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DESTINO FINAL

As pálpebras de Ricardo penosamente se abrem, revelando unicamente


trevas. A adaptação das pupilas, mesmo com o passar dos minutos,
pouco pode fazer contra a densa escuridão. Seu corpo parece não
reconhecer a superfície dura e irregular do colchão. A última tentativa
de captar alguma sensação familiar é o tatear da mão esquerda em
busca da de sua parceira. Após alguns torturantes instantes, as mãos se
reúnem. O resultado é ainda pior, pois aquela mão áspera e fria
certamente não pertence à sua esposa.

Um sussurro chega a seus ouvidos, sibilante, rouco e irreconhecível.


Aquele "oi...", longe de tranquilizá-lo, acende a chama do pânico em seu
peito. Ricardo, coração disparado, se lança da cama aos tropeções.
Busca em desespero o retângulo de luz que delimita a porta do quarto.
Atrás de si a estranha voz que persiste em chamá-lo: "venha, venha
cá..".

Ainda com o som daquela voz a reverberar em sua cabeça, Ricardo


emerge do quarto sombrio e irrompe no cômodo além da porta, o
contraste luminoso ferindo seus olhos como uma lâmina. No centro do
ambiente excessivamente iluminado, um mulher sentada numa cadeira.
Ele tenta se aproximar, pé ante pé, presa da torturante sensação de
nunca chegar ao destino. Dentro de si sente a agonia subindo, subindo
sempre, a insanidade parecendo aguardá-lo logo à frente. A imagem
ganha cada vez mais detalhes à medida em que finalmente se acerca da
criatura imobilizada. Pés e mãos atadas por arames afundados na carne
sangrenta, olhos abertos além do natural, expressão de um horror
infinito. Ricardo conhece a vítima - Tatiane? - mas sua mente tenta
desesperadamente negar o fato, empurrando as lembranças para algum
canto escuro do intelecto. O pânico reassume o controle de suas ações
e o impulsiona para fora dali, em busca do esquecimento.

Desce apressado um lance de escadas, mergulhando num porão


dominado por aroma denso, adocicado e repulsivo de decomposição
meio contida. Uma lâmpada balança ridícula no teto, precariamente
presa a um par de fios azuis. Ao redor, prateleiras, bancadas repletas de
ferramentas. A poeira e um exército de manchas escuras espalhadas em
toda parte dominam a cena. Na extremidade esquerda da bancada de
trabalho uma serra circular parece repousar em meio a seu trabalho. Na
plataforma de corte logo abaixo do disco dentado, uma peça de carne
rosada já dividida em duas. Acima, nos brilhantes dentes de aço, gotas
retardatárias de um líquido viscoso e escuro estão prestes a cair.

Sua velha oficina, para onde sempre voltava em busca de paz. O refugio
após as incursões noturnas, produtos das insuportáveis crises de
enxaqueca. O olhar de Ricardo passeou pelo cômodo com vagar,
acariciando cada peça, cada objeto. A sensação de familiaridade e
conforto era imensa. Deteve-se a contemplar com certo orgulho as
grandes caixas de metal, meticulosamente etiquetadas: Janine, Carol,
Anônima 1, Rejane, Anônima 2, Paula,... "Sempre fui muito organizado!",
congratulou-se. A sensação de paz, porém, foi estilhaçada como um taça
de cristal que cai ao solo. Sua mente se debate, mas uma força
irresistível o leva a aproximar-se de um grande depósito de rejeitos, bem
ao lado da serra elétrica. Olha para o interior dominado por uma
vertigem avassaladora. É como se se debruçasse num precipício sem
fim. No interior da caixa, uma profusão quase cômica de restos
humanos, em estágios diversos de conservação. Destaca-se como se
tivesse luz própria, um anel de ouro frouxanente preso numa mão
murcha. O presente de quinze anos de sua filha.

A lembrança da festa, a alegria dos presentes, o olhar doce de Tatiane,


tudo àquilo causa o efeito de um violento tapa no rosto. Uma impossível
porta se abre sob a escada por onde descera, oferecendo-lhe uma
bocarra negra como rota de fuga. Aceita sem pensar.
Desta vez poucos minutos bastam para reduzir as trevas. Sentado no
colchão, o mesmo vulto negro a tamborilar metodicamente nos lençóis.
"Venha, venha cá..." A mesma fuga em busca da luz o leva ao mesmo
destino. A sensação de estar ali novamente, como fosse um rato preso
numa roda, é esmagadora. Incoerente, brota de seu interior um insano e
silencioso grito. A única resposta que obtém vem da mulher amarrada na
cadeira: "papai! Me tira daqui..."
FIM

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