Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
de Ramon Silva
Oferenda para Américo:
Um conto aos pés de São Sebastião
A viagem
CARTA DE ACEITE
Prezada Jessica M das Flores
Atenciosamente,
Coordenação
***
Jessica observava a mudança de paisagem. O sol ao mesmo tempo que
nutre o corpo com vitamina D queima sem piedade a pele. Ela fechou os olhos
e deixou o vento e o sol entrarem nela. O sentimento era de liberdade e de
conexão com a mãe natureza. Ainda estava com dor do golpe na cabeça do dia
anterior. A pele ao redor do curativo ainda estava muito avermelhada, ela não
seguiu a recomendação médica de colocar gelo no ferimento, tomou um
medicamento pra dor e foi dormir. Antes de sair de casa, passou uma bela
quantidade de protetor solar e conferiu sua mochila. O principal eram as
galochas, meias grandes, máscaras, luvas, boné e seu pijama cirúrgico, mas
logo ela percebeu que o macacão era uma melhor opção. E claro seu almoço,
escovas de dentes e pasta dental.
– Chegamos – o professor fala com entusiasmo na parte da frente do
carro.
Uma mulher os aguarda na porteira do sítio. Uma mulher com longos
cabelos escuros, muito bem trançados e repartidos. O professor se aproximou
da mulher que lhe recebeu com um aperto de mão forte, incomum para uma
mulher daquela estatura.
– Jessica, venha aqui – chama o professor, que massageava sua mão.
A estudante saiu do carro. Uma paisagem verdejante com muitas
plantas, as folhas que balançavam no ar, levaram até os sentidos da moça o
aroma característico da região. A madeira que formava os galhos e os troncos,
as flores de gardênia, as ervas de manjericão, as folhas de hortelã e o cheiro
do adubo se misturam e exala uma essência que transporta a estudante, para
um lugar idílico na sua imaginação, onde animais e humanos vivem em
harmonia, sim, exatamente como os folhetos distribuídos pelas Testemunhas
de Jeová.
– Jessica!
A voz do professor a tirou do momento em que ela estava quase
passando a mão na cabeça de um tigre. Ela se aproximou dos dois.
– Conheça Ilana Batista, a esposa do seu Josias, dono do sítio, ela vai te
acompanhar nas suas atividades.
– Bom dia.
Ilana cumprimentou Jessica brevemente. Essa respondeu da única
forma que conhecia, a mais amável possível.
– Bom dia senhora Ilana, espero contribuir muito com a sua fazenda e
estou muito ansiosa para começar.
– Primeiramente, senhora está no céu. Pode me chamar de Ilana. E...
espero que você esteja bem.
Ela falou apontando para o curativo e a vermelhidão na testa da jovem.
– Tá certo. Isso não foi nada.
Jessica, apontou para a sua testa e rapidamente colocou um boné na
sua cabeça e arrumou seus cabelos para trás.
– Um pequeno acidente de percurso.
Concluiu dando uma risadinha sem graça.
Ilana encarou por alguns segundos o boné da menina, azul com a
silhueta de um cachorro com as letras UPET embaixo. Nesses poucos
segundos que encarou o boné de Jéssica, Ilana percebeu o quanto aquela
menina era irritantemente educada, mas, por insistência do professor, um
antigo amigo e também pelo reconhecimento que o sítio podia ganhar com a
presença acadêmica, Ilana e Josias aceitaram esses estagiários em suas
terras.
O professor notou o momento desconfortável, Jessica entreolhou para o
professor, que rapidamente bateu uma palma nas mãos e se despediu.
– A conversa está boa, mas tenho que voltar para a universidade. Jess
venho te pegar às 17h. Próximo do pôr do sol. Está bom para vocês?
Jessica e Ilana concordaram. Começaram a andar lentamente para o
alpendre da casa, para se refugiar do sol que começava a aparecer entre as
nuvens.
– Como você pode ver Jessica, nossa fazenda é familiar, bem pequena,
temos poucas cabeças de gado, alguns bezerros, carneiros, porcos e
plantamos milho, feijão e mandioca. Ali você pode ver que temos algumas
frutíferas que vendemos a polpa. Nada muito sofisticado. Somos apenas eu e
meu marido e mais três funcionários, que também são da família, primos e
sobrinhos vindos de outras cidades, que agora moram aqui, gostaram tanto
que não pensaram duas vezes. Eles ficam num quarto bem amplo, colocamos
duas beliches, construímos um banheiro para eles, não é um hotel cinco
estrelas, mas eles vivem bem. Claro que, de tempos em tempos, contratamos
mais funcionários, quando a carga de trabalho aumenta, sempre damos um
jeito, ou eles dormem com os meninos no quarto ou ajeitamos uma cama
naquele galpão, próximo aos estábulos, apesar do cheiro dos animais, logo
eles se acostumam.
Ilana falava, como um padre dando um sermão na igreja. Jessica
escutava cada palavra atentamente, enquanto vestia seu avental cirúrgico e
calçava suas galochas.
– Caso você queira ficar aqui durante essa semana, você iria dormir no
galpão, caso você não fizesse questão de dormir cheirando a merda de vaca a
noite toda.
Jessica olhou consternada para Ilana, sem entender o que ela quis dizer.
Mas Ilana caiu na risada.
– Você devia ver a sua cara, brincadeira menina, você pode dormir no
sofá da sala, ou a gente coloca os meninos no galpão e você dorme no quarto
deles.
– Não não, dona Ilana – Ela olhou seriamente para a estudante – Quer
dizer, Ilana. Não Ilana, vou dormir na rua mesmo, 17:00 volto com o professor,
não se preocupa.
Embaixo de um enorme pé de seriguela, Josias Batista e seu
funcionário, que também é seu sobrinho, Naldo Lobão, observou toda a
chegada da menina. Sentados nas raízes salientes da arvore que se
projetavam para fora, que mais pareciam tentáculos de uma medusa, se
entreolhavam desconfiados. Nos seus pés um cantil de água, uma carteira de
cigarro e uma garrafa de café. Naldo Lobão com as mãos enlameadas e os
braços arranhados vestiu seu surrado casaco de motoqueiro, encheu a tampa
do cantil de água e tomou apressadamente. Josias acendeu um cigarro e se
deitou na raiz da arvore, colocou o braço por trás da cabeça e deu uma
risadinha irônica. Passados alguns minutos Josias falou.
– Vamos Naldo, temos ainda muito trabalho a fazer.
Jessica foi para sua primeira atividade do programa de estágio o trato
com os bezerros. Ilana explicou quais as atividades que ela vai desempenhar
naquela área do sítio.
– Como você pode ver menina, temos poucos bezerros, apenas cinco.
Seu trabalho é limpar o piquete deles enquanto eles ficam soltos, é claro que
após o término da limpeza você fica responsável por traze-los de volta. Depois
você troca a água que se encontra ali, naquela cisterna, traz para essa baia
aqui. Tá certo?
Jessica escutou e observou atentamente tudo a sua volta. Ela estava
muito animada para começar seu trabalho. E, dessa vez, ela teve a calorosa
recepção que esperava, ao entrar no piquete, os bezerros se aproximavam da
estudante como se a conhecesse há tempos. Eles mugiam como se quisessem
falar algo para ela. Jessica estendeu uma mão, os pequenos começaram a
lamber e com a outra mão ela fazia carinhos na cabeça dos animais que
rapidamente sossegaram. Não podemos negar que existia uma forte conexão
entre Jessica e os animais.
Conduziu os bezerros para fora do piquete, num primeiro momento os
animais não queriam se afastar da veterinária, mas ao lhe oferecerem a
liberdade, logo esqueceram da estudante e começaram a saltitar e brincar
como crianças. Jessica observou contente, de relance imaginou novamente o
seu mundo perfeito. Ela começou a executar a limpeza, com uma pá pegou
todos os excrementos dos bezerros e colocou num carrinho de mão, depois ela
mesmo levou, todos esses dejetos, para uma área descampada. Eram
misturados com a palha e ramagens e após sua curtição se transformavam em
estrume, um excelente adubo orgânico para as plantas. Após várias idas e
vindas com o carrinho, Jéssica sentiu sede e apesar de todo o cuidado dela
com o que levar na sua mochila, esqueceu seu cantil de água. Ela olhou para
os lados e não via ninguém por perto, então ela decidiu ir à casa do sítio.
A casa era tipicamente rural, chão de cimento queimado, móveis antigos,
mas tudo muito limpinho e aconchegante, ela avistou um pote de barro na
cozinha, pegou um copo de alumínio que estava num porta corpos na parede,
bebericando a água naturalmente gelada que somente o pote de barro
consegue climatizar, pela janela visualizou um galpão nos fundos da
propriedade, uma estrutura que não se conseguia vê da estrada, existiam
muros e enormes plantas e trepadeiras no quintal da casa que ocultavam
aquele galpão do resto do mundo. Ela olhou pensativa, quais animais ficavam
ali? Será que poderia ser uma estufa? Confabulava várias teorias e demorou a
percebe um barulho que vinha daquele lugar, após ela se concentrar melhor,
notou que o som é de um lamentoso latido, bem baixinho, ela tentou se
concentrar mais, pra ver se realmente o som vinha daquele galpão. Ao mesmo
tempo que o som de um uivo alto era ouvido por Jessica, o som de um rádio foi
colocado na altura máxima por trás dela. Ela virou-se rapidamente e viu Ilana
com os dedos no botão do volume no rádio.
Ilana encarou Jessica com feições de poucos amigos. A estudante ficou
consternada, sem saber onde colocava o copo que estava nas suas mãos.
– Acho que escutei um lamento de um cachorro.
– Impossível menina. Não permitimos cães aqui nesse sítio.
Jessica finalmente colocou o copo em cima da mesa e foi saindo da
casa, sem entender o real significado daquelas palavras.
A estagiária terminou a limpeza dos piquetes dos bezerros e começou a
conduzir eles para dentro, os animais que estavam deitados ao redor do
piquete, pareciam esperar ela termina de limpar a casa deles. Jessica colocou
água fresca em baldes para eles tomarem. Observou a cena com muita
satisfação. Mas ela não parou de pensar na situação que ocorrera mais cedo
com Ilana. Algo de errado acontecia naquele sítio, mas ela ainda não sabia o
que era.
Chegou o horário do almoço, eles preferiam almoçar numa grande mesa
de madeira maciça que ficava fora da casa, embaixo da grande arvore de
ciriguela. Como era costume nos sítios da região, um belo banquete foi
oferecido. Grandes travessas de arroz, feijão, verduras, suco de manga fresco
e vários tipos de carne a disposição. Enquanto Ilana terminava de colocar as
travessas na mesa, os sobrinhos deles ficavam gurejando a comida, já
brigando com o olhar para ver quem ficava com o pedaço melhor da carne.
Quando autorizados, os rapazes se serviram tão rapidamente, que mais
pareciam cães famintos disputando um pedaço de osso. Jessica, por sua vez,
fez uma pequena oração antes de abrir sua mochila e tirar seu almoço. Todos
observavam a menina. Naldo Lobão com o braço enfaixado, a boca cheia de
comida e com uma coxa assada, que era muito fina para ser de frango, aponta
para Jessica e comentou, chamando Ilana carinhosamente de mainha:
– Oxe, olha mainha, a menina não come a comida da senhora. Não
sabe o que tá perdendo.
Ilana então lançou o olhar para Jessica, esperando explicações.
– Desculpa Ilana, é porque sou vegana, não consumo nada de origem
animal.
Os rapazes se entreolham e após algum momento caem na risada.
Jessica ficou intimidada com a situação, mas continuou comendo sua refeição.
– Calados seus bostas, deixa a menina em paz – a voz gutural de Josias
suspendeu as risadas maldosas dos trabalhadores. Jessica levantou a cabeça
e observou eles comerem, percebeu como aquela carne era diferente, devem
ser de várias arribaçãs grandes e cortadas, costelas de porco pequenos e um
caldo com pequenos ossos. Mas Jessica não via iguarias, ela somente
enxergava o sofrimento dos pobres animais naqueles pratos. Josias observou a
menina.
– Você não sente falta de comer carne?
Os meninos olharam de forma séria para a menina aguardando a
resposta. Jessica se encheu de coragem e de cabeça erguida fala:
– Sinto não seu Josias. O ser humano desenvolveu-se de tal maneira
que é possível viver sem consumir alimentos de origem animal e mais do que
isso, viver melhor. Esse meu almoço além de ser delicioso tem todos os
nutrientes necessários para a minha sobrevivência. Todos sabemos que a
carne vermelha é altamente cancerígena, sem falar em todos os enlatados da
indústria. Além de fazer bem a sua saúde, você evita os maus tratos de
animais, que têm sentimentos, que sentem dor, que sofrem tal qual os seres
humanos.
Os meninos escutaram aquilo e por um momento pararam a mastigação
frenética. Mas ao término da fala de Jéssica, rapidamente eles voltaram a se
deliciar com a saborosa carne preparada por Ilana.
– Cada um com suas verdades, né minha filha? Respeito você. Mas se
for para morrer de câncer, que eu morra saboreando essa deliciosa carne de
minha nega aqui.
Josias fala com um tom jocoso, deixou a conversa leve e Jessica mais à
vontade. Josias retornou a falar:
– Mas você acha mesmo que os animais são tão inocentes e inofensivos
assim? Você já viu o que o Tubarão faz com o povo lá no litoral, ou o que o
urso faz se pegar você na floresta. Não se engane menina, se um urso faminto
ver você passando, olha você como um belo pedaço de bife, igual os
desenhos, sabe como é? E ele vai te morder direto na sua nuca, vai agarrá-la e
te dar um abraço de urso. E aí já era. Mas você não vai morrer, vai viver, para
ver ele tirar suas vísceras e se alimentar delas, até lamber os beiços. Pelo
menos nós fazemos de um jeito que os animais não sentem muita dor. Damos
uma cacetada na cabeça dele e depois jorramos o sangue do infeliz...
– E urso tem beiço, pai?
Nesse momento Ilana interrompeu a pertinente pergunta de Naldo
Lobão, bateu forte na mesa e gritou:
– Já chega dessa conversa besta na hora do almoço. Voltem a comer
agora.
Todos respeitaram a decisão da mulher e voltaram a comer em silêncio.
Jessica observou que o braço enfaixado de Naldo Lobão começava a se
encharcar de sangue. Ela acenou com a mão para avisá-lo, para evitar a
quebra do silêncio ordenado por Ilana. Naldo olhou rapidamente para o braço e
o escondeu embaixo da mesa e continuou comendo com a outra mão.
Encarava a moça com cara de poucos amigos.
Jessica foi para a baia dos carneiros. De fato, o sítio era pequeno,
apenas cinco carneiros. A tarefa consistia em pegar a composta de silagem de
capim mais concentrado e colocar nas baias. Isso era a alimentação dos
animais. Jessica completou esta tarefa mais cedo que o esperado. Ela se
sentou e observou a casa. O pensamento dela voltou para aquele uivo do
cachorro. Por que Ilana queria esconder aquele cachorro dela? E porque ela
mentiu ao dizer que não é permitido cães no sítio? Esses questionamentos só
poderiam ser desvendados caso ela chegasse naquele galpão abandonado,
mas pra isso teria que achar um momento que não tivesse ninguém na casa.
No torpor dos pensamentos, Jessica sentiu o focinho úmido de um carneiro nas
suas pernas. Os animais iam se aninhando em seus pés. Ela se acalmava com
todo aquele afago. Parecia que, novamente os animais se esforçavam para se
comunicar com ela. Um deles se esfregou no seu braço, o que fez seu
pensamento se voltar para o braço enfaixado de Naldo Lobão e para toda
aquela conversa estranha no almoço.
O sol baixou consideravelmente no horizonte, logo o primeiro dia do
estágio chegava ao fim, mas a mente de Jessica estava frenética. Ela escutava
o som dos cães novamente. Ela não iria sossegar enquanto não desvendasse
esse mistério.
Jessica observou que Ilana saiu no carro para a rua, ia no comércio para
distribuir a produção do sítio, ela achou estranho ela ir no fim do dia. Mas que
bom que ela estava saindo. Viu Também que Naldo e o outros dois meninos
estavam a cavalo com um bornal e uma espingarda. Era noite de lua cheia e o
céu estava limpo, provavelmente estavam indo caçar, logo, iriam demorar para
voltar e Seu Josias levou sua cadeira de balanço de palha trançada para
debaixo do pé de ciriguela e estava num sono serrado. Aquele era o momento
perfeito. Ela rapidamente largou a enxada que usava para mexer no capim,
contornou silenciosamente os carneiros que estavam nos seus pés e correu
para dentro da casa.
Três lagartixas que passavam por Jessica pararam e a encararam, como
se quisessem alertar a veterinária. Mas ela continuou avançando. Ao chegar
nos fundos da casa uma sensação ruim tomou conta dela. Angústia a
dominava. O som dos lamentos caninos ecoava na sua mente, agora mais
próximo, ela tentava seguir os uivos. O clarão do céu estava dando lugar a
vários tons vermelhos do crepúsculo, um fenômeno muito lindo que acontece
no sertão, mas não era a hora de Jessica apreciar o pôr do sol. Logo estaria
escuro e o professor viria pegá-la, precisava agir rápido. Todos os detalhes do
ataque do dia anterior e o comportamento estranho das pessoas no sítio
sobrepujavam na mente dela. Ela se aproximou do misterioso galpão quando
escutou um barulho de motor do carro. Desistiu. Mas no momento em que ela
virou, soltou um grito contido de susto. Um homem alto parado atrás dela,
usava uma touca, possuía várias cicatrizes que perpassavam da testa até o
queixo e com um estranho sorriso largo no rosto. Jessica teve um súbito
choque ao perceber que, na verdade, aquele homem não estava sorrindo, ele
não tinha os lábios e toda a arcada dentaria superior estava exposta. Ele
ergueu um pedaço de pau e perguntou com uma voz tremula.
– Você não pode estar aqui. Aqui é minha casa.
Jessica não sabia se respondia, se desmaiava, se mijava ou se corria da
criatura. Quase aconteceu todas as alternativas, mas ela arrumou coragem e
correu em direção a casa. Quando abriu a porta da casa, esbarrou-se com
Ilana.
– Dona Ilana, por favor, esse homem apareceu aqui. Me ajude.
– Está tudo bem querida.
Jessica se aninhou em Ilana como um bichinho indefeso
– Mas eu te falei para não vim para cá, ne?
Jessica arregalou os olhos e sentiu a pressão dos braços fortes de Ilana.
O homem alto se aproximou das duas.
– Ela ia entrar no galpão.
Ilana balançou a cabeça e apertou mais forte ainda o rosto de Jessica
contra o seu peito.
– Tudo bem meu filho, ela não vai mais te perturbar.
Jessica arranhou as costas de Ilana, como uma felina tentando sair de
dentro de um saco, ela sacudiu o seu corpo com toda a força, quando ela
estava prestes a se desvencilhar de Ilana, o grandalhão bateu forte nas costas
de Jessica com o pedaço de pau. Ela desmaiou nos braços de Ilana.
Todos os animais na Ipueira dos lagartos protestaram em uníssono. O
barulho era tão diferente que Ilana olhou de forma curiosa para as baias.
O estado de inconsciência era como um espírito tentando achar um
caminho de volta na completa escuridão. Jessica vagava pelo estado de
inconsciência procurando uma luz.
Enquanto isso, sua carne era amarrada numa velha cadeira de ferro
enferrujada, no centro do galpão, que antes pensou estar abandonado. Por fora
aparentava algo não utilizado há anos. Por dentro existia uma certa
organização. Um quarto ao fundo, onde o rapaz alto morava. No outro canto,
uma velha D20, que estava com uma proteção que cobria parte da sua lataria,
mas dava pra ver que era um carro já velho com a pintura azul desbotada.
De frente para Jessica, uma estrutura metálica, cerca de um metro de
altura, que parecia uma pequena prisão, com barras que cabiam não mais que
numa mão pequena. Uma ferramenta muito antiga, manchada de sangue
escuro e vísceras. Pelo aspecto, foi usada muitas vezes. Muitos animais
sangraram até a morte naquele aparelho.
Havia muito sangue no chão, sujeira e pedaços de carne. Um odor típico
de matadouros. O cheiro de carne podre faz Jessica recobrar os sentidos. Ela
tentou gritar, mas sua boca estava amordaçada com força. Rapidamente ela se
situou e observou todo o ambiente, seus olhos freneticamente estudavam o
lugar. O que lhe chamou a atenção, foi o aparelho na sua frente. Muito
pequeno para ser usados em bovinos, talvez em porcos ou ovelhas. Mas a
fazenda não tinha permissão legal. E quem era aquele homem alto com o rosto
deformado? Ele nunca foi mencionado pelos donos. Eles não queriam que
Jessica revelasse as autoridades essa prática clandestina, por isso a
amarraram.
Coitados.
A prisão e as consequências financeiras seriam significativamente
menores.
O que a visão embaçada de Jessica achou ser uma família de Timbus
no fundo do celeiro, eram na verdade Ilana e os habitantes do sítio lagartos,
todos mascarados. Eles se aproximam da estudante.
– Jessica, minha querida.
Ilana pegou outra cadeira metálica enferrujada com símbolo de uma
marca de cerveja e sentou próximo a Jessica, que levantou o rosto ainda um
grogue da pancada
– Esse rapaz aqui é meu filho, Jaime. Claro que o seu rosto lhe causou
pavor. É algo impossível de não notar, concorda? É... por isso a máscara. Você
não devia ter vindo pra cá. Eu tentei avisar. Mas, mesmo assim, você é uma
boa garota. De verdade.
Enquanto discursava, os primos e seu Jair retiraram as máscaras e
colocaram nas suas cabeças e caminhavam para os lados, e o filho de Ilana
também fez o mesmo movimento com a máscara, mas ficou atras dela com um
sorriso bobalhão.
– Mas minha querida, você foi para um lugar onde não era para ir. No
lugar errado na hora errada. Não é assim que se diz.
Ela sorriu, olhando para ela e depois olhando para o seu filho, que sorriu
de volta.
– Claro, achei sua outra fonte de renda, abate de porcos clandestinos,
pode deixar, assim que eu sair daqui denuncio vocês.
A voz de Jessica saiu embargada, por um segundo imperou um silêncio
ensurdecedor, depois toda a família desabotoou os lábios numa gargalhada.
Naquele sorriso maligno com uma altivez que somente as hienas sabiam
entoar.
– Minha filha, você acha que abatemos porcos aqui é?
Por um momento Jessica ficou incrédula, ela sentiu o sangue descendo
pela sua boca e pelos seus cabelos.
– Uma pena você não comer a carne que oferecemos hoje no almoço.
Estava deliciosa. Nos mesmos preparamos aqui, aliás, uma carne que a cidade
toda come. Eles pensam que são uma espécie de galinha, mas na verdade é
carne de cachorro.
Nesse momento Jessica ficou atordoada, seu choque era visível.
Enquanto Ilana falava, Lobão trazia um cachorro amordaçado.
– Nós vamos fazer uma demonstração pra você. Essa invenção de
Josias, facilita nossa vida, é claro que o animal sofre muito nessa parafernália,
mas para nós é muito divertido.
– Mas por quê? Carne de cachorro?
Por que Jessica? Ora porque não? Na China é comum espetinho de
cachorro, na antiguidade era uma comida normal, porque deixamos de comer,
por qual motivo? Por que eles se tornaram nossos “companheiros”? nossos
“amigos mais leais”? Vou te dizer uma coisa. Tudo mentira. Tá vendo o rosto de
Jaime, tá vendo sua cabeça?
Ela retirou máscara e a touca de Jaime com tanta força, que ele revirou
os olhos para cima. Revelou-se sua cabeça afundada.
– Isso foi obra das bestas que você diz ser seus amigos.
Milagrosamente ele sobreviveu, mas ele não tem vida, a sociedade não aceita
pessoas como ele. Então a caçada aos cachorros é o que dá sentido à vida
dele. Ele mata os cachorros por prazer, a forma dele se sentir vivo, se sentir
bem. Diferente do Jaime do “Homem que amava os cachorros”, esse Jaime
aqui, os odeia. E se meu filho odeia, eu também odeio. E nessa encruzilhada,
aprendemos a gostar do sabor de sua carne, e também a lucrar. Além disso
nós prestamos um serviço de utilidade pública. Nas madrugadas, os meninos
recolhem essas pestes das ruas e preparamos sua carne para vender na feira
no outro dia. Então sua maldita ONG apareceu e começou a tirar nosso ganha
pão das ruas. Mas enfim, vamos deixar de falatório besta e começar a
brincadeira.
Jaime pegou o animal com toda força e deu uma pancada na cabeça
fazendo ele adormecer e o colocou dentro do aparelho. Naquele momento,
todos se sentaram no chão coberto de sangue para acompanhar o espetáculo
da tortura canina. Antes que Jaime girasse a manivela do aparelho, Jessica se
soltou das amarras e se jogou sobre ele, como uma felina de grande porte,
rasgando o seu rosto com suas unhas afiadas. Jaime começou a gritar pela
mãe, Ilana como uma leoa querendo proteger seu filhote, correu, gesto imitado
pelo o resto da família. Jessica, ao sentir a aproximação, retirou o animalzinho
do aparelho, correu, antes que alguém se aproximasse e sumiu entre as
sombras do celeiro.
– Se espalhem, procurem essa menina, tranque o celeiro pra ela não
sair.
Falou Ilana, apontando para o portão do celeiro e arregalando os olhos
para Naldo Lobão. Ele foi em disparada para o portão e o restante começou a
virar o lugar abaixo. Ilana notou que Lobão não voltou da sua tarefa. Quando
ela foi ver o portão, Naldo jazia pendurado, com o trinco do portão enfiado no
seu estomago, o sangue jorrava como uma cachoeira.
Seu Jair e o outro primo se aproximaram e viram o rapaz mais valente,
morto por uma menina franzina. Eles tentaram retirar Naldo dali, nesse
momento Lobão estava atrapalhando, pois impedia a passagem deles para a
casa, onde guardavam as espingardas. Eles começaram a escutar um assobio,
rapidamente se viraram e olharam para todos os lados.
– Apareça sua quenga. Eu te mato sua safada.
Esbravejou o primo. Eles se separaram novamente, o som sibilante
começou a crescer. As andorinhas que faziam ninho no telhado do celeiro
levantaram voo, indo para longe daquele lugar, como se recusassem ver o
temível fim daquela história. De repente um grito alto e enlouquecedor é
ouvido. Quando Ilana e seu Josias se aproximaram, o sobrinho estava preso
por urtigas que brotavam de todos os lados. Estava totalmente imerso nos
cipós da planta e não conseguia se desvencilhar, sua pele começou a queimar
e ficar em carne viva.
Seu Josias tentou tirar o rapaz, mas não conseguia cortar as urtigas.
Quando ele virou para pedir a Ilana um facão, ela havia sumido. A luz do celeiro
começou a falhar. Seu Josias começou a ouvir risadas sibilantes que pareciam
vir de dentro da mente dele. Um mau presságio tomou conta dele. De repente a
luz apagou totalmente, ele fechou os olhos e começou a rezar a oração dos
aflitos, o rosário apressado, dizem que essa súplica te defende até do próprio
Belzebu. Mas a voz no seu pé do ouvido era mais alta que a sua reza e ele não
conseguiu passar do Glória ao pai. O sussurro o ordenava a olhar para cima.
Ele abriu os olhos e no reflexo tentou dar um soco no vazio, pensando
que a veterinária estava próxima. Começou a sentir algo pingar na sua cabeça
e seus ombros. Quando ele passou a mão, se assustou com o líquido, era
sangue. Ao levantar a cabeça ele viu algo que ficou marcado por toda a sua
existência. Depois de um tempo, seu Josias tentou apagar toda essa história
da sua cabeça, e ele até conseguiu esquecer de algumas coisas. Mas tem
coisa que é tão marcante, que a mente amarra numa cadeira e não deixa sair
de jeito nenhum. Essa imagem era uma delas. Ilana estava presa pelos seus
longos cabelos trançados. Pareciam cordas amarradas no telhado do celeiro,
desfalecida e com o escalpo esticado pelo seu peso. O seu sangue banhou
Josias, como os baldes que banharam Carrie na sua festa de formatura. Ele se
ajoelhou e caiu num choro compulsivo.
O carro do professor de Jessica encostou em frente ao sítio. Ele
aguardou por um momento ela aparecer. Após alguns minutos de espera, ele
entrou. Pareciam que tinham saído, tudo estava vazio. Continuou adentrando o
recinto, até chegar nos fundos do sítio. Ele viu o celeiro aberto. Ele começou a
sentir um mau cheiro. Quando se aproximou, a cena tenebrosa se formou
diante de seus olhos. Josias em posição fetal, banhando de sangue cochichava
um mantra. O professor aproximou-se para escutar melhor. O dono do sítio
repetia.
- Maria Florzinha, Maria Florzinha, Maria Florzinha...