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Estudo do Dom Casmurro, 1899

Folha de rosto da primeira edição de Dom


Casmurro

Machado de Assis, em 1864, aos 25


anos.
mas tão depressa
buscava as pupilas, a
onda que saía delas
vinha crescendo, cava e
escura, ameaçando
envolver-me, puxar-me
e tragar-me.”
(MACHADO DE ASSIS)

“Olhos de ressaca? Vá, de ressaca. É o que me dá ideia daquela feição nova.


Traziam não sei que fluido misterioso e enérgico, uma força que arrastava para
dentro, como a vaga que se retira da praia, nos dias de ressaca. Para não ser
arrastado, agarrei-me às outras partes vizinhas, às orelhas, aos braços, aos cabelos
espalhados pelos ombros,
Corroído pelos ciúmes, Bentinho transforma-se em Dom Casmurro!

Edvard Munch, 1913


APONTAMENTOS SOBRES DOM CASMURRO (1889), Machado de
Assis
Dom Casmurro – romance cronológico e psicológico, com visão
autodiegética (narrador autodiegético)
PARA COMPREENDER MACHADO DE ASSIS
1. Machado de Assis: vértice da filosofia moral de Schopenhauer e Nietzsche
Vontade e querer/desejo – os impulsos do ser humano
A natureza humana egoísta é a manifestação da vontade (parte primitiva no
homem). O ser humano possui o livre arbítrio, a liberdade, mas a sua escolha
relaciona-se aos motivos originados em sentimentos: a racionalidade se exercita
dentro dos direcionamentos da vontade e do querer. A razão é um instrumento da
vontade de conhecer.
A complexidade moral do indivíduo: composto de partes diferentes: virtudes,
fraquezas, defeitos e sentimentos contrários levam a ações egoístas ou maldosas,
dependendo dos interesses em jogo.
A ação: age sob impulso egocêntrico (vontade) determinante, conforme interesse
de ajustar-se socialmente. O ser humano é contraditório, incoerente, sustentando-se
de aparências conforme seus interesses.
Machado de Assis: descreve maneiras de agir dos seres humanos no campo da
moralidade, abarcando variedades de tipos morais de personagens – a complexidade
do comportamento humano.
A representação machadiana: o pessimismo e o ceticismo
– o ser humano não está disposto a aprender ou não aprende
por fatalismo social ou mesmo genético, preso a um
irracionalismo. Vive uma ilusão, sempre a do querer, a da
vontade. Assim, cruzam-se os pensamentos de Schopenhauer e
Nietzsche, em Machado.
Por dentro de Dom Casmurro
TEMA
Do ponto de vista do Autor empírico: arma-se contra a elegante classe
dominante; imita e refina as representações mais estimadas da burguesia a respeito
dela mesma, com propósito destrutivo. Nesta direção, Dom Casmurro explora a
poesia da reminiscência infantil, da lírica dos quintais, materializada na poesia do
primeiro namoro, temas poéticos reincidentes na tradição literária nacional.
Machado se apropria dos ideais estéticos da classe dominadora, encarna o seu
estilo, para depois lhe mostrar a sua canalhice.
Tema (a depender do recorte do estudo): CIÚME. Bento Santiago reconhece
o ciúme como “um sentimento cruel e desconhecido, o puro ciúme leitor de minhas
entranhas” (M. A.).
Tema: o ciúme. O principal mote da obra não é a traição. Para além disso, deve-
se atentar para uma narrativa plena de sutilezas e recursos construídos pelo narrador
Bento Santiago, impelido sempre pelo ciúme, para validação do seu discurso e
convencimento do leitor de que a ruína de sua vida foi culpa da primeira amada, e
não da sua personalidade e histeria.

Dúvida. Edvard Munch,1895.


Primeiro sintoma do ciúme: a possibilidade de um “peralta” seduzir ou ser
seduzido pela jovem Capitolina: “[...] não só é possível, mas certo.” (M. A.). Ciúme
e imaginação se ajustam na personalidade fluida, contraditória, insegura: em
Ezequiel, além dos olhos, “as feições, a cara, o corpo a pessoa inteira.” (M. A.).
Tema, de outro modo, ainda sobre a atuação do narrador:
a. Da formação e decomposição de um amor;
b. Da pespectiva patriarcal e policial, à procura de prenúncios e evidências do
adultério,
c. Do próprio narrador: o suspeito e logo réu é o próprio Bento Santiago, na sua
ânsia de convencer a si e ao leitor da culpa da mulher. ( SCHWARZ, Roberto. “A
poesia envenenada de Dom Casmurro”).
Críticas à sociedade burguesa do s. XIX.
a. A relação entre o casal desafia a hierarquia social. A estratificação social
(Bentinho/Capitu) e o parasitismo, representado pela família Pádua, com
interesses do arranjo de um casamento, tendo em mira ascensão social.
b. Indícios de homossexualidade. Desde o seminário, Escobar e Bentinho sustentam
uma relação afetiva, expansiva, de amizade, mais do que prevista para a época,
em decorrência da moralidade patriarcal e heteronormativa. Não há indícios de
concretude, mas um possível ou latente ‘caso’ entre eles: “Os padres gostavam de
mim, os rapazes também, e Escobar mais que os rapazes e os padres.” (M.A).
Certas vezes, Escobar apresenta-se, na vida do Bentinho, como a figura
masculina da mulher por quem Bentinho é apaixonado.
REPRESENTAÇÕES NO ROMANCE
1. O pessimismo em Arthur Schopenhauer (22/02/1788 – 21/07/1860)) e o
ceticismo em Nietzsche (15/10/1844 – 25/08/1900)
O amor em Schopenhauer: a metafísica da vontade explica o sentimento
amoroso como um engenhoso artifício da natureza para pôr em prática o objetivo da
vida humana: a preservação da existência. (“Metafísica do Amor”, vol. II, capítulo
44). Nessa medida, todo amor apaixonado é ilusório, quanto maior a paixão, maior é
ainda a ilusão. A ilusão do amor é um estratagema biológico, por meio do qual a
natureza atinge seus fins.
Os amantes observam que a motivação dos seus sacrifícios está além das suas
consciências e contemplam o sepultamento da felicidade, experimentando o(a)
companheiro(a) odioso: completo o ciclo para a continuidade da espécie, o vazio, o
pessismismo, o ceticismo, o reconhecimento de que se viveu uma ilusão:
Bentiho/Capitu/Ezequiel: infelizes.
Os seres humanos estão condenados à infelicidade
porque são títeres de uma força inconsciente e
instintiva e porque a estrutura do afeto impede a
aquisição da felicidade.
D. Casmurro: tal como
Schopenhauer, Machado pôs
em cena o grande drama da
existência humana.
Sistematizou no
Autor/Narrador de si mesmo
sua visão pessimista da vida.

Melancolia. Edvard
Munch, 1893.
1.1 Ceticismo, pessimismo e ironia
O Realismo na obra. Foco na restrita elite brasileira: modos; conflitos;
perspectivas profissionais, morais, éticas e educacionais. Composta por homens
superficiais, medíocres, de baixa inteligência; e as mulheres vaidosas, ardilosas,
sedutoras, com objetivos frívolos. Estudo sob a perspectiva do ceticismo
(NIETZSCHE), do pessimismo (Schopenhauer) e da ironia. Descrença em dogmas:
Pátria, ideologia, religião, ciência, filosofia.
1.2 Ceticismo e pessimismo machadianos: malabarismos multissêmicos
Obs.: O ceticismo machadinao é relativo condicionado pela representação literária.
instaura a desconfiança e inscreve a ambiguidade, com multivalências de verdades,
em atmosfera de ironia: suas heroínas: Capitolina (Dom Casmurro), Virgília
(Memórias Póstumas de Brás Cubas), Sofia (Quincas Borba), Flora (Esaú e
Jacó), Conceição (“Missa do Galo”). O fato verossímil aconteceu ou não? Ironia e
ambiguidade desaguam em ceticismo.
1.3 O pessimismo machadiano:
a) é revelado na intriga ficcional a partir das relações da burguesia com as
intituiçoes: Igreja, Estado, casamento, família;
b) nas manifestações descritas de comportamentos e sentimentos humanos,
observados em personagens (egoísmo, hipocrisia, adultério, traição, mentira,
vaidade, interesses escusos, loucura/razão, desesperança, sentimento autodestrutivo,
etc.).
Conclusão: o escárnio e a ironia cedem vez à amargura e ao sofrimento, em que
o drama pessoal de Bentinho e Capitu é elevado ao fado trágico da inevitável
destruição matrimonial. Traição ou alucinação constituem matizes da crítica
pessimista do autor sobre a família e o casamento.
2. O narrador-protagonista (Bento) Dom (Santiago) Casmurro
A Consciência e a imaginação: linha obscura na psique do Bento Casmurro
Bento Santiago: sob máscaras: consciência, imaginação e alucinação se
conjugam e se conflitam, na memória – lacunas, informações incompletas, omitidas,
deturpadas ou inventadas, preenchidas por recordações emocionais.
A construção conflituosa do narrador-personagem autodiegético:
1. Ambiência doméstica: ausência do pai; luto contínuo da mãe; o amor entre mãe e
filho. Vítima da exagerada proteção materna, impede-o de crescer com
autonomia. Limitação do entendimento sobre o sentimento amoroso.
2. Os agregados da família, na construção do intelecto: diálogos entre Bento
adolescente e os agregados interesseiros José Dias e prima Justina – agiam sobre
as decisões da sua mãe.
3. Status social elevado – burguês com vida burguesa.
Consequências:
a. Narrador-personagem com perfil controlador, com vontade infanto-juvenil de
manipular tudo e todos: “O leitor deve ler o que está escrito, [...] conceitos que se
devem incutir na alma do leitor à força de repetição.” (M. A.)
b. Impressões e sensações estimulam idéias, e, nestas, a imaginação. Assim, a
narração de memória do narrador-personagem padece de plausibilidade e clareza.
Por dentro do jogo: Bentinho: um fraco de caráter – manipulado e manipulador –
José Dias é o mais importante na formação do seu caráter. Ele o induz a revelar os
seus sentimentos por Capitu. É o primeiro a definir os olhos de Capitu: de cigana
oblíqua e dissimulada.
3. O ressentimento de Bento Santiago
Ciúme e ressentimento (conclusões com apoio em NIETZSCHE)
3.1 Bento Santiago: a ideia fixa do ciúme a redundar no ressentimento
A pessoa absorvida por uma ideia fixa permanece presa dos seus próprios afetos
e dos seus pensamentos arbitrários – decide o certo e o errado.
(NIETZSCHE, Genealogia da moral).
A desconfiança (ciúme) é motor do enovelado psiquismo do narrador Bento
Santiago (CALDWELL, 2008.): O senso perturbado (do real) do sr. Casmurro
Santiago pelo ciúme e pela angústia promove o ressentimento: responsável por
julgar e condenar. E o no mundo burguês e patriarcal não perdoa a traição, por isso
o castigo.
3.2 A teia de Capitu. Com o intuito de se casar com Bentinho, Capitu manipula-o e
domina-o, em uma experiência em que se invertem os papéis tradicionais do homem
e da mulher. Esse reconhecimento das tramas da esposa provocou ressentimentos no
marido:
“[...]. Bentinho é apenas um menino mimado, habituado a que lhe façam as
vontades, e possui a incapacidade da criança mimada para compreender que os
outros têm uma existência independente da sua, de modo que quando eles afirmam
sua independência [...] essa afirmação lhe parece traição.” (GLEDSON, 1991, p.
12).
3.3 A voz da Capitu – o narrador se
apropria da voz da amada. Capitu, em que
pese receber descrição do narrador como
inteligente, empoderada em relação às
mulheres do seu tempo, não é dona da sua
voz.
3.4 A primeira cena de ciúme (cap. "Uma ponta de Iago"). Uma visita de José Dias
a Bentinho, quando estava no seminário. Dava-lhe notícias sobre Capitu:
“Estou que empalideci; pelo menos, senti correr um frio pelo corpo todo. A notícia
de que ela vivia alegre, quando eu chorava todas as noites, produziu-me aquele
efeito, acompanhado de um bater de coração, tão violento, que ainda agora cuido
ouvi-lo. [...]
Outra ideia, não, – um sentimento cruel e desconhecido, o puro ciúme, leitor das
minhas entranhas. Tal foi o que me mordeu, ao repetir comigo as palavras de José
Dias: "Algum peralta da vizinhança". (M. A.)
O ciúme materializa a certeza do adultério e a morte simbólica da família
tradicional.
3.5 O ressentimento:
Segundo Nietzsche, o ressentido procura, sem se compreender, uma causa
dominadora fora de si para o seu sofrimento, para descarregar contra si mesmo o
seu ressentimento e aliviar a dor através de uma intensa reação que julga e diminui
o sentido da vida: "O sentimento de justiça é um ressentimento, ao qual copertence
a vingança". (NIETZSCHE, Nachgelassene Fragmente 1875-1879, p. 176), de que
deriva a vontade de se fazer justiça. Bento Santiago sua faz justiça: desterra a
família e a abandona. Sente-se aliviado, distante dos culpados e seus frutos.
4. NARRADOR:
As lembranças do Bento Santiago constituem uma memória da dor. Do prazer da
dor. A satisfação de fazer sofrer, o prazer de injuriar a amada/odiada Capitu e o
finado amigo Escobar. Ele define a experiência por “Prazer das dores velhas”, título
do cap. LXXVII):
“Contando aquela crise do meu amor adolescente, sinto uma coisa que não sei se
explico bem, e é que as dores daquela quadra, a tal ponto se espiritualizaram com o
tempo, que chegam a diluir-se no prazer. Não é claro isto, mas nem tudo é claro na
vida ou nos livros. A verdade é que sinto um gosto particular em referir tal
aborrecimento, quando é certo que ele me lembra outros que não quisera lembrar
por nada.” (M. A.)
5. Bento Santiago – uma psique egocêntrica sem empatia – mente
patológica. Alguns exemplos:
5.1 Relato de um impulso relacionado a um acontecimento trágico. Uma dor
de cabeça projeta-lhe sentimento fúnebre. Aqui, cogita que o trem da Central
poderia estourar longe dos seus ouvidos e "interrompesse a linha por muitas
horas, ainda que morresse alguém". (M. A.) Ele escolhe conscientemente a
violência; é destituído de baliza ética capaz de orientar seus atos.
1.Falta de empatia – traços de psicopatia. Sobre um conhecido: “Não éramos
amigos, nem nos conhecíamos de muito. Intimidade, que intimidade podia
haver entre a doença dele e a minha saúde? Tivemos relações breves e
distantes.” ((M. A.). Aos prantos o homem conduz o protagonista para dentro
da sua loja, a fim de lhe mostrar o filho morto:
Custa-me dizer isto, mas [...] Ver um defunto ao voltar de uma namorada... Há
coisas que se não ajustam nem combinam. A simples notícia era já uma turvação
grande. [...]. Não culpo ao homem; para ele, a coisa mais importante do momento
era o filho. Mas também não me culpem a mim; para mim, a coisa mais importante
era Capitu. O mal foi que os dois casos se conjugassem na mesma tarde, e que a
morte de um viesse meter o nariz na vida do outro. Eis o mal todo. Se eu passasse
antes ou depois, ou se o Manduca esperasse algumas horas para morrer, nenhuma
nota aborrecida viria interromper as melodias da minha alma. Por que morrer
exatamente há meia hora? Toda hora é apropriada ao óbito; morre-se muito bem às
seis ou sete horas da tarde. (M. A.)
OBS.:
O narrador Bentinho exprime um discurso similar ao Humanitismo, cuja
doutrina sugere uma decomposição ética do trato social, ligando-se aos temas da
coisificação (o homem objeto do homem), do egoísmo e do sadismo. Para Bentinho
ou Bento Santiago, assim como para Quincas Borba: “Ao vencedor, as batatas”,
ou, dito de outro modo, ao vencido (Manduca), o desprezo, a repulsa; ao
vencedor (Bentinho), a namorada, a vida.
1.Ideia assassínia
a. No capítulo CXXXIV, Bento Santiago adquire um veneno para seu suicídio; no
CXXXVI, dilui a substância no café que iria tragar, mas, vacila; no capítulo
CXXXXVII, alvoroçado pela sede de vingança, oferece a bebida ao filho, julgado
por si bastardo:
“Se eu não olhasse para Ezequiel, é provável que não estivesse aqui escrevendo este
livro, porque o meu primeiro ímpeto foi correr ao café e bebê-lo. Cheguei a pegar
na xícara, mas o pequeno beijava-me a mão, como de costume, e a vista dele, como
o gesto, deu-me outro impulso que me custa dizer aqui; mas vá lá, diga-se tudo.
Chamem-me embora assassino; não serei eu que os desdiga ou contradiga; o meu
segundo impulso foi criminoso. Inclinei-me e perguntei a Ezequiel se já tomara
café.
– Já, papai; vou à missa com mamãe.
– Toma outra xícara, meia xícara só.
– E papai?
– Eu mando vir mais; anda, bebe!
Ezequiel abriu a boca. Cheguei-lhe a xícara, tão trêmulo que quase a entornei, mas
disposto a fazê-la cair pela goela abaixo, caso o sabor lhe repugnasse, ou a
temperatura, porque o café estava frio... Mas não sei que senti que me fez recuar.
Pus a xícara em cima da mesa, e dei por mim a beijar doidamente a cabeça do
menino.
– Papai! papai! – exclamava Ezequiel.
– Não, não, eu não sou teu pai!” (M. A.)
b. Anos mais tarde, Santiago lmeja mais uma vez a morte de Ezequiel, já
adulto, que, meses depois, falece, de febre tifoide – não por lepra, como
havia desejado. No dia em que recebe a notícia, farta-se em um bom
jantar e vai ao teatro:
“Não houve lepra, mas há febres por todas essas terras humanas, sejam
velhas ou novas. Onze meses depois, Ezequiel morreu de uma febre
tifoide, e foi enterrado nas imediações de Jerusalém, onde os dois amigos
da universidade lhe levantaram um túmulo com esta inscrição, tirada do
profeta Ezequiel, em grego: "Tu eras perfeito nos teus caminhos".
Mandaram-me ambos os textos, grego e latino, o desenho da sepultura, a
conta das despesas e o resto do dinheiro que ele levava; pagaria o triplo
para não tornar a vê-lo.” (M. A.)
5.3 As lembranças do Bento Santiago constituem uma memória da dor. Do
prazer da dor. A satisfação de fazer sofrer, o prazer de injuriar a amada/odiada
Capitu e o finado amigo Escobar. Ele define a experiência por “Prazer das dores
velhas”, título do cap. LXXVII):
“Contando aquela crise do meu amor adolescente, sinto uma coisa que não sei se
explico bem, e é que as dores daquela quadra, a tal ponto se espiritualizaram com
o tempo, que chegam a diluir-se no prazer. Não é claro isto, mas nem tudo é claro
na vida ou nos livros. A verdade é que sinto um gosto particular em referir tal
aborrecimento, quando é certo que ele me lembra outros que não quisera lembrar
por nada.” (M. A.)

Separação. Edvard Munch, 1896.


6. Bento Santiago: niilista e ressentido. Para ele, a moral não serve de amparo
para nada e não leva a nada. Seu comportamento sugere crueldade e descrença
em valores sociais e individuais. Nietzsche descreve o modo de raciocinar
comum dos ressentidos: eles não compreendem a causa do seu mal-estar. É o caso
do velho Bento Santiago. Nietzsche caracteriza o ressentimento como "raiva,
desejo de vingança – o mais prejudicial de todos os estados possíveis para o
doente". (NIETZSCHE, Nachgelassene Fragmente 1887-1889, p. 618).
6. O calculista Bento
Santiago. Espera o
momento oportuno para
agir: a morte de Escobar.
Rejeição a qualquer laço de
amizade e lhe nega o
benefício da dúvida.
Afogado pelo
ressentimento, prepara a
destruição de todos ao seu
redor, incluindo-se no seu
plano final.

Ciúme. Edvard Munch, 1907


Conclusões: a fundamentação do papel do narrador Bento, para
compreensão profunda da obra
Deve-se considerar que mais relevante do que encontrar culpado, ou se houve ou
não traição, ou se Ezequiel era ou não rebento de Bento Santiago, é avaliar quão as
interferências do narrador determinam a leitura da obra. Assim, o foco narrativo
(visão do narrador) é essencial para compreender Dom Casmurro.
O narrador, ao aproximar-se do leitor, objetiva transmitir uma boa impressão
sobre si e amenizar o peso da sua violência, quer no emocional, quer nas atitudes
somadas no curso da história.
A retórica do narrador objetiva concluir que a sua verdade é verossímil a partir
de fantasias que suas memórias não podem comprovar, mas que fazem sentido para
a realidade corrompida do velho rancoroso, que procura uma forma de se justificar.
Ao conquistar o leitor, preenche as lacunas do texto. O escopo desse narrador
é a concordância do leitor para justificar as suas atitudes. Quer assegurar a verdade
da sua narração, de modo que o leitor possa confiar nas informações por ele
expostas, como as inquietações confidenciadas ao leitor.
O desenvolvimento da narrativa implica em incriminar Capitu em um tribunal.
Daí a exigência da cumplicidade do leitor. Para a inocência de Bento Santiago,
atestada, e a culpabilidade de Capitu, punida, é necessária a cumplicidade do
leitor. O leitor atua como um espelho que reflete de volta para o narrador uma
imagem deformada de si mesmo.
fimfimfimfimfimfimfimfimfimfimfimfimfimfimfimfimfimfimfimfimfim
“Insatisfeito com o julgamento sem direito a defesa e a
punição sumária, Bento escreve suas memórias sob o domínio
das forças reativas, para defender sua tese ao grande público.
Depois de persuadir a si mesmo, transformando o possível em
certeza e o verossímil em verdade, ele quer advogar em causa
própria e persuadir o leitor. Por isso, ele é um autor que
escreve e simultaneamente interpreta o texto para os
leitores.” (CEI, Vítor, 2015, p. 10)

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