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ARTHUR SCHOPENHAUER, UM ATEU “RELIGIOSO”*1

Arthur Schopenhauer, a “religious” atheist

Harald Schöndorf S.J. **

Resumo: A filosofia de Schopenhauer é uma doutrina da salvação. O seu pessimis-


mo se fundamenta na interpretação negativa da luta de todo indivíduo contra os
outros, e isto ele vê radicado numa lei geral de toda a realidade. Segundo Schope-
nhauer, a diferença fundamental entre as religiões é a que ocorre entre o otimismo
que ele atribui ao paganismo greco-romano e o pessimismo que, segundo ele, é
inerente ao cristianismo, ao budismo e ao hinduísmo. O pessimismo de Schope-
nhauer exige uma redenção. Se não há Deus, resta somente um nada para a nossa
consciência, mas que representa qualquer coisa de positivo.

Palavras-chave: Schopenhauer – vontade – sofrimento - pessimismo

Abstract: The philosophy of Schopenhauer is a doctrine of salvation. His


pessimism if based on the negative interpretation of the struggle of every
individual against the others, and he sees this rooted in a general law of
the whole reality. According to Schopenhauer, the fundamental difference
among the religions occurs between the optimism he attributes to the Greco-
Roman paganism and the pessimism which, according to him, is inherent to
Christianity, Buddhism and Hinduism. Schopenhauer’s pessimism demands
redemption. If there is no God, only a nothing remains for our conscience,
but it represents something of positive.

Keywords: Schopenhauer - will - suffering - pessimism

O filósofo Arthur Schopenhauer, morto há 150 anos, a 21 de setem-


bro de 1860, em Frankfurt, já tinha alcançado a celebridade no último de-
cênio de sua vida. Era originário de Danzig, onde nasceu em 22 de fevereiro
de 1788 e, segundo o projeto de seu pai, deveria tornar-se comerciante como
ele, mas, depois da morte do progenitor, estudou Medicina e principalmen-
te Filosofia em Göttingen e Jena.

* Artigo originalmente publicado em La Civiltà Cattolica, I (2011), p. 341-351. Tradução de Maria


Alves Muller.
** Doutor em Filosofia, Professor de Teoria do Conhecimento e História da Filosofia (IHS,
München).

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Tornou-se livre-docente em Berlin, mas com pouco sucesso, por-
que tinha decidido claramente ter as suas aulas nos mesmos horários das de
Georg Wilhelm Friedrich Hegel; em 1831, quando o cólera se alastrou em
Berlin, transferiu-se para Frankfurt, onde passou o resto de sua vida como
estudioso.

RELIGIOSIDADE SEM DEUS

Definir Schopenhauer como um ateu religioso tem sentido se há


uma religião que não conhece Deus ou na qual, pelo menos, não é claro em
que medida ela tenha um conceito de Deus. Pensa-se comumente que isto
valha para o budismo. De fato, Schopenhauer andava nutrindo uma grande
e cada vez mais intensa simpatia por essa linha e, por este motivo, durante
a sua permanência em Frankfurt, também ergueu uma estátua de Buda em
sua casa.
Por outro lado, o budismo não é ateu enquanto concebe a si mes-
mo em direta oposição a uma religião ou a uma visão teísta. Schopenhauer,
no entanto, é um adversário explícito e resoluto de qualquer fé em Deus.
Certamente o simples fato de ele aproximar a sua filosofia ao budismo não
é ainda suficiente para julgá-lo um ateu religioso. Ao contrário, para este
fim é necessário que sua filosofia contenha elementos que de algum modo
possam definir-se religiosos. E é justamente isto que queremos mostrar nas
considerações que seguem.

ORIGENS CRISTÃS

Originariamente, Schopenhauer pensava ser cristão e só em um se-


gundo momento voltou-se à religiosidade indiana, quando ela começou a
ser conhecida na Europa, e nela viu cada vez mais uma correspondência com
a sua própria filosofia. Estudou as escrituras sagradas da Índia, os Vedas e
os Upanixades, mas, com base no nível de conhecimento daquele tempo,
não distinguia ainda entre hinduísmo e budismo. Como mostra o estudo de
suas obras póstumas, e também uma pesquisa mais aprofundada dirigida da
primeira edição de sua obra principal, a formação religiosa e a doutrina da
salvação de Schopenhauer derivam originariamente não da espiritualidade
indiana, mas do cristianismo; ele encontrou somente uma confirmação da-
quela na religiosidade oriental.

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Para ele foram determinantes, sobretudo, os influxos piedosos de sua
infância, mesmo que ele soubesse se defender de uma beatice excessiva. Os
fundamentos, ali fechados, de uma devoção que se fundava sobre o senti-
mento, sobre a ética e sobre a doutrina da salvação, que podia também levar
a uma fuga do mundo, reforçaram-se quando ele entrou em contato com
o chamado “quietismo”. Esta corrente católica, de ambiente principalmen-
te francês, contava entre seus seguidores com nomes como o de Madame
Guyon, e também, em parte, o bispo François Fénelon, e dava grande peso a
uma dedicação a Deus – a mais completa possível – que comporta a renún-
cia total à própria vontade e o consequente controle da própria tolerância e
estado de ânimo.
Além disso, havia Jakob Böhme e os místicos alemães, que para
Schopenhauer encarnavam o cristianismo autêntico melhor ainda que
o Evangelho. Se, de um lado, o quietismo tinha reforçado Schopenhauer
em sua avaliação negativa da vontade, do outro, com a leitura dos místicos
alemães e de Jakob Böhme, ele se convenceu ainda mais da validade de sua
teoria da unidade de tudo, segundo a qual a individualidade e a multiplici-
dade pertencem somente ao mundo das aparências, enquanto, na verdadei-
ra realidade, a vontade em si, supera-se toda pluralidade e toda distinção, e
cada coisa representa uma única grande unidade. Para Schopenhauer todas
estas correntes têm em comum uma concepção, julgada cristã, que refuta o
Antigo Testamento com seu Deus criador e busca a salvação deste mundo
fútil e aflito na renúncia ascética à sexualidade e a todos os outros desejos e
necessidades.
Schopenhauer, portanto, era originariamente tido como cristão,
mas, por outro lado, recusou o Antigo Testamento e viu na mensagem de
Jesus uma negação ascética do mundo e uma doutrina da salvação que, se-
gundo seu ponto de vista, manifesta-se depois nos místicos e nos santos de
maneira ainda mais clara e profunda que no Evangelho. À recusa da fé na
criação e de Deus criador contribui também uma interpretação docetista
de Jesus, isto é, a tese segundo a qual ele possuía apenas um corpo aparen-
te. Com esta aceitação das teorias gnósticas, que apareceram nos primeiros
tempos do cristianismo, mas que foram sempre rejeitadas como heréticas
pela Igreja, Schopenhauer vem a confirmar, sem querer, que a doutrina da
encarnação de Jesus, entendida corretamente, exclui por princípio toda ne-
gação radical do mundo.
Ainda criticando energicamente os representantes do idealismo ale-
mão e Hegel, sobretudo, Schopenhauer nunca se expressou de maneira ne-

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gativa sobre o cristianismo. Ao contrário, na última parte de sua obra prin-
cipal, ele se volta a conceitos especificamente cristãos dos quais se serve para
esclarecer a própria teoria. Ele fala da eficácia da graça e do renascimento
para explicar a sua tese fundamental da necessidade de negar a vontade. Isto
mostra que o seu pensamento se nutre em fontes cristãs e que a ele pode se
atribuir uma característica religiosa.

VISÃO PESSIMISTA DO MUNDO

A filosofia de Schopenhauer é uma doutrina da salvação. O proble-


ma da redenção ou da salvação é de ordem tipicamente religiosa, e pode-se,
portanto, atribuir uma natureza mais ou menos claramente religiosa a todas
as concepções que o levam em consideração. Não deve espantar o fato de
que haja interferências ou ao menos pontos de contato com a filosofia, uma
vez que qualquer interpretação que tem por objeto toda a realidade deve
enfrentar também e, sobretudo, o problema do sentido ou do absurdo do
mundo no seu conjunto e o problema da existência humana. O pensamento
de Schopenhauer funda-se na interpretação completamente negativa da luta
de todo indivíduo contra os outros, e nisto ele vê radicada uma lei geral não
somente de cada vida, mas também de cada realidade, uma lei que se baseia,
por sua vez, na natureza do mundo, a vontade.
O fato de que Schopenhauer veja aqui toda a “evidente assimilação”
do pequeno por parte do grande2 nos faz recordar as estruturas do pensa-
mento dialético ou todas as teorias da evolução segundo as quais um desen-
volvimento para cima se realiza mediante contraposições. Mas, ao contrário
destas teorias, que em geral supõem acriticamente que esta luta pela exis-
tência seja a condição necessária para que possa surgir o estágio superior,
Schopenhauer confere a toda esta concepção uma coloração completamente
negativa. Um desenvolvimento para cima é possível somente se é superada a
resistência do baixo, que resiste à evolução e busca continuamente abater o
alto. Portanto, são necessários esforços constantes se é desejado vencer esta
força da gravidade em sentido literal e metafórico. A lei deste esforço já está
trabalhando no nível mais baixo do mundo inorgânico quando, por exem-
plo, a calamidade “sustenta uma luta contínua com a gravidade”3.

2 SCHOPENHAUER, A., Die Welt als Wille und Vorstellung, volume I, § 27, 173. Citado do
volume II de suas Sämtliche Werke, organizadas por A. Hübscher, Wiesbaden,
1972. As citações subseqüentes do texto de Schopenhauer serão abreviadas por W,
seguidas da indicação dos parágrafos e páginas.
3 W I, § 27, p. 173.
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Schopenhauer descreve também todos os fenômenos da natureza
como um processo humano. De fato, para nós homens – mas na realidade
somente para nós – esta superação dá lugar a um desconforto, do qual deri-
va uma ligação permanente da nossa vida vegetativa com uma dor submissa.
Esta fadiga assídua, com o passar do tempo exaure as nossas forças; com
o tempo não podemos mais aguentar: “eis aqui, sobretudo, o peso da vida
física, a necessidade do sono e, enfim, da morte”4. A interpretação pessimis-
ta do mundo sustentada por Schopenhauer baseia-se em suas experiências
concretas da vida, mas também no influxo que a doutrina cristã do pecado
original exerceu sobre ele.
Segundo Schopenhauer, nesta realidade se manifesta verdadeira-
mente “o dissídio consigo mesmo, que é fundamental para a vontade”; deve-
se a isto o fato de que “na natureza encontra-se por toda parte luta, batalha
e vitória mutantes”5. O que acontece no mundo representa o “dissídio da
vontade”, que alcança seu ápice na conduta do homem, onde se “manifesta
no modo mais terrível”6. A contínua luta dolorosa que é inerente ao mundo
deve-se, em última análise, à vontade, que constitui a essência do mundo e
é para Schopenhauer a realidade em si, além da mera aparência. A vontade
é em si mesma dilacerada e discordante e por isso continuamente gera dis-
córdia, conflito e dor. O que na perspectiva cristã é consequência do pecado
original é, para Schopenhauer, uma cisão que se aninha no fundo da própria
realidade e se manifesta em todo o mundo fenomênico.
O pessimismo de Schopenhauer parece contrapor-se enormemente
ao nosso modo de ver de hoje. Mas a concepção cristã do mundo não foi
sempre tão positiva como a atual. Em geral o homem do passado não estava
tão bem como o de hoje. No Salve Rainha se diz que estamos “gemendo
e chorando neste vale de lágrimas”. Schopenhauer liga-se, portanto, a uma
situação que era bastante difundida antes que florescessem as ciências natu-
rais, e a técnica e a moderna visão otimista do progresso que estão ligadas a
elas. Além disso, a Idade Média tardia e o início da Idade Moderna foram
fortemente condicionadas pela doutrina do pecado original, mesmo que co-
meçassem a voltar-se para o mundo com um comportamento mais aberto.
Isso se verificou não somente pela Reforma, mas também dentro da Igreja
Católica e influenciou muito a filosofia moderna: da concepção do estado
natural entendido como situação na qual todos lutam contra todos até a
ideia de que todas as inclinações naturais do homem são movidas por egoís-
4 W I, § 27, p. 174.
5 W I, § 27, p. 174.
6 W I, § 27, p. 175.
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mo. Nestas tendências seguramente se oculta alguma avaliação negativa do
mundo, mesmo que não se expresse de maneira tão clara e vistosa como em
Schopenhauer. Na alta escolástica, o homem é visto, antes de tudo, como
um ser orientado à sociedade, e nisto reside também um amor ordenado e
moralmente reto de si mesmo (que também encontramos naturalmente em
alguns pensadores modernos, como, por exemplo, Jean Jacques Rousseau).
Ainda que a vontade constitua para Schopenhauer a essência da rea-
lidade, não se sabe de onde provém, nem de aonde quer chegar. Esta ausência
de um fim último ele transfere para qualquer vontade e qualquer esforço que
se manifestam em nosso mundo fenomênico. E desta maneira todo esforço
e toda vontade adquirem um dilaceramento e uma contradição interna, por-
que no fundo o desejo nunca pode alcançar o próprio fim e por isso se trans-
forma em um esforço infinito e substancialmente inapagável, do qual não se
pode mais extrair nada de positivo. Além disso, para Schopenhauer “cada
aspiração deriva de uma deficiência, do ser insatisfeito com a própria con-
dição; é, portanto, sofrimento enquanto não for satisfeito; uma satisfação,
porém, não é nunca duradoura, mas é antes o início de uma nova aspiração.
Constatamos que a aspiração em qualquer lugar é contrariada, está em luta;
perdura, portanto, sempre a dor: não há um fim último para a aspiração e,
assim, nenhum limite e nenhum propósito para a dor”7.
Para Schopenhauer “o fundamento de todo querer é a necessidade,
a falta, portanto, a dor, da qual ele se torna vítima por sua própria origem
e por sua natureza”8. Mesmo as satisfações parciais não resolvem nada por-
que, de um lado, com a satisfação cessa o desejo e, portanto, o prazer e, de
outro, à satisfação de um determinado desejo segue uma nova aspiração. E
se ao homem é concedida uma pausa em sua dor, também esta não é uma
solução, porque ele é tomado pelo tédio. Mas este último é “entretanto um
mal de pouco valor: depois de tudo, acaba chegando à face o verdadeiro
desespero”9. E “toda a vida humana se debate entre a dor e o tédio”10. A
vontade é, portanto, infinita, um esforço que nunca consegue satisfazer-se,
continuamente encontra obstáculos e provoca, consequentemente, em cada
um dor e morte. Como vontade de vida se afirma neste péssimo mundo e se
reproduz continuamente, por isso a dor não cessa nunca.
Esta ideia também se relaciona a um motivo clássico que se encontra
tanto na filosofia como na religião. Na concepção cristã, que neste ponto
7 W I, § 56, p. 365.
8 W I, § 57, p. 367.
9 W I, § 57, p. 371.
10 W I, § 57, p. 371.
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foi formulada de modo mais incisivo por Agostinho, o nosso coração está
irrequieto enquanto não repousa em Deus. Em outras palavras, isto significa
que nós humanos temos uma aspiração interior que não pode ser satisfei-
ta por nenhum bem humano. Em Schopenhauer esta ideia se configura de
outra maneira e se transforma numa crítica, nada injustificada, à concepção
moderna de um progresso infinito em direção àquilo que parece sempre me-
lhor. A absolutização do sempre mais adiante, sempre melhor, sempre mais,
que se realizou no mundo moderno, foi continuamente criticada na tradição
cristã e na antiguidade clássica. Mesmo neste ponto poderemos, portanto,
perceber em Schopenhauer um apelo à religião. Mas a duração interminável
da aspiração pode transformar-se somente em uma dor contínua para um
pensador que interpreta essa aspiração como se fosse um desejo do corpo e
dos sentidos.

RECUSA DO DEUS CRIADOR

Schopenhauer não pode aceitar um Deus criador, principalmente


por causa de seu pessimismo. Mas também o panteísmo é refutado clara-
mente. Para ele, o fato que o mundo cheio de miséria e de sofrimento seja
uma manifestação de Deus é absurdo e torna impossível qualquer ética. O
panteísmo é na prática ateísmo. A visão otimista segundo a qual Deus criou
panta kala lian11 é insustentável para Schopenhauer e constitui a objeção
mais forte contra a fé em um criador.
Como outros filósofos do Iluminismo, Schopenhauer argumenta
que, se Deus não é uma palavra vazia, é pensado de maneira antropomór-
fica como uma pessoa dotada de razão, vontade e causalidade e como um
ser individual, mas isto conduz a aporias. Contra a criação existe ainda a
ideia de que do nada não provém nada. Na filosofia se critica asperamente a
“consciência imediata que se pode ter de Deus” e o “absoluto”, uma vez que
Immanuel Kant refutou definitivamente as provas da existência de Deus.
Como David Hume, também Schopenhauer sustenta que a ideia de Deus é
um produto do medo e da necessidade e, portanto, da vontade do homem,
que cria um ser para quem poderá se dirigir. O monoteísmo, do qual o is-
lamismo representa a forma mais negativa, encontra-se somente no judaís-
mo e nas religiões que dele derivam. As religiões mais antigas, com o maior
número de seguidores (bramanismo, budismo), não têm nenhuma palavra
para indicar Deus. A fé em Deus é um elemento que se torna heterogêneo

11 “tudo muito bom”. Cf. Gn 1,31.


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ao cristianismo autêntico. No cristianismo o teísmo introduziu-se como um
corpo estranho desde o Antigo Testamento.
O pessimismo de Schopenhauer chega ao ponto em que a sua filoso-
fia – a primeira na era moderna – torna-se uma espécie de religião da salva-
ção. Não constitui um argumento contrário o fato de que esta salvação não
provenha de Deus. Uma vez que não atribui a condição miserável do mundo
a um pecado original, Schopenhauer deveria fazê-la remontar a Deus mes-
mo, mas isto não é sustentável, como justamente ele vê. Por isso – poderia
se dizer – ele renuncia a um Deus criador, mas naturalmente isso tem como
consequência que o problema da origem conduz a uma vontade irracional
que certamente não cria menos problemas do que o conceito de Deus que
foi rejeitado. Mas permanece ainda uma espécie de teologia negativa, mes-
mo se somente em uma perspectiva que olha para frente em direção a uma
salvação ansiada e esperada.

OS CAMINHOS DA SALVAÇÃO

Voltamos novamente à dor. Ela assume um papel duplo caracterís-


tico. Antes de tudo é negativa e fornece a Schopenhauer o fundamento de
sua visão pessimista do mundo e de sua negação de um Deus criador. Mas,
por outro lado, esta dor assume também uma função positiva. Para Schope-
nhauer torna-se a segunda possibilidade de alcançar a salvação. Certamente,
o verdadeiro e próprio caminho régio que conduz à salvação consiste em
pensar que a multiplicidade dos indivíduos seja um nada e em levar em con-
ta as consequências negativas que são trazidas disso. Daqui deve derivar a
renúncia ao próprio aspirar e ao próprio querer, a negação da vontade, que
abre a porta para o nirvana. Mas o segundo caminho, mais frequente, para
não dizer normal, para a salvação consiste no fato de que da dor se aprende a
conhecer que todo mal está ligado somente aos indivíduos e ao seu esforço.
A salvação obtida através da dor é o deuteros plous (segunda navegação) –
num certo sentido, um sentir mais que um conhecer, enquanto caminho da
purificação.
As consequências que Schopenhauer nos traz em detalhes lembram
a corrente religiosa do quietismo, cujos representantes neste ponto ele cita
expressamente. Ora, é claro que o cristianismo nunca pregou aquela avalia-
ção tão fortemente negativa do que está ligado aos sentidos e ao instinto,
ou até mesmo de tudo o que é individual, como encontramos em Schope-
nhauer. Mas a ascese entendida como domínio de si e como renúncia está

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certamente presente na tradição de todas as religiões. E se Schopenhauer
atribui ao sofrimento uma função particular no caminho para a salvação,
podemos entrever nisso um eco da mensagem cristã, segundo a qual somos
salvos através do sofrimento e da morte de Jesus. Certamente ele interpreta
de maneira diferente esta mensagem. Entretanto, a concepção pela qual a
dor por um lado é negativa, mas por outro pode levar à salvação – e lá con-
duz de fato –, se esta estrutura é considerada somente em si mesma, é uma
doutrina não filosófica, mas tipicamente religiosa.

O MODO COMO CONCEBER A RELIGIÃO

Como se configura a atitude que Schopenhauer expressamente assu-


miu nos confrontos com a religião? Para ele a diferença fundamental entre
as religiões é a que ocorre entre o otimismo que ele atribui ao paganismo
greco-romano e o pessimismo que, segundo o seu modo de ver, é inerente ao
cristianismo e também ao budismo e ao hinduísmo. Para ele, o elemento de-
cisivo é a ética, não os dogmas. Do ponto de vista doutrinal, já que se refere
a uma “revelação”, a religião se contrapõe à filosofia, fundada sobre a razão
(e, portanto, sobre a persuasão), e lhe é subordinada. Ela satisfaz somente as
necessidades metafísicas dos insanos que não são (ainda) capazes de reco-
nhecer a pura verdade. É verdade apenas no plano alegórico, mesmo que isto
seja desconhecido tanto pelos racionalistas como pelos supranaturalistas, os
quais por isso minaram-na ou defenderam-na explicitamente. Ela é útil como
consolação na dor e na morte e também quando se presta um juramento; o
seu valor para a moral, porém, é discutível. A intolerância monoteísta ins-
tigada pelos sacerdotes provoca numerosas atrocidades. As proteções que o
Estado lhe concedeu e o doutrinamento em idade infantil fizeram dela um
obstáculo, porque com o crescimento poderia se reconhecer criticamente a
verdade. Mas a maioridade que todos atingirão tornar-se-á a sua eutanásia, e
então o cristianismo já está ao ponto de morrer.
A doutrina do pecado original expressa a nossa culpa, que é radicada
na nossa própria existência e consiste na afirmação da vontade, enquanto o
Deus encarnado, com a sua origem assexuada, com seu corpo apenas apa-
rente e com a cruz simboliza a negação da vontade e por isso a redenção.
Neste sentido, para Schopenhauer, Cristo se torna cada vez mais uma figu-
ra de salvador entre os outros. Dado que neste âmbito o conhecimento da
unidade universal não se consegue com um agir segundo motivos (obras)
conforme a vontade, mas é dado imediatamente do exterior, ele é entendido

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como a ação de graças que conduz ao renascimento, ou seja, à eliminação da
vontade, e daqui nasce a dor. O seu símbolo é a cruz. A verdadeira liberdade
que então se alcança é o reino da graça. E pelo modo concreto de viver, que
elimina a própria vontade, há necessidade daquilo que a tradição religiosa
chama ascese. Naturalmente as maneiras e as formas concretas através das
quais se chega a negar o mundo não coincidem simplesmente com determi-
nadas concepções religiosas.

REDENÇÃO SEM DEUS?

O pessimismo de Schopenhauer requer uma redenção. Se para isto


não há Deus, resta somente um nirvana, um nada para o nosso conheci-
mento, que, porém, na realidade representa alguma coisa de extremamente
positivo. Esta ideia por si mesma não deriva necessariamente de uma religião
indiana, porque se encontra também na tradição da teologia negativa. É ver-
dade, contudo, que para Schopenhauer não se deve falar de teologia, porque
ele não admite Deus. Mas é preciso ter presente que este nada está além da
vontade, é a essência e o núcleo de toda a realidade. Portanto, devemos atri-
buir a este nada uma transcendência radical em relação ao mundo.
Desse modo, o próprio Schopenhauer abre o seu sistema de uma
metafísica somente imanente e empírica para o alto, para qualquer coisa de
maior que supera radicalmente a realidade deste mundo. Mas tudo isto faz
parte daquelas características clássicas que se atribuem a Deus. Portanto,
torna-se verdade que para Schopenhauer não há Deus, mas um nirvana que
está no lugar de Deus e ao menos em parte assume traços divinos. Conse-
quentemente, a sua concepção filosófica mostra que um sistema sem Deus
ou algum equivalente de Deus não pode ser completo se há necessidade de
uma redenção das angústias deste mundo. Ainda que negue qualquer ideia
de um possível progresso na história, sobre esta questão Schopenhauer é
obrigado a deixar ao seu sistema um caminho aberto para o futuro.
Parece que ele é capaz de estabelecer a satisfação dos nossos desejos
e, portanto, a nossa felicidade, somente no plano empírico dos sentidos. Mas
ele também reconhece com perspicácia que, contrariamente a toda fé no
progresso, característica do seu tempo, neste âmbito não pode haver uma
felicidade duradoura. Por isso, impelido por esta desilusão, inverte seu pen-
samento e define sem sentido e valor esta realidade e procura a salvação num
acolá inatingível e de uma natureza totalmente diferente. Ele deve, em con-
sequência, construir um sistema original e, como ele mesmo reconhece, in-

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compreensível, no qual a realidade mais alta e última, isto é, a vontade, para
poder alcançar um conhecimento mais alto chega a negar a si mesma e desta
maneira se eleva a um nada que, como um deus ex machina, ao fim de um
mundo totalmente negativo deve ajudar a atingir a liberdade e a salvação.
A tentativa de Schopenhauer de apresentar uma doutrina da sal-
vação sem Deus contém muitos elementos do todo atual e por isso pode
também ensinar alguma coisa hoje. Naquela época, como também nos dias
de hoje, em alguns ambientes estava muito vivo o fascínio do oriente, que
muito frequentemente faz parecer estranhas e, portanto, atraentes algumas
visões que substancialmente já se encontram como adormecidas em nossa
história e em nosso modo de pensar. E naquele momento, como hoje – mes-
mo se apenas em um círculo restrito de pessoas que se consideram cultas –,
havia a tendência de menosprezar qualquer coisa estável, como os dogmas e
as instituições, também continuando a ser religiosas. Schopenhauer preten-
de juntar, no seu pensamento, os vários elementos e os diversos aspectos que
lhe são conhecidos da filosofia e da ciência. Mas isso não lhe parece possível
sem tensões e contradições. O seu pensamento mostra como se tornou di-
fícil elaborar um sistema filosófico coerente. A solução não se encontra em
prosseguir diretamente ao longo das linhas da filosofia moderna nem em
uma simples contraposição.
Arthur Schopenhauer foi um dos primeiros a manifestar a crise do
pensamento moderno. A nós que viemos depois, resta a tarefa de reexaminar
com atitude crítica os fundamentos deste pensamento.

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