Você está na página 1de 270

Uma tentação para o duque

Lorraine Heath

Tradução: L@dyM@luca Belez@

Revisão: Viscondess@
Para Nancy, que me ensinou a importância e a alegria de

encontrar tempo para brincar na praia.

Você é uma mulher incrível e me sinto muito agradecida

por tê-la em minha vida.


Prólogo

Torre do Castelo de Pembrook, Yorkshire Inverno de 1844

Naquela noite eles morreriam.

Com quatorze anos, Sebastian Easton, oitavo duque de Keswick, desejara ter
coragem suficiente para enfrentar a morte com o estoicismo e a raiva que seu pai teria
esperado e até exigido dele, mas teve tanto medo, e sua boca estava tão seca, que nem
era capaz de imaginar um ataque contra a pessoa que viria buscá-lo.

Na antiga torre, não havia uma lareira que proporcionasse o menor aconchego,
mas, ainda que tivesse, duvidava que seu tio, lorde David Easton, houvesse lhes
concedido o calor de um fogo. Nem mesmo lhes dera uma manta para ajudá-los a
suportar o vento frio que vinha de fora da torre. Não possuíam mais que as roupas que
vestiam quando foram levados para a torre ―para o seu próprio bem‖ naquela manhã,
enquanto os enlutados haviam seguido o funeral de seu pai até o mausoléu familiar.

Acreditava que seu tio esperava que eles morressem ali, sozinhos e esquecidos,
evitando ter o trabalho de matá-los. Sebastian olhou pela janela, diminuta, não havia lua,
somente estrelas. Era uma boa noite para fazer três garotos inconvenientes
desaparecerem.

— Tenho fome — murmurou Rafe. — Não sei por que não podemos comer o
ensopado de cordeiro.

— Porque poderia estar envenenado — respondeu Tristan com voz pesarosa.


Todos estavam com fome e, ainda que demasiado orgulhosos para admitir, com muito
medo também.

— Mas por que a cozinheira nos envenenaria? Ela gosta de mim. Sempre me dá
uma bolacha a mais.

— A cozinheira não, idiota — falou Tristan — nosso tio.

Os meninos continuaram a discussão, ainda que em voz baixa para não perturbar
Sebastian, que continuava com o olhar fixo no que parecia a noite mais escura já vista
até então. Não havia sinal de nenhuma tocha que indicaria a presença de algum guarda
ou servente. Ninguém fazia a vigília, tão convencido estava seu tio de que estavam
seguros ali. Fazia um bom tempo que os relógios haviam dado meia noite. Seus irmãos e
ele deveriam estar dormindo, mas Sebastian não tinha nenhuma intenção de se render. Já
havia testado as grades. Não era provável que cedessem facilmente. Somente um pardal
passaria pelas barras. Suas opções de fuga eram escassas. Jamais pensaria que se
alegraria de que sua mãe houvesse morrido de parto, mas ao menos ela não precisaria
suportar a agonia de perder seus filhos. Ainda que, talvez, lorde David também a mataria
para evitar sua dor.

— É que tenho frio — a voz carregada de frustração de Rafe se elevou. Ele


necessitava fazer seus irmãos compreenderem o quanto estava se sentindo mal, como se
eles não estivessem sofrendo as mesmas penúrias. Não era culpa sua. Só completara dez
anos e, sendo o caçula, havia sido mimado.

— Se não deixar de choramingar, lhe darei um bom motivo pra chorar de


verdade, um nariz sangrento — o ameaçou Tristan.

— Deixe-o, Tristan — ordenou Sebastian.

Era apenas vinte e dois minutos, mais velho que seu gêmeo, mas esses vinte e
dois minutos se traduziam em poder, status e responsabilidade. Preocupava-o haver
falhado aos seus irmãos, ter decepcionado seu pai.

— Mas seus lamentos são irritantes.

— Devem se manter em silêncio para que eu possa pensar.


Na escuridão se ouviu um movimento e, de imediato, sentiu Tristan a seu lado.
Não havia tochas nem lamparinas. Não eram necessárias para ver claramente seu irmão
em sua mente. Era idêntico a ele. Alto para sua idade, cabelos negros que caiam
constantemente sobre os olhos azuis. Uns olhos de fantasma, dissera uma cigana. Os
olhos Easton, havia assegurado seu pai. Como os seus… e os de seu maldito tio.

Lorde David havia levado seu pai para Pembrook, à mansão da família, depois do
acidente. Assegurou que seu pai havia caído do cavalo, apesar dele ser um extraordinário
cavaleiro. Jamais havia caído de uma cela. Sebastian achava que o mais provável era que
houvesse desmontado por algum motivo, e, que alguém o houvesse golpeado. Muito
forte. E estava bastante certo de quem poderia ser esse alguém.

— E qual seria seu plano para nos tirar daqui? — perguntou Tristan com calma.
— Jamais o revelarei, ainda que me torturem nas masmorras.

As masmorras continham todo tipo de aparatos de tortura, remanescentes de


quando o primeiro duque de Keswick havia servido a Enrique VIII, cumprindo alguns de
seus mais desagradáveis desejos. Ao que parece, na família havia certa tendência à sede
de sangue. E não conseguia evitar pensar que seu tio invejava as posses de seu pai, e isso
implicava três mortes a mais.

— Tem ao menos um plano? — insistiu seu gêmeo.

— Você e eu saltaremos sobre o primeiro que entre por essa porta. Você por
baixo, derrubando-o pelos joelhos. Eu atacarei pelo alto — ele assumiria o maior risco,
em caso de que essa pessoa estivesse armada.

— E depois?

— Encilharemos nossos cavalos e sairemos daqui.

— Eu proponho ficarmos e cuidarmos do nosso tio. O matamos e tudo estará


solucionado.

— Você é um tolo ou o quê, Tristan? Não se dá conta? Se, estamos aqui, é porque
não temos nenhum aliado.
— Devemos ter alguém. Você é o legítimo herdeiro.

— Mas quem seria? Em quem podemos confiar? Nossa melhor opção é fugir, e
logo nos separar. Regressaremos quando formos homens, para reivindicar o que é nosso.

— E como demonstraremos que somos quem dizemos ser?

— Quantos pares de gêmeos você conhece que possuem a cor de nossos olhos?
Além disso, você carrega o anel de nosso pai em um cordão no pescoço. Ainda é grande.
Mas algum dia…

— Não estou… — começou Tristan.

— Silêncio! — Sebastian acabava de ouvir um ruído. — Alguém se aproxima —


inclusive na escuridão, encontrou o ombro de seu irmão para apertá-lo.

A força não estaria do seu lado. Suas melhores armas seriam a surpresa e a
agilidade.

— Não hesite, seja rápido.

Ouviu seu irmão engolir nervosamente e o sentiu assentir.

— Rafe, vá ao canto mais distante.

— Por quê?

— Não pergunte, faça irmão — ordenou Sebastian com brusquidão. Rafe era
demasiado jovem para ser de ajuda. Além disso, era dever de Sebastian protegê-lo.

Rapidamente ele se acercou da porta, sentindo Tristan em suas costas. O único


móvel naquele lugar era uma pequena mesa e dois tamboretes no centro. Um bom lugar
para firmar uma confissão, pensou com amargura.

Conteve a respiração e se apertou contra a parede, sentindo como a pedra lhe


machucava. Ouviu a chave ser introduzida na fechadura e girar. A porta se abriu,
inundando tudo de luz. E então ela avançou.
A menina saltou sobre ele, envolvendo a cintura dele, com as pernas e o pescoço,
com os braços.

— Estão vivos! — Ela exclamou. — Tive medo de que fosse demasiado tarde.

Abraçando-a com força, sentiu-a tremer. Uma tocha no chão do corredor os


iluminava com sua pálida luz. Ela devia tê-la trazido consigo, deixando-a ali para
conseguir abrir a porta.

— Cale-se, Mary — pediu Sebastian com ternura, — fale em voz baixa. O que
faz aqui?

Lady Mary Wynne-Jones, filha do conde de Winston, vizinho deles, soluçou e


tossiu, enterrando o rosto no ombro de Sebastian.

— Eu estava procurando vocês e o ouvi dizer que os mataria.

— Ouviu a quem?

— Seu tio.

— Maldito canalha! — rugiu Tristan. — Eu sabia!

— Silêncio — ordenou Sebastian.

Com rapidez, mas com ternura, se soltou do abraço de Mary, segurou-a pelos
ombros e se fixou nas profundidades de seus olhos verdes. Dois anos mais nova do que
ele, era uma criatura selvagem que geralmente, fugia da casa de seu pai para ir vê-lo.
Sem acompanhante. Fingiam ser aventureiros e exploravam diversas ruínas. Seu lugar
preferido era a quase destruída abadia. Na semana anterior, ela o havia beijado nesse
lugar. Sebastian sabia que, se seu pai houvesse descoberto que ele havia retribuído o
beijo, ele estaria metido num problema. Ele não podia beijar a filha de um lorde, a não
ser que tivesse intenção de se casar com ela. Seu pai o recordava uma infinidade de
vezes.

Mas Mary não era apenas a filha de um lorde. Era sua melhor amiga.
Ele a havia ensinado a se mover silenciosamente e em muitos aspectos, ela era tão
habilidosa quanto um menino. Era o que ele mais gostava nela, ela não temia a nada. Ou,
quase nada, pois nesse momento era evidente que estava pálida como um fantasma.

— Para quem ele disse isso?

— Não consegui vê-lo — respondeu ela. — Corri ao seu quarto e, ao não


encontrá-lo, me ocorreu procurá-los aqui.

— Seu pai com você?

— Eu vim cavalgando sozinha — Mary sacudiu a cabeça. — Sabia que estaria


triste pela morte de teu pai e queria estar com você, como você esteve comigo quando
minha mãe se foi ao céu — a mãe dela morreu de febre quando ela contava com dez
anos. Naquela noite, Sebastian havia cavalgado até sua casa, subido pela árvore sob sua
janela, e havia entrado em seus aposentos, em sua cama, abraçando-a enquanto chorava.
— Estava lhe procurando quando o ouvi falar.

— Então devemos nos apressar. Tristan, não se separe de Rafe.

— Não necessito que ninguém me cuide — protestou o caçula.

— Cale-se — espetou Tristan. — Isto não é nenhum jogo. O Tio quer nos matar.

— Por quê?

— Porque somos a única coisa que se interpõe entre ele e tudo. E agora vamos.

Sebastian agarrou a mão de Mary e saiu da saleta. Abaixando-se, ela recuperou a


tocha e correram escadaria abaixo Seus irmãos os seguiam de perto. Ao chegar lá
embaixo, encontraram o guarda estirado no chão junto a um enorme galho.

— Me aproximei por trás e o golpeei na cabeça. —explicou Mary.

— Fez bem, Mary.

A menina sorriu resplandecentemente e seus olhos verdes emitiram um suave


brilho antes que a preocupação os nublasse, novamente.
Mas não havia tempo. Sem soltar-lhe a mão, Sebastian correu para fora. As
pernas de Mary eram bastante compridas para manter seu passo. Eram amigos de toda a
vida e ele jamais havia visto alguém com um cabelo tão vermelho quanto o dela. Ela o
usava em uma trança que golpeava suas costas ritmicamente enquanto corriam até os
estábulos.

Uma vez ali, Sebastian e seus irmãos colocaram as selas seus cavalos.

— Eu os alcançarei, Tristan. Primeiro vou acompanhar Mary até a casa dela.

— Não. Enquanto pudermos, permaneceremos juntos.

— De acordo então. Cavalguemos como o vento.

A tocha de Mary os guiou. Haviam percorrido a metade da propriedade quando


Sebastian sentiu uma irrefreável urgência de parar.

— Um momento — ele gritou.

Todos obedeceram. Afinal de contas era ele o duque. Sebastian desmontou e se


aproximou de Mary.

— Me daria seu laço?

Ela o entregou sem hesitar. Assim era ela. Eles confiavam cegamente um no
outro. Tirando do bolso um lenço que seu pai sempre dizia que todo cavalheiro deveria
carregar, Sebastian se ajoelhou.

— Sebastian, o que está fazendo? — perguntou Tristan. — Não temos tempo para
bobagens.

Mas Sebastian não podia prosseguir sem levar consigo um pouco de seu lar.
Arranhou o solo e encheu o lenço com um punhado da terra sobre a qual haviam
cavalgado outros duques, vários reis e rainhas. Depois amarrou o lenço com a fita de
Mary e o guardou no bolso. Voltou a montar e se puseram em marcha.

Não pararam até chegar aos estábulos do conde. Sebastian desmontou e se


aproximou de Mary.

— Entre. Meu pai poderá ajudá-los — insistiu ela.

— Seria demasiado perigoso para você e sua família — e seguramente também


para nós.

— Então eu vou com vocês.

— Não, para onde nós vamos não poderá nos acompanhar.

— Para onde vai?

— Se não souber, não poderá dizer — e ninguém, poderá tirar a informação de


você com torturas. Sebastian a agarrou pela cintura e a ajudou a desmontar.

— Não me deixe Sebastian — Mary se agarrou a ele. — Leve-me com você.

— Agora sou um foragido. E não posso levá-la comigo, mas eu prometo que
voltarei. No dia como hoje, dentro de dez anos, nas ruínas da abadia — abaixando a
cabeça, beijou-a, suavemente, nos lábios. — Obrigado, Mary. Jamais esquecerei o que
fez por mim e por meus irmãos.

— Tenha cuidado.

— Sempre — assentiu Sebastian com uma confiança que desafiava sua juventude,
e seu medo, pois desconhecia o que o futuro lhe havia reservado.

— Envie-me uma mensagem quando estiver a salvo — ela suplicou.

Sebastian compreendeu que sua amiga não estava consciente dos perigos que se
acercavam.

— Aconteça o que acontecer, Mary, jamais conte a ninguém o que ouviu ou fez.
Deve permanecer em segredo. Para o nosso bem

— Eu prometo.
Sebastian ficou com a sensação de que ficava algo por dizer, ainda que não
soubesse o que era. Montando novamente, lançou o cavalo a galope junto com seus
irmãos, deixando Mary para trás.

Enquanto cavalgavam até a noite, até a escuridão e ao desconhecido, Sebastian


jurou a si mesmo que, algum dia, regressaria a Pembrook para reivindicar o que era seu.
Nada mais importava.

E foi um juramento que moldaria o homem em que se converteria.


Capítulo 1

Londres

Julho de 1856

Se a curiosidade matasse o gato, lady Mary Wynne-Jones estaria morta


antes do amanhecer. Afinal de contas havia sido a curiosidade que a havia levado ao
baile de lady Lucretia Easton. Sabia bem pouco sobre a mulher, salvo que havia se
casado com David Easton naquela primavera. E havia despertado a curiosidade de Mary,
e por isso estava sentada em um canto do salão de baile junto a sua prima Alicia, e
outras duas jovens. Ali podiam ver e ser vistas.

— Lorde e lady Wickam.

Mary prestava pouca atenção ao anúncio dos recém-chegados. Estava muito mais
interessada nos anfitriões, em decifrar suas intenções, em comprovar sua aceitação pela
sociedade. Não havia visto David durante anos. Pouco depois do desaparecimento de
seus sobrinhos, havia abandonado Pembrook, seguramente para se instalar em qualquer
uma de suas outras propriedades. Talvez fosse também possível que ele tivesse vivido
permanentemente em Londres.

Normalmente, o segundo filho de um duque não despertaria tanto interesse, mas


David possuía um trágico passado: a desgraçada morte de seu irmão mais velho. O
inexplicável desaparecimento de seus três sobrinhos. Fugiram? Foram raptados para
pedir resgate e depois assassinados? Teriam sido enviados para longe em uma
embarcação? Vendidos como escravos? Ninguém saberia dizer.

Os meninos haviam se convertido em uma lenda. Os três lordes perdidos de


Pembrook.

— Já esteve em algum baile tão chato quanto este? — reclamou lady Alicia com
seu habitual dramatismo, como se estivesse anunciando o fim do mundo.

Mary sorriu para sua prima. Alicia também possuía os cabelos avermelhados,
ainda que mais modeláveis que os seus, e os mesmos olhos verdes. Lógico, dado que
suas mães eram irmãs e todas as mulheres da família possuíam olhos verdes.

— Lorde David não é conhecido por seu dom de oferecer boas festas. Como um
homem com seu passado desgraçado seria divertido?

O sarcasmo em sua voz arrancou um olhar de sua prima, mas pouco chamou a
atenção das outras damas que as acompanhavam. Estavam demasiado ocupadas
procurando uma presa.

— É a primeira festa que ele oferece — explicou distraidamente lady Hermione.


Era sua segunda temporada na sociedade e estava por dentro da atualidade, ao passo que
Mary e sua prima estavam em situação de desvantagem, pois era o primeiro verão das
duas em Londres.

— É que até agora não estava casado — murmurou lady Victoria levantando uma
sobrancelha negra. — Minha mãe me disse que sua prima lhe disse que lady Lucretia se
casou com ele porque espera que o nomeie duque antes do fim da temporada, e assim ela
se converterá em duquesa. Ninguém quer inimizade com um duque, daí a absurda
quantidade de convidados presentes aqui.

O pai de Mary lhe havia contado que Davis havia reivindicado o título à
Suprema Corte, já que seus sobrinhos continuavam sem aparecer. Havia passado pouco
mais de um ano desde que o menor deles havia atingido a maioridade. Dado que nenhum
deles havia aparecido para reclamar para si o título, era evidente que estavam mortos.

A lógica do argumento era indiscutível, por mais que doesse em Mary ter que
aceitá-la. Durante todos os anos decorridos, ela não havia recebido nenhuma notícia de
nenhum deles. Mesmo que, se houvesse recebido, era mais que provável que seu pai lhe
houvesse ocultado.

Porque Mary havia quebrado a promessa feita a Sebastian. Naquela noite havia
contado a seu pai o que havia ocorrido e como havia ajudado aos meninos. Havia
esperado que seu pai tomasse conta de tudo e enfrentasse seu vizinho. Mas havia
descoberto que seu pai temia a sua própria sombra. E a havia encerrado em um convento
onde poderia meditar sobre o mal que ela havia cometido ao interferir.

Seu pai nem mesmo considerava a possibilidade de que alguém tentaria conseguir
um título por meios ilícitos.

— Isso simplesmente não é verdade — ele havia declarado.

Quando por fim ele lhe permitiu voltar a Willow Hall, naquela primavera, Mary
havia ido até as ruínas da velha abadia. Sabia por que Sebastian havia escolhido aquele
lugar para se reunir com ela. Era um lugar mágico, especial. Ali o havia beijado,
preocupada em ser descoberta por seu pai e desterrada por seu descarado
comportamento. Apesar de que só ter doze anos, sabia que jamais esqueceria a sensação
dos lábios de Sebastian contra os seus, o quão doce e assustador que havia sido.

— É muito triste que os sobrinhos tenham sido devorados por lobos, — observou
lady Alícia.

A descoberta parcial de seus restos mortais nas ruínas da abadia era um dos
rumores que circulavam. A história de suas mortes horríveis haviam gerado relatos que
pretendiam manter os mais jovens distantes de aventuras noturnas. Outra versão
assegurava que haviam falecido de febre. Por outro lado, os corpos nunca haviam sido
encontrados. De vez em quando alguém assegurava tê-los visto em Londres, na costa,
num bosque, mas sem provas. Seu verdadeiro destino continuava sendo um mistério.

Mary, entretanto, estava segura de que estavam mortos. Do contrário, teriam


regressado tal e como haviam prometido. Sebastian teria lhe procurado. Nada o
impediria de cumprir sua promessa, salvo a morte. Já havia perdido a conta das noites
que havia chorado por sua morte, e logo despertado, na manhã seguinte, convencida de
que continuavam vivos. Havia uma infinidade de motivos para explicar porque ainda
não haviam aparecido. Mas cada ano que transcorria, parecia menos provável, que
regressassem ou que tivessem sobrevivido.
Pelo canto dos olhos viu Lorde David afastando-se por um corredor. Vestido com
roupas elegantes, aquele sapo resultava até ter boa aparência, e isso a enfurecia. O justo
seria que fosse um homem feio, gordo, até corcunda como Ricardo III, que a fim de
reinar havia encerrado seus sobrinhos na torre de Londres.

Havia recorrido a todas suas forças pra não dar-lhe as costas quando momentos
antes ele lhe havia sorrido ao passar por ela. Seu olhar continha uma astúcia que só ela
parecia perceber. Todos os demais se derretiam enamorados com seus encantos. Ao
menos ele tivera o juízo de não tomar sua mão enluvada para beijá-la, tal como havia
feito com sua tia. Se o tivesse feito, Mary não teria conseguido controlar seu pé, que
teria acertado a canela de seu anfitrião.

— Lorde e lady Westcliffe.

Mary se perguntou se Alicia e ela não deveriam se retirar. Já não estava segura de
seus propósitos de comparecer ao baile. Até esse momento, a única coisa que havia
conseguido era que ter indigestão quando pensava em como Lorde David conseguiu essa
residência e que logo, se sua petição fosse concedida, conseguiria muito mais,
conseguiria tudo.

Não podia permitir que isso acontecesse. Escreveria uma carta à Suprema Corte e
explicaria o ocorrido, anos atrás, a conversação que ouvira o sucedido naquela noite
quando os meninos desapareceram. Acreditariam nela ou tomariam por outro fantasioso
relato a somar-se aos que já rodeavam o mistério dos lordes de Pembrook?

Seus pensamentos foram interrompidos por dois cavalheiros que convidaram lady
Victória e lady Hermione para bailar.

— Não posso crer que no final do mês estará casada — quando os dois casais se
afastaram, Alicia se voltou para sua prima.

Mary tampouco podia acreditar também. Durante sua primeira festa havia
chamado a atenção do visconde Fitzwilliam. Havia se seguido um intenso cortejo, com
abundância de flores, passeios e longas tardes no salão. Ambos compartilhavam os
mesmos interesses artísticos, musicais e literários. As conversas sempre resultavam ser
agradáveis, ainda que em ocasiões ela sentisse falta de um pouco mais de paixão.

— Me sinto um pouco culpada. Era sua temporada não a minha — lembrou Mary
a sua prima.

Seu pai lhe havia negado sua apresentação em sociedade, obrigando-a a


permanecer no convento. E aquilo só acabou quando sua tia, a mãe de Alicia, havia
decidido tomar conta do assunto, e insistido em que a liberassem de seu suplício para
que pudesse compartilhar a temporada de Alicia. Era a primeira vez que Mary recebia a
oportunidade de desfrutar do glamour de Londres, e se havia apaixonado pelo ambiente.

— O senhor Charles Godwin – se ouviu anunciar.

— Ainda não terminou. Quem sabe posso encontrar o amor de minha vida —
contestou Alicia, em um tom que indicava que não havia perdido a esperança. Mary
sentiu uma nova pontada de culpa, pois não poderia assegurar que Fitzwilliam fosse seu
amor verdadeiro. Verdade que sentia carinho por ele. Seus modos e suas maneiras de
vestir eram impecáveis. Suspeitava que, se Sebastian estivesse vivo, seria parecido
bastante com ele: respeitoso, encantador, engenhoso. Também apreciava seus pais, o
marquês e a marquesa de Glenchester. E eles pareciam estimá-la, inclusive estavam
convictos de que o tempo que ela havia passado no convento lhe havia ensinado
misericórdia e graça, ainda que a verdade fosse que a única coisa que havia aprendido
era a jamais voltar a confiar um segredo a seu pai.

— Qualquer cavalheiro se consideraria afortunado de tê-la. —Acrescentou Alícia


alegre, — Você é demasiado generosa. E falando em homens afortunados, ai vem o seu.

Voltando-se para o lugar que indicava o olhar de sua prima Mary viu seu
prometido se aproximar.

O visconde Fitzwilliam era pouco mais velho do que ela, o que lhe conferia um
aspecto de madureza e sofisticação de qual careciam não poucos lordes mais jovens.
Alto e delgado, de pele clara e sorriso fácil, lhe ofereceu um amplo sorriso. Seu pai
estava encantado com a união, apesar de que a propriedade que Fitzwilliam herdaria
estava na Cornualha, longe de seu lar em Yorkshire.
— Lorde e lady Raybourne.

Lorde Fitzwilliam se deteve em frente a ela, contemplando-a de forma satisfeita.

— Você está encantadora, lady Mary.

— Obrigada, milorde — sussurrou ela ao recém-chegado que havia capturado


todos os olhares do salão de baile.

— E você também, lady Alicia.

— É excessivamente amável, milorde.

— Em absoluto. Limito-me a constatar o evidente — Fitzwilliam devolveu toda a


atenção a sua prometida. — Reservou-me a dança de sempre?

A sétima. Ele era um homem suspicaz e Mary se sentiu ainda mais a vontade com
ele. Era o número da sorte de seu prometido. Havia bailado com ela a sétima dança em
cada ocasião desde que, segundo suas próprias palavras, ela o havia enfeitiçado com sua
beleza.

— Com efeito.

— Esplêndido. Com sua licença, lady Alicia?

— Claro que sim, milorde.

Mary não ficava satisfeita com a ideia de deixar sua prima sozinha e não entendia
porque os cavalheiros presentes não se amontoavam ao seu redor. Fitzwilliam apoiou
uma mão na costa de sua prometida e a conduziu até a zona de dança.

— Gostaria de dançar a próxima com ela?

— Com quem?

— Com lady Alicia, minha prima.

— Se isso lhe agradar.


— Enormemente.

— E não a fará sentir ciúmes? —perguntou ele, com certo tom de brincadeira.

— Sim, mas, sobretudo, me fará feliz. Não entendo porque os cavalheiros não se
sentem atraídos por ela.

— Porque a seu lado, ela empalidece.

Um cálido rubor ascendeu às bochechas de Mary. Ela sentia-se um pouco egoísta


ao sonhar que esses elogios de seu prometido continuassem depois das bodas. As notas
de uma valsa começaram tocar e ele a tomou em seus braços. Ela segurava-a com
ternura, sem nenhuma promessa de paixão ou aventura, mas isso pertencia a sua
infância. Muitos pensavam que ficaria para titia, mas ali estava ela, com um admirador,
com o qual jamais havia sonhado depois de anos de isolamento no convento.

Pouco lhe havia ajudado o temor de que lorde David fosse atrás dela, tal e qual
havia feito com seus sobrinhos. Conhecia seus segredos, seus pecados, e era consciente
de ser bastante impulsiva, de atuar em ocasiões sem refletir. Acima de tudo de não haver
confiado em seus instintos naquela noite...

— Sua Excelência, o duque de Keswick.

O inesperado anúncio sobressaltou a Mary.

— Deus santo! — exclamou Fitzwilliam, quase parando. — Disso se trata tudo


isto? Já lhe concederam a petição? Lorde David desde cedo nos surpreenderá com sua
pompa.

Mary mal suportava escutar a insinuação de seu prometido. Se lorde David


tivesse a posse dos títulos, então os irmãos haviam sido declarados mortos.

— Lorde Tristan Easton.

Mary sentiu dobrar seus joelhos.

— Lorde Rafe Easton.


O mundo se estreitou ao seu redor e começou a escurecer pelas beiradas. Com o
coração acelerado, ela se voltou à escadaria que levava ao salão de baile. A música foi
interrompida e os casais haviam deixado de dançar. Os suaves murmúrios rapidamente
aumentaram de intensidade na medida em que os convidados sussurravam e várias
damas davam um suspiro.

Três homens de altura imponente, cabelos longos, negros como a noite, estavam
parados no patamar. A elegante roupa feita, sob medida, não ocultava o aspecto
selvagem de seus rostos, enquanto os gélidos olhares azuis procuravam entre a multidão,
passavam de uma pessoa à seguinte. Com evidente desprezo, deixavam bem claro que
todos estavam abaixo deles. Um deles apontava uma pistola para o mordomo, sem
dúvida, era o motivo porque o infeliz os havia anunciado com o título que seu chefe
esperava ostentar.

Mary reconheceu Rafe no homem armado. Ainda que fosse alto, não havia
atingido a estatura dos gêmeos. Também reconheceu Tristan, por seu inconfundível
sorriso ligeiramente torcido à direita.

O sorriso de Sebastian sempre torcia à esquerda, ou, ao menos, parecia ser assim.
Nesse momento não sorria e, considerando a enorme cicatriz que cruzava um lado de seu
rosto, Mary duvidou que sequer fosse capaz de sorrir. Um tampa olhos cobria um de
seus olhos. Por Deus santo, o que havia acontecido com ele?

Mary deu um passo à frente, mas foi retida por Fitzwilliam.

— Com calma, querida — ele sussurrou. — Não sabemos que perigos nos
cercam.

Ela suspeitava de alguns perigos. Os lordes de Pembrook haviam regressado


dentre os mortos.

E não pode evitar pensar que o aborrecido baile estava a ponto de se converter no
acontecimento mais memorável da temporada.
Capítulo 2

— Creio que chamamos a atenção — observou Tristan com a confiança de um


homem acostumado a mandar.

Apesar de tudo o que havia sofrido, não parecia ter perdido seu senso de humor.
Sebastian não podia dizer o mesmo, mas ele havia perdido muito mais na Criméia. Ali
havia deixado uma parte atraente. Seu olho. E, outras partes de seu corpo não tão
facilmente identificáveis.

Os médicos asseguravam que ele deveria ter morrido devido aos seus ferimentos.
Mas ele era um homem movido por uma necessidade de vingança, de modo que se
negou a permitir que seu coração parasse de bater. Agarrado ao lenço que continha a
terra que ele havia recolhido antes de partir preencheu seu nariz com a intensa fragrância
e suportou a dor e a agonia. Sobreviveu, porque não sobreviver teria sido impensável.

Era o duque de Keswick, o legítimo herdeiro de Pembrook e cinco propriedades


mais, assim como de outros três títulos. E, por Deus, ele reivindicaria o que lhe
pertencia.

Seu tio estava a ponto de descobrir que os três meninos haviam se convertido em
verdadeiros homens. Inclusive ele, havia se surpreendido ao ver a transformação de seus
irmãos. Não se pareciam com típicos segundo e terceiro filhos de um duque que apenas
se entregavam alegremente aos prazeres. O duque não poderia ter mais orgulho deles,
nem estar mais tranquilo por tê-los ao seu lado, protegendo-o e preparados para lutar por
ele.

Percorreu o salão de baile com o olhar. Seu pai havia apresentado numerosos
lordes nas festas campestres que costumava oferecer, mas ele estava bem mais
interessado em brincar com os filhos deles naqueles tempos. E ali estavam esses filhos,
ainda que identificá-los não seria uma tarefa fácil, pois fazia anos que não viam os que
estavam presentes.
— Um momento — um cavalheiro de mais idade deu um passo à frente. — Não
se pode entrar na casa de um homem, interromper uma noitada e agitar uma pistola no
ar.

Na realidade poderiam eram dois a mais. Os três estavam armados, Mas só Rafe
havia sacado a sua, quando o mordomo havia se negado a anunciar Sebastian como
haviam solicitado, porque não possuía um convite. Rafe parecia ter desenvolvido uma
personalidade impaciente com o passar dos anos.

— Esta casa é minha — proclamou Sebastian, — e entrarei nela quando, e como


eu queira.

O cavalheiro pareceu escandalizado e Sebastian lamentou o tom que havia


empregado com ele. Entretanto, desculpar-se o faria parecer frágil e ainda lhe
aguardavam atos mais importantes. Onde demônios estava seu tio? Certamente o
covarde havia escapulido pela porta traseira e nesse momento fugia mostrando o ser
rastejante que era.

Uma jovem mulher, de baixa estatura, subiu as escadas com determinação


detendo-se no meio do caminho. Usava um vestido de seda violeta. Uma gargantilha de
pérolas rodeava seu pescoço e seus cabelos vermelhos estavam decorados com enfeites
de diamantes. Seu corpo era bastante volumoso, consequência dos prazeres alimentares,
aos quais, com certeza, se entregava. Um raio de dúvida ainda brilhou em seus olhos
antes que se decidisse a falar.

— Sou lady Lucretia Easton, esposa de lorde David, futura duquesa de


Keswick…

— Não, senhora. Lamento informar-lhe de que a senhora não está destinada a


converter-se em duquesa. E se meu tio a enganou para se casar com você, deveria ir ao
inferno.

A mulher abriu desmesuradamente os olhos e sua mandíbula se abriu. Sebastian


se surpreendeu que ninguém a apoiasse. Talvez, todos estivessem igualmente
espantados, ou, apenas aguardavam os acontecimentos. Sem dúvida estava oferecendo
um bom espetáculo. Não lhe agradava especialmente, mas seu êxito se baseava em expor
sua situação em frente de testemunhas.

— Não sei quem é senhor, mas…

— Sou o duque de Keswick.

— Isso é impossível.

— Asseguro senhora, que eu sou.

— Mente, — a mulher deu duas palmas para um criado. — Tire daqui este
farsante e seus amigos enganadores, imediatamente.

— Ele disse a verdade! Ele é o duque de Keswick — uma voz feminina surgiu
dentre os convidados e uma jovem, alta e delgada, abriu caminho até a escadaria.

À medida que ascendia os degraus, mostrava a ponta das sapatilhas rosa,


combinando com o vestido de baile. Parou a curta distância de Sebastian e se agarrou ao
corrimão, como se corresse perigo de desmaiar ao contemplar o homem que estava em
sua frente.

Sebastian sabia o que a mulher estava enxergando. O que todos viam. Carne
mutilada, grossas cicatrizes que cruzavam sua bochecha e desciam pelo pescoço
desaparecendo sob a roupa.

E, ao mesmo tempo, que ela o via com clareza, ele a viu também.

Possuía os cabelos da família, um tom vermelho vivo. Uma lembrança o assaltou.


Recordou-se de cavalgar pelo campo perseguindo uma menina, que devido à cor de seus
cabelos jamais conseguia se camuflar. Sua presença o havia impregnado totalmente de
uma energia que a rivalizava com o sol.

Mas a mulher, de pé, em sua frente não podia ser quem ele pensava. Onde
demônios estavam às sardas? Conhecia aquelas sardas, verdadeiras constelações, como
conhecia as estrelas do firmamento. Além do mais, aquela menina era plana com uma
tábua enquanto esta mulher possuía curvas que convidavam um homem a explorá-las.
Os ombros e o pescoço revelavam uma pele sedosa. E na borda do decote descobriu uma
sarda e se perguntou como o sol havia chegado até esse lugar exatamente. Sentiu a boca
seca. Não podia ser!

— Mary? — Ele perguntou com voz rouca.

Ela sorriu como resposta. Um sorriso familiar.

Mas, então, ele viu a piedade refletida em seu olhar esverdeado e as lágrimas que
encheram os olhos dela. O estômago de Sebastian se encolheu. Havia desejado e temido,
de forma igual, esse momento. E uma dor, como não havia sentido no campo de batalha,
lhe atravessou o coração.

Sabia muito bem no que havia se convertido. Havia destroçado o espelho que
havia lhe revelado a extensão de sua mudança. Com prazer teria privado Mary do horror,
mas, para desmascarar seu tio teria que se mostrar em público.

— Não chore — ele lhe ordenou, apenas movendo os lábios.

— Seu tio só sabia que vocês desapareceram — Mary assentiu, conteve as


lágrimas e endireitou os ombros, — Ninguém sabia onde vocês estavam, nem o que
havia acontecido. Houve numerosas especulações sobre a morte de vocês. Lobos,
enfermidades, assassinatos. Mas eu sabia que tudo era mentira. Porém, depois de tanto
tempo, o mais lógico seria pensar que os três estavam mortos.

— Bem, pois parece que o anúncio de nosso falecimento foi um pouco prematuro,
não? — Interveio Tristan.

— Do que todos nos alegramos — Mary assentiu.

Sebastian duvidava que seu tio se mostrasse tão encantado. Seu olhar pousou na
anfitriã da festa. Ela também se agarrava ao corrimão. Parecia um passarinho expulso do
ninho. Mas não podia mostrar nem um pingo de misericórdia. Ela era um joguete do
demônio e, ainda que fosse inocente, poderia resultar ser muito perigosa.

— Onde ele está senhora? Onde está seu esposo?


— Seguramente jogando cartas — a mulher franziu o cenho.

— Pois que alguém o busque.

— Um momento! — A indignação fez Lucretia se recompor. — Ninguém me dá


ordens em minha própria casa.

— A casa é minha — rugiu Sebastian, descendo os degraus.

— Lorde David! Lorde David! — A nobre dama correu escadaria abaixo.

— Eu sou o verdadeiro duque de Keswick — ele desceu mais degraus.

— Eu e meus irmãos reivindicamos tudo o que nos foi roubado.

— Você se parece com seu pai — observou um cavalheiro.

— Não mais — Sebastian quase soltou uma gargalhada, — mas Tristan sim.
Muitíssimo. Como meu gêmeo, servirá como prova viva de que somos quem
asseguramos ser. Além do mais, tenho o anel de meu pai.

Parecia que o salão de baile não poderia estar mais silencioso, mas estava. O
ambiente era mais parecido ao de um funeral. Sebastian não havia esperado alegres
murmúrios de regozijo, mas, ao menos, um pouco mais de aceitação. Sentia os olhares
sobre ele, as especulações. Não gostava de lavar a roupa suja diante de estranhos e havia
considerado enfrentar seu tio em particular, mas aquele homem merecia o escárnio
público.

— O que está acontecendo aqui?

Ali estava, enfim, o usurpador, abrindo caminho com arrogância entre os quase
trezentos convidados. Ao chegar à escadaria, seu tio levantou o olhar e parou em seco.
Sebastian se surpreendeu ao contemplá-lo. Por algum motivo, ele havia esperado que o
homem mantivesse o mesmo aspecto de sempre, mas obviamente não havia sido assim.
David não era particularmente alto, mas seu aspecto estava mais volumoso do que o de
sua juventude. Estava claro que havia desfrutado do sucesso de sua traição. As mãos
grossas estavam adornadas de anéis e os cabelos estavam grisalhos. Convencido de ser
dono de algo que não lhe pertencia, seu nariz era muito empinado.

— Saudações, tio.

Lorde David sacudiu a cabeça, incrédulo, antes de olhar ao seu redor com olhos
arregalados.

— Meus sobrinhos estão mortos.

Sebastian soltou uma gargalhada, mais parecida com um latido. Não se recordava
da última vez que havia rido de verdade, mas, sim, havia sido antes da morte de seu pai.

— Terminou por acreditar em suas próprias mentiras!

— Não sei quem é…

Sebastian desceu da escadaria tão depressa que seu tio mal teve tempo de recuar,
dois passos, antes que a mão de seu sobrinho o agarrasse pelo pescoço. Ao seu redor
ouviu exclamações de surpresa, mas ninguém deu um passo à frente para desafiá-lo.
Sem dúvida, a ameaça que seu maltratado rosto refletia havia transmitido à mensagem.
Nem ele, nem seus irmãos permitiriam que alguém interviesse. Haviam conseguido
comunicar suas mensagens de ameaça sem a necessidade de palavras, um talento muito
útil na hora de enfrentar o inimigo. E lorde David Easton era um inimigo.

Quando ele era menino, seu tio lhe parecia alto, temível e invencível, mas agora
ele o superava em altura. Sua vida não havia sido fácil. Possuía músculos de aço, o
corpo endurecido pela guerra. Era capaz de derrubar um homem com uma espada, um
rifle ou uma pistola. Se necessário era capaz de destroçar um homem com as mãos
desnudas, e a tentação de fazer isso, nesse momento, era quase irresistível.

— Sabe muito bem quem eu sou — anunciou Sebastian com calma, ainda que sua
voz espelhasse uma fúria intensa que ameaçava transbordar. Sabia que não seria fácil se
comportar como um cavalheiro, e estava a ponto de explodir. Deveria ter vivido uma
vida despreocupada, ido à escola, ser educado como um futuro duque.

Ao contrário, havia sofrido penúrias, visto muito sangue e horror. Seus irmãos
haviam experimentado algo parecido. Sua missão era de protegê-los, cuidá-los, e havia
conseguido somente levá-los ao mesmo inferno. Ele os havia traído. Seu pai, se vivo,
deveria estar profundamente decepcionado, mas não mais do que ele decepcionara a si
mesmo.

— Se desejar, podemos recorrer a Corte Suprema, mas de um modo ou de outro,


receberei os títulos que meu pai me concedeu. Pode se retirar discretamente ou lutar
contra mim. Ainda assim eu o advirto, fui capitão do exército de Vossa majestade.
Quando tenho um objetivo, nada me impede de alcançá-lo. Tristan navegou pelos mares.
Para ele não é nada. E Rafe, bem, digamos que conhece um lado obscuro de Londres que
inclusive a mim aterroriza.

Seu tio enterrou as unhas nos punhos de Sebastian e se sentiu sufocar, com olhos
arregalados.

— Concedo-lhe um dia para recolher seus pertences e partir. Deu-nos bem menos
tempo para fugirmos de Pembrook e salvar nossas vidas. Se ousar levar um só objeto
que não lhe pertença, Tristan se ocupará de você, assim como ele viu fazerem com os
ladrões no extremo oriente. Cortará suas mãos.

— E me encantará — anunciou seu gêmeo como se a tarefa não requeresse mais


esforço que o de espantar uma mosca.

Seu tio continuava debatendo-se, procurando ar, para respirar.

Sebastian sabia que deveria soltá-lo, mas era incapaz de fazê-lo. Esse covarde era
responsável pelos seus últimos doze anos de miséria. Em sua ausência, havia desfrutado
de uma vida de luxos que deveria ter sido pra ele e para seus irmãos. Havia roubado a
eles. Seguramente os teria matado. Não merecia o ar que respirava. Não merecia…

Um ligeiro toque no ombro, como o revoar de uma mariposa, chamou sua


atenção.

— Você está matando ele — observou Mary com calma. — Depois de tudo o que
padeceu não quer acabar no calabouço.
Não, e, de repente, o que fazia não lhe dava satisfação. Havia sonhado com esse
momento, o havia antecipado e, ainda assim, não estava lhe satisfazendo. Seu tio não era
um adversário digno. Era pouco mais que uma escória. Sebastian soltou seu tio com
força. O homem aterrissou de costas no chão.

— Amanhã, ao amanhecer, espero que já não esteja aqui, tio. Não quero voltar a
vê-lo, jamais. E o mesmo opinam meus irmãos. Nossa compaixão chegou ao limite.
Atreva-se a nos desafiar e sobre você desabará o inferno.

Olhando ao seu redor, viu expressões de horror, confusão e incredulidade. E


novamente, viu a compaixão nos olhos de Mary. Uma compaixão que o fazia sentir-se
como uma besta imunda, porque já não estava certo se eram suas feições destroçadas
que despertavam tal sentimento na jovem, ou se eram suas ações, suas palavras. Não
havia se comportado como um cavalheiro. Deveria ter falado com seu tio em particular,
ainda que, a julgar pela reação dos convidados, seu tio não gozava de muitos favores. E
bem pouco lhe importava.

Seu tio merecia apodrecer no fundo de um poço.

Sebastian reverenciou, quase imperceptivelmente, Mary antes de subir as escadas.


Saiu da casa com a esperança de ter deixado bem claro que o duque de Keswick havia
regressado ao lar.

Desgraçadamente ainda lhe restava à tarefa mais difícil: convencer a si mesmo.


Capítulo 3

No salão de baile desatou a loucura.

Enquanto os irmãos desapareciam pela porta, se iniciou um crescente murmúrio


de objeções, protestos e especulações.

Mary permaneceu agarrada ao corrimão, o único modo de impedir a si mesma de


correr atrás deles. Seria um desastre e sua reputação cairia por terra. Uma dama não
corria atrás de cavalheiros que fugiam, sobretudo quando o comportamento deles havia
sido tudo, menos cavalheiresco. E, sem dúvida, possuía perguntas... Onde estiveram
todos esses anos? O que havia atrasado seu regresso? O que havia acontecido com eles?

Haviam se convertido em homens, mas, sem dúvida, o trajeto não havia sido
prazeroso. Seus olhares glaciais, desprovidos de toda a compaixão, gelavam o sangue.
Tampouco podia culpá-los. Haviam sofrido a pior das traições, pois alguém de seu
próprio sangue tentara matá-los.

— Acreditei que estavam mortos — balbuciou lorde David ante o olhar


inquisitivo de um dos lordes. — Não tive nenhuma notícia deles por todos esses anos.
Cuidei dos bens do ducado porque assim teria desejado meu irmão. A desconfiança
deles e acusações estão fora de lugar

―Não, não estão‖, Mary quis gritar. ―Prendeu-os na torre. Porque faria algo assim
se não queria matá-los?‖

Lorde David suava copiosamente, respirando com dificuldade, contemplando os


rostos daqueles que esperavam que ascendesse à nobreza.

— Digo-lhes — continuou, — que não teria reivindicado o título se soubesse que


continuavam vivos. Fiz todo o possível para encontrá-los. Mas eles não queriam ser
encontrados. Todos vocês também acreditavam que eles estivessem mortos. Ouviram os
rumores: lobos, enfermidades, assassinato. Como eu saberia a verdade? Por acaso algum
de vocês sabia? Algum de vocês?

Seu olhar feroz se fixou em Mary e ela viu ódio, como se lorde David suspeitasse,
soubesse, do que ela havia feito. Um calafrio de terror lhe percorreu o corpo, mas,
desafiante, sustentou o olhar de David.

De repente, David começou a gritar com os convidados.

— A festa terminou! Saiam e me deixem em paz!

Correu pelo corredor abaixo, seguido de perto por sua esposa, que retorcia as
mãos enquanto choramingava. Mary teve um sobressalto. Não gostaria de viver nada
parecido.

— Que você sente por ele? — Sem um prévio aviso, Fitzwilliam agarrou o braço
dela.

— Como?

— Aquele homem que assegura ser o duque de Keswick. Você o olhava...


fascinada.

— Estava feliz — ele admitiu. — Porque eles estão vivos. Até hoje temia que
estivessem mortos. E o que ele disse é a verdade. Crescemos juntos até que eles
desapareceram, mas os reconheceria em qualquer lugar.

Ao menos se estivessem juntos, pois Mary não estava certa de tê-los reconhecido
em separado. Existiam poucos cavalheiros que exibiam uma rudeza que demonstrava as
penúrias sofridas. Durante anos havia sonhado em voltar a vê-los, mas jamais imaginara
encontrar aquilo que havia presenciado.

Os convidados passavam ao seu lado. O drama parecia ter terminado. Ao menos,


pelo momento. Ela ignorou os sussurros e murmúrios, concentrando-se no homem que
estava na frente dela.

— Acredita em mim, não é verdade?


— O que eu acredito não importa — Fitzwilliam parecia incômodo. — Meu título
não me outorga muito peso.

— Entre seus amigos você possui — alguns dos amigos de seu prometido
ostentavam importantes títulos e poderiam ser bons aliados dos irmãos, no caso de
necessidade.

— Vamos — ordenou ele. — Será melhor irmos. Não confio de que aqueles
rufiões não regressem para desatar o caos. Ouvi falar de sede de sangue, mas, até esta
noite eu nunca a havia visto.

— Não são rufiões e tem direito de estar furiosos. Lorde David foi o motivo da
fuga deles — Mary apertou a mão de Fitzwilliam, ansiosa por fazê-lo compreender. Os
convidados passavam cada vez mais devagar junto a eles, desejosos de captar partes da
conversa, mas, ela não estava disposta a alimentar a curiosidade deles. — Vim com
Alicia e tia Sophie.

— Voltarão em minha carruagem.

— Viemos com a nossa.

— Não gostei de como aquele homem a olhou. Tendo em conta os


acontecimentos, não posso permitir que três damas viagem sem proteção.

O condutor e o lacaio não deveriam ser bastante proteção para ele, refletiu Mary.
Tampouco podia negar que lhe agradava que ele se mostrasse tão preocupado com ela.

— Precisamos encontrar minha prima e a minha tia.

— Farei isso imediatamente — assentiu Fitzwilliam. — Não se mova daqui.

— Nem tentaria.

Mary o contemplou com ternura. Seria um marido excelente, sempre atento às


suas necessidades. Ele cuidaria dela, protegeria. Ela não poderia pedir um homem mais
atencioso.
Ela se apertou contra o corrimão para deixar mais espaço para que os convidados
continuassem saindo. Todos falavam ao mesmo tempo e as damas estavam com os olhos
brilhantes. Era evidente que estavam entusiasmadas com o sucedido.

— Sabe se são casados? — perguntou lady Hermione ao passar por ela.

— Não sei — a pergunta a irritou, ainda que não devesse.

— Mas você os conhece.

Mary já não estava tão certa. Conhecia os meninos que eles haviam sido, mas
quanto aos homens em que se converteram...

— O que sei é que são quem dizem ser, os lordes de Pembrook.

— Uns diabos muito atraentes — os olhos de lady Hermione brilhavam.

— Bom, exceto o duque. O que acha que lhe aconteceu?

— De verdade eu... — Mary sacudiu a cabeça.

— Hermione! — O pai dela chamou. — Vamos.

— Amanhã tomaremos chá — lady Hermione apertou o braço de Mary.

— Precisamos conversar.

Antes que Mary pudesse responder, a jovem dama havia sumido escadas acima.
Nunca haviam tomado chá juntas. De repente parecia ter se convertido em uma
celebridade. Mas ela se absteve de explicar que foram vizinhos. Que os ajudara a fugir.

―ELE OS TRANCOU NA TORRE!‖, ela queria gritar.

Mas ela se limitou a aguentar os olhares e a assentir, amavelmente, a outros


convites para tomar chá. Finalmente sua prima a pegou pelo braço e a conduziu escada
acima, seguida por sua tia e Fitzwilliam.

—Temos muito do que falar — observou lady Alicia.


— Não sei muito mais — contestou Mary enquanto alcançavam o último degrau.

Não tiveram mais oportunidade de falar até que se instalaram na carruagem de


Fitzwilliam.

— Bem, bem — começou sua tia. —Eu diria que se produziu uma interessante
mudança nos acontecimentos, ainda que eu não aprove o método. Essa demonstração
pública de inimizade familiar não é de bom gosto. A situação exigia discrição e muito
mais decoro.

— Vamos, mamãe — interveio Alicia. — Não pode negar que resultou num
espetáculo fascinante. Aqueles lordes tem muito boa presença. Amanhã eles serão alvo
dos comentários de Londres.

— Já o são esta noite — murmurou tia Sophie.

— O método deles encerrava um propósito, lady Sophie — observou Fitzwilliam.


— Humilhar lorde David.

— E bem que ele merecia essa humilhação, milorde — espetou Mary sem poder
refrear-se — e suspeito que planejaram o assunto de modo a ter testemunhas.

— Aquele homem está arruinado — lamentou sua tia. — E sua pobre esposa. Só
estão casados há três meses.

— Eu também sinto por ela — assentiu Mary. — Que horrível deve ser descobrir
que o homem com que se casou não é o homem que acreditava que fosse.

— E a arrastou com ele em sua queda. Não sei se poderia perdoar algo assim. —
Continuou Sophie.

— Não deveria ser perdoado por ninguém — lhe assegurou ela.

— Não a imaginava tão dura — sua tia deu um suspiro.

— Ele pretendia matá-los.

— Sério? — Perguntou lady Alicia entusiasmada.


— E como você sabe disso? — Interveio Fitzwilliam.

— Ouvi quando ele deu a ordem.

— E para quem ele deu a ordem?

— Não pude ver. Passava junto à sala e ouvi a conversa, Eu estava com doze anos
e estava aterrorizada. Corri em busca de Sebastian.

— Céu santo! — exclamou sua prima. — Nunca me contou. Ocultou esse


delicioso segredo.

— Prometi para Sebastian que não contaria a ninguém — havia quebrado sua
promessa uma única vez, e lhe custara bem caro.

— Você era uma criança — insistiu Fitzwilliam. — Deve ter entendido mal.

— Não. Tenho certeza de que não.

— Mary, querida, é um absurdo pensar que lorde David recorreria ao assassinato


para ter o título. Ele precisaria matar três meninos.

Mary tentou não e sentir ferida pelas palavras de seu prometido. Ele, mais que
ninguém, deveria acreditar nela.

— Ricardo III matou a dois.

—Não há provas disso. Além do mais, isso aconteceu há quatro séculos. Gostaria
de pensar que agora somos mais civilizados. E Ricardo aspirava ao reinado, não a um
ducado.

— Um dos ducados mais importantes da Grã Bretanha.

— Costumava ser, mas desde a morte do sétimo duque, perdeu muita influência.
Sua importância reside em quem ostenta o título e ninguém o fez em anos.

— Isso vai mudar. Sebastian regressou.


— Eu não estaria tão segura. A mim pareceu um bárbaro.

Mary não podia negar, de modo que se limitou a olhar pela janela. Na carruagem
se fez um incômodo silêncio, como se todos estivessem assimilando os acontecimentos
daquela noite.

E ela agradeceu o silêncio que lhe permitia se deleitar na alegria que a invadia.
Haviam regressado. Finalmente.

Sentada à biblioteca, Mary observou seu pai que contemplava o fogo da


lareira com um copo vazio na mão. Havia tomado o whisky de um gole só depois do que
ela relatara sobre o acontecido no baile. Ele sempre fora um ermitão que preferia a
companhia do álcool a dos homens. Jamais assistia a eventos sociais ainda que às vezes
comparecesse em algum clube. Ele fora até Londres apenas para vigiá-la de perto.

— Não deve interferir neste assunto — ele a advertiu. — Está prometida a um


nobre respeitável de linhagem familiar impecável. Deixe que os lordes de Pembrook
solucionem seus problemas. Não quero que se aproximes deles.

— Mas são nossos vizinhos.

— Não aqui em Londres e ainda menos, na Cornualha.

— Mas se eu dissesse o que ouvi...

— Você não tem nenhuma prova de que lorde David os teria matado. Talvez
houvessem se portado mal e estivessem recebendo um castigo ao passar algumas horas
na torre.

— Do mesmo modo que fui castigada com o convento? O pai dela empalideceu e
bebeu outro trago.

— Não fará nada que ponha em risco seu compromisso com Fitzwilliam. Você
não tem nenhum irmão que vele por você quando eu morrer. E eu não posso confiar que
meu sobrinho, meu herdeiro, se mostre generoso com você. Ele tem cinco irmãs que
deve casar.
Mary quase nem conhecia a grande família de seu pai. Não gostavam do clima do
norte e preferiam residir no sul. Sabia que seu pai estava preocupado com seu futuro e
havia lhe garantido um dote considerável. Mas se negava a questionar até que ponto esse
dote teria influenciado Fitzwilliam.

— A mais velha tem apenas nove anos. Meu irmão tardou muito em formar
família — e depois morreu de tifo. — Pode ser que você tenha razão — o homem sorriu.
— Me preocupo demasiado, mas não quero que perca esta oportunidade de fazer um
bom matrimônio. E agora vá dormir.

Quase uma hora depois, Mary continuava sentada em frente à janela de seu
quarto. Considerou desobedecer a seu pai, vestir-se e sair em busca de Sebastian e seus
irmãos. Perguntou-se onde viveriam, porque ele não a procurara para dizer-lhe que
estavam a salvo. Supôs que ele queria manter seu regresso em segredo até fazer sua
grande aparição, mas deveria tê-la tranquilizado. Não deveria tê-la deixado ali se
preocupando com ele.

No transcurso dos anos, muitas vezes havia pensado em fugir do convento, mas
não dispunha de fundos, nem habilidades que lhe permitissem ganhar a vida.

Poderia ter murchado naquele convento não fosse por sua tia.

E durante seu primeiro baile havia conhecido lorde Ftitzwilliam, que pouco
depois, lhe havia pedido que se casasse com ele. Antes de terminar o mês ficaria livre de
seu pai e de suas manipulações. Fitzwilliam a considerava forte e capaz. Alguém que
podia lhe proporcionar uma agradável vida familiar. Não era um lorde especialmente
cobiçado, o que equilibrava a situação, já que não havia uma fila na porta do pai dela,
para pedir sua mão. Fitzwilliam era seu cavaleiro andante.

No meio da noite quando o sono lhe vencia, em muitas ocasiões sonhava com
Sebastian e se perguntava o que aconteceria se ele regressasse.

Havia dedicado muitos momentos em imaginá-lo como adulto, mas o cavalheiro


encontrado no alto da escadaria parecia mais com um pesadelo do que um sonho.
— Amanhã estaremos na boca de todos — lamentou Tristan, sentado numa
cadeira do salão, da suíte privada, de Rafe, em sua casa de apostas. Os três irmãos
haviam se instalado ali depois de regressar da festa de seu tio. As acomodações eram
boas e Rafe dispunha de uma excelente seleção de licores.

Sentado em outra poltrona, bebendo um brandy, em grandes goles, Sebastian


estava com o olhar fixo na lareira. Não conseguia tirar da cabeça a imagem de Mary.
Durante os anos de exílio havia pensado nela, imaginando-a igual à última vez que a
havia visto: uma menina com tranças, pernas compridas e um sorriso que ocupava todo o
rosto. E as sardas. Carregava tantas sardas que ele sempre fazia brincadeiras sobre o
aspecto engraçado que lhe davam.

Recordou como a jovem havia falado em seu favor. Sempre fora mais ousada do
que ele, e sempre o havia desafiado. Ela havia sido a razão dele ter subido na velha
árvore e quebrar o braço ao cair. A razão porque aprendeu a escalar muros. A razão
porque ele e seus irmãos estavam vivos.

— Me pergunto por que não me sinto mais satisfeito — comentou Rafe.

Ele estava com apenas vinte e dois anos, mas não fora muito mal. Quando
Sebastian o havia deixado no orfanato, temera que a vida cômoda que haviam desfrutado
até aquele momento houvesse debilitado seu irmão caçula. E talvez ao princípio tenha
sido assim, Rafe não falava muito sobre como havia conseguido esse antro de perdição,
mas Tristan já não se atrevia de acusá-lo de ser chorão.

— Porque aquele bastardo continua respirando — contestou Tristan.

Ele era igualmente reservado na hora de relatar sua vida. No cais, Sebastian havia
encontrado um capitão disposto a contratar um ajudante de cabine. O dinheiro lhe havia
permitido adquirir seu primeiro posto num regimento. Mas Sebastian não conseguia
evitar, de se perguntar: a que custo. Havia sentido o custo. Um trabalho, com um chicote
de nove pontas. Seu gêmeo sempre preferira estar no comando das coisas em vez de
realizá-las. Não era de estranhar que no final tivesse comprado seu próprio barco. O
transporte de mercadorias lhe convertera em um homem rico. Sebastian não queria
pensar de onde poderia ter vindo parte dessa riqueza.

— Mary se tornou uma beleza — observou Tristan, tão assombrado quanto


Sebastian ao reconhecê-la.

Não havia ficado surpreso tanto com sua transformação em borboleta, quanto o
fato de que se tornara adulta. Era evidente que havia passado da idade de se casar, pois
já estava com vinte e quatro anos. Teria um marido? Por que não estava ao lado dela?

— Talvez devêssemos tê-la avisado de nossos planos — continuou Tristan. —


Ela não parecia preparada para o que aconteceu.

— O que, sem dúvida, a salvou — conjeturou Sebastian antes de esvaziar o copo


e voltar a enchê-lo.

Continuava enxergando-a como uma criança e desejava protegê-la. Não havia


considerado como a afetaria vê-los novamente. Em sua mente, ela continuava igual à
última vez que a havia visto em Pembrook. As mudanças produzidas pelo tempo nunca
eram sutis, e as de Mary, tampouco. Pareceu inapropriado recordar as curvas que o
vestido havia revelado a imaculada pele desnuda de seus ombros, que algum homem
teria a sorte de acariciar.

Que sedosa e que quente ela parecia.

Sebastian se permitiu imaginar a si mesmo soltando-lhe os cabelos. Até onde


chegariam? Poderia perder seus dedos com a mesma facilidade que um homem poderia
se perder nela?

Inclusive os olhos dela haviam mudado. Continuavam tão verdes quanto o campo,
mas já não refletiam aquele toque travesso. Se alguns olhos guardavam a capacidade de
rir, os dela o faziam desde criança. Mas não nesta noite. Claro que nesta noite ela tivera
poucos motivos pra rir. Ainda assim, seu olhar carregava demasiado conhecimento, e
talvez sabedoria. O que Mary teria visto durante os anos decorridos?

Como era possível que não tivesse pensado que ela também se tornaria adulta?
Talvez, por ele ter se tornado homem no dia em que seu pai morreu. Sempre havia
desfrutado explorando o mundo com Mary, mas agora só desejava explorar a ela.

Sebastian se recriminou por esses pensamentos, inquietantes e intoleráveis. Seu


papel era de amigo, não de amante.

— Faz alguma ideia de com quem ela estava dançando quando fizemos nossa
grande entrada? —Tristan interrompeu os pensamentos de seu irmão.

— Você a viu dançando? — Perguntou Sebastian. Imaginava a graça e a


elegância com a qual ela se moveria na pista de dança nos braços de outro homem.

— E você não? — Perguntou incrédulo seu gêmeo.

— Estava ocupado com outros assuntos. Convencendo o mordomo para que nos
anunciasse corretamente, levou mais tempo que o esperado — o homem não trabalhou
para o pai deles e não os reconhecera, nem sabia da existência deles, ao que parecia.

— Agora que penso — Tristan pareceu de repente incômodo. — creio que ela
estava fora de teu campo de visão. Enfim, pode ser que a tenhamos ferido ao ocultar
nosso regresso. Sem ela...

— Eu sei quanto lhe devemos — falou ele. Não sabia por que as reflexões de
Tristan ou o fato da jovem ter se tornado uma espetacular mulher, o irritavam tanto.
Quem sabe se ao vê-la se recordava dos anos perdidos.

— É uma mulher comprometida — disse Rafe diante do olhar surpreendido dos


irmãos. — Estão se comportando como cachorros no cio. Não vejo nenhum sentido em
discutir o que deveríamos ter feito. A beleza dela e nossa dívida com ela são
irrelevantes. Está comprometida com o Visconde Fitzwilliam, o cavalheiro com o qual
dançava. Vi o anúncio no periódico.

— É um pouco velha para estar apenas comprometida — Tristan verbalizou as


reflexões que Sebastian fazia.

— Não acredito que nossa Mary se conforme com qualquer um — insistiu Rafe.
— Suspeito que ela precisou de um pouco mais de tempo para encontrar um cavalheiro
digno dela.

―Nossa Mary‖. Mary não pertencia aos três, somente a…

A verdade o golpeou de frente. Não pertencia a nenhum dos três.

— Talvez — assentiu Tristan. — Ainda assim, um visconde? Que sabes dele?

— Ele não tem importância. Mary não é nosso motivo de preocupação — disse
Sebastian com impaciência.

Não queria pensar nela com outro homem. Jamais a reivindicara como sua. No
momento da fuga eram pouco mais que crianças. Agora, como adulta, quem sabe ela não
tivesse nada em comum com ele. Talvez fosse totalmente inadequada para ser duquesa.
Sebastian passou a mão no queixo e se deteve em seco. As cicatrizes. Era bem possível
que nenhuma mulher considerasse sequer a possibilidade de ser sua duquesa. Mas ele se
ocuparia disso em outro momento.

— O que devemos fazer agora é nos instalarmos — informou para seus irmãos,
— assegurar-nos de que nossa reivindicação sobre Pembrook não seja questionada, lá
estão nossos inimigos. Não repararam nas dúvidas que se refletiam nos rostos naquele
salão? Estamos longe de ter conseguido.

— Quem sabe Mary poderia ser de alguma utilidade — observou Rafe. — Ela
permaneceu no mundo do qual fomos expulsos.

— Seria capaz de usá-la? — perguntou Tristan.

— Eu seria capaz de utilizar qualquer um que me permita conseguir o que eu


quero.

A frieza daquelas palavras provocou um estremecimento em Sebastian. Quem era


esse homem sem piedade a quem chamava de ―irmão‖? Por outro lado, entre eles existia
um vínculo que não podia ser quebrado. Certo que sabia bem pouco sobre ele, mas não
podia considerá-lo um estranho, porque confiava cegamente nele. Ainda havia muito
para averiguar sobre seu irmão, ainda que não estivesse seguro de realmente querer
saber tudo.

O silêncio se instalou entre eles, como se os três necessitassem pesar as


repercussões de seus atos daquela noite. Sebastian havia esperado o protesto de alguns
lordes, mas isso não aconteceu. Talvez se considerassem demasiado dignos para
protestar, ou, talvez, seu tio possuía pouca importância para eles, como a ele mesmo.
Ou, ainda, se limitavam a esperar os acontecimentos.

— Qual será o próximo passo? — Perguntou Tristan por fim.

— Instalar-me em Easton House logo que aquele impostor tenha partido. Ambos
estão convidados a viver ali comigo.

— Eu fico aqui — contestou Rafe de imediato. — Aqui me sinto em casa.

— Possui um alojamento muito bom. — concordou Sebastian, — mas agora que


voltará a ser reconhecido como um lorde poderia pensar em vender este lugar. Não é
uma propriedade digna de um cavalheiro.

— Jamais me declarei um cavalheiro.

— Mas é um cavalheiro — insistiu Sebastian.

— Acredite irmão — Rafe ficou de pé num salto, — fiz coisas que nenhum
cavalheiro faria. A boa sociedade não aceitaria. Minha riqueza e meus recursos, mais
que questionáveis, estão a sua disposição. Já enviei dois homens para que vigiem Easton
House e a seu atual residente. Farei tudo o que estiver em minhas mãos para lhe
assegurar o título, mas meu lugar é aqui. — Rafe fez um sinal de que abandonaria a
saleta.

— Rafe — chamou Sebastian.

Seu irmão se deteve, mas não se voltou.

— Há doze anos não consegui leva-lo comigo, mas agora eu posso.


— É demasiado tarde — a voz de seu irmão caçula carecia de toda emoção, mas
suas palavras golpearam Sebastian com força. — Talvez você possa recuperar o que
perdeu, mas eu não. Nem quero fazer. Considere-se em sua casa.

O mais novo dos lordes abandonou a saleta sem olhar para trás. Ele o alcançaria,
o faria compreender...

— Deixe-o — lhe ordenou Tristan.

Sebastian não queria que se infectassem as feridas que existiam em sua relação
com Rafe, mas suspeitava que seu teimoso irmão não estivesse com humor pra escutar.
De modo que se concentrou em seu gêmeo que continuava recostado na cadeira. Não era
fácil olhar seu irmão e recordar o quão atraente ele fora tempos atrás.

— Você sabe o que lhe aconteceu?

— Ele conta para mim o mesmo que conta a você.

— Eu acreditei que lhe dariam comida, roupa e abrigo.

— O que quer que tenha acontecido. Não foi sua culpa. Toda a culpa é de nosso
tio. Quem dera me tivesse deixado matá-lo.

— Para que o enforcassem? — Mary já havia insinuado, ainda que sua voz doce
houvesse soado tão grave. Sebastian se perguntou se ela havia se dado conta do quão
perto ela estivera de não conseguir que ele soltasse seu tio. Ele perguntou a si mesmo se
Mary se decepcionara ao descobrir aquele lado obscuro de sua personalidade.

— Meu barco é veloz e o mar é meu elemento — contestou Tristan.

— Ficará comigo em Easton House? — ele arqueou uma sobrancelha, por cima
do infame tapa olho.

— Não acredito. Levo demasiado tempo sozinho. E prefiro assim, Keswick.

Sebastian se sobressaltou. Eles não voltaram a chamá-lo por seu título desde que
os homens de seu tio os escoltaram até a torre. Sussurrara seu título pra si mesmo cada
noite antes de ir dormir, uma lembrança, um solene juramento. Não queria se esquecer
de quem era, nem do que lhe deviam. Tudo o que havia feito desde o instante em que
Mary abriu aquela fechadura, só tivera um propósito, recuperar o que era seu e ao fazê-
lo, devolver para seus irmãos o lugar que lhes correspondia.

Sentiu um nó na garganta. Havia pago um preço elevado por eles também.

Seus irmãos já não precisavam dele e isso o fez sentir-se pouco digno, como se
houvesse falhado. Assim como ele, deveriam ter vivido vidas confortáveis. Deveriam ter
sido como os cavalheiros que visitavam o clube de Rafe e que não possuíam outra coisa
a fazer além de e dedicar aos seus vícios. Não deveriam ter cicatrizes, nem visíveis, nem
ocultas.

— Não se equivoque irmão — Tristan se acercou lentamente. — Querer vê-lo


ocupar o lugar de nosso pai, fez crescer em mim o desejo de vingança. Voltaria a
suportar tudo, mil vezes, sem cobranças, para assegurar que você volte a ser o duque.

— Me sinto honrado, Tristan — Sebastian soltou uma gargalhada cheia de


amargura. — Por sua devoção e pela de Rafe. Fui abençoado com irmãos que farão o
que for preciso para que eu ostente o título que me corresponde. Nosso pai foi
amaldiçoado com um irmão disposto a qualquer coisa pra que ele não permanecesse
como duque.

— Você continua pensando que ele o matou?

—Não me resta a menor dúvida — ele sacudiu a cabeça. — Mas provar é quase
impossível. A justiça não pode ser deixada nas mãos de outros. Passei anos planejando
como ser juiz, jurado e executor, e esta noite creio que o arrebatei de seu lugar na
sociedade.

— Pode ser que sim, mas ainda podemos fazer mais. Não necessitamos de provas
para tornar a vida dele miserável.

— Isso acontecerá assim que ele deixe Easton House. Não terá onde ficar.

— Então, deveríamos aliviar seu sofrimento e matá-lo em seguida — Tristan


mostrou um sorriso mortal.

— Já matei antes. E não é tarefa agradável.

— Eu também, ainda que não me sinta tão triste em enviar ao inferno alguém que
o mereça.

Sebastian o olhou atentamente. Só se passaram quinze dias desde que os irmãos


se reencontraram. Haviam se despedido com a promessa de se encontrarem em dez anos,
nas ruínas da abadia, próxima a Pembrook, no aniversário de sua fuga da torre. Mas a
guerra e as feridas o atrasaram. E o mar impedira Tristan, que também não chegara a
tempo.

Rafe contratara um homem para que permanecesse no lugar até que seus irmãos
aparecessem. Nem pensou que pudessem ter morrido. Depois de meses se recuperando
das horríveis feridas, Sebastian enfim conseguira chegar até a abadia. O homem ali
alojado havia lhe dado às indicações para o clube Rakehell e uma mensagem de Rafe. Lá
ele estaria a salvo.

Já em Londres, ele e seus irmãos haviam planejado seu regresso à sociedade.


Uma grande entrada, espetacular. Essa parte do plano eles conseguiram executar com
êxito.

Mas a cortina ainda não fora baixada. Restavam outros atos para interpretar.

—Não quero manchar minhas mãos com mais sangue — assegurou Sebastian.

— Pois eu mancharei as minhas.

— Tornou-se sedento de sangue — ele não gostou da rapidez com que Tristan
respondeu.

— Aprendi a sobreviver a qualquer preço — seu gêmeo encolheu os ombros. —


Também aprendi a desfrutar quando posso. Rafe tem uma garota linda trabalhando para
ele, bem dotada e treinada em dar prazer. De modo que, se me desculpar, creio que vou
atrás dela. Estou certo que deve ter uma amiga.
— Esta noite não.

Estava com demasiado coisas na cabeça. Uma vez sozinho, se deixou cair na
poltrona e voltou a encher seu copo com brandy. Afundou a mão no bolso e tirou uma
pequena trouxa. A fita amarela desbotara com o tempo, mas continuava segurando o
conteúdo do lenço.

Sebastian o aproximou do nariz e aspirou profundamente. O intenso aroma da


terra o enfeitiçou, o eletrizou, e fez crescer seu desejo de regressar ao lar. Prontamente
ele o faria, quando tivesse recuperado sua posição na sociedade.

―Sou o duque de Keswick‖, ele afirmou à fogueira que lhe respondeu com uma
faísca da madeira que queimava, como se não acreditasse em suas palavras mais do que
ele mesmo acreditava nelas.
Capítulo 4

―Imbecil. Os tive tão perto. Não deveria ter esperado tanto tempo!‖.

— E qual escolha teria? Tivera que calar as suspeitas.

―Mas, doze anos? Imbecil!!!‖.

Lorde David Easton se movia de um lado a outro agitadamente. Tão perto. Tão
perto!

Doze anos atrás havia enviado seu homem à torre para que se livrasse dos
sobrinhos inconvenientes. Anunciaria um acidente doméstico, uma desculpa qualquer,
mas a criatividade nunca foi o seu forte.
Contudo, de algum modo os meninos escaparam. As buscas foram infrutíferas.
Os garotos haviam iludido habilmente lorde David até que ele mesmo havia começado
a acreditar nos rumores sobre a morte deles.
Não deveria ter esperado tanto tempo para reivindicar o título, mas não
queria que ninguém suspeitasse dele. De toda maneira não havia servido de nada.
Até um cego perceberia a semelhança dos gêmeos com o pai deles.
―Somente um deles. O outro estava deformado, uma debilidade que os tornava
uma presa mais fácil‖.
— Depois do fracasso daquela noite, não pensarão que posso matá-los e me
livrar da culpa.
―Mas precisava fazer. Lucretia o abandonará se voltar a ser um Zé ninguém,
igual como fez a mãe de seus sobrinhos quando escolheu Randall. Porque ela era
dele, mas bastou um sorriso dele e ela o escolheu. Disse que o amava, mas a única
coisa que ela amava era o título. As mulheres são assim‖.
— Mas três assassinatos...
―Acidentes. Como o que sofreu o pai deles. Estão amaldiçoados‖.
— Ninguém vai acreditar.
―Acreditaram que teu pai morreu de doença rara. Demonstrou quão hábil
pode ser‖.
— Você não é tão preparado quanto teu irmão — lhe repetira o pai uma e
outra vez.
— Sou preparado sim — o riso de lorde David ressoou ao seu redor. — Até
meu pai teve que admitir, no final, quando o veneno surtiu efeito e todos pensaram que
ele estava doente.
Mas quando o pai morreu, foi Randall quem se converteu em duque, e lhe
roubou o seu amor.
―Precisava pagar por sua traição, por seus roubos‖.
— Jamais deveria ter se importado — sussurraram as sombras que sempre o
acompanhavam.
―E Eva nunca deveria ter mordido a maçã. Já saboreou a vingança. Não haverá
de perder o festejo‖.
Lorde David lambeu os lábios, antecipando o doce sabor.
Capítulo 5

Na manhã que se seguiu ao baile mais emocionante da temporada, Mary lia Jane
Eyre, no salão, quando um mordomo entrou e fez uma reverência.

— Milady, visita para a senhorita.

— Diga a jovem que não estou em casa — ela gruniu com seus botões. Lady
Hermione não havia perdido tempo.

— Não é ela, milady, trata-se do duque de Keswick.

— Faça-o entrar — o coração de Mary iniciou um galope tresloucado e ela


rapidamente se colocou de pé.

— Ele está na biblioteca com seu pai. Devo levá-la até lá.

— E por que não disse antes? Então veio ver a papai, não a mim.

— Para o que ele queria ver seu pai? Por que não havia ido visitá-la? Por que lhe
doía tanto que Sebastian não o tivesse feito? Já não eram mais amigos. Nada mais.

— Peço desculpas, milady. Só sei que me enviaram para buscá-la porque o duque
deseja falar com a senhorita.

— Sim, eu sinto, não pretendia mostrar-me tão irascível. —E por que, demônios,
ela estava se desculpando com um servente? Porque estava nervosa pela visita de
Sebastian.

Não querendo que o mordomo a acompanha-se, correu pelo corredor. Não estava
certa do motivo da urgência que sentia, nem de quem precisava mais de sua proteção:
Sebastian ou seu pai.

Ao chegar ao estúdio de seu pai, um lacaio lhe abriu a porta com uma pequena
reverência. O ambiente era pequeno. Uma parede coberta de livros, várias poltronas e
uma mesa gigante. Quando criança, ela costumava se sentar em seu colo enquanto ele lia
os informes do administrador de suas propriedades.

Mas nesse momento, seu pai estava de pé em frente da lareira com um copo vazio
na mão. Mary suspeitava que ele morresse de vontade de encher, novamente, o copo em
sua mão, mas Sebastian olhava pela janela mais próxima ao móvel onde estavam as
bebidas. A elegante jaqueta azul marcava seus ombros largos. Até mesmo de onde
estava era evidente a força daquelas costas. Alto e ereto, seu porte era militar, ou, talvez,
só uma evidência de autodisciplina, uma disciplina que ele estivera a ponto de perder na
noite anterior. Mary nem podia pensar em ter não ter intervido, ele poderia não ter
soltado o tio dele. A fúria que havia distorcido suas feições, também fora muito
inquietante.

Ao som de suas pisadas, ele se voltou para olhá-la, ainda que a parte
desfigurada de seu rosto ficasse oculta. Sem dúvida havia escolhido tal posição
próxima à janela com aquele propósito. Pelo cantinho do olho, viu seu pai estremecer,
porque ele, sim, via o que ela não conseguia. Ele nunca foi um homem forte, mas sua
reação a irritou. Segundo a informação que Sebastian dera na noite anterior, ele havia
sido um soldado. No mínimo, merecia gratidão e consideração.

Parando a poucos passos de seu amigo de infância, ela fez uma reverência.

— Excelência…

— Vamos, Mary, não creio ser necessária tanta formalidade entre nós.

Ele possuía a voz rouca, já havia notado na noite anterior, mas, por algum motivo
lhe parecia mais rouca agora. Com certeza outro tipo de vida teria lhe proporcionado
outro tom de voz.

— Alegra-me vê-lo, Keswick.

— Você é a primeira pessoa, fora minha família, que se dirige a mim pelo título.
— Ele gargalhou.

O pai de Mary ficou visivelmente rubro enquanto pousava um olhar cheio de


desejo sobre as garrafas de licor.
— Pois me parece o mais apropriado.

— Bastante. Eu esperava que pudéssemos dar um passeio pelo jardim.

— Isso não é apropriado — disse o pai dela, — ela está comprometida.

— Disseram-me isto — Sebastian afirmou sem tirar os olhos de Mary.— Ainda


que não tenha tido a honra de conhecê-lo, sei que Fitzwilliam é um homem afortunado.

— É muito amável — Mary sentiu que suas bochechas ardiam.

— Não, Mary, temo que não sou, — seu único olho refletia tristeza. —Suponho
que estar ao serviço da rainha me fez mudar. — Muitas coisas me fizeram mudar.

Ela concordou de repente sem saber o que dizer, desejando que seu pai não
estivesse tão perto para ouvir suas palavras.

— Pegarei minha echarpe, e a minha donzela. Ela servirá de acompanhante. Se


me der um momento.

— Claro que sim.

— Encontrarei com você no jardim. Sebastian concordou.

— Não se importas, não é pai?

— Não, claro que não, — concordou o homem por fim.

Mary não podia negar que Keswick podia ser bastante intimidante. Se tivesse
testemunhado a cena no salão de baile, seu pai estaria tremendo de medo.

Ela saiu do estúdio com a maior calma que conseguiu fingir e, logo que a
porta se fechou atrás dela, começou a correr pelo corredor. Possuía milhares de
perguntas pra fazer e esperava que ele lhe proporcionasse as respostas, ainda que
duvidasse.

Seu amigo havia guardava escondido um pedacinho daquele menino com o qual
costumava cavalgar pelos campos. Uma vez em seu quarto, chamou à donzela e se
colocou a echarpe em torno dos ombros. Depois aplicou gotas de perfume atrás das
orelhas. Era uma bobagem, mas não pode evitar. Queria que ele a visse como uma
mulher, não como uma menina. Não que tivesse algum interesse além de amizade, mas, se não a
visse como igual, era pouco provável que lhe contasse o que havia vivido durante todos aqueles
anos. Houve um tempo em que não havia segredo entre eles. Mas suspeitava que desde então,
acumulavam-se muitos segredos.

Enquanto Sebastian esperava no jardim, temeu ter cometido um terrível erro


vindo ali. Lorde Winslow o havia olhado como se estivesse contemplando um fantasma.
Sem dúvidas já sabia de seu triunfal regresso à sociedade, de modo que sua visita deveria ser a
responsável pelo horror estampado no rosto dele, ou, melhor, seria por suas cicatrizes. O certo era
que estava com vontade de encerrar-se em Pembrook e viver solitário, mas ao realizar sua
aparição pública havia decidido ocupar-se de outro assunto enquanto estivesse em Londres.
Procurar uma esposa. Porque, mesmo que Deus o ajudasse ele precisava de um herdeiro. E isso
implicava continuar aparecendo em público até realizar a tarefa. Nem esperava que ele o amasse.
Não pensava que isso fosse possível quando ele era incapaz de amar a si mesmo, mas, no
momento que lhe desse um herdeiro, a deixaria livre. Seria sua recompensa por suportar sua
presença na cama.

Era um amante experiente. Ao menos, havia sido antes do dia em que


despertou e descobriu que ignorar a ordem de retirada e ficar para salvar a vida de
um homem ferido havia sido uma estupidez. O soldado nem mesmo sobrevivera. Às
vezes Sebastian se perguntava se soubesse das feridas que sofreria, teria mudado de
decisão? Com certeza não. No calor da batalha, todos os homens se acreditavam
invencíveis. Por que se não fosse assim pra que se lançariam com tal entusiasmo nas
chamas do inferno?

Voltou-se ao ouvir leves passos. Mary sorriu e ele sentiu uma pressão no peito.
Com efeito, havia sido um erro se apresentar ali, ter a oportunidade de memorizar cada
curva, cada detalhe; conseguir procurar por suas sardas que já não existiam; aspirar à
fragrância floral que, curiosamente, parecia mais intensa ao ar livre do que havia sido no
interior do estúdio.

Posicionara-se de modo que, quando ele se aproximasse, ela não tivesse outra
opção que se colocar à sua direita. Não queria ofender sua delicada sensibilidade
oferecendo-lhe a visão de seu lado esquerdo. Ainda que a menina que havia conhecido
jamais vomitaria ante a espantosa visão, mas já era uma dama. E havia grande diferença.

Começaram a caminhar seguidos pela donzela. Não ofereceu seu braço a Mary. Não teria
sentido tocar algo que nunca possuiria.

— A quanto tempo está em Londres? — perguntou Mary.

— Pouco mais de quinze dias.

— E não pensou que eu gostaria de saber que estavam vivos?

Sua voz refletia decepção e dor. Anos atrás haviam sido amigos e Sebastian
maldisse Tristan por ter razão. Deveriam ter avisado.

— Pensamos que seria melhor manter nossa presença em segredo até que
chegasse o momento oportuno.

—Eu teria guardado segredo.

— Mas ter contato com você poderia nos colocar em risco de sermos descobertos.
Rafe está há algum tempo em Londres, mas utilizava outro nome e não se encontrou
com ninguém que pudesse reconhecê-lo. Tendo em conta a idade que tinha quando
fugimos ele estava relativamente a salvo de ser identificado.

— Mas Tristan e você, sendo gêmeos...

— Sim, nós dois somos um pouco mais chamativos — ou, ao menos haviam sido.
Sebastian supunha que já não era fácil, salvo a um olhar treinado, identificar
similaridades, mas não quiseram correr riscos.

— Pois ontem se fixaram em vocês — ela esboçou um sorriso tímido. — Não


lembrava que você tivesse essa inclinação ao dramatismo.

— Pois eu pensaria que seria a última pessoa a se surpreender. Acaso eu não era o
Lancelot e você a Guinevere? Se bem me recordo, afugentei o inimigo valorosamente
com minha espada de madeira.

— Isso foi há muito tempo e eu quase havia esquecido, — o sorriso de Mary


esmoreceu. — Por que não o fez ser preso por tudo que fez contra vocês?
—E exatamente o que ele fez, Mary? Trancou-nos em uma torre. Poderia
argumentar que estava nos castigando por nos portarmos mal.

— Eu testemunharei perante a corte, perante a Câmara dos lordes, ou de quem


quer que seja, que ouvi seu tio dar ordem para alguém, para matá-los.

— Você era uma menina. Passaram muitos anos. Ele poderia alegar que sua
memória é falha. Seria uma batalha verbal, Mary. Jamais a submeteria a uma situação
tão desagradável.

— Mas o que ele fez não foi correto.

— Eu sei. Meus irmãos e eu nos ocuparemos dele.

— O que planeja?

— Tem jardins preciosos.

— Sebastian! — Mary se deteve e em seu rosto apareceu a familiar expressão de


teimosia. — Por que não quer me revelar seus planos?

— Não quero colocá-la em uma situação comprometedora sem necessidade.

— Busco a vingança tanto como você.

— Não se trata de vingança e sim de restituição. — Sebastian duvidava que


alguém desejasse mais que ele. — Para ser sincero, ainda não terminei de traçar meu
plano, e não vim falar de meu tio. — Eu gostaria de ter uma conversa que não girasse
em torno daquele homem.

— O que será da esposa dele? — Perguntou Mary.

— A que se refere?

— Sinto pena. Poderia ter sido um pouco mais amável com ela.

— Doze anos, Mary. Já não me resta amabilidade.

Ela desviou o olhar enquanto ele se perguntava se ela teria medo de olhá-lo de
perto. Havia adotado o costume de evitar espelhos, não tanto pelas cicatrizes, mas pelo
que via em seu olho. Se os olhos eram de verdade a janela da alma, ele não gostava do
que via na sua.

— Ontem, quando enfrentou seu tio, disse que foi um soldado — depois de
alguns minutos de reflexão, ela retomou a conversa.

— Sim. Minha intenção não era permanecer ausente tanto tempo, mas nunca
parecia ser o momento adequado para abandonar meu posto. Então declaramos guerra à
Rússia e se eu não fosse, teria sido visto como um covarde.

— Pressinto que podem lhe acusar de qualquer coisa menos de ser um covarde.
Sentamos?

Mary apontou um banco de ferro forjado. Sebastian teria preferido continuar


caminhando, mas assentiu e a seguiu. Quando menina, ela havia sido muito travessa, e
era esse um dos motivos por ter descoberto os planos de lorde. E nesse momento se
sentou do lado do banco que lhe dava melhor visão do rosto mutilado. Não era tola e
sem dúvida havia sido uma decisão consciente.

— Troque de lugar comigo — ordenou ele. — Prefiro me sentar aí onde está.

Ainda que não a olhasse de frente, e ela não pudesse ver-lhe o rosto
completamente, o estudou com tal intensidade que Sebastian teve a sensação de que
ela via tudo, até mesmo as profundezas de sua alma.

— Foi ferido em batalha?

Ele assentiu e, para seu horror, Mary se levantou e se aproximou dele. Deveria ter
evitado, mas o desafio nos olhos verdes o imobilizou.

— Não tem por que se esconder de mim — sussurrou ela. Apoiou uma mão
delicada em seu ombro e, lentamente, deslizou um dedo até seu queixo.

Sebastian sentia a pressão da mão dela, mas não a suavidade de sua pele. E teve
um desejo irrefreável de enfiar as mãos nos cabelos vermelhos e soltá-los para vê-los
cair sobre os ombros. Desejava envolver a cintura dela com um braço, atraí-la para si e
sentir cada curva de seu corpo, para cobrir os doces lábios com os seus. Perder-se na
sensualidade de um beijo. Queria sentir o calor de seu corpo. E, enquanto mantinha esses
pensamentos tumultuosos, lhe dava asco a ferocidade de seu desejo. Por Deus santo, se
tratava de Mary. Ela merecia algo mais que essa luxúria incontrolável. Mas não estivera
com uma mulher desde antes de seu ferimento. Desejava sentir a suavidade das carícias
femininas, desejava ser abraçado, e, então, viu lágrimas nos olhos dela. E aquelas
lágrimas conseguiram o que ele não conseguiu antes: apagar o desejo.

— Não chore — ele falou entredentes.

— Deve ter doído muito.

Havia sido insuportável. Se não fosse por sua obsessão em reivindicar Pembrook
ele teria sucumbido ao chamado da morte. Mas jamais admitiria, não revelaria sua
debilidade, nem mesmo pra ela.

— Foi pior para outros.

— Seu olho…

— Não existe mais. — Ele havia ficado perdido em um desolado campo de


batalha.

Não se recordava o momento preciso, nem a dor, que sem dúvida, o havia
acompanhado. A agonia o havia tomado. Passaram-se meses antes de poder identificar
os pontos concretos onde sentia dor.

— Ainda sente dor? — Ela desviou o olhar.

— Algumas vezes, mas já não é grande coisa.

— Assim fala um verdadeiro soldado — Mary soltou uma gargalhada, com


tristeza e um toque de admiração.

— É o que eu sou. Um soldado. Agora preciso aprender a ser um duque.

— Tenho certeza de que será um duque excelente. Ao menos será melhor que seu
tio.

— E você será uma excelente viscondessa.


— Eu tentarei — Mary retorceu as mãos. — Ainda que creio que não me conhece
o bastante para opinar sobre minhas qualificações.

Sebastian compreendeu que ela continuava chateada por não ter tido notícias suas
antes, Por ter descoberto seu regresso, ao mesmo tempo, que todos os demais. Lamentou
a impulsividade que o havia dominado, e sua incapacidade para confiar nela, uma
mulher que havia salvado sua vida e a vida de seus irmãos. Lamentava ter-lhe causado
dano, mas, ao mesmo tempo, lhe parecia a melhor decisão. Não podia correr riscos de
perdem Pembrook, ou seu título. Reivindicá-lo era o seu único propósito de vida.

— Você mudou? — Ele perguntou.

— E você? — Ela se virou para olhá-lo de frente.

Muito mais do que ele gostaria de admitir, muito mais do que queria que ela
soubesse.

Apesar de tudo o que ele conseguira, de repente, se sentiu indigno. Mary não o
julgava, ainda que talvez devesse fazê-lo.

— Lamentavelmente sim. Mas suponho que os anos passam para todos. Não
esperava encontra-la adulta.

— E o que você esperava?

— Não tenho certeza. — Sebastian quis rir como um louco ante sua própria
ingenuidade. — Regressar ao passado, eu suponho.

— Estive em Pembrook?

Ele leu tristeza nos olhos de Mary, quase como se desejasse poder evitar o que
estaria por vir.

— Sim. Fui visitar uma casa cheia de fantasmas. Papai nunca a fechou ou cobriu
os móveis, as estátuas e os quadros com cobertas. Sempre estava preparada pra ser
habitada, mas agora está coberta de pó e os campos estão vazios de ovelhas.

— Antes de vir a Londres, cavalguei até a colina atrás da propriedade de seu pai
para poder ver Pembrook — ela lhe apertou carinhosamente a mão. — Seu aspecto era
obscuro, fúnebre. Não fui capaz de me aproximar mais, não sem tua presença. Agora
que você regressou, serei eu quem não viverá em Yorkshire.

Sebastian não conseguia nem imaginar aquilo e uma opressão se apoderou de suas
entranhas. Durante anos seus pensamentos giraram em torno de Pembrook, mas jamais
lhe ocorrera que não ouviria a risada de Mary, ou, que não veria o brilho que o sol
arrancava de seus cabelos

Fitzwilliam era um homem afortunado, Mas isso ele já sabia. Que demônios
estava lhe acontecendo? Por que não lhe ocorria mais nada a dizer?

— Me desviei de minhas intenções ao vir aqui — as palavras soavam


distanciadoras...

— Eu pensei estivesse me visitando — ela observou com doçura.

— Não, eu, eu vim para agradecer o que você fez por nós anos atrás. —Sebastian
tirou um pacotinho do bolso de sua jaqueta e o entregou a ela.

No rosto de Mary ele viu aparecer uma imensa dor. Será que estava condenado a
lhe causar-lhe dor, sempre?

— Não me deve nada. O que fiz naquela noite não procurava recompensa.

Uma vez mais ele não soube o que responder. Deveria ter aguardado o regresso
de Tristan do cais para que o acompanhasse na entrega do presente. Seu irmão saberia o
que dizer. Mas não queria esperar, e o certo era que havia sonhado passar um tempo a
sós com Mary, ainda que não soubesse o porquê. Talvez por ter sido mais sua amiga do
que de seus irmãos. E não gostava que eles admirassem a beleza de mulher que havia se
tornado, nem que tivessem percebido isso antes dele.

— Não é mais que uma amostra do nosso apreço — ele lhe assegurou.

— Então, é um presente de vocês três? — Mary parecia decepcionada.

Sebastian tinha dificuldade em entender seu humor volúvel. Ao longo dos anos
havia conhecido muitas mulheres, mas a única coisa que o interessara nelas era saber
com que rapidez poderia desnudá-las. De repente se sentiu perdido, afogando-se numa
maré de incertezas. O que Mary queria que ele dissesse? Para agradá-la, diria qualquer
coisa, no intento de devolver o sorriso ao seu rosto.

— Sim, nosso. Mas, fui eu quem escolheu.

A resposta deve ter sido a correta, pois a decepção desapareceu do rosto da


jovem. Menos mal. Resultava ser inquietante que se preocupara tanto em não ofendê-la.
Quando eram crianças, estava acostumado que ela sempre estivesse ali. Nunca tivera a
necessidade de medir suas palavras ou ações. Mas nesse momento, media cada palavra e
nenhuma parecia adequada.

Suas escassas habilidades para a conversação não o ajudariam na hora de


procurar uma esposa. Poderia jogar a culpa em seu rosto desfigurado, ou ao trauma
provocado pelas feridas, mas temia que a verdadeira culpa estivesse enterrada
profundamente em seu interior.

— Uma dama não deveria aceitar presentes de um cavalheiro — ela baixou os


olhos.

— É um presente de três amigos. E não pode dizer que sejamos cavalheiros.

Ela o olhou. Os olhos verdes o lembravam das colinas de seu lar. Poderia
contemplá-los infinitamente sem se cansar. Em uma das bochechas vislumbrou uma
sarda e quis deslizar um dedo sobre ela. Contudo, temia que o gesto não se detivesse ali.
Da bochecha seguiria para os lábios brincalhões, sobretudo o inferior, de aspecto tão
acolhedor quanto uma almofada. Em sua vida não havia experimentado nada que fosse
assim, era quase insuportável. Rafe lhe dissera que havia ouvido da boca de clientes que
também estiveram no baile, que os três irmãos eram considerados pouco menos que
bárbaros. E os pensamentos que Mary despertava nele não faziam mais que confirmar tal
barbárie. Se não fosse pela donzela que se mantinha a uma distância prudente, ele não
estava certo de conseguir se controlar. Era a tentação em estado puro, doce, inocente, de
uma beleza incomparável.

E pertencia a outro homem. A noção que deveria tê-lo feito correr dali, o manteve
colado ao chão.

— Desapareceram quase todas as tuas sardas — ele observou com calma,


consciente de que desviava a conversa para um terreno que poderia resultar mais
perigoso.

— Sem você já não tive muitas ocasiões de brincar ao sol. E, claro, uma dama
jamais deveria sair ao sol sem uma sombrinha ou um chapéu.

— Eu adorava suas sardas.

— Eu as detestava — Mary sorriu e suas feições se transformaram em uma beleza


sobrenatural. — E sim, você é um cavalheiro. Talvez ontem tenha se mostrado um
pouco bruto, mas a situação o requeria.

As palavras da jovem reconduziram os pensamentos de Sebastian ao bom


caminho. O ruim era que uma parte dele utilizava aquela brutalidade para se proteger.
Não se sentia orgulhoso disso, mas precisava sobreviver, fazer o que quer que fosse para
recuperar Pembrook.

— Por ser nossa amiga — afirmou ele enquanto colocava a caixinha na mão dela.

Aliviado, contemplou como ela abria o pacote e dava um soluço ao ver a


gargantilha simples com um pingente de esmeralda que combinava com seus olhos.

— É precioso — Mary sorriu e manteve a caixinha no alto. — Coloca pra mim?

Para isso ele precisava tirar as luvas. Com mãos trêmulas, ele pensou em como
seus dedos estariam próximos da suavidade de sua pele.

De um salto se colocou em pé, antes que uma parte de sua anatomia revelasse a
natureza de seus pensamentos. Por Deus, se tratava de Mary. Ela merecia mais que um
semental, mais que um homem com a mente cheia de pensamentos lascivos a quem nada
lhe apeteceria mais que fazê-la sua atrás de um daqueles arbustos Era uma dama, e
estava comprometida. Não era merecedora da fera em que ele se havia convertido.

— Tenho certeza de que a tarefa é mais adequada pra sua donzela. Foi um prazer
voltar a vê-la, Mary. Desejo tudo de melhor em seu casamento.
E antes que ela pudesse responder, antes de reconhecer as emoções que quem
sabe se estampavam no belo rosto, deu meia volta e se chocou contra a donzela, a
quem não havia visto porque ele estava em seu lado cego.

— Saia do meu caminho, mulher!

Sebastian saiu do jardim como se fugisse do demônio. Como era possível que um
simples pedido o houvesse transtornado daquela maneira? Era o duque de Keswick, pelo
amor de Deus! Mas naquele instante desejou estar de volta ao campo de batalha. Era
muito mais simples lutar contra um inimigo do que lutar contra si mesmo.

Que demônios estava acontecendo?

Mary se levantou do banco, olhou na direção em que Sebastian havia sumido e


voltou a se sentar. Teria lhe ofendido? Sua reação havia sido a mais estranha. Ele a
olhara com tal intensidade que ela quase perdera o ar. Durante uma fração de segundo
havia desejado que algo acontecesse.

Que desastre! Havia esquecido ao doce e amável, Fitzwilliam. Sebastian havia


ocupado todos os seus sentidos. Sua estatura, sua envergadura. O aroma que
desprendia. Sempre exalara o perfuma da terra de Pembrook: terroso e intenso.

Durante um instante lhe pareceu estar lá, como se a dor e a separação de tantos
anos não houvesse sido real.

Mas sim, havia sido bem real, e Sebastian tivera o cuidado em não obrigá-la a ver
suas cicatrizes. Será que ele acreditava que ela fosse tão superficial?

A ideia lhe resultava decepcionante, e muito dolorosa. Sabia tão pouco dele
quanto ele, dela. Uma vez mais se perguntou por que o pedido de que colocasse a
gargantilha nela o havia alterado tanto.

— Ajudo a colocá-la, milady? — Ofereceu Colleen.

— Não — Mary sorriu. — Creio que eu a guardarei para usá-la no próximo baile.

—Sim, milady.
— Com aquele de detalhe verde?

— Sim.

— Ficará lindo.

— Estou de acordo. Pode entrar. Creio que ficarei mais um pouco aqui sentada
desfrutando do jardim.

— A casa não será a mesma quando a senhorita se for.

— Tentarei visitá-los bastante. Agora entre.

Sentindo-se como uma bruxa mal agradecida, Mary a viu entrar antes de colocar
sua atenção nos narcisos que estavam formando um colorido. Deveria colher algumas
flores para seu quarto, mas possuía somente forças para pensar em Sebastian enquanto
acariciava a pequena esmeralda. Anos atrás, ela se sentia bastante a vontade em sua
companhia. Podia lhe contar qualquer coisa, desnudar sua alma diante dele. Mas o
homem que acabava de sair era um total desconhecido. Não sabia que caminhos ele
transitara, e que perigos ele correra. Sua veia romântica o via sentado em frente ao fogo,
compartilhando todos os detalhes dos últimos doze anos. Mas não era mais que uma
fantasia.

Os doze anos os haviam separado de verdade. Pareciam pouco mais de dois


estranhos que acabavam de se conhecer. Haviam percorrido caminhos separados,
aumentando, ainda mais, a distância entre eles. Que triste pensar que seus caminhos
talvez nunca mais voltassem a se encontrar.

Durante uma noite horrível haviam compartilhado experiências que haviam


forjado um vínculo indestrutível entre eles. Sempre estariam unidos. Mas uma conexão
não assegurava um final feliz. Nesse momento, nem sequer estava certa de que gostava
do homem em que ele se convertera. Era irascível e brusco. Ainda não o vira sorrir. E
suas gargalhadas a recordavam mais de um lamento, do que de felicidade. Acreditara
que ele regressaria sem um arranhão, e temia que já não restasse nada daquele menino
que ela conhecera, porque continuava sentindo, muita, falta dele, continuava desejando
voltar a vê-lo.
Capítulo 6

Lorde Tristan Easton gostava de ouvir seu nome em voz alta, ainda que capitão
Easton não soasse mal. Estivera no cais dando uma olhada em seu navio e tripulação e
aproveitara para contratar mais dois vigilantes de confiança. Quem dera Sebastian não
tivesse anunciado que ele esteve embarcado. Duvidava que o porco, apelido que ele dera
para seu tio, na primeira vez que um chicote de nove pontas havia tocado em suas costas,
tivesse a mínima inteligência para compreender que Tristan possuía um barco e tentasse
fazer algo, mas não correria riscos.

Entrou no escritório de Rafe e sorriu ao vê-lo sentado atrás da mesa, rodeado por
uma montanha de livros de contas. Quando crianças, Rafe era um chorão. Sua
semelhança com sua falecida mãe era tão grande, que seu pai o havia mimado muito
mais que a seu herdeiro, seu gêmeo. Contudo, não podia negar que em algum momento
da vida ele havia acumulado muitas garras.
O mais jovem dos lordes levantou a cabeça e pousou um olhar impaciente sobre
Tristan, que se irritou, imediatamente. Afinal, quando meninos era ele quem não
mostrava paciência com Rafe.
— Sebastian voltou da visita para Mary?
— Sim.
Seu irmãozinho também se convertera num homem de poucas palavras. Porém,
não poderia negar que ele havia triunfado, ainda que à custa de se converter num tipo
lúgubre. Mas sinceramente os três eram lúgubres, em maior ou menor medida.
— Sabe onde ele pode estar? Não estava em seu quarto.
— Necessitava de uma mulher. Enviei Flo para ele.
— Excelente escolha.
Rafe voltou sua atenção para os livros. Era muito protetor com as garotas da
casa, com tudo na realidade.
Tristan perambulou pelo escritório. Na visita anterior havia observado seu
irmão, mas nesse momento, a decoração lhe pareceu muito reveladora. Num canto um
imenso globo terrestre descansava sobre um pedestal de madeira. Aproximou-se dele e
o fez girar. Diante de seus olhos passaram todos aqueles lugares por onde havia
navegado.
No outro canto, havia uma estante abarrotada de livros que eram alternados
com globos terrestres de tamanhos diferentes. Tristan se perguntou se seu irmãozinho
os colecionava para seguir suas viagens pelo mundo, apesar de nunca saber onde ele
se encontrava. Ou, talvez, os globos fossem o testemunho do que ele havia deixado
para trás. Bufou contra si mesmo, farto de sua mente analítica que tudo queria
compreender. Talvez seu irmão apenas gostasse de globos terrestres.
— Não lhe parece estranho? — Ele perguntou olhando para trás.
— O quê? — Rafe nem se incomodou de levantar os olhos. — Que ele tenha
ido visitar Mary e volte precisando de uma mulher.
—É evidente — seu irmão suspirou ruidosamente e deixou a pena sobre a mesa
— que pensa, equivocadamente, que me interesse por estes assuntos banais.
Tristan não desistiu. Aproximou-se da poltrona em frente a mesa de Rafe e
afundou nela com tranquilidade. Gostava de ver seu irmão apertar a mandíbula, como
quando eram crianças e o enfadava com o propósito de que explodisse e seu pai
brigasse com ele, mas quem sempre era castigado era Tristan.
— Uma vez conheci uma mulher com que queria dormir desesperadamente,
mas ela era filha do chefe de uma tribo de uma das ilhas em que havíamos aportado.
Não pude fazê-la minha, mas quase morri afogado entre outros corpos femininos.
— Está me dizendo que é um canalha sem moral ou consciência.
— Considerando o tipo de negócio que você dirige, eu não julgaria meu caráter
tão rapidamente. —Tristan levantou as mãos ao ver a fúria nos olhos do irmão. —
Perdão, eu não estou lhe julgando. O que eu tentava dizer era que se Sebastian deseja
Mary, pode ser regresse para satisfazer seu desejo.
— E por que eu deveria me preocupar com isso?
— Não percebeu que ele já não é o tipo atraente que costumava ser? Sendo
sincero, pode ser que não resulte ser tão simples encontrar uma esposa pra ele.
— E quer bancar o casamenteiro?
Tristan sentiu um calafrio. Seu irmão teria razão? Para ele, o matrimônio
significava laços, correntes e aprisionamento. De verdade desejava isso para
Sebastian?
— Eu não diria tanto, mas eu gostaria de vê-los sendo amigos do mesmo jeito
que já foram um dia. Mary e ele sempre estavam juntos. Ela se tornou uma mulher
esplêndida, enquanto que ele...
— É um monstro?
A voz de Sebastian rugiu em suas costas. Tristan nem sequer se inibiu,
limitando-se a olhar furioso para Rafe.
— Obrigada por me avisar irmãozinho.
Os lábios de Rafe se abriram num sorriso retorcido e seus olhos luziam um
brilho travesso. Por um pequeno momento se viu a sombra do menino travesso que
fora um dia.
— Já lhe disse que se equivoca se pensas que tenho tempo para bobagens.
— Que tal Mary? — Tristan se voltou para seu gêmeo. Era incrível como seu
único olho era tão gelidamente expressivo.
— Bem.
— E Flo?
O olhar Sebastian foi ainda mais ameaçador.
—Vou até Easton House para ver como o tio recolhe as coisas dele. — O olhar
de Sebastian tornou-se mais feroz ainda. — Pensei que talvez quisessem ir comigo.
— Tenho assuntos mais urgentes para atender — Rafe se desculpou.
— Mais urgentes do que reclamar o que é nosso? — Perguntou Tristan que
olhava para seu irmão mais novo como se não o conhecesse.
— Cumpri com minha parte ao acompanhá-los ao baile. Não preciso ver
ninguém fazendo as malas.
— Rafe tem razão — interveio Sebastian. — Esteve conosco quando mais o
necessitávamos. Agora falta pouco mais que saborear o resultado.
— Pois vamos saboreá-lo. — Tristan se levantou da poltrona.

Com olhares travessos e sorrisos de cumplicidade, lady Hermione e lady


Victoria chegaram as duas e meia em ponto. Ainda que Mary comparecesse a bailes,
festas e noitadas, nunca tivera uma apresentação formal na sociedade. Havia se
limitado a começar a participar dos eventos, junto com sua tia e prima. Seu
compromisso com Fitzwilliam elevara seu status, mas se nenhum irmão herdaria título
de seu pai, sua companhia não era a mais requisitada. Para as damas sentadas em seu
salão, não podia importar menos. O objetivo delas estava concentrado em presas
maiores.

— Então aqueles lordes de ontem são seus amigos? — Perguntou lady


Hermione.

Tanto ela quanto Victoria aguardavam ansiosas a resposta de Mary, como se o


futuro delas dependesse daquilo.

— Nossas propriedades no campo são vizinhas, de modo que crescemos


cavalgando pelos mesmos campos e colinas e explorando os mesmos bosques — a
resposta não pareceu impressionar as suas convidadas. Na realidade pareciam
desconcertadas pois, seguramente, elas haviam crescido cuidando de suas bonecas de
porcelana.
Mary havia disfrutado muito mais da vida ao ar livre, sobretudo quando
conseguia afastar Sebastian de seus estudos. Muitas vezes Tristan ou Rafe se uniam a
eles, mas logo se sentiam enfadonhos, diferentes de Sebastian e dela, que sempre
descobriam algo interessante.
— Foi muito feio da parte deles partirem — observou lady Victoria com sua
voz aguda.
— O tio deles pretendia machucá-los.
— Papai me disse que não se sabe com certeza.
Mary a olhou, incapaz de acreditar, que depois do sucedido na noite anterior,
alguém pudesse ter dúvidas. Claro que, o que viram realmente? Três jovens
pressionando o tio enquanto proclamavam seus interesses. Sebastian estava certo ao
aconselhá-la de que não disse nada, pois, além de que talvez não acreditassem nela,
poderiam causar mais mal, do que bem. De modo que se conteve apesar de desejar
contar toda a verdade.
— O motivo da fuga deles não tem importância — comentou lady Hermione
para maior confusão de Mary. — A questão é que não se parecem com nenhum
cavalheiro que conhecemos. Aterradoramente fascinantes a sua maneira. E
endiabradamente atraentes com um toque de travessura. Enquanto o duque enfrentava
o tio deles, eu me fixei em lorde Tristan, e juro que ele me olhou como se estivesse me
imaginando sem...
Mary gostaria de explicar-lhe que flertar era, seguramente, a última coisa em que os
lordes haviam pensado enquanto reclamavam seus direitos no alto da escadaria. Mas estas
estúpidas haviam crescido tão protegidas e inocentes que se sentia uma velha ao lado delas.
Para elas, os lordes não eram mais que o último de seus entretenimentos.
— Eles têm posses? — Perguntou lady Victoria.
Bem, talvez os vissem como algo mais que um entretenimento.
— Não estou familiarizada com suas fortunas individuais, mas Keswick herdou
um ducado. Houve um tempo em que Pembrook era a chave de toda a indústria
madeireira. E suspeito que voltará a ser.
— As roupas deles eram bem cortadas, e da moda. E os sapatos estavam
brilhantes. Contudo, usam os cabelos mais compridos que os demais.
De novo Mary ficou sem palavras. Para essas damas só importavam os assuntos
triviais. Elas foram preparadas para o matrimonio e de repente, um trio de homens
fascinantes havia aparecido no cenário matrimonial.
— Explicarei o motivo de nossa visita — lady Hermione provou o chá antes de
deixar sua xícara de lado. — Gostaríamos de falar com o duque e pensávamos que
você poderia nos apresentar.
— Não tenho nenhuma intenção de organizar visitas à casa dele.
— Claro que não, mas com certeza poderia querer visitar seus velhos amigos e,
se a acompanhássemos, poderia resultar uma experiência agradável para todos.
— A mãe de vocês conhece esse plano?
— Claro que não. — Lady Hermione se mostrou surpreendida pela
pergunta.
— Para ser sincera — interveio lady Victoria, — ela nos advertiu que nos
mantivéssemos afastadas. Papai os considera problemáticos.
— O que os torna muito mais atraentes — observou lady Hermione. — Se não
quer nos levar à sua casa, quem sabe poderia convencê-lo a comparecer ao meu baile
na próxima semana. Faria a nós, um imenso favor. Se comentar sobre meu baile quase
tanto quanto que do baile de lorde David.
— Ouvi dizer que a mulher dele retornou à casa dos pais dela nesta manhã, —
anunciou lady Victoria. — Um mau passo para ela.
— Eu não gostaria de estar no lugar dela — disse lady Hermione. — Claro que
jamais compreendi por que ela se casou com ele.
— Pelo título, pela riqueza e poder — explicou lady Victoria. — O mesmo
motivo pelo qual uma dama se sujeitaria a casar com o horroroso atual duque de
Keswick.
— Ele não é horroroso! — Exclamou Mary.
— Querida — os olhos azuis de lady Victoria se abriram
desmesuradamente. — Não viu o rosto dele?
— Há muito mais em um homem do que sua aparência.
— Certo, Mas deve pensar que sua aparência a saudará no café da manhã todos
os dias. Estou certa de que me daria indigestão.
— Creio que terminaram sua visita — Mary se colocou em pé de um salto. —
Direi ao mordomo que as acompanhe até a saída.
— Mas nos apresentará, — as palavras de lady Hermione estavam a meio
caminho entre a pergunta e a afirmação.
— Depois das palavras pouco amáveis que disseram sobre o duque, para que
querem que faça a apresentação?
— Não estamos interessadas no duque, querida, e sim, nos lordes: Tristan e
Rafe Easton.
— Temo que eles recebam de má vontade, os sentimentos que vocês
manifestaram sobre o duque. — Mary sacudiu a cabeça.
— Quer ele para você? O duque?
— Estou comprometida com lord Fitzwilliam — ela olhou boquiaberta para
suas convidadas. Fitzwilliam merecia sua lealdade, e a teria.
— Espere-me na entrada — lady Hermione se voltou para lady Victoria.
— Mas…
— Por favor.
Enquanto lady Victoria saia, lady Hermione se virou para Mary.
— Foram ditas coisas bem pouco amáveis, mas eu não deveria pagar as
consequências por ter dividido a carruagem com lady Victória. Lord Tristan despertou
meu interesse e me encantaria que ele se sentisse atraído por mim. Se você acredita no
amor faça-me esse favor.
— Nunca falou com ele. Como poderia amá-lo?
— O coração não precisa de uma troca de palavras — a jovem levou a mão
enluvada ao peito. — Apenas sente-se.
— Não posso lhe garantir nada — Mary suspirou, — mas, se voltar a me
encontrar com o duque, falarei com ele.
— Não lhe peço mais do que isso. Agradeço.
Mary se perguntou se Sebastian estava consciente que enfrentar seu tio foi a
tarefa mais simples. Ser aceito pela nobreza poderia ser um desafio grandioso.
Capítulo 7

Encoberto pelas sombras do parque em frente a residência, Sebastian observava


a incessante atividade. Tristan e ele estiveram várias vezes naquele lugar desde o dia
anterior, mas no momento aguardavam a saída do sol, limite marcado pelo duque para
que seu tio abandonasse a residência. Não permitiria que ele permanecesse em sua
casa nem um minuto além do estipulado. Ao que parecia lorde David havia
compreendido a gravidade da situação, pois duas carruagens carregadas até o teto
aguardavam, com os cavalos golpeando impacientemente, e relinchando. Com os
anos, seu tio havia acumulado uma grande quantidade de posses.

— Dou por certo — murmurou Tristan — que ele se utilizou da fortuna


Keswick para comprar todos esses trastes, eles são seus.

— Dou-lhe de presente. Não tenho intenção de faze objeção, desde que ele não
leve nada que tenha pertencido ao nosso pai. Agora, a única coisa que desejo é que ele
vá embora

— E depois?

— Destruí-lo. Sua honra, sua credibilidade. Quero que ele acabe mendigando
pelas ruas.

— Pois eu continuo sem aceitar que ele ainda respire.

— Matá-lo só acabaria com seu sofrimento. Eu quero prolongá-lo. —Suponho


que resultará satisfatório. E quais os planos tem pra você mesmo?

— Desgraçadamente, preciso permanecer aqui tempo suficiente para alicerçar


minha posição e conseguir uma esposa.

Sebastian era consciente de que não seria uma tarefa fácil, mas devia executá-
la. Não se enganaria aspirando a uma união por amor. Não estava certo nem de sua
capacidade de amar. Agora não. Durante os anos que estivera longe não havia
desenvolvido sentimentos por nenhuma mulher, além da luxúria. E disso possui de
sobra, incluindo por Mary. Ainda que quando Rafe lhe enviou Flo, nada acontecera.

Flo. Somente se lembrava do nome dela porque Tristan o havia mencionado em


várias ocasiões, em sucessivas tentativas de averiguar se ele ficara satisfeito. O
interesse de Tristan era gritante. Havia esquecido o nome da mulher no momento em
que ela falou. E dez minutos depois, ficou evidente que a jovem não conseguiria,
apesar de seus esforços, satisfazer suas necessidades. Depois ele lhe havia levado uma
linda mulher de cabelos negros, tampouco havia despertado seu interesse sexual. A
terceira, de cabelos ruivos, ele pedira que ela se fosse imediatamente. Se não tivesse
tido uma reação tão forte com Mary pensaria que a guerra lhe tirara algo mais, além de um
olho. Mas com ela, havia reagido pela primeira vez, depois de muito tempo, e reagido com
uma ferocidade sexual quase bárbara.

— Estou de acordo que temos muito tempo para recuperar, mas não acredita
que está se apressando muito em procurar uma esposa? — Perguntou Tristan. — Por
Deus, temos apenas vinte e seis anos. Não tenho intenção de me casar antes dos
quarenta, se é que me casarei.
Vinte e seis? Como podia ser tão jovem? Sebastian se sentia mais próximo aos
quarenta.
— Quero me expor o menor tempo possível.
— E pensa em uma dama em particular?
— Se tivesse pensado, eu já estaria a caminho de Pembrook
— Pode ser que esteja s e apressando muito.
— Pelo amor de Deus, Tristan. Tive doze anos para pensar nisso, para sonhar,
traçar um plano. Sem dúvida, você fez o mesmo.
— Reconheço que desfrutei de minha independência — o gêmeo mantinha o
olhar fixo do outro lado da rua, — só pensava em regressar à sociedade. Eu gosto de
voltar a ser um lorde, ter qualquer mulher a minha disposição.
—Tem alguém em mente?
—Não, mas meus anos no mar despertaram em mim um gosto em descobrir
tesouros ocultos. Ainda que admita que tenho tanto prazer na procura quanto no
descobrimento. — Apontou à residência. — Ao que parece o impostor se dispõe a
partir.
Sebastian desviou o olhar para as carruagens que partiam. Não levavam o
distintivo ducal. Seu tio levara a sério as ameaças e não levaria nada do que lhe
pertencia. Os cavalos se afastavam enquanto os primeiros raios de sol iluminavam a
cidade. Quando o som dos cascos quase havia desaparecido, ele fez sinal para o
homem montado e oculto nas sombras, que imediatamente, partiu a trote seguindo a
mesma direção de lorde David.
— Para que você quer saber para onde ele vai? — Perguntou Tristan.
— Para saber aonde buscá-lo quando eu estiver preparado para saborear sua
queda. — A primeira coisa que faria seria cortar todos os fundos.
— Quando vamos entrar na casa?
— Quero aproveitar o momento.
— Ele não virá.
Rafe possuía horários infernais. Trabalhava de noite e dormia de dia, e ainda
que tivesse consciência de que seu irmão possuía coisas importantes para tratar,
Sebastian havia esperado que ele encontrasse tempo, que fizesse um esforço, de
acompanhá-los naquela manhã para colher os frutos de seus esforços.
— Acredito que ele me despreza.
— Ele tinha dez anos. Era demasiado jovem para compreender o que estava
acontecendo, o perigo que nos cercava. Ele nos viu partindo juntos e não entendeu que
nós, também, nos separaríamos. Pensou que, como sempre, os gêmeos haviam se
unido contra ele.
— Foi isso o que ele lhe contou?
— Claro que não, mas não é preciso ser um gênio para deduzir.
— Você se tornou um bom observador de homens.
— E de mulheres — Tristan sorriu. — Ainda que deva admitir que prefira
observar as mulheres. Os homens são muito fáceis de compreender. Mas as
mulheres... Adoro o desafio que representam.
— Alguma vez levou algo a sério?
— Ao contrário do que parece, eu levo tudo a sério — Tristan assentiu em
direção a casa. — Já saboreou o bastante?
Sebastian olhou em volta e sentiu um aperto no peito diante da visão que lhe
estava oculta por estar fora de seu campo de visão bom.
—Um pouco mais, — insistiu ele com calma, mesmo que incapaz de ocultar o
júbilo que o inundava.
—Bem, me sacudam — Tristan olhou para trás. — Menos mal que não apostei
nada.
Pela rua Rafe vinha se aproximando. Sempre se vestia muito corretamente, mas
nesse momento o conjunto era impecável. Traje negro, camisa branca, jaqueta cinza e
usava uma bengala para caminhar. Poderia ser um lorde qualquer em passeio matinal.
E, com efeito, era isso que ele era.
— Perdi a partida de nosso tio? — Ele perguntou ao deter-se junto de seus
irmãos.
— Desgraçadamente sim — contestou Sebastian.
— Nada de desgraça. Ele se foi e isso é a única coisa que importa.
— O que importa é que estamos os três, vivos, aqui — lhe corrigiu Sebastian.
— Alegra-me que ao final conseguiu estar aqui.
— Terminei as contas antes do esperado — Rafe encolheu os ombros. —
Cruzaremos a rua para que possa tomar posse da residência?
— Deixando claro. Vamos reivindicar Easton House para os três.
Os passos dos três irmãos ressoavam no solo e a névoa parecia diminuir a cada
passo. Sebastian imaginava a visão que deviam oferecer a qualquer um que os olhasse
pela janela. Três homens, ele no centro e ladeado por seus irmãos, as bengalas
golpeando o solo em perfeita sincronia. Cruzaram o portão de ferro que o tio deles
deixara aberto ao sair as pressas. Não sabia como os serviçais os receberiam. Na noite
do baile não reconhecera ninguém. Se seu tio havia trocado todos os empregados, ele
poderia fazer o mesmo. Não queria ter ao seu redor ninguém em cuja lealdade não
pudesse confiar.
Os três subiram a escadaria até a porta principal. A pesada porta foi aberta e o
mordomo apareceu na entrada. Seu rosto parecia familiar. Seus cabelos haviam
começado a ficar grisalhos, mas continuava conservando o mesmo porte ereto e
orgulhoso.
— Excelência — o homem fez uma pequena reverência.
— Thomas.
— Lembra-se de mim, senhor — o olhar do mordomo se iluminou.
— Como esquecê-lo Dava balinhas de limão para mim, quando meu pai não
estava olhando.
— Pensei que só fazia isso comigo — interveio Tristan.
— Fazia com todos. Bem-vindos de volta a Easton House. Antecipando-me ao
regresso, convoquei todos os empregados. Alguns não estarão à altura de suas
exigências, mas creio que encontrarão quase todos dispostos e ansiosos por servir-los.
— Agradeço — Sebastian entrou no vestíbulo da casa e enrugou o nariz ao
reconhecer o cheiro rançoso de seu tio. Imediatamente ouviu vários suspiros e
pequenos gemidos.
Três das donzelas haviam baixado os olhos. Com que facilidade esquecia o
espanto que seu rosto produzia para os que o olhavam de primeira vez.
— Sou o duque de Keswick — ele anunciou. — Meus irmãos, lorde Tristan
Easton e lorde Rafe Easton. Viemos tomar posse do que é nosso. Se houver dúvida de
nossos direitos, eu os ajudarei a encontrar emprego em outra casa. Não tolerarei
nenhuma deslealdade contra mim ou contra meus irmãos. Peço que sejam sinceros se
não acreditam ser capazes de nos servir, pois descobrirão que perdoar não é nosso
forte.
Ninguém falou. Ninguém se moveu.
— Excelente. Quero que a casa seja limpa, arejada, profundamente, até que
tudo pareça novo. Não quero encontrar nem um fio de cabelo do residente anterior.
Ficou claro?
As cabeças se moveram em concordância.
— Estão sob tua supervisão — Sebastian se voltou para Thomas. — Quero que
se reúna comigo no escritório, em uma hora, para falar do funcionamento da casa.
— Como quiser, Excelência.
Junto com seus irmãos, Sebastian começou a percorrer a casa. A sensação de
familiaridade crescia por momentos. Não lhe escaparam vazios ocasionais nas
paredes, ali estiveram retratos de família. Lembrava-se de ter posado junto a Tristan,
cada um olhando para um lado diferente. Também posaram para outro quadro junto de seus
pais e de seu irmão menor. Tudo havia desaparecido.
— Onde estarão os quadros? — Ele perguntou sem necessidade de esclarecer
nada.
— Esperemos que no sótão — contestou Tristan. — Ainda que eu não
estranharia se nosso tio os tivesse queimado.
— Fico surpreso de que ele vivesse aqui, — interveio Rafe. — E de que ele não
tivesse medo que o fantasma de papai o assombrasse.
— Somente um homem com capacidade de sentir culpa por suas ações poderia
se sentir assombrado. — Explicou Sebastian. Ele falava por experiência.
Um lacaio abriu a porta do escritório. Por algum motivo, entrar ali lhes resultou
mais difícil. Talvez porque aqueles haviam sido os domínios do pai deles. A mãe
possuía outra saleta, menor, decorada com cores brilhantes. Mas o escritório do pai era
quase lúgubre. As estantes repletas de livros encadernados em couro. Várias poltronas
estavam dispostas pelo ambiente. E no meio, uma mesa com licoreiras de cristal. Ali
era onde o pai recebia as visitas.
Sebastian não gostava nem de pensar que seu tio também fizera isso.
Aproximou da mesa e encheu três copos com whisky. Cada um dos irmãos pegou um
copo e o duque levantou o seu.
— Por nosso pai e por reivindicar tudo o que lhe pertencia.
— E que agora pertence a você. — Tristan se uniu ao brinde.
— Pertence a todos nós — corrigiu seu gêmeo. — Pode ser que o título seja
meu, mas não se equivoquem, os considero igualmente donos de tudo.
O entrechocar do cristal encheu o silêncio. Porém, Sebastian ainda não se sentia
em casa.
Ele bebeu o copo de um gole e agradeceu o calor que lhe produziu. E jurou que
jamais voltaria a abandonar seu legado, ou a seus irmãos.
A porta se abriu e Thomas entrou com uma bandeja de prata na mão.
— Acaba de chegar uma nota, Excelência.
Sebastian pegou-a e dispensou o mordomo antes de iniciar a leitura da elegante
nota com certa sensação de temor.
— O que é? — Perguntou Tristan.
— Fomos convidados para um pequeno jantar na casa de lady Ivers nesta noite.
— Lady Ivers? Essa não é a tia de Mary?
— Sim.
— Então não podemos recusar o convite.
Capítulo 8

As carruagens alinhadas deveriam ter dado uma pista. Ainda assim, Sebastian se
assustou quando foi escoltado por seus irmãos até um salão repleto de gente.
— Santo Deus, — murmurou Tristan. — Aqui devem ter pelo menos umas cinquenta
pessoas. Se esse é um pequeno jantar, gostaria de saber como seria um grande jantar.
O duque deveria ter adivinhado que toda conversação cessaria, e todos os olhos se
voltariam para os lordes de Pembrook, quando eles fizeram sua entrada. Enfrentar os cossacos
quase parecia ter sido mais simples.
Uma mulher de estatura mediana, com cabelos que o passar do tempo tornou um ruivo
desbotado se aproximou deles. Os brilhantes olhos verdes a delataram sem necessidade de ver
Mary ao lado dela.
— Excelência, milordes, estou encantada de que tenham conseguido comparecer esta
noite — a mulher lhe estendeu uma mão .
— Lady Ivers — Sebastian pegou sua mão e se inclinou ligeiramente sobre ela, — é um
prazer termos sido convidados.
— Não pense que não entendo o significado de suas palavras — a tia de Mary lhe
piscou um olho, — mas lhe asseguro que participar também será um prazer.
— Seus outros convidados não parecem tão encantados com a nossa chegada.
— Ao contrário, simplesmente estão boquiabertos porque fui eu a primeira a conseguir
que vocês aceitem um convite. Permita-me apresentar-lhes minha filha, lady Alicia.
A jovem era ligeiramente mais alta que sua mãe e bastante mais magra. Seus cabelos
eram ruivos, ainda que menos vibrantes que os de Mary. Sebastian se perguntou se sua sina era
comparar todas as mulheres que conhecia com Mary. Era tão ridículo! Só acontecia porque a
conhecia muito bem...
Mas, não a conhecia realmente. Sabia bem pouco de sua vida durante os anos que
estiveram ausentes.
— Excelência — a jovem fez uma reverência, — milordes.
— Lady Alicia.
— É uma virtuosa ao piano forte e nos oferecerá um recital depois do jantar. E, com
certeza, já conhecem minha querida sobrinha Mary — exclamou a condessa.
— Sim. — Sebastian constatou para si mesmo que ninguém faria sombra à beleza de
Mary. — Me alegra voltar a vê-la, lady Mary.
— O mesmo digo eu. Excelência. Milordes…
— Permita-me apresentar-lhes o visconde Fitzwilliam — continuou lady Ivers.
Sebastian sentiu um irrefreável desejo de gemer. A noitada estaria repleta de
apresentações tediosas.
— É um homem afortunado, milorde, por ter conquistado lady Mary.
— Não teria lhe pedido em matrimônio se não tivesse essa opinião.
―De acordo, vejo que não vamos nos dar bem‖. Na realidade Sebastian se alegrava. Não
queria simpatizar com aquele homem, ainda que não soubesse o motivo. Por outro lado, queria
que Mary fosse feliz, mas não estava certo de que seria com aquele homem. Nem ele mesmo
era capaz de compreender seus estranhos pensamentos.
— Excelência — interveio lady Ivers, — logo descobrirá que não sou nada
convencional, e bastante conhecida por minhas excentricidades. Esta noite eu escolhi o lugar
de cada comensal. Se for amável em acompanhar-me até a mesa quando o momento chegar...
O olhar da mulher deixou bem claro que não aceitaria uma negativa por resposta.
— Será uma honra.
— Esplêndido. Lorde Rafe, minha filha entrará com o senhor à sala de jantar e, lorde
Tristan seja amável e leve lady Mary. Não se importa, não é verdade, Fitzwilliam?
O visconde abriu e fechou a boca.
— Bem, eu pensei que não. Acompanhe-me, Fitzwilliam, quero lhe apresentar a jovem
que acompanhará durante o jantar. Cavalheiros, nos vemos em um instante.
A mulher se voltou e Fitzwilliam se inclinou para sussurrar algo para Mary que assentiu
e lhe respondeu, igualmente, em um sussurro. A intimidade do gesto golpeou Sebastian como
um murro no peito. Aquilo era ridículo, pois ele não possuia nenhum direito sobre sua amiga
de infância. Mas havia pensado nela durante todos aqueles anos. Pembrook era a única coisa
que havia ocupado sua mente além dela.
— Espero que não se sintam incomodados pelas artimanhas de minha tia. —Mary se
voltou para eles no momento que Fitzwilliam se afastou. — Ela pode se mostrar bastante
entusiasmada.
— Eu a descreveria como uma tempestade em alto mar — observou Tristan.
— Espero ter a metade da energia dela quando tiver a sua idade — lady Alicia sorriu.
— Eu não tenho a metade, nem mesmo agora — interveio Mary. — Estamos
encantadas que tenham aceitado o convite de tia Sophie. Se nos acompanharem, lady Alicia os
apresentará aos convidados.
Seguiram-se dez minutos de assentimentos, inclinações e beijos na mão, e somente
quando finalmente, tocou a campainha que anunciava o jantar foi que Sebastian pensou que
deveria ter prestado mais atenção às jovens damas que lhe apresentaram, com o fim de saber se
alguma poderia lhe interessar como esposa. Mas também compreendeu que se esqueceu de
seus nomes seguramente não seriam adequadas para ele. Se houvesse sentido a mínima atração
por qualquer uma, não lembraria seu nome?
Por sorte foi resgatado pela magnífica anfitriã e a escoltou até a mesa de jantar. Havia
temido o momento de sentar-se à mesa. Contudo, lady Ivers o havia colocado à sua direita e
ela, sentada à cabeceira da mesa. Próximo à parede Tristan e Mary, ambos sentados de frente
para ele, precisariam suportar suas cicatrizes. Lady Alicia estava a sua direita.
Apesar da grande quantidade de convidados, lady Ivers conseguira dispor os assentos
de tal modo que havia certo ar de intimidade. Depois de dois copos de vinho, ele começou a se
sentir um pouco mais relaxado.
Fitzwilliam estava sentado do outro lado de Mary de modo que se não era sua
acompanhante no jantar, se via um pouco mais tranquilo por sentar-se junto de sua prometida.
A pobre mocinha que havia acompanhado foi totalmente ignorada pelo visconde, que
seguidamente tentava uma conversa com Mary. Cada vez que conseguia chamar sua atenção
Tristan a recuperava habilmente e Sebastian suspeitava que sua amiga sofreria uma dor severa
no pescoço antes que terminasse a noite .
Entretanto, não podia negar que estava encantado com a visão que possuia dela.
Quando o olhou, Sebastian teria jurado que sentiu como se ela tivesse esticado a mão para
tocá-lo sobre a mesa. Ele levantou sua taça em um brinde silencioso e ela lhe deu um tímido
sorriso. Sem poder evitar, seu olhar deslizou pelo delicado pescoço até o início do decote. Ela
possuia uma pele tão suave que chamava a atenção, claro que tudo naquela mulher lhe
chamava a atenção.
Mary girou a cabeça, de novo reclamada por Fitzwilliam e o duque se perguntou se esse
homem seria um confabulante excepcional ou se era tão sem graça quanto sua roupa. Branco e
negro, sem o mínimo toque de cor.
— É incrível, não é verdade? — sussurrou lady Ivers, fazendo-o corar por ter sido pego
fitando lady Mary. — Ninguém diria que não teve nenhuma preparação formal para sua
apresentação em sociedade. Mas, claro, o que saberiam as monjas de etiquetas do lado de fora
da Igreja?
— Monjas? — o incômodo de Sebastian desapareceu de um golpe e olhou perplexo à
condessa.
— Sim — a mulher sorriu timidamente antes de parecer desconcertada. — Oh, céus! —
o sussurro se tornou quase inaudível. — Deixei escapar o que não devia? Pensei que ela lhe
contara, ainda que imagine que não é algo que se vá falando por aí, nem sequer diante de um
amigo. Mas sim, seu pai a enviou para um convento quando estava com apenas doze anos, e
apesar de meus protestos insistentes quando descobri, ela já estava encerrada entre aqueles
muros. Era um desses conventos que não permitem visitas. Eu quis trazê-la pra minha casa,
mas meu esposo insistiu que não era assunto meu. Pura desfaçatez! Dizer que a filha de minha
irmã não era assunto meu. Asseguro-lhe que se passassem meses antes que ele voltasse a
dormir em uma cama quente.
Se não estivesse tão horrorizado com a informação. Sebastian teria rido do
comentário final.
— Imagine uma menina com a energia dela, encerrada em um lugar tão
rígido? — Perguntou a condessa.
Sebastian esteve a ponto de perguntar por que o conde de Winslow havia feito
algo assim com sua única filha, mas ele já sabia. Não estava certo, mas suspeitava
seriamente. Para sorte do homem, Sebastian não sabia disso quando esteve em sua
casa. Não imaginava um castigo mais cruel para a menina que costumava cavalgar
livremente com ele pelos campos.
— Por fim me cansei e este ano disse para lorde Winslow que traria minha filha
para sua apresentação em Londres, e que faria o mesmo com minha sobrinha. Sua
querida mãe queria que ela tivesse um pretendente adequado.
— E ele é? Fitzwilliam é um pretendente adequado?
— Sim, ele é — a mulher se ergueu como se tivesse algo que ver com o acerto
daquela união. — É o herdeiro de Glenchester.
Sebastian tentou se lembrar daquele nome.
— Um marquesado — esclareceu. — Ao que parece estou menos preparado
que lady Mary pra uma noitada como esta.
—Não se preocupe. Logo se atualizará. Suspeito que seu pai devia lhe ensinar
muitas coisas e que estão aí guardadas em sua mente.
— Seu marido — ele se recordava das vezes que lady Ivers e sua família lhes
haviam visitado. — Não está aqui. Devo apresentar minhas condolências?
— Não, por Deus! Isso seria prematuro. Desgraçadamente surgiu um
desafortunado problema com seus arrendatários e precisou partir. Ainda que,
sinceramente, ele prefira o campo.
— Nisso, eu concordo com ele.
—Suspeito que a maioria dos homens o fazem — a mulher sorriu, — mas de
vez em quando devem render-se aos desejos de suas esposas. Faz com que o
matrimonio resulte mais agradável.
Sebastian olhou Mary novamente enquanto se perguntava o que o esposo
precisaria tolerar com ela. Ele lhe daria a liberdade que ela necessitava? E, se não o
fizesse, que recursos teria ele próprio, para garantir a felicidade dela? Nenhum, ele
supunha.
A alegre e musical risada de Mary chegou aos seus ouvidos. Tristan havia
dito algo muito engraçado, ao que parecia. Seu irmão era totalmente um sedutor.
Desejou vê-la em Pembrook quando regressara a seu lar. Onde demônios
seriam as terras de Fitzwilliam? Sabia muito pouco daquele homem, muito pouco de
todos os convidados. Por outro lado, eles não sabiam nada dele.
— Apreciou o tempo que esteve no exército, Excelência? — Perguntou lady
Alicia.
Sebastian sentiu a sutil carícia do olhar de Mary, contendo a respiração,
antecipando a resposta, e se perguntou se ela estava tão consciente dele come ele
estava dela. Ainda que não conseguisse ouvir suas palavras, sim, ele ouvia sua voz. Os
deliciosos aromas da festa flutuavam pelo ambiente, mas ele apenas sentia o cheiro de
orquídeas, quando não havia uma única flor em toda a sala.
O cheiro provinha dela, não restava a menor dúvida. Lady Alicia e sua mãe
usavam um perfume de rosas.
— Me proporcionou algumas experiências… interessantes — contestou
secamente. Muito secamente.
A jovem se ruborizou com tal violência que Sebastian desejou poder retirar
suas palavras, ou pelo menos o tom. Mas não suportava que o dissecassem como se
fosse o último exemplar descoberto de algum inseto.
— Serviu na Criméia, Excelência? — inquiriu Fitzwilliam com um tom
desafiante na voz que indicava que duvidava das afirmações de Sebastian.
Ele não possuia nenhuma intenção de revelar que havia mentido sobre sua
idade. Precisava ter dezesseis anos para se alistar, mas ele queria esconder-se na vida
militar. Havia falsificado uma carta de um pai fictício e jamais havia revelado que
pertencia a aristocracia. O trataram como um homem comum, o que lhe havia dado
uma perspectiva que muitos de seus iguais jamais teriam. Havia começado sua carreira
com alferes, sob as ordens de um capitão.
— Sim, em Balaclava. Tennyson imortalizou a batalha.
— La carga de la brigada ligera? — perguntou lady Alicia impressionada. —Esteve
lá?
— Desgraçadamente.
— Um assunto muito pesado — assentiu Fitzwilliam.
— A guerra sempre é um assunto pesado, milorde . Entre ambos a tensão era
palpável.
— Opino que todos os nossos soldados deveriam receber uma menção por
servir ao nosso país — observou Mary.
— Brindo por isso — Sebastian levantou a taça.
— Creio que todos, deveríamos brindar — interveio Tristan. — Por nossos
soldados, que mantiveram o demônio longe de nossos lares!
Todos, inclusive Fitzwilliam, se somaram ao brinde. Sebastian não entendia por
que ele lhe havia lhe ―jogado a luva‖, mas estava certo que assim havia sido.
―Reze para que eu não aceite o desafio, Fitzwilliam‖, ele pensou. A Julgar pelos
sorrisos que presenciara, Mary apreciava aquele tipo. E levando em conta seu desejo
de ser perdoado por ela o melhor seria deixar a luva onde estava. No momento.
Na sala de música, enquanto os dedos de lady Alícia percorriam alegremente o
teclado, Mary fitou de lado Sebastian e seus irmãos. Sua tia havia esperado conseguir
que se fundissem com a aristocracia, mas permaneciam afastados dos demais. Não
pareciam muito a vontade. Simplesmente não se sentiam parte de tudo aquilo.
Entendia perfeitamente o que sentiam. A primeira vez que estivera em Londres,
tivera a impressão de que todo mundo a olhava e julgava cada um de seus
movimentos. Sem uma adequada apresentação social, se transformara em um objeto
de curiosidade. Sabia que havia conquistado muitas pessoas, mas outras continuavam
sem saber como catalogá-la.
Olhou ao seu redor. Fitzwilliam havia e ausentado, sem dúvida para fumar
charuto com algum amigo. Se surpreendia que a tivesse deixado sozinha. Havia passado
toda a noite viagiando-a, como se esperasse que ela fizesse algo inapropriado. Que homem
tão tolo! Jamais faria nada que envergonhasse sua tia, que tão amável se mostrara.
Sabia que seu prometido não aprovaria o que estava a ponto de fazer, mas não
podia deixar os três irmãos tão sozinhos. Aproximou-se deles e parou junto a
Sebastian. Ao seu nariz chegou o forte aroma masculino, muito mais terroso que o de
Fitzwilliam, como se Pembrook fluísse por suas veias. Uma besteira, mas ela sempre
o associava com a terra, com a natureza selvagem. Fitzwilliam era a cidade, as luzes
de suas lanternas e os recitais de piano.
— Tem poltronas vazias do outro lado da sala — ela lhe informou.
— Aqui estou bem.
— Se você é assim quando não está bem, não quero vê-lo quando estiver mal.
— Vejo que os anos não diminuíram sua vivacidade — Sebastian sorriu fugaz.
Não era totalmente verdade, mas com ele não precisava fingir. Já não era lady
Mary, era simplesmente Mary. Se não se comportasse adequadamente Sebastian
sempre era o mais inclinado a perdoá-la.
— Sou mais prudente com os demais — admitiu Mary. Sobretudo o era com
Fitzwilliam, compreendeu de repente, ainda que não devesse ser assim. Perguntou-se
se Sebastian se ofenderia se ela observasse que ele parecia estar se mantendo afastado
dos outros. Anos atrás, não se importaria com o que lhe dizia. Já rira, se enfadara, ou
discutiram, Mary sempre se sentira livre pra falar com sinceridade. Na mesa havia
sentido sua tensão, e soubera que Sebastian se ofendia diante das palavras
pronunciadas.
— Não me contou que esteve num convento — sussurrou ele para que
ninguém mais pudesse ouvi-lo.
— A boa tia Sophie — o sorriso da jovem morreu em seus lábios. —
Suponho que foi ela, visto que não é um fato muito conhecido por aqui.
— Ela acreditava que eu já soubesse, que você teria me contado. Por que
não me contou?
— E de que serviria, salvo para lhe fazer sentir-se culpado?
— Foi enviada para lá por nossa causa.
Não havia sido uma pergunta. Suas palavras encerravam convicção. Mary não
deveria ter se surpreendido que ele tivesse adivinhado o motivo, de sua vida ter
tomado um rumo tão desagradável. Ele sempre tivera um talento para desvendar
enigmas. Ainda assim, não queria que ele carregasse o peso de sua própria estupidez.
— Na realidade, não. Foi culpa minha. Você me pediu que eu não contasse
a ninguém. Mas desde quando sigo conselho dos outros?
Sebastian sorriu debilmente, mas, antes de conseguir responder a pergunta ela
continuou.
— Procurei papai com a convicção de que ele resolveria as coisas, que
enfrentaria lorde David por vocês. Contudo, descobri que está convencido de que a
solução para seus problemas está no fundo de uma garrafa de whisky.
Mary percebeu compreensão e tristeza no olhar azul. E também arrependimento.
— Eu sinto muito, Mary. Foi muito ruim com as monjas?
— Bastante mal. Sente-se melhor agora?
— Não. Faz com que eu sinta vontade de sacudir seu pai.
— Por isso me pareceu boa ideia não lhe contar. Isso já é passado. Tia Sophie
decidiu que eu teria minha apresentação em sociedade e me devolveu à vida.
Contratou tutores para ensinar-me etiqueta e a dançar. E aqui estou.
Mary inclinou a cabeça para vê-lo melhor, e desejou não ter feito.
Sebastian a observava com uma intensidade que resultava ser inquietante.
—Então estou em dívida com tua tia — observou ele por fim. — É mais fácil
enfrentar Londres sabendo que você está aqui.
Mary teria jurado que o viu enrubescer debaixo da pele bronzeada.
— Ainda que precisasse convencer minha tia para que o tirasse do seu
esconderijo? — Ela gracejou.
— Ainda assim.
— Alegro-me de que tenha vindo — ela lhe assegurou antes de dar meia volta e
partir .
Mary se perguntou por que Sebastian se envergonhava com um elogio ou
cumprimento. Não podia nem imaginar o quão dura que devia ter sido sua vida para
que uma simples palavra amável fosse causa de vergonha. E por isso havia partido
antes de convidá-lo para dar um passeio pelo jardim, para poder falar de verdade, para
recuperar a sensação de comodidade ao estarem juntos. Pois estava bastante certa de
que acabaria num desastre.
— Obrigada por convidá-los — Mary parou junto a sua tia e lhe apertou a mão.
— A festa já estava organizada, ainda que tenha certeza de que a seu pai não
agradará saber que eu os incluí na lista de convidados.
Mary sabia que lady Hermione e lady Victoria se magoariam por não terem
sido convidadas, mas suspeitava que o entusiasmo delas pelos lordes, lhe teria
agoniado.
— Esta mesma tarde ele me informou — continuou a mulher — de que devia
vigiá-la e assegurar que não falasse excessivamente com eles.
—Tem medo de que Fitzwilliam não tolere o renascimento de uma velha
amizade.
—E sem dúvida estaria certo.
A conversa foi interrompida pelo fim do recital de Alicia, que se colocou em
pé, para receber o aplauso dos convidados.
—Muito obrigada — Alicia fez uma reverência. — E, agora, os jovens podem
se reunir-se comigo para alguns jogos de salão.
Sem dúvida, charadas, Mary detestava o jogo e estava com toda a intenção de
evitá-lo se conseguisse. Desgraçadamente, Fitzwilliam o adorava. Cheirando
agradavelmente a tabaco, seu prometido regressou do terraço e lhe ofereceu seu braço.
— Espera um momento — ela se aproximou de Sebastian e de seus irmãos e
lhes sorriu. — Vocês também estão convidados para jogar. Afinal de contas são
jovens.
— É curioso, mas eu não me sinto jovem — observou Rafe.
— Mas é jovem — ela lhe entendia perfeitamente, Rafe só possui dois anos a
menos do que ela. — Vamos. Será divertido.
—Deveríamos agradecer a tua tia pela hospitalidade e partirmos — interveio
Sebastian.
— Ainda não. Minha prima se sentirá muito decepcionada — não conseguia
compreender porque desejava tão desesperadamente que ele ficasse. — Só um
pouquinho mais.
—Suponho que não nos fará nenhum mal — assentiu Tristan.
—Nenhum — ela lhe assegurou.
Capítulo 9

Mary descobriu-se, de repente, desejosa de brincar com as charadas. Pouco


importava o chato que fosse. Nunca achara graça no jogo escolhido por Alicia.
— Perguntas. — Ela estava sentada, em um círculo dezesseis pessoas.
Não fora intenção de Mary sentar-se entre Fitzwilliam e Sebastian.
Simplesmente havia acontecido assim. Cada um segurava uma carta com um número
escrito. No centro do círculo havia um monte de cartas.
O jogo era simples. Alguém fazia uma pergunta e descobria uma carta. A pessoa
que tivesse o número correspondente deveria responder.
— Eu começo — anunciou Alicia. — Quem é a pessoa mais tola nesta sala? —
pegou uma carta e leu o número três. Ninguém respondeu e Mary suspeitou que o jogo
não terminaria bem.
— Quem tem o número três? — Alicia franziu o cenho.
— Eu tenho — falou Tristan.
— Deveria entregar a carta e anunciar que é a pessoa mais tola nesta sala —
Alicia olhou para o lorde com um gesto emburrado.
— Mas o caso é que eu não o sou.
— Pouco importa. É o que torna o jogo engraçado. A pergunta não se aplica a
pessoa que responde e, portanto, isso nos faz rir. Agora você deve fazer uma pergunta e
tirar uma carta.
— Qualquer pergunta? — Inquiriu Tristan com um olhar travesso.
— Qualquer pergunta.
— Quem está sem roupa de baixo sob a saia? —Tristan baixou o olhar e Mary
não duvidava do número de mulheres que estiveram em sua cama por causa daqueles
olhos.
— Essa é a ideia — Alicia sorriu quando uma dama soluçou. Tristan pegou uma
carta e a mostrou, era o número cinco.
— Creio que sou eu — anunciou Fitzwilliam, claramente chateado enquanto
jogava a carta sobre a mesa.
— Eu deveria ter imaginado que você gostava de usar saias de vez em quando
Fitzwilliam — Tristan sorriu. — Também usa corpete?
— Cuidado com seus modos, rapaz — rugiu Fitzwilliam.
—Não é mais que uma brincadeira — Mary apoiou uma mão sobre a de seu
prometido.
— Pois é claro que sim — insistiu Alicia. — Não se ofenda Fitzwilliam.
Estragaria a diversão. Agora faça sua pergunta.
— Quem cheira a rosas? — Perguntou o visconde depois de alguns instantes se
acalmando.
— Que chato! — murmurou Tristan.
A seu lado, Mary sentiu que seu prometido ficava tenso e, antes de se
perguntar por que Fitzwilliam havia escolhido o perfume de sua prima e não o seu,
de orquídeas, esticou ela mesma a mão até o monte de cartas e desvirou a primeira.
— Seis.
— Eu cheiro a rosas — disse lady Kathryn, ainda que a verdade fosse que
cheirava a baunilha. — Quem escapou da sala de música pra um encontro secreto no
jardim? — Imediatamente virou uma carta. — Doze.
— Fui eu! —Alicia soltou uma gargalhada. — Grande truque fugir enquanto
tocava o pianoforte !
— Sua mãe sempre diz que você consegue fazer duas coisas ao mesmo tempo
— Mary riu.
— Um talento muito útil, com efeito — observou Fitzwilliam um pouco mais
relaxado.
— Conseguiu me ruborizar, milorde. E agora vejamos: quem é o homem mais
atraente de Londres? — Perguntou Alicia enquanto virava a carta de número dez .
Sebastian ficou tão quieto que Mary não poderia assegurar que ainda respirava.
Não, por Deus! Quis arrancar acarta da mão dele.
— É tarde — ele anunciou colocando-se de pé. — Se me desculparem, é hora de
ir.
— Mas se nem terminamos a brincadeira — Alicia parecia perplexa.
— Alicia… — Como era possível que sua prima não se dera conta de quem
estava com a carta de número dez?
—Meu irmão tem razão — interveio Rafe. — Se me deram licença, eu também
devo ir.
Sem esperar por respostas, Rafe seguiu seu irmão. Mary também se levantou da
cadeira, não muito certa de como proceder, mas segura de que não poderia deixá-los
sair assim.
— Desculpem-me…
Enquanto saia, ouviu a voz de Tristan.
— Lady Alicia, quem sabe gostaria que eu lhe mostrasse um jogo que aprendi no
Oriente. É necessário vendar os olhos e...
A Mary nada importava menos do que a mecânica do jogo, que provavelmente
seria indecente. Correu pelo corredor, vazio, salvo pelo mordomo.
— O duque de Keswick.
O homem a olhou perplexo.
— O homem com as cicatrizes — ela tocou o lado esquerdo do rosto. —Aonde
ele foi?
— Saiu pela porta principal, milady. Mary correu escadaria abaixo e o viu em
pé na calçada.
— Sebastian! Ele se virou. As luzes das luminárias eram amáveis, pois só
revelavam seu lado intacto. Mary de repente compreendeu que era realmente o homem
mais atraente do salão de jogos. Ainda que Tristan fosse seu gêmeo, havia algo nas
feições de Sebastian que lhe conferiam um ar mais nobre. Sempre havia sido assim,
mas os anos haviam potencializado.
—Não vá — ela se deteve em seco para não chocar contra ele, — assim não.
Não é mais que um joguinho estúpido. Não significa nada.
— Sou demasiado velho para joguinhos, Mary.
— Que está dizendo? Só tem vinte e seis anos.
— Só tenho esse tempo no mundo, mas me tornei homem poucos dias antes de
abandonar Pembrook. Soma mais doze anos e eu diria que ultrapassei os trinta. Não
tenho tempo, nem vontade, para joguinhos de salão.
—Volte comigo. Buscaremos um cantinho tranquilo onde possamos conversar.
— E o que teu prometido diria disso? —Sebastian soltou uma gargalhada triste.
— Você é meu amigo — Mary sabia que Fitzwilliam não gostaria nada daquilo, e
seu pai, menos ainda. — Sempre será meu amigo. E quero que esteja à vontade aqui.
— Não estou. Ainda não, mas com o tempo ficarei — ele lhe acariciou a
bochecha e deteve o polegar no ponto em que ainda havia uma sarda.
Seu toque era áspero e ela se perguntou quando ele havia tirado as luvas.
Envergonhada, ela reconheceu que isso a agradara demais.
— Agradeço pela noite, Mary. E agradeça a sua tia também.
Antes que ela pudesse dizer algo, Sebastian se encaminhou para uma
carruagem que se aproximava pela rua. Com uma destreza pouco vista em outros
homens, subiu ao coche antes que este parasse completamente, claro que a maioria
dos homens esperava que as carruagens estivessem paradas para conseguir subir.
Mary deu um passo adiante sem saber muito bem o que queria fazer. Uma mão pousou em seu
ombro.
— Deixe-o ir — ordenou Fitzwilliam.
— Era somente um jogo estúpido — ela coçou a testa.
— Não tão estúpido quanto o jogo que o irmão dele queria jogar. Te juro Mary,
que quando ocupe meu lugar na Câmara dos lordes, me encarregarei de que o único
jogo permitido nos salões seja o de charadas.
Mary não pode conter uma gargalhada e se apoiou contra seu prometido que
lhe rodeou os ombros e lhe deu um beijo na testa.
— Não pode continuar protegendo-os, querida menina. Precisam aprender
sozinhos.
Enquanto se deixava levar de regresso a casa, ela precisou lhe dar razão. Ainda
assim, lhe era muito difícil ficar quieta e ver como a sociedade rejeitava os irmãos
Easton.
Mary se penteava, sentada na cama, quando o relógio deu as doze badaladas da
meia noite. Um servente logo o silenciaria até o dia seguinte. Não sabia por que sua tia
insistia em que o relógio soasse até o fim do dia. Seu pai impunha silêncio desde bem
mais cedo.
Alguém bateu delicadamente na sua porta.
— Sim?
— Está muito chateada comigo? — Alicia entrou no quarto.
— Não muito — Mary sacudiu a cabeça ante o gesto compungido de sua prima.
— Não estou chateada. Não foi culpa sua.
— Alegra-me que decidiu ficar para dormir — Alicia correu até a cama de sua
prima e subiu com um salto. — E sinto muito pelo jogo estúpido. Nunca pensei que
fosse Keswick quem tivesse a carta. Foi uma pergunta estúpida. Quis parecer
engenhosa, como Tristan.
— Não sei se ele é engenhoso ou descaradamente travesso.
— Ele é, não é mesmo? — Alicia sorriu. — Queria que jogássemos uma coisa
com os olhos vendados. Teríamos que acariciar alguém e adivinhar quem era, mas
Fitzwilliam disse que bastava de jogos. Depois foi buscá-la, ainda que eu acredite que
primeiro encontrou minha mãe, porque ela chegou e anunciou que era hora de
tomarmos um refresco.
Alicia parecia terrivelmente decepcionada.
— E então lorde Tristan partiu. Depois disso a noite perdeu a graça — a
jovem apertou a almofada contra seu peito. — Pelo menos o jantar foi muito bom.
Os lordes de Pembrook não dão tanto medo quando não estão brandindo pistolas
por aí, ainda que lorde Rafe tenha me confessado que levava uma e um canivete .
Mary não se surpreendeu, quando haviam abandonado Pembrook, suas vidas
haviam estado em perigo. Normal não confiarem em ninguém.
— Esteve flertando com Keswick durante o jantar? — perguntou Alicia.
— Como? — O coração de Mary iniciou um galope tresloucado. Já corriam
muitos rumores sobre ela, devido a decisão de seu pai de não apresentá-la
adequadamente em sociedade, e, talvez, Fitzwilliam começasse a duvidar dela. —
Por que me diz isso?
— Você não deixava de olhar pra ele.
— Ele estava sentado à minha frente.
— E eu também, mas você pouco me olhou.
— Só queria me assegurar de que, com tudo isto que está acontecendo, ele se
sentisse a vontade.
— Me parece que lorde Fitzwilliam não gosta de Keswick.
— Nisso lhe dou razão, mas é porque não o conhece. Quando se conheçam
melhor, creio que serão bons amigos.
— Eu não estou tão certa. Creio que ele também se deu conta de que você
fitava Keswick.
— Não lhe dei nenhum motivo pra duvidar do meu afeto — ainda que Mary
não pudesse negar seu prometido se mostrara mais tranquilo e relaxado depois que os
irmãos se foram.
— Aqueles homens me fascinam. Parecem ser cavalheiros e, ao mesmo tempo,
parecem que não são. Eu me atreveria a dizer que parecem muito capazes de arruinar a
reputação de uma dama.
Com efeito, eram capazes. Mary acreditava que poderiam conseguir o intento
usando somente um olhar.
Sebastian se sentou junto ao fogo no escritório, saboreando um uísque para
tentar esquecer a lembrança da pele suave de Mary sob seus dedos. Havia sido uma
estupidez tocá-la.
A porta se abriu, mas Sebastian não separou os olhos do fogo enquanto ouvia as
passadas de Tristan se aproximando. Assim que chegara à casa, o duque havia enviado
a carruagem para buscar seu gêmeo.
— Deverias ter se limitado a jogar cartas. Desprezar sua importância.
— E não acha que isso teria envergonhado a moça?
— Não mais do que já estava. Era uma brincadeira, Sebastian. Não teve a
mínima importância.
Isso ele já sabia, mas ainda não havia chegado ao ponto de ser capaz de rir de
sua deformidade e, nem sabia se chegaria alguma vez.
— Que lhe pareceu Fitzwilliam? — Perguntou para desviar a conversa em outra
direção.
— Ele não me agrada.
— Por que não? — O duque contemplou seu gêmeo que olhava fixamente a taça
que estava em sua mão, como se pudesse ler seu futuro nela.
— Necessito um motivo? — Tristan levantou os olhos do copo.
— As opiniões costumam se basear em algo.
— Meu instinto.
— Acredita que ele fará Mary feliz?
— Creio que você a faria mais feliz — Observou seu irmão enquanto
cheirava o copo.
— Já quase não nos conhecemos.
—Ainda assim parece que você não consegue deixar de olhá-la — ele levantou
uma mão.
— Eu não o culpo. Ela é linda.
— É mais que isso. É preciosa.
—Você também se deu conta.
— Só estou meio cego.
— Aí está ! —Tristan sorriu. — Assim você deveria ter reagido durante o
estúpido jogo. — Sou meio atraente — E as pessoas teriam rido.
— Não me diverte que as pessoas riam de mim — Sebastian franziu o cenho.
— E por isso devemos rir de nós mesmos primeiro. Mas, claro, você sempre foi
o mais sério.
—Eu tinha mais responsabilidades.
— É verdade. — Tristan suspirou e ficou de pé. — Vou à casa de Rafe para
fazer um pouco de exercício. Acompanha-me?
— Não.
— Este lugar já não cheira tanto ao tio David.
— Os serventes têm trabalhado duro para mudar o cheiro. Talvez eles também
não gostassem do odor.
— Eu acredito mais que estão aterrorizados com você, o que nem sempre é
ruim — antes que Sebastian pudesse responder algo, seu gêmeo continuou. — Seu
homem conseguiu segui-lo?
— Sim. Está numa pensão nas cercanias de Londres.
— Pois não se afastou tanto. Aconselho que você durma com um olho aberto.
Foi evidente que Tristan lamentou suas palavras logo que saíram de sua boca,
mas Sebastian levantou a mão para deter qualquer tentativa de desculpa.
— Não precisa medir suas palavras comigo.
— Deveria ter sido você a embarcar e eu aquele que se alistou no exército.
—Talvez não mudasse nosso destino. Vi muitos marinheiros de um olho só.
Além disso, tenho certa tendência a ficar mareado.
—Está brincando. — Tristan fitou seu irmão.
— Temo que não. Passei quase toda a viagem na volta da Criméia até aqui,
com a cabeça metida num balde.
Tristan soltou uma sonora gargalhada. Mantinha as pernas separadas como se
estivesse no convés de um barco.
— Boa noite irmão.
E saiu da sala, deixando Sebastian na companhia de seus demônios interiores.
Capítulo 10

Durante a semana que seguiu seu regresso a Easton House, Sebastian se


manteve ocupado revisando e organizando os documentos que seu tio havia deixado
para trás. Aquele homem era um folgado e preguiçoso na hora de manter as contas das
cinco propriedades atualizadas. Contratara vários gestores e advogados para se
ocuparem dos mais variados aspectos, mas ali não reinava precisamente a ordem.
Sentado atrás da mesa, fitou Tristan jogado no sofá, lendo tranquilamente alguns
documentos encontrados numa caixa. Pareciam informes de vários supervisores, mas
Sebastian necessitava conhecer tudo sobre os assuntos mais importantes, no menor tempo
possível. Se não fosse por seu tio desajustado, ele teria ficado junto a seu pai e teria
aprendido todo o necessário para dirigir seus domínios. Ao contrário se via
obrigado a descobrir tudo por sua conta. Sentia-se agradecido porque seu irmão
havia decidido viver com ele, e ajudá-lo na monumental tarefa. Também era lógico
que Tristan se familiarizasse com tudo que fosse relacionado com os títulos e
propriedades. Afinal de contas, ele era o seguinte na linha sucessória.
E, se Sebastian não tivesse sucesso na busca de uma esposa, seria Tristan ou
seu filho, quem herdaria tudo, incluindo o título. O herdeiro, fosse quem fosse, deveria
ser educado e formado em todos os aspectos.
— Esta noite deveria me acompanhar à casa de Rafe — observou Tristan
distraidamente. — As mesas de jogo são excelentes.
— O que, suponho, quer dizer que ninguém o pegou trapaceando.
— No mar se pegar um homem trapaceando... — Tristan sorriu. Até quando
pequeno ele possuia inclinação para ditados. — ...tira-se sua vestimenta e o faz provar
do chicote de nove pontas.
— Foi isso o que lhe aconteceu? Acreditaram você culpado de trapaças?
Só havia visto as costas despidas de seu irmão uma única vez, quando
entrara no quarto dele sem bater à porta. Mas havia sentido a culpa lhe inundar o
peito.
As costas de Tristan pareciam ter sido esfaceladas e em mais de uma
ocasião, a julgar pela aparência das cicatrizes. Tristan se limitara a colocar a
camisa e a ordenar que seu irmão não entrasse mais sem bater.
— Isto é muito enfadonho — seu gêmeo jogou de lado os documentos que
estivera lendo. — Não sei por que nos incomodamos com isso.
—Porque não sabemos o que pode ter valor. E não me respondeu a pergunta.
Tristan se levantou do sofá, se aproximou da janela e contemplou os jardins
magníficos. Sebastian não podia repreender seu tio do modo como havia cuidado da
residência londrina. Tudo estava em perfeito estado e havia abundância de bebidas. Os
cavalos eram fortes e as carruagens cômodas. Nada estava descuidado. Exceto os
livros de contas. Sebastian carregava a sensação de que havia deixado passar algo
vital.
— Eu não estava acostumado a receber ordens — confessou Tristan por fim. —
Adorava uma boa briga. Possuia muita raiva dentro de mim e em um barco havia
poucos lugares para liberá-la.
— Sinto as penúrias que sofreu.
— A você resultava fácil seguir ordens?
— Juntava cada centavo que eu ganhava para comprar mina mudança de
patente — Sebastian sacudiu a cabeça, — para ser o que dava ordens, não o que as
recebia. E com o tempo assim foi.
— Aí está a resposta. Nascemos para sermos ociosos cavalheiros. —Tristan
abriu os braços. — E aqui estamos.
— E por que tenho a sensação de que você preferia estar em outro lugar?
—Porque aqui não há nem uma lufada de vento. Gosto de estar em pé no
convés do navio observando como o vendo enche as velas. Lá fora há liberdade. Aqui
tenho a constante sensação de que estou a ponto de ser aprisionado.
— Por nosso tio? — Ele havia sofrido ameaças? Havia descoberto alguém
escondido nas sombras? Sebastian estava em desvantagem porque só via o que estava
à sua direita.
— Não, por Deus! — bufou seu irmão. — Quem dera ele tentasse me fazer
algo. Não poderiam me culpar por agir em defesa própria — ele sacudiu a cabeça.
— Não estou certo do que me preocupa tanto. A ideia de sentar a cabeça, talvez. De ser
controlado.
— É uma mulher então. Alguma chamou a sua atenção?
— Todas chamam minha atenção — Tristan soltou uma gargalhada.
Sebastian era muito consciente de que Tristan também chamava a atenção das
mulheres. Durante os dias que haviam estiveram alojados na casa de Rafe, as garotas
haviam desfilado aos borbotões ao redor dele. Inclusive durante o jantar na casa de
lady Ivers, as jovens haviam olhado ao gêmeo do duque como se ele fosse a marca
favorita de chocolates delas. Sebastian não era invejoso, mas, sim, sentia falta do
entusiasmo com que as mulheres se jogavam em sua cama.
A porta se abriu e o mordomo entrou com uma bandeja prateada. O duque
se levantou da cadeira enquanto se perguntava quem teria vindo a sua casa.
— Chegou uma carta, Excelência.
Sebastian pegou o envelope e virou. O selo lacrado não levava escudo,
simplesmente o contorno de uma rosa.
O perfume chegou claramente ao seu nariz. Orquídeas. Havia se passado mais
de uma semana desde a última vez que havia sentido a deliciosa fragrância que Mary
usava, mas a reconheceria em qualquer lugar.
— Dispensado, Thomas. Eu o chamarei se precisar enviar uma resposta.
— Como queira senhor.
Sebastian esperou que o mordomo saísse antes de se sentar novamente. Em
todos aqueles anos, não havia mantido correspondência com ninguém e havia invejado
os homens que recebiam cartas de seus lares. Pegou um abridor de cartas e se deleitou
com o som que ouviu ao rasgar o envelope. Por último, sacou a folha e a desdobrou. E
leu:

É importante que nos vejamos em Rotten Row às quatro horas. Montarei um cavalo
castanho.
Sua amiga,
Sempre, Mary

Como se necessitasse conhecer a cor de seu cavalo para reconhecê-la. Seus


cabelos a delatariam antes. Inclusive recolhidos sob um gorro, seriam como um ímã
para seus olhos.
— Não saberia dizer se está contente ou preocupado pelo recado, —murmurou
Tristan.
— É de Mary. Quer se encontrar comigo no Hyde Park. Diz que é importante.
— Um pouco reticente. Alguma ideia sobre o que poderia ser importante?
— Não, ainda que tema que não seja nada bom, — Sebastian passou o dedo
pela delicada escrita. Perguntou-se se o encontro seria melhor que o anterior.
Esperava que não estivessem condenados a se separarem bruscamente.
— Talvez seja só uma desculpa pra vê-lo outra vez — opinou seu irmão. —
Quase não passava um só dia sem que vocês dois se vissem, e aqui só se viram poucas
vezes.
— Éramos crianças. E nos encontrávamos para brincar.
— Mas já não é uma criança, ainda que isso não signifique que não podem se
ver para brincar.
— Pelo amor de Deus! Falamos de uma dama — Sebastian repreendeu Tristan.
— Não faça insinuações.
— Me diga que não se interessa?
— Como amiga, claro que sim. Se falamos de algo mais... creio que não será
conveniente nem a um, nem ao outro — diante do gesto de incredulidade de Tristan,
Sebastian afastou o olhar. — Além do mais, ela está prometida.
— Os namoros podem ser rompidos.
— Não sem consequências.
— Então sim, você já havia pensado sobre isso...
— Não! — Maldito fosse seu irmão por colocar essa ideia na cabeça.
— Creio que ele a escolheu por seu dote. Seu pai foi bastante generoso. Os
cofres da família de Fitzwilliam não estão tão cheios como querem fazer crer aos
demais.
— E como você sabe?
— Nem todas realmente são damas, — Tristan sorriu. — E por mais que me
atraiam as garotas de Rafe, prefiro não pagar por meus prazeres. Despertamos
curiosidade e isso nos abre muitas portas ou, como no meu caso, muitas janelas de
alcovas.
— Aspiramos recuperar nossa posição, e comportamentos como o seu poderia
nos prejudicar.
— Me insulta, Sebastian. Sou muito cuidadoso e jamais me aproveitaria de uma
inocente. Mas eu juro, irmão que há muitas damas nada inocentes que morrem por
abraçar o perigo que eu posso lhes proporcionar. Você também poderia se divertir um
pouco.
— Já existe bastante escândalo envolvendo nosso nome. Não vejo nenhuma
razão para manchá-lo mais ainda.
— E eu não vejo nenhuma razão para que não possamos aproveitar nossa
notoriedade. Mas nos desviamos do assunto. Você estava interessado em Fitzwilliam.
— Não nele, propriamente dito, em sua... — como podia explicar? — Ele será
bom para Mary? A tia dela assegura que a linhagem dele é excelente, mas isso será
suficiente?
— Talvez devesse perguntar a ela quando encontrá-la.
Mary conduzia seu cavalo a trote por Rotten Row enquanto se recriminava por
não ter ido ao encontro no landau, para que sua prima e sua tia pudessem acompanhá-
la, mas Sebastian e ela sempre montaram a cavalo quando crianças. Não o vira desde a
noite do jantar e, mesmo que não lhe devesse nenhuma obrigação, sentia certa
consideração para com ele. Não era pena. Ele não suportaria. Percebera em seu gesto
quando ele não havia conseguido impedir seus olhos de lacrimejarem durante o baile
em que ele havia aparecido. Talvez fosse uma questão de caridade. Ainda que mesmo
isso não o agradasse.
Os lordes de Pembrook eram assunto das conversas, em todos os jantares, e
também haviam sido no baile da noite anterior. As damas de mais idade haviam falado
em como manter as filhas longe deles. As filhas haviam falado em como vê-los.
Alguém havia visto lorde Tristan entrar numa alfaiataria na Rua Regent. Outras vezes
era em uma loja de roupa para cavalheiros. Lorde Rafe parecia tão ermitão quanto
Sebastian, pois ninguém o vira.
Entendiam as restrições do duque de Keswick para se deixar ver, mas
discutiam sobre fazer os lordes saírem de sua guarida. Os que mais despertavam
interesses eram lorde Tristan e lorde Rafe.
Geralmente pediam conselhos a Mary, como se ela conhecesse detalhes íntimos
dos irmãos. Contudo, já não eram os meninos que ela havia conhecido, e não podia
proporcionar muita informação quando lhe perguntavam se, se deixariam conhecer
pela sociedade. Ainda que duvidasse que se deixassem conhecer, ela duvidava que
estivessem alegres por terem regressado. Não conheciam nem etiqueta, nem os rituais
de discrição não ensinados às crianças. A reputação podia melhorar, ou afundar, em
função de com quem se falava. A maneira de dançar, de rir, de vestir, tudo era
minunciosamente analisado e comentado. Uma dama devia colocar-se atrás, ao lado
ou à frente de uma planta? Devia parecer que desejava desesperadamente dançar, ou
se comportar como se não quisesse ser incomodada? Gestos triviais que possuiam uma
grande importância. Por experiência própria, Mary sabia que a sociedade podia causar
bastante medo, e suspeitava que até mesmo homens tão curtidos quanto os lordes de
Pembrook, logo descobririam.
Ainda assim, quando lady Hermione a havia encurralado na noite anterior para
pedir-lhe mais uma vez que intercedesse em seu favor para que os irmãos
comparecessem ao seu baile, decidiu que não aconteceria nada ruim, se transmitisse a
mensagem.
Viu Sebastian de longe montado em seu cavalo negro. De sua posição, ainda
que não visse suas cicatrizes resultava fácil identificá-lo. Seu porte sobre o cavalo era
magnífico e montava com confiança. Ainda que não soubesse de quem se tratava, teria
identificado ele como um lorde. Seu porte ereto exalava confiança, de um homem que
sabia que lugar ocupava alguém a quem não se devia faltar com o respeito. Ainda
menino, já montava com essa elegância. Resultou reconfortante comprovar que nem
tudo havia mudado.
Sebastian guiava o cavalo até ela, como se a tivesse visto no momento que
entrou no parque, como se soubesse exatamente aonde encontrá-la. Ela deteve seu
cavalo ao se aproximarem. Com as rédeas em uma mão, Sebastian levou a outra ao
chapéu e ela supôs que ele se sentia mais a vontade ocultando o rosto. Tal e como
havia feito em cada um de seus encontros, ele havia se assegurado de oferecer-lhe a
visão de seu lado bom.
— Lady Mary.
— Excelência — ela desejava vê-lo sorrir diante do tratamento, ouvir seu riso
ressoar pelo parque.
— Disse que era urgente que nos encontrássemos.
—Talvez eu tenha exagerado um pouco — Mary ruborizou e o fitou com jeito
travesso, — mas estava com medo de que, se me limitasse a pedir que nos víssemos,
você encontraria uma desculpa para que não acontecesse.
Sebastian revirou o olho e apertou a mandíbula. Se não a conhecesse desde
criança, ela poderia ter sido intimidada.
— Desta forma sua nota foi uma artimanha?
— É pra seu próprio bem. Suponho que não acredita que bastaria comparecer
ao jantar de minha tia para ganhar um lugar na sociedade. Precisa se deixar ver.
Damos um passeio?
— Prefiro montar.
— Montemos, pois — Mary dissimulou sua decepção. Caminhar facilitava a
conversação, mas por outro lado, ir a cavalo seria melhor à sua reputação.
Fez seu cavalo resgatar a marcha. Em lugar de dar meia volta com o seu,
Sebastian o conduziu ao seu redor até se colocar ao lado dela com o lado bom do
rosto. Mary se irritou por ele a considerar tão superficial.
— Suas cicatrizes não me assustam.
— Mas não há motivos pra lhe obrigar a suportá-las se existe alternativa.
— Você é muito obstinado.
— Aprendi com você.
— Excelência, eu creio que foi você quem me ensinou a ser obstinada — Mary
soltou uma gargalhada. — Eu era bastante submissa quando criança.
— Jamais, você foi submissa, nem sequer por um instante, desde que nossos
passos se cruzaram.
Ainda que as palavras lembrassem uma brincadeira, o tom de voz não condizia.
Como se Sebastian estivesse se obrigando a cumprir um papel que não se encaixava
totalmente com ele.
—Não permita que seu desconforto durante o jogo de salão lhe impeça de
participar de outros eventos — ela observou com tranquilidade.
— Não impedirá. Tenho estado muito ocupado organizando meus assuntos.
— Por exemplo? — Ela o desafiou.
Sebastian apertou a mandíbula. Era evidente que ele não desejava dar
explicações, mas sua longa amizade a impelia a meter-se em seus assuntos. Devia e
bem mandaria qualquer outro ao inferno, jamais o faria com ela.
— Se tanto lhe interessa, meu tio comprou várias coisas a crédito — lhe
explicou sucintamente.
— A maior parte da aristocracia faz assim. — O pai de Mary pagava a seus
credores anualmente.
— Sim, bem, pois a mim não agrada esse costume. Informei aos credores que
não receberiam mais dinheiro da casa de Keswick para abonar qualquer coisa que ele
tenha comprado.
— Ele possui seus próprios fundos?
— Não acredito. Atualmente ele vive numa zona de categoria pouco superior a
miserável — ele a fitou. — Suponho que considerará que careço de compaixão.
— Não, claro que não. Creio que tenha o direito de se mostrar duro ao que a ele
se refere. Mas, me perguntava… — Mary se interrompeu. Não lhe resultava fácil dizer
o que estava em sua mente.
— O que, Mary? O que se perguntava?
— E se eu entendi mal? — Ela se obrigou a olhá-lo. — E se ele falava de
sacrificar alguns pombos para o jantar do dia seguinte? Não sei. Por que esperou tanto
para reivindicar o título?
— Para evitar que alguém suspeitasse se seu jogo sujo — Sebastian a observou
atentamente. — Exatamente, o que você ouviu naquela noite?
Tudo parecia tão distante. As recordações se haviam misturado com o tempo e,
ainda assim, as palavras regressaram a sua mente como se acabasse de ouvi-las,
minutos antes.
— Alguém disse: ―os meninos, milorde, já estão na torre. O que quer que se
faça com eles?‖. E depois, ouvi seu tio responder: ―pois, mate-os, é claro‖, e ele riu.
Poderia ter sido uma brincadeira? Meu pai não acredita que falou sério. Quem dera eu
soubesse com quem ele falava.
— Eu diria que com um dos homens que nos levaram à torre. Não vi
nenhum deles depois que regressamos. |Deveria consultar o registro de
empregados contratados e despedidos, para ver se consigo averiguar o que
aconteceu com eles.
— Quantos eram?
— Quatro. Nós os acompanhamos como cordeirinhos. Seguíamos aturdidos
pela morte de nosso pai. Até que a porta da torre se fechou e ouvi a chave girar na
fechadura não havia compreendido que algo ruim estava acontecendo. Não sei como
não me dei conta antes.
Mary contemplou a vegetação que os rodeava. Ali se respirava muita paz e não
resultava fácil acreditar que houvesse maldade no mundo.
— E por que acredita que seu tio queria machucá-los?
— Deveria ter suspeitado. Mas até que chegamos à torre nem sequer me ocorreu
que talvez, ele tivesse matado meu pai.
— Não acredita que seu pai morreu em uma queda acidental do cavalo? —Mary
o fitou boquiaberta.
— Você golpeou a cabeça de um guarda e não era mais que uma criança —
Sebastian a olhou fixamente.
— Mas ele não morreu. No dia seguinte regressei a Pembrook para assegurar-
me de que ele estava bem, e o vi andando por ali.
— Você se dá conta da imprudência que cometeu? — Ele a repreendeu.
— Eu precisava saber. Não conseguiria me perdoar se o tivesse matado.
— Diferente de meu tio que parece perfeitamente capaz de conviver com isso.
— Você possui alguma prova de que ele matou seu pai?
— Não, unicamente suspeitas.
— Talvez, você nunca consiga provar, Sebastian.
— Tenha consciência disso, mas não descansarei até ele que pague por seus
atos.
Mary compreendeu que havia se distanciado do propósito daquele encontro.
Sentia os olhares sobre ela e imaginou as especulações que se haviam desatado.
Tempo atrás, ela não teria se importado, mas agora sua reputação se estendia também
para Fitzwilliam e ela não faria com que ele se arrependesse de ter pedido sua mão.
Jamais faria nada para envergonhá-lo. E, contudo, ali estava flertando com o fio da
navalha. Não lhe restava a menor dúvida de que alguém o, informaria de tê-la visto no
parque cavalgando com Keswick. Ela havia permanecido muito tempo ali.
— A condessa de Weatherly celebra um baile esta noite — lhe informou Mary.
— Sei que você recebeu um convite — lady Hermione o fez chegar por meio de um
serviçal, apesar das objeções de sua mãe. — Você e seus irmãos deveriam se fazer
presentes. Ainda que seja só por um momento.
— Continua cuidando dos irmãos Easton, Mary?
— Alguém precisa fazer. Do contrário, vocês estariam com problemas. Seu tio
teve doze anos para fazer amizades e ganhar confiança entre as pessoas importantes.
Existem pessoas que não se impressionaram com a sua reivindicação.
— Não tenho necessidade de impressionar ninguém. A lei está do meu lado.
— Mas a sociedade não — Mary falou bruscamente. Quem dera ela soubesse
dizer aquilo mais suavemente. — Suponho que, em algum momento, você e seus
irmãos vão querer se casar. Com certeza querem ter filhos. Se a sociedade não os
aceitar, pouco importará o título. Sua família sofrerá o escândalo e as fofocas.
— Estou muito ocupado atendendo outros assuntos.
— Sim, já me disse, mas não pode utilizar essa desculpa para ignorar esse
aspecto de seu título. Precisa ser bem considerado.
— Insinua que eu não sou?
— Ninguém o conhece, Sebastian. Todos especulam, fofocam. Chegam a suas
próprias conclusões. E, ainda que a meu pesar, devo admitir que não são admiráveis.
Desgraçadamente, não estive em Londres tempo suficiente para conseguir crédito para
que minhas palavras de apoio sobre vocês tenham algum peso.
— E o seu prometido? — Sebastian se sentiu muito tenso. — As palavras dele
tem peso?
— Não tanto como terão quando ele herdar o título de seu pai.
— Fitzwilliam — ele pareceu hesitar antes de falar. — É um bom homem?
— Acredita que sou tão tola para escolher um homem ruim? — Ela o
repreendeu com fingido enfado.
— Suponho que tenha sido uma pergunta sem sentido — os olhos azuis
transmitiram um brilho, como se tivesse tentado parecer engraçado, mas não soubesse
como proceder. — Sempre me agradou lhe provocar.
— Temi que você tivesse se esquecido de mim — Mary sempre ficara
encantada de fazer as coisas com ele.
— Com esse cabelo vermelho? Como alguém a esqueceria?
Mary se surpreendeu com a desilusão que sentiu ao ouvir suas palavras. Ficaria
satisfeita ao saber que ele se lembrava dela por algo mais do que a cor de seus cabelos.
Ficaria contente que se recordasse dela por sua personalidade, mas, sobretudo, gostaria
que lembrasse, dela, por se entenderem bem, por sua estreita amizade, pelas risadas
compartilhadas, pelo beijo proibido. Seria encantador, ouvi-lo dizer que sentira falta
dela tanto quanto ela sentira dele. E compreendeu, então, que seus pensamentos
estavam se tornando perigosos. Desde quando se convertera numa egoísta, desejosa de
ser o centro da vida de Sebastian? Ela já não poderia ser o centro de sua vida.
— Temo que permaneci demasiado tempo aqui. Por favor, pense em
comparecer ao baile dos Weatherly. Reservarei uma dança para você.
Mary não sabia porque havia pronunciado as últimas palavras. Sebastian não
lhe dera o menor sinal de que pudesse se interessar por uma oferta assim, e começou a
se envergonhar de ter dito. Além disso, estava comprometida e qualquer tipo de flerte
era inapropriado. Antes que ele pudesse se dar conta de que ela ficara rubra, açulou
seu cavalo para um trote rápido.
Não o havia convidado para que dançasse com ela. Havia feito apenas para
tentar assegurar-lhe um lugar na sociedade, entre seus iguais, de um modo civilizado.
Ainda assim, uma parte dela não conseguia evitar esperar que ele aceitasse seu convite
para dançar.
Capítulo 11

Comparecer naquele maldito baile fora um erro, compreendeu Sebastian quase


imediatamente. Ainda que não houvesse nenhum mordomo para anunciar os
convidados, quando os irmãos chegaram, fez-se um silêncio estrondoso. As mães
pegaram suas filhas e os pais deram um passo à frente para construir um muro
invisível ao redor delas.
Os anfitriões, lorde e lady Weatherly, se aproximaram cautelosos. Com eles,
estava uma jovem beleza loira que resplandecia excitada, com o olhar cravado em
Tristan. Sebastian se censurou ao pensar que ele mesmo teria conseguido despertar
aquela reação. Além de ser muito atraente, ele possuía um título. Teria sido ele o
irmão mais solicitado, não seu gêmeo. Contudo, Mary estava com a razão: seu
regresso à sociedade passava por se mostrarem. Mesmo Rafe, apesar de todos os seus
protestos, havia reconhecido a importância de comparecer ao baile.
Os três estavam impecavelmente vestidos com fraque, camisa branca e gravata
negra. A única coisa que os diferenciava era o colete. Sebastian vestia colete cinza,
Tristan, um azul marinho e Rafe usava um verde. Seu criado havia aparado seu cabelo,
mas continuava demasiado longo para a moda. Seus irmãos também haviam aparado
os cabelos, ainda, que tampouco, estivessem de acordo com a moda.
— Excelência — saudou friamente lorde Weatherly. — Milordes. Sejam bem-
vindos a Camden House.
— Sentimo-nos honrados por termos sido convidados — lhe assegurou
Sebastian.
— Foi um prazer — lady Weatherly se voltou bruscamente para a loira,
presumivelmente sua filha, que se ruborizou violentamente antes de fazer uma
reverência.
— Desculpe meu atrevimento, lorde Tristan, mas me permiti reservar-lhe uma
dança diante da previsão que comparecesse ao baile.
— Agradam-me as mulheres atrevidas — respondeu Tristan, acompanhando
as palavras dela, com um sorriso travesso.
Lorde Weatherly apertou a mandíbula e sua esposa deu um salto.
— Sou lady Hermione — continuou a filha.
— Estou desejoso de sussurrar seu nome.
A mocinha parecia ao ponto de desmaiar e seu pai parecia prestes a esbofetear
Tristan. Ou, ao menos, tentar. Sebastian duvidava que o homem conseguisse alcançá-
lo antes que seu irmão o jogasse no chão.
— Milorde… — começou lorde Weatherly.
— Referia-me unicamente, durante a dança, com certeza — Tristan o
interrompeu. — E a dança quando será, milady?
— Dentro de duas músicas.
— Conterei a respiração até então.
Com uma rápida reverência, a jovem escapou agitando as mãos a tal velocidade
que não necessitava de leque.
— Tranquilize-se, Weatherly — Sebastian se dirigiu a seu anfitrião. — Ela é
demasiado jovem para meu irmão, e já temos bastante escândalo na família para
provocar mais um.
— Não é nada além de um flerte inocente, Weatherly — lhe assegurou Tristan.
— Se desejam que os apresente… — lady Weatherly interrompeu a conversa
ao observar a expressão tensa de seu esposo.
— Tenho certeza de que nos arrumamos por nossa própria conta — Sebastian
suspeitava que a mulher, tampouco, estava com muita vontade de apresentá-los. — Já
vi alguns rostos familiares — não fazia nem ideia de quem, demônios, seriam aquelas
pessoas, mas recordava-se de tê-las visto no baile de seu tio. E também haviam
algumas que havia conhecido no jantar da casa de lady Ivers. Aquela mulher os
ajudara muito.
Lady Weatherly não poderia ter parecido mais aliviada diante das palavras dele,
salvo se lhe houvessem anunciado sua partida. Depois de fazer uma reverência aos
anfitriões, passou pela frente deles e adentrou ao salão, onde localizou um canto em
que poderia se ocultar entre as sombras.
— Bem, parece que voltamos a chamar atenção — murmurou Tristan
laconicamente.
— Não somos conhecidos e despertamos curiosidade — contestou Sebastian
enquanto percorria o salão com o olhar.
Um homem se aproximava dele. Diferente dos demais convidados, não parecia
nem curioso, nem intrigado, e sim muito confiante. Estava com os cabelos negros,
perfeitamente arrumados. À medida que ele se aproximava os olhos cor de esmeralda
chamaram a atenção de Sebastian. Já o vira antes.
— Keswick — o homem deteve-se diante dele. — Milordes…
— Eu sinto cavalheiro — Sebastian sacudiu a cabeça. — Me resulta familiar,
mas…
— Ainsley. Nossos caminhos se cruzaram no Eton, há alguns anos.
— Só estive ali um ano. Não é possível que me recorde.
— Devo admitir que possuo dúvidas que os tivesse reconhecido se alguém não
me houvesse assinalado. Soube que lutou na Criméia.
— Com efeito.
— Meu irmão regressou no outono passado para se recuperar de suas feridas.
Um assunto diabolicamente horrível. Alegro-me que ele regressou para casa.
— Agradeço Ainsley — Sebastian se perguntou se Ainsley realmente havia
ouvido tudo. Com certeza sim, ele não parecia dos que especulavam ou fofocavam.
— Se me desculparem cavalheiros, devo partir.
— A noite é uma criança — observou Rafe.
— Não costumo comparecer a esse tipo de evento, mas quando o faço, saio
logo após a primeira dança. Assim há menos perigo de infundir esperança nas mães.
Cavalheiros — o homem saiu do salão de baile sem deter-se outra vez.
— Ainsley? —murmurou Tristan.
— Um duque extremamente rico e poderoso — explicou Rafe.
— Suponho que você conheça a todos — insistiu seu irmão.
— A quase todos. Alguns pertencem ao meu clube, ainda que não seja o caso de
Ainsley. O fato de ter falado com você lhe proporcionará prestigio.
— E atrasou a minha busca pela encantadora lady Hermione — queixou-se
Tristan. — Se me desculparem, creio que está quase para iniciar a nossa dança.
— Tome cuidado com ela, Tristan — ordenou Sebastian. — É uma dama, não
uma perdida.
— Não sou tão bárbaro como pareço. Sei que esta noite nos julgarão por nossas
ações.
— Não pretendia insultá-lo.
— Não tomei como um insulto.
Mas Sebastian via claramente a mentira nos olhos de seu gêmeo. E enquanto
Tristan se afastava, pensou que a última coisa que precisava, era provocar uma
discussão com a única pessoa que parecia compreender, plenamente, a importância do
que estavam fazendo. Não, isso não era totalmente exato. Mary também fazia uma
ideia bastante aproximada.
— Creio que vou procurar o salão de jogos de mesa — anunciou Rafe.
— Precisamos conversar.
A ponto de se afastar, Rafe se deteve e fitou seu irmão.
— Quero que me conte o que aconteceu enquanto estive ausente — começou
Sebastian. — Talvez, quando terminar a festa você possa passar em Easton House para
tomar um drink e conversar um pouco — Rafe não havia regressado a casa desde a
manhã em que seu irmão havia tomado posse dela.
— Não creio que sirva de alguma coisa que saiba de tudo, e suspeito que
minha companhia seria insuportável. Ficarei o tempo necessário para causar boa
impressão, perdendo uma modesta soma de dinheiro.
— Pode garantir que perderá?
— Posso garantir qualquer resultado que você deseje. Mas os homens seriam
mais magnânimos conosco se não lhes esvaziarmos os cofres. Quando terminar,
partirei.
Sebastian deixou que seu irmão se fosse, sem fazer nenhuma objeção. E então
viu o verdadeiro motivo de sua presença ali. Mary. Queria vê-la usando mais uma vez
um traje de noite. Queria vê-la dançar, ver o brilho chegar ao seu olhar enquanto se
divertia.
Como sempre, a cor de seus cabelos o enfeitiçou. Trazia os cabelos recolhidos
num coque, deixando o gracioso pescoço de cisne descoberto. Tudo nela era gracioso.
Já não era a menina que havia corrido com ele pelos campos, que escalara nas árvores
ou que o havia desafiado a entrar num ninho de texugo. Graças a Deus o texugo não
estava lá dentro.
Ela o havia tentado com coisas de meninos, mas agora o tentaria com coisas
bem mais sérias. Coisas que não deveria desejar dela, que não merecia receber dela.
Mary merecia a elegância dessa vida. Os bailes e as noitadas. As damas se detinham
para trocar palavras com ela. Era solicitada, apreciada, amada. Um cavalheiro a fitou
com admiração. Como não admirá-la? O vestido rosa pálido com detalhes em verde
esmeralda deixava os ombros e o começo do decote descobertos, e se ajustava na
cintura diminuta. As luvas brancas de cetim chegavam acima dos cotovelos. Sebastian
recordou vagamente dos braços esbeltos. Prova evidente que haviam se transformado
em algo muito mais sedutor.
Outras três damas se uniram ao grupinho das fofoqueiras em torno de Mary.
Sem dúvida, falavam de algum escândalo. Uma apontou com o leque, para o grupo de
indivíduos que dançava, entre eles, Tristan e lady Hermione. Não se podia negar que
seu irmão sabia se mover-se na pista de dança, mas também era evidente que segurava
a dama com excessiva firmeza. Por outro lado, ela não parecia objetar e o fitava com
um sorriso resplandecente que teria bastado para iluminar todo o salão no caso de um
apagão.
―Cuidado, Tristan‖, Sebastian murmurou uma silenciosa advertência para seu
irmão. ―Se não tiver cuidado, vai se encontrar com uma pistola apontando para sua cabeça
e um ministro da igreja em sua frente‖.
Essas não eram as garotas de Rafe, que não esperavam nada de um cavalheiro,
fora um rápido amasso. Não, essas damas esperavam, e mereciam, tudo.
Outro leque apontou para ele e devolveu sua atenção para o grupo de
senhoritas. A dona do leque o abriu e ocultou o rosto atrás dele, como se estivesse
envergonhada por ter sido pega num comportamento tão pouco refinado. Ou, talvez,
havia se assustado com o olhar do duque. Sem dúvida, a jovem estava mais a vontade
com a fofoca, quando o objeto de seus comentários não lhe prestava atenção. Não
reconheceu nenhuma das damas do jantar. Havia muitas pessoas para conhecer.
Mary se virou para ele e sorriu. Sebastian ficaria encantado de saber que o
sorriso era de prazer por tê-lo visto, mas era bem mais provável que estivesse
relacionado com algum comentário feito por uma das moças. Depois de trocar
algumas palavras a mais, Mary avançou até ele. Sebastian rezou para que ela não fosse
reclamar sua dança.
Para Mary, as cicatrizes que atravessavam o rosto de Sebastian eram o símbolo
da coragem. Mas era evidente que ele pensava de outro modo, pois, como costumava
fazer sempre que se viam, ocultou o lado esquerdo entre as sombras. O que ele não
conseguia ocultar era a largura de seus ombros ou a força de sua mandíbula. Não
podia ocultar sua régia linhagem ou sua impaciência. Notava-se que estava ali por
obrigação, por uma missão. Necessitava transmitir uma mensagem.
O duque de Keswick reivindicara o que lhe havia sido roubado, mas Mary não
podia evitar sentir que Sebastian ainda não havia conseguido tudo. Os títulos, sim. As
terras, a residência de Londres. Mas faltava muito mais, algo que não se podia definir
facilmente. Temia que isso lhe fosse negado. Por isso lhe havia sugerido que
comparecesse ao baile daquela noite. Mas não lhe servia de nada esconder-se pelos
cantos e assustar jovens donzelas.
— Não pensei que você fosse tão tímido — ela declarou quando parou na frente
dele.
— Estava reconhecendo o terreno.
— Pois a intensidade com que você faz isto resulta bastante intimidante. As
jovens não se atrevem a pedir para serem apresentadas. Tem medo que você morda,
ainda que eu as tenha assegurado que somente ladra.
Não havia um rastro de brincadeira em sua voz. Quando ele desaparecera de
sua vida, Mary temera que Sebastian tivesse perdido sua alma e seu coração. Supunha
que ele possuia bons motivos para sentir amargura, e isso fazia com que não fosse um
bom candidato a ter companhia.
— Deveria tentar suavizar seus gestos. Até os lordes se mostram desconfiados.
— E, contudo, aqui está você, enfrentando ao ogro.
— Você não é nenhum ogro. Um pouco reservado, o que é compreensível, dadas
as circunstâncias. Existe alguém que gostaria que eu lhe apresentasse?
— Esta noite me limito a observar.
— Isso não servirá. Quem sabe se sentirá mais a vontade quando dançarmos.
— Não tenho nenhuma intenção de dançar.
Mary tentou dissimular o efeito que a rejeição dele lhe produzia, o muito que
havia sonhado em ter uma desculpa para estar perto dele. Quando crianças
costumavam dançar com entusiasmo nas feiras do povoado, mas apenas davam as
mãos e se punham a correr em círculos. Perguntava-se se ele lembrava disso.
— Que pena! Havia reservado uma valsa.
— Peça ao Tristan. Parece estar muito a vontade dançando.
Ela olhou à pista de dança e o viu dançar com sua prima, lady Alicia.
— Minha prima sempre se queixa de como são aborrecidas essas noitadas.
Suspeito que esta noite não vai reclamar. Espero que ele cuide bem dela. Parece
entusiasmada.
— Me agradaria poder tranquiliza-la, mas não posso dizer que confio
plenamente, no caráter de meu irmão.
Mary se virou e encontrou o olhar fixo de Sebastian. Enquanto ela estivera
olhando os jovens que dançavam, ele estivera olhando para ela. A sensação era muito
estranha. Sebastian não flertava, mas a intensidade de seu olhar fazia sua mente se
desviar até pensamentos proibidos. E se ele não houvesse partido? E se doze anos
atrás, o destino não os tivesse separado? Seus caminhos voltaram a se encontrar, mas o
encontro não estava sendo fácil como um passeio no bosque. Parecia mais o choque
entre um prado luminoso e uma montanha rochosa. Estranha analogia surgida em sua
mente, e que produziu uma sensação de que a vida nunca seria simples para Sebastian.
Outra coisa mais que ele havia perdido.
— Seus irmãos lhe resultam tão estranhos como o resto de nós? — Ela
perguntou.
— Em alguns aspectos — com certo embaraço, Sebastian concordou
solenemente. — Colocou a gargantilha.
— Sim — Mary levou a mão ao pescoço. Ela havia escolhido o vestido para
acentuar a beleza da esmeralda, consciente de que também ressaltava o verde de seus
olhos. —É preciosa. Peço desculpas por não ter agradecido a você e aos seus irmãos
pela amabilidade.
— Não poderíamos deixar de lhe presentear pela coragem que mostrou. — ele
soltou uma triste risada, que não veio acompanhada de nenhum sorriso.
—Suspeito que você encontraria um modo de frustrar os planos do seu tio.
— Disso nunca saberemos. Graças a você.
Sebastian negava sua própria inteligência em beneficio dela. E, entretanto, ela
havia atuado sem nenhum plano, sem refletir. Ainda assim, não podia queixar-se dos
resultados. Eles estavam ali.
— Querida.
Mary se virou para a voz familiar e sorriu, censurando-se pelas especulações
que lia nos olhos de Fitzwilliam. Havia ficado mais que o tempo que o tolerável
conversando em separado com Sebastian. Não era um comportamento digno de uma
mulher comprometida e não queria que ele duvidasse de sua lealdade.
— Fitzwilliam.
— Vim reivindicar minha dança.
— Sinto muito, me distraí. Não sei o que faria se você não estivesse contando.
Seu prometido não sorriu ante o tom de brincadeira e Mary não podia culpá-lo
por isso.
Ela se virou para Sebastian e lhe dedicou um olhar significativo. Com certeza
ele entenderia a necessidade de saudar Fitzwilliam.
— Fitzwilliam — Sebastian assentiu.
— Excelência. Atrevo-me a confessar-lhe que estava disfrutando de um jogo de
cartas até que seu irmão me deixou sem banca. Ele parece ter muita sorte com as
cartas.
— Todos temos algo em que nos destacamos.
A tensão entre os homens poderia ser cortada com uma faca. Mary duvidava
que Sebastian se mostrasse desconfiado de quem não tivesse sido despojado de sua
fortuna e posição na sociedade. Quanto a Fitzwilliam, estava com ciúmes?
Sinceramente não sabia se deveria sentir-se adulada ou irritada.
— Faz muito mais que se destacar — insistiu Fitzwilliam.
— Se o está acusando de algo, fale claramente.
A tensão continuava subindo. Mary pousou uma mão sobre o braço de seu
prometido para recordar-lhe de sua presença. Ele estava com os músculos duros como
pedra. Sebastian não lhe agradava, era evidente, mas era esperto o bastante para não
esquecer a agilidade com a qual havia se movido até seu tio naquela noite ao sentir-se
ofendido por suas palavras.
— Não era mais do que um elogio — Fitzwilliam disse, por fim ,enquanto
começava a relaxar.
— Direi ao meu irmão.
— Por favor, faça-o. E, agora se nos desculpa, chegou minha parte preferida da
noite.
— Alegra-me tê-la visto novamente, lady Mary — Sebastian se virou para ela.
— O prazer foi meu, Excelência. Espero que reconsidere sobre a dança. As
damas sempre são mais numerosas que os cavalheiros. Tenho certeza de que não lhe
faltará parceira de dança.
— Estava tentando convencê-lo a dançar? — Fitzwilliam levou Mary antes que
Sebastian pudesse responder.
Ela percebeu claramente o ciúme em sua voz e supôs que não podia culpá-lo por
sentir-se assim, ainda que uma dama prometida, até mesmo casada, pudesse dançar com
outros homens.
— O que eu tentava era que ele deixasse de formar parceria com as plantas. Ele
não se sente a vontade aqui.
— Não vejo por que deveria se preocupar com isso. Age como se tivesses
adotado um animalzinho abandonado. Primeiro se assegura de que sua tia o convide pra
jantar e depois para esta noitada.
— O convite para este baile foi ideia de lady Hermione.
— Afirma que não teve nada a ver com a presença dele aqui? Insinua que o
encontrou casualmente no parque e que não foi uma tentativa de convencê-lo de que
viesse hoje?
Ele sabia? Claro que ele sabia. Em Londres nada ocorria que não fosse
amplamente comentado.
— Estava fazendo um favor para lady Hermione.
— Ela queria que ele viesse?
— Ela queria que lorde Tristan viesse. Mas eu sabia que ele só viria se Keswick
viesse também.
— E é evidente que você sente maior inclinação pelo duque do que por seu
irmão.
— Somos amigos de infância. Você já sabia disso. E também sabe que é
imprescindível que ele se deixe ver nestas noitadas para ser aceito.
— Continuo sem entender por que isso importa a você.
— Por nossa amizade. Compartilho as preocupações de meus amigos, sejam
homens ou mulheres.
— Pois não esqueça que me pertence — Fitzwilliam a tomou pelo braço sem
separar os olhos dos dela.
— Nunca havia se mostrado tão possessivo — ela o olhou com olhos
arregalados.
— Peço-lhe desculpas. Com você o ciúme aparece. Temo que isso não me
enaltece.
— E também é bastante competitivo. Suspeito que não lhe agradou perder
dinheiro na sala de jogos.
— Meu único consolo é que não fui o único. Esses irmãos são uns lordes bem
atípicos.
— Tampouco tiveram uma infância com experiências típicas.
— Seu coração é demasiado brando, Mary. Tenha cuidado ou ele será rompido.
A advertência havia chegado muito tarde, pois seu coração já sofria por
Sebastian enquanto ela se perguntava como podia fazer com que ele se sentisse mais a
vontade. A vida havia colocado muitos obstáculos no caminho dele. E, ao que parecia,
ainda não havia terminado.
Capítulo 12

Sebastian admitiu com relutância que gostara de que Mary sorrisse, bem pouco,
enquanto dançava com seu prometido. Ele havia se tornado um bastardo egoísta. A
relação de Mary com Fitzwilliam não representava nenhum perigo para a amizade que
possuiam desde crianças.

— Encantadora, não é verdade?


A doce voz vinha de seu lado esquerdo e Sebastian maldisse a mulher por
abordá-lo pelo seu lado cego. Quanto tempo estaria ali lhe observando? Com grande
dificuldade para controlar sua irritação, ele se virou para conseguir vê-la.
Imediatamente, lamentou seu enfado.
— Lady Ivers — tomando a delicada mão enluvada, ele lhe beijou as pontas
dos dedos.
— Por que desperdiça seus encantos com uma velha como eu? — A condessa se
ruborizou. —Por que não está dançando?
— Não é tão velha.
— Bobagens — a mulher devolveu sua atenção ao salão de baile abarrotado.
Sebastian desejava fazer o mesmo, mas, se girasse a cabeça, deixaria de ver a
tia de Mary.
— Evitou a minha pergunta — ela insistiu.
— Há muitos anos que não danço.
— Isso não se esquece. Formam um casal interessante, não é verdade? Minha
sobrinha e Fitzwilliam.
— Por acaso não o aprova? — Sebastian achou curiosa a escolha de palavras de
lady Ivers.
— Claro que não o desaprovo. Mas os observei durante o jantar da outra noite.
Entre você e Mary existe algo.
— Amizade — ele se apressou a responder.
— Uma boa base para um matrimônio.
— Ela está comprometida.
— Sim, está, e a seu pai agrada, mas temo que ele só busca segurança para sua
filha. Como bem sabe, o sobrinho dele herdará tudo quando meu cunhado morrer. E
creio que ele não confia na fortaleza do caráter dele, ou em sua generosidade.
Winslow teme que lhe reste pouco tempo neste mundo. Seu irmão morreu aos trinta e
oito anos. Seu pai morreu aos quarenta. Não me alegra falar disso, mas em sua família
os corações não são muito resistentes. Ainda assim, minha irmã viu nele alguém digno
de amar. Expliquei a Winslow que não necessitava se apressar em casar Mary. E la
s empre terá um lugar em minha casa, mas eu creio que ele deseja vê-la assentada. E
Fitzwilliam vem de uma boa família. Ela será feliz, estou segura. E, se não o for, seu
marido terá de ver-se comigo.
— Mary é afortunada por ter a senhora como defensora — Sebastian cada vez
gostava mais dessa senhora.
— Sou eu a afortunada por tê-la como sobrinha — a condessa lhe deu uma
palmada no braço. — Não permita que as velhas fofoqueiras lhe impeçam de desfrutar
dessa noitada. Se há algo de que tenho certeza é de que um cavalheiro que vestiu
uniforme sempre será um bom dançarino.
Mas não quando possuia a visão comprometida.
— Tente Excelência.
Durante um momento, Sebastian temeu que a mulher estivesse insinuando que
ele a convidasse para dançar, mas, depois de dar-lhe outra palmada no braço, se
afastou. Sem dúvida em sua juventude havia feito muitos homens virarem a cabeça.
Tal como Mary fazia.
Ao voltar-se para o salão, ele rangeu os dentes. Pois viu que Mary estava nos
braços de Tristan, dançando elegantemente ao ritmo da música. Seu irmão estava
triunfando entre as damas. Não deveria incomodá-lo tanto que ele dançasse com Mary.
Tristan a conhecia bem melhor que a qualquer outra dama. Mas não lhe agrava ver
como ele a fitava com olhos embriagados. De repente os olhares dos irmãos se
encontraram e Sebastian leu claramente a mensagem de seu gêmeo.
―Atreva-se a nos interromper‖.
Maldito fosse!
Lady Ivers estava certa, os soldados eram conhecidos por dançar bem.
Sebastian sempre havia considerado uma besteira. O lugar de um soldado estava no
campo de batalha, mas dele se esperava que refletisse sua glória na pista de dança.
Havia dançado com muitas damas bonitas. Inclusive havia desfrutado, mas ter Mary
em seus braços seria sem dúvida uma experiência que superaria todas as demais. Seria
muito difícil dançar uma valsa sem fazer grandes giros? Quem sabe poderia
reivindicar para si um pedacinho da pista.
A tia de Mary havia lançado a luva, bruxa astuta. Ela continuava olhando-o,
desafiando-o. Uma dança. Sim, ele sobreviveria a isso.
Afinal de contas havia sobrevivido à carnificina da guerra.
Depois de dançar com Tristan, Mary se retirou a um canto para falar com lady
Alicia. E falou, e falou, e falou com ela. Parecia ter encontrado seu lugar no mundo e
ter a intenção de ficar ali para sempre.
Apesar da sensação de incômodo que o dominava, Sebastian endireitou os
ombros e avançou como se fosse ao encontro do inimigo. Cedo ou tarde teria que falar
com lady Alicia. Melhor falar o quanto antes.
Antes de chegar até Mary, ela se virou e sorriu. Sem dúvida, sua prima lhe
havia avisado de que se aproximava.
— Excelência — saudou Mary.
— Lady Mary — ele inclinou ligeiramente a cabeça. — Lady Alicia.
— Excelência — respondeu a prima de Mary com um ligeiro tremor na voz
enquanto as bochechas se coloriam. — Peço desculpas pelo desastre da outra noite,
lhe asseguro que ...
— Deixe pra lá, Alicia — murmurou Mary. — Tenho certeza de que Keswick
até já esqueceu.
— Não vejo como poderia esquecer.
— Já está esquecido — ele lhe assegurou.
— Fui uma tola.
— Chega. Esqueci — insistiu Sebastian com toda a firmeza de que foi capaz.
— Eu não queria magoá-lo.
— Pelo amor de Deus! Teria que pedir a essa menina que dançasse pra
convencê-la que a mentira era verdade
— Não ocorreu nada de mal.
— Ainda assim, foi inadmissível…
— Alicia — interrompeu Mary em tom suplicante.
— Fazê-lo sentir-se incomodado em nossa casa. Eu...
— Quem sabe mais tarde me honraria com uma dança — sugeriu Sebastian
forçadamente.
— Sim, claro que sim — Alicia abriu os olhos desmesuradamente, mas ao
menos manteve a boca fechada. Rapidamente, ela começou a repassar o cartão de
baile.
Mary olhou Sebastian e lhe sorriu docemente, ao parecer satisfeita com o modo
como ele manejara a situação incômoda. Aquele sorriso compensaria a agonia que
sofreria ante os temidos movimentos na pista de dança com a prima dela, sobretudo
porque não era com ela que ele desejava realmente dançar. Sustentou o olhar de Mary.
Não havia olhos mais expressivos em toda Grã Bretanha. Ela o atraía, fazia crer que
tudo era possível, que poderia atravessar o salão de baile...se fosse ela quem ele
sustentasse em seus braços. E de repente ele desejou aquilo, com uma ferocidade que
só experimentara nos campos de batalha, quando lutara contra o inimigo, quando a
derrota não era uma opção.
Pensou no que sentiria ao tê-la tão perto durante breves instantes, sabendo que não
poderia tê-la para sempre. Seria como encontrar um pedacinho de céu em seu inferno, e
sofreria por ele quando tivesse acabado, mas durante uns breves instantes…
— Uma quadrilha? — Exclamou lady Alicia, interrompendo seus
pensamentos. — Seria possível uma quadrilha?
— Sim.
— Estupendo — a jovem anotou em seu cartão de danças com profunda
concentração antes de levantar o olhar. — Anoto em seu cartão?
— Eu me lembrarei — os cavalheiros costumavam levar um cartão em seus
coletes para anotar o nome das parceiras de dança. Como ele não havia pensado em
dançar, não havia levado nenhum.
— Morro de vontade que chegue logo o momento.
— Eu também — desde quando era um grande mentiroso? Sebastian se
virou para Mary. — Esperava que você também me honrasse com uma dança.
— Ficaria encantada. E casualmente, agora mesmo estou livre.
Sebastian lhe ofereceu seu braço e ela apoiou uma mão sobre ele. Enquanto
caminhavam até a pista de dança, ele observava os casais com crescente confiança.
Bastaria que controlasse quem os rodeava.
Mas quando enfim a teve em seus braços, o que menos lhe importou foi quem
estava ao seu redor. Não se havia dado conta de quão estreita era sua cintura até que
colocou a mão sobre ela. Por ela ser uma mulher muito alta, não teria dificuldade para
olhá-la nos olhos. Uns olhos que brilhavam enquanto seus lábios se curvavam num
sorriso de prazer. Não restara muito da menina que ele havia sido. Havia se
transformado numa jovem reservada, cortês, uma dama que qualquer cavalheiro
estaria orgulhoso de ter como esposa.
— Você foi muito amável com ela — sussurrou com doçura.
— Deveria ter me comportado como uma besta?
— Não acredito que seja capaz de algo assim.
— Alguma vez teve a sensação de que não nos conhecemos realmente?
— Muitas vezes, e ainda assim, há momentos em que sinto que não há nada
sobre você que eu não conheça. Mas não estava certa de que me pediria uma dança.
— Sua tia insistiu.
— Não é necessário que seja sempre tão sincero em suas frases — o sorriso de
Mary se tornou mais amplo. — Assim me quebra o coração.
— Jamais tive intenção de magoá-la, Mary.
— Era uma brincadeira — os olhos verdes lançaram um desafio. — Não seja
sempre tão sério Sebastian.
— Temo que eu não saiba ser de outro jeito.
— Ao menos poderia tentar sorrir.
— Já tentei. Uma vez, depois de ser ferido. O aspecto foi horrível e quebrei o
espelho em que me olhava. Você quer que eu me mostre civilizado,
mas, não sei se sou capaz disso.
— Este baile já é um começo — o sorriso de Mary esmoreceu, mas ela apertou
ainda mais a mão dele. — Limite-se a aproveitar.
Mary estava com a razão. Sebastian desejava esse momento e deveria desfrutar
dele.
Sem conversas que lhe distraíssem, se deixou levar.
A maldita sarda na parte superior do decote chamava sua atenção
constantemente. Se houvesse perguntado por ela, sem dúvida perderia o interesse
rapidamente. Mas como formular uma pergunta assim? ―Estive admirando seu
peito…‖.
O certo era que estava admirando tudo nela. Nenhuma outra dama naquele
salão poderia se comparar a Mary.
De repente ele tropeçou com alguém e, ao perder o equilíbrio, pisou na barra do
vestido de Mary. Ouviu-se um rasgão, seguido por uma exclamação afogada de Mary.
— Preste atenção por onde... — exclamou uma voz familiar antes de
interromper-se. Sebastian se virou e se encontrou de frente com Fitzwilliam.
— Peço desculpas, Excelência — desculpou-se o prometido de Mary. — Sou eu
quem deveria estar atento por onde girava.
As implicações eram evidentes, Sebastian estava incapacitado. Um enorme
desejo de plantar um soco no rosto do homem o possuiu. E se não fosse pela mão que
Mary apoiada em seu braço, quem sabe teria feito algo que lamentaria depois.
— Necessito dar um jeito nisso — Mary segurava a renda do vestido pela
cintura. — Seria amável em me acompanhar para fora da pista de dança?
Amável? Ele não era amável. Ainda assim, satisfez o desejo de sua amiga.
— Não parece que tenha conserto — ele observou.
— Parece pior do que é. Com certeza deve haver uma costureira na sala de
descanso que se ocupará de tudo. As damas sempre estão pisando nas bainhas dos
vestidos.
— Sabia que dançar seria uma experiência horrível. Sinto tê-la submetido a
isso.
Estavam distantes dos pares que dançavam, próximos à porta que conduzia às
escadarias.
— Não seja tolo. Eu adorei. E espero ter a oportunidade de voltar a dançar com
você.
―Nunca. Jamais‖, jurou Sebastian para si mesmo, ainda que se limitasse a
assentir antes de se afastar dela.
Por sorte a costureira estava livre e possuia dedos ágeis. Em pouco tempo,
Mary havia regressado ao salão de baile. Avistou sua presa junto a um grupo de
cavalheiros e, depois de fixar um sorriso no rosto, aproximou-se com toda elegância
da qual foi capaz.
— Cavalheiros, desculpem minha intrusão — o sorriso ampliou e foi
acompanhado de um vertiginoso tremer de cílios. — Milorde Fitzwilliam, podemos
falar um momento?
— Daqui a pouco. Quando eu tiver terminado…
— É importante. Receio que não possa esperar.
— Os homens são tolos — observou lorde Chesney — quando preferem perder
tempo conversando com outros homens, em vez de disfrutar da companhia de uma
linda mulher.
— Claro que sim, tem toda razão — Fitzwilliam assentiu e lhe ofereceu seu
braço para Mary.
— Você fez de propósito — quando estavam longe dos olhares curiosos, ela
permitiu que sua ira chegasse à superfície.
— Do que fala minha vida?
A inocência fingida de seu noivo conseguiu incendiar mais ainda a jovem.
— Causou o choque com Keswick.
— Que ideia tão absurda! Ele cruzou o meu caminho. Mas, como o cavalheiro
que sou, assumi a culpa para evitar sua humilhação.
— Não poupou nada a ele.
— Não se dirija a mim nesse tom. Vai ser minha esposa.
— Isso não me converte em sua propriedade.
— Segundo a lei, sim — Fitzwilliam cerrou os olhos com força antes de
suspirar e voltar a abri-los. — Pelo amor de Deus, o que estamos fazendo, Mary?
Tivemos um pequeno esbarrão na pista de dança que não merece esse enfado todo,
nem tuas recriminações. Chocar-me contra ele também a envergonharia. Eu jamais
faria tal coisa — ele lhe acariciou a bochecha. — Você é muito valiosa para mim.
Era o mais próximo que seu noivo estivera de declarar que possuia fortes
sentimentos para com ela. Que ele se importava com ela, não restava dúvidas, mas
jamais havia verbalizado a intensidade de seus afetos. Ao que parecia poucos homens
faziam isso. Para eles bastavam às ações, e Fitzwilliam sempre havia demonstrado o
carinho que sentia por ela.
A verdade era que o incidente fora provocado por Sebastian. Ele a estava
fitando com tanta atenção que ela mal conseguia respirar. Durante alguns segundos lhe
pareceu que não existiam outras pessoas no salão, no mundo inteiro Mary havia se
deixado levar por aquele homem, por sua força, sua masculinidade tão aparente que
fazia os demais homens parecerem falhos para ela.
Reconsiderando, o brusco final da dança havia acontecido em boa hora, ela
antes que fizesse o ridículo pedindo-lhe que a acompanhasse ao terraço para desfrutar
de alguns momentos de intimidade. Não sabia o que teria acontecido, mas não
terminaria bem.
— Peço desculpas por tê-lo acusado — ela se desculpou com um gesto
constrangido.
— Não precisa. E agora, regressemos a festa antes que nossa ausência se torne
evidente. Não quero que sua reputação fosse manchada antes do casamento.
—Nem depois, eu espero — Mary sorriu brincalhona e ele devolveu um sorriso
que encerrava uma promessa de paixão.
— Devo admitir que morro de vontade de estar sozinho com você — sussurrou
Fitzwilliam em seu ouvido. E não havia possibilidade de confusão. Ela mal pensara na
intimidade do casamento e sentiu as bochechas se incendiarem. Estava certa de que
haveria prazer em seu leito, mas, de repente, se perguntou se seria o suficiente.
Não pertencia a esse ambiente, refletiu Sebastian. Jamais pertenceria. Não em
resplandecentes salões de baile onde damas e cavalheiros flertavam, dançavam e riam.
As conversas despreocupadas lhe feriam profundamente, pois, para ele, nada havia
sido fácil. Estava com apenas vinte e seis anos, mas se sentia com se tivesse o dobro.
Depois do desastre com o vestido, foi em busca de lady Alicia e lhe explicou
que lamentava ter que renunciar a sua dança. Ela se limitou a ruborizar e balbuciar que
o entendia antes de desaparecer. Sem dúvida fora testemunha da pouca elegância que
havia exibido com sua prima e se sentira aliviada por se livrar de um destino parecido.
Depois de conversar com alguns lordes sobre assuntos triviais como o clima, a
agricultura e as apresentações no parlamento, ele se dirigiu ao salão de jogos. Não viu
Rafe ali. Ao que parecia ele havia partido. Seu irmão se sentia tão pouco a vontade
nestes ambientes quanto ele próprio, mas teria gostado que ele tivesse lhe comunicado
sua intenção de sair, porque o teria acompanhado.
Não teria ido. Seria uma covardia sair logo depois de chegar. Optou por um
passeio no jardim. Ninguém poderia recrimina-lo por buscar um pouco de ar fresco.
Ao seu olfato chegou um intenso aroma de rosas, que sem dúvida povoava o jardim.
De diversos cantos chegavam murmúrios e se perguntou se Tristan seria um dos
protagonistas. Não tornara a vê-lo desde que ele abandonara o salão de baile e
esperava que ele não cometesse nenhuma estupidez que o obrigasse a se casar antes do
final da temporada.
Ficava furioso por conhecer tão pouco de seus irmãos. Sabia que eram leais,
mas isso lhes havia sido inculcado por seu pai. Ele era o herdeiro e lhe deviam
lealdade. Fora isso, pouco sabia deles. Desprezava seu tio por ter tirado isso dele
também. Seus irmãos e ele estavam unidos por laços de sangue, mas poucas
experiências haviam sido compartilhadas entre eles. Nenhum deles queria falar dos
anos que estiveram separados, aumentando ainda mais a desunião entre os três.
Por sorte ainda possuia Pembrook. Tendo em conta o fracasso daquela noite,
havia decidido regressar para casa o quanto antes. Ao inferno com Londres. Tristan
parecia mais a vontade na capital e cuidaria da residência e de seus interesses.
Também vigiaria seu tio e qualquer plano nefasto que pudesse estar tramando. E
quanto a uma esposa, já não estava no clima para procurar por uma. Poderia contratar
uma casamenteira, ou...
— Sebastian?
A doce voz deteve seus pensamentos. Havia se aprofundado no jardim e
deveria continuar, Mas estancou e se virou enquanto Mary se aproximava dele,
iluminada pela luz das lanternas que indicava o caminho de pedras. Nem mesmo as
sombras eram capazes de ocultar sua beleza.
— Não está aproveitando o baile — ela observou, a voz carregada de decepção,
fazendo com que ele se sentisse um ogro por falhar.
— Costumam desfrutar os cavalheiros?
— Tenho certeza de que alguns não o fazem, mas costumam dissimular melhor.
Alicia me disse que desististe do convite para dançar com ela.
— Pensei que, dadas às circunstâncias, deveria poupar-lhe o embaraço de ter
seu vestido rasgado.
— O meu vestido já foi consertado e ficou tudo bem.
Entre ambos se instalou um profundo silêncio, impregnado da comodidade que
lhes acompanhara quando crianças.
— Gosta de festas? — Perguntou Sebastian sem saber o porquê. Quem sabe
porque a conhecia tão pouco quanto conhecia seus irmãos, e lhe parecia uma lástima
depois de tudo o que viveram juntos quando crianças.
— Suponho que mais do que deveria. Encanta-me o brilho e a elegância.
Agrada-me ver as damas enriquecidas por seus vestidos de baile, emocionadas ante o
que pode ocorrer numa noitada. E os cavalheiros sempre estão atraentes com seus
fraques. E a música me embriaga — ela riu. — Poderia continuar e continuar.
— Por favor, continue — ao longe se ouviam notas daquela música que a
embriagava. Seu pai a havia privado disso por culpa dele.
Qualquer coisa que ela pudesse lhe contar o interessava, até mesmo se lhe
falasse como crescia a erva. Não estivera com uma mulher, de verdade, desde pouco
antes da batalha em que quase perdera sua vida. Preferia as mulheres que entregavam
seus corpos voluntariamente, não para ganhar dinheiro. Mary seria uma dessas
mulheres, e sua disposição estaria adornada com o entusiasmo que nascia em seu
interior. As atitudes medianas nunca foram seu forte. Ainda que não conhecesse
detalhes de sua vida naqueles últimos doze anos, estava seguro de continuar
conhecendo os fundamentos do caráter dela. Era forte, sincera e com tendência a se
preocupar com aqueles que necessitassem dela. Lutaria com a mesma determinação
para salvar um pardal ferido quanto por três meninos abandonados.
— Ficaria aborrecido — ela protestou. — Além do mais, não era esse meu
propósito em vir procura-lo.
— E qual é esse propósito? — Sebastian não sabia porque seu estômago havia
se encolhido, nem por que estava tão certo que não gostaria do que Mary teria para
dizer.
— Queria lhe pedir desculpas pelo que aconteceu na pista de danças.
— Você não teve culpa. Quase se perde um pé no processo — ele a viu sorrir
sob a tênue luz das luminárias e desejou possuir a habilidade para continuar fazendo-a
sorrir. Contudo, não era nem seu lugar nem sua responsabilidade. — O maldito
Fitzwilliam estava certo. Ele já não olhava por onde ia quando teria que permanecer
vigilante.
―Mas estava perdido em você e, por um instante, me senti quase inteiro‖.
Claro que não podia pronunciar as últimas palavras em voz alta, nem sequer
deveria admiti-las para si mesmo. Mas o havia feito. O doce perfume, o verde de seus
olhos, a delicada carícia de sua mão sobre a sua...
— Peço que desculpe meu atrevimento, a amizade forjada desde crianças, me
impulsiona, mas eu gostaria de terminar a dança. Aqui no jardim, onde é menos
provável que tropecemos com algo mais do que uma roseira.
— Os espinhos também machucam Mary.
— Estou disposta a correr o risco.
―Ideia muito ruim, carinho, tê-la novamente em meus braços, sentir sua roupa
contra a minha, aspirar seu perfume tão próximo‖.
— Não, — ele falou entre dentes.
— Deixa seu orgulho falar, Excelência.
— Deixe quieto, Mary.
Mas ela deu um passo mais até Sebastian, que precisou se encher de coragem
para não recuar. E com ela arrastou o doce aroma de orquídeas. E o cair de algumas
lágrimas. E uma força de vontade refletida em sua mandíbula que ele jamais havia
sido capaz de vencer. Essa mulher sempre tivera a capacidade de conquistá-lo, de
fazer com que ele esquecesse todo o juízo.
— Por favor, dance comigo — Mary tocou o ombro dele com dedos trêmulos.
— Não quero uma maldita dança.
A ferocidade de suas palavras teria bastado para que qualquer jovenzinha saísse
fugindo até a segurança do salão de baile. Mas Mary não. Jamais havia sido capaz de
intimidá-la ou assustá-la. Ela era a criatura mais valente que ele jamais havia
conhecido.
—E o que é que você quer? — Ela perguntou doce e desafiante.
Quantas vezes havia feito algo só para lhe demostrar alguma coisa? Mostraria a
ela que tipo de homem ele era. Em que o haviam transformado os anos transcorridos.
— Esquecer — ele disse, afundando uma mão em seus cabelos ruivos, ele
tomou o rosto dela com a outra mão e a empurrou até as sombras. — Mary — ele
sussurrou enquanto suplicava a Deus que ela não unisse ambas as palavras e
acreditasse que ele queria esquecê-la.
Não, o que queria esquecer eram as cicatrizes que o desfiguravam, a ausência
de visão do lado esquerdo, os olhares que recebia, as dúvidas e a culpa que o
atormentavam. Mas a ela, jamais.
Cobriu os lábios dela com os seus. Não foi delicado. Queria substituir as
horríveis lembranças com algo digno de recordar. Não apenas sentia desejo, também
ânsia. Sabia que se odiaria no dia seguinte, se odiaria no instante em suas bocas se
separassem, porque o canalha em que ele se convertera estava se aproveitando do
caráter de Mary.
Ela não protestou, sua língua tremia junto a dele. Seguramente nunca a haviam
atacado daquela maneira. A ideia o fez suavizar o assalto e lhe permitiu saboreá-la
melhor. Mary havia tomado champanhe, que se mesclava com o aroma de orquídeas
preenchendo os sentidos dele.
Mary deslizou as mãos pelos braços de Sebastian e as afundou em seus cabelos,
apertando-se contra ele, tão ousada quanto ele. Sebastian quase sorriu. Ela sempre o
igualara em espírito aventureiro e ele se perguntou se seria o espírito competitivo de
sua amiga de infância o que a impulsionava adiante e nunca para trás. Ou havia algo
mais?
Teria se perguntado alguma vez, como ele seria, como seria uma relação
amorosa entre eles?
Por Deus, que deliciosa ela era. Sebastian a abraçou com mais força enquanto
deslizava a outra mão desde a bochecha até o pescoço onde sentia o bater alucinado do
coração dela. E se deixou levar. Ele havia desejado isto desde aquele dia em que se
sentaram juntos no banco de jardim, quando ele lhe havia dado a gargantilha. Quisera
saboreá-la. E, agora, neste momento soube que jamais poderia esquecê-la, ainda que
jamais voltasse a beijá-la.
Estavam desfrutando de um momento proibido. Mary estava comprometida e
merecia algo melhor do que ele poderia lhe proporcionar. Claro que poderia oferecer-
lhe todas as comodidades da vida, mas não possuia a capacidade para levar consolo ao
coração dela ou à sua alma. Não estava especialmente orgulhoso de sua incapacidade,
mas não se enganava, pensando que poderia oferecer a uma mulher algo mais que um
casamento satisfatório. E Mary merecia muito, muito mais que isso.
Merecia amor e adoração. Merecia um homem inteiro, capaz não apenas de
levá-la aos limites insuspeitáveis do prazer, mas livrá-la das profundezas do
desespero. A vida não era sempre agradável. E ela necessitava de um companheiro
capaz de lhe dar tudo isso. Ele pertencia a Pembrook.
O suave gemido de Mary ressoou entre eles e incendiou o sangue nas veias de
Sebastian. A tormenta rugia entre eles. Sentia-se capaz de levá-la para bem além das
sombras, tombá-la sobre a grama, levantar-lhe o vestido...
Sebastian rugiu de desespero. Tratava-se de Mary. Mary, a mulher que havia
salvado a vida deles. Devia tudo a Mary.
Com a respiração agitada, interrompeu o beijo e contemplou o rosto levantado
para ele. Em alguma parte, a luz substituiu as sombras e Sebastian pode ver a confusão
refletida no olhar dela.
— Perdão, Mary. Eu… — O que ele podia dizer? Qual explicação possível
poderia existir para suas ações?
— Nega-se a dançar comigo no jardim, mas então me beija?
— É evidente que me tornei um bárbaro. Não há nenhuma desculpa possível.
Se nos descobrem, sua reputação está destruída.
Antes que ela pudesse responder, Sebastian se virou e desapareceu no caminho,
ele mudou a escolha e em vez de voltar para casa, dirigiu seus passos em sentido
contrário, penetrando ainda mais no jardim, protegido pelas roseiras e seus galhos.
Precisava partir dali imediatamente. Sairia por alguma porta traseira e deixaria a
carruagem para Tristan. Regressaria caminhando para sua casa. Precisava esfriar o seu
ardor.
Um som lhe chamou a atenção. As folhas secas estalaram sob uma pisada.
Sabia que não deveria girar à sua esquerda, perdendo sua vantagem com uma
cegueira momentânea, mas pensou que fosse Mary, que havia corrido atrás dele, como
costumava fazer quando criança. Somente quando sentiu a lâmina de uma faca
atravessar-lhe a lateral do corpo compreendeu o preço de sua estupidez. Antes de
poder ver o inimigo, lançou um forte murro com o braço direito e, satisfeito, ouviu o
barulho de um osso quebrado, um xingamento e um gemido de dor. Esperava um novo
ataque, mas os passos se afastaram rapidamente.
Os joelhos de Sebastian bateram contra o colo com força. O mundo girou
vertiginosamente a seu redor e logo tudo escureceu.
Capítulo 15

Na tarde depois do baile dos Weatherly, Mary estudava seu reflexo no espelho.
Mal podia acreditar que a linda dama vestida de branco cetim e rendas fosse ela. O
lindíssimo modelo era parecido com o que a rainha Vitória vestira em seu casamento.
Imitar o vestido da rainha era o último grito, mas, ainda assim, Mary jamais sonhara em
vestir algo tão bonito assim.
— É precioso — exclamou Alicia. — Morro de vontade de poder usar um
vestido assim e meu casamento.
— Na temporada que vem querida — lhe assegurou sua mãe. — Este ano é de
Mary e não posso estar mais feliz pelo resultado. Você é muito afortunada por ter
agarrado lorde Fitzwilliam.
— Sim — Mary mordeu o lábio para tentar esquecer o tremor que lhe causava
recordar o beijo de Sebastian, um beijo pelo qual ele lhe havia pedido perdão. Quem
dera não o tivesse feito. Quem dera sim, tivesse partido sem dizer uma palavra, mas
depois de beijá-la uma vez mais.
Ainda não estava segura de como tudo havia acontecido. Ele lhe tocara o ombro
e, de repente, seus lábios a estavam devorando. A paixão a havia golpeado com força,
fazendo com que ela o animasse ainda mais. Seus gemidos e suspiros foram demais.
Na primeira vez que haviam se beijado, ela estava com doze anos e ele,
quatorze. Mas o contato proibido de seus lábios nem sequer havia lhes dado uma pista
do calor que poderia explodir entre eles quando adultos. Mary não sabia se se sentia
aterrorizada ou fascinada.
Sebastian já não era o menino que ela havia amado na infância. Era um homem
lúgubre cheio de ira. Quem sabia quando poderia explodir e com que consequências?
Ele havia lhe deixado sozinha no jardim depois de partir, sem olhar pra trás. Se ele
tivesse feito, olhado para trás, ela poderia tê-lo seguido. Poderia ter subido em sua
carruagem para fugir para algum lugar onde pudessem estar sozinhos, para conversar,
para explorar seus sentimentos, para deixar de se comportarem com tão forçada
cordialidade um com o outro.
— Acredita que Keswick teria lhe cortejado se tivesse retornado antes para
Londres? Antes que pedissem sua mão? — perguntou Alicia
— Por que…? — Mary se virou bruscamente.
— Por favor, fique quieta, senhora — implorou a costureira enquanto marcava a
bainha.
— Sim, eu sinto muito — ela murmurou antes de dar a volta mais uma vez.
Contemplou o olhar de sua prima pelo espelho. — Por que diz isso?
— Dei-me conta que Keswick a olha com algo muito parecido ao desejo.
— Equivoca-se. Ele me olha como um amigo. Nada, além disso. — Com o que
brincava sua prima? Acaso os avistara no jardim? — Estou bastante satisfeita com o
marido que escolhi. Preferiria que eu não estivesse satisfeita?
— Estar satisfeita não acenderá uma fogueira em tua cama.
Sebastian, contudo, a julgar como beijava, incendiaria o quarto inteiro. Mary
nem sequer queria pensar em como esse beijo havia despertado nela esse desejo de
muito mais, como havia dado voltas na cama toda a noite, enredando-se nos lençóis até
que pensou que se enforcaria. Cada vez que cerrava os olhos, o imaginava a espreita,
subindo em sua cama, deitando-se sobre ela...
— Tenho certeza de que Fitzwilliam fará muito bem nesse aspecto — ela engoliu
nervosamente.
Sua tia se colocou em sua frente, bloqueando sua visão do espelho. De baixa
estatura, conseguia parecer enorme quando se propunha a isso.
— Querida, está tendo dúvidas com respeito a esse casamento?
Desde que Sebastian a beijara ela estava dominada pelas dúvidas e já não sabia o
que pensar. Ela que jamais havia questionado suas próprias ações, estava questionando
tudo agora. Porque ele a beijara? O que esperava conseguir? Havia feito apenas por
diversão? Para satisfazer uma curiosidade? Ele havia dito que queria esquecer.
Exatamente o que queria esquecer? A guerra? Ela? Ele a tomara nos braços porque lhe
resultava conveniente? Qualquer mulher teria servido? A última pergunta despertou
nela uma profunda decepção. Quem sabe deveria enfrentá-lo. Ou seria melhor ignorá-
lo.
— Mary? — insistiu sua tia.
— Não, claro que não, — quase havia esquecido a pergunta.
Fitzwilliam não se destacava por sua paixão. Seu caráter parecia mais ao tic, tac
de um relógio. Sem surpresas. Apenas a certeza de que a um tic, tac seguiria outro. Até
um mês atrás, essa segurança havia resultado tranquilizadora. Mas agora lhe parecia
aborrecido demais. Que injusto para seu noivo! Ele não havia mudado desde que pedira
sua mão e ela sabia exatamente o que esperar ao aceitar a proposta. Mas ela havia
mudado. Em um par de semanas ela se convertera em uma pessoa totalmente diferente,
alguém que desejava outra coisa. Demasiado tarde. Além do mais, quem sabe não fosse
mais que um sonho passageiro e em outras semanas estaria desejando o mesmo que há
um mês. ―Que assim fosse‖.
— Na realidade não importa, mamãe — interveio Alicia. — O compromisso já
foi anunciado e não pode ser rompido. Lorde Fitzwilliam reclamaria uma indemnização
e o tio não ficaria satisfeito. Seria um escândalo
— Melhor um escândalo agora do que casar com dúvidas e passar anos se
lamentando — assegurou a mulher cravando o olhar em sua sobrinha.
— Não tenho dúvidas a respeito de Fitzwilliam — assegurou Mary. Possuia
dúvidas sobre ela mesma.
Por que não havia evitado o beijo em lugar de aceitá-lo? Não podia negar que
durante anos havia pensado em Sebastian, sonhado com ele, fantasiado com ele, mas o
homem com o qual se reencontrara estava muito longe de ser o protagonista de suas
fantasias.
Sua tia tossiu.
— Não as tenho! — Insistiu ela. — E Alicia tem razão. Tudo está preparado e
estou certa de que, a medida que se aproxima a data, todas as noivas tem dúvidas sobre
se escolheram bem .
— Eu não tive, — insistiu sua tia.
— Porque você e papai fugiram — interveio Alicia. —Não houve tempo para
dúvidas. Foi tão romântico! Eu ficaria encantada de fugir com alguém — a jovem
suspirou.
Mary se perguntou quando havia deixado de sonhar com o romance, com ser
arrastada pela paixão. Havia se conformado com Fitzwilliam? Não acreditava nisso.
Verdade que ele havia sido o único a lhe propor casamento, mas isso não significava
que não o houvesse escolhido entre centenas. Havia chamado sua atenção desde o
início. Desfrutava de sua companhia. Era encantador e elegante. Seu humor pouco
mudava e não se ofendia com facilidade. O casamento com ele seria uma travessia
plácida e tranquila.
A campainha da porta soou. Sem dúvida outra dama chegava à loja em busca de
um vestido. Era a costureira mais famosa de Londres.
— Eu sabia! —anunciou lady Hermione. — Quando vi sua carruagem na rua,
disse para lady Victória que deveríamos parar e comprovar se estava aqui dentro.
Mary contemplou o reflexo de lady Hermione e lady Victoria no espelho.
Estavam excitadas, como se tivessem algo extraordinário para contar.
— Por favor, nem uma palavra a ninguém sobre o design do vestido — lhes
advertiu Alicia. — Queremos que seja um segredo.
— Carinho, o vestido não poderia nos importar menos. Queremos saber a
verdade sobre o ocorrido no jardim ontem à noite, com Keswick. Londres ferve com
rumores e não é fácil separar o joio do trigo. De modo que, lady Mary, o que aconteceu
no jardim?
Mary sentiu o olhar da jovem, atravessá-la, com tal força que, se não houvesse
perigo de se cravar um alfinete, teria se deixado cair numa poltrona. Os joelhos
tremeram tanto que não estava certa de conseguir permanecer em pé. Quem os vira? E
exatamente o que haviam visto? E o mais importante...
— Fitzwilliam sabe? — Ela perguntou com voz rouca.
— Sem dúvida. Em todo lugar que fomos hoje, todo mundo falava da mesma
coisa. Que cochichos deliciosos! Devo dizer que me surpreende vê-la aqui, provando o
vestido tranquilamente depois do ocorrido. E, agora, vamos, conte-nos mais detalhes.
— Só nos beijamos — balbuciou Mary numa tentativa de deter toda aquela
loucura. — Keswick e eu.
Sua tia deu um salto e levou a mão ao peito. As três damas mais jovens a
olharam boquiabertas. Até a costureira parecia paralisada pelo impacto da declaração.
— E depois, ele se desculpou — ela se apressou a falar. — Não significou nada,
foi só um momento de loucura, — continuou balbuciando.
Ela precisava falar com Fitzwilliam sem tardar, explicar tudo, ainda que para
isso precisasse entender o sucedido, nada mais tão longe da realidade.
— Nossa! — Exclamou lady Victoria com a expressão de estar saboreando o
melhor dos chocolates. — Isso sim que não esperávamos.
— Disse que todo mundo sabia, que todos falavam de Keswick e o que ocorreu
no jardim — Mary se virou bruscamente para lady Hermione.
— Sim, mas, ao que parece, aconteceram muito mais coisas do que
acreditávamos. Mary se debatia entre suplicar às damas que não dissessem nada e
manter a cabeça alta sem desviar-se da versão de que tudo fora muito inocente. Mas o
beijo a havia sacudido no mais profundo e só de pensar nele ruborizava.
— Vamos, lady Mary, agora deves nos dar os detalhes do que se passou com
Keswick no jardim — insistiu lady Hermione.
— Não sabiam do beijo?
— Não. Como aconteceu? Detalhes. Queremos detalhes.
— Não estou entendendo. Se não falavam do beijo, o que acreditam que
aconteceu? Do que vocês estão falando? — Poderia ser algo pior do que já havia
admitido?
— Trata-se apenas de Keswick.
— E qual é a fofoca?
— Bem menos interessante que a sua, ao que parece.
— Pelo amor de Deus, mocinha! — Explodiu lady Sophie. — Deixe de torturar
Mary. Que demônios acreditam que aconteceu no jardim?
— Alguém tentou matar Keswick.

Sebastian acabava de se levantar da cama e tentava erguer-se completamente


quando a porta do dormitório se abriu com um golpe e Mary entrou como um anjo
vingador, seguida por sua prima e sua tia.
Por sorte estava com a calça. Desgraçadamente, não vestia camisa e seguia
agachado como o corcunda de Notre Dame. Lutando contra a dor, se obrigou a
endireitar-se, mas antes de compreender a estupidez do gesto, quando lady Ivers soltou
uma exclamação e deu um passo para trás enquanto lady Alicia empalidecia. O sol que
entrava pela janela acariciava suas cicatrizes. Todas as suas cicatrizes. O maldito tapa
olhos descansava sobre a mesinha de noite. Deveria tê-lo colocado em vez de se erguer
com dignidade.
— Que demônios fazem aqui? — Ele rugiu antes de se arrastar como um velho
até a mesinha.
Com torpes movimentos marcados pela dor, tentou colocá-lo. Onde estava seu
camareiro?
— Excelência… — Thomas deu um passo entre as damas que bloqueavam a
porta.
Mas até o mordomo parou em seco diante da visão das cicatrizes. Diferente do
camareiro, o homem jamais vira as cicatrizes que as roupas costumavam encobrir.
— Soubemos que você foi atacado — explicou Mary, avançando até Sebastian
como que impulsionada por um foguete.
Sua tia a chamou, mas ela seguiu adiante. Sebastian sentiu um impulso de
afastar-se, mas se obrigou a permanecer no lugar. Algo na determinação da jovem o
inquietava. Era perigoso para ela estar ali. Perigoso para ambos.
Mary parou tão próxima dele que o cheiro de orquídeas o envolveu claramente.
Esticando uma mão, a jovem lhe ajustou o tapa olho antes de acariciá-lo suavemente, o
rosto e o ombro, detendo-se no coração, que palpitava com tal força que poderia
romper uma costela.
— Machucaram muito — ela sussurrou.
Sebastian estava a ponto de desmoronar. E o teria feito se visse ao menos uma
única lágrima de Mary. Mas o que viu foi bem pior. Nos deliciosos olhos verdes de
Mary se refletia a ira, quem sabe o ódio. Mary apertou os lábios e deslizou a mão até
sua lateral. O gesto foi de tanta ternura que ele sentiu vontade de chorar, de rodeá-la
com seus braços, de abraçá-la. De não soltá-la jamais.
Mas nem mesmo podia permitir-se um momento de ternura, não podia revelar a
menor debilidade. Não podia tomar o que jamais poderia conservar. Ela não lhe
pertencia. Era a cantilena que havia repetido na névoa do láudano, quando a dor o havia
mantido consciente. Mary não lhe pertencia.
— Está sangrando — observou Mary.
Apartando o olhar dela, Sebastian contemplou a mancha vermelha que
empapava as bandagens.
— Foi seu tio, não é verdade? Seu tio.
— Não acredito que ele seja tão ousado.
Ela sustentou o olhar e, por um instante Sebastian se sentiu novamente em
Pembrook, jovem e inocente, crente, que um dia o mundo lhe seria entregue de
bandeja. A vida se reduziria a caçar raposas e faisões. Nenhum rifle apontaria para
nenhum homem. Montaria a cavalo por diversão, não para sobreviver. Os prazeres
incluiriam lindas mulheres que queriam estar com ele, ao invés de mulheres que davam
saltos e se assustavam quando o viam se aproximar, como se as cicatrizes fossem
contagiosas, como se fosse lhes transmitir feiura.
Havia beijado Mary na escuridão, ocultando-lhe seu aspecto. Mas agora, a luz
impiedosa do sol revelava o monstro em que se convertera. Contudo, a jovem não havia
feito nada para se afastar dele. E Sebastian se perguntou o que aconteceria se se
curvasse e tentasse beijá-la de novo, já sem a proteção das sombras. Arrancaria um
suspiro de prazer ou uma exclamação de asco?
— O que acontece aqui? — Perguntou Tristan, rompendo o encanto, devolvendo
seu irmão a realidade. — Meu irmão com três damas formosas em seu quarto? Estou
enciumado.
— Não estamos em seu quarto — protestou lady Alicia.
— Muito próximo, minha querida dama — insistiu Tristan enquanto entrava no
quarto e olhava com gesto significativo para Sebastian e para Mary.
Mary deu um passo para trás e separou sua mão das costelas de Sebastian,
levando com ela o calor, provocando-lhe um intenso frio.
— Seu irmão está sangrando. Se trouxer bandagens, me ocuparei em trocá-las —
ela começou a tirar as luvas que esteve usando o tempo todo.
A carícia fora tão delicada, tão quente, que Sebastian teria jurado que havia
sentido sua pele.
— Meu camareiro fará a troca — ele protestou. — Thomas, acompanhe as damas
até a carruagem.
— Eu não saio daqui até que saiba o que aconteceu ontem a noite — Mary o
fulminou com o olhar.
— E como você soube? — Que mulher tão teimosa!
Não haviam contado a ninguém e haviam planejado manter tudo em segredo. Não
fazia sentido expandir rumores até estarem seguros do que havia realmente acontecido.
— Desgraçadamente você é a fofoca de Londres — contestou Tristan. — Por isso
estou aqui. Pensei que deveria saber.
— Eu soube no atelier da costureira — confirmou Mary.
— Costureira? — Repetiu Sebastian.
—Mary estava experimentando o traje de noiva — esclareceu lady Alicia.
Sebastian não havia perguntado por que ela estava no atelier, e sim, porque a
notícia havia chegado até aquele lugar. Para que averiguar o que ela estivera fazendo lá,
sabendo que em breve estaria casada...
— Acho que temos um problema, — observou Mary com calma.
— E tanto — interveio sua tia. — Ao que parece, Excelência, a beijou no
jardim, e essa parte da notícia sem dúvida será conhecida em toda Londres antes do
anoitecer.
— Estraguei tudo completamente — Mary cerrou os olhos. As bochechas
ardiam.
— Bem — murmurou Tristan, — a vida em Londres começa a se tornar
interessante. E eu que pensava em voltar ao mar, mas, agora, como vou partir?
— Segundo os rumores, você foi atacado por um soldado de seu regimento que
lhe acusa de ser um covarde e provocar a morte de muitos homens.
De pé em frente ao espelho Sebastian contemplava o reflexo de seu irmão,
jogado numa poltrona. Até mesmo quando estava recostado havia nele um estado de
alerta que sugeria que poderia entrar em batalha, antes da seguinte respiração. Ele
esperava ter ao menos um dia de descanso. O que mais lhe apetecia era tomar uma boa
dose de láudano e meter-se na cama. A dor no lado era insuportável. O camareiro havia
trocado a bandagem e o estava ajudando a se vestir para poder atender as visitas no
salão.
— De onde saíram os rumores se nós não comentamos com ninguém e ninguém
nos viu?
— Suspeito que tio David tenha algo a ver com isso. Tenta desacreditar-me e
quer que os lordes apoiem a petição que está preparando para que a rainha lhe conceda
o título, porque você é indigno dele.
— Se ser digno fosse um critério, um bom punhado de lordes se encontraria sem
título. — Sebastian fez uma careta e com a ajuda do servente, vestiu o colete. Era azul
marinho, muito conservador. Ainda assim, se notava que não estava em seu melhor
momento.
— Acredita que o tio é responsável pelo ataque? — Ele perguntou ao seu
gêmeo.
— No campo de batalha você agiu como um covarde?
— Precisa perguntar?
— Outros o farão, — Tristan suspendeu uma sobrancelha. — Mesmo eu não lhe
vendo como covarde, devo admitir que talvez, eu não o conheça tão bem quanto
deveria.
— Não, não fui nenhum covarde.
— Então sim, creio que nosso tio é o responsável. E, ao falhar, tenta tirar o
melhor partido da situação, quem sabe para desviar as suspeitas da pessoa dele. Ou
contratou um incompetente, ou fez ele mesmo. Acredita que pode ter sido ele?
— Não o vi — Sebastian soltou um palavrão. — Sei que o golpeei, mas não
pude calcular sua estatura.
— Aposto que foi ele.
— Ainda que ele tenha êxito e convença a rainha Victoria de que o título não
deveria seu meu, o seguinte na linha de sucessão é você. Desfazer-se de mim não o
converte em duque.
— Suspeito que ele planeja cruzar essa ponte quando chegar a ela.
Sinceramente, duvido que a rainha Victória queira ter um antigo pirata como um nobre
a seu serviço. E a reputação de Rafe também é questionável. Suspeito que o tio David
acha que você é o único que deve cair. E o resto de nós o seguirá.
— Como esteve envolvido com a pirataria? — Sebastian dispensou o camareiro
e, quando ele saiu do quarto, se virou para seu irmão.
— Ou se é um pirata, ou não é — Tristan soltou uma gargalhada. — Não tem
meio termo. Do mesmo modo que a reputação de uma dama não pode se arruinar muito
ou pouco. Simplesmente se arruína. A pergunta é o que fazer a respeito.
Sabia que Tristan se referia a Mary e ao beijo do jardim. Podia ignorá-lo
enquanto fosse um segredo, mas se os demais sabiam... Ele precisaria tomar medidas
para protegê-la.

Os únicos sons no salão eram os das xícaras de chá contra os pires e o relógio
sobre a lareira. Uma jovem serviçal havia trazido chá e lady Ivers o estava servindo.
Tia Sophie não havia dito uma só palavra desde que abandonaram o quarto do duque.
Mary achava que ela não sabia o que dizer a respeito do comportamento pouco
edificante da sobrinha.
Uma dama não invadia o quarto de um cavalheiro sem ser anunciada, nem
convidada. Mas o mordomo não quisera dar nenhuma informação sobre o estado de
saúde do duque. E uma dama não abordava um homem sem roupa, salvo por suas
calças. E nunca, nunca colocaria uma mão em seu peito desnudo. Ainda que estivesse
de luvas de couro, havia sentido perfeitamente o calor de seu corpo, e o forte bater de
seu coração contra a palma de sua mão, as sutis vibrações que surgiam de sua garganta
cada vez que falava.
Pela primeira vez, seu rosto estivera desprovido de sombras. Ele esteve
demasiadamente estupefato para oferecer-lhe apenas o lado bom do rosto, ainda que ela
não tivesse lhe permito se esconder. Ela o havia encurralado em um canto, na
intimidade de seu dormitório, e havia visto claramente todo o dano que ele havia
sofrido em um campo longínquo de batalha. Havia sentido desejo de beijar cada
cicatriz para aliviar sua dor. Se não houvesse testemunhas, não estava segura de
Sebastian ter conseguido evitá-la, ainda que imaginasse a solitária palavra saindo de
sua boca: ―não‖.
Não havia aceitado sua solidariedade com simpatia. Havia dado por certo que
ela havia detectado sua debilidade, quando a única coisa que ela havia visto era força.
Até agora não havia compreendido o esforço que era para Sebastian aparecer em
público. Suas cicatrizes eram muito mais profundas do que pareciam.
Quanto a ela, em breve sua reputação estaria tão manchada como o corpo do
duque, cujas feridas eram um mapa de nobreza, pois as havia recebido enquanto
defendia seu país.
— Há algo diferente aqui — enfim Alicia se atreveu a falar, tirando sua prima
do ensimesmamento. — Mudou desde o baile, e não consigo saber o que é exatamente.
— O verdadeiro duque tomou enfim a posse de sua casa — contestou Mary.
— Você foi muito ousada no dormitório do duque. — Censurou sua tia.
— Ele necessitava de ajuda — Sebastian a odiaria por dizer algo assim. Ele era
tão orgulhoso, tão decidido.
— Não era sua função ajudá-lo.
— Eu não podia ficar tranquilamente olhando enquanto ele tentava recuperar sua
dignidade.
— Uma dignidade que ele não teria perdido se você não tivesse invadido seu
dormitório — lady Ivers suspirou ruidosamente. — Por desgraça, sua ousadia ao que
parece não começou ali. Receio que nesta noite, todos saberão de seu escandaloso beijo
no jardim e seu pai me jogará na cara que não a vigiei corretamente.
— Quem sabe lady Hermione e lady Victoria mantenham a boca fechada — se
aventurou a dizer Alicia.
— Sim, é uma possibilidade — espetou sua mãe, — e amanhã de manhã eu
despertarei vinte anos mais jovem.
Mary ocultou um sorriso. Dadas às circunstâncias, não deveria encontrar
divertimento no tom empregado por sua tia. Mas enquanto continuasse conservando o
sorriso, quem sabe não estivesse tudo perdido.
Os irmãos fizeram sua entrada no salão. Sebastian com um passo mais ágil que
Tristan. Mary continuava sem compreender como as pessoas podiam confundi-los.
Ainda que isso já não fosse um problema, os gêmeos nunca lhe pareceram idênticos.
Sebastian sempre fora o mais sério, e o era, cada vez mais.
— Senhoras, peço desculpas por não tê-las recebido adequadamente — ele
saudou.
— Nós é que nos desculpamos por invadir sua intimidade — contestou a tia de
Mary.
— Parece que a única que invadiu fui eu — admitiu Mary. Poderia jurar que
Sebastian quase havia feito uma careta e se perguntou o que seria necessário para
arrancar um sorriso daquele homem.
— Sim, bem, não tem sentido ficar falando de culpas — continuou a tia Sophie.
— Alegra-nos comprovar que tenha escapado das garras da morte.
— A mim também.
Sebastian escolheu a poltrona mais distante de Mary, enquanto Tristan se
sentava bem mais próximo. Seu olhar parecia querer desafiar seu irmão e ela se
perguntou sobre a razão disso. Quando meninos cada gêmeo sempre sabia o que o
outro pensava, mas suspeitava que os anos haviam mudado aquela relação. Odiou seu
tio pela tragédia desencadeada, por tudo o que lhes havia roubado, por tantas coisas que
não se identificavam facilmente.
— Exatamente o que aconteceu na noite? — Perguntou Mary. — Aonde o
atacaram?
— No jardim. Depois de... —Sebastian olhou furtivamente para lady Sophie
antes de voltar a se dirigir a Mary, — nos despedirmos. Eu me dirigia para a saída com
o objetivo de caminhar até aqui. Ouvi um barulho, me virei, e senti a faca cravar-se na
minha costela.
Mãe e filha exclamaram horrorizadas. Mary, contudo, percebeu que Sebastian
relatava os fatos sem nenhuma emoção, como se tivesse acontecido com outra pessoa.
Queria saber se ele havia ficado bravo, ou se assustado, ou se pensou que morreria.
Quais teriam sido seus últimos pensamentos? Teria se lamentado? Havia pensado nos
anos felizes da sua juventude, nos companheiros de combate, nas mulheres que havia
conhecido? Teria pensado nela? Em seu caso, seu último pensamento seguramente
seria pra ele. Que injusto para Fitzwilliam!
— Por sorte, Tristan me encontrou — continuou Sebastian. — Partimos
confiantes de que ninguém soubesse, mas ao que parece os rumores correm às minhas
costas.
— Acha que seu tio pode ser o responsável? — Perguntou Mary.
— Ainda é cedo para acusar alguém.
Ela se impressionou com a contenção do duque. Quem salvo seu tio poderia lhe
causar dano?
— Lady Mary — interveio Tristan, — ontem a noite cruzou casualmente com
alguém no jardim?
— Com Sua Excelência — Já era tarde para ela. Melhor contar a verdade
— Além de meu irmão — Tristan lhe dedicou um sorriso malicioso que
seguramente triunfava com mais de uma dama por aí.
— Não, na realidade, não. Ouvi sussurros nas sombras e, com certeza, vi casais
que passavam. Mas tudo de longe. Não pude identificar ninguém. E meus pensamentos
estavam em outra parte.
— Disso tenho certeza.
Os ombros de Mary ficaram tensos enquanto Tristan se voltava para Alicia. Sua
prima parecia ao ponto de desmaiar e tinha visíveis dificuldades para respirar.
— Alguma de vocês, estive no jardim ontem a noite?
— Claro que não, — contestou sua tia ofendida. — E falo pelas duas. Não
abandonamos o salão de baile.
— Suponho que lady Alicia esteve muito ocupada dançando.
— Não tanto quanto possa pensar — ruborizando-se, a jovem baixou o olhar.
Mary desviou sua atenção para Sebastian numa tentativa de determinar o que ele
poderia estar pensando do pequeno intercâmbio de palavras. Mas, ao descobrir a
intensidade com a qual a olhava, quase lhe caiu a xícara. Considerou deixá-la de lado,
mas as mãos tremiam tanto que não queria que o tilintar sobre o pires a delatasse.
Perguntou se ele estaria chateado com ela por ter revelado sobre o beijo. Era evidente
que lamentava tê-la beijado, do contrário não teria partido correndo. E, se ela não
tivesse sido tão covarde, regressando ao salão de baile, quem sabe teria visto quem o
havia atacado.
— Suponho que jamais saberemos quem atacou Keswick — lamentou-se Tristan.
— A não ser que tenha regressado sangrando ao salão de baile. Consegui golpeá-
lo.
— Não imagino que nenhum lorde lhe atacaria — afirmou tia Sophie. — Os
lordes não atacam outros lordes. Sem dúvida foi algum rufião, ainda que não saiba se
poderia duvidar sobre o que estaria fazendo ali. Talvez pretendia assalta-lo.
— Talvez.
Mary percebeu a dúvida em sua voz e suspeitou que ele delegasse a
responsabilidade ao tio. Claro que ele não o culpava, ela concordava.
— Ficamos aliviadas ao comprovar que não foi ferido gravemente — continuou
sua tia colocando-se de pé. — Devemos partir.
— Gostaria de falar com Mary — observou Sebastian.
— Claro que sim — sua tia se sentou.
— Sozinhos.
— Não me parece muito apropriado.
— Não estou em condições de me aproveitar.
— Ainda assim…
— Tia, minha reputação está, sem dúvidas em pedaços. Que mal pode fazer se
conversarmos em particular por alguns minutos? A porta pode ficar aberta. E você pode
ficar no corredor e olhar.
— Se Fitzwilliam souber disso…
— Eu não penso em contar — além do mais, quando souber do beijo, tudo terá
terminado entre os dois.
— Muito bem — a mulher voltou a se levantar. — Alicia, venha comigo.
Ambas as damas se dirigiram à porta enquanto Tristan se levantava de seu
assento.
— Garantirei que as senhoras não se metam em confusão.
Mary sorriu pelo comentário. Suspeitava que fizessem muitos anos desde que
sua tia havia se metido em qualquer confusão e Alícia estava muito ciente de sua
reputação para fazer algo inapropriado. Uma lástima que ela não pudera assegurar o
mesmo.
— Você está muito pálido — ela observou quando todos haviam saído.
— Não estou em condições de receber visitas.
— Sinto a intromissão, mas quando eu soube que alguém havia tentado mata-lo...
Necessitava ver por mim mesma o quanto tinham lhe ferido.
— Pois viu bem mais que isso.
— Sim, e também sinto por isso — ainda que não sentisse de verdade, não
realmente.
A imagem das feridas de Sebastian a atormentariam dali em diante. Deveria ter
insistido naquela noite quando crianças, para que ele pedisse ajuda a seu pai. Sebastian
escolhera um caminho nada fácil para ele e seus irmãos.
— Agradeço que me repreenda em particular.
— Não era minha intenção repreendê-la — ele coçou o queixo. — Eu só…
Como tua tia soube do beijo e por que toda Londres vai saber?
Mary quase preferia ser repreendida por seu comportamento no dormitório do
que admitir a imbecil que havia sido. Tirou um fio da saia. Pensou que, com sua sorte,
se desfaria a costura e ela acabaria nua. Simplesmente este não era seu dia. —Mary? —
Ele insistiu com doçura.
— Quando lady Hermione entrou no atelier da costureira — ela começou
animada pelo tom amável do duque, — e nos contou que todos falavam do ocorrido no
jardim, fui tão vaidosa que acreditei que falavam de mim.
—Você não é vaidosa.
— Você é muito amável, mas soltei sem mais, nem menos que só havia sido um
beijo e que não havia significado nada. De modo que agora sabem que nos beijamos. E
não posso dizer precisamente que saibam guardar um segredo.
— E alguns simples rumores sobre um beijo, sem nenhuma testemunha,
bastariam para arruinar sua reputação?
Mary se esquecera de que Sebastian estava há muito tempo longe da sociedade e
não sabia a rapidez com que trabalhavam os fofoqueiros e quão preciosa era a reputação
de uma dama. Quando crianças, ele às vezes levantava a saia dela para verificar a
gravidade de um ferimento no joelho. Mas o mundo dos adultos era muito diferente. Se
sua tia não a tivesse instruído, ela teria se mantido igualmente ignorante.
— Temo que Fitzwilliam não ficará satisfeito, quando souber.
— Não lhe contou nada? — Sebastian franziu o cenho.
— Claro que não, — ela sacudiu a cabeça. — De todos os modos não o encontrei
depois.
Sebastian ficou completamente imóvel e Mary o olhou, perplexa.
— Aconteceu algo?
— Tristan cruzou com ele no jardim.
— Ai meu Deus! Acredita que ele nos viu? — Isso explicaria por que seu
prometido não havia regressado ao salão de baile, nem a havia procurado para uma
última dança.
Estivera tão obcecada com o ocorrido entre ela e Sebastian que quase não havia
pensado no fato de não ter voltado a ver Fitzwilliam. A verdade era que se sentira
aliviada porque temia que ele visse a verdade em seu rosto. Apesar da afirmação de
Tristan de que não se notava que acabaram de beijá-la, ela se sentia completamente
seduzida.
— Se tivesse nos visto, não teria dito nada?
— Sim, claro. Teria lhe enfrentado, teria nos encarado. Seu orgulho não teria
permitido deixar passar um ato assim, sem exigir algum tipo de satisfação. Não me
refiro a um duelo, nada disso, mas quem sabe algum assalto numa quadra de boxe. De
modo que não creio que tenha sido testemunha de nosso comportamento inapropriado.
Ainda assim, devo falar com ele. Não posso permitir que ele saiba pelos outros.
— Ele não vai gostar de saber.
— Não, — nem eu tampouco.
— Mary sinto muito os problemas que lhe causei.
— Foi culpa minha, jamais deveria tê-lo seguido ao jardim — Mary se levantou
da poltrona. — Por favor, não se levante.
Sebastian a ignorou e, com uma careta de dor, se colocou de pé, enquanto ela
fazia uso de toda sua força de vontade para evitar correr e ajudá-lo.
— Descanse — aconselhou Mary, — e assegure-se de que não infecte a ferida.
— Tenho bastante experiência com feridas, lhe asseguro. Dentro de pouco
tempo, estarei bem. Mary, eu e meus irmãos, estamos em dívida com você, mas parece
que só lhe trago problemas. Lamento qualquer humilhação que possa sofrer por meu
mau comportamento no jardim.
Que outra coisa podia lhe dizer? Devia admitir que o beijo o destroçara
deixando-o com vontade de ter mais? Devia confessar que havia se dado conta que
ela já não era uma menina? Podia um único beijo guardar tanto poder?
— Estarei bem — ela mentiu. — Afinal de contas, não foi mais que um
beijo.
Capítulo 16

Só fora um beijo. Mary havia repetido aquilo várias vezes quando se referia ao
que acontecera entre eles, enfatizando a palavra de que não significara nada. Nada.
À medida que a carruagem avançava pelas ruas de Londres, Sebastian se
perguntava o que ele esperara. Pretendia que ela confessasse ter se sentido, atônita e
desejosa de novamente ser beijada? Queria que ela lhe dissesse que o beijo no jardim
havia sido muito mais poderoso que o beijo trocado nas ruínas da abadia na infância?
— Está muito melancólico — observou Tristan.
— Estou a doze anos sendo melancólico — Sebastian olhou seu irmão que
estava reclinado no assento em frente
— Não, isto é diferente... eu suspeito que tem algo a ver com a conversa que teve
com Mary.
O duque se perguntou como seria a vida sem ter uma conexão tão forte com
outra pessoa. Com certeza sentiria solidão, bem mais do que já sentia nesse momento.
E, ao mesmo tempo, sentiria alívio ao saber que seu estado de ânimo e os motivos
escondidos não poderiam ser tão facilmente decifrados.
— Estou esgotado.
— Então deveríamos regressar para nossa residência. Esta visita pode resultar
infrutífera. Não me recordo de tê-lo visto manchado de sangue.
— Mas você também afirma que estava escuro e que não o viu claramente.
— E que motivos ele poderia ter?
— Quem sabe me viu beijar a Mary?
— Matar um homem por beijar sua prometida me parece um pouco
exagerado.
Em efeito o seria, refletiu ele, surpreso pela veemência do irmão. Em sua mente
se formou rapidamente a imagem de Mary levantando o rosto para receber um beijo,
mas quem se inclinava sobre ela era Fitzwilliam, não ele. O estômago de Sebastian se
encolheu, com tal força, que ele temeu que fosse abrir um ou dois pontos do
machucado. Que demônios lhe acontecia? Para ela não havia significado nada, ela
havia deixado bem claro. E para ele, significara bem menos.
Aquilo havia sido uma distração. Um desabafo momentâneo por aquele
pesadelo em que a noitada havia se convertido. Comparecer ao baile havia servido
para ressaltar suas carências e ele buscara recuperar parte do que havia perdido. A
paixão era uma poderosa distração.
E com Mary fora assim. Ele a utilizara e deveria ser açoitado por isto, mas
estaria ainda disposto a usá-la. Seus lábios eram tão suculentos quanto as frutas recém
colhidas. Ele queria aprofundar-se neles e perder-se no prazer.
— Não irá matá-lo, não é verdade?
— Por que me pergunta? — Sebastian se virou para Tristan.
— Parece alguém a ponto de cometer assassinato.
— Meus pensamentos vagam por lugares obscuros. Ultimamente isto me
acontece muito. Creio que o mais provável é que seja ele quem me mate, se é que já
ouviu as fofocas sobre Mary.
— E, se ele ainda não souber você vai contar?
— A possibilidade de que os rumores sobre Mary não tenham se espalhado é
muito remota. — Ele sacudiu a cabeça.
— Eu temo que sim. Lady Hermione não me pareceu muito familiarizada com o
conceito de silêncio. Nunca conheci uma mulher que falasse tanto sobre qualquer coisa.
Quase a beijei na pista de dança pra ver se se calava.
— Se tivesse feito isto, teria que unir-se a ela pelo resto de seus dias.
— Por isso me contive. Não me daria um segundo de paz.
A carruagem se deteve em frente da modesta residência de Fitzwilliam. Um
lacaio abriu a porta e Sebastian desceu, seguido por seu irmão.
— Então Mary vivera aqui quando estiver em Londres — observou Tristan.
Sebastian se absteve de opinar que ela merecia muito mais. Limitou-se a subir a
escadaria e golpear a porta, com a aldrava. O mordomo abriu e, em sua honra, o duque
constatou que apenas franziu uma sobrancelha ao vê-lo.
— O duque de Keswick deseja ver lorde Fitzwilliam.
— O senhor não está em casa.
— Para mim, ou para ninguém?
— Não está em casa, Excelência, significa que não se encontra aqui.
— Sabe onde ele está?
— O senhor não tem por hábito me informar de suas intenções, além de anunciar
sua ausência.
Claro. A pergunta não fazia sentido.
— Quando regressará?
— Não saberia dizer.
— Não sabe ou não quer dizer?
— Não sei quando ele regressará.
Sebastian deu meia volta furioso e desceu os degraus.
— Que pensa em fazer agora? — Perguntou Tristan.
— Voltar pra minha residência e descansar.
Havia se excedido e o esforço havia sido em vão. Esperava que, ao menos, o
perfume de Mary em sua casa, tivesse se dissipado. Do contrário, seria muito difícil
não pensar nela o resto do dia.

A primeira coisa que Mary sentiu ao entrar no escritório do pai quando foi
convocada, foi alívio por não ver marcas de briga no rosto de Fitzwilliam. Ao ponto
de chorar de alegria, precisava reconhecer que havia considerado a possibilidade de
que fora ele quem ferira Sebastian.
Pensando melhor, era ridícula. Seu noivo não era um homem vingativo.
Ciumento sim, ele mesmo admitiu, mas as damas gostavam dos homens um pouco
ciumentos. Era uma demonstração do muito que significavam para eles, de que se
importavam.
Contudo, ela temia que Fitzwilliam se importasse com coisas diferentes, do que
com ela. Ele estava de pé em frente a ela, o rosto solene e as mãos juntas nas costas.
Mary o olhou nos olhos, sentindo-se uma menina má pega com as mãos na lata de
bolachas.
Seu pai tampouco parecia muito alegre. Sentado num canto, esvaziava um copo
de whisky como se temesse que esse prazer lhe fosse retirado.
— Mary — começou Fitzwilliam.
— Milorde — ela sorriu e viu como seu noivo apertava a mandíbula.
Aquilo não pressagiava nada bom. Só havia passado um dia desde o desastre
desatado no atelier de costura. Era impossível que já soubesse. Ela estivera escrevendo
uma carta com uma explicação. Era uma covarde! Deveria tê-lo procurado diretamente
em sua residência no dia anterior e contado tudo, mas uma pequena parte dela havia
albergado a esperança, de que sua tia tivesse amanhecido com 20 anos menos e que
lady Hermione e lady Victória tivessem mantido o segredo.
— Consenti que falasse com Keswick durante o recital de lady Alicia porque
sabia que era seu amigo e que fazia muitos anos que não o via. E, quando me inteirei
que havia se encontrado com ele, no Hyde Park, optei por ignorar a transgressão.
— Não creio que possa ser considerada uma transgressão. Simplesmente quis
convencê-lo a participar dos bailes. Estivemos a vista de todo o mundo, o tempo todo.
— Eu sei, já que quem me informou me disse que você permaneceu
montada a cavalo e que não aconteceu nada inapropriado. Ainda assim, esteve com
ele. No baile, esteve falando sozinha com ele, e sem acompanhante.
— Havia centenas de acompanhantes no salão de baile.
— E no jardim? — Fitzwilliam levantou uma sobrancelha. — Quantas
acompanhantes estavam lá?
Mary se sentia confusa. Seu noivo tentava humilhá-la. Muito devagar, se sentou
numa poltrona.
— Sim, chegou aos meus ouvidos que você esteve em um encontro no jardim.
— Por Deus, Mary! — Exclamou seu pai.
— Eu não diria que foi um encontro.
— Nega tê-lo beijado? — Perguntou Fitzwilliam.
— Mary? — Rugiu seu pai.
Ela fixou o olhar na ponta de seus sapatos enquanto se perguntava como
poderia dar um chute, em si mesma.
— De modo que os rumores são verdade — insistiu seu noivo.
— Depois do incidente na pista de dança — Mary lhe dedicou um olhar
significativo, — eu quis fazê-lo compreender que poderia ter acontecido com qualquer
um, já que você me assegurou que não fizera de propósito.
Fitzwilliam ajoelhou-se frente a ela e lhe tomou as mãos. Mary não se
recordava de tê-lo tão perto, nem quando ele havia se declarado. Naquele dia haviam
tomado o chá, e ele nem sequer se importou em deixar a xícara de lado, depois de um
gole lhe havia anunciado: ―— Estive me perguntando, querida menina, se poderia
considerar se casar comigo‖.
Não fora romântico, nem apaixonado, mas a havia comovido. Fitzwilliam era
deliciosamente reservado. Contudo, depois dos últimos acontecimentos, ela o havia
magoado. Podia ver em seu olhar.
— Suponho que, se é culpada de algo, Mary, é por ter um coração de ouro. Mas
Keswick não é seu problema.
— Mas ele é meu amigo, Fitzwilliam.
— Era seu amigo, quando eram crianças. Se continuasse seu amigo, não faria
coisas que mancharam sua reputação e a minha.
— Aconteceu sem mais. O beijo. Nem sei por que começou. Estávamos falando
e, de repente, estávamos nos beijando. Eu sinto muito. Jamais pretendi lhe dar motivos
para duvidar de mim.
— E por isso vou deixar pra lá. Desta vez. Iremos juntos ao próximo baile para
que Londres veja que você me pertence. Por que você me pertence, não é verdade?
— Sim, sem dúvida alguma — Mary sentia as lágrimas arderem em seus olhos,
pois ultimamente haviam surgido muitas dúvidas em sua mente.
— Estupendo. Mas deve me prometer que jamais voltará a falar com ele.
— Nunca? — Ela o olhou, sobressaltada. — Sugere que eu o ignore?
— Ou ele ou eu, Mary. Se lhe escrever uma carta para lhe explicar os limites,
ele deveria se comportar como um cavalheiro e não voltar a colocá-la em uma situação
em que se veja obrigada a escolher.
— Eu passei anos sem vê-lo, sem falar com ele. Não pode me negar...— ―esse
prazer‖, ela quase esteve a ponto de dizer.
Na realidade não era um prazer, e sim, mais um desafio, uma justiça. Quando
crianças haviam compartilhado muitas coisas. Não voltar a compartilhar nada, nunca
mais, seria uma desgraça.
— E se eu prometer nunca mais ficar sozinha com ele? Isso deveria ser
suficiente.
— Vejo que será uma esposa rebelde — Fitzwilliam levou as mãos de Mary aos
lábios e fechou os olhos.
— Não serei eu prometo.
— Rebelde — ele abriu os olhos e sorriu, — porque quando me pede algo, me
resulta muito difícil negar. Vou me contentar com que não fique sozinha com
ele e que só fale com ele em minha presença, ou na de seu pai.
— Grata milorde — ela sentiu um imenso alívio. — Pensei que não ia mais
querer saber de mim depois de ouvir os rumores.
— A duas semanas das bodas? Precisará bem mais que cochichos para manter-
me longe da igreja. Mas, claro que não gostaria de ouvir nenhum outro.
— Quem sabe deveria encerrá-la em seus aposentos até o dia do casamento —
sugeriu seu pai.
— Ela não é uma criança, Winslow — contestou Fitzwilliam. — Confio em sua
palavra.
Mary sentiu vontade de abraçá-lo, por seu voto de confiança, e jurou que jamais
voltaria a decepcioná-lo. Seria uma esposa exemplar e não lhe daria mais motivos para
duvidar dela.
— Uma coisa mais — soltando-lhe as mãos, ele ficou de pé. — Aquela
gargantilha com a pedra verde que usou na outra noite, não voltará a usá-la. Na
realidade creio que o melhor seria que a devolvesse para Keswick.
— Como soube? — Ela o olhou, espantada.
— Eu perguntei ao seu pai sobre isso. E ele perguntou a sua donzela. Não
permitirei que minha esposa aceite presentes de outro cavalheiro.
— Eu ainda não sou sua esposa.
— Mas, se quer ser, terá que devolvê-lo. Considerando um gesto de boa fé. Mas
fez mal, Mary. Você acredita de verdade que estou pedindo muito?
Mary sacudiu lentamente a cabeça. Já havia dito a Sebastian que não deveria
aceitar o presente.
— Devolverei logo. Ainda que deva saber que não foi um presente de Keswick,
mas um presente dos três irmãos.
— Um presente de três homens? Não quero imaginar as fofocas que sairiam
disso. Mais um motivo para devolvê-lo.
Fitzwilliam se despediu de sua noiva e de seu pai antes de partir enquanto
Mary se perguntava se chegaria a ser feliz com esse homem.
— Você precisa deste casamento, Mary — assinalou seu pai. — Eu necessito
saber que estarás a salvo. Se eu faltar, terei falhado em tudo.
— O senhor não falhou em nada, pai.
— Não consegui ter um herdeiro que cuide de você quando eu me for. Mary
suspeitava que a falha fosse compartilhada em partes iguais com sua mãe.
— Diz como se estivesse pensando em me abandonar a qualquer momento.
— A vida é frágil, filha. Pensei que os meninos Pembrook haviam lhe mostrado
isso.
— Sabia que alguém tentou matar Sebastian?
— Um terrível acontecimento — o homem assentiu. — Dizem que foi um
soldado que o acusa de ser um covarde.
— E o senhor acredita?
Seu pai sacudiu a cabeça lentamente.
— Mas, se for esperta, guardará suas opiniões, para você mesma. Deixe de
tentar ajudar os lordes de Pembrook, só pode levá-la a sua queda. Sua lealdade, agora
deve estar com Fitzwilliam.
— Sim, pai — esse homem não fazia nem ideia do que estava lhe pedindo, do
que seu noivo lhe pedia. Abandonar seus amigos.
Sabia que os três irmãos não lhe julgariam. Por acaso Sebastian não lhe pedira
que se mantivesse a margem? Ainda assim, não conseguia evitar sentir-se uma
traidora.
Meu queridíssimo Sebastian,
Com um profundo pesar, devo devolver este precioso presente que você e seus irmãos
me deram. Desgraçadamente, também devo pedir que, caso nossos caminhos voltem a se
cruzar, não me dirijas nenhuma palavra. Meu noivo opina que devo comportar-me de maneira
impecável para superar esta tormenta de fofocas que complicou a temporada para todos.
Por favor, não se esqueça de que sempre o levarei no meu coração.
Sempre sua
Mary

Deitado na cama, Sebastian recolheu a gargantilha que havia deslizado da nota


que seu mordomo acabara de lhe entregar. Ele não entendia porque ela precisava
devolvê-la. Quem a obrigara a fazer aquilo? Seria por culpa dos rumores que corriam
pela cidade sobre o ilícito beijo que haviam compartilhado no jardim?
Um beijo que a ele não parecia nada ilícito, mas, sim, maravilhoso. Diferente
da ferida que ardia diabolicamente.
A febre havia começado em algum momento da noite. Deveria ter imaginado.
Não havia descansado tal e como havia sido aconselhado pelo médico. Até agora,
quando já não possuia energia para se levantar. Deveria contatar com Mary para
assegurar-se de que tudo estava bem. Deveria visitar Fitzwilliam e explicar-lhe que
não supunha nenhuma ameaça. Só quero o melhor para Mary.
―Deve ser assim. Levante-se. Solucione o problema‖, ordenou a si mesmo. Era isto
que devia fazer. Contudo, sucumbiu ao zumbido no ouvido.
Capítulo 17

Na tarde seguinte ao dia em que devolveu a gargantilha a Sebastian, Mary


estava sentada no jardim, tentando ler. De vez em quando até passava uma página,
imaginando que seu pai a estivesse vigiando do escritório. Não havia esperado, nem
mesmo sonhado, que Sebastian lhe devolveria o presente para oferecer-lhe a
oportunidade de se explicar.
Claro que se supunha que não deveria falar com ele.
Ainda que, se ele fosse a sua casa, a etiqueta exigia que o recebesse com
amabilidade.
Claro que seu pai o expulsaria antes que ela pudesse vê-lo. E depois contaria
para Fitzwilliam.
Mary teria arrancado o cabelo aos puxões.
A menina que havia corrido para Pembrook naquela noite não teria permitido
que os outros ditassem sua vontade. Quando havia mudado? Era parte de ser uma
dama? Ou de uma covarde?
Desejava tão desesperadamente se casar que deixaria de ser fiel a si mesma? Ou
acaso desejava Fitzwilliam, desesperadamente?
E, se o desejava, por que, quando estavam juntos, ela nunca se perguntava
como seria beijá-lo? Porque não conseguia esquecer a sensação dos lábios de
Sebastian sobre os dela? Porque desejava que ele a beijasse outra vez? Mais
docemente, não tão selvagemente, ainda que não pudesse negar que havia sido
excitante. Porque ela pensava que a doçura faria regressar o menino que havia
conhecido?
Aquele menino havia se perdido para sempre.
Duvidava muito que pudessem voltar a serem amigos como haviam sido
quando crianças. Um amigo não a olharia como se quisesse devorá-la. Por outro lado,
Sebastian parecia não ter paciência para nada, e não podia culpá-lo depois de doze
anos de espera. Contudo, essa impaciência faria a vida de sua esposa difícil. Precisar
sempre prever o estado de ânimo e os desejos dele, poderia levar a qualquer uma a
loucura.
Fitzwilliam era muito mais simples de decifrar. Controlava seu estado de ânimo
e, até quando estava enfadado, se conduzia sempre com correção. Sentia-se tão
envergonhada por ter se deixado levar por um comportamento impróprio que jamais
deveria ter acontecido. Ele possuia todo o direito do mundo de estar chateado com ela.
Estava decepcionada consigo mesma. Já não era uma criança, livre para correr
de um lado ao outro e fazer o que quisesse. Possuia responsabilidades. Pediam-lhe que
se comportasse de determinada maneira, que fosse digna de seu esposo, Fitzwilliam
era visconde e, algum dia, seria marquês. Ela compreendia porque não lhe agradava
que falasse sozinha com outros homens, que havia ignorado sua falta de juízo nas
vésperas do casamento. Jamais abusaria dela, nem se mostraria descortês. Não teriam
disputas, tormentas ou aventuras.
Mary suspirou. Não seria de estranhar que se tornasse louca de aborrecimento.
Fechou os olhos com força. Não deveria pensar em tais coisas. Nunca lhe
ocorreram antes de Sebastian regressar, mesmo que, claro, não lamentava que ele
tivesse retornado. Porque isso significava que ele estava vivo. E seu amigo de infância
lhe importava demasiado para desejar-lhe algum mal.
— Milady?
Mary abriu os olhos e se fixou no mordomo, de pé, diante dela com uma
bandeja de prata na mão. Ao que parecia lady Hermione e lady Victoria desejavam
mais informação sobre os lordes de Pembrook. Que decepção sofreriam, quando
soubessem que já não poderia lhes servir de fonte de diversão!
— As receberei aqui — instruiu o mordomo. —Faça com que tragam chá e
bolinhos.
— Sim, milady.
Mary se levantou para receber as visitas. Em duas semanas o faria na casa de
Fitzwilliam. Bem, quem sabe um pouco mais tarde, já que partiriam para um mês na
Itália depois do casamento. Seria a primeira vez que abandonaria a costa da Inglaterra
e estava cheia de alegria para conhecer novos lugares.
Quando as damas se aproximaram, obrigou-se a sorrir. Hermione aproximou-se
primeiro e, para surpresa de Mary apoiou as mãos em seus ombros, a atraiu até ela e
lhe roçou as bochechas com as dela.
— Minha querida menina, que horrível foi para você. Quem dera nos tivesse
contado tudo.
Do que ela estava falando?
— Devo confessar que, lamentavelmente, Victoria e eu não mantivemos seu
segredo sobre o beijo — lady Hermione se afastou ligeiramente, sem soltá-la.
— Nunca confiei que vocês mantivessem silêncio. Era uma fofoca muito
suculenta, eu temo.
— Mas se soubéssemos que foi forçada, que teve que fugir a força...
— O Quê? —Mary reagiu horrorizada. — Do que você está falando?
— Keswick se comportou com um crápula e não lhe deu nenhuma oportunidade.
— Quem lhe falou essas bobagens?
— Circula por toda Londres. Seus irmãos e ele serão rejeitados em qualquer
residência decente. E não é justo. Não é nada justo.
— Não poderia estar mais de acordo. È intolerável — Londres estava cheia de
mentiras. Como tudo havia começado?
— Graças a Deus que você entende. Significa que falará por lorde Tristan para
que, ao menos ele, seja recebido nas casas?
— Lorde Tristan? — Mary se sentia arrastada por um torvelinho de palavras
sem sentido.
—Sim. Ele não deveria sofrer as consequências, eu não deveria sofrê-las,
mesmo que seu irmão seja um selvagem.
— Keswick não é nenhum selvagem. Ele não me forçou. De onde saíram esses
rumores horríveis?
Hermione finalmente soltou Mary e deu um passo para trás.
— Pois de onde surgem todos os rumores. Da verdade.
— A verdade é que compartilhamos um beijo no jardim. Um beijo que ambos,
ou, ao menos eu, desfrutamos.
— Você o animou a ter liberdades com você? — lady Hermione arqueou uma
sobrancelha.
— Eu não o animei, e ele não tomou nenhuma liberdade — Mary estava
consciente de que suas palavras podiam ser mal interpretadas. — Ele me beijou. Nada
mais. Somente lábios explorando — de novo se interrompeu. Qualquer explicação que
lhe ocorresse não faria mais que piorar tudo.
— Dizem que ele rasgou seu corpete. A costureira admitiu ter consertado seu
vestido.
Mary estava estupefata. Toda aquela loucura lhe recordava um jogo de salão
em que uma pessoa sussurrava algo ao ouvido de outra, que por sua vez sussurrava a
outra, até que a mensagem regressava ao primeiro que deveria pronunciar a frase, bem
alto. A frase final mal lembrava a inicial. Era um jogo engraçado. Mas agora não
estava se divertindo com isso.
— E quem está propagando essas afirmações ridículas?
— Bem, todo mundo, claro.
— Regressei ao salão depois do beijo.
—Eu não a vi, ainda que me disseram que foste embora apressadamente.
— Estava com o cabelo desarrumado — interveio lady Victoria. — Vi lorde
Tristan arrumá-lo. No terraço.
Mary vivera, anos, ignorada por todos e sem que ninguém se houvesse dado
conta de que já possuia idade para sua apresentação na sociedade de Londres. E, de
repente, estava na mira de todo mundo.
— Todo este assunto é absurdo.
O que Sebastian estaria pensando? Teria ouvido os rumores? E Fitzwilliam?
Que confusão!!
— O chá, milady.
Uma serviçal havia levado uma bandeja com xícaras de porcelana e bolinhos.
Tudo muito civilizado e apropriado. Como ela se sentaria e tomaria chá como se nada
tivesse acontecido?
— Leve de volta à cozinha.
A empregada fez uma reverência e saiu correndo, como se pressentisse a
iminente tempestade. Hermione, ao que parece, não era tão intuitiva.
— Mas a mim agradaria tomar um pouco de chá enquanto conversamos. Se nos
der os detalhes do acontecido naquela noite, quem sabe poderíamos ajeitar as coisas
para que lorde Tristan volte a ser recebido nas casas.
Outra vez lorde Tristan? Como era possível que lady Hermione não
compreendesse que lorde Tristan era a menor de suas preocupações?
— Nunca foi bem-vindo, nem sequer na sua casa. Seus pais não o queriam ali.
Como consegue ser tão obtusa, tão centrada unicamente em seus próprios desejos?
— Não precisa ficar assim — lady Hermione se ergueu.
— Se me desculpar, devo falar com lorde Fitzwilliam. Os rumores a haviam
alterado enormemente. — E se ele desafiara Sebastian num duelo?
Com seu treinamento militar, Sebastian o destroçaria, em segundos. Apesar de
que Sebastian possuia a visão prejudicada, e fosse bem provável que já não fosse
capaz de acertar o alvo. Fitzwilliam poderia provocar um dano irreparável.
— Pois Fitzwilliam não parecia muito alterado quando falou com meu pai
sobre eles — interveio lady Victoria.
— E por que ele falaria deles com seu pai?
— Ele disse que os cavalheiros deviam se assegurar de que Keswick não se
aproximasse de nenhuma mulher. Disse que seu comportamento covarde no campo de
batalha ao que parece se estende a sua maneira de tratar as damas. Querem que eles
abandonem Londres.
Aquilo não fazia nenhum sentido. Por que Fitzwilliam falaria mal de Sebastian?
Com mil perguntas correndo em sua mente, ela se dirigiu a casa.
— Que você vai fazer? — Perguntou lady Hermione.
Mary não respondeu, deixando as jovens olhando-a espantadas.

Ela pensou em falar com seu pai, mas ele lhe aconselharia a deixar tudo como
estava e aquilo, não era uma opção. De modo que mudou de roupa e pediu a
carruagem. Enquanto avançava pela rua, começou a chover. Muito de acordo com seu
ânimo. Que se passava com as pessoas? Por que não se alegravam com o retorno do
lorde? Por que os contemplavam com desconfiança? Por que acreditavam nos rumores
de que Sebastian fora um covarde, no campo de batalha? Por que acreditavam que ele
seria capaz de violentá-la? De verdade pensavam que, se houvesse acontecido, ela não teria
dito nada? Teria argumentado, arranhado, debatido, e gritado. Jamais haveria
sucumbido voluntariamente a algo que não desejasse.
A carruagem se deteve. A porta foi aberta e o lacaio, com sobrinha na mão,
ajudou-a a descer. Mas, nem com suas largas passadas conseguiu acompanhar o ritmo
de Mary, que corria até a porta de entrada da residência de Fitzwilliam, não se
importando que a chuva caísse sobre seu rosto.
— Onde está seu senhor? — Ela perguntou ao mordomo.
— Anunciarei sua chegada.
— Apenas me diga ele onde está, ou juro que o retirarei do posto quando me
converter na senhora desta casa.
— No escritório, milady.
Mary avançou pelo corredor com os punhos cerrados. Precisava, estava
preparada para entrar em combate, ainda que esperasse descobrir que estava
equivocada em suas suspeitas.
Um serviçal fez uma reverência enquanto abria a porta do escritório. Ela entrou
como um vendaval e se deteve num golpe. Fitzwilliam estava recostado numa poltrona
junto ao fogo com uma taça na mão e, aparentemente, perdido em seus pensamentos.
Durante um instante lhe pareceu vulnerável e ela se imaginou em muitas noites como
aquela, sentados junto ao fogo. Leriam juntos, falariam e, com sorte ririam de alguma
bobagem.
Fitzwilliam levantou o olhar e franziu o cenho enquanto se levantava
lentamente, como se acabasse de despertar de um sonho. Ainda que não conseguisse
acreditar que ela, simplesmente, estivesse ali, diante dele, toda molhada.
— Lady Mary, aconteceu algo? Que faz aqui?
— Você é o responsável pelos rumores segundo os quais Keswick me forçou
no jardim? — Ela perguntou depois de respirar fundo.
— Não — o cenho franzido foi substituído por uma expressão de irritação.
A resposta se assemelhou a um disparo. Ela o havia ofendido. Mas, por mais
que lamentasse, necessitava saber. Por que necessitava saber a inquietava, mas isso ela
analisaria mais tarde.
— Então deve ter sido o tio dele, em uma nova tentativa de desacreditá-lo, de
conseguir que toda a sociedade lhe dê as costas. Estou certa de que ele também
propagou a absurda história sobre a covardia de Keswick no campo de batalha.
— E por que deveria preocupa-la?
— Porque ele é meu amigo.
— E tinha tanta pressa para me interrogar que nem sequer pode usar uma
sombrinha? — Fitzwilliam avançou até ela.
— Eu estava alterada e não refleti.
— Não o acredita sem moral, e, no entanto, questiona a minha?
— Eu sinto muito — Mary não o havia apenas ofendido, havia ferido também. —
Sei que você é um bom homem.
— Pois parece que não acredita nisso.
— Sim eu acredito. Jamais haveria aceitado sua proposta de matrimônio se
duvidasse do tipo de homem que você é. Pensei que quem sabe tivesse feito uma
tentativa equivocada, ainda que bem intencionada, de proteger minha honra.
— Asseguro que não tenho por costume equivocar-me em minhas ações.
— Claro que não. E espero que consiga perdoar a minha impertinência
— Quem dera eu pudesse assegurar que lhe perdoaria qualquer coisa, mas devo
admitir que, começo a me cansar de encontrar Keswick, constantemente, em nossas
vidas. Quando nos casarmos, ele não aparecerá por aqui. Espero contar com a sua
palavra.
O que ele estava pedindo? Não lhe permitiria voltar a vê-lo?
— E suponho que não faria nada para calar os rumores segundo os quais ele se
aproveitou de mim — insinuou ela timidamente.
— Se eu fizesse isto, estaria dando por certo de que você o beijou
voluntariamente — Fitzwilliam se afastou dela. — Compreende em que posição isso
me colocaria isso? Corno antes de nos casarmos. Opino que o silêncio é o melhor. Os
rumores se desvanecem se não são reavivados, constantemente, com mais fogo.
Claro que ele estava certo. Se não reagissem aos rumores, as pessoas logo se
aborreceriam. Mas, quem repararia o dano causado a Sebastian enquanto isso?
— Devo admitir que admiro sua lealdade por este homem — Fitzwilliam se
voltou de novo para ela. — Quem dera eu desfrutasse do mesmo tratamento.
— E assim é — de repente, Mary se sentiu pouco digna dele. — Serei uma
esposa tão devota que jamais terá motivo de dúvida.
— Assim espero. Assunto terminado? Ainda não.
— Lady Hermione mencionou que o ouviu aconselhar ao pai dela, a convencer
os demais para que não permitam a entrada de Keswick nos lares decentes.
— Ele pediu minha opinião e eu a dei. Desde o regresso deles, não causaram
mais que problemas. Disse-lhe que não seriam bem-vindos em minha casa. O que ele
decida fazer é assunto dele.
— Não é justo.
— Quem sabe com o tempo aprendam a se comportar com um pouco mais de
decoro. Quando aprenderem a se conformar, as pessoas estarão mais a vontade com
eles.
Se de algo Mary estava segura era de que os três lordes não se conformariam
nunca. Talvez ela tenha sido apressada ao animá-los a participar da vida social.
Fitzwilliam estava certo, eles teriam que abrir seu próprio caminho, sozinhos e no seu
devido tempo.
— Você muito travessa ao vir aqui sem acompanhante — seu noivo lhe
acariciou os cabelos molhados.
Mary se perguntou se ele se aproveitaria dela, inclusive poderia beijá-la. Não
imaginava Sebastian deixando passar uma oportunidade assim, caso se encontrasse
sozinho com a mulher com quem se casaria. Não o considerava nenhum bárbaro,
simplesmente um ser marcadamente sensual. Ainda que ele não se visse assim.
— Esta noite vamos jantar na casa dos Moreland — Fitzwilliam deslizou os nós
dos dedos pela bochecha e a contemplou. — Permita-me acompanha-la até sua
carruagem para que possa regressar a sua casa e se preparar. Enviarei minha
carruagem às sete e meia. Ela não deveria se sentir decepcionada por que ele não se
aproveitou dela. Sua reputação já estava bastante frágil e não havia nenhuma
necessidade de fazê-lo duvidar de sua capacidade para se comportar como uma dama.
Fitzwilliam lhe ofereceu o braço e se dirigiram à porta. Estavam tão juntinhos
que a saia de Mary roçava as calças de seu noivo. Contudo, a proximidade não
resultava escandalosa. Não deveria sentir desejo de apertar-se contra ele?
Por que se fazia essas perguntas ultimamente? Esse homem era bom para ela.
Entendiam-se perfeitamente bem.
Um lacaio os seguiu, com uma sombrinha, até a carruagem.
— Verei você mais tarde. Não esqueça sua promessa. Nada de Keswick.
A reputação de um homem não é tão importante quanto a de uma dama. A
ninguém importa, realmente, o que façamos. Todo esse assunto sobre o beijo será logo
esquecido, sobretudo quando estivermos casados.
— De novo lhe peço perdão por pensar que queria fazer mal a Sebastian — ela
assentiu.
— Não me casaria com você se não fosse como é.
Depois de fechar a porta da carruagem, o visconde deu instruções ao cocheiro
para levá-la de regresso a casa dela. Olhando para trás, Mary viu seu noivo
observando sua partida. Ele se preocupava com ela.
Mas, quem se preocupava com Sebastian? Se ouvisse os rumores,
acreditaria que havia sido ela quem os espalhara...
Não suportaria essa possibilidade.
Quando a carruagem virou a esquina e estava segura de que Fitzwilliam já não
a via, colocou a cabeça para fora pela janelinha, ignorando a chuva.
— Chambers, leve-me para Easton House.
— Sim, milady.
Reclinando-se sobre o banco, Mary secou o rosto com um lenço. Sabia que
Fitzwilliam não aprovaria. Simplesmente devia assegurar-se de que ele jamais
descobriria.
— Chambers — ela voltou a por a cabeça pela janelinha, — vá pela porta de
trás, não pela porta principal.
Se o cocheiro respondeu, suas palavras se perderam com o rugido do trovão.
Mary voltou a se acomodar no banco enquanto rezava para que não fosse um sinal de
desaprovação do Altíssimo. Ninguém se concentraria nela se entrassem pela porta de
serviço. Veria Sebastian, lhe explicaria que não era responsável pelos rumores e que,
se ele os ignorasse, desapareceriam. Em cinco minutos faria tudo. Depois regressaria
para casa
Assim, simples. Aproveitaria também para explicar o motivo da devolução da
gargantilha e como deviam evitar-se, um ao outro. Sem dúvida ele compreenderia o
ciúme do noivo dela, pois também sentiria o mesmo quando escolhesse uma mulher
para se casar. Ele jamais toleraria que ela estivesse sozinha com outro homem.
E de repente um terrível pensamento a assaltou. E se ele não quisesse vê-la? E
se a carta e os rumores horrorosos que circulavam tivessem cortado os últimos fios de
sua frágil amizade? Quando a carruagem se deteve, estava morta de preocupação. Se
não estivesse enfadado com ela, ele compreenderia, ao menos, ele lhe teria enviado
uma missiva nesse sentido.
Entretanto, tudo o que recebera dele foi o silêncio. O lacaio abriu a porta e
ajudou-a a descer e, como aconteceu na casa de Fitzwilliam, custou ao homem
acompanhar as passadas de Mary até a porta. Ela sentia uma enorme urgência de ver
Sebastian, para conseguir ajeitar as coisas entre eles. Sua lealdade estava com
Fitzwilliam, mas não podia ignorar Sebastian.
A chuva forte a golpeava, cada gota gelada era um aviso da frieza com que
Sebastian poderia tratá-la. As poças em que ela pisava empapavam a bainha do
vestido. Ao chegar à porta golpeou-a com força. Um servente abriu e ela entrou sem
ser convidada. O lacaio a olhou com olhos arregalados, mas ninguém a deteve até que
chegou ao vestíbulo e se encontrou com o mordomo. Ela estava ensopada e os cabelos
gotejavam, mas nada lhe importava.
— Por favor, diga a Sua Excelência que lady Mary Wynne-Jones deseja vê-lo.
— Eu sinto milady, mas o senhor não recebe ninguém.
— Sim, ele me receberá — Mary empinou o queixo e falou com o peso do
status de seu pai.
— Eu o informarei de sua chegada. — O mordomo fez uma leve inclinação.
Ela esperava que ele desaparecesse corredor abaixo, porém, o homem subiu a escadaria
até os aposentos dele. Ela se perguntou se Sebastian estaria se aprontando para a
noitada dos Moreland. Parecia um pouco cedo, e nem sequer lhe havia passado pela
mente que ele fosse comparecer. Vê-la ali resultaria bastante incômodo, a não ser que
ele houvesse compreendido tudo. Sua decisão de ir a Easton House havia sido acertada,
na realidade essencial, para não enfurecer, desnecessariamente, Fitzwilliam naquela
noite.
Olhando ao seu redor, ela viu um espelho e se aproximou. O reflexo que a saudou
lhe provocou uma exclamação. Estava terrível. O chapéu estava amassado e os cabelos
continuavam pingando. Parecia um gato que alguém tentou afogar.
Sebastian sem dúvida riria dela, como havia feito na infância quando ela caiu
no rio. Naquela ocasião ela não sabia nadar. E então ele a havia ensinado, usando
apenas a roupa inferior. Já quase havia esquecido. Naquele momento, algo assim seria
impensável.
O som das pisadas a fez voltar-se às escadas. Surpresa viu que não era
Sebastian quem se aproximava.
— Lorde Tristan.
— Lady Mary. — Ela sorriu timidamente.
— Perdoe a informalidade. Resulta pretenciosa depois de tudo o que
compartilhamos. É que fui pega de surpresa. Vim ver Sebastian.
— Thomas me disse. Desgraçadamente, Sebastian não pode receber visitas.
— Visitas ou a mim? — Sem esperar resposta, Mary começou a subir as
escadas.
— Mary espere, — Tristan a alcançou e a pegou pelo braço para detê-la.
— Já sei que está alterado pelos rumores, mas devo dar-lhe uma explicação. —
Soltando-se, ela prosseguiu seu caminho.
Tristan não tentou detê-la ainda que a seguisse de perto.
Mary seguiu o familiar caminho que havia acelerado sua desgraça uma ocasião.
Contudo, dessa vez não havia testemunhas salvo Tristan, que sem dúvida, manteria a
boca fechada. Ela falaria com o duque e partiria. A porta estava aberta e ela entrou,
mas em seguida se deteve, bruscamente.
Sebastian estava deitado na cama, respirando com dificuldade, banhado em
suor. Usava uma camisa de dormir, desabotoada e molhada. Mary se aproximou com
cautela e pousou a mão sobre sua testa. Ele estava com febre. Mais que febre. Ela
jamais havia tocado uma pele tão quente.
— Ele está ardendo.
— A ferida infeccionou. Já chamei o médico.
Mary percebeu o cheiro rançoso e, de repente, viu algo que se sobressaia de
mão fechada de Sebastian, a gargantilha. Sua gargantilha. Com delicadeza, lhe tocou o
punho.
— Não consegui que ele a soltasse — lhe explicou Tristan.
— Como isso aconteceu? — A causa da febre não podia ser a devolução da
gargantilha. — Ele nos recebeu sem problemas.
— Creio que ele se levantou da cama muito cedo. Excedeu. Por sua culpa.
Pelas suspeitas. Por seu tio.
— Não pode ficar Mary. Ela
concordou, ela sabia.
— Enviarei uma mensagem quando o médico o vir. E a farei saber como ele
está.
De novo ela concordou, justamente antes de e sentar na borda da cama, retirar o
pano molhado de uma vasilha e escorrê-lo.
— Mary, você não pode ficar — insistiu Tristan.
— Eu já sei — ela apertou a testa de Sebastian com o pano molhado. Ela
precisava comparecer a um jantar. Seu noivo iria buscá-la às sete e meia. Devia se
preparar. Continuou passando o pano pelo pescoço de Sebastian, pelas cicatrizes.
Havia prometido a Fitzwilliam que não se aproximaria de Sebastian, que não voltaria a
estar sozinha com ele.
E não estavam sozinhos. Tristan estava ali.
— Mary…
— Se eu continuar molhada assim, eu vou adoecer. Você se importaria de pedir
a uma das empregadas que me empreste uma roupa e venha me ajudar a me trocar?
— Não precisa nos salvar sempre Mary.
Mas, nessa ocasião, ela se perguntou se não estaria salvando a si mesma,
também.
Capítulo 18

Ele havia abandonado Pembrook. Havia deixado Rafe no orfanato. Órfão.


Obrigariam-no a trabalhar, mas lhe dariam roupa e comida. Havia vendido Tristan
para um capitão de navio. Aquelas ações poderiam ser desculpadas porque não era
mais que um menino. Mas, agora, já era um homem e não abandonaria um soldado no
campo de batalha. Não voltaria a abandonar ninguém, nunca mais.
A batalha prosseguia com fúria. O calor o consumia. Não deveria fazer tanto
calor. Na Criméia fazia frio, mas no calor da batalha estava suando. Precisava
alcançar o companheiro caído. Abaixou-se. Os projéteis zuniam, os canhões
disparavam. Os homens gritavam. Os cavalos relinchavam. O sangue salpicava-o, algo
queimava-o. Algo afiado lhe atravessou o flanco.
O grito tortuoso o tirou das profundezas do inferno.
— Fique tranquilo.
Respirando com dificuldade, fitou os familiares olhos verdes. Queria tocar sua
bochecha. Sem dúvida estaria fresca. Sua febre teria baixado. Mas, quando tentou
esticar o braço, ele não lhe obedeceu. E compreendeu que estava amarrado. Puxou
com força.
— Não!
— Fique tranquilo — insistiu ela. — É preciso curar a ferida. Não será
agradável, Sebastian.
— Solte-me — ele ordenou com voz rouca.
— Não podemos deixar que se mova irmão.
Tristan. Maldito. Esperaria isso de Rafe, não de Tristan. Rafe sem dúvida
desfrutaria com a agonia que a impotência lhe provocava.
— O médico vai aplicar éter — informou Mary. — Estará dormindo durante a
pior parte.
— Não, não me mande para lá de novo — Sebastian movia a cabeça de um lado
ao outro. Não queria regressar aos pesadelos e aos remorsos.
— Segurarei sua mão. Não a soltarei.
— Não — algo se interpôs entre sua visão e Mary.
— Respire, Excelência — ordenou alguém. — Respire profundamente.
Não queria dormir. Odiava dormir. Quando dormia, sonhava. Todos os
remorsos, e pesadelos regressavam.
Tentou manter o olho aberto, permanecer com ela, não sucumbir...Mary temia
que o médico tivesse administrado éter em demasia. Depois de limpar a ferida, que
apresentava um aspecto horrível, havia despertado Sebastian apenas para assegurar-se
que continuava vivo, e depois lhe havia administrado láudano, antes de partir.
— Será melhor que ele durma.
De vez em quando, de seus lábios escapava um gemido ou um grunhido.
Geralmente dizia que não. Às vezes gritava.
— Contra o que acredita que está lutando? — Ela perguntou enquanto lhe
molhava o pescoço e o peito com o pano molhado
— Contra o que todos nós lutamos, — Tristan estava reclinado em uma
poltrona do outro lado da cama, os pés descalços. — Os demônios.
Mary supôs que ela também teria alguns para combater nos próximos dias. A
honra a havia obrigado a escrever uma nota para Fitzwilliam. A prudência a havia
levado a mentir, assegurando sofrer uma terrível enxaqueca que a mantinha prostrada
na cama e que a impediria de comparecer ao jantar. Não acreditava que seu pai fosse
comprovar sua presença. Sem dúvida passaria a noite em algum clube de cavalheiros.
Se seu verdadeiro paradeiro fosse descoberto, estaria metida numa tremenda
confusão. Mas jamais lamentaria estar ali. Pensou em confessar para Tristan o que
jamais havia contado a Sebastian.
— Sempre me incomodou que tenham me deixado para trás.
— E Rafe ficou magoado por ter sido abandonado num orfanato. Vocês
deveriam conversar.
— E a você, incomodou ter que embarcar? — Mary fitou Tristan.
— Pensei que seria uma aventura divertida.
— E foi?
— Algumas vezes.
Ela devolveu sua atenção ao torso de Sebastian, largo e forte. O imaginou
brandindo uma brilhante espada. Ou, quem sabe um rifle e uma baioneta.
— Você ouviu os rumores de que ele me forçou no jardim? — Ela perguntou.
Suas bochechas ardiam.
— Não presto muita atenção aos rumores.
— Então ouviu?
— Desafortunadamente.
— Queria explicar a Sebastian que eu não os propaguei. E Fitzwilliam
tampouco. Creio que poderia ter sido seu tio, ainda que eu não tenha certeza do que
ele pretende conseguir.
— O que ele quer, eu suspeito, é complicar nossa vida. Sebastian retirou todos
os fundos e avisou aos credores que não pagará as dívidas de lorde David. Não creio
que a vida lhe resulte muito cômoda.
— Acredita que quem tentou atacar Sebastian voltará a tentar?
— Creio que Sebastian estará melhor preparado. Agora ele estará atento.
— Não foi Fitzwilliam. Acreditei que ele fosse o responsável, mas não vi
nenhum arranhão em seu rosto.
— Então suponho que jamais saberemos quem foi. Se você quer que a nota que
lhe enviaste seja algo mais que uma tática para atrasar a descoberta da verdade,
deveria deixar que eu a leve para casa.
— Não até que baixe a febre dele — ela sacudiu a cabeça. —Pode sair.
— E deixa-la aqui sem acompanhante? Que tipo de canalha pensa que sou?
Tristan havia conseguido fazê-la sorrir quando ela pensara que não voltaria a
sorrir nunca mais.
— Não creio que ele esteja em condição de violar-me.
— E que sabes você de violações, milady?
Tristan sorriu. Era o mesmo sorriso malicioso que ela conhecia de sua infância.
E se alegrou que ele não o tivesse perdido. Quem sabe Sebastian também recuperasse
o seu.
— Nada, na realidade — Mary riu timidamente. — Só o que li em romances.
— Estarei do outro lado do corredor se precisar de mim — Tristan se abaixou
para recolher suas botas antes de adotar um semblante sombrio. — Alegro-me de que
você esteja aqui, Mary. E, ainda que meu irmão não admita quando desperte, tenho
certeza de que ele também se alegrará.
―Se despertar‖.
— Então descanse.
— Quem dera eu pudesse.
Pelo tom da voz de Tristan, Mary compreendeu que, igual ao seu irmão, ele
também lutava com seus próprios demônios.
A habitação caiu em profundo silêncio, o único som provinha do relógio e da
dificultosa respiração de Sebastian. Mary apagou todas as luminárias, salvo a que
ficava do seu lado. Iluminava palidamente o lado bom do rosto de Sebastian. A ela
não causavam repulsa as cicatrizes, mas suspeitava que ele não gostaria de saber que
ela esteve analisando-o.
— Pembrook!
Ela se sobressaltou com o inesperado grito e procurou manter a calma ante a
repentina agitação. De novo, Sebastian repetiu o nome de seus domínios, com um
pouco mais de força.
— Pembrook. — Ele exclamou enquanto abria o olho.
— Não. Você está em Londres, — sem dúvida ele delirava e ela lhe acariciou a
testa.
— Pembrook — Sebastian agarrou seu punho e a atraiu bruscamente para si.
Depois que o médico terminara com a ferida, desamarrou-o. O olhar azul desprendia
fogo. — Pembrook é a única coisa que importa. Devo reclamá-la.
— Já a reivindicaste. E voltou a ser sua. Ninguém voltará a tirá-la de você.
— Minha — ele pareceu se acalmar ainda que não deixasse de fitá-la.
—Teu.
Sebastian dormiu novamente e Mary continuou umedecendo-lhe o rosto e o
pescoço com um pano molhado. Até aquele momento, não estivera certa de ter
entendido a obsessão dele. Para ele significava tudo. Febril, próximo da morte, não
chamava a nenhuma mulher, nem mesmo por ela, sua amiga, ou, a seus irmãos.
Pembrook não podia envolvê-lo com seus braços para consolá-lo, nem falar
com ele durante as longas noites de inverno. Ainda assim, não parecia importar-lhe.
Ela a amava. Era tudo para ele.
O que teria a propriedade de Pembrook que enfeitiçava todos os homens? Para
ser seu dono, o tio dele fizera coisas horríveis. Para reivindicá-la, Sebastian havia se
convertido em um homem com uma única obsessão: Pembrook. O menino que ela
havia libertado anos atrás regressara com um coração em que só cabia uma herança.
Pembrook.
Capítulo 19

— Onde ela está?


— Milorde — Tristan tentava acalmar o homem que invadira a casa de
Sebastian pouco depois da meia noite. Um dos homens que Rafe havia colocado em
frente da mansão Easton House o havia retido até encontrar Tristan, que ainda não
fora dormir.
— Onde ela está? — Gritou lorde Winslow. — Mary!
— Fique tranquilo, milorde.
— Vocês tem consciência do que fizeram? — o homem o fitou furiosamente.
—Você e seu maldito irmão? Vocês a arruinaram.
— Ele não tem nada com isso. — A doce voz surgiu do andar superior.
Tristan olhou a escadaria por onde Mary descia. Ao olhar novamente para
Winslow, acreditou que ele teria uma apoplexia, ali mesmo.
— Está vestida como uma serviçal... E vem do dormitório — balbuciou.
Até poderia estar estava vestida como uma serviçal, mas o porte régio jamais
permitiria que fosse confundida com uma. Mary prendera seus cabelos numa trança.
Parecia familiar para Tristan. Quando crianças, sempre que ela visitava Pembrook,
costumava estar penteada assim, ainda que já não possuísse o aspecto de uma menina.
— Você vem pra casa comigo, agora mesmo — rugiu seu pai.
— Não. Sebastian está lutando contra a febre. Permanecerei aqui até que a
febre ceda.
— Ousa me desafiar?
— Não tenho escolha.
— Podem contratar uma enfermeira.
— Não, — ela sacudiu a cabeça lentamente, triste.
— Fitzwilliam não tolerará essa mancha em sua reputação. Toda a noite na
residência de um homem solteiro...
— Como soube onde eu estava?
— Me encontrava no clube. Fitzwilliam também. Disse que você havia se
desculpado por não ir até os Moreland, que não estava com vontade de ir porque
estava em casa sofrendo de enxaqueca. Enxaqueca! Você nem sequer teve um
resfriado em sua vida. Quando voltei pra casa e descobri que você não estava,
interroguei o cocheiro, que confessou tê-la trazido até aqui. O que é toda essa loucura?
Sem reputação você não tem nada.
— Em uma ocasião salvei Sebastian — ela deu um passo à frente e acariciou a
bochecha de seu pai. — Posso voltar a fazê-lo.
Winslow olhou furioso para Tristan, que se limitou a encolher os ombros.
— Tentei convencê-la para que se fosse milorde. Ela está empenhada em ficar.
Uma das serviçais a acompanha. Se lhe deixar mais tranquilo, posso pedir a todo o
staff que vá ao quarto do meu irmão. Nós devemos a vida a ela, jamais nos
aproveitaríamos de Mary.
— Pouco importa se fazem ou não. Os fofoqueiros vão se deleitar com isso.
— Eu explicarei a Fitzwilliam — se ofereceu Mary. — Ele entenderá.
— Eu não contaria com isso, Mary. E depois? Nenhum outro homem vai querê-
la. Os homens não gostam de artigos de segunda mão.
— Ela não foi usada — protestou Tristan.
— Aos olhos da sociedade, foi sim.
— Somente se você disser algo — interveio Mary com calma. — Se o senhor
apoiar minha história de que estava de cama, com enxaqueca, ninguém saberá da
verdade.
Tristan observou a luta desatada no interior de Winslow e rezou para nunca ter
uma filha. Pareciam dar muitos problemas.
— O assunto de sua presença aqui ficará entre nós — o homem ao fim assentiu.
— Tenho sua palavra, lorde Tristan?
— Sim, a tem.
— De acordo. Regressa a casa logo que puder Mary, e faça durante a noite.
— Obrigada — ela sussurrou enquanto abraçava seu pai. Em um abrir e fechar
de olhos, correu novamente escadas acima.
— Ela é uma moça muito valente, Winslow — observou Tristan com o rosto
sombrio.
— Isso servirá de pouco consolo, milorde, se alguém souber da sua presença
aqui.
O braço dele estava adormecido, mas ele não queria se mover para não despertá-
la. A situação de Mary era precária, muito pior que depois do beijo no jardim. Ela
estava em sua cama, a cabeça apoiada em seu ombro e, ainda que já não o sentisse,
sabia que seu braço a rodeava. Pouco importava que estivesse completamente vestida.
Ela estava em sua cama.
Há quanto tempo estava ali? Quanto tempo durou sua febre? Seu flanco doia.
Recordava-se de imagens fugazes do médico, de Tristan e de Rafe. ―Não se atreva a
me abandonar outra vez‖. Ou havia sonhado isso? Mary oferecendo-lhe água fresca,
cobrindo sua testa com um pano úmido. Tranquilizando-o. A voz de Mary. Carícias
doces. Mary. Ânimos. Mary. Uma beberagem de sabor horrível. Mary. O sutil aroma
de orquídeas. Mary.
Os cabelos escapavam do laço com o qual o havia amarrado. Cabelos espessos
e crespos. Perguntou-se como ele conseguia recolhê-los no alto de sua cabeça. Com o
braço que continuava sensível, acariciou seus cachos, ásperos em aparência, mas
sedosos ao tato. Igual naquela noite em que ele havia afundado as mãos em seu
cabelo, e afundado a língua em sua boca. Ele fora um bárbaro. Durante alguns
instantes havia se perdido nela, finalmente esquecendo as decisões que o
atormentavam, as cicatrizes que o estropiavam...
Bruscamente, levou a mão ao rosto. Maldição! Onde estava seu tapa olho?
Girando a cabeça, o viu sobre a mesinha, Não conseguiria alcançá-lo.
Mary gemeu e suspirou, e Sebastian compreendeu que seus movimentos a
despertaram. Por sorte ela estava encolhida do lado bom. Isso a liberava da visão
grotesca, ainda que fosse um pouco tarde para ocultar totalmente.
— Fique tranquilo — ela levantou a cabeça e revirou os olhos. — O outro lado
está oculto na sombra.
Sua voz era a de uma mulher adormecida. O estômago de Sebastian se
encolheu ao imaginá-la adormecida depois de uma noite de amor apaixonado.
Uma noite com Fitzwilliam.
Isso, no caso de que sua reputação não estivesse totalmente arruinada. Outra
vez se perguntou quanto tempo ela estaria ali.
Mary se esticou lentamente e seus seios se levantaram, desafiando a resistência
dos botões do corpete. Por desgraça, os botões resistiram.
De onde havia surgido aquela ideia? Tratava-se de Mary. Amiga, conselheira,
enfermeira. Mulher. O que mais o inquietava era o último. Cada vez que a via
recordava-se que ela se tornara adulta, mas, ali em seu dormitório era evidente que
ambos se tornaram adultos. Os jogos que poderiam fazer já não seriam inocentes.
Cheios de risos. Mas também incluiriam longos gemidos e profundos suspiros.
— Seus cabelos estão despenteados — o sangue que regressava ao seu braço
lhe provocou dolorosas pontadas, devolvendo seus pensamentos ao lugar que lhes
correspondia.
Ela soltou uma risada suave.
— A chuva me pegou no caminho da sua casa. Só o sequei, por isso está assim.
Leva muito tempo para domá-lo.
— Eu gosto do seu cabelo assim, selvagem.
Mary o olhou, a respiração acelerada. Saindo da cama permitiu que ele a
olhasse mais detidamente. Usava um vestido negro horrível que a fazia parecer um
corvo.
— Antecipando-se ao luto por minha morte?
— Eu sabia que você não morreria — a jovem sorriu timidamente. — Eu não
permitiria.
Do mesmo modo que se negara a permanecer a margem quando soube o que o
tio deles pretendia fazer com eles. Estava a ponto de chorar e piscou rapidamente.
Sebastian possuia um horror as lágrimas. Ele quis lhe explicar que se alegrava de
que ela estivesse ao seu lado em alguns momentos, que só havia piorado as coisas
porque ficara preocupado por ela. Igualmente se preocupava agora. Três noites.
Sua reputação estava sem dúvida destroçada.
— Como explicará a seu pai a sua ausência? — ele perguntou com uma voz
acusatória.
— Não se preocupe Keswick. Não é responsável por mim. Chamarei seu
camareiro para que possa se arrumar e direi ao cozinheiro que traga uma bandeja.
Descanse e recupere as forças. Temo que seu tio ainda não terminou.
Mary se dispôs a partir.
— Não sei como agradecer.
Sebastian se endireitou, antes de compreender que não estava vestido para
receber alguém. Na realidade não estava vestido de jeito nenhum. Rapidamente
segurou o lençol na cintura.
— Pode continuar sendo meu amigo.
De verdade ela pensava que havia a possibilidade de que não fosse assim?
Pensava que ele não continuaria sendo seu amigo, que não poderia? Além de seus
irmãos, não havia ninguém que lhe importava mais no mundo do que ela. Mas,
enquanto pensava compreendeu que seus sentimentos por ela não eram os que sempre
haviam sido. Já não estava seguro do que representavam um para o outro.
Quando crianças, fora nadar com ela sem se importar com a visão de sua roupa
inferior grudada no corpo. Mas, agora, a visão lhe inspirava muitos pensamentos.
Perceberia as sombras que tentavam um homem, que tentavam-no.
— Sempre — lhe assegurou com voz rouca, tão fraca que nem estava certo de
que ela tivesse escutado.
— Verificarei que você esteja bem atendido e depois partirei para minha casa.
―Não vá‖, as palavras permaneceram na ponta da língua de Sebastian, mas ele
as conteve. Não mostraria debilidade, não poderia confiar em ninguém. Ter feito isso
excessivamente o irritava. Necessitava recuperar as forças e regressar para Pembrook.
Em Londres não fazia outra coisa além de arruinar a reputação de Mary.
Necessitava se distanciar dela. Então, quem sabe ele não faria mal a ela.
Capítulo 20

— Meu pai está profundamente desgostoso com os rumores que circulam. Ao que parece
passaram de um beijo para pernoitar na residência de Keswick — lorde Fitzwilliam pronunciou
as palavras como se fosse incapaz de suportá-las.
Depois de se assegurar de que lorde Tristan fosse despertado para vigiar o irmão, o
camareiro se dirigira ao dormitório de Sebastian e uma serviçal lhe preparara uma bandeja com
comida, Mary pediu uma carruagem. Já em sua casa, dormiu profundamente até tarde. Acabava
de se banhar quando foi informada de que lorde Fitzwilliam a aguardava. No escritório do pai
dela. Lugar onde ela havia se declarado.
Seu noivo se posicionou diante dela, igual como havia feito depois de ouvir os rumores
sobre o beijo. Os rumores que haviam chegado a seus ouvidos desde então, eram muito piores.
Tanto, que viu a seu pai perto das garrafas, servindo-se um copo de whisky e apurando-o com
tanta ferocidade que ela se perguntou porque não bebia diretamente da garrafa.
— Não devia falar com Keswick…
— E não o fiz. Durante todo o tempo em que estive lá, não lhe disse uma
palavra — não era totalmente mentira. Havia sussurrado, mimado, animado. E
nenhuma só vez havia se limitado a somente uma palavra. Sempre haviam sido,
pelo menos, duas. Sabia que estava pisando em ovos, mas não lhe agradava ser
repreendida.
— Você passou três noites na residência dele.
Mary olhou para seu pai, que se limitou a sacudir a cabeça. De modo que não foi ele.
Então quem...?
— Alguém a viu entrar — continuou Fitzwilliam como se ela houvesse formulado a
pergunta em voz alta. — Alguém a viu sair.
— De modo que lorde David tem espiões a postos — Mary não queria nem pensar que era
Fitzwilliam. — Keswick estava enfermo. Não poderia se aproveitar da situação. E mesmo que
pudesse, não o teria feito.
— Não, mas o agradou se aproveitar de você no jardim.
— Ele não se aproveitou de mim em nenhum momento.
— Então você recebeu de boa vontade as atenções dele.
— Já passamos por isto — ela suspirou enquanto contemplava as mãos desprovidas de
joias. Suspeitava que jamais adornaria elas com uma aliança. — Não vejo nenhum motivo para
discutir novamente.
— Temo que eu deva retirar minha proposta de matrimonio.
Mary fechou os olhos com força. Sentia uma opressão no peito, se bem que havia
considerado a possibilidade. Engoliu com dificuldade, reuniu toda a sua coragem e olhou
Fitzwilliam nos olhos.
— Claro, milorde, eu já esperava por isso .
Durante alguns segundos, ele pareceu incomodado, até pesaroso.
— Lamento qualquer dor ou humilhação que minhas ações possam ter lhe causado — ela
insistiu. — Considero-lhe um bom homem, e casar com você teria sido muito satisfatório. Mas
não está em minha natureza ignorar alguém que precise de mim, independente das
consequências pessoais. É uma qualidade que, em minha opinião, me converteria em uma
esposa exemplar, ainda que também rebelde.
Teria jurado que um tímido sorriso havia assomado aos lábios do visconde.
— Meu pai insiste em que eu termine com este acordo antes que se produza mais prejuízo
sobre o bom nome de minha família. Se não pode privar-me de minha herança depois de sua
morte, ele poderia retirar meus fundos até que chegasse esse dia. Não tenho nenhuma fonte de
renda além da generosidade dele.
— Milorde, se me permite — interveio o pai dela, — Eu poderia aumentar o dote dela.
— Talvez umas cinco mil libras por ano?
— Não, milorde — lorde Winslow inclinou a cabeça. — Mil quem sabe, dois mil no
melhor dos casos.
— Então temo que não basta. Além do mais, meu pai já não acredita que Mary possa ser
uma boa marquesa. Minha família não tolera o escândalo. E eu não quero perder sua boa
vontade.
— Não posso culpá-lo por isso — ela assentiu.
— Desejo-lhe tudo de melhor — com uma leve inclinação de cabeça, Fitzwilliam saiu do
escritório.
Mary pensou que deveria se sentir destroçada, mas a única coisa que sentia era um imenso
cansaço.
— Não deveria ter permitido que você ficasse — lamentou seu pai.
— Isso não importa. Alguém estava espionando. Devo avisar Sebastian que...
— Mary.
— Uma carta. Nada mais. Ele precisa saber que talvez tenha um espião por perto.
— Então, mande essa carta e faça suas malas. Partimos em alguns dias.
— E depois? — Ela perguntou.
— Ainda não decidi.
— Não quero regressar ao convento.
— E eu não quero enviá-la de volta — seu pai se serviu outro copo. — Mary eu sei que
você considerou o convento como um castigo, mas não sabia como protegê-la. Você era uma
menina tão impulsiva e teimosa, que temi que fosse enfrentar lorde David.
— Então acreditou em mim? — ela nem pensara em enfrentar tal homem.
— Quando criança, lorde David desfrutava arrancando as asas das moscas, mas eu nunca
fui bom para confrontações. Só possuímos a sua palavra, a qual poderia ter ouvido, ou não.
— Eu ouvi.
— Se ele soubesse quem sabe ele a veria como uma ameaça. Na noite que você foi ao
baile dele... eu não queria que você fosse, mas Ftizwilliam insistiu.
E, uma vez mais, seu pai havia capitulado. Mary se entristecia ao comprovar a debilidade
de seu pai. Sempre pensara nele como um gigante entre os homens. Mas faltava bem pouco para
que diminuísse totalmente aos seus olhos.
— Planejava me deixar no convento para sempre?
— Eu não sei. Já naquele tempo bebia demasiado. Não queria que você me visse. Mas
sua tia, bendita seja, encarregou-se de tudo. A bebida me atrai demais Mary. Alegrei-me muito
quando Fitzwilliam mostrou interesse por você. Estaria na Cornualha. A salvo. Nunca considerei
casá-la como um modo de protegê-la, mas sua tia estaca com a razão. Contudo, com o regresso
dos lordes de Pembrook as batalhas recomeçaram entre eles. Lorde David a deixará em paz —
ele voltou a encher o copo, que seguiu o mesmo caminho dos anteriores. — Você merecia um
pai melhor. Falarei com meu sobrinho, tentarei fazê-lo compreender que deve conceder-lhe uma
mesada anual.
Com a debilidade de caráter de seu pai, ela duvidava que ele se saísse bem.
— Quem sabe quando regressarmos para Willow Hall nos ocorra algo — ela sugeriu.
Seu pai assentiu e se voltou para a garrafa de brandy. Mary nunca havia sentido uma
carga tão pesada em seus ombros como nesse momento. Levantou-se com elegância da poltrona
e saiu do escritório, deixando-o com seus demônios. Teria sido uma excelente esposa para
Enrique VIII, encarando seu destino com a cabeça erguida.
— Um de nós deve se casar com ela.
Sentados na sala de estar dos aposentos de Sebastian, nem Sebastian, nem Rafe
pestanejaram com a proposta de Tristan que, de pé em frente da lareira, dedilhava o mármore
da borda, como se tivesse descoberto uma mancha que não queria desaparecer.
Sebastian ainda não havia saído de seus aposentos. Estava melhorando lentamente e se
esgotava com facilidade. Pedira para Tristan que desse uma volta e averiguasse se a reputação
de Mary estava intacta. Ao que parecia não estava.
— Poderíamos jogar as cartas — propôs Rafe. — O perdedor se casará.
— Não estranharia se você trapaceasse. — Observou Tristan.
— A questão é: Trapacearia para ganhar ou para perder?
— Não vamos decidir isto jogando as cartas — rugiu Sebastian. — Além do mais a
decisão já foi tomada.
— Sério? — Tristan suspendeu uma sobrancelha. — E quem vai ser então?
— Você. Você permitiu que ela entrasse e depois permitiu que ela ficasse. Ele esperava
que seu gêmeo protestasse, mas ele se limitou a concordar.
— De acordo. Será melhor que eu peça a mão dela enquanto ainda continua em Londres.
Dizem que seu pai vai levá-la para longe.
— Maldito seja, Tristan! — Rugiu Sebastian antes que seu irmão desse dois passos. —
Sabes que serei eu.
— Por um momento eu pensei que você havia recuperado seu jeito brincalhão — Tristan
sorriu e regressou para perto da lareira.
— Você é o brincalhão — Sebastian havia esquecido o quanto ele gostava de brincar. —
Eu sempre fui o mais sério. Ela nos diferenciava assim.
— Suspeito que tenha algo mais profundo.
Quem sabe, mas Sebastian não estava de bom humor para explorar o que poderia ter
sido.
— Dou por certo que não está loucamente apaixonado por ela — se voltou para Rafe.
— Pouco me importaria mesmo que eu estivesse. O matrimonio não é para mim.
O duque estava a ponto de pedir que Rafe se explicasse, mas o mais novo dos três,
parecia empenhado em manter em segredo como havia sido sua vida. De modo que se voltou
para Tristan.
— Nos deixaria por um momento?
— E nem sequer me sentirei ofendido.
Sebastian suspeitava que seu gêmeo começasse a se fartar do mau humor de Rafe.
— Terei uma carruagem pronta para você — continuou Tristan enquanto abandonava o
quarto.
Sozinho com Rafe, Sebastian de repente não estava certo do que queria, ou necessitava
dizer-lhe.
— Enquanto a febre me consumia, sonhei que você se inclinava sobre mim e me pedia
que não o abandonasse.
— Tristan pensou que você poderia morrer — Rafe encolheu os ombros. Só completara
vinte e dois anos, mas seu olhar o fazia parecer muito mais velho, até mais velho que Sebastian. — Aí
decidi vir.
— Teria levado você comigo se eu pudesse, mas se permanecêssemos juntos era mais
provável que nos descobrissem e temia que isso fosse a nossa morte.
— Poderíamos ter embarcado os três num mesmo barco.
— E, se naufragasse quem ficaria para regressar e reclamar o que o tio nos roubou?
Teríamos mais possibilidades de sobreviver se estivéssemos separados.
— E a quem importava? Terra, títulos. Não são carne. Não são sangue.
— É nossa herança.
— Nosso sangue também — Rafe evitou o olhar de seu irmão. — Jamais entraremos em
acordo sobre isto. Pertence ao passado. Não faz sentido discutir sobre algo que não podemos
mudar.
— Não pedirei perdão porque não considero que tenha feito algo que o exija. Fiz o que
achei ser melhor naquele momento. Quem sabe com os anos ou, com a experiência eu tomasse
outra decisão. — E poderia dizer o mesmo com respeito a Mary? — Rafe olhou fixamente a
Sebastian.
— Não, dela sim espero receber o perdão.
— Alegro-me ao ouvi-lo — Rafe lhe dedicou um amargo sorriso. — Começava a temer
que você se considerasse perfeito.
— Absolutamente. Tenho muitos defeitos e só posso rezar para que Mary não sofra
excessivamente com eles.
Esperava que ela aceitasse seu oferecimento de matrimônio. Dissera a verdade. Não
considerava que devesse desculpas para Rafe, mas isso não significava que não se sentisse
culpado. E, para piorar tudo, devia acrescentar a perda da reputação de Mary a sua lista de
arrependimentos. Mary. Uma mulher destinada a ser sua salvadora.
— Se Fitzwilliam a amasse de verdade, teria enfrentado o pai dele. Encontraria um modo
de se casar contigo — observou Alicia.
Ela chegara algumas horas antes para ajudar sua prima a fazer as malas, mas até agora
não havia feito nada, além de se sentar na cama e observar.
— Ele nunca afirmou me amar — lhe explicou Mary.
— Mas pediu sua mão em casamento.
— Suspeito que o que mais lhe atraia era meu dote. Além do mais, você tem razão, ele
deveria ter enfrentado o pai dele. E isso me preocupa mais que sua falta de amor. Pensar que ele
teria permanecido sob a influência de seu pai... — ela estremeceu ao e recordar da facilidade
com que seu próprio pai parecia ceder às pressões, — casar-me com ele teria sido um terrível
erro.
Ela não queria considerar a possibilidade de que só pensava assim por causa de
Sebastian. Ele sim se manteria firme, tomava suas próprias decisões. Claro que o pai ele estava
morto, mas não creditava que ele permitiria que seu pai decidisse como devia viver sua vida.
— Não quero que você vá. A temporada ainda não terminou — lamentou Alicia.
— Para mim sim, — assegurou Mary. — Deixarei meus vestidos para você. Precisará
arrumá-los no comprimento, mas a mim não farão falta. Era evidente que sua prima lutava entre
a alegria de aumentar seu vestuário e a tristeza pela partida de sua prima.
— Não é justo — insistiu a jovem.
— Eu sabia o que fazia. Sabia que era estupidez. Sabia que teria consequências.
— E porque fez?
Como explicar? Mary se deteve no processo de dobrar um vestido. Poderia ter pedido
para as donzelas fazerem suas malas, mas necessitava de algo para se entreter, para não ficar
louca ante a incerteza de seu futuro. Era tola. Deveria ir ao parque e aproveitar tudo o que
pudesse de Londres antes de partir.
— Eles estão tão sozinhos aqui, Alicia, e não deveria ser assim, eles não fizeram nada de
mal, mas todos os contemplam com suspeitas e dúvidas. A palavra do tio tem mais peso que a
deles. São estranhos no mundo em que nasceram. Quando vi o quanto Sebastian estava doente, o
quanto sofria, simplesmente não pude deixá-lo ali. Foram abandonados por todos os outros, e eu
não poderia fazer isso também.
— Isso é o que Fitzwilliam deveria ter dito ao seu pai. Algo assim, pelo menos.
— Se houvesse acreditado em mim, eu suponho que deveria ter feito.
— Mamãe tentará convencer meu tio para que permita que você fique conosco.
— Não conseguirá.
— Você o amava?
— Quando criança, sim.
— Eu pensei que você havia conhecido Fitzwilliam no primeiro baile desta temporada
— Alicia franziu o cenho.
— Sim, claro, você tem razão — Mary fechou os olhos. Por que seus pensamentos eram
sempre para Sebastian? — Eu tenho carinho. Não sei se o amava. Se o amasse, creio que agora
mesmo estaria jogada na cama me desfazendo em lágrimas — sentou-se junto a sua prima na
cama — Deveria me mostrar desolada, não?
— Se o amasse, eu creio que sim. Posso ser sincera com você?
— Insinua que não foi sincera antes?
— A propósito, nunca — Alicia lhe dedicou um sorriso travesso sorriso, — mas esta
questão, bem, nunca me pareceu que Fitzwilliam fosse adequado para você. Ele é tão formal... é
como um ovo duro. Cada vez que se quebra um, se sabe exatamente o que encontraremos em
seu interior.
— Um ovo duro. Que lisonjeiro! E com que tipo de ovo deveria me casar?
— Não tenho certeza de que algum ovo lhe convenha. Quem sabe um pudim natalino.
Nunca se sabe o que vem em seu recheio.
— Vou sentir sua falta e de sua sabedoria. — Mary abraçou a sua prima e riu.
— Os aborrecidos bailes serão ainda mais.
— Já restam poucos esta temporada.
Depois de uma batidinha discreta à porta, sua tia entrou no dormitório. — Teve sorte? —
Alicia saltou da cama.
— Temo que não — Tia Sophie tomou Mary pela mão. — Seu pai quer vê-la no
escritório. Arrume-se um pouco, pois Keswiock está com ele.
— O que ele quer?
— Ele não me disse.
Ela viera para se despedir? Sabia de sua partida? Queria lhe contar como estava se
recuperando bem e ela precisaria anunciar que regressava para Willow Hall?
Com a ajuda de Alicia, se preparou o mais depressa que pode para reunir-se com seu pai
e o convidado. O vestido rosa escolhido, de pescoço alto e mangas compridas, era desprovido de
adornos. Tudo ficava com a imaginação. Em lugar de prender os cabelos, apenas o amarrou com
uma faixa. Queria parecer-se mais com a menina dos campos do que com a dama de Londres.
Queria que a despedida fosse agradável e não sentiu nenhum desejo de se arrumar. Não
pretendia impressionar ninguém.
Quando entrou no escritório de seu pai, comprovou que não podia dizer o mesmo de
Sebastian. Vestia uma casaca azul escuro sobre um chamativo colete roxo. Estava tão
acostumada, com a discrição dele, que lhe pareceu impróprio dele, mas era o complemento
perfeito para o lenço branco. Estava recém barbeado e havia cortado o cabelo.
— Lady Mary — Sebastian se voltou para ela e fez uma leve inclinação.
— Excelência. Alegro-me de ver que está se recuperando.
— Ainda tenho um longo caminho, mas, ao menos, estou melhorando graças, em grande
parte, aos seus ternos e generosos cuidados.
Ruborizando-se, ela se voltou para seu pai, de pé em frente à lareira com um copo na
mão. Não havia fogo aceso, mas sua testa estava lavada de suor. Seu pai enxugou rapidamente a
testa com um lenço antes de virar um novo copo enquanto Mary se perguntava por que ele
parecia necessitar se apoiar na lareira.
— Sua Excelência pediu sua mão — anunciou seu pai.
Mary se voltou bruscamente para Sebastian. Ele a contemplava com calma, ainda que em
seu rosto não houvesse rastro de felicidade.
— Os deixarei sozinhos para que conversem — lorde Winslow deixou o copo de lado
antes de se aproximar de sua filha. — Dadas as circunstâncias, aconselho-a que aceites.
Ele lhe oferecia a ilusão da decisão, mas em seu olhar ela detectou que seu pai tomaria as
rédeas do assunto se precisasse. Estava preocupado com seu futuro. Quem quereria se casar com
ela? O som da porta se fechando se parecia muito com um toque vazio. Mary recordou a noite
que Sebastian e ela haviam se beijado. Ao cobrir sua boca com a dele, ele a havia feito perder o
sentido do decoro. Não podia negar que havia mergulhado nas sensações que ele criara, mas isso
não era suficiente para assegurar que seriam um bom casal.
— Seu casamento, programado para o final do mês, pode ser celebrado conforme o
planejado, apenas trocará de noivo — explicou Sebastian, com calma.
— Considera isso uma proposta?
— Tento consertar o mal feito contra você.
— Um mal que eu mesmo provoquei.
— Eu a beijei no jardim.
— E Fitzwilliam me perdoou por isso. Proibiu-me de vê-lo e eu fui a sua casa por causa
do falatório horrível de que você havia me forçado.
— E ficou para cuidar de mim.
— Foi uma escolha minha. Não deveria precisar sofrer as consequências.
— E como, em nome de Deus, acredita que eu poderia sofrer se a tivesse como esposa?
— O escândalo vai comigo.
— Sua reputação não é pior que a minha.
— Suponho que nossas más reputações estão unidas, não é verdade? — Mary mordeu o
lábio.
— Bastante.
— Você me ama, Sebastian?
— Fitzwilliam a amava? — Ele perguntou em tom desconcertado, como se a ideia de
que alguém estivesse loucamente apaixonado por ela fosse intolerável.
— Ele sentia carinho por mim — Mary se aproximou da janela. — Quais são seus
planos?
— Casar-me com você.
O tom não deixava dúvidas. Ela poderia ter relaxado, rido, recebido de bom grado à ideia
do matrimonio se houvesse percebido a mais leve brincadeira.
— Além disso, eu me refiro.
— Regressar a Pembrook o quanto antes possível — tirou algo do bolso, o desamarrotou
e revelou um trapo sujo.
Mary enrugou o nariz, antes de prestar atenção à descolorida fita que o amarrava. Estava
quase branca, mas uma vez fora amarela.
— Meu laço.
— Ele segura a terra de Pembrook, a terra que levei comigo naquela noite. Isto é o que
me manteve com vida, o que me permitiu seguir adiante durante os intermináveis anos em que
lutei para regressar. Podia cheirar a terra, os séculos em que meus ancestrais lutaram e morreram
lá — Sebastian apertou o punho. — Para mim é tudo, Mary. É a única coisa que importa.
Filha de um conde, ela apreciava o valor da terra e dos títulos, mas para Sebastian
parecia ser quase uma obsessão. Família, carne, sangue e irmãos. Certamente deviam lhe
importar mais.
— Meus irmãos e eu sofremos tantas penúrias para recuperar Pembrook — ele explicou
como se lhe houvesse lido a mente. — Agora é minha, e não permitirei que nada nem ninguém
a arrebate de mim. Como minha esposa, vai compartilhar isso comigo.
— Não sei se poderei amar aquele lugar como você ama. É um lugar duro e funesto e,
depois da atuação de seu tio, ele está associado a uma sórdida história.
— É meu lar.
Aquelas três palavras diziam tudo.
— E nós dois? — Mary se virou para ele e se encontrou com seu olhar. Como sempre
não havia calor, nem desejo. Sebastian havia levantado um muro ao redor de sua alma que ela
duvidava conseguir derrubar. — O que tem você previu para nós dois?
— Sei que não sou sua primeira escolha para marido — ele apertou a mandíbula e
desviou o olhar, — e lamento as circunstâncias que a obrigam a me escolher. Mas farei tudo o
que estiver em minhas mãos para que não lamente a nunca.
Escolha. Escolher. Palavras sem significado. Ela havia ficado pra titia e levaria anos para
deixar o incidente para trás, para que outro cavalheiro lhe considerasse digna. Seria bem mais
velha, talvez, mais sábia. Quem sabe não.
Havia julgado mal a Fitzwilliam. E havia se equivocado também com Sebastian?
Quando crianças foram amigos. Poderiam chegar a ser algo mais? Se assim não fosse, lhe
bastaria à amizade? Seria suficiente para ambos?
— Temo que mal nos conheçamos agora. E se não nos ajustamos?
— Eu diria que o beijo no jardim demonstrou que somos convenientes um para o outro.
— Aquilo foi apenas físico. Eu necessito de mais. Necessito seu coração.
— Não posso prometer — Sebastian apertou a mandíbula.
— Ao menos é sincero — Mary soltou uma gargalhada carregada de tristeza.
— Mas e se um dia conheces a uma mulher que te roube o coração?
— De verdade, você acredita que alguma mulher, ao ver no que me converti irá me
amar?
— Sim — ele precisava acreditar, ele precisava crer que merecia ser amado.
— Está mais cega do que eu — Sebastian riu com amargura e lhe segurou o queixo. —
Que escolha você tem realmente? Sua reputação está destroçada. Que tipo de vida você terá
quando regressar às terras de seu pai? E, quando ele vier a falecer, quem cuidará de você?
— Posso cuidar de mim mesma. Poderia virar uma governanta, ou uma enfermeira.
Poderia investir meu dote. Encontrar uma casinha.
―Viver uma vida de solidão, sem filhos, sem amor‖.
— Eu devo a você — ele insistiu com calma, — e jamais poderei recompensá-la. Serei
tão bom esposo para você como meu pai foi para minha mãe. Nunca a deixarei. Nunca baterei
em você. Concederei a você uma generosa mesada.
Haviam sido amigos quando crianças. Mary sabia que o coração do menino havia lhe
pertencido. E se negava a crer que não poderia possuir o coração do adulto também. Respirou
fundo e soltou o ar. E esperou não viver para lamentar sua decisão
— Sim, me casarei com você.
De novo Sebastian afundou a mão no bolso, mas nessa ocasião retirou a gargantilha de
esmeralda.
— Não gostei de devolvê-la — Mary a pegou de sua mão e sorriu com doçura.
— E porque devolveu?
— Porque Fitzwilliam me pediu — na realidade, ele havia exigido. — Você teria me
devolvido se eu tivesse rejeitado sua proposta?
— Claro que sim.
Mary umedeceu os lábios enquanto notava o olhar de Sebastian sobre eles. Iria beijá-la?
— Bem, suponho que eu deva pedir uma licença — foi a única reação de seu noivo.
— Sim, suponho que sim.
Capítulo 21

Enquanto Mary esperava em uma sala privada na Igreja de St. George, se


perguntava se seria normal estar tão tranquila. Mal sentia alguma coisa.
— Quem dera sua mãe pudesse vê-la — suspirou a tia Sophie enquanto lhe
ajustava o véu uma vez mais. Alternava o véu com a gola, como se cada movimento
de Mary não deslocasse tudo. Ela queria pedir-lhe que deixasse assim até o último
momento. Mas se limitou a suportar seus manuseios, que no fundo a tranquilizavam.
— A igreja está transbordando — Alicia entrou na sala com as bochechas
coradas e os olhos brilhantes. — Pois claro. A escandalosa lady Mary e o bárbaro
duque de Keswick.
— Mary era uma mulher desprezada, desavergonhada. E de repente se
convertera numa figura romântica.
— Este casamento limpará seu nome, querida — vaticinou sua tia. — E o dele
também.
Suas reputações não importariam muito depois desse dia. Eles se esconderiam
em Pembrook, longe das festas e dos bailes de Londres. Mary sentiria falta, ainda que
não sentisse falta da fofoca. Sem essa última era capaz de viver o resto de sua vida.
Alguém chamou à porta e Alicia correu a abrir.
— Chegou a hora — anunciou o pai ela, em um tom parecido ao que usaria um
guarda que anunciasse o momento da execução de um condenado. Sua tia a beijou na
bochecha e ajustou o véu, pela enésima vez, antes de sair atrás de sua filha. A mulher
se sentaria no banco enquanto Alicia seria madrinha. Não havia damas de honra,
apesar de lady Hermione ter se oferecido, sem dúvida pra estar mais próxima de lorde
Tristan. A noiva havia recusado amavelmente. Sua prima bastava.
Seu pai continuava na porta com o mesmo aspecto incomodado que
adotava cada vez que Sebastian vinha de visita. Se ele estava ali não era por sua
filha, mas, sim, pela imagem. As pessoas se dariam conta se o pai da noiva não
comparecesse ao casamento e desatariam mais rumores.
Mary desejava ouvi-lo falar. Que lhe dissesse que estava linda, ou que lhe
desejava toda a felicidade, ou que o duque de Keswick era uma boa escolha como
esposo.
— Acabemos logo com isto — foi o que saiu dos lábios de lorde Winslow.
Esses foram seus melhores desejos. Mary endireitou os ombros levantou o queixo
e tentou não se sentir decepcionada porque tudo aquilo se devia a sua falta de juízo.
Se tivesse mantido silêncio sobre o que havia ouvido em Pembrook, não a teria
enviado ao convento, teria celebrado sua apresentação em sociedade quando lhe
correspondia, em uma idade casadoura. Se não tivesse seguido Sebastian ao
jardim...Se não tivesse invadido sua casa...
O dia de seu casamento deveria ser um dia de alegria e, contudo, não era mais
que uma tentativa de se desfazer um erro. Sebastian não a amava. Quem sabe nunca a
amaria. Em seu coração só cabia Pembrook. Ela sempre seria o segundo prato, mas
isso não significava que estivesse condenada a infelicidade. Não se conformaria com
nada menos que a complacência.
Apoiou uma mão sobre o braço de seu pai e lhe permitiu conduzi-la a sacristia.
A música soava e lá estava Alicia. Não entendia porque ninguém se interessara por
sua prima. Quem sabe no ano seguinte, sem a problemática prima do seu lado, ela teria
mais sorte. Merecia ser feliz.
— Preparada? — Alicia sorriu. Mary assentiu.
Alicia entrou na igreja e a música mudou, anunciando sua chegada.
— Alegre-se por mim, papai — suplicou Mary.
— O que é a alegria, filha? Não lhe faltará nada, ele me prometeu. Pediu que eu
guarde seu dote. Disse que é seu, para fazer o que quiser. Ele não precisa dele. É raro
encontrar um homem que toma uma mulher por esposa, sem dote. Sim, é, — ela
admitiu com voz rouca.
— Ele possui mais força de vontade que Fitzwilliam, isso eu tenho que admitir.
— Obrigada, papai.
— Como eu disse antes, acabemos com isso de uma vez — o homem assentiu.
E, antes que ocorresse a ela uma resposta eles entraram na igreja.
Mary teve uma vaga consciência do grande número de assistentes. Havia
centenas.
Em frente ao altar, aguardava o homem com quem se casaria. Ele a olhava de
frente, porque não havia outra escolha se queria vê-la bem. O lado do rosto
desfigurado ficava para seu lado, para o lado de todos.
Ele que se esforçava tanto para ocultar suas cicatrizes, as estava revelando,
estavam iluminadas pelo sol que entrava pelas vidraças. Ele devia ter imaginado que
haveria muito público. Devia saber que a sombra lhe seria negada.
Poderiam ter viajado para Pembrook e se casarem lá numa tranqüila cerimônia
em uma pequena empresa igreja. Contudo, Mary compreendeu ao vê-lo mais próximo
que o motivo de se casar em Londres não era por conveniência, nem porque estivesse
tudo planejado.
Não. Era o presente de bodas para ela. Era o casamento com o qual ela sonhara
durante meses. O vestido que ela escolhera e a cerimônia que ela havia imaginado.
E era mais. Era o reconhecimento público de que, apesar do quão maltratada
estivesse a reputação dela, ele se mantinha orgulhoso ao seu lado.
Ao deslizar a mão do braço de seu pai para o de Sebastian, Mary sorriu
resplandecente, contendo as lágrimas que inundavam seus olhos. Talvez o seu, não
fosse um matrimonio por amor, mas teriam mais momentos como este, momentos, nos
quais, ela se sentiria agradecida por tê-lo ao seu lado.
Capítulo 22

A chuva que os recebeu em sua chegada a Pembrook resultava muito


conveniente, pensou Mary. O céu cinzento soltava uma gelada chuvinha que
ameaçava converter em noite, um dia pleno. O barro levantado pelas rodas da
carruagem e os cascos dos cavalos, golpeavam a carruagem, ritmicamente, a caminho
do lúgubre castelo.
A cerimônia nupcial havia proporcionado um irreal momento de felicidade e
expectativa. Mas, quando a recepção terminou e subiram na carruagem,toda a ilusão
de um final feliz se desvaneceu. Sentado de frente para ela, Sebastian se colocara
turrão e taciturno. Mal falava. Ao parar em uma pousada para passar a noite, haviam
dormido em quartos separados. Três pousadas, três noites sem conhecer as carícias de
seu esposo.
Onde estava o fogo desatado no jardim? Onde estava a ternura que ele lhe
mostrara na cama, enquanto se recuperava da ferida? Havia sido tudo fingimento?
Havia perdido o interesse na conquista?
— Como sabe que seu tio não estará aqui? — Ela perguntou?
— Temos alguém vigiando em Londres. Assim sei onde ele está.
— Mas, e se ele conseguir escapar?
— Conheço alguns soldados que não continuaram no exército. Os contratei
como vigilantes, para assegurar-me de que meu tio não ocupasse minha residência
enquanto estive em Londres. Deveria ter contratado mais serviçais. Temo que você
tenha muito trabalho para fazer.
Duas carruagens com empregados os seguiam. Muitos vinham da residência de
Londres. Outros acabavam de ser contratados. O pai de Mary havia autorizado que
Colleen acompanhasse sua senhora. Ao menos teria um empregado conhecido.
— Assim terei algo com o que ocupar meu tempo — ela assegurou.
— Não quero muitas mudanças.
Um lembrete de que Pembrook pertencia a ele e não a ela. Ela era uma intrusa.
— Não gostaria de me sentir uma convidada. — Ela lhe informou.
— Eu prefiro que me consulte antes de colocar qualquer plano de mudança em
prática.
— Claro que sim, Excelência. Se quiser, podemos falar agora. Havia pensado
em varrer o piso, arejar as cortinas para tirar o pó, lavar as janelas, polir os móveis...
— Está enfadada, — Sebastian a interrompeu.
— Não, — ela estava magoada, ainda que não quisesse ser uma esposa chorona
e admitir tal coisa. — Quero que seja nosso lar. Não quero me sentir em Pembrook
como você se sentia em Londres, como se não pertencesse a esse lugar.
— Você pertence a esse lugar Mary. Você é minha esposa.
— Sou mesmo, Sebastian? — Ela soltou uma pequena gargalhada. — Que
curioso, porque quando trocamos os votos, pensei que me sentiria como uma esposa,
mas me sinto igual a antes. Nossa relação parece a mesma. Não mudou nada.
— Algo mudou sim. Não estamos mais em Londres.
— Não, não estamos — Mary se obrigou a sorrir. Seu esposo não havia
entendido nada.
— Não quero que se sinta estranha aqui Mary, — depois de alguns segundos de
silêncio, Sebastian falou, — mas até que não saiba o que é mais importante, não faça
nada drástico. — E o que eu devo fazer com as coisas de seu tio? Sem dúvida deve ter
deixado algo dele para trás.
— Minha intenção é queimar tudo.
A brusquidão na sua voz inquietou Mary. Sempre aparecia cada vez que seu
esposo falava de seu tio, e lhe preocupava saber que continuava guardando tanto ódio
dentro de si. Se bem que uma parte dela compreendia o muito que ele havia sofrido por
culpa das maquinações do lorde David, estava preocupada que a amargura os privasse
da pouca felicidade que pudessem alcançar em suas vidas.
— Talvez vir para cá não foi uma boa ideia. — Ela se aventurou com cautela.
Sebastian afastou o olhar da janela e o pousou sobre sua esposa com tal
intensidade, que ela se sentiu obrigada a dar-lhe uma resposta antes que ele tivesse
formulado qualquer pergunta.
— Há muitas recordações ruins associadas a Pembrook. Você possui outras
propriedades. Quem sabe seria mais conveniente se mudar para uma delas.
— Pembrook é a propriedade ducal. Sempre foi. E eu sou o duque.
— Não estou questionando teu título, sim o que nos vai perseguir aqui.
— Nós enfrentaremos o futuro. Juntos.
Mary se perguntou como isso seria possível quando, para começar, sentavam-se
um em frente ao outro na carruagem, tal e como haviam feito toda a viagem. Eram
marido e mulher, podiam se sentar juntos. Mas, não o faziam. Mesmo quando caiu no
sono, havia sido sobre o encosto atapetado, e não no ombro de seu marido que
descansara sua cabeça. Não havia esperado que se mostrasse tão distante, tão
indiferente.
Nem uma só vez ele se inclinou para tomar-lhe as mãos ou apertá-las em um
gesto tranquilizador. Era como se viajasse sozinho. Não obstante, era demasiado cedo
para se lamentar, para pensar que havia cometido um tremendo erro de julgamento.
Sebastian lhe explicara que Pembrook era a única coisa que importava, mas
Mary havia pensado que ela também, pelo menos, um pouquinho. Do contrário, por
que se preocupava com sua reputação? Porque era um cavalheiro, porque se
responsabilizava por suas ações. Sua ação, não obstante havia sido apenas beijá-la. Era
ela que havia revelado isso, aos quatro ventos.
O duque voltou a olhar para Pembrook, de frente. Era ridículo sentir-se
enciumada de um monte de pedras. O fosso estava cheio de sujeira. O muro externo
estava caído. O lúgubre castelo se mantinha com suas torres magníficas contra o céu
cinzento. Um relâmpago iluminou a torre que se levantava ao fundo, fazendo-a
parecer aterrorizante, um edifício onde assassinatos eram comuns. Ali morava um
passado obscuro e muita tristeza. Como poderia convertê-lo num lugar alegre? Como
encontrariam a felicidade entre as lembranças da traição sofrida?
Ainda assim, ao observar o rosto de seu esposo, viu paz, orgulho e
satisfação...Havia sido usurpado por seu tio, havia reivindicado como seu, o que havia
pertencido a sua família por gerações.
— Pembrook — sussurrou o duque.
Mary não queria admitir o muito que desejava que ele sussurrasse seu nome. A
carruagem parou.
— É tudo o que importa, — ele afirmou com convicção. — Bem-vinda a casa
duquesa.
Mary viu dois homens saírem das sombras e temeu sobressaltada, que lorde
David os tivesse enviado para assassinar seu esposo. Mas em seguida recordou que ele
havia contratado um par de seguranças para vigiar tudo.
Um lacaio abriu a porta da carruagem e Sebastian desceu, ignorando a chuva
forte. Ele tinha coisas mais importantes em que pensar.
— Saunders — saudou ao homem que se acercou dele primeiro. — Como vai
tudo?
— Tão tranquilo como os homens antes de uma batalha.
— Bem. Acompanhe a minha duquesa até a residência — se virou para ela e
colocou um objeto na mão enluvada dela. Uma chave. — Estarei com você em
seguida.
Sem mais, desapareceu. Mary o ouvia gritar instruções. Alguém trouxe uma
sombrinha. O homem que havia saudado Sebastian a ajudou a descer da carruagem e a
colocou sob a sombrinha enquanto corriam até o pórtico. A barra do vestido estava
molhada e ela gelada, mas ainda assim, ela se voltou para observar a atividade que se
desenvolvia no caminho da entrada. Uma dúzia de empregados, chegados de Londres,
corriam de um lado para o outro. A maioria dos baús eram dela. Incluíam a bagagem
que havia preparado à ansiada viagem a Itália. Também havia incluído um par de seus
vestidos de baile favoritos. Sem dúvida precisariam dar uma festa, e o resto deles
havia presenteado Alicia.
— Deseja que eu abra a porta? — Perguntou Saunders.
— Esperarei meu esposo — Mary sacudiu a cabeça.
Menos alto e robusto que Sebastian, Saunders, não podia ocultar seu porte
militar.
— Serviu com meu marido na Criméia? — Ela perguntou quase sem se dar
conta.
— Sim, senhora. Não sabia que ele era um duque até que ele me procurou e me
contratou para vigiar tudo isto. Parecia um de nós. Jamais confessou que fosse um
nobre. Mary observava seu marido, que seguia dando ordens. Como podia alguém não
se dar conta de que ele pertencia a nobreza? Levava gravado em cada centímetro do
seu ser, no modo como se movia, em como falava com os demais.
Ela apertou os lábios, mas não pode se conter, pois a seguinte pergunta já saia
de sua boca.
— Em Londres surgiram rumores de que ele foi um covarde na batalha.
— Jamais — Saunders a olhou horrorizado. — Nem sequer com três balas
alojadas no corpo. Foi o canhão que conseguiu derrubá-lo. Do contrário, teria seguido
lutando.
— Eu jamais acreditei nos rumores — Mary se apressou a esclarecer. — Essa
batalha deve ter sido horrível.
— Em seguida nos demos conta de que alguém a havia abortado, mas
cumpríamos ordens. Covardes não fomos, ainda que quem sabe tenhamos sido tolos
— o homem fez uma inclinação de cabeça. — Verei se ele precisa de mim para algo
mais.
— Saunders, alegro-me que esteja aqui para cuidar dele e da propriedade.
— Eu não estaria aqui para fazer nada se não fosse por ele — sem esperar
resposta, desceu a escadaria.
Mary suspeitava que a conversa fora incômoda, mas ela lhe havia
proporcionado uma interessante visão de seu esposo. Nem por um momento havia
pensado que fosse um covarde, mas tampouco lhe ocorrera que alguns homens
sobreviveram graças a ele. Não costumava pensar muito nos detalhes da guerra, só no
horror em termos gerais. Não era de estranhar que Sebastian achasse os jogos de salão
tão ridículos.
— Entreguei a chave para que você não precisasse ficar aqui no frio que está
fazendo. — Ele subiu correndo a escadaria.
— Queria que entrássemos juntos, como marido e mulher.
Sebastian pareceu surpreso, como se ainda não tivesse assimilado que estavam
casados. Tendo em conta a paixão que haviam liberado desde a cerimônia, poderiam
simplesmente ser bons amigos. Mary se perguntou se ele, ao menos, a beijaria antes de
cruzar o umbral, mas ele se limitou a pegar a chave de sua mão e abrir a porta.— Entre
— ele insistiu com impaciência.
— Eu pensei que o marido cruzasse o umbral com a noiva nos braços.
— Por quê? Você é perfeitamente capaz de andar.
— É a tradição. Dá boa sorte. Pouco importa já sei que é uma estupi...
Mary soltou um pequeno grito de surpresa quando ele a tomou em seus braços.
A água que gotejava do chapéu do duque a molhava. Ela estudou o semblante sério,
desejosa de conseguir acreditar que ele havia se casado com ela, porque a desejava,
não porque se sentira obrigado a isso.
— Nos cairá bem toda a sorte possível.
De repente se ouviram aplausos, provenientes dos serviçais.
— Não havia me dado conta de que teríamos público.
— Um público que deveria estar trabalhando.
— Que romântico você é!
— Não sou — ele sacudiu a cabeça, — ainda que por você eu desejasse ser.
As lágrimas queimaram os olhos de Mary, que as conteve. Em seguida lhe
assaltou o cheiro de mofo, próprio de lugares desabitados. Colocou-a no chão e ela
sentiu mais frio sobre o chão de pedra do que havia sentido no exterior. Aproximando-
se de uma mesa, ele acendeu as velas de um candelabro e o manteve alto para
afugentar as sombras .
Enquanto os serviçais entravam no castelo, Mary seguiu seu esposo ao salão da
frente. Sem dúvida parte do serviço se ocuparia de carregar os baús enquanto a outra
parte tiraria e arrumaria os seus conteúdos. Contudo, esses detalhes não lhe
interessavam. Toda a sua atenção estava no duque, que passeava pela sala, retirando os
panos brancos que cobriam os móveis, e levantando nuvens de poeira no processo.
— Eu sinto... — Mary não conseguiu evitar um espirro que chamou a atenção
de Sebastian.
— A culpa é minha. Deveria ter enviado os empregados antes para que se
ocupassem de tudo, mas não parei para pensar que chegaria aqui com minha esposa.
— Veja por este lado, é quase uma aventura, não? Descobriremos tudo juntos.
— Você é muito otimista.
— Não me satisfaz ser pessimista — Mary tirou as luvas. — Ao menos ele teve
o cuidado de cobrir os móveis antes de partir. Há espaços vazios nas paredes —
notavam-se claramente retângulos do papel de parede que não estavam descoloridos
pelo sol.
— Igual como fez em Londres, retirou todos os retratos de meu pai, meu e se de
meus irmãos. Curiosamente deixou os de minha mãe. Ela o olhou, enquanto, com o
candelabro na mão, o duque continuava descobrindo tesouros: sofás, lindas poltronas e
mesinhas.
— E para que deixar esses quadros e desfazer-se dos demais?
— Não sei. Creio que jamais entenderei como funciona sua mente. E
tampouco estou seguro de querer fazê-lo.
— É muito curioso — ela insistiu antes de voltar a espirrar.
— Maldito seja!
— O quê? — Mary se voltou de novo. Sebastian havia deixado de se ocupar
dos móveis. — Descobriu algo?
— Sim, descobri que seu esposo é um idiota sem consideração. Estava com
tanta pressa de mostrar Pembrook para você que não me dei conta de que está com frio
e molhada, pela chuva. Pedi aos empregados que colocassem fogo nas lareiras. Seu
quarto já deve estar aquecido. A cozinheira está preparando o jantar. Será rápido, o
que trouxemos de Londres, até que ela possa ir ao mercado.
Sebastian lhe ofereceu seu braço e ela se aproximou. — De qualquer forma mal
tenho fome.
O duque a conduziu até o enorme vestíbulo do qual partiam duas escadarias que
conduziam ao andar superior. Enquanto eles subiam os degraus, a luz ia iluminando
seu caminho e os retratos dos duques anteriores. Mas também havia espaços vazios
Ao chegar ao alto da escadaria, ele a guiou à esquerda e passaram por uma
porta fechada.
— Aqui é meu quarto — ele informou com calma.
Sebastian abriu a porta seguinte e ela entrou. Os móveis haviam sido
descobertos e na frente da lareira acesa, estava disposta uma agradável área de estar.
As cortinas abertas revelavam a noite que chegara. As janelas estavam ligeiramente
abertas para arejar o ambiente.
— Gostaria de tomar um banho antes do jantar? — Perguntou seu esposo.
— Isso seria muito bom.
— Farei com que os empregados providenciem tudo.
— Funcionam as campainhas?
— Não sei.
— Pois vamos ver se Coleen sobe — Mary se aproximou da cama e puxou com
força a campainha.
— Lembra-se de onde fica a sala de jantar?
— Creio que sim.
— Dentro de uma hora eu a verei lá — o duque abandonou ao quarto e fechou a
porta.
Mary se sentou na cama e se perguntou o que a esperava esta noite.
O jantar resultou, como todos os jantares desde o casamento, muito silencioso.
Ao que parecia Sebastian não havia chegado a dominar a arte da conversação.
Contudo, se mostrava muito eficaz dando ordens ao seu redor. Estava satisfeito com a
rapidez com que haviam limpado as salas principais. Faltavam muitas coisas para
fazer: varrer, polir, esfregar, mas, ao menos, se intuía o potencial da residência.
Depois do jantar continuaram passeando por Pembrook. Sebastian desejava que
sua esposa sentisse o mesmo que ele por aquele lugar, que apreciasse sua
magnificência, sua história, sua herança, pois pertencia a ela tanto quanto a ele. E
passaria para a mão de seu primeiro filho.
O riso de Mary havia enchido a casa quando eram crianças, e ali eles
encontraram muitos, e bons lugares para se esconder. Mas naquela época ele era uma
criança que não prestava atenção ao que a rodeava. O castelo havia sido remodelado
por seu pai. O interior era tão grandioso quanto a melhor mansão da Inglaterra.
Durante dois anos, carpinteiros haviam trabalhado para construir quarenta dormitórios,
quatro bibliotecas, várias galerias e um bom número de salões. Era enorme, mas
acolhedor. Eles entraram num dos grandes salões
— Eu havia esquecido como era tudo tão bonito.
— Surpreende-me que você se desse conta. Parecia estar demasiadamente
ocupada procurando um lugar para se esconder.
— Adorava me esconder de você — Mary soltou uma risada musical que
despertou muitas recordações. — Você quase nunca me encontrava.
— Pois não acredite que continue sendo assim. Já não poderá escapar de mim
tão facilmente — a intenção do duque era manter um tom alegre, mas havia soado
quase como uma ameaça.
— E eu deveria querer escapar?
Ele a olhou. Errou. A forte Mary lhe pareceu fragilizada, e ele compreendeu
que adiar a consumação de sua união havia suscitado nela sérias dúvidas, quem sabe,
até incluindo a sensação incômoda que havia se instalado entre os dois. Mas Sebastian
queria que a primeira vez, deles como marido e mulher acontecesse nesse lugar. Em
seus domínios. Se ele caminhava por esses corredores era graças a ela, a sua valentia.
O mais adequado era que se unissem, como um só, ali.
— Espero que não — Ele contestou finalmente.
Capítulo 23

Ele havia adiado todo o possível a união conjugal.


Sebastian tomou outra dose de whisky puro para se armar de coragem ainda
que, por Deus, não tivesse medo dela. Mas temia a repulsa que sua esposa
pudesse sentir ao vê-lo sobre ela, se abrisse os olhos...
Ele a tomaria na escuridão. Na mais absoluta escuridão. Fingiriam que ele
continuava sendo tão diabolicamente atraente quanto Tristan.
Não era a primeira vez que ela o veria, claro, inclusive o havia olhado com
amabilidade, mas seria muito diferente unir-se à fera sabendo que eram suas mãos as
que deslizavam sobre seu corpo. Odiava a si mesmo ao recordar que só havia tido
amantes belíssimas. Jamais havia prestado atenção às moças comuns. Suspeitava que
as damas gostavam de fazer sexo com homens atraentes tanto como os homens
gostavam de fazer com as damas bonitas.
Como lhe agradaria vê-la sob a luz! Quem sabe poderia despertar cedinho, ao
amanhecer, ela estaria preciosa, disso não restava a mínima dúvida. Ainda assim teria
que aguentar com ele como esposo
Deveria ter ordenado a Tristan que se casasse com ela. Que importância haveria
com qual dos irmãos ela se casasse? Todos estavam em dívida com ela. Mas somente
casando-se com ele poderia converter-se em duquesa. O mínimo que ela merecia era
um título e o prestígio que ele lhe proporcionaria.
Contemplou o pacotinho que estava sobre a mesa, junto a garrafa de whisky.
Estendeu uma mão e, sorrindo, acariciou a fita de seda, enroscando-a ao redor de seu
dedo. Que ele se recordasse nunca estivera esticada, sempre estava encolhida, igual
aos cachos de Mary. Quem sabe essa noite teria algumas fitas de seda para tirar .
Afastou de sua mente as recordações daquela menina que lhe havia dado a fita.
No dormitório junto ao seu, lhe aguardava uma mulher. Desde o instante em que se
reencontraram ele tentara pensar nela como a menina magricela de pernas longas que
havia corrido com ele pelo campo. Mas ela estava bem longe de ser aquela menina, e a
mulher em que se convertera o tentava, como nenhuma outra.
Não era justo para ela que o escândalo os tivesse forçado a se casar, mas lhe
havia prometido que ela jamais lamentaria ter se casado com ele.
E já era hora de que tornasse essa promessa efetiva.
Mary estava sentada na poltrona de veludo azul junto da janela com as pernas
encolhidas e cobertas pelo camisão de seda. Com o queixo apoiado nos joelhos,
acabava de decidir que retiraria os malditos relógios dos quartos. Estava farta do tic
tac como sua única companhia .
Sebastian não lhe havia desejado boa noite ao acompanhá-la até seu quarto. Na
realidade não havia dito nada. Simplesmente havia aberto a porta, fechando-a quando
ela entrara. Contudo, Mary havia percebido claramente a tensão que estava emanando
de seu esposo durante o jantar e a volta posterior pelo castelo. A residência era tão
grande que estava com a sensação de ter sido engolida. Aquele lugar precisava de um
senhor enérgico e Sebastian, claro, se sentia muito a vontade. Também requeria uma
senhora forte, ainda que ela não estivesse tão segura de estar à altura. Como manejaria
a casa, se nem sequer conseguia manejar seu companheiro?
Por que mal a tocara? Onde estava a paixão que os consumira no jardim?
O som da porta se abrindo quase a fez se levantar de um pulo. Contudo,
respirou fundo para acalmar seu aloucado coração, enquanto observava seu esposo
entrar no quarto. O duque olhou à cama, surpreendido de vê-la vazia, antes de que seu
olhar a encontrasse.
Não parecia feliz, ainda que aliviado. Quem sabe ele tivesse temido que ela
houvesse fugido.
Ele tirara o lenço, a jaqueta e o colete. Alguns botões da camisa estavam
desabotoados. Usava o tapa olho. Mary havia se perguntado se ele o deixaria ou não e
assim não teria a sensação de que ele se escondia dela. Os enormes pés descalços
revelavam alguns dedos retorcidos. A primeira vez que ela os havia visto, tinha sido
quando crianças e haviam decidido cruzar o riacho. Sua visão a tranquilizou. Algo
nele não havia mudado.
— Está rindo? — Ele perguntou com desconfiança.
— Seus dedos. Continuam sendo tão estranhos como quando você era um
menino. Pensei que você não viria — Mary pronunciou todas as frases juntas e
compreendeu que estava nervosa. Não deveria. Tratava-se de Sebastian.
O duque se deteve junto da cama e se apoiou em um dos postes. Ela se
perguntou se suas palavras pronunciadas quando ainda sentia coragem pra isso,
teriam detido seu avanço.
— Preferiria que eu não viesse? — Ele perguntou.
— Não — Mary sacudiu a cabeça. — Sou sua esposa. Você é meu esposo. Quero
ser sua mulher. — Poderia soar mais patética?
— Suponho — o duque contemplou seus pés, moveu os dedos e dirigiu o olhar
à duquesa — que você é virgem.
Ela engoliu nervosamente. De repente sua garganta ficou muito seca.
— Eu nunca...— ele remexeu nos cabelos.
— Deus do céu! Você também é virgem? Esperava que você tivesse alguma
experiência. Não faço nem ideia por onde começar. O único conselho que tia Sophie
me deu foi que eu tomasse um par de copos de brandy.
Aos lábios do duque aflorou um sorriso amargo. Seria possível que finalmente
o veria sorrir?
— Tenta sorrir? Em questão de sorrisos, não sou virgem. Poderia lhe ensinar.
Um pedacinho de esmalte branco surgiu, ainda que tenha desaparecido
rapidamente.
— Não sou virgem em nada — lhe explicou Sebastian. — Queria dizer que
nunca estive com uma mulher sem experiência na cama. Soube que a primeira vez
pode ser dolorosa. Espero que não seja assim. Não que lhe fazer mal, Mary.
— Então, compartilhe comigo algo mais que seu perfil — Mary levantou da
poltrona e se aproximou dele. Tomando-lhe o rosto entre as mãos, o virou para que ela
o visse inteiro. Sebastian engoliu nervosamente e colocou uma mão sobre a dela, que
descansava sobre uma cicatriz, a virou e lhe beijou docemente a palma. Mary sentiu o
calor úmido de sua boca sobre a pele e se perguntou que outra parte de seu corpo
receberia esse mesmo tratamento.
— Quem sabe com o tempo — ele observou com calma, — mas não esta noite.
Ela pensou recordar-lhe que já havia visto suas cicatrizes, e em mais de uma
ocasião, mas sabia que poria como desculpa a debilidade daquele momento, que lhe
havia impedido evitar que ela o cuidasse. Estavam a ponto de compartilhar uma
intimidade que ele, sem dúvida, pensava se veria embotada se revelasse tal e como
era. Ou, quem sabe, era simplesmente seu orgulho masculino. Fosse o que fosse, o
perdoaria. Muitas noites juntos viriam e no final ela conseguiria o que desejava dele.
— Quero vê-lo sorrir de verdade — ela roçou os lábios dele com os dedos e os
deslizou até a garganta, — e ouvir de novo a tua risada.
— Não me pedes grande coisa.
— Não, não muito.
— Você sempre foi tão alegre... — ele continuou. — Digo a mim mesmo que
você não teria sido feliz com Fitzwilliam, que, quem sabe, o que aconteceu foi para o
melhor.
— Sabe que não voltei a pensar nele desde que saiu da casa de meu pai?
Lamento tê-lo ferido ou humilhado, mas não lamento que não fosse o homem que me
aguardava no altar. Deve acreditar em mim, Sebastian. Não podemos passar a vida nos
perguntando como poderia ter sido. Devemos tirar o melhor partido de tudo o que
temos.
— Já tomou os dois copos de brandy?
— Três — ela riu, — mas, isso já faz um tempinho. Temo que já tenha passado
o efeito. Não me sinto tão aquecida quanto antes.
—Logo estará — Sebastian lhe segurou o queixo para levantar-lhe o rosto e
beijá-la.
Não teve nada a ver com o beijo do jardim. Carecia do desespero, ainda que
não de paixão. Seu esposo explorava e mordiscava. Sua língua bailava com a dela.
Mary deslizou as mãos pelos ombros fortes e as afundou em seus cabelos, atraindo-o
para si. O gemido gutural vibrou em seu torso, ressoou contra seu peito, e ela se
apertou com mais força.
Havia sido sincera. Não voltara a pensar em Fitzwilliam. Com ele não se
sentiria a vontade num momento como esse. Temeria que a julgasse. Com Sebastian
não temia nenhum julgamento.
A ele sempre agradara seu jeito de ser. Nunca tivera que fingir com ele. Poderia
tocar aonde lhe apetecesse, sabendo que não o molestaria. Poderia afundar a língua em
sua boca e ele intensificaria o beijo. Por ele, se esquivou das cicatrizes, para que ele
não se sentisse demasiado consciente delas.
Sem separar a boca da de Mary, Sebastian a tomou nos braços e a levou até a
cama, onde a deitou, e só então interrompeu o beijo. Esticando-se para trás, a estudou
detidamente, como se tentasse memorizar cada curva, cada detalhe, cada vale, cada
montículo.
— Vai apagar as luzes, não é verdade? —Ela perguntou.
— Sim.
— Queria que não o fizesse.
— Esta noite sim — o semblante de Sebastian se encheu de tristeza. — A feiura
não deveria fazer parte da primeira vez de uma mulher.
Mary sentiu as lágrimas acumularem-se em sua garganta, mas se negou a
permitir que elas saíssem. Poderia protestar, dizer-lhe que ele não era feio, que o
achava bonito, mas sabia que não a escutaria. Geraria tensão entre eles e mitigaria a
felicidade que deveriam estar desfrutando.
— Esta noite deixo nas mãos de sua maior experiência — ela acariciou o lado
intacto do rosto dele, — mas lhe asseguro que aprendo rápido e uma destas noites terá
que ceder–me o comando.
— Logo veremos.
O duque se separou dela e ela o observou enquanto apagava as luminárias.
Quase desesperadamente, ela tentou memorizar o pouco que via dele: as longas
pernas, os largos ombros, as costas fortes. Gostaria que ele estivesse nu, mas isso
chegaria com o tempo. Ela era uma moça muito lasciva. Unicamente permanecia acesa
a luminária sobre a mesinha de cabeceira e, antes de apagá-la, Sebastian soltou as
cortinas do dossel para que nem sequer a luz das estrelas os alcançasse. Por fim tudo
ficou na mais absoluta escuridão.
Mary esteve a ponto de pedir-lhe que não apagasse a última luminária, que
não fechasse a última cortina.
Depois de um último olhar para sua duquesa, Sebastian se inclinou sobre a
luminária e a apagou.
Sebastian fechou a última cortina. Inclusive com as luminárias apagadas, se
viam sombras. Era consciente do absurdo de desejar uma completa obscuridade para a
primeira vez, mas ele queria que ela tivesse a ilusão de estar com um homem de traços
perfeitos, ao menos, de coração. Atirou a camisa e as calças para um lado. Queria
oferecer-lhe uma noite prazerosa. Mary o tentava para ser melhor do que era. Ao
menos ali, entre os lençóis, ele poderia assegurar-se de que ela se alegraria de ter
casado com ele. Com certa dificuldade, por culpa da escuridão, finalmente ele
encontrou a passagem entre as cortinas do dossel e conseguiu deslizar sob os lençóis
aonde aspirou o delicioso cheiro de Mary.
— Acreditei que você escaparia — ela sussurrou.
— Que tola! — Ele murmurou.
— Não sou tola.
— Está nervosa?
— Deveria estar?
— Não. Você confia em mim.
— Sim, confio.
Sebastian esticou uma mão e acariciou a seda, mas não era a seda do camisão
que havia esperado encontrar, sim a seda de sua pele, das coxas e dos quadris.
— Sua camisola — ele exclamou bruscamente.
— Eu a tirei.
— Eu percebi, — quem dera ela tivesse tirado antes que ele apagasse a
última chama.
— Decepcionado?
— Claro que não. Deveria ter imaginado que não se mostraria envergonhada
com isto.
— Não é ―isto‖, Sebastian. É você. Eu nunca fui tímida com você. Sebastian
sentiu a delicada mão deslizando por seus braços, explorando.
Fechou o olho e a imaginou explorando todo o seu corpo. Sabia que ela era
novata na hora de fazer amor, mas suspeitava que aprenderia muito rápido.
Ele deslizou a mão na curva do quadril dela, de seu flanco, e em sua mente a
viu claramente deitada ao seu lado. Virou-se e se colocou sobre ela, sentindo a cálida
seda sob seu corpo.
Afundando as mãos nos cabelos ruivos, lhe segurou a cabeça e se inclinou
sobre ela para beijá-la. Não pode evitar sorrir consigo mesmo ao perceber o sabor de
brandy. Atribuía um toque de riqueza ao beijo. Mas sob o brandy estava o sabor de
Mary, um sabor que ele buscou com um sedento ao que se houvesse negado toda e
qualquer bebida. Pois assim ele se sentia. Havia estado em um deserto, buscando um
oásis. E o oásis era Mary. Seus olhos eram a verde vegetação, os cabelos, o vermelho
dos frutos maduros, os suspiros eram a brisa suave que refrescava sua pele.
Não podia negar que teria preferido que esse momento houvesse chegado em
outras circunstâncias, que ela tivesse podido escolher, que não fosse o escândalo o que
a trouxesse para seus braços. Mas tampouco podia negar que se alegrava muito de tê-
la ali, e não porque passou muito tempo sem uma mulher, e sim porque essa mulher
era Mary.
A exuberante Mary, cujas mãos o exploravam. Ali aonde ela tocava, ele se
sentia voltar a vida. Não se recordava da última vez que havia desejado que uma
mulher o tocasse assim. Se deixasse de tocá-lo, se o obrigassem a não tocá-la, sem
dúvida morreria.
Sebastian distribuiu um caminho de beijos pelo pescoço da duquesa e tomou
um seio com a mão em concha. Deleitou-se com o peso contra a palma de sua mão.
Abaixando-se, deslizou sua língua em torno do mamilo.
Mary estremeceu e afundou as mãos no cabelo de Sebastian. Fechando a boca
sobre a auréola, ele se perguntou de que cor seria sua pele e se maldisse por insistir na
escuridão. Que imbecil havia sido! Mas separar-se dela para acender as luminárias
seria como deixar de respirar.
Se houvesse um modo de iluminá-la deixando-o nas sombras..
Mary sussurrou seu nome, atiçando-o a buscar maiores prazeres enquanto
deslizava um pé por sua coxa.
Sebastian se deslizou mais para baixo, acariciando-lhe os flancos. Como podia
ser tão delgada e também tão voluptuosa? Baixando um pouco mais, afundou a língua
em seu umbigo. Algum dia o encheria de vinho e o beberia. Mas para a primeira vez
bastava a experiência de saborear o sal de sua pele.
Seguiu baixando até acomodar-se entre as coxas de Mary. O aroma de seu sexo
o inundou. Ele soprou os suaves cachos e ela suspirou.
Mary não objetou, nem questionou. Sebastian se inclinou e beijou o núcleo de
sua feminilidade, rodeando-o com a língua, sentindo-a estremecer sob seu corpo. Tão
sensível e preparada para ele.
Morria de vontade de fundir-se em seu interior, mas não o faria até que lhe
revelasse tudo o que poderia receber. Usando a boca, a língua e as mãos, a atiçou,
excitou, levando-a às alturas. Os pequenos gemidos ressoavam ao seu redor, presos
entre as cortinas do dossel. Ouviu sua exclamação e sentiu-a se retorcer.
Os dedos de Mary seguiam enredados em seu cabelo, puxando, acariciando. O
corpo de Sebastian estava tenso de necessidade, mas se conteve.
Ela a teria, mas estaria tão úmida e excitada que poderia deslizar suavemente
em seu interior sem causar-lhe a menor moléstia.
Não queria machucá-la e considerou a possibilidade de dar-lhe prazer enquanto
o negava a si mesmo. Mas essa mulher o tentava de tal maneira que não possuia forças
para resistir. Desejava saber o que sentiria ao se afundar em suas cálidas profundezas.
Queria senti-la latejar em torno de sua masculinidade, espremendo-o até a última
semente. Necessitava que ela o fizesse sentir inteiro novamente.
Não sabia de onde havia surgido essa ideia, nem queria sequer admiti-la..
Estivera sozinho demasiado tempo. Não precisava de ninguém. Mas aquela afirmação
zombava dele.
Diferente de Mary, que nunca havia zombado dele, que até mesmo aceitava
seus defeitos.
Mary, que gritava e se retorcia sob seu corpo, cujas unhas se cravavam sem eu
ombro.
Mary, Mary, Mary. Querida, doce e gloriosa Mary, perdida na agonia da
paixão.
Erguendo-se sobre ela, afundou-se em seu interior e soltou um palavrão quando
ela gritou.
Sebastian ficou imóvel, mas, abraçada a ele, Mary o sentia tremer. Ele a havia
levado em uma viagem de maravilhoso prazer, mas não foi o suficiente para distraí-la
da dor da perda de sua virgindade.
Quem sabe, se sua masculinidade não fosse tão grande, não teria doído tanto.
— Perdoe-me, Mary, Deus santo — Sebastian afundou o rosto no pescoço de
sua esposa.
— Cale-se, não foi nada.
— Eu não queria machucá-la.
— Eu sei. Já está doendo menos. Dê-me um momento.
As respirações entrecortadas encheram o silêncio e ressoaram ao seu redor. O
aroma almiscarado do sexo se aderia aos seus corpos. Mary se perguntou por que
nunca havia associado o sexo com uma fragrância. Era curioso como aumentava seu
desejo, fazia-a desejar mais do que já tinham.
— Na verdade, foi encantador — ela murmurou.
— Encantador?
— Esplêndido na realidade. Espetacular — como descrever o que ela havia
sentido? Sem poder evitar, soltou uma gargalhada.
— Pode ser assim, cada vez que estejamos juntos — Sebastian apoiou a testa
contra a dela.
— Se eu experimentar muitas sensações como essa, eu morrerei.
— Não morrerá.
— Também é assim quando você chega a ... essa parte?
—É extremadamente encantador — ele soltou uma leve risada que ressoou nos
ouvidos de Mary.
— Está se divertindo comigo. Consegue brincar enquanto fazemos isto?
— Pode se fazer o que quiser.
Sebastian se moveu ligeiramente e ela fechou os olhos.
— Ainda dói? — Ele perguntou com evidente preocupação. Ainda que não
tivesse visto-a fechar os olhos, havia notado a rigidez do seu corpo.
— Não muito. Mova-se um pouco mais. Creio que começo a me acostumar.
Sebastian tomou a boca dela como se fosse o único dono e ela supôs que de certo
modo, era assim. Havia uma rudeza no beijo que não havia antes. Parecia algo mais
que o desespero que havia sentido no jardim. Como se ele fosse morrer se não a
fizesse sua.
Mary sentiu num intenso calor e seu corpo reagiu encolhendo-se. Levou alguns
instantes para compreender que Sebastian havia começado a se mover lentamente,
saindo e depois entrando, sem pressa. O beijo a havia distraído ao principio, mas agora
era parte das sensações. A língua do duque girava em sua boca, suas mãos lhe
agarravam os cabelos, os quadris batiam contra os seus.
O Incômodo diminuiu e o prazer regressou mais intenso, mais profundo do que
havia sido antes. Agora já sabia o que esperar. Antes o havia temido, havia lutado
contra ele. Mas nesse momento o abraçava. Abraçava Sebastian.
Mary acariciou seu esposo até onde alcançava a mão. Ele também devia estar
perdido em sensações porque não reagiu quando ela tocava em uma cicatriz e a
explorava mais a fundo. Eram parte dele e, portanto, eram parte dela.
Interrompendo o beijo, Sebastian se ergueu e começou a arremeter com uma
ferocidade que despertou o lado selvagem de Mary. Os gemidos do duque ressoavam
ao seu redor e ela sentiu os fortes músculos ficarem tensos e tremerem. Ela mesma
sentiu que sua própria rigidez clamava por uma liberação.
Quando o clímax a alcançou, temeu que Sebastian houvesse mentido e que, em
efeito, fosse morrer. Como podia alguém sobreviver a um prazer tão intenso?
Ela sacudira por inteiro, ficando sem forças, incapaz de se mover enquanto
Sebastian gritava em uma última arremetida.
Apoiado sobre um cotovelo, ele enterrou o rosto nos cabelos ruivos. Mary
sentia o forte bater do coração contra seu peito e não soube de onde tirou forças para
acariciá-lo nas costas úmidas.
— Isso foi mais encantador do que antes. — Ela sussurrou quase sem ar.
Sebastian riu de bom humor e deu meia volta antes de rodeá-la com um braço e
atraí-la contra seu flanco.
Resultava curioso que um pequeno gesto lhe tivesse agradado mais que
qualquer uma das coisas que haviam feito naquela noite. Dava-lhe esperanças de que
algum dia, Sebastian se alegrasse de ter se casado com ela.
Capítulo 24

Mary despertou ao som do canto da cotovia. Lembrou-se ter deixado a janela aberta e
compreendeu que devia ser de manhã, ainda que com as cortinas fechadas do dossel era
impossível assegurar. Também serviam para conservar o calor de seus corpos, o aroma do amor
e os roncos de seu esposo. Perguntou-se que hora seria. E essa foi a razão pela qual esticou uma
mão e abriu a cortina, para tentar determinar que hora seria, não para dar uma olhada no corpo
de Sebastian. Ao menos, isso foi o início. Mas, quando a luz os iluminou timidamente, não pode
resistir a tentação de olhar.
Sebastian estava deitado de costas, as longas pernas enredadas com os lençóis. Aquelas
pernas que estiveram ao redor de seu corpo quando haviam dormido. Estava com o rosto
ligeiramente de lado, mas não conseguia ver as cicatrizes claramente. No transcurso da noite ele
havia tirado o tapa olho. Não era a primeira vez que contemplava as cicatrizes, ainda que
evitasse estudá-las muito de perto quando ele convalescia da febre, porque lhe parecera que era
como roubar-lhe a privacidade, sem que ele soubesse.
Quem sabe o que estava fazendo nesse momento poderia ser considerado o mesmo, mas
estavam casados e não deveriam ter segredos um para o outro. Mary não podia dizer que
existisse beleza na carne dilacerada, mas havia certa elegância. Há pouco tempo esse homem
havia retornado para fazer parte de sua vida, mas não o imaginava com as feições de Tristan.
Seu rosto combinava com suas cicatrizes. Seu temperamento, sua determinação, tudo o que
havia sofrido para voltar a passear por esse castelo como dono e senhor. Quem dera se sentisse
melhor consigo mesmo, quem dera aceitasse que ela acariciasse essas cicatrizes enquanto faziam
amor.
Porque fizeram amor. Não lhe ocorria outro modo de descrever a ternura com que ele
havia explorado seu corpo, ou a paixão com a qual finalmente a havia tomado como sua.
Mary queria tocá-lo, tirar seus cabelos da testa, mas temia despertá-lo. As cicatrizes
continuavam por seu ombro, pelo braço...que horríveis devem ter sido as feridas. Que
dolorosas. Não era de estranhar que tivesse levado tanto tempo para se recuperar. Tendo em
conta quando ocorreu a batalha e quando havia regressado a Inglaterra, deviam ter se passado
meses. Se perguntou...
— Já viste o suficiente?
— Quanto tempo está acordado? — Ela deu um salto.
— O suficiente.
— Opino que você é bonito.
— Opino que está louca — Sebastian se virou, oferecendo-lhe a visão de suas costas.
Esticou a mão e abriu as cortinas do seu lado. Sem dúvida para pegar o tapa olho. — Feche de
novo as cortinas, pois quero te fazer minha uma vez mais antes do desjejum.
— Que palavras tão bonitas, Excelência! — Mary franziu o cenho ante a maneira tão
insensível de falar de seu esposo. — Claro que foram pensadas para que eu me jogue em seus
braços.
O duque se deteve. Não se voltou, mas ela percebeu claramente sua rigidez.
— Você é minha esposa. — Ele explodiu.
— As esposas se agradam em ser cortejadas.
— Pois feche as cortinas e a cortejarei com meu corpo.
— Não — Mary as abriu todas, permitindo a entrada da luz do sol.
— Que droga, Mary! — Ele se voltou. E parou em seco.
Mary lutou contra o impulso de se cobrir. A pele do corpo foi se ruborizando por
momentos. Não havia vestido a camisola antes de dormir e se mostrava completamente nua,
salvo pelo lençol que a cobria até os quadris. Sem necessidade que a tocasse, os mamilos se
endureceram com o ardor do olhar do duque.
— Você é muito linda! — Ele observou com voz rouca. — É evidente que Fitzwilliam
não fazia nem ideia dos segredos que escondia sob a roupa. Do contrário não teria permitido que
o escândalo a afastasse dele.
— Já lhe disse que eu era virgem.
— Os homens imaginam.
— Esta noite você me tocou. Foi isso que imaginou?
— Em parte — Sebastian sacudiu a cabeça lentamente antes de rodear-lhe os mamilos
com os polegares. — Eu a imaginei escura e não rosada — deslizou a mão pelo seio — E como
demônios conseguiu essa sarda bem aí?
— Não sei. Não lhe parece melhor poder me ver?
— Mas, se eu a vejo, você me vê.
— Já lhe disse que suas cicatrizes não me repugnam.
— Mas vê-las tão de perto, sobre você...
— É você que está sobre mim. Com força e decisão. Minhas mãos são pequenas e não
posso tocá-lo inteiro. E quero conhecer todo seu corpo.
— Isto é horrível — Sebastian puxou o lençol e o afastou dos quadris de Mary.
— Só se deixares a luz — ela segurou o lençol sobre o quadril.
— Até que eu a tenha visto bem. Depois se fará de novo a escuridão.
— Não. Se a luz se vai, eu vou também.
— Sou seu esposo. Fará o que eu digo.
— Sou sua esposa. Não queres me ver feliz?
— Eu esqueci o quão teimosa você pode chegar a ser. — Ele suspirou profundamente.
— Feche seus olhos. Imagine que estamos no escuro.
— Nem sequer vou pestanejar para não perder nem um instante de vê-la na luz.
— E não compreende que eu sinto o mesmo? — Mary sorriu esperançosa.
— Insisto: está louca — Com um forte puxão, Sebastian afastou o lençol e conteve a
respiração ao fixar o olhar entre as coxas da esposa.
— A luz? — Ela perguntou.
— Permanece, maldita seja.
Com uma gargalhada, ela afastou os lençóis e contemplou a masculinidade inchada.
— Não estranho que doesse quando nos unimos.
— Quem dera não tivesse sido assim.
A voz do duque encerrava tanto lamento que ela sentiu vontade de chorar.
— A tia Sophie disse que dói no início, ainda não estou segura do que signifique
―início‖. Acredita que doerá da próxima vez?
— Não sei.
— Pouco me importa — antes que pudesse dizer algo, Mary montou sobre ele. Com um
amplo sorriso, olhou para baixo e deslizou as mãos sobre seu torso forte.
— É verdade que elas não a repelem — as palavras de Sebastian encerravam surpresa.
— Não, não me repelem — ela se abaixou até que suas respirações se mesclaram.
E então o beijou. Ainda que tenha sido ela quem iniciou, Sebastian tomou rapidamente o
comando. Mary não se importou, pois ganhara a principal batalha. O sol lhe acalentava a pele
tanto quanto a de seu esposo. Adorava a sensação das mãos dele acariciando seu corpo. As
palmas eram ásperas e os dedos rugosos. As mãos de um soldado. As mãos de alguém que havia
lutado. Não as mãos de alguém que houvesse se dedicado a ler livros e beber em excesso. As
lições aprendidas por Sebastian haviam sido as lições da vida, uma vida que estivera o ponto de
perder.
Não era de estranhar que se mostrara impaciente nos salões de baile e que considerasse
trivial tanta etiqueta.
Interrompendo o beijo, ela sorriu e afundou as mãos nos cabelos de seu esposo. Pode ver
as cicatrizes da cabeça, cuja visão lhe havia sido negada até então. E compreendeu porque ele
usava os cabelos tão longos. Esperava que com o tempo compreendesse que não tinha nenhuma
importância, que quando ela o olhava, via o homem sob as cicatrizes.
Valente, considerado, mesmo que o mais importante para ele fosse a terra, não ela.
— É toda uma beleza — Sebastian virou o rosto de Mary e o tomou entre as mãos —
que estúpido fui ao toma-la na escuridão. Mas pensei que resultaria mais agradável se não me
visses...
— Não tente ler minha mente — ela lhe cobriu os lábios com uma mão. — Suspeito que
sempre se equivocará. De noite foi maravilhoso e não o lamento. A escuridão trouxe um toque
de mistério. Agora a luz fará o mesmo.
Mary voltou a beijá-lo e não protestou quando ele lhe segurou os quadris, levantou-a e a
deixou cair sobre o seu membro. Ela o tomou profundamente, sentindo-se satisfeita, completa.
Sebastian guiou seus movimentos com as mãos até que ela se acomodou ao ritmo. As sensações
cresciam e ela as controlava. Ele deslizou as mãos até seus seios, amassando-os, separando-os,
acariciando os mamilos com os polegares, inundando-a de desejo.
Seu esposo sabia tanto… e ela tão pouco. Ainda assim, se sentiu sua igual ao fazer amor.
Seus gemidos e seu resfolegar diziam tudo, e o prazer de Mary crescia enquanto observava o
rosto de seu esposo, a luta por se controlar, a mandíbula apertada. E então, foi ela que começou
a resfolegar, a medida que o prazer a lançava para cima. O movimento se fez mais rápido, mais
duro e ela afundou as mãos em seu torso, jogou a cabeça para trás, arqueou as costas...
E sucumbiu ao feliz despertar enquanto se lançavam juntos ao abismo.
Capítulo 25

Sebastian olhou de esguelha para Mary, que cavalgava ao seu lado pelos
caminhos encharcados de chuva. Estava preciosa com o chapéu verde de montar. A
mantinha em sua direita, não para evitar a visão de suas cicatrizes, e sim para poder
olhá-la comodamente. Claro que lhe resultava quase impossível olhá-la e não lembrar
sua nudez. Havia sido um idiota ao insistir que fizesse amor às escuras. Deveria ter
imaginado que a teimosa Mary ganharia batalha. Se ela queria luz iluminando-os na
cama, assim seria.
Também deveria ter compreendido que ela abraçaria o sexo com avidez para
explorar todos os seus aspectos. Fitzwilliam fora um maldito imbecil ao abandoná-la,
mas não seria Sebastian quem lamentaria tê-la convertido em sua duquesa. Não depois
daquela manhã. Demônios! Nem mesmo depois da noite anterior.
Tudo aquilo que o preocupava, ela havia transformado em insignificâncias. A
sua união talvez não fosse por amor, mas estava baseada num profunda e
inquebrantável amizade. E isso era muito mais do que outros possuiam.
— O que você fez todos estes anos durante minha ausência? — ele perguntou.
Mary lhe dedicou um sorriso travesso e soltou uma pequena gargalhada que o
acariciou como a ligeireza de uma mariposa. Mas não se deteve aí. O sacudiu por
dentro. Contudo, Sebastian havia aprendido a manter-se impassível diante da doçura
para impedir que sua alma reagisse.
— O que é tão engraçado?
— Não tem graça nenhuma, me anima — ela respondeu. — É a primeira vez
que me pergunta sobre a minha vida. Eu possuia milhares de perguntas, queria saber o
que você fazia a cada minuto que estivemos separados.
Sebastian franziu o cenho e apertou a mandíbula. Sem dúvida ele também havia
se perguntado por seu bem estar. Ocasionalmente. Contudo, a sua mente não se
lembrava de nada. E não obstante ela havia se casado com ele. Bendito escândalo.
— Estava ocupado assegurando-me de Pembrook e meus títulos.
— Sim, eu sei — ela olhou para o céu, como se esperasse que fosse chover.
— Fala como se não parecesse correto.
Mary franziu os lábios e agarrou as rédeas com mais força.
— Mary? — Ele insistiu.
— É que não parece querer muito mais em tua vida — Mary suspirou e
contestou de má vontade.
— Porque não há nada mais importante. Sempre foi meu norte, deu sentido a
minha vida.
— Pode ser que agora que a recuperaste possa expandir seus interesses.
— Ainda há muito trabalho a fazer. Necessito repassar os livros de contas,
diários e descobrir exatamente o que meu tio fez, nestes doze anos.
— E por que não pode começar do zero a partir daqui?
Sebastian sacudiu a cabeça sem entender por que ficava tão incomodado que
Mary não gostasse de seus métodos. Era sua esposa. Seu lugar estava na sua cama, não
no seu escritório.
— Como filha de um conde, você deveria compreender a importância da
história. Devemos entender o passado para enfrentar com êxito o futuro. Além do
mais, existe uma pequena possibilidade de que encontre algo que demonstre que
minhas suspeitas são certas e que ele assassinou meu pai, o que me permita arruinar
sua vida para sempre.
Ela se manteve um bom momento em silêncio e o duque se perguntou se devia
pedir desculpas por seu tom. Se o fizesse, iniciaria um costume que sem dúvida o faria
se desculpar a maior parte do tempo.
Desejava a calmaria que desfrutavam quando eram crianças. Mas já não eram
crianças.
— Eu lia — anunciou ela por fim.
— Desculpe-me?
— O que fazia no convento. Lia a Bíblia. Esfregava o chão. Remendava roupas
— Mary riu, mas seu riso estava carregado de tristeza. — Não voltarei a usar agulha e
linha nunca mais na minha vida.
— Aqui temos empregados para fazer isso. Ao menos a havia feito sorrir.
— Preferiria que esfregassem meus pés. Ficaria encantada que esfreguem meus
pés.
— Levarei isso em conta. Ainda que, eu prefira esfregar outras coisas.
— Sebastian, não seja maldoso.
— Pensei que deveria saber. E também deveria saber que pensei em você, mas
nunca como adulta.
— Mas o fato de que eu esteja mais velha não significa que não possa ganhar
de você — Mary lançou seu cavalo ao galope.
Sebastian a observou enquanto se afastava. Tempos atrás, ele costumava saber
quanto exatamente de vantagem deveria lhe dar e como controlar sua montaria para
que ela ganhasse. Havia sido incapaz de negar-lhe quase nada. Por que de repente
estava com a sensação de que agora lhe negava muito?
Esporeou seu cavalo. Estavam se acostumando a seus novos papéis de
marido e mulher. E a todos os anos que os haviam transformado. Mary já não era
aquela menina cujas tranças ele gostava de puxar. E ele já não era o garoto que
havia esperado ocupar o lugar de seu pai sem nenhum sobressalto na vida.
Havia sobrevivido a muitos temporais para chegar onde estava. Seus irmãos
também haviam sofrido. Não podia esquecer o preço que haviam pago.
Mary se equivocava. Não podia começar do zero a partir do presente. Primeiro
precisava superar o passado.
Deixaria ela ganhar. Mary estava quase segura disso ao alcançar as ruínas da
abadia alguns metros a frente de Sebastian .O tempo havia feito estragos naquele
lugar. As ervas daninhas haviam tomado o lugar todo e dois dos muros haviam caído.
Tudo indicava que os aldeões haviam levado algumas pedras para suas casas.
— Deveria ter imaginado que você viria aqui — afirmou Sebastian enquanto
detinha o cavalo junto ao dela.
— Eu gostaria de dar uma volta.
O duque desceu do cavalo e ajudou sua esposa a fazer o mesmo. Depois de
oferecer-lhe seu braço, passearam lentamente pelos restos da construção medieval. A
maior parte do telhado estava caído. A construção havia sido muito bonita em seus
bons tempos.
— Naquela primeira noite no baile, quando você fez seu regresso triunfal à
sociedade, você mencionou que Rafe conhecia o lado obscuro de Londres. E quando
estive lhe cuidando, resultou bastante evidente que ele não vive em Easton House. A
que se dedica?
Separando-se dela, Sebastian rodeou o que deveria ter sido um santuário e se
deteve frente a uma janela que dominava as colinas. A única coisa que ficara era o
marco e por cima, o céu.
— Não deve contar a ninguém — ele suspirou profundamente.
— Não vou fofocar sobre minha família. Sebastian a olhou com um gesto de
surpresa.
— Agora vocês são minha família — ela explicou. — Tristan, Rafe e você.
— Peço desculpas, Mary. Ainda que não estivéssemos casados, sei que não
participaria em rumores sobre a gente — ele tirou o chapéu e o girou na mão como se
necessitasse se concentrar em algo. — Ele é dono de um clube.
— Refere-se a uma casa de apostas? — Mary percebeu o desagrado na voz de
seu esposo.
— Entre outras coisas.
— Bem, agora que reivindicou seu título, ele pode deixar essa vida .
— Disse que não.
— E você não está satisfeito.
— Pois claro que não me agrada. Mas, visto que fazem doze anos que o
abandonei, ele decidiu que é tarde para que me preocupe pelo que faça com sua vida.
— Aonde o abandonou?
— Em um orfanato. Sabia que nosso tio não o procuraria lá.
— De um orfanato para um bordel? Que estranho caminho. Como aconteceu?
— Não sei como acabou nas ruas de Londres. Talvez tenha fugido. Sobreviveu.
Não sei.
— Eu sinto.
— Não é sua culpa — Sebastian soltou uma amarga gargalhada. — Se não
fosse por você, todos estaríamos mortos.
Mary se aproximou dele e estudou detidamente seu rosto. Não foram somente
as cicatrizes que haviam mudado o jeito dele. Também havia arrependimento,
responsabilidade, remorsos.
— Fez o que precisava fazer — ela lhe acariciou o queixo. — E para isso
precisou de muita coragem.
— A coragem não teve nada a ver. Eu estava aterrorizado.
— E isso não é coragem? Fazer algo mesmo que tenha medo?
— Também teve medo no dia em que você me beijaste aqui — Sebastian a
olhou fixamente. — Recorda-se?
Mary agradeceu a troca de assunto. Havia tido a esperança de que vir até esse
lugar lhe recordaria de melhores tempos.
— Meu primeiro beijo. Não é algo que se esqueça.
— Por que você me beijou?
— Porque eu vi você beijando a tonta da ordenhadora.
O duque arregalou o olho desmesuradamente e soltou uma gargalhada que
encheu Mary de esperança que houvessem outras mais como essa.
— Eu nunca beijei uma ordenadora — ele sacudiu a cabeça.
— Sim, beijou. Eu o vi.
— Não, era a encarregada dos ovos.
Mary lhe deu um tapa no braço. Ele lhe agarrou o punho e a atraiu até ele.
— Estava com ciúmes? — Ele perguntou.
— Não, fiquei furiosa. Fiquei com medo de que começasse a brincar com
ela. Mas depois que nos beijamos pensei que tampouco era para tanto e deixei de
me preocupar.
— Não foi para tanto? — Ele lhe segurou o queixo. — Creio que foi a
primeira vez que pensei em você como uma menina. Até então você não era mais
que Mary, minha amiga. Tive medo de que meu pai descobrisse e me obrigasse a
casar com você.
— Eu também tive medo disso — Mary riu, — mas no meu caso temia que
fosse meu pai que descobrisse. Estava certa de que me enviaria para longe. Mas a
verdade é que não foi grande coisa.
— Não, não foi grande coisa como beijo — Sebastian a olhou com jeito sério.
Abaixando a cabeça a beijou e, nessa ocasião, o beijo na abadia foi espetacular,
cheio de fogo e paixão.
Ao entrar no castelo, toda a calidez do ambiente pareceu abandoná-los e Mary
estremeceu. Amaria esse lugar porque Sebastian o amava, mas não podia evitar temer
que ali jamais seriam realmente felizes .
O mordomo, Thomas, que lhes havia acompanhado desde Londres, se acercou.
Mary suspeitava que lhe era indiferente aonde trabalhasse, desde que servisse ao
jovem duque.
— Excelência, um dos serventes encontrou no sótão um retrato de seu pai. O fiz
trazê-lo e deixar no seu escritório.
— Excelente — contudo, algo na voz de Sebastian fez com que Mary se
perguntasse se ele realmente estava contente com o cuidado.
— Também chegou uma mensagem de lorde Tristan. Deixe-a sobre sua mesa
no escritório.
— Muito bem. Depois jantaremos.
— Me encarregarei disso.
O mordomo se retirou e Mary teve a sensação de que Sebastian não parecia
tão relaxado como durante o passeio.
— Suponho que deveria preparar-me para o jantar — ela observou.
— Quem sabe poderia dedicar um momento e decidir se o retrato é do teu
agrado.
— Ficaria encantada, mas meu pai sempre diz que o escritório é o reino do
homem, de modo que o importante é que você goste.
— Valorizo sua opinião sobre o assunto.
— Como sabe, não costumo andar de rodeios.
— É verdade — o sorriso de Sebastian foi fugaz, mas ao menos lhe ofereceu
seu braço.
— Hoje você me deixou ganhar — Mary sentiu os músculos do braço de seu
esposo ficarem tensos. — Sempre fazia isso?
— Não sempre. É mais fácil ganhar se não se monta em sela de amazona.
— Montou muitas vezes em sela de amazona?
— Não — ele riu. — Nunca. Mas não tem um aspecto de ser muito cômoda.
Ao chegar no escritório, um lacaio abriu a porta. Mary se encantava com a
masculinidade da saleta, as paredes escuras, os móveis sólidos de madeira e couro. Os
livros. Tantos livros. Ficava encantada em ler, pois lhe permitia conhecer diferentes
personagens e a levava a lugares aonde nunca estaria sozinha.
O retrato sobre o anteparo da lareira era de tamanho natural. O pai se Sebastian
havia sido um homem muito alto, como seu filho, talvez mais corpulento, mas
tampouco havia tido uma vida tão dura.
— Eu havia esquecido como ele era alto — ela observou.
— Não sei se me agrada — separando-se dela, Sebastian se acercou da mesinha
no cantinho da sala. — Brandy?
— Não, grata. O que não gosta no retrato? Sua semelhança é incrível
— Recorda-me de que o decepcionei — Sebastian tomou o brandy antes de
voltar a encher o copo novamente.
— E de onde tirou essa ideia ridícula?
— Permiti que nos levassem à torre sem oferecer nenhuma resistência — ele
contestou com o olhar fixo no retrato.
— E se suas suspeitas estiverem certas, seu pai permitiu que o golpeassem
na cabeça. Se alguém deveria se sentir decepcionado seria ele, com ele mesmo.
— Você sempre demonstrou uma fé inquebrantável em mim — o duque soltou
uma gargalhada cheia de amargura.
— Porque sempre… — ―amei você‖. Contudo havia sido um amor infantil,
incondicional, sem expectativas. Nesse momento não estava segura do que sentia por
ele. Cada vez que o olhava, sentia uma opressão no peito e queria aliviar sua dor, —
sempre soube que você faria o correto.
Sebastian voltou a rir, ainda que nessa ocasião com certa amargura.
— Temo que nem sempre — ele contemplou de novo o retrato. — Creio que o
colocarei em outra sala. Não quero que ele fique me olhando por cima dos ombros.
— Encontrarei um lugar para ele.
— Obrigado. Vejamos o que Tristan tem para nos contar.
Sebastian se acercou da mesa, pegou a carta, rompeu o selo e tirou o papel. Leu
sem estar muito seguro se lhe agradava ou não.
— O que ele disse? — Ela perguntou se aproximando.
— Comprou para nós alguns cavalos, como presente de casamento — ele
colocou de volta a carta no envelope.
— Me pareceu ter muitas palavras para tão pouca noticia. O que mais?
— Rafe está bem. Tristan está pensando em embarcar outra vez.
— Há algo que não está me contando.
— Não tenho nenhum segredo.
— Então, me deixe ver o que está escrito.
O duque olhou sua esposa por um bom momento antes de lhe entregar a carta.

Irmão

Espero que quando receber esta carta que se encontres bem e desfrutando da
felicidade matrimonial. Adquiri alguns magníficos cavalos em Hertfordshire, para você e sua
encantadora esposa, como presente de casamento.Não devem tardar muito a chegar.
Em Shropshire tudo está bem. Amanhã me dirigirei a Willshire para dar uma olhada.
Não entendo porque a Coroa não concedeu aos nossos antepassados todas as terras num
mesmo lugar, ainda que eu esteja desfrutando em estar longe de Londres. Sinto falta do mar.
Não fique chateado se eu decidir levantar âncora quando terminar a tarefa que você me
solicitou.
O homem que temos vigiando o tio informa que dificilmente abandona a pousada,
salvo para visitar sua esposa.
Quando saí de Londres, Rafe estava bem. Prometeu vigiar a residência. Não estou
seguro do que pensar dele. Parece levar uma espécie de vida secreta e apenas espero que com o
tempo nos revele tudo.
Dê minhas saudações a Mary. Não passa nenhuma só noite sem que eu lamente que
não tenha me permitido casar com ela.
Tristan
— Tristan queria se casar comigo? — Mary se virou perplexa para Sebastian.
— Se eu não estivesse disposto a me casar.
— E por que você não permitiu?
— Porque eu estava disposto a me casar com você.
— Pensei que havia se casado comigo porque não teve outra escolha.
—Deveríamos nos preparar para o jantar — observou o duque, ignorando as
palavras de sua esposa.
Mary não podia acreditar que Tristan tivesse se oferecido pra se casar com ela.
Teria sido mais feliz com ele? Ele a levaria em suas viagens ou a deixaria para
trás? Importava realmente? Fora uma revelação saber que Sebastian poderia tê-la
entregue a seu irmão. Mas não o havia feito.
―Claro que não o fez, tola. Como mínimo, é um homem que se responsabiliza
por seus atos. Beijou você no jardim. Se sentiu obrigado a se casar com você‖.
Ainda que, talvez, houvesse algo mais.
Capítulo 26

Depois do jantar, Mary se sentou encolhida numa poltrona do escritório e


tomou notas sobre as tarefas que deviam ser realizadas. A residência possuia um
escritório pequeno com uma delicada mesa que, supôs, pertencera a duquesa anterior.
Contudo ela queria permanecer próxima a Sebastian. Ele trabalhava em sua mesa,
rodeado de livros de contas, fazendo anotações em folhas de papel. Havia tanto a fazer
que era quase como começar de novo.
— Sebastian?
— Sim? O duque não levantou o olhar dos livros.
— Pensei que amanhã eu poderia ao povoado e contratar alguns trabalhadores
temporários para que ajudem os empregados, a terminar de arrumar o castelo.
Precisamos de tanta limpeza, polimento e varrida que eu pensei em acelerar um pouco
as coisas.
— Uma excelente ideia — ele murmurou distraidamente.
— Depois quem sabe eu vá a Willow Hall. Sei que meu pai havia pensado
em abandonar Londres pouco depois da nossa viagem. Tentarei arrebatar-lhe
alguns empregados.
— Excelente ideia.
— Por exemplo, o jardineiro instruiu seu filho no ofício. Pensei que poderíamos
oferecer ao jovem um posto aqui.
— Excelente ideia.
— Opino que precisamos de mais de um, mas para começar, um servirá.
— Excelente ideia.
— E depois quem sabe eu poderia correr desnuda pelo campo.
— Excelente…
Sebastian se interrompeu e a olhou fixamente.
— Não estava certa de que estivesses me ouvindo — Mary sorriu travessa.
— Está se sentindo ignorada? — O duque encheu um copo com whisky e o
bebeu de um só gole.
— Um pouco.
— Se passo quase toda a manhã na cama, e boa parte da tarde cavalgando,
terei que colocar em dia o trabalho, durante a noite.
— Eu sei — Mary desenhou um coração sobre a folha de papel. — É que
muitos casais viajam depois do casamento.
— E nós também o fizemos. Viajamos de Londres até aqui.
— Não — ela o olhou com o cenho franzido. — eles vão a algum lugar onde
possam estar sozinhos.
— Aqui estamos sozinhos.
— Sem responsabilidades — Mary reprimiu um grunhido, — para poderem se
dedicar um ao outro.
— Está dizendo que gostarias que eu a tomasse de novo? — O duque se
reclinou na cadeira e sorriu.
Era verdade, mas não tal e como ele dizia.
— Você é impossível. — Ela bufou.
— Venha aqui — Sebastian deu uma palmada em sua coxa. — Posso toma-la
aqui mesmo.
— Isso é exatamente o que eu quero — Mary se colocou em pé. — Um
incômodo amasso atrás da sua mesa de trabalho.
— Não será incômodo.
— Vou tomar um banho.
— Mary?
Mal havia dado uns passos e se deteve, apesar de que todo seu interior a
empurrava a seguir adiante. Ouviu suas pisadas se aproximarem. Quando cessaram,
ela sentiu que ele a rodeava com seus braços fortes e lhe beijava o pescoço.
— Se me der um momentinho mais, em seguida irei a sua cama.
— E me ―tomará‖?
— Sim, a não ser que prefira que eu não o faça.
Ao menos lhe permitia escolher, isso ela precisava reconhecer. Nem todos os
homens permitiriam isso para suas esposas.
— Preferiria que fizéssemos amor.
— De acordo — ele assentiu antes de voltar a beijar-lhe o pescoço.
— Diga — ela pediu com doçura.
— Não posso.
— Não pode porque não me ama?
— Não, porque é diabolicamente poético, e eu odeio poesia.
— Você me ama? — Ela se virou, sem soltar-se do abraço.
— E você me ama?
— Você é incapaz de dizer — de repente, Mary compreendeu. — Você é
incapaz de pronunciar a palavra ―amor‖.
— Você é importante para mim — ele protestou. — Sem dúvida você sabe
disso.
— Teria pedido que me casasse com você se não fosse pelo escândalo?
— Não, jamais teria lhe obrigado a viver uma vida comigo.
— E por que pensa que uma vida com você seria tão horrível?
— Porque sei o que sou — afastando-se dela, Sebastian começou a caminhar
pelo escritório. — Brusco, obstinado, centrado em uma só coisa: Pembrook. Você
quer poesia, palavras ternas e doçura. Na minha vida não há doçura, salvo na cama. E
o fato de que você está na minha cama a torna ainda mais doce. — Ele se virou para
ela e a olhou no rosto. — Por que demônios você está sorrindo?
— Para quem não gosta de poesia, você pode ser muito poético. Eu o esperarei
para que possa ―me tomar‖.
Mary deu meia volta e saiu do escritório. Não fazia nem ideia de porque se
sentia tão animada. Quem sabe fosse porque mesmo que ele não houvesse dito
claramente, ela sabia que significava muito para Sebastian.
Quando o duque entrou no quarto de sua esposa, encontrou-a ainda no banho.
Mary não o havia visto chegar porque a banheira estava oculta por um biombo. A luz
da lareira refletia sua silhueta. Não ouvira o abrir da porta porque estava cantando.
Não, lalareando. Não cantando. Não conhecia a letra da canção e cantava o que sabia,
lalareando o resto.
— Como sempre, sem pretensões…
Possuia a voz da cotovia ao amanhecer. A donzela estava sentada em uma
cadeira e ao ver o duque, deixou de lado o seu bordado e o olhou fixamente. Sebastian
levou um dedo aos lábios e lhe mostrou a porta, indicando-lhe que saísse. A mulher
levantou da cadeira, fez uma ligeira reverência e abandonou o quarto.
Com os pés descalços, ele se sentou na borda da cama e embevecido, observou
sua esposa se banhar enquanto cantava e lalareava. Ao levantar os braços, algumas
gotas de água caíram ruidosas na banheira e ele as imaginou deslizando por seu corpo
desnudo. Havia pensado em transformar um dos quartos em uma sala de banho, mas
ao fim preferia a visão da banheira em frente da lareira. Inclusive as sombras de Mary
resultavam atraentes.
Quem sabe se devesse, em parte, que ela não soubesse de sua presença
observando-a. Sebastian jamais se havia considerado um voyer, mas estava
desfrutando muito apreciando a cena que se desenvolvia em frente a ele.
Desgostava-o a ideia de ter lhe negado, se bem que inconscientemente, algo que
ela desejava: uma viagem de noivos. Havia passado tanto tempo longe de Pembrook,
da Inglaterra, que não lhe havia ocorrido seguir distante de seus domínios por mais
tempo. Fitzwilliam teria lhe dado algo que ele não dera. Estivera tão preocupado por
salvar sua reputação que não havia pensado nos desejos do coração de sua esposa. E
ela possuia muitos. Depois que ela o deixou no escritório, havia consultado a folha de
papel que ela deixara sobre sua mesa. Tratava-se de uma lista de tarefas, ainda que
salpicada com desenhos de pequenos corações. Ela queria amor e, lamentavelmente,
ele não sabia se podia oferecer isso.
Mary tirou uma linda perna de dentro da banheira e apontou com os dedos dos
pés para o teto. Sebastian ficou de boca seca. Deus santo, ela era muito flexível.
Poderia tomá-la enquanto ela apoiasse os pés nos seus ombros. Observou os sinuosos
movimentos enquanto a jovem deslizava as mãos desde o calcanhar até as coxas.
Quem sabe continuava até os quadris. Ou melhor, ela se deteria a meio caminho, na
entrada do paraíso que ele já antecipava.
Havia deixado de cantar e se limitava a lalarear uma doce e provocativa
melodia que fez a respiração do duque se acelerar. Fazia tudo isso sempre que se
banhava?
— Colleen — chamou Mary depois de suspirar e jogar a cabeça para trás. —
Estou pronta para sair do banho.
Sebastian engoliu com dificuldade. Ele também estava preparado, mas não para
sair do banho, sim para saciar completamente a sua mulher.
— Colleen? A toalha? Não se entretenhas. Meu esposo chegará a qualquer
momento e quero estar preparada.
Se estivesse mais preparada, ele entraria em combustão. Sebastian se pôs de pé
e se aproximou dela com uma toalha na mão. Rodeou o biombo e de imediato decidiu
que Mary estava muito mais atraente desnuda. Estava com os olhos fechados e a
cabeça continuava apoiada na boda da banheira. Toda sua pele estava úmida e seus
cabelos recolhidos de maneira caótica sobre a cabeça. Vários cachos estavam soltos e
se encresparam selvagemente, as mãos para os lados e as coxas estavam separadas. A
água lambia seus seios, criando duas ilhas preciosas.
Ela voltou a suspirar e, lentamente abriu os olhos.
Soltando um grito, se afundou na água até que as ilhas desapareceram nas
profundezas. Uma pena.
— Que faz aqui? — Ela perguntou.
— Por que tanta surpresa? Eu lhe disse que viria te ver e até a ouvi anunciar à
donzela que eu chegaria a qualquer momento.
— Quanto tempo está aqui? — Ela o olhou furiosa.
— Quando entrei você estava cantando uma canção, mas havia partes que
você não sabia.
— Me ouviu cantar? — Mary parecia horrorizada. — Deus santo!
— Possui uma voz encantadora.
— É horrível. Canto como uma coruja.
— Pois eu diria que parece mais uma cotovia.
— Por que não me fez saber que estava aqui?
— Estava desfrutando do espetáculo.
— Sombras chinesas — Mary dirigiu o olhar até o biombo e depois olhou a
lareira. — Tremendamente amenas.
— Creio que está se divertindo — ela lhe dedicou uma olhada travessa .
— Assim é.
— Talvez tenha que lhe dar uma lição por espionar-me, negando meus
favores.
— Eu jamais permitiria.
— E como, Excelência, espera conseguir? — A duquesa revirou os olhos.
— Beijarei cada centímetro de seu corpo até que esteja a ponto de
desmoronar de desejo, como eu estou nesse momento.
— Vejo esse doloroso desejo, mesmo que ainda esteja com as calças — ela
sorriu travessa. — Passe-me a toalha para que eu possa me secar e atender suas
necessidades.
— Eu quero enxuga-la, e depois fazer com que fique úmida outra vez.
— Que maneira tão vulgar de falar! — Exclamou Mary.
— Poesia de dormitório.
— Logo você que assegurava não ser um poeta — ela o estudou por um
momento com os olhos meio fechados.
A bruxa sensual o fazia sentir como se fosse ele quem estivesse nu, e não ela. A
deliciosa língua surgiu entre os lábios entreabertos e sorveu uma gota de água. Em
seguida saiu da água como uma deusa, totalmente satisfeita com seu corpo, sem um
átomo de timidez.
Essa mulher ia matá-lo.
— Cumpra a sua promessa, Excelência — Mary fez um biquinho. — Seque-
me, e depois volte a me deixar molhada.
Mary não sabia de onde tirara a coragem para tanta ousadia. Quando Sebastian
lhe havia confessado que estava a ponto de cair, havia se sentido poderosa, no controle
da situação, independentemente de sua ameaça de não permitir que ela lhe negasse
seus favores. Ela sabia que ele jamais a forçaria.
Na realidade, ele temia que ela não aceitasse suas carícias. Estranho. Mary
sempre havia pensado que fosse o homem que deveria assegurar de que a mulher se
sentisse a vontade com o que acontecia entre o casal, e, contudo, era seu marido que
necessitava que ela lhe assegurassem que as cicatrizes não a incomodavam. Ficava
encantada quando o sentia devastado pela paixão e, por um momento, esquecido das
cicatrizes. Ela queria que ele deixasse de se importar. Queria que o escândalo que os
levara a se casar deixasse de importar também.
Queria que o amor que compartilhavam fosse tão profundo e inquebrantável,
que nada mais importasse.
O frio fez seus mamilos endurecerem. O olhar ardente de Sebastian foi direto
ao seus seios. Mary percebeu o movimento de sua garganta ao engolir. Sem dúvida, o
poder era seu.
— Estou sentindo frio, Excelência — ela estendeu um braço e tentou fingir
inocência fazendo um biquinho gracioso.
Havia esperado que Sebastian lhe tirasse da banheira e a secasse rapidamente.
Entretanto, ele se ajoelhou diante dela, e esticou a toalha sobre uma coxa. Mary
apoiou um pé no degrau improvisado e ele começou a secá-la pelos dedos dos pés,
lenta e suavemente, concentrado em sua tarefa. Apesar de ter as mãos ainda molhadas,
ela deslizou as mãos por entre os cabelos de seu esposo.
— Algum dia lhe devolverei o favor — ela lhe assegurou.
— E que favor seria esse? — Ele perguntou distraidamente.
— Invadirei no meio do seu banho.
— Eu não a interrompi. Deixei-a desfrutar dele.
— E você também desfrutou.
— Imensamente — Sebastian a olhou.
Depois de terminar de secar-lhe a perna, fez um sinal para que apoiasse a outra
sobre sua coxa. Continuou secando-a com uma delicadeza que ela jamais conhecera,
como se temesse que o algodão fosse arranhar sua pele. Quando terminou a outra
perna, deixou o pé cuidadosamente sobre o solo e se levantou. Mary nunca havia se
assustado com sua elevada estatura e, mesmo ela sendo alta para uma mulher, ele era
bem mais alto que a maioria dos homens.
O duque prosseguiu secando o rosto, o pescoço, os ombros, os seios. Ao tomar
um mamilo nos lábios e chupar, ela gemeu e jogou a cabeça para trás, o olhar fixo no
teto.
— Vire-se — ele ordenou.
Mary compreendeu que a tarefa que seu esposo lhe impôs, era uma tortura, para
ambos. Um delicioso tormento.
Como boa esposa, obedeceu e desfrutou da sensação da toalha absorvendo a
umidade de suas costas. Durante um momento fez o que prometeu não fazer jamais:
pensou em Fitzwilliam e compreendeu que ela jamais lhe teria permitido que ele
tomasse tantas liberdades com ela. Teria agradecido a escuridão durante seus
encontros. Não teria se mostrado brincalhona, sedutora ou sensual. O que parecia
natural com Sebastian não teria sido com nenhum outro.
A toalha deslizou por seu corpo até chegar ao solo. Em seguida Sebastian lhe
soltou os cabelos, que caíram sobre os ombros.
— Já está toda seca — ele sussurrou antes de beijar-lhe o pescoço.
— Eu não diria tanto — Mary estava bem consciente da umidade entre suas
coxas.
— Isto é muito fácil — Sebastian riu enquanto deslizava uma mão até sua zona
íntima.
— Não posso negar as evidências — ela suspirou.
— Fico encantado com o tanto que é receptiva — ele sussurrou tão baixinho
que Mary não estava certa se as palavras eram dirigidas a ela ou a ele mesmo.
O duque a tomou nos braços e a levou até a cama. Só então ela se deu conta de
que quase toda luz vinha da lareira, bloqueada pelo biombo. A cama estava entre as
sombras.
— Não — exclamou quando seu esposo esticou a mão para puxar os cordões e
fechar as cortinas do dossel.
Ele se deteve e a olhou.
— Esta manhã já tivemos a luz do sol — lhe recordou Mary.
— Esta noite necessito a escuridão, Mary — Sebastian lhe tomou o rosto entre
as mãos e lhe beijou a testa.
A súplica era tão sentida que ela foi incapaz de negar. Sebastian a havia visto
banhar-se e a havia secado. A antecipação havia aumentado. Não era momento para
discutir, para convencê-lo que as cicatrizes não a repeliam. Apoiou a mão no forte
torso e o empurrou ligeiramente para conseguir se sentar, Estudando seu rosto, o
beijou fugazmente antes de fechar as cortinas de seu lado. Depois esperou sentada na
cama até que o ouviu afastar-se e as cortinas do outro lado se fecharam. De novo
ficaram sumidos na escuridão.
Mas isso não lhe impediu de encontrá-lo quando se virou ligeiramente.
Deslizou uma mão desde o peito até a garganta, pelo queixo, pelas bochechas até que
sentiu o tapa olho. De imediato, Sebastian agarrou seu pulso.
— Deixe-me tirá-lo — sussurrou ela. — Está escuro. Não precisa dele. Se eu
estou completamente desnuda, você também deveria estar.
Os dedos do duque afrouxaram e muito lentamente, Mary retirou o tapa olho
antes de beijar a carne dilacerada, sem saber sequer se ele sentia.
— Mary — a voz surgiu rouca.
— Sou sua — ela voltou a sussurrar .
Deitando-a sobre a cama, Sebastian se dispôs a cumprir sua promessa. A
atormentou com as mãos, boca, língua, até que ela temeu que saísse vapor de sua pele.
Estava preparada para ele desde muito antes que tivessem alcançado a cama.
Sebastian era um amante experiente e ela tocou ansiosamente tudo que não
podia, sentiu os músculos tensos pelo esforço de se controlar, o atlético corpo entrar e
sair dela, a mandíbula apertada, os cabelos úmidos. O prazer cresceu em seu interior
ao ritmo dos gemidos de seu esposo. E, quando o cataclismo alcançou ambos, ao
mesmo tempo, ela o abraçou com força enquanto a ardente semente se vertia em seu
interior. Com a respiração entrecortada, Sebastian girou para um lado e a atraiu para
si.
E ela dormiu feliz.
Capítulo 27

Os dias seguiram seu curso, cada um, carregado de descobertas.


Mary começou a entender a devoção de seu esposo por Pembrook. Cada manhã,
o duque dava uma volta a cavalo por suas terras e geralmente ela o acompanhava.
Falava com os arrendatários, valorizava a possibilidade de futuros ingressos
financeiros, anotava as melhoras que precisaria realizar.
Ali via Sebastian bem mais a vontade do que em Londres.
Inclusive ele se mostrara relaxado durante a visita de seu pai, mas, sobretudo,
havia conseguido tranquilizar o conde. Antes de se despedir dele, o homem a havia
levado a parte e lhe havia anunciado que ela havia se casado com um bom homem.
Do qual ela não possuia nenhuma dúvida.
Mary estava no jardim, observando os esforços do novo jardineiro. Seu pai
havia se mostrado mais que disposto a permitir que o jovem partisse.
Também lhe havia oferecido outra meia dúzia de empregados, filhos de seus
próprios serviçais por toda a vida aos quais se sentia capaz de liberar de suas
obrigações. Contudo, já não precisava deles. A duquesa ao contrário, possuia muito
trabalho para eles.
De sua posição via os estábulos, e a Sebastian falando com o cavalariço e
mostrando diversos cavalos. Os recém chegados, presentes de casamento de
Tristan haviam chegado galopando naquela manhã. O duque estava em mangas de
camisa para inspecionar cada exemplar. Não lhe assustava sujar as mãos, disso não
restava dúvida. Mary não se recordava de ter visto seu pai mostrar tanto interesse
pela gestão de suas propriedades. Para isso possuia supervisores que lhe
entregavam pontualmente os informes. Mas Sebastian falava com todos seus
empregados, dava ordens, escutava suas ideias. Queria que Pembrook recuperasse
seu esplendor.
Não havia tantos arrendatários quanto antes trabalhando as terras, mas
proporcionavam rendas bem significativas. As demais propriedades iam bem melhor.
Diferente de Fitzwilliam, Sebastian não necessitava do seu dote.
Apesar da tragédia que rodeava aquele lugar, Sebastian se sentia em casa ali.
Mary gostava de vê-lo passear por suas terras . E esse havia sido seu
verdadeiro propósito ao sair ao jardim, pois o jardineiro era perfeitamente capaz de
decidir que tipo de planta devia colocar em cada lugar. Sebastian amava Pembrook
com toda sua alma, dedicando-lhe toda sua devoção, e ela tentava não sentir
ressentimento por não ser o objeto dessa devoção. A verdade é que não possuia
nenhum motivo para se queixar.
Seu esposo ia todas as noites a sua cama. Normalmente ficava até o amanhecer,
mas, algumas noites, ele se sentia inquieto e regressava para seus próprios aposentos
para não molestá-la. Sua insistência em que as cicatrizes não lhe repeliam não o
convencia a ficar. Nessas noites, o ouvia gritar e desejava desesperadamente estar ao
seu lado, mas sabia que ele não queria que presenciasse seus pesadelos.
— Excelência.
— Thomas — Mary se virou sorridente para o mordomo.
— Chegou o correio. Ambos receberam cartas. Pensei que poderia ser
importante.
Ela pegou o envelope que ele oferecia. O mordomo já o havia aberto, mas Mary
nem se perguntou se havia lido seu conteúdo. Sabia que não se intrometeria na
intimidade dos seus senhores.
— Obrigada.
— É bom que sua Excelência esteja em casa — o homem olhou para os
estábulos.
— Sim, realmente é.
— Se precisar de meus serviços, avise-me.
Mary sorriu ao ver que sua carta era de Alicia. Tirou a folha do envelope e
começou a ler.

Minha querida prima.

Espero que a recepção desta carta a encontres bem e feliz em seu casamento .
Tenho uma noticia para lhe dar. Lorde Fitzwilliam me pediu em casamento e eu aceitei.
Sei que para você será uma surpresa, mas faz algum tempo que ele me interessa e eu a
considerava a mais afortunada das mulheres por tê-lo envolvido. Não posso lhe explicar como
estou feliz desde que ele começou a me cortejar. Escreveu lindas poesias e me envia flores a
cada manhã. Inclusive arranjou uma forma de me beijar às escondidas. Nesse aspecto tem
muito talento.
Perdoe-me por meu comportamento, mas sou tão feliz que queria dividir com você.
Sinto muito o escândalo que a obrigou a partir daqui ,e acredite-me se lhe digo que não tive
nada a ver com a propagação dos horríveis rumores . Não me alegrei por seus problemas, mas
devo confessar que fiquei encantada de vê-lo de novo livre e sem compromissos. Tenho rezado a
cada dia para ser perdoada por achar a felicidade em sua desgraça.
Espero que se alegres por mim, minha querida Mary. Sempre me encantaram ovos
duros. Desejo-lhe tudo de melhor e espero que sejas muito feliz com teu pudim natalino.
Sempre a amarei, Sua
prima, Alicia.
Por certo, mamãe lhe envia um beijo.

Foi o cavalariço, Johnson, que alertou a Sebastian. Mary se aproximava com


muita pressa. Maldisse sua visão limitada. Se ela tivesse se aproximado dele pelo outro
lado, a teria visto antes. Pelo seu jeito de se mover, soube que algo ia mal.
— Termine você — ordenou ao jovem. Por sorte, suas compridas pernas
encurtaram a distância entre eles. Ela sorria, mas havia algo estranho.
— Vamos dar um passeio — sugeriu Sebastian. Mary se ajustou a seu passo.
— Está satisfeita com o jardineiro?
— Sim. Na primavera o jardim estará cheio de cor. Falamos da possibilidade de
construir uma estufa, para termos flores frescas o ano todo.
— Se isso lhe agrada, o faremos.
— Não lhe interessa conhecer o preço antes?
— Posso acusar meu tio de muitas coisas, mas não de ser um gastador.
— Então, por que matar a quem estivesse antes dele na linha de sucessão do
título?
— Por prestigio, poder. Talvez por amor. Os homens fazem coisas horríveis
pelos motivos mais estranhos.
Caminharam em silêncio durante vários minutos antes que ele se atrevesse a
perguntar.
— O que a preocupa?
— E por que acha que algo me preocupa?
— Mary, eu a conheço —Sebastian tentou dissimular sua impaciência.
— Recebi uma carta de Alicia — Mary suspirou. — Fitzwilliam pediu sua mão
e ela aceitou.
— E isso a incomoda?
Ela se deteve, ainda que mantivesse o olhar fixa a frente. Sebastian se colocou
diante dela, obrigando-a a olhá-lo.
— Lamenta não ter se casado com ele? — Ele estava com um nó no estômago e
não estava seguro de queres saber a resposta.
— Oh, não! — Mary o olhou perplexa antes de soltar uma gargalhada. — Isso
jamais me passou pela cabeça. Estou por Alicia. Sinto como se lhe houvesse tocado
um artigo de segunda mão. Ela merecia ser a primeira escolha do homem que pedisse
sua mão.
— Visto assim, você também seria um artigo usado.
— Deus do céu! —Eela ficou boquiaberta. — Não havia pensado nisso.
Sebastian, você tem dúvidas sobre meu desejo de ser tua esposa?
— Deveria ter?
— Não. Que alguém perguntasse primeiro e eu aceitasse não significa que
quando me pediu eu quisesse me negar.
— Quem sabe ocorre o mesmo com a sua prima. Poderia escolher. Se não
quisesse...
―O que é mais do que você teve‖, ele pensou. Se Mary, não tivesse aceitado
casar com ele que tipo de vida restaria para ela?
— Fez uma observação muito aguda — Mary assentiu. — É possível que
Fitzwilliam sinta algo por ela. Disse que lhe dá beijos às escondidas e que o faz muito
bem.
— Beijar ou esconder-se?
Mary soltou uma gargalhada. Sebastian se encantava com seu riso, mas não o
havia ouvido muito desde seu regresso.
— Beijar, suponho. Não tenho certeza. Ele jamais me beijou.
— Nunca? Que tipo de mequetrefe ele era?
— Nem seque quando teve a oportunidade, quando estivemos sozinhos.
— Quando estiveram sozinhos? — Por Deus santo! Estava com ciúmes? Não,
claro que não.
Mary estivera com Fitzwilliam, mas agora estava com ele.
Não havia motivo para ciúmes.
— Fui vê-lo, para perguntar-lhe sobre os rumores horríveis. Agora que penso,
ele estava no escritório e parecia muito pensativo. Pergunto-me se já começava a ter
dúvidas sobre nosso casamento — a duquesa abriu os olhos desmesuradamente. — O
dote de Alicia não é tão elevado quanto o meu, e ele disse a meu pai que queria um
grande dote. Acredita que buscava uma desculpa para romper comigo? Grande
canalha!
Sebastian ouviu um estranho ruído ao seu redor e compreendeu que era sua
própria risada. Com um sorriso radiante como o sol, ela lhe acariciou a garganta.
— Pensei que não voltaria a ouvir esse som — os olhos verdes se inundaram de
lágrimas.
— Nem se atrevas a chorar.
— Eu… — Mary enxugou as lágrimas com a mão. — Eu tinha tanta saudade.
O que falei para fazê-lo rir? Voltarei a dizer.
— Quer que sua prima signifique algo para ele e, quando acredita que por fim é
assim, o considera um charlatão.
— E as duas coisas se excluem, não é verdade?
— Temo que sim.
— Quero que ela seja feliz.
— E você? É feliz, Mary?
Em lugar de contestar, ela se pôs na pontinha dos pés e o beijou, e ele a abraçou
com força.
Na mente do duque surgiu a pergunta que Rafe lhe havia feito: faria
trapaças para ganhar ou para perder?
Mary o beijara porque era feliz ou para não lhe responder?
— Quase esqueci — ela arregalou os olhos e sorriu. — Você também recebeu
uma carta.
Entregou-lhe o envelope e Sebastian tirou o papel e a leu imediatamente.

Sebastian,

Temo que tenho uma má noticia. Em meu regresso a Londres soube que Rafe havia
sido atacado por três rufiões próximo de sua residência. Está se recuperando de uma ferida de
bala na perna . Descobri que nosso irmãozinho é algo especial . Ao que parece se desfez de
dois desses tipos com facilidade e conseguiu que o terceiro lhe descrevesse o homem antes de
se encarregar dele também. Se não foi nosso tio, ele tem um irmão gêmeo.
Por culpa das feridas, Rafe não pode enfrentar o tio de imediato. Eu pus mãos a obra,
mas, desgraçadamente, o tio se escapuliu da pensão onde estava. A última vez que o espião de
Rafe o viu foi numa noite em que regressou do pub,fortemente ébrio ou isso pareceu ao homem
de Rafe. Naquela mesma noite viu uma senhora partir com um baú. Mas, quando interroguei a
jovem gerente da pensão, ela me disse que a única pessoa mais velha ali era o nosso tio.
Suponho que seu primeiro impulso será vir a Londres de imediato, mas lhe asseguro
que Rafe está se recuperando bem. É de maior utilidade aí. Ocupa-se de Pembrook. Eu
seguirei procurando pelo tio até que encontre seu rastro.
Vigia suas costas, irmão.
Tristan

— Maldito seja! —Sebastian amarrotou a carta.


— O que aconteceu? —Mary agarrou o braço dele e o olhou com rosto
preocupado.
— Meu tio tentou matar Rafe. Desperdicei um dia avaliando cavalos quando
deveria buscar alguma evidência do que esteve tramando durante anos. Devo
redobrar meus esforços, concentrar-me em demonstrar sua culpabilidade na morte
de meu pai, ou em suas tentativas de nos matar.
Havia fracassado de novo na hora de proteger a Rafe!
— Saunders! — Quase havia alcançado a casa quando se deu conta de que
Mary não o havia seguido.
— Sim, Excelência?
— Minha esposa não pode ficar sozinha nestas terras. Encontre-a e a
acompanhe até a residência.
Abriu a porta e se dirigiu ao escritório. Destruir seu tio havia se convertido
numa prioridade. Esse homem não se renderia. Mas estava aponto de descobrir que
seu sobrinho podia ser igualmente obstinado.
Capítulo 28

Naquela noite depois de fazer amor, Sebastian se sentia inquieto e não parava
de dar voltas na cama. Depois de beijar sua esposa na testa, ele anunciou que dormiria
nos seus aposentos. Mary não gostava de vê-lo partir. Havia se mostrado
estranhamente calado durante o jantar e suspeitava que tivesse algo a ver com sua
preocupação com Rafe. Ainda que não tivesse dito nada, ela sabia que ele se sentia
culpado.
Depois, havia feito amor com um desespero, como se tentasse escapar de algo,
como na noite do baile quando lhe havia confessado no jardim que precisava esquecer,
e então a havia beijado de um modo que ela jamais esqueceria.
Não lhe agradava sentir a cama vazia e pensou na possibilidade de se reunir
com ele em seus aposentos. Contudo, era evidente que o que desejava era estar só, de
modo que, em lugar disso, fez o que mais necessitava fazer: ficar onde estava e
dormir.
Despertou quando os infernos subiram. Ao menos assim lhe pareceu que soava.
Os trovões estalavam ao seu redor. Saltou da cama e correu para a janela, mas não via
nenhum relâmpago contra o céu negro. Contudo, viu luz na pequena janela da torre
nordeste. A torre dos prisioneiros. Também via sombras, e quase sentiu tremera
construção.
Correu até a cama e pegou a echarpe e se envolveu antes de invadir os
aposentos de Sebastian. Uma luminária solitária permanecia acesa, iluminando uma
cama desfeita que mais parecia o cenário de uma batalha.
Mary saiu do dormitório e correu escadas abaixo. O relógio do vestíbulo deu as
12 horas e o som que retumbava pelos corredores lhe resultou muito inquietante.
Segurou a echarpe com mais força, como se com isso pudesse proteger-se do que
encontraria.
Não temia por ela, temia por Sebastian, e rezou para que encontrasse a força
para destruir os demônios que ele enfrentava. Luminária na mão, atravessou correndo
o pátio, ignorando as dolorosas pontadas nos pés. Com a pressa não havia colocado
sapatos. Só tinha uma coisa em mente: fazer o que fosse para aliviar a dor de
Sebastian.
A pesada porta de madeira que conduzia ao interior da torre rangeu. Depois de
tantos anos decorridos, ainda lhe provocava terror, como naquela noite em que havia
enfiado a chave com tanta força que sangrara suas mãos. Subiu a estreita escada com a
mão na parede, sentindo a vibração cada vez que soava um estrondo.
Ao chegar lá em cima, viu a porta que anos atrás, havia introduzido a chave.
Estava aberta de par em par. Havia liberado os meninos. Ao menos essa fora sua
intenção, ainda que temesse que Sebastian continuasse preso entre aquelas
paredes. Aproximou-se lentamente e olhou o interior.
Seguia tal e comofora anos atrás. No centro, uma pequena mesa e dois
tamboretes. E ali estava seu esposo com uma marreta na mão, batendo com força
contra a parede. Havia tirado a camisa e sua pele brilhava de suor.
Os cabelos úmidos grudavam na nuca e no rosto com cada movimento. Mary
só via um lado de seu rosto, mas chegava para saber que estava retorcida de ira. Seu
impulso foi fugir, deixá-lo ali sozinho com sua loucura.
Mas não podia deixá-lo encerrado na prisão de sua ira, como anos atrás não
conseguira deixá-lo encarcerado entre aquelas quatro paredes. Havia sido seu amigo
de infância, e quem sabe se fossem mais velhos, teriam sido algo mais.
Claro que nesse momento o eram.
Mary odiava o que lhes fizera o passar dos anos. Sebastian se tornara um ser
cansado e amargurado, e neste momento a assustava. A menina que havia sido não
teria duvidado em arriscar tudo para fazer o que era correto. Mas a mulher duvidava e,
ao fazê-lo, permitia que continuasse o tormento do duque.
— Sebastian? — Mary engoliu nervosamente e deu um passo a frente.
O seguinte golpe da marreta foi tão forte que conseguiu abrir uma brecha na
parede. Não mais que um pequeno buraco, mas um buraco ao fim e ao cabo. Sebastian
contemplou sua obra antes de voltar a levantar a marreta.
— Sebastian?
Ele se virou bruscamente. O corpo coberto de suor também apresentava
pequenos cortes onde os fragmentos de pedra o haviam alcançado. E em seu coração,
como causadas por milhares de facadas, havia muita dor. Mary queria se aproximar,
mas se manteve imóvel. O único momento em que vislumbrava um raio de esperança
de que entre eles pudesse haver amor, era na cama, onde podia liberar sua imaginação
e imaginava felicidade, risadas, sorrisos. Imaginava despertar feliz e não sozinha.
— Volte para a cama, Mary.
— Deixe-me lhe ajudar.
— Ninguém pode me ajudar — uma amarga gargalhada ressoou ao seu redor e
golpeou Mary como se ele tivesse lançado a marreta.
Dando-lhe as costas, Sebastian voltou a empunhar a marreta e golpeou com
força ao redor do buraco aberto. Duas pedras caíram ao vazio da noite. E outra mais.
Pouco a pouco, o buraco se tornou maior. O esforço continuava umedecendo seus
cabelos, suas calças.
Mary se sentou em um dos bancos e o sentiu tremular com seu peso.Com
lágrimas nos olhos, depositou a luminária sobre a mesa. Seu esposo sofria uma
tremenda agonia e ela não sabia como ajudá-lo. A única coisa que sabia era que não
podia partir. Contudo, também havia perigo no ato de se aproximar. Ele estava
enlouquecido e, se a golpeasse com a marreta, sem dúvida a mataria. Ali, na austera e
solitária torre onde três meninos haviam aguardado a morte.
Com o passar dos anos, havia tentado não pensar no que deviam ter sofrido. Era
demasiado doloroso para poder suportar. Quanto medo deviam ter passado. Quão
sozinhos devem ter se sentido. Quão traídos. Mary cobriu a boca com a mão evitando
gritar, para não distraí-lo. Se se desconcentrasse, Sebastian podia se machucar muito.
O buraco estava cada vez maior e os movimentos do duque cada vez mais
lentos e mais fracos. Finalmente ele se deteve, deixou cair a marreta, jogou a cabeça
para trás e lançou um grito gutural que ressoou ao redor, e Mary sentiu quase lhe partir
o coração.
Sebastian caiu de joelhos.
Mary correu até ele e se deixou cair ao seu lado. Apesar de ter os punhos
cerrados, via-se que suas mãos estavam em carne viva.
— Oh, Sebastian! Querido, querido, Sebastian.
Ela arrancou um pedaço de pano do camisão e começou a envolver uma
mão.
— Aqui começou tudo — ele lhe explicou com a voz entrecortada. — Pensei
que, se pudesse derrubá-lo, os pesadelos terminariam.
— Deve ter passado tanto medo aqui — ela lhe tomou o rosto entre as mãos,
esperando, sem saber…
— Eu sabia. Proibi Tristan e Rafe que comessem o que nos trouxeram. Pensei
que poderia estar envenenado. Rafe choramingava de fome, sede e frio. era tão
pequeno, tão frágil ... Sabia que no fim tio David enviaria alguém para nos buscar.
Alguém que fingiria ser nosso amigo. Alguém que nos levaria ao bosque e nos
mataria. Sabia que era isso o que aconteceria. Tinha um plano para atacá-lo, mas então
você chegou.
— Escaparam — Mary lhe acariciou os cabelos.
— Abandonei Rafe num orfanato — Sebastian sacudiu a cabeça. — Ainda o
ouço chorar, implorando-me que não o deixasse. Mas precisamente por isso deveria
fazê-lo. Ele não era forte o bastante. Tristan não me disse nenhuma palavra sequer
enquanto nos dirigimos para o cais. Não me disse uma palavra quando o vendi. Eu o
vendi, Mary, como se fosse uma quinquilharia que não me agradasse mais.
Mary queria que ele parasse de falar. Não queria ouvir tudo aquilo.
— Não me disse uma palavra quando parti. E isso, em certo modo foi bem pior
que ouvir os gritos de Rafe pedindo-me que voltasse.
— Você não teve escolha — ela assegurou.
— Acredita que eu não sei? Cada noite quando adormeço, ouço os gritos de
Rafe e o silêncio de Tristan, e me sinto condenado por ambos. Só queria que esse
pesadelo desaparecesse. Quero paz. Pensei que, uma vez que recuperasse Pembrook,
conseguiria ter paz. Mas não há paz para mim. Não enquanto meu tio continue
respirando. Deveria tê-lo matado em Londres, mas isso me teria convertido no mesmo
que ele.
— Você jamais poderia ser como seu tio — Mary o abraçou e o alcançou
com doçura. — Tristan e Rafe compreendem por que você fazer o que fez. Precisa
perdoar a você mesmo.
Ele sacudiu a cabeça.
— Sei que é duro, mas se não fizer, cada vez mais estará amargurado,
enfadado, até que seja como ele. E então, seu tio terá vencido. — Ela segurou o rosto
dele entre as mãos e o obrigou a olhá-la de frente. — E não vou permitir que isso
ocorra.
Sebastian lhe acariciou a bochecha com os nós dos dedos e ela percebeu o
cheiro de cobre do sangue.
— Sempre foi tão forte, Mary.
— Não tanto. Apenas aparento ser.
— Alegro-me que esteja aqui.
Sebastian se inclinou sobre ela e a beijou. Foi um beijo vacilante, sem ardor,
porque sabia igual a ela, que aquele não era lugar para se unirem. Nesse lugar se
destroçavam vidas, e nem sequer sua união teria força suficiente para desfazer aquele
mal. Ali precisaria de marretas e de mais trabalhadores. Ele não poderia se fazer
sozinho.
— Leve-me à cama — ela sussurrou.
O duque se colocou de pé e levantou a sua duquesa para levá-la além daquele
inferno.
Sebastian se afundou na banheira de água quente. Ela lhe queimava a onde as
pedras haviam feito feridas e lhe relaxava onde não havia nenhuma. Doíam os
músculos pelo esforço e ele suspeitava que na manhã seguinte estaria todo rígido e
dolorido. Não se recordava de ter trabalhado tanto, nunca, de ter se esforçado tanto
numa tarefa. Mas a recompensa...
Quando vira a luz da lua entrar pelo buraco que havia aberto, havia se sentido
exultante. Derrubaria a torre inteira. Cada centímetro. Converteria o solar em um pátio
onde a luz da lua e as estrelas sempre manteriam as sombras distantes. E então, seria
mais livre, ainda que não totalmente. Não até que fizesse com que a vida de seu tio
fosse miserável, não até que encontrasse provas dos crimes de lorde David. Precisava
encontrar o que buscava, pois o estava matando.
Não deveria ficar tanto tempo na banheira, mas a sensação era maravilhosa.
Seus banhos costumavam ser rápidos, enquanto os de Mary pareciam eternos.
Quem sabe ela estivesse certa.
Apesar do tarde que era, a duquesa havia despertara dois lacaios para que
aquecessem água e a levassem aos aposentos de seu esposo. Não podia culpá-la por
desejar que se desfizesse da sujeira antes de se deitar com ela. Estava coberto de uma
grossa capa de suor e pó, e fedia. Ainda lhe surpreendia que o tivesse abraçado e
beijado.
Mary havia pedido também que levassem o biombo. Ele nunca havia se
incomodado em colocar um e pensava que ela o fazia por modéstia, mas em
seguida havia compreendido que ele ajudava a manter o calor da lareira. E não
podia negar que criava um ambiente muito acolhedor.
Ela havia prometido banhá-lo e Sebastian começava a se fartar da espera.
Com a cabeça apoiada na borda da banheira, observou as sombras que brincavam
no teto e se perguntou o que a mantinha afastada. Não lhe agradava que tivesse
presenciado seu surto de loucura, mas não podia negar que havia se alegrado de vê-la
ali de pé, qual anjo vingador. Se não o tivesse feito entrar em razão, ele teria
continuado golpeando a parede toda a noite. Essa mulher sempre estava a seu lado nas
horas mais escuras.
Quando tivesse saciado sua sede de vingança, a compensaria por tudo. A
levaria numa viagem de noivos. Comprariam um livro de poesia. Arrancaria flores do
jardim para ela. Sebastian gemeu. Ele não era um homem que seduzisse uma mulher
com poesia e flores. E ela sabia. Não, continuaria presenteando-a com seus beijos.
E nesse momento queria beijá-la, unir-se a ela. Onde demônios estaria? Talvez
tivesse adormecido. Se assim fosse, iria despertá-la, lentamente, com uma chuva de
beijos por todo seu corpo. Começaria pelos dedos dos pés e continuaria subindo. Mas
primeiro devia se lavar.
O duque se ergueu.
— Não se mova.
A ordem de sua esposa vinha do outro lado do biombo. Sebastian contemplou
de novo, as sombras do teto.
— Quanto tempo está aí?
— O bastante para comprovar que não canta enquanto se banha. Quase terminei
e, quando o fizer, cumprirei minha promessa de lavá-lo.
— O que está fazendo?
— É um segredo.
— Não gosto de segredos.
— A mim tampouco, mas isso não lhe tem impedido de tê-los comigo.
— Eu não tenho nenhum segredo para você.
— Com que frequência os pesadelos o despertam?
Sebastian rangeu os dentes.
— Todas as noites? — Ela insistiu.
— Geralmente, diga-me o que está fazendo ou sairei daqui e a tomarei.
— Isso me agradaria muito. Mas ainda não.
— O que faz? — Ele insistiu com mais impaciência.
— Ultimamente encontrei satisfação em desenhar silhuetas. Agrada-me e a
única coisa que preciso é de uma sombra.
Sebastian recordou ter observado as sombras de Mary quando estava tomando
banho, e compreendeu que o biombo que havia insistido em que usasse não tinha por
objetivo conservar o calor.
— Está desenhando minha silhueta?
— Sim. Quero que veja o que vejo quando eu o olho.
— Já sei o que vê.
— Creio que não.
— Insisto em que pare — ele saiu da água.
— Não estou lhe pedindo grande coisa, Sebastian. Conceda-me.
Não lhe pedia grande coisa? Ao menos nada que tivesse consequências. O
duque voltou a afundar-se na água, com tal força que salpicou por um lado da
banheira. Com profunda ira, olhou à lareira. Precisava mostrar sua insatisfação.
— Continue olhando à frente como estava antes de saber que eu estava aqui.
Ele obedeceu de má vontade.
— Obrigada.
— Será horrenda, toda desfigurada. Não sei para que a quer.
— Nunca vão fazer um retrato nosso?
Já havia considerado. Era importante, para a posteridade, que houvesse um
retrato do oitavo duque e sua duquesa.
— Pedirei ao Tristan que pose com você.
— Mas ele não é nem o duque, nem meu esposo.
— Ele tem o aspecto que eu deveria ter.
— Que vaidoso é você.
—Não sou vaidoso. Mas não creio ser necessário submeter as futuras gerações
a esta visão.
— Me nego a posar com ele.
— Então encomendarei retratos individuais.
— Isso já veremos.
As palavras de Mary eram totalmente um desafio, mas Sebastian não estava
disposto a ceder nesse assunto. Afundou mais na água e tentou não pensar em sua
esposa olhando-o, deslizando o olhar por sua sombra. De novo sentiu a urgência de
regressar a torre e começar a golpear.
Ouviu movimento e Mary apareceu em frente a ele. Na mão o resultado de seus
esforços, o desenho da sua silhueta. Era todo negro. Não havia cicatrizes, nem buracos
onde tivera carne. Não havia olho, mas tampouco faltava algum. A impressão era de
estar inteiro.
— Isto é o que vejo quando lhe olho — ela anunciou. — O porte nobre. O nariz
do seu pai, ou isso eu acredito. O queijo de sua mãe. Feições fortes. Vejo atrativos. Sei
que sofreu, mas vejo resiliência. Vejo o homem com o qual me casei. Vejo o homem
que me alegro de chamar de esposo. Derrube a torre. Derrube o castelo todo — Mary
se ajoelhou junto à banheira e acariciou as cicatrizes no seu queixo. — Por favor,
deixe de se esconder de mim — continuou deslizando os dedos pelo torso, até o lugar
onde batia seu coração. — Esta noite, na torre, vi uma parte do que me oculta.
— O que viu foi um louco.
— Vi um homem que ama seus irmãos, que teve que tomar decisões difíceis
pelo bem de todos eles, vi um homem atormentado pela culpa. Quando se olha no
espelho, só vê cicatrizes. Quando eu o olho, vejo isto — Mary lhe mostrou o desenho.
— Vejo um homem que eu poderia chegar a amar.
Que Deus o ajudasse, pois ele não a merecia. Jamais a havia merecido.
Sebastian afundou as mãos nos cabelos ruivos, se inclinou e beijou aqueles lábios
capazes de pronunciar palavras que o desarmavam. De onde saia tanta fé nele, quando
ele mesmo não possuia nenhuma? Ela aceitava seus defeitos, via sob as cicatrizes o
homem que ele gostaria de ser. Por ela.
Por essa noite.
Com sua ajuda, Sebastian se desfez da sujeira rapidamente. Nem sequer se
incomodou em se secar, simplesmente saiu da banheira e a tomou nos braços.
Derrubou o biombo com um chute para que o calor do fogo se espalhasse por todo o
quarto. Depois a levou até sua cama e compreendeu que jamais a havia feito sua ali.
Ele a mantivera longe de seu dormitório, sua fonte de prazer. Mas ela pertencia a esse
lugar. Pertencia a todos os lugares do castelo.
Depositou-a sobre o solo e lhe tirou o camisão antes de deitá-la nos lençóis.
Lençóis limpos e com cheiro de ar puro e sol. Ela devia ter mandado trocar. Uma
luminária estava acesa sobre a mesinha. Ele queria apagá-la, mas a deixou acesa. Por
ela. Ele preferia as sombras, mas ela fora feita para a luz do sol.
Ele concederia isto. Não mais cortinas fechadas. Não mais luminárias apagadas.
As mãos de Mary deslizaram pelo corpo de Sebastian, arrancando-lhe sensações de
prazer por onde passavam. Nem sequer lhe preocuparam as cicatrizes e as feridas
quando ela o tocava. Nada lhe molestava. Tudo se afastava os problemas, a culpa, as
preocupações. Ali em sua cama, ela era a única coisa que importava.
As luminárias seguiram acesas, as cortinas permaneceram abertas. E nem tivera
que pedir. Mary estava com a sensação de que algo havia mudado no interior de seu
marido. De repente a invadiu uma renovada sensação de esperança de que, em breve,
o passado ficaria para trás. Sebastian sempre fazia amor com paixão, mas havia algo
diferente naquela noite. Dava a impressão de que ele a estava adorando. Não houve
um centímetro de seu corpo que ficou sem ser beijado, sem acariciar, sem explorar.
Mary havia insistido centenas de vezes que as cicatrizes não importavam, mas
essa noite havia encontrado o modo de demonstrar e ele somente podia admirá-la por
isso.
Ela dissera muitas verdades: ele tivera que tomar decisões difíceis quando era
apenas um menino. Havia feito o que acreditara ser o necessário a fazer, e neste
momento ela fazia o mesmo.
Amá-lo, apesar de saber que talvez ele nunca fosse capaz de amá-la, ela lhe
daria tudo o que pudesse, lhe daria um motivo para deixar o passado para trás. AQUI
Mary o empurrou de costas sobre o colchão e montou sobre ele, beijando-o,
acariciando-o, excitando-o. Cada vez que chegava a uma ferida provocada pelas
pedras, ela se mostrava delicada. Não suportava a ideia de que algo o machucara e
desejava ter o poder de protegê-lo.
Sebastian girou sobre ela e entrou com uma forte arremetida. Apoiando-se em
seu corpo, ela o contemplou, maravilhada. Ele estava com o rosto tenso, concentrado,
e Mary estendeu a mão para acariciar aquele rosto.
O duque lhe agarrou os punhos e os segurou unidos sobre a cabeça de Mary.
Afundou o rosto no delicado pescoço, mordiscando, enquanto ela se retorcia e lhe
rodeava a cintura com as pernas para senti-lo mais profundamente em seu interior.
O prazer cresceu por momentos. Sebastian se ergueu e o prazer de Mary se
incrementou ao observar a paixão no rosto masculino. A silhueta podia capturar a
força, mas não a beleza do conjunto. E desejou que seu esposo pudesse chegar a se
ver como ela o via.
Capítulo 29

Para Sebastian, encontrar provas contra seu tio havia se convertido numa
obsessão. Sentada em seu escritório, Mary o observava repassar livros de contas,
diários, papéis, qualquer coisa que pudesse encontrar. Não entendia porque seu marido
pensava que seu tio deixaria alguma prova atrás de si.
O duque havia contratado mais vigilantes e a havia proibido de cavalgar ou sair
da residência. Nem sequer lhe permitia passear pelo jardim. Havia se tornado uma
prisioneira.
Durante o dia, Sebastian se ocupava de dirigir a propriedade, mas as tardes
eram dedicadas a sua obsessão. Cada vez que ela queria escolher um livro precisava
passar por cima de um montão de papéis e diários. Não se permitia tocar nada.
Algumas pilhas, ele já havia visto, mas a maioria estava por revisar.
Sob seu olho já começava a se formar um círculo escuro. Cada vez se arrumava
menos, como se não pudesse perder tempo com asseio ou com sua esposa.
O único momento que estavam realmente juntos era quando visitava sua cama
durante as noites. Mary desfrutava desses momentos, os saboreava, os devorava.
Sentia-se muito só e sentia falta de sua atenção.
— Sebastian, O que acha de fazermos um picnic amanhã?
— Não tenho tempo para essas bobagens — ele contestou secamente.
— Então me considera uma bobagem? — Perguntou Mary muito chateada
— Você nunca foi daquelas que choramingam — Sebastian levantou o olhar
dos livros.
Mary não sabia por que havia se importado de sugerir um picnic. Ultimamente
não desfrutava da comida e se sentia sem energia. Vivia chorando sem que houvesse
nenhuma provocação. E também andava irritada.
— Não choramingo. É que estou ficando louca. Tendo em conta a liberdade
que você me concede, eu poderia estar encerrada na torre.
O ferrolho, entretanto, não serviria de grande coisa. Sebastian havia derrubado
um bom pedaço da parede. Geralmente o ouvia martelar a altas horas da noite e, no dia
seguinte, os serviçais estavam esgotados. Tudo o que o duque fazia girava em torno de
Pembrook. Inclusive, quando faziam amor, Mary tinha a sensação de não recebia toda
a sua atenção. Quando terminava, seu esposo se afastava dela e ficava olhando o teto
com as mãos sob a cabeça. Por fim ele saia do quarto e, alguns minutos depois, se
ouvia o estrondo de pedras caindo.
Diga-me o que posso fazer para lhe ajudar. Certamente existem papéis que eu
possa ler ou...
— Dedique-se aos assuntos domésticos.
— Já o faço, mas até eu necessito me divertir de vez em quando.
— Divertir-se? Isto não é um jogo, Mary. Ele tentou matar o meu irmão. Quer
Pembrook e não vai conseguir. Ainda que eu leve o resto de meus dias, vou arruiná-lo.
―E o que será da minha vida, da nossa vida?‖ Ela esteve a ponto de perguntar.
Sebastian não estava seguro do que o havia despertado. Ao se virar viu Mary de
pé junto a janela, de camisola. Uma luminária acesa sobre a mesinha iluminava sua
silhueta.
O duque saltou da cama e vestiu as calças antes de cruzar o quarto e se deter
atrás dela, rodeando-a com os braços. Contudo, sua esposa não suspirou, nem se
recostou relaxadamente contra ele como costumava fazer. Permaneceu rígida. Ele
depositou um beijo na área sensível atrás da orelha dela.
— Quero que nos afastemos de Pembrook.
— De férias? — Sebastian contemplou o reflexo de Mary na janela.
— Para sempre. Temos outras cinco propriedades. Podemos nos instalar em
qualquer uma delas.
— Meu lar está aqui.
Ela se soltou do abraço e se virou bruscamente.
— Ouviu o que acabou de dizer? ―Meu lar‖. O que aconteceu com nosso lar?
— Este é nosso lar.
— Não, Sebastian, não é um lar. Nossa vida aqui consiste em que você leia
velhos livros de contas.
— Tento encontrar provas do que ele fez.
— De verdade acredita que ele seria tão estúpido para deixar algo escrito? O
que espera encontrar aqui?
— Quem sabe alguém a quem pagou muito dinheiro por pouco trabalho.
Alguma conta que não se enquadre. O nome de um amigo. Algum lugar ao qual
poderia ir. Não sei, mas tem que haver algo.
— Quando não está no escritório estás na torre martelando — Mary sacudiu a
cabeça. — Entendo que precisa derrubá-la, mas contrate alguém para fazer isso.
— Eu mesmo devo derrubar a torre. Cada pedra deve sentir o peso da minha
ira.
— É igual ao seu tio.
Uma intensa fúria invadiu o duque, que deu um passe até Mary. Não sabia que
expressão seu rosto refletia, mas, sim, que sua esposa deu um salto antes de endireitar
os ombros.
— Eu não sou como ele — ele rugiu.
— Está obcecado com esta fortaleza...
— É minha herança!
— Seus muros rodeiam seu coração. Será que não vê?
— Não sabes do que está falando — ele se afastou bruscamente.
— Sei que mataram pessoas neste lugar .
— Durante séculos — cheio de ira, Sebastian se virou de novo para ela. — E
você me pede que eu o abandone.
— Sim. Não posso viver aqui. Não consigo enchê-lo de calor.
Todas essas bobagens porque estava com frio, por umas poucas correntes de ar?
— Construiremos mais lareiras. Comprarei mais roupa para abriga-la.
— Não me refiro a calor físico — Mary revirou os olhos e se voltou à janela
contra a qual a chuva golpeava com força. — Falo de...falo de amor. Aqui, não há
amor.
Como era possível que ela não visse? Ele amava Pembrook com uma
ferocidade que não se podia negar. Aquilo lhe pertencia. O havia mantido com vida, o
havia empurrado adiante quando pensara pensado em desistir. Mary jamais saberia
quantas vezes considerara em tomar o caminho mais fácil, mas Pembrook sempre o
chamava.
— Este lugar é tua amante — afirmou Mary, como se lhe tivesse lido a mente.
— Entrega tudo a ele e não resta nada para mim.
Sebastian quis negar as palavras de Mary que só conseguiram inflamar ainda
mais sua ira. Não gostava que se queixasse dele.
— Então, pode ir. Vai para alguma das outras propriedades que acredita que lhe
proporcionará o calor que busca. Vai viver com a sua tia. Volte para casa do teu pai.
Meu lugar está aqui. Nada fará com que eu o abandone.
Sebastian deu meia volta e bateu a porta com um estrondo ao abandonar o
quarto. Estúpida. Como não era capaz de compreender o que essa terra significava
para ele?
Era tudo. Sem Pembrook, ele não era nada.
A sua não havia sido uma união por amor. Mary sabia que não tinha direito de
queixar-se de que seu matrimonio não tivesse cumprido suas expectativas. Depois de
colocar um vestido simples, levou uma mão ao ventre. Estava quase certa de que
estava grávida. Se dissesse a Sebastian, ele abandonaria a busca inútil, ou alimentaria
o fogo de sua obsessão?
Jogou a capa sobre os ombros e colocou o capuz. Estava com vontade de
cavalgar e pouco lhe importava que fosse meia noite, que a tormenta estivesse forte ou
que estivesse sozinha. Porque ainda que Sebastian estivesse com ela, continuaria só.
Ele estaria pensando em Pembrook e ela estaria pensando nele.
Parecia pouco razoável que pudesse amar o duque, mas o amava. Curiosamente
o que a levava a amá-lo era o mesmo que tornava sua união desventurada: sua
devoção por Pembrook. Ele era um homem capaz de amar, mas, só pedras e
argamassa. Títulos e propriedades. Egoisticamente, ela precisava da mesma devoção.
Os serviçais estavam todos deitados e ninguém a viu partir. Planejara convencer
com palavras lisonjeiras a qualquer guarda que tentasse detê-la, mas não havia
nenhum.
Sentiu um pouco de culpa e considerou contar a Sebastian seus planos. Mas sua
raiva e as palavras de despedida que ele lhe havia dirigido a haviam magoado
profundamente. Haviam demonstrado que entre eles jamais existiria amor.
Açoitada pela chuva, ela cruzou o pátio até os estábulos. Pareceu ouvir um
movimento. Um gato, um rato. Criaturas noturnas buscando refugiar-se da tormenta.
Mas para ela não havia refúgio nenhum.
Algumas passadas ressoaram em sua direção. Sebastian...
Alguém a agarrou, lhe rodeou o pescoço com um braço, privando-a de
oxigênio. Não podia respirar, não podia gritar. Um pano lhe cobriu o nariz. Mary
reconheceu o penetrante odor de quando o médico havia tratado a ferida infectada de
Sebastian. Éter. A escuridão começou a lhe privar da visão.
— Durma duquesa — murmurou lorde David. — Ao menos durante um
momento.
Mary lutou para escapar de suas garras, mas só conseguiu cair em sono
profundo.
Sentado atrás da mesa, Sebastian encheu de novo o copo com brandy e o
esvaziou de um gole. Olhou a poltrona onde Mary costumava sentar para observá-lo.
Cada vez que sentia crescer a frustração por não achar provas contra seu tio,
costumava levantar a vista, olhar sua esposa e, de imediato, obtinha a paz e a força
para continuar. Não imaginava a vida sem ela ali.
Não queria que se fosse. Não deveria tê-la desafiado. Sem dúvida nesse
momento deveria estar arrumando as malas. Quem sabe iria para a casa de seu pai.
Isso lhe permitiria ir vê-la de vez em quando. Compartilhar seus progressos com ela.
Outro copo seguiu o caminho dos anteriores. O que importavam a ela seus
progressos? Não havia deixado bem claro?
―Por acaso não a escutou? — Ele recriminou a si mesmo.
Havia estado demasiado enfadado para dar crédito as palavras de sua esposa.
Como poderia fazê-la compreender?
Sebastian tirou uma trouxinha do bolso da calça. Desde o instante em que havia
enchido o lenço com terra e o havia atado com a fita de Mary, a levara sempre com
ele. A fita se enroscou ao redor de seu dedo. Esticou-a e se deleitou vendo como,
obstinadamente, ela voltava a enroscar-se. Havia perdido a cor com o tempo, mas
continuava igualmente firme. Como sua dona.
Como Mary.
Levou a trouxinha ao nariz e aspirou o rico aroma de ...Mary.
Não era a fragrância da terra que o inundava, a que lhe proporcionava paz. Era
uma fragrância mais sutil. Um toque de orquídeas, a essência de Mary presa na fita
que continuava enroscada ao redor de seu dedo.
Durante todos esses anos, ela o havia acompanhado. Durante suas horas mais
escuras. Durante seus piores momentos de desespero. Durante os longos dias e longas
noites em que a morte o havia chamado.
Sempre segurara essa trouxinha. Um lenço que seu pai lhe dera. Terra recolhida
por ele mesmo. E uma fita que Mary lhe dera. Sem duvidar. Sem perguntar. Havia
lutado, batalhado e maquinado. Sempre havia acreditado que desejava
desesperadamente regressar a Pembrook. Para ele era tudo. Mas de repente ...
O estrondo do cristal ao romper-se o tirou de seus pensamentos. Uma pedra
havia aterrissado no tapete. Estava amarrada com uma fita. A fita de Mary. A que ela
costumava usar quando não lhe apetecia arrumar os cabelos.
O estômago de Sebastian se encolheu com um mau presságio. Levantou-se com
tanta força que a cadeira caiu ao solo. Tomou a pedra. A fita segurava um pedaço de
papel, mas o maldito nó não cedia aos seus torpes dedos.
Dedos que ele compreendeu, tremiam.
Correu ao escritório e utilizou o abre cartas para rasgar a fita. O papel caiu
sobre a mesa o pegou, desdobrou e contemplou a caligrafia familiar.

Admiro sua obra na torre. Facilitará muito a queda no vazio, de tua esposa.
Se contar para alguém , ela cairá ao encontro de sua morte.
Venha sozinho, ou ela cairá ao encontro de sua morte .
Não venha armado, ou ela cairá ao encontro de sua morte.
Terá dez minutos para se reunir comigo, ou ela cairá ao encontro de sua morte.
Seu amado tio

Sebastian não se demorou. Colocou a capa na corrida enquanto saia pela porta.
Olhou à torre. Havia conseguido derrubar uma parte da parede, ainda que não
toda. Através da abertura, o bastante grande para que pudesse passar uma pessoa, viu-
a Mary de pé na borda, a saia ondulando ao vento. Houve um relâmpago e pode vê-la
com mais clareza. Viu que ela não estava ali por sua escolha. Um homem a sujeitava.
O terror se apoderou de Sebastian. Ele esperara ver outra coisa, ainda sabendo
que não seria assim. Não era esse o propósito da esperança? Dar a uma pessoa um
motivo para seguir adiante ainda que tudo estivesse perdido?
Mary o havia repreendido duramente cada vez que pensava que se havia
rendido. Toda sua vida, inclusive quando a acreditava longe, Mary estivera ali,
empurrando-o adiante. E de repente corria perigo de perdê-la.
A chuva golpeava incessantemente a pedra, a Mary, molhando-a, sem dúvida
molhando o solo que deveria estar escorregadio, que fácil seria fazê-la cair.
Cair de uma altura considerável. Estrelar-se. Morrer. Desaparecer de sua vida
quando acabara de regressar para ela. Haviam sido dois estranhos se movendo
cautelosos, um ao redor do outro, até a noite em que havia começado a destruir a torre.
Algo havia acontecido naquela noite. Algo havia sido removido de seu interior. Ela,
com pouca força, derrubara as paredes que rodeavam seu coração.
Até esse momento ela não havia visto. Esse era o motivo porque Mary o havia
repreendido naquela noite. Sua esposa não sabia o que ele sentia por ela.
Jamais sobreviceria a sua perda. Disso estava seguro. Poderia renunciar a
Pembrook. Poderia renunciar a seus títulos. Mas não podia renunciar a Mary. A ela
jamais.
O duque alcançou a torre e subiu as escadas. Aos quatorze anos, havia se
sentido aterrorizado sem saber o que aconteceria ao chegar no último degrau, mas
havia seguido adiante porque era o duque.
E contudo, nesse momento, sentia muito mais medo que naquela noite, mas
subiu os degraus correndo, pelo que podia acontecer a Mary se não subisse a
tempo.
A porta estava aberta, um escuro convite para ele. Parecia o mais indicado, que
o que ali havia começado ali terminasse. Nessa torre havia aprendido que havia mais
coisas a temer além da escuridão. Nesse momento, o terror do que poderia perder o
fazia estremecer. Mas não podia mostrar vulnerabilidade. Pelo bem de Mary precisava
ser mais forte e mais valente do que havia sido em toda a sua vida. E, considerando os
obstáculos que havia enfrentado isso era dizer muito. Sebastian respirou fundo e
entrou na saleta. Deveria ter contratado homens para que o ajudassem a derrubá-la,
ladrilho por ladrilho. Tal como Mary lhe havia sugerido.
Ela era tão sábia, tão considerada. Sempre havia confiado em seus conselhos,
mas, ultimamente parecia ignorá-los. Porque havia prescindido dela?
A tocha que descansava sobre a mesa proporcionava luz suficiente para que
pudesse ver como seu tio a segurava com força, apontando-lhe a bochecha com uma
pistola, obrigando-a a segurar a cabeça num estranho ângulo. Ele sabia qual seria a
trajetória da bala, sabia que estaria morta de imediato.
— Não ceda as exigências dele — ela balbuciou. Parecia desfalecida e lutava
para manter os olhos abertos. — Não lhe permitas ficar com Pembrook. Ele não
merece.
— Fique calada, menina! — advertiu seu tio, afundando a pistola em seu rosto.
— O que fez com ela?
— Um pouco de éter para suavizá-la.
— Interessante cicatriz essa que você tem na bochecha tio. —Sebastian
precisava ganhar tempo para que Mary se recuperasse, no caso de que seu plano
falhasse e ela tivesse que fugir.
— Esse maldito anel com selo! —lorde David fez uma careta e pareceu querer
coçar o nariz , mas, para fazer, devia soltar Mary.
— Foi você quem me atacou no jardim dos Weatherly. Tem intenção de matar
a todos?
— Acidentes. Não posso controlar os acidentes. Ou a um soldado perturbado
desejoso de matar a um covarde. Ou alguns rufiões que tem uma dívida para saldar
com alguém da parte obscura de Londres.
—Você contratou o homem que tentou matar Rafe?
— Claro. Uns idiotas. Não tão habilidosos como haviam assegurado ser.
―Subestimou a Rafe‖, pensou Sebastian enquanto se perguntava exatamente
como Rafe haveria adquirido suas habilidades.
— E não acredita que levantará suspeitas quando caiamos um depois do outro?
— As suspeitas não constituem nenhuma prova. Sendo assim, a metade dos
homens que conheço estariam presos.
E, se eram seus amigos, seguramente o mereciam.
— Mas sua morte será a mais espetacular — continuou seu tio. — Sua esposa
enlouqueceu e disparou em você. Depois, enlouquecida pela dor, saltou da torre.
— Claro que você tem imaginação. Poderia escrever uma novela de terror. Mas
não precisas matar Mary, apenas precisa matar a mim.
— E deixá-la como testemunha para que conte ao mundo o que fiz?
— Ela já foi testemunha antes, e manteve silêncio.
Apesar da tênue luz, Sebastian teria jurado que seu tio havia empalidecido.
— Exatamente o que ela viu?
— Ela o ouviu ordenar que alguém matasse os garotos da torre.
— Foi ela que abriu a porta e golpeou o guarda — lorde David soltou uma
gargalhada enlouquecida. — Deveria ter imaginado. Pensei que tinha sido o
cavalariço. Inclusive ele confessou antes de morrer nas masmorras.
— Você o torturou? — O estômago do duque se encolheu.
— O guarda me disse que fora alguém pequeno. Aquele moleque era pequeno.
— E ninguém se deu conta de que o matou?
— Ele era um cavalariço. Disse-lhes que meus sobrinhos deveriam ter lhe dado
uma surra porque havia escapado também. Por que iriam pensar que eu mentia?
— E o homem que deveria nos matar?
— Eu o enviei a sua procura. Fracassou. Ele se enforcou.
— Suponho que com tua ajuda.
— Exatamente —seu tio sorriu. — Um tipo corpulento. Machuquei minhas
costas ao carregá-lo. Ainda dói.
— Também ajudou a meu pai?
— Quer uma confissão? — Lorde David riu de novo.
— Quero morrer sabendo a verdade.
— A verdade é que eu a amava. Você deveria ter sido meu filho.
―Seu filho?‖. Sebastian recordou os retratos de sua mãe que permaneciam
pendurados nas paredes. Mary havia achado estranho.
— Amava minha mãe.
— Eu a amava com toda a alma. Seu pai já era duque naquele tempo. Keswick
quis conhecê-la antes de permitir que eu pedisse sua mão. Sua família e ela foram
convidados para uma festa de campo, no outono. Seu pai entrou na sala e a conquistou
apenas com um sorriso. No natal já haviam se casado. Ele a levou apenas porque eu a
queria.
Sebastian contava com quatro anos quando sua mãe morreu, mas estava certo
de que seu pai a amava. Com todo seu coração. Sempre se referia a ela com reverência
e adoração.
— Eu parti. Durante anos me entreguei à bebida e às mulheres. E então
recuperei os sentidos. Sabia que para voltar a encontrar o amor precisava ser duque.
De modo que matei seu pai. Mas então você e seus irmãos fugiram. E, para não
levantar suspeitas, tive que esperar para reivindicar o título. Então conheci Lucretia.
Ela queria um duque. Ela queria a mim! Mas então você voltou. Só poderei tê-la se
ostentar o título.
— Entendo o poder do amor, tio. O que fazem os homens em seu nome. Mate-
me, mas deixe Mary e meus irmãos viverem.
— Sebastian, não, — suplicou Mary.
— Mary — ele gemeu, olhando-a furioso, desejando dispor de tempo suficiente
para lhe dizer tudo. Tudo o que sentia, tudo o que havia compreendido, demasiado
tarde. — Fará o que eu diga. O que eu desejo.
—Seus irmãos buscarão vingança — observou lorde David.
— Não. A nenhum deles importa os títulos ou as propriedades. Forjaram uma
vida distante disto. Escrevi uma carta. Está sobre a minha mesa. Mary a enviará.
Contém instruções para que Tristan embarque com Mary e com Rafe. Na Inglaterra
chegará a notícia de que o barco naufragou e todos morreram
— De verdade acredita que o fariam? — Seu tio riu. — Renunciariam a tudo
isto?
—Nenhum deles quer isto. Nunca quiseram. Sempre fui eu.
Eu sou o único que se interpõe entre o título e você.
— Sebastian, não! — Gritou Mary.
Seu tio a sacudiu e Sebastian conteve a respiração. Se a pistola disparasse, não
teria servido de nada. Toda a dor que havia suportado, todo o sofrimento...para nada.
— Quem teria pensado que você fosse tão esperto? — Perguntou lorde David.
— Mas deve soltar Mary, agora.
— Deve acreditar que sou imbecil. — exclamou seu tio.
— Juro sobre a tumba de meu pai. E sabe por que o que farei? — O duque
afundou a mão no bolso e seus dedos se fecharam em torno da trouxinha. Lentamente
a tirou do bolso.
— Que demônios? — Gritou o outro homem, apontando a arma. Mary gritou e
puxou seu braço.
Utilizando a única arma que levava, o duque jogou o lenço sobre seu tio com a
esperança de distraí-lo enquanto se lançava...
Um disparo rasgou a noite. Algo queimou seu braço.
Viu seu tio agachar-se para evitar o objeto, e perder o equilíbrio. Seus pés
escorregaram.
— Mary! —gritou Sebastian.
Ela agitava os braços freneticamente. Seu tio poderia levá-la com ele em sua
queda.
Sebastian conseguiu agarrá-la e atraí-la para si enquanto se jogava a um lado e
batia contra a parede antes de cair no chão.
Mary caiu em cima dele. O duque ouviu o agudo grito de seu tio, via a
expressão de terror enquanto ele caía no vazio.
Dava a sensação de que havia passado uma eternidade, mas Sebastian sabia que
não poderiam ter sido mais que alguns segundos. Não tivera tempo de idealizar um
plano. Houve tempo apenas para uma reação instintiva.
O duque tremia violentamente, como se o tivessem lançado num rio gelado.
Mary também tremia e choramingava.
— Idiota! Não deveria ter vindo — ela gritou.
— Não podia deixar você com ele.
— De verdade você acredita que engoliria a sandice sobre a carta para os seus
irmãos? — Mary se levantou e o olhou furiosa com o rosto banhado de lágrimas.
— Era verdade, Mary — Sebastian remexeu nos cabelos. — Explicar-lhe
porque...mostrar-lhe a trouxinha com a terra que carrego comigo todos estes anos .
O duque engoliu nervosamente. Mary merecia saber o que havia descoberto no
escritório, quando temera perdê-la.
— A trouxinha com a terra de Pembrook que carreguei amarrada com tua fita.
Durante os piores momentos, cada vez que temia que meus sofrimentos não serviria de
nada, eu a levava ao nariz. Há pouco tempo compreendi que não foi a terra que me
empurrou a seguir adiante. Foi teu cheiro preso na fita, a fita que sempre se enrosca no
meu dedo. Sempre esteve comigo, Mary.
Mais lágrimas rolaram pelas bochechas de Mary, mas já não eram lágrimas de
fúria ou de medo. Eram lágrimas de surpresa.
— Naquela noite que eu a beijei no jardim, sabendo o que poderia lhe custar,
mas temendo mais o que perderia se eu não o fizesse. Perdoe-me Mary, por ser um
bastardo egoísta. Não compreendia porque não podia deixa-la partir, só sabia que não
podia fazê-lo.
— E agora sabe? — Ela perguntou com voz rouca.
— Nunca se tratou da terra — ele assentiu. — Nunca se tratou de Pembrook.
— O quê?
—Aquilo ao que tão desesperadamente eu queria resgatar. Era você. Sempre foi
você. Eu a amo, Mary. Com toda minha alma. Derrubarei o castelo e construirei um
lar adequado. Mudaremos para alguma de minhas outras propriedades. Pouco importa.
Mas não me abandone. Por favor, não me deixe. Minha vida não vale nada sem você.
Mary explodiu num pranto intenso e enterrou o rosto no pescoço de seu esposo.
Sebastian sentia as lágrimas rolarem por sua pele.
— Nunca o abandonarei — ela assegurou. — Te amei por anos. Tenho amado
do menino que foi ao homem que é. Perdemos tempo demais. Não quero perder
nenhum instante mais.
Sebastian afundou as mãos nos cabelos de sua esposa e segurou seu rosto para
poder olhá-la nos olhos.
— Não mais momentos perdidos, Mary. Não mais entre nós.
Capítulo 30

Fazia um dia lindo. Sebastian não se recordava de outro dia em que o sol
estivesse tão brilhante. A suave brisa brincava com as folhas das árvores e o céu era de
um vívido azul. Toda a natureza parecia celebrar o desaparecimento de lorde David.
Tristan e Rafe haviam chegado à noite anterior. Os três haviam estado de
acordo em que o tio não descansaria na cripta familiar. Haviam escolhido uma igreja
num povoado próximo. Era um lugar tranquilo e pacífico, demasiado para ele, mas
Sebastian estava farto de se sentir culpado. Ao menos teria um gesto de misericórdia.
Havia informado lady Lucretia do falecimento de seu esposo, recebendo como
única resposta um cacho de seus cabelos para que o enterrasse junto com ele. Não
havia demostrado nenhum desejo de usar luto por ele.
Seus irmãos permaneciam de pé, a seu lado, junto da tumba. Ainda que as
damas não costumassem assistir a enterros, Mary estava ali para lhe dar a mão e
transmitir sua força...
— Que Deus tenha piedade de sua alma — as palavras do vigário foram breves
e concisas.
O caixão simples de madeira foi depositado na tumba e dois coveiros
começaram a jogar pás de terra sobre ele. Sebastian e os demais deram a volta e
começaram a caminhar até a carruagem.
— O que acontecerá com sua viúva? — perguntou Tristan.
— Decidi que receberá uma mesada — contestou Sebastian.
— Não deve ser castigada por sua má escolha.
Perto de alcançar a carruagem, o duque se deteve.
— Preciso falar um momento sozinho com Rafe.
Não teria problemas para encontrar um momento em Pembrook para estar a sós
com seu irmão, mas preferia um terreno neutro. Ali sua alma se sentia em paz.
Mary lhe sorriu com doçura e o beijou na bochecha antes de se afastar com
Tristan.
— Confia ela para um homem ao qual nenhuma mãe de Londres confiaria
suas filhas? — Perguntou Rafe.
Além de uma ligeira dificuldade ao caminhar, não havia nenhuma outra
evidência externa do encontro que havia tido com a maldade de seu tio. O próprio
Sebastian levava o braço em uma tipoia enquanto se recuperava do tiro que recebera
do tio.
— Eu confiaria minha vida a ele. E a você também.
Evidentemente surpreendido, Rafe baixou a vista para as brilhantes botas que
usava.
— Rafe, sei que deveria ter levado você comigo e lhe peço que me perdoe por
deixá-lo para trás. — Sebastian lhe pediu com calma.
— Considere esquecido — Rafe o olhou durante alguns segundos, como se
tentasse averiguar a sinceridade de seu irmão.
— Simples assim? — Perguntou desconfiado o duque.
— Eu o culpei quando deveria ter culpado o tio David. Que o passado seja
enterrado com ele
—Espero que algum dia queira me contar o que lhe aconteceu durante os anos
em que estivemos separados
— Quem sabe algum dia eu o faça. Mas não segure a respiração até lá.
Sebastian assentiu. Ele se conformaria com isso.
— Pembrook parece distinto — observou Rafe enquanto os dois irmãos
caminhavam para o coche.
—Volta a ser um lugar cheio de amor.
— Então você ama Mary?
—Sempre a amei.

— Esta noite coloque o seu melhor vestido — seu esposo lhe havia ordenado
uma hora antes. — Quero que o jantar seja muito formal.
Havia lhe assegurado que não teriam companhia, seriam só os dois. Os planos
de Sebastian combinaram com os seus, pois estava decidida a anunciar sua gravidez.
Estremecia só de pensar que, se David a tivesse matado, também mataria o filho de
Sebastian.
Duas semanas haviam transcorrido desde aquela terrível noite quando lorde
David a arrastara até a torre. Geralmente despertava presa em um pesadelo ao ouvir o
som de um disparo, ao ver o semblante de desespero de Sebastian ao tentar agarrá-la,
ao ouvir seu grito.
— Nãoooooo!
Ele recordava que havia gritado seu nome, mas bem pouco do que se seguiu.
Ela recordava tudo, cada horrível segundo, quando havia pensado que ia precipitar-se
ao vazio, quando ele a segurou, quando se contorceu para cair dentro da saleta, com
ela por cima...
O sangue se Sebastian, suas próprias lágrimas, as sentidas palavras de seu
esposo. Como se abraçavam cada noite na cama desde então. A única coisa que não
fizeram foi amor. Bastava abraçar-se, escutar a respiração um do outro.
Despertar no meio a um pesadelo e encontrar-se com os lábios do duque a
beijar sua testa, sussurrando-lhe palavras de consolo.
—Está bem. Tudo está bem agora.
O braço estava se curando e por fim havia tirado a tipoia. Mary o havia visto
um par de vezes testando o braço, esticando, encolhendo, assentindo como se estivesse
satisfeito com a recuperação. Ela havia temido que ele perdesse o braço. Já havia
perdido muito
Contemplou seu reflexo no espelho. Usava um vestido rosa com detalhes em
verde. E ao redor do pescoço, a esmeralda que lhe haviam dado os lordes Pembrook.
Alguém golpeou à porta e Colleen correu para abrir.
— Está pronta? — Perguntou uma voz impaciente, quase um sussurro.
— Sim, Sua Excelência.
— Deve estar com fome — Mary saiu ao corredor e sorriu.
— Vê-la me despertou o apetite.
Poesia de seu esposo, ele não era poeta. Estava muito bonito, evitou fazer a
observação porque sabia que não acreditaria nela. Acabava de barbear-se e estava
penteado. A olhava de frente e o tapa olho lhe conferia um ar intrépido que fazia com
que as pernas de Mary tremessem. Usava um paletó preto, calças pretas e lenço cinza.
No bolso em que deveria levar o relógio, estava a trouxinha de terra de Pembrook.
— É tão bonita… — ele sussurrou com evidente admiração.
— Não pense que conhece todo meu coração — Mary lhe assegurou. — Para
mim, você é muito atraente.
— Já lhe disse em uma ocasião que está louca — Sebastian sorriu e seu olhar se
iluminou. O tom era leve e alegre.
—Vamos? — Ofereceu o braço à duquesa.
— Já está curado? — Ela aceitou de bom grado.
— Quase. — Ele assentiu enquanto desciam as escadas. — De vez em quando
me dá uma pontada.
— Pensei que teus irmãos poderiam vir para o Natal.
— Isso me agradaria. Quem sabe quando venham possamos encomendar
um retrato .
— Não vou posar com Tristan para um retrato.
— Quero um retrato meu e seu — contestou o duque com calma. — E outro de
meus irmãos. Nossos retratos de infância desapareceram para sempre, eu temo. Mas
Tristan ouviu falar de um retratista chamado Leo. Dizem que tem um talento especial
para capturar sobre o pano, o coração das pessoas. Talvez possa retratar-me com
amabilidade.
— Se ele for a metade do quem dizem, e ver o que eu vejo, creio que lhe
encantará o resultado.
Alcançaram o vestíbulo e Sebastian a conduziu pelo corredor
— Por aqui não se vai à sala de jantar — ela observou.
— Estou bastante familiarizado com a mansão, obrigado.
— Então, por que se equivocou com a direção?
— Não me equivoquei. Antes de jantar quero fazer algo.
O duque se aproximou de uma porta custodiada por dois lacaios de libré.
Conduzia ao maior salão de toda a mansão, onde anos atrás costumavam celebrar
grandes bailes.
— Sebastian…
— Calada.
O lacaio abriu a porta e, quando Sebastian e Mary fizeram sua entrada, a
música começou a tocar. Ela arregalou os olhos, pois havia uma pequena orquestra no
terraço. Meia dúzia de luminárias desciam do teto e todas as velas, deviam ter pelo
menos umas cem, estavam acesas. Uma parede de espelho refletia o chão polido e os
arranjos florais. Não havia nada mais em toda a sala. Nem um móvel
— Faria a honra de dançar comigo, Mary Easton,duquesa de Keswick? Mary
estava com os olhos cheios de lágrimas, mas, antes de poder contestar, se viu
arrastrada para a pista de baile.
— Como organizou tudo isso?
— Com muita ajuda de meus irmãos e do seu pai. A orquestra veio de Londres
e se alojou com ele até o momento adequado.
— Ficaria encantada de bailar contigo — ela lhe assegurou. Quando havia
suficiente espaço para se mover, seu esposo era um excelente dançarino.
— Pensei que, se praticarmos, na temporada que vem não o farei tão mal.
— Não precisamos ir para Londres. Ficamos aqui se preferir.
—Terei um assento na Câmara dos Lordes. Não posso ignorar minhas
responsabilidades. Além do mais, numa ocasião minha esposa confessou que lhe
encanta o brilho e o luxo de Londres
Continuaram dançando por todo o salão. Mary viu seu reflexo no espelho e
pensou que jamais havia visto um casal tão feliz
— E o momento não poderia ser o mais adequado — continuou Sebastian. —
Na primavera eu vou derrubar toda a mansão.
— Já lhe disse que não será necessário — seu esposo havia mencionado, mas
ela havia acreditado que era produto da emoção do momento.
A música chegou ao fim e uma nova peça começou a soar antes que
pudessem recuperar a respiração.
— Creio que talvez seja. Esta casa é fria. Você estava com razão.
— Mas é sua herança. Nisso você estava com a razão.
Sebastian lhe dedicou um sorriso brilhante. Mary jamais se cansaria de vê-lo
sorrir e estava segura de que quando fossem velhinhos, seu esposo ainda teria a
capacidade de fazer saltar seu coração
— Quero construir algo que não esteja manchado de ódio, ciúmes e
assassinatos. Contrataremos um arquiteto e ele desenhará o que você prefira. Grande
ou pequeno. Não importa. A terra guarda a história de Pembrook, não o ladrilho ou a
pedra. Construiremos um novo legado para meu herdeiro.
— Pois creio que quem sabe ele esteja aqui antes do que você acredita — ela
suspirou lentamente.
—Está…? —Sebastian se deteve como se acabasse de se chocar contra uma
árvore.

— Sim — Mary confirmou com lágrimas nos olhos.


— Será um menino — o duque ajoelhou e beijou a barriga de sua esposa.
— Eu também tenho essa sensação, mas se não for...
— Não importa. Ela cavalgará por estes vales como se houvesse nascido para
isso.
— E, algum dia, um irmão a acompanhará.
Sebastian se levantou e tomou Mary nos braços. Enquanto abandonavam o
salão, a orquestra seguia tocando.
— Vai me levar para jantar? — Ela perguntou.
— À cama. Esta noite, Mary vamos fazer amor.
— Sempre o fazemos. Não preciso de palavras.
— Mas quero que as escute. Cada dia, enquanto eu tenha fôlego para
pronunciá-las.
Epílogo

Esperou a lua nova. Quem sabe fosse superstição, mas era importante que o que
desejava fazer tivesse lugar numa noite assim, sem lua, como havia sido naquela noite
anos atrás.
Mary cavalgava ao seu lado, como havia feito tantos anos antes, nessa ocasião
ele levava a tocha. Quão pouco cavalheiro fora no passado.
Havia contratado aos arquitetos para que desenhassem a nova mansão. Seria
construída no alto de uma colina e dominaria as terras pelas quais tinham cavalgado os
duques de Keswick. Por onde o duque cavalgava com a dama que amava. A dama que
sempre havia amado e que sempre amaria.
— Está perdido? — Ela perguntou.
— Não mais — Sebastian soltou uma gargalhada. Que bem lhe sentava rir. —
Não com você ao meu lado.
A luz da tocha lhe permitiu ver seu doce sorriso. Ela sabia do que ele falava.
Dera sentido a sua vida, era seu norte, sua bússula.
— O que você disser, mas estamos há quase uma hora nos movendo em círculo.
— Não o encontro — ele admitiu por fim, decepcionado. Pensava que jamais
esqueceria um só detalhe daquela noite.
Quem sabe fosse bom que alguns detalhes se estivesse apagando, e no lugar
melhores recordações se abrigassem.
— O que você não encontra? —Mary perguntou.
— Recorda-se de que naquela noite, quando pedi que parasse e recolhi um
punhado de terra? — O duque não esperou que ela lhe respondesse. A pergunta era
retórica. Claro que ela se lembrava. — Estou buscando aquele lugar.
— Creio que viemos muito ao sul.
— Pois eu acreditava que não havíamos ido o suficiente.
— É importante?
— Pensava que sim, mas agora me dou conta de que não é. Este lugar nos
servirá. — Sebastian estendeu a tocha para ela. — Poderia segurá-la?
O duque desmontou e se ajoelhou entre os cavalos.
— O que está fazendo? — Mary perguntou.
— Devolvendo a terra para a terra.
— Tem certeza de que quer fazer isso? Carregou com você por muito tempo
— Guardarei a figa. Tentarei entrelaçá-la com a corrente do meu relógio
— Me ajude a descer.
O duque a ajudou antes de desatar o lenço. Enroscada junto ao duque, Mary o
observou espalhar a terra sobre a grama.
— Não estou segura se deverias fazer isso.
— Mas eu estou — Sebastian tomou a tocha e a deixou sobre o chão antes de
ajudar sua esposa levantar e acariciar a barriga onde crescia seu filho. Um menino que
algum dia cavalgaria por essas terras como haviam feito seus ancestrais. — Pertence a
este lugar, do mesmo modo que eu estou onde devo estar: com você.
— Eu o amo, Sebastian — ela lhe tomou o rosto entre as mãos. —Com todo
meu coração. Com tudo o que sou.
Tomando-a em seus braços, Sebastian a beijou apaixonadamente.
Os fantasmas do passado haviam deixado de sussurrar. Deixando sair os doces
suspiros de Mary.
A única coisa que lhe importava era que, quando ele estava com ela, sentia-se tão completo
quanto poderia se sentir um homem.

Você também pode gostar