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MUSEU DE CERA

Rua da Carioca, anos sessenta, Rio de Janeiro.


"A noite já caiu, por certo. É hora! É hora! Estou quase como antes... Falta pouco, muito pouco."
Os passos desajeitados a levaram até o umbral da rua. As densas, quase palpáveis trevas pouco
atrapalharam sua jornada, já que conhecia cada centímetro do velho pardieiro. "Vivia" ali há muito
tempo. Tanto tempo que nem podia determinar exatamente o quanto. A velha porta de madeira
deixava passar um vento fresco, anunciador de uma noite fria para os padrões cariocas. Deixando
imóveis figuras mergulhadas na escuridão atrás de si, o vulto ganhou a rua molhada. Como única
testemunha, um mendigo coberto por um surrado cobertor de coloração "burro-quando-foge".
Despertado de seu sono-estupor, o farrapo humano acompanhou por algum tempo o passo
desengonçado da figura que seguia na direção da Praça Tiradentes. O vento da madrugada, ao
tremular seu casacão, lhe dava a aparência de uma ave imensa.
Correio da Manhã - Rio de Janeiro, sábado, 8 de junho de 1963
"Mais uma criança desaparece!"
"Polícia desorientada"
"População do Centro exige providências!"
Marcelo evitou parar em frente à banca de jornais onde vários transeuntes se aglomeravam, ávidos
pelas notícias mais recentes dos crimes. Não desejava expor seu pequeno João, de apenas oito anos,
àquelas atrocidades. Haviam saído naquele sábado molhado de inverno, para passear pelo Centro
Histórico e as mazelas do mundo cão não faziam parte do roteiro. Tinha planejado começar pela
Praça XV, seguir pelo Arco do Telles e, antes de almoçar, visitar a Catedral.
- olha só pai! Aquela placa ali na parede! Que diz ali?
- João, é a história da Bárbara Onça...
- Quem foi ela?
- Bem...
- Ela foi uma mulher que viveu aqui no Rio há muito tempo atrás...
- Sei... E daí?
- Daí nada, ué...
- Pai, se fosse só isso não tinham posto uma placa na parede, né?
- Hehehe... É sim João. Bem, ela era uma espécie de bruxa. Tinha sido linda e quando começou a
envelhecer não se conformou, daí...
- Mas não é sempre assim?
- Hahaha... Tem razão meu filho, se tem uma coisa que elas não suportam é perderem a beleza...
- Já sei! Começou a preparar uns cremes prá passar na cara...
- Mais ou menos. O problema eram os ingredientes que ela usava...
- Muito caros?
- Na verdade isso não é assunto pra criança!
- Ah... Já sei... Sangue de virgem, essas coisas...
- Que é isso moleque?? Tu não sabes nem o que estás falando! Vais ficar impressionado, depois não
dorme...
- Deixa prá lá pai. Mas não me parece nada demais. Eu já vi coisa muito pior naqueles seus livros lá
em casa....
- Tá, tá bom. Vamos andando. Pro lado de lá fica a Santa Casa. Era ali que a Bárbara... Putz, lá vem
essa bruxa de novo... Parece até que está nos acompanhando... É melhor a gente almoçar!
Marcelo, como sempre acontecia quando passeava nessa parte da cidade, optou pelo velho
restaurante à beira-mar. Uma torre remanescente das quatro que demarcavam os ângulos do antigo
Mercado Municipal, recentemente demolido. Do salão superior se podia vislumbrar o mar, o
Castelinho da Ilha Fiscal e os aviões, pousando e decolando do Santos Dumont.
- Sabes que essa torre era de um antigo mercado?
- Claro, pai. O senhor já contou essa história trocentas vezes...
- E que teu avô trabalhava aí?
- Sim, sim. Mas e a Pantera?
- Pantera? Que Pantera?
- A tal Bárbara Pantera...
- Onça! Bárbara Onça! Mas já disse: não é coisa prum pirralho de oito anos..
- hum.. Aposto que não é nada demais perto dos seus favoritos
- O que?
- Deixa pra lá pai... Depois eu te mostro. Me dá mais camarão?
Entre um camarão e outro, a velha bruxa voltou inúmeras vezes à conversa e o horrendo quadro foi
ficando completo. A degradação social que acompanhou o envelhecimento da outrora bela
prostituta; o recurso à magia negra; o rapto e assassinato de crianças para elaboração de unguentos
rejunecedores; a famosa "roda", onde órfãos eram deixados para serem pego pelas freiras da Santa
Casa (ou pela "Onça", antes que a roda levasse o bebê para dentro dos muros). Uma história de
horror dos tempos imperiais, só que real. O que poderia ser classificado como a face negra do Rio
de Janeiro, quase infantil se comparada com os dias de hoje...
- E agora pai? Onde vamos? Mais Onça?
- Não... Já chega de bruxaria! Vamos lá pra Rua da Carioca. É uma das mais antigas do Rio. Eu
andei muito por lá.
- E o que tem lá?
- Bem, o de sempre: casas antigas, igrejas e...
-????
- Um museu. Um museu de cera!
- uau! Igual aqueles do cinema? Com corpos de verdade debaixo da cera??
- Claro que não! Vejo que você anda mergulhando no terror, ein? Onde viu isso?
- Na sua coleção de cartazes de cinema...
- Tem personagens históricos principalmente mas esse teu gosto macabro vai ficar na mão. Tem
uma seção de doenças e uma de puro terror, mas essa é proibida para menores...
- Não é justo!!!
- Fica calmo... Sempre se dá um jeito. Sabe como é... Não deve ter esse controle todo lá dentro.
Vamos ver!
A madrugada sem lua é a única testemunha do retorno da figura envolta em trapos. Lá ao longe, na
direção da Praça Tiradentes, uma fina linha rubra no céu anuncia a aurora. O solitário transeunte
percorre apressado a Rua da Carioca, sua passada lembrando um imenso rato cinzento. Caminha
apressado rente aos prédios, estacando a cada cinquenta ou cem metros. Nas paradas, luta para
manter subjugado um grande volume que traz nos braços. Chega finalmente a seu destino, onde,
num gesto de irritação sublinhado por rouca imprecação de ódio, esmurra a coisa que luta por
escapar de seu colo. A desigual luta termina por derrubar o capuz, revelando uma longa e
esvoaçante cabeleira loura que se despede da noite que acaba ao entrar no pardieiro. Por fração de
segundo o reflexo dourado contrasta de maneira irreal com o ambiente cinza e negro.
Silenciosamente observada por inúmeros manequins imóveis, a figura da cabeleira dourada avança
pelos cômodos da velha casa, sem demonstrar qualquer dificuldade com a treva densa que tudo
domina. Em poucos minutos alcança uma pequena sala, arremessando o fardo que carrega no chão
de lajotas de pedra. Aproxima-se de uma mesa ao fundo do cômodo e com mãos ágeis e elegantes,
acende uma vela tosca e grossa, tingindo de amarelo a escuridão reinante. Invocados pela débil luz,
emergem da escuridão diversos objetos que contam uma história macabra: um facão de cabo de
osso; uma grande e manchada bacia de pedra-sabão e uma panela de ferro meio cheia de gordura
esbranquiçada. Uma espécie de oração entoada pela criatura serve de fundo para a cena que se
desenrola então. A túnica esfarrapada escorrega por inesperadas e belíssimas curvas, indo aninhar-se
no chão de pedra. Uma mãozinha branca e elegante empunha o facão enquanto sua irmã desdobra
cuidadosamente o pacote, como se desembrulhando um bombom. Com a calma da insanidade, a
lâmina trabalha, separando postas de carne atiradas para a bacia de pedra, de camadas de gordura
que são depositadas na panela de ferro. O sangue, onipresente a essa altura, começa a atrair a
atenção de inúmeros ratos, enormes, lustrosos e bem nutridos. Os animais se aproximam do festim
com cuidado, paço a paço, até que uma gargalhada estridente e enlouquecida reduz o bando a uma
fileira de olhinhos ambarinos no fundo da câmara de horrores.
- calma amiguinhos... Já terão sua parte! Como sempre, não é?
A deslumbrante criatura inicia uma sensual massagem com a gordura acumulada na panela, sem
interromper sua negra oração. As mãos percorrem todas as partes do belo corpo, com vagar e
volúpia. Um novo dia já desce sobre a cidade quando o ritual se encerra e os restos da oferenda são
arremessados por um alçapão. O som de guinchos histéricos e ossos roídos é o tétrico ponto final
daquela noite.
- Não falta mais nada! Apenas a oferenda final... para Ele!
Já era fim de tarde e uma garoa fina começava a dar um ar paulistano ao centro do Rio, quando pai
e filho chegaram finalmente à Rua da Carioca. Num notável contraste com o movimento dos dias de
semana, a centenária via estava praticamente deserta. Apenas o que parecia ser um mendigo,
precariamente agasalhado por papelões imundos, podia ser vislumbrado ao longe.
- meio deserto, né pai?
- domingo, ainda mais a essa hora, é sempre assim. Acho que o museu vai estar fechado...
- ahhh não! Vamos logo, vamos!
- não adianta correr. Ou está aberto ou não está. Não vai fechar agora. Ademais é logo ali, depois do
Bar...
- já sei, já sei. O tal bar alemão que se chamava Adolf e que quebraram na guerra, não é?
- sim, depois tiveram que mudar o nome para...
- já sei, mas não quero perder o museu!
A dupla parou defronte a um prédio velho como todos os demais naquela rua, mas com pretensões a
algo além das sapatarias, pastelarias e secos-e-molhados das vizinhanças. Uma pequena escadaria
de não mais de cinco degraus de pedra levava a um par de portas verdes descascadas. A uns cento e
poucos metros, o papelão-cobertor começa a mover-se.
- parece abandonado pai...
- vamos ver. Nunca foi lá muito movimentado mesmo... Se estiver aberto a gente entra. Vem! Olha,
está aberto sim. Vamos João...
- sim... Ei! Olha só, pai!! O mendigo!
Sem que eles percebessem a princípio, o velho corria em sua direção, agitando freneticamente as
mãos. Parecia gritar qualquer coisa. Algo como... "não entrem aí!"... Assustado, Marcos empurrou
seu filho para dentro do pardieiro
e buscou fechar a porta na cara do mendigo. Antes de fechá-la, seus olhares se cruzaram,
transmitindo a Marcos uma forte impressão de agonia, medo e urgência. O ambiente que os acolheu
era morno, silencioso e dominado por um aroma animal indefinível. A luz escassa do fim de tarde,
filtrava-se pelas venezianas da janela e pouco conseguia revelar. Aos poucos, as pupilas dos
visitantes puderam discernir alguma coisa. Estavam num amplo salão em cujas paredes laterais
perfilavam-se manequins agrupados, formando uma meia dúzia de cenas. Ao fundo, uma cortina de
contas de madeira dava acesso a outro cômodo. Pai e filho de mãos dadas, percorreram em silêncio
os grupos de figuras. Uma sucessão de banalidades mais ou menos mal feitas: artistas de rádio,
jogadores de futebol, políticos nacionais e estrangeiros.
- fraquinho, né pai?
- realmente... Mas me lembro que o bacana sempre foi a seção "proibida para menores". Doenças,
crimes, monstros e por aí. Senão me engano é ali ao fundo. Depois da cortina.
Sublinhando a frase de Marcos, o peculiar ruído das contas de madeira da cortina, afastada por mão
fina e elegante. A figura esbelta e sorridente, de vestes antiquadas, captura a atenção dos dois, como
uma serpente a encarar um sapo. Pouco a pouco a imagem da sedutora mulher resume-se, no
cérebro da dupla, a um par de inumanos e irresistíveis olhos verdes. Flutuando no ar, uma voz
sensual:
"venham... Venham conhecer a história de Bárbara... Por aqui lindo menino! Venha!"
Correio da Manhã, Rio de Janeiro, terça feira, 11 de junho de 1963.
"Encontrado o monstro que apavorava a cidade!"
"Pego pela nossa valorosa polícia, pouco após cometer seu último bárbaro crime!"
"O louco estripou o próprio filho dentro do museu de cera abandonado da Rua da Carioca"
"No porão da casa foram encontrados restos de mais de uma dúzia de crianças"
"Ouvido pela polícia, o monstro em estado de choque, limitou-se a repetir que deviam encontrar um
mendigo que testemunhar ia a seu favor. Ninguém foi encontrado nas imediações"
"Demônio assassino encaminhado ao manicômio judiciário onde aguardará julgamento!"
FIM

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