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Para Kandinsky avaliar e fruir uma obra de arte não significa nada além que
encontrar um novo mundo e tentar nele habitar. Isso se funda no fato que para ele,
como também para Heidegger, o sentido da arte não está em exprimir ou representar
fundação deste mesmo ser-no-mundo. Para Kandinsky esta fundação deve ser
mais rigorosa possível. Sua concepção de arte busca não se basear em construções
O texto que pretendo tomar como referência é Ponto, Linha, Plano (1926), onde
zero” (KANDINSKY, 1960 p. 35). Ele dá uma definição rigorosa do ponto geométrico,
uma onda que paulatinamente movimenta o dizer humano. O Ort conforma aquilo
Espaço (Raum, Rum) diz o lugar arrumado, liberado para um povoado, para
um depósito. Um espaço é algo arrumado, liberado, num limite, em grego
pšraj. O limite não é onde uma coisa termina mas, como os gregos
reconheceram, de onde alguma coisa dá início à sua essência
(HEIDEGGER, 2000 p. 156).
partir do espaço, como dado primeiro, mas do ponto, ou seja, da redução do espaço a
zero: o Ort extremo para onde confluem todas as coisas. O seu som é silêncio,
quietude, que contudo não é algo estático, mas extrema mobilidade. Kandinsky pensa
este som como choque, abalo que movimenta. Estes choques parecem ligar-se à
palavra heideggeriana Stoss (choque, abalo). A obra de arte é reverberação do Ort, para
onde confluem diferenciando-se mundo e terra; o Stoss pelo qual ela ocorre é a luta de
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Ereignis: o evento da diferença. Do mesmo modo, o ponto de Kandinsky é a ligação
entre silêncio e palavra, entre terra e mundo. Graças à tensão do ponto ele se incrusta
diferença diz respeito à modalidade pela qual experimentamos o fenômeno que a nós
interior o elemento não é aquela forma, mas a tensão interna que nela vive. A obra
vivem na forma (KANDINSKY, 1960 pp. 41-42). Estas tensões, da mesma forma que a
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dispostos. É esse o aspecto dos grãos; e se abrimos a cápsula polida como
marfim do fruto da papoula (que não é mais do que um ponto-cápsula
maior), descobrimos, nesta cápsula quente, acumulações logicamente
compostas de pontos frios cinzento-azulados que trazem nelas uma
fertilidade latente como todo ponto pictural. [...] Encontramos pontos em
todas as artes e o artista torna-se cada vez mais consciente de sua força
intrínseca. Não devemos subestimar a sua importância (KANDINSKY, 1960
pp. 46-47).
Tudo isso que foi dito sobre o ponto pertence a uma análise deste em si mesmo
concentrado, em quietude. Pode ocorrer, contudo, uma outra força, que não cresce no
ponto, mas além deste. “Esta força precipita-se sobre o ponto ancorado no plano,
ponto encontra-se, assim, destruída; desaparece e dele resulta um ser novo que vive
uma vida autônoma submetida a outras leis. É a linha” (KANDINSKY, 1960 p. 58).
pensado por Kandinsky como a pura negação do ponto, da sua quietude. A linha
assim entendida é um rasto, um traço (Riss) que abre. Aquilo que ela abre é a liberação
de forças, que destroem o caráter concêntrico do ponto. Esta destruição não quer
dizer mera anulação do ponto, mas encobrimento. E isto simplesmente porque a linha
necessidade do ponto, do Ort, para poder encobrir o seu som silencioso, e, assim
fazendo, produzir-se como som alternativo. A linha entendida como movimento deve,
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por sua vez, ser pensada como tensão à qual se acrescenta a direção. “A ‘tensão’ é a
força viva do movimento. Ela constitui apenas uma parte do ‘movimento’ criativo. A
outra parte é a ‘direção’, também esta definida pelo ‘movimento’” (KANDINSKY, 1960
pp. 61-62). Assim, o elemento diferente que se evidencia entre o ponto e a linha é o
acréscimo da noção de direção: o ponto é pura tensão, que, como som do silêncio, não
direcionada, enquanto traça ela corta e assim fazendo se fixa sobre o plano, a
seus sons fundamentais são a frieza e o nivelamento, ela é “a forma mais concisa da
reto; na vertical o nivelamento é substituído pela altura, e a frieza pelo calor, ela é “a
f o r m a m a i s c o n c i s a d a i n fi n i d a d e d e p o s s i b i l i d a d e s d o s m ov i m e n t o s
direção de ambas; desta forma determinando seu som intermédio, ela é “a forma mais
p. 63). Estas três linhas são as formas mais puras de retas, que se diferenciam entre si
pela temperatura.
ontológico que Kandinsky atribui a estas formas essenciais da arte figurativa. Não se
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matemático, mas a posição de cada reta tem um significado ontológico: a horizontal
vibra com um som frio, a vertical com um som quente e a diagonal com um som frio-
quente. Toda outra reta assumirá seu próprio som com base em sua proximidade
base na espacialidade originária, onde desde sempre o homem habita, confirma ainda
cósmico originário, uma dimensão pela qual a obra de arte não é mais objeto estético,
passagem, que nos ocupamos aqui de uma das características específicas da linha – o
seu poder de criar superfícies. Esse poder manifesta-se como o de uma enxada cujo
64). As linhas são caminhos, sulcos que enquanto traçam abrem um campo, o aberto.
trama.
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têm também o seu lugar à parte entre as linhas, pois, na sua posição central,
são as únicas e, por isso, estão isoladas. Se considerarmos a temperatura do
preto e do branco, é sobretudo o branco que parece quente e o preto o
absoluto que é interiormente frio. Não é por acaso que a escala cromática
horizontal vai do branco ao preto [...]: uma descida lenta e natural do alto
para baixo (KANDINSKY, 1960 pp. 66-67).
mortal. Apenas no intervalo, no entre, destes dois extremos se dão os sons sonantes
das cores e as palavras falantes dos homens. No pensador (Heidegger) e no poeta das
dimensão simples do habitar humano e, por isso, originário, que contrasta com o
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mundo, enquanto a lírica quente e dramática é o elemento divino do céu; as diversas
que deixa os lutadores desdobrarem seu ser um contra o outro, um pelo outro.
Deste modo a forma do quadrado é a forma mais pura do plano original, pois nele frio
regiões, quatro tensões: cima e baixo, direita e esquerda. “O ‘cimo’ evoca a ideia de
l i b e r d a d e ”. “ O ‘ b a i x o ’ a g e n o s e n t i d o o p o s t o : d e n s i d a d e , p e s o ,
direita e esquerda. Elas são tensões cujo som interior é determinado pela quietude
quente e por isso guardam afinidades com a ascensão. Mas não são idênticas. Elas são
pensadas por Kandinsky com base na relação que direita e esquerda têm no corpo do
observador, mas como se estivéssemos diante de um ser vivo com a própria direita e a
própria esquerda. “O lado esquerdo do plano original evoca a ideia de uma grande
gradação desta propriedade. A direita, por sua vez, é por assim dizer “o
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maior, mais densa e mais ativa que a resistência à esquerda” (KANDINSKY, 1960 p.
118).
Toda figura recolhida neste plano é condicionada pela proximidade e distância destas
quatro regiões, isto é, da reverberação dos seus sons interiores. Toda coisa é por
assim dizer condicionada por estas vozes em luta, mas apenas graças a esta dimensão
original toda coisa assume o seu ser. Existirão então coisas mais ou menos frias,
pesadas, limitadas e coisas mais ou menos flexíveis, leves, livres; mas apenas porque
elas são recolhidas neste quadrado (mundo) que doa o seu ser. O próprio movimento
para esquerda (condicionado pelo cimo: céu) e para direita (condicionado pelo baixo:
terra) não é insignificante: ir para esquerda, para a leveza, quer dizer ir para a
distância, para o estranho (o fogo celeste); nesta direção o homem se distancia de seu
para casa, para a quietude, para o caráter terreno, para a mortalidade. O jogo da obra,
para baixo (terra, mortais), para esquerda ou para direita. Toda coisa é por assim dizer
colocada em jogo por estas quatro vozes silenciosas, ressoam em sintonia com elas.
Mas estas vozes, por sua vez, podem ressoar apenas porque são originariamente
pertença elas mesmas não poderiam jamais ressoar, jamais lutar para ser.
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Bibliografia:
KANDINSKY, W. Ponto, Linha, Plano. Contribuição para a análise dos elementos picturais.
Lisboa: Edições 70, 1960.
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