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Segregação racial e socioespacial na cidade de Salvador

Leânderson Pinto da Silva


Aluno Regular

Resumo

O trabalho se propõe a refletir sobre o preto na sociedade soteropolitana, partindo


da abolição da escravatura até exclusão social, levando em conta a mentalidade de
superioridade da branquitude que cria e perpetua o racismo e que resiste em aceitar
o preto como igual. A cidade de Salvador e suas contradições convivem com essas
realidades e tem como desafio superar as desigualdades e criar uma sociedade
mais justa para os seus habitantes.

Introdução

A Constituição Federal de 1988 em seu artigo 5º garante a todo cidadão brasileiro o


direito à igualdade, infelizmente esse direito não se realiza na prática, é comum o
tratamento diferenciado de algumas pessoas perante outras, de forma mais
evidente o tratamento racista, preconceituoso e cruel com o preto e uma atitude
paternalista e clientelista com o branco. Ainda que em alguns momentos isso não
aconteça, na maioria das vezes é o preto que sofre em nossa sociedade.

Até meados do século XXI os livros didáticos de história contavam que os


escravizados foram libertos através da assinatura da Lei Áurea, no entanto com o
avanço das pesquisas sobre o tema e apropriação da história não apenas por
brancos, foi possível reconhecer que a liberdade foi conquistada e não concedida,
como se defendia. O processo abolicionista com pressões nacionais através de
revoltas, lutas, fugas e demais movimentos individuais e coletivos e as pressões
internacionais para a abolição da escravidão foram fundamentais para a liberdade
dos cativos (BRITO, 1996).

É importante refletir, pessoas foram capturadas de suas terras de origem em


situação de escravidão, sem nenhum direito, dessas pessoas foram tiradas suas
familias, culturas e dignidade porque eram tratadas como animais e sujeitas a todo
tipo de humilhação e exploração, dos castigos no pelourinho sem roupa, açoitados e
amordaçados, aos trabalhos braçais e/ou sexuais. Essa exploração movimentou
toda economia do país e gerou riquezas para as famílias que atuavam nesse
sistema. Ao lutar por sua liberdade essas pessoas escravizadas afrontam essas
famílias que detinham os meios de produção e o poder local. Com o crescimento do
movimento abolicionista e as pressões comerciais internas e externas, algumas
famílias “abrem mão”1 de seus escravizados, mesmo que não tenham aceitado
inteiramente essa situação.

Essas famílias (brancos, que antes eram chamados de donos de escravos) agora
devem respeitar essas pessoas pretas (que foram escravizadas, humilhadas,
tratadas como lixo e escória, pessoas sem “alma”, como animais) como pessoas
iguais a elas. Essa é a questão. E talvez por isso o racismo ainda esteja tão
presente na atualidade, não superamos essa situação e os brancos ainda pensam
que são superiores.

As manchetes são inúmeras, “Homem negro é espancado até a morte em


supermercado do grupo Carrefour em Porto Alegre” (G1 RS, 2020), “Caso George
Floyd: morte de homem negro filmado com policial branco com joelho em seu
pescoço causa indignação nos EUA” (BBC News Brasil, 2020) entre outras. Os
dados são alarmantes, a população negra é a principal vítima da violência como
afirma o / Fórum Brasileiro de Segurança Pública:
Em relação ao perfil étnico-racial das
vítimas, 76,5% dos mortos eram negros,
reafirmando dados já apresentados neste
Anuário e/ou no Atlas da Violência.
Negros são o principal grupo vitimado
pela violência independente da
ocorrência registrada, mas chegam a
83,1% das vítimas de intervenções
policiais. Anuário Brasileiro de Segurança
Pública, 2023, p. 31.

Essa população preta foi perseguida no passado e seus descendentes ainda são
penalizados por erros cometidos pelos brancos, é o branco que se acha superior

1
Abrem mão porque alguns ainda estavam nessas condições.
aos pretos. Essa perseguição se modificou durantes os anos a ponto de se tornar
quase natural, se antes a perseguição era com cães e capitães do mato, passando
pela proibição de acesso a terra para essas pessoas, hoje a perseguição é mais
sutil, focado no aparato legal ou mesmo nos olhares do cotidiano ou da intimidação
e humilhação na revista dos aeroportos, das quais majoritariamente as revistas são
realizadas em pessoas pretas.

Como essa população não foi assimilada pela sociedade, porque ao invés de dar
trabalho a elas, elas foram excluídas, convidaram imigrantes de outras
nacionalidades e a elas deram terras e sementes e aos pretos não deram nada.
Alguns pretos e pretas conseguiram sobreviver apesar dessa situação vendendo
quitutes ou com trabalho de ganho.

Aparentemente essa mentalidade de desprezo aos pretos permeia a nossa


sociedade, essa afirmação poderá ser aprofundada em trabalhos futuros, mas não é
objeto desse trabalho.

Maricato (1996) afirma que o processo de urbanização/industrialização e o


crescimento econômico aumentou a desigualdade e concentrou espacialmente a
pobreza. Para ela, a exclusão social se expressa na segregação socioespacial, o
que confere na cidade localidades que concentram pessoas de maior renda e em
outras pessoas de menor renda.

E com a segregação espacial a dificuldade de acesso à infraestrutura e a serviços


públicos, para fugir dos lotes e moradias de valores mais baixos as famílias buscam
locais com valores menores e concentrando essas pessoas em localidades mais
distantes e sem infraestrutura, por isso a dificuldade acesso aos serviços básicos
como transportes, saúde e educação, dentre outros.

Outro fator apontado por Maricato é que a industrialização ocorrida no Brasil não
colaborou para uma classe trabalhadora forte, permitindo a ela acesso a boas
condições de vida e moradia, com salários baixos esses trabalhadores não tinham
acesso ao mercado imobiliário.
Salvador cidade preta e segregada

A Cidade de São Salvador da Bahia de Todos os Santos foi fundada em 29 de


março de 1559 por Tomé de Sousa, designado como Governador geral do Brasil,
que a mando do rei de Portugal, Dom João III, deveria criar uma fortaleza e uma
povoação grande e forte, para ocupar o território, protegendo-o dos invasores
estrangeiros e dos indígenas que ali habitavam, assim como controlar a circulação
de produtos extraídos do Brasil (ANDRADE; BRANDÃO, 2009).

Para entender a cidade de Salvador é preciso ter como ponto de partida a


compreensão de que essa cidade é preta, fato já demonstrado na sua cultura, seja
na culinária, na dança, na arte ou na música. O censo de 2010 trouxe dados que
corroboram com essa afirmação, 80 % da população se autodeclarou preta ou
parda. A cultura apresentada nas ruas da cidade e em seus sabores é a
materialização da resistência desse povo que foi escravizado, mas que lutou por
sua libertação e que continua lutando por suas vidas.

Atualmente a cidade tem uma população estimada de 2.417.678 habitantes,


segundo a prévia do Censo de 20222, realizado pelo (IBGE). Seu território é
composto por uma península e três ilhas, uma cidade abraçada pelas águas, ao
leste o Oceano Atlântico e ao oeste a Baía de Todos os Santos, conforme o mapa
01.

A lei municipal nº 9278/2017 oficializou os 170 bairros da capital, dos quais três são
ilhas, esses bairros foram divididos em 10 prefeituras bairro definidas como
unidades representativas da Prefeitura Municipal de Salvador, ver mapa 01. Os
bairros foram definidos a partir da identidade, pertencimento e o reconhecimento do
território como descrito pelo artigo 4º desta lei. Com base no Censo de 2010 a VII

2
O censo demográfico aconteceria em 2020, porém foi adiado devido a pandemia da COVID-16 que
afetou o país e o mundo entre 2020 e 2022 de forma mais ativa, mesmo com as incertezas de
superação dessa situação o Censo foi realizado a partir de agosto de 2022. No entanto, os
problemas com a contratação de pessoal para trabalhar na coleta e a falta de ações coordenadas por
parte do poder público e da sociedade fizeram com que a coleta não fosse finalizada na data
prevista, em 31/10/2022, dessa forma a coleta se estendeu até março de 2023. Como os valores
populacionais interferem nos repasses realizados aos municípios, o IBGE optou por divulgar uma
prévia da população com dados coletados até o dia 25 de dezembro de 2022. Sendo assim, os
dados finais não foram divulgados até o momento presente.
prefeitura bairro Liberdade/São Caetano contém o maior número de habitantes, sendo
384.095 com densidade populacional bruta de 265,65 de habitantes por hectare.
Enquanto que a X Prefeitura Bairro Valéria é a que contém o menor número de
habitantes totalizando 79.047 com a menor densidade populacional entre as prefeituras
bairro com 31,21 habitantes por hectare.

Mapa 01: Divisão das prefeituras Bairro de Salvador

Fonte: Site da Secretaria Municipal de Infraestrutura e Obras Públicas - SEINFRA

Assim como outras cidades brasileiras, a cidade de Salvador mantém suas


questões raciais em segundo plano, aparentemente quase inexistente, mas a
realidade é outra. “Salvador é a maior cidade de população negra fora do
Continente africano” Carvalho e Barreto, 2007, p. 258. É também a cidade onde o
racismo acontece e as desigualdades são latentes.
Enquanto era capital do Brasil a cidade de Salvador crescia economicamente, mas
com a transferência da capital para o Rio de Janeiro e outros eventos econômicos
da época a cidade conheceu seu momento de decadência e crescimento lento, o
que só veio a melhorar a partir da industrialização na segunda metade do século XX
e com a criação da SUDENE (Superintendência para o Desenvolvimento do
Nordeste), em 1959, a criação das regiões metropolitanas em 1973, a criação do
BNH (Banco Nacional de Habitação) em 1964 e principalmente a criação da
Petrobrás em 1953, a construção do CIA - Centro Industrial de Aratu em 1967 e do
Complexo Petroquímico de Camaçari em 1978. Andrade e Brandão (2009) afirmam
que com isso a cidade se inseriu definitivamente como “... metrópole da periferia do
capitalismo industrial” p. 84.

Salvador já era um polo de atração por ser a capital do Estado da Bahia, mas esses
investimentos atraíram mão de obra para a cidade e para os municípios a seu redor
que formam a Região Metropolitana de Salvador. Uma grande quantidade de
pessoas gerou um “exército de reserva” sem qualificação, somado aos salários
baixos não favoreceram a redução das desigualdades, pelo contrário, geraram
“Uma metrópole desigual, com ilhas de afluência em um mar de pobreza” Carvalho
e Barreto, 2007, p. 255. E isso se manifesta no território.

As ilhas de afluência no mar de pobreza e desigualdades

As autoras apresentam a cidade dividida em três vetores de crescimento, o primeiro


seria a Orla Atlântica, “área nobre” desejada pelo mercado imobiliário e
prioritariamente ocupada pelos brancos e pela elite da cidade. A segunda o “Miolo”
o centro geográfico do município ocupado pela classe média baixa, com conjuntos
habitacionais e loteamentos populares e o terceiro, o subúrbio ferroviário com
loteamentos populares e população extremamente pobre. No entanto esses vetores
não são homogêneos e dentro dessas áreas, por questões topográficos ou questões
sociais, contêm localidades que fogem desta generalização o que as autoras
chamam de “ilhas de afluência”.

Essas localidade concentram riquezas, pobreza e cores, são nas regiões mais ricas
da cidade que se concentram os brancos, e são nas regiões mais pobres que se
concentram os pretos e pardos, como podemos verificar no mapa 02. A Orla
Atlântica é o vetor que concentra o maior número de pessoas brancas, assim como
as maiores escolaridade e maiores salários. Já no subúrbio ferroviário há uma maior
concentração de pretos e pardos e pessoas com menores salários e menor
escolaridade.

Mapa 02: Mapa racial de Salvador

Fonte: GUSMÃO (2010)

A violência afeta principalmente a população preta e parda, concentrando-se no


Subúrbio Ferroviário, no Miolo e na Região Metropolitana de Salvador, localidades
com carência de infraestrutura, serviços e emprego e vulnerabilidade social.
(Carvalho e Barreto, 2007)
Considerações finais

Analisando o subúrbio ferroviário e o miolo é possível perceber a falta de ação do


poder público na implantação das moradias e na oferta de serviços públicos. São
habitações precárias em morros e encontras, sem saneamento básico, transporte,
escola e saúde. Já a Orla Atlântica tem a melhor infraestrutura da cidade e os
melhores acessos.

Para Maricato (1996) o Estado age de forma paternalista e clientelista, quando uma
área é de interesse do mercado imobiliário essa área é reservada e se houver
ocupação ela poderá ser desocupada, em contrapartida o Estada permite a
ocupação de outras áreas que são desinteressante para esse grupo, por isso não
há ações para melhorar as condições de vida para essas pessoas permitindo até a
ocupação em áreas de risco como encostas e áreas de preservação ambiental.

Entende-se então que a cidade de Salvador tem uma herança ancestral de força e
luta por liberdade, mas que está permeada por um sistema global de acumulação e
exploração das pessoas, principalmente dos pobres e dos pretos. Identificar essas
relações e mudar essa realidade é o desafio do presente. As leituras do século XX
ajudam a compreender esses fenômenos e criar argumentos contra propostas do
presente, como vimos, o racismo resiste e os brancos afirmam que não existe e o
preto sofre na pele todos os dias.
Referências

ANDRADE, Adriano Bittencourt; BRANDÃO, Paulo Roberto Baqueiro. Geografia de


Salvador. 2. ed. Salvador: Edufba, 2009. 160 p.

BRITO, Jailton Lima. A ABOLIÇÃO NA BAHIA: uma história política - 1870-1888.


1996. 265 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de História, Faculdade de Filosofia e
Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 1996. Disponível em:
https://ppgh.ufba.br/sites/ppgh.ufba.br/files/1_a_abolicao_na_bahia._uma_historia_p
olitica_-_1870-1888.pdf. Acesso em: 09 nov. 2023.

CARVALHO, Inaiá Maria Moreira de; BARRETO, Vanda Sá. Segregação residencial,
condição social e raçaem Salvador. Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 0, n. 18, p.
251-273, jun. 2007. Disponível em:
https://revistas.pucsp.br/index.php/metropole/article/view/8737/6484. Acesso em: 05
jun. 2023.

FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. 17º Anuário Brasileiro de


Segurança Pública. São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2023.
Disponível em:
https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2023/07/anuario-2023.pdf.
Acesso em: 01 de dez. 2023.

Imagens

GUSMÃO, Hugo Nicolau Barbosa de. Mapa racial de pontos: cidade de salvador -
bahia. cidade de Salvador - Bahia. 2010. Disponível em:
https://desigualdadesespaciais.wordpress.com/2015/11/24/mapa-racial-de-salvador-
bahia/. Acesso em: 09 set. 2020.

SALVADOR. Seinfra - Secretaria Municipal de Infraestrutura e Obras Públicas.


Prefeitura Municipal de Salvador. Zonas de Mobilização. Disponível em:
http://www.seinfra.salvador.ba.gov.br/index.php/plano-de-saneamento-basico/zonas-
de-mobilizacao. Acesso em: 03 out. 2023.

Site

BBC News Brasil. Caso George Floyd: morte de homem negro filmado com
policial branco com joelho em seu pescoço causa indignação nos EUA. 2020.
Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-52818817. Acesso
em: 05 nov. 2023.

G1 RS. Homem negro é espancado até a morte em supermercado do grupo


Carrefour em Porto Alegre. 2020. Disponível em:
https://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/noticia/2020/11/20/homem-negro-e-espanc
ado-ate-a-morte-em-supermercado-do-grupo-carrefour-em-porto-alegre.ghtml.
Acesso em: 09 out. 2023.

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