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PRÉMIO NOBEL DE LITERATURA 2O1O

o fA l a D Or
I

Vim a Florença para me esquecer por uns tempos do


Peru e dos peruanos e eis que foi aqui que o malfadado
país veio ao meu encontro, esta manhã, da maneira mais
inesperada. Tinha visitado a casa de Dante, reconstruída,
a pequena Igreja de São Martinho de Vescovo e ruela
onde, segundo a lenda, ele viu pela primeira vez Beatriz,
quando, na passagem de Santa Margarida, uma montra
me deixou boquiaberto: arcos, flechas, um remo traba-
lhado, um cântaro com desenhos geométricos e um
manequim enfiado numa cushma de algodão silvestre.
Mas foram três ou quatro fotografias que me devolveram,
subitamente, o sabor da selva peruana. Os rios largos, as
árvores corpulentas, as canoas frágeis, as cabanas débeis
sobre estacas e os ajuntamentos de homens e mulheres,
seminus e pintalgados, a contemplar-me fixamente das
suas cartolinas brilhantes.
Naturalmente, entrei. Com um estranho calafrio e
com o pressentimento de estar a cometer uma estupi-
dez, arriscando-me, por uma curiosidade trivial, a frus-
trar de certo modo o projecto tão bem deli neado e
executado até agora – ver Dante e Maquiavel e ver pin-
tura renascentista durante dois meses, numa irredutível
solidão –, a provocar uma dessas discretas hecatombes
que, de tempos a tempos, me atrapalham a vida. Mas,
naturalmente, entrei.

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A galeria era minúscula. Uma só divisão de tecto baixo
onde, para poderem expor todas as fotografias, tinham
instalado dois painéis, atulhados de imagens nos dois
lados. Uma rapariga magra, de óculos, sentada por
detrás de uma mesa, olhou para mim. Pode visitar-se a
exposição «I nativi della foresta amazonica» ?
– Certo. Avanti, avanti.
No interior da galeria não havia objectos, havia só
fotografias, pelo menos umas cinquenta, a maioria
delas bastante grandes. Não ti nham legendas, mas
alguém, talvez o próprio Gabriele Malfatti, redigira
duas folhas onde explicava que as fotografias tinham
sido tiradas durante uma viagem de duas semanas pela
região amazónica das circunscrições de Cusco e Madre
de Dios, na zona leste do Peru. O artista propusera-se
descrever, «sem demagogia nem esteticismo», a vida
quotidiana de uma tribo que, até há poucos anos, vivia
quase sem contacto com a civilização, disseminada em
unidades de uma ou duas famílias. Só nos nossos dias
começava a agrupar-se nos lugares documentados pela
exposição, mas muitos dos seus membros perma -
neciam ainda nos bosques. O nome da tribo fora caste-
lhanizado sem erros: os machiguengas.
As fotografias materializavam bastante bem o propó-
sito de Malfatti. Aí estavam os machiguengas a lançar o
arpão da margem do rio, ou, semiescondidos no meio
dos arbustos, a preparar o arco para a capivara ou para
a huangana; aí estavam eles, a apanhar jucás nas dimi-
nutas plantações espalhadas em torno das suas flaman-
tes aldeias – talvez as primeiras da sua longa história –,
a roçar o monte à machetada e a entrelaçar as folhas das
palmeiras para cobrir as suas casas. Um grupo de
mulheres tecia esteiras e canastras e outro preparava
coroas, engastando penas vistosas de papagaios e gua-
camayos em aros de madeira. Aí estavam eles, a ornar

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minuciosamente as suas caras e os seus corpos com
tinta de achiote, a fazer fogueiras, a secar couros, a fer-
mentar a jucá para o masato em recipientes com forma
de canoa. As fotografias mostravam eloquentemente
como eram poucos nessa imensidão de céu, água e
vegetação que os rodeava, a sua vida frágil e frugal, o
seu isolamento, o seu arcaísmo, o seu abandono. Era
verdade: sem demagogia nem esteticismo.
O que vou dizer não é uma invenção a posteriori nem
uma falsa recordação. Tenho a certeza de que passava de
uma fotografia para a seguinte com uma emoção que, em
dado momento, se transformou em angústia. Que se
passa contigo? Que poderias ter encontrado nestas ima-
gens que justique semelhante ansiedade?
Desde as primeiras fotografias reconhecera as clarei-
ras onde se levantam Nueva Luz e Nuevo Mundo –
ainda não havia três anos que lá tinha estado –, e,
inclusive, ao ver uma panorâmica deste último lugar,
a memória ressuscitou-me nesse mesmo momento a
sensação de catástrofe com que vivi a aterragem acro-
bática que lá fizemos, certa manhã, no Cessna do Insti-
tuto Linguístico, evitando crianças machiguengas.
Também me parecera reconhecer algumas caras dos
homens e mulheres com que conversei ajudado por Mr.
Schneil. E isto tornou-se uma certeza quando, numa
outra fotografia, vi, com a mesma barriguita inchada e
os mesmos olhos vivos que conservava na minha
memória, o miúdo de boca e nariz minados pela rata-
zana. Mostrava à máquina fotográfica, com a mesma
inocência e naturalidade com que nos mostrara a nós,
um buraco com colmilhos, palato e amígdalas que lhe
dava um ar de fera misteriosa.
A fotografia que eu esperava, desde que entrei na gale-
ria, foi das últimas a aparecer. À primeira vista notava-se
que aquela comunidade de homens e mulheres sentados

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em círculo, à maneira amazó nica – parecida com a
oriental: as pernas cruzadas, flectidas horizontalmente,
com o tronco muito erguido –, e banhados por uma luz
que começava a afrouxar, de crepúsculo virando noite,
estava hipnoticamente concentrada. A sua imobilidade
era absoluta. Todas as caras se orientavam, como os
raios de uma circunferência, para o ponto central, uma
silhueta masculina que, de pé no meio da roda de
machiguengas magnetizados por ela, falava, agitando
os braços. Senti frio nas costas. Pensei: «Como é que
Malfatti terá conseguido autorização, como terá feito
para...?» Inclinei-me e aproximei bem a cara da foto-
grafia. Estive a observá-la, a cheirá-la, a perfurá-la com
os olhos e a imaginação até que vi que a rapariga da
galeria se levantava da sua pequena mesa e se encami-
nhava para mim, inquieta.
Fazendo um esforço para me acalmar, perguntei-lhe se
as fotografias eram para vender. Não, pensava que não.
Eram da Editorial Rizzoli, que, segundo parecia, as ia
publicar em livro. Pedi-lhe que me pusesse em contacto
com o fotógrafo. Infelizmente, não era possível.
– Il signore Gabriele Malfatti è morto.
Morreu? Sim. Com umas febres. Um vírus apanhado
nessas selvas, forse. Que infeliz! Era um fotógrafo de
moda, trabalhava para a Vogue e para a Uomo, e revis-
tas do género, fotografando modelos, móveis, jóias,
vestidos. Passara a vida a sonhar com fazer algo de dife-
rente, de mais pessoal, com essa viagem à Amazónia.
E quando, por fim, pôde fazê-lo e lhe iam publicar um
livro com o seu trabalho, morreu! E, agora, le dispia-
ceva, mas era a hora do pranzo e tinha de fechar.
Agradeci-lhe. Antes de sair para me enfrentar mais
uma vez com as maravilhas e as hordas de turistas de
Florença, ainda consegui olhar pela última vez a foto-
grafia. Sim. Sem a menor dúvida. Um falador.

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II

Saul Zuratas tinha um lunar roxo-escuro, cor de


vinho avinagrado, que lhe apanhava todo o lado direito
da cara, e uns cabelos ruivos e despenteados, quais cer-
das de um escovilhão. O lunar não respeitava a orelha
nem os lábios nem o nariz que também estava afectado
por uma tumefacção venosa. Era o rapaz mais feio do
mundo, mas simpático e muito bom. Não conheci nin-
guém que desse imediatamente, como ele, a impressão
de pessoa tão aberta, sem subterfúgios, desprendida e
boa, ninguém que mostrasse uma simplicidade e um
cora ção semelhantes em qualquer circunstância.
Conheci-o por ocasião dos exames de entrada na uni-
versidade e ficámos bastante amigos – na medida em
que se pode ser amigo de um arcanjo –, sobretudo nos
dois primeiros anos, em que fomos colegas na Facul-
dade de Letras. No dia em que o conheci advertiu-me,
morto de riso, apontando para o lunar:
– Chamam-me Mascarita, amigo. Não adivinhas por-
quê.
Em San Marcos, também nós o tratávamos pela mesma
alcunha.
Nascera em Talara e dava-se com toda a gente. Pala-
vras e ditos do calão de rua brotavam em cada frase que
dizia, dando mesmo às suas conversas íntimas um ar de
chacota. O seu problema, dizia ele, era que o pai ganhara

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demasiado com o armazém lá na aldeia, tanto que, um
belo dia, decidiu mudar-se para Lima. E, desde que
chegaram à capital, ao velho dera-lhe para o judaísmo.
Lá no porto piurano não era muito religioso, se Saul
bem se lembrava. Tinha-o visto ler a Bíblia uma ou
outra vez, sim, mas nunca se preocupou com inculcá-la
a Mascarita que pertencia a outra raça e a outra reli-
gião, diferentes das dos rapazes da aldeia. Aqui em
Lima, em contrapartida, sim. Que chatice! Na velhice
deu-lhe para ali. Ou, melhor dizendo, para a religião de
Abraão e de Moisés. Porra! Nós tínhamos muita sorte
por sermos católicos. A religião católica era algo de
muito simples, uma missita de meia hora cada domingo e
umas comunhões cada primeira sexta-feira do mês, que
passavam muito rapidamente. Ele, em contrapartida,
tinha de se enfiar aos sábados na sinagoga, horas a fio,
suportando os bocejos e fingindo interessar-se pelos ser-
mões do rabino – de que não entendia peva – para não
contrariar o pai, que, no fim de contas, estava velhote e
era muito boa pessoa. Se Mascarita lhe tivesse dito que
tinha deixado de acreditar em Deus há uns tempos e
que, em suma, se estava nas tintas para o facto de perten-
cer ao povo escolhido, ao pobre Dom Salomão ter-lhe-ia
dado um fanico.
Conheci Dom Salomão, num domingo, pouco
tempo depois de ter conhecido Saul. Este tinha-me
convidado para almoçar. A casa ficava em Breña, por
detrás do Colégio La Salle, numa transversal triste da
Avenida Arica. Era uma casa enorme, cheia de móveis
velhos, e com um papagaio palrador com nome e apeli-
dos kafkianos, que passava o tempo a repetir a alcunha
de Saul: «Mascarita! Mascarita!» Pai e filho viviam
sozinhos, com uma criada que viera com eles de Talara
e que, além de lhes fazer a comida, ajudava Dom Salo-
mão na loja que abrira em Lima. «Essa, a da rede de

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arame com uma estrela de seis pontas, amigo. Chama-
-se ‘A Estrela’ por causa da estrela de David, entendes?»
Impressionaram-me o afecto e as atenções que Mas-
carita prodigalizava ao pai, um velho corcovado, por
barbear, que arrastava uns pés deformados pelos joane-
tes nuns sapatorros que pareciam coturnos romanos.
Falava espanhol com um forte sotaque russo ou polaco,
e isso, disse-me, apesar de viver há mais de vinte e cinco
anos no Peru. Tinha um ar astuto e simpático: «Quando
era pequeno, eu queria ser trapezista de circo, mas a
vida acabou por me atirar para bufarinheiro, veja o
senhor que decepção.» Seria Saul o seu único filho?
Sim, era.
E a mãe de Mascarita? Morrera dois anos depois de
a família se ter mudado para Lima. Eh pá, que pena, a
avaliar por essa fotografia, a tua mãe devia ser muito
jovem, não é verdade, Saul? Sim, era. Pois bem, por um
lado, é claro que a sua morte o entristecia, mas, por
outro, talvez tivesse sido melhor para ela mudar de
vida. Porque a sua pobre velha sofria muitíssimo em
Lima. Fez-me sinal para que me aproximasse e baixou
a voz (precaução inútil porque tínhamos deixado Dom
Salomão a dormir profundamente numa cadeira de
baloiço na sala de jantar e nós estávamos a conversar no
seu quarto), para me dizer:
– A minha mãe era uma crioulazinha de Talara que o
velho conquistou pouco tempo depois de chegar como
refugiado. Parece que esteve amancebado com ela até
eu nascer. Só então casaram. Imaginas o que é para um
judeu casar com uma cristã, com o que chamamos uma
goie? Não, não imaginas.
Lá em Talara, a coisa não tivera a menor importância
porque as famílias judias do lugar estavam meio dissol-
vidas na sociedade local. Ao instalar-se em Lima, a mãe
de Saul teve, porém, muitos problemas. Tinha muitas

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saudades da sua terra, desde o calor, o céu sem nuvens
e o sol radiante todo o ano até aos seus familiares e ami-
gos. Por outro lado, a comunidade judaica de Lima
nunca a aceitou, apesar de ela, para fazer a vontade a
Dom Salomão, ter tomado o banho lustral e ter sido
instruída pelo rabino para cumprir com todos os ritos
da conversão. Na realidade – e Saul piscou-me um olho
travesso – a comunidade não a aceitava não tanto por
ser uma goie mas por ser uma crioulazinha de Talara,
uma mulher simples, sem instrução, que mal sabia ler.
Porque os judeus de Lima se tinham tornado muito
burgueses, amigo.
Dizia-me tudo isto sem assomo de rancor nem dra-
matismo, com uma aceitação calma de algo que, pelos
vistos, não poderia ter acontecido de outra maneira.
«Eu e a minha velha éramos unha com carne. Ela tam-
bém se chateava muitíssimo na sinagoga e, sem Dom
Salomão se dar conta, para que esses sábados religiosos
passassem mais depressa, jogávamos dissimuladamente
ao Yan-Ken-Po. À distância. Ela sentava-se na primeira
fila da galeria e eu mais abaixo, com os homens. Mexía-
mos as mãos ao mesmo tempo e, às vezes, davam-nos
ataques de riso que perturbavam os devotos.» Levara-a
um cancro fulminante, em poucas semanas. E, depois
da sua morte, Dom Salomão foi-se abaixo.
– Esse velhote que aqui viste, a dormir a sesta, era há
dois anos um homem forte, cheio de energia e amor à
vida. A morte da minha velha destruiu-o.
Saul entrara para San Marcos, para tirar o curso de
Direito, para fazer a vontade a Dom Salomão. Por ele,
preferia ter ficado a ajudá-lo na «Estrela», que dava mui-
tas dores de cabeça ao pai e lhe exigia demasiados esfor-
ços para a sua idade. Mas Dom Salomão foi terminante.
Saul não poria os pés atrás desse balcão. Saul nunca aten-
deria um cliente. Saul não seria comerciante como ele.

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– Mas porquê, velhote? Tens medo de que, com esta
cara, te afugente a clientela? – Dizia-me isto à garga-
lhada. – A verdade é que, agora que conseguiu amea-
lhar uns patacos, Dom Salomão quer que a família se
torne importante. Já me vê a levar o apelido para a
diplomacia ou para a Câmara de Deputados. O diabo
que o carregue!
Tornar ilustre o apelido familiar, exercendo uma
profissão liberal, era algo que não entusiasmava Saul
por aí além. O que é que lhe interessava na vida? Sem
dúvida, ainda não sabia. Foi-o descobrindo ao longo
dos meses e anos da nossa amizade, na década de cin-
quenta, nesse Peru que ia passando – enquanto Masca-
rita, eu, a nossa geração, nos tornávamos adultos – da
tranquilidade mentirosa da ditadura do general Odría
para as incertezas e novidades do regime democrático,
que renasceu em 1956, quando Saul e eu frequentáva-
mos o terceiro ano.
Nessa altura, já tinha descoberto, sem dúvida, o que
lhe interessava na vida. Não de maneira fulminante,
nem com a segurança posterior, mas, em todo o caso, o
extraordinário mecanismo estava já em marcha e, a
pouco e pouco, empurrando-o um dia para aqui, outro
para acolá, ia traçando esse labirinto em que Mascarita
entraria para nunca mais sair. Em 1956, estudava Etno-
logia e Direito e tinha estado várias vezes na selva. Sen-
tia já esse fascínio de cativado pelos homens do bosque
e pela Natureza não pisada, pelas culturas primitivas,
minúsculas, disseminadas nas montanhas e na planície
da Amazónia? Ardia já nele esse fogo solidário, que
brotara obscuramente do mais fundo da sua personali-
dade, por esses nossos compatriotas que desde tempos
imemoriais lá viviam, acossados e vilipendiados, entre
os largos e lentos rios, com tangas e tatuagens, ado-
rando os espíritos da árvore, da serpente, da nuvem e

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do relâmpago? Sim, já começara tudo isso. E eu aper-
cebi-me disso na sequência de um incidente no bilhar,
dois ou três anos depois de nos conhecermos.
De vez em quando, entre duas aulas na universidade,
íamos jogar uma partida numa velha sala de bilhar, que
também era tasca, na Avenida Azángaro. Andando pela
rua com Saul, descobria-se quão amarga devia ser a sua
vida, graças à insolência e à maldade das pessoas. Volta-
vam-se ou paravam quando ele passava, para o obser-
varem melhor, e abriam muito os olhos, não
dissimulando o assombro ou a repulsa que a sua cara
lhes inspirava, e muitas vezes, sobre tudo os putos,
diziam-lhe baboseiras. Ele parecia não ficar incomo-
dado; reagia sempre às impertinências com alguma
saída engraçada. O incidente, ao entrar no bilhar, não
foi ele que o provocou, mas eu, que não tenho nada de
santinho.
O borracho estava a beber ao balcão. Mal nos viu,
veio ao nosso encontro, cambaleando, e pôs-se diante
de Saul, de braços na cintura:
– Porra, que monstro! Ouve lá, de que jardim zooló-
gico é que fugiste?
– De qual havia de ser, amigo, do único que há, do de
Barranco – respondeu-lhe Mascarita. – Se fores a cor-
rer, encontrarás a minha jaula aberta.
E tentou não dar importância, mas o borracho esti-
cou as mãos para ele, fazendo pressão com os dedos,
como os miúdos quando lhes insultam a mãe.
– Tu não entras, monstro. – Enfurecera-se subita-
mente. – Com essa cara, não devias sair à rua, pois
assustas as pessoas.
– Mas se não tenho outra, o que é que queres? – sor-
riu-lhe Saul. – Deixa-nos passar e não nos chateies.
Nessa altura, eu perdi a paciência. Agarrei o borra-
cho pelos colarinhos e comecei a sacudi-lo. Houve um

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começo de zaragata, movimentação de gente, empur-
rões, e Mascarita e eu tivemos de ir embora sem jogar-
mos a nossa partida.
No dia seguinte recebi dele um presente, acompa-
nhado de algumas palavras. Era um pequeno osso
branco, em forma de rombo, que tinha gravadas umas
figuras geométricas cor de tijolo a atirar para o ocre. As
figuras representavam dois labirintos paralelos, com-
postos por barras de diferentes tamanhos, separadas
por distâncias idênticas, as pequenas como que refu-
giando-se nas grandes. A sua pequena carta, divertida e
enigmática, dizia algo assim:

Amigo:

Vamos lá ver se esse osso mágico te acalma os ímpe-


tos e deixas de andar a bater nos pobres borracholas.
O osso é de tapir e o desenho não é a tontice que pare-
ce, uns gatafunhos primitivos, mas uma inscrição sim-
bólica. Ditou-a Morenanchiite, o senhor do trovão, a
um tigre, e este a um bruxo meu amigo das selvas do
Alto Picha. Se achares que esses símbolos são de
remoinhos de rio ou duas boas enroscadas a dormir a
sesta, talvez tenhas razão. Mas são, principalmente, a
ordem que reina no mundo. O que se deixa possuir
pela raiva torce essas linhas e elas, torci das, já não
podem suster a terra. Não quererás que, por culpa tua,
a vida se desintegre e voltemos ao caos original de que
nos tiraram, a sopros, Tasurinchi, o deus do bem, e
Kientibakori, o deus do mal, não é verdade, amigo?
Por isso não tenhas mais acessos de raiva e muito
menos por minha causa. De qualquer modo, obrigado.
Adeus.
Saul

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Pedi-lhe que me falasse acerca do trovão, do tigre,
das linhas torcidas, de Tasurinchi e Kientibakori, e teve-
-me toda uma tarde na sua casa de Breña, muito entre-
tido, a falar-me das crenças e costumes de uma tribo
disseminada pelas selvas de Cusco e Madre de Dios.
Eu estava deitado na sua cama e ele sentado num
baú, com o seu papagaiozinho no ombro. O animal
mordiscava-lhe os cabelos ruivos e interrompia-o amiú-
de com o seu berro mandão: «Mascarita!» «Quieto,
Gregório Samsa», acalmava-o ele.
Os desenhos dos seus utensílios e das suas cushmas,
as tatuagens das suas caras e dos seus corpos não eram
caprichosos nem decorativos, amigo. Eram uma escrita
cifrada, que continha o nome secreto das pessoas e fór-
mulas sagradas para proteger os objectos da deteriora-
ção e do malefício que, através deles, podiam atingir os
seus donos. Os desenhos eram ditados por uma divin-
dade barbuda e ruidosa, Morenanchiite, o senhor do
trovão, que, do alto de um cerro, no meio de uma
tempestade, transmitia a mensagem a um tigre. Este
transmitia-a ao curandeiro ou xamã durante uma «bebe-
deira» de ayahuasca, esses talos alucinógenos cujas infu-
sões se bebiam em todas as cerimónias nativas. O bruxo
do Alto Picha – «sábio, ou antes, patita, digo bruxo
para que me entendas» – tinha-o instruído sobre a filo-
sofia que permitiu à tribo sobreviver até ao presente.
Para eles, o mais importante era a serenidade. Não afo-
gar-se nunca num copo de água nem numa inundação.
Havia que conter qualquer arrebatamento passional
pois há uma correspondência fatídica entre o espírito
do Homem e o da Natureza, e qualquer transtorno vio-
lento naquele ocasiona uma catástrofe nesta.
– O chilique de um tipo pode fazer que surja um rio e
um assassinato que o raio queime a aldeia. Talvez esse
choque do Expresso, na Avenida Arequipa, esta manhã,

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tenha sido provocado pelo murro que ontem deste ao
borracholas. Não sentes remorsos na consciência?
Fiquei espantado com o muito que sabia sobre essa
tribo. E, mais ainda, ao verificar a simpatia que trans-
bordava a jorros desse conhecimento. Falava desses
índios, dos seus usos e dos seus mitos, da sua paisagem
e dos seus deuses, com o respeito e admiração com que
eu me referia a Sartre, Malraux e Faulkner, meus auto-
res preferidos nessa altura. Nem sequer do seu estimado
Kafka lhe ouvi falar alguma vez com tanta emoção.
Já então devo ter suspeitado de que Saul nunca viria
a ser advogado e, também, que o seu interesse pelos
índios da Amazónia era algo mais que «etnológico».
Não um interesse profissional, técnico, mas muito mais
íntimo, embora difícil de precisar. Algo mais emotivo
do que racional certamente, mais acto de amor do que
curiosidade intelectual ou do que esse desejo de aven-
tura que parecia existir na vocação de tantos colegas
seus do Departamento de Etnologia. A atitude de Saul
em relação à sua nova carreira, a devoção que mostrava
em relação ao mundo da Amazónia, foram amiúde
motivo de conjecturas entre nós, seus amigos e colegas,
no Pátio de Letras de San Marcos.
Soubera Dom Salomão que Saul estudava Etnologia
ou julgava-o inteiramente dedicado às Leis? A verdade
é que, apesar de Mascarita estar inscrito na Faculdade
de Direito, não ligava nada às aulas. À excepção de
Kafka e, sobretudo, de A Metamorfose, que relera inú-
meras vezes e quase memorizara, todas as suas leituras
eram agora antropológicas. Lembro-me da sua conster-
nação pelo pouquíssimo que se tinha escrito sobre as
tribos e dos seus protestos pela dificuldade que havia
para consultar essa bibliografia dispersa por separatas e
revistas que nem sempre chegavam a San Marcos ou à
Biblioteca Nacional.

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Tudo começara, contou-me em certa ocasião, com
uma viagem a Quillabamba, no Dia da Pátria. Tinha lá
ido a convite de um primo direito por parte da mãe, um
tio chacareiro, emigrado de Piura para essas terras, que
também negociava em madeiras. O homem penetrava
no monte em busca de árvores de caoba ou de pau-rosa
e tinha desbravadores e cortadores indígenas que tra-
balhavam para ele. Mascarita estabelecera boas rela-
ções com esses nativos – a maior parte deles bastante
ocidentalizados –, que o tinham levado com eles nas suas
incursões e que o tinham alojado nos seus acampamen-
tos na vasta região banhada pelo Alto Urubamba, pelo
Alto Madre de Dios e respectivos afluentes. Durante
toda uma noite esteve a relatar-me, entusiasmado, o que
foi para ele atravessar em jangada o Pongo de Mainique,
onde o Urubamba, apertado entre dois contrafortes da
cordilheira, se tornava um dédalo de rápidos e remoi-
nhos.
– O terror de alguns carregadores é tão grande que
têm de os amarrar às jangadas, como fazem com as
vacas, para que desçam o Pongo. Não imaginas o que é
isso, amigo!
Um missionário espanhol, da Missão Dominicana de
Quillabamba, tinha-lhe mostrado misteriosos petróglifos
disseminados pela zona, e comera macaco, tartaruga,
vermes, e tinha apanhado uma tremenda borracheira
com masato de jucá.
– Os nativos da região pensam que o mundo princi-
piou no Pongo de Mainique. E juro-te que, no local, há
uma exalação sagrada, um não sei quê que te põe os
cabelos em pé. Não imaginas o que é isso, amigo! Pa su
macho!
A experiência teve consequências de que ninguém
pôde suspeitar. Nem sequer ele mesmo, tenho a cer-
teza.

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Voltou a Quillabamba no Natal e passou lá todo o
Verão. Regressou novamente nas férias de Junho e no
mês de Dezembro seguinte. Sempre que em San Mar-
cos havia uma greve, ainda que de poucos dias, arran-
cava para a selva no que quer que fosse: camiões,
comboios, autocarros, ónibus. Voltava dessas viagens
exaltado e loquaz, com os olhos brilhando de admira-
ção por causa dos tesouros que descobrira. Tudo o que
era de lá lhe interessava e excitava-o de sobremaneira.
Por exemplo, ter conhecido o lendário Fidel Pereira.
Filho de um cusquenho branco e de uma machiguenga,
era uma mescla de senhor feudal e cacique aborígene.
No último terço do século XIX, um cusquenho de boas
famílias, fugindo da justiça, penetrou nessas selvas
onde os machiguengas o acolheram. Casou com uma
mulher da tribo. O filho, Fidel, vivera dividido entre as
duas culturas, comportando-se como branco entre os
brancos e como machiguenga entre os machiguengas.
Tinha várias esposas legítimas, uma infinidade de con-
cubinas e uma caterva de filhas e filhos, através dos
quais explorava todos os cafezais e chácaras entre Quil-
labamba e o Pongo de Mainique, onde fazia trabalhar
quase gratuitamente a gente da sua tribo. Mas, apesar
disso, Mascarita tinha para com ele uma certa benevo-
lência:
– É evidente que se aproveita deles, mas, pelo menos,
não os despreza. Conhece a sua cultura a fundo e orgu-
lha-se dela. E, quando outros querem causar-lhes atro-
pelos, defende-os.
Nos relatos que me fazia, o entusiasmo de Saul reves-
tia o episódio mais trivial – a roça de um monte ou a
pesca de uma gamitana – de contornos heróicos. Mas
era sobretudo o mundo indígena, com as suas práticas
elementares e a sua vida frugal, o seu animismo e a sua
magia, que parecia tê-lo cativado. Agora sei que esses

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índios, cuja língua começara a aprender com a ajuda
dos alunos indígenas da Missão Dominicana de Quilla-
bamba – uma vez cantou-me uma canção triste, reitera-
tiva e incompreensível, acompanhando-se com o ritmo
de uma cabaça cheia de sementes –, eram os machi-
guengas. Agora sei que aqueles cartazes com pequenos
desenhos, mostrando os perigos de pescar com dina-
mite, que vi empilhados na sua casa de Breña, os tinha
feito para os distribuir aos brancos e mestiços do Alto
Urubamba – os filhos, netos, sobrinhos, bastardos e
enteados de Fidel Pereira –, com a intenção de prote-
ger as espécies que alimentavam esses mesmos índios
que, um quarto de século mais tarde, o agora falecido
Gabriele Malfatti iria fotografar.
Visto com a perspectiva do tempo, e sabendo o que
depois aconteceu – pensei muito nisso –, posso dizer que
Saul sofreu uma conversão. Em sentido cultural e talvez
também religioso. É a única experiência que me foi dado
observar de perto que parecia explicar, materializar, isso
que os religiosos do colégio onde estudei pretendiam di-
zer-nos nas aulas de catecismo com expressões como
«receber a graça», «ser tocado pela graça», «cair nas cila-
das da graça». Desde o primeiro contacto que teve com a
Amazónia, Mascarita foi apanhado numa emboscada
espiritual que fez dele uma pessoa diferente. Não só por-
que se desinteressou do Direito e se matriculou em Etno-
logia e devido à nova orientação das suas leituras, nas
quais, à excepção de Gregório Samsa, não sobreviveu
qualquer personagem literário, mas também porque,
desde então, começou a preocupar-se, a ficar obcecado,
com duas questões que, nos anos seguintes, seriam o seu
único tema de conversa: o estado das culturas amazónicas
e a agonia dos bosques que lhes davam guarida.
– Estás mesmo obcecado, Mascarita. Já não se pode
falar contigo de outra coisa.

22
– Caramba, é verdade, meu velho, não te deixei abrir
a boca. Vá lá, fala-me um pouco de Tolstoi, da luta de
classes ou das novelas de cavalaria.
– Não estás a exagerar um pouco, Saul?
– Não, meu caro, antes pelo contrário. Juro-te. O que
se está a fazer na Amazónia é um crime. Não tem justifi-
cação, pegues-lhe por onde lhe pegares. Acredita em
mim, homem, não te rias. Põe-te no lugar deles, ainda
que seja apenas um segundo. Para onde podem conti-
nuar a ir? Empurram-nos, há séculos, das suas terras,
obrigam-nos a ir cada vez mais para dentro. O que é
espantoso é que, apesar de tantas calamidades, não
desapareceram. Aí continuam eles, resistindo. Não é de
se lhes tirar o chapéu? Caramba, já engrenei outra vez.
Falemos de Sartre, vá lá. O que me irrita é que as pes-
soas se estão nas tintas para o que se está a passar nessas
paragens.
Porque é que ele se interessava tanto por eles? Não
era por razões políticas, evidentemente. Para Mascarita,
a política era a coisa menos interessante do mundo.
Quando falávamos de política, dava-me conta de que
ele fazia um esforço para me agradar, pois eu, nessa
época, tinha entusiasmos revolucionários e dera-me
para ler Marx e falar das relações sociais de produção.
A Saul esses assuntos chateavam-no tanto como os ser-
mões do rabino. E talvez também não fosse correcto
dizer que esses temas lhe interessavam por uma razão
ética geral, pelo que a condição dos indígenas da selva
reflectia nas iniquidades sociais do nosso país, pois Saul
não reagia da mesma maneira perante as outras injusti-
ças com que deparava, talvez nem sequer desse conta
delas. A situação dos índios dos Andes, por exemplo –
que eram vários milhões, comparados com os escassos
milhares da Amazónia –, ou como os peruanos das clas-
ses média e alta pagavam e tratavam os seus criados.

23
Não, era só aquela manifestação específica de
inconsciência, irresponsabilidade e crueldade huma-
nas, a que se abatia sobre os homens e as árvores, os
animais e os rios da selva, a que, por uma razão que
nessa altura me era difícil compreender (talvez a ele
também) trans formou Saul Zuratas, tirando-lhe da
cabeça qualquer outra inquietação e tornando-o um
homem de ideias fixas. A um extremo tal que se não
fosse tão boa pessoa, tão generoso e serviçal, talvez
tivesse deixado de me dar com ele. Porque a verdade é
que se tornou monótono.
Às vezes, para ver até onde podia levá-lo «o tema» eu
provocava-o. Que propunha, no fim de contas? Que,
para não alterar os modos de vida e as crenças de algu-
mas tribos que viviam, muitas delas, na Idade da Pedra,
se abstivesse o resto do Peru de explorar a Amazónia?
Deveriam dezasseis milhões de peruanos renunciar aos
recursos naturais de três quartas partes do seu territó-
rio para que sessenta ou oitenta mil indígenas amazóni-
cos continuassem a frechar-se calma mente uns aos
outros, reduzindo as cabeças e adorando a boa constri-
tor? Deveríamos ignorar as potencialidades agrícolas,
ganadeiras e comerciais da região para que os etnólo-
gos do mundo se deleitassem a estudar ao vivo o
potlatch, as relações de parentesco, os ritos da puber-
dade, do casamento, da morte, que aquelas curiosida-
des humanas vinham provocando, quase sem evolução,
desde há centenas de anos? Não, Mascarita, o país
tinha de se desenvolver. Não dissera Marx que o pro-
gresso viria jorrando sangue? Por triste que fosse, havia
que aceitá-lo. Não tínhamos outra alternativa. Se o
preço do desenvolvimento e da industrialização, para
os dezasseis milhões de peruanos, era que esses poucos
milhares de tipos nus tivessem de cortar o cabelo, lavar
as tatuagens e tornar-se mestiços – ou, para usar a

24
palavra mais odiada pelo etnólogo, aculturar-se –, pois,
que remédio.
Mascarita não se chateava comigo, porque nunca se
chateava com ninguém, e também não tomava o ar
superior de perdoo-te-porque-não-sabes-o-que-dizes.
Mas eu sentia, quando lhe fazia estas provocações, que
lhe doíam como se tivesse dito mal de Dom Salomão
Zuratas. Disfarçava perfeitamente, isso sim. Já tinha
alcançado, talvez, o ideal machiguenga de nunca sentir
raiva para que as linhas paralelas que sustêm o mundo
não cedam. Além disso, não aceitava discutir este nem
qualquer outro assunto genericamente, em termos
ideológicos. Tinha uma resistência congénita a todo o
tipo de juízo abstracto. Para ele, os problemas equacio-
navam-se sempre de uma maneira concreta: o que tinha
visto com os seus olhos e as consequências que alguém
com um pouco de massa cinzenta podia deduzir que
aquilo teria de futuro.
– Por exemplo, a pesca com explosivos. Supõe-se
que está proibida. Mas, vai e vê, meu caro. Não há rio
ou regato em toda a selva onde os serranos e os viraco-
chas – assim nos chamam aos brancos – não poupem
tempo pescando por grosso, com dinamite. Poupem
tempo! Imaginas o que isso significa? Cartuchos de
dinamite pulverizando dia e noite os bancos de peixes.
As espécies estão a desaparecer, meu velho.
Estávamos a discutir numa mesa do Bar Palermo, em
La Colmena, tomando cerveja. Lá fora havia sol, gente
apressada, automóveis a cair de podres com buzinas
agressivas e envolvia-nos a atmosfera fu mosa, com
cheiro a gordura frita e a urina, dos tascos do centro de
Lima.
– E a pesca com veneno, Mascarita? Não a inventa-
ram acaso os índios das tribos? Também eles são, pois,
uns depredadores da Amazónia.

25
Disse-lhe isso para que ele descarregasse a sua arti-
lharia pesada sobre mim. E disparou-a, evidentemente.
Era falso, falsíssimo. Pescavam com verbasco e cumo,
mas nos rios ou braços de rio e nas poças que ficam nas
ilhas quando as águas descem. E só em certas épocas do
ano. Nunca nos períodos de desova, que conheciam a
dedo. Nessas datas pescavam com redes, arpões e artifí-
cios, ou à mão, ficavas vesgo se os visses, meu caro. Em
contrapartida, os crioulos usavam o verbasco e o cumo
todo o ano, em qualquer parte. Águas envenenadas
milhares e milhares de vezes, ao longo de décadas. Será
que eu compreendia? Liquidavam não só as crias na
época da desova, mas apodreciam também as raízes das
árvores e plantas das margens.
Engrandecia-os? Tenho a certeza que sim. E, tam-
bém, talvez sem querer, exagerava as calamidades para
reforçar os seus argumentos. Mas era evidente que a
Mascarita essas crias de sáveis e bagres envenenados
pelos talos do verbasco e do cumo, e os paiches desfei-
tos pelos explosivos dos pescadores de Loreto, Madre
de Dios, San Mar tín ou Amazonas, lhe causavam a
mesma pena que se a vítima tivesse sido o seu papagaio-
zinho palrador. E o mesmo acontecia, evidentemente,
quando se referia aos cortes maciços ordenados pelos
madeireiros – «O meu tio Hipólito é um deles, ainda
que me custe dizê-lo» –, que estavam a acabar com as
árvores mais valiosas. Falou-me longamente das práticas
dos viracochas e dos serranos que desceram dos Andes
à conquista da selva, a limpar o bosque mediante incên-
dios que carbonizavam imensas extensões de terras,
que, depois de uma ou duas colheitas, por falta de
húmus vegetal e devido à erosão causada pelas águas,
se tornavam estéreis. E para já não falar, meu caro, do
extermínio de animais, da avidez frenética de peles
que, por exemplo, fizera de jaguares, lagartos, pumas,

26
serpentes e dezenas de animais, raridades biológicas em
vias de extinção. Foi um discurso longo, de que me lem-
bro muito bem por algo que surgiu já no final da con-
versa, depois de aviarmos várias garrafas de cerveja e
alguns pães com torresmos (que ele adorava). Das árvo-
res e dos peixes voltava sempre, na sua arenga, ao motivo
central dos seus alarmes: as tribos. A este ritmo também
elas se extinguiriam.
– A sério, achas que a poligamia, o animismo, a redu-
ção de cabeças e a feitiçaria com infusões de tabaco
representam uma forma superior de cultura, Masca-
rita?
Um serranito atirava baldes de serradura sobre os
escarros e outras porcarias do chão de lousas averme-
lhadas do Bar Palermo e um chinês ia atrás dele, var-
rendo. Saul ficou a olhar para mim durante al gum
tempo, sem responder. Por fim, disse que não com a
cabeça.
– Superior, não. Nunca o disse nem acreditei nisso,
irmão. – Pusera-se muito sério. – Inferior, talvez, se se
avaliar em termos de mortalidade infantil, de situação
da mulher, de monogamia ou poligamia, de artesanato
e indústria. Não penses que os idealizo. De modo
nenhum.
Calou-se, como que distraído por algo, talvez a dis-
cussão numa mesa ao lado que se avivava ou arrefecia
simetricamente desde que lá chegámos. Mas não era
isso. Tinham-no distraído as suas recordações. E pare-
ceu-me que, subitamente, ficava triste.
– Há entre os homens que andam e os de outras tribos
coisas que te chocariam muito, meu caro. Não o nego.
Por exemplo, o facto de os aguarunas e os huambizas
do Alto Maranhão arrancarem o hímen às filhas com as
suas próprias mãos e o comerem quando lhes vem a
história, o facto de em muitas tribos existir a escravidão

27
e de em algumas comunidades se deixarem morrer os
velhos ao primeiro sintoma de debilidade, a pretexto
de que as suas almas tinham sido chamadas e de que o
seu destino se tinha cumprido. Mas o pior de tudo, tal-
vez o mais difícil de aceitar do nosso ponto de vista, era
aquilo a que, com um pouco de humor negro, se podia
chamar o perfeccionismo das tribos da família arawac.
O perfeccionismo, Saul? Sim, algo que logo à partida
me pareceria, como lhe parecera a ele, tão cruel, com-
panheiro. O facto de às crianças que nasciam com
defeitos físicos, coxos, mancos, cegos, com mais ou
menos dedos do que o normal ou com o lábio leporino,
os matarem as próprias mães atirando -os ao rio ou
enterrando-os vivos. É evidente que esses costumes
chocavam qualquer um.
Escutou-me durante algum tempo, em silêncio, pen-
sativo, como se estivesse a procurar as palavras exactas
para o que queria dizer-me. De repente, tocou no seu
enorme lunar.
– Meu caro, eu não teria passado no exame. A mim
ter-me-iam liquidado – sussurou. – Dizem que os
espartanos faziam o mesmo, não é verdade? Que aos
monstrinhos, aos gregórios samsas, os atiravam do alto
do monte Taigeto, não é verdade?
Riu-se, ri-me, mas sabíamos os dois que não estava a
brincar e que não havia qualquer razão para rir. Expli-
cou-me que, curiosamente, os mesmos que eram impla-
cáveis com os recém-nascidos defeituosos eram,
contudo, muito tolerantes para com aqueles que, já
crianças ou adultos, eram vítimas de algum acidente ou
enfermidade que os de formava fisicamente. Pelo
menos, Saul não tinha notado hostilidade em relação
aos inválidos ou em relação aos loucos nas tribos. A sua
mão continuava sobre a escama arroxeada de metade
da sua cara.

28
– Mas eles são assim e devemos respeitá-los. Ser
assim ajudou-os a viver centenas de anos, em harmonia
com os seus bosques. Apesar de não entendermos as
suas crenças e de alguns dos seus costumes nos doerem,
não temos o direito de acabar com eles.
Creio que nessa manhã, no Bar Palermo, foi a única
vez em que aludiu, não em tom de brincadeira mas a
sério, mesmo com dramatismo, àquilo que, por mais
que o dissimulasse com muita elegância, tinha de ser
uma tragédia na sua vida, a excrescência que fazia dele
um motivo errante de mofa e de asco, o que devia afec-
tar todas as suas relações, especialmente com as mulhe-
res. (Era muito tímido com elas; na universidade, eu
tinha notado que as evitava e que só metia conversa
com alguma colega, se esta lhe dirigia antes a palavra.)
Retirou por fim a mão da cara, com um gesto de enfado,
como que arrependido por ter tocado no lunar, e ini-
ciou novo sermão:
– Os nossos automóveis, canhões, aviões e coca-colas
dão-nos direito a liquidá-los, só porque eles não têm
nada disso? Ou acreditas nisso de «civilizar os chun-
chos», meu caro? Como? Fazendo-os solda dos?
Pondo-os a trabalhar nas chácaras, como escravos dos
crioulos tipo Fidel Pereira? Obrigando-os a mudar de
língua, de religião, de costumes, como querem os mis-
sionários? Que se ganha com isso? Que os poderão
explorar melhor, e só isso. Que se converterão em zum-
bis, nas caricaturas de homens que são os indígenas
semiaculturados das ruas de Lima.
O serranito que espalhava baldes de serradura no
Palermo tinha uns sapatos – uma sola e duas tiras de
pneu – fabricados pelos ven dedores ambulantes e
segurava as calças, remendadas, com um pedaço de
cordel. Era uma criança com cara de velho, de cabelo
rígido, unhas pretas e uma crosta avermelhada no

29
nariz. Um zumbi? Uma caricatura? Para ele, teria sido
melhor ter ficado na sua aldeia dos Andes, usando
gorro, ojotas e poncho, e não aprender nunca espa-
nhol? Eu não sabia, continuo a duvidar. Mas Mascarita
sabia. Falava sem veemência, sem cólera, com uma fir-
meza calma. Durante um bom bocado explicou-me o
reverso daquelas crueldades («que são», dizia, «o
preço que pagam pela sobrevivência»), o que lhe pare-
cia admirável nessas culturas. Era algo que, por mais
diferenças que houvesse entre elas, todas tinham em
comum: o bom entendimento com o mundo em que
viviam imersas, uma sabedoria, nascida de uma prática
antiquíssima, que lhes permitira, através de um elabo-
rado sistema de ritos, proibições, temores, rotinas,
repetidos e transmitidos de pais para filhos, preservar
aquela natureza aparentemente tão exuberante, e, na
realidade, tão frágil e perecedoura, de que dependiam
para subsistir. Tinham sobrevido porque os seus usos
e costumes se tinham rendido docilmente aos ritmos e
exigências do mundo natural, sem o violentarem nem
o perturbarem profundamente, apenas o indispensável
para não serem destruídas por ele. Exactamente o
contrário do que estávamos a fazer os civilizados, que
malbaratávamos esses elementos sem os quais acaba-
ríamos murchando como as flores com falta de água.
Eu ouvia-o e simulava interessar-me pelas suas pala-
vras. Mas pensava, antes, no seu lunar. Porque é que
tinha recorrido a ele, de repente, enquanto me expli-
cava o que sentia em relação aos nativos da Amazónia?
Estaria aí a chave da conversão de Mascarita? Esses shi-
pibos, huambizas, aguarunas, vaguas, chapras, campas,
mashcos, representavam na sociedade peruana algo
que ele podia entender melhor do que ninguém: um
horror pitoresco, algo de excepcional que os outros
lamentavam ou de que escarneciam, mas sem lhe con-

30
cederem o respeito e a dignidade que só mereciam os
que se ajustavam no seu físico, costumes e crenças à
«normalidade». Eram ambos uma anomalia para o resto
dos peruanos; o seu lunar provocava neles, em nós, um
sentimento parecido ao que, no fundo, nutríamos por
esses seres que viviam, lá longe, seminus, comendo os
piolhos e falando dialectos incompreensíveis. Era essa a
raiz do amor à primeira vista de Mascarita pelos chun-
chos? Ter-se-ia identificado inconscientemente com
esses seres marginais devido ao seu lunar que o convertia
também num marginal, sempre que punha os pés na
rua?
Propus-lhe esta interpretação, para ver se ficava mais
bem-disposto, e, com efeito, desatou a rir.
– Passaste na cadeira de Psicologia com o Doutor
Guerrita? – disse, a gozar comigo. – Eu ter-te-ia chum-
bado, de certeza.
E, continuando a rir, contou-me que Dom Salomão
Zuratas, mais astuto do que eu, lhe sugerira uma leitura
judaica do assunto.
– Eu identifico os índios da Amazónia com o povo
judeu, sempre minoritário e sempre perseguido por
causa da sua religião e dos seus usos, diferentes dos do
resto da sociedade. Que te parece? Uma interpretação
mais nobre do que a tua, que se poderia chamar a sín-
droma de Frankenstein. Cada louco com o seu tema,
meu caro.
Repliquei-lhe que as interpretações não se excluíam
uma à outra. Ele terminou especulando, divertido.
– Sim, de súbito tens razão. De súbito, ser meio
judeu e meio monstro tornou-me mais sensível do que
um homem tão espantosamente normal como tu à sorte
dos selvagens.
– Pobres selvagens! Usa-los para impressionar os
outros. Como vês, também te serves deles.

31
– Bem, fiquemos por aqui porque tenho uma aula –
despediu-se, levantando-se, sem sombra do desânimo
de há alguns momentos. – Mas lembra-me para que, da
próxima vez, te corrija isso dos «pobres selvagens».
Contar-te-ei algumas coisas que te deixarão de boca
aberta, meu caro. Por exemplo, o que lhes fizeram na
época da febre da borracha. Se aguentaram isso, não se
lhes deve chamar pobres. Melhor, super-homens.
Verás, verás.
Pelos vistos, falava do seu «tema» com Dom Salo-
mão. O velhote teria acabado por aceitar que, em vez
de o fazer no Foro, Saul prestigiasse o apelido de Zura-
tas como professor universitário e nos domínios da
investigação antropológica. Era isso o que decidira ser
na vida? Catedrático? Estudioso? Que tinha aptidões
para isso, ouvi-o dizer certa tarde a um dos seus profes-
sores, o Doutor José Matos Mar, que na altura chefiava
o Departamento de Etnologia de San Marcos.
– Esse rapaz, Zuratas, é dos bons. Passou os três meses
de férias no Urubamba, fazendo trabalho de campo junto
dos machiguengas e trouxe um material excelente.
Estava a dizê-lo a Raoul Porras Barrenechea, um his-
toriador com que eu trabalhava de tarde, e que tinha
um grande horror à Etnologia e à Antropologia, que
acusava de substituírem o homem pelo utensílio como
protagonista da cultura e de deteriorarem a prosa cas-
telhana (que ele, diga-se de passagem, escrevia às mil
maravilhas).
– Pois bem, então façamos desse rapaz um historiador
e não um classificador de pedrinhas, Doutor Matos. Seja
altruísta, passemo-lo para o Departamento de História.
O trabalho que Saul fez, no Verão de 56, entre os
machiguengas foi mais tarde, ampliado, a sua tese de
bacharelato. Apresentou-a quando estávamos no quinto
ano da faculdade, e recordo muito bem a expressão de

32
Romance de dois mundos
e duas linguagens, O Falador,
de Mario Vargas Llosa, é uma obra
que de novo arrasta os leitores para
o interior do universo de magia
e exotismo próprio do grande escritor
peruano. Trata-se de uma ficção
que sistematicamente contrapõe
os ambientes da selva e da cidade,
espelhando desse modo duas atitudes
opostas face à vida e aos seus valores.
Um narrador moderno e racional
e o contador de histórias de uma
tribo amazónica asseguram e
estruturam em alternância o
desenvolvimento do relato.

ISBN: 978-989-660-074-7

9 789896 600747

http://bisleya.blogs.sapo.pt/ P. V. P. 7,50€

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