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Amor Proibido Ride the Thunder

Janet Dailey
Best Sellers (sem número)

Crime e traição; ardor e desejo inabaláveis.

Fletcher Smith vive afastado de sua mulher Olivia e de seu filho Kit,
homessexual. Apenas a bela Jordanna compartilha sua vida afetiva e seu maior
interesse: a caça. Fixada no pai, Jordanna não se relaciona com outros homens. Mas
o dilaceramento familiar não impede que Jordanna desperte para o amor. Numa
festa na casa de Fletcher, Brig McCord e Jordanna encontram-se, apaixonam-se de
modo fulminante e têm um caso. Brig, no entanto, julga que Fletcher e Jordanna
são amantes...

Digitalização: Fátima Chaves


Formatação e Revisão: m_nolasco73

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Outras capas:

Outro resumo:
Jordanna Smith era a filha impetuosa e elegante de um destacado banqueiro e
de uma colunável glamourosa, uma caçadora que atravessava o mundo ao lado do
pai em busca das feras mais bravias. Aos olhos dela ninguém se comparava a seu
pai... até a noite em que Jordanna encontrou um rude e estranho jovem que, num
momento de exaltação e frenesi, tocou as raízes de um desejo que ela jamais havia
conhecido. Um caso de amor vivido intensamente por dois jovens apaixonados,
pelos conflitos de uma família, por um assassinato misterioso e emoções sem conta
que fazem deste romance talvez o melhor da autora.

Janet Dailey

Amor Proibido
Tradução de Isabel Paquet de Araripe

1986
NOVA
CULTURAL

Título original:
Ride the Thunder

© Copyright 1980, by Janet Dailey


© Copyright desta edição, Editora Nova Cultural Ltda., São Paulo, 1986.

Publicado sob licença de Pocket Books, Nova York, e Distribuidora


Record de Serviços de Imprensa S.A., Rio de Janeiro.

Tradução publicada sob licença da Distribuidora


Record de Serviços de Imprensa S.A., Rio de Janeiro.

Capa: © Three Lions


Prólogo

O gabinete espaçoso era forrado com magníficos lambris de nogueira. A luz


do sol entrava pelas cortinas transparentes que cobriam a porta de vidro que se
abria para o terraço do apartamento de cobertura. As paredes brilhavam com um
brilho natural. Poucos livros enfileiravam-se nas prateleiras do chão ao teto que
ocupavam um canto da sala. Os volumes eram dedicados a armas e caçadas, e
estavam gastos pelo manuseio constante. Na sua maioria, as prateleiras continham
lembranças e fotos de um caçador ao lado da sua presa. Um carcaju empalhado
enfeitava uma prateleira superior, enquanto uma cascavel enroscada parecia
ameaçar os incautos, da sua prateleira junto ao chão.
As cabeças de veados e alces, troféus pendurados nas paredes, eram
entremeadas com espécimes mais exóticos, como rinocerontes e gazelas. Um lince
baio empalhado estava pousado diante de uma singela lareira de tijolos; sua presa,
o faisão chinês, achava-se do outro lado. Acima da cornija, duas presas de marfim
de um elefante bravio formavam um arco para uma águia dourada, empalhada de
asas abertas, protegendo o esquilo cinzento sem vida nas suas garras. No chão,
em frente à lareira, jazia a pele de um urso pardo, os olhos vidrados e os dentes
expostos, imobilizados numa ameaça silenciosa.
Um armário de armas caro e solidamente construído apoiava-se contra uma
das paredes. Os canos de metal das armas brilhavam com a lubrificação cuidadosa,
mas as coronhas de madeira deixavam ver os sinais de uso. Uma escrivaninha
pesada não exibia papelada no tampo, apenas mais fotos e recordações de
caçadas bem-sucedidas.
Dois sofás iguais, cobertos de couro claro, ficavam um em frente ao outro, de
cada lado do tapete de pele de urso. Sentado num deles estava um garoto
magricela de catorze anos, vestindo um suéter azul-celeste e calça azul de tom
mais escuro. Os dedos longos e delicados limpavam, atarefados, a boca de um
fuzil. Um cacho de cabelos escuros, quase negros, caíra sobre a testa do jovem,
enquanto ele se inclinava sobre a tarefa a cumprir. Havia um ar de perfeição em
seus traços sensíveis, como se tivessem sido desenhados por um artista. Cílios
longos, espessos e recurvos emolduravam um par de olhos castanho-aveludados,
intensamente concentrados no fuzil.
Sentada em frente dele, no outro sofá, uma garota de doze anos estava
ocupada da mesma forma, limpando uma arma mais leve. Aí terminava a
semelhança. Seu corpinho esguio estava vestido com jeans impecáveis e uma
camiseta de malha cinzenta de tamanho exagerado. Seu cabelo comprido caía
numa única trança cor de cobre, na parte da frente do ombro. Quando a trança
interferia na sua tarefa, a garota jogava-a para trás num gesto de impaciência. Suas
feições frescas e animadas brilhavam de vitalidade. Apenas a curva de seus lábios
exibia a vulnerabilidade e sensibilidade estampadas no belo rosto do irmão. Seus
olhos castanhos eram pintalgados de um verde que podia brilhar de raiva ou
excitação, ou ficar escuro e tormentoso como o mar.
De uma poltrona de encosto alto, que havia sido estofada de couro marrom e
se gastara pelo uso até um tom castanho-amarelado, um homem supervisionava o
par em silêncio. Esfregava distraidamente um pano na coronha de madeira do
Winchester no seu colo, num gesto a um só tempo afetuoso e respeitoso. Seu fuzil
já fora limpo após o uso recente. Longos anos de experiência permitiram que
terminasse antes dos garotos que estava observando.
Um cachimbo de urze branca estava preso entre os dentes, já apagado,
embora a mistura aromática do fumo pairasse no ar. Vestindo calça marrom e uma
jaqueta peluda, era o próprio caçador. Seus cabelos castanho-escuros tinham um
toque avermelhado. Tufos grisalhos e distintos começavam a aparecer nas
têmporas. Virilmente belo, tinha um ar distante. Ao longo dos anos, conseguira tal
controle sobre suas emoções, que muito pouco do que sentia ou pensava
transparecia no rosto bem-feito ou nos olhos castanho-escuros.
Vindo do outro lado da porta fechada do escritório, ouviu-se o som de outra
porta se abrindo e se fechando. Imediatamente a cabeça da mocinha se levantou,
um brilho fosforescente de animação iluminando-lhe os olhos. O fuzil e os petrechos
de limpeza foram rapidamente postos de lado, quando ela se pôs de pé, num salto.
— Deve ser mamãe. Vou contar-lhe a novidade!
— Jordanna, espere. — Quando o homem acabou de tirar o cachimbo da boca
para chamá-la, a garota já estava fora da sala. Os cantos da boca do homem se
estreitaram brevemente, enquanto ele colocava o cachimbo no porta-fumo ao lado
da cadeira. Sem demonstrar nenhuma pressa, levantou-se e foi até o armário de
armas. Depois de colocar o fuzil lá dentro e trancar o armário, virou-se e deparou
com o ar de expectativa dos olhos do filho. — Acabe de limpar seu fuzil, Kit. Eu o
inspecionarei antes que seja guardado. — A ordem firme foi acompanhada de um
sorriso.
— Sim, papai. — O adolescente voltou a se concentrar na tarefa sem
demonstrar má vontade ou ressentimento, enquanto o pai saía da sala.
Sair do escritório estritamente masculino e entrar nos brocados e lustres da
sala de visitas era quase um choque cultural. Um tapete espesso num tom mais
suave de verde cobria o chão do aposento espaçoso. As paredes cor de gelo eram
adornadas com quadros de mestres italianos, tanto originais quanto cópias
caríssimas, numa variedade de pesadas molduras douradas. Um sofá imenso era
estofado de brocado azul, com um leve desenho dourado. O sofá era ladeado por
mesas em estilo italiano, em cima das quais havia abajures de cristal e bronze;
diante dele, ficava uma mesa de centro comprida, de nogueira americana. Duas
poltronas iguais, no mesmo tom delicado do tapete, ficavam uma em frente à outra,
diante de uma lareira de mármore branco. O tema monocromático de verde-claro
era repetido nas cortinas de veludo e nas sanefas drapeadas. Espalhados pela sala
viam-se vasos com flores recém-colhidas, todas nos mais diversos tons de rosa.
No centro de toda essa elegância estudada, achava-se uma mulher de
cabelos negros, uma criatura estonteantemente linda e sofisticada. Uma empregada
de uniforme esperava a seu lado, com um casaco de zibelina jogado sobre o braço,
enquanto a mulher tirava graciosamente as luvas pretas de pelica.
— Obrigada, Tessa. — Enquanto entregava as luvas à empregada, sua voz
educada a despedia delicadamente; não precisava mais dos seus serviços.
A empregada deixou discretamente a sala, enquanto a garota de cabelos
acobreados entrava atropeladamente.
— Adivinhe só! — exclamou para a mãe, excitadíssima.
— Mas, pelo amor de Deus, o que você está fazendo com essas roupas
horríveis, Jordanna? — Um par de olhos verde-jade percorreram os trajes da garota
com franco desprazer. O costume bege de inverno da mulher tinha o mais moderno
dos cortes, e todos os acessórios haviam sido cuidadosamente escolhidos para o
melhor efeito possível. — Pensei ter dito a Tessa que as jogasse fora. Você tem um
armário cheio de roupas lindas que lhe comprei. Está mais do que na hora de parar
de parecer uma molequinha vulgar.
— Estávamos praticando tiro ao alvo. — A crítica da mãe entrou por um
ouvido e saiu pelo outro. — Papai falou que posso ir caçar com ele no fim de
semana que vem, quando for levar Kit — anunciou Jordanna, com alegria incontida.
As lindas feições de alabastro ficaram imóveis de choque, que aos poucos foi
sendo substituído por uma raiva crescente.
— Está falando bobagens.
— Não, não estou — insistiu Jordanna. — Papai falou que me levaria.
Verdade. — Com o olhar aguçado, percebeu o movimento a seu lado e se virou. —
Se não me acredita, pode perguntar a ele. Você disse que me levaria, não foi,
papai? — falou a garota para o homem que entrava na sala.
— Disse, sim — admitiu, o olhar castanho e sereno encontrando o fogo verde
do olhar da mulher.
— Jordanna é uma garota, Fletcher. Já não basta você ter que levar
Christopher para esse teste nojento de virilidade, e ainda tem que arrastar minha
filha?
— Mas eu quero ir — protestou Jordanna.
— Cale a boca e não se meta! — A mãe virou-se feito uma fera para a garota,
mal conseguindo controlar a fúria que a fazia tremer. — Isso é entre seu pai e mim.
— Livvie, você está exagerando, como sempre. — O comentário seco
forneceu ainda mais combustível para uma cólera já descontrolada.
— Exagerando? — A menina foi esquecida, enquanto a mulher fitava, raivosa,
o homem à sua frente. As unhas longas e bem-feitas estavam cravadas nas palmas
macias. — É a sua acusação favorita, não é? "Olivia, você está sendo emotiva
demais." — Com sarcasmo, parodiou o comentário dele.
— E está — declarou Fletcher Smith, a calma voz de tenor sem uma
alteração. — Olhe só para si mesma. Está toda trêmula.
— E o que espera que eu faça? — exclamou, frustrada. — Minha filha me
anuncia que vai caçar com você no fim de semana que vem. Ela também é minha
filha, Fletcher! Creio que também tenho direito de opinar sobre o assunto. Minha
permissão também é necessária.
— Eu gostaria de ter discutido o assunto com você, mas nunca está por perto.
Tem uma agenda muito cheia de compromissos, quando estou em casa. — O
comentário dele continha uma nota sutil de condenação.
— O que é muito raro! — retrucou Olivia Smith. — E, quando está aqui, passa
dois terços do tempo naquele escritório com suas cabeças de animais empalhadas
e suas malditas armas! A caça pode ser a sua vida, mas não é a minha!
— Não mesmo? — A boca firmemente esculpida retorceu-se com humor
cínico. — Você se sai muito bem caçando o macho da espécie bípede, ao que me
consta. Parece ser tão hábil em colecionar troféus quanto eu.
— Por que não vai direto ao assunto, Fletcher? — Seu desafio amargurado
era frio de raiva. — Quer saber quantos amantes tive?
A linha tensa do maxilar dele pareceu tornar-se esculpida em bronze. Seu
olhar correu significativamente pelo rosto pálido da filha.
— Se pretende continuar neste tópico, Livvie, posso sugerir que espere até
Jordanna sair da sala? Considerando-se sua suposta preocupação com as coisas
desagradáveis a que ela possa ficar exposta nos seus anos de formação, você não
deve discordar.
A mulher deu uma risada trêmula e amarga.
— Como você sabe me fazer parecer uma puta, não é, Fletcher? —
murmurou. Arredondando os olhos verdes para conter as lágrimas ardentes, olhou
para a filha. — Vá para seu quarto, Jordanna.
Em vez de obedecer, a menina virou-se para o pai e abraçou-o pela cintura,
com toda a força.
— Desculpe, papai — disse, engasgando-se com um soluço. — Não queria
que ela ficasse zangada com você.
— Tudo bem, Jordanna. — Segurou-a por um instante gostoso, depois
endireitou-lhe a trança de cabelo ruivo, para que ficasse encostada à espinha.
Livrando-se dos braços que o envolviam, afastou-a com firmeza. — Agora, vá
andando.
— Por favor, não deixe que ela me faça ficar em casa no fim de semana —
suplicou. — Quero ir com você.
— Eu sei — disse ele, meneando a cabeça, e empurrou-a suavemente para
fora da sala. — Vá andando.
Ela saiu do aposento com passadas lentas e desconsoladas. Sua obediência
durou até chegar à segurança do corredor. Ali, parou e se grudou à parede, para
escutar, desejando ouvir o resultado daquilo, e no entanto odiando as brigas
amargas que pareciam magoá-la mais do que a eles.
— Jordanna não vai com você — declarou a mãe. — Já é ruim o bastante
você estar levando Christopher. É um rapaz tão bom, tão sensível... Quando se vai
dar conta de que não pode forçá-lo a crescer e ser igual a você?
— Considerando-se o modo como você o mimou, vai ser um milagre se ele
conseguir crescer. A maioria dos rapazes da idade dele já foi caçar — argumentou
Fletcher. — Esperei até agora porque você ficava dizendo que ele era jovem
demais. Kit quer ir. Pare de sufocá-lo com seu amor e deixe que ele cresça, Livvie.
— Christopher não quer ir. Se diz que quer, é apenas porque sabe que é o
que você deseja ouvir.
— Está enganada. — Não ergueu a voz nem alterou seu diapasão sereno. —
Alguns dos seus amigos de escola foram caçar veados, e lhe contaram como foi. Kit
está entusiasmado com a caçada.
— Ele não percebe que você realmente espera que ele mate um veado. Ele
sente as coisas, Fletcher. Jamais poderia matar um animal pobre e indefeso, a
sangue-frio. Você curte isso.
— Quando vai deixar de equiparar a caçada ao assassinato? — quis saber o
homem.
— Quando você parar de tentar moldar meu filho naquilo que acha que um
homem deve ser! — retrucou ela, com raiva. — Devia tê-lo detido quando comprou
o primeiro revólver para Christopher.
— Fuzil — corrigiu ele, automaticamente.
— Fuzil. Revólver. Que diferença faz? Você me convenceu a deixar que ele
ficasse com ele. Fiquei vendo você ensinar o menino a usá-lo. Nunca vou
compreender como foi que você me convenceu a deixar Jordanna aprender a atirar.
Sempre consegue o que quer, Fletcher. Até mesmo concordei em deixá-lo levar
Christopher nas caçadas. Mas não Jordanna. Não vou deixar que ela vá com você.
— Os dois querem ir. Também quero. Não é sempre que posso vê-los. Se não
estão na escola, então sou eu que estou viajando por aí. Quero um pouco de tempo
para sermos uma família, para compartilharmos as coisas.
— Então, fique em casa! Pare de saracotear pelo mundo! — gritou Olivia
Smith, cheia de frustração. — Não estou mais pedindo por mim, mas pelas
crianças. Pare com essas caçadas sem sentido.
— É o que eu curto. Sobram-me poucos prazeres — afirmou ele.
— Isso é indireta para mim, imagino. Fiz sua vida infeliz, Fletcher? Espero que
sim, porque a minha tem sido um inferno desde que me casei com você!
— Liv, por que temos que brigar? Por que não podemos discutir
racionalmente? — Correu a mão cansadamente pelos cabelos grisalhos que lhe
encimavam a orelha.
— Por que não pode largar as caçadas?
— Você não entende nada de caçadas. Acha que é um esporte de matança. É
a emoção da perseguição, Livvie. É jogar a sua habilidade e seus conhecimentos
contra os de outrem. É a caçada, não a matança. Venha conosco no fim de
semana, e descubra por si mesma.
— Depois de todos esses anos em que fiquei em casa sozinha, você
finalmente está me pedindo para ir com você. É tarde demais. — Sua voz rouca
latejava de emoção. — Nunca esteve aqui quando precisei de você, Fletcher.
Estava em algum safari ou em algum fim de mundo qualquer, onde não podia ser
localizado. Sempre me deixou isolada. É de admirar que eu tenha me voltado para
outros? No entanto, você põe a culpa em mim. Agora, espera que vá com você,
quando não me fez uma única concessão.
— O que acha que é este apartamento? Odeio Nova York. Aqui é onde você
deseja morar, não eu. Não é um lugar apropriado para se criar os filhos, embora
você não esteja dando a mínima. O que lhe interessa são as compras, as festas e o
teatro. — Pela primeira vez, havia um fio de exasperação irada na voz dele. — Não
entendo por que está tão chateada pelo fato de eu querer levar tanto Jordanna
quanto Kit comigo no próximo fim de semana. Teria dois dias inteiros para passar
com o seu amante mais recente, seja lá quem for!
— Pena eu não ter pensado nisso! — disse ela rindo, mas era um som débil e
falso.
— Que merda, Livvie! — Agarrou-lhe com força os ombros rígidos, como se
quisesse sacudi-la. Você é minha mulher.
Ela se manteve rígida nos braços dele, sem ceder à tentativa de domínio ou à
declaração raivosa.
— Há muito tempo que parei de amá-lo, Fletcher. — Vagarosamente, foi
libertada, enquanto Fletcher Smith se controlava, para encará-la com a serenidade
anterior. Foi Olivia quem desviou os olhos. — Quanto a Jordanna, pode levá-la com
você no próximo fim de semana. Dois dias só para mim podem ser exatamente
aquilo de que estou precisando. Você venceu, Fletcher... mas, afinal de contas,
sempre vence.
— Dou-lhe a minha palavra, Livvie, de que ela não vai dar nenhum tiro. Só vai
acompanhar Kit e a mim. Só isso.
Jordanna já tinha sua resposta. Ia participar da viagem. Mas não conseguiu
ficar eufórica com a notícia. As lágrimas escorriam por seu rosto. Sentia um bolo
pesado no estômago, enquanto percorria o corredor, vagarosamente, na direção do
seu quarto.

A primeira luz da aurora começava a se filtrar pelos bosques de Vermont. O ar


estava imóvel e quieto, exceto pelo gorjeio dos pássaros no topo das árvores. Um
homem, um garoto e uma garota achavam-se parados junto a uma árvore caída. O
homem estava agachado, sem se mover, o fuzil apoiado na curva do braço, a boca
da arma apontada para longe das crianças. O menino estava sentado sobre os
joelhos, o cano do fuzil apoiado no tronco morto da árvore. Vestindo uma jaqueta de
caça xadrez, vermelha, novinha em folha, observava a trilha de veados que
passava serpenteando bem perto do esconderijo deles.
A garota estava sentada no chão, de pernas cruzadas, as mãos enfiadas bem
fundo nos bolsos do casaco comprido, com capuz, e de gola levantada. Um xale de
lã branca enrolava-lhe a cabeça, cobrindo a maior parte dos cabelos acobreados, e
vinha dar um nó na altura do pescoço. Estava bem frio nas primeiras horas do dia
de outono, mas Jordanna tinha medo de sentir um arrepio. Tinha medo de piscar.
As instruções do pai haviam sido bem precisas. Não podiam mover-se nem fazer
um só ruído. Ele tinha examinado a área antes da abertura da temporada de caça e
lhes assegurara que um grande veado-galheiro passaria bem naquele lugar.
Cuidadosa e silenciosamente, Kit sentou-se sobre os calcanhares e, sem virar
a cabeça, lançou um olhar indagador ao pai. A ansiedade da espera estava
estampada no rosto do garoto. Fletcher Smith deu-lhe um sorriso encorajador e,
com um movimento dos olhos, dirigiu a atenção do filho para a trilha.
Jordanna viu os olhos de Kit iluminarem-se de emoção. Acompanhou a
direção do olhar dele, mas não viu nada. Olhou fixamente até seus olhos doerem,
depois lembrou-se da advertência do pai para manter o olhar em movimento.
Segundos mais tarde, notou um lampejo de agitação, concentrou-se nele e
reconheceu o objeto. Era uma corça, uma criatura pequena e de ar delicado, que
mal chegava à altura da fivela do cinto da calça do pai dela.
A despeito do tapete de folhas mortas e da densa vegetação rasteira, a corça
não fazia ruído enquanto seguia cautelosamente pela trilha, na direção deles. A
corça foi seguida por mais duas corças e por um gamozinho novo. Jordanna mal
conseguiu impedir-se de inspirar vivamente. Abriu a boca, encantada, mas não
emitiu nenhum som. Seus olhos deleitados encontraram o olhar do pai. Ele piscou
então, transmitindo sua compreensão do encantamento que ela sentia pelas
criaturinhas que desfilavam pela trilha. O amplo sorriso de Kit fazia eco ao
entusiasmo dela. Aquela visão, por si só, valia o frio e o desconforto dos músculos
doloridos.
As corças e o gamozinho desapareceram trilha acima, buscando uma
elevação. O trio continuava sua vigília silenciosa. As corças não eram o objetivo de
sua caçada. Estavam esperando pela cabeça galhada que anunciaria a presença
de um veado. Novos minutos se passaram, arrastados, e a ansiedade aumentou
outra vez.
Fletcher Smith pousou de leve a mão no ombro do filho. No local onde não
havia antes senão árvores e vegetação encontrava-se um veado-galheiro. Estava
com a cabeça virada para examinar a trilha às suas costas, farejando o ar imóvel.
Fazendo sinal com um dedo, Fletcher mandou que o filho esperasse até o veado
chegar mais perto. O coração de Jordanna batia tão alto que ela estava certa de
que o veado podia ouvi-lo. Com um repelão do rabo branco, o animal se adiantou:
orgulhoso, majestoso e desconfiado. Nem uma só folha fazia barulho, sob seus
cascos.
Quando o veado estava ao alcance de um tiro fácil, a mão no ombro de Kit
deu um aperto. Lembrando-se das horas de treino, o garoto mirou e apertou o
gatilho. No mesmo momento em que o tiro foi disparado, o veado deu um salto na
díreção de uma moita próxima. Kit se pôs de pé, vivamente.
— Eu o peguei! Acertei nele, não foi, papai? — A afirmação positiva
transformou-se em incerteza. O veado sumira de vista.
— Acertou, sim — assegurou o pai. — Mas devia ter deixado que ele se
aproximasse um pouco mais. Acertou-o na barriga.
— Eu estava olhando o tempo todo, e não vi isso — declarou Jordanna,
assombrada. — Como sabe onde Kit o acertou?
— Pelo som da bala quando entrou — explicou o pai. — Ela emite sons
diferentes, quando atinge partes diversas do corpo. Depois de algum tempo, a
gente aprende a reconhecer a diferença.
— Puxa, mas que barato! — declarou Kit, pelo menos parcialmente satisfeito
com a precisão de sua mira. — Foi como os garotos da escola contaram. Era um
veado grande, não era, papai?
— Era de bom tamanho, muito respeitável, para sua estréia — concordou
Fletcher, e deu um amplo sorriso. — Quem dera sua mãe pudesse vê-lo agora.
Tinha tanta certeza de que você não ia gostar de caçar...
— É formidável! — O orgulho do seu feito estava se tornando excitação. —
Vamos, papai. Vamos pegar o meu veado.
Fletcher Smith deixou-se levar apressadamente para a trilha dos veados pelo
filho entusiasmado. Jordanna seguia atrás, mais lentamente. O comentário do pai
sobre a mãe trouxera à jovem lembranças desagradáveis. Com esforço, Jordanna
afastou de si uma vaga tristeza.
Reveladores pingos de sangue marcavam o caminho do animal ferido.
Seguiram-no moita adentro. O ruído de algo se debatendo no mato fez com que se
detivessem. Fletcher apontou na direção do som, e o trio dirigiu-se apressada e
cautelosamente para lá.
O veado-galheiro jazia numa pequena clareira, do outro lado da moita, sem
conseguir levantar-se. O sangue manchava seu pêlo e o solo debaixo dele. Estava
com a cabeça erguida e virada na direção deles. Todos pararam ao ver os
expressivos olhos castanhos que os fitavam.
— Terá que atirar nele, Kit — declarou Fletcher. — Se o deixar assim, vai levar
muito tempo para morrer. — Empurrou suavemente o adolescente na direção do
veado. Ante a mirada daqueles meigos olhos castanhos, Kit sacudiu a cabeça,
recusando. — Tem que livrá-lo do seu sofrimento. Veja os olhos dele, rapaz. Não
está vendo o perdão?
Kit fitou-o, empalidecendo ante a bênção muda. O fuzil escorregou das suas
mãos, enquanto ele se virava e corria, tropeçando nos galhos e na vegetação
rasteira. Fletcher Smith deu um passo na direção dele, a mão estendida.
— Não se preocupe, papai. — Jordanna já se abaixara para pegar o fuzil.
Enquanto falava, virou-se e apontou a arma para o animal caído. — Pode deixar
que eu faço. — O gatilho foi apertado, e o tiro soou antes que Fletcher pudesse
reagir. — Agora está morto — disse ela, simples e tranqüilamente. Erguendo os
olhos para o rosto do pai, tentou oferecer alguma consolação. — Kit não entendeu.
A mão dele parecia tremer, enquanto a agarrava pelo ombro e a puxava para
junto de si. Abraçou-a com força por um momento, depois inspirou fundo,
tremulamente. Sorriu para ela, calor e ternura extravasando-lhe dos olhos.
— Você sempre foi a minha filhinha, não é, Jordanna?
— Sempre — concordou ela. Havia um elo especial entre eles. Compreensão
e necessidades mútuas preenchidas.
— Quer me ajudar a esfolar o veado? — Fletcher tirou uma faca da bainha. —
Seria tolice deixá-lo largado aí.
— Claro que ajudo — concordou Jordanna.
— Não acha que vai ficar enjoada? Não faz mal que fique — acrescentou o
pai.
— Não. O que quer que eu faça?

Kit estava sentado no banco de trás do jipe fechado, quando os dois voltaram
para onde o tinham deixado estacionado. Fletcher não disse nada, enquanto
amarrava o veado esfolado no bagageiro do veículo. Ao longo da trilha, o pai sentira
o cheiro característico no local onde Kit vomitara o café da manhã. Um só olhar a
seu rosto sem cor bastou para provar que o garoto não estava se sentindo muito
melhor, agora.
Quando pegaram a estrada principal, Fletcher lançou um olhar pelo espelho
retrovisor e encontrou os olhos atormentados do filho.
— Tudo bem, Kit. Não precisa pedir desculpas ou sentir-se culpado pelo modo
como se portou. Foi a primeira vez que esteve exposto a uma coisa dessas. É
sempre uma espécie de trauma. Noutro dia que formos caçar, será mais fácil.
— Não quero mais caçar — declarou Kit, com voz inexpressiva.
— Tenho certeza de que se sente assim, agora — concordou Fletcher,
pacientemente. — Mudará de idéia mais tarde.
— Não mudarei.
Fletcher não tocou mais no assunto, enquanto voltava a concentrar a atenção
no tráfego da auto-estrada. Jordanna viu a luz desanimada que toldava os olhos
castanhos do pai. Olhou para o irmão por cima do ombro.
— Trouxe seu fuzil, Kit. Tome. — Começou a passá-lo para ele, por cima do
banco.
— Pode ficar com ele, Jordanna. Não o quero — respondeu o garoto, virando-
se para fitar a paisagem através da janela.
— Mas foi um presente — protestou ela. — Papai deu para você. Não pode...
A mão do pai pousou no braço dela, para calá-la. Jordanna virou-se para a
frente, e Fletcher deu-lhe uma palmadinha de aprovação no braço.

Parte um
O encontro

Capítulo I

O grande cavalo amarelado trotava pelo prado com passadas descontraídas.


Sua pelagem dourada estava muito farta, com os pêlos do inverno. O hálito quente
e úmido formava nuvens, espirais gémeas que saíam de suas narinas. O cavalo
abocanhava a barra de metal, batendo o freio contra os dentes. A sela de couro
rangia sob o peso do cavaleiro, cujas esporas rombudas lhe tiniam nas botas.
Era um homem alto, de constituição longilínea, que disfarçava o corpo
solidamente musculoso. Relaxado na sela, cavalgava numa posição parcialmente
encurvada. No entanto, cada movimento do cavalo lhe era transmitido pelas rédeas
e pelos músculos fortes sob a sela. Por baixo da postura indolente, havia um agudo
estado de alerta.
As botas estavam empoeiradas, sujas, com os saltos gastos. O metal das
esporas ficara sem brilho, com o uso. A calça Levis desbotada, mas ainda
aproveitável, que lhe cobria as longas pernas estava remendada nos joelhos e nos
fundilhos. Vestia uma jaqueta de camurça forrada de pele de carneiro, que lhe
descia até os quadris, aberta atrás para lhe facilitar montar. As mãos que
seguravam as rédeas estavam enluvadas, com o couro bem macio, de tanto uso. A
gola da jaqueta estava levantada para protegê-lo da brisa que soprava, vinda das
altas montanhas. Um empoeirado Stetson de feltro estava enterrado na cabeça. O
cabelo era espesso, cor de café, e caía por cima da gola da jaqueta.
As horas ao sol lhe haviam amorenado os planos e concavidades da face,
deixando-a cor de bronze. Usava um farto bigode castanho-escuro, bem aparado.
Os olhos eram castanhos, uma tonalidade seca e poeirenta. O sol vincara linhas
permanentes, que se espalhavam saindo dos cantos dos olhos. As sobrancelhas,
castanhas e grossas, tinham um arqueado natural. Força, confiança e vigor
achavam-se estampados nas suas feições. Era um homem a quem os outros
evitariam de toda maneira irritar. Se a situação o exigisse, podia ser implacável. Em
outras ocasiões, simplesmente duro e um pouco cínico.
Seus olhos aguçados perceberam algo a dez metros para a direita. Com uma
torção do pulso, Brig McCord desviou o cavalo amarelado naquela direção. Quando
o animal se aproximou mais, fê-lo diminuir o passo. A grama do prado da montanha
roçava nas pernas pretas do cavalo amarelado. Onde as árvores encontravam-se
com o limiar do prado, trechos nevados ainda se grudavam às suas sombras: os
restos da última nevasca que atingira Idaho na primavera.
O cavalo parou por conta própria, bufando e sacudindo a cabeça ao ver o
objeto a seus pés. Quando o animal virou de banda, Brig viu os restos mortais de
um bezerro, o esqueleto parcialmente coberto pelo couro avermelhado.
— Merda! — exclamou, baixinho, ante o que via. Quantos, com aquele?
Perdera a conta.
Desviou o olhar, os olhos duros fitando os trechos cobertos de neve. A
nevasca de primavera viera na pior época possível: época de cria. Teria sorte se
quarenta por cento dos seus bezerrinhos nascidos na primavera sobrevivessem.
Um ano razoável... era só do que precisava para sair do aperto. Ao invés disso, ia
ter sorte se não perdesse a fazenda. Se tivesse seguro...
— Porra, não tinha dinheiro para pagar o prêmio! — Brig interrompeu seu
pensamento com um palavrão em voz baixa. Enfiando a espora nas costelas do
cavalo, afastou-o da carcaça que os animais necrófagos já haviam devorado. O
cavalo passou a andar a meio galope, e soltou um bufido desgostoso. Poderia
manter essa andadura durante quilômetros, sem se cansar, engolindo as distâncias.
Uma vistoria completa das perdas, porém, não podia ser feita àquela velocidade, e
Brig fez o animal andar mais devagar, num trote compassado.
Encontrou mais dois bezerrinhos. A carcaça de um terceiro estava no mato,
arrastada para lá por algum predador. A cada bezerro que encontrava, Brig dava
mais tratos à bola, visando a encontrar a solução para seu problema. Num riacho
gelado das montanhas, aumentado pelos restos liquefeitos da neve, Brig parou para
deixar o cavalo beber. Ergueu os olhos para as montanhas. Quem sabe, se o
mercado de ovelhas ficasse firme, assim como o rebanho de Jocko, ele poderia
recuperar um pouco de suas perdas com o gado. A tendência geral não era boa.
Voltou o olhar para o prado e para a escarpa rochosa que se erguia de um dos
lados. Um movimento chamou-lhe a atenção. Firmou os olhos. Pastando junto à
base das rochas, estava um animal grande e pesadão. Quando o bicho levantou a
cabeça, Brig viu os chifres maciços, em caracol, que se grudavam à cabeça e
depois se abriam para os lados.
— Um carneiro montês — murmurou. — O que será que está fazendo por
aqui?
O cavalo sacudiu a cabeça de banda, como a responder à pergunta. O couro e
o metal dos arreios tiniram juntos. Célere, o grande carneiro fugiu para as rochas,
mostrando o característico círculo branco no traseiro. Em meio ao barulho dos
cascos atingindo as pedras, ele subiu para a segurança do terreno mais elevado,
onde sua velocidade e firmeza lhe davam vantagem sobre os predadores.
Brig ficou olhando até o carneiro montês sumir de vista, depois cruzou o riacho
da montanha, a cavalo. Havia um par de chifres de troféu naquele carneiro montês,
um caracol inteiro, ou mais. Porém não se interessava por tais coisas. Matava uns
dois alces por ano, pela carne, e um veado de vez em quando, pela variedade. Há
dois anos, um urso negro saqueador terminara pendurado na parede de sua casa
da fazenda. Atirar naquele carneiro simplesmente pelos seus chifres não era motivo
suficiente para Brig. Vira matanças o bastante na vida, ele próprio as fizera, e não
achava graça naquilo.
Engraçado, havia anos que não pensava naquela época, Brig se deu conta.
Pertencia a uma outra vida. Aquela terra selvagem de Idaho tinha um jeito de
apagar lembranças. Ou era isso, ou o fato de que já se haviam passado cerca de
trinta anos.
O cavalo amarelado estivera vagando sem direção. Um galho baixo quase
pegou o seu Stetson, e Brig se abaixou no último segundo. Parou a montaria e
olhou ao redor. O bigode entrou num canto da boca. Fazia dez anos que não
passava por aquela área a não ser procurando gado... antes disso, havia quase
trinta anos.
Tirando um minuto para se orientar, Brig girou a montaria para a direita, onde
uma massa emaranhada de vegetação rasteira formava um monte escuro, a cerca
de cem metros de distância. As árvores eram cerradas. Os cascos do cavalo faziam
pouco ruído sobre o tapete espesso de folhas de pinheiro. Bem agarrado à crina
negra do cavalo, Brig evitou os ramos baixos que ameaçavam derrubá-lo da sela.
Quando chegou junto da massa escura, que invadia uma pequena clareira,
desmontou e jogou as rédeas ao redor do pescoço do cavalo, para puxá-lo,
enquanto se aproximava mais. O cavalo empinou as orelhas ante o monte de
vegetação, bufando nervosamente e farejando o ar.
Embaixo da vegetação emaranhada estava a carcaça enferrujada de uma
fuselagem, tudo o que restava do avião particular que caíra ali. Brig tinha nove
anos, naquele verão. Seu olhar se desviou para o monte de pequenas pedras do
outro lado da clareira, pedras que carregara para cobrir o túmulo dos pais, que
haviam sido mortos instantaneamente no desastre. Ele próprio os havia enterrado,
para que os animais parassem de comer seus corpos. Usando um galho de árvore,
cavara duas covas rasas no chão rochoso e cobrira-as com pedras.
Jogando a cabeça para trás, Brig ergueu os olhos. Os galhos das árvores
formavam um telhado, um telhado furado que permitia a entrada de raios de sol.
Naquela época era quase tão denso quanto agora, ocultando os destroços dos
aviões de busca. E um garotinho era um objeto pequeno demais, quando visto de
setecentos metros acima do solo.
Foi mais de uma semana depois do desastre que o primeiro avião passou
sobrevoando. Houve vários outros nos três dias seguintes, depois mais nenhum.
Brig tentou recordar-se do garotinho esfomeado que seguiu um urso durante um dia
inteiro, comendo o que o urso comia. Mas não conseguia lembrar-se de como
sobrevivera, o que comera, ou como se mantivera aquecido nas frias noites nas
montanhas.
Durante dois meses vivera ali, sozinho, aprendendo as leis da sobrevivência
da professora mais severa de todas... a natureza. Então, deparara com o
acampamento de um pastor, o tio de Jocko... o homem que atualmente cuidava do
seu rebanho de ovelhas. Passara duas semanas com o pastor, que não podia
deixar o rebanho sozinho para devolver um garotinho à civilização. Naquelas duas
semanas, aprendera muito sobre como cuidar de ovelhas e sobre a filosofia simples
do pastor. E então o dono da fazenda chegara, trazendo os suprimentos do pastor e
levando o garoto de volta.
A orientação precisa do garoto levara as autoridades ao local do acidente. Brig
baixou a cabeça para olhar para a carcaça enferrujada do aparelho, semi-oculto
pelo mato. O equipamento de rádio, os instrumentos e todas as partes aproveitáveis
tinham sido retirados. Seus pais não mais estavam enterrados nas covas que
cavara para eles. Seus corpos haviam sido exumados e levados de volta para o
leste, para um enterro adequado, e ele fora morar com o avô, Sanger. Mas jamais
esquecera aquele lugar, aquela terra livre e agreste.
Quando finalmente voltara para lá, catorze anos antes, quando tinha vinte e
quatro, sentira que estava voltando para casa. Comprara o lote de terra onde ficava
sua casa e alugara aquele pasto constituído de terra federal... e trabalhara muito
para que desse certo. Fora dureza. Na maior parte do tempo, tivera sorte em não
ter lucro nem prejuízo. Depois, dois anos ruins, um atrás do outro, foram seguidos
por aquela nevasca de primavera que praticamente acabara com os seus bezerros
recém-nascidos. Se antes o futuro parecia desolador, não era nada comparado ao
que ele enfrentava agora.
Virando-se para o cavalo, Brig agarrou o arção dianteiro e montou. Parou por
um momento na clareira, depois atravessou as árvores e voltou para o prado.
Flores silvestres se derramavam pelo vale da montanha, sacudindo as cabeças à
brisa fria. Para não perder tudo isso, engoliria um pouco do orgulho e iria pedir um
empréstimo a Sanger.
Uma dúzia de cabeças de gado hereford levantou os olhos quando o cavalo
amarelado e peludo levou o cavaleiro na sua direção. Brig começou a conduzir os
animais para perto da casa-grande da fazenda. Quem sabe, depois de os animais
terem sido todos recolhidos, os bezerros, marcados e castrados, os touros de um
ano, descornados, ele iria descobrir que as coisas não estavam tão ruins quanto
pareciam agora. Tinha suas dúvidas. Com ar sombrio, seguiu seu caminho.

Cansado e sedento, depois da longa viagem da fazenda até a cidade, numa


trilha irregular que não merecia o nome de estrada, Brig estacionou seu furgão
diante de um prédio. Seus olhos castanhos demoraram-se na mala pousada no
assento, a seu lado, a boca estreitando-se numa linha fina.
Com um puxão na maçaneta, abriu a porta do furgão e saiu. Olhou em
derredor, separando, na calçada, os turistas dos moradores de Salmon. Enquanto
se dirigia para a entrada do bar, limpou a poeira do chapéu e das roupas. Quando
saíra de casa, pela manhã, achavam-se limpos.
O interior do bar estava escuro, depois do brilho forte do sol de julho. Brig
parou junto à porta, para deixar os olhos se acostumarem à penumbra. A vitrola
automática movida a moedas, num dos cantos, tocava uma toada caipira sobre um
homem que beijava um anjo todas as manhãs. Mesas e cadeiras estavam
espalhadas pela sala, sem fregueses. Dois homens achavam-se sentados em
banquinhos, apoiando os cotovelos no balcão do bar de carvalho entalhado.
Lançaram-lhe um olhar de esguelha e continuaram a conversar.
Brig foi até o final do comprido balcão e subiu num banquinho, apoiando a
bota no descanso de metal para pés. Não havia ninguém atrás do balcão, embora
se ouvissem sons vindos do compartimento dos fundos. Empurrando o chapéu para
a parte de trás da cabeça, apanhou um cigarro do maço no bolso da camisa. Sem
tirar o fósforo do invólucro, riscou-o contra a tira áspera. Não havia brisa, mas, por
hábito, protegeu a chama ao levá-la ao cigarro.
Bem no centro das prateleiras de bebida havia um relógio com uma série de
anúncios que giravam vagarosamente, de um dos lados. A cada quarto de hora, um
novo anúncio aparecia. Brig leu os anúncios da casa funerária local e do banco.
Quando o anúncio da companhia de seguros ficou visível, uma mulher apareceu,
vinda do quarto dos fundos, trazendo meia dúzia de garrafas de bebida para encher
as prateleiras.
O cabelo dela era oxigenado, de um tom louro bem escandaloso. Suas
pálpebras eram cobertas de sombra azul, encimando uma linha grossa de
delineador preto e cílios espessos de rímel. O uso excessivo de maquiagem dava-
lhe uma aparência dura, mas não disfarçava a maciez vulnerável dos lábios
pintados de vermelho, ou a honestidade franca dos olhos azuis... ou os pés-de-
galinha a seu redor. Seu corpo cheio estava ficando gordinho. A blusa branca e
simples que usava estava desabotoada, para deixar exposta parte dos seios
abundantemente redondos. A saia reta e preta estava esticada à volta dos quadris,
como uma segunda pele, desafiando a resistência das costuras. O efeito era bem
sugestivo. Brig sentiu-se excitado, pela abstinência forçada, devida às exigências
intermináveis do trabalho de primavera na fazenda... e pelo fato de saber que a
mulher era boa de cama.
Concentrada no seu trabalho, a loura oxigenada não o viu sentado no canto
mal-iluminado do bar.
— Alô, Trudie — falou Brig, para chamar-lhe a atenção.
A mulher parou e se virou, abruptamente. Seus olhos arregalados
descobriram-no nas sombras, o ar de surpresa transformando-se num
reconhecimento encantado. Depois, este foi ligeiramente mascarado por uma
atitude de timidez que tocava as raias da provocação.
— Ora, vejam só. O velho lobo finalmente desceu das montanhas — declarou
ela, e colocou rapidamente as garrafas de bebida no aparador que ficava atrás do
bar. — Estava começando a achar que tinha se mudado para local desconhecido.
— E deixar minha garota predileta para trás? Não faria isso, Trudie. — O olhar
dele era deliberadamente sugestivo, percorrendo-lhe o corpo com desejo.
— Garota predileta? Pois sim! — Ela ignorou o comentário com uma risada,
mas ele lhe causara uma onda de prazer que se espelhava em sua fisionomia. — O
que vai querer, Brig?
— Cerveja.
— De barril?
Quando ele concordou com um gesto de cabeça, ela serviu-lhe um copo,
deixando formar um colarinho de espuma no líquido dourado-claro.
— Como vão indo as coisas? — perguntou Brig, sorvendo a cerveja e
enxugando a espuma do bigode com as costas da mão.
— Não muito mal, depois que os turistas chegaram à cidade para as viagens
de barco de verão no River of No Return. — A ênfase dada ironizava a frase.
Mudou de assunto. — Imagino que esteja na cidade para apanhar provisões. Esta é
a sua última parada antes de voltar para a fazenda?
— É a minha primeira parada. Mandei Tandy Barnes vir à cidade na semana
passada a fim de comprar provisões para um mês — explicou, referindo-se a seu
empregado, vaqueiro e pau para toda obra.
— Então, o que o trouxe à cidade? — Franziu a testa, intrigada, aumentando
as linhas já marcadas ali. Imediatamente, acrescentou: — E não diga que fui "eu",
porque não vou acreditar.
— Vou para Idaho Falls, pegar um avião para Nova York. — Girou o copo de
cerveja, e ficou vendo a espuma se dissipar. A despeito de toda a indiferença do
seu tom de voz, havia um ar seco e inexpressivo em seus olhos.
— Nova York? E para quê? — Trudie soltou uma risada baixa e incrédula. —
A maioria dos fazendeiros por aqui não está podendo nem tomar uma cerveja, e
você vai tirar férias.
— Também não posso tomar isto aqui. Não são férias, é uma viagem de
negócios — corrigiu Brig, com voz vigorosa. Retorceu a boca numa expressão de
cinismo. — Tenho que ir visitar um primo rico e ver se posso cobrar alguns favores.
— Um primo rico?
— É. — Esvaziou o copo e pousou-o no balcão. Pegando o cigarro, que
queimava no cinzeiro, deixou que pendesse da boca, apertando um dos olhos
devido à fumaça. Pondo-se de pé, botou a mão no bolso. — Quanto lhe devo pela
cerveja?
— É por conta da casa. — Fez um gesto, impedindo a tentativa dele de pagar,
e baixou a voz para acrescentar: — Tudo é sempre por conta da casa. Você sabe
disso, Brig.
— Obrigado. — Um leve sorriso suavizou as linhas geralmente duras de sua
boca.
Brig sabia bem o que ela queria dizer. Todas as cidades, não importa quão
pequenas fossem, tinham a sua cota de bêbados locais e uma ou duas prostitutas,
quer os respeitáveis moradores, frequentadores da igreja, o admitissem, quer não.
Trudie se encaixava na última categoria. Exceto da primeira vez, ele jamais tivera
que pagar pelos seus serviços; portanto, aos poucos, deixara de encará-la daquela
maneira, naqueles últimos dez anos. Ela era uma mulher generosa e carinhosa, que
suplementava o salário com o emprego de meio período que melhor pagava, dentro
das suas limitações. Não era uma profissional calejada. Estas eram o tipo que ele
encarava com desprezo.
— Tome outra cerveja. — Trudie já lhe servia outra, antes que ele pudesse
recusar. Com um ligeiro dar de ombros, Brig voltou a se sentar no banquinho.
A loura caminhou até o aparador, onde deixara as novas garrafas de bebida.
— Foi um inverno de lascar. Deixou todo mundo na pior. — De sob o balcão,
ela tirou uma escadinha de madeira e pegou duas garrafas, enfiando uma debaixo
do braço. — Jake Phelps esteve aqui no mês passado, e falou que o feno dele
acabou em março.
— Eu tinha feno de sobra. A nevasca de maio me atingiu no meio da época de
as vacas darem cria. — A primeira cerveja, Brig engolira às pressas para aliviar a
garganta ressequida. Essa segunda, ele bebia devagarinho. — Perdi quase dois
terços dos bezerrinhos.
— Ah, não, Brig! — A mulher lançou-lhe um olhar de comiseração por cima do
ombro.
— Como você falou, o inverno deixou todo mundo na pior — disse ele,
timidamente.
Apagando o cigarro no cinzeiro, observou-a subir os dois degraus e apoiar o
joelho no balcão para alcançar uma prateleira alta na parede atrás do bar. A saia
preta e justa subiu até a coxa, de um dos lados. Ele começou a fixar a atenção no
traseiro em forma de coração e na curva bem-feita das pernas. Novamente sentiu
aquele enrijecimento de excitação crescendo dentro de si.
Levou um segundo inteiro para Brig se dar conta de que Trudie se virara
parcialmente para olhar para ele. Atrevidamente, ergueu o olhar. Algo pareceu
pegar fogo nos olhos dela. Notou como os seus seios forçavam a fazenda da blusa,
quando ela inspirou fundo e pareceu prender a respiração. Logo a seguir, ela
desceu os degraus.
— Essa viagem a Nova York — disse, virando-se para ele mais uma vez, e
falando de um jeito macio, sem fôlego —, é necessário que você vá logo?
— Não tenho nada a ganhar, adiando-a.
— Nem mesmo até amanhã? — Sem dar-lhe uma chance de responder,
lançou um olhar para os dois homens mais adiante, no bar. — Vocês dois vão
querer mais alguma coisa?
Os dois homens levantaram os olhos das contas que faziam num guardanapo
de papel. Um deles sacudiu a cabeça, e o outro disse:
— Não.
— Vou lá para o quarto dos fundos pegar algumas provisões. Se alguém
entrar, gritem por mim, certo?
— Certo.
Os olhos azuis fizeram um apelo mudo para Brig, enquanto a mulher
perguntava:
— Quer me ajudar a trazer um barril de cerveja para cá?
Como resposta, Brig saltou do banquinho do bar e foi para trás do balcão.
Trudie andou na frente, cruzando a porta do quartinho dos fundos, parando para
fechá-la atrás de Brig. Colocara-se de tal modo que ele teria que roçar nela, ao
passar. Ele sentiu o leve tremor do corpo dela, ante o contato, e aspirou a
fragrância enjoativa da colônia barata. Captando a mensagem muda da mulher,
Brig podia escutar o bater forte do próprio coração. Depois de um longo inverno em
isolamento, seus desejos eram fáceis de despertar.
— O barril está ali — disse ela, apontando para um canto afastado do
aposento mal-iluminado, e deu um passo naquela direção.
Ele segurou-lhe os cotovelos para detê-la.
— Pro diabo com o barril, Trudie.
Deu-lhe um segundo para resistir, embora sabendo que não resistiria, depois
envolveu-a nos braços. Tinha esquecido o quanto ela era baixinha, ao abaixar a
cabeça para encontrar seus lábios vermelhos, que já se entreabriam para receber o
beijo dele.
Seu sangue ferveu quando ela moldou as curvas fartas contra ele. Os seios
firmes e redondos estavam fazendo marca na pele dele, um par de botões duros
pressionando sua camisa. Ouviu-a gemer, e sentiu as suas mãos ansiosas
rodearem-lhe o pescoço. Ela fez um círculo molhado com a língua nos lábios dele,
depois enfiou-a na boca. Aquela demonstração de agressividade deixou à solta um
fragmento de selvageria no temperamento dele. Brig retomou o papel dominante,
magoando os lábios dela com seus beijos, até que a pressão no seu pescoço ficou
forte demais, e ele ergueu a cabeça para aliviá-la. Sua respiração arfava de paixão.
Trudie tremia. Os dedos trêmulos dela desabotoaram-lhe a camisa, depois
enfiaram-se sob ela para encontrar-lhe a carne, enroscando-se nos pêlos ásperos
do seu peito.
— Não tem que ir embora hoje, Brig — sussurrou, com voz doída. — Amanhã
está bom. Daqui a duas horas encerro o meu trabalho aqui.
Os lábios dela encheram-lhe o peito de beijos úmidos, o hálito quente
aquecendo uma carne que já ardia. A sala estava fresca, mas Brig sentia o suor
porejar-lhe a pele. Suas mãos vagaram a esmo pelos ombros, cintura e costas dela,
depois apertaram-lhe os quadris com mais força contra as suas coxas. Doía de
desejo, e este ameaçava consumi-lo.
Quando Trudie ergueu a cabeça, ele lançou um olhar para seus lábios macios
e vermelhos, e cobriu-os, com um gemido.
— Por favor, fique, Brig — suplicava ela, sob os seus lábios exigentes. — Faz
tanto tempo...
— Não acredito — resmungou, com ceticismo duro, e tentou silenciar as
palavras desnecessárias dela. Pouco lhe importava quem estivera com ela antes.
— Não, com você é diferente, Brig — protestou Trudie. — É especial. Eu...
você sabe que é.
— É, sei — concordou ele, impaciente.
A resistência simbólica da mulher acabou, e ela pareceu derreter-se de
encontro a ele.
— Faça amor comigo, Brig. Faça agora — suplicou, e começou a desabotoar o
resto dos botões da camisa dele.
As roupas justas da mulher eram obstáculos indesejáveis. Ele mal conseguira
levantar-lhe a saia à altura dos quadris, quando uma voz lá na frente chamou:
— Trudie! Freguês!
Ela se enrijeceu nos braços dele, e Brig ordenou:
— Ignore.
— Não. — Ela se debateu no abraço de ferro dele. — Simplesmente
mandarão alguém vir me procurar aqui. Solte-me, Brig. Por favor.
Proferindo baixinho um monte de palavrões, ele a soltou e se afastou. Sofria
sob o peso de forças primitivas, que não eram facilmente controláveis, uma vez
despertadas. Trudie ajeitava as roupas, às pressas, e alisava nervosamente o
cabelo. Lançou um olhar de desculpas na direção dele, antes de correr para a
porta.
Ele não tinha condições de voltar lá para fora, ainda não, não com aquela
coisa dura marcando a fazenda da calça. Soltou novo palavrão e enxugou o suor do
queixo. As costas da sua mão vieram sujas de batom vermelho. Tirando o lenço do
bolso de trás, limpou a boca e a mão, depois guardou-o de volta.
Vários minutos se passaram antes que ele se sentisse suficientemente
recomposto para voltar ao bar. Localizando o barril de cerveja, alçou-o ao ombro e
caminhou para a porta. Trudie lançou-lhe um olhar apreensivo, mas cheio de
adoração, quando ele entrou.
— Onde quer que eu ponha isto?
— Pode deixá-lo ali, por enquanto. — Indicou um local vazio sob o balcão,
perto das bicas de cerveja.
Depois de largar o barril no chão, Brig deu a volta ao balcão e retornou ao seu
copo quase cheio.
— Já deve estar choca — disse ela. — Vou trazer-lhe outra.
— Pode deixar. — Uma cerveja não satisfaria o tipo de sede que ele estava
sentindo. Brig começou a andar para a porta da frente.
— Aonde vai? — perguntou Trudie, saindo, apressada, de trás do balcão, ao
seu encontro.
— Dar uma volta. — Sabia que parecia seco e insensível. Não fora
exatamente culpa dela. Mas ainda estava excitadíssimo, e irritadiço como um urso
depois da hibernação.
— Vai voltar? — Ela examinou sua cara fechada, buscando uma pista para a
resposta.
— Não sei. — Ele não deveria ter parado ali, para começo de conversa.
Estaria quarenta quilômetros mais perto de Idaho Falls, e a mesma distância mais
perto de Nova York, onde catorze anos de trabalho seriam salvos, ou finalmente
perdidos. Naquele momento, a importância disso declinara ante a força de
necessidades mais básicas. Trudie segurou sua mão e enfiou algo duro no centro
da sua palma calejada pelo trabalho. — Que merda, Trudie! — xingou Brig, por
fazer exigências que não podiam ser satisfeitas agora.
— É a chave da minha casa — disse ela, identificando o objeto que ele
pensara serem as suas unhas. — É a única que possuo. Quer esperar lá por mim?
Daqui a um pouquinho largo o trabalho.
Os dedos dele fecharam-se ao redor da chave, formando um punho cerrado.
Com um aceno seco de concordância, Brig recomeçou a andar para a porta. Dessa
feita, Trudie não o deteve. Do lado de fora, ele parou para respirar fundo. O ar
estava fresco e puro. Perguntou-se se ficara com a chave porque realmente queria
estar com Trudie, ou porque queria adiar a viagem para Nova York. Soltando um
suspiro, concluiu que se tratava de uma combinação das duas coisas.

Estendendo a mão, Brig bateu as cinzas do seu cigarro no cinzeiro da


mesinha. Cachos louros faziam cócegas na parte inferior do seu queixo, e ele os
alisou contra a cabeça apoiada no seu peito. Depois, voltou a mão para a curva da
cintura nua de Trudie. Esta explorou com os dedos a barriga lisa dele, seguindo os
pêlos escuros que subiam do umbigo até os tufos espalhados pelo peito. Passou o
dedo pela cicatriz branca no ombro esquerdo dele, onde não cresciam pêlos.
— Por que nunca se casou, Brig? — Sua voz era pensativa, enquanto seus
dedos gorduchos continuavam a acariciar-lhe a pele.
Mulheres, pensou ele, com irritação distraída; por que sempre têm que
conversar, depois de fazer amor? Ele gostaria muito mais de fumar o seu cigarro
em silêncio do que de escutar os murmúrios dela. Contendo um suspiro, fez força
para responder.
— Acho que a minha própria companhia me satisfaz. — Deu uma tragada no
cigarro e deixou que trilhas gêmeas de fumaça lhe saíssem do nariz.
— Nunca esteve apaixonado?
— Acho que não. — Não, desde que descobrira que amava mais uma mulher
antes de levá-la para a cama do que depois.
— Uma vez você me contou que foi mercenário. Isso é verdade? — perguntou,
com curiosidade, mudando de assunto.
Ele franziu brevemente a testa. Contara-lhe mesmo aquilo? Aqueles anos
eram algo que raramente comentava com alguém. Pensou em negar, mas não
sentia vergonha do que fizera.
— Sim, é verdade — admitiu Brig.
— Por quê?
— Por que é verdade? — A cabeça dele estava recostada no travesseiro.
Sorriu para os cachos oxigenados, achando a pergunta dela um tanto peculiar.
— Não, bobo! — Trudie riu e ergueu os olhos para ele. Restava pouca
maquiagem no seu rosto. A maior parte ele tirara com beijos, e o resto saíra nos
lençóis. Parecia mais velha sem ela, pelo menos da idade dele, porém mais
atraente, de uma maneira singela. — Por que se tornou mercenário?
— Não sei. Suponho que me imaginava como uma espécie de aventureiro. —
Tudo se passara há tempo demais para ele se recordar dos seus motivos, na
época. E, agora, aquilo não lhe interessava.
— Mas a sua família... — começou ela.
— Meus pais estão mortos. — Mas Brig não lhe contou as circunstâncias da
morte deles, ou a sua própria sobrevivência, ou o desastre que lhes roubara a vida.
— Meu avô me criou... ou tentou. Nunca nos entendemos. Eu era rebelde e doidão
demais; ele era severo demais. Quando cheguei aos quinze anos, já tinha fugido de
casa sete vezes. Aos dezessete, entrei para o Exército e servi no Sudeste Asiático:
Vietnam, Cambodja, Laos. Quando voltei, nada tinha mudado. Meu avô ainda vivia
num mundo que adorava dois deuses: dinheiro e negócios, onde um homem é
julgado pelo número de algarismos de sua conta bancária e as pessoas influentes
que conhece, não pela maneira como a adquiriu ou pelo tipo de homem que é. —
Apagou o cigarro no cinzeiro, soltando um jato de fumaça.
— Mas por que se tornou mercenário? — perguntou Trudie, apoiando-se num
cotovelo para enxergar melhor o rosto dele. Sua expressão pouco lhe contava.
A ponta calosa do dedo dele traçou uma curva leve que vinha de um dos lados
do maxilar dela, passava sob o queixo e ia até o outro lado do pescoço.
— Porque eu sabia matar rápida e silenciosamente. Sabia usar bem quase
todas as armas fabricadas na época, e podia ensinar os outros como usá-las. —
Brig parou ao ver o medo estampado nos olhos dela, a pontada de desconfiança, e
desejou ter ficado de boca fechada. — Era só o que eu sabia fazer, quando saí do
Exército. Era o que fazia melhor. Quando me ofereceram um bocado de dinheiro
para fazê-lo, aceitei.
— Foi por isso que aceitou? Pelo dinheiro?
— Na época, pensava que sim — admitiu. — Mas, provavelmente, estava
tentando atingir meu avô. Ele ficou lívido, quando lhe contei o que ia fazer. No que
lhe dizia respeito, os mercenários eram a escória do mundo. Não lhe importava que
os homens que trabalhavam para ele fossem pouco mais do que isso. Percorriam o
país instalando as lojas mais baratas de sua cadeia e levando à falência os
comerciantes locais. Ele contratava mercenários respeitáveis, mas não suportava a
idéia de o neto tornar-se um deles. Fez fortuna, e arruinou muita gente boa pelo
caminho.
A voz dele ficou dura, com a amargura da lembrança. Enquanto alguns
admiravam o avô pela argúcia comercial e outros lhe invejavam a riqueza, Brig
sentia apenas repugnância pelo homem cujo prenome lhe fora dado — Brigham
Sanger, fundador das Sanger Discount Stores.
— Brig? — perguntou Trudie, com voz hesitante. Estava um pouco assustada
com o ar frio que endurecia as feições dele.
Os olhos de Brig se suavizaram quando voltaram a se fixar no rosto dela. Algo
que parecia um sorriso tocou-lhe a boca, fazendo as curvas subirem para o bigode.
— Meu avô é provavelmente o motivo pelo qual eu vivia aceitando ser
contratado para lutar pelo lado que perdia. Estava sempre apoiando os pobres
coitados, tentando igualar um pouco as probabilidades.
— On... Onde trabalhou? — Quase a contragosto, estava fascinada pelo
passado dele; enojada, porém atraída.
— América Central, África, América do Sul. Movimentava-me muito. Precisa
lembrar-se de que eu não costumava escolher o vencedor, portanto as guerras
raramente duravam muito. Ou isso, ou o dinheiro acabava, o que quer dizer que eu
não recebia, e não havia grana para comprar munição ou armas... ou comida.
Brig não entrou em detalhes sobre os camaradas mortos, a comida que não
prestava mas que tinha que ser consumida, de qualquer forma, pois não havia mais
nada, o fato de dormir no chão sem nenhuma proteção contra os elementos. E não
falou sobre os soldados que caíam sob a mira de sua arma.
— Por que desistiu? Devia ser jovem, na época. — Ela parou de tentar
disfarçar sua curiosidade, enquanto se ajeitava numa posição mais confortável para
escutar-lhe a resposta.
O lençol lhe envolvia os quadris. Os globos pesados dos seios caíam contra a
caixa torácica, os mamilos rosados e grandes balançando enquanto ela se movia.
Brig desligou-se momentaneamente da pergunta. Estendeu a mão para acariciar o
seio mais próximo.
— Houve uma emboscada. Minha patrulha ficou bem no meio. Lembro-me de
uma bala se enterrando no meu ombro, e de eu gritar para que todos se
protegessem. Depois, tudo ficou preto. Quando voltei a mim, havia um açougueiro
de um médico a meu lado. Tinha um bisturi e um par de fórceps na mão. Ia tirar a
bala do meu corpo. Eu estava deitado no chão, sob um pedaço de lona levantado
para servir de abrigo. Havia moscas por toda parte. O médico enfiou uma bala entre
os meus dentes e mandou que eu a mordesse. O hospital improvisado não tinha
anestesia. Quando ele começou a me cutucar e a me cortar, dei-me conta de que
não queria o maldito dinheiro ou a guerra deles. Antes de apagar de novo, jurei que,
se sobrevivesse àquele arremedo de cirurgia, ia me mandar dali. Minha vida valia
mais do que o dinheiro que estavam me pagando.
— E daí?
— Quer saber se sobrevivi? Não, morri — debochou Brig.
— Quero dizer, e daí você largou tudo? — explicou Trudie.
— Larguei. Logo que consegui me mover, retornei aos Estados Unidos... e
finalmente para cá. Fim da história. — Começou a puxá-la de volta para seus
braços, para dar início a uma exploração mais íntima dos seios fartos.
Mas Trudie não estava satisfeita, e colocou um braço entre os dois, para
mantê-lo à distância.
— Quando voltou, viu o seu avô de novo?
— Não. Ele tivera um enfarte violentíssimo. Enterraram-no um mês antes da
minha volta.
Ele segurou a mão que tentava mantê-los afastados e levou-a à boca. Beijou
as pontas dos dedos e foi indo devagarinho para a palma, lambendo a concavidade
sensível com a ponta da língua. Ouviu a pequena exclamação de excitação que ela
tentou disfarçar.
— E quanto aos negócios dele? — Ela se deixou puxar para baixo. — O seu
dinheiro?
— Deixou-o todo para outro neto, meu primo. — O que não era exatamente a
verdade, mas Brig estava cansado de perguntas. E a resposta àquela não era da
conta dela.
— O primo que você vai ver em Nova York? — insistiu ela.
— O próprio.
Brig deitou-a de costas. O meio mais eficaz para calar as perguntas
intermináveis dela parecia ser um beijo. Enquanto lhe devorava os lábios, sentia
sua resistência fugir. Segurando-lhe um dos seios com uma das mãos, excitou o
bico com o polegar até ficar durinho. Forçou o joelho entre as pernas dela, para
abri-las.
Enquanto a boca de Brig acompanhava a curva da face de Trudie até o
pescoço, ela sussurrou no seu ouvido:
— Você é um filho da mãe tesudo, Brig McCord. — A voz dela era relutante no
seu apelo. Ele riu baixinho do insulto carinhoso dela.

Capítulo II

O barulho. Ele tinha se esquecido do barulho de uma cidade grande. O fluxo


do tráfego era um zumbido constante, pontuado por buzinas e assobios pedindo
táxis. Vozes com variedades de sotaques e idiomas pareciam entrar-lhe pelos
ouvidos. O calor era abafante, depois do frescor das montanhas. O sol castigava, e
os quilômetros de ruas de concreto e prédios assavam no calor refletido. O ar fedia
a vapores de gasolina e de canos de escapamento. Nem mesmo os cachorros-
quentes e lingüiças da barraquinha da esquina tinham um aroma apetitoso.
Inclinando-se, Brig olhou pela janela aberta do táxi. O motorista estava
contando o troco devagar e cuidadosamente, remexendo nos bolsos e tirando
dinheiro de cada um. Era um truque antigo para tentar aumentar a gorjeta,
esgotando a paciência do passageiro que esperava o troco.
— É o seu tempo que está perdendo, amigo — informou Brig, secamente, ao
chofer do táxi. — Eu tenho o dia todo. — A última nota juntou-se magicamente às
outras, e o homem rijo entregou-lhe o dinheiro. — Obrigado.
Enquanto andava pela calçada, o táxi afastou-se do meio-fio, forçando uma
abertura no tráfego. Brig parou para olhar o prédio que se agigantava à sua frente.
A sede da Sanger Corporation ocupava todo o vigésimo terceiro andar.
— Aqui a gente os faz crescerem alto, vaqueiro — pilheriou um pedestre
metido a engraçado.
Os olhos castanhos dele se desviaram para o rapaz, que já ria da piada com o
companheiro. Brig notou os olhares curiosos que o seu Stetson branco de palha,
suas botas marrons e seu terno verde de corte western estavam recebendo dos
transeuntes. Chamaria menos atenção se estivesse usando as vestes esvoaçantes
de um xeque, pensou com cinismo.
Entrando no prédio, andou até os elevadores. Um par de portas se abriu
quando uma campainha soou e uma flecha de "subir" foi acesa. Brig entrou e
apertou o botão do andar que queria. Entraram mais passageiros, entre eles duas
moças. Brig tirou o chapéu, enquanto todos mudavam de posição para abrir mais
espaço. Uma jovem morena estava a seu lado, dando-lhe bola. Não parecia ter
idade para haver acabado a escola, mas Brig suspeitava que ela já tivesse uns
vinte anos. Todas lhe pareciam muito jovens. Ainda se lembrava do tempo em que
as moças de vinte anos pareciam velhas. Estou ficando é velho, pensou
mordazmente, e seus lábios se retorceram, divertidos, sob a escova escura do
bigode espesso.
— Você é do Texas? — perguntou a moça, com um olhar que dizia que não
estava propriamente interessada no seu Estado natal. Era tão baixinha quanto
Trudie, e sua cabeça mal lhe chegava ao ombro.
— Idaho.
— Idaho? — repetiu a garota. Brig podia dizer, por sua expressão intrigada,
que a jovem não fazia idéia de onde aquilo ficava. Sentiu uma onda de
repugnância. Será que ninguém em Nova York se dava conta de que existiam mais
outros quarenta e nove Estados nos EUA? A ignorante provavelmente pensava que
Idaho fosse uma batata.
O elevador zumbiu e parou, e as portas se abriram silenciosamente.
— Com licença, este é o meu andar. — Foi passando pela moça, que ficou
espantada com o seu comportamento abrupto.
O hábito fê-lo devolver o chapéu à cabeça, logo que saiu do elevador. Portas
de vidro ostentavam letras em preto e dourado que diziam "Sanger Discount
Stores", e, logo abaixo, "Sede da companhia". Brig sentiu um aperto nas entranhas,
uma sensação que não tinha desde os seus tempos de guerrilheiro. Enrijeceu os
maxilares, contraindo um músculo na face queimada de sol. Uma calma mortal caiu
sobre ele.
Com passadas longas, sem pressa, dirigiu-se para as portas de vidro da
principal área de recepção e abriu-as. Uma mulher negra, muito atraente, estava
sentada atrás de uma mesa grande. Sua aparência era de eficiência, enfeitada com
uma sofisticação suave. Tinha os olhos castanhos e inteligentes. Deu-lhe um
sorriso apenas cortês.
— Pois não? — A voz dela era rouca e repousante, muito agradável ao
ouvido.
Brig tirou o chapéu de novo, muito alto, parado à frente dela.
— Max Sanger, por favor — disse Brig.
Os olhos dela fizeram uma avaliação rápida da pessoa dele, arqueando uma
sobrancelha brevemente, em sinal de hesitação.
— O presidente da companhia?
— O próprio. — A expressão dele denotava um humor seco. Era óbvio que
não se encaixava no padrão exigido das pessoas que pediam para ver o presidente
da empresa.
— Tem hora marcada?
— Não.
— Sinto muito. O sr. Sanger é um homem muito ocupado. Não recebe
ninguém sem hora marcada. Eu o porei em contato com sua secretária, se quiser, e
ela poderá dizer-lhe quando ele estará disponível para recebê-lo.
Ele estava levando um fora, muito educadamente. Sorriu, mas era uma
expressão fria. Bateu com a aba do chapéu no telefone da mesa dela.
— Ligue para Max e diga que Brig McCord está aqui. Ele me receberá.
Sem esperar resposta, Brig afastou-se da mesa e atravessou a área de
recepção com os seus vasos de plantas, móveis ultramodernos de vidro e metal
cromado, e tapete espesso. Parou a uma janela que dava para o centro de
Manhattan e para uma nesga de verde ao norte, que era o Central Park. Sua
postura, de pernas ligeiramente abertas, era de comando, uma das mãos enfiada
negligentemente no bolso da calça. Segurando o chapéu pelo vinco da copa, bateu
com ele na coxa, com vaga impaciência.
Às suas costas, ouviu a recepcionista levantar o fone. Alguns segundos
depois, ela falava baixinho com alguém, o murmúrio tão baixo que tornava as
palavras ininteligíveis.
— Sr. McCord? — Ante a voz indagadora da recepcionista, Brig virou-se
ligeiramente para olhá-la de banda. Ela segurava o fone, com o bocal coberto. A
secretária dele está me informando que o sr. Sanger se encontra numa reunião.
Deu ordem para que suspendessem todos os seus telefonemas. Gostaria de falar
com ela?
Depois de uma negativa de cabeça, Brig disse, calmamente:
— Diga-lhe que dê a ele o meu recado.
— Direi. — Parecia cética, mas obedeceu. Enquanto os minutos se passavam,
Brig voltou a atenção para a névoa e a poeira que se grudavam ao topo dos
arranha-céus. Ao ouvir o desligar do telefone, lançou um olhar por sobre o ombro.
Havia um novo ar de respeito nas feições atraentes da recepcionista negra. — O sr.
Sanger já vem, senhor.
— Obrigado.
O lábio dele se encrespou, cinicamente. Nada mudara desde os tempos do
seu avô. Um homem ainda era julgado por quem saltava quando ele chamava. Brig
só se virou da janela quando ouviu os passos no corredor.
O homem que vinha em sua direção tinha um sorriso fixo no rosto. A despeito
de toda a naturalidade de sua expressão, ela não chegava aos olhos frios e azuis.
Vestindo um terno escuro com colete, camisa e gravata combinando, tinha o porte
esguio de um dançarino. Brig não precisou ver o forro do terno para saber que fora
feito, sob encomenda, pelo melhor alfaiate possível. As únicas modificações que
catorze anos tinham feito no seu primo eram os fios grisalhos e distintos em sua
cabeleira negra e crespa. Max era dez ou onze anos mais velho do que ele,
beirando os cinqüenta. Sua aparência era especialmente cuidada para projetar a
imagem adequada. Brig sentiu o cheiro de uma colônia masculina, e não pôde
deixar de compará-la ao odor pungente de um gambá.
— Brig! — A voz de Max Sanger parecia genuinamente encantada em vê-lo,
mas Brig não era bobo. — Meu Deus, homem! Quanto tempo faz?
— Catorze anos. — A mão dele foi agarrada pelos dedos macios, enquanto
outra mão lhe segurava o antebraço, numa demonstração de afeto. Brig teve
consciência das próprias mãos calosas. — Um aperto de mão bem firme, Max —
observou, com frieza árida. — Direitinho como o velho ensinou.
Um lampejo de inquietação perpassou pelos olhos azuis, mas logo foi
disfarçado, quando o primo riu.
— Não mudou, Brig. Você ainda é cínico. — Agarrou o ombro de Brig numa
nova tentativa de estabelecer uma camaradagem que nunca existira entre eles. —
Por que não me contou que vinha? Nem pude acreditar, quando minha secretária
me disse que você estava aqui.
— Uma tática que vem dos meus dias de mercenário... nunca dê aviso prévio
antes de atacar.
O primo abandonou a aparência amistosa, deixando o braço pender ao lado
do corpo.
— Não sou seu inimigo, Brig — declarou.
— E eu disse que era? — falou Brig, fingindo uma leve surpresa.
Estreitando os lábios, Max Sanger deu uma olhada na área de recepção e
sugeriu:
— Por que não vamos para o meu escritório, onde podemos ficar a sós?
— Sem dúvida — concordou Brig, e foi meio passo atrás do outro, enquanto o
primo seguia pelo corredor. No fim deste havia um par de portas duplas. Max abriu
uma delas e esperou que Brig entrasse na frente. A secretária ergueu os olhos
quando entraram, lançando um olhar curioso para Brig. Era uma mulher mais velha,
engomada e macilenta.
— Suspenda todos os meus telefonemas, Agnes — ordenou Max. Outro par
de portas dava para o interior do escritório.
Era uma sala enorme, tomando um canto do prédio. Janelas grandes
ocupavam duas paredes. Uma enorme mesa de madeira pesada estava colocada
diagonalmente no canto, com uma poltrona de executivo, de couro, atrás. Além de
duas poltronas estofadas, havia também um sofá comprido, com mesinha de centro,
e um bar. Brig foi até a janela olhar a vista.
— Impressionante — murmurou, com uma ponta de sarcasmo. — Mas foi
projetada para ser, não é? — Max Sanger não fez nenhum comentário, enquanto se
sentava e deixava o corpo esguio se enterrar na poltrona ampla atrás da mesa.
Girou-a na direção de Brig, recostando-se para olhá-lo por entre os olhos azuis
apertados. Brig enfiou a mão no bolso da camisa para pegar o maço de cigarros.
Deixou a mão ali por um instante. — Incomoda-se se eu fumar?
— Se eu me incomodasse, isso não o deteria. — Max empurrou o pesado
cinzeiro de cobre de sua mesa para o lado mais próximo de Brig. — Por que não vai
direto ao assunto, Brig? Essa não é uma visita social. Você não está tentando
restabelecer os laços de família. Qual o motivo real para você estar aqui?
Com uma das mãos, Brig riscou o fósforo e levou a chama ao cigarro.
— Talvez, como um dos principais acionistas, tenha vindo ver como vai indo a
companhia disse, soltando um jato fino de fumaça.
— A companhia não significa porra nenhuma para você! — exclamou Max,
ironizando a possibilidade.
— Tem razão — concordou Brig, com um sorriso retorcido. — Vim cobrar as
minhas promissórias.
— Não tenho nenhuma sua. — Max balançou a cadeira para a frente,
empalidecendo um pouco. — Sabe quais foram as condições do testamento do
velho. A não ser que trabalhe na companhia, você tem direito a zero.
— Você sabe que eu podia ter contestado isso.
— A opção era sua. E você resolveu não o fazer — retrucou o primo. — Você
não queria nenhuma parte dos ganhos que ele "adquirira desonestamente". Já tinha
o seu dinheiro sangrento, dinheiro que ganhou por si mesmo.
— Você não estaria aí sentado nessa cadeira, se eu não tivesse me afastado
— lembrou Brig, friamente. — Nem mesmo estaria aí, se eu não lhe tivesse dado
procuração para votar por mim, com as minhas ações. Não estou aqui para tirar
essa cadeira de você. A companhia é sua. Mas você é meu devedor, Max.
Max parecia preparado para discutir. Ao invés disso, porém, falou, por entre os
lábios apertados:
— Diga-me o que quer.
— Preciso de um empréstimo — admitiu de mau grado. — Vinte mil.
Um ar divertido perpassou pelo rosto do primo. Ele hesitou um instante, depois
abriu a gaveta central de sua mesa. Tirando de lá uma pasta, jogou-a na mesa,
diante de Brig. Estava marcado "confidencial".
— Leia — disse Max, indicando a pasta e recostando-se na poltrona, apoiando
os cotovelos nos braços dela e batendo os dedos um contra o outro.
Brig hesitou, depois pegou a pasta. Era um relatório financeiro preparado por
uma firma de contadores registrados, completo, com um balanço geral, declaração
de lucros e perdas, uma lista do ativo e do passivo, a longo e a curto prazos. Brig
correu os olhos pelas duas primeiras páginas. Quando os números começaram a
atingir o seu consciente, examinou o relatório com mais atenção. Sentiu um vazio
na boca do estômago. Lançou um olhar duro ao homem atrás da mesa. A
expressão inicial de satisfação divertida do primo dera lugar a outra, de resignação
sombria.
— É o resultado da última auditoria, entregue ontem — declarou Max. —
Posso evitar torná-lo público durante dois meses, talvez mais. Esta companhia não
tem vinte mil dólares, Brig.
— Com você como presidente, eu devia estar surpreso de a companhia não
ter ido à falência antes. — Largou o relatório na mesa, lutando contra a raiva e a
frustração que subiam dentro de si. — Como aconteceu?
— As lojas começaram a dar menos lucro. Sabe como está a economia do
país. Tentei diversificar e fiz uns dois investimentos ruins.
— Uns dois? Foi preciso mais de dois para deixar a companhia nesse estado.
— Raiva, desprezo e nojo misturavam-se todos na resposta de Brig. — Você devia
ser processado por má administração.
— Que merda, Brig! — exclamou Max, em autodefesa, pondo-se de pé.
— Deixe para lá. Não serei eu a processá-lo. Suponho que mais ninguém
tenha visto esse relatório...
— Ninguém.
— Então, também não o vi. Só o que quero são os meus vinte mil — declarou
Brig. — Não me importa recebê-los da firma, ou de você, pessoalmente. E não
tente convencer-me de que não fez fortuna própria, porque não sou bobo. — O
desespero de sua situação pessoal dava-lhe uma aspereza extra à voz. Estava
lutando por sua vida.
Max pareceu retorcer-se na cadeira. Já não conseguia olhar o primo nos
olhos.
— Também não tenho — admitiu, depois de uma longa pausa. — Tudo o que
tenho e tudo o que pude pedir, tomar emprestado ou roubar está enterrado num
projeto imobiliário na Califórnia. Condomínios. Não consigo desmanchá-lo.
Uma raiva fria envolveu Brig. Tinha vontade de agarrar Max pela camisa e
enfiar a mão naquelas belas feições até que virassem uma posta sanguinolenta.
Antes que o impulso de violência o dominasse, Brig caminhou com passos rígidos
até a janela. Fora um idiota em ir até ali, um idiota em esperar receber algum auxílio
do primo. Quem sabe poderia conversar de novo com o seu banqueiro... Quem
sabe, se vendesse todas as vacas e ovelhas... mas o que usaria como renda, no
ano seguinte? Estava entre a cruz e a caldeirinha.
— Para que precisava dos vinte mil, Brig? — perguntou Max, com voz serena
e respeitosa, como se tivesse consciência de que o tom errado iria cutucar a onça.
— Preciso do dinheiro. O meu balanço geral está bem melhor do que o seu,
mas acontece que tenho pouca terra e gado — admitiu. — Já estive em algumas
brigas, antes. E ainda não dei esta por perdida.
Afastando-se da janela, começou a andar para a porta. Não havia mais razão
para ficar.
— Para onde vai?
— Para o meu hotel, pedir a conta e tomar o primeiro avião de volta a Idaho.
— Brig não olhou para trás. Ainda não sabia se poderia se controlar para não partir
para cima do primo. Começou a girar a maçaneta.
— Espere — falou Max. — Talvez possamos fazer um negócio para ganhar
algum dinheiro, nós dois.
— Em primeiro lugar, Max, eu não iria gostar do cheiro de qualquer negócio
feito por você. E, em segundo, não trabalho com alguém que me força a ficar
olhando por cima do ombro para não levar uma facada nas costas. — Abriu a porta,
com violência.
Max apressou-se em ir atrás dele, enquanto Brig saía da ante-sala para o
corredor.
— É quase meio-dia. Vamos almoçar juntos. Não vai perder nada, se me ouvir
— argumentou Max.
— Vai perder o seu tempo.
— É o meu tempo.
— E o meu — retrucou Brig. — Pode contar-me o seu planozinho durante a
viagem de táxi até o meu hotel.
Max não gostou dos termos, mas era esperto o bastante para não insistir em
outros. Os dois nunca haviam se entendido. Desde quando Brig fora morar com o
avô, Max antipatizara com ele, quase o odiara. Brig sempre fora o neto predileto, o
herdeiro escolhido a dedo do trono dos Sangers, embora Max fosse o mais velho.
Tudo teria ido para as mãos de Brig, se este tivesse aceitado as condições do
testamento do avô. Max assumira pela desistência do outro. Agora, estava entalado
até o pescoço, mas podia haver uma saída, com a ajuda de Brig. E ele quase sentia
engulhos de admiti-lo.
Do lado de fora do prédio, Brig caminhou até a esquina e chamou um táxi.
— Nunca vai arranjar um, a essa hora — informou Max, com a presunção de
um nova-yorkino.
Brig não lhe deu atenção, ao mesmo tempo em que soltava um assobio
estridente, com o auxílio dos dedos. Um táxi mudou de faixa, por entre um alarido
de buzinas e ranger de freios, e veio parar junto ao meio-fio, diante deles. Brig abriu
a porta de trás para o primo.
— Esse sempre foi o seu problema, Max. Nunca ninguém saltou quando você
assobiou. — O olhar que Max lhe lançou antes de entrar no táxi foi de ódio puro.
Brig dobrou o corpo comprido e sentou-se ao lado dele. — Para o Hilton — falou,
inclinando-se para a frente a fim de falar com o motorista, e depois refestelou-se no
banco. — É melhor começar a falar, Max. Não tem muito tempo.
— Você veio pedir-me vinte mil, seu filho da mãe arrogante! — esbravejou
Max, por entre os dentes cerrados.
— Se acha que vou ficar de joelhos e lamber o seu saco só para obter alguns
minutos do seu precioso tempo para lhe dizer como consegui-los, está enganado.
— Estou? Você sempre lambeu o do velho muito bem — ironizou ele,
divertindo-se com a impotência da raiva do primo, porque Brig sabia que era tudo
papo-furado. — Quer conversar ou trocar insultos? — E sorriu, enquanto via Max
lutando para se controlar.
— É simples — começou o primo, num tom de voz formal. — Conheço alguém
que pode estar interessado em comprar a companhia. Venho tentando vender-lhe
as minhas ações, mas isso não lhe daria o controle da firma, a não ser que tivesse
sua procuração. De acordo com o testamento, você só pode vender suas ações
para um membro da família, salvo se for para uma compra total da companhia, ou
para uma fusão. Acho que posso convencê-lo a comprar tudo.
— O pobre do otário ainda não viu o resultado da última auditoria, não é? —
adivinhou Brig.
— Já lhe disse que acabei de recebê-lo! — disse Max, bruscamente. — De
qualquer maneira, não tem importância. O sujeito está procurando um meio de
conseguir incentivos fiscais. Tem mais dinheiro do que Deus.
— Se tem, então não o conseguiu bancando o idiota. Só o que tem a fazer é
esperar dois meses e comprar a firma por uma ninharia, depois de decretada a
falência.
— É, mas isso não vai adiantar nada, não é? — explodiu Max, num desafio
sarcástico. — A auditoria anual da companhia só é feita no final de outubro. Mandei
fazer essa mais cedo porque... não pensei que estivesse assim tão ruim. Então, o
que acha?
— Acho que cheira a tapeação — declarou Brig, enojado. — Nunca enganei
um homem na minha vida. E não vou começar por causa de uns míseros vinte mil.
— O táxi entrou no círculo diante do hotel e parou perto das portas giratórias. Brig
inclinou-se para a frente e deu uma nota ao chofer. — Guarde o troco.
Enquanto saltava do carro, Max saía pelo outro lado.
— É sempre tão metido a santinho, McCord! — rosnou Max, cruzando a porta
giratória atrás do outro, e andando depressa para acompanhar as passadas mais
longas de Brig. — É um hipócrita. É isso o que você é. Não me esqueci que lhe
pagavam para matar gente.
— Os governos me pagavam para lutar — corrigiu Brig, em voz baixa e feroz,
parando junto à caixa.
— Estou lhe... pedindo — hesitou Max ao dizer o verbo, depois enfatizou-o —
para, ao menos, pensar no que falei. O homem tem dinheiro e está interessado.
Ele... — Parou, olhando para o fim do amplo saguão que tomava todo o andar
térreo do hotel. — Lá está ele — disse apontando. — O homem alto e grisalho
parado na frente do restaurante.

Desinteressadamente, Brig deixou o olhar acompanhar o dedo do primo, que


apontava discretamente. Viu o homem, mas foi a mulher que estava com ele que
chamou sua atenção. Tinha um tipo longilíneo, embora fosse alguns centímetros
mais baixa do que o homem com quem estava. Seu cabelo era avermelhado, um
castanho que parecia pegar fogo à luz que brilhava no teto. Havia nela um ar terra-
a-terra, animal, uma sensualidade latente. Era uma criatura fascinante... jovem, mas
com um ar de maturidade. O sangue dele ficou quente ao vê-la. Na realidade, ela
parecia madura, no ponto de ser colhida. Brig sentiu ímpetos de fazer a colheita.
Desviou o olhar para o homem. Sem dúvida, havia pelo menos trinta anos de
diferença entre os dois. Fisicamente, o homem parecia viril e em forma. Havia algo
vagamente distinto na sua presença, uma aura provavelmente descrita como
carismática. Não havia nada de errado com sua saúde. Ou com seu apetite,
concluiu Brig, ao ver o homem tirar um dinheiro do bolso e colocá-lo na mão da
mulher.
Sua atitude com relação à morena atraente começou a ficar mais dura.
Quando ela beijou de leve o homem mais velho, os olhos dele se escureceram,
sardonicamente. Com um aceno, ela se dirigiu para a saída com passadas longas e
graciosas. Junto à porta, Brig viu-a parar para colocar o dinheiro na bolsa... e
provavelmente para contá-lo, pensou ele com cinismo.
— Venha. — Max segurou-o pelo cotovelo, empurrando-o para diante. — Vou
apresentá-lo a você. — Brig dispôs-se a recuar, mas o homem já os vira e erguera
a mão, num gesto de cumprimento. — Alô, Fletcher. Que surpresa encontrá-lo aqui
— declarou Max, ao se encontrarem a meio caminho.
— Posso dizer o mesmo, Max. — O homem não explicou por que estava no
hotel. Brig não ficou surpreso. Poucos homens de valor ficavam contando
vantagens sobre a garota que acabavam de comer num quarto qualquer do hotel.
— O que o traz aqui?
— Brig está hospedado aqui. Acaba de chegar do oeste para discutir negócios
da companhia. Deixe-me apresentá-lo. Fletcher, este é meu primo, Brig McCord —
falou Max, e depois fez o inverso. — Este é Fletcher Smith. A maioria das pessoas
o conhece dos artigos das revistas esportivas sobre caçadas, mas eu o conheço
como um extraordinário homem de negócios.
Brig achou os elogios de Max um pouco óbvios demais. Fletcher Smith
pareceu indiferente à descrição de si mesmo, enquanto trocava com Brig um forte
aperto de mão.
— Muito prazer, sr. McCord. — As feições calmas, relativamente sem rugas,
no rosto bronzeado denotavam um homem que aprendera a sabedoria da paciência
e da persistência, duas qualidades essenciais para um caçador bem-sucedido. —
Estava na Califórnia? Max me falou muito do projeto que tem por lá.
— Não. Sou de Idaho — corrigiu Brig, não querendo nenhuma ligação com o
projeto do primo.
— Brig tem uma fazenda lá — apressou-se Max a explicar. — Tenho sua
procuração para votar por ele na empresa, porém geralmente discutimos antes os
tópicos.
— Em que local de Idaho fica sua fazenda?
Brig não pôde deixar de notar que Fletcher Smith estava ignorando as
tentativas do primo de trazer à conversa a companhia e suas ações. O homem era
astuto. Max jamais o enganaria por muito tempo.
— Nas montanhas, perto da bifurcação do rio Salmon — respondeu Brig.
— É uma área primitiva — disse, balançando a cabeça, como se já a tivesse
localizado num mapa mental. — Deve ser boa para caçar.
Brig deu de ombros e evitou um comentário direto.
— Geralmente mato um alce ou dois por ano, para comer.
— Também gosto de carne de alce — concordou o homem, sorrindo.
— Não é um barato? Brig tem uma fazenda de gado e come alce. — Max
forçou uma risada. — Precisa vir até Nova York, a negócios, para comer bife. O que
me faz lembrar... Brig e eu íamos almoçar agora. Quer nos fazer companhia,
Fletcher?
O homem mais velho hesitou, lançando um olhar a Brig antes de se decidir.
— Aceito tomar um café com vocês.
— Não estou com vontade de almoçar, Max — declarou Brig.
— É a defasagem de horário — explicou Max para Fletcher, com uma risada,
lançando a Brig um olhar furioso. — Você e Fletcher tomam café, e eu como.
— Vamos deixar que ele ganhe uns quilinhos — disse Fletcher com um
sorriso, e virou-se na direção do restaurante. Olhando de banda para Brig,
comentou: — Ouvi dizer que tiveram um inverno bravo este ano. — E começou a
andar.
Um brilho de admiração apareceu nos olhos de Brig. O homem era um
caçador e tanto, atraindo sua presa. E ele era a presa do caçador. Se ia responder
àquele comentário de Fletcher, tinha que caminhar a seu lado. Fletcher olhou para
trás e leu na expressão de Brig que seu joguinho fora descoberto. Abriu um sorriso
e parou. Max olhava de um para o outro, completamente intrigado. Brig começou a
caminhar.
— Foi um inverno ruim — admitiu. — Outras regiões dos Estados Unidos
também foram bastante atingidas — completou. Desta vez, estavam em nível de
igualdade.
— Como foi que os animais selvagens se saíram? — quis saber Fletcher.
— Sempre se saem melhor do que o gado. Veados, alces, ovelhas, cavam a
neve para procurar pasto. Uma vaca fica parada e morre de fome, embora haja
apenas dez centímetros de neve cobrindo a grama.
Brig não sabia ao certo por que aceitara o convite para almoçar. Devia ter
saído do hotel e pegado um táxi para o aeroporto. Mas aquele caçador ardiloso
parecia ser um homem interessante. No espaço de poucos minutos, despertara sua
curiosidade. O que eram uma ou duas horas? Examinou de novo o homem,
enquanto entravam no restaurante e eram conduzidos a uma mesa.
Fletcher Smith era tão alto quanto ele, com mais ou menos um metro e oitenta
e cinco. Tinha o corpo mais pesado, espesso e largo, mas Brig não se deixou
enganar pelo corpanzil. O homem era sólido. Não havia gordura nos seus ossos,
somente músculos. Seu cabelo era cinzento, mais grisalho ainda nas têmporas,
mas já fora castanho. Era solto e descontraído, mas possuía os reflexos de um
caçador. Talvez fossem um pouco mais lentos, agora, mas Brig suspeitava de que
ainda eram mais rápidos do que os da maioria dos homens. Brig notou a saliência
do bolso interno do paletó do homem... um estojo de óculos, o que significava que
estava perdendo a visão. Fletcher Smith atingira o ápice e começara a queda. O
homem estava ciente disso, o que provavelmente explicava a jovem dos cabelos
castanho-avermelhados. Estava tentando mostrar que ainda dava para o gasto,
reafirmando a sua virilidade.
Enquanto o garçom lhes servia o café, Brig observou como os olhos de
Fletcher focalizavam seu primo, como se este fosse um alvo.
— Há muito tempo que não o vejo no nosso apartamento, Max.
— Estava fora, ou tinha outros compromissos recentemente, e tive que
recusar vários dos seus convites. — Max sorriu serenamente, enquanto abria o
cardápio. — Acho que sua mulher parou de me convidar.
— Vamos dar uma festinha amanhã à noite. Por que não vai? — sugeriu
Fletcher.
— Gostaria muito — concordou Max. Mas sua aceitação não fora ansiosa. Na
verdade, Brig notou que o primo hesitara.
— Não é a rigor, apenas uma reunião informal. — Lançou um olhar para Brig.
— É claro que também está convidado, sr. McCord.
— Vou voltar para Idaho. Muito obrigado, de qualquer forma — recusou.
— Falou que sua fazenda ficava perto da bifurcação do Salmon? É um trecho
isolado — comentou Fletcher, olhando para Brig por sobre a beirada da xícara de
porcelana.
— De fato, mas é assim que eu gosto.
— Uma tribo de índios chamados sheepeaters1 viveu naquela área, antes da
chegada do homem branco — falou Fletcher.
— Eram chamados de sheepeaters, porque, como diz o nome, as ovelhas
selvagens eram o seu alimento básico, mas eram mais comumente conhecidos
como shoshones — retrucou Brig, sorrindo consigo mesmo. Seus conhecimentos
estavam sendo testados, e ele se perguntava para que tudo aquilo.
— Viu algum carneiro montês naquela área?
— Alguns. Ficam em território alto, a maior parte do tempo.
— Algum deles era tamanho troféu?
Brig lembrou-se do carneiro montês que vira na primavera, mas não o
mencionou.
— Depende do que queira dizer por tamanho troféu.
1
Literalmente, "comedores de ovelha". (N. Do E.)

Os chifres devem ter um caracol inteiro, ou mais. Depois, depende da


circunferência dos chifres e da abertura das pontas. — Fletcher recostou-se na
cadeira, fitando Brig com olhar firme. Um sorriso retorcido curvou-lhe a boca. —
Sabe como é. Um caçador está sempre planejando a próxima caçada. Andei
falando com um fornecedor nas montanhas Bitterroots sobre uma caçada naquela
parte do país, atrás de carneiros monteses.
— Parece emocionante — falou Max, tentando participar da conversa.
— O carneiro montês das montanhas Rochosas é o único troféu de caça
graúda que não consegui em todos os meus anos de caçador. Cacei com sucesso o
stone, na Columbia Britânica, e o dali, no Alaska, mas não consegui um carneiro
montês das Rochosas. — Havia um ar sombrio e atormentado na sua expressão
resoluta.
— O que está tentando... caçar todos os tipos de carneiros? — O olhar de Brig
era de desprezo seco. Ouvira contar de esportistas ricos que recorriam a qualquer
método, legal ou não, para obter troféus de todos os quatro carneiros norte-
americanos: o dali, o stone, o montês das Rochosas e o montês do deserto.
Houve um brilho divertido no olhar de Fletcher Smith.
— Isso é objetivo de diletante. Nenhum caçador que se preza liga
exclusivamente para os resultados. A emoção reside na caçada. Um caçador é
como um pescador. Estará sempre lá, pescando, mesmo que o peixe lhe escape
todas as vezes, porque ama o esporte — declarou, e depois falou com ar sério. —
Esta pode ser a minha última chance de tentar um montês. Posso estar velho
demais quando a minha vez chegar de novo. Desta feita vou dar o máximo de mim
para trazer um. Se não conseguir, ficarei sabendo que tentei.
Fez-se uma pausa na conversa, enquanto o garçom anotava o pedido de Max.
O café de Brig estava morno, e ele esvaziou a xícara. Inclinou-se de lado na
cadeira, apoiando o cotovelo na mesa e esfregando, pensativo, a escova macia do
bigode.
Brig deu-se conta de que adivinhara corretamente. Fletcher tinha consciência
de que os anos estavam passando e começara a agarrar os prazeres da vida antes
que fugissem dele para sempre, quer se tratasse de uma mulher jovem e bela, quer
da emoção da caçada. Não podia condenar o homem por isso, porque não podia ter
certeza de que não agiria da mesma forma, dali a quinze anos. Mas, diabo, quem
podia saber?
— Sua fazenda é exclusivamente de gado, ou também tem carneiros? —
indagou Fletcher, depois que o garçom se retirou.
— Ambos.
— O carneiro doméstico é o mais perigoso inimigo do montês — comentou
Fletcher. — Não apenas come nas suas pastagens, mas transmite ao carneiro
selvagem moléstias a que se tornou imune.
— A velha e amarga discussão entre o fazendeiro e o caçador. — E Brig riu
sem fazer ruído.
— Um fazendeiro pode dizimar todo um rebanho de carneiros monteses com a
moléstia transmitida pelo seu bando de carneiros. Um caçador está atrás do animal
troféu, quando não está querendo carne. Os chifres tamanho troféu pertencem
apenas aos carneiros monteses velhos, aqueles que a natureza e as montanhas
matariam, de qualquer forma — ressaltou Fletcher.
— Já ouvi esse argumento. Mas todas as espécies da Terra têm que se
transformar, se adaptar, ficar mais fortes com o passar do tempo. É a lei da
sobrevivência, a lei da natureza. Minhas ovelhas carregam as moléstias que a
natureza colocou nelas. Se não as transmitissem aos carneiros monteses, outra
coisa as transmitiria. Ou o carneiro montês adquire imunidade ou se torna extinto. É
a lei da natureza, não do homem.
— Quer dizer que não acredita na preservação de uma espécie? — perguntou
Fletcher, desafiadoramente.
Um sorriso brincou nos cantos da boca de Brig, aprofundando-os.
— Pessoalmente, agradeço a Deus não termos tido ecologistas em atividade
no tempo dos homens das cavernas, correndo aos gritos de "Salvem os
dinossauros!" Pode imaginar se tivéssemos uns duzentos deles em algum
santuário, agora, onde o homem teria que recriar o seu habitat e sua alimentação o
mais corretamente possível? Todas as criaturas têm o seu período de vida. As
espécies também. O homem pode se extinguir, algum dia. Pela própria mão, ou
pela da natureza, é a mesma coisa — concluiu.
— O homem acredita que pode salvar o mundo — disse Fletcher, com um
sorriso perturbado. — Você está dizendo que ele terá sorte se puder salvar a si
mesmo. É uma filosofia muito profunda. — Inspirou forte, e soltou um suspiro. — E
provavelmente muito mais perto da verdade do que qualquer um de nós ousa
admitir.
— As leis da natureza com freqüência parecem brutais e duras, porque são
apenas os mais aptos que sobrevivem. — Brig acendeu um cigarro e jogou o
fósforo no cinzeiro.
— Ah, mas é arrogante da parte do homem acreditar que está acima da
natureza — murmurou Fletcher. O garçom chegou e colocou o almoço de Max na
frente dele. — Espero que a nossa conversa ligeiramente mórbida não tenha
atrapalhado o seu apetite, Max.
— De modo algum. Foi muito esclarecedora. — Abriu o guardanapo e colocou-
o no colo. — Brig é uma espécie de perito em sobrevivência, por experiência
pessoal. Quando tinha nove anos, passou quase três meses sozinho no deserto,
depois que os pais dele morreram num desastre de avião. Mais tarde, combateu no
Sudeste Asiático. — Max hesitou, como se quisesse dizer mais, depois mudou de
idéia. — E você é uma espécie de perito em natureza, com todas as suas
experiências de caça, Fletcher. Conhece tudo sobre o predador e a presa, e as
condições variáveis que produziram o declínio da caça graúda. Vocês dois, por
assim dizer, estão de lados opostos da cerca: um, o caçador; outro, o fazendeiro.
Você, o romântico rude; Brig, o realista frio.
— É muito observador, Max. Às vezes, eu o subestimo. — Fletcher estreitou
ligeiramente os olhos. — Você também fez algumas caçadas, não é?
— É, mas faz muito tempo. Sem dúvida, nada na sua escala — insistiu Max,
com modéstia.
— Deveríamos ir caçar, um dia desses, você e eu — disse Fletcher, quando a
idéia lhe ocorreu.
— Boa idéia — concordou Max, rindo. — Contanto que você me avise com
antecedência suficiente, para eu me pôr em forma para andar pelo mato.
Batendo com o cigarro na beirada do cinzeiro, Brig se deu conta de que, em
muitos aspectos, o primo era um homem inteligente, cônscio de suas limitações e
capaz de explorar suas qualidades. Qual a falha de caráter que impedia Max de ser
um sucesso? Seria o fato de estar disposto a utilizar-se de quaisquer meios para
obter o que queria, ou o fato de sempre querer o que era dos outros?
— Não me deu uma resposta direta sobre as perspectivas de caça na sua
área, McCord — lembrou Fletcher.
— Do carneiro montês? — indagou Brig, alçando uma sobrancelha.
— É.
— Vi alguns — admitiu.
— Tamanho troféu?
— É possível que os que vi se enquadrem. — Brig deu uma tragada no cigarro
e apertou os olhos ante a fumaça que tentava entrar neles.
— Têm sido muito caçados?
— Não na área que me é familiar. — Sacudiu a cabeça. — Os carneiros ficam
metidos na terra árida, alta. Não é fácil chegar a ela, nem com uma tropa de
animais de carga. É difícil entrar, e difícil sair.
— Já serviu de guia alguma vez, ou pensou em fazê-lo? — indagou Fletcher,
examinando-o atentamente.
— Não.
— O que diria se eu lhe contasse que gostaria de contratá-lo para preparar
uma expedição de caça para mim, e ser meu guia? — falou, sorrindo
presunçosamente, enquanto fazia a pergunta.
— E por que iria querer a mim? — Brig inclinou a cabeça, num ângulo
desconfiado. — Não tenho nenhuma experiência. Além disso, você já entrou em
entendimentos com um fornecedor nas Bitterroots.
— Segundo todas as informações que recebi, os carneiros monteses na área
dele e em Montana são jovens. O que significa que minhas chances de encontrar
um carneiro com chifres tamanho troféu são quase nulas. Pelo pouco que me
contou de sua área, diria que as minhas chances são melhores ali. Você conhece
bem o terreno e os marcos. Possui uma fazenda, o que significa que tem acesso a
bons cavalos de montanha para uma tropa de carga. Quanto à sua falta de
experiência — Fletcher fez uma pausa —, você me parece ser um homem que se
certificaria de que, se pegasse o dinheiro de alguém, esse alguém receberia aquilo
pelo que pagou.
— Já ouvi falar de guias que têm aviões para enxotar os carneiros na direção
dos caçadores — comentou Brig.
— Isso é ilegal.
— Você sabe, e eu também. Mas há caçadores que querem um carneiro de
qualquer maneira. — Um rastro fino de fumaça pontuou sua declaração arrastada,
que era um meio desafio.
— Se eu conseguir o carneiro, será estritamente segundo as regras, sem nada
de escuso ou ilegal. — Traçou o contorno da sua colher na toalha de mesa. — Farei
com que valha a pena para você, McCord. O dinheiro não é obstáculo para mim.
Pagarei a você trezentos... quatrocentos dólares por dia.
Brig inspirou rapidamente e tentou disfarçar seu choque ante a quantia.
— Entrar, sair, além do tempo para a caçada propriamente dita, pode levar
uns vinte dias. — Já fizera a multiplicação, mentalmente, e sabia que a quantia
seria uma parte respeitável do que ele precisava.
— É isso, em média, dependendo do tempo — concordou Fletcher, com um
brilho convencido nos olhos ante a reação maldisfarçada de Brig. — Seremos dois
a ir. Naturalmente, esse preço é por pessoa.
Brig praguejou intimamente. Era mais da metade do dinheiro de que
precisava. Matar um animal pela carne, pela comida para sobreviver, era uma
coisa. Mas matá-lo por causa de um par de chifres, para pendurá-los na parede de
algum escritório, era contra a sua natureza.
— Se o par de chifres ultrapassar um metro, você receberá uma bonificação
de dez mil dólares.
Fletcher tornava a coisa cada vez mais atraente.
Merda! Brig sentia-se como se suas entranhas se rasgassem, enquanto era
puxado em duas direções diferentes.
— Conheço aquele pedaço de terra. Não posso lhe garantir que sequer vá
avistar um carneiro desse tamanho. Seria uma viagem árdua, num dos terrenos
mais irregulares que já encontrou. — Na altitude em que os carneiros monteses
vagam, o ar é rarefeito. Até mesmo a subida mais leve deixa o coração agitado
como uma locomotiva. — Não sei se você está em condições de fazer esse tipo de
viagem. — Seria dureza para o próprio Brig, e Fletcher era mais de quinze anos
mais velho. Brig não teve papas na língua e falou a verdade para o homem.
— Deixe que eu me preocupe se agüento ou não. — A voz dele ficou mais
dura. — Não estou pensando por um minuto que vá ser uma viagem de prazer. Só
o que espero de você é que faça todos os preparativos e compras para a caçada e
me guie até onde se encontram os carneiros. Eu levo a minha própria arma e faço
os disparos. Se acerto ou erro, é problema meu. O seu é me mostrar o alvo.
Negócio fechado?
— Vou ter que pensar no assunto — replicou Brig, com voz tensa. Porra! O
que havia para pensar? Precisava do dinheiro. Mas se recusava a desrespeitar o
próprio pedido de um pouco de tempo.
— Pense — concordou Fletcher. — Pode comunicar-me sua decisão na festa
de amanhã à noite.
— Isso não me dá muito tempo — protestou Brig.
— Não tenho muito tempo. A temporada abre a 1º de setembro e vai até a
terceira semana de outubro. Tenho que fazer meus planos agora. Não posso deixar
a coisa para o último minuto.
— Fique aqui até sábado de manhã, Brig — intrometeu-se Max. — Não tem
nenhum motivo urgente para voltar para Idaho hoje, não é?
— Não — admitiu Brig, a contragosto. Pensara que teria que enfrentar muitos
papéis referentes ao empréstimo de Sanger. Reservara a passagem de volta para o
sábado, e não era esperado antes disso.
— Nesse caso — disse Fletcher, afastando a cadeira da mesa e se levantando
—, eu o verei amanhã à noite, entre as oito e as nove. A você também, Max.
— Estaremos lá — assegurou Max.
Uma expressão indecifrável perpassou pelas feições cinzeladas de Fletcher.
— Conto com isso. — Seu olhar incluiu a ambos. Fletcher fez sinal ao garçom,
pedindo a conta. Max começou a protestar, mas o outro o calou com um gesto. —
Eu cuido dela — insistiu Fletcher, enquanto perguntava ao garçom qual era o total,
e lhe entregava uma cédula. — Fique com o troco.
— Obrigado pelo almoço, Fletcher. — Max expressou gratidão cortês,
enquanto o homem se afastava da mesa.
— Não seja por isso.
Brig não disse nada, nem um obrigado nem um adeus, quando o homem saiu
do restaurante. Tinha a sensação de que acabara de ser comprado, e não estava
gostando do travo que aquilo lhe deixava na boca.
— Pegou uma boa dessa vez, Brig — declarou Max, sacudindo a cabeça.
— Cale a boca, Max — rosnou ele, esmagando a ponta do cigarro no cinzeiro.
— O que foi que eu disse? — Max parecia espantado com a resposta
agressiva. — Fletcher vai pagar-lhe o dinheiro de que precisa, com algum de sobra.
— Ainda não disse que vou aceitar. — Irritadiço e inquieto, Brig apoiou os
braços na mesa e mexeu a xícara que continha o resto do café, fitando a borra
escura.
— Será um tolo se não o fizer. Sempre foi teimoso, Brig, mas não pensei que
fosse tolo — ironizou o primo.
— Bem, pode ser que eu seja. — Tomou um gole d'água para tirar o gosto
amargo da boca. Largou o copo na mesa com ruído e afastou a cadeira da mesa.
— Aonde vai?
— Dar uma volta. — Brig tinha que pensar.
Só depois que saiu do hotel foi que diminuiu o ritmo das passadas. Começou a
andar pelas ruas, descendo a 54 th Street, depois a Madison, voltando em seguida
para a Fifth Avenue. Finalmente, o calor sufocante do sol de julho fez com que
entrasse num bar escuro, com ar condicionado, que ficava numa das ruas laterais.
Sentou-se à mesa num canto e tomou devagarinho duas cervejas.
Uma piranha de rosto duro, com o mapa do mundo na cara, aproximou-se
dele.
— Quer um pouco de companhia, vaqueiro?
Brig ergueu o olhar. Os olhos azuis, sem brilho, da mulher não tinham nada da
ternura dos de Trudie. Ele levantou-se e jogou uns trocados sobre a mesa.
— Meu bem, quando eu quiser, você será a última a saber — falou, com voz
arrastada.
Ela o mimoseou com alguns palavrões bem escolhidos, enquanto ele saía do
bar. O calor atingiu-o como o vapor de um alto-forno. Fazia-o lembrar-se das selvas
opressivas e úmidas da América Central. Só que ali ele estava cercado por
concreto, ao invés de vida vegetal. Tirando o leve paletó do terno esporte, Brig
jogou-o sobre o ombro e começou a voltar para o hotel.
Alguns minutos antes das cinco, parou na recepção para apanhar a chave,
depois caminhou para os elevadores. O suor lhe grudara a camisa às costas. Sua
pele formigava de calor, enquanto ele esperava o elevador. As portas se abriram e
Max saltou. As sobrancelhas de Brig se alçaram, de surpresa momentânea, o olhar
atento percebendo o movimento furtivo de Max, colocando uma chave de quarto no
bolso do paletó.
— Alô, Max, não esperava encontrá-lo ainda aqui no hotel — comentou Brig,
secamente, dando um passo para o lado, enquanto as pessoas saíam do elevador.
— Tinha um compromisso. — A resposta defensiva era tão reveladora quanto
o perfume enjoativo que impregnava as suas roupas.
Um risinho sarcástico retorceu a boca de Brig.
— Ainda é um dom-juan, hem, Max? — Naquele momento, Brig não estava
gostando muito de ninguém. Max levava as sobras do desprazer dele pelo mundo
em geral! — Quem foi? Aquela fascinante recepcionista negra que trabalha para
você? Estou certo de que estão tomando a precaução de deixar o hotel
separadamente. — Enquanto fazia a acusação, sabia que não tinha sido a
recepcionista. Brig se lembrava da fresca fragrância que perfumava a pele dela.
Max ficou rijo e um pouco pálido sob o bronzeado.
— Não lhe devo explicação alguma.
— Tem razão. Não deve. Mas devia fazer algo quanto a esse cheiro, antes de
voltar para o escritório. É pior do que o setor de perfumes de uma loja de
departamentos.
As portas do elevador estavam prestes a se fechar. Ignorando o rubor que
invadia o rosto de Max, Brig passou por ele e entrou no elevador. Enquanto subia,
tirou o chapéu e enxugou o pescoço com o lenço. Só pensava num banho frio.
Destrancando a porta, entrou. As cortinas estavam cerradas, e o quarto se
achava às escuras. Jogando o paletó na cadeira, foi descerrá-las. A luz do sol
espalhou-se sobre a colcha azul na cama. Fez uma careta de desgosto ao olhar
para o quarto, uma cópia em carbono de mil outros no prédio.

Capítulo III
Cantarolando baixinho, Jordanna atravessou o corredor do apartamento.
Mudou para uma posição mais confortável o pacote pesado e volumoso que levava
nos braços. Estava embrulhado em papel laminado verde-prata, com um laço
verde-esmeralda vivo que ficava fazendo cócegas no seu nariz.
Dentro da caixa estava uma dessas esculturas de arte moderna que não
querem dizer coisa alguma. No que dizia respeito a Jordanna, não passavam de
tópicos de conversa, mas o irmão adorava essas peças. E eram caras, também.
Não teria tido dinheiro suficiente, se não tivesse persuadido o pai a dar uma ajuda
para o presente, na hora do almoço. Depois da discussão da semana anterior,
esperava que Kit aceitasse o presente como uma oferenda de paz, embora fosse
dado à guisa de presente para a casa nova dele.
Soltou um suspiro ao recordar a discussão. Nem se lembrava do que a
iniciara. Supunha que fosse natural uma irmã e um irmão brigarem, mas sentia que
brigavam mais do que o normal. O problema dela era que tinha um pavio curto, logo
explodia, tudo por culpa do cabelo vermelho-escuro. E eles não eram chegados. Ela
e Kit eram diferentes demais, os seus interesses, divergentes demais. Ficavam nas
extremidades opostas do espectro, suas opiniões coloridas por pontos de vista
diferentes.
O olhar dela localizou o número do apartamento dele numa porta. Jordanna
parou na entrada e ajeitou o pacote para apertar a campainha. Ouviu o ruído
abafado que a campainha emitiu, e esperou.
Quando a porta se abriu, ela sorriu e disse:
— Surpresa!
O sorriso sumiu à vista do estranho que surgiu, ao invés do irmão. O
reconhecimento brilhou nos olhos dele.
— Alô, você deve ser Jordanna.
— S... sou — gaguejou, olhando para o homem de cabelos cor de areia. —
Estava procurando meu irmão.
— Christopher não está, no momento. Desculpe, mas ele não disse a que
horas voltaria. Ele a estava esperando? — Era um homem de boa aparência, bem-
proporcionado, jovem, na casa dos vinte.
— Não. Só passei para entregar-lhe este presente para o novo apartamento.
— Jordanna indicou o embrulho volumoso que carregava e inclinou a cabeça para o
lado, para lançar-lhe um olhar direto e franco. — Quem é você?
— Sou Mike Patterson. — Havia uma cautela alerta no olhar que ele lhe
lançou, em troca. — Christopher não falou em mim?
Jordanna já se acostumara a ouvir as pessoas chamarem o irmão pelo nome
de batismo. Ela e o pai eram os únicos que ainda usavam o apelido de Kit.
— Não, não falou — admitiu, abertamente. — Será que eu devia saber quem
você é? Desculpe, mas Kit não conversa muito comigo sobre as suas garotas ou
seus amigos.
— Sei. — Uma máscara suave pareceu cobrir-lhe a expressão. — Mudei para
cá para dividir as despesas do apartamento com Christopher.
— Não sabia. — Jordanna fez pouco-caso de sua ignorância, com uma risada
despreocupada. — Há mais de uma semana que não falo com Kit. — O presente
ficava mais pesado a cada minuto, a despeito da força dos seus braços esguios. —
Importa-se se eu entrar?
— Por favor. — O rapaz reagiu com rapidez, como se subitamente tivesse se
lembrado dos bons modos e da educação, e escancarou a porta para que ela
entrasse. Adiantou-se, oferecendo: — Deixe que eu carregue para você.
— Não, tudo bem, eu agüento — insistiu ela. Ele se afastou, e Jordanna
entrou no apartamento.
— Pode pôr na mesinha de centro — falou o rapaz.
Inclinando-se, ela colocou o presente com cuidado sobre a mesa de tampo de
vidro, e endireitou o corpo para olhar para a sala.
— Que simpático! — Enquanto girava para ficar de frente para o amigo do
irmão, o cabelo escuro, cheio de nuanças vermelhas, rodopiava sobre os seus
ombros. — Não o via desde que Kit o mobiliou — exclamou Jordanna. —
Pessoalmente, prefiro algo mais tradicional e aconchegante a todo esse vidro e
cromados modernos, mas Kit gosta deles. E você?
— Gosto — disse o rapaz, sorrindo, e seus olhos tinham a mesma expressão
de indulgência com que Kit costumava fitá-la.
Aquilo irritou Jordanna. Fazia com que se sentisse como uma criança, ao
invés de uma mulher adulta de vinte e quatro anos. Virando-se, controlou a cólera.
Seus olhos, com pontinhos verdes brilhando nas pupilas cor de avelã, fixaram-se na
verdejante folhagem num vaso, junto à janela.
— Que bela seringueira! Deve ser sua contribuição para o apartamento —
adivinhou.
— E é — admitiu Mike Patterson. — Como foi que soube?
— É fácil. — Jordanna soltou uma risada rouca e cálida. — Kit não tem jeito
com plantas... ou com qualquer coisa ligada à natureza, se é que se pode dizer
assim.
— Quer tomar alguma coisa? — ofereceu Mike. — Café ou uma Coca-Cola?
Ou quem sabe uma bebida alcoólica? Preparo um margarita que é um estouro.
— Não, obrigada. — Jordanna lançou um olhar ao fino relógio de ouro que
usava no pulso. — É melhor eu ir andando.
— Pode esperar por Christopher, se quiser. — Parecia preocupado em apagar
a impressão de que ela devia ir embora.
— Como você falou, Kit não disse quando voltaria — lembrou Jordanna. — E
meus pais estão me esperando. — E dirigiu-se para a porta em passadas suaves e
graciosas.
— Ele vai ficar triste por ter se desencontrado de você.
Ela deu de ombros ao ouvir isso. Talvez, se a tivesse perdoado, ele ficasse.
— Diga-lhe que passei por aqui e que... — abriu a porta e parou — espero que
goste do presente. Prazer em conhecê-lo, Mike.
— Igualmente.
A alça de sua bolsa a tiracolo escorregou quando ela fechou a porta. Jordanna
ajeitou-a e percorreu o caminho de volta pelo longo corredor.
Meia hora mais tarde, Jordanna abriu a porta que dava para o vestíbulo social
do apartamento de cobertura dos pais. A empregada estava fazendo um arranjo de
rosas cor-de-rosa sobre a elaborada mesa barroca de jacarandá que ocupava o
centro do saguão.
— Alô, Tessa. As flores estão lindas, como sempre. — Jordanna parou para
apreciar o arranjo. — Meus pais já voltaram?
— Sua mãe voltou faz uma hora. Está no quarto, descansando antes do jantar
— replicou a empregada, ainda sorridente por causa do elogio às suas habilidades
no arranjo de flores. Seu corpo esbeltíssimo não dava sinais de velhice, mas suas
feições tímidas e vincadas estavam cobertas de rugas.
— Obrigada. — Jordanna começou a se dirigir para o escritório, depois se
virou, continuando a andar de costas, enquanto perguntava: — O jantar será às
oito?
— Sim.
Lançou um olhar ao relógio de pulso.
— Acho que terei tempo de sobra. Mamãe é tão ligada nessa história de trocar
de roupa para jantar... — E torceu o nariz, desdenhosa, ante um costume que
achava desnecessário.
Contornando a sala de visitas com seus móveis Luís XIV, estofados em seda
adamascada verde-clara, e lustres de cristal Baccarat, caminhou diretamente para o
escritório. Bateu à porta uma vez, e entrou. Seu pai estava sentado na sua poltrona
favorita, o couro marrom e macio gasto pelo uso até um tom castanho-amarelado.
Estava com uma revista aberta no colo. Sua cabeça grisalha se apoiava no encosto
alto. Tinha um cachimbo apagado preso entre os dentes. O ar de cansaço apagou-
se do seu rosto, quando ele sorriu.
— Alô, papai. — Seu andar deslizante levou Jordanna até a poltrona, onde ela
se debruçou para beijar o rosto bem-barbeado. Notara o cansaço na expressão
dele, mas sabia que não devia mencioná-lo. Endireitando o corpo, sugeriu: — Vou
tomar um uísque. Quer que prepare um para você?
— Por favor. — Fletcher Smith tirou o cachimbo da boca e bateu-o no cinzeiro,
para esvaziá-lo.
Uma garrafa de cristal, de uísque, estava numa bandeja em cima da
escrivaninha dele, juntamente com um jogo de quatro copos, combinando. Jordanna
encheu dois deles, sem gelo, já que ambos tinham aprendido a gostar de uísque
servido à temperatura ambiente. Correu os olhos pela sala. A decoração do
apartamento mudava segundo os caprichos da mãe, mas aquele escritório
continuava sempre o mesmo. As únicas alterações eram o acréscimo de novos
troféus na parede. O último era um antílope-cabra que ela abatera.
— Foi ver Kit? — perguntou ele, apanhando a bebida que ela lhe entregava.
— Hmmm. — Jordanna tomou um gole e dirigiu-se para o sofá mais próximo,
enroscando as longas pernas sob o corpo, nas almofadas. — Fui.
— O que ele achou do presente?
— Não estava em casa. Não quis esperar até que voltasse, então deixei o
presente. — Tomou mais um gole da bebida e olhou para o pai por sobre a borda
do copo. — Ele está dividindo o apartamento. Sabia?
— Não. — Fletcher largou o copo no porta-fumo e começou a encher o
cachimbo.
— Pois está. Conheci hoje o seu companheiro. Chama-se Mike Patterson.
Parece simpático. Os dois vão mesmo transformar aquele lugar num apartamento
de solteiro. — Jordanna recostou-se nas almofadas e examinou o líquido que
rodopiava dentro do copo, graças ao movimento circular da mão. — Kit está mesmo
decidido a viver do que ganha, não é? Quero dizer, resolveu convidar alguém para
ir morar com ele e dividir as despesas do apartamento.
— Parece decidido. — Fletcher Smith chegou a chama do isqueiro ao bojo do
cachimbo e soltou baforadas de fumaça. — De agora em diante, é melhor verificar
primeiro se Kit está em casa, antes de ir ao apartamento dele.
— Por quê? — Jordanna ergueu a cabeça do encosto e franziu a testa,
olhando para o pai. — Só porque está dividindo o apartamento com alguém? Mike
me pareceu um cara legal. Não parece propenso a me atacar, ou coisa semelhante.
— Não. Não foi o que quis dizer. — Parecia zangado, e ela voltou a franzir a
testa. — Simplesmente creio que devemos respeitar o desejo de privacidade de Kit
e não aparecer na casa dele sem avisar primeiro.
— Acho que tem razão — admitiu ela, e observou-o atentamente, por entre os
cílios. Viu quando ele desviou a cabeça e fechou os olhos numa expressão de dor,
antes de esfregar a testa. — O que é, papai? Dor de cabeça?
Espantado com a pergunta, ergueu os olhos e abriu a boca, como se fosse
negar. Depois, concordou:
— É, acho que sim.
O olhar dela se dirigiu para a revista aberta no colo dele. Desdobrando as
pernas, Jordanna se levantou e foi até a poltrona. Colocou o copo ao lado do dele,
no porta-fumo, e foi para trás da poltrona, a fim de massagear-lhe as têmporas.
— Melhor? perguntou.
— Muito — murmurou ele, relaxando-se com a manipulação dos dedos dela.
— Se deixasse de ser tão vaidoso e parasse de ler sem eles... — Jordanna
bateu no estojo de óculos dentro do bolso do paletó do pai — não forçaria a visão e
não teria dores de cabeça. — Passou a massagear-lhe os músculos tensos do
pescoço.
— Descobriria outra desculpa para ganhar uma massagem dessas — falou
Fletcher, e ela pôde perceber o sorriso buliçoso na sua voz.
— Você é mimado — acusou Jordanna.
— Graças a você — replicou ele, vagamente sério. Jordanna sabia que aquilo
era uma referência velada à falta de interesse da mãe pela saúde dele, e por ele
próprio.
— O que andou fazendo a tarde toda? — perguntou a filha, mudando
rapidamente de assunto.
— Depois que você saiu, fui tomar café com Max Sanger e... — Uma batida à
porta interrompeu sua resposta. — Quem é?
A empregada, Tessa, entrou.
— Um telefonema para o senhor. É o seu advogado, sr. Blackburn.
— Obrigado, Tessa, atendo aqui mesmo. — Levantou-se da cadeira, enquanto
a empregada se retirava, discretamente.
— Parece coisa de negócios — comentou Jordanna, e apanhou sua bebida
para dirigir-se para a porta. — Deixo vocês com sua conversa jurídica, chata e
monótona, enquanto me ajeito para o jantar.
— Que boa amiga você é — implicou Fletcher —, abandonando-me na hora
de enfrentar o tédio.
Uma risada rouca e gostosa foi a única resposta de Jordanna à reclamação
brincalhona, antes de sair pela porta para o corredor. Foi só mais tarde, no banho,
que pensou no que ele dissera e concordou com sua conclusão. Eles eram amigos,
amigos muito íntimos, e mantinham um relacionamento mais forte e profundo do
que apenas o de pai e filha.

Havia apenas dois lugares postos à mesa quando Jordanna entrou na sala,
mais tarde. Ela hesitou diante da mesa de jantar estilo francês, Império, as pregas
negras da saia longa oscilando com o seu incerto movimento. Seu olhar se desviou
para o lustre de cristal suspenso acima da mesa e para a cristaleira vitoriana,
ricamente entalhada, encostada a uma das paredes. Ladeando a cristaleira havia
um par de pedestais de ônix rosa-acácia, encimados por vasos gémeos, de cor
turquesa, de porcelana de Sèvres.
Quando Jordanna se virou, a mãe apareceu na entrada em forma de arco,
usando um longo azul-pavão, estilo mandarim. A cor lançava reflexos azuis no seu
cabelo negro retinto, puxado para cima da cabeça, e acentuava o verde felino dos
seus olhos. Ela correu os olhos depreciadoramente pela blusa de seda branca
simples e pela saia preta longa de Jordanna.
— Seu pai não vai jantar conosco hoje — explicou, justificando os dois lugares
à mesa. — Teve um probleminha legal, documentos a serem assinados, ou coisa
assim. — O modo vago como se referia ao motivo da ausência dele revelava a falta
de atenção com que escutara a informação. — Portanto, seremos apenas nós duas.
— Que aconchegante! — murmurou Jordanna, sentando-se na cadeira
Chippendale à direita da mãe.
A mistura e a combinação de estilos e períodos diferentes de mobiliário era um
dos projetos favoritos da mãe. A única coisa que ainda continuava predominante na
decoração do apartamento era a cor verde, como as cortinas da sala de jantar;
agora a fazenda de veludo era verde-musgo, com sanefas e borlas douradas.
Segundos após terem se sentado, Tessa apareceu para servir a sopa.
— Vai sair hoje à noite, Jordanna? — perguntou a mãe.
— Não. — Mergulhou a colher na sopa e lançou um olhar de esguelha para a
mulher, ainda muitíssimo atraente. — Você vai? — A pergunta, feita em tom suave,
era quase irônica.
— Não. Amanhã vai ser um dia cheio, com todos os preparativos para a festa,
portanto vou dormir cedo hoje — retrucou Olivia Smith, com serenidade impecável.
Talvez você possa ajudar-me amanhã...
— Claro — concordou Jordanna.
A conversa delas, até o final da refeição, continuou da mesma maneira
forçada, como dois gatos que se rodeiam, desconfiados. Jordanna sentiu a tensão
presente, enquanto reagia e respondia à variedade de assuntos que a mãe puxava.
— Vamos tomar o café na sala de visitas, Tessa — pediu Olivia, quando a
empregada veio tirar os pratos da sobremesa. Levantou-se da mesa, e Jordanna
acompanhou-a até a sala. A mãe era tão esguia e miúda que Jordanna sempre se
sentia como uma colegial desajeitada andando a seu lado, embora soubesse que
seu porte longilíneo era igualmente gracioso e atraente. — Fico aliviada ao ver que
ainda é capaz de discutir inteligentemente sobre política, teatro, e uma variedade de
assuntos literários, Jordanna.
— Está se esquecendo, Livvie, de que, enquanto você está lendo as versões
condensadas dos romances, estou lendo as edições na íntegra. — Há muito tempo
que deixara de referir-se a ela como "mamãe".
A alfinetada foi sutilmente desviada.
— Gostei realmente da nossa conversa. Foi muito agradável, para variar —
comentou a mãe. — Geralmente fico chateadíssima tendo que escutar você e seu
pai conversando sobre caçadas.
— Quem sabe, se você contribuísse com alguma coisa para essas conversas,
mudássemos de assunto — sugeriu Jordanna, sabendo que a exclusão da mãe
dessas discussões era por vontade própria. — Papai e eu teríamos prazer em falar
de outra coisa.
— Papai e eu. — Algo pareceu partir-se dentro da morena de olhos verdes. —
É sempre "papai e eu". Passa tanto tempo com ele que é de admirar você não
querer casar-se com ele! — riu, causticamente.
O fio delicado que mantinha sob controle o gênio de Jordanna se rompeu.
Nem teve consciência de se virar ou de bater. Só quando sentiu a palma da mão
atingir a face maquiada da mãe é que percebeu o que tinha feito. A essa altura,
tremia de raiva.
— Que coisa feia você disse! — A voz de Jordanna era alta e áspera. — Papai
e eu compartilhamos dos mesmos interesses. Gostamos um do outro. Amo meu
pai, e você faz isso parecer uma coisa incestuosa! Por quê? Ou simplesmente está
com ciúmes porque consegui ligar-me a uma pessoa? É isso, não é? — acusou. —
Um homem não chega para satisfazê-la.
Cega por sua raiva incandescente, Jordanna não viu a mão que a atingiu. A
bofetada forte virou-lhe a cabeça e trouxe-lhe lágrimas aos olhos. Arregalou-os para
controlar as lágrimas, e fitou a mãe, orgulhosa e friamente desafiadora.
— Jamais fale comigo desse jeito — ordenou Olivia, com voz trêmula.
— Eu tinha doze anos de idade quando finalmente me dei conta de que todos
os seus amigos eram na verdade seus amantes. Sei que é uma coisa que ninguém
devia mencionar. É o segredo sujo da família — disse Jordanna, com desprezo.
Mas todos sabemos, Kit, papai, eu, Tessa e todos os criados, provavelmente todos
os nossos amigos, também. Jamais compreenderei por que trata papai desse jeito,
ou por que ele permite que você o continue magoando!
— Há dois lados para cada moeda, Jordanna. — A mulher morena recobrara
sua pose. As feições inexpressivas pareciam uma porcelana fina e lisa, exceto pela
marca vermelha na face. Seu olhar de jade passou para além de Jordanna. — Pode
trazer o café, Tessa, e pare de fazer essa cara chocada. — Na sua voz seca havia
um certo grau de cansaço. — Já assistiu antes às nossas briguinhas de família.
— Sim, senhora. — A empregada uniformizada adiantou-se como se pisasse
em ovos, e pousou a bandeja com a baixela de café numa mesa folheada a ouro.
Ficou parada junto dela. — É só?
— Sim. — Com um gesto dos dedos cheios de anéis, Olivia mandou que ela
se retirasse da sala, ordem que foi obedecida alegremente. Sentada numa poltrona
adamascada, começou a servir o café. — Seria uma novidade se você visse a
situação do meu ponto de vista, Jordanna.
— Você se fez de mártir durante tanto tempo, Livvie, que está finalmente
começando a acreditar na própria imagem.
— Você não tem ideia do que seja a solidão. — Entregou a Jordanna uma
xícara e um pires frágeis, num delicado padrão de rosa. — Pelo menos, Christopher
compreende.
— Ele sempre foi o seu preferido — declarou ela, sem ciúme. — Desde que
me entendo por gente, sempre se devotou a ele. Fez dele o que queria, e usou-o
para atingir papai. Sabia o quanto ele queria um filho, e virou Kit contra ele. Todo
pai sonha em ensinar o filho a caçar e a pescar, em mostrar-lhe como é a vida, em
treiná-lo para assumir os negócios da família.
— É isso o que você tem feito esse tempo todo, Jordanna? Tentando
desempenhar o papel de filho para seu pai? — perguntou Olivia, desafiadora, numa
voz açucarada.
— Não. — A jovem mulher largou, abruptamente, a xícara e o pires na mesa.
Não confiava neles nas próprias mãos. O ímpeto de jogar o conteúdo fumegante em
cima da mãe era grande demais. Cedera à cólera anteriormente, e resolvera não
fazê-lo de novo. — Não estou tentando ser como um filho. Sou uma mulher. Pareço
mulher, ajo como mulher, penso como mulher. Simplesmente porque curto esportes
e caçada, isso não me torna menos mulher. Não sou o filho substituto dele. Sou
amiga dele, um dos poucos amigos que ele tem, graças à maneira como você o
corneou na frente dos outros.
Quando Jordanna começou a atravessar a sala, a mãe quis saber:
— Aonde vai?
— Para o meu quarto — respondeu, sem hesitar um passo. — A atmosfera
aqui ficou nauseante.
— Compreende o que eu quis dizer antes, Jordanna? — A pergunta a
acompanhou. — Estou sempre sendo deixada sozinha.
Seu quarto vazio oferecia um frio consolo. A consequência daquelas cenas era
sempre a mesma. Os nervos dela ficavam à flor da pele, seu estômago parecia
cheio de nós de tensão. Jordanna andava de lá para cá, sobre o tapete oriental em
tons bege, verde e azul, como uma tigresa enjaulada.
Despindo a saia, vestiu uma calça de cetim vermelho e prendeu um lenço na
cintura. Enfiou a alça dourada da minúscula bolsa de noite no braço e saiu do
quarto e do apartamento.
Lá fora o ar estava pegajoso, as calçadas guardando o calor do dia para se
misturar à umidade da noite. O porteiro chamou-lhe um táxi. Deu-lhe uma gorjeta,
enquanto entrava no banco de trás do veículo. Jordanna forneceu ao motorista o
endereço de um clube que freqüentava quando estava em Nova York, e recostou-se
no banco, mordiscando a unha.
Sozinha, ficou parada logo depois, à porta de entrada do clube. A música era
alta; as luzes, pulsantes, perturbadoras. O lugar estava lotado, toda aquela zoeira
dando-lhe nos nervos. Jordanna desejava não ter vindo, mas já que estava ali
dirigiu-se para o bar.
Antes de chegar ao seu destino convidaram-na a se reunir a um grupo que
podia ser chamado, de uma maneira superficial, de amigos. Era a turma que
freqüentava regularmente o clube. Jordanna conhecia a maior parte dos que
ocupavam as duas mesas. Retribuiu-lhes os cumprimentos, sem conseguir
entender os nomes dos dois que não conhecia, por causa do barulho da música,
das vozes e das risadas.
Alguém lhe trouxe um drinque, que acalmou momentaneamente seus
terminais nervosos. Bebeu mais, buscando um alívio para a tensão que tanto a
incomodava. Dançou, riu, e não fez objeções quando alguém flertou com ela, mas
não conseguiu afastar o sentimento de alienação. Foi isso, mais do que qualquer
outra coisa, que fez com que se retirasse depois de passar ali pouco mais de uma
hora.
O anúncio de sua partida trouxe várias ofertas para acompanhá-la a casa, mas
Jordanna as recusou, sabendo que sua aceitação significaria dar uma paradinha
pelo caminho. Não chegara aos vinte e quatro anos sem ter descoberto que o seu
desejo era despertado tão facilmente quanto sua cólera. Nem precisava gostar do
homem que estivesse beijando, para obter uma certa satisfação da experiência.
Bastava fechar os olhos. Mais cedo ou mais tarde, porém, tinha que abri-los, e
raramente gostava do que via.
Aquilo não era resposta para sua solidão, nem resolveria os seus problemas.
Os braços masculinos ofereciam apenas um esquecimento temporário, e ela
ansiava por algo mais. Um quarto vazio parecia-lhe melhor do que uma paixão
vazia. Do lado de fora do clube, fez sinal para um táxi, e voltou para casa sozinha.

Capítulo IV

Jordanna colocou um pouco de caviar num biscoito e enfiou-o na boca. O


garçom ficou olhando, enquanto ela lambia alguns glóbulos das ovas dispendiosas
da ponta dos dedos.
— Muito bom.
— Quer provar mais alguma coisa? — indagou ele, afavelmente.
— Humm, não, obrigada.
Sem ligar para a vaga irritação dele, saiu da cozinha para os salões do
apartamento, onde outros empregados contratados de um bufet estavam atarefados
com os preparativos para a festa. Jordanna ouviu vozes na sala de visitas. Uma
delas parecia a do irmão.
— ...parece estar correndo bem para a festa de logo mais.
Escutou a segunda metade da frase de Kit.
— É, está — replicou a mãe. — Senti falta da sua ajuda. Tudo fica muito mais
fácil, quando são duas pessoas a organizar as coisas.
— Tenho certeza de que se saiu muito bem sem mim.
— Nem sei direito que tipo de festa vai ser — suspirou a mãe. — Seu pai
convidou alguns dos amigos dele... — O comentário seria mais amplo, mas Olivia
parou quando ergueu os olhos e deparou com Jordanna na entrada em arco.
— Não deixe que eu a interrompa, Livvie — ironizou ela o silêncio repentino,
os pontinhos verdes, brilhantes, dos olhos cor de avelã enfrentando a luminosidade
de jóia do olhar da mãe.
— Alô, Jordanna — o irmão cortou o diálogo com o seu cumprimento.
— Alô, Kit. — Seu olhar se suavizou ao se transferir para o irmão. — Fui visitá-
lo, ontem.
Alto e esguio, Kit tinha os cabelos negros e fartos da mãe e os olhos escuros
do pai, orlados de cílios longos, grossos e curvos. Suas feições eram esculpidas em
linhas clássicas. A maturidade endurecera a sensibilidade de sua boca e de seus
olhos, sombreando-a com um certo ar de cinismo. Era um belo homem, o mais
perto da perfeição que Jordanna já vira.
— Voltei para o apartamento cerca de meia hora depois que você saiu —
disse ele.
Um ruído de papel fino chamou a atenção de Jordanna para o corredor. Tessa
ia passando com um saco de plástico escuro para roupas jogado sobre o braço. A
barra de um vestido verde-esmeralda aparecia pela parte de baixo.
— O que é aquilo? Um vestido novo para a festa, Livvie? — O tom de voz de
Jordanna era cáustico. A mãe tinha um armário cheio de vestidos que não tinham
sido usados mais do que duas vezes.
— É. Um modelo original de Christopher, desenhado especialmente para mim,
para a festa de logo mais — foi a rápida resposta. — Pensei que estivesse no seu
quarto se aprontando para a festa, Jordanna.
— Há tempo de sobra — replicou a jovem, dando de ombros. — Não preciso
de tanto tempo quanto você. — Isso não era verdade. Jordanna olhou para as
feições cortadas e repuxadas por mãos hábeis, formando um rosto sem idade.
Como Olivia demonstrasse indignação, Kit pousou uma mão tranqüilizadora no
seu ombro.
— Por que não vai se deitar e descansar, mamãe? Sei que quer estar com a
melhor aparência para a festa de logo mais. Pode deixar que eu cuido para que o
pessoal do bufet deixe tudo pronto — prometeu. — Você teve uma tarde cansativa,
com todos os preparativos. Merece um descansozinho antes de a festa começar.
— Sim. — A meiguice brilhava no olhar que Olivia lançou ao filho. — Que
excelente sugestão! Obrigada, Christopher.
De lábios apertados, Jordanna observou-a retirar-se da sala, cheia de graça e
orgulho régios. Voltando a olhar para o irmão, sacudiu a cabeça, numa confusão
amarga e irônica.
— Você está sempre mimando-a, protegendo-a, como a uma criança, de
qualquer sinal de dissabor. Por quê? É uma mulher adulta... com garras.
— Você não tem compaixão, Jordanna.
— Eu não tenho compaixão?!! — Ela quase perdeu a paciência. Lutou para
controlar-se, depois extravasou sua fúria reprimida contra o destino. — Por que não
podemos trocar dez palavras sem começar a discutir, Kit?
— Somos duas pessoas diferentes. — Ele estava calmo. Parecia estar sempre
calmo. — Não importa o quanto nos gostemos, não conseguimos nos dar bem.
Quando vai entender que nossos pais têm o mesmo problema?
Estava exigindo demais dela, que equiparasse a situação deles à dos pais. Ela
se virou para sair da sala.
— Não tenho tempo para discutir isso com você. Tenho que tomar banho e
trocar de roupa antes da festa.

Depois de um demorado banho de imersão com muita espuma, Jordanna saiu


da banheira rebaixada e se enxugou com a toalha. O robe curto, atoalhado, estava
pendurado num gancho atrás da porta. Ela envolveu-se nele e amarrou a faixa na
cintura. Dirigindo-se para o quarto de vestir, foi tirando os grampos com que fizera
um coque no alto da cabeça, e soltou os cabelos. Quando pegou um pote de creme
hidratante para passar no rosto, ouviu uma batida à porta do quarto de dormir.
— Quem é? — perguntou Jordanna.
— Sou eu — respondeu o irmão. — Importa-se se eu entrar?
Depois de um segundo de hesitação, ela respondeu:
— Entre.
A porta do quarto se abriu e se fechou. Ela ouviu-lhe os passos no chão de
parquet, enquanto ele atravessava o quarto para abrir a porta do banheiro de
mármore italiano. Passou o creme no rosto e fez uma massagem suave.
Christopher parou à porta, apoiando o ombro na esquadria. Ela lançou um olhar ao
reflexo dele no espelho, temendo que ele pretendesse recomeçar a discussão
iniciada na sala.
— Queria agradecer-lhe pelo presente —
disse ele. A boca da moça relaxou-se num sorriso.
— Não seja por isso. Espero que tenha gostado.
— Gostei. Tem um lugar de honra na mesa de centro.
— Gostei da decoração do apartamento. — Jordanna pegou uma escovinha e
começou a passá-la na curva natural das sobrancelhas avermelhadas. — O que
Mike faz?
— É engenheiro de uma construtora de apartamentos. — Seus olhos escuros
a observavam. Parecia estar esperando outra pergunta. Jordanna procurou o que
dizer.
— Ele me pareceu um bom sujeito — comentou.
— E é. — Christopher fez nova pausa, mas não tão longa. — Vai demorar
muito, para você e papai partirem noutra expedição de caça?
— Não sei ao certo. Tiramos uma licença para caçar carneiros monteses em
Idaho. A temporada abre em setembro. Papai falou alguma coisa sobre fazer umas
pescarias em agosto, mas ele anda se exercitando no clube para ficar em forma
para a caçada aos monteses.
— Nunca pensou em sossegar? — Seus olhos escuros tinham uma expressão
intensa, quase ansiosa na sua seriedade. — Em parar de voar pelo mundo matando
irracionais e construir uma vida própria, quem sabe?
— Só porque você resolveu construir seu próprio ninho, isso não significa que
eu tenha que fazer o mesmo. — Jordanna olhou, divertida, para o reflexo dele e
estendeu a mão para o pote de base. — Gosto do que faço, e que, a propósito, não
é matar. É caçar.
— Simples semântica. O resultado final é o mesmo, um animal morto. — Os
cantos da boca do rapaz estavam repuxados para baixo numa sombria expressão
de desdém, luzes negras brilhando-lhe nos olhos.
Jordanna tentou uma explicação paciente em defesa de sua posição.
— Se não houvesse caçadores nos Estados Unidos, os animais selvagens se
reproduziriam em excesso. Causariam danos intermináveis às colheitas, tomariam
conta de pastagens valiosas e acabariam por morrer de fome. O número deles
precisa ser controlado. A caça é um meio muito mais misericordioso do que a fome
ou as moléstias.
— Admito a necessidade dela, mas o que não dá para entender é como você
pode gostar disso.
— Gosto da vida dura. De estar ao ar livre... longe de tudo e de todos. É
fascinante ver os animais selvagens no seu habitat natural, ao invés de em algum
zoológico. Já viu uma águia alçar voo nas correntes das montanhas? Ou observou
uma corça dando cambalhotas ao alvorecer, numa clareira coberta de orvalho?
Essa é a beleza da caçada. A emoção deriva do fato de opormos nossas
habilidades às de um animal cujos sentidos são duas ou três vezes mais aguçados
do que os nossos, e cem vezes mais cautelosos.
— Apoiado! Apoiado! — Christopher bateu palmas quando ela acabou, uma
risada buliçosa dançando-lhe nos olhos.
— Pare com isso — disse Jordanna, lançando-lhe um olhar exasperado.
— Está certo — concordou. — Vamos mudar de assunto. Quem é seu par
para esta noite?
— Não tenho nenhum. — Misturou as sombras bege e marrom nas pálpebras
e estendeu a mão para o lápis marrom.
— Por que não? — Ele arqueou uma sobrancelha grossa e negra, surpreso. —
Geralmente tem uma porção de candidatos para escolher.
— Resolvi abrir mão dos homens. Um membro promíscuo na família é o
suficiente. Não tenho intenção de competir com Livvie nesse campo — disse
Jordanna, num tom ácido e seco.
— Que merda, Jordanna! — Christopher endireitou o corpo, a expressão irada.
— Quando vai dar-lhe uma folga?
— Quando você vai parar de saltar em defesa dela? — retrucou a irmã, com a
mesma rapidez. — Ambos sabemos tudo sobre os seus muitos amantes. É uma
história antiga... antiga, atual e futura. Ela jamais vai mudar. Já parei de esperar por
isso. Só quero deixar claro que não vou seguir-lhe os passos.
— Quem falou que iria? — disse ele, e, sem dar tempo à irmã de responder à
pergunta, acrescentou: — Sei que teve alguns relacionamentos vazios, mas sua
escolha de parceiros não foi das melhores. Não pode andar por aí com esse corpo
e fingir que não tem necessidades e desejos.
— Posso controlá-los — afirmou, decisivamente.
— Esse não é o seu problema.
— É? — perguntou, desafiadora. — Já que parece saber tanto, qual é o meu
problema?
— Parece pensar que o sexo tem algo a ver com vergonha. Talvez seja por
isso que sua escolha de homens no passado tenha sido tão indiscriminada. O sexo
é uma bela experiência, Jordanna, quando é compartilhado com alguém de quem
se gosta. Não há nenhuma vergonha depois, apenas uma sensação muito gostosa.
— Ora, ora — debochou ela da veemência da resposta dele. — Quem sabe eu
deva acompanhá-lo numa das suas saídas e fazer anotações...
Christopher empalideceu, as feições repuxadas em linhas severas.
— Talvez compreenda melhor se eu fizer uma comparação com a caçada.
Você não desperdiça o seu tempo com um membro inferior da espécie. Fica
procurando até encontrar o melhor representante da raça... um que tenha vigor,
disposição, beleza. Acredito que sua expressão seja troféu de classe. — Fez uma
pausa, voltando aos poucos a ficar calmo. — Todo mundo tem um companheiro,
Jordanna. Você jamais encontrará o seu se parar de procurar. E negar a própria
sexualidade somente lhe trará infelicidade.
Sem conseguir fitar-lhe os olhos pelo espelho, Jordanna ficou examinando a
ponta espiralada do pincel de rímel. A comparação dele tinha sentido, mas entrava
em conflito com as resoluções dela. O silêncio que se seguiu às palavras dele
finalmente fez que ela erguesse os olhos, porém viu apenas o próprio reflexo no
espelho. O irmão não estava mais parado ali. Espantada, Jordanna se virou. O
ruído macio de papel fino sendo manuseado vinha do quarto.
— Kit? — Curiosa, cruzou o vão da porta.
Ele estava de costas para ela, debruçado sobre um embrulho em cima da
cama. Jordanna não podia ver o que era, com o irmão na frente. Ao ouvir seu
nome, ele olhou por cima do ombro e deu um sorriso distante.
— Venha cá. Tenho uma coisa para você.
Jordanna se adiantou.
— O que é? — perguntou, um instante antes de o irmão retirar o plástico
protetor e se virar, segurando um vestido preto, longo.
— Desenhei-o para você.
O que chamou primeiro a atenção dela foi a simplicidade do modelo.
— É lindo. — O corpinho consistia em duas alças largas, que se uniam à faixa
larga e alta na cintura, estreitando-se bastante na altura dos ombros e
transformando-se em tiras ainda mais finas pelas costas abaixo. — É ousado —
observou Jordanna, com uma meia risada.
— É perfeito para você — insistiu ele. — Vai chamar a atenção para a simetria
ideal do seu corpo e para a sua linda pele. A saia rodada permitirá aquele
movimento forte e gracioso que lhe é peculiar. E prefiro a palavra "provocante" a
"ousado".
— Mas nunca usei preto antes — disse, num protesto hesitante. Sempre lhe
parecera ser a cor da sua mãe.
— Vai fazer sobressair as nuanças vermelhas do seu cabelo. Confie em mim
— insistia o irmão. — Vai ficar linda com ele. E já é hora de você usar algo que
chame atenção para esse seu tipo que a distingue das outras mulheres.
Ela lhe lançou um olhar brilhante, que era a um só tempo divertido e cortante.
— Tudo isso faz parte da aceitação da minha sexualidade, Kit?
— É um passo — admitiu o irmão, suavemente. — Quer usá-lo esta noite?
— Quero. — E então, Jordanna se lembrou. — Você desenhou um vestido
para Livvie usar esta noite. Estamos sendo usadas, não é? Estamos servindo de
modelo para as roupas que você desenhou. Livvie vai mostrar a roupa criada para a
beleza madura, e eu serei a mulher fatal do jovem colunável. Você está procurando
arranjar clientes entre os convidados da festa — acusou, mas sem malícia.
Enquanto dava de ombros, uma expressão amarga e cínica tocou o lindo rosto
dele.
— É o que todo mundo faz. — Dirigiu-se para a porta. — É melhor eu dar uma
espiada no pessoal do bufet.
Jordanna ficou olhando enquanto ele se afastava, sem se mexer, até que a
porta do quarto se fechou. Não podia deixar de lado a sensação de que, na
verdade, não conhecia o irmão. O suspiro confuso que ecoou no quarto pertencia a
ela.
Sem pressa, terminou de aplicar a maquiagem antes de voltar ao quarto para
se vestir. A total simplicidade do vestido preto tornava-o atordoante. Feito de um
jérsei que se esticava, o corpinho acompanhava o contorno dos seus seios, o
decote cavado revelando os contornos redondos que formavam o vale entre eles. A
cintura era justinha, comprimindo as costelas, depois soltando-se para fluir ao redor
dos quadris.
O brilho negro da fazenda era um contraste perfeito para realçar-lhe os
ombros de marfim, enquanto lhe acentuava as nuanças escarlates dos cabelos.
Jordanna deixou-os soltos, afastando-os do rosto com um par de travessas. Como
única jóia, um par de brincos de ouro, simples e brilhantes.
Quando saiu para o corredor, ainda faltavam quinze minutos para que os
convidados começassem a chegar. Ao invés de ir para os salões do apartamento,
Jordanna virou-se para a suite principal, onde os pais tinham quartos adjacentes,
para ver se o pai estava pronto.
A porta do quarto da mãe estava entreaberta. Quando Jordanna ia passando
por ela, ouviu a voz do pai, vinda lá de dentro. Parou, não para bisbilhotar, mas
para esperar que o pai saísse do quarto.
— Que belo vestido está usando, Olivia! — comentou o pai. — Intensifica o
verde fascinante dos seus olhos. — É novo, não é? — As palavras eram elogiosas,
no entanto sua voz tinha um tom sarcástico. Ultimamente, este estava sempre
presente, quando ele se dirigia à mulher.
— É, sim. Christopher desenhou-o — anunciou a mãe, com jeito de desafio.
— Ahhh, é, meu filho, o figurinista — declarou Fletcher, a voz destilando um
desprezo amargo.
Jordanna sentiu um choque percorrer-lhe o corpo. Sabia que havia um abismo
entre o pai e o irmão, mas não se dera conta de que o pai o encarava com tanto
escárnio. Tinha consciência da desaprovação dele, porém não disso.
— Chega, Fletcher. — A defesa da mãe foi imediata. — Christopher é um
figurinista de talento. Será famoso, algum dia.
— Deus nos livre desse dia.
— Seja honesto, ao menos uma vez, Fletcher. Está apenas pensando em si, e
no que os outros dirão a seu respeito — retrucou Olivia. — Está preocupado que
pegue mal para você, que talvez a sua própria virilidade seja questionada.
— Kit é o que você fez dele — foi a resposta rápida e zangada.
— É, ponha a culpa em mim — ironizou ela. — Tudo é sempre minha culpa.
Suponho que seja responsável por Jordanna ter-se tornado uma aventureira
portadora de armas. Estou certa de que vai negar que teve algo a ver com isso.
— Deixe Jordanna fora disso! — replicou bruscamente o pai. — Ela é uma
mulher, ninguém a confundiria com outra coisa qualquer. Mesmo quando está
portando um fuzil, é toda mulher.
Ouviu-se o ruído de algo sendo jogado com força sobre um tampo de mesa.
— Por que entrou aqui, Fletcher? Foi só para começar uma briga antes da
festa? — quis saber Olivia. — Não vai estragar minha noite, porque não vou deixar!
— Por quê? Esta noite é especial? Convidou seu amante do momento? — Ele
era arrogantemente sarcástico. — É alguém que eu conheça? Espero que me
apresente a ele.
— Se eu o apresentasse, o que você faria? — desafiou Olivia. — Iria desafiá-
lo para uma briga? Ou olharia para o outro lado e fingiria não saber que era meu
amante? — Zombava dele com deliberação cruel. Até mesmo Jordanna se
encolheu ante ela.
— Quem é ele, Livvie? — A voz do pai era uma ameaça baixa e agourenta.
— Um homem. Um homem muito especial. Quando ele me abraça, chego até
a esquecer que você existe, Fletcher. É uma sensação extraordinariamente
agradável.
A amargura se acumulara em proporções colossais durante os anos do
casamento deles, até que ficara alta demais para ser galgada, profunda demais
para ser ignorada, larga demais para ser transposta. Jordanna não pôde mais
agüentar aquela cena deprimente. Voltou para seu quarto e fechou a porta.
Quando era criança, as brigas venenosas deles deixavam-na fisicamente
doente. Não eram mais fáceis de suportar, aos vinte e quatro anos. Jordanna não
tinha idéia de quanto tempo passou sentada na beira da cama, abraçando o
estômago. Bateram à porta, mas ela não ouviu. A porta se abriu.
— Jordanna? — O irmão entrou e parou. — Os convidados estão chegando.
Você não vem? — Ela ergueu os olhos, olhando-o sem vê-lo. Uma ruga se formou
entre as sobrancelhas escuras dele, ao se dirigir para ela. — O que foi?
— Por que eles não se destroem e acabam de uma vez com isso? Por que
ficam se arrancando aos pedaços, aos pouquinhos? — Ante as perguntas
torturadas de Jordanna, Christopher inspirou fundo, prendeu a respiração e soltou-a
num suspiro cansado. — Ela joga os amantes na cara dele, Kit. Vangloria-se deles
como se fossem troféus. Por que não o abandona?
— Acha que não tentou? — murmurou ele.
Os olhos dela se arregalaram.
— Mas... — começou confusa.
— Papai não lhe dá o divórcio, Jordanna — afirmou ele. — Deus sabe que
você e eu podíamos ter tido uma infância mais agradável, se ele tivesse consentido,
mas... — Não havia necessidade de terminar. — Não pode deixar que os problemas
deles se tornem carga sua, Jordanna. Venha. — Estendeu a mão para ela. —
Ninguém vai ver esse vestido, se você ficar no quarto.
Ele curvou a boca num sorriso persuasivo. Jordanna hesitou, depois pôs a
mão na dele. Quando criança, podia esconder-se no quarto; mas era adulta, e a
vida continuava.

Capítulo V

Max estava esperando no saguão, quando Brig saltou do elevador. Brig não se
deu ao trabalho de proferir as amenidades de praxe num encontro. Seu olhar
abrangeu o primo e a área à sua volta.
— Onde está sua mulher? Não vai levá-la à festa? — Brig estava irritado, e
descontava em Max. Vestindo um terno marrom-claro e gravata, deixara o chapéu
no quarto do hotel. Sentia-se nu sem ele, porém chamava menos atenção.
— Charlotte e eu nos divorciamos há cinco anos, pouco depois que as
crianças ficaram adultas. Pensei que você soubesse. — Max começou a dirigir-se
para a entrada. — Vamos pegar um táxi.
— Imagino que ela finalmente tenha se cansado de ver você passá-la para
trás o tempo todo. — Brig tinha consciência de que estava implicando com Max,
cutucando-o deliberadamente, e usando-o como bode expiatório para a decisão que
o estava comendo por dentro. Mas não parecia poder conter-se. — Sempre me
perguntei se o único jeito de você curtir sexo é fazê-lo chifrando alguém.
— Qualquer outro que não eu lhe daria um soco no nariz, Brig. — Max
controlou-se, embora seu pescoço estivesse ficando vermelho.
— Qualquer outro tentaria — concordou, com um sorriso irônico. — Estou
surpreso de que não tenha se casado outra vez, Max.
— Para falar a verdade, estou seriamente interessado em uma pessoa, mas
não estou disposto a falar nela com você, e sujeitar seu nome aos seus
comentários insultantes! — Do lado de fora das portas giratórias, Max fez sinal ao
porteiro, pedindo um táxi. Imediatamente, um encostou ao meio-fio, e os dois
homens entraram no banco de trás. — Já resolveu qual a resposta que vai dar a
Fletcher?
— Já — respondeu Brig, e um músculo se contraiu ao longo do seu maxilar.
— Vai guardar segredo? — Max lançou-lhe um olhar de esguelha que parecia
demonstrar que ele encontrara a jugular.
— Vou guiar e preparar sua caçada.
Uma auto-satisfação presunçosa estampou-se nos cantos aprofundados da
boca de Max e nos olhos azul-brilhantes.
— É reconfortante saber que todo mundo tem um preço, Brig... especialmente
você.
— Mas não tive que me vender a você, Max — lembrou Brig, com a bílis
subindo-lhe à garganta. — Não tenho que me envolver no seu plano escuso para
largar a companhia nas mãos de algum otário rico, antes que ela entre pelo cano.
— Mas ainda posso vender as minhas ações. E Fletcher ainda está
interessado nelas. Mesmo se perder grana com a transação, ela não lhe fará falta.
— Você odeia Smith, não é? — indagou Brig, fitando-o.
Max Sanger desviou os olhos.
— Ele tem uma coisa que eu quero.
— Exatamente como o velho: você vai consegui-la, mesmo que tenha que
mentir, trapacear ou roubar para isso — falou Brig, com voz cheia de desprezo.
— Vou ter a minha chance. Não vou soçobrar.
Sujeitos como Max geralmente não soçobravam, pensou Brig. Eram os
homens honestos, que davam duro, que perdiam tudo aquilo por que haviam
trabalhado a vida inteira. Não era justo. Mas a vida geralmente não o era. Era o
caso dele. Cedera nos seus princípios para salvar a fazenda. Talvez desprezasse
tanto Max porque via nele uma ampliação de uma de suas próprias falhas. Ouvira
dizer que os defeitos que a gente descobre nos outros são aqueles que se acham
em si próprio.
O táxi parou no endereço dado por Max. Brig saltou e esperou na calçada.
— Qual é o andar?
— O de cobertura, que outro poderia ser?
Brig perguntava-se por que viera. Por que simplesmente não telefonara? Não
estava com disposição para porra de festa nenhuma. Os detalhes podiam ter sido
acertados por telefone. Contudo, era tarde demais. Estava ali, preso ao curso da
ação. Quem sabe seria aquele o modo de Fletcher Smith fazer com que ele
saltasse, quando assobiava. A perspectiva não agradava a Brig.
A festa estava a todo o vapor, quando os dois chegaram à cobertura. A porta
entalhada não conseguia abafar todos os ruídos de risos e vozes que vinham de
dentro. Max apertou a campainha. Dali a segundos, a porta foi aberta por um
homem com o traje preto de mordomo. Max deu-lhe os seus nomes, que foram
discretamente verificados numa lista, antes de eles serem conduzidos pelo saguão
até a sala.
Uma massa de gente já lotava a sala, sentada, de pé, conversando, rindo,
comendo e bebendo. Um garçom apareceu ao lado de Brig e ofereceu-lhe
champanha da bandeja cheia que trazia. A última vez em que Brig tomara
champanha, ainda vivia na casa do avô. Pegou uma taça, e Max pediu um martini.
Brig sorveu o vinho borbulhante. Depois, arqueou uma sobrancelha, surpreso.
— Está gostando do champanha, sr. McCord? — Fletcher Smith parou diante
dele, sorrindo de leve.
— É excelente — replicou Brig, examinando o copo, notando a cor e a
efervescência natural.
— Fala como um conhecedor — disse Fletcher, encarando-o com a cabeça
inclinada para o lado.
— Meu avô se orgulhava de saber distinguir entre um bom vinho e um que
fosse meramente aceitável. Não acreditava em contentar-se com o último, se podia
ter o primeiro. Provar vinhos fez parte da minha educação. Meu avô considerava
isso um conhecimento essencial. — Um dos cantos de sua boca curvou-se para
dentro do bigode escuro. — Eu o considerava apenas um meio de ficar bêbado.
— É evidente que adquiriu alguma perícia — comentou Fletcher.
— Há pessoas que são peritas em jogar dominó — disse Brig, fazendo pouco-
caso da idéia de que conhecer a diferença entre um vinho bom e um ruim não era
senão esnobismo.
— Que bom que pôde vir à festa, sr. McCord — falou Fletcher, estendendo a
mão num cumprimento adiado até aquele momento. Depois, virou-se para Max. —
Sabia que viria, Max, mas não tinha tanta certeza quanto a seu primo.
— Não tinha? — Brig ainda estava cheio daquela irritação que lhe deixava a
voz cortante. — Sabe que me fez uma oferta irrecusável, se me perdoa o lugar-
comum.
— Foi? — Seus olhos castanhos se dilataram de falsa surpresa. — Espero
que isso queira dizer que não vai recusar.
— Não vou. Vou aceitar sua oferta — admitiu Brig, um tanto formalmente.
— Ótimo. — Fletcher enfiou a mão no bolso do paletó e tirou um envelope.
Entregou-o a Brig. — Eis aí um sinal e uma declaração geral dos termos discutidos.
Pode entrar em contato comigo cerca de uma semana depois de ter acertado uma
data conveniente. Nesse meio tempo, quem sabe eu possa convencer Max a ir
conosco.
Brig não se deu ao trabalho de abrir o envelope, e enfiou-o no bolso do paletó.
Fervia de irritação. Por que viera àquela festa? Não teria sido necessário, a não ser
que o homem quisesse vangloriar-se do seu momento de triunfo.
— A caçada parece fascinante — comentou Max. — Nunca estive antes no
oeste. — Imediatamente, apressou-se em acrescentar: — Claro que já estive na
Califórnia, e esquiei em Aspen diversas vezes, mas ali se encontram todos os luxos
imagináveis. A viagem que estão planejando me parece um tremendo desafio.
Quem sabe eu poderia ir caçar com vocês, dessa vez...
— Você não tem licença, Max. É muito tarde para obter uma. — Fletcher o
observava atenta e serenamente.
— Não estou propriamente interessado em caçar, mas sim em fazer a viagem
— retrucou. Brig adivinhava por que o primo queria ir junto. Haveria duas,
possivelmente três semanas para Max convencer Fletcher Smith a comprar suas
ações. Teria uma plateia cativa para o seu papo de vendedor.
— As montanhas iriam matá-lo, Max — afirmou Brig. O homem não estava em
forma para a estafante viagem à região alta onde se encontravam os carneiros.
— É daqui a quase dois meses. Tenho tempo para me preparar. — Max
pareceu não estar preocupado com a advertência de Brig, enquanto olhava para
Fletcher. — Por falar nisso, poderíamos nos exercitar juntos no clube.
— É verdade. Não tinha pensado nisso — concordou Fletcher, e sorriu. — Não
consigo pensar em nenhum motivo pelo qual você não nos possa fazer companhia;
você pode, McCord?
— Posso pensar em dois — replicou Brig, num tom sombrio e seco.
— Não se preocupe, primo. Pago a minha parte — disse Max, rindo, como se
Brig estivesse pilheriando.
— Dão-me licença um minuto, sim? — pediu Fletcher. — Minha mulher está
ali. Gostaria que a conhecesse, McCord. Vou ver se ela me dá alguns minutos.
Enquanto ele se afastava no meio dos convidados, Brig dardejou um olhar
irritado ao homem a seu lado.
— Você não vai nessa viagem, Max.
— O homem acaba de me convidar. Você ouviu o que ele disse. — Balançou-
se nos calcanhares, de satisfação. Seu cabelo preto e crespo tinha reflexos
prateados à luz do lustre do teto.
— Não vou tomar parte em seus planos — advertiu Brig. — Se tentar ir junto,
devolvo o dinheiro, e ele que vá procurar outro para levá-lo.
— Não devolve, não. Você precisa do dinheiro. — O olhar dele zombava da
impotente ameaça de Brig.
Brig praguejou intimamente porque sabia que era verdade, mas tentou blefar.
— Mas não preciso de você. Meu acordo com Fletcher Smith era para uma
expedição de duas pessoas, e farei com que o cumpra.
— Tente me atrapalhar, Brig, e bagunço seu contrato com Fletcher. E se acha
que não posso, é só tentar — desafiou Max. — Não tenho nada a perder. Mas você
tem. Seja esperto e lembre-se disso.
Será que Max poderia criar desconfiança suficiente para fazer Fletcher recuar?
Brig não sabia, e não podia arriscar-se a descobrir. Seria como esfregar sal numa
ferida aberta.
— Se você for, Max, vai pagar. E vou querer o pagamento em espécie, no dia
da sua chegada. Não haverá crédito.
— Não o preocupa que o meu dinheiro esteja manchado? — debochou Max.
— Sei que está. Mas não vou desperdiçar dinheiro bom para alimentá-lo, ou
dar-lhe meio de transporte e um lugar para dormir. — Brig estava encurralado, mas
ainda podia rosnar. — Vá em frente, e passe sua cantada em Smith, mas não
mencione meu nome nem tente me incluir em suas transas.
— Nós nos compreendemos — concordou Max, com auto-satisfação polida.
— E é melhor ficar em forma para a viagem, porque, se ficar para trás, eu o
abandono. É uma grande extensão de terra. Talvez eu não consiga encontrá-lo de
novo. — O champanha ficara choco. Brig entregou a taça semicheia a um garçom
que passava e pediu um uísque com gelo. Precisava de alguma coisa mais forte.
— Não vai me perder, a não ser que perca Fletcher. — Max sorveu o martini,
disfarçando as palavras seguintes com o copo. — Por falar no diabo, aí vem ele
agora, com a mulher.
Brig olhou na direção em que Max olhava e viu o homem alto e grisalho
acompanhando uma morena miúda pelo meio da multidão de convidados. Era uma
mulher impressionante, com olhos verdes e vívidos, cuja cor era intensificada pelo
vestido verde-esmeralda que usava. Brig levou um segundo para perceber que os
cabelos negros tinham sido naturais, no passado, mas que agora seu brilho de
ébano era conseguido pela aplicação habilidosa de tintura. Não viu rugas de
expressão no rosto dela. Sua pele era lisa demais. A boca apertada, com os lábios
perfeitamente delineados, dava ideia de acrimônia. Ela estava chegando aos
cinqüenta, mas se agarrava desesperadamente a uma aparência juvenil. Brig se
perguntou o que lhe custaria manter aquele corpo esguio e elegante.
Enquanto ambos se aproximavam, Brig notou que ela não olhava para o
marido uma única vez. Parecia indiferente à mão que segurava seu cotovelo. Não
havia nada da intimidade gostosa que vira entre os seus amigos fazendeiros
casados. Algo na tensão nítida entre eles fazia-o suspeitar de que o casamento fora
planejado no inferno.
Os olhos verdes deram total atenção a Max. Algo brilhava nas suas
profundezas, mal velado, insinuando um segredo. Um gato focalizando a presa,
pensou Brig. Lançou um olhar de banda ao primo. Max parecia exibir-se
ligeiramente, mas fazia isso sempre que aparecia qualquer mulher moderadamente
atraente. Quando marido e mulher pararam diante deles, Brig examinou a sra.
Smith com um interesse ocioso, que escondia sua perspicácia.
— Creio que você e Max já se conhecem, Livvie — disse Fletcher Smith
cortesmente.
— Sim, já — admitiu ela, estendendo a mão para Max. — Que bom que pôde
vir, Max. Como vai?
— Muito melhor, agora que a vi de novo, Livvie. — Ele era todo charme e
finura. — Está ainda mais bonita do que da última vez em que a vi.
— Sempre lisonjeiro, Max. — Ela riu, mas Brig notou o débil rubor rosado que
parecia fazê-la brilhar, radiosa. Assombrou-se com a credulidade das mulheres
mais velhas. Ou talvez fosse desespero. — E eu o adoro por isso.
— Se eu pudesse acreditar! — retrucou Max, com pesar simulado. Olhando
para o lado, disse: — Quero que conheça meu primo, Brig McCord.
— Como vai, sra. Smith? — Sentiu que os dedos dela hesitavam ante a
aspereza de sua mão. Brig duvidava de que ela já tivesse tido contato com
calosidades antes.
— Livvie para os amigos — corrigiu ela, sem demonstrar de qualquer outra
forma sua rejeição ao toque dele.
Ele podia ter dado uma resposta charmosa, igual a qualquer outra dada por
Max, mas os seus anos de curvaturas e reverências tinham terminado há muito
tempo. Brig simplesmente inclinou a cabeça, numa aquiescência muda. Não estava
interessado em impressioná-la.
Quando Max terminou as apresentações, Fletcher falou:
— McCord concordou em ser guia da minha caçada aos carneiros monteses
nesse outono, Livvie.
— É? — Ela não demonstrou o menor interesse na comunicação.
— Sim. Ele é dono de uma fazenda em Idaho — continuou o marido.
— Que interessante! — comentou Olivia, sorrindo cortesmente para Brig.
Sua falta de entusiasmo não o surpreendia. Ela era uma gata de olhos verdes
que se reclinava em almofadas de veludo e tomava creme numa tigela de prata de
lei. Novamente ficou impressionado ao ver como o casal não combinava, o grande
caçador e a cosmopolita sofisticada.
— É um lugar agreste e lindo onde McCord tem a fazenda. Quando
conversávamos sobre a caçada, outro dia, Max ficou tão fascinado que resolveu ir
conosco.
O olhar dela virou-se, vivamente surpreso, para Max.
— Não sabia que você gostava de caçar.
— Não é pela caçada — insistiu Max. — A descrição de Fletcher e Brig de
viagem faz com que pareça uma aventura. Tenho pensado em tirar umas férias. Lá,
não posso ser encontrado pelo telefone. A idéia me fascina. Claro que isso significa
que Fletcher e eu vamos ter que passar muito tempo juntos, para eu ficar em forma.
— Acha sensato? indagou ela.
— Se está insinuando que eu possa ter um enfarte tentando ficar em forma,
não está sendo muito lisonjeira. — Max riu, e Brig franziu a testa. Achava que não
era absolutamente isso o que Olivia Smith estava insinuando, e perguntava-se por
que tinha essa impressão. — Está fazendo com que eu me sinta velho.
— Isso você nunca será, Max. — Olivia negou a possibilidade com um breve
sorriso. O garçom voltou com o uísque de Brig e parou para murmurar qualquer
coisa para a anfitriã. — Por favor, dêem-me licença — pediu ela, retirando-se.
Aproximou-se deles alguém que conhecia Max. Brig agüentou as
apresentações e a troca de amenidades, depois deixou o primo, fingindo interesse
no bufê armado na sala de jantar. Provou alguns dos minúsculos canapés e
descobriu um cantinho vazio. Apoiando o ombro na parede, tomou o uísque
devagarinho, e escutou o bate-papo ocioso à sua volta. Era tudo tão familiar, os
bons vinhos, as comidas exóticas, os convidados com roupas caras e a conversa
superficial... era como se fosse uma coisa saída de sonhos constantes. Exceto que
não era de um sonho; era saída do seu passado.
O ar estava poluído com o cheiro de fumo. Um homem corpulento próximo a
ele tirava baforadas de um charuto, enchendo a sala de nuvens de fumaça nociva.
As vozes e risadas uniam-se para formar uma algazarra sem sentido, pedaços de
frases juntavam-se para formar um amontoado confuso de conversas.
Seu olhar voltou-se para a sala de visitas, onde o primo estava entretido,
conversando com o homem que se reunira a ele. Se tivesse tomado uma decisão
diferente, Brig poderia estar na posição de Max, chefe de uma companhia nacional,
usando ternos feitos sob medida, guiando um automóvel caro, passando férias na
Europa e morando num apartamento de cobertura. Se estivesse dirigindo a Sanger
Corporation, Brig duvidava que ela tivesse sofrido os reveses que sofrera nas mãos
do primo. Ou será que isso era apenas convencimento dele? Bastava ver a
confusão em que se metera com a fazenda.
Diabos! Brig tomou um bom gole do uísque e fez uma careta ante o gosto.
Rodando o copo nas mãos, fez os cubos de gelo baterem dos lados. Seu olhar
impaciente varreu as duas salas ricamente mobiliadas, inspecionando-as. Era um
vivo contraste com a casa da fazenda, de toros de madeira, que ele e Tandy Barnes
tinham construído com as próprias mãos. Tudo aquilo poderia ter sido seu,
percebeu Brig. E era um alívio saber que não o desejava.
Quando ergueu o copo à boca para tomar outro gole, viu a mulher de cabelos
castanho-avermelhados emoldurada pelo arco da sala de jantar. Seu copo ficou
parado a um centímetro da boca. Por um instante atordoado, Brig não podia
acreditar que fosse a mesma mulher, aquela que vira com Fletcher Smith no hotel.
Mas era. Baixou o copo e fitou-a. Ela tivera a coragem de vir à festa dada pelo
amante e pela mulher. Um olhar a seu porte sereno e altivo, e Brig se deu conta de
que era o tipo capaz de tal audácia.
Percorreu-a com os olhos, da cabeça aos pés. Seu vestido preto era sexy,
sem ser vulgar. Sem dúvida revelava mais do seu corpo do que a blusa e a calça
que usava no outro dia. Seu corpo era impecável, nem exageradamente
arredondado, nem exageradamente esguio. Os seios caberiam gostosamente nas
palmas das mãos dele. Brig teve consciência de uma coceira nas palmas das mãos,
querendo fazer exatamente aquilo. Deus sabia que o decote cavado do vestido
convidava a um tal desejo. Ergueu os olhos para os cabelos castanhos dela, com
seus reflexos de fogo. Sua cor fazia-lhe lembrar um cavalo alazão cheio de vida que
possuía.
Um movimento chamou-lhe a atenção para o rapaz a seu lado. Alto e de
cabelos escuros, parecendo um Apolo, o homem lembrava a Brig alguém, mas não
perdeu tempo imaginando quem fosse. Sua mente registrava o fato de que a mulher
não viera sozinha, mas com um acompanhante. Ficou pensando quem teria
escolhido o homem, Fletcher Smith ou a mulher.
A pergunta mal fora formulada, quando uma loura atraente se juntou ao par.
Efusiva e sentimental, era óbvio que a loura fizera uso liberal dos serviços do bar.
Depois de um ligeiro cumprimento à moça de cabelos avermelhados, ignorou-a e
dedicou sua atenção ao homem, agarrando seu braço e apertando-se contra ele.
Brig notou a maneira indulgente, porém indiferente, com que o homem encarou as
atenções da loura. Sua boca subitamente retorceu-se num sorriso, quando Brig se
deu conta de que a ruiva não poderia ter um acompanhante mais inofensivo. Seu
belo par não se interessava pelo sexo feminino.
Ingerindo o conteúdo do copo, Brig desencostou-se da parede, pretendendo
voltar a enchê-lo no bar da sala de jantar. Quando se adiantou, viu a anfitriã se
aproximando.
— Max o abandonou? — indagou Olivia Smith, numa voz educada que era
puro mel.
— Está na outra sala, conversando com alguns amigos.
Os olhos verdes repararam no copo vazio na mão dele.
— Aceita mais um drinque, sr. McCord?
— Estava me dirigindo para o bar — admitiu.
Ela fez sinal para um garçom que caminhava por entre os grupos dispersos e
tirou o copo das mãos de Brig, dando-o para ele.
— Outra bebida para este senhor — ordenou, lançando um olhar indagador
para Brig.
— Uísque com gelo.
O garçom acenou com a cabeça, ao ouvir a resposta, e se dirigiu para o bar.
— Quanto tempo vai demorar em Nova York, sr. McCord? — Olivia Smith
estava junto dele. A fragrância enjoativa do seu perfume era quase estonteante.
— Parto pela manhã — respondeu Brig, acendendo um cigarro, para encher o
nariz e os pulmões com o cheiro do tabaco.
— Tão cedo? Quanto tempo passou aqui? — As perguntas eram corteses,
uma tentativa obsequiosa de puxar conversa com um convidado.
— Dois dias. — Brig não tinha mais interesse em conversar com ela do que
ela com ele. O garçom voltou com a bebida, oferecendo um meio de fuga. — Não
vou prendê-la, sra. Smith. Sei que é dever da anfitriã circular entre os convidados.
— Deixe-me apresentá-lo aos Fennimores. — Ela enfiou a mão pelo braço
dele, e Brig foi obrigado a acompanhá-la, para não ser desnecessariamente
grosseiro.

Um lampejo de verde chamou a atenção de Jordanna. A única mulher na festa


usando aquela tonalidade especial era sua mãe. Deixada de fora da conversa
unilateral que Alisha van Dyke estava tendo com o irmão, Jordanna deixou seu
olhar inquieto buscar o vestido esmeralda.
Sua mãe falava com um homem de cabelos escuros, vestindo um terno
marrom-claro. Jordanna não o reconheceu. Vagamente curiosa, correu os olhos
pelo perfil de falcão. Alto e esguio como um lobo de inverno, era largo e forte nos
ombros e estreito nos quadris. Seu rosto era bronzeado de sol, a boca encimada
por um bigode bem-aparado. O cabelo tinha a cor de chocolate escuro. Espesso,
indiferente à moda, delineava sua cabeça e formava suíças curtas. A despeito da
postura descontraída, havia algo no corpo longilíneo que sugeria vigilância e
prontidão.
De repente, Jordanna pensou que não seria sensato meter-se no caminho
daquele homem. Daria um perigoso inimigo... forte, poderoso, autoconfiante. Não
havia um homem naquela sala que fosse parceiro para ele, exceto o pai dela.
O irmão cutucou-a com o cotovelo. Virando-se, Jordanna olhou para ele. Seus
olhos escuros suplicavam para ser salvo da loura pendurada no seu braço.
— Kit, seja um bom irmãozinho e vá apanhar-me um drinque — pediu
Jordanna, os olhos cor de avelã brilhando maliciosamente.
— Claro — concordou ele, sorrindo educadamente para a loura, enquanto se
soltava de sua mão. — Com licença, Alisha.
Quando Christopher voltou com o drinque, a loura já tinha ido embora. Juntos,
Jordanna e o irmão começaram a se misturar aos outros convidados, parando para
bater papo com diversos grupos, até que foram finalmente separados.
Afastando-se de dois casais que discutiam a estética da arte moderna,
Jordanna entrou na sala de visitas. As conversas banais que podia ouvir não lhe
interessavam. Um pouco à sua frente, viu o pai afastando-se polidamente de um
círculo de convidados. A expressão de tédio disfarçado no rosto dele igualava-se ao
próprio estado de espírito dela. Aproximando-se dele por trás, tocou-lhe o cotovelo.
Numa voz pseudo-refinada, comentou:
— Paizinho, viu a última exposição na galeria?
Ele deu meia-volta, arqueando uma sobrancelha com fios grisalhos para ela,
antes de a boca curvar-se num sorriso, ao perceber que a filha estava debochando
das conversas que os cercavam.
— Para falar a verdade, não. Fale-me dela.
Jordanna deu uma breve risada e depois suspirou:
— É uma pena não sermos convidados. Poderíamos ir embora.
— Não é mesmo? — concordou Fletcher Smith. Correu os olhos pela sala. —
Parece que estamos em minoria. Mais ninguém parece disposto a sair. Acho que
ainda está mais cheio de gente do que na festa anterior. Aparentemente, a festa é
um sucesso. Isso deve deixar sua mãe contente.
— Sim.
Ao ouvir a referência à mãe, Jordanna automaticamente olhou para o outro
lado da sala, onde a mulher de cabelos retintos falava com um homem mais velho e
bem-vestido. Esbelto e atraente, tinha cabelos crespos, bem salpicados de fios
grisalhos. O homem parecia vagamente familiar, mas ela não conseguia lembrar-se
do nome dele. Seu charme era evidente, pelo modo como a mãe se comprazia com
suas atenções. Lançou um olhar de esguelha ao pai. Sua boca se estreitara numa
linha dura, o olhar também fixo na mulher que era sua esposa. Jordanna sentiu a
dor e a amargura do pai, e buscou distrair-lhe os pensamentos.
— Adoraria dez minutos de paz e tranqüilidade — disse. — Quem iria saber se
déssemos uma fugidinha?
Ele olhou para baixo, com ar indulgente.
— Ninguém. Sugere irmos aonde?
— Ao escritório.
Era o lugar favorito dele, livre da opulência do resto do apartamento. E o de
Jordanna, também.
— Está bem — concordou Fletcher, com um meio sorriso. Quando começaram
a se dirigir para o corredor, para fugir disfarçadamente da festa, Fletcher se deteve.
— Espere um minuto. Aí vem Sam Brookfield. Quero dar uma palavrinha com ele.
— Enfiou uma chave na mão dela. — Tranquei a porta para que ninguém tivesse a
idéia imbecil de ir mexer no armário de armas. Vá indo. Vou ter com você daqui a
alguns minutos.
— Não demore — pediu ela, enquanto o pai a deixava para ir falar com o
homem alto, magro e de óculos que vinha na direção deles.
— Tem mesmo uma fazenda de verdade... com cavalos, vacas e tudo? — A
morena lançou a Brig um olhar de banda, cético. Era uma mulher atraente, recém-
divorciada, ela lhe informara, mas Brig suspeitava de que sua beleza
desapareceria, quando a maquiagem fosse tirada do rosto.
— Tenho, sim — respondeu, desviando o olhar para o corredor por onde vira a
ruiva desaparecer, depois de um breve encontro com Fletcher. Quem sabe fora
embora.
— Não parece um vaqueiro, exceto talvez pelo bigode — dizia a morena.
— Da próxima vez, usarei esporas e chapéu de cowboy — replicou Brig, com
uma secura mordaz destinada a silenciá-la, mas a mulher achou graça.
— De que signo você é? Sou de Touro.
— Sagitário. — Brig esperava que fosse um signo incompatível.
— Que pena! — A mulher fez um muxoxo de desapontamento, mas depois se
animou. — Sabe qual é o seu signo ascendente?
— Infelizmente, não. — Sorriu, mas a expressão não chegou até os olhos
castanhos.
— De qualquer maneira, não sei se a gente pode acreditar em horóscopos. —
Ela deu de ombros. Era de se esperar que meu ex-marido e eu fôssemos muito
compatíveis, mas brigávamos o tempo todo.
— Acontece. — Brig não queria escutar os detalhes íntimos do divórcio deles.
Uma risada gostosa e rouca chamou-lhe a atenção. Olivia Smith estava a um
canto com Max. Seu primo derramava seu encanto sobre a mulher, e ela estava
adorando cada segundo. Logo que chegaram à festa, Brig teve a impressão de que
fazia bastante tempo que Max não via a mulher de Fletcher. Agora, os dois agiam
como se se tivessem visto na véspera. Brig se perguntou se os dois estariam tendo
um caso, e afastou a idéia com a mesma rapidez. Nem mesmo Max teria a audácia
de paquerar a mulher de um homem, enquanto estava tentando arrancar seu
dinheiro. Lançou um olhar ao local onde vira Fletcher pela última vez, mas ele não
estava lá. Brig ficou pensando se ele teria desaparecido pelo corredor que a ruiva
tomara. Mas não teve tempo para se deter na idéia.
— Perguntei se você conhece os Fitzpatricks — a morena repetia a pergunta
que ele não escutara da primeira vez.
— Não.
— Vão dar uma festa amanhã à noite. Deve ser divertida. Gostaria de ir
comigo?
— Não posso. Volto amanhã para minha fazenda. — Brig ficou contente por
ter a desculpa.
— Ah! — A mulher tentava esconder o desapontamento. — Quando vai voltar
a Nova York?
— Faz catorze anos que estive aqui pela última vez. Se eu tiver sorte, daqui a
outros catorze. — Só restava gelo no seu copo, e estava se derretendo. — Com
licença, vou encher de novo o copo.
A morena não protestou, e Brig desconfiou de que ela sabia que ele não ia
voltar. Estava irritado de novo. Na sala de jantar, entregou o copo ao barman e
pediu mais um drinque. Era o seu terceiro, sem contar o champanha, mas ainda
não sentira os efeitos do primeiro.
Dirigia-se para o bufê, mas nada lhe apetecia. Três homens estavam a um dos
cantos da sala. Brig ouviu um deles falar algo a respeito de tocaiar a caça, e parou
para escutar. Um dos homens estava se vangloriando de um alce que abatera
instantaneamente com um só tiro a cento e cinqüenta metros de distância. Um
segundo contou a seguir sua história, acrescentando dez metros e mudando o alce
para um antílope em fuga. Brig continuou seu caminho, perguntando-se por que
nunca mencionavam todos os tiros que erravam.
Capítulo VI

Bateram à porta de leve. Jordanna levantou-se do sofá para atender,


contornando o tapete de pele de urso em frente à lareira. Antes de girar a maçaneta
para destrancar a porta, perguntou:
— Quem é?
— Sou eu — respondeu o pai, em voz baixa.
Ela o deixou entrar, sorridente.
— Conseguiu.
— Está tranqüilo, aqui — comentou Fletcher, enquanto a porta era fechada e
trancada, para deixar de fora a festa e seu barulho.
— Maravilhosamente tranqüilo. — Jordanna andou até o centro da sala,
parando em frente das mandíbulas abertas do tapete de urso pardo. — Quer uma
bebida?
— Não. — Ele se sentou em sua poltrona favorita e apoiou a cabeça no
encosto. Uma explosão abafada de risos filtrou-se através das paredes
espessamente isoladas da sala. Um ar cansado, desanimado, perpassou-lhe pelo
rosto.
— Está com cara de cansado, papai — observou ela, cheia de preocupação, e
alisou as dobras da saia longa, enquanto se sentava no sofá.
— Não, só de velho — replicou Fletcher, com um riso torto.
Jordanna não sorriu.
— Não estaria dizendo isso... não estaria pensando isso, se não tivesse
discutido com Livvie antes da festa.
— Como é que soube?
— Um palpite. — Era mais sensato não admitir que ouvira por acaso. A mãe já
causava dor suficiente ao pai, e ele não precisava saber que ela testemunhara a
discussão.
— Depois de tanto tempo, as probabilidades de que seu palpite seja certo
estão a seu favor. — Nunca o pai admitira tão abertamente os seus problemas
conjugais. O abismo entre ele e a mulher era algo que nunca discutira com os
filhos. Era um assunto proibido, e ele não queria quebrar o tabu. — Por que não
põe um pouco de música suave? Quem sabe possamos abafar a festa — sugeriu.
Jordanna foi até a estante de livros, onde havia um toca-fitas estéreo embutido
na madeira. Escolheu uma fita instrumental e colocou-a para tocar, com o volume
baixo. Voltou para o sofá e relaxou-se de encontro às almofadas. Seu pai fechou os
olhos para ouvir a melodia doce.
Pensou que ele tivesse pegado no sono, mas, quando a fita começou a
repetir-se, ele abriu os olhos e saiu da poltrona. Enquanto endireitava o paletó,
sentiu algo dentro do bolso. Franzindo a testa, pegou um estojo fino de jóias.
Lançou um olhar a Jordanna, com um sorriso mortificado.
— Pretendia dar-lhe isto antes da festa, e esqueci — falou.
— O que é? — Levantando-se de sua posição reclinada no sofá, enganchou
um colchete do vestido numa almofada. Ele se soltou. — Que merda! — praguejou
Jordanna baixinho, irritada. — Quer abotoar meu vestido, papai? — pediu,
caminhando até a frente da mesa, onde ele estava parado.

As paredes começavam a fechar-se sobre ele. O ar viciado era quase


sufocante. Brig olhou em derredor, para as pessoas que tagarelavam,
aparentemente indiferentes à barulheira que faziam. Uma lufada de ar fresco
envolveu-o inesperadamente, e ele procurou sua origem. As cortinas finas da sala
de jantar moviam-se suavemente. Por trás delas, viu um par de portas de vidro com
treliça que evidentemente davam para o jardim da cobertura.
Esgueirando-se por elas, Brig fugiu para fora. Os ruídos da festa foram atrás
dele, agora abafados e misturados aos ruídos do tráfego das ruas lá embaixo. As
luzes da cidade eram brilhantes demais para que se vissem as estrelas. Porém,
pelo menos, tinha a sensação de espaço, lugar para se mexer e respirar.
Móveis extravagantes, de ferro batido, e vasos de plantas adornavam o
terraço. Brig ignorou o convite das cadeiras com almofadas e caminhou até o
parapeito. Um casal seguiu seu caminho de fuga, a garota rindo feito boba. Sem
querer companhia, Brig sumiu nas sombras e dobrou sem fazer barulho a esquina
da varanda, buscando um lugar mais isolado.
A luz jorrava através de outro par de portas de vidro, lançando um quadrado
de luz no piso ao ar livre. Com ligeira curiosidade, Brig espiou. Era um escritório... a
sala de troféus de Fletcher, a julgar pelas cabeças de animais empalhadas,
penduradas na parede. Naquele momento, viu o homem grisalho andar até a
escrivaninha e virar-se. Seu comportamento indicava que havia alguém na sala com
ele. Antes que Brig pudesse pensar em quem seria, a mulher de cabelos castanho
avermelhados e de vestido negro entrou na sua linha de visão. Deu as costas para
Fletcher para que ele pudesse abotoar-lhe o vestido.
Brig retorceu a boca num sorriso cínico. Se queria saber qual o motivo de
terem sumido da festa separadamente, já tinha sua resposta. Examinou a
suavidade cremosa das omoplatas e a linha ondulante da espinha dela. Fletcher
tirou algo de um estojo de jóias e colocou-o no pescoço da moça. Ela pareceu
encantada ao ser presenteada com o colar, e agradeceu a Fletcher com um rápido
beijo. Brig achava que ela era uma atriz tão consumada, que devia estar no palco.
— É lindo, papai. — Jordanna segurou o pingente de jade, em forma de cruz,
na mão, sentindo a frieza da pedra contra a palma. — Mas qual o motivo? Só faço
anos daqui a seis meses.
— Será que é preciso ser aniversário, para eu poder comprar um presente
para a minha própria filha? — perguntou. — Eu o vi e pensei em você, então
comprei-o.
— Gosto dele. Obrigada. — Que Jordanna se lembrasse, ele nunca fizera uma
coisa dessas antes. Estava surpresa, um pouco intrigada e muito satisfeita.
— Vou voltar para a festa. Não vem? — perguntou Fletcher, dirigindo-se para
a porta.
Ela ainda não estava com vontade de voltar.
— Não, vou ficar mais um pouquinho.
— Vou trancar a porta para você não ser perturbada. Cuide para que fique
trancada, quando sair — acrescentou.
— Pode ficar descansado — prometeu Jordanna.
Depois que ele saiu e fechou a porta, ela deu-lhe as costas. Tocando o
pingente verde-claro, sorriu de leve para o presente dado por pura afeição. Estava
de frente para as portas de treliça que davam para o jardim da cobertura. Viu uma
luz aparecer, do tamanho de uma chama de fósforo. Jordanna ficou rígida ao ver a
figura alta que estava lá fora. Ela se adiantou e girou a maçaneta. Reconheceu o
homem que entrara no escritório como sendo o estranho que vira conversando com
a mãe.
— Há quanto tempo está aí? — Seu tom de voz era levemente acusador. Não
lhe agradava a idéia de que ele estivesse espionando. Era uma invasão de
privacidade indesejável, mesmo que só estivesse tomando consciência dela agora.
Ele ergueu uma sobrancelha escura e espessa, zombando do tom que ela
usara.
— Não muito. A voz dele era baixa, com um leve sotaque arrastado. — Se o
que queria era privacidade — estendeu a mão para o cordel e puxou-o, fechando as
cortinas pesadas — devia ter cerrado as cortinas.
— Se tivesse desconfiado de que havia alguém aqui fora, é o que teria feito.
— A resposta foi rápida, mas sem rispidez.
— Ninguém lhe contou? Há uma festa em andamento, gente por toda parte. —
Fez um semi-arco com o braço. Segurava um drinque já aguado, e um cigarro ardia
entre os seus dedos. — Embora tenha que admitir que descobriu um nichozinho
agradável, longe do barulho e da multidão.
— É tranqüilo, aqui — concordou Jordanna, perguntando-se por que não o
mandava embora. A verdade era que o achava fascinante.
O fato de fitá-lo de uma extremidade da sala para a outra, em meio a uma
festa, não a preparara para o impacto de um encontro cara a cara. A expressão dos
seus olhos castanhos era seca e cortante como um vento do deserto. As belas
linhas do seu rosto haviam sido curtidas, e eram duras. Seu bigode escuro
sombreava uma boca também dura. Havia nele uma virilidade perigosa que era
excitante, além de alarmante. Porém, mais do que tudo, era a sensação de poder
que a cativava, uma força infatigável, que ia até o âmago dos ossos dele.
Os adjetivos eram difíceis de encontrar. Jordanna descartou-se de "mundano".
Pressentia que ele sabia de tudo como um animal, nascido com a astúcia e o
instinto de sobrevivência. "Experiente" também não combinava com ele, embora ela
tivesse certeza de que ele havia escapado de muitas armadilhas e aumentado os
seus conhecimentos com isso. De terno e gravata, parecia confortável e à vontade;
no entanto, era uma camuflagem habilidosa, que refletia sua capacidade de
adaptar-se ao meio ambiente. Um lobo sagaz, o último da sua espécie, vestindo
pele de carneiro.
Jordanna foi libertada do olhar que a prendia, quando ele correu os olhos pela
sala.
— Uma mostra de troféus e tanto. — Dirigiu-se até a cabeça empalhada de
uma javalina, as presas de marfim brilhando nas mandíbulas abertas. Jordanna
podia contar que ela própria a abatera, mas duvidava que ele fosse ficar
impressionado.
— É, sim — falou Jordanna, com a voz ligeiramente ofegante. Não acreditava
que ele tivesse notado. Era espantoso descobrir como a sua presença a perturbava
profundamente.
Ele deu as costas à parede e começou a afrouxar a gravata, e depois lançou
um olhar para Jordanna.
— Importa-se?
Jordanna desconfiava de que não ia fazer diferença, se se importasse ou não.
— Não. À vontade.
A moça ergueu a mão num gesto indiferente, e viu quando ele soltou o nó da
gravata e depois enfiou-a no bolso. Desabotoou os dois primeiros botões da
camisa. Uma fraqueza trêmula sacudiu os joelhos dela. Resolvida a dominar tal
reação, foi até a garrafa de cristal de uísque que estava sobre a escrivaninha e
jogou um pouco do líquido num copo de cristal.
— Posso? — perguntou ele, estendendo seu copo.
— Não tenho gelo — avisou Jordanna.
— Tudo bem. Ainda tenho no meu copo. — Fez os cubos tilintarem contra os
lados, como que a provar o que dizia.
Jordanna pegou o copo da mão dele, evitando o conta to com seus dedos,
sem saber por quê.
— Forte ou fraco? — indagou, a garrafa parada acima do copo dele.
— Forte.
Ela serviu uma dose farta de uísque em cima dos cubos de gelo, que se
derretiam, e pousou a garrafa, arrolhando-a. Segurando um copo em cada mão,
deu meia-volta e deparou com ele bem à sua frente. Um tremor de expectativa
dançou sobre sua pele ao ver-lhe o olhar preguiçoso e sensual. Os olhos de
Jordanna ficavam ao nível da boca do homem, um fato desconcertante de se
descobrir, assim de perto. Ele havia tirado o paletó. Agora, só havia a brancura de
sua camisa.
— Seu drinque — ofereceu ela, estendendo a mão que segurava o copo dele.
Ele também estendeu a mão, mas seu objetivo não era o copo. Seus dedos se
fecharam ao redor da cruz de jade, aninhada no vale entre os seios dela. Ao invés
de erguê-la para poder olhá-la mais de perto, deixou-a ali, onde sua mão podia
apoiar-se nas curvas fartas dos seios dela. Seu gesto era insolente, mas era difícil
demonstrar indignação, quando um tipo de chama completamente diferente estava
aquecendo a pele dela.
— Jade engastado. É muito lindo... e caro. — Ergueu os olhos para o rosto
dela, e Jordanna retribuiu o olhar firme.
— É, sim. — Conseguiu manter a voz calma e firme. — Importa-se de tirar a
mão daí e pegar o copo?
O olhar dele percorreu devagarinho o rosto dela, como se ele estivesse se
decidindo.
— Acho que me importo. — Parecia absorto.
Era um desafio, uma luva atirada ao chão. Jordanna deu-se conta de que
estava sendo atiçada para apanhá-la.
— Se não tirar a mão, serei forçada a derramar esta bebida na sua cabeça —
ameaçou, calma e solenemente.
— Não faça isso.
Essa frase parecia uma ameaça mais ominosa do que a dela. Seus dedos
subiram pela corrente de ouro, juntando-a e retorcendo-a, num círculo apertado,
pouco abaixo do queixo da moça.

O movimento fora puramente instintivo. A corrente de ouro era fina e forte. Brig
deu-se conta de que, com mais uma torção, funcionaria como um garrote
satisfatório. Como estava, conseguia o seu objetivo de mantê-la imóvel, sem se
debater. Notou os elos finos de ouro esticados no pescoço dela, e tomou cuidado
para não exercer mais pressão e machucar-lhe a pele.
Porra, mas ela tinha uma pele linda. Será que o resto do seu corpo era do
mesmo marfim macio que via? Brig não culpava Fletcher por fazer dela sua
propriedade particular, sua amante. Não esperara que sua beleza impecável se
saísse galhardamente ante um exame mais acurado.
Olhou-a nos olhos. Ela estava desconfiada, insegura do que esperar dele, mas
não parecia ter medo. Tinha coragem... e seu próprio tipo de força. Brig pensou nas
outras mulheres com quem trepara nos últimos vinte anos, e percebeu que ela era
mais mulher do que todas. Mas sabia o que ela era, e aquilo o deixava irritado.
Baixou o olhar para os lábios dela, e sentiu que precisava prová-los. Sua boca
os cobriu. Estavam frescos ao toque, não estavam aquecidos pelos beijos que
tinham vindo antes do dele. Mas eram macios, muito macios. Brig largou a corrente
de ouro e segurou-a pelo pescoço, para manter imóvel a cabeça dela.

A cruz de jade voltou para o seu ninho no vale entre os seios dela, quando a
corrente foi largada. Jordanna sentiu seu frescor mais uma vez, de encontro à pele
cálida. Não resistiu à mão firme que envolveu seu pescoço. Ficou passiva ante o
beijo dele, mas a persuasão suave da boca daquele homem estava dissolvendo aos
poucos tal passividade. Os pêlos macios do bigode excitavam-lhe a pele, enquanto
os lábios quentes e másculos cortejavam os dela, explorando cada curva e
cavidade com naturalidade e segurança. A pulsação do seu pescoço latejava contra
o dedo dele, revelando o bater rápido do seu coração. De livre e espontânea
vontade, seus lábios começaram a grudar-se aos dele.
Vagarosamente, ele ergueu a cabeça. Os olhos dela estavam dilatados e
levemente intrigados. Na sua expressão, havia uma pergunta velada que Jordanna
era orgulhosa demais para fazer. O rosto dele era inexpressivo. Sem dizer palavra,
ele tirou os copos da mão dela e pousou-os na escrivaninha.
Quando ficou de frente para ela de novo, não fez nenhuma tentativa de tomá-
la nos braços, nem colocou distância entre eles. Aquilo era opção dela. Estava-lhe
sendo dada a oportunidade de ir embora antes que ele a seduzisse. Mas Jordanna
estava ainda mais firmemente intrigada por esse estranho, que não era como
nenhum homem que conhecera.
Ele estendeu a mão para acariciar o brilho de mogno dos cabelos dela,
afastados do rosto por uma travessa.
— Tem lindos cabelos. — Era uma simples observação, não um elogio
destinado a lisonjeá-la.
Não havia necessidade de resposta, e Jordanna não deu nenhuma. Continuou
a fitá-lo com um olhar firme, embora seu coração estivesse disparado. Ele pousou
as mãos de cada lado do seu pescoço para puxá-la mais para perto, depois moveu-
as para fazer escorregar as alças do vestido dos ombros dela e acariciar de leve os
seus braços. Ela baixou os cílios trêmulos. O toque dele lembrava-lhe a aspereza
gostosa de uma língua de gato.
O hálito dele queimou-lhe os lábios um momento antes de sua boca cobri-los
num beijo longo e inebriante. Soltando-se das alças do vestido, ela deixou suas
mãos explorarem as tiras de aço flexíveis dos braços dele. Teve consciência dos
seus seios dilatando-se para encher as mãos grandes cujas palmas os seguravam.
Sentiu o sabor do uísque na língua dele, a nicotina nos seus lábios, saboreou o seu
gosto másculo.
Com o polegar ele traçava círculos lentos em volta do bico rosado do seio
dela, transformando-o num botão erótico. A fraqueza que acometera as pernas dela
anteriormente voltou com força triplicada, e Jordanna oscilou de encontro a ele, que
prazerosamente a moldou ao seu corpo. O calor que emanava de sua carne rija
espalhou-se rapidamente pela dela, numa sensação debilitante.
Abrindo uma trilha de fogo dourado, a boca dele acompanhou a curva do
maxilar dela até a cavidade sob sua orelha, descendo pela coluna macia do seu
pescoço até a base da garganta. Sua cabeça inclinava-se para trás para dar-lhe
maior acesso à área que mais agradasse a ele, enquanto Jordanna tremia de
desejo.
Essa paixão quente e langorosa era algo que jamais experimentara antes.
Produzia um mundo de sensações variáveis, como a lenta magia giratória de um
caleidoscópio. Cada vez que sua pele formigava sob as carícias dele, ela tinha
vontade de deter esse momento e guardá-lo para sempre, mas seu cheiro de
macho sobrepujava essa sensação com sua força intoxicante, ou então ela provava
o fogo indolente do seu beijo, esquecendo todo o resto, até que nova sensação a
dominava.
Acomodando os quadris para a arremetida dos dele, tentou aliviar a dor
latejante que a consumia aos poucos. As mãos dele estavam na parte de trás da
sua cintura. Jordanna sentia a fazenda que a envolvia ficar frouxa, enquanto o zíper
era baixado silenciosamente. Então, a força que ela previamente apenas suspeitara
existir foi-lhe revelada quando ele a levantou, deixando o vestido e a combinação
no chão, sem fazer mais esforço do que faria para levantar uma criança. Com a
mesma facilidade, tomou-a no colo. Jordanna ouviu o barulho dos seus sapatos
caindo ao chão, mas não tinha consciência de tê-los arrancado dos pés.
Envolvendo com os braços a coluna bronzeada do pescoço de Brig, deparou com a
luz franca de desejo que brilhava nos olhos dele. Ela não se desviou dos seus
olhos, nem os afrontou. Era bem mais simples do que isso. Não havia necessidade
de representar, nem o papel de virgem nem o de mulher fatal.
Levando-a até a lareira, ele deixou-a sobre o tapete de pele de urso. Quando
seus braços retiraram o apoio, Jordanna caiu de joelhos antes de esticar-se de
lado, parcialmente sustentada por um cotovelo. O pêlo felpudo do tapete de urso
roçou na sua pele nua, excitando ainda mais seus terminais nervosos, já sensíveis.
A pele do animal era um colchão primitivo, mas atendia às necessidades deles.
Ficou olhando-o despir-se. Ele tirava as roupas com simplicidade e sem
pressa, fazendo o movimento parecer natural e puro. Quando veio juntar-se a ela,
Jordanna sentiu o sangue correr mais depressa nas suas veias. Quando o calor do
corpo dele incendiou o dela, as suas mãos entraram em contato com a carne sólida
dos ombros e das costas musculosas de Brig. Enquanto o forte beijo dele sufocava
a boca de Jordanna, doce e submissa, suas mãos hábeis manipulavam respostas
em todas as áreas que tocavam.
Um aperto na boca do estômago transformou-a num nó enroscado de desejo.
Ela emitia baixinho sons lamuriantes, mas ele ignorava as suas súplicas silenciosas
para aliviar a tensão insuportável. Ninguém jamais fizera amor com ela assim, sem
pressa, como se tivessem todo o tempo do mundo.
Numa aurora gradativa de descoberta, Jordanna deu-se conta de que ele
esperava dela algo mais do que um simples recipiente para a sua satisfação.
Queria que ela desse de volta... desse de si. Nenhum homem exigira isso dela.
Essa exigência natural de um compromisso era assustadora, mas não tão
aterradora quanto o vazio negro que ameaçava engoli-la, se recusasse.
Suas reações foram cautelosas, a princípio, ganhando confiança com o
encorajamento sensual e hábil por parte dele. Ela foi arrastada para um torvelinho
de desejo alucinante. Quando ele largou o peso do corpo em cima dela, pensou que
ia afogar-se de êxtase. Ao invés disso, foi alçada cada vez mais alto, até que o
mundo pareceu explodir numa exibição ofuscante de luzes que iluminaram cada
canto do seu ser.
Quando o ardente temporal de amor passou, sua pele estava toda orvalhada
de suor. Jordanna esperou o surgimento das sombras, mas elas não conseguiram
escurecer o momento. Os cantos de sua boca se aprofundaram ligeiramente para
refletir um sorriso interior. Uma mão calosa alisou-lhe a face e afastou as mechas
de cabelo que se grudavam à sua pele úmida. Seus olhos estavam suaves e
maravilhados, quando ela os abriu para fitar o homem que a examinava em silêncio.
As feições fortes e magras tinham um ar absorto. Inclinando a cabeça, deixou
aquela boca demorar-se na dela por um instante de carinho.
— Há quanto tempo não faz amor por simples prazer? — A voz dele era baixa,
levemente arrastada na sua curiosidade.
— Eu... — Como poderia dizer "nunca"? — Eu... não sei.
Algo de sombrio perpassou pela fisionomia dele. Jordanna perguntou-se por
que sua resposta o desagradara. Admitira o quanto se sentira especial nos braços
dele. A maioria dos homens ficaria estufada de orgulho, se uma mulher lhe dissesse
isso.
Risos e vozes altas, vindos da festa, subitamente invadiram aquele momento.
Ele lhe lançou um sorriso torto de pesar, uma expressão sem emoção alguma, e
rolou para longe dela. O corpo dela sentiu-se frio, sem o calor dele a seu lado.
— Está na hora de voltarmos para a festa. — A explicação seca pairou no ar,
enquanto ele começou a se vestir.
— Sim — concordou Jordanna, sem conseguir afastar a confusão que a
estranha atitude dele lhe causara.
Tal atitude a atormentava, enquanto vestia o traje negro e puxava as alças
para os ombros. Apertando a fazenda bem junto à cintura, puxou para cima o zíper,
mas não se deu conta do colchete da parte superior. Caminhou até junto dele. Brig
já tinha enfiado a camisa para dentro da calça e estava abotoando a frente. Ela
deu-lhe as costas.
— Quer fazer o favor de fechar o colchete para mim? — Como o seu pedido
foi respondido com o silêncio, Jordanna lançou um olhar indagador por cima do
ombro. As mãos dele estavam na frente do peito, paradas no ato de abotoar a
camisa. Ante o olhar dela, ele adiantou-se para fechar-lhe o colchete, o olhar cínico
e duro.
— Seu colchete já lhe deu problemas hoje, não é? — Havia algo de
zombeteiro no comentário, enquanto os dedos roçavam a espinha dela.
Jordanna franziu a testa, até que se lembrou de que precisara da ajuda do pai
antes, quando aquele estranho provavelmente estava no terraço. Tinha se
esquecido disso. Alguém forçou a porta do escritório. A tentativa foi imediatamente
seguida de uma batida.
— Jordanna? Está aí dentro?
Ela reconheceu a voz do irmão.
— Estou, Kit. — O colchete foi fechado e o toque dele retirado da pele
sensível de sua espinha. — Obrigada — murmurou, mas ele já se afastara. Antes
que o irmão viesse bater de novo, Jordanna dirigiu-se apressada para a porta,
correndo uma mão nervosa pelos lados dos cabelos.
Quando finalmente abriu a porta, o rosto de Christopher exibia um sorriso de
preocupação e confusão.
— Procurei-a por toda parte — começou ele, e se deteve ao olhar para além
dela.
— Com licença — disse uma voz baixa, e Jordanna virou-se e deu com o
estranho alto e moreno às suas costas. Segurava o paletó enganchado num dedo e
jogado sobre o ombro. As feições queimadas de sol eram inexpressivas, ao encará-
la. — Obrigado por compartilhar a paz e a tranqüilidade... e o uísque. — Ergueu o
copo que segurava, antes de inclinar a cabeça num gesto zombeteiro e sair para o
corredor, passando por eles.
— Quem era? — perguntou o irmão.
Ela sentiu um choque ao se dar conta de que nem sabia o nome dele. Uma
risada histérica subiu-lhe à garganta. O que o irmão diria se soubesse que ela
acabara de fazer amor com um estranho completo, num glorioso abandono? E o
que era mais absurdo: cinco horas antes ela declarara que não queria mais nada
com os homens. Será que perdera o juízo? Em caso afirmativo, ela esperava que
aquela não viesse a ser a única experiência do gênero. O modo como se sentira
tinha que ser aquele a que Kit estivera se referindo. Toda essa confusão quente e
maravilhosa que perdurava dentro dela tinha que ser repetida. Ela gostaria de poder
dizer ao irmão o quanto ele estava certo, mas o relacionamento deles não era
assim tão íntimo.
— Um convidado — disse finalmente Jordanna, respondendo à pergunta dele.
— Nem chegamos a nos apresentar. — Haviam se encontrado a um nível
elementar, onde os nomes tinham sido supérfluos... até aquele momento.
— Papai falou que você estava aqui.
— Estive... me relaxando — falou, para o caso de sua aparência necessitar de
explicações.
Os olhos escuros dele varreram-lhe o rosto.
— Parece descansada... e reanimada, consideravelmente menos tensa do que
antes — admitiu, mas seus olhos pareciam sondá-la.
Jordanna não queria ser examinada assim tão atentamente. Era tudo novo
demais.
— Acho melhor eu voltar para a festa, antes que seja acusada de grosseira —
declarou ela, com uma careta simulada, mas o irmão não saiu do seu caminho.
Uma luz maliciosa brilhava-lhe nos olhos.
— É melhor calçar primeiro os sapatos.
Ante o comentário dele, os dedos descalços enroscaram-se no tapete. Um
calor constrangedor inundou-lhe a pele, enquanto ria e se virava.
— Gostaria de não ter que usá-los.

Brig largou o copo na primeira mesa que encontrou. Uma raiva sombria fervia-
lhe nas veias. O que começara como um simples beijo se transformara numa fome
que não pudera controlar. Não apenas seu apetite fora saciado, mas também tivera
a satisfação de saber que ela curtira a experiência. Ainda podia sentir a maciez lisa
do corpo dela contra o seu, a sensação perdurando. Porra, mas ela fora uma
mulher e tanto quando o muro das suas inibições finalmente desmoronara. Ele
ficara surpreso com a barreira invisível, e resolvido a tê-la integralmente, ou a não
tê-la.
Alguém esbarrou no ombro dele, rompendo o fio de seus devaneios. Brig
lançou um olhar pela sala lotada. Na outra extremidade, viu Fletcher Smith, e virou-
se na direção oposta, odiando-se por isso. Max estava a seis metros de distância,
parte de um grupo compacto.
Um nojo de si mesmo cresceu dentro de Brig. Pouco antes, encarara o flerte
do primo com Olivia Smith com desprezo cortante. Tivera asco de um homem que
podia tomar o dinheiro de outro homem e a sua mulher. Mas fora exatamente o que
fizera.
Passadas longas e impacientes levaram-no para junto de Max.
— Vou embora — anunciou Brig, secamente.
— Já? — perguntou o primo, franzindo a testa.
— Diga a Smith que entrarei em contato com ele — falou Brig, dirigindo-se
para o saguão.
— Diga você mesmo. Ele está logo ali — falou Max.
Porém Brig não deu resposta. Já estava a meio caminho da porta. Não
gostava muito de si próprio, no momento... nem do que tinha feito, nem do fato de
ter tido tanto prazer em fazê-lo.

Quando Jordanna voltou para a festa com o irmão, procurou o estranho, mas
não havia sinal dele. Depois de quase uma hora de busca discreta, finalmente
admitiu que ele tinha ido embora. A identidade dele era um mistério para ela, que
desejava solucioná-lo. Queria vê-lo de novo, para descobrir se aquela maravilha
selvagem que sentira com ele fora apenas ilusão.
No dia seguinte, uma companhia de limpeza foi ao apartamento para colocá-lo
em ordem. Estavam passando o aspirador na sala de visitas, e Jordanna dirigiu-se
à sala de jantar, onde a mãe supervisionava a arrumação de suas baixelas.
— Livvie — Jordanna começou a pergunta de modo hesitante, desejando
parecer apenas ligeiramente interessada —, ontem à noite, na festa, quem era
aquele homem com quem eu a vi conversando?
A mãe se enrijeceu, o olhar cortante e desconfiado.
— Falei com todos os que compareceram. Precisará ser mais específica,
Jordanna.
A resposta breve escondia outra coisa. Culpa? Uma onda de choque sacudiu
Jordanna. E se aquele homem fosse um dos amantes da mãe? Essa possibilidade
retorceu seu estômago numa agitação de repulsa.
— Deixe para lá. — Não queria mais saber quem era ele. Era melhor que não
descobrisse. Saiu às pressas da sala, deixando a mãe, confusa, fitando sua figura.
Sozinha, Jordanna ficou tentando convencer-se de que ele não era o tipo da
mãe. Mas o que sabia sobre o tipo de homem que a mãe achava atraente? Não era
possível, insistia. Mas a pergunta permanecia, não importava o quanto tentasse
ignorá-la.

Capítulo VII

Quando Jordanna abriu a porta que ligava a escada de incêndio ao último


andar, o irmão saía do elevador. O suor escorria livremente pelo rosto dela, e
cachos de cabelo molhado grudavam-se às suas têmporas e à sua testa. O resto do
cabelo longo fora repuxado para a nuca e preso por um pente circular. Vestindo um
traje próprio para corrida, verde-floresta com listras amarelas, ofegava fortemente.
Christopher parou.
— Qual é o problema com os elevadores? — zombou. — Ou você é
naturalmente tão cheia de energia?
— Subi de elevador até a metade do caminho e depois peguei as escadas —
disse, sem fôlego, e parou, colocando as mãos nos quadris. Soprou o ar viciado dos
pulmões doloridos e flexionou os músculos retesados das pernas. — Estive fazendo
cooper — arquejou Jordanna, tentando manter-me flexível.
— Foi o que imaginei — aparteou ele, secamente.
— Preciso ficar em forma para as montanhas — explicou, por entre os
arquejos.
— Mais uma viagem de caça? — Christopher pegou a chave que ela lhe
entregava e destrancou a porta do apartamento.
Jordanna fez que sim com a cabeça.
— Partimos na segunda semana de setembro... daqui a três semanas. —
Entrou no apartamento na frente dele, ainda lutando para recobrar o fôlego.
— Para onde vão, dessa vez? — Ele fechou a porta e devolveu-lhe a chave.
Jordanna largou-a no bolso da jaqueta, e enxugou o suor do pescoço com a manga.
— Para Idaho. Próximo ao rio Salmon, creio. Um fazendeiro chamado McCord
vai nos guiar para a terra dos carneiros. — Continuou a andar de um lado para
outro da sala, para manter-se em movimento. — Papai fez todos os preparativos.
Fletcher sempre se encarregava dos detalhes de planejamento de uma
caçada. Normalmente, Jordanna tinha mais interesse nos arranjos que o pai fazia e
discutia-os com ele, mas não dessa vez. Não conseguia concentrar-se em nada. A
lembrança daquela festa de julho e do homem com quem fizera amor naquela noite
ficava invadindo seus pensamentos. Jamais o mencionara de novo, depois daquela
primeira tentativa abortada do dia seguinte. Queria esquecê-lo, mas não conseguia
deixar de recordar-se do modo como a fizera sentir-se.
A princípio, tentara recapturar a emoção com outros parceiros. Os beijos deles
não corresponderam às suas expectativas, e Jordanna recuara dos seus abraços
porque não exigiam dela outra coisa senão a submissão. Experimentara algo mais
satisfatório e queria encontrá-lo de novo. Nem mesmo a dor da frustração poderia
fazê-la contentar-se com menos.
— Quanto tempo vão deixar mamãe sozinha, dessa vez? Três semanas? Um
mês? — As perguntas do irmão eram vagamente zangadas.
Jordanna sempre se enfurecia com facilidade, mas ultimamente, então, não
era preciso muita provocação para tirá-la do sério.
— Provavelmente, três semanas. Mas ela não vai ficar sozinha — replicou,
bruscamente. — Você estará aqui. E o homem com quem ela está dormindo agora
também, seja quem for. — Uma dor aguda atingiu-a, à idéia de quem pudesse ser.
— Não resiste a uma oportunidade de rebaixá-la, não é? — acusou Kit. Sua
boca se apertava numa linha fina de controle, mas o lampejo escuro dos seus olhos
revelava raiva. — Usa os erros dela para afastar racionalmente sua culpa por deixá-
la para trás, enquanto você e papai partem sozinhos para um canto esquecido da
Terra.
— Só que dessa vez não estamos indo sozinhos — retrucou. O ar estava de
volta aos seus pulmões e eles funcionavam normalmente, enquanto o sangue corria
quente pelas veias.
A frase dela fez Christopher esquecer momentaneamente sua raiva.
— Não? E desde quando? Papai nunca leva ninguém nas suas caçadas,
exceto você e um guia.
— Dessa vez papai estará levando um amigo. Ele não vai caçar, vai só pelo
passeio.
Ele a olhou com ceticismo.
— Quem vai com vocês?
— Um amigo de papai. Chama-se Max Sanger. — Jordanna não conhecia o
homem muito bem. O pai a incluía nas suas caçadas, mas ela era excluída das
atividades que envolviam os seus amigos homens. As saídas noturnas do pai
pertenciam-lhe exclusivamente. Jordanna não participava delas.
— Max Sanger? — O irmão pareceu ficar atordoado com a resposta. — Tem
certeza absoluta?
— Se não acredita em mim, pergunte a papai.
— É o que farei. — Suas belas feições formavam uma máscara
intencionalmente severa. Jordanna ficou surpresa. — Onde está ele? No escritório?
— Imagino que sim. — Havia uma ponta de pouco-caso altivo no dar de
ombros dela. Mas, quando o irmão partiu na direção do escritório, a curiosidade
impeliu-a a segui-lo.
A porta do escritório já estava aberta, quando Jordanna dobrou a esquina do
corredor. O irmão estava lá dentro, cumprimentando o pai brevemente:
— Alô, papai.
— O que está fazendo aqui, Kit? Não me lembro de ter pedido para vê-lo.
Ante o escárnio amargo na voz do pai, Jordanna parou pouco antes do vão da
porta. Nunca ouvira o pai falar com Kit com tal desprezo antes. Aquilo a chocava.
— Não sabia que precisava de convite — retrucou o irmão, numa voz dura e
inexpressiva.
— O que quer? Se veio procurar sua mãe, não tenho a menor idéia de onde
ela está. Pergunte a Tessa. — Ouviu-se o ruído de papéis sendo manuseados.
— No momento, estou querendo falar com você — declarou Christopher.
— Não temos mais nada a dizer um ao outro. E estou ocupado com uns
relatórios.
Jordanna sabia que o pai se ressentira com o modo como Kit rejeitara seu
apoio financeiro e saíra de casa para vencer sozinho, mas nunca se dera conta do
quanto ele ficara amargo em relação ao filho.
— Jordanna me contou que vocês vão partir em breve para uma viagem de
caça — continuou o irmão.
— E desde quando você se interessa por quaisquer das minhas viagens de
caça? — replicou bruscamente o pai.
Duvidando que fosse realmente o pai a falar daquele jeito, apesar de
reconhecer sua voz, Jordanna decidiu cruzar a porta. Ele estava sentado à mesa, e
sua expressão denotava tal escárnio que a fez crispar-se.
— Jordanna também mencionou que você não vai sozinho, dessa vez. — O
irmão inclinara a cabeça para um dos lados, uma insinuação de desafio na postura.
— Isso mesmo. — O pai tirou os óculos e se reclinou na cadeira giratória. Ao
fazê-lo, notou Jordanna parada na porta. Imediatamente, sua atitude demonstrou
um vago interesse.
— Ela falou que Max Sanger vai com vocês. Isso é verdade?
— Max programou a viagem dele para coincidir com a nossa — admitiu,
apertando os olhos de leve. — Não vai caçar. Vai apenas tirar umas férias nas
montanhas.
— Mas por que vai com vocês?
— Parece que McCord, o fazendeiro que vai nos servir de guia, é parente de
Max, primo dele, ou coisa parecida. Imagino que isso tenha tido algo a ver com sua
decisão de vir conosco — explicou o pai, com lógica razoável. — Além disso,
demonstrei interesse numas ações que ele está pensando em vender, assim como
num projeto imobiliário que tem na Califórnia. Acho que ele pretende discutir essas
possibilidades mais detalhadamente.
— Mas você não mistura negócios com caçada — acusou Christopher.
— Foi o que eu lhe disse, mas Max ainda não se convenceu — falou Fletcher,
levemente divertido.
— Por que está permitindo que ele vá com você, quando sempre fez objeções
a que outros o acompanhassem? — Havia uma dúvida que ainda precisava ser
aclarada, antes que o irmão se convencesse de que o pai não tinha nenhum motivo
inconfessado.
— Fiz objeções a outros caçadores — continuou Fletcher, mais específico —
porque não queria partilhar a perícia de um guia. Max vem junto simplesmente pelo
gosto da aventura.
— Nesse caso — Christopher fez uma pausa, ainda desconfiado, embora
Jordanna não entendesse o porquê —, você não faria objeções se eu também
fosse?
A cabeça grisalha levantou-se ligeiramente, num gesto de surpresa.
— Não deixa de ser uma viagem de caça. Nosso propósito é abater um
carneiro montês. Não é uma viagem para os suscetíveis ou os de coração mole. —
Examinou o homem esbelto diante da mesa. — Nunca antes demonstrou interesse
em vir junto. Por que agora, Kit?
— Rejeito seu esporte, não você. Não importa o que pense a meu respeito,
sou um homem. Não vou desmaiar ao ver sangue — assegurou Kit, com um humor
mordaz. — Quero ir com você, papai.
Fletcher Smith inclinou-se para a frente, na cadeira. Um arrepio pareceu
sacudi-lo. Subitamente parecia muito velho e cansado... e vulnerável. Seus olhos
castanhos estavam atormentados pelo amor, enquanto fitavam o rapaz.
— Não sabe quantas vezes desejei ouvi-lo dizer isso, filho. — Sua voz tremia,
revelando o quanto ficara emocionado com a última frase do filho. Por que não
disse? Por que esperou até agora?
— Porque... essa é uma viagem que tenho que fazer. — O irmão pareceu
escolher com cuidado as palavras de sua resposta. — Posso ir com você?
— Pode. — Um amplo sorriso iluminou o rosto do pai, fazendo-o parecer
jovem e invencível novamente. Voltou o olhar brilhante para a filha. — E quanto a
você, Jordanna? Acha que pode aturar seu irmão durante três semanas inteiras?
— Duvido. — Mas havia um leve sorriso nos lábios dela. Podia ver como o pai
estava satisfeito, orgulhoso de que Kit quisesse ir com eles. Não importava o
quanto Kit pudesse deixá-la zangada, estava grata e feliz por ele ter dado esse
passo para fechar a brecha que o separara do pai. — Mas acho que sobreviverei à
experiência.
Era quase hora do crepúsculo. Os picos distantes estavam se acendendo com
as primeiras chamas do pôr-do-sol. Tirando as luvas dos dedos, Brig dirigiu-se para
a casa tosca de toros de madeira. Não havia animação no seu andar. Seus passos
revelavam uma exaustão total, enquanto as esporas tiniam nas botas. Um cão
pastor de vacas, empoeirado e de pêlo embolado, trotava junto a seus calcanhares.
Ele estava dando o máximo de si, dando mais do que exigiria de qualquer
outra pessoa, nessas últimas semanas. O derradeiro corte de feno tinha terminado,
e ele podia apenas torcer para que fosse o bastante até o fim do inverno seguinte.
Fora até o acampamento alto onde Jocko cuidava dos carneiros que pastavam,
para levar-lhe provisões.
Levantando os olhos para o céu, lembrou-se da advertência do pastor, de que
as criaturas da montanha se preparavam para um inverno prematuro. Fora um dia
azul e claro. Por quanto tempo mais poderia deixar o gado nos pastos fartos dos
vales altos, antes de ter que descê-lo aos pastos de inverno perto da casa da
fazenda? Esperara ganhar parte de setembro, mas com aquela expedição de caça,
e agora o aviso de Jocko, não podia arriscar-se.
Com impaciência, Brig bateu as luvas contra as coxas. O rebanho teria que
descer na semana seguinte. O cachorro malhado saiu de junto dele e foi largar-se à
sombra de uma árvore. O olhar sorridente de Brig parecia mais uma careta
cansada.
— É isso o que eu gostaria de fazer, Sam — disse ao cachorro. Este bateu
com a cauda no chão uma vez, em resposta a seu nome.
Segurando o corrimão de madeira, Brig subiu os degraus da entrada dos
fundos da estrutura de toros de dois andares. Tirou o chapéu de palha Stetson ao
entrar pela porta e pendurou-o num gancho de madeira. Um homem baixo e
atarracado, de jeans e camisa xadrez, estava parado diante do fogão, mexendo o
conteúdo de uma panela. De peito redondo e quadris finos, lançou um olhar a Brig,
quando este entrou.
— Como vai Jocko? — indagou.
— Bem — respondeu Brig, que caminhou direto para a pia e abriu as torneiras
para se lavar.
Tandy Barnes estava com ele desde que começara a fazenda, e já se
acostumara às respostas abruptas do patrão. Sempre pilheriava, dizendo que Brig
não desperdiçava cinco palavras quando uma só bastasse. Brig esfregou água fria
no rosto e no pescoço, numa tentativa de reanimar os sentidos cansados, depois
ensaboou as mãos.
— Ele vai começar a descer o rebanho — acrescentou Brig. — Na semana
que vem sairemos atrás do gado. — Enxaguando as mãos, pegou a toalha e se
virou. — Onde está Frank?
— Está consertando aquela albarda — replicou Tandy. — Jogue-me essa
toalha.
Brig embolou a toalha de mão e jogou-a para ele. Tandy usou-a como pegador
para tirar uma assadeira de biscoitos do forno.
— O que vamos ter para o jantar? — perguntou Brig.
— Ensopado e biscoitos.
— De novo! — explodiu Brig.
— Não me torre por causa da comida — advertiu Tandy. — Sempre que não
gostar do cardápio, pode tomar suas providências. Não me empreguei como
cozinheiro.
— Se o tivesse feito, eu o teria despedido há dez anos — suspirou Brig, com
fastio.
— Toque o sino e chame Frank, para podermos comer enquanto está quente.
— O vaqueiro atarracado começou a colocar colheradas de ensopado nos pratos
que empilhara em cima do fogão.
Dirigindo-se para a porta dos fundos, Brig entreabriu-a e saiu, para puxar a
corda do sino de jantar, que ficava num dos lados da casa. Ressoou pelo quintal.
Ele não esperou a figura que emergia do celeiro, voltando para dentro e fechando a
porta.
Tandy passou-lhe um prato cheio de ensopado de carne de veado e três
biscoitos precariamente equilibrados na borda. Brig levou-o até a mesa, puxando
uma cadeira de pau com um toque do calcanhar da bota. Uma pequena pilha de
correspondência estava sobre a mesa. Brig serviu-se de uma colherada de
ensopado e foi mastigando, enquanto folheava os envelopes. Um deles trazia o
carimbo postal de Nova York. Brig largou o talher e abriu-o. Tandy trouxe dois
pratos de comida para a mesa. Puxando uma cadeira para si, colocou o segundo
prato diante de uma terceira cadeira.
— De quem é a carta? — Tandy esticou o pescoço para dar uma espiada no
conteúdo. Seus cabelos escuros estavam ficando ralos e pontilhados de fios
prateados. Um ponto calvo na parte de trás da cabeça estava parcialmente coberto
pelos cabelos que penteava para trás, a fim de cobrir a careca incipiente.
Brig ignorou a pergunta, enquanto continuava a ler a carta. Sua boca foi se
apertando numa linha cada vez mais dura. Quando acabou de ler, amassou a carta
até formar uma bola, e soltou um suspiro irritado.
— O que ela diz? — indagou Tandy, franzindo o cenho.
— É de Smith. — Havia muita raiva contida e selvagem na sua voz. — Haverá
mais um membro não caçador na viagem. O filho dele vem junto. Vamos ter uma
excursão para turistas ou uma expedição de caça?
Quando não estava se desgastando feito louco com o trabalho da fazenda,
nos dois últimos meses, estava examinando as montanhas, estudando o terreno,
localizando os rebanhos de carneiros monteses e definindo suas pastagens.
Fletcher Smith tinha razão. Se Brig ia pegar o dinheiro dele para uma caçada, faria
todo o possível para assegurar que Smith conseguisse o máximo pelo que pagava.
Mas essa caçada de um carneiro tamanho troféu parecia estar se tornando outra
coisa... primeiro, Max fora convidado para vir junto, e agora era o filho de Smith.
— Estou quase lhe dizendo que procure outra pessoa — resmungou Brig.
Ainda havia muito a ser feito. Os suprimentos extras tinham que ser trazidos
da cidade. Todo o equipamento albardas, cabrestos, arreios, selas tinha que ser de
primeira, assim como os cavalos de montaria e os de carga. Todo o trabalho da
fazenda precisava ser adiantado de modo a permitir que um só homem cuidasse
dela durante as três semanas em que Brig se ausentaria. Tandy viria com ele para
cuidar dos animais, Jocko seria o cozinheiro. Frank Savidge ficaria tomando conta
da fazenda.
— Mas você falou que precisava de dinheiro; então, como pode lhe dizer que
procure outra pessoa? — quis saber Tandy.
— Sei o que falei. — Brig sorveu nova colherada do ensopado, mas tinha
gosto de giz. Largou a colher no prato. — Se tiver sobrado algo disto aqui logo
mais, pode jogar fora.
— Não vai comer? — indagou Tandy.
— E tenho opção? — falou, zombeteiro, voltando a pegar na colher.
A porta dos fundos se abriu, e Frank Savidge entrou na cozinha bem a tempo
de ouvir as palavras de Brig.
— O que foi?
Frank era uma montanha de homem, de queixo largo e quadrado e cabelos
castanho-amarelados. Era um rapagão bebedor de cerveja e louco por uma
briguinha, e fora despedido de todas as turmas de trabalho num raio de cento e
cinquenta quilómetros. O problema dele era que não respeitava um homem que
pudesse surrar, fosse patrão ou colega. Trabalhava para Brig nos últimos cinco
anos.
Tandy lançou um olhar ressentido a Brig antes de responder à pergunta de
Frank.
— Ahhh, ele está agindo como um lobo com o rabo preso numa fenda. Vou
ficar contente quando seu humor melhorar.
— Isso provavelmente coincidirá com uma melhora na comida — retrucou
Brig.
— Ensopado?!! — exclamou Frank, olhando de cara feia para o prato em cima
da mesa.
— Agora chega! É a última vez que faço o jantar! — declarou Tandy.
Ninguém discutiu. A conversa cessou, enquanto os três homens comiam em
silêncio. A bola de papel amassado ao lado do prato de Brig era um lembrete
zombeteiro de acontecimentos que ele queria esquecer. Sua irritação não era
causada pelo aumento do número de participantes da expedição e pelas mudanças
de acomodação que aquilo representava. Seu desejo de cancelar o contrato para
ser guia da caçada não tinha nada a ver com aquilo. Era a perspectiva de enfrentar
Fletcher Smith e receber o dinheiro dele, depois de ter feito amor com sua amante,
Jordanna. Porra, mas queria esquecer o nome dela. Queria esquecê-la.

Brig bateu a porta do furgão e olhou para as provisões que ocupavam a parte
traseira. Ignorando o fato de que já deveria estar na estrada, voltou para a fazenda
e subiu a trilha de concreto quebrado que já fora uma calçada, batendo à porta. A
casa pequena era velha e precisava muito de uma demão de tinta. O senhorio
dissera a Trudie que, se a pintasse, teria que aumentar o aluguel.
A porta se abriu, e o olhar dele se desviou da tinta descascada das paredes
externas da casa para a mulher loura atrás da porta de tela.
— Brig? — A voz espantada revelava sua surpresa. Ficou imediatamente
nervosa, erguendo a mão para afofar os cabelos e tocar os lábios sem batom.
— Posso entrar? — Sentia-se duro e frio, mas a dor pétrea dentro de si o
impulsionava.
— Claro. — Destrancou a porta de tela para que ele entrasse, e fechou a
frente do vestido de andar em casa. — Devo estar um lixo. Pegue uma cerveja na
geladeira, enquanto me pinto um pouco.
A mão dele agarrou-lhe o pulso.
— Deixe para lá. — Brig tomou-a nos braços e esmagou-lhe os lábios com os
seus. Detestou senti-los secos, quando sua boca ansiava pelo toque de uma boca
macia.
Tomou-a no colo e carregou-a pela sala pequena e pelo corredor estreito. A
porta do quarto estava fechada, e ele a abriu com um chute. A cama estava
desfeita, havia roupas espalhadas pelo chão. Quando ele a pousou no chão, Trudie
correu a recolhê-las.
— Desculpe a bagunça. Não estava esperando ninguém.
— Não se incomode. — Já desabotoara a camisa e estava puxando-a para
fora da calça. A atitude servil dela dava-lhe nos nervos, quando sua mente
guardava uma lembrança de orgulho com uma ponta de arrogância. — E tire esse
robe.

A cabeça dele tocou o travesseiro por um instante. Sentia-se pior do que


antes. A frustração do desejo rasgava-lhe as entranhas, a despeito da gratificação
física da luxúria. Comia-o por dentro. Brig jogou as pernas compridas para fora da
cama e procurou a calça.
— Quem é ela? — perguntou Trudie, cobrindo sua nudez com o lençol, um
tremor de mágoa na voz.
— Quem é quem? — Brig fingiu fria ignorância.
— Estava tentando fingir que eu era outra mulher — acusou suavemente, sem
raiva.
— Não sei do que está falando. — Enfiou-se na camisa e meteu-lhe as fraldas
para dentro da Levis.
— Brig, não é a primeira vez que isso acontece. — Ela o admoestou por tratá-
la como a uma criança ignorante. Depois que fazíamos amor, você costumava ficar
na cama comigo e conversar. Ultimamente, você... bem, pula da cama quase antes
de acabar.
— Preciso voltar para a fazenda.
— Claro. — Não acreditava nele.
— Que merda! Se não está gostando... — Brig fez meia-volta, e sua fúria
desapareceu ante o ar meigo de perdão do rosto dela. Fechou a boca, um músculo
saltando no seu maxilar ao conter a frustração que o fazia explodir com quem
estivesse por perto.
— Nunca disse isso, Brig — murmurou Trudie. — Mas é que nos conhecemos
há muito tempo. Não pensei que precisássemos mentir um para o outro. Existe
outra pessoa. Sabe que não faz diferença para mim.
— Tem uma imaginação fértil. — Sua boca sorria, mas seus olhos estavam
frios. Ia arrancar aquela sacana da sua vida, nem que fosse a última coisa que
fizesse. — Tenho que ir embora — declarou, pegando o chapéu que deixara sobre
a cômoda. — Cuide-se, Trudie. — Inclinou-se e beijou-a.
A meio caminho da porta da frente, descobriu que estava esfregando a boca
com a mão para tirar o gosto dos lábios dela. Não conseguira nada, parando ali.
Abrindo com um puxão a porta de tela, afastou-a do caminho e deixou que batesse
com força ao sair.
Suas passadas longas e rápidas ficaram mais lentas quando viu Jake Phelps
se aproximando pela calçada. Jake era dono de uma fazenda perto da divisa com
Montana. Aos cinqüenta anos, nunca se casara, um caminho que Brig parecia
querer tomar. Era um homem baixo, com barriga de chope e rosto bexiguento. O
chapéu branco e imaculado que usava escondia sua calvície. Brig correu os olhos
pelo terno western e a gravata de laço. As faces flácidas tinham sido tão
escanhoadas que estavam quase em carne viva. Brig podia sentir o cheiro forte da
loção de barbear a um metro de distância. O rosto de Jake ficou vermelho, ante o
exame de Brig.
— O que o traz aqui, McCord? — vociferou.
O fazendeiro estava todo enfatiotado para ir namorar. As únicas coisas que
faltavam eram um buquê de flores nas mãos e uma caixa de chocolates debaixo do
braço. Brig lançou um olhar à casa e deu um sorriso cínico.
— A mesma coisa que o trouxe aqui, Jake — replicou.
O homem começou a inchar como uma grande rã.
— Não gosto desse tipo de referências a...
— Poupe seu fôlego, Jake — interrompeu Brig. — Não vou voltar.
— O que quer dizer? — perguntou o fazendeiro, desconfiado e franzindo a
testa.
— Trudie é uma boa moça. Merece alguém que a trate decentemente. — E
não que a usem como saco de pancadas para as próprias frustrações, pensou
consigo mesmo.
Brig deixou boquiaberto o homem baixo, de pé na calçada rachada e partida.
Não olhou para trás enquanto subia ao volante do furgão e dava marcha à ré para
pegar a rua.
A imagem da mulher de cabelos avermelhados e olhos com pontinhos verdes
ficava dançando na sua cabeça. Sua lembrança estava virando obsessão. Sonhava
com ela à noite e acordava sofrendo. Cavalgava por um prado da montanha e
sentia o cheiro torturante dela no meio de um canteiro de flores silvestres. Olhando
para um pôr-do-sol, ficava lembrando do modo como seu cabelo castanho pegava
fogo na luz.
— Jordanna — falou Brig, em voz alta, e teve vontade de arrancar fora a
língua. Xingou ferozmente a lembrança que destruíra sua paz de espírito. Afastara-
se de Trudie sem uma pontadinha de pesar. Por que não podia afastar-se da
lembrança de uma noite ocorrida dois meses antes.
Mas a lembrança vivia com ele. Podia ouvir a voz da moça e sentir sua pele
macia de alabastro. Podia sentir o gosto da sua boca e o cheiro doce e selvagem
da sua pele. Principalmente, podia ver as linhas suaves e orgulhosas do seu corpo
deitado naquele tapete de pele de urso.
Brig pisou fundo no acelerador e o furgão disparou para a frente, mas não
conseguiu distanciar-se das visões de sua mente.

Parte dois
A caçada

Capítulo VIII

— Não passamos daqui — anunciou Tandy Barnes, apertando o freio e


desligando o motor. — Chegamos.
Jordanna moveu-se com dificuldade, toda doída da viagem aos solavancos
pela estrada de terra batida. Olhou pelas janelas do caminhão alto de tração nas
quatro rodas, mas não enxergava sinal de um só prédio. A maior parte do dia
anterior fora passada voando, entrando e saindo de aeroportos, mudando de
aviões, e finalmente chegando a Idaho. O motorista baixo e atarracado recebera-os
no aeroporto e levara-os a um hotel para passarem a noite, avisando que a viagem
até a fazenda só devia ser feita durante as horas do dia. Depois de viajar por aquela
estrada, Jordanna podia entender por quê. Teria sido suicídio, no escuro.
— Chegamos aonde? Não estou vendo a fazenda. — Mal terminou a frase,
Jordanna se deu conta de que cometera um erro. O motorista lançava-lhe um olhar
de quem esperasse que uma mulher fosse reclamar.
— Fica do outro lado do rio. Temos que fazer a pé o resto do caminho. Há só
uma ponte para carga de um lado ao outro — explicou, com a paciência de um
homem que sabia que uma mulher desaprovaria condições tão primitivas. — Como
já lhe disse, estamos bem isolados aqui. Somos uma fazenda de trabalho, portanto
não esperem acomodações de luxo.
— Creio que já mencionou isso antes, sr. Barnes. — Jordanna deu um sorriso
seco, irritada com a atitude condescendente dele.
Desde que saltara do avião com o pai, o irmão e Max Sanger, e esse vaqueiro
atarracado e de pernas curtas adiantara-se para recebê-los, estivera sujeita a todo
tipo de advertências sobre a dureza que ia ser. Embora Tandy não o dissesse
abertamente, sua opinião era evidente: uma mulher não tinha nada que fazer parte
de um grupo de caçada.
Na verdade, provavelmente não tinha dado a melhor das impressões. Usava
um costume de viagem ocre que parecia saído das páginas da Vogue, e era
mesmo, mas era a roupa de viagem mais confortável que possuía. Ele dera só uma
olhada aos finos saltos marrons dos seus sapatos, ao broche de pedras no lenço de
pescoço, aos brincos que lhe pendiam das orelhas, sem contar o costume de
viagem, e rotulou-a de mulher tola. Jordanna não conseguira mudar sua opinião.
Tinha a sensação de que ele a encararia de modo mais favorável se tivesse
chegado de jeans e suéter largo, e sem maquilagem.
Abrindo a porta, a jovem saltou com leveza para o chão. Agora vestia calças
compridas, um suéter grosso por cima da blusa e confortáveis sapatos baixos, mas
Tandy Barnes continuava a lançar-lhe desaprovadores olhares de esguelha.
Jordanna estava acostumada a esse ceticismo. Acabaria por vencê-lo. Seu pai
costumava implicar com ela, dizendo que não teria nenhum problema, se fosse
magricela e feia.
Mas os homens, especialmente os machões que viviam ao ar livre, não
esperavam que moças jovens e belas gostassem do tipo de vida que eles levavam.
Mulheres assim deviam interessar-se por moda e jóias, e jantares à luz de velas, ao
invés de fogueiras de acampamento, comida simples, insetos e roupas de baixo
grosseiras. Sempre que parecia que ela estava curtindo o desconforto, eles riam e
diziam que estava sendo "boa-praça" em relação à situação. Havia vezes em que
era impossível ganhar, e Jordanna aprendera a parar de tentar derrubar os
preconceitos deles e a ignorá-los, para poder divertir-se.
O som de água corrente fez com que ela virasse os olhos para o rio que
brotava no terreno rochoso, para além dos pinheiros. Uma gasta trilha de pedra e
terra batida serpenteava pelas árvores, na direção da água reluzente visível por
entre os galhos. Era a bifurcação do rio Salmon. As correntezas muito brancas,
alternando-se com pegos fundos, haviam aberto uma garganta no terreno rochoso.
Do outro lado da garganta, erguiam-se montanhas. As formas cônicas dos
pinheiros pontilhavam-lhe as encostas. Mas Jordanna não conseguia ver sinal das
casas da fazenda, que Tandy Barnes garantia estarem do outro lado. Picos
irregulares formavam pontas denteadas no horizonte, agrestes e coroadas de neve.
— Que lindo lugar! — Christopher estava parado ao lado dela, as mãos nos
quadris, a cabeça escura inclinada para trás para ver os topos das montanhas.
— Lindo — concordou ela, e virou-se para acompanhar o olhar dele para o
leste.
Nuas montanhas de granito espetavam o céu com uma infinidade de pontas
rochosas e arestas salientes. Os picos assustadores agigantavam-se acima deles
com uma imponência acidentada, majestosos e assombrosos. Um gavião-pescador
flutuava nas correntes de ar das montanhas, acompanhando o rio sinuoso.
— Aqueles são os penhascos Bighorn — disse Jordanna, que se orientara por
um mapa da área e identificara os acidentes geográficos.
— É para lá que vamos? — O rapaz examinou o terreno agreste com ar
apreensivo.
— Não. Pelo que sei, caçaremos a oeste do rio — respondeu a irmã. — Na
área primitiva de Idaho, onde não se permitem veículos motorizados, salvo se
pertencerem aos fazendeiros que residem na área.
— Não consigo me imaginar morando aqui. — O irmão sacudiu a cabeça à
idéia. — É muito solitário.
Solitário? — Jordanna olhou de novo à sua volta. Não era a palavra que usaria
para descrevê-lo. Isolado, sim. Poucas pessoas iriam dar uma passadinha por lá
para fazer uma visita ou tomar um cafezinho. Mas ela se lembrava de vezes em que
se sentira o mais solitária possível, e estava cercada de gente. A solidão era um
estado de espírito, não um lugar.
— É preciso pertencer a uma raça especial para morar aqui e não ficar louco
varrido — disse ele, com um sorriso torto, dando as costas à paisagem.
— Você pode ter razão.
— Vou lhe dizer uma coisa — falou Christopher: — comparado àquelas
montanhas — fez um gesto para trás, para os penhascos Bighorn —, o outro lado
parece inofensivo.
— Não se engane, Kit — advertiu Jordanna. — É agreste. Um dia naquele
terreno, e você vai descobrir músculos que nem sabia que tinha.
— Já esteve aqui antes? — indagou, aparentemente surpreso com os
conhecimentos dela.
— Aqui, não. Mas papai e eu já caçamos nas montanhas Rochosas
canadenses, atrás dos carneiros stones, e no Alasca, atrás dos dalls. Pode ser um
terreno bem exigente, que tira toda a força que temos e nos força a buscar reservas
lá no fundo. É espantoso; porém, quando se pensa que não se pode dar nem mais
um passo, a gente se pega forçando a barra para mais um ou dois quilômetros. Já
foi dito que, se achatássemos todas as montanhas de Idaho, teríamos um Estado
maior do que o Texas. — E abriu um amplo sorriso.
— Dá para se acreditar — falou o irmão, rindo.
— Chega de ficar bancando o turista — chamou o pai. — Venham dar-nos
uma mão.
O equipamento deles estava sendo descarregado da parte traseira do veículo
fora-de-estrada. O pai e Tandy Barnes faziam todo o serviço, enquanto Max Sanger
ficava um pouco afastado, supervisionando. Jordanna lançou um olhar ao homem
esbelto, surpresa de que não estivesse falando sobre sua companhia. Era só o que
tinha feito, desde que tinham saído de Nova York.
— Será que Max espera que carreguemos as coisas dele? — murmurou para
o irmão. Seus olhos fixaram-se no homem, depois imediatamente se desviaram
para o pai. — Gostaria que papai comprasse as ações dele, ou seja lá o que está
tentando vender-lhe. Quem sabe assim mudaria de idéia sobre a viagem.
— É o que também fico desejando — concordou Christopher, com uma
expressão estranhamente sóbria.
— Tome. — O pai estendeu para ela a bainha do seu fuzil, o couro muito bem
trabalhado deixando ver os sinais do uso. Protegera o fuzil em muitas viagens de
caça.
Jordanna tirou-a da mão dele e jogou-a às costas. Os seus alforjes pessoais
estavam jogados sobre o ombro, juntamente com os estojos do binóculo e do
instrumento de reconhecimento. As mochilas foram descarregadas e separadas,
para serem entregues a seus donos. Quando Jordanna estendeu a mão para a
dela, Tandy agarrou-a primeiro.
— Pode deixar que eu a levo — ofereceu, com cavalheirismo.
Numa das mãos, ela já carregava uma pequena mala de roupas que não ia
levar para as montanhas. Era óbvio que ele achava que não se podia esperar que
carregasse mais nada.
— Carrego meu próprio equipamento, sr. Barnes. Obrigada. — Havia
determinação no sorriso dela, quando estendeu a mão e pegou a mochila que ele
segurava.
Max não estivera fazendo grande força para pegar as coisas dele, mas
quando viu Jordanna recusar a ajuda do vaqueiro, adiantou-se para fazer o mesmo.
Jordanna notou, e seus lábios se curvaram num sorriso seco de divertimento.
Tandy Barnes continuou a fitá-la com ar hesitante, como se esperasse que ela
fosse desabar sob aquele peso a qualquer minuto. O pai ergueu os olhos do
material que estava separando e notou a hesitação do vaqueiro. Olhou para
Jordanna e depois de novo para o homem.
— Não se preocupe, Tandy — disse, já chamando pelo primeiro nome o
homem que cuidaria dos animais da expedição. — Ela é mais dura do que parece.
— Pode ser. — Enquanto coçava a parte de trás da cabeça, o chapéu caiu
para a frente, deixando ver um círculo calvo nos cabelos escuros. Tandy Barnes
dissera a Christopher que tinha quarenta e seis anos, mas Jordanna desconfiava de
que ele suprimira seis anos do total. O corpo arredondado e atarracado parecia ter
a aptidão física do de um homem com metade de sua idade. Ele voltou a ajeitar o
chapéu na cabeça e puxou a frente da aba bem para baixo. Olhando para a traseira
do veículo, anunciou: — Parece que é tudo. — Havia apenas mais dois volumes
para serem carregados, e ele os apanhou. — Vocês não viajam com muita coisa.
Era um elogio, que admitia a experiência deles em preparar equipamento para
as montanhas, aonde só se levava o essencial. Jordanna e o pai trocaram olhares.
O processo de avaliação era sempre o mesmo entre o caçador e o fornecedor do
material.
Seguindo na frente, Tandy Barnes começou a descer a trilha que levava ao
rio, e eles o acompanharam em fila indiana, com Fletcher Smith fechando a
retaguarda, atrás de Max. A ponte para carga que cruzava o rio era forte, embora
sua estreiteza lhe desse uma aparência enganadoramente frágil. Rio acima, a água
escorria sobre pedregulhos e rochas pontiagudas. As paredes íngremes de granito
da garganta ecoavam o rugido da água branca. Abaixo da ponte, o rio corria mais
lento para formar redemoinhos turbulentos, antes de desaguar num pego profundo
e plácido, onde as margens se alargavam rio abaixo. Ali, um banco de areia branca
projetava-se para dentro d'água para formar uma praia curta e larga.
— Detestaria cair desta ponte — comentou Max, atrás de Jordanna.
Ela olhou por cima do ombro. Ele parara para olhar as águas lá embaixo. Ela
sabia como aqueles redemoinhos podiam ser hipnóticos, e conhecia a sensação
esquisita que davam de puxar para baixo uma pessoa.
— Tem certeza de que pode agüentar com todos nós ao mesmo tempo?
— Tenho — disse o pai, cutucando o ombro de Max com a mochila.
Christopher se detivera, ao escutar a conversa.
— Tudo bem aí atrás? — falou.
— Tudo. Já vamos — respondeu Fletcher, enquanto Max se adiantava
cautelosamente.
Tandy esperou do outro lado até que todos tivessem cruzado a ponte.
Jordanna parou ao lado dele para olhar rio abaixo.
— A bifurcação é protegida pela Lei dos Rios Agrestes e Pitorescos, não é? —
Ante o sinal afirmativo dele, perguntou: — O rio Salmon fica ao norte daqui, não é?
— É para o norte e para o leste que flui a correnteza.
— Por que é chamado de "rio sem volta"? — indagou o irmão dela, uma ruga
distraída vincando-lhe a testa.
— Porque era tão violento e selvagem que só havia um jeito de percorrê-lo...
rio abaixo. Claro que agora existem barcos possantes que fazem a viagem de volta
— explicou Tandy.
Fletcher reuniu-se ao semicírculo.
— Lewis e Clark tentaram navegá-lo e voltaram. Deram-lhe o nome de rio
Lewis. Os índios o chamaram de Água do Peixe Grande por causa dos salmões que
nadavam rio acima para desovar.
— Pegamos salmões aqui durante o período de desova. Há uma escada para
pesca rio acima, perto das quedas Dagger — informou Tandy. Também há trutas
arco-íris, trutas Dolly Varden e outras no rio. Frank pescou uma bela batelada de
salmão chinook na outra semana. Se estivermos com sorte, Jocko irá cozinhá-los
para o jantar de hoje.
— A bifurcação é um grande local de desova de salmões, não é? —perguntou
o pai.
— É. Se quiser dar sua pescadinha logo mais à tarde, ali é um bom lugar —
disse Tandy, apontando para o banco de areia.
— Talvez eu o faça.
— Vamos levar o equipamento para a casa, para vocês poderem se instalar.
— O vaqueiro mudou a mala que carregava de posição. Seu olhar passou
ligeiramente por Jordanna antes de ele seguir caminho.
A trilha era mais larga, daquele lado do rio. Dava a volta num pedregulho de
granito sólido, que se erguia a seis metros acima deles. Tiveram o primeiro
vislumbre da fazenda quando contornaram a pedra. Um prado amplo se abria à
frente deles, cheio de tufos de grama marrom. Uma plantação de choupos-brancos
brilhava como ouro por causa de uma geada de outono. Seu tronco claro
contrastava com o verde mais escuro dos pinheiros nas encostas distantes das
montanhas.
Espalhada pelo pasto ondulante, via-se uma manada de gado hereford. Um
pouco mais adiante, Jordanna viu um rebanho de ovelhas e ouviu os seus balidos,
abafados pelo ruído arrastado dos próprios passos. O ar era puro e límpido,
levemente perfumado de pinho e feno. Mais além, as montanhas agrestes
encaixavam-se na cena pastoral.
Desviando o olhar, Jordanna enxergou as casas da fazenda no começo do
prado. Um estábulo de toros agigantava-se, cercado por um curral onde havia mais
de uma dúzia de cavalos. Montes altos de feno estavam guardados em cercados
feitos com as mesmas estacas de madeira do curral. Eram as rações de inverno
para os animais, quando a neve estivesse alta. Jordanna reconheceu uma
construção menor, de toros, como sendo o defumadouro.
A casa principal estava aninhada perto das rochas de granito que formavam a
garganta na beira do rio. Também ela era feita de toros, um prédio compacto de
dois andares. A varanda da frente era de toros toscos, em diversos tamanhos para
os postes, grades e vigas.
As botas de Tandy faziam barulho nos degraus e no piso da varanda,
enquanto ele caminhava para a porta da frente. Segurou a porta para que todos
passassem. Jordanna entrou numa pequena sala de estar dominada por um
aquecedor a lenha, preto. Uma escada subia para um buraco no teto, levando ao
segundo andar.
Havia um sofá e duas poltronas gastas. Uma escrivaninha encostava-se a
uma das paredes, com o tampo abarrotado de papéis, e havia uma cadeira tosca
diante dela. Não havia quadros nas paredes. A única decoração era o couro curtido
de um urso negro, pendurado numa parede. Havia uma prateleira de livros e uma
mesa de jogo e cadeiras. Um baralho gasto jazia na mesa, aberto num jogo de
paciência que o jogador perdera e deixara ali.
— Podem largar sua tralha por aí, em qualquer canto. — Tandy seguiu
Fletcher, e foi o último a entrar em casa.
— É melhor levarmos logo as coisas para os quartos — disse Fletcher.
— Bem... — Tandy hesitou e olhou para Jordanna. — Não sei exatamente
como Brig vai acertar isso. É melhor esperarem até ele chegar.
— Onde está McCord? — perguntou Fletcher, olhando ao seu redor.
— Pensei que Brig estivesse aqui — acrescentou Max.
— Não vai demorar — prometeu Tandy. — Há sempre café no fogão. Alguém
quer uma xícara?
Christopher foi o único que recusou. Tandy foi até uma porta semi-escondida
atrás da escada e desapareceu por ela.
Quando tinham acabado de empilhar o seu equipamento perto da porta da
frente, ele já estava de volta, carregando três canecas diferentes, fumegando de
café quente. Outro homem o acompanhava. O segundo homem era da mesma
altura de Tandy, mas sua constituição franzina dava a impressão de que era menor.
Sem chapéu, deixava ver o cabelo grosso e escuro que já ficava grisalho. Embora
sua tez morena desse às feições magras um ar exótico, seus olhos escuros eram
de uma meiguice imensa. Numa das mãos segurava uma caneca de café; na outra,
um prato de rosquinhas.
— Este é Jocko Morales. — Tandy apresentou o homem. — É o melhor
cozinheiro destas bandas, quando a gente consegue arrastá-lo de junto de suas
ovelhas.
Era um pastor. De alguma forma, Jordanna sentia que aquilo explicava a
meiguice que notara no seu rosto.
— Buenos dias. — O cumprimento cadenciado, em espanhol, era dirigido a
todos eles. — Bem-vindos. — O cumprimento em inglês tinha apenas um vestígio
de sotaque.
Enquanto Tandy distribuía as canecas de café para os outros, o pastor dirigiu-
se para Jordanna para dar-lhe a caneca que carregava e oferecer-lhe uma
rosquinha. Ela podia ver que ele não era jovem, mas os anos lhe caíam bem.
— Obrigada, señor Morales — falou, aceitando uma rosquinha.
— Por favor. É Jocko — corrigiu ele, gentilmente.
— Obrigada, Jocko. — Jordanna sorriu. Era tão fácil sorrir quando se estava
olhando dentro de olhos escuros, tão meigos! Também era fácil fazer-lhe perguntas
sem sentir que pudessem considerá-la bisbilhoteira. — Você é do México?
— Minha família é da Espanha. Sou basco. — Falava com orgulho. Com um
sorriso e um aceno de cabeça, virou-se para oferecer o prato de rosquinhas ao pai
dela.
— Alguém vai querer açúcar ou leite no café? — indagou Tandy.
— Açúcar — pediu Max.
Mordendo a rosquinha leve e úmida, Jordanna olhou para o pai. A expressão
dele era um espelho da sua. Se a rosquinha era uma amostra das habilidades de
Jocko, ia ser um excelente cozinheiro para a viagem. Um bom cozinheiro era um
ingrediente vital numa caçada.
Do lado de fora chegou o ruído de cascos de cavalos. Comendo sua
rosquinha, Jordanna caminhou até a janela da frente, uma das poucas na casa de
toros. Dois cavaleiros se aproximavam a meio galope. Um deles era um
homenzarrão corpulento. Havia algo de agressivo na maneira como montava o
cavalo baio, como se esperasse que as pessoas saíssem do seu caminho.
Jordanna desconfiava que ele era metido a valentão, e ficou imaginando se seria o
fazendeiro McCord.
Lambeu o açúcar dos dedos e deu uma olhada no segundo cavaleiro, montado
num grande cavalo amarelado. Descontraído, quase curvado sobre a sela, parecia
ser uma extensão do animal. A largura dos seus ombros era acentuada pelo colete
preto, forrado, que usava sobre uma desbotada camisa xadrez. Quando virou a
cabeça para dizer algo para o outro cavaleiro, suas feições másculas, que tinham
estado sombreadas pela aba larga do chapéu, ficaram expostas.
O estômago dela deu uma cambalhota. Não podia ser! Jordanna ficou
olhando, incrédula, certa de que seus olhos a estavam enganando. Era apenas o
bigode que fazia com que ele se parecesse com o homem da festa, insistia sua
mente em choque. Era um engano que já cometera antes. Além disso, o que ele
estaria fazendo ali?
Os cavaleiros frearam os animais diante da varanda. O grandão montado no
baio permaneceu na sela. Jordanna viu o segundo homem desmontar com uma
graça de lobo que apagou sua última dúvida. Sentiu-se estraçalhada, exposta, em
carne viva e enraizada no chão, ao vê-lo. O homem passou as rédeas da sua
montaria ao outro cavaleiro, que começou imediatamente a dirigir-se para o celeiro,
enquanto o homem de bigode subia os degraus da varanda.

— Cuide do meu cavalo — disse Brig, jogando as rédeas para Frank.


— Diga a Jocko que não deixe aqueles grã-finos comerem todas as
rosquinhas. Estou com a boca cheia d'água por causa delas o dia todo. — Puxando
o cavalo amarelo, o grandão esporeou seu cavalo e saiu trotando para o celeiro.
O olhar de Brig subiu para o telhado da casa de dois andares, enquanto
passadas longas e sem pressa o levavam até a varanda. Grã-finos. Brig esperava
que estivessem preparados para acomodações apertadas naquela noite. Um
barracão para servir de alojamento parecera uma construção desnecessária. Frank,
Tandy e Jocko, quando este estava na fazenda, partilhavam da casa de Brig.
Usavam os dois quartos do andar de cima, enquanto o dele ficava no térreo.
Naquela noite dormiriam no chão da sala, para que Fletcher Smith e seu grupo
pudessem ocupar os quartos. Frank reclamara disso um bocado.
As esporas dele tiniam enquanto as botas batiam nos degraus da escada. Um
ar sombrio toldou-lhe as feições ao estender a mão para abrir a porta. Não podia
mais adiar o encontro com Fletcher Smith. Brig lutou contra a irritabilidade que o
roía e entrou na casa.
Correu o olhar por Jocko e Tandy e fitou o homem grisalho a pouca distância.
Brig forçou um sorriso tenso na boca e tirou uma das luvas de couro para apertar a
mão do caçador.
— Alô, Fletcher. Desculpe não ter podido ir recebê-los. Tandy cuidou de vocês
direitinho, espero. — Sentiu o aperto de mão forte do homem mais velho.
— Muito bem. Explicou que o trabalho aqui na fazenda impediu-o de ir nos
receber — falou Fletcher.
— Alô, Brig.
Desviou o olhar para o primo parado junto à porta.
— Max. — Fez um gesto breve de cabeça, para acusar a presença do primo, e
notou os equipamentos empilhados ao lado dele. — Tandy, ajude-os a levar as
coisas lá para cima — falou Brig, virando-se para o vaqueiro atarracado, enquanto
dava a ordem.
Uma expressão de incerteza perpassou pela fisionomia de Tandy. Lançou um
olhar constrangido a Brig.
— Não sabia exatamente como você ia ajeitar as coisas, por isso achei melhor
esperar até você chegar para mostrar-lhes onde vão dormir esta noite.
Irritado, Brig abafou o impulso de dar-lhe uma resposta impaciente. Deixara
bem claro como seriam as acomodações para dormir. Os caçadores dormiriam dois
a dois nos quartos de cima. Mas não estava disposto a admoestar Tandy na frente
de Fletcher. Quando estivessem sozinhos, ia dar-lhe uma bronca.
Ao se voltar para Fletcher, seu olhar descreveu um arco que abrangia todos os
membros da expedição de caça. Quando alcançou o rapaz alto, de cabelos negros
e olhos escuros, hesitou, num reconhecimento surpreso. Um rápido pensamento lhe
sugeriu que ele talvez fosse o motivo da incerteza de Tandy quanto às
acomodações para dormir.
Com o canto dos olhos percebeu um vislumbre de vermelho. A luz do sol que
entrava pela janela tocara fogo nos cabelos castanhos da mulher ali parada. Ao vê-
la, ele se sentiu como se tivesse levado um soco forte no estômago. Por um
segundo, Brig não pôde mover-se, respirar ou pensar.
O desejo ardeu nas suas veias, queimando-o num calor incandescente. Não
era uma miragem. Jordanna estava mesmo ali, em carne e osso... a sua carne linda
e macia de alabastro. A expressão dos seus olhos cor de avelã, salpicados de
verde, dizia que ela também o reconhecera, e se lembrara. Queria gemer de alívio
doído por ela estar finalmente ali para acabar com sua obsessão torturada. Sua
fome era tão grande que teve vontade de arrancar-lhe as roupas do corpo e possuí-
la ali mesmo, depois carregá-la para o quarto dele e não sair por uma semana.
Mesmo assim, não tinha certeza se seria o suficiente.
Antes de poder obedecer ao impulso, alguém se mexeu e tornou Brig
consciente da presença dos outros na sala. Então aquilo o atingiu, o porquê de ela
estar ali e quem a havia trazido. As chamas quentes que o incendiavam viraram
fúria. Virou a cabeça bruscamente para Fletcher, numa acusação selvagem.
— O que ela está fazendo aqui?
O homem estava pedindo demais dele. A idéia de tê-la sob o mesmo teto e
dormindo nos braços de outro homem era mais do que Brig podia tolerar.
Espantado com a violência da pergunta, Fletcher olhou para ele, confuso, de testa
franzida.
— Quem? Jordanna?
— É! Jordanna. — As palavras saíram à força, por entre os dentes cerrados.
Jamais na vida tivera realmente vontade de matar um homem, mas agora Brig
ansiava por agarrar o pescoço de Fletcher e estrangulá-lo com as mãos nuas.
Afastou-se antes que o desejo de matar o dominasse. — A caçada está cancelada.
— Como? — A voz de Fletcher denotava confusão. — Do que está falando,
McCord? Fizemos um trato.
Abalada pela descoberta de que o estranho era Brig McCord, o fazendeiro que
ia servir de guia para a viagem de caça deles, Jordanna podia apenas fitá-lo. Ele se
lembrava dela. Vira isso nos seus olhos, quando a notara pela primeira vez. Agora,
ele parecia insensível feito uma pedra, duro e frio.
— Não havia nada no trato sobre mulher alguma! — Seu olhar feroz voou para
Tandy Barnes. — Por que a trouxe?
— O que mais poderia fazer? — defendeu-se Tandy. — Você nunca
mencionou nenhuma mulher, mas como eu podia adivinhar que você não sabia que
ela vinha?
— McCord, lamento se esqueci de mencionar Jordanna — Fletcher se
desculpou, com um dar de ombros desalentado. — Não foi intencional, Jordanna
sempre vem caçar comigo.
— Problema seu — retrucou Brig, lançando um olhar raivoso para a moça. —
Não fiz planos para acomodar uma mulher. Não temos instalações. A caçada está
cancelada.
— Mas fizemos uma viagem muito longa — protestou Fletcher. — É tarde
demais para eu tentar conseguir outra pessoa.
— Devia ter pensado nisso antes. Receberá seu dinheiro de volta. Tandy,
Jocko. — Virou-se para os dois empregados apalermados. — Ajudem...
— Isso é uma bobagem! — interrompeu Fletcher, numa explosão de
impaciência. — Só porque Jordanna é mulher isso não quer dizer que requeira
acomodações especiais. Está preparada para enfrentar a dureza junto com o resto
de nós. Sempre o fez.
— Estou me lixando para o que fez ou onde caçou com você no passado! —
Brig girou sobre si mesmo e apontou um dedo ameaçador para o pai da moça. —
Não vou levar nenhuma mulher no que se supõe seja uma caçada. Agora, se quiser
mandá-la de volta a Nova York, tudo bem.
— Não! — Jordanna achou a própria voz. — Ninguém vai me mandar de volta
a Nova York.
Frios olhos castanhos enfrentaram o olhar de desafio da moça.
— Você vai... ou sozinha ou com o resto. Mas não a quero aqui.
A declaração seca de rejeição deixou-a gelada. Era impossível que aquele
fosse o mesmo homem que havia feito com que se sentisse tão quente e tão bem
por dentro, quando fizera amor com ela. Quem sabe ela não se sentira assim, na
verdade! Quem sabe fora tudo uma ilusão!
— McCord, você concordou em levar uma expedição de caça às montanhas,
atrás de carneiros monteses — lembrou Fletcher, formalmente.
— Uma expedição de caça? É esse o nome que dá a isto? — debochou Brig,
correndo os olhos desdenhosamente pela sala. — Só estou vendo um caçador. E já
não estou mais tão certo a seu respeito!
— Não tive nada a ver com a inclusão de Max — retrucou Fletcher. — Ele
mesmo se convidou. Quanto a meu filho, Kit... concordo, não vai mesmo caçar.
— Seu filho?
Jordanna viu o pai empalidecer de raiva ante o olhar divertido e zombeteiro
que Brig McCord lançou na direção do irmão. A lealdade familiar fez com que
também ficasse abespinhada. Ele não tinha motivo para olhar Kit daquele jeito.
— Jordanna, por outro lado — continuou o pai, fingindo não ter notado o tom
de desprezo com que Brig se referira ao filho —, irá caçar. Disse-lhe em Nova York
que esta provavelmente será a minha última chance de conseguir um montês
tamanho troféu. Vou tê-la. Não vai voltar atrás no nosso acordo.
— Vamos pôr os pontos nos ii, Fletcher. Você pode considerar esse grupinho
uma expedição de caça séria, mas você e eu temos definições diferentes. Não a
considero séria, quando você traz uma mulher junto, para seu próprio prazer.
Jordanna abriu e fechou a boca, num choque mudo. Ele não podia estar
falando a sério. Seu olhar voou para o pai.
— Ele pensa que sou sua amante! — exclamou ela, ofendida.
— O quê?! — Fletcher fitou Brig. — Meu Deus, Jordanna é minha filha!
— Que bela desculpa! — debochou gelidamente Brig. —Porém mais digna de
crédito do que se alegasse que era sua sobrinha.
— É verdade, Brig — aparteou Max. — Jordanna é filha de Fletcher. Não
sabia?
O apoio inesperado do primo à alegação do pai dela fez um lampejo de
incerteza perpassar pela expressão de Brig McCord. Jordanna foi sujeita a seu
escrutínio penetrante. Ela estava magoada e indignada de que ele pudesse
continuar a questionar sua identidade.
Estava se tornando evidente que ele acreditava que ela era a amante do pai
quando a encontrara no escritório, na festa. Mas por quê? Com clareza nítida,
lembrou-se do comentário dele sobre fechar o colchete do vestido dela, depois de
terem feito amor. Ele vira o pai fechá-lo, antes, e imaginara que o motivo fosse o
mesmo. O fato de ele não saber que Fletcher era pai dela não diminuiu o
sentimento de ultraje de Jordanna. Brig acreditara que ela fosse alguma piranha.
Divertira-se com ela, sem ligar para quem era e sequer se dando ao trabalho de
perguntar-lhe o nome. Furiosa com a descoberta, atravessou a sala e postou-se
diante dele. Seus olhos disparavam ardentes luzes verdes.
— Como ousa insultar-me desse jeito? — Sua voz era baixa e trêmula de
raiva. — Bastardo! — Esbofeteou-o com força, zangada demais para sentir a
dormência dolorosa na palma da mão.
Seu pulso foi agarrado pela mão de ferro dele, e ela se debateu para livrá-lo. A
marca branca no rosto bronzeado estava aos poucos ficando vermelha. Jordanna
só lamentava não ter batido com mais força. O olhar chamejante e sombrio dele
não a intimidou.
Um braço se meteu entre eles, quando o irmão se adiantou para separá-los.
— Solte-a, McCord — ordenou, numa voz calma.
A intervenção de Christopher incentivou Tandy Barnes a se adiantar e colocar
uma mão refreadora no ombro de Brig.
— Deixe para lá, Brig. — Falava com suavidade. — A moça não teve intenção.
Ele levantou uma sobrancelha com escárnio frio e arrogante.
— Acho que teve. — Brig soltou o pulso dela e se afastou.
— Espero que tenhamos acertado esse mal-entendido, McCord — declarou o
pai dela. — Lamento Jordanna ter perdido o controle desse jeito, mas... dadas as
circunstâncias, acho que foi desculpável.
— Pode ser que esteja certo — disse Brig, esfregando a face, sem estar
preparado para concordar completamente.
— Quanto a mim, não posso deixar de me sentir envaidecido por seu erro. —
Fletcher Smith deu um sorriso levemente irônico. — É lisonjeiro pensar que uma
mulher tão linda quanto minha filha pudesse estar interessada em mim.
— Pela quantia certa, há gente que consegue fingir interesse por qualquer
coisa — replicou.
— Por falar em quantia, espero que mude de ideia quanto à caçada, agora
que sabe quem Jordanna é. Nós dois estamos resolvidos a conseguir um carneiro
montês tamanho troféu.
— Ela é sua filha. — Brig inspirou fundo, como se não estivesse realmente
convencido de que era verdade.
— Quer que lhe mostre o meu passaporte? — desafiou Jordanna. — Será que
isso o convenceria? Ou quem sabe uma cópia da minha certidão de nascimento?
— Você leva as caçadas a sério? — falou ele, ignorando as perguntas
cáusticas dela.
— Jordanna não lhe mostrou os troféus dela na parede do escritório? — A
pergunta de Kit revelava que ele se lembrava de Brig como sendo o homem que
estivera no escritório do pai com a irmã, na noite da festa. — A maioria deles é de
papai, mas alguns são dela.
— Não, não mostrou — disse Brig, fitando-a com um olhar frio e duro.
Ela sempre achara que olhos castanhos fossem cálidos e luminosos, mas os
dele não o eram. Eram de um castanho de pedra, duros e insensíveis. Havia um ar
de secura neles, como uma rocha do deserto. Não era fácil suportar o escrutínio
deles, mas Jordanna não desviou o olhar.
— Sua preocupação de que não levamos as caçadas a sério é desnecessária
— declarou Fletcher. — Minha filha é tão dedicada ao esporte quanto eu.
Brig não tirou os olhos dela.
— Ela só vai causar problemas.
— Se eu não achasse que ela possui força e vigor para realizar esta caçada,
ela não estaria aqui. Nada vai atrapalhar o meu projeto de conseguir um carneiro
tamanho troféu, nem mesmo Jordanna. Ela aprendeu faz muito tempo que não
recebe nenhuma concessão por ser mulher. O sexo dela não lhe dá direito a
tratamento especial, nem a acomodações especiais.
— A caça não é um esporte restrito apenas aos homens. — A voz de
Jordanna era baixa e desafiadora. Na verdade, no mundo predador animal, é a
fêmea que realiza o grosso da caça. O leão africano, o chamado "rei dos animais",
caça muito pouco. É a leoa que mata para alimentar o orgulho dos leões.
A atmosfera estava carregada. Jordanna sentia o bombardeio invisível da
tensão ao longo dos seus terminais nervosos. Brig McCord continuou a fitá-la por
mais um segundo inteiro; depois, virou-se para os dois homens que trabalhavam
para ele.
— Levem o equipamento deles para os quartos lá de cima, exceto o da srta.
Smith. Ponham o dela no meu quarto. — A ordem foi dada numa voz baixa e
ressoante, que não toleraria discussões. A despeito de sua raiva, os sentidos dela
ficaram imediatamente excitados quando ouviu onde dormiria. Jordanna recebeu
um olhar breve e sardônico. A explicação que acrescentou era para os ouvidos
dela, embora a dirigisse a seus homens. — Vou dormir aqui no chão, junto com
vocês.
— Quer dizer que vai cumprir nosso trato? — Fletcher Smith insistia numa
resposta mais direta do que as implicações da ordem de Brig.
Este dirigia-se para a porta que conduzia à cozinha, e jogou por cima do
ombro sua resposta impaciente.
— Sim, vocês vão ter a sua maldita caçada.
Abriu a porta com um puxão e cruzou o vão, batendo-a atrás de si de uma
maneira que revelava a violência íntima das suas emoções.

Capítulo IX

Abalada pelo encontro com o homem que não esperava achar ali no longínquo
Idaho, Jordanna virou-se para o pai. Discutira com ele para que a caçada fosse
realizada conforme o planejado, mas a idéia de passar duas ou três semanas com
Brig McCord, dada a má opinião que tinha dela, era desanimadora demais. Quando
abriu a boca para objetar, o pai lançou-lhe um olhar severo e silenciador. Qualquer
discussão teria que ser realizada quando estivessem a sós, não com outras
pessoas prestando atenção. Jordanna ficou calada, tentando conter suas emoções
em tumulto. Caminhou com passos rígidos até os dois empregados, que estavam
separando o equipamento.
— Esses são meus — disse, identificando o que lhe pertencia.
Enquanto Jordanna apanhava a pequena mala, o pastor basco juntava o resto
de suas coisas.
— Vou lhe mostrar onde vai dormir, srta. Smith — disse o homem, com um
aceno simpático de cabeça.
O pai, o irmão e Max subiram as escadas atrás de Tandy, enquanto ela
atravessava a sala com Jocko, na direção da porta simples, de madeira, que dava
para um quarto de dormir. O interior monástico continha uma cômoda, uma cadeira
tosca, uma mesinha-de-cabeceira e uma cama coberta com pesado edredom. A
cama era mais larga do que uma de solteiro, mas não chegava a ser de casal. A
austeridade do quarto parecia combinar com o homem que dormia nele. Jordanna
se imaginara deitada ao lado dele tantas vezes, ultimamente, que não podia deixar
de ficar perturbada à idéia de dormir na sua cama. Era desconcertante descobrir
que pensar nas carícias dele ainda podia excitá-la, mesmo quando estava irritada
com sua atitude.
O pastor notou que ela estreitava os lábios e adivinhou o motivo.
— Precisa desculpar a grosseria de Brig, srta. Smith — disse Jocko, com seu
ligeiro sotaque. — Não temos muito contato com mulheres finas como a senhorita.
Talvez tenha se esquecido como se trata alguém como a senhorita.
— Duvido que ele aprove esse pedido de desculpas por seu comportamento,
Jocko — replicou Jordanna, torcendo o nariz. Ele ignorou a resposta dela, e
perguntou:
— Suas acomodações são satisfatórias?
— São. — Tinha que concordar. O pastor não entenderia as suas objeções à
escolha do alojamento.
— Se desejar alguma coisa, estarei na cozinha. — E, com um ligeiro aceno de
cabeça, dirigiu-se para a porta.
— Obrigada.
Depois que ele saiu do quarto, Jordanna continuou parada no mesmo lugar. A
masculinidade pura do aposento era avassaladora. Sentia os seus efeitos na
respiração ofegante e no coração disparado. Olhou para a cama em que podiam
dormir duas pessoas bem juntinhas, e girou sobre si mesma, perturbada, dando-lhe
as costas. Jordanna descobriu que estava esfregando o pulso onde ele pusera a
mão, a sensação ainda perdurando. Enfiou as unhas nas palmas das mãos para
lutar contra a dor aguda dentro de si.
Ouviu passos na escada e saiu do quarto, deparando com o pai, que descia
antes dos outros homens. Caminhou rapidamente até a base da escada para
recebê-lo. Os olhos cor de avelã, sombrios e perturbados, transmitiam uma
mensagem silenciosa de preocupação e apreensão.
— Quero falar com você, papai — pediu Jordanna, numa voz rouca e urgente.
Ele pareceu ficar momentaneamente impaciente ante o pedido dela, mas
parou ao pé da escada para perguntar a Tandy:
— Há algum lugar onde possamos testar nossos fuzis?
— Pode ser lá nos fundos.
— Vamos precisar de alvos. Servem pratos de papelão ou latas.
— Arranjarei alguma coisa — prometeu Tandy, dirigindo-se para a cozinha. —
Encontro-o lá fora, nos fundos da casa.
— Max, importa-se de voltar e pegar o meu fuzil? — disse Fletcher, olhando
para o homem de cabelos crespos que estava parado no segundo degrau.
— Absolutamente — assegurou Max, virando-se para subir as escadas.
— O que há, Jordanna? — Foi o irmão que fez a pergunta.
— Esta situação é intolerável. — Foi ao pai que ela dirigiu a resposta. Sabe o
que é viver dia após dia numa expedição, papai, e como dá nos nervos um
desentendimento entre companheiros de caçada. A atitude do... fazendeiro para
comigo vai tornar a coisa impossível para todos nós. — Manteve a voz baixa, para
que não chegasse até os outros aposentos.
— Está exagerando — insistiu Fletcher com um sorriso indulgente que se
recusava a levá-la a sério. — Ele cometeu um erro quanto ao nosso
relacionamento... — Encolheu os ombros, mostrando sua indiferença pelo caso. —
Não há necessidade de você tomar isso como um insulto pessoal. Onde está o seu
senso de humor, Jordanna?
— Tenho que achar graça e deixar para lá, é isso? — Estava com raiva,
porque tinha lembranças que não podia esquecer com uma risada.
— Sem dúvida aliviaria a tensão por aqui, se você fingisse que foi uma
brincadeira — argumentou Fletcher.
— Não posso forçar minha imaginação a tanto. — A réplica saiu dos seus
lábios trêmulos, o tumulto interno vindo à tona com as palavras.
— O que aconteceu naquela noite, na festa? — indagou Christopher, franzindo
a testa. — Ele lhe passou uma cantada?
— Pode-se dizer que sim — admitiu Jordanna, com uma risada amargamente
suave. Virou-se para o pai, para acusar: — Se você tivesse mencionado que Brig
estava na festa... se eu tivesse suspeitado quem ele era, antes de chegarmos
aqui...
Jordanna se interrompeu. Não teria feito nenhuma diferença. Pelo contrário,
teria ficado ainda mais ansiosa por rever o homem que lhe causara uma impressão
tão profunda. Agora, frente à má opinião que ele tinha a seu respeito, a moça sentia
apenas vontade de fugir.
— Se McCord lhe passou uma cantada na última vez que se viram, é óbvio
que a achou atraente. — O pai não via por que isso deveria aumentar a dificuldade
da situação atual. — O mais provável é que ainda ache. Em vez de estourar e
tornar a situação pior, deveria usar um pouco o seu encanto, Jordanna. Ele
concordou em levá-la na caçada. Agora, faça com que ele a aprecie. — Fletcher
parou e murmurou distraidamente com seus botões. — Na verdade, isso podia
tornar tudo muito fácil.
— Fácil?!
Pareceu espantado por ter pensado em voz alta, mas apressou-se em
defender-se.
— É, fácil. Como você ressaltou, a caçada poderia tornar-se
desconfortavelmente tensa, se ele continuasse ressentido com sua presença.
Agitada, Jordanna deu as costas ao pai.
— Vamos cancelar a viagem. Ainda podemos encontrar outro fornecedor e um
guia de confiança para nos levar, pagando o bastante. Ou podemos ir numa outra
vez.
— Não. — A negativa rápida e decisiva foi seguida imediatamente por uma
mão agarrando o braço dela. Jordanna raramente vira o pai zangado, mas agora
ele estava. Tinha as narinas dilatadas e a boca apertada numa linha fina. — Iremos
agora! E com McCord! Jamais vou conseguir outro arranjo como este! Jamais
poderia ajeitar tudo tão perfeitamente, de novo!
— Como assim, "arranjo"? — quis saber Christopher. — Do que está falando,
papai?
Ele levantou a cabeça bruscamente e deparou com os olhos escuros e
penetrantes do filho, como se houvesse esquecido de que Kit estava ali.
Imediatamente, Fletcher soltou o braço de Jordanna, e as linhas duras da raiva
desapareceram de sua expressão. Jordanna ficou intrigada com a mudança rápida
de humor, que fazia lembrar um camaleão utilizando-se do colorido protetor para se
ocultar do inimigo.
— Quero dizer que jamais terei uma chance melhor para conseguir o meu
carneiro tamanho troféu. McCord está sendo meu guia exclusivo, levando-me para
uma área em que houve poucas caçadas, que conhece profundamente. O fato de
não ser um guia profissional está a meu favor, desta feita. Não vai ficar segurando
nenhum carneiro com chifres tamanho troféu para nenhum cliente preferido.
Jordanna olhou para o irmão, que parecia retraído e contemplativo. Teve a
sensação de estar sendo deixada de fora de alguma coisa importante, mas não
sabia por que tinha tal impressão.
— Mas você não ficou tão perturbado quando Brig quis cancelar a caçada —
lembrou ela, usando o nome de batismo do fazendeiro com toda a naturalidade.
— Ele falou aquilo por falar. Eu sabia que, quando se acalmasse, voltaria
atrás, quer você fosse minha filha ou minha amante.
Confusa, Jordanna não conseguia entender como o pai podia ter estado tão
confiante. A jovem acreditara piamente que Brig falara a sério. A idéia de cancelar a
caçada não fora uma ameaça vã.
— E como podia saber?
— Porque eu o comprei. Ele já recebera o sinal e conhecia a cor do meu
dinheiro. — O pai parecia tão cínico e calculista que Jordanna se sentiu magoada.
— Você o comprou? — Encarava com ceticismo a idéia de que McCord
pudesse ser comprado a qualquer preço. Era muito auto-suficiente e controlado
para isso.
— Está achando difícil de acreditar? — falou Fletcher, rindo, naquela voz
estranha. — O inverno rigoroso deixou-o arrasado. Ia perder este lugar, quando o
conheci em junho.
— Mas você não podia saber disso naquela época — protestou Jordanna.
— Não sabia. Mandei que o investigassem. Afinal, queria ter certeza de estar
lidando com uma pessoa de confiança — defendeu ele sua atitude. — Estou lhe
pagando um dinheirão por essa caçada, e mais uma bonificação apreciável, se
conseguir o meu carneiro tamanho troféu. Eu o comprei, e McCord não podia dar-se
ao luxo de cancelar o negócio.
— Por que ficou tão zangado comigo?
— Porque McCord está no meu bolso. Fará a caçada. Não gostei da sua
sugestão de cancelarmos a caçada, Jordanna. Você é minha filha. Mas não vou
cancelar essa caçada, nem mesmo por você.
— Se é tão importante para você conseguir esse carneiro tamanho troféu —
aparteou Christopher —, por que está arrastando consigo o peso morto de duas
pessoas que não são caçadores, Max e eu?
— Como podia recusar o seu pedido de vir caçar comigo, quando esperei
tanto para ouvi-lo dizer isso, Kit? — retrucou Fletcher. — Quanto a Max, não fui eu
quem o convidou. Terá que falar com McCord sobre ele. Até que prove ser um
fardo, não posso me queixar. Se e quando o for, pode ter certeza de que direi
alguma coisa.
— Fletcher? — Max apareceu no topo da escada. — Não consigo achar seu
fuzil. Não está aqui em cima.
— Não? — Fletcher ergueu uma sobrancelha, surpreso, depois olhou para a
porta da frente. Uma expressão de contrariedade perpassou por seu rosto. — Tem
razão. Não está. Está ali junto da porta. Desculpe tê-lo mandado ir procurá-lo à toa,
Max.
— Tudo bem — replicou Max, começando a descer as escadas.
— É melhor ir pegar seu fuzil, Jordanna. Tandy está lá fora esperando por nós
— lembrou-lhe o pai.
Entrando no quarto, Jordanna pegou o fuzil com sua gasta bainha e uma caixa
de munição. Voltou para a sala e saiu atrás do pai e de Max Sanger, ao lado do
irmão. Quando chegaram lá fora, retardou-se, fitando o pai com confusão e
preocupação. Christopher também ficou para trás, fazendo-lhe companhia.
— Nunca ouvi papai falar assim, Kit — admitiu Jordanna.
— Ele provavelmente nunca deixou que você lhe visse essa faceta antes.
Você é a queridinha do papai.
— O que quer dizer com isso?
— Ele sempre a protegeu do que considera as coisas desagradáveis da vida.
Levou-a a percorrer o mundo todo, Jordanna, para que seus olhos ficassem tão
ofuscados por tantas coisas diferentes que você não enxergasse o que está diante
do seu nariz. — Havia tristeza misturada ao cinismo.
— Era... mesmo o nosso pai falando?
— Um homem não acumula a fortuna e o poder que ele acumulou sem
aprender a usar e manipular as pessoas para seu benefício pessoal. Nosso pai
espera o melhor. Não aceita menos do que isso. E o fracasso é algo que não tolera.
Lutará contra ele com tanta selvageria quanto qualquer dos animais que tenha
caçado. Não desiste... de nada. Preferiria cortar fora o próprio coração.
— Não. — Jordanna rejeitava a imagem que o irmão descrevera. Ele não
discutiu, mas seu olhar dizia que sentia pena dela. — Você não conhece papai tão
bem quanto eu — insistiu ela.
Tandy estava esperando por eles junto ao depósito de lenha, nos fundos da
casa.
— Arrumei uns pratos de papelão para servirem de alvo. — Fez sinal para os
brancos objetos circulares presos a um amontoado de feno, a uns oitenta metros,
na direção oposta à do pasto.
— Está ótimo. — Fletcher balançou a cabeça, em sinal de aprovação, e lançou
um olhar para Jordanna. — Quer começar?
A porta de tela dos fundos bateu. Jordanna não precisou virar-se para saber
que Brig McCord viera para fora. Algum sentido interior avisou-a de sua presença.
Ele a deixou momentaneamente perturbada, e ela fez que não com a cabeça.
— Comece você, papai — insistiu.
Um sistema interno de radar parecia estar ligado à presença dele. Jordanna
concentrou-se em abrir a bainha do fuzil para tirar o seu .30-06. Quando Brig
McCord entrou no seu campo lateral de visão, seus nervos tremeram, mas ela se
recusou a lançar-lhe sequer um olhar. Agarrando o cabo de nogueira francesa, tirou
o fuzil e entregou a bainha de couro ao irmão.
— Alô, McCord. — O pai dela fez um cumprimento de cabeça e caminhou até
cerca de seis metros de distância de um afloramento de rochas de granito. —
Resolvemos verificar nossos fuzis depois de toda essa viagem e ajustar as alças de
mira. — Olhou para Jordanna, que carregava sua arma. — Fique com o prato da
direita.
— Tudo bem. — Ela evitou firmemente olhar para o homem alto, de ombros
largos, à sua esquerda.
O primeiro tiro do pai acertou o prato bem no centro. Os cavalos no curral
amontoaram-se, nervosos, surpresos com o tiro. Com um espaçamento tranqüilo
dos tiros, esvaziou um cartucho inteiro no disco de papelão. A precisão dos
disparos abriu uma mosca preta no centro do prato.
— Sua vez. — Fletcher deu um passo atrás para recarregar.
Jordanna moveu-se para um lugar paralelo ao do pai. Levando o fuzil ao
ombro, mirou o alvo. Cônscia de um duro par de olhos castanhos a fitá-la, firmou o
braço. O primeiro tiro passou longe do centro, traindo seu nervosismo, mas o resto
formou um amontoado no meio do prato. Baixando o cano da arma, lançou um olhar
por sobre o ombro, na direção de Brig McCord. A altivez do desafio estava na
inclinação do queixo dela.
— Está convencido de que sei atirar?
Ele se manteve descontraído, as mãos nos quadris, o olhar fito no alvo de
papelão. Vagarosamente, voltou a olhar para ela.
— Estou convencido de que sabe acertar num prato de papelão a oitenta
metros.
Fervendo de raiva, Jordanna se deu conta de que dera abertura para aquele
comentário. Devia ter ficado calada. Ficou com raiva de sua própria idiotice.
— Que belo fuzil! — comentou Max. — Posso vê-lo?
— Claro. — Dando as costas para o alvo, Jordanna passou-lhe o fuzil.
Max verificou se a arma não estava carregada antes de acariciar o liso cabo
de madeira.
— É uma beleza — repetiu, distraído. Enquanto segurava a arma ao comprido,
na sua frente, a boca da arma ficou acidentalmente apontada para Brig.
Jordanna viu um clarão de raiva apertar os lábios, do fazendeiro, quando este
deu um passo de banda para sair da linha de tiro do fuzil. Sua mão agarrou o cano
e desviou-lhe a boca para o ar.
— Ei! O quê... — começou Max, surpreso, com o fuzil quase arrancado da
mão pelo gesto súbito de Brig.
— Jamais aponte uma arma para mim — advertiu, em voz baixa e agourenta.
— Não estava carregada. Eu verifiquei — protestou Max.
— Estou me lixando se estava descarregada, com a trava de segurança, ou
desmontada! — retrucou Brig. — Jamais aponte uma arma para mim, ou juro por
Deus que desejará não tê-lo feito! — Tirou o fuzil dele e enfiou-o nas mãos de
Jordanna. — E você devia ter mais juízo e não entregar seu fuzil para um simples
amador.
— Não sou amador — abespinhou-se Max.
— Deixe isso para lá — aparteou Fletcher, dirigindo-se a Max. — Por que não
vai se sentar naquelas pedras, onde ficará fora da linha de tiro, Max? — concluiu,
levando o fuzil para mirar o alvo.
Hesitando por um instante, Max fitou com raiva a fisionomia impassível do
primo, depois dirigiu-se para o afloramento de pedras. Quando ele se sentou numa
formação saliente, Jordanna ouviu o chiado de advertência de uma cascavel.
Avistou a cobra enrolada, pronta para dar o bote no ombro de Max.
Simultaneamente, Brig gritou a ordem:
— Não se mexa, Max.
Antes que Fletcher pudesse reagir, Brig já tinha agarrado o fuzil das suas
mãos. Num movimento fluido, levou-o ao ombro e disparou. A cabeça da cobra
explodiu em fragmentos, deixando um corpo que se contorcia e se retorcia na
pedra.
Branco do choque, Max fitava os restos do réptil. Desobedecendo às
instruções de Brig, saltara da pedra ao ouvir o zumbido da cascavel. Apenas os
reflexos rápidos do primo o haviam salvo de ser mordido pelo réptil.
— Aqui é terra de cobra — anunciou Brig. — A maioria delas logo vai estar
hibernando, especialmente nas maiores elevações. Mas pode haver outras como
esta, tomando sol numa rocha, curtindo o último calorzinho antes de o frio chegar.
Fiquem de olhos abertos. — Seu olhar duro concentrou-se no pai dela. — Você
deveria tê-la visto, Fletcher. Não é você que é o caçador?
— Deveria, sim — concordou ele.
— É melhor ir para a casa, Max, e pedir a Jocko que lhe sirva uma boa dose
de uísque — aconselhou Brig.
— Acho que vou, mesmo — concordou Max, trêmulo, e dirigiu-se para a
entrada dos fundos da construção de toros.
Brig acompanhou-o com o olhar por um instante, depois foi atrás. Christopher
hesitou, olhando de Jordanna para o pai. Abrindo a boca como se quisesse dizer
alguma coisa, mudou de idéia e caminhou atrás dos outros dois.
Atordoada pela rapidez daquilo tudo, Jordanna olhou para o pai.
— Onde foi que ele aprendeu a mexer numa arma desse jeito?
O pai começou a descarregar o fuzil, mudando de idéia quanto a continuar
praticando tiro ao alvo. Olhando de esguelha, esperou que Tandy se retirasse antes
de responder à pergunta.
— McCord foi soldado profissional antes de comprar esta fazenda.
— Soldado profissional? — Ficou surpresa ante a informação. — Quer dizer
que era oficial de carreira nas forças armadas?
— Não. Era mercenário, contratado por diversos governos estrangeiros.
Jordanna lembrava-se da sensação de perigo que experimentara da primeira
vez que vira Brig. Pensou na sua frieza, no seu cinismo. Um homem que agia assim
tinha que ser duro. À sua moda, era um predador.
— Salvou a vida de Max. Se não tivesse reagido tão prontamente, a cobra o
teria atingido — disse ela.
— É. — O pai pareceu refletir. — Estou um pouco surpreso com isso.
— Por quê?
Os dois podem ser primos, mas não morrem de amores um pelo outro. — Ante
o olhar indagador da filha, Fletcher explicou: — De acordo com a informação que a
agência obteve, o velho Sanger, o fundador da companhia, deixou o grosso da sua
herança para McCord, sob certas condições. Brig recusou-se a aceitá-las para
receber a herança, e Max obteve o controle da companhia. Contudo, se Max
morrer, as condições não mais terão valor, e Brig recebe a companhia sem
qualquer problema.
— Então... — As lojas Sanger eram uma grande cadeia de lojas populares,
uma firma de muitos milhões de dólares. Se Max morresse, Brig assumiria o
controle dela, e de todo o dinheiro — ....ele tem muito a lucrar — murmurou
Jordanna.
— A companhia está indo mal, no momento, bem mal, pelo que pude
descobrir.
Jordanna sentiu-se aliviada em ouvi-lo.
— São essas as ações que Max está tentando vender para você?
— São.
— Se a companhia está indo à falência, por que você iria querer comprá-la?
Por que sequer pensaria em tal coisa?
— Porque ela tem bases sólidas. Com algum apoio financeiro e uma boa
administração, não demoraria muito para se tornar um gigante novamente.
— Você vai fornecer esse apoio financeiro?
Ele não respondeu imediatamente, ao encontrar o olhar franco da filha.
Desviou os olhos.
— Ainda não decidi. — Pôs o fuzil de volta na bainha. — Duvido que me
decida até ver todos os relatórios.
— Mas está pensando no assunto? — insistiu.
— Estou. Mas minha decisão final vai depender de uma variedade de
circunstâncias. — Sorriu de repente, a expressão distante e pensativa
abandonando-lhe a fisionomia. — Fim da discussão de negócios. Estamos numa
expedição de caça, esqueceu?
Tantas outras coisas tinham se intrometido, que ela quase se esquecera do
objetivo da viagem deles.
— Acho que sim — disse Jordanna, rindo. O brilho alegre daqueles olhos
castanhos e o sorriso fácil dele eram do homem que ela identificava como pai, não
do estranho calculista que ela vira pouco antes.
— Vamos examinar nossos alvos — sugeriu ele. — Você errou feio aquele
primeiro tiro.
— Nervosa — admitiu ela, emparelhando com ele para irem examinar os
pratos de papelão.
— Porque McCord a estava espiando?
— É. — Não havia por que mentir. O homem a perturbava... de muitas
maneiras.
— Use um pouquinho de encanto — repetiu Fletcher o conselho anterior. —
Seja boazinha com ele.
— Sim, papai.

Capítulo X

No primeiro degrau da escada dos fundos da casa, Brig parou para olhar para
pai e filha, entretidos no que parecia ser uma conversa animada. Filha. Ainda
estava tentando digerir aquele relacionamento.
A semelhança física era vaga, embora fosse admissível que os cabelos
grisalhos de Fletcher tivessem sido castanho-avermelhados, no passado. O toque
de verde nos olhos dela podia ter sido herdado da mãe. Brig se recordava de que
os olhos de Olivia Smith eram de um tom vívido de verde. Em vez de sair miudinha
como a mãe, Jordanna podia ter puxado a altura esguia do pai.
A visão dela, assim de lado, revelava os bicos empinados dos seios
empurrando o suéter de tricô. Sentiu o aperto na região genital, e xingou-se por ter
deixado Fletcher convencê-lo a prosseguir com a expedição de caça. Na hora,
deixara-se convencer de que capitulava só por causa do dinheiro. Agora, Brig se
perguntava qual o papel que a descoberta de que Jordanna era a filha de Fletcher e
não sua amante tinha desempenhado em sua decisão. Um papel maior do que
estava disposto a admitir, desconfiava.
Comprometera-se a passar as três semanas seguintes com ela... e o pai.
Como ia conseguir manter as mãos longe dela? Ou devia dar-se ao trabalho de
tentar? Afinal, ela não se fizera de rogada, da última vez. Mas agora havia o pai... e
o irmão, e Max. Numa viagem daquelas, estariam vivendo todos uns por cima dos
outros, cinco "damas de companhia", contando com Jocko e Tandy. Será que
conseguiria arranjar pelo menos cinco minutos a sós com ela? A frustração
crescente fez com que cerrasse os maxilares. O lugar onde ela lhe batera ainda
estava dolorido. Talvez ela não quisesse cinco minutos a sós com ele. Por Deus,
ele faria com que quisesse!, resolveu Brig, sombriamente. Ela não havia possuído
os seus pensamentos nesses últimos meses para agora fugir dele, em carne e
osso.
— Sr. McCord?
Uma voz pedia sua atenção. Ele ergueu os olhos fora de foco para o jovem
esguio parado à sua frente.
— Sim?
— Sei que as cascavéis são venenosas, mas suas picadas são fatais? —
perguntava Christopher Smith, com um franzir de cenho distante.
— Via de regra, não.
— Como assim?
Depende da localização da picada, de quanto veneno penetra na corrente
sanguínea, da rapidez com que é tratada e do estado geral de saúde da vítima.
Mais gente morre do choque do que do veneno.
— A localização da picada. Se fosse perto da cabeça, poderia ser
potencialmente fatal — insistiu.
— É possível. — Brig correu os olhos secamente pelo homem de cabelos
escuros, ligeiramente divertido com sua apreensão. — Mas não se preocupe.
Temos soro contra picadas de cobra.
— Quer dizer que, se Max tivesse sido picado perto do ombro...
— Não teria morrido. Teríamos drenado o máximo de veneno possível da
ferida, imediatamente, e aplicado soro. Ele iria ficar bastante doente durante alguns
dias, provavelmente, mas, como não sofre do coração ou coisa parecida, é muito
improvável que morresse. — Era óbvio que o filho não era mateiro/caçador como o
pai. — Aqui nesta lonjura não podemos ter certeza de quanto tempo levaremos
para chegar a um hospital ou obter ajuda médica profissional, portanto sempre
temos conosco estojos de emergência com soro antiofídico.
— Sei. — Christopher parecia aliviado. — Suponho que seja um procedimento
padrão, uma coisa que a maioria dos guias faria.
— É isso mesmo.
— Tenho outra pergunta a que gostaria que me respondesse — falou o jovem,
com um olhar longo e pensativo.
— Qual é?
— Max não gosta da vida ao ar livre. Não é talhado para esse tipo de férias,
não é?
— Nem você — retrucou Brig.
O maxilar juvenil se endureceu, o único sinal de que escutara o comentário.
— O que quero saber é... por que o convidou para vir nessa viagem?
— Por que eu o convidei? — Brig franziu o cenho, divertido. — Misturou as
coisas. Não foi idéia minha trazer Max. Foi Fletcher que falou nisso primeiro. Terá
que lhe perguntar.
— Sei. — O belo rosto parecia muito solene. — Engano meu — disse
Christopher, dando de ombros.
— Mais alguma coisa que queira saber?
— Não, acho que não. — Kit virou-se para pegar a bainha do fuzil.
Brig subiu os degraus de madeira até a porta dos fundos. Max estava sentado
à mesa da cozinha, com um copo à sua frente. Sua cor voltara ao normal. Brig
entrou na cozinha. Ignorando a garrafa de uísque em cima da pia, foi até o fogão e
serviu-se de uma xícara de café escaldante. Uma bebida teria sido preferível. O
problema era que Brig duvidava de que fosse parar antes de ficar inconsciente.
— Como está se sentindo? — perguntou Brig, dirigindo-se para a mesa e
lançando a Max um olhar avaliador.
— Vou sobreviver.
— Eu o avisei de que essas montanhas não tinham nada a ver com a cidade.
— Puxando uma cadeira, Brig sentou-se nela ao contrário, apoiando os braços nas
costas curvas, segurando a xícara nas mãos.
— Você falou que as montanhas iriam me matar. Não me dei conta de que era
uma profecia — declarou Max. Disse-o como se fosse piada, mas pareceu não
poder achar graça.
— Não precisava aceitar o convite de Fletcher para vir caçar com ele. Ou
podia ter esperado para fazê-lo numa terra menos selvagem.
— Não tenho todo o tempo do mundo. Estou com ele no papo. Não posso
deixar que fique longe de mim por três semanas, para esfriar, agora que está
quentinho.
— Não havia nenhum outro motivo para que você quisesse vir? — Brig fitou-o
com um olhar frio e apertado. Não gostava da idéia que estava florescendo em sua
mente. Enchia-o de um sentimento feio e mesquinho.
— Acho que não estou entendendo — falou Max, com ar intrigado.
— A filha de Fletcher. Você devia saber que ela vinha com ele. — Sabia que o
primo se considerava um dom-juan. Se Max pusesse as mãos pegajosas em
Jordanna, Brig achava que o mataria. Mas precisava saber. A dúvida era pior do
que a certeza.
— Jordanna? Meteu os pés pelas mãos nessa, hem, Brig? — Max riu,
encantado com o engano cometido por Brig. — O que lhe deu a idéia de que ela
fosse amante de Fletcher? Antes eu tivesse ficado de boca fechada e deixado você
bancar o idiota. Estava se saindo tão bem!
— As aparências enganam. — Bebeu um gole do café escaldante da sua
xícara. O calor tirou-lhe o gosto amargo da boca, porém não diminuiu sua irritação
ante o lembrete desnecessário do papelão que fizera antes. — Mas não estou
enganado quanto a você, Max. Jordanna foi um incentivo adicional para você fazer
essa viagem? Ela é uma beleza. E você nunca foi do tipo de olhar sem tocar.
Max fez uma pausa para considerar tanto sua resposta quanto a expressão
desafiadora de Brig.
— Não vou negar que pensei no assunto. Ela e Fletcher são unha e carne.
Com ela do meu lado, tenho uma chance melhor de conseguir o apoio dele —
admitiu. — Contudo, ela é tão difícil de abrir a guarda quanto o pai. Tem a
reputação de ser uma geladeira. — Ante o alçar da sobrancelha espessa de Brig,
numa pergunta muda, Max explicou: — Pelo que ouvi contar, ela é muito inibida,
apesar da aparência fogosa. A bofetada que lhe deu foi provavelmente a reação
mais emocional que já demonstrou.
Brig sabia que não era assim. Essa idéia roía-o por dentro, mas ele ficou
calado. Max estava muito falante. O susto com a cobra e a dose de uísque tinham-
lhe soltado a língua. Brig não interferiu no falatório.
— Portanto, embora tenha pensado no assunto, havia risco demais de o tiro
sair pela culatra. Não tem sentido. Olivia é dez vezes mais mulher do que a filha.
Não há um só osso inibido no corpo de Olivia.
— Está falando por experiência?
— Não é da sua conta.
A porta dos fundos se abriu, e Tandy Barnes entrou na cozinha. Brig olhou
para o lado.
— Por onde andou?
— Dando uma mão a Frank e a Jocko com o gerador — respondeu, dirigindo-
se para a pia, a fim de tirar a graxa das mãos.
— O que havia de errado com ele? — Levantando-se da cadeira, Brig foi até o
fogão para encher de novo sua xícara.
— Estava estalando, como sempre, mas agora está funcionando direitinho.
Enquanto Tandy Barnes ensaboava as mãos, a porta se abriu e Jocko entrou.
Brig olhou para além dele.
— E Frank?
— Ainda está lá fora.
Tandy abriu um sorriso por cima do ombro.
— Deu uma boa olhada na nossa hóspede. O pobre Frank fica como manteiga
nas mãos de qualquer coisa com curvas.
Brig foi até a janela da cozinha para olhar para fora. O corpanzil montanhoso
de Frank Savidge estava parado perto de Jordanna. Ele tinha o chapéu nas mãos.
Estava de boca aberta, num sorriso ofegante, enquanto Jordanna sorria para ele.
Brig tinha visto a mesma expressão na cara dos cachorros atrás de uma cadela no
cio.
Virando-se da janela, lançou um olhar duro ao basco.
— Mande Frank entrar.
Jocko Morales caminhou até a porta dos fundos e foi lá para fora chamar o
homem. Tandy espiava da janela, debochando do enorme vaqueiro, que se
balançava e se curvava numa caricatura de maneiras educadas, enquanto pedia
licença a Jordanna para se retirar.
— Eu lhe falei, Brig, para mandar Frank até a cidade na semana passada,
para uma injeção dos três bês — pilheriou Tandy, os olhos brilhando de humor, mas
Brig não conseguia entrar no espírito da brincadeira.
— Três bês? O que é isso? — perguntou Max, de testa franzida.
— Bebida, baderna e boazudas. Não necessariamente nessa ordem. — O
vaqueiro atarracado riu. — Frank é viciado nas três coisas.
O riso ainda lhe dançava no olhar, quando Frank entrou.
— Mandou me chamar? — Uma expressão bêbada de alegria estava
estampada na fisionomia do grandalhão.
— Arranque esse sorriso da cara — explodiu Brig, impaciente.
O sorriso de boca aberta desapareceu.
— O que você quer?
— Quero que você pare de bancar o idiota babando em cima dos nossos
hóspedes. — Largou a xícara bruscamente na mesa, com raiva, porque não havia
uma só parte dele que não estivesse com fome de Jordanna.
Frank não ficou encabulado com o comentário.
— Por que não me contou que viria uma mulher?
— Porque não sabia.
— Deixe Tandy ficar aqui na fazenda cuidando das coisas. Quero participar da
caçada.
— De jeito nenhum. — A voz cortante de Brig impediu Frank de continuar a
discussão. Ouvira a nota de advertência e desafio, e não era bobo de topar a
parada.
— Por que você tem que ser tão sortudo? — resmungou Frank para Tandy,
com inveja.
— Porque é a minha vez. Você ficou na paquera até agora — insistiu Tandy.
— Eu? Foi você que foi ao aeroporto recebê-los. Ficou com ela um dia
inteirinho! — protestou Frank. — Ora, se você não fosse um velho, eu...
— Velho?! — abespinhou-se Tandy.
— Chega. Os dois. — Brig meteu-se no meio deles. Porra, mas ela significava
encrenca... encrenca para ele e para os homens dele. — Eu dou as ordens por
aqui. Tandy vai. E você fica, Frank. Se quiser discutir isso, faça-o comigo. Eu fiz os
planos, e estão valendo. — Viu o olhar avaliador que Frank lhe dava. — Não se
esqueça, Frank — avisou Brig. — Termino qualquer briga que você queira começar.
— Ei, Frank, que tal uma xícara de café? — ofereceu Jocko.
O grandalhão hesitou, depois se afastou, resmungando.
— Está bem.

Quando o jantar de salmão acabou, Jocko insistiu em que não precisava de


ajuda alguma na cozinha, e todos passaram para a sala de estar. Fletcher Smith
queria dar uma olhada nos mapas florestais da área em que iam caçar, e Brig abriu-
os em cima da mesinha de centro feita em casa. Max sentou-se numa poltrona
próxima para escutar a conversa. Christopher Smith aceitou o desafio de Tandy
para um jogo de cartas. Como Jordanna ficasse ao lado da cadeira do irmão para
assistir ao jogo, Frank fez o mesmo.
Frank tornara-se virtualmente sua sombra, seguindo-a por toda parte. Brig
sabia que seu olhar era culpado de acompanhar os movimentos dela, e Frank
estava sempre por perto. Os dois juntos faziam lembrar a bela e a fera. Só que
Jordanna não parecia achar ruim como Brig. Era ciúme, puro e simples. Ele não
queria que nenhum homem olhasse para ela como ele o fazia. Era um teste para o
seu autocontrole não desafiar Frank a deixá-la em paz. Entrementes, a frustração
de observar e esperar crescia.
Fletcher fez-lhe uma pergunta, e Brig precisou pedir que a repetisse. Com
força de vontade, concentrou o olhar no mapa, resolvido a ocultar sua preocupação
com a filha do homem. Replicou inteligentemente a algumas perguntas antes que o
olhar voltasse para a mesa onde Jordanna estivera parada. Varreu a sala com um
olhar desesperado, sem êxito, e então sentiu-lhe o cheiro. Ela estava parada atrás
do sofá, olhando para os mapas por cima do ombro de Fletcher. Em vez de sentir-
se aliviado por ver que ela estava tão perto, Brig ficou zangado e furioso. Ela o
estava deixando baratinado, como se ele fosse um garoto de escola.
— Examine os mapas, Fletcher. — Brig levantou-se do sofá. — Vou até a
cozinha ver se Jocko tem algum café sobrando.
Não perguntou se mais alguém queria uma xícara, enquanto suas longas
passadas faziam-no distanciar-se da mulher do brilhante cabelo cor de cobre. Havia
um bule no fogão, e ele se serviu de uma xícara de café. Guardando os pratos,
Jocko parou para fitá-lo.
— Está pensando na viagem de amanhã?
— Estou — mentiu Brig.
— Às vezes, para viver, precisamos fazer serviços que não nos são
agradáveis. Meu tio já foi pastor. Agora, está velho. Sua vista está ficando fraca,
suas pernas não lhe obedecem. Para ganhar dinheiro, varre o chão num bar. Ele
me disse que não gosta de olhar, através de janelas amarelas de nicotina, para as
montanhas por onde andou no passado.
— Eu sei. — Brig fitou o vapor que subia do líquido negro. Vira o velho pastor,
em cujo acampamento fora dar havia tantos anos, quando o avião caíra e lhe
matara os pais. — Já disse a ele que, se quer varrer chão para ganhar a vida, pode
vir aqui varrer o meu.
— Mas ele não quer deixar a mulher. Essa é uma parte da vida dele que ainda
é boa — falou Jocko, sorrindo. — Minha tia não está bem. Precisa ficar perto dos
médicos. Meu tio precisa ficar perto dela. — Largou a frigideira de ferro em cima do
fogão e olhou para Brig. — Acho que não é a viagem que o perturba. É a mulher.
— O que o faz pensar assim? — perguntou Brig, fitando-o com frieza e
desafio.
— É que o meu sangue, e o dos meus ancestrais, é quente como o seu. Mas
acho que você nunca encontrou uma mulher que o fizesse arder, não é? — Os
olhos escuros tinham um brilho maroto.
— Não sabe do que está falando. — Brig tomou um gole de café e soltou um
palavrão, quando ele lhe escaldou a língua.
— Você é um homem durão, mas ela faz com que queira sentir-se suave. Eu
disse a ela que você tinha se esquecido de como se tratava uma mulher como ela.
— Sugiro que não se meta no que não é da sua conta, Jocko.
O pastor achou graça.
— Ela falou que você não ia me agradecer por pedir desculpas em seu nome.
— Pegou o bule de café para ver até onde estava cheio. — Alguém mais vai querer
café?
— Não sei. Terá que perguntar você mesmo. — Brig esvaziou a xícara na pia
e caminhou para a porta dos fundos. — Vou lá fora tomar um pouco de ar.
Na base dos degraus externos, parou para fechar o zíper do colete forrado,
para se proteger da friagem da noite na montanha. O luar abria uma trilha pelo
prado. Nuvens acumulavam-se no noroeste. Enfiando as mãos nos bolsos
enviesados do colete, Brig partiu a passos rápidos para o celeiro, a fim de verificar
os animais no curral. Podia ver montículos escuros espalhados pelo prado, e sabia
que era o gado.
Inevitavelmente, seus passos acabaram por voltar para a casa de toros e as
luzes amarelas que brilhavam nas janelas. Depois de subir os degraus da varanda
da casa, Brig parou. Caminhou até a extremidade mais afastada da varanda, que
estava nas sombras. Apoiando uma bota na grade, acendeu um cigarro e perdeu o
olhar na noite.
Quando Brig saiu da sala, Jordanna esperou sentir alívio por aqueles olhos de
lobo não mais estarem vigiando cada movimento seu. Em vez disso, sentiu-se
inquieta e nervosa, privada de algo vital. Terminou de tomar o café que Jocko lhe
trouxera.
— Quer mais um pouco? — O onipresente Frank estava ansioso por buscar
para ela qualquer coisa que quisesse.
Como alguns cachorros, ele era tão feio que se tornava engraçadinho.
— Não, obrigada — recusou Jordanna.
— Pode deixar que eu levo a xícara, então — ofereceu. Jordanna passou-lhe
a caneca vazia para ser devolvida à cozinha. Quando seu corpanzil se afastou dela,
a moça correu os olhos pela sala. Kit e Tandy ainda estavam entretidos no jogo de
cartas. Max encurralara o pai dela, de novo. Agora, Frank desaparecera na cozinha,
onde já se encontravam Jocko e Brig. Estava se sentindo perdida. Sem conseguir
livrar-se da inquietação, caminhou até o sofá e tocou o ombro do pai.
— Acho que vou tomar um pouco de ar lá fora — falou.
Fletcher deu uma palmadinha na mão dela, balançou a cabeça e recomeçou
seu papo com Max. Ninguém pareceu prestar-lhe atenção, enquanto atravessava a
sala e abria a porta da frente. Jordanna saiu para a varanda e fechou a porta
suavemente atrás de si. O raspar da sola de uma bota na madeira atraiu sua
atenção para o canto escuro da varanda. Sua pulsação disparou como um foguete,
e Jordanna reconheceu o corpo alto e de ombros largos que se endireitava à sua
presença.
— Não sabia que você estava aqui. Pensei que estivesse na cozinha. —
Jordanna não queria que Brig pensasse que tinha ido atrás dele.
Ele permaneceu nas sombras, sem sair para a luz que se projetava da janela.
— Hoje está frio. Você devia pôr uma jaqueta.
Ela não sentia a friagem, pois seu sangue fervia. Afastou-se da porta, atraída
para perto dele.
— Este suéter é bem pesado. Eu só queria tomar um pouco de ar. Estava
ficando abafado, lá dentro. — Jordanna não queria explicar aquela inquietação, que
desaparecera tão subitamente. — Não está usando casaco — observou, quando a
figura dele ficou mais distinta.
— Estou acostumado com o frio.
Às costas de Jordanna, a porta da frente se abriu, banhando a varanda
momentaneamente em luz. Os ângulos e planos do rosto de Brig ficaram bem
evidentes. A linha negra e grossa do seu bigode aumentava sua aparência
máscula. Novamente, ele era o centro de atração daqueles olhos castanhos. E
Jordanna sentiu a força da sua virilidade crua.
— Aí está você. — Era a voz de Frank. Ela se virou, tendo se esquecido por
um instante que a luz viera da porta aberta.
— Alô, Frank — cumprimentou.
— Ia verificar os cavalos, Frank? — A voz baixa e arrastada de Brig espantou
o vaqueiro grandalhão. Tinha olhos apenas para Jordanna, e não tinha visto a
forma escura atrás dela.
— Vim tomar um pouco de ar.
— Pode tomá-lo enquanto verifica os cavalos — declarou Brig. Frank hesitou,
depois saiu pesadamente da varanda e desapareceu nas sombras da noite. — As
mulheres lindas são uma das maiores fraquezas de Frank.
— Qual é a sua? — Jordanna voltou-se para ele com uma ponta de desafio.
A pergunta foi ignorada, como ela previra.
— Cigarro? — Ele abriu o zíper de cima do colete e enfiou a mão no bolso da
camisa, pegando um maço.
Tirando um cigarro, ofereceu-o para a moça. Jordanna colocou-o entre os
lábios e se inclinou para a frente, a fim de acendê-lo. Uma brisa implicava com a
chama do fósforo. Brig protegeu o fogo com a palma da mão ao levá-lo à ponta do
cigarro dela. Só um segundo inteiro depois que ele foi aceso é que sacudiu o
fósforo, como se estivesse observando o modo como a chama iluminava o rosto
dela.
— Obrigada — murmurou, em meio a uma baforada.
— Por que está aqui?
— Já lhe disse. — Sentia-se trêmula por dentro. Segurou o pulso, com medo
de que a mão pudesse estar tremendo. — Queria tomar um pouco de ar fresco.
— Não, eu queria saber por que veio nessa viagem.
— Acredite, não tinha a menor idéia de que você estaria aqui. Foi uma
surpresa enorme para mim, quando o vi — insistiu Jordanna, movendo-se para
junto da grade da varanda.
— E se tivesse sabido?
— Não... teria feito nenhuma diferença.
— Está ficando muito velha para bancar a filhinha de papai. É para isso que
ele a traz, não é, para poder ter platéia que admire sua destreza?
— Ele não precisa de ninguém para admirá-lo — explodiu Jordanna. — Vou
caçar com ele porque gosto disso tanto quanto ele. Estou aqui para caçar um
carneiro montês tamanho troféu.
— Os ricos ociosos! Voam de um lugar ao outro, atrás da caça graúda. Têm
mesmo prazer em matar?
A cabeça dele estava inclinada para o lado, as feições totalmente na sombra.
Cansada de ficar na defensiva, ela retrucou:
— Você tem?
Virando-se, Brig jogou o cigarro no ar com um movimento do polegar e do
indicador. A ponta ardente formou um arco vermelho na escuridão.
— Suponho que Max tenha lhe falado do meu passado sórdido. — Parecia
divertido, de uma maneira fria.
Jordanna sentia relutância em admitir que obtivera a informação do pai, ou
que ele a conseguira por meio de uma agência de investigações. Como Brig lhe
oferecia uma outra fonte, aceitou-a.
— Acha que ele não falaria? — despistou.
— Faz muito tempo. — Ele tinha o olhar perdido na noite, sem demonstrar
remorso ou arrependimento pelo que fora.
— Isso explica como pôde reagir tão velozmente, hoje à tarde, quando aquela
cobra deu o bote em Max. Não perdeu os seus instintos.
— O homem é um predador. Nunca perde inteiramente esse instinto. No meu
caso, ele foi aguçado até o limite máximo. Era a única maneira de sobreviver. —
Brig voltou-se para ela, que sentiu a arremetida do seu olhar. — Com os
predadores, aprendi que um homem toma aquilo que deseja.
A mão de Brig moldou-se à nuca da moça, a pele áspera de seus dedos
prendendo-se nas mechas do cabelo avermelhado. Jordanna inspirou rapidamente
e perdeu o fôlego, quando a outra mão dele lhe segurou o queixo e ergueu-o. O
polegar dele roçou-lhe o contorno dos lábios, separando-os, para tocar a barreira
branca dos seus dentes. A ponta da língua dela provou o gosto salgado e a textura
áspera do polegar caloso.
— Não tem medo de mim... ou do que fui. Por quê?
— Deveria ter? — A voz dela era baixa, um leve sussurro.
— A maioria das pessoas tem. — Sua boca descia lentamente, sem pressa, e
o coração dela batia forte.
— A maioria das pessoas tem medo da própria sombra — murmurou ela,
enquanto era apertada por ele.
A mão dele em sua nuca aumentou a pressão, erguendo-a na ponta dos pés.
As mãos da moça deslizaram pela fazenda lisa do colete dele e envolveram-lhe o
pescoço, correndo os dedos pela espessura dos seus cabelos castanho-escuros. A
paixão saltou entre eles como uma chama viva, enquanto ele entreabria os lábios
dela e explorava os recantos mais íntimos de sua boca.
A mão dele deslizou do pescoço dela e veio moldar-lhe as costas e quadris
aos contornos rijos de seu próprio corpo. Os sentidos da moça lembravam-se do
seu cheiro almiscarado, do gosto intoxicante de sua língua, do martelar do seu
coração. Sua reação crua e selvagem ao homem foi a mesma da outra vez.
Jordanna sentiu a fome dele devorando-lhe os lábios, provando-os e comendo-os, e
despertando nela um apetite insaciável pelos dele. Esforçavam-se para satisfazer
um ao outro. As mãos dele se enfiaram sob o suéter da moça para acariciar e alisar
a pele nua dos seus ombros e de suas costas, massageando-lhe eroticamente a
carne. Jordanna estremeceu ante as ondas de desejo intenso que a envolveram.
A ânsia era tão profunda que se tornou uma dor física. Jordanna soltou-se da
boca que possuía a sua, tentando conseguir algum autocontrole antes de
abandonar seu orgulho. Enquanto Brig mordiscava o nervo sensível do pescoço
dela, o desejo percorreu-a num tremor cálido e dourado, um raio de sol iluminando-
lhe a alma.
— Brig — suspirou, conseguindo finalmente identificar o rosto que a
atormentara.
Ele ergueu a cabeça para inspirar profunda e tremulamente. Suas mãos
deslizaram de sob o suéter dela, abandonando a carne nua que tinham aquecido, e
subiram para emoldurar-lhe o rosto. Seus dedos tremiam sobre as feições da moça.
Embevecida, ela estudou o rosto masculino tão próximo do seu. As feições
magras tinham sido treinadas para permitir que poucas expressões perpassassem
por sua superfície e poucas emoções fossem reveladas. Pés-de-galinha apareciam
nos cantos dos olhos dele, e havia vincos de cada lado da boca, na pele queimada
de sol, desaparecendo em meio ao bigode. Era um rosto atraente, confiante na sua
capacidade e masculinidade. Ela encostou os lábios na palma da mão dele e
beijou-a.
O brilho animal do seu olhar duro ergueu-se do rosto dela e fitou a escuridão
mais além.
— Frank está voltando. — A voz dele estava rouca de impaciência, enquanto
suas mãos lhe largavam o rosto e se apoiavam nos ombros dela.
Jordanna inclinou a cabeça para o lado, prestando atenção. Ouvia apenas os
ruídos noturnos. Como ele podia ter escutado alguma coisa? Então, ouviu um
barulho muito leve de passos no cascalho.
— Como pôde escutá-lo? — sussurrou, incrédula.
— Este é o meu lugar. Conheço os barulhos certos e os errados. — Brig se
mexeu, abrindo espaço entre eles.
— Brig — disse Jordanna. — De onde vem o seu nome?
— É diminutivo de Brigham, em homenagem a meu avô Sanger, mas ninguém
o usa. — Os dedos dele apertaram-lhe a carne, enterrando-se nela. Com igual
rapidez, ele a soltou e se afastou. — É melhor você entrar.
Jordanna ficou rígida, resistindo. Vindo da escuridão, Frank Savidge apareceu
nos degraus da varanda. Seu peso caiu ruidosamente sobre a primeira tábua. Ela
lhe lançou um olhar de banda, ressentida pela intromissão. Ele olhava para Brig.
— Os cavalos estão bem.
— Ótimo.
Frank parou na varanda, lançando um olhar de expectativa para Jordanna.
— Vai entrar?
— Vou. — Esfregou os braços, como se sentisse frio.
Frank foi até a porta e abriu-a para ela. O olhar dela ricocheteou na figura alta
no canto da varanda. Estava de costas para ela. Passando pelo vaqueiro de queixo
largo e quadrado, Jordanna entrou na sala. Seu pai ergueu os olhos, notando o
empregado da estância que a acompanhava.
— Estava frio lá fora? — perguntou.
Ela ainda estava com os braços cruzados na frente do corpo, agarrando os
cotovelos.
— Um pouco. Só o notara pouco antes de entrar.
A porta mal tinha se fechado, quando foi aberta de novo, e Brig entrou.
Fletcher levantou-se do sofá e olhou em redor.
— Não sei quanto a vocês, mas eu vou me deitar. Vamos acordar amanhã
bem cedinho.
— Duas vitórias cada um — dizia Kit. — É bom parar por aqui, antes de
acabar como perdedor. — Afastou a cadeira da mesa de jogo, onde fora aberto o
tabuleiro com as cartas. — Gostei muito, Tandy.
— Quando quiser...
— E quanto a você, Jordanna? — Kit olhou para ela. — Também vai se
recolher?
— Daqui a pouco. Quando todos acabarem de usar o banheiro, quero tomar
um último banho. Uma banheira é um luxo que não vamos ter, depois que
estivermos nas montanhas. Vou aproveitar enquanto tenho oportunidade — falou.
— É cedo para eu ir dormir — disse Max. — Mas vai parecer mais cedo ainda
quando tiver que me levantar, ao alvorecer. Portanto, acho que também vou para a
cama.
— Vamos, Frank. — Tandy dobrou o tabuleiro de jogo. Vamos arrumar nossas
camas aqui. Brig?
Voltou os olhos para o patrão, numa indagação muda das suas intenções.
— Tenho que trabalhar nuns papéis antes de me recolher. — Brig se dirigiu
para a escrivaninha encostada à parede. Puxou a cadeira e olhou para os outros
por cima do ombro. — Boa noite.

Capítulo XI

A porta do banheiro se abriu e se fechou. Brig continuou debruçado sobre a


escrivaninha, sem se virar ou olhar por cima do ombro, ao escutar o ruído dos pés
descalços que se aproximavam do quarto do andar de baixo... O quarto dele.
Ouviu-se de novo o estalido de uma porta que se abria e se fechava. Atrás dele,
ouviu Frank gemer e murmurar:
— Vocês já viram mulher mais linda na vida?
Os dedos dele agarraram a caneta até os nós dos dedos bronzeados ficarem
brancos. Pela terceira vez, somou a coluna de números e encontrou um terceiro
resultado diferente. Tentou de novo.
— Ela é muito bonita concordou Jocko, baixinho. — Brig correu os dedos
pelos cabelos e forçou os olhos a se concentrarem nos números. Os algarismos
ficaram fora de foco. Teve que começar a soma de novo.
— Da próxima vez que eu tomar banho, vou chafurdar naquela banheira —
declarou Frank, perturbado. — Só a fico imaginando sentada lá, espadanando
água.
— Chega, Frank. — Brig não agüentava mais. Sua voz era baixa e áspera.
Estava sendo torturado pela agonia de tê-la tido nos braços e ser incapaz de fazer
algo mais do que isso.
Sua ordem zangada foi inicialmente obedecida. Mas o silêncio não durou
muito. Frank sonhou em voz alta:
— Fico a vê-la ensaboando as mãos e esfregando a espuma nos seios.
Um gemido mudo rasgou-lhe as entranhas. Brig virou-se na cadeira.
— Já falei que chega... — exclamou, bruscamente, para o vaqueiro deitado no
chão, enfiado no saco de dormir. — Apague a luz e vá dormir.
— E quanto a você? — retrucou Frank, em tom de desafio. — Não vem para a
cama?
— Só depois que terminar este trabalho. — Quando se virou de novo para a
escrivaninha, Brig viu a réstia de luz por baixo da porta do quarto. Jordanna
também ainda não estava deitada. Tentou ignorar o fato.
— Você não vai enxergar, se apagarmos a luz — protestou Frank.
— Tenho o abajur de mesa. — Brig mexeu no interruptor e acendeu a
lâmpada do abajur verde. Um estalido deixou o resto da sala às escuras.
— O chão está duro — resmungou Frank. — Sei bem em que cama eu
gostaria de estar dormindo.
— Frank! — O resmungo baixo de Brig era sua advertência final. Não
importava que o vaqueiro não soubesse o que os seus comentários estavam
fazendo com ele. Tinham que parar.
— Vou calar a boca. — Depois, murmurou com seus botões: — Mas sonhar
não faz mal.
O que fazia mal era querer até que o desejo o comesse inteiro. Brig podia ter-
lhe dito isso. A sala foi ficando aos poucos em silêncio, rompido apenas pelo
rabiscar da caneta no papel e pelo remexer inquieto de Frank no seu saco de
dormir. Brig continuou a conferir suas contas, riscando as marcas de identificação
dos bezerros que vendera e anotando os novilhos reprodutores que conservara.
Tentou não contar quantas vezes olhara para a réstia de luz que brilhava sob a
porta do quarto.
Tandy estava roncando quando Brig finalmente pousou a caneta para esfregar
o começo de barba áspera na face. Deslizou a mão para massagear os músculos
tensos da nuca. Arqueou a cabeça para trás, cônscio dos ruídos de sono que os
seus três empregados faziam. Virando a cabeça, seu olhar foi atraído pelo imã da
luz. Ela o manteve imóvel, incendiando de roldão seu sangue.
Levantando-se da cadeira, desligou o abajur de mesa e deixou os olhos se
acostumarem à escuridão; uma escuridão total, exceto pela nesga de luz. Voltou o
olhar para o local onde ficava a escada, a cabeça inclinada numa atitude de quem
ouve. Havia apenas silêncio vindo do segundo andar.
Passadas longas, suaves como as de uma pantera, levaram-no até a porta. Se
estava correndo algum risco, Brig não se importava. Valia a pena, pela chance de
abraçar aquele corpo feminino e macio, o corpo que o torturara durante tantas
noites.
Bateu à porta de leve. A princípio, houve apenas silêncio. Será que ela
adormecera com a luz acesa? Já estava estendendo a mão para a maçaneta,
quando ouviu uma voz baixa e rouca perguntar:
— Quem é? — A suavidade feminina do som era como uma carícia.
— Brig. — Sua própria voz vinha de um lugar distante e profundo, vibrando
com as perturbações que se passavam dentro dele. — Deixei algumas coisas aí no
quarto.
Ele sentiu a hesitação do outro lado da porta. Segundos intermináveis se
passaram, até que a maçaneta girou e a porta se abriu. Os músculos do seu peito
se contraíram, paralisando-lhe os pulmões. Alta e vagamente régia, Jordanna
afastou-se para o lado, a fim de deixar que ele entrasse. Um robe vermelho, de
fazenda aveludada, cobria-lhe o corpo todo, até os pés. A cor dele e a luz do abajur
que brilhava às suas costas realçavam os tons vermelhos do seu cabelo castanho.
A frente do robe era fechada com zíper até o pescoço. Os punhos das mangas
compridas escondiam-lhe os pulsos delicados.
Era loucura, mas Brig achava que ela não poderia estar mais sensual, se
estivesse parada nua à sua frente. O rosto achava-se sem maquiagem alguma, mas
as linhas clássicas das suas faces, nariz e queixo e as profundezas insondáveis dos
seus estranhos olhos verde-castanhos não precisavam de nenhum adorno.
A mão dela largou a porta, e ela se adiantou mais quarto adentro. Indicou uma
pilha de equipamentos junto à parede.
— Imagino que seja aquilo o que está querendo.
Brig entrou e fechou a porta.
— Não precisava esperar acordada que eu viesse pegá-las. Podia ter deixado
as minhas coisas do lado de fora da porta.
— De fato — admitiu, com uma franqueza natural que não era ousada nem
atrevida. Onde estava a máscara de sofisticação que as mulheres ricas e lindas
como ela geralmente possuíam?, perguntou-se Brig. Não fingia ser tímida nem
tentadora. Confundia-o, ao mesmo tempo em que o excitava. A necessidade dela, e
só dela, pulsava pelo corpo dele como o bater de um tambor, ficando cada vez mais
forte.
— Por que não o fez? — perguntou Brig, aproximando-se dela devagarinho.
— Porque queria falar com você... em particular.
Aquela vaga hesitação tornou-a mais feminina e desejável ainda. Sugeria uma
vulnerabilidade que ele desejava explorar ao máximo.
— Sobre o quê?
Ele parou a uns trinta centímetros de distância, atordoado com sua
proximidade. Os olhos dela estavam erguidos para o seu rosto, a expressão franca
e aberta. Ele notou, nas profundezas brilhantes dos seus olhos, a perturbação que
causava nela. Essa satisfação acalmou-o momentaneamente.
— Estou certa de que teve uma impressão errada de mim... de que sou
promíscua. Não sou — afirmou, numa voz que tremia da necessidade de convencê-
lo. — Não é hábito meu deixar que um perfeito estranho faça amor comigo.
Sua escolha de adjetivos divertiu-o.
— Não sou perfeito. — Excitado pela inclinação altiva do queixo dela, Brig
estendeu a mão para traçar-lhe o contorno.
— Não foi isso o que eu quis dizer.
Brig sentiu-lhe a agitação, e pressentiu que parte dela se devia ao seu toque.
Aquilo o encheu de uma sensação de poder inebriante. Acariciou a coluna esguia
do pescoço dela. O pulso da moça batia irregularmente. Os dedos dele curvaram-se
para acompanhar o decote alto do robe, parando no puxador de metal do zíper.
Puxou-o para baixo, para deixar à mostra a concavidade de seu pescoço, depois
mais um pouco, para revelar o vale sombrio entre os seus seios. Deu-se conta,
encantado, de que ela estava nua por baixo do robe.
Os dedos dela fecharam-se no seu pulso para deter o progresso do zíper.
— Não está me escutando. — Engoliu em seco para controlar o tremor rouco
na voz. — Estou tentando explicar...
— Sou um homem — interrompeu Brig, com franqueza descuidada. — E você
é uma mulher, Jordanna, com necessidades tão básicas e antigas quanto o próprio
tempo. O que mais há para explicar?
O olhar dele baixou para os lábios da moça. Eles se abriram, sem dizer
palavra. Brig não precisou de um segundo convite para se apossar de sua maciez
entreaberta. No instante em que sua boca os tocou, toda a meiguice o abandonou,
e ele os magoou com a ferocidade do seu desejo.
Sentiu que esmagava os lábios contra os dentes dela, e provou o gosto de
sangue na sua boca, mas estava impotente para aliviar a pressão brutal.
Por si mesma, a mão dele foi abrindo o zíper todo, até depois do umbigo, e a
mão dela em seu pulso não procurou impedi-lo. O robe tornou-se uma barreira
irritante entre ele e a forma viva de alabastro. Com impaciência, empurrou-o ombros
e braços abaixo, só ficando satisfeito quando ele formou um montinho ao redor dos
tornozelos dela.
Correu as mãos por aquele corpo, excitado demais pelo contato com sua
carne para ir com calma. Elas cobriram as montanhas em miniatura dos seios
firmes e empinados e percorreram, às pressas, a caixa torácica esguia, que se
afinava na cintura. Os quadris cheios e as faces arredondadas das suas nádegas
encheram-no de uma urgência ardente. Brig esmagou-a contra si, sem ligar para
sua brutalidade, enquanto tentava desafiar as limitações físicas da carne e absorvê-
la integralmente no seu corpo. Nada menos do que isso aplacaria o fogo violento
que o consumia.
Tomou-a nos braços e levou-a até a cama, parando para puxar o edredom
antes de deitá-la nos lençóis. Afastou-se para tirar as próprias roupas. Como da
outra vez, ela o observou com um interesse sem constrangimento. Enquanto se
despia, Brig corria os olhos por Jordanna. Os lábios dela estavam intumescidos
pelos beijos violentos dele. O arfar dos seus seios de bicos rosados atraíram para
baixo o olhar dele, passando pela cintura fina até o triângulo de pêlos crespos e as
pernas longas e bem-torneadas.
Ela estava na cama dele. Era dele, só dele. Ia possuí-la, aquela diaba ruiva
que se apossara dele, que interferira em sua sanidade e afetara sua força. O
fantasma dessa criatura fascinante não mais o atormentaria. Estava ali, em carne e
osso, para satisfazê-lo. Brig aproximou-se da cama.
— Não vai apagar a luz? — sussurrou ela.
— Não. — A voz rouca com que respondeu revelava as chamas quentes de
paixão que o faziam arder. — Não vou deixar que a escuridão esconda seu corpo
dos meus olhos. Esperei tempo demais para vê-lo.
O colchão cedeu ante seu peso, fazendo-a rolar contra o corpo dele e
jogando-a nos seus braços. As preliminares do ato de amor foram abandonadas,
quando a necessidade de possuir o corpo dela tornou-se maior do que o desejo de
saboreá-lo.
Brig lutou para conter as chamas desenfreadas que o consumiam. Elas ardiam
cada vez mais quentes, até que ele mal pôde suportá-las. O fogo era alimentado
pelos quadris dela a se contorcerem contra os dele, e pelos abafados ruídos
animais, de prazer selvagem, que saíam de sua garganta. Não houve como prender
a explosão de desejo, quando chegou. Sua violência deixou-o abalado, e pronto
para saborear os prazeres que ignorara, no calor da urgência.

Quando Brig rolou de cima dela, Jordanna viu-se totalmente exaurida pelas
exigências lúbricas que ele lhe fizera. Tinha sido atraída para o centro
incandescente do seu abraço fogoso, e a combustão a abalara até o âmago.
Jordanna ainda estava tremendo quando o braço de Brig lhe rodeou a cintura
para puxar seu tórax contra o peito dele. A boca buscou os lábios dela, para se
revitalizar com sua doçura. Ela tirou forças do contato com o seu físico solidamente
musculoso, preguiçosamente sensual e estimulante. Abandonando-se a seu beijo
inebriante, sentiu-se cheia de um êxtase gratificante, porque a satisfação não
extinguira a necessidade que ele sentia dela.
As mãos dele vaguearam, lânguidas, pelos ombros e costas dela,
acompanhando a curva da sua espinha e deixando-a toda arrepiada. A escova
macia do seu bigode abria caminho, enquanto sua boca explorava o rosto dela,
dirigindo-se aos poucos para a orelha. O hálito quente dele excitava os seus
sentidos, e Jordanna estremeceu ante as lambidas eróticas da língua dura.
O fogo se reacendeu dentro dela, um calor dourado que se espalhava por
suas veias para aquecer o pulso. A boca do homem ficou momentaneamente
enredada nos cachos sedosos do seu cabelo, antes que ele os afastasse para
investigar umidamente o pescoço dela. O suor deixava escorregadia a carne dura
dele sob os dedos dela. Estes se agarravam aos músculos ondulantes dos braços
dele. Jordanna arqueou a cabeça para trás para dar-lhe mais acesso às
explorações provocadoras.
Segurando-lhe a cintura com as duas mãos, ele fez força e ergueu-a acima de
si. Um riozinho de suor corria entre os seios dela. A boca do homem formou uma
represa para detê-lo antes de subir ao bico do seio. Jordanna estremeceu ante as
vibrações tantálicas da língua dele e enroscou os dedos nos seus cabelos
castanhos para forçá-lo a acabar com aquele tormento. Um suspiro lamentoso saiu
da sua garganta, quando a boca envolveu o bico inteiro. Depois de obter o máximo
de prazer, ele repetiu o procedimento no seio gêmeo.
Uma dor dourada a consumia. Ela tentou aliviá-la movendo os quadris
ritmicamente contra a coxa musculosa dele. Aquilo lhe dava apenas uma satisfação
parcial. A mão dele curvou-se na nádega arredondada para apertar-lhe os quadris
contra a sua carne dura. Brig mudou de posição, forçando os ombros dela contra o
colchão e enfiando-se entre as suas pernas. Ela gemia e arquejava, de expectativa.
As mãos e o corpo dela mostravam-lhe o que desejava, enquanto seus lábios
grudavam-se aos dele. Brig murmurava palavras de amor de elogio e exigência,
exortando-a a lhe agradar tanto quanto ele lhe agradava. O suor dos seus corpos
fundia-os num só. O êxtase dessa doação altruísta não fora uma ilusão que jamais
seria repetida, deu-se conta Jordanna, enquanto era alçada mais uma vez a alturas
indescritíveis.
Foi uma descida suave, leve, até os braços dele. Aninhou-se contra ele,
beijando o ombro marcado de bala que servia de travesseiro para sua cabeça. A
mão dele agarrava a curva da sua cintura para mantê-la bem perto. Era o lugar
mais natural do mundo para dormir, exausta de fazer amor com ele, aquecida por
sua carne. Jordanna nem teve consciência do momento em que ele os cobriu a
ambos com o edredom.
Brig jamais sentira antes esse feroz sentimento de posse, essa recusa em
largar a mulher que estava em seus braços. A novidade era perturbadora. Não tinha
certeza se gostava desse domínio sutil. Adivinhara que uma noite não o satisfaria,
mas não se dera conta de quão forte seria o desejo de manter Jordanna a seu
alcance. Todas as mulheres só lhe haviam despertado emoções superficiais, mas
aquela mexera com ele, profundamente. Sentia-se em carne viva, exposto. Ela o
deixara vulnerável. Isso a tornava perigosa, porque ele não tinha certeza de poder
confiar nela. Por que motivo, não sabia.

Jordanna se mexeu e tentou achar uma posição mais confortável, mas uma
tira de aço em volta de sua cintura a imobilizava. Um calor de fornalha banhava-lhe
os ombros, as costas, os quadris e a parte interna dos joelhos. Tateando, buscou
livrar a cintura da tira que a prendia. Seus dedos encontraram a pele cheia de pêlos
do braço de um homem. Abriu os olhos, sobressaltada por um minuto, antes de as
lembranças voltarem de roldão. Brig estava deitado de lado, o corpo amoldado à
posição dela. Nunca tinha dormido com um homem antes. Era uma experiência
nova, e até agradável, acordar nos braços dele. Do lado de fora da janela do quarto,
o cinza pálido do alvorecer iluminava o céu. Jordanna virou-se para o calor,
esticando-se para ver a cabeça morena no travesseiro a seu lado.
— Brig. Acorde — falou, suave e relutantemente. — Já é de manhã.
— Humm.
As feições bronzeadas pelo sol eram inexpressivas, no sono. Os cabelos
desfeitos convidavam a serem alisados, o que Jordanna fez, sentindo a barba de
um dia arranhandolhe a palma da mão.
— Vamos — persuadiu-o novamente. — É melhor se levantar antes dos
outros.
A mão dele deslizou da barriga dela e veio rodear-lhe o seio. Os cílios escuros
se abriram devagar para revelar olhos espantosamente alerta para um homem que
estava acordando. Percorreram atentamente o rosto dela. Ele inclinou a cabeça e
mordiscou o ombro de marfim.
— Não há pressa.
— Está quase amanhecendo. — Jordanna curvou o ombro para proteger o
pescoço e impedir as mordidas sensuais de irem mais adiante.
— E daí? — Terminou de virá-la, deixando-a inteiramente de costas.
Ela levantou as mãos para empurrar de leve o peito dele, quando começou a
se debruçar por cima dela.
— Precisa se levantar, Brig, antes que alguém o encontre aqui.
A dureza familiar apareceu-lhe nos olhos.
— E se encontrarem?
Tentou beijá-la, mas Jordanna se desviou da boca que descia.
— Agora não — protestou.
— Agora não? — Ele apertou os olhos. Pretendera dar-lhe nada além de um
beijo de bom-dia. Claro, seria um beijo longo, demorado. A tentativa dela de
estabelecer quando fariam amor deixou-o com raiva. Ela já o fizera perder o juízo.
Não ia deixar que o fizesse perder os direitos sobre sua própria cama. — Se agora
não, quando sugeriria? — desafiou-a, friamente. — Quem sabe pode verificar na
sua agenda e me avisar quando estará disponível de novo.
— Brig, por favor. — Um clarão de raiva perpassou-lhe pelos olhos.
— Por favor, o quê? "Seja um bom menino e vá andando" — ironizou, com
selvageria mansa.
— Eu não disse isso — retrucou, indignada e magoada, e bastante zangada.
— Mas não quer que eu faça amor com você agora.
— Não, não quero.
Quando ela tentou saltar da cama, Brig imobilizou-a contra o colchão.
— Veremos — disse, a boca curvada num sorriso zombeteiro.
A princípio ela resistiu, mas o peso dele a manteve facilmente esmagada sob
si. Deixou que ela gastasse as forças debatendo-se inutilmente para evitar-lhe a
boca, enquanto explorava as áreas que as contorções dela deixavam expostas.
Continuou a excitá-la com beijos e carícias, mesmo depois que ela começou a
corresponder. Ela arqueou-se contra ele, buscando a arremetida dos seus quadris,
mas ele se conteve. Ela se contorcia debaixo dele, ruídos animais de desejo
frustrado saindo de sua garganta. Mas Brig não aliviava sua tensão, embora a dele
fosse igualmente grande.
— Pensei que não quisesse fazer amor — debochou.
— Vá à merda — arquejou Jordanna, numa frustração irada.
Atacou-o, arranhando-o e mordendo-o, exigindo a satisfação que suas carícias
tinham prometido. Essa agressão selvagem provocou Brig como lágrimas e súplicas
jamais provocariam. O acasalamento, nascido num frenesi violento, continuou com
paixão ardente e terminou numa fúria mútua de desejo saciado.
Quando acabou, Brig ficou deitado na cama durante longos minutos, para
recobrar o fôlego e esperar que o coração parasse de lhe martelar as costelas. Não
queria mexer-se, mas uma tonalidade dourada iluminava a alvorada cinzenta.
Jogando os pés no chão, Brig se levantou e começou a se vestir. Sentia Jordanna a
observá-lo. Perguntou-se quando iria poder ficar novamente com ela. Maldita seja
essa bruxa de olhos verdes, pensou. Seu sexo ainda nem esfriara dessa última vez,
e ele já estava pensando em quando seria a próxima.
Brig enfiou a fralda da camisa para dentro da calça. Sem olhar para a cama
onde ela jazia, caminhou até a porta e abriu-a com força.
— Brig!
Pronto para fechar a porta, parou e olhou por cima do ombro, mas não fez
nenhum gesto para voltar para a cama. Quando ela se deu conta disso, saiu da
cama, arrastando consigo o edredom para cobrir a frente do corpo. Andou depressa
até a porta e parou para perscrutar o rosto dele.
— Não fique zangado — pediu.
Era um pedido simples, não era uma desculpa nem uma exigência. Ele
focalizou o olhar na boca da moça. Será que ela tinha consciência do poder
irresistível que exercia sobre ele? E que importância tinha? Segurou-a pela nuca e
puxou-lhe a cabeça para a frente, a fim de fazê-la sentir a pressão dura do seu
beijo.
Escutou passos na escada às suas costas. Interrompeu o beijo abruptamente,
reconhecendo o pisar antes de se virar. Ao deparar com os olhos estreitados de
Fletcher Smith, Brig xingou-se por não ter tido mais cautela... pelo bem de
Jordanna, se não pelo seu próprio. Mas estava igualmente aliviado pelo fato de seu
desejo por ela ser do conhecimento dos outros. Logo atrás de Fletcher, na escada,
estava o filho. Brig notou a presença dele, mas manteve sua atenção dirigida para o
pai.
— Queria dizer-me alguma coisa, Fletcher? — perguntou, num desafio sereno.
Houve um instante de hesitação sombria quando o olhar do homem mais velho
se desviou para a filha. Quando voltou para Brig, estava velado.
— Não.
Passado o risco de um confronto, Brig lançou um olhar para Jordanna. Parecia
serena, embora um tanto constrangida. Brig não via motivo para se demorar ali.
Inclinando a cabeça num breve aceno para Jordanna, dirigiu-se para a cozinha.
Jocko estava servindo uma xícara de café quando ele entrou. Entregou-a a
Brig. Tandy e Frank já estavam sentados à mesa. Pelos olhares que trocavam, Brig
soube que não era segredo o lugar onde ele passara a noite.
— Acho que você ainda ama o perigo, Brig — comentou Jocko.
Um músculo se retesou no maxilar dele.
— Você acha? — foi a resposta reservada que deu.
— Também acho que esse sr. Fletcher Smith é um homem poderoso —
continuou. — Não gostaria que ele antipatizasse comigo.
— Duvido que você pudesse fazer alguma coisa para merecer a antipatia dele,
Jocko — retrucou Brig.
— Mas e quanto ao senhor?
— Isso já é problema meu, não é, Jocko? — perguntou Brig, desafiador.
— Sí, e me preocupo por sua causa.
— Brig pode cuidar de si mesmo — aparteou Tandy.
— É melhor começar a preparar o desjejum, Jocko. Quanto a vocês dois —
Brig olhou para os vaqueiros sentados à mesa —, terminem o café e vão selar os
nossos cavalos e preparar os outros animais para serem carregados.
Ele não estava precisando de uma discussão sobre o bom senso de envolver-
se com a filha de Fletcher Smith. O fato já estava consumado. Brig duvidava de que
mudaria alguma coisa, se pudesse. Porra, mas estava cansado. Percebeu o ar
sorridente de Jocko. O astuto espanhol notara sua expressão cansada, e sabia-lhe
a causa. O clarão momentâneo de raiva deu lugar a um sorriso irônico e retorcido.
— Ela valeu a pena, não?
— É, acho que sim — admitiu Brig.

Depois que Brig desapareceu cozinha adentro, o pai dela desceu os degraus.
Jordanna continuou parada no vão da porta, o edredom bem apertado contra o
corpo. Não sabia o que ele estava pensando a seu respeito, se a estava
comparando com a mulher. Jordanna não fora capaz de falar-lhe do estranho na
festa... Brig. Apesar de o relacionamento entre ambos ser bom, não incluía
confidências íntimas ou discussões pessoais sobre satisfação sexual. A barreira
pai/filha sempre atrapalhava.
Christopher acompanhou-o escada abaixo. Quando ele parou diante de
Jordanna, o irmão tocou-lhe o braço.
— Vamos, papai, não é da nossa conta.
O pai afastou com um repelão a mão do filho. Seus olhos castanhos eram
desconcertantemente diretos ao depararem com o olhar impassível de Jordanna.
— Sabe o que está fazendo? — perguntou ele, simplesmente.
— Sou uma mulher adulta — lembrou ela.
— McCord... — Ele começou a frase, depois mudou de idéia. — Não fique
gostando muito dele, Jordanna — avisou o pai. — Não creio que seja sensato.
— Não estou certa de que a sensatez tenha algo a ver com a emoção —
replicou a filha.
— Não quero que seja magoada. — Havia uma expressão de dor e indecisão
no rosto dele. — Mas há certas coisas que não posso mudar.
— Eu sei. — Estranhamente, Jordanna sentia-se muito calma e segura. —
Não se preocupe comigo, papai.
Ele hesitou e esfregou a testa.
— É melhor ir vestir-se e preparar suas coisas. — Deu as costas a ela. Eu a
vejo à mesa do café.

Capítulo XII

— Espero que tenha um cavalo bem mansinho para mim, Brig. — Max olhou,
desconfiado, para os cavalos selados.
— Monte o malhado. É o animal mais manso da manada. — Brig apontou para
o cavalo de manchas marrons apoiado em três patas junto ao curral.
Jordanna estava um pouco afastada, observando os preparativos de última
hora. Tandy pesava os cestos de vime para distribuir a carga por igual pelas bestas
de carga, enquanto Jocko verificava a lista do que iam levar. Frank, que mantivera
uma distância respeitosa dela a manhã toda, estava apertando as cilhas das selas
nos cavalos. A atitude dos três homens em relação a ela se modificara. Agora
consideravam-na a mulher de Brig, e ela gostava da sensação que aquilo lhe dava.
— Jordanna. — Brig estava distribuindo os cavalos pelos cavaleiros.
Um calor gostoso espalhou-se pelo corpo dela, quando ele disse o seu nome.
— Sim. — Ela se adiantou, as mãos nos bolsos do casaco de caça com capuz,
os cabelos presos sob a copa do chapéu de cowboy de abas largas, deixando
aparecer a linha longa e esguia do pescoço.
— Você vai montar o alazão. — O olhar dele era impessoal, mas tinha sido
assim desde que deixara o quarto, pela manhã.
— Está bem. — Ela se dirigiu para o cavalo selado que Frank estava
desamarrando da cerca. Jogando as rédeas sobre o pescoço do animal, ele
segurou o bridão enquanto ela montava. — Os estribos estão muito curtos, Frank.
Precisam ser aumentados — notou Jordanna.
— É melhor dizer a Brig — resmungou ele, afastando-se rapidamente.
Ela ficou olhando a figura que se afastava, durante um instante, espantada. O
modo como a evitava era quase cômico. Com uma sacudidela irônica da cabeça,
Jordanna começou a desmontar para fazer o serviço ela mesma.
— Qual é o problema? — perguntou Brig, vindo em sua direção.
Jordanna voltou a acomodar-se na sela.
— Os estribos estão muito curtos.
— Pode deixar que cuido disso.
Tirando o pé do estribo, ela dobrou a perna para trás, na direção da patilha da
sela. Ficou vendo Brig aumentar um pouco a tira do estribo antes de passar para o
outro lado da sela, para repetir o procedimento. Quando acabou, deu um passo
atrás.
— Que tal?
Jordanna ficou de pé nos estribos. A bainha que continha seu fuzil descansava
com familiaridade sob sua perna.
— Ótimo — respondeu a moça, acenando com a cabeça. Ele a fitou nos olhos
durante um momento, depois deu uma palmadinha na cernelha do alazão e se
retirou para ir dar uma ajuda a Tandy.
O pai e o irmão estavam montados num par de baios animais resistentes,
nascidos nas montanhas, de pêlos escuros mais fartos por causa do inverno. Na
sela do malhado, Max parecia mais à vontade em cima de um cavalo do que os
levara a acreditar. Todos os cavaleiros usavam chapéus de cowboy de abas largas,
como o de Jordanna, para proteger os olhos do brilho do sol, nas maiores
elevações, e o rosto da poeira, do vento e da chuva.
Kit cavalgou para junto de Jordanna, a fim de esperar a seu lado que os
últimos fardos fossem amarrados.
— Não vai demorar muito para partirmos, agora — observou ela.
— Você está ansiando por isso, não é?
— Claro. — Era uma pergunta boba. Jordanna não pôde deixar de sorrir. —
Essa vai ser uma caçada única na vida. Papai sempre dizia que um homem só tem
direito a um carneiro montês na vida.
Brig caminhava ao longo da tropa de animais, verificando mais uma vez se
toda a carga estava bem amarrada. Fora igualmente meticuloso e completo ao fazer
amor, pensou Jordanna, e sentiu-se emocionada com a comparação.
— Você parece feliz. — Kit olhava para ela, pensativo, uma pergunta muda na
sua expressão.
— E estou. Talvez "alegre" fosse uma palavra melhor. — Pela primeira vez,
não parecia estar faltando nada na vida dela.
O olhar do irmão acompanhou a direção do dela, parando quando deparou
com o objeto da sua atenção, Brig McCord.
— Papai não teve nada a ver com ontem à noite, teve? — Ela ficou espantada
com a pergunta, e confusa.
— Como assim?
— Sei que papai sugeriu que você fosse boazinha com McCord, quando ele
ficou aborrecido por haver uma mulher no grupo, especialmente você. — O olhar
dele continuou a sondar-lhe a expressão, indiferente à raiva indignada que via
acumular-se nela.
— E você acha que ontem à noite eu... dormi com Brig porque era o que papai
queria que eu fizesse? — esbravejou Jordanna, numa voz baixa e vibrante. — Meu
Deus, você é o meu próprio irmão. Como pode pensar isso de mim? De papai?
— Sei que você praticamente adora o chão que papai pisa. Aos seus olhos,
ele não pode fazer nada errado. Não sei até onde você iria para agradá-lo —
defendeu Kit, calmamente, sua posição. — Sei que se sente atraída por Brig
McCord. É possível que você tenha racionalizado a noite passada com a certeza de
que papai queria que você fizesse McCord mudar de idéia a seu respeito.
— Está errado. Não podia estar mais errado. — Achava-se tão zangada e
magoada que mal podia falar. O alazão sentiu a agitação violenta de sua amazona
e mexeu-se nervosamente, sacudindo a crina alourada. — Em primeiro lugar,
jamais faria uma coisa dessas por tal motivo. E papai jamais o sugeriria.
— Nunca disse que você foi conscientemente influenciada por ele —
esclareceu o irmão. — Não subestimo papai. E não gosto da idéia de que a possa
estar usando para obter algo que deseja.
— E não está — retrucou Jordanna, sibilante.
— Papai não ficou muito chateado quando viu McCord saindo do seu quarto,
hoje de manhã.
— E como poderia ficar? Sou adulta. Ele não tem controle sobre o que faço —
argumentou ela.
— Você é filha dele — lembrou Kit. — Papai é bem possessivo quanto às
coisas que lhe pertencem. Não gosta que as pessoas tirem o que é dele... a não ser
que ele queira. O que estou dizendo é o seguinte: ou ele queria que você se
envolvesse com Brig, ou Brig acabou de arranjar um inimigo.
— Não admira que papai não goste de você. — Jordanna atacou-o com
palavras, querendo que ele se sentisse magoado. — Você não é um filho para ele.
É um Judas.
Um sorriso triste tocou a boca do rapaz.
— Ele não é Deus, Jordanna — replicou, afastando o cavalo de perto dela e
indo para junto de Max.
Jordanna ficou sentada na sela, rígida, olhando o irmão afastar-se. As
lágrimas ardiam nos seus olhos. Como podia dizer aquelas coisas sobre ela... sobre
o pai deles? Que coisas pérfidas! Não escutou o pisar abafado de cavalo e
cavaleiro que se aproximavam dela.
— O que foi, Jordanna? — A voz do pai sobressaltou-a. — O que foi que Kit
lhe disse?
Depois de um olhar surpreso para ele, a moça manteve o rosto virado para o
outro lado e lutou para não deixar transparecer na fisionomia o ultraje e a mágoa
que sentia.
— Nada de especial. — A voz dela estava tensa e rouca. — Não podemos
conversar por cinco minutos sem discutir. O mesmo de sempre. — Não podia
arriscar-se a olhar para ele para ver se acreditava nela.
— Jordanna, eu... — Fosse lá o que estivesse pretendendo dizer, mudou de
idéia abruptamente. — Espero que tenha trazido bastante creme para os lábios,
desta vez. Não me agrada a idéia de ter que usar gordura nos lábios rachados,
como tivemos que fazer na viagem ao Alasca.
Nas altitudes maiores a atmosfera era menos densa, permitindo que o sol
secasse e rachasse os lábios rapidamente. Seu lembrete da viagem anterior era
uma tentativa de distraí-la da conversa desagradável que tivera com Kit e de
pilheriar sobre uma época em que haviam partilhado de dificuldades. Jordanna
tentou corresponder.
— Tenho três tubos, desta vez — assegurou ela, lançando-lhe um sorriso
tenso.
— Devem bastar — disse Fletcher, devolvendo-lhe o sorriso, um véu
mascarando o olhar penetrante que lhe lançou... ou será que Jordanna apenas
imaginara o olhar por causa das acusações de Kit? Antes que pudesse chegar a
uma conclusão, o pai já se afastava. — Parece que estamos prontos para partir.
Brig montava um cavalo amarelado, grande e musculoso. O pêlo dele brilhava
como ouro ao sol da manhã, contrastando com a crina, a cauda e as perneiras
pretas. O tamanho dele estava de acordo com o físico do seu cavaleiro. Brig girou o
cavalo num semicírculo para fitar o corpanzil de Frank Savidge.
— Sabe qual é a área geral em que estaremos caçando. Com sorte,
estaremos de volta em menos de três semanas — disse Brig.
— Pode deixar que cuido das coisas por aqui — prometeu Frank.
Com um breve aceno de cabeça, Brig deixou seu olhar abranger o grupo de
caça.
— Vamos indo — disse simplesmente, e botou seu cavalo para andar.
O alazão de Jordanna partiu ansioso, quando o de Brig saiu na vanguarda. Os
animais de carga estavam amarrados em fila indiana, cada um atado à cauda do
seguinte, puxados por Jocko e Tandy na retaguarda. O grupo de cavaleiros trotava
pelo prado da montanha, sem seguir nenhuma ordem em especial. O fato de estar
em movimento oferecia-lhe algum alívio, mas Jordanna continuava a sentir uma
certa tensão tanto na companhia do irmão quanto na do pai. Os ombros largos do
cavaleiro da frente ofereciam-lhe um meio de fuga. Ela instou seu cavalo a alcançar
o amarelado, e diminuiu o passo quando emparelhou com Brig.
— Importa-se que eu cavalgue a seu lado? — perguntou, enfrentando com
sinceridade o olhar de banda que ele lhe lançou. Jordanna queria estar com ele, e
não fazia segredo disso. Deixara clara demais a atração que sentia por ele,
naquelas últimas vinte e quatro horas, para agora estar ocultando-a.
A sela dele rangeu quando ele se virou para olhar por cima do ombro para os
cavaleiros que os seguiam. O olhar indagador que volveu para ela era preguiçoso e
cálido.
— Tem certeza de que seu pai não faz objeção?
— Sou maior de idade.
O comentário dela não provocou nenhuma resposta, enquanto Brig voltava a
fitar o terreno à frente deles. Jordanna viu a leve curvatura de sua boca sob o
bigode. Era a única indicação de que a queria cavalgando a seu lado. Essa certeza
cálida conseguiu afastar a tensão gelada que as palavras de Kit haviam criado.

Lá para o fim da manhã, estavam a quilômetros de distância da casa, entrando


cada vez mais nas montanhas. O terreno irregular fizera os cavaleiros formarem fila
indiana, com Tandy e Jocko fechando a retaguarda junto às bestas de carga. O sol
estava escondido por uma coberta de nuvens cinzentas que envolvia os picos das
montanhas ao redor deles. A temperatura fria transformava a respiração dos
cavalos em vapor branco. O ar estava cortante e revigorante para os sentidos.
Os cavalos andavam silenciosamente sobre um tapete de folhas de pinheiro,
enquanto atravessavam o rebordo da montanha. Caminhavam no limiar de um
bosque de abetos e contornavam uma escarpa de pedras soltas que descia até o
canyon abaixo.
Quando Brig freou o cavalo amarelado, e o resto dos animais parou
automaticamente, Jordanna pensou que fosse intenção dele dar um descanso aos
cavalos. Já se passara mais de uma hora desde a última parada, e tinham estado
subindo continuamente. Os pulmões dela estavam tentando adaptar-se ao oxigênio
rarefeito da altitude, com sua respiração um pouco difícil.
Olhou para trás para ver como o irmão e Max estavam se saindo. Os novatos
geralmente se enganavam, acreditando que o cavalo é que fazia todo o serviço,
quando, na verdade, montar a cavalo era um exercício que, como a natação,
empregava a maioria dos músculos e gastava um bocado de energia. Ambos
pareciam estar em boa forma, embora estivessem começando a se dar conta de
que não se achavam simplesmente sentados na sela.
— Olhe — disse Brig, e sua ordem tranqüila chamou a atenção dela para a
frente.
O olhar da moça acompanhou o braço que apontava. Onde uma saliência unia
a encosta da montanha deles a um outro pico, as árvores escasseavam, formando
um terreno rochoso. O olhar dela correu uma vez pela área, sem ver nada além do
terreno irregular. Na segunda vez, algo se mexeu, e ela conseguiu focalizá-lo.
Um alce imenso estava no limiar da clareira, sua galhada confundindo-se com
os galhos das árvores. Apesar do corpo pesado, quadrado, parecia majestoso, e
não desajeitado. A cabeça erguida dava a impressão de um poder régio. Começou
a andar com passadas senhoris. O círculo branco no seu traseiro — que lhe fizera
merecer o nome índio de "wapiti", que quer dizer "traseiro branco" — ficava bem
destacado contra o pêlo amarelo-claro. O animal parou e virou a cabeça na direção
deles, como se avisado por algum sexto sentido da presença estranha. A distância
entre os seus galhos, de ponta a ponta, tirou o fôlego de Jordanna. Era sem dúvida
a maior galhada que já vira, mais de um metro e meio.
— Olhe para aquele alce, papai — falou, cheia de admiração, e olhou por cima
do ombro, para ver se ele tinha visto o enorme animal.
Mas ele já tinha desmontado e tirado o seu Winchester.270 da bainha. Sua
expressão estava absorta no cálculo da distância e na avaliação das correntes do
vento. Respondeu distraidamente ao comentário dela.
— É uma galhada Boone e Crockett, sem sombra de dúvida — declarou,
referindo-se às dimensões do tamanho troféu estabelecidas pelo famoso Clube
Boone e Crockett.
Brig levou seu cavalo amarelado para a linha de fogo do pai dela.
— Pensei que esta caçada tivesse sido organizada para carneiros monteses.
Você não mencionou que ia pegar outra caça. Ou normalmente atira em tudo o que
vê?
— Meu Deus, homem! Aquilo ali é uma cabeça tamanho troféu! Saia do meu
caminho ordenou o pai, asperamente, uma ruga raivosa vincando-lhe a testa.
O cavalo amarelado não recebeu nenhuma ordem para se mexer, enquanto
Brig apoiava as duas mãos no arção dianteiro da sela.
— Só para me certificar de que entendi direito: o que lhe interessa é conseguir
um troféu, não importando o tipo de animal que seja, certo? — Por trás da pergunta
irônica havia um desafio mudo. — Como seu guia, preciso saber, porque vamos
deparar com outros tipos de caça enquanto procuramos o montês. Se pretende
atirar em tudo o que vir, e não se concentrar nos carneiros monteses, deveria ter-
me avisado antes.
— Quero o carneiro — declarou o pai.
Jordanna sabia que Brig estava querendo saber o quanto ele queria um
carneiro montês tamanho troféu... se seria a ponto de deixar o alce de lado. A
indecisão estampou-se na fisionomia de Fletcher antes que ele finalmente se
virasse e enfiasse com impaciência o fuzil na bainha de couro. Brig voltou a levar
seu cavalo amarelo para a vanguarda do grupo, sem comentar a decisão do
caçador de esquecer o alce.
Com sua linha de visão desobstruída, o olhar de Fletcher voltou para a imensa
criatura, e Jordanna viu a raiva e a frustração expressas na sua fisionomia... raiva
por ter sido privado de algo que queria, e ressentimento amargo pela pessoa que o
contrariara. Ela olhou para o alce que dobrava a saliência e sumia de vista. Era um
animal esplêndido, e teria dado um troféu inestimável. Não compreendeu a objeção
de Brig à sua morte.
Brig esperou até que o pai dela estivesse na sela para recomeçar a jornada.
Jordanna manteve o seu lugar na fila, atrás dele. A atmosfera que cercava os
cavaleiros silenciosos era consideravelmente mais pesada do que antes.

No meio da tarde, Brig mandou que parassem para deixarem descansar os


animais. Três horas de travessia de terreno rochoso haviam cansado visivelmente
as montarias. Max saltou rigidamente da sela, fazendo uma careta por causa dos
músculos doloridos. Não houvera exercícios suficientes que o tivessem preparado
para os efeitos do primeiro dia, embora estivesse se saindo bem no teste.
— Ainda vamos muito longe, hoje? — perguntou a Brig.
— Vamos acampar lá pelas quatro. Levaremos o resto do dia de amanhã para
chegar ao local do nosso acampamento base — respondeu Brig, soltando a cilha da
sela do seu cavalo amarelado, e depois dirigindo-se ao malhado de Max para fazer
o mesmo.
Por força do hábito, Jordanna tirou seu fuzil e sua bainha quando desmontou,
para o caso de o alazão querer rolar pelo chão. A temperatura da tarde chegara ao
máximo, que ainda era bem frio e cortante. Ela se reuniu ao grupo de cavaleiros
que se amontoavam perto de uns arbustos, como proteção contra a brisa mordente.
Jocko distribuía o resto do café que havia na grande garrafa térmica.
A parada para descanso deles era perto da orla da floresta, com penhascos
íngremes e rochosos subindo até o pico. A terra à sua volta era pontilhada de
coníferas atrofiadas e salgueiros anões. Uma teia de rastros de animais
serpenteava por um pasto de musgo e líquen, acompanhando-lhe os contornos
ondulantes. O pai dela estava agachado, aquecendo as mãos na caneca de café.
— Esta é terra de carneiro, Max — disse Fletcher, quando o homem se reuniu
a eles, curvando os ombros contra o vento. Não pareceu impressionado com a
frase. — É quase preciso ser caçador para sentir a emoção dela. A terra onde
pastam os carneiros monteses tem um ar... um jeito.. que a torna diferente de
qualquer outro tipo de terra. Faz parte daquele glamour especial ligado à caça dos
carneiros monteses. Há quem diga que os ursos pardos são os mais perigosos de
se caçar, e o alce exige fisicamente muito de um caçador, mas ir à caça de um
carneiro montês proporciona um fascínio que não pode ser igualado por nenhuma
outra caça graúda. Não importa o que seja.
Jordanna viu o brilho nos seus olhos castanhos e compreendeu o fascínio do
pai pelos carneiros monteses. Eles se haviam adaptado àquele terreno árido e
perigoso dos topos das montanhas, um mundo alpino de pináculos coroados de
neve, uma grandiosidade selvagem que só encontrava rival nos próprios animais.
— Sei o que papai quer dizer — aparteou ela. — Os carneiros monteses têm
carisma, coisa que é rara em seres humanos, e mais rara ainda em animais. São
magníficos.
— Sei o que está querendo dizer — concordou Tandy. — Estive lá no alto das
montanhas durante o período do cio deles. Uma vez vi um par de monarcas
grandes e velhos brigando. Foi um espetáculo. — Sacudiu a cabeça, lembrando-se
com assombro. — Eles se afastavam um do outro, andando empertigados, como se
cada um não fosse digno do interesse do outro. Depois, davam meia-volta e se
jogavam em cima um do outro. Parecia o barulho de duas bolas de bilhar se
chocando, só que era bem mais alto. As montanhas ecoavam com o barulho.
Depois de eles se chocarem algumas vezes, desistiam. Havia lá um punhado de
fêmeas, mas não lhes parecia importar quem havia vencido.
— Pelo menos não se matam por causa das fêmeas — aparteou Kit.
— Alguns deles morrem em conseqüência das brigas — corrigiu Jocko. —
Chocam-se com tanta força que, às vezes, produzem ferimentos internos. Os
carneiros monteses lutam mais do que qualquer outra das espécies que têm
cascos.
— Mas só na época de acasalamento — acrescentou Jordanna —, que é o
final de novembro, não é?
— Sí. É quando os machos deixam para trás a vida de solteiro e saem à
procura das fêmeas.
— Sobrou algum café, Jocko? — Satisfeito pelo fato de os cavalos terem sido
tratados, Brig finalmente se reuniu ao círculo. Continuou a discussão. — Os
carneiros mais fortes têm a prioridade do acasalamento, embora sejam desafiados
por carneiros mais fracos ou mais jovens. É o modo de a natureza se assegurar de
que as crias serão fortes. A fraqueza é excluída da raça.
— O carneiro de chifres maiores é sempre o dominante. — Jocko serviu o
restinho do café numa xícara e passou-o para Brig. — Ele raramente vive até ficar
velho, porque está sempre lutando e cruzando. Fica muito pesado para ele.
— Agora sabemos qual é o nosso problema, hem, Max? — Fletcher riu e
bateu no ombro do outro, jocosamente. — Somos um par de carneiros velhos que já
demos o que tínhamos que dar.
— É, deve ser isso — concordou Max, rindo. — Ovelhas demais, e anos de
menos.
Kit ignorou as pilhérias grosseiras dos dois homens.
— Quanto tempo demora a época do cio?
— Cerca de um mês. Do fim de novembro até dezembro — respondeu Jocko.
— Ou antes, quando o inverno chega cedo às montanhas e vai ser um inverno
bravo. Os animais selvagens sempre sabem. Vivem junto à natureza e reconhecem
os sinais de advertência que ela dá, enquanto o homem tenta construir máquinas
para fazer a mesma coisa.
— Espere até ver um carneiro montês pela primeira vez, Kit — disse Tandy. —
Durante toda a primavera, verão e outono, ele pasta para ganhar forças para a
temporada do cio. É um animal robusto e maciço. Quando a gente se refere a ele
como carneiro, a maioria das pessoas pensa em alguma coisa do tamanho de um
carneiro doméstico. Mas um montês é do tamanho aproximado de um veado
grande. Aqueles chifres enormes, em caracol, podem pesar vinte quilos. Já pensou
o que é carregar um peso desses na cabeça? Não admira que tenha um pescoço
como o de um jogador de rúgbi.
— Sim. — Jocko concordou com o que o amigo dissera. — E você precisa ver
o mesmo carneiro depois da temporada de acasalamento. Ele raramente come,
durante todo esse tempo. Luta, persegue as fêmeas e cruza. Quando a temporada
acaba, está magro e esquelético. É por isso que, quando os grandões ficam mais
velhos, não é sempre que conseguem sobreviver aos invernos rigorosos nas altas
montanhas.
— Os carneiros monteses parecem ser animais fascinantes — murmurou Kit.
— E são — insistiu Fletcher.
— Se são carneiros selvagens, como é que não se parecem mais com os
nossos carneiros domésticos? Ou vice-versa? — perguntou Kit.
— Acredita-se que os carneiros monteses descendam dos grandes carneiros
asiáticos e tenham migrado para a América do Norte quando os dois continentes
eram ligados por um braço de terra — respondeu Jordanna. — Nossos carneiros
domésticos parecem-se com os carneiros do Oriente Médio.
— Conhece alguma coisa sobre a presa que está caçando, não é? — Brig
olhou-a com uma aprovação a contragosto. — Mais do que simplesmente que parte
do corpo atingir para uma morte certeira.
— Papai me estimulou a aprender tudo o que pudesse sobre qualquer animal
que eu estivesse caçando — replicou ela, com um leve dar de ombros que dizia que
isso era inerente a um bom caçador, e que não merecia consideração especial.
— É essencial saber o máximo possível sobre o animal que se está caçando.
— O pai desenvolveu a afirmação dela. — Quais são os seus hábitos, a que hora
come, a que hora descansa, que tipo de terreno prefere. Isso é especialmente
importante quanto aos carneiros monteses das montanhas Rochosas, porque têm
sido muito caçados e foram empurrados, pela usurpação do homem, para um dos
terrenos mais árduos existentes. Ficaram duplamente cautelosos, o que os torna
duplamente mais difíceis de tocaiar... e um troféu duplamente valioso.
— Exceto durante a época do cio — aparteou Tandy. — Então, os carneiros
estão tão entretidos uns com os outros que a gente pode praticamente chegar junto
deles. É por esse motivo que não programam a temporada de caça durante o cio.
Brig esvaziou a xícara e endireitou o corpo.
— Acabou o período de descanso. Está na hora de irmos andando. —
Entregou a xícara para Jocko guardar, enquanto os outros se punham de pé, com
dificuldade.
Jordanna seguiu Brig, enquanto ele se dirigia até o alazão dela, para apertar a
cilha da sela. A conversa sobre os carneiros monteses eliminara a tensão dos
confrontos anteriores entre Brig e Fletcher.
— Brig! — Jordanna ficou vendo-o jogar o estribo sobre o assento da sela. —
Por que fez objeção a que papai matasse o alce, hoje de manhã?
— Não acredito em matar um animal por seus chifres.
A resposta dele fê-la franzir o cenho.
— Se pensa assim, por que concordou em servir de guia para caçar os
carneiros monteses?
Ele apertou com força a tira da cilha.
— Porque precisava do dinheiro. — Sem olhar para ela, segurou o bridão do
cavalo enquanto ela montava, e depois dirigiu-se ao seu próprio animal.
O pai lhe contara que havia comprado McCord, mas Jordanna não havia
acreditado até que o próprio Brig o confirmasse. Estava começando a compreender
por que o pai havia recuado em relação ao alce tamanho troféu. Estava deixando
que Brig se agarrasse a um fragmento dos seus princípios, em vez de forçar demais
a barra. Jordanna desconfiou de que provavelmente fora uma decisão sensata.
— Por que essa testa franzida? — Kit emparelhara o seu baio com o cavalo
dela.
— Estava pensando em Brig, e em por que fizera objeção a que se matasse o
alce — murmurou, distraidamente.
— Ele provavelmente compartilha do meu desprezo pela matança como
esporte. — O irmão deu a mesma resposta que Brig. — Devia haver uma lei que
obrigasse as pessoas a comer o que matam. — Esporeou o seu cavalo à frente do
dela para seguir Brig, quando este começou a cavalgar.

Pouco depois das quatro horas da tarde, pararam para armar o acampamento
onde iam passar a noite. Brig e Tandy cuidaram dos cavalos, amarrando-os e
largando-os para pastar na grama densa da montanha. Jocko fez uma fogueira e
imediatamente começou a preparar um bule de café, antes de dar início ao jantar.
Um biombo de arbustos no limiar do acampamento fazia as vezes de privada, numa
versão da natureza. Jordanna estava acabando de sair de trás dos arbustos para
voltar para junto do fogo, quando o pai se aproximou. Ela sorriu, e já ia passar por
ele, quando ele a deteve.
— Venho querendo falar uma coisa com você, Jordanna — começou. — Mas
não houve chance de ficarmos a sós o dia todo, até agora.
— O que é? — perguntou ela, expressando apenas uma leve curiosidade pelo
assunto desconhecido que o pai queria discutir com ela em particular.
— É sobre ontem à noite. Ou quem sabe deva dizer hoje de manhã...
Jordanna começou a sentir um calor nas faces.
— O que é que tem? — Tentou não parecer tão insegura quanto se sentia.
— Ontem, quando lhe pedi para ser boazinha com McCord, não quis dizer que
fosse tão longe. — Tinha um ar embaraçado, de quem pedia desculpas. — Estava
sugerindo que...
— Sei o que estava sugerindo — interrompeu Jordanna, para poupar-lhe mais
explicações. — A decisão foi inteiramente minha.
— Tem certeza de que... — Estava cético, e não inteiramente convencido.
Doía-lhe ver que acreditava que ela fosse fazer aquilo por ele. Doía-lhe e
irritava-a.
— Sou adulta, papai — disse Jordanna, formalmente. — Sou capaz de
raciocinar por mim mesma. Será que, uma vez na vida, pode confiar em que sei o
que estou fazendo?
— Confio. — Seu sorriso triste era o de quem pedia desculpas. Segurou-lhe a
face numa carícia cheia de meiguice. — Só queria que tivesse certeza absoluta
disso.
— E tenho, papai — assegurou Jordanna. — Juro que não há nada com que
se preocupar.
Virando-se, o pai envolveu-lhe o ombro com o braço, num gesto de afeição.
— Vamos voltar para junto da fogueira e ver se o café está pronto.

Brig continuou escondido nas longas sombras lançadas pelos arbustos.


Quando os cavalos foram escovados e amarrados, ele se aproximou do biombo de
arbustos pelo lado oposto. Ouviu o pedido de Fletcher para falar em particular com
Jordanna. Em vez de denunciar sua presença, ele se afastou, na intenção de
permitir-lhes privacidade, até que ouviu o assunto em pauta. O seu envolvimento na
noite passada fizera com que resolvesse escutar.
— "...quando lhe pedi para ser boazinha com McCord..." — A frase de Fletcher
ainda ressoava nos seus ouvidos.
O músculo retesado no maxilar se descontraiu enquanto via pai e filha
pararem junto ao fogo, estendendo as mãos para as chamas, para se aquecerem. A
resposta de Jordanna confirmara que a noite passada tinha sido também o que ela
desejara.
Não que tivesse se conformado com outra coisa exceto dormir com ela. Não
teria. Mas, se a luz do quarto não tivesse ficado acesa, será que teria ido até a
porta? Ela ficara esperando por ele, convidara-o a entrar.
Sua boca curvou-se num meio sorriso por baixo do bigode, ao se lembrar da
alegação dela de que não era promíscua. Devia ter adivinhado a verdade na
primeira vez em que tinham feito amor, quando ele descobrira o fio de inibição que
a fazia controlar-se.
Na véspera à noite, ela correspondera sem restrições, quando fizeram amor.
Ele a havia despertado. Ou seria o seu maldito orgulho masculino falando? Quase
riu alto ante a pergunta.
Brig pegou-se imaginando brevemente o que seria tão importante a ponto de
Fletcher ter achado necessário que Jordanna "fosse boazinha" com ele. Seria a
caçada? O homem parecia incrivelmente resolvido a ter essa caçada. Brig supunha
que Fletcher estivesse obcecado com a idéia de matar um carneiro tamanho troféu.
Homens mais ricos do que Fletcher Smith tinham lá as suas idiossincrasias.

Capítulo XIII

Brig não estava com vontade de voltar imediatamente para o acampamento. A


serenidade da fogueira e o cheiro do café fresco não o atraíam. Preferia o frio
cortante do ar, fustigando seu nariz e seus pulmões, ao calor das chamas
douradas. Isso dava vida a todos os seus sentidos.
E o isolamento era melhor do que as vozes e o ambiente de camaradagem do
acampamento, aninhado junto a um quebra-vento de árvores. Um riacho de
montanha era cobre puro, num reflexo do pôr-do-sol. O horizonte, que se estendia
até se perder de vista, era marcado por cume após cume. Um coiote uivou, em um
deles.
O acampamento dessa noite era tosco comparado às acomodações que
estariam ao seu dispor no acampamentobase que alcançariam no dia seguinte.
Jocko estava preparando a comida deles sobre o fogo aberto. Somente duas tendas
haviam sido armadas, uma grande para acomodar a maior parte do grupo e uma
menor para Jordanna. Brig viu-a carregar uma braçada de folhas de pinheiro para
dentro da pequena tenda, onde mal havia lugar para se ficar de pé.
Era atraído para ela, com a mesma força irresistível que atrai a mariposa para
a chama. Era uma fraqueza perturbadora, mas quando fora capaz de resistir-lhe,
desde que a conhecera?
Pouco antes, quando ela cavalgara a seu lado, ele se sentira bem, por dentro.
Gostara da sensação de ter alguém cavalgando com ele, alguém que não recebia
ordens suas, que estava ali para partilhar. Ela despertara nele sentimentos meigos
e profundos. Era assim que queria estar com ela.
Apanhando meia braçada de folhas amareladas de pinheiro, Brig dirigiu-se
para a pequena barraca. Uma das abas estava presa, deixando ver Jordanna lá
dentro, de quatro, espalhando as folhas de pinheiro para formar um colchão. Brig
abaixou-se e entrou na tenda de lona, agachando-se para derramar as folhas que
trazia nos braços. Ela se sentou sobre os calcanhares, e seu ar de concentração foi
substituído por um sorriso radioso, que deu um nó nas entranhas dele.
— Alô! — A voz dela estava ligeiramente ofegante, matizada com uma
rouquidão que acariciava o ouvido como o ronronar de um gato. — Estava tentando
ajeitar minha cama enquanto ainda há luz.
— Só vamos passar uma noite aqui. Está se dando a um bocado de trabalho.
O comentário dele pareceu confundi-la. Ela começou a espalhar a pilha de
folhas de pinheiro que ele trouxera, acrescentando-as à sua própria coleção
retangular. Brig sentiu necessidade de disfarçar sua vulnerabilidade diante dela.
— Eu sei — admitiu a moça. — Mas não parece ter importância o enchimento
de um saco de dormir. Depois que se deita nele durante um certo tempo, o peso do
corpo o achata, e a gente começa a sentir o chão frio. Eu costumava andar
carregando um colchão de ar, mas as folhas de pinheiro servem igualmente bem
como isolamento.
Brig tinha a impressão de que ela estava conversando para esconder seu
nervosismo. Ele a perturbava tanto quanto ela a ele. Ou será que ela estava
constrangida por causa da conversa que tivera com o pai, e que ele escutara
escondido?
Seu olhar a sondava. Toda enrolada no pesado casaco de lã, de jeans cotelê
enfiados nas botas e luvas nas mãos, seu corpo estava escondido dele. Só o que
os olhos podiam ver era uma figura esguia mas informe. Até os cabelos castanhos,
beijados pelo sol, estavam ocultos pelo chapéu de abas largas que ela usava. A
única parte dela que não estava coberta era a pureza clássica do seu rosto. Brig
quase se ressentia da beleza fresca e imaculada das feições dela, desanuviadas e
lisas, adultas e não falsamente inocentes. Como que consciente do escrutínio dele,
Jordanna fitou-o.
Ele tinha que dizer alguma coisa.
— Parece um garoto, com o cabelo enfiado sob o chapéu, desse jeito.
— Deve haver algo de errado com os seus olhos, espero. — Com uma risada,
tirou o chapéu e correu os dedos pelos cabelos sedosos e despenteados, as
chamas escondidas pela cortina castanha.
A expressão dela ficou sóbria ante o olhar apertado dele. Brig tinha vontade de
se afogar nas profundezas verdes dos olhos dela, para não mais voltar à tona e
enfrentar a realidade.
— Está pretendendo dormir aqui sozinha? — ouviu-se perguntar.
— Eu... — gaguejou ela, e olhou, pela abertura da tenda, para o grupo de
homens reunidos à volta do fogo, entre os quais o pai. Depois de mais um segundo
de hesitação, seu olhar tocou o chão junto das botas dele e se ergueu para fitar-lhe
os olhos com franqueza imperturbável. — Eu não quero.
— Eu também não.
Quando Jordanna oscilou para junto dele, Brig encontrou-a a meio caminho.
Segurando-lhe a nuca, apertou-lhe a boca. Queria esmagar aqueles lábios macios,
mas a coisa não funcionou assim. A reação rápida dela ao seu beijo brutal
revitalizou a emoção profundamente enraizada. Interrompeu o beijo antes que seus
desejos explodissem, descontrolados.
Sem uma palavra, ele saiu da barraca e foi até a outra. Ali, tirou sua mochila
do meio da pilha e levou-a para a tenda dela. Tinha consciência de que os homens
junto ao fogo haviam observado o seu gesto, mas todos ficaram calados. Havia
anos não desafiava tão descaradamente as convenções. Mas seus desejos eram
primitivos e incontroláveis. Jordanna era a sua mulher, e ele a possuiria...
fisicamente, se não a pudesse possuir de outro modo.
Enfiando-se pela abertura da tenda, jogou a mochila no chão ao lado dela.
Brig notou a tentativa da moça de ocultar uma súbita onda de sensibilidade
vulnerável.
— Vou precisar de mais folhas de pinheiro para colocar debaixo do seu saco
de dormir — disse ela.
— Não se dê ao trabalho — disse ele, sorrindo tensamente. — Vou passar a
maior parte do tempo do lado em que você está, de qualquer forma.

Com os dedos trançados à nuca para formar um travesseiro, Jordanna jazia


dentro dos dois sacos de dormir fechados junto para formar um só. Fitava a
escuridão no teto da tenda, onde a chuvarada martelava a lona. Um trovão pareceu
estourar acima de sua cabeça, e ressoou agourentamente, fazendo vibrar o solo
debaixo do seu corpo. A cobertura de nuvens que os seguira durante o dia todo
finalmente soltava sua fúria numa tempestade de montanha.
Onde Brig estava? Seu coração batia forte, enquanto ela se esforçava por
ouvir o ruído dos passos dele do lado de fora da barraca, acima das batidas
irregulares da chuva e do estrondo dos trovões. Jordanna estava achando sua
ansiedade em ver Brig (a total falta de inibição) vagamente assustadora. Parecia
não ter vergonha nenhuma. Não sabia mais discernir o certo do errado. Mas como
podia ser errado, quando estar com ele fazia com que se sentisse tão bem, tão
certa?
A aba da tenda foi levantada, e Jordanna viu a silhueta dele delineada por um
relâmpago forte. O ar crepitava com a eletricidade do temporal, e algo mais. Ele
entrou, largando a aba da tenda. O gesto agitou o ar frio da noite, que se esgueirara
para dentro da estrutura de lona. Jordanna estremeceu quando a brisa gelada e
molhada tocou-lhe o rosto.
Brig não perdeu tempo, e tirou as roupas molhadas, ficando apenas de roupa
de baixo, e enfiou-se a seguir no saco de dormir. Estendeu as mãos para ela, e
Jordanna aconchegou-se nos seus braços, enquanto a trovoada fazia tremer o
chão. Sentiu a hesitação das carícias dele, quando sua mão entrou em contato com
o material áspero da roupa de baixo dela. O calor do hálito dele estava perto dos
seus lábios, misturando-se ao dela. O bigode úmido fazia cócegas na ponta do
nariz dela.
— O que está fazendo vestida com tanta roupa? — murmurou Brig, bem
juntinho à sua boca.
— O mesmo que você — retrucou Jordanna, baixinho. — Aquecendo-me.
A boca de Brig baixou com força para entreabrir-lhe os lábios, enquanto os
relâmpagos rasgavam o céu, iluminando as paredes de lona da tenda.
— Sei de um jeito melhor — falou, de encontro aos dentes dela, e enfiou uma
mão fria sob a roupa de baixo dela, para aquecê-la ao calor de sua carne macia.
Jordanna estremeceu de desejo quando a mão dele lhe envolveu o seio. Um fogo
correu-lhe pelas veias, a despeito da frialdade dos dedos acariciantes dele, um fogo
tão quente e brilhante quanto os relâmpagos lá fora.
— Eu também — concordou.
Lá fora, o temporal rugia no topo da montanha. Massas escuras de nuvens
chocavam-se, fazendo chover fogo dos céus enquanto a trovoada ressoava,
fazendo vibrar a terra e o ar. Os elementos colidiam, combinavam-se, depois se
retraíam para se encontrar de novo num esplendor cru, atingindo um crescendo.

As mãos dele pareciam não conseguir satisfazer-se. O temporal do lado de


fora da tenda frágil diminuíra, mas mesmo agora, depois de ter satisfeito sua luxúria
e a dela, as mãos dele continuavam a percorrer-lhe o corpo, acariciando-lhe
preguiçosamente os quadris, os seios e os ombros. A chuva, que continuava a
martelar o teto de lona, aguçava suas necessidades. Ela estava deitada dentro do
círculo dos braços dele, a cabeça apoiada no seu ombro, os cabelos sedosos perto
do seu queixo. Os braços dela envolviam-lhe o estômago, e um dos seus joelhos
estava dobrado sobre as pernas dele. Ele queimava com um anseio que não se
satisfazia com a posse física.
— Diga-me — Brig puxou palavras para saciarem a sede emocional que sentia
— você dá a todos os seus guias esse tipo especial de compensação pelas noites
longas e tempestuosas no alto das montanhas?
A trovoada ribombava à distância, enquanto ela esfregava as faces no peito
dele, numa carícia felina.
— Deixe-me ver, houve aquele guia branco na África e aquele espanhol na
Argentina... e um franco-canadense em Alberta. — Era evidente, pela sua voz, que
implicava com ele. Concluiu a lista com um suspiro simulado. — Simplesmente não
me lembro de todos.
— Aposto que não — resmungou Brig, sem achar graça.
Jordanna inclinou a cabeça para trás, mas a escuridão completa escondia-lhe
o rosto.
— Eu só estava brincando — insistiu ela.
O dedo dele traçou o contorno macio do seu maxilar. A lembrança persistente
do conselho do pai para que "fosse boazinha" para ele escolheu aquele momento
para voltar. Não que isso importasse, concluiu Brig. Estava seguro na certeza de
que havia despertado nela sentimentos que nenhum outro homem despertara.
— Esqueci de rir? Desculpe. — Fingiu um pedido de desculpas distraído. —
Está na hora de dormirmos um pouco.
— Suponho que sim — murmurou ela, acomodando-se na antiga posição.
Os clarões ocasionais dos relâmpagos estavam ficando cada vez menos
freqüentes, enquanto Brig escutava o tamborilar da chuva. Jordanna pegou no sono
muito antes dele.
Na manhã seguinte, só o que restava do temporal da véspera era uma
chuvinha miúda e umas trovoadas suaves. Pouco depois do alvorecer, desarmaram
as barracas e continuaram a se dirigir para o local do acampamento base. Os
cavaleiros usavam uma variedade de roupas de chuva: impermeáveis amarelos,
ponchos, capas de chuva. As nuvens pendiam como mortalhas nos picos das
montanhas, e fragmentos cinzentos derivavam pela trilha. O terreno irregular às
vezes ficava escorregadio sob os cascos dos cavalos. Os cavaleiros pouco
conversavam, enquanto seguiam o traseiro dourado molhado do cavalo de Brig, que
puxava a fila.
No meio da tarde, chegaram às acomodações mais substanciais do
acampamento base. Uma tenda grande de armação de madeira, completada por
mesa e bancos de madeira e um fogão de pastor, oferecia-lhes calor e proteção
contra a chuvinha miúda. A manta dos fardos tinha utilidade dupla como piso da
tenda. Enquanto Jocko encostava um fósforo nos galhos para dar início a uma
fogueira, Tandy terminava de descarregar as bestas e Brig armava a tenda
pequena onde ele e Jordanna dormiriam, preferindo o calor natural do corpo dela ao
aquecimento artificial do fogão.
Na manhã seguinte, o chuvisco tornou-se uma chuvarada contínua, enquanto
Jocko começou a preparar pilhas de panquecas. A chuva forte continuou por todo o
dia, confinando o grupo de caça ao acampamento base. Max aproveitou a
oportunidade para descansar os músculos cansados, enquanto Fletcher, sempre o
caçador, examinava seu equipamento. Tandy trouxera consigo o baralho e o
tabuleiro, e não demorou para que ele e Kit estivessem entretidos num joguinho.
Brig encontrou muita coisa para mantê-lo ocupado, desde examinar os cavalos
e pegar mais lenha até limpar as selas e cordas e buscar água fresca. Jordanna
estava começando a descobrir que o único lugar em que ele não disfarçava o
interesse que sentia por ela era na escuridão da tenda. O resto do tempo mantinha-
se distante. O modo como o seu olhar parecia acompanhá-la de longe fazia com
que ela pensasse que ele estava tentando ser discreto, em vez de exibir
ostensivamente o relacionamento íntimo deles na frente do pai dela. Com tal
raciocínio, ela não podia criticar a atitude retraída dele, quando estavam na
companhia dos outros.
Jordanna passou o tempo chuvoso ajudando Jocko. A princípio, ele quase
recusou sua oferta para ajudar com as refeições, até que se deu conta de que era
um meio de ela ocupar o tempo. Aceitou afavelmente sua ajuda.
Na manhã do quarto dia, o sol irrompeu do meio das nuvens. Uma hora depois
do alvorecer, Jocko e Tandy foram deixados sozinhos no acampamento, enquanto o
grupo dava início a seu primeiro dia de caçada ativa.
Foi no meio da manhã que avistaram os primeiros carneiros monteses. Tinham
parado na beira de um platô para correr com o binóculo os cumes adjacentes. Max
e Kit tinham ficado com os cavalos, usando os animais como quebra-vento contra
as rodopiantes correntes de ar das montanhas. Fletcher, Jordanna e Brig tinham
pegado os binóculos e haviam se dirigido para um ponto de observação no platô.
Depois de vinte minutos sem êxito, o pai baixara o binóculo para descansar os
olhos.
— É uma área natural para os monteses — murmurou.
— Sim — concordou Brig, e continuou a examinar a bacia da montanha à
direita. — Há pasto de sobra e muita água no riacho. Os rochedos íngremes logo
atrás oferecem um perfeito meio de fuga aos carneiros. — Brig sentava-se
confortavelmente no chão, apoiando os cotovelos nos joelhos para sustentar os
braços, que seguravam o binóculo.
Jordanna percebeu um movimento perto de algumas rochas e tentou focalizar
as lentes nele.
— Acho que vi alguma coisa ali perto daquela velha área de avalanche.
Tanto Brig quanto o pai concentraram os binóculos na mesma área.
— Lá estão eles. — Brig viu os carneiros marrons em primeiro lugar. Pararam
de pastar e se deitaram para ruminar e descansar.
— Eles são jovens — observou o pai. — Só estou vendo um ali com mais de
meio caracol. — Olhando por cima do ombro, acenou para Kit e Max. — Venham
dar a sua primeira olhada nos carneiros monteses.
Quando os outros dois se reuniram a eles, Jordanna ofereceu o binóculo ao
irmão. Enquanto ela e o pai ajudavam os dois a localizarem os carneiros em
repouso, Brig continuou a vasculhar a área à procura de mais carneiros,
possivelmente mais velhos.
— E agora? — quis saber Max.
— Esperemos — disse Brig. — Pode haver mais deles por aí, que estejam
fora das nossas vistas neste momento.
Esperaram por mais uma hora, vasculhando periodicamente a área com os
binóculos, mas não apareceu nada maior do que o que tinham visto de início.
Montando, cavalgaram para outro setor, onde Brig tinha visto anteriormente alguns
monteses de bom tamanho.
Uma hora antes do pôr-do-sol voltaram para o acampamento base sem ter
visto um só carneiro montês que despertasse o interesse de Fletcher ou Jordanna.
Max achara a experiência tediosa. Embora tentasse disfarçar, era evidente.
— Mal me recuperei da cavalgada até o alto das montanhas e já estou todo
duro e doído de novo — resmungou, para ninguém em particular.
Mas Tandy não ignorou o comentário.
— Os seus músculos ainda não estão acostumados a montar?
— Passamos mais tempo sentando na sela e saltando dela, e subindo cumes,
do que propriamente montando. A parte de trás das minhas pernas está me
matando — queixou-se ele. — É tudo uma perda de tempo, no que me diz respeito.
— Paciência e persistência, Max — sorriu Fletcher, do outro lado da fogueira,
socando o fumo no cachimbo. — Se um caçador não possui essas duas qualidades,
o melhor é desistir e ir para casa.
A crítica velada fez com que Max se sentasse um pouco mais ereto.
— Suponho que sim, mas acho que estou acostumado a um pouquinho mais
de ação.
— Faremos com que participe mais ativamente conosco — declarou Fletcher.
— Tenho um binóculo sobressalente. Jordanna irá pegá-lo para você. Amanhã,
quando sairmos, você pode nos ajudar a procurar a caça, em vez de ficar apenas
parado.
— Quanta generosidade! — disse Max, dando um sorriso tenso.
— Afinal de contas, você está de férias. Não quero que morra de tédio.
Havia uma ironia maldosa no tom de voz jocoso do pai, que fez Jordanna
franzir o cenho.
— — Está ficando tarde. Kit levantou-se abruptamente da sua posição de
pernas cruzadas diante da fogueira. — Acho que vou me deitar.
— Suponho que todos devamos — disse Fletcher, levantando-se também para
seguir o êxodo até a grande tenda. — Boa noite, Jordanna.
— Boa noite, papai — replicou, notando que ele não dissera nada para Brig.
Desconfiava de que ele não estivesse exatamente aprovando o comportamento
dela, mas essa era a primeira indicação que o pai estava dando disso. Estava
colocando a culpa em Brig. A moça ficou olhando para as chamas minguantes do
fogo, sem perceber que todos os outros tinham se retirado.
— Está pretendendo ficar sentada na frente do fogo até se tostar feito um
marshmallow, ou vem para a cama? — Brig estava parado, do lado do fogo,
olhando para ela de um jeito estranhamente avaliador.
Jordanna tentou esquecer a atitude do pai. Estava crescida demais para
precisar da sua aprovação. Além do mais, Brig estava esperando por ela, e isso era
mais importante. Erguendo-se, lançou-lhe um olhar provocante.
— Você não gosta de comer marshmallows tostados? — zombou.
O braço dele curvou-se à volta da cintura dela para puxá-la contra si e para
fora do círculo de luz da fogueira. Aquele calor langoroso e familiar derreteu-lhe os
ossos, enquanto ela se apoiava contra seu corpo rijo. Uma expectativa levemente
ofegante entreabriu-lhe os lábios. Inclinando a cabeça para trás, fitou as feições
vivas e viris dele, bronzeadas pelo brilho do fogo. Podia ver as chamas dançando
nos duros olhos castanhos.
— Gosto dos meus marshmallows queimando por fora e macios e cremosos
por dentro — falou, com voz rouca, antes que a boca firme e máscula desse a
primeira mordida em seus lábios. Jordanna envolveu-lhe o pescoço com os braços,
enquanto ele a colocava no colo para carregá-la para a tenda.

O quinto dia foi tão malsucedido quanto o anterior. No sexto, avistaram o


primeiro carneiro montês tamanho troféu. Estavam perto do local onde haviam visto
o grupo de carneiros jovens. O grande carneiro estava pastando numa saliência
gramada, o corpo marrom e o traseiro branco redondos como uma linguiça. Os
chifres maciços eram grossos na base e enroscados junto da cabeça, com as
pontas se espalhando para fora. As colisões da época do cio haviam lascado um
dos chifres, mas a falha não diminuía o tamanho da prenda.
— Tem bem mais de um metro. — A frase de Fletcher fora dita num quase
sussurro. Ele baixou o binóculo, com um brilho de excitação nos olhos.
— Veja até que distância as pontas foram esfregadas — murmurou Jordanna,
assombrada.
— É para ele poder enxergar de lado — explicou Brig. Com o binóculo,
vasculhou o terreno imediatamente à volta do carneiro de grandes chifres. — Está
localizado num mau lugar.
— É — concordou Fletcher, examinando de novo a área. — Mesmo que eu
pudesse executar uma tocaia bem-sucedida e ficar em posição para atirar, vejam
onde ele provavelmente cairia, se eu o atingisse.
Jordanna dirigiu a atenção para a área logo abaixo do carneiro, onde havia
uma fenda de rochas irregulares, como se a montanha tivesse bocejado para
revelar uma boca escancarada, cheia de dentes.
— Mesmo que conseguisse retirar o corpo da fenda, é provável que os chifres
se quebrassem na queda — suspirou ela.
— Vamos esperar. — O pai estirou-se no chão, de barriga para baixo. —
Quem sabe ele se muda para um local mais acessível.
— É melhor eu também me ajeitar. — Max mudou de posição, deitando-se no
chão.
Por mais de uma hora o monarca das montanhas pastou na grama nutritiva da
saliência. A tensão aumentou, chegando gradativamente à excitação, quando o
carneiro começou a se afastar da fenda.
— Vamos — instou o pai, baixinho, enquanto observava o carneiro, que se
movia devagar. — Esse é um bom lugar. Deite-se, seu filho da mãe ladino!
— Isso ele é — disse Brig —, mas não me agrada muito a escolha dele. Teria
sido melhor para você se ele tivesse continuado a pastar. Pelo menos você poderia
mexer-se quando ele estivesse de cabeça baixa. Desse jeito, não vai poder chegar
muito perto dele sem que o veja, não com este vento.
— Depois de trocar opiniões sobre qual seria o melhor caminho para uma
tocaia, os dois homens se puseram a caminho. Jordanna, Kit e Max ficaram no viso,
observando. Eles haviam escolhido um caminho longo e árduo. Implicava rodear
meia encosta de montanha a pé e subir até o espinhaço de um cume, na esperança
de se aproximar do carneiro montês por cima, o que nem sempre resulta numa
manobra de êxito, em relação a um carneiro selvagem, nervoso e desconfiado,
perpetuamente cauteloso, de tão perseguido.
Uma hora depois de os dois homens terem desaparecido para ir tocaiar o
bicho, Max se virou para Kit.
— Ainda sobrou café na garrafa térmica que Jocko mandou? Bem que eu
gostaria de uma xícara. — Fungou, e bateu os braços para tentar aquecer-se.
— Acho que sim.
Kit desceu com cuidado até onde os cavalos estavam amarrados e voltou com
a garrafa térmica.
— Não bebam tudo — avisou Jordanna. — Papai e Brig provavelmente vão
precisar de um pouco quando voltarem.
Passou-se mais uma hora, até que Jordanna enxergou os dois homens pelo
binóculo. Haviam acabado de chegar ao topo do cume que ficava acima do
carneiro, mas a inclinação muito íngreme da encosta e um bloco irregular de rochas
lhes bloqueavam a visão do carneiro. Ela viu o pai tentar ficar numa posição em que
localizasse o animal na sua alça de mira.
Alguma coisa deu errado. Ou o vento mudou de direção ou uma corrente de ar
localizada levou o cheiro deles até o carneiro. Num piscar de olhos, o montês se
pôs de pé e correu penhasco acima, com os cascos batendo ruidosamente na
pedra. Saltava e subia com a graça e a confiança de um trapezista. O pai nem teve
chance de disparar um tiro.
— Esse tempo todo — resmungou Max —, e ele nem sequer deu um tiro.
— Se não está gostando, Max — murmurou Kit —, não precisa vir conosco
todos os dias. Pode ficar no acampamento.
Max olhou feio para ele, com uma cara de quem achava tal sugestão um
absurdo. Jordanna abraçou os joelhos. O sujeito estava mesmo resolvido a vender
aquelas ações ao pai dela, não importava o quanto isso lhe custasse em
desconforto pessoal.
Quando Brig e Fletcher voltaram para onde eles estavam esperando, a tarde
já ia adiantada. Fletcher parecia exausto, e não discutiu quando Brig sugeriu que
retornassem cedo para o acampamento.

A visão do carneiro de enormes chifres alimentara o entusiasmo de Fletcher.


Na manhã seguinte, ele estava ansioso para encontrá-lo de novo. Percorreram um
bocado de terreno e avistaram vários carneiros de chifres respeitáveis, mas
Fletcher estava resolvido a não se conformar com menos do que o espécime que
vira... pelo menos, ainda não.
Foi só dois dias mais tarde que Brig localizou de novo o carneiro grande.
— É o mesmo? — perguntou Jordanna, deitada no chão, o cotovelo quase
encostado no dele, enquanto sustentava seu próprio binóculo.
— É o mesmo — insistiu Fletcher. — Olhe só aquele pedacinho lascado no
chifre direito.
— Sim.
A boca de Brig estreitou-se numa linha severa, enquanto ele examinava a
possível rota de tocaia. Escutou Fletcher soltar um palavrão baixinho e adivinhou
que o caçador também vira a mesma coisa.
— Só há um meio de chegar até ele, e é perigoso demais — declarou Brig.
— Suponho que vamos ter que esperar de novo — disse Max, soltando um
suspiro enojado.
— Quem sabe ele começa a se mexer — resmungou Fletcher, mas não
parecia esperançoso.
Brig examinou novamente a área com o binóculo. Por mais que a examinasse
minuciosamente, só conseguia encontrar um caminho por onde Fletcher podia
chegar perto o bastante para atirar no montês, que repousava serenamente na
montanha. O caminho era mais do que traiçoeiro. Teriam que rodear a base de uma
ampla área de deslizamentos, onde seria difícil pisar com equilíbrio. Uma pedra
solta que escorregasse de sob os pés deles não alertaria necessariamente o
carneiro da sua presença, já que pedras caindo eram uma ocorrência freqüente no
mundo dele. Mas Brig sentiu o sangue gelar ao ver o abismo na base da escarpa.
Um passo em falso significaria uma queda de cento e cinqüenta metros.
Uma hora. Uma hora e meia. O carneiro ainda não havia se movido. Brig
lançou um olhar a Fletcher, resolvido a sugerir que tentassem num outro dia, mas o
brilho quase obsessivo dos olhos do homem deteve as suas palavras. Voltou a
olhar para o carneiro. Sem o auxílio do binóculo, ele não passava de uma mancha
marrom que mal se distinguia do pano de fundo, a camuflagem da natureza.
— Não sei por que vocês simplesmente não rodeiam aquelas pedras soltas e
pegam o carneiro de surpresa — aparteou Max, cansado da espera incessante.
— É perigoso demais — afirmou Brig.
— Não me parece — continuou Max, dando de ombros.
— Por que não experimentamos? — sugeriu Fletcher. Brig achou que, depois
de mais de uma hora a estudar aqueles chifres grandes e imponentes, a
necessidade obsessiva de Fletcher de pegar aquele troféu dominara seu raciocínio.
— Talvez, quando chegarmos mais perto, não pareça tão ruim quanto daqui.
— É uma boa idéia — concordou Max.
— Sabe que não vai ser melhor — disse Brig, olhando severamente para o
caçador.
— Acho que Brig tem razão — apoiou Jordanna.
— Logo vai ficar escuro e vamos perder o carneiro, de qualquer forma. É
melhor examinarmos aquele caminho mais de perto — argumentou Fletcher,
olhando para o homem de cabelos crespos no solo a seu lado. — Quer vir junto,
Max?
Brig viu a expressão espantada do primo e concluiu que Max não tinha
contado com aquele convite. Max estava muito ansioso por ação, desde que não
incluísse esforço de sua parte. Um ar de divertimento cínico lhe aprofundou os
cantos da boca, ante a hesitação de Max.
— Claro! Vou, sim — concordou, inesperadamente.
— Não seja ridículo, Max! — explodiu Brig, impaciente com a tentativa idiota
do primo de agradar ao homem cujo dinheiro ambicionava. — Não está em
condições de fazer uma subida dessas.
Imediatamente, deu-se conta de que tinha usado a tática errada. Nunca
deveria ter criticado Max na frente de Fletcher, nem insinuado que ele era
fisicamente menos capaz do que um homem mais velho. Agora, Max achava que
tinha que provar ao primo que estava errado. Brig amaldiçoou em silêncio sua
língua comprida.
— Não se preocupe comigo, Brig — falou, teimosamente. — Eu me arranjo.
— Só o que vamos fazer é dar uma olhada mais de perto naquele
deslizamento de pedras — falou Fletcher. — Se parecer muito arriscado,
simplesmente vamos ter que deixá-lo de lado.
— Vou com vocês — ofereceu-se Kit, pondo-se de pé rapidamente.
— Não. — A negativa de Fletcher foi viva e abrupta. Suavizou o tom de voz,
quando olhou para Jordanna. — Fique aqui com sua irmã. Três pessoas bastam.
Mais do que isso e soaremos como um exército, espantando o carneiro, sem dúvida
alguma.
Brig pôde ver, pela expressão do rosto do jovem, que ele queria discutir, mas
o raciocínio do pai era irrespondível. Brig compreendia aquele sentimento, já que a
insistência de Fletcher em que voltariam se a coisa ficasse arriscada demais o
forçara a concordar em ir junto.
Capítulo XIV

Levaram quase uma hora para chegar à área do deslizamento. Brig andara
devagar, por causa de Max. Olhando para trás, viu o primo lutando para respirar no
ar rarefeito. Seus próprios pulmões ardiam com o tremendo esforço físico de cruzar
o terreno irregular a pé. Mas nem ele nem Fletcher sofriam tanto quanto Max.
Contudo, nem uma única vez o primo lhes pedira para pararem, para que ele
pudesse descansar. Brig tinha que admirar a garra dele, embora questionasse sua
sanidade.
Parou no limiar da área do deslizamento e olhou para o ponto distante onde
Jordanna esperava junto com o irmão. Fletcher reuniu-se a ele, enquanto Max
desabava contra um pedregulho, lutando para recobrar o fôlego. Brig forçou-se a
concentrar-se no terreno ameaçador à sua frente.
— Não adianta, Fletcher. — Apoiou as mãos nos quadris, enquanto
inspecionava o perigoso caminho ao longo da orla do abismo.
— Não tenho tanta certeza. — Fletcher não estava convencido. — Olhe ali,
onde é mais estreito. — Apontou. — Aquela pedra enorme dará a uma pessoa algo
sólido em que se agarrar.
— Também é algo de que terá que se desviar e que precisará contornar —
lembrou Brig. — E não se pode ver o que há do outro lado do pedregulho, por trinta
centímetros ou mais.
— Suponhamos que só haja espaço vazio, e daí? — Fletcher deu de ombros.
— Trinta centímetros é menos do que a passada de um homem. Acho que pode ser
atravessado.
— É suicídio. — Brig fitou o homem com ar resoluto. Porém Fletcher não lhe
deu atenção. Virando-se, falou para Max:
— Como é? Você vem comigo?
Max inspirou fundo, sofregamente, e se afastou da rocha em que se apoiava.
— Vou, sim — respondeu, adiantando-se.
Atônito, Brig olhou do primo para Fletcher. Mas o caçador já estava se
dirigindo para a estreita trilha na base da escarpa. Brig parou na frente do primo.
— Você ficou maluco, Max? — Falava numa voz baixa e tensa, que não podia
chegar aos ouvidos de Fletcher. — Olhe para si mesmo. Mal pode respirar. Os
músculos das suas pernas estão provavelmente tremendo, depois desta
caminhada. É uma insanidade ir com ele.
— Saia do meu caminho, Brig. — Max tentou normalizar a respiração. — Não
pedi seus conselhos.
— Pode ser que não tenha pedido, mas está recebendo. Não vá.
— Você pode ficar aqui, se quiser, mas eu vou atrás de Fletcher. — E Max
empurrou-o para fora do seu caminho.
Brig ficou olhando para os dois. Eram um par de rematados idiotas. Ele era o
guia deles, mas nenhum dos dois lhe prestava atenção. Soltou um palavrão, com
raiva, porque sabia que tinha que ir junto com eles.
Praticamente os primeiros vinte metros não representaram nenhum obstáculo.
Brig observava Fletcher abrindo caminho com cuidado, na vanguarda. Havia o
consolo de que o homem, pelo menos, estava mostrando alguma cautela. A trilha
continuou a se estreitar, enquanto a terra se inclinava profundamente para o chão
da ravina glacial, cento e cinqüenta metros abaixo. Brig não acompanhava Max
muito de perto. Se o cascalho acima deles começasse a se mover, um homem seria
jogado da beirada do precipício pelo fluxo de rochas... e qualquer um que estivesse
perto o bastante para ficar preso na corrente seria jogado também.
Na vanguarda, Fletcher chegara junto do pedregulho maciço. Bem agarrado a
ele, começou a contorná-lo, centímetro por centímetro. Tanto Brig quanto Max
pararam para espiar. A alça da bainha do fuzil de Fletcher ficou enganchada numa
beirada irregular. Ele teve que parar para soltá-la. Brig começou a suar. Não se
importava de sentir medo. Aguçava os seus sentidos e bombeava adrenalina para
as suas veias. Fletcher rodeou a pedra e desapareceu por alguns segundos.
— Tudo bem deste lado — avisou.
— Não é tarde demais para voltar atrás, Max — aconselhou Brig, em voz
baixa.
Só o que recebeu em resposta foi um olhar de ressentimento silenciador.
Esperou enquanto Max abraçava a pedra e a contornava; depois tomou o seu lugar.
Segurar a solidez da pedra era bem melhor do que equilibrar-se sem ajuda na
corda-bamba da beira do precipício. Dobrando o pedregulho, Brig viu Fletcher parar
para voltar o olhar para Max. Do seu ângulo, Brig podia ver que a borda começava
a desmoronar a trinta centímetros ou mais do pedregulho. A área fora minada,
deixando uma orla insegura. Poeira e pedrinhas soltas escorregavam da face
inferior, enquanto Max se aproximava dela. A área solapada não era mais larga do
que a passada de um homem. Brig esperava que Max pisasse por cima dela. No
entanto, quando viu o pé de Max baixando, foi exatamente no centro da área
minada. Brig percebeu instintivamente que a crosta fina não agüentaria o primo.
— Max, não pise aí.
Mas o aviso veio tarde. Max tinha tomado impulso demais para mudar a
localização da pisada. A borda agüentou o peso dele por praticamente um segundo
antes de a crosta de terra desmoronar. Max berrou e tentou agarrar qualquer coisa
que o impedisse de cair.
Esticando-se, Brig agarrou uma beirada irregular do pedregulho e tentou
segurar um dos braços que se debatiam. Por milagre, os seus dedos se fecharam
no antebraço de Max, perto do pulso. Retesou-se para suportar o peso de Max,
mas nada podia prepará-lo para a pressão violentíssima. Max agarrou-lhe o braço
com as duas mãos, enquanto o solo desaparecia sob os seus pés. Agitou os pés,
na esperança de encontrar algum apoio, mas um rio de rochas corria pela brecha
na borda.
— Não me solte, Brig. Não me solte — choramingava Max, em pânico total.
Havia sessenta e cinco quilos pendurados no seu braço. Brig esperava que, a
qualquer minuto, o peso de Max deslocasse o seu braço. A dor era cruciante. O
aperto desesperado de Max no seu braço tornava impossível para Brig soltar-se. Se
Max caísse, Brig seria puxado junto com ele.
— Que merda, Fletcher! Onde diabos você se meteu? — Brig cerrou os
dentes, sentindo os músculos saltarem no braço. — Ajude-nos!
Sentiu uma raiva feroz por aquele homem, que arriscara a vida deles por um
carneiro montês... um par de chifres para exibir na parede do seu escritório.
— Não consigo alcançá-los — veio a voz de Fletcher, distante. Ele não estava
fazendo nenhum esforço para chegar mais perto.
Os dedos de Brig estavam escorregando da pedra, perdendo seu ponto de
apoio. Ele lutou com todas as forças para contrabalançar o peso que o arrastava
para as mandíbulas escancaradas do abismo. Lembrou-se, mortificado, de que
Jordanna o espiava do ponto de observação na montanha. Brig não queria que ela
o visse morrer. Inesperadamente, a pressão no seu braço foi aliviada. Max
encontrara um apoio para o pé. O alívio foi delicioso. Enquanto mantinha o precário
apoio, Max procurava outro, sem entrar em pânico, a despeito dos choramingos que
emitia. Finalmente, conseguiu enganchar um joelho na parte sólida da borda, e Brig
achou forças para puxá-lo o resto do caminho até um lugar seguro. Brig encostou-
se à rocha, suando e ofegando, enquanto Max se sentava na beirada, tremendo, de
olhos fechados para não enxergar o abismo. O braço de Brig estava dormente. Ele
nem tinha certeza se o membro ainda estava preso a seu corpo. Esperou até
recobrar o fôlego, depois lançou um olhar ao primo.
— Vamos, Max. Vamos sair desta borda.
O rosto de Max estava branco, uma cor doentia que mostrava o quanto se
achava nauseado, mas não era hora de ceder à fraqueza. Max engoliu em seco e
se pôs de pé, todo trêmulo, agarrando-se ao pedregulho como ponto de apoio. Brig
começou a recuar, centímetro por centímetro, contornando de novo o pedregulho e
cruzando a corda bamba da borda até o ponto onde ela se alargava.
Quando atingiu a relativa tranqüilidade da encosta da montanha, Brig parou e
começou a esfregar o ombro, tentando voltar a senti-lo. Max pareceu desabar no
chão, as pernas recusando-se a sustentá-lo.
— Eu... — Max ergueu os olhos para o homem que lhe salvara a vida. Pela
primeira vez, parecia não encontrar palavras. — Obrigado, Brig.
Brig poderia chamá-lo de todos os sinônimos de idiota por ele ter tentado
cruzar aquela borda, para começo de conversa. Teria sido uma maneira estúpida
de morrer, mas muitos homens haviam sido mortos pela ignorância e a
inexperiência. Brig sabia que Max teria pensado duas vezes antes de atravessar um
beco escuro na cidade, mas aventurou-se serenamente naquela borda, sem levar
em consideração o perigo que ela representava. Aquilo quase o matara, e a Brig
também.
Um chocalhar de pedras anunciou a chegada de Fletcher. Ele olhou para Max,
demonstrando preocupação, antes de olhar para Brig. Este sentiu sua fúria ferver. A
mão do braço bom formou um punho cerrado. Tudo isso acontecera por causa de
um maldito par de chifres! Teria uma satisfação tremenda em arrebentar a cara
daquele homem.
— Os dois estão bem? — perguntou Fletcher.
— Estamos. — O lábio dele encrespou-se, e ele ficou parecendo um lobo. —
Mas não graças a você.
— Não havia nada que eu pudesse fazer. — Fletcher entendeu mal, e pensou
que a crítica era por não ter dado nenhuma ajuda, e não por ter tentado cruzar a
área de deslizamento em primeiro lugar. Quando a borda cedeu e as pedras
começaram a cair, não pude colocar-me em posição para alcançar Max.
Isso era provavelmente verdade. Brig estivera ocupado demais para prestar
muita atenção na posição de Fletcher na borda. Era bem possível que não tivesse
havido jeito de ele alcançá-los em segurança sem provocar um grande
deslizamento, carregando os três para uma morte certa. Brig desconfiava de que
Fletcher estivera mais preocupado em salvar o próprio pescoço do que em ajudá-
los.
— A coisa toda foi de uma rematada idiotice. — Brig não estava disposto a
esquecer quem tivera a idéia. — Você devia ter avisado Max sobre aquele trecho
minado antes que ele tropeçasse nele.
— Eu... pensei que ele tivesse visto. — Fletcher franziu o cenho e deu de
ombros, ante a desculpa frágil.
— Ora, Fletcher! — Brig desdenhou a resposta. — Sabe que uma pessoa
pode escrever no dedo mindinho toda a informação que Max tem sobre os perigos
deste tipo de terreno.
O caçador ficou na defensiva, todo abespinhado.
— Você é o guia. Você é que devia estar na frente, abrindo caminho, não eu.
— E eu lhe avisei que era suicídio tentar contornar aquele trecho, mas você
me ignorou — retrucou Brig.
— Se ele não tivesse vindo atrás de nós, eu teria sido morto — declarou Max,
numa voz que ainda tremia.
Fletcher virou-se para ele.
— Acredite-me, Max, sei disso. Nem lhe posso dizer o quanto lamento que
tenha acontecido, mas agora é tarde demais para olhar para trás e pensar no que
devia ter sido feito.
— Sem dúvida — resmungou Brig. — Tivemos uma sorte danada.
Virando-se parcialmente, o caçador ergueu os olhos para a encosta.
— Aquele carneiro provavelmente está no cume da próxima montanha, a essa
altura.
Meu Deus, pensou Brig, ele ainda está pensando naquele maldito carneiro!
Fletcher era um homem egocêntrico, que nunca se preocupava com outra pessoa
por muito tempo. Não toleraria ninguém se metendo no seu caminho. O único meio
pelo qual Brig poderia tê-lo impedido de seguir por aquela borda teria sido o uso de
violência física. Quanto mais Brig aprendia sobre aquele homem, mais desconfiado
ficava.
Seu ombro estava começando a doer; Brig preferia a dor àquela dormência
paralisante. Olhou para Max para ver como ele estava se recuperando. Ainda
parecia abalado, porém já controlando melhor os membros.
— É melhor irmos andando — falou Brig.
Foi até junto de Max e enfiou-lhe uma mão sob o braço para ajudá-lo a se
levantar. O trio começou a viagem de volta para o alto cume, tomando um caminho
mais direto, sem mais precisar esconder-se das vistas do carneiro montês, que
havia muito desaparecera. Nem ele nem Fletcher mencionaram o fato de Max ter
molhado a calça.
Jordanna e o irmão vieram se encontrar com eles a meio caminho. Os olhos
dela estavam arregalados de preocupação e alarme, quando chegou junto de Brig.
Aquele esbarrão com a morte fazia com que ele desejasse sentir a vida do corpo
dela contra o seu. Porém, um olhar para o rosto fechado de Fletcher impediu-o de
tomá-la nos braços. O homem intrigava Brig. Aparentemente, com o seu silêncio,
Fletcher endossava o relacionamento de Brig com a filha, no entanto parecia
ressentir-se dele, ao mesmo tempo.
Jordanna parou diante dele, a apenas alguns centímetros. Alerta, notou que
ele poupava o braço dolorido. Tocou-o, hesitante, consciente de que o contato
poderia lançá-los um nos braços do outro.
— Está ferido? — perguntou.
— Não seriamente.
— Eu estava... preocupada com vocês. — A admissão foi feita com certa
hesitação, e ela olhou para o pai. — Não deviam ter tentado. Podiam ter se matado.
— Por que o fizeram? — quis saber o irmão, perscrutando o rosto de Fletcher
com olhar atento. — Você falou que não o faria se fosse arriscado demais.
— Porque pensei que conseguiríamos — foi a defesa impaciente. — Eu
consegui.
— Mas Max, não — acusou Kit. — Quase caiu e morreu por sua causa.
— Mas não caiu. — Fletcher mal estava se controlando. — O que aconteceu
já acabou. Não há nada a se ganhar repisando o assunto.
— Exceto certificar-se de que nada parecido aconteça de novo — murmurou
Kit, num tom que parecia um desafio. Lançou um olhar frio ao pai e se dirigiu para
Max. — Você está bem?
— Estou. E não se preocupe — falou Max. — De agora em diante, seu pai que
tocaie a caça dele. Eu não vou sair de cima do cavalo.
— Primeiro temos que chegar até os cavalos — lembrou Brig, e o pequeno
grupo recomeçou a andar.
Depois da longa caminhada até onde haviam deixado os cavalos, foi um
bendito alívio para as pernas deles cavalgarem de volta ao acampamento. A uns
quatrocentos metros do acampamento, o cavalo amarelo começou a trotar. Brig fez
uma careta quando a andadura sacudiu seu braço. Quando desmontaram perto das
estacas onde os cavalos eram amarrados, o olhar aguçado de Tandy Barnes notou
o modo cauteloso como Brig segurava o braço para não aumentar os danos
sofridos pelo ombro.
— O que lhe aconteceu?
Brig explicou rápida e não muito precisamente o que acontecera. Passou por
cima do acidente como se fosse algo que poderia ter acontecido a qualquer hora, e
não o resultado da tentativa imprudente de Fletcher de cruzar uma perigosa área de
deslizamento.
— Jocko e eu vamos cuidar dos cavalos. Você trate de ir para o acampamento
e enfiar um pouco de café quente pela goela — insistiu Tandy. — Logo que eu
acabar, vou dar uma olhada no seu ombro.
O ombro lhe doía tanto que Brig não fez objeção ao exame de Tandy. Na
tenda grande, aquecida pelo fogão de pastor, ficou só de calça, e o ato de se despir
fez com que sentisse punhaladas como de uma faca quente. Jordanna rondava a
mesa, observando-o, enquanto Tandy sondava o ombro com seus dedos sensíveis.
— Teve sorte de não deslocá-lo. Poderia tê-lo deslocado... se fosse um
homem normal — resmungou o vaqueiro atarracado.
— Só estirei alguns músculos. — Brig afastou-se dos dedos que o
examinavam, aumentando sua dor.
— É, estirou mesmo alguns músculos, e distendeu-os, e torceu-os, e tudo o
mais a que tinha direito. — Tandy estava aborrecido com a maneira superficial
como ele se referia ao ferimento. — É melhor enfaixarmos um pouco esse ombro
para sustentar esses músculos e dar-lhes uma chance de descansar. — Virou-se
para o pastor basco, que estava observando tudo. — Jocko, quer...
— Sí, vou buscar ataduras — replicou Jocko, respondendo à pergunta antes
que fosse formulada.
Jocko caminhou até um canto da tenda e abriu um pacote que continha
material de primeiros socorros. De lá, tirou um rolo largo de atadura elástica,
passando-o a Tandy. Este começou a envolver o ombro ferido, mas com muita falta
de jeito.
— Se você fosse um cavalo, eu saberia como fazer isto — resmungou para
Brig, e desenrolou a atadura para recomeçar.
— Deixe que eu faço — falou Jordanna, adiantando-se para tirar a atadura
cor-de-carne das mãos do vaqueiro.
— Acha que sabe? — ironizou Brig, que não estava lá de muito bom humor.
— Tive várias semanas de treino — replicou a moça, calmamente. — É útil
para quem faz expedições de caça. Nunca se sabe quando se pode precisar pôr em
prática esses conhecimentos.
Suas mãos eram suaves e eficientes. Ficou bem junto dele para prender a
extremidade da atadura, dobrando o corpo à altura da cintura, os cabelos longos
caindo para a frente por sobre um dos ombros, e brilhando, avermelhados, à luz da
lanterna. Seu cheiro familiar chegou às narinas dele. Era um cheiro de cavalos e
couro de sela misturado a uma fragrância limpa, sensual.
A despeito das condições primitivas do acampamento, ela se lavava com
freqüência, aquecendo a água numa chaleira, nas chamas da fogueira, e tomando
banho de esponja na privacidade da tenda. Ele vira sua silhueta nas paredes de
lona por mais de uma vez. Não tinha sido um gesto provocante da parte dela, mas o
resultado fora o mesmo, o contorno indistinto do corpo dela, e a imaginação
incendiando o seu sangue de desejo. A mesma expressão estava agora estampada
nos seus olhos castanhos.
O ombro dele estava firmemente enfaixado. Enquanto alisava a extremidade
do pano, Jordanna ergueu os olhos para ele.
— Está bom?
— Está ótimo. — O desconforto que o ferimento lhe causava não era o que
estava ocupando o pensamento de Brig, no momento, e a moça leu isso nos olhos
dele.
Endireitou o corpo, evitando os olhos de Brig, enquanto o olhar dele se dirigia
para Tandy e Jocko. A ponta de constrangimento parecia ser mais por causa deles
do que dela. Estendeu a mão para a camiseta de mangas compridas que estava
sobre o banco de madeira.
— Vou ajudá-lo a vestir isto — disse ela.
— Parece que está em boas mãos, Brig. — Tandy foi se dirigindo para a aba
da tenda. — Vou pegar aquela lenha que você estava querendo, Jocko.
— Vou com você. Preciso apanhar um pouco de água no riacho para aquecer,
para os homens poderem se lavar. — Jocko arranjou uma desculpa para deixá-los
sozinhos.
Quando Jordanna se virou para ele com a camiseta, Brig estendeu a mão e
deslizou-a pela coxa dela, puxando-a mais para perto pelo quadril. Enterrou o rosto
no vale entre os seios dela, as camadas de roupas impedindo sua boca de tocar-lhe
a pele. Escutou-lhe o som reconfortante das batidas do coração, e puxou-a para os
seus joelhos, enquanto sua boca procurava a dela. Os lábios de Jordanna eram
macios como um creme, e o beijo prolongou-se possessivamente.
— Hoje... — começou ela, e Brig sabia que estava querendo falar no acidente.
— Não quero falar de hoje à tarde. — Não queria lembrar-se de como os seus
pensamentos se haviam voltado para ela, quando achou que ele e o primo iam
morrer. Brig fê-la levantar-se. — Ajude-me a vestir a camiseta.
Depois que ela o ajudou a enfiar os braços nas mangas e puxou a camiseta
por sua cabeça, Brig recusou sua ajuda para vestir a camisa de flanela,
conseguindo fazê-lo sozinho... embora dolorosamente. Flexionou o ombro ferido.
Levaria alguns dias até que ele pudesse mexer-se livremente sem sentir dor.
— Quer um pouco de café? — Jordanna estava diante do fogão, servindo-se
de uma xícara.
— Não.
Pousando a xícara, Jordanna vestiu o capotão pesado com capuz.
— Acho que vou lá para fora um pouco.
Brig deixou-a ir sem fazer objeção.
Max estava sozinho ao pé do fogo, quando Jordanna saiu da tenda. Tandy
estava se aproximando com uma braçada de lenha. Jocko vinha vindo da direção
do riacho, trazendo um balde d'água. Jordanna olhou ao redor, procurando o pai e o
irmão. Sorvendo seu café, caminhou até junto do fogo.
— Onde estão papai e Kit? — perguntou a Max, que se encolhia junto ao fogo.
Max olhou para ela vagamente por um instante, depois deu de ombros.
— Não sei. Saíram por aí. Eu não estava prestando muita atenção — admitiu.
Jocko ouviu a pergunta e deu a informação.
— Eu os vi perto do riacho.
— Obrigada.
Jordanna parou ao pé do fogo por um momento, depois saiu em direção ao
riacho da montanha.
Enquanto se aproximava, ouvia o ruído do riacho correndo. A água corria pelo
leito coberto de rochas, deixando as pedras bem polidas e lisas, aparando-lhes as
arestas. Era muito clara e fria. Jordanna seguia seu curso sinuoso, onde a
montanha oferecia menos resistência.
O som de vozes raivosas fê-la diminuir o ritmo dos seus passos, enquanto
tentava localizar os homens. Um pouco à sua frente, Jordanna viu o pai e o irmão
discutindo. A água que caía abafava as palavras deles, mas nada obstruía sua
visão. Jordanna nunca vira o pai assim tão zangado. E o que quer que Kit lhe
estivesse dizendo só tornava as coisas piores.
Enquanto Jordanna assistia à cena, o pai deu um tabefe com as costas da
mão no rosto do filho, jogando-o no chão. Ela soltou uma exclamação abafada de
choque e correu para diante. Sem esperar que Kit se levantasse, o pai saiu
apressado na direção do acampamento. Quando ela chegou junto do irmão, Kit
estava se pondo de pé e esfregando o rosto. Depois de lançar-lhe um olhar, passou
a evitar os olhos dela.
— Você está bem? — indagou ela, ansiosamente.
— Estou — respondeu o rapaz, movimentando o maxilar com cuidado.
— Por que ele bateu em você? Sobre o que estavam discutindo? — Jordanna
não podia imaginar o que Kit pudesse ter dito para incitar o pai à violência.
Kit hesitou, fitou-a nos olhos por um momento pungente, depois desviou o
olhar.
— Você não acreditaria em mim, se eu lhe contasse — murmurou.
— Mas que espécie de resposta é essa?
— Deixe para lá, Jordanna. — A linha rígida do seu maxilar lhe dizia, tanto
quanto as palavras, que ele não iria mais discutir o assunto com ela.
Ao ouvir a aba da tenda ser erguida, Brig se virou. Estava com esperança de
que fosse Jordanna voltando, mas foi Jocko quem entrou na tenda. Um lampejo de
desapontamento perpassou-lhe pelos olhos antes que ele pudesse disfarçá-lo, e o
pastor o notou.
— Ela foi até o riacho procurar o pai e o irmão — informou Jocko.
— Não me lembro de ter perguntado nada — retrucou Brig vivamente. Será
que fora tão transparente?
— Não, não perguntou — admitiu Jocko, rindo baixinho.
Brig caminhou até o fogão e se serviu de uma xícara de café, lembrando-se de
ter recusado quando Jordanna lhe oferecera. Era preto e forte, como ele gostava.
Levou a xícara para a mesa tosca de madeira e se sentou no banco igualmente
tosco.
— Prestou atenção nela, ultimamente? — perguntou Jocko, que estava se
servindo de café no fogão.
— Em quem? Em Jordanna?
— Sí. Em Jordanna. — O basco zombou da simulada tentativa de ignorância
por parte de Brig.
— O que há a respeito dela? — Brig fitou a xícara, sentindo sua própria
agitação revolvendo-se como um caldeirão fervente.
— Já estamos nas montanhas há mais de uma semana, e ela não mudou. Se
mudou, foi para ficar ainda mais bonita.
— Isso é natural. Sendo a única mulher, é lógico que pareça mais bonita. —
Brig pareceu não dar importância à frase.
— Não, você não está entendendo. — A reprovação de Jocko era meiga,
como se ele estivesse corrigindo uma criança. É que ela floresce sob condições
árduas. Fica mais forte por causa do desafio das montanhas. Sabe selar o próprio
cavalo, caçar os seus animais, cozinhar sua comida, lavar sua roupa e cuidar de
ferimentos. Não se sente assustada ou intimidada com o isolamento. Não anseia
pela civilização ou pelo conforto de uma cama macia.
— E daí? — A enumeração de todas as suas qualidades não era necessária.
Brig notara todas aquelas coisas que lhe exigiam admiração. Sua confiança em si
mesma, a força na adversidade, a espontaneidade carinhosa na cama e suas
aptidões básicas eram todas características que imaginara na mulher ideal. Não
precisava que lhe dissessem que Jordanna as possuía.
— Ela é uma mulher rara — declarou Jocko. — É como as pioneiras que
vieram para o oeste com os maridos e as famílias e trabalharam lado a lado com
eles para construir uma nova vida.
— Você deixou de fora um ingrediente-chave, Jocko. O coração. — Por que
dissera isso?
— Acha que sua mulher não tem coração? — Lançou a Brig um olhar
intrigado.
Brig levantou-se da mesa, quando Jocko já ia sentar-se.
— Não falei isso.
— Não? — A única palavra era mais do que cética.
— Não. — Era uma negativa seca. Havia algo preocupando-o, mas ele não
conseguia identificar o quê.
— Sei que ela é mais do que uma simples mulher para você. Será que tem
medo de admitir que gosta dela? — perguntou Jocko, lançando-lhe um olhar triste,
cheio de piedade.
— Ela aquece o meu saco de dormir nas noites frias da montanha. Enfaixa
meu ombro. Cavalga a meu lado. É, gosto dela — concordou Brig, numa voz
confusa e irritada. — Mas estamos aqui para caçar carneiros, está lembrado? E o
pai dela quer um montês tamanho troféu. — Com uma paixão que quase matou
Max hoje à tarde... e a ele também.
— E o que tem isso a ver com Jordanna? Está fazendo as coisas parecerem
complicadas — falou Jocko, sacudindo a cabeça.
— Isso é porque você é pastor, Jocko. Para você tudo é muito simples. —Brig
tinha certeza de que não era. — Não sabe como a gente rica e egocêntrica deste
mundo pode ser ardilosa e astuta para obter o que deseja. É um mundo de coiotes,
Jocko. Eu sei. Vivia nele. Um coiote sozinho ataca apenas algo mais fraco... uma
ovelhinha recém-nascida ou um animal aleijado. Mas você sabe o que um bando
deles é capaz de fazer, Jocko. Trabalhando juntos, os coiotes podem derrubar um
alce adulto. — Lançou um olhar para a abertura da tenda. — Pode ser que
tenhamos aí fora um bando de quatro coiotes caçando. Tenho uma estranha
sensação de que não devemos confiar neles nem um tiquinho, Jocko.
— Aconteceu alguma coisa hoje que você não mencionou? — adivinhou
Jocko.
— Basta lembrar-se do que eu disse.
Brig tomou um gole do seu café e pegou a jaqueta de pele de carneiro,
jogando-a nos ombros antes de se dirigir para a fogueira.

No dia seguinte, Max resolveu ficar no acampamento com Jocko e Tandy. A


experiência da véspera estava vívida demais em sua lembrança. Brig não podia
culpá-lo, embora tivesse visto o brilho de desdém no olhar de Fletcher.
Ainda bem que Max ficara no acampamento. Foi um daqueles dias que punha
à prova a paciência de um caçador. Jordanna escolhera um carneiro de um grupo
de solteiros. Os chifres dele não eram do tamanho daqueles que o pai buscava,
mas eram consideravelmente maiores do que quaisquer outros que eles tivessem
visto. Deviam medir cerca de um metro, mas o carneiro disparara no último minuto.
Ela errara o tiro e não tivera tempo para um segundo. Viram o carneiro de Fletcher
diversas vezes, mas ele estava sempre em movimento, subindo para algum lugar.
As tentativas de adivinhar para onde o animal se dirigia provaram sempre estar
erradas. Foi um Fletcher Smith chateado e desanimado que voltou para o
acampamento base ao crepúsculo.
Max tornou-se o alvo do seu desprazer. Depois do jantar, estavam todos
sentados ao redor da fogueira. Fletcher estivera discutindo com Brig sobre qual
seria o local mais provável para encontrarem o seu carneiro, no dia seguinte. Como
jamais tinham visto o monarca montês duas vezes no mesmo lugar, Brig se negara
a dar um palpite, o que desagradara a Fletcher. Este virou-se para Max,
debochando dele.
— E quanto a você? Vai com a gente amanhã? Ou vai ficar de novo no
acampamento? — Sua expressão era de escárnio.
Max ficou branco, mas tentou uma reação diferente.
— Não sei. Não pensei no assunto.
— Se não tem estômago para ir, é melhor mesmo que fique aqui — afirmou
Fletcher, num tom de voz que dizia estar convencido de que Max não o tinha.
— A propósito — manifestou-se Kit —, eu estava pensando em ficar amanhã
no acampamento. Como você, Max, acho que uma mudança de ritmo é uma boa
idéia, de vez em quando. Não estamos atrás de um troféu, como papai, portanto
não há motivo para sairmos todos os dias.
— É isso aí — concordou Max, rapidamente. — No entanto, quem sabe? Pela
manhã pode ser que eu me sinta disposto a cavalgar junto com os outros.
— Claro, deve fazer o que lhe convier — disse Fletcher, e recostou-se num
toro para fumar seu cachimbo. — Estive pensando naquelas suas ações, Max. Se
decidir comprá-las, como gostaria que a transação fosse feita?
Fletcher jogara a isca, e, como um peixe de incubadora, Max a engolira. Os
dois homens ficaram entretidos numa discussão legal e financeira que durou o resto
da noite. Antes de se recolherem, Max estava falando em continuar a discussão no
dia seguinte... o que queria dizer que resolvera ir junto.
Havia uma secura cínica nos olhos de Brig. O medo do primo não era tão
grande quanto sua ganância. Ele arriscaria qualquer coisa para conseguir o dinheiro
de Fletcher. Max o provara. Brig dirigiu-se para a tenda pequena, massageando o
ombro dolorido.
Capítulo XV

— O cavalo amarelo está com uma ferradura solta. — Tandy deu a explicação
para Brig, enquanto selava um grande cavalo baio de carga, que fazia também o
papel de montaria sobressalente. — Assim, você vai ter que montar o Jughead
hoje.
— Jughead? — Jordanna lançou um olhar a Brig, um brilho malicioso nos
olhos, pois o nome dado ao cavalo era usado como gíria para "mula" — Que nome
terrível para se dar a um cavalo.
— Fique contente por não ter que montar aquela cabeçuda, teimosa e burra
imitação de um cavalo. — Um sorriso preguiçoso insinuou-se nos cantos da boca
de Brig.
— Seu ombro o está incomodando, hoje? — quis saber Tandy, resmungando
enquanto apertava mais a tira da cilha.
— Quer que o amanse para você? — Brig hesitou, depois concordou.
— É melhor. Eu poderia ser derrubado, e isso seria como colocar sal na ferida.
Segurou o bridão do cavalo, enquanto Tandy montava. Todos, inclusive
Jordanna, tinham se afastado um pouco para espiar. Tandy enterrou bem o chapéu
na cabeça e se acomodou fundo na sela. Quando Brig soltou o bridão, o baio deu à
platéia uma animada exibição de corcovos. Com um grande bufido de derrota, o
capão endireitou as costas e começou a trotar.
— Ele sempre age assim? — perguntou Jordanna, com um sorriso ainda lhe
suavizando a boca.
— Com cavaleiro ou com carga — concordou Brig.
Tandy aproximou-se deles e desmontou, passando as rédeas para Brig.
Jordanna estava parada ao lado do seu alazão. Nunca se cansava de ver como Brig
subia para a sela. A ação era suave, um movimento fluido. Montado no cavalo, ele
dirigiu o olhar para ela. Jordanna se adiantou para o lado do alazão, mas, quando
pôs o pé no estribo, notou que a sela estava solta. Começou a apertar a cilha.
— Deixe que eu o faço. — Tandy estava a seu lado.
— Tandy sempre fica com a sela larga. Esqueci de verificar.
— Há algo errado com o meu cavalo — afirmou Max. — Não quer se mexer.
Jordanna lançou um olhar ao capão de pintas marrons. Max enfiava os
calcanhares nos flancos do cavalo, mas ele nem sequer piscava. Estava imóvel
como uma estátua, a despeito da insistência do cavaleiro.
— Pode ser que a cilha esteja muito apertada — sugeriu Tandy. — Já vou
para aí.
— Deixe-me ajeitá-la, Tandy — ofereceu-se Fletcher, saltando do seu cavalo.
Caminhou até o malhado e ergueu os olhos para Max. — Vai ter que desmontar
disse, com paciência irônica.
— Não sabia.
Fletcher soltou a cilha um mínimo, e ajustou a sela para que ficasse
exatamente no meio das costas do cavalo, depois se afastou.
— Experimente agora, Max.
Ele montou e esporeou o cavalo.
— Nem se mexe — declarou Max, chateado.
Tandy deu uma palmada na barriga do alazão e apertou mais a cilha da sela
de Jordanna.
— Pode ser que haja uma dobra na manta da sela. Esse pintado não é fácil.
Não dá um passo, se houver algo errado com o equipamento. Tinha um problema
nas costas quando o compramos. Acho que resolveu que isso não iria lhe acontecer
de novo.
Max desmontou de novo, e Fletcher soltou a cilha completamente. Examinou
debaixo da sela e do coxim da sela, alisando tudo. A certa altura, deteve-se.
— Acho que encontrei, Tandy — falou. — Havia uma dobrinha no coxim. Deve
ter sido isso.
Quando Max voltou a montar, o malhado começou prontamente a andar.
— Que cavalo sabido, Max! — observou Smith, e voltou para a sua montaria.
Dali a minutos estavam todos montados, e Brig os levou para fora do
acampamento. Jordanna ia atrás dele. Aquele se tornara o seu lugar na fila.
Gostava de ir seguindo os ombros largos dele. Sempre se sentia especialmente a
salvo e segura quando ele estava por perto... não que antes tivesse tido medo. Era
uma sensação que não sabia explicar.
O plano para o dia de caçada era voltar ao lugar onde haviam visto o carneiro
grande pela primeira vez. Era perto do acampamento. Dali, poderiam começar a
circular para os outros lugares até encontrar o tal carneiro, ou outro para Jordanna.
Ela olhou para trás, para o resto do grupo. Max vinha logo atrás dela, seguido
pelo pai, e finalmente por Kit. Este resolvera vir depois que Max mudara de ideia
quanto a ficar no acampamento. Jordanna tinha achado ligeiramente comovente o
modo como o irmão se apressara em defender Max, na noite anterior, das
implicâncias do pai. Claro que Kit não tinha compreendido que o pai não queria ser
tão mordaz. Era só sua frustração por causa do carneiro fujão, uma coisa que ela
compreendia muito bem.
Ao pensar nos dois, lembrou-se da discussão que presenciara. Tivera
esperanças de que aquela viagem acertasse as diferenças entre pai e filho, mas
elas pareciam estar piores. Por quê? Não conseguia encontrar motivo algum.
Absorta nos seus pensamentos, Jordanna não notou que Brig tinha parado. O
alazão parou por conta própria ao lado dele. Ela lançou um olhar para Brig, que
havia dirigido o binóculo para o vale abaixo deles.
— O que foi? — perguntou. O binóculo dela estava pendurado no pescoço,
preso à frente da jaqueta, para não se sacudir enquanto ela cavalgava.
— Um urso preto. — Brig baixou o binóculo por um minuto, e olhou de novo.
— Perto daquelas árvores. Está vendo?
Jordanna localizou o movimento e focalizou o binóculo. O urso estava a
alguma distância abaixo deles, um ponto negro se movimentando, até que a
ampliação conseguida com as lentes do binóculo lhe deu forma. Não parecia maior
do que um grande cachorro labrador. A escuridão do seu pêlo felpudo fazia o urso
parecer menor do que era a tal distância. O animal continuou sua andadura
ondulante e desapareceu no meio das árvores.
— Há tanta caça nessas montanhas! — disse Jordanna, baixando o binóculo e
olhando para Brig. O pequeno corte no maxilar de Brig trouxe um sorriso aos lábios
dela.
Brig ficou vendo o sorriso formar-se com um interesse desconcertante.
— Por que o sorriso?
— Estava me lembrando da dificuldade que você teve para se barbear hoje de
manhã... até que tomei conta de você. — O calor da voz dela era ligeiramente
implicante.
Por um minuto um sorriso brincou na boca de Brig, depois desapareceu.
— Acho que abri um precedente perigoso, quando lhe confiei uma navalha —
murmurou, fazendo o cavalo andar.
Enquanto ele saía andando, a testa franzida dela era a um só tempo divertida
e intrigada. Brig parecia quase sério. O cavalo alazão voltou a entrar na fila. Uma
trilha íngreme e sinuosa estava logo à frente, serpenteando pelo meio das árvores
até a crista da montanha. Era uma subida árdua, em ziguezague, cheia de trechos
onde os cavalos tinham dificuldade em manter o equilíbrio. Jordanna deixou solto
seu cavalo criado nas montanhas, sabendo que ele se sairia melhor sem nenhuma
interferência por parte do cavaleiro.
Durante a primeira metade da manhã, não avistaram um só carneiro. Perto do
meio-dia, estavam deitados de barriga para baixo num cume, vendo pelo binóculo
uma bacia natural de carneiros, com um pequeno lago alpino, uma boa pastagem, e
rochedos íngremes e escarpados. A área parecia não ter nenhum carneiro montês.
— Olhem ali, acabando de entrar no prado — disse o pai, focalizando a orla
meridional da encosta.
— Estou vendo — respondeu Jordanna, enquanto os três carneiros entravam
cautelosamente no prado. — Um deles parece de bom tamanho.
— É difícil dizer daqui — falou ele. — Estão longe demais para eu saber se
aquele tem o chifre lascado ou não.
— Vamos nos aproximar — disse Brig. — Podemos chegar junto deles contra
o vento, se cavalgarmos logo abaixo daquele caminho ao longo do cume, à direita.
— Vasculhou de novo a área. — Não deve ser uma tocaia muito difícil, daquele
ponto.
Montando, caminharam ao longo do acostamento do cume, cujo espinhaço os
ocultara de vista. Num lugar escolhido por Brig, pararam e foram se dirigindo
cuidadosamente para o alto. O trio de monteses ainda estava lá, pastando, não
muito longe do lugar em que eles os haviam visto. O carneiro de chifre lascado não
estava entre eles, mas o maior era quase equivalente. Jordanna examinou-o
através de uma luneta possante, antes de passá-la ao pai.
— É dos bons — concordou Fletcher. — Vai tentar pegá-lo?
— Vou.
Depois de uma discussão em voz baixa com Brig, sobre as possíveis rotas de
tocaia, o grau de visibilidade de cada uma, e os ventos, Jordanna escolheu a que
preferia. Juntos, ela e Brig começaram o processo lento e delicado de uma tocaia,
tentando fazer movimentos expostos quando o carneiro estivesse de cabeça baixa,
pastando, ou quando estivesse olhando para outro lado.
Quando Jordanna atingiu um pedregulho a menos de cinqüenta metros do
alvo, Brig estava bem junto dela. O olhar dele dizia que era o máximo a que podiam
chegar. Havia um brilho de admiração relutante nos olhos dele pelo fato de a tocaia
hábil e silenciosa dela tê-lo levado até tão perto.
Ela apoiou o cano do 30-06 no pedregulho, segurando a extremidade inferior
na mão esquerda, e agachou-se por trás da pedra. Tinha a garganta seca e sentia-
se trêmula. Febre de carneiro. Respirou fundo umas duas vezes para fazer passar a
febre. Mirando um pouco baixo atrás do ombro marrom, apertou suavemente o
gatilho. O fuzil ressoou no silêncio da montanha, estilhaçando o ar e ecoando pelas
paredes de pedra. O carneiro deu um passo trôpego e desabou, como se as pernas
lhe tivessem fugido. O tiro do fuzil deixara os outros jovens carneiros paralisados
por um instante, antes que disparassem em pânico para as alturas escarpadas.
A euforia do sucesso a inundou. Jordanna se levantou de trás da pedra e
apanhou o fuzil. Os olhos dela brilhavam quando o seu olhar triunfante se voltou
para Brig. Não havia expressão nos olhos dele.
— Vamos ver o que você pegou. — Ele se adiantou, e ela seguiu rapidamente
atrás.
Um pouco sem fôlego, tanto pela excitação quanto pela curta subida,
Jordanna chegou junto ao corpo sem vida. Era um espécime magnífico, com um par
de chifres espalhados e castigados. A ponta de um deles tinha sido partida. O
carneiro tomara parte em muitas lutas e, sem dúvida, conquistara inúmeras fêmeas.
Jordanna sentia orgulho do seu troféu.
— Quer esfolá-lo aqui? — perguntou Brig, sem lhe dar tempo de curtir o seu
sucesso.
A área onde o carneiro tinha caído era relativamente plana, sem nenhuma
obstrução que interferisse no processo. Ela lançou um olhar por cima do ombro
para ver o pai, o irmão e Max chegando ao cume do morro a cavalo, e dirigiu-se
para junto deles.
— É, aqui é um bom lugar — concordou ela, tirando a faca do cinto.
Brig parou, fitando-a com um ceticismo espantado.
— Vai fazê-lo? — perguntou. Já tinha sua faca na mão, com a lâmina em
posição.
— Sei como é — disse Jordanna, os olhos rindo ante sua expressão de
dúvida. — Pode ajudar, se souber o que está fazendo.
— Obrigado — disse ele, secamente, e afastou-se para deixá-la começar.
Jordanna começou por trás da perna dianteira e cortou costas acima. Brig
ajudou-a a virar o animal para que ela pudesse continuar a cortar pelo outro lado.
Depois de esfolar as pernas dianteiras, terminou o corte atrás do peito. A lâmina da
sua faca cortou até o pescoço, passando pela espinha dorsal, e fez um T na base
dos chifres. Trabalhando num ritmo confortavelmente regular, Jordanna esfolou os
ombros e o pescoço, tomando cuidado para evitar deixar qualquer pedaço de carne
ou gordura agarrada ao couro.
— Você sabe mesmo o que está fazendo — comentou Brig.
— Faz parte da caçada — retrucou Jordanna, tentando parecer modesta, mas
ficou satisfeita com o elogio dele. Brig não fazia elogios imerecidos. Já aprendera
isso a seu respeito.
— Você o faz muito bem; já vi alguns caçadores meterem a faca de tal modo
no couro que ele fica destruído. — Brig tomou o lugar dela para separar a cabeça
do pescoço na primeira junta.
A chegada do resto do grupo de caça forneceu a Jordanna as ferramentas
para terminar o serviço... uma chave de fenda para afastar a pele dos chifres, um
serrote para cortar o topo do crânio e um saco de sal para curar o couro. Era um
processo longo e tedioso, que exigia um cuidado extremo.
Foi uma prenda pesada a que carregaram de volta ao acampamento, somente
os chifres pesando quase quinze quilos. Um pôr-do-sol magenta pintava uma
espetacular tonalidade rosa pelos vales e montanhas, ao crepúsculo. Havia um ar
de comemoração no acampamento, aquela noite, uma aura sublime de sucesso. O
couro, cuidadosamente dobrado, foi enfiado na proteção de um galho de árvore,
onde ficaria a salvo dos animais necrófagos.
— Bem, fez jus à sua primeira bonificação, Brig. Como se sente? — perguntou
Fletcher, num desafio animado.
Brig estava sentado num toco de árvore, perto da fogueira. Jordanna sentava-
se no chão, perto dele, o ombro não muito distante da sua coxa. Gostaria que o pai
não tivesse tocado no assunto de dinheiro, mesmo de pilhéria. Fora grosseiro.
— Ótimo — respondeu Brig, após um momento de hesitação.
— Deveríamos ter comido carne de carneiro hoje no jantar — disse Jocko,
mudando de assunto. — Já a comeu? — Fez a pergunta para Jordanna, enquanto
enchia a sua caneca de lata com café de um bule pintalgado.
— Não.
— Acho que é a melhor de todas as carnes selvagens, tão boa quanto a de
gado alimentado a milho. Tem muito pouco gosto selvagem — disse Jocko.
— Falou o pastor — zombou Max do elogio.
— Não é como a carne de carneiro doméstico.
— Mas aquele carneiro montês era velho. A carne seria dura, não valeria a
pena cozinhá-la. — Max continuou a falar mal da carne de carneiro.
— No passado, todo o oeste era povoado por carneiros monteses —
comentou Fletcher. — Espalhavam-se das Dakotas até o rio Missouri, em qualquer
lugar em que a terra fosse árida e selvagem. Eram em número maior do que o de
veados. Os índios shoshones, comedores de carneiro, caçavam-nos da maneira
como os índios das planícies caçavam os búfalos. E então o homem invadiu a área
com as suas fazendas de gado e ovelhas. Os carneiros monteses foram expulsos
pelos pastos usados demais e pelas moléstias.
— Sua escassez e seus hábitos ariscos são o que os tornam troféus tão
cobiçados — ressaltou Brig.
— É uma pena que não possam voltar a existir em grande número, como
aconteceu com os veados — refletiu Jordanna.
— Poderiam — insistiu Fletcher.
— Como? — quis saber Kit.
— Olhem para Idaho. Com exceção de alguma terra agrícola no sul, é
basicamente uma terra marginal, que não presta para grande coisa, salvo como
pasto para algumas vacas e ovelhas. Se o governo parasse de arrendar essa terra
aos fazendeiros para pastagem, o suprimento de alimentos para os monteses e
outros animais selvagens aumentaria. Além disso, os perigos de contagiar os
carneiros selvagens com moléstias de um rebanho doméstico seriam eliminados —
argumentou ele.
— Em outras palavras, você está dizendo que se deve eliminar a indústria de
gado e ovelhas em Idaho. — Brig lançou-lhe um olhar indolente de desafio.
Fletcher riu, um tanto constrangido.
— Esqueci que havia um fazendeiro no nosso meio, mas é o que estou
dizendo, sim. A caça aos grandes animais faria muito mais pela economia do que o
pastor ou o vaqueiro. Traria dinheiro para as taxas de licença, fornecedores de
equipamento, despesas de taxidermia, viagens, motéis, material, etc. A caça aos
animais graúdos é um grande negócio, e traria mais dinheiro para uma área do que
uma simples fazenda de gado. Animais domésticos e empreendimentos imobiliários
são os inimigos dos animais selvagens.
— Seria incrível! — Max olhava sonhadoramente para o fogo. — Todo o
Estado de Idaho transformado numa reserva de caça gigantesca, onde os ricos do
mundo viriam caçar.
Jordanna podia ver o brilho dos cifrões nos olhos dele. Seu comentário não
fazia o plano do pai dela parecer muito altruísta.
— Não precisaria limitar-se a Idaho. Existem milhares de hectares em outros
Estados do oeste igualmente adequados aos carneiros monteses e a outras caças
graúdas. O montês, o urso pardo, o alce, todos podiam voltar em grande estilo —
insistiu o pai —, juntamente com o antílope branco, o puma e o lobo.
Parecia o paraíso de um caçador... na superfície. Jordanna ouviu o bufido de
nojo de Brig. Ele ergueu a cabeça, as chamas iluminando sua expressão
desdenhosa, enquanto seu olhar duro ia de Max para Fletcher.
— Existem pessoas neste país, e milhões em outras partes do mundo, que
estão morrendo de fome. Vocês querem eliminar uma indústria de gado e ovelhas
que pode alimentar e vestir milhares de pessoas para que um punhado de
"cavalheiros" ricos possa curtir um jogo de matar por esporte. As pessoas comuns
servem para vocês pisarem nelas e obterem uma vista melhor, não é mesmo? —
Pôs-se de pé, encarando-os com escárnio, antes que um cinismo frio lhe
recurvasse a boca. — O que me deixa morto de medo é que provavelmente
conseguiriam comprar um número de políticos suficiente para tornar isso realidade.
— Brig esvaziou o resto da xícara no fogo, as brasas quentes chiando. — Com
licença, mas preciso de ar puro.
Movendo-se com o silêncio de quem está de tocaia, saiu do círculo de luz da
fogueira e sumiu na escuridão da noite. A lua desapareceu atrás de um grupo de
nuvens. Tandy resmungou alguma coisa sobre ir ver os cavalos e Jocko começou a
mexer nas panelas para preencher o silêncio pesado. Sacudindo a poeira das
mãos, Jordanna se levantou e caminhou na direção das tendas. Seu olhar se voltou
para a direção que Brig havia tomado, porém ela não o seguiu. Olhou para a árvore
onde estavam os chifres e o couro do carneiro montês. Subitamente, não sentiu
muito orgulho de tê-lo abatido.
Às suas costas podia ouvir o pai e Max conversando, em vozes muito mais
baixas do que antes. Ouviu passos no terreno irregular atrás de si, onde as folhas
de pinheiro haviam sido retiradas. Virou-se e viu o irmão.
— Um discurso e tanto, não foi? — Observava-a atentamente, a expressão
suave.
— Foi. — Estremeceu quando um vento frio lhe roçou a face. — Acho que
finalmente estou começando a entender o que você sempre me disse.
— É?
— Caçar por esporte devia ter mais propósito do que simplesmente matar um
animal para pendurá-lo na parede e pôr dinheiro no bolso de alguém. Devia
significar também comida na mesa — falou Jordanna.
— Acho que nunca me exprimi do jeito como Brig o fez hoje, mas é o que
sempre quis dizer — falou, balançando a cabeça. — Ele é um homem e tanto,
Jordanna.
— Sim — replicou ela, com o olhar perdido na noite.
Conhecia poucos detalhes sobre ele, mas sentia que conhecia o essencial.
Era forte o bastante para ser meigo, cruel o bastante para ser bondoso, e poderoso
o bastante para ser vulnerável. Era duro, mas era a dureza da rocha sólida. E ela o
amava. A certeza disso chegou-lhe docemente, cálida e ardente, queimando cada
vez mais viva. Brilhava nos seus olhos, quando se virou para Kit.
— Ele é o melhor da espécie dele, Kit, talvez o único.
— Você talvez tenha razão.
— Eu... — Jordanna fez uma pausa. Não parecia haver mais nada para dizer.
Nada mais era necessário. — Acho que vou me deitar. Boa noite, Kit.
— Boa noite.
O irmão ainda se demorou um minuto depois que ela se virou para a barraca
pequena, e em seguida voltou para junto da fogueira.
Jordanna parou para apanhar os volumosos sacos de dormir. Ela os havia
pendurado de manhã para arejar e secar a umidade dos seus corpos, antes que um
acúmulo de umidade afetasse a capacidade de isolamento. Trazendo-os para
dentro da barraca, ajeitou-os sobre o colchão de folhas de pinheiro. Despindo-se e
ficando só com a comprida roupa de baixo de lã, Jordanna enfiou-se no calorzinho
do saco duplo para escovar os cabelos. Sentia-se perdida na amplidão dos dois
sacos de dormir.
Largando a escova de lado, deitou-se de costas para fitar um buraco no teto
da barraca e esperar por Brig. Ele demorou uma hora para entrar na tenda. A
ausência de luz dava-lhe um formato escuro, ameaçador. Ela queria falar, mas
sentia-se estranhamente constrangida. Brig também ficou calado, enquanto se
despia e deslizava o longo corpo para dentro da abertura do saco de dormir. Não
fez nenhuma tentativa de se aproximar dela.
— Brig? — perguntou, em voz tão baixa que vibrava.
Ele se mexeu, virando-se para ela. Achou sem vacilar a cintura da moça e
puxou-a para junto de si. Sua boca magoou-lhe os lábios, e Jordanna aceitou
aquela posse irada. Beijos ásperos choveram sobre o rosto dela.
— Você é uma droga, Jordanna, que injetaram no meu organismo —
murmurou Brig. — Fico alto com você... e amaldiçoo cada minuto desse vício.
— E se... — Os dedos dela tremiam ao passar pelas feições duras e magras
dele, memorizando-as pelo toque. — se eu lhe dissesse que acho que estou... meio
apaixonada por você? O que diria?
Sentiu a imobilidade momentânea dele. Erguendo a boca da pele dela, ele
soltou um suspiro mudo.
— Que está nas montanhas há tempo demais. Pode ser que tudo o que
tenhamos seja um vício físico... não uma dependência emocional. Não vamos nos
apressar em confundir as duas coisas — advertiu.
Ela sentiu um bolo na garganta, porque sabia que para ela não era verdade.
— É o que você acha?
Uma mão errante introduziu-se pela cintura da sua roupa de baixo.
— É possível — murmurou Brig contra sua boca.
As palavras de convencimento morreram-lhe nos lábios, quando Jordanna se
perdeu nas habilidades sedutoras do toque dele. Seus ossos se derreteram,
quando entraram em contato com aquele corpo rijo. A pulsação irregular do seu
coração tremulava de encontro às suas costelas, quando os lábios duros dele
tomaram posse dos seus. Ela não se prendeu de forma alguma, comprazendo-se
nas chamas ardentes da paixão dele. O amor corria como lava quente pelas veias
dela. Cada partícula do seu corpo se entregava a ele, desprendidamente, sem pedir
mais nada em troca, exceto a posse por parte dele. A resposta de Brig foi a
satisfação... para ambos.
Depois, ficaram descansando nos braços um do outro. A carícia das mãos
dele era distante e meiga, não mais exigente.
— Seu pai me prometeu uma bonificação por um carneiro com um caracol de
um metro — disse Brig, numa doce zombaria. — Não sabia que você também ia
contribuir com o seu tipo especial de recompensa.
Suas palavras indicavam que ele havia sentido uma diferença na reação dela.
Chegara à sua própria conclusão. Aquilo a magoou profundamente.
— Gostaria de não ter matado aquele carneiro — murmurou Jordanna.
Ele virou a cabeça, mas não pôde vê-la na escuridão.
— Por quê? — Brig parecia divertido, de uma maneira cínica.
Jordanna hesitou em explicar. Mas jamais poderia convencê-lo, porque não
acreditaria nela. Rolou para o outro lado, para longe dele.
— Não importa — falou ela, com voz rouca. — Não mudaria nada.
Brig fitou a forma escura da cabeça de Jordanna. Seu corpo sentia-se fresco,
onde o dela tinha se encostado. Resistiu ao impulso de tocar no assunto da
declaração de amor, de descobrir se ela realmente falava sério.
Desde que aquela caçada começara, todos os seus instintos o advertiam de
algum perigo oculto. No entanto, sua única vulnerabilidade jazia nos seus
sentimentos por Jordanna. Algo lhe dizia para não relaxar a guarda.
Brig olhou para o teto. Ela tocaiara aquele carneiro com a perícia de uma
tigresa e esfolara sua presa com a segurança de uma caçadora. Será que ele seria
seu próprio troféu? Por que estava se fazendo tal pergunta?
Lutou contra o impulso de enroscar-se junto ao corpo dela, dando-lhe as
costas, ao invés disso.

Capítulo XVI

Estava escuro e cinzento quando Brig se levantou, na manhã seguinte. Do


lado de fora da barraca, podia ouvir o sussurro do chuvisco conversando com as
árvores. Abotoou a calça e pegou a camisa. Seu olhar pousou na forma adormecida
e no brilho do cabelo acobreado. Deus, mas ela era linda! Sentiu uma forte tentação
de voltar para dentro do saco de dormir e acordá-la. Debruçando-se, Brig sacudiu-a
rudemente pelo ombro.
— Está na hora de se levantar!
Os cílios da moça tremularam, depois se abriram. Brig se afastou para abotoar
a camisa. Notou que ela não saiu da cama imediatamente. Aquilo o excitou. Brig
abotoou a camisa com calma para manter as mãos e parte da cabeça ocupadas.
Seu olhar foi atraído pelo ruído do zíper do saco de dormir. A figura alta e
esguia dela estava vestindo a roupa de baixo branca. Jordanna espreguiçou-se,
arqueando as costas como uma gata. O coração dele bateu mais depressa ao ver o
contorno empinado dos seios firmes. Brig desviou o olhar e começou a enfiar a
camisa para dentro da calça Levis.
— Se usasse essa roupa de baixo em Nova York, ia lançar uma nova moda —
falou, com voz seca.
— Acha? — Ela riu, desfilando diante dele, numa imitação zombeteira de uma
modelo, posando e se pavoneando, enquanto falava como um locutor: — Senhoras
e senhores, eis o que a debutante bem-vestida estará usando nesta estação.
Notem como a fazenda se ajusta ao corpinho e se amolda...
Se ela estivesse fazendo um striptease, o fogo nas veias dele não poderia ser
mais ardente. Ela estava brincando, porém havia sensualidade em cada movimento.
Vê-la daquele jeito provocante era mais do que ele podia agüentar. Envolveu a
cintura dela com o braço para puxá-la para junto de si e cortar abruptamente o
discurso zombeteiro. Antes que pudesse tomá-la completamente nos braços, ela já
se esticava para alcançar a boca que descia ao encontro da sua. A ansiedade e o
ardor dela fizeram com que ele apertasse mais o abraço e a esmagasse contra si.
O gesto provocou uma dor aguda no ombro ferido, forçando-o a relaxar o abraço,
enquanto fazia uma careta.
— Seu ombro. Esqueci. — Instantaneamente Jordanna ficou contrita, correndo
a mão por ele num pedido mudo de desculpas. Seus olhos cor de avelã estavam
escuros de preocupação. — Como está ele, hoje?
O fogo estava sob controle, e Brig a afastou de si.
— Melhor. — Estendeu a mão para pegar a jaqueta forrada de pêlo de
carneiro. — Deve vestir-se antes que pegue um resfriado. — Brig ignorou o convite
nos olhos dela. — Está garoando hoje, portanto trate de vestir seu poncho e muitas
roupas quentes.
Sem um segundo olhar, ele saiu daquela barraca e se dirigiu para a maior. O
ar que respirava estava denso de umidade. A água pingava da ponta da aba do seu
chapéu. Ia ser um dia frio, horroroso. Enfiou-se pela abertura da barraca maior,
sentindo o calor e o aroma de café e de bacon frito. Brig percebeu que dormira
demais.
Um Max com cara enfarruscada estava sentado no banco, debruçado em cima
da mesa e da sua xícara de café. Kit estava abrindo os sacos de dormir e
pendurando-os para secar. No fogão, Jocko terminava de fritar o bacon.
— Tandy ainda está com os cavalos? — perguntou Brig.
— Sí. — Jocko lançou-lhe um olhar. — Fletcher está lhe dando uma ajuda.
Brig gostaria de tomar uma xícara de café, mas saber que o homem que o
contratara estava lá fora, na garoa, fazendo seu serviço fez com que ele desse
meia-volta. O corpo de uma mulher tornara sua cama macia demais, e ele dormira
além da conta, em conseqüência. Pelo menos, convenceu-se disso.
A meio caminho da área gramada onde os cavalos estavam amarrados,
encontrou-se com Tandy, que vinha voltando.
— Estou vendo que finalmente acordou — cumprimentou o vaqueiro
atarracado, com um ligeiro sorriso.
A boca de Brig retesou-se ante o comentário.
— Os cavalos estão prontos para partir? — Olhou para além de Tandy. —
Onde está Fletcher?
— Está lá com os cavalos. — Tandy fez um gesto por cima do ombro na
direção da qual vinha vindo. — Eu ia justamente ver se você estava acordado. O
malhado perdeu uma ferradura. Eu queria saber se você quer que eu sele o
Jughead para Max, ou o quê?
— Merda! — exclamou Brig, baixinho. — Por que não examinou os cavalos
com mais cuidado?
— Examinei-os — protestou Tandy. — Não notei que o malhado estivesse
com nenhuma ferradura frouxa, ontem à noite. Mas hoje de manhã lá estava ela...
no chão.
— Você está ficando muito lerdo, Tandy. Não é mais vivo como antes. Está
ficando velho.
Brig viu o vaqueiro mais velho crispar-se, depois erguer o corpo,
orgulhosamente. Brig sabia que Tandy se preocupava com o acúmulo dos anos, e
xingou-se por ter-se aproveitado daquela vulnerabilidade ao criticar-lhe a falta. Não
teria sido necessário.
— Examinei aquele cavalo. Verifiquei todos os cavalos cuidadosamente.
Nenhum deles estava com nenhuma ferradura frouxa — repetiu Tandy, numa
defensiva formal. — O que resolveu quanto a uma montaria para Max?
— Sele o Jughead.
— Quer que eu o amanse, ou acha que meus ossos são muito frágeis? — Era
um desafio cortante. — Eles podem ter envelhecido consideravelmente desde
ontem de manhã.
— Vá em frente e arrebente com ele — respondeu Brig, e hesitou. — Eu... não
quis dizer aquilo, Tandy. Estava só... irritado. Não tomei café ainda.
— Bem, então vá tomar. Termino de cuidar dos cavalos. Não preciso de sua
ajuda. — O vaqueiro deu meia-volta e voltou por onde viera.
A indecisão fez Brig hesitar. Sentia-se tentado a deixar as coisas como
estavam e ir tomar café, como Tandy sugerira. Mas Fletcher estava com os cavalos,
assumindo sua responsabilidade. Deu um passo para seguir Tandy.
— Brig? — chamou Jordanna, e ele parou, olhando para trás. Ela vinha
depressa na sua direção, uma caneca de metal de café na mão. O capuz escuro do
poncho caíra-lhe da cabeça. O brilho escuro da umidade escondia os reflexos de
mogno dos seus cabelos. Parou ao lado dele e entregou-lhe a xícara.
— Jocko falou que você ainda não tinha tomado café. — A água escorria da
ponta do nariz dela.
— Seu cabelo está ficando molhado.
Ignorando a xícara, estendeu as mãos para puxar o capuz sobre a cabeça
dela. Depois, segurou-lhe a cabeça, com capuz e tudo. A umidade dos lábios dela
era tentadora demais, e ele beijou-lhes a doçura lavada pela chuva. Depois,
Jordanna esfregou a face contra os pêlos espetados do rosto dele.
— Ainda não fez a barba — murmurou. — Quer que eu a faça para você?
Havia pelo menos meia centena de coisas que ele queria que ela fizesse para
ele. O desejo o roía como um cachorro mordiscando um osso. Brig deslizou as
mãos até os ombros dela e afastou-a firmemente de si.
— Eu mesmo dou um jeito — insistiu, e o significado estendeu-se a outras
coisas além do barbear.
— O seu café — ofereceu Jordanna, erguendo a xícara como lembrete. Brig
segurou-a, contente pela pequena distração. — É melhor bebê-lo. A chuva
provavelmente o esfriou, além de diluí-lo.
O gole que tomou estava um pouquinho mais do que morno, mas pelo menos
o café era preto.
— Estava precisando — murmurou... de mais de uma maneira.
— Aonde estava indo?
— Ia ajudar com os cavalos. — Brig sabia que tinha que ir embora, mas o
frescor molhado de chuva do rosto dela mantinha-o enraizado.
— O desjejum está quase pronto.
— Eu sei... — Uma confusão vinda dos cavalos fez Brig se virar. Tandy estava
montado no baio de ossos grandes, numa repetição da exibição de corcovos da
véspera. Depois de alguns minutos, o cavalo baio sacolejou mais um pouco e
desistiu.
— Vai montá-lo hoje outra vez? — perguntou Jordanna.
— Não. Max é que tirou o número de azar hoje. O malhado perdeu a
ferradura.
— Pobre Max — sorriu ela, mas sem uma simpatia muito genuína.
— Não gosta muito dele? É amigo do seu pai.
— É seu primo — lembrou Jordanna.
— É. Infelizmente.
— Se é isso o que sente a respeito dele, por que o salvou? Não seria melhor
para você se ele não estivesse em circulação? — No minuto em que as palavras
foram proferidas, ela pareceu lamentá-las, como se as tivesse falado sem parar
para pensar.
Brig achou a pergunta curiosa. Estreitou o olhar, avaliando-a. Onde obtivera tal
informação? Não com Max, tinha certeza. Aquilo não deixava muitas alternativas.
Pensou na sua quase declaração de amor da noite passada. Na hora, algum
instinto de cautela impedira-o de acreditar nela totalmente. Aquele sentimento
voltou de roldão.
— O que a faz pensar que Max tenha alguma coisa que eu queira? —
perguntou, num desafio suave.
— Nada. — A resposta dela foi rápida... rápida demais. — Falei por falar.
Esqueça, Brig.
— Há muita coisa que eu gostaria de esquecer. — Lançou-lhe um olhar longo,
pensativo, que mentalmente despia as camadas de roupas que ocultavam o corpo
dela a seus olhos. — Como você é sensual por baixo dessa aparência controlada!
Como treme nos meus braços! O que é segurar os seus seios nas minhas mãos... e
senti-la debaixo de mim! — Viu que ela enrubescia. — Neste momento eu gostaria
de despi-la bem devagarinho e beijar cada centímetro de você. — Brig fez uma
pausa deliberada para testá-la com o seu próximo comentário. — Você é muito boa
deitada de costas, Jordanna.
Ela soltou uma exclamação de ultraje ante o tom de voz aviltante dele. Brig viu
o arco que a mão dela descrevia e não fez nada para detê-lo ou desviar-se dele. A
ardência na sua face era estranhamente agradável. O revide dela era o que ele
tinha esperado, e desejado, mas não estava totalmente satisfeito.
— Você é um filho da mãe, Brig McCord! — sibilou ela, os olhos brilhando de
fúria. — Há outras coisas na vida além de sexo.
— Mas sexo é só o que existe entre mim e você. Não há nada de errado com
a luxúria pura. Não pode negar que seja mutuamente satisfatória. — Mesmo a
contragosto, continuava a provocá-la, exigindo mais provas.
— É mesmo? — Ela tinha os maxilares retesados, mas os olhos marejados de
lágrimas.
— Se não for assim, você tem sido uma atriz danada de boa, mas sempre
desconfiei que fosse. — Brig esperou que ela negasse, impulsionado por uma
necessidade feroz de ouvir as palavras.
— E sou. O gozado é que desempenhei o papel de amante por tanto tempo
que quase comecei a acreditar nele — disse ela, rindo amargamente.
— Mentirosa! — A súbita concordância dela instigou sua negativa. Você não
estava fingindo aquelas reações.
— Não? — zombou ela, dando-lhe as costas.
A raiva lampejou dentro dele. Brig agarrou-lhe o braço para detê-la.
— Não me dê as costas. — Era um golpe amargo para o seu orgulho dar-se
conta de que ainda não queria deixar que ela se fosse.
— Tire as mãos de cima de mim — ordenou Jordanna, numa voz gélida de
desdém. — Não preciso mais fingir que gosto do seu toque. O jogo acabou.
— Eu é que direi quando acabou. Lembre-se disso — avisou Brig, mas largou
o braço dela para deixá-la ir-se.

Jordanna engoliu as lágrimas. Odiava-o com tanta violência quanto o amava.


Antes não lhe importara que ele só precisasse dela sexualmente. Ela tapeara seu
orgulho, tentando acreditar que com o tempo as coisas mudariam... que poderia
fazer com que ele se apaixonasse por ela. Mas ele baixara o relacionamento deles
a um nível tão inferior que aquilo que já fora bonito agora se tornara sujo.
Por que mentira para ele, fingindo que tudo não passava de uma
representação? Para não se desmoralizar. Para salvar um pouco do seu amor-
próprio. Se quisesse tocá-la de novo, ele teria que ficar de quatro no chão,
suplicando.
Evitando a tenda grande, dirigiu-se para a barraca menor. Separou os dois
sacos de dormir, juntou os pertences de Brig e empilhou-os. Quando acabou,
grande parte de sua serenidade retornara, o bastante para permitir que fosse tomar
café na tenda grande.

Brig sentiu um gosto amargo na boca quando Jordanna se afastou. Seu porte
ereto, as linhas rijas e orgulhosas do seu corpo lembravam-lhe uma criança
injustamente acusada de contar uma mentira e que fora mandada para a cama sem
jantar. Estava com raiva de si mesmo. Mas, porra, tinha tido razão! Tomou um gole
do café. Tinha-se tornado frio e amargo. Com uma torção do pulso, esvaziou a
caneca no chão.
— O que é isso, jogando fora desse jeito um café bom? — perguntou Tandy,
franzindo o cenho.
Brig virou bruscamente a cabeça ante a reprimenda muda do vaqueiro.
— Estava frio. — Olhou para além dele. — Os cavalos estão todos prontos?
— Estão. E minha barriga está pronta para tomar meu desjejum.
— Onde está Fletcher? Pensei que estivesse com você.
— Vem logo atrás. Estava terminando de encilhar o Jughead. — Tandy olhou
por cima do ombro no momento em que Fletcher Smith saía de dentro do bosque
próximo à clareira.
Brig pensou ter sentido o olhar do caçador ficar mais aguçado ao vê-lo. Mas,
no instante seguinte, concluiu que estava errado, quando o homem sorriu e
cumprimentou-o.
— Bom dia, Brig. Como vai indo o ombro hoje?
— Muito melhor.
— Ótimo. Onde está Jordanna? Não estava com você? — perguntou Fletcher,
olhando curiosamente à sua volta.
— O desjejum ficou pronto. Acho que ela foi comer.
— Parece uma boa idéia para nós também. — Fletcher parecia afável,
confiante. Emparelhou-se com Brig. — Acho que deveríamos seguir a mesma rota
de ontem, não acha?
Caçar carneiros não era exatamente o que mais preocupava Brig no momento,
mas era para isso que estava sendo pago, não importava o quanto o fato o
embaraçasse. Balançou a cabeça, concordando.
— Pode dar tão certo quanto deu ontem para Jordanna.
— Estou contando com isso. — Fletcher parou para segurar a aba da barraca
para Brig entrar em primeiro lugar.
Jordanna estava lá dentro, mas nem sequer ergueu os olhos quando ambos
entraram. A expressão de seu rosto parecia esculpida em mármore frio. Não trocou
uma só palavra com ele durante toda a refeição. Só uma vez, por acaso, seus
olhares se encontraram, e havia uma frieza gélida no olhar dela. Mas ele notou que
ela brincava com a comida, ao invés de comer com apetite, como de costume. Não
era tão indiferente em relação a ele quanto gostaria que ele acreditasse. Era um
alívio ver isso confirmado.
Quando todos tinham terminado de comer e de tomar a última xícara de café,
abandonaram o abrigo da tenda e caminharam sob a garoa até os cavalos. O
grande baio ficou indócil quando Max subiu na sela. Bufando e sacudindo a cabeça,
ficou se movimentando.
— Quem sabe eu deva montá-lo — sugeriu Fletcher. — Você pode não ser
capaz de dar conta dele, Max.
— Não se preocupe — insistiu Max, puxando brutalmente as rédeas para fazer
o cavalo ficar parado.
— Ele vai se acalmar — prometeu Tandy.
— Pode trocar de cavalo, se quiser falou Brig.
— Já disse que não quero — retrucou Max, bruscamente.
— Tudo bem. Vamos indo. — Brig virou o seu cavalo amarelado para a trilha
que vinham seguindo há vários dias.
Só que dessa vez a ordem dos cavaleiros tinha mudado. Fletcher cavalgava
atrás dele, e não Jordanna. Ela seguia Kit, e Max fechava a retaguarda. Brig sentia
falta dela às suas costas, e das ocasiões em que ela costumava emparelhar-se com
ele, quando a trilha assim o permitia. Ficou irritado por estar se incomodando com
uma coisa tão pequena.
Quando se aproximaram da trilha íngreme e sinuosa que os levava para o
outro lado da crista da montanha, Brig virou-se na sela.
— Com esta chuva, vai haver lugares escorregadios. Dêem aos seus cavalos
toda a rédea que quiserem. Eles vão saber onde pisar firme.
Seu olhar percebeu todos os acenos de compreensão... todos, exceto o de
Jordanna, que olhava friamente na direção oposta. De lábios apertados, Brig ficou
olhando para a frente, e deu liberdade de movimentos ao cavalo amarelado quando
ele começou a subida.
O ranger do couro da sela e dos freios soltos era abafado pelo som agudo de
muitos cascos batendo na pedra, arrastando-se e raspando nas rochas
escorregadias. Às suas costas, Brig ouviu um cavalo bufando e relinchos irados de
recusa. Não queria tirar os olhos da trilha, e não estava disposto a conter o ímpeto
do cavalo amarelado. Não ia ser fácil recuperá-lo numa trilha íngreme e molhada
como aquela.
Lançou um rápido olhar por cima do ombro. O baio que Max cavalgava estava
dando problemas, empinando e sacudindo a cabeça, e recusando-se a subir a
trilha. Max batia nele com as rédeas e enfiava-lhe as esporas nos flancos.
— Jughead, seu burro, seu maldito! — Max xingava o cavalo.
Praguejando consigo mesmo, Brig tirou seu cavalo da trilha e parou.
— Vá na frente, Fletcher. — Fez sinal para que o homem seguisse caminho.
Teria que deixar os outros passarem antes de poder voltar pela trilha estreita e
ajudar Max. Quando Kit passou por ele, o baio se arremeteu para diante, ante a
insistência de Max. Depois, empinou e relinchou com raiva. Agachando-se nas
quatro patas, abaixou a cabeça e começou a corcovear. Jordanna diminuiu o ritmo.
— Saia do caminho — ordenou Brig com impaciência, o cavalo amarelado
dançando debaixo dele. Ela lhe lançou um olhar frio e subiu apressada com o
alazão pela trilha.
O baio tinha corcoveado até sair da trilha. Max abandonara todos os esforços
para controlar o cavalo e se agarrava ao arção dianteiro da sela com ambas as
mãos, tentando não cair. Sua expressão demonstrava desespero e medo. Quando
o cavalo tentou derrubar o cavaleiro, perdeu o equilíbrio na encosta íngreme e
escorregadia. Depois de cair de joelhos, o baio se pôs de pé, atabalhoadamente,
em pânico.
Sua fuga levara cavalo e cavaleiro para bem longe da trilha. O chão era
traiçoeiro, com trechos de cascalho espalhados por toda aquela porção da área da
encosta. Brig não podia apressar seu cavalo, uma vez saído da trilha, ou ele
começaria a patinar como o cavalo de Max.
Pedras soltas deslizaram de sob os cascos do baio. O cavalo empinou,
gritando de pânico. Desequilibrado, os pés sem firmeza, caiu de costas. Max berrou
e tentou saltar, pelo lado da descida da montanha. Rolou pela inclinação íngreme,
com o baio, as pernas se agitando como armas mortais, poucos metros atrás dele.
Uma avalanche isolada de pedras soltas carregava-os, enquanto a gravidade da
forte inclinação os atraía para baixo. Na base da encosta, a montanha caía uns
trinta metros, até um acostamento de rochas e árvores.
Não havia meio de Brig alcançá-los antes de chegarem à borda. Seu cavalo já
estava cobrindo muita distância, escorregando nas ancas e bufando nervosamente
o tempo todo. Havia um laço amarrado à sua sela, mas a descida de Max, de ponta-
cabeça, era duas vezes mais rápida do que a dele, fazendo com que ficasse fora do
alcance da corda de Brig. A seis metros da borda, o baio conseguiu o controle das
pernas. Arremetendo-se feito um desesperado, lutou para voltar para a terra sólida.
Seus cascos frenéticos soltaram uma nova torrente de rochas, que aprisionaram
Max no seu fluxo. Brig a viu e freou seu cavalo. Estava tenso como uma mola, e
sombrio.

Jordanna tinha parado seu cavalo atrás dos de Kit e do pai. Com um horror
fascinado, ficou vendo a cena acontecer. Havia uma estranha sensação de
irrealidade nela. Queria acreditar que aquilo não estivesse acontecendo, que, de
algum modo, Brig alcançaria Max.
— Ah, meu Deus! — sussurrou, quando viu que não era possível.
Quando Max foi arrastado, impotente, para a borda, Jordanna desviou o rosto
e fechou os olhos bem apertados. Um grito de gelar o sangue rasgou os ares.
Pareceu durar uma eternidade, ricocheteando nos canyons, e ecoando pelas
montanhas. Terminou finalmente com um baque seco. Jordanna sentiu-se
violentamente mal ante o silêncio sepulcral que se seguiu.
Havia vozes, mas não penetraram na sua consciência, até que uma delas
exigiu vivamente a sua atenção.
— Vire seu cavalo, Jordanna. Vamos descer.
Ante o lembrete tenso do pai de que estava bloqueando o caminho, Jordanna
virou seu alazão na trilha estreita e começou a descer. Seus olhos arregalados,
vidrados de choque, buscaram a base da avalanche. Brig tinha desmontado e
estava descendo pelas pedras soltas até a borda. O cavalo baio estava do outro
lado da escarpa, com as pernas arranhadas e sangrando, sem se mexer.
Foram descendo a trilha em ziguezague até onde ela se endireitava e abria na
direção do acampamento. Ali, o pai desmontou, seguido por Kit, e dirigiu-se para a
base da encosta onde Max tinha caido. Jordanna hesitou. Uma força interna a
impelia a ir com eles. Saltou da sela com pernas trêmulas, ignorando o bolo que se
revolvia no seu estômago.
Brig estava perto da borda, a curta distância do deslizamento de rochas,
quando chegaram junto dele. Seu rosto estava impassível, enquanto olhava para
baixo. Não olhou para eles, porém tomou conhecimento de sua presença.
— O pobre filho da mãe! Avisei-lhe que as montanhas o matariam —
murmurou, distraidamente.
— Quer dizer que ele está morto? — disse o pai dela, numa voz sem emoção.
Sem querer, o olhar de Jordanna foi atraído para além da borda. Trinta metros
abaixo esparramava-se a figura de um homem, horrivelmente contorcida, sem vida,
como um boneco de trapos. Oscilando, ela afastou-se do rochedo, e o braço do
irmão envolveu-lhe os ombros. Tinha vontade de chorar... de deixar que as lágrimas
lhe aliviassem a ardência seca dos olhos e a dor quente na garganta. Mas estava
envolta numa geada de choque, e só conseguia tremer.
— Vamos ter que descer e pegar o corpo — declarou Brig.
— Vou com você — ofereceu-se Fletcher, baixinho. — Kit, por que não leva
Jordanna de volta ao acampamento e conta aos outros o que aconteceu?
O irmão não deu uma resposta direta ao pedido. Virou Jordanna na direção
dos cavalos que esperavam.
— Vamos.
O braço ao redor dos seus ombros oferecia apoio e o impulso para caminhar.
Jordanna começou a tremer com o terror puro e frio do que acontecera.
— Eu deveria ter feito alguma coisa — sussurrou, num ataque de culpa. — Era
quem estava mais perto dele. Logo que ele teve problemas com o cavalo, eu
deveria ter segurado o bridão e puxado o animal até o topo.
— Não fique pensando nessas coisas — repreendeu o irmão com meiguice,
acrescentando, com hesitação: — Eu... não estou certo de que alguém tenha culpa.
— Ó Deus! — A oração muda veio junto com um soluço seco.

— Vou pegar o cavalo — disse Fletcher, dando um passo para cruzar as


pedras soltas e alcançar o baio.
— Fique aqui — ordenou Brig. — Eu o pego.
Subindo alguns metros, onde a faixa de cascalho era mais estreita, Brig
atravessou com cuidado. Avalanches de pedras em miniatura eram acionadas por
cada passada cuidadosa. Uma calma mortal roubava-lhe qualquer sensação,
exceto a de cautela.
O cavalo tremia como um cachorro assustado, quando Brig o alcançou.
Parecia apavorado de se mexer do chão sólido sob seus pés. Quando Brig chegou
junto das rédeas penduradas, ele recuou, sacudindo a cabeça e bufando
nervosamente. Girava os olhos, deixando ver o branco do medo. Brig falou
mansamente com o cavalo antes de fazer uma segunda tentativa de pegar as
rédeas. Ele girou as orelhas nervosamente, ao som da voz, porém da vez seguinte
o baio não tentou desviar-se da mão que se estendia para suas rédeas.
Brig acariciou a pele trêmula do pescoço do animal. O cavalo ficou parado,
sem resistir ao toque, os tremores começando a se dissipar. Confiante de que o
cavalo não iria subitamente entrar em pânico, Brig deixou que seu olhar
inspecionasse os ferimentos do animal. Havia arranhões no flanco e na cernelha.
Pedaços de pele tinham sido arrancados das pernas, deixando a carne viva à
mostra, e o sangue escorria das feridas. Mas não havia sinal de que o cavalo
estivesse poupando alguma perna em especial, ou de que houvesse algum osso
quebrado.
Agarrando as rédeas bem junto do queixo do cavalo, Brig começou a conduzir
o capão pelas pedras soltas. O animal resistiu, lutando contra a pressão que o
puxava para diante. Brig ia puxando as rédeas e continuando a falar com ele.
Relutante, tremendo a cada passo, o cavalo se submeteu aos comandos, bufando e
relinchando nervosamente.
— Vai levar o cavalo de volta ao acampamento? — perguntou Fletcher, depois
que Brig atravessou o deslizamento de pedras com o animal.
— Não. Vamos amarrá-lo ao longo da trilha e apanhá-lo depois que tivermos
recuperado o corpo de Max. — Sem parar, Brig caminhou até onde deixara seu
cavalo amarelado, e Fletcher seguiu atrás do baio, que mancava ligeiramente.
Fletcher havia deixado seu cavalo na trilha; sendo assim, Brig foi puxando
tanto o cavalo amarelo quanto o baio até aquele ponto, e depois montou, para levar
o baio até um grupo de árvores logo adiante, na trilha. Fletcher hesitou, inseguro
quanto a alguma coisa.
— Não vem comigo? — A pergunta de Brig era um desafio, e sua expressão,
gélida. — Nunca viu um homem morto antes? Não é muito diferente de um carneiro
montês ou de um alce... exceto que o corpo já foi um ser humano.
O homem grisalho lançou-lhe um olhar irado.
— Estou indo. — Fletcher montou e levou o cavalo para trás do baio que Brig
ia puxando.
A meio caminho do local onde Brig pretendia deixar a trilha para chegar até o
acostamento rochoso onde jazia Max, encontraram Tandy. Não precisaram dizer
nada. Sua expressão dizia que já soubera da história pelos lábios de Jordanna e
Kit.
— Pensei que pudessem precisar de alguma ajuda — falou ele, simplesmente.
Brig fez um breve aceno de aceitação da oferta, e Tandy virou seu cavalo na
trilha para cavalgar junto deles. Brig notou o oleado dobrado, preso atrás da patilha
da sela de Tandy, uma mortalha para o corpo, e não disse nada.

Jordanna estava sentada no banco, à mesa, sem ter consciência de que seu
rosto não registrava nenhuma emoção. Kit sentara-se à sua frente, os cotovelos na
mesa, as mãos esfregando a testa. Jocko colocou uma xícara de metal com café
diante de cada um deles, muito preto e fortemente adoçado.
— Aconteceu tão depressa, Jocko... e no entanto tão devagar! — disse
Jordanna, num tom distante.
— Tome o café — ordenou o basco, suave mas firmemente. — Vai ajudar.
Fitando a xícara, Jordanna ficava se lembrando do comentário de Brig. Ele
ecoava sem parar na sua cabeça. Ergueu o olhar para Jocko. Seus olhos estavam
da cor verde-turva de um mar tempestuoso.
— Brig disse que avisou Max de que as montanhas iriam matá-lo. O que será
que quis dizer com isso?
— Provavelmente nada — disse Jocko, depois de um momento de hesitação.
— Às vezes, diante da morte, dizemos coisas que não têm sentido. São apenas
palavras que dizemos, porque não podemos expressar o que sentimos. — Indicou a
xícara diante dela. — Tome o café.
Obedientemente, ela pegou a xícara e levou-a aos lábios. O líquido adocicado
foi queimando sua garganta abaixo. Olhou para o irmão, do outro lado da mesa.
Parecia perturbado, mas quando viu que ela olhava para ele, sorriu numa
expressão meiga de conforto e compreensão.

Capítulo XVII

A garoa pendia como um palor sombrio sobre o acampamento, quando o trio


de homens retornou. Brig vinha puxando o cavalo amarelado. Um embrulho
alongado, enrolado num pedaço de lona, estava jogado sobre sua sela, amarrado
com uma corda. A cadência lenta dos cascos laboriosos dos cavalos parecia uma
marcha fúnebre. Jordanna, Kit e Jocko saíram da tenda e vieram a seu encontro.
Enquanto Tandy e Fletcher desmontavam, Brig começou a soltar as cordas
que prendiam o corpo inerte à sela. Jocko se adiantou para ajudá-lo. Juntos,
ergueram o morto e o colocaram no chão, perto da tenda grande. O poncho de
chuva de Brig brilhava, todo molhado, enquanto ele se endireitava e se dirigia a eles
numa voz sem emoção, de comando sereno.
— Vamos levantar acampamento. Logo que tudo estiver empacotado e
carregado, vamos sair das montanhas. Não temos nenhum meio de avisar as
autoridades do acidente, portanto teremos que levar o corpo de Max conosco.
— Já comecei a arrumação — disse Jocko.
Brig balançou a cabeça, em sinal de aprovação, e voltou para pegar
novamente as rédeas do cavalo amarelado.
— Vamos preparar os cavalos, Tandy. — Acrescentou as rédeas do cavalo de
Fletcher àquelas que já tinha nas mãos.
— Não vá deixar Max largado aí... na chuva — protestou Jordanna.
Brig lançou-lhe um olhar impassível.
— Ele já não sabe mais que está chovendo. — Pisou no estribo e sentou-se
maciamente na sela, puxando o cavalo de Fletcher.
Tandy seguiu-o, puxando o seu cavalo e o baio, que mancava. Nas estacas
onde os animais ficavam amarrados, os cavalos de Kit e Jordanna estavam
selados, com uma coberta jogada sobre o couro, para protegê-lo da chuva. Brig e
Tandy fizeram o mesmo com os seus cavalos, exceto com o baio ferido.
— Vamos ter que limpar essas feridas e desinfetá-las — falou Brig. — Vá
buscar um pouco de desinfetante com Jocko. — A armação da sela estava
quebrada. Brig desencilhou o cavalo e colocou a sela no chão. — Vou guardar as
tiras das cilhas. O resto da sela não vale mais nada. — Enquanto retirava a coberta
da sela, notou a pele cortada debaixo dela. Franziu o cenho. — Olhe só para isto.
— Deve ter-se cortado quando caiu — comentou Tandy. — Vou buscar o
remédio.
Abrindo a boca para chamar Tandy de volta, Brig hesitou. Voltou-se
novamente para o cavalo e inspecionou outra vez a ferida e a sua localização
debaixo da coberta da sela. Ficou desconfiado daquele ferimento. Seria preciso
uma rocha muito afiada para cortar daquele jeito. Inclinando-se, Brig apanhou a
coberta da sela e olhou para a sua parte interna. Num canto, correspondente à
localização da ferida, encontrou um galho cheio de espinhos enterrado na fazenda
dura. Os espinhos eram selvagemente agudos e grandes.
Brig rolou-o entre os dedos enluvados. Não havia nenhum arbusto espinhoso
ou de bagas naquela encosta. Mentalmente, rememorou a rota da trilha. Também
ao longo dela não havia. De onde poderia ter vindo aquele galho? O último lugar em
que se lembrava de ter visto arbustos com espinhos do tamanho daqueles fora dois
ou três dias antes. Não podia ter ficado preso na coberta da sela todo aquele
tempo. Tandy não era assim tão displicente.
Seus dedos se cerraram, os espinhos do galho se enterrando no couro da
palma de sua luva. Devia ter sido colocado ali por alguém. Uma brincadeira de mau
gosto? Alguém tinha querido ver Max ser derrubado pelo cavalo? Era certo que, no
instante em que aqueles espinhos se enfiassem nas costas do bicho, ele começaria
a corcovear. E fora exatamente o que fizera.
Brig examinou de novo a localização da ferida e a colocação do galho.
Inicialmente, os espinhos seriam apenas um fator de leve irritação para o cavalo.
Brig se lembrava de como o cavalo tinha ficado indócil, quando Max o montara no
acampamento. Os espinhos só furariam a pele quando o peso do cavaleiro
passasse para a parte de trás da sela... o que acontecera quando o baio começara
a subir a trilha em ziguezague.
Alguém matara Max... deliberada ou acidentalmente. Não havia ninguém no
acampamento com senso de humor tão pervertido para fazer aquela espécie de
brincadeira. Restava então a hipótese de um ato deliberado. Mas por quê? Brig
sacudiu a cabeça, confuso, e tentou um enfoque diferente.
Fletcher fora o último a lidar com o baio antes que Max o montasse. Fora ele
que amarrara o cavalo depois que Tandy o amansara pela manhã. Isso queria dizer
que Fletcher tivera oportunidade de colocar os espinhos sob a coberta. E Fletcher
perguntara se iam seguir a mesma rota... o que queria dizer a trilha íngreme que
cruzava o cume da montanha. Houvera aquele outro incidente, quando Max quase
caíra e Fletcher não ajudara a salvá-lo. E o incidente com a cascavel, na fazenda.
— Mas por quê? — murmurou Brig, baixinho, tensamente. Por que Fletcher
iria querê-lo morto? Uma pessoa como Max jamais poderia ser uma ameaça para
um homem como ele. Aquilo não tinha sentido. Uma ruga intrigada e zangada
vincou-lhe a testa.
E havia Jordanna. Que papel ela desempenhava em tudo aquilo? Fletcher
tinha lhe dado ordens para ser boazinha com ele. Por quê? Seu peito ficou apertado
de dor. Será que ela estava metida naquilo... na morte de Max? Estaria ali para
distraí-lo e impedi-lo de desconfiar? Naquela manhã, viera atrás dele com o café e o
mantivera falando, enquanto Fletcher ajudava Tandy com os cavalos. Brig teve que
cerrar com força os maxilares para impedir que um gemido angustiado escapasse
da sua garganta. As palavras que ela dissera pela manhã voltavam como uma faca
que se lhe enterrasse no coração: "Por que o salvou? Não seria melhor para você
se ele não estivesse em circulação?" Forçou sua mente a se concentrar na
ferradura solta do malhado, que agora tomava uma aparência suspeita.
A morte de Max fora assassinato... preparado para parecer um acidente.
Porém, como ele poderia prová-lo? Não podia. Tandy tinha tido acesso ao baio. Ele
próprio tivera acesso, por falar nisso. Deus sabe que, de todo o grupo de caça, ele
tinha mais motivos para matar o primo do que qualquer outro. Será que isso
também fora planejado? Brig se perguntara por que Fletcher o escolhera como
guia, em detrimento de muitos profissionais. Os motivos dele pareciam lógicos,
embora um tanto fracos. Mas Brig precisava demais do dinheiro para estar fazendo
muitas perguntas. Fletcher provavelmente contara com isso.
Tinha sido uma coisa arranjada desde o começo. E ele era o otário, o bode
expiatório. Se o acidente fosse encarado como assassinato, ele teria o motivo, a
oportunidade e os meios. Quem eram as testemunhas? Fletcher, o filho e a filha...
todos supostamente espectadores inocentes. Brig percebeu que, se abrisse a boca,
poderia estar pondo a corda no próprio pescoço. Precisaria ter algum tipo de prova
contra Fletcher... um motivo.
Jamais gostara de Max, ou o respeitara. Brig não ia fingir que estava sofrendo
com sua morte. Mas fechar os olhos a um assassinato simplesmente porque não
gostava do primo? Não. Não estava disposto a deixar Fletcher sair impune.
— Peguei uma pomada com Jocko. — Tandy veio apressado, pela chuva. — E
alguns trapos e água quente para lavar a sujeira das feridas.
— Cuide dele, então. — Brig se afastou do baio, enfiando o galho espinhoso
no bolso.
Tandy se agachou junto das patas dianteiras do cavalo e começou a lavar
suavemente a carne lacerada. Brig caminhou até os três animais de carga restantes
e enxugou-lhes a umidade das costas, antes de colocar os coxins e as albardas.
— Estamos com dois cavalos a menos. O que vamos fazer? — perguntou
Tandy.
— Vamos ter que distribuir o equipamento entre os cavaleiros. Todos terão
que carregar sua própria mochila e qualquer outra coisa que as bestas de carga
não agüentem. Não temos escolha.
— E Jughead? Não está em condições de viajar.
O cavalo tentou recuar quando suas pernas começaram a arder devido à água
com sabão usada por Tandy para lavá-las.
— Vamos ter que soltá-lo. Tire também as ferraduras do malhado. Eles nos
seguirão durante algum tempo. Acabarão chegando à fazenda. — O destino dos
dois cavalos era a menor das preocupações de Brig, no momento.
— Notou algum arbusto com espinhos por aí?
— Arbusto com espinhos? — indagou Tandy, franzindo a testa.
— Sim, arbusto com espinhos. Ou arbusto de bagas — repetiu Brig,
pacientemente. — Notou algum?
— Não que eu me lembre, mas não estava exatamente procurando nenhum.
Por quê?
— Não é nada. — Brig deu de ombros. — Algum desses arranhões é sério?
— Não, mas vão ficar doloridos como o diabo. — O cavalo tentou chutar
Tandy e mordê-lo. — Sossegue! — berrou Tandy, socando o baio na barriga com o
punho fechado. — Estou tentando ajudá-lo, seu pangaré de uma figa! Você merece
toda essa dor por ter corcoveado na encosta e ter feito um homem morrer. — O
cavalo bufou e ficou imóvel, mais intimidado pela voz tonitruante do que pelo golpe.
— Acha que as autoridades vão querer ver o Jughead, já que foi ele o cavalo que
derrubou Max?
— Não sei. Mas não podemos levá-lo. Ele nos atrasaria demais — respondeu
Brig, ajustando a albarda no último cavalo e apertando a cilha. — Se o quiserem,
terão que vir procurá-lo.
— Acho que tem razão. — Tandy soltou um suspiro. — Puxa, mas que merda
de dia!
Brig andou até o cavalo amarelado e arrancou a coberta protetora para sentar-
se na sela. Havia uma dúvida persistente na sua cabeça, e sabia que não iria
descansar até eliminá-la.
O vaqueiro atarracado ergueu os olhos.
— Aonde vai?
— Verificar uma coisa. Não demoro.
O cavalo amarelado fez pouco barulho enquanto Brig o conduzia por entre as
árvores e pelo ensopado tapete de folhas. Deliberadamente, evitou passar pelo
acampamento, contornando-o bem de longe, antes de entrar na trilha que levava
até aquela subida íngreme. A chuva sussurrante continuava a cair. Brig andava
devagar, parando de vez em quando para procurar arbustos espinhosos de cada
lado da trilha. Havia pouca vegetação rasteira ao longo da trilha. A área ao redor do
caminho em ziguezague não apresentava nenhuma. Brig desmontou, largando as
rédeas para prender o cavalo ao chão. Caminhou até a terra revolta onde o baio
começara a dar problemas e acompanhou sua rota até a escarpa. A meio caminho
da descida, viu um objeto saliente. Era uma carteira de couro, semicoberta pelas
pedras soltas. Brig apanhou-a e enfiou-a no bolso da jaqueta, do lado oposto ao
que continha o ramo de espinhos. Uma última olhadela na área convenceu-o de que
não estivera errado. Não havia à vista um único arbusto espinhoso, um só canteiro
de sarças, ou uma moita de arbustos de bagas.
O cavalo amarelado soltou um relincho ressonante, enquanto Brig voltava para
junto dele. Brig esfregou distraidamente o focinho molhado que o animal virou na
sua direção e caminhou para o lado esquerdo dele para montar. As suas feições
estavam severas e duras, enquanto girava o cavalo na direção do acampamento.
Brig pretendia sair da trilha e contornar de novo a área do acampamento.
Porém, antes de chegar àquele ponto, viu uma figura de impermeável amarelo no
começo da trilha. Era Fletcher. Brig conduziu o cavalo diretamente para o
acampamento. A expressão de Fletcher era suavemente controlada, demonstrando
apenas um leve interesse.
— Por onde andou? — perguntou.
— Fui percorrer a trilha — admitiu Brig.
— Por quê?
Enfiou a mão no bolso e tirou de lá a carteira.
— Lembrei-me de não ter visto a carteira de Max no seu corpo. Fui procurá-la.
— Sua expressão dura era igualmente inexpressiva.
— Tandy falou que você ia soltar o baio para que ele achasse o caminho de
casa sozinho.
— É isso aí. — Brig parou o cavalo amarelo e se debruçou para apoiar os
antebraços no arção dianteiro da sela, a chuva escorrendo do seu chapéu. —
Amanhã de manhã ele estará tão doído que provavelmente só conseguirá
manquejar. Irá para a fazenda quando o conseguir. — Olhou Fletcher bem nos
olhos. — Não creio que as autoridades estejam particularmente interessadas em
vê-lo. Afinal de contas, foi apenas um acidente infeliz.
— É. Foi — concordou Fletcher, demonstrando tristeza. — Ofereci-me para
montar o baio hoje de manhã. Estava com medo de que fosse cavalo demais para
Max, mas ele nem quis me ouvir. Agora... — Soltou um suspiro. — Agora está
morto.
Brig jogou a carteira para Fletcher, e a sela rangeu quando ele se ergueu nos
estribos.
— Mande Jocko pôr isso junto com as coisas de Max.
— Certo.
Estalando os dentes, Brig fez o cavalo se desviar do homem e trotar pelo
acampamento até as estacas. As barracas já haviam sido desarmadas, e duas das
bestas de carga estavam sendo carregadas.
Uma hora depois, tinham partido. Cavalgaram até o crepúsculo, antes de
armarem as barracas, naquela noite. Ninguém falava muito, comunicando-se
apenas quando era necessário. O acampamento era tosco, consistindo em duas
barracas improvisadas. O teto de lona inclinado era sustentado por duas estacas na
frente, e preso ao chão, na parte de trás, pelo peso de pedras grandes, formando
um abrigo para a constante chuvinha fina. Depois do jantar, foi um grupo
melancólico o que se reuniu sob a barraca perto do fogo. Jordanna foi uma das
primeiras a dar boa-noite e a se enfiar no seu saco de dormir, totalmente vestida.
Os outros foram pouco a pouco fazendo o mesmo, de um em um, até que só restou
Brig diante do fogo. Jordanna deitou-se de lado e ficou vendo as sombras que
dançavam na lona, efeito do fogo bruxuleante. As suas pálpebras pareciam pesar
uma tonelada. Fechou-as.
O sono foi uma fuga bem-vinda. E então o sonho começou. Ela estava de
novo na encosta, vendo o baio tentando desesperadamente derrubar seu cavaleiro.
O cavalo estava empinando, caindo para trás, e Max também caía.
Inexplicavelmente, o sonho se modificava. Jordanna é quem estava rolando pela
encosta. Lutou contra a imagem de pesadelo, dizendo a si mesma que estava
sonhando, e fazendo a pessoa tornar-se Max de novo. Mas o pesadelo ficava
mudando o tempo todo. Primeiro era Max, depois era ela. Max e ela; Max e ela.
Chegou o momento em que a mente dela não conseguiu mais forçar a mudança.
Ela estava rolando pela borda, carregada pela torrente de pedras soltas. Ia cair para
a morte.
Algo tocou seu ombro, e Jordanna agarrou-se a esse algo cegamente para
não cair no precipício. Mas aquilo começou a sacudi-la com força, dizendo que
acordasse. A palma da sua mão que se agitava foi espetada por um objeto agudo.
A dor fê-la despertar.
Brig achava-se inclinado sobre ela. Jordanna estava encharcada de suor frio e
tremendo incontrolavelmente. A nitidez do pesadelo grudava-se a ela. Sem se dar
realmente conta do que estava fazendo, Jordanna sentou-se e jogou os braços à
volta do pescoço dele, em pânico, pois precisava do conforto dos seus braços
fortes. Não percebeu a hesitação dele antes que seus braços lhe envolvessem o
corpo, que tremia loucamente, para abraçá-la forte. Ele a tomou no colo e carregou-
a para junto do fogo, como se o seu calor pudesse aquecer o terror frio que ela
sentia.
— Ti-tive um sonho — tentou explicar Jordanna, gaguejando, num sussurro
amedrontado. Precisava falar no pesadelo, para se livrar dele. — Eu estava caindo
encosta abaixo. Devia ser Max, mas... era eu.
— Acabou. — A frase, seca e dura, não oferecia outro consolo a não ser a
verdade.
O rosto dela estava enterrado no casacão dele, forrado e debruado com pêlo
de carneiro. Cheirava a umidade, cavalos e fumaça. Misturada à combinação
pungente, havia um odor almiscarado e indefinível de homem. Jordanna tentou
controlar sua respiração agitada e ofegante, mas era difícil, pois seu coração estava
batendo loucamente. Virou-se para apoiar o rosto na jaqueta dele. Tomando
consciência de uma dor ardida na palma da mão, levantou-a. O sangue escorria de
duas feridas pequenas. Enxugou-o na manga da sua blusa pesada, tentando
descobrir como se ferira.
— Jamais poderá enxugar o sangue das mãos, Jordanna — disse Brig, com
voz baixa, agourenta.
Ela sentiu um arrepio pela espinha abaixo. Afastando-se do apoio sólido do
peito dele, Jordanna fitou seu rosto. A aba larga do seu chapéu lançava-lhe
sombras escuras nas feições rudemente cinzeladas. A linha escura do bigode farto
parecia mais negra e assustadora. A secura e o desprezo cortantes dos olhos
castanhos eram estranhamente ameaçadores. Ela ficou alarmada.
— P-por que está dizendo uma coisa dessas? — perguntou Jordanna,
confusa, zangada e um pouco assustada.
— Qual é a sua parte nisso, Jordanna? — continuou ele, com o mesmo jeito.
— Nisso o quê? — Ela sacudiu a cabeça, sem compreender.
— Na morte de Max.
— Não sei do que está falando! — Soltou-se dos braços dele e ficou de pé,
agitadíssima. O ar frio da montanha transformava em nuvens de vapor o seu hálito.
Jordanna tremeu com a combinação do frio interno e o frio externo. Esfregou as
mãos nos braços para se livrar da friagem, cônscia de que Brig também se pusera
de pé. A atitude acusadora dele a intimidava por causa de um complexo de culpa
persistente. Tentou negar. — Você está maluco, Brig.
Ele segurou-lhe o braço e fê-la girar, apertando e magoando a carne macia do
braço dela.
— Por que fez aquilo, Jordanna? — perguntou Brig, com selvageria. — Por
quê?
Parte dela se crispava ante a sua expressão feroz, porém ela o enfrentou
ousadamente.
— Não tenho a mínima idéia do que você está falando. Agora, trate de me
soltar. Está me machucando.
A resposta dele foi puxá-la violentamente contra si e envolvê-la num abraço
tão esmagador que ameaçava partir-lhe as costelas. Os pulmões dela não tinham
espaço para se expandir e respirar, e a boca do homem abafou-lhe os lábios numa
posse brutal. O âmago implacável da violência de Brig ficou exposto. Abalada por
ele, Jordanna lutou debilmente contra a escuridão que rondava os limites de sua
consciência. Não podia respirar. Ele a estava sufocando, tirando-lhe a vida, e ela
não podia detê-lo. Sua mente oscilava na direção do vácuo negro.
E então, com a mesma violência com que a tomara, Brig a soltou, quase
jogando-a para longe de si. Jordanna cambaleou para trás, lutando para se
equilibrar e respirar. Os olhos dele eram duros sobre a face empalidecida dela.
— Vá para a cama! — rosnou ele, entre dentes. — Saia da minha frente.
Fitando-o cautelosamente, ela se dirigiu aos tropeções para o saco de dormir
e enfiou-se apressadamente no seu calor. Tremia tão violentamente como quando
depois do pesadelo. A brutalidade dele o transformara num estranho... um estranho
que a conhecia intimamente. Jordanna estremeceu e se encolheu, formando uma
bola compacta.

Parte três
A tocaia
Capítulo XVIII

Parando, Brig lançou um olhar ao seu reflexo na ampla vitrine da frente do bar.
Não tinha dormido muito nos dois últimos dias. Nem se dera ao trabalho de fazer a
barba, pela manhã. Parecia abatido e cansado, e, porra!, era assim que estava se
sentindo.
Depois que comunicara a morte de Max, tomara as providências para que o
corpo dele fosse enviado para Nova York. As autoridades aceitaram sua versão do
acidente com poucas perguntas. Iriam falar com Fletcher, Jordanna e Kit para
corroborá-la, porém Brig não tinha dúvidas de que eles o fariam. A sarça cheia de
espinhos ainda estava em seu bolso, espetando-o com sua pressão, como se
estivesse de encontro à sua carne.
Fitando o cartaz do Coors, Brig se perguntava o que o instigara a marcar
encontro ali com as três "testemunhas". Deus sabia que estava louco por uma
bebida que apagasse o amargor selvagem de sua garganta. Mas ela não
conseguiria aliviar a dor quente que ele sentia no estômago.
Com uma explosão de impaciência, caminhou até a porta e abriu-a. Suas
passadas longas e indolentes soavam arrastadas no chão duro, enquanto ele
cruzava a sala até o balcão. O lugar estava na penumbra e não tinha fregueses,
àquela hora. Brig se dirigiu para o canto do bar, que ficava nas sombras.
A loura oxigenada havia deixado de lado o cigarro quando ele entrou, o rosto
se iluminando ao reconhecê-lo.
— Brig! Há quanto tempo não o vejo — cumprimentou ela, com puro e doce
prazer.
— Alô, Trudie.
Brig tentou parecer agradável, mas as palavras saíram tensas e sem calor.
Sentou-se no último banquinho, enganchando o calcanhar numa barra de metal e
apoiando a bota no descanso para pés, de latão sem brilho. Tirando o chapéu,
largou-o no balcão manchado de bebidas e correu os dedos pelos cabelos, com ar
cansado.
— Parece que andou cortando um dobrado. — Trudie se dirigira para a
extremidade do bar em que ele se encontrava. — O que foi que aconteceu? Perdeu
a navalha?
— Estava com a cabeça cheia de outras coisas, hoje de manhã. — Esfregou
os pêlos duros do maxilar. Faziam um som rascante contra a pele calejada.
— Por onde andou?
— Passei as duas últimas semanas nas montanhas. — Brig não entrou em
detalhes. Não queria falar sobre o grupo de caça ou sobre a morte de Max. Para
poder tomar as providências e mandar o corpo de volta a Nova York, tivera que
identificar-se como primo. As notícias se espalhariam rapidamente pela pequena
comunidade. Felizmente, a notificação à ex-mulher de Max e aos filhos estava
sendo feita através dos canais legais, e Brig não precisara assumir essa
responsabilidade.
— Duas semanas? — Um sorriso zombeteiro curvou a boca vermelha. — É
um milagre que tenha se dado ao trabalho de fazer a barba durante todo esse
tempo.
Brig poderia ter-lhe dito que, em geral, naquelas duas semanas tivera motivos
para querer um rosto bem-barbeado. Não ia querer que aqueles pêlos espetados
arranhassem a maciez suave da carne de Jordanna. Desfigurar aquele corpo
perfeito seria um crime, especialmente quando havia tantas outras maneiras de
despertar uma reação trêmula, sem infligir dor. Ele havia testado quase todas elas
na sua aprendiz condescendente.
— Cerveja? — perguntou Trudie.
— Uísque.
Ela ergueu uma sobrancelha, surpresa.
— Nunca o vi pedir bebida forte. O que está fazendo? Afogando as mágoas?
— falou a mulher, num tom de brincadeira, mas estava perto demais da verdade.
— Mudei de idéia. Quero uma cerveja — disse ele, laconicamente.
— Você é que manda. — Trudie deu de ombros e fitou-o estranhamente.
Encheu um copo com cerveja e pousou-o diante dele. — Quanto tempo vai ficar na
cidade?
O olhar dela continha ao mesmo tempo uma pergunta e um convite. Brig
rejeitou a ambos. Sentiu um impulso fugaz de usá-la como havia sido usado. Se
fosse para a cama com ela, seria apenas pelo sexo, e não teria que se precaver
contra qualquer outra emoção. Mas não era isso o que queria.
— Pouco tempo. Vou me encontrar aqui com algumas pessoas. —
Desabotoou o casacão e deixou-o aberto. Apoiando os cotovelos na beirada
arredondada do balcão, sorveu sua cerveja e enxugou a espuma do bigode com as
costas da mão.
— Ah... Tandy e os rapazes vieram à cidade com você? — arriscou Trudie.
— Não.
A porta se abriu, e Brig se virou no assento giratório do banquinho do bar.
Fletcher vinha entrando, seguido por Jordanna e pelo filho. O olhar dele se desviou
do homem grisalho para Jordanna. Seu corpo esguio, de seios altos, não estava
mais acolchoado com camadas de roupas para protegê-lo do frio. Ela usava calça
justa, cor de porcelana, e uma blusa de seda creme com uma jaqueta de pele
acastanhada, que terminava na cintura. Eles ainda não o haviam visto sentado na
extremidade às escuras do bar. Brig não fez nenhuma tentativa de disfarçar a fome
crua nos seus olhos, que o devorava. Mas não podia confiar nela nem um pouco.
Estava metida com o pai em tudo aquilo. Brig ainda não concluíra qual era o papel
do filho, mas também devia estar envolvido.
— Devemos ter chegado cedo — ouviu Fletcher dizer, mas mesmo assim não
revelou sua presença.
Três contra um. Porra!, já tinha estado em inferioridade numérica antes e
conseguira vencer. Aquele tipo de pensamento era perigoso, advertiu a si mesmo.
Só porque sobrevivera a situações perigosas antes não queria dizer que iria safar-
se daquela. Agora, estava vulnerável. Tinha um elo frágil nas suas defesas, no que
dizia respeito a Jordanna. É verdade que não mais se aproximara dela desde
aquela noite em que Max morrera... quando seu desejo de matar se equivalera ao
de amar. Sem saber qual dos dois iria vencer, ele a enxotara. A tensão de manter
as mãos longe dela estava começando a fazer sentir seus efeitos, e ele não sabia
por quanto tempo mais poderia agüentar.
— É ela, não é? — perguntou Trudie baixinho, já sabendo a resposta. A
pontada de mágoa nos seus olhos era mais de inveja do que de ciúme. Não tinha
nem a beleza nem aquele toque de classe necessários para fazer sombra a
Jordanna.
Um portão de pedra dura baixou para esconder sua expressão, quando Brig
lançou um rápido olhar à loura, irritado porque ela vira o que ele queria enterrado.
Saltou do banquinho, uma perna raspando o chão com o movimento. Levando sua
cerveja, caminhou para o trio familiar.
O ruído atraiu magneticamente o olhar de Jordanna para o canto escuro no
bar. Brig surgiu em meio às sombras. Na noite anterior, ela dormira no quarto dele,
mas dessa feita sozinha. Ele saíra da fazenda de manhã cedo, antes que ela
acordasse. Parecia cansado e irritado e preparado. Preparado? Por que escolhera
tal adjetivo? Encaixava-se, mas preparado para quê... e por quê? A arremetida dura
de seu olhar deu início a um tremor interno. As emoções dela estavam todas
confusas... amando-o e temendo-o, odiando-o e desejando-o, sentindo-se segura e
ameaçada.
— Alô, Brig — cumprimentou Fletcher. — Não o vimos ao entrar.
Brig acenou com a cabeça, mas não emitiu nenhum cumprimento.
— Vamos nos sentar a esta mesa. — Escolheu uma mesa para quatro, mais
bem-iluminada, depois sentou-se numa cadeira que o colocava nas sombras.
O pai sentou-se na cadeira bem à frente dele. Jordanna sentiu-se nitidamente
constrangida ao se sentar à direita de Brig, com Kit do outro lado da mesa, diante
dela. A garçonete se aproximou, uma loura rechonchuda e curvilínea, que usava
maquiagem em excesso. Fitou Jordanna com um olhar magoado e cheio de ciúme.
Jordanna lançou um olhar vivo para Brig. Nunca imaginara que ele não tivesse
outras mulheres, mas ser confrontada com uma delas naquele bar era algo que não
esperara. Ele viu o olhar dela, e seu maxilar se contraiu. O olhar dele se desviou
para a loura, depois voltou para ela com um brilho de satisfação. Seria sua intenção
mostrar às duas que não estava disposto a se prender a uma só mulher? Ou estava
tentando dizer-lhe que a novidade já se desgastara e que ela o entediava? Brig sem
dúvida a evitara naqueles dois últimos dias, exceto na noite em que explodira com
ela e dissera todas aquelas coisas malucas, que não tinham sentido.
— Querem alguma coisa para beber? — perguntou a garçonete, sorrindo
vivamente.
— Quero uma cerveja — pediu Fletcher.
— Nada para mim, obrigado — recusou Kit.
— Seria possível tomar um café? — perguntou Jordanna, erguendo os olhos
para a mulher.
— Claro. Tenho um bule no fogão. Quer alguma coisa no café? Uísque, ou
coisa parecida?
— Não. Nem creme nem açúcar, tampouco, obrigada.
— E quanto a você, Brig? — perguntou a mulher, com familiaridade. — Quer
um colarinho novo nessa cerveja?
— Não, obrigado, Trudie. — Sorriu para ela e girou o líquido cor de âmbar no
copo.
Quando a loura se retirou, Fletcher recostou-se na cadeira e tirou do bolso o
cachimbo e o fumo. Enchendo o bojo com uma mistura aromática de fumo, ele o
calcou fundo e acendeu-o com um isqueiro para cachimbo. Brig parecia concentrar-
se exclusivamente no homem, observando cada movimento seu. Jordanna sentia-
se inquieta. Havia uma tensão irritável na atmosfera que cercava a mesa, e ela não
compreendia o que a estava causando.
— Que tal foi a entrevista? — perguntou Brig.
— Bem. — A resposta de uma só palavra foi dada com a haste do cachimbo
presa entre os dentes. Soltando uma baforada de fumaça, o pai retirou-o da boca e
pareceu examinar-lhe o bojo. — Não nos fizeram muitas perguntas. Estavam quase
que só confirmando o que você lhes dissera.
— Já tomei todas as providências para despachar o corpo para Nova York.
— Isso me lembra uma coisa. — O pai olhou para Kit. — É melhor ligar para
sua mãe antes que a imprensa saiba do que aconteceu, e ela fique sabendo pelos
jornais.
— E por que eu deveria telefonar? — Kit inclinou a cabeça para encarar o pai.
— Ela aceitará melhor a notícia, se for dada por você. Pode tranqüilizá-la de
que estamos todos a salvo e bem. Sei que, quando souber da morte de Max, ficará
preocupada conosco. — A última frase foi dita num tom sardônico. Fletcher desviou
o olhar para Brig. — Minha mulher acha que eu minimizo as coisas. Acreditará nas
palavras do filho, mas não nas minhas.
A boca de Kit se apertou de desprazer, porém ele não protestou mais.
— Há um telefone por aqui? — perguntou o rapaz a Brig.
— Há um telefone público perto dos banheiros — respondeu Brig, fazendo
sinal para um corredor mal-iluminado nos fundos da sala.
— Vou com você — ofereceu-se Jordanna, ansiosa por escapar daquela
tensão que desgastava seus nervos e para compor suas emoções caóticas.
O pai se levantou cortesmente da cadeira quando ela se levantou, mas Brig
não acompanhou seu gesto. Na verdade, nem sequer olhou para ela. A moça
estava magoada e confusa com a indiferença dele. Quando dissera a Brig que se
afastasse dela, na manhã da morte de Max, falara com raiva, não falara a sério, e
não esperava que ele fosse acreditar. Queria alguma capitulação por parte dele,
alguma admissão de que ela significava mais alguma coisa para ele, além de uma
parceira de cama. Seu amor e seu orgulho precisavam disso. No entanto, Brig
estava agindo como se ela não existisse.
Jordanna foi com o irmão até o telefone. Distraidamente, ouviu-o pedir a
ligação, com os pensamentos voltados para o homem à mesa. Prestando atenção
apenas parcialmente, ouviu Kit falar com a empregada, Tessa, pedindo-lhe que
chamasse a mãe ao telefone, e que não se retirasse. Depois de uma troca de
saudações e alguns comentários irrelevantes, Kit falou:
— Mamãe, tenho más notícias para você. Houve um acidente... Não, estou
bem, Jordanna está aqui a meu lado e papai está sentado a uma mesa. Foi Max
Sanger... — Uma voz histericamente alta do outro lado fez chover uma porção de
perguntas, mas Jordanna mal prestava atenção. Não notou o olhar vivo que Kit lhe
lançava. Sua cabeça estava cheia de pensamentos referentes a Brig... — Sinto
muito, mamãe. Max... morreu de uma queda — começou Kit, apressadamente, a
explicar as circunstâncias. Jordanna não tinha vontade de ouvir tudo aquilo de
novo. Olhando para o banheiro que dizia "Senhoras", fez sinal a Kit de que ia entrar
ali. Ele acenou com a cabeça e deu um breve sorriso. Jordanna empurrou a porta e
entrou.

A saída de Jordanna terminou com sua distração. Brig não precisava mais
fingir que estava se concentrando no seu oponente, Fletcher Smith. Era uma coisa
natural... tão natural quanto a calma mortal que tomara conta dele. Enfiando a mão
no bolso da jaqueta, tirou de lá o raminho espinhoso e colocou-o com displicência
sobre a mesa.
— O que é isso? — perguntou Fletcher, sem um só lampejo de
reconhecimento na expressão.
— É o que eu ia lhe perguntar — retrucou Brig.
— Sou um caçador, não um horticultor — pilherou o homem. — Onde o
encontrou?
— A sarça estava colocada sob a coberta da sela de Max. — Essa frase não
provocou nenhuma reação em Fletcher.
— Imagino que tenha ficado presa durante a queda pela encosta. — O tom de
voz sugeria apenas um interesse mínimo pela sarça e sua procedência. Trudie
voltou com os pedidos deles, e Brig ficou calado até ela se retirar.
— Foi o que pensei de início. Tandy disse quase a mesma coisa quando a
mostrei a ele — admitiu Brig. — Mas o interessante é que não há nenhum arbusto
espinhoso naquela encosta. Fui verificar. A propósito, não havia nenhum nas
vizinhanças do nosso acampamento.
— Que interessante! — Fletcher acenou de cabeça, com curiosidade remota,
e tomou um gole da sua cerveja. — Suponho que tenha ficado presa em algum
outro lugar.
— É uma suposição lógica concordou Brig. Só tem uma grande falha. Se a
sarça já estivesse na coberta da sela dois dias antes do acidente, o malhado não
teria dado um passo até que fosse encontrada e removida. Lembre-se, aquele
cavalo não tolera nem uma ruga na coberta, que dirá espinhos.
— É verdade. Tinha me esquecido. — Fletcher fumava seu cachimbo e franzia
a testa, pensativo. — Como imagina que apareceu ali?
— Pensei que você já soubesse. — Os olhos castanho-claros brilhavam,
desafiadores. — Obviamente, foi colocada ali.
— Não pode estar falando sério! — declarou Fletcher, com um riso de
deboche. — Sabe o que está sugerindo?
— Que a morte de Max não foi um acidente? Não estou sugerindo, estou
afirmando. — Aquele confronto podia ser uma jogada imprudente, mas Brig
examinara as alternativas nos dois últimos dias e concluíra que o único meio de
forçar Fletcher em campo aberto era admitir que sabia como Max morrera.
O meio sorriso sumiu do rosto do homem mais velho, enquanto ele estreitava
os olhos, fitando Brig.
— Está percebendo o que está insinuando? Que Max foi assassinado.
— Sim. Alguém colocou isso... — Brig deu um peteleco na sarça com o dedo,
empurrando-a mais para perto de Fletcher — sob a coberta da sela, naquela
manhã, sabendo que o baio era conhecido por seus corcovos. Depois, seria
simplesmente uma questão de esperar até chegarmos a uma subida íngreme o
bastante para que o peso do cavaleiro escorregasse para trás, na sela, e os
espinhos se enterrassem na pele.
— Mas quem faria uma coisa dessas? E por quê? — Fletcher franzia o cenho
de uma maneira muito convincente.
— Eu sei quem — declarou Brig. — Ainda não descobri o porquê.
— Então, quem foi?
Um sorriso frio retorceu a boca de Brig.
— Foi você, Fletcher.
— Eu?! — As belas feições exprimiam uma surpresa incrédula. — Não pode
estar falando sério!
— Estou... totalmente sério. Você teve oportunidade, quando amarrou o baio
depois que Tandy o amansou. E sabia qual o caminho que estávamos tomando. —
Brig fez uma pausa. — Não posso deixar de me perguntar se aqueles dois outros
incidentes não foram tentativas malsucedidas. Max poderia ter morrido do choque,
se aquela cobra o tivesse mordido. E foi por pura sorte que consegui salvá-lo
daquela outra queda.
Uma raiva indignada espalhou-se pela fisionomia de Fletcher.
— Se vamos começar a apontar dedos acusadores, você teve oportunidade e
conhecia nossa rota. Além disso, tem uma coisa que eu não tenho: um motivo. A
Sanger Corporation é sua, para dispor dela como quiser, agora que Max está morto
— acusou. — É sabido que alguns homens mataram por muito menos do que o
controle de uma companhia multimilionária.
Os olhos de Brig se estreitaram, astutamente.
— Como foi que obteve essa informação? Estou certo de que Max não a
ofereceu espontaneamente, não quando estava tentando tão desesperadamente
vender-lhe as ações dele.
Fletcher ficou recostado por um momento, encarando Brig e pensando na
resposta.
— Naturalmente, quando Max se ofereceu para vender-me as ações, mandei
meu pessoal investigar a companhia. E, mais tarde, você. Queria saber que tipo de
homem estava contratando para guiar minha caçada. A correlação das duas
investigações produziu a informação.
— Nesse caso, você deve estar a par de que a empresa está prestes a abrir
falência. Estou herdando um elefante branco... o que não é exatamente motivo para
se matar ninguém.
— Quem sabe o seu motivo seja a vingança... Afinal de contas, foram os maus
investimentos de Max que levaram a companhia ao limiar da ruína. Quem sabe
você estivesse com raiva dele por ter administrado mal os bens da firma. Podia ter
providenciado para que morresse antes de a companhia soçobrar, achando que
poderia salvá-la — raciocinou Fletcher. Brig via as provas circunstanciais de culpa
incriminando-o. — Você poderia salvá-la... com o apoio financeiro certo. Essa era
uma oferta que eu estava pensando em fazer a Max. Faço-a a você.
— Em troca do quê? Do meu silêncio? — zombou Brig. — Quer que eu jogue
esta sarça no lixo e me esqueça que algum dia a vi?
— Não sei coisa alguma sobre este ramo. — Fletcher jogou-o para o lado da
mesa em que estava Brig. — Você me disse que o encontrou sob a sela de Max.
Não tenho prova de que tenha vindo de lá. No que me diz respeito, você poderia tê-
lo apanhado em qualquer lugar. — Ergueu os olhos e fitou os de Brig, serenamente.
— Minha proposta era estritamente comercial.
Fletcher era um sujeito frio. Brig se deu conta de que não ia assustá-lo
fazendo qualquer espécie de admissão. Fletcher negara cada uma das suas
alegações e as retrucara com outras mais perigosas para Brig. O plano todo fora
muito bem bolado.
— Você deixou passar uma coisa muito importante. Eu não quero a Sanger
Corporation. Não a quis há catorze anos, e não a quero agora. Não pode me
comprar com sua proposta comercial, Fletcher. Não há dinheiro suficiente no
mundo que me faça ficar quieto quanto ao fato de que você assassinou Max.
Fletcher sacudiu a cabeça grisalha, num espanto confuso.
— Por que insiste nessa acusação ridícula contra mim? Não se esqueça de
que me ofereci para montar o baio no lugar de Max. Não iria fazer isso, se tivesse
posto o espinho sob a sela dele. Poderia ter sido eu a morrer, e não ele.
— Não me esqueci. Foi um golpe muito esperto. Sabia que meu primo nunca
concordaria com a idéia, por medo de parecer covarde. Você estava bem seguro
quando fez a oferta — retrucou Brig.
— Há uma coisa que não entendo a respeito de tudo isso. Se está tão
convencido de que preparei o acidente de Max, por que não contou sua história às
autoridades? — desafiou Fletcher.
Um sorriso frio recurvou a boca sob o bigode.
— Porque não tenho provas suficientes contra você. Mas vou obtê-las.
— Por que esta cruzada justiceira, McCord? Max Sanger nunca significou
nada para você. Você o desprezava e tudo o que ele representava. Por que lhe
interessa como ele morreu?
— Você estava contando com o fato de que eu ficaria feliz em vê-lo morto e
não me importaria com o que pudesse ter causado sua morte? — A pergunta era
baixa e irônica. — Posso não ter gostado do meu primo, mas isso não é motivo
para deixar o seu assassino impune. Seu segundo erro, Fletcher, foi tentar fazer-me
de bode expiatório.
— Você positivamente me assombra com sua insistência nessa idéia absurda!
— disse Fletcher, rindo. — Max morreu de uma queda, causada por ter sido
derrubado de um cavalo. Como você mesmo ressaltou, era um cavalo que tinha a
reputação de corcoveador. Ou será que é isso o que o está preocupando? Está com
medo de ser acusado de homicídio por negligência, por colocar um cavaleiro
inexperiente num cavalo perigoso?
— Você implantou essa idéia na mente das autoridades? — Brig lançou um
olhar duro a seu implacável oponente.
— Eu não tinha motivo para desconfiar de qualquer envolvimento seu na
morte de Max até este momento. Mesmo que tivesse, duvido que diria alguma coisa
sem prova concreta — admitiu Fletcher, com um dar de ombros indiferente. —
Jordanna está gostando de você. Não me arriscaria a magoá-la fazendo acusações
possivelmente infundadas contra você.
— É, Jordanna — concordou Brig, secamente. — Ela é quase tão boa em
representar quanto você. É uma pena que não tenha feito um trabalho melhor para
distrair minha atenção. Eu poderia nunca ter encontrado essa sarça.
— Não sei do que está falando. — A voz de Fletcher soava cansada de repetir
a frase. — Devo entender que não está interessado em se casar com minha filha?
— Aposto que você gostaria que eu me casasse com ela. Como seu genro,
acha que poderia confiar em que eu iria guardar seu segredo e não espalhar por aí
o que sei sobre a morte de Max, não é? — O desprezo revestia suas palavras.
Tinha muito pouco respeito por um homem que venderia a própria filha para obter
silêncio.
— Eu poderia ser muito generoso quando Jordanna se casasse. Se não está
interessado na Sanger Corporation, tenho certeza de que irá admitir que há muitas
melhorias custosas que poderiam ser feitas na sua fazenda.
— Pode achar difícil de acreditar, mas gosto da fazenda como ela é —
replicou Brig. — Em segundo lugar, não gostaria de ser cúmplice de um
assassinato. E em terceiro, não confiaria na sua filha. Seria muito possível, se eu
me casasse com ela, que me acontecesse um acidente de caça digamos daqui a
uns dois anos, um daqueles lapsos de segurança peculiares a uma perita em
armas.
— Creio que você é um tanto maluco — comentou Fletcher.
— É? Por quê? Porque estou recusando não só seu dinheiro como a
considerável atração de sua filha, também? Pode ser que tenha razão. Talvez eu o
seja — admitiu. Mas posso prometer-lhe que vou provar que você matou Max... e
vou descobrir por quê.
— Se descobrir um motivo, espero que me conte. — Havia uma ponta de
arrogância divertida na voz do outro. — Como sabe, Max era o tipo do homem que
eu podia comprar e vender uma meia dúzia de vezes. Se ele estivesse sendo um
problema para mim, havia diversas maneiras de me livrar dele sem recorrer ao
assassinato.
Essa era a parte que incomodava Brig, porque ele sabia que Fletcher tinha
razão. Não podia visualizar Max representando uma ameaça tão grande que
Fletcher precisasse matá-lo, para ficar livre dele. Podia arruiná-lo financeiramente.
Brig subitamente se perguntou se era isso o que Fletcher estava fazendo. Quem
sabe era o responsável pelos problemas financeiros que Max estava tendo
pessoalmente, bem como com a companhia. Essa possibilidade apenas complicava
as coisas. Se Max ia soçobrar dali a meses, por que Fletcher o matara agora?
Faltava uma peça importante no quebra-cabeça. Brig tinha que descobri-la.
— Quando eu descobrir o seu motivo, Fletcher, você saberá. — Brig disfarçou
sua confusão e incerteza. — Embora não prometa que você vá ser o primeiro.
— Não faria isso se fosse você, McCord. — Por um instante, o ódio brilhou,
indisfarçável, nos olhos castanhos. — Pode estar mexendo numa coisa grande
demais para o seu bico.
— Isso é uma ameaça, Fletcher? — ironizou Brig. — Ou apenas mais palavras
impotentes por parte de um velho? A verdade é que pode ter ido longe demais,
dessa vez. Não pense que vai conseguir livrar-se do assassinato, porque você
estará cometendo um erro.
Justamente quando Brig achou que poderia ter atiçado Fletcher a deixar
escapar alguma coisa, uma máscara suave cobriu a expressão do homem. Ele
estava olhando para além de Brig, exibindo um sorriso paternalmente benigno.
— Falou com sua mãe, Kit? — perguntou, e Brig se deu conta de que Kit e
Jordanna estavam voltando para a mesa. Abafou as breves chamas de irritação.
— Falei, sim... — Kit hesitou uma fração de segundo enquanto se sentava — e
tranqüilizei-a, contando que estávamos todos bem e incólumes.
— A morte nunca é agradável, mas é sempre um choque quando acontece
com alguém que a gente conhece — comentou Fletcher. — Espero que tenha
pedido à sua mãe para enviar flores e as nossas condolências para a família de
Max.
— Não pedi... mas tenho certeza de que ela o fará — replicou Kit.
— O que é isso? — Jordanna estendeu a mão para o ramo espinhoso que
jazia sobre a mesa.
Por um instante, Brig sentiu-se cativado pela visão dos dedos longos e
esguios, com sua delicadeza e força. Rapidamente, empurrou-o na direção dela e
examinou-lhe o rosto. Parecia genuinamente ignorante do seu significado. Mas,
merda, não acreditava nela.
— É o meu talismã — falou, tirando-o dos dedos dela.
— Um galho de espinhos? — replicou ela, lançando-lhe um olhar curioso e
cético.
— Sim. Brig enfiou-o no bolso da jaqueta.
— Coitados dos pés de coelho e das moedinhas — disse Jordanna, rindo,
intrigada.
Brig lançou um olhar sub-reptício ao irmão dela. Kit estava de testa franzida.
Logo a desanuviou, ao ver que o fazendeiro estava olhando para ele. Voltou-se
para o pai.
— Quer que faça as reservas das passagens de volta?
Fletcher inspirou fundo, lançando um breve olhar para Brig, antes de
responder:
— Sim, eu...
— Não está planejando ir embora agora, está? — interrompeu Brig,
mansamente. Sabia que estava fazendo um jogo perigoso. Mas não queria Fletcher
do outro lado do continente, ainda não, não quando havia uma chance de descobrir
provas incriminadoras. — Pensei que você tivesse vindo aqui para caçar carneiros
monteses. Aquele monarca ainda está esperando lá nas montanhas por você. Não
vai atrás dele? Ainda sobram duas semanas da temporada, e não ganhei todas as
minhas bonificações.
Fletcher ficou pensando na sugestão por um momento.
— É verdade.
— Cuidamos de todos os detalhes pertinentes ao acidente de Max. Não há
nada que nos impeça de partir amanhã para as montanhas, há? — perguntou Brig,
desafiadoramente.
— Mas... e quanto ao enterro? — protestou Jordanna. — Ele era seu primo.
Não vai comparecer?
Brig virou-se para enfrentar calmamente o olhar acusador dela.
— Não sou hipócrita. As circunstâncias do meu nascimento podem ter feito de
Max meu primo, porém jamais gostei dele. Não teria atravessado a rua para ir vê-lo
quando estava vivo. Não vou voar a Nova York para ir a seu enterro, agora que está
morto. — Olhou para Fletcher num desafio mudo. — Bem, o que me diz? Falou que
queria aquele montês.
— E quero — declarou Fletcher. — Como Jordanna, eu tinha a impressão de
que você iria comparecer ao enterro de Max. Mas, se está disposto a me levar em
busca do carneiro montês, posso partir quando você estiver pronto.
— Então, tudo resolvido. — Brig afastou a cadeira da mesa e se levantou. —
Vou voltar para a fazenda e mandar Jocko preparar tudo para partirmos amanhã.
— Ótimo — concordou Fletcher.
Porém Brig notou que nem Jordanna nem o irmão pareciam entusiasmados
com a perspectiva. Imaginou que quisessem escapar antes que seu ato fosse
descoberto. Fletcher não iria perder tempo informando-os de que já era tarde
demais. Brig foi até o bar para pagar as bebidas.
Trudie marcou a despesa na caixa registradora e entregou a Brig o troco.
— Vai partir agora?
— Tenho que voltar para a fazenda. — Enfiou o dinheiro no bolso lateral da
calça Levis.
Quando começou a se afastar, ela disse:
— Brig, Jake Phelps anda falando em casamento.
Parando, ele olhou para ela. Tinham-se divertido juntos, antes de Jordanna
aparecer. E Jake Phelps era um homem ciumento. Ora, já não tinha resolvido ficar
fora da vida de Trudie? Soltou um longo suspiro de aceitação definitiva.
— Ele é um bom homem, Trudie. — A decisão era dela, e Brig não estava
disposto a fazer nenhuma recomendação.
— É, suponho que sim — retrucou. Parecia desapontada, e ele sabia por quê.
Não havia mais nada a dizer. Assim, Brig caminhou para a porta. Tinha
consciência do trio à mesa que o observava partir, em silêncio, mas não olhou na
direção deles, enquanto empurrava a porta e saía. Parou na calçada, imaginando
se estariam tramando sua morte. Teria que tomar um cuidado especial, nas
montanhas. Voltou a olhar para o recorte irregular no horizonte. A profecia que
fizera para Max também poderia ser verdade para si próprio.
— Olá, Brig. — A figura atarracada de Tandy veio andando rapidamente pela
calçada, na sua direção. — Os Smiths estão lá dentro?
— Estão.
— Aonde você vai?
— Estou indo para a fazenda. Vamos voltar para as montanhas logo de
manhãzinha, para recomeçar a caçada. Quero que Jocko organize tudo.
— Vamos voltar? — perguntou Tandy, parecendo surpreso.
— Você, não. Só Jocko e eu. Frank vai precisar de ajuda na fazenda. Eu
mesmo posso cuidar dos cavalos, nessa viagem. Cuidaria deles pessoalmente. —
Não haveria nenhuma sarça enfiada debaixo da sela dele. — Fletcher pagou por
seu carneiro montês, e vai querê-lo.
— Ele não parece muito chateado por termos acabado de tirar o corpo de um
amigo dele das montanhas — disse o vaqueiro, torcendo o nariz.
— Max não era amigo dele — corrigiu Brig, dirigindo-se ao seu furgão. —
Vejo-o na fazenda, mais tarde.

Capítulo XIX

— Por que vai voltar para lá, papai? — perguntou Kit, quando a porta do bar
se fechou atrás de Brig.
— Vim para cá a fim de conseguir um carneiro tamanho troféu. Vou voltar para
as montanhas pelo mesmo motivo — replicou Fletcher, num tom de voz que dizia
que aquilo devia ser óbvio. — Eu mesmo teria tocado no assunto, mas Max era
primo de Brig. Não forçaria um homem a ignorar uma morte na família para cumprir
uma obrigação contratual comigo. Mas já que ele se ofereceu, certamente não
pretendo recusar.
— Mas a morte de Max não significa nada para você? — insistiu Kit.
A expressão do rosto de Jordanna assemelhava-se à do rosto do irmão. Ela
também estava achando o pai egoísta e insensível.
— O que esperam que eu diga? — Fletcher deu de ombros. — Foi um
acidente lamentável. Mas ele não era amigo íntimo meu. Mal conhecia o homem. A
vida continua. Nada pára simplesmente porque um homem morre. É como colocar o
polegar num balde d'água, e tirá-lo de lá. Mal se vê uma ondulação, que dirá um
buraco. Pode parecer insensível, mas é a verdade — afirmou. — Brig sabe disso.
Concordo com ele em que seria uma hipocrisia fingir que sinto a perda de alguém
que apenas conhecia superficialmente.
— Parece-me que... — começou Kit.
— Naturalmente, não espero que venha comigo — interrompeu o pai. — Seu
lugar é com sua mãe. Depois do acidente, ela vai ficar preocupada com você. É seu
único filho. — Havia um tom latente de desprezo na voz dele, que estava ausente
quando se dirigiu a Jordanna. — Se você acha que é impróprio, não vou sugerir que
me acompanhe, também.
Impróprio ou não, Jordanna sabia que tinha que ir. Brig ia, e ela, idiota,
também tinha que ir.
— Não, eu vou com você.
— Também vou — declarou Kit.
— Não vejo por que desta vez, Kit — declarou o pai, friamente. — E não tente
fingir de novo que é por causa de um desejo de estar comigo.
Jordanna olhava de um para o outro, surpresa. Do que estavam falando? Por
que outro motivo Kit teria vindo? Todos estavam falando enigmaticamente. E ela
parecia ser a única a não saber as respostas.
— Eu vou. Não pode me deter. — A frase do irmão foi dita com calma
determinação.
O pai olhou para ele, depois falou zombeteiramente:
— Já faz muito tempo que está longe de casa. Não está com medo de que o
seu colega de quarto tenha arrumado outro para tomar o seu lugar? — Havia uma
ênfase leve e cáustica na referência.
A boca de Kit ficou branca de raiva, mas, nesse justo instante, Tandy Barnes
entrou no bar. A resposta que Kit ia dar ficou-lhe presa nos lábios com o
aparecimento do vaqueiro.
— Vocês estão prontos para voltar para a fazenda? — perguntou Tandy,
parando junto à mesa deles.
O pai enfrentou o olhar resoluto de Kit por um longo segundo, depois acenou
com a cabeça, afirmativamente.
— Sim, acho que estamos todos prontos para ir. — Não emitiu mais nenhum
protesto quanto à decisão de Kit de acompanhá-los na caçada.
O diálogo entre o pai e o irmão perturbara Jordanna. Foi só no fim da tarde,
depois que tinham voltado para a fazenda, que ela teve oportunidade de questionar
o irmão a respeito daquilo, quando ficaram a sós. E isso ocorreu apenas depois que
ele a procurou. Ela estava no quarto de Brig, onde dormia, refazendo sua mochila,
quando Kit bateu à porta.
— Estava querendo falar com você — disse Jordanna, ao deixá-lo entrar.
Mas Kit não lhe deu chance de continuar com o assunto.
— Há alguma maneira de você convencer papai a desistir dessa caçada?
— Convencê-lo? — repetiu, incrédula. — Ele está firmemente resolvido a obter
um carneiro tamanho troféu. Não iria convencê-lo a desistir disso. —
Imediatamente, Jordanna fez sua própria pergunta: — Por que ele não quer que
você vá?
O rapaz retorceu a boca, num cinismo divertido.
— Pode ser que ache que eu vá atrapalhá-lo, de alguma forma. — Sua
tentativa de fazer humor parecia sombria.
— Fale sério — queixou-se Jordanna, impaciente.
— Estou falando — disse Kit, rindo.
— Então, por que você não está sendo claro? — A moça ergueu as mãos,
num gesto desalentado. — Ninguém está sendo claro. Sinto como se vocês
estivessem falando em algum código secreto que não compreendo. Por exemplo,
aquele comentário ridículo que papai fez sobre o seu colega de quarto, Mike. Ele
sabe muito bem que o apartamento está alugado no seu nome. Mike não pode
deixar outra pessoa mudar-se para lá enquanto você estiver fora, então por que
falou uma bobagem dessas? E por que você ficou zangado quando ele o fez?
Kit desviou o olhar dela, e se afastou.
— Você não compreenderia, Jordanna.
— Eu não compreenderia — repetiu ela, com raiva. — Jamais vou
compreender, se não me explicarem. Sinto-me como uma criança a quem algum
adulto diz que espere até crescer para fazer a pergunta. Tenho vinte e quatro anos.
Quantos anos precisarei ter para ser capaz de compreender? Ou será que devo ir
por aí aos tropeções, cegamente, na ignorância o resto da minha vida?
— Você não adivinhou mesmo, não é? — Kit olhou para ela, com tristeza.
— Adivinhou o quê? Quer parar de falar fazendo perguntas? — A frustração
ecoava com a fúria muda na sua pergunta.
— Sei que nunca fomos muito chegados. Mas você nunca se perguntou por
que eu nunca trouxe uma namorada para apresentar em casa?
A resposta dele a confundiu. Não era, de modo algum, o que tinha imaginado.
— Se é que alguma vez me perguntei, imagino que supus que você não
quisesse expor as moças à hostilidade evidente entre mamãe e papai. — Ela
ergueu os ombros, insegura.
— Jordanna, não havia namoradas para apresentar em casa — disse Kit,
numa voz calma e quieta.
Ela lhe lançou um olhar de quem não compreendia.
— O que está tentando dizer?
— Mike não é meu colega de quarto.
A compreensão a atingiu num clarão ofuscante, que a fez oscilar para trás.
Abriu e fechou a boca várias vezes antes de poder forçar qualquer coisa a passar
pelo aperto que o choque fazia na sua garganta.
— Não! — negou Jordanna, numa voz engasgada. — Não acredito. Não é
verdade.
— É verdade — insistiu Kit, meigamente. — Sei que é um choque. Pode
imaginar como papai reagiu quando lhe contei, há vários anos. Pensei que ia me
matar. Fez-me jurar que você nunca iria descobrir. Foi uma promessa bem fácil de
cumprir. Você e eu nunca nos demos como um irmão e uma irmã se deveriam dar,
mas eu não suportaria vê-la me olhando com o desprezo e o nojo que existem nos
olhos de papai. Eu estava apenas me enganando achando que você nunca iria
descobrir. Teria acontecido, mais cedo ou mais tarde. E prefiro ter sido eu a contar,
mesmo que isso signifique — um dos cantos de sua boca se curvou num sorriso
triste de aceitação — que você nunca mais me queira ver.
— Mas... você é meu irmão — protestou Jordanna, num sussurro angustiado.
— Como poderia rejeitá-lo?
Os olhos dele estavam marejados de lágrimas.
— Tantos se afastaram...
— Você é meu irmão — repetiu ela. Havia um bolo enorme em sua garganta,
e sua visão estava nublada pelas lágrimas que afloravam.
No momento seguinte, estavam se abraçando, chorando baixinho um no
ombro do outro. Jordanna não achou que ele se diminuísse com as lágrimas. O
irmão era um homem forte, caso contrário jamais teria conseguido enfrentar o pai.
Teria fugido dele e escondido a verdade. Era o irmão dela. Não podia julgá-lo.
Enxugou as lágrimas das faces.
— Meu Deus, estamos ficando uns sentimentalóides — disse ela, rindo e
fungando.
— Eu lhe ofereceria meu lenço, mas estou precisando — dele brincou Kit.
— Eu pego o meu. — Foi pegar um lenço de papel na frasqueira. Depois de
assoar o nariz, enxugou todos os traços da cena emotiva, e, quando se virou, viu
que Kit tinha feito o mesmo.
— É melhor que eu a deixe terminar o que estava fazendo — disse ele, com
um carinhoso meio sorriso. — Obrigado por ser minha irmã, Jordanna.
Nada havia para ela dizer; assim, apenas meneou a cabeça e deu-lhe um
sorriso reconfortante. Ele saiu do quarto, e dali a dois minutos Jordanna recomeçou
a arrumar as coisas. Com aquele segredo revelado, era inevitável que seus
pensamentos se voltassem para Brig. Lançou um olhar à cama que já haviam
partilhado e na qual agora dormia sozinha. Será que o caso deles tinha acabado? E
ela estava sendo simplesmente teimosa demais para admiti-lo? Ela o amava.
Recusava-se a aceitar a possibilidade de não haver esperanças.

De pé diante da pia do banheiro, Brig fitava seu reflexo no espelho. A lâmina


da navalha abria uma trilha pelo creme de barbear no seu rosto. Era tarde para
estar se barbeando, quando ia ter que fazer tudo de novo pela manhã. Virou a
cabeça quando a porta do banheiro se abriu.
Jordanna, ao entrar, viu-o parado junto à pia.
Os sentidos dele se excitaram ao vê-la naquele robe. Lembrava-se
nitidamente da noite em que o tirara do corpo dela e deixara as mãos percorrerem
sua carne suave e macia. Voltando-se para o espelho, enxaguou a espuma da
navalha com a água corrente.
— Devo ter esquecido de trancar a porta. — A mão dele não se sentia muito
firme quando levou a lâmina ao maxilar.
Ela começou a se retirar, depois hesitou um instante para observá-lo.
— Por que os homens sempre fazem caras tão engraçadas quando se
barbeiam? — perguntou-se, em voz alta.
A contragosto, um débil sorriso tocou a boca do homem.
— Para divertir os espectadores. — Conseguiu evitar cortar-se, enquanto
passava a lâmina pelo maxilar. — Já estou acabando. Então, você poderá usar o
banheiro.
Jordanna não saiu. Em vez disso, entrou no aposento e estendeu a mão para
tocar de leve o ombro musculoso dele com as pontas dos dedos. Enquanto eles
traçavam uma linha diagonal da ponta do ombro à omoplata, Brig ficou imóvel, a
navalha parada junto à face.
— Você tirou a atadura. Seu ombro está melhor? — O olhar dela buscou o
reflexo do homem no espelho.
— Muito melhor. — Depois de enfrentar brevemente o olhar dela, Brig evitou-
o, e enxaguou de novo a navalha, desnecessariamente. Sua voz era baixa e
formalmente controlada. — Importa-se de sair? Gostaria de um pouco de
privacidade.
— Claro — foi a resposta submissa.
Afastando-se, ela inclinou a cabeça. Os cabelos castanhos estavam cheios de
reflexos escarlates à luz da lâmpada nua acima da pia. Ele ficou olhando-a pelo
espelho até que seu reflexo abandonou a superfície lisa. A porta se fechou, e Brig
baixou as mãos até a pia, agarrando a beirada de porcelana e inclinando a cabeça
para baixo. Ela estava lhe arrancando as entranhas. Era uma cúmplice solícita dos
planos de Fletcher, se não mais do que isso, mas Brig ainda sentia aquele desejo
corrosivo de amá-la e protegê-la. E ela precisava de sua proteção tanto quanto uma
tigresa de garras afiadas precisaria.
Jordanna deitou-se na cama e tentou dormir, mas não conseguia forçar os
olhos a se fecharem. A única luz no quarto escurecido vinha da janela onde uma lua
parcialmente encoberta formava um quadrado cinza-escuro, que dava forma escura
aos móveis do quarto. Era tarde, quase meia-noite, e ela precisava do sono, mas
ele não vinha. Inquieta, virou-se, socando o travesseiro e tentando encontrar uma
posição mais confortável.
Depois de mais quinze minutos, desistiu. Não adiantava. Não ia dormir.
Jordanna afastou as cobertas e jogou os pés para o chão. Estendendo a mão para
o robe, vestiu-o e puxou o zíper. Quando era criança e não conseguia dormir, Tessa
sempre lhe trazia um copo de leite morno. Segundo Jordanna se lembrava, sempre
dava certo.
Tentando ser o mais silenciosa possível, abriu a porta e fechou-a com cuidado
atrás de si. Havia ruídos de alguém roncando na sala. Não Brig... Jordanna não se
lembrava de tê-lo ouvido roncar. Porém, ele estava lá. Hesitou, atraída
magneticamente na sua direção. Resistiu à atração, e deslizou silenciosamente até
a porta da cozinha. Só depois que fechou a porta foi que estendeu a mão para o
interruptor. O súbito fluxo de luz feriu-lhe os olhos. Ela piscou, protegendo-os até
que se adaptassem à iluminação.
O leite estava na geladeira, e Jordanna achou uma panelinha na gaveta de
baixo do fogão. Enquanto o leite esquentava, ela revistava os armários à procura de
um copo, tentando fazer o mínimo barulho possível. No armário junto à pia,
Jordanna achou o conjunto de copos, na segunda prateleira. Esticando-se na ponta
dos pés, tentou pegar um deles.
No meio do silêncio, a voz baixa de Brig quis saber:
— O que está fazendo?
Assustada, Jordanna deu meia-volta. O copo escorregou-lhe por entre os
dedos e caiu ao chão, estilhaçando-se imediatamente.
— Não se mexa! — ordenou Brig, asperamente.
Contudo, era tarde demais. O instinto já a fizera tentar pegar o copo antes que
atingisse o chão. Os reflexos dela foram lentos, e a sola de um pé descalço baixou
sobre um caco de vidro. Imediatamente, Jordanna levantou o pé, soltando uma
exclamação abafada ante a forte pontada de dor. Tentou girar o pé para poder ver
se o caco ainda estava preso na sola.
— Pensei ter-lhe falado para não se mexer. — O vidro se quebrava sob as
suas botas, enquanto Brig se dirigia, impaciente, para junto dela.
Como era óbvio que ela tinha se mexido, o comentário não mereceu resposta.
Não era fácil equilibrar-se num pé só, mas ela não ousava mover-se. Havia cacos
de vidro espalhados por toda parte, à sua volta. Ela se apoiava ao mármore da pia.
Distraída pela dor forte do pé, estava apenas semiconsciente de Brig atravessando
o aposento e vindo na sua direção. Jordanna teve noção de sua presença
forçosamente, quando ele a tomou nos braços. Momentaneamente atordoada pelo
súbito contato, sua reação foi automática. Envolveu o pescoço dele com as mãos,
para obter apoio, dando-se conta, subitamente, de que ele usava apenas botas e
Levis.
O tórax dele estava nu desde o peito cheio de pêlos até os músculos planos e
duros da barriga. A facilidade com que seus braços carregavam o peso dela
revelavam sua força física. Uma falta de fôlego intoxicante atacou os pulmões dela
ao cheiro cálido e másculo da carne dele. Tinha consciência dos seus músculos
ondulantes, enquanto ele a carregava até a mesa da cozinha. Erguendo o olhar,
examinou as feições magras e másculas por entre os cílios. A cor escura dos
cabelos grossos, das sobrancelhas e do bigode combinava com a pele queimada de
sol. O rosto estava muito perto do dela. As linhas que se espalhavam dos cantos
dos seus olhos atraíram o olhar dela para o dele.
Seu coração começou a falhar, quando ele voltou a atenção para os seus
lábios. No segundo seguinte, Brig estava colocando-a em cima da mesa e
afastando o olhar da sua boca. Puxando uma cadeira para junto da mesa,
concentrou-se no pé ferido. Os cabelos castanho-escuros, espessos e
despenteados, eram um convite aos dedos, e Jordanna enroscou os seus na beira
da mesa para resistir àquilo.
— O vidro ainda está aí dentro? — perguntou ela, com voz rouca e
perturbada, refletindo os seus sentimentos íntimos.
Ele segurava o calcanhar do pé dela numa das mãos, enquanto com a outra
examinava a pequena ferida onde se originara o leve gotejamento de sangue.
— Está.
Um instante mais tarde, ela fazia uma careta, enquanto ele o removia. Depois
que o caco de vidro saiu, o sangue escorreu mais livremente da ferida. Brig tirou um
lenço do bolso e apertou-o contra a sola do pé da moça. Correu o olhar para o rosto
dela.
— O que você estava fazendo?
Ante a franqueza desconcertante do olhar dele, Jordanna levantou a mão para
afastar do rosto os cabelos avermelhados, evitando os olhos dele.
— Não estava conseguindo dormir. Pensei que, se tomasse um pouco de leite
quente, poderia me relaxar. — Seu nariz farejou o cheiro característico de leite
queimado. — O leite! Ainda está no fogão!
— Fique onde está! — ordenou Brig, severamente. Amarrando o lenço no pé
da moça, levantou-se e caminhou por cima do vidro quebrado até o fogão. Tirando
a panela de leite, desligou o gás e levou-a até a pia. Jordanna viu, quando ele
derramou o leite pelo ralo, que o fundo da panela estava coberto da escuma
empretecida do leite queimado. Enchendo a panela com água, Brig deixou-a de
molho na pia. Em vez de voltar para a mesa, foi até a despensa e trouxe uma
vassoura.
— Nunca o imaginei como um homem doméstico — disse ela, enquanto o via
varrer os fragmentos de vidro. Doméstico, porém jamais domesticado, pensou
consigo mesma. Brig jamais seria amansado. Era dono demais do seu nariz para
saltar ante as ordens dos outros.
— Uma questão de necessidade — foi a resposta indiferente. Depois que o
vidro foi varrido para uma pá de lixo, Jordanna começou a descer da mesa. O olhar
vivo dele veio imobilizá-la. — Mandei que ficasse aí.
Foi a nota de raiva na voz dele, mais do que a ordem, que impediu Jordanna
de se mexer. Depois que guardou a vassoura e a pá de lixo, Brig lançou um olhar
para ela, e dirigiu-se para o banheiro. Jordanna ouviu o ruído do armário de
remédios sendo aberto e explorado. Depois, Brig voltou para a cozinha com um
desinfetante e um band-aid.
Novamente seu pé ferido foi prisioneiro da mão dele. Ela inspirou vivamente,
quando o desinfetante atingiu a ferida. O band-aid foi aplicado a seguir. Os dedos
ásperos e calosos alisaram o curativo sobre a pele sensível da planta do pé.
Quando ele acabou, continuou a segurar o pé nas mãos, e ergueu o olhar para o
rosto dela.
— Que tal?
— Está ótimo. Obrigada. — Havia um tremor perturbado na voz dela. Era
estranhamente íntimo ele segurar-lhe o pé daquele jeito, uma das mãos apoiada na
planta, a outra curvada ao redor do tornozelo esguio. O calcanhar era sustentado
pela coxa sólida dele.
— Não parece sério, portanto não lhe deve dar problemas. — Continuava a
fitá-la com toda a aparência de total indiferença à sua pessoa, mas Jordanna
sentiu-lhe os dedos distraidamente acariciando-lhe a barriga da perna.
A sensação deixou-a toda arrepiada. Ele deve ter notado a reação dela a seu
toque, porque seus olhos ficaram de um castanho muito escuro. Ela perdeu o fôlego
quando a mão dele subiu mais por sua perna para agarrar-lhe o lado do joelho,
dirigindo-se devagar para a parte interna da coxa, por baixo do robe comprido.
Abruptamente, retirou a mão, desviando à força o olhar do rosto dela, enquanto
afastava a cadeira e se levantava.
— Bem, isso aí deve estar resolvido — afirmou Brig.
Enquanto Jordanna ainda tentava recuperar-se da súbita retirada daquele
toque, as mãos dele envolveram-lhe a cintura para colocá-la no chão. Não estava
preparada para a súbita adaptação entre sentar e ficar de pé. Seus dedos
agarraram os músculos flexionados da parte superior dos braços dele, como apoio,
enquanto ela procurava equilibrar-se. O machucado na planta do pé também não
ajudava muito.
— Desculpe, eu... — Inclinou a cabeça para trás, enquanto pedia desculpas,
mas o desejo sem disfarces na fisionomia dele deteve suas palavras.
Jordanna estremeceu de desejo. As mãos dele se estreitaram, quase
imperceptivelmente, na cintura dela, para atraí-la mais para perto. Ela levou as
mãos espalmadas até os ombros bronzeados dele. A boca do homem se abriu
sobre a sua, tomando-lhe os lábios num beijo faminto e exigente. Jordanna deu-se
de bom grado ao homem que já a possuía, de coração e alma. As mãos nas suas
costas e quadris moldaram-na aos contornos rijos do corpo dele. O batimento
irregular do coração dele era um som glorioso, igual ao dela. Sua boca se moveu
para explorar a curva do pescoço dela.
— Menti para você, Brig — sussurrou Jordanna, cheia de um amor doído.
Houve uma imobilidade momentânea antes que ele erguesse a cabeça e
permitisse um pouco de espaço entre eles. Ela enfrentou o olhar penetrante dele e
seu toque de desconfiança. Seus dedos traçaram o contorno macio do rosto
barbeado numa carícia meiga.
— Quando? — perguntou ele, com veemência.
— Quando lhe disse que apenas fingia gostar do seu toque — respondeu, com
voz macia e latejante. — Não era verdade. Você me faz ficar viva, quando me toma
nos braços e faz amor comigo.
— Eu já imaginava isso. — A expressão dele exigia que ela lhe contasse
alguma coisa que ele não sabia.
— Brig, quero ser mais do que apenas sua amante. Quero que sinta algo mais
do que simples luxúria por mim. — A voz dela ficou tensa com a profundidade da
sua ânsia. — Quero que goste de mim. Deixe-me ser sua amiga, sua confidente,
quem sabe até sua mulher e a mãe dos seus filhos, algum dia.
A boca do homem se estreitou, num ar de sombria repugnância. Ao ver a
expressão dele, Jordanna sentiu-se como se tivesse sido esfaqueada no coração.
Magoada, Jordanna saiu dos braços de Brig, virou-se e afastou-se um passo,
rapidamente. Era uma dor lancinante e profunda. Imaginara que, se explicasse que
gostava dele de verdade, ele pudesse admitir a mesma coisa.
— Jordanna... — As mãos dele tocaram-lhe os ombros. Ela se esquivou delas
com um forte dar de ombros.
— Não — negou, com um lampejo de raiva magoada. — Para mim não basta
partilhar sua cama. Acho que sou uma pessoa naturalmente gananciosa, Brig.
Quero partilhar o tédio, a monotonia da rotina do dia-a-dia. Quero partilhar as horas
boas e as ruins. Quero trabalhar com você para construir esta fazenda. Quero
discutir com você... e fazer amor com você. — Dando meia-volta, Jordanna
levantou orgulhosamente o queixo trêmulo para olhar para a fisionomia fechada
dele. — Eu o amo, Brig McCord. Também não menti quanto a isso.
— Às vezes, você é muito convincente — murmurou ele, com cetícismo
suficiente para provar que não acreditava nela. — Mas não consigo imaginá-la
satisfeita por muito tempo, enfiada aqui neste lugar primitivo.
— Aqui é o meu lugar. Não apenas porque você está aqui — explicou. — É o
meu tipo de local, não a cidade, mas aqui, ao ar livre, onde não há nada para
bloquear o sol, exceto as montanhas. Um local agreste, indomado. Como caçar, é o
tipo de vida que exige algo da gente... física e mentalmente. Aqui, existe um desafio
constante, e eu... — Sentiu um bolo repentino na garganta. Desviando os olhos,
engoliu em seco, antes de completar tensamente a frase: — adoraria viver aqui com
você. Eu o amo. Você me ama — acusou. — Sei que gosta de mim. Li nos seus
olhos, senti quando você me abraçava. Por que não o admite? — Virou para ele os
olhos magoados e indagadores.
A expressão do homem era inescrutável, enquanto ele movia as mãos para
pousarem de cada lado do pescoço da moça. Havia uma certa severidade que
parecia permanentemente implantada em suas feições másculas. Jordanna não
resistiu ao aperto leve das mãos dele, ou à pressão dos polegares nas suas
clavículas.
— Eu poderia amá-la, Jordanna — murmurou —, se fosse bobo.
Antes que a moça pudesse perguntar o que queria dizer com aquilo, ele já a
tomava nos braços, e sua boca apagava a resistência simbólica dela. Seu abraço
era quase cruel, exigindo gratificação. Jordanna poderia ter-se debatido, se não
tivesse sentido os tremores de anseio desesperado que faziam estremecer o corpo
rijo e másculo. Não poderia negar-lhe satisfação, assim como não poderia negá-la a
si própria.
Sem dizer uma palavra, Brig tomou-a nos braços e levou-a da cozinha. Sem
erro, achou o caminho do quarto, na casa às escuras. Nas negras sombras
aveludadas da cama, o fogo que seus beijos haviam ateado explodiu em labaredas,
e consumiu a ambos de êxtase.
Apertando mais os braços dele à volta do corpo, Jordanna curtia a satisfação
do "depois". Sentia-se quase completamente contente. Ergueu os olhos para ele e
sorriu, sabendo que Brig podia ver sua expressão e que ela não podia ver a dele,
embora isso não fosse necessário.
— Temos uma coisa especial, Brig — murmurou ela. — Não pode negá-lo.
A resposta dele foi retirar o braço de sob os ombros dela, aquele que ela
apertara para envolvê-la mais completamente. Rolou até a beira da cama e se
sentou. Na escuridão do quarto, só o que Jordanna podia distinguir era a forma
escura do seu corpo de ombros largos. As molas da cama gemeram quando ele se
levantou, tirando seu peso de cima delas. Ela franziu a testa ao notar que os sons
dos seus movimentos indicavam que ele estava se vestindo.
— Não vai dormir aqui? — A pergunta já escapara antes de ela se dar conta
de como soava desavergonhada.
— Não — foi a negativa seca, que não exprimia pesar.
— Por quê? — Quase engasgou com um soluço.
Por um minuto, Brig não respondeu, enquanto se dirigia para a porta. A
maçaneta deu um estalido, quando ele a girou.
— Pode ficar com a cama, Jordanna... — disse — e com as suas mentiras.
Não preciso delas.
Mentiras?!! O coração dela gritou de angústia, porém nenhum som saiu de sua
garganta. A porta se abriu e se fechou. Como ele podia acreditar que todas as
coisas que lhe dissera fossem mentiras? Ela deixara a nu suas emoções, despira-
se de todos os fingimentos, e virtualmente lhe suplicara que gostasse dela.
Humilhara-se, e ele pisou no seu coração, deixando-a sozinha no quarto.
Seus dedos se enroscaram no travesseiro em que a cabeça dele repousara.
Puxou-o para si e enterrou nele o rosto, para que seus soluços lancinantes
ficassem abafados pelas penas grossas. Jordanna gostaria que Brig a tivesse
esbofeteado. Essa dor o tempo teria suavizado, mas a agonia que sua rejeição
trouxe demoraria demais a sarar, se é que sararia. Chorou até que o travesseiro
ficasse ensopado de lágrimas, e que não houvesse mais nenhuma. Mas os soluços
secos e entrecortados não paravam. Não achou paz até que a pura exaustão cobriu
com uma nuvem negra sua consciência.

Capítulo XX
Um vento frio e cortante acompanhava o grupo de caçadores que voltava para
a montanha. Cavalgavam com ombros curvados e golas levantadas contra as
rajadas geladas. O céu era de um azul limpo e vivo, e havia uma claridade cristalina
no ar.
No segundo dia na trilha, um grupo de árvores ofereceu-lhes proteção parcial
contra o vento que assobiava. Os caçadores pararam e desmontaram para dar
descanso aos cavalos. Estes deram as costas ao vento, que lhes metia a cauda por
entre as pernas, e se amontoaram, todos juntos.
Batendo as pernas entorpecidas no chão para tentar ativar um pouco a
circulação, Jordanna ficou observando Jocko trazer a garrafa térmica com café
quente. A despeito das muitas camadas de roupa, ela estava com frio. Os outros
também. Kit batia nos braços e os esfregava, e o pai esfregava as mãos. Somente
Brig e Jocko, ocupados com outras coisas, não estavam tentando aquecer alguma
parte do corpo.
Ela sentiu a secura dos lábios e enfiou a mão no bolso da jaqueta para pegar
um creme. Suas mãos enluvadas tremiam, enquanto ela contornava os lábios com
o bastão cremoso. Assim como os outros, ela usava óculos escuros para proteger
os olhos do brilho do sol, que parecia duplamente maior naquela altitude.
Jocko lhe trouxe uma xícara de café, que a moça aceitou, agradecida.
— Está frio, hoje — verbalizou o que as mãos trêmulas demonstravam.
O olhar dele varreu o céu azul com o seu horizonte de picos coroados de
neve.
— Vai nevar logo.
— Mas não há uma só nuvem no céu — ressaltou Jordanna.
O basco deu de ombros, indicando que isso não fazia diferença.
— O vento diz que vai nevar. — Seguiu o seu caminho para encher a xícara
do pai dela.
Brig escutara a previsão de Jocko, ao deixar os cavalos para se reunir ao
círculo de cavaleiros.
— Se nevar, os carneiros podem descer para posições mais baixas. —
Colocando a bainha do seu fuzil no chão, perto das de Jordanna e Fletcher, Brig
tirou as luvas para aquecer as mãos com o metal quente da xícara de café
fumegante.
Jordanna mantinha o olhar desviado dele. Sempre que possível, evitava dirigir-
lhe diretamente a palavra. Esconder-se atrás de uma parede era o seu único meio
de defesa contra mais sofrimentos infligidos por Brig. Era uma atitude instigada não
tanto pelo orgulho como pela sobrevivência.
O silêncio dela não chamava a atenção, já que ninguém do grupo estava muito
falante, dessa feita. Todos pareciam preocupados com os próprios pensamentos, e
expressavam poucos deles em voz alta. O comentário de Brig sobre os carneiros
havia recebido uma resposta ambígua por parte do pai dela. A curta parada durou
apenas o tempo de tomarem o café quente; logo chegou a hora de voltarem a
montar.
Ela estava com o pé no estribo. Estava pronta para montar o alazão, quando
sentiu uma mão na cintura para ajudá-la a subir na sela. Pensando que fosse Brig,
Jordanna afastou-se bruscamente do contato e lançou um olhar irado por sobre o
ombro. Mas era o irmão que estava parado ali.
— O que foi? — perguntou o rapaz, as feições morenas e bonitas
demonstrando preocupação.
— Nada. Não é você — acrescentou, para ele não pensar que fosse, e subiu
na sela sem ajuda.
Kit foi postar-se junto à parte da frente da sela, apoiando a mão no arção
dianteiro.
— O que aconteceu entre você e Brig?
Jordanna não ia lhe dar resposta alguma, mas depois decidiu que ele merecia
algum tipo de satisfação.
— Errei ao pensar que ele iria gostar de mim, é só. Terei que começar de
novo. — E tentar achar um motivo para continuar sem ele, acrescentou para si
mesma. Mais do que isso, não podia discutir o assunto... nem mesmo com o irmão.
Era tudo recente demais e doloroso... e ainda em andamento.
Um cavalo bufou a seu lado, atraindo o olhar de Jordanna. O cavalo
amarelado sacudia o seu topete negro perto da perna dela. O olhar dela dardejou
para Brig. O espelhado dos óculos escuros dele impedia-a de ver os seus olhos,
mas ela se deu conta de que ele escutara sua resposta. Sentiu-se exposta.
Jordanna olhou para a frente, mantendo a cabeça rigidamente reta e olhando para
diante.
Dali a dois segundos, bateu um calcanhar nas costelas do alazão. O cavalo se
afastou, relutante, da proteção das árvores. O cavalo amarelo passou trotando por
ela, para assumir a liderança. Ela sentiu um aperto na garganta ao ver o homem
magro e de ombros largos que cavalgava tão elegantemente. Jordanna atrasou o
alazão para fechar a retaguarda com Jocko e as bestas de carga.
Uma hora antes do pôr-do-sol, os cavaleiros chegaram ao local do
acampamento anterior. A estrutura de madeira da barraca estava erguida, como um
esqueleto esquecido. Um anel de pedras rodeava a cinza escurecida das fogueiras
anteriores, e havia lenha cortada e empilhada para novas fogueiras. Depois de
cuidarem dos cavalos, Brig e Jocko esticaram a lona sobre a tenda maior. Enquanto
Kit ajudava Jordanna a armar sua pequena barraca individual, Fletcher acendia o
fogo. Um pôr-do-sol dourado tornou-se cor de laranja e pintou a terra agreste com
seu brilho ígneo.
No dia seguinte, o céu manteve sua tonalidade azul-fria, lembrando a
Jordanna o gelo polar. O vento cortante fez a temperatura baixar ao ponto de
congelamento. No horizonte, as primeiras nuvens advertiam de uma mudança de
clima que se aproximava. Quando o grupo saía do acampamento, Jordanna ficou
atônita ao perceber que Brig estava tomando o caminho que ia dar na trilha em
ziguezague.
— Não vamos subir por aí, vamos? — falou, em protesto.
Brig deu uma meia virada na sela, dirigindo os espelhos escuros dos seus
óculos para ela.
— E por que não? Temos que cruzar a crista da montanha.
O olhar dela foi atraído para o local onde Max caíra. Sentiu um arrepio gelado,
mas não discutiu a decisão dele. O alazão sentiu o seu nervosismo e moveu-se
inquieto debaixo dela. Jordanna colocou uma mão tranqüilizadora no pescoço do
animal, tentando acalmar também os próprios nervos. Eles ccomeçaram a marcha
em fila indiana. Jordanna só respirou direito quando chegaram ao topo.
Avistaram um bando de carneiros jovens pela manhã. À tarde, viram sete
ovelhas com seus rebentos de primavera. As crias eram tão resistentes quanto os
pais, capazes de correr com firmeza duas horas depois do nascimento. Mas não
viram sinal do monarca que o pai dela buscava.
O segundo dia foi tão inútil quanto o primeiro. A única diferença é que o céu se
tornara solidamente coberto de nuvens. Ventara muito, e parecia estar mais frio do
que antes. Havia uma crosta fina de gelo nas margens dos riachos de montanha
que cruzaram.
Estava chuviscando quando Jordanna acordou, na terceira manhã. Durante a
noite, devia ter geado. Havia pedaços de gelo no chão, do lado de fora da barraca.
Kit escorregou num deles e torceu o tornozelo. O pai ficou praticamente lívido de
raiva, embora não tivesse dito uma só palavra. Tanto Jocko quanto Brig
examinaram os ferimentos, e chegaram à mesma conclusão.
— Não parece haver nada quebrado — declarou Brig, sentando-se sobre os
calcanhares. — Tenho certeza de que foi apenas uma torção. Se quiser, nós o
tiraremos das montanhas e o levaremos a um hospital para tirar uma chapa e ter
certeza.
— Não — recusou Kit. — Não está doendo tanto assim. Vai ficar bom daqui a
alguns dias.
Brig ajudou-o a se pôr de pé. Kit fez uma careta quando tentou apoiar o peso
no pé machucado. Jordanna lançou-lhe um olhar preocupado.
— Tem certeza, Kit? — Os olhos dela diziam-lhe para não ficar intimidado pelo
ressentimento evidente do pai de que sua caçada pudesse ser interrompida de
novo.
— É o meu tornozelo — pilheriou ele, debilmente. — Posso ser razoavelmente
objetivo sobre o quanto me dói. Vou ficar aqui pelo acampamento durante uns dois
dias, fazendo companhia a Jocko.
— Pode me ensinar a jogar cribbage, que você e Tandy andaram jogando,
para que eu o derrote neste inverno — sugeriu Jocko, com um sorriso encorajador.
Brig se afastou quando Jordanna foi auxiliar o irmão. Ela notou o gesto e
tentou não demonstrar que se importava. Ajudou Kit a entrar na tenda grande,
oferecendo-lhe o apoio do seu ombro, enquanto ele manquejava até o banco.
— Posso ficar com você — falou ela.
— Não. — A recusa foi rápida e viva. — Quero que fique com papai. — Notou
o franzir de testa curioso da irmã, e deu um sorriso torto. — Além do mais, o que
você iria fazer aqui? Segurar minha mão?
Parecia mesmo uma bobagem.
— Tudo bem, eu vou. — Jordanna aceitou a decisão dele com a sombra de
um sorriso.
O grupo de caçadores se reduziu a três cavaleiros, molhados e
desconfortáveis. Ocasionalmente, Jordanna sentia o golpe das bolinhas de gelo nas
faces, enquanto cavalgavam em busca do carneiro montês. No final da manhã,
deixaram os cavalos amarrados a umas árvores anãs e subiram uma encosta
rochosa para vasculhar de binóculo as cristas irregulares da montanha.
O chão era uma laje de rocha fria debaixo de Jordanna. Seu traje impermeável
protegia-a da umidade e impedia o vento cortante de penetrar nas suas roupas. O
frio tornava impossível encontrar uma posição confortável. Ela resolveu ficar deitada
de barriga para baixo, para que seus cotovelos sustentassem os braços, enquanto
vasculhava devagar a paisagem agreste com o binóculo.
— Ali, no marco de duas horas, na metade da encosta. — O pai dirigiu a
atenção deles para uma área específica. — É ele?
Jordanna focalizou o binóculo no carneiro montês que estava deitado,
descansando e ruminando. Brig fez o mesmo.
— Está longe demais — falou ele. — Não dá para dizer.
— Não quero andar toda essa distância para descobrir que não é o carneiro
do chifre lascado — resmungou o pai. — Jordanna, passe-me a luneta.
— Ficou lá no alforje. Esqueci de trazê-la — admitiu, e começou a se levantar.
— Vou buscá-la.
— Pode deixar que eu vou. — O pai parecia impaciente.
Jordanna começou a argumentar que, já que fora ela quem o tinha esquecido,
devia ser ela a ir pegá-lo. Mas o pai já se pusera de pé e se virara, para começar a
descer a encosta rochosa até os cavalos. Ela se acomodou na antiga posição. De
certa maneira, estava sozinha com Brig pela primeira vez em vários dias. Jordanna
tentou controlar os batimentos subitamente irregulares do seu coração e focalizou o
binóculo no carneiro.
— Acha que é o carneiro de chifre lascado? — Era uma tentativa formal de
puxar conversa.
— Já disse que não sei.
— Estou sabendo. — Jordanna enrubesceu. — Estava apenas pedindo um
palpite.
Ele baixou o binóculo para olhar para ela.
— Não dou palpites.
— Não? — O rosto dela estava molhado e brilhante de chuva. — Deu uma
porção de palpites errados a meu respeito.
— Você tentou convencer-me disso muitas vezes — disse ele, com ironia.
Jordanna não conseguia encarar aqueles olhos castanhos. Suas mãos
agarraram o binóculo com força, até doer, enquanto ela fitava a rocha cinzenta sob
seu corpo. Lágrimas ardidas afloraram-lhe aos olhos. Piscou para afastá-las.
— Nem sei por que me dei ao trabalho — falou, com voz rouca.
Os dedos enluvados dele seguraram-lhe o queixo e viraram-lhe o rosto para si.
— Lágrimas? — Um dos cantos da boca de Brig se encrespou
desdenhosamente para dentro do bigode. — E agora, o que devo fazer? Enxugá-las
com beijos?
Havia algo de duro e esfaimado na maneira como o olhar dele lhe devorava os
lábios. Seus sentidos tontearam ante aquele olhar. Mas ela deu um jeito de manter
o controle e afastar bruscamente o queixo da mão dele.
— Você não tem coração, Brig McCord — acusou Jordanna. — É feito de
pedra. Em vez de sangue, tem lava derretida correndo nas veias. Todo aquele fogo
é só luxúria. Pena eu não me ter dado conta disso antes.
— E o que corre nas suas veias? — debochou ele.
— No momento, água gelada.
— Quanto tempo será que demoraria para transformá-la em vapor? —
comentou ele.
Não muito. Bastava que ele a tocasse para que ela se derretesse. Jordanna
sabia, e não queria que ele a testasse para descobrir. Pôs-se de pé rapidamente e
começou a procurar o pai, na encosta. Ele acabava de iniciar o caminho de volta
para junto deles, carregando o estojo de couro com a luneta.
As possantes lentes de aumento do instrumento convenceram o pai dela de
que, se aquele não era o carneiro do chifre lascado, era um semelhante ou maior.
Jordanna omitiu-se da discussão sobre o melhor caminho de se chegar ao carneiro:
deveriam dar a volta e se aproximar do carneiro pelo lado de trás do cume acima
dele ou tentar a rota do vale e subir para tocaiar. Resolveram que o primeiro
caminho era o melhor, embora mais longo.
Foi uma viagem longa e dura. Por duas vezes tiveram que recuar, quando a
trilha ficou intransitável para os cavalos. Finalmente, chegaram ao acostamento de
trás. Deixaram os cavalos na encosta suave, perto de algumas árvores, e subiram a
pé até o topo.
O carneiro montês tinha se levantado para pastar, mas não se havia afastado
muito de onde o tinham visto pela primeira vez. Assim mais de perto, a lasca no seu
chifre em caracol era visível. Jordanna ficou no alto da crista, enquanto Brig e o pai
começaram uma tocaia cautelosa, para ficarem dentro do alcance do tiro do fuzil.
Ela observava, mas não sentia nenhuma emoção. Visivelmente ausente estava a
admiração pela perícia e pelo cuidado do pai. Jordanna se deu conta de que
perdera o entusiasmo pelo esporte. Não sentia repulsa pelo que via, meramente
indiferença. Não havia ódio pelo que o pai estava fazendo. Ainda entendia a
emoção dele, e não o condenava. Apenas não a sentia mais.
Pelo binóculo, Jordanna viu o pai ficar em posição e mirar o seu alvo. O
estalido do tiro de fuzil rasgou os ares. O carneiro deu um pulo e tentou afastar-se
aos saltos, mas as suas pernas traseiras recusavam-se a se mexer. O montês
tamanho troféu conseguiu arrastar-se alguns metros para dentro das rochas que
sempre haviam significado segurança contra os predadores, depois morreu.
Na encosta da crista, o pai dela sentia o gosto da vitória, mas Jordanna
experimentava uma vaga sensação de pesar. As montanhas haviam perdido um
monarca. Um vento lamentoso gemia por entre as árvores abaixo. Jordanna
continuou no topo da montanha mais um pouco, observando os dois homens se
dirigirem às rochas para arrastar de lá o corpo do carneiro, com cuidado para não
danificar os chifres valiosos.
Abandonando seu ponto de observação, ela desceu a encosta suave até onde
estavam os cavalos. Brig e o pai iriam precisar do sal e das ferramentas que
estavam nos alforjes. Jordanna pretendia levá-los para eles. Uma antiga avalanche
abrira uma trilha larga por entre as árvores e descortinara uma vista panorâmica
das montanhas, sem obstrução de árvores. A beleza de tirar o fôlego fê-la deter-se.
Ficou parada sob os ramos de uma sempreviva e fitou o mundo cinza e marrom das
nuvens e montanhas. Pedras de granito alternavam-se com prados altos de grama
amarelo-acastanhada e davam origem a pinheiros tenazes. Picos de montanhas
furavam as nuvens escuras e ameaçadoras lá em cima. Jordanna ergueu o rosto
para a chuva fria e suave que se filtrava por entre as folhas de pinheiro.

Brig chegou ao topo do cume e viu Jordanna parada mais abaixo, na encosta,
não longe dos cavalos. Parou por um momento, observando sua atitude súplice, de
oração, antes de continuar encosta abaixo. Uma pedrinha escorregou de sob os
seus pés, e ela se virou ante o ruído da aproximação.
— Pensamos que ia trazer os cavalos — disse Brig, parando quando estava
quase ao nível dela. Do outro lado, no meio das árvores, os cavalos esperavam,
pousados em três pernas, de cabeça baixa.
— E ia, mas deparei com esta vista. — Jordanna virou-se parcialmente para
olhar de novo para a paisagem montanhosa. Havia linhas pensativas no perfil que
virava para ele. — Agora que papai já matou o seu animal, nós iremos embora. Não
quero sair daqui. Estas montanhas são tão selvagens e virginais que me fazem
sentir-me... limpa. — Parecia encabulada pela escolha dos adjetivos. Brig sabia o
que ela queria dizer. Parada ali, parecia tão pura e fresca quanto uma flor silvestre
das montanhas surgindo de sob a neve, na primavera. Voltou a olhar para ele, com
um vestígio de desafio orgulhoso na maneira como erguia a cabeça. Um fogo verde
faiscava nos olhos cor de avelã. — Imagino que você pense que eu disse isso por
sua causa, outra mentira para convencê-lo de que... — Jordanna não terminou a
frase. Voltou o olhar para as montanhas. — Não posso fazê-lo acreditar em nada
que diga, nem vou tentar.
— As montanhas podem ter um efeito profundo nas pessoas abertas à sua
influência. — Brig deixou seu olhar dirigir-se para elas. Haviam-no purificado,
enquanto o enrijeciam para viver no meio delas.
— Então devo ser uma dessas pessoas — falou Jordanna, serenamente.
O tom submisso da voz dela atraiu a atenção de Brig. Como uma flor silvestre
das montanhas, o que primeiro chamava a atenção nela era sua beleza. Nem
sempre sua força era reconhecida, ou o vigor necessário para sobreviver num
terreno difícil como aquele. Ali, ela florescia. Em outro lugar qualquer,
provavelmente murcharia e seria uma sombra do seu verdadeiro eu. Jocko havia
tentado explicar-lhe isso, mas ele não quisera enxergar. Não queria enxergar nem
agora.
— Gostaria de não ter que ir embora daqui — repetiu Jordanna, num murmúrio
pesaroso.
Mudando o fuzil para a mão esquerda, Brig apontou o cano para o chão.
— Não vou lhe pedir que fique.
Foi uma declaração de desprendimento que a fez olhar vivamente para ele.
— Não ficaria, se pedisse! — explodiu. — Você teria que implorar!
Brig sentiu uma sensação de formigamento entre os ombros. Flexionou-os,
inquieto. Engraçado, não tinha aquela sensação desde os seus tempos de
guerrilheiro, quando atiradores de tocaia... Mergulhou para a direita. No mesmo
instante, algo bateu com força no cano do seu fuzil, e uma chama quente lhe
apunhalou a coxa. Uma fração de segundo depois, o estalido de um tiro de fuzil
rasgou os ares.
Quando Brig caiu ao chão, rolou. Quando parou, deitado de bruços, o fuzil
estava na posição de disparo. Foi então que Brig descobriu que a bala destinada a
ele atingira sua arma, danificando o mecanismo de disparo. Não sabia de onde
viera o tiro, exceto que fora de algum lugar acima dele. Não podia ficar onde estava.
Se tentasse alcançar os cavalos, cruzaria uma ampla clareira e ficaria exposto.
Todas essas decisões foram tomadas com a velocidade de um raio.
Brig sabia que estava perto das árvores. Olhou para elas, para avaliar a
distância, e viu Jordanna grudada a um tronco de árvore. Seu olhar vasculhava
desesperadamente a crista da montanha. Selvagemente, Brig deu-se conta de que
fora uma jogada armada desde o início. Ela não trouxera os cavalos porque sabia
que Brig viria buscá-los, se não os trouxesse. Quando ele veio, ela o distraiu e
manteve-o falando, no espaço aberto onde o pai poderia acertar nele facilmente.
Mas o pai errara. Brig sabia que Fletcher iria tentar de novo. O caçador estava
atrás da presa, resolvido a matar. A ardência na coxa dizia a Brig que tinha uma
ferida superficial. Não havia muito tempo para determinar sua gravidade.
Instintivamente, já testara os músculos da perna e sabia que reagiam... portanto, a
bala não podia ter causado muitos danos. Um bom caçador sai no encalço de
qualquer animal que tenha ferido, para terminar de liquidá-lo. Fletcher Smith
pretendia fazer exatamente isso com ele. Sem o fuzil, Brig não tinha meios para se
defender.
Naquele minuto, Fletcher provavelmente estava assumindo uma posição que
lhe permitiria dar um outro bom tiro. Brig não podia ficar ali, parado como um otário.
Tinha que recuar, mas precisava de proteção... de um escudo. Fletcher não iria
arriscar um tiro que pudesse atingir a filha, percebeu Brig.
Ajeitando-se para que a perna direita agüentasse o impulso inicial do seu
peso, Brig deu uma corrida baixa e sinuosa para a árvore onde Jordanna estava,
oferecendo a Fletcher um alvo o mais difícil possível. Ouviu o silvar de uma bala
passando antes que o som do disparo do fuzil ecoasse pelas montanhas. E então
Brig ficou seguro no meio das árvores, agarrando o pulso de Jordanna.
— O que está acontecendo? Quem está atirando na gente? — quis saber ela,
com apenas um fio de medo na voz.
Como se ela não soubesse!, pensou ele, com um cinismo distante, e não se
deu ao trabalho de responder às suas perguntas ridículas. A perna ainda não o
estava incomodando, mas Brig sentia a umidade quente do sangue a escorrer-lhe
coxa abaixo. O choque estava superando a dor, por enquanto. Parando apenas um
segundo para se orientar e escolher um caminho de fuga, Brig começou a se meter,
correndo, por entre as árvores, puxando Jordanna atrás de si como escudo.
Ficou em meio às árvores o quanto pôde. Brig podia apenas adivinhar a
direção da perseguição de Fletcher. Quando saíram do meio das árvores, tentou
manter Jordanna entre si e a linha de fogo de Fletcher. Sua fuga os estava levando
morro abaixo, na direção de terreno mais liso, e afastando-os mais do
acampamento. A chuva misturou-se a pesados flocos de neve. Nos pontos mais
elevados, Brig sabia que os flocos estariam maiores. Parou uma vez ao abrigo de
umas rochas, para olhar para a trilha que já tinham percorrido. Estava respirando
fundo, devido ao ritmo puxado da corrida. Jordanna também.
— Por que estamos correndo? — perguntou ela, arquejante. — Não há
ninguém nos perseguindo.
Não havia sinal de Fletcher. Aquilo preocupava Brig mais do que se tivesse
visto o caçador. Como estavam a pé, Fletcher provavelmente adivinhara que ele iria
procurar o terreno mais plano e baixo. Fletcher permanecia acima deles, onde o
terreno era mais irregular, mas de onde podia enxergá-los melhor. Brig amaldiçoou-
se por não ter pensado nisso antes.
Com um puxão, arrastou Jordanna atrás de si e começou a subir. Sua única
esperança era atingir pontos mais altos, acima de Fletcher, e depois voltar. A neve
estava começando a grudar no chão, deixando-o escorregadio. Sempre que
possível, Brig tentava colocar Jordanna na mesma altura que ele, alternadamente
empurrando-a e puxando-a. Ela resistiu apenas umas duas vezes.
O ritmo puxado estava começando a cansá-lo. Intimamente, Brig se
perguntava como ela conseguia acompanhá-lo... e por que não estava tentando
fugir. A ferida tinha começado a latejar, e os músculos de sua perna esquerda
estavam enfraquecidos. Ele agora começava a poupar a perna. Será que era por
isso que ela estava esperando? Que ele ficasse fraco demais para impedir-lhe
qualquer tentativa de fuga? Jordanna não dera nenhum sinal de haver percebido
que ele estava ferido. Brig a mantivera sempre à direita; assim, talvez ela não
tivesse visto o sangue que escorria por sua perna esquerda. Quer tivesse visto quer
não, Brig não estava disposto a lhe perguntar.
O ar ficava mais rarefeito à medida em que subiam. Os pulmões dele estavam
quase estourando pelo esforço e pela quantidade menor de oxigênio. Brig sentiu
uma leve camada de suor no corpo, e tomou consciência de que aquilo era
perigoso, no frio clima da montanha. Roupas úmidas de suor perdiam sua
capacidade de isolamento. A transpiração podia transformar-se numa fina camada
de gelo contra sua pele. Diminuiu o ritmo, mas não parou.
Uma fina camada de neve cobria o solo. Os flocos grandes não estavam mais
misturados à chuva. Brig rezava para que continuassem a cair e cobrissem seus
rastros, antes que Fletcher passasse por eles. Jordanna tropeçou e caiu de joelhos.
Brig envolveu-a pela cintura, carregando-a parcialmente, enquanto ela tentava não
ficar para trás. Ele ainda carregava seu fuzil, embora inútil. Estava se tornando uma
carga desnecessária, porém, enquanto o tivesse, Fletcher não saberia que ele
estava virtualmente desarmado. Se Fletcher acreditasse que sua presa ferida
poderia virar-se e atacar, sua perseguição seria cautelosa. Brig precisava dessa
ligeira vantagem.
Estavam se aproximando da linha de árvores. Logo adiante, havia um grupo
relativamente alto de árvores que propiciariam esconderijo. Brig concluiu que era
um bom lugar para parar e recobrar o fôlego. Instou Jordanna naquela direção.
Deu-se conta de que não poderiam demorar-se ali muito tempo. O risco de sua
perna ficar dura era muito grande. E, enquanto continuassem em movimento,
ficariam aquecidos.
Ou Jordanna leu seus pensamentos, ou não agüentava mais dar um passo.
No instante em que entraram no meio das árvores, ela se agarrou a um tronco,
apoiando-se, e parou. A respiração dele estava difícil, arquejante, mas ele não
ousou se relaxar. Seu olhar varreu o caminho que tinham percorrido, depois voltou
para ela, que o observava com um olhar dilatado e confuso, de apreensão. Brig não
precisava preocupar-se de que a moça fosse tentar escapar dele, pelo menos não
nos próximos minutos. Cobrira aos tropeções os dois últimos metros, e estava
precisando daquele curto descanso tanto quanto ele. Sentiu uma pontada viva de
admiração pela maneira corajosa como ela o acompanhara, mas ignorou-a, não
ousando acreditar que ela quisesse ficar com ele.
A neve, que caía rapidamente, quase cobrira seus rastros. Como não havia
sinal da passagem de Fletcher, ainda estavam à sua frente, e, àquela altura, acima
dele. Brig olhou na direção onde esperava ver o caçador, mas a neve e as árvores
obscureciam sua visão. Baixando a cabeça por um instante, apertou a mão contra a
coxa, tentando deter a dor latejante. A cada batida do seu coração, o sangue
pulsava da ferida, esgotando-lhe as forças. A pressão da mão lançou uma pontada
de dor por seu corpo. Soltou a coxa e olhou rapidamente para a mancha escura de
sangue na luva.
No mesmo segundo em que Brig ouviu o ranger de couro de sela, Jordanna
emitiu um sussurro rouco:
— Olhe, ali está meu pai.
Ao mesmo tempo, Brig olhou por cima do ombro para ver Fletcher aparecer a
cavalo, puxando dois animais selados, a uns cento e cinqüenta metros abaixo
deles, e percebeu o movimento que Jordanna fez na direção do homem, com o
canto dos olhos. O instinto guiou sua reação, quando largou o fuzil e tirou a faca de
caça da bainha presa ao cinto. Brutalmente, empurrou Jordanna para trás, jogando-
a contra o tronco da árvore, e soltando a lâmina da faca. Cobriu-lhe a boca com a
mão, abafando qualquer grito que pudesse tentar dar. Encostou o metal frio na
garganta dela.
— Dê um pio e será o último — rosnou. Brig não tinha absolutamente
nenhuma idéia se seria capaz de cumprir a ameaça. Seu gesto fora ditado
estritamente pela necessidade animal de sobrevivência. Fletcher estava perto
demais, o fuzil na mão, em posição. Se descobrisse onde Brig estava, poderia
alcançá-los dentro de minutos, a cavalo. E logo saberia que o fuzil de Brig estava
imprestável. Depois disso, nem mesmo Jordanna poderia servir-lhe de escudo por
muito tempo.
Brig lançou um olhar ao cavaleiro, que não tinha dado nenhum sinal de que
sabia onde estavam, depois voltou o olhar para Jordanna, cujos olhos arregalados
estavam escuros de alarme. As mãos dela agarravam-lhe o pulso, mas não
estavam fazendo nenhum esforço para retirar a mão dele da boca. Brig tomou
consciência do seu corpo, que esmagava o dela contra o tronco. Rapidamente,
desviou os olhos, antes que a visão dela o distraísse de novo do perigo que o pai
representava. Uma confusão íntima o roía. O menor ruído até mesmo um chute
contra o tronco da árvore seria levado até Fletcher. No entanto, Jordanna não
estava fazendo qualquer tentativa de chamar a atenção do pai. Por quê? Não era o
medo que a deixava calada. Isso ele podia jurar.
Fletcher estava se aproximando do local onde cruzaria a trilha deles. Brig
prendeu a respiração, sem ter certeza do quanto a neve cobrira a trilha. A atenção
do caçador parecia focalizada na montanha abaixo dele... onde Brig estaria, se não
tivesse mudado abruptamente a rota de retirada. Fletcher passou com o cavalo pela
trilha, mas parecia preocupado. Não demoraria muito para que começasse a
suspeitar de que Brig o tapeara. No instante em que o fizesse, Brig sabia que o
homem se poria a caminho para interceptar sua ida para o acampamento.
Nuvens de neve escureciam o céu. Não sobravam muitas horas da luz
cinzenta do dia. Mesmo sem necessidade de esquivar-se de Fletcher, Brig teria
sorte se conseguisse voltar a pé ao acampamento antes do anoitecer.
Acrescentando isso às complicações de uma queda de neve potencialmente forte e
a uma perna ferida, Brig não via chance de chegar ao acampamento. Teriam que
passar a noite nas montanhas, sem nenhum abrigo... a não ser que...
Enquanto o seu olhar perscrutava a paisagem que o cercava, Brig vasculhava
sua mente. Por ali, em algum canto, havia uma velha cabana de mineiro que fora
abandonada muito tempo antes. Deparara com ela no verão daquele ano, quando
estava vasculhando a área em busca dos carneiros monteses. As paredes e o teto
estavam intactos, mas estava tão suja por dentro, que Brig resolvera dormir do lado
de fora, naquela viagem. Agora, aquele velho barraco de toros podia dar-lhes
proteção... se ele pudesse lembrar-se de onde ficava.
A não ser que se enganasse, devia ficar na cordilheira seguinte. Teriam que
rodear aquele pico, descer pelo outro lado e esperar que ele pudesse achar de
novo aquele canyon alto. A que distância ficaria? Cinco, seis quilômetros? Quem
sabe, mais? Será que ele agüentaria chegar tão longe? Não havia escolha. Tinha
que chegar.
O primeiro arrepio de frio fez sua pele estremecer. Tinham que recomeçar a se
pôr em movimento. Fechou a faca e recolocou-a na bainha de couro, antes de tirar
a mão da boca de Jordanna. Ela não disse nada quando Brig se afastou para retirar
o peso que a imobilizava e agarrar-lhe de novo o pulso. Puxando-a atrás de si,
enfiou-se pelas árvores para rodear a montanha.
— Mas meu pai foi pelo outro lado com os cavalos — protestou Jordanna.
— Eu sei. Por que acha que vamos por este lado? — Disparou a resposta em
cima dela, impaciente porque a moça continuava a fingir.
— Acho que você está maluco — murmurou Jordanna.
— Maluco em tentar, talvez — admitiu, com ar sombrio. — Temos um longo
caminho a percorrer, portanto sugiro que se cale e poupe seu fôlego. Vai precisar
dele todinho.
— Mas por que estamos fugindo de meu pai? — argumentou ela.
Brig não respondeu. A expressão perplexa dela parecia tão genuína... Quase
fazia-o acreditar que ela fosse uma cúmplice inocente e involuntária do plano do
pai. Mas era improvável demais... e perigoso demais.

Capítulo XXI

As pernas dela pareciam extensões congeladas do corpo. Jordanna não sabia


como continuava a fazê-las funcionar. O vento aumentara, fazendo rodopiar a neve,
que estava à altura da barriga da perna e obscurecendo o campo de visão.
Implacavelmente, Brig arrastava-a atrás de si, levantando-a quando caía (o que
agora acontecia com mais freqüência) e forçando-a a continuar. Não havia uma só
parte do corpo dela que não clamasse para que se detivesse. Mas ela tinha
consciência da necessidade urgente de encontrarem abrigo contra aquela
tempestade de inverno, antes que desmaiassem. Assim, forçava-se a prosseguir.
Todos os seus esforços físicos e mentais estavam concentrados em uma
coisa... ficar de pé. Jordanna não sabia dizer o quanto tinham andado. Só sabia que
parecia ser mais de cem quilômetros além do que acreditava poder andar. Sem
possuir nenhuma energia de reserva, Jordanna não perdeu tempo tentando
compreender o comportamento estranho de Brig em relação a seu pai. De qualquer
modo, estava cansada demais para pensar no assunto... ou para se importar.
Brig parou para olhar em redor, oscilante. Jordanna não viu nada familiar.
Tinha certeza de que nunca haviam estado antes naquela área, não durante as
excursões de caça anteriores.
— Estamos perdidos, não é? — acusou ela, num sussurro rouco. — Não sabe
para onde estamos indo.
— É melhor torcer para que eu saiba — retrucou Brig, com voz roufenha,
puxando-a pelo pulso para acompanhá-lo.
Ao primeiro passo, a perna esquerda dele cedeu sob seu peso. Jordanna
ouviu-lhe o gemido de dor, quando ele caiu pesadamente ao chão. Caiu de joelhos
ao lado dele, perguntando-se onde arranjaria forças para ajudá-lo a levantar-se.
Quando Brig rolou de lado, o rosto contorcido de dor, ela viu a mancha carmesim de
sangue na neve branca. Arregalou os olhos.
— Está ferido. — Pela primeira vez, viu a umidade escura do sangue que
encharcava a perna esquerda da calça dele. O medo a invadiu, quando ela se deu
conta da quantidade de sangue que Brig havia perdido. Como ele conseguira
chegar até ali?
— Cale a boca e me ajude a ficar de pé — falou, por entre os dentes cerrados.
A mão grande dele agarrou-lhe o ombro e usou-o como alavanca para se
erguer. Manquejou por um momento, utilizando-a como ponto de apoio. Seu rosto
estava branco por baixo do bronzeado, as forças fugindo-lhe. Jordanna não se
enganou quanto à rigidez resoluta do seu maxilar. Brig ainda não se dera por
vencido. Jogando o braço dele ao redor do seu pescoço e por sobre seu ombro,
Jordanna tentou sustentar-lhe o peso o máximo possível. Ele baixou o olhar para
ela, os olhos castanhos, duros e vidrados de dor, rejeitando sua ajuda.
— Eu me ajeito — disse, bruscamente.
Mas Jordanna simplesmente apertou-o com mais firmeza.
— Você precisa de mim. Para que lado vamos?
— Dê uma guinada para a direita — respondeu Brig, após hesitar um pouco.
Novamente se puseram a caminho, na direção indicada por Brig. Pararam
mais duas vezes para que ele pudesse estudar sua localização. A cada vez, fazia
ligeiras adaptações no seu curso. Mais e mais dependia dela como apoio. Ambos
estavam esgotando o seu poço de forças de reserva.
— Lá no meio daquelas árvores... — a voz de Brig estava rouca de exaustão e
dor, enquanto ele acenava para uma parede indistinta de sempre vivas, adiante —
há uma velha cabana de mineiro. — A seguir, emitiu um pensamento em voz alta.
— Se ainda estiver de pé.
Os ramos das árvores, molhados e cobertos de neve, pendiam, baixos.
Quando eles os afastaram, foram cobertos por pequenas avalanches de neve. O
vento cortante mordia o rosto de Jordanna, até que ela o sentiu em carne viva.
Ambos estavam cobertos de flocos brancos, bonecos de neve vivos cambaleando
desajeitadamente por entre o bosque. Jordanna podia ver os flocos que haviam
embranquecido as sobrancelhas e o bigode de Brig. Alguns deles grudavam-se aos
cílios escuros e espetados.
Um quadrado marrom ergueu-se à frente deles, listrado de linhas horizontais
brancas onde a neve havia se acumulado, nas partes superiores dos toros.
— Lá está ela, Brig. Está vendo? — Jordanna tinha vontade de correr, mas
teria sorte se suas pernas a carregassem pelos poucos metros que faltavam.
— Estou. — Brig não alterou o ritmo do seu andar claudicante.
A porta resistiu às tentativas que Jordanna fez para abri-la. A madeira estava
inchada e retorcida. Lágrimas de frustração subiram-lhe aos olhos. Brig estivera se
apoiando contra o lado da cabana de toros. Vendo a dificuldade dela, fez sinal para
que se afastasse e levou o ombro à porta. A madeira gemeu em protesto, depois
girou violentamente para dentro. O ímpeto de Brig levou-o para o interior,
cambaleante, lutando para equilibrar-se. Jordanna seguiu-o para o cômodo escuro
e sem janelas, e ouviu-o bater nalguma coisa antes que pudesse alcançá-lo.
Uma mesa tosca com uma perna quebrada impedira-o de cair ao chão. A
cabana cheirava a umidade e poeira. Teias de aranha grudavam-se ao rosto dela.
Algo passou correndo pelo chão e foi se esconder num canto escuro. Um
camundongo ou uma ratazana, pensou Jordanna, com um cansado pouco-caso
pelos roedores que ocupavam o abrigo deles.
— A lareira. — Brig oscilou pesadamente de encontro a ela.
Jordanna sentiu os joelhos cederem ante o peso dele. Lutou para carregá-lo
pelos sessenta centímetros que os separavam da lareira tosca, feita de pedra. Ele
estava perdendo a consciência. Ela o viu movendo a cabeça, tentando lutar contra
a escuridão.
— Temos... acender o fogo. — Perdeu parte da frase, quando seu peso
desabou por inteiro sobre os ombros dela. Jordanna deixou que ele a forçasse para
baixo, absorvendo sua queda com o corpo. Ele começou a resmungar pedaços de
frases.... — roupas... molhadas... temos que... secar... fogo.
Livrando-se do peso dele, a moça largou o corpo inerte na frente da lareira.
Desenrolou com dificuldade o cachecol de lã que envolvia o próprio pescoço, os
dedos entorpecidos e desajeitados. Amarrou-o ao redor da ferida dele, não com
tanta força que atrapalhasse a circulação, mas com força suficiente para aplicar
pressão e conter o fluxo de sangue. Sentou-se e teve vontade de desabar ao lado
dele, mas seus murmúrios quase incoerentes, antes de desmaiar, forçaram-na a se
mover.
Perto da lareira, um monte de gravetos havia muito caíra de uma pilha.
Jordanna apanhou parte deles e ajeitou-os na lareira enegrecida. Havia lenha o
bastante para acender uma fogueira, mas não o suficiente para mantê-la acesa a
noite inteira. Fazendo um montinho das acendalhas e armando as achas de lenha
sobre ele, remexeu no bolso em busca da caixa de fósforos à prova d'água. Tremia
tanto de frio que teve dificuldade em riscar o fósforo. Ele se inflamou, fraquejou,
depois pegou fogo de vez. Jordanna teve dificuldades em manter o fósforo firme
enquanto levava o fogo aos gravetos. A chama lambeu a pilha com desinteresse
nos primeiros segundos, antes de saltar para um pedaço de casca de árvore.
Enquanto a devorava, Jordanna acrescentou mais raspas de árvore para alimentar
a minúscula chama.
Quando o fogo ficou forte o bastante para consumir as achas secas, Jordanna
se endireitou. Seu corpo estava duro de frio e de exaustão, mas ela não podia ficar
junto do calor para secar as roupas úmidas de suor que tinham começado a
congelar. Precisava juntar mais lenha para o fogo, e a ferida de Brig necessitava de
cuidados.
Por necessidade, o fogo veio em primeiro lugar. Jordanna empilhou direitinho
as achas que sobravam e olhou à volta da cabana de um só cômodo. Além da
mesa quebrada, havia uma cadeira tosca. Foi abrindo caminho por entre as teias de
aranha que entupiam o cômodo e apanhou os pedaços quebrados da perna da
mesa. As tiras de couro que amarravam os pedaços da cadeira tinham apodrecido.
Jordanna usou sua faca para cortá-las e acrescentá-las à sua pilha.
Seus dentes tinham começado a bater. Mas, se parasse agora, poderia não
ter mais forças depois. Nem ouviu os seus soluços de exaustão enquanto se
concentrava nas prateleiras de madeira tosca, pregadas a uma parede lateral.
Usando uma perna de cadeira como bastão, Jordanna derrubou as escoras
que sustentavam as prateleiras. Um camundongo guinchou, apavorado, e correu
por uma prateleira inferior. Ela socou as prateleiras e puxou-as, até que conseguiu
arrancá-las da parede. Um caldeirão de ferro batido caiu ruidosamente ao chão.
Sem fôlego, ela parou. Algo rastejou na sua face. Uma aranha daquelas teias tinha
se grudado à sua pele, supôs, e ela afastou-a do rosto com apenas uma ligeira
careta cansada.
Quando toda a madeira estava empilhada junto à lareira, Jordanna concluiu
que era o bastante para durar até de manhã. Ainda havia a moldura de madeira de
um catre, com seu estrado de cordas, se fosse preciso. Brig se mexeu, e ela se
forçou a ficar de pé. Não tinha com que desinfetar a ferida dele, mas, como havia
sangrado muito, sem dúvida seria bom colocar uma atadura semi-esterilizada nela.
Isso significava água quente.
Jordanna cambaleou até o canto escuro onde havia caído o caldeirão de ferro.
Levou-o para fora, tomando cuidado para não fechar a porta com força. À luz cinza
do fim da tarde, raspou o interior poeirento do caldeirão com pedaços de cascalho
que tirou de sob a neve. Seu corpo todo tremia de frio, enquanto a neve que caía
rodopiava à sua volta, empurrada pelo vento que fustigava as árvores. Lavou o
caldeirão com punhados de neve e começou a enchê-lo compactamente de neve,
até formar um bolo. Levando-o para dentro, colocou-o junto ao fogo para derreter e
ferver.
O calor das chamas feria-lhe a pele, espetando-a com mil agulhas afiadas.
Sem ter forças para ficar de pé de novo, foi se arrastando pelo chão até onde Brig
estava. As feições dele estavam brancas e duras. Seu poncho brilhava de umidade
e seu chapéu tinha caído, a neve derretendo-se da copa para formar uma poça de
água marrom no chão sujo. O resto das suas roupas devia estar tão úmido de suor
quanto as dela, e esfriando-lhe a pele, ao invés de aquecê-la. O fogo não adiantaria
nada, se eles estivessem de roupas molhadas.
Tirando as luvas molhadas, Jordanna as colocou diante do fogo para secar, e
aqueceu as mãos sem cor junto às chamas. Quando conseguiu amolecer um pouco
as juntas, começou a despir Brig. O poncho de chuva e a jaqueta forrada de pêlos
de carneiro saíram em primeiro lugar, seguidos pela grossa camisa de flanela e a
parte de cima da roupa íntima térmica. Foi uma luta, já que o corpo desfalecido e
grande não lhe oferecia nenhuma cooperação.
Esfregou o peito e os braços dele para acelerar a circulação, cobrindo cada
centímetro do seu tórax, até que o conheceu intimamente. A seguir, veio a parte
inferior. Depois de desamarrar o cachecol de lã que envolvia a ferida, Jordanna
chegou a pensar em usar sua faca para abrir a fazenda da calça Levis e do cuecão
de Brig. Mas os dois ainda tinham que sair daquele lugar. Naquele frio, ele iria
precisar de todo o calor das várias camadas de roupa, e não de um rasgão na
perna da calça.
Desabotoando-lhe o cinto, soltou-lhe a calça e baixou-lhe o zíper. Com o
máximo cuidado possível, desceu a calça pelos quadris dele, passando pela zona
molhada e sangrenta da ferida na coxa. Brig gemeu uma vez, com muita dor, e
Jordanna mordeu o lábio ansiosamente antes de continuar. Teve que parar para
retirar-lhe as botas. Não as colocou ao pé do fogo, pois sabia que calor demais
estragaria o couro. Tendo tirado a calça e as meias dele, começou a tirar-lhe
suavemente os cuecões térmicos.
Jordanna ficou feliz por ele estar inconsciente, pois sabia que o estava
machucando terrivelmente. Uma crosta de sangue seco grudara a fazenda à sua
pele. A ferida parara de sangrar. Em meio à visão chocante, ela podia ver os
buracos roxos de entrada e saída da bala. Ficou aliviada ao ver que ela não estava
alojada ali.
A água da neve dentro do pote começou a ferver, quando ela acabou de
despi-lo. Começando com o pé direito, pôs-se a massagear-lhe a pele fria, subindo
pela perna comprida e musculosa até a pele macia do quadril, inclusive a pele cheia
de pêlos da parte inferior da barriga. Jordanna transferiu a atenção para o pé
esquerdo, esfregando a carne rija até o topo do joelho, não ousando ir além, por
causa do ferimento.
Por um momento fugaz, Jordanna teve a sensação perturbadora de poder
tocar livremente seu corpo nu. Encontrou cicatrizes de ferimentos anteriores, além
daquela que marcava seu ombro. Brig jamais teria permitido que ela descobrisse
tanto a respeito dele, se estivesse consciente. Já a teria colocado de costas e
debaixo dele há muito tempo. E ela não estaria achando ruim.
Mas aquela não era hora para pensamentos estimulantes. Desviando-se da
visão intoxicante do másculo corpo nu, Jordanna cortou com a faca uma parte da
fralda da camisa dele. As muitas camadas das próprias roupas estavam começando
a atrapalhá-la. Despiu-se, ficando só de roupa íntima, hesitou e depois tirou a parte
de baixo. Cortou fora uma das pernas do cuecão, abaixo do joelho, e largou-a
dentro da água que fervia. O corpo dela era um arrepio só, que não parava.
Molhando o pedaço da fralda da camisa na água, quase escaldou os dedos
tentando torcer o excesso de líquido. Debruçou-se sobre o corpo de Brig e começou
a limpar com cuidado o sangue que secava na sua coxa, até que a zona ao redor
da ferida estivesse limpa. O ferimento estava com uma aparência feia. Jordanna
voltou-se para o caldeirão de ferro, onde o pedaço grosso de roupa de baixo girava
na água borbulhante. Ainda não havia fervido o bastante para ficar esterilizado.
Acrescentou mais lenha ao fogo e olhou para a pilha de roupas úmidas.
Precisavam ser postas para secar. Sentia o chão arenoso sob os pés nus, enquanto
o cruzava para arrastar a mesa do centro da sala. Ela foi raspando ruidosamente o
chão, em resistência. Deitada de lado, meio torta, formou uma proteção natural para
o corpo de Brig. Jordanna dobrou algumas das roupas sobre as pernas, criando
lados que conservariam o calor do fogo. Com a faca, cortou o estrado de cordas do
catre e usou os curtos pedaços para formar um varal, amarrando uma das
extremidades a um gancho cimentado do lado da lareira, e a outra, à perna da
mesa. No varal, pendurou para secar o resto das roupas deles, retirando a parte de
cima da sua roupa íntima e pendurando-a também.
Com um graveto curto, Jordanna pescou o pedaço de fazenda da água
fervente e deixou o excesso pingar e chiar no chão de pedra da lareira. Um vapor
cinzento subia do pano molhado. Esperou até que o calor diminuísse antes de tocá-
lo. Talvez fosse errado pôr uma atadura molhada na ferida, mas ela não queria
deixá-la exposta naquele local sujo e arriscar uma infecção. Os músculos dele se
retraíram instintivamente ante a compressa quente e molhada que ela aplicou à
ferida. Precisando de alguma coisa para prendê-la no lugar, Jordanna cortou duas
tiras estreitas da parte inferior da sua blusa e amarrou-as na perna dele, fixando a
atadura.
Pronto. Não havia mais nada a fazer, pensou cansadamente, e a exaustão
começou a nublar-lhe a visão. Não, sacudiu-se e levantou-se. Precisava manter o
fogo ardendo. Sem nada a cobri-los, não podia deixá-lo apagar-se; precisavam
desesperadamente do seu calor.
Apoiando-se contra as pedras quentes da lareira, Jordanna tentou manter a
sua vigília. Cochilou várias vezes, pois estava tão exausta que conseguia dormir em
pé. A cada vez, sentia uma friagem na parte do corpo nu que não estava de frente
para o fogo, e tinha que se virar para aquecê-la. Uma meia dúzia de vezes
acrescentou mais lenha ao fogo. No seu estado de exaustão, movia-se como um
robô, cumprindo sua tarefa sem motivação consciente.
Do lado de fora, baixou a escuridão da noite. Uma neve ligeira continuava a
cair, enquanto o vento uivava em volta da minúscula cabana de um só cômodo. O
fogo crepitava. Nos cantos ensombreados, os roedores corriam furtivamente, porém
Jordanna estava cansada demais para ouvi-los.

Brig se mexeu e tentou achar uma posição mais confortável na cama dura. A
dor varreu sua perna esquerda, acordando-o à força. Abriu os olhos devagar,
inspecionando o ambiente. À luz bruxuleante, viu paredes fantasmagóricas de pano
à sua volta, e sentiu o chão duro e nu sob o corpo. Levou a mão à coxa ferida para
cessar-lhe o latejar. Seus dedos se fecharam nos pêlos da perna, e deu-se conta de
que estava nu. Virando a cabeça, olhou na direção da luz e do calor.
Inspirou vivamente ao ver a figura nua apoiada de encontro à lareira de pedra.
A luz do fogo banhava a figura de porcelana em ouro pálido. A perfeição estava em
cada linha, desde as pernas bem-feitas até o traseiro arredondado e a cintura
esbelta, que se alargava até um par de ombros brancos e suaves. Os cabelos de
cobre escuro, com reflexos escarlates, cascateavam em cachos entre as omoplatas.
O olhar dele desceu preguiçosamente, demorando-se nas curvas macias e
arredondadas do traseiro.
E então a figura se moveu, voltando devagar à vida, e virou-se para ele num
movimento lânguido. Seios firmes e altos tinham bicos rosados que se arremetiam
para cima. Quadris esbeltos convidavam um homem a amoldar-se a eles. Nada
esculpido podia conseguir a sensualidade natural dessa forma viva, concluiu Brig.
— Vênus com braços — murmurou Brig, e a figura moveu-se para ele,
ajoelhando-se a seu lado, para que a luz da fogueira lhe iluminasse o rosto. Havia
olheiras fundas de exaustão sob os olhos avelanados, porém ele a reconheceu e
retorceu a boca num débil sorriso. — Jordanna.
— Sim — foi a resposta suave. Os dedos dela acariciaram-lhe de leve a testa.
— Como se sente?
— Cansado. — Um pouco fora desse mundo. Ela estava perto o bastante para
ser tocada. Brig colocou a mão direita na caixa torácica dela e deixou-a subir até a
parte inferior do seio, onde o seu polegar podia esfregar o mamilo ereto. Ouviu sua
respiração arquejante. — Por que está aqui?
— Que pergunta ridícula! — Sua voz era ligeiramente perturbada. — Onde
mais estaria?
— Podia ter-me abandonado para morrer. Provavelmente teria morrido
mesmo, nessa tempestade. — Com a mão esquerda, segurou-lhe o pulso e puxou-
a para junto de si. Não precisou de muito esforço.
— Eu também teria, se você não conhecesse este lugar — lembrou ela,
enquanto as montanhas macias dos seus seios pousavam sobre o peito dele.
Soltando-lhe o pulso, ele escorregou a mão pelas costas dela e foi acariciar uma
das nádegas arredondadas que tanto admirara. — Está com febre? Está falando
bobagens.
— Se estou com febre, é você quem está afetando minha temperatura. — Por
enquanto, Brig não estava se perguntando por que Jordanna ficara ou cuidara de
sua ferida, quando teria sido tão mais fácil para ela abandoná-lo aos elementos
mortíferos e deixar a natureza terminar o serviço que o pai começara. Curvou a
mão em volta do pescoço da moça para forçar-lhe a cabeça para baixo, para que
ele pudesse mordiscar-lhe o lábio inferior.
— Brig, não — protestou, debilmente. — Você está ferido.
— É? Então não lute contra mim.
O gemido baixo que saiu da garganta dela disse-lhe que não lutaria muito
contra ele, se é que chegaria a lutar.
— Por favor. Estou muito, muito cansada, e preciso manter o fogo aceso —
murmurou Jordanna, por entre as mordidelas na sua boca, mas não fez nenhum
esforço para evitá-las. Brig sentiu a letargia dos seus membros e percebeu que ela
falava a verdade sobre o seu estado de exaustão. No momento, ele apenas
reconhecia o enrijecimento crescente de sua própria necessidade. Concordou com
o segundo argumento dela.
— Ponha um monte de toros na lareira; o fogo durará até de manhã. — A
contragosto, deixou que Jordanna saísse dos seus braços.
Os movimentos dela eram fluidos e inconscientemente sedutores. Brig apoiou-
se num dos cotovelos, testando sua força e quanta interferência haveria por parte
do ferimento. Enquanto Jordanna cooperasse, ele se arranjaria. Sentia-se um tanto
trêmulo, mas não era nada que não pudesse dominar.
Depois que o fogo foi atiçado com os toros extras, Jordanna virou-se hesitante
para ele e puxou um punhado de cabelo para trás da orelha. Os olhos dele
escureceram ao deparar com a beleza pura do corpo nu da moça.
— Venha se deitar comigo, Jordanna.
Os dedos dela entrelaçaram-se naqueles que ele lhe estendia. Lentamente,
com medo, esticou-se ao lado direito dele. Brig começou a se virar, mas ela
empurrou-o pelos ombros para forçá-lo a se deitar.
— Não. Pode recomeçar a sangrar — avisou, ansiosamente.
— Nesse caso... — Brig puxou-a para cima dele — vamos fazer deste jeito.
— Você é maluco. — Contudo, ela estremeceu, quando as mãos grandes dele
massagearam-lhe eroticamente os seios.
— Sim, é insanidade — concordou ele. Era a única explicação para essa
dúvida angustiante de que ela realmente planejara matá-lo. Se assim fosse, por que
estaria ali? Não importava. Agora, seu único pensamento era um desejo poderoso
de fazer amor com ela. A moça implantara essa semente demoníaca de desejo
dentro dele. Agora, era a vez de ele colher o que fora plantado.
Quando as mãos dele deslizaram para os seus quadris, Jordanna distribuiu o
seu peso pelo tórax dele. Roçou com os lábios úmidos o canto da boca do homem,
seu hálito quente e estimulante misturando-se ao dele.
— Tome cuidado — pediu. — Não quero que se machuque mais.
— Então me ajude — escarneceu ele, e gemeu quando ela o fez.

Uma friagem nas costas acordou Jordanna. Ela estava jogada sobre o corpo
adormecido de Brig, mas, mesmo enquanto dormia, evitara entrar em contato com o
ferimento dele. A despeito do calor irradiante do seu corpo, teve consciência do frio.
Levou um segundo para ela se dar conta de que o fogo devia ter-se apagado. Virou
a cabeça, para ver um leve brilho avermelhado nas cinzas escurecidas da lareira.
Suavemente, Jordanna saiu do círculo do braço de Brig para reavivar o fogo.
Com o restante das aparas de madeira, deu início a uma minúscula chama, e
estremeceu ao acrescentar a ela o primeiro toro pequeno. Olhando para a parede
de roupas penduradas, percebeu que estavam secas. Estendeu a mão para as
roupas de baixo compridas e começou rapidamente a vesti-las. Só parou quando
estava totalmente vestida e aquecida pelas muitas camadas de roupa. A essa
altura, o fogo ardia alegremente.
A pilha de lenha se reduzia a duas achas. A moldura do catre daria mais uma
meia dúzia. Iriam precisar de mais lenha. Ela estava com sede, e o vazio
persistente no seu estômago lembrava-lhe que não comia desde o meio-dia da
véspera. Tirando a jaqueta de Brig do varal improvisado, Jordanna cobriu-o com
ela, depois pôs o chapéu e as luvas e apanhou o caldeirão de ferro e a faca.
Tinha parado de nevar, mas havia quinze centímetros de neve no chão, mais
em alguns lugares, pela ação do vento. O sol batia na extensão branca de neve
invernal, e Jordanna teve que proteger os olhos, depois da escuridão da cabana
sem janelas. À luz do dia, percebeu que ela não era totalmente sem janelas. Estas
tinham sido fechadas com tábuas.
Depois de encher compactamente o caldeirão de ferro com neve, deixou-o
junto à porta e foi fazer uma exploração e procurar um lugar reservado para fazer
suas necessidades. Do outro lado da cabana, encontrou uma caixa semicheia de
lenha. A menos de vinte metros da cabana, havia um mundaréu de madeira, se
houvesse necessidade de mais.
Com esse problema solucionado, Jordanna dedicou sua atenção à fome
crescente que sentia. Havia vários anos, o pai lhe ensinara que a casca interna dos
pinheiros, assim como a de outras árvores, era comestível, quer crua quer cozida.
Esse suprimento de alimentos de emergência lhes forneceria algum sustento.
Provavelmente haveria algumas folhas comestíveis sob a neve, mas a casca era
mais fácil de obter. Com a água da neve derretida, poderia fazer uma sopa nutritiva.
Usando sua faca, Jordanna cortou tiras de árvore e descamou a casca externa,
amarga, para chegar às tenras fibras internas.
Quando já estava com os bolsos cheios, voltou para a frente da cabana e
pegou o caldeirão com neve. Depois do brilho do sol, teve dificuldades em se
adaptar ao interior sombrio da cabana. Uma forma grande bloqueava a luz da
fogueira. Ela levou um segundo para se lembrar de que era Brig.
— Bom dia. — Dirigiu-se para ele, um sorriso cálido acompanhando o
cumprimento.
Ele estava semivestido, com a maior parte do peso jogado sobre a perna
direita. Ao invés de retribuir o sorriso, Brig olhou feio para ela, as feições contraídas
numa expressão ameaçadora. Ela ficou desalentada. À noite, fora um amante
ardente e exigente, enchendo-lhe o corpo cansado de uma excitação selvagem.
Pela manhã, havia ódio e desprezo nos seus olhos. O que ela fizera de errado,
exceto amá-lo?
— Onde esteve? — perguntou ele, com voz áspera e acusadora.
— Explorando. — Pousou o caldeirão de neve no chão, ao pé da lareira. — Lá
fora há uma caixa de lenha com mais achas... — Tirou do bolso as cascas de
pinheiro. — Peguei também um pouco de cascas de pinheiro para fazer uma sopa
para nós. — O tempo todo, tentou parecer calma e controlada, não demonstrando
nem mágoa nem raiva ante a pergunta dele.
— Que engenhoso de sua parte! — Ergueu uma sobrancelha com zombaria
cínica.
— Também achei — respondeu Jordanna, tentando parecer petulante.
— Também fez sinal para seu pai?
— Na verdade, não tinha pensado nisso, caso contrário teria feito. — A
resposta de Jordanna foi fria, sem compreender o tom de voz dele.
— Teve a oportunidade perfeita e não teve peito para fazê-lo, não foi? Por
quê? — A cabeça dele estava repuxada num ângulo arrogante, que a um só tempo
desafiava e ironizava. — Qual a diferença entre uma bala e me deixar congelar até
morrer?
Jordanna olhou para ele com uma ruga confusa no meio da testa, e sacudiu a
cabeça.
— Não sei do que está falando. — Estava quente junto ao fogo. Tirou o
chapéu e desabotoou o casaco.
— Pare de bancar a boba. Já estou cheio desse jogo — debochou Brig.
— Você também estava falando bobagens ontem à noite. Deve estar com uma
ponta de febre. — Adiantou-se para sentir a testa dele e examinar-lhe a
temperatura.
Mas sua mão não chegou lá. Foi agarrada num aperto de esmagar os ossos,
que fez Jordanna girar de lado, numa tentativa de aliviar a pressão. O rosto dele
escureceu de raiva.
— Chega de mentiras, Jordanna!
— Não estou mentindo para você! — explodiu, indignada. — Perdeu o juízo?
— Sim, devo ter perdido, quando a conheci. — Seu lábio se encrespou, com
desdém. — Sei que sacana mentirosa você é. Até mesmo sabia que você estava
tramando com seu pai para me matar, mas ainda assim deixei-me manobrar para
ficar em posição para o abate. Foi por pura sorte que consegui escapar com apenas
uma ferida superficial na perna.
— Como? — Era uma palavra arquejante de total confusão. — Como pode
dizer tais coisas? Deve estar maluco — sussurrou a moça, com um pouco de medo
dele. — Não sei quem atirou em nós, mas...
— Sua vaca mentirosa! — Com um rosnado selvagem, de lobo, afastou-a de si
com uma violência que a jogou de costas, cambaleante. — Você sabe tanto quanto
eu que foi seu pai!
— Não!
— E quem mais estava lá? Quem mais tinha um fuzil? Quem mais tinha motivo
para me matar? — Lançou as perguntas sobre ela, com uma acusação cruel.
— Não sei quem mais poderia ter sido, mas não foi meu pai! — Havia uma
frustração zangada na sua negativa repetida. — Como pode ser tão maluco a ponto
de achar que ele iria querer matá-lo? Brig, o que há com você?
— Não há nada comigo. Fletcher quer ver-me morto porque eu lhe disse que
sabia que Max tinha sido assassinado. Sem dúvida, ele lhe contou. — Sua
expressão desdenhosa era um deboche à ignorância da moça.
— Assassinado? Mas foi um acidente — protestou Jordanna.
— Acidente, uma ova! — zombou ele, pegando a jaqueta. Tirou do bolso a
sarça. — Quantos cavalos não derrubariam um cavaleiro inexperiente com isto aqui
sob a sela? Não me diga que não a viu antes!
A moça fitou a sarça, de olhos arregalados.
— Já a vi. Você falou que era o seu talismã. — Ergueu os olhos para o rosto
dele. — Está dizendo que foi isso o que causou o acidente de Max?
— Não foi acidente. Foi assassinato. Mas estou certo de que, como cúmplice
de seu pai, você jamais o admitirá.
— Não, não é verdade. Não sei como esses espinhos apareceram debaixo da
sela de Max, e não tive nada a ver com isso. Nem meu pai.
— Pare de fingir, Jordanna — falou Brig, desdenhosamente. — Enquanto você
tão gentilmente me levou o café, naquela manhã, certificou-se de que eu não
chegaria aos cavalos, e deu a seu pai ampla oportunidade de enfiar isto sob a sela.
O que ele fez.
— Não!
— Eu devia ter notado, quando seu pai deixou de avisar Max sobre a cobra.
Nem mesmo suspeitei de nada, quando ele fez Max cruzar aquela borda do
precipício sem avisá-lo da área minada. Mas minha mente e meus sentidos
estavam todos cheios com você. Esse foi o plano, o tempo todo, não foi? Deixar-me
tão embasbacado com você que nem notasse o que estava se passando? E, porra,
quase funcionou! Você foi uma sedutora tão fascinante que, quando não estávamos
na cama, eu estava pensando em cama. Até mesmo quando ouvi, por acaso,
Fletcher dar-lhe ordem para ser "boazinha" comigo, não questionei o porquê. Ainda
era tolo o bastante para acreditar na história dele de querer um carneiro montês. E
não me importava por que você estava agindo daquele jeito, contanto que pudesse
tê-la na hora em que a quisesse.
— Não! Está totalmente errado! Não fui para a cama com você porque ele
mandou! — Os olhos dela estavam cheios de lágrimas amargas. — Fui porque
quis... porque o amava! Papai não teve nada a ver com isso! E ele não teve nada a
ver com a morte de Max, e você não pode provar que teve!
— Foi o que ele disse. — Brig não se deu por vencido.
— O q-que ele disse? — repetiu Jordanna, em choque. — Quer dizer que...
papai sabe que você pensa que ele matou Max?
— E por que outro motivo acha que ele atirou em mim? Não quer que eu fique
falando sobre o que sei. Ele quase conseguiu calar minha boca para sempre. Mais
dois segundos e... — Deixou o óbvio por dizer. — Você quase me distraiu o tempo
suficiente, Jordanna.
— Mentiroso! Nada disso é verdade! Está inventando tudo isso. Por quê? —
quis ela saber, sufocando um soluço assustado. — Por que está fazendo isso?
— Você sabe que é verdade. Fletcher está lá fora, agora, procurando por mim.
Tem que me matar. Não pode me deixar escapar, não depois de errar uma vez.
— Mentiroso! — explodiu Jordanna, cheia de fúria. Jogou-se sobre ele,
socando-o e chutando-o como uma louca, soluçando e gritando sem parar: —
Mentiroso! Mentiroso! Mentiroso!
As lágrimas quentes escorriam pelo seu rosto, cegando-a. Poucos dos seus
socos histéricos chegaram a atingi-lo, mas Brig levou vários minutos para capturar
os braços agitados dela e torcê-los atrás das costas. A inutilidade de lutar contra
alguém tão mais forte do que ela reduziu Jordanna a uma massa trêmula de
soluços entrecortados.

Capítulo XXII

Brig abraçou-a forte, absorvendo os seus tremores violentos com o corpo.


Nenhuma atriz, por melhor que fosse, poderia ter-se levado voluntariamente àquele
estado. Uma ruga vincou-lhe a testa, ficando cada vez mais funda à medida em que
os soluços trêmulos se tornavam mais suaves. Soltou os braços dela e acariciou-lhe
a seda despenteada dos cabelos avermelhados. Seu peito estava molhado com as
lágrimas dela.
— Não é verdade — ouviu-a murmurar, entrecortadamente.
A mão dele tremeu, quando lhe segurou o queixo e ergueu o rosto dela para
ser inspecionado. Havia uma angústia atormentada nos pontinhos verdes dos olhos
cor de avelã. As dúvidas quanto à culpa da moça, que o andavam incomodando,
foram subitamente afastadas, e um alívio trêmulo o percorreu, alívio e uma
suavidade muito grande.
— Não sabia, não é?
Ela cobriu os ouvidos com as mãos para bloquear-lhe a voz, e fechou bem
apertado os olhos, espremendo o resto das lágrimas.
— Não quero mais ouvir suas mentiras sobre meu pai.
Brig tomou o seu corpo duro nos braços e esfregou o queixo contra o cabelo
dela. Sentiu-lhe a dor e a confusão, e o dilaceramento da lealdade. Percebeu como
tinha sido brutal para com uma vítima tão inocente quanto ele próprio, mas
precisava ter tido certeza.
— É verdade, Jordanna. Sinto muito. — A voz dele estava rouca de pesar. —
Fletcher não me escolheu ao acaso para guiar essa expedição de caça. Mandou
investigar-me profundamente. Sabia tudo da minha associação com Max e com a
Sanger Corporation, toda a animosidade que havia entre nós. Matou Max e me
preparou como bode expiatório para o caso de serem descobertas provas de que
não fora um acidente. Infelizmente para ele, achei as provas e somei dois mais
dois.
— Mas por quê? — protestou ela, erguendo o rosto intrigado para ele e
enxugando com impaciência as lágrimas que lhe escorriam pela face. — Por que
ele queria matar Max?
— Não sei. É a única coisa que ainda não consegui descobrir. — Um nervo
moveu-se espasmodicamente no seu maxilar. — Você sabe? O que era Max para
ele?
— Era... apenas um conhecido de negócios. — Jordanna deu de ombros, num
gesto de ignorância. — Andava aborrecendo papai para comprar algumas ações da
sua companhia. Papai disse que mandou investigar a companhia e... — Ela parou,
o olhar dilatado voando para Brig, cheio de compreensão. — Ele também o mandou
investigar. Foi papai quem me contou que você foi mercenário, não Max. Realmente
conhecia tudo a seu respeito.
— Seu pai tinha alguma intenção de comprar as ações de Max? — Brig notou
o medo e o alarme que surgiram nos olhos dela. Ficou observando-a lutar para se
lembrar.
— Disse que talvez comprasse. A firma estava quase falida, mas ele achava
que, com o apoio financeiro e o homem certo na direção, ela ficaria bem. Você
herda a firma toda, Brig?
— Sim. Ele também lhe contou isso?
— Sim. — Jordanna baixou a cabeça, desviando o olhar dele. — Papai não
mataria Max. Não tinha motivo.
— Por que convidou Max para vir?
— Não o convidou; foi você quem o convidou. — Parou, com a dúvida
falseando nos olhos. — Não foi? Ele nos disse que foi.
— Não convidei Max.
— Mas como pode ser isso? — Ela moveu a cabeça, numa negativa confusa.
— Papai disse que você convidara Max, e que não havia nada que ele pudesse
fazer a esse respeito. Vocês eram primos, e há muito tempo não estavam juntos.
Além disso, Max queria vender para ele aquelas ações.
— Eu estava lá quando seu pai fez a sugestão inicial para que Max viesse
com ele numa expedição de caça. Mais tarde, ele sugeriu especificamente esta
viagem. Max logo aproveitou a deixa, mas certamente não por minha causa —
insistiu Brig, secamente. — Na verdade, estou certo de que meu primo gostaria que
eu estivesse do outro lado do mundo.
— Mas isso não tem sentido — argumentou Jordanna, enrijecendo-se nos
braços dele. — Por que papai mentiria para mim sobre o convite? Por que diria que
você o convidou, se não o fez?
— Terá que lhe fazer essa pergunta. Posso apenas imaginar que não
quisesse ninguém suspeitando de que ele queria Max na viagem de caça. Se você
e todos os outros acreditassem que eu convidara Max, e que seu pai tinha que
tolerar a presença dele, seu pai seria menos suspeito, se o assassinato fosse
descoberto.
— Não. Papai não faria isso. — Jordanna soltou-se dos braços dele, zangada
e insegura. — Você está inventando tudo isso. Só o que tenho é a sua palavra de
que ele teve algo a ver com a morte de Max.
— Isso faz parte do plano. Minha palavra contra a dele. Um ex-mercenário
contra um homem muito rico e altamente respeitado. Foi por isso que não
mencionei nada disso às autoridades, até poder obter alguma prova. É uma pena
que a bala não tenha ficado alojada na minha perna, para eu poder levá-la. — Brig
observava-a, notando a contradição na cabeça orgulhosamente erguida e nos
ombros curvados. — Tire-o do pedestal, Jordanna. Ele está aí fora, neste momento,
caçando-me.
— E por que não deveria estar? — Deu meia-volta para confrontá-lo, os
cabelos castanhos como chamas rodopiando-lhe à volta dos ombros. —
Provavelmente pensa que nos perdemos na tempestade, ou que você me raptou.
Kit e Jocko provavelmente estão com ele.
— Creia-me, Fletcher não voltou para o acampamento sem a gente —
declarou Brig. — Não pode arriscar a que se organize um grupo de busca até saber
que estou morto. Jocko só vai preocupar-se conosco se não aparecermos hoje à
noite. Vai pensar que começamos a voltar para o acampamento tarde demais,
ontem à noite, e que nos entocamos nalgum lugar, quando a neve apareceu.
Fletcher não vai querer que eles o ajudem a me encontrar. Não pode arriscar-se a
ter a seu redor testemunhas que não pode controlar, quando eu tiver o meu
"acidente de caça".
— E quanto a mim? Sou uma das testemunhas — desafiou Jordanna.
— Você nem quer acreditar que ele seja responsável por isto — disse Brig,
tocando a perna ferida. — Papaizinho não pode fazer nada errado, a seus olhos.
Pode controlá-la. Pode convencê-la de que foi um acidente trágico. A arma disparou
acidentalmente... ou ele me confundiu com um animal selvagem. Estou certo de que
inventará uma boa história, e você estará tão ansiosa por acreditar nele que nem a
questionará.
— Não — negou, mas baixou os olhos ante o olhar firme dele.
— Mas ele não pode trazer Jocko junto, porque ele poderia representar um
problema. Seu pai deve ter adivinhado que não pode comprar o silêncio de Jocko,
assim como não poderia ter comprado o meu.
— Comprar o seu silêncio? Do que está falando?
— Ele me fez uma proposta muito tentadora outro dia, lá na cidade, quando eu
o confrontei sobre a morte de Max.
— Que tipo de proposta? — perguntou, desconfiada e insegura.
— Primeiro, ofereceu-se para fornecer o apoio financeiro que a companhia
precisava, com plena consciência de que eu a herdaria. Não gostou quando eu lhe
disse o que podia fazer com o seu dinheiro e a Sanger Corporation.
— Não pode condená-lo por fazer uma oferta. Ele não estava
necessariamente tentando comprá-lo — argumentou Jordanna. — Papai já tinha
dito que, com o homem certo à testa, estaria interessado em investir na companhia.
Provavelmente achou que você era o homem certo.
— Pode ser. Mas, quando recusei essa oferta, fez-me uma segunda, mais
tentadora: você.
— Está mentindo! — sibilou, e tê-lo-ia esbofeteado, se Brig não tivesse
segurado sua mão. Dessa vez, ele não estava procurando puni-la, e seu aperto foi
firme, mas não brutal.
— Sugeriu, de uma maneira indireta, que você se casaria comigo, se eu lhe
pedisse. — Viu o rosado de humilhação subir às faces da moça. — Como não reagi
à idéia com o entusiasmo adequado, insinuou que seu presente de casamento para
nós me permitiria fazer um número considerável de melhorias custosas na fazenda.
— Sem dúvida você também lhe disse o que podia fazer com essa oferta —
murmurou Jordanna, tensamente.
— Disse — admitiu Brig. — Quando ele descobriu que não seria possível
guardar o segredo da morte de Max, teve que recorrer a isso.
— Mas por quê? Você não me deu um único motivo. Deve estar havendo
algum engano.
Brig podia ver o desespero roendo-a.
— Não sei o motivo, mas vou descobrir. — Manteve a voz calma, mas sem
disfarçar sua determinação. — Seja qual for, creio que ele o vem acalentando há
muito. Acho que, primeiro, tentou arruinar Max financeiramente. Max representava
algum tipo de ameaça para seu pai, e ele tentou esmagá-lo. Como isso não deu
certo, matou-o.
— Você está errado. Tem que estar — falou, e Brig ouviu a dúvida na voz
dela.
— Estou certo — disse, suavemente. — Só espero que você não esteja
parada junto ao meu cadáver, quando finalmente se der conta disso. — Ouviu a
viva exclamação de pesar da moça, e soube que dissera tudo o que podia dizer. Ela
tinha que pensar no assunto por si mesma, e decidir se acreditava nele ou não. —
A neve está derretendo no caldeirão. Você falou qualquer coisa sobre uma sopa. —
Estendeu a mão para a camisa. — Vou buscar um pouco daquela lenha que você
achou lá fora.
— Sua perna... — começou ela a protestar.
— Está bem.
Doía como o diabo, mas ele não podia deixar que a perna ferida ficasse dura.
Não havia muita chance de Fletcher encontrar aquela cabana. A neve já teria
coberto os rastros deles. Estariam a salvo enquanto ficassem ali, mas por quanto
tempo, sobrevivendo de cascas de árvore? Sem armas, sua única esperança de
pegar animais selvagens era com armadilhas. Brig não queria contar com aquilo.
De qualquer modo, mais cedo ou mais tarde teriam que sair dali. Tinha que ser
mais cedo, enquanto ainda tinha forças, e antes de ficarem enfraquecidos pela falta
de alimento. Sempre havia o risco de que Fletcher pudesse ver a fumaça da
chaminé e viesse investigar. A cabana, ao invés de abrigo, tornar-se-ia uma
armadilha mortal para ele.
Naquela noite, Jocko ficaria preocupado. No dia seguinte de manhã,
começaria a procurar por eles. Se pudessem chegar a Jocko, ou ao
acampamento... Incomodava a Brig não saber onde Fletcher estava. O caçador
devia saber que ele tentaria chegar ao acampamento e já deveria ter encontrado
um ponto privilegiado para cobrir todos os caminhos que levassem a ele. Qual
seria? Brig examinou o terreno mentalmente, escolhendo e rejeitando locais, e
terminou com um punhado de lugares em potencial.
Enfiando-se na jaqueta, Brig lançou um olhar a Jordanna. Ela estava
adicionando as cascas de árvore à água da neve que fervia. Sua tentativa de
distraí-la funcionara. Parara de discutir com ele e começara a remoer tudo aquilo. A
moça precisava de tempo para pensar. Ele também.
As circunstâncias haviam se alterado dramaticamente na última hora. Antes,
ele estivera com raiva o bastante para usá-la como escudo. Raiva porque acreditara
que ela fazia parte daquilo... raiva porque sabia disso e deixara-se envolver, apesar
de tudo... e raiva porque continuava a sentir desejo por ela. Só que nada disso era
verdade. Jordanna não o enganara. Também ela fora usada pelo pai o tempo todo,
involuntariamente.
O primeiro passo que deu em direção à porta trouxe-lhe um protesto de dor
violento por parte da ferida. Gotas de suor formaram-se em sua testa. Brig parou e
esperou até que o fogo penetrante tivesse arrefecido. Tentou de novo, usando com
muito mais cuidado a perna esquerda. Do lado de fora da cabana, enxugou o suor
do rosto e inspirou fundo o ar frio e cortante. Ferido, chegara àquela cabana, e
ferido se afastaria dela.
Mas estava preocupado com Jordanna e com o que aconteceria quando o pai
dela os encontrasse. Uma bala perdida, ricocheteada, e ela poderia sair seriamente
ferida. Brig ainda não acreditava que Fletcher se arriscasse a feri-la, mas poderia
fazê-lo inadvertidamente. Trazendo-a consigo, ele a pusera em perigo. Tinha que
tirar os dois vivos daquela situação, não apenas a si mesmo. Se alguma coisa
acontecesse a Jordanna, seria culpa dele, e Brig não sabia se poderia viver com tal
sentimento. Não sabia se poderia viver sem ela.
Varreu com os olhos a área de bosque à volta da cabana. Olhou para cima, e
examinou os fios de fumaça que saíam da chaminé. A madeira estava seca e ardia
com pouca fumaça. Mas de que distância ela poderia ser vista? E quão perto
estaria Fletcher?
Estava na hora de examinar o local, quer se sentisse disposto, quer não.
Mantendo-se sob a proteção das árvores e rochas, Brig conseguiu chegar à boca
do alto canyon. A cautela ditava que não se expusesse por um período longo
demais, para evitar ser visto por um binóculo potente. Além disso, não podia andar
muito depressa, para não recomeçar a sangrar.
Perto da boca do canyon, subiu por uma inclinação rochosa, para obter uma
visão melhor. Brig desejou ter um binóculo, enquanto observava atenta e
vagamente os cumes e platôs. Nada se mexia. Parecia um cartão de Natal de
montanhas e árvores cobertas de neve. Olhou na direção da cabana. O fio fino de
fumaça da chaminé mal era visível contra o pano de fundo branco. Esperou e vigiou
durante quinze minutos. Então, sua cadeira de neve começou a deixá-lo
entorpecido de frio.
Antes de voltar, Brig quebrou um galho de sempreviva e apagou seus rastros
na neve, seguindo o mesmo caminho de volta à cabana. Qualquer pessoa que
observasse à distância, através de um binóculo, jamais notaria as marcas apagadas
na neve. Mas, se Fletcher chegasse perto o bastante para vê-las a olho nu,
reconheceria logo o que eram.
Diante da cabana, Brig parou para descansar, depois carregou os braços com
achas da caixa de lenha e levou-as para dentro. A longa caminhada o deixara
consideravelmente cansado. Precisava muito descansar, mas já conseguira tirar um
pouco da rigidez da perna, se não a dor.
Jordanna estava de pé diante da lareira, olhando para as chamas, a mão
apoiada nas pedras. Os ombros encurvados e seus olhos baixos revelavam
desânimo. Não se virou quando ele entrou, nem deu indicação de que sabia que ele
estava de volta. Brig jogou as lenhas num canto e foi mancando para junto dela.
— A sopa está pronta? — Tirou as luvas para esfregar as mãos e estendê-las
ao calor do fogo. Seu olhar de esguelha notou-lhe o queixo trêmulo.
— Está pronta... e daí? — respondeu ela, com voz tensa. — Não temos
colheres nem xícaras, nem meios de tomá-la. É claro que não vamos poder tomá-la
no caldeirão.
A derrota na sua voz era indisfarçável.
— Ei — admoestou-a, suavemente. Ela havia comido o pão que o diabo
amassou, nas últimas vinte e quatro horas. A tensão estava começando a se fazer
sentir. Segurou-a pela nuca e fez com que olhasse para ele. Um sorriso cansado,
de conforto, curvou os cantos da boca do homem. — O pior já passou, Jordanna.
Você salvou minha vida, ontem. Ajudou-me a chegar a esta cabana; acendeu o fogo
depois que desmaiei; livrou-me das minhas roupas molhadas e cuidou da minha
ferida; juntou lenha e água e ficou acordada para não deixar o fogo morrer; e, hoje
de manhã, saiu e se serviu da despensa da natureza. Você é uma mulher e tanto,
Jordanna Smith. Não vá desistir agora. Preciso de você.
O olhar dele deslizou para a sua boca trêmula. Brig baixou a cabeça para
beijar aqueles lábios macios. A princípio foram passivos a seu toque, mas aos
poucos ela se submeteu à doce persuasão. Ele sentiu um súbito sentimento de
proteção crescer dentro de si, uma emoção docemente feroz. Quando ergueu a
cabeça, Brig descobriu que havia um bolo em sua garganta, sufocando-o.
Vamos fazer uma pilhagem sugeriu, com voz rouca. Quem quer que tenha
construído esta cabana deve ter deixado por aí algumas latas ou alguma cerâmica
quebrada. Vamos procurar alguma coisa.
Jordanna acenou com a cabeça, numa aceitação muda da sugestão dele, com
um brilho líquido nos olhos. Juntos, revistaram os cantos escuros e nojentos da
cabana. A ferrugem havia aberto buracos nas latas que encontraram. Brig estava
começando a ficar desencorajado, quando Jordanna achou uma caneca de barbear
de cerâmica com um canto da boca lascado.
Enquanto ela saía para lavá-la na neve, Brig voltou para junto do fogo e
sentou-se cuidadosamente no chão, apoiando as costas na mesa. Sua perna
latejava e parecia ter três vezes o tamanho normal. Mas o inchaço era apenas
ligeiro, e o calor era normal para um ferimento, coisa que ele lembrava de
machucados anteriores.
Quando Jordanna voltou, insistiu em que ele comesse primeiro. Brig estava se
sentindo cansado demais para discutir. Tomou duas canecas da sopa, mastigando
os pedaços de casca cozida. Estava gostosa, com os devidos descontos, e
preencheu o vazio de seu estômago. Entregando-lhe a caneca, tirou a jaqueta e
dobrou-a como se fosse um travesseiro, depois deitou-se de costas.
— Seque aquela madeira que eu trouxe antes de colocá-la no fogo. Só quero
que saia da chaminé a fumaça absolutamente necessária — advertiu, antes de
fechar os olhos e deixar o cansaço tomar conta de si.

Jordanna estava sentada diante da lareira, os joelhos dobrados, envoltos


pelos braços. Pelo seu relógio, era o fim da tarde, e Brig ainda dormia. Mordeu o
lábio inferior, lembrando-se de todas as acusações que ele fizera. Algumas tinham
sentido. Correu os dedos pelos cabelos. Simplesmente não podia acreditar que o
pai tivesse matado Max. Porém, quem atirara em Brig? Seu olhar era atormentado,
ao virar-se para ele.
Subitamente, deu-se conta de que ele não estava dormindo. Havia tempo
estava observando-a por entre os cílios semicerrados. Retirando os dedos dos
cabelos e passando-os nervosamente pelas coxas, Jordanna voltou rapidamente a
fitar as chamas.
— Ainda duvida do que eu lhe disse. — A voz dele era baixa, nem acusadora
nem condenadora.
— Não posso deixar de pensar que você cometeu um erro. — Não se virou,
mas ouviu quando ele se sentava. — Estou certa de que há uma explicação lógica
e racional para tudo o que aconteceu.
— Naturalmente, uma que inocente seu pai — murmurou ele.
— Sim. — Os lábios dela estavam secos. Ela os umedeceu.
Uma das suas mãos foi engolida pelo aperto da dele. Espantada, virou-se e
deparou com ele sentado de lado, de frente para ela. Examinava a mão dela,
correndo os dedos pelos dedos esguios, acariciando-a de um jeito curioso.
— Uma vez você me disse que não conseguiu fazer com que eu acreditasse
em você. — Não olhou para ela, enquanto falava. — Mas estava errada. Acredito
que você era sincera nas coisas que me dizia. Não estava mentindo para mim,
Jordanna. E não estou mentindo para você, agora.
Brig ergueu o olhar. O ar intenso do brilho escuro dos seus olhos fê-la perder o
fôlego. A tensão do seu corpo comunicou-se a ela. Um músculo contraiu-se no
maxilar magro, enquanto o olhar dele varria possessivamente o rosto da moça.
— Você foi a minha fraqueza, Jordanna — continuou. — Até mesmo quando
eu acreditava que você e seu pai estavam me usando, não podia resistir-lhe. Você
devorava meu coração, minha cabeça, meu corpo. A fome começou naquela noite
da festa, em Nova York. Quando voltei, não consegui esquecê-la. Havia
sentimentos que eu pensava que tinham morrido dentro de mim, mas você fê-los
reviver. Porém, não me agradava a idéia de ser apenas o seu garanhão, portanto
tentei odiá-la.
— Meu garanhão?! — O termo doeu. Jordanna tentou puxar a mão, mas ele
não a soltou.
— Não se esqueça de que eu pensava que estava sendo usado, a moça rica
tirando um sarro com um guia de montanhas, um ex-aventureiro. Se você era uma
das vantagens adicionais da proposta de Fletcher, eu a desejava o bastante para
aceitar... não importava o que aquilo fizesse de mim. Disse algumas coisas
deliberadamente, para magoá-la. — Sacudiu a cabeça, olhando para o lado e
praguejando baixinho. — Merda. Não sou de fazer longos discursos. Estou
apaixonado por você, Jordanna.
Uma luz incrédula apareceu nos olhos dela. Desejava tão desesperadamente
acreditar nele, que tinha medo. Não conseguiu dizer nada, e seu silêncio deu um ar
sombrio e tenso às feições dele, estreitando-lhe a boca e dando-lhe um ar cruel, por
sob o bigode escuro.
— Uma vez você disse que me amava. Por Deus, é melhor que não tenha
mudado de idéia! — Seus olhos chamejaram subitamente, enquanto ele mudava o
jeito de segurar-lhe a mão, entrelaçando os polegares. — Porque não vou largá-la.
Jordanna nem ligou para a dor que o aperto na mão lhe causava.
— Não quero que me largue — falou ela, com voz trêmula.
Dobrou as longas pernas sob o corpo para poder sentir-se mais perto dele.
Com a outra mão, alisou a boca e o maxilar dele, afastando o ar severo. Ele
estremeceu violentamente ante o toque dela, e puxou-a para os seus braços.
Esmagando-a contra si, a dor que infligia era uma doce ferroada de amor. O beijo
duro e exigente era quase cruel, pela falta de autocontrole. Brig marcou sua
propriedade nos lábios dela antes de aliviar a pressão para permitir uma resposta.
O martelar do seu coração parecia perfurá-la, até que o coração dela estivesse
trovejando tão alto quanto o dele. Jordanna exultava com o motivo da brutalidade
dele. Sua declaração deixara-o exposto à dor e à mágoa. Permitira que ela visse
sua vulnerabilidade e dera-lhe o poder de deixá-lo de joelhos. Porém, não era assim
que ela o queria. Tremendo com a beleza da sua dádiva, Jordanna deu-lhe beijos
leves e cheios de adoração nas pálpebras, na face e no maxilar.
— Costumava ter esse bolsão doloroso de vazio dentro de mim — disse
Jordanna num sussurro latejante, curtindo a aspereza da face dele contra seus
lábios sensíveis. — Às vezes, ele ficava tão grande que eu queria enfiar-me na sua
solidão e morrer. A satisfação física nunca o preenchia. Então, conheci-o na festa.
O vazio ficou cheio de tantas sensações, emoções e sentimentos, que extravasou.
Você era um estranho total, eu nem sabia o seu nome. Procurei-o por toda parte,
depois, mas você tinha sumido.
— Eu pensava que tinha acabado de fazer amor com a amante do meu
anfitrião. — Brig ergueu a cabeça para deixar seu olhar percorrer o rosto dela. Sua
mão acariciava a curva esguia do pescoço dela, um dedo acompanhando o latejar
forte da pulsação na concavidade da garganta. — Não teria feito nenhuma
diferença, se tivesse sabido que você era a filha dele. Não é uma coisa aceitável de
se fazer, na sociedade educada, tomar o dinheiro de um homem e sua filha. — Sua
boca retorceu-se, escarnecendo de si mesmo. — Só o que pretendia fazer era
beijá-la, mas perdi o controle. Quando voltei a me controlar, não fiquei muito
orgulhoso de mim mesmo. Deus sabe que tentei esquecê-la.
Jordanna contornou com o dedo o lábio superior, cruelmente fino, e o inferior,
sensualmente grosso. Uma pontada de dor a percorreu.
— Aquela moça no bar... o ajudou? Trudie?
A pausa ficou tão longa que ela teve que erguer o olhar para ele, que a fitava
firmemente.
— Sim. — A honestidade dele doía, mas era um sinal do seu amor o fato de
não enganá-la. — Teve tanto êxito quanto uma xícara de chá de água num incêndio
na floresta. Você teve ajuda?
Jordanna fez um breve sinal negativo com a cabeça.
— Já não podia aceitar mais nada que não fosse o melhor — admitiu. —
Estava quase convencida de que jamais o veria de novo.
— Nunca perguntou quem eu era? — indagou Brig, erguendo curiosamente a
sobrancelha.
— Comecei a perguntar a Olivia. — Jordanna lembrou-se do doloroso engano
que havia cometido. Não queria conversar sobre aquilo. Haveria outras horas para
lavar a roupa suja da família. — Mas, como é que se diz... "havia um estranho que
fez amor comigo, sabe quem ele era?"
O sorriso semizombeteiro que ela exibia começou a desaparecer, quando os
dedos dele habilmente se puseram a desabotoar-lhe a blusa. Sua pele começou a
ficar quente, na expectativa das carícias dele. A boca do homem tocava as curvas
dos seus lábios, roçando-lhes o contorno, o calor do seu hálito misturando-se ao
dela.
— Que eu me lembre — murmurou Brig —, o estranho tinha muito menos
roupas com que lidar.
Afastou a blusa dos ombros dela, deixando que Jordanna livrasse os braços
das mangas.
— Acho que tem razão. — O coração dela estava com o ritmo alterado,
acompanhando sua respiração ofegante, apressando-se e deslizando pelas suas
costelas como uma pedra que pulasse por cima da superfície de um lago.
Enquanto sua boca continuava a excitar-lhe os lábios, Brig enfiou uma das
mãos sob a fazenda grossa da parte de cima da roupa íntima dela. A aspereza da
palma calosa era agradável contra a maciez de sua barriga. Ela foi percorrida por
tremores suaves ante a carícia provocante.
— Será que um homem que a ama vai ter um pouco de cooperação ou vai ter
que lutar sem ajuda? — Sua boca seguiu a curva do maxilar da moça para dar-lhe
uma mordida sensual no lobo da orelha, num castigo simulado. O gesto provocou
em Jordanna uma exclamação abafada de puro prazer.
— Adoraria que você me despisse. — O tom roufenho da voz dela revelava a
confusão que ele estava criando nos seus sentidos. — Mas, dadas as
circunstâncias... — As palavras foram sumindo, por serem desnecessárias.
Por consentimento mútuo, afastaram-se para despir-se, sentados diante do
fogo. Um observava o outro descartar-se das camadas de roupas. Jordanna
examinava a luz da fogueira que brincava no rosto de Brig. A luz bruxuleante
parecia suavizar os ângulos das suas feições. Ou seria o amor, perguntou-se,
ardendo naqueles olhos escuros, que tinha derretido a dureza?
Brig estava demorando mais a se despir do que ela, embora nenhum dos dois
estivesse se apressando. Enquanto ela puxava os longos calções joelhos abaixo, o
olhar dele abria uma trilha de fogo do quadril até o fim da coxa dela. Ele fez uma
careta, cerrando os dentes contra a súbita pontada de dor que acompanhou sua
tentativa de baixar a calça. Brig rapidamente a disfarçou, mas Jordanna já tinha
visto o rápido clarão dos dentes brancos contra a escuridão do bigode.
— Deixe-me ajudá-lo. — Ficou de joelhos, sem sentir o chão arenoso sob
eles. — Tive uma certa prática disso, na noite passada.
Sem discutir, Brig deitou-se em cima do casaco, cruzando as mãos atrás da
cabeça, para formar um apoio. O sorriso dela tremia com a intimidade erótica
daquele momento. Com cuidado, Jordanna passou as roupas por cima da ferida
envolta na atadura. Era difícil concentrar-se sob a inspeção perturbadora do olhar
dele, fitando os movimentos naturalmente graciosos do seu corpo nu.
Quando ele ficou sem roupa, Jordanna sentou-se sobre os calcanhares
descalços, junto dos joelhos dele. Buscou-lhe os olhos, sentindo aquela deliciosa
incerteza, que só vem com o amor. Brig estendeu a mão na direção dela, os olhos
quentes e mandões. Hesitante, ela segurou a mão dele, cujos dedos fortes se
entrelaçaram nos seus. Com a facilidade de um homem grande, ele puxou-a para
junto de si, deitando-a ao comprido, a seu lado.
Uma mão habilidosa começou a acariciar-lhe o corpo, languidamente
estimulando-lhe a carne, que não necessitava de muito incentivo para reagir a seu
toque. O forro de pêlos do casaco dele estava debaixo dela, mas Jordanna estava
mais cônscia do contato quente do seu corpo duro. Buscando-lhe a boca, Brig se
virou de lado. Os pêlos escuros do seu peito fizeram cócegas nos seios sensíveis
da moça. O tormento delicioso arqueou-lhe o corpo mais para perto, até que a
parede sólida do peito dele achatou os seus seios e os cabelos crespos roçavam-na
até a barriga.
A respiração dele ficou mais rápida, como a dela, quando ele ajeitou seu corpo
sobre o da moça. As mãos e a boca do homem arrancavam dela gemidos de
prazer. A reação de Jordanna estimulava-o, e ele deixava os sentidos dela tontos. A
necessidade urgente de sua forma máscula, impetuosa, comunicou-se a ela, que
sentiu uma dor dentro de si, em resposta, excitante e avassaladora. Era uma
descoberta extática: não apenas amar, mas também ser amada.
As unhas dela, como as de uma gata, enterraram-se nos ombros rígidos dele,
enquanto a boca de Brig abria a fogo uma passagem por seu pescoço abaixo, e
seguia o vale natural entre os seus seios, até a barriga. A língua dele traçou um
círculo quente em volta do umbigo dela. Jordanna mordeu o lábio inferior para
conter o gemido de puro prazer.
— Não se prenda — ordenou Brig, com voz rouca. — Grite, se tem vontade.
A boca do homem roçou os bicos tenros dos seus seios, depois lambeu um
deles. A sensação deliciosa desceu até as pontas dos pés dela, e Jordanna não
dominou o gemido selvagem de êxtase que lhe escapou da boca. A mão dele
deslizou-lhe pela parte interna da coxa, e Jordanna se moveu de encontro a ela. As
mãos dela, que o acariciavam, sentiram-lhe os músculos tremer sob seu toque.
Curtiu o som do seu nome, as palavras de amor que ele murmurava. Brig gemeu de
desejo trêmulo enquanto jogava o peso sobre o corpo dela, imobilizando Jordanna
em cima da jaqueta. Esmagou a boca da moça numa exigência viva, e ela
envolveu-lhe os quadris com as pernas, perdida nos apelos sensuais do ato de
amor completo.

Capítulo XXIII

Jordanna jazia nos seus braços, de frente para ele, os dedos traçando-lhe o
contorno das feições duras. Sua carne fora acalmada pelo ato de amor, mas sua
alma ainda alçava voo nas asas do amor dele. Uma perna áspera e masculina
estava enganchada nos seus joelhos para mantê-la junto dele, enquanto uma mão
brincava, distraída, pela curva da sua cintura e do seu quadril. Os olhos dele eram
um veludo marrom, deslizando sobre cada detalhe do rosto dela.
— Jamais compreendi por que as mulheres sempre querem conversar depois
de fazer amor. — A voz dele continuava baixa e sedutora.
— O que você queria fazer? — perguntou Jordanna, deixando que a ponta de
um dedo seguisse o contorno sensual do seu lábio inferior, gostando de ver sua
boca formar palavras.
— Na maioria das vezes escutava os comentários e perguntas delas,
enquanto tentava descobrir um jeito de me mandar daquela cama — admitiu Brig,
sem remorso. — Caso contrário, ou queria rolar para o lado e dormir, ou queria
fazer amor de novo.
— O que quer fazer agora? — A pergunta dela era ligeiramente ofegante e
perfeitamente séria.
O olhar de Brig era escuro e solene.
— Só quero que saiba quanto adoro fazer amor com você, e como é gostoso
estar dentro de você. É simplesmente impossível para você saber o que é sentir os
seus seios de encontro à minha pele, ou a emoção que sinto ao saber que está tão
loucamente excitada quanto eu.
— Aposto que as minhas sensações são comparáveis — contestou Jordanna,
alegremente, à implicação dele de que a intensidade era unilateral.
— É mais do que isso. — Brig se recusava a levar a coisa na brincadeira. —
Há um prazer tranqüilo em tê-la cavalgando a meu lado pelas montanhas, uma
alegria oculta em partilhar com você a grandiosidade do cenário, e uma satisfação
indescritível em sentar com você diante da fogueira de um acampamento. É a sua
companhia que me agrada, Jordanna. A gratificação sexual que seu corpo oferece
tornou-se uma vantagem adicional.
O amor brilhava nos olhos dela, que pareciam pedras preciosas verdes.
— E você falou que não era bom com as palavras.
— Não sou. — Ele franziu as sobrancelhas escuras. — Se fosse, acharia
alguma maneira fácil de pedir-lhe para casar-se comigo, sem sentir que estava
tropeçando em alguma frase formal, tão usada que perdeu seu significado.
— Teria orgulho em me casar com você, Brig McCord. Nem precisa me pedir.
— A voz dela tremulou de tanta emoção.
Brig beijou-a com força, selando a promessa mas refreando sua paixão. Um
sorriso enviesou-lhe a boca, enquanto se afastava e soltava um suspiro.
— Acho que terei que construir um alojamento para os meninos, para
podermos encher os quartos do andar de cima com crianças.
Crianças, pensou Jordanna, de olhos castanhos e cabelos castanho-escuros.
Teve vontade de abraçar as imagens bem junto ao peito. Podia ver uma pequena
versão de Brig andando atrás do pai, enquanto este cruzava o quintal da fazenda.
Podia até ver a si mesma de pé na varanda da casa de toros, observando os dois.
Olhou para Brig, sem se dar conta do resplendor sereno da sua expressão.
— Podemos estar começando uma família antes do que você imagina, graças
à sua virilidade e ao fato de que as minhas pílulas estão no acampamento —
admitiu, bem feliz.
As narinas dele se dilataram, numa inspiração rápida; depois, deslizou a mão
protetoramente sobre a barriga dela. Com um gemido, enterrou o rosto na curva do
pescoço comprido. O aperto das mãos que a abraçavam era ferozmente suave.
Jordanna lembrou-se de que o lobo partilhava igualmente com sua fêmea a
responsabilidade de criar os filhotes. Levou vários minutos para os leves tremores
do corpo dele cessarem e ele se afastar.
— Ouça, Jordanna. — A mão dele tremia de leve ao alisar-lhe o cabelo para
trás da orelha. O ar severo e sério nos olhos dele era vagamente assustador. —
Amanhã Jocko sairá à nossa procura. Vai saber que há algo errado quando não
voltarmos hoje para o acampamento. Se eu tiver sorte, acharei Jocko antes de seu
pai me encontrar.
A realidade desabou sobre a beleza imaculada do seu amor. No meio do
encantamento, Jordanna havia se esquecido momentaneamente das suspeitas que
Brig tinha sobre seu pai, e da sua própria confusão em relação a elas.
— Não. — Rejeitou o assunto da conversa deles, não querendo que nada
estragasse os momentos preciosos que estavam compartilhando. — Não quero
falar nisso. — Desviou o olhar, focalizando-o na lã cor de marfim do forro interno da
jaqueta dele, sobre a qual estavam deitados.
— Temos que falar — insistiu Brig, e continuou: — Quando eu partir, pela
manhã, quero que você fique aqui, onde estará a salvo.
— Não!
Brig fingiu não ouvir.
— Tenho o papel do meu maço de cigarros. Desenharei um mapa para
mostrar onde fica a cabana... se alguma coisa me acontecer, eles poderão
encontrá-la.
— Nada vai lhe acontecer! — negou ela violentamente a possibilidade. Era
uma negativa dupla... tanto uma crença de que ele estava errado sobre o pai dela
quanto uma súplica sentida de que o destino não seria tão cruel a ponto de tirar-lhe
Brig tão cedo.
O olhar de pena dele por sua descrença continuada era difícil de esconder.
— Se eu puder evitar, não vai mesmo. — Acariciou-lhe a face com um dedo.
— Nunca tive mais motivos para viver do que agora.
— Pare com isso! — Jordanna engasgava com as palavras. — Você cometeu
um erro sobre papai. Confundiu as coisas, não sei como.
— Pelo seu bem, gostaria que fosse assim — falou, com voz pesada.
— Nós o encontraremos amanhã. E ele vai explicar tudo.
— Você vai ficar aqui na cabana — repetiu Brig. — Não quero correr o risco de
que possa sair ferida.
— Papai jamais me machucaria. Isso é um absurdo! — negou.
— Não deliberadamente, é verdade — concordou. — Mas um disparo rápido,
uma má pontaria, uma bala perdida, ricocheteada... Não, existem possibilidades
demais. Enquanto eu souber que você está aqui e a salvo, só terei que me
preocupar comigo mesmo. — Brig ignorou o protesto na expressão dela. — Vou me
certificar de que você tenha lenha o bastante, e prepararei algumas armadilhas
antes de partir, amanhã. Se ninguém vier buscá-la até depois de amanhã, toque
fogo na cabana. Alguém certamente verá a fumaça e virá investigar.
— Não! — Ela rejeitou, zangada, a sugestão dele, os olhos faiscando com
lágrimas de dor não derramadas. — Não vou ficar aqui sem você. Se for embora
amanhã, vou junto.
— Que merda, Jordanna, escute o que digo! — Sacudiu-a com força. — Estou
tentando fazer o que é melhor.
Uma imobilidade tomou conta dela, fortalecendo sua determinação.
— Não vou ficar aqui sozinha, e você não pode me obrigar, Brig. Ou vou
embora com você, ou vou segui-lo. Não vou ficar para trás.
Uma sobrancelha arqueou-se, indagadoramente, e o olhar dele tornou-se
estreito e profundo.
— Por quê? — quis saber.
— Porque... — ela não tinha certeza do motivo.
— ...porque não está absolutamente certa de que eu esteja errado sobre seu
pai. É isso, não é? — Havia uma satisfação sombria na sua conclusão, e Jordanna
fraquejou, insegura.
— Eu... não sei se está ou não. — A admissão era assustadora. Conhecera o
pai a vida toda. No entanto, amava aquele homem. Era uma situação que puxava a
confiança e a lealdade dela em duas direções diferentes. Sentia-se aprisionada
entre dois imãs igualmente poderosos. — Não vou ficar para trás, Brig — insistiu
Jordanna, outra vez. — Não me peça isso.
— Não está vendo, Jordanna? — A boca do homem se retorceu num sorriso
de pesar. — Não quero que fique presa numa situação em que tenha que escolher
entre nós.
Um grito mal abafado escapou-lhe da garganta. Imediatamente, foi envolvida
pelos braços dele. Agarrou-se a ele, precisando do seu conforto e de sua força.
Começou a chorar baixinho, e Brig beijou as lágrimas que umedeciam suas faces.
Como que de longe, ela ouvia as palavras dele, jurando seu amor e sua vontade de
poupá-la. Quando seu rosto ficou seco, Jordanna começou a retribuir os beijos que
Brig derramara sobre ela. Sua resposta teve um efeito catalítico, produzindo uma
tempestade de paixão que só passou depois que a fúria se dissipou.
Brig acordou antes de Jordanna, na manhã seguinte. Ela sabia que, se não
tivesse acordado logo, ele teria partido sem ela, mas não lhe deu essa chance. Brig
tentou mais uma vez persuadi-la a ficar onde era seguro.
Postou-se diante dele, num desafio teimoso.
— Vou com você. Aconteça o que acontecer... se alguma coisa acontecer —
corrigiu-se apressadamente —, quero estar presente.
Brig ficara zangado, mas não tivera meios de forçá-la a ficar. Partiram da
cabana em meio a um silêncio sombrio. Ele mancava, prejudicado pelo ferimento. A
insistência de Jordanna de que deviam alternar-se, abrindo uma trilha pela neve, foi
algo que aceitou de muito mau grado. A lógica fazia com que concordasse com a
proposta dela, mas o orgulho exigia que fosse na frente.
Novamente o céu mostrava-se claro e o sol brilhante, mas a temperatura
estava fria. A neve, que em alguns lugares chegava a trinta centímetros, não dava
sinal de se derreter à luz do sol. A respiração deles eram nuvens de vapor,
precedendo cada passo dado com esforço, através do pó branco.
A rota que Brig escolhera não era fácil. Paravam com freqüência para
descansar, sem permitir que a transpiração se congelasse de encontro à pele. Já
tinham andado vários quilómetros, quando Jordanna se deu conta de que Brig não
tinha traçado um curso direto para o acampamento. Por uma fração de segundo,
pensou que ele pudesse estar desorientado, que talvez uma febre pudesse ter
afetado seu estado mental. Um instante depois, adivinhou o motivo dele para
escolher aquele caminho sinuoso através do terreno mais árduo. Brig estava
evitando o pai dela. As paradas para descanso eram programadas para ocorrerem
em lugares privilegiados, de onde ele pudesse observar o terreno à frente. A rota
era ditada pela coberta que oferecia: árvores, rochas ou arbustos. Jordanna queria
gritar contra a necessidade de tanta cautela, mas estava menos certa do que jamais
estivera antes.
Os rastros de animais abundavam na neve, mas não havia um só sinal de
passagem humana, exceto a deles. Pareciam sozinhos nas montanhas, tendo
apenas o vento dançando sobre a neve e sombras de nuvens flutuando pelas
encostas. A solidão não incomodava Jordanna, somente a desconfiança de Brig,
que parecia aumentar à medida em que o terreno ficava mais familiar e eles se
acercavam do acampamento. A desconfiança era quase tangível. O olhar dele era
inquieto, nunca parava, sempre buscando. A vigilância era extraordinária, como se
cada um dos seus sentidos estivesse aguçadíssimo. Essa sensação fazia
estremecer os terminais nervosos de Jordanna. Lembrava-lhe um animal que
pressentisse o perigo sem saber de que direção ele o ameaçava.
Apoiando-se num pedregulho frio, Jordanna protegeu os olhos do sol. Um ar
frígido enchia-lhe os pulmões, a cada respiração. Seu olhar se dirigiu para Brig. Não
haviam trocado uma só palavra nos últimos dois quilômetros. O acampamento não
estava a mais de uns três quilômetros de distância. Brig examinava o terreno,
tomando cuidado para não ficar recortado contra o céu. Jordanna ouviu-o praguejar
baixinho.
— O que foi? — perguntou ela, prendendo a respiração.
Seu olhar, de banda, foi impaciente e irritado.
— Esperava que Jocko estivesse nesta área. Parece que raciocinei errado.
Quando ele se virou para manquejar até onde ela estava, Jordanna viu a
mancha escura e molhada na calça Levis dele.
— O ferimento abriu. Está sangrando de novo — acusou.
— Conte-me alguma coisa que eu já não saiba... onde está seu pai... ou Jocko
— disse ele, bruscamente.
— Se soubesse onde está qualquer um dos dois, eu lhe diria — retrucou
vivamente Jordanna, e deu meia-volta, afastando-se dele.
Seus ombros foram capturados pelas mãos enluvadas dele e puxados para
trás contra o seu peito. O gesto súbito derrubou-lhe o chapéu da cabeça. O vento
soprou-lhe a cabeleira, enquanto o chapéu caía na neve. Jordanna resistiu a seu
aperto de ferro por um instante. Então, sentiu-lhe o rosto magro de encontro aos
cabelos.
— O sol está de novo nos seus cabelos — murmurou Brig. — Gostaria que
tudo isso já tivesse passado e estivéssemos de volta à nossa cama na fazenda. —
O pedido de desculpas que não conseguia verbalizar estava nas palavras
amorosas.
— Eu também — concordou ela, fervorosamente. — E nós vamos rir desse
mal-entendido quanto a papai.
Ele suspirou pesadamente ante essa frase e ergueu a cabeça.
— Vamos. — Empurrou-a para diante. — Está na hora de nos mexermos de
novo.
— Mas este não é o caminho para o acampamento — protestou Jordanna,
quando percebeu a direção que estavam tomando.
— Não podemos ir por ali. Não há nenhuma cobertura. Ficaríamos expostos
demais a... Ficaríamos expostos demais. — Brig não corrigiu a frase com rapidez
suficiente, e Jordanna percebeu como ele pretendia terminá-la. Estariam expostos
demais a um atirador de fuzil. Ele não acreditava, por um minuto, que algum dia
iriam rir daquilo tudo. A certeza dele a assustava. — Iremos por aqui — falou Brig.
Jordanna apanhou seu chapéu e olhou na direção que ele indicara. O terreno
era duro e ameaçador. Rochas varridas pelos ventos, brilhando como cristais
gelados. Aquilo significava subir mais alto e com equilíbrio precário.
— Você não vai conseguir, Brig. Não com essa ferida. — Era uma simples
afirmação.
— Tenho que conseguir — disse, dando de ombros levemente, enquanto dava
um passo adiante, quase arrastando a perna esquerda.
— Já está sangrando — ressaltou Jordanna de novo. — Quanto sangue acha
que pode perder antes de desmaiar?
— Vou ter que descobrir, não é? — Um humor negro retorceu-lhe a boca.
— Não. Eu posso ir daqui ao acampamento, e não vai fazer mal se eu estiver
exposta — raciocinou. — Lá haverá cavalos extras. Você fica aqui, e virei buscá-lo
a cavalo.
Esperou que Brig fosse discutir. Mas ele a examinou por um instante, depois
acenou com a cabeça, afirmativamente.
— Está certo. Espero aqui por você.
Em vez de ficar aliviada, Jordanna ficou preocupada com a facilidade com que
ele aceitou sua sugestão. Aquilo significava que a perna dele o estava
incomodando bem mais do que deixara transparecer.
— Andarei depressa — prometeu ela.
O olhar dele ficou subitamente muito intenso.
— Basta chegar a salvo, Jordanna. — O couro frio dos dedos enluvados
segurou-lhe o queixo e ergueu-o de encontro à cabeça inclinada dele. Sua boca
possuiu duramente os lábios da moça, tomando-os com ferocidade, como se
pudesse ser a última vez. O medo varreu Jordanna, e ela se agarrou a Brig até que
ele a afastou de si com firmeza. — Estarei à sua espera.
— Vou voltar — sussurrou ela, sentindo-se quase em lágrimas.

Sentiu o alívio inundá-lo, quando Jordanna subiu a crista gelada da montanha


e começou a descer a encosta. Longe dele, estaria segura. Brig foi mancando para
junto da crista e sentou-se de maneira a poder ver por cima da elevação. Envolveu
a perna esquerda com neve, os flocos brancos ficando carmesim à medida em que
se manchavam com seu sangue. Dali a alguns minutos, a compressa gelada
começaria a entorpecer-lhe a perna latejante e, esperava ele, a diminuir o fluxo do
sangue.
A perda de sangue e a fome o haviam enfraquecido mais do que esperava.
Precisava desesperadamente daqueles minutos adicionais de descanso para
conservar as forças que lhe restavam. Ficou vendo Jordanna atravessar o platô
deserto até sumir de vista. Jamais se sentira tão só na vida. Afastou com firmeza o
vazio doloroso e correu os olhos pelas colinas rochosas que o circundavam.

Impelida por uma urgência que era mais profunda do que uma simples
preocupação pelo ferimento de Brig, Jordanna forçou-se a seguir em frente, sem
parar para descansar. A certa altura, um coelho atravessou desabaladamente o seu
caminho, mas foi a única coisa viva que viu.
O acampamento parecia deserto, quando ela chegou, cambaleante e
cautelosa. Um cavalo relinchou, das estacas onde estavam amarrados os animais.
Inspirando um hausto gelado, Jordanna dirigiu-se para a barraca grande, onde os
equipamentos sobressalentes eram guardados. Ao erguer a aba da barraca, sentiu
imediatamente o calor do fogão de pastor envolvê-la. Na penumbra, algo se mexeu.
— Jordanna!
A voz foi instantaneamente reconhecida.
— Kit! — exclamou o nome do irmão, rindo com uma espécie louca de alívio.
— Meu Deus, onde você esteve? Ficamos malucos de preocupação por causa
de vocês — acusou o irmão, saltando num pé só na sua direção. — Jocko saiu para
procurá-los. Encontrou-a? Onde estão papai e Brig?
— Esqueci o seu tornozelo. Como está? — Considerando tudo o que
acontecera desde o acidente dele, não era de surpreender. Então deu-se conta da
banalidade da pergunta, e logo a seguir percebeu, instantaneamente, o que ele
perguntara. — Papai não está aqui? — Brig tivera razão quando insistira em que o
pai não voltaria para o acampamento. Sobre o que mais teria razão?
— Não. — Kit franziu o cenho. — Não está com vocês?
— Não. Nós... nos separamos — explicou, sem graça.
— A neve caiu com muita força, durante algum tempo. — Parecia preocupado.
— Você está bem? Há café no fogão. Deve estar com fome. Jocko preparou um
pouco de ensopado. Venha ficar aqui junto do fogão, para se aquecer. Deve estar
semicongelada, a essa altura.
— Não, agora não. — Resistiu à tentativa dele de rodear-lhe os ombros com
os braços e levá-la mais para dentro da barranca. — Preciso ir embora. Vim só
buscar as rédeas e a sela, se tiver alguma. Brig está ferido. Tenho que voltar para
junto dele.
— Está ferido? — Kit mudou imediatamente de direção, manquejando para
junto do seu casaco e do chapéu. — Vou com você. A coisa é feia? O que
aconteceu?
Jordanna gostaria que ele não a bombardeasse com perguntas. A exaustão e
a fome tornavam difícil para ela pensar com clareza, naquele momento. Agora,
havia mais confusão quanto ao papel do pai naquilo tudo.
— É a perna dele. — Dirigiu-se rapidamente para as rédeas arrumadas num
canto. Só havia uma sela. Também a apanhou, jogando-a por sobre o ombro.
— Ele a quebrou? — O irmão apareceu a seu lado, para aliviá-la das rédeas.
— Não. — Jordanna hesitou, mas depois admitiu: — Brig levou um tiro. Tem a
idéia ridícula de que foi papai quem atirou. — Riu tremulamente, torcendo para que
Kit a acompanhasse.
— Oh, meu Deus! — gemeu o rapaz, e a dor lhe perpassou pelo rosto.
A reação dele a assustou.
— É gozado, não é? — perguntou Jordanna. — É tão impossível que...
— Por quê? Brig sabe por quê? — interrompeu o irmão.
— Ele disse... que é porque ele sabe que papai matou Max. Isso não é
verdade, é claro — acrescentou rapidamente, e sentiu uma onda de náusea na
barriga, ao ver a expressão de Kit. — Não é. Você não acredita nele, não é?
— Brig sabe como Max foi morto? — Uma tristeza severa repuxava-lhe as
feições.
— Ele me mostrou uma sarça que achou debaixo da sela. — Uma sensação
fria de terror a inundou. Era tudo um pesadelo, e Jordanna queria
desesperadamente acordar. Saiu da barraca para o sol forte. O irmão vinha
mancando a seu lado.
— Eu me perguntava... eu esperava... — Kit sacudiu a cabeça, sem conseguir
terminar nenhuma das duas frases. Seus ombros se encurvaram, enquanto ele
fechava os olhos e apertava fortemente os lábios.
— Por quê? — A pergunta explodiu dos lábios de Jordanna. — Por que papai
iria querer matar Max? Que motivo teria? Brig não me pôde dar nenhum. Você
pode?
— Eu tinha medo de que alguma coisa assim fosse acontecer — murmurou Kit
em voz alta. — Pensei que, se viesse junto, poderia impedi-lo. Queria tanto
acreditar que fosse um acidente... simples coincidência.
— Mas por quê? — ela exigia que ele respondesse. Se o irmão viera junto
porque suspeitava de que alguma coisa pudesse acontecer, então ela tinha que
saber por quê. Ao se acercarem das estacas, um cavalo virou a cabeça para
observar a aproximação deles.
— Não adivinha, Jordanna? — O ar triste e cínico estava de volta aos olhos
escuros. — Era mamãe.
— Max... era o seu amante mais recente? — adivinhou Jordanna, e Kit acenou
com a cabeça afirmativamente. — Mas isso não explica por quê — argumentou.
Sem dúvida não é o primeiro amor de Livvie. E papai não matou nenhum dos
outros. Então, por que destacar Max dentro de uma infinidade?
— Mamãe ia deixá-lo por causa de Max... tão logo Max conseguisse vender
aquelas ações para papai. Não podia divorciar-se de papai em Nova York, assim
voaria para o México ou para Nevada, ou para algum lugar em que conseguisse
obter sua liberdade. Não era para papai saber. Mas ela perdeu a paciência, certo
dia, e disse-lhe o que tencionava fazer. Menos de uma semana depois, surgiu essa
história de Max participar da expedição de caça. Mamãe ficou nervosa... chorando.
Jurou para mim que não havia mencionado o nome de Max, porém há anos que
papai mandava segui-la. Pode dar nomes, datas, locais. Não havia chance de que
não soubesse que Max era o amante dela.
— Está tentando convencer-me de que papai matou Max porque Livvie ia
pedir divórcio por causa dele? — Jordanna sacudiu a cabeça, confusa. — E por que
papai se importaria? Olhe o que ela fez com ele, como o tratou.
— Olhe como ele a tratou.
— Papai tentou dar-lhe tudo o que ela sempre quis. — Pousando a sela no
chão, ela alisou o coxim sobre as costas de um cavalo baio.
— Exceto ele próprio. Sabe por que eles têm quartos de dormir separados? —
perguntou o irmão, dando a resposta antes que Jordanna abrisse a boca. — Ele
saiu do quarto dela pouco depois de você ter nascido, quando os médicos a
informaram de que não poderia mais ter filhos. A única função dela passou a ser a
de um enfeite para decorar a casa dele. As pessoas podiam tocá-la e admirá-la,
mas não podiam tirá-la dele. Papai esmagava quem quer que tentasse isso,
inclusive Max, imagino.
Jordanna sentiu aversão pela imagem que Kit estava pintando.
— Você faz papai parecer tão... insensível. Ele não é assim. — Colocou a sela
no cavalo. Todos os movimentos dela eram inconscientemente automáticos.
— Já tentei explicar-lhe antes — disse Kit, pacientemente. — Você apenas via
o que papai queria que visse. Veja eu, por exemplo. Você pensava que me
conhecia, mas nunca me conheceu, absolutamente, caso contrário teria adivinhado
que Mike era meu amante, não meu companheiro de apartamento.
— Pobre Max! Papai nunca pretendeu comprar aquelas ações. Estava apenas
dando-lhe corda — percebeu Jordanna, murmurando em voz baixa o pensamento.
O irmão fornecera o motivo. Agora as provas contra o pai eram fortes demais para
que Jordanna ainda pudesse negar sua culpa. A desilusão era uma coisa amarga,
dolorosa. — Mas por que não ficou satisfeito só em arruinar Max?
— A ganância de Max era bem maior do que o seu orgulho. Mamãe lhe contou
sobre o contrato de casamento que assinara há anos. Papai foi muito generoso nas
cláusulas contratuais que fez para ela, no caso de uma separação legal ou de
divórcio — explicou Kit, secamente. — Era um caso de amar mamãe e o dinheiro
dela. Papai não podia comprar Max para que se afastasse... ou arruiná-lo
financeiramente... sendo assim, providenciou o "acidente". Eu quase acreditei que
tinha sido acidente... mesmo sabendo de tudo isso.
Com a cilha apertada, ela soltou o estribo do arção da sela e deixou-o pender.
Quando se moveu para junto da cabeça do cavalo, Kit automaticamente entregou-
lhe uma rédea. Jordanna não tirou o cabresto, enquanto forçava o freio de metal
entre os dentes do cavalo e passava a cabeçada por cima das orelhas. Estavam
falando de um homem que ela considerara a vida toda como pai, e no entanto se
tornara subitamente um estranho completo, um homem perigoso, que a assustava.
— Mamãe devia tê-lo deixado há muito tempo. — Jordanna afivelou a tira do
focinho. — Por que não o fez?
— Tinha medo. Conhecia a extensão do poder de papai. Ele deixava que ela o
visse com bastante freqüência — comentou o irmão, e foi para junto do animal de
carga amarrado ao lado do baio. — Se ela o tivesse deixado, papai a teria arruinado
socialmente. Sem dúvida, dinheiro não lhe faltaria, mas ele tomaria providências
para que ela fosse boicotada pelo mundo que conhecia, desprezada pelos amigos.
Ela tinha medo de ficar sozinha, sabendo que papai usaria de todos os meios a seu
alcance para arruinar qualquer felicidade que ela pudesse encontrar nos braços de
outro homem. E então Max apareceu e convenceu-a de que, juntos, poderiam
enfrentar qualquer coisa. O amor deu-lhe coragem.
O olhar arregalado de Jordanna buscou o rosto do irmão.
— Agora, Max está morto. — Sentiu piedade da mãe, compaixão pela
provação que fora o seu casamento. — Você sempre foi ligado a ela, Kit. Devia ter
ido para Nova York, para estar com ela agora.
— Talvez — admitiu. — Mas não confiava em papai. Achei que ele poderia
voltar para cá, para tentar encobrir alguma prova. Precisava saber se ele era
responsável pela morte de Max. Não poderia enfrentar mamãe sem saber com
certeza uma coisa ou outra — concluiu, entregando-lhe a segunda rédea.
Um arrepio gelado correu pela espinha de Jordanna.
— E voltou mesmo para encobrir provas, Kit. A única razão pela qual Brig não
contou a ninguém o que suspeitava foi porque não conseguia achar um motivo. Nós
sabemos o motivo. Papai provavelmente pensa que contei a ele. — O medo
reduziu-lhe a voz a um sussurro abafado. — Ele vai tentar matar Brig, não vai?
A linda boca de Kit ficou mais severa. Depois de um instante de hesitação,
moveu a cabeça breve e afirmativamente.
— É a única explicação.
— Ele esteve nos caçando. — Jordanna forçou-se a aceitar o fato. — Caçando
Brig. Brig perdeu o fuzil na tempestade. Está ferido. Não terá chance, se papai o
encontrar.
A fraqueza da exaustão e da fome deixou-a, de roldão. Todos os seus
movimentos passaram a ser ditados pela necessidade da pressa. Prendeu a rédea
na besta de carga e tirou a última rédea das mãos de Kit.
— Volto já. — Kit começou a se afastar, depois parou. — Encontre-me na
barraca.
Jordanna não sabia por que o irmão ia voltar, mas aquela era a última das
suas preocupações, no momento. Com os três cavalos arreados, soltou as amarras
que os prendiam às estacas e pulou sobre o lombo nu de um dos animais de carga.
Puxando os outros dois, levou os cavalos até a barraca.
Quando Kit apareceu, trazia um fuzil na mão.
— Podemos precisar disto.
Jordanna entregou-lhe as rédeas do cavalo selado e não fez nenhum
comentário sobre as palavras dele. Sem esperar que o irmão montasse, pôs em
movimento seu próprio cavalo. O calor que vinha dos pêlos do animal aquecia-lhe
as pernas.

Quanto mais Brig examinava os rastros deixados por Jordanna na neve, mais
preocupado ficava. Se Fletcher deparasse com aquela trilha, seria conduzido
diretamente a ele. Precisava de um lugar que o escondesse mais, porém de onde
enxergasse aquele local, para poder fazer sinal a Jordanna quando ela voltasse.
Correu os olhos pelo terreno que haviam percorrido para chegar àquele ponto.
Havia um bosque de pinheiros às suas costas. No meio dele, um monte de árvores
caídas e emaranhadas. Parecia mais seguro do que o amontoado de pedras que o
cercava. Balas em ricochete poderiam fazê-lo em pedaços, se atingissem aquelas
rochas, enquanto a madeira caída as absorveria.
Raspando a neve do ferimento, viu que parara de sangrar, mas os músculos
entorpecidos e doloridos tinham começado a se enrijecer. Pôs-se de pé
dolorosamente, dando com dificuldade os primeiros passos. O vento soprava
fortemente na frente das árvores. Quase tinha conseguido apagar os rastros
anteriores deles. Brig dirigiu-se com cuidado para as árvores caídas, tentando
caminhar apenas onde a neve estava fina, a fim de deixar menos rastros para
Fletcher seguir.
Na primeira árvore, deu uma parada. Apoiou-se nela para tirar um pouco de
peso da perna esquerda. A casca perto de sua cabeça explodiu, enchendo-lhe de
estilhaços a face. Brig jogou-se no chão coberto de neve, enquanto o tiro de fuzil
ecoava pelas montanhas. O coração lhe martelava dentro do peito. Arrastou-se de
bruços para as árvores caídas.

Capítulo XXIV

— Escutou isso? — perguntou Jordanna, freando vivamente o cavalo e


olhando, preocupada, para Kit.
O irmão tinha parado seu cavalo ao som do disparo de fuzil. Inclinava a
cabeça num ângulo de quem escutasse.
— Jocko disse que dispararia duas vezes, se os encontrasse.
Um segundo tiro não seguiu o primeiro. O significado disso fez Jordanna
inspirar vivamente. Puxou uma vez as rédeas do animal que conduzia. Como ele
opusesse resistência, a moça o soltou e esporeou seu próprio cavalo a um meio
galope. Kit vinha logo atrás dela.

Brig esperava atrás da madeira caída. O suor lhe porejava a testa, enquanto
seus olhos e ouvidos se esforçavam por descobrir seu atacante. O tapete de neve
abafaria o ruído de quaisquer passos dados por alguém que soubesse caminhar
nele. E tivera oportunidades de sobra de observar a perícia de Fletcher na tocaia.
Brig não estava muito bem escondido, mas não ousava mexer-se. A neve escondia
os galhos frágeis das árvores caídas. Se tentasse encontrar uma posição melhor,
poderia quebrar um deles, e não podia arriscar-se a fazer qualquer ruído que
chamasse a atenção para sua localização.
Sua face começou a arder com o suor que escorria para os pequenos cortes
feitos pelos fragmentos da casca da árvore. Brig ignorou isso e umedeceu os lábios
secos. Com o canto dos olhos, viu algo se movendo morro abaixo e focalizou ali o
olhar.
Fletcher vinha se dirigindo devagar para o bosque. Brig imaginou que o
caçador não tinha muita certeza se sua bala o tinha abatido ou não. Dali a um
momento, Fletcher veria que não havia corpo algum na base da árvore e começaria
a revistar o bosque, à sua procura. Brig amaldiçoou silenciosamente a falta de
arma. A faca serviria apenas para um combate corpo a corpo, e Fletcher jamais o
deixaria chegar tão perto.
Quando Fletcher entrou na ampla trilha que o vento abrira na neve, parou. A
garganta de Brig estava seca. Ele olhou em redor. Enquanto não se mexesse, seria
difícil encontrá-lo. Viu quando Fletcher vasculhava as árvores com o olhar.
— McCord! — chamou. — É melhor sair. Sei que está ferido. Vi o sangue no
chão, ontem. Vamos tornar isso o menos doloroso possível. Você não pode ir muito
longe... não longe o bastante para escapar de mim. Prometo-lhe que acabarei tudo
rapidamente.
Brig não respondeu. As árvores caídas eram o local óbvio para se esconder, e
seria o primeiro lugar que Fletcher investigaria. Olhou em volta para ver se haveria
outro lugar. Tempo... tinha que ganhar um pouco de tempo. Quem sabe Fletcher
cometeria um erro.
— Ninguém vai ajudá-lo, se é o que está esperando, McCord! — gritou
Fletcher de novo, subindo devagar a encosta. — Jocko está do outro lado do
acampamento. Eu o vi partir hoje de manhã. Mesmo que tenha ouvido o disparo do
fuzil, jamais chegaria aqui a tempo de ajudá-lo. Está muito longe. Jordanna pode
estar saindo agora do acampamento, mas não o ajudará. Somos apenas você e eu,
McCord. Portanto, trate de sair.
Havia uma árvore ao lado dele, e Brig rastejou na sua direção, movendo-se
apenas quando tinha certeza de que Fletcher estava olhando para outro lado.
Usando seu tronco largo como escudo, ficou de pé e achatou o próprio corpo contra
ele. Cada segundo que ganhava era precioso.
— Sei por que você tem que me matar, Fletcher! — gritou para o caçador. Mas
por que matou Max?
— Saia para onde eu possa vê-lo.
— Não! Ainda não! — gritou Brig, ciente de que o caçador estava se mexendo,
agora que localizara sua presa, mas não sabia em que direção. — Se vou morrer,
pelo menos me dê a paz de espírito de saber todas as respostas!
— O filho da mãe pensou que podia tomar minha mulher e meu dinheiro.
A voz de Fletcher vinha da esquerda, e Brig foi se movendo aos pouquinhos
na direção oposta, mantendo o tronco da árvore entre eles. Pouco importava que
sua primeira desconfiança sobre Max e a mulher de Fletcher tivesse tido
fundamento.
— Você é um idiota, Fletcher — declarou Brig.
— Não, você é que é idiota por estar adiando o inevitável! Saia para onde eu
possa vê-lo!
— Você ainda pode livrar-se disso, Fletcher. Pode comprar alguns advogados
e provavelmente se safar com uma pena leve e sursis pela morte de Max. Mas, se
me matar, estará pondo tudo a perder. Será enforcado por isso. É assassinato
premeditado, e você sabe — disse.
— Mas você é o único que sabe! — Fletcher riu. — E estará morto!
O ruído de rédeas balançando e cavalos arfando chegou aos ouvidos de Brig,
seguido pelo estrondear dos cascos a galope. A cabeça dele virou-se bruscamente
na direção do som e viu Jordanna e Kit chegarem à crista da elevação, um cavalo
solto galopando com eles, a cabeça desviada para o lado, para evitar as rédeas
penduradas. Jordanna deslizou do lombo nu do cavalo.
— Brig!
Ele notou o pânico na voz dela.
— Não se aproxime, Jordanna!
— Saia daqui, Jordanna! — ordenou Fletcher. — Isso não lhe diz respeito.
— Não! — protestou a moça, com voz estridente. — Não, você não vai matá-
lo! Papai, pare com isso!
— Você me ouviu. Trate de obedecer!
— Quem vem depois de mim, Fletcher? — desafiou Brig. — Jordanna é
testemunha. Seu filho também. Vai matá-los em seguida? E quanto a Jocko? Ele
sabe interpretar sinais melhor do que você. Acha que não vai saber o que
realmente aconteceu aqui? Mate-me e terá que continuar matando e matando. Não
vai parar só em mim!
Uma bala fustigou a árvore, perto da cabeça de Brig. Este se abaixou para
evitar os fragmentos de casca. Fletcher estava irracional, ultrapassara todos os
limites, estava fora do alcance da lógica.

Ao ouvir o disparo, Jordanna deu meia-volta e arrancou o fuzil das mãos do


irmão. Dessa feita a árvore havia protegido Brig, porém, a não ser que ela detivesse
o pai, isso poderia não acontecer de novo. Enfiou uma bala na câmara. Antes que
as reverberações do primeiro tiro tivessem terminado, Jordanna estava disparando
o fuzil para o ar, baixando depois o cano da arma para apontá-la para o pai.
— Não vou deixar que o mate — advertiu ela.
O pai virou-se para olhar para ela, surpreso. Com o canto dos olhos, Jordanna
viu Brig ir mancando até uma árvore diferente, uma que o trazia mais para perto da
encosta varrida pelo vento. Mas não deixou que seu olhar se desviasse do rosto
espantado do pai.
— Você não vai me matar — disse Fletcher, relaxando-se ligeiramente, uma
expressão complacente na fisionomia.
— Não preciso matá-lo, papai. — Não havia mais de trinta metros entre eles.
— A esta distância, posso atingi-lo onde tiver vontade... na perna, no ombro, no
joelho. Você me ensinou a atirar. Sabe o que sou capaz de fazer. Largue o fuzil,
papai.
— Você não compreende. — A fisionomia dele ficou carregada. Parecia que ia
discutir com ela; a seguir, apertou fortemente os lábios e virou-se para mirar a
árvore onde Brig estivera.
Jordanna atirou, e a bala levantou um pedaço de neve à frente do pai, zunindo
no espaço. Um punhado de pedras veio rolando a encosta, descendo dos
penhascos rochosos acima deles, deslocado pela percussão reverberante do tiro de
fuzil.
— Não me obrigue a isso. — O cano do fuzil oscilou, quando Jordanna o
mirou novamente. A despeito da aparência exterior de calma, estava chorando por
dentro. Aquele homem já fora objeto de sua adoração.
— Jordanna, ele foi baleado. — A voz do pai parecia razoável. — Tenho que
acabar com ele, livrá-lo do seu sofrimento. Não está vendo o perdão nos olhos
dele?
— Não! — A moça quase gritou a palavra.
Ouviu um barulho de coisa sendo esmagada, e Jordanna pensou que era o
seu mundo que estava sendo pisoteado. Atrás dela, Kit gritou:
— Papai, cuidado!
O primeiro pensamento dela foi para Brig, e seu olhar voou para a árvore que
o ocultava. Olhando para cima teve uma rápida visão dele, antes que Kit a
empurrasse rudemente na direção do pai. Quando Jordanna caiu para trás, viu os
pedregulhos que rolavam silenciosamente pela neve. Enquanto ganhavam
velocidade, a terra começou a roncar.
Brig ouviu o grito que Jordanna soltou, quando ela percebeu que o pai estava
no caminho dos pedregulhos. Saiu de trás da árvore e levou as mãos em concha à
boca, para gritar, acima do rugido da avalanche de pedras:
— Por aqui, Fletcher!
O homem grisalho fitava as rochas, que vinham, céleres, na sua direção. Não
ouviu o aviso de Brig, mas viu Kit correndo para ele. Em vez de correr para as
árvores, onde teria uma chance de escapar da avalanche, começou a dirigir-se para
o filho. As pedras menores já estavam sob os seus pés. O primeiro pedregulho
atingiu-lhe o ombro, jogando-o ao chão. O resto desabou sobre ele, arrastando-o e
fazendo-o rolar com eles.
Foi uma avalanche curta e violenta. Quando acabou, Brig cruzou, mancando,
a trilha larga, coberta de rochas. Kit já descia pela encosta, na direção do corpo,
preso entre dois pedregulhos. Jordanna largara o fuzil e enterrara o rosto nas mãos.
Quando Brig a alcançou, a moça tinha começado a dar-se conta de que tudo
acabara. Descobriu os olhos para olhar encosta abaixo.
— Paizinho? — chamou, com voz entrecortada, e deu um passo na direção do
corpo que Kit estava descobrindo.
— Não. É melhor que não olhe.
Ela ergueu o rosto manchado de lágrimas para fitar Brig.
— Ele está... morto.
— Dê graças porque as montanhas o levaram, Jordanna. Ninguém precisa
saber o que aconteceu, ou por quê. Seu pai está morto. Não há nenhum motivo
para que você, seu irmão ou sua mãe sofram com um bocado de publicidade suja.
Está entendendo? — perguntou, meigamente.
— Estou. — Começou a soluçar e envolveu-lhe o pescoço com os braços para
apertar-se a ele.
— Vamos superar isso. — Sentiu uma onda de ternura a invadi-lo. —
Superaremos juntos. — Abraçou-a com força, absorvendo seus tremores.
Um cavalo e um cavaleiro apareceram no alto da elevação e pararam. O
cavalo sacudiu a crina e mordeu o freio. Jocko compreendeu tudo com um só olhar,
e desceu para junto do rapaz inclinado sobre o corpo inerte.

Fim

A AUTORA E SUA OBRA

Em cinco anos e meio de atividade como escritora, Janet Dailey publicou


sessenta e dois livros. Traduzidos para dezessete idiomas em noventa países, seus
romances atingiram a faixa dos noventa milhões de exemplares vendidos.
Atualmente, recebe por ano, de sua editora, a quantia de um milhão de dólares.
Assim, a adolescente sonhadora, que queria fazer parte do mundo da literatura,
tornou-se milionária.
Consagrada como a quinta escritora mais lida do mundo, Janet Dailey nasceu
a 21 de maio de 1944, na cidade de Storm Lake, em Iowa. Secretária de uma
empresa do ramo imobiliário, casou-se com seu patrão, Bill Dailey. Dez anos depois
do casamento, em 1974, Bill, bem-sucedido em seus negócios, resolveu aposentar-
se. Os Dailey passaram, então, a viver num trailer, viajando pelos Estados Unidos.
Um dos sonhos de Janet, aliás, é entrar para o "Guiness book of world records" com
a seguinte façanha: escrever um romance ambientado em cada Estado americano.
Sua estreia deu-se em 1976, com a novela "No quarter asked". Nesse mesmo
ano, realizou uma proeza fantástica: produziu doze romances. Essa escritora de
rara fertilidade segue uma rigorosa rotina do trabalho. Começa seu expediente às
quatro da manhã e só deixa a máquina de escrever às cinco horas da tarde. Mas o
seu grande sucesso vem, como ela própria declara, de seu conhecimento da
psicologia feminina e de como satisfazer, através do romance, os sonhos de
milhares de mulheres.

Impressão e acabamento:
CIA. LITHGRAPHICA YPIRANGA

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