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Seguindo seu mestre, Nietzsche irá perseguir também seus conceitos. A filosofia de
Schopenhauer, embora pessimista, ainda no começo do percurso nietzschiano, estará a
afirmar a dor e o sofrimento, sofrimento este inerente ao budismo. A vontade de viver
como coisa em si é imperecível, o tempo e a transitoriedade de todas as coisas mostra
que a cada instante tudo se transforma em nada. Conceitos tomados de Kant, a coisa em
si é tornada a Vontade e o fenômeno em Representação na filosofia de Schopenhauer.
Nietzsche também se utilizará deste vocabulário e se apoderará do conceito de vontade
já em sua primeira obra, o Nascimento da Tragédia. O problema da ilusão do mundo, da
dor e do sofrimento são caros à Schopenhauer, mas em Nietzsche são enfrentados pela
2
Buda nos fala no Nirvana, do Nada, do Vazio. E não chega a nos descrever esse nada,
apenas acentua essa qualidade de vazio que Nietzsche irá aproximar ao niilismo num
sentido negativo. Nesse caso, budismo e cristianismo manifestam em sua fé a qualidade
do nada e contra isso Nietzsche criará, na verdade oporá, a sua filosofia afirmativa da
vida.
Num primeiro momento o sofrimento promove a saúde. “Da escola da vida – O que não
me mata me torna mais forte” 2 Em contraposição à filosofia de Schopenhauer,
Nietzsche tem o ímpeto de voltar para a saúde, para a vida. Do ponto de vista budista,
afirmar o sofrimento é conquistar a saúde superior, é já afirmar também o amor fati. E
1
PANAÏOTI, Antoine. Nietzsche e a filosofia budista, São Paulo, Cultrix, 2017.
2
NIETZSCHE, Friederich. Crepúsculo dos Ídolos, §8, Porto Alegre, L&PM, 2009.
3
de onde vem esse sofrimento e essa teoria de uma vida afirmativa? Segundo Panaïoti,
foi Heráclito o primeiro a ensinar que todas as coisas emergem do conflito. “Guerra é o
pai de todas as coisas”3. Heráclito teve a disposição de conceber e viver nesse mundo de
brutalidade e tristeza, e contradição, mas não o concebeu como injusto. Conflito e dor
são inerentes à natureza da vida, e foi a partir desse paradigma que Nietzsche
compreendeu a grande saúde. Assim, na vida de Nietzsche o que não o matou o tornou
mais forte. Desse ponto de vista, a vida é uma “sabedoria trágica” heraclitiana.
O amor fati é uma postura trágica perante a vida. E o nirvana seria o modelo negativo
desse ideal. Para se atingir a grande saúde do amor fati, não será isso possível sem o
sofrimento. A grande saúde do amor fati é, em si, uma superação. Para concluir a
exposição dessa tese, na ausência do sofrimento, Nietzsche não teria desmascarado a
negação décadent da vida, por trás do cristianismo, do budismo e do pessimismo
alemão.
Acontece que, o aspecto mais fundamental do budismo, a sua afirmação na dor, muitos
o fazem envergonhados, escondidos, o que não é o caso budista, que coloca a dor no
plano central de toda sua dogmática. Tudo é dor. E esse propósito budista em afirmar a
dor ontologicamente é que será elogiado por Nietzsche.
3
HERÁCLITO, Fragmento 83.
4
NIETZSCHE, Friedrich. Além do Bem e do Mal, §§ 44, São Paulo, WVC Editora, 2001.
4
No entanto, de algum modo, toda religião para Nietzsche apresenta uma forma de
diminuição, de força e de vitalidade, na medida em que doa algo de si para o outro.
Nesse sentido, todas as religiões apresentariam algum grau de reatividade e o budismo
não foge à regra. Mas em relação ao cristianismo o budismo aparece como uma religião
para o fim de uma civilização, o contrário da Europa de seus dias. Nietzsche, afirmando
ser o budismo a religião do cansaço das civilizações, afirma também estar a Europa
Ocidental longe de certos propósitos caros ao budismo, como a serenidade e a
mansidão; por isso, o cristianismo, de uma cultura bárbara, não está pronta para a
bondade e a amorosidade dos homens budistas. Segundo Nietzsche, o budismo não
busca a perfeição; a perfeição é o seu caso.
Nietzsche não chega a explorar esse desencadear do fenômeno da dor em suas Quatro
Nobres Verdades, que levarão o indivíduo à libertação ou Nirvana. Esse estado final
para o budista não significa um vazio destituído de valor. É o fim de uma vida levada
numa prática da virtude, ou melhor, da sabedoria.
libertação. Nesse sentido, Samsara pode vir a ser aproximado ao eterno retorno, isso se
se levar em conta a circunstância da repetição e mais repetições de vidas e existências
no mundo, com algumas especificidades para cada uma dessas duas suposições, mas
ainda assim entendidas como uma noção de circularidade de tempo.
É interessante notar que Nietzsche faz uso de diversas interpretações do niilismo em sua
obra. A do Nirvana búdico, aquela que segue à “morte de Deus”, a dos ídolos caídos, do
cristianismo e das ideias desmascaradas. A superação dos valores elevados da
civilização como o Bem, o Justo e a Verdade, enfim, o Ser, segue o caminho do
niilismo. É contra essa elevação de valores metafísicos à categoria de Deus e o seu
ocaso que Nietzsche chamará de “morte de Deus”. Em muitos outros momentos deste
trabalho voltaremos a esse fenômeno central que é o niilismo no mundo. Embora
surgidos em contextos históricos e culturais muito diferentes, pode-se dizer que
Nietzsche e Buda praticaram o Niilismo. Nietzsche se dirá o primeiro dos niilistas, um
verdadeiro décadent.
Ainda que Buda seja também Sidarta, um príncipe que rejeitou a sua majestade para
tornar-se um asceta e buscar a iluminação, antes de tudo ele é deus, um avatar. Como
encarar a morte de mais esse Deus? Compreendendo a sua doutrina e não deixando-se
pegar por suas armadilhas, no caso o sofrimento pela dor, a crença na impermanência e
a prática da compaixão, Nietzsche encarará tudo isso na esteira do niilismo.
5
NIETZSCHE, Friedrich. A Gaia Ciência, São Paulo, Companhia das Letras, 2012. §108, p.126.
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Importa notar, porém, que a abordagem do budismo realizada por Nietzsche parte da
comparação deste com o cristianismo. Em seguida ao niilismo vem o acento grave da
crítica à compaixão. Schopenhauer é aquele que afirmaria na compaixão uma depressão
dos afetos já que o compassivo ao mesmo tempo que diminui a sua força, impede o
outro de crescer, de reagir. Se Shakyamanibhuda, o Buda histórico, o Iluminado, é o
buda da compaixão; por outro lado, no cristianismo temos a fé, a caridade e a esperança,
ou seja, a compaixão também afirmada.
Em todo caso, a compaixão na visão de Nietzsche é uma afeição que deprime, que tira
forças daquele que a concede. Voltando aos estudos de Panaïoti,,este lança uma tese da
compaixão que estaria implícita na filosofia nietzschiana, algo como uma configuração
da “grande saúde”. Nesse caso, ao contrário do que se vem delineando, as filosofias do
Buda e de Nietzsche não seriam tão incompatíveis assim.
No caso budista, não seria de outra forma, porém este reage como um caso de saúde. O
cultivo da compaixão, no budismo, é essencial para se atingir a grande saúde. O que há
é uma distinção entre a simpatia sentimental exibida pelas pessoas comuns como
resultados de seus apegos versus a compaixão de tipo saudável budista, livre do
6
NIETZSCHE, Friedrich. A Gaia Ciência, §118, São Paulo, Companhia das Letras, 2012.
7
Idem, §345.
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sofrimento. Apesar de a compaixão poder envolver sofrimento, esse sofrimento deve ser
qualitativamente diferente de dukkha, deve ter base e cessar no nirvana.
A posição de Nietzsche segundo a qual “não existe ego algum” baseia-se na percepção
fundamental, também encontrada no budismo, de que o “eu” é pouco mais do que um
“conceito sintético”. Aqui, a ideia é que a identidade pessoal – tanto sincrônica quanto
diacrônica – é o produto de uma síntese conceitual pré-reflexiva dos diversos processos
mentais e físicos que constituem uma pessoa.
Nietzsche começa a sua elaboração acerca das religiões tomando como parâmetro o
grau de aumento ou de diminuição que estas provocam na vida de cada um. Mais tarde,
8
NIETZSCHE, Friedrich. O Anticristo, Lisboa, Edições 70, 1997.
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“Buda luta contra ela (condições fisiológicas) por meio da higiene. Serve-
se da vida ao ar livre, da vida nômada; precaução contra todas as
emoções que produzem a bílis e aquecem o sangue; a ausência de
preocupações”9.
Nietzsche faz ainda uma aproximação entre o “pregador” “das montanhas, dos lagos e
prados” e a de um Buda. Sua manifestação, a desse Jesus búdico, é como a de um Buda
e afastada daquele “fanático da agressão”, Paulo de Tarso, e, conforme dizíamos, e
voltaremos a esse ponto quando tratarmos da relação com os judeus, dos teólogos e dos
sacerdotes em geral, o ideal ascético deve ser criticado e excluído.
9
NIETZSCHE, Friedrich. O Anticristo, Lisboa, Edições 70, 1997.
9
Nishitani10 nos coloca a questão contemporânea da crítica ao budismo dado seu aspecto
a-histórico. Mas isso não é verdade. Ao contrário, o autor nos coloca que, ao contrário
do caráter teleológico do cristianismo e Adão, que tem um começo na criação e um fim
no apocalipse, não se sabe bem o que seja o Nirvana. No entanto, concebe-se a sangha
como uma comunidade religiosa, portanto, a força básica de sua formação deve ser
atribuída a Buda e ao dharma.
Por um lado, pode ser que o dharma seja transcendente ao tempo. Por outro, a sangha,
porque se preocupa com os seres, está no tempo, um tempo suscetível a constantes
transições e sempre se renova em fases de prosperidade e declínio. Sendo pertencentes
ao mundo secular, somos levados à conclusão de que os sacerdotes vivem no meio da
história em sua comunidade, isto é, eles vivem no tempo.
Esse dado dos sacerdotes é muito importante em Nietzsche, que critica sobretudo seu
ascetismo. Mas, voltando à sangha, a frase “estar no tempo” está cheia de problemas e
somos levados à conclusão de que o tempo tem que fazer história. No entanto, o
budismo tenta conceber esses três aspectos como conectados em um. Eles constituem os
três pilares do budismo. Assim, dado o ponto de vista dessas três doutrinas unidas em
uma, podemos dizer que o traço característico da posição budista reside nisto: que seja
suprahistórico e histórico.
. BIBLIOGRAFIA:
. NIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal, São Paulo, WVC Editora, 1998.
. NISHITANI, Keiji. On Buddhism, New York, State University of New York Press,
2006.