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ENCONTRO MARCADO

Por Vitor Machado

DOPPELGÄNGER

Fusão das palavras alemãs doppel (significa "duplo", "réplica" ou "duplicata") e gänger
("andante", "ambulante" ou "aquele que vaga").

“Não deve demorar muito agora. Posso ouvir os passos Dele a subir as velhas escadas… O
quadro que meu cérebro compõe a partir daqueles pequenos sons é aterrorizante, inevitável
e final. Aqui nesta escuridão absoluta, minha consciência e sentidos reduzem-se à audição e
não ouso sequer desfazer a posição fetal, abraçado fortemente aos meus joelhos. O terror
que domina minha mente como uma camisa de força psíquica, é entrecortado por lampejos
de risadas dentro de mim. A loucura que chega, por certo. É o fim. Mas, como tudo começou?

Era manhã de sábado, 25 de setembro. A chuva fina caía no jardim, alegrando a natureza
sombria de Marcos. Por sua alma passeavam as notas da famosa “Estampes III” de Debussy.
Sua vida parecia ter alcançado um culminar de felicidade e o futuro parecia brilhante.
Conseguira finalmente a oportunidade de trabalhar em casa o que lhe proporcionaria tempo
de sobra para seus muitos hobbies: pintar, escrever, cozinhar… Acima de tudo porém, cuidar
mais assiduamente de suas duas pequenas princesas. Mas nessa vida tudo não passa de um
castelo de cartas mais ou menos mal feito. Por mais cuidados que tenhamos na montagem, de
repente lá se vai tudo abaixo.

Madalena, sua esposa, viajara com as pequenas Vitoria e Barbara para comemorar um
aniversário de família e Marcos preferira não acompanhá-las. Aquela semana seria decisiva
para a conclusão de um negócio imobiliário, negócio esse há muito desejado. Seria a solução
definitiva das preocupações financeiras da família e a cereja do bolo nos projetos de vida de
Marcos. A venda de sua velha casa permitiria a mudança para um apartamento amplo e novo,
com sobras para viagens, presentes e para investir nos estudos das meninas. Ademais, o valor
alcançado na negociação era quase bom demais para ser verdade. Certamente alguma
característica da propriedade era o sonho de consumo do comprador. Quando sua família
retornasse estaria tudo finalizado. Como de fato ocorreu…
A princípio Marcos nem notou o fato ao receber a minuta do contrato. Naturalmente
preocupou-se mais com valores, datas e demais aspectos legais do documento. Entretanto, ao
fazer uma última revisão, deparou-se com o que só poderia ser um equívoco do despachante.
O nome e idade do comprador eram idênticos ao seu, apenas os números dos documentos é
que diferiam. Obviamente apenas um produto de um “corta e cola” desatento, mas suficiente
para impedir a assinatura do contrato.

Após encaminhar ao despachante a observação sobre o equívoco (entre irônicas piadinhas,


como era de sua natureza), Marcos deteve-se a pensar sobre o erro. Antigas lembranças de
sua infância e adolescência, há muito sepultadas, retornaram. Ao longo de sua vida, muitas
situações semelhantes haviam ocorrido. O menino de mesmo nome, matriculado em sua
escola primária, que acabou transferido antes do ano letivo; um namorado anterior de sua
primeira paixão que também não chegara a conhecer; as várias listas de aprovados em
vestibulares e concursos, onde o “outro Marcos” nunca era aprovado, etc. Alguém ou alguma
coisa sempre parecera agir para evitar o fatídico encontro entre os dois. Não era sem razão
que “William Wilson” de Poe sempre fora sua obra de ficção favorita. Mais que isso, uma
obsessão, afinal superada pelo passar dos anos.

Um misto de surpresa e antigos medos percorreu o espinhaço de Marcos ao ler a resposta do


despachante, naquele mesmo dia. Não havia qualquer engano, apenas uma incrível
coincidência. O promitente comprador realmente tinha o mesmo nome, data e local de
nascimento que Marcos. A familiar sensação de anos passados voltou, porém desta vez
haveria uma diferença crucial, pois finalmente encontraria seu duplo. Mas as coisas não
transcorreriam como imaginado.

O dia da esperada assinatura chegou, mas com ele a decepção. O “outro” fez-se representar
no cartório por um procurador, alegando compromisso fora da cidade. A partir daí foi como se
uma noite sem fim caísse sobre a vida da família. Cláusulas contratuais, aparentemente sem
sentido numa primeira análise, logo se mostraram uma espécie de armadilha a retardar a saída
definitiva da casa vendida. Como o atendimento às pendências era requisito para a efetivação
dos pagamentos, não havia nada a fazer a não ser cumprir o contrato. Em todas as visitas para
verificação das exigências, quem comparecia era o mesmo representante que assinara a
escritura, nunca o comprador em pessoa.

Aquela situação arrastou-se por mais alguns dias, gerando crescente mal estar entre marido e
mulher. Madalena acusava Marcos de negligência no negócio e rejeitava as alegações do
esposo. Ele, por sua vez, insistia em que algo de sinistro estava em curso. Sentia-se num jogo
de gato e rato - onde ele era o rato. A tensão no seio da família chegara a um ponto
insuportável quando a tragédia aconteceu. A primeira delas.

Uma das últimas exigências contratuais a ser atendida era a limpeza do jardim e o fechamento
do poço abandonado existente no fundo do terreno. Este fora um dos pontos mais ressaltados
pelo representante do “outro” e Marcos jamais esqueceria a frase do homem antes de se
retirar: “sugiro revisar o poço com cuidado. Por vezes coisas muito preciosas podem se perder
em lugares como esses”. O comentário foi feito com um sorriso sardônico nos lábios e um
tamborilar de dedos de longas unhas na borda de pedra do poço, gelando o sangue nas veias
de Marcos. Só após a partida do procurador é que o casal se deu conta da ausência da filha
mais velha. Vitoria, como de hábito, chegara da escola ao meio dia e depois do almoço não
fora mais vista. Após uma agonizante procura em todos os locais possíveis, dentro e fora da
casa, restou chamar a polícia. Enquanto esperavam, Marcos não conseguia tirar os olhos do
poço…. Tinha na alma a certeza do que ocorrera e essa mesma certeza o impedia de procurar
ali sua “mais preciosa coisa”.

A partir daquela tarde-noite a vida do casal nunca mais voltou ao normal. As idas e vindas da
polícia e dos peritos, a descida do policial dentro da goela negra do poço, o pequeno cadáver
coberto pelo lençol mais ou menos branco, o interrogatório, todo o quadro passou a repetir-se
na mente dos dois até o fim de suas vidas. O ser humano não foi programado para a perda de
um filho. A perda dos pais é natural, mas de um filho.. Poucos dias e a própria família já não
mais existia. Madalena não suportou continuar ali e tomou a decisão, inevitável embora fatal.
Em apenas um par de horas empacotou suas roupas e as da caçula Barbara, partindo no carro
da família rumo à casa dos pais, no interior do Paraná.

O novo retrato de horror pareceu tão óbvio quanto o anterior. Do ponto de vista da polícia
tratou-se de um lamentável acidente, principalmente causado pelo desequilíbrio da mãe ao
volante. Uma testemunha chegou a mencionar que o veículo com a mulher é a criança teria
sido fechado na curva por uma velha camionete, mas o testemunho não chegou a ser
confirmado e o inquérito se encerrou sem maiores complicações. Já do ponto de vista de
Marcos, também não havia mistério algum. O jogo de gato e rato continuava e se aproximava
de seu clímax.

O mês seguinte transcorreu sem maiores sobressaltos, apesar do estado mental de Marcos ter
se agravado sobremaneira. Qualquer ruído era o suficiente para pô-lo em estado de histeria,
como se um gato sobrenatural arranhasse seu cérebro. Sua saúde física, se deteriorara na
mesma medida. A casa decaía perceptivelmente e o jardim, com a ajuda das chuvas e do calor
do verão que se aproximava, se transfomara numa verdadeira selva. Da conclusão da
transação imobiliária não se voltou a falar. Numa segunda feira do início de dezembro, uma
correspondência incomum foi deixada junto à porta de Marcos. Um envelope pardo, grosso e
sem endereçamento ou carimbo dos correios. Quase por acidente, já que raramente saía da
casa, o homem encontrou o envelope sobre o capacho da entrada, pegou-o e levou-o para a
mesa da cozinha. Com dificuldade em função do tremor compulsivo e incontrolável das mãos,
leu o texto manuscrito:
“Caro sr. Marcos:

Apesar de não termos podido concluir nossa transação, informo que fui realocado por nosso
escritório e assim deixo de intermediar o negócio com V. S. Por oportuno informo que o
comprador entrará em contato direto e pessoal consigo. Segundo confidenciou-me ele, esse
encontro está agendado há anos por ambos.

Atenciosamente,..... “

A folha de papel, libertada da mão trêmula de Marcos, revoluteou no ar até acomodar-se sob a
mesa. A partir daí, a mente do que fora um homem um dia, fechou-se ainda mais, focando
num único propósito: onde esconder-se? Mesmo no abismo de sua loucura, a ideia ridícula de
“esconder-se” de si mesmo libertou de seu peito uma gargalhada, desafinada e macabra, que
ecoou pela casa vazia até morrer na penumbra.

“Ele chegou finalmente. Está bem aí, do lado de fora. Posso ouvir a respiração pesada e o
som metálico de algo a raspar cadenciadamente a porta trancada. De súbito, o ruído de
madeira estraçalhada, a entrada do sótão se enchendo de luz a delinear o perfil… Dele. A
última imagem que consigo discernir com clareza é a foice a rebrilhar no escuro.”

PS. : a casa jamais foi ocupada. Hoje, em ruínas, permanece no terreno completamente
tomado pelo mato.

FIM

CONTO INSPIRADO NA OBRA “WILLIAM WILSON”

DE EDGAR ALAN POE

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