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“O Federalista”:
remédios republicanos
para males republicanos
Fernando Papaterra Limongi

Os Grandes Lideres — Wastington, E 46 Nova Cultural


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! o *

É ntre maio e setembro de 1787, reuniu-se em Filadélfia a Con-


venção Federal que elaborou uma nova Constituição para os
Estados Unidos, propondo que esta substituísse os Artigos da Con-
federação, firmados em 1781, logo após a independência. “O Fede-
ralista” é fruto da reunião de uma série de ensaios publicados na im-
prensa de Nova York em 1788, com o objetivo de contribuir para
a ratificação da Constituição pelos Estados. Obra conjunta de três
autores, Alexander Hamilton (1755-1804), James Madison (1751-1836)
e John Jay (1745-1859), os artigos eram assinados por PubliusX
A autoria dos artigos permaneceu secreta por algum tempo.
Segredo quebrado logo após a morte de Hamilton, que deixou um
documento reivindicando para si a autoria de 63 dos 85 artigos, al-
guns dos quais, posteriormente, Madison alegou ter escrito. A par-
tir de então, inicia-se uma longa polêmica a respeito da verdadeira
autoria de cada um dos artigos. Embora ainda se possa encontrar
quem esteja disposto a discutir o tema, os mais autorizados intér-
pretes concordam com a seguinte distribuição: 51 artigos teriam si-
do escritos pelo idealizador da empreitada (Hamilton), 29 caberiam
a Madison, e os 5 restantes a Jay, cuja colaboração foi prejudica-
da por problemas de saúde.
* Os nomes dos três autores de “O Federalista” estão fortemen-
te associados à luta pela independência dos Estados Unidos, figurando
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entre aqueles que tiveram participação destacada em eventos capi- tes da pátria e surdos aos interesses materiais, não mais existiam.
tais. Madison e Hamilton encontram-se entre os líderes do movi- Se, por acaso, se formassem governos desta natureza, seriam presas
mento que culminou na convocação da Convenção Federal, da fáceis de seus vizinhos militarizados, como comprovava a história
qual foram membros. Quanto à elaboração da Constituição, Hamil- européia.
ton teve uma participação discreta, já que suas teses ultracentraliza- O desafio teórico enfrentado por “O Federalista” era o de
doras foram prontamente rejeitadas. A James Madison, por outro desmentir os dogmas arraigados de uma longa tradição. Tratava-
lado, é creditada a maior contribuição individual na elaboração da se de demonstrar que o espírito comercial da época não impedia a
Constituição, dai porque seja chamado de “Father of the Constitu- constituição de governos populares e, tampouco, estes dependiam
tion”. exclusivamente da virtude do povo ou precisavam permanecer con-
Após a ratificação da Constituição, a presença dos autores finados a pequenos territórios. Estes postulados são literalmente in-
de “O Federalista” na vida política norte-americana mantém-se de vertidos. Aumentar o território e o número de interesses são benéfi-
suma importância. Hamilton foi o primeiro secretário do Tesouro cos à sorte desta forma de governo. Pela primeira vez, a teorização
dos Estados Unidos e um dos principais conselheiros políticos do sobre os governos populares deixava de se mirar nos exemplos da
presidente George Washington, a quem também esteve ligado John Antiguidade, iniciando-se, assim, sua teorização eminentemente mo-
Jay, o primeiro presidente da Corte Suprema. Madison, junto com derna.
Jefferson, liderou a formação do Partido Republicano, pelo qual
veio a ser eleito o quarto presidente dos Estados Unidos em 1808.
O acordo entre os autores de “O Federalista” não era absolu-
to e esteve diretamente relacionado aos objetivos dos artigos: a de- O moderno Um dos eixos estruturadores de “O Federalista”
fesa da ratificação da Constituição. Não concordavam entre si em federalismo o ataque à fraqueza do governo central institui-
vários pontos, como também, em pontos especificos, tinham teser- do pelos Artigos da Confederação. Em realida-
vas quanto à Constituição proposta. Concordavam, no entanto, de, segundo afirma Hamilton em “O Federalista”, n. 15, nem se
que a Constituição elaborada pela Convenção Federal oferecia um chegou, propriamente, a criar um governo, uma vez que estavam
ordenamento político incontestavelmente superior ao vigente sob ausentes as condições mínimas a garantir sua existência efetiva. Es-
os Artigos da Confederaçãog Por partilharem deste diagnóstico, e ta passagem esclarece o seu raciocinio: o
por considerarem urgente para .a sorte
do país a adoção da nova Governar subentende o poder de baixar leis. É essencial à idéia de
Constituição, os autores de “O Federalista” projetaram escrever uma lei que ela seja respaldada por uma sanção ou, em outras pala-
uma série de artigos onde a nova Constituição seria explicada e, vras, uma penalidade ou punição pela desobediência. Se não houver
ao mesmo tempo, refutadas as principais objeções de seus adversários. penalidade associada à desobediência, as resoluções ou ordens que
pretendem ter força de lei serão, na realidade, nada mais que conse-
Em seus artigos, os autores de “O Federalista”' explicitam
a
lhos ou recomendações.
teoria política a fundamentar o texto constitucional. A filosofia po-
lítica da época, em especial a exposta por Montesquieu, era evoca- Como o Congresso não tinha poderes para exigir o cumprimento
da pelos adversários da ratificação para fundamentar o questiona- das leis que baixava, cuja aplicação e punição dos eventuais desobe-
mento que faziam do texto constitucional proposto. Montesquieu, dientes ficava a cargo dos Estados, estas, a despeito do fato de se-
membro de uma tradição que se inicia em Maquiavel e culmina rem constitucionais, não passavam de ''recomendações que os Esta-
em Rousseau, apontava para a incompatibilidade entre governos po- dos observavam ou ignoravam a seu bel-prazer”.
pulares e os tempos modernos. A necessidade de manter grandes IO raciocínio desenvolvido por Hamilton deixa entrever o seu
exércitos e a predominância das preocupações com o bem-estar ma- desdobramento necessário. A única forma de criar um governo cen-
terial faziam das grandes monarquias a forma de governo mais ade- tral, que realmente mereça o nome de governo, seria capacitá-lo a
quada ao espírito dos tempos. As condições ideais exigidas pelos go- exigir o cumprimento das normas dele emanadas. Para que tal sê
vernos populares, um pequeno território e cidadãos virtuosos, aman- verificasse, seria necessário que a União deixasse de se relacionar
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apenas com os Estados e estendesse o seu raio de ação diretamente lecimento do executivo, defendia o pacto federal. Este pacto favore-
aos cidadãos. ceria o desenvolvimento comercial dos Estados Unidos, tormando
Estabelecida nestes termos, a crítica não se dirige especifica- uma nação de grande extensão territorial que não dependeria de gran-
mente à confederação formada em 1781, mas a todo governo des- des efetivos militares.
te tipo. A experiência histórica demonstrava que as confederações
haviam sido levadas à ruína pelas razões apresentadas por Hamil-
ton (ver “O Federalista”, n. 18 a 20). Insistir na formação de uma
Confederação seria desconhecer as lições da história e se prender A separação “Mas afinal, o que é o próprio governo
às conjecturas de Montesquieu, que via nestas a possibilidade de dos poderes e a senão o maior de todos os reflexos da na-
compatibilizar as qualidades positivas dos Estados grandes — a for- natureza humana | turcza humana? Se os homens fossem an-
ça — com a dos pequenos — a liberdade. Jos, não seria necessário haver governos.”
A Constituição proposta defendia a criação de uma nova for- Esta afirmação de Madison, feita em “O Federalista” n. 51, resu-
ma de governo, até então não experimentada por qualquer povo me a concepção sobre a natureza humana a fundamentar as refle-
ou defendida por qualquer autor, Em “O Federalista” é possível xões contidas em “O Federalista”. Uma visão realista, quando não
notar a dificuldade em nomear a forma de governo proposta. Con- pessimista, do comportamento dos homens, exposta em um Ssem-nu-
forme a define Madison, o idealizador desta inovação constitucio- mero de passagens. Para citar mais um exemplo, em “O Federalis-
nal, ao final de “O Federalista” n. 38, a Constituição proposta não ta” n. 6, Hamilton relembra que nunca se deve perder de vista o fa-
é estritamente nacional ou federal, mas uma composição de ambos to de os homens serem “ambiciosos, vingativos e rapaçes”. Pensar
os princípios. O termo federal, como nomeamos hoje esta forma de modo diferente “seria ignorar o curso uniforme dos acontecimen-
de governo, era, até este momento, sinônimo de confederação. A tos humanos e desafiar a experiência acumulada ao longo dos séculos”
distinção está no ponto assinalado por Hamilton; enquanto em Trata-se de um recurso de argumentação utilizado para justifi-
uma confederação o governo central só se relaciona com Estados, car a necessidade de criação do Estado — um tema ao qual “O Fe-
cuja soberania interna permaneçe intacta, em uma Federaçãoesta deralista” dedica, em verdade, pouca atenção — e do estabelecimen-
ação se estende aos indivíduos, fazendo com quec convivam dois e en- to de controles bem definidos sobre os detentores
do poder — o te-
tes estataisde estatura diversa, com a órbita de ação.
o dos Estados ma central de “O Federalista””.Controlar os detentores do poder
definida pela Constituição da União. porque, como observa Madison, os homens não são governados
1O federalismo nasce como um pacto político entre os Estados, por anjos, mas sim por outros homes, dat porque seja necessário
fruto de esforços teóricos e negociação política. Um pacto político, controlá-los “Ao constituir-se um governo — integrado por ho-
digamos assim, fundante, pois, por seu intermédio, se constituía mens que terão autoridade sobre outros homens — a grande dificul-
os Estados Unidos enquanto nação. A opção pela preservação da dade está em que se deve primeiro habilitar o governante a contro-
União, entretanto, não se deveu ao amor pela inovação constitucio- [Jar o governado e, depois, obrigá-lo a controlar-se a si mesmo.”
nal e, tampouco, deixou de levantar críticas. As estruturas internas do governo devem ser estabelecidas de tal
Inspirados na reflexão de Montesquieu, calcada na história eu- forma que funcionem como uma defesa contra a tendência natural
ropéia, os “Antifederalistas”” apontavam para os riscos à liberda- de que o poder venha a se tornar arbitrário e tirânico.
de inerentes a um grande Estado, cujas características os levava a As reflexões contidas em “O Federalista”, neste ponto, se-
se transformar emrronarquiassmilitarizadas. Frente a este quadro, guem de perto as máximas do pensamento liberal e constitucional,
é Apropunham a formação de três ou quatro confederações como for- a cuja tradição “O Federalista” se filia como um dos expoentes.
Vl ma de respeitar o tamanho ideal dos governos populares. Hamil- Sendo o homem o que é, segue-se que todo
do aquele que detiver o po-
ton, ao contrário, detectava nesta proposta o germe da competição der em suas mãos tende a dele abusar. Como afirma Madison, “não
comercial entre as diversas confederações. Para evitar as rivalida- se nega que o poder é, por natureza, usurpador, € que precisa ser
des comerciais, estas sim as causadoras da militarização e do forta- eficazmente contido, a fim de que não ultrapasse os limites que lhe
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foram fixados”. (O Federalista”, n. 48) A limitação do poder, da- do povo, os cidadãos americanos já estavam demonstrando estar a
da esta sua natureza intrínseca, só pode ser obtida pela contraposi- perdê-la. Propunham assim a volta à teoria do “governo misto””, is-
ção a outro poder, isto é,.o poder freandoe peder. Neste ponto, to é, afirmavam que apenas pela introdução de corretivos aristocrá-
“O Federalista” se aproxima de Montesquieu. Estas reflexões, co- ticos a liberdade poderia ser salva na América. “O Federalista” re-
mo é sabido, fundamentam a teoria da separaç ão enun-
dos poderes, jeita estas duas soluções, procurando encontrar novas bases para o
ciada por este autor. Apesar de se apoiar expressamente em Montes- governo popular.
quieu, a exposição de Madison da teoria da separação dos poderes Voltemos à separação dos poderes tal qual apresentada em “O
contém especificidades que merecem ser notadas. Federalista”” e vejamos quais suas relações com este ponto. A defe-
A teoria da separação dos poderes formulada por Montesquieu sa da aplicação deste princípio encontra-se construída a partir de
ainda não se despregou inteiramente das costelas da teoria do “'go- medidas constitucionais, 'garantias à autonomia dos diferentes ra-
verno misto”. Para a literatura política do século XVIII, a Inglater- mos de poder, postos em relação um com os outros para que pos-
ra era tomada como um caso comprobatório das qualidades do “'go- sam se controlar e frear mutuamente, referidas, em última análise,
verno misto”. Segundo esta teoria, quando as funções de governo às caracteristicas nada virtuosas dos homens, seus interesses e ambi-
são distribuídas por diferentes grupos sociais — realeza, nobreza e ções pessoais por acumular poder! ““A ambição será incentivada pa-
povo —, o exercício do poder deixa de ser prerrogativa exclusiva ra enfrentar a ambição. Os interesses pessoais serão associados aos
de qualquer um dos grupos, forçando-os à colaboração, com o que direitos constitucionais.” (“O Federalista””, n. 51) Não há vestígios
a convivência civil é aprimorada e a liberdade preservada. O “'go- da teoria do ''governo misto” ou de uma concepção onde a liberda-
verno misto”, portanto, não é o mesmo que a “'separação dos po- de seja resguardada por um povo virtuoso.
deres””, uma distribuição horizontal das três funções principais do A adoção do princípio da separação dos poderes justifica-se
Estado — a legislativa, a executiva e a judiciária — por órgãos dis- como uma forma de se evitar a titapia, onde todos os poderes se
tintos é autônomos.JA correspondência entre o “governo misto” e concentram nas mesmas mãos. Os diferentes ramos de poder preci-
a “'separação dos poderes” pode ocorrer desde que cada força so- sam ser dotados de força suficiente para resistir às ameaças uns dos
cial seja responsável por uma das funções JEste é o caso da Ingla- outros, garantindo que cada um se mantenha dentro dos limites fi-
terra descrita por Montesquieu (Livro décimo primeiro, de O espiri- xados constitucionalmente. No entanto, um equilibrio perfeito en:
to das leis). tre estas forças opostas, possível no comportamento dos corpos re-
Por razões óbvias, esta era uma solução descartada nos Esta- gidos pelas leis da mecânica, não encontra lugar em um governo.
dos Unidos, onde as condições sociais para o “governo misto” esta- Para cada forma de governo, haverá um poder necessariamente
vam ausentes. Aliás, este não deixou de ser um problema para os mais forte, de onde partem as maiores ameaças à liberdade. Em
colonos em luta com a Inglaterra, em geral, adeptos da teoria do uma monarquia, tais ameaças partem do executivo, enquanto para
“governo misto” como a mais eficaz defesa para a liberdade. Impe- as repúblicas, o legislativo se constitui na maior ameaça à liberda-
didos de lançar mão desta fórmula constitucional, onde encontrar de, já gue é a origem de todos os poderes e, em tese, pode alterar
os suportes para a liberdade? Este desafio levou alguns autores, co- as leis que regem o comportamento dos outros ramos de poder.
mo o influente Thomas Paine por exemplo, a rejeitar a teoria do Daí porque sejam necessárias medidas adicionais para frear o seu
“governo misto”, qualificando-a de um mito, ao tempo que afirma- poder.'A instituição do Senado é defendida com este fim, uma se-
vam que a verdadeira segurança para a liberdade de um povo encon- gunda câmara legislativa composta a partir de princípios diversos
trava-se em sua virtude. Miravam-se nos exemplos da Antiguidade daqueles presentes na formação da Câmara dos Deputados, sendo
greco-romana, cujas condições, diziam, os americanos estariam a re- previsível que a ação de uma leve à moderação da outra.
produzir. Este cra um argumento típico de parcela das fileiras “An- ' Outra forma de deter o poder legislativo se obtém pelo refor-
tifederalistas””. Por contraditório que possa parecer, por este cami- ço dos outros poderes. O judiciário, necessariamente
O ramo mais
nho também se estruturavam críticas claramente antipopulares. Se fraco porque destituído de poder de iniciativa, merece cuidados
a sorte dos governos populares dependia exclusivamente da virtude especiais para que sua autonomia seja garantida: Este é um ponto
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defendido com ênfase por Hamilton, que chega, em passagens de limitado e controlado para assegurar uma esfera própria para o li-
“O Federalista” n. 78, a atribuir à Corte Suprema o poder de inter- vre desenvolvimento dos indivíduos, em especial de suas atividades
pretação final sobre o significado da Constituição. Esta importan- econômicas.
te atribuição da Corte Suprema, no entanto, não é defendida con- Se as facções são inevitáveis, o problema passa a ser o de im-
sistentemente por qualquer um dos três autores e veio a ser incorpo- pedir que um dos diferentes interesses ou opiniões presentes na so-
rada posteriormente às prerrogativas próprias à Corte Suprema. ciedade venha a controlar o poder com vistas à promoção única e
exclusiva de seus objetivos. O princípio da decisão por maioria, re-
gra fundamental dos governos populares, passa a representar uma.
ameaça aos direitos das facções minoritárias. À maioria aplica-se
as repúblicas “O Federalista” n. 10, de autoria de James o princípio da tendência natural ao abuso do poder quando este
eas facções Madison, é considerado o artigo mais impor- não encontra freios diante de si. É o que naturalmente tende a acon-
To tante de toda a série, merecendo as maiores tecer nas democracias puras, onde poucas facções se defrontam e fa-
atenções dos comentaristas. A razão desta celebridade encontra-se cilmente a majoritária controla todo o poder.
- em sua discussão a respeito do mal das facções e das formas de en- Feita esta observação chega-se a um problema paradoxal pa-
- frentá-lo. ICaracterizadas como a “principal ameaça à sorte dos go- ra a teorização da democracia:: o maior risco de que ela degenere
vernos populares, tidas como forças negativas, no que segue os en- em tirania radica-se no poder que confere à maioria. Uma solução
sinamentos de uma sólida tradição, Madison inova ao defender que republicana para os males republicanos, objetivo de Madison, não
pode contraditar a regra definitória da forma de governo. Se o fi-
a sorte dos governos populares não depende de sua eliminação,
zer, logicamente, o governo deixaria de ser republicano. Vejamos
mas sim de encontrar formas de neutralizar os seus efeitos |
o remédio proposto por Madison.
Montesquieu e Rousseau afirmavam que a sobrevivência das
Antes de mais nada, cabe notar que Madison está a advogar
democracias era uma função direta da virtude dos cidadãos que a
a causa de uma nova espécie de governo popular, uma república re-
compunham. Sendo a virtude definida como a “renúncia a si pró-
presentativa, desconhecida na Antiguidade e por autores como Mon-
prio” em nome do “amor pelas leis e pela pátria”, sua preservação
tesquieu e Rousseau que a tomam como modelo para suas reflexões.
estava na dependência direta da manutenção da igualdade social en-
Estes autores constroem o seu modelo ideal de governo popular a
tre os cidadãos. Trata-se de uma igualdade na frugalidade) já que
partir dos exemplos de governos populares bem-sucedidos encontra-
o luxo traria consigo, inevitavelmente, a ambição
e os interesses
dos na história greco-romana. Por isto mesmo, os tempos moder-
particulares. Para Madison, tais postulações estabeleciam que as de-
nos, onde a virtude havia sido substituída pelo apego ao bem-estar
mocracias só poderiam florescer onde as facções fossem eliminadas. material, conspiravam contra a sorte desta forma de governo. Pa-
Madison rejeita esta solução, tida como não factível em um ra Madison, ao contrário, esta história é uma sucessão de experiên-
governo livre. As causas das facções encontram-se semeadas na pró- cias fracassadas, dada a fraqueza congênita das democracias puras,
pria natureza humana, nascendo do livre desenvolvimento de suas oferecendo-lhe um modelo absolutamente negativo. Note-se, ainda,
faculdades. IA diversidade de crenças, opiniões e de distribuição da que as facções que tem em mente e que procura tornar compatíveis
propriedade decorre da liberdade dos homens de disporem de seus com o governo republicano — como pode ser observado pela leitu-
próprios direitos. Vale observar que entre estes direitos, Madison ra dos exemplos dados no correr do texto — são originárias do de-
destaca o da propriedade, a principal fonte diferenciadora dos ho- senvolvimento de uma economia moderna. Madison afirma que es-
mens e, por isto mesmo, a fonte mais comum e duradoura das fac- te cenário não só é compatível com o governo popular, como tam-
ções. Proteger o direito de autodeterminação dos homens, isto é, bém é mais apropriado para seu sucesso. A ruptura com a tradição
protegerà sua liberdade, é o objetivo primordial dos governos, sua é completa.
razão de ser. Neste ponto encontra-se explicitado o comprometimen- A raiz desta inversão de expectativas deve-se à nova espécie
to de Madison com o credo liberal. Busca-se constituir um governo de governo popular que defendia:/a república. A distinção entre as
tes
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254 OS CLASSICOS DA POLÍTICA

repúblicas e as democracias puras traz vantagens à primeira) em Conforme afirma, a preocupação central da legislação moder-
dois pontos capitais. Primeiro, fazendo com que as funções de go- na é a de fornecer os meios para a coordenação dos diferentes inte-
verno sejam delegadas a um número menor de cidadãos e, segun- resses em conflito. Levar à coordenação dos interesses é a marca
do, aumentando a área e o número de cidadãos sob a jurisdição distintiva das repúblicas por oposição à violência do conflito entre
de um único governod À primeira vista, a primeira distinção, ao ins- facções características das democracias populares. Ante o bloqueio
tituir a representação, traz, automaticamente, as respostas procura- mútuo das partes, a coordenação aparece como a única alternativa
das por Madison. Em função do “'filtro”” que institui, entregando para decisão dos conflitos, o interesse geral se impondo como a
única alternativa.
o leme do Estado a homens imunes ao partidarismo, sempre aptos
a discernir e optar pelos verdadeiros interesses do povo, a represen- Em uma república com a extensão territorial dos Estados Unidos e
tação eliminaria o mal das facções. No entanto, seguir esta trilha é com a enorme variedade de interesses. partidos e seitas que englo-
cair em uma armadilha do texto, é não prestar atenção ao comentá- ba, a coalizão de uma maioria da sociedade dificilmente poderia ocor-
rer com base em quaisquer outros princípios que não os da justiça
rio seguinte de Madison, afirmando a probabilidade de se verificar
e do bem comum.
o resultado inverso, isto é, de que pessoas de espírito faccioso e com
propósitos sinistros conseguissem obter os votos do povo para de-
pois traí-lo. Segue que a representação, em si, não oferece as garan-
tias suficientes para sanar o mal das facções.
Como afirma o próprio Madison, à segunda característica dis-
tintiva das repúblicas deve-se a principal contribuição para evitar
o mal das facções/ Sob um território mais extenso e com um núme-
ro maior de cidadãos cresce o número de interesses em conflito,
de tal sorte que ou não existe um interesse que reúna a maioria dos
cidadãos, ou, na pior das hipóteses, será difícil que se organize pa-
ra agir.) Ou seja, através da multiplicação das facções chega-se à
sua neutralização recíproca, tornando impossível o controle exclusi-
vo do poder por uma facção. Impede-se, assim, que qualquer inte-
resse particular tenha condições de suprimir a liberdade.
Por outro lado, o preço desta solução pode ser a paralisia do
governo, com o choque entre vários interesses a bloquear qualquer
iniciativa das partes. Isto é, a solução para o mal das facções pode-
ria acarretar um mal maior: o não-governo. Madison não chega a to-
car nesta alternativa, o que poderia levar a pensar que este seria seu
objetivo. Como um liberal, seria partidário de um governo mínimo,
tudo mais ficando a cargo dos particulares e resolvendo-se pelas leis
do mercado. Não é o caso. Madison não é um adepto de Adam
Smith. À pergunta que lança no correr de sua argumentação, “'Deve-
rão as manufaturas nacionais ser incentivadas e em que grau através
de restrições aos produtos estrangeiros?"”, não encontra resposta em
um Estado mínimo. Em um não-governo, isto é, onde não fossem
decididas quais as restrições aos produtos estrangeiros, uma das par-
tes, os proprietários de terra, sairia ganhando. A solução vislumbra-
da por Madison não é nem o governo mínimo, nem o não-governo.
“O PEDERALISTA: REMEDIOS RIPUBLICANOS PARA MALES REPUBLICANOS 257

TEXTOS DE “O FEDERALISTA” . poder despótico e como hostilidade aos princípios de liberdade.


Um temor exagerado às ameaças aos direitos do povo — que mais
comumente é culpa da cabeça que do coração — será apresentado
como mero pretexto e artifício, a velha isca em busca da populari-
1. Hamilton
dade às expensas do bem público. Por um lado, será omitido que
o ciúme é usualmente concomitante do amor violento e que o no-
bre entusiasmo da liberdade é demasiado suscetível de ser infecta-
do por um espírito de suspeitas mesquinhas e iliberais. Por outro la-
Introdução
do, será igualmente omitido que o vigor do governo é essencial à se-
gurança e à liberdade; que, na expectativa de um julgamento justo
e bem-informado, esses interesses não podem nunca ser separados;
AO POVO DO ESTADO DE NOVA IORQUE
e que uma perigosa ambição está mais fregientemente escondida
por trás da mascara especiosa do zelo pelos direitos do povo do
Depois de uma demonstração inequívoca da ineficiência do
que sob a hipócrita aparência de entusiasmo pela firmeza e eficiên-
atual governo federal, sois chamados a deliberar sobre uma nova
cia do governo. A história nos ensina que aquela ambição tem en-
Constituição para os Estados Unidos da América. O assunto, por
contrado um caminho muito mais seguro para a introdução do des
si só, expressa sua importância: a de compreender nada menos que
potismo do que este entusiasmo e que, dentre os homens que derru-
a existência da União em suas consegiiências, a segurança e o bem-
baram as liberdades das repúblicas, a maior parte começou sua car-
estar das partes que a compõem e o destino de um império que é,
reira bajulando o povo; começaram demagogos e acabaram tiranos.
sob vários aspectos, o de maior interesse do mundo, Freguentemen-
No decorrer das observações precedentes, tive em vista, meus
te se tem salientado que parece ter sido reservado ao povo deste pa-
caros concidadãos, colocar-vos em guarda contra todas as tentati-
is, por sua conduta e exemplo, decidir a importante questão: se as
vas, de onde quer que venham, no sentido de influenciar vossa deci-
sociedades humanas são realmente capazes ou não de estabelecer
são em um assunto de extrema importância para o vosso bem-es-
um bom governo a partir da reflexão e do voto, ou se estão para
tar, através de quaisquer impressões que não sejam aquelas resultan-
sempre destinadas a depender do acaso e da força para as suas cons-
tes da evidência da verdade. Sem dúvida, tereis ao mesmo tempo
tituições políticas. Se há alguma verdade nesta observação, a crise
concluído, a partir do escopo geral de tais observações, que elas
à qual chegamos pode ser propriamente encarada como o momen-
procedem de uma fonte não inamistosa à nova Constituição. Sim,
to no qual a decisão deve ser tomada; e uma escolha errada de nos-
meus compatriotas, confesso que, depois de atenta consideração, es-
sa parte poderá ser considerada, a este respeito, como uma desgra-
tou plenamente convencido de que é de vosso interesse adotá-la e
ça para a humanidade.
que este é o caminho mais seguro para vossa liberdade, dignidade
[..l
e felicidade. Não simulo reservas que não sinto. Não vos distrairei
A julgar pela conduta dos partidos oponentes, seremos leva-
aparentando deliberar quando na verdade já decidi. Transmito-vos
dos a concluir que eles desejam mutuamente evidenciar a justeza
com franqueza minhas convicções e vos apresento abertamente as
de suas opiniões e aumentar o número de seus prosélitos através
razões sobre as quais estão fundadas. A consciência de boas inten-
do alarido de seus discursos e do azedume de suas invectivas. Qual-
ções desdenha a ambigiiidade. Contudo, não multiplicarei declara-
quer demonstração mais vigorosa da energia e eficiência do gover-
ções a esse respeito. Meus motivos devem permanecer depositados
no será estigmatizada como fruto de uma tendência extremada ao
em meu próprio coração. Meus argumentos serão franqueados a to-
dos e por todos poderão ser julgados. Pelo menos serão expostos
* Extraídos de Ham TON, Alexander; Maison, James; JAY, John. The federalist num espírito que não prejudique a causa da verdade.
papers. Fifth printing. New York, Mentor Book/ The New American Library Inc., Proponho-me a discutir, numa série de artigos, os seguintes te-
1961. Tradução de Cid Knipcll Moreira.
mas de grande interesse: 4 utilidade da União para a vossa prospe-
258 OS CLÁSSICOS DA POLÍTICA “O FEDERALISTA": REMÉDIOS REPUBLICANOS PARA MALES REPUBLICANOS 259

ridade política - A insuficiência da atual Confederação para preser- melhores e mais prudentes cidadãos têm sido constantemente orien-
var esta União - A necessidade de um governo pelo menos com vi- tados nesse sentido. Todavia, surgem agora políticos que insistem
gor similar ao do proposto para atingir tal objetivo - A conformida- em que esta opinião é errônea e que, ao invés de buscar a seguran-
de da Constituição proposta com os verdadeiros princípios do go- ça e a felicidade da união, devemos procurá-la numa divisão dos
verno republicano - Sua analogia com a Constituição de vosso pró- Estados em distintas confederações ou soberanias. Por mais extraor-
prio Estado - e finalmente - A segurança adicional que sua adoção dinária que esta nova doutrina possa parecer, ela tem contudo seus
propiciará à preservação desta forma de governo, à liberdade e à adeptos e algumas personalidades, que a princípio a ela se opunham,
propriedade. agora estão entre eles. Quaisquer que sejam os argumentos ou moti-
No decorrer desta discussão, esforçar-me-ei em dar uma res- vos que tenham forjado esta mudança nos sentimentos e declara-
posta satisfatória a todas as objeções que possam surgir e que pare- ções desses cavalheiros, certamente não seria prudente para o po-
çam ter despertado vossa atenção. [...] (p. 33-6) vo em geral adotar essas novas doutrinas políticas sem estar plena-
mente convencido de que estão fundadas na verdade e em sadia
orientação. [...]
Este país e este povo parecem ter sido feitos um para o outro
2. Jay e se afigura como um desígnio da Providência que uma herança tão
peculiar e adequada a um grupo de confrades, unidos pelos mais só-
lidos laços, jamais se repartisse entre numerosas soberanias insociais,
invejosas e hostis. [...)
As vantagens naturais da União Um forte sentido do valor e dos benefícios da União induziu
o povo a desde logo instituir um governo federal para preservá-la
e perpetuá-la. Este povo o constitui quase simultançamente à aqui-
AO POVO DO ESTADO DE NOVA IORQUE sição de sua existência política; não ao tempo em que suas habita-
ções estavam em chamas, quando muitos de seus cidadãos sangra-
Quando o povo da América refletir que foi agora chamado a vam ou quando o incremento da hostilidade e da desolação deixa-
decidir sobre uma questão que, por suas consequências, deverá se va pouco espaço para aquelas indagações e reflexões calmas e ama-
mostrar como uma das mais importantes que já exigiram sua aten- durecidas que devem sempre preceder a formação de um governo ju-
ção, ficará evidente o quanto é indispensável que ele a encare com dicioso e bem equilibrado para um povo livre. Não é de se admirar
muita atenção e seriedade. que um governo instituído em tempos tão desfavoráveis, ao ser pos-
| Nada é mais certo do que a indispensável necessidade de um to à prova, se revele por demais deficiente e inadequado aos fins a
governo e é igualmente inegável que, quando e como quer que ele que se propunha alcançar.
seja instituído, o povo deve ceder-lhe alguns de seus direitos natu- Este povo inteligente percebeu e lamentou tais falhas. Conti-
rais, a fim de investi-lo dos necessários poderes; Consegiientemen- nuando ainda não menos ligado à união do que enamorado da li-
te, é também justo considerar se ele contribui mais para o interes- berdade, ele se deu conta do perigo que ameaçava imediatamente
se do povo da América ao integrar, para todos os propósitos gerais, a primeira e mais remotamente a segunda; e, estando persuadido
uma nação sob um governo federal ou ao dividi-la em confedera- de que uma completa segurança para ambas somente poderia ser ob-
ções separadas e conferir a cada uma a mesma espécie de poderes tida através de um governo nacional mais judiciosamente concebi-
que é aconselhável atribuir a um governo nacional. do, convocou, como uma voz geral, a última Convenção de Filadél-
Até recentemente, tem sido uma opinião aceita e não contra- fia para deliberar sobre este importante assunto. Esta convenção
riada que a prosperidade do povo da América depende de ele conti- — integrada por homens que gozavam da confiança do povo, e
nuar firmemente unido, e os desejos, preces e esforços de nossos muitos dos quais se distinguiram sobremaneira por seu patriotismo,
260 OS CLÁSSICOS DA POLÍTICA “O FEDERALISTA”: REMEDIOS REPUBLICANOS PARA MALES REPUBLICANOS 261

probidade e sabedoria — empreendeu a difícil tarefa. Em tranqui- Das desordens que desfiguram os anais daquelas repúblicas,
lo ambiente de paz, sem quaisquer outras preocupações, passaram os adeptos do despotismo retiraram argumentos não somente con-
muitos meses em consultas diárias, calmas e ininterruptas e, sem te- tra as formas de governo republicano, mas contra os próprios prin-
rem sido atemorizados pelo poder nem influenciados por qualquer cípios de liberdade civil. Acusaram todo governo livre como incom-
paixão, exceto o amor ao seu pais, apresentaram e sugeriram ao po- patível com a ordem da sociedade e entregaram-se a um júbilo ma-
vo o projeto que seus conselhos conjuntos elaboraram por unanimi- licioso diante de seus amigos e partidários. Felizmente, para a hu-
dade. [...] (p. 37-9) manidade, as sólidas estruturas erguidas sobre a base da liberdade,
e que têm florescido por tanto tempo, refutaram, com alguns brilhan-
tes argumentos, seus nebulosos sofismas. E acredito que a Améri-
ca constituirá a grande e firme base para outros edifícios não me-
9. Hamilton nos magnificentes e que igualmente ficarão como mausoléus perma-
nentes dos erros de seus detratores.
Todavia, é inegável que os retratos que eles delinearam do go-
verno republicano foram cópias precisas dos originais de que parti-
A União como barreira contra facções ram. Se fosse considerado impraticável conceber modelos de uma
e insurreições estrutura mais perfeita, os esclarecidos amigos da liberdade teriam
sido obrigados a abandonar a causa daquela espécie de governo co-
mo indefensável. A ciência da política, entretanto — como a maio-
AO POVO DO ESTADO DE NOVA IORQUE ria das demais ciências —, conheceu um grande progresso. A eficá-
cia de vários princípios é agora bem compreendida, ao passo que
[Uma União sólida será da máxima importância à paz e à liber- era ou totalmente desconhecida ou imperfeitamente conhecida pe-
dade dos Estados, como uma barreira contra facções e insurreições los antigos. A distribuição equilibrada dos poderes entre os diferen-
internas) tes departamentos, a adoção do sistema de controle legislativo, a
É impossível ler a história das pequenas repúblicas da Grécia instituição de tribunais integrados por juízes não sujeitos a demis-
e da Itália sem sentir horror ou aversão diante das confusões que sões sem justa causa, a representação do povo no legislativo por de-
continuamente as agitavam e da rápida sucessão de revoluções atra- putados eleitos diretamente — tudo isso são invenções totalmente
vés das quais se mantinham num estado de constante oscilação en- novas ou tiveram acentuado progresso rumo à perfeição nos tem-
tre os extremos da tirania e da anarquia. Quando ocorriam perío- pos modernos. Konstituem meios — e meios poderosos — pelos
dos ocasionais de tranquilidade, apenas serviam como contrastes quais os méritos do governo republicano podem ser assegurados e
de curta duração das violentas tempestades que se sucediam. Ao as suas imperfeições reduzidas ou evitadas/ A este elenco de particu-
vermos esses breves intervalos de paz, sentimos uma espécie de pe- laridades que tendem à melhoria dos sistemas populares de gover-
sar derivado da reflexão de que o agradável panorama diante de no civil, aventuro-me — ainda que possa parecer prematuro a "l-
nossos olhos será em breve engolfado pelas ondas tempestuosas da guns — a acrescentar mais uma, em relação a um princípio que se
sedição e do ódio partidário. Se, dentre o nevoeiro, despontam mo- tornou o fundamento de uma objeção à nova Constituição; refiro-
mentâneos raios de esplendor, embora nos deslumbrem com um me à ampliação da órbita na qual tais sistemas devem girar, seja
brilho transitório e fugidio, ao mesmo tempo nos advertem a lamen- em atenção às dimensões de determinado Estado ou à consolidação
tar que os vícios do governo tenham manchado sua atuação e des- de vários Estados pequenos em uma grande Confederação. É este
lustrado aqueles talentos evidentes e aqueles dons sublimes pelos último caso que diz respeito imediato ao assunto ora tratado. Entre-
quais têm sido tão justamente celebrados os solos férteis que os pro- tanto, será útil examinar o princípio em sua aplicação a um único
duziram. Estado, o que será feito posteriormente. [...] (p. 71-3)
“O FEDERADLISTA: REMÉDIOS REPUBLICANOS PARA MALES REPUBLICANOS 263
262 OS CLASSICOS DA POLÍTICA

damente responsabilizadas por muitos de nossos maiores infortú-


10. Madison
nios e, particularmente, pelo receio prevalecente e progressivo de
compromissos públicos e de atentados aos direitos privados, que
têm ecoado de ponta a ponta do continente. Estes constituem prin-
cipalmente — se não totalmente — efeitos da falta de firmeza e das
O tamanho e as diversidades da União
injustiças com que uma mentalidade facciosa corrompeu nossa ad-
como um obstáculo às facções
ministração.
| Entendo como facção um grupo de cidadãos, representando
AO POVO DO ESTADO DE NOVA IORQUE quer a maioria, quer a minoria do conjunto, unidos e agindo sob
um impulso comum de sentimentos ou de interesses contrários aos
Entre as inúmeras vantagens esperadas de uma União bem es- direitos dos outros cidadãos ou aos interesses permanentes e coleti-
tabelecida, nenhuma merece ser mais acuradamente desenvolvida vos da comunidade|
do que a sua tendência para sustar e controlar a violência das fac- Há dois processos para remediar os malefícios das facções:
ções. O adepto dos governos populares nunca fica tão alarmado um, pela remoção de suas causas; outro, pelo controle de seus efeitos.
quanto ao caráter e destino dos mesmos como quando neles perce- Há também dois processos para remover as causas das fac-
be uma tendência a esta perigosa imperfeição. Assim, não deixará ções:!um, pela destruição da liberdade, que é essencial à sua existên
de dar o devido valor a qualquer plano que, sem violar os princí- cia; outro, fazendo com que todos os cidadãos tenham as mesmas
pios aos quais se atém, ofereça a ela um remédio adequado. A ins- opiniões, os mesmos sentimentos e os mesmos interesses.) Nada se-
tabilidade, a injustiça e a confusão introduzidas nos conselhos pu- ria mais verdadeiro do que afirmar que o primeiro remédio é pior
blicos têm sido, na verdade, doenças mortais que, por toda parte, do que a doença. A liberdade é para as facções o que o ar é para
fizeram perecer governos populares e continuam sendo os tópicos o fogo, um elemento sem o qual elas instantaneamente se extinguem.
favoritos e frutíferos a partir dos quais os adversários da liberdade Mas, suprimir a liberdade — que é essencial à vida política —, por-
retiram seus argumentos mais enganadores. Os valiosos aperfeiçoa- que ela alimenta as facções, não seria uma tolice menor do que de
mentos introduzidos pelas constituições americanas nos modelos po- sejar a eliminação do ar — que é essencial à vida animal, por
pulares, tanto antigos como modernos, não poderão certamente ser que ele confere ao fogo seu poder destruidor.
muito apreciados, mas seria uma injustificável parcialidade contes- O segundo expediente é tão impraticável quanto o primeiro se-
tar que tenham prevenido eficazmente o perigo neste sentido, tal co- ria insensato. Na medida em que a razão do homem continuar fali-
mo se desejava e esperava. Por toda parte ouvem-se queixas apre- vel e ele puder usá-la à vontade, haverá sempre opiniões diferentes.
sentadas por nossos mais dignos e virtuosos cidadãos, igualmente tEnquanto subsistir a conexão entre o raciocínio e o amor-próprio,
defensores da fé pública e privada e da liberdade coletiva e pessoal, suas opiniões e suas paixões terão uma influência recíproca umas so
que julgam nossos governos demasiado instáveis, o bem público ig- bre as outras; e as primeiras serão objetos aos quais as últimas se
norado nos conflitos entre partidos rivais e as providências muitas apegarão.|A diversidade das aptidões humanas, nas quais se origi-
vezes decididas não de acordo com as normas da justiça e os direi- nam os direitos de propriedade, não deixam de ser um obstáculo
tos do partido minoritário, mas pela força superior de uma maioria quase insuperável para uma uniformidade de interesses. A proteção
interesseira e arrogante. Por mais ansiosamente que possamos dese- dessas aptidões é o primeiro objetivo do governo. Da proteção de
jar que tais queixas sejam infundadas, a evidência de fatos conheci- aptidões diferentes e desiguais para adquirir bens, resulta imediata-
dos não nos permitirá negar que elas são em alguma medida verda- mente a posse de diferentes graus e tipos de propriedade; e a influên
deiras. De fato, constatar-se-á, através de um justo reexame de nos- cia destes sobre os sentimentos e opiniões dos respectivos proprietá-
sa situação, que algumas das aflições aqui consideradas têm sido er- rios acarreta uma divisão da sociedade em diferentes interesses e
roneamente imputadas à ação de nossos governos; porém, desco-
partidos.
brir-se-á, ao mesmo tempo, que outras causas não podem ser isola-
264 OS CLASSICOS DA POLITICA “O FEDERALISDA: REMEDIOS REPUBLICANOS PARA MALES REPUBLICANOS 265

As causas latentes das facções estão, assim, semeadas na natu- prios juizes e pressupõe-se que a parte mais numerosa — ou seja,
reza do homem e por toda parte as vemos atuando em diferentes a facção mais poderosa — prevaleça. Deverão as manufaturas na-
níveis de atividade, de acordo com as variadas circunstâncias da so- cionais ser incentivadas, e em que medida, através de restrições aos
ciedade civil. Um empenho em pontos de vista divergentes, relati- produtos estrangeiros? São questões que terão decisões bem diferen-
vos à religião, ao governo e a muitos outros pontos, tanto teórica tes se decididas pela classe dos proprietários de terra ou pela dos in-
quanto praticamente; um apego a diferentes líderes que ambiciosa- dustriais e, provavelmente, em nenhum dos casos haverá a menor
mente buscam proeminência e poder ou a pessoas com outras carac- consideração para com a Justiça e o interesse público. A discrimina-
terísticas, cujas fortunas têm constituído atrativos às paixões huma- ção dos impostos que devem incidir sobre os diferentes tipos de
nas, por sua vez, têm dividido a humanidade em partidos, inflaman- bens é um ato que parece exigir a mais rigorosa imparcialidade; to-
do-os com mútua animosidade e tornando-os muito mais dispostos davia, talvez não haja outro ato legislativo que ofereça maior opor-
a provocar e oprimir uns aos outros do que a cooperar para O res- tunidade e tentação a um partido majoritário para desprezar as nor-
pectivo bem comum, Tão forte é esta propensão da humanidade pa- mas da justiça. Cada centavo com que sobretaxam os bens dos mi-
ra criar animosidades mútuas que, quando não se apresenta uma ra- noritários é um centavo que economizam para seus próprios bolsos.
zão propícia, as mais frivolas e imaginárias divergências têm sido su- É inútil dizer que estadistas esclarecidos serão capazes de ajus-
ficientes para inflamar suas inamistosas paixões e provocar os mais tar esses interesses conflitantes e de torná-los todos subordinados
violentos conflito Porém, a fonte mais comum e duradoura das ao bem público. Nem sempre os estadistas esclarecidos estarão no
facções tem sido a distribuição variada e desigual da propriedade. leme. Em muitos casos, tais ajustamentos tampouco poderão ser
Aqueles que a possuem e os não-proprietários invariavelmente cor- feitos sem levar em conta considerações indiretas e remotas, que ra-
porificam distintos interesses na sociedadg] Os que são credores e ramente prevalecerão sobre o interesse imediato em que um parti-
os que são devedores se enquadram numa discriminação similar. In- do se apoiou para ignorar os direitos de outro ou o bem do conjunto.
teresses decorrentes da posse de terras, de atividades industriais e co- A conclusão a que somos levados é a de que as causas da fac-
merciais, de disponibilidade de capital, acompanhados de uma série ção não podem ser removidas e de que o remédio a ser buscado se
de outros menores, brotam necessariamente nas nações civilizadas encontra apenas nos meios de controlar os seus efeitos.
e as dividem em classes diferentes, motivadas por sentimentos e pon- Se uma facção não chega a constituir maioria, o remédio é
tos de vista distintos. A harmonização desses diferentes interesses fornecido pelo princípio republicano, que habilita o partido majori-
em choque constitui a principal tarefa da legislação moderna e en- tário a derrotar, através de votação regular, os projetos inconvenien-
volve o espírito de partido e facção nas atividades necessárias e co- tes. À facção pode emperrar a administração e mesmo convulsio-
tidianas do governo. nar a sociedade, mas, segundo prevê a Constituição, será incapaz
Ninguém tem O direito de ser juiz em causa própria, porque de fazê-lo mascarando sua violência. Quando a maioria integra
seu interesse certamente tendenciaria o seu julgamento e, o que não uma facção, a forma do governo popular, por sua vez, a habilita
é improvável, corromperia sua integridade. Da mesma forma, senão a sacrificar à sua paixão pelo poder ou a seus interesses tanto o bem
com mais razão, um grupo de homens não está capacitado para ser público como os direitos dos outros cidadãos. Resguardar este bem
juiz e parte ao mesmo tempo; todavia, o que representam muitos público e estes direitos individuais contra os perigos de tal facção
dos mais importantes atos legislativos senão outras tantas decisões e, ao mesmo tempo, preservar o espírito e a forma do governo po-
judiciais que não dizem respeito, de fato, aos direitos de indivíduos pular é, portanto, o grande objetivo para o qual nossas pesquisas
isolados, mas aos de grandes conjuntos de cidadãos? E o que são estão voltadas. Permito-me acrescentar que é este o único grande
as diferentes classes de legisladores senão advogados e partes nas desiderato pelo qual esta forma de governo pode ser salva do opró-
causas que devem decidir? Pode uma lei ser proposta em relação a brio de que, há muito, vem padecendo e ser recomendada à estima
débitos privados? Esta é uma questão em que os credores represen- e à adoção pela humanidade.
tam uma das partes e os devedores, a outra. A justiça deve manter Através de que meios pode este objetivo ser atingido? Eviden-
o equilíbrio entre elas. Entretanto, as partes são e devem ser os pró- temente, há apenas dois./Ou se evita a ocorrência, simultaneamente,
“O FEDERALISTA”: REMEDIOS REPUBLICANOS PARA MALES REPUBLICANOS 267
2466 OS CLASSICOS DA POLITICA

rias ou parciais. Sob tais normas, bem pode acontecer que a opi-
das mesmas paixões ou interesses por parte da maioria, ou esta
nião pública, externada pelos representantes do povo, seja mais con-
maioria, coexistindo com tais paixões e interesses, tem de ser torna-
dizente com o bem geral do que se expressa pelo próprio povo, con-
da incapaz, quantitativa e localmente, de tramar e executar esque
vocado para esse fim. Por outro lado, o efeito pode ser contrário.
mas de opressão | Se o impulso e a oportunidade coincidirem, sabe-
Indivíduos de temperamento faccioso, com preconceitos locais ou
mos que nem razões de ordem moral ou religiosa poderão oferecer
propósitos maidosos, poderão, pela intriga, pela corrupção ou por
um controle adequado. Tais razões não prevalecem sobre a injusti-
outros meios, inicialmente conseguir os votos e depois trair os inte-
ça e a violência dos indivíduos e perdem sua força na mesma pro-
resses do povo. !A questão resultante é se repúblicas pequenas são
porção em que cresce o grupo em conluio, isto é, à medida que es-
mais propícias do que as grandes à eleição de adequados guardiões
sa força se torna mais necessária.
do bem-estar público; a resposta é claramente a favor das grandes,
A partir deste ponto de vista da questão, pode-se concluir que
por duas considerações óbvias.|
uma democracia pura — que defino como uma sociedade congre-
Em primeiro lugar, deve-se observar que, por menor que seja
gando um pequeno número de cidadãos que se reúnem e adminis-
uma república, seus representantes não devem ser muito poucos, a
tram o governo pessoalmente — tem de admitir que não há cura pa-
fim de evitar a conspiração de alguns; e, por maior que ela seja,
ra os males da facção. Uma paixão ou interesse comum dominará,
também não devem ser por demais numerosos, a fim de prevenir a
em quase todos os casos, a maioria do conjunto; da própria for-
confusão das multidões. Assim, nos dois casos, o número dos repre-
ma de governo resultarão entendimentos e acordos; e nada haverá
sentantes não sendo proporcional ao dos constituintes e até relativa-
para controlar a propensão para sacrificar o partido mais fraco ou
mente maior na república pequena, segue-se que, se a percentagem
um indivíduo antipático.| É por isso que tais democracias têm sido
revelado incapa- de personalidades capazes não for menor nas grandes do que nas
sempre palco de distúrbios e controvérsias, têm-se
pequenas repúblicas, aquelas terão maiores opções e, conseqiiente-
zes de garantir a segurança pessoal ou os direitos de propriedade e,
violentas em mente, melhores probabilidades de escolhas acertadas.)
em geral, têm sido tão breves em suas vidas quanto
de gover- Em segundo lugar, como cada representante será escolhido
suas mortes) Os políticos teóricos, que defendem tais tipos
a uma per- por um número maior de cidadãos nas grandes do que nas pegue-
no, erroneamente supõem que ao reduzir a humanidade
ao mesmo nas repúblicas, será mais difícil para os candidatos sem méritos uti-
feita igualdade em seus direitos políticos, conseguirão
suas opiniões lizar com êxito artifícios desonestos, que tantas vezes têm dado a
tempo igualar e assemelhar completamente seus bens,
vitória nas eleições; e os sufrágios do povo, sendo mais livres, terão
e seus sentimentos.
maior probabilidade de se concentrarem sobre pessoas que possuam
Uma república — que defino como um governo no qual se
méritos mais atraentes e personalidades mais firmes e propagadoras,
aplica o esquema de representação — abre uma perspectiva diferen-
Devo confessar que neste, como em outros casos, há um meio-
te e promete a cura que estamos buscando. Examinemos os pontos
termo, aquém e além do qual se situam os inconvenientes. Aumen
nos quais ela difere da democracia pura e compreenderemos tanto
tando em demasia o número de eleitores, o representante ficará
a natureza da cura como as vantagens que devem resultar da União.
muito pouco familiarizado com as condições locais e com os interes-
Os dois grandes pontos de diferença entre uma democracia e
ses menos importantes; reduzindo-se demais aquele número, tais
uma república são: primeiro, o exercício do governo, nesta última,
condições e interesses passarão a exercer descabida influência sobre
é delegado a um pequeno número de cidadãos eleitos pelos demais;
o representante, impedindo-o de avaliar e defender os grandes obje-
segundo, são bem maiores o número de seus cidadãos e a área que
tivos nacionais. A Constituição federal apresenta a esse respeito
ela pode abranger.
uma feliz combinação: os interesses maiores e de conjunto são trata
O efeito da primeira diferença é, por um lado, aperfeiçoar e
dos pelo legislativo nacional; os locais e particulares, pelos estaduais.
alargar os pontos de vista da população, filtrando-os através de
Outro ponto de diferença é que um número maior de cida-
um selecionado grupo de cidadãos, cujo saber poderá melhor discer-
dãos e um território mais extenso se ajustam melhor sob um gover-
nir os verdadeiros interesses de seu pais e cujo patriotismo e amor no republicano do que sob um democrático, e é essa circunstância
à justiça dificilmente serão sacrificados por considerações temporá-
268 OS CLASSICOS DA POLÍTICA “O FEDERALISTA”: REMÉDIOS REPUBLICANOS PARA MALES REPUBLICANOS 269

principalmente que torna as combinações facciosas menos temidas todo o corpo da União do que por um de seus membros, do mes-
no primeiro caso do que no segundo.| Quanto menor a sociedade, mo modo que uma praga poderá infeccionar determinados distritos
mais raros provavelmente serão os partidos e interesses distintos; ou regiões, sem atacar todo o Estado.
quanto mais reduzido for o número destes, mais frequentemente Assim, dispomos, no âmbito e na estrutura adequada da União,
se constituirá uma maioria do mesmo partido; e à medida que dimi- de um remédio republicano para as doenças mais incidentes sobre
nuir o número de indivíduos para compor a maioria e o campo den- um governo republicano. E de acordo com o grau de satisfação e
tro do qual ela deve agir, mais facilmente serão elaborados e execu- orgulho que sentirmos por sermos republicanos, será nosso entusias-
tados seus planos de opressão) Alargado esse campo, teremos uma mo em louvar o espírito e apoiar a posição dos federalistas. (p. 77-84)
variedade maior de partidos e interesses, tornando menos provável
a constituição de uma maioria no conjunto que, alegando um moti-
vo comum, usurpe os direitos de outros cidadãos; ou, se tal moti-
vo existe, será mais difícil, para todos que o sentirem, mobilizar 15. Hamilton
suas próprias forças e agir em uníssono. Além de outros obstáculos,
deve-se registrar que, onde houver uma suspeita de propósitos injus-
tos ou desonestos, o relacionamento estará sempre sujeito a descon-
fianças, em proporção ao número daqueles cujo concurso é necessário. Defeitos da confederação
Assim, vê-se claramente que as mesmas vantagens que uma re-
pública apresenta sobre uma democracia, em controlar os efeitos [...]
de facções, são desfrutadas por uma grande república em relação Constitui um exemplo singular dos caprichos da natureza hu-
a uma pequena — e, pois, desfrutada pela União sobre os Estados mana que, depois de todas as advertências que recebemos da expe-
que a compõem. Resultarão tais vantagens da substituição de repre-
riência a este respeito, ainda existam pessoas que se opõem à nova
sentantes cujas opiniões esclarecidas e virtuosos sentimentos os colo-
Constituição por esta se desviar de um princípio que se mostrou ca-
cam acima dos preconceitos locais e das maquinações injustas? Não
duco e que é em si evidentemente incompatível com a idéia de go-
se poderá negar que a representação da União tem mais probabilida-
verno; um princípio que, em resumo, se realmente posto em práti-
des de possuir esses atributos indispensáveis. Não constitui ela uma
ca, substituiria a serena atuação da magistratura pelos agentes vio-
segurança maior — propiciada pelo grande número e variedade de
lentos e sanguinários da prepotência.
partidos — contra a eventualidade de qualquer dos partidos conquis-
Nada há de absurdo ou impraticável na idéia de uma liga ou
tar maioria e oprimir os restantes? Na mesma medida a maior varie-
aliança entre nações independentes, com certas finalidades defini-
dade de partidos existentes dentro da União aumenta esta seguran-
das e precisamente estabelecidas em um tratado regulando todos
ça. Em suma — não se criarão com ela maiores obstáculos ao pla-
os detalhes de tempo, lugar, condições e quantidades, nada deixan-
nejamento e consecução de secretas aspirações de uma maioria in-
justa e interesseira? Aqui, ainda uma vez, o âmbito da União ofere- do para futuras discriminações nem dependendo sua execução da
ce as vantagens mais evidentes. boa-fé das partes. Acordos dessa natureza existem entre todas as na-
A influência de líderes facciosos pode provocar incêndios nos ções civilizadas, sujeitas pelas vicissitudes normais da paz e da guer-
respectivos Estados, mas não será capaz de propagar uma conflagra- ra à observância ou não, conforme ditarem os interesses ou senti-
ção geral entre os demais. Uma seita religiosa pode degenerar em mentos das partes contratantes. Na primeira parte deste século, hou-
facção política em uma parte da Confederação, mas a variedade ve na Europa um entusiasmo epidêmico por esta espécie de acordos,
de seitas dispersas por todo o seu território será de molde a preser- dos quais os políticos da época esperavam com inteira confiança
var os conselhos nacionais contra quaisquer perigos oriundos des- por benefícios que nunca se concretizaram. Com vistas ao estabele-
sa fonte. Uma necessidade violenta de papel-moeda, de abolir dívi- cimento do equilíbrio do poder e à paz naquela parte do mundo, fo-
das, de divisão igual da propriedade ou qualquer outro projeto im- ram esgotados todos os recursos das negociações, constituindo-se
próprio ou pernicioso terá menos probabilidades de ser aceito por alianças triplas e quádruplas; todavia, mal acabavam de se formar,
24 OS CLASSICOS DA POLÍTICA “O FEDERALISTA: REMÉDIOS REPUBEICANOS PARA MALES REPUBLICANOS 2H

eram desfeitas, deixando esta instrutiva mas dolorosa lição à huma- des que a compõem, cada infração das leis equivalerá a um estado
nidade: o quanto é frágil a confiança que se pode depositar em tra- de guerra, e a execução militar torna-se o único instrumento de obe-
tados sem outros fiadores que não sejam os compromissos da boa- diência civil. Tal situação certamente não merece o nome de gover-
fé e que apenas contrapõem considerações gerais de paz e justiça no e nenhum cidadão prudente a escolheria para nela empenhar sua
em face de impulsos de qualquer interesse ou sentimento imediato. felicidade.
Se cada Estado neste país estiver disposto a manter com os demais Houve um tempo em que nos diziam que não ocorreriam vio-
esse tipo de relacionamento e rejeitar o projeto de uma superinten- lações, por parte dos Estados, das normas da autoridade federal;
dência discricionária geral, o esquema resultará realmente pernicio- que um sentimento de interesse comum presidiria a conduta dos res-
so e dará margem a todos os inconvenientes já enumerados, apre pectivos membros e propiciaria um cumprimento integral de todas
sentando, entretanto, o mérito de ser, pelo menos, consistente e pra as exigências constitucionais da União. Esta linguagem, nos dias
ticável. Abandonando todas as opiniões a respeito de um governo atuais, pareceria tão fantástica quanto a que, oriunda das mesmas
confederado, seríamos levados a uma simples aliança ofensiva e de- fontes, fosse hoje por nós ouvida depois de havermos recebido as
fensiva e ficariamos em condições de ser alternadamente amigos e últimas lições do melhor oráculo da sabedoria — a experiência —
inimigos uns dos outros, dependendo de nossas mútuas invejas e ri- revelando, como sempre aconteceu, uma ignorância das verdadeiras
validades, alimentadas pela intriga que as nações estrangeiras não causas que atuam no comportamento humano e desfigurando as ra-
deixariam de nos instilar. zões originais do estabelecimento do poder civil. Afinal, por que fo
Contudo, se não desejarmos ser colocados nessa perigosa si- ram instituídos os governos? Porque as paixões humanas não se
tuação: se ainda formos fiéis ao propósito de um governo nacional conformam com os ditames da razão e da justiça, sem que a tanto
ou — o que é a mesma coisa — de um poder superintendente sob sejam forçadas. Acaso se constatam que grupos de homens agem
a direção de um conselho comum, devemos decidir pela incorpora- com maior retidão ou mais desinteresse do que os indivíduos que
ção em nosso projeto dos ingredientes que podem ser considerados os integram”? O contrário disso foi inferido por todos os observado-
como representando a diferença característica entre uma liga e um res acurados do comportamento da humanidade, e tal inferência
governo; e devemos ainda estender a autoridade da União, de mo se fundamenta em razões óbvias. Em se tratando da reputação, ha
do a abranger as pessoas dos cidadãos — os únicos objetos verda uma influência menos ativa quando as repercussões de uma ação de-
deiros do governo. sonrosa incidem sobre vários membros do grupo do que quando re-
(| Governar implica o poder de baixar leis. É essencial à idéia caem apenas sobre um deles. O espírito de facção, que é capaz de
de uma lei que ela seja respaldada por uma sanção ou, em outras instilar seu veneno nas deliberações de todos os agrupamentos hu-
palavras, uma penalidade ou punição pela desobediência. Se não manos, muitas vezes precipita as pessoas que os integram a praticar
houver nenhuma penalidade associada à desobediência, as resolu- impropriedades e excessos dos quais se envergonhariam se os come-
ções ou ordens que pretendem ter força de lei serão, na realidade, tessem individualmente.
nada mais do que conselhos ou recomendações. Essa penalidade, Além de tudo isso, há na natureza do poder soberano uma in
qualquer que seja, somente pode ser aplicada de duas maneiras: pe- tolerância em relação ao controle, que inclina os que devem exercê-
los tribunais ou ministros da justiça ou pela força militar; pela coer- lo a encarar com desconfiança todas as tentativas externas para res-
ção da magistratura ou pela coerção das armas! tringir ou orientar suas operações! Daí resulta que em cada associa-
A primeira só pode evidentemente incidir sobre indivíduos; a ção política — formada com base no princípio de unir, em torno
outra recairá necessariamente sobre grupos políticos, comunidades de um interesse comum, certo número de soberanias menores — sur-
ou Estados.| É claro que não há processo de um tribunal capaz de girá uma espécie de tendência excêntrica nas órbitas subordinadas
assegurar, em última instância, o cumprimento de uma lei. Podem ou inferiores, através da qual haverá um esforço constante de ca
ser lavradas sentenças contra os que violarem seus deveres, mas tais da uma para fugir do centro comum, Esta tendência não é difícil
sentenças só serão cumpridas à força Em uma associação em que de ser identificada. Ela tem sua origem na sede de poder. O poder
a autoridade geral está confinada a órgãos coletivos das comunida- controlado ou reduzido é quase sempre rival e inimigo daquele
“O FEDERADISTAO: REMÉDIOS RPPUBLICANOS PARA MALES REPUBLICANOS 273
27 OS CLASSICOS DA POLLHCA

poder que o controla ou reduz. Esta proposição simples nos ensina- nais sem qualquer comunicação uns com os outros. Talvez um pro-
rá o quanto é frágil a esperança de que as pessoas investidas da au- jeto assim de organização dos poderes seja na prática menos difícil
toridade de administrar os assuntos de determinados membros de do que parece. Contudo, exigiria algumas concessões e ônus adicio-
uma confederação constantemente estarão prontas, com perfeito nais para ser levado a cabo, admitindo-se, inclusive, certos desvios
bom humor e desapaixonado respeito pelo bem-estar público, a exe- do princípio. Na constituição do judiciário, particularmente, seria
cutar as resoluções ou decretos da autoridade superior. O inverso desaconselhável insistir na observância rigorosa do princípio: pri-
disso resulta da constituição da natureza humana. [...] (p. 105-11) meiro, porque, devendo ser atendidas as qualificações peculiares
de seus membros, a consideração primordial seria que a seleção as-
segurasse a existência de tais qualificações; em segundo lugar, por-
que a vitaliciedade do mandato deve, em pouco tempo, destruir
51. Madison qualquer laço de dependência em relação à autoridade responsável
pela nomeação.
É do mesmo modo evidente que os membros de cada um dos
três ramos do poder devem ser tão pouco dependentes quanto pos-
Freios e contrapesos sível dos demais, relativamente aos respectivos emolumentos. Se o
magistrado executivo ou os juízes não forem independentes do legis-
lativo neste particular, a independência sob qualquer outro aspec-
AO POVO DO ESTADO DE NOVA IORQUE to será meramente nominal.
Todavia, a grande segurança contra uma gradual concentra-
A que expediente, então, deveremos recorrer, a fim de assegu- ção de vários poderes no mesmo ramo do governo consiste em dar
rar na prática a necessária repartição de atribuições entre os diferen- aos que administram cada um deles os necessários meios constitucio-
tes poderes, conforme prescreve a Constituição? A única resposta nais e motivações pessoais para que resistam às intromissões dos ou-
que pode ser dada é que, se todas essas medidas externas se mostra- tros. As medidas para a defesa devem, neste caso como em todos
rem inadequadas, o defeito deve ser corrigido alterando-se a estrutu- os demais, ser compatíveis com as ameaças de ataque. A ambição
ra interna do governo,(de modo que as diferentes partes constituin- deve ser utilizada para neutralizar a ambição. Os interesses pessoais
tes possam, através de suas mútuas relações, ser Os meios de conser- serão associados aos direitos constitucionais. (Talvez seja um refle-
var cada uma em seu devido lugar) Sem pretender apresentar um am- xo da natureza humana que tais expedientes sejam necessários pa-
plo desenvolvimento deste importante tema, arriscarei algumas ob- ra controlar os abusos do governo. Mas afinal, o que é o próprio
servações que talvez a esclareçam mais e nos habilitem a formar governo senão o maior de todos os reflexos da natureza humana?
um juízo mais correto dos princípios e da estrutura do governo ima- Se os homens fossem anjos, não seria necessário haver governo.
ginado pela convenção. Se os homens fossem governados por anjos, dispensar-se-iam os
A fim de lançar os devidos fundamentos para a atuação sepa- controles internos e externos do governo. Ao constituir-se um go-
verno — integrado por homens que terão autoridade sobre outros
rada e distinta dos diferentes poderes do governo — o que, em cer-
homens —, a grande dificuldade está em que se deve, primeiro, ha-
ta medida, é admitido por todos como essencial à preservação da li-
bilitar o governante a controlar o governado e, depois, obrigá-lo a
berdade — é evidente que cada um deles deve ter uma personalida-
de própria e, conseguentemente, ser de tal maneira constituído que controlar-se a si mesmo. A dependência em relação ao povo é, sem
dúvida, o principal controle sobre o governo, mas a experiência
os membros de um tenham a menor ingerência possível na escolha
nos ensinou que há necessidade de precauções suplementares.
dos membros dos outros. Para que este princípio fosse rigorosamen-
Esta política de jogar com interesses opostos e rivais, à falta
te observado, seria necessário que todas as designações para as ma-
de melhores recursos, pode ser identificada ao longo de todo o sistema
gistraturas supremas do executivo, do legislativo e do judiciário ti-
vessem a mesma fonte de autoridade — o povo — através de ca- das relações humanas, tanto públicas como privadas. Ela se evidencia
“O FEDERALIS DA REMÉDIOS RE PUBLICANOS PARA MALES REPUBLICANOS 275
214 OS CLASSICOS DA POLITICA

particularmente na distribuição de poder em todos os escalões su- ou violá-los. O executivo dispõe não apenas das honrarias, mas tam-
bordinados, onde o objetivo constante é dividir e dispor as várias bém da espada da comunidade. O legislativo, além de controlar os
funções de tal modo que uma possa ter um controle sobre outra gastos do tesouro, prescreve as normas que devem reger os direitos
— que o interesse privado de cada indivíduo seja uma sentinela dos e deveres de cada cidadão. O judiciário, porém, não tem a menor in-
fluência sobre a espada nem sobre o tesouro; não participa da força
direitos públicos. Tais artifícios da prudência não podem ser menos
nem da riqueza da sociedade e não toma resoluções de qualquer natu-
necessários na distribuição dos supremos poderes do Estado.
reza./Na verdade, pode-se dizer que não tem FORÇA nem VONTA-
Não é possível, porém, atribuir a cada um dos ramos do poder
DE, limitando-se simplesmente a julgar, dependendo fundamental-
uma capacidade igual de autodefesa. No governo republicano predo-
mente do auxílio do ramo executivo para a eficácia de suas sentenças.
mina necessariamente a autoridade legislativa. A solução para este in-
Esta simples análise do assunto sugere várias conclusões impor
conveniente está em repartir essa autoridade entre diferentes ramos
tantes. Ela prova, incontestavelmente, que o judiciário é, sem compa-
e torná-los — utilizando maneiras diferenciadas de eleição e distintos
ração, o mais fraco dos três poderes; ! que nunca poderá enfrentar
princípios de ação — tão pouco interligados quanto o permitir a na-
com êxito qualquer dos outros dois; e que deve tomar todas as pre-
tureza comum partilhada por suas funções e dependência em relação
cauções possíveis para defender-se dos ataques deles. Prova igualmen-
à sociedade. Talvez sejam até necessárias precauções adicionais con-
te que — embora alguma opressão individual possa, de quando em
tra perigosas usurpações. [Como a importância da autoridade legisla- vez, partir das cortes de justiça — a liberdade geral do povo nunca
tiva conduz a tal repartição, a fraqueza do executivo, por sua vez. será ameaçada por esse lado, isto é, enquanto o judiciário permane
pode exigir que ele seja reforçado. Um direito de veto absoluto so- cer separado tanto do legislativo como do executivo, pois aceito que
bre o legislativo parece, à primeira vista, ser o instrumento natural “não haverá liberdade se o poder de julgar não estiver separado dos
com que o executivo deva ser armado, mas isso talvez não seja nem poderes legislativo e executivo”.” E prova, finalmente, que a liberda-
inteiramente seguro nem unicamente suficiente.; Em situações nor- de nada tem a temer do judiciário isoladamente, mas tem motivos
mais, o veto pode ser exercido sem a necessária firmeza e, nas extra- de sobra para precaver-se contra a união desse poder com qualquer
ordinárias, com abusiva perfídia. Poderá esta imperfeição do veto ab- dos outros dois; que tal união deve dar margem a todos os efeitos
soluto ser corrigida por alguma conexão entre o ramo mais fraco negativos de uma dependência do primeiro em relação aos demais.
do governo e o setor mais fraco do ramo mais forte, através da qual apesar de uma separação nominal e aparente; que, em consequência
este setor possa apoiar os direitos constitucionais do primeiro sem de sua natural fraqueza, o judiciário está continuamente ameaçado
afetar demais os direitos de seu próprio ramo? [...] (p. 3203) de ser dominado, intimidado ou influenciado pelos outros ramos; e
que, como nada pode contribuir mais para sua firmeza e independên-
cia do que a estabilidade nos cargos, esta condição deve ser justamen
te encarada como fator indispensável em sua constituição e, em gran
78. Hamilton de parte, como a cidadela da justiça e da segurança pública,
A independência integral das cortes de justiça é particularmente
essencial em uma Constituição limitada. Ao qualificar uma Constitui-
ção como limitada, quero dizer que ela contém certas restrições especi-
Os juízes como guardiões da Constituição ficas à autoridade legislativa, tais como, por exemplo, não aprovar pro-
jetos de confiscos, leis ex-post-facto e outras similares.| Limitações des-
[...] sa natureza somente poderão ser preservadas na prática através das
Quem analisa atentamente os diferentes ramos do poder perce- cortes de justiça, que têm o dever de declarar nulos todos os atos con
be desde logo que, em um governo em que eles são separados uns trários ao manisfesto espirito da Constituição. Sem isso, todas as restri
dos outros, o judiciário, pela própria natureza de suas funções, se- ções contra os privilégios ou concessões particulares serão inúteis,,
rá sempre o menos perigoso para os direitos políticos previstos na Relativamente à competência das cortes para declarar nulos
Constituição, pois será o de menor capacidade para ofendê-lo» determinados atos do legislativo, porque contrários à Constituição,
276 OS CLÁSSICOS DA POLÍTICA “O FEDERALISTA: REMÉDIOS REPUBLICANOS PARA MALES REPUBLICANOS 27

tem havido certa surpresa, partindo do falso pressuposto de que tal pírito que orientaria meus esforços. Dirigi-me exclusivamente
prática implica uma superioridade do judiciário sobre o legislativo. ao vosso julgamento e evitei cuidadosamente aquelas asperezas
Argumenta-se que a autoridade que pode declarar nulos os atos de tão suscetiveis de desonrar os contendores de todos os partidos
outra deve necessariamente ser superior a esta outra. Uma vez que políticos e que não raro têm sido provocadas pelo discurso&
tal doutrina é muito observada em todas as constituições america- comportamento dos adversários da Constituição/ A acusação
nas, convém uma breve análise de seus fundamentos. de conspiradores contra as liberdades do povo, com que têm si-
Não há posição que se apóie em princípios mais claros que a do indiscriminadamente atingidos os adeptos do projeto, carre-
de'declarar nulo o ato de uma autoridade delegada que seja contrá- ga consigo algo por demais intencional e malicioso, para não
rio ao teor da delegação sob a qual se exerce tal autoridade. Conse- despertar a indignação de todos os que sentem em seu coração
quentemente, não será válido qualquer ato legislativo contrário à o horror à calúnia. As constantes críticas assacadas contra os
Constituição.) Negar tal evidência. corresponde a afirmar que o re- ricos, os bem-nascidos e os ilustres têm sido tais que provocam
presentante é superior ao representado, que o escravo está acima a repulsa de todas as pessoas sensatas. E as injustificáveis omis-
do seu senhor, que os delegados do povo são superiores ao próprio sões e falsas interpretações, praticadas visando a esconder a
povo, que aqueles que agem em razão de delegações de poderes es-
verdade do povo, foram de molde a despertar a reprovação
tão impossibilitados de fazer não apenas o que tais poderes não au-
de todas as pessoas honestas. É bem possível que tais circuns-
torizam, mas sobretudo o que eles proíbem. Se for dito que os con-
tâncias tenham ocasionalmente me feito perder a ponderação
gressistas devem ser os juízes constitucionais de seus próprios pode-
que me propus manter e confesso que não raras vezes houve lu-
res e que a interpretação que vierem a dar de tais poderes será obri-
ta entre as suscetibilidades e a moderação, e se aqueles senti-
gatória para Os outros ramos do governo, a resposta é que esta não
mentos em alguns casos prevaleceram, tenho esperança de que
pode ser a hipótese natural, por não ter apoio em quaisquer dispo-
tais deslizes não foram muito frequentes nem muito graves.
sitivos específicos da Constituição. Por outro lado, não se deve su-
Paremos agora por um instante e perguntemos a nós mes-
por que a Constituição tivesse pretendido habilitar os representan-
mos se, ao longo destes artigos, a Constituição proposta não
tes do povo a sobreporem a própria vontade à de seus constituintes. [...]
foi satisfatoriamente defendida das calúnias que lhe assacaram
[...]
Aceitando, então, que as cortes de justiça devem ser considera- e se não ficou demonstrado que ela é digna da aprovação do
das como baluartes de uma Constituição limitada, opondo-se às usur- povo e necessária à prosperidade e à segurança públical Cada
pações do legislativo, disporemos de um forte argumento em favor pessoa deve responder estas perguntas a si mesma, de acordo
da estabilidade nos cargos judiciais, uma vez que nada contribuirá com o melhor de sua consciência e entendimento, e agir de con-
tanto para a sensação de independência dos juízes — fator essen- formidade com os legítimos e sóbrios ditames de seu julgamen-
cial ao fiel desempenho de suas árduas funções. [...] (p. 464-9) to. Esse é um dever de que ninguém pode ser dispensado, um
dever resultante dos compromissos que constituem a estrutura
da sociedade e que tem de ser cumprido sincera e honestamen-
te. IWenhum motivo particular, nenhum interesse pessoal, ne-:
85. Hamilton nhum orgulho de momento, nenhuma paixão ou preconceito
temporários justificarão para o próprio individuo, para seu pa-
is ou para a posteridade um voto que não seja plenamente cons-
ciente/ Esperemos que ele tenha se precavido contra uma obsti-
Conclusões? nada fidelidade ao partido e refletido que o assunto sobre o
qual vai se manifestar não é um interesse particular da comuni-
Desse modo, meus caros concidadãos, cumpri a tarefa que a dade, mas a própria sobrevivência da nação; e que não esque-
mim mesmo me impus, com o êxito que cabe a vós avaliar. Confio ça que a maioria da América já deu sua sanção ao projeto que
em que, pelo menos, admitireis que não vos enganei quanto ao es- ele agora terá de aprovar ou rejeitar.
278 OS CLASSICOS DA POLITICA
“O FEDERADISTA : REMÉDIOS REPUBLICANOS PARA MATES RTPUBDICANOS 279

Não ocultarei que alimento inteira confiança nos argumen-


57. Madison
tos apresentados em favor do sistema proposto e que não consi-
go perceber qualquer validade nos que o criticaram. Estou convic
to de que tal sistema é o melhor que nossa situação política, cos-
tumes e opinião pública poderiam aceitar, sendo superior a qual- As bases populares da câmara dos deputados
quer outro que as revoluções tenham produzido.
Como houve concessões de parte dos adeptos do projeto,
admitindo não se ter conseguido perfeição absoluta, isso deu AO POVO DO ESTADO DE NOVA IORQUE
motivo a que seus adversários conhecessem um considerável
triunfo. “Como” — dizem elês — ''vamos adotar um documen- A terceira objeção contra a Câmara dos Deputados é que seus
to imperfeito? Por que não emendá-lo e torná-lo correto, antes membros serão recrutados naquela classe de cidadãos que gozam
que seja irrevogavelmente aprovado?” O argumento é plausível, de menos simpatia na massa do povo e são os mais propensos a de-
fender o sacrifício de muitos em proveito de uns poucos.
porém nada mais do que isso. Em primeiro lugar, devo regis-
De todas as criticas apresentadas contra a Constituição fede-
trar que o grau daquelas concessões foi por demais exagerado.
ral, esta é talvez a mais extraordinária. Embora dirigida contra
São mencionadas como se fossem uma admissão de que o pro-
uma pretensa oligarquia, o princípio que ela atinge se situa nos pró-
jeto é radicalmente defeituoso e que, sem substanciais altera
prios fundamentos do regime republicano.
ções, os direitos e interesses da comunidade não poderão ser sa
'O objetivo de qualquer constituição política é — ou deve ser
tisfatoriamente assegurados. Tal declaração — na medida em — antes de tudo escolher como dirigentes as pessoas mais capacita-
que compreendo a intenção dos que fizeram as referidas conces- das para discernir e mais eficientes para assegurar o bem-estar da
sões — é uma completa deturpação de seu sentido. Não ha sociedade; depois, tomar as mais seguras precauções no sentido de
um único adepto do projeto que não reafirme sua opinião de conservá-las eficientes enquanto desfrutarem da confiança pública.
que o sistema, embora possa ser imperfeito em alguns pontos, O processo eletivo de escolher dirigentes é a norma característica
é, no conjunto, não apenas bom, mas o melhor que as idéias do governo republicano. Os meios com que conta esta forma de go-
e as circunstâncias do momento permitiam produzir, prometen- verno para evitar sua degeneração são numerosos e variados. O
do todos os tipos de segurança que um povo pode razoavelmen- mais eficaz consiste na limitação do período dos mandatos, visan-
te desejar. do a manter uma adequada responsabilidade perante o povo.
Registro a seguir que julgo de extrema imprudência prolon- Permitam-me agora perguntar quais os dispositivos na consti-
gar a precária situação de nossos problemas nacionais e expor tuição da Câmara dos Deputados que violam os principios do regi-
a União aos riscos de sucessivos experimentos, na quimérica me republicano, ou favorecem a ascensão de uns poucos em detri-
perseguição de um projeto perfeito. Jamais espero um trabalho mento de muitos? Permitam-me perguntar se, pelo contrário, cada
perfeito de um homem imperfeito. O resultado das deliberações dispositivo não está estritamente conforme com aqueles princípios
e escrupulosamente imparcial relativamente aos direitos e preten-
de órgãos colegiados deve necessariamente ser um aglomerado
sões de todas as classes e espécies de cidadãos?
tanto de erros e preconceitos como de bom-senso e prudência
Quais serão os eleitores dos deputados federais? Não os ricos
de parte dos indivíduos que os integram. Os pactos que têm
mais do que os pobres, os letrados mais do que os ignorantes; não
de ligar treze Estados diferentes por um laço comum de amiza-
os orgulhosos herdeiros de nomes famosos mais do que os humil-
de e de união devem necessariamente resultar de concessões mu-
des filhos de obscuras e desafortunadas famílias. O eleitorado será
tuas relativas a muitos interesses e propensões diferentes. Co constituído pela grande massa do povo dos Estados Unidos, o mes-
mo, de tais ingredientes, poderá resultar uma obra perfeita? mo que exercerá o direito, em cada Estado, de eleger o órgão cor
[...] (p. 520-4) respondente do legislativo estadual. [...]
“O FEDERADISTA : REMEDIOS RE PUBLICANOS PARA MALES REPUBLICANOS 281
280 OS CLASSICOS DA POLITICA

Todas estas garantias, porém, resultariam insuficientes sem ponto. A única diferença perceptível neste caso é que cada deputa-
o freio de eleições fregientes. Assim — é o nosso quarto argumen do federal será eleito por cinco ou seis mil cidadãos, enquanto
to -- a Câmara dos Deputados e constituída de forma a manter que, para a eleição de um estadual, bastarão algumas centenas de
em seus membros uma constante lembrança da sua dependência votos. Pretender-se-á que esta diferença seja suficiente para justifi-
em relação ao povo.| Antes que o exercício do poder possa apagar car um acréscimo nos níveis estaduais ou uma restrição no federal?
os sentimentos impressos em seus espiritos pela maneira como fo- Se a objeção chegou a este ponto, devemos examiná-la mais deti-
ram escolhidos, serão compelidos a prever o momento em que seu damente.
poder terminar, quando o mandato tiver de ser renovado e todos Ela está apoiada pelo bom-senso? Não se poderá responder
deverão descer para o nível de onde foram elevados e no qual per afirmativamente sem antes admitir que cinco ou seis mil cidadãos
manecerão para sempre, a menos que, por terem honrado a confian são menos capazes para escolherem um representante digno — ou
ça neles depositada, hajam conquistado o direito de vê-la renova mais passíveis de serem corrompidos por um indigno — do que qui-
da. [...] nhentos ou seiscentos. Pelo contrário, o bom-senso nos assegura
Tais serão as relações entre a Câmara de Deputados e os elei- que um número maior de eleitores tem mais probabilidade de sele-
tores. O dever, a gratidão, O interesse e mesmo a ambição consti cionar o representante correto, sem se deixar influir pelas intrigas
tuem os elos da corrente de fidelidade e harmonia com a grande dos ambiciosos nem pelo suborno dos ricos.
massa do povo. É possível que tudo isso não seja suficiente para Podem ser aceitas as consegiiências daquela tese? Se afirmar
controlar os caprichos e a maldade dos homens. Resta saber se mos que bastam quinhentos ou seiscentos cidadãos para, em con
há algo mais do que o governo possa admitir e a prudência huma junto, fazerem valer o direito de voto, não estaremos privando o
na conceber. Não são estes os meios genuinos e característicos pe- povo de escolher diretamente seus servidores públicos em todas
los quais o regime republicano assegura a liberdade e o bem-estar as instâncias em que a administração do governo não exigir mais
do povo? Não são eles idênticos àqueles em que o governo de ca- do que um representante para aquele número de cidadãos? [...]
da Estado na União sc apóia para a consecução daqueles importan (p. 350-4)
tes objetivos? Qual então o sentido das objeções de que este docu
mento tem sido alvo? O que deveremos dizer aos homens que de
monstram o mais ardente zelo pelo regime republicano, mas atre
vidamente contestam seu princípio fundamental? Que pretendem 62. Madison
ser os intransigentes defensores do direito e da capacidade do po-
vo de escolher seus próprios dirigentes, mas afirmam que apoiarão
apenas aqueles que clara e infalivelmente trairem a confiança ne
A natureza e a influência estabilizadora do congresso
les depositada?
Se a objeção fosse lida por alguém que desconhecesse a ma
neira prescrita pela Constituição para a escolha dos representantes, [...]
esse alguém poderia supor que nada menos do que uma injusta HH - A igualdade de representação no Senado é outro ponto
qualificação de propriedade fora incorporada aos direitos de sufrá- que — evidentemente resultando do compromisso entre pretensões
gio; ou que a possibilidade de ser eleito passara a ser privativa das conflitantes dos Estados grandes e dos pequenos — dispensa maio-
pessoas ricas ou pertencentes às famílias de renome; ou ainda que res discussões. Se é verdade que, em um povo integralmente incor-
porado em uma nação, cada distrito deve ter uma participação pro-
pelo menos as normas prescritas pelas constituições estaduais fo
ram, de uma maneira ou de outra, grosseiramente alteradas. Vi porcional no governo e que, tratando-se de Estados independentes
e soberanos, unidos em uma mesma liga, deve existir uma participa-
mos que, quanto aos dois primeiros pontos, a suposição não tem
ção igual nos conselhos comuns, por mais desiguais que sejam as
razão de ser; na verdade, o mesmo acontece relativamente ao último
282 OS CLASSICOS DA POLÍTICA
“O FEDER DISTA: REMÉDIOS REPUBLICANOS PARA MALES REPUBLICANOS 283

partes — não parece desarrazoado que em uma república comple- Poderiam ser citados inúmeros exemplos de tais atitudes, tanto nos
xa, com características tanto de natureza nacional como federal, o Estados Unidos como na história de outras nações. Todavia, uma
governo deva apoiar-se em uma combinação dos princípios de repre afirmativa que não for contraditada não necessita ser provada. Tu
sentação proporcional e igual. Seria, porém, supérfluo julgar, por do o que precisa ser registrado é que um órgão destinado a corrigir
padrões teóricos, uma parte da Constituição que é reconhecida por aquele mal deve logicamente estar isento dele e, consequentemente,
todos como sendo resultante não da teoria, mas “de um espirito ser menos numeroso e, além disso, possuir grande firmeza — o que
de harmonia, de deferências e concessões mútuas que a peculiarida- exige que sua autoridade seja mantida através de um exercício de
de de nossa situação política tornou indispensável”. Um governo- considerável duração.
geral, dispondo de poderes condizentes com seus objetivos, é exigi Terceiro — Outro defeito a ser corrigido por um senado de-
do pelo sufrágio e, ainda mais insistentemente, pela situação politi corre da falta dos devidos conhecimentos sobre os princípios c obje-
ca da América; se, porém, estiver muito afinado com os desejos
tivos da legislação! Não é possível que uma assembléia de homens
dos maiores Estados, provavelmente não terá o apoio dos menores. recrutados em sua maioria nas atividades de natureza privada, elei-
Assim, a única opção para aqueles está entre o governo proposto tos por um periodo muito curto e não motivados para devotarem
e outro ainda mais sujeito a objeções. Ante esta alternativa, o con- seus intervalos no exercício das funções públicas ao estudo das leis,
selho da prudência deve ser adotar o mal menor; ao invés de acei
dos problemas e dos justos interesses de seu pais, seja capaz, isola-
tar uma infrutifera antecipação de possíveis malefícios, será preferi damente, de evitar uma enorme quantidade de erros no exercício
vel considerar as vantajosas consequências que talvez compensem do mandato legislativo. Pode-se afirmar, com a maior segurança,
o sacrifício. [...] que uma parcela não desprezível das atuais dificuldades da Ameéri-
Primeiro — Constitui incidente desafortunado para um gover- ca deve ser imputada aos erros de nossos governos e que tais erros
no republicano — embora em grau menor que para outros gover- são devidos mais às cabeças do que aos corações da maioria de
nos — que os dirigentes possam esquecer suas obrigações com os seus autores. O que são, realmente, todas essas leis de revogação,
respectivos constituintes e não se mostrem à altura da importante explanação e correção que inundam e complicam nossos arquivos,
delegação que receberam. Sob este aspecto, um senado — segundo senão provas irrefutáveis da deficiência de conhecimentos? Senão
ramo da assembléia legislativa, distinto do primeiro e dividindo com outras tantas impugnações feitas em cada sessão às resoluções toma-
ele o poder — deve em todos os casos ser um salutar controlador das na sessão anterior, e outras tantas advertências ao povo sobre
do governo.' Ele dobra a proteção do povo, por exigir a concorrên- as vantagens que se podem esperar de um senado bem constituido?
cia de dois órgãos distintos em qualquer esquema visando à usurpa- Um bom governo pressupõe duas condições: primeiro, [fideli-
ção ou à deslealdade, quando, não fora isso, a ambição ou a cor- dade a seu objetivo, que é a felicidade do povo; segundo, um co-
rupção de um deles seria suficiente.) Esta é uma precaução baseada nhecimento dos meios pelos quais o objetivo pode ser melhor atin-
em princípios tão claros e agora tão bem compreendidos nos Esta gido.!Alguns governos são deficientes em ambas estas qualidades e
dos Unidos, que seria mais do que supérfluo referi-los. Bastará re a maioria, na primeira. Não tenho dúvidas em afirmar que nos go-
gistrar que — como a improbabilidade de conluios ameaçadores se- vernos americanos tem sido dedicada muito pouca atenção à uúlti-
rá proporcional às dessemelhanças da indole dos dois órgãos — de- ma. A Constituição federal evita este erro e — o que merece parti-
ve ser de boa politica distinguir um do outro, pelos detalhes consis- cular destaque — acentua a importância do objetivo de maneira tal
tentes com a devida harmonia em todas as medidas adequadas e que reafirma a segurança da fidelidade em sua consecução.
com os genuínos princípios do regime republicano. Quarto — A mutabilidade nos conselhos públicos, decorren-
Segundo — A necessidade de um senado é não menos indica te de uma rápida sucessão de novos membros, evidencia de manci-
da pela tendência de todas as assembléias únicas e numerosas em ce ra muito acentuada — por mais qualificados que eles sejam — a ne-
der aos impulsos de súbitas e violentas paixões e ser levadas por li- cessidade de alguma instituição estável do governo. Em cada nova
deres facciosos a tomarem resoluções intempestivas e perniciosas. eleição estadual é substituída a metade dos representantes. Tal subs-
284 OS CLASSICOS DA POLÍTICA “O FEDERALISTA": REMÉDIOS REPUBLICANOS PARA MALES REPUBLICANOS 285

tituição de pessoas acarreta mudanças de opiniões e estas, por sua dade tão pouco influenciada pelos preconceitos ou corrompida pe-
vez, novas alterações na legislação. Ora, tais alterações, se freguen- la lisonja, como é esta a quem me dirijo, não hesito em acrescentar
tes, são inconsistentes com as regras da prudência e com as perspec que tal instituição pode ser algumas vezes necessária à defesa do po-
tivas de êxito. A observação é comprovada na vida privada e se jus- vo contra ocasionais erros e enganos. Assim como o senso pondera-
tifica com importância ainda maior no plano nacional. [...] do e imparcial da comunidade deve, em todos os governos, por fim
Os efeitos internos de uma política inconstante são ainda mais prevalecer — e realmente prevalece —, também há determinadas
calamitosos. Ela envenena os benefícios da própria liberdade. O ocasiões nos assuntos públicos em que o povo, estimulado por algu-
povo não terá qualquer proveito do fato de as leis serem elabora- é ma paixão anormal ou uma vantagem ilícita, ou ainda iludido por
das por homens de sua própria escolha, se tais leis forem tão volu 4 embustes ardilosos de pessoas interessadas, possa clamar por medi-
mosas que não possam ser lidas e tão incoerentes que não possam
ser entendidas; se são revogadas ou revistas antes de sua promulga-
t das que, mais tarde, ele será o primeiro a lamentar e condenar. Nes-
ses momentos críticos, quão salutar será a interferência de um gru-
ção, ou se sofrem tantas alterações que ninguém é capaz de imagi- po de cidadãos moderados e respeitáveis, a fim de deter a orienta-
nar como será amanhã a lei hoje em vigor. Define-se a lei como ção errada e evitar o golpe preparado pelo povo contra si mesmo,
uma norma de ação, mas como pode ser norma o que é mal conhe- até que a razão, a justiça e a verdade retomem sua autoridade so-
cido e, sobretudo, inconstante? bre o espírito público! De quantos sofrimentos amargos o povo de
1 Outro efeito da instabilidade pública é a absurda vantagem que Atenas não se teria livrado se seus governos tivessem providencia-
ela permite ao pequeno grupo de espertos, audazes e endinheirados do uma salvaguarda contra a tirania de suas próprias paixões? As
sobre a laboriosa e desinformada” massa do povo.| Cada novo dispo- manifestações populares teriam então evitado a indelével acusação
sitivo concernente ao comércio ou à receita, ou que de alguma ma- de haverem dado, para os mesmos cidadãos, num dia a cicuta e es-
neira afete o valor das diferentes espécies de bens, apresenta um no- tátuas no outro.
vo benefício para aqueles que acompanham a alteração e podem pre- Talvez se alegue que uma população espalhada sobre uma ex-
mm

ver suas consegiiências — um benefício não criado por eles, mas pe- tensa região não pode ficar sujeita — como acontece com os amon-
lo trabalho e prudência do grande conjunto de seus concidadãos. Es toados habitantes de um pequeno distrito — à infecção de violentas
ta é a situação que permite afirmar, com alguma verdade, que as leis paixões ou ao perigo de associar-se para obter medidas injustas. Es-
são feitas para uns poucos, não para a maioria. (p. 377-81) tou longe de negar que este é um detalhe de particular importância.
Pelo contrário, procurei, em artigo anterior, demonstrar que tal dis-
tinção constitui uma das principais virtudes de uma república confe-
derada. Ao mesmo tempo, esta vantagem não deve ser considera-
63. Madison da como dispensando o recurso a precauções suplementares. Pode-
se até observar que a mesma situação resultante da extensão territo-
rial, que livrou o povo da América de alguns perigos incidentes so-
bre as repúblicas pequenas, tende a expô-lo aos inconvenientes de
A necessidade de um senado
permanecer por mais tempo sob a influência daqueles embustes que
o engenho de ambiciosos poderá incutir no seio da massa.
De pouco servirá, em abono destas considerações, lembrar
Até aqui tenho considerado as circunstâncias que indicam a
que a história nos informa que nenhuma república sem senado te-
necessidade de um senado bem estruturado, apenas na medida em
ve vida longa. Esparta, Roma e Cartago são realmente os únicos
que elas dizem respeito aos representantes do povo. Para uma socie-
Estados que satisfazem tal condição. Nas duas primeiras houve sem-
pre senado; o da última é menos conhecido. É provável, pelas pro-
“uniformed, no original = uniformizada, padronizada. Acredito que possa ser erro
de revisão pois ““uninformed" parece fazer mais sentido. (N.T.) vas circunstanciais disponíveis, que este não fosse muito diferente
“O FLDERATISTAS: REMÉDIOS RI PUBLICANOS PAR A NIALES REPUBLICANOS 287
286 OS CLASSICOS DA POLLHCA

dos outros dois. É pelo menos certo que possuía determinadas qua- Notas
lidades que fizeram dele uma âncora contra flutuações populares;
e que um pequeno conselho, que tinha seus membros escolhidos pe-
los senadores entre seus pares, era designado não apenas em cará- "O famoso Montesquieu escreveu, a respeito deles: *'Dos três poderes aci
ter vitalício, mas para o preenchimento de vagas ocorridas. Estes ma mencionados, o judiciário é quase nada”. (Spirit oflaws, v. I, p. 186.)
exemplos — embora não dignos de imitação, por contrariarem a in- * Idem, ibidem, p. 181.
dole da América — constituem, quando comparados com a efême-
ra e turbulenta existência de outras antigas repúblicas, provas mui-
to Instrutivas da necessidade de alguma instituição capaz de harmo
nizar a estabilidade com a liberdade. Não ignoro as circunstâncias
que distinguem o americano de outros governos populares, antigos
e modernos, exigindo extrema prudência na comparação entre eles.
Todavia, depois de levar na devida conta esta consideração, pode-
se afirmar que há muitos pontos de similitude, fazendo com que
aqueles exemplos mereçam a nossa atenção. Muitas das falhas que,
como vimos, só podem ser corrigidas pela instituição senatorial, são
comuns em numerosas assembléias eleitas pelo povo e no próprio
povo. Há ainda outras, peculiares aquelas assembléias que exigem
o controle da referida instituição.|O povo nunca tem possibilidades
de revelar seus interesses, mas talvez possa fazê-lo através de seus
representantes; assim, o perigo é evidentemente maior quando to-
da a autoridade do legislativo está concentrada nas mãos de um gru-
po de homens, do que se for necessária a concordância de órgãos
separados e dessemelhantes para aprovação de cada ato público!
A diferença mais acentuada entre a república americanae as
outras está no princípio da representação, que constitui o eixo em
torno do qual aquela se move e que, segundo se supõe, era desco-
nhecido por estas ou, pelo menos, pelas mais antigas entre elas. A
maneira como foi citada esta diferença, nos argumentos contidos
nos artigos anteriores, demonstra que não estou propenso a negar
sua existência nem a subestimar sua importância. Sinto-me, portan-
to, mais à vontade para observar que a atitude concernente aos an-
tigos governos, no caso da representação, não é de forma alguma
verdadeira quanto à amplitude que lhe atribuem. Sem entrar em in-
dagações que não cabem aqui, citarei apenas alguns fatos em abo-
no de minha afirmativa.
Nas mais puras democracias da Grécia, muitas das funções
executivas eram exercidas não diretamente pelo próprio povo, mas
por delegados por ele eleitos, que representavam em sua competên-
cia executiva. (p. 382-6)
7
Marx:
política e revolução
Francisco C. Weffort

História General del Trat


m 1852, Marx escreveu ao seu amigo e editor Joseph Weydeme-
yer, cumprimentando-o pelo nascimento de um filho: “Magnií-
fico momento para vir ao mundo! Quando se possa ir em sete dias
de Londres a Calcutá, tu e eu já estaremos decapitados ou dando
urtigas. A Austrália, a Califórnia e o Oceano Pacífico! Os novos
cidadãos do universo não conseguirão compreender quão pequeno
era o nosso mundo”.! Há quem goste de se perguntar o quanto
Marx, filho de um advogado jude (crisianizado) e de uma família
de rabinos, teria guardado da tradição E da religião judaicas. Séria
mais interessante, e talvez mais fiel ao seu pensamento, perguntar
o quanto terá permanecido nele das condições históricas, isto é, das
condições materiais, bem como da atmosfera ideológica e do cená-
rio político da sua época.
Marx nasceu em 1818acompanhou
e de perto hoa parte dos
grandes acontecimentos do século XIX. Ninguém pintou melhor

e do proletariado. E também o do surgimento do capitalismo indus-


trial e de consolidação das nações e dos Estados modernos. Nin-
guém percebeu tão bem o quanto o dinamismo modernizador do
capitalismo — analisado em O manifesto comunista e, especial-

Prim utao bço .


MARX: POLÍTICA E REVOLUÇÃO 229
228 OS CLÁSSICOS DA POLÍTICA
- YRIVCIRAL TERA
14
mente, em O capital — haveria de apequenar os seus centros de ori- Do direito O roteiro do pensamento de Marx está explícito
gem e, sobretudo, a sua época de origem. Hoje, pode-se ir de Lon- à economia no célebre “Prefácio” de Contribuição à crítica
dres a Calcutá em apenas um dia. A Califórnia e a Austrália já não da economia política, de 1859. Marx começou,
e de
parecem tão distantes a quem viva em Londres, como Marx durante nos anos de 1841-1843, pelos estudos de direito, de filosofia
de uma revisão crítica de Hegel (Cri
a maior parte de sua vida. Vistas de hoje, muitas das conquistas história, buscando o caminho
do século XIX se apequenam diante das realizações do capitalismo tica da filosofia do Estado de Hegel, Introdução à crítica da filoso-
(e do socialismo) que se acumularam ao longo do século XX. Algu- fia do direito e A questão judaica). Destes primeiros estudos, pas-
mas até mesmo se apagam à sombra das grandes conquistas recen- sou, logo a seguir, ao que ele chama o “transe difícil” de opinar,
sobre
por força de suas atividades jornalísticas na Gazeta Renana,
tes da modernidade. A Sagrada -
“os chamados interesses materiais””. São deste período
.Qual terá sido o “pequeno mundo” de Marx? Sobre a Alema- em
Família, de 1844, e 4 ideologia alemã, de 1845, ambas escritas
nha de inícios do século passado, diz Franz Mehring: ''Berlim não os
colaboração com Engels. Vêm logo a seguir, esboçando resultad
da
era, naquela época, mais do que uma corte e vila militar, cuja popu- da elaboração de Marx sobre os temas da economia, A miséria
lação pequeno-burguesa se vingava com murmúrios maldosos e 7, e O manifest o comunis ta, de 1847. Estas
filosofia, de 1846-184

t
mesquinhos do servilismo covarde que testemunhava em público obras, de um Marx que ainda não chegara aos trinta anos, anteci-
às carruagens e cortejos palacianos”'.? Nesta passagem, Mehring pam o que virá a ser a preocupação fundamental da sua maturi-
se refere aos anos 30, quando Marx era ainda um menino, e o pen- a
dade: análi e a crítica da economia capitalista, em especial na.
se
-
samento alemão estava sob a influência dominante de Hegel. Fala sua obra máxima, O capital, de 1867.
de uma Alemanha tradicional em que as Dietas (parlamentos) pro- "= Dispersos na trajetória deste pensado r infatigá vel, estão ainda
vinciais — corporativas em sua composição, metade dos mandatos diversos estudos históricos, em particular O 18 Brumário de Luis
clás-
para a grande propriedade senhorial, a terça parte para a proprie- Bonaparte, de 1852, e A guerra civil na França, de 1871, dois
ntes fontes de
dade urbana e a sexta parte para a propriedade camponesa — eram sicos da historiografia que se constituem em importa
,
fictícias como representação do povo. Mehring e os historiadores reflexão para a teoria política revolucionária. E que não se esqueça
numero -
em geral, a começar pelo próprio Marx, descrevem uma Alemanha nesta relação obrigatoriamente sumária, uma referência aos
nte
que teimava em viver no passado, a despeito da influência das novas sos artigos de combate e comentários de imprensa, parte importa
grande pensado r (que foi também um jornalis ta
idéias vindas de Paris. E, sobretudo, a despeito das guerras napoleô- do perfil de um
a elabora ção das idéias não pode se sepa-
profissional), e para o qual
nicas, que levaram algumas das novas instituições criadas pela Revo- tam-
rar das exigências da militância política. Além de O manifesto,
lução Francesa para toda a Europa. Crítica do progra ma de Gotha,
bém Salário, preço e lucro, de 1865, e
- Mesmo na França, onde ainda não haviam adormecido as bra-. de
de 1875, podem ser tomadas como exemplos típicos de obras
sas da Grande Revolução de 1789, o passado conservava muito da pensamento nascidas das exigências da militância.
sua força. Embora os movimentos socialistas franceses estivessem O roteiro que vai do direito e da filosofia à economia pode
e como
adiantados em relação aos alemães, o partido democrático-socialista — ser entendido também como uma chave do método de Marx
política.'
estava ainda na fase de reclamar o sufrágio universal, ao que consta um critério para localizarmos o sentido que ele atribui à
r que, +
com grande repercussão no proletariado. * No país mais avançado A propósito, não deixa de ser paradoxal que um pensado
criticado
a Inglaterra, a luta pelos direitos de participação pol.
“do mundo, em sua vida, deu tanta atenção à política possa ter sido
seus detrato res, como um mero epife- '
tica dos trabalhadores cabia então ao movimento “cartista”. * Este por tratá-la, ao que supõem
das condiçõ es materia is que seriam dadas -
cenário de um movimento operário ainda em seus primórdios está nômeno, simples reflexo
a Weydem eyer, ele oferece, a res-/
descrito em várias partes da obra de Marx, especialmente em O pela economia. Em outra carta
ente
manifesto comunista e O capital. peito, uma indicação valiosa. De modo que parecerá certam
230 OS CLÁSSICOS DA POLÍTICA MARX: POLÍTICA E REVOLUÇÃO 231

direta com a totali-


surpreendente a muitos dos que mantêm sobre Marx as impressões
(todo problema cotidiano particular em ligação
deixadas por alguns de seus seguidores, ele descartar o mérito da ( dade histórico-social;» consid erá-las como momentos da emancipa-
descoberta da existência das classes e da luta de classes, coisa que 6
UU ção do proletariado”.
ou quase tudo,
“alguns economistas (e historiadores) burgueses” já teriam feito. O marxismo é uma teoria polêmica, onde tudo,
controvérsia. Parece claro, porém, que, pelo
é passível de alguma
e ao clima de sua
menos no que diz respeito às expectativas de Marx
( O que eu trouxe de novo toi demonstrar: 1) que a existência das clas-
| ses só vai unida a determinadas fases históricas de desenvolvimento ser mais acertadas. ?
y 4 da produção; 2) que a luta de classes conduz, necessariamente, à época, estas anotações de Lukács não poderiam
cheirava a revolu-
Ao ditadura do proletariado; 3) que esta ditadura, em si mesma, não é O século XIX, em especial a sua primeira metade,
uma guerra mun-
| mais do que o trânsito para a abolição de todas as classes e para ção. Em 1848, Marx esperava, para o ano seguinte,
" uma sociedade sem classes...º insurr eição que consi derav a inevitável
dial como resultado de uma
Diz Mehri ng que, no transcurso
por parte da classe operária inglesa.
É fácil perceber que, pelo menos nos pontos 2 e 3, ele está falando revol ução imedia ta decaem
de 1850, as esperanças de Marx em uma
“Uma nova revolu-
visivelmente. Mas a calmaria lhe parece ilusória:
diretamente da política.
Marx entendia O capital como um “guia para a ação”. O crise. Mas tanto
ção não poderá explodir até que estale uma nova
lugar de relevo ocupado em seu pensamento pela política é enfati- o os pagam entos
uma quanto outra são inevitáveis”. 8 Em 1857, quand
zado por uma de suas famosas teses sobre Feuerbach: “Até aqui qual escrev ia naque les anos, O New York
do jornal americano para O
os filósofos apenas interpretaram o mundo de diferentes maneiras; a atrasa r € OS sinais da crise internacio-
Daily Tribune, começaram
trata-se agora de transformá-lo”. Não há de ser irrelevante para a escrev e à Engels : “Apes ar da
nal começaram a chegar até sua casa,
consideração que Marx haveria de dar à política o fato de que, no tão bem, desde 1849,
crise financeira que atravesso, nunca me senti
roteiro da formação do seu pensamento, não é apenas a crítica do com um ânimo político
como agora”. Ele escrevia, evidentemente,
direito e da filosofia de Hegel que antecede a sua “'crítica da econo- com as seguintes pala-
ao qual Engels corresponde completamente
mia política”. Antes da crítica da economia, reconheça-se o lugar : York [...], [eu] me sinto
vras: “Desde que começou a dança em Nova
que ele reserva à idéia de revolução. Momento de ruptura global, .º cs
da sociedade e do Estado, a revolução aparecia, para Marx, no hori-
enormemente bem em meio desta hecatombe geral”
normal, mais ainda essencial, em um
Pode-se tomar como
zonte mais imediato do seu tempo. ção. Nada portanto
revolucionário a vontade de participar da revolu
voráveis, ele é tentado
de extraordinário se, em circunstâncias desfa
, é que, mais do que
a vê-la onde ela não está. A verdade, porém
Europa revolucionária, ainda quente
Atualidade A noção de uma “proximidade da revolução”, desejos, Marx viveu em uma
guerras napoleônicas.
da revolução de uma “atualidade universal da revolução”, das memórias da Revolução Francesa e das
uções de 1830 e de
constituiria, segundo Lukács, “*o núcleo da dou- Além disso, ele foi contemporâneo das revol
para mencionar ape-
trina marxista”. A reflexão do filósofo húngaro toma como referên- 1848, e da Comuna de Paris, em 1871 — isso
s. Acom panh o aqui a perio-
cia inicial o pensamento de Lenin, mas nos reconduz ao ponto cen- nas os acontecimentos mais importante
dução de sua magistral
dização feita por Eric Hobsbawm na intro
tral da teoria política em Marx. “A atualidade da revolução [...].
esta é a idéia fundamental de Lenin e também o ponto decisivo que História do marxismo:
o une a Marx.” Na verdade, não seria apenas uma noção, um con- cide com a primeira grande
1 — o período anterior a 1848-1850 “coin
capitalismo industrial [anos
ceito ou uma teoria abstrata, mas o sentido real de toda uma época crise de desenvolvimento do primeiro
s países é ao mesmo tempo crise de tran-
histórica. Seria o “fundamento objetivo de todo o período € ao 1830 e 1840], que em algun
para O capit alism o indust rial, coinci de também com a crise
mesmo tempo [...] a chave para a sua compreensão”. E mais sição
ápice em 1848”. .
revolucionária que tem seu
adiante: “A atualidade da revolução indica a nota dominante de -1883 . É o period o clássi co do desenvolvimento capita-
2 — “1850-1875
toda uma época. [...] A atualidade da revolução significa [...] tratar de um movimento operário no
lista no século XIX [...]; o nascimento
MARX: POLÍTICA E REVOLUÇÃO 233

2322 OS CLÁSSICOS DA POLÍTICA


do
a respeito, pelo ângulo da análise do comércio exterior, o tema
de uma
Estado não poderia deixar de ser também a oportunidade
continente europeu (a | Internacional); [...] a Comuna de Paris, simulta-
neamente a última das revoluções jacobinas e a primeira revolução
proletária. Esse período coincide com a maturação do pensamento nova passagem pelo campo da teoria política.
É uma constante no marxismo à preocupação com date SeEso
de Marx [...]'.1º
as classes ea política. É parte obrigatória de
entre a economia,
Como o século XX para muitos países da Ásia, da América Latina
uma lógica empenhada em descobrir no movimento do real as leis
e da África, o século XIX foi, na Europa, um século de revoluções. a a sua
do seu processo de transformação. Eis como Marx apresent
Algumas destas revoluções (ou tentativas de revoluções, em certos mistific a-
dialética, que ele chama de racional, contra a “dialética
casos) se prolongam até as primeiras décadas do século XX. O caso
da” de Hegel:
mais notável é o da Revolução Russa.
cólera e o
Se a crise de 1857 não trouxe uma revolução, como Marx e Reduzida a sua forma racional, [a dialética] provoca a
da burguesi a e de seus porta-vo zes doutrinár ios, porque no
Engels esperavam em sua troca de cartas, encontramos entre as açoite
daquilo que existe ela abriga
entendimento e na explicação positiva
suas consequências algumas mudanças políticas fundamentais na o entendimento de sua negação, de sua morte inelutável;
também
as formas
ordem européia: a unificação da Itália e da Alemanha, o desmoro- porque crítica e revolucionária por essência, enfoca todas
namento do império francês e a decadência do império austro-hún- pleno movimen to, sem omitir, portanto, o que tem de pere-
atuais em
garo. E entre estes impressionantes acontecimentos o importante cível e sem deixar-se intimidar por nada. !2
episódio da Comuna de Paris. Nas unificações da Alemanha e da forma
“Crítica e revolucionária”, esta seria a “dialética em sua
Itália, eram ainda as revoluções — nestes casos, porém, “'revolu- o, portanto , vai além das manifes tações de
racional”. A revoluçã
ções pelo alto” — que mudavam rapidamente todo o cenário de onários. Ela está inscrita na história real e, por
vontade dos revoluci
duas velhas sociedades européias. E do bojo das revoluções, as do
isso, está também na lógica (dialética) que a desvenda.
século XIX quase todas revoluções da burguesia, e das demais trans- a
É famosa a este respeito a descrição de O manisfesto sobre
formações que a burguesia impunha ao velho mundo, surgia o pro- destruti va e criadora , da burguesi a.
expansão, ao mesmo tempo
letariado. sobre
Tão famosa, aliás, quanto as suas anotações, no mesmo texto,
O compromisso de Marx com a revolução é, porém, algo revoluci onárias do proletar iado. A
a emergência e as perspectivas
mais do que a atitude de um militante revolucionário. Este compro- condiçã o de revoluci onar incessan te-
burguesia só pode existir sob a
misso está no miolo de sua teoria. Que outro significado poderia as rela-
mente os instrumentos de produção e, por consegiiência,
ter a sua afirmação sobre o caráter crítico e revolucionário da dialé- as relações sociais.” Deste
ções de produção, e com isso todas
tica? Assim, se é verdade que a teoria política de Marx não se entende é, nos marcos da sociedad e
modo, descrever uma classe social
sem sua “crítica da economia política””, também é verdade que não e moderna , descreve r a
moderna ou da transição para a sociedad
se entende a sua teoria sobre as contradições econômicas do sistema e criar outra. Descrev er
sua capacidade de derrubar uma ordem
capitalista sem uma noção a respeito da revolução que estas contra- No
uma classe é confrontá-la com a sua “tarefa” revolucionária.
dições estariam preparando. A teoria da revolução é bem mais do o destruti va e cria-
caso da burguesia, esta capacidade de expansã
que um fruto dos entusiasmos do jovem Marx.(A lógica da revolu- destruição.
dora acaba por estabelecer as condições de sua própria
ção está embutida na própria lógica das contradições do sistema coveiros ”, ou
A burguesia acaba por “produzir os seus próprios
capitalista.) E é isso, precisamente, que permite a Marx falar de |
) seja, o proletariado. º
uma unidade da teoria e da prática. Ou, como diz ainda Lukács: como a capacidade revolucionária da burguesia, em
Assim
de
relação ao passado feudal, está inscrita em seu próprio modo
“O materialismo histórico enquanto expressão teórica da luta pela
emancipação do proletariado só poderia ser apreendido e formu- onária que
existir como classe, também a negatividade revoluci
lado teoricamente no instante histórico em que ele já havia sido modo
“Marx atribui ao proletariado estaria inscrita em seu próprio
posto na ordem do dia da história em sua atualidade prática”. !! de ser como classe: “As condições de existência da velha
sociedade
Não por acaso Marx havia previsto, quando iniciou O capital, vol- do proleta-
(burguesa) estão já abolidas nas condições de existência
tar ao tema do Estado. Embora definido, nas anotações que deixou
MARX: POLÍTICA E REVOLUÇÃO 235
234 OS CLÁSSICOS DA POLÍTICA

riado”'.!* Ou seja, os proletários não têm propriedade, nem pátria, o pedaço da época
Mas é inegável que vale, sobretudo, para O decisiv
nem família. Os proletários “não têm nada a perder a não ser os moderna do qual ele próprio é testemunha.
sobre o pas-
grilhões que os prendem”. E por isso estão destinados a abolir a Não fossem as informações históricas abundantes
, ter-lhe -ia sido
propriedade, a pátria, a família e demais instituições burguesas, bem sado, das quais Marx dispunha como grande erudito
conceb er toda a histó-
como a sociedade burguesa que nelas se apóia. suficiente observar o seu próprio tempo para
es revolu cionár ias.
Na obra de Marx, de modo especial em O manifesto comu- ria moderna como um processo de transformaçõ
de revolu ção em
nista, a idéia da “atualidade da revolução” se faz coextensiva do Como já observaram diversos autores, à noção
nasce da Revolu -
processo de emergência e de implantação do próprio sistema capita- Marx, como em muitos dos seus contemporâneos,
tornar uma referên -
lista. A revolução da burguesia contra o feudalismo continua ção Francesa, que, muito depois, haveria de se
me observa
— quase sem hiatos, embora evidentemente transfigurada em seu “necessaria dos revolucionários russos. Está aí, confor
revolução burguesa
conteúdo — na revolução do proletariado contra a burguesia, desti- com razão Lichtheim, a origem da idéia de uma
proletária:
nada a destruir o sistema. Mal a burguesia terminava os seus pri- que abre passo, imediatamente, a uma revolução
meiros embates contra a antiga ordem e já surgia, por exemplo nos sacrossanto processo
movimentos de 1848, a nova ameaça, a do proletariado. E se a bur- Se O manifesto tinha omitido fases inteiras do
de resumir duas revoluç ões diferentes em
histórico com o objetivo
guesia estava destinada a criar os seus próprios “'coveiros”, também uma só, pelo menos seus autores podiam assinalar O exemplo que
período. Do mesmo
o proletariado estaria destinado a desaparecer, como classe, no ofereciam as seitas socialistas e comunistas do
curso da sua própria revolução. A classe em cujo modo de existir que eles, Marx e Engels refleti am em termos da experiência
modo
mais radicais desio-
se encontram abolidas as condições da sociedade burguesa estaria revolucionária de 1789-1794, quando as facções
facções modera das até que todo O movime nto democrático
destinada a abolir todas as classes, deixando portanto de existir caram as
ponto de partida inicial.
tinha avançado muito além de seu
como tal. O modo de ser do proletariado é o de uma classe porta-
deveria ser bem
dora das virtualidades da sociedade sem classes, isto é, da socie- Nesta perspectiva, uma revolução na Rússia
dos seus intérpretes
dade comunista. menos surpreendente para Marx do que muitos
à crítica da filosofia
Marx escreve em uma época de revoluções na perspectiva de gostam de pensar. Quem lê, em 4 introdução
de Marx entre o cará-
quem busca as diretrizes para as revoluções do seu tempo e dos tem- do direito de Hegel, a brilhante comparação
e o caráter global
pos futuros. Depois da muita ênfase dada à idéia — inspirada em ter parcial (ou gradual) da revolução na França
ção na Alema nha “atrasada” per-
leituras econômicas (ou economicistas) de O capital e, em alguns que ele esperava para a revolu
ção se adapta melhor a este último
casos, nas primeiras críticas da social-democracia à Revolução Russa cebe que sua teoria da revolu
de 1848 marca uma “virad a” que
— de que ele esperava a revolução nos países modernos da Europa caso. Além disso, como o ano
século XIX, as perspe ctivas da revo-
Ocidental, tem-se dado pouca atenção às suas perspectivas sobre a diminui, na segunda metade do
Europa , na época a Inglat erra
atualidade da revolução proletária nas condições do capitalismo emer- lução nos países mais modernos da
€ de Engels , bem como a dos
gente. Ou, o que dá na mesma, nas condições de emergência do capi- e a França, as expectativas de Marx
ament e para os paises
talismo nos países “atrasados”. Deste ângulo, um caso como o da revolucionários, se transferem progressiv
al a Irlanda e, precisa-
Revolução Russa — com sua rápida transição da revolução burguesa “atrasados” da periferia de então, em especi
da velha Rússia foi das
de Fevereiro à revolução proletária de Outubro, nas condições de mente, a Rússia. Não por acaso à esquerda
Marx, enquanto a da
um ““país atrasado”” em processo de rápido (e brutal) ingresso no capi- que mais rapidamente acolheu a obra de
à influência de Proudhon
talismo — deveria encontrar neste raciocínio pelo menos tanto espaço França permaneceu por muito tempo ligada
marginal do marxismo.
quanto a noção de um **amadurecimento”” e de um aprofundamento e a Inglaterra recebeu uma influência apenas
ção no “'elo mais frá-
das contradições do capitalismo já plenamente estabelecido como sis- Embora de fatura leninista, a teoria da revolu
em germe, em muitas
tema, que então criaria as condições revolucionárias. A afirmação, | gil” do sistema capitalista está, pelo menos
de Engels. Nem mesmo
também de O manifesto, de que a história passada da humanidade | anotações de Marx e, evidentemente, também
no caso da Revolução
é a história da luta de classes pretende, por certo, validade geral. o reconhecimento da guerra, tão notável
as
MARX: POLÍTICA E REVOLUÇÃO 237
236 OS CLÁSSICOS DA POLÍTICA

Russa, como condição favorável à revolução chega a ser surpreen- Como disse Lorenz von Stein, o primeiro a estudar sistematicamente
dente ao leitor de Marx. o comunismo e o socialismo (1842): “Já não se pode ter nenhuma
dúvida sobre o fato de que, na parte mais importante da Europa, a
Qual o conceito geral de revolução? Marx, evidentemente, enfa-
reforma e a revolução políticas tenham chegado a uma conclusão; a
tiza as diferenças entre as revoluções, em particular as de origem revolução social tomou o seu lugar e se espalha sobre todos os
burguesa e as de origem proletária. Mas os traços gerais do conceito movimentos do povo com sua terrível potência e suas graves incerte-
são bastante claros nos dois casos (Em primeiro lugar, não se deve zas. Há apenas poucos anos, o que hoje temos diante de nós não
esperar que revoluções venham a ocorrer em épocas de prosperi- parecia mais que uma sombra sem conteúdo. Agora ela enfrenta
dade geral: “As revoluções de verdade só explodem nos períodos todas as leis como inimigas; e qualquer esforço para fazê-la retroce-
der à sua originária nulidade é um esforço inútil”. Como afirmariam
em que se chocam entre si dois fatores: as forças produtivas [...] e
Marx e Engels: “Um espectro ronda a Europa: O espectro do comu-
o regime [...] de produção"? !S(Em segundo lugar, as revoluções são nismo”.
transformações sociais de alcance global, isto é, transformações
que dizem respeito à sociedade em conjunto. É o que diz a propó- - Deste modo, é tanto sobre a crítica do idealismo filosófico
sito da revolução na Alemanha) alemão quanto sobre a crítica da revolução (política) burguesa que
se constrói a teoria de Marx sobre o Estado e sobre a revolução
Não estávamos diante de um conflito político de duas frações encon-
Y tradas sobre o solar de uma sociedade, mas diante do conflito de socialista. Marx faz a crítica das revoluções burguesas ao apontar
duas sociedades, diante de um conflito social que revestia formas as limitações da “emancipação política” e ao defender a necessi-
políticas: era a pugna entre a velha sociedade burocrático-feudal e a dade da “emancipação social””. Defender a **emancipação social”
moderna sociedade burguesa, a pugna entre a sociedade da livre con- significa, nas obras juvenis, defender a revolução social. E assim a
corrência e a sociedade das corporações, a sociedade dos proprietá-
preliminar da afirmação da necessidade da revolução social está
rios de terra e a sociedade dos industriais, a sociedade da fé e a
sociedade da ciência. na crítica da filosofia do direito e na crítica da filosofia do Estado,
ambas vindas de Hegel. Do mesmo modo, a preliminar desta crítica
Trata-se, pois, de um conflito radical, isto é, que chega até às raií-
da “emancipação política” está na crítica da religião: “A miséria
zes da sociedade. Para este conflito, portanto, não pode haver paz
1 religiosa é, de um lado, a expressão da miséria real e, de outro, O
nem pacto, mas uma guerra de vida ou morte. !” i
protesto contra ela. A religião é o soluço da criatura oprimida, O
coração de um mundo sem coração, O espírito de uma situa
carente de espírito. É o ópio do povo”.?? Desde a Crítica da filoso-
fia do Estado de Hegel, Marx ligava a crítica da religião à afirma-
Emancipação social Nas obras de juventude de Marx,
ção da “verdadeira democracia”: “A questão (da soberania popu-
e emancipação política é tão evidente a crítica do idea-
lar versus soberania do monarca) também se coloca assim: o sobe-
lismo hegeliano quanto a sombra Está evidente qual deve
das frustrações com a Revolução Francesa. As mesmas frustrações, rano é Deus ou o soberano é o homem?”
aliás, que impulsionavam o pensamento socialista em vários países ser a resposta. “Assim como a religião não cria o homem, mas é
a começar pela própria França. 8 A crítica do idealismo filosófico o homem quem cria a religião, não é também a Constituição que
traz de modo implícito — às vezes é bem mais do que isso — a crií- cria o povo, mas o povo que cria a Constituição
tica das revoluções burguesas e a necessidade de uma nova revolu- Nesse texto de juventude que é, talvez, a súarais clara air.
ção. Isso não é, aliás, exclusivo de Marx. No período em que ele mação como um democrata radical, Marx afirma que a democracia
escreve, outros tendiam para o mesmo caminho, embora talvez sem é “o conteúdo e a forma””; “'na democracia, o princípio formal é,
a mesma força e influência. Como bem observa Eric Hobsbawm ao mesmo tempo, o princípio materiaP". Em outras palavras: a
“por volta de 1840, a história européia assumiu uma nova dimen- democracia “'é, antes de tudo, a verdadeira unidade do universal
são: *o problema social” *”, ou, para considerá-lo de outra perspec- com o particular”. “A democracia é O enigma decifrado de todas
tiva, a revolução social em potência encontrava expressão típica as constituições possíveis.”2! É a força da concepção da democra-
no fenômeno do ““proletariado””. De novo Hobsbawm: cia da Antigiúidade clássica que Marx recolhe, nestas páginas, tal-
pm
MARX: POLÍTICA E REVOLUÇÃO 239
238 — OS CLÁSSICOS DA POLÍTICA

, pre-
vez mais do que a influência de Rousseau, que, aliás, bebe na mesma textos juvenis, Marx retira do Estado a condição do demiurgo
fonte em seu O contrato social. E é da mesma raiz democrática radi- tendida por Hegel, e coloca em seu lugar a sociedade civil. É, pois,
cal a crítica de Marx, persistente ao longo de toda a sua obra, sobre irrelevante a questão, sobre a qual já se gastou tanta tinta, de saber
as insuficiências da democracia apenas política. em que momento Marx tornou-se marxista.
Se a concepção democrática deste texto juvenil sofreu modifi- Nada mais enganoso, porém, do que imaginar que Marx, ape-
a “questão
cações posteriores, foi para receber acréscimos e especificações, não gado à “questão social””, tenha chegado a considerar
reflexo ou um mero epifenô meno. Não
para ser colocada à margem. Não compartilho a interpretação, pre- política”” como um simples
valecente depois de Aithusser, segundo a qual haveria uma ruptura | há dúvida”, diz em A questão judaica, “que a emancipação polf-
tica representa um grande progresso. [...) ela se caracteriza como
entre o jovem Marx humanista e o velho Marx cientista, 2 Fico,
neste aspecto, com a interpretação tradicional de Landshut e Mayer a derradeira etapa da emancipação humana dentro do contexto do
mundo atual”. “Dentro do contexto do mundo atual”, isto é, nos
na sua introdução, datada de 1934, à Crítica da filosofia do Estado
de Hegel: limites das atuais condições de desigualdade social e de exploração
econômica. “Os chamados direitos humanos em sua forma autên-
A atitude fundamental de Marx com relação à filosofia está definiti- tica, sob a forma que lhe deram seus descobridores norte-america-
nos e franceses, [são] direitos políticos, direitos que só podem ser
vamente determinada depois de seus pyimeiros três anos de estudo
de Hegel, e não se modifica no desenvolvimento ulterior do trabalho
o é a
de toda a sua vida. Apesar de que em certo sentido se pode dizer exercidos em comunidade com outros homens. Seu conteúd
participação na comunid ade e, concret amente, na comunid ade poli-
que a filosofia hegeliana é um elemento constitutivo da obra de Marx.
chama também a esta “emanci pação políti-
também se pode afirmar que Marx, desde seu primeiro contato com tica, no Estado.” Marx
que
Hegel, nunca foi hegeliano. 22 ca” de “democracia política”. E a qualifica de “cristã”, já
“nela o homem, não apenas um homem, mas todo homem, vale
Esta linha de argumento foi retomada, mais recentemente, por
Lucio Colletti, para quem os confrontos de Marx em face de Hegel como ser soberano, como ser supremo”. E acrescenta: “A imagem
do
com referência à lógica (e ao Estado) permanecem basicamente os fantástica, o sonho, o postulado do cristianismo, a soberania
real
mesmos ao longo de sua obra: homem — porém como um ser estranho, distinto do homem
, máxima secu-
—, esta é, na democracia, realidade sensível, presente
“Em 1843, 1844 e 1873 [...] o argumento de Marx permanece substan- lar??.%
2
cialmente o mesmo”. 4. : em
Os limites da “emancipação política” estariam, portanto,
Uma avaliação desta natureza, com os matizes que possa merecer, suas insuficiências, em uma concepção abstrata da universalidade
me parece mais verdadeira quando coloca a ênfase na continuidade dos direitos. A liberdade e a igualdade prometidas a todos os homens
em que
do pensamento de Marx do que a visão corrente que busca ruptu- revelam-se uma ilusão da “emancipação política” na época
do proletar iado, surge em
ras onde existem apenas variações e mudanças inteiramente nor- a “questão social”, ou seja, a questão
a verdadei ra “emanci pação
mais no interior de um pensamento em formação. toda a sua força.(Dito de outro modo:
,
Não se diminui, com isso, a importância dos seus estudos eco- política”” só pode se realizar no âmbito da “emancipação social
nômicos, os quais, aliás, começam logo a seguir e que, portanto, isto é, no âmbito da revolução do proletariado. Nas constituições
começam também como obras de juventude. Trata-se apenas de burguesas, os “direitos do homem” — e aqui é interessante anotar
aos
reconhecer que as posições materialistas, características do pensa- que Marx se refere tanto “aos descobridores franceses” quanto
es poli-
mento filosófico do Marx maduro, se elaboram, precisamente, nas “descobridores americanos”, isto é, às duas grandes revoluçõ
a america na em geral menos lembrad a
obras de juventude, contra Hegel e contra a religião. É também nes- ticas de fins do século XVIII,

tes textos que Marx desqualifica o status da burocracia como repre- do que a francesa mas anterior àquela e igualmente importante
do
sentante do universal, definido por Hegel, vindo depois a substituí- acabam, na realidade, sendo definidos pelo molde dos direitos
os “direito s do homem” — ou os
la, neste papel, pelo proletariado. E, como se sabe, o fundamento burguês. Deste ponto de vista,
igual-
desta mudança está na operação pela qual; desde seus primeiros direitos gerais assegurados pelo Estado — não definem uma
240 OS CLÁSSICOS DA POLÍTICA MARX: POLÍTICA E REVOLUÇÃO 241

dade que se deva realizar na sociedade. Antes pelo contrário, pressu- dial””, porque sem este grande desenvolvimento “é a penúria que
põem a desigualdade na economia e na sociedade. se tornaria geral”. Além disso, só com este desenvolvimento em
O que é, então, a “emancipação social” senão a ““emancipa- escala mundial se poderia falar de “relações universais do gênero
ção geral”, a “emancipação universal”? Ela não exclui a “emanci- humano”, criando, deste modo, a figura de “homens empirica-
pação política””, mas a envolve e a supera. A “emancipação políti- mente universais, Aistóricos”. Fruto do desenvolvimento do capita-
ca” tem limites definidos: “A revolução meramente política [...] lismo em escala mundial, o proletariado é também a única classe
deixa de pé os pilares do edifício”. Emancipa apenas “uma parte que pode existir “na escala da história universal”, “tal como O
da sociedade burguesa”, precisamente a burguesia; e instaura a comunismo, que é consegiiência dele, não pode ter senão uma exis-
dominação geral desta parte sobre o conjunto da sociedade. Só o tência universal”.
proletariado, que tem a condição peculiar de ser uma classe colo- Tem, portanto, consegiiências políticas a famosa operação
cada “fora” do sistema das classes, pode realizar a tarefa de eman- lógica pela qual Marx pretendeu colocar de pé a dialética que, em
cipar-se a si próprio e, consigo, o conjunto da sociedade. É por isso Hegel, estaria de ponta-cabeça. A descoberta, contra Hegel, de que
que essa “emancipação geral” ou ““universal”” não é entendida por não são a consciência, as idéias e os conceitos que criam “a vida
Marx como abstrata e sim como concreta: a emancipação desta real”, “o Ser dos Homens”, mas que, pelo contrário, são os
parte especial da sociedade que é o proletariado só é possível com homens que produzem os conceitos e as idéias e que estas “surgem
a emancipação (geral, universal) do homem. A perspectiva da revo- como emanação direta do seu comportamento material” — esta
lução proletária envolve, portanto, a perspectiva de realizar, no descoberta vale tanto para a crítica da filosofia idealista de Hegel
plano social, uma igualdade que a revolução da burguesia só é capaz quanto para a crítica das ilusões estatais (ou, que valha aqui a forma
de realizar no plano das ilusões e das formas do Estado e da ideolo- paradoxal, das ilusórias realidades de Estado), que o idealismo hege-
gia. Neste sentido, só a revolução do proletariado seria capaz de liano expressa. No reconhecimento do caráter determinante dos “in-
realizar a democracia, como conteúdo e como forma. teresses materiais”, está a crítica, fundamental, da ideologia e da
A “emancipação social” do proletariado guarda, deste modo, alienação. ““A classe que dispõe dos meios da produção material
suas peculiaridades em relação às revoluções ““do passado”, isto é, dispõe, ao mesmo tempo, dos meios da produção intelectual. [...]
às revoluções (políticas) da burguesia. O fato de que o proletariado as idéias predominantes são apenas a expressão ideal das relações
apareça na história como uma classe sem propriedade definiria uma materiais predominantes, são as relações materiais predominantes
forma extrema de(alienação: a força produtiva da sociedade, “que apresentadas sob a forma de idéias.” É pela crítica da base mate-
nasce da cooperação de vários indivíduos condicionados pela divi- rial da dominação que Marx começa a crítica das idéias da classe
são do trabalho”) aparece para os proletários como ““uma força dominante.
estranha situada fora deles, de cuja origem e fim nada sabem, que Como Marx o diz em forma lapidar: as idéias da classe domi-
não podem mais dominar””, que, pelo contrário, os domina. A abo- nante “são as idéias de seu domínio”. Longe de afirmar o caráter
lição da alienação pressupõe duas condições que se dão com o pro- meramente reflexo das idéias, isso signifiça que a luta de classes é
letariado e com a sociedade na qual este se forma. Primeiro: pressu- tanto uma luta no plano material quanto uma luta no plano das
põe que a alienação ““se torne uma força insuportável”, isto é, “uma idéias. É certo que ““as idéias daqueles que não dispõem dos meios
força contra a qual os homens vão à revolução”'. Pressupõe que a da produção intelectual ficam sujeitas à classe dominante”. Mas,
alienação “tenha feito da massa da humanidade uma massa total- também é verdade que, nas épocas de revolução, a classe dominante
mente “destituída de propriedade”, que se encontra, ao mesmo perde o “monopólio” das idéias e alguns de seus setores, em parti-
tempo, em contradição com um mundo existente da riqueza e da cular entre os intelectuais, passam para o campo contrário, o campo
cultura, coisas que supõem um grande aumento do poder produtivo, da revolução. E, como já vimos através das sugestões de Lukács,
ou seja, uma fase adiantada de seu desenvolvimento”. Em segundo o materialismo histórico de Marx se entende como um aspecto desta
lugar, a abolição da alienação pressupõe que o desenvolvimento luta. Deve valer também para as idéias de Marx a noção geral que
das forças produtivas tenha alcançado o “plano da história mun- ele apresenta sobre as idéias das classes revolucionárias: “Cada
242 OS CLÁSSICOS DA POLÍTICA MARX: POLÍTICA E REVOLUÇÃO 243

nova classe que toma o lugar daquela que dominava antes é compe- Acompanhando a substituição das classes na direção do Estado,
lida, para alcançar sua finalidade, a representar todos os membros teríamos uma mudança das finalidades do Estado. Se nas mãos da
da sociedade, ou, para usar uma formulação no plano das idéias, essa burguesia o Estado funciona para preservar a propriedade privada
classe é obrigada a dar às suas idéias a forma de universalidade, de € para assegurar os interesses da classe burguesa, nas mãos do pro-
representá-las como sendo as únicas razoáveis, as únicas universal- letariado ele serviria “para ir arrancando gradualmente à burguesia
mente válidas”. E, embora Marx enfatize sempre a condição peculiar todo o capital, para centralizar todos os instrumentos de produção
do proletariado destinado a destruir a sociedade de classes, poderia- nas mãos do Estado, isto é, do proletariado organizado como classe
mos supor que valha para seus representantes a reflexão que se segue: dominante”. O desaparecimento do Estado só viria depois de um
“Pelo simples fato de se opor a uma classe, os revolucionários não período de transição mais ou menos longo, no qual o desenvolvi-
se apresentam inicialmente como classe, mas como representantes mento das forças produtivas levaria ao “desaparecimento das dife-
de'toda a sociedade, como a massa total da sociedade frente à única renças de classe”, concentrando a produção “nas mãos dos indiví-
classe dominante” duos associados””, levando a que o Estado perdesse ““seu caráter
político”. É neste sentido, que Marx fala em 1852, ou seja, cinco
anos depois de O manifesto, que a “ditadura do proletariado [...]
não é, em si mesma, mais do que o trânsito para a abolição de
O Estado A unidade de perspectiva que se deve todas as classes e para uma sociedade sem classes”.
e a transição reconhecer a Marx na teoria política não A análise do “bonapartismo””, em O 18 Brumário de Luís
para o socialismo impede que se reconheça algumas mu- Bonaparte, neste mesmo ano de 1852, antecipa algo das conclusões
danças significativas de conceito quanto da análise de Marx sobre a Comuna, de quase vinte anos mais tarde.
ao Estado. Em um prefácio de 1872, assinado com Engels, a O A primeira revolução (1789-1792) da burguesia francesa fez mais
manifesto, ele reafirma os “princípios gerais” do texto de 1848 do que criar a ordem política aptaà dominação “desta parte da
como “inteiramente acertados””, mas reconhece que “alguns pon- sociedade”” sobre todas as demais classes. Ela desenvolveu ““aquito
tos deveriam ser retocados””, já que “'a aplicação prática destes prin- que a monarquia absoluta havia iniciado: a centralização; [...]
cípios dependerá sempre e em todas as partes das circunstâncias his- ampliou o volume, as atribuições e o número de servidores do poder
tóricas existentes”. Depois da experiência da Comuna, de 1871, do governo”. Todas as revoluções que se seguiram ““aperfeiçoaram
“que elevou pela primeira vez o proletariado ao poder político, esta máquina, ao invés de destroçá-la””. Com Napoleão III, “
durante dois meses””, ficou claro que “'a classe operária não pode Estado parece haver adquirido uma completa autonomia”. Isso não
simplesmente tomar posse da máquina estatal existente e colocá-la significa que flutue no ar, pois estará apoiado na classe ''mais nume-
em marcha para seus próprios fins””, tem de destruí-la. é rosa da sociedade francesa: os camponeses parcelares””. Mas signi-
Em O manifesto, a confiança de Marx na utilização do Estado fica que esta massa oferecerá a base para “que o poder executivo
como um instrumento para a revolução do proletariado ia de par submeta a sociedade a seu mando”. É central, na análise do bona-
com a convicção de que, no Estado moderno, a burguesia “'conquis- partismo, a atenção concedida por Marx ao poder executivo. Se,
tou, finalmente, a hegemonia exclusiva do poder político no Estado no Parlamento, a lei da classe dominante era elevada à condição
representativo moderno”. Está ligada a esta idéia de uma “hegemo- de vontade geral da nação, diante do poder executivo, a nação ““ab-
nia exclusiva”? da burguesia a frase famosa que vem logo a seguir: dica de toda vontade própria e se submete aos ditados de um poder
“O governo do Estado moderno não é mais do que uma junta que estranho”
administra os negócios comuns de toda a classe burguesa”. Nestas O Estado do Segundo Império francês, sob Napoleão III,
circunstâncias, “o primeiro passo da revolução operária é a eleva- parece a Marx mais do que o fruto das circunstâncias especiais de
ção do proletariado a classe dominante”, e a este primeiro passo uma nação, como algo novo na história: um Estado que se sobre-
Marx designa como “'a conquista da democracia”. põe à sociedade em seu conjunto e, portanto, que se sobrepõe às
classes, inclusive à burguesia. Estamos longe da idéia do Estado
244 OS CLÁSSICOS DA POLÍTICA MARX: POLÍTICA E REVOLUÇÃO 245

como simples junta administrativa de uma classe dominante. Para a análise de Marx sobre a Comuna, onde está o essencial da sua
que a sociedade burguesa seja preservada e, mais que isso, cumpra concepção sobre a destruição do Estado. E também o essencial de
as leis do seu desenvolvimento, parece necessário que o Estado sua concepção sobre a “ditadura do proletariado”. Ou, para reto-
ganhe autonomia sobre a própria classe dominante. A burguesia mar os termos do Manifesto, aí se encontra a sua concepção reno- -
se beneficia do Estado mas não é mais ela quem governa. Ela entrega vada sobre “a conquista da democracia”
a sua autonomia em troca da preservação da sua propriedade e da “A antítese do Império”, diz Marx, “era a Comuna.” A
sua capacidade de enriquecimento. Comuna foi, para ele, a negação de tudo o que o Estado, criado
Uma noção semelhante sobre o Estado surge na análise da jor- pelo absolutismo, havia chegado a ser depois que foi colocado a
nada de trabalho, no primeiro volume de O capital, publicado serviço da burguesia: é a negação do “poder estatal centralizado,
quinze anos depois de O 18 Brumário. Como entender a jornada com seus órgãos onipotentes: o exército permanente, a polícia, a
sem uma lei que a defina, isto é, o Estado? Como entender que o burocracia, o clero e a magistratura”. No lugar do exército a
Estado limite a duração da jornada, favorecendo os operários, Comuna coloca a milícia, ou seja, o povo armado; no lugar da polí-
quando se entende que eleé o Estado da burguesia? Diz Marx que cia e da burocracia designa funcionários eleitos cujos mandatos
“o capital não dá nenhuma importância “à saúde e à duração da podem ser revogados; no lugar dos deputados eleitos para a Câmara
vida do operário, a menos que a sociedade o obrigue a tomá-las segundo os métodos da democracia representativa, estão os conse-
- em consideração” (os grifos são de Marx). E quem representa a lheiros municipais, eleitos por sufrágio universal com mandatos
sociedade, neste caso, é a lei, ou seja, o Estado. e *'expro-
imperativos, revogáveis; separação da Igreja do Estado
Isso não significa que Marx tenha abolido a sua concepção
priação de todas as igrejas como corporações possuidoras””, obri-
sobre a luta de classes. Pelo contrário, “a implantação de uma jor-
gando os padres a voltarem ““a viver de esmolas dos fiéis, como
nada normal de trabalho é o fruto de uma luta multissecular entre
seus antecessores, os apóstolos”; os magistrados e os juízes, como
capitalistas e operários”. A questão, porém, é que nem a sociedade
os demais funcionários, teriam de ser eleitos com mandatos revogá-
que assiste a esta “luta multissecular”* nem as classes que desta par-
veis. Todos os que desempenham cargos públicos, a começar dos
ticipam se resumem apenas a capitalistas e operários. Existem, por
membros da Comuna para baixo, receberiam ““salários de operá-
exemplo, situações em que os operários, para sobreviver, fazem as
rios” (os grifos são de Marx).
suas alianças, até mesmo com setores conservadores, como é o caso
Não é difícil entender o entusiasmo de Marx pela Comuna.
de alguns episódios desta luta pela definição de uma jornada nor-
É que nela ganham corpo as idéias sobre a ““verdadeira democra-
mal de trabalho na Inglaterra. Todo o problema está em que os
cia” de seus escritos de juventude. A luta dos trabalhadores de
operários, considerados individualmente, não têm como defender
Paris tomará para ele o valor de uma tentativa de destruição do
uma jornada normal de trabalho.
Estado político. A revolução proletária, que assume a divisa de “re-
Para “defender-se” contra a serpente de seus tormentos, os operá- pública social”, pretende acabar não apenas “com a forma monár-
rios não têm mais remédio do que apertar o cerco e arrancar, como
quica da dominação de classe, mas com a própria dominação de
classe, uma lei do Estado, um obstáculo social insuperável que os
impeça a eles mesmos de se vender e de vender a sua descendência classe”. São os ideais da democracia direta da Antiguidade clássica
como carne de morte e escravidão mediante um contrato livre com que retomam vida na experiência de luta dos operários de Paris.
o capital. E assim, onde antes se erguia o pomposo catálogo dos “Di- A Comuna de Paris haveria de servir de modelo para a organização
reitos inalienáveis do Homem” aparece agora a modesta Magna Carta do poder proletário em todos os centros industriais da França,
da jornada legal de trabalho. 2?
abrindo passo para a destruição do antigo Estado centralizado e
Pode-se supor que a capacidade do Estado de se sobrepor ao para a sua substituição pelos órgãos comunais em todo o país, até
jogo direto das classes não se limite ao caso do bonapartismo. Nem nos pequenos distritos rurais. Surge uma nova forma de organiza-
que seja apenas específico da França ou, mais tarde, com Bismarck, ção da sociedade e da política: “A Comuna não haveria de ser um
da Alemanha. Em todo caso, é diante das circunstâncias criadas organismo parlamentar, mas uma corporação de trabalho, execu-
pelo crescimento do Estado no Império francês que se pode entender tiva e legislativa ao mesmo tempo”. Eis aqui, segundo Marx, o
MARX: POLÍTICA E REVOLUÇÃO — 247
246 OS CLÁSSICOS DA POLÍTICA

pequeno-burguês,
verdadeiro segredo da Comuna: “'a Comuna era, essencialmente, servidão, chegou a membro da Comuna, ou do
um governo da classe operária, fruto da luta da classe produtora que, sob o absolutismo feudal, chegou a burguê
contra a classe proprietária, a forma política enfim descoberta para progresso da indús-
o operário moderno [...], ao invés de elevar-se com o
levar a cabo dentro dela a emancipação econômica do trabalho”. por baixo das condiçõ es de vida de
tria, desce sempre, mais e mais,
classe. O trabalh ador cai na miséria e o pauper ismo cresce
Em textos posteriores de Marx e de Engels, com frequência a expe- sua própria
ão e a riqueza. É, pois, evidente
riência da Comuna surgirá como exemplo daquilo que eles enten- mais rapidamente ainda que a populaç
ia já não é capaz de continu ar desemp enhand o o papel
que a burgues
diam como a “ditadura do proletariado””. A Comuna seria a ““do- de classe dominante da sociedade, nem de impor a
esta, como lei regu-
minação política dos produtores” e, por isso, seria “incompatível ladora, as condições de existência de sua classe. 28
com a perpetuação de sua escravidão social”. capita-
Está nestas palavras uma condenação global do sistema
O capital
lista que antecipa boa parte das sofisticadas análises de
ão relativa bem
sobre a pauperização absoluta e a superpopulaç
de lucro. Estes
Atualidade de Marx A influência da obra de Marx na polí- como sobre a lei da tendência decrescente da taxa
XX, entre os mais critica dos da teoria
no tica do século XX é evidente. O que pontos se acham, no século
inícios deste século, Franz Mehring
não impede que continuem, no interior do marxismo e fora dele, econômica de Marx. Já em
os debates a propósito da sua adequação aos tempos atuais. São observava:
questões não apenas difíceis de resolver, mas que aparecem, com o fato de que
Hoje, não se poderia estabelecer em termos tão gerais
frequência, marcadas, tanto entre seus seguidores quanto entre seus o modern o [...], longe de ganhar com os progres sos da indús-
o operári
detratores, pela expectativa, pelo menos curiosa em se tratando de tria, vai se afundando mais e mais por baixo do nível de vida de sua
regime capitalista
um materialista e, de resto, tão apegado às circunstâncias históricas classe. Por marcada que seja esta tendência no
existem certos setores da classe
de produção, não se pode negar que
do seu tempo, de que ele devesse dar resposta para problemas de a socieda de capitali sta garante um regime mate-
operária aos quais
épocas muito posteriores. camada s pequen o-burguesas. 29
rial de vida superior, inclusive ao das
A grande questão sobre a atualidade de Marx é a questão
há de
sobre a atualidade da revolução. Pode-se falar hoje de uma ““proxi- Marx morreu em 1883, há mais de um século. O que
não é que tenha envelhe cido
midade da revolução”, de uma “atualidade da revolução”? No extraordinário com o seu pensamento
e é que tenha se man-
caso de uma resposta afirmativa, qual o caráter da revolução atual em alguns pontos. O que há de surpreendent
os desa-
em comparação com a da época de Marx? Já sabemos que as res- tido em muitos pontos importantes. E isso ocorre porque
tempo,
postas de Marx para as sociedades capitalistas “atrasadas” do fios enfrentados por Marx continuam sendo os do nosso
as. Reali-
século XX teriam de ser muito semelhantes às respostas que ofere- tanto nas sociedades “atrasadas” como nas mais modern
mudaram, por
ceu, no século XIX, para as sociedades “atrasadas” nas quais o zada, em muitos países, a “emancipação política”,
Mas permane-
capitalismo emergia. Não por acaso, o marxismo guarda uma forte certo, as condições para a “emancipação humana”.
mais modern as, as condiçõ es que colo-
influência nos países do Terceiro Mundo. Mas quais as respostas cem, mesmo nas sociedades
uma luta necessá ria. A ques-
ou as inspirações que se podem buscar em Marx para a transforma- cam a “emancipação humana?” como
nas condiçõ es atuais,
ção das sociedades capitalistas modernas do século XX? Ou pode- tão poderia ser colocada do seguinte modo:
as uma nova concep-
mos admitir que Marx nada teria a dizer a respeito? não se exigiria dos que se pretendam marxist
concepção
Retomemos um tema central nas análises econômicas de O ção para a luta pela “emancipação humana”, uma nova
manifesto, e igualmente central na teoria da revolução. Marx vê ali sobre a revolução social?
ormada,
uma burguesia incapaz de cumprir a função básica de uma classe Quem pense que a sociedade atual terá de ser transf
de passar
dominante, qual seja, a de assegurar condições de sobrevivência à terá também de voltar a Marx ou, quando menos, terá
r que seja o caminh o que prefira seguir depois
classe dominada. Ao contrário do servo, que, em pleno regime da por Marx, qualque
248 OS CLÁSSICOS DA POLÍTICA
MARX: POLÍTICA E REVOLUÇÃO 249

disso, E se parece obrigatório voltar a Marx — o que é especial-


mente verdadeiro para inúmeros “marxistas” que só conhecem volvimento de cada um será a condição do livre desenvolvimento
Marx pela boca dos intérpretes — tanto melhor se aquele que o de todos”.
faça se desvie das atitudes religiosas que ele sempre condenou e Teria alguém jamais oferecido, em qualquer tempo ou em
adote uma atitude crítica, atenta às circunstâncias da história. Quem qualquer lugar, melhor descrição dos sonhos da modernidade nesta
o fizer perceberá que se algo do seu “pequeno mundo”” do século passagem para o século XXI?
XIX envelheceu, em particular algo de sua linguagem sobre a econo-
mia, Os princípios que o inspiraram e muitas de suas idéias sobre
o Estado e a política na sociedade de classes continuam mais jovens
do que nunca.
* Este fim de século, no qual se assiste à terceira revolução indus- Notas
trial, parece ser o de uma redescoberta do valor do indivíduo. Pode-
ria haver algo mais atual do que o lugar que Marx reserva para o
indivíduo (e a personalidade) em sua concepção da “emancipação 1 MEHRING, Franz. Carlos Marx; historia de su vida. México, Editorial
humana”? Grijalbo, 1957. p. 234. (Biografias Gandesa.)
A oposição entre a personalidade do proletário [...] e as condições 2 Idem, ibidem, p. 34.
de vida que lhe são impostas (ou seja, o trabalho) torna-se evidente
ao próprio operário... Enquanto os servos fugitivos desejavam desen- 3 Idem, ibidem, p. 94.
volver livremente suas condições de existência, já estabelecidas, e 4 Nota sobre cartismo.
valorizá-las [...] os proletários devem, se quiserem valorizar-se como
pessoas, abolir sua própria condição de existência [...] — quero dizer, 5 Carta a J. Weydemeyer, de Londres, 5 de março de 1852.
abolir o trabalho. Encontram-se, por isso, em oposição direta [...] ao
6 LUKÁCS, Georges. La pensée de Lenine. Paris, Éditions Denoel/Gonthier,
Estado, e devem derrubar esse Estado para realizar sua personalidade.
1972. p. 10 et segs.
Não se pode entender, nestas palavras, o proletário como emblema 7 Por caminhos semelhantes aos indicados por Lukács existe ampla biblio-
da condição comum dos homens modernos em face da economia e grafia. Mencione-se, por exemplo: LicHTHEIM, George. E! marxismo;
do Estado nas suas formas atuais? O potencial de liberação do indi- un estudio histórico y crítico. Barcelona, Editorial Anagrama, 1965;
Lówy, Michael. La theorie de la révolution chez le jeune Marx. Paris,
víduo que se encontra no dinamismo da atual revolução tecnológica
François Maspero, 1970.
não estaria sendo comprimido pelas atuais relações de produção e
pelo centralismo esmagador das estruturas burocráticas do Estado 8 Op. cit., p. 272.
moderno? 9 Ibidem, p. 274.
Se esta interpretação é possível, ninguém se surpreenda se
10 Os períodos pós-1883, isto é, de após a morte de Marx, que seguem na
assistirmos, neste fim de século, a uma volta a Marx, muito mais descrição de Hobsbawm são de 1883-1914 (surgimento do imperialismo
forte do que todas as anteriores. Em face das novas tentativas de e crises revolucionárias no mundo subdesenvolvido, a começar pela Rús-
transformação em curso nas sociedades modernas — e aqui não sia), de 1914-1949 (da Primeira Guerra à Segunda, com a Revolução
Russa e a Revolução Chinesa de permeio) e, finalmente, o período de
há como ignorar os esforços de modernização em andamento nas
após 1949 até hoje. Está evidente que os períodos pós-1883 são de menor
sociedades do socialismo burocrático que, uma vez mais, enfren- interesse para a caracterização das condições históricas da época de
tam o tema da democratização —, Marx ressurge como fonte indis- Marx. Mas vale o registro, embora sumário, para que se tenha um mínimo
pensável à reflexão e à crítica. O socialismo, dizia ele em O mani- de perspectiva sobre as mudanças ocorridas desde fins do século XIX até
festo, escrevendo na perspectiva que lhe permitia o seu “pequeno a época atual. Ver HOBSBAWM, Eric. Marx, Engels e o socialismo pré-
marxiano. História do marxismo; o marxismo no tempo de Marx. 2. ed.
mundo” do século XIX, é '“'uma associação em que o livre desen- Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1983. v. 1, p. 19-23.
MARX: POLÍTICA E REVOLUÇÃON, 251
="
250. OS CLÁSSICOS DA POLÍTICA

2 LANSHUT & MAYER. Introdução. In: MARX. Crítica de la filosofia del


“Op. cit., p. 10. Estado de Hegel. Op. cit., p. 9-10.
i2 Marx. Prefácio de 1873. O capital. 2. ed. México, Fondo de Cultura 24 CoLLETTI, Lucio. “Introduction”. In: MARX, Karl. Early writings.
Económica, 1959. p. XXIV. London, Penguin Books, 1974. p. 22
13 Idem. O manifesto comunista. In: . Obras escogidas en dos tomos. 25 MARX. A questão judaica. Op. cit.
Moscú, Editorial Progreso, 1966.
à edição
26 MARX & ENGELS. “Manifesto del partido comunista”, prefácio
14 Tdem, ibidem. alemã de 1872. Obras escogidas en dos tomos. Moscu, Editorial
Progreso,

5 Op. cit., p. 80. 1966. v. 1, p. 12-3.


p.
16 MEHRING, Franz. Op. cit., p. 225. A propósito, vale citar as palavras 2 MARX. O capital. México, Fondo de Cultura Económica, 1959. v. 1,
de Marx em O capital: “Onde se revela ao burguês prático, de modo 212-41.
mais patente e mais sensível, o movimento cheio de contradições da socie- EO MARX & ENGELS. Op. cit., p. 30-1.
dade capitalista, é nas alternativas do ciclo periódico que percorre a indús-
tria moderna e em seu ponto culminante: o da crise geral. Esta crise geral 29 Op. cit., p. 165.
está de novo em marcha, embora não tenha passado ainda de sua fase
preliminar. A extensão universal do cenário em que haverá de desenvol-
ver-se e a intensidade de seus efeitos farão com que a dialética entre pela
cabeça até mesmo destes mimados adventícios do novo Sacro Império
prussiano-alemão””. MARX. Prefácio de 1873. O capital. Op. cit., p. XXIV.

17 Idem, ibidem, p. 199.


18 «T..] a história sem solução de continuidade do comunismo, enquanto
movimento social moderno, tem início com a corrente de esquerda da
Revolução Francesa. Uma direta linha descendente liga a “conspiração
dos iguais” de Babeuf, através de Felipe Buonarotti, às associações revo-
lucionárias de Blanqui dos anos 30; e essas, por sua vez, se ligam — atra-
vés da Liga dos Justos, formada pelos exilados alemães inspirados por
eles, e que depois se tornará Liga dos Comunistas — a Marx e Engels,
que redigiram sob encomenda da Liga O manifesto do partido comunis-
ta.” HOBSBAWM, Eric. Op. cit., p. 40.

19 Op. cit., p. 62.


20 MARX. Introdução à crítica da filosofia do direito de Hegel. In:
A questão judaica. Rio de Janeiro, Laemmert, 1969.
2! Idem. Crítica de la filosofia del Estado de Hegel. Buenos Aires, Edito-
rial Claridad, 1946. p. 81-2.

22 A idéia de uma “cesura” entre o jovem e o velho Marx pode ter diferen-
tes traduções e se encontra mesmo em intérpretes que, de outros pontos
de vista, se afastariam de Althusser. Segundo Michael Lôwy, haveria uma
ruptura “pelas alturas” de 4 ideologia alemã, o que significaria fazer do
Marx anterior um pré-marxista. Hobsbawm, por sua vez, entende que o
Marx da Crítica da filosofia do Estado de Hegel seria um democrata, não
um comunista. Talvez. Mas isso não indica uma ruptura, O que só ocorre-
ria se pudéssemos sustentar que ao se tornar comunista Marx tivesse dei-
xado de ser democrata. Eu estou entre os que vêm as mudanças de Marx
como esperadas em um pensamento comprometido com a história.
MARX: POLÍTICA E REVOLUÇÃO 253

verdadeiro desen-
TEXTOS DE MARX' [...] Onde o Estado político já atingiu seu
no pensamento e na cons-
volvimento, o homem leva, não somente
ncia: uma celes-
ciência, mas na realidade, na vida, uma dupla existê
política, na qual
tial e outra terrena, a existência na comunidade
e a existê ncia na sociedade civil,
ele se considera como um ser geral,
homens como meros
onde atua como particular; encara os outros
mero instrumento e se
instrumentos, degrada-se a si mesmo como
torna o joguete de poderes estranhos. [...]
seguramente, constitui um grande
A emancipação política A emancipação política,
forma da emancipação
e a emancipação humana progresso. É verdade que ela não é a última
o humana no contexto
humana, mas é a última forma da emancipaçã
os aqui de emancipa-
do mundo atual. Devemos esclarecer que falam
| Meus estudos ção real, de emancipação prátic a.
profissionais eram os de jurisprudência, da
qua + Contudo, somente me ocupei como disciplina secundária, ao [...]
devido ao dua-
o da fi osofia e da história. Em 1842-43, como redator da Gazeta Os membros do Estado político são religiosos
entre a vida da socie-
Renana, pela primeira vez me vi na difícil faina de ter de ir lismo entre a vida individual e a vida genérica,
na medid a em que o
sobre chamados interesses materiais. | mm dade burguesa e a vida política; são religiosos
de sua própri a indivi-
no E 0 imite da emancipação política manifesta-se imediatamente homem considera a vida política para além
religiosos, no sentido em
ato de que o Estado pode se livrar de um limite sem que dualidade como a sua verdadeira vida;
burguesa, a expressão
homem dele se liberte realmente, no fato de que o Estado od : que a religião é aqui o espírito da sociedade
próprio homem. A
um Estado livre sem que o homem seja um homem livre Ê 2 “ daquilo que distancia e separa O homem do
a em que nela o homem, não
nasci A sua mantra, o Estado suprime as distinções oriundas do democracia política é cristã na medid
um ser soberano, um ser
ento, o nível social, da educação e da ocupação, declarando apenas um homem, mas todo homem, é
mas não o homem culto nem o homem social, o homem '
que o nascimento, o nível social, a educação, a ocupação específica supremo;
m que se corrompeu
são diferenças não políticas, quando, sem levar em conta as su na sua existência acidental como tal, o home
do de si mesmo,
distinções, proclama que todo membro do povo participa da sobera: por toda a organização de nossa sociedade, perdi
e elementos inumanos;
nia popular em pé de igualdade e quando aborda todos os eleme alienado, submetido ao império de condições
deiro ser gené-
o da vida real do povo do ponto de vista do Estado. Porém % numa palavra, o homem que não é ainda um verda
E peão rico. A criação imaginária, o sonho, O postulado do cristianismo,
Pr (ss impede que a propriedade privada, a educação,
tudo isto se torna,
a per ] seu modo, isto é, enquanto propriedade priva- a soberania do homem, mas do homem real —
uma máxima secular.
» educação e ocupação, e façam valer a sua natureza especial na democracia, realidade concreta e presente,
Longe de suprimir essas diferenças de fato, o Estado apenas existe [..)
sobre tais premissas; só tem consciência de ser um Estado político [...]
s huma-
e faz prevalecer sua universalidade em oposição a esses elementos Consideremos por um momento Os chamados direito
sob a forma que lhes deram os seus
[...] nos em sua forma autêntica,
lado, estes direi-
descobridores norte-americanos e franceses! Por um
direito s que apenas podem ser
puaidos de: MARX. questão Judaica. Trad. de Wladimir Gomide. Rio de Janeiro tos humanos são direitos políticos,
homen s. O seu conte údo con- .
paemmer "ao p. dão Marx. Crítica de la filosofia dei derecho de Hegel. Bue-
exercidos em comunidade com outros
pa a Ç pjones uevas, 1968. p. 29-40; MARX. L'idéologie allemande. Paris na vida polític a da comuni-
ns Sociales, 1968. p. 50-97; Marx, siste na participação na essência geral,
Carlos & ENGELS, Frederico. Obras esco-
m na categoria de
gidas en dos tomos. Moscú itori . " dade, na vida do Estado. Estes direitos se insere
Moreira, scú, Editorial Progreso, 1966. t. II. Trad. de Cid Knipell civis, que, tal como
liberdade política, na categoria dos direitos
MARX: POLÍTICA E REVOLUÇÃO 255
254 OS CLÁSSICOS DA POLÍTICA

amente a
vimos, não supõem de forma alguma a supressão absoluta e posi- É bastante estranho que um povo que começa precis
os seus distin-
tiva da religião, nem, por conseguinte, do judaísmo. Por outro lado se libertar, a derrubar todas as barreiras que separam
a, proclame solene-
resta considerar os droits de "homme na medida em que diferem tos membros, a fundar uma comunidade polític
seu semelhante e
dos droits du citoyen.? mente o direito do homem egoísta, dissociado de
Mas este fato se torna
[...] da comunidade (Déclaration de 1791)º [...]
verifi camos que os emancipadores polí-
o Constatamos, antes de mais nada, que os droits de !"homme ainda mais estranho quando
cidada nia, a comun idade política ao
distintos dos droits du citoyen nada mais são do que os direitos do ticos rebaixam até mesmo a
conser vação dos chamados direitos
membro da sociedade burguesa, ou seja, do homem egoísta, do papel de simples meio para a
homem isolado do homem e da comunidade. A mais radical das humanos; que, por conseguinte, o citoyen é declarado servo do
tária em que atua O
constituições, a de 1793, enunciava: homme egoísta; degrada-se a esfera comuni
em que O homem atua como ser
homem em detrimento da esfera
Déoiaration des droits de "homme et du citoyen consid era como homem verdadeiro
parcial; que, finalmente, não se
rt. ] 2. Ces droits (les droit naturels et im prescriptibles)
ipt sont: /' ógali o, senão enquan to burguês. [...]
fa liberté, la sôreté, la proprieté.* ? | Sent: Lógalit, e autêntico o homem enquanto cidadã

Em que consiste la liberté? [...]


. A liberdade é, portanto, o direito de fazer tudo aquilo que
não prejudique os outros. [...] A emancipação humana e a revolução
o A aplicação prática do direito de liberdade é o direito à pro-
prisdde privada. Mas em que consiste este último direito?
resolver as dúvi-
Meu primeiro trabalho, levado a cabo para
da filoso fia hegeliana
O direito à propriedade é, pois, o direito de desfrutar de sua das que me assaltavam, foi uma revisão crítica
1844 nos Anais franco-
fortuna e dela dispor à son gré, sem se importar com os outros do direito, e a sua introdução apareceu em
6
homens e independentemente da sociedade: é o direito do interesse alemães que eram então publicados em Paris.
uma prática à la
pessoal. É esta liberdade individual e a sua aplicação que constituem Indagamo-nos: pode a Alemanha chegar a
ção que a eleve não só
a base da sociedade burguesa. [...] hauteur des principes, isto é, a uma revolu
m, ao nível humano
Falta considerar ainda os outros direitos humanos, [égalité e ao nível oficial dos povos modernos mas, també
la sâireté. que será o futuro imediato destes povos?
tuir a crítica
A palavra égalité não tem aqui significado político e nada As armas da crítica não podem, de fato, substi
a por força material,
mais é do que a igualdade da liberdade tal como acima definida: das armas; a força material tem de ser depost
material uma vez que
todo homem é igualmente considerado tal como uma mônada fun- mas a teoria também se converte em força
prender os homens desde
dada sobre si mesma. [...] se apossa dos homens. A teoria é capaz de
desde que se torne radi-
E la siireté? [...] que demonstre sua verdade face ao homem,
raízes. Para o homem,
cal. Ser radical é atacar o problema em suas
A segurança é o mais elevado conceito social da sociedade ,
porém, a raiz é o próprio homem. [...] 1
burguesa, o conceito de polícia, segundo o qual toda a sociedade a revolução radical,
Para a Alemanha, o sonho utópico não é
somente existe para garantir a cada um de seus membros a conser- contrário, a revolução
ou a emancipação humana geral, mas, ao
vação de sua pessoa, de seus direitos e de sua propriedade. [...] revolução que deixa de
parcial, a revolução meramente política, a
O conceito de segurança não é ainda suficiente para que a Sobre o que repou sa uma revolução par-
pé os pilares do edifício.
sociedade burguesa se sobreponha ao seu egoísmo. Ao contrário fato de que uma fra-
cial, uma revolução meramente política? No
a segurança é a preservação (Versicherung) do egoísmo. se emanc ipa e alcanç a a supremacia geral,
ção da sociedade burguesa
“T.] a classe empre ender a emancipação geral
no fato de uma determinad
256 OS CLÁSSICOS DA POLÍTICA MARX: POLÍTICA E REVOLUÇÃO 257

si, porque não


da sociedade a partir de sua situação particular. Esta classe eman- sais e que não reclama nenhum direito especial para
cipa toda a sociedade, mas apenas sob a hipótese de que toda a ça pura € simples;
sofreu nenhuma injustiça especial, mas a injusti
simplesmente ao
sociedade se encontre na situação desta classe, isto é, que possua, que já não pode apelar a um título histórico, mas
espécie de opost
por exemplo, dinheiro e cultura ou que possa adquiri-los. título humano; que não se encontra em nenhuma
oposição total com
Nenhuma classe da sociedade burguesa pode desempenhar este ção particular com as consequências, mas numa
papel sem provocar um momento de entusiasmo em si e na massa, finalmente, que ão
as premissas do Estado alemão; de uma esfera,
demais es eras
momento durante o qual confraterniza e se confunde com a socie- pode se emancipar sem se emancipar de todas as
dade universal, com ela se identifica e é sentida e reconhecida como isso, emanci par todas elas; que é, numa pa avra,
sociedade e, com
sua representante universal; um momento em que suas pretensões e só pode ainer seu
a perda total do homem e que, por conseguinte,
direitos são, na verdade, os direitos e as pretensões da própria socie- . Esta issoluç:
objetivo mediante a recuperação total do homem
dade, que esta classe é realmente o cérebro e o coração da sociedade. uma classe particu lar é o prolet ariado. [...]
da sociedade como
Somente em nome dos direitos gerais da sociedade pode uma classe Ao proclamar a dissolu ção da ordem univers al anterior, o prole-
particular reivindicar para si a supremacia universal. E, para atingir do que procla mar O segredo de sua própria as
tariado nada mais faz
universal. : o
esta posição emancipadora e, assim, poder explorar politicamente tência, já que ele é a dissolução de fato desta ordem
proletariado não faz
todas as esferas da sociedade em benefício da sua própria esfera, não reclamar a negação da propriedade privada, o
bastam por si sós a energia revolucionária e o amor-próprio espiri- princíp io de socieda de aquilo que a socie-
outra coisa senão erigir como
tual. Para que coincidam a revolução de um povo e a emancipação io, o que já se person ifica nele, sem inter-
dade erigiu como seu princíp
-de uma classe especial da sociedade civil, para que uma classe valha resulta do negativ o da socieda de. [...]
venção de sua parte, como
por toda a sociedade, é necessário, pelo contrário, que todos os defei- |
indo e concluindo:
tos da sociedade se condensem numa classe, que uma determinada pratic amente possíve l da Alema nha é a
À única emancipação
classe resuma em si a repulsa geral, que seja a incorporação do obstá- da teoria, que declara º homem
emancipação do ponto de vista
culo geral; é necessário, para isto, que uma determinada esfera social a emancipação da
essência suprema do homem. Na Alemanha,
" seja considerada como crime notório de toda a sociedade, de tal pação parale la das. supera
Idade Média só é possível como emanci
modo que a emancipação desta esfera surja como auto-emancipação não se pode cru a
ções parciais da Idade Média. Na Alemanha,
geral. Para que uma classe seja par excellence a classe da emancipa- derrub ar ao mesmo tempo. o ,
nenhum tipo de servidão sem se
revo udonar
ção, é necessário, inversamente, que outra classe seja evidentemente tipo de servidão. A meticulosa Alemanha não pode
emancipação oa e
a classe da sujeição. [...] sem revolucionar seu próprio fundamento. A
Na França, basta que alguém seja alguma coisa para querer desta emanci pação é
mão é a emancipação do homem. O cérebro
filosof ia não pode se rea-
ser todas as coisas. Na Alemanha, ninguém pode ser nada se não a filosofia; seu coração, o proletariado. A
proletariado pode ser
quiser renunciar a tudo. Na França, a emancipação parcial é o fun- lizar sem a extinção do proletariado, nem o
damento da emancipação universal. Na Alemanha, a emancipação abolido sem a realização da filosofia. [...]
universal é a conditio sine qua non de toda emancipação parcial.
Enquanto na França é a realidade da emancipação gradual que tem
de engendrar a liberdade total, na Alemanha, ao contrário, é justa-
mente a sua impossibilidade. [...] A produção da consciência
Onde reside, pois, a possibilidade positiva da emancipação e a produção do Estado
alemã? |
Resposta: na formação de uma classe com cadeias radicais,
... havia chega-
de uma classe da sociedade civil que não é uma classe da sociedade Por um caminho diferente, Friedrich Engels
se estabeleceu também
civil; de um Estado que é a dissolução de todos os Estados; de uma do... ao mesmo resultado que eu. Quando
namos então colocar
esfera que possui um caráter universal por seus sofrimentos univer- em Bruxelas, na primavera de 1845, combi
258 OS CLÁSSICOS DA POLÍTICA MARX: POLÍTICA E REVOLUÇÃO 259

conjuntamente nosso ponto de vista em contraste com o ponto de relações materiais, transformam com esta realidade que lhes é pró-
vista ideológico da filosofia alemã; na verdade, pretendíamos liqui- pria o seu pensamento e os produtos desse pensamento. Não é a
dar com a nossa consciência filosófica anterior. Tal propósito se consciência que determina a vida, mas a vida que determina a cons-
realizou na forma de uma crítica da filosofia pós-hegeliana. [...]º ciência. [...)
A produção de idéias, das concepções e da consciência a prin- [...] a divisão do trabalho implica [...] a contradição entre o
cípio se encontra direta e intimamente ligada à atividade material interesse do indivíduo isolado ou da família isolada e o interesse
e ao intercâmbio material dos homens, e como tal é a linguagem coletivo de todos os indivíduos que estão em relação entre si; além
da vida real. Os conceitos, o pensamento, a troca intelectual dos do mais, este interesse coletivo não existe apenas, digamos, na ima-
homens aí surgem ainda como emanação direta de seu comporta- ginação, enquanto “interesse universal”, mas antes de tudo na rea-
mento material. Dá-se o mesmo com a produção intelectual, tal lidade, como dependência recíproca de indivíduos entre os quais o
como se apresenta na linguagem da política, das leis, da moral, da trabalho é dividido.
religião, da metafísica etc., de um povo. Os homens é que são os [...]
produtores de seus conceitos, de suas idéias etc., mas os homens Realmente, desde o momento em que o trabalho começa a ser
reais, ativos, condicionados por um dado desenvolvimento de suas dividido, cada homem tem sua esfera de atividade exclusiva e deter-
forças produtivas e do tipo de relações que a elas corresponde, inclu- minada que lhe é imposta e da qual não pode escapar; ele é caça-
sive as mais amplas formas que tais relações possam assumir. A dor, pescador, pastor ou crítico e assim deve permanecer se não
consciência jamais pode ser outra coisa senão o Ser consciente (das quer perder seus meios de existência, ao passo que na sociedade
bewusste Sein) e o Ser dos homens é o seu processo de vida real. comunista, onde ninguém tem uma esfera de atividade exclusiva,
E se, em toda ideologia, os homens e suas relações parecem-nos mas pode se desenvolver no ramo que lhe agradar, e onde a socie-
colocados de cabeça para baixo como numa camera obscura, ” este dade regula a produção geral, torna-se possível para mim fazer
fenômeno resulta de seu processo vital histórico, exatamente como uma coisa hoje, outra amanhã, caçar pela manhã, pescar à tarde,
a inversão dos objetos na retina decorre de seu processo vital direta- cuidar do gado à noite, fazer a crítica depois do jantar, ao meu bel-
mente físico. prazer, sem que jamais me torne caçador, pescador ou crítico.
Ao contrário da filosofia alemã que desce do céu para a terra, Essa fixação da atividade social, esta fossilização de nosso pró-
trata-se aqui de subir da terra para o céu. Em outras palavras, não prio produto em uma força objetiva que nos domina, escapando
partimos do que os homens dizem, imaginam, concebem, nem tam- ao nosso controle, frustrando nossas expectativas, reduzindo a
pouco daquilo que eles são nas palavras, no pensamento, na imagi- nada nossos cálculos, é um dos momentos capitais do desenvolvi-
nação e na concepção de outros, para em seguida chegar aos mento histórico até hoje.
homens em carne e osso; não, partimos dos homens em sua ativi- É justamente essa contradição entre o interesse particular e o
dade real; é a partir também de seu processo de vida real que conce- interesse coletivo que leva este último a assumir, na qualidade de
bemos o desenvolvimento dos reflexos e ecos ideológicos deste pro- Estado, uma forma independente, separada dos interesses reais do
cesso vital. E mesmo as fantasmagorias do cérebro humano são indivíduo e do conjunto [da sociedade], e a tomar as feições de
sublimações que resultam necessariamente do processo de sua vida uma comunidade ilusória, tendo, entretanto, sempre por base con-
material que podemos constatar empiricamente e que se assenta creta os laços existentes em cada aglomeração familiar e tribal,
sobre bases materiais. A partir daí, a moral, a religião, a metafísica como os laços de sangue, língua, divisão do trabalho em grande
e todo o restante da ideologia, bem como as formas de consciência escala e outros interesses. Entre tais interesses, encontramos em par-
que lhe correspondem, imediatamente perdem toda aparência de ticular, como mais adiante mostraremos, os interesses das classes
autonomia. Não têm história nem evolução; são os homens, ao já condicionadas pela divisão do trabalho, que se diferenciam em
contrário, que, ao desenvolverem sua produção material e suas todo agrupamento desse gênero e no qual uma domina todas as
outras. Daí decorre que todas as lutas no interior do Estado, a luta
* Câmara escura, (N. T,) entre a democracia, a aristocracia e a monarquia, a luta pelo direito
MARX: POLÍTICA E REVOLUÇÃO 261
260 OS CLÁSSICOS DA POLÍTICA

de voto etc. etc., são apenas formas ilusórias sob as quais se travam encontra em contradição com um mundo existente de riqueza e de
as lutas reais entre as diferentes classes [...]. Segue-se, igualmente, cultura — que supõem, ambas, um grande crescimento da força
que toda classe que aspira ao domínio — mesmo que este domínio produtiva, ou seja, uma fase avançada de seu desenvolvimento.
represente a abolição de toda forma social antiga e de dominação Por outro lado, este desenvolvimento das forças produtivas (que
em geral, como é o caso do proletariado — deve, portanto, conquis- já implica o transcurso da existência empírica real dos homens no
é
tar inicialmente o poder político para representar, por sua vez, O plano da história mundial ao invés de no plano da vida local)
uma condição prática prelimina r absolutam ente indispensá vel, pois,
seu próprio interesse como se fosse o interesse universal, o que lhe
é obrigatório desde os primeiros momentos. Justamente porque os sem ela, é a penúria que se tornaria geral e, com a carência, é ainda
indivíduos não buscam senão o seu interesse particular — que para a luta pela subsistência que recomeçaria, e fatalmente recairíamos
eles não coincide com o seu interesse coletivo, já que este interesse, na mesma velha carência. Da mesma forma é uma condição prática
no* final das contas, não passa de uma forma ilusória da coletivi- sine qua non porque as relações universais do gênero humano
dade —, este interesse lhes é apresentado como um interesse “estra- somente podem ser estabelecidas por esse desenvolvimento univer-
nho”, “independente”” e que, por sua vez, constitui um interesse sal das forças produtivas e, por outro lado, esse desenvolvimento
“universal” especial e particular. Ou então eles mesmos têm de se engendra o fenômeno da massa “despojada de propriedade”” simul-
mover nesta dualidade, como é o caso na democracia. Além disso, taneamente em todos os países (concorrência universal), tornando
o combate prático desses interesses particulares que constantemente cada nação dependente das comoções das outras e, enfim, coloca
se opõem realmente aos interesses coletivos e ilusoriamente coleti- homens empiricamente universais que vivem no plano da história
vos torna necessária a intervenção prática e a contenção pelo inte- mundial no lugar de indivíduos vivendo num plano local. Sem isto,
resse “universal?” ilusório sob a forma de Estado. (1º) o comunismo não poderia existir a não ser como fenômeno local;
(2º) as forças das próprias relações humanas não teriam podido se
desenvolver como forças universais e, por isso, insuportáveis
— teriam permanecido como “*circunstâncias” ligadas a supersti-
O proletariado como classe universal ções locais; e (3º) toda a extensão das trocas aboliria o comunismo
local. [...]
O comunismo não é para nós nem um estado a ser criado nem
O poder social, isto é, a força produtiva multiplicada que um ideal ao qual a realidade deva se ajustar. Chamamos de comu-
nasce da cooperação dos diversos indivíduos, condicionada pela divi- nismo o movimento real que elimina o atual estado de coisas. As
são do trabalho, não se apresenta a estes indivíduos como a conju- condições desse movimento resultam de bases atualmente existen-
gação de sua própria força, pois tal cooperação não é em si voluntá- tes. Além disso, a massa de operários que não são senão operários
ria mas natural. Ao contrário, ela lhes parece uma força estranha — força de trabalho massiva, apartada do capital ou mesmo de
situada fora deles e da qual não sabem nem de onde vem nem para qualquer espécie limitada de satisfação — supõe o mercado mun-
onde vai; que, portanto, não podem mais dominá-la e que, ao con- dial; supõe igualmente, então, a perda deste trabalho enquanto
trário, passa agora por uma sequência particular de fases e estágios fonte segura de subsistência — perda que resulta da concorrência
de desenvolvimento tão independente da vontade e da marcha da e que não é a título transitório. O proletariado, portanto, não pode
humanidade que, na verdade, dirige essa vontade e essa marcha. existir senão na escala da história universal, da mesma forma que
Tal alienação — para usarmos uma expressão inteligível aos filóso- o comunismo, que é a sua conseqiiência, não pode de forma alguma
fos — não pode ser naturalmente abolida senão depois de satisfei- ser concebido a não ser como existência “histórica universal”. [...]
tas duas condições práticas. Para que ela se torne uma força ““insu- [...] As idéias da classe dominante, em todas as épocas, são
portável””, isto é, uma força contra a qual se faz a revolução, é também as idéias dominantes, ou seja, a classe que é a força mate-
necessário que ela tenha feito da massa da humanidade uma massa rial dominante da sociedade é também a força espiritual dominante.
totalmente ““destituída de propriedade””, que, ao mesmo tempo, se A classe que dispõe dos meios de produção material dispõe, ao
262 OS CLÁSSICOS DA POLÍTICA MARX: POLÍTICA E REVOLUÇÃO 263

mesmo tempo, dos meios de produção intelectual, se bem que, bate que se trata de empreender contra a nova classe dirigente, por
estando estes contidos naqueles, as idéias dos que não dispõem dos sua vez, tem como objetivo negar as condições sociais anteriores
meios de produção intelectual ficam, ao mesmo tempo, subordina- de uma forma mais decisiva e radical que a de todas as classes que
das a essa classe dominante. As idéias dominantes nada mais são antes disputavam o poder. [...]
do que a expressão ideal das relações materiais dominantes, são
estas relações materiais dominantes apreendidas sob a forma de
idéias e, portanto, a expressão das relações que fazem de uma classe
a classe dominante. Em outras palavras, são as idéias de seu domí- À comunidade e os indivíduos
nio. Os indivíduos que constituem a classe dominante possuem,
além de outras coisas, uma consciência e, consequentemente, pen-
sam. Na medida em que dominam enquanto classe e determinam O comunismo se distingue de todos os movimentos que até
uma época histórica em toda a sua amplitude, é evidente que tais agora o precederam pelo fato de que ele subverte a base de todas
indivíduos exercem seu domínio em todos os setores e que dominam, as relações de produção e troca anteriores e de que, pela primeira
entre outras coisas, também como seres pensantes, como produto- vez, ele conscientemente encara todas as condições naturais existen-
res de idéias, e regulam a produção e a distribuição das idéias de tes como criações dos homens que até agora nos precederam, despo-
seu tempo. As suas idéias, portanto, são as idéias dominantes de jando tais condições de seu caráter natural e submetendo-as ao
sua época. Tomemos como exemplo uma época e um país em que poder dos indivíduos unidos. A precondição criadora do comunismo
a realeza, a aristocracia e a burguesia lutam pelo poder e onde, por- é precisamente a base real que impossibilita tudo o que existe inde-
tanto, este poder é dividido. O pensamento dominante que surge pendentemente dos individuos — na medida, contudo, em que esta
daí é a doutrina da divisão dos poderes, então enunciada como condição preexistente é pura e simplesmente produto das relações
uma “ei eterna”. [...] anteriores dos indivíduos entre si. [...]
[...] Na verdade, cada nova classe que toma o lugar daquela Somente na comunidade com outros é que cada indivíduo
que antes dela dominava é obrigada, para alcançar seus objetivos, tem os meios de desenvolver suas faculdades em todos os sentidos;
a representar o seu interesse como o interesse comum a todos os é somente na comunidade que a liberdade pessoal, portanto, se
membros da sociedade, ou, para expressar isso no plano das idéias: torna possível. Nos sucedâneos de comunidade que até agora exis-
essa classe é obrigada a dar às suas idéias a forma de universali- tiram, no Estado etc., apenas existia liberdade pessoal para os indi-
dade, de representá-las como as únicas razoáveis, as únicas univer- víduos desenvolvidos nas condições da classe dominante e somente
salmente válidas. Pelo simples fato de que se opõe a uma classe, a na medida em que pertenciam a esta classe. A comunidade apa-
classe revolucionária não se apresenta inicialmente como classe mas rente, que os indivíduos até agora constituíram, sempre adquiriu
como representando toda a sociedade, como a massa total da socie- uma existência independente em face deles e, ao mesmo tempo,
dade frente à única classe dominante. Isto lhe é possível porque, pelo fato de que ela representava a união de uma classe frente a
de início, o seu interesse está de fato ainda intimamente ligado ao outra, significava não somente uma comunidade totalmente ilusó-
interesse comum de todas as outras classes não dominantes e por- ria para a classe dominada como também uma nova cadeia. Na
que, sob a pressão do anterior estado de coisas, este interesse ainda comunidade real, os indivíduos conquistam sua liberdade simulta-
não pode se desenvolver como interesse particular de uma classe neamente à sua associação, por meio e no interior de tal associa-
particular. [...] Cada nova classe não estabelece, portanto, sua ção. [...]
dominação a não ser sobre uma base mais ampla que a da classe Todo o desenvolvimento histórico até nossos dias evidencia
dominante precedente, mas, em compensação, a oposição entre a que as relações coletivas, nas quais ingressam os indivíduos de uma
classe que doravante domina e aquelas que não dominam apenas classe e que sempre foram condicionados por seus interesses comuns
se agrava em profundidade e rigor. Daí decorre o seguinte: o com- diante de um terceiro, constituíram sempre uma comunidade que
264 OS CLÁSSICOS DA POLÍTICA MARX: POLÍTICA E REVOLUÇÃO 265

abarcava tais indivíduos unicamente enquanto individuos médios, pela independência que adquirem as relações sociais, surge como
ou seja, na medida em que viviam nas condições de existência de um fruto inevitável da divisão do trabalho o fato de haver uma dife-
sua classe. Em suma, tratava-se de relações das quais participavam rença entre a vida de cada indivíduo enquanto vida pessoal e a sua
não enquanto indivíduos, mas como membros de uma classe. Ao vida enquanto subordinada a um kamo qualquer do trabalho e às
contrário, na comunidade dos proletários revolucionários que colo- suas respectivas condições inerentes. (Não se deve entender por isso
cam sob seu controle todas as suas condições próprias de existência que o especulador ou o capitalista, por exemplo, deixe de ser uma
e as de todos os membros da sociedade, é o inverso que se produz: pessoa; mas a sua personalidade está condicionada por relações de
nela, os indivíduos participam como indivíduos. E, desde que a asso- classe inteiramente determinadas, e tal diferença não surge senão
ciação dos indivíduos se opere no quadro das forças produtivas que em oposição a uma outra classe, tornando-se-lhe aparente apenas
ora supomos desenvolvidas, é esta reunião que estabelece as condi- no momento em que vão à ruína.) Na ordem (e ainda mais na tri-
ções ao livre desenvolvimento dos indivíduos e a mudança destas bo) este fato permanece ainda oculto; por exemplo, um nobre será
condições sob seu controle, ao passo que, até então, elas estavam sempre um nobre, um roturier sempre um roturier, se fizermos abs-
jogadas ao acaso e assumiam uma existência autônoma em face tração de suas demais relações. É uma qualidade inseparável de sua
dos indivíduos precisamente devido ao seu isolâmento enquanto indi- individualidade. A diferença entre o indivíduo pessoal oposto ao
víduos e à sua necessária união implicada pela divisão do trabalho indivíduo em sua qualidade de membro de uma classe, a contingên-
mas transformada — a partir de sua separação enquanto indivi- cia das condições de existência para o indivíduo apenas surgem com
duos — num laço que lhes era estranho. A associação até agora a classe que é, ela mesma, um produto da burguesia. Somente a
conhecida não era, de forma alguma, uma união voluntária (tal concorrência e a luta dos indivíduos entre si engendram e desenvol-
como é apresentada, por exemplo, em O contrato social) mas uma vem esta contingência como tal. Em consegiência, nas representa-
união necessária baseada em condições nas quais os indivíduos con- ções, os indivíduos são mais livres sob o domínio da burguesia do
tavam com a casualidade (comparar, por exemplo, a formação do que antes, porque suas condições de existência lhes são contigentes;
Estado na América do Norte e nas repúblicas da América do Sul). na verdade são naturalmente menos livres porque estão muito mais
Este direito de poder usufruir tranquilamente da casualidade sob subordinados a uma força objetiva. A diferença em relação à ordem
certas condições é o que até então se chamava de liberdade pessoal. surge sobretudo na oposição entre burguesia e proletariado. [...] A
Essas condições de existência são naturalmente apenas as forças pro- contradição entre a personalidade do proletário em particular e as
dutivas e as formas de circulação de cada período. condições de vida que lhe são impostas, isto é, o trabalho, torna-
Se considerarmos, do ponto de vista filosófico, o desenvolvi- se-lhe aparente principalmente quando já se sacrificou desde sua
mento dos indivíduos nas condições de existência comum das ordens . primeira juventude e porque jamais terá a oportunidade de alcan-
e das classes que historicamente se sucedem e nas representações çar, no quadro de sua classe, as condições que o fariam passar a
gerais que a partir de tais condições lhes são impostas, podemos, uma outra classe. [...] Portanto, enquanto os servos fugitivos dese-
de fato, imaginar facilmente que o Gênero ou o Homem se desen- javam apenas desenvolver livremente suas condições de existência
volveram nesses indivíduos ou que estes desenvolveram o Homem. já estabelecidas e fazê-las prevalecer, mas não conseguiam chegar
É uma suposição que ocasiona grosseiros enganos históricos. Pode- em última instância senão ao trabalho livre, os proletários devem,
mos então compreender essas diferentes ordens e classes como espe- se desejam se afirmar enquanto pessoas, abolir sua própria condi-
cificações da expressão geral, como subdivisões do Gênero, como ção anterior de existência, a qual é, ao mesmo tempo, a de toda a
fases do desenvolvimento do Homem. [...] sociedade até nossos dias, quero dizer, abolir o trabalho. Por isso,
Os indivíduos naturalmente partiram sempre de si mesmos encontram-se em oposição direta à forma pela qual os indivíduos
não no sentido do indivíduo “puro” dos ideólogos, mas de si mes- da sociedade até o momento se expressaram, ou seja, em oposição
mos no quadro de suas condições e relações históricas determina- ao Estado, e devem derrubar esse Estado para realizar sua persona-
das. Mas, no curso do desenvolvimento histórico e precisamente lidade.
266 OS CLÁSSICOS DA POLÍTICA MARX: POLÍTICA E REVOLUÇÃO 267

A atualidade da revolução e uma guerra mundial devastadora a privaram de todos os seus


meios de subsistência; a indústria e o comércio parecem aniquila-
dos. E tudo isso por quê? Porque a sociedade possui civilização
Dentre os trabalhos esparsos nos quais então expusemos publi- em demasia, condições de vida em demasia, indústria em demasia,
camente nossas idéias a respeito de diversas questões, citarei apenas comércio em demasia. As forças produtivas de que dispõe já não
O manifesto do partido comunista, redigido em colaboração por servem ao desenvolvimento da civilização burguesa e das relações
Engels e por mim.” de propriedade burguesas. Ao contrário, tornam-se agora tão dema-
Cada etapa da evolução percorrida pela burguesia foi seguida siadamente poderosas para tais relações que constituem um obstá-
por um correspondente êxito político: estamento oprimido pelo culo ao seu desenvolvimento. [...]
domínio dos senhores feudais; associação armada e autônoma na De que forma a burguesia supera esta crise? De um lado, pela
Comuna; !º república urbana independente em alguns lugares; ter- necessária destruição de uma parcela considerável de forças produti-
ceiro Estado tributário da monarquia em outros; em seguida e vas; de outro, pela conquista de novos mercados e pela exploração
durante o período da manufatura, contrapeso da nobreza nas mais intensa dos antigos. De que modo faz isto, então? Preparando
monarquias feudais ou absolutas; e, em geral, pedra angular das -crises mais amplas e mais violentas e diminuindo os meios de pre-
grandes monarquias, a burguesia, a partir do estabelecimento da veni-las.
grande indústria e do mercado universal, conquistou finalmente a As armas de que a burguesia se utilizou para derrubar o feuda-
hegemonia exclusiva do poder político no moderno Estado represen- lismo agora se voltam contra a própria burguesia. Mas a burguesia
tativo. O governo do Estado moderno não passa de uma junta que não forjou apenas as armas que devem destruí-la; produziu também
administra os negócios comuns a toda a classe burguesa. [...)!! 058 homens que empunharão tais armas: os operários modernos, os
A burguesia apenas pode existir com a condição de incessante- proletários. [...]
mente revolucionar os instrumentos de produção e, por conseguinte, A indústria moderna transformou a pequena oficina do mes-
as relações de produção e, com estas, todas as relações sociais. tre patriarcal na grande fábrica do capitalista industrial. Massas
A burguesia elimina cada vez mais o fracionamento dos meios de operários, amontoados na fábrica, estão organizadas de forma
de produção, da propriedade e da população. Ela aglomerou a popu- militar. Tal como soldados rasos da indústria, estão colocados sob
lação, centralizou os meios de produção e concentrou a proprie- vigilância de uma hierarquia completa de oficiais e suboficiais. Não
dade em poucas mãos. A consegiiência necessária disto foi a centra- apenas são escravos da classe burguesa, do Estado burguês, mas,
lização política. As províncias independentes, ligadas entre si quase diariamente e em todos os momentos, escravos da máquina, do
unicamente por laços federais, mas com interesses, leis, governos e capataz e, sobretudo, do patrão da fábrica. [...]
tarifas aduaneiras diferentes, foram consolidadas em uma só nação,
sob um só governo, uma só lei, um só interesse nacional de classe
e uma só barreira alfandegária.
[...] Emergência da classe revolucionária
As relações burguesas de produção e de troca, as relações bur-
guesas de propriedade, toda esta sociedade burguesa moderna, que
deu origem a tão poderosos meios de produção e troca, assemelha- O proletariado passa por diferentes etapas de desenvolvimento.
se ao feiticeiro que já não é capaz de dominar os poderes infernais Sua luta contra a burguesia começa com o seu surgimento.
que desencadeou com seus feitiços. [...] A princípio, a luta é travada por operários isolados, depois,
. Durante as crises, uma epidemia social que em qualquer época pelos operários de uma mesma fábrica e, mais tarde, pelos operá-
anterior teria parecido absurda se expande por toda a sociedade rios de uma mesma categoria local contra o burguês isolado que
— a epidemia da superprodução. A sociedade subitamente se vê os explora diretamente. [...] Durante esta etapa, os proletários, por-
regredir a um momentâneo estado de barbárie: dir-se-ia que a fome tanto, não lutam contra seus próprios inimigos mas contra os
268 OS CLÁSSICOS DA POLÍTICA
MARX: POLÍTICA E REVOLUÇÃO 269

inimigos de seus inimigos, isto é, contra os vestígios da monarquia


Dentre todas as classes que hoje se defrontam com a burgue-
absoluta, os proprietários territoriais, os burgueses não industriais
sia, apenas o proletariado é uma classe verdadeiramente revolucio-
e os pequenos-burgueses. Desta forma, todo o movimento histórico
nária. [...]
se concentra nas mãos da burguesia: cada vitória alcançada nessas
As condições de existência da velha sociedade já estão aboli-
condições é uma vitória da burguesia.
das nas condições de existência do proletariado. O proletariado não
Mas a indústria, em seu desenvolvimento, não apenas aumenta
tem propriedade, as suas relações com a mulher e os filhos nada
o número de proletários mas os concentra em massas consideráveis:
têm em comum com as relações familiares burguesas; o trabalho
a sua força aumenta e eles adquirem maior consciência da mesma.
industrial moderno, o moderno jugo do capital, que é o mesmo na
[...] Os operários começam a formar coalizões contra os burgueses
Inglaterra ou na França, na América do Norte ou na Alemanha,
e a atuar em conjunto para a defesa de seus salários. Chegam mesmo
retira todo caráter nacional ao proletariado. Para ele, as leis, a
a“formar associações permanentes para se garantirem dos meios
moral, a religião, são meros preconceitos burgueses, por trás dos
necessários na previsão de tais embates circunstanciais. Aqui e acolá
quais se escondem outros tantos interesses da burguesia. [...]
a luta eclode em sublevação.
Os proletários não podem conquistar as forças produtivas
Por vezes, os operários triunfam, mas é um triunfo efêmero.
sociais, a não ser abolindo o seu próprio modo de apropriação
O verdadeiro resultado de suas lutas não é o êxito imediato, mas a
vigente e, portanto, todo modo de apropriação existente até hoje.
união cada vez mais abrangente dos operários. Esta união é favore-
Os proletários não têm nada a salvaguardar; têm é de destruir tudo
cida pelo crescimento dos meios de comunicação criados pela grande
o que até agora vem garantindo e assegurando a propriedade pri-
indústria e que colocam em contato os operários de diferentes loca-
vada existente. [...]
lidades. E basta esse contato para que as numerosas lutas locais
A evolução da indústria, da qual a burguesia — incapaz de
— que em toda parte se revestem do mesmo caráter — se centrali-
se lhe opor — é o agente involuntário, substitui o isolamento dos
zem numa luta nacional, em uma luta de classes. Mas toda luta de
operários — resultante da competição — pela sua união revolucio-
classes é uma luta política.
nária através da associação. Desta forma, o desenvolvimento da
[...] grande indústria retira debaixo dos pés da burguesia as bases sobre
Esta organização do proletariado em classe e, portanto, em
as quais esta produz e se apropria do que é produzido.
partido político é incessantemente solapada pela competição entre
A burguesia, antes de tudo, produz seus próprios coveiros.
os próprios operários. No entanto, ela ressurge, e sempre mais forte, Sua ruína e a vitória do proletariado são igualmente inevitáveis. [...]
mais firme, mais poderosa. Ela se vale das desavenças internas aos Como vimos anteriormente, o primeiro passo da revolução
burgueses para obrigá-los a reconhecer legalmente alguns interesses
operária é a promoção do proletariado a classe dominante, a con-
da classe operária, como, por exemplo, a lei da jornada de dez
quista da democracia. O proletariado fará uso de seu domínio polií-
horas na Inglaterra. [...]
tico para retirar gradualmente todo o capital da burguesia, para cen-
Finalmente, nos periodos em que a luta de classes se aproxima
tralizar todos os instrumentos de produção nas mãos do Estado,
de seu deseniace, o processo de desintegração da classe dominante
ou seja, do proletariado organizado como classe dominante, e para
e de toda a velha sociedade adquire um caráter tão violento e tão
aumentar com a maior rapidez possível a soma das forças produti-
evidente que uma pequena fração dessa classe dela deserta e adere
vas. Naturalmente isto não poderá se realizar de início, a não ser
à classe revolucionária, àquela em cujas mãos está o porvir. E tal por uma violação despótica do direito-de propriedade e das rela-
como antes uma parte da nobreza passou para a burguesia, em nos-
ções burguesas de produção, isto é, pela adoção de medidas que,
sos dias, um setor da burguesia passa para o proletariado, particu-
do ponto de vista econômico, parecerão insuficientes e insustentá-
larmente esse setor dos ideólogos burgueses que se elevaram teorica- veis, mas que, no curso do movimento, sobrepujarão a si mesmas
mente o bastante para compreender o conjunto do movimento histó- e serão indispensáveis como meio para transformar radicalmente
rico. todo o modo de produção. [...]
270 OS CLÁSSICOS DA POLÍTICA MARX: POLÍTICA E REVOLUÇÃO 21

Uma vez que, no curso do desenvolvimento, tenham desapare- poder estranho, da autoridade. O poder executivo, em oposição
cido as diferenças de classe e toda a produção tenha se concentrado ao legislativo, expressa a heteronomia da nação em oposição à sua
nas mãos dos indivíduos associados, o poder público perderá o seu autonomia. [...]
caráter político. O poder político, em sua essência, é a violência Este poder executivo, com sua imensa organização burocrática
organizada de uma classe para a opressão de outra. Se na luta con- e militar, com sua aparelhagem de Estado complexa e artificial,
tra a burguesia o proletariado indefectivelmente se constitui em um exército de funcionários que soma meio milhão de homens ao
classe; se, mediante a revolução, se converte em classe dominante lado de um exército de outro meio milhão de homens, este espan-
e, enquanto classe dominante, suprime pela força as velhas relações toso organismo parasitário que, como uma rede, cinge o corpo da
de produção, ele suprime, juntamente com tais relações de produ- sociedade francesa e lhe tampa todos os poros, teve origem na época
ção, as condições para a existência do antagonismo de classe e das da monarquia absoluta, da decadência do regime feudal que o refe-
classes em geral e, portanto, o seu próprio domínio como classe. rido organismo contribuiu para acelerar. Os privilégios senhoriais
Em substituição à antiga sociedade burguesa, com suas classes e dos proprietários de terra e das cidades converteram-se em outras
seus antagonismos de classe, surgirá uma associação na qual o livre tantas atribuições do poder do Estado, os dignatários feudais em
desenvolvimento de cada um será a condição para o livre desenvol- funcionários remunerados e o variegado mapa-mostruário das sobe-
vimento de todos. ranias medievais em luta, no plano regulamentado de um poder esta-
tal cujo trabalho está dividido e centralizado como numa fábrica.
A primeira revolução francesa, com sua missão de romper todos
os poderes particulares locais, territoriais, municipais e provinciais,
A Comuna contra o Estado para criar a unidade civil da nação, tinha necessariamente de desen-
volver o que a monarquia absoluta tinha iniciado: a centralização.
Mas, ao mesmo tempo, ampliou o volume, as atribuições e o
No que me diz respeito, não é meu o mérito de haver desco-
número de servidores do poder governamental. Napoleão aperfei-
berto a existência das classes na sociedade moderna nem a da luta
çoou esta máquina do Estado. A monarquia legítima e a monar-
entre elas. Muito antes de mim, alguns historiadores burgueses já
quia de julho nada mais acrescentaram além de uma maior divisão
haviam exposto o desenvolvimento histórico desta luta de classes,
do trabalho, que crescia na medida em que a divisão do trabalho
e alguns economistas burgueses, a anatomia das mesmas. O que
no interior da sociedade burguesa criava novos grupos de interesse
eu trouxe de novo foi demonstrar: 1) que a existência das classes
está indissoluvelmente ligada a determinadas fases históricas de
e, portanto, nova matéria para a administração do Estado. Cada
interesse comum (gemeinsame) era destacado da sociedade, a esta
desenvolvimento da produção; 2) que a luta de classes conduz,
necessariamente, à ditadura do proletariado; 3) que esta mesma se contrapondo como interesse superior, geral (aligemeines), sub-
ditadura não é, em si mesma, mais do que o trânsito para a aboli- traía-se à própria atuação dos indivíduos da sociedade e convertia-
ção de todas as classes e para uma sociedade sem classes. [...]!? se em objeto da atividade governamental, desde a ponte, a escola
“C'est le triomphe complet et définitif du socialisme””, assim carac- e os bens comunais de um município rural qualquer até as ferrovias,
terizou Guizot o dia 2 de dezembro. No entanto, se a queda da repú- a riqueza nacional e as universidades da França. Finalmente, a repú-
blica parlamentar já contém em germe o triunfo da revolução prole- blica parlamentar, em sua luta contra a revolução, viu-se obrigada
tária, o seu resultado imediato, tangível, era a vitória de Bonaparte a fortalecer, juntamente com as medidas repressivas, os instrumen-
sobre o Parlamento, do poder executivo sobre o poder legislativo, tos e a centralização do poder governamental. Todas as revoluções
da força sem frases sobre a força das frases. No Parlamento, a aperfeiçoavam esta máquina ao invés de destroçá-la. Os partidos
nação erigia sua vontade geral em lei, isto é, erigia a lei da classe que se alternavam na luta pelo domínio consideravam a conquista
dominante como sua vontade geral. Diante do poder executivo, desse imenso edifício do Estado como o principal troféu do vence-
abdica de toda vontade própria e se submete aos ditames de um dor. [...]
2722 OS CLÁSSICOS DA POLÍTICA MARX: POLÍTICA E REVOLUÇÃO 273

É sob o segundo Bonaparte que o Estado parece ter adquirido Compreenderam que o seu dever imperioso e seu direito indiscuti-
uma total autonomia. [...] vel é o de se apropriarem de seus próprios destinos, tomando o
Contudo, o poder do Estado não paira no ar. Bonaparte repre- poder.”” Mas a classe operária não pode se limitar simplesmente a
senta uma classe que é, além do mais, a classe mais numerosa da se apossar da máquina do Estado tal e como esta se apresenta e
sociedade francesa: os camponeses parceleiros. [...] dela se servir para seus próprios fins.
A parcela, o camponês e sua família e, ao lado, outra parcela, O poder estatal centralizado, com seus órgãos onipotentes
outro camponês e outra família. Umas tantas destas unidades for- — o exército permanente, a polícia, a burocracia, o clero e a jus-
mam uma aldeia e umas tantas aldeias, um departamento. Desta tiça —, órgãos criados de acordo com um plano de divisão sistemá-
forma se constitui a grande massa da nação francesa, pela simples tica e hierárquica do trabalho, origina-se dos tempos da monarquia
soma de unidades do mesmo nome, do mesmo modo, como, por absoluta e serviu à sociedade burguesa nascente como uma arma
exemplo, as batatas de um saco formam um saco de batatas. Na poderosa em suas lutas contra o feudalismo. No entanto, o seu
medida em que milhões de famílias vivem sob condições econômi- desenvolvimento se achava entorpecido por todo o lixo medieval:
cas de existência que as diferenciam — em seu modo de viver, seus direitos senhoriais, privilégios locais, monopólios municipais e gre-
interesses e sua cultura — de outras classes e a estas as opõem de
miais, códigos provinciais. A escova gigantesca da revolução fran-
uma maneira hostil, aquelas constituem uma classe. Enquanto exis-
cesa do século XVIII varreu todas essas relíquias dos tempos passa-
tir entre os camponeses parceleiros uma articulação puramente local
dos, limpando assim, ao mesmo tempo, o solo da sociedade dos
e a identidade de seus interesses não forjar entre eles nenhuma comu-
últimos obstáculos que se erguiam diante da superestrutura do
nidade, nenhuma união nacional e nenhuma organização política,
Estado moderno, erigido sob o Primeiro Império, que, por sua
não constituirão uma classe. Eles são, poitanto, incapazes de fazer
vez, era o fruto das guerras de coalizão da velha Europa semifeu-
valer seu interesse de classe em seu próprio nome, seja por meio
dal contra a França moderna. [...]
de um Parlamento ou por meio de uma Convenção. Não podem
A antítese direta do Império era a Comuna. O brado de ““re-
se representar a si mesmos mas têm de ser representados. Seu repre-
sentante tem de aparecer ao mesmo tempo como seu senhor, como pública social””, com o qual a revolução de Fevereiro foi anunciada
uma autoridade acima deles, como um poder ilimitado de governo pelo proletariado de Paris, não representava mais que o anelo vago
que os proteja das demais classes e lhes mande a chuva e o sola por uma república que não somente eliminasse a forma monárquica
partir de cima. Por conseguinte, a influência política dos campone- da dominação de classe, mas a própria dominação de classe. A
ses parceleiros encontra sua expressão última no fato de que o poder Comuna era a forma positiva dessa república.
executivo submete a sociedade ao seu comando. [...] Paris, a sede central do velho poder governamental e, ao
mesmo tempo, fortaleza social da classe operária francesa, havia-
se levantando em armas contra a tentativa de Thiers e dos “ru-
rais”” de restaurar e perpetuar aquele velho poder que lhes tinha
A Comuna como antítese do Império sido legado pelo Império. E se Paris pôde resistir foi unicamente
porque, em conseqiiência do ataque, seu exército havia se desfeito
e substituído por uma Guarda Nacional cujo principal contingente
Ao alvorecer o dia 18 de março de 1871, Paris despertou entre era composto por operários. Tratava-se agora de converter este
um clamor de “Vive la Commune!”. O que é a Comuna, essa esfinge fato numa instituição duradoura. Por isso, o primeiro decreto da
que tanto atormenta os espíritos burgueses? 14 Comuna foi o de suprimir o exército permanente e substituí-lo
“Os proletários de Paris — dizia o Comitê Central em seu pelo povo armado.
manifesto de 18 de março —, em meio aos fracassos e às traições A Comuna estava formada pelos conselheiros municipais elei-
das classes dominantes, perceberam que é chegada a hora de salvar tos por sufrágio universal nos diversos distritos da cidade. Tais con-
a situação tomando em suas mãos a direção dos negócios públicos... selheiros eram responsáveis e destituíveis a qualquer momento.
274 OS CLÁSSICOS DA POLÍTICA MARX: POLÍTICA E REVOLUÇÃO 275

A maioria dos seus membros eram naturalmente operários questões coletivas por meio de uma assembléia de delegados na capi-
ou representantes reconhecidos pela classe operária. A Comuna não tal do distrito correspondente, e essas assembléias, por sua vez, envia-
deveria ser um organismo parlamentar mas uma corporação de tra- riam deputados à Assembléia Nacional de delegados de Paris, enten-
balho, ao mesmo tempo executiva e legislativa. Ao invés de conti- dendo-se que todos os delegados poderiam ser destituídos a qualquer
nuar a ser um instrumento do governo central, a polícia foi imedia- momento e que estariam sujeitos ao mandato imperativo [instruções]
tamente privada de suas atribuições políticas e convertida em instru- de seus eleitores. As poucas mas importantes funções que ainda resta-
mento da Comuna, perante ela responsável e destituível a qualquer riam a um governo central não seriam suprimidas, como foi dito fal-
momento. O mesmo foi feito em relação aos funcionários dos seando intencionalmente a verdade, mas seriam exercidas por agen-
demais setores da administração. Dos membros da Comuna para tes comunais e, consequentemente, estritamente responsáveis. Não
baixo, todos os que desempenhavam cargos públicos deviam desem- se tratava de destruir a unidade da nação, mas, pelo contrário, de
perhá-los com salários de operários. organizá-la mediante um regime comunal, convertendo-a em uma rea-
Uma vez suprimidos o exército permanente e a polícia, que lidade ao destruir o poder do Estado, que pretendia ser a encarnação
eram os elementos da força física do antigo governo, a Comuna daquela unidade, independente e situado acima da própria nação,
tomou. imediatamente medidas para destruir a força espiritual de em cujo corpo não era mais que uma excrescência parasitária.
repressão, o “poder dos padres””, decretando a separação entre a Enquanto os órgãos meramente repressivos do velho poder estatal
Igreja e o Estado e a expropriação de todas as igrejas como corpo- teriam de ser amputados, as suas legítimas funções deveriam ser
rações proprietárias. Os padres foram devolvidos ao retiro da vida arrancadas a uma autoridade que usurpava uma posição proeminente
privada, para viver das esmolas dos fiéis, tal como seus antecesso- sobre a própria sociedade, para devolvê-la aos servidores responsá-
res, os apóstolos. Todas as instituições de ensino foram abertas gra- “veis dessa sociedade. Ao invés de escolher, uma vez a cada três ou
tuitamente ao povo e ao mesmo tempo emancipadas de toda intro- seis anos, os membros da classe dominante que representarão e enga-
missão da Igreja e do Estado. Desta forma, não somente se colo- narão o povo no Parlamento, o sufrágio universal teria de servir ao
cava o ensino ao alcance de todos, mas se liberava a própria ciência povo organizado em comunas, tal como o sufrágio individual serve
dos entraves a que os preconceitos de classe e o poder governamen- aos patrões que procuram operários e administradores para seus negó-
tal a sujeitavam. cios. E sabe-se bem que, em se tratando de negócios, tanto as compa-
Os funcionários. judiciais deviam perder aquela falsa indepen- nhias quanto os particulares geralmente sabem posicionar cada homem
dência que apenas havia servido para disfarçar a sua submissão no posto que lhe corresponde e, se às vezes se enganam, reparam seu
abjeta aos sucessivos governos diante dos quais prestavam e sucessi- erro prontamente. Por outro lado, nada poderia ser mais distante
vamente violavam o juramento de fidelidade. Tal como os demais do espírito da Comuna que substituir o sufrágio universal por uma
funcionários públicos, os magistrados e os juízes deviam ser funcio- nomeação hierárquica.
nários eleitos, responsáveis e destituíveis. A variedade de interpretações a que a Comuna foi submetida
É lógico que a Comuna de Paris deveria servir de modelo a e a variedade de interesses que a interpretaram a seu favor demons-
todos os grandes centros industriais da França. Uma vez que fosse tram que ela era uma forma política perfeitamente flexível, diferente
estabelecido o regime comunal em Paris e nos centros secundários, das formas anteriores de governo que haviam sido todas fundamen-
o antigo governo centralizado teria de ceder o lugar também nas talmente repressivas. Eis o seu verdadeiro segredo: a Comuna era
províncias ao governo dos produtores pelos produtores. No breve essencialmente um governo da classe operária, fruto da luta da
esboço de organização nacional que a Comuna não teve tempo classe produtora contra a classe apropriadora, a forma política
para desenvolver, dizia-se claramente que a Comuna deveria ser a finalmente descoberta para realizar no seu interior a emancipação
forma política a ser assumida até pela menor aldeia do pais, e que econômica do trabalho.
nos distritos rurais o exército permanente deveria ser substituído Sem esta última condição, o regime comunal teria sido uma
por uma milícia popular, com um período extraordinariamente curto impossibilidade e uma impostura. A dominação política dos produ-
de serviço. As comunas rurais de cada distrito administrariam suas tores é incompatível com a perpetuação de sua escravidão social.
MARX: POLÍTICA E REVOLUÇÃO 277
2%6 OS CLÁSSICOS DA POLÍTICA

Portanto, a Comuna teria de servir de alavanca para extirpar os ali- um indivíduo pelo que ele pensa de si mesmo, não podemos tam-
cerces econômicos sobre os quais repousa a existência das classes e, pouco julgar estas épocas de revolução por sua consciência, mas,
por conseguinte, a dominação de classe. Emancipado o trabalho, ao contrário, deve-se explicar esta consciência pelas contradições
todo homem se converte em trabalhador, e o trabalho produtivo da vida material, pelo conflito existente entre as forças produtivas
deixa de ser um atributo de classe. sociais e as relações de produção. Nenhuma formação social desapa-
rece antes de se terem desenvolvido todas as forças produtivas cabi-
veis dentro dela, e jamais aparecem novas e mais avançadas rela-
ções de produção. antes que as condições materiais para a sua exis-
Um resumo de Marx tência tenham amadurecido no seio da própria sociedade antiga.
[...] As relações burguesas de produção são a última forma antagô-
nica do processo social de produção; antagônica; não no sentido
Em Bruxelas, para onde me mudei em virtude de uma ordem de um antagonismo individual, mas de um antagonismo que advém
de deportação expedida pelo senhor Guizot, tive de prosseguir das condições sociais de vida dos indivíduos. Mas as forças produti-
meus estudos de economia política iniciados em Paris. É O resul- vas que se desenvolvem no seio da sociedade burguesa propiciam,
tado geral a que cheguei e que, uma vez obtido, serviu de fio condu- ao mesmo tempo, as condições materiais para a solução deste anta-
tor aos meus estudos pode assim se resumir: na produção social de gonismo.
sua vida, os homens assumem determinadas relações necessárias e Com esta formação social se encerra, portanto, a pré-história
independentes de sua vontade, relações de produção que correspon- da sociedade humana.
dem a uma determinada fase de desenvolvimento de suas forças
produtivas materiais. O conjunto dessas relações de produção forma
a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se
ergue a superestrutura jurídica e política e à qual correspondem
determinadas formas de consciência social. O modo de produção
Notas
da vida material condiciona o processo da vida social, política e espi-
ritual em geral. Não é a consciência do homem que determina o seu
ser, mas, ao contrário, é o ser social que determina sua consciên-
cia. Ao chegar a uma determinada fase de desenvolvimento, as for- ! Trecho do “Prefácio” de Contribuição à crítica da economia política,
ças produtivas materiais da sociedade se chocam com as relações de 1859, onde Marx menciona os principais momentos de sua formação.
de produção existentes, ou, o que não é mais do que a expressão 2 Os trechos que se seguem são de A questão judaica, de 1843.
jurídica disso, com as relações de propriedade nas quais até então
3 Em francês, no original alemão, tal como as outras palavras destacadas
se desenvolveram. De formas de desenvolvimento das forças produ- ao longo deste texto.
tivas, estas relações se convertem em seus entraves. Instaura-se assim
uma época de revolução social. Ao mudar a base econômica, revolu- 4 Referências de Marx à Constituição francesa de 1793.
ciona-se, mais ou menos rapidamente, toda a imensa superestrutura 5 Declaração de 1791.
sobre ela edificada. Quando se estudam tais revoluções, deve-se sem- 6 “Prefácio” de Contribuição à crítica da economia política.
pre distinguir entre as mudanças materiais ocorridas nas condições
| 7 Este parágrafo e os que se seguem pertencem à Crítica à filosofia do
econômicas de produção e que podem ser verificadas com a exati-
direito de Hegel, de 1844.
dão própria às ciências naturais e as formas jurídicas, políticas, reli-
giosas, artísticas ou filosóficas, em uma palavra, as formas ideoló- 8 Do “Prefácio” de Contribuição à crítica da economia politica. A “cri
gicas nas quais os homens adquirem consciência desse conflito e tica da filosofia pós-hegeliana”” à qual Marx se refere é 4 ideologia alemã,
-de 1845. São de A ideologia alemã os trechos que se seguem.
lutam para resolvê-lo. E, do mesmo modo que não podemos julgar
278 OS CLÁSSICOS DA POLÍTICA / N

9 « . PN

SÉRIE PRINCÍPIOS
Prefácio” de Contribuição à crítica da economia. política.
ns

10 Chamavam-se comunas na França as cidades nascentes ainda antes de


arrancar a seus amos e senhores feudais a autonomia local e os direitos
políticos como ““terceiro Estado”'. Em linhas gerais, considerou-se aqui e Temas que integram os currículos de diversas áreas do
a Inglaterra como um país típico do desenvolvimento econômico da bur- Ensino Superior.
guesia e a França como um país típico de seu desenvolvimento político. * Abordagem objetiva, textos divididos em intertítulos, conceitos
(Nota de F. Engels à edição inglesa de 1888.) explicados no próprio texto.
Os habitantes das cidades italianas e francesas assim denominavam suas
* “Vocabulário crítico”, guia explicativo de termos que possam
comunidades urbanas, tão logo adquiriam ou arrancavam aos seus senho-
oferecer dúvida.
res feudais os primeiros direitos de autonomia. (Nota de F. Engels à edi-
ção alemã de 1890.) * “Bibliografia comentada", roteiro bibliográfico para
aprofundamento do tema.
q
Este trecho e os que se seguem são
à
de O manifesto
;
comunista, escrito Veja, a seguir, nossos últimos lançamentos:
por Marx e Engels em 1847.
2 Carta de Marx a J. Weydemeyer, datada de Londres, 5 de março de 1852. 17. Linguagem e persuasão — Adilson Citelli x 18. Para — José Carlos Sebe x 66. Brasil República — Hamilton
uma nova gramática do português — Mário A. Perini + M. Monteiro x 67. Computadore ensino — Uma aplicação
3 Este trecho e os que se seguem pertencem a O 18 Brumário de Luis Bona- 19. A telenovela — Samira Youssef Campedelli 4 20. À à lingua portuguesa — Cristina P. C. Marques, M. Isabel L.
poesia lírica — Salete de Almeida Cara x 21. Períodos de Mattos & Yves de la Taille + 68. Modo capitalista de
parte, livro de Marx de 1852.
literários — Lígia Cademartori x 22. Informática
e sociedade produção e agricultura — Ariovaldo Umbelino de Oliveira
— Antonio Nicolau Youssef & Vicente Paz Fernandez x 23. + 69. Casamento, amor e desejo no Ocidente Cristão
!4 Este trecho e os que se seguem pertencem àà Guerra civil
Evil na França, livro
i Espaço e romance — Antonio Dimas k 24. O herói — — Ronaido Vainfas + 70. Marxismo e teoria da revolução
de Marx de 1871. Ê Flávio R. Kothe k 25. Sonho e loucura — José Roberto proletária — Eder Sader x 71. Pescadores do mar —
Wolff 4 26. Ensino da gramática. Opressão? Liberdade? Simone Carneiro Maldonado x 72. A alegoria — Flávio R.
15
Trecho do “Prefácio” de Contribuição à crítica da economia política.
sas . om x Ma — Evanildo Bechara x 27. Morfologia inglesa — Noções Kothe 4 73. Consciênciae identidade — Malvina Muszkat
introdutórias — Martha Steinberg 4 2B. Iniciação à música * 74. Oficina de tradução — À teoria na prática —
popular brasileira — Waldenyr Caldas + 29. Estrutura da Rosemary Arrojo x 75. História do' movimento operário
notícia — Nilson Lage + 30. Conceito de psiquiatria — no Brasil — Antonio Paulo Rezende x 76. Neuroses —
Adilson Grandino & Durval Nogueira & 31. O inconsciente Manuel Ignacio Quiles x 77. Surrealismo — Marilda de
— Um estudo crítico — Alfredo Naffah Neto + 32. À Vasconcellos Rebouças + 78. Romantismo — Adilson
histeria — Zacaria Borge Ali Ramadam x 33. O trabalho Citelli + 79. Higiene bucal — Giorgio de Micheli, Carlos
na América Latina colonial — Ciro Flamarion S. Cardoso Eduardo Aun & Michel Nicolau Youssef x 80. Aspectos
x 34. Umbanda — José Guilherme Cantor Magnani 35. econômicos da educação — Ladislau Dowbor x 81.
Teoria da informação — Isaac Epstein x 36. O enredo — Escola Nova — Cristiano Di Giorgi 4 82. Análise da
Samira Nahid de Mesquita + 37. Linguagem jornalística conversação — Luiz Antônio Marcuschi 4 83. O Estado
— Nilson Lage x 38. O feudalismo: economia e sociedade Federal — Dalmo de Abreu Dallari + 84. Ihiminismo —
— Hamilton M. Monteiro x 39. A cidade-Estado antiga Francisco José Calazans Falcon x 85. Constituições —
— Ciro Flamarion S. Cardoso x 40. Negritude — Usos e Célia Galvão Quirino & Maria Lúcia Montes x 86. Literatura
sentidos — Kabengele Munanga x 41. Imprensa feminina infantil — Voz de criança — Maria José Palo & Maria Rosa
— Dulcilia Schroeder Buitoni x 42. Sexo e adolescência D. Oliveira 4 87. À imagem — Eduardo Neiva Jr. x 88.
— Içami Tiba x 43. Magia e pensamento mágico — Paula Teoria lexical — Margarida Basilio x 89. À política externa
Montero + 44. A metalinguagem — Samira Chalhub x 45. brasileira (1822-1985) — Amado Luiz Cervo & Clodoaldo
Psicanális e linguagem — Eliana de Moura Castro x 46. Bueno x 90. Energia & fome — Gilberto Kobler Corrêa
Teoria da literatura — Roberto Acizelo de Souza x 47. * 91. Sonhar, brincar, criar, interpretar — Arlindo €.
Sociedade do Antigo Oriente Próximo — Ciro Flamarion Pimenta x 92. História da literatura alemã — Eloá Heise
S. Cardoso 4 48. Lutas camponesas no Nordeste — & Ruth Roht x 93. História do trabalho — Carlos Roberto
Manuel Correia de Andrade + 49. À linguagem literária de Oliveira x 94. Nazismo — “O Triunfo da Vontade”
— Domício Proença Filho + 50. Brasil Império - Hamilton — Alcir Lenharo x 95. Fascismo italiano — Angelo Trento
M. Monteiro 4 51. Perspectivas históricas da educação * 96. As drogas — Luiz Carlos Rocha x 97. Poesia
— Eliane Marta Teixeira Lopes x 52. Camponeses — infantil — Maria da Glória Bordini x 98. Pactos
e estabilização
Margarida Maria Moura + 53. Região e organização econômica — Pedro Scuro Neto x 99. Estética do sorriso
espacial — Roberto Lobato Corrêa x 54. Despotismo — Michel Nicolau Youssef, Carlos Eduardo Aun & Giorgio
esclarecido — Francisco José Calazans Falcon x 55. de Micheli x 100. Leitura
sem palavras — Lucrécia D' Aléssio
Concordância verbal — Maria Aparecida Baccega x 56. Ferrara 4 101. O Diabo no imaginário cristão — Carlos
Comunicação e cultura brasileira — Virgilio Noya Pinto Roberto F. Nogueira x 102. Psicoterapias — Zacaria Borge
+ 57. Conceito de possia — Pedro Lyra x 58. Literatura Ali Ramadam 4 103. O conto de fadas — Nelly Novaes
comparada — Tania Franco Carvalhal x 59. Sociedades Coelho + 104, Guia teórico do alfabetizador — Miriam
indígenas — Alcida Rita Ramos x 60. Modemismo brasileiro Lemie x 105. Entrevista — O diálogo possível — Cremilda
e vanguarda — Lucia Helena x 61. Personagens da de Araújo Medina x 106. Quiombos — Resistência ao
literatura infanto-juvenil — Sonia Salomão Khéde k 62. escravismo — Clóvis Moura x 107. Raça — Conceito e
Cibemnética — Isaac Epstein x 63. Greve — Fatos é preconceito— Eliane Azevêdo x 108. Candomblé — Religião
significados — Pedro Castro x 64. A aprendizagem do e resistência cultural — Raul Lody x 109. Abolição e
q ator — Antonio Januzelli, Janô x 65. Camaval, camavais reforma agrária — Manuel Correia de Andrade k 110. )

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