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Caminhada Noturna

"Nós vivemos num mundo regido pela lógica, iluminado pelo Sol e onde o fantástico é descartado.
Seria isso a realidade? Ou no mundo real a lógica não passa de ilusão, as trevas são eternas e o
fantástico é permanente?"
Tais palavras ricocheteavam enlouquecidas no cérebro de Matias ao caminhar rumo à Cidade Alta
naquela fria noite junina. Esfregava compulsivamente as mãos no ensebado sobretudo cinzento,
buscando limpá-las de invisíveis manchas, reais apenas em sua mente. Deixava algo medonho atrás
de si, mas não sabia exatamente o quê. Era movido por um terror enterrado fundo n'alma e buscava
a salvação nalguma coisa lá em cima. A Catedral, talvez?
"Que é isso Matias?? Prá que essa faca???"
Percorrera aquele trecho do Centro Histórico de Porto Alegre inúmeras vezes. Afinal, trabalhava no
Ministério da Fazenda há muito tempo e costumava, pelo menos uma vez por semana, seguir a
"Trilha da Alegria". Acompanhado de colegas ou mesmo só, deixava a repartição no "Chocolatão"
(nome popular do grande prédio fazendário, em função de sua cor marrom) rigorosamente às 18
horas e começava a subir a colina na direção da Praça da Matriz.
"Não entre aí... Vais acordar nosso filho! Como assim? Que queres dizer com isso?"
Longe de ser uma peregrinação religiosa, esse trajeto até à localização da grande catedral era uma
sequência de pequenos botecos, onde um happy hour ia se multiplicando, até a inevitável
embriaguez ao chegar em casa.
" Claro que é nosso filho! Estás louco? De onde tirou essa ideia maluca?"
Apesar da familiaridade com o ambiente ao seu redor, Matias sentia-se confuso. Não conseguia
lembrar nitidamente dos acontecimentos do dia que se encerrava, dos trechos de rua recém
percorridos, dos transeuntes que haviam cruzado seu caminho há poucos minutos. Tampouco era
claro o restante do trajeto que buscava percorrer. Apenas dois polos eram claros em sua consciência:
o horror indistinto às suas costas e uma cálida sensação de refúgio e salvação ao final do caminho.
Entre esses dois polos opostos, apenas um túnel escuro e gelado, desabitado e silencioso.
"Isso é um absurdo, uma calúnia! Quem pôs essa loucura na tua cabeça, meu Deus?"
Matias apressou o passo e o som de suas botas no calçamento eram a única coisa que feria o
silêncio da noite. A incômoda sensação de que algo ruim acompanhava seus passos se acentuava a
cada minuto. Minuto? Não exatamente, já que não tinha a exata noção de tempo. Não sabia dizer se
caminhava há alguns minutos, horas, dias...
"Não entre aí, já disse! Ele está dormindo... Pare!!"
A chuva aumentou, mas não o bastante para limpar as mãos de Matias. Ele já não procurava
esfrega-las no sobretudo, apenas buscava chegar a seu destino o mais rápido possível, qualquer que
fosse ele. A essa altura, praticamente corria, tropegamente ferindo as poças d'água no caminho. Ao
chegar na próxima quadra, das brumas de sua consciência lhe veio uma lembrança, um lampejo
fugaz como um fósforo aceso nas trevas. Uma escadaria entre dois prédios mergulhava na
vegetação, colina acima. Matias reconheceu o caminho. Subira por ali algumas vezes, buscando
abreviar o caminho até à Praça lá em cima. Assim fez novamente.
"O que você fez??? Meu filho! Não... Socorro! Socorro! Meu marido está louco...! Não.. Pare... Não
faça isso, por favor... Não.... Aiiii!"
Subiu os maltratados degraus de dois em dois. Tinha pressa. Quase ao final da subida porém,
estacou petrificado de pavor. Duas silhuetas postadas no final da escadaria, barravam-lhe o
caminho. As feições eram indistinguíveis, imersas na escuridão, apenas o perfil de uma mulher e
uma criança, de mãos dadas, ligadas como uma única entidade. A visão teve o dom de inundar a
mente de Matias de lembranças. A insuportável imagem do que fizera, desabou sobre ele
esmagando sua alma. Soube então que jamais chegaria à Catedral.
"Que horror! Matou o próprio filho... e também a mulher...
" Sim, depois degolou-se. Enlouqueceu, coitado... "
Matias caminhava rumo à Cidade Alta naquela fria noite junina. Esfregava compulsivamente as
mãos no ensebado sobretudo cinzento, buscando limpá-las de invisíveis manchas, reais apenas em
sua mente. Deixava algo medonho atrás de si, mas não sabia exatamente o quê. Era movido por um
terror enterrado fundo n'alma e buscava a salvação nalguma coisa lá em cima..................
SEM FIM

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