Você está na página 1de 10

Machado.

de Assis

Varias historias
Mon ami, faisons touiours des contes ..•
Le temps se passe, et le conte de Ia oie
s' achêve, sans qu' on s' en aperçoive. '.
>
DIDER0T

PROPRIEDADE LITTERARIA DE W. M. JACKSON INe., EDITORES,


W. M. ]ACKSON INC.
RIO DE JANEIRO - SÃO PAULO - PORTO ALEGRE EDITORES
I 10 DE JANEIRO SÃO PAULO PORTO ALEGRE
-1942-
~ '.
A H! o senhor é oue é o Pestana? per-
guntou Sinhá~inha Motta, fazendo
um largo gesto admirativo. E logo depois,
corrigindo a familiaridade: - Desculpe
meu modo, mas. .. é mesmo o senhor?
. Vexado, aborrecido, Pestana respondeu
.que sim, que era elle. Vinha do piano, en-
xugando a testa com o lenço, e' ia a chegar
á janella, quando a moça o fez parar. Não
era baile ; apenas um saráo intimo, pouca
gente, vinte pessoas ao todo, que tinham ido
jantar. com a viúva Oamargo, rua do Areal,
n'aquelle dia dos annos d'ella, cinco de no-
vembro de 1875. .. Boa e patusca viuva l
Amava o riso B a folga, apesar dos sessen-
ta annos em que entrava, e foi a ultima, vez '
que folgou e riu, pois falleceu nos primeiros
dias de 1876. Boa e patusoa viuva l CO.ll1
que alma e díligencia arranjou alli umas
danças, logo depois do jantar, pedindo ao
Pestana que tocasse uma quadrilha! Nem
foi preciso acabar o pedido; Pestana CUI'-.
vou-se.gentilmente, e correu ao piano. Fin-
da a quadrilha, mal teriam deseançado uns
64 VARrAS HISTORIAS
UM HOMEM CELEBRE 65
dez minutos a viuva correu novamente ao
Pestana para um obsequio mui particular. dona da casa, ninguem logrou retel-o. Of-
- Diga, minha senhora. f receram-lhe remedios 'caseiros, algum re-
- É que nos toq~e ago:a a.•quella sua pouso, não acceitou nada, teimou em sahi:r
t sahiu.
polka Não bula comm1,go,.nhonho.
Pestana fez uma careta, mas dissimu- Rua f6ra, caminhou depressa, com me-
lou depressa, inclinou-se calado, sem .genti- (10 de que ainda o chamassem;. só affrou-
leza, e foi para o piano, sem enthusiasmo. ou, depois que dobrou a esquma da rua
Ouvidos os primeiros compassos, derramol~- Formosa. Mas ahi mesmo esperava-o a sua
se pela sala uma alegria nova, os cavalhei- rrande polka festiva. De uma cas~ mod~s-
ros correram ás damas, e os pares entraram tn á direita, a poucos metros de distancia,
Mil hiam as notas da composição do dia, so-
a saracotear a polka da mo~a. Da mod~J
tinha sido publicada vinte dias antes, e ja pradas em clarineta. Dançava-se. Pesta-
não havia recanto da cidade, em que não' un parou alguns instantes, pensou em arre-
fosse conhecida. Ia chegando á consagra- piar caminho mas dispoz-se a andar, estu-
ção do assobio e da cantarola noeturna .. '"OU o passo, ~travessou a rua,. e seguiu pelo
lado opposto ao da casa do baile. As notas
Sinhásinha Motta estava longe de sup- f'oram-se perdendo, ao longe, e o nosso ho-
por que aquelle Pestana que ella vira á me- mem entrou na rua do Aterrado, onde mo-
za de jantar e depois ao piano, mettido nu- I'/t va. . Já perto da casa ouviu vir dois ho-
ma sobrecasaca côr de rapé, cabello negro, mons; um d'elles, passando rentesinho com
longo e eaeheado, olhos cuidosos, q~eixo ra~ " Pestana, começou a assobiar a mesma pol-
pado, era o mesmo Pe~tana composlto;; f?l 111, rijamente, com brio, e o outro ~egou .a
uma amiga que lh'o disse quando o VIU VII' I('mpo na musica, e ahi foram os dOISabai-
do piano, acabada a polka. D'ahi a pergun- '!! ruidosos e alegres, emquanto o auctor da
ta admirativa, Vimos que elle respondeu ,1C\;:a, desesperado, corria a metter-se em
aborrecido e vexado. Nem assim as duas ('IIHn.
moças lhe pouparam finezas, taes e tantas, Em casa , respirou. Casa velha,
que a mais modesta vaidade se contentaria . esca-
dn v lha, um preto velho que o servia, e que
de as ouvir; elle recebeu-as cada vez mais \ iu saber se elle queria cear. ,
enfadado, até que, allegando dôr de cabeça,
pediu licença para 'sahir. Nem ellas, nem a - Não quero nada, bradou o Pestana;
I', eu-me café e vá dormir.
66 VARIAS HISTORIAS u~ I-1;OMEM CELEBRl! 67

Despiu-se, enfiou uma camisola, e foi petíu a peça; depois parou alguns instan~
para a sala dos fundos. Quando o preto ac- !';'s, levantou.-se e foi a uma das janellas.
cendeu o gaz da sala, .Pestana sorriu e, den- Iornou ao pla~o; era a vez de Mozart, pe-
. tro dalma, cumprimentou uns dez retratos gou de um trecho, e executou-o do' mesmo
Inodo, com a alma alhures. Haydn levou-o
.que pendiam da parede. Um só era a oleo,
(t meia noite e á segunda ohícara de café.
o de um padre, que o educara, que lhe en-
sinara latim e musica, e que, segundo os Entre meia noite e uma hora Pestana
ociosos, era o próprio pae do Pestana. Cer- pouco mais fez que estar á janelia e olhar
to é que lhe deixou em herança aquella casa ]inra as estrellas, entrar e olhar para os re-
velha, e os velhos trastes, ainda do tempo f ratos. ,. De quando em quando ia ao piano,
de Pedro I. Compuzera alguns motetes o r, de pe, dava uns golpes soltos no teclado,
padre, era doudo por musica sacra ou pro- como se procurasse algum pensamento; mas
fana, cujo gosto incutiu no moço, ou tam- o pensamento não apparecía e elle voltava
bem lhe transmittiu no sangue, se é que ti- n. encostar-se á janella. As estrellas pare-
nham razão as boccas vadias, cousa 'de que elnm-lhe outras tantas notas musicaes fi-
se não occupa a minha historia, como ndas no céo á espera de alguem que as fosse
ides ver. li scollar ; tempo viria em que o céo tinha
Os demais retratos eram de composi- do ficar vazio, mas então a terra seria uma
tores classicos, Cimarosa, Mozart, Beetho- eonstellação de partituras. Nenhuma íma-
ven, Gluck, Bach, Schumann, e ainda uns rem, desvario ou reflexão trazia uma Iem-
trez, alguns gravados, outros Iithographa- hrunça qualquer de Sinhásinha Motta, que
dos, todos mal encaixilhados e de differente uutretanto, a essa mesma hora-, adormecia
.

tamanho, mas postos alli como santos de pc usando n'elle, famoso auetor de tantas
uma igreja. O piano era o altar; o evan- p(~l1~s amadas. Talvez a ídéa conjugal ti-
gelho da noite lá estava aberto: era uma I'~)(I a moça al~uns mçmentos de somno. Que

. sonata de Beethoven. tinha ~ Ella Ia em vinte annos, elle em trin-


1/1" boa 'conta. A moça dormia ao som da
, Veíu o ,café; Pestana enguliu a primei- r

ra ehicara, e sentou-se ao piano. Olhou pa- p~llka, <:uvid~ de cór, emquanto o auctor
ra o retrato de Beethoven, ê começou a exe- li «sta nao CUIdavanem da polka nem da mo-
11, mas das velhas obras classicas interro-
cutar a sonata, sem saber de si, desvairado
ou absorto, mas com grande perfeição, Rc- Iludo o céo e St noite, rogando aos anjos, em
68 VARrAS HISTORIAS UM HOMEM CELEJ3~ 69

ultimo caso ao diabo. Por que não faria M~s parece que hoje chovê-.
elle uma só que fosse daquellas paginas im- - Chove~ repetiu Pestana machinal-
mortaes t mente.
Ás vezes, como que ia surgir das pro- - Parece que sim, senhor, o céo está
fundezas do inconsciente uma aurora de meio escuro.
~déa.i elle cor~ia ao piano, para avental-a Pestana olhava para o preto, vago,
inteira, traduzil-a em sons mas era em vão' preoccupado. De repente:
a idéa esvaia-se. Outras ;ezes sentado a~ - Espera ahi.
.
plano, "
deixava os dedos correrem, âventu- Correu á sala dos retratos, abriu o pia-
ra, a ver se as phantasías brotavam d 'elles, no, sentou-se e espalmou as mãos no tecla-
como dos de Mozart; mas nada nada a ins- do. Começou a tocar alguma cousa propria,
piração não vinha, a imaginação deh:ava-se uma inspiração real e prompta, uma polka,
estar dormindo. Se acaso uma idéa áppa- uma polka buliçosa como dizem os annun-
recia, definida e bella, era echo apenas de cios. Nenhuma repulsa da parte do com-
alguma peça alheia, que a memoria repetia, positor; os dedos iam arrancando as notas,
e que elle suppunha inventar. Então ir- ligando-as; meneiando-as ; dir-se-hia que a
ritado, erguia-se, jurava abandonar a ~rte, musa compunha e bailava a um tempo.
ir plantar café ou puxar carroça; mas d 'ahi Pestana esquecera as discipulas, esquecera
a dez minutos, eíl-o outra vez, com os olhos o preto, que esperava com a bengala e o
em Mozart, a imital-o ao piano. guarda-chuva, esquecera até os retratos que
Duas, trez, quatro horas. Depois das pendiam gravemente da parede. Compu-
Ilha só, teclando ou escrevendo, sem os vãos
quatro foi dormír; estava cançado, desani- sforços da véspera, sem exasperação, sem
mado, morto; tinha que dar licções no dia nada pedir ao' céo, sem interrogar os olhos
seguinte. Pouco dormiu; accordou ás sete ele Mozart. Nenhum tedio. Vida, graça,
horas. Vestiu-se e almoçou. novidade, escorriam-lhe da alma como de
- Meu senhor quer a bengala ou o uma fonte perenne.
chapéo de son perguntou o preto, segundo Em pouco tempo estava a polka feita.
as ordens que tinha, porque ás distracções Corrigiu ainda alguns pontos, quando vol-
do senhor eram frequentes. tou para jantar I mas já a cantarolava, an-
- A bengala. elando, na rua. Gostou d'ella ;na composi-
/
/
70 lÁ~IAS HISTQRIAS UM HOMEM CELEBRE, 71

ção recente e inédita circulava o sangue da tasse, titulo de espavento, longo e meneia-
paternidade e da vocação. - Dois dias de- 10. Era este: Senhora dona, guarde o seu
pois,foi leval-a ao editor das outras polkas h(tlaio.
suas, que andariam já por umas trinta: O - E para a vez seguinte, accrescentou,
editor achou-a linda. Jli. trago outro de c6r.
- Vae fazer grande effeito. Exposta á venda, esgotou-se logo a pri-
Veiu a questão do titulo. Pestana, unira edição. A fama do compositor bas-
quando compoz a. primeira polka, em 1871, tava á procura; mas a obra em si mesma
quiz dar-lhe um titulo poético, escolheu es- '1'1\ adequada' ao genero, original, convida-
te: Pingos de sol. O editor abanou a ca- It a dançal-a e decorava-se depressa. Em
beça, e disse-lhe que os títulos deviam ser; oito dias, estava celebre. Pestana, duran-
já de si, destinados á popularidade - ou 1( os primeiros andou devéras namorado-
por allusão a algum suecesso do dia - ou Ia composição, gostava de a cantarolar bai-
pela graça das palavras; indicou-lhe dois: inho, detinha-se na rua" para ouvil-a to-
A lei de 28 de Setembro, QU Candongas não '111' em alguma casa, e zangava-se quando
fazem festa. lHO a.tocavam bem. Desde logo, as orches-
- Mas que quer dizer Candonqa« não 11'IlFl de theatro a executaram, e elle lá foi a
fazem festa? perguntou o auctor, 11 II d'elles. Não desgostou tamberr; de a ou-
- Não quer dizer nada, mas popula- i I' assobiada, uma noite, por um vulto que
riza-se logo. cll'w'ia a' rua do Aterrado.
Pestana, ainda donzel inedito, recusou Essa lua de mel durou apenas umquar-
qualquer das denominações e guardou a pol-
ka; mas não tardou que, compuzesse outra,
10 de lua. Corno das outras vezes, e mais
lvpressa ainda, os velhos mestres retrata-
e a comichão' da publicidade levou-o a im- dOH 9 fizeram sangrar de remorsos. Vexa-
primir as duas, com os títulos que ao editor
lI) c enfastiado, Pestana arremetteu contra
parecessem mais attrahentes ou apropria-
iquclla que o viera consolar tantas vezes;
dos. Assim se regulou pelo tempo adeante, 1IIIIRa de olhos marotos e gestos arredonda-
Agora, quando Pestana entregou a no- I(I l, fácil e graciosa. E ahí voltaram as
va polka, e passaram ao titulo, o editor I I useas de si mesmo, o odio a quem lhe pe-
acudiu que trazia um, desde muitos dias, 1I 1 nova polka da moda, e juntamente o es-
para a primeira obra que elle lhe apresen- iroo de compor alguma cousa ao sabor elas-
72 VARIAS HISTORIAS UM HOMEM CELEBRE 73

sico, uma página que fosse, uma só, mas tal possue outra prenda.. que não é rara, mas
que pudesse ser encadernada entre Bach e vale menos: está tisica.
Schumann.· Vão estudo, inutil esforço. Os escrivães não deviam ter espirito --
Mergulhava naquelle Jordão sem sahir bap- mão espirito quero dizer. A sobrinha d'este
tizado. Noites e noites, gastou-as assim, Mentiu no fim um pingo de balsamo, que lhe
confiado e teimoso, certo de que a vontade curou a dentadinha da inveja. Era tudo
era tudo, e que, uma vez que abrisse mão da rdade. Pestana casou d 'ahi a dias com
musica facil ... lima viuva de vinte e sete annos, boa can-
- As polkas que' vão para. o inferno tora e tisica. Recebeu-a como a esposa es-
fazer dançar o diabo, disse elle um dia; de piritual do seu genio. O celibato era, sem
madrugada, ao deitar-se. duvida, a causa da esterilidade e do trans-
Mas as polkas não quízeram ir tão fun- vio, dizia elle comsigo ; artisticamente .con-
do. Vinham á casa de Pestana, á propria Riderava-se um arruador de horas mortas;
sala dos retratos', irrompiam tão promptas, tinha as polkas por aventuras de petíme-
que elle não tinha mais que o tempo de as tres. Agora sim, é que ia engendrar uma
compor, imprimil-as depois, gostal-as al- família de obras serias, profundas, inspi-
guns dias, aborrecel-as, e tornar ás velhas radas e trabalhadas.
fontes, d'onde lhe não manava nada. N'essa Essa esperança abotoou desde as pri-
alternativa viveu' até casar, e depois de meíras horas do amor, e desabrochou á pri-
casar. meíra aurora do casamento. - Maria, bal-
- Casar com quem ~ perguntou Sinhá- hucíou a alma d'elle, dá-me o que não achei
sinha Motta ao tio escrivão que lhe deu IIn solidão das noites,' nem no tumulto dos
aquella noticia, dias.
- Vae casar com uma viuva. . Desde logo, para commemorar o con-
- Velha~ xorcio, teve ídéa de compor um nocturno.
- Vinte e sete annos. Ohamar-lhe-hia Ave, Maria. A felicidàde
- Bonita I como que lhe trouxe um principio de ins-
- Não, nem feia, assim, assim. Ouvi piração; não querendo dizer nada á mulher,
dizer que elle se enamorou della, porque a untes de prompto, trabalhava ás escondidas;
ouviu cantar na ultima festa de S. Fran- «ousa difficil, porque Maria, que amava
cisco de Paula, Mas ouvi tambem que ella ('gnalmente a arte, vinha tocar com elle, ou
74 VARIAS HISTORIAS UM HOMEM CELEBRE 75

ouvil-o sómente, horas e horas, na sala dos Poucos dias depois, - uma clara e
retratos. Chegaram a fazer alguns concer- f'rcsca manhan de maio de 1876 - eram seis
tos semanaes, com trez artistas, amigos do horas, Pestana sentiu nos dedos um frémito
Pestana. Um domingo, porém, não se pou- particular e conhecido. Ergueu-se devaga-
de ter o marido, e chamou a mulher para rinho, para não accordar Maria, que tossira
tocar um trecho do nocturno ; não lhe disse. toda a noite, e agora dormia profundamen-
o que era nem de quem era. De repente, te, Foi para a sala dos retratos, abriu o
parando, interrogou-a com os olhos. piano, e, o mais surdamente que poude, ex-
.- Acaba, disse Maria; não é Chopin ~ trahíu uma polka. Fel-a publicar com um '
Pestana empallideceu, fitou os olhos no pseudonymo ; nos dois mezes seguintes COll1-
ar, repetiu um ou dois trechos e ergueu-se. poz e publicou mais duas. Marianão soube
Maria assentou-se ao piano, e, depois de al- nada ; ia tossindo e morrendo, até que expi-
gum esforço de memoria, executou a peça rou, uma noite, nos braços do marido, apa-
de Chopin. A idéa, o motivo eram os mes- vorado e desesperado. ,
mos; Pestana achara-os em alguns d'aquel- Era noite de Natal. A dôr de Pestana
les beccos escuros da memoria, velha cidade teve um accrescimo, porque na vizinhança
de trahições, Triste, desesperado, sahiu de
casa, e dirigiu-se para o lado da .ponte, ca- 1111viaum. baile, em que se tocaram varias
minho de S. Christovão, do suas melhores polkas. Já o baile era
- Para que lutar ~ .dizia elle. Vou (1nro de soffrer; as suas composições da-
com as polkas , .. Viva a polka! vam-lhe um ar de ironia e perversidade.
I~Jlle sentia a 'cadencia dos passos, adivinha-
Homens que passavam por elle, e ou-
va os movimentos, porventura lubricos, a
viam isto, ficavam olhando, como para um
doudo. E elle ia andando, allucinado, mor- q 110 obrigava alguma d 'aquellas composi-
tificado, eterna peteca entre a ambição e a ('(les; tudo isso ao pé do cadáver pallido, um
vocação. .. Passou o velho matadouro; ao molho de ossos, estendido na cama. .. To-
chegar á porteira da estrada de ferro, teve das as horas da noite passaram assim, va-
idéa de ir pelo trilho acima e esperar o rarosas 011 rapídas, humidas de lagrimas e
primeiro trem que viesse e o esmagasse. O de suor, de aguas de Colonia e de Labarra-
guarda fel-o recuar. Voltou a si e tornou (\110, saltando sem parar, como ao som da
a casa. iolka de um grande Pestana invisível.

. .
VARIAS HISTORIAS UM HONIEM CELEBRE 77

Enterrada a mulher, 'o viuvo teve uma Correu ainda um anno. N o principio
unica preoccupação : deixar a musica, depois 1878, appareceu-lhe o editor.
de compor um Requiem, que faria executar - Lá vão dois annos, disse este, que
no 'primeiro anniversario da morte de Ma- 1108 não dá um ar da sua graça. Toda a
ria. Escolheria outro emprego, escrevente, ente pergunta se o senhor perdeu o talen-
carteiro, mascate, qualquer cousa que lhe to. Que tem feito ~
fizesse esquecer a arte assassina e surda. - Nada.
Começou a obra; empregou tudo, arro- - Bem sei o golpe que o feriu; mas lá
jo, paciencia, meditação, e até os caprichos no
dois annos. Venho propor-lhe um con-
do acaso, como fizera outr'ora, imitando t rneto ; vinte polkas durante doze mezes; o
Mozart. Releu e estudou o Requiem d'este )li' ço antigo, e uma porcentagem maior na
auctor, Passaram-se semanas e mezes. A linda. Depois, acabado o anno,' podemos
obra, célere a principio, affrouxou'o andar. '( nevar,
Pestana tinha altos e baixos. Ora achava-a Pestana assentiu com um gesto. Pou-
incompleta, não lhe sentia a almasacra, nem '11tHIicções tinha, vendera a casa para saldar
idéa, nem inspiração, - nem rnethodo ; ora dividas, e as necessidades iam comendo o
elevava-se-lhe o coração e trabalhava com l/oIto,que era assaz escasso. Acceitou .o
I

vigor. Oito mezes, nove, dez, onze e c Re- I ntracto,


quiem não estava concluído. Redobrou de - Mas a primeira polka ha de ser já,
e
esforços, esqueceu licções ámizades. Tinha fi plicou o editor. É urgente. Viu a carta
refeito muitas vezes a obra; mas agora que- cio Imperador ao Caxias ~ Os liberaes fo-
ria concluil-a, fosse como fosse. Quinze "1I1n chamados ao poder; vão fazer a refor-
dias, oito, cinco. .. A aurora do anniver- 11m eleitoral. A polka ha de chamar-se:
sario veiu achal-o trabalhando. J rtwos á eleição directa! Não é politica; é
Contentou-se da missa rezada e simples, 1\111 'bom titulo de occasião.
para elle só. Não se póde dizer se todas as Pestana compoz a primeira obra do con-
lagrimas que lhe vieram sorrateiramente rncto. Apesar do longo tempo de silencio,
aos olhos, foram do marido, ou se algumas 1/ o perdera a originalidade nem a inspira-
eram do compositor. Certo é que nunca '11. Trazia a mesma nota genial. As ou-
mais tornou ao Requiem. I'IIA polkas vieram vindo, regularmente.
Para quej dizia elle a si mesmo. lonservara os retratos e os repertorios ; mas
UM HOMEM CELEBRE 79
78 VARrAS HISTORIAS

fugira ~de gastar todas as noites ao piano, theatro, referiu-~he o estado de Pestana, de
modo que o editor entendeu calar-se. O
para nao eahir em novas tentativas. Já ago-
doente é que instou para que lhe dissesse o
ra l?edia uma entrada, de graça, sempre que
havia alguma boa opera ou concerto de ar-
clue era; o editor obedeceu. '
- Mas ha de ser quando estiver bom
tista, ia, mettia-se a um canto gozando
aquella porção de cousas que nun'ca lhe ha:- cl todo, concluiu. .
- Logo que a febre decline um pouco,
viam de. brotar do cerebro. Uma ou outra
vez, ao tornar para casa, cheio de musica,
di. se Pestana.
Seguiu-se uma pausa de alguns segun-
despertava n'el~e Q maestro inedito : então,
dos. O elarineta foi pé ante pé preparar o
sentava-se ao plano, e, sem idéa tirava al-
úas no
not as, até que ia dormir ' -vinte ou . medio ; o editor levantou-se e despediu-se.
gurnas
-.. Adeus. '
trinta minutos depois. .' .
- Olhe, disse o Pestana, como é pro-
Assim foram:""passando os .annos, até
It vel ,que eu morra por estes dias, faço-lhe
1885. A fama do Pestana dera-lhe defini- logo duas polkas ; a outra servirá para
t~vamente o primeiro logarentre os compo- quando subirem os liberaes.
slto~es .de polkas , mas o primeiro legar da Foi a unica pilheria que' disse em toda
a.ldela não contentava a este Cesar, que con- I vida, e era tempo, porque expirou na ma-
tinuava . a preferir-lhe ' não o segundo , mas rhugada seguinte, ás quatro horas e cinco
cen t esimo em Roma. Tinha ainda as alter- minutos, bem com os homens e mal comsigo
nativas de outro tempo, acerca de suas com- 1110 'mo.
P?sições; a diff'eronça ê que eram menos
violentas. Nem enthusíasmo nas' primeiras
horas, nem horror depois da primeira se-
mana; algum prazer e certo fastio.
Naquelle anno, apanhou uma febre de
nada, que em poucos dias cresceu até virar
perniciosa. Já estB;v:a em perigo, quando
lhe appareceu o editor, que não sabia da
doença, e ia dar-lhe noticia da subida dos
con~~rvadores, e pedir-lhe uma' polka de oc-
casiao. O enfermeiro, pobre clarineta do

Você também pode gostar