Você está na página 1de 4

1

LAMENTAÇÃO DE UM DIA COM PRECEDENTES

Palavras desconexas. Em minhas mãos uma sucata inútil. E a caixa de m,


discorrida em discurso sério e censagens vazia.
À varanda, o sol já havia saído. Deveras uma privilegiada de minha classe. Um
cadinho de culpa, enfim. Arrumar o mundo por detrás de tantos entulhos, confinada
neste lugar de conforto e solidão. Cedo por demais para sair à rua. Apoquentantes estas
questões que se nos colocam por vezes. O armário repleto de roupas. O que fazer com o
excedente? Levar tudo à uma igreja, talvez. Não o soube.
Virar o ano com a insuportável sensação de que se possui muito mais do que se
poderia ou deveria ter não é de bom augúrio. Uma sensação de morte a meio caminho
da vida. E a de um lugar vazio e pleno de alguma certeza. Devo me desfavorecer de
algo na vida, afinal.
Antes de uma manhã como essas, com um copo de vinho nas mãos, parecia-me
como algo agradável e natural. Não mais. Sensações de mau augúrios anularam muitas
de minhas certezas inexatas. Em alguns lares brasileiros faltava água potável – eram as
estatísticas! E eu pensando em vinhos e festas e roupas a perderem-se no armário. Um
verdadeiro nó na cabeça.
Anjos da boa fé: Devolvam-me a palavra fácil, discorrida em discurso sério e
corrente. Humanizar-me novamente é o que peço. Sem protagonista nem nada...
Cheguei ao escritório neste dia de nada, e tudo parecia-me na mais perfeita
ordem. Sofri muito com essa falta de compromissos e pelos percalços que teria de
enfrentar por isso. Nada a fazer senão aguardar.
Márcio não deixou recado. Encontrá-lo mais tarde? Talvez. Retorno às
elocubrações do dia. Porquê, afinal, essa atividade tão mal escolhida no tropeço da
hora? Sinto-me bem no meio do furacão. Uma exigência da hora. A lembrança de um
outro tempo. Uma outra realidade sobrepassando essa outra que me arruína as horas. O
drama das roupas hoje mais cedo é apenas o signo de minhas exasperações.
À janela, tomando um ar, a súbita sugestão de uma estranha viagem ao tempo de
estudante me tira do prumo. Por um triz não torno-me dona de uma chácara em uma
cidade do interior!
Estudos negligenciados, greve, livros largados em Brasília, o que não mais fazer
senão rumar no sentido do Planalto Central e acabar por visitar minha grandiosa
Chapada? Um outro Márcio encontrei por lá. Que saudades!
O rapaz era um devoto deveras. Renunciado e muito, muito especial. E, parece-
me, que, ali, precisamente ali, naquele lugar, no povoado de São Jorge, deixei uma
carga enorme atrás de mim...
Povoado de São Jorge, com ruas cravejadas de cristais. Gente passada dos
oitenta, noventa, tocando sanfona às ruas à noite. Luz de candeeiro em todas as casas, e
dona Chiquinha, a dona da pensão onde me hospedara, a advogar a não instalação de
2

luzes elétricas ali em seu pedaço de terra. A comandar a reunião, instava a que não se
deixasse apagar aquela imensidão de céu com suas estrelas brilhantes, exposição essa
ameaçada por uns tantos postes de luzes.
Seu Cicílio, esposo de dona Chiquinha, homem centenário, arranca à força dos
braços a mandioca da terra, dura, atarracada junto aos minerais. Asseguraram-me,
ambos os velhos, que nunca houveram estado em nenhuma daquelas monumentais
cachoeiras da região. Um assombro!
Embrenhando-me por trilhas e santuários, desemboquei na própria imensidão.
Estranho... acho que me deparei com o início da criação!
Conheci um pessoal camarada durante o passeio. Ao fim do dia, demos uma
esticada no casebre do seu Antônio, a ouvirmos sua pequena viola amiga. Outro desses
centenários do lugar... Seu olhar incrivelmente claro. Dois cristais brutos encravados em
seu rosto. Certamente vira muitas coisas esses dois brilhantes antes de chegar àquelas
lonjuras. Muito viver.
Dissera-me ele, haviam-lhe roubado umas supostas calças xadrez de tanto seu
apreço. Um desafortunado. Não se conformara. Prometi-lhe outra na próxima volta.
Haveria tempo para uma outra vez? Dívida de honra.
Morte passava longe no vocabulário do lugar. Tempo longo e distante insinuava-
se naquelas poucas e profundas rugas de tanto matutar. Umas faces lindas as de seu
Antônio...
Havia uma questão jurídica pendente naquelas suas terras: Poderia ou não
permanecer nelas sem título de propriedade? Grave questão do poder público! Sabia eu,
estudante das leis. Desbravador da região, não se conformava com o mandato em suas
mãos, exigindo-lhe a expulsão imediata.
Mas o bom era mesmo o foguinho aberto ali mesmo no chão de sua casa, uma
cantoria de todo, sô! Embalados pela viola do velho, fomos adentrando a madrugada, a
rapaziada e eu, até nos darmos conta da chuva torrencial lá fora. Uma tempestade de
cair o céu. Seu Antônio deu-me o abrigo da noite. Um cantinho lá de seu chão de terra
batido. Que delícia de mundo, ara pois!
Dia seguinte era a hora da partida. Esgotado o tempo do ócio, greve suspensa,
teria de voltar de qualquer jeito. Mas vai que me aparece um Márcio do nada, o Louco,
escondido por de baixo das longas abas de seu chapéu, toldando-lhe seu rosto encoberto
por uma longa barba de Jesus Cristo. Pois foi essa a impressão que tive àquele instante.
- Cê vai embora logo agora? Não aproveitou nada... Logo agora que saiu o sol?!
- Tenho de voltar... a grana acabou.
- A gente dá um jeito. Cozinha uns legume aí...
Instalamo-nos numa cabana atrás do terreno de seu Antônio. Vegetarianos,
comeríamos o que rendesse o artesanato do dia. – Jejuaríamos se possível, dissera-me
ele. Topei a loucura toda na hora.
3

Fizemos uma jornada a pé até uma fazenda ecológica, láaa longe, onde Márcio
fazia uns artesanatos de argila com umas crianças. No caminho o papo tava garrado
entre nós. De longas madeixas, o Louco fez-me rir a não mais poder, rindo de uma
maneira despropositada e inusitada. Alegria desabrida. Em dado momento, meu corpo
entregou-se ao abandono... Na ladeira, pus-me a correr solto, sem dar por mim. Um
espírito tão bom baixou em mim! Puxa! Que vida era essa, sô?!
Na fazenda, brincamos com as crianças, muitos banhos de cachoeiras, caminhos
secretos em meio ao mato quase virgem... Márcio, calado, agachou-se, e em silêncio
profundo, agachei-me também em respeito àquele homem. Ali, naquele momento,
através e por meio de Márcio, conheci o silêncio.
Chamá-lo de Jesus Cristo logo assim de cara, foi um despautério meu. Mas,
vendo agora, um quê de santidade permeava seus atos. Isso era um fato.
E comemos nossos legumes cozidos no braseiro aceso atrás da cabana de seu
Antônio, e caminhamos, religiosamente, todas as tardes, juntos e a sós, em torno do
pequeno povoado. Encontrávamos depois, ao centro da praça, felizes que só. Embalados
pela vibração de seu pacato violão, bom mesmo poder parar por aquelas paragens
naquelas horas abençoadas. Tempo mais premiado esse meu...
Mas nesse nosso como que encontro mágico, esquecemo-nos de seu Antônio e
seu grave problema de terras com a justiça. Corremos ao local da querela. O Oficial de
Justiça, em nome da lei, já havia expulsado o pobre homem e o degredado para outras
terras lá longe. Do outro lado do povoado, jogado para um conjunto de casas populares.
Moradias feias e minúsculas, todas amontoadas, do lado não apresentável da região.
Saindo de meu estado de semi selvageria, fui ver, desesperada, seu Antônio,
sozinho, a meditar. Expliquei-lhe o documento que tinha nas mãos. Aparentemente
estava em conformidade com a lei. Se ele quisesse recuperar as suas terras, teria um
longo e custoso caminho pedregoso pela frente.
Seu Antônio ouviu a tudo aquilo atento. Parou um instante. Achegou-se a mim e
disse:
- Filha, vou lhe dizer uma coisa. Pode existir tudo isso aí que você me disse, mas
essas leis não estão certas não. Há outra lei que é a de Deus!
Saí arrasada daquele lugar... Não tinha cabeça para mais nada.
Da janela do ônibus do retorno, Márcio prometia-me que iria arrumar uma horta
para morarmos logo adiante. Ouvia tudo aquilo. De mochila nas costas, sem dar por
mim. Meu pensamento voava longe. Encontrara um lugar sagrado e um sábio homem
que tudo me ensinara em apenas alguns segundos. E eu a voltar mecanicamente para os
códigos e às infernais cadeiras do ensino superior de minha cidade. Tão distante.
Voltei. Acabei meu curso de Direito dali a um ano e meio, e justo nessa época
Márcio me liga dizendo que, enfim, havia encontrado o tal pedaço de chão a mim
prometido. Fui indelicada com ele. Disse-lhe que acabara meu curso e que agora iria
trabalhar. Despachei-o sem mais.
Respeito-o mais que tudo.
4

Hoje, no escritório, incrível, aguardo o telefonema de outro Márcio, nada louco,


bem sensato. E esse nosso desencontro do dia me desconcertou ainda mais. Com certeza
traria-me flores. Vermelhas e artificiais. Como pareciam-me sempre. Todas elas.
Em um dia de tão imprecisas lamentações.

Por Alessandra Peixoto (1997).

[ Texto composto no ônibus, no caminho de volta desta insólita viagem].

Você também pode gostar