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A inevitável necessidade de ser fera numa terra miserável de feras

de Ramon Silva
Oferenda para Américo:
Um conto aos pés de São Sebastião

Carregar garrafas de cachaça escondidas na mochila é para poucos. E


quando as mochilas que os amigos carregam estão com velas, isqueiro,
cigarros, um papelão com um ritual e uma oferenda, caros leitores, essa é uma
turma de milhões.
Todo Halloween relembramos essa história. Talvez por puro sadismo ou
na intenção que a história mude com o passar do tempo. Algumas partes
mudam, mas a culpa é da memória que não é mais a mesma. A criatividade
preenche as lacunas. O principal está lá. Algumas coisas, guardo apenas para
mim. Como meu tesão pela Rita. Ela ia se achar muito se soubesse disso.
Éramos garotos. Por volta dos treze anos. Início dos anos 2000. O
professor de inglês, Matias, organizava o primeiro Halloween da escola. Sob o
olhar de muita desconfiança e crítica pela maior parte da escola e da cidade.
Primeiro, por ser Halloween, festa estrangeira e pagã e toda aquela conversa
de beata de igreja e depois porque o professor teve a magnífica ideia de levar
os alunos para o cemitério. Já sabe a reação dos pais religiosos, uma grande
ofensa para eles. Para nós, estudantes, ir ao cemitério, à noite, vestidos de
preto, fantasiados, de máscaras e sendo no dia das bruxas, era o
acontecimento do ano. Porém, queríamos mais.
A turma animada ia para o cemitério, coitado do Matias, dava para ver
que ele estava se arrependendo dessa ideia. Nenhum professor quis participar.
Estava só ele para controlar mais de 100 adolescentes. Eu, Rita, Guto (meu
irmão mais novo) e Ressaca (sim, seu apelido era Ressaca porque ele gostava
quando o pai dele estava de ressaca, que era a maior parte do seu tempo.
Quando acordado, vivia brigando ou batendo no filho), enchemos as mochilas e
desviávamos o caminho para a antiga e abandonada igreja de São Sebastião.
O cemitério é um lugar de descanso para os mortos. Lá eles estão muito
de boa. Queríamos fantasmas mais ativos, que trocassem alguma ideia. Por
isso nos encaminhamos até a igreja abandonada da cidade. Sentamos na
calçada da igreja, colocamos para tocar no meu MP3 a seleção que Ressaca
fez. O melhor do rock EMO da época. Então começamos a encher a cara com
cachaça, no bode, uma coca com limão já quente e sem gás e fumamos os
cigarros mais baratos que conseguimos comprar.
— Dizem que uma equipe da Globo veio aqui gravar uma matéria para o
Fantástico. Falando sobre o fantasma de Américo. Mas o negócio era tão
carregado que eles não conseguiram pernoitar aqui. Foram embora antes das
3 da manhã.
Ressaca, que dá leves tossidas devido à fumaça do cigarro, interrompe
a informação de Guto e fala:
— João, me passa essa garrafa.
Rapidamente puxei da bolsa a garrafa e dei para Ressaca, ele deu duas
belas goladas, e passou para Rita. Enquanto ela bebia, Ressaca deu uma
cheirada no cangote dela, que os pelos se arrepiaram. Eles começaram a se
beijar. Achei engraçado eles se beijando. Engraçado porque algumas horas
atrás eu tava com os dedos na Mary Jane dela enquanto escutávamos o VCD
que o próprio Ressaca havia preparado para ela. Embalados por The Anthen
de Good Charlotte gozamos muito naquela tarde enquanto bebíamos uma
sapupara de limão.
Éramos considerados EMOs na época. Mas o povo nos chamava
somente de esquisitos. Apesar de Rita ser uma esquisita, ela já tinha pegado
quase todos os caras populares e atletas da escola. Rita era muito gata. Ela
sempre vestia preto, maquiagem pesada (mesmo de dia) e decotes que
deixariam Elvira com inveja. Mas os caras populares no outro dia fingiam não a
conhecer. E também ela metia o foda-se, por isso eu gostava da Rita. Ela fazia
o que queria, gostava de transar. Se tivesse afim, ia mesmo. Não tinha
cerimônia. Mas amizade mesmo, de passar o dia bebendo, jogando conversa
fora e escutando música, era conosco.
Ressaca tinha alguns privilégios por, praticamente, morar na casa do
prefeito. Sua mãe trabalha na casa dos Menezes desde que eu me entendo por
gente. E o prefeito fazia questão de sempre dar roupas de marcas boas para
Ressaca e sempre que o pai dele estava bêbado, levava-o para pescar ou
alguma atividade que velho rico faz. Mas na escola, ele era o esquisito. Andava
conosco. A turma dos esquisitos.
— Então… Américo entrou na igreja. Joca Menezes estava lá, ajoelhado,
rezando aos pés de São Sebastião. Américo, de soslaio, foi devagar,
chegando, quando ia pegando sua Smith & Wesson. Só escutou o POW.
Nessa hora, Rita pula do susto. Uma coisa que meu irmão, Guto, sabe
fazer é contar histórias. Tanto que depois ele se tornou o professor de história
da escola. Ele sabia da história do fantasma de Américo de cor e salteado.
— Américo caiu no chão, foi uma emboscada. Por trás de um pilar da
igreja, o irmão de Joca Menezes, Assis, estava de tocaia. Só que eles não
queriam matar Américo. Ele era só o capataz de Zito Cabeleira, seu rival
político. Então Américo ficou preso aqui nesse prédio que um dia foi a igreja da
cidade.
— Tudo isso devido à bosta de política. Hoje em dia esses Menezes e
Cabeleira estão aí, um é prefeito e o outro é vice. Cheirando o rabo um do
outro. Enquanto o coitado espirito de Américo tá preso aqui.
Guto com a voz e performance de um episódio de conto da cripta
continua.
— … abandonada, porque Américo nunca mais deixou ninguém em paz
ao adentrar o recinto que antes era abençoado. As noites eram assustadoras,
pessoas tentavam rezar e Américo aperreava esse povo até ir embora.
Cadeiras pesadas deslizavam bloqueando as saídas da igreja, subia a batina
do padre, deixando revelar suas bolas murchas…
— Essa parte que eu queria ter visto.
Guto olhou para mim com repreensão.
— … as roupas dos coroinhas voavam como fantasmas cantadores de
ópera, luzes piscavam incessantemente, as gavetas dos armários da sacristia
abriam e fechavam numa velocidade sobrenatural. O lugar não era mais santo,
fora bestializado e profanado em tempos ermos, hoje é conhecido como um
lugar dominado pelas garras do mal. AHAHAHHA.
Emendei a conversa.
— As pessoas se recusavam a orar naquela Igreja. O bispo teve que
desativar (nem sabia que existia isso). Com o passar do tempo, ninguém mais
entrou na igreja, a não ser os casais usando de motel ou os viciados fugindo da
realidade. O prédio está caindo aos pedaços. Só mexem ali quando Américo for
embora. Hoje daremos um fim nisso. Vamos chamar esse Américo para
conversar.
Falei com toda a coragem do mundo, mesmo que por dentro estivesse
quase me mijando de medo.
— Vamos nos embriagar mais, João. Me passa outro cigarro.
Conclamava Ressaca que só queria entrar, depois que bebesse todo o
litro da cachaça. Só foi eu pegar na carteira de cigarro que os primeiros pingos
começaram a cair. Se a noite era para ser diferente, que o tempo também
fosse. Não chovia há meses. Corremos para dentro da igreja. A porta da igreja
ainda ostentava o peso e a estrutura das construções da época. Emperrou um
pouco para abrir. Mas, com todos empurrando, a velha igreja de São Sebastião
se revelou. Já com várias poças de água da chuva que caia, ratos corriam para
seus esconderijos, temendo esses intrusos que ousaram entrar no seu
território. Os morcegos voaram para cima da turma, nessa hora titubeei, diante
meu asco por esses ratos alados. Ainda possuía muitas cadeiras de madeiras,
também grossas e fornidas, que sobreviveram com o tempo. O cheiro de
madeira podre, velha e agora molhada entranhou. Podíamos sentir que o
ambiente era carregado. Às vezes até dava para escutar as rezas das beatas e
o barulho dos tiros de fora da igreja. Diziam que na época se matava por uma
raspa de queijo. Esse foi um dos motivos para a construção da igreja. O outro,
foi a febre amarela, que matou centenas de cassacos responsáveis pela
construção do açude da cidade. O padroeiro não poderia ser outro, São
Sebastião é o grande padroeiro contra as pestes.
Eu, como líder não empossado da turma, comecei a dar os comandos
para começarmos o ritual.
— Guto e Ressaca, tragam algumas cadeiras para o centro da igreja.
Rita, acenda as velas aqui e ali.
Apontava para os cantos do altar. Enquanto o pessoal preparava, olhei
para a imagem de São Sebastião, aranhas o fizeram de morada, em suas
flechas, teias caiam até os seus pés. Carcomida por causa do tempo, mas
dava para ver que era uma bela imagem.
— Pronto João. Organizado. Agora comece esse ritual.
Fui até o centro do altar, verifiquei se as cadeiras estavam posicionadas
da forma correta (formando um pentagrama), coloquei um litro de cachaça
lacrado no meio (para o protesto de Ressaca), comecei a desdobrar um velho
papelão que estava dentro da minha bolsa. Estendi no centro onde iríamos
realizar o ritual. Liguei meu MP3, estava tocando Descansar do Canto dos
Malditos na Terra do Nunca.
Antes de desdobrar totalmente o papelão, Rita se aproximou e lançou
um rápido olhar aos meus movimentos. O papelão, na verdade, era só a base
que usei para colar uma figura que consegui numa revista que havia roubado
na banca de cultura, nas muitas vezes que fui com meu pai à Patos.
— João?
— Oi? — Respondi instintivamente sem virar o rosto.
— Quer dizer que esse é seu grande e misterioso ritual? Uma Tábua,
que nem é uma tábua de verdade, é um papelão Ouija.
— E qual o problema? Que eu saiba, isso funciona, sendo de madeira
ou não.
— Só podia ser o João e suas gambiarras.
Não dei bola para o comentário de Rita. Quando terminei de estender o
papelão, peguei cinco copos de shot. Um coloquei virado para baixo no centro
do papelão. Todos se aproximaram. Ressaca teve uma boa surpresa quando
viu que a cachaça era para a gente tomar. E era uma das boas. Enchi os shots
e tomamos de uma vez. Estávamos prontos para invocar o fantasma Américo.
E não é que deu certo! Não demorou muito, ele começou a falar. A igreja
estava mergulhada numas trevas extraordinárias, permitia um contato rápido
com as almas penadas que se encontravam ali. Rapidamente Américo nos
confidenciou o motivo de estar preso ali. E Guto não mentiu. A história foi mais
ou menos aquela, Intrigas políticas. O fantasma evidenciou seu
comprometimento com o seu patrão Zito Cabeleira e deu sua palavra de
homem. Se a missão fosse ao inferno, ele iria, sem titubear, para cumprir as
ordens. Desde então, ele perambula na igreja procurando Joca Menezes para
enfiar uma bala e finalmente descansar em paz.
E como meu irmão tinha uma língua pior que a metralhadora do Rambo,
foi logo dizendo:
— Desculpa seu fantasma Américo. Mas o senhor é o fantasma mais
besta que já vi.
— Que isso Guto! — Repreendi na mesma hora.
— É João. Tem condições não. Se o motivo dele tá preso aqui fosse por
que esse Joca Menezes tivesse matado seu filho, tudo bem, vá lá. Mas devido
à política? Deixe de ser besta fantasma de Deus, hoje essas famílias estão
acoloiadas.
Nesse momento o som que tocava no MP3 começou a emitir uma
estática que, apesar de baixa, doía nos ouvidos, como um grito agudo de Guto
quando mãinha passava mertiolate numa ferida dele. O ar começou a ficar
denso, eu pude constatar isso por começar a ficar com frio e quando respirava
podia sentir uma névoa branca saindo da minha boca. As chamas das velas
brilharam intensamente, todas de uma vez e se apagaram, também de uma
vez. A igreja foi tomada por mais trevas (se isso era possível) e de repente, em
cima do altar, vários vaga-lumes bruxuleavam sem direção, até que eles
começaram a se unir e talhar-se numa forma humana. Rita, assustada, agarrou
minha mão. Ela não precisava dizer nada. Eu poderia sentir o pavor dela a
quilômetros de distância.
— João?
Eu estava com tanto medo que pude sentir um friozinho descendo pela
minha cueca. Olhei preocupado para Guto. Ele estava com os olhos saltados.
— Olha o que dá irritar alma penada. — Falou Ressaca atribuindo o
fenômeno ao comentário desajeitado de Guto.
— Não, meu amigo, que fantasma melindroso é esse?
Guto ainda insistia.
Nesse momento a luz ficou tão forte que nos cegou por dois segundos.
Quando voltamos a enxergar, ele estava na nossa frente, pelo menos um
vislumbre de quem foi, Américo, o capataz mais temido de Zito Cabeleira.
Olhávamos para ele e podíamos ver o que estava através dele. Ele era
alto e com um tipo físico de quem trabalhava no pesado, ainda dava para ver a
Smith & Wesson bainhada no seu cinturão velho, mas que estava ali só de
enfeite mesmo. Se eu fosse colocar a mão ali, ia passar direto. Assim como as
suas roupas que mal dava para saber de tipo de tecido era. No lugar dos pés,
apenas uma fumaça fina que ficava se remexendo como uma cauda de
serpente.
Ofegante pelo frio, eu deixei escapar:
— Seu Américo?
— Quem me chamou de besta?
Sua voz veio como ondas que vibravam no nosso mais íntimo medo.
Como se a conversa fosse com a própria morte. Assustado, virei e vi Ressaca
e Rita apontando para Guto. Fiquei com mais medo que meu irmão. Talvez por
ser irmão mais velho e a responsabilidade de cuidá-lo teoricamente ser minha.
Pelas infindáveis recomendações de mãinha, conhecendo a personalidade
frívola de Guto, sempre me dizia para ficar de olho nele. Mas naquele
momento, gelei mais ainda com o que poderia acontecer.
— Pois tu vais aprender, seu cabra, a nunca mais desrespeitar um
fantasma.
O capataz fantasma flutuava a cerca de meio metro do chão. Diferente
dos filmes, seus movimentos eram lentos e deduzíveis. Mas o nosso medo era
tão grande que ele parecia uma locomotiva pronta para nos atropelar.
Corremos como se não houvesse o amanhã. Ouvi Rita gritar num desespero
causticante: “Nos acuda São Sebastião!”. Olhei para a imagem e também
comecei a pedir seu auxílio, para nos livrar daquela praga. Mas ele pareceu
estar gostando do que via. Do alto do seu camarote ele sorria de volta para
mim. Estávamos sós, entregues à nossa própria sina. Logo percebi que o
fantasma corria apenas atrás de Guto. Meu senso de proteção gritou nesse
momento. Parei de correr. Respirei fundo e antes que percebesse eu gritei.
— OFERENDA!
Todos olharam assustados. Gritei tão alto que até os ratos, curiosos,
colocaram as cabeças para fora dos buracos. O fantasma ficou me olhando,
com aquele olhar de fantasma, esperando a conclusão.
Fiquei em silêncio. Investiguei o ambiente com o olhar. Peguei uma
barra de ferro bem pesada e comecei a caminhar arrastando o objeto no chão.
O som metálico incomodou a todos. Deu aquela agonia que arrepia todos os
pelos do corpo.
Esse som não me incomodava. Já era acostumado a brincar com ferro
retorcido. Eu e Ressaca íamos quase todo dia depois da escola até o ferro-
velho de seu Nicanor. Lá brincávamos na boca da noite, como se os pedaços
de ferro fossem espadas, imitando personagens dos nossos desenhos
favoritos.
Me aproximei de Ressaca.
Olhos esbugalhados.
Tensos.
Lembrei do dia que ele salvou a minha vida. Foi no dia que conheci Rita.
Pedalávamos na BR 230. Passávamos pela galeria do açude. Quando vi Rita,
lá na escadinha. Só de biquíni. Estava ela e mais umas 5 amigas. Ela soltou
um sorrisinho malicioso para mim. Eu me abestalhei e não tirei o olho dela.
Depois só senti o asfalto quente rasgando meu rosto. Ressaca me empurrou
com tanta força que caí da bicicleta do outro lado da pista. Mas me salvou de
ser atropelado por um caminhão com cama de galinha. Ainda ia morrer todo
cagado.
Engraçado, quando estamos perto da morte, nossa vida passa diante
dos nossos olhos. Os bons momentos que tive com Ressaca me atormentaram
nesse momento. Olhei para Guto que já ia na segunda mijada de medo. Não
tive coragem de olhar uma última vez para Ressaca.
Fechei os olhos e levantei a barra de ferro. Girei com toda a minha
velocidade sob meu eixo, fazendo o objeto se encontrar com a cabeça de meu
melhor amigo. Escutei uma pancada seca. Ele caiu no chão, ainda vivo, se
debatendo. O sangue jorrou por toda a igreja. Até o fantasma colocou a mão no
queixo, assustado, como se dissesse, “mas menino, o que houve aqui”. Me
borrando de medo, continuei.
— A oferenda. Fantasma Américo. Te entrego o que tanto te atormenta.
O que te mantêm preso nessa velha e fétida igreja. Um descendente direto do
rival de seu patrão. O nome dele é José dos Santos, mais conhecido como
Ressaca. Apesar de não ter o sobrenome Menezes, o sangue que corre nas
suas veias é dessa família que você e os Cabeleiras tanto odiavam. Descobri
depois que escutei mãinha falando com sua amiga que a mãe de Ressaca teve
um caso com o prefeito. Mas ninguém sabia, ou pelo menos fingiam não saber.
Te peço somente uma coisa, seu fantasma. Livre meu irmão desse castigo
infernal. Que lhe deixe em paz. Em troca lhe entrego a alma de meu melhor
amigo e seu desafeto carnal além-vida.
O fantasma, com o ar de satisfação, começou a rir vigorosamente. A
igreja começou a tremer nesse momento. Quando olhamos de volta, o
fantasma não estava mais lá, somente os vagalumes que se espalharam
dentro da igreja. O sangue de Ressaca que respingou sobre a imagem do
santo agora se misturava com o sangue que escorria pela estátua. Na sujeira
da poeira do abandono se formavam afluentes, por onde vertia sangue. Era
como se as flechas tivessem sido cravadas naquela hora. A quantidade de
sangue que escorria não era normal, a imagem não deixava de sangrar.
Eu, Rita e Guto corremos o mais rápido que pudemos, as portas da
igreja se abriram como hoje se abrem as portas do shopping quando chegamos
perto. De soslaio, olhei para Ressaca estirado no chão. Tinha certeza que a
cara retorcida de dor e aflição de meu amigo por minha traição era a mesma de
angústia de São Sebastião. Nunca me esqueci daqueles olhos opacos e de
seus cabelos vermelhos do sangue jorrado.
Fora da igreja, com o pescoço pulsando feito criança em cama elástica,
nos olhamos. Aqueles olhares de cumplicidade que somente os assassinos
têm. Juntamos as coisas nas mochilas e voltamos para o cemitério, colocamos
nossas máscaras e nos misturamos com a turma do professor Matias na festa
de Halloween.
Passaram-se os dias e Ressaca não apareceu. Vários cartazes foram
colados nos postes e mutirões escalonados da população da cidade foram
organizados pelo próprio prefeito da cidade em busca do menino. Éramos
adolescentes na época, ensaiamos um discurso. Dissemos que passamos toda
a noite na festa de Halloween e que Ressaca saiu mais cedo. Não podíamos
nos envolver. O que mudaria afinal? Iríamos para o reformatório e nossas vidas
nunca mais seriam as mesmas. Estávamos evitando mais três mortes.
Logo o corpo de Ressaca foi encontrado. A polícia foi taxativa em dizer
que Ressaca foi vítima de um ritual macabro. Depois desse dia, a cidade
passou um bom tempo sem comemorar o Halloween. A história de Ressaca
virou uma série de TV famosa. A culpa caiu toda sobre o professor Matias.
Disseram que a festa de Halloween foi somente uma fachada para os
seguidores do professor realizarem o ritual. É verdade que o professor Matias
tinha uma religião diferente da maioria, ele era da umbanda. E naquela época
existia uma caça às bruxas com relação às religiões afro e aos jogadores de
RPG.
Ele acabou sendo o bode expiatório da nossa história. A cidade ficou
famosa e atraiu milhares de pessoas para visitarem o lugar onde aconteceu o
ritual. No final das contas a cidade ganhou um ponto turístico. Várias pessoas
montaram barracas e começaram a vender artigos de Halloween, pequenas
imagens e outros souvenirs. A cidade ganhou várias pousadas e uma bela
arrecadação de tributos nessa época do ano.
Ainda escutamos as mesmas músicas da época. Mas as vidas seguiram
seus rumos. Como eu imaginava, Rita se deu bem na vida. Se tornou gerente
de uma grande rede de farmácias da Paraíba e aproveita a vida intensamente.
Guto é professor de história na cidade, casou, tem três filhos maravilhosos.
Continua um exímio contador de histórias. Já eu, não estou casado. Até tentei,
mas meus pesadelos e minhas perturbações não deixaram minhas
companheiras e meus companheiros em paz.
Apesar de Rita e Guto não gostarem de lembrar daquele fatídico dia 31
de outubro, combinamos de nos encontrar pelo menos nesse dia. Guto me
deve a vida e ele nunca rejeita. Rita, é a Rita, a mulher mais incrível que
conheci. Quando os vejo, duas fagulhas acendem em mim. A lembrança da
turma dos esquisitos. A melhor turma que um adolescente poderia ter. E o fogo
da culpa é algo que corrói o ser humano. Vivemos bem. Mas esse sentimento
nos perseguirá a vida inteira.
Chegando em casa, antes de dormir, posso ouvir Ressaca e suas
latomias no meu pé do ouvido. Coloco Matanza no último volume na minha
caixinha de som para silenciá-lo, presente de Rita no meu aniversário. Só
assim para eu ter uma noite de sono tranquila. É como dizem, todos temos
esqueletos escondidos no armário. O meu está aos pés de São Sebastião.
Essa família nunca mais será a mesma

— Essa família nunca mais será a mesma.


Disse a psicóloga criminal Larissa Nogueira ao delegado Gustavo
Campos na porta da delegacia. O inspetor ainda não estava a par do caso,
mas pelo breve relato de Larissa, foi o suficiente para que ele entrasse na sua
sala em busca de sua garrafa de cachaça. Colocou dois copos e os virou.
Ainda sentindo o forte sabor envelhecido e levemente adocicado de sua
bebida, encheu os copos novamente e ofereceu a psicóloga, que recusou
educadamente. Acendeu um cigarro e ofereceu o maço para a Dra. Nogueira,
que prontamente aceitou. Logo a sala estava coberta de fumaça.
O delegado Campos abriu as janelas e as persianas da sua sala para
que o ar se renovasse. Observou luzes piscando do lado de fora em contraste
com a escuridão das ruas da cidade. Duas viaturas e uma ambulância ainda
encostadas no departamento fizeram ele lembrar de seu pequeno sobrinho
Augusto e do seu pastor alemão Malinol, e como ele tomou a decisão correta
de não colocar pessoas nesse mundo caótico e numa sociedade que exalava a
mais pura podridão.
— Mas com certeza eles não tiveram nenhum tipo de culpa. Fora um
infeliz acidente. — Larissa Nogueira continuou o diálogo com o delegado. Após
mais uma tragada, ela apagou o cigarro no copo de cachaça. Campos olhou de
relance para ela com um olhar de reprovação — Aparentemente ele está
calmo, mas, na verdade, está em estado de choque. Sua mente ainda não
processou o que aconteceu.
O responsável pela diligência também demorava para digerir as
informações do ocorrido. Apesar de toda sua experiência, alguns casos ainda
embrulhavam o estômago, como depois que ele comia um x-tudo na rodoviária.
Pelo menos uma década o separa de sua aposentadoria. Mas casos como
esse, fazem ele querer que os dias corram como atletas olímpicos.
— Com relação à esposa dele — Ela fez uma pausa dramática — Está
totalmente desequilibrada, já dei alguns tranquilizantes para ela, mas continua
muito alterada. Caso muito difícil. Em breve mandarei meu diagnóstico
completo, mas adianto que eles precisam ser acompanhados constantemente
por um profissional — Larissa Nogueira se despediu e deixou o representante
da lei pensativo, acendendo mais um cigarro. O estado dispunha de um
acompanhamento psicológico precário e Josias Batista não fazia o perfil de
querer uma consulta com terapeuta ou coisa parecida. Após colher o
depoimento, ele e sua família iriam ficar reclusos em seu sítio, com um grande
sentimento de culpa, sua masculinidade iria calar as inquietações da família e
tudo ficaria bem novamente.
O delegado Campos pegou de seu casaco um pequeno cantil e o
encheu com a cachaça, observou pela janela e começou a ver pessoas
surgindo no horizonte. — Cidade pequena — Pensou. Ele se aproximou da
sala de interrogatório 1 e observou Josias Batista e o semblante do homem
corroborou com a informação da psicóloga, estava realmente calmo, quase em
estado de transe. — Quantos tranquilizantes será que ele tomou? Pelo seu
tamanho deve ter sido uma dose cavalar. — Ele fazia pequenos movimentos
circulares com os dedos na mesa, como se afagasse um pequeno bebê
imaginário. De repente bateu, com força, o punho na mesa. Uma lágrima
escorreu pela sua face. Impaciente, olhou para a porta, mas não conseguiu
enxergar ninguém.
O agente policial andou pelos corredores. Um sentimento ruim
perpassou todos os pelos do seu corpo. Em dias normais a delegacia era vazia
como um cemitério, mas hoje, as pessoas se aproximavam, parecia um dia de
finados. O barulho aumentava, gente chorava e se lamentava. Qualquer coisa
que acontece numa cidade pequena, todos querem ser o primeiro a saber. E
quando se trata de uma tragédia familiar, os espectadores aumentam e todos
querem ter o furo da notícia para serem os anunciadores da terrível novidade.
Com o caos instaurado na delegacia, ele convocou dois dos seus
policiais mais corpulentos, que pareciam atletas de fisiculturismo, para
começarem a organizar o ambiente, colocou para fora metade daquelas
pessoas e montaram guarda na porta do posto policial. O delegado se
aproximou da outra sala de interrogatório e um grito se destacou dos demais.
Ilana Batista. Ela era conhecida na cidade por sua beleza e elegância. Morena,
cerca de 30 anos, agora ela parecia uma junkie com os cabelos desgrenhados.
Com um cheiro almiscarado, mistura de sangue e suor, seu vestido estava com
partes rasgadas e suja de sangue.
— ONDE ESTÁ MEU FILHO? QUERO VER ELE! — A forma que ela
expressava seus sentimentos é totalmente diferente de Josias Batista. Os
gritos aumentavam. Ilana, no chão da delegacia, suplicava e chorava. Os
policiais na sala tentavam acalmá-la, em vão. Ela estava totalmente
descontrolada. O delegado Campos entrou na sala e pediu para ela tomar um
copo de água com açúcar e se sentar na cadeira. Ilana não escutou uma
palavra e correu em sua direção. Antes que ela concluísse o possível ataque,
dois policiais a agarraram violentamente, rasgando ainda mais o seu vestido. O
delegado Campos evitou ter pensamentos eróticos com aquela cena, por um
instante ele ficou hipnotizado por aquela pele morena que se desnudava diante
dele. Ela estava muito fora de si. Suplicou. — Eu só quero meu filho, eu só
quero meu bebê de volta.
O comissário precisava utilizar seus métodos de policial mau se
quisesse extrair alguma informação daquela situação. Ele fechou os olhos por
um momento, tomou um gole da cachaça e suspirou fundo. Se aproximou de
Ilana e balançou seus ombros com força até que, gradativamente, ela se
fechou como uma ostra do mar.
***

Na história da humanidade, antes do conhecimento teórico, quando o sol


era encoberto pela lua, era visto como mau presságio, uma forma que os
deuses mostravam o seu descontentamento com a civilização. Talvez a
sabedoria dos povos antigos não seja totalmente incorreta. No dia do eclipse
solar, Ilana e Josias Batista estavam no quintal, deitados sob a grama, era final
de tarde quando o céu escureceu por alguns segundos. Eles já haviam roncado
algumas vezes. Estavam exaustos. Desde que o bebê deles nasceu, as noites
são mal dormidas. Quando a criança estava no berço dormindo, qualquer lugar
era hora para tirar um rápido cochilo. Todo esse cansaço era recompensado
apenas com um leve sorriso do pequeno primogênito. A felicidade era algo que
permeava o casal. Tudo funcionava em perfeito equilíbrio, parecia uma poesia
com rimas tão bonitas, que, por um momento, você não entendia, mas sentia o
seu gosto doce nos ouvidos.
***
Os ouvidos dos policiais estavam zunindo. Um grito alto e os guardas
que seguravam Ilana voltaram a colocar força nos braços. O delegado
Campos, que agitava os ombros dela, teve que dar dois passos para trás. Ele
pediu para que o outro guarda que estava na porta fosse pegar um lençol para
cobrir a mulher e para chamar novamente a Dra. Nogueira. No estado em que
a mulher se encontrava, seria impossível fazê-la falar algo compreensível.
Ilana finalmente sentou. O delegado Campos observou. Sentou na sua
frente. Os olhos vermelhos e inchados de chorar estavam totalmente perdidos
como a misteriosa escuridão do vazio de Boötes. Era como se o homem da lei
não estivesse ali, ela olhava através dele. Ele estalava os dedos para ver se a
senhora Batista demostrava alguma reação.
***
Ilana abriu os olhos. A noite havia dominado os céus. Se levantou do
quintal e escutou o choro de seu bebê. Correu até o quarto. Toda mãe
conseguia distinguir o tipo do choro de seu bebê. Esse era o de fome. Ela o
pegou nos braços, levou até o jardim, sentou na espreguiçadeira e começou a
dar de mamar. Josias despertou de seu cochilo, ainda sonolento, observou a
cena orgulhoso e seguiu para adiantar sua lista de tarefas.
O sítio da Ipueira dos lagartos é uma pequena propriedade situada na
zona rural de Patos. Apesar de pequena, tem uma produção considerável. Seu
solo fértil, a proximidade da zona urbana e a boa estrada vicinal permitia que
Josias escoasse sua produção para a venda na cidade com muita facilidade.
Frutas, legumes, verduras e animais, sendo que os principais eram o milho,
feijão, algodão, mandioca. Josias tinha uma criação considerável de gado,
porcos e galinhas. Ele vendia avulsamente os animais, mas pretendia adquirir
um abatedouro. Seu lucro iria triplicar quando ele começasse a vender carne. A
equipe que trabalhava para o casal era familiar, composta basicamente de seus
primos e os de Ilana. Com a gravidez de Ilana, eles tiveram que contratar uma
pessoa para ficar responsável pelo estoque e as vendas na cidade. Toda a
parte administrativa e financeira era de responsabilidade de Josias, apesar de
ter apenas o ensino básico, ele nasceu para esse tipo de atividade, tudo muito
organizado que colocava no bolso os fayolistas, tayloristas ou qualquer
processo de desenvolvimento administrativo de grandes empresas.
***
— Veja bem, Campos. — Começou a psicóloga Larissa. — Essa moça
passou por um processo que denomino, em poucas palavras, de: o inferno na
terra. E você quer que ela fale com você agora?
O delegado ajeitou suas calças enquanto pensava na sua resposta.
Nesse momento, por um breve segundo, Ilana Batista o encarou. O seu corpo
não conseguia ter forças para mais nenhum enfrentamento, estava mole como
dieta para pacientes de cirurgia bariátrica, mas a mente viajava no tempo e
espaço como as guitarras de Bill e Ted.
— MEU BEBÊÊ, meu ursinho. Por que meu Deus, POR QUÊÊ? —
Chorava Ilana enquanto o policial tentava falar com ela, mas logo ela entrava
em estado catatônico novamente.
— Vê Larissa, por isso preciso de sua ajuda. Não tem nada que ela
possa tomar ou algum tipo de hipnose que somente vocês sabem fazer?
Porque do jeito que está, fica impossível.
***
— É impossível não o achar fofo. — Comentou Ilana. Era a primeira vez
que o casal saia de casa após o nascimento do bebê. Estavam no pet shop de
João Matias. A loja estava situada no centro da cidade. O Pet shop do João era
um lugar muito cheiroso. Cada banho dado era gasto um vidro de xampu. Os
animais saiam muito cheirosos e deixavam toda a loja com um agradável
aroma. Eles vendiam de tudo e para animais de todos os portes. Desde
remédios para grandes touros, até brinquedinhos para filhotes de lontra.
Tinham muitos animais a venda, na sua maioria filhotes. Mas sempre ficavam
aqueles que cresciam e nunca conseguiam um dono. Ou então os que eram
devolvidos ou abandonados e o pet shop prontamente os acolhia, davam um
banho de loja e ficavam expostos, esperando um novo lar.
Foi o caso do chow chow de língua azul que Ilana achou fofo. Após
várias famílias recusarem, ele estava de volta ao Pet Shop para venda. Após
uma reunião na fazenda, foi decidido ser necessário um cão de guarda. Josias
achava que não precisava. Ele tem quase dois metros de altura e um corpo
definido por horas e horas de trabalho pesado na fazenda. Uma figura
amedrontadora de uma voz gutural que poderia ser facilmente confundido com
vocalista de uma banda de Death Metal. As pessoas ao vê-lo já se aprontavam
para correr de medo. Mas por insistência de sua esposa, eles resolveram
procurar um animal já adulto e de médio porte.
O dono do pet shop barganhou um ótimo preço no chow chow. Era
realmente um animal encantador. Com pelos negros e exuberantes, ele sempre
mantinha sua língua azul de fora. E quando Ilana se aproximou, ele levantou a
patinha, como se dissesse, me leve dona, serei um ótimo cão de guarda e uma
companhia para seu bebê. Foi amor à primeira vista. O cão possuía uma
estranha coleira de ferro com duas cruzes de ponta cabeça e com a letra C
impressa.
— Vamos chamá-lo de Cê. Certo, Josias? — Ilana já falava como se o
animal já estivesse sido escolhido. Josias, sempre desconfiado, perguntou ao
João o valor do animal. João ficou tão entusiasmado com o interesse dos
donos do sítio que ofertou o animal num preço tão irrisório que dava para
comprar apenas um saco de laranja na quintada de dona Marluce.
— Mas, me diga uma coisa, seu João. Um animal tão bonito e barato
desses, por que ele ainda está aqui? — A voz gutural de Josias assustou o
dono do pet shop que engoliu seco, mas com seus dotes de vendedor e com a
informação que o casal morava num sítio, rapidamente respondeu.
— Seu Josias, esse animal é muito especial. Dócil, fofo, barato de se
manter, ele come de tudo. É como dizem, não tem tempo ruim para ele não.
Pode colocar até carne crua que ele come. O problema é que as outras
pessoas que compraram, queriam criar ele em apartamento seu Josias. Você
acredita, meu amigo? Num cubículo. Não dá! Esse animal precisa do ar livre,
de uma propriedade onde ele possa correr e ser livre.
***
— LIVRE O CARALHO. Não, seu idiota. Ele está querendo nos enganar.
— Ilana xingava mesmo. Os policiais se entreolharam sem saber o real
significado das sujas palavras que saiam de sua boca.
O delegado Campos estava na sua sala com a psicóloga Larissa. O
calor estava infernal, ele se desfez do seu casaco e colocou em cima da mesa.
Procurou nos bolsos até achar o cantil. Sem nenhuma cerimônia, ele
reabasteceu-o novamente. Ele tremia enquanto colocava o álcool no recipiente.
Era como se vários espinhos estivessem sendo fincados em vários pontos da
sua mão. Olhou para o relógio. Estava próximo das 3 da manhã. Ele não vem
dormindo direito.
— Está tudo bem Campos? — Dra. Larissa indagou enquanto fumava
seu cigarro.
— Fora esse calor dos infernos. Três da manhã e um calor desses.
Vamos até à cantina, quero saber de calor não, preciso de um café bem forte.
— O delegado Campos torcia para que Larissa o ajudasse com dona Ilana. Ele
estava de fato, exausto. O seu equilíbrio psicológico também estava afetado
com tudo o que aconteceu. Nesse momento os guardas os chamavam para a
sala de interrogatório. O suor escorria pela face do policial chefe que passou a
mão na testa. Visualizou a senhora Batista que andava pela sala e falava
desenfreadamente.
— Olha Campos, acho que essa mulher se encontra num estado onde
sua mente está presa em um momento de sua vida. É como se passasse um
vídeo como flashes na sua cabeça. E tudo que ela fala, vem desse momento.
Ela está fora da realidade num looping eterno. — Constatou a psicóloga
retirando o seu caderno de anotações da sua bolsa.
Ao terminar o passeio, Ilana levou seu bebê para o quarto do casal, o
único lugar onde ele dormia no final da tarde, não tinha quem o fizesse dormir
no seu berço a tarde. Já dormindo em seus braços, ela colocou aquele
pequeno e frágil ser entre duas almofadas grandes. Ela notou que a moleira do
bebê já estava bem durinha, aquilo a deixou inquieta. O bebê ficou dormindo e
ela saiu com esse questionamento martelando em sua cabeça.
***
— FECHE A PORTA, FECHE A PORTA, não, não, sua burra, idiota do
caralho. — Com uma manta que a cobria e os cabelos que continuavam
desgrenhados, seus olhos faziam rápidos movimentos de um lado para o outro,
com uma expressão um tanto alucinada. Larissa anotava em seu caderno e o
delegado Campos tomava grandes goles de café enquanto observava se a fita
em seu gravador ainda estava rodando no aparelho.
***
Ela esqueceu a porta aberta, Ilana nunca havia esquecido daquela porta
aberta, o ar condicionado ligado com as portas abertas fazia com que o
aparelho trabalhasse mais. Era como uma geladeira com a porta aberta. Além
do consumo ser maior, a porta aberta fazia com que ele trabalhasse para retirar
a umidade e resfriar o ar quente que entrava.
Ilana e João Batista se deitaram na grama no final da tarde como de
costume. Já era noite quando eles dormiam. Além da lida diária dos afazeres
do sítio, agora eles tinham uma criança para cuidar. As noites não eram mais
bem dormidas. Qualquer lugar que eles se encostavam, acabavam cochilando.
Mas dessa vez, esse breve prazer iria custar muito caro.
Eles são acordados com um choro muito alto do bebê. Josias Batista
simplesmente colocou o chapéu no rosto, se virou e voltou a dormir. Ilana
acordou de sobressalto. Olhou para o horizonte, tudo escuro, algumas nuvens
negras se formavam e pequenos pontos de luz dos postes brilhavam na
estrada. Ela pensou que dormiu demais e que já é a hora de alimentar seu
filho, ela olhou no relógio e um frio subiu a sua espinha. Eram seis horas da
tarde. O filho dela já estava numa rotina certinha. A hora da refeição era
apenas de sete horas da noite. Ela notou então que o choro dele está diferente.
Não era de fome, não era troca de fralda, não era de cólica. Era um som novo
para ela. Um choro desesperado. Ela se levantou rapidamente e correu até o
seu quarto. O tempo pareceu se dilatar nessa corrida. O quarto, que estava a
cerca de 5 metros, parecia a quilômetros de distância. Ela não escutava mais o
choro de seu bebê. Ilana sentiu o coração parar por alguns segundos.
Josias Batista estava semiacordado, retirou o chapéu dos olhos,
observou as estrelas, sentiu a natureza, o barulho do vento. Nunca esteve com
tamanha felicidade. Seu comércio e sua família estavam indo muito bem. Todo
esse sonho é interrompido por guinchos excessivos de sua esposa. Ele se
levantou num solavanco, ainda grogue do sono, caminhou em passos
apressados para dentro de casa. O chow chow Cê passou por ele rapidamente
e deixou um rastro de sangue pela casa. Seus pensamentos formulavam
cenários diversos. Todos confabulavam para o mais caótico acontecimento. Ao
adentrar o quarto, vê uma das piores cenas que imaginou, sua mulher de
joelhos, envolta de sangue e o bebê nos seus braços totalmente esfatiado por
dentes caninos. Apesar de toda a dureza de Josias Batista, diante daquela
situação, seu coração se arrefeceu na mesma medida que seu sangue
esquentou. Ele chorou copiosamente, reverberando sua voz gutural, porém,
teve o discernimento de agir o mais rápido possível. Ilana estava sem
condições nenhuma, ela chorava, as lágrimas caíram, mas sua voz
desapareceu, era como se seu espírito tivesse saído do seu corpo.
Ele saiu do quarto e, rapidamente, ligou para a ambulância do telefone
fixo que ficava na sala. Pegou o rifle que ele usava para caçar com os primos
de Ilana e saiu no jardim em busca do assassino de seu filho. Escutou um
grunhido vindo debaixo de uma estrutura de madeira que Josias Batista
colocou ali para fazer um balanço para seu pequeno brincar quando tivesse um
pouco maior. Seus olhos se encheram de lágrimas. Ele chamou o animal que
prontamente veio, a sua língua não estava mais azul, estava vermelha com o
sangue do seu primogênito, ele podia ver pedaços de pele em seus dentes, e
todo o seu dorso estava vermelho e preto. O cachorro começou a fazer carinho
nos pés de Josias Batista, sujando-o de sangue. Ele apontou a arma. As
lágrimas escorreram no seu rosto. Cê se deitou nos seus pés. Josias abaixou a
arma. Surgiu na sua mente, flashes de seu bebê sorrindo angelicalmente. O
animal, com a língua de fora, subiu os olhos e se encontrou com os olhos do
dono do sítio. Josias Batista apontou a arma novamente.
— Vai lamber as pernas do Satanás agora.
Um tiro ecoou na ipueira dos lagartos. Josias, sujo de sangue, entrou
para casa em direção ao quarto do seu bebê.
Barulhos e luzes de sirenes eram escutados ao fundo.
***
Gustavo Campos observou os primeiros raios de sol que invadiam as
casas vizinhas ao prédio dos homens da lei. As luzes dos postes da rua
começavam a apagar. Uma névoa, que raramente se via na cidade, se
formava no horizonte, tudo parecia fantasmagórico e irreal.
Ele estava do lado de fora da delegacia encostado na parede. A
ambulância havia saído horas antes, levava o primogênito dos Batistas para o
hospital. O quadro não era nada animador, mas segundo as últimas
informações dos médicos, ele iria sobreviver, graças a uma doença chamada
cranioestenose, que é quando a moleira da criança é fechada precocemente.
As mordidas do cão afundaram a cabeça do bebê, mas não atingiu suas partes
vitais. Sua pele foi rasgada e alguns dedos foram cortados. Com certeza ficaria
com sequelas para o resto da vida. O delegado Campos observou que tem
apenas dois cigarros no seu maço, pegou um e o outro entregou para a Dra.
Nogueira.
— Isso é pior que um homicídio. — Constatou a psicóloga dando
baforadas no ar.
— Trabalho aqui há mais de 20 anos, minha cara. E tenho que
concordar com você. Homicídio, você prende o assassino. A família fica
satisfeita. Está consumado o ato de vingança. Cá entre nós, quando a
vingança é feita pelas próprias mãos das pessoas, o grau de satisfação é
maior. E o meu também, menos um bandido no mundo. Agora, isso? Isso
envenena uma família. Assim como se uma substância tóxica é colocada nas
torneiras. É contagioso. E o pior. Não há culpados.
— Com certeza delegado. — Larissa Nogueira franziu o cenho e a
fumaça saiu pelo seu nariz. — Fiquei sabendo que o seu Josias não vai querer
nenhum acompanhamento psicológico… — Ela olhou para o nada por um
instante –… e também, sendo bem sincera com o senhor, a ajuda psicológica
que o estado dá, está longe de ajudar mesmo, sabe? Às vezes até piora. Sei
por que vejo a situação do CAPS da nossa cidade. Entra bom da cabeça, sai
entupido de remédios. Como te falei antes, essa família nunca mais será a
mesma.
— Pois é, meu bem… — A psicóloga fez um ar de poucos amigos
com esse comentário do policial — … Esse tipo de crime não tem solução.
Podemos prender a mãe por maus-tratos? Prender o pai por matar o animal?
Por Deus, o juiz pode até retirar a guarda do filho deles. Mas não é a solução.
— O pager de Campos bipou. Olhou de relance e se levantou.
— Para onde vai delegado?
— Estou indo para casa, é hora de dar ração para Malinol e
também dormir um pouco. Faltam exatamente 3651 dias agora para eu me
aposentar. Quer me acompanhar?
— Engraçado você. Mas não, deixa para a próxima Campos. Tchau! Até
mais tarde.
O agente da lei deu de ombros e entrou no seu carro. Respirou
profundamente e, ao olhar o banco de passageiros, vê o livro Hereges de
Chesterton que vinha lendo. Segurou as mãos no volante e deu uma
gargalhada. Ele não lembrava da sua leitura atual. Achou muito irônico e leu o
último trecho. “A família tem sido, até agora, a célula-mãe e a unidade central
de quase todas as sociedades”. Essa sociedade falida agora tem uma família
que a merece, pensou o delegado antes de dar partida no carro.

A viagem

— Estou caindo. O buraco é uma penumbra só. Vi criaturas estranhas.


Fumaça. Assombrações iluminadas.
As crianças no sítio de Zé Paulino estavam tão concentradas na fala da
velha Sara que nem piscavam. O povo dizia que ela era doida. Talvez por isso
eu gostasse de ouvir as histórias da Sara pelas lembranças de vóinha. Ela,
com sua sabedoria de gente idosa, sempre dizia que as melhores pessoas são
doidas. E que, caso, um dia eu começasse a ver coisas, ou achar que estava
ficando maluca, era só eu dar um beliscão bem grande pra despertar. Sara
gostava tanto de dona Clemilda que lhe deu um canivete suíço. O objeto era
muito diferente. Como a velha Sara andava bastante por esse mundo, ela
supôs que esse canivete fosse de algum antigo amante que foi para a guerra.
O caso é que a velha Sara fez vóinha prometer que iria dar esse canivete para
a sua primeira neta que nascesse (no caso eu).
Claro que só recebi esse canivete agora, depois de moça.
— Uma hora você vai voltar. E isso aqui vai tá te esperando. Para você
aprender a respeitar teu pai.
Gritava, cheio de autoridade, seu Vicente, com um cipó na mão. Corria
atrás de sua filha, Luzia. Painho era tão mal conduta que fez cipó de agave pra
bater na gente. E para lapear os bois guias que se atrevessem a sair do
caminho ditado por ele. A família já tinha andando bastante. Saíram de São
Bento com as corujas ainda sonolentas e pararam para se alimentar e
descansar.
Luzia aproveitou para andar no entorno do lugar onde eles haviam
parado. Ela estava na idade de descobertas. No auge do amadurecimento.
Encontrou um pequeno rio. Automaticamente tirou a roupa e foi se banhar.
Depois se sentou debaixo de uma oiticica e começou a tocar partes do corpo
que as meninas não poderiam chegar perto, a não ser para fazer suas
necessidades. De súbito, começou a imaginar seu amigo, Toinho Calango.
Trabalhando no arado. Suado. Golpes fortes da enxada. Musculatura em riste.
Sentiu uma quentura gostosa tão grande, que os dedos lá embaixo aceleraram
o movimento.
Foi nesse momento que seu pai, seu Vicente e um amigo dele, João
Calango, apareceram. Imagina a vergonha de todos diante daquela situação.
Parecia que painho tava adivinhando que eu fazia coisa errada. Foi assim que
começou a perseguição. A menina, muito ágil, deu um pitu nos dois homens e
correu até encontrar o seu jumento Oscar, subiu na garupa dele e saiu em
disparada.
Correu e correu até entrar na mata fechada. Mesmo com as histórias
assombrosas contadas por sua mãe, ela continuou. Entre as histórias,
cangaceiros que matavam o povo e penduravam embaixo de volumosas
oiticicas e meninas que sumiam no meio do mato. Mas naquela hora, ela não
tinha medo do mato, nem das histórias. O medo era que o pai a alcançasse.
Seu Vicente era um dos melhores vaqueiros da fazenda de Zé
Paulino. Mas estava determinado a ir embora. O fazendeiro estava com umas
conversas de que uma guerra no exterior afetava a criação. Por esse motivo
teria que diminuir o pagamento. O vaqueiro achou aquilo um desrespeito. Uma
mentira grande. Apesar do fazendeiro deixá-lo cultivar um pedaço de suas
terras (milho, feijão e arroz) e ainda dar carne e leite para a família de Vicente,
ele não estava satisfeito. Queria ter sua própria terra e viver sem um patrão
para ditar ordens. Após receber o esperado quarto de produção, ele juntou
suas coisas e foi embora. E esse movimento foi contagiante.
O carro de boi da família de Vicente, que, apesar de rústico, estava
longe de ser simplório, possuía grandes rodas de madeira, várias peças com
funções específicas e uma tração animal poderosa, com os melhores bois que
ele tinha. Todos esses elementos e mais Vicente, um excelente cadeeiro, fazia
desse transporte um dos melhores da época. Alguns até tinham placas. Eles
passavam na fazenda de Catonho. João Calango viu aquilo e correu para
saber o que acontecia. O Calango se encheu de coragem e também convocou
sua família, juntou seus pertences e foi embora com o amigo.
A vegetação estava totalmente fechada, Luzia não conseguia ver mais
uma saída. Grandes árvores cobriam o céu, deixando escapar a pouca luz do
dia, que já estava perto do fim. Ela escutou que a pisada do casco de Oscar
mudou de som. Antes era um arfar de folhas e terras, agora era como se
pisasse em grandes pedras fornidas. O som da pisada mudou novamente para
uma batida oca, como se pisasse em finas camadas de madeira. Aconteceu tão
rápido que não deu tempo para pensar em alguma coisa. O peso não suportou
e os dois caíram num buraco.
O desespero bateu na menina. Estava longe demais, ninguém ia escutar
os seus gritos. O jumentinho estava com uma fratura exposta na pata. Ela
começou a chorar. Sentiu também que tinha uma fratura no seu braço. Apesar
da dor, conseguia se locomover, já seu amigo de quatro patas não tinha o que
fazer. Ficou triste pelo amigo, pois já sabia o seu fim. Com o braço bom, ela
começou a tatear o entorno do buraco. Conseguiu sentir uma pequena
passagem, que só dava para ir agachado. Mas estava tomado por raízes
grossas e rígidas que com apenas um braço ela não conseguiria ultrapassar.
Foi aí que se lembrou do canivete. Presente de sua avó. Ela começou a cortar
as raízes até uma fresta se abrir. Oscarzinho, eu encontrarei a saída e venho te
pegar, viu? Do caminho tortuoso, voaram enormes morcegos desorientados. A
menina cruzou com vários sapos, minhocas e lagartos bem diferentes dos que
Luzia era acostumada a ver lá em cima.
Mas bicho vivo nem faz tanto medo a menina. Podia ter homem brabo
ou animal peçonhento. Ela dava de conta. Mas assombração? Como ela ia
enfiar seu canivete numa alma penada? A sua memória começou avivar as
várias histórias assombrosas contadas pela sua mãe. Uma mulher que morava
no meio do mato e sequestrava as crianças para comer sua carne. Mãinha
provava que a história era verdadeira, pegava um pedaço do jornal A
VERDADE, da capital e mostrava a notícia. Graças a mãinha a gente aprendeu
a ler. Mas naquela hora seria uma benção não reconhecer aquele amontoado
de letras. A história era verdade. E a publicação dizia que a mulher se escondia
em pequenas grutas e enterrava os ossos para ninguém achar. Até hoje essa
história é contada pelas mães para que as crianças não se desembestem mata
adentro.
Rastejava e rastejava, podia sentir uma umidade crescente. A vegetação
mudava de verde para roxo. A cor da morte. Sentia estar descendo. O medo do
pai era apenas um pálido ponto. Algo pequeno diante do que se avistava. A
realidade cedia como uma fina camada de poeira. O cangaceiro Cajarana, o
amaldiçoado, também escondeu sua botija em lugares como esse. Fugindo do
volante, ele se escondia nessas grutas de difícil acesso. Ele era um homem
alto e muito magro. A entrada para a gruta de Cajarana era tão apertada que
poucos conseguiam entrar, sempre que a volante entrava na serra ele sumia
muito rápido. Era a terra parindo o Cajarana. Era assim que parecia quando ele
saia de sua gruta. Se espremia todo para sair do buraco que ele escondia com
umas folhas de bananeira. Dizem que seu tesouro ainda está em algum
recôndito lugar dessas grutas. Cajarana nunca mais foi encontrado. Que
tesouro será esse que o tempo não tiraria o seu valor? Luzia estava próxima de
descobrir.
Chegou numa encruzilhada. Tinha vários caminhos a seguir. Lembrou
dos ensinamentos de seu pai para não se perder no meio do mato. Rasgou
uma tira do vestido e amarrou em velhas raízes que ultrapassavam o caminho
acima dela e protuberavam de todos os lados. Seguiu sempre a esquerda.
Teve hora que sentiu seu cabelo pender, como se tivesse de ponta cabeça,
igual as trapezistas do circo. Notou que, atrás de troncos secos, escondiam
observadores ocultos que regravam seu caminho.
O caminho finalmente começou a se alargar. Se fosse medir, poderia
dizer que a menina rastejou a distância do sítio de Zé Paulino até a Igreja de
São Sebastião no centro da cidade. Ela estava exausta, mas agora, conseguia
ficar de pé. Espalhados no chão, ossos de tamanhos variados formavam um
tapete impossível de não pisar. Podia se ouvir os crecs a cada pisada de Luzia.
O ambiente era tão pesado que a luz do sol se rejeitava a entrar na caverna.
Ela escutou um barulho de água. Foi correndo. Estava tão tensa que esqueceu
que fazia horas que não comia nem bebia nada. Bebeu água numa pequena
poça onde centenas de girinos nadavam, uns batendo nos outros, sem norte.
Saciada, ela sentou para descansar. Sonolenta, lembrou da história mais
esquisita (e preferida) que ouviu de sua avó. Da velha Sara e sua viagem.
Ela ainda nem havia nascido. Mas todos no sítio afirmavam que a
mulher era doida. Dizia ela, que uma vez, quando estava no meio do mato,
achou um lugar que a levou para outro lugar. O povo não entendeu como isso
pôde ter acontecido. O lugar que a mulher foi transportada estava cheio de
almas penadas. Dizia ser o purgatório. Espíritos presos em calabouços
espalhados pela cidade de luz e fumaça. Fantasmas conjurados em pequenas
caixas. Embaixo da terra, seres gigantescos e rastejantes emanavam vapor de
suas narinas. Mas o fato dela ter a alcunha de doida, foi a sua conversa com
um enigmático anjo que sabia de tudo. Ele que apontou o caminho de volta. De
repente, ela foi arremessada e acordou no meio do mato.
Infelizmente, nada possuía que pudesse provar essa sua viagem
fantástica.
A não ser sua memória.
Que não era confiável.
A não ser uma placa de metal que ela afirmava terem introduzido no seu
corpo. Que não era visível.
Ela falava frases entrecortadas, incoerentes, simulava vidas esquecidas
do tempo futuro. Revelações que só os anjos apocalípticos poderiam saber. Ela
era evitada. Suas conversas estranhas não eram ouvidas. As crianças ainda
gostavam de ouvir as histórias daquele mundo fantástico. Mas os pais as
mandavam parar de importunar Sara, a doida.
Luzia despertou com uma trombada forte. Um líquido viscoso descia
pelas paredes da gruta. Escutou fortes batidas. Ela já não sabia se era seu
coração acelerado ou se era algo do além que cavalgava em sua direção.
Lembrou da velha Sara. Será que foi um lugar como esse que ela perdeu sua
sanidade? Se beliscou, mas não despertou, ainda continuava na caverna. O
medo afligiu seu estômago, produziu tanto ácido que quase colocava para fora
a pouca água que a hidratou. Chegou num ponto que a curiosidade foi quase
toda engolida. Queria voltar. Se o preço a pagar para sair desse lugar
claustrofóbico, fosse sofrer a surra do pai, ela sofreria. Começou a respirar
fundo com a iminente falta de ar. Encostou na parede cheia de musgos roxos
que pareciam querer falar com ela. Estou ficando doida mesmo. Podia sentir
um arfar da respiração daqueles seres criptogâmicos. O cheiro era de flores
mortas de cemitério. Diziam pra encontrar com a luz. Ela olhou para a frente e
viu uma luz misturada com fumaça. As batidas aumentaram, eram como
grandes engrenagens que se aceleravam com a sua proximidade. Calafrios
assombraram o corpo de Luzia feito uma força invisível.
Uma porta cheia de luz e vapor se abriu. A luz era tão forte que a cegou
por alguns segundos. O líquido que descia da gruta mais o vapor produzido
pela luz a envolveu e começou a grudar na sua pele. Quanto mais ela entrava
na passagem, mais gosma e vapor seu corpo absorvia. Chegou num ponto que
ela não conseguiu mais se locomover. Na redoma ela começou a ver estrelas.
As batidas foram substituídas gradativamente por passos rápidos, latidos de
cães e trombetas que tocavam insistentemente. Ao seu redor, pessoas
deitadas em colchões velhos em chão de piso duro, olhavam grandes
maquinas passarem rapidamente por eles. Outras pessoas com roupas de
coronel passavam andando rapidamente com aparelhos no ouvido. Alguns
jogavam moedas para as pessoas deitadas. Luzia, que estava em posição
fetal, num último esforço, se estica toda e começa a rasgar o casulo que a
envolvia.
— Dona Sara, diga mais coisas que a senhora observou na viagem
nesse outro mundo.
— Vi feiticeiros capturando pessoas e paisagens em movimento. Até a
luz do dia ficava presa em suas pequenas e finas caixas que cabiam na palma
de sua mão. Vi também enormes carros de boi de prata com rodas de couro.
Soltavam muita fumaça. Eram mais rápidos que o boi mais veloz que existia
em São Bento. Tive sorte. Foi num desses carros de boi, com uma luz
vermelha que piscava em cima, que me levou para um calabouço. Era alvo
como uma nuvem. Todos os feiticeiros de branco. Curaram meu braço
fraturado da queda que sofri na entrada da passagem. Até hoje posso sentir as
placas metálicas friccionando na minha pele.
O homem que odiava os cães

Jessica balançava um papel contra a luz do sol. O movimento produzia


uma sombra que pareciam rápidas piscadas. Os pequenos filhotes começavam
a se agitar em suas gaiolas. São dezenas de animais, basicamente cachorros e
gatos, que estão à espera de um novo lar.
Existem vários motivos para uma pessoa largar animais tão doceis e
indefesos como os que estão na feira de adoção da ONG, UM PET PARA
VOCÊ (UPET), mas nenhum convincente para Jessica, estudante de
veterinária e presidente da ONG.
— Minha nova namorada tem medo, ou ainda, fiquei grávida e não tenho
mais condições de ter o animal.
Falava, revirando os olhos em desdém.
— Isso é um absurdo, quando você tem um pet, é sua família, não pode
ser descartado como uma mercadoria, tem que ser criado como um filho.
A estudante reclamava para os outros integrantes da ONG, e eles
assentiram, balançando a cabeça, como filhotes vendo um pedaço de osso. A
UPET conseguiu a façanha de retirar todos os animais das ruas do bairro Bivar
Olinto da cidade de Patos-PB, o que era algo inimaginável há poucos anos.
— Galera, Jessica mostrou que com amor e dedicação, nós podemos
fazer muito pela nossa comunidade. Ela nos guiou e hoje estamos aqui, com
esses números excelentes e mais uma linda feira de adoção, com certeza será
um sucesso.
Completou João Neto, mais conhecido como JN, colega de Jessica e
membro da UPET. Naquele momento, todos se inflamaram e a aplaudiram
calorosamente.
Na abafada manhã de domingo, onde nuvens entrecortavam um sol que
fazia inveja a qualquer inferno, a adoradora de animais balançava com alegria
a carta de estágio. Ela foi aceita em seu primeiro estágio remunerado. Os gritos
e pulos de alegria das pessoas aumentaram o agito dos animais, que
começaram a latir e miar. Pareciam comemorar com ela. O mundo animal
estava em festa. A grande defensora deles estava próxima de terminar os
estudos. Esse estágio remunerado iria coroar o final dessa fase de tanto
aprendizado e partilha entre os colegas e professores.
— Ide em paz e que o senhor os acompanhe.
O padre falou e a assembleia respondeu.
— Graças a Deus.
Para algumas pessoas que assistiam à missa do Padre Jacó, esse
“Graças a Deus” tem duplo sentido. Graças a Deus a missa ter acabado é um
deles. Muitas pessoas, as mais corajosas, já iam saindo antes, mesmo tendo
que escutar as piadinhas do padre.
— Mas que pressa é essa minha senhora, deixou a panela no fogo?
Nesse momento, para essa senhora, a missa não serviu de nada, já saia
com o coração cheio de ódio do Padre.
— Quase três horas de missa, é muito pecado que essa cidade tem viu.
JN falou, enquanto olhava para o seu relógio e avistava a multidão
saindo da missa. Algumas pessoas começavam a se aproximar da feira de
adoção.
— Vamos lá minha gente, vamos levar um animalzinho para casa, olha
só, já vermifugado e castrado, façam essa criaturinha de Deus feliz, façam sua
família mais feliz.
Jessica, guardando a carta de aceite do estágio no bolso e gritando
como se estivesse numa feira de frutas e verduras. E a estratégia dava certo.
As pessoas começavam a chegar e olhar os bichinhos que, magneticamente,
se conectavam com os seus futuros donos. E ela conseguia captar esse
momento, ela tem um talento natural para compreender os sentimentos dos
animais. Se o bichinho gostava daquela pessoa, ela fazia de tudo para que
levassem o animal. Para isso ela conduzia uma pequena entrevista informal,
porém inquisidora com todas as pessoas que se interessavam. Como se fosse
um padre casamenteiro.
— Você promete sempre dar atenção a Sebastião? Mesmo depois que
ele fique velho e a pelagem sem brilho? Promete alimentar Sebastião com
ração e caso der comida de humanos, somente o que o cachorro possa
comer? Nada de doces ou restos de pizza. Você promete trazê-lo para a
universidade todo ano para uma visita aos veterinários e para vaciná-lo?
Sebastião com a língua de fora e com sua coleira azul com detalhes de
nuvens ouvia atentamente. Ora olhava para Jessica, ora olhava para seu futuro
dono, mas o fato é que ele concordava com tudo que a estudante de
veterinária dizia.
— E por último e não menos importante. Você promete amá-lo e dá
muito carinho?
Jessica inquiria com um sorriso no rosto e de um jeito brincalhão,
animando as pessoas que respondiam, mas ela observava atentamente as
respostas. Ela sabia quem falava a verdade ou mentia. E a pessoa aprovada
após esse interrogatório, estava apta a levar o animalzinho para a sua casa.
A feira estava indo muito bem, vários animais já estavam sendo
adotados. Mas no horizonte se formava uma densa nuvem de poeira, a
estudante de veterinária e as pessoas presentes na feira de adoção coçavam
os olhos com os indicadores e colocavam a mão sobre a testa, como se fosse
um binoculo, na tentativa de enxergar além do que o seu campo de visão
conseguia.
A nuvem começou a se dissipar e surgiu uma Chevrolet Pick-up D20,
todos chamavam somente de caminhonete ou D20, muito útil nessa região,
principalmente para a zona rural, que conseguia transportar toda a colheita
para a venda na rua. A D20, apesar de velha, vinha muito rápido, graças aos
cuidados com sua manutenção. Os faróis grandes e quadrados, pareciam
supervisores dando ordens aos outros carros. De cor predominantemente azul,
quase cinza, pelo desgaste do tempo, e com faixas adesivas nas laterais com
cores degrades do branco para o preto que contrastavam com a cor
predominante do veículo.
As pessoas na feira já se preparavam para correr para as calçadas ou a
se esconderem por entre as estruturas das gaiolas ou das casas próximas com
medo do carro vir desgovernado pela velocidade imprimida pelo motorista.
Alguns animais ficaram nos cantos e ganiam, outros começaram a latir e miar o
mais alto possível, na intenção de afastar aquela ameaça.
O motorista usava uma máscara, com grandes olhos e verde como um
lagarto. Apesar do calor, ele usava jeans esfarrapado, botas e uma camisa
longa com luvas. Parecia os famigerados papangus, figuras folclóricas que
surgiam nas épocas do carnaval, geralmente eram garotos que colocavam
máscaras de monstros e andavam com balinheiras, cipós e outras armas e
pregavam peças nas pessoas da cidade ou somente andavam pelas ruas
assustando as criancinhas. Porém, estamos em meados de agosto, não é
época dos papangus.
Jessica, que havia se escondido por trás de uma das placas de adoção,
num movimento rápido e astuto, como uma felina e cuidadosamente elegante
como uma performática trapezista de circo, brechava, na tentativa de adivinhar
a identidade do motorista, mas não conseguiu.
Após o carro cruzar toda a feira de adoção, o mais perverso dos
cenários foi revelado. O carro deixou rastros de sangue. Arrastava dois
cachorrinhos durante todo o caminho. Os animais já estavam mortos, em carne
viva. Na capota da D20 surgiram dois rapazes, totalmente cobertos e também
de máscaras. Uma máscara escamosa cinza com pequenos olhos amarelos e
uma língua pendurada onde era para ser a boca reptiliana e o outro com olhos
grandes e boca grande, também verde, mas que parecia um sapo. Se a
intenção deles era que todos fosse répteis, esse errou feio. O carro parou e
cada um dos rapazes pegou uma faca e cortou a corda que prendia os animais
ao carro.
Os dois mascarados saltaram da D20, e continuaram a tocar o terror na
feira de adoção. Foi uma ação rápida. Um ameaçou as poucas pessoas que
não conseguiram correr. Logo elas deram todo os pertences que tinham. O
bandido começou a pegar os pequenos animais adotados das pessoas e
colocavam num saco dentro da D20. O outro rapaz, puxou outro grande saco e
começou a abrir as gaiolas.
Jessica, ao ver a intenção dos delinquentes, saltou em cima de um
deles, como uma leoa que ataca um javali nas selvas africanas. Começou a
bater e a arranhar freneticamente o homem, que não conseguia se
desvencilhar da garota. O outro rapaz, vendo a situação, tentou tirá-la, mas
Jessica, como se tivesse olhos na parte detrás da cabeça, sentiu a presença
do outro se aproximando, jogou areia nele e fez um ronronar mostrando os
dentes. O mascarado, ainda limpando os olhos e sem entender de onde vinha
a força dessa frágil garota, pegou um pedaço de ferro e bateu forte nas costas
da estudante de veterinária, que caiu desfalecida por cima do outro mascarado.
Eles conseguiram pegar três filhotes das gaiolas e colocaram no saco, subiram
na capota da D20, deram duas tapas na carroceria, como sinal para o motorista
dar a partida, e foram embora. A feira ficou uma bagunça. Todos perplexos com
o que aconteceu.
As pessoas que estavam escondidas, começavam a surgir, como ratos
que esperavam os donos da casa irem embora para procurar restos de
alimentos. Jessica se acordava, com um fio de sangue descendo da cabeça
dela.
— Temos que levar ela no médico.
Expressou JN entreolhando os amigos ao perceber o sangue.
— Não, não precisa, estou bem.
Para a surpresa de todos, ela se levantou devagar não dando muita
importância para o seu ferimento, somente focada nas gaiolas abertas.
A manhã de domingo que se encaminhava para um grande sucesso de
adoções, acabou virando um cenário de guerra. Algumas gaiolas quebradas e
os animais capturados, os que ficaram estavam choramingando assustados.
Jessica sentou no meio fio e deixou os seus braços caírem sob o short
imundo de terra, suado e ensanguentado. Ela passou a mão no bolso e retirou
a carta de aceite do estágio. O papel totalmente amassado — Pelo menos uma
alegria tive hoje. — Pensou e começou a esticar o papel delicadamente, para
desamassar e finalmente leu a carta.

CARTA DE ACEITE
Prezada Jessica M das Flores

A coordenação do curso de Bacharelado em Medicina Veterinária


Campus V da UFCG – Patos – PB, tem o prazer de informar que
a aluna Jessica M das Flores do 7º ano foi aceita para o estágio.
Por favor, comparecer ao lugar designado, amanhã, às 5 da
manhã para desenvolver as atividades designadas pelo seu
professor, que vai te acompanhar até o local das atividades.
Para que o trabalho seja validado, durante a semana, será
obrigatório o envio de um relatório para seu professor orientador.
Agradecemos seu esforço e boa sorte nesse novo desafio.

Local do Estágio: Sitio Ipueira dos Lagartos


Proprietário: Josias Batista e Família.

Atenciosamente,
Coordenação

***
Jessica observava a mudança de paisagem. O sol ao mesmo tempo que
nutre o corpo com vitamina D queima sem piedade a pele. Ela fechou os olhos
e deixou o vento e o sol entrarem nela. O sentimento era de liberdade e de
conexão com a mãe natureza. Ainda estava com dor do golpe na cabeça do dia
anterior. A pele ao redor do curativo ainda estava muito avermelhada, ela não
seguiu a recomendação médica de colocar gelo no ferimento, tomou um
medicamento pra dor e foi dormir. Antes de sair de casa, passou uma bela
quantidade de protetor solar e conferiu sua mochila. O principal eram as
galochas, meias grandes, máscaras, luvas, boné e seu pijama cirúrgico, mas
logo ela percebeu que o macacão era uma melhor opção. E claro seu almoço,
escovas de dentes e pasta dental.
– Chegamos – o professor fala com entusiasmo na parte da frente do
carro.
Uma mulher os aguarda na porteira do sítio. Uma mulher com longos
cabelos escuros, muito bem trançados e repartidos. O professor se aproximou
da mulher que lhe recebeu com um aperto de mão forte, incomum para uma
mulher daquela estatura.
– Jessica, venha aqui – chama o professor, que massageava sua mão.
A estudante saiu do carro. Uma paisagem verdejante com muitas
plantas, as folhas que balançavam no ar, levaram até os sentidos da moça o
aroma característico da região. A madeira que formava os galhos e os troncos,
as flores de gardênia, as ervas de manjericão, as folhas de hortelã e o cheiro
do adubo se misturam e exala uma essência que transporta a estudante, para
um lugar idílico na sua imaginação, onde animais e humanos vivem em
harmonia, sim, exatamente como os folhetos distribuídos pelas Testemunhas
de Jeová.
– Jessica!
A voz do professor a tirou do momento em que ela estava quase
passando a mão na cabeça de um tigre. Ela se aproximou dos dois.
– Conheça Ilana Batista, a esposa do seu Josias, dono do sítio, ela vai te
acompanhar nas suas atividades.
– Bom dia.
Ilana cumprimentou Jessica brevemente. Essa respondeu da única
forma que conhecia, a mais amável possível.
– Bom dia senhora Ilana, espero contribuir muito com a sua fazenda e
estou muito ansiosa para começar.
– Primeiramente, senhora está no céu. Pode me chamar de Ilana. E...
espero que você esteja bem.
Ela falou apontando para o curativo e a vermelhidão na testa da jovem.
– Tá certo. Isso não foi nada.
Jessica, apontou para a sua testa e rapidamente colocou um boné na
sua cabeça e arrumou seus cabelos para trás.
– Um pequeno acidente de percurso.
Concluiu dando uma risadinha sem graça.
Ilana encarou por alguns segundos o boné da menina, azul com a
silhueta de um cachorro com as letras UPET embaixo. Nesses poucos
segundos que encarou o boné de Jéssica, Ilana percebeu o quanto aquela
menina era irritantemente educada, mas, por insistência do professor, um
antigo amigo e também pelo reconhecimento que o sítio podia ganhar com a
presença acadêmica, Ilana e Josias aceitaram esses estagiários em suas
terras.
O professor notou o momento desconfortável, Jessica entreolhou para o
professor, que rapidamente bateu uma palma nas mãos e se despediu.
– A conversa está boa, mas tenho que voltar para a universidade. Jess
venho te pegar às 17h. Próximo do pôr do sol. Está bom para vocês?
Jessica e Ilana concordaram. Começaram a andar lentamente para o
alpendre da casa, para se refugiar do sol que começava a aparecer entre as
nuvens.
– Como você pode ver Jessica, nossa fazenda é familiar, bem pequena,
temos poucas cabeças de gado, alguns bezerros, carneiros, porcos e
plantamos milho, feijão e mandioca. Ali você pode ver que temos algumas
frutíferas que vendemos a polpa. Nada muito sofisticado. Somos apenas eu e
meu marido e mais três funcionários, que também são da família, primos e
sobrinhos vindos de outras cidades, que agora moram aqui, gostaram tanto
que não pensaram duas vezes. Eles ficam num quarto bem amplo, colocamos
duas beliches, construímos um banheiro para eles, não é um hotel cinco
estrelas, mas eles vivem bem. Claro que, de tempos em tempos, contratamos
mais funcionários, quando a carga de trabalho aumenta, sempre damos um
jeito, ou eles dormem com os meninos no quarto ou ajeitamos uma cama
naquele galpão, próximo aos estábulos, apesar do cheiro dos animais, logo
eles se acostumam.
Ilana falava, como um padre dando um sermão na igreja. Jessica
escutava cada palavra atentamente, enquanto vestia seu avental cirúrgico e
calçava suas galochas.
– Caso você queira ficar aqui durante essa semana, você iria dormir no
galpão, caso você não fizesse questão de dormir cheirando a merda de vaca a
noite toda.
Jessica olhou consternada para Ilana, sem entender o que ela quis dizer.
Mas Ilana caiu na risada.
– Você devia ver a sua cara, brincadeira menina, você pode dormir no
sofá da sala, ou a gente coloca os meninos no galpão e você dorme no quarto
deles.
– Não não, dona Ilana – Ela olhou seriamente para a estudante – Quer
dizer, Ilana. Não Ilana, vou dormir na rua mesmo, 17:00 volto com o professor,
não se preocupa.
Embaixo de um enorme pé de seriguela, Josias Batista e seu
funcionário, que também é seu sobrinho, Naldo Lobão, observou toda a
chegada da menina. Sentados nas raízes salientes da arvore que se
projetavam para fora, que mais pareciam tentáculos de uma medusa, se
entreolhavam desconfiados. Nos seus pés um cantil de água, uma carteira de
cigarro e uma garrafa de café. Naldo Lobão com as mãos enlameadas e os
braços arranhados vestiu seu surrado casaco de motoqueiro, encheu a tampa
do cantil de água e tomou apressadamente. Josias acendeu um cigarro e se
deitou na raiz da arvore, colocou o braço por trás da cabeça e deu uma
risadinha irônica. Passados alguns minutos Josias falou.
– Vamos Naldo, temos ainda muito trabalho a fazer.
Jessica foi para sua primeira atividade do programa de estágio o trato
com os bezerros. Ilana explicou quais as atividades que ela vai desempenhar
naquela área do sítio.
– Como você pode ver menina, temos poucos bezerros, apenas cinco.
Seu trabalho é limpar o piquete deles enquanto eles ficam soltos, é claro que
após o término da limpeza você fica responsável por traze-los de volta. Depois
você troca a água que se encontra ali, naquela cisterna, traz para essa baia
aqui. Tá certo?
Jessica escutou e observou atentamente tudo a sua volta. Ela estava
muito animada para começar seu trabalho. E, dessa vez, ela teve a calorosa
recepção que esperava, ao entrar no piquete, os bezerros se aproximavam da
estudante como se a conhecesse há tempos. Eles mugiam como se quisessem
falar algo para ela. Jessica estendeu uma mão, os pequenos começaram a
lamber e com a outra mão ela fazia carinhos na cabeça dos animais que
rapidamente sossegaram. Não podemos negar que existia uma forte conexão
entre Jessica e os animais.
Conduziu os bezerros para fora do piquete, num primeiro momento os
animais não queriam se afastar da veterinária, mas ao lhe oferecerem a
liberdade, logo esqueceram da estudante e começaram a saltitar e brincar
como crianças. Jessica observou contente, de relance imaginou novamente o
seu mundo perfeito. Ela começou a executar a limpeza, com uma pá pegou
todos os excrementos dos bezerros e colocou num carrinho de mão, depois ela
mesmo levou, todos esses dejetos, para uma área descampada. Eram
misturados com a palha e ramagens e após sua curtição se transformavam em
estrume, um excelente adubo orgânico para as plantas. Após várias idas e
vindas com o carrinho, Jéssica sentiu sede e apesar de todo o cuidado dela
com o que levar na sua mochila, esqueceu seu cantil de água. Ela olhou para
os lados e não via ninguém por perto, então ela decidiu ir à casa do sítio.
A casa era tipicamente rural, chão de cimento queimado, móveis antigos,
mas tudo muito limpinho e aconchegante, ela avistou um pote de barro na
cozinha, pegou um copo de alumínio que estava num porta corpos na parede,
bebericando a água naturalmente gelada que somente o pote de barro
consegue climatizar, pela janela visualizou um galpão nos fundos da
propriedade, uma estrutura que não se conseguia vê da estrada, existiam
muros e enormes plantas e trepadeiras no quintal da casa que ocultavam
aquele galpão do resto do mundo. Ela olhou pensativa, quais animais ficavam
ali? Será que poderia ser uma estufa? Confabulava várias teorias e demorou a
percebe um barulho que vinha daquele lugar, após ela se concentrar melhor,
notou que o som é de um lamentoso latido, bem baixinho, ela tentou se
concentrar mais, pra ver se realmente o som vinha daquele galpão. Ao mesmo
tempo que o som de um uivo alto era ouvido por Jessica, o som de um rádio foi
colocado na altura máxima por trás dela. Ela virou-se rapidamente e viu Ilana
com os dedos no botão do volume no rádio.
Ilana encarou Jessica com feições de poucos amigos. A estudante ficou
consternada, sem saber onde colocava o copo que estava nas suas mãos.
– Acho que escutei um lamento de um cachorro.
– Impossível menina. Não permitimos cães aqui nesse sítio.
Jessica finalmente colocou o copo em cima da mesa e foi saindo da
casa, sem entender o real significado daquelas palavras.
A estagiária terminou a limpeza dos piquetes dos bezerros e começou a
conduzir eles para dentro, os animais que estavam deitados ao redor do
piquete, pareciam esperar ela termina de limpar a casa deles. Jessica colocou
água fresca em baldes para eles tomarem. Observou a cena com muita
satisfação. Mas ela não parou de pensar na situação que ocorrera mais cedo
com Ilana. Algo de errado acontecia naquele sítio, mas ela ainda não sabia o
que era.
Chegou o horário do almoço, eles preferiam almoçar numa grande mesa
de madeira maciça que ficava fora da casa, embaixo da grande arvore de
ciriguela. Como era costume nos sítios da região, um belo banquete foi
oferecido. Grandes travessas de arroz, feijão, verduras, suco de manga fresco
e vários tipos de carne a disposição. Enquanto Ilana terminava de colocar as
travessas na mesa, os sobrinhos deles ficavam gurejando a comida, já
brigando com o olhar para ver quem ficava com o pedaço melhor da carne.
Quando autorizados, os rapazes se serviram tão rapidamente, que mais
pareciam cães famintos disputando um pedaço de osso. Jessica, por sua vez,
fez uma pequena oração antes de abrir sua mochila e tirar seu almoço. Todos
observavam a menina. Naldo Lobão com o braço enfaixado, a boca cheia de
comida e com uma coxa assada, que era muito fina para ser de frango, aponta
para Jessica e comentou, chamando Ilana carinhosamente de mainha:
– Oxe, olha mainha, a menina não come a comida da senhora. Não
sabe o que tá perdendo.
Ilana então lançou o olhar para Jessica, esperando explicações.
– Desculpa Ilana, é porque sou vegana, não consumo nada de origem
animal.
Os rapazes se entreolham e após algum momento caem na risada.
Jessica ficou intimidada com a situação, mas continuou comendo sua refeição.
– Calados seus bostas, deixa a menina em paz – a voz gutural de Josias
suspendeu as risadas maldosas dos trabalhadores. Jessica levantou a cabeça
e observou eles comerem, percebeu como aquela carne era diferente, devem
ser de várias arribaçãs grandes e cortadas, costelas de porco pequenos e um
caldo com pequenos ossos. Mas Jessica não via iguarias, ela somente
enxergava o sofrimento dos pobres animais naqueles pratos. Josias observou a
menina.
– Você não sente falta de comer carne?
Os meninos olharam de forma séria para a menina aguardando a
resposta. Jessica se encheu de coragem e de cabeça erguida fala:
– Sinto não seu Josias. O ser humano desenvolveu-se de tal maneira
que é possível viver sem consumir alimentos de origem animal e mais do que
isso, viver melhor. Esse meu almoço além de ser delicioso tem todos os
nutrientes necessários para a minha sobrevivência. Todos sabemos que a
carne vermelha é altamente cancerígena, sem falar em todos os enlatados da
indústria. Além de fazer bem a sua saúde, você evita os maus tratos de
animais, que têm sentimentos, que sentem dor, que sofrem tal qual os seres
humanos.
Os meninos escutaram aquilo e por um momento pararam a mastigação
frenética. Mas ao término da fala de Jéssica, rapidamente eles voltaram a se
deliciar com a saborosa carne preparada por Ilana.
– Cada um com suas verdades, né minha filha? Respeito você. Mas se
for para morrer de câncer, que eu morra saboreando essa deliciosa carne de
minha nega aqui.
Josias fala com um tom jocoso, deixou a conversa leve e Jessica mais à
vontade. Josias retornou a falar:
– Mas você acha mesmo que os animais são tão inocentes e inofensivos
assim? Você já viu o que o Tubarão faz com o povo lá no litoral, ou o que o
urso faz se pegar você na floresta. Não se engane menina, se um urso faminto
ver você passando, olha você como um belo pedaço de bife, igual os
desenhos, sabe como é? E ele vai te morder direto na sua nuca, vai agarrá-la e
te dar um abraço de urso. E aí já era. Mas você não vai morrer, vai viver, para
ver ele tirar suas vísceras e se alimentar delas, até lamber os beiços. Pelo
menos nós fazemos de um jeito que os animais não sentem muita dor. Damos
uma cacetada na cabeça dele e depois jorramos o sangue do infeliz...
– E urso tem beiço, pai?
Nesse momento Ilana interrompeu a pertinente pergunta de Naldo
Lobão, bateu forte na mesa e gritou:
– Já chega dessa conversa besta na hora do almoço. Voltem a comer
agora.
Todos respeitaram a decisão da mulher e voltaram a comer em silêncio.
Jessica observou que o braço enfaixado de Naldo Lobão começava a se
encharcar de sangue. Ela acenou com a mão para avisá-lo, para evitar a
quebra do silêncio ordenado por Ilana. Naldo olhou rapidamente para o braço e
o escondeu embaixo da mesa e continuou comendo com a outra mão.
Encarava a moça com cara de poucos amigos.
Jessica foi para a baia dos carneiros. De fato, o sítio era pequeno,
apenas cinco carneiros. A tarefa consistia em pegar a composta de silagem de
capim mais concentrado e colocar nas baias. Isso era a alimentação dos
animais. Jessica completou esta tarefa mais cedo que o esperado. Ela se
sentou e observou a casa. O pensamento dela voltou para aquele uivo do
cachorro. Por que Ilana queria esconder aquele cachorro dela? E porque ela
mentiu ao dizer que não é permitido cães no sítio? Esses questionamentos só
poderiam ser desvendados caso ela chegasse naquele galpão abandonado,
mas pra isso teria que achar um momento que não tivesse ninguém na casa.
No torpor dos pensamentos, Jessica sentiu o focinho úmido de um carneiro nas
suas pernas. Os animais iam se aninhando em seus pés. Ela se acalmava com
todo aquele afago. Parecia que, novamente os animais se esforçavam para se
comunicar com ela. Um deles se esfregou no seu braço, o que fez seu
pensamento se voltar para o braço enfaixado de Naldo Lobão e para toda
aquela conversa estranha no almoço.
O sol baixou consideravelmente no horizonte, logo o primeiro dia do
estágio chegava ao fim, mas a mente de Jessica estava frenética. Ela escutava
o som dos cães novamente. Ela não iria sossegar enquanto não desvendasse
esse mistério.
Jessica observou que Ilana saiu no carro para a rua, ia no comércio para
distribuir a produção do sítio, ela achou estranho ela ir no fim do dia. Mas que
bom que ela estava saindo. Viu Também que Naldo e o outros dois meninos
estavam a cavalo com um bornal e uma espingarda. Era noite de lua cheia e o
céu estava limpo, provavelmente estavam indo caçar, logo, iriam demorar para
voltar e Seu Josias levou sua cadeira de balanço de palha trançada para
debaixo do pé de ciriguela e estava num sono serrado. Aquele era o momento
perfeito. Ela rapidamente largou a enxada que usava para mexer no capim,
contornou silenciosamente os carneiros que estavam nos seus pés e correu
para dentro da casa.
Três lagartixas que passavam por Jessica pararam e a encararam, como
se quisessem alertar a veterinária. Mas ela continuou avançando. Ao chegar
nos fundos da casa uma sensação ruim tomou conta dela. Angústia a
dominava. O som dos lamentos caninos ecoava na sua mente, agora mais
próximo, ela tentava seguir os uivos. O clarão do céu estava dando lugar a
vários tons vermelhos do crepúsculo, um fenômeno muito lindo que acontece
no sertão, mas não era a hora de Jessica apreciar o pôr do sol. Logo estaria
escuro e o professor viria pegá-la, precisava agir rápido. Todos os detalhes do
ataque do dia anterior e o comportamento estranho das pessoas no sítio
sobrepujavam na mente dela. Ela se aproximou do misterioso galpão quando
escutou um barulho de motor do carro. Desistiu. Mas no momento em que ela
virou, soltou um grito contido de susto. Um homem alto parado atrás dela,
usava uma touca, possuía várias cicatrizes que perpassavam da testa até o
queixo e com um estranho sorriso largo no rosto. Jessica teve um súbito
choque ao perceber que, na verdade, aquele homem não estava sorrindo, ele
não tinha os lábios e toda a arcada dentaria superior estava exposta. Ele
ergueu um pedaço de pau e perguntou com uma voz tremula.
– Você não pode estar aqui. Aqui é minha casa.
Jessica não sabia se respondia, se desmaiava, se mijava ou se corria da
criatura. Quase aconteceu todas as alternativas, mas ela arrumou coragem e
correu em direção a casa. Quando abriu a porta da casa, esbarrou-se com
Ilana.
– Dona Ilana, por favor, esse homem apareceu aqui. Me ajude.
– Está tudo bem querida.
Jessica se aninhou em Ilana como um bichinho indefeso
– Mas eu te falei para não vim para cá, ne?
Jessica arregalou os olhos e sentiu a pressão dos braços fortes de Ilana.
O homem alto se aproximou das duas.
– Ela ia entrar no galpão.
Ilana balançou a cabeça e apertou mais forte ainda o rosto de Jessica
contra o seu peito.
– Tudo bem meu filho, ela não vai mais te perturbar.
Jessica arranhou as costas de Ilana, como uma felina tentando sair de
dentro de um saco, ela sacudiu o seu corpo com toda a força, quando ela
estava prestes a se desvencilhar de Ilana, o grandalhão bateu forte nas costas
de Jessica com o pedaço de pau. Ela desmaiou nos braços de Ilana.
Todos os animais na Ipueira dos lagartos protestaram em uníssono. O
barulho era tão diferente que Ilana olhou de forma curiosa para as baias.
O estado de inconsciência era como um espírito tentando achar um
caminho de volta na completa escuridão. Jessica vagava pelo estado de
inconsciência procurando uma luz.
Enquanto isso, sua carne era amarrada numa velha cadeira de ferro
enferrujada, no centro do galpão, que antes pensou estar abandonado. Por fora
aparentava algo não utilizado há anos. Por dentro existia uma certa
organização. Um quarto ao fundo, onde o rapaz alto morava. No outro canto,
uma velha D20, que estava com uma proteção que cobria parte da sua lataria,
mas dava pra ver que era um carro já velho com a pintura azul desbotada.
De frente para Jessica, uma estrutura metálica, cerca de um metro de
altura, que parecia uma pequena prisão, com barras que cabiam não mais que
numa mão pequena. Uma ferramenta muito antiga, manchada de sangue
escuro e vísceras. Pelo aspecto, foi usada muitas vezes. Muitos animais
sangraram até a morte naquele aparelho.
Havia muito sangue no chão, sujeira e pedaços de carne. Um odor típico
de matadouros. O cheiro de carne podre faz Jessica recobrar os sentidos. Ela
tentou gritar, mas sua boca estava amordaçada com força. Rapidamente ela se
situou e observou todo o ambiente, seus olhos freneticamente estudavam o
lugar. O que lhe chamou a atenção, foi o aparelho na sua frente. Muito
pequeno para ser usados em bovinos, talvez em porcos ou ovelhas. Mas a
fazenda não tinha permissão legal. E quem era aquele homem alto com o rosto
deformado? Ele nunca foi mencionado pelos donos. Eles não queriam que
Jessica revelasse as autoridades essa prática clandestina, por isso a
amarraram.
Coitados.
A prisão e as consequências financeiras seriam significativamente
menores.
O que a visão embaçada de Jessica achou ser uma família de Timbus
no fundo do celeiro, eram na verdade Ilana e os habitantes do sítio lagartos,
todos mascarados. Eles se aproximam da estudante.
– Jessica, minha querida.
Ilana pegou outra cadeira metálica enferrujada com símbolo de uma
marca de cerveja e sentou próximo a Jessica, que levantou o rosto ainda um
grogue da pancada
– Esse rapaz aqui é meu filho, Jaime. Claro que o seu rosto lhe causou
pavor. É algo impossível de não notar, concorda? É... por isso a máscara. Você
não devia ter vindo pra cá. Eu tentei avisar. Mas, mesmo assim, você é uma
boa garota. De verdade.
Enquanto discursava, os primos e seu Jair retiraram as máscaras e
colocaram nas suas cabeças e caminhavam para os lados, e o filho de Ilana
também fez o mesmo movimento com a máscara, mas ficou atras dela com um
sorriso bobalhão.
– Mas minha querida, você foi para um lugar onde não era para ir. No
lugar errado na hora errada. Não é assim que se diz.
Ela sorriu, olhando para ela e depois olhando para o seu filho, que sorriu
de volta.
– Claro, achei sua outra fonte de renda, abate de porcos clandestinos,
pode deixar, assim que eu sair daqui denuncio vocês.
A voz de Jessica saiu embargada, por um segundo imperou um silêncio
ensurdecedor, depois toda a família desabotoou os lábios numa gargalhada.
Naquele sorriso maligno com uma altivez que somente as hienas sabiam
entoar.
– Minha filha, você acha que abatemos porcos aqui é?
Por um momento Jessica ficou incrédula, ela sentiu o sangue descendo
pela sua boca e pelos seus cabelos.
– Uma pena você não comer a carne que oferecemos hoje no almoço.
Estava deliciosa. Nos mesmos preparamos aqui, aliás, uma carne que a cidade
toda come. Eles pensam que são uma espécie de galinha, mas na verdade é
carne de cachorro.
Nesse momento Jessica ficou atordoada, seu choque era visível.
Enquanto Ilana falava, Lobão trazia um cachorro amordaçado.
– Nós vamos fazer uma demonstração pra você. Essa invenção de
Josias, facilita nossa vida, é claro que o animal sofre muito nessa parafernália,
mas para nós é muito divertido.
– Mas por quê? Carne de cachorro?
Por que Jessica? Ora porque não? Na China é comum espetinho de
cachorro, na antiguidade era uma comida normal, porque deixamos de comer,
por qual motivo? Por que eles se tornaram nossos “companheiros”? nossos
“amigos mais leais”? Vou te dizer uma coisa. Tudo mentira. Tá vendo o rosto de
Jaime, tá vendo sua cabeça?
Ela retirou máscara e a touca de Jaime com tanta força, que ele revirou
os olhos para cima. Revelou-se sua cabeça afundada.
– Isso foi obra das bestas que você diz ser seus amigos.
Milagrosamente ele sobreviveu, mas ele não tem vida, a sociedade não aceita
pessoas como ele. Então a caçada aos cachorros é o que dá sentido à vida
dele. Ele mata os cachorros por prazer, a forma dele se sentir vivo, se sentir
bem. Diferente do Jaime do “Homem que amava os cachorros”, esse Jaime
aqui, os odeia. E se meu filho odeia, eu também odeio. E nessa encruzilhada,
aprendemos a gostar do sabor de sua carne, e também a lucrar. Além disso
nós prestamos um serviço de utilidade pública. Nas madrugadas, os meninos
recolhem essas pestes das ruas e preparamos sua carne para vender na feira
no outro dia. Então sua maldita ONG apareceu e começou a tirar nosso ganha
pão das ruas. Mas enfim, vamos deixar de falatório besta e começar a
brincadeira.
Jaime pegou o animal com toda força e deu uma pancada na cabeça
fazendo ele adormecer e o colocou dentro do aparelho. Naquele momento,
todos se sentaram no chão coberto de sangue para acompanhar o espetáculo
da tortura canina. Antes que Jaime girasse a manivela do aparelho, Jessica se
soltou das amarras e se jogou sobre ele, como uma felina de grande porte,
rasgando o seu rosto com suas unhas afiadas. Jaime começou a gritar pela
mãe, Ilana como uma leoa querendo proteger seu filhote, correu, gesto imitado
pelo o resto da família. Jessica, ao sentir a aproximação, retirou o animalzinho
do aparelho, correu, antes que alguém se aproximasse e sumiu entre as
sombras do celeiro.
– Se espalhem, procurem essa menina, tranque o celeiro pra ela não
sair.
Falou Ilana, apontando para o portão do celeiro e arregalando os olhos
para Naldo Lobão. Ele foi em disparada para o portão e o restante começou a
virar o lugar abaixo. Ilana notou que Lobão não voltou da sua tarefa. Quando
ela foi ver o portão, Naldo jazia pendurado, com o trinco do portão enfiado no
seu estomago, o sangue jorrava como uma cachoeira.
Seu Jair e o outro primo se aproximaram e viram o rapaz mais valente,
morto por uma menina franzina. Eles tentaram retirar Naldo dali, nesse
momento Lobão estava atrapalhando, pois impedia a passagem deles para a
casa, onde guardavam as espingardas. Eles começaram a escutar um assobio,
rapidamente se viraram e olharam para todos os lados.
– Apareça sua quenga. Eu te mato sua safada.
Esbravejou o primo. Eles se separaram novamente, o som sibilante
começou a crescer. As andorinhas que faziam ninho no telhado do celeiro
levantaram voo, indo para longe daquele lugar, como se recusassem ver o
temível fim daquela história. De repente um grito alto e enlouquecedor é
ouvido. Quando Ilana e seu Josias se aproximaram, o sobrinho estava preso
por urtigas que brotavam de todos os lados. Estava totalmente imerso nos
cipós da planta e não conseguia se desvencilhar, sua pele começou a queimar
e ficar em carne viva.
Seu Josias tentou tirar o rapaz, mas não conseguia cortar as urtigas.
Quando ele virou para pedir a Ilana um facão, ela havia sumido. A luz do celeiro
começou a falhar. Seu Josias começou a ouvir risadas sibilantes que pareciam
vir de dentro da mente dele. Um mau presságio tomou conta dele. De repente a
luz apagou totalmente, ele fechou os olhos e começou a rezar a oração dos
aflitos, o rosário apressado, dizem que essa súplica te defende até do próprio
Belzebu. Mas a voz no seu pé do ouvido era mais alta que a sua reza e ele não
conseguiu passar do Glória ao pai. O sussurro o ordenava a olhar para cima.
Ele abriu os olhos e no reflexo tentou dar um soco no vazio, pensando
que a veterinária estava próxima. Começou a sentir algo pingar na sua cabeça
e seus ombros. Quando ele passou a mão, se assustou com o líquido, era
sangue. Ao levantar a cabeça ele viu algo que ficou marcado por toda a sua
existência. Depois de um tempo, seu Josias tentou apagar toda essa história
da sua cabeça, e ele até conseguiu esquecer de algumas coisas. Mas tem
coisa que é tão marcante, que a mente amarra numa cadeira e não deixa sair
de jeito nenhum. Essa imagem era uma delas. Ilana estava presa pelos seus
longos cabelos trançados. Pareciam cordas amarradas no telhado do celeiro,
desfalecida e com o escalpo esticado pelo seu peso. O seu sangue banhou
Josias, como os baldes que banharam Carrie na sua festa de formatura. Ele se
ajoelhou e caiu num choro compulsivo.
O carro do professor de Jessica encostou em frente ao sítio. Ele
aguardou por um momento ela aparecer. Após alguns minutos de espera, ele
entrou. Pareciam que tinham saído, tudo estava vazio. Continuou adentrando o
recinto, até chegar nos fundos do sítio. Ele viu o celeiro aberto. Ele começou a
sentir um mau cheiro. Quando se aproximou, a cena tenebrosa se formou
diante de seus olhos. Josias em posição fetal, banhando de sangue cochichava
um mantra. O professor aproximou-se para escutar melhor. O dono do sítio
repetia.
- Maria Florzinha, Maria Florzinha, Maria Florzinha...

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