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Aula 14:

Para dar um fim ao nosso percurso deste semestre consideremos as afinidades

entre o pensamento heideggeriano que rememora e a poética de um artista em parte

seu contemporâneo, Wassily Kandinsky (1866-1944).

Para Kandinsky avaliar e fruir uma obra de arte não significa nada além que

encontrar um novo mundo e tentar nele habitar. Isso se funda no fato que para ele,

como também para Heidegger, o sentido da arte não está em exprimir ou representar

um determinado modo de ver, nem se constitui em produto de uma faculdade do

homem, mas é o acontecer de uma radical novidade no nível do ser-no-mundo, é a

fundação deste mesmo ser-no-mundo. Para Kandinsky esta fundação deve ser

explicada em bases ontológicas rigorosas, isentas de irracionalismos; daí seu esforço

para subtrair a arte do arbítrio da inspiração e dar-lhe uma estrutura gramatical, a

mais rigorosa possível. Sua concepção de arte busca não se basear em construções

arbitrárias, mas na concreta projeção de obras como mundos.

O texto que pretendo tomar como referência é Ponto, Linha, Plano (1926), onde

o autor desconstrói a estrutura interna da obra pictórica em seus elementos

constitutivos, mostrando o caráter ontológico da obra até em suas partes menores.

A desconstrução-construção da obra parte de seu conceito primeiro: o ponto, e

não o espaço como acontece na matemática. O ponto é definido por Kandinsky da

seguinte maneira: “O ponto geométrico é um ser invisível. Deve, portanto, ser

definido como imaterial. Do ponto de vista material, o ponto compara-se ao

zero” (KANDINSKY, 1960 p. 35). Ele dá uma definição rigorosa do ponto geométrico,

cuja realização é a anulação, a tendência ao zero. Este caráter é apenas o elemento

mais superficial do ponto, que vem clareado a partir da palavra zero:


Segundo a nossa concepção, este zero – o ponto geométrico – evoca o
laconismo absoluto, ou seja, a maior retenção mas, no entanto, fala. Assim,
o ponto geométrico é, segundo a nossa concepção, a última e única união do
silêncio e da palavra. Eis por que o ponto geométrico encontrou a sua forma
material em primeiro lugar na escrita – ele pertence à linguagem e significa
o silêncio. Na fluidez da linguagem, o ponto é o símbolo da interrupção, o
não-ser (elemento negativo) e, ao mesmo tempo, é a ponte entre um ser e
outro (elemento positivo). Na escrita, é essa a sua significação interior. [...] A
ressonância do silêncio, habitualmente associada ao ponto, é tão forte que
as outras propriedades se encontram abafadas (KANDINSKY, 1960 p. 35).

A primeira consideração a fazer diz respeito a afinidade entre o ponto de

Kandinsky, pensado como ressonância do silêncio e como aquilo que recolhe o

desenrolar do discurso, com o significado da palavra Ort de Heidegger: Ort é a ponta

da lança, o ponto de convergência de toda palavra, o som do silêncio. O seu som é

uma onda que paulatinamente movimenta o dizer humano. O Ort conforma aquilo

que é próprio do espaço e não o contrário. Afirma Heidegger:

Espaço (Raum, Rum) diz o lugar arrumado, liberado para um povoado, para
um depósito. Um espaço é algo arrumado, liberado, num limite, em grego
pšraj. O limite não é onde uma coisa termina mas, como os gregos
reconheceram, de onde alguma coisa dá início à sua essência
(HEIDEGGER, 2000 p. 156).

É interessante observar que Kandinsky não constrói a sua ontologia da arte a

partir do espaço, como dado primeiro, mas do ponto, ou seja, da redução do espaço a

zero: o Ort extremo para onde confluem todas as coisas. O seu som é silêncio,

quietude, que contudo não é algo estático, mas extrema mobilidade. Kandinsky pensa

este som como choque, abalo que movimenta. Estes choques parecem ligar-se à

palavra heideggeriana Stoss (choque, abalo). A obra de arte é reverberação do Ort, para

onde confluem diferenciando-se mundo e terra; o Stoss pelo qual ela ocorre é a luta de

terra e mundo, onde nenhum elemento prevalece sobre o outro. Trata-se da

reverberação deste polšµoj, isto é, da oscilação apropriadora e expropriadora da

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Ereignis: o evento da diferença. Do mesmo modo, o ponto de Kandinsky é a ligação

entre silêncio e palavra, entre terra e mundo. Graças à tensão do ponto ele se incrusta

na superfície; o ponto se torna “a afirmação mais concisa e permanente, que se

produz breve, firme e rapidamente” (KANDINSKY, 1960 p. 41). Ele é o elemento

originário da pintura: origo, a origem ou o princípio. É também interessante que para

Kandinsky há diferença entre as formas se vistas do interior e do exterior; esta

diferença diz respeito à modalidade pela qual experimentamos o fenômeno que a nós

se mostra. A partir do exterior, a forma designada é um simples elemento; a partir do

interior o elemento não é aquela forma, mas a tensão interna que nela vive. A obra

pictórica vista a partir do interior se torna um conjunto de forças em tensões que

vivem na forma (KANDINSKY, 1960 pp. 41-42). Estas tensões, da mesma forma que a

luta de mundo e terra, não são, evidentemente, resultado de uma impressão, de um

objeto simplesmente presente, mas o dar-se do ser ao qual correspondemos: o c£oj de

forças ao qual tentamos dar uma medida poética.

Vê-se destas poucas referências que a tentativa de Kandinsky é mostrar os

elementos essenciais da arte como os elementos de uma cosmologia feita de forças e

tensões, e não de coisas e entes.

Num outro domínio autônomo – na natureza – encontramos muitas vezes


uma acumulação de pontos que é sempre necessária e orgânica. Estas
formas naturais são, na realidade, corpúsculos espaciais. A sua relação com
o ponto abstrato (geométrico) é a mesma que a do ponto pictural. Podemos
também considerar o “mundo” inteiro como uma composição cósmica
completa, ela própria composta por um número infinito de composições
autônomas cada vez mais pequenas, compostas finalmente, tanto no
macrocosmo como no microcosmo, por pontos, o que dá ao ponto, por
outro lado, o seu estado geométrico originário. São as unidades de pontos
geométricos que se encontram sob diferentes aparências em equilíbrio no
infinito geométrico. As mais pequenas dessas formas definidas e
centrifugas surgem-nos, efetivamente, a olho nu, como pontos livremente

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dispostos. É esse o aspecto dos grãos; e se abrimos a cápsula polida como
marfim do fruto da papoula (que não é mais do que um ponto-cápsula
maior), descobrimos, nesta cápsula quente, acumulações logicamente
compostas de pontos frios cinzento-azulados que trazem nelas uma
fertilidade latente como todo ponto pictural. [...] Encontramos pontos em
todas as artes e o artista torna-se cada vez mais consciente de sua força
intrínseca. Não devemos subestimar a sua importância (KANDINSKY, 1960
pp. 46-47).

Esta cosmologia repleta de pontos inspira a obra do artista, em todas as suas

manifestações: da dança passando pela música até a arte abstrata.

Tudo isso que foi dito sobre o ponto pertence a uma análise deste em si mesmo

concentrado, em quietude. Pode ocorrer, contudo, uma outra força, que não cresce no

ponto, mas além deste. “Esta força precipita-se sobre o ponto ancorado no plano,

arrastando-o e empurrando-o para uma direção qualquer. A tensão concêntrica do

ponto encontra-se, assim, destruída; desaparece e dele resulta um ser novo que vive

uma vida autônoma submetida a outras leis. É a linha” (KANDINSKY, 1960 p. 58).

“A linha geométrica é um ser invisível. É o rasto do ponto em movimento,

portanto, é o seu produto. Nasceu do movimento, e isto pelo aniquilamento da

imobilidade suprema do ponto. Aqui dá-se um salto do estático para o

dinâmico” (KANDINSKY, 1960 p. 61). Este segundo conceito cósmico da arte é

pensado por Kandinsky como a pura negação do ponto, da sua quietude. A linha

assim entendida é um rasto, um traço (Riss) que abre. Aquilo que ela abre é a liberação

de forças, que destroem o caráter concêntrico do ponto. Esta destruição não quer

dizer mera anulação do ponto, mas encobrimento. E isto simplesmente porque a linha

se gera do movimento do ponto, que de tal maneira é encoberto. A linha tem

necessidade do ponto, do Ort, para poder encobrir o seu som silencioso, e, assim

fazendo, produzir-se como som alternativo. A linha entendida como movimento deve,

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por sua vez, ser pensada como tensão à qual se acrescenta a direção. “A ‘tensão’ é a

força viva do movimento. Ela constitui apenas uma parte do ‘movimento’ criativo. A

outra parte é a ‘direção’, também esta definida pelo ‘movimento’” (KANDINSKY, 1960

pp. 61-62). Assim, o elemento diferente que se evidencia entre o ponto e a linha é o

acréscimo da noção de direção: o ponto é pura tensão, que, como som do silêncio, não

tem nenhuma direção, o seu movimento é a vibração; a linha, ao invés, é tensão

direcionada, enquanto traça ela corta e assim fazendo se fixa sobre o plano, a

superfície. Com base na noção de direção, Kandinsky enumera três tipos

fundamentais de linhas. Em primeiro lugar, a forma mais simples é a horizontal, que

corresponde à linha ou à superfície sobre a qual o homem se encontra e se move; os

seus sons fundamentais são a frieza e o nivelamento, ela é “a forma mais concisa da

infinidade de possibilidades dos movimentos frios” (KANDINSKY, 1960 p. 62).

Completamente o oposto disso é a vertical, que forma com a horizontal um ângulo

reto; na vertical o nivelamento é substituído pela altura, e a frieza pelo calor, ela é “a

f o r m a m a i s c o n c i s a d a i n fi n i d a d e d e p o s s i b i l i d a d e s d o s m ov i m e n t o s

quentes” (KANDINSKY, 1960 p. 62). Enfim, o terceiro tipo de linha é a diagonal;

colocando-se entre a horizontal e a vertical, ela assume uma mesma inclinação na

direção de ambas; desta forma determinando seu som intermédio, ela é “a forma mais

concisa da infinidade de possibilidades dos movimentos frios-quentes” (KANDINSKY, 1960

p. 63). Estas três linhas são as formas mais puras de retas, que se diferenciam entre si

pela temperatura.

Podemos entrever com esta ulterior articulação o profundo significado

ontológico que Kandinsky atribui a estas formas essenciais da arte figurativa. Não se

fala aqui simplesmente de retas indiferentes, determinadas por um puro cálculo

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matemático, mas a posição de cada reta tem um significado ontológico: a horizontal

vibra com um som frio, a vertical com um som quente e a diagonal com um som frio-

quente. Toda outra reta assumirá seu próprio som com base em sua proximidade

destas três fundamentais coordenadas ontológicas. Além disso, o fato que as

primeiras duas linhas fundamentais, a horizontal e a vertical, sejam pensadas com

base na espacialidade originária, onde desde sempre o homem habita, confirma ainda

mais a tentativa poético ontológica de Kandinsky de dar novamente à arte um sentido

cósmico originário, uma dimensão pela qual a obra de arte não é mais objeto estético,

mas a reverberação de um mundo.

Em seguida, se a estas três linhas são acrescentadas infinitas outras, produz-se

uma verdadeira e própria superfície, o plano. Precisa Kandinsky: “Notemos, de

passagem, que nos ocupamos aqui de uma das características específicas da linha – o

seu poder de criar superfícies. Esse poder manifesta-se como o de uma enxada cujo

gume, através do movimento, cria uma superfície no terreno” (KANDINSKY, 1960 p.

64). As linhas são caminhos, sulcos que enquanto traçam abrem um campo, o aberto.

Elas transfiguram em modo poético figurativo os caminhos do pensamento de

Heidegger, seu traçar sulcos no campo da linguagem, fazendo experiência da sua

trama.

A esta constelação bastante rica, Kandinsky acrescenta o elemento cor. A cor é

pensada a partir das duas retas fundamentais:

Se examinarmos as linhas retas esquemáticas – especialmente as linhas


vertical e horizontal – quanto às suas propriedades coloridas, impõe-se a
comparação com o preto e branco. Tal como estas duas cores [...] são cores
silenciosas, também estas duas linhas retas são linhas silenciosas. Tanto
numa como noutras, a sonoridade é reduzida ao mínimo: ao silêncio, ou
melhor, ao sussurro quase imperceptível e calmo. Preto e branco
encontram-se fora do círculo espectral e tanto a horizontal como a vertical

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têm também o seu lugar à parte entre as linhas, pois, na sua posição central,
são as únicas e, por isso, estão isoladas. Se considerarmos a temperatura do
preto e do branco, é sobretudo o branco que parece quente e o preto o
absoluto que é interiormente frio. Não é por acaso que a escala cromática
horizontal vai do branco ao preto [...]: uma descida lenta e natural do alto
para baixo (KANDINSKY, 1960 pp. 66-67).

Os sons silenciosos são os extremos da cor: a luz que cega e a profunda

escuridão, a luz do sol que cega e a escuridão profunda da terra. A estas

correspondem os silenciosos acenos do divino e a profunda escuridão terrestre do

mortal. Apenas no intervalo, no entre, destes dois extremos se dão os sons sonantes

das cores e as palavras falantes dos homens. No pensador (Heidegger) e no poeta das

formas (Kandinsky) encontra-se a mesma tentativa de pensar e poetizar uma

dimensão simples do habitar humano e, por isso, originário, que contrasta com o

barulheira do homem moderno. A este respeito afirma Kandinsky:

“Hoje” o homem é dominado pelo mundo exterior e o interior está morto


para ele. Esta é a última caminhada em direção ao “baixo”, o último passo
no impasse – há pouco falava-se em “abismo”, mas a expressão “impasse” é
hoje suficiente. O homem “moderno” procura a calma interior porque está
atordoado com o exterior e acredita encontrar essa calma no silêncio
interior de onde resulta uma tendência exclusiva para a horizontal-vertical.
Uma consequência lógica seria a tendência exclusiva para o preto e o
branco e muitas vezes a pintura se lançou nessa direção. Todavia, a união
exclusiva da horizontal-vertical com o preto e o branco não foi ainda
realizada. Então, tudo mergulharia num silêncio interior e só os ruídos
exteriores agitariam o mundo (KANDINSKY, 1960 p. 67).

Em seguida, Kandinsky mostra que com a passagem gradual das linhas

horizontais às linhas livres descentradas, a lírica fria se transforma em quente,

chegando enfim a assumir um certo sabor dramático, fato que comporta um

confronto entre tipologias de sons diversos. Também aqui a simbologia é

compreendida em uma cosmologia originária: a lírica fria é o caráter terrestre do

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mundo, enquanto a lírica quente e dramática é o elemento divino do céu; as diversas

vozes se confrontam reciprocamente, ou seja, encontram-se em luta; luta originária

que deixa os lutadores desdobrarem seu ser um contra o outro, um pelo outro.

Esta luta sinfônica é ulteriormente clarificada com a entrada em jogo do plano

original, destinado a acolher o conteúdo da obra. Ele recolhe os dois sons

fundamentais: a quietude quente (linha vertical) e a quietude fria (linha horizontal).

Deste modo a forma do quadrado é a forma mais pura do plano original, pois nele frio

e quente se compensam reciprocamente. O plano original é subdividido em quatro

regiões, quatro tensões: cima e baixo, direita e esquerda. “O ‘cimo’ evoca a ideia de

uma maior flexibilidade, uma sensação de leveza, de ascensão e, por fim, de

l i b e r d a d e ”. “ O ‘ b a i x o ’ a g e n o s e n t i d o o p o s t o : d e n s i d a d e , p e s o ,

limitação” (KANDINSKY, 1960 p. 115). As duas margens verticais são colocadas a

direita e esquerda. Elas são tensões cujo som interior é determinado pela quietude

quente e por isso guardam afinidades com a ascensão. Mas não são idênticas. Elas são

pensadas por Kandinsky com base na relação que direita e esquerda têm no corpo do

homem, só que são invertidas, porque não são determinadas em função do

observador, mas como se estivéssemos diante de um ser vivo com a própria direita e a

própria esquerda. “O lado esquerdo do plano original evoca a ideia de uma grande

flexibilidade, uma sensação de leveza, de libertação e, finalmente, de

liberdade” (KANDINSKY, 1960 p. 117). A diferença em relação ao cimo está apenas na

gradação desta propriedade. A direita, por sua vez, é por assim dizer “o

prolongamento do baixo – prolongamento esse que sofre o mesmo enfraquecimento.

Densidade, peso e limitação diminuem, mas as tensões encontram uma resistência

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maior, mais densa e mais ativa que a resistência à esquerda” (KANDINSKY, 1960 p.

118).

Deste modo Kandinsky completa os elementos essenciais desta arte cósmica.

Toda figura recolhida neste plano é condicionada pela proximidade e distância destas

quatro regiões, isto é, da reverberação dos seus sons interiores. Toda coisa é por

assim dizer condicionada por estas vozes em luta, mas apenas graças a esta dimensão

original toda coisa assume o seu ser. Existirão então coisas mais ou menos frias,

pesadas, limitadas e coisas mais ou menos flexíveis, leves, livres; mas apenas porque

elas são recolhidas neste quadrado (mundo) que doa o seu ser. O próprio movimento

para esquerda (condicionado pelo cimo: céu) e para direita (condicionado pelo baixo:

terra) não é insignificante: ir para esquerda, para a leveza, quer dizer ir para a

distância, para o estranho (o fogo celeste); nesta direção o homem se distancia de seu

ambiente natural, da terra. Ao contrário, ir para direita quer dizer movimentar-se

para casa, para a quietude, para o caráter terreno, para a mortalidade. O jogo da obra,

de seu mundo, se desdobra em um contínuo movimento para o alto (céu, divinos) ou

para baixo (terra, mortais), para esquerda ou para direita. Toda coisa é por assim dizer

colocada em jogo por estas quatro vozes silenciosas, ressoam em sintonia com elas.

Mas estas vozes, por sua vez, podem ressoar apenas porque são originariamente

apropriadas e expropriadas entre si no Ereignis, ou seja, sem esta recíproca comum-

pertença elas mesmas não poderiam jamais ressoar, jamais lutar para ser.

Desta maneira, Kandinsky pinta esta luta originária e Heidegger a rememora.


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Bibliografia:

HEIDEGGER, M. Vorträge und Aufsätze. Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 2000.

KANDINSKY, W. Ponto, Linha, Plano. Contribuição para a análise dos elementos picturais.
Lisboa: Edições 70, 1960.

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