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Ueda Shizuteru

Shizuteru Ueda em 1997.

Shizuteru Ueda 田閑 Ueda Shizuteru ? , Tokyo , 17 de janeiro de 1926 ) é um filósofo


japonês especializado em filosofia da religião .

índice

 1 Biografia

 Obra 2

 3 Literatura

 4 Referências

Biografia

O filho de um sacerdote budista , ele estudou filosofia na Universidade de Kyoto , onde


seu mentor Keiji Nishitani dirigiu seus estudos para os místicos medievais. Então ele foi
para a Alemanha, onde recebeu um doutorado da Universidade de Marburg , com uma
tese sobre a mística cristã ocidental Meister Eckhart . Após seu retorno ao Japão , ele se
dedicou a ensinar na Universidade de Kyoto , onde ocupou a cadeira de Filosofia da
religião a partir de 1977 até sua aposentadoria em 1989. Especializou-se por sua vez
com o pensamento de Nishida Kitaro . Sendo um praticante de Zen, Ueda - como
Nishida - ele estudou Zen Budismo sob as categorias filosóficas da filosofia ocidental.
Ele é considerado um membro da terceira geração da Escola de Kyoto.

Desde sua aposentadoria , ele continua a ensinar na mesma Universidade de Kyoto e da


Universidade de Hanazono, intensificando os seus contactos com a Europa , onde ele foi
professor visitante e lecionou em universidades como Marburg , Basel , Bonn ,
Dusseldorf , Tuebingen , Munique , Viena ou Zurique . Ele também participou nas
reuniões anuais dos Eranos círculo em Ascona ( Suíça ).
Suas publicações incluem dois de seus estudos sobre a filosofia de Nishida, Leitura
Nishida Kitaro (Tóquio, 1991) e Experiência e auto consciência (Tóquio, 1998), bem
como numerosos ensaios, alguns deles escritos em alemão, recolhidos através de vez em
onze volumes por Iwanami (2001) publicar casa .

Trabalhar

 Die in der Seele Gottesgeburt und der zur Durchbruch Gottheit. Mystische Die
Anthropologie und ihre Meister Eckharts Konfrontation mit der Mystik des Zen-
Buddhismus. Mohn, Gütersloh 1965

 Das Stern und das Selbst im Denken buddhistischen. Zum Vergleich oeste-östlichen des
Menschen des Selbstverständnisses. Verlag für Recht und Gesellschaft, Basel 1974

 Die Bewegung Bewegung nach oben nach unten und die. Zen-Buddhismus im Vergleich
mit Meister Eckhart In. Eranos Jahrbuch 50 (1981) S. 223-272.

 Zen-Buddhistische Die Erfahrung des Schönen Wahr-In. Eranos Jahrbuch 53 (1984) S.


197-240.

 Sein - -Weltverantwortung Stern im Zen-Buddhismus In: Die Verantwortung des


Menschen für eine Welt im Christentum bewohnbare, Hinduismus und Buddhismus ..
Hrsg. von Raimundo Panikkar und Walter Strolz, Freiburg i. Br., 1985, ISBN 3-451-
20533-5 , S. 37-58.

 Der Ort des Menschen im Nō -Spiel. Em Eranos Jahrbuch 56 (1988) S. 69-103.

 Das absoluta Stern im Zen, Eckhart und bei bei Nietzsche Em Ryosuke Ōhashi (Hrsg.):.
Die Philosophie der K. Kyoto-Schule. Alber, Freiburg / München 1990, ISBN 3-495-
47694-6 , S. 471-502. (Dort S. 538-540 Bibliographie der Schriften bzw. Übersetzungen
Uedas em Westlicher Sprache)

 Wer und foi bin ich? Zur Phänomenologie des Selbst im Zen-Buddhismus. K. Alber,
Freiburg / München 2011, ISBN 978-3-495-48435-7 .

Em inglês

 JC Maraldo. Zen, Linguagem e do Outro. A Filosofia da Ueda Shizuteru. In: das dez
direções. Editado por Zen Center de Los Angeles e The Kuroda Institut. 10: 2 (1989)

Em castelhano

O nada absoluto no Zen em Eckhart e em Nietzsche1

The absolute nothing in Zen in Enckhart and Nietzsche


Shizuteru Ueda2

I3

O texto que será tomado aqui como ponto de partida é do século 12 e foi traduzido
para o alemão por Der Ochs und sein Hirte. Eine altchinesische Zen-Geschichte (“O
Boi e seu Pastor. Uma antiga história zen”).4 Este texto é ainda bastante usado no
círculo zen japonês. Ele apresenta explicitamente o processo da auto-realização do
homem, em dez estações. O texto trás para cada estação um prefácio curto, uma
aquarela em moldura circular e um conciso esclarecimento de cada estação, em
forma de poema. Cada desenho mostra por sua vez, de maneira clara, um
determinado modo e dimensão da existência a caminho do verdadeiro si-mesmo.
Diz-se: o boi e seu pastor, no qual o boi é símbolo temporário do si-mesmo que
está sendo procurado, enquanto o pastor representa o homem que se esforça por
atingir o verdadeiro si-mesmo. Deve-se inicialmente chamar a atenção para o fato
de que, apesar do título “O Boi e o seu Pastor”, a figura do boi não aparece em
todos os dez desenhos, mas somente em quatro. Essa relação é decisivamente
importante para a compreensão zen-budista do si-mesmo e a esse ponto voltarei
posteriormente.

O título da 1a estação é “À Procura do Boi”; a 2a se chama “O Encontrar das


Pegadas do Boi”; a 3a “O Encontrar do Boi”; a 4a “A Captura do Boi”; a 5a “O
Domar do boi”; a 6a “O Retorno para casa montado no dorso do Boi”. Deste modo
a relação do pastor e do boi se torna sempre mais próxima e mais íntima até a 7a
estação, onde o tornar-se-um é alcançado de tal forma que o homem não mais vê
o boi como objeto de unificação. O si-mesmo, que deste modo e até então fora
simbolizado pelo boi, se realiza nesse momento, e através dessa realização ele é
suprimido como símbolo do si-mesmo. O título da 7a estação é “O Boi é esquecido
e o Pastor continua”. No desenho relativo a esse capítulo o boi desapareceu e só o
homem permanece existindo, de modo “calmo e sereno”, como seu próprio senhor
entre o céu e a terra, como é dito no prefácio respectivo. O trecho da 1a até a 7a
estação mostra, em um progressivo desenvolvimento, os momentos consecutivos
dos ensinamentos budistas, do exercício da meditação, da disciplina rigorosa e
intensa, da unificação na bem-aventurança, etc. Mas, ao atingir a 7a estação, o
verdadeiro si-mesmo, como é compreendido no Zen-budismo, ainda não está
realizado. A caminho do si mesmo, nós estamos sempre a caminho de, em um salto
decisivo para irromper e atingir a estação 8a. Agora a característica do verdadeiro
si-mesmo, na concepção zen-budista, aparece claramente com a 8a estação.
Estação 01

Estação 02
Estação 03

Estação 04
Estação 05

Estação 06
Estação 07

Estação 09

Com o título “O completo esquecimento do Pastor e do Boi” ou “O duplo


esquecimento”, a 8a estação é representada por um desenho estranho, ou seja, um
“círculo vazio” no qual nada é desenhado, nem pastor nem boi, nada. Esse vazio,
onde nada está desenhado, deve ser, nesse contexto, acentuado. Nada desenhado
significa o nada absoluto que aqui, depois da 7a estação, significa, em um primeiro
momento, a negação absoluta.

No Budismo, porém, o nada absoluto não quer dizer que nada exista. Ele deve, ao
contrário, libertar o Homem do pensamento substancializante e da comoção
substancializante de si mesmo. Para o Budismo a auto-substancialização do homem
serve de base para o pensamento substancializante, e essa auto-substancialização
tem uma raiz oculta no eu tal como o aprisionamento do eu. O eu é compreendido
no ensinamento budista como o eu-consciência e o modo mais elementar do eu-
consciência diz: “Eu sou eu”, e no seguinte modo: “Eu sou eu, pois eu sou eu”. Este
“eu sou eu” que, por sua vez, tem seu fundamento em “eu sou eu”, de tal forma
fechado e trancado em si mesmo, este eu-sou-eu com sua chamada tripla auto-
intoxicação, qual sejam, ódio contra outros, cegueira elementar contra si mesmo e
cobiça, é tido como o equívoco fundamental do homem e como o motivo que
impede sua cura. Ao contrário, o verdadeiro si-mesmo, que na compreensão
budista é um si-mesmo abnegado, diria sobre si mesmo: “Eu sou eu e ao mesmo
tempo eu não sou eu” (de acordo com a formulação do Prof. Nishitani), ou: “Eu sou
eu porque eu não sou eu” (Daisetzu Suzuki). Tudo vem para a completa dissolução
do eu-sou-eu fechado e trancado, para a separação definitiva do eu-aprisionado. O
eu-homem deve morrer definitivamente em função do querer do verdadeiro si-
mesmo, que é abnegado.

O caminho da 1a até a 7a estação é ao mesmo tempo o processo de


desprendimento do eu-sou-eu. Porém, quando o homem permanece parado na 7a
estação, onde ele como si-mesmo se encontra, ou seja, onde ele ainda está como
si-mesmo, em sua auto-suficiência e sua auto-segurança, ele recai com sua
consciência de si-mesmo - “eu sou agora o que eu deveria ser” -, no seu escondido
eu-sou-eu. Uma forma sublime do egoísmo religioso, por assim dizer. Até mesmo o
abandono de sua própria religião seria aqui o último objetivo religioso. Por isso, a
8a estação conduz, de uma vez por todas, com um decisivo e determinado salto ao
nada absoluto, aonde não há mais nem pastor que procura nem boi que é
procurado, nem homem nem Buda, nem dualidade nem unidade. (Neste contexto
faz-se referência aos seguintes pensamentos de Mestre Eckhart: esquecer Deus;
deixar Deus; da união com Deus para o nada da Deidade, que é ao mesmo tempo o
fundamento da alma.)

Para atingir o irromper da passagem para o verdadeiro si-mesmo, que corresponde


à incondicional abnegação, o homem deve deixar completamente todas as
experiências e conhecimentos religiosos que ele atingira até então. Ele deve tornar-
se o seu si-mesmo e Buda na sua forma mais simples e, de uma vez por todas,
entrar no nada puro, ou seja, no “morrer maior”, como se diz no Zen-budismo. No
texto comentário do círculo vazio pode-se ler: “Todas as cobiças do mundo são
abandonadas. Ao mesmo tempo, o sentido de santidade esvaziou-se
completamente. Não se sinta bem no lugar onde o Buda mora. Passe depressa pelo
lugar onde não mora mais nenhum Buda”. “Em um golpe só, o grande céu se
rompe em escombros. Sagrado e mundano desaparecem sem deixar vestígios.”
Isto expressa o 8° desenho.

Então, o nada budista, que é o nada da dissolução do pensamento substancial, não


deve ser mantido como nada, não deve ser tido como uma forma de substância,
como uma substância negativa, ou seja, como um nihil. Trata-se do movimento
dessubstancializado do nada absoluto, do nada do nada, ou, em uma terminologia
filosófica, da negação da negação. Na verdade trata-se do movimento puro do nada
em uma dupla e concatenada direção, qual seja: 1) como negação da negação no
sentido ulterior da negação da negação, para o nada infinitamente aberto, sem
retornar à afirmação e 2) como negação da negação no sentido do retorno à
afirmação sem traço algum de mediação. O nada absoluto se afirma como essa
copertença dinâmica da negação infinita e do movimento imediato,
Estação 09

despretensioso e ele chega a essa copertença de modo único. O nada absoluto se


movimenta como o nada do nada. O nada absoluto, que a partir da 7a estação age
como sua negação absoluta, é como tal nada mais que esta dinâmica
correspondência da negação e da afirmação. Assim acontece neste nada como para
o nada do nada e, por conseguinte, uma mudança fundamental e uma virada
completa como em “o morra e o torne” ou em “morte e ressurreição”.

O desenho da próxima estação, da 9a, representa uma árvore em florescência à


margem do rio, e nada mais. O comentário a essa figura diz: “as flores florescem
como florescem por si mesmas; o rio corre como corre por si mesmo”. Trata-se do
homem em seu verdadeiro si-mesmo. Por que aqui, repentinamente, uma árvore
em florescência à beira do rio? Não se trata aqui de uma paisagem exterior,
objetificante em torno de nós, visto que nos encontramos a caminho do si-mesmo,
mas também não se trata de uma paisagem metafórica como expressão de um
estado interior do homem ou da projeção de uma paisagem interior da alma, e sim
de uma realidade completamente nova, como uma pré-sentificação do si-mesmo
abnegado. Trata-se da ressurreição a partir do nada, da mudança radical da
absoluta negação para o grande “sim”. Sim, é isso! Visto que na 8a estação, a cisão
sujeito-objeto, em todas as formas, fora deixada para trás no nada, antes da cisão,
assim, na ressurreição a partir do nada, uma árvore em florescência à beira do rio
não é outra coisa senão o si-mesmo. Na verdade, não no sentido da identidade da
natureza e do homem, mas sim no sentido de que uma árvore em florescência, tal
como floresce, e a abnegação do homem se incorporam de uma forma não
objetificante. O florescer da árvore, o fluir da água, é aqui, portanto, assim como
acontece, ao mesmo tempo um jogar da liberdade abnegada do si-mesmo. A
natureza, como as flores florescem, como o rio flui, é o primeiro corpo ressuscitado
do si-mesmo abnegado, a partir do nada.

No movimento da 8a para a 9a estação não se trata mais, como nas estações


precedentes, de um desenvolvimento progressivo e sim de uma copertença, ou
seja, de um girar para lá e para cá. O nada na 8a e o simples na 9a estação se
copertencem, de acordo com a questão referida, de tal forma que eles - para falar
em alegoria - formam os dois lados de um mesmo pedaço de papel, que não é
espesso. Ambos os lados não são nem dois nem um. De maneira geral trata-se de
uma perspectiva dupla que se copertencem, que se penetram reciprocamente.
Neste sentido a direção da 8a para a 9a estação “está em unidade com” a direção
oposta da 9a para a 8a estação de tal forma que, em uma dupla afirmação
invertida, significa “flores que florescem, ou seja, o nada; o nada, ou seja, flores
que florescem”. A formulação clássica no budismo diz: “o que tem forma é o vazio,
o vazio é o que tem forma”.5 Trata-se, portanto, da coincidência absoluta do nada
com o que tem forma, na qual porém a entonação não se situa na identidade - isto
seria novamente uma substancialização equivocada - e sim na perspectiva dupla
relacional, que por sua vez relaciona “morte e ressurreição” em um âmbito
existencial. Uma perspectiva de ver o que tem forma como o nada recebe o nome
de “grande conhecimento”, enquanto que a outra perspectiva de ver concretizar o
nada, sem mediação, como o que tem forma, é denominada de “grande simpatia”.

Na 10a e última estação, o encontro entre pessoas é, expressamente, o tema. Aqui,


o verdadeiro si-mesmo, ressuscitado do nada, age e joga entre homem e homem
como uma dinâmica abnegada do “entre”. Neste caso esse “entre” é, agora, o
próprio campo de ação, o campo interno de ação do si-mesmo, ou também: o si-
mesmo que, cortado, aberto pelo nada absoluto, se desenvolve como o “entre”. O
desenho representa aqui a forma como um velho e um jovem se encontram pelas
estradas do mundo. Não se trata aqui de duas pessoas diferentes que se encontram
por acaso: “um velho e um jovem”, isto é, o desdobramento do si-mesmo, do velho
mesmo, abnegado. Como o outro vai, é agora, para o si-mesmo, em seu caráter
abnegado, seu objetivo interior. A questão do jovem, tal como é,

Estação 10

é a própria questão do velho, que por sua parte, para si mesmo, não tem questão
alguma. A comunidade da vida em comum é o segundo corpo ressuscitado do si-
mesmo abnegado. Eu sou “eu e você”, “eu e você”, isto sou eu. Trata-se do si-
mesmo como duplo si-mesmo com base na abnegação do si mesmo.
No comentário é feita a consideração: “amigavelmente vem essa pessoa - o velho -
de uma geração desconhecida (isto é: do nada absoluto). Ele já enterrou
profundamente sua essência iluminada. Logo, ele vai para o mercado com uma
cabaça cheia de vinho. Logo, ele volta para sua cabana, com seu bastão. Como no
momento lhe agrada, ele freqüenta bares e quiosques de peixe, onde os outros, ao
se relacionarem com ele, se despertam para si mesmo”.

O verdadeiro si-mesmo, no encontro com outras pessoas, não habita o chamado


“nirvana” e sim a tão percorrida estrada do mundo, responsável por muitos
encontros, porém sem abandonar o nada absoluto. Trata-se, neste caso,
novamente de uma dinâmica em uma perspectiva dupla: na estrada do mundo
como no nada, no nada como na estrada do mundo. O primeiro incansável esforço
em torno de outras pessoas é, ao mesmo tempo, um jogo para si mesmo com base
no nada. Todavia, sem que com isso esse esforço e a compaixão sofram perdas
através do caráter do jogo. Isto é o que o Zen-budismo quer dizer com a
característica afirmação dupla, que apresenta uma contradição se for vista só de
maneira lógica. Por um lado diz-se: “os seres vivos são incomensuráveis. Nós nos
propomos a salvar todos eles”. Por outro lado diz-se: “não há ser vivo algum que
nós temos que salvar, ou que já salvamos, e também não há salvação”. Ou: “Que
pena! Até agora eu queria salvar o mundo todo. Que surpresa! Não há mundo
algum mais a ser salvo”. Só a autoconsciência mesma de ter salvado os outros já
seria novamente a ruína interior da salvação.

O despertar do si mesmo para o verdadeiro si-mesmo só se afirma na medida em


que é permitido também ao outro o despertar, e precisamente de tal forma que o si
mesmo se desperte. Com base no nada sem forma, sem modo, a maneira do
encontro é, aqui, bem característica. Se o encontro se realizasse em algum lugar,
em um trecho entre a 1a e a 7a estação, o tema discutido entre os dois que se
encontrassem seria religioso. Mas aqui não. O velho não prega, não ensina, ele,
tanto no encontro quanto no estar juntos, faz perguntas simples: “de onde você
vem?” “qual é o seu nome?” “como vai você?” “você já comeu?” “você vê as
flores?”, para citar alguns exemplos da história do Zen-budismo. Estas são, em
primeiro momento, perguntas cotidianas, discretas. Se o outro sabe, na verdade,
de onde ele realmente veio? Se o outro realmente vê as flores como florescem por
si mesmo? O velho pergunta e ela se torna, no outro, a pergunta por si mesma, a
pergunta que desperta para o verdadeiro si-mesmo: “quem sou eu realmente?” O
outro começa, por si mesmo “a procurar pelo boi”. Assim temos novamente a
primeira estação. A 10a estação não é, portanto, o fechamento e sim o início da 1a
estação para um outro, para um jovem que o velho, em seu “entre”, aberto,
encontrou e que por suas perguntas é despertado para o verdadeiro si-mesmo.
Trata-se da transmissão do si-mesmo, de si-mesmo para si-mesmo.

II

Para esclarecer melhor esse nada absoluto que foi expresso nas estações 8ª, 9ª e
10ª, ele será comparado, a seguir, com algumas idéias ocidentais. Em primeiro
lugar deve ser considerado o “nada da Deidade” para o Mestre Eckhart, para o
ápice da mística alemã medieval, como o pensamento que, de modo mais simples,
mais corresponde ao círculo vazio do nada absoluto da 8ª estação (cf. Nishitani,
1948; Ueda, 1965, 1983).

A atitude existencial do “despertar para o morrer ou para a vida” é o fundamento


da existência religiosa. Eckhart radicaliza esta atitude recorrendo ao motivo do
“nascimento de Deus na alma”, que pertence à grande tradição da mística cristã.
Deus gera o filho de Deus, ou seja, para Eckhart, o Deus-Filho, na alma do homem
que renunciou a si mesmo e que morreu para o ego (Ich-heit). Essa alma
“desprendida” se deixa ressuscitar através da vida de Deus, como vida de Deus, em
Deus. O ressuscitar é ao mesmo tempo o acontecimento da encarnação, em que
Deus se torna homem; no respectivo homem assim como neste homem. Enquanto
cada homem particular, no renascimento como filho único de Deus, se torna igual a
Cristo, ocorre, em cada homem singular, a redenção direta, original, e vive-se uma
unidade viva e concreta com o Deus vivo. Esta auto-experiência em Eckhart tem,
diferente da perspectiva de uma crença que compreende Cristo como mediador da
redenção, consideráveis elementos em comum com aspectos fundamentais do
Budismo Mahayana, segundo o qual o despertar do homem Buda particular e o
tornar-se consciente de si-mesmo se unem.

Lá, onde o sermão de Eckhart mostra, renovadamente, neste nível, um


desenvolvimento acompanhado de certa modulação, vem à luz seu parentesco com
o Zen-budismo. A alma que se tornou filho de Deus “chega até o fundo, continua a
procurar e apreende Deus em sua unidade e em sua solidão; ela apreende Deus em
seu deserto e em seu fundamento próprio. Por isso ela não permite que nada a
satisfaça e, depois, ainda procura pelo que seja Deus em sua Deidade e na
propriedade de sua própria natureza” (Quint, 1955, p. 206; cf. Quint, 1958a, p.
171). Ela “quer saber (ao contrário) de onde esse ser [(o ser simples, que não se
move, divino, que nem dá nem recebe)] vem, [ela] ... quer penetrar no
fundamento simples, no deserto quieto, na diferenciação, nem pai nem filho nem
espírito santo” (Quint, 1955, p. 316). Para a alma que foi criada como “imagem de
Deus”, não somente a origem em Deus, mas o fundamento em Deus é justamente
sua origem exterior.

O movimento da alma, que procura ganhar novamente seu próprio caráter de


origem, não se encerra lá, onde a alma como filho de Deus retorna a Deus, e
procura “irromper” com Deus e atingir o fundamento de Deus. O característico
deste “irromper” se situa no significado existencial que a diferença entre Deus e
“fundamento de Deus” têm para a alma. Eckhart vê no fundamento do Deus
pessoal, que está face a face com a criatura, um lugar onde Deus é Deus mesmo e
se refere ao si-mesmo, respectivamente, à “essência” de Deus em seu fundamento
com a palavra “Deidade”. Ao mesmo tempo ele diz: “Deus e Deidade são tão
diferentes entre si como o céu e a terra” (Quint, 1955, p. 272). O Deus, como Deus
que aparece que se defronta com a criatura, é a forma exterior de Deus - ou seja,
sendo dito pelos homens, uma representação de Deus como Deus. Por outro lado, a
Deidade, ou seja: o si-mesmo de Deus não é algo que pode ser compreendido pela
criatura. Não se trata somente, por parte do homem, de ultrapassar a objetificação
consumada; e sim, também, do lugar onde até mesmo a auto-relação interior de
Deus é libertada do Pai, do Filho e do Espírito, e onde acontece o entrar na “calma
(samadhi)” do “um” mesmo. Lá está o “fundamento” de Deus, ou seja, a “ausência
de
fundamento” de Deus.

A Deidade, que se difere de Deus, é sem forma, inominável, inexplicável,


incognoscível e inapreensível. Em um sentido preciso não é “nem isso nem aquilo”
(Quint, 1955, p. 196 e 407) e nesse sentido é o nada absoluto. Tão logo Deus for
compreendido como “qualquer ente”, se diz somente que ele é o ser, que é a luz, o
amor, o bem, o verdadeiro, a energia ou qualquer coisa que seja. Ainda assim, tão
logo Deus seja dito, ele se torna um invólucro externo que, no fundo, oculta o si-
mesmo de Deus que acontece. Pode-se bem dizer que aqui a denominada “teologia
negativa” se impõe em sua abrangência extrema. Os termos de negação em
Eckhart, que levam a teologia negativa aos seus limites extremos, deixam sentir o
ar gélido de uma abertura particularmente clara, mas tensa e infinita; ao mesmo
tempo, como o cume de uma montanha alta que ao tocar a abóbada celeste se
desvanece negando a si mesma. Este ar gélido é quase como o ar do Zen. “Mas
Deus não é bom!” (Quint, 1955, p. 353; cf. Quint, 1958c, p. 444). Não o ser e sim
o não-ente, não pessoa e sim não-pessoa, não Deus e sim não-Deus (cf. Quint,
1955, p. 355; Quint, 1958c, p. 448).

Tal fundamento de Deus, “o nada da Deidade” é por sua vez - e isso é uma coisa
decisiva em Eckhart - de modo não objetificante, o fundamento da alma mesmo.
(Alma corresponde no Zen ao “coração”, fundamento da alma ao “fundamento do
coração”, respectivamente à “origem do coração”.) “Deus e Deidade” são em suas
extensões totais o andamento de uma transcendentalização direta na imanência
como o movimento no qual a alma em sua origem rompe com si mesma; eles
constituem o abismo profundo da alma. Em seu âmago ex-tático a alma conduz ao
âmago de Deus. A alma que retornou a Deus como filho de Deus não pode outra
coisa senão investigar o “fundamento de Deus” em seu fundamento último. Neste
contexto, Eckhart fala do interior de Deus, da irradiante “fagulha da alma”. Ele diz:
“A alma diz que sua ira é tão excessiva que ele [Deus] não poderia se reconciliar
com ela” (cf. Pfeiffer, 1966 [1957], p. 542). Este pressionar da alma em Eckhart,
que penetra até o último fundamento de si mesma - até a ausência de fundamento,
desde que este fundamento não possa ser nomeado um “ente” e com isso rompa
com todo fundamento considerado como ente - tem uma semelhança profunda com
a “investigação de si-mesmo” no Zen. Ao indicar o fundamento da alma Eckhart
lança mão da terminologia usada pela teologia negativa para se referir ao
fundamento de Deus. “Não é [uma fagulha na alma] nem isso nem aquilo. [...] É
livre de todos os nomes e de todas as formas, totalmente desimpedido e livre como
Deus é desimpedido e livre em si mesmo” (Quint, 1955, p. 163). As palavras de
Eckhart, que indicam o “fundamento de Deus” ou “o fundamento da alma”
enquanto ele atravessa o âmbito da teologia negativa, aparecem às vezes como
uma tradução direta de textos Zen.

O último retorno ao “fundamento de Deus” ou ao “fundamento da alma” é


denominado, de modo correspondente ao caráter do “nada absoluto” como “deixar
Deus”, “libertar-se de Deus, tornar-se quites com Deus”, ou seja, a alma que tem,
no interior de Deus, sua vida unida a Deus, nadifica renovadamente e de maneira
radical o si-mesmo unido a Deus. É o último deixar do “ego”. “Deixar Deus”, como
o extremo ápice da negação existencial absoluta deveria encontrar um parentesco
com “matar o Buda”, matar o mestre do Zen. “Se depois você ansiar por
compreender os princípios do dharma, evite os descaminhos humanos. Para dentro,
para fora, o que você sempre encontrar, mate-o. Se você encontrar o Buda, mate-
o; se você encontrar o mestre, mate-o... somente então você pode conseguir se
desembaraçar. Você não está mais preso a coisas, mas sim desimpedido e livre”
(cf. Fuller-Sasaki, 1975, p. 25). Eckhart diz: “Sua alma deve, por conseguinte,
estar destituída de todo o espírito, ela deve estar ali sem espírito. Pois se você ama
Deus, como ele é Deus, como ele é espírito, como ele é pessoa e como ele é
imagem - tudo isso tem que desaparecer” (Quint, 1955, p. 355).

Só o pensar em “Deus” encobre o caráter unitário de Deus que é sem forma,


límpido, puro e dissimula a ausência de fundamento, que é o fundamento de Deus.
Ao mesmo tempo esse pensar encobre o caráter unitário da alma mesma, que é
sem forma, límpida, pura e encobre também a ausência de fundamento, que é o
fundamento da alma. Se a ausência de fundamento for encoberta não há
verdadeira liberdade. Neste encobrir vive, escondida, a raiz do ego, já tida como
separada - com as palavras do próprio Eckhart: propriedade (Quint, 1958a, p. 25;
cf. também Quint, 1955, p. 159). Tão logo a alma se vê como “filho de Deus” cola
nela o caráter ôntico “filho de Deus”. Pois se neste estado a alma saboreia a si
mesma, ela tem gosto de Deus. Este ter gosto conduz orgulhosamente ao si-
mesmo como “portador de Deus”. O si-mesmo, que deveria ser o conteúdo de
Deus, usurpa-o e transforma Deus em seu conteúdo. É “particular da alma...
aspirar continuamente; porém ela olha de lado, assim ela sucumbe à soberba,
(mas) isto é pecado” (Quint, 1955, p. 297). Quando a alma olha a si mesma ela
“olha de lado”. Por isso Eckhart vê na denominada unio mystica uma última
barreira que está agora por ser rompida. Por isso: “Deixar Deus”! (cf. Quint, 1955,
p. 214). Isto não é nenhum pretenso ateísmo ou nenhum pretenso humanismo.
Pelo contrário, é a radicalização do morrer da alma por si mesma. É mais uma vez
o grande matar da forma de ser; morrer para si mesmo e se deixar ressuscitar na
vida de Deus. Por isso é dito “morte fundamental” (cf. Quint, 1958a, p.135) ou a “a
pobreza extrema” (cf. Quint, 1958b, p. 500). Significa lançar-se a si mesmo no
“deserto” sem Deus. Mas este deserto é ao mesmo tempo o lugar onde jorra a
fonte da “vida pura sem porquê”. Deste modo, o “nada da Deidade”, que é o
“fundamento de Deus”, torna-se para a alma o lugar mais radical, onde morte é
igual à vida. Até mesmo quando são possíveis interpretações distintas, referentes
ao motivo do “nascimento” da alma como filho de Deus em Deus e o motivo do
“irromper” da alma, através de Deus, no interior do nada da Deidade, em Eckhart,
pode-se justificar o ponto de vista de que a relação destes dois motivos
corresponde à mudança e ascensão do si-mesmo, apresentado no sétimo desenho,
para o nada absoluto indicado no oitavo desenho.

Em geral é considerado na mística, que vive na união com Deus, sobre a


experiência da união (unio), o sair da união da mesma forma que sua negativa.
Essa experiência, que também pode ser denominada como colapso místico, é
sentida pelo próprio respectivo místico, como “abandono de Deus”, “alheamento de
Deus”, “aridez da alma”, “a noite escura da alma”, etc. Os místicos percorrem
portanto o caminho da aflição para o qual essa experiência é transmitida. Ao
mesmo tempo ocorre freqüentemente que este caminho se transforma em
oportunidades decisivas de uma mudança para aprofundar a experiência de unidade
até a existência, que vive na perspectiva da união. Em Eckhart este ponto é, desde
o início, positivo. Para ele não se trata de: “ser abandonado por Deus, ser rejeitado
por Deus”, e sim “deixar Deus”. Isto poderia certamente estar ligado à sua idéia de
Deus, de que Deus em seu fundamento é não Deus. Especialmente para se separar
da união (unio) é a realização de um amorfo com o si-mesmo de Deus, que por seu
lado é em seu fundamento sem forma. Eckhart diz: “um e não unido” (Quint, 1955,
p. 215) com Deus “um Um e uma clara união” (Quint, 1955, p. 215). Disso resulta
uma sentença chave de Eckhart: “Aqui o fundamento de Deus é meu fundamento e
o meu fundamento o fundamento de Deus. Vivo no meu próprio como Deus vive no
seu próprio” (Quint, 1955, p. 180). Isto é, na verdade, a grande liberdade do “eu
sou”. Eckhart diz que este “eu sou” não pertence nem aos homens, nem aos anjos,
nem a Deus (cf. Quint, 1955, p. 302); ou: eu “não sou nem ‘Deus’ nem criatura”
(Quint, 1955, p. 308). Isto poderia ser dito quase como o modo de ser do “homem
livre e não dependente de nada” nos “apontamentos de Lin-chi”. O domicílio de
semelhante “eu” de Eckhart, que não é nem Deus nem criatura, tem que ser
indicado como além da diferenciação habitual entre teísmo e ateísmo, além da
diferença habitual entre princípio de realidade pessoal e impessoal, ou antes, ainda,
como deste mundo.

O irromper no “nada da Deidade” poderia parecer um vôo alto especulativo que


esquece o homem real, corpóreo e concreto que vive no mundo da realidade
espaço-temporal, ainda mais se desconsiderarmos a suspeita de heresia que fora
atribuída a Eckhart. Mas o que ocorre é precisamente o oposto. Ao contrário da
interpretação tradicional, Eckhart não vê a perfeição em Maria, que está sentada
diante de Jesus que, prestativa, se deixa envolver pelas palavras de Deus, e sim
em Marta, que se dedica árdua e persistentemente à recepção de Jesus e de seus
discípulos. Ele vê em Maria o modo de ser introspectivo, que está em união com
Deus, e em Marta o modo de ser sereno, em que se está acima da união. Ele vê em
Marta o retorno à vida real do mundo atual. Esse retorno é “no um” o penetrar no
nada da Deidade. Para Marta, o trabalho na cozinha para as visitas significa
penetrar no nada da Deidade, diz Eckhart.

Pode-se dizer que aqui se inicia um novo plano na tradição da mística. Trata-se do
modo de ser que se despertou da união com Deus para o nada da Deidade e ao
mesmo tempo para o mundo atual. Deste modo, no “deixar Deus”, o irromper
ascendente no nada da Deidade e o retorno descendente ao mundo real torna-se,
pouco a pouco, um. A vida “sem porquê” e a “vida humana real” transformam-se
em uma vida animada, real. Neste sentido, quando Eckhart fala de “fagulha da
alma” ele fala ao mesmo tempo do “corpo bem exercitado” (Quint, 1955, p. 288). A
ação atual da fagulha da alma está no corpo que, como Marta, ao receber visitas,
trabalha para eles.

Em Eckhart é mostrado como fora descrito acima, que no tornar-se consciente de


si-mesmo do “nada da Deidade” a atitude religiosa da “morte é a vida”, - ou seja,
morrer para si mesmo para renascer na vida de Deus - mais uma vez radical o
“grande matar” e o si-mesmo se despertam do nada absoluto. Um mundo que é
quase igual ao mundo do Zen abre-se então com Eckhart. Aqui, o caráter original
da vida, a subjetividade absoluta e a concretude do cotidiano que se despertou
para a vida real, entram no interior da morada. A idéia do nada absoluto aparece
em Eckhart no sentido de que Deus seria em seu fundamento o “nada absoluto” e
que este “nada absoluto” seria, ao mesmo tempo, o fundamento próprio da alma. O
“nada absoluto” constitui a essência e o ponto central do conjunto do pensamento
de Eckhart e é, freqüentemente, simbolizado pelo “deserto sem coisa alguma”. Isto
corresponderia ao dizer Zen, “vastidão sem fronteira, sem erva alguma”. Entre o
“nada absoluto” de Eckhart e o nada absoluto pode-se perceber um parentesco
muito próximo, que é apresentado como um círculo vazio na oitava estação dos dez
desenhos do boi. Mas aqui também aparece, sem dúvida, uma sutil diferença de
caráter. Sob determinadas circunstâncias esta diferença se tornaria decisiva. Se
este contraste do “nada absoluto” fosse formulado em sua forma mais aguçada, ele
deveria significar, por um lado, “Deus é o nada” e, por outro, simplesmente “o
nada”.

A formulação mais clara e simples do nada absoluto em Eckhart é: “Deus é o


nada”. Qual perspectiva que se mostraria se ela fosse vista no universo da
comparação com “o nada” simplesmente? “Deus é nada; não de tal forma que ele
seria sem Ser. Ele não é nem isso nem aquilo, o que se pode afirmar - ele é um Ser
sobre todos os Seres (pl.)” (Quint, 1955, p. 407). Para Eckhart Deus é denominado
como o supra-ente nada, em virtude da supremacia de seu ser. Aqui se encontra
um tipo de teologia negativa que ocorre na tradição da filosofia cristã. A
negatividade extrema do “nada” em “Deus é o nada” não é direcionada para o ser
de Deus como tal e sim toma, na realidade, o modo de ser humano, que procura
determinar o ser de Deus. A negação total de todos os predicados possíveis que são
dados a Deus pelo homem é denominada “o nada”. Isto, sendo dito da parte
do homem, significa: em vista do ser de Deus, a negação das próprias palavras e a
renúncia a toda forma de pensar, assim como a de esclarecer toda reflexão,
expressar esta negação das palavras com uma palavra negativa (o nada) e com
essa palavra negativa predicar Deus, que precisamente nega as palavras e permite
abandonar o pensar. Por isso, quando se diz “Deus é o nada”, “para ele [Deus] o
ser não é, com isso, negado, muito mais... o ser é nele elevado” (Quint, 1955, p.
196). “Deus é” é uma substância inabalável, invulnerável, que com a pergunta “o
que ele é?” não pode ser posto em dúvida e com a resposta “ele é o nada” não
pode ser negado. “Deus é o nada” quer dizer que Deus é, mas para o homem é o
nada e, na verdade, é em tal sentido que ele não pode ser determinado por
palavra. Disso segue-se que as últimas palavras de Eckhart sobre o si-mesmo de
Deus, do qual se diz que seria como tal o “um”, sem forma, somente poderia ser
dito em virtude do “dois”, da dualidade de Deus e do homem, do ser e do nada.
Uma vez que este “nada” não arrebata o ser, mas sim o eleva infinitamente, ele
traz em si, na verdade, certo caráter absoluto. Mas do lugar de onde se fala do
“nada absoluto”, ele deve, todavia, ser visto como um “nada absoluto” relativo. O
que por último fora considerado como absoluto não é o “nada” e sim o ser de Deus,
ou seja, o ser mesmo.

Este ser é potencializado pelo “um” que como tal se eleva, pela “substancia”-lidade
que se radicalizou de maneira conseqüente. O ser de Deus é denominado o nada
em virtude de um caráter puramente sem forma do si-mesmo do “um”; mas a
substância aguarda ansiosamente atrás do denominado nada. A substancialidade
põe um limite para o nada. O nada de Eckhart é radical, mas permanece ainda
como um adjetivo, como um predicado da substância, que é o termo principal. Para
Eckhart, o caráter absoluto do “nada absoluto” situa-se, portanto, não no “nada” e
sim procede do ser como supra-ente, procede da substancialidade extrema. Um
pensamento radical, em Eckhart, é o de que o ser como supra-ente abranja o nada
até o extremo e o ultrapasse. Por parte do Zen foi percebido um parentesco na
rítmica, que reclama esta radicalidade na existência humana. O nada da teologia
negativa poderia ser designado como aquele que ultrapassa a denominada
analogia, a analogia do ser na dualidade de “igual” e “desigual”, entre criador e
criatura, na direção da desigualdade para a transcendência. E neste ponto, a
especulação de Eckhart foi radical. Mas a originalidade de Eckhart situa-se
exatamente no ponto em que, para ele, o caráter radical da teologia negativa, que
é a expressão da distância infinita de Deus, que supera a finitude, e, ao mesmo
tempo, torna-se diretamente a expressão da ausência total de distância. Quando se
diz “Deus é o nada” expressa-se assim o superior e ao mesmo tempo a não
objetificação que está presente no tornar-se nada da alma em sua forma não
objetificante. A partir da perspectiva do Zen percebe-se aí um parentesco.

Mas o nada absoluto do Zen, em seu caráter puro e simples, tem como tal uma
atmosfera diferente do “Deus é o nada”. O Budismo Mahayana, que é a base do
Zen, tem em seu fundamento o nada, não como o aumento progressivo da
substancialidade e sim, ao contrário, como a total dissolução da substancialidade no
vazio. Não se trata de “Deus é”, não é “Deus é o nada” e também não é “Deus não
é”. Trata-se da dissolução da substancialidade que, como tal, conduz a afirmação
“Deus é...”. A dissolução da substancialidade no vazio é a abertura da “abertura
infinita” do vazio - “do lugar do nada” - e com isso a atividade do vazio (a atividade
do nada). Neste sentido, o nada não é, aqui, um adjetivo do “um” como substância,
ao contrário, ele tem que ser verbo. Enquanto que a substancialidade se esvazia e
o “lugar do nada” se inicia no vazio, ela dissolve o “um” substancial no vazio, no
“lugar do nada”, ela deixa o um se tornar o diverso inesgotável, e ela deixa este
diverso inesgotável como sendo “o um que não é um” tornar-se a referência -
“como um”.

Aqui, “ser” significa que ele é, como ser mesmo, o nada em sua totalidade. Por isso
lá, onde ele se desdobra inteiramente em referências estão concretamente
concentradas as referências inesgotáveis a ele. “Uma flor se abre, surge o mundo”.
Semelhante conexão, total e dinâmica, é a atividade do nada absoluto. Ao mesmo
tempo, esta atividade não deixa vestígios no nada absoluto. Enquanto que, para o
fundamento especulativo de Eckhart, o ser mesmo e o “um” são permutáveis, aqui
o que pode ser permutável é o “nada” e a “refêrencia”. (Recorrendo a uma
terminologia do Budismo Mahayana, pode-se dizer que se trata do “vazio e do
surgir independente [sûnyatâ e pratítya-samutpâda]”.) Por um lado, em Eckhart, a
base é o “ser (substância) = um”, por outro lado, no Zen, é a “referência do como-
um”.

O nada como atividade, que dissolve a substância no vazio, nega também, ao


mesmo tempo, toda determinação do nada como negação do ser. “(O nada é) o
não ser” significa aqui “(o nada é) o não nada”. O nada dissolve no vazio a
substancialização do nada mesmo, a saber, que a negação da substância se torna
uma denominada menos-subastância, como o “nada do nada”. “O nada”, isto é, “o
nada do nada”. Em uma formulação clássica isto quer dizer: o vazio está vazio
novamente. Aqui a atividade do “nada” se impõe por completo. Neste caso, o ponto
central situa-se no seguinte: o “nada do nada” é, por um lado, a negação infinita e
insondável que nega o nada e que abre completamente a abertura infinita no vazio.
Por outro lado, ele se transforma ao mesmo tempo em ser. (Tal como a negação da
negação é afirmação.) O “nada” é o “nada do nada”, mas o “nada do nada” é deste
modo, o caráter recíproco e complementar da negação insondável e da afirmação
insondável e ainda assim, este caráter recíproco e complementar na negação
insondável permanece sem deixar vestígios. Mas ao mesmo tempo a afirmação,
que até agora fora só afirmação, torna-se pura e simplesmente a afirmação
absoluta. Como fôra mencionado até agora, por exemplo, “a montanha, isto é a
montanha” é a verdade completa, a presença completa. Aqui, as referências
inesgotáveis passam a ser concentradas e a verdade do ser como “tathâ (como
este)” é, concretamente, levada à presença. Negação absoluta, isto é, afirmação
absoluta, e isto significa: afirmação absoluta, isto é, negação absoluta. O “nada” é
encerrar em si semelhante conexão completa, e, ainda, poder dissolver
completamente o encerrar-em-si. Isto é precisamente o “nada absoluto” do círculo
vazio da oitava estação. Por último, ou dizendo de maneira mais precisa, desde o
início, a radicalidade do pensamento de Eckhart “Deus é o nada” tem uma
disposição diferente da do “nada absoluto”, que se manifesta no movimento da
existência humana como radicalização. Recorrendo ao texto do boi e seu pastor:
nem Buda nem não-Buda (cf. Ohtsu, 1985, p. 41). Em outro texto pode-se ler: “Os
três mundos não têm dharma; onde você quer procurar por um coração?” (cf. Bi-
yän-lu, 1973, Bd. 2. p. 86). Ao mesmo tempo pode-se responder à pergunta “o que
é o nada?” ou na forma como Heidegger diz: “como está em volta do nada?” da
seguinte forma: “o rio flui sem limites, como flui ele. As flores florescem vermelhas,
como florescem elas” (cf. Ohtsu, 1985, p. 45), como na nona estação.

III

“Deus é.” Mas este “ser” era o “supra-ente” e foi denominado por isso “o nada”.
“Deus é o nada” é, por isso, o contrário preciso de “Deus não é”. A negatividade
extrema de “o nada” em “Deus é o nada” não estava direcionada a “Deus é” e sim
ao homem diante de Deus. Eckhart investigou radicalmente essas questões, não
somente como matéria especulativa, mas também em seu fim existencial. Visto que
os seres humanos testemunham, neles mesmos, de modo real este nada, eles
participam do ser de Deus, e de modo geral participam do ser como tal. O
parentesco com o Zen deixa-se transparecer o mais facilmente possível neste ritmo
existencial. Mas se “o nada” extremo nega o “Deus é” como tal, então, deveria se
destacar outra analogia com o círculo vazio do 8° quadro. Qual seria então outro
estado de coisas, na história intelectual do Ocidente, que corresponde a essa
analogia? O que ocorreria se, na perspectiva do Budismo, não houvesse uma
imediata dissolução da própria substancialidade no vazio, se a substância fosse
mantida como fundamento, e o lugar que a substância ocupava até agora fosse
esvaziado completamente; o que ocorreria se a substância se transformasse em o
menos absoluto, ou se a nadidade de Deus conduzisse a um vácuo? Disso resultaria
precisamente o “Deus morreu” de Nietzsche.

Este resultado não é uma auto-afirmação do homem por meio de uma denominada
redução antropológica. No lugar de Deus domina agora a “morte de Deus”, o nihil
abismal, no qual a substância se torna vácuo. A ausência total de fundamento
torna-se o fundamento máximo. Assim como Deus era tudo, o nihil se torna agora
tudo. O “nada absoluto” é designado, em Eckhart, como o “nada absoluto” mais,
enquanto o nihil é o “nada absoluto” menos. A perspectiva do “niilismo radical” (cf.
Schlechta, 1995c, p. 567) deve ser revelada aqui. Nietzsche diz: “o nada (o ‘sem
sentido’) eterno!” (Schlechta, 1995c, p. 853). Deus = eternidade deixa para trás
somente a forma que pertence a substancialidade desta eternidade. O Deus da
substância sucumbe e se transforma em nihil = eternidade. “O que significa
niilismo? - Que os valores mais elevados perderam o valor. Falta a finalidade. Falta
a resposta ao ‘para quê?’” (Schlechta, 1995c, p. 557). Anteriormente a pergunta
sobre o “por quê?” era respondida, em última instância, sempre com Deus. (Esta é
uma pergunta que só pode ter uma resposta pelo fato de ser respondida, em última
instância, desta maneira.) Visto ter ocorrido a dissolução do ponto essencial, do
ponto decisivo, que em última instância dominava a ordem do Universo, tudo cai
em confusão no nihil e começa a girar em uma infinidade má. Isto é a negação sem
fundo no “eterno retorno do mesmo”, experimentado em sua “forma mais terrível”.
“O dasein como ele é, sem sentido e sem finalidade, sem um final no nada, mas
retorna inevitavelmente” (Schlechta, 1995c, p. 853).

O nada visto não a partir do ser, não como não ser, e sim como nihil no sentido da
nadidade do fundamento do ser mesmo, como um ser tudo nadificante, é
problematizado, talvez pela primeira vez na história intelectual do Ocidente por
Nietzsche. Ele vivenciou o desfecho existencial de um “Deus está morto”, de
maneira radical, em sua própria existência. Assim como é extremamente difícil
viver em Deus, da mesma forma, difícil viver, de modo verdadeiro e crente, na
morte de Deus. Da mesma forma é difícil sobreviver à morte de Deus sem
substituí-lo por algum outro tipo de pseudo-deus. Nietzsche, que divulgou o
sofrimento da perda de Deus, penetrou até o lugar onde ele se designou “como o
primeiro niilista completo da Europa que, todavia, viveu o niilismo mesmo, em si,
até o fim - que o superou, que o tinha sob si e que o tinha fora de si” (Schlechta,
1995c, p. 634).

Ele penetra, do modo de ser que, em vista da morte de Deus, procura, como louco,
com uma lanterna na mão em plena luz do dia, Deus (cf. Schlechta, 1995b, pp.
126-128), para o modo de ser, que vê na morte dos antigos deuses a abertura do
horizonte da liberdade (cf. Schlechta, 1995b, p. 205). Este modo de ser é irrompido
novamente. Que situação se abre com essa irrupção dupla? Em primeiro lugar
deve-se considerar se o problema do niilismo e o conjunto dos dez quadros do boi
podem se interpenetrar. De modo experimental deve-se pegar especialmente o
quadro sétimo e oitavo e colocá-los um ao lado do outro. Neste caso o oitavo
quadro deve ser visto provisoriamente como o fim dos dez quadros. A
correspondência do ser, que é distinto e maravilhoso, assim como a
correspondência da atividade, que é distinta e maravilhosa, presentes nos quadros
9° e 10°, falta ao quadro 8°. Se o oitavo quadro fosse deste modo o fim, ele
poderia ser interpretado então como o vazio extremamente negativo. Se fosse
assim poder-se-ia apresentar o seguinte: no quadro número sete seria mostrado
um homem calmo e recolhido em si mesmo, enquanto que o oitavo quadro se
tornaria o desnudamento repentino daquilo que a temática do sétimo quadro e a
totalidade da história da experiência do si-mesmo, feita até o momento, ou seja, do
exercício que conduzira a idéia do verdadeiro si-mesmo nesta história de
experiência, como se não fosse nada mais que o nihil sem sentido.

Na verdade não corresponde à conexão original dos dez quadros do boi, porém,
dizendo de outra forma, segundo a inequívoca precisão: pode-se pensar que a lua
que se mostra no oitavo quadro, a lua que o pastor ajoelhado e de mãos dobradas
venera, no sétimo quadro, pode-se pensar que o absoluto simbolizado através da
lua seria, na realidade, um mero nada vazio. Ele venera, portanto, um nada vazio.
Isso significaria que o si-mesmo, que tem o exercício concluído, se tornaria, em um
só golpe, sem sentido, e que, além disso, nada mais existiria. O movimento que
aspira algo, além disso, retorna sempre novamente à ausência total de sentido.
Isto seria próximo ao que Nietzsche denominou de “niilismo radical” (cf. Schlechta,
1995c, p. 567). Isso não seria mera orientação niilista cotidiana, pois somente
depois de se ter percorrido o caminho para superar essa orientação é que o todo se
torna sem sentido e vão.

O oitavo quadro, representado por um círculo vazio que está na seqüência total e
original dos dez quadros do boi, é o nada absoluto e, definitivamente, não é o
niilismo absoluto. Ele representa muito menos o niilismo radical de Nietzsche, que
se dá em um contexto histórico. Mas em caráter metódico, com a finalidade de
investigar uma possível conexão com o niilismo, se o oitavo quadro fosse visto
como o fim da seqüência dos dez quadros do boi, ele poderia, assim, expor a figura
do niilismo absoluto. Na verdade não foram raras as vezes que, na história das
idéias da Índia, a visão budista do vazio fora explicada de modo niilista. Mesmo
no Budismo, os representantes do Mâdhyamika foram qualificados de Pan-
niihilistas, ou seja, de representantes da perspectiva de que tudo seria nada. Assim
como muitos europeus, pesquisadores modernos do Budismo tratam a perspectiva
do “vazio” como niilismo. Ao contrário, a posição do “vazio” é compreendida como
um meio termo livre do ser e do nada, e adverte repetidamente aquele que quer
aprender o “vazio” a não se reverter para uma concepção niilista, vaidosa.

Isso significa simultaneamente que no vazio está contido o perigo de se decair em


uma concepção unilateralmente negativa, a saber, de se decair no preconceito que,
diante do ser e do nada, considera “tudo como nada”, ou seja, de se decair em uma
concepção vaidosa, niilista. Este perigo poderia ser oportunamente descrito com a
expressão usada anteriormente, que afirma que a negação da substância se torna
uma substância-negativa. Com isso se diz que o “vazio” só está completamente
presente onde há superação deste perigo, que se realiza com a dissolução no vazio
da substancialidade negativa ou positiva contida no vazio. Partindo do pressuposto
da existência do referencial descrito acima, e se a seqüência dos dez quadros do
boi se encerrasse com o oitavo quadro, não seria impossível, no contexto do mundo
moderno, relacionar o niilismo radical de Nietzsche com o oitavo quadro.
Precisamente no mesmo fragmento que diz: “isto é a forma extrema do niilismo: o
nada (o ‘sem sentido’) eterno!” acrescenta o próprio Nietzsche: “Forma européia do
Budismo” (Schlechta, 1995c, p. 853).

Se o problema do niilismo fosse inserido nos dez quadros do boi, da forma como
fora exposto acima, que significado poderia então revelar o nada absoluto do oitavo
quadro com a representação do círculo vazio, que fora acrescentado de novo, no
contexto geral dos dez quadros? Do nada absoluto do 8° quadro resultam a
“natureza” no 9° quadro e o “entre” das pessoas no décimo quadro; o 8°, 9° e 10°
quadro formam uma coerência dinâmica, e isto é o nada absoluto. Pode-se dizer
que aqui é mostrada uma possibilidade original de ir além do niilismo. Não se
encerra no nada, ou dizendo de outro modo, o nada não é o fim. De maneira mais
precisa, não é o “nada eterno” na forma em que ele não se encerra com o nada,
mas sim que ele ultrapassa o nada na forma do nada do nada: “Os rios fluem azuis,
as serras se erguem verdes” (Ohtsu, 1985, p. 45) (como está no texto referente ao
9° quadro - então as serras são realmente serras e isto é assim como é, o
preenchimento despojado de si do si-mesmo), “encontrar um com o outro” (ib. p.
128) (assim como está no texto referente ao 10° quadro - então o si-mesmo no
nada é um preenchimento duplo). Isto era o nada absoluto. Aqui o niilismo radical
“ficou para trás” literalmente (palavras do Nietzsche).

Aqui se deve passar depressa sobre o lugar onde o niilismo surgiria, senão poder-
se-ia ficar preso nele. (No texto do 8° quadro lê-se: “Por este lugar o pastor dever
passar depressa”) (ib. pp. 111 e 41). Não se comporta como se houvesse algo que
foge à negatividade do nada absoluto e depois se apresenta novamente. Ao
contrário, o nada é aniquilado e ultrapassado em função da radicalidade do nada
que acaba com tudo, em função da radicalidade não-substancial do “nada do nada”
em “nada” como “nada do nada”. A negatividade insondável e a afirmação absoluta
estão presentes aqui em correspondência. Ao mesmo tempo isto é a presença do
“si-mesmo abnegado”. No nada absoluto, no “nada do nada” pode ocorrer o
seguinte: “o rio flui sem limites, como ele flui. As flores florescem vermelho, como
elas florescem” (ib. p. 45). E ainda: “ele freqüenta... os bares e os quiosques de
peixe” (ib. pp. 49 e 122). Isto é o verdadeiro preenchimento do si-mesmo. O
segredo todo está no “nada do nada”, apesar de nada ser segredo neste lugar.

Nietzsche diz também que, tendo ele “vivido o niilismo mesmo em si até o fim”, ele
o teria “superado, sob si e fora de si” (Schlechta, 1995c, p. 634). Se isto for
verdadeiro, ou seja, se o niilismo radical não puder ser superado e negado de fora,
então, para Deus não pode haver um “fora”, bem como não pode haver um “fora”
para o vácuo de “Deus está morto”, e sim somente o fato de que deve-se passar
por ele até o fim. Pois uma superação, como “auto-superação do niilismo” com base
no acabamento do niilismo radical, só pode acontecer no movimento do nada no
próprio niilismo radical. Se o niilismo só pode ser superado no “movimento do
niilismo mesmo”, lá tem que haver então um movimento do nada. O nada que
nadifica tudo deve, de algum modo, se tornar o nada que gera a afirmação. O nada
absoluto e negativo deve, no movimento do nada, poder tornar-se o positivo
original, de tal forma que, por exemplo, “o sem-sentido (a insensatez)” como a
ausência da “resposta ao para quê?” (Schlechta, 1995c, p. 557), como Nietzsche
diz, pode, no movimento do nada, transformar-se no “nada”-sentindo afirmativo
pura e simplesmente. De fora não pode ser dada resposta alguma. O “sem porquê”
deve simplesmente tornar-se a pergunta originariamente nova. Se for assim, temos
aqui um desembocar inesperado no “sem porquê” da vida original em Eckhart,
citado há pouco e no “sem porquê” no ser simples da rosa, como Ângelus Silesius
diz: “a rosa é sem porquê, ela floresce porque floresce” (Silesius, 1921, p. 39).
Dizendo melhor: o que ocorre é uma concordância, por assim dizer, de costa a
costa, necessária por si mesma. Por um lado, esta concordância ocorre a partir do
fundamento de Deus, por outro lado, a partir do fundamento como morte de Deus,
que é o abismo, no qual ambos são investigados em sua radicalidade na e como
existência humana. Com isso abre-se a seguinte possibilidade: o niilismo, que é
denominado por Nietzsche de niilismo radical pode ser ultrapassado, por exemplo,
na experiência simples de “a rosa é sem porquê”, justamente porque ele é radical
(dizendo de outra forma, se ele é verdadeiramente radical). É a mudança do nada
que está na posição onde não se pode dar sequer uma única resposta ao “porquê?”
para o nada nas palavras “a rosa é sem porquê”, ou dizendo melhor: é o ser
absolutamente afirmado na mudança do nada. É a mudança do nada do ser para o
ser do nada. Se isto for assim, então esta situação deve se aproximar muito do
contexto dos quadros 8° e 9° da história do boi.

Resumindo mais uma vez: Nietzsche diz que teria deixado o niilismo para trás visto
que ele o teria vivido até o fim. Trata-se do “movimento de auto-superação do
niilismo”. Se assim o for, então a superação do niilismo só é possível como
“movimento do nada”. Este movimento deveria levar à dissolução do aspecto
substancial no vazio, que era a base da concepção positiva ou negativa do nada
absoluto. Isto só é possível na forma em que o nada no sentido da não-resposta à
pergunta “por que” se transforme no nada no sentido do “sem porquê”, e este nada
é vivenciado, por exemplo, na concretude da rosa como a superabundância do ser,
que é “sem porquê”. O caminho que Nietzsche mesmo ensinara como a superação
do niilismo não era, na realidade, este caminho. Porém, em Nietzsche existem
diferentes pontos de partida que são direcionadas a esse caminho. O caminho
indicado acima passa a ser visível quando persegue e se considera tais pontos de
partida de maneira conseqüente. Mas o “movimento do niilismo” que Nietzsche de
fato desenvolveu tornou-se um movimento que encontrou sua força propulsora na
“vontade”. Na vontade, no meio da profundidade abismal do nihil, no “querer o
nada”, é procurado uma alavanca para a transformação - “o homem prefere ainda
querer o nada a não querer nada...” (Schlechta, 1995b, p. 900). Esta vontade é
mantida no ressaltar da forma pura e originária da vida, como da “vontade de
vontade” (de acordo com Heidegger), mesmo como “vontade de poder”, e esta
“vontade de poder” se transforma no elemento superador do niilismo como força
motora do niilismo ativo e positivo. “‘Niilismo’ como ideal da potência máxima do
espírito, da vida superabundante [...]” (Schlechta, 1995c, p. 557).

A idéia da “vontade de potência” está profundamente relacionada com o estado das


coisas que expressam termos essenciais de Nietzsche como “eterno retorno”,
“super-homem” e outros. Para Nietzsche, porém, a “vontade de potência” como
essência da exuberância e o desenvolvimento da vida era precisamente o “vencedor
de Deus e do nada” (Schlechta, 1995b, p. 837). Esta vontade se transforma em
querer do nada... “morte de Deus” na espontaneidade do si-mesmo. Nietzsche
pensa esse movimento como o desenvolvimento da força da vontade, rompendo-se
do si-mesmo, que quer o nada e assim no querer supera o nihil. “A vontade de
potência máxima é dar ao desenvolvimento o cunho do caráter do ser” (Schlechta,
1995c, p. 895). Há pouco, a concepção de Nietzsche da auto-superação do niilismo
com base na radicalização do niilismo foi considerada algo próximo ao “movimento
do nada”. Nietzsche mesmo fala do “movimento do niilismo” (cf. Schlechta, 1995c,
pp.634 e 792) e estabelece a “vontade de poder” como força propulsora e suporte
deste movimento. Apesar de se dizer “movimento do niilismo” este movimento é,
na verdade, o “movimento da vontade”.

O sujeito humano tem que ser inserido no “movimento do nada”. Isto não é mais
um movimento autônomo que ocorre em algum lugar, pois ele está em unidade
com a transformação do modo de ser do sujeito. Porém, se a “vontade de poder”
não for inserida somente na transformação do modo de ser do sujeito e, sim, se ela
tomar por base o movimento do niilismo dominação e, enquanto a relação entre
nada e vontade permanecer opaca, algo assim como a “vontade de poder” ser
colocada no centro do nihlum, como o último estado das coisas. Em última
instância, a tendência para uma nova substancialização permanece conservada.
Tudo, até mesmo Deus, é desubstancializado e reinterpretado como ficção, por
motivo do aflorar e do desenvolvimento da força da “vontade de poder”, mas, a
própria “vontade de poder” se torna, sendo fundamento de todas as coisas, a única
realidade. De fato, a “vontade de poder” é compreendida como “essência do
mundo”, como “o caráter mais íntimo do ser” e como “o fundamento extremo de
todas as transformações”. Por isso, Keiji Nishitani diz o seguinte: “Na medida em
que é uma ‘vontade’ ela não se liberta do caráter de um ente” (Nishitani, 1983, p.
237; cf. também 1982, p. 329). Por isso, também Heidegger vê em Nietzsche um
crítico radical e refutador da metafísica ocidental, mas, ao mesmo tempo, o último
a consumar a metafísica ocidental. Se em semelhante lugar, que é também o
último, a “vontade de poder” for colocada como o único “ente” verdadeiro, ela
deveria assim, em última instância, suspender o nihilo do niilismo radical, que
também era denominado por Nietzsche desta forma. Pois o niilismo extremo é um
nihilo que anula justamente aquilo que, como fundamento do ente, “é
fundamento”. Se assim for, então isso significa que o nada extremo em Nietzsche e
a “vontade de poder” como superação deste nada, ambos estão muito distantes do
lugar existencial do 8° quadro da história do boi e seu pastor.

Porém, na idéia de “vontade de poder” de Nietzsche, que está intimamente


entrelaçado à substancialização problemática e metafísica, transparece aqui e ali
um elemento que poderia ser considerado como auto-expressão direta da vida
pura. Isto seria algo assim como a água do lençol freático, que une nos estratos
profundos os conceitos fundamentais de Nietzsche, tais como “vontade de poder”,
“eterno retorno”, “super-homem” e outros, ou, como fontes que jorram dessas
águas profundas aqui e ali. Desta forma, por exemplo, o riso e a dança são
designados, em Nietzsche, como a afirmação mais expressiva da vida. Na verdade
esta afirmação da vida em seu caráter mais extremo não é relacionada, de modo
transparente, à idéia de “vontade de poder”, embora seja mencionado lá o
esquecer com o qual é indicada fundamentalmente uma ausência da vontade: a
“vontade de poder” é, por assim dizer, suspensa do centro de seu poder. Com isso
é ligado, assim, o “brincar” ao mais alto modo de ser referido. Aqui, a “vontade de
poder” poderia ser compreendida como a perspectiva na qual o oitavo quadro, com
a representação de um círculo vazio em que tanto o pastor quanto o boi são
“esquecidos”, é transposto e é negado e afirmado de maneira absoluta. Isto é o
modo de ser no qual a vontade de poder esquece o poder e neste esquecer existe o
movimento natural do brincar.

Aqui será considerada apenas uma curta passagem de Nietzsche na qual a idéia
“esquecer = brincar”, torna-se clara, de maneira relativamente conseqüente. No
primeiro discurso de Zaratustra é abordado o modo como o espírito se transforma
em camelo, como o camelo se transforma em leão, que, por sua vez, se transforma
em criança. A criança como a última forma do espírito, que passou pelo modo de
ser do camelo e do leão, que estratificou a auto-superação, é exaltada da seguinte
forma: “A criança é inocência e esquecer, um novo começo, um brincar, uma roda
que gira por si mesma, um primeiro movimento, um dizer-sim santificado”
(Schlechta, 1995b, p. 294). Nietzsche vê na criança um “brincar do criar”.

O “camelo” representa o espírito que, de maneira respeitosa e obediente,


transporta cargas pesadas espontaneamente. É o modo de ser que, sempre
arrastando cargas pesadas, experimenta prazerosamente sua força. O camelo
aprende com o corpo tudo que é valoroso na tradição.

O camelo, que desta forma arrasta cargas pesadas, corre para o deserto e lá, em
seu mais profundo interior, transforma-se em leão. A força, que fora exercitada
com o transporte de cargas pesadas, lança a carga fora e se transforma na força do
leão, na força do “eu quero”. O leão, que diz “eu quero”, quer se tornar o soberano
livre no deserto. Ele desafia o até então soberano, Deus, o dragão, que diz “você
deve”, para uma luta, e o derrota com um “não” sagrado. Isto é certamente a
segurança da liberdade absoluta da vontade do “eu quero”, embora essa liberdade
seja sem conteúdo e esta seja a força da negação radical. Depois da derrota do
dragão, o deserto se transforma em uma amplidão ainda mais árida e solitária. O
leão, que suportou o nihil deste deserto, transforma-se repentinamente em criança.
E aquilo que jamais fora possível para o leão agora torna-se possível. Ou, como
fora dito anteriormente, o brincar “criativo” é o mundo da criança. O eterno
retorno, que era a forma extrema do niilismo, vira a forma da afirmação máxima.
Esta afirmação é a criança como “uma roda que gira por si mesma”, como o
“esquecer = brincar” inocente. (Deve-se especialmente chamar a atenção para o
fato de que aqui qualidade e tom são, de alguma forma, diferentes da idéia de
“vontade de poder”.)

Nietzsche desenvolve muito cedo idéias profundas sobre a “criança do mundo que
brinca” de Heráclito: “Se a força unificadora do mundo de Heráclito, o obscuro, for
comparada com uma criança que, brincando, põe grãos de areia aqui e ali, e
constrói montes de areia e as lança novamente” (Schlechta, 1995a, p. 132). O
brincar da criança do mundo mesmo é o mundo. O último modo de ser do homem
encontra-se lá, onde ele como criança, no próprio brincar, brinca desta criança
do mundo. Talvez se possa dizer ainda que Nietzsche, no modo de ser infantil do
inocente “esquecer = brincar”, pressentiu a supressão completa do niilismo.
Parece que a idéia “esquecer = brincar” tem uma ligação direta com o caminho do
“sem porquê”, mencionado há pouco, e sua afirmação, vista a partir da superação
do niilismo, mostra um parentesco próximo com o Zen. A representação do círculo
vazio na oitava estação é intitulada “O completo esquecimento do boi e do pastor”
(Ohtsu (1985, p. 41), e o modo de ser que, a partir de lá, se evidencia, é
designado expressamente nos “seis quadros do boi” como um brincar. O texto diz:
“brincando, correndo no caminho sem fim” (cf. Shibayama, sem ano, p. 44). Mas
parece que para Nietzsche esta relação entre nihil, vontade de poder e criança
ainda não teria sido, de maneira totalmente clara, consciente.

Heidegger, no final de sua conferência “Sobre a essência do fundamento”, comenta


esta “criança brincando com o jogo do mundo”, que é tão atrativa para Heráclito,
da seguinte forma: “Por que a criança crescida de Heráclito, que no olhar
αιων, brinca de jogo do mundo? Ele brinca, porque ele brinca... O brincar é
sem ‘porquê’ (...) permanece apenas o brincar: o mais elevado e o mais profundo.
Mas este ‘apenas’ é o tudo, o um, o único” (Heidegger, 1957, p. 188). Aqui vem à
tona novamente o “sem por quê”. Mas Heidegger acrescenta: “A pergunta que fica
é se nós e como nós, que ouvimos estas frases deste brincar, brincamos juntos e
nos submetemos ao brincar” (ib.). Com esta pergunta, a conferência “sobre a
essência do fundamento” é encerrada. A pergunta é se nós podemos ultrapassar o
niilismo como falta de resposta à pergunta “por que?”, ao mesmo tempo em que
existimos no “sem porquê” que vive e no brincar do ser que brinca. Heidegger
deixou esta pergunta em aberto. Talvez a pergunta fosse para ele a última.
Nietzsche aponta o caminho: “Quem quer se tornar criança deve superar sua
juventude” (Schlechta, 1995b, p. 401). Se assim o for, deve-se elucidar novamente
o sentido do modo de ser do “velho”, que aparece na décima estação da história do
boi. Quem pode se tornar criança não é, portanto, uma criança. Ele é o “velho”, que
superou a juventude. Somente como “velho” ele pode ser criança e mais do que
criança; principalmente tendo em vista que o esquecimento-de-si está também em
função do modo de ser do outro, que o esquecer é ao mesmo tempo o tornar-se
consciente de si-mesmo e o despertar do outro.

Tentou-se até agora considerar o nada em Eckhart e Nietzsche como algo que teria
um parentesco com a representação do círculo vazio. Mas o caráter absoluto
positivo do “nada absoluto” positivo de Eckhart reside na substância, e o nada não
era a negação da substância. Visto a partir do “nada do nada”, o nada extremo,
que é a predicação para Deus, era também negativo. Em contrapartida, no caso do
“nada absoluto” negativo do denominado niilismo radical de Nietzsche, o nada
nadifica a substância e se encontra aí um caráter absoluto do nada. Mas ocorre de
modo que o nada se torna substância negativa e não de modo que o nada, se
transformando, entre na afirmação. Assim é também o nada ativo que conduziu à
“morte de Deus”, simplesmente negativo, considerado a partir do “nada do nada”.
Falta ao “dizer-sim sacro” presente na idéia “esquecer = brincar”, como outro lado
de Nietzsche, por um lado, a clareza auto-consciente do nada extremo e por outro,
a clareza auto-consciente da “vontade de poder”. Por isso a última afirmação
permanece meramente negativa.

Por parte da afirmação absoluta, o nada absoluto é congruente com o “nada


absoluto” positivo de Eckhart, por parte da negação absoluta ele é congruente com
o “nada absoluto” negativo do niilismo radical. Porém, visto que a correspondência
das pessoas e o entrelaçamento das pessoas, da negação absoluta e da afirmação
absoluta sejam o nada absoluto - e isto é exatamente o movimento do “nada do
nada” -, tem-se então que, por um lado, em Eckhart, a negatividade não foi levada
avante suficientemente, e, por outro, falta negatividade a Nietzsche. O nada
absoluto permanece, em ambos, negativo. Mas o “nada” não é originariamente
negativo, absolutamente negativo, e não de outra forma? Não é evidentemente em
virtude do “nada”, que o “nada” é simplesmente passivo? Quando se tratar de
positivo ou afirmativo não seria sem sentido se referir ao “nada”, e sim, não
deveria apontar o ser, o supra-ente, o um, a substância ou Deus, não se deveria,
diante da proclamada “morte de Deus”, apontar um novo Deus, um último Deus,
que acaba de chegar? Ou: se Deus fosse refutado como uma ilusão, não se deveria
portanto nomear o homem mesmo como positivo e afirmativo? Sim, é assim! Será
que Nietzsche, na compreensão de que precisamente tal positivo e afirmativo teria,
em função de seu caráter de ser ente, perdido sua validade, não viu a necessidade
do niilismo positivo, ativo e radical? Quando Nietzsche afirma que “tendo vivido o
niilismo mesmo até o fim” ele “o teria superado, sob si e fora de si” (Schlechta,
1995c, p. 634), é permitido ver um caminho no movimento do niilismo que passa
por ele despercebido e o transpõe, no “nada do nada”, que está contido na
seqüência original dos dez quadros do boi, como fôra tratado acima.

Nietzsche fala ocasionalmente, de maneira intuitiva, sobre a inseparabilidade da


negação e da afirmação. Zaratustra diz: “Oh, minha alma! eu te dei o direito de
dizer não como a tempestade, de dizer sim como o céu aberto” (Schlechta, 1995b,
p. 467). Nietzsche mesmo fala de sua “natureza dionisíaca, que não conhece a
separação entre o dizer-não e o dizer-sim” (Schlechta, 1995b, p. 1153). Também
em Eckhart há uma ligação entre teologia negativa e positiva na via eminentiae.
Como sempre, a possibilidade da própria correspondência própria da negação e da
afirmação deveria se tornar o último problema.

Foi mostrado acima, que o círculo vazio no oitavo quadro representa um nada, que
é “mais” que o nada absoluto positivo de Eckhart e que o nada absoluto negativo
de Nietzsche, embora ambos mostrem um parentesco com o oitavo quadro, e neste
“mais” está, ao mesmo tempo, a virada para a grande afirmação. A nona e a
décima estação dos dez quadros do boi representam precisamente este “mais” do
nada absoluto do Zen, como fôra discutido na primeira parte deste artigo.

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Introdução

Em instigante artigo, Scott Randall Paine desenvolve a complexa questão do desafio do


Oriente para a filosofia ocidental. Argumenta em favor de novas perspectivas de
abordagem que possam contemplar a “vasta paisagem do fenômeno religioso” que
floresce em outras fronteiras, para além do domínio conhecido ocidental. Lança a
proposta de um saber filosófico que seja “autenticamente global”, sensível e aberto às
abordagens sapienciais do Oriente, distintas das fontes da racionalidade grega.

Não há como restringir o campo da reflexão teórica aos trabalhos de “micro-filosofia”.


Há hoje desafios interdisciplinares que são essenciais, incluindo nesse campo o desafio
da relação com a transcendência e o diálogo com as religiões mundiais. Na visão de
Randal Paine, “os filósofos ocidentais, porém, pronunciam-se, tipicamente, sobre o
mundo, o ser e o conhecimento humanos sem se orientar sobre o imenso fato que é a
realidade étnica, cultural, religiosa e sapiencial do Oriente”[1].
Foi com base nessa provocação de Scott Randal Paine que nasceu a idéia de uma
pesquisa sobre a Escola de Kyoto. Foi a porta de entrada escolhida para a reflexão sobre
a narrativa de Deus nas religiões não monoteístas. Embora não muito estudada no
Brasil, a Escola de Kyoto traduz um momento novo na história das idéias. Trata-se de
um grupo de filósofos que fornece “a primeira contribuição firmada e original do Japão
à filosofia ocidental”, e numa perspectiva especificamente oriental[2]. Entre seus
representantes, podem ser sublinhados: Nishida Kitaro (1870-1945), Tanabe Hajime
(1885-1962), Nishitani Keiji (1900-1990) e Ueda Shizuteru (1926-). O pensador mais
criativo e comentado dessa escola de pensamento foi Nishida Kitaro. Foi com ele que
essa escola se firmou e ganhou notoriedade. Na dinâmica de sua reflexão, Nishida
proporcionou um singular alargamento da perspectiva zen. Mesmo tendo deixado a
prática do zen budismo aos trinta e cinco anos de idade, não deixou jamais de se
apropriar criativamente desse caminho experiencial. Até suas últimas obras, manteve
acesa a convicção de que sua filosofia era um “desdobramento do zen dentro de si
mesmo, como uma manifestação nova do espírito zen”[3]. Os outros filósofos da Escola
de Kyoto mantiveram essa mesma relação de liberdade com o zen. Há que sublinhar
também, no processo de delineamento da reflexão da Escola de Kyoto, a afinidade com
o pensamento existencialista e com a tradição mística cristã, em particular Meister
Eckhart.

Talvez o ingrediente decisivo para a afirmação e divulgação da Escola de Kyoto em


âmbito mais amplo foi o destaque dado à questão de Deus e da religião, mas sempre em
chave de grande singularidade e originalidade. Identifica-se aí o traço mais significativo
da reflexão filosófica empreendida pelos seguidores dessa Escola. Mas também
desconcertante, pelo fato de surgir de pensadores que estavam, de certa forma,
mergulhados na perspectiva do budismo zen. Na verdade, o que se buscava não era
simplesmente a criação de um corpo de pensamento budista ou japonês, mas a
abordagem de “questões universais fundamentais no que eles viam como a linguagem
universalmente acessível da filosofia”[4]. Segundo James Heisig, “a idéia de Deus
parece servir como um tipo de metáfora que aponta para a unidade essencial da
experiência da consciência com a realidade tal como é, e isto é feito precisamente como
uma idéia ou imagem que opera na mente daqueles que crêem em Deus”[5].

1. A questão de Deus no budismo

Qualquer tentativa de aproximação e avaliação do budismo deve ser feita com extremo
cuidado e delicadeza. Há que sublinhar, em primeiro lugar, que não existe um budismo,
mas muitos budismos, que se desdobram em caminhos diferenciados: theravada,
hinayana, mahayana, vajrayana e outros. Ao se tratar a questão de Deus no budismo há
que estar consciente dessa complexidade. Muitas foram as opiniões cunhadas pelos
estudiosos ocidentais para definir o budismo, tratando-o como panteísta, politeísta, ateu,
nihilista, agnóstico ou simplesmente pragmático[6]. É problemática certa percepção,
presente no âmbito do catolicismo, que define o budismo como um “sistema ateu”, ou
que busca relativizar o alcance de sua perspectiva mística[7]. O caminho mais
pertinente para abordar essa questão vai na linha do apofatismo. São bem mais
profundas as razões que envolvem o respeitoso silêncio sobre Deus que anima a
perspectiva de Buda. Como assinala Panikkar, “o apofatismo budista pretende levar a
inefabilidade ao interior mesmo da realidade última e afirmar que esta mesma realidade
é inefável, inexprimível, incomunicável não só para nós, mas enquanto tal, quoad se,
porque o seu logos, a sua expressão não pertence mais à ordem da realidade última,
mas de sua manifestação”[8].

O dharma essencial do budismo ganhou sua melhor formulação no clássico sermão de


Benares, ocorrido logo após a iluminação de Buda, onde ele relata as Quatro Nobre
Verdades:

A vida é cheia de sofrimento; o sofrimento é causado pelo anseio compulsivo pelas


coisas da vida; o sofrimento pode ser interrompido por meio da renúncia desse anseio; e
há um caminho que conduz à cessação do sofrimento, isto é, o Caminho Óctuplo das
concepções corretas, da intenção correta, da fala correta, da conduta correta, do modo
de viver correto, do esforço correto, da atenção correta, da concentração correta[9].

Nesse ensinamento de Buda estão presentes alguns traços importantes da experiência


libertadora proposta pelo budismo, que envolvem a superação do desejo egocêntrico,
que acompanha a noção de eu; a busca de superação do que é transitório e
intransparente, pela dinâmica do esvaziamento, bem como o caminho da “experiência
pura” como meio para a libertação total. Delineia-se também o que é essencial para a
espiritualidade budista, ou o silêncio místico que envolve essa tradição, que é a
perspectiva de um caminho de superação do apego (tanha) que aprisiona o sujeito em
anseios compulsivos de poder e posse, que estão na base de tantos transtornos e
conflitos que maculam a história.

O silêncio de Deus praticado por Buda não traduz ateísmo ou ausência de religiosidade,
mas consiste “na forma mais radical de preservar a condição misteriosa do último, o
supremo, a que toda religião aponta”. Pode-se falar, com acerto, da negação como “cifra
da transcendência”. O fato de calar sobre Deus, de não se pronunciar sobre sua
existência ou ausência, revela, antes, a recusa de uma palavra supérflua a seu respeito.
Na verdade, para o budismo, a pergunta por Deus “é incorreta, indevida, lesiva à
transcendência da realidade referida”. Trata-se de uma “presença” que só pode ocorrer
de forma alusiva, sob forma de ausência, e que só pode ser dita com o silêncio[10].

Abordando a perspectiva do zen budismo sobre a questão de Deus, Suzuki assinala que
essa tradição não nega nem afirma Deus, nem se apega a qualquer entrave dogmático da
teia religiosa. O horizonte de sua busca envolve a ultrapassagem de toda lógica, na
busca de uma afirmação mais profunda. Para que isso ocorra é necessário ter a mente
livre e desobstruída, também com respeito às idéias de totalidade ou unidade. O que
ocorre é um misticismo peculiar, a seu “próprio modo”. Como assinala Suzuki, o zen “é
místico no sentido de que o sol brilha, que uma flor desabrocha”. Trata-se de uma
mística que “treina sistematicamente o pensamento para ver isso. Abre os olhos do
homem para o grande mistério que diariamente é representado. Alarga o coração para
que ele abranja a eternidade do tempo e o infinito do espaço em cada palpitação e faz-
nos viver no mundo como se estivéssemos andando no Jardim do Éden”[11]. Na
perspectiva do zen, a verdade está bem próxima do cotidiano, basta saber ver. Não é
necessário perder-se em “abstrações verbais e sutilezas metafísicas” para alcançar o seu
significado. A verdade “se acha realmente nas coisas concretas de nossa vida
diária”[12].

O que ocorre com o zen budismo é a busca de uma liberdade absoluta, mesmo com
respeito a Deus. O que predomina e determina a reflexão é a consciência de que nada
permanece de forma duradoura. Não há lugar para apegos, representações ou figuras de
retórica. Os nomes são todos imperfeitos e limitados. Rejeita-se mesmo o apego a Buda,
como sinalizado na conhecida expressão: “Se encontrares o Buda, mate-o”[13].

2. A reinterpretação da Escola de Kyoto

Grandes pensadores europeus, como Martin Heidegger, tiveram um interesse esporádico


ou instrumental para com o pensamento japonês ou oriental. Há, de fato, um “limite”
oriental no pensamento ocidental, que acabou por desconhecer a dignidade filosófica
que acompanha a produção dos pensadores orientais[14]. O mesmo não aconteceu com
os pensadores japoneses da Escola de Kyoto, que dedicaram grande atenção ao
pensamento ocidental. São pensadores que souberam articular de forma criativa, traços
desse pensamento com a riqueza da história cultural do Japão, tendo como horizonte um
caminho singular de abertura da mente à natureza da realidade imanente. Para Nishida,
o grande pioneiro dessa reflexão,“o objetivo do empreendimento filosófico era o
autodespertar: ver os fenômenos da vida claramente, pelo resgate da pureza original da
experiência, articular racionalmente o que foi visto e reavaliar as idéias que governam a
história e a sociedade humanas com a razão, assim, iluminada por meio da
realidade”[15]. A fidelidade à vida era um dos pilares de sua reflexão. Em anotação de
seu diário, em 1902, manifestava essa preocupação: “Ao fim e ao cabo, a erudição é
para a vida. A vida vem primeiro; sem ela a erudição é inútil”[16].

Numa de suas primeiras obras, Nishida aborda o evento da consciência pura. Para ele, o
ponto de partida do despertar filosófico está na percepção do caráter trivial da
experiência, que antecede a distinção entre sujeito e objeto. Trata-se da consciência
imediata do mundo, que antecede a intencionalidade cognitiva e volitiva: Na visão de
Nishida, “fazer a experiência pura significa conhecer o real concreto assim como é”,
sem qualquer acréscimo do discernimento reflexivo. Para expressar sua idéia, menciona
o átimo que envolve o ser humano na experiência das cores e do som. Não há ainda
pensamento, mas uma presença que é “pura” e imediata, precedente a qualquer juízo a
seu respeito. Nesse modo “puro” de experiência, o sujeito e o objeto estão
completamente unificados[17]. Mais que ter uma experiência, o indivíduo é tomado por
ela. Não é o sujeito que vê uma árvore, mas é essa que se mostra à sua vista.

A sintonia com a perspectiva zen budista é bem clara. Como assinala Suzuki, viver o
zen é simplesmente viver. É algo simples e ordinário, mas requer atenção[18]. A
mudança que ocorre é na vida interior. Num clássico dito do pensamento zen afirma-se:

Antes que eu penetrasse no zen, as montanhas nada mais eram senão montanhas e os
rios nada a não ser rios. Quando aderi ao zen, as montanhas não eram mais montanhas
nem os rios eram rios. Mas, quando compreendi o zen, as montanhas eram só
montanhas e os rios, só rios[19].

A experiência pura traduz um refinado fenômeno de consciência, que afirma a


prioridade ontológica do mundo face ao sujeito. Lendo uma vez as Confissões de
Agostinho, Nishitani ficou comovido com a seguinte passagem: “Por ele vemos que é
bom tudo o que de qualquer modo existe (...)” (Confissões, Livro XIII, 31). Com base
nessa citação, sinaliza a positividade que se inscreve na verdadeira natureza de todas as
coisas, e justamente por terem sido criadas por Deus[20].
O “originalmente puro” diz respeito ao que é incondicionado e indiferenciado. Pode ser
relacionado com o estado de “não-mente”, ou com o vazio, na medida em que não
existe ainda a oposição entre sujeito e objeto. Mas é um vazio “carregado de
vitalidade”[21]. No evento da consciência pura experimenta-se uma unidade que é
“infinitamente ativa”, traduzindo uma inusitada abertura ao infinito[22]. Na raiz desse
constituir-se da realidade, encontra-se uma atividade de unificação, que Nishida
identifica com Deus[23]. Ele não vacila em identificar Deus como o fundamento dessa
atividade infinita, mas não um Deus superior e fora do universo, mas um Deus que
fundamenta a atividade no universo e possibilita a “captação profunda da vida”[24].

Já insinuada na reflexão sobre a experiência pura, aparece outra idéia fundamental no


pensamento de Nishida, que é a subjetividade elemental. Trata-se da subjetividade que
emerge com a ruptura ou morte do eu-egocentrado, típico da modernidade moderna.
Essa modernidade concebeu o eu como um em-si separado e destacado das coisas. O
despertar do eu verdadeiro exige, necessariamente, a suspensão do desejo egoísta, do
apego compulsivo e o sentimento de posse. Nada mais falso do que essa noção de eu,
que é produtora de orgulho e arrogância: “a solidão dos que têm razão”. Há um
complexo e árduo caminho que vai do eu ao si-mesmo. O que Nishida propõe é
simplesmente retomar esse eu verdadeiro, tão proclamado pelos místicos de distintas
tradições. É o que no zen budismo vem identificado com o satori, ou seja, o despertar
para o si-mesmo carente de eu; o despertar para a consciência daquele “pontinho no
qual a alma se volta sobre si mesma, encontra a si mesma e sabe que ela própria é uma
criatura”[25].

Como bem mostrou Thomas Merton, o ponto de arranque da reflexão de Nishida é sun
ergo cogito (existo, logo penso). É, porém, um existir que vem banhado pelo sunyata
(vazio); que está consciente do vazio primordial que habita todas as coisas[26]. Só o eu
elemental é capaz de captar a realidade fundamental e acolher a vida de forma profunda,
sua “naturalidade elemental”, ou ainda melhor, a “outra borda desse mundo
mesmo”[27].

3. A transpersonalidade de Deus

Na perspectiva aberta pela Escola de Kyoto, sobretudo na reflexão de Nishitani, a


religião vem percebida como a “consciência da realidade”, ou ainda, a “real consciência
da realidade”[28]. O acesso a tal consciência vem favorecido quando mudanças
substantivas acontecem na dinâmica existencial humana: quando se supera a percepção
ordinária, onde as coisas e os eventos estão destacados do sujeito. Há que pensar, ao
contrário, o mundo como um evento “dentro de nós”; ser capaz de visibilizar o mundo
“prenhe de Deus”. Como indica Nishitani, as coisas mais banais e cotidianas podem
tornar-se focos peculiares de atenção e concentração, revelando dimensões
completamente diversas e possibilitando um sentimento único do real. Um tal olhar é
capaz de desocultar a ordem mística que irmana todas as coisas do universo,
despertando “o profundo sentimento das coisas cotidianas”[29]. Quando as coisas são
vistas em sua gratuidade, para além da esfera egocêntrica do eu, elas desvelam sua real
realidade e acendem caminhos singulares de simpatia. O olhar é capaz de se perder
nelas, e mesmo transformar-se nelas. Ao se perceber separado das coisas, o sujeito
humano acaba por se distanciar de si mesmo, fechando-se num mundo de mônadas sem
janelas. Exige-se um caminho distinto caso se queira captar a vida como uma “ligação
vivente”.
Não há como entender a existência humana sem a dimensão religiosa. É o que sinaliza
Nishitani. A religião é para ele um dado necessário, revelando o que há de mais
profundo na alma humana. Não pode ser concebida como algo separado da vida:
identifica-se com a necessidade da vida mesma, presidindo a dinâmica de sua unificação
mais profunda[30]. Em descontinuidade com o divórcio operado no Ocidente entre
filosofia e religião, bem como entre busca científica e busca religiosa, Nishitani
sublinha a inseparável presença da dimensão religiosa na existência humana. Na linha
de sua reflexão, “a ciência será sempre um empreendimento humano a serviço de algo
mais, mas quando se sacrifica o elemento existencial à busca da certeza científica, ´o
que chamamos vida, alma e espírito – inclusive Deus – encontram seu lar
destruído`”[31].

Embora rechaçando a tradicional idéia ocidental de uma transcendência divina, os


pensadores de Kyoto não descartam a idéia de Deus ou a possibilidade de uma
transcendência. Na reflexão pioneira de Nishida, Deus aparece como “a cifra do
dinamismo da vida do mundo”. Deus é, para ele, simultaneamente transcendente e
imanente. O que é infinito não pode rejeitar o finito. Na verdade, o infinito habita no
âmbito do finito[32]. Imaginar um Deus separado de tudo é desvencilhar-se de seu
verdadeiro significado: “Um Deus que fosse simplesmente transcendente e auto-
suficiente não seria um verdadeiro Deus”[33]. Não há como descartar a dimensão
kenótica de Deus, que se esvazia de sua condição absoluta para envolver-se no domínio
do humano. Deus se faz absoluto “não por sua independência do mundo, mas porque
seu ser se relaciona com ele absolutamente”[34]. Para expressar essa relação de
proximidade e diferença entre Deus e o humano, Nishitani recorre a Daito Kokushi:
“Separados por uma eternidade, e nem um só instante distantes; face a face o dia todo, e
jamais vizinhos um só instante”[35].

A reflexão de Nishitani vai em direção semelhante, reconhecendo a presença de Deus


em toda a criação. A seu ver, reconhecer que Deus é onipresente significa abrir a
possibilidade de encontrá-lo em toda parte do mundo[36]. Encontra, porém, dificuldade
com a ênfase dada pela tradição cristã no aspecto pessoal de Deus. Sua proposta vai
numa linha de sintonia com o budismo e a mística eckhartiana, com o acento dado no
aspecto impessoal ou transpessoal de Deus. Como assinala James Heisig, o que
Nishitani reivindica urgentemente para o cristianismo é a recuperação da imagem de
Deus como um “amante ´impessoal`, no sentido mais nobre da palavra”[37]. Com o
aporte da reflexão de Eckhart, Nishitani reapropia-se da idéia de um “Deus mais além
de Deus”, do “Deus vazio de todas as coisas”[38], ou seja, da deidade, enquanto uma
divindade elemental. Como indica Nishitani, o que assegura a plausibilidade da idéia de
Deus é encontrar “uma impersonalidade mais fundamental por trás da personalidade de
Deus”[39]. É o que havia defendido Eckhart num de seus sermões alemães, com a idéia
de Deus como “Um simples”, que não existe “no modo e na ´propriedade`de suas
pessoas”[40]. A retomada dessa imagem de Deus é, para Nishitani, condição essencial
para o rejuvenescimento das imagens de Deus em curso nas diversas tradições
religiosas.

4. O nirvana no âmbito do samsara

Na busca de superação de todos os dualismos, Nishitani propõe o movimento da


transcendência para a vacuidade. Entra-se aqui num campo complexo, cuja fecundidade
não foi ainda devidamente alcançada na cultura ocidental moderna. No budismo zen
trabalha-se com a idéia de “plenitude do nada”[41], de um nada cheio de sentido. A
noção de sunyata (vacuidade), na tradição budista, não implica um não-ser ou negação
do ser. Na realidade, ela é anterior ao ser e sua condição de possibilidade. E ainda mais,
é o que possibilita a liberdade do ser[42]. Para Nishitani, é o caminho do sunyata que
responde de forma mais radical ao desafio do nihilismo contemporâneo. É o que
possibilita a transcendência para o mundo. O “abismo” do nihilismo encontra na
vacuidade “um vale insondavelmente profundo no interior de um infinito aberto”, de um
infinito que envolve a terra e o ser humano[43]. Trata-se de uma noção que se aproxima
da mística advaita, presente na tradição hindu. Para além do monismo e do dualismo, a
intuição advaita indica a ausência de dualidade que está na base da realidade. É uma
intuição que transcende o pensamento dialético e possibilita o vislumbre do Uno como
“Um-sem-segundo”[44].

No desdobramento de sua reflexão sobre a subjetividade elemental, Nishitani destaca


que o verdadeiro alcance da unificação mística só acontece quando a subjetividade
despoja-se radicalmente de suas amarras egocentradas e se “perde” em Deus. É nesse
momento que se alcança o fundo da subjetividade e se alcança o nada absoluto da
Deidade[45]. Esse “perder-se em Deus” não significa, porém, deslocamento ou
isolamento da realidade. O “nada absoluto” como campo da Deidade não desloca o
sujeito de seu cotidiano. O “estar na Deidade” não se reduz ao momento de mera
contemplação de Deus, mas envolve, e radicalmente, a realização da Deidade na vida
cotidiana concreta[46]. Com razão, Suzuki assinala que “o nirvana deve ser buscado no
seio do samsara”[47]. A transcendência para a vacuidade deve acontecer no centro da
vida do mundo. Na visão de um dos grandes reformadores da tradição budista japonesa,
o mestre Dogen (1200-1253), “aprender a via do Buda é aprender a si mesmo; aprender
a si mesmo é esquecer-se de si mesmo; esquecer-se de si mesmo é ser despertado por
todas as coisas”[48].

Há na tradição budista uma íntima conexão entre os conceitos de sunyata, não- ego e
compaixão (karuna). O mesmo ocorre com a noções de kenosis e sunyata. O exercício
da compaixão requer o esvaziamento de si, a ruptura da hybris totalitária e da
desmesura. Quando se vive a profundidade da experiência do não-ego, ou da
subjetividade elemental, o exercício do amor não-discriminante acontece de forma
natural[49]. O traço característico do “eu libertado do auto-apego é um amor
indiferenciado para com todas as coisas, como Deus que faz brilhar o sol ou libera a
chuva sobre bons e maus, sem nenhuma discriminação”[50]. Esta perspectiva foi
captada de forma admirável por Mestre Eckhart, ao tratar a questão de Marta e Maria,
no sermão alemão 86. A figura de Marta ganha um lugar de destaque nesse sermão, na
medida em que ela exercita o fundo da alma ao extremo. Trata-se de alguém que vive a
essencialidade, e de forma muito livre, fazendo com que sua ação no cotidiano ganhe
uma fluência singular.

Conclusão

Ao final de sua preciosa obra sobre a Escola de Kyoto, James Heisig assinala algumas
perspectivas abertas pela singular reflexão de seus pensadores. Vale mencionar toda a
discussão em torno da questão do não-eu como sujeito da eleição moral; da atenção
precisa ao real; do questionamento à concepção antropocêntrica da realidade e as
originais reflexões sobre o Deus transpessoal. Pistas singulares ocorrem na relação
dessa Escola com o budismo, e suas implicações para o diálogo com o cristianismo.
Talvez um dos pontos mais substantivos de aporte da reflexão acontecem no campo da
mística. Há intuições exemplares na linha de uma mística do cotidiano. Pode-se destacar
a convocação a um novo modo de pensar as coisas. Segundo Ueda Shizuteru, um dos
últimos representantes dessa Escola, “habitamos um mundo essencialmente limitado,
que limita com o ilimitado e no limite está rodeado pelo aberto ilimitado e de algum
modo penetrado por ele”[51]. O grande desafio consiste em estar atento para ouvir o
canto das coisas. Isso requer uma orientação do ser humano para dentro de si mesmo, de
despojamento profundo dos apegos ensimesmadores, de reforço na atenção e simpatia
para com tudo.

Publicado no livro eletrônico do Instituto Humanitas: X Simpósio Internacional


IHU. Narrar Deus numa sociedade pós-metafísica, pp. 916-937:

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