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APONTAMENTOS SOBRES DOM CASMURRO (1889), Machado de Assis

Dom Casmurro – romance psicológico, com visão autodiegética (narrad.


autodiegético)
PARA COMPREENDER MACHADO DE ASSIS
1. Machado de Assis: vértice da filosofia moral de Schopenhauer e Nietzsche
A noção de natureza humana egoísta é mais a manifestação da vontade, parte
primitiva (primeira) no homem. Ou seja, o caráter preexiste à formação do intelecto: o
entendimento é paulatinamente formado para servir a Vontade, o querer. O ser humano
possui o livre arbítrio, a liberdade, mas a sua escolha relaciona-se aos motivos originados
em sentimentos: a racionalidade, a lógica, se exercita dentro dos direcionamentos da
vontade e do querer. A razão é um instrumento da vontade de conhecer.
A complexidade moral de cada indivíduo: cada qual é composto de partes
diferentes, como uma colcha de retalhos: virtudes, fraquezas, defeitos e sentimentos
contrários que levam a ações egoístas ou maldosas, dependendo dos interesses em jogo.
(SCHOPENHAUER). O sujeito age sob impulso egocêntrico determinante; a sua vontade
conforme interesse de ajustar-se socialmente (ex., Quincas Borba e Dom Casmurro:
“as contradições são deste mundo” (MACHADO DE ASSIS, p. 71). Enfim, o ser humano
é contraditório, incoerente, sustentando-se de aparências conforme seus interesses. Qual
a relação dessas concepções filosóficas com a narrativa machadiana? Além da história do
Brás Cubas e do Bento Santiago, evoca-se, aqui, os contos machadianos “O capítulo dos
Chapéus” e “Uma excursão milagrosa”.
Machado de Assis descreve diversas maneiras de agir dos seres humanos no
campo da moralidade. Sua obra municia fundamentos para as conclusões de
Schopenhauer sobre a filosofia moral. Neste sentido, a variedade de tipos (morais) de
personagens de Machado, ilustra a complexidade do comportamento humano.
As relação entre Machado e Nietzsche, conforme Carreiro, decorre de um
“espírito do tempo” conformado por meio de influências sociais, culturais e literário-
filosóficas semelhantes: o ceticismo, composto por um roteiro (estético, narrativo) de
dúvidas. A percepção cética da vida impõe a suspeita de todos os dogmas pedagógicos,
patrióticos, ideológicos, religiosos ou filosóficos, etc., dificultando sínteses ou
classificações. Esta atitude, por exemplo, confirma as contradições humanas e sociais. O
autor instiga seu leitor à reflexão sobre subjetividades e sobre as instituições, que o
obrigam a ajustes, os quais se darão conforme as construções morais e psicológicas. Mas
ao fim e ao cabo parece restar ao escritor o pessimismo e o ceticismo, pois o ser humano
não está disposto a aprender ou não aprende por fatalismo social ou mesmo genético,
preso a um irracionalismo. A razão move-se dentro do sentimento, da irracionalidade,
portanto, vive uma ilusão, sempre a do querer, a da vontade. Assim, cruzam-se os
pensamentos de Schopenhauer e Nietzsche, em Machado.
2. Dom Casmurro: Machado de Asssis, o autor de si mesmo e leitor de Arthur
Schopenhauer (22/02/1788 – 21/07/1860)
Segundo Schopenhauer, só a metafísica da vontade pode dar a chave do grande
enigma do amor, que não é função do espírito, nem desejo instintivo de unidade, ao
contrário. O amor em Schopenhauer: a metafísica da vontade explica o sentimento
amoroso como um engenhoso artifício da natureza para pôr em prática o objetivo da vida
humana: a preservação da existência. (“Metafísica do Amor”, vol. II, capítulo 44).
Para Schopenhauer: a vontade é o centro do mundo e o núcleo das coisas; é livre e
poderosa; uma força que move o homem. A vontade, fora do espaço e do tempo (“Idéias
Platônicas”), é um modelo arquetípico que se objetiva em fenômenos do querer (impulso
cego) na natureza. Para saciar o seu desejo incessante de vida, espalha-se em infinitas
parcelas constituintes do mundo e dos fenômenos.
A vontade e o querer (desejo) se manifestam mais claramente no impulso sexual:
os órgãos sexuais são a “morada da vontade”, por oposição ao cérebro – “a morada da
representação”. Assim, toda manifestação de amor reduz-se à sexualidade. O amor
(impulso sexual) é o meio pelo qual a vida irrompe no mundo. A filosofia do amor sexual
de Schopenhauer parte de teses naturalistas.
Interpretação: as pretensões amorosas são ilusões, como parte de um estratagema
da vontade para perpetuar a existência. Embora o impulso sexual, ao se transformar em
apaixonado ilude a consciência com uma avaliação positiva dos atributos da pessoa
amada. Nessa medida, todo amor apaixonado é ilusório, quanto maior a paixão, maior é
ainda a ilusão. A ilusão do amor é um estratagema biológico, por meio do qual a natureza
atinge seus fins. Cada novo indivíduo é, em certa medida, uma nova forma platônica que
se esforça por adquirir existência através da paixão de seus pais. (v. também O gene
egoísta, de Richard Dawkins, 1976)
Segundo a filosofia de Schopenhauer, “A suprema paixão extingue-se no gozo,
para o grande espanto dos envolvidos” (SCHOPENHAUER. Metafísica do Amor, p.
37.). O “Gênio da espécie”, que tinha tomado posse do indivíduo, deixa-o novamente
livre. Abandonado, ele recai em sua limitação e pobreza originárias; dos esforços
heróicos, só obtém o que qualquer um também pode, a satisfação sexual; não se encontra
mais feliz do que antes e percebe que foi enganado pela vontade da espécie. Os amantes
observam que a motivação dos seus sacrifícios está além das suas consciências e
contemplam o sepultamento da felicidade, experimentando o(a) companheiro(a) odioso.
(Ao fim de tudo, completo o ciclo para a continuidade da espécie, o vazio, o pessismismo,
reconhecimento de que se viveu uma ilusão: Bentiho/Capitu/Ezequiel: infelizes).
Tal como Schopenhauer, Machado pôs em cena o grande drama da
existência humana. Sistematizou no Autor/Narrador de si mesmo sua visão
pessimista da vida. Os seres humanos estão condenados à infelicidade porque são
títeres de uma força inconsciente e instintiva e porque a estrutura do afeto impede
a aquisição da felicidade.
3. Ceticismo, pessimismo e ironia
O Realismo machadiano. Aponta sempre para a restrita elite brasileira: modos;
conflitos; perspectivas profissionais, morais, éticas e educacionais, a promover o
desconforto necessário para a reflexão, sobretudo a questões ontológicas (ser enquanto
ser). Geralmente, Machado de Assis pinta homens superficiais, medíocres, de baixa
inteligência; e as mulheres vaidosas, ardilosas, sedutoras, usando esses fatores para obter
objetivos, às vezes, fúteis. O recenseamento de 1872, divulgado em 1876, revelou um
Brasil com 84% de analfabetos. Esse quadro inculto destrói a idéia romântica de
construção da nacionalidade brasileira. Os parâmetros, portanto, são outros, para por em
prática o “instinto de nacionaldiade”, apregoado pelo romancista, distinto das descrições
da cor local dos românticos: “O que se deve exigir do escritor antes de tudo, é certo
sentimento íntimo, que o torne homem do seu tempo e do seu país, ainda quando trate de
assuntos remotos no tempo e no espaço.” (MACHADO DE ASSIS, 1873).
Neste sentido, perfaz na sua obra o estudo do homem médio brasileiro sob a
perspectiva do ceticismo (NIETZSCHE), do pessimismo (Schopenhauer) e da ironia (do
estilo realista dos romancistas ingleses). Neste sentido, sua ficção coloca em descrédito a
descrença em dogmas – patrióticos, ideológicos, religiosos, científicos ou filosóficos.
Este crítico feroz é condizente com suas premissas de homem da atualidade, do Brasil
finissecular dos novecentos.
3.1 Ceticismo e pessimismo machadianos
Gustavo Bernardo Krause (2005, p. 201) reitera o ceticismo machadiano e a sua
recepção crítica:
Machado de Assis escreve no século dezenove, absorvendo aspectos
dos ceticismos moderno e contemporâneo mas tendendo a dar um passo
atrás: é ateu, ainda que não militante, mas desconfia profundamente da
ciência e do cientificismo. Seu suposto ceticismo irritou a maioria dos
seus comentadores, a ponto de mais de um ler toda a sua obra e escrever
livros inteiros só para combatê-lo.
O ceticismo machadinao é relativo. Contrário a dogmas sobre a verdade ou a única
razão, instaura a desconfiança e inscreve a ambiguidade, com multivalências de verdades,
na sua ficção (“Missa do Galo”, “Uns braços”, D. Casmurro, por exemplo). Ainda, as
marcas da ironia e da ambigüidade nas suas heroínas, como Capitolina (Dom Casmurro),
Virgília (Memórias Póstumas de Brás Cubas), Sofia (Quincas Borba), Flora (Esaú e
Jacó), Conceição (“Missa do Galo”). O fato verossímil aconteceu ou não? Ironia e
ambiguidade deságuam em ceticismo, atraindo o leitor para dentro da narrativa.
O pessimismo machadiano: a) é revelado na intriga ficcional a partir das relações
da burguesia com as intituiçoes (Igreja, Estado, casamento, família); b) nas manifestações
descritas de comportamentos e sentimentos humanos, observados em personagens
(egoísmo, hipocrisia, adultério, traição, mentira, vaidade, interesses escusos, oscilação
entre loucura/razão, desesperança, sentimento autodestrutivo, etc.). Assim, em Dom
Casmurro, o escárnio e a ironia de algumas obras do Machado cedem vez à amargura e
ao sofrimento, em que o drama pessoal de Bentinho e Capitu é elevado ao fado trágico
da inevitável destruição matrimonial. Traição ou alucinação constituem matizes da crítica
pessimista do autor sobre a família e o casamento.
A perda da ilusão do casmento perfeito justifica cruelmente o pessimismo em
D. Casmurro sob a luz do pensamento do filósofo Schopenhauer, conforme análise da
Rosa Maria Dias, da UERJ, no artigo “O autor de si mesmo: Machado de Assis leitor
de Schopenhauer”:
Tal como Schopenhauer, Machado pôs em cena o grande drama da
existência humana. Sistematizou no ‘Autor de si mesmo’ sua visão
pessimista da vida. Os seres humanos estão condenados à infelicidade,
não só porque são títeres de uma força inconsciente e instintiva, mas
porque a estrutura inata do afeto impede de maneira inerente a aquisição
da felicidade (2005, p. 392).
O próprio ficcionista, na crônica de 14 de junho de 1896, esclarece a sua visão
pessimista da vida:
Eu, posto creia no bem, não sou dos que negam o mal, nem me deixo
levar por aparências que podem ser falazes. As aparências enganam; foi
a primeira banalidade que aprendi a vida, e nunca me dei mal com ela.
Daquela disposição nasceu em mim esse tal ou qual espírito de
contradição que alguns me acham, certa repugnância em execrar sem
exame vícios que todos execram, como em adorar sem análise virtudes
que todos adoram. Interrogo a uns e a outros, dispo-os, palpo-os, e se
me engano, não é por falta de diligência em buscar a verdade. O erro é
deste mundo. (MACHADO DE ASSIS, 1870, V. I , p. 713 )
4. narrador-protagonista (Bento) Dom (Santiago) Casmurro
A Consciência e a imaginação: linha obscura na psique de Bento Casmurro
Bento Santiago, narrador autodiegético (personagem-narrador) sob disfarce de
máscaras: consciência e imaginação se conjugam e se conflitam – adulto, narra suas
memórias. Há lacunas na história, com informações incompletas, omitidas, deturpadas ou
inventadas, preenchidas por recordações emocionais – por isso as dubiedades,
ambiguidades, deturpações e vazios narrativos.
A construção conflituosa do narrador-personagem autodiegético:
1. Ambiência doméstica: ausência do pai; luto contínuo da mãe; o amor entre
mãe e filho, um caso de sorte, contribuíra para a limitação do entendimento
sobre o sentimento amoroso.
2. Os agregados da família, na construção do intelecto: diálogos entre Bento
adolescente e os agregados José Dias e Prima Justina, ambos com interesses
mesquinhos e individuais. Agiam sobre as decisões da sua mãe, viúva.
3. Status social elevado – burguês com vida burguesa.
Consequências:
1. Narrador-personagem com perfil controlador, com vontade infanto-juvenil de
manipular tudo e todos: “O leitor deve ler o que está escrito, [...] conceitos
que se devem incutir na alma do leitor à força de repetição.” (MACHADO DE
ASSIS, p. 23) [em D. casmurro]
2. Impressões e sensações estimulam idéias, e, nestas, a imaginação (DAVID
HUME, 1748). A narração de memória do narrador-personagem padece de
plausibilidade e clareza.
Tema (a depender do recorte do estudo): ciúme. Bento reconhece o ciúme
como “um sentimento cruel e desconhecido, o puro ciúme leitor de minhas entranhas”
(MACHADO DE ASSIS, p. 100). Desde a possibilidade de um “peralta” seduzir ou ser
seduzido por Capitolina: “[...] não só é possível, mas certo.” (MACHADO DE ASSIS, p.
100). O ciúme (sentimento/sensação/impressão) se sobrepõe à razão. Ciúme e
imaginação se ajustam na trajetória da personagem: personalidade fluida, contraditória,
insegura: em Ezequiel, além dos olhos, “as feições, a cara, o corpo a pessoa inteira.”
(MACHADO DE ASSIS, p. 180).
O sentimento amoroso: Bento amou o amor por Capitu? Capitu representaria a
intensidade do primeiro amor?
Em Dom Casmurro a voz narrativa deixa lacunas pelo autor implícito1. Isso
propicia dúvidas ao entendimento do relato – um foco narrativo que relativiza, perturba,
põe à prova o enredo e as verdades mostradas pelo próprio narrador.

1
“Não é o autor, e sim uma projeção ficcionalizada dele no texto. Logo, por esse entendimento, o autor não
desaparece por completo da escrita, antes persiste nas entrelinhas, mais ou menos oculto.” SELGA,
Eduardo. O autor implícito. Disponível em: https://entrecontos.com/2016/02/06/o-autor-implicito-artigo-
eduardo-
O tema a ser definido na obra depende do recorte do pesquisador. Neste sentido,
se o interesse for sobre a atuação do narrador, D. Casmurro aponta para três perspectivas:
[…] uma, romanesca, onde acompanhamos a formação e
decomposição de um amor; outra, de ânimo patriarcal e policial, à cata
de prenúncios e evidências do adultério, dado como indubitável; e a
terceira, efetuada a contracorrente, cujo suspeito e logo réu é o próprio
Bento Santiago, na sua ânsia de convencer a si e ao leitor da culpa da
mulher. SCHWARZ, Roberto. “A poesia envenenada de Dom
Casmurro”. In: _______. Duas meninas. São Paulo: Companhia das
Letras, 1997, p. 10.
Já adulto, Bento reside em uma casa construída à imagem e semelhança da onde
viveu a juventude (Rua de Matacavalos), pretendendo “unir as duas pontas da vida”
(MACHADO DE ASSIS, p. 192). O feito é um insucesso. É um ego a peregrinar pelos
cômodos, relembrando, remoendo e mastigando os acontecimentos juvenis e das suas
implicações posteriores, e buscando por motivos, explicações e indícios que justifiquem
suas suspeitas e atos. Os próximos a ele, já falecidos; agora, nada o prende à realidade e
à sociedade. Vive isolado e preso em suas memórias:
O meu fim evidente era atar as duas pontas da vida, e restaurar na
velhice a adolescência. Pois, senhor, não consegui recompor o que foi
nem o que fui. Em tudo, se o rosto é igual, a fisionomia é diferente. Se
só me faltassem os outros, vá; um homem consola-se mais ou menos
das pessoas que perde; mas falto eu mesmo, e esta lacuna é tudo.
(MACHADO DE ASSIS, p. 14)
A lacuna decorre da seletividade dos acontecimentos. Bento revive memórias
arbitrárias, seletivas e modificadas pela perspectiva do presente (sobre o passado). Essas
memórias dizem mais respeito a Bentinho ou Bento Santiago, este, o narrador-
personagem, que recorda as emoções de uma antiga história? A obra Dom Casmurro é
determinada pelos tempo e espaço da escritura (enunciação/presente) e pelos tempo e
espaço da memória (enunciado/passado), num movimento entre o presente e o passado,
em que o narrador ganha fôlego para se reconstruir a cada passo em andamento com o
leitor ideal2. Esse movimento define a impossibilidade de conectar as duas pontas da vida.
Os entes queridos se foram e Bento Santiago é diverso do púbere Bentinho. Corroído
pelos ciúmes, Bentinho transforma-se em Dom Casmurro. A psique deste integra e
contamina a narrativa como narrador-personagem.
A crítica machadiana (do ponto de vista do Autor empírico), na sua escrita, arma-
se contra a elegante classe dominante; imita e refina as representações mais estimadas da
burguesia a respeito dela mesma, com propósito destrutivo. Nesta direção, Dom
Casmurro explora a poesia da reminiscência infantil, da lírica dos quintais, materializada
na poesia do primeiro namoro, temas poéticos reincidentes na tradição literária nacional.

selga/#:~:text=Em%20outras%20palavras%2C%20o%20autor,narrador%2C%20%C3%A9%20denomina
da%20autor%20impl%C3%ADcito. Acesso em: 03 mar. 2021.
2
“O termo reveste-se de uma dupla significação, uma vez que pode implicar, por um lado, o leitor que é
construção do texto, entidade fictícia, definida como ideal pelo autor que o concebe enquanto alguém que
irá concretizar convenientemente a sua obra, e, por outro lado, o leitor que é concebido pela teoria literária,
de acordo com cada método crítico, entendido como entidade capaz de realizar a leitura ideal.” CEIA,
Carlos. E-dicionário de termos literários. Disponível em: https://edtl.fcsh.unl.pt/encyclopedia/leitor-
ideal/#:~:text=O%20leitor%20ideal%20n%C3%A3o%20%C3%A9,texto%20de%20uma%20forma%20di
al%C3%A9ctica. Acesso em: 23 març. 2021.
Machado se apropria dos ideais estéticos da classe dominadora, encarna o seu estilo, para
depois lhe mostrar a sua canalhice.
No penúltimo parágrafo do romance, o personagem-narrador questiona se a
Capitu de Engenho Novo (a mulher casada) já estaria dentro da de Matacavalos (a jovem
enamorada). Esta interrogação se volta contra o sujeito questionador: este é, continua o
mesmo, de antanho ao tempo da escrita das suas memórias? A resposta é clara. Bentinho
não é o Bento:
O resto é saber se a Capitu da praia da Glória já estava dentro da de
Matacavalos, ou se foi mudada naquela por efeito de algum caso
incidente. Jesus, filho de Sirach, se soubesse dos meus primeiros
ciúmes, dir-me-ia, como no seu cap. IX, vers. I: “Não tenhas ciúmes de
tua mulher para que ela não se meta a enganar-te com a malícia que
aprender de ti.” Mas eu creio que não, e tu concordarás comigo; se te
lembras bem da Capitu menina, hás de reconhecer que uma estava
dentro da outra, como a fruta dentro da casca. (MACHADO DE ASSIS,
p. 197)
O narrador se apropria da voz da amada. Capitu, em que pese receber
descrição do narrador como inteligente, empoderada em relação às mulheres do seu
tempo, não é dona da sua voz, pois, este narrador, Casmurro, a define a partir do seu filtro.
Desse modo, não chega ao leitor um retrato verossímil dela.
Bentinho: um fraco de caráter
Manipulado e manipulador. É influenciado pelos mais próximos, aqui, José Dias
e Dona Glória. Atende sempre à mãe, em que pese tentativas de manejá-la a situação a
seu favor. O agregado José Dias é a personagem mais importante na formação do seu
caráter. Dias induz a revelar os seus sentimentos por Capitu. É o agregado o primeiro a
definir os olhos de Capitu, a de olhos de cigana oblíqua e dissimulada. A de olhos de
ressaca. Ainda, ensina ao narrador a observar as segundas intenções nas ações de Pádua,
pai da Capitolina. Por fim, outra ambiguidade do narrador Casmurro: Dias depositou
ideias na cabeça de Bentinho ou Dom Casmurro alojou palavras na boca de José Dias?
Não parece intenção de Machado de Assis dar respostas únicas, deixando para o leitor
resolver as ambiguidades – neste sentido, evoca-se o conceito de obra aberta (1962), de
Umberto Eco (05/01/1932 – 19/02/1916). Na ausência da tradicional imagem forte do pai
burguês, do século XIX, o agregado Dias atua simultaneamente junto à Dona Glória na
formação do Bentinho, objeto das tramas interesseiras da casa.
5. Críticas à sociedade burguesa do s. XIX.
A relação entre o casal desafia a hierarquia social – para um lado uma
conveniência; para outra, um perigo. A dupla de jovens amantes pertencem a lados
opostos na sociedade. Insistem em transgredir ou ignorar o muro (social) que separa suas
casas. A família de Bentinho é a típica aristocrata; a da Capitu, da classe assalariada.
Críticas... A estratificação social (Bentinho/Capitu) e o parasitismo, representado
pela família Pádua, com interesses do arranjo de um casamento tem em mira ascensão
social. Neste contexto, as intenções de ascender do agregado, é outro exemplo. Ainda, é
de nota a crítica à formação educacional das classes privilegiadas da época, cujo destino
dos jovens homens seria o seminário, a carreira advocatícia ou a medicina.
Indícios de homossexualidade
Desde o seminário, Escobar e Bentinho sustentam uma relação afetiva, expansiva
e não conflitiva, de amizade, mais do que prevista para a época, em decorrência da
moralidade patriarcal e heteronormativa. Não há indícios de concretude, mas o trato entre
ambos aponta para um possível e latente caso de homossexualidade entre eles: “Os padres
gostavam de mim, os rapazes também, e Escobar mais que os rapazes e os padres.” (p.
103). Para Bentinho, antes de tudo e todos, Capitu e Escobar. Certas vezes, Escobar
apresenta-se, na vida do Bentinho, como a figura masculina da mulher por quem Bentinho
é apaixonado.
6. O ressentimento de Bento Santiago, narrador de Dom Casmurro
Ciúme e ressentimento (estudo com apoio em NIETZSCHE)
Bento Santiago: a ideia fixa do ciúme a redundar no ressentimento
Para adentrar no mundo psicológico, moral, ético, de Bento Casmurro, recorre-se
à obra Genealogia da moral (1887), de Friedrich Nietzsche (15/10/1844 – 25/08/1900).
O filósofo entende que o sistema nervoso e intelectual fica hipnotizado por "ideias fixas",
inabaláveis, onipresentes e inesquecíveis. Assim, a pessoa absorvida por uma ideia fixa
permanece presa dos seus próprios afetos e dos seus pensamentos arbitrários – decide o
certo e o errado. (NIETZSCHE, Genealogia da moral, p. 50-52).
A desconfiança é a mola mestra do enovelado psiquismo do narrador Bento
Santiago (CALDWELL, Helen. O Otelo brasileiro de Machado de Assis: um estudo de
Dom Casmurro. (Tradução de Fábio Fonseca de Melo). Cotia, SP: Ateliê Editorial,
2008.), isto é, o ciúme. O senso perturbado (do real) do sr. Casmurro Santiago pelo ciúme
e pela angústia dominadora de julgar e condenar é gerado pela vontade do ressentimento.
A falta grave da traição, no mundo burguês e patriarcal, envolve necessariamente a
revisão da culpa e a aplicação do castigo. Mas essa consequência vai além de um estudo
psicológico do adultério – antes de tudo, deve-se enfocar o ciúme e suas derivações
(SANTIAGO, Silviano. Retórica da verossimilhança. In: ASSIS, Machado de. Obra
completa, em quatro volumes: volume 1. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008, p. 125-
138.). Enfim, o escopo do narrador é traçar linhas da condenação da Capitu.
O crítico Silviano Santiago ajuíza acerca do problema do ciúme no espectro
narrativo machadiano. Ele observa dois andamentos. Por um lado, a concepção que as
personagens acusam sobre o amor e o casamento, e, por outro, os papéis sociais que
homens e mulheres representam para chegar ao matrimônio:
É, pois, o universo do amor machadiano asséptico, formal, são, rígido.
É ainda masculina e burguesa a sua concepção de casamento. Qualquer
invasão estranha nesta propriedade – amante – acarreta um curto-
circuito emocional que invalida os dois primeiros termos.
(SANTIAGO, Silviano, Retórica da verossimilhança, p. 126.)
Do mesmo modo para Gledson, em que pese a procura (inócua) pela "verdade"
acerca do adultério, se for encontrada, o romance é um estudo sobre o ciúme de Bento e
as condições que o produzem (crítica ao casamento e os meios produtivos do casamento,
na sociedade burguesa).
Desse modo, com o intuito de se casar com Bentinho, Capitu manipula-o e
domina-o, em uma experiência em que se invertem os papéis tradicionais do homem e da
mulher. Esse reconhecimento das tramas da esposa provocou ressentimentos no marido:
Do ponto de vista psicológico, Bentinho é apenas um menino mimado,
habituado a que lhe façam as vontades, e possui a incapacidade da
criança mimada para compreender que os outros têm uma existência
independente da sua, de modo que quando eles afirmam sua
independência, como é natural na ordem das coisas, essa afirmação lhe
parece traição. (GLEDSON, John. Machado de Assis: impostura e
realismo. Tradução de Fernando Py. São Paulo: Companhia das Letras,
1991, p. 12).
O ciúme doentio de Bento decorre da sua própria inexperiência, vítima da
exagerada proteção materna, que impede de deixá-lo crescer com autonomia. O ciúme,
ideia fixa, é a defesa em face do pavor do incontrolável narrador, homem emocionalmente
abalado crente de traição da mulher amada e do melhor amigo. A sensação do ciúme de
Bentinho emerge pela primeira vez aos seus quinze anos, antes da aparição de Escobar na
narrativa. A descrição desse sentimento acusa a fortaleza excessiva do arrebatamento,
traduzida em pensamentos macabros. Mas o destino (Capitu?) o conduz a esperar outros
quinze anos para gozar a sua vingança, sem dispersão sanguínea, entretanto, com o
desterro e o abandono da família.
A primeira cena de ciúme é narrada no capítulo intitulado "Uma ponta de Iago",
evocando a trama de traição, ciúme e luta pelo poder, da peça dramática Otelo (1603), de
Shakespeare (1564-1616). O capítulo encena uma visita de José Dias a Bentinho, quando
estava no seminário. O agregado noticia novas sobre Capitu ao jovem:
Estou que empalideci; pelo menos, senti correr um frio pelo corpo
todo. A notícia de que ela vivia alegre, quando eu chorava todas
as noites, produziu-me aquele efeito, acompanhado de um bater
de coração, tão violento, que ainda agora cuido ouvi-lo. [...]
Outra ideia, não, – um sentimento cruel e desconhecido, o puro ciúme,
leitor das minhas entranhas. Tal foi o que me mordeu, ao repetir comigo
as palavras de José Dias: "Algum peralta da vizinhança". Em verdade,
nunca pensara
– e tão senhor me sentia dela que era como se olhassem para mim, um
simples dever de admiração e de inveja. Separados um do outro pelo
espaço e pelo destino, o mal aparecia-me agora, não só possível, mas
certo. [...] compreenderás que eu, depois de estremecer, tivesse um
ímpeto de atirar-me pelo portão fora, descer o resto da ladeira, correr,
chegar à casa do Pádua, agarrar Capitu e intimar-lhe que me confessasse
quantos, quantos, quantos já lhe dera o peralta da vizinhança. Não fiz
nada. Os mesmos sonhos que ora conto não tiveram, naqueles três ou
quatro minutos, esta lógica de movimentos e pensamentos. Eram soltos,
emendados e mal emendados, com o desenho truncado e torto, uma
confusão, um turbilhão, que me cegava e ensurdecia. (MACHADO DE
ASSIS, p. 109-100)
A analogia com a peça shakespeariana intima o disseminador da discórdia, no
romance, por José Dias. Assim como o oficial Iago plantou a semente do ciúme em Otelo,
José Dias o fez na mente de Bentinho. Na história machadiana, o ciúme materializa a
certeza do adultério e a morte simbólica da família tradicional. Ensandecido pela história
que relata, pleno de lacunas ou episódios distorcidos, aperfeiçoou o ressentimento e disso
tudo apareceu o redator de Dom Casmurro. Suas memórias são o relato de uma ideia
fixa inolvidável (inesquecida). Então, se não as esquece, necessita contá-las, escrevê-las:
"Grava-se algo a fogo, para que fique na memória: apenas o que não cessa de causar
dor fica na memória" (NIETZSCHE, Genealogia da moral, p. 50). Portanto, também, as
lembranças do Bento Santiago constituem uma memória da dor. Do prazer da dor.
A sempre obsessão fixa por Capitu. Bento projeta internamente atos e
pensamentos, às vezes, sutil e dissimulado, às vezes agressivo, em face às autoridades
supremas com as quais digladia (Deus e Dona Glória) ao ponto de, sob forte
constrangimento, resultado do seu senso de justiça e falha de amadurecimento emocional
e psicológico, explodir, volvendo-se contra Capitu e por extensão a Escobar. Embora a
recordação (lembrar esta palavra no sentido do estilo lírico: re-cordar: lembrar de novo
no coração (do latim: cor/cordis)) seja dolorosa, o romance Dom Casmurro proporciona
ao seu narrador-personagem a satisfação de fazer sofrer, o prazer de injuriar a
amada/odiada Capitu e o finado amigo Escobar. Ele define essa experiência por “Prazer
das dores velhas” (título do capítulo LXXVII):
Contando aquela crise do meu amor adolescente, sinto uma coisa que
não sei se explico bem, e é que as dores daquela quadra, a tal ponto se
espiritualizaram com o tempo, que chegam a diluir-se no prazer. Não é
claro isto, mas nem tudo é claro na vida ou nos livros. A verdade é que
sinto um gosto particular em referir tal aborrecimento, quando é certo
que ele me lembra outros que não quisera lembrar por nada.
(MACHADO DE ASSIS p. 117)
Dom Casmurro: um romance de amor? A história enfatiza a falta da
espontaneidade do amor romântico na vida das personagens. A tessitura do amor é frágil,
sob a vigilância, a opinião e a vontade alheias, empurrando-o ao ciúme e ao ressentimento.
Essa consideração incorre no sentido de descobrir os lastros psicológicos da passividade
insuperável do Bento Santiago Casmurro:
Machado esboça o complicado labirinto do ressentimento, que desvia
as paixões ingênuas para alvos secundários e, assim, as desperdiça.
Inação, dúvida, timidez – eis os "traidores" que nos fazem perder "os
bens que poderíamos ganhar", substituindo-lhes os sentimentos
reativos, "formações secundárias" segundo Freud, que, aqui, tomam as
formas convencionais do enfado, da misantropia, do pessimismo
vulgar. No ciúme deslocado – tanto no tempo como no espaço –
canalizam-se múltiplas cobiças e invejas, impulsos e medos, que a
timidez impediu de formular. (ROSENFIELD, Kathrin Holzermayr. A
ironia de Machado em Dom Casmurro, p. 75.).
Segundo Nietzsche, o ressentido procura, sem se compreender, uma causa dominadora
fora de si para o seu sofrimento, para descarregar contra si mesmo o seu ressentimento e
aliviar a dor através de uma intensa reação que julga e diminui o sentido da vida. Em
outras palavras, Bento Casmurro amesquinha a sua vida e a dos amados e amigos.
O Dom Casmurro narrador produz um veneno que se inocula, que o traga por
dentro. Impotente ao feito, é um apoquentado e amargurado espectador das suas
experiências:
[...] o ressentimento pode ser entendido como uma indigestão psíquica,
um tipo de envenenamento produzido quando um indivíduo se mostra
incapaz de descarregar o rancor oriundo de uma adversidade ou
agressão. (PASCHOAL, O ressentimento como um fenômeno social, p.
189.) [PASCHOAL, Antônio Edmilson. O ressentimento como um
fenômeno social. In: BARRECHENEA, Miguel Angel de et al. (Org.).
Nietzsche e as ciências. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2001, p. 189-201.]
O recorte do ressentimento3 em Dom Casmurro, a partir da citação seguinte: "O
sentimento de justiça é um ressentimento, ao qual copertence a vingança". (NIETZSCHE,
Nachgelassene Fragmente 1875-1879, p. 176), relaciona-se ao pensamento do filósofo
Nietzsche. Desse modo, assume a concepção de um sentimento reativo predominado por

3
Palavra de origem francesa, “ressentimento” aparece pela primeira vez nos textos de Nietzsche em um
comentário de O valor da vida (Fragmentos póstumos, inverno de 1874; verão de 1875), de Karl Eugen
Dühring (12/01/1833 – 21/07/1921).
uma sede de vingança, de que deriva a vontade de se fazer justiça. Bento Santiago, de
fato, faz justiça: desterra a família e a abandona. Sente-se aliviado, distante dos culpados
e seus frutos.
A crueldade de Bento – uma psique egocêntrica sem empatia – mente
patológica. Alguns exemplos:
1. Relato de um impulso relacionado a um acontecimento trágico. Uma dor
de cabeça projeta-lhe sentimento fúnebre. Aqui, cogita que o trem da Central
poderia estourar longe dos seus ouvidos e "interrompesse a linha por muitas
horas, ainda que morresse alguém". (MACHADO DE ASSIS, p. 109) Esse
ultraje, escolha consciente da violência, recusa a racionalidade; manifesta-se
uma crise ética e se consome numa concepção niilista (a vida não tem sentido,
nem utilidade). O narrador-personagem Bento Santiago acredita ser capaz de
arbitrar e decidir sobre tudo; é destituído de baliza ética capaz de orientar seus
atos.
2. Falta de empatia – traços de psicopatia. Depois de um encontro com
Capitu, no caminho de volta para sua casa, Bentinho depara-se com o pai do
jovem Manduca, que havia falecido pouco antes, proveniente de hanseníase.
Ele conhera o rapaz em uma loja do pai do jovem, com qual trocara ideias
políticas (“Não éramos amigos, nem nos conhecíamos de muito. Intimidade,
que intimidade podia haver entre a doença dele e a minha saúde? Tivemos
relações breves e distantes.” (MACHADO DE ASSIS, p. 130). Aos prantos o
homem conduz o protagonista para dentro da sua loja, a fim de lhe mostrar o
filho morto:
Custa-me dizer isto, mas [...] Ver um defunto ao voltar de uma
namorada... Há coisas que se não ajustam nem combinam. A simples
notícia era já uma turvação grande. [...]. Não culpo ao homem; para ele,
a coisa mais importante do momento era o filho. Mas também não me
culpem a mim; para mim, a coisa mais importante era Capitu. O mal foi
que os dois casos se conjugassem na mesma tarde, e que a morte de um
viesse meter o nariz na vida do outro. Eis o mal todo. Se eu passasse
antes ou depois, ou se o Manduca esperasse algumas horas para morrer,
nenhuma nota aborrecida viria interromper as melodias da minha alma.
Por que morrer exatamente há meia hora? Toda hora é apropriada ao
óbito; morre-se muito bem às seis ou sete horas da tarde. (MACHADO
DE ASSIS, p. 126)
O narrador Bentinho exprime um discurso similar ao Humanitismo4, cuja doutrina
sugere uma decomposição ética do trato social, ligando-se aos temas da coisificação (o
homem objeto do homem), do egoísmo e do sadismo. Para Bentinho ou Bento Santiago,
assim como para Quincas Borba: “Ao vencedor, as batatas”, ou, dito de outro modo, ao
vencido (Manduca), o desprezo, a repulsa; ao vencedor (Bentinho), a namorada, a vida.
3. No capítulo CXXXIV, Bento Santiago adquire um veneno, pois planeja dar
cabo da sua vida; no CXXXVI, dilui a substância no café que iria tragar, mas,

4
Em Memórias póstumas de Brás Cubas (1881), Machado de Assis apresenta a tese do filósofo Joaquim
Borba dos Santos, nomeada Humanitismo. Assim como a teoria da seleção natural, lançada por Charles
Darwin entre 1842 e 1844, está baseado na sobrevivência dos mais aptos e enxerga a guerra como forma
de seleção da espécie. Humanitas é o princípio único de tudo o que existe. Sua teoria é mais explorada em
Quincas Borba (1891). Para explicá-la, a personagem de Quincas Borba criou a frase: “Ao vencedor as
batatas!”
absorto em pensamentos, vacila; no capítulo CXXXXVII, alvoroçado pela
sede de vingança, sob impulso, oferece a bebida ao filho, julgado por si
bastardo:
Se eu não olhasse para Ezequiel, é provável que não estivesse aqui
escrevendo este livro, porque o meu primeiro ímpeto foi correr ao café
e bebê-lo. Cheguei a pegar na xícara, mas o pequeno beijava-me a mão,
como de costume, e a vista dele, como o gesto, deu-me outro impulso
que me custa dizer aqui; mas vá lá, diga-se tudo. Chamem-me embora
assassino; não serei eu que os desdiga ou contradiga; o meu segundo
impulso foi criminoso. Inclinei-me e perguntei a Ezequiel se já tomara
café.
– Já, papai; vou à missa com mamãe.
– Toma outra xícara, meia xícara só.
– E papai?
– Eu mando vir mais; anda, bebe!
Ezequiel abriu a boca. Cheguei-lhe a xícara, tão trêmulo que quase a
entornei, mas disposto a fazê-la cair pela goela abaixo, caso o sabor lhe
repugnasse, ou a temperatura, porque o café estava frio... Mas não sei
que senti que me fez recuar. Pus a xícara em cima da mesa, e dei por
mim a beijar doidamente a cabeça do menino.
– Papai! papai! – exclamava Ezequiel.
– Não, não, eu não sou teu pai! (MACHADO DE ASSIS, p., 185-186)
O drama acima mostra um conflito interior em D. Casmurro. Oscila entre as ações
realizadas e talvez algumas proposições morais por si idealizadas. Seu lado “bento”
intervém sobre a situação, reprimindo o seu instinto de vingança. Anos mais tarde,
Santiago defronta-se outra vez com o lado funesto da sua consciência, e desprende-se do
seu sentimento de culpa. Almeja mais uma vez a morte de Ezequiel, já adulto, que, meses
depois, falece, de febre tifoide – não por lepra, como havia desejado. No dia em que
recebe a notícia, farta-se em um bom jantar e vai ao teatro:
Não houve lepra, mas há febres por todas essas terras humanas, sejam
velhas ou novas. Onze meses depois, Ezequiel morreu de uma febre
tifoide, e foi enterrado nas imediações de Jerusalém, onde os dois
amigos da universidade lhe levantaram um túmulo com esta inscrição,
tirada do profeta Ezequiel, em grego: "Tu eras perfeito nos teus
caminhos". Mandaram-me ambos os textos, grego e latino, o desenho
da sepultura, a conta das despesas e o resto do dinheiro que ele levava;
pagaria o triplo para não tornar a vê-lo. (MACHADO DE ASSIS, p.
195)
Este excerto manifesta o amoralismo e o despotismo do garoto mimado convertido
em casmurro (isto é, turrão, caprichoso, melancólico, retraído, etc.). O narrador-
personagem (Bentinho ou Bento Santiago?) expõe que a moral não serve de amparo para
nada e não leva a nada. Seu comportamento sugere crueldade e niilismo. O ressentido
(Casmurro) precisa de outro para existir (Capitu, Ezequiel, Escobar, Manduca, D. Glória,
Deus). É o culpado pelo próprio seu sofrimento. Nietzsche descreve o modo de raciocinar
comum dos ressentidos: eles não compreendem a causa do seu mal-estar. Do mesmo
modo, este é o contexto insalubre do velho Bento Santiago:
Os sofredores são todos horrivelmente dispostos e inventivos, em
matérias de pretextos para seus afetos dolorosos; eles fruem a própria
desconfiança, a cisma com baixezas e aparentes prejuízos, eles
revolvem as vísceras de seu passado e seu presente, atrás de histórias
escuras e questionáveis, em que possam regalar-se em uma suspeita
torturante, e intoxicar-se do próprio veneno de maldade – eles rasgam
as mais antigas feridas, eles sangram de cicatrizes há muito curadas,
eles transformam em malfeitores o amigo, a mulher, o filho e quem
mais lhe for próximo. "Eu sofro: disso alguém deve ser culpado" –
assim pensa toda ovelha doente. (NIETZSCHE, Genealogia da moral,
p. 129.)
Em um fragmento póstumo, de 1888, Nietzsche caracteriza o ressentimento precisamente
como "raiva, desejo de vingança – o mais prejudicial de todos os estados possíveis para
o doente". (NIETZSCHE, Nachgelassene Fragmente 1887-1889, p. 618). Santiago, o
Casmurro, é doentio; sente raiva e vinga-se dos seus mais amados, conforme seu caráter
tóxico.
O calculista Bento Santiago. A sua vingança foi sorvida em prato frio. Espera o
momento oportuno para agir: a morte de Escobar. A este, morto, rejeita qualquer laço de
amizade. Cego de ciúme, nega ao antigo amigo o benefício da dúvida. Afogado pelo
ressentimento, prepara a destruição de todos ao seu redor, incluindo-se no seu plano final:
Insatisfeito com o julgamento sem direito a defesa e a punição sumária,
Bento escreve suas memórias sob o domínio das forças reativas, para
defender sua tese ao grande público. Depois de persuadir a si mesmo,
transformando o possível em certeza e o verossímil em verdade, ele
quer advogar em causa própria e persuadir o leitor. Por isso, ele é um
autor que escreve e simultaneamente interpreta o texto para os leitores.
(Vítor Cei, 2015, p. 10) [Machado Assis Linha vol.8 no.15 São
Paulo Jan./June 2015]
Embargado pelos sentimentos ruins – ciúme, raiva, punição –, Bento não consegue
refletir sobre uma contrapartida a essas emoções, como o perdão, remissão do insulto ou,
o esquecimento, capaz de liberar a má consciência do ressentimento, "Pois sadio é quem
esquece". (NIETZSCHE, A Gaia Ciência, p. 19).
Por ser incapaz do feito da redenção e do esquecimento:
[...] o aristocrata escritor revela sua própria fraqueza.
Apresentando-se como um senhor respeitável, honesto,
intelectual e vítima de traição, ironicamente ele se mostra um
sujeito mimado, vaidoso, dissimulado, ciumento e ressentido.
Diante da impossibilidade de recuperar o tempo perdido, a
nostalgia desse narrador de si mescla o passado com o presente e
desloca qualquer sentido de futuro. Ao revolver o passado, Bento
Santiago expressa falta de plenitude, sentimento de abandono e
um espírito de vingança contra o tempo. (Vitor Cei, 2015, p. 10).
Todas estas conclusões são relevantes. Contudo, deve-se considerar que mais
relevante do que encontrar culpado, ou se houve ou não traição, ou se Ezequiel era ou não
rebento de Bento Santiago, é avaliar quão as interferências do narrador determinam a
leitura da obra. Assim, o foco narrativo (visão do narrador) é essencial para compreender
Dom Casmurro. Refletir sobre o papel do narrador é importante para depreender com
profundidade o enredo.
O narrador, ao aproximar-se do leitor, objetiva transmitir uma boa impressão
sobre si e amenizar o peso da sua violência, quer no emocional, quer nas atitudes somadas
no curso da história. Bento Santiago esmera-se em estabelecer vínculos com o leitor, para
que este seja o seu cúmplice.
A retórica do narrador objetiva concluir que a sua verdade é verossímil (não
necessariamente verdadeira) a partir de fantasias que suas memórias não podem
exatamente comprovar, mas que fazem sentido para a realidade corrompida do velho
rancoroso, que procura uma forma de se justificar.
As astúcias do narrador desejam validar o seu discurso e convencer o leitor da
veracidade da sua história. Ao conquistar o leitor, preenche as lacunas do texto. O escopo
desse narrador é a concordância do leitor para justificar as suas atitudes. Quer assegurar
a verdade da sua narração, de modo que o leitor possa confiar nas informações por ele
expostas, como as inquietações confidenciadas ao leitor.
O desenvolvimento da narrativa implica em incriminar Capitu em um tribunal.
Daí a exigência da cumplicidade do leitor. Para a inocência de Bento Santiago, atestada,
e a culpabilidade de Capitu, punida, é necessária a cumplicidade do leitor. O leitor atua
como um espelho que reflete de volta para o narrador uma imagem deformada de si
mesmo.
Tema: o ciúme. O principal mote da obra não é a traição. Para além disso, deve-
se atentar para uma narrativa plena de sutilezas e recursos construídos pelo narrador Bento
Santiago, impelido sempre pelo ciúme, para validação do seu discurso e convencimento
do leitor de que a ruína de sua vida foi culpa da primeira amada, e não da sua
personalidade e histeria.
laurorobertodocarmofigueira
fimfimfimfimfimfimfimfimfimfimfimfimfimfimfimfimfimfimfimfimfimfimfimfim
O que dizem os críticos e historiadores sobre CAPITU:
https://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs28039910.htm

São Paulo, Domingo, 28 de Março de 1999

CAPITU
Conheça, a seguir, uma amostra da polêmica história da recepção crítica de "Dom
Casmurro", sobretudo em relação ao ponto mais discutido do livro, a questão do adultério.
José Veríssimo - "("Dom Casmurro" trata de) um homem inteligente, sem dúvida,
mas simples, que desde rapazinho se deixa iludir pela moça que ainda menina amara, que
o enfeitiçara com a sua faceirice calculada, com a sua profunda ciência congênita de
dissimulação, a quem ele se dera com todo ardor compatível com o seu temperamento
pacato." ("História da Literatura Brasileira")
Lúcia-Miguel Pereira - "Capitu, se traiu o marido, foi culpada ou obedeceu a
impulsos e hereditariedades ingovernáveis? É a pergunta que resume o livro. (...) Há a
idéia central de saber se Capitu foi uma hipócrita ou uma vítima de impulsos instintivos.
Em outras palavras, se pode ser responsabilizada." ("Machado de Assis")
Augusto Meyer - "Capitu é o melhor exemplo daquilo que Bentinho afirmava, a
propósito de si mesmo: "Chega a fazer suspeitar que a mentira é, muita vez, tão
involuntária como a transpiração". Capitu mente como transpira, por necessidade
orgânica." ("Capitu", em "Textos Críticos")
Antônio Cândido - "Dentro do universo machadeano, não importa muito que a
convicção de Bento seja falsa ou verdadeira, porque a consequência é exatamente a
mesma nos dois casos: imaginária ou real, ela destrói sua casa e a sua vida." ("Esquema
de Machado de Assis", em "Vários Escritos")
Silviano Santiago - "Os críticos estavam interessados em buscar a verdade sobre
Capitu, ou a impossibilidade de se ter a verdade sobre Capitu, quando a única verdade a
ser buscada é a de Dom Casmurro." ("Retórica da Verossimilhança", em "Uma Literatura
nos Trópicos")
Antônio Callado - "Respeitemos um dos dogmas da nossa literatura, que é o da
maculada conceição do filho de Capitu com Escobar. Cultuemos a sua infidelidade e não
afastemos de nós a negra inveja que sentimos de Escobar." (Na Folha, em 12/10/1994)
Dalton Trevisan - "Até você, cara -o enigma de Capitu? Essa, não: Capitu
inocente? Começa que enigma não há: o livro, de 1900, foi publicado em vida do autor -
e até sua morte, oito anos depois, um único leitor ou crítico negou o adultério?" (Na Folha,
em 23/5/92)
Otto Lara Resende - "Quem fica tiririca, e com toda razão, com essa história mal
contada, e tão mal contada que desmente o próprio Machado de Assis, é o Dalton Trevisan
(...) Dar o Bentinho como o "nosso Otelo" é pura fantasia. Bestialógico mesmo." (Na
Folha, em 8/1/1992)
John Gledson - "É característico do uso que Machado faz do narrador em primeira
pessoa, seja ele Brás Cubas, o Conselheiro Aires ou o padre de "Casa Velha", que
Machado está, de fato, bem distante do ponto de vista deles (...) -foram intencionalmente
concebidos para agradar o leitor, aliciá-lo no sentido de aceitar o ponto de vista do
narrador. (...) Concordamos com eles porque compartilhamos suas atitudes -é por isso
que a (possível) inocência de Capitu levou tanto tempo para ser descoberta, e, talvez,
também por isso, foi descoberta por uma mulher." ("Machado de Assis - Impostura e
Realismo")
Roberto Schwarz - "("Dom Casmurro') solicita três leituras sucessivas: uma,
romanesca, onde acompanhamos a formação e decomposição de um amor; outra, de
ânimo patriarcal e policial, à cata de prenúncios e evidências do adultério, dado como
indubitável; e a terceira, efetuada a contracorrente, cujo suspeito e logo réu é o próprio
Bento Santiago, na sua ânsia de convencer a si e ao leitor da culpa da mulher. Como se
vê, uma organização narrativa intrincada, mas essencialmente clara, que deveria
transformar o acusador em acusado. Se a viravolta crítica não ocorre ao leitor, será porque
este se deixa seduzir pelo prestígio poético e social da figura que está com a palavra." ("A
Poesia Envenenada de Dom Casmurro", em "Duas Meninas").
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