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O Poder Moderador na Constituição de

1824 e no anteprojeto Borges de Medeiros


de 1933
Um estudo de direito comparado

Christian Edward Cyril Lynch

Sumário
Introdução. 1. A recepção do conceito de
Poder Moderador de Benjamin Constant: 1.1.
O quadro teórico. 1.2. Os agentes da recepção.
1.3. Os efeitos da recepção. 2. Comparação entre
o Poder Moderador de 1824 e o da proposta de
1933. 2.1. Diversidade de contextos históricos
2.2. Cotejo entre o Poder Moderador de 1824 e
da proposta de 1933. Conclusão.

Introdução
A ideia de um Poder Moderador se
encontra delineada de sua forma definitiva
na obra de Benjamin Constant Princípios
Políticos, publicada em 1814. A grande preo-
cupação de Constant era com a estabilidade
do poder. Liberal, desejoso de saudar as
grandes conquistas da Revolução de 1789,
excluindo cuidadosamente a herança do
Terror, Constant afirmava que apenas a
aceitação de limitação da soberania popular
poderia impedir o desrespeito aos direitos
fundamentais. O Poder Moderador teria
aí o papel fundamental de impedir que os
Christian Edward Cyril Lynch é doutor em outros três poderes, entrando em choque,
Ciência Política pelo Instituto Universitário de levassem uns aos outros de vencida, asse-
Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ). Professor gurando a estabilidade do Estado liberal e
do Programa de Pós-Graduação em Direito e
os direitos civis e políticos dos cidadãos.
Sociologia da Universidade Federal Fluminense
(PPGSD) e do Programa de Pós-Graduação em Ao contrário de Montesquieu, cuja tese de
Direito da Universidade Gama Filho (UGF). divisão de poderes foi adotada por todos
Professor da Escola de Ciência Política da Uni- os países que se pretenderam liberais, essa
versidade Federal do Estado do Rio de Janeiro novidade de Constant não foi formalmente
(UNIRIO). adotada por nenhuma das grandes potên-
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cias que então dominavam o cenário polí- como exercício de comparatismo. Como
tico ocidental. Com efeito, seria no Brasil trabalho de direito constitucional compara-
e em Portugal, por iniciativa praticamente do, ele apresenta sem dúvida o inusitado de
pessoal de Dom Pedro I, que a criação de não tratar-se nem de uma comparação entre
Constant tomaria formalmente vida. Entre textos constitucionais estrangeiros, nem de
nós, ele teria 65 anos de funcionamento textos constitucionais de diferentes épocas,
ininterrupto; entre os portugueses, apesar pertencentes a uma mesma nação. Trata-se
de algumas interrupções, só veio a cair de comparar aqui, a partir da recepção da
junto com a monarquia, no décimo ano do doutrina de Constant no Brasil, o Poder
século passado. O papel exercido na polí- Moderador, tal qual estava previsto na
tica dos dois países foi fundamental, e, no Constituição do Império (1824), com uma
que diz respeito ao Brasil Império, a exis- proposta de reaproveitamento do mesmo
tência do Poder Moderador teve um efeito instituto, inserida num projeto de Consti-
marcante naqueles que eram os momentos tuição elaborado pelo mais longevo chefe
formadores da consciência nacional. político gaúcho da Primeira República,
No Segundo Reinado, alternando os Borges de Medeiros, às vésperas da Cons-
dois partidos aristocráticos no poder, ga- tituinte de 1933. Trata-se de comparar algo
rantindo a estabilidade política, o Poder que efetivamente existiu, com outra, que
Moderador assegurou ao país mais de ficou apenas no papel, mas que representou
quarenta anos de paz interna, liberdade de uma tentativa de estabilizar o Estado brasi-
expressão e de imprensa, práticas eleitorais leiro recorrendo à tradição. Acredito que a
(que se tornaram pouco fiéis ao desejo dos comparação realizada, por meio de cotejo
eleitores devido aos políticos da época), e comentários, permitirá extrair algumas
debates parlamentares, uma organização conclusões úteis, não somente para nossa
representativa. Por outro lado, promoveu melhor compreensão do alcance teórico
a conciliação das facções em torno e à custa do instituto, mas que nos forneçam mais
dos empregos do Estado e tutelou o sistema alguns subsídios à temática atualíssima de
político nacional. Muito do que temos hoje, como estabilizar o Estado democrático
de bom e de ruim em nossa vida política,
tem sua origem na política do Segundo 1. A recepção do conceito de Poder
Império. E lá estava o Poder Moderador, Moderador de Benjamin Constant
planando impassível sobre a cabeça dos
políticos de plantão. Não foi por outro
1.1. O quadro teórico
motivo que, na Constituinte de 1933, Borges
de Medeiros apresentaria uma proposta de As características do pensamento
reinserção de Poder Moderador na Repú- político-constitucional liberal surgem com
blica presidencial. Ele dizia acreditar que clareza na teoria de Benjamin Constant.
poderia contribuir para erigir um Estado Escrita na segunda década do século XIX,
democrático após quarenta anos de eleições num momento em que o liberalismo, por
fraudulentas, caudilhismo e coronelismo, assim dizer, havia sido colocado na ber-
entremeadas de revoltas, sublevações, esta- linda, desbancado como vanguarda pelo
dos de sítio e intervenções nos Estados. jacobinismo, a obra política de Constant
Embora originalmente escrito há cerca tentou recepcionar as conquistas da Re-
de dez anos, sendo forçoso reconhecer volução Francesa excluindo a herança do
que o autor variou não pouco sua visão do Terror. Como Montesquieu, Constant era
assunto nesse meio tempo, entendo que o um apóstolo da moderação, e tanto quanto
presente artigo, ainda inédito, ainda merece moderação, a palavra de ordem no tempo
receber publicidade pela sua originalidade da Restauração era conciliar: absolutismo

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e liberalismo, liberalismo e democracia. tornava decisiva na tomada de decisões
Constant procurou condenar as veleidades políticas − e ainda aqui era a Inglaterra
absolutistas dos jacobinos, como incompa- o paradigma a ser perseguido −, não se
tíveis com a civilização moderna. Assim poderia mais concentrar o poder executivo
como os poderes do Estado devem ser limi- nas mãos do rei. Mas, numa época em que
tados para que as liberdades do indivíduo os extremos do espectro político estavam
sejam preservadas, também a soberania ocupados por absolutistas democráticos
do povo deve ser limitada, pois acima do e monárquicos, era preciso conciliar; e a
Estado e do povo estariam os direitos fun- Inglaterra, repito, fornecia o modelo a ser
damentais do homem moderno. seguido de governo constitucional e repre-
Como, todavia, elaborar uma teoria do sentativo. Constant então percebeu que, em
Estado de forma a repartir o poder entre razão do seu carisma, de seu papel de en-
titulares que não tentassem desbancar uns carnação das tradições e da história de seu
aos outros? Montesquieu farejou o caminho país, o rei inglês detinha certas qualidades
correto ao estipular a divisão de poderes e funções que, aparentemente, não eram
da Constituição da Inglaterra como um políticas. Se fosse possível desvincular o
paradigma de governo moderno e limitado; rei das atribuições de chefe de governo,
entretanto, Constant pensava que sua teo- transferindo seu poder governativo para a
ria havia falhado fragorosamente durante opinião pública, o monarca se converteria,
a Revolução Francesa. Ele pensava que por sua autoridade moral, na sentinela
Montesquieu havia confiado demasiado perfeita da estabilidade estatal. Interessado
no equilíbrio natural de forças, nos freios e em manter o trono nas mãos de sua famí-
contrapesos, quando, na prática, o Legisla- lia, seu interesse particular se confundiria
tivo acabara por destruir o Executivo num com o público; no cume do poder simbó-
primeiro momento, ocorrendo o inverso na lico, jamais seria movido pela ambição.
época da ascensão de Napoleão Bonaparte. Seria assim necessário desdobrar o velho
Seria preciso, portanto, sofisticar a teoria de Executivo de Montesquieu em dois – o
Montesquieu, criando um poder adicional primeiro, responsável pelas atribuições que
que tivesse por única e exclusiva missão dissessem respeito à conservação das tra-
harmonizá-los; um poder apolítico, neutro, dições do Estado, com a missão de intervir
que, nos momentos de perigo para as insti- somente em casos emergenciais; o segundo,
tuições, fosse capaz de intervir para manter que ficaria encarregado de tocar adiante os
os poderes em suas respectivas esferas, negócios públicos, de debater as questões
dissolvendo o Legislativo, demitindo go- políticas do momento, de enlamear-se nos
vernos, perdoando penas demasiadamente bate-bocas “mesquinhos” e “interesseiros”
severas impostas pelo Judiciário. Mas que com os setores sociais representados no
órgão político poderia exercer essa função Parlamento. Dá-se assim a separação entre
de supremacia, sem abusar desse poder? poder neutro, a ser exercido pelo rei, e o
Quem poderia desincumbir-se dessa ta- poder executivo, a ser exercido pelos minis-
refa, sem agir em interesse próprio? Seria tros. Essa será, em suas palavras, a chave
possível um magistrado que, exercendo o de toda a organização política. Nasce então
cume do poder, pudesse não agir conforme a ideia de um quarto poder − o poder que,
o próprio interesse parcial? no Brasil e em Portugal, será chamado de
A Revolução havia desgastado, de certa Poder Moderador.
forma, a figura do monarca, num processo Mais ainda: nesta “revisão” da triparti-
que culminara com a própria execução pú- ção concebida por Montesquieu, Constant
blica da pessoa que exercera aquele papel. não identificou três, mas cinco poderes.
Numa época em que a opinião pública se Além do poder neutro, de natureza mo-

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deradora, haveria o poder representativo como sua dignidade, mantida intocada, o
da continuidade que residiria numa as- pouparia das críticas dos políticos apeados
sembleia hereditária, e o chamado poder do poder, que direcionariam suas baterias
representativo da opinião, a ser exercido contra os novos ministros. Para Constant,
por uma assembleia eletiva. Na realidade, a experiência demonstrava que, nas repú-
trata-se do poder legislativo bicameral ima- blicas, o poder supremo era responsável
ginado pelo autor de O Espírito das Leis, apenas no papel, pois o chefe de governo
dando a cada uma das câmaras uma função ou controlava o parlamento, ou recusava
diferente. Apesar de as câmaras exercerem a responsabilidade recorrendo à força. Na
a mesma atividade legiferante, Constant monarquia constitucional, ao contrário, os
nelas enxergou tendências opostas: a câ- ministros serviriam de anteparo aos atos
mara baixa exprimiria a opinião pública régios, já que suas validades dependiam de
do momento, passível de entregar-se a suas prévias aquiescências. Era a garantia
paixões, à irracionalidade, ao radicalismo; da responsabilidade perante a Nação, como
ao passo que a câmara aristocrática, devi- diria Constant. A referenda ministerial, na
do mesmo à natureza de sua composição, forma de sua assinatura logo abaixo daque-
tenderia a pensar a longo prazo, elaboran- la do monarca, significava que o ministro
do soluções de continuidade, refletindo de Estado concordava com a decisão polí-
questões de forma madura e apartidária, tica ou administrativa tomada pelo chefe
encarregada portanto de brecar as velei- do Estado e, portanto, estava disposto a
dades mais ameaçadoras da assembleia assumir a responsabilidade criminal por
eletiva, naquilo que concernia à preser- ela diante do Parlamento. Essa divisão
vação do Estado constitucional. O poder entre autoridades responsáveis – a Coroa
real teria uma posição sui generis: uma vez − e irresponsáveis – os ministros – levava
destinado a preservar e moderar os outros naturalmente a uma separação de funções
quatro poderes, na qualidade de poder ar- políticas entre eles. O chefe do Estado ficava
bitral, ele seria ao mesmo tempo superior encarregado do Poder Moderador, isto é, da
e intermediário em relação a eles. Seriam superintendência do sistema constitucio-
suas atribuições: 1) destituir ministros, se nal, ao passo que o ministério ou gabinete
a ação destes se tornasse perigosa; 2) criar se ocuparia dos atos de governo, ou seja,
novos pares, se os atos da Câmara Alta se do Poder Executivo.
tornassem funestos; 3) dissolver a Câmara O parágrafo seguinte, todavia, encerra-
Baixa, se esta se tornasse ameaçadora; 4) va uma advertência importante: “Quando
temperar a ação do Judiciário pelo poder se trata de nomeações, o monarca decide
de graça, se sua ação fosse prejudicial ou sozinho; é seu direito incontestável. Mas,
excessivamente severa. desde que se trata de uma ação direta, ou
O Poder Executivo, Constant o confia mesmo de uma proposição somente, o
explicitamente aos ministros. E se os mi- poder ministerial é obrigado a assumi-la,
nistros deveriam ser responsáveis pelas para que jamais a discussão ou a resistência
decisões tomadas, para que por elas res- comprometam o chefe do Estado” (CONS-
pondessem criminalmente perante a repre- TANT, 1957, p. 1087). Com efeito, a separa-
sentação parlamentar, o monarca deveria ção entre as duas agências era fundamental
ser tornado irresponsável, por consistir para saber onde começavam e terminavam
“num ser à parte no alto do edifício”. Na as esferas de ação das autoridades respon-
monarquia constitucional, não somente sáveis, de um lado, e invioláveis, de outro;
os elementos de venerabilidade de um por isso mesmo, nela estava o fiat lux da
monarca evitariam que ele fosse compa- monarquia constitucional, “a chave de
rado ou equiparado aos seus ministros, toda a organização política” (CONSTANT,

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1980, p. 280). Era aí que a concepção mo- fins específicos: inicialmente, remover os
narquiana de Poder Moderador mais se ministros culpados do poder; e em seguida
afastava daquela de Constant: enquanto “alimentar na nação, mediante a vigilância
os monarquianos defendiam a cumulação de seus representantes, a publicidade de
do Executivo e do Moderador pela Coroa, seus debates e o exercício da liberdade de
para Constant o Rei tinha bens mais valio- imprensa” (CONSTANT, 1989, p. 153).
sos a defender “que este ou aquele detalhe Pois bem. Além da nomeação e demis-
da administração, este ou aquele exercício são dos ministros, outras duas competên-
parcial da autoridade. Sua dignidade é um cias do poder neutro ou real emergiam aqui
patrimônio de família, que ele retira da luta, como particularmente relevantes: o direito
ao abandonar seu ministério” (Idem, p. de dissolver a câmara baixa e o de nomear
285). Nem por isso ele ignorava que, para integrantes da câmara alta. Em primeiro lu-
além da ficção da inviolabilidade, o chefe gar, embora as assembleias representativas
de Estado pudesse na prática ser criticado constituam “o único meio de se injetar vida
pelas decisões tomadas no exercício do no corpo político”, e sua força represente
Poder Moderador. Apesar de monarca, uma garantia de liberdade para um Estado,
ele poderia deixar-se eventualmente levar para Constant é absolutamente necessário
pelas “afeições e fraquezas da humani- que o rei, exercendo as atribuições do po-
dade”. Mas Constant argumentava que a der neutro, tenha o direito de dissolvê-las.
ficção da inviolabilidade era essencial para A simples possibilidade de veto pelo rei
conciliar a ordem com a liberdade, pois do não seria o bastante, pois, se empregado
contrário o chefe de Estado deixava de ser com frequência, acabaria por irritar as
visto como imparcial; uma vez responsável assembleias. A dissolução da câmara seria
perante o Legislativo, ele ficaria sujeito à um recurso mais seguro e mais eficaz. E
política partidária e, então, tudo seria “de- nisso não haveria nada de extraordinário,
sordem e guerra eterna entre o monarca e pois os representantes também deveriam
as facções” (Ibidem, p. 343). Ele reconhecia estar sujeitos a procedimentos de controle
também a possibilidade de ministros que moderador, que é a mola reguladora do
descobrissem a Coroa, ou seja, que, em Estado. Por que razão, portanto, ultrajaria
vez de assumirem a responsabilidade por a dissolução da assembleia os direitos do
seus atos, quisessem dela eximir-se, ale- povo, se a esta dissolução seguir-se-ia nova
gando que obedeceram à “coação moral” eleição? Ao contrário: quando as eleições
do príncipe; e que aquele projeto de lei fossem livres, essa dissolução constituiria
decorria de sua vontade e não do gabinete. um apelo aos direitos populares em favor
Essa postura dos ministros abalava a credi- de seus próprios interesses. Mas só se as
bilidade do árbitro hereditário da Consti- eleições fossem livres, ressaltava Constant,
tuição e, com ela, as próprias instituições. “porque, quando elas não são livres, não
Mas Constant objetava que, à margem de há sistema representativo” (CONSTANT,
disputas partidárias ou governamentais e 1957, p. 1094). No que tange à assembleia
ordinariamente cobertas pelo ministério, o aristocrático-hereditária, outra atribuição
monarca só seria passível de censura caso, do poder neutro seria o de nobilitar os
em vez de demonstrar imparcialidade, bons cidadãos e dar-lhes assento naquela
agisse como o representante de uma facção, câmara. Entretanto, já que essa câmara
“seja rebaixando o poder do monarca ao não era passível de dissolução, a possibi-
nível do Poder Executivo, seja elevando lidade de moderá-la, evitando que nela se
o Poder Executivo ao nível do monarca” formasse um partido fora de controle, só
(CONSTANT, 1997, p. 327). Assim, deveria poderia ser superada na medida em que o
a responsabilidade ministerial atingir a dois rei nomeasse tantos nobres fossem neces-

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sários para garantir maioria na assembleia. governo, quando a obra de Constant se
Assim, o número de integrantes da câmara endereçava precisamente àqueles países
hereditária deveria ser ilimitado, a fim de que pretendessem organizar-se de forma
que, se necessário, o rei pudesse combater a conciliar o Antigo Regime com a mo-
um partido por meio de nomeação de no- dernidade, traduzida no ideário liberal de
vos pares. Nessa atribuição conferida por direitos civis e políticos.
Constant, não havia nada de original: era Embora desde o início o Imperador
o que existia na Inglaterra. tivesse espontaneamente se declarado par-
Como podemos depreender, o pensa- tidário das novas ideias de seu tempo − fato
mento político de Constant reflete a tenta- verdadeiro, que pode ser comprovado, não
tiva de conciliar as tradições aproveitáveis apenas por suas declarações, como pela lei-
aos olhos liberais, do Antigo Regime, com tura que fazia de Constant e Filangieri −, o
as conquistas da Revolução. Sua proposta meio absolutista em que fora criado, aliado
de um arcabouço institucional reflete essa a seu temperamento impetuoso, vieram a
dicotomia, sendo natural que, contemporâ- consistir em fatores complicadores de sua
neos e partícipes da era da democracia de relação com a opinião nacional. Embora
massas, tenhamos uma tendência (equivo- tivesse de moto-próprio convocado uma
cada) a considerá-lo conservador. O poder Assembleia Constituinte que dotasse o
neutro surgiu em sua teoria em razão da Brasil recém-independente de uma Carta,
incapacidade de o Estado constitucional e seus conflitos com os irmãos Andrada e sua
representativo francês superar suas dificul- insatisfação com os rumos que tomavam
dades institucionais desde a Revolução até os constituintes na elaboração do projeto
a Restauração. Tinha Constant um receio acabaram por levá-lo a dissolver a Assem-
profundo de que a França voltasse a viver bleia manu militari em novembro de 1823.
a violência e a anarquia; daí seu interesse na Do projeto da Constituinte não constava o
criação de um mecanismo político que esta- Poder Moderador, embora Benjamin Cons-
bilizasse as instituições ao mesmo que lhes tant fosse bastante lido e citado durante
possibilitasse um meio pacífico de evolução, os debates. Havia alguns deputados que
garantindo as liberdades individuais, por advogavam ou pelo menos sugeriam o
meio de uma explicitação e adaptação dos instituto do Poder Moderador nas sessões, o
princípios da Constituição da Inglaterra. mais importante dos quais era José Joaquim
Carneiro de Campos, futuro Marquês de
1.2. Os agentes da recepção Caravelas e autor da Constituição de 1824.
Benjamin Constant publicou sua obra “Adepto de Benjamin Constant, D.
principal − Princípios Políticos – na Pedro achava que um sistema de
época mesma em que a América Ibérica separação de poderes requeria um
tornava-se independente do jugo colonial, árbitro. Se não estivesse fixado na
procurando os novos países, ao menos Constituição, o Poder Moderador
formalmente, abraçar os ideais liberais da seria apropriado de qualquer forma,
Revolução Francesa. A repercussão de sua de maneira extraconstitucional. Nas
obra foi imensa, ainda que a maior parte repúblicas hispano-americanas, base-
dos novos países da América Espanhola adas em três sistemas de poderes, o
tentasse organizar-se politicamente à feição Poder Moderador era assumido pelas
dos Estados Unidos da América. O Brasil, Forças Armadas; nos Estados Unidos,
porém, seccionando-se de Portugal num pela Suprema Corte” (MACAULAY,
processo liderado pelo próprio herdeiro 1993, p. 189).
da Coroa do Reino Unido, abraçamos a Na Fala do Trono de 1823, com a qual
monarquia constitucional como forma de abriu a 4 de maio os trabalhos da Constituin-

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te, o monarca exprimiu suas expectativas e não queiram a inviolabilidade do
de que a Constituição a ser elaborada fosse monarca em toda a sua extensão (...).
“sábia, justa, adequada e executável, ditada Sou constitucional por princípio; já o
pela razão, e não pelo capricho”, para “da- era antes de se proclamar em Portugal
rem uma justa liberdade aos povos, e toda a (...). Depois que estive na Inglaterra
força necessária ao Poder Executivo”; uma e vi o bem executado sistema, ainda
Carta Magna em que os três poderes fossem mais constitucional fiquei; vi que o
“bem divididos, de forma que não possam Rei é um ente moral respeitadíssimo
arrogar direitos que não lhe compitam; mas como tal, e por isso inviolável; isto en-
que sejam de tal forma organizados e harmo- tendo eu, porque, sendo o Rei o Poder
nizados, que se lhe torne impossível, ainda Moderador, era mister que ninguém
pelo decurso do tempo, fazerem-se inimigos, lhe pudesse pedir contas; seus minis-
e cada vez mais concorram de mãos dadas tros é que são responsáveis por tudo,
para a felicidade geral do Estado”. Para o mas não de bagatelas, como agora é
Imperador, “todas as constituições que, à moda no sistema constitucional de
maneira das de 1791 e 1792, têm estabelecido 1791” (VIANNA, 1967, p. 96).
suas bases, e se têm querido organizar, a ex- Vemos assim que o ideal do Poder Mo-
periência tem mostrado que são totalmente derador já estava sedimentado no ideário
teoréticas e metafísicas, e por isso inexeqüí- político do Imperador em outubro de 1823.
veis”. Tais cartas constitucionais não teriam Tendo na ocasião da dissolução prometido
“feito, como deviam, a felicidade geral, mas ao país uma Constituição duplicadamente
sim, depois de uma licenciosa liberdade, mais liberal do que o anteprojeto da Cons-
vemos que em uns países já apareceu, e em tituinte, nomeou Dom Pedro um Conselho
outros não tarda a aparecer, o despotismo de Estado a fim de auxiliá-lo na redação de
em um, depois de ter sido exercitado por um novo projeto de Carta, a ser submetido
muitos, sendo consequência necessária fica- à apreciação de outra Constituinte. Esse
rem os povos reduzidos à triste situação de Conselho era composto por dez membros,
presenciarem e sofrerem todos os horrores sete dos quais haviam sido deputados
da anarquia” (Idem, p. 33). constituintes, entre os quais se destacava
Outra valiosa fonte que nos ajudará a a figura do futuro Marquês de Caravelas,
melhor compreender a evolução do pen- José Joaquim Carneiro de Campos, que vi-
samento de Dom Pedro rumo ao Poder ria a ser o relator do projeto constitucional.
Moderador é outra carta por ele redigida e Em fins de dezembro, todavia, acatando
endereçada a um jornal carioca da época, pedido da Câmara da Bahia e do Senado
agora sob o pseudônimo de “Baiano”. Data da Câmara do Rio de Janeiro, pressurosas
de fins de outubro de 1823, isto é, poucas de ter logo uma Constituição que regesse o
semanas antes da dissolução da Constituin- novo país, o governo imperial suspendeu as
te, e evidencia alguns pontos de atrito seus eleições para a escolha de novos deputados
em relação àquele órgão, principalmente na constituintes. Quando mais da metade dos
necessidade de inviolabilidade da figura do governos municipais deram sua anuência
monarca. Isso deve-se, com toda certeza, ao anteprojeto elaborado pelo Conselho de
ao aborrecimento de Dom Pedro com a Estado, este foi outorgado por Dom Pedro
forma desrespeitosa como alguns jornais, I, em 24 de março de 1824, como a Consti-
instigados por constituintes oposicionistas tuição Política do Império do Brasil. Assim
− em especial os Andradas −, referiam-se entrou em nosso maior diploma político o
à sua pessoa: Poder Moderador de Constant, quase que
“Não posso levar a paciência que to- literalmente como aquele pensador o havia
dos queiram e gritem ‘Constituição!’, teorizado.

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1.3. Os efeitos da recepção Esse malogro daria a alguns estadistas
Tornou-se comezinho, entre os histo- da Regência, embalados pela onda liberal
riadores do século, atribuir a abdicação de que se espraiara com a abdicação do Impe-
Dom Pedro I em 1831, ou ao fato de que seu rador, a impressão de que o Poder Mode-
exercício autoritário do poder tornou seu rador era de fato uma excrescência que de-
governo insustentável, tendo o imperador veria ser erradicada de vez das instituições
na prática forçado a renunciar, ou ao fato políticas brasileiras. O discurso proferido
de que, mais preocupado em recuperar o na Assembleia pelo senador Vergueiro
trono português para sua filha, cansou-se em sessão de 5 de junho de 1832 resume
o Imperador de governar com tantos per- perfeitamente a problemática da questão
calços, abdicando num gesto impetuoso. na época, quando diz que, de fato, cons-
Quaisquer que tenham sido as razões para o titucionalmente falando, os atos do Poder
fim de seu governo, elas representaram um Moderador não precisavam da referenda
somatório de insuficiências acumuladas ao ministerial, mas que deveriam precisar; e
longo de sete anos de regime constitucio- que, por serem exercidos pela mesma pes-
nal: o Brasil era ainda verde politicamente, soa, não havia na prática diferença entre o
nunca se tendo autogovernado até então; Executivo e o Moderador:
não dispunha de tradições verdadeiramente “Não se podem suprimir as atribuições
nacionais cristalizadas, e a mola mestra que concedidas ao Poder Moderador. A
deveria ter amortecido os impactos políticos questão é se deve ou não continuar na
do regime − o Poder Moderador −, apesar de Constituição a palavra ‘Moderador’. É
ter colaborado poderosamente para manter uma questão nominal; não se trata de
a unidade política do Estado, não logrou extinguir um poder. Portanto, os que
cumprir, na prática, os fins a que se propu- seguem a opinião não entenderão bem
sera na teoria, equilibrando os poderes. De o argumento; mas agora, fazer passar
nada valeriam os expedientes doutrinários estas atribuições ao Poder Executivo,
de Constant, tais como neutralidade, invio- é o que requer a utilidade pública e o
labilidade do monarca ou responsabilidade amor à liberdade. Separar essas atri-
ministerial, e isto porque o sucesso e o fra- buições é justamente estabelecer um
casso desse poder dependiam substancial- despotismo legal, pois não são elas
mente da forma como o seu exercente lhe tampouco ponderosas se exercidas
imprimiria a marca de sua personalidade. A sem responsabilidade. (...) os Minis-
flexibilidade da Constituição permitiria que tros não são obrigados a referendarem
o titular desse poder fosse um déspota, se outros atos senão os do Poder Executi-
assim quisesse, ou um Rei parlamentarista, vo, e os atos do Poder Moderador não
que tão somente se limitasse a supervisionar dependem da referenda dos Ministros
a marcha dos negócios públicos. A abdica- de Estado. Ora faz-se grandes elogios
ção de Dom Pedro, provocada pela intimi- ao Poder Legislativo por acrescentar
dação dos que tencionavam subtrair-lhe mais esse Poder, porém não se lem-
uma faculdade prevista na Constituição − a bram que essa distinção é doutrinal,
de livre nomeação e demissão de ministros e não de fato, porque (...) bastará que
−, parece ser a imagem perfeita de um texto se escreva no papel que esses poderes
constitucional algo dissociado da realidade são distintos, se eles são exercitados
política do país; e nesse ponto, isto é, do pela mesma pessoa? Parece que não;
ângulo estrito do que deveria o Poder Mo- é um absurdo (...). Ora, que abusos
derador ter funcionado na resolução desses pode cometer o Poder Moderador,
conflitos, ele foi reconhecidamente de um sendo depositado em mãos indepen-
malogro total. dentes?... Ora, se se quer conservar o

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Poder Moderador, diga-se: ‘Este poder E o controle político só parecia possível de
será exercitado com a referenda dos ser alcançado pelo aumento de recursos
Ministros de Estado’. Eu, Senhores, administrativos, militares e financeiros
olho para a substância da cousa, e do Estado, uma vez que os poderes locais
não para a cousa nominal. Vejo que tinham demonstrado sua inoperância no
o Poder Moderador, tal qual existe controle político local” (NEDER, 1979, p.
na Constituição, pode destruir todas 43). Corrigia-se Constant, portanto, pela
as liberdades da Nação, e o modo de via parlamentarista. Essas adaptações
remediar isto é fazê-lo passar para o possibilitariam que o Poder Moderador,
Poder Executivo, ou determinar que agora no papel de árbitro entre os partidos,
ele seja executado com a referenda mantivesse a vida política brasileira em paz
do Ministro de Estado” (URUGUAI, por mais de quarenta anos. De seu exercício
1960, p. 233). exemplar por Dom Pedro II, dirá Joaquim
A esperada reforma da Constituição, Nabuco (1949, p. 37-40):
por meio do Ato Adicional em 1834, con- “O Imperador (...) era o crítico de seu
vertendo a Regência Trina em Regência governo (...). O que ele queria nos mi-
de um só membro a ser eleito, não pelo nistros (...) era docilidade em escutar
Parlamento, mas pelo eleitorado qualifi- e conformidade com a prerrogativa
cado, e extinguindo o Conselho de Estado que a Constituição lhe conferira. Não
ao mesmo tempo em que ampliava o grau os queria soberbos, não os conserva-
de autonomia concedida às províncias, ria servis. (...). O que se dava é que pe-
acabaria por consagrar o modelo “presi- rante o governo era ele o procurador
dencialista” defendido por Diogo Antônio da oposição no que tinham de legíti-
Feijó e Evaristo da Veiga. No entanto, não mo e fundado as queixas e censuras
conseguiriam os exaltados extinguir o desta; que (...) revestia-se sempre da
Poder Moderador, que retornaria na ple- imparcialidade e frieza do poder que
nitude de suas atribuições com a ascensão a Constituição mesma chamara de
de Dom Pedro II, em 1840. A Lei n. 234 Moderador. Bastava isto para traçar
de 23 de novembro de 1841 recriaria o em conselho uma linha divisória
Conselho de Estado, agora também com sensível entre ele e os ministros. Em
funções de órgão máximo de contencioso virtude desse caráter arbitral supre-
administrativo; e, por fim, o Decreto de mo, de que não se despia nunca, o
20 de julho de 1847 criaria a figura do imperador tornava-se o fiscal severo
Presidente do Conselho de Ministros, que e exigente do pacto, para assim dizer,
escolheria os demais membros do ministé- que fazia com cada ministério. Ele
rio e distinguiria assim um pouco melhor (...) é um moderador, sagaz e bem in-
o Executivo do Moderador. A luta sobre a tencionado, sem prevenções nem in-
forma de aperfeiçoar o sistema consagrado transigências pessoais, das correntes
na Constituição, travada na Regência entre opostas de sentimento público que os
exaltados liberais, defensores do modelo acontecimentos e as personalidades
federalista e “presidencial”, e os futuros vão criando.(...) Não há um gabinete
conservadores, adeptos de um regime no reinado do qual se possa dizer que
parlamentar e centralizador à maneira da foi um instrumento em suas mãos,
Monarquia de Julho, terminaria no início assim como a verdade é que todos
do Segundo Reinado com a vitória destes viveram da sua aprovação, porque
últimos. “A centralização correspondeu à lhe parecia cada um a representação
necessidade de se impor ordem ao Império, da atualidade política, o que mais
neste momento ameaçado em sua unidade. convinha nas circunstâncias”.

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Esse papel arbitral, que nada conviera à Constant, que defendia uma câmara alta
personalidade do monarca que o introdu- hereditária, e não vitalícia1.
zira na Constituição, talharia porém com Como tivemos oportunidade de re-
perfeição a de seu filho, ponderado que era, senhar quando de nosso estudo da obra
culto, defensor das liberdades individuais, de Constant, o Poder Neutro tinha uma
tolerante em extremo. Em Dom Pedro II, o finalidade precípua, que era a de moderar
Poder Moderador encontraria sua personi- os demais poderes políticos. Caberia, pois,
ficação mais perfeita; pois que era aquela ao monarca reunir, como titular privativo
obra-prima da organização política sem o desse poder, as atribuições que dissessem
qual nenhuma liberdade existe e detinha respeito à intervenção nos demais poderes,
aquela esfera de segurança, majestade e possibilitando-lhe “resolver impasses e
imparcialidade, a que, muitos e muitos anos assegurar o funcionamento do governo de
antes, o velho Benjamin Constant se referira acordo com a Constituição e em obediên-
em sua obra magna. cia aos interesses permanentes da nação”
Na Constituição jurada pelo primeiro (MACAULAY, 1993, p. 188). Era, na literal
Imperador, os poderes políticos reconheci- tradução da expressão de Constant, “a cha-
dos seriam quatro, e não três: o Legislativo, ve de toda a organização política”, sendo
Executivo e Judicial clássicos, e o Poder delegada ao Imperador, na condição de
Moderador, todos delegações da nação primeiro representante da nação, para que
(art. 10 e 12). O Poder Legislativo, em vez incessantemente velasse sobre a manuten-
de ser composto pelo Imperador e pela As- ção da independência, equilíbrio e harmo-
sembleia Geral, era delegado a esta com a nia dos demais poderes políticos, conforme
sanção daquele, sendo assim composto de rezava o art. 98 da Carta Imperial.
três ramos. A Assembleia Geral era com- Como dissemos, a eficácia do Poder
posta pelas Câmaras de Deputados e de Moderador só se revelaria no Segundo
Senadores, a quem caberia eleger a Regência Reinado. As faculdades que conferiam ao
e marcar os limites de sua autoridade. Tan- Imperador dissolver a Câmara dos Depu-
to senadores quanto deputados poderiam tados, nomear senadores eleitos por lista
integrar o Conselho de Estado. À Câmara tríplice e nomear e demitir ministérios, no
dos Deputados, eletiva e temporária, ca- decorrer do século XIX, foram fundamentais
beria privativamente discutir propostas para adiar a oligarquização total do sistema
elaboradas pelo Poder Executivo. O Senado político brasileiro, o que só veio a ocorrer
continuaria vitalício e escolhido sobre listas durante a República Velha. A centralização
tríplices pelo Imperador, listas estas forma- da administração daí decorrente, com efeito,
das pelos três candidatos mais votados em impediu que as oligarquias regionais nas
cada província (art. 40/43). A justificativa províncias tomassem o poder completamen-
para a vitaliciedade desse órgão era de que te e também que a escravidão se prolongasse
ele deveria ser “o representante das nossas indefinidamente no Brasil. O papel da Coroa
ideias conservadoras, e do interesse geral, na abolição da escravatura fica claro quando
como predominante” (SÃO VICENTE, 1978, se analisa o papel que o Conselho de Estado,
p. 56). A vitaliciedade, em vez de um entra- órgão consultivo do Poder Moderador, e
ve à democracia, seria de alta importância, 1
Vale dizer ainda que o tempo demonstraria,
pois, o senador, uma vez escolhido, estaria no que tange a essa matéria, um erro de cálculo de
independente do povo e da coroa, visto que Constant: quando da Revolução de Julho de 1830 e
o Senado não estaria sujeito à dissolução. da consequente ascensão dos Orléans, a Constituição
francesa seria emendada para adquirir feições mais
Nesse aspecto, Dom Pedro I, ao acatar esse
democráticas, e uma dessas emendas substituiria
ponto do projeto de Antônio Carlos, fugiu exatamente o Senado hereditário pelo Senado vitalício;
completamente à expressa orientação de seis anos depois que o Brasil.

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este, tiveram não apenas na ocasião da Lei entanto, recomeçaram as fraudes, pratica-
do Ventre Livre, como da Lei Áurea; papel das pelos mesmos que reclamavam o false-
este só possível de desempenhar devido à amento, pelo Poder Moderador, do sistema
independência que o trono possuía em re- representativo. Por outro lado, inafastável
lação às elites reunidas no Parlamento. Este que uma nação não pudesse ser tutelada,
seria, inclusive, um fator que tiraria o apoio por toda a sua história, por um poder de
restante que as oligarquias davam ao regime base não popular, por mais benéfico que
monárquico, deixando-o sem sustentação e fosse ao estado em que se encontrava um
facilitando a ação dos republicanos, no ano imenso país monocultor, escravocrata, de
seguinte ao da abolição total. baixíssima densidade populacional.
Vale a pena ainda declarar que Dom Se nos fosse indagado se o invento teóri-
Pedro II, na medida do possível, valeu-se da co de Constant teve êxito em sua finalidade,
faculdade de escolher os senadores para, na dadas as condições em que se encontrava o
impossibilidade de, no regime constitucio- Brasil na segunda metade do século XIX, a
nal, promover ele diretamente as reformas resposta é francamente afirmativa: estabili-
nas quais acreditava − entre elas, a eleitoral zou o poder, garantiu, à medida do possível,
−, constituir uma verdadeira casta de ad- os direitos políticos e alguns direitos civis
ministradores públicos de alto gabarito, fundamentais, por mais de quarenta anos.
que primavam pela honra pessoal e pela O fim do Poder Moderador com a Repú-
integridade moral. Quanto à faculdade de blica trouxe tudo aquilo que para Constant
dissolver a Câmara dos Deputados, valeu- era o de mais deplorável para uma nação:
se desse expediente − respeitando as praxes revoluções (da Armada e Federalista, em
parlamentares que se iam desenvolvendo 1893), revoltas (de Canudos, em 1897; da
− por mais de dez vezes em seu reinado, a Vacina, em 1904; da Chibata, em 1910; do
fim de que os dois partidos monárquicos se Contestado, na segunda década do sécu-
alternassem no poder, em vez de promover lo), desrespeito aos direitos fundamentais
golpes que ali os alçasse. O último se dera (devido aos estados de sítio, nacionais ou
em 1842, quando das revoltas liberais em locais) e crises institucionais intermitentes
São Paulo e Minas Gerais. Foi esse rodí- (insurreições dos tenentes, em 1922; inter-
zio que possibilitou 40 anos de paz entre venções violentas nos Estados durante o
as elites brasileiras. Quanto à nomeação governo Hermes da Fonseca). Evidente que
e demissão de ministérios, o Imperador o alcance histórico do Poder Moderador, tal
valeu-se dessa prerrogativa tendo sempre como formulado por Constant, repetimos,
em vista o que julgava útil para o país e as não poderia ser indefinido. Mas se tivesse
condições políticas das circunstâncias. durado até 1930, talvez tivesse sido melhor
No entanto foi o Poder Moderador com- para a nação. O caso é que as oligarquias,
batido fortemente durante seu governo. Ele em 1889, já estavam fortes o bastante para
impediria o desenvolvimento do sistema dispensar a tutela do Poder Moderador e
parlamentar, consistindo em arbítrio e “po- dirigir o país pelas próprias mãos.
der pessoal”. Na realidade, o que impedia
o desenvolvimento do sistema eram as 2. Comparação entre o Poder Moderador
eleições fraudadas pelo partido que no mo- de 1824 e o da proposta de 1933
mento detivesse o poder. E salta aos olhos
a evidente incongruência do argumento,
2.1. Diversidade de contextos históricos
visto que só houve promoção de uma única
reforma eleitoral relevante durante o reina- O Brasil de quarenta e quatro anos
do − a de 1881, promovida pelos liberais. depois do golpe de Estado que instituiu
Após alguns anos de “eleições limpas”, no a República já era, em todos os aspectos,

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bastante diverso. Embora o café ainda que, durante mais de vinte anos, ocupara
respondesse substancialmente pela maior a governança do Rio Grande do Sul. A esta
parte da riqueza do país, as oligarquias época, achava-se desterrado no Recife em
rurais começavam a ceder espaço à classe razão de sua participação como conspira-
média que já surgira nas crescentes capi- dor da malograda Revolução Constitucio-
tais do país e à nova classe industrial. De nalista de 1932, provocada pela relutância
há muito se encontravam os dirigentes da de Vargas em proceder logo à reconstitu-
República Velha dissociados da opinião cionalização do país. Candidato à Assem-
pública nascente, que apoiava o pleito dos bleia Constituinte de 1933, aproveitou sua
tenentes revoltosos por eleições limpas e temporada em Pernambuco para, conforme
governo verdadeiramente representativo. ele mesmo explica, “desobrigar-me de um
O movimento de 1930 nasce original- encargo espontaneamente assumido, quan-
mente para dar vazão às novas demandas e, do daqui prometi, aos atuais dirigentes do
embora também não tenha sido exatamente partido (...), contribuir (...) para a maior am-
popular, provavelmente foi o movimento plitude que convinha dar-se ao programa
mais representativo da opinião pública na constitucionalista” (MEDEIROS, 1933, p.
história do país. Nesse tempo, o velho libe- 3). No melhor espírito “revolucionário” de
ralismo já havia sido posto de lado por to- nossos dirigentes apeados do poder, longe
das as novas correntes de pensamento que de criticar a ordem constitucional anterior,
proliferavam após a vitória da Revolução declara ter sido sempre partidário apenas
Bolchevique na Rússia, o fascismo italia- da reforma daquela no que fosse mais
no, o movimento social do pós-guerra. O propício ao desenvolvimento da liberdade
individualismo, como concebido no século civil e política e da federação. Hoje, aduz,
anterior, dava lugar a uma nova concepção seria ainda indispensável incorporar dis-
mais orgânica da sociedade, e neste sentido, positivos e doutrinas mais modernas, sob
a Constituição de 1891 parecia velhíssima o influxo da nova era constitucionalista
para os constituintes de 1933: não abordava inaugurada pela Constituição de Weimar,
direitos coletivos, não tocava nas relações que se adequassem às peculiaridades do
de trabalho, não previa representação Brasil de então.
política por classes de trabalhadores, não Modesto quanto às suas ambições,
garantia adequadamente a lisura dos plei- parece assim ter conseguido manter-se à
tos eleitorais, não estendia o direito de voto altura delas. Não se trata de um pretensio-
às mulheres, adotava o voto aberto como so tratado teórico: o livro, de dimensões
meio de sufrágio. relativamente pequenas, resume-se a um
A constituinte de 1933 foi, neste con- preâmbulo, uma introdução e duas partes,
texto, um caldeirão onde fervilhavam a primeira de âmbito teórico, e a segunda,
descontroladamente todas essas novidades num anteprojeto de constituição consisten-
que se espalhavam pelo mundo ocidental. te, à parte no que tange ao Poder Modera-
Seu funcionamento foi bastante prejudica- dor e um ou outro tópico, em reproduzir
do pelo caos partidário de então, herança ipsis litteris o que de melhor julgava haver
devastadora que a República Velha deixara no constitucionalismo da época: mantém
ao entregar esse sistema aos partidos oligár- aqui disposições da Carta de 1891; introduz
quicos locais. Um desses partidos nanicos e ali disposições da Constituição de Danzig;
efêmeros chamava-se Partido Republicano mais adiante, algumas da constituição da
Rio-Grandense e seu maior expoente era Áustria e da Alemanha. A seu favor milita-
nada mais nada menos que um dos mais va a preocupação, herdada de Alberto Tor-
destacados políticos em atividade durante res e desenvolvida, na época, por Oliveira
a República Velha − Borges de Medeiros, Viana, de não apenas importar modelos es-

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trangeiros, como até então se fizera, mas de possuir dotes e habilidades excepcio-
adequar o que pudesse haver de útil no es- nais” (MEDEIROS, 1933, p. 63).
trangeiro à própria realidade do país. Neste Seria então forçoso, como advogavam
sentido, acreditava que “uma verdadeira alguns, voltar ao parlamentarismo? Para
constituição é a que logra plasmar com Medeiros, nunca, e sua posição neste senti-
fidelidade a que se vem elaborando, lenta do é compreensível pelo contexto mundial
e confusamente, nos espíritos e crenças do de crise do sistema parlamentar europeu.
povo. Ela não deve ser a improvisação do No entanto, o que conviria era o próprio
idealismo e da razão pura” (Idem, p. 9). Ao presidencialismo, combinado com toques
contrário de Alberto Torres, todavia, afir- parlamentaristas e redimensionado por
ma, citando Kelsen, crer que o povo pode uma nova divisão de poderes. Na reali-
governar-se a si mesmo, e que tal só pode dade, tanto o parlamentarismo quanto o
se dar por meio de partidos. presidencialismo trariam, em si, a mesma
“O Brasil viveu-se e educou-se, por diátese, em forma variável. No primeiro,
mais de um século, sob o regime de anemia do executivo; no segundo, hiper-
duas constituições liberais, pratican- trofia. Que cumpriria então fazer?
do embora o sistema representativo “Fundir ou amalgamar as virtudes e
com as imperfeições de todo conhe- utilidades dos dois sistemas contrá-
cidas. Ele quer um Estado livre e rios, e com esses elementos construir
democrático, e não foi para outro fim um novo tipo de presidencialismo
que revoltou-se contra os abusos do (...). Eis o nosso principal objetivo
poder pessoal2 e as mistificações da e quiçá a maior originalidade deste
mentira eleitoral. O ideal compatível projeto. Em nossa concepção, o rol
com nossa civilização é a do Estado do presidente consistirá em presidir
de Direito, cujo princípio teleológico a República como seu primeiro ma-
é a democracia juridicamente organi- gistrado, e não como seu primeiro
zada” (Ibidem, p. 18). líder político. Fora da atmosfera dos
Um dos imensos erros que a ordem po- partidos e posto na posição de livrar-
lítica inaugurada em 1891 teria trazido foi se de qualquer influxo dos interesses
o mandonismo do Presidente da República, e paixões do mundo político, há ele
que, na realidade, acabara convertendo-se de reunir os predicados e requisitos
no ditador informal do país: que fazem o verdadeiro magistrado
“Duma parte os textos constitucio- (...). Separado dos poderes executivo,
nais, e doutra a carência de controle, legislativo e judiciário, ele constituirá
que só os grandes partidos e uma o quarto poder do Estado, o Poder
opinião pública consistente poderiam Moderador da República” (Idem,
exercer, propiciariam o fenômeno da p. 63).
hipertrofia do poder presidencial. Curiosamente, Borges de Medeiros
O fato da inexistência de partidos passa a fundamentar sua defesa do Poder
nacionais e de uma opinião pública, Moderador como garantidor da estabili-
no Brasil, criou um ambiente assaz dade do Estado − num tempo de declínio
favorável ao governo pessoal, que o absoluto do liberalismo, e com o fito de
presidente podia exercer livremente estabilizar um Estado democrático e social
e com relativa facilidade, sem mesmo − na obra de Brás Florentino Henriques
de Sousa. Florentino havia sido professor
2
Medeiros refere-se aqui, obviamente, ao poder
da faculdade de Direito do Recife durante
pessoal de Dom Pedro II − que, paradoxalmente para o
autor, decorria do Poder Moderador que mais adiante o Segundo Império e que escrevera então
vai defender em suas premissas filosóficas. um gigantesco tratado político-filosófico na

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defesa do instituto. Se comparado às obras e manter o equilíbrio constitucional
do Visconde de Uruguai, Marquês de São da Federação, salvaguardando a
Vicente e Zacarias de Góis e Vasconcelos, um tempo a unidade do regime e a
elaboradas na mesma época, tem fôlego e autonomia federativa” (Ibidem, p.
profundidade muito superiores, sendo no 75-77).
entanto muito mais reacionário, se assim Para Medeiros, em tempos de democra-
pudermos expressar-nos. Basta dizer que cia, o titular do Poder Moderador só pode-
Florentino era discípulo de Joseph de Mais- ria concentrar legitimidade para desempe-
tre, expoente do pensamento conservador nhar tão altas funções se eleito diretamente
francês contrarrevolucionário, estando as pelo povo, com direito à reeleição. Esse
páginas de sua obra repletas de veneração presidente escolheria os ministros, mas tal
à ideia da monarquia cristã. Isso não tem a escolha ficaria dependendo da aprovação
menor importância: do Legislativo unicameral. Os ministros,
“Se, no dizer de Benjamin Constant, uma vez nomeados e aprovados, seriam
a grande vantagem da monarquia inamovíveis nesta “racionalização” do par-
constitucional foi ter criado esse lamentarismo, senão nos seguintes casos: a)
poder neutro (moderador) na pes- como solução de conflito entre o executivo
soa de um rei, por que não há de a e o legislativo, quando por ela optar o
República criar esse mesmo poder Presidente: em caso de inconformismo do
na pessoa do presidente? (...) Só um Legislativo, deveria o presidente ou demitir
poder supremo, neutro, mediador, o gabinete, ou convocar referendo popu-
moderador, separado e independente lar, do qual resultaria, ou a demissão dos
de todos os poderes, há de fazer com ministros, ou a dissolução da Assembleia;
que o presidente seja realmente não b) quando o gabinete ou um dos ministros
só o primeiro representante como não ajudar ou não referendar ato do Poder
também o primeiro magistrado da Moderador; c) sob proposta do primeiro-
nação (...). No que se relaciona com ministro, havendo divergência com um
o poder legislativo, exercerá ele a dos ministros. Por outro lado, o Legislativo
ação moderadora, vetando o projeto também poderia destituir o Presidente da
de lei, inconstitucional ou contrário República mediante plebiscito.
aos interesses da nação; corrigirá as Quanto à hipótese de o Presidente
faltas ou omissões do mesmo poder, querer impor sempre um ministério de
propondo-lhe projetos de lei, de que seu partido, ou de ele “eleger”, com seu
porventura não haja ele cogitado; e o prestígio, a maioria os legisladores − acar-
convocará a sessões extraordinárias, retando, obviamente, o fim de sua “neutra-
quando o exigir o interesse público. lidade” − e pondo o governo virtualmente
Em relação ao executivo, mais efi- em suas mãos, Borges de Medeiros não se
ciente ainda mostrará sua autoridade. manifesta.
Não só nomeando e demitindo os
ministros, como aprovando e rejei- 2.2. Cotejo entre o Poder Moderador de
tando os decretos, regulamentos e 1824 e da proposta de 1933
instruções que eles lhe propuserem. Forma de investidura e duração do cargo
E, quanto ao judiciário, nomeando de chefe do Poder Moderador. Tratando-se de
os magistrados federais, indultando uma constituição monárquica, a de 1824
e comutando penas... Finalmente, não enunciava diretamente no capítulo
levando a intervenção federal aos concernente ao Poder Moderador qual seria
Estados, nos estritos termos da Cons- a forma do preenchimento do cargo. No
tituição, cumprir-lhe-á restabelecer entanto, podemos inferir tal interpretando

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os artigos 3o, 4o e 117 daquela Carta: o ar- proposta de 1933 ampliava o conceito. Ao
tigo 3o. consagrava o governo monárquico chefe desse Poder incumbiria não somente
hereditário; o artigo 4o. definia a dinastia a missão sobredita, como “velar sobre os
imperante como sendo a de Dom Pedro I, e destinos da República (...), assim como
o 117, que sua descendência legítima suce- sobre a inviolabilidade dos direitos fun-
deria ao trono “segundo a ordem regular de damentais”.
primogenitura e representação, preferindo Substituição do titular em caso de impedi-
sempre a linha anterior às posteriores; na mento. A Constituição do Império previa,
mesma linha o grau mais próximo ao mais no capítulo V do Título V, dois casos de
remoto; no mesmo grau o sexo masculino impedimento do titular do Poder Modera-
ao feminino; no mesmo sexo a pessoa mais dor: menoridade de 18 anos (art. 121) e im-
velha à mais moça”. Isto equivale dizer que possibilidade de governar “por causa física
o titular do Poder Moderador poderia ser ou moral, evidentemente reconhecida pela
apenas o herdeiro presuntivo do trono − o pluralidade de cada uma das câmaras da
Príncipe Imperial, e, após, o filho deste, o Assembleia” (art. 126). Em ambos os casos o
Príncipe do Grão Pará. Imperador seria substituído por uma regên-
No anteprojeto Borges de Medeiros cia. Em caso de menoridade do Imperador,
(1933), os requisitos para o exercício do este poder deveria ser exercido pelo parente
cargo vinham previstos nos artigos 83 e 87: mais próximo daquele, segundo a ordem
pelo primeiro, o candidato deveria ser bra- de sucessão, devendo o mesmo contar com
sileiro nato, estar no gozo de seus direitos mais de 25 anos (art. 122). Na inexistência
políticos e ser maior de 35 anos de idade. de príncipe ou princesa preenchedora de
Pelo segundo, deveria ser eleito por maioria tais requisitos, a regência seria formada
absoluta de votos em sufrágio direto da na- permanentemente por três membros eleitos
ção. Caso nenhum dos candidatos obtivesse pelo Parlamento, devendo o mais velho
maioria absoluta, o Parlamento elegeria, presidi-la (art. 123). O art. 124 previa a
por maioria, um dos dois candidatos mais organização de uma regência provisória
votados. De acordo com o parágrafo tercei- enquanto a definitiva não fosse eleita, a ser
ro deste último artigo, seriam inelegíveis composta pelos ministros do Império e da
para o cargo os parentes consanguíneos Justiça e dos dois conselheiros de Estado
e afins, nos primeiro e segundo graus, mais antigos em exercício, a ser presidida
do presidente ou substituto em exercício pela Imperatriz viúva, ou, na falta desta,
no momento da eleição, ou que tivesse pelo conselheiro mais antigo. A abdicação
deixado o cargo até seis meses antes. Pela de Dom Pedro I, em 1831, deu margem à
constituição de 1824, o exercício do Poder exata aplicação destes dois últimos artigos,
Moderador era exercido pelo monarca até 1834, por meio da regulamentação que
vitaliciamente. No projeto de 1933, o ocu- obtiveram pela Lei da Regência, de 14
pante do cargo poderia exercê-lo por quatro de junho de 1831. Essa lei foi importante
anos, facultada a reeleição para o período porque submeteu o exercício dos atos do
imediatamente subsequente, se obtidas 3/4 Poder Moderador à referenda dos minis-
partes dos votos apurados (art. 85). tros de Estado, além de vedar aos regentes
Finalidade. O artigo 98 da Carta de 1824 várias atribuições deste poder, tais como
enunciava que, sendo “a chave de toda a a dissolução da Câmara dos Deputados,
organização política”, cabia ao titular do a concessão de anistia em caso urgente,
Poder Moderador velar incessantemente a nomeação de conselheiros de Estado, e
“sobre a manutenção da independência, ainda vincular a suspensão de magistrados
equilíbrio e harmonia dos demais pode- à anuência dos presidentes das províncias.
res políticos”. Por sua vez, o artigo 82 da Esses três dispositivos da Constituição de

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1824, bem como os concernentes na Lei da exigisse a salvação do Estado” (art. 101
Regência, foram revogados pela lei n. 16 de V)4; h) a aprovação e a suspensão interina
12 de agosto de 1834 − o Ato Adicional, que, das resoluções dos conselhos provinciais
nos artigos 26 e 27, substituiu a regência (art. 101 IV), atribuição esta que ficou pre-
trina por uma regência una, eletiva em dois judicada pela transformação dos conselhos
graus pelo povo, e temporária, com man- em assembleias legislativas, quando do
dato de quatro anos. O que praticamente Ato Adicional, em 1834; i) a dissolução da
transformou o Regente num presidente da Câmara dos Deputados, quando o exigis-
república3. se, mais uma vez, “a salvação do Estado”,
O projeto de 1933 previa, por seu turno, devendo o Poder Moderador convocar
que, em caso de impedimento, ou falta de outra, que a substituísse (art. 101 V, in
presidente, este seria substituído sucessiva- fine); j) a suspensão de magistrados, em
mente pelo primeiro-ministro, pelo presi- razão de queixas contra eles proferidas
dente do Parlamento e pelo Presidente do (art. 101 VII).
Supremo Tribunal Federal (artigo 84). As demais atribuições do projeto de
Atribuições privativas. Eram atribuições 1933, por suas vezes, eram: f) expedir
comuns, tanto do Poder Moderador de decretos, regulamentos e instruções, sob
1824 como do de 1933: a) A convocação proposta do ministério, para fiel execução
extraordinária do Parlamento (art. 101 II/ das leis (art. 88 II); g) vetar projetos de lei da
art. 88 XIV); b) A sanção dos projetos de lei assembleia nacional (art. 88 III); nomear di-
enviados pelo Legislativo (art. 101 III/ art. plomatas, ministros do Supremo Tribunal
88 I); c) A livre nomeação e demissão de Federal, do Tribunal de Contas e do Supe-
ministros (art. 101 IV/ art. 88 IV e XI), com rior Tribunal Eleitoral, mediante aprovação
a ressalva de que em 1824 essa faculdade do Parlamento (art. 88 IV); h) representar a
era ampla, ao passo que em 1933 estava nação no exterior e manter relações com os
vinculada à aprovação do Parlamento, no Estados estrangeiros (art. 88 V); i) declarar
primeiro caso, e ao conflito com este ou a guerra e fazer a paz, conforme resolução
consigo mesmo, no segundo; d) Comutar do Parlamento (art. 88 VI); j) declarar guerra
penas (art. 101 VIII/ art. 88 XIII), sendo que, em caso de agressão estrangeira (art. 88
em 1824, podia ainda o Imperador moderar VII); l) distribuir forças militares pelo país,
as penas, e em 1933, podia o Presidente de acordo com as necessidades de segu-
conceder indulto; e) Conceder anistia (art. rança (art. 88 VIII); m) exercer ou designar
101 IX/ art. 88 XII), sendo que o Imperador quem deva exercer o comando supremo das
só poderia fazê-lo em casos de urgência, e forças armadas em tempo de guerra (art. 88
o Presidente, “na ausência da assembleia IX); n) nomear os magistrados federais (art.
nacional”. 88 X); o) comparecer perante o parlamento
As demais atribuições do Poder Mode- no dia da abertura da sessão ordinária,
rador do Império eram: f) a nomeação dos para expor a situação da República e indi-
senadores vitalícios, em caso de vacância car providências e reformas urgentes, em
(art. 101 I), entre os três mais votados de mensagem que deverá ler (art. 88 XV)5; p)
uma determinada província (art. 43); g) acreditar e receber embaixadores e outros
a prorrogação do Parlamento, quando “o
4
Estas duas atribuições, bem como as quatro
Houve, ainda, um terceiro caso de impedimento
3
primeiras comuns à Constituição de 1824 e ao projeto
não previsto constitucionalmente. O artigo 104 vedava de 1933, pertenceriam ao Poder Executivo, de acordo
ao Imperador sair do Brasil sem consentimento do com anteprojeto da Constituinte dissolvida em 1823
Parlamento. Das três vezes que Dom Pedro II deixou (art. 142 II, IV, I, VIII, XIII e III).
o país para viajar, nas últimas duas décadas do Im- 5
Esta função o Imperador também tinha, embora
pério, a Princesa Imperial assumiu como Regente, na não estivesse incluída entre as atribuições específicas
plenitude do exercício do Poder Moderador. do Poder Moderador: era a Fala do Trono.

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diplomatas (art. 88 XVI); q) concluir ajustes, algumas atribuições fundamentais que
convenções e tratados internacionais, sob Constant destinava ao Poder Moderador.
referendo do parlamento (art. 88 XVII); r) Pudera: a época e o contexto eram outros. O
autorizar o ministério a entabular negocia- que Medeiros tenciona fazer − e isto é mais
ções preliminares à conclusão desses atos do que válido − é, antes de reproduzir lite-
internacionais (art. 88 XVIII); s) homologar ralmente a teoria de Constant, aproveitar
os ajustes e convenções que os Estados ce- modernamente suas linhas gerais.
lebrassem entre si, submetendo-os, quando Formas legais de destituição. A Constitui-
lhe cumprisse, à resolução legislativa (art. ção do Império não previa forma alguma
88 XIX); t) nomear os oficiais superiores de destituir um titular do Poder Moderador
das três forças armadas (art. 88 XX); u) que não fosse menor ou incapaz física ou
exercer a iniciativa legislativa e promover psicologicamente. O artigo 90 do projeto
o referendo (art. 88 XXI) e, por fim, v) diri- Medeiros previa sua destituição por plebis-
mir conflitos entre a assembleia nacional e cito, convocado este por iniciativa de 2/3
o ministério, na forma da constituição (art. dos votos dos parlamentares. Caso o plebis-
88 XXII) (MEDEIROS, 1933). cito fosse desfavorável à assembleia, esta é
Desse cotejo depreende-se que várias que ficaria automaticamente dissolvida.
das atribuições que Medeiros destina ao Responsabilidade. Não havia responsabi-
Poder Moderador antes pertenceriam ao lidade expressa pelos atos emanados do Po-
Poder Executivo. O mesmo ocorre com os der Moderador na Constituição de 1824, já
da Constituição do Império, em compa- que o artigo 99 era explícito ao dizer que “a
ração com o anteprojeto Antônio Carlos pessoa do Imperador é inviolável e sagrada:
(1823). Repare-se, porém, que o Imperador ele não está sujeito a responsabilidade de
também exercia várias das funções desti- espécie alguma”. A clareza da constitui-
nadas por Medeiros ao Poder Moderador, ção não impediu, porém, que liberais e
porém no exercício do Poder Executivo, que conservadores se digladiassem durante
também lhe competia pela Carta de 1824. todo o Império procurando designar como
O desenvolvimento do regime parlamen- responsáveis por esses atos, ou os ministros
tar durante o Segundo Reinado, todavia, (no caso dos liberais, como pregava Zaca-
deixou o exercício prático de muitas das rias de Góis e Vasconcelos em Da natureza
mesmas, em todo caso, a cargo do Presi- e dos limites do Poder Moderador), ou os
dente de Conselho de Ministros6. Também conselheiros de Estado (no caso de alguns
se percebem ausentes, do projeto Medeiros, conservadores. Outros concordavam na
ideia de irresponsabilidade absoluta, como
6
O artigo 142 da Constituição de 1824 vinculava a São Vicente e Uruguai). Por mais impensá-
oitiva do Conselho de Estado sempre que o Imperador
se propusesse a exercer alguma das funções do Poder vel que fosse, num sistema representativo,
Moderador, à exceção da nomeação e destituição de considerar a hipótese de haver atos de
ministros. Com a extinção do Conselho pelo Ato Adi- governo emanados de autoridade irrespon-
cional, tal norma desapareceu. O restabelecimento do
Conselho por lei ordinária em 1841 tornou a oitiva pelo
sável, levando entretanto a Constituição ao
Imperador facultativa − na prática, Pedro II invariavel- pé da letra, tanto liberais como os primeiros
mente consultava o Conselho, seguindo a opinião da conservadores estariam errados − inclusive
maioria quase sempre. Como se vê, em nenhum dos porque, ainda que o Conselho de Estado
dois conselhos o Poder Moderador estava adstrito a
seguir essa maioria. De qualquer sorte, a participação respondesse pelos maus conselhos que des-
do Conselho de Estado nas decisões, em vista do se, o Imperador não estava contudo obriga-
alto nível intelectual e moral de seus integrantes, era do a seguir a opinião da maioria e, caso isso
extremamente benfazeja ao exercício daquele poder.
ocorresse, não haveria, de qualquer forma,
No projeto Medeiros, não havia nenhum órgão ao
qual o Poder Moderador estivesse vinculado, sequer quem respondesse por seus atos. Mas o
a título de consulta. espírito parcialmente consuetudinário do

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sistema parlamentar permitia esse tipo de apresentado pelo governo provisório de
debate, ainda que o próprio Dom Pedro II Vargas, e inspirado no Poder Coordenador
dissesse abertamente que os atos do Poder de Alberto Torres (1914), e atribuindo ao
Moderador, de fato, não estavam sujeitos Senado o papel de exercer essa função de
a nenhum tipo de responsabilidade. Era “coordenar” os poderes. De fato, o horror
mesmo o espírito (antiparlamentarista, é ao parlamentarismo possuído pela maioria
certo) da doutrina de Constant. dos constituintes, sobretudo os governistas,
Na proposta de 1933, por sua conta, a impediu que o deputado Assis Brasil, con-
responsabilidade era claríssima. O artigo victo presidencialista, acolhesse a proposta
91 enunciava os crimes de responsabilidade em sua emenda n. 501, limitando-se ele a
do Presidente da República, consistindo recomendar o projeto Medeiros, ressalvan-
os mesmos aqueles que atentassem contra do contudo sua divergência “quanto a algu-
a existência política da União, a forma de mas das concepções contidas no importante
governo da União e dos Estados, a Consti- diploma” (CARNEIRO, 1936, p. 217)7. Em
tuição e as leis, o livre exercício dos poderes que pese a Constituinte de 1933 ter sido a
políticos, o gozo e o exercício legal dos mais criativa que já tivemos, a conjuntura
direitos individuais e políticos, a segurança política real, e não a teórica, era francamen-
interna e externa do país, a integridade do te desfavorável a qualquer medida aparen-
território nacional, o decoro do cargo e a temente descentralizadora do poder. Não
probidade funcional, e, por fim, as leis or- seria à toa que Vargas afirmaria, no dia da
çamentárias, quanto aos atos que praticasse própria promulgação da constituição, que
e aos que fossem praticados em virtude de seria seu primeiro revisor.
ordem sua, dada por escrito. Incorrendo Essa discussão toda nos remete mais
em algum desses casos, preconizava o uma vez à temática da validade ou não, hoje
artigo 92 que o presidente seria submetido em dia, de instaurar-se um poder neutro
a processo e julgamento, depois que o par- no alto da cúpula do Estado com a missão
lamento declarasse procedente a acusação de garantir a estabilidade das instituições
formulada perante o Supremo Tribunal democráticas. Parece-nos que, a despeito
Federal, nos crimes comuns, e perante um da origem antidemocrática do Poder Mo-
tribunal especial, formado, no início de cada derador, da forma concebida por Constant,
quadriênio, pelo presidente do Supremo Medeiros, sem muita fundamentação teó-
Tribunal, servindo de juízes três ministros rica, mas bem intencionado, foi feliz em
daquela corte designado pelo primeiro e comprovar a atualidade da ideia em sua
três deputados eleitos pela assembleia (pa- época. Com efeito, não se pode dizer que
rágrafo segundo). Decretada a procedência a estabilidade do Estado democrático de
da acusação, ficaria o presidente suspenso direito não seja algo de desejável; a partir
de suas funções (parágrafo primeiro). dessa premissa se torna possível reestudar
formas que garantam esta estabilidade.
Conclusão 7
Embora a eleição de Vargas como Presidente
Embora a obra de Borges de Medeiros constitucional fosse já um fato consumado, ofereceu-
se Borges de Medeiros para concorrer com ele no que
tenha obtido considerável repercussão nos
era uma verdadeira anticandidatura, a fim de marcar
trabalhos legislativos da Constituinte de a oposição ao regime. Recebeu 59 votos, contra 175
1933, a proposta de reinserção do Poder atribuídos ao Chefe do Governo Provisório. Trans-
Moderador no ordenamento constitu- formado em símbolo de resistência democrática,
voltou ao Rio Grande do Sul como líder da oposição
cional brasileiro não foi acolhida, tendo
a Flores da Cunha, tendo sua carreira afinal encerra-
os constituintes preferido reformular o da aos 73 anos com o golpe militar que instaurou o
Conselho Supremo previsto no anteprojeto Estado Novo.

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A primeira forma, claro, é a educação do MACAULAY, Neill. Dom Pedro I: a luta pela liberdade
povo para a democracia; é o exercício diário no Brasil e em Portugal: 1798-1834. Tradução de André
Villalobos. Rio de Janeiro: Record, 1993.
da prática democrática. Mas isto não nos
exime, estudiosos da teoria política e do MEDEIROS, Borges de. O Poder moderador na República
presidencial: ante-projeto da constituição brasileira.
direito constitucional, de aventarmos que
Recife: [s.n.], 1933.
arranjo melhor garante as condições dessa
educação, dessa estabilidade, de forma a NABUCO, Joaquim. Minha formação. Prefácio de Caro-
lina Nabuco. Rio de Janeiro: W. M. Jackson, 1949.
que convenha às nossas necessidades.
NEDER, Gizlene. Os compromissos conservadores do
liberalismo no Brasil. Rio de Janeiro: Achiamé, 1979.
OURO PRETO, Afonso Celso de Assis e Figueiredo,
Bibliografia Visconde de. Discursos parlamentares. Rio de Janeiro:
José Olympio, 1978.
CARNEIRO, Levi. Pela nova constituição. Rio de Janeiro:
PEDRO II, Imperador do Brasil. Conselhos à regente.
Coelho Branco Editor, 1936. Introdução e notas de João Camillo de Oliveira Torres.
CONSTANT, Benjamin. Oeuvres. Apresentação e notas Rio de Janeiro: Livraria São José, 1958.
de Alfred Roulin. Paris: Gallimard, 1957. ______. Diário de 1862. Separata de: Anuário do Museu
______. Princípios políticos constitucionais: princípios Imperial, Petrópolis, v. 17, 1956.
políticos aplicáveis a todos os governos representati- RODRIGUES, José Honório. Conciliação e reforma no
vos e particularmente à constituição atual da França Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.
(1814). Organização e prefácio de Aurélio Wander
Bastos. Introdução de José Ribas Vieira. Tradução de SÃO VICENTE, João Antônio Pimenta Bueno, Mar-
Maria do Céu Carvalho. Rio de Janeiro: Liber Juris, quês de. Direito público brasileiro e análise da constituição
1989. do Império. Prefácio do Ministro Seabra Fagundes.
Brasília: Senado Federal, 1978.
______. Écrits politiques. Textes choises, présentés et
annotés par Marcel Gouchet. Paris: Gallimard, 1997. TORRES, Alberto. A organização nacional. Rio de Janei-
ro: Imprensa Nacional, 1914.
______. De la liberté chez les Modernes. Paris: Librairie
Générale Française, 1980. (Collection Pluriel). URUGUAY, Paulino Soares de Sousa, Visconde do.
Ensaio sobre o Direito administrativo. Apresentação
DIAS, Floriano de Aguiar. Constituições do Brasil. Rio de Temístocles Brandão Cavalcanti. Rio de Janeiro:
de Janeiro: Liber Juris, 1975. Ministério da Justiça, 1960.
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 3. ed. VIANNA, Hélio. Dom Pedro I, jornalista. São Paulo:
Rev. Rio de Janeiro: José Olympio, 1956. Editora Melhoramentos, 1967.

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