa, uma vez
que, assim sendo, só é possível associar o negro à escravidão criminosa.
Logo, acredita-se que no território cearense não houve negros porque a
escravidão não existiu ou foi um escravismo relativamente pequeno com
relação a outros estados brasileiros (CUNHA Jr., 2011; FUNES, 2004).

É possível inferir tal afirmativa quando averiguamos os estudos


realizados por Funes. O autor apresenta a sua tese afirmando que “na
medida em que as fazendas vão sendo estabelecidas ao longo dos rios,
os negros também foram ocupando estes espaços, não só como cativos,
mas como trabalhadores livres, como proprietários” (FUNES, 2004, p.
104). O aumento demográfico nas terras cearenses e no Cariri traz esses
africanos que, em suas bagagens, conduzem manifestações culturais e
religiosas.

É difícil aceitar a afirmação de que não há cultura e características


negras na cidade, pois essa negritude se confirma pelas reminiscências
arraigadas hoje, as quais vieram do período colonial (CUNHA Jr., 1997;
CUNHA Jr. 2011; FUNES, 2004; NUNES, 2007). De acordo com os

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Religiosidade de matriz africana: da invisibilidade aos olhos da população juazeirense

estudos de Nunes (2007), na região se encontram vários vestígios da


presença negra. Os Reisados, as Congadas, a Dança do Coco, a Dança
de São Gonçalo, os terreiros de Umbandas, Maneiro Pau, as Irmandades
Católicas dos Homens Pretos, entre outras manifestações, são provas da
existência de afrodescendentes nas terras caririenses.

No trabalho que se dedicou a estudar os Reisados do Juazeiro do


Norte, Nunes (2007) demonstra que a alta representação demográfica de
população negra na região contribuiu para a continuidade e a resistência
dos afro-brasileiros no Ceará. A existência destes hoje é expressiva na
cidade e é constatada pela presença de várias formas culturais, entre as
quais os cultos afro-brasileiros.

Pode-se, dessa forma, conjecturar sobre os princípios do


Candomblé na cidade de Juazeiro do Norte tendo em vista o grau de
sua relevância, uma vez que é também na religião que os negros
africanos e os afrodescendentes encontram seus alentos, sua segurança,
reproduzem seu mundo e refazem a África. (OLIVEIRA, 2006; OLIVEIRA,
2007; LIGIÉRE, 1993).

Em se tratando de práticas religiosas de matriz africana, podemos


fazer algumas considerações gerais, porque, além da expiação sofrida à
época da escravidão criminosa, ainda permanecem na sociedade ações
que degradam a imagem dos afrodescendentes e sua cultura. Líderes
evangélicos fanáticos e cheios de ações preconceituosas dizem que a
cultura negra é coisa do diabo e é desprezível para uma sociedade que
tem como fundamento de vida o cristianismo (JESUS, 2003). O que tem
sido pregado atualmente é resultado de um conceito racista quanto às
religiões de matriz africana e os elementos da cultura negra. Assim como

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Religiosidade de matriz africana: da invisibilidade aos olhos da população juazeirense

diz Cunha, “a Umbanda e o Candomblé têm sido estigmatizados como


coisa do demônio.” (CUNHA Jr., 2007, p. 5).

Ações verbais depreciativas são constantes para com os


praticantes. Tais atitudes vêm mais freqüência dos evangélicos
pentecostais e dos neopentecostais. Infelizmente, em vários setores
da sociedade, estas são vistas como atitudes comuns, não sendo
consideradas como práticas de racismo (JESUS, 2003), realidade essa
repleta de preconceito racial, em que o fato de participar de práticas
religiosas afrodescendentes é motivo para “chacotas”, apelidos
pejorativos e que ainda faz com que haja a negação por parte de alguns
seguidores.

Conversas com as lideranças femininas do Candomblé – no


início desta investigação – demonstraram que havia pouca receptividade
da sociedade juazeirense para com as casas de culto de matriz africana,
e evitando dar maior ênfase ao fato, algumas de nossas entrevistadas
relatassem a presença de policiais – em certas ocasiões – propondo-
se a mandar encerrar os momentos de função religiosa, diante da
argumentação de estarem desrespeitando as leis relativas ao silêncio.
Outra informação nessa ordem se referia a momentos em que eram
interrompidas oferendas em áreas públicas pela mesma força policial.

Entretanto, mesmo diante desse contexto de discriminação –


que é um modelo que guarda muita semelhança em âmbito nacional
– para com as pessoas praticantes das religiões de matriz africana, o
Cariri nos últimos anos vem reescrevendo sua própria história, de forma
a permitir a visibilidade dos praticantes do Candomblé e a sua imersão
no seio da sociedade. Podemos dizer que nos últimos quatro anos

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Religiosidade de matriz africana: da invisibilidade aos olhos da população juazeirense

tem ocorrido um processo de afirmação e autoidentificação daqueles


pertencentes aos cultos religiosos de raiz africana.

O quadro a seguir pode ser uma das pistas que os ajudem a


perceber o aumento em número de casas de seguidores do Candomblé
na cidade5.

Responsável Bairro

Mameto Maleozaze e Tata Ndenge Samuel Limoeiro


Pai Bira de Omolu Triângulo
Mãe Cicélia Aeroporto
Isaac de logun Edé e Miguel de Oiyá Aeroporto
Jacinta João Cabral
João Paulo João Cabral
Junior de Iansã João Cabral
Pai Francisco ou Jagumar de Xangô João Cabral
Mãe Maria e Pai Cícero ou Pita João Cabral
Francisco Cobra Frei Damião
Neide de Oba Frei Damião
Mãe Deleuy de Oxum Bairro Salesianos

Esse total de casas está distribuído em seis diferentes bairros,


sendo que em vários deles há de duas a três casas. Observamos, então,

5 Reiteramos que este texto se refere apenas às casas de Candomblé em Juazeiro.


Quanto às casas de Umbanda e outras manifestações de matriz africanas, na cidade e na
região, estamos em momento de pesquisa de campo e coleta dos dados.

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Religiosidade de matriz africana: da invisibilidade aos olhos da população juazeirense

um número expressivo, se pensarmos que Juazeiro tem sido vista


– da forma apontada anteriormente – como uma cidade apenas de
manifestação cristã católica. Isso revela um processo de resistência por
parte da religiosidade e de seus praticantes.

Podemos afirmar que os manifestos realizados pelo povo de


santo têm contribuído para uma reorganização da sociedade local, para
a configuração dos terreiros e, também, para as práticas sociais dos
iniciados nas religiões de matriz africana. Tais afirmativas são possíveis
quando observamos, em conversa com o secretário da Associação
Caririense Espírita e Umbanda (ACEU)6, durante pesquisa realizada no ano
de 2010 no Programa de Pós-Graduação em Educação para elaboração
de dissertação de Mestrado, que na região do Cariri, especificamente no
centro Crajubar (Crato, Juazeiro do Norte e Barbalha), havia registradas
em documentos quatorze casas de Candomblé. Tais estatísticas nos
permitem ter uma ideia da dimensão da presença e resistência da
população afro-brasileira quando se trata da religiosidade.

De acordo com o nosso informante, no ano de 2010 havia


oito casas de Candomblé na cidade de Juazeiro, fato que muda quando
observamos o quadro acima, em que já podemos afirmar a existência
de pelo menos doze. Em sua fala, ele tem a preocupação de evidenciar
que esses são números de cadastros na ACEU, e que tais dados não
determinam de forma precisa a quantidade de terreiros de Umbandas e
Candomblés na cidade. Porém, a partir das análises dessas informações,
é plausível julgar que a presença dos cultos de origem africana é mantida
como locus de resistência e propagação da cultura e de religião africana

6 ACEU foi criada em 18 de abril de 1988.

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Religiosidade de matriz africana: da invisibilidade aos olhos da população juazeirense

e afrodescendente.

Ainda hoje podemos afirmar a existência de ações de


discriminação para com as pessoas que praticam religiões de origem
africana, porém em menor proporção quando visto de forma comparativa,
ao longo dos últimos quarenta anos, quando líderes religiosos se viram
obrigados a abandonar a cidade. O exemplo dessa mudança são as
caminhadas contra a intolerância religiosa que vêm ocorrendo desde o
ano de 2010. Logo, podemos entender que as mesmas são prova cabal
dessa alteração social que, com as devidas proporções, tem acontecido
no intuito de combater o racismo.

O movimento sai às ruas: Um olhar sobre as marchas e/ou


caminhadas
“Pelo direito de ter fé”7

As teorias, bem como os paradigmas, que se propõem a


explicar os movimentos sociais são múltiplos. Variam em relação à
escola de pensamento que os abriga, à influência do momento histórico
em que estão sendo produzidos e ao campo analítico a partir do qual
são observados. Momentos histórico-sociais diferentes vão contribuir
diretamente para a constituição dos Novos Movimentos Sociais (NMS)
(GOHN, 1997; SANTOS, 1999). A mobilização é o momento em que o
movimento vem a público para pressionar a sociedade e mostrar sua
força e suas potencialidades. Ela se dá em torno de uma demanda
específica voltada para o presente, com objetivos definidos (MELLUCI,

7 Essa é a frase que abre o cartaz de divulgação da quarta caminhada religiosa


ocorrida, em Juazeiro do Norte, no dia 21 de 2013.

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Religiosidade de matriz africana: da invisibilidade aos olhos da população juazeirense

1996).

O movimento negro brasileiro, em suas diferentes fases, tem


como característica principal a mobilização. A literatura específica pontua
inúmeras atividades de rua. A Frente Negra Brasileira dos anos trinta
foi um dos marcos. Reuniões a céu aberto passaram a congregar um
número cada vez maior de mulheres e homens negros, na Praça da Sé,
em São Paulo. Outro marcante momento de mobilização foi a fundação
do Movimento Negro Unificado contra a Discriminação Racial (MNUCDR)
em São Paulo, em junho de 1978. Afro-brasileiros provenientes das mais
distantes cidades do país congregaram-se nas escadarias do Teatro
Municipal (CARDOSO, 2002; HANCHARD, 1994).

Em 1988, durante os cem anos de assinatura da Lei Áurea,


diversas atividades de rua – incluindo várias marchas – foram realizadas
pelo território nacional (CONTINS, 1988). Pela repercussão alcançada na
mídia, aquelas organizadas em São Paulo e no Rio de Janeiro tomaram
maior impacto. A mobilização na capital Carioca foi intitulada “Marcha
contra a farsa da Abolição. 1888 – 1988. Nada mudou, vamos mudar”.

Diferentes mobilizações públicas marcaram a passagem


dos trezentos anos de morte do líder Zumbi dos Palmares, em 1995.
Denominada Marcha Zumbi dos Palmares – contra o racismo, pela
cidadania e pela vida, a atividade de referência ocorreu em Brasília,
no dia 20 de novembro. Contou com cerca de trinta mil ativistas
provenientes das cinco regiões do país8. A marcha da capital federal ,
que não foi a única, foi revestida de simbolismo pela abrangência dos
temas envolvidos, assim como pelo fato de haver sido recebida pelo

8 Fonte: www.palmares.gov.br/html/materiasi/marcha

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então presidente da República, Fernando Henrique Cardoso. Passados


dez anos, surgiu a Marcha Zumbi + 10, também no Distrito Federal,
em novembro de 2005 (uma no dia 16 e outra no dia 22). Um dos
objetivos da marcha – em ambas as datas – era levar o Senado Federal a
assinar o Estatuto Nacional da Igualdade Racial. Cerca de 170 entidades
participaram do ato público9.

Parte da delegação brasileira presente na III Conferência


Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e as
Discriminações Correlatas (Durban/ 2001) – constituída pelo movimento
negro – levou para as ruas de Durban ativistas provenientes de inúmeras
cidades brasileiras, respaldados por dezenas de outros (as) das Américas
e do Caribe. Transformaram as vias públicas em tribuna, dando eco às
denuncias e demandas de direitos. Neste contexto, as marchas contra
a intolerância religiosa podem ser vistas como mais uma das diferentes
vertentes organizativas, a partir da via pública, já tradicionais, no fazer
dos ativistas.

Caminhadas no interior caririense: Novas ações e novos


espaços conquistados
Prandi10 discorre sobre a origem da religião de matriz africana e
sobre sua necessidade de reestruturação e readaptação, no decorrer dos
séculos, instigado pela própria conjuntura sociocultural. Sodré (2006),
por sua vez, segue sua análise dizendo que a afirmação do negro não se
deu de forma pacata. O negro soteropolitano, por exemplo, não aceitou

9 Fonte: http://marchazumbimais10.blogspot.com
10 www.okitalande.com.br

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pacificamente as ordens de uma classe dominante capitalista. Em todo


o país a resistência se dará – de maneira diferente – em acordo e em
sincronia com a sua conjuntura, cada qual com suas peculiaridades.

Assim, afirmamos que variadas ações foram tomadas pelas


religiões de matrizes africanas na tentativa de se manterem vivas em
meio às mudanças conjunturais. Não podemos esquecer que, ao mesmo
tempo em que a religião sofre influências da cultura, da sociedade, da
política e da economia, ela atua diretamente sobre estas. O Candomblé,
como força expressiva, mesmo se dando no âmbito religioso, atingirá os
mais diversos campos sociais.

As ações realizadas pelos candomblecistas da cidade vão


além do espaço religioso, o que nos dá elementos para considerar que
o ato de resistir por parte dos terreiros ultrapassa as fronteiras dos
lugares de cultos, chegando às ruas. Os frequentadores levam as raízes
afrodescendentes ao ambiente público. O exemplo mais concreto desse
rompimento e de resistência são as Caminhadas Contra a Intolerância
Religiosa ou pela Liberdade Religiosa, que têm ocorrido nos últimos
quatro anos.

As manifestações ocorreram sempre nos dias 21 de Janeiro11 de


cada ano e contaram com a participação e a organização do terreiro Omin
Dandereci Mutaleji (casa sob a liderança da mãe Maria e do GRUNEC12) e
do Movimento Negro. A primeira Caminhada de Combate à Intolerância
Religiosa ocorreu em 2010. O sucesso desta levou à segunda, no ano

11 Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa.


12 Grupo de Valorização Negra do Cariri.

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Religiosidade de matriz africana: da invisibilidade aos olhos da população juazeirense

seguinte, com o nome um pouco modificado: Segunda Caminhada Pela


Paz e Contra a Intolerância Religiosa. Nos anos posteriores, a terceira e a
quarta foram denominadas Caminhada Pela Liberdade Religiosa.

Nestes eventos públicos, sempre estiveram presentes


ativistas do movimento negro, acadêmicos, professores universitários,
praticantes, frequentadores do Candomblé juazeirense e de outras
religiões. Portanto, podemos analisar a frase que abre este tópico – “Pelo
direito de ter fé” –, que foi a principal elaboração repetida e anunciada
ao longo das quatro marchas.

As caminhadas, em Juazeiro, caracterizam-se por serem


organizadas por uma das casas de Candomblé da cidade, em parceria
com o GRUNEC, como informava o panfleto de anúncio da caminhada
de 2011:
O Grupo de Valorização Negra do Cariri – GRUNEC
– e a Casa de Candomblé Ile Axé Omindandereci
e Mutalegi convidam a sociedade caririense para
participar conosco neste dia 21 de Janeiro de 2011
da II Caminhada pela Paz Contra a Intolerância
Religiosa - Somos Todos Filhos de Deus, a partir das
16h, saindo da Praça da Prefeitura com sentido Praça
Padre Cícero.

Portanto, no que se refere à ocupação do espaço público,


nos deparamos com a reflexão da simbologia das representações que
os espaços urbanos têm em suas especialidades locais. Deste modo,
na geografia social da cidade de Juazeiro, os pontos de início e fim da
caminhada têm em si toda uma representação social.

A Prefeitura, como na maioria das cidades brasileiras, representa


a organização do poder político local e em Juazeiro não poderia ser

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diferente. Todavia, a prefeitura é o locus de encontro para o início da


caminhada. No decorrer do percurso temos, entre um e outro ponto,
cerca de cinco quarteirões. A rua coberta pelos integrantes da marcha
é a artéria principal de escoamento de tráfego, entrando em direção ao
centro comercial da cidade. A Rua São Pedro é caminho percorrido. O
término do cortejo dá-se num dos mais importantes e representativos
setores da cidade: a Praça Padre Cícero, localizada no centro financeiro
e cultural da cidade.

A concentração tem sido estabelecida para o final da tarde.


Com as delongas naturais de uma atividade desta monta, podemos
inferir que entre as 15h, horário de concentração, e 17h30min, horário,
de encerramento do comércio, o grupo de manifestantes se desloca,
mediante os olhares, certamente perplexos dos que saem do trabalho.
Caso desejem, podem se somar ao grupo.

Os espectadores são das mais variadas camadas sociais e


religiões. Uns participam de forma tímida nas calçadas das lojas. Alguns
iniciados se resguardam e preferem não revelar sua participação. Ao
mesmo tempo, diversos ativistas dos movimentos sociais, praticantes ou
não do Candomblé, caminham integralmente, demonstrando não temer
represálias.

Ainda num olhar sobre o panfleto, podemos nos deter sobre


a seguinte formulação: a Constituição Brasileira de 1988 garante a
liberdade religiosa, pois prevê no seu artigo Art. 5º, inciso VI, que “é
inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado
o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a
proteção aos locais de culto e as suas liturgias” (BRASIL, 1988).

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Neste momento, o panfleto faz alusão direta à Carta Magna


e, portanto, reputa aos seguidores do Candomblé o seu direito a uma
cidadania religiosa a ser exercida no interior de cada casa de culto.
Percebe-se uma clara alusão aos fatos já rapidamente relatados aqui
de possíveis interrupções por parte da força policial dos momentos de
celebrações religiosas. Mais adiante, o panfleto que estamos analisando
amplia a reflexão, recorre a dois documentos mais atuais e assim se
refere:
Além de outras legislações internas, a temática faz
parte do Programa Nacional de Direitos Humanos,
sendo que o Brasil é signatário da Declaração de
Durban, de Combate ao Racismo, Discriminação
Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata, no ano de
2001 (DOMINGOS, DA SILVA, 2012).

Dessa forma, nos faz entender a importância do ato realizado


pelos integrantes das religiões de origem africana. A marcha permite
concretizar o que é negado pela ação legal. A omissão por parte do
Estado em relação às questões sociais e neste caso, as raciais, leva às
carências de grupos e, consequentemente, induz à invocação do direito
e ao exercício da cidadania. Logo, o movimento, neste caso a caminhada,
vai se caracterizando como entidade propositiva, de resistência e
luta. Participação e controle constituem a dupla dimensão da ação
coletiva. Os aparatos institucionais são pontos cruciais do processo
de democratização e esta, por sua vez, leva à instrumentalização da
sociedade na busca de direitos (MELUCCI, 2001; SOUSA, 2006; GOHN,
2003; GOHN, 2006).

O movimento negro brasileiro, ao longo de sua história, tem


diversos e representativos momentos em que utiliza os panfletos de

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divulgação, como púlpito a partir do qual suas reflexões e denúncias são


emanadas. Assim, esses pequenos documentos ultrapassam a função
de suporte para anúncio de uma atividade a ser realizada e adquirem
o objetivo de formar e/ou informar o grupo que integra a atividade em
questão, como também a sociedade, no geral.

Dentro desta ordem, podemos colocar os panfletos de


divulgação da marcha do ano de 2011, brevemente analisado aqui.
A história do Brasil é repleta desses exemplos
de intolerância. Por todo o período colonial e do
Império, apenas uma religião era reconhecida pelo
Estado. Aquele que professasse outra forma de fé
sofria perseguições e só a muito custo conseguia
manter sua religiosidade [...] Mesmo no período
republicano, as perseguições perduraram, durante
as quatro primeiras décadas do sec. XX. Foi intensa a
invasão aos terreiros de Candomblé [...] Nas últimas
décadas, é notória a ação de alguns grupos religiosos
que, se valendo do poder econômico, usam a mídia
para demonizar as religiões de matriz africana
(DOMINGOS; DA SILVA, 2012).

Vemos, então, um exemplo de uma aula de história que se


propõe a contextualizar o momento atual à luz de uma análise que
remete, desde o passado, aos fatos ocorridos na contemporaneidade,
no que se refere às perseguições sofridas pelos adeptos, o que, por
conseguinte justificaria a realização da atividade pelas ruas da cidade.
Infelizmente, um ordenamento jurídico não é o
bastante para modificar determinados preconceitos
de uma sociedade. Não basta a lei garantir a
liberdade religiosa; se faz necessário que os seus
cidadãos e cidadãs entendam o quanto é importante
empreender ações de conscientização, as quais de
fato disseminem o respeito entre os praticantes de

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Religiosidade de matriz africana: da invisibilidade aos olhos da população juazeirense

diferentes religiões (DOMINGOS; DA SILVA, 2012).

Assim, as ações concretizadas nas ruas da cidade têm revelado


a presença e permitido maior inserção social, o respeito para com os
praticantes, bem como com seu exercício do sagrado. Outrossim, embora
havendo uma maior abertura de espaços na sociedade local – no que
tange à religiosidade de matriz africana –, ainda é possível detectar
atitudes racistas e de retaliação. Exemplificamos com o presenciado
pelos participantes da quarta caminhada, no ano de 2013, em que houve
uma atitude desrespeitosa por parte de um sacerdote, diácono da Igreja
Católica, da cidade de Juazeiro. Com gestos considerados obscenos,
ergueu o dedo médio de sua mão para as pessoas presentes.
Seguindo nesta mesma linha de raciocínio, de acordo com as
falas de nossos interlocutores, vemos, então, que permanecem em vigor
as ações de cunho racista na sociedade quando se trata das religiões de
matriz africana. Refletir sobre a presença da religiosidade na cidade se
faz necessário quando nos deparamos com atitudes aviltantes que ainda
estão presentes nos dias de hoje.

Pensares conclusivos
O Candomblé de Juazeiro do Norte, nos seus ritos sagrados, tem
conseguido se manter, também, como fonte de resistência, praticando
ações que ultrapassam o âmbito do espaço sagrado chegando aos
espaços públicos por meio de atos políticos concretizados na marcha
contra a intolerância religiosa.

A não efetivação dos objetivos almejados é fator atuante e


acirrado da luta e da mobilização. O grupo participa de eventos, expondo

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seus objetivos e suas ideologias, na busca por melhores condições para


os praticantes do Candomblé na cidade de Juazeiro do Norte.

Salientamos que este momento de mudança está ocorrendo


em razão do processo de luta política a qual se concretiza por meio de
um ato de cidadania. A Caminhada Contra a Intolerância Religiosa ou
Caminhada Pela Liberdade Religiosa vem trazendo para a sociedade
local a possibilidade das visibilidade aos praticantes de Candomblé e
Umbanda e, por conseguinte, possibilitando um novo contexto histórico-
social que instiga a sociedade local a perceber que há a necessidade de
dialogar acerca do respeito com o outro.

É importante destacar que ainda existe uma resistência dos não


candomblecistas e umbandistas, ainda que no ato da caminhada esses
contrários fiquem na posição de curiosos e de espectadores, porém essa
ação de resistir não impede ou bloqueia o desejo e a autoestima de
parte dos praticantes quando se trata de realizar a caminhada, a qual já
está na sua quarta edição.

O processo de resistência afrodescendente é garantido pelas


ações “concreto-simbólicas” do povo de santo, nas roças (assim chamadas
às casas de culto, pelos candomblecistas) juazeirenses, permitindo-
nos concluir que essa luta assegura a propagação das práticas e da
resistência dessa religiosidade no interior caririense. Os terreiros, com
suas práticas religiosas e com sua presença, asseguram a participação e
o pertencimento à região Sul cearense.

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Religiosidade de matriz africana: da invisibilidade aos olhos da população juazeirense

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Artigo submetido em: 08/08/2013


Artigo aprovado para publicação: 17/12/2014

164 Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 8, 2015 ISSN: 1677-9460


O direito à saúde:
uma alternativa de combate ao racismo
Otilia Aparecida Silva Souza1 e Hayane Mateus Silva Gomes2

Resumo
Este trabalho procura investigar como o Estatuto da Igualdade Racial, especialmente
no item relacionado à saúde, está sendo apreendido e utilizado pelos diversos
segmentos que trabalham com a saúde pública e pela população afrodescendente
que se utiliza dela nos municípios de Crato e Juazeiro do Norte, no Ceará. Ele é parte
de uma pesquisa que está sendo executada desde março de 2011 através de um
projeto de iniciação científica (PIBIC/URCA) da Universidade Regional do Cariri e o
presente texto é um recorte do referido trabalho que tem como objetivo principal
analisar a forma como essas instituições trabalham as questões voltadas à saúde das
pessoas negras e como esse grupo concebe o atendimento que lhe é destinado nos
serviços públicos de saúde.

Palavras-chave: ações afirmativas, saúde, Estatuto da Igualdade Racial.

Abstract
This study investigates how the Racial Equality Statute, particularly in the health-
related item, is being seized and used by the various segments that work with public
health and the public african descent who uses it in the municipalities of Crato and
Juazeiro - Ceará. It is part of a research which being performed from March 2011
through an undergraduate research project (PIBIC / URCA) from Cariri Regional

1 Professora do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Regional do


Cariri (URCA), Doutoranda em Artes (UFMG/URCA).
2 Mestranda em Sociologia (UFPB).

Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 8, 2015 ISSN: 1677-9460


O direito à saúde: uma alternativa de combate ao racismo

University and this text is an excerpt of that study that has as main objective to
analyze how these institutions work on health issues concerning to black people
and how this group conceives the care which is intended for them in public health
services.

Keywords: affirmative action, health, Racial Equality Statute.

Introdução
Nos últimos anos o governo brasileiro vem trabalhando
com o intuito de implementar políticas públicas em favor de grupos
historicamente discriminados através da realização de projetos que
impulsionam o crescimento social e favorecem as manifestações
culturais. Essa atitude se constitui como ‘uma resposta’ do Estado às
desigualdades sociais e étnicas impostas pelo poder político e econômico
que, ao longo dos séculos, tanto comprometeu o desenvolvimento da
sociedade brasileira.

Concebidas atualmente como Ações Afirmativas, essas


iniciativas contribuem para a valorização social e a inserção de pessoas
ou grupos discriminados no mercado de trabalho. Elas podem ser
desenvolvidas pelo poder público ou privado e fazem parte do Programa
Nacional de Ações Afirmativas (instituído pelo Governo Federal em 13
de maio de 2002) que tem como meta o combate à discriminação racial,
de gênero e de origem nacional e a execução de medidas que favoreçam
a igualdade e o acesso a bens fundamentais, como a educação e o
emprego.

De acordo com Sarmento (apud D’ANGELO, 2010), as políticas


de Ações Afirmativas podem ser definidas como:

166 Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 8, 2015 ISSN: 1677-9460


O direito à saúde: uma alternativa de combate ao racismo

medidas públicas ou privadas, de caráter coercitivo


ou não, que visam promover a igualdade substancial,
através da discriminação positiva de pessoas
integrantes de grupos que estejam em situação
desfavorável, e que sejam vítimas de discriminação
e estigma social. Elas podem ter focos muito
diversificados, como as mulheres, os portadores de
deficiência, os indígenas ou os afrodescendentes e
incidir nos campos mais variados, como educação
superior, acesso a empregos privados ou cargos
públicos (p. 21).

É possível perceber que as ações afirmativas se baseiam na


concepção de igualdade, contrariando uma das principais características
da sociedade brasileira que é a desigualdade social. Portanto, uma
análise mais atenta nos faz refletir sobre a ambiguidade que esse tema
sugere e nos impulsiona a procurar compreender como a questão da
igualdade de direitos é tratada historicamente pelo Estado brasileiro
através das Constituições, já que a desigualdade social sempre esteve
presente na história do país.

Mas, apesar da ‘marca definitiva’ do racismo na sociedade


brasileira, é preciso admitir que no Brasil as tentativas de propor medidas
que amenizem ou diminuam o problema das desigualdades étnicas são
antigas, muito embora os esforços para execução e aplicabilidade dessas
leis sejam quase inexistentes. Observando as Constituições Federais
outorgadas no país, percebemos que o tema da igualdade está sempre
presente, muito embora ele seja abordado de forma bastante ambígua.
Na Constituição de 1824 o direito à igualdade excluía a população negra
escravizada. Mais tarde, a primeira Constituição promulgada após a
proclamação da República, apesar de reafirmar a igualdade de todos

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O direito à saúde: uma alternativa de combate ao racismo

perante a lei, restringia o direito ao voto apenas para pessoas alfabetizadas


impedindo aos negros o acesso às urnas, além de proibir também o voto
feminino. Nas Constituições seguintes o tema da igualdade apresentava
avanços e retrocessos: em 1934 a Carta condena a discriminação racial,
mas defende o ensino da eugenia. As Cartas de 1967 e 1969 estabelecem
uma relação entre o direito à igualdade e a proibição (e punição) do
preconceito racial. No entanto, apesar dessas Constituições abordarem
o preconceito étnico como uma atitude passível de punição legal, as Leis
tornaram-se ineficazes porque exigiam da vítima que elas provassem “o
especial motivo de agir” e as manifestações de racismo foram associadas
à contravenções penais, o que reduzia consideravelmente o número de
condenações pela prática do racismo (MOURA, 2010). Finalmente, a
Constituição de 1988 protege contra discriminações sociais e aborda o
tema da igualdade, considerando a sua relação com a desigualdade ao
propor como objetivo fundamental a redução das desigualdades sociais
e a promoção do bem de todos, sem distinção de origem, raça, sexo, cor,
idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Mas é a partir da promulgação da Lei Nº. 7.716 em 1989 que


o problema do racismo na sociedade brasileira é tratado de forma
mais coerente, pois ela define e estabelece punições para “crimes
resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião
ou procedência nacional” (BARROS, 2009, p.10). Essa determinação se
configura como um marco na história do tratamento jurídico do racismo
no Brasil. Pela primeira vez, as manifestações de preconceito contra as
pessoas negras são tratadas como crime inafiançável e imprescritível,
tornando o acusado sujeito à pena de reclusão nos termos da lei.

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O direito à saúde: uma alternativa de combate ao racismo

Finalmente, em 2010 é instituído o Estatuto da Igualdade Racial


e a partir da sua publicação, a desigualdade social passa a vista como
consequência do racismo. Proposto pela primeira vez no ano 2000 pelo
então deputado Paulo Paim, este projeto de Lei vinha, desde então,
tramitando no Congresso quando foi finalmente aprovado em 20 de
julho de 2010 com o compromisso de entrar em vigor noventa dias após
a data de sua publicação.

O Estatuto da Igualdade Racial objetiva “garantir à população


negra a efetivação da igualdade de oportunidades, a defesa dos direitos
étnicos individuais, coletivos e difusos e o combate à discriminação e às
demais formas de intolerância étnica” (BRASIL, 2010).

Nesse sentido, o Estatuto insere o debate sobre o racismo em


diversos aspectos da vida social porque estabelece disposições que
tratam do direito à saúde, à educação, à cultura, ao lazer, à liberdade
de crenças e manifestações religiosas, ao acesso a terra e à moradia
adequada. Propõe medidas de inclusão e submete as práticas de racismo
a um julgamento digno, favorecendo a construção de uma sociedade
mais justa e menos desigual, quando determina no Art. 4º - Parágrafo
único:
Os programas de ação afirmativa constituir-se-
ão em políticas públicas destinadas a reparar as
distorções e desigualdades sociais e demais práticas
discriminatórias adotadas, nas esferas pública e
privada, durante o processo de formação social do
país (BRASIL, 2010).

Através desse argumento o governo federal reconhece


oficialmente que o racismo é um forte determinante da desigualdade,

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O direito à saúde: uma alternativa de combate ao racismo

da exclusão ou da inclusão desqualificada e, consequentemente, da


concentração de renda. O Estado brasileiro se compromete assim,
a saldar uma ‘dívida histórica’ provocada pelas diversas formas de
‘etnocídios’ praticadas contra a vida dos afrodescendentes ao longo da
história deste país.

Este trabalho se constitui, portanto, numa tentativa de


investigar como o Estatuto da Igualdade Racial está sendo apreendido e
utilizado pelos diversos segmentos que trabalham com a saúde pública
e pela população afrodescendente que se utiliza dela nos municípios de
Crato e Juazeiro do Norte, no Ceará. Ele é parte de uma pesquisa que
está sendo executada desde março de 2011 através de um projeto de
iniciação científica (PIBIC/URCA) dessa IES e o presente texto é apenas
um recorte do referido trabalho que tem como objetivo principal analisar
a forma como essas instituições trabalham as questões voltadas à saúde
das pessoas negras e como esse grupo concebe o atendimento que lhe
é destinado nos serviços públicos de saúde.

As instituições públicas de saúde pesquisadas foram: Centro de


Diabetes e Hipertensão Teodorico Teles e o Centro de Especialidades (na
cidade do Crato) e o Hospital e Maternidade São Lucas (em Juazeiro do
Norte). Essas instituições foram escolhidas porque respondem a alguns
critérios que foram estabelecidos previamente: o Centro de Diabetes
e Hipertensão Teodorico Teles e o Hospital e Maternidade São Lucas
(referência em neonatologia e obstetrícia na região metropolitana do
Cariri) são unidades de saúde que tratam especificamente de doenças
e agravos de maior prevalência na população negra, enquanto o Centro
de Especialidades do Crato é uma unidade que abriga especialistas de

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O direito à saúde: uma alternativa de combate ao racismo

áreas diversas, o que possibilita uma observação mais detalhada sobre


as relações entre pacientes e funcionários.

Mas para saber como instituições de saúde e a população


afrodescendente desses municípios estão concebendo o Estatuto, é
importante perceber inicialmente como a sociedade se concebe tanto
em relação a sua origem étnica como em relação a sua percepção sobre
os conceitos de saúde e doença para, em seguida, tratarmos de forma
mais específica das questões voltadas à saúde dos afrodescendentes
brasileiros. Assim será possível conhecer as várias possibilidades de
aplicação do Estatuto, identificar os obstáculos na sua execução e saber
como as pessoas negras estão se utilizando dele nas instituições de
saúde.

A saúde e o racismo na sociedade brasileira


A Organização Mundial de Saúde concebe a saúde como “[...] o
estado de completo bem-estar físico, mental e social, não só a ausência
de doença” (Obtido em http//portal.mec.gov.br. Acesso em 15/09/2012).
Percebemos na definição da OMS que o conceito de saúde vai além da
‘ausência de doença’ e compreende também os aspectos econômicos
e culturais da sociedade, pois reconhece que ‘o estado de completo
bem-estar’ só é possível quando o indivíduo possui condições dignas
de sobrevivência e quando o seu estado de saúde não é comprometido
por problemas externos ao seu corpo. Fica claro então, que a saúde
não pode ser estudada isoladamente, mas sim considerando todos os
aspectos mencionados anteriormente, tendo em vista que esses fatores
dizem respeito e são essenciais para o desenvolvimento de qualquer

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O direito à saúde: uma alternativa de combate ao racismo

indivíduo.

Portanto, neste trabalho, a saúde será analisada a partir da


representação que o fenômeno possui no senso comum e da forma
como as instituições de saúde concebem a ideia de um programa voltado
essencialmente para a pessoa negra.

Diferentemente de algumas culturas orientais, no mundo


ocidental é comum o homem só ter consciência ou só perceber a
importância da saúde a partir da sua ausência, ou seja, quando está
doente. No seu dia a dia, ele dificilmente consegue pensá-la como algo
que está relacionado a sua existência ou a sua inserção no mundo.
Em geral, o homem não tem consciência da saúde
quando está sadio. Não a vive como algo especial.
Simplesmente vive e isto resulta em algo natural.
A menção à saúde, como um estado, é ocasional e
poucas vezes se preocupa em pensar porque está
com saúde. Isto muda quando se ‘sente’ doente,
quando é despertado para uma necessidade de
procura de algo desconhecido (LESSA, 1986, p.03).

A saúde é assim considerada como condição natural e a sua


‘ausência’ só é sentida quando, finalmente, a pessoa se depara com
uma situação desconhecida em relação ao seu bem-estar físico. É
nesse momento que a compreensão sobre o processo saúde/doença se
manifesta de forma mais ampla pois o homem começa a refletir sobre
o que é ser sadio e o que é estar doente. Nessa reflexão ele passa a
questionar causas, sintomas e tratamentos da doença; quer saber por
que foi escolhido para adoecer – ou, mais diretamente, por que foi
vítima daquela doença.

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O direito à saúde: uma alternativa de combate ao racismo

Simultaneamente, ele inicia a sua busca pelas possibilidades de


tratamento e a procura por um atendimento de qualidade - especialmente
no setor público - passa a ser utilizada como um parâmetro para que
ele compreenda qual o significado da saúde para a sociedade da qual
faz parte e, consequentemente, qual a importância de ser sadio nessa
sociedade.

Portanto, apenas quando um indivíduo adoece e tem que


recorrer a um tratamento através do serviço público de saúde é que
as noções de cidadania e de igualdade são assimiladas e inseridas no
seu cotidiano. Percebemos então que é a partir da ausência de bons
serviços públicos de saúde que grande parte da população passa a ter
consciência sobre os direitos que lhe assistem.

No que diz respeito aos afrodescendentes, o acesso à saúde


adquire outros obstáculos: a presença do racismo na sociedade brasileira,
que torna a vida do negro mais difícil em todos os aspectos, e a falta
de conhecimento por parte dos profissionais de saúde sobre noções de
igualdade, sobre os direitos e a saúde da pessoa negra.

Mas, em relação ao negro, o que ele pensa sobre a sua saúde


e sobre o atendimento que lhe é destinado nas unidades públicas de
saúde?

Para responder a essas questões é necessário compreender


como o negro brasileiro se vê, como se compreende enquanto
categoria étnica que é parte integrante de uma sociedade intensamente
miscigenada.

Como sabemos, o problema do racismo na sociedade brasileira


atingiu proporções gigantescas, comprometendo inclusive, a percepção

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O direito à saúde: uma alternativa de combate ao racismo

do próprio negro sobre a sua condição de excluído. Nesse sentido,


assumir-se como negro no Brasil se constitui um ‘ato de coragem’, pois
significa admitir todo o histórico de exploração e exclusão social a que
foram submetidas as pessoas dessa etnia. Além disso, o país construiu,
através de um esforço tenaz e continuado, a falsa ideia de uma
democracia racial que supõe a existência de uma harmonia entre negros
e brancos e extrapola o âmbito da desigualdade étnica, procurando
omitir e mascarar o ‘preconceito nosso de cada dia’. A falsa democracia
racial é associada a uma negação total do negro como um indivíduo
‘normal’, capaz de ser inserido na sociedade e de desempenhar as
mesmas funções do branco.

Assim, assumir-se como negro é complicado, pois, associada


a sua condição de negro, existe uma série de estigmas que foram
atribuídos a ele desde a escravidão já que “a diferença de pigmentação
da pele tornou-se um elemento distintivo da posição social” (VALENTE,
1987, p.17). Portanto, quanto mais claro o indivíduo, melhor o seu
status social e melhores também serão a sua aceitação na sociedade e,
consequentemente, as funções que lhe serão destinadas.

O fato de os negros não assumirem a sua identidade étnica


influi também na concepção que eles têm a respeito dos seus direitos
enquanto membros de categorias historicamente marginalizadas,
interferindo, portanto, na forma como se concebem como cidadãos
brasileiros, detentores de direitos e deveres. Nesse sentido, é comum
negros serem discriminados e não perceberem (ou não admitirem) que
estão sendo maltratados devido à cor da sua pele. Esse fato interfere
no processo de construção de uma sociedade menos racista e menos

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O direito à saúde: uma alternativa de combate ao racismo

desigual pois, na medida em que a discriminação não é questionada,


torna-se mais difícil romper com ela.

Fica difícil também para a população afrodescendente se


afirmar em uma sociedade que procura o tempo todo negar o seu
caráter racista e quando nela existem negros que não querem ou até
não sabem reconhecer que estão sendo vítimas de racismo. Assim,
algumas questões relacionadas aos direitos conquistados pelos negros
(na educação, na cultura, na saúde) permanecem desconhecidas pela
maioria deles e, consequentemente, fica mais difícil colocá-las em
prática.

No entanto, o Estatuto da Igualdade Racial (Capítulo I - Art. 6º)


é bem claro quando garante o direito à saúde dos negros e estabelece
normas específicas para o seu atendimento no serviço público: “O direito
à saúde da população negra será garantido pelo poder público mediante
políticas universais, sociais e econômicas destinadas à redução do risco
de doenças e de outros agravos”.

A garantia desses direitos é ainda reforçada quando o Estatuto


(Capítulo I - Art. 6º- § 1º) acrescenta em seguida:
O acesso universal e igualitário ao Sistema Único
de Saúde (SUS) para promoção, proteção e
recuperação da saúde da população negra será de
responsabilidade dos órgãos e instituições públicas
federais, estaduais, distritais e municipais, da
administração direta e indireta (BRASIL, 2010).

Mas o que percebemos é que há desconhecimento (ou


negação) dessa Lei por parte dos órgãos de saúde, já que na prática as
pessoas negras são cotidianamente discriminadas nos serviços públicos.

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O direito à saúde: uma alternativa de combate ao racismo

E, mesmo considerando o fato de o Estatuto ter sido promulgado apenas


em julho de 2010, não podemos esquecer que desde a Constituição de
1988 existe uma determinação de propor a redução das desigualdades
sociais a partir da promoção do bem de todos, sem distinção de origem,
raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Assim,
podemos concluir que há descumprimento da Lei, pois a sociedade
brasileira não concebe, na prática, a ideia de que todos são iguais e
continua manifestando atitudes racistas no atendimento aos negros.
Esse argumento foi confirmado no II Seminário Nacional da Saúde da
População Negra (Rio de Janeiro – 2006), quando o então Ministro da
Saúde, Agenor Álvares, afirmou que há diferença entre o atendimento
ofertado à pessoa negra e aquele ofertado à pessoa não negra. Com essa
afirmação, o governo brasileiro admite que é destinado ao negro um
tratamento desigual e propõe medidas para a melhoria das condições
de saúde dessa população (BOLETIM CRI, 2006). A prática do racismo é,
finalmente, inserida nas discussões políticas de forma mais consciente
e, através da fala do ministro, o governo reconhece oficialmente a
existência do racismo institucional no serviço público de saúde.

De acordo com Wieviorka (2007), o racismo institucional é


uma modalidade de racismo que mantêm os negros em situação
de inferioridade por mecanismos não percebidos ou declarados,
assegurando a reprodução da discriminação dos negros na moradia, na
escola, no mercado de trabalho...
[...] o problema não é mais a existência de doutrinas
ou de ideologias que se valem mais ou menos
explicitamente da ciência, não é nem mesmo o
que pensam as pessoas ou qual é o conteúdo dos
argumentos que utilizam ocasionalmente para

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O direito à saúde: uma alternativa de combate ao racismo

justificar os seus atos racistas. É no funcionamento


mesmo da sociedade, da qual o racismo
constitui uma propriedade estrutural inscrita nos
mecanismos rotineiros, assegurando a dominação e
a inferiorização dos negros sem que ninguém tenha
quase a necessidade de os teorizar ou de tentar
justificá-los pela ciência. O racismo aparece assim
como um sistema generalizado de discriminações
que se alimentam ou se informam uns aos outros
[...] (WIEVIORKA, 2007:30).

É, portanto, um tipo de racismo que se reproduz sem a presença


de atores definidos e não prioriza o discurso, mas a prática, distanciando-
se de outras modalidades de racismo que se respaldavam num discurso
científico.

Nesse sentido, o racismo institucional pode ser utilizado pelo


governo como um elemento indispensável para avaliar a qualidade
dos serviços de saúde e impulsionar a elaboração de programas
que objetivem a correção das desigualdades raciais e a promoção da
igualdade de oportunidades.

É importante mencionar que na última década o governo federal


tem desenvolvido ações com o intuito de melhorar os serviços públicos
de saúde e vários programas foram criados para esse fim, dentre os
quais é importante citar: Política Nacional de Humanização da Atenção
e Gestão no SUS; Plano de Reorganização da Atenção à Hipertensão
Arterial e ao Diabetes Mellitus; Programa de Atenção Integral aos
Pacientes com Doença Falciforme; Programa de Humanização no
Pré-Natal e Nascimento; Programa Estratégico de Ações Afirmativas:
População Negra e AIDS (BOLETIM CRI, 2006). Outra ação que merece
destaque refere-se à criação, em 2007, da Política Nacional de Saúde

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O direito à saúde: uma alternativa de combate ao racismo

Integral da População Negra (PNSIPN) elaborada pela Secretaria de


Gestão Estratégica e Participativa, com assessoria do Comitê Técnico de
Saúde da População Negra (CTSPN). A PNSIPN inclui nos seus objetivos
“o fomento à realização de estudos e pesquisas sobre racismo e saúde
da população negra” e propõe “a ampliação e o fortalecimento da
participação de lideranças da saúde da população negra nas instâncias
de participação e controle social do SUS” (BRASIL, 2010).

Percebemos que a PNSIPN propõe mudanças substanciais


em relação ao tratamento destinado ao negro quando determina
ações voltadas à sua participação política junto aos órgãos do
governo responsáveis pela saúde e estabelece diretrizes no sentido de
proporcionar à população negra o acesso aos programas de saúde citados
anteriormente, já que eles relacionam-se diretamente ao diagnóstico e
ao tratamento das doenças que acometem mais as pessoas negras.

A saúde da população negra


No Brasil, algumas doenças são mais incidentes na população
negra. Essa prevalência deve-se em grande parte ao processo de
miscigenação ocorrido aqui com a vinda de escravos procedentes
de várias regiões da África que possuíam características genéticas
peculiares e, com a posterior miscigenação entre negros e brancos, fez
surgir uma população com uma especificidade genética que a distingue
de outras populações mundiais. Além de fatores genéticos, as condições
socioeconômicas a que foram submetidos os negros desde o período
colonial até os dias de hoje influenciaram fortemente a frequência, a
distribuição e a causalidade das doenças mais incidentes na população

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O direito à saúde: uma alternativa de combate ao racismo

afro-brasileira (BRASIL, 2007). Entre essas doenças podemos citar:


anemia falciforme, hipertensão arterial, doença hipertensiva específica
da gravidez e diabetes mellitus.

A título de esclarecimento, faremos uma breve explanação


sobre as principais características dessas doenças para que possamos
entender como elas podem comprometer a vida das pessoas que são
acometidas por elas.
Anemia falciforme – [...] é a doença hereditária
mais comum no Brasil. Com origem no continente
africano, especificamente nas zonas endêmicas
de malária, incide predominantemente sobre
afrodescendentes. No Brasil, existe a predominância
do tipo Banto, que, segundo a classificação médica,
é a forma mais grave. Distribuída heterogeneamente
no território nacional, é mais frequente nas regiões
onde a proporção de população afrodescendente é
maior, ou seja, no Nordeste do país. Sabe-se também
que as diversas formas de anemia falciforme
apresentam variadas manifestações clínicas, sendo
em alguns casos assintomática e em outros de muita
gravidade, levando a complicações que podem
chegar a afetar quase todos os órgãos e sistemas,
com alta morbidade e provocando uma redução
significativa da esperança de vida (Disponível em:
http//portaldasaude.saude.gov.br. Acesso em
10/08/2012).

De acordo com a Associação de Anemia Falciforme do Estado


de São Paulo, os principais sintomas da doença são: crises dolorosas
nos ossos, músculos e articulações, palidez, cansaço fácil, icterícia (cor
amarelada no branco dos olhos), úlceras – sobretudo nas pernas – que
se iniciam geralmente na adolescência e tendem a se tornar crônicas.
Nas crianças, pode haver inchaço doloroso nas mãos e nos pés e retardo

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O direito à saúde: uma alternativa de combate ao racismo

do crescimento (Disponível em http// aafesp.org.br. Acessado em


19/08/12).

A hipertensão arterial é mais prevalente nos negros e aparece


mais cedo e de forma mais grave nessa população, sendo também umas
das principais causas de morte dos negros. Pesquisas recentes mostram
uma maior probabilidade de aparecimento da doença nas mulheres
negras e alertam para as consequências durante a gravidez e para a
morte materna por toxemia decorrente da hipertensão arterial. As
síndromes hipertensivas na gravidez podem se manifestar através da
hipertensão arterial crônica e da pré-eclâmpsia (individualmente ou de
forma associada) e se caracterizam por complicações que podem afetar
a mulher e o feto na gravidez (Disponível em http// portaldasaude.saude.
gov.br. Acessado em 10/08/12).
Sendo a hipertensão arterial crônica mais frequente
em mulheres negras do que em brancas e
constituindo, per se, um importante fator de risco
para a pré-eclâmpsia, as consequências para a mãe e
para o feto são, coletivamente, piores na população
de mulheres negras do que na de mulheres brancas.
Individualmente, entretanto, uma mulher negra
com o diagnóstico de hipertensão crônica tem a
mesma probabilidade de desenvolver pré-eclâmpsia
sobreposta do que uma mulher branca com o
mesmo diagnóstico.

O rastreamento de hipertensão crônica no


acompanhamento pré-natal deve ser feito com
ainda maior ênfase em mulheres negras, para
se identificar mais precocemente as hipertensas
crônicas, embora ainda não seja possível prever
nem prevenir o desenvolvimento subsequente de
pré-eclâmpsia sobreposta (BRASIL, 2001, p. 71/72).

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O direito à saúde: uma alternativa de combate ao racismo

O diabetes mellitus é também uma doença que tem grande


prevalência na população negra. Os principais sintomas são a perda
de peso, a poliúria (eliminação de grande volume de urina) e a sede
excessiva. No entanto ela pode se manifestar sem apresentar nenhum
desses sintomas, tornando mais complicado ainda o diagnóstico precoce
da doença.
O diabetes mellitus é um distúrbio metabólico
de etiologia múltipla, caracterizado por uma
hiperglicemia crônica, decorrente tanto de uma
deficiência de insulina, como da incapacidade de a
insulina exercer adequadamente seus efeitos, ou
de uma combinação, em graus variáveis, dessas
condições.

Após alguns anos de evolução, é frequentemente


acompanhado por danos, disfunção e falência de
vários órgãos ou sistemas, como olhos, rins, coração,
nervos e vasos sanguíneos. O diabetes mellitus é
um importante problema de saúde pública, pois é
bastante frequente, está associado a complicações
que comprometem a produtividade, a qualidade de
vida e a sobrevida dos indivíduos, além de envolver
altos custos no seu controle e no tratamento de suas
complicações (BRASIL, 2001, p. 56).

Outro dado importante em relação à doença é o fato de ela


atingir preferencialmente as mulheres, aumentando consideravelmente
o risco de complicações em mulheres grávidas negras. Estudos recentes
sobre o diabetes tipo II (a forma mais comum da doença) demonstraram
que homens negros têm 9% a mais de probabilidade de desenvolver
diabetes que os homens brancos, e no caso das mulheres negras esse
índice vai para 50% em relação às mulheres brancas, o que justifica o
fato de haver um alto índice de diabetes gestacional em mulheres

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O direito à saúde: uma alternativa de combate ao racismo

negras (Disponível em: http//portaldasaude.saude.gov.br. Acesso em


10/08/2012).

Como é possível perceber, essas doenças são bem comuns na


sociedade e são também fáceis de serem diagnosticadas: o diabetes é
identificado através de um exame de sangue simples, possível de ser
realizado em qualquer laboratório; a hipertensão pode ser diagnosticada
através da aferição da pressão; e a anemia falciforme pode ser detectada,
entre outros exames, através do teste do pezinho nos recém-nascidos.
São, portanto, doenças de fácil diagnóstico, mas que, se não forem
detectadas previamente, podem comprometer gravemente a vida das
pessoas.

No caso da anemia falciforme, os pacientes são submetidos a


uma ‘sobrevida pois geralmente o problema se manifesta na infância
e acompanha toda a vida do paciente sem que, muitas vezes, ele seja
tratado da maneira adequada já que nem sempre os profissionais
fazem o diagnóstico correto. A hipertensão e o diabetes deveriam ser
considerados como problemas de saúde pública devido aos altos índices
na população e ao fato de interferirem definitivamente na qualidade de
vida das pessoas acometidas por elas.

No entanto, através da pesquisa realizada nas instituições de


saúde citadas anteriormente, percebemos que a maioria desses agravos
não é tratada como deveria e muitas vezes eles nem são conhecidos.
Essa falta de conhecimento foi facilmente comprovada e, em alguns
profissionais, foi possível identificar exemplos de total desconhecimento
relacionados a quase todas as enfermidades definidas anteriormente.

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O direito à saúde: uma alternativa de combate ao racismo

No centro de saúde que atende especificamente pacientes


de diabetes e hipertensão, a coordenadora, ao ser questionada sobre
as doenças de maior prevalência nos negros, informou que só sabia
do diabetes porque tinha estudado há algum tempo, mas em relação
à hipertensão e outras doenças citadas na entrevista, ela nunca tinha
sido informada (R. P. – Gerente do Centro de Diabetes e Hipertensão
Teodorico Teles em entrevista concedida em 20/09/2012).

É possível perceber também que os gestores da saúde nas


secretarias municipais possuem pouco conhecimento sobre o que
deveria ser a sua função enquanto administradores da saúde do
município – ou seja, não sabem como trabalhar e demonstram pouco
interesse em buscar informações a respeito de determinações federais
sobre a saúde pública que, no fundo, só ajudariam no desenvolvimento
do seu trabalho.

Em pesquisas realizadas na primeira etapa deste trabalho com


secretários de saúde foi fácil identificar o pouco conhecimento deles em
relação ao Estatuto da Igualdade Racial. Percebemos também que, por
não terem domínio sobre o assunto, alguns faziam questão de mostrar
outros programas do Município ou insistiam em dizer que tudo era feito
para o bem de toda a população, sem distinção de raças.

No caso específico da Secretaria de Saúde do município de


Crato, no ano de 2010 foi realizada uma reunião com coordenadores
de várias unidades de saúde na qual, as informações referentes ao item
da saúde do Estatuto da Igualdade Racial era um dos pontos de pauta.
Nesse encontro uma representante do GRUNEC (Grupo de Valorização
dos Negros do Cariri) foi convidada para esclarecer algumas questões

183 Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 8, 2015 ISSN: 1677-9460


O direito à saúde: uma alternativa de combate ao racismo

sobre o assunto. De acordo com a assessora do então secretário de


saúde, a reunião foi bastante proveitosa e muitos se comprometeram a
cumprir as orientações do Estatuto. No entanto, como no Brasil os cargos
públicos são ocupados a partir de critérios estabelecidos de acordo com
os interesses de quem está no poder, muitos projetos são deixados de
lado sem o menor respeito à população. No caso da Secretaria de Saúde
do Crato, o então secretário não deu continuidade a essa iniciativa de
orientar os profissionais sobre o Estatuto e logo em seguida se afastou
do cargo. As pessoas que o substituíram sequer demonstraram conhecer
o tema e nem tiveram interesse em se informar ou procurar capacitar os
profissionais da área.

Ainda em relação ao Centro de Diabetes e Hipertensão Teodorico


Teles, ao ser questionada sobre o modo de orientar os profissionais em
relação às determinações do Ministério da Saúde sobre a população
negra, a coordenadora informou:
Não sei quais são as normas, mas aqui trabalhamos
no sentido da valorização dos pacientes e do local
físico. Fazemos palestras para colocar em pauta
os dois projetos existentes (diabetes infantil e
tabagismo) e trazer melhorias para a população de
uma forma geral, sem merecer brancos ou negros.

Quando foi questionada sobre a existência de algum trabalho


voltado ao controle de diabetes e hipertensão, ela argumentou:
[...] No Crato, já são cadastrados mais de 8.000
hipertensos nesta unidade, mas não temos projetos
voltados para essa categoria. No diabetes, temos
o projeto de diabetes infantil, que é comandado
por uma doutora que é pediatra e é negra. Assim,
quando tem uma criança que já está acima do peso

184 Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 8, 2015 ISSN: 1677-9460


O direito à saúde: uma alternativa de combate ao racismo

ou com a taxa de glicemia alta, a doutora chama logo


a família e conversa para organizar a alimentação,
fazer exercício para reduzir o diabetes infantil.

É importante ressaltar que na maioria dos cadastros realizados


nas instituições de saúde, a coleta do quesito cor é exigida, no entanto,
parece não ter utilidade ou não ser levada em conta, pois nas entrevistas
nenhum profissional mencionou nada a respeito desse dado, o que
demonstra mais uma vez o despreparo ou a falta de compromisso dos
profissionais envolvidos nos programas de saúde.

A implantação da coleta do quesito cor nos protocolos de


atendimento das instituições públicas de saúde é uma exigência
estabelecida através da PNSIPN e também uma reivindicação de diversos
segmentos do movimento negro pois é através dessa informação que se
torna possível conhecer os indicadores relacionados aos processos de
adoecimento e as causas de morte mais comuns na população negra
(BRASIL, 2010).

O relatório Saúde Brasil 2005: uma análise da situação de


saúde foi elaborado com o intuito de obter informações sobre a saúde
dos brasileiros. Para isso, coletou dados referentes a raça, cor e etnia e
analisou aspectos relacionados ao nascimento (tipo de parto, baixo peso
ao nascer, assistência pré-natal) e a morbi-mortalidade materno-infantil
(BRASIL, 2010).

Os resultados obtidos são preocupantes e colocam o Brasil


numa situação bastante desconfortável em relação à saúde da população
negra, pois todos os índices relativos a essa etnia comprovam que no país
ainda existe uma imensa desigualdade entre brancos e negros, refletindo

185 Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 8, 2015 ISSN: 1677-9460


O direito à saúde: uma alternativa de combate ao racismo

as características de uma sociedade intensamente estratificada social e


etnicamente.

Ainda de acordo com as informações obtidas no relatório, 62%


das mães de nascidos brancos referiram ter passado por sete ou mais
consultas de pré-natal, enquanto para as mães de nascidos pardos o
índice cai para 37%. Foi constatado também que o número de morte
de causas maternas entre as mulheres negras grávidas é bem maior do
que entre as brancas, sendo a hipertensão própria da gravidez uma das
maiores causas dessas mortes (BRASIL, 2010).
O relatório destaca os dados referentes às crianças
menores de 5 anos. O risco de uma criança preta ou
parda morrer antes dos 5 anos por causas infecciosas
e parasitárias é 60% maior do que o de uma criança
branca. Também o risco de morte por desnutrição
apresenta diferenças alarmantes, sendo 90% maior
entre crianças pretas e pardas que entre brancas
(BRASIL, 2010, p.14).

O fato de haver uma maior incidência de mortes entre crianças


e mães negras não pode ser encarado como normal ou como mera
coincidência. Deveria sim, ser concebido como um problema de saúde
pública, tendo em vista que grande parte da população brasileira é
composta por pessoas dessa etnia. Mas infelizmente o que tem se
comprovado na prática é um total descaso em relação a esse assunto, já
que mesmo diante da comprovação desses índices e das determinações
do governo, pouco ou nada é feito para mudar esse quadro.

Além disso, grande parte dos profissionais que ocupam cargos


de extrema responsabilidade em unidades públicas de saúde não tem
domínio nenhum sobre os programas citados anteriormente.

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O direito à saúde: uma alternativa de combate ao racismo

É o que foi percebido através da fala de uma enfermeira que


coordena uma unidade infantil de um hospital público que, ao ser
questionada sobre o Estatuto da Igualdade Racial, disse: “Bem, eu já
ouvi falar, mas não tenho um conhecimento bem a fundo do Estatuto”
e, quando foi perguntada sobre o tipo de treinamento que era dado
aos profissionais ela respondeu: “[...] eu não sei bem te responder
porque essa não é a minha área. Mas acredito que existam políticas de
socialização com os funcionários, estratégias para o bom funcionamento
do hospital” (T. X. – Coordenadora da Unidade Infantil do Hospital e
Maternidade São Lucas – entrevista concedida em 03/09/12).

Percebemos claramente nessa entrevista que faltam


conhecimentos básicos sobre a saúde da população negra. Falta,
inclusive, a maturidade necessária para o desempenho de uma função
tão importante. E, infelizmente, falta também compromisso por parte
dos gestores municipais em preencher os cargos com profissionais
competentes, capazes de resolver problemas essenciais que necessitam
de medidas estruturais para serem executados.

Na pesquisa foi possível observar também que no hospital


público especializado no atendimento às mulheres grávidas, não existe
nenhum cartaz ou qualquer informação sobre síndrome hipertensiva na
gravidez, anemia falciforme ou doenças relacionadas às pessoas negras;
o que é extremamente contraditório quando se trata de uma unidade
que é referência em neonatologia e obstetrícia na Região Metropolitana
do Cariri.

Com base nessas informações, é possível identificar claramente


o não cumprimento das diretrizes estabelecidas pelo governo para a

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O direito à saúde: uma alternativa de combate ao racismo

saúde dos negros. Mas não existe fiscalização ou acompanhamento


algum em relação à implantação dos programas de saúde criados pelo
governo, por isso é visível a falta de conhecimento dessas normas por
parte das instituições e dos profissionais de saúde, o que torna mais
grave ainda a situação dos negros que procuram as unidades de saúde,
pois o racismo que é reafirmado dia a dia na sociedade brasileira através
de atitude banais (na linguagem comum, nas tradições, na cultura – pelo
seu entranhamento na história do país) assume proporções gigantescas
quando se expressa nas instituições públicas.

O racismo institucional se revela em ações corriqueiras, no dia


a dia do trabalho através do despreparo dos funcionários no trato com o
negro, ‘nos modos de agir e de olhar’ para ele, no privilégio que é dado
‘declaradamente’ a alguns enquanto os negros permanecem sempre no
final das filas.
Manifesta-se por meio de normas, práticas e
comportamentos discriminatórios adotados no
cotidiano de trabalho, resultantes de ignorância, falta
de atenção, preconceitos ou estereótipos racistas.
Em qualquer caso, sempre coloca pessoas de grupos
raciais ou étnicos discriminados em situação de
desvantagem no acesso a benefícios gerados pela
ação das instituições (BRASIL, 2010, p.16).

Atualmente, essa modalidade de racismo substitui as violentas


atitudes racistas, tão comuns na maioria das instituições brasileiras, e
surge assim, silencioso, sutil às vezes, mas sempre presente e sempre
colocando à margem categorias sociais já discriminadas historicamente.

O racismo institucional se confirmou facilmente nas unidades


de saúde pesquisadas através da fala de alguns pacientes entrevistados:

188 Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 8, 2015 ISSN: 1677-9460


O direito à saúde: uma alternativa de combate ao racismo

“[...] a partir do momento que você entra, as


pessoas já olham pra você dos pés a cabeça, nos
julgam pela nossa cor, pela nossa roupa. Acham
que estão fazendo um favor, mas, na verdade, é um
direito. Todos nós temos os mesmos direitos, por
isso ninguém é melhor do que ninguém” (A. I. – 21
anos – Entrevista realizada em 28/07/2012).

“[...] quando cheguei aqui no Posto pela primeira


vez, muita gente olhou diferente pra mim porque
sou negro e porque sou da Bahia. Quando sentei no
banco, senti que uma senhora se sentiu incomodada
com a minha presença e se afastou. Depois tentei
me comunicar com algum atendente, mas foi inútil.
Era como se ninguém me visse, me senti tão mal
com todos me olhando daquela maneira [...]” (M. F.
– 30 anos – 03/08/2012).

Contribui, portanto, para a reprodução da segregação étnico-


racial, afastando as pessoas das instituições públicas e da possibilidade
de garantir os seus direitos.

Portanto, é importante que os afrodescendentes tenham


conhecimento das leis que garantem os seus direitos de cidadãos
brasileiros e dos programas sociais desenvolvidos pelo governo, pois
uma das possibilidades de reafirmar a identidade deles é através da
consciência sobre os seus próprios problemas e da consequente luta pela
resolução deles. Mas, nesta pesquisa, nenhum paciente entrevistado
mencionou conhecer o Estatuto; apenas informavam que não podiam
ser discriminados pois acreditavam que, ‘no mundo, não existe ninguém
melhor ou pior, todos são iguais’.

Assim, neste trabalho, o racismo é abordado como uma prática


construída historicamente e acreditamos que o seu estudo deve estar

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O direito à saúde: uma alternativa de combate ao racismo

relacionado à ideia de identidade e aos conceitos de igualdade, diferença


e desigualdade porque entendemos que esses conceitos não devem ser
trabalhados isoladamente.

As noções que possuímos sobre igualdade estão sempre


acompanhadas das noções que possuímos sobre a diferença
(WOODWARD apud SILVA, 2007), mas é importante esclarecer que esses
conceitos não se opõem, apenas se confrontam e por isso a diferença
não deve ser utilizada como justificativa para negar a igualdade.
No entanto, a presença da escravidão no processo de formação da
sociedade brasileira faz surgir no país uma forma diferenciada de pensar
as relações sociais que passam a ser determinadas a partir do critério
da cor das pessoas. Assim, as concepções sobre igualdade de direitos
passam a ser intimamente relacionadas ao lugar que as pessoas ocupam
na sociedade, e o cumprimento da lei no que diz respeito à igualdade de
todos é totalmente desconsiderado quando a questão envolve negros, já
que estes dificilmente têm consciência dos direitos que lhe assistem. O
fato de, no Brasil, o critério da cor ser utilizado para definir direitos nega,
inclusive, o princípio da diversidade que é inerente ao mundo humano
e ao mundo animal e extrapola a determinação da Constituição Federal
que assegura que todos são iguais perante a lei.

Por outro lado, o conceito de igualdade tem também como


contraponto o conceito de desigualdade e, quando pensamos em
desigualdade, devemos considerar que ela se refere a uma realidade
circunstancial e só pode ser compreendida a partir de um ponto de vista,
de um espaço de reflexão. De acordo com Barros (2009):
A desigualdade é sempre circunstancial, seja
porque estará necessariamente localizada social e

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O direito à saúde: uma alternativa de combate ao racismo

historicamente dentro de um processo, seja porque


estará obrigatoriamente situada dentro de um
determinado espaço de reflexão ou de interpretação
que a especificará (um determinado espaço teórico
definidor de critérios, por assim dizer). Falar sobre
desigualdade implica nos colocarmos em um
ponto de vista, em um certo patamar ou espaço
de reflexão (econômico, político, jurídico, social, e
assim por diante). Mais ainda, implica arbitrarmos
ou estabelecermos critérios mais ou menos claros
dentro de cada espaço potencial de reflexão (p. 22).

Portanto, quando falamos que no Brasil o tratamento destinado


à saúde da pessoa negra é desigual estamos admitindo que, quando se
trata de pessoas brancas, a realidade é diferente. E, como a desigualdade
está relacionada à ‘circunstancialidade histórica’, é possível que essa
situação seja revertida através da ação humana.

Nesse sentido, o Estatuto da Igualdade Racial se constitui como


uma ferramenta importantíssima no combate ao racismo pois introduz
questões de extrema relevância para a compreensão da exclusão social
que compromete a população negra no Brasil e propõe um debate sobre
as perspectivas de mudança a partir da participação dos negros como
‘agentes políticos’ atuando a favor da sua própria história.

O fato de o governo elaborar leis não resolve, por si só, o


problema. É necessário que haja fiscalização e acompanhamento nas
diversas instâncias para saber se essas leis estão sendo cumpridas de
maneira efetiva, pois só assim elas passarão a ter sentido.

Por isso, para que o Estatuto da Igualdade Social seja colocado


em prática é necessário que exista um projeto do governo envolvendo a
sociedade, as instituições de saúde e a população afrodescendente com

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O direito à saúde: uma alternativa de combate ao racismo

o objetivo de orientar os diversos segmentos sociais sobre o Estatuto de


uma forma geral, e sobre as questões relacionadas às consequências do
racismo para a sociedade. Esse projeto deve propor inicialmente medidas
educativas que insiram o debate sobre a diversidade étnica e sobre a
existência do racismo, já que são duas características bem marcantes
da sociedade brasileira, para, em seguida, introduzir as noções sobre
igualdade de direitos, identidade étnica e cidadania. Só assim será mais
fácil pensar numa sociedade mais consciente e mais habilitada para
enfrentar os problemas e reivindicar os seus direitos.

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O direito à saúde: uma alternativa de combate ao racismo

Referências Bibliográficas
BARROS, José D’Assunção Barros. A construção social da cor – Diferença e
desigualdade na formação da sociedade brasileira. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009.
BRASIL. Estatuto da Igualdade Racial. Brasília: Câmara dos Deputados, Edições
Câmara, 2010.
BRASIL. Manual de doenças mais importantes, por razões étnicas, na população
brasileira afrodescendente. Ministério da Saúde, Secretaria de Políticas de
Saúde. – Brasília: Ministério da Saúde, 2001.
BRASIL. Ministério da Saúde. Política Nacional de Saúde Integral da População
Negra: uma política para o SUS. Ministério da Saúde – Brasília: Editora do
Ministério da Saúde, 2010.
BOLETIM CRI – Combate ao Racismo Institucional – Saúde e Comunicação para
o Desenvolvimento. Brasília, 2006.
DÁNGELO, Élcio. Estatuto da Igualdade Racial – Comentado. São Paulo: EDIJUR,
2010.
LESSA, Z. L.. Reabilitação Social – Hanseníase e Educação em Saúde: O Confronto
entre o Conhecimento Científico, Empírico e Teológico. São Paulo, 1986. Tese
de Mestrado – F.S.P. São Paulo.
ROSA, Daniel Polydoro. Constituição Federal 1988. São Paulo: Lex Editora, 2010.
VALENTE, Ana Lúcia E. F. Ser negro no Brasil hoje. São Paulo: Ed. Moderna,
1987.
WIEVIORKA, Michel. O racismo, uma introdução. São Paulo: Perspectiva, 2007.
WOODWARD, Kathryn. Identidade e Diferença – uma introdução teórica
e conceitual. In: SILVA, Tomaz Tadeu da. (Org). Identidade e Diferença: a
perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007.

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O direito à saúde: uma alternativa de combate ao racismo

Outras Fontes
ASSOCIAÇÃO DA ANEMIA FALCIFORME DO ESTADO DE SÃO PAULO. Disponível
em http// aafesp.org.br. Acesso em 19.08.2012.
MANUAL DA ANEMIA FALCIFORME PARA A POPULAÇÃO. Disponível em http//
saude.sp.gov.br. Acesso em 19/08/2012.
MOURA, Bruno César. A Constitucionalidade das políticas de ações afirmativas
em favor dos afrodescendentes. Disponível em http/ideario.org.br. Acesso em
01.12.2010.
PORTAL DA SAÚDE. Disponível em http//portaldasaude.saude.gov.br. Acesso
em 19/08/2012.
SAÚDE. Disponível em http//portal.mec.gov.br. Acesso em 15/09/2012.

Artigo submetido em: 14/10/2012


Artigo aprovado em: 30/12/2013

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Artigo
Paisagens da memória:
os campos de concentração e a seca
no Nordeste do Brasil
Mary Kenny1

Resumo
No ano de 1932, os campos de concentração foram instituídos no Ceará, estado
localizado no Nordeste brasileiro, como uma resposta ao deslocamento de milhares
de pessoas pela terrível seca. A experiência dos campos, como relatada por aqueles
que sobreviveram, era de privações e morte. Os moradores de Senador Pompeu,
cidade que abrigou um desses campos, comemoram essa experiência com uma
procissão anual ao cemitério local e estão tentando fazer com que as ruínas sejam
tombadas. Assinalar tais lugares como patrimônio é uma maneira de intervir
não somente economicamente, como turismo cultural, mas também através de
processos ativos de conscientização ao transmitir a violência que ainda persiste na
sociedade contemporânea.

Palavras-chave: campos de concentração, refugiados da seca, Nordeste brasileiro,


patrimônio, conscientização.

1 Professora na Eastern Connecticut State University. E-mail: kennym@


easternct.edu.

Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 8, 2015 ISSN: 1677-9460


Paisagens da memória: os campos de concentração e a seca no Nordeste do Brasil

Abstract
Concentration camps were established in the Northeastern Brazilian state of
Ceará in 1932 as a response to the displacement of thousands by severe drought.
The experience of the camps, as reported by those who survived them, was one
of privation and death. Residents of Senador Pompeu, the site of one such camp,
commemorate the experience with an annual procession to the cemetery and are
attempting to have the ruins of the camp declared “heritage.” Marking such places as
heritage is in many ways an intervention not only economically, as heritage tourism,
but through the active critical processes of conscientization, communicating the
violence that persists in contemporary society.

Keywords: concentration camps, drought refugees, Northeastern Brazil, heritage,


conscientization.

Em 1932, o estado nordestino brasileiro do Ceará construiu


sete campos de concentração2 como uma estratégia de mitigação da
seca para agilizar a distribuição de alimentos, reunir trabalhadores
para projetos públicos e para o confinamento espacial dos retirantes,
os refugiados da seca. Esse confinamento supostamente pretendia
conter o contágio de doenças infecciosas e o comportamento instável
resultado de uma grave seca. Os campos já haviam sido usados como
uma estratégia de mitigação da seca em anos anteriores a 1932, embora
nunca houvessem sido usados ao nível local antes (NEVES, 2000; VILLA,

2 “Campos de Concentração” é o termo usado em fontes primárias (ver: José


Américo de Almeida, Ministério da Viação e Obras Públicas, Inspetoria Federal de Obras
Contra As Secas, Relatório dos Trabalhos Realizados no Treino 1931–1933, Apresentado
ao Ministro José de Almeida pelo Inspetor Luíza Augusto da Silva Vieira, CE, Fortaleza,
1934, p. 57; Estado de Ceará, Relatório, Administração, Interventor Federal Cap. Roberto
Carneiro de Mendonça, 22 de setembro de 1931 a 5 de setembro de 1934 p. 62, 63,
Decreto n. 566, 14 Abril, 1932). Eles também eram chamados de centros de trabalhadores
desempregados, colônias de trabalhadores, colônias agrícolas (ARAGÃo e FROTA, 1984,
p. 214) e currais (NEVES, 2003, p. 73).

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Paisagens da memória: os campos de concentração e a seca no Nordeste do Brasil

2000). Os censos destes confinamentos diferem durante o ano da seca,


os resquícios dos campos e a memória local sobre eles variam.

Em Senador Pompeu, uma cidade localizada a 272 km de


Fortaleza, as ruínas dos edifícios administrativos de um antigo campo de
concentração desempenham um papel mnemônico na comemoração
dessa experiência histórica. A “função memória” (HODGKIN and
RADSTONE, 2003) também se faz presente através da procissão a um
cemitério isolado localizado a poucos quilômetros do centro da cidade.
De acordo com Rodrigues (1999), todos aqueles que morreram nos
campos foram enterrados ali, uma vez que suas fontes batismais eram
desconhecidas e os seus restos mortais eram vistos como uma ameaça
à saúde pública. Alguns moradores locais estão tentando fazer com que
os campos sejam reconhecidos como patrimônio, como uma maneira de
incrementar o turismo. O lugar serviria como um local para uma reflexão
crítica sobre as necessidades sociais e políticas do presente. No entanto,
o desafio na construção de significado, valor, memória e práticas sobre
esse lugar, além de transformá-lo em “patrimônio”, está na conexão
das narrativas sobre as vítimas da seca, encurraladas em um campo de
concentração em 1932, e os interesses contemporâneos sociais, políticos
e econômicos da comunidade.

A autópsia da história
Quais são as maneiras pelas quais a maioria das experiências
esquecidas ou ignoradas que aconteceram há mais de 70 anos é
lembrada, comemorada e vivida? A tradição oral é vista como uma
maneira de documentar essas histórias silenciosas, de desenterrar

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Paisagens da memória: os campos de concentração e a seca no Nordeste do Brasil

narrativas passadas, como uma “democratização do passado”, segundo


o historiador social Jay Winter (1995, p. 281), como um recurso para
a produção de histórias alternativas. De acordo com o historiador de
tradições orais Alessandro Portelli, essas narrativas alternativas nos
contam “não apenas o que as pessoas fizeram, mas o que eles queriam
fazer, o que eles acreditavam que estavam fazendo e o que eles agora
acham que fizeram” (1991, p.50). David Lowental afirma que a memória
evolui filogeneticamente (1985, p. 18) mediada pelas transições do ciclo
da vida, pela sedimentação das experiências de vida, pela mídia e por
uma grande cultura política. A memória então é um processo, e não uma
“bagagem despachada” (LOWENTHAL, 1985, p. 252–3).

A “memória coletiva” tem sido uma ferramenta cultural útil


no trabalho da memória associada à herança (SMITH, 2006, p. 59).
Goffman (1986) sugeriu que as “memórias coletivas” são moldadas pelas
“molduras sociais”. Esses esquemas simbólicos, discursivos e baseados
em lugares, moldam o que o sociólogo Émile Durkheim descreveu há
mais de um século como o “temperamento” do grupo, ou a “consciência
compartilhada”, o “elo” que os mantêm unidos. Maurice Halbwachs
(1992 [1925]), um aluno de Durkheim, argumentou que as memórias
coletivas se apoiam nesses esquemas para descrever e explicar o
passado. Por exemplo, no polígono da seca onde a cidade de Senador
Pompeu está localizada, não há ninguém que tenha chegado à velhice
sem haver presenciado pelo menos uma seca rigorosa (MELLO, 1964, p.
139). Nos relatos orais colhidos em 2002 e 2003, a seca foi um esboço
discursivo poderoso para a memória coletiva.

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Paisagens da memória: os campos de concentração e a seca no Nordeste do Brasil

As lembranças são reinterpretadas pelas oportunidades,


necessidades, significados e valores contemporâneos e, portanto, são
vistas como fontes subjetivas, emocionais e duvidosas dos “fatos”
históricos. No entanto, no final do século XX, a partir das repercussões
dos movimentos sociais, particularmente a criação dos estados pós-
coloniais na África, a luta pelos direitos civis entre afro-americanos, os
estudos culturais e a história social passam a considerar um problema a
noção da história como factual, consensual e incontestável, ao chamar a
atenção para as maneiras pelas quais o poder privilegia e naturaliza sua
construção (HALL, 1999; HOBSBAWM, 1983; TROUILLOT, 1995).

A palavra “Capital” é atribuída a certas lembranças que se


tornam institucionalizadas como história (NORA, 1989, p.7), enquanto
as memórias, identidades e os sentimentos de passados menos visíveis
e audíveis são representados politicamente e economicamente como
“impotentes” (LOWENTHAL, 1998, p.79). De acordo com Milan Kundera
(COHEN, 2001, p. 243), elas são “ignoradas pela história”. A historiografia
subalterna descentraliza as experiências dos grupos dominantes como
universais e desafia as maneiras de identificar, falar e escrever a história
ao direcionar a outras experiências, valores e maneiras de comunicar
o passado. Esses processos efetivamente desafiam a autoridade da
“história oficial” ao desmascarar a lacuna histórica e ao ressaltar as
histórias silenciosas – as lembranças e as práticas ilegais daqueles há
muito vistos como os sem história, entre eles negros, índios, mulheres
e homossexuais (LYOTARD, 1984; 1989, p.132; WOLF, 1984). Essas
estórias “obscuras” frustram as metanarrativas como andaimes da
história, quebram o padrão histórico e corrigem a história incompleta
(TROUILLOT, 1995, p.13).

201 Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 8, 2015 ISSN: 1677-9460


Paisagens da memória: os campos de concentração e a seca no Nordeste do Brasil

Fontes não textuais são aspectos importantes da memória


coletiva e propiciam uma compreensão importante das maneiras pelas
quais as pessoas percebem o passado (CONNERTON, 1989). A informação
arquivística sobre a política dos campos não sugere nenhuma ideia sobre
reprimir ou subjugar os retirantes; contudo, as narrativas falam sobre
as condições sórdidas, morbidez, mortalidade, acúmulo de corpos em
covas coletivas e extração parcial de fígados dos cadáveres, o que levou
os ocupantes dos campos a perceberem que a intenção do governo
era aniquilá-los. Em geral, os retirantes são “silenciados” nos arquivos,
embora existam numerosas referências ao aspecto deles – esquálidos,
maltrapilhos, famintos e doentes.

Pouco se sabe sobre de onde vieram ou para onde foram


quando a seca terminou. Aqueles que não sobreviveram, os anônimos
mortos em covas sem nomes, são os ausentes. Geraldo Nobre, do
Instituto do Ceará, comentou sobre a dificuldade em encontrar material
escrito sobre os campos: “Claro que é difícil encontrar estes materiais;
alguns foram queimados, outros escondidos, porque eles não queriam
chamar a atenção sobre este fato ou lembrá-lo”.

Um morador de Senador Pompeu comentou que a


documentação do campo “(...) foi como uma água que evaporou,
como a água que evaporou do açude durante a seca”. Várias pessoas
com quem falei nas cidades de Crato e Senador Pompeu sabiam dos
campos naquela época ou tinham ouvido falar sobre eles, mas não os
consideravam importantes. Foi, como eles disseram: “tempos difíceis”,
como tantos desde então.

202 Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 8, 2015 ISSN: 1677-9460


Paisagens da memória: os campos de concentração e a seca no Nordeste do Brasil

A Memória antagônica à história real pode colocar pessoas em


risco e levar a investigações, acusações, intimidação, tortura e assassinato
e, portanto, as memórias podem ser propositadamente esquecidas
(ARIAS, 2002, p.25). No dia 10 de maio de 1932, Luíza Pereira Lobo, de 86
anos de idade, moradora de Senador Pompeu desde que tinha oito anos
de idade, teve que caminhar 80 km até o campo, acompanhando seu pai;
sua mãe grávida; oito irmãos e sua avó. Desde 1997 ela é entrevistada
por jornalistas de revistas, como a Isto é e Época, por programas da rede
de televisão Record, pelos jornais do Estado, como O Povo, Tribuna do
Ceará, Diário do Nordeste, e por jornais regionais, como Cruzeiro do Sul
(Ceará) e Diário Popular (São Paulo).

As lembranças de Luíza e de outros sobreviventes dos campos


foram a base para um filme sobre um dos campos chamado Cerca Seca,
filmado em 1997 por Flavio Alves, um morador local. No ano 2000, um
irmão de Flavio, chamado Valdecy, então candidato a prefeito, alegou
que membros do partido da oposição haviam queimado a documentação
e que o Centro dos Direitos Humanos os havia encontrado. O próprio
Flavio havia sido sequestrado (NOCRATO, 2000). Ao gerar interesse
em tomar conhecimento sobre esse material, Flavio, Valdecy e muitos
outros estavam usando ferramentas culturais para negociar a maneira
com que o passado foi entendido e representado e alguns acharam
que essa associação com seus companheiros e as discussões sobre
os campos poderiam colocá-los em perigo. Quando dona Luíza foi
entrevistada, em 2002, ela havia sido ameaçada de perder o pagamento
de sua aposentadoria caso ela “revolvesse o passado”, ao falar sobre sua
experiência nos campos.

203 Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 8, 2015 ISSN: 1677-9460


Paisagens da memória: os campos de concentração e a seca no Nordeste do Brasil

Para estudar as maneiras de recordar, comemorar e comunicar


as lembranças entre os retirantes e as maneiras pelas quais essas
atividades expressam identidade, significado e valor, foi realizado um
estudo arquivístico e de campo, no período referente aos meses de junho
e julho de 2002 e 2003, no qual pudemos localizar vários ocupantes de
antigos campos em Senador Pompeu, assim como pessoas que viveram
naquela comunidade e em outras, onde os campos estavam localizados
em 1932.

Foi difícil localizar sobreviventes dos campos, uma vez que


já haviam passado três quartos de século e, historicamente, aquela
migração havia sido a única alternativa para a seca e a penúria na área
(BROOKS, 1971; VIEIRA JÚNIOR, 2002). Também participamos em
eventos comemorativos e falamos com muitos membros da comunidade
sobre suas experiências, lembranças e conexão com o passado.

Os campos de concentração como uma política de mitigação


da seca
Em 150 anos, já são mais de três milhões de mortos devido à
seca no Brasil (VILLA, 2000, p.250). Esforços anteriores para mitigar a seca
incluíram tentativas de desenvolver uma forma alternativa de transporte
para a região do semiárido, tais como a importação de camelos de Argel,
a criação de nuvens artificiais e a transferência de água de um rio para
outro (VILLA, 2000).

Uma grave seca ocorrida entre os anos de 1877 e 1879 teve


consequências significativas. Quase meio milhão de pessoas (64.000
em Fortaleza) ou 5% da população brasileira morreram (VILLA, 2000,

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Paisagens da memória: os campos de concentração e a seca no Nordeste do Brasil

p.13). O grande número de mortes, migração e perda do rebanho


provocou uma importante mudança na demografia rural e uma quebra
da economia. Os antagonismos de classe se intensificaram quando o
“lugar” da burguesia urbana branca, vista como moderna, europeia
e civilizada foi perturbado pela presença dos matutos ou caipiras que
eram tidos como primitivos e incultos (NEVES, 2000, p.222; RIOS, 2001,
p.20). Os efeitos das secas anteriores sobre os trabalhadores rurais
haviam recebido pouca atenção. No entanto, durante essa seca, 114 mil
retirantes pobres, famintos e doentes invadiram Fortaleza. Os relatórios
os descreveram como arruaceiros viciados em caridade e, como uma
mácula na paisagem (NEVES, 2000, p.27). Os rumores sobre violência,
fanatismo, práticas primitivas, incluindo o canibalismo devido à fome,
abundavam.

Embora os retirantes, na sua grande maioria, procurassem


comida perto dos mercados e longe das áreas residenciais (NEVES, 2000,
p.145)3, sua simples presença causava pânico entre as elites urbanas
que exigiam alguma forma de intervenção. As sugestões incluíam
reassentamento forçado na Amazônia, alojamentos segregados ou
acampamento em áreas rurais. O discurso persistente do medo
finalmente os levou a serem confinados.

As secas subsequentes resultaram em mais mortes e mais


morbidez. Em 1909, a Inspetoria de Obras Contra os Efeitos da Seca (IOCS)
foi criada com o objetivo de desenvolver uma maneira mais sistemática
de evitar a seca e suas consequências. Uma nova classe profissional de

3 Ver Von Braun, Tekly, and Webb (1993) para a discussão dos movimentos da
população durante a fome e Macrae and Zwi (1992) sobre a liberdade dos movimentos
durante a seca.

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Paisagens da memória: os campos de concentração e a seca no Nordeste do Brasil

especialistas em seca foi encarregada de desenvolver uma infraestrutura


para a região do semiárido e de implementar políticas de mitigação
da seca. Uma vez que os retirantes estavam associados à violência, às
doenças contagiosas e à degradação moral, colocá-los em currais era
considerada medida necessária para proteger a saúde pública e manter
a estabilidade civil.

Em 1915, uma região de alagadiço foi estabelecida como um


acampamento temporário e centro de distribuição de alimentos, em
um esforço para evitar que os retirantes circulassem publicamente e
para evitar saques aos armazéns. Outras secas levaram à criação de
acampamentos temporários, currais e abrigos construídos para confinar
os retirantes e regulamentar a distribuição de trabalho e provisões.
Essas estruturas passaram a ser chamadas de “campos de concentração”
(NEVES, 2000, p.32) ou, devido à alta mortalidade ali existente, de
“campos da morte” (POMPEU SOBRINHO, 1953, p.32; NEVES, 2000,
p.82).

Em 1877, a seca marcou o início de uma sinecura burocrática


chamada de “indústria da seca”. Os fundos eram desviados do bem-
estar público, dos projetos de mitigação da seca e do abastecimento
emergencial, para políticos, técnicos, suas famílias e sócios, através de
fraudes, lavagem de dinheiro e favoritismo. Embora a região tenha sido
alvo de projetos emergenciais por mais de 100 anos, as políticas foram,
em sua grande maioria, ineficazes para reduzir a vulnerabilidade da
população (ARAÚJO, 2000, p.16; DUARTE, 1999).

Em 1932, o Nordeste brasileiro sofreu uma das piores secas do


século, que afetou a vida de 150 mil pessoas somente no Ceará. No início

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Paisagens da memória: os campos de concentração e a seca no Nordeste do Brasil

do ano, havia notícias de saques, pilhagem de armazéns e trens de carga


que tinham acontecido em outras secas, mas ainda não existia nenhum
plano concreto de mitigação da seca naquele lugar. Com o aumento
do número de retirantes, sugeriu-se que eles fossem removidos para
colônias agrícolas no Maranhão e no Piauí, ou para plantações de café
em São Paulo. Esses estados se opuseram firmemente a essas sugestões,
baseados no fato de que eles não tinham obrigação com o que era
essencialmente o efeito colateral de um problema local. Eles também
careciam de infraestrutura para atender à afluência dos refugiados da
seca, especialmente depois da depressão de 1929 (VILLA, 2000, p.146-
147).

Em abril de 1932, sete campos de concentração foram


construídos para abrigar os serviços da seca, e para evitar que os
refugiados inundassem Fortaleza. Os campos estavam localizados ao Sul,
em Burity e Crato; no Centro, em Senador Pompeu (também chamado
de Patú), Quixeramobim e Cariús (em São Matheus); e ao Norte, em
Ipú. Urubu e Otávio Bonfim ficavam na periferia da capital (POMPEU
SOBRINHO, 1953, p.43; NEVES, 2000, p.123).

O maior campo ficava em Burity, com uma população de 60mil


pessoas. Até janeiro de 1993, o número total de residentes contabilizados
nos sete campos passou para 89.431 pessoas (NEVES, 2000, p.253). Além
disso, para descentralizar os serviços da seca, os campos disponibilizavam
trabalhadores para projetos de trabalhos públicos, chamados de “frentes
produtivas de trabalho” e deslocavam também colonizadores para a
Amazônia. Para ganhar seu sustento, os retirantes construíam estradas,
ferrovias, açudes/barragens, trabalhavam em fazendas de criação de

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gado e como coveiros diante das fatalidades da seca (GREENFIELD, 1992,


p.380; VILLA, 2000, p.71).

O Estado reconhecia esses projetos como “estágios” para


carpinteiros, pedreiros e mecânicos. Uma visão mais crítica os via como
fornecedores de mão de obra barata para as elites nordestinas (LOWRY,
1997, p.125). Ironicamente, um dos antigos campos, o de Burity, é hoje
uma fábrica onde os trabalhadores das comunidades locais de baixa
renda cortam, colam e embalam toneladas de papel higiênico 12 horas
ao dia.

Os campos funcionaram cerca de um ano, até que a seca fosse


oficialmente declarada como terminada. Dava-se, então, aos retirantes
uma passagem de volta aos seus lugares de origem e algumas sementes
(VILLA, 2000, p.155). Outros eram encorajados a migrar para o Pará,
o Maranhão e para a Amazônia. As viúvas e os inválidos ficavam ali
mesmo (VILLA, 2000, p.155), criando uma nova categoria demográfica,
denominada de “as viúvas da seca”. Para muitos, havia poucos motivos
para retornar, e havia um grande êxodo para o Sul do Brasil.

A vida no campo de concentração


“Só quem sabia como aquilo realmente era eram as pessoas que estavam ali”
Luiza Lobo

Fundada em 1896, a cidade de Senador Pompeu foi uma


grande produtora e exportadora de algodão. Ali havia três refinarias.
Atualmente, uma ferrovia de trem de carga corta a cidade. Em 1919, o
IOCS fez um acordo com a empresa americana Dwight P. Robinson e a
empresa inglesa Norton Griffith & Co., Ltd., para construir barragens no

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Paisagens da memória: os campos de concentração e a seca no Nordeste do Brasil

sertão4. A empresa americana construiu fábricas e as barragens de Poços


dos Paus e Orós, enquanto a empresa britânica construiu barragens em
Quixeramobim e Patú (Senador Pompeu).

Em Senador Pompeu, eles contrataram trabalhadores locais


e construíram 200 casas em um morro chamado Vila dos Operários,
hoje chamada Vila dos Ingleses. Outros prédios foram construídos
para administradores e gerentes. Havia uma escola, um hospital, uma
farmácia, uma padaria, um galpão de pedra para os explosivos, um
moinho para gerar energia e uma estação de trem. O prédio maior perto
da estrada era do inspetor-geral, o que reflete, segundo Oriol Pi-Sunyer
(2002, p. 216), a “cartografia do poder”. No entanto, a construção do
açude de Patú foi suspensa em 1925, devido à insuficiência de fundos
(POMPEU SOBRINHO, 1953, p. 355).

Sete anos mais tarde, em maio de 1932, esses mesmos edifícios


abrigaram 18.959 retirantes – entre homens e mulheres – e cerca de
10 mil crianças. Aqueles que haviam trabalhado em outros açudes
foram enviados a Patú (POMPEU SOBRINHO, 1953:46), enquanto outros
flagelados5 da região “invadiram” o campo. Estima-se que 1 mil pessoas
morreram lá. Maria de Jesus da Silva, de 81 anos de idade, que havia
encontrado o seu futuro marido ali, descreveu o lugar como o “curral da
fome”, “cheio de morte, fome, tragédia”:

4 Sertão é a forma abreviada de “desertão” (SCHULLER, 1915, p. 365). A área


constitui 27% da região Nordeste, que tem uma população de cerca de 12 milhões
de habitantes. A área foi anteriormente habitada por índios cariris que se aliaram aos
holandeses durante sua ocupação no Nordeste brasileiro no século XVII (SCHULLER,
1915, p. 366).
5 Flagelados são aqueles que sofrem uma calamidade, neste caso, a seca. O
termo começou a ser usado em 1915.

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Paisagens da memória: os campos de concentração e a seca no Nordeste do Brasil

Tantas pessoas morriam ao mesmo tempo, que


eles apenas jogavam os corpos uns sobre os outros.
Então, eles retiravam parte do fígado dos mortos
para exames. A comida doada era estragada e velha.
As pessoas adoeciam. Eles não digeriam o feijão
porque ele estava tão velho que chegavam a defecar
o feijão inteiro. Eles retiravam os fígados... para fazer
comida. As pessoas tinham um pequeno cartão que
dava direito a pegar a comida. Elas ficavam numa fila.
Mas não havia uma lista do registro das pessoas ou
registro das mortes. Eles só colocavam terra sobre
eles depois de 20 mortos. Na maioria, as pessoas
morriam de fome. Eles diziam que havia um médico
lá, mas não havia. Eu fiquei lá oito meses.

Carne de boi era parte da comida doada, mas


as pessoas influentes da cidade ficavam com as
melhores partes, e o resto ia para os flagelados.
Muitos ficaram ricos nessa época. O sangue dos
touros era usado como alimento, e os comerciantes
ficavam com as melhores partes.

Os moradores dos campos testemunharam mortes lentas devido à


fome e às doenças. Luíza Lobo disse que “o feijão era daquela cor”, apontando
a minha camisa preta. “Eu não sei como era, era como a casca de uma árvore,
e o café era horrível. Ambos eram misturados com sangue dos touros”. Outros
falavam de pessoas que vomitavam e defecavam uma substância negra devido
à comida adulterada, ambos sintomas da febre amarela. Os guardas ficavam
nas saídas (o campo tinha 774 hectares) para evitar que os moradores fugissem
(O POVO, 25 de maio de 1932). Havia uma prisão temporária para
aqueles que cometiam infrações (GIOVANAZZI, 1998, p.24). Essa prisão
compulsória estava designada a manter os trabalhadores até o término
da construção das barragens e a evitar que os retirantes circulassem
publicamente. De acordo com Luíza Lobo,

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Ninguém podia entrar ou sair. Eu me lembro que


eles vacinavam (ela me mostrou o seu braço)65.
Meu pai... dizia que ele jamais nos deixaria ficar
em um lugar como aquele de novo, encurralados.
Minha mãe me mandava embora para evitar que
eu visse certas coisas. Era uma mistura de gente...
E teve uma menina que deu à luz, e a mãe matou
o bebê. Ela colocou uma pedra enorme sobre ele,
e os cachorros ficavam puxando a mão do bebê...
As pessoas morriam na beira do rio. (…) As carroças
levavam elas para o cemitério e jogavam eles todos
juntos. (...) Os mais velhos pediam: “deixe a gente
morrer primeiro”.

As sepulturas descritas nessas narrativas eram covas rasas


e eram as escolhidas pelos urubus e cães vira-latas. As covas em
cemitérios clandestinos continuam associadas aos cemitérios usados
por esquadrões da morte como depósito dos desaparecidos. A raspagem
da cabeça era obrigatória.

Segundo Luíza Lobo,


Estávamos todos morrendo de fome. Eles nos diziam
para dormirmos no chão ou numa rede. (...) A gente
tinha um cartão para a comida. (...) Havia tanta
gente lá! As pessoas dormiam nos barrancos. Nós
não tínhamos nada. Então, a comissão terminou7.
Você já viu aquele cemitério? Está cheio de gente!
Tinha um médico que dava remédio, um padre que

6 Havia uma resistência significativa às vacinações, que eram vistas como uma
forma de invasão ao corpo. Muitos acreditavam que a intenção das vacinas era a de
causar danos.
7 Comissão se refere a comissário, que era a comissão de um policial civil ou
governamental cuja responsabilidade era a de organizar a distribuição de alimentos,
gerenciar os trabalhos dos projetos públicos, manter a ordem interna e evitar que os
retirantes circulassem fora dos campos (NEVES, 2003, p. 72).

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fazia confissões, batizava e casava as pessoas. Todos


estavam morrendo de fome. Era uma fila grande
para conseguir comida.

Há referências recorrentes sobre comida adulterada, descarte


caótico dos mortos e colheita dos órgãos. Renata do Nascimento Pinto,
professora de História do Centro dos Direitos Antônio Conselheiro, em
Senador Pompeu, achou que era importante “contar a história” dos
campos para evitar que ela voltasse a acontecer:
O plano original da maioria das pessoas era migrar
para Fortaleza e pedir ajuda ao governador, como
havia sido feito no passado. Mas, então, eles
construíram esses campos como uma maneira de
evitar uma invasão na capital. E aqui eles já tinham
suas casas, então, eles decidiram usar os retirantes
para reativar a construção das barragens, usando as
frentes produtivas de trabalho. As pessoas só podiam
sair dali depois do final da seca. Eles davam comida
de baixa qualidade e feijão que não cozinhava.
Misturavam sangue de boi ao café. Tantas pessoas
morriam que eles as colocavam todos juntos em um
grande buraco e as enterravam juntos. Para evitar
a putrefação dos corpos daqueles que morriam de
manhã cedo, eles abriam o abdômen e retiravam o
fígado para evitar o mau cheiro.

As narrativas refletem uma topografia corporal única: a


remoção dos fígados “contaminados” com uma picareta ou um gancho
e o arremesso do corpo dissecado em uma cova rasa. O simbolismo
dos corpos desmembrados, a extração de partes para venda e o uso de
partes contaminadas na comida para envenenar e matar os retirantes
gera o sentimento de que a invasão desses corpos era intencional e
rentável. Tais símbolos são comuns onde as disparidades intergrupais

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Paisagens da memória: os campos de concentração e a seca no Nordeste do Brasil

são significativas (GORDILLO, 2000, p. 34).

Quando eu perguntei à enfermeira Júlia o que ela pensava a


respeito das inúmeras referências aos fígados e ao desmembramento
dos corpos, ela respondeu: “O fígado é interessante. Você pode cortá-lo
quase todo, e ele, ainda assim, funciona. É extremamente resistente.
Tudo passa pelo fígado, tudo”. Talvez a remoção do órgão, mesmo
após a morte, codifique-a não somente como uma morte não natural,
mas também reflita a capacidade de resistir às dificuldades e suportar
tragédias.

Há outras expressões populares que usam o fígado para sugerir


fortaleza frente à resistência ou perigo, tais como “fígado de aço”, “você
tem fígado para aguentar isso?” ou “tem que ter fígado para aguentar
isso”. Um conto de fadas assustador chamado “Papa figo” fala sobre um
pobre homem leproso que precisa de uma quantidade interminável de
fígado de crianças para ser curado. E também há expressões como “vou
comer o seu fígado” ou “essa mulher tem o fígado branco”, referindo-se
a uma mulher viúva por muito tempo.

Em um estudo sobre os Toba na Argentina, Gordillo (2002,


p.42) afirma que imagens de amuletos de demônios canibais são
encontradas particularmente em lugares de alta exploração capitalista,
tais como plantações de açúcar, minas, fábricas, lugares onde corpos
são explorados em troca de lucro. A personificação da memória nessas
narrativas torna concreta a exploração de corpos, historicamente com os
escravos e contemporaneamente com os trabalhadores (ALBUQUERQUE
JÚNIOR, 1995, p.122). Elas também refletem a fragmentação do “corpo”
familiar e comunitário.

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A amostra dos fígados fazia parte de um programa de fiscalização


contra a febre amarela conduzido pela Fundação Rockefeller entre os
anos de 1923 e 19408. As amostras eram obtidas através da viscerotomia
pós-morte (LOWRY, 1999), ou por “liver punch”, a perfuração do fígado
através um tubo externo e uma lâmina cortante (LÖWY, 1997, p. 134).
Qualquer um que tivesse a coragem de realizar o procedimento poderia
ser treinado a fazer a viscerotomia, independente de ter treinamento
médico: “Uma pessoa experiente não levava mais do que 30 segundos.
(...) Não era necessário tocar o cadáver com as mãos e ele podia
permanecer no caixão quase que completamente vestido” (SOPER,
RICKARD and CRAWFORD, 1934, p. 553-555).
Se a primeira tentativa não desse certo, e a lâmina
trouxesse apenas sangue, quem quer que estivesse
realizando a viscerotomia deveria continuar o
procedimento até obter o resultado desejado. Se
todas as tentativas pela abertura principal fossem
um fracasso, o instrumento podia ser introduzido
em outra parte do corpo e todo o processo repetido
(RICKARD, 1937, p.175).

Havia poucos médicos na área rural. Então, os “representantes”


desses médicos, fossem eles farmacêuticos, coveiros ou tabeliães, eram
contratados pelo Serviço de Viscerotomia para realizar as extrações.
Eles recebiam uma soma fixa por cada procedimento. Um bônus de 150
mil réis (cerca de sete dólares) era dado a cada caso positivo de febre
amarela (OFFICER, 2002). De acordo com Soper, Rickard and Crawford

8 A administração Vargas apoiava totalmente o Serviço da Febre Amarela (YFS) e


seus procedimentos e pagava 80% dos custos do programa. No dia 23 de maio de 1932, o
procedimento da viscerotomia foi autorizado pelo Decreto Presidencial n. 21.434. Todas
as mortes que ocorreram dentro dos dez dias da doença estavam sob a jurisdição do
programa YFS.

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Paisagens da memória: os campos de concentração e a seca no Nordeste do Brasil

(1934, p.553), “desde que o próprio tabelião tivesse interesse financeiro


em assegurar o espécime desejado, este método era bastante eficiente”.
O pessoal do laboratório relatou a apresentação de um grande número
de material não humano (porco, cachorro, bode e vaca), fragmentos
do mesmo fígado sob nomes diferentes, assim como partes do fígado
dos que não haviam morrido da “febre amarela” (SOPER, RICKARD and
CRAWFORD, 1934; HAMILTON and AZEVEDO, 1999; LÖWY, 1997, p. 135).
Tudo isso reforçava a ideia entre os moradores dos campos de que,
mesmo depois da morte, seus corpos eram comercializados.

Os enterros eram proibidos sem a aprovação do representante


da viscerotomia local (RICKARD, 1973). As suspeitas aumentaram
em relação aos representantes do Serviço da Febre Amarela (YFS), e
alguns deles foram atacados. A equipe da Fundação Rockfeller referiu-
se à resistência a esse procedimento invasivo como “ignorância”. No
entanto, os representantes desse serviço eram subornados para que
os seus parentes não fossem submetidos à viscerotomia. Aqueles que
não cumpriam a lei eram multados e apesar disso, os mortos eram
submetidos ao procedimento. Das 28 mil amostras provenientes de
1,5 mil viscerotomias realizadas entre maio de 1930 e junho de 1933,
somente 54 resultaram positivas.

No geral, há poucas referências a programas de ajuda


emergencial que tenham dado resultado. As lembranças falam de
currais simbólicos e materiais, ao comparar os mortos com os corpos
quase mortos dos imigrantes fracos, famintos e doentes. Os moradores
dos campos temiam não somente as mortes não naturais, mas serem
colocados em túmulos provisórios e anônimos, e de ter os seus corpos
desmembrados.

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Paisagens da memória: os campos de concentração e a seca no Nordeste do Brasil

As lembranças do campo
“A luta do homem contra o poder é a luta da memória contra o esquecimento”
Milan Kundera

Geógrafos culturais, historiadores ambientais e antropólogos


usam os termos “paisagem” e “lugar” para descrever a “leitura” cultural
dos espaços (DANIELS and COSGROVE, 1988; LEFEBVRE, 1991; HIRSCH
and O’HANLOn, 1995). Os espaços tornam-se lugares ao adquirir
significado através de experiências compartilhadas, estilos de vida e
rituais que dão a eles um sentimento de pertencimento (LOVELL, 1998)9.
De acordo com Tuan (1974), a nossa “posição” (gênero, idade, raça/
etnia, religião) produz lembranças e significados ligados aos lugares. O
sentimento de pertencimento a um lugar é também reforçado através
do conhecimento que temos do lugar ao qual não pertencemos, pelo
controle espacial e pela exclusão tais como comunidades fortificadas
(DOUGLAS, 1991, p.289).

As ruínas do campo de concentração de Patú revelam-se


como um lugar de exclusão. Em um lugar desolado e fora do Centro da
cidade, esse lugar de memórias (NORA, 1989, p.7) é uma lembrança
poderosa e tangível da história da região. As ruínas estão cobertas com
cactos e abrigam animais sem donos como macacos, gatos, cães, bodes
e galinhas. As paredes desmoronando estão cobertas com desenhos
obscenos dos órgãos sexuais. Nos finais de semana, os trabalhadores
locais frequentam o Sunset Bar, construído pelos ingleses como uma
farmácia quando o açude de Patú estava sendo construído. Segundo

9 Ver também Appadurai (1996: 191), Rosaldo (1989), Rappaport (1989), Basso
(1996), Santos-Granero (1998).

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Paisagens da memória: os campos de concentração e a seca no Nordeste do Brasil

Francis, Kelleher e Neophytou (2000), os cemitérios podem ser vistos


como espaços que refletem tanto as relações entre os vivos e mortos,
quanto processos sociais mais amplos. O cemitério de Patú é um
mapa do poder e da hierarquia, da inclusão e da exclusão, tanto antes
quanto depois da morte (HALLAM and HOCKEY, 2001, p. 90). Ele está
sobrecarregado de almas de “mortos irrequietos”, aqueles cujas mortes
foram por violência ou causas não naturais e que não tiveram um enterro
decente. Seus “lugares” correspondem ao limiar entre a morte e depois
da vida (HERTZ, 1960, p. 85; EARLE, 1995; GREEN, 1994). No cemitério
também estão enterradas crianças de prostitutas ou pessoas pobres
demais que não podem pagar um túmulo ou uma lápide permanente.

De acordo com Nora (1989, p.22), a “memória topográfica” é a


memória que está ligada a lugares. À primeira vista, há pouco o que ver
em um cemitério: é silencioso, vazio, esquecido, “socialmente morto”
pela sua insignificância (HALLAM e HOCKEY, 2001, p.8). No entanto, a
ausência de rastros concretos é contestada pela presença barulhenta
dos mortos, pelas centenas de corpos enterrados sob as ruínas e nas
águas da barragem. Batizado recentemente como o “Santuário da Seca”
pelo padre local, o cemitério é o lugar onde os intermediários sagrados
estão presentes, onde se roga a Deus e aos santos por assistência,
misericórdia e clemência. O novo padre de Senador Pompeu acha que o
lugar é sagrado para todos, “mesmo para aqueles que são assassinos. De
alguma forma, eles se identificam com o sofrimento ocorrido ali, com as
pessoas vitimadas ali. Até mesmo os membros das gangues vão ali para
rezar”. Os objetos deixados no cemitério- tais como, cabelos, cabeças,
braços e pernas entalhados em madeira, fotografias, roupas, flores e
bebidas- revelam as conversas simbólicas entre os que suplicavam, os

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Paisagens da memória: os campos de concentração e a seca no Nordeste do Brasil

santos ou outros rituais religiosos (FRANCIS, KELLEHER, NEOPHYTOU,


2000, p. 43) (Figure 1).

Uma das demonstrações de “herança” do cemitério é através das


comemorações. Desde 1992, algumas vezes ao ano, aproximadamente 4
mil moradores fazem uma caminhada de quatro quilômetros do Centro
de Senador Pompeu até o Cemitério da Barragem de Patú para rezar e
lamentar por aqueles que morreram no campo. Para eles, os mortos não
são esquecidos. Durante a procissão, o padre faz reflexões sobre os que
viviam encurralados naquele campo em 1932 e a contemporaneidade.
Quando ele pergunta “quem entre vocês pede ajuda a essas almas
perdidas?”, todos levantam a mão.

O trabalho de memória também é realizado por uma ONG


chamada de Equipe 1922, em homenagem ao ano em que os trabalhos
na barragem foram suspensos. Embora os seus membros, assim
como a maioria dos moradores do local, não estivessem no campo,
eles estão solicitando que o local seja tombado. Ao mapear, restaurar
e conservar esse lugar, eles esperam determinar como o passado é
usado, ao identificá-lo como significativo na vida diária das pessoas para
lembranças, reflexões, compromissos. Ao tornar o lugar um patrimônio,
também roteiriza o que ele não é: um bordel de fim de semana, o
“point” da juventude, um lugar abandonado e de má aparência, ou
mesmo outro projeto falido do Estado. O historiador Kevin Lynch (citado
em HAYDEN, 1995, p. 226) esclarece que “escolher o passado nos ajuda
a construir um futuro”. Como diz Albuquerque Júnior (1999, p. 317
[tradução minha]), tornar o campo de concentração de Patú um lugar
significativo ao se engajar em atividades tais como a documentação de

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Paisagens da memória: os campos de concentração e a seca no Nordeste do Brasil

suas histórias orais pode


Continuar a contar a história não com as certezas que
ela revela, mas sim com as dúvidas que ela levanta.
(...) A história não é um bálsamo; é um fogo que se
reduz às cinzas de nossas versões estabelecidas, que
libera faíscas de dúvidas, que não torna as coisas
mais claras ou dissipa a fumaça do passado, e sim
procura entender como este fogo é produzido. (...)A
história deveria queimar e perturbar.

Figura 1. Oferendas em um túmulo no cemitério da barragem de Patú

Membros da Equipe 1922 acreditavam que o conhecimento


sobre o campo havia sido silenciado junto com os mortos anônimos. Eles
viam as lembranças dos velhos sobreviventes como recursos políticos
na comunicação da história regional. Ao falar sobre experiências
de desigualdade compartilhada, mais do que anonimato em uma
massa amorfa de refugiados, os sobreviventes do campo conseguem
legitimidade como agentes históricos. A Equipe 1922 quer que esse

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Paisagens da memória: os campos de concentração e a seca no Nordeste do Brasil

lugar desempenhe um papel fisicamente simbólico de conscientização10,


com o objetivo de usá-lo como uma ferramenta de representação de
queixas atuais. Como “vigilantes noturnos”, seus membros estão alerta
às violações, tanto dos direitos humanos do passado quanto do presente
(GRAMSCI, 1971). Eles almejam usar esse local como memória para
desafiar a visão oficial sobre programas, tais como o desvio de fundos
pela indústria da seca, que só tem causado injustiças e sofrimento. O
Padre João Paulo Giovanazzi (1998), que viveu na comunidade por mais
de 20 anos, se refere aos moradores como migalhas - não porque eles
recebem suprimentos extras, mas porque eles mesmos são descartáveis.
Os enormes gastos relacionados a atividades e projetos contra a seca
produzem poucas mudanças na política de mitigação ou mesmo no
status econômico de pequenos fazendeiros. A reforma agrária continua
a ser um processo lento e altamente litigioso, uma forma de ativismo
perigosa, além de que a maioria dos programas de previsão do clima
e as intervenções contra a seca são incompatíveis com a necessidade
de concentração e irrigação das terras e o acesso ao empréstimo do
governo no sertão (ANDRADE, 1985; COELHO, 1985)11.

A Equipe 1922 quer tornar a memória dos mortos presente


através de filmes, fotos e tours culturais. Ao fazer o filme a que nos
referimos antes, o membro da Equipe 1922 Flávio Alves contratou 300

10 Conscientização é um método baseado na educação, no pensamento crítico e


na práxis que enfatiza a consciência na raiz da desigualdade socioeconômica e política
(FREIRE, 1970; 1980, p. 26).
11 No Nordeste do Brasil, 75% dos reservatórios de água são privados (SUDENE,
1985). No Ceará, os açudes privados são construídos com dinheiro público (VILLA, 2000,
p. 252). Eles beneficiam basicamente os grandes proprietários de terra (RIBEIRO, 2000, p.
245). Embora 40% da população do Ceará estejam envolvidos com a agricultura, só 94%
têm acesso a terras irrigadas (LEMOS et al., n.d., p. 10).

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Paisagens da memória: os campos de concentração e a seca no Nordeste do Brasil

moradores locais (e 22 cães) como atores. Os atores foram pagos com


8 mil quilos de alimentos doados pela comunidade. Alguns estavam tão
agradecidos com o que eles chamavam de “trabalho fácil”, que nenhum
deles queria morrer no filme e assim perder o direito à comida. Essa
equipe gostaria de ver esse lugar representando um papel mais amplo
no turismo regional e, ao mesmo tempo, evitar a comercialização ou a
“disneyficação” que começou no início de 1932, quando os membros do
Touring Club, em uma visita a Fortaleza, incluíram em seu itinerário uma
parada no campo de concentração de Pirambú para ver os efeitos da
seca. (RIOS, 2001, p.27).

O turismo cultural está cada vez mais sendo visto como uma
maneira de conduzir esta área a uma “integração no desenvolvimento
nacional brasileiro” (LIMA, 1998, p.65) e é frequentemente a única
opção de falar sobre a violência estrutural. O sertão carece de formas
de turismo como as de “sol, terra, mar, sexo e subserviência” (CRICK,
1996) que dominam as comunidades costeiras do Nordeste do Brasil.
Em vez disso, o que é anunciado é uma imagem da “boa vida” no
interior, onde as pessoas estão enraizadas na terra e os laços familiares
são fortes (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 1999, p.200; OLIVEN, 1982, p.61;
ORTIZ, 1988, p.37). As propagandas de turismo rural oferecem pacotes
que prometem uma experiência nostálgica única – estadias em
fazendas, tranquilidade, segurança, atividades de lazer para crianças
em um ambiente natural – e idealizam e privilegiam formas de vida
perdidas para a urbanização, o bem-estar social e a violência. A fazenda,
efetivamente uma comunidade rural, oferece uma breve estada em um
contexto em que nós imaginamos um fazendeiro benevolente e rigoroso,
envolvido em uma rede de relações pessoais e mútuas, obscurecendo as

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Paisagens da memória: os campos de concentração e a seca no Nordeste do Brasil

realidades sociais e espaciais da vida rural. Em uma espécie de “nostalgia


imperialista” (ROSALDO, 1989, p.108; HOOKS, 1992, p.25), esses lugares
são idealizados como paisagens de lazer principalmente pelo que lhes
falta, ou seja tecnologia, desigualdade econômica, acesso à educação
e a cuidados médicos - as mesmas coisas que mantêm as pessoas
presas aos ciclos do analfabetismo, da pobreza e da exclusão social em
empregos mal remunerados e de poucas habilidades transferíveis. O
consumo dessas mercadorias culturais geralmente reproduz as mesmas
injustiças encontradas entre regiões e grupos étnicos.

A pesquisa de George Yúdice sugere que a tendência em


apontar a “cultura” como o “santo remédio” para o desenvolvimento e
a erradicação da pobreza é o resultado da ausência do bem-estar social
do Estado (EDELMAN and HAUGERUD, 2005, p. 2; FALCÃO, 2001). Isso
deixa uma “cultura” sem definição como um palanque para escolas
ruins, um veículo para resolver as tensões sociais, combater problemas
como crime e desemprego, redução das injustiças estruturais e aumento
do bem-estar e da autoestima das pessoas (YÚDICE, 2003, p.156). Isso
faz com que se produza uma alta expectativa numa área onde 25% da
população vivem com menos de dois dólares ao dia, e 13% vive com
menos que um dólar ao dia (WORLD BANk, 2005).

Em Senador Pompeu, reinventar uma forma de vida “tradicional”


com o objetivo de gerar turismo nesse lugar de memórias promoveria um
retrato de uma vida rural moderna, fumigada de influências estrangeiras
e contemporâneas, reapresentando-a como fora do mercado pelos 70
anos passados. Neste processo, seria necessário provê-la do que há
muito se faz ausente ali, como é o caso de infraestrutura, com boas

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Paisagens da memória: os campos de concentração e a seca no Nordeste do Brasil

rodovias, hospedarias e lazer, o que exige o turismo moderno. Aqueles


que procuram uma “autêntica” experiência rural encontram ali o que
ele realmente é: um lugar decadente frequentado pela juventude local
e um bordel.

Ironicamente, as metáforas originais usadas para descrever


a região, que tradicionalmente reforçavam a ideia da área como
problemática ao se referir aos flagelados maltrapilhos, coronéis cruéis,
ativistas messiânicos fanáticos ou heróis primitivos, são exatamente as
mesmas que atraem os atuais turistas (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 1999).
A noção de que os “sertanejos” são arraigados à terra é desmentida
pelas mudanças regionais, nacionais e globais na produção, nas leis e no
uso da terra que trouxe esses trabalhadores sem-terra para essa área e
agora os manda embora.

Em Senador Pompeu, a praga do bicudo do algodoeiro e as


mudanças na indústria do algodão fecharam seu principal exportador
agrícola há muito tempo. Em um estudo feito no ano 2000 pela
economista Francisca Martins Sousa, no Sul do Ceará, somente 20% dos
pequenos fazendeiros entrevistados (N = 69) disseram que eles queriam
que seus filhos permanecessem trabalhando na agricultura, embora
95% fossem donos das terras em que trabalhavam (SOUSA, 2004).

O mercado de trabalho atual, a produção agroindustrial e a


tecnologia fazem com que a subsistência agrícola seja, na maioria das
vezes, uma ocupação vestigial. Uma proporção substancial da dieta
dos moradores rurais vem de mercadorias enlatadas ou embaladas.
A maioria das famílias sobrevive das aposentadorias de parentes mais
velhos, que raramente alcançam mais do que um salário mínimo (cerca

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de R$ 678,00), ou recebe ajuda econômica daqueles que migraram para


a cidade. Em Senador Pompeu, pouco menos dos seus 27 mil habitantes
vive na zona rural, e quase metade da população tem menos de 19 anos
de idade.

Os jovens falam de si mesmos como estando em trânsito. Há


muito pouco para eles, exceto migrar ou criar redes com pessoas que
moram fora da área. Eles cobiçam empregos que não estejam ligados
à agricultura, e deixam suas cidadezinhas sem nenhuma intenção de
voltar. O consumismo ostentatório, os problemas sociais urbanos e os
efeitos colaterais dos projetos agroindustriais, são óbvios para qualquer
visitante e desafiam as noções de “tradições” folclóricas como formas
dominantes de expressão cultural. Os carros tocam o último sucesso
musical em volume estridente e os celulares dos vaqueiros, montados
sobre seus cavalos, tocam constantemente. As gangues são onipresentes
nas favelas e nas zonas urbanas. Na última festa realizada na cidade,
três pessoas foram assassinadas. A maconha e as drogas injetáveis são
facilmente encontradas. Redes de prostituição organizada agendam
garotas para clientes locais. O roubo é comum, dando início a um
próspero negócio de fabricação de grades de ferro forjado para portas,
janelas, terraços e varandas.

O turismo cultural se baseia na noção de uma comunidade


“homogênea”, no consenso sobre o que é patrimônio e o que não é – uma
noção perfeita, mas com pouco amparo na prática. A “memória coletiva”
dos campos não abrange todos e alguns são cépticos sobre os benefícios
do projeto de transformar o lugar em patrimônio cultural. Alguns
rejeitam esses esforços porque é como “tirar vantagem do passado”,

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Paisagens da memória: os campos de concentração e a seca no Nordeste do Brasil

engajando-se em um ativismo social vazio, como uma maneira de obter


benefícios financeiros. Por que se esforçar tanto se concentrando em
algo que aconteceu há três quartos de século? O melhor é deixar os
mortos em paz e apoiar questões mais urgentes para a comunidade, tais
como geração de empregos. “Isto só vai dar dinheiro para o bolso de
alguns, como a maioria dos projetos aqui. Muitas dessas pessoas nem
mesmo moram aqui. Por que eles querem um projeto aqui12?”.

As vantagens dos lugares como patrimônios e alvos de recursos


para a comunidade e a irrelevância daqueles lugares para outros são
parte da natureza política e dissonante do patrimônio (SMITH, 2006,
p.80). No entanto, a materialização das lembranças das experiências
dos refugiados da seca nos campos de concentração em 1932 como
patrimônio aumenta a visibilidade de um passado obscurecido pelo
“senso comum” da história como “inventado”, ou como parte do
folclore regional. As ruínas do campo e o cemitério solitário em Senador
Pompeu não são lugares que apenas representam o passado; através
das lembranças e das comemorações, eles se engajam na história
regional cujos múltiplos significados têm sido quase sempre silenciados
ou ignorados. As lembranças das mortes, dos desmembramentos,
da mercantilização das partes do corpo e as procissões ao “Santuário
da Seca” são ferramentas culturais para comunicar o que Jay Winter
(1995) chama de “crueldade prolongada”, a violência que persiste na
sociedade contemporânea. Demarcar esses lugares como patrimônio
é, de muitas formas, uma intervenção não somente econômica, como
turismo cultural, mas também através de um ativo processo crítico de

12 Os irmãos Alves, fundadores da equipe de 1922, vivem em Fortaleza, embora


eles tenham família em Senador Pompeu.

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Paisagens da memória: os campos de concentração e a seca no Nordeste do Brasil

conscientização que reinterpreta e molda as maneiras pelas quais as


pessoas relembram e pensam sobre assustadores passados morais e
sobre as geografias contemporâneas de exclusão (HARVEY, 1989). Assim
como os campos, as favelas urbanas e rurais são como “currais” para os
milhões que vivem em condições precárias. É o lugar onde muitos da
área terminam, assim como os pobres o fizeram antes deles.

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Artigo submetido em: 24/12/2013


Artigo aprovado em: 27/06/2014

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Revista do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Regional do Cariri, Crato -CE

Nominata de Pareceristas ad hoc da


Revista Cadernos Tendências Nº 7, 2013
André Alcman Oliveira Damasceno
Universidade Regional do Cariri

Andrea Moraes Alves


Universidade Federal do Rio de Janeiro

Antônio da Silveira Brasil Junior


Universidade Federal do Rio de Janeiro

Berenice Alves de Melo Bento


Universidade Federal do Rio Grande do Norte

Antônio Cristian Saraiva Paiva


Universidade Federal do Ceará

Francimara Nogueira Teixeira


Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia do Ceará

Iara Maria de Araújo


Universidade Regional do Cariri

Larissa Maués Pelúcio Silva


Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho

Revista Tendências: Caderno de Ciências Sociais. Nº 8, 2015 ISSN: 1677-9460 237


Revista do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Regional do Cariri, Crato -CE

Leandro de Oliveira
Universidade Regional do Cariri

Marcelo Tavares Natividade


Universidade de São Paulo

Márcia Leitão Pinheiro


Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro

Maria Cláudia Coelho


Universidade Estadual do Rio de Janeiro

Naara Lúcia de Albuquerque Luna


Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro

Océlio Teixeira de Souza


Universidade Regional do Cariri

Renata Marinho Paz


Universidade Regional do Cariri

Roberto Marques
Universidade Regional do Cariri

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