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Inesperada

Redenção

Karol Blatt

Copyright © 2022 por Karouley Fernandes


Revisão: Luana Xavier
Capa: Designer TTrenório
Diagramação: April Kroes

1ª Edição

Todos os direitos reservados.

Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens,


lugares e acontecimentos descritos são produtos da imaginação
da autora. Qualquer semelhança com nomes, datas e
acontecimentos reais é mera coincidência.

São proibidos o armazenamento e/ou a reprodução de


qualquer parte dessa obra, através de quaisquer meios —
Tangível ou intangível — sem o consentimento escrito da
autora.

A violação dos direitos autorais é crime estabelecido na lei


Nº . 9.610/98 e punido pelo artigo 184 do Código Penal.
Sumário
Nota da autora
Epígrafe
Prólogo
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Epílogo
Agradecimentos
INESPERADA REDENÇÃO

Ele nunca olhou para o mundo com gentileza… Até ela.

Quando o amargurado e rico advogado de divórcios, Samuel

Mead, termina em uma sala de parto com uma garota


desconhecida, ele sequer imagina o que ainda está por vir.
Roxanne Rivera é uma mãe solo e sem um teto para si

mesma e para seu bebê recém-nascido. Por isso, quando Sam


oferece seu apoio e sua casa como abrigo, Rox não tem como
recusar. Seria apenas por tempo limitado.

Entretanto, Roxanne tem mais problemas do que Sam


poderia prever. Ela não é apenas uma imigrante mexicana que teve
seus pertences e documentos roubados; ela é uma fugitiva. E

quando Sam percebe no que a jovem se meteu, um instinto protetor,

que ele não sabia possuir, fala mais alto.


Rox tem boas razões para não confiar nos homens e quer

escapar.
Sam está decidido a honrar seu dever de proteger mãe e

filha.
E ele o fará mesmo que isso lhe custe sacrificar a identidade

que construiu, sua segurança e até mesmo seu endurecido coração.


Querido leitor,

Quem me acompanha há algum tempo sabe que Inesperada


Redenção é um livro aguardado desde 2020. Eu emendei um
trechinho dessa história no final de Blackwood e agucei

curiosidades. Curiosidades que só estão sendo saciadas agora em


2022. Que autorazinha miserável, não é?
No entanto, além de apresentar minhas sinceras desculpas

pelo prazo longo, gostaria também de me explicar. A verdade é que


dei à luz a essa ideia ainda mais cedo, em 2017. Os Estados Unidos

estavam sob um governo que havia gerado um grande alarde em

torno da rígida política de imigração. Vocês vão perceber isso


quando lerem a história, porque a despeito do livro ser

contemporâneo, se passa há alguns aninhos, justamente nessa


época. Apesar de ter pensado nesse enredo bem cedo, entretanto,

escrevê-lo foi um dos meus trabalhos mais desafiadores até aqui. E,

por isso, eu demorei tanto para trazê-lo.


Suspeitei que Inesperada Redenção não seria um livro fácil

de escrever, mesmo quando era apenas um projeto. E acertei. Ele


não permitiu ser dominado. Sem piedade, ele recusou todos os

meus planejamentos (nove roteiros arruinados, precisamente). Ele

trocou minhas noites tranquilas por insônia crua. Levou minhas


longas caminhadas de paz. Algumas vezes, ele me fez perder o

gosto por comer apenas para dizer que seguiria seu próprio

caminho. Esse livro deixou claro que se entrássemos em uma


queda de braço, ele levaria a melhor sobre mim. E muitas vezes ele

realmente conseguiu o feito e me deixou perdida.

Tudo porque os personagens queriam falar e não serem


apenas narrados. Quando insistia nisso, ainda assim, eu não

gostava do que escrevia, não confiava. E então eu sempre sentia a


tentação de passar outro trabalho na frente, o que fiz várias vezes,

aguardando o dia da inspiração perfeita para finalizar essa história.

Até que em novembro do ano passado eu desisti. Simplesmente

percebi que um milagre assim não aconteceria. Não sem uma

grande dose de esforço. E não sem abrir mão do controle.

Então arregacei as mangas e decidi que, dessa vez, não me


daria por vencida até finalizar a jornada dessa família. Também

decidi apenas ouvir Rox, Sam e María. Trabalhei assim, sempre


contornando as minhas inseguranças e medos. Trabalhei duro.
Trabalhei muito. Aceitei que haveria dias bons e ruins durante a

escrita. Que tudo isso fazia parte do processo. E aí a perseverança

venceu: o livro ficou pronto e trouxe a minha alegria de volta. Como

trouxe a de Sam.

Portanto, espero que apesar do longo inverno de adiamento,

Inesperada Redenção ainda consiga aquecer os sentimentos de


vocês com o caminho que escolheu. A história se passa no terrível

frio americano, mas há momentos quentinhos o suficiente para

derreter até mesmo o coração gelado de um advogado implacável,

que como esta autora, também passou por algum tempo sem

conseguir acreditar em nada. Boa leitura!

Com todo o amor do mundo,

Karol Blatt. ♥
Avisos: O conteúdo desse livro possui linguagem sexual

explícita e pode causar desconforto por abordar cenas de violência


psicológica e física.
Eu tinha esquecido quanta luz há no mundo, até você
devolvê-la para mim.

—Ursula K. Le Guin
Ela apertou o casaco em torno de si para afastar o vento

congelante e, depois de se certificar de que não era seguida,


finalmente passou pelas enferrujadas portas de entrada.
O prédio era escuro, e o cheiro de maconha estava por toda

parte. Ela queria poder respirar menos aquele ar. Não faria bem
para o seu bebê. Mas a opção era respirar o ar no auge do inverno
de Washington do lado de fora do velho conjunto, o que, sem

dúvida, era muito pior. Por isso ela subiu as escadas com uma mão

ocupada pela magra sacola de compras e a outra se firmando no


corrimão que recebeu um pouco da tinta verde que também pichava

as paredes.

Um, dois, três…


Ela contou os degraus. Mais dez e estaria em casa. O turno

tinha sido difícil no café. Tudo mais cansativo do que antes. Ou


talvez fosse apenas ela que estivesse grande demais. Seus pés

muito inchados e pouco dispostos à longa jornada de trabalho em

pé. Nice vivia dizendo que aquilo era sinal de que o bebê não
tardaria. Como se ela não soubesse. Como se não se preocupasse

com isso todos os dias.

Oito, nove, dez…


As coisas iriam piorar. Ela não podia manter um bebê

naquelas condições miseráveis. Nice também dizia isso. E dizia que

ela devia entregá-lo a uma família rica e amorosa. Mas ela não
queria. Não. Aquele era o seu bebê. Ela não queria se separar dele.

Ela já o amava tanto e tinha decidido enfrentar todos os perigos


apenas para tê-lo nos braços.

Onze, doze e treze. Ufa.

A velha porta, que um dia fora amarela, estava diante dela.

Entretanto, quando ela colocou a chave na fechadura e girou a

maçaneta, esta não se moveu. Ela forçou a porta outras vezes.

Nada.
De repente, ela percebeu o papel pregado pouco acima da

sua cabeça. Arrancou-o para ler.


Ordem de despejo.
Seu coração congelou. Ordem de despejo? Como? Ela

vinha deixando sua parte do aluguel para Billie, sobre a velha

televisão, todos os meses. Vinha aguentando tudo no café

exatamente para garantir seu teto.

— Não pensei que fosse aparecer para ver. — Phoebe, a

vizinha de cabelos ruivos artificiais e sempre com um cigarro nos


lábios, surgiu na porta ao lado. — Até disse ao oficial de justiça que

era inútil. — Ela soprou fumaça. — Quando sua amiga desceu com

os móveis esta manhã, imaginei que estavam fugindo do senhorio.

Ela precisou de vários segundos para processar a

informação. E, ainda sim, recusou-a.

— Billie? Mudou-se?

— Merda. Ela não te contou, não é? — Um olhar de pena


pairou sobre sua barriga arredondada. — Caralho, não acredito que

aquela vaca roubou de uma garota grávida. É sacanagem demais

até para mim…

Ela não escutou mais nada. Não conseguiu. E enquanto o

pânico rastejava por debaixo da sua pele e começava a quebrar

como ondas pesadas sobre a sua cabeça, encostar-se contra a


madeira da porta foi necessário e inevitável.
Não. Não. Não.

Ela não tinha ido tão longe para terminar assim. Não tinha
fugido no meio da noite para que seu bebê ainda continuasse

desprotegido.
As lágrimas vieram. Lágrimas de cansaço, estresse e de
todas as dificuldades e privações que enfrentara nos últimos sete

meses quando escapou para aquela terra estranha. O bebê estava


sentindo tudo aquilo, ela sabia. E isso apenas reforçava a ideia de

Nice. Ela não daria conta da situação, e seu bebê merecia mais. Por
Deus, aquele anjinho crescendo dentro dela merecia o melhor.

Colocar as mãos sobre a barriga não serviu como gesto


calmante dessa vez.
Ela precisava fazer alguma coisa. Depressa.

E foi quando alguma coisa de fato aconteceu. Uma pontada


aguda em seu baixo ventre anunciou, com clareza, que o tempo de

Rox havia chegado ao fim.


Quando estou cansado e pensando friamente
Me escondo em minha música, esqueço o dia.

— BOSTON, “MORE THAN A FEELING”.

SAM

Washington D.C
Inverno, 2017

— O meu cliente não possui mais a mesma margem de

lucros e a ex-esposa já é proprietária da casa. Diante disso, acredito

que a solicitação para redução da pensão estipulada pela sua

cliente seja uma medida cabível.


— O quê? — A mulher loura gritou à minha frente e se

levantou da cadeira. — Isso é um absurdo. Então Leonard acredita


que tudo que a filha dele precisa é de uma casa? Ele quer tirar o

dinheiro como tirou seu amor, atenção e cuidado? Como ele pode

se chamar de pai assim?


— Sinceramente, não me importo com o que é preciso para

alguém se chamar de pai, senhora Pearson — emiti.

— Seu monstro! — acusou ela.


— Acalme-se, Cristine. — A advogada ao seu lado a fez se

sentar novamente.

— Me acalmar? Eu estou cansada de vocês, homens! —


gritou na minha direção. — Por que é que vocês fazem isso? Por

que vocês insistem, nos iludem e depois nos abandonam e


abandonam as famílias que criaram? Nada disso é justo! E você é

um cretino, Sam Mead! Um maldito egoísta, insensível, arrogante!

— Por favor, senhora Pearson. Não perca seu tempo

explanando coisas que são de domínio público. — Suspirei. — É

cansativo e tedioso.

— Você é um miserável que não se importa com ninguém —


insistiu, esbravejando e se levantando. Continuei olhando-a,
paciente.— Acha que esse comportamento e esse dinheiro sujo te
tornam mais homem?

— Por favor, senhora Pearson. É melhor… — A advogada

tentou intervir, mas decidi acabar com a situação por conta própria.

— Estou bastante confortável com a minha masculinidade

— pontuei. — Os dois mil dólares que seu ex-marido me paga por

hora não têm nada a ver com isso. São apenas um adendo
bancário.

— Eu não vou assinar a porra desse contrato! E vocês dois

podem ir para o inferno!

— Aqui ou no inferno, nós chegaremos a isso — proclamei,

tranquilo. — Podemos fazer do jeito fácil ou do jeito difícil. Mas,

asseguro-a, do jeito difícil meu trabalho prejudicará apenas a

senhora.
A ex-senhora Pearson começou a chorar e deixou o corpo

tombar novamente, caindo sentada na cadeira.

Não senti nada.

Trinta minutos depois eu consultava o meu relógio enquanto

esperava pelo elevador. Estava louco para chegar em casa e

descansar. O sucesso profissional era um fardo pesado,


principalmente para um advogado especialista em divórcios.
Sempre havia cenas e crises de choro, coisas que no final do dia me

deixavam exausto. E aquela semana em questão tinha sido


bastante cansativa.

Meu cliente era um executivo de televisão que estava se


livrando do terceiro casamento e havia tido uma filha em seu último
relacionamento. Ele era um homem rico e estava preocupado com

todos os bens que poderia perder desta vez. Afinal, as mulheres


usavam os filhos para arrancarem tudo o que podiam dos maridos.

Minha missão era garantir, pela terceira vez, que ele perdesse o
mínimo possível para a ex-miss com quem se casara. E no final

estava feito. Esperava apenas que Leonard aprendesse que poderia


namorar sem se casar, de agora em diante. Eu não conseguiria
repetir milagres a cada novo divórcio.

— Ora, se não é o impiedoso, o insensível Sam Mead, a


salvação dos maridos e o desespero das esposas. — Peter firmou a

mão no meu ombro direito. — Ainda por aqui?


— Você também — concordei.

Ele se afastou e passou as mãos pelo cabelo crespo bem


penteado. Exatamente como se fosse um galã de comercial, e não
um advogado entediado de Washington. Eu não sabia como, mas

Peter Walter sempre fazia o Direito parecer mais divertido para ele
do que para o resto de nós no fim de uma tarde. Talvez isso fizesse

parte do encanto que levava muitas mulheres para sua cama.


— Aposto que acabou de se certificar de mais uma vitória

masculina em um divórcio complicado.


— É o meu trabalho.

Peter sorriu. Era o tipo de cara que sorria demais. Meu


exato oposto, já que eu fazia parte do grupo de advogados
taciturnos que bebem café extraforte enquanto ainda leem o Times

da forma mais antiquada possível. E isso significava pela manhã


bem cedo e em papel.

Entretanto, Peter era o mais próximo de um amigo que eu já


tive desde que iniciei os estudos de Direito. Ele também era a
pessoa mais próxima a mim desde que deixei o rancho do meu pai,

no Texas. Nós nos conhecemos nos últimos anos em Harvard e


acabamos sendo contratados pela mesma firma de luxo.

— Acho que é a sua missão de vida — proclamou. — Sem


dúvida, você é uma fonte de renda interminável para o Knighton.

Sebastian Knighton era o maior sócio sênior e o nome na


placa da firma, apesar de permanecer mais na sede em Manhattan.
Nós o tínhamos visto poucas vezes em reuniões e

confraternizações, mas seu desempenho lendário ainda era assunto


em Harvard. Nos tribunais, seu trabalho como criminalista era
sempre manchete certa do Times.
— O Knighton não precisa de ninguém.

— É claro que não. Ele não é páreo para nenhum problema.


O homem não tem medo de se colocar entre conflitos de mafiosos

para escancarar esquemas internacionais e mandar para prisão os


peixes maiores. Por isso, o filho da mãe é o advogado mais caro e
solicitado da América. — debochou Peter por pura inveja. Mesmo

que cada palavra fosse verdade. — E o desgraçado nem é


americano.

O elevador chegou, e outros dois advogados passaram por


nós. Entrei com eles, e Peter me seguiu.

— Mas sabe, Sam, aqui em Washington, você é o herói.


— Herói? — Ri sarcasticamente. — O The Washington Post
me retratou como um vilão há dois meses. “O Diabo Engravatado”,

precisamente.
— Foi uma coluna escrita por Elizabeth Mildred. Melhor

amiga da modelo russa da qual você desmascarou as traições


diante do marido e de toda alta sociedade.
Isso provavelmente era verdade. Mas também não me

afetava. Até mesmo a charge que Elizabeth Mildred fizera da minha


imagem, com chifres de demônio e um tridente na mão enquanto
perseguia donzelas indefesas, não queria dizer nada.
Eu fazia o que era pago para fazer. E fazia

maravilhosamente bem, o que me rendia sempre muito dinheiro. No


fim, isso era tudo que um bom advogado almejava.

— E sabe o que é mais heroico da sua parte, meu


camarada? — prosseguiu Peter. — Enfrentar todas aquelas esposas
se derretendo em lágrimas. Eu não teria talento para uma coisa

assim, por isso fiquei com o Direito Empresarial. Mas você tem que

me dizer. Como consegue?


— A verdade é que eu não consigo e nem desejo enfrentar

esposas, Peter. Por isso todos os meus clientes são homens.

— E por isso você é o advogado mais requisitado por todos

os milionários que decidem se divorciar em Washington. Os maridos


sabem que se contratarem Sam Mead vão poder ficar com suas

cuecas no final do casamento. — Ele gargalhou. — Sério, você é

meu ídolo. Se eu, algum dia, cometer a loucura de me casar e


precisar me divorciar, já sei a quem recorrer para permanecer com

as minhas posses intactas.

Limitei-me a sorrir e concordar com a cabeça. Meu humor


não estava em seu melhor estado depois das últimas horas com os
Pearsons, e eu não faria meu amigo pagar por isso.

As portas do elevador se abriram em um andar, e uma


mulher elegante entrou. Ela era alta e curvilínea. A pele bronzeada

reluzindo de um jeito que atraía de imediato. Seus lábios se

curvaram em um sorriso malicioso que eu retribuí de imediato, e ela


se postou ao meu lado.

O silêncio foi contínuo até o andar do estacionamento.

Então, quando as portas se abriram, a bela mulher se virou na

minha direção e me estendeu um papel.


— Se quiser alguma diversão e não estiver ocupado demais

destruindo famílias, sabe onde me encontrar, Sam Mead.

Segurei o papel e analisei seu corpo mais uma vez


enquanto ela se afastava. Eu adorava mulheres senhoras de si. Que

abordavam sem medo e de forma simples e direta. Já dava para

perceber que aquela era do meu tipo. Ela seria uma diversão nova,
e eu andava precisando disso depois dessa última tarde. Por isso

guardei o cartão dela no bolso, já fazendo planos.

— Tudo bem, Peter. Tenha uma boa-noite.

Ele riu.
— Você é um filho da mãe com as mulheres, e mesmo

assim elas fazem fila para a sua cama, não é? — Peter balançou a
cabeça e me dirigiu um de seus olhares admirados. — Seu maldito

sortudo. Boa noite e tenha um bom final de semana, Sam.

Peter saiu pelo estacionamento na direção oposta.


Enquanto ele se afastava, pensei que havia uma verdade

incontestável no que ele havia dito. Apesar da fama que me

precedia, não me faltavam mulheres. Atraídas principalmente pela

minha aparência e meu dinheiro, até mesmo algumas das ex-


esposas que assinaram os contratos de divórcio que eu elaborei

terminaram conhecendo minha cama na minha cobertura triplex

localizada na área mais nobre de Washington.


Eu não tinha muitos critérios para minhas relações casuais.

Se a mulher se encaixasse nos meus interesses, eu jamais negava

uma boa foda.

O que as frustrava, muitas vezes, era perceber que isso


seria tudo o que arrancariam de mim. Sexo. Intenso e sem qualquer

compromisso ou envolvimento emocional. Não deixar as mulheres

se aproximarem demais foi uma lição que eu havia aprendido ainda


muito jovem. E, principalmente, a duras penas. Não era culpa minha

se elas entediam minhas regras como um desafio direto para

conquistar um coração inexistente. Nenhuma mulher era especial

para mim. Nunca seria.


Com um movimento firme de cabeça, afastei-me dos

pensamentos que ainda me paralisavam no estacionamento e segui


em direção ao meu BMW. Entrei no carro e joguei a pasta de

arquivos no porta-luvas. Depois ajustei o cinto de segurança e

comecei a manobrar para fora do edifício.


Washington estava congelando e tudo estava coberto por

uma neve densa que chegou duas semanas antes do previsto. Um

início de novembro com neve era um absurdo que não acontecia

desde o século XIX. Mas o surto vindo do ártico não havia perdoado
sequer o sul do país. Nem o serviço de meteorologia estava

preparado para um inverno tão adiantado. Talvez, exatamente por

isso o trânsito estivesse escasso. Estendi a mão e liguei o som do


carro. “More than a Feeling”, do Boston, começou a tocar. E eu

deixei-me levar pelo meu som favorito enquanto pensava sobre o

bilhete no bolso. Uma noite casual parecia ser perfeita para relaxar

e começar o fim de semana.


Estava bastante concentrado no que faria assim que

chegasse ao meu apartamento, quem sabe ligar para a garota do

cartão, quando meu celular começou a receber uma chamada. O


nome “Huntington” na tela não me trouxe nada de agradável. Ele

tinha que encontrar uma maneira de encerrar aquelas ligações


indesejáveis. Desviei os olhos apenas para atender a chamada pelo

sistema de som do carro e dizer o que já tinha dito, mas a chamada

finalizou sozinha, e quando voltei o olhar para a rua uma garota

grávida surgiu diante de mim.


Pisei no freio bruscamente. O carro derrapou no gelo, mas

parou pouco antes de atingir a mulher. Entretanto, o susto foi o

suficiente para que ela caísse sentada no chão.


— Mas que merda! — bradei, arrancando o cinto de

segurança. Em seguida, empurrei a porta do carro e saí o mais

rápido que consegui. A garota estava sentada no chão, seus

cabelos castanhos caindo sobre o rosto.


— Você está bem?

— A minha bolsa rompeu…

No início não entendi o que ela queria dizer, mas ao fitar


seus olhos exóticos, castanho-esverdeados, repletos de

nervosismo, a compreensão veio de uma só vez.

— Você tem certeza disso?

Ela não me respondeu, em vez disso, seu rosto se


contorceu em uma careta e ela levou as mãos à barriga. Por Deus!

Eu quase havia atropelado uma garota grávida que agora estava

prestes a dar à luz.


Curvei-me e a puxei para os meus braços. O tecido de lã

molhado do casaco cinza dela enroscou-se no meu pulso.


— O que você está fazendo?

— Não pode ter um bebê no asfalto sujo e congelado de

Washington.

Foi a minha única resposta. Em seguida, e com agilidade


recorde, coloquei-a dentro do meu carro e ajustei o cinto de

segurança nela da melhor forma que consegui. Então voltei a

ocupar o banco do motorista. Minhas mãos estavam trêmulas


quando segurei o volante, e meu nervosismo se acentuou quando a

garota começou a gemer do meu lado.

— Como isso dói! — ofegou. — Mal consigo respirar…


— Tem um hospital a três quadras. O Saint John. Você vai

ficar bem — consolei-a sem saber ao certo o que estava fazendo e

pisei no acelerador.

Pareceu demorar anos passar pelas três quadras. Quando


finalmente chegamos ao hospital, estacionei o BMW e ajudei a

mulher a descer do carro.Duas mulheres estavam na recepção, e

assim que nos viram começaram a pedir ajuda.


— Uma mulher em trabalho de parto! Chame do doutor

Mike, depressa! — A senhora de cabelos crespos em tom mel


orientou uma jovem loira, que desapareceu para dentro do hospital.
Em seguida, ela se aproximou de nós. — Tudo bem, querida.

Respire. Vai dar tudo certo.

— Está doendo muito e minhas pernas não mexem!


— Eu sei. Mas você precisa se concentrar em respirar.

Outros dois enfermeiros chegaram, e a garota foi colocada

em uma cadeira de rodas. Depois também desapareceu para além


das portas duplas.

— O senhor precisa preencher os formulários. — A senhora

de cabelos da cor de mel foi para detrás do balcão e puxou algumas

folhas de papel. — Apenas o essencial. E poderá acompanhar sua


esposa na sala de parto.

— Não, ela não é…

Mas antes que eu pudesse terminar a frase, uma maca com


um homem ensanguentado surgiu no corredor.

— Hemorragia interna e possível traumatismo craniano —


avisou a mulher que insuflava um ambu para ajudar o
ensanguentado a respirar. — Precisamos de um cirurgião com

urgência, Mills!
— Certo, certo! É um belo dia para estar sem recepcionista
por aqui! — A enfermeira deixou os papéis de lado e se apressou
para agarrar o telefone. Então seus olhos caíram sobre mim. —
Tudo bem, senhor…
— Mead. Samuel Mead. E eu não sou…

— Qual é o primeiro nome da mãe?


Lembrei-me do crachá meio apagado no vestido dela
quando a peguei nos braços.

— Roxanne.
— Certo, Roxanne Mead. — Ela assinalou na ficha antes de
me oferecê-la. — Bem, senhor Mead, não tenho escolha senão

apressar as coisas e pedir que deixe os papéis com o básico.


Coloque apenas o número do seu plano de saúde no espaço
indicado e assine aqui como responsável. — Não tive presença de

espírito para deter aquilo. Quando percebi, já retirava a carteira do


bolso para conseguir o cartão do meu seguro. Fiz o que ela pediu,
assumindo tudo com o meu nome. E mal havia terminado de assinar

o documento quando a enfermeira ergueu o braço e acenou para


alguém atrás de mim. Um rapaz surgiu de Deus sabe onde. — Kyle,

leve o senhor Mead e entregue a ele as roupas. Depois mostre a


sala de parto onde a esposa dele está. Eu também já vou.
— Tudo bem. É só me seguir, senhor Mead.
Eu hesitei por um instante, querendo desaparecer dali, mas
minha consciência não me deixaria em paz. Inferno! Eu quase havia
atropelado a garota grávida, e por mais que não gostasse de me

meter naquilo, estava sentindo que o bem-estar dela era minha


responsabilidade. Sem alternativas, me vi seguindo o enfermeiro

para dentro do hospital. Coloquei as roupas que ele me instruiu,


máscara e uma touca infeliz na cabeça. Depois de estar pronto, fui
colocado em espera em uma sala. Após algum tempo outra

enfermeira surgiu e me pediu para ir com ela.


Entretanto, quando entrei na sala de parto, logo me
arrependi de ter dado ouvidos à minha consciência. Aquilo não era

nada parecido com os filmes ou seriados. Porque era real. A garota


de cabelos escuros e ondulados era um fato e estava trazendo uma
nova vida ao mundo com sofrimento nítido. E foi íntimo demais

quando aqueles olhos aflitos pousaram em mim.


Meu instinto de fuga nunca tinha sido acionado com tanta
intensidade, porém, a enfermeira de cabelos em tom de mel, do

início de tudo, me puxou para perto da cama antes que eu tivesse


chance de exercitá-lo.

— Seu marido está aqui, meu bem. Agora tudo ficará melhor
— anunciou e depois sorriu para mim enquanto confidenciava: — A
dilatação dela já chegou a dez centímetros em minutos. Vocês
demoraram muito, se são pais de primeira viagem. Agora a estimule

a fazer força. Com carinho, papai.


Papai?, pensei, extremamente assustado no meio da
confusão.

— Meu marido? — Ela também me olhou apavorada. —


Mas ele não…

Suas palavras foram substituídas por um grito agudo de dor.


Ela estava suando e respirava com dificuldade. Eu fiquei paralisado
ao lado da cama, sem saber como reagir diante de tudo aquilo. Era

muita loucura!
Talvez eu houvesse batido a cabeça com força e…
Ela urrou.

Não. Nem batendo com a cabeça eu ouviria em meus


delírios um som como aquele.
— Isso, querida! Mais força, mais força.

— Eu estou fazendo tudo o que posso, doutor — ofegou a


garota. — Eu não sei se consigo… Eu me sinto tão fraca… Não sei
se consigo trazer esse bebê ao mundo… Nem sei se ele precisa

vir…
A voz dela ficou embargada.
— Ele vai começar a sofrer se você não o ajudar — insistiu

o médico em tom profissional. — Você consegue fazer isso, tenho


certeza. Concentre-se em empurrar para que ele fique bem.
Ela pareceu mudar de ideia e assentiu com a cabeça. Eu a

observei gemer e cerrar os dentes outra vez.


— Isso, meu bem. Eu já estou vendo a cabecinha. Repita o
que fez.

A garota respirou fundo e começou a fazer força, mas não


conseguiu concluir o esforço dessa vez. Ela parecia muito cansada,

e seus olhos se encheram de água. O sofrimento dela causou uma


sensação estranha na minha garganta.
— Eu não vou conseguir… Não vou…

— Claro que vai. — Vi-me falando, de repente. — Vai


conseguir. — A garota me olhou chocada quando me aproximei e
parei ao lado dela na cama. Um fio inevitável parecia me atrair. —

Você chegou até aqui, então pode conseguir.


Eu não sabia de onde as palavras tinham vindo e por que
elas saíram, mas elas pairaram entre nós num tom absoluto.

— Ouça seu marido, menina — voltou a animá-la a senhora


Mills. — Reúna toda a força que puder agora e vai conhecer o seu
filho, meu bem.
A garota me olhou.
— Dará certo — prometi, mesmo sem poder.
Surpreendentemente, ela pareceu acreditar em mim. Então

seus olhos se fecharam e a garota apertou os lábios. Depois


começou a gemer outra vez, e eu senti seus dedos frios agarrarem
minha mão com uma força inesperada para alguém de aparência

tão delicada. Automaticamente, fechei meus próprios dedos em


torno dos seus.
E foi como um milagre. De repente um choro agudo

preencheu a sala de uma vida nova.


— Uma garotinha, meu bem! Você conseguiu! É uma
menina!

Observei o médico erguer a criança ainda ligada à mãe pelo


cordão umbilical. Estava coberta por algo branco e sangue. Era uma

visão estranha e maravilhosa ao mesmo tempo. Assisti, sem me


mover, ao cordão ser cortado e o bebê ser envolto em uma toalha
pela enfermeira.

— Ela é linda como um anjo — disse a mulher com voz


embargada enquanto trazia a criança até nós. — Parabéns aos pais.
Fiquei chocado e curioso ao mesmo tempo. O que me

manteve imóvel, espiando a pequena de cabelos volumosos como


os da mãe.
— Mi girasol, mi hermosa niña. Minha María. — Lágrimas

desceram pelo rosto da garota, e ela soltou a minha mão para


acomodar a criança chorona nos braços. — Oi, meu amor. A mamãe
esperou tanto por você.

Encantado, aproximei-me mais para observar o rosto


pequenino da recém-nascida. Seus olhos estavam fechados, e ela
esticava os bracinhos e as pernas, completamente desorientada.

Tudo em seu corpinho parecia extremamente delicado. Como uma


coisinha frágil como aquela poderia enfrentar o mundo?
— Deus, você é linda. Tão linda…

A garota continuava a chorar, mas seus lábios estavam


esticados em um sorriso. Não consegui evitar a beleza da cena, e
quando dei por mim, também senti meus lábios repuxarem.

— Muito bem, senhora Mead. Essa princesa precisa ser


limpa e examinada agora. — Ela tirou o bebê dos braços da mãe e

sorriu. — Mas a outra obstetra e as enfermeiras virão cuidar da


senhora. Senhor Mead, vamos precisar das roupinhas e das coisas
da bebê. Sua esposa não entrou com nenhuma bolsa, é preciso

trazer as coisas da sua filha para o quarto em que a mãe ficará o


mais rápido possível.
Sem saber o que dizer, apenas concordei com um aceno de
cabeça. A enfermeira e o médico deixaram a sala de parto.

— Obrigada. — A garota voltou a segurar minha mão.


— Você já estava em trabalho de parto há algum tempo,

quando a encontrei — afirmei, dirigindo meu olhar para o rosto dela.


O parto havia sido muito rápido, e mesmo com o pouco
conhecimento que tinha sobre o assunto, eu sabia que era algo que

demorava algumas horas. — Quer que eu ligue para alguém?


— Não há ninguém para ligar — respondeu. — E você
estava certo, eu já estava vindo para o hospital.

— Sozinha?
Ela apenas assentiu com a cabeça.
Meu instinto de advogado soube imediatamente que ela

escondia alguma coisa. A garota desviou os olhos dos meus quando


percebeu minha investigação silenciosa e depois soltou a minha
mão.

— Você pode ir agora — começou —, nós vamos ficar bem.


As palavras dela me indicaram justamente o contrário.

Recordei-me de que ela não estava com nenhuma bolsa quando a


encontrei. Como uma mulher sai, sabendo que está em trabalho de
parto, e não carrega nada consigo? Documentos, roupas para o
bebê… Eu reconhecia bem aquele olhar no rosto dela. Um olhar que

relatava nervosismo e medo. Já o tinha visto muitas vezes no


tribunal. Por isso não poderia evitar, de qualquer forma, a pergunta
que surgiu:

— Do que você está fugindo?


Pensei, por um instante, que ela gritaria comigo e me

acusaria pela pergunta indiscreta. Mas não aconteceu.


— Não estou fugindo de nada.
Uma negação rápida demais. Com voz trêmula e aguda.

Mentira.
Eu não devia me meter mais, mas não pude evitar.
— Você ao menos tem para onde ir com um bebê?

Merda. Meu tom soara agressivo. Como o jurista intimidador


que eu era.
Ela começou a soluçar, e seus ombros se desmancharam

diante de mim. Um desespero cru vindo à tona.


— Não, eu não tenho! — Ela me olhou com lágrimas no
rosto. — Não tenho casa e todo o meu dinheiro foi roubado!

Também não tenho roupas para a minha bebê, mas não quero a sua
pena. Eu posso cuidar de mim mesma e da minha filha… No vine a
este maldito país para desistir… Eu… Eu…
Ela irrompeu em uma nova crise de choro, e eu me senti o
pior tipo de crápula. Sutileza nunca foi o meu forte, e eu havia
abordado o assunto como o advogado de sempre, esquecendo-me

da delicadeza do momento. Ela havia acabado de ter um bebê!


— Desculpe-me, isso foi muito insensível da minha parte.
Na verdade, tinha sido brutal, visto que meus instintos

tinham acertado e a garota parecia estar em uma situação de


vulnerabilidade sem igual.
Tentei tocar em sua mão para ter sua atenção, mas ela a

afastou de mim.
— Eu nem conheço você. É melhor você ir.

E era o que eu queria fazer. Não era hipócrita a ponto de


não admitir para mim mesmo que aquele era o último lugar em que
eu gostaria de estar. Porém o senso de responsabilidade continuava

em mim.
Merda.
Como eu tinha conseguido me meter numa situação tão

complicada em um dia tão comum? Uma grávida estrangeira e


desamparada.
— Escute…

Comecei, mas ela me interrompeu.


— Vá embora. Eu já disse que posso me virar sozinha.
— Não é simples. Eu quase atropelei você. É minha

responsabilidade.
— Não é mais. Estou liberando você, senhor Mead. Agora
me deixe, eu estou cansada.

Eu ia respondê-la, quando a enfermeira surgiu outra vez


com o bebê nos braços. Também estava acompanhada de outra
equipe médica. Meu tempo a sós com ela não tinha durado um

minuto.
— Ah, senhor Mead. Ela precisa descansar um pouco.
Também precisa ser cuidada e examinada. — Ela colocou a criança

de volta nos braços da garota. — Por favor, venha comigo para


cuidar do que faltou nos papéis, e vamos precisar de roupas

quentinhas para esse anjinho. Está congelando lá fora.


A pequena frágil estava envolta em um cobertor espesso de
cor branca como a neve que caía do outro lado da vidraça. Seus

olhinhos pequenos se abriram momentaneamente, e por um


instante, pareceram focar-se na minha direção. Alguma parte de
mim, que eu ainda não conhecia bem, quis responder àquilo.

— Senhor Mead? — chamou a enfermeira quando já estava


na porta.
— Certo. — Suspirei, dando-me por vencido e aceitando ser

enxotado pela jovem mãe.


Antes de chegar à porta, entretanto, lancei um último olhar
para a cama. Os olhos castanho-esverdeados dela se fixaram nos

meus. A intensidade deles desencadeou uma emoção estranha no


meu estômago. Olhei novamente para o rostinho da recém-nascida,
e quando passei pela porta de saída, já sabia exatamente a atitude

que devia tomar.

ROX

O estranho de ombros fortes e olhos inquisidores finalmente


desistiu. Eu devia ficar aliviada por isso, mas não fiquei.

Mais lágrimas vieram aos meus olhos.


Nenhuma situação que vivi até aquele momento havia sido
tão difícil e aterrorizante. Nem mesmo quando abandonei às
pressas Tijuana, no México, no meio da noite, e parti para San

Diego, na Califórnia.
É claro que, naquela época, meu bebê era do tamanho de

um grão de feijão e eu achava que fazia a melhor escolha ao vir


para os Estados Unidos. Vinha lutando muito desde que cheguei ao
país. Deixando de lado minha formação acadêmica e pegando os

empregos mais indesejados, mas também os mais difíceis de serem


rastreados por alguém.
Tinha sido garçonete, faxineira e até atendente de suspeitos

bares de beira de estrada. Não tinha recusado nem temido nada.


Mesmo quando parecera loucura deixar San Diego e encarar o outro
lado do país, foi o que fiz. Tinha aceitado a ideia insana de Nice,

uma amiga que conheci enquanto trabalhava nos bares, e vim para
Washington.
Tudo para conseguir o máximo de grana possível até o bebê

nascer. Economizando cada centavo.


Mas as coisas acabaram dando certo para Nice primeiro.
Ela encontrou um homem decente e se apaixonou. Charles era

médico, e quando recebeu uma maravilhosa proposta de emprego


em Indiana, quis levá-la com ele. E pelas fotos que ela me enviava,
agora os dois moravam em uma daquelas bonitas casas de
subúrbio americano. Exatamente como nos filmes.
Fiquei muito feliz por ela. Sabia que as coisas não tinham

sido fáceis para Nice até ali. Ela tinha uma irmãzinha doente em
San Diego e uma família grande que dependia muito do pouco

salário que sua filha mais velha enviava. Então era muito bom vê-la
respirar um pouco. E não achei certo segui-la para ser um problema

velho e perigoso em sua vida nova.


Entretanto, acabei precisando encontrar outro lugar para
morar quando Nice se foi. Conheci Billie Colton quando fui fazer um
bico como faxineira em um estúdio de tatuagens. Ela estava lá com
uma loira que tinha parte do cabelo raspado e que tatuava algo nas
costas.

Billie tinha o cabelo escuro e curto rente à nuca. E enquanto


fumava do lado de fora da loja e eu comia como almoço um
minguado cachorro-quente, nós duas engatamos uma conversa
banal. Todavia, de alguma forma, acabei deixando escapar que
precisava de um lugar barato para morar. E rápido.

Ela me ofereceu seu apartamento de imediato. Avisou que a


localização não era das melhores, mas que era barato e tinha uma
estação de metrô bem perto.
Lembro-me de dar uma resposta vaga quando ela me deu
seu telefone de contato. Eu não a conhecia e fiquei desconfiada
com a facilidade com a qual ela queria abrigar uma estranha sob

seu teto. Contudo o tempo passou, e por mais que eu procurasse,


não consegui achar nada melhor.
No final acabei ligando para Billie. E acabei me mudando
para o prédio deteriorado no Southeast de Washington. Mas, por
causa disso, agora estava sem teto, sem documentos e sem acesso
ao escasso e suado dinheiro que eu tinha no banco.

Como eu conseguiria cuidar da minha filha assim? Como


conseguiria protegê-la quando não conseguia proteger a mim
mesma?
Um soluço irrompeu da minha garganta.
Parecia que eu estava sozinha mais uma vez. Como estava
quando ele me encontrou. Quando ele me prometeu segurança,

mas na verdade me levou para um mundo muito mais obscuro e


sombrio.
Apertei as pálpebras com força quando o nome dele tentou
surgir na minha mente.
Não podia pensar no passado agora. Tinha que me focar no

presente e encontrar uma solução. María chegou ao mundo e


dependia de mim para que essas sombras não a alcançassem.
Com um suspiro pesado, deixei minha cabeça pender sobre
os travesseiros.
Podia estar cansada, mas depois de ver as faces coradas
da minha menina, estava mais obstinada do que nunca. Ninguém

tocaria em um só fio de cabelo dela.


Não antes de passar por cima do meu cadáver.
Você nunca vai estar sozinha
De agora em diante.

— NICKELBACK, “Never Gonna Be Alone”.

SAM

Aquilo havia mesmo acontecido? Eu estive mesmo, ainda

com meu terno profissional do dia, na sala de parto com uma

desconhecida?
Mesmo duas horas depois, quando eu retornei à

maternidade, tudo soava como um delírio.

E nada parecia menos bizarro, mesmo eu tendo trocado o


terno formal por calças e um suéter azul-marinho. Na verdade,

ficava pior quando eu olhava para o que tinha nas mãos. Uma bolsa
de maternidade com roupas e vários utensílios comprados às

pressas pelo meu assistente, em uma boutique de bebês.


A estranheza na voz de Mark, quando solicitei essas coisas

por telefone, não saía da minha cabeça. Eu sequer queria imaginar

os pensamentos que devia ter despertado nele. Mark era um jovem


no início do seu curso de Direito que desejou trabalhar comigo,

mesmo como um simples assistente, por pura admiração. Ele sabia

que eu era sério, meticuloso e implacável.


E isso com as mulheres também.

Ou seja, bebês surpresas não cabiam na vida de um homem

assim. Eu sempre tive cuidado e uma vigilância rígida para não ser
pego em nenhum golpe do tipo. Meu interesse em ser pai era

inexistente. Simplesmente porque eu jamais seria um bom pai. Não


tinha aprendido o ofício.

E, no entanto, ali estava eu. Com uma bolsa rosa nos

ombros e um buquê de flores — porque a garota da boutique tinha

dito ao meu assistente que flores eram tão essenciais quanto a

bolsa para uma nova mamãe — entrando em uma maternidade,

numa sexta-feira à noite, e sendo recebido por sorrisos carinhosos


de enfermeiras com semblantes de matronas italianas. Algumas até

deixavam escapar um suspiro.


Parecia coisa de filme. De filme de terror.
Em que merda você se meteu, Sam Mead?

— Em uma das grandes — falei para mim mesmo enquanto

parava diante da porta do quarto que me indicaram na recepção.

Então respirei fundo.

Iria ser simples e direto, ao terminar minhas

responsabilidades com a garota naquele momento. Daria a ela as


roupas para a bebê e uma boa quantidade de dinheiro, e estaria

livre novamente. Acordaria no sábado pela manhã como se nada

daquilo houvesse acontecido.

Sim, vai dar certo.

Com o pensamento firme e com argumentos dignos de um

promotor na ponta da língua, caso fosse necessário, bati duas vezes

contra a madeira pintada de branco.


Não houve resposta.

Tentei uma segunda vez e esperei. Nada.

Como nunca fui conhecido por ter pavio longo, empurrei a

porta.

A garota estava dormindo. Em paz. Como se não tivesse

acabado de transformar minha sexta-feira em um perfeito


pandemônio.
Absurdo.

Ainda assim, com um suspiro resignado, aproximei-me da


cama. Talvez eu simplesmente deixasse a bolsa, as flores e o

dinheiro. Seria ainda mais fácil se fosse assim. E eu estaria


cumprindo a minha responsabilidade, não estaria?
Afinal, você sequer a atropelou. Seu carro nem encostou

nela, apelou o advogado em mim.


Mesmo assim você prestou socorro e pagou a conta do

hospital.
E o que mais se podia esperar de um sujeito decente?

Estava, portanto, tudo certo.


Afastei a bolsa dos ombros e preparei-me para deixá-la
junto com as flores, sobre o aparador ao lado da cama. Nesse exato

momento, a garota resmungou.


Virei-me na mesma hora para fitá-la, pensando tê-la

acordado. Não tinha, mas seus olhos se mexiam rapidamente por


debaixo das pálpebras com cílios longos, denunciando um sono

perturbado.
Possivelmente algum pesadelo, até.
Contudo, meus olhos não resistiram à tentação de analisar

seu rosto. Ela era bonita. Eu não tinha notado antes, devido à
situação. Mas agora, e mesmo com o rosto ainda inchado e um

pouco vermelho, estava claro que se tratava de uma bela mulher.


Queixo delicado e maçãs do rosto altivas. E a boca…

Nesse momento, os lábios dela se moveram


silenciosamente, o que me fez notar que eram carnudos e perfeitos.

Desenhados perfeitamente para os mais…


O rumo do pensamento forçou tanto os meus limites que
precisei dar um passo para trás.

Por sorte, meu nome foi chamado da entrada,


interrompendo qualquer análise desagradável que eu pudesse fazer

a respeito do assunto.
— Ah, senhor Mead. Que bom que voltou — sussurrou a
mesma enfermeira que havia colocado a menina nos braços da

garota, mais cedo. — E vejo que trouxe as coisinhas da sua filha.


Venha comigo, ela está no berçário e vai precisar disso.

Olhei bem para a senhora rechonchuda com cabelos da cor


de trigo, dessa vez. Hermione, para ser mais exato, segundo o

crachá que finalmente consegui observar. Pensei em descarregar.


Dizer à afetuosa senhora Hermione Mills que a criança no berçário
não tinha qualquer relação comigo. Nem a mãe dela, que dormia

tranquilamente atrás de mim.


Mas quando a enfermeira Mills abriu outro sorriso largo,
desisti.
A mulher não tinha culpa da minha péssima sexta-feira e do

meu azar tremendo. Teria de voltar ao Plano A. Esperar a garota


acordar e dispensá-la com um belo abono. Sem cenas em hospitais.

Por isso engoli o mau humor que subia como bile azeda
pela minha garganta e reorganizei os pertences nos ombros. Algum
dos meus desafetos pagaria por isso na segunda. Mas, naquele

momento, tudo que eu podia fazer era inspirar fundo e seguir a


senhora Mills pelo corredor.

ROX

Parecia um resquício de perfume masculino. Um perfume

forte e dominante.
Acordei sobressaltada com o cheiro, que de alguma forma

me lembrou de um passado recente.


Mas não havia ninguém no quarto, é claro. E não haveria
mesmo. Eu estava em Washington, a milhas de distância de
qualquer coisa que conheci no México. Ele não conseguiria me

achar ali. Eu tinha tomado cuidado com todos os radares possíveis.


Ainda assim, deixei a cama de imediato com uma

necessidade intensa de ver a minha filha e de segurá-la nos braços.


Porém, quando coloquei os pés no chão, quase me arrependi. O
quarto girou por um instante e fiquei tonta. Sentei-me de volta na

cama, mas não desisti. Esperei a tontura passar e tentei de novo.

Repeti isso três vezes, até conseguir caminhar de fato. O berçário


não ficava longe, mas os pontos e a exaustão do parto me

obrigavam a caminhar mais lentamente que o normal e escorando-

me na parede. Além disso, minha alimentação nos últimos dias tinha

ficado em segundo plano, com os turnos extras e difíceis no café.


Eu tinha notado, mais cedo, que os bebês não pareciam

apreciar nascer no inverno terrível de Washington. Sendo assim, o

berçário enorme abrigava apenas mais duas crianças, além da


minha bebê. Entretanto, quando cheguei diante do vidro, não havia

nenhuma criança ali.

Fiquei petrificada por um instante.


O pavor pulsou nas minhas veias com rapidez e se alojou no

meu coração.
Ah, Deus. Não permita. Por favor…

Um choro. Primeiro agudo e depois se acalmando. Eu tinha

me tornado mãe oficialmente há apenas algumas horas, mas


reconheci o lamento na mesma hora.

Dei a volta e empurrei a porta do berçário. Passei pelos

pequenos ninhos vazios na direção de onde vinha o choro. Afastei a

porta que aparentemente me separava da minha filha e…


Não estava preparada para o que vi.

— O senhor está indo bem para um principiante, senhor

Mead. Ela está se acalmando no seu colo.


— Está? — perguntou o estranho, olhando sério para minha

filha.

Ela se aconchegava na curva do braço musculoso dele e


seus soluços pareciam diminuir, mesmo ele não fazendo tentativa

alguma de embalá-la.

— Naturalmente pai e filha. — congratulou a senhora Mills.

— Nunca soube que eram tão frágeis.


A enfermeira riu.
— Não se preocupe, o senhor vai se acostumar. Deus deu

aos homens braços fortes justamente para protegerem os que não

podem fazer isso sozinhos. Além disso, os bebês sentem em quem


podem confiar. E sua garotinha parece já ter compreendido que o

senhor vai mantê-la segura.

Eu tinha observado toda a conversa sem ter noção alguma

de que estava fazendo isso. Até que o olhar doce da senhora Mills
me alcançou e ela sorriu.

— Ah, senhora Mead, a senhora parece bem melhor! — O

par de olhos escuros desconhecidos se voltou para a porta onde eu


estava na mesma hora. — Seu marido, um cavalheiro, trouxe essas

flores lindas para a senhora.

A enfermeira me estendeu um buquê de rosas brancas

delicadas, enroladas nas fitas cor-de-rosa mais elegantes que eu já


tinha visto na vida.

Demorei alguns instantes para processar e reagir a tudo

aquilo.
Por que aquele estranho tinha voltado? Ele sequer me

atropelara.

Acabei pegando as flores quando percebi que tinha deixado

a enfermeira com o braço esticado por tempo demais.


— Ah, sim. Obrigada. — agradeci, mas sem olhar para

quem de fato havia trazido o buquê.


— Ele também trouxe as coisinhas da pequena senhorita

Mead. Ela já era uma princesa, mas agora está vestida como tal. —

pontuou a senhora Mills alegremente, fazendo meu olhar cair nas


roupinhas novas e quentes que vestiam minha filha. Sem dúvida, ela

estava aquecida como nunca. — Mas acho que agora vocês

precisam de um tempo sozinhos. Pais de primeira viagem sempre

precisam de um tempo sozinhos para babarem no bebê.


E então a enfermeira Mills riu alto do seu próprio comentário

e saiu, deixando para nós um silêncio pesado por toda a estranheza

do momento.
Acabei empurrando meu constrangimento para o fundo da

mente e me preparei para encarar de vez o tal senhor Mead. Mas

quando me virei e entreabri os lábios, aqueles olhos investigativos

me pegaram completamente desprevenida:


— Você é uma fugitiva.
SAM

Ela abriu e fechou a boca. Suas ondas castanhas

balançaram levemente ao redor do rosto, como se ela tivesse feito o

movimento mínimo de negação.


Sinal claro de mentira.

— Você já me acusou disso antes. — respondeu um

instante depois.
E respondeu calma. O que apenas acentuou minha certeza.

— E você veio do México. — continuei.

— Não acho que seja uma vergonha — replicou com altivez.

— Está ilegalmente neste país?


O rosto dela ficou rígido. Os lábios formaram uma linha

tensa e foram repuxados nos cantos.

Merda. Seja menos agressivo se quiser arrancar qualquer


coisa dessa mulher, Mead!

— Desculpe. Sei que isso não é da minha conta. — Tentei

amenizar.

— Já é um começo que você saiba. — Ela se aproximou e


tirou a garotinha dos meus braços. — Mas não. Não estou

ilegalmente nos Estados Unidos.


Ela me encarou nos olhos quando disse aquilo. Sem

dissimulação e sem explicações adicionais. Portanto estava dizendo


a verdade dessa vez. Mas isso não excluía o fato de que aquela

mulher escondia algo.

— Você é rápido em fazer acusações, mesmo quando

sequer sabe o nome da mulher em questão, senhor Mead.


Mordaz e implacável. Uma parte de mim gostou mais

daquilo do que o meu bom senso autorizava. Entretanto, como em

um tribunal, não aceitei a derrocada.


— Seu nome é Roxanne Rivera.

Ela ficou visivelmente assustada. Então resolvi ser

benevolente.
— Estava escrito no crachá do seu vestido, quando a trouxe

para o hospital.

Roxanne ainda me encarava desconfiada. Percebi que teria

que ser mais gentil. Cavalheiro, quem sabe, como a enfermeira Mills
erroneamente acusara-me de ser.

— Sou Samuel Mead. — Estendi a mão para ela. — Sam,

para a maioria.
Os olhos incríveis se alternaram entre o meu rosto e a

minha mão. Depois ela olhou para a bebê em seus braços. Mas
quando achei que seria deixado ali para sempre, Roxanne Rivera
colocou sua mão na minha.

— Roxanne de La Cruz Rivera, como já descobriu, senhor

Samuel Mead.
A mão, pequena e quente, sumiu quando a apertei, usando

uma delicadeza completamente desconhecida para mim.

— Pode me chamar de Sam. — insisti.


— Não sou a maioria.

Sorri. Foi inevitável.

Ela também sorriu, e seu rosto inteiro se iluminou,

roubando-me o fôlego por um segundo. Tive uma intuição rápida,


mas precisa, de que aquilo não era um bom sinal.

— Desculpe-me se eu tenho sido rude. Não é o meu modo

natural de ser. — Ela começou a embalar a bebê, que resmungou.


— Mas é que as coisas aconteceram tão de repente… E o parto,

Deus! Aquilo foi mais que estressante.


Mas Roxanne disse aquilo sorrindo para a filha em seus
braços.

— Acho que só posso imaginar — consegui dizer.


Afinal, por benefício divino, eu jamais iria parir um bebê.
Então apenas podia imaginar. Apesar de ter recebido uma boa dose
de estresse sendo envolvido também em tudo aquilo.
— Eu agradeço o que fez por mim, senhor Samuel Mead.
Ela repetiu meu nome, e um pouco do seu sotaque

mexicano surgiu. De alguma forma, aquilo transformou meu próprio


nome em algo exótico, mais interessante de ser ouvido. Depois
Roxanne caminhou em sua folgada camisola branca de hospital

para o bercinho de vidro solitário, próximo a uma das paredes. Ela


colocou a bebê sonolenta lá e depois beijou sua testa.
E então Roxanne finalmente ergueu a cabeça para me fitar.

Percebi que era a minha vez de falar alguma coisa.


— Não precisa agradecer. — Enfiei as mãos nos bolsos da
minha calça. — E não se preocupe com nada, a conta do hospital já

foi paga. É o mínimo que posso fazer.


Assim que terminei de soltar a frase, me arrependi. Quando
alguém diz que algo “é o mínimo que se pode fazer”, as pessoas

tendem a pensar que existe um máximo e tentam arrancar mais.


Todavia, a mulher diante de mim ficou em silêncio por todo

um instante. E quando falou, a honestidade estampada em seu


rosto era sem igual.
— Na verdade, nada disso era sua obrigação, senhor Mead.

O senhor sequer me atropelou. Foi apenas um susto, e a bebê já


estava vindo, de qualquer forma.
Aquele nível de sinceridade e desinteresse me pegou
desprevenido.

— Ainda assim…
— Ainda assim, repito — interrompeu-me com um olhar

sério. — O senhor está livre de qualquer pendência que imagina ter


comigo.
Era o momento, eu sabia. A hora de terminar tudo ali. Eu

precisaria dizer apenas mais duas palavras e nunca mais a veria na


minha frente novamente. Tudo aquilo viraria uma história para
entreter Peter em algum happy hour.

Mas então aconteceu. Os olhos dela pareceram ficar


desfocados por um instante. A mão que se apoiava no bercinho
vacilou.

— Senhorita Rivera?
— Eu não me sinto… não sinto…
Precisei agir rápido. E com uma única passada. Então, por

mais sem nexo que parecesse, pensei no tolo herói sobre o qual
Peter falara naquela mesma tarde, mais cedo, no exato momento

em que segurei Roxanne Rivera em meus braços.


ROX

Desmaiar era algo horrível. Foi o que percebi em meus vinte


e três anos de existência. Em um instante, você está ótima, e no

seguinte, você parece estar sendo sugada para dentro de um


buraco negro na sua mente.
— Ela deve ter se esforçado demais — afirmou uma voz

masculina desconhecida.
— Isso não é o que importa. Um hospital deste calibre
precisa ter mais cuidado com seus pacientes. — A nova voz

também era masculina, mas parecia mais implacável e conhecida.


— Alguém tinha que tê-la orientado. Ela não deveria ter ficado

sozinha. Eu poderia muito bem processá-los pelo descuido. Colocar


os tribunais de Washington contra vocês!
— Acalme-se, senhor Mead, por favor. — Agora a primeira

voz estava temerosa. — Nós garantimos ao senhor que sua esposa


ficará bem.

Silêncio.
Finalmente encontrei forças para abrir os olhos.
O primeiro rosto que vi era rechonchudo e pareceu aliviado

no mesmo instante. Era um homem asiático de meia-idade. No


crachá estava escrito Dr. Mike Yoshida, e lembrei-me vagamente do
seu rosto durante o meu parto.

— O que… o que aconteceu? — Minha voz saiu


terrivelmente grogue.

— Você desmaiou. — Olhos da cor das asas de um corvo


pararam no meu rosto.
Foi o suficiente para eu me lembrar da última visão que tive.

Ele viera rápido na minha direção.


— Na verdade, a senhora sequer deveria estar de pé. — O
médico segurou meu pulso. — Como se sente?

— Fraca — respondi, sincera.


— Quando foi a última vez que se alimentou? — O Dr. Mike
tirou uma lanterninha do bolso e começou a analisar minhas pupilas.

Tentei me lembrar da minha última refeição, mas só


consegui me recordar da bandeja que ignorei tranquilamente, pouco
antes de ir ao berçário.
Droga.
— Acho que… que não comi. — Encolhi os ombros depois
que o médico afastou a luz dos meus olhos. — Quero dizer, eu

queria muito ir até o berçário ver a minha filha e…


Um palavrão, que não reconheci no meu inglês, veio da
direção da janela onde Samuel Mead estava.

— Você acabou de parir um bebê e decidiu não se alimentar


para ficar perambulando por aí? — Ele avançou de volta, na direção
da minha cama. — O que você tem na cabeça?

Eu ia responder à altura, mas o Dr. Mike nos interrompeu.


— Provavelmente deve ser apenas isso, fraqueza pelo gasto
energético excessivo e pouca alimentação — Ele parecia ainda mais

aliviado. — Mas vamos fazer exames para nos certificar. Vou pedir
para trazerem o jantar para a senhora.

O doutor Yoshida recolheu a prancheta na frente da minha


cama e começou a sair do quarto, mas depois se virou.
— E, por favor, senhora Mead, permaneça na cama. Se

precisar levantar-se, passe um tempo sentada antes. Também não


tente tomar banho sem a ajuda das enfermeiras ou do seu marido.
— Ele encarou Sam. — Por sorte, acho que não precisaremos dos

tribunais de Washington, senhor Mead.


E então ele finalmente saiu, deixando-me com meu suposto
e ameaçador marido. Um silêncio pesado se instalou. Sam Mead

deteve seus olhos furiosos em mim por um momento. Em seguida,


suspirou cansado e foi até a janela.
A exasperação ficou visível quando seus ombros subiram e

desceram várias vezes. Fazia sentido. Eu tinha sido um problema


para o homem, duas vezes seguidas.
— Obrigada mais uma vez, senhor Mead. Mas deve mesmo

ir embora agora.
Tentei ser direta e incisiva.
Ele não se moveu diante das minhas palavras. Também não

esboçou reação.
— Senhor Mead — recomecei, pensando que ele não tinha
me ouvido. Embora fosse pouco possível. — Eu disse que…

Ele se virou e me encarou. Por um tempo mais do que


cômodo e com a escuridão mais severa que eu já tinha visto no

olhar de alguém.
— Não vou embora até que se alimente bem.
E ele simplesmente foi até uma poltrona e se sentou.
SAM

Maldito senso de responsabilidade. Estava ali uma coisa da


qual eu gostaria de me livrar. As pessoas costumam dizer que
advogados como eu não possuem qualquer escrúpulo. Gostaria

mesmo de poder ignorar os meus naquele momento.


Mas, é claro, não podia.
Não diante daquele par de olhos frágeis e daquelas mãos

pequenas entrelaçando-se nervosas. Como uma mulher adulta


poderia parecer tão pequena naquela enorme cama de hospital?

Além disso, pude perceber uma sombra passar por seu


olhar quando a encarei. Aquilo foi o suficiente para me recordar de
algo que ela havia dito mais cedo.

“Não tenho casa e todo o meu dinheiro foi roubado! Também


não tenho roupas para o meu bebê, mas não quero a sua pena.”
Parecera um apelo muito sincero no momento. E se fosse

mesmo verdadeiro, eu não poderia simplesmente virar as costas a


ele. Ou poderia? Claro, eu planejava dar à garota algum dinheiro.

Ela poderia encontrar um local para ficar por algumas noites.


Mas algumas noites seriam o suficiente? Que tipo de
situação uma mulher tão jovem poderia estar passando, para se

dirigir a um hospital e dar à luz sozinha? Por que não ligara para
ninguém? Melhor, por que ninguém veio até ela? O pai da menina,

onde estava?
Eu sabia que perguntas como aquelas não eram da minha
alçada. Sobretudo, não tinham que ser.

Mas, ainda assim…


Que tipo de crápula abandona uma mulher e uma criança
em um momento tão frágil?

Mead, Mead. Quando é que você pensou nas mulheres


como frágeis?
Nunca. Desde que nasci e fui passado adiante, sem

remorso, ficou claro para mim que elas eram criaturas ardilosas.
Balancei a cabeça, tentando não pensar em coisas tão
inúteis. Nada disso mudava para melhor as minhas atuais

circunstâncias. Eu estava metido até o pescoço na situação mais


complicada do mundo. E de alguma forma, a cada segundo, eu
sentia que afundava mais. Que afundaria para sempre.
Soltei um suspiro e depois enfiei as mãos no bolso enquanto
fitava as paredes pálidas do corredor.
Roxanne estava amamentando a filha. Não achei adequado

ficar no quarto, mesmo com a enfermeira tentando arrastar-me de


volta para dentro e insistindo que aquele era um momento mágico
também para o pai.

Pai.
Que sacanagem irônica do destino. Logo eu, que havia
decidido jamais sair por aí propagando meus malditos genes

problemáticos.
Sequer me preocupei em dizer a verdade à boa mulher. Ser

um pai ou marido de ocasião era o menor dos meus problemas no


momento.
Puxei o telefone do bolso e busquei um contato. Peter

atendeu ao segundo toque.


— O que é, cara? É sexta-feira à noite. — Mas ele riu. — O
mundo jurídico não está pegando fogo, está?

— Preciso de um favor. E sei que conhece gente na polícia


mexicana.
— Ei, espera, cara. O certinho Sam Mead arrumou

problemas com a polícia internacional? O The Washington Post não


perdoaria essa jamais.
— Preciso que pesquise um nome. Que descubra algo

sobre Roxanne Rivera.


— É alguma gata internacional que você está tentando
ganhar? É mais fácil você levá-la para um lugar bacana. E não usar

o cabelo tão engomadinho como um nerd do Ivy League[1].

— Estou falando sério, Walter. — Passei a mão pelos


cabelos. — Ela é mexicana e diz que está legalmente no país, mas
ainda assim gostaria que procurasse isso com cuidado. A garota

acabou de ter um bebê, não precisa de mais problemas.


Silencio sepulcral.
— Você é o pai?

— Não.
— Que alívio. Porque essa, sim, seria a charge do ano. —

brincou, mas seu tom de voz estava mais sério. Escutei quando ele
se remexeu na cadeira. — Do que você realmente precisa, cara?
— De qualquer coisa. Mas seja sutil. O nome é Roxanne De

La Cruz Rivera. — repeti.


— Não se preocupe. Vou encontrar alguma coisa.
Agradeci e desliguei o telefone.
Mas o que eu queria encontrar? Alguém a quem entregar a

responsabilidade? Dificilmente ela teria um parente, já que viera de


outro país. Mas talvez tivesse amigos. Eu poderia ter simplesmente
perguntado isso a ela, em vez de pedir a Peter para sair fazendo

buscas em pastas sigilosas do governo mexicano.


Inferno.
Eu não estava pensando direito. Não mesmo. Talvez fosse

porque aquilo tudo era como levar uma pancada forte na cabeça.
Mas pensaria e perguntaria assim que entrasse naquele quarto
novamente. Faria o meu papel de deixá-la, juntamente com a

criança, com alguém que pudesse se responsabilizar por ambas.


E esse seria o fim daquela jornada bizarra.

ROX

— É importante que ela consiga ter uma boa pega para não

ferir o seu seio — orientou a enfermeira Mills. Ela tinha cheiro de


talco de bebê e um sorriso afetuoso que eu não via há muito tempo.

— Estou fazendo certo? — perguntei, cheia de receio,


acariciando com a mão livre a cabeça da minha filha.

— Está, sim, querida. Veja como ela está satisfeita.


Olhei para ela. Para a minha filha. E senti que tudo que eu
havia passado até ali tinha valido a pena. Cada emprego pesado

que enfrentei, cada noite escura que vaguei em um país estranho.


Eu faria tudo de novo apenas para viver aquele momento e senti-la
segura em meus braços.

María, meu bebê, viera com cabelos escuros e volumosos


até demais para quem estava em um útero apertado. Ela era
saudável, deixando-me profundamente aliviada ao notar que, por

mais sofridos que houvessem sido, os últimos meses não afetaram


seu desenvolvimento em nada. Minha filha era forte. E eu não
imaginava, mas aquela força era justamente o que eu vinha

precisando para renovar a minha.


— Mi pequeña alegría — falei, emocionada, e ela abriu os
pequenos olhinhos para mim por um instante. Não contive as

lágrimas. — Eu prometo que nunca vou deixar nada machucar você,


mi amor. Nunca.
Então ouvi o som de alguém fungar. Ergui a cabeça, e a
senhora Mills enxugava suas próprias lágrimas.
— É sempre tão lindo, sabe? Ver uma família nascer —

anunciou. Sorri para ela. — E vocês, pelo visto, serão uma família
bastante protetora com relação uns aos outros.

Fiquei confusa por um instante, mas a enfermeira se


explicou logo em seguida.

— Seu marido ameaçou processar meio hospital… — Ela


riu. — Bem, talvez ele tenha ameaçado o hospital inteiro com
processos quando você desmaiou, querida. Dá para ver que ele a
ama muito.
Ah, Deus. Que constrangimento.
Mas até mesmo a explicação que surgia na minha mente foi

interrompida antes que saísse pela minha boca, pelo toque agudo
de um telefone celular.
— Ah, é o meu. — A senhora Mills procurou algo dentro do
jaleco. — É claro que não costumo usar o celular durante o trabalho,
mas minha neta de cinco aninhos esteve muito doente e pode ser

uma emergência. Com licença, senhora Mead.


Ela levou o celular à orelha. A conversa foi rápida, e pelo
rosto da senhora Mills as notícias haviam sido boas.
— Ela está bem — revelou. — A febre parece ter
desaparecido de vez.
— Que ótima notícia — disse, sincera, enquanto recolhia

meu seio e ajudava María a se acomodar no meu colo para dormir.


Meu útero estava dolorido após a amamentação, mas a
senhora Mills já me alertara de que aquilo aconteceria. Quando
ergui a cabeça, observei-a guardar o celular. Foi nesse momento
exato que tive uma ideia.
— Senhora Mills, a senhora poderia me emprestar seu

celular? É que eu queria ligar para uma amiga e o meu não está por
aqui.
Pensei que ela fosse ficar desconfiada, mas não aconteceu.
Com um “É claro, meu bem” e um sorriso, ela simplesmente me
estendeu o telefone. Pensei que o mundo precisava de mais
pessoas gentis assim, dispostas a ajudar e confiar.

Peguei o celular com a minha mão livre e digitei o número


de Nice. O único que eu sabia de cor.
— Enquanto você faz sua ligação, eu vou ver como estão as
outras mamães do dia. Se precisar de qualquer coisa, é só apertar a
campainha.
Concordei enquanto esperava na linha, grata porque a
conversa seria mais tranquila com privacidade.
Mas a conversa não aconteceu. Tentei pelo menos quatro
vezes seguidas, mas Nice não atendeu o telefone. Sem alternativas,
resolvi deixar uma mensagem na caixa postal.

— Oi, Nice, aqui é a Rox. Sei que sua vida anda tumultuada
com a mudança para Indiana, mas queria te dizer que María
nasceu. Esta noite. Estou no hospital agora. — Olhei para a minha
nova razão de viver em meus braços. — Ela é linda e saudável. Só
que…
Minha voz ficou embargada.

Eu tinha evitado pensar nas implicações que viriam quando


eu colocasse os pés para fora do hospital. Vinha tentando me
concentrar apenas na minha filha. Mas agora, com ela nos braços, o
medo começava a voltar com força total.
— É que Billie me roubou. Ela nunca repassou para o
senhorio a minha parte do aluguel do apartamento. Ou a dela. O

dono nos despejou, mas não antes de Billie sumir com todos os
meus pertences. Estou sem meus documentos de imigração e sem
acesso ao meu dinheiro no banco. Por favor, me ligue de volta.
Preciso de ajuda, porque não tenho para onde ir com a minha
filha… Eu estou tão sozinha…

Não percebi que as lágrimas estavam me cegando até que


uma mão forte surgiu diante dos meus olhos. E tinha um lenço nela.
Desliguei o celular e ergui a cabeça de imediato. Encontrei
os olhos sérios de Samuel Mead. A expressão no seu rosto era
inescrutável. Não precisava perguntar para saber que ele tinha

ouvido cada palavra desesperada que saíra da minha boca.


— Você não está mais sozinha, senhorita Rivera. — Ele
olhou para a minha bebê. — E não ficará enquanto eu estiver por
perto.
Vou mantê-la sã e salva
Quando não houver ninguém para confiar

— BANNERS, “Start a Riot”.

SAM

Naquele momento, eu percebi que tinha optado por um


caminho sem volta. E não tinha feito isso com a minha última frase.

Não, tinha sido muito antes. Talvez quando eu a peguei nos braços.

Ou talvez quando segurei a pequena bebê naquela salinha de


amamentação, há meia hora.

Eu não sabia. Minha única ciência é de que não podia

simplesmente virar as costas e deixar mãe e filha à própria sorte.


Era fato que eu não havia sido criado para fazer muito melhor do

que isso, mas faria. Não havia qualquer alternativa diante do meu
senso de honra autodidata.

— O senhor não…

— Não me diga que minha ajuda é desnecessária, quando


nós dois sabemos que não é verdade.

Ela não disse nada, mas aceitou o lenço que eu oferecia,

instantes depois.
— Obrigada.

Assenti com a cabeça. A recém-nascida no colo dela

ressonou.
— Não queria ter ouvido a conversa. Imaginei que tivesse

me ouvido entrar e por isso me aproximei. Peço desculpas —


recomecei —, mas a senhorita disse que sua colega de apartamento

a roubou?

Foi a vez dela de assentir com a cabeça. Em seguida,

Roxanne baixou o rosto. Parecia envergonhada e exausta por toda

a situação. De repente, percebi que ela estava se sentindo

humilhada demais para rebater minhas falas como antes.


Não gostei daquilo. Roxanne era quase uma desconhecida

para mim, mas tinha me mostrado, em poucas horas, que se tratava


de uma mulher forte. Destemida. Ver uma mulher se sentindo
desamparada me causou mal-estar. Porque, apesar do que diziam

sobre mim nos jornais, nenhuma das esposas socialites que

enfrentei, durante os acordos de divórcio, pareceram

desamparadas. Nunca. Aquilo era uma experiência nova para mim.

Ainda assim, eu precisava insistir. Porque só poderia ajudá-

la se ela se abrisse comigo.


Você quer que ela confie em um cara que conheceu há

algumas horas, Mead?

Eu sabia que seria difícil, mas a situação toda era incomum

e complicada. Nenhum de nós tinha muitas vantagens sobre ela.

— Quando isso aconteceu?

Ela suspirou, derrotada, mas não me olhou quando

respondeu.
— Foi pelo início da tarde.

Porra.

— Da tarde de hoje? — perguntei como um idiota.

Ela assentiu.

— E você sabe mais alguma coisa dela? O nome completo?

Nome de algum parente?


Roxanne me olhou de um jeito interrogativo. Como se

avaliasse se valia mesmo a pena confiar em mim.


— A senhorita pode confiar em mim — reforcei, mesmo sem

ter prova alguma para convencê-la. Ao menos tentei emendar o que


podia. — Eu sou advogado, senhorita Rivera. Tenho contatos
importantes. Posso e estou disposto a ajudá-la a resolver seu

problema.
Principalmente porque tudo também estava, aos poucos, se

tornando meu problema.


— E por que… — A voz dela ficou embargada por um

instante, mas em seguida ela respirou fundo. Então olhou para a


menina em seus braços. Momentos depois, ela pareceu encontrar
forças para recomeçar. — Por que um homem como o senhor se

importaria em me ajudar? Não seria mais fácil simplesmente sair


pela porta?

Ela indicou a saída com um movimento elegante do queixo


que capturou toda a minha atenção por um instante.

— Sim, seria — respondi simplesmente. Contudo, mantive


meu olhar firme no dela, indicando que faria justamente o contrário.
Ela não tremeu. Não vacilou diante do mesmo olhar frio que

eu costumava usar para vencer as piores batalhas jurídicas.


Impressionante.

A palavra adentrou minha mente sem ser convidada. Tive


um pressentimento terrível de que nunca mais sairia de lá.

— Eu sou uma mulher com problemas demais, mesmo para


um homem como o senhor.

Não tive dúvidas diante do recado transparente que ela quis


passar. Seja lá quem fosse Roxanne Rivera, ela estava me dando
um aviso. Um alerta de que seria mais favorável simplesmente

escapar.
Entretanto, o reflexo de dor que passou por seu olhar

quando me disse aquilo foi impossível de ser ignorado. Ainda assim,


fiquei surpreso por ter notado. Mais surpreso ainda pelo instinto que
desencadeou em mim.

Abafei-o rapidamente em um lugar onde nunca poderia


voltar a analisá-lo.

— Problemas não me assustam, senhorita Rivera. Estou


certo de que tenho capacidade para resolvê-los. — E antes que ela

pudesse protestar novamente, emendei: — Diga-me o que sabe


sobre a sua colega de apartamento e dou-lhe a minha palavra,
senhorita, de que vou encontrá-la, e também os seus pertences.
Houve um momento de silêncio, com uma troca de olhares
repleta de vontades opostas. Por um segundo, pensei que perderia
a briga. Exatamente quando tive essa impressão, Roxanne

entreabriu os lábios.
— O nome dela é Billie. Billie Colton.

Puxei meu celular do bolso e tomei nota.


— Sabe mais alguma coisa sobre ela?
A bebê, que até então estivera calada em sono, resmungou.

Percebi que tinha sido pelo meu tom de voz, e me vi diminuindo o


timbre.

— Quero dizer, sabe se ela tem algum parente na cidade?


Quem sabe fora dela?

— Uma vez a ouvi dizer que tinha família em Wisconsin.


Talvez em Madison. — Ela franziu as sobrancelhas delicadas,
tentando se lembrar bem. — Não! Não é Madison, é Mayville. Sim,

tenho certeza. É Mayville.


Gravei as informações no meu bloco de notas.

— Ótimo. Creio que isso será o suficiente.


Mas quando olhei para a garota, ela ainda parecia
desanimada.

— Qual é o problema?
— Não sei se ela voltou para casa.— Ela encolheu os
ombros de forma graciosa. — Billie não se dava nada bem com os
pais. Acho que nem falava mais com eles. Pelo menos, nunca a vi

ligar ou ter uma conversa desde que fui morar no Southeast.


Bem, é claro que essa era uma péssima notícia. Se a tal

Billie não tivesse qualquer vínculo com os pais, seria mais


demorado encontrá-la.
— Ainda assim, acredito que não seja uma missão

impossível. — Não sabia qual de nós dois estava tentando animar.

— Demorada, talvez.
Ela acariciou os cabelos da bebê antes de olhar para mim.

— Acredita que tenho chances de encontrá-la?

— Farei com que a encontre — garanti. — E farei com que

lhe devolva tudo o que roubou.


A gratidão que brilhou nos olhos dela, assim que deixei

aquelas últimas palavras escaparem, foi totalmente inesperada.

Gratidão, vinda de mulheres e que não tivesse relação com


momentos de prazer intenso, era algo que eu nunca havia

testemunhado até ali.

— Muito obrigada, senhor Mead.


Um nó estranho se formou no meu estômago. E ficou pior

quando ela sorriu um pouco.


Tentei não pensar no que aquilo poderia significar.

Principalmente porque o mais sensato, e provável, era que não

significava nada.
Concentre-se, Mead.

— Isso, no entanto, não será resolvido neste exato

momento.

— Eu compreendi. — Assentiu.
Suspirei. O som atraiu o olhar dela até o meu. Aqueles olhos

estavam repletos de medo e angústia.

De repente, minha mente fechou as pontas. Tudo o que ela


havia dito antes era verdade. Tanto o roubo quanto a parte de não

ter para onde ir…

Congelei. Um bolo se alojou na minha garganta, mesmo


assim vi-me empurrando a pergunta para fora:

— Você não tem um parente ou amigo na cidade?

— Não — respondeu e desviou o olhar rapidamente.

Cerrei os punhos, consciente, de uma hora para outra, que


toda aquela situação ainda iria piorar.

— Não tem para onde ir?


Ela já tinha me dito, direta e indiretamente, mas escapar da

pergunta não era uma opção. Porque, se houvesse uma

confirmação, eu precisaria…
— Não. — Os ombros dela tremeram.

Deus, ela ia chorar.

Dinheiro, ponderei rapidamente. Com dinheiro ela poderia

encontrar um bom lugar para se instalar. Eu poderia financiar.


— Mas eu vou ficar bem. — Ela me surpreendeu com uma

voz firme, embora seus olhos deixassem claro o vestígio de choro

quando me fitou. — Eu e minha filha…


Mas ela cortou a frase e, subitamente, levou a mão livre à

cabeça. Entretanto, mesmo sentada na cama, seu corpo pareceu

vacilar com a bebê nos braços.

Auxiliei-a de imediato, amparando-a rapidamente.


— Você está bem?

— Só fiquei um pouco zonza.

— Outra vez — falei, encarando-a.


E enquanto a garota me encarava de volta, soube que meu

plano tinha um furo. Ela parecia debilitada demais. Estava até

visivelmente magra para uma mulher que estivera recentemente

grávida. Não poderia simplesmente enfiá-la em um apartamento


naquele estado. Ainda por cima com uma criança. Se algo

acontecesse, a maldita culpa seria meu calvário para sempre.


— Eu vou ficar ótima. — insistiu.

— Estou começando a suspeitar que esteja tentando

convencer a si mesma e não a mim ao repetir tanto isso, senhorita


Rivera.

Roxanne afastou o braço das minhas mãos.

— Já ajudou demais, senhor Mead. Não quero mesmo o seu

dinheiro.
Ela parecia muito obstinada na decisão. Na mesma hora,

uma ideia se arrastou pela minha mente.

— O senhor me parece um bom homem, senhor Mead. Fez


o que podia por mim, não se preocupe mais e…

— Eu ofereço a minha casa.

Ela pareceu não entender.

Para ser sincero, eu também não entendi. Foi movido por


um impulso muito mais forte que eu, sequer cogitando se aquela era

a melhor solução.

— O que o senhor disse? — Seus olhos ficaram confusos e


as sobrancelhas acima deles se arquearam levemente.

Eu precisava repetir?
Precisava.

Reuni o pouco da benevolência com a qual o mundo jurídico

não tinha me presenteado. Todavia, pouco antes de falar, minha

intuição me alertou de que aquele, sim, seria um ato tão arriscado


quanto uma apelação criminal.

Talvez um júri me salvasse no fim.

— Eu ofereço a proteção da minha casa, senhorita Rivera.


— Deixei meu olhar sondar o dela. — Para a senhorita e a sua filha.

ROX

Sam Mead era um homem pouco flexível. As linhas duras no

canto dos lábios contavam-me essa história. A forma como se


posicionava no espaço também o delatava.

Ele era um homem grande, que impunha sua presença tão

logo entrava em qualquer ambiente, e não admitia nunca que fosse

questionado. Sua postura era impecável, assim como os cabelos


bem penteados e as roupas caras perfeitamente ajustadas. O

queixo quadrado e o olhar imponente acentuavam a rigidez de sua


figura como um todo.

Portanto, ficou claro para mim, principalmente depois que

sentenciou Billie como assunto seu, que não fazia o tipo que perdia

tempo com brincadeiras.


Apesar disso, aquilo só poderia ser uma brincadeira, certo?

— Você disse que… — A frase ficou presa na minha

garganta por um momento, provando que aquela combinação de


palavras era mesmo estranha. — Está mesmo me oferecendo sua

casa? Como moradia?

— Sim. — respondeu sem pestanejar.


Eu realmente não sabia o que fazer com aquilo. Era como

se o passado estivesse se repetindo, o que não era nada bom.

— Você e a bebê ficarão seguras enquanto eu consigo

localizar sua ex-colega de apartamento.


— Isso… — gaguejei. — Você só me conhece há umas

cinco horas, e eu… eu também não conheço o senhor. Não sei nada

sobre o senhor!
Sam Mead me olhou. Da mesma forma como me olhou

quando me acusara de ser fugitiva e tinha acertado em cheio. Em


seguida, ele se sentou na poltrona azul ao meu lado, aparentemente
a postos se eu voltasse a precisar de ajuda.

— Sou Sam Mead, nascido e criado até os dezoito anos em

Austin, precisamente em uma fazenda, no Texas. Formei-me em


Harvard, uma universidade da Ivy League. Não tenho irmãos. Tenho

uma governanta. Moro em Washington há onze anos e trabalho no

Knighton, o maior escritório de advocacia do país. Você pode


encontrar meu nome na página de charges do The Washington Post

com certa frequência.

Eram tantas informações juntas, e ele as despejou tão

rápido, que minha mente deu a volta em si mesma.


— O senhor acha que é assim que se conhece uma

pessoa? — inquiri, chocada.

Ele sorriu. Um mero esticar tenso dos lábios, pela primeira


vez. Em seguida, apoiou uma perna sobre a outra, um momento

quase despojado desde que o conheci.


— Não estamos em um encontro muito tradicional, não é?
Não. Na verdade, eu não conseguia imaginar uma situação

pior para conhecer um homem tão atraente quanto Sam Mead, com
um bebê saindo pela minha vagina.
Dios, pero que estaba pensando?
Graças a Deus, não tive de dar uma resposta a ele nem ao
meu próprio delírio momentâneo, porque a enfermeira Mills
finalmente ressurgiu, irrompendo pela porta.

— Voltei, meu bem. Ah! A princesinha já está dormindo!


Deixe-me colocá-la no berço para que você também descanse um
pouco. O puerpério trata-se de manter também a mamãe bem

cuidada.
Dei um beijinho rápido na testa da minha filha e a vi ir
embora. Voltei a ficar sozinha e à mercê do homem ao meu lado.

Foi quando notei que boa parte do meu seio, sobre o qual a
bochecha da minha filha repousara antes, havia ficado exposta.
Puxei a camisola, envergonhada. Ao encarar Sam, no entanto, ele

não parecia ter notado. Estava concentrado em um relógio de pulso.


— Que tal me contar sobre a senhorita, agora? — falou ele,
pegando-me de surpresa e sem afastar os olhos do marcador de

tempo.
— Vai mesmo insistir nisso?

Finalmente, ele me olhou de uma maneira indecifrável.


— Temos a noite toda para nos conhecermos, senhorita
Rivera.
Aquilo teria soado sensual para qualquer outra mulher e em
qualquer outra situação, mas para mim soou como uma ameaça ao
meu sono de descanso.

Como se você fosse conseguir pregar os olhos sem saber


para onde vai com a sua filha depois daqui.

Engoli em seco.
Eu não tinha muitas escolhas, tinha? Quer dizer, tinha a
escolha de recorrer a abrigos. Mas a assistência social poderia

aparecer ao tomar conhecimento de uma recém-nascida em um


meio tão instável. Isso sem falar do problema com os papeis de
imigração.

Congelei diante da possibilidade horrível. Possibilidade de


perder a minha filha.
Procurei por coragem dentro de mim e a vi no rostinho da

minha menina. Então ergui a cabeça e encarei, aparentemente, a


minha única saída no momento.
Ele permaneceu sóbrio e com o olhar concentrado no meu.

Escolher entre a rua e a casa de um completo


desconhecido… de novo? Mesmo que esse desconhecido tivesse

feito coisas boas para mim e para a minha bebê, parecia que eu
estava enfrentando o mesmo impasse sombrio que levou minha vida
para aquele estado deplorável.

Encolhi-me.
A diferença é que agora eu tinha que proteger a vida da
minha filha.

— O senhor não pode me dar um empréstimo?


Era vergonhoso, principalmente depois de recusar duas

vezes e veementemente o dinheiro que ele me oferecera antes, mas


eu o encarei. Pela minha filha, não havia nada que eu não estivesse
disposta a fazer.

— Quero dizer, assim que eu tiver meus documentos de


volta e acesso ao banco, eu devolverei o dinheiro ao senhor. Cada
centavo.

Sam me estudou por alguns instantes.


— Não me preocupo com a devolução.
Mas ele não aceitara minha sugestão, percebi.

— Então se preocupa com o quê? — inquiri, confusa.


— Com a senhorita. E com a criança. Se ficarão bem
sozinhas.

Eu não sabia se eram todos os meus hormônios que


pareciam em combustão desde o parto, mas meus olhos se
encheram de água. Porém, antes que eu pudesse responder

qualquer coisa, Sam Mead se levantou.


— Desculpe. Não vou mais pressioná-la com o assunto. Foi
apenas uma ideia. Você é livre e não é obrigada a nada. — Ele

pareceu querer passar a mão pelo cabelo bem penteado, mas


desistiu. — O médico pediu para que sua estada no hospital fosse
estendida até o fim dos exames. Provavelmente será por todo o final

de semana.
Não respondi. Não tinha o que dizer.

— A senhorita precisa descansar — continuou —, mas se


ainda quiser minha ajuda financeira na segunda, a terá, senhorita
Rivera. E, por favor, não se preocupe em devolver nada. Entretanto,

a segunda proposta também está de pé. Sei que, como disse,


somos quase estranhos, mas eu asseguro que apenas quero ajudar.
É assim que meu senso de responsabilidade funciona. Eu poderia

hospedá-la até que sua saúde estivesse perfeita e se sentisse


confiante para cuidar da criança.
Ele deixou um cartão preto, elegante, ao meu lado na cama.

— Se precisar de algo antes da sua alta, por favor, me ligue.


E então ele me deu as costas e saiu.
Segurei o cartão entre os dedos. Tinha pedido tanto por uma
espécie de milagre que me ajudasse com a vida, tão logo minha
filha nascesse…

Infelizmente, nada naquela situação, esse parecia um.

SAM

Deixei as chaves do carro caírem no sofá e me juntei a elas


no mesmo momento.

Porra.
Era a única palavra rodeando a minha mente naquele
instante. A única que parecia exprimir parte de todo aquele dia

perturbador. Com um suspiro, recostei-me no estofado cinza e


deixei meus olhos vaguearem pela minha cobertura bem iluminada.
Um lugar luxuoso que eu tinha adquirido sem um vintém da fortuna

das fazendas do meu pai no Texas.


Eu tinha me instalado no prédio cerca de um ano após ser
contratado pelo Knighton. Claro que meu primeiro milhão não viera

apenas dos lucros com relação à advocacia. Eu tinha a minha fatia


em Wall Street. Não era nenhum tolo. Ainda assim, naquela época,
nada disso havia impressionado Peter. Ou mesmo o impedido de

apelidar de “Batcaverna” um dos lugares mais caros de Washington.


— Você não devia ter uma decoração tão escura —
pontuara Peter. — É sem sentido você ter uma Batcaverna quando

você está muito mais para o Tom Ellis de Lúcifer. Precisa conseguir
algo vermelho e uma loira para chamar de detetive. — emendara,
rindo com vontade.

Eu não me importei.
Apesar das comparações demoníacas de Peter, minha casa
era mesmo o meu santuário. Um lugar onde eu não precisava

pensar em mais nada ou em mais ninguém. Era onde eu cumpria


meus rituais mais básicos, como ler o Times ainda de meias e cueca

pela manhã. Talvez o The Washington Post em seguida, apenas


para quebrar o silêncio matinal com algum palavrão, graças à
coluna de Mildred.

Era onde eu havia construído e equipado o sonho de uma


boa biblioteca com edições raríssimas de Stephen King e seus HQ
Creepshows que eu sempre lia, corajosa e religiosamente, antes de
dormir, desde a adolescência.

Minha casa era perfeita para mim, em todos os sentidos. Era


um fato que a maioria das mulheres, que passavam a única noite

que lhe era permitida aqui, enxergavam-na como nada acolhedora.


Não obstante, isso nunca foi relevante para mim. Nenhuma mulher
ficaria, então a opinião delas sobre a minha decoração cavernosa

era silenciada com uma arremetida vigorosa quando estávamos na


cama. Tudo voltava à calma quando elas passavam pela porta de
saída na manhã seguinte.

Só que essa calma tinha desaparecido naquela noite. Eu


ainda estava agitado. Como só ficava quando um acordo de divórcio
não ficava bem resolvido. E por mais que eu dissesse que tinha feito

o que podia, no fundo sentia que a história que começara naquele


hospital ainda não estava resolvida. Muito pelo contrário.
Enterrei a cabeça nas mãos, desanimado. Que pesadelo.

Que maldita noite de cão.


Nesse exato momento, um barulho metálico veio da minha

cozinha. Assim como um xingamento totalmente destoante da voz


doce e madura.
Levantei-me e segui os ruídos, atravessando o andar de

baixo completamente.
— Se essa maldita cozinha não fosse tão repleta de coisas
escuras…

— Boa noite, Amália.


Ela se virou de imediato.

Amália Morais era a minha governanta e a única mulher


que, ocasionalmente, passava mais de uma noite na minha casa.
Ela estava comigo há quase uma década, mas não parecia nada

desgastada pelo tempo no auge dos seus cinquenta e dois anos.


Até as pequenas rugas em sua face pareciam suaves, e os cabelos
brancos, misturados aos fios ruivos, apenas lhe prestavam

elegância.
Ela constantemente usava um uniforme bem passado e
escuro, como a decoração da casa, mas demonstrava sua revolta

comigo sempre que podia. Na maioria das vezes, logo que eu abria
os olhos pela manhã. Além disso, às sextas-feiras, excluía
completamente a roupa meticulosa e usava qualquer coisa colorida

que fizesse meus olhos arderem.


Naquele momento, ela estava usando um suéter verde
quase neon.
— Meu Deus, menino. — Lia levou uma mão ao peito. —
Você me assustou. Por acaso está tentando desafiar meus médicos
e me fazer ter um infarto tão jovem?

Cruzei os braços, e não evitei sorrir ao me encostar contra o


limiar da porta.
— Semana passada você disse que só iria para a cova

“quando os Estados Unidos conseguirem tratar com decência os


imigrantes”. — Tentei imitar a sua voz no final da frase. — Não estou
enganado, estou?

— Bem, não está. — Ela deixou a frigideira que segurava, e


provavelmente o motivo do barulho anterior, sobre o balcão de

mármore escuro. — Esse país tem que melhorar bastante a forma


como vê os estrangeiros e seus países de origem. Só parto dessa
vida depois disso.

Como uma imigrante brasileira que havia construído sua


família nos Estados Unidos há mais de vinte anos, Lia tinha sido
vítima de todo o tipo de xenofobia. Eu era um americano, nascido e

criado. Não passava pelos mesmos problemas, claro, mas sentia


vergonha e concordava que mudanças eram urgentes. No entanto,
também sabia que não aconteceriam tão rapidamente.

— Então, ao menos, eu ainda a terei por muitos anos.


Sorri carinhoso para ela.
Isso era outra coisa que acontecia apenas na minha casa.

Sorrisos. Precisamente, acontecia em quase todas as conversas


com Lia.
Eu ainda estava sorrindo quando Lia se aproximou e

segurou meu queixo.


— Ah, meu Deus. Você está bem acabadinho hoje, Sam
Mead. — Ela girou meu queixo, analisando-me com olhos de águia.

— Eu já disse, você não é nenhum sheik árabe. Todas essas suas


esposas vão acabar matando você.
Vi-me rindo outra vez.

— Não são minhas esposas. São as esposas das quais


outros homens querem se livrar.

Lia se afastou de mim e movimentou os ombros.


— Isso não é relevante. — Ela fez um gesto de dispensa
com as mãos. Depois pousou uma mão no quadril e torceu o nariz

sardento. — Há mais coisa te incomodando do que o usual. Não me


diga que o rei do Texas está de volta, com a ideia de uma reunião
de família no rancho?

— Primeiro precisaríamos ser uma família — corrigi com


amargor.
Tinha me esquecido completamente daquele telefonema

diário do homem que se dizia meu pai.


E tinha sido aquele telefonema inútil que quase me fez
atropelar a moça estrangeira.

Wallace Huntington, o homem que me comprara em um


acordo de milhares de dólares, mas que sempre me enxergou como
um pária. Que me desprezou por anos e me nomeou a sua maior

vergonha em público, tantas vezes quanto o número de notas com


as quais me adquirira, vinha me procurando com ligações contínuas
depois de todos esses anos longe. Eu não sabia o que ele queria,

fingindo tentar ser um pai quando já era tarde para isso, mas
dificilmente conseguiria.
— No que depender de mim, nunca mais colocarei meus

pés no Texas, Lia. Atender o telefonema de Wallace, uma vez em


quatorze anos de exílio, foi o suficiente — contornei o assunto por

fim. — Mas não foi isso que me deixou estressado hoje. Pelo
menos, não exatamente.
Eu tinha saído sem muitas explicações quando vim mudar

as roupas e esperar pelo meu assistente mais cedo. Lia me olhara


ansiosa, mas não perguntara nada. Minha cabeça ainda estava às
voltas para respondê-la naquele momento. Na verdade, eu ainda
tinha certeza de que minha cabeça não havia retornado ao lugar.

Mas dessa vez decidi compartilhar meu tormento:


— Você estava chegando do mercado quando eu estava

saindo, por isso não sabe. — Suspirei. — Quase atropelei uma


mulher grávida no final do expediente de hoje.
Minha governanta levou a mão à boca, horrorizada.

— Santo Deus, Sam!


— Consegui frear a tempo, sequer encostei nela. — Lia
intercalou minhas informações com um “Graças a Deus” e desceu a

mão para o coração. — Mas ela já estava em trabalho de parto,


então a levei para o hospital Saint John e acabei assistindo ao
nascimento.

— O quê? Mas como esse trem aconteceu? — Aquela


expressão estranha, derivada de seu país natal e que apenas saía
em momentos de muita surpresa, escapou dos lábios dela.

Mas depois de tantos anos juntos, eu tinha aprendido que


“esse trem”, aparentemente, poderia significar qualquer coisa e tinha
ficado habilidoso em decifrá-la. Naquele momento, tive certeza de

que ela queria dizer algo do tipo, “Como isso aconteceu?”, e por isso
respondi:

— Pensaram que eu era o pai. E o marido.


— Ora, isso deve mesmo ter sido uma grande confusão!
Assenti, cansado.
— Dos diabos. Mas a garota acabou me confessando que

tinha sido roubada e não tinha para onde ir com o bebê. É uma
imigrante mexicana, aparentemente sem parentes ou amigos

próximos.
— Ai, meu Deus, pobrezinha!

Eu sabia que Lia se identificaria com a moça na hora. E o


apelo dela fez com que a cena do desespero da garota, com uma
bebê nos braços e agarrada ao celular, voltasse à minha mente.
— O que você fez depois disso?— A voz de Lia me arrastou
para fora do limbo.
— O quê?

— Você a ajudou.
Não era uma pergunta, era uma afirmação sem qualquer
temor.
— Por que acredita nisso? Sou o diabo engravatado,
lembra? — Sorri sem qualquer humor.

Amália bufou e meu deu um soco frágil no braço. Ela podia


ser agressiva às vezes.
— Não repita as baboseiras daquela mulher na minha
frente. Você pode ser um rabugento cínico, ter um péssimo gosto
para decoração e um mau humor terrível pela manhã, mas eu o

conheço bem. Sei o que faz quando está fora do mundo jurídico e
quando ninguém está olhando.
— Sexo selvagem? — disparei, irônico.
A pancada no meu braço foi mais forte dessa vez.
— A grandeza do coração de uma pessoa está em suas
ações, Sam Mead. E eu sei bem como você age quando precisam

de você. Quando minha família e eu precisamos de você…


Os olhos dela ganharam aquela expressão afetuosa que
sempre me deixava desconfortável, porque me fazia sentir como se
eu não fosse digno dela. E não era. A situação estava começando a
ficar melosa demais, melhor ir direto ao ponto.
— E então? O que fez pela garota? — Lia colocou as mãos

na cintura.
Suspirei.
— Encontrarei quem a roubou junto com os seus pertences.
— Ela me encarou como se soubesse que tinha feito mais. Tive de
respirar fundo outra vez. — Ofereci dinheiro. E ofereci a proteção da

minha casa até que ela se restabeleça. Em todo caso, a segunda


opção está fora de cogitação. Ofereci sem pensar muito no absurdo
que era. A garota mal me conhece, e eu também mal a conheço. Foi
imbecil da minha parte, mas não poderia retirar algo assim depois
de oferecer.
— Sim, é verdade. Mas vejo que ainda está preocupado

com essa quase desconhecida.


Não gostei do jeito fácil como Lia leu meu semblante. Eu era
conhecido justamente por ter uma expressão inescrutável no mundo
jurídico. Esse era um dos males de ter Amália há tanto tempo na
minha vida, ela me conhecia bem demais para o meu gosto.
— Ela deve estar muito assustada. — Minha governanta

agora tinha ido até o forno e retirava algo de lá. Um prato pronto,
percebi quando ela se aproximou. — As pessoas dizem que quando
um bebê nasce, uma mãe nasce. Mas não é bem assim, não. Nós
temos muito medo quando pegamos nossos filhos nos braços pela
primeira vez. Em uma situação como a dela, as coisas devem estar
muito mais angustiantes.

Eu não sabia muito sobre amor materno, então não podia


afirmar ou negar o primeiro comentário dela. Mas quanto ao
segundo… Eu tinha visto de perto aqueles olhos exóticos cheios de
temor.
— Ela também parece estar com a saúde debilitada — Fiz o
adendo quase sem querer. Principalmente porque ele era o que

mais perturbava meu senso de responsabilidade.


Lia colocou o prato na bancada. Comida brasileira mineira, a
minha favorita e a culpada por Amália ter me conquistado em uma
entrevista há oito anos.
— Ninguém devia passar por um momento tão importante

sem apoio algum. Ainda mais tão longe de casa e de tudo o que
conhece.
As palavras de Lia cutucaram ainda mais a minha culpa.
Dessa vez, não pude evitar despentear o cabelo com as
mãos. Como meu dia podia ter começado tão normal e terminado
daquela forma tão escabrosa?

— Se você quiser, posso falar com ela, Sam.


Deixei de fitar meus próprios punhos cerrados sobre a
bancada escura e olhei para Lia.
— Falar com ela? — Eu detestava ser um eco ridículo, mas
foi inevitável.
— Sou uma mulher e sou uma imigrante. Já estabelecida

como cidadã, é verdade — explicou —, mas imagino que ela se


sentirá mais segura para aceitar sua oferta.
Uma oferta impensada feita no calor do momento.
Nem mesmo eu estava conseguindo aceitar a ideia agora,
com a cabeça fria e no lugar. Era um absurdo. Na verdade, eu não
conseguia nem imaginar uma mulher e uma recém-nascida na

minha Batcaverna…
— Não acho que ela seria convencida — assegurei por fim.
— E faz sentido que seja assim. — Sim, o que não fazia sentido era
uma garota vir com um bebê para a casa de um estranho. — Mas
vou encontrar outro jeito de ajudá-la.
Era o que eu esperava porque, do contrário, minha paz de

espírito estaria seriamente ameaçada.


— Se quiser ir para casa, peça aquele táxi especial para
levá-la — declarei quando percebi que Lia iria continuar a falar
alguma coisa. — Já passam das onze, e não quero que Frank me
acerte com um dos seus golpes de UFC porque a esposa pegou o

metrô. Obrigado pelo jantar.


E antes que ela pudesse protestar, deixei a cozinha.
Não queria discutir sobre a garota. Ela era um assunto meu
e, para ser sincero, um assunto sobre o qual eu sabia muito pouco.
Apesar de estar completamente enrolado nele.
Com um suspiro pesado, percebi que minha noite de cão
poderia estar apenas em um vertiginoso início.
E não consigo dormir
Porque meus pensamentos devoram e consomem.

— RUELLE, “War of Hearts”.

SAM

O final da noite, entretanto, foi pior.


Eu simplesmente não conseguia afastar da cabeça a

imagem frágil da garota com a bebê nos braços. Repassei-a tantas

vezes na minha mente que, por fim, precisei sair da minha cama,
desistindo do sono para esperar pela manhã.

Meu quarto tinha uma varanda ampla, e dela eu podia

enxergar a neve se aglomerando nos suntuosos jardins dos Wade,


do outro lado da rua. Eu sabia que Cora Wade detestava o frio de

Washington, e por isso ela e o marido, embaixador da união


europeia, deviam ter fugido para algum lugar mais quente.

O Kalorama, o bairro mais rico de Washington, era um

pequeno mundo exclusivo dentro da cidade mais política dos


Estados Unidos. Pela manhã, durante minhas religiosas corridas, eu

encontrava milionários como eu, ex-juízes da Suprema Corte,

senadores e embaixadores de vários lugares do mundo. Até mesmo


ex-presidentes.

As construções eram as mais variadas e exuberantes que

uma pequena elite poderia erguer para inflar o próprio ego. Havia
até mesmo uma mansão no estilo Tudor a duas quadras da minha

casa.
Eu sabia que vivia uma vida para poucos, privilegiada em

todos os sentidos da palavra. Era um homem bem-sucedido no que

fazia, acumulara uma fortuna mais do que considerável em meus

trinta e dois anos.

Um vencedor implacável, nas palavras do próprio The

Washington Post, em uma das raras vezes que o jornal me elogiou.


É claro que o sobrenome que me ligava ao rei do Texas

estava bem escondido. Lutei contra ele por anos. Não que houvesse
sido fácil assumir o sobrenome da mulher que me vendeu, mas ao
menos o abandono dela fora um corte rápido e limpo. Não havia

sido reforçado por anos de desprezo. E depois de meia década, isso

também acabou sendo deixado de lado como um detalhe. Eu tinha

me tornado apenas Sam Mead e tinha orgulho disso. De ter forjado

um sobrenome ao meu modo, mesmo que o processo tivesse sido

amargo desde o início.


Com um suspiro e usando meu robe azul-marinho quente,

apoiei os braços sobre o gradeado da varanda. Os primeiros raios

de sol pálidos começavam a quebrar a escuridão da noite atrás dos

prédios e casas suntuosas.

A mistura de cores intensas me fez pensar naqueles olhos

exóticos.

Olhos que carregavam sofrimento.


A frase não foi planejada. Simplesmente surgiu na minha

mente. E eu não sabia como havia identificado aquilo, mas tinha.

Por um instante, considerei se meus olhos também eram

assim, tão nítidos confessos das coisas que passei. Mas depois

balancei a cabeça. Aquele tipo de pensamento era uma perda de

tempo e não levava a lugar algum.


— Você está perturbado pela situação da garota — disse

para mim mesmo. — E se sente culpado.


O que por si só já era uma coisa incomum. Eu não tinha

muitas pessoas com quem me importar. Na verdade, não tinha


ninguém. Era um lobo solitário. E pretendia continuar assim, já que
não acreditava em baboseiras como casamento. Afinal era

impossível acreditar em uma instituição onde o designado a noticiar


a falência era eu mesmo.

Minha vasta experiência começara pelo berço e eu aprendi


rápido que amar verdadeiramente, se realmente era possível,

deveria ser um dom raro. A maioria das pessoas era gananciosa.


Elas entravam em relacionamentos para extrair, extrair e extrair. Não
estavam muito dispostas a oferecer nada em troca e ficavam felizes

se a destruição recaísse sobre os ombros de qualquer outro ao final


de tudo.

— Apenas preciso colocar tudo em ordem e garantir que a


garota fique bem — aconselhei-me novamente em voz alta. Como

se minha própria voz pudesse afastar a escuridão de dentro de mim.


Nesse mesmo instante, a neve que tinha parado começou a
cair do céu novamente.
Era isso, pensei. Eu iria ao hospital tão logo as visitas

estivessem liberadas. Conseguiria um apartamento ou um hotel


para a garota ficar com a bebê até conseguir resolver suas

pendências.
E então, como se lamentasse pela minha ideia, meu celular

começou a tocar sobre o meu aparador de vidro.

ROX

Ele tinha deixado quase dois mil dólares em espécie na


bolsa da bebê.

Que louco faria uma coisa assim?


Mas eu estava agradecida. Do contrário, não poderia ter
saído às pressas e nem conseguiria comprar as passagens logo

depois de saber daquela ligação.


— Parecia ser alguém do México. Ao menos falava um

inglês com sotaque pesado. Você tem parentes lá?


A enfermeira Mills disse isso com naturalidade, pelo final de
seu turno da noite. Logo após María receber sua última
amamentação da madrugada.

— Procuravam por Roxanne Rivera. A recepcionista ficou


confusa na hora, disse que tinha visto uma Roxanne nos arquivos,

mas eu garanti que a única Roxanne aqui era a esposa do senhor


Sam Mead. Portanto Roxanne Mead. Ela conferiu os documentos e
viu que eu estava certa depois.

Minha espinha ficou rígida.


Não haveria outra pessoa me procurando no México, senão

ele. Se é que ainda estava no México. Poderia já estar em um voo


para Washington naquele mesmo momento.

Não sabia como ele pode ter me encontrado, depois de


tantos meses tomando um cuidado religioso.
Fugir. Eu precisava fugir.

De novo. Não podia deixá-lo chegar perto dela. Jamais.


Por isso, assim que a enfermeira me deixou sozinha no

quarto, eu deixei os remédios e a comida de lado e comecei a fazer


uma mala, o mais rápido possível. Sam Mead tinha comprado as
melhores roupas de inverno para bebê que eu já havia visto. Fiquei

imediatamente grata. Minha filha estaria protegida.


Eu não sabia se era o medo que solidificava minhas forças,
mas senti-me perfeitamente bem quando deixei a cama e troquei a
camisola pelo vestido com qual tinha chegado ao hospital.

Pouco antes de colocar a bolsa nos ombros e ir até o


berçário, eu encontrei o dinheiro. Foi um alívio tão grande que

lágrimas brotaram nos meus olhos.


Mas não perdi tempo. Fui até onde a minha dulce María
estava e a agasalhei o melhor possível. Com aquele dinheiro, eu

poderia pegar um táxi até a estação de trem. De lá, não demoraria

muito para chegar a Nova Iorque. Quando chegasse à cidade ligaria


para Nice. Não era mais um momento para se ter orgulho estúpido,

e ela com certeza me ajudaria assim que soubesse de María.

Sair do hospital sem ser notada e com uma bebê foi mais

difícil, mas o percurso de táxi foi tranquilo, como eu esperava. A


manhã surgia no horizonte, coberta por flocos de neve incessantes.

Fitando a cidade pela janela do carro, implorei a Deus para que me

desse tempo suficiente.


Quando cheguei à Union Station, por mais que um tremor se

espalhasse pelas minhas entranhas, minha mão estava firme ao

passar o dinheiro à atendente para comprar os bilhetes.


— Uma passagem para Nova Iorque — solicitei.
A mulher concentrou um olhar agudo em mim. Seu

semblante pareceu desconfiado quando ela ajeitou os óculos no


rosto ossudo.

— O próximo trem para Nova Iorque ainda vai demorar,

senhora.
— Tudo bem — concordei de imediato.

Ela aceitou meu dinheiro.

— Documento da criança, por favor.

— O quê?
O olhar dela se tornou ainda mais desconfiado.

— Nossa política permite que crianças até dois anos viagem

gratuitamente, mas preciso ver algum documento — insistiu.


— Minha filha é só uma bebê — retruquei começando a me

alterar, nervosa.

Foi uma péssima escolha. Se a atendente estava


desconfiada de alguma coisa antes, agora parecia ter certeza.

— Tudo bem.

Comecei a me retirar na mesma hora, sem sequer pegar a

nota de cem dólares de volta. Não tinha dado mais de três passos,
quando fui barrada por policiais.
— Podemos ver seus documentos de identificação e os da

criança, senhorita? — perguntou o policial, alto e negro,

respeitosamente, com um olhar tranquilo. Mas seu colega, mais


baixo e ruivo, me olhava como se já tivesse certeza de que eu era

uma criminosa.

— Eu… eu… — balbuciei buscando qualquer coisa que

pudesse falar, mas não achei.


Dios. Por que tudo tinha que estar dando tão errado?

A vontade de chorar chegou no exato momento em que o

policial ruivo me segurou pelo braço.


— Se não tem os documentos da criança, terá de nos

acompanhar — rosnou.

Tentei puxar meu braço, aflita.

— Não, eu não posso ir. Eu preciso sair daqui. Depressa.


Eu tinha a vaga noção de que aquele tipo de discurso não

me ajudaria em nada, mas já não sabia mais o que fazer.

Como se entendesse a situação dos meus nervos, minha


filha começou a chorar.

— Eu só preciso ir embora daqui… eu só preciso ir —

choraminguei.
— Escute, moça. Está tudo bem. — O policial de semblante

gentil se aproximou. — Solte-a, Stanley. — A ordem foi tão firme


que o outro policial sequer pestanejou. — Se nos acompanhar,

prometo que ficará tudo bem. Nós podemos ligar para alguém da

sua família e ajudá-la.


Os olhos de chocolate do policial eram amenos e a voz

afetuosa.

— Nos acompanhe, por favor. Vai ficar tudo bem.

Mas isso não era o suficiente para me convencer. Entretanto


não havia formas de fugir pela neve sem colocar em risco a minha

menina. Por isso, quando o bom policial começou a me conduzir

pela estação, eu não pude resistir. Talvez a própria polícia fosse um


lugar seguro por um tempo.

Era uma prece desesperada, eu sabia. Mas era a única que

eu possuía no momento.

SAM
Saí do meu Tesla[2] sem esperar por Lia.

A neve deixara as malditas maçanetas metálicas do terceiro

departamento de polícia de Washington desagradáveis ao toque.

Mas, sem dúvida, não mais desagradáveis do que o início do meu


dia.

Sua esposa fugiu com a bebê.

Foi o telefonema absurdo que recebi nos primeiros minutos


da manhã.

Eu não esperava por aquilo. Mas, de alguma forma, também

não estava totalmente surpreendido. Eu tinha visto o desespero da

garota. Inferno! Tinha visto o pânico nos olhos dela. Roxanne Rivera
podia não estar ilegal no país e podia ter mesmo sido roubada, mas

não era apenas isso.

Por isso o telefonema que recebi em seguida, da própria


garota dizendo que estava em uma delegacia, foi apenas uma

consequência coerente.

— Maldito instinto — murmurei ao adentrar a recepção do


prédio.

— Samuel Mead? Você por aqui? — Um dos policiais me

cumprimentou.
Ele sabia quem eu era. Uma vantagem para mim, apesar de

não poder dizer o mesmo sobre o careca baixinho diante dos meus
olhos.

— Estou aqui pela garota e pela criança.

O homem me olhou confuso por um instante.

Eu teria que ser mais específico.


— Uma jovem bonita de cabelos escuros e uma recém-

nascida. As duas foram encontradas na Union Station há meia hora.

Finalmente um brilho de reconhecimento surgiu nos olhos


dele, que ficaram esbugalhados em seguida.

— Não me diga que ela é uma cliente sua? É um fato que o

senhor defende os interesses apenas do nosso gênero. O senhor é


um herói para todos os homens deste país e…

Não esperei para vê-lo destilar a lista de elogios vazios. Eu

não precisava de nada daquilo, e estava impaciente demais para

tentar ser cortês. Com passos rápidos, avancei em direção ao


gabinete do delegado.

— O senhor não pode entrar aí.

Alguém tentou me impedir, mas eu ignorei o aviso por


completo. Entretanto não precisei entrar na sala do delegado para

encontrá-la. Logo que cruzei uma porta, vi-me dentro de uma


pequena sala de espera bem mobilada com sofás de couro na cor
preta.

Ela estava em um deles, encolhida com a criança nos

braços. Vestia a mesma roupa de quando a encontrei, com as


manchas da lama do asfalto borrando as pontas claras do vestido.

Quando eu ia anunciar minha presença, aqueles belos olhos

me encontraram. Surpresa, ansiedade e algo mais passaram por


eles. Parecia… alívio?

Não. Não poderia ser. Eu nunca havia despertado uma

emoção dessas em ninguém. Muito pelo contrário.

— Senhor Mead. — Um homem maduro, mas com porte de


sargento, se postou diante de mim. — O senhor é exatamente igual

ao que aparece nos jornais.

Não soube se era um elogio, mas também não me importei.


Estendi minha mão de imediato, reconhecendo a figura do delegado

tardiamente.
— Samuel Mead — falei, firme como o meu aperto.
— Gregory Wright. Delegado. Como posso ajudá-lo?

Voltei meu rosto para Roxanne. A atenção total dela estava


em mim. Estranhamente, senti-me nervoso pela primeira vez ao
estar prestes a fazer o que sempre fiz tão bem: argumentar e
acordar.
— A garota e a criança, elas estão comigo. — Fui direto ao

ponto.
O delegado franziu o cenho, e seu olhar seguiu até
Roxanne.

— Ela é uma parente sua? — Ele levou a mão à nuca. —


Ela não nos disse nada quando chegou. E perguntamos se tinha
parentes em Washington, mas ela sequer tem documentos. Dela ou

da criança. Eu estava prestes a fazer uma ligação para o serviço de


imigração. O sotaque espanhol é nítido, e são eles que precisam
lidar com esse tipo de gente.

Ele se referiu ao sotaque espanhol como se isso, por si só,


fosse um crime. Além de deixar claro o que queria dizer com a
expressão “tipo de gente”. Precisei cerrar o punho para conter a

irritação. Uma briga com o delegado não nos beneficiaria em nada.


— Ela tem parentesco com a minha governanta. — Que Lia

me perdoasse por envolvê-la, mas precisava ser rápido no gatilho.


— E está sob minha proteção.
Quando Gregory se virou para me encarar, a desconfiança

era nítida.
— Precisarei dos documentos dela para comprovar.
— E teremos o maior prazer em oferecê-los ao senhor. Em
alguns dias, quando o serviço de imigração os liberar — garanti. —

A senhorita Rivera está mudando o visto de trabalho que possui


para um de permanência.

— E quer que eu acredite nisso, senhor Mead?


— Deve acreditar. — Dei dois passos em sua direção para
reforçar uma postura autoritária. — O novo visto virá com o meu

sobrenome.
Funcionou. O delegado ficou nitidamente em choque.
E eu contava justamente com o choque da situação para

pressioná-lo. Precisava tirar Roxanne dali antes que a situação dela


se complicasse demais. Uma estrangeira sem os documentos de
imigração na América não teria vez.

— O senhor está dizendo que a garota… a garota é sua…?


— Minha noiva.
— E a recém-nascida?

— É só juntar dois mais dois, senhor Wright.


Ele ficou lívido.

— É claro, é claro — emendou o homem emendou


depressa, e percebi que tinha conseguido. — Por favor, perdoe-nos,
senhor Mead. Nós não tínhamos nenhuma intenção de assustar a
sua noiva ou a sua filhinha. Meus policiais apenas consideraram a

situação suspeita quando a encontraram na estação e então a


trouxeram até aqui.
— Está tudo bem, delegado. A polícia apenas estava

fazendo o seu trabalho. E Roxanne não conhece a cidade muito


bem, ainda. Eu ia buscá-la, mas ela saiu mais cedo e se perdeu.

— Por favor, perdoe-nos por todo esse desconforto.— O


delegado passou a mão pelos cabelos grisalhos e depois enxugou o
suor da testa. — É claro que pode levar sua futura esposa e sua

filha para casa. Está nevando muito, então permita-nos, para


compensar a sua família, fazer uma gentil escolta até a sua
residência.

Aquilo já era demais. Eu sabia que ninguém em Washington


gostaria de se indispor com o meu sobrenome. Mesmo que este
sobrenome fosse adquirido por uma história falsa de noivado.

Entretanto negar a gentileza extravagante do delegado poderia


levantar suspeitas indevidas.
— Seria uma honra.

O delegado assentiu, parecendo visivelmente aliviado.


— Muito bem. Irei solicitar agora mesmo.
E com um aceno, ele deu-me as costas largas e saiu pela

porta à nossa frente.


De repente, um muxoxo frágil exigiu minha atenção. A
criança, assim como Roxanne, tinham os olhos em mim. Por alguns

instantes, mesmo defendendo-a, tinha me esquecido da presença


dela ali, ouvindo tudo. E como o inglês dela era próximo demais do
perfeito, percebi que ela também havia compreendido cada parte do

que se passara.
Ela se levantou antes que eu pudesse explicar qualquer

coisa. Então se aproximou e ficou diante de mim. Seus olhos


estavam sérios, mas úmidos pelas lágrimas. E aquela emoção
apenas não me pegou mais desprevenido do que o seu gesto. Sua

mão fria agarrou a minha, e ela emitiu quase sem voz: — Obrigada.

Era uma situação e tanto, eu precisava admitir, ainda que

fosse apenas para mim mesmo, enquanto dirigia pelo trânsito de


Washington seguido por escolta policial.
Roxanne estava no banco de trás. Ela e Lia rodeavam a
criança no bebê conforto que o delegado Wright fizera questão de
arranjar Deus sabe onde. Eu não quis questionar mais nada depois

de finalmente deixarmos a delegacia naquela manhã.


Ninguém falou muito durante o trajeto. A menina era a única
a emitir sons fracos no carro.

Quando finalmente chegamos à portaria do meu edifício, no


Kalorama, foi um alívio sem igual. O policial que dirigia a viatura
atrás de nós, o mesmo que tinha me elogiado quando entrei na

delegacia, apenas acenou, sorridente, e nos deixou assim que


adentramos a garagem.
Fiquei com as mãos no volante, sem saber direito como

proceder.
— Muito bem — falei, mesmo sem ter nada para dizer a

seguir.
Eu detestava me sentir impotente diante de alguma coisa.
Principalmente quanto a proferir simples palavras. Isso me fazia

recordar dos meus anos no Texas, ouvindo todos os tipos de


absurdos que meu pai praguejava e nunca dizendo nada para
confrontá-lo. Nada.
Naquele momento eu também não tinha nada a dizer para
confrontar, e ficou pior quando os olhos de Roxanne alcançaram os

meus pelo retrovisor.


— Muito bem, acredito que ninguém tenha tomado o café da
manhã. — Lia tomou a frente. — Por que não subimos todos e eu

preparo algo? Essa coisinha linda também deve estar faminta.


Roxanne ainda continuou a manter contato visual comigo,
mas seu olhar tornou-se indeciso.

— Bem, eu não sei se…


— É a melhor opção — adiantei-me a ela.
Porque realmente era.

Talvez se eu comesse alguma coisa, e quem sabe depois de


quebrar meus próprios princípios e beber uísque pela manhã, eu
conseguisse pensar com clareza.

Por isso, antes de qualquer protesto, empurrei a porta do


carro e saí para o estacionamento. As duas mulheres me imitaram.

Mas quando Roxanne se curvou para tirar a menina da cadeirinha,


soltou um gemido de dor.
— O que foi? — perguntei, já me aproximando.

— Está tudo bem — mentiu de imediato.


Calculei se ela imaginava o quanto era péssima nisso. Em
mentir. O desconforto estava visível em cada traço do seu rosto.

— Devem ser os pontos. Você não devia estar se


esforçando tanto. — E sem pedir permissão, Lia levou a mão à testa

de Roxanne. — Você parece um pouco quente também.


Roxanne recuou de imediato.
— Não, não. Eu estou bem.

— Posso levar a menina — ofereci-me.


Não era algo tão difícil. Eu já a peguei nos braços antes, no
hospital, e a enfermeira me garantiu que eu tinha jeito. E algo me

dizia que ela não aceitaria minha outra proposta que seria Lia levar
o bebê e eu a carregar. Estava claro o quanto ela mantinha uma
distância segura desde o hospital. Ainda assim pensei que Roxanne

fosse dispensar minha oferta. Ela não tinha aceitado minha proposta
de ficar sob o meu teto, mas estava aqui. Exatamente onde não
desejava estar, junto com dois quase estranhos. Talvez fosse coisa

demais.
— Certo — aquiesceu ela, surpreendo-me.

Lia tirou a menina da cadeira e a acomodou nos meus


braços. A bebê se aconchegou na curva do meu bíceps, sobre o
agasalho da Nike que eu costumava usar para correr no inverno.
— Eu apoio você. — Lia passou o braço pelo de Roxanne.

E assim nós quatro fomos em direção ao elevador privativo


que dava acesso à minha cobertura. Mas não sem antes passar por
Cora Wade, que cruzava o estacionamento. Minha vizinha, que

detestava o frio, surpreendentemente não tinha fugido de


Washington com seu embaixador. Devia estar visitando uma de

suas amigas que moravam no prédio.


Ela nos cumprimentou com sua elegância típica, mas seu
semblante aristocrático abriu-se em um sorriso, pela primeira vez,

quando ela deteve sua atenção na bebê em meus braços. Cora


tinha um olhar de quem iria me mandar uma cesta de doces no
próximo Dia dos Pais.

Ótimo.
Para um homem que planejara meticulosamente nunca se
casar, parecia que eu tinha sido contemplado com o pacote

completo.
E já estava levando-o para casa.
Eu tenho marcas que te farão duvidar.
— PINK, “Run”.

ROX

Fiquei sentada com a minha filha nos braços, meio afundada


na cama macia demais. Ou talvez fossem os últimos meses no
colchão magro do meu antigo apartamento que haviam me

desacostumado ao conforto.

Era o espaço mais luxuoso que eu já tinha visto na vida.


Nem mesmo quando fui à Sinaloa e me hospedei no hotel mais caro

da cidade eu tinha visto tanta riqueza esmerilada em decoração. A


cama tinha um belo dossel preto perolado, e o tapete sob meus pés

fazia meus dedos desaparecerem.


Os aparadores eram ornados por madeira e vidro. E o

estofado aos pés da cama colossal era de um cinza macio. A

decoração era composta por tons escuros, mas nada se depreciava.


Muito pelo contrário.

Tentei olhar além da janela ampla, mas o lustre de cristal no

caminho, refletindo a luz do sol, cegou-me momentaneamente.


— Oh, esse vento horrível. É melhor fechar essa janela. —

A mulher, que às vezes parecia ter um leve sotaque latino em suas

palavras, atravessou o espaço claro e pôs fim aos ventos cortantes.


— Parece ruim, mas experimente passar uma temporada em Nova

Iorque. Não sei como os americanos podem se orgulhar tanto


daquela velha pedra de gelo.

Ri. O som saiu fantasmagórico, mas não o refreei. Havia

algo caloroso nas palavras dela. Um calor que eu não sentia há

muito tempo e que me fez bem.

— A senhora é latina? — Fechei a boca tarde demais. Os

americanos, em geral, reagiam pessimamente quando comparados


a um de nós.
Mas antes que eu pudesse murmurar um pedido de
desculpas, a mulher ruiva deixou as cortinas que tinha cerrado e

retomou a palavra.

— Sou brasileira. — O sorriso dela aumentou, orgulhoso.

Ela se aproximou e sentou-se ao meu lado. — No frigir dos ovos,

latina também. — Outro sorriso. — Meu nome é Amália. Lia, para os

íntimos. E trabalho como governanta de Sam há oito anos.


— Sou Roxanne. Roxanne de La Cruz Rivera.

Afastei uma das mãos de María e a estendi na direção de

Amália.

— É um nome forte. Como a senhorita parece ser.

Foi um elogio pequeno, mas precisei me esforçar para

conter as lágrimas. Amália pareceu entender e voltou os olhos para

a minha bebê.
— E esse anjinho, já tem nome?

— Mi hija María. — O orgulho dominou a vontade de chorar.

— Ela é linda.

Sim. E era também a pessoa mais importante da minha vida

agora. Mi hija, uma parte de mim para amar e proteger. Mas eu já

estava falhando, bem ali, no começo de tudo.


Senti meus ombros tremerem, prestes a desmoronarem.

Deus, minha bebê não merecia nada daquilo. Não merecia. E então
foi como se tudo caísse sobre mim de repente.

— Isso não devia estar acontecendo assim. Eu não queria


ter fugido com a minha filha no meio da neve hoje de manhã e nem
ter ligado para incomodar o senhor Mead, mas… — confessei quase

em um soluço. Uma espécie de som entre a angústia e a vergonha.


— Está tudo dando errado e… não é assim que acontece com boas

mães, não é?
Eu queria que ela dissesse alguma coisa. Que aquela quase

desconhecida me desse uma opinião, qualquer coisa na qual eu


pudesse me agarrar além de toda aquela situação terrível. Mas
Amália não respondeu de imediato, em vez disso, senti sua mão

apertar meu ombro em conforto. Uma lágrima saltou pela minha


bochecha, não pude mais conter. Assim como não pude conter as

que vieram em seguida e nem o choro feio que irrompeu do meu


peito.

Deus do céu, onde é que eu tinha ido parar por causa das
minhas escolhas ruins? Onde?
Eu não queria chorar com María nos meus braços. Não

queria que minha filha visse a mulher fraca que eu era, mas não
consegui mais impedir.

— Ah, querida. Está tudo bem agora. — A boa mulher


tentou me manter firme com um abraço de lado. — Tudo bem.

Infelizmente, boas mães não estão livres das dificuldades da vida.


Na verdade, nenhuma mãe está.

Mas boas mães também escolhem melhor o pai que dão


aos seus filhos. María tinha nascido com o perigo ao seu encalço,
rastejando atrás dela. E tudo por minha culpa.

Agora, nós duas estávamos em uma casa desconhecida. Eu


dependeria da boa vontade alheia.

De novo.
Encolhi-me com minha bebê.
Eu era, sim, uma droga de mãe.

— Sabe do que você precisa? — perguntou depois de um


tempo. — De um chá quente para se acalmar depois de tudo que

passou. Vou preparar algum e vou trazer biscoitos. Vão fazer você
se sentir melhor, então você poderá dormir e descansar um pouco.

Amália apertou minha mão gentilmente e depois ameaçou


levantar-se, mas eu a contive.
— Não, senhora Amália. Não é preciso. Eu não pretendo

ficar, pretendo ir embora. Posso ir… posso ir agora.


Tentei me levantar, mas foi a vez dela de me conter.
— Não, você não vai a lugar algum, querida. — Ela me
segurou pelos ombros antes do fim do meu movimento. — Está

fraca e aflita demais para isso. O que você precisa fazer agora é se
cuidar. Não apenas pelo seu próprio bem, mas também pelo da sua

menina. Suas decisões agora a afetam em tudo.


O olhar dela foi incisivo. Como o de uma mãe que dá uma
reprimenda benigna em uma criança. E eu não podia contestar a

razão dela. Orgulho não me adiantaria de nada, não quando eu mal


tinha forças para permanecer de pé com a minha bebê nos braços.

Até mesmo enquanto chorava, eu conseguia enxergar a lógica.


— Tudo bem — assenti, sem alternativa.

— Essa, sem dúvida, é a decisão de uma boa mãe. —


Amália me elogiou e enfim levantou-se da cama, removendo poeira
inexistente da roupa. Antes de chegar ao limiar da porta, entretanto,

virou-se. — Não precisa temer nada agora, Roxanne. Está segura


como hóspede de Sam. Sei que deve estar muito assustada e não

nos conhece. Não tem razão para confiar na minha palavra, mas
direi assim mesmo. Você está em uma boa casa. Meu menino é um
bom homem e ele vai ajudar você, seja no que for que precise.
— Só vou ficar uma noite — falei, mesmo sem plano algum
para o dia seguinte e nada além de desespero por toda a noite. — O
senhor Mead não terá mais que se preocupar comigo. Eu prometo.

Eu tinha visto como as costas do homem ficaram rígidas


quando uma mulher o cumprimentou no estacionamento, enquanto

ele carregava a minha filha. Também tinha visto o leve torcer de


desgosto em seus lábios quando nos deixou em sua casa e saiu.
Ele não olhara nem mesmo para Amália quando colocou María em

seus braços. Sem dúvida, irritado. E tinha toda a razão para isso.

Dios, eu tinha feito o homem mentir para a polícia dos


Estados Unidos. E ainda tinha ido parar na casa dele com uma

criança. Vinha perturbando a paz do homem completamente desde

o dia anterior.

Amália sorriu com delicadeza.


— Acho que é um pouco tarde demais para essa sua

promessa, menina. Meu Sam não assume nenhuma missão que

não pretende terminar.


SAM

— Você parece péssimo. O que aconteceu?

— Sem rodeios hoje, Hannah.

Com a ponta do sapato, empurrei a porta do apartamento


que ela mantinha semiaberta e com os braços a envolvi pela cintura,

trazendo-a para mim.

O beijo foi carregado. Cheio da tensão das minhas últimas

quarenta e oito horas. Hannah me beijou de volta, entregue e com o


mesmo entusiasmo que havia me conquistado desde a primeira vez.

Eu tinha começado a carícia, mas logo era ela quem tomava a

inciativa, puxando minha camisa para cima.


— Feche logo essa maldita porta… — murmurou enquanto

mordiscava o meu pescoço.

Atendi o pedido dela, e a porta bateu em um baque surdo.

No instante seguinte, Hannah tinha as longas pernas morenas em


volta da minha cintura, e eu apertei sua bunda enquanto ambos

batíamos com força contra a porta.

Ela riu.
— Vejo que está com fome — ofegou.
— Com fome de uma boa foda — falei, enroscando a

camisola de cetim entre meus dedos.

Hannah remexeu-se e acomodou-se perfeitamente em cima


do meu pau.

— Então é uma sorte que eu esteja no lugar certo e sem

calcinha.

Grunhi.
Eu tinha ao menos planejado que chegássemos à cama.

Sem risco de que qualquer um dos vizinhos ricos dela ouvisse algo

ao passarem pelo corredor. Mas agora era tarde demais.


Puxei o cinto de qualquer jeito, e minhas calças cederam.

— Me pega do jeito que eu gosto, Sam. Sem piedade.

Ela não precisava pedir. Meu pau escorregou de uma vez só

para dentro da umidade dela. As graças de uma parceira fixa que


preferia usar dispositivo intrauterino.

Nós dois urramos.

— Porra, você está molhada demais… — delirei, o desejo


me cegando por um momento.

— Seu pau me transforma em uma safada.

Ela sorriu com a testa encostada contra a minha.

Compartilhei do sorriso mal-intencionado, mas respondi com outra


estocada profunda, e o rosto dela se desfez em prazer.

— Não se preocupe, vou te comer como a safada que é.


Fomos animalescos e rudes.

Hannah enfiou as mãos por baixo da minha camisa e

arranhou minhas costas.


Eu soquei com força dentro dela.

Logo, nós dois erámos apenas suor e movimentos

primitivos. Nossas bocas passando uma pela outra enquanto

seguíamos no ritmo ditado pelos nossos corpos.


— Oh, Sam, eu estou quase…

Concentrei-me em ser um cavalheiro e fazer as honras de

deixá-la gozar primeiro. Deixei uma de suas nádegas e enfiei a mão


entre nós. Foi preciso apenas um beliscão naquele clitóris inchado

que eu adorava provar com a boca.

Hannah se desfez em um berro.

Não perdi tempo e afundei nela em busca do meu próprio


prazer em meio ao seu. Porque não havia nada mais prazeroso para

mim do que gozar enquanto sentia uma mulher também ter um

orgasmo que eu proporcionei.


Precisei apoiar a testa no ombro dela por alguns instantes.

Hannah também se apoiou sobre a minha cabeça. Nossas


respirações combinando no descompasso.

Segundos depois, ela se afastou, acariciou meu cabelo e

sorriu.

— Bem, acho que agora estamos prontos para ir para a


cama e recomeçar como pessoas normais.

O uísque nas minhas mãos não tinha gosto de nada.


Parecia completamente livre de álcool. Exatamente o oposto da

minha mente, que aos poucos ia perdendo o entorpecimento de

todo o nevoeiro sexual daquela tarde e voltava para os meus


problemas recém-adquiridos.

— Será que já está pronto para falar o que está te

incomodando?

Deixei de fitar a tarde escurecida além do guarda-corpo. A


neve fazia a noite chegar mais cedo e terrivelmente mais fria.

Ao me virar, encontrei Hannah sentada no meio da cama

queen branca. As pernas dobradas embaixo de si, e os cabelos


escuros revoltos sobre seus ombros depois de mais uma das
nossas rodadas. Ela vestia seu roupão rosa robusto, e seu rosto

bronzeado estava concentrado em algo no notebook. Hannah era a


única sino-americana que eu conhecia que se esforçava para ter a

pele mais morena.

“Não gosto dos estúpidos padrões de beleza dos brancos.

Eu me prefiro mais morena.” Ela tinha me dito quando nos


conhecemos em uma balada noturna, há um ano.

— Não me diga que bancou “o diabo divorciador” com outra

mulher e agora está arrependido.


Entrei no quarto, e depois de fechar o vidro, encostei-me na

porta.

— Será que preciso lembrá-la de que você adora foder com


este diabo?

Vi a boca dela se curvar em um sorriso minúsculo.

— Bem, isso é verdade. Como uma advogada corporativa,

muitos acham que estou na estrada para o inferno. Talvez, dormindo


com você, eu consiga alguns privilégios ao chegar lá.

Foi a minha vez de rir.

Hannah fechou o computador.


— E então, Sam? Qual é o problema?
Pensei em contar sobre a manhã na delegacia e a garota
com um bebê na minha casa.

Era tentador simplesmente despejar aquela situação

escabrosa.
Principalmente porque, nos últimos meses, além de

parceiros sexuais eventuais, algo tinha florescido com Hannah. Não,

eu não estava apaixonado. Era à prova disso. Entretanto parecia


existir alguma coisa beirando a amizade entre nós. Talvez porque

fôssemos parecidos.

Hannah tinha deixado claro, no instante em que nos

conhecemos, que não queria um homem que entrasse em sua vida


de fato. Ela queria apenas sexo e paz para seguir com sua carreira.

Eu desejava o mesmo.

Mas com uma conversa ou outra, acabamos ficando


confortáveis em compartilhar certas informações sobre nossas

carreiras e mundos semelhantes. Isso gerou algum nível de


afinidade não premeditada. O que parecia bom e ruim ao mesmo
tempo.

Afinidade podia muito bem ser um rascunho para


sentimentos futuros. E ter sentimentos era o começo da ruína de
tudo.
—Não quero falar. — Fui honesto.
Hannah não se magoou. Apenas assentiu com a cabeça.
—Ok. Você é quem sabe. — Ela fez um sinal de continência.

Depois estendeu a mesma mão para o relógio de cabeceira, o que


fez uma parte do seu roupão cair, deixando o seio direito à mostra.
— Vou sair em duas horas. Tenho um compromisso inadiável com

uma amiga.
— Isso é uma expulsão ou um sinal para alguma coisa? —
Abri meu sorriso mais predador para a pele à mostra dela.

Hannah afastou o roupão de si e abriu as pernas, apoiando


os pés no colchão e revelando-me o triângulo levemente escurecido
por pelos.

— Não sei. Mas acho que pode provar com um pouco desse
seu uísque, para descobrir.
Minha boca salivou.

Hannah já tinha entendido que eu tinha ido até ali em busca


de fuga. De preferência, entre as pernas dela.

Por isso apenas segurei mais firme o copo enquanto me


aproximava da cama.
— Será um prazer.
Precisei de alguns instantes antes de cambalear para fora
do elevador.

Eu tinha saído de casa no meio de uma manhã louca,


antecipada por uma tarde e uma noite ainda piores. Então temi o
que encontraria quando atravessasse o limiar novamente. No

entanto, para a minha surpresa, só houve o tranquilo silêncio de


sempre.

Como se eu estivesse apenas voltando de mais um dia de


trabalho.
Por um instante, calculei se minhas últimas quarenta e oito

horas tinham sido de delírio puro.


Talvez eu não houvesse realmente quase atropelado uma
mulher grávida.

Talvez não tivesse vivido tudo aquilo e nem ido parar em


uma delegacia, muito menos trazido uma desconhecida com uma
recém-nascida para a minha própria casa.

Tudo podia ter sido apenas um sonho ruim.


E enquanto eu atravessava minha cobertura, quase sem
fazer som, todos aqueles pensamentos pareciam cada vez mais

possíveis de serem reais.


Subitamente, comecei a me sentir melhor. Como se um
peso deixasse meus ombros e toda a minha liberdade estivesse de

volta. Comecei a assobiar e atirei o meu agasalho da Nike no sofá.


No caminho para o quarto, abandonei a camisa.

Um bom banho e um comprimido para prevenir os efeitos do


uísque, que deviam chegar nas próximas horas, era apenas dessas
duas coisas que eu precisava. Estava prestes a tê-las, tão logo

chegasse ao meu quarto.


Mas então aconteceu.
Um baque vindo de um dos quartos pelos quais eu tinha

passado.
Tudo em mim vibrou em alerta, e em um instante, eu me vi
esquecendo o restante. Entrei no quarto de hóspedes. Um bebê

dormia no centro da cama, com a luz que vinha da fresta do


banheiro atingindo seu rostinho pequeno.
Nenhum sinal da mãe. Apenas o barulho da água do

chuveiro caindo livremente.


— Roxanne? — O nome veio rápido e fácil à minha mente,

dispensando toda a luta que tive para ignorá-lo durante o dia.


Sem resposta.
Fui até a porta do banheiro e bati.

Chamei outra vez.


— Me ajude…
A voz era fraca, mas eu avancei contra a madeira com toda

a força que pude. A tranca cedeu, e a porta bateu com brusquidão


na parede.

— Porra…
Roxanne estava caída, com os olhos fechados. A cabeça
encostada de mau jeito na parede, com a testa vertendo sangue. A

realidade varreu o que restava de uísque no meu sistema, e eu


avancei na direção dela.
Girei seu corpo nu, e mais magro do que devia, na minha

direção. Ela estava quente. Ardendo. Mas o que me fez afastar a


mão de susto foi o que vi ao tentar erguê-la: Uma terrível marca de
queimadura feita a ferro quente, exatamente na base da coluna

dela.
Alguém a tinha marcado. Como gado de corte.
Santo Deus…
— Por favor, não deixe ele me achar…
Ela delirou sem sequer abrir os olhos. Suas mãos se
agarraram nos meus braços com força.

— Virgem Maria! O que está acontecendo aqui, Sam?


— Cuide da menina e chame sua filha, Lia — ordenei,
ríspido.

Lia me obedeceu no exato momento em que Roxanne abriu


os olhos. O som que veio do seu peito e atravessou sua garganta
era de pânico puro. O ar parecia ter entrado, mas aprisionado a

respiração dela. Foi algo pavoroso de se presenciar.


— Olhe para mim, Roxanne. Vamos, olhe para mim, agora.
Os olhos exóticos estavam vidrados, mas ela me obedeceu.

— Minha filha…
— Sua filha está com Lia. Respire e olhe para mim. Você

está bem, está me ouvindo?


— Deus do céu, que desgraça pode ter acontecido a essa
menina para ela estar assim? Ela não vai resistir… — Lia estava

atrás de mim, com a voz embargada, mas não a olhei.


Não podia perder a concentração. Eu sabia muito pouco
sobre ataques de pânico, mas não a perderia.

Nunca.
— Continue respirando. Eu estou aqui. Você e sua filha
estão seguras. Eu estou aqui. — Toquei o rosto úmido dela,

afastando seu cabelo. — Lute, Roxanne. Fique comigo.


Ela assentiu. Então deu um último suspiro ruidoso e
desabou.

Continuei girando o líquido âmbar dentro do copo de cristal.

Não tirei os olhos do movimento, como se aquela mera constante de


uísque pudesse me hipnotizar. Talvez apagar a cena que eu havia
acabado de presenciar no banheiro.

Eu já havia visto muitas mulheres nuas em meus trinta anos


de existência. Corpos de todos os tipos e formatos para serem
admirados e apreciados com prazer. No entanto abraçar o corpo nu

de Roxanne sob a água quente do chuveiro tinha sido o exato


oposto. Sentir seus ossos expostos e sua pele quente, na verdade,

tinha sido tão doloroso que a opção, além de fitar o uísque, era
apertar as pálpebras com força. Manter-me na escuridão cega.
Em que tipo de lugar ela estivera antes para ser marcada
daquela forma? Quem faria algo tão cruel assim a uma mulher?

Parte de mim tinha uma intuição, ao menos, para uma das


respostas.

Escolhi engolir o uísque na exata hora em que a porta da


minha biblioteca rangeu, anunciando a entrada de alguém.
— Como ela está, Lorena? — inquiri, mesmo ainda fitando a

cornija da lareira.
O fogo crepitou duas vezes antes que a filha de Lia
respondesse.

— Bem, como médica, posso dizer que o quadro agora é


estável — afirmou com a voz tranquila de sempre. — Sua hóspede,
além de apresentar um quadro severo de desnutrição em um pós-

parto, está com um princípio de pneumonia. As condições somadas,


com certeza, irão afetar sua recuperação durante os próximos dias.
Minha mãe está cuidando dela agora, e é provável que ela precise

dessa ajuda durante toda a semana. A febre pode ficar indo e


voltando. A consciência também, mesmo com os medicamentos.

— E a pequena?
— A neném está bem. Apesar do pouco tempo de vida, a
menina é saudável e forte. Neste momento, bem mais que a própria
mãe.

Suspirei e apoiei o copo na parte superior da lareira, ao lado


de um vaso de porcelana chinesa. Depois, virei-me para encarar
Lorena.

— E o que mais, Lena?


O olhar dela ficou pesaroso, mesmo diante do diminutivo de

seu nome que apenas eu usava e que sempre a fazia sorrir.


— Preciso dizer, Sam, que, como mulher, essa garota
parece ter passado pelo inferno antes de chegar aqui. Tive de

examinar todo o corpo dela, e eu vi… — Ela travou. Sua aliança de


casamento brilhou quando ela apertou as alças de sua maleta de
médica nas mãos. — Eu vi a cicatriz. A cruz com espinhos e o “M”

na base. Ela foi marcada como…


— Como se marca gado. Sim, eu vi.
Silêncio.

Lena era uma mulher pequena como a mãe. Também


herdara seus cabelos ruivos. A maior diferença eram os olhos. Lena
tinha os olhos azuis-cobalto como os do pai, e quando se acendiam

daquela forma, com um brilho próprio, denunciavam todas as


preocupações que se passavam pela sua mente. Ela estava
apreensiva por mim, eu podia ver. Como a irmã que eu nunca tive.
— Eu já vi cicatrizes como aquela quando eu trabalhava no
hospital comunitário. — Ela fez uma pausa antes de chegar na
conclusão que eu já havia alcançado mais cedo. — Sam, você

também sabe o que uma marca como aquela pode significar.


Não era uma pergunta, era uma afirmação óbvia. Porque,
apesar de eu ser um advogado de divórcios, tinha colegas

criminalistas que lidavam com assuntos do submundo que se


vinculavam com aquele tipo de sinal de posse.
— Sim.

— Então você entende no que pode estar se metendo?


Cerrei o punho direito, ainda apoiado no acabamento escuro

da lareira, e voltei a fitar o fogo.


Lena, entretanto, não quis me dar tempo algum:
— Inferno, Samuel Mead! Está me ouvindo?

— E o que você espera que eu faça, Lena? — esbravejei,


apertando a lareira e depois soltando o acabamento antes de
quebrá-lo. — Que eu chute mulher e bebê daqui para fora?

— É claro que não!


Lorena deixou a maleta sobre uma das minhas poltronas de
leitura e se aproximou. O suficiente para marcar seu apoio,

pousando uma mão sobre o meu ombro esquerdo.


— Existem abrigos — começou. — Abrigos sigilosos que
protegem mulheres como ela, que sofreram abusos e violências. Ela

estará segura com a filha em um deles, e de lá pode contatar a


polícia e…
Afastei-me de sua mão e dei a volta no piano.

— Se ela está envolvida com o tipo de gente que a marca à


ferro quente, acha mesmo que a polícia pode resolver isso?
— Devemos confiar na polícia americana.

Ri. Não pude evitar.


— Ela é uma imigrante, Lena — relembrei. — Legalmente
ou não neste país, o governo vai preferir deportar o problema de

volta para o México. Você sabe bem como são as coisas. Sabe
como sua mãe sofreu perseguições da própria polícia, mesmo tendo

o direito de viver aqui quando se casou com seu pai.


Percebi que tinha ido longe demais quando Lena se
encolheu. Uma das perseguições contra Lia quase havia terminado

de forma trágica.
— Me desculpe. Eu não quis recordar nada daquilo.
Lena assentiu com olhos tristes, mas tranquilos.

— Não se preocupe, eu sei.


Deixei o silêncio cair sobre nós mais uma vez.
Era pior do que quando eu estava no hospital. Minhas

opções dentro daquela situação iam se limitando cada vez mais. No


entanto eu não conseguia sequer cogitar a ideia de deixar Roxanne
e a bebê em algum abrigo do governo. Principalmente de um

governo que faria de tudo para se livrar delas. Eu tinha que fazer a
maldita de uma escolha complicada, mas a verdade é que não havia
escolha alguma.

Desde que Roxanne surgira diante do meu carro, desde que


a segurei nos braços no meio do trânsito de Washington, minha vida
tinha tomado um rumo diferente. Eu sentia essa mudança se

infiltrando e arrastando as coisas de seus lugares certos. Contudo


era uma força incapaz de ser detida.
— Não vou meter esse maldito governo nisso — anunciei

por fim. — Vou cuidar dela e da bebê.


Quando encarei Lena, entretanto, não encontrei o olhar de

repreensão que eu esperava. Muito pelo contrário.


— Você tem certeza disso, Sam?
Anuí enquanto observava sua expressão doce. E apesar de

não saber quais riscos estava assumindo, nada me pareceu tão


necessário quanto as próximas palavras que deixaram a minha
boca:
— Tenho. Até que Roxanne esteja com a saúde

restabelecida e ela mesma decida o que fazer. Até lá, eu vou


proteger mãe e filha.

Lena sorriu.
— Apesar de tudo, eu concordo com a sua decisão. — E ela
se aproximou e me beijou no rosto. — Vou ficar atenta a qualquer

ligação sua e da minha mãe. Se precisarem, é só me chamar.


— Agradeço — falei, sincero.
Quando estava perto da saída, a filha de Lia se virou:

— Você tem mesmo um bom coração, Sam Mead. Só o


esconde muito bem.
Não tão bem, pensei quando ela finalmente saiu. Do

contrário não estaria comprando uma possível briga que poderia


custar a minha própria cabeça.

Duas horas depois, eu ainda estava acordado. Mesmo


sabendo que a manhã não tardaria, e com ela uma longa segunda-
feira de trabalho. A poltrona tinha adquirido meu formato depois de
eu ter ficado sentado ali praticamente a noite toda. Movendo-me tão
pouco que faria inveja a um bicho-preguiça.
Lia tinha cuidado de Roxanne até uma hora atrás. Depois,

antes de ir dormir, tinha vindo até a biblioteca e deixado uma


bandeja com um copo de leite e sanduíche de queijo quente. Minha

comida mais reconfortante.


Não toquei em nada.

Em vez disso, fiquei no meu robe preto, de faixa vermelho-


sangue, e folheando O Iluminado, de Stephen King, o que me
impediu de beber mais uísque enquanto eu pensava.
Como advogado, calcular os riscos dos casos que eu
assumia costumava ser a principal parte do trabalho. Eu podia ser
muito bom no que fazia, mas não era capaz de nenhum milagre.

Sabia muito bem que se meu cliente tivesse se metido em uma


furada muito grande, do ponto de vista jurídico, algumas coisas
estariam perdidas para sempre. E quando eu chegava a esse tipo
de conclusão no escritório, eu simplesmente abandonava o caso.
Na verdade, recusava-me a pegá-lo.

Mas não era nada disso o que eu estava fazendo naquele


momento.
Por Deus, a mulher tinha uma cicatriz que indicava
problema. E problema dos grandes. E em vez de abandonar o caso,
eu o estava assumindo. Tinha que haver um motivo para que eu

fosse contra os meus princípios e instintos mais básicos. Do


contrário, significaria que todos aqueles anos, no mundo complexo
das leis, tinham danificado a minha sanidade.
Talvez seja isso mesmo, pensei enquanto observava a capa
do meu livro. Talvez você esteja enlouquecendo como Jack
Torrance, sem saída no Overlook.

Exalei. Minha atenção se desprendeu do mestre do horror, e


o uísque voltou a parecer tentador. Eu já estava considerando
levantar-me para me servir, embora já tivesse estourado a minha
quota, quando um ruído aguçou minha audição.
Começou tão suave que sequer parecia real. Mas depois se
transformou em um lamento. Um lamento frágil, adentrando pela

porta da biblioteca que dava para o corredor.


Coloquei-me de pé e deixei o livro de lado para em seguida
atravessar a biblioteca. O quarto em que Roxanne estava ficava
apenas a duas portas, mas quando encontrei a maçaneta e girei-a,
não encontrei nada.
Roxanne dormia tranquila. Os cabelos, ainda úmidos,
espalhados no travesseiro. O rosto magro demais em sono pesado,
mas também com alguma serenidade não exprimida antes. Eu ainda
estava analisando-a, quando o lamento voltou a acontecer. Percebi
então que o som vinha do quarto de Lia. Fechei a porta de Roxanne

e caminhei até lá.


Desta vez, ao empurrar a porta, encontrei minha governanta
dormindo no chão, sob um belo amontoado de cobertores. Na cama,
em seu lugar, o pequeno bebê se agitava, rodeado de travesseiros
que asseguravam as margens de seu espaço.
Em todos aqueles anos, eu jamais havia entrado no quarto

de Lia. Era o espaço dela. Por isso vi-me sem saber se deveria
quebrar essa regra tácita.
A garotinha, no entanto, decidiu por mim quando começou a
chorar.
Foi no mínimo curioso, que quando parei diante da cama,
ela também parasse de se lamentar. A luz da manhã já entrava

pelas cortinas e iluminava parte do seu rostinho, o que, sem dúvida,


deve ter contribuído para que acordasse.
Ela voltou o rosto na minha direção ao som da perturbação
que causei ao seu redor, e eu a encarei.
Eu nunca tinha estado tão perto de bebês até aquela criança
que vi nascer. Nem sabia se recém-nascidos podiam enxergar

alguma coisa de fato. Mas… ainda assim, aquele pacotinho cor-de-


rosa pareceu tentar me encontrar. Só que logo ela pareceu
considerar mais interessante voltar a chorar.
Fiz a única coisa que me veio à mente: estiquei as mãos e
tentei encontrar o melhor jeito de pegá-la no colo.

— Qual é o problema, hein? — Ergui seu rostinho enrugado


na altura dos meus olhos, o que a fez se calar. — Não é minha
culpa que você tenha o rosto do Winston Churchill. Você está
acordada e agora quer acordar o restante da casa? É madrugada
ainda, sabia?— Balancei-a um pouquinho para frisar minhas ordens.
— As pessoas dormem a essa hora. Você deve dormir

imediatamente!
As palavras meio rudes mal tinham saído da minha boca, e
me virei para ver se Lia havia acordado. Sem dúvida, ela ficaria
horrorizada de me ver falar com uma bebê naquele tom de
repreensão. Mas, para a minha sorte, minha governanta dormia a
sono solto. Um ronco até soou mais alto dentre a pequena sinfonia

que ela emitia.


Suspirei, aliviado por escapar, e me virei para a garotinha.
— Ainda bem que você não pode contar isso para ninguém.
Ela piscou os olhinhos escuros como se buscasse foco para
me enxergar. Ou parecia algo assim.
Tive vontade de sorrir diante do que poderia ser um rostinho

chocado.
— Na verdade, acho que você parece mais um daqueles
pequenos pardais que vemos no parque. Eles têm os mesmos
olhinhos, esses olhinhos escuros e redondos com os quais você
está me procurando. E pardais não são lá os pássaros mais bonitos
ou interessantes do reino animal. Quer dizer, são interessantes

apenas para aquelas senhorinhas melancólicas que jogam migalhas


para eles.
Dessa vez, pelo meu segundo comentário rude, ela soltou
um pequeno berro. A megerazinha.
Lia soltou um muxoxo e se mexeu na cama improvisada.

— Xiii…Tudo bem, tudo bem. Sei que isso foi um pouco


rude, mas se esgoelar não é o caminho — sussurrei e a descansei
no meu braço direito, começando a niná-la, mesmo sem muito jeito.
— Você é uma garotinha bem vingativa. Parece um dos meus
colegas do Direito Corporativo. — Lancei um olhar intimidante para
ela. — Mas veja bem, você não sabe nem um pouco com quem está
lidando.
Ela não parecia se importar realmente com a minha tola
ameaça, mas eu estava começando a entender por que as pessoas
conversavam tanto com bebês. Eles tinham um calor reconfortante
quando você os segurava junto ao peito. Além disso, podiam

fornecer sua total atenção sincera de forma gratuita e de muito boa


vontade. Bebês, ao menos os recém-nascidos, tentam olhar para
você como se você fosse a única coisa que realmente importasse
em seus pequenos mundos. É possível falar o que se quiser para
aquelas bochechinhas roliças, ser você mesmo como nunca. Eu
jamais tinha me sentido assim com alguém antes, por isso estava

impelido demais a continuar a conversa:


— O que você está procurando ver, pardalzinha? — Ela
chupava um dos dedinhos, mas seus olhos pareciam se esforçar
como nunca para se concentrarem em mim. — Bem, saiba que
essas mãos não são conhecidas por sua gentileza. Você está por

sua conta e risco.


Ela inclinou a cabeça ligeiramente e desviou o olhar, como
se não acreditasse muito na minha verdade mais absoluta: ser um
cara mau.
— Ah, então você tem dúvida? Que audácia. Mas eu sou
mesmo um advogado grande e malvado. Terrível, na verdade. Você

entende, pardalzinha? Todos me chamam de “O Diabo” —


prossegui, caminhando com ela para perto da claridade da janela, a
fim de garantir o sono de Lia. Um pouco de neve ainda caía lá fora
quando me sentei na poltrona branca adjacente à vidraça. — Eu sou
o diabo. Isso não assusta você, pequena María?
María levou as duas mãozinhas à boca dessa vez. Mas

depois esticou uma delas, e seus dedinhos enrugados se


prenderam por instinto no meu indicador. E então ela fez aquilo de
novo. Voltou a tentar focar o olhar em mim. Senti-me como alguém
que estava sendo analisado em uma espécie de teste. Em um teste
tão importante que, por um segundo, me vi prendendo a respiração.
Instantes depois, um dos dedinhos escorregou sobre a

minha pele. Poderia ser uma pequena carícia, mas o mais provável
era que fosse apenas um reflexo. Ainda assim, eu me senti
aprovado para algo bem maior do que eu quando María soltou um
pequeno suspiro e se aconchegou no meu peito. Então,
instantaneamente, encontrei minha resposta. A motivação por trás

de ir contra todos os meus princípios e instintos.


Todavia eu não estava preparado para o que essa
descoberta trouxe em seguida.
Um instinto tão real de proteção que me sufocou a garganta.
De repente dei-me conta de que algo inédito tinha acontecido na

minha vida. Eu estava lá quando aquela pequena vida inocente veio


a este mundo. Eu ajudei para que chegasse em segurança. Havia
segurado a mão de sua mãe, e agora ela segurava a minha. E
algo… algo se encaixou.
Foi como se tudo que eu houvesse feito até ali não
importasse mais do que aquele momento. Até aqueles olhinhos de

um pequeno pardal me avistarem e me escolherem.


— Criaturinha corajosa. Você não se assusta com nada. —
Acabei sorrindo.
Em seguida, levei aquela mãozinha tão delicada aos lábios.
Então fiz algo que jamais pensaria em fazer por mulher alguma:
— Não se preocupe, pardalzinha. Nada de mal vai te

acontecer. — Beijei-a de leve. — Como eu disse antes, sou o


terrível Sam Mead, e vou colocar qualquer cara mau para correr. É
uma promessa.
Ela entendeu isso. E então fez cocô.
Venha até mim nas primeiras horas da noite
Eu vou esperar por você.

— RUELLE, “War of Hearts”.

ROX

Quanto mais eu avançava na neve, mais presa ficava.


— Tudo bem, mi hija. Nós vamos ficar bem — prometi à

bebê nos meus braços. — Vou encontrar um lugar seguro para nós,

eu prometo.
Continuei andando em meio à nevasca, meus joelhos

estalando por estarem expostos, pelo meu vestido de garçonete, ao

frio intenso. Tudo era branco ao redor, sem vista para uma árvore ou
mesmo qualquer faixa de céu. Quando eu tinha avançado bem para

dentro do monte de gelo, alguém gritou meu nome. Eu não


precisava me virar para saber quem era.

Ele.

— Não! Nos deixe em paz, nos deixe em paz! — berrei.


Esforcei-me para encontrar alguma saída mais rápido. A

nevasca, entretanto, parecia piorar na exata medida do meu

esforço. Os obstáculos aumentavam, e a cada novo passo meu, a


voz parecia mais próxima.

— Roxanne!

— Não, não, não!


Tentei correr, mas o meu desespero e as camadas

infindáveis de neve apenas me fizeram cair com o meu neném nos


braços.

— Filha, filha! Me desculpe, filha…

Porém, quando eu desdobrei o pequeno embrulho de

cobertores, não havia nada ali. Minha bebê havia sumido.

Um grito de horror saiu da minha garganta no mesmo

instante em que uma mão grande, com uma queimadura cicatrizada,


segurou a minha. Girei o rosto e encontrei os olhos escuros que me

trouxeram uma falsa confiança um dia.


— Não se preocupe, está segura, meu amor — prometeu
ele com um sorriso perfeito, no entanto, uma arma foi erguida e

encostada na minha testa. — Sempre vou proteger você, mi dulce

Roxanne.

Eu o ouvi destravar a arma, mas então uma voz abafou tudo

depois disso.

“Lute, Roxanne. Fique comigo.”


Acordei com o peito prestes a explodir e com uma fina

camada de suor frio descendo pela minha testa. Precisei lutar para

regularizar a entrada e a saída de ar dos meus pulmões. Quando

consegui isso, sentei-me apressada na cama gigantesca e

confortável.

Dios, onde eu estava?

Olhei para os lados e não reconheci nada.


Todo o quarto tinha mobília escura e elegante que cintilava à

luz do que parecia ser um fim de tarde. Neve caía do lado de fora da

janela em um branco tão intenso como o do meu pesadelo, mas um

cheiro reconfortante de bolo de laranja preenchia o ar e fez o meu

estômago roncar de forma violenta.

— María!
Agitei-me assim que o nome chegou à minha mente. Virei-

me e firmei os pés no chão. Um erro terrível. O frio da madeira


exótica do piso subiu tão depressa pelo meu tornozelo, que gritei

pouco antes de cair sentada na cama de novo.


Um instante depois, a porta diante de mim foi aberta.
— Deus do céu, minha menina. Você está bem?

O rosto cheio de sardas da mulher ruiva trouxe todas as


lembranças de volta de uma só vez. O acidente. O hospital. A

estação de trem e a delegacia. A casa e o quarto novos. Minha


tentativa de banho que meus joelhos não conseguiram aguentar, e

então…
Ele.
Samuel Mead. Ele era o homem que me segurou nos braços

e que me pediu para lutar contra a escuridão. Foi ele quem me


arrancou dela.

“Lute, Roxanne. Fique comigo.”


Contudo, antes que eu pudesse registrar outras coisas além

disso, Lia se aproximou e me fez deitar de volta sobre os


travesseiros de cetim.
— Você não devia ter levantado tão rápido, criança. Minha

filha disse que, quando estivesse melhor, deveria retomar suas


atividades aos poucos.

Lia verificou a temperatura na minha testa, e eu capturei sua


mão.

— Filha… onde está a minha filha?


— Ela está bem, querida. Está dormindo no quarto aqui ao

lado. Fique tranquila.


— Dormindo… — Experimentei a palavra na língua e depois
encontrei os olhos de Lia. — Por quanto tempo eu dormi, Lia?

Ela sorriu.
— Que bom que se lembrou do meu nome. — Lia se sentou

na cama e segurou minhas mãos. — Você dormiu por uma semana,


Roxanne.
Foi como levar um soco forte no estômago.

— Uma semana? — Minha voz saiu esganiçada diante do


choque.

Como eu podia ter dormido por tanto tempo?Isso era


possível? O que María havia comido durante todos esses dias? No

momento em que eu quis perguntar, entretanto, senti uma fisgada


forte dentro do crânio. A dor serviu de lembrete para o restante do
meu corpo, porque, de repente, todos os meus músculos pareciam

arder.
A governanta do senhor Mead pareceu ter entendido todas
as minhas perguntas na mesma hora.
— Acalme-se primeiro, minha querida — tranquilizou Lia,

acariciando meus cabelos.


— Eu… Como isso aconteceu? — Eu me sentia perdida e

mais dolorida a cada segundo, mas a pergunta custosa ainda saiu.


— Não foi como deve estar pensando — começou a
explicar. — Você tinha alguns momentos de consciência. Eu

conseguia acordá-la para amamentar a pequena María. E também


para te dar um pouco de sopa. Mas a pneumonia a deixou exausta,

assim como a medicação. Você dormia a maior parte do tempo. Não


se lembra das vezes em que acordou?

Esforcei-me para isso; concentrei-me, porém nada me veio


à cabeça. Minhas lembranças se desligavam logo após a cena no
banheiro. Havia apenas um lapso e em seguida o pesadelo sobre

estar caminhando na neve com María.


— Eu não me lembro — admiti. — Não me lembro de mais

nada, além de cair no chuveiro.


Lia afagou minhas mãos e assentiu.
— Não importa. A parte principal é que você parece melhor.

Minha filha, a médica que veio vê-la na última semana, disse que
quando você tentasse se levantar seria porque a parte mais difícil
tinha passado. — Ela sorriu e por fim se levantou. — Mas vamos
medir sua temperatura só por precaução.

Momentos depois, minha temperatura estava verificada e


dentro do normal.

— Preciso ver minha filha — falei, aflita.


Com o corpo dolorido ou não, eu precisava saber que ela
estava segura. Precisava conferir. O pesadelo não saía da minha

cabeça. Cobertores vazios nos meus braços. Meu maior medo

resumido a uma única cena.


— É claro, meu bem. Eu ajudo você. — Lia foi até o armário

e voltou com meias grossas. — Mas precisa calçar os pés primeiro.

Hoje está sendo um dia particularmente congelante, e já é quase

noite.
Calcei as meias com o seu auxílio e pude colocar os pés no

chão sem sentir dor. Foi só quando me ergui da cama que consegui

notar que trajava um grosso suéter preto bem maior do que eu.
— É de Sam — avisou Lia quando me viu observando a

roupa. — Você só tinha aquele velho uniforme que não ia protegê-la

do frio. Mas não se preocupe, você pode tomar banho depois. Sam
trouxe roupas para você quando trouxe mais roupinhas para María,

há alguns dias.
— Ele… ele trouxe roupas para a minha bebê? — Senti

meus olhos nublarem de lágrimas.

— Ah, sim. Ele também se tornou um especialista em


fraldas, se você quer saber. — Fiquei um pouco confusa com as

palavras dela, mas Lia apenas riu de sua própria piada. Então foi até

o armário e voltou com um robe grosso, azul-marinho. Colocou-o

sobre meus ombros, fazendo-me adentrar num mar de fragrância


masculina. — Aqui, Roxanne. Isso vai proteger o que o suéter não

conseguir. Agora vamos, María deve estar ansiosa para ver a mãe.

Assenti e aceitei o apoio dela para começar a caminhada.


Não tive que dar muitos passos para chegar à porta ao lado, o que

foi um alívio, já que minhas pernas pareciam ter esquecido sua

função e fraquejavam diante do movimento.


— Nós só tínhamos um quarto de hóspedes comum, então o

adaptamos, às pressas, com algumas coisinhas para ela…

Lia começou a explicar, mas quando girou a maçaneta e

empurrou a porta, eu pensei ter entrado em outro mundo.


Fiquei paralisada.

— Vocês fizeram isso… em apenas alguns dias?


Lia assentiu com um sorriso terno.

— É um improviso, mas ela está confortável — garantiu.

Era o quarto mais bonito que eu já havia visto na vida. E não


parecia nada adaptados às pressas. Muito menos de improviso.

Havia tapetes e poltronas, mesinhas delicadas e todos os

tipos de pelúcia em estantes e fora delas. Um berço de madeira

escura ocupava o centro de tudo e pairava sob um móbile de


nuvens e estrelas cor-de-rosa. Uma canção suave de ninar saía do

brinquedo e preenchia o ambiente. Tudo cheirava a talco de bebê.

Quando Lia me ajudou a ficar próxima o suficiente, foi


impossível evitar que as lágrimas corressem pelo meu rosto. María

dormia tranquilamente. Segura e quentinha em uma roupinha rosa

claro, repleta de pequenas melancias partidas ao meio. Suas

bochechas estavam coradas, e seu peitinho tremeu um pouco


quando ela ressonou.

— Mi hija… — Toquei-a com delicadeza na cabeça, então

me curvei e a beijei ali. — Eu te amo tanto…


— Ela dorme feito um anjinho. — Lia suspirou ao meu lado.

— Mas acho que já sabe a hora exata em que Sam chega do

trabalho. É sempre a hora em que faz cocô.

Ri num misto de paz e gratidão sem limite.


— Ela parece maior — analisei em um sussurro enquanto

acariciava seus cabelinhos. — É possível?


— Ah, as crianças crescem muito rápido nessa fase. Além

disso, eu cuidei que as amamentações fossem nos horários certos.

Sam complementou o leite que você não pôde oferecer com


fórmulas que um pediatra receitou. Ele também deixou um banco de

leite sob alerta, mas não foi necessário.

O alívio que eu sentia era tão grande que eu não pude

controlar. As lágrimas se transformaram em soluços e começaram a


irromper da minha garganta.

— Ah, querida. O que foi? — Lia segurou meu braço.

— É melhor eu sair… — pedi. — Vou acabar acordando-a.


Ela anuiu e, em seguida, me ajudou a caminhar para fora do

quarto. Eu não consegui evitar o que aconteceu depois.

Simplesmente me atirei na governanta e a apertei nos braços.

— Obrigada, obrigada. Eu nunca poderei fazer nada para


agradecer por tudo isso, mas obrigada…

Lia riu um pouco e me abraçou de volta.

— Está tudo bem, criança. Tudo bem. Nós estamos felizes


por ajudar.
— Eu não queria dar todo esse trabalho. Eu não queria ser

problema para ninguém, mas…

Ela me afastou e me segurou pelos ombros.

— Ora, pare de repetir essas tolices, menina. Deus nos


colocou neste mundo para ajudarmos uns aos outros. — O tom dela

foi ríspido e carinhoso ao mesmo tempo. Suas mãos macias

enxugaram as lágrimas nas minhas bochechas. — Sam já está


cuidando de tudo. Vocês vão ficar bem, nós vamos garantir isso.

Diante daquela fala, eu não tive mais forças para nada, e

meus músculos finalmente cederam à dor e à exaustão. Caí sentada

sobre o carpete macio e deixei que aquela boa mulher se juntasse a


mim e me consolasse com seu carinho de mãe.

SAM

Tive de travar a mandíbula ao descer do táxi, quando os

ventos cortantes do inverno açoitaram meu rosto. Do que adiantava


possuir dois carros de luxo, quando ambos precisavam de pneus

novos para neve ao mesmo tempo? Se eu tivesse levado o Tesla na


semana anterior, agora não estaria sentindo falta da BMW. Mas,

justamente na última semana, minha vida tinha virado de cabeça

para baixo e acabei me esquecendo das malditas datas de

manutenção dos veículos.


— Fique com o troco — falei para o motorista depois de

deixar uma nota de cem dólares sobre o banco do carona. No

mínimo o dobro da corrida.


Logo deixei a calçada coberta de neve e o nebuloso céu

noturno para dentro do prédio aconchegante. Enquanto tomava meu

elevador privativo, tirei o telefone do bolso do meu casaco para


conferi-lo, exatamente como fiz durante todo o dia no escritório.

Nada.

Nos últimos dias, eu havia me dedicado a descobrir com o

que estava lidando. Earnshaw estava procurando correlações a


partir do símbolo em cruz que descrevi, mas sua missão principal

era contatar Billie Colton. A garota que havia roubado Roxanne.

Entretanto nem mesmo meu feroz detetive particular havia


encontrado uma pista sólida sobre a mulher. A prova disso era a

ausência de ligações dele. Uma amostra de que o trabalho seria


particularmente difícil e poderia durar semanas a fio. O que era
apenas uma parte do problema que meus instintos aguçados

haviam detectado.

Exalei e apaguei a tela do telefone. Ela brilhou de volta um


segundo depois, com uma ligação. Atendi antes mesmo de reparar

no nome.

— Earnshaw?
Aguardei a voz do meu detetive, mas foi uma voz masculina

diferente que me respondeu.

— Sam, filho? Sou eu.

Respirei fundo. Eu devia ter gastado alguns segundos


prestando atenção ao visor do telefone. Aquela ligação era a última

que eu desejaria atender desde sempre.

— Não posso falar com você agora, Wallace.


A verdade é que “Eu nunca poderei falar com você” seria a

frase mais apropriada. Eu já a havia dito, mas Wallace não a


reconhecera e continuava insistindo em ligações que jamais nos
transformariam no que ele queria.

Jamais seríamos pai e filho.


A voz dele soou trêmula do outro lado.
— Por favor, meu filho, não desligue. Precisamos conversar.
— Você precisa parar com esses telefonemas diários. Eles
não farão nada de bom por nós. É tarde demais.
— Não diga isso, meu filho.

Minha voz soou irascível. Era insuportável ouvi-lo me


chamar daquela forma.
— Não, o senhor não diga isso. Não continue me chamando

de filho, quando nunca me nomeou como nada além de “seu maior


engano e vergonha”.
“Apenas o fato de ter que olhá-lo me faz recordar o tamanho

da minha estupidez.” Palavras doloridas voltaram sem permissão.


— Sam, eu sei que errei.
— E teve dezoito anos para perceber isso. Mas ainda

precisou de mais quatorze para começar a fazer essas ligações


estúpidas.
— Se você me permitisse ir até onde está ou se viesse ao

rancho… — insistiu com o que parecia uma voz embargada, embora


eu não acreditasse muito. — Se pudesse me dar uma chance, meu

filho, eu gostaria de tentar ressarci-lo. Eu sei que perdi tempo


demais. Sei que o deixei ir embora com raiva…
— Você me expulsou com a sua raiva. E só o que fiz para o

senhor foi nascer. — A mágoa de sempre tentou me engolir,


entretanto, não permiti. Eu não tinha tempo para isso. Tinha coisas
a fazer em casa. — Mas eu sobrevivi, e advinha? Eu não preciso
mais de você. Até seu sobrenome foi apagado da minha vida, então

apenas esqueça que temos parentesco, Wallace. Preciso desligar.


Não esperei por resposta, apenas encerrei a ligação com o

coração acelerado. Em seguida, enfiei o telefone no bolso,


afastando logo a conversa do pensamento.
As portas do elevador privativo finalmente se abriram dentro

da minha sala de estar. A casa estava silenciosa, e não era para


menos, já passava das onze. Um caso complicado de um astro de
futebol americano havia me atrasado quando se somou com todas

as horas em que estive em falta nas últimas semanas. Se não fosse


por Lia dormindo todas as noites na minha casa, eu sequer saberia
o que fazer. Bebês mudam drasticamente a rotina das pessoas, isso

era um fato. Eu tive que aprender muitas coisas nos últimos dias por
ter um neném no meu apartamento.
Ainda assim, apesar de todo o trabalho extra, chegar em

casa parecia ser mais gratificante do que antes. Caminhei


diretamente para o meu quarto e livrei-me da minha pasta de

trabalho e do meu casaco molhado de neve. Depois fui à toalete e


cuidei das minhas mãos, higienizando-as.
Então me dediquei à rotina de sempre na última semana e
tomei o caminho do corredor.

Primeiro, empurrei a porta já entreaberta do quarto de


Roxanne. A fresta de luz do corredor atingiu seu rosto, e ela franziu
um pouco o cenho, mas não acordou. Notei que seu rosto estava

mais corado e que sua respiração parecia serena, sem o esforço


considerável que precisava fazer antes.

Ela estava bem e segura.


Voltei a porta para o lugar em que estava antes e segui para
a adjacente. Tomei cuidado com a passagem de luz dessa vez, mas

não adiantou.
Um ruído veio do berço.
Claro. Ela sabia que era eu.

Aproximei-me e acendi o abajur, sabendo que não valia o


esforço tentar enganá-la e sair na surdina. Ela era esperta demais.
— Aí está você.

Ela esticou os bracinhos a esmo, mas sua cabeça girou na


direção da minha voz.
— Já devia estar dormindo, pardalzinha. — Estiquei a mão e

a pousei em sua cabeça frágil, verificando sua temperatura. A


pequena havia tido um pouco de febre nos últimos dias, mas

naquele momento sua temperatura estava normal.


Ainda assim, seu rosto se contorceu em uma careta, e eu
soube o porquê quando ela agitou as pernas.

— Deus do céu, você é uma pequena máquina de cocô, não


é?
Subi as mangas da minha camisa social até os cotovelos,

afrouxei a gravata e preparei o fraldário antes de tirá-la do berço,


reunindo talco, pomadas e fraldas.

— É melhor que seja o bom cocô amarelo de sempre —


avisei enquanto afastava sua mãozinha enrolada no próprio cabelo
e a deitava no lugar emplumado. — Não vou aceitar nada que seja o

contrário, mocinha.
Na última semana, eu havia lido sobre as diferenças do
“bom cocô” e do “mau cocô” entre um acordo de divórcio e outro.

Lena tinha me alertado para verificar esse tipo de coisa depois das
febres curtas para ver se a mudança de temperatura poderia ser um
alerta para algo mais preocupante.

A fralda de María estava premiada, mas nada verde ou


vermelho havia lá, para o meu alívio. Quando passei o talco e
finalmente prendi a fralda, sabia o que viria a seguir.
— Você não vai voltar a dormir se eu não fizer, não é?
Ela segurou minha mão tão logo eu a coloquei sobre sua
barriguinha, no lugar onde se lia, nas letras cor de rosa do macacão:

“A Princesa Chegou”. Um sorriso escapou de mim, o que


compensou todo cocô que eu havia acabado de limpar.
— Certo, você venceu. Mas quero ao menos duas horas de

sono para Lia e para mim, feito? Você tem que ter alguma pena da
minha pobre governanta. E não vai adiantar a senhorita entrar com
qualquer recurso de apelação. — María apenas ergueu os olhos

depois do meu pequeno discurso. — Vou aceitar seu silêncio como


um sim a esta petição.
Depois de enrolar a bebê em um cobertor de estrelas

cadentes, ambos deixamos o quarto e seguimos pelo corredor até a


biblioteca. A lareira estava acesa e crepitante, garantindo calor ao

ambiente. Principalmente perto do piano de cauda, onde nos


sentamos.
— O que você vai querer hoje? — inquiri enquanto a

aconchegava no meu braço esquerdo, deixando a mão direita livre


para as teclas. — Mozart?
Comecei uma sinfonia do compositor, mas María esperneou.
— Sei, sei. Já tocamos muito Mozart nas últimas noites, não
é? — concordei. — Além disso, “Lacrimosa” não é bem o estado em

que queremos que você fique. Que tal Beethoven?


Ela berrou logo nos primeiros acordes de Moonlight Sonata.
— Tem razão, parece que alguém morreu e está evoluindo

para o plano espiritual. Você é bem perspicaz para alguém que está
em sua segunda semana na Terra, pardalzinha.
Parti para a sua mais recente favorita, uma versão de La Vie

En Rose, e María finalmente se acalmou. Como mágica, seus


pezinhos deixaram de se lançar agitados no ar. Aos poucos, seus
olhinhos foram pesando e suas pequenas pálpebras se fecharam.

Sua respiração entrou em compasso, e senti as batidas rápidas de


seu pequeno coração junto ao meu próprio peito.
A música também me trouxe paz, como descobri que

acontecia desde a primeira vez em que tentei acalmar María com o


piano. Por isso continuei a tocá-la até o fim. Quando terminei, no

entanto, senti que María e eu não estávamos mais sozinhos, como


nas últimas noites.
Olhei para a porta da biblioteca e vi Roxanne.

Ela finalmente estava acordada.


Há algumas coisas que um homem nota em uma mulher

quando ela passa noites na casa dele. Mas eu não sabia disso até
aquele momento, quando meus olhos traidores perceberam
exatamente todas as coisas que não deviam.

O primeiro aspecto em que me concentrei foi no meu suéter


preto, da época da faculdade, com o inscrito “Harvard”, porque era o

que ela estava usando. Claro, além do meu robe azul-marinho sobre
seus ombros delicados e que chegava a arrastar-se no chão. Ela
não havia fechado esse segundo, o que levou meu olhar,

inevitavelmente, para as pernas torneadas e… nuas. Nos pés, as


meias cinzas que Roxanne usava também eram minhas. E toda a
intimidade daquele conjunto diante dos meus olhos me roubou o

fôlego por um instante.


— Eu… me desculpe — gaguejou.
Guiei meu rosto de volta ao dela. Seus cabelos estavam

despenteados em ondas revoltas, provavelmente amassadas pelos


travesseiros. E à luz da lareira seus olhos ganharam um brilho
intenso.
Roxanne tentou sorrir, mas corou.

— Lia dormiu antes de se lembrar de me dizer onde minhas


roupas estavam — continuou a explicar quando percebeu a minha
análise nada discreta.

Tentei responder, mas não encontrei voz. Nós ficamos em


um silêncio que tendia cada vez mais para uma ausência

constrangedora. Tive de lutar contra mim mesmo quando meu olhar


tentou vaguear mais uma vez para o corpo dela. Foi mais difícil
ainda quando ela começou a se aproximar. Cada terminação

nervosa minha ficou em alerta como nunca.


— Ela… ela já dormiu? — inquiriu quando parou ao meu
lado, diante do piano.

Roxanne se curvou um pouco para enxergar melhor o rosto


da filha nos meus braços. Seus cabelos roçaram de leve a lateral do
meu rosto. Uma lufada do meu próprio perfume vindo das roupas,

misturada ao cheiro delicado dela, chegou às minhas narinas e


desestabilizou coisas que eram mantidas intocáveis há tempos.
— Você fez alguma mágica com esse piano, para fazê-la

dormir tão rápido. — Ela acariciou a cabecinha de María. — Na


última hora, eu me levantei duas vezes, e niná-la foi praticamente
uma guerra.
Os olhos dela voltaram a encontrar os meus, seu rosto
pairando a centímetros da minha testa. Perto.
Perto demais, inferno.

— Preciso me levantar.
As palavras saíram mais rudes do que eu presumi quando
finalmente consegui liberá-las. Roxanne recuou de imediato, como

se elas fossem dardos.


— É claro, me desculpe.
Não perdi tempo com justificativas pelo meu tom, comecei a

me levantar com a pequena nos braços, mas a manga da camisa


social, no punho que usei para tocar antes, achou de bom tom

agarrar-se às teclas do piano justo naquele momento.


Soltei uma imprecação sem me preocupar com a altura do
som:

— Ao diabo com isso!


Ela deu um passo de volta na minha direção.
— Espere, senhor Mead, eu posso ajudá-lo…

Roxanne quase tocou minha mão sobre o piano.


— Não precisa, afaste-se — expeli num rosnado mal-
educado.

Ela se encolheu de novo.


Diabos, Sam Mead, que porra está acontecendo com você?
Arranquei o tecido caro de qualquer forma, rasgando uma

parte que ficou presa entre uma tecla branca e outra preta do piano.
— Vou levar a menina para o quarto — anunciei.
E não esperei por qualquer resposta, antes de começar a

caminhar para realizar esse feito. Segundos depois, escutei os


passos de Roxanne me seguindo pela biblioteca.
Não entendi por que eu estava nervoso como um maldito

garoto de dezessete anos, mas era assim que eu me sentia. Saber


que aqueles olhos intensos estavam em mim, analisando-me
enquanto ela me seguia, não ajudava em nada.

Forcei-me a me concentrar em María, e ajudou um pouco.


No entanto, assim que a coloquei no berço, não houve mais nada no

que me agarrar. Roxanne se aproximou, e eu dei um passo para


trás enquanto a observava dar um beijo de boa noite na filha:
— Buenas noches, mi hija. Sueña con los àngeles.

Ela sussurrou mais algumas coisas para a pequena em


espanhol até que, por fim, sorriu e se afastou. Quando se virou para
mim, entretanto, o sorriso se desfez.

— Senhor Mead, eu gostaria de conversar com o senhor.


Roxanne parou diante do berço, apoiando um dos braços

nele. A luz do pequeno abajur estrelado incidiu diretamente na altura


de seus seios. O jogo de luz e sombra deixou o desenho de seus
mamilos visível para mim, bem ali, embaixo do meu suéter.

— Na minha cama — soltei, porque aparentemente tinha


perdido o controle de alguma parte do cérebro quando essa mulher,
vestida com as minhas roupas, me olhava.

Os olhos esverdeados de Roxanne se arregalaram.


— O quê?
Caralho, Sam. Que merda você está pensando?

Recuperei-me o mais depressa que pude:


— No meu quarto. É onde suas roupas estão. Lia deve ter
esquecido de transferi-las. Venha comigo.

Percebi, tarde demais, que poderia estar piorando as coisas,


praticamente ordenando que ela fosse comigo ao meu quarto. No

entanto, quando deixei o dormitório de María, Roxanne me seguiu


pela segunda vez em silêncio. Apenas o som dos nossos passos,
reverberando pelo corredor, quebrava o silêncio.

Ao entrar no meu quarto, porém, tentei consertar as coisas.


— Espere aqui fora.
Ela anuiu e parou na soleira de imediato.
Encontrei as sacolas no mesmo lugar que as havia deixado,

há dois dias: no chão do meu closet. Ainda estava com o adendo de


Mark na nota fiscal, com o endereço para onde a boutique teria que

enviar as novas peças. No caso, o da minha cobertura.


Voltei para a porta com as sacolas.
— Aqui estão. — Coloquei as sacolas nas mãos dela e fiz

um esforço hercúleo para não voltar a olhar aquelas belas pernas


nuas. — Tire as minhas roupas. — Eu havia dito “tire as minhas
roupas”? Pelo amor de Deus, Samuel Mead… — E nós

conversaremos na biblioteca. Em quinze minutos, senhorita Rivera.


Em seguida, eu fiz a única coisa que poderia colocar fim
àquela agonia e colocar minha cabeça no lugar outra vez. Fechei a

porta e, no auge do inverno americano, fui tomar um banho frio.

ROX
Desde que eu havia acordado, o restante da tarde tinha
passado como se fosse um filme absurdo, enquanto minha cabeça
voltava para o lugar e tentava assimilar a nova realidade em que eu

me encontrava.
— Sam encontrou você no banheiro, e parecia estar

sofrendo um ataque de pânico. — Lia tinha segurado minhas mãos


sobre a bancada de mármore escuro da cozinha e explicado quando

consegui me acalmar o suficiente para entender. — E então eu


chamei minha filha médica, Lorena. Foi ela quem diagnosticou a sua
pneumonia. Ela também disse que você estava desnutrida e que por
isso iria precisar de mais ajuda para se recuperar. Nesse meio
tempo, Sam e eu cuidamos da menina.
Sam e eu.

Ela tinha dito e, sinceramente, eu não teria acreditado se


não houvesse acordado com a voz dele na babá eletrônica na
minha cabeceira.
“Você tem que ter alguma pena da minha pobre governanta.
E não vai adiantar a senhorita entrar com qualquer recurso de

apelação.”
Foram aquelas palavras, ditas em um tom tão suave, que
me acordaram. Demorei um pouco para convencer meu corpo, um
tanto quanto fraco, a se colocar de pé e sair do quarto. A essa
altura, um som de piano vinha das portas duplas calorosas no final
do corredor.

E então lá estava o homem pouco flexível que conheci em


um dos momentos mais difíceis da minha vida. E ele estava com a
minha filha nos braços, acalmando-a pacientemente com as notas
plácidas que tirava do elegante piano de cauda.
“Tem razão, parece que alguém morreu e está evoluindo
para o plano espiritual. Você é bem perspicaz para alguém que está

em sua segunda semana na Terra, pardalzinha.”


Mas ele não me dera qualquer tempo para expressar
qualquer coisa. Quando me viu, o olhar de Sam Mead endureceu, e
sua irritação soou clara ao notar que eu vestia suas roupas.
Prendi o lábio inferior, sentindo uma onda de vergonha tão
grande que poderia me afogar enquanto fitava a porta fechada na

minha cara. Não que eu esperasse qualquer tratamento diferente,


depois de tudo que vinha fazendo o homem passar, mas não
deixava de ser menos humilhante.
Eu havia me esforçado tanto para não depender de ninguém
ali, nos Estados Unidos. Na verdade, me esforçava para isso

mesmo quando estava no México e só tinha dezesseis anos.


Trabalhei duro para ajudar a sustentar a casa, até perder a minha
mãe para o alcoolismo e ter de lidar com a mudança de
comportamento do meu padrasto Javier, quando ele começou a
exigir certos pagamentos para que eu tivesse o direito de continuar
a comer e a viver sob o teto no qual nasci. Um dia, ele fez uma visita

à minha cama no meio da noite, que culminou em um chute que


fraturou o maxilar dele e me fez correr para a rua durante a
madrugada, selando o meu destino.
Foi na rua que o conheci. Sozinha e com medo. Carente de
alguma proteção que ele também se prontificou a me dar…
“Eu a marquei como minha. Eu a tirei do lixo, então você

deve me amar, ou vai voltar em pedaços para lá de novo, mi dulce.”


— Chega de passado, chega de passado, chega de
passado! — falei para mim mesma e passei as costas das mãos
pela bochecha.
Também não adiantava sentir humilhação ou chorar. Eu
precisava fazer alguma coisa. Para começar, parar de criar

problema para as outras pessoas e encontrar uma forma de garantir


um lugar para minha filha. E eu poderia resolver o primeiro problema
com aquela conversa que aconteceria em quinze minutos. Se Sam
Mead quisesse, eu sairia da casa dele ainda naquela noite. Com
certeza havia abrigos para mãe e filha em Washington. Mesmo sem
os documentos, tinha certeza de que ninguém deixaria uma recém-

nascida na rua. Ao menos a minha María conseguiria um teto.


Acreditando nisso, dei meia-volta e fui até o quarto que
estava ocupando. Fechei a porta e afastei as roupas masculinas do
meu corpo. Encontrei jeans de marca e um suéter branco que, sem
dúvidas, poderia pagar um mês de refeições de uma família no

México. Esforcei-me para não pensar no preço daquelas roupas


novas enquanto me vestia. Minhas costas doeram um pouco
quando enfiei o braço direito nas mangas, e eu soube que os
resquícios do meu baque no banheiro ainda estavam ali.
Exatos quinze minutos depois, deixei o quarto e caminhei,
mais devagar do que gostaria, para a biblioteca. Fiquei parada bem

no meio do aposento quando notei que ele ainda não havia


chegado.
Eu não havia reparado na casa em que estava até então.
Havia problemas demais na minha cabeça para isso, mas sozinha
ali, meus olhos de leitora voraz observaram tudo.
A biblioteca era um lugar culto e refletia a outra estratosfera

de elite em que o dono da casa vivia. O chão escuro só era


interceptado por um tapete vermelho com estampa abstrata. As
poltronas espalhadas variavam entre o preto e o escarlate. Os livros
estavam nas estantes que cobriam as quatro paredes de pé direito
alto. Às vezes, dividindo espaço com alguma escultura ou luminária,
como um nicho apenas do Stephen King, meu autor favorito.

Por alguns segundos, eu consegui absorver a beleza do


ambiente sem ter que pensar em mais nada.
— Gostaria de pedir desculpas pelo atraso. — A voz soou
impessoal às minhas costas.
Virei-me de imediato.
Vestido com calças e suéter de moletom preto, Sam

caminhou até a pequena mesinha com duas poltronas dispostas


frente a frente. Então puxou a vermelha para mim.
— Por favor, sente-se, senhorita Rivera. Temos muito o que
conversar.
O tom de voz tinha mudado, assim como o olhar. Era visível

que ele estava mais à vontade quando passou a mão pelos cabelos
ainda úmidos do banho e me analisou rapidamente. Contudo ainda
havia um pouco de urgência em seus modos, como no jeito que
tamborilava os dedos no encosto da poltrona.
Hora de dar um pouco de paz ao homem, Roxanne.
— Não preciso me sentar — declarei.
Eu tive tempo suficiente para pensar, naquela tarde. As
coisas não podiam continuar como estavam. Eu não podia continuar
causando uma situação constrangedora atrás da outra.
De onde estava, ele me analisou. Segundos depois,
suspirou.
— Deveria parar de tentar fazer isso, senhorita Rivera.

Franzi o cenho.
— De mentir — prosseguiu. — A senhorita é péssima nisso.
Daqui onde estou, posso ver que um dos seus joelhos está
tremendo. Sei que está custoso ficar de pé.
Era verdade. Meus músculos tinham sentido a doença e a
falta de uso da última semana, mas esse não era o ponto.

— Essa não é a questão, senhor Mead — retorqui,


forçando-me a olhá-lo nos olhos. — Acho que já dei muito trabalho
para o senhor até aqui. Só… só pretendo agradecer por tudo que
me fez e depois ir embora.
Aquilo o pegou de surpresa.

— Ir embora?
— Irei embora agora mesmo. Lia, sua governanta, me
contou tudo o que aconteceu. O quanto estive doente nos últimos
dias… — Respirei fundo antes de prosseguir. — Não tenho dinheiro
ainda para pagar por toda a sua generosidade com todas as
despesas médicas que teve comigo e com tudo que gastou María.

— Tive que fazer uma pausa após enumerar a dívida extensa.


Todavia o que eu tinha para dizer a seguir era mais do que
necessário. — Se o senhor tiver paciência e me passar sua conta,
posso ir reunindo os valores com o tempo. Dou-lhe a minha palavra
de que pagarei cada centavo. Enquanto isso, eu espero que o
senhor possa me perdoar por todas as situações constrangedoras

em que o coloquei até aqui.


Silêncio.
Sam Mead apenas me olhou. Por mais segundos do que
qualquer pessoa sob as vistas daquele homem poderia considerar
agradável. Então ele deixou a poltrona e começou a se aproximar.
Senti meus pés afundarem no chão, e uma onda de pânico

me varreu quando vi a determinação em seu olhar. Sem


escapatória.
— Infelizmente, senhorita Rivera, perdoar não está na minha
lista esquálida de qualidades. Muito menos ser generoso — disse
ele, sério como nunca, quando parou diante de mim. — Todo esse

tempo em que a mantive aqui, eu esperei pelo momento em que


acordasse para que pudesse cobrar o meu preço.
Tive um medo terrível de que ele erguesse a mão e me
fizesse pagar tocando em meu corpo.
Mas em vez disso, ele enfiou as mãos nos bolsos da calça,
e seu semblante se descarregou um pouco.

— Eu quero respostas — concluiu de forma


surpreendentemente paciente. — E se quiser proteger a sua filha do
que lhe marcou a ferro quente, terá que me dizer a verdade,
Roxanne.
Todos dizem. Todos que conseguiram.
Quando você encontra a pessoa especial, você a quer.

— COLBIE CAILLAT, “We both know”.

SAM

Eu nunca tive ideia de como as mães funcionavam. Até


aquele momento.

Quando mencionei a filha, os olhos de Roxanne mudaram.

O verde exótico cintilou em um sentimento avassalador de proteção


que eu nunca havia visto antes, apenas para em seguida ser

inundado por água. Roxanne deu um passo para trás e firmou a

mão direita no aparador mais próximo. A outra, ela levou à boca


para abafar um som enquanto virava o rosto para resguardar seus

sentimentos de mim.
Senti-me mal de imediato. E, por um milésimo de segundo,

vi-me lamentando o fato de a vida ter me feito quem eu era. Um

homem frio e sem qualquer tato.


— Desculpe. Todo meu comportamento foi muito rude. —

Consegui falar. — E nunca foi minha intenção assustá-la.

Mas eu sabia que não estava me saindo tão bem em provar


o contrário desde que ela acordou. Talvez um advogado cretino

fosse sempre um advogado cretino, mesmo quando tentava soar

como uma espécie de “cara legal”.


Exalei e tentei começar de novo depois de massagear a

ponte do nariz:
— Minha intenção é que possamos conversar, senhorita

Rivera. Só assim, eu poderei assumir o seu caso.

— Assumir… o meu caso?

O rosto dela virou devagar. Os vestígios de lágrimas eram

claros como o dia, mesmo em meio às rugas de confusão.

— Sim. Por favor, sente-se. Dessa maneira, eu poderei


explicar melhor.

Roxanne ponderou um pouco.


Eu me vi ansioso.
E se ela recusasse a minha ajuda? E se decidisse resolver

tudo sozinha após a forma como a tratei?

E se ela levasse a pequena María para longe?

Foi inesperado como o último pensamento causou um nó

profundo no meu peito. Um nó que poderia se arrebentar se a corda

fosse esticada além do limite e que certamente machucaria como


nunca…

Que tipo de pensamento absurdo foi esse, Mead? Uma

semana trocando fraldas, vigiando febres e construindo monólogos

com uma recém-nascida não muda nada. Você não tem qualquer

parentesco com aquela bebê. Não é o pai dela.

Aquilo foi o suficiente para que o meu juízo retornasse.

Eu nunca quis ser pai. Sabia que seria péssimo nisso,


considerando o exemplo que tive. Além do mais, eu sequer

acreditava na ideia de família ou de laços de afeição que pudessem

durar uma vida. As pessoas estavam vazias demais para se

esforçarem em qualquer tipo de amor durável. Por isso eu não devia

estar sentindo peso algum no peito.

Não iria sentir.


— Vou me sentar. — concordou ela, por fim.
Nós fomos até a minha pequena mesa, onde Lia e eu

jogamos xadrez nas últimas noites, ao passo que vigiávamos tanto o


sono de Roxanne como o de María.

— Precisa de um chá para se acalmar?


Continuei concentrado em ser amistoso enquanto puxava
uma das poltronas para ela.

— Não, eu estou bem.


Diante da resposta, dei a volta no móvel e ocupei meu lugar.

Percebi que ela ainda estava com dificuldades em me olhar.


Lembrei-me de como ela fora corajosa no hospital, mesmo sem

saber para onde iria com a filha. Ali, sob meu teto, entretanto,
parecia mais abatida. Eu precisava encontrar uma forma de mudar a
situação.

— Roxanne, por favor, olhe para mim.


Eu sabia que era íntimo usar o seu primeiro nome, mas

arrisquei assim mesmo.


Ela se mexeu devagar. Olhou primeiro para os braços

vazios, como se sentisse falta de algo… de alguém que a


empurrasse para frente e que lhe desse algum suporte. E quando
ela finalmente me olhou, eu percebi.
A coragem que presenciei naquele hospital era verdadeira,

mas era impulsionada por um instinto de defesa.


De defender a filha.

Era por isso que ela havia me encarado daquela forma. A


filha lhe dava a força que ela precisava para lutar. Mas Roxanne

estava com os braços vazios agora, e tudo nela parecia prestes a


ruir.
Algo dentro do meu peito ardeu e depois inflamou. As

palavras simplesmente precisavam ser ditas:


— Não vou deixar que nada aconteça a você. Nem à

menina. Enquanto estiverem debaixo do meu teto, vocês duas terão


tudo do qual precisarem e estarão seguras. Sei que as coisas
aconteceram muito rápido até aqui e sei que deve estar assustada

por estar na casa de um estranho — prossegui depois de uma


pausa, quase inexistente —, mas acredito já ter dado provas de que

sou confiável.
— Senhor Mead, o senhor não é o problema — emitiu

Roxanne com a voz embargada. — Deus, o senhor curou a minha


pneumonia e cuidou da minha filha nessa última semana. Mobiliou
um quarto para ela quando não tinha obrigação alguma de fazer

nada!
— Então quem é o problema?
— Eu sou o problema — confessou, e seus olhos
anuviaram-se novamente. — Minha filha não está segura graças a

mim! Eu não tive uma vida fácil, mas isso não justifica as escolhas
terríveis que fiz… Eu a coloquei em risco e agora eu… sou eu quem

precisa resolver as coisas. Sou eu quem precisa lutar por María. Eu


sou a mãe dela. E é isso que as mães fazem, elas impedem que o
mundo machuque seus filhos.

Diante das suas últimas palavras, as lágrimas haviam


sumido. O nervosismo, entretanto, continuava em seu olhar. Não a

pressionei, deixei que ela se acalmasse e que encontrasse seu


próprio tempo para continuar.

— O senhor não entenderia se eu explicasse. Não sou uma


boa mulher.
Ao dizer isso, ela afastou o olhar do meu, mas não antes

que eu tivesse acesso ao vislumbre de vergonha nas esferas


verdes. Verdade ou não, Roxanne acreditava no que havia acabado

de dizer.
Não é o que me parece. Não pelo jeito que se preocupa com
sua filha.
Mas eu não disse o que pensei, porque, na verdade, sequer
queria ter pensado naquilo voluntariamente.
— Então estamos quites, porque eu também não sou um

bom homem.
Isso foi o suficiente para atrair sua atenção de volta.

— Não é nenhum segredo de Estado, senhorita Rivera.


Metade de Washington pode confirmar isso. A outra metade a
condenaria só por perguntar sobre mim. E tudo porque tenho uma

fama muito bem justificada: sou conhecido por destroçar famílias.

Em geral, eu costumava assumir minhas características sem


qualquer remorso. No entanto ali, diante dos olhos de Roxanne, pela

primeira vez, senti-me deslocado. Desejando ser ao menos um

pouco melhor do que realmente era. Por isso tentei quebrar a

tensão:
— Ah, não se preocupe. Ser um advogado de divórcios me

traz muito dinheiro — tranquilizei-a. — Mais do que consigo gastar,

portanto, não se preocupe em me ressarcir nada com relação aos


últimos dias.

Ela negou depressa.

— Não posso ficar em débito com o senhor.


— Eu nunca direi qualquer preço à senhorita.
— Eu farei minhas próprias contas para estimá-los —

insistiu.
— A senhorita não aceita um não como resposta.

— Nunca, se eu puder evitar — respondeu Roxanne

baixinho.
Sorri. Simplesmente fui incapaz de evitar. Para a minha

surpresa, um sorriso pequeno também escapou dos lábios dela. Foi

algo de relance, muito rápido. Mas alguma coisa encheu minhas

entranhas, bem atrás das costelas.


De repente, senti-me paralisado por uma força tão

inesperada quanto natural. Roxanne também não se moveu,

parecendo tão presa quanto eu ao nosso contato visual. O tempo


pareceu seguir mais lento do que deveria. Diferente…

Ela quebrou a conexão primeiro.

Pigarreei.
Que idiotice você está fazendo agora, Samuel Mead?

Eu não sabia. Mulheres não me deixavam tão descontrolado

com as minhas atitudes em geral. Sempre fui um homem seguro

com relação a elas. Fosse durante um complicado acordo de


divórcio, quanto durante uma noite de sexo quente.
Contudo com Roxanne eu não estava enfrentando nem uma

coisa e nem outra. Talvez aquele fosse o problema. Sendo assim,

eu precisava trazer aquilo para o âmbito mais profissional, dentro da


minha zona de segurança.

— Eu quero ajudá-la. Mesmo não sendo um dos mocinhos

— garanti. — Mas, para isso, eu vou precisar saber mais sobre a

senhorita.
Roxanne começou a se afastar.

— Se eu for para um abrigo do governo…

— Se você sair daqui e for para um abrigo do governo sem


seus documentos, a imigração não vai pensar duas vezes antes de

deportá-la para o México. A senhorita sabe disso.

Eu a vi engolir em seco e apertar os dedos nos punhos

largos do suéter branco.


— Acho que prefiro arriscar.

— Mas eu não desejo que se arrisque.

Foi um choque até para mim a força que embuti naquelas


palavras. No entanto eu já estava recuperado quando Roxanne me

estudou.

— Não há por que se arriscar. Não quando a senhorita pode

continuar aqui com a bebê e em perfeita segurança. Ao menos, até


que eu consiga uma maneira de resgatar seus papéis. Se eu entrar

como seu advogado, mesmo que precisemos ir ao judiciário, a


senhorita terá mais credibilidade.

Percebi que ela parecia confusa. Como se não acreditasse

que eu realmente estivesse disposto a fazer aquilo, a resolver o


problema dela.

— E por quê?

Foi a minha vez de ficar confuso.

— Não a compreendi, senhorita Rivera.


— Por que o senhor faria isso? — Roxanne soltou as

mangas e entrelaçou os dedos trêmulos. — Eu não sou parente sua,

senhor Mead. Não somos amigos. Nem sequer conhecidos. O


senhor já fez muita coisa por mim, e eu agradeço de todo o coração.

Mas não consigo entender… não consigo entender por que o senhor

me ajudaria assim, sem ganhar nada em troca.

Inúmeras respostas poderiam se encaixar ali. Eu poderia


simplesmente dizer que ela seria o meu caso pro bono. Que ajudar

uma estrangeira e sua filha seria minha única boa ação em uma

vida de pecados. Mas isso não seria verdade. Eu nunca liguei para
boas ações. Não me importava em ajudar pessoas mais do que a

maioria dos egoístas desse mundo.


Todavia eu tinha me envolvido. Tinha presenciado um parto.

Tinha sentido sua mão gelada naquela delegacia e tinha atendido

ao choro de uma menininha noite após noite. Era tarde demais para

acreditar que conseguiria voltar a dormir se fizesse o contrário. Se


não conseguisse garantir que Roxanne e María estivessem seguras,

mesmo longe da minha casa. Até mesmo um demônio já havia sido

um anjo antes de cair do céu.


Pensando em tudo isso, fui o mais honesto possível.

— Apenas desejo que possam ter segurança. Aqui na minha

casa e fora dela. É a minha responsabilidade.

Roxanne me analisou por alguns instantes. Era clara sua


reticência em confiar completamente, mas então eu enxerguei de

novo em seu rosto o mesmo olhar de mãe que vi mais cedo. O

sentimento genuíno de proteção.


E soube, nesse momento, que ela faria qualquer coisa pela

filha. Até mesmo ceder a uma proposta que a incomodava.

Eu nunca tinha conhecido uma mulher assim.

— Tudo bem. Eu aceito a sua ajuda, senhor Mead. — Senti-


me profundamente aliviado. — Responderei a tudo que desejar

saber sobre mim.

Assenti.
— Ótimo — finalizei.

Quando me levantei da poltrona, ela se assustou.


— Espere, senhor Mead. Mas… e as perguntas?

Estendi a mão na sua direção para ajudá-la a se levantar,

em vez de responder. Fiquei mais feliz do que devia quando ela a

aceitou sem pestanejar.


— Espero que possa me tratar por Sam, agora que somos

advogado e cliente. Sei que não é a maioria, como me disse no

hospital, mas senhor me faz parecer o meu pai. E, definitivamente,


fujo disso como o diabo foge da cruz.

Roxanne ficou olhando para as nossas mãos entrelaçadas

antes de responder. E Deus, quando ela ergueu o olhar para mim e


moveu os lábios, eu realmente me senti assustado como o inferno.

— Sammi — repetiu ela, adicionando um “i” com seu

sotaque espanhol ao meu nome. Todas as veias dentro do meu

peito retumbaram juntas. — Sammi, os seus honorários…


— São dois mil dólares por hora.

— Carajo!

Ri.
— Agora isso foi um palavrão, e o meu espanhol parou no

secundário.
Mas Roxanne continuou séria.
— Não tenho dinheiro para isso — revelou, sincera. — Nem

se eu resgatar minhas economias com meus documentos, mais

tarde.
— Não se preocupe. Farei isso pro bono. Sem custos. —

Em seguida, emendei rapidamente para que ela não se sentisse

mal: — Serve para diminuir o imposto de renda.


Roxanne exalou e depois concordou.

— Certo.

— E não pense sobre as perguntas por agora. Não preciso

saber mais do que já sei, ainda.


Ela pareceu chocada.

— Mas o senhor… o senhor nem sabe de onde eu vim.

Ainda assim vai confiar em me manter na sua casa, mesmo sem


saber que tipo de pessoa eu sou?

— Bem, você está confiando em mim ao ficar na minha


casa, mesmo sem saber que tipo de pessoa eu sou. Então acho que
isso nos deixa em pé de igualdade.

Vi quando o meu argumento se encaixou nos pensamentos


dela. Percebi, aliviado, quando se acalmou.
— Continuarei tentando contatar a sua colega desaparecida,
então aproveite os próximos dias para descansar — avisei. —
Quando estiver mais disposta, nós vamos até o hospital pegar os

papéis da menina. Ela nasceu aqui, portanto é uma cidadã


americana. Como é dependente de você, isso lhe dá mais garantias.
— Eu me esqueci completamente dos papéis quando fugi…

— divagou Roxanne, culpada.


— Não precisa temer. Eles estarão lá. — E então, antes que
eu pudesse pensar sobre o que ia falar, aquele olhar verde desolado

simplesmente fez as palavras saírem. — Não precisará fugir com


medo outra vez, Roxanne. Não vou permitir.
O olhar dela se anuviou. Vi seus lábios articularem alguma

coisa, mas nenhum som saiu. Em vez disso, ela voltou a baixar o
rosto, o que me fez imitar seu movimento e perceber que nossas
mãos ainda estavam entrelaçadas.

Ambos nos soltamos ao mesmo tempo.


— Acho melhor irmos para a cama agora — falei, e

infelizmente só calculei as palavras tortuosas quando já era tarde


demais. — Quero dizer, cada um para a sua. Em quartos separados,
é claro. Muito claro.
Inferno! Para um advogado extremamente habilidoso com
palavras, eu estava levando uma rasteira atrás da outra diante de
Roxanne.

— Muito bem. — Pigarrei, tentando encontrar meu tom


impessoal de sempre. O desgraçado só podia estar morto. — Nós

nos vemos depois. Tenha uma boa noite, senhorita Rivera.


No entanto, antes que eu pudesse sair, senti a manga do
meu moletom ser agarrada. E outra coisa também foi fisgada

quando ela me olhou.


— Rox — corrigiu. — Pode me chamar de Rox. Assim
ficamos quites.

— Rox — repeti. Soava delicado, mas extraordinariamente


forte como ela. — É bonito.
Ela corou um pouco diante do meu elogio.

— Descanse. — Segurei a sua mão apenas um instante


antes de soltá-la dessa vez. — E não se preocupe, eu sou muito
bom no que faço. Garanto-lhe que toda a sua vida voltará aos eixos.

E, quem sabe assim, eu tivesse alguma chance de que a


minha também voltasse. Ao menos foi no que tentei me agarrar

quando me afastei para o meu quarto.


Infelizmente, não foi tão fácil.

— O Knighton está na terra dele. Onde moram nossos


colonizadores — pontuou Peter depois que o obriguei a tirar os pés
de cima da minha mesa. — Sabe que ele fica praticamente

incomunicável nessas viagens e que jamais avisa sobre seu retorno.


Por que você precisa falar com ele?
Suspirei enquanto fitava Washington da minha janela, ao

longe. Naquela quarta-feira coberta de neve, pessoas já desciam


pela Wallenberg com compras para as decorações de Natal. Alguns
turistas vinham do Museu Memorial do Holocausto, no The National

Mall. Logo, a casa branca estaria enfeitada para as festas de fim de


ano. Mas nada disso impediria a ameaçadora política de tolerância

zero do governo contra os imigrantes. O que tornava imprescindível


que eu resolvesse o mais depressa possível a situação de Roxanne.
A nova semana já se arrastava sem quem eu houvesse tido ganho

algum.
Sebastian Knighton, entretanto, era capaz de encontrar uma
agulha no palheiro. Sabia fazer as perguntas certas às pessoas
mais erradas e podres. Ele conhecia cada sujeira embaixo do tapete

da América e também sabia enxergar rastros ocultos mesmo por


criminosos inteligentes. Sem dúvida, ele teria mais eficiência que o
meu investigador pessoal para encontrar alguém tão escorregadia

como Billie Colton, uma ex-viciada com três passagens pela polícia.
Mas claro, o homem tinha de estar fora do país. E eu tinha que ter
pedido justamente para Peter, o curioso, verificar algo assim.

— Não é nada que seja do seu interesse, pode apostar —


assegurei enquanto abandonava os papéis de divórcio de Rafe

Hudson, um poderoso investidor de Wall Street, e procurava pelo


meu celular.
— Esse é o tipo de resposta que não se deve dar a alguém

quando o caso é de tentar diminuir o interesse da outra parte, Mead.


— Não estou tentando diminuir seu interesse, Walter, estou
salientando que não há razão para ele existir.

Encontrei o telefone na minha gaveta trancada. Havia duas


mensagens rotineiras de Lia, avisando que mãe e filha estavam
bem. Isso me deixou menos irritado com a notícia sobre Sebastian.

Roxanne havia ficado abalada durante a nossa primeira conversa na


minha casa. Sinceramente, eu também havia ficado. Tinha
planejado aquele momento há algum tempo na minha cabeça. O
momento em que faria as perguntas, que questionaria sobre o
passado dela e a obrigaria a me dizer onde raios eu estava me
metendo. Mas quando a vi tão fragilizada, com aqueles olhos

exóticos tão cheios de medo, simplesmente não consegui levar o


inquérito, tal qual o de uma promotoria, adiante. E no final ainda
havia feito o impensável ao simplesmente oferecer meus serviços

como advogado para uma mulher.


Entretanto o impensável não era tão surpreendente quanto a
minha nova realidade. Há alguns meses, eu riria de qualquer um

que ousasse prever meu futuro e revelasse alguma pista de que eu


me tornaria um “pseudo-homem-de-família”. Mas eu tinha chegado
a isso. Estava vivendo no mesmo lugar com uma mulher e uma

criança. Nos últimos dias, até encaixando minha rotina na delas.


Evitando barulhos altos enquanto trabalhava no meu escritório até

tarde ou estava na academia pela manhã e acordando no meio da


noite para ver se María estava bem. Também para ter certeza de
que sua mãe estava dormindo tranquila e segura…

Alguma coisa está acontecendo com você. E você está


permitindo isso.
— Sim, e com certeza também não há razão alguma para

eu me interessar por Rox, que está cada dia melhor, mas que você
já sabe disso, uma vez que a cobre gentilmente na poltrona todas as
manhãs.

Girei o pescoço e descobri o maldito Peter Walter atrás de


mim. Lendo minhas mensagens às minhas costas e sem respeito
algum pela minha privacidade.

Desliguei o telefone e me levantei.


— Fora da minha sala, Walter! — esbravejei.
Ele não se importou nem um pouco com o meu tom de

ameaça. Na verdade, ele recebeu o alerta como se fosse um convite


para que se sentasse. E foi o que fez, ao assumir a poltrona diante
da minha mesa.

— Ah, com certeza, isso é algo que vai me interessar, e


muito. — O desgraçado riu. — Então você anda cobrindo mulheres
gentilmente, Samuel Mead. Quem diria que é assim que sua fama

se espalha entre as garotas, no fim das contas? E eu achando que


você era cobiçado por causa desse seu cabelo engomadinho e dos

seus milhões no banco.


— Você tem três segundos, Peter.
O que ele fez foi cruzar as pernas, completamente

confortável, enquanto agarrava a escultura em ferro de uma balança


na minha mesa e brincava com ela.
— E você, com certeza, se torna esse poço de
cavalheirismo depois do sexo selvagem.

— Peter…
— Essa garota tem o tipo de nome de quem faz sexo

selvagem. Rox. Quero dizer, o nome indica cabeleira negra


volumosa e uma boa foda ao estilo caliente de Little Havana, ao
estilo lati…

Ele engoliu o restante da palavra maldita quando o segurei


pelo colarinho.
— Não se atreva a terminar essa frase estúpida na minha

frente, ou eu juro que além da minha amizade, você também vai ter
que se despedir de alguns dentes.
Peter engoliu em seco, e seus olhos me levaram a sério de

imediato.
— Tá, cara. Me desculpe — pronunciou, meio rouco.
Soltei-o, satisfeito, mesmo com parte de meus pensamentos

confusos. Eu nunca havia sido adepto de usar os punhos ou de


fazer uso de qualquer forma de violência. As palavras eram as

minhas armas comuns. Todavia, por um instante, eu vi tudo em


vermelho.
— Você vai mal, Mead — declarou Peter depois de ajustar

a gravata e o terno, como se nada de mais houvesse acontecido. —


Sempre atormentei você porque reconhecia que minhas habilidades
de luta eram vagas e sabia que as chances de eu levar um soco na

cara eram mínimas, já que você nunca foi um adepto do Clube da


Luta.

Não o olhei antes de ir até a janela. Principalmente porque


achava que ele tinha razão. Eu estava longe do meu cerne natural
nos últimos tempos.

— Posso estar mudando de ideia.


Sobre muitas coisas…
— Sim, há algo diferente em você nessas últimas semanas.

— O tom de voz amigo estava graduando a voz de Peter. O que


significava que ele finalmente estava entrando no seu modo que
levava a conversa a sério. — O que está acontecendo, Mead? Sabe

que pode confiar em mim. Sou seu amigo.


Olhei para o céu cinzento e, de repente, me senti cansado.
No começo de tudo, eu pensava que resolveria fácil a situação em

que me encontrava. Que tinha domínio bastante sobre ela. Mas


levando em conta a intolerância das leis americanas de imigração e
a forma como as coisas se encaminhavam… eu simplesmente
precisava desabafar. E antes que pudesse pensar, as palavras
estavam tomando forma.
—O que eu vou dizer a partir de agora não deve ser repetido

para mais ninguém. — Fiz uma pausa, aguardando o som de


entendimento de Peter. Quando aconteceu, revelei: — Tem uma
mulher morando na minha casa.

Silêncio. Somente o clicar suave do teclado de Mark, meu


assistente, vindo do lado de fora da sala.
Virei-me para encarar Peter. Nenhum vestígio de troça

estava em seu olhar.


— Você… está falando sério?

Anuí. Então caminhei até a minha poltrona e firmei a mão


esquerda no encosto.
— É a garota grávida que quase atropelei. Ela deu à luz e

não tinha para onde ir. Eu me senti responsável depois do acidente,


então a levei para a minha casa.
O queixo de Peter finalmente caiu, e vi quando as

lembranças se acenderam em seu olhar.


— Você está falando daquela garota estrangeira? Aquela
que você me pediu para procurar se tinha uma ficha na polícia
mexicana e eu não consegui encontrar nada? Ela e o garotinho dela
estão morando com você?

— Sim. Mas ela teve uma menina, María.


A boca dele se abriu e se fechou como a de um peixe.
— Caralho.

— Roxanne teve os documentos de imigração roubados —


continuei. — E você sabe como foi constituída a nossa política de
leis de imigração. A menina nasceu aqui, mas a mãe é do exterior e

ilegal sem seus papéis. Nunca me importei com o fato de fazer o


serviço obsceno de separar famílias que já se perderam há tempos,
mas mesmo um filho da puta como eu jamais acreditou ser certo

separar mães e filhos como punição por sua nacionalidade.


Peter concordou e, pela primeira vez em anos, vi uma

preocupação forte e genuína em seu olhar.


— Se a imigração descobrir…
— Vai deportar a mãe. Mas não antes de arrancar a menina

de seus braços sem nenhuma piedade e jogá-la num abrigo de


refugiados.
Minha garganta se comprimiu diante do pensamento assim

como meus dedos em torno do estofado da poltrona. Raiva e


impotência me preencheram. Do que adiantava a merda do meu
diploma e anos de experiência, quando eu não conseguia fazer

nada? Nem mesmo proteger um bebê inocente?


Não revelei a Peter que poderia haver muito mais. Que com
a cicatriz que tinha, Roxanne provavelmente escondia um segredo

que poderia ser ainda mais arriscado. Decidi protegê-lo, assim como
vinha fazendo com Roxanne, não revelando muito a respeito de
como o seu caso poderia se desenrolar na justiça americana. Ela

ainda precisava se recuperar completamente da pneumonia que


havia tido, e seu emocional já estava frágil o suficiente.
Não. Eu tinha assumido o caso como advogado dela. Era a

minha responsabilidade encontrar uma saída. Proteger mãe e filha.


De repente, avistei os papéis de divórcio de Rafe Hudson e
só consegui ficar nauseado.

— E se você solicitar a segunda via dos papéis do visto


dela?

— Foi a primeira coisa que pensei, mas eles vão exigir uma
nova entrevista. O que não será bom para uma mulher sem renda e
endereço fixo. Essa maldita política de imigração não perdoa nada!

— Sim, essa política transformou o país em um verdadeiro


caos. Então o que você pretende fazer, Sam? Agora entendo por
que você está procurando pelo Knighton.
— Ele poderia ajudar a encontrar a pessoa que roubou os

pertences junto com os papéis de Roxanne. Mas não vou poder


esperar por ele.

E isso ficou claro para mim naquele instante. Roxanne não


tinha tempo a perder, mas, ainda assim, eu havia desperdiçado a
última semana insistindo em dar atenção a casos como o de Rafe

Hudson, que queria se vingar da mulher impondo um acordo de


divórcio que a deixava praticamente sem nada, mesmo depois de
ele traí-la. Eu não me importava com essa última parte, mas agora

não poderia mais lidar com isso.


— Tenho que ir para casa — emiti, agarrando o terno no
braço da poltrona.

— O quê?
Peter ficou confuso, mas eu não me importei. Agarrei as
chaves do Tesla, agora apto com pneus novos de neve, e passei por

Mark ao sair da minha sala.


— Diga a Rafe Hudson que procure outro advogado para
ferrar a esposa dele. Não estou mais disponível para ser o cretino a

executar o serviço.
— Senhor? — Mark se levantou com os olhos arregalados.

Tinha certeza de que ele nunca me viu recusar um caso de divórcio


na vida. Principalmente um que valesse alguns milhares de dólares.
Mas não consegui pensar naquilo. Só me lembrei de
olhinhos escuros como os de um pequeno pardal. E de olhos

exóticos colocando o que restava de confiança neles nas minhas


mãos.

— Tenho outras prioridades na minha vida agora.


Foi tudo que informei. E a verdade naquelas palavras

ameaçou-me com um grito mais alto no silêncio do elevador assim


que as portas se fecharam.
Estou começando a me arrepender
De não ter dito tudo a você.

— NICKELBACK, “Never Gonna Be Alone”.

ROX

Havia conforto e desconforto naquela nova rotina, tudo


pressionando meu peito ao mesmo tempo enquanto eu observava

María dormir no berço depois de amamentá-la. Era confortável vê-la

segura e bem protegida do frio que caía lá fora, mas era difícil
aceitar que nada daquilo tinha vindo de mim. Nenhuma das peças

de roupa que ela vestia.

Nem mesmo as roupas que eu vestia.


Ainda assim, eu estava terminando a minha quinta semana

na casa de Sam Mead. Cinco semanas em que minha filha tinha


vindo ao mundo, bem no meio de todo o caos da minha vida. Ao

menos o meu corpo estava recuperado. Tanto do parto, cujos pontos

já haviam se dissolvido, quanto da pneumonia. Minha mente


também se organizava melhor, embora eu ainda não soubesse o

que poderia fazer para mudar a minha situação.

Lia, que havia se mostrado uma mãe e amiga, dizia que eu


simplesmente não deveria me preocupar.

— Todas essas coisas… isso não é nada para Sam. Ele tem

tanto dinheiro que chega a ser uma coisa indecente, e se ele não
gastar fazendo algo bom, com certeza São Pedro não vai deixá-lo

passar pelas portas do reino de Deus — disse enquanto eu a


ajudava a fazer um prato brasileiro na tarde anterior. — Além disso,

ele jamais aceitaria o seu dinheiro. Preocupe-se em melhorar e

cuidar daquela bonequinha, minha querida. Deixe o resto comigo e

com Sam.

Mas claro, não era tão simples assim. Em toda a minha vida,

eu jamais tinha visto um homem fazer qualquer coisa e não cobrar


um preço da mulher depois. Meu padrasto havia feito isso. O pai de
María também. Eu não conseguia enxergar como poderia ser
diferente com o dono daquela casa luxuosa.

Além disso, eu sabia que uma mulher e uma bebê,

hospedadas na casa de um homem solteiro, causavam transtornos

à rotina. Era visível o fato de que ele estava insatisfeito, uma vez

que mal se movia em sua própria casa e permanecia pouco nela.

Desde a nossa conversa na biblioteca, as palavras trocadas entre


nós vinham sendo escassas, e ele jamais se demorava em um

cômodo se eu estivesse lá. Mesmo se Lia estivesse junto.

Pelas manhãs, eu ainda encontrava María de fraldas limpas,

e quando adormecia na poltrona depois de vigiá-la de madrugada,

sempre acordava envolvida por um cobertor. Porém eu acreditava

que esses gestos, por mais contraditórios que fossem, não

significavam que aquele homem rico estava satisfeito com o arranjo


que se passava em sua casa.

Meu estômago embrulhou diante do pensamento. Era

horrível me sentir tão impotente. Minha mãe, antes do álcool

dominá-la, havia me criado para ser uma mulher forte e a agir por

mim mesma. Eu precisava encontrar uma forma de sair da lama

terrível em que me afundara.


— Roxanne?
Pisquei e soltei a madeira do berço que apertava.

Lia sorriu da porta quando me virei na sua direção.


— Tem certeza de que ficará bem por aqui, sem mim? —

inquiriu enquanto apertava a alça da bolsa azul de marca, que


combinava com o conjunto de mesma cor que ela usava naquela
noite.

Uma onda de calor envolveu meu peito ao constatar a


ternura no olhar dela. Algumas pessoas davam amor com tanta

facilidade… A solidariedade no semblante de Lia era clara. O marido


tinha ligado à tarde. Estava com alguma virose e também com

saudades dela. Lia vinha dormindo naquela casa, por minha causa,
nas últimas semanas. Ela havia me confidenciado que não dormia
no trabalho, mas que sabia como era ser imigrante em um país

estrangeiro e como tudo poderia ser bastante assustador.


Eu tinha coisas piores a temer, mas ainda estava feliz por

não me ver sozinha. E por ter passado as últimas tardes com


conversas tranquilas e algumas novelas mexicanas que eram os

amores de Lia. Tinha amortecido parte da preocupação e me dado


alguma paz, mas eu jamais exigiria nada além dos favores que já
estava obtendo.

— Está tudo certo, Lia. Eu vou ficar bem.


Mesmo assim, ela entrou no quarto e me abraçou.

— Se sentir qualquer coisa, se você precisar de qualquer


coisa, pode me ligar, certo? Eu vou ficar pertinho do meu celular.

Use o telefone que Sam comprou para você, viu?


Um celular era a única coisa que eu poderia evitar usar

naquela situação para salvar minha dignidade, já que eu não tinha


para quem ligar.
— Eu ligo, se precisar.

— E se a pequena María também precisar. Se ela tiver febre


ou cólica, se tiver uma dor de ouvido por causa desse frio terrível ou

se precisar da fórmula de leite que tem usado como auxiliar da


amamentação. — Lia me segurou pelos ombros e mexeu seus
cabelos ruivos ao assentir rapidamente. — É só ligar, e eu chego

aqui rapidinho que nem um trem!


Sorri diante da expressão em língua latina familiar. Eu não

sabia o que significava, mas fazia com que eu me sentisse mais


próxima de casa.

— Eu prometo que ligo por qualquer trem — improvisei,


esperando ter acertado, e segurei as duas mãos macias dela.
Lia sorriu. Voltou a me abraçar e depois me deu um beijinho

na testa. Pensei que ela ia se afastar e sair, mas ela parou e voltou
a apertar a bolsa, um tanto nervosa.
— Posso pedir um favor?
Eu só tinha sido uma dificuldade até então, por isso

rapidamente fiquei feliz em ajudar.


— É claro, Lia.

— Cuide de Sam para mim. — Ela foi direta, mas colocou


uma mão sobre a minha como se precisasse amenizar o pedido. —
Ele tem se trancado naquele escritório e trabalhado muito, mesmo

quando chega tarde da noite. Se esquece até mesmo de comer. Se


você pudesse levar alguma coisa até a biblioteca, mais tarde, eu

ficaria muito grata.


O amor maternal de Lia pelo chefe era óbvio. Apesar de

quase não ver Sam, eu tinha observado o cuidado dela com cada
refeição e com cada peça de roupa dele. Entretanto eu não sabia se
ele apreciaria a substituição.

— Ele não vai se importar se for eu a fazer isso?


— Não acredito. Ele mal me vê quando coloco o prato de

biscoitos diante dele enquanto mexe com toda aquela papelada. O


caso é que fico preocupada se meu menino não come direito e…
— Está bem, Lia — acalmei-a, segurando sua mão. — Eu

levarei a comida assim que ele chegar.


Lia ficou visivelmente aliviada.
— Obrigada, querida. — Ela me deu um tapinha carinhoso
na mão e começou a se afastar. — Ah, ele gosta de leite puro para

acompanhar os biscoitos. E algumas vezes, ele trabalha no quarto.


De qualquer forma…

— Vou fazer com que ele se alimente — assegurei.


Ela sorriu.
— Muito bem. Estou indo, então. Vejo vocês duas amanhã

bem cedinho.

— Vamos esperar ansiosas.


Lia jogou um beijinho no ar e saiu. Algum tempo depois,

escutei o som do elevador privativo se fechando ao longe. Ainda me

soava estranho pensar em um elevador se abrindo diretamente

dentro da casa de alguém. Mas quando alcancei as portas


francesas que davam acesso à varanda do quarto, vi os seguranças

em seus austeros ternos pretos espalhados ao redor do prédio.

Respirei fundo e depois caminhei até o berço.


— Você está segura, mi girasol — falei para María, que já

começava a erguer a cabecinha e mantê-la um pouco suspensa

enquanto me ouvia. Quando estiquei minha mão na direção dela,


seus dedinhos me agarraram. — Sempre vou garantir isso. Custe o

que custar.
Sorri para ela e ganhei alguma agitação de suas perninhas

minúsculas.

Minutos depois, ouvi as portas do elevador se abrirem outra


vez.

SAM

Apesar de estar chegando mais cedo em casa e passar

noites a fio estudando sobre as leis de imigração e as possíveis

linhas que poderia seguir para assegurar o visto de Roxanne, meus


avanços vinham sendo mínimos.

Com um puxão grosseiro, livrei-me da minha gravata e a

atirei na cama.
Não. Meus avanços deveriam ser declarados como

vergonhosos. Nada de Billie. Nada de Sebastian. Nada de bons


contatos dentro do serviço americano de imigração e nada de

brechas para escapar do sistema de leis do visto. Eu nunca havia

me sentido um homem tão inútil e, sem dúvida, tão constrangido por


ter de enfrentar a mulher na minha casa sem nenhuma boa solução

para ajudá-la.

Por isso, evitar Roxanne vinha sendo minha única

alternativa e a manobra mais covarde que até então já havia


executado na vida.

Dei outro puxão irritado, e dessa vez a camisa se foi. Em

seguida, sentei-me na cama, mesmo com meus pés já querendo


seguir em outra direção e ir até o quarto ver María e saber se ela

estava bem. A ausência de sons na babá eletrônica indicava que

sim e que ela devia estar dormindo, serena, mas eu me sentiria

melhor depois de conferir com meus próprios olhos.


Era uma coisa nova para mim aquela ligação forte com outro

ser humano, e o mais estranho era que eu não sentia vontade

alguma de ignorá-la. No entanto me convenci a tomar um bom


banho primeiro. Sendo assim, tirei os sapatos, as calças, e me

levantei. Sem me preocupar em deixá-los pelo chão, caminhei para

o banheiro e entrei no box de vidro.


A água morna caiu como uma benção sobre a minha cabeça

e permitiu que meus músculos relaxassem. A hora do banho sempre


foi sagrada para mim, então me esforcei para não pensar em nada

que pudesse acontecer num futuro próximo. Uma mente tensa

demais nublava os pensamentos e dificultava que se achasse a


solução para os problemas mais simples. Por isso fiquei quieto, as

mãos firmadas contra o vidro do box enquanto a água caía pesada

sobre as minhas costas. Não sei por quanto tempo permaneci

assim, mas os nós dos meus dedos estavam um tanto


empalidecidos quando finalmente terminei minha higiene e desliguei

a água.

Fora do box, estendi a mão à procura da minha toalha, mas


ela vacilou no vazio. Onde devia estar a toalha, havia apenas o

suporte. Lia deve ter se esquecido, o que não era incomum, devido

a nossa mudança de rotina. Sem saber onde começar a procurar

por uma toalha, já que eu sempre fui totalmente dependente de Lia


nesse aspecto doméstico, agarrei a toalha de rosto e a passei pelos

cabelos, antes de enrolá-la na cintura. Então saí do banheiro para

ver se conseguiria consertar o restante da situação.


Se eu não estivesse tão preocupado em preservar da água

o carpete do qual Lia tinha tantos ciúmes, para evitar que ela
sacrificasse as minhas bolas, eu teria olhado para frente antes do

pior acontecer. Mas só prestei atenção nisso quando já era tarde

demais.

Perto da cama, meu peito colidiu com algo macio e com


uma nuvem escura e ondulada com cheiro fresco. Minhas mãos

voaram, mas depois foram para frente por puro instinto de agarrar e

sustentar. Escutei o som de uma bandeja e vidro estilhaçando, mas


nada disso importou quando minha pelve se encaixou nas curvas

macias e arredondadas apertadas contra a minha toalha.

— Oh, Deus!

Roxanne soltou um grito, e eu tentei de tudo para evitar o


que aconteceu em seguida. Segurei firme sua cintura contra mim,

mas a água que começara a se empoçar no chão não cooperou.

Foi um absurdo, mas não houve escapatória. Ambos


escorregamos e caímos para trás. Fiz o possível para assegurar que

a cabeça dela não batesse em nada e a protegi com os meus

braços. Contudo a minha toalha minguada se tornou mais

inexistente do que funcional quando Roxanne caiu bem no meu


colo.
ROX

Meu Deus, eu tinha caído em cima do homem.

E ele estava molhado, nu, e suas mãos fortes me


sustentavam debaixo dos seios.

Não consegui me mover, mal consegui respirar diante de

toda a onda de constrangimento vertiginoso. Tudo o que eu podia


fazer era sentir a respiração dele. O ar entrecortado contra a pele do

meu pescoço e o ritmo de seu peito contra as minhas costas. Além

da resistência que se empurrava contra o começo do meu quadril.

Medo. Procurei rapidamente por ele, o conhecido medo que


me faria gritar. Era o que eu deveria estar sentindo com toda aquela

proximidade, depois dos últimos anos praticamente em cativeiro.

Medo dos homens. Mas não o encontrei. Na verdade, encontrei


apenas choque, seguido por uma eletricidade sob a minha pele.

— Meu Deus. Você se machucou? — A voz grave arrepiou-

me quando soou baixa e cuidadosa aos meus ouvidos.


Neguei com a cabeça primeiro.
— Não.

Ele se moveu um pouco. Quase imperceptivelmente, e

pareceu olhar sobre os meus ombros, conferindo as minhas


palavras.

— Com licença — pediu, e eu assenti, ainda pasma.

As mãos de Sam fizeram um caminho rápido por mim.


Conscientes e absurdamente sem segundas intenções, apenas

verificando.

— Sim, você parece bem — concluiu. — Acha que pode se

levantar? Porque não sei se tenho condições de bancar o cavalheiro


e ajudá-la com isso.

— Eu tenho… eu posso — gaguejei.

Mas não estava nada fácil. Eu não tinha onde firmar as


mãos, não se eu não usasse como apoio o quadril nu dele. Ele

percebeu minha dificuldade.


— Eu a ajudo. — As mãos de Sam foram para a minha
cintura. — Sente-se em mim.

Meu coração acelerou.


— O que o senhor disse?
— É a única maneira de se levantar, Roxanne. — A voz dele
pareceu embaraçar-se um pouco. — Dobre os joelhos e sente. Eu a
seguro por cima de mim.

A linguagem dele era simples e direta, sem qualquer traço


de luxúria. Mas, ainda assim, suas palavras, naquele tom de voz
profundo, fizeram os pelos dos meus braços arrepiarem. Afastei as

sensações o mais rápido que pude e tentei repensar outro jeito de


sair daquela posição em que me meti. Infelizmente, ele estava certo
sobre o único caminho disponível.

Eu teria de ficar sentada sobre o quadril dele por milésimos


de segundos, porque não havia outra forma de sair daquela
situação.

— Tudo bem — assenti.


Sam não respondeu. Ele me ajudou a içar o corpo, e eu
senti exatamente quando o vão entre as minhas coxas foi ocupado

por algo macio e duro ao mesmo tempo, cutucando a costura do


jeans. Não ousei olhar para baixo e ver a cena. E mesmo

levantando-me muito rapidamente, não me escapou como o meu


corpo reagiu. Como esquentou e estremeceu diante do toque íntimo
inesperado.
Precisei desfiar palavras o mais rápido possível para
esquecer aquilo quando fiquei de pé e permaneci de costas para
ele.

— Eu… Perdón. — Soltei um riso nervoso. — Sinceramente,


acho que só tenho dito “desculpe” para o senhor ultimamente. Deve

ser por isso que está evitando ficar na sua própria casa, senhor
Mead. Eu nem devia ter entrado no seu quarto, mas sua governanta
me pediu para deixar leite e biscoitos como se fosse Natal, e eu vim

fazer isso. Não era meu plano cair em cima do senhor, ainda mais
estando desnudo…
Escutei uma risada tranquila às minhas costas.

— Ah, então o problema foi o fato de eu estar pelado? Teria


planejado cair sobre mim com mais conforto, se eu estivesse
vestido?

Senti minhas bochechas arderem.


— Não, não é isso, senhor Mead.
Escutei seus passos atrás de mim.

— Se a assustei com a minha nudez, pode dizer. — Mas a


voz dele tinha bom humor em cada uma das palavras. — Eu faço

musculação todas as manhãs para impressionar as mulheres


quando tiro as minhas roupas, e não para deixá-las horrorizadas.
— Oh, o senhor não vai deixar nenhuma mulher horrorizada
com o grande… — Travei, realmente horrorizada. Não pelo que ele

pontuava, e sim pelas imagens que minha mente começou a


revisitar. Imagens nítidas depois que a toalha na cintura dele se foi.
O que você está falando, Roxanne? No que está pensando? Por

Dios! — Com o grande pescoço que o senhor tem.


Pescoço, Roxanne? Sério?

Ele riu atrás de mim. De tranquilo tinha evoluído para


completamente confortável.
— Então meu defeito é ser pescoçudo? É isso que assusta

as donzelas?
Eu quis morrer. Desejei que o chão abrisse sob os meus pés
e me engolisse para me salvar daquela humilhação.

— Talvez.
Cale a boca. Cale a boca, Roxanne!
Por que eu ainda não tinha saído dali? Por que eu

simplesmente não tinha terminado aquela situação?


— Eu vou levar a bandeja daqui — falei, agarrando a
primeira desculpa que chegou à minha mente. — Vou deixá-la na

biblioteca para o senhor. Onde poderá fazer sua refeição de forma


mais calma.
— Entendo. — Ele continuou a se mover atrás de mim.

Então parou e suspirou com grande pesar. Permitiu até mesmo um


instante de silêncio para solenizar o momento. — Meu grande
pescoço já a colocou para correr. Trágico.

Foi surpreendente para mim quando tive de deixar a


bandeja e levar a mão à boca para conter um sorriso. Eu poderia
imaginar um milhão de finais possíveis para aquele momento, mas,

sem dúvida, não aquele.


Meus ombros tremeram, e eu comecei a rir. Simplesmente

não pude evitar. Tive de devolver a bandeja à cama conforme meus


músculos relaxavam e se entregavam à boa sensação.
Fazia tempo demais que eu não ria. Mais ainda que não

ouvia minha própria gargalhada com tanta liberdade. Não havia


brecha para qualquer vestígio de alegria diante de tanta
preocupação e angústia. Mas ali, enquanto uma gargalhada

masculina profunda se juntava à minha, toda a tensão de meses


pareceu dar uma trégua ao meu corpo.
Eu ainda estava sentindo a energia miraculosa, quando me

virei e o olhei. Ele estava como eu, com um grande sorriso no rosto,
uma expressão totalmente destoante das que eu tinha visto desde
que cheguei ali.
Aos poucos, ambos nos acalmamos, mas o contato visual
permaneceu.
— Bem, não foi tão ruim, agora que tudo terminou em

risadas, não é? — Ele enfiou as mãos nos bolsos do robe vermelho


que vestia agora. — Lia me disse que você estava precisando rir. Eu
sei que eu também estava precisando, e me sinto bem melhor.

— É, eu também não estou me sentindo mal — anuí.


Ele deu um passo, depois me estudou por milésimos de
segundo antes de dar outros. Quando estava perto, debruçou-se, e

ergueu a bandeja:
— Não se preocupe, eu levo isso para a biblioteca e cuido
da bagunça no chão.

Lembrei-me de que deveria ser mais prestativa. Era o


mínimo.

— Não, senhor Mead, eu levo. Preciso ser útil.


Tentei agarrar a bandeja, mas ele a desviou.
— Achei que tínhamos superado o “senhor”. Eu já disse que

não quero parecer o meu pai. — O tom de repreensão na primeira


frase era brincalhão, mas soou ligeiramente diferente na segunda.
— Eu vou levar a bandeja, Roxanne, mas você pode me fazer

companhia mais tarde. Gostaria de conversar um pouco.


Não soube o que me deixou mais surpresa, a fala direta dele
ou a sinceridade em seu olhar. Não havia armadilhas e nem

ameaças quando ele disse aquilo. O que me deixou ainda mais


confusa após toda aquela semana de silêncio.
Ainda assim, vi-me assentindo e confessando:

— Eu vou gostar de conversar.


Ele sorriu, satisfeito.
— Eu a vejo em alguns minutos, então.

E com um aceno de cabeça, Sam se afastou. Como se eu


fosse a dona do quarto, e não o contrário.

SAM

De onde havia saído aquilo?


“Lia me disse que você estava precisando rir. Eu sei que eu
também estava precisando e me sinto bem melhor.”
Por que eu simplesmente havia olhado para a mulher à
minha frente e tido vontade de falar sobre o que eu estava sentindo?

Eu não gostava de revelar os meus sentimentos nem mesmo para


Lia, que me conhecia desde que eu era um recém-formado franzino.

Mas, de repente, sem o menor incentivo, eu havia feito aquilo. Tudo


para poder ver algum conforto nos olhos esverdeados dela.
Coloquei a bandeja sobre a minha mesa de carvalho na

biblioteca, mas não soube mais o que fazer depois disso. Era como
se meu cérebro aguçado não funcionasse mais em sua perfeita
forma. Ao menos, não na frente de Roxanne.

Por outro lado, as partes baixas do meu corpo tinham


alcançado um despertar espontâneo.
Andei para perto das janelas, na esperança de que o frio

violento da noite diminuísse as expectativas dentro das minhas


calças. Não era como se eu fosse um idiota desejando a mulher
fragilizada sob o meu teto. De maneira alguma. Aquilo era só o

resultado do meu celibato momentâneo em prol do trabalho e


daquele tombo constrangedor praticamente pelado. Essa era a

explicação. E também havia uma explicação para eu ter chamado


Roxanne para conversar.
Lia tinha me avisado que não poderia mais dormir na minha

casa. Era o certo. Estava na hora de ela voltar para a família, depois
daquelas semanas. Mas sem minha governanta não havia mais
formas de evitar Roxanne. Eu não poderia deixá-la noites a fio

sozinha. Principalmente quando “noites a fio” era um termo vago e


sem definição certa para o seu fim.

Meu pau finalmente resolveu se dar ao respeito e saí de


perto da janela, fechando-a quando o vento começou a empurrar a
neve para dentro. Assim que o barulho vindo do lado de fora

cessou, os sons do lado de dentro se fizeram altos. Um choro


encheu o ambiente.
Esqueci completamente o que estava pensando e saí da

biblioteca. Cruzei o corredor com algumas passadas, impelido pelo


lamento que aumentava cada vez mais.
— Mi hija, o que foi? O que está sentindo? — Roxanne

balançava María de um lado para o outro. As lágrimas dela já


molhavam a camiseta branca da mãe.
— O que ela tem? — Apressei-me para o lado das duas e

toquei a testa da menina. — Não é febre.


— Nem fome. Eu já a amamentei, mas ela gorfou o leite
quase todo.
Percebi a mancha na altura do peito dela. Roxanne tentou
se afastar como se tivesse medo de me sujar ou de me aborrecer
com o cheiro. Talvez no passado isso acontecesse. Ou talvez se

fosse com outra criança. Mas nunca com María.


— Não se preocupe, ela já carimbou pelo menos quatro dos
meus Armanis, antes de eu ir para o trabalho — tranquilizei-a com

um sorriso. — Pode ser cólica.


— Já pensei nisso — concordou ela com um aceno
enquanto nós dois voltávamos a olhar María. — Mas quando a

seguro junto ao peito, ela costuma se acalmar.


Estendi os braços.

— Posso segurá-la?
A surpresa ficou clara no olhar dela.
Eu vinha evitando pegar María no colo desde que Roxanne

acordou e nos viu ao piano. Claro, salvo as vezes em que, pela


manhã, ela precisava de uma troca de fraldas. Não sabia se
Roxanne poderia se importar com um nível maior de intimidade.

Porque, apesar de não sermos mais estranhos, nossa ligação


continuava sendo incomum.
— Você quer mesmo isso?

Assenti.
— Tenho meu próprio método para cólicas. Pelo menos
funcionou na primeira semana e pode aliviar a dor da menina.

Eu vi quando as palavras-chave a destravaram. Aliviar a dor


da menina.
Roxanne se endireitou e colocou María nos meus braços.

— Vamos, pequena — sussurrei para ela, ao recebê-la com


seus olhinhos molhados. Em seguida, voltei-me para Roxanne. —
Pegue o cobertor dela e vamos para a biblioteca, acho que a

iluminação de lá também a deixa mais tranquila.


Roxanne concordou de imediato, e nós três voltamos para
onde eu estava antes. Assim que chegamos, apontei para o piano.

— Coloque o cobertor ali.


— Em cima daquele piano luxuoso? — Ela se assustou.

— Ele mesmo.
Roxanne ficou confusa por alguns instantes, mas depois
caminhou até lá na minha frente. Ela forrou o piano com o cobertor

grosso, e eu coloquei María sobre ele com delicadeza.


— A dor já vai passar, pardalzinha — prometi. — Eu vou
fazê-la parar.

Com cuidado, estendi a mão e toquei a barriguinha sensível


dela. María se retorceu um pouco, fazendo meu coração também se
encolher ao perceber que estava certo. Senti que Roxanne me

observava atentamente, mas mesmo que ela estranhasse,


prossegui como deveria. Acariciei os joelhos pequenos de María e
depois os dobrei com delicadeza enquanto os levava para perto da

barriga dela. Fiz o movimento duas vezes antes de ouvirmos o


primeiro som.
— Ela… ela soltou um pum? — Os olhos verdes de

Roxanne se alargaram.
— Sim. E se for uma noite boa, teremos, ao menos, mais
quatro. Pelo menos é o que diz no manual indiano de Shantala para

recém-nascidos — informei-a enquanto Roxanne me analisava


como se estivéssemos no hospital e ela me visse pela primeira vez.
— Você tem mais punzinhos aí, não tem, pequena?

A resposta de María foi uma flatulência sonora.


— Meu Deus, esse foi dos grandes! — Roxanne riu.

— Ah, você pode fazer melhor do que isso, pardalzinha. —


Também ri enquanto voltava a massagear a barriguinha de María. —
Você é um mini torpedo, eu sei que é.

Como se me ouvisse, quando dobrei seus joelhinhos de


novo, María soltou duas bufas ainda mais sonoras. Terminando tudo
como se fosse uma velha motoca tentando pegar no tranco.
Roxanne gargalhou, ainda mais livre do que havia feito mais

cedo, e eu me vi seguindo seu exemplo. Nossas risadas se


misturaram, e só paramos quando um pequeno som se juntou ao

nosso. María tentou balbuciar.


— Ah! — Roxanne segurou meu braço. — Olha isso!
Eu também estava meio embasbacado.

— Ela está sorrindo… Esse é o primeiro sorriso dela, não é?


— questionei.
— É, sim — respondeu com a voz embargada. — E é por

você.
Percebi que Roxanne anuiu com a cabeça, mas eu não
consegui afastar meu olhar do bebê. A pequena María, por reflexo

ou não, olhava na minha direção e sorria. Eu nunca tinha me


importado antes com a boa opinião de ninguém. Nunca me importei
com a natureza da simpatia das pessoas por mim, se elas sorriam

ao me receberem porque queriam ou porque se forçavam.


Mas o sorriso de María mudou isso. Aquele esticar de
lábios, diante de uma gengiva banguela, me fez pensar que mesmo

que o restante do mundo me odiasse ou me achasse vil, seria


unicamente com aquele sorriso que eu deveria me preocupar. Era

nele que moraria a sinceridade na qual eu poderia confiar sempre.


E então alguma coisa germinou no meu peito, criando raízes
instantaneamente. Meu coração pareceu pesar o dobro em seguida,
como se aumentasse em tamanho.

— Vou fazê-la dormir. E podemos conversar — falei para


Roxanne.

— É claro.
María veio para os meus braços ainda sorrindo. Roxanne

nos seguiu com o cobertor mais uma vez, e eu me sentei com a


bebezinha na minha poltrona do xadrez.
— Agora você vai dormir tranquila. — Acariciei a cabecinha
dela quando a coloquei por baixo do meu robe, para aninhá-la na
posição que deixaria sua barriguinha menos “reclamona”. — É só
dormir, pardalzinha. Eu estou aqui. Você está quentinha e segura.

Mas acho que fui eu quem dormi me sentindo aquecido ao


ser coberto por algo felpudo e seguro, pela primeira vez na vida,
depois que uma mão afagou a minha até que eu atingisse a
inconsciência total.
Decisões ruins.
Bem-vindo à minha vida tola.

— P!NK, “Perfect”.

SAM

Estava trovejando em algum lugar. Trovejando forte o


suficiente para doer os tímpanos. Senti minha pele se arrepiar.

Contudo não havia brisa ou frio, pelo contrário, havia calor. Forte e

denso, de um jeito que me fazia suar como se eu estivesse


passando o final de semana no Havaí.

Quando abri os olhos, percebi que ainda estava na poltrona.

— Que bom que acordou — comemorou uma voz.


Ergui o rosto e vi Roxanne enrolada no meu robe azul-

marinho. Ela abriu um sorriso largo, e seus olhos reluziam enquanto


se aproximava.

— Estava preocupada. — Assisti, espantado, enquanto ela

se acomodava no meu colo. Uma perna de cada lado, ao passo em


que seus braços me envolviam pelo pescoço. — Você dormiu

demais, Sammi.

As mãos pequenas acariciaram meu rosto, e eu não


consegui fugir à tentação de fechar os olhos diante da suavidade

delas.

— Espero que ao menos tenha sonhado comigo. —


Roxanne se aproximou mais e beijou a minha bochecha. Depois

seus lábios desceram pela minha garganta, fazendo meu pomo de


adão tremer. — Espero que tenha sonhado coisas boas para nós.

Uma das mãos dela alcançou meu peito por baixo do robe, e

eu tentei me mover.

— Não, Roxanne. Isso não é certo. Não sou tão canalha

como todos pensam. — Tive de me esforçar para segurá-la pelos

braços. — Você não pode me tocar assim. Eu não posso tocá-la


assim também.
— E por que não? — Ela se afastou apenas para me
encarar com um sorriso. — Eu estou aqui na sua casa, não estou?

— Está. Mas isso não significa nada.

— E se eu quiser que signifique? — insistiu, seus dedos

deslizando na pele acima do meu osso esterno e quase me levando

à loucura.

— Você só está sentindo gratidão por mim — continuei


mantendo-a afastada. — E eu só estou há tempo demais sem sexo.

Sou seu advogado, apenas isso. Não podemos misturar as coisas.

Ela riu.

— Mas eu quero misturar. — Suas mãos se infiltraram cada

vez mais pelo meu robe, incendiando-me. Roxanne se acomodou

ainda mais no meu colo, deixando-me duro como pedra embaixo

dela. — Quero isso, Sam. Quero que me toque, preciso de você.


Preciso muito.

— Ah, Roxanne…

Ela sorriu o sorriso mais belo que eu já havia visto enquanto

apoiava a testa na minha. Eu não devia, e tinha consciência disso. A

lógica me mandava soltá-la e não ceder. Mas, inferno sangrento, eu

não conseguia. E em vez de agir de forma fria, eu me deixei levar


pelo que sentia. E quis como nunca fazer exatamente o que fiz.
Meus braços envolveram sua cintura e minha mão moldou suas

curvas adoráveis, deleitando-se com a carne macia.


— Eu a quero — confessei.

Os olhos dela se iluminaram. Nenhum medo ou dor, como


eu sempre via. A expressão no rosto de Roxanne, naquele
momento, emitia apenas uma felicidade que teria me feito negociar

minha própria alma nos infernos para mantê-la ali.


— Beije-me.

Mas quando eu sorri e decidi ceder, as mãos dela


alcançaram mais baixo na minha cintura, e minha visão nublou.

Uma pontada de dor aguda me tirou Roxanne e me


despertou para a verdadeira biblioteca.
— Porra…

A Roxanne real se assustou e tirou as mãos de dentro do


meu robe.

— Oh, eu não o machuquei, machuquei?


Demorei alguns instantes para me situar. Desmembrar o

sonho quente que havia acabado de ter da realidade à minha frente.


Algumas coisas pareciam iguais. Trovejava do lado de fora das
janelas enquanto uma tempestade violenta caía. Meu corpo parecia

embebido em calor e suor. Para coroar tudo, a mulher dos meus


delírios eróticos estava vestida com o meu robe e com as mãos

sobre o meu peito nu.


Em pé, mas a pouca distância de estar no meu colo. Era

uma questão básica de logística. Como envolvê-la pela cintura.


— Você estava sibilando. Na verdade, seu peito está

sibilando alto. — Ela soou profissional, nada impactada pela nossa


proximidade, ao contrário de mim. — Na falta de um estetoscópio
para auscultar, estava tateando para sentir as vibrações do seu

pulmão. Está sentindo alguma dor ou dificuldade para respirar?


Sim. Eu tinha dificuldades para respirar, mas era por causa

daquela mecha de cabelo dela caindo entre nós. O seu cheiro


natural estava confundindo os meus sentidos. Por isso tratei de agir
rápido.

— Eu estou…
Mas um acesso de tosse me interrompeu e demonstrou o

quanto eu estava errado. Os músculos das minhas costas


pareceram ter congelado e se partido quando meus pulmões

exigiram aquela movimentação.


— Minhas costas…
— Doem? — Roxanne se sentou no braço da poltrona e

praticamente me abraçou até alcançar as minhas costas. Fiquei


rígido, e dessa vez não foi pela dor. — Você tem asma ou algum
outro problema respiratório, Sam?
— Não.

— Tomou alguma chuva ou passou frio recentemente? —


sussurrou ao meu ouvido enquanto suas mãos pequenas ainda me

examinavam. O toque não tinha nada de sensual, mas meu corpo


traduzia tudo como queria de bom grado. Depois Roxanne se
afastou e me encarou, severa. — E preciso que seja honesto

comigo.
Sorri.

— Você quer honestidade de um advogado? Ninguém lhe


contou que ganhamos a vida contando as melhores mentiras?

Como se sempre tivesse feito isso, Roxanne passou a mão


pela minha testa, recuando os meus cabelos molhados de suor. Seu
olhar sondava tudo no meu rosto, como se cada coisa fosse mais

importante do que parecesse.


Era a primeira vez que eu me via alvo de um olhar como

aquele.
—Sem dúvida, vai estar longe de poder ganhar a vida agora
se mentir para mim, Samuel Mead — proferiu praticamente uma

ameaça.
Ri.
— Parece que você voltou.
Ela piscou, mas seus dedos continuaram o movimento

inconsciente de acariciarem meu cabelo.


— O quê?

— A mulher que conheci no hospital e que não teve medo


de me colocar no meu lugar quando fui rude.
A mudança estava em todo o seu rosto. A determinação

estava de volta, deixando os olhos verdes quase ferozes. Aquela

coragem desmedida que me atraía mais do que deveria, também.


— Desde que a encontrei na delegacia, você só tem se

encolhido e ficado assustada. — Tossi de novo. — Fiquei pensando

no que poderia fazer para trazê-la de volta, Rox.

Era a primeira vez que eu fazia uso do apelido que ela me


concedera. Percebi que isso não escapou a ela também.

— Eu estava fraca demais — confessou. — E não sabia se

poderia confiar em você totalmente para me mostrar como sou.


— E agora sabe?

— Não posso mais ignorar como você trata a minha filha.

Isso é uma prova inquestionável de caráter e bom coração. Não


pode ser uma armadilha. — Roxanne me encarou, séria. — Tenho

mais do que certeza de que posso confiar em você, Sam.


Sua outra mão ainda estava sobre o meu peito, e eu torci

para que ela não percebesse a mudança significativa nos meus

batimentos cardíacos diante das suas palavras.


— Agora preciso que me diga a verdade: você andou se

expondo a algum vento frio?

Neguei com a cabeça, mas então me lembrei.

— Eu abri a janela. Na hora da nevasca, mais cedo.


— Depois que você saiu do banho quente?

— Sim.

Ela xingou alguma coisa em espanhol.


— E por que você faria uma estupidez dessas?

— Isso eu não posso contar.

Era visível a frustração no olhar dela. Roxanne bufou, o que


a fez parecer mais uma garotinha do que uma mulher, então se

afastou de mim e se levantou. Ela também não se preocupou em

pedir licença quando se enfiou por baixo dos meus ombros e me

içou para cima até me colocar de pé. As horas na poltrona cobraram


seu preço, aumentando a dor nas minhas costas.
— Pode ao menos me comunicar o que estamos prestes a

fazer?

Ela estava tão concentrada em me colocar de pé que era


divertido. Além disso, era revigorante ceder a direção das coisas

para alguém. Uma vez na vida não ter que tomar conta de si

mesmo.

— Não está claro? Você está ardendo em febre — falou


aborrecida. — Vou levar você para a cama.

Os músculos ao redor das minhas costelas doeram quando

me atrevi a rir.
— Acho que já recebi propostas mais carinhosas do que

essa, mas aceito.

Esforcei-me para manter a maior parte do meu peso em

minhas pernas e delegar o mínimo para ela. No entanto, apesar de


ser pequena e magra, Roxanne era sólida como uma rocha, o que

me fez pensar se ela já havia feito algo assim antes.

— Você já carregou algum outro homem para o quarto?


Talvez fosse a febre que havia esquentado tanto o meu

corpo quanto o meu cérebro o que me permitia ter coragem para

fazer uma pergunta tão ridícula. Sem dúvida, não tinha nada a ver
com o sentimento tolo, possessivo e sem razão que parecia

comprimir a boca do meu estômago.


— Já carreguei alguns.

— Alguns? — Meu tom de voz cambaleou. — Quantos?

Roxanne fez uma careta enquanto me fazia dar os primeiros


passos.

— Eu precisei ajudar alguns que chegavam passando mal

na farmácia. Tínhamos um quartinho nos fundos para que as

pessoas aguardassem o médico.


— Você já trabalhou em uma farmácia?

— Sou farmacêutica pela Universidade de Guanajuato —

revelou simplesmente.
Foi uma informação e tanto, visto que nas últimas semanas

eu conhecia muito pouco dela, além do seu nome.

— Então você é formada em uma universidade… —

divaguei.
— Sei que não parece, visto que quando nos conhecemos

eu estava usando um uniforme sujo de uma cafeteria. — Roxanne

parou, já fora da biblioteca, dando-me tempo para respirar. Então


contou mais: — Mas eu não podia exercer a minha profissão aqui

nos Estados Unidos.


— Não tinha a validação do seu diploma?

Ela negou.

— Eu consegui isso meses antes, mas não podia correr o

risco de ser rastreada.


Pensei que ela fosse recuar, um gesto que demonstraria que

não queria responder as perguntas que aquela informação

despertava. Mas não aconteceu. Roxanne continuou me encarando,


séria. Ela não fugiu, e percebi que desejava exatamente o contrário.

Ela queria que eu perguntasse.

Mas, por algum motivo estranho, o que saiu da minha boca

foi:
— Acho que consigo chegar ao quarto.

O olhar dela ficou perdido por um instante, entretanto,

Roxanne não demorou para assentir.


— Vamos.

Apesar de demorar um tempo bem além do considerável,

nós conseguimos alcançar o meu quarto. Desabei na cama logo que

a senti encostar nas minhas panturrilhas.


— Você precisa tirar as roupas. Estão encharcadas de suor,

com odor e pegajosas.


— Sem dúvida, você sabe como tornar mágico o momento

de levar um homem para a cama.


Dessa vez, apesar da preocupação visível em seu olhar,

Roxanne sorriu. Deixei que ela ajudasse com as minhas roupas e

também que me ajudasse a deitar.

— Você tem analgésicos e antitérmicos? — perguntou,


depois de recolher as minhas roupas no chão.

— No armário do banheiro — respondi, fechando os olhos, o

cansaço me atingindo de súbito. — Lia mantém todos lá.


— Brasileiros e sua automedicação. Ah, Díos!

Ri. Eu nunca tinha me dado bem com o espanhol antes,

mas gostava cada vez mais do som dele na voz doce e irritada de
Roxanne.

Abri os olhos apenas para vê-la caminhar até o banheiro.

Depois voltei a fechá-los, e não soube de mais nada por um longo

tempo. Fiquei apenas sentindo arrepios e alguns espasmos


musculares.

— Aqui, Sam. Engula isto.

Abri os olhos.
Roxanne colocou o comprimido com delicadeza na minha

boca. Em seguida, sustentou a minha cabeça para beber a água.


— Isso está errado. Muito errado — divaguei depois de me
deitar novamente e cerrar as pálpebras. — Você está na minha casa

para que eu cuide de você.

— E você já cuidou. — Senti o toque suave dela contra a


minha bochecha. Uma umidade refrescante encontrou minha testa.

— Agora me deixe retribuir o favor, americano difícil.

Escutei um riso no meio da minha própria tosse.


— Você pretende cuidar de mim enquanto me injuria?

— Só um advogado usaria o verbo “injuriar” no lugar de

“xingar”, como os outros mortais. — A umidade se afastou da minha

testa, mas o toque carinhoso na minha bochecha prosseguiu. — É


assim que demonstramos nuestro cariño, na minha terra.

Assenti.

— Eu gosto.
Pareceu tão suave quanto os sons de flocos de neve contra

a janela, mas tive certeza de que era o som do sorriso dela.


Então, de repente, me lembrei de comentar a ofensa que ela
me fez.

— Há americanos piores do que eu.


Dessa vez, Roxanne riu de verdade.
— Disso eu não tenho dúvidas. Mas vou garantir que não
piore tanto esta noite. — Senti quando penteou meus cabelos com
os dedos. — Agora durma, Sam.

E então sua voz encontrou um ritmo doce de uma canção


em sua língua nativa que me acalentou. Falava de um belo luar em
uma praia mexicana. Deixei que tudo aquilo me embalasse e me

desliguei do mundo.

ROX

O peito dele se acalmou quando seu sono ficou tranquilo, e

meu coração também ficou sereno. Os roncos estavam diminuindo,


o que significava que o pulmão estava se esforçando menos.
Respirei, aliviada.

Devia ter sido apenas um choque térmico. Ele ficaria bem.


Ainda assim, fiquei ali umedecendo a toalha para refrescar
sua testa, até sentir que a pele tinha voltado à sua temperatura
normal. E enquanto fazia isso, não pude evitar o questionamento
que rondava a minha mente.
Por que ele não tinha usado a chance que lhe dei? Por que

não tinha perguntado diretamente sobre o meu passado? Eu teria


respondido tudo, e ele teria a oportunidade de terminar com todo o

peso daquela responsabilidade que havia assumido. Entretanto, em


vez disso, Sam havia se esquivado de fazer as perguntas. Como se
elas simplesmente não fossem importantes.

Ele não é igual.


Não podia ser como os outros que conheci. Apesar de toda
a bagagem de desconfiança que eu carregava, essa verdade tinha

ficado nítida naquela noite. A proteção daquele homem não se


tratava de nenhuma armadilha para subjugar ou ferir. Também não
havia um preço terrível do qual eu seria refém mais tarde.

Sam Mead não era um lobo vestido em pele de cordeiro.


Não. Aquele homem, que parecia duro como aço até mesmo
quando sorria, tinha um bom coração, e eu o senti palpitando sob as

minhas mãos enquanto ele pegava no sono com a minha filha nos
braços, mais cedo.

— Sinto muito, Sam — sussurrei enquanto secava sua testa.


— Por tudo.
E agora que eu conhecia tanto os sentimentos dele quanto
os meus, percebia que ganhava mais alguém na minha

determinação, além da minha filha, de proteger.

SAM

Dessa vez não houve sonhos. Foi o cheiro de madeira

queimando que me despertou já em alerta. Ainda assim, quando


tentei focar o olhar, não vi nada além de escuridão diante de mim.
Escuridão e frio. Logo depois, a reclamação fraca de um bebê.

— María.
Mexi-me na cama, e todos os meus músculos reclamaram
pelo esforço inesperado.

Merda. A maldita corrente de ar que eu havia pegado depois


do banho realmente havia me cobrado um preço alto. Entretanto me
lembrar da infelicidade que agora fazia todo o meu corpo doer
também me fez lembrar da voz doce de Roxanne cantando para

mim. Depois, de suas mãos tão suaves sobre a minha testa.


Quando consegui me sentar no colchão, senti que o cheiro
fresco dela ainda estava no quarto. Porém foi o novo muxoxo de

María que me apressou a sair do lugar. Atravessei o corredor


sentindo meus pés doerem graças ao frio do chão, mas não precisei
andar muito para encontrar as duas. A luz bruxuleante vinda da

biblioteca me indicou o caminho.


María estava no bebê conforto sobre a poltrona, enrolada

numa nuvem de cobertores. Roxanne estava curvada em frente à


lareira, cutucando a madeira com um atiçador.
— Agora temos que voltar para ver se Sammi está

quentinho também — disse ela para a bebê. Então suspirou. —


Aquele bom homem não está com sorte. Além de ter de cuidar de
nós e ter febre, agora está sem eletricidade na noite mais fria do

ano. — Roxanne não me viu quando se levantou e caminhou até a


filha. — Tenho de contar a ele quem eu sou, mi girasol.
María se agitou e mexeu a cabecinha delicada, quase como

se concordasse quando Roxanne a pegou nos braços.


— Sim, eu sei que você gosta muito dele. Eu também gosto.
E é por isso que precisamos protegê-lo.
Parte de mim odiou a preocupação no tom dela.
Principalmente porque a minha presença deveria sugerir o contrário
para ambas. Roxanne e María deveriam se sentir protegidas por

mim, e não responsáveis por me protegerem. Todavia, para a minha


própria surpresa, outro sentimento me dominou. Algo puro e
inusitado. Proteção não era um sentimento que já havia sido me

oferecido em qualquer ocasião, nem mesmo quando eu era uma


criança. Era extraordinário que viesse agora, justo de uma mulher e
de uma bebê, e que me fizesse acreditar tão piamente em sua

autenticidade.
Por isso, em vez de me mover e anunciar a minha presença,
senti-me impelido a continuar observando, ancorado ao limiar da

porta.
— Temos que garantir que ele fique bem, mi hija. Não posso

mais infligir destruição a ninguém. Eu já compliquei o suficiente o


seu futuro, minha bebê. Se ele nos encontrar, não sei o que será
capaz de fazer.

— Seja quem for, não será capaz de fazer nada a vocês.


Roxanne deu um pequeno salto de susto, mesmo com a
bebê nos braços. E quando se virou, percebi que não gostou nada

do que viu.
— Você não devia estar de pé — acusou. — E nem
praticamente sem roupa.

Pela segunda vez, minha nudez a repelia ao invés de atraí-


la.
Você não deveria querer atraí-la, aconselhei-me.

Roxanne colocou María segura de volta ao bebê conforto e


veio até mim.
— Estou me sentindo ótimo.

Sorri e tentei me desencostar da porta, como que para


comprovar. Foi uma ideia infeliz, uma vez que assim que me soltei,
a fisgada de dor que senti nos músculos me fez cambalear para trás

e quase cair.
Roxanne se enfiou debaixo de mim e me abraçou. Não tive
escolha, senão abraçá-la de volta.

— Peguei você. — Ela soprou uma mecha de cabelo da


testa.

— Parece que não estou tão ótimo quanto pensei —


lamentei.
— Você teve febre por quatro horas seguidas. Dificilmente

estaria ótimo, Samuel.


Sorri. Não pude evitar. Meu nome soava de um jeito único
na voz dela. Como se ninguém o houvesse pronunciado da forma

correta antes.
Com o semblante levemente aborrecido, ela me levou para

as duas poltronas que havia juntado, provavelmente para si mesma,


perto da lareira. María se esticou para mim quando me ouviu
chegando.

— Nada disso, mocinha. Ele está doente e… Sammi!


Mas eu já tinha tirado María do bebê conforto e ela se
enroscava no meu peito, mesmo não estando tão quente como

antes.
— Você não precisa fazer isso, Sam. Está se sentindo mal.
Neguei.

— Com certeza me sinto melhor com ela por perto. — E


realmente me sentia. O peso no meu peito pareceu diminuir quando
cobri quase todo o seu corpinho com uma mão. — O que aconteceu

com a eletricidade?
— Um apagão nessa parte da cidade, por causa da nevasca

— explicou Roxanne depois de nos cobrir. — Seu porteiro veio


avisar. Também reportou que a segurança foi reforçada na portaria.
— Merda. Eu sabia que devia ter mandado o maldito

gerador para o conserto.


Inconscientemente, apertei mais María contra mim para me
certificar de seu calor.

— Tudo bem. De qualquer forma, já está quase


amanhecendo.

Roxanne se afastou. Foi até a mesinha próxima, onde


conversamos pela primeira vez, e agarrou um volume de
colecionador de Carrie que devia estar lendo.

— Não é o melhor dele — falei, tentando desanuviar a


preocupação que parecia carregar seu semblante a cada passo.
Ela sorriu um pouco, apesar de a carga emocional continuar

estampada em seu rosto.


— Sem dúvida, não é. Eu prefiro Misery ou a atmosfera
angustiante de O iluminado e 1408.

— Então você não tem medo de hotéis ou quartos


assombrados? — prossegui, mesmo percebendo que ela continuava
frenética enquanto organizava meus livros.

Ou era a luz ou suas mãos tremiam de verdade. Devia ser a


segunda opção, porque, de repente, meu peito também vibrou,
incomodado pela angústia dela.
— Nenhum — respondeu. Então terminou com meus livros,
mas prosseguiu parada ali, com as mãos delicadas sobre as
lombadas. — Li todos dos Creepshow que encontrei, um tempo

atrás.
— A melhor forma de se proteger contra um medo é
enfrentá-lo — concordei, procurando continuar a conversa.

Roxanne ainda continuou parada por alguns instantes.


— Na verdade, eu nunca tive medo dos livros de Stephen
King, porque aprendi há algum tempo que não é preciso estar em

um lugar escuro para se sentir assombrada. Nossos erros são os


fantasmas que nos seguem de perto.

Um silêncio marcado por algo mais reinou após essa


colocação.
Quando caminhou para mim de volta e se sentou na beirada

da poltrona, nem mesmo o sorriso que arrisquei fez com que seu
rosto delicado diminuísse a seriedade.
— Sam, ninguém no mundo faria o que você fez por nós,

mas você conseguiu ir além mesmo assim. — Ela colocou a mão


sobre a minha. Sobre a mesma mão que segurava María. — E é por
isso que sei que não posso mais arrastá-lo para os escombros da
minha vida. Você não merece nada de ruim e, no entanto, tudo o
que tenho para contar é terrível.

Havia obstinação em cada uma das palavras que disse, mas


como o bom advogado que sempre fui, eu compreendi além da
mensagem dita e percebi o que ela queria fazer.

— Não quero saber da verdade se, com ela, você e María


pretendem se afastar de mim, Roxanne.
Roxanne negou com a cabeça.

— Você viu a marca nas minhas costas, Sam. Acho que, no


fundo, você já sabe.— Os olhos dela se encheram de lágrimas
enquanto seu aperto trêmulo se tornou mais intenso. Ela respirou

fundo, e apenas quando sua cabeça girou para o lado oposto, eu


percebi um conjunto improvisado de bagagens em meio à

penumbra.— E não tem mais escolha.


Extraia o melhor de mim
E então você saberá que nada mais importa.

— P!NK, “Run”.

ROX

O homem na minha frente ficou tenso tão logo percebeu


minhas intenções. Eu sabia que Sam gostava da minha filha.

Também sabia que o carinho era recíproco, mas eu esperava que a

notícia da minha partida lhe conjurasse algum alívio, depois de


todas aquelas semanas difíceis.

Não aconteceu. Na verdade, tudo o que veio à tona foi fúria.

— Não. — Ele praticamente rosnou.


— O quê?

— Não sei por quem você me toma, Roxanne, mas está


completamente enganada se acha que vou deixá-la sair para se

matar na nevasca no meio de um apagão, e ainda levar a minha

María.
A forma como ele usou o pronome possessivo antes do

nome da minha filha foi a única parte sem ira em sua fala. Até a

maneira como ele a apertou mais contra o peito foi extremamente


delicada.

Como aquilo poderia acontecer? O próprio pai de María a

rejeitou para depois planejar vendê-la no momento certo. Mas


aquele homem, com pouco mais de um mês de convivência, estava

pronto para defendê-la de tudo.


— Eu não vou embora agora. Não sairia com ela no meio

desse tempo terrível e na escuridão.

— Ótimo. Porque o lugar de vocês é aqui comigo, em

segurança.

E ele se levantou. A raiva parecia torná-lo forte como aço de

novo. Ainda assim, Sam aconchegou María na segurança do bebê


conforto e a cobriu com todo o cuidado primeiro.

— Sam, você precisa compreender…


Tentei agarrá-lo pelo pulso, mas ele se soltou e ficou de
frente para mim.

— Compreender o quê, Roxanne? Eu não lhe dei um

abrigo? Não lhe dei tudo o que precisava para cuidar de si mesma e

de María desde que a trouxe ao mundo? Achei que a essa altura

não me veria mais como um inimigo.

— Eu jamais o vi assim.
Contudo não o convenci disso. A mágoa em seu rosto era

visível.

— Se for pela demora dos seus papéis de imigração, eu vou

admitir agora que não tem sido fácil. Eu tenho estudado dia e noite,

mas as leis desse maldito país estão terríveis, e eu devia ter

comunicado isso a você para não dar uma impressão errada. Eu

errei em evitá-la nos últimos tempos para conservar meu ego.


Fiquei surpresa.

— Essa era a razão de você me evitar?

— Uma delas.

— E qual seria a outra?

O olhar dele desceu até os meus lábios, e eu senti meu

corpo esquentar, mesmo no frio puro que invadia a cobertura.


— Não é mais digna do que essa.
E ele recuou em uma atitude deliberadamente gentil e

cuidadosa. O que fez meu coração bater mais forte e me fez dar um
passo na direção dele para recuperar a distância entre nós.

— Não é o visto, Sam — confessei. — Esse é o menor dos


problemas que posso colocar nas suas mãos neste momento.
— Então é isso. Você não está mais segura de que posso

ajudá-las. Acha que se enganou a meu respeito. — Não era uma


pergunta. Os ombros de Sam se curvaram como se ele houvesse

acabado de ser derrotado em uma batalha árdua. — Eu sei que


todos pensam que sou desprezível. E na maior parte do tempo, eu

sou mesmo um canalha que defende sujeitos tão cretinos quanto eu


de esposas pelas quais não sinto qualquer pena.
— Sam…

Ele negou com a cabeça e se afastou para perto das


estantes.

— Venho me assegurando em não ser um canalha com


vocês. Porque sei que não merecem isso, mas talvez… Bem, talvez

eu a tenha decepcionado de alguma forma. Não seria a primeira vez


que decepciono uma família.
Era surpreendente a minha capacidade de estar sempre

cometendo erros. A última coisa que eu desejava era ferir o homem


que vinha ajudando-me e a minha filha, mas parecia que havia

acabado de fazer isso.


Sam estava parado perto da coleção clássica de Stephen

King. De costas nuas para mim e com as mãos enfiadas nos bolsos
da calça escura de moletom.

Não era isso o que eu queria. Enquanto ele dormia, eu tinha


planejado a melhor maneira de lhe contar a minha história. Depois
de tudo que havia feito por mim, era o mínimo que eu podia oferecer

em retorno. Entretanto, qualquer que fosse a maneira que eu


escolhesse para me revelar, eu reconhecia que no final seria coisa

demais. Sam iria querer se afastar, e tinha todo o direito de fazer


isso. Eu só havia tentado facilitar as coisas, porém, apenas acabei
parecendo uma tola ingrata.

— Você não nos decepcionou. — Aproximei-me de novo, na


expectativa de me explicar melhor. — E eu sei que você não é um

canalha.
— Você está enganada outra vez.

Eu não devia ter tocado nele após a recusa de antes, mas


toquei assim mesmo e segurei seu braço na altura do pulso.
— Não, não estou. — Sam se virou para a janela em vez de

me olhar. — Precisa acreditar quando eu digo que você é o melhor


homem que já entrou na minha vida. É por isso que não posso
magoá-lo. Não poderia suportar.
— Então por que você quer ir embora? Por que quer me

deixar como ela?


A comparação inesperada na frase dele me confundiu.

— O quê… Você disse ela?


Quando se voltou para mim, entretanto, Sam estava sério e
amparou meu rosto.

— Eu posso cuidar de vocês. Não sou um perfeito homem


de família, e Deus sabe que minha história pregressa não pode me

defender, mas garanto que posso fazer isso. Seja lá o que estiver lá
fora, na escuridão, não vou permitir que atinja você nem a bebê. Só

me dê um voto de confiança, e não vou desapontar nenhuma das


duas.
Minha garganta se fechou completamente diante da ternura

naqueles olhos escuros.


Sem dúvida, eu não merecia aquilo. Não depois de tudo o

que havia escolhido. De onde Samuel Mead havia saído e por que
Deus havia permitido que ele se tornasse um anjo na minha vida?
— Eu confio em você, Sam.
— De verdade? — Ele recolheu uma lágrima da minha
bochecha.
— Do fundo do coração. — Coloquei minha mão sobre a

dele no meu rosto. — Mas isso não muda o fato de que preciso
contar sobre o meu passado. Se você escolher que eu continue aqui

depois de ouvir, se escolher ficar ao meu lado…


— Eu já escolhi ficar, Roxanne. Será que não notou isso?
Ah, Deus…

Minhas lágrimas não paravam de verter. Sam continuou a

enxugar cada uma com cuidado.


— Você pode querer me mandar embora depois de

descobrir tudo o que tenho a dizer — preveni, mesmo com a voz

embargada. — Não vou achar que me abandonou, se o fizer. Seria

o justo.
— Não vou abandoná-la, Rox. — Ele colocou meu rosto

entre suas mãos e garantiu: — Não importa o que a assombre, vou

continuar aqui protegendo-a. Nenhum monstro vai me impedir.


Foi como entrar em uma bolha de amparo. Em uma sala

repleta de luz, depois de passar tempo demais acreditando que só

sombras povoavam o mundo. O olhar de Sam me aqueceu de


dentro para fora. De repente, não houve mais medo ou frio. Tudo
havia passado.Restando apenas aquele carinho sincero e as

palavras de apoio que eu não ouvia há tanto tempo.


Foi quando eu estraguei tudo.

— Roxanne? — Sam ainda me chamou, tentando me

impedir.
Não obstante, eu simplesmente não quis pensar mais.

Não vou abandoná-la. Foi tudo o que consegui absorver.

E minhas lágrimas sequer haviam secado quando fiz o

impensável até para mim mesma: passei os braços pela nuca de


Samuel Mead e beijei meu advogado. Com tudo de arruinado e

sombrio que eu tinha por dentro.

SAM

Mesmo para um filho da mãe como eu, existiam certos


limites. E se uma mulher te beija em busca de amparo, ou até
mesmo por gratidão, a última coisa que se deve fazer é beijá-la de

volta como um devasso.

Porém foi exatamente isso o que eu fiz com a mulher a


quem acabei de jurar proteção.

Beijei-a. Tomei-a para mim como se tivesse o direito. E que

Deus ajudasse um pobre diabo como eu, porque eu quis ter direito a

muito mais sob a penumbra daquela biblioteca. Como no meu


sonho, eu quis afastar de Roxanne tudo o que era terrível e que a

perturbava. Com o meu beijo, eu quis ter o poder de tirar dos seus

pensamentos tudo o que já a fizera ter medo e derramar lágrimas.


Eu sabia que não poderia realizar qualquer milagre do tipo, mas,

ainda assim, eu desejei poder como nunca.

— Você está bem — prometi enquanto intercalava beijos

também por suas bochechas, esquentando onde as lágrimas


deixaram gelado. — Nada mais vai acontecer a você.

— Sammi… — Foi tudo o que ela respondeu no sotaque

que atingiu o meu âmago.


Não parei de beijá-la. Ainda havia dor e receio naquela voz,

e eu queria encontrar uma forma de substituir tudo por algo melhor.

Ou, ao menos, pelo pouco de carinho que eu tinha reconhecido em

mim recentemente.
E eu consegui uma brechinha. A sensação foi arrebatadora

quando a senti se entregar, abandonar toda a rigidez causada pelo


medo que carregava como um fardo desde que a conheci e confiar

no meu toque. Entretanto, diferente de qualquer outro beijo que já

compartilhei com uma mulher na vida, esse terminou com um grito


de Lia.

— Pela santa Mãe!

Roxanne se soltou de mim de imediato. Mas não foi a forma

como ela se afastou rapidamente que fez meu peito pesar. Foi a
forma como ela me olhou, e assumindo toda a responsabilidade,

murmurou:

— Desculpe por isso, Sam. Por favor, me desculpe.


Pela primeira vez na minha vida, não houve argumento que

eu pudesse usar para me defender. O nojo e o desprezo que senti

por mim mesmo não seriam iguais em qualquer futuro próximo.

Que belo protetor você, Sam. Está mais para um cruel filho
da mãe.

— Roxanne… — comecei, mas ela meneou negativamente

a cabeça e se afastou para perto de María, colocando-a contra o


peito em seguida. Quase como um escudo.
— É melhor… é melhor eu ir para o quarto.— Foi tudo o que

ela me disse, em uma voz vacilante e estranha.

Não tive escolha, senão deixá-la partir dessa vez.

Lia e eu ficamos sozinhos na biblioteca, que já recebia os


primeiros raios de sol da manhã.

Culpa tinha sido um sentimento estranho para mim até

aquele momento, mas agora eu conseguia compreender por que


pessoas poderiam enlouquecer rapidamente por causa dela.

— Sam, me desculpe. — Minha governanta se aproximou e

apoiou sua mão nos meus ombros. — Eu não quis atrapalhar.

— Você não atrapalhou nada. Eu, sim, estraguei as coisas.


— Passei a mão pelos cabelos enquanto me sentava na poltrona. A

dor muscular de antes voltou com tudo diante do movimento brusco.

— Inferno, o que eu fui fazer?


Agora Roxanne tinha uma boa razão para partir. Como ela

poderia continuar a confiar em um homem que se aproveitou dela

em seu momento mais frágil?

Porra.
Cerrei os punhos, ficando nervoso comigo mesmo.

Você vai perder as duas.


Lia enxergou meu estado de espírito depressa e me

abraçou.
— Ah, querido… Não fique assim, Sam. Por Deus, meu

menino.

Mas não havia conserto para aquilo. Nenhum. As lágrimas

arranhando a minha garganta eram a prova.


E eu, que nunca me importei com o fato de todos me verem

como o próprio diabo, mesmo que não compartilhasse dessa visão

absurda, naquele momento compreendi a mesma verdade que


Lúcifer deve ter compreendido instantes antes de cair do céu: saber

que para um pecado tão grande jamais haveria perdão.

ROX

Mesmo quando a eletricidade voltou, eu permaneci no

quarto com María. Fiquei lá durante todo o dia, apenas tentando


entender o que havia feito. Acreditei que se eu pudesse
compreender o porquê das minhas atitudes, com certeza poderia
encarar Sam Mead de novo para tentar me explicar.

Eu beijei você porque você foi bom para mim.

Poderia ser uma justificativa, mas a mentira nela não me


agradava mais do que a verdade.

Depois de tudo o que passei com o último homem que “quis

me proteger”, a última coisa que eu deveria sentir era aquele tipo de


atração. Não importava que eu pudesse confiar em Sam, nem que

as intenções dele fossem sinceras e boas. Porque foi exatamente

um sentimento do mesmo tipo que me colocou naquela situação.

Que me fez dar um pai abominável, que agora nos caçava, para a
minha filha.

Você tem que ter aprendido a lição, Roxanne. Tem que ter

aprendido…
Porque se eu não tivesse aprendido, o que isso dizia sobre

mim, afinal? Talvez eu tivesse algum distúrbio. Algum tipo de


doença emocional desenvolvida por tanto tempo de solidão familiar.
E isso não reservava nada de bom para mim, muito menos para a

minha filha, que precisava de uma mãe sólida e saudável para


cuidar dela.
— Roxanne?
A voz de Lia veio depois de uma batida suave na porta.
Girei o rosto na poltrona.
— Querida, está tudo bem? Você não pode passar o dia

sem comer, não com uma bebê para amamentar.


Com um sorriso ameno e olhos bondosos, a governanta de
Sam adentrou o quarto. María continuou a dormir, mesmo depois

que ela repousou a bandeja prateada cheia de comida sobre a


mesinha de vidro.
— Obrigada, Lia. — Abracei-me dentro do robe. — Mas não

era preciso. Me desculpe. Eu ia me levantar e procurar algo.


Ela deu dois tapinhas amorosos na minha mão.
— Não precisa agradecer ou se desculpar por tudo nessa

casa.
Não. A última parte eu só devia ao dono da cobertura.
— Eu, por outro lado — afirmou Lia, sentando-se no braço

da poltrona em que eu estava —, devo me desculpar por ter voltado


de surpresa para vê-los esta manhã.

Não havia por que esconder algo que ela presenciara e nem
razões para não ser direta com a única amiga que fiz até aqui.
— Eu não devia ter feito o que fiz. Não devia ter beijado o

seu chefe.
Ela oscilou um pouco na poltrona.
— Foi você quem o beijou?
Anuí, mesmo sem conseguir olhá-la nos olhos.

— Sim. Sam confiou em mim o suficiente para me colocar


dentro da casa dele, e eu o ataquei.

Eu esperava por qualquer reação, menos pela risada


descontraída da mulher latina ao meu lado.
— Deve ter sido uma novidade para um homem controlador

como ele. Você e María são pequeninas, mas sem dúvida estão
levando a melhor no coração do meu menino.
Essa última frase me pegou de surpresa e me fez deixar de

olhar para dentro do berço e fitá-la. Entretanto, em vez de continuar


o que havia começado, Lia seguiu por um caminho totalmente novo.
— Sabe, Rox, eu quase fui presa por roubo em uma

boutique de luxo, certa vez. Uma moça americana roubou uma saia,
mas na última hora deve ter ficado nervosa demais para sair com o
que furtou e a jogou dentro da minha bolsa. Claro que o segurança

que me abordou com uma pancada na cabeça não sabia de tudo


isso.

— Ah, Lia, que horror! — Segurei a mão dela, assustada.


— Sim, foi horrível. Mas poderia ter sido pior, se um jovem
magrinho e recém-saído da faculdade não viesse ao meu socorro e

despejasse todo um conjunto de leis sobre racismo, xenofobia e


agressão contra a mulher. Além disso, ele deixou de comprar as
camisas caras que fora comprar na tal loja e disse que era meu

advogado.
Oh, meu Deus…

Meu coração batia tão forte que eu tinha dificuldades para


respirar.
— Sam?

Ela anuiu.
— Sim. Ninguém o chamava de Satanás nos jornais ainda.
— Alguém disse isso sobre ele? — Não pude controlar a

irritação que se abateu sobre mim.


— As pessoas falam crueldades sobre outras que sequer
conhecem. — A voz de Lia também continha ira. — Mas não é isso

o que importa. O que importa é que, mesmo sem me conhecer, Sam


acreditou em mim quando eu disse a ele que não havia furtado nada
e me defendeu. Ele me seguiu até a delegacia, mas entrou com

uma exigência de conferir as câmeras de segurança da loja.


Quando ficou provado que eu jamais roubei coisa alguma, Sam
moveu uma ação judicial contra a loja milionária e ganhou uma

indenização para mim. Ele não ficou com um centavo. Disse que eu
deveria investir em algo que quisesse. Acabei comprando a casa
que abrigou meu marido e meus filhos por anos. O lar que amo e

moro até hoje.


— Ele é realmente um homem bom.
Lia acenou positivamente com a cabeça. Então ficou em

silêncio, como se estivesse em dúvida sobre o que revelaria a


seguir. Por fim, decidiu-se.

— Sam teve uma infância difícil. Wallace não foi o tipo de


pai que se orgulhava do filho. Ele o viu por muitos anos como um
engano. Não sei se você pode entender algo assim.

Era inesperado, mas eu podia. Depois que minha mãe se


rendeu ao vício, sem ter mais meu pai, parecia que era assim que
ela me enxergava também. Nunca soube se era por minha

aparência lembrar a dele. “Os mesmos olhos…”, ela costumava


dizer. Mas o fato era que parecia, muitas vezes, que a simples ação
de me olhar era insuportável para ela. Na época, eu achava ruim.

Só não sabia o quanto iria piorar quando ela partisse dessa vida e
me deixasse sozinha com Javier…
— Eu entendo.
— Então você pode compreender que a experiência de Sam
com uma família de verdade não é das melhores. E famílias moldam
em muito os seres humanos que nos tornamos.

Sim, eu sabia disso. Por isso tinha cruzado a fronteira e ido


para aquele país estranho. Para que María tivesse a chance de ter
uma família boa e segura, mesmo que isso se resumisse apenas a

nós duas.
— Tudo que Sam quer, com você e María, é uma chance de
fazer diferente. Diferente de todo o abandono que ele sofreu. — Lia

se curvou um pouco e afagou os cabelos fartos de María. — Sua


garotinha se tornou o que mais importa para ele agora.
— Eu sei. — Senti minha voz querendo embargar. — Sei

que ele gosta muito dela e que quer seu bem.


Lia se virou para mim e apertou minha mão.

— O seu também. Portanto se ele disse ou fez algo que a


ofendeu…
— Não. Ele não me ofendeu, Lia. Nunca. Sam jamais faria

qualquer coisa do tipo. Ele tem sido um anjo para mim e para a
minha filha.
— Então qual é o problema, querida?

O problema é que não posso fazer isso de novo…


— Acho que o problema é que não sei mais confiar no que
sinto. Da última vez em que confiei, fiz a pior escolha possível, e por

causa disso María corre risco hoje.


Todos vocês podem estar correndo.
Mas eu não tive coragem de transformar meus pensamentos

em palavras audíveis.
A governanta de Sam ficou em silêncio por algum tempo.
Nós duas ficamos quietas, olhando María, que parecia ter algum

sonho agitado pela forma como mexia os bracinhos e perninhas.


Quando Lia finalmente falou, ela não deslocou o olhar do
lugar.

— Sei que é difícil confiar no próprio coração, depois de ter


sido traída. Mas talvez seja disso que justamente precise, Roxanne.
Talvez essa seja a lição mais verdadeira de vida. Perdoar a si

mesma.
E então ela se curvou e beijou meu rosto.

— Coma um pouco. Se você ficar fraca, um advogado


metido a besta pode querer me processar.
Sorri para ela.

— Vou comer. Prometo.


Lia ainda deu outro beijinho nos meus cabelos e deixou o
quarto.

Suas palavras, contudo, permaneceram comigo.


Eu não sabia se poderia fazer o que ela havia dito: perdoar

a mim mesma. Ao menos, não sabia por onde começar. No entanto,


ficar escondida no quarto, me acovardando diante do mundo,
também não era o caminho. Na noite anterior, eu havia decidido ser

justa com Sam e contar toda a verdade. Aquele beijo inesperado


não mudava isso. Ele precisava saber com o que estava lidando,
mesmo que escolhesse ficar do meu lado.

María emitiu um muxoxo do berço, fazendo-me notar que


ela estava acordada e atenta a mim.
— Se ele ainda escolher ficar do nosso lado, mi hija.

Tudo que Sam quer, com você e María, é uma chance de


fazer diferente. Diferente de todo o abandono que ele sofreu.
E se ele escolhesse ficar, eu não poderia ceder a nada do

que sentia.
Mas quando peguei María nos braços e segui pelo corredor,

bater contra a porta do quarto dele se mostrou inútil. Ela se abriu


com o meu segundo toque para revelar que não havia ninguém lá.
Investiguei pela casa enorme, até mesmo na academia onde eu

nunca havia estado antes.


Sam não estava em nenhum lugar. Tinha partido.
E sentir a sua ausência em cada parte do meu peito foi a

única coisa que não consegui evitar.


Eu não estou mais fugindo
Porque agora não há mais nada me prendendo.

— ALEXANDRA BURKE, “Overcome”.

SAM

— Você não veio aqui por sexo, Mead.


Não foi dito em tom de acusação. Hannah estava apenas

constatando um fato enquanto me observava do outro lado da

mesa. O vinho estava servido na sala de jantar do aconchegante


apartamento dela, mas eu nem o havia provado.

— Não — confirmei as suspeitas dela com um suspiro.


A princípio, eu tinha acreditado que aquela ideia daria certo.

Que fugir para uma noite de sexo poderia, no mínimo, amortecer


todos os sentimentos perturbadores lutando dentro de mim. No

entanto, parecia que eu havia me enganado outra vez. Não haveria

distração que poderia me fazer esquecer o que eu havia feito.


Ou esquecer do gosto dela.

E maldição, porque, por mais terrível que me sentisse, eu

não queria perder aquilo. Não queria macular o gosto da mulher que
me tocou. Talvez fosse estúpido o suficiente para não beijar

nenhuma outra por todo o resto da vida.

— Quem é ela, Samuel?


— O quê? — Pisquei para deixar de prestar atenção na

taça.
Hannah sorriu de um jeito que a fez parecer uma garotinha.

— Há uma mulher no seu coração agora. Eu gostaria de

saber quem é essa garota tão especial que conseguiu esse milagre.

Seria possível? Eu jamais tinha acreditado na minha própria

capacidade de desenvolver sentimentos ou ligações profundas.

Porém isso havia mudado com a chegada de Roxanne e María. Só


isso poderia explicar minhas atitudes impensadas e a forma como,

naquele momento, eu estava sentado diante de uma mulher envolta


em uma lingerie sensual, mas só pensava em ir para casa.
Descobrir se María não tinha acordado por causa de outra crise de

cólicas ou se Roxanne estava se sentindo melhor. Ela havia

passado o dia no quarto.

Por minha causa.

Talvez por todos esses pensamentos emaranhados, eu

tenha respondido a Hannah com uma pergunta bastante reveladora.


— Como é isso, estar apaixonado? Não é possível que isso

aconteça da noite para o dia, é?

Assim que saiu da minha boca, eu me arrependi da

pergunta que tanto me expunha. Hannah, entretanto, sorriu. Um tipo

de alegria nostálgica que nunca vi antes chegou aos seus olhos.

— É claro que pode — respondeu enquanto agarrava sua

taça e girava o conteúdo dentro dela. — Na verdade, pode


acontecer tão rápido que mal te dá chance de respirar entre uma

batida e outra do coração.

Engoli um pouco de vinho.

— Isso, sem dúvida, é uma mentira. As pessoas devem

precisar de alguma razão para se apaixonar.

— Razão? Você está pensando como um advogado, Sam.


Muitas vezes não há razão para as coisas do coração.
— Nós nos conhecemos há muito pouco tempo, e ela tem

uma bebê.
Minha pardalzinha.

Se Hannah se espantou com a minha revelação, não


demonstrou em momento algum. Na verdade, o que ela fez foi
cruzar as pernas magras e me encarar.

— E daí? É um problema para você que ela seja uma mãe?


Está com medo de lidar com um “combo” completo?

— Não. — E a certeza que tive em torno daquela pequena


palavra foi quase desconcertante. O que me assustava era não

conseguir protegê-las. Ou magoar uma delas. — Em absoluto. Ela


ter uma bebê não me assusta nem um pouco. Eu… eu descobri que
gosto de bebês. Mesmo que vomitem e deixem coisas indescritíveis

nas fraldas. Eu não sabia disso até segurá-la nos braços quando
nasceu, mas eu gosto. — Senti que sorria. — Ao menos da minha

pequena pardal. Ela me faz sentir que há uma razão bem melhor
para existir e que pode haver gentileza mesmo em uma pequena

parte do meu mundo.


Hannah me analisou por alguns instantes. Uma análise da
qual eu jamais havia sido vítima, mesmo durante todo o tempo em

que nos conhecíamos.


— Bem, eu poderia dizer que as duas mulheres da sua vida

são garotas de sorte. — Ela se levantou e veio até mim. Ocupou a


cadeira do meu lado um pouco antes de segurar minha mão. — Mas

você também é um cara de sorte, Sam. No mundo cheio de


mentiras em que vivemos, às vezes é difícil encontrar uma verdade

pela qual vale a pena lutar. Parece que você conseguiu enxergar a
sua.
— Tenho medo de não ser bom nisso, Hannah. Não tenho

bons antecedentes quando o histórico se trata de família.


— Fodam-se os bons antecedentes. Faça o que sentir que é

correto, Sam.
— Mesmo se eu já tiver feito algo errado?
— Sim — assentiu com um sorriso. — Por Deus, Lúcifer,

você não caiu do céu de verdade. — Hannah acertou bem no ponto


que mais me incomodava. — Todos estamos sujeitos a erros, Sam.

Todos somos pecadores por conta própria. Sempre podemos


magoar as pessoas que amamos, a diferença está no que fazemos

depois. Como nos retratamos e mostramos os nossos verdadeiros


sentimentos.
— Eu não sei, Hannah…
— É claro que sabe, querido Sam. — Hannah segurou meu
rosto com carinho. — E você é mais esperto que a maioria das
pessoas que conheço. Ganhou milhões de dólares com divórcios,

então sabe que o dinheiro nunca consegue ser o suficiente para


pagar pelo tempo de vida perdido em relacionamentos

malconduzidos. Se está sentindo algo por uma mulher, siga o seu


coração. Faça por esse sentimento tudo o que puder. Não
desperdice tempo com o medo, porque o retorno disso será apenas

arrependimento.
Uma lágrima correu pela bochecha dela. E pela primeira

vez, Hannah me deixou ver seu coração de mulher. Porém, antes


que eu pudesse reagir de qualquer forma, ela se levantou.

— Você chegou aqui de táxi em um dia gelado de


Washington. Isso prova que seu estado de espírito anda
terrivelmente abalado, portanto, vou levá-lo para casa.

Hannah começou a se afastar, mas eu a segurei pelo pulso.


— Obrigado, Hannah. Você foi uma ótima amiga.

Ela segurou minha mão e deu um tapinha carinhoso nela.


— Foi um bom tempo o que passamos juntos. Espero que
seja feliz na nova vida que está assumindo, Samuel Mead. Agora

vou me trocar.
E Hannah se soltou e se afastou.
Engoli um pouco mais de vinho antes de me levantar e ir até
a janela. Eu não havia me comportado bem, mas não podia deixar

que isso fosse o fim de tudo. Se Roxanne queria me contar algo, eu


deixaria que me contasse, porém, encontraria alguma forma de

demonstrar que não me afastaria. Qualquer que fosse o seu medo,


eu o assumiria e o deixaria em pedaços. E se isso fazia parte de
estar apaixonado, que fosse.

Virei-me para caminhar na direção da saída e esperar

Hannah por lá.


Foi exatamente nesse momento que o meu telefone tocou.

— Sam?

— Sim, Earnshaw. Alguma coisa sobre Billie Colton?

— Infelizmente, não, senhor Mead. Mas tenho novidades


sobre o símbolo de cruz que o senhor descreveu e sobre a moça

que o possui. Voei até Tijuana para saber, mas preciso informá-lo de

que, apesar de ter tido um início de vida sofrido, sua moça não é
uma mulher qualquer. — O detetive suspirou pesado do outro lado

da linha. — E, sem dúvida, você está com uma bomba perigosa

prestes a explodir sob o seu teto.


ROX

Passei mais de uma hora vigiando a entrada do prédio pela

varanda do quarto. No entanto, a noite se arrastou sem que Sam


retornasse. Lá fora, apenas neve empalidecia a paisagem noturna.

Com exceção dos seguranças que pareciam se aquecer com uma

bebida quente na portaria, não havia movimentação ao redor das


casas luxuosas que ocupavam a rua. Quando senti meus braços

começarem a estremecer, mesmo dentro do tecido grosso do robe,

decidi entrar novamente e conseguir algo quente para beber.


Passei pelo quarto de María apenas para observá-la dormir

tranquilamente em seu bercinho aquecido.

Ela acordaria se ouvisse a voz dele.

Foi um pensamento esporádico e involuntário, mas percebi


que havia verdade nele. Tive de me esforçar para não ceder ao

calor que também despontou em mim. Em vez disso, continuei

seguindo pelo corredor e passei pelo quarto de Lia. Ela não tinha
ficado para dormir. Voltara para a casa, como na noite anterior.

Apertei mais os braços em torno de mim mesma e passei pelas

minhas malas estúpidas na biblioteca, mas continuei o caminho pela


penumbra.

Era desconcertante pensar em mim mesma quando cheguei

ali, fraca e repleta de medo por estar novamente sob a proteção de

um homem. A casa parecia estranha. Quase uma inimiga, antes.


Contudo, eu não me sentia mais assim. Não sentia receio algum

enquanto caminhava até a cozinha. E nem mesmo me senti uma

intrusa quando procurei pela chaleira e coloquei água para ferver no


fogão para fazer um chá.

Claro que nada daquilo fazia sentido. Eu continuava

dependente do favor alheio. Continuava perseguida.

Ainda assim, toda a preocupação que se passava pela


minha cabeça naquela noite era com um homem de coração mais

gentil do que ele próprio conseguiria acreditar.

A chaleira apitou, desanuviando a minha mente por um


segundo. Concentrei-me na infusão antes de seguir o caminho de

volta com uma xícara nas mãos. María continuava dormindo.

Quando cheguei ao quarto que ocupava, fui recebida por uma lufada
de vento cortante que denunciou que eu havia cometido o erro de

deixar as portas francesas abertas.


Porém, quando me aproximei o suficiente para fechá-las,

descobri que Sam acabava de chegar.

Uma mulher também chegava com ele.


Elegante e vestida de preto, ela o abraçou com força, como

se estivesse indo embora para sempre. Depois depositou um beijo

casto nos lábios dele e voltou a entrar no carro que partiu.

A tarefa de não sentir se mostrou estúpida outra vez, porque


meu coração se apertou no meu peito diante da cena.

Quanta arrogância idiota da minha parte. Não tinha me

passado pela cabeça ainda que um homem do porte de Sam


claramente teria uma mulher à altura em sua vida. Com certeza rica

e sem uma penca de problemas horríveis. É claro que teria.

Meu Deus, Roxanne. Você pensou que com um beijo já era

a dona do homem?
Balancei a cabeça.

Não era o tipo de coisa com a qual eu deveria me importar

ou me preocupar. Não era como se eu tivesse espaço ou


psicológico para algo assim no momento. Eu ainda estava me
aconselhando sobre a falta de sentido nisso, quando uma batida

delicada soou na minha porta.

Ele já havia subido.

Deixei o chá sobre o aparador e fui até Sam.


— Fiquei preocupada. — atirei tão logo desencostei a porta.

E me arrependi.

O homem que estava diante de mim não se parecia em


nada com o que vi na noite anterior e me fez rir.

Sam estava sério como nunca. Não. Era mais do que isso.

Ele estava rígido. Seus olhos também estavam mudados. Pareciam

me estudar de uma forma diferente, mas não revelavam nada.


— O que aconteceu?

Tive um pressentimento estranho dentro de mim.

— Precisamos conversar, Roxanne.


Não consegui entender o porquê de um nervosismo

profundo começar a me agitar por dentro diante das palavras que eu

mesma estava prestes a dizer.

— Tudo bem.
— Eu irei tomar um banho. — Ele observou o relógio de

pulso. — Podemos nos ver em quinze minutos na biblioteca.


Ele disse com a mesma voz controlada que usou quando

acordei ali pela primeira vez.


— Eu estarei lá.

Sam apenas assentiu. Então se distanciou da minha porta.

Antes de ir para o próprio quarto, entretanto, parou e deu uma

espiadinha pela porta de María.


— Ela está dormindo — falou mais para si mesmo.

Ainda assim, eu me vi respondendo:

— Porque não ouviu a sua voz.


Alguma doçura escapou através do olhar dele.

O que não escapou de mim foi o fato de que ele não

conseguiu me olhar antes de desaparecer para dentro dos seus


aposentos.

Outra vez, eu estava na biblioteca. No tempo certo. Mas


quando adentrei o lugar, dessa vez ele já esperava por mim. Sam

estava vestido com o que parecia ser um suéter de Natal. Era preto

e branco, com desenhos de renas e flocos de neve. Eu estava


tensa, porém, ele me fez sorrir de forma involuntária enquanto, sem
ainda me perceber, organizava sua mesa.

Quando ergueu a cabeça e me viu, ele ficou confuso por um

instante. Ao menos, até olhar para a sua própria blusa.


— Obra de Lia — explicou. — Mas é quente o suficiente

para o auge do inverno.

Sam continuou sério mesmo ao dizer isso. Então tratei de


me recompor e me aproximei com cuidado da mesa dele.

— Sam, eu quero pedir desculpas pelo que fiz…

Ele deixou os papéis de lado e ergueu a mão.

— Espere, Roxanne. Eu gostaria de começar isso.


Vi quando ele apertou as folhas nas mãos antes de soltá-

las. Tive a impressão de vê-las tremer um pouco.

— Está tudo bem com você?


Por um instante, pensei ter visto algo no olhar dele. Algo

parecido com um tipo de melancolia.


Mas ele não respondeu a minha pergunta.
— Eu gostaria de deixar claro que me arrependo

profundamente de como a toquei ontem. Eu não tinha direito algum


de beijá-la, e foi um erro.
O sentimento no olhar dele foi explicado de imediato. Não
era melancolia. Era remorso. Eu o tinha beijado, empurrada por uma
confusão de emoções que sempre me atingiam diante daquele

homem. Mas Sam estava ali, assumindo a culpa. Outra amostra


clara de seu caráter.
— Fui eu que beijei você.

Sam pigarreou e saiu de detrás da mesa. Parou diante dela


e não muito longe de mim. Mesmo assim percebi que era uma
proximidade calculada. Com limites claros. Eu devia estar aliviada

por isso, mas não gostei.


— Eu sei que está frágil, Roxanne. Foi um erro sem
justificativas me aproveitar disso. Posso garantir que não acontecerá

de novo enquanto estiver em minha casa.


Ele estava roubando o que deveria ser o meu pedido de
desculpa. Mas eu notei que aquilo não era realmente o que Sam

parecia querer falar. Ele continuava conspícuo. Entretanto, algo no


seu olhar revelava indecisão.

E então, como se pudesse adivinhar meus pensamentos,


Sam, de repente, concentrou sua atenção em algo no meu suéter
azul.

— María?
Baixei os olhos para o local que seu olhar indicava e
encontrei uma mancha nada incomum. Exceto que essa, além de
maior do que a maioria, ainda estava um tanto fresca.

Fiquei constrangida.
Eu devia estar fedendo a gorfo.

E ainda tendo a ousadia de pensar que um homem como


esse poderia me desejar de verdade.
Samuel Mead, sem dúvida, só havia retribuído o meu beijo

por pena. Olhar meu reflexo no vidro da janela atrás dele também
não ajudou. A vida atribulada, desde que María nasceu, tinha me
feito esquecer completamente de mim mesma.

Aproximei-me mais da mesa para me observar atentamente


pela primeira vez.
Meu cabelo parecia uma massa amorfa, presa em um coque

feio no alto da cabeça. Abaixo dos meus olhos havia bolsas


escuras, e a magreza que me acompanhava, mesmo antes do
parto, não era nenhum adendo. Pelo contrário. As roupas pareciam

cobrir apenas um saco de ossos.


Sam notou que eu estava olhando para além dele e se virou.

Seu olhar se juntou ao meu diante do reflexo.


— Roxanne…
— Bem, isso justifica o seu arrependimento por me beijar.
Eu pareço mais uma morta-viva do que uma mulher.

Senti uma mão cobrindo a minha sobre a mesa, e o meu


próprio reflexo ficou em segundo plano.
— Não. Você não é uma morta-viva. É uma sobrevivente.

Olhei-o, assustada.
O ar foi sugado de mim quando a compreensão me atingiu

com intensidade diante de seu olhar tão consciente.


— Eu sei quem você é, Roxanne.
Oh, Deus.

Tentei me afastar dele, mas Sam não permitiu.


— Eu não tenho medo.
A honestidade em seu olhar não deixava dúvidas. Mas isso

não amenizava nada diante da exposição e da vergonha que


varriam tudo em mim.
— Sam, eu… eu posso explicar tudo. Eu já queria ter

explicado antes. Meu Deus…


Ele apertou um pouco a minha mão para me impedir de
terminar a frase. Então balançou pacientemente a cabeça, como se

uma bomba não houvesse explodido entre nós.


— Amanhã. Você terá tempo de me dizer tudo o que quiser

amanhã. Depois de irmos buscar os documentos de María no


hospital. E depois que prepararmos os papéis para dar entrada no
seu Green Card.

Meu peito parecia eletrizado.


Era coisa demais. Emoções demais. Tudo se atrapalhava na
minha mente e dificultava que eu conseguisse entender sobre o que

ele estava falando.


— Green Card…?

— Na delegacia eu disse que você era a minha noiva, mas


pretendo mudar isso, Roxanne. — Ele continuou a tocar minha mão,
mas era a forma que me olhava que enchia o meu peito de um

sentimento inesperado. — Vamos nos casar. E se você permitir,


María poderá assumir meu nome também. Assim as identidades de
vocês estarão protegidas.

Consegui sair da inércia. Com o choque estupendo, afastei-


me dele.
— Mas do que… do que você está falando?

Sam estendeu a mão na minha direção. Porém acabou


mudando de ideia e a colocou de volta no bolso.
— Estou falando da palavra que lhe dei e também dei a
María na primeira noite que passaram aqui.
A determinação permaneceu estampada em cada parte do

seu rosto angular quando ele voltou a se aproximar de mim. Ele


parecia preparado para enfrentar o mundo. E parecia… Meu Deus,
parecia que seria por nós.

— Você… você não sabe o que está assumindo.


Pela primeira vez naquele dia, um sorriso surgiu em seu
rosto. Um tipo de sorriso quase feroz e obstinado.

—Ah, sim, eu sei. Eu prometi para uma garotinha que


colocaria qualquer cara malvado para correr. E pretendo começar a
fazer isso. A partir de agora.
Há algumas coisas que merecem
Que lutemos por elas.

— ALEXANDRA BURKE, “Overcome”.

SAM

A neve deu lugar à chuva congelada pela manhã. Era


possível enxergar o granizo miúdo batendo contra as janelas do

carro, quando estacionei na memorável porta do hospital Saint John.

Lembrei-me exatamente da primeira vez em que estive ali, ajudando


Roxanne a descer do carro e com María prestes a chegar para nós.

Acreditei que a mulher ao meu lado relembrou o mesmo momento,

já que seu olhar procurou o meu.


— Escute, Sam. Eu não quero que faça essas coisas. —

Roxanne parecia séria como nunca, e eu percebi que seu silêncio,


após a nossa última conversa noturna, não tinha sido por acaso. Ela

parecia ter planejado cada palavra do que diria ali. — Eu não disse

nada ontem, porque você pediu e porque eu estava muito abalada.


Tinha que pensar melhor no que falar. Andei escondendo as coisas

por tempo demais, então é difícil me abrir. Mesmo para alguém que

tem o direito de saber. Seja lá o que você descobriu, há mais coisas


a serem ditas.

Concordei.

— Não duvido disso, Roxanne. — Apertei o volante com a


única mão que ainda o segurava. — Estarei disposto a ouvir tudo da

maneira que quiser me contar. No momento que quiser me contar.


Ela me olhou, parecendo surpresa com algo que enxergava.

— Não vejo julgamento em você.

— Já cometi pecados o suficiente para saber que estou

longe de tal hipocrisia. Além disso, nós temos pontos em comum.

Conheço a angústia de se acreditar que não se tem escolhas.

— É o que você acha que aconteceu comigo?


— É o que eu tenho certeza de que aconteceu com você.
— Então… Você não acha que sou… que sou uma pessoa
ruim?

— Não.

— E como pode ter certeza disso?

Eu gostaria de ter uma forma de explicar isso a ela, mas a

verdade era que eu não tinha. O que havia dentro de mim era um

instinto. Não o de advogado. A sensação era diferente. Eu apenas


sabia. Quando olhava para a mulher diante de mim, quando me

lembrava de seu carinho com a filha e comigo, não me restavam

dúvidas de quem era Roxanne.

— Eu acredito em você, Roxanne.

— Mesmo sem ter ouvido minha versão dos fatos?

— Mesmo se não tivesse ouvido nada. Isso não mudaria a

opinião que tenho sobre a mulher que conheço de verdade. Sei que
não é o que dizem. — Estiquei a minha mão e segurei a sua sobre o

assento do banco. — E juntos vamos proteger María do que estiver

por vir.

Roxanne não sorriu ou disse qualquer coisa. O movimento

leve que fez com a cabeça, porém, indicava uma aceitação

momentânea. Acreditei que seria o máximo que conseguiria naquele


momento, então saí do carro e abri a porta para ela.
— Foi útil que eu estivesse tão chocado na última vez em

que estivemos aqui. Você e María deram entrada no hospital usando


o meu nome. — Segurei-a contra o meu peito quando ela

escorregou no gelo. Seu cheiro me aqueceu por completo. — Os


documentos no meu plano de saúde vão ajudar a dar crédito diante
do serviço de imigração, quando eu apresentá-las como esposa e

filha.
— Não vou me casar com você — disse Roxanne, como se

tivesse se dado conta do que falei na noite anterior apenas naquele


momento. — Deus, o que aconteceu comigo ontem? Você descobriu

sobre o meu passado e eu só pensei nisso! Me esqueci


completamente da parte do casamento.
— O casamento vai assegurar novas identidades para vocês

duas — falei depois de segurá-la pelos ombros. — Pense nisso,


Rox. Um novo sobrenome pode auxiliar. Não é a melhor coisa que

herdei, mas será útil para ajudar a cobrir os seus rastros e os de


María. Ao menos até termos tempo suficiente para elaborarmos um

plano melhor.
Ela ia discutir de novo, o que não me faria mudar de ideia,
mas tomaria mais tempo debaixo daquele céu congelante. Eu ainda

tinha meus receios devido à pneumonia forte que Roxanne tivera,


por isso, simplesmente a puxei pela cintura e a aconcheguei sob o

calor do meu braço.


— Vamos entrar e pegar os papéis primeiro. — Tirei do

bolso do grosso casaco de lã o que havia comprado ainda naquela


manhã, então o encaixei no quarto dedo da mão esquerda dela. —

Conversamos sobre o casamento em casa.


Roxanne ofegou diante do brilho do diamante.
— Sam!

— Em casa.
Não dei espaço para ela se contrapor outra vez e comecei a

nos direcionar para a entrada do hospital.


Assim que passamos pelas portas, percebi que se tratava
de um dia relativamente tranquilo. Ao menos não lembrava em nada

a correria que encontrei no final de tarde em que María nasceu.


Eu já estava formulando como iria começar a primeira

história que usaríamos daquele momento em diante, quando um


rosto conhecido entrou no meu caminho.

— Senhor e senhora Mead?


— Enfermeira Mills?
Roxanne se soltou de mim e recebeu o abraço da

enfermeira que se aproximou, animada. A mesma enfermeira que


havia colocado María nos meus braços pela primeira vez.
— Ah, querida! Como você está? — A mulher de rosto terno
afastou um pouco Roxanne e a olhou com alguma repreensão. —

Nós ficamos muito preocupados quando você desapareceu naquela


manhã gelada.

— Desculpe por causar preocupação, enfermeira Mills. É


que eu precisei… eu precisei…
Roxanne travou. Ela poderia ser boa em omitir fatos, mas

sem dúvida era péssima em inventá-los. O que só aumentava a


minha confiança nela.

— Aquilo foi culpa minha — intervi, e para já passar a ideia


correta, entrelacei meus dedos nos de Roxanne. — Minha esposa

não conhece a cidade há muito tempo. O trabalho me prendeu mais


do que devia no escritório. Como ela não tinha mais paciência para
ficar no hospital, combinei de encontrá-la depois que ela tomasse

um táxi, mas enviei o endereço de forma confusa, e o motorista a


deixou no lugar errado.

— Trabalho? — O olhar de repreensão da boa mulher caiu


sobre mim. — No dia em que sua filha nasceu? Isso não é coisa de
homem de família, senhor Mead.
— Sim, eu sei. Mas estou aprendendo tudo sobre essa parte
da minha vida agora.
— Ah, é tão bom ver um casal apaixonado formando uma

família. — A enfermeira Mills começou a secar as lágrimas em um


lencinho. Tal qual fez na primeira vez que estivemos ali. — Sem

dúvida, a filha de vocês tem muita sorte. Bem, por falar nisso, como
vai aquela princesinha?
— Ela vai muito bem. Sam a mima muito.

Não esperava que Roxanne me incluísse daquele jeito, no

entanto, gostei muito.


— Os pais viram marionetes nas mãos de suas menininhas

— concordou a enfermeira Mills. — Mas cuidado, senhor Mead.

Toda criança precisa ser guiada pelo caminho certo enquanto

cresce.
— Como pai, prometo fazer o meu melhor pelo futuro seguro

dela.

Senti o olhar de Roxanne sobre mim, mas não pude fitá-la.


Não quando uma ideia me surgiu e precisei colocá-la em prática.

— Enfermeira Mills. — Aproveitei-me do momento para

conseguir mais fácil o que eu precisava ter. — Com as coisas que


aconteceram e com a minha esposa, que acabou adoecendo
depois, nós não conseguimos voltar para solicitar os documentos do

nascimento da minha filha. Seria possível que eles fossem


providenciados de imediato? A senhora conhece bem a dinâmica

dos planos de saúde americanos, precisamos disso o quanto antes.

Os olhos da enfermeira mudaram de súbito. O que mostrava


que meu amigável tom conspiratório tinha surtido efeito.

— Oh, sim, esses planos são terríveis e não deixam nada

passar. — Ela se aproximou mais e cutucou meu braço. — Bem,

senhor Mead, aqui entre nós, é a Genevieve que mexe com esse
tipo de burocracia. Ela é um pouquinho preguiçosa, mas acho que

posso fazer com que consiga pôr as mãos nos papéis de sua

menina mais rápido do que a maioria. E tudo isso sem ameaçar


ninguém com um processo.

— A senhora me pegou. Eu já estava com essa carta

escondida na manga.
A senhora Mills gargalhou, mas depois acenou para que nós

a seguíssemos.

— Ela vai conseguir esses papéis com pouquíssimas

perguntas, não vai? — sussurrou Roxanne para mim quando


voltamos a caminhar juntos.
— E vamos parecer um casal confiável, apresentados por

uma enfermeira do próprio hospital — assenti.

— Como ela pode ter acreditado tão fácil nas coisas que
você disse?

— É o dom dos bons advogados. Tornar verídico o que

quisermos.

Eu disse isso no exato momento em que escolhi olhar para


a aliança no dedo de Roxanne.

E aquilo? Eu gostaria de tornar verídico?

As dúvidas inusitadas me pegaram desprevenido. A


expectativa de estar apaixonado era uma coisa. A expectativa de

casar era outra bem diferente. Aquele casamento seria uma questão

de proteção. Eu ainda continuava descrente da suposta utilidade

verdadeira por trás do sacramento.


Mas você está prestes a formar uma família, não está? Já

até aceitou o fato de que gosta de bebês. De que gosta muito, aliás.

Bem, a verdade é que eu não conseguia ter certeza de mais


nada. Ao menos não sobre os princípios que sempre segui

religiosamente. Eu já havia sacrificado todos: estava acreditando em

uma mulher e defendendo-a; tinha criado uma ligação sentimental

com uma bebê e agora estava prestes a me casar.


— Samuel?

Eu sequer notei que havia parado no meio do corredor,


pálido pelo choque da descoberta que tinha feito.

— Você está bem, Sam? —Roxanne repetiu a pergunta.

Uma Roxanne agora parada diante de mim e aquecendo minha mão


gelada com um carinho.

A resposta que dei saiu mais sincera do que eu teria

premeditado.

— Estou, Rox. Nunca me senti tão bem.


Olhei para a aliança brilhando contra a luz artificial enquanto

ela me tocava. Não senti nada de negativo ao fazer isso.

— Vamos.
Foi a forma como pude encerrar aquela descoberta. Ao

menos no momento.

ROX
A última coisa que eu esperava era apoio.

Esperava desprezo, acusações e, sem dúvida, expulsão.

Qualquer pessoa que tivesse um vislumbre do meu passado

certamente reagiria assim. Mas não ele. Sam continuava parado ao


meu lado, a mão grande e quente envolvendo a minha com carinho

enquanto aguardávamos os documentos que tínhamos que levar

para casa.
— É necessária a apresentação dos documentos pessoais.

A mulher de óculos, atrás da mesa branca, também usava

uma roupa da mesma cor que quase a fundia com o móvel. Ela não

estava nem remotamente desconfiada, apenas um pouco entediada.


Porém, o questionamento diante da minha real falta de documentos

me fez engolir em seco. Eu ainda estava pensando em alguma

resposta, quando Sam facilitou mais uma vez a minha vida:


— Minha esposa sofreu um roubo e não pode apresentar

seus documentos. Ainda estamos solicitando as segundas vias.

O foco da moça se voltou para Sam. Ela ajustou os óculos

de grau.
— O senhor é o pai?

— Sim — assumiu ele, firme.


— Também serve. Por favor, me passe os seus documentos

pessoais para que possa ser confeccionada a Declaração de


Nascido Vivo.

Ele nem pestanejou quando entregou seus documentos à

moça. Ela os verificou com o semblante metódico e um tanto

chateado. Depois se virou para o computador.


— María Mead nascida na tarde de três de novembro de

dois mil e dezessete? — emitiu após uma pequena busca.

A mão dele apertou a minha, apenas mais um pouco.


— Sim. Nossa filha.

— Muito bem. — E, sem mais perguntas, ela começou a

digitar no computador. — Me passe seu nome completo agora,


senhora Roxanne.

Minha mão começou a suar. Olhei para Sam.

Não posso fazer isso. Não posso envolvê-lo mais do que já

está.
Ele pareceu compreender.

— Faça por ela — pediu num sussurro, enquanto afastava

uma mecha solta de cabelo da minha testa. — Não é só você ou eu.


Isso diz respeito a María e ao que ela precisa também.
A forma como ele disse o nome dela... Nada me preparou
para a emoção intensa que havia na voz dele, nem na que ele fez

brotar em mim. Tive de me esforçar para manter a voz firme quando

fiz uma nova escolha. Torci para que essa não fosse um equívoco,
como diziam as batidas desconcertantes do meu coração.

— Mead — declarei e apertei mais a mão do homem ao

meu lado. — Sou apenas Roxanne Mead.


— Certo, senhor e senhora Mead. Podem se sentar e

esperar. Logo que os papéis estiverem prontos, eu avisarei.

— Obrigada — agradeci.

Então deixei que Sam nos guiasse até as poltronas da


recepção. Ele, entretanto, não se sentou.

— Vou pegar um chá para você. Não a vi comendo nada

depois de amamentar María esta manhã.


Percebi que ele ia falar mais alguma coisa. E era algo

importante. Mas o celular tocou no bolso dele.


Seu semblante ficou prontamente endurecido.
— Quem é? — questionei em alerta.

— Ninguém importante. — Ele desligou o aparelho e voltou


a enfiá-lo no bolso. — Vou até a cafeteria.
Não era a hora e nem o momento, mas a frase escapuliu
assim mesmo:
— Se você pagar por tudo isso, eu nunca vou me perdoar,

Sam.
Para a minha surpresa, eu o senti se abaixar junto a mim.
Suas mãos buscaram e tomaram as minhas, recolhidas no meu

colo.
— Quando voltarmos para casa, eu quero ouvir tudo, Rox.
Senti uma lágrima descer pela minha bochecha, e meneei a

cabeça.
— Eu vou contar tudo o que você quiser saber. É o seu
direito.

Ele negou.
— Não quero ouvir porque tenho direito. Quero ouvir para
que essa dor a deixe. E então quero confortá-la. Com um chá

quente. Ou um abraço. O que você quiser de mim, terá. — Sam


limpou minha lágrima. — Agora vou buscar algo para você comer.

Vou tomar cuidado para que não seja nada do tipo que passe para o
leite e provoque cólicas em María depois.
E com essa declaração e um sorriso, ele se afastou. Beijou

minha testa antes de sumir no corredor.


— Seu marido é completamente apaixonado por você,
querida.
Eu não tinha visto de onde a enfermeira Mills havia surgido,

contudo, ela parecia ter se materializado ao meu lado enquanto eu


ainda observava Sam se afastar.

— Não. Ele talvez só se sinta obrigado por causa da bebê.


Era uma boa justificativa e me mantinha longe de
sentimentos nos quais eu não podia mais confiar.

A enfermeira riu antes de se sentar ao meu lado.


— Oh, não. Isso é muito ultrapassado hoje em dia. Além
disso, a forma como ele olha para você… Percebi isso assim que os

vi passarem pela portaria. Amor verdadeiro pode ser notado de


longe. — Ela aumentou o sorriso. — Vocês conseguiram os
documentos com Genevieve?

— Ela disse que ficariam prontos em minutos — assenti.


— Apesar de preguiçosa, ela costuma ser rápida quando
pega algo de verdade para fazer.

— Obrigada por tudo, enfermeira Mills. Desde aquela tarde


difícil do parto até hoje.

— Querida, eu sou uma enfermeira. Aquilo foi apenas o meu


trabalho, que a propósito, amo muito fazer. Cuidar da sua família foi
um prazer. — Ela deu um tapinha carinhoso na minha mão. Na que
agora tinha um brilhante enorme. — Oh, isso não estava aí antes. A

bebê trouxe uma renovação de votos de casamento?


Apenas consegui sorrir e assentir.
— E vocês são o tipo de casal que ainda juntam os

sobrenomes e colocam as iniciais nas maçanetas das portas. — A


enfermeira Mills riu. — E por falar em sobrenomes... No dia que

você saiu do hospital, quase houve uma confusão de nomes por


causa de um telefonema, lembra-se? Mas acredite ou não, ainda
estamos recebendo as mesmas ligações aleatórias na recepção,

perguntando por Roxanne Rivera. A polícia de Washington trouxe


até um delegado mexicano para investigar sobre a moça.
Vasculharam documentos e fizeram um pandemônio.

Por um instante, mesmo sentada, senti o chão desaparecer


sob meus pés.
— O que a senhora disse?

— Ah, não se preocupe, meu bem. Deve ser algum caso de


gente desaparecida. Eu só me lembrei por causa dos telefonemas e
porque Roxanne é um nome incomum, apesar de você também o

ter.
Aparentemente, Samuel Mead era o único que havia

prestado atenção no crachá no meu vestido naquela tarde.


— Quem era... Quem era nas ligações? — Fiz a pergunta
que não consegui naquela tarde.

— Bem, isso eu não sei ao certo. Não trabalho na recepção


— continuou contando tranquilamente. — Só sei o que as meninas
comentam no almoço. Elas dizem que algumas vezes a ligação é

normal, mas que em outras a pessoa tem sotaque espanhol. Parece


ser um homem, e ele diz que precisa muito encontrar a tal moça.

O pânico desceu como uma bola cheia de espinhos,


arranhando a minha garganta.
— O hospital não oferece informações para qualquer um,

porém, ele ainda insiste. Diz que está na cidade e que sabe que ela
está por aqui. É triste demais ver como os parentes ficam desolados
quando alguém desaparece...

Não consegui aguentar mais um minuto daquela conversa.


Levantei-me, mas acabei cambaleando, meio zonza. Sam surgiu ao
meu lado e me segurou.

— Senhora Mead, está tudo bem?


— Ela está bem, enfermeira Mills. Roxanne apenas não
tomou o café da manhã, mas vou levá-la para casa e corrigir isso.
A mulher responsável pelos papéis de María entrou na sala
naquele mesmo momento.
— Aqui está a declaração da filha de vocês.

— Obrigado — agradeceu Sam.


Não vi como saí do hospital. Nem percebi quando entrei no
calor seguro do carro de Sam. De repente, eu estava protegida pelo

cinto de segurança e com cada parte do meu corpo tremendo


enquanto avançávamos rapidamente pela cidade.
— Está tudo bem, Roxanne.

Sam segurava minha mão sobre o seu colo e a acariciava.


Parecia que a sua voz estava embargada, no entanto, eu não podia
ter certeza disso. Foi como na noite em que caí no chuveiro. O bolo

de angústia dentro de mim era tão grande que eu não conseguia


retornar à superfície. Só me sentia afundar mais e mais.

Parte dessa paralisia evitou que eu reagisse de forma pior,


quando chegamos diante do prédio em que Sam morava e nos
deparamos com uma enorme comoção. Seguranças, a polícia e o

corpo de bombeiros da cidade de Washington, todos pareciam se


aproximar ao mesmo tempo.
Uma nuvem de fumaça escura subia do topo do prédio.
— Oh, Sam. Que bom que chegou! — Lia estava com María
nos braços quando correu até a janela do carro. — A casa está

arruinada. Ninguém sabe como a invasão passou despercebida,


mas boa parte das coisas foram destruídas pelo fogo. Acabou de
acontecer. Não pude entrar quando voltei com María da minha casa.

Foi um incêndio criminoso. Criminoso!


É claro que era.
E também era o fim da linha.

Ele tinha me encontrado.


Eu vou te apoiar quando as coisas derem errado
Eu estarei com você do crepúsculo ao amanhecer.

— ZAYN feat SIA, “Dusk Till Dawn”.

SAM

Era tudo culpa minha.


A maldita investigação que eu tinha pedido que Peter

fizesse na polícia mexicana, no dia em que conheci Roxanne, havia

trazido Juan Milagros até a minha porta. Ficou claro no momento em


que ouvi a enfermeira.

“No dia que você saiu do hospital, quase houve uma

confusão de nomes por causa de um telefonema, lembra-se? Mas


acredite ou não, ainda estamos recebendo as mesmas ligações

aleatórias na recepção, perguntando por Roxanne Rivera. A polícia


de Washington trouxe até um delegado mexicano para investigar

sobre a moça.”

Inferno! Eu tinha facilitado todo o trabalho para ele! Tinha


deixado uma maldita trilha de migalhas de pão, e agora ele as tinha

encontrado. Precisava agir rápido, eu não tinha tempo nem mesmo

para lamentar meu terrível remorso pela situação.


— Entre no carro e coloque María na cadeirinha, Lia.

Minha governanta agiu depressa. Também agi. Assim que

ela prendeu María com segurança, eu acelerei. Nem mesmo os


seguranças do prédio haviam me notado ainda, e os vidros do carro

eram escuros. Lia parecia ter chegado quase no mesmo instante


que nós, então, com sorte, poderíamos escapar antes que qualquer

delator percebesse a nossa presença.

— Sam? — Roxanne segurou meu braço. Ela parecia ter

voltado a si, mas seu estado de nervos continuava cruelmente

abalado. E por culpa minha. — Sam, o que está fazendo? E a sua

casa?
— Foda-se. Não importa mais. — Segurei a mão dela e a

guiei até o bolso do meu terno, na altura do peito. — Pegue meu


celular, Roxanne. Procure na agenda por Dylan Lee e envie uma
mensagem de texto com a palavra “Hoje” para ele. Ele vai

compreender que preciso da suíte que uso no Gran Lee Hotel, e ela

estará pronta quando chegarmos a Baltimore. Depois entregue o

celular a Lia, ela ligará para o gerente responsável que garantirá

tudo o que vocês duas e María vão precisar.

Os nós dos meus dedos que apertavam o volante doíam.


Roxanne me olhou cheia de diferentes emoções no olhar,

mas desta vez apenas assentiu e fez o que pedi. Sua mão

vasculhou meu peito, esquentando-o, e em seguida ela encontrou o

celular.

— Está feito — disse ela enquanto eu já entrava na rota

para sair de Washington. — Ele respondeu com um “ok”.

— Ótimo. Lia, sua parte — pedi, olhando-a pelo retrovisor.


Ela assentiu e agarrou o telefone que Roxanne ofereceu.

Apesar do cinto que garantia a segurança de María, Lia continuou

mantendo uma mão sobre ela enquanto falava ao telefone.

— Vamos precisar de fraldas, lenços umedecidos e

utensílios de bebê em geral. Também vamos precisar de roupas de

frio para uma criança de um mês e para duas mulheres. Sim, é um


pedido do senhor Samuel Mead.
Lia continuou dando mais instruções ao gerente por

telefone.
— Chegaremos em Baltimore em uma hora — avisei. —

Estaremos seguros lá, ao menos por enquanto.


Minha voz não tremulou. O que agradeci, porque claramente
minhas mãos no volante seguiam as vibrações de tensão dentro de

mim. Infelizmente, a mulher ao meu lado parecia prestar atenção em


todos os detalhes relacionados a mim.

— Eu… Sam, meu Deus, eu sinto muito pela sua casa. Você
perdeu tudo…

Neguei com a cabeça.


Eu não poderia me importar menos com uma cobertura de
alguns milhares de dólares. Não era aquilo o que fazia uma lágrima

correr pelo meu rosto.


— Não, Rox. Sou eu quem sente muito. — Rocei o dedo

indicador na mão dela que ainda segurava a minha. — Juan


Milagros a encontrou por minha causa. — confessei. — Fui eu quem

acionei a polícia mexicana.


Permaneci quieto perto da janela, mesmo com as cortinas

fechadas por segurança. Tinha servido uma dose de uísque no copo


com o brasão do hotel, mas optei por deixá-la intocada. Bebida não

serviria de nada. Eu não poderia perder a coerência dos


pensamentos apenas para abafar a sensação terrível que se

apoderava do meu peito.


Um pouco antes, eu havia lidado com a burocracia sobre o
incêndio na minha casa. Tinha terceirizado o problema das

seguradoras para um amigo advogado de confiança, mas tive de


deixar os depoimentos na polícia sem resposta. Não seria seguro.

Assim como usar os meus números de telefone e meu nome no


registro do hotel. Os primeiros eu descartei, e Dylan Lee mexeu os
seus pauzinhos para manter minha permanência ali em sigilo.

Porém, isso seria temporário.


Deus do céu, o que eu fiz?

Ainda bem que Lia estava segura conosco. De qualquer


forma, mesmo adorando María, eu não teria conseguido cuidar dela

juntamente com Roxanne naquela tarde escura. Não conseguiria


olhar para o rosto da mulher a quem traí. A pior parte, entretanto, é
que eu não teria escolha. Principalmente quando escutei seus
passos atravessarem a antessala em estilo New Versailles onde eu
estava.
— Lia está com María lá dentro. A viagem de carro a deixou

agitada, mas agora ela já está mais calma. Vai acabar cedendo e
dormindo.

Suspirei e apertei a moldura dourada da janela.


— Fui eu que provoquei tudo isso. — Balancei a cabeça. —
Eu não a conhecia e fiquei desconfiado, Roxanne. — No carro, eu

não havia conseguido falar mais do que aquelas poucas palavras,


todavia, agora tudo escapava de mim em um profundo tom de

remorso. — Então, além de contratar um investigador para


compreender o símbolo nas suas costas, eu pedi a um amigo que

procurasse sobre você entre os contatos que tinha na polícia do


México. Foi através disso que ele as encontrou. Eu coloquei vocês
duas no caminho do risco do qual você fugiu. Eu sequer mereço que

me perdoe, mas se você…


Porém, quando me virei para poder encará-la, fui

surpreendido com um abraço. Forte.


— Não, Sam. Isso não foi culpa sua. — Roxanne enterrou o
rosto no meu peito. — Deus, eu jamais culparia você por nada.

Nunca. A culpa é minha. Eu trouxe o perigo e o fogo até a sua porta.


Milagros me acharia, cedo ou tarde. Eu me assustei no hospital,
mas a verdade é que sempre estive presa em uma maldita gaiola
desde o dia em que ele me tirou das ruas.

O que ela disse só fez o meu coração apertar mais no peito.


Abracei-a de volta e acariciei seus cabelos.

— É hora de contar a você a minha história — sussurrou


contra o meu peito. — Sei que já descobriu parte de quem sou, mas
gostaria de contar para você e Lia a minha versão dos fatos.

Neguei. Então a afastei dos meus ombros e segurei seu

rosto delicado.
— Você não precisa dizer nada, se não estiver pronta.

— Estou pronta para proteger as pessoas que importam

para mim. E só posso fazer isso com a verdade.

Não tive tempo de acrescentar mais nada, porque ambos


ouvimos outros passos adentrarem a antessala.

— Oh… — Lia pareceu em dúvida ao nos avistar. — María

já dormiu. Eu vou… irei ocupar a suíte ao lado e deixá-los a sós.


Roxanne se soltou de mim e caminhou até a minha

governanta.

— Não, Lia. Eu preciso que fique. Você se tornou uma


amiga para mim e quero que ouça o que tenho para contar.
— Eu…

Lia começou a falar, porém acabou desistindo. Ela permitiu


que Roxanne a levasse para um dos estofados com motivos florais.

— Sam? — chamou em seguida.

Não me preocupei em pegar o inútil copo de uísque no


peitoril da janela. Abandonei-o onde estava e me aproximei do sofá.

Sentei-me ao lado de Lia e olhei para a mulher à minha frente. Tinha

certeza de que não estava preparado para a história que teria de

ouvir, mas não recuei.


Roxanne não se sentou. Ela parecia mais resignada que

nunca, mas eu notei que suas mãos estavam trêmulas antes que

cruzasse os braços contra a frente do casaco rosa de lã.


O silêncio permaneceu enchendo a sala por um bom tempo.

Apenas o som suave da neve caindo do lado de fora o interrompia.

Então, quando pensei que ela não teria forças para falar, Roxanne
me surpreendeu, procurando o meu olhar.

— Eu tinha dezessete anos quando minha mãe morreu e eu

precisei fugir de um padrasto que tentou me violentar. Foi quando

conheci o pai da minha filha, Juan Milagros, e me tornei parte de


seu submundo. — Ela suspirou. — Na época, ele era filho da
cúpula, mas ainda não era o líder e nem um dos maiores

narcotraficantes de Tijuana.

ROX

Não havia mais como fugir. Sam havia aberto as portas de

sua casa para mim e tinha sido punido com uma terrível destruição.
Até mesmo Lia, que havia cuidado de mim e da minha filha, poderia

estar correndo perigo. Duas vidas inocentes estavam em jogo. Três,

com a de María. Era o momento de revelar tudo.


Por isso, por mais que minhas pernas tremessem e minha

ânsia deixasse minha língua pesada demais, eu não desistiria de

ser totalmente honesta com aquelas pessoas. Sendo assim,

enfrentar a mim mesma e as minhas piores falhas era o único


caminho:

— Eu não tinha para onde ir depois que meu padrasto fez o

que fez. Então eu passei a viver nas ruas, sozinha. Descobri cedo
que abrigos embaixo das pontes não eram seguros para uma

garota, havia muitos homens como o meu padrasto por lá. Por isso,
encontrei proteção em uma rua de galpões da cidade, com algumas

meninas que tinham seus pontos de trabalho ali. Estar com outras

mulheres é a única opção de segurança, principalmente nas ruas.


Fiz algumas amigas, e elas diziam que eu chamava a atenção. Que

poderia conseguir um bom dinheiro se começasse a sair com

homens, como elas. Eu não quis. Era jovem, virgem, e tudo que o

sexo representava na época para mim era uma violação que poderia
ser brutal.

— Ah, querida… — Senti a mão de Lia tomar a minha.

Nem havia percebido que tinha me sentado no sofá ao seu


lado, em busca de algum apoio.

Sam, por outro lado, emitiu um palavrão e se levantou.

— Sam? — pedi, sentindo minha voz fraquejar. — Por favor,

Sam…
— Estou ouvindo — disse ele depois de engolir o uísque

que havia deixado esquecido na janela antes. — Continue,

Roxanne.
Mas a mão dele se fechou num punho tenso sobre a

moldura bonita, e ele não conseguiu me olhar quando voltei a falar.


— Prostituição nunca seria uma opção para mim —

prossegui. — Mas, um dia, quando eu estava revirando o lixo para

ver o que encontrava, acabei ferindo a mão, e um homem se

aproximou. Era cliente de uma das meninas, eu já o tinha visto por


ali. Ele parecia apenas um pouco mais velho do que eu e me ajudou

com a ferida. Também me ajudou com uma sacola de pãezinhos.

Aliás, passou a trazer um pouco para mim todos os dias. — Minha


garganta se contraiu novamente, e eu tremi. — Para alguém que

não tem nada para comer, um pedaço de pão muda tudo. Se ele

tivesse me oferecido dinheiro, eu teria fugido. Mas era pão. Ele não

poderia ser ruim como o meu padrasto se, diferentemente dele, me


oferecia comida sem exigir nada em troca.

— Homens assim usam a vulnerabilidade para se aproximar

e ganhar confiança. Que filho da puta!


Ouvi a voz autoritária de Sam. Porém foi a minha vez de não

conseguir fitá-lo.

— Um dia, ele veio, e em vez de me oferecer comida,

ofereceu-me algo melhor: um trabalho. Seria nos limites da cidade,


na mansão do pai dele e onde ele também morava. Eu teria que

dormir no lugar depois de limpá-lo, o que para mim foi ótimo, já que
a outra opção era continuar passando as noites em um abrigo de

papelão.
Quando voltei o olhar para Sam, ele finalmente me olhou. A

mensagem em seu semblante era indescritível. Ainda assim, senti

uma lágrima de vergonha correr pela minha bochecha.

— Os primeiros dias pareceram um sonho. Eu tinha comida


boa e onde dormir. Ele disse que eu seria como uma irmã mais nova

de quem ele cuidaria, e eu me lembro de ter gostado muito de ouvir

aquilo. Da sensação de proteção que senti. O pai dele e dono da


casa só apareceu alguns dias depois, mas também foi muito gentil

comigo. Em vez de me colocar para trabalhar como empregada,

quando tomou conhecimento de mim, Castel me acolheu na família.


Eu me tornei irmã de Juan, de verdade. — Entrelacei meus dedos,

apertando-os contra a minha barriga. — Meu próprio pai faleceu

quando eu era pequena e minha mãe não tinha administrado bem

isso. Ela se desligou de mim depois. Sei que não é uma justificativa
para o que fiz, mas eu já tinha vivido boa parte da minha vida sem

amor e carinho. Então, quando alguém quis cuidar de mim, eu cedi.

— Você era só uma criança, meu bem. — Lia tinha os olhos


marejados. — Ah, Deus, era só uma menina sozinha nesse mundo

ruim.
— Eu aceitei entrar para a família. Mesmo depois que eles
me contaram quem eram de verdade. Permaneci, sabendo dos

crimes que cometiam — continuei. — Eu não queria mais temer o

frio, e era tão bom me sentir protegida. Não ter que me preocupar
com a fome ou com a chance de ser estuprada todas as noites. Mas

tudo isso teve um preço alto demais depois.

— Porra! — O copo de Sam foi estilhaçado no chão. — Não


sei mais se posso ouvir isso, Roxanne. Não sei se tenho estômago

para isso, caralho!

Ele passou a mão pelos cabelos, bagunçando-os.

Mas ao contrário do que esperava, ele não saiu da sala.


Sam se aproximou mais.

— Não precisa dizer mais nada. Não precisa se justificar. —

Ele se sentou na mesinha de centro à minha frente e tomou minhas


mãos nas suas. — Eu nunca acreditei no que o meu detetive

descobriu sobre você. Não acreditei quando ele me disse que você
era de origem humilde, mas que também era perigosa, porque
pertencia a uma das famílias mais poderosas do narcotráfico.

Porque eu conheci você de verdade. Conheci seu coração e vi a


marca da crueldade que sofreu.
— Mas você precisa saber que é verdade, Sam. — Acariciei
seu rosto, ainda com a barba da manhã por fazer, e tentei conter
meus soluços. — Precisa saber que passei anos sendo a filha

postiça de Castel Milagros. Foi ele quem pagou meus estudos na


universidade. E quando ele faleceu, eu me envolvi com o único filho
dele, Juan. Foi apenas por um curto período, quando cuidei do luto

dele e acreditei estar apaixonada. Ao menos, até ele mostrar que


seu amor repleto de surras se tratava apenas de posse. Uma posse
que ele deixou marcada na minha pele a ferro quente, quando

acreditou que eu o trocaria pelo bebê que esperava.


— Então ele sabe de María? —inquiriu Sam.
Os olhos dele também estavam marejados.

Assenti, sentindo minha visão nublar.


— Sabe. E a odiou desde o começo, porque a descobriu na
minha primeira tentativa de deixá-lo. Depois de me manter presa em

casa, seu plano era permitir a gravidez, porque planejava incluí-la


em negócios de tráfico humano. Ele queria me ver sofrer e sempre

me lembrava que bebês tinham valor alto. — Segurei o colarinho da


camisa de Sam. — E eu não poderia deixar, Sam… simplesmente
não poderia deixar que ele fizesse mal ao meu bebê… Nunca

permitiria que ele a vendesse, então eu precisei ir para longe…


Eu tinha mais para falar. Contar sobre como fugi do México
no meio da noite, com documentos que precisei roubar de um cofre
que explodi, mas não pude prosseguir a história. Toda a confissão

do meu passado, em um único momento, foi devastadora demais.


De repente, todo o meu corpo tremia, e os sons que saíam

da minha garganta poderiam assustar qualquer um.


— Por isso ele incendiou a sua casa, Sam. Ele não vai parar
até me encontrar. Ele vai destruir tudo pelo caminho, porque ele me

marcou como dele, e é o que sou agora. Sempre terei de carregar


as consequências das minhas escolhas terríveis.
Mãos fortes me seguraram pelos ombros e olhos escuros

me roubaram de mim.
— Não, Roxanne. Você não é dele. Você não pertence a ele
e nem a ninguém. Nenhum homem tem o direito de feri-la ou de

arrancar a sua filha de você. E por Deus no céu, ou pelo diabo no


inferno, eu não vou permitir que esse demônio a alcance! Nunca
mais!

E ele me abraçou. Sam me apertou forte contra o peito, sem


se preocupar nem um pouco com minhas lágrimas sem fim que

molhavam sua camisa. Eu ainda chorava nos braços dele quando


senti outro abraço me envolvendo. Lia abraçou nós dois, como uma
mãe.

— Ah, querida. Vai ficar tudo bem agora. Não se preocupe.


Não vamos deixar mais nada de mal acontecer a você e a María.
Foi o carinho mais intenso que senti em anos. Talvez o mais

sincero que experimentei na vida, e por isso minhas emoções


pareceram se esfacelar ainda mais.

Mesmo quando consegui me acalmar um pouco e Lia se


afastou de nós, Sam não me soltou. Ele continuou ali, comigo. Suas
mãos gentis fazendo carinhos sensíveis nas minhas costas. E pela

primeira vez, expor todos os sentimentos que revolviam dentro de


mim me inspirou confiança. Eu havia contado a verdade. Havia
exposto o que eu tinha de mais terrível, e mesmo assim ele não se

afastou. Nem me acusou.


Como já tinha me dito antes, Sam tinha escolhido ficar.
Seu olhar fez meu coração relembrar cada parte do que me

disse quando ele afastou meu rosto de seus ombros e sustentou-o


nas mãos.
— Acabou.

Foi a única coisa que ele me disse.


Em uma expressão solene, mas antes que eu pudesse

processar o significado intenso daquela palavra e das emoções que


dominavam seu rosto, Lia fez sua pergunta:
— O que faremos, Sam? Com um homem perigoso desses,

que lugar será seguro?


— Lia está certa — funguei. — Não existe nenhum lugar
seguro.

Sam se afastou de mim e pensou um pouco.


— Na verdade, existe um lugar seguro para onde posso ir.—

Seus punhos se cerraram por um instante. — Um lugar que


ninguém cogitará que estou.
— E que lugar seria esse para um homem de nome tão

famoso como você?


Ele fez outra pausa antes de responder:
— Um lugar onde está o nome que abandonei.

— Nome que você abandonou...


Lia tinha o cenho franzido. Então parou de falar quando
pareceu compreender algo ao olhar para Sam.

— Samuel...
— Eu jurei jamais voltar a colocar os pés lá. E com a
separação do sobrenome que fiz anos atrás, ninguém imaginará,
Lia. Roxanne e María estarão completamente seguras.
Lia ficou lívida.
— O quê? Mas você não pode... Deus, Sam! Você está

mesmo falando de voltar para o Texas? — perguntou Lia em uma


voz estrangulada, e passou por mim para segurar Sam pelo braço.
— Para a casa de Wallace Huntington?

Ele pareceu considerar mais um pouco.


— Sim.
— Sam, meu menino...

Mas ele se desvencilhou de Lia com delicadeza e quando


falou sua voz soou firme:
— Minha decisão está tomada. Precisamos sair do estado.

Todos nós. Só depois de estarmos em segurança completa é que


poderei entrar em contato com o Knighton para encontrar o melhor

caminho para uma solução permanente. Como ele já fez tantas


vezes ao lidar com os criminosos mais perigosos do país. — Sam
voltou a se aproximar de mim. — Sebastian conhece agentes

confiáveis da DEA que não podem ser comprados, como a polícia


que veio procurá-la. E assim, do Texas, posso cuidar de Milagros.
A obstinação dele era clara, mas ainda assim me assustou.

Ele mal tinha pestanejado antes de decidir comprar a minha guerra.


— Não, não, Sam. Você não pode cuidar disso… Juan é
capaz de coisas hediondas. Não posso pedir para que corra esse

risco por mim. E nem mesmo por María.


Mas Sam não recuou diante das minhas palavras. Pelo
contrário. Apesar de afastar delicadamente um cacho do meu

cabelo da testa, a voz dele soou impassível.


— Você não precisa pedir por nada. Essa é a minha
escolha. — Meu coração subiu para a garganta diante da frase que

ele revelou um segundo depois: — E Juan Milagros vai descobrir


que também posso ser capaz de coisas terríveis, principalmente se
precisar defender as pessoas mais importantes da minha vida.

Ele se curvou e beijou a minha testa.


— Sam…
Tentei segurar seu suéter, porém, ele já tinha deixado meus

braços.
— Fique com ela e reúnam malas com o que precisam para

pegarmos um jatinho, Lia — orientou depois de começar a caminhar


na direção da porta principal. — Vou sair e fazer uma ligação para
Austin. Vou dar a Wallace sua reunião de família e pedir sua

permissão para pousar em casa. No Rancho do Rei.


Lembre-se de acreditar em si mesma.
Eu não te machucaria tal qual o mundo fez comigo.

— PINK, “Run”.

SAM

A viagem no meu avião particular tinha comodidade


suficiente para não assustar María. A decolagem não lhe causou a

dor de ouvido que temi a princípio, e ela dormia serena na

cadeirinha especial ao lado. Roxanne também descansava em seu


sono. Seu corpo magro tombando na minha direção e a cabeça

repousando no meu ombro esquerdo.


Algo estava diferente em seu rosto agora. E para melhor. As

olheiras haviam cedido, apesar de não terem sumido


completamente. Mas não era apenas isso. A tensão, que sempre

contraía seu semblante nas noites em que velei seu sono, agora

parecia ter se aliviado em muito. Eu nunca fui um homem de usar


ensinamentos bíblicos, entretanto, podia compreender melhor o

conceito de a verdade ser libertadora naquele momento.

Enquanto eu pensava nisso, ela se encolheu um pouco


mais, seu corpo confiando no meu e se aconchegando contra o meu

calor. Como se estivessem combinadas, María também se moveu

um pouco na cadeirinha, em minha direção, o que fez seu cobertor


de pequenas nuvens cor-de-rosa sair do lugar. Estiquei a mão e a

cobri de novo. María suspirou quando afaguei de leve seu rostinho


angelical, e eu sorri.

Do meu outro lado, sua mãe também respirou fundo. Imitei o

mesmo movimento de antes e cobri Roxanne. E então, assim como

também fiz com María, acabei erguendo a mão para tocar suas

bochechas rosadas pelo frio.

Eu não tinha a intenção de tocá-la por tanto tempo. Sabia


que ela gostava de uma distância segura, mas não consegui evitar.
Lorena havia acertado quando disse que Roxanne tinha
passado pelo inferno antes de chegar até mim. Nada do que meu

detetive havia descoberto, sobre uma garota que havia sido adotada

por um clã criminoso, tinha me preparado para uma história tão

terrível como a que ouvi na noite passada.

Fome. Cárcere. Violência.

Pensei já ter vivido uma quota suficientemente ruim de


coisas abomináveis na minha vida. Principalmente quando morava

no Texas com um pai que me desprezava. Contudo, perto do que

Roxanne vivera, perto do que ela havia enfrentado nos últimos anos,

minha história nem se comparava. Talvez fosse por isso que,

mesmo em um avião para Austin, prestes a pousar e a encarar um

passado complexo, eu não conseguisse me preocupar com nada

além de vê-la segura.


Ver ambas seguras.

Pretendia apenas deslizar a ponta do indicador uma última

vez pela maçã do seu rosto elegante, mas justo nesse movimento,

Roxanne acordou. Os cílios longos, que antes acariciavam suas

bochechas, bateram duas vezes, e então os olhos incomuns — que

eu nunca sabia se eram verdes ou castanhos-esverdeados —


focaram em mim.
Pensei que ela se assustaria e quis me afastar. Roxanne,

entretanto, segurou minha mão no lugar.


— Fique, Samuel — convidou.

O cavalheirismo me obrigava a recusar, mas eu só havia


sido acusado de ser um cavalheiro uma vez. E era uma acusação
errônea.

— Você parecia serena no sono.


Um sorriso ameno escapou dela. Fiquei feliz por despertar

isso, a despeito de tudo o que estávamos vivendo. Roxanne se


mexeu um pouco e então colocou a mão sobre a minha.

— No México, chamamos isso de tierno. Ternura. Você tem


muita ternura em seu coração, Sam.
— Você é a primeira pessoa no mundo que diz isso.

— Então as outras estão cegas. Ou são muito burras.


Ri; não pude evitar.

Eu ainda a acariciava. Ela estendeu a mão para imitar o


gesto no meu rosto. A mão macia contra os pelos ásperos da minha

barba por fazer… Um arrepio de prazer inconveniente para o


momento que passávamos chegou à minha espinha.
Não tive escolha, senão afastá-la com delicadeza.

— É melhor não me tocar assim, Roxanne.


— Você não gosta de cariño?

— Gosto. E mais do que deveria, vindo de você. Mas


estamos no meio de um perigo terrível, e sei que só está sentindo

medo.
Ela ficou em silêncio por alguns instantes. Talvez para me

surpreender mais do que já sabia que faria:


— Pela primeira vez na vida, não. Eu não estou sentindo
medo algum, Sam.

Roxanne se aproximou mais. Todos os meus músculos


ficaram dolorosamente tensos quando a sua outra mão repousou

sobre o meu peito. Principalmente os da parte inferior à cintura.


— Acho que abandonei meu medo desde que o vi com
María.

O toque no meu peito não era nada além de um encostar.


No entanto, o calor que se espalhava a partir dali era devastador.

— Está sentindo gratidão por mim, então. — sondei.


— Não acho que haja gratidão no mundo que possa retribuir

tudo o que está fazendo por mim e pela minha filha.


O tom de voz dela era sério. Só que isso não impedia meu
corpo ou meus pensamentos de traduzirem as palavras com as

segundas intenções que desejavam.


Eu devia estar com a cabeça em outro lugar. Em Milagros.
Em Sebastian Knighton e nos agentes da DEA que ele havia me
prometido quando, enfim, consegui falar com ele, pouco antes de

entrar no avião. O que tínhamos pela frente, em Austin, era uma


perigosa trincheira de batalha. Não seria fácil enfrentar o líder de um

cartel com dinheiro suficiente para comprar a polícia e até alguns


setores do governo americano. Mesmo com o dinheiro e a influência
que eu possuía, mesmo com a ajuda de homens como Sebastian,

eu sabia que os riscos eram implacáveis. Nós não estávamos em


um filme com garantia de final feliz.

Pelo contrário.
Era a vida real. Milagros devia estar revirando toda

Washington naquele momento. Talvez, já percebendo nossa fuga,


correndo atrás do tempo perdido com seus próprios agentes
infiltrados pelo país. Roxanne precisava de resoluções, e não de um

homem que a desejasse.


Exatamente por isso, minha mente devia estar concentrada

até o seu último nível em cada um dos próximos passos possíveis.


Não devia estar concentrada no cheiro dela. Nem em seu rosto
bonito. Menos ainda no formato delicado daqueles lábios com um

gosto adorável.
Um gosto que eu ansiava provar mais uma vez.
E que ficou mais difícil de negar a mim mesmo quando ela
voltou a acariciar o meu queixo.

— Roxanne, se você continuar, eu não posso prometer...


Ela franziu o cenho, confusa diante das minhas palavras.

— Não pode prometer o quê?


— Que não vou beijar você. — Fui direto. Não estava
ganhando nada à base do meu próprio juízo. Talvez pudesse contar

com o dela. — Acho que na situação em que estamos não é muito

inteligente perdermos tempo tentando esconder a verdade. E nesse


momento, mesmo sabendo que está ferida demais, tudo no que

consigo pensar é em cuidar de você com beijos.

Roxanne interrompeu seu toque, porém não se afastou.

Algo pareceu reluzir no seu olhar por um instante. Algo que eu


nunca havia visto desde que nos encontramos, mas que fez o órgão

no meu peito responder de um jeito desenfreado. Entretanto, ela

pareceu se lembrar de outra coisa e vacilou.


— Você tem alguém.

E isso, sim, a fez se afastar de mim com rapidez.

A acusação, tão súbita e inesperada, quase me fez perder a


chance de segurá-la pelo pulso.
— O quê?

— Uma moça elegante o beijou. Eu vi da sacada, na noite


em que descobriu a verdade sobre mim.

Lembrei-me da noite por completo. A mesma em que havia

considerado não beijar qualquer outra mulher na vida. Hannah tinha


me levado para casa e beijado o canto da minha boca, para se

despedir de nosso tempo de relacionamento.

— Você me viu com Hannah lá de cima? É alto demais para

isso.
— Tive uma boa visão da sua namorada o beijando na

boca…

A voz dela saiu ríspida. Ao se dar conta disso, Roxanne se


calou subitamente e levou a mão, que me tocava antes, aos lábios.

Eu não achei que encontraria algum motivo para rir em meio

à nossa situação extrema, mas aconteceu. O que foi um erro,


porque Roxanne ficou mais constrangida e quis se afastar mais.

— Não.

Parei de rir e a puxei de volta para perto de mim.

Ela suspirou sem me olhar.


— Desculpe, Sam. Sua vida amorosa não é da minha conta.

Não sei por que estou falando esse tipo de coisa.


— Talvez porque esteja sentindo algo.

Roxanne apenas balançou a cabeça, que continuou

mantendo abaixada. Pensei que permaneceria assim, mas ela me


olhou com coragem nítida um pouco depois.

— Você disse que devemos ser inteligentes e não perder

tempo com mentiras. Também estou cansada delas na minha vida.

— Ela respirou fundo e me enfrentou. — Então, sim, eu não devia,


mas acho que estou tendo alguns sentimentos irracionais por você,

a despeito de tudo de ruim que estou vivendo.

Foi como uma injeção de adrenalina nas minhas veias. De


repente, o resto do mundo poderia estar por um fio que eu não me

importaria.

— A irracionalidade pode ser uma boa coisa, às vezes.

— Não na situação em que estamos. E certamente não


quando não tenho direito a isso.

Fiquei confuso.

— Não tem direito a quê?


— A alguém tão bom como você.

— Roxanne…

— Eu só trouxe problemas para você, Sam. Desde que nos

conhecemos. E olha só onde estamos… — O olhar dela se afastou


do meu e se tornou vago. De um jeito que fez meu estômago

afundar. — Eu sei que depois das escolhas que fiz, da vida boa e
rica que vivi no clã, mas às custas do sangue de outras pessoas,

isso não seria justo. Uma mulher como eu não merece um homem

como você. E não se trata de autopiedade, se trata de um fato.


Roxanne quis voltar a baixar a cabeça, mas não permiti e

ergui seu queixo para mim.

— Olhe para mim, Rox. Preste atenção. Posso estar sendo

um homem mais decente com você e María. Talvez porque Deus


esteja me dando uma chance de me redimir, entretanto, não sou o

homem perfeito que está supondo. Eu tenho pecados, assim como

você. — Foi a minha vez de respirar fundo. — Minha fama e meu


dinheiro vieram da minha habilidade de destroçar famílias.

— Sam…

— Por favor, escute. Fizeram charges nos jornais me

pintando como o diabo, e a verdade é que elas tinham fundamentos


firmes. Eu defendia apenas homens e massacrava esposas com

acordos de divórcios, sem me preocupar se estava sendo justo ou

não. Se crianças estavam sofrendo no meio disso. Eu mesmo fui


uma criança que sofreu por causa de um divórcio, mas preferi não

me importar com nada quando cresci e me tornei advogado. Então


se você acha que não pode me ter, porque sou bom demais para

você, está enganada. Você pode ter tomado caminhos ruins, porque

a vida não lhe deu oportunidades melhores, mas eu, não. Eu fiz

péssimas escolhas por egoísmo e ressentimento, nada mais. Até


onde sei, posso ter ferido gente demais apenas por mágoa. Se parar

para pensar, não mereço o seu cariño nem o de María.

Roxanne ficou quieta. Seus olhos demonstrando que ela


ainda absorvia tudo o que tinha dito, até que chegou a uma

conclusão rápida.

— Ninguém precisa ser imaculado para ser amado, Sam. —

Ela me defendeu de mim mesmo.


Sorri.

— Então você compreendeu. E isso vale para os dois lados.

Vi quando as sobrancelhas dela arquearam, surpresas, e


quando seus lábios se moveram de novo, a pergunta foi tão

aleatória e leve no meio do peso que ambos carregávamos, que me

fez rir:

— Então o que fazemos agora?


Respirei fundo antes de trazer seu rosto para perto do meu.

— Sei que o último homem que prometeu protegê-la se

revelou um ser cruel e perigoso. Mas eu jamais a machucaria assim.


— Sei disso, Sammi.

— Bom. — Acariciei sua bochecha antes de prender seu


olhar com o meu. — Mas eu precisava que ouvisse isso de mim.

Porque estou cansado de vê-la sofrer. Quero lhe dar motivos para

guardar bons sentimentos. — Curvei meu rosto sobre o seu. —E

vou começar a fazer isso agora, Roxanne. Vou beijá-la do jeito


certo: sem medo entre nós.

ROX

Achei que nunca mais fosse me sentir inteira novamente,

mas aconteceu. No exato instante em que os lábios de Sam

tocaram os meus. E no meio daquele momento cheio de ameaças,


meu coração bateu mais forte por um sentimento extraordinário e

nobre.

Não havia medo em qualquer parte de mim. Fiz exatamente


o que queria fazer, quando alcancei sua nuca dessa vez. Nenhum
impulso confuso. Nenhum receio de confiar no homem que me
abraçava e me puxava para os braços fortes dele. Parecia um

milagre que fosse assim.

Mas era.
Diferente do meu, o beijo de Sam começou com toques

cuidadosos. Os olhos ainda nos meus nas vezes breves em que nos

tocamos, como se para verificarem se ele ainda tinha permissão


para seguir adiante. Ele esperou pacientemente que eu devolvesse

suas carícias, e eu o fiz, até que de repente não havia mais nada

para ver. Tudo se converteu em prazer por trás das minhas

pálpebras. Pela primeira vez, uma escuridão repleta de bons


sentimentos, como ele prometera, era o que me fazia tremer.

Minhas mãos buscaram apoio em sua nuca enquanto os beijos se

tornavam mais intensos e profundos. Em questão de segundos, tudo


em mim estava entrando em combustão.

— Sammi…
A emoção nova ardendo em meu peito me desnorteava.
— Estou aqui. — Ele me guiou novamente, espalhando

beijos pelo meu pescoço também. — Sempre vou estar, Rox.


E então o seu carinho retornou à minha boca e se estendeu
mais e mais. Ajustando as coisas em seus lugares certos no meu
peito. Martelando e consertando tudo que ficou quebrado por tempo
demais dentro de mim. Eu sentia que estava ganhando e perdendo
algo ao mesmo tempo. Apenas naquele pequeno momento que

compartilhávamos.
Foi sublime.
Quando Sam se afastou para que recuperássemos o fôlego,

meus olhos pareciam ver coisas pela primeira vez. Assim como os
meus sentidos.
— Vamos devagar com isso, Roxanne — pediu enquanto

ainda traçava meu lábio inferior com o polegar, vagueando o olhar


por ele. — Estamos passando por muita coisa, e não quero que meu
beijo ou a nossa atração signifique mais uma preocupação para

você.
— Não significa, Sam. — E por mais surpreendente que
fosse, eu tinha absoluta certeza de cada palavra.

— Fico feliz que não, mas ainda sei que precisa de tempo.
— Ele entrelaçou nossos dedos. — É perfeitamente compreensível

que não queira se envolver com outro homem nesse momento e


depois de tudo que passou. Quero que se sinta segura de si
primeiro.

Assenti.
— Você tem razão. Eu preciso me sentir melhor com as
minhas próprias emoções e também preciso que María esteja em
segurança antes de tudo. Preciso pôr a minha vida no lugar.

Mas o inesperado era que, ao lado de Sam, eu já sentia


estar em posse dessas duas coisas.

Ele ergueu meu queixo para que eu o fitasse.


— É o que quero também. Resolveremos essa situação,
Roxanne. Então eu esperarei até que esteja mais tranquila. — Ele

sorriu. — Teremos tempo.


O coração novo, que eu parecia ter adquirido de um
momento para o outro, descompensou-se no meu peito. No entanto,

não tive tempo para falar qualquer coisa, porque María começou a
chorar do nosso lado, exigindo a sua parcela de atenção.
— Acho que alguém já quer entrar para o nosso “nós” —

avisou ele com um sorriso.


Sam se virou e tirou minha filha da cadeirinha com
delicadeza.

— Ela está limpa. Só deve estar com fome — falou depois


de inspecioná-la e me entregá-la. — Deixei a fórmula pronta para a

última hora de voo.


Assim que recebeu a mamadeira, María começou a sugar
com uma energia que nos fez rir.

— Acha que Lia chegou segura com a família, na Costa


Oeste? — perguntei depois de um tempo.
Sam anuiu enquanto ajustava uma meia pequenina no pé de

María.
— O avião que fretei seguiu os parâmetros sigilosos que

solicitei.
Balancei María. Mais por nervosismo do que por
necessidade, já que ela estava calma, bebendo seu leite e fitando

Sam com atenção. Ela se esquecia da mãe com ele por perto.
— Não vou me perdoar se tiver colocado toda a família dela
em risco.

— Você não vai precisar se perdoar, porque nenhum deles


ficará em risco. Foi por isso que considerei nos separarmos.
Seguranças vigiarão a casa onde eles ficarão.

— Mas seguranças também vigiavam a sua cobertura e…


Sam voltou a segurar minha mão.
— Acredite em mim, Roxanne. Todos vão ficar bem.

— Nem todos, já que estamos indo para a casa do seu pai


— apontei.
— É o lugar mais seguro, agora que já a ligaram ao meu

nome. Mal falo com o meu pai desde os meus dezoito anos e
dispensei o sobrenome dos Huntington quando me tornei advogado.
Por isso nem a mídia irá especular sobre o Texas e ninguém vai se

lembrar de nos procurar. Ao menos por algum tempo.


— Então é verdade o que Lia disse sobre o seu pai? Sobre
ele o ter magoado muito…

Minha voz falhou quando percebi a ferida ainda viva no olhar


dele. Como que por reflexo, o homem ao meu lado deixou de

segurar a minha mão.


— Wallace não é importante.
Mas era. E o fato de mais alguém ser envolvido na minha

situação perigosa…
— Sam… — Toquei o braço dele.
— Não se preocupe, Roxanne. Ele concordou em nos

receber e estará seguro não sabendo muito sobre o que


enfrentaremos.
— Você tem certeza disso?

— Sim. Foi como o Knighton me instruiu a agir até os


agentes da DEA virem até nós. Sebastian me garantiu que isso
acontecerá até o Natal, em pouco mais de duas semanas. Por isso
vamos manter a história do casamento para facilitar as coisas com
ele, mesmo sem os papéis assinados. Vou apresentá-la como minha
esposa, e María… — Ele sorriu docemente para ela. Em seguida,

estendeu a mão para acariciar sua cabecinha. — María como minha


pequena.
María deixou a mamadeira e sorriu. Para ele.

Sam ampliou o sorriso em resposta.


— Sim, pardalzinha. — Ele a puxou pela meiazinha que
tinha ajustado antes. — É o que você é, minha pequena. Já tem os

cabelos e olhos escuros. Mas tem que sorrir menos, para se parecer
mais comigo.
Senti meus olhos se encherem de água.

De repente, a razão para ele assumir tantos riscos foi


ficando clara. Eu tinha achado que Sam gostava de María. Porém,

era mais do que isso. Ele poderia ter bons sentimentos por mim,
mas pela minha filha eles eram ainda maiores. E María sentia isso.
Talvez já o amasse, mesmo com a pouca consciência que tinha.

Meu Deus, seria mesmo possível que aquela jornada difícil


terminasse sem que ninguém saísse ferido?
— Rox, está tudo bem?
Ele tinha percebido minhas emoções, mas não houve tempo
para explicar o pressentimento que se abateu sobre mim. Era tarde

demais, porque o copiloto saiu da cabine à nossa frente e nos


trouxe novidades.
Ele informou que nós estávamos prestes a pousar na pista

privativa do King’s Ranch e nos deu as boas-vindas ao estado do


Texas.
Assopre uma vela, apague a luz
Se sua moral lhe faz pensar que é melhor que isso.

Ser mau tem um preço.


— HEAVY YOUNG HEATHENS, “Being Evil Has A Price”.

SAM

Ajudei Roxanne a descer o último degrau, enquanto

mantinha María enrolada em seu cobertor no outro braço, para

protegê-la do vento frio. Apenas quando a vi alcançar o solo texano


é que tive coragem de olhar para o passado tão vivo diante de mim.

Foi estranho. Surreal.


Quatorze anos depois que saí do King’s Ranch, e aquela

pista de pouso privativa para aviões de pequeno porte era a única


coisa diferente na paisagem congelada de inverno. Tudo mais

parecia estar do mesmo jeito. O celeiro com as baias dos cavalos

árabes que sempre mantiveram a estabilidade dos Huntington. Os


galpões de corrida e o ringue de equitação. Tudo exatamente igual,

assim como as terras a se perderem de vista — uma quantidade de

acres maior que o estado de Rhode Island — que ainda me


inspiravam o mesmo sentimento ruim de aprisionamento em uma

realidade indiferente.

Assim como o homem vestido com o terno rural branco, que


me encarava a poucos metros.

— Olá, meu filho.


— Olá, Wallace.

Bem, havia outra diferença ali. Os anos não tinham sido

benevolentes com Wallace Huntington. O homem que, sem dúvida,

ficou feliz ao me expulsar para a universidade mais longe possível, a

fim de restaurar seu nome, havia envelhecido consideravelmente.

As rugas cercavam os olhos azuis duros, que pareciam não serem


mais capazes de sua ferocidade usual. O cabelo loiro estava

praticamente branco, assim como a barba do queixo. Wallace


também parecia menor e estava menos ágil, já que precisou do
auxílio de uma bengala com a cabeça dourada de uma águia careca

americana, para se aproximar de nós.

— Sam, estou feliz que tenha voltado para casa.

Ele fez menção de abrir os braços, mas mudou de ideia

quando me viu dar um passo para trás.

— Não se engane, eu não voltei para ser o filho que você


nunca quis — atirei.

Ele se encolheu e também recuou um passo.

Merda.

Aquilo já começava com um erro. Eu não poderia ser tão

ríspido. Não se pretendia manter em segredo a verdade sobre o que

estava acontecendo e a razão de estar de volta ao rancho. Na

ligação difícil que eu havia feito do hotel, na noite anterior, a única


coisa que consegui informar era que estava indo para Austin, como

ele pedira tantas vezes antes nos últimos tempos. Não havia

esperado sequer por sua reação, após dizer sim. Se tivesse, talvez

isso teria me preparado melhor para o momento daquele reencontro

difícil.

Todos os anos que vivi e todas as palavras que sempre ouvi


voltaram violentamente.
“Você é o meu maior engano, garoto. Sempre será.”

“Apenas o fato de ter que olhá-lo me faz recordar o tamanho


da minha estupidez.”

“Não pense que vai contar com um centavo da minha


fortuna no futuro. Você não vai me extorquir como a mentirosa da
sua mãe.”

— Sam? — A voz de Roxanne chegou aos meus ouvidos,


mas foi seu toque tranquilizador no meu braço que me despertou. —

Eu estou aqui. Está tudo bem?


Entrelacei meus dedos nos dela, a fim de conseguir forças.

— Vai ficar — prometi ao olhá-la.


Depois observei María. Eu não podia falhar naquele
momento, quando as duas contavam comigo. Eu tinha de me

esforçar para cuidar delas.


— É a sua esposa e a sua garotinha. — Meu pai voltou a

falar.
Encarei-o.

— Sim. — Acenei, mesmo que não fosse uma pergunta, e


fiz as apresentações de uma distância segura. — Essa é minha
esposa, Roxanne. E essa é minha pequena María.
Wallace sorriu e tirou o chapéu branco de caubói que usava.

Segurou-o contra o peito e se aproximou. Então espiou María no


meu colo. Galgando para chegar ao seu segundo mês de vida, ela

estava mais ativa e tentou erguer a cabecinha para espiá-lo de


volta.

O olhar dele se tornou marejado e houve a menção de um


sorriso em conjunto. Ambas expressões que eu nunca testemunhara
nele.

— Mary — repetiu o nome em inglês e com sotaque sulista.


— Ela se parece muito com você, garoto.

Eu sabia que não podia ser verdade. Nem sua fala nem
suas emoções. Entretanto, foi difícil resistir à tentação de me apegar
a qualquer uma delas, mesmo sendo um homem adulto de

raciocínio lógico.
— Eu li na coluna social, de um jornal de Washington, que

se casou — continuou, ainda olhando para a minha menina. — Uma


tal de Elizabeth Mildred fez um desenho malfeito de um diabo

dividindo o trono no inferno. Pensei seriamente em processá-la.


Aquilo me pegou de surpresa. A ideia de me casar com
Roxanne não tinha saído de um nicho exclusivo de pessoas, uma

vez que não houve tempo para executá-la antes da nossa fuga
urgente. Como os jornais poderiam estar divulgando qualquer
história? Apesar de todas essas dúvidas, o que me ouvi
perguntando a Wallace foi outra coisa:

— Você leu um jornal falando de mim?


— Sempre vejo tudo o que sai na mídia sobre você, Samuel.

Guardo recortes. Mesmo que sejam histórias sensacionalistas sobre


como você foi buscar sua noiva e sua filha em uma delegacia. —
Meu pai então deixou de olhar María e se aprumou para fitar

Roxanne ao meu lado. — Sou Wallace Huntington III. Seja bem-


vinda à família e ao Rancho do Rei, a sua casa com os melhores

pães de milho do Texas.


— É um prazer conhecê-lo, e obrigada, senhor…

Roxanne colocou a mão na que meu pai oferecia, mas ele a


surpreendeu com um abraço. Em vez de se assustar, ela sorriu e o
abraçou de volta.

María gostou de ouvir o som alegre incomum da mãe,


porque soltou um ruído meigo e se agitou mais nos meus braços.

— Estou muito feliz de ter todos vocês aqui. — A voz dele


embargou, e Wallace usou a mão segurando a bengala para livrar
os olhos de um vestígio de emoção.
Era como ver um estranho diante de mim. Ele não parecia
nem de longe o homem que abandonei.
— Não pretendemos ficar muito — avisei, mesmo confuso

com toda a situação. — Apenas algumas semanas.


— Não vamos incomodar por tempo demais, senhor

Huntington — garantiu Roxanne ao meu lado, e era possível sentir o


traço de culpa em sua voz. — Logo voltaremos… — Ela me olhou
em dúvida. — Bem, eu voltarei para casa.

O pronome que ela usou não me agradou nem um pouco.

No entanto, meu pai já falava por cima, numa voz que traduzia
animação e receio:

— Espero que fiquem ao menos até o Natal. Preparei tudo o

que possam precisar para uma boa hospedagem. Mandei também

que decorassem a casa e comprei presentes para todos.


— Comprou? — inquiri. — Mas eu só avisei de nossa vinda

ontem.

— Mexi alguns pauzinhos para que tivéssemos um bom


Natal. — Ele se voltou para María, que o recebeu com um novo

sorriso. Eu já não acreditava que aquilo fosse um reflexo. Era oficial:

eu tinha certeza de que a minha pequena era a bebê mais


inteligente do mundo. — Mas para você, pequenina, eu já tenho

algo especial bem aqui.


Wallace tirou do bolso interno do terno um pequeno

chocalho dourado, com um chapeuzinho na ponta. O brinquedo fez

um barulho sutil quando ele o balançou diante de María. Ela se


agitou mais e esticou as mãozinhas para o som.

— Foi do seu pai, quando ele era um bebê bem-humorado

como você. Eu costumava usar para brincar com ele.

Não consegui me conter. As palavras saltaram cheias de


mágoa, antes de tudo.

— E isso foi antes que minha mãe o envergonhasse,

revelando a todos que só teve um bebê porque estava interessada


em um divórcio milionário, imagino. Também foi antes de o senhor

me rejeitar por esse feito.

Meu pai parou de sacudir o chocalho e me olhou.


Senti a mão de Roxanne procurar a minha e apertá-la.

— Samuel, meu filho…

— Não, Wallace.

Decidi ser claro o suficiente. As coisas poderiam ter mudado


para ele, Deus sabia lá por qual motivo. Porém ainda eram as

mesmas para mim. Cada parte daquele pedaço de terra guardava


memórias ruins e difíceis de lidar. Lembranças de um garoto solitário

lendo Stephen King, quieto e preferindo dormir no celeiro, onde o

pai não poderia encontrá-lo para dizer o quanto se arrependia de tê-


lo trazido ao mundo.

Não, eu não poderia fingir. Poderia ser menos ríspido por

Roxanne e María, para mantê-las a salvo ali. Mas não poderia fingir

que anos de ressentimento se curariam apenas porque ele as


recebera bem. Apenas porque chorou ao ver uma bebê que

acreditava ser sua neta.

— Como eu disse, eu não voltei para ser o filho que o


senhor jamais quis. Se dependesse de mim, esse retorno jamais

aconteceria. — Minha voz saiu dura, mas não havia como contornar

aquelas emoções. Elas estavam prejudicando até mesmo a

agilidade rápida do meu cérebro de criar justificativas. — Eu só vim


até aqui para que…

Para o meu alívio, Roxanne percebeu minha falta de

estabilidade.
— Para que eu o conhecesse — explicou e se aproximou

mais de mim, passando a mão pelas minhas costas até atingir

minha nuca. Seus olhos me fitaram com nuances de lágrimas, mas

a sua carícia aliviou toda a tensão horrível que parecia me


comprimir de dentro para fora. — Eu quis conhecê-lo, senhor

Huntington.
Ele balançou a cabeça. O olhar triste, mas resignado.

— Sei que não fui o pai que você merecia, Samuel. Eu errei

muito com você, garoto. Errei por anos, por isso entendo. Estou
realmente feliz que, apesar de tudo, você tenha vindo até aqui e que

agora esteja me oferecendo a oportunidade de conhecer a minha

netinha. — Wallace estendeu os braços. — Será que posso pedir só

um pouco mais e pegá-la nos braços?


Recuei instintivamente com María.

— Eu não sei se merece tocá-la.

Meus olhos ardiam, assim como a minha garganta.


— Sam. — Roxanne pousou a mão no meu peito. Só

percebi que alguma emoção havia escapado quando uma lágrima

pingou e se espalhou sobre seus dedos delicados. — Está tudo

bem. Deixe que seu pai a segure um pouco.


— Proteger inocentes nunca foi o forte desse homem,

Roxanne. — Neguei com a cabeça, aflito. — Não sei por que viemos

até aqui. Eu não estava pensando friamente. Talvez seja melhor


voltarmos.

Roxanne me deteve, agarrando meu pulso.


— Você me disse, uma noite, que a melhor forma de se

proteger contra um medo é enfrentá-lo.

— Não estou com medo.

Mas estava. Depois de todos aqueles anos, era impossível


não estar.

Eu não conseguia sequer me importar com mais nada que

viesse de fora. Eram as coisas de dentro que voltavam para mim


rápido demais. O Texas, o rancho, a família fragmentada na qual

cresci. A dor que isso causou estava de volta, mesmo após anos de

paliativos como uma carreira bem-sucedida e muito dinheiro. A

verdade continuava ali, nua e crua. Eu ainda me sentia o garotinho


abandonado e desprotegido. Como poderia colocar María nos

braços do meu pai e ter certeza de que ele não a magoaria como

fez comigo?
— Não vou deixá-lo magoá-la — sussurrei para Roxanne.

— Ela vai ficar bem. — Ela segurou meu rosto e o acariciou.

— Eu prometo.

O beijo casto dela repousou nos meus lábios e me acalmou.


María protestou pelo leve aperto entre nós. Roxanne então

se afastou e fez o que minha coragem jamais permitiria. Ela pegou

María dos meus braços e a levou até Wallace.


— Pode segurá-la — declarou com a voz cheia de emoção.

Em seguida, ela voltou para mim. Abracei seu corpo,


colando-o à lateral do meu, talvez com um pouco de força além da

necessária. A mulher comigo não reclamou. Em resposta, ela me

apertou de volta.

Não me senti melhor, como Roxanne dissera, quando meu


pai ergueu María para mais perto de seu rosto e voltou a balançar o

chocalho que havia sido meu com lágrimas gordas nos olhos.

Porém, eu também não me senti pior. O medo prosseguiu entalado


na minha garganta. Só cedeu um pouco quando vi María sorrir.

E aí eu me lembrei da razão principal de estar ali.

— Viu? Ela está bem, Sam. — Ela tentou me consolar.


— Vamos todos entrar. Os empregados cuidarão da

bagagem de vocês — propôs Wallace, detendo seu olhar mais

sobre Roxanne do que sobre mim. Como se estivesse com

vergonha. Mas vergonha não mudava o passado. — Está frio


demais para a minha neta aqui fora. E também para vocês. Não

queremos ninguém doente para o Natal.

Não emiti qualquer resposta. Apenas deixei que meus pés


me levassem de volta para o interior da gigantesca casa, mais fria

do que o inverno que a congelava pelo lado de fora. Fiz isso por
elas, e foi quando eu soube de imediato que, por elas, não haveria
coisa alguma no mundo que eu não enfrentasse.

ROX

Deus, o que eu deixei acontecer? Para onde eu o tinha

forçado a vir?
A casa de fazenda, branca como a neve ao redor dela, era

magnífica. Exatamente como uma casa americana sulista, saída

diretamente de um filme. O piso de pinho de coração e a escadaria

de nogueira no grande plano do hall central, com wainscoting[3],

evidenciava o trabalho de outro século. E apesar da mistura entre


móveis de tempos anteriores e utensílios modernos, nada prendia

mais minha atenção do que a mudança de comportamento de Sam.


Descobri o preço alto da nossa segurança apenas quando já
era tarde demais.
Para nos proteger, Samuel estava confrontando a pior coisa
de seu passado. Seus piores traumas e desconfortos. Eu jamais
poderia conceber a ideia de um homem fazendo tal sacrifício por

mim antes, mas era o que ele estava fazendo com coragem naquele
momento.
Nunca deixaria de soar como um erro ter vindo para a

fazenda de seu pai, mas quanto mais os dias se passavam, pior a


situação se mostrava. Nos últimos três dias, ele tinha se afastado
mais do que na época em que nos recebeu em sua casa. Fazia as

refeições no quarto separado em que ficou, para não ficar perto do


pai ou de nós. Só vinha ver María pela noite, quando acreditava que
eu já estava dormindo, e pela luz que entrava pela janela, eu

avistava suas olheiras profundas. Meu coração doía por vê-lo tão
triste e abatido, no entanto, eu não tinha coragem de bater na antiga
porta de ligação entre nossos quartos para falar com ele.

O que eu poderia dizer? Coisas egoístas, como apontar que


a culpa por tudo aquilo era minha? Ele já sabia e tentaria me

consolar dizendo o contrário, como já tinha feito dezenas de vezes.


Repetiria que estava tudo bem e voltaria a se fechar no escritório do
andar de baixo para entrar em contato com os agentes americanos.
Eu tinha deixado as coisas irem longe demais, e agora não
havia maneiras de voltar atrás. Não havia mais tempo para isso, não
sem aumentar ainda mais os riscos em torno de todos os

envolvidos.
Só que, mesmo grave, isso não era desculpa. Eu precisava

encontrar algo que pudesse fazer para ajudar. Precisava pensar até
achar qualquer coisa que ajudasse a resgatar aquele homem que
pedia por ajuda, noite após noite.

— Isso tudo é culpa minha — disse o pai de Sam, depois de


beber um pouco de chá. — Eu não devia ter insistido tanto para que
ele viesse para casa. Ele sempre deixou claro que jamais voltaria

aqui por vontade própria.


O único suporte que eu podia dar a Sam no momento era
ouvir o pai dele. Todos os dias, enquanto Sam se escondia no

escritório, nós tomávamos chá, ao passo que ele segurava María


até que ela dormisse. A coisa toda era mecanizada. Éramos
semidesconhecidos, e eu não podia revelar muito sobre mim. Sam

havia sido claro sobre esse aspecto.


María era quem salvava a situação. Apesar dos segredos,

era bonito vê-los juntos, e o senhor Huntington sempre ficava um


pouco melhor. O que diminuía um pouco o peso da minha
transgressão, por não poder ser totalmente honesta. Naquela tarde,
entretanto, ele parecia tão abatido quanto o filho. Nem mesmo a

forma como María puxava sua barba grisalha parecia animá-lo.


— Não, não é culpa sua, senhor Huntington. — Coloquei
minha mão sobre a dele no braço da poltrona branca. — Sam veio

até aqui por mim. Eu não lhe deixei escolha.


Wallace negou com a cabeça enquanto ninava María.

— Sogro e nora em uma batalha de culpas. — Um pequeno


sorriso finalmente surgiu nos lábios dele, quando María levou a
melhor e ficou com um fiapo de sua barba. — Isso é uma coisa que

nos une como família, não é?


Sorri. Um sorriso pequeno, mas sincero.
— Bem, dizem que todas as famílias têm seus problemas.

O pai de Sam suspirou.


— Sinto muito por dificultar as coisas para você, Roxanne.
Você quis me conhecer, e agora seu marido está com raiva.

Meu estômago se contorceu. Deus, eu não tinha mais onde


guardar tanta culpa. Toda a situação de impotência ameaçava me
sufocar. Não havia mais alternativa. Eu precisava contar ao menos

uma parte da verdade, nem que fosse a mais inofensiva. Talvez


aquele fosse o começo de uma boa atitude que eu ainda poderia

tomar.
— Senhor Huntington — comecei e coloquei a xícara de chá
de camomila sobre a bandeja antes de encará-lo. — Preciso ser

sincera com o senhor. Eu não sou casada com seu filho.


Ele não pareceu nada surpreso.
— Eu imaginei. Ele não se casaria fácil, com a profissão que

tem. Ainda tenho um recorte de uma entrevista dele, dizendo


abertamente que não acreditava em casamentos por ser o

responsável em anunciar o colapso da instituição. Tenho vários


recortes com ideias semelhantes de pronunciamentos dele. — O
sorriso que ele deu a María, dessa vez, foi imensamente triste. —

Mas não é só nisso que meu filho deixou de acreditar. Por minha
causa, meu garoto deixou de acreditar em família e em qualquer
outra coisa boa que pudesse vir a ter nessa vida.

— Senhor Huntington…
— Wallace, por favor. Já faz três dias que nos sentamos
nesta sala com conversas avulsas sobre o mau tempo, como

zumbis abarrotados de culpa.


— Wallace, quando digo que não somos casados, é porque
não temos um relacionamento. Ao menos não o convencional. Não
tivemos tempo para isso.
— Convencionalidade não tem funcionado muito
ultimamente, de qualquer forma — dispensou com um gesto de

mão. — Pela forma convencional, eu me casei com a mulher errada


e magoei meu filho por anos.
Silêncio.

Eu não queria me intrometer. Já estava pegando mais do


que devia daquela família. Mesmo assim, também não podia ficar
completamente apática. Porque, apesar de todo o tumulto ao redor,

eu já tinha sentimentos por Sam. Talvez, se eu soubesse mais sobre


sua história, poderia ajudá-lo. Quem sabe até ajudar o seu pai.
— Posso perguntar algo íntimo? — sondei. — Sei que não

sou propriamente da família e…


Ele apertou minha mão que ainda tocava a sua, apesar de

ainda olhar para María.


— É claro que você é da família, Roxanne. Pergunte
qualquer coisa. A essa altura da vida, não perco mais tempo com

silêncios inúteis.
Foi o suficiente para me dar coragem.
— O que aconteceu de fato com a mãe de Sam? Por que

ele tem tanta raiva dentro dele? — perguntei com cuidado,


recordando-me de que Sam havia falado sobre um acordo de
divórcio quando chegamos.

O senhor Huntington não disse nada. Ele continuou


entretendo María com o chocalho por algum tempo primeiro, mas
percebi que ele também recolhia alguns segundos para si. Quando

María começou a cochilar, o pai de Sam me olhou. O peso de anos


de arrependimentos parecia estar em seu semblante. Foi
inesperado para mim, porque eu conhecia bem a sensação de ter

mais remorso do que se é capaz de suportar.


— Wilhelmina me deixou pouco depois de Sam nascer —
revelou, devagar e em voz baixa. — Na época, eu a culpei por isso.

Foi mais fácil dizer que ela só estava interessada no dinheiro. Mas
eu era jovem, rico e mimado. Não sabia cuidar de uma mulher como
marido quando nos casamos. Uma prova disso é que ela sempre

deixou claro que não queria filhos. Ainda assim eu a convenci de


que um bebê era uma boa ideia para nós.

— O senhor queria muito um filho?


Ele assentiu.
— Muito. Mas quando a gravidez de Mina avançou e ela

percebeu o que tinha aceitado, odiou.


— O bebê?
— Tudo.
Ah, Deus. Pobre Sam.

— Mas hoje percebo que não era culpa dela ser tão arredia.
Wilhelmina só não tinha o desejo de ser mãe. Eu queria muito ser

pai e não respeitei isso, então a feri. E pessoas feridas, mesmo não
sendo más, podem fazer coisas terríveis.
Pensei no que Sam me disse sobre ser um advogado

insensível, que não se preocupava em ser justo.


“Até onde sei, posso ter ferido gente demais apenas por
mágoa.”

— Dificilmente existe alguém mau por puro prazer. Muitas


vezes, uma pessoa está tão ferida que fere outras sem mesmo se
dar conta disso.

Wallace suspirou.
— E foi o que fiz. Wilhelmina quis se vingar de mim e criou
um escândalo para o nosso divórcio na época. O acordo mais caro

da história do Texas, em troca da guarda do menino, antes que ela


desaparecesse para sempre. Eu a amava muito, Roxanne. Mas todo

o sentimento se transformou em ódio e rancor quando me vi motivo


de piada nos tabloides sensacionalistas. Eles falavam de golpe da
barriga a coisas piores.
— Sinto muito, senhor Huntington.

Ele balançou a cabeça. Os olhos azuis se nublando de


culpa.
— Não sinta por mim, menina. Sinta por Sam. Ele cresceu

sob a reprodução dessas palavras vergonhosas saindo da minha


própria boca. — Wallace se calou por um instante, os lábios

tremendo e lutando para conter o que pensei ser um choro. — Eu o


nomeei meu engano e meu pior erro por anos. Descontei nele toda
a mágoa que sentia por ter sido abandonado. E, no final, eu o

abandonei também.
O homem diante de mim começou a derramar lágrimas.
Estendi minha outra mão para consolá-lo, antes de perceber

que também deixava lágrimas escaparem.


— Sam cresceu sozinho. Era um garoto assustado e quieto,
vagando por este rancho. Sempre tomando o cuidado de não ficar

nas minhas vistas. Sempre ouvindo calado a dor que não consegui
resolver. E então, na idade certa, ele quis ir embora para longe. Eu o
mandei. Deixei que fosse embora com raiva. Deixei que nutrisse

essa raiva por catorze anos, mesmo reconhecendo, já em sua


partida, que meu pecado imperdoável havia sido sentir vergonha do
meu próprio filho.
O pai de Sam soluçou.
— Senhor Huntington…
— Segure a menina — pediu.

Em seguida, levantou-se e me entregou María.


— Se o senhor não quiser dizer mais nada…
Ele acenou com a mão.

— Está tudo bem. Eu apenas não queria acordá-la com um


choro inútil — assegurou. — E você ama meu filho, então tem todo
o direito de saber. — Wallace balançou a cabeça, como quem tenta

se recuperar de uma tontura forte. Então andou pela sala. Foi até a
lareira e a atiçou. Quando terminou, ele se levantou, mas não se

virou para mim. — Nos últimos dois anos, eu percebi que havia
perdido tempo demais na minha covardia silenciosa. Percebi que
tinha que buscar o perdão do meu filho. Insisti com ligações diárias

que ele não atendia. Pensei ter vencido quando ele disse que viria.
Quando ele me ligou, nessa última semana, eu acreditei que Deus
estivesse me dando uma chance de me redimir por todos esses

anos. Mas não era isso. E por que seria? Não se conserta trinta
anos de abandono com uma reunião de família, não é? Ele nunca
teve boas lembranças nem recebeu carinho nesta casa, para gostar

de estar aqui.
Eu não sabia o que dizer. Não agora que entendia todo o
peso da situação.

Ele finalmente se virou.


— Acho que a assustei com uma conversa pesada demais,
depois de dias falando apenas sobre o mau tempo, que é o mesmo

todo dia: neve.


— Não me assustou — assegurei com um pequeno sorriso.
— Não sou do tipo que se assusta fácil.

Wallace voltou a se aproximar:


— Posso segurá-la novamente?
— É claro.

Passei María para os braços dele mais uma vez.


Nós voltamos a um silêncio aconchegante, até que uma

empregada veio recolher o elegante aparelho de chá. Eu ainda


estava olhando para as pequenas flores azuis pintadas na
porcelana, quando a compreensão da única coisa que eu poderia

fazer por Sam me atingiu instantaneamente.


“Ele nunca teve boas lembranças nem recebeu carinho
nesta casa.”

Muito bem. Talvez eu não tivesse o direito de me intrometer


em uma desavença entre pai e filho, mas sem dúvida poderia
encontrar um jeito de colocar um fim naquela segunda parte.
Esquente as coisas. Estamos em fuga.
Vamos fazer amor esta noite.

— ZAYN feat SIA, “Dusk Till Dawn”.

SAM

— Faltam duas semanas para o Natal, Knighton. Você me


prometeu notícias. O risco aumenta à medida que o nosso tempo

passa, e sei que você compreende o termo “risco” melhor do que

qualquer outro filho da puta.


A voz do homem do outro lado da linha não vacilou diante

da minha reprimenda.
— Compreendo o risco, Mead. E você mesmo está se

atirando em um agora. Portanto, se você reconhece e respeita a


pessoa que pode impedir que seja assassinado a sangue frio junto

com sua mulher e criança, vai retirar o que disse imediatamente.

Respirei fundo.
Merda.

Ele tinha razão, eu estava ferrando tudo. Aquela casa me

piorava a cada dia, e eu estava descontando na pessoa errada. Não


podia me dar ao luxo de ter uma crise emocional naquele momento,

apenas para terminar colocando todos em um perigo maior.

— Desculpe. Ignore as minhas palavras, Sebastian.


— Estão ignoradas. — Ele se afastou por um instante do

telefone, parecendo falar com alguém. — Escute, Mead, eu já estou


nos Estados Unidos.

Aquilo, sim, foi uma surpresa e tanto. Quase me fez voltar a

sentir raiva outra vez. Eu vinha ligando e sendo recusado por seus

assessores desde que chegamos no rancho. Que maldito cretino!

— O quê? Quando você chegou?

— Ontem — disse, tranquilo. — E você saberia que amanhã


estarei aí no Texas, para resolvermos sua situação, se tivesse me
deixado falar antes. Os agentes que prometi irão me acompanhar
para ajudarem no que necessitarmos fazer.

— Você já tem ideia de como vamos pegar o desgraçado?

— Evite palavrões, Mead. Não fica bem para pessoas como

nós. — Sebastian suspirou do outro lado. — Não sou policial,

apesar de ter experiência em enjaular criminosos desse porte e

manter minha cabeça longe de balas. Mas um homem como


Milagros exigiria facilmente uma força-tarefa. Faz anos que ele se

esconde nos buracos mais sórdidos dos Estados Unidos e do

México.

— Você está me dizendo que não há forma de defender

Roxanne e María?

Silêncio.

— E se estiver?
Senti meu punho se fechar.

— Então você deveria ter me dito antes, porque eu já teria

saído sozinho à caça desse maldito que quer machucá-las. E

garanto a você, não haveria um buraco sórdido o bastante no

mundo para Juan Milagros se esconder de mim.

Esse outro silêncio foi pontuado apenas pela minha ira. A


voz de Sebastian adquiriu um tom que jamais ouvi instantes depois.
— Não se preocupe, Sam. Garanto que pegaremos o

homem. Elas ficarão a salvo. — E então ele fez uma pausa e


pigarreou. — Por ora, continue a evitar ser visto na cidade. Também

evite que sua mulher saia. Fique atento a tudo que o cerca e
continue mantendo sua presença em sigilo. Lembre-se de que
homens como Milagros têm olhos em todos os lugares, e o seu

estado fica nos limites da fronteira.


— Não será um problema.

— Ótimo. Agora, eu preciso desligar. Amanhã nos vemos


em Austin. Eu o telefonarei pela manhã para avisar o horário —

apontou secamente novamente. — Sei que estou mais para um


salvador do seu pescoço do que para um amigo, mas lhe darei um
conselho assim mesmo, Samuel. É noite, Mead. Tente dormir um

pouco e economizar suas energias para o que está por vir.


— Dormir com ameaças de assassinato no pensamento?

— Não deveria ser um problema. Eu coleciono várias de


mafiosos e donos de cartéis que mandei para a prisão, e nenhuma

delas me impede de dormir como um bebê.


— Bebês não dormem com tanta facilidade como você
pensa.
— Então procure outra coisa para relaxar. Conte

carneirinhos, ou faça melhor: uma trepada forte costuma ajudar


mais do que o sono, em certos casos. Até breve, Mead.

E com essa despedida curta e um tanto quanto ríspida,


Sebastian, o homem no qual eu confiava o que mais me importava,

finalizou a ligação.
Ao menos ele estava vindo para cá.
Ainda assim, soltei o telefone na mesa sem qualquer

delicadeza. Depois me deixei relaxar na poltrona de couro escuro


enquanto esfregava a barba que estava por fazer desde que

cheguei ao rancho. Parado nessa posição, voltei a repetir


mentalmente o mantra que vinha funcionando bem antes:
Você é um homem adulto. Uma porcaria de casa é apenas

uma casa. Não há motivos para reviver sentimentos antigos.


Mas, infelizmente, com toda a energia que estava sendo

sugada de mim, apenas pelo fato de estar ali, as frases vinham


surtindo cada vez menos efeito.

Deixei de coçar a barba e enterrei as mãos nos meus


cabelos, também mais compridos do que o usual. Estar desleixado
com a aparência era o menor dos meus problemas. A pior coisa era

o que eu vinha fazendo com Roxanne e María desde que havíamos


chegado. Parecia que estávamos de volta ao começo, quando as
duas chegaram na minha casa e eu me vi obrigado a manter certa
distância. Porém, agora a situação se complicava mais, porque não

havia a desculpa por não as conhecer bem.


Também era terrível, porque eu sentia falta das duas.

Queria segurar María, e não apenas observá-la escondido


durante a noite. Queria fazer mais do que voltar a vigiar o sono da
mãe dela. Muito mais. Mas meu humor e minha personalidade

oscilavam mais do que eu era capaz de controlar. Pela primeira vez,


eu tinha dificuldades em enxergar com clareza quem eu era. Sequer

sabia se o que sairia da minha boca, no momento em que tentasse


falar com Roxanne, seria algo próprio do homem adulto seguro que

me tornei, ou se sairiam doses perigosas do ressentimento


guardado por tantos anos pelo garoto que antes viveu ali.
E eu não suportaria magoar Roxanne.

Não suportaria que ela pensasse que o caos da família em


que foi obrigada a mergulhar, de alguma forma, tivesse ligação com

ela ou com sua situação.


Então havia optado por ficar recluso no antigo escritório. O
mesmo que usei quando adolescente para estudar para as provas

do colegial.
Mas eu não podia continuar da mesma forma.
Você as trouxe até aqui pela segurança delas, e não para se
tornar mais um problema.

Levantei-me.
Sebastian tinha razão. Eu precisava dormir um pouco.

Com consciência disso, apaguei minha antiga luminária da

Árvore Branca de Gondor[4] e me virei para fechar a janela. Meu

reflexo no espelho não pareceu nada animador. As poucas vezes


em que Roxanne tinha me visto nos últimos dias, sem dúvida,

assustaram-na. Eu teria que fazer a barba negligenciada antes de

me deitar.
Aceitei isso também e baixei o vidro para sair do escritório.

O restante da casa estava escuro. Era normal. Apesar de não ser

tão tarde, no inverno as noites pareciam chegar cedo e a ficarem

mais escuras no Texas. Eu sempre odiei as noites no rancho,


principalmente quando eu tinha pesadelos e não havia nenhuma

outra cama para onde correr.

Com um suspiro, segui pela galeria da Guerra Civil no


segundo andar. O tataravô do meu pai, William Huntington, havia

lutado na Guerra de Secessão, mas não pelos Confederados. Ele

havia apoiado os nortistas, o que levou metade da antiga fazenda a


ser incendiada por outros sulistas. Quando a União venceu, seu

apoio se reverteu em renda, e ele fez questão de reconstruir a parte


incendiada em formato de galeria, com os rifles e as armas que

usou penduradas nas paredes, além do quepe da União e

medalhas. Era o tipo de coisa bizarra que só um Huntington faria.


Mesmo no escuro, consegui dar a volta pelos móveis de,

pelo menos, um século atrás. Quando criança, eu havia me

acostumado a andar de forma furtiva para evitar um encontro difícil

com o dono da casa. Minha memória muscular, apesar dos quatorze


anos de distância, ainda era nítida. Por isso não tive dificuldades em

achar meu quarto, apesar de todas as portas, que deviam ter sido a

moda em 1850, quando a casa foi construída, serem parecidas.


Entretanto, assim que entrei no quarto, notei que havia algo

diferente, mesmo com a penumbra.

Um perfume feminino suave enchia o ambiente.


Procurei e a encontrei.

Roxanne estava perto da janela, enrolada em um cobertor

xadrez que parecia preso na frente do peito com prendedores

improvisados, fitando a paisagem do lado de fora. A luz da lua


mostrava que seu semblante estava carregado.
Algo sério deveria ter acontecido. Ela não tinha sequer

tentado bater à porta do meu quarto durante os últimos dias.

Entendera a minha necessidade de espaço, como a mulher


compreensiva que era. Então aquela atitude demonstrava uma

perturbação séria.

Sabia que não as deveria ter deixado sob os cuidados do

meu pai. Ele não era confiável e jamais seria.


Fiquei em alerta de imediato.

— Rox? — Terminei de fechar a porta do quarto, e ela me

olhou.
Por algum motivo, meus pés estagnaram no chão diante do

que vi naqueles olhos. Havia obstinação, mas também algo maior.

Intenso.

— Precisamos conversar, Sam — declarou e depois


suspirou, séria como nunca. — Precisamos muito.

Meu coração bateu acelerado, antecipando alguma coisa. E

quando ela se moveu, aproximando-se, eu soube que qualquer que


fosse essa coisa, ela estava prestes a dividir a minha vida em antes

e depois.
ROX

Apenas olhá-lo já era de partir o coração.

Quando cheguei perto o suficiente, pude ver com perfeição


as bolsas escuras sob seus olhos. Sam estava cansado, e a

exaustão dos últimos dias estava evidente em cada traço do seu

rosto forte.
— Você poderia ter me dito o quanto isso seria difícil para

você. Voltar para a sua antiga casa e enfrentar suas antigas

memórias — falei com cuidado e estendi a mão para tocar seu

rosto. — Poderia ter me contado mais sobre o seu pai, antes de se


sacrificar nos trazendo até aqui.

Ele não se afastou do meu toque, como pensei que faria. O

que seria comum para qualquer pessoa que está ficando doente de
tristeza. Fiquei aliviada por isso. Por ele ainda permitir minha

aproximação.
— Não tínhamos tempo — revelou. — Além disso, não é tão

difícil.

— É difícil, sim. Você está ficando doente de tristeza. —

Ousei me aproximar um pouco mais e colocar minha outra mão no


seu rosto. — E agora eu sei o porquê.

O olhar dele mudou de súbito.

Dessa vez, ele se afastou, como se eu houvesse colocado


um dedo em sua ferida.

— Ele contou a você.

Eu não tinha planos de esconder mais nada dele. Sam tinha

visto as minhas partes mais feias e doloridas. Eu queria que ele


também me mostrasse as suas. Tinha deixado o silêncio confortá-lo

por algum tempo, mas não podia mais suportar vê-lo preso em si

mesmo.
— Eu perguntei. Você mal falava comigo há três dias, então

eu perguntei. Estava preocupada demais.

Ele ficou bravo.

— Você não devia ter feito isso, Roxanne. — Sam passou


por mim, irritado. Foi até a cama e começou a retirar a camisa que

usava. Atirou-a na cama. — Vou tomar um banho agora. É melhor

você ir para o seu quarto ficar com María.


— María está com seu pai, do outro lado da casa. Pedi que

ele levasse o berço de vime que nos disponibilizou para lá.


Isso barrou os passos dele na direção do banheiro.

Ele se virou para mim.

Furioso.

— Você fez o quê?


Mantive a minha posição. Eu sabia que não seria fácil.

Quando se está mergulhado em uma dor profunda, sair dela pode

ser um sofrimento ainda mais agonizante. É como arrancar um


band-aid que permaneceu por mais tempo do que deveria. A

laceração simplesmente era inevitável.

Eu havia passado por isso quando cheguei à casa de Sam,


e ele teve toda a paciência de me esperar. Depois me ajudara a

arrancar o curativo velho e me abraçara com força, prometendo que

tudo ficaria bem. Fazendo tudo ficar bem. Era hora de retribuir o

favor.
— Eu deixei María com seu pai — repeti, convicta.

Sam se aproximou com passos rápidos e ameaçadores.

— Então depois de ouvir toda a minha história de merda,


mesmo sem considerar se eu queria que soubesse dela, você
deixou a minha María com ele? O que você tem na cabeça? Eu vou
buscá-la…

Impedi-o, colocando a mão sobre seu peito nu.

— María está bem, Sam. Não é ela quem precisa de ajuda


desde que chegamos aqui.

Ele riu. Um riso feio.

— Você é quem precisa de ajuda, Roxanne. Nós estamos


fugindo do seu ex-namorado perigoso, lembra-se?

— Sam…

— Não, você vai me ouvir. — Ele me segurou pelos ombros,

sem força alguma, quase com um toque de desespero que fez meu
peito apertar. — É você quem precisa tomar cuidado, não eu! Eu

estou perfeitamente bem, ouviu? Essa porcaria de casa com

lembranças ruins não me alterou em nada!


— Você não precisa fingir. Não para mim, Sammi.

Tentei tocá-lo em sua aflição, mas ele me soltou e continuou


a despejar:
— Eu superei meus medos do escuro, superei as noites que

tive pesadelos e não tive ninguém para quem correr. Eu superei um


pai que me odiou desde que nasci! Eu não tenho medo de mais
nada, eu sobrevivi a todas essas coisas sozinho… eu… eu…
Sam desabou. Ou teria desabado, se eu não estivesse bem
ali. Mas eu fui forte o suficiente para segurá-lo com o meu abraço.
Senti suas lágrimas molharem meu pescoço, ao mesmo tempo em

que as minhas também saltavam dos olhos.


— Eu não preciso de nada, Roxanne — insistiu enquanto
chorava como um garotinho. — Eu estou bem. Posso cuidar de

vocês. Por favor, acredite em mim. Sei que agora você conhece
minha história, mas preciso que alguém acredite que posso ser
melhor.

— Ser melhor? — inquiri baixinho.


— Ser melhor como pai.
— Ah, Sammi… — Meu coração se partiu em pequenos

pedaços. — É isso que você sente sobre minha filha?


Afastei-me para olhá-lo nos olhos.
— Eu não sei explicar quando começou. O que sei é que vi

María nascer. Eu segurei sua mão e cuidei dela. Eu… — Ele parecia
perdido, e eu senti tudo dentro de mim voltar a desabrochar. — Sei

que estamos fingindo aqui por motivos de segurança. Sei que ela
não se parece comigo de verdade. Também sei que não sou o pai
de sangue de María e que não tive um bom exemplo, mas…

Oh, Deus, eu não iria suportar…


— Meu Sam, paternidade vai além do sangue. — Minha voz
soou embargada. — Paternidade se trata de amor, cuidado e
proteção. Você deu tudo isso a María desde que ela veio ao mundo.

Você não precisou de exemplo algum para ser bom para ela. Ela
não poderia ter um pai melhor do que você, e eu sei que ela já o

ama. Muito.
A mão dele amparou a minha bochecha, e seu polegar
recolheu uma lágrima minha.

— E você?
— O quê?
— O que sente por mim, Roxanne?

Senti o fôlego ser roubado de mim. O olhar escuro dele


ganhava destaque debaixo da prateada luz da lua que entrava pela
janela.

Sam havia me dito para irmos devagar, mas como isso


poderia acontecer, depois de tudo o que ele fez por mim? Depois de
sua declaração sobre o que sentia por minha filha? Eu tinha

chegado aos Estados Unidos acreditando que nunca mais confiaria


em homem algum. Até em mim mesma. Mas não podia mergulhar

naquilo. Eu não era o foco no momento.


Por isso, em vez de investigar a verdade, eu tentei sorrir em
meio às lágrimas.

— Sinto que você também precisa de carinho e cuidado,


Sammi. Sinto que não pode continuar se afastando para manter
tudo preso aí dentro. — Precisei respirar fundo antes de emitir a

segunda parte. — Então queria que me deixasse fazer isso por você
esta noite.

Dei um passo para trás.


O semblante de Sam se contorceu em confusão.
— Roxanne…

Sorri.
A pequena declaração dele só me deixou mais certa do meu
intuito ao ir até ali. Pela primeira vez em muito tempo, eu podia

escolher por mim mesma. Podia agir acima das preocupações. Das
perseguições, do medo e até mesmo do risco de morte iminente.
Porque tinha uma razão clara para fazê-lo. E eu só tinha conseguido

isso por causa do homem diante de mim.


Sam havia me trazido segurança e carinho. Ele havia se
tornado o meu porto seguro. Uma luz em uma vida cheia de

escuridão.
Eu queria ser o mesmo para ele.
— Me permita tirar essa tristeza de você, assim como você

tem tirado a minha, cariño.


Por isso, mesmo sentindo as mãos tremerem, eu segurei os
prendedores do cobertor. Entretanto, olhei firme nos olhos dele

antes de afastá-los e deixar o agasalho grosso cair no chão aos


meus pés.
— Rox…

Sam ofegou com a voz rouca quando me enxergou na


penumbra.

Aproximei-me dele, restituída de coragem para resgatar o


homem que havia me resgatado primeiro. Que me oferecera sua
mão, mesmo quando eu era uma desconhecida em uma cama de

hospital.
— Quero cuidar de você esta noite. Dar a você boas
lembranças. — Apertei as mãos uma na outra, torcendo para eu ser

o suficiente para o seu coração ferido. — Quero cuidar de você com


meu corpo, Samuel. Será que pode aceitar isso?
Porque eu quero te tocar, amor.
Eu quero ver o sol nascer sobre os seus pecados. Só você e eu.

— ZAYN feat SIA, “Dusk Till Dawn”.

SAM

Não era um ato de ousadia qualquer. Era um ato de


exposição e entrega.

Uma declaração corajosa de confiança total.

Percebi isso quando a mulher magnífica diante de mim


apertou as mãos uma na outra, nervosa com a própria nudez que

revelava. A timidez inusitada dela, entretanto, não impediu que meu


olhar corresse por cada curva bonita sua, antes mesmo que eu

pensasse se tinha direito a isso.


Os seios fartos ganhavam certa palidez à luz do luar. Os

mamilos escuros estavam apontados na minha direção. Eretos.

Implorando pela atenção da minha boca.


Senti minha garganta, antes arranhada por lágrimas,

contrair-se em secura enquanto minha boca salivava.

Caralho. Nem em um milhão de anos eu esperaria por essa


reviravolta.

— Roxanne…

Eu estava embasbacado. Duro. De repente, quase


transtornado pelo desejo forte que vinha escondendo há tempo

demais. E não ajudou nada Roxanne apertar as coxas diante do


meu olhar. Na penumbra, eu só podia ter uma ideia vaga daquele

triângulo tentador entre suas pernas, mas isso já foi o suficiente.

Mais do que o suficiente.

Roxanne, contudo, entendeu minha observação demorada

do jeito errado. Ela deu um passo para a escuridão e abraçou a si

mesma, um pouco nervosa.


— Sei que meu corpo mudou depois da gravidez. Nada é

perfeito depois de María e…


— Não. — Dei um passo na direção dela; foi inevitável. —
Tudo em você é perfeito, Rox. É incrível.

Ela negou com a cabeça, o cabelo se misturando à

escuridão.

— Não precisa fingir, Sam. Eu tive María há dois meses.

Tenho todas as marcas de uma mãe. — Ela sorriu nervosa. — Um

pouquinho de flacidez e estrias.


— E isso só a torna mais mulher para mim. — Acariciei seu

queixo. — Uma mulher real e linda.

Roxanne pareceu aliviada ao me olhar nos olhos.

— Então você… você me quer?

— Essa não é a questão, Rox.

— Então qual é?

— A questão é que está fazendo isso para não me ver triste.


— Não. É porque quero cuidar de você. Com beijos.

O toque de inocência quando ela disse aquelas palavras…

Oh, Deus.

— Mas isso não é justo com você — insisti. — Não depois

de tudo que passou. Não deveria ter de se preocupar com os meus

males, Roxanne. Ainda não está pronta para uma intimidade assim.
— É o contrário. Sempre estive pronta para você, Sam —

disse ela, firme. Então me olhou de um jeito diferente. Vi sua


coragem voltando. Roxanne se aproximou, fechando o espaço entre

nós, e se colocou nos meus braços, minando meu autocontrole já


frágil. — Preciso de você e você precisa de mim. Acho que tudo até
aqui nos encaminhou para que fôssemos a saída um do outro.

Seu olhar era sério. Nenhum resquício de dúvida ou receio


agora. Suas palavras também formavam um cerco completo.

Como eu podia questionar quando ela tinha razão? Eu


precisava dela. A cada dia parecia que precisava cada vez mais.

Vinha ignorando meus sentimentos desde que Hannah me fizera ter


conhecimento deles, mas estava no limite.
E agora, a mulher que eu fingia não desejar, noite após

noite, me oferecia seu carinho. Como eu poderia resistir a algo


assim? Ainda mais quando eu tinha que encarar o pior do meu

passado? No momento em que me sentia mais sozinho?


— Roxanne, eu quero você — admiti. — Deus, tudo mais

pode estar confuso dentro de mim, mas essa é a minha maior


certeza. Só que eu sei…
Sei que não vou deixá-la partir tão facilmente depois de tê-la

comigo.
— Sabe o quê? — insistiu.

Que sou um egoísta apaixonado por você. Que a desejarei


ao meu lado junto com María quando tudo isso acabar, e você vai

querer, com razão, a sua liberdade tão negada desde sempre.


Mas eu não poderia falar nada disso. Já a tinha sufocado,

deixando transparecer meus sentimentos por María. Também fui


insensato, perguntando-lhe sobre seus sentimentos por mim.
Sentimentos…

De repente, ficou claro para mim a razão do meu último fio


de resistência.

Aquilo já tinha saído dos limites da paixão há muito tempo.


Deus!
— Não pense mais, Sam. Me toque. Pegue o que precisa de

mim.
Roxanne segurou minha mão. Ela tremia um pouco quando

a colocou sobre o seu seio. Também estremeci ao sentir sua pele


macia.

— Não sou uma virgem com medo. Eu também quero você.


— Quer? — Incapaz de resistir, rocei o mamilo com a palma
da mão, sentindo-a se arquear para mim. — De verdade?
— Sim — confessou, ofegante, erguendo o olhar da minha
mão para o meu rosto. — Não é apenas pela sua tristeza, Sam. É
por mim também. Pelas noites que sonho com o seu toque, desde o

dia em que o atropelei apenas de toalha.


Ri. Era o momento mais desconexo para isso, mas estava

acontecendo. Assim como aquela intimidade entre nós.


— Fui eu quem a atropelou.
— Eu o desejei. Meu corpo confiou em você desde o

primeiro toque. Eu apenas não tinha consciência disso ainda.


Nossas respirações já haviam se tornado um sussurro de

desejo, quente e intenso. Roxanne estava com os dois braços em


torno do meu pescoço, seu cabelo fazendo cócegas no meu peito,

enquanto minha mão esquerda sequer hesitara ao prendê-la contra


mim. Era como se ela fosse uma parte minha que eu precisava
encaixar para prosseguir.

— Isso iria acontecer, não iria?


Acreditava que algo dentro de mim sempre teve o

conhecimento disso. Havia um destino certo demarcado para mim


desde o momento em que conheci Roxanne.
Ela devia pensar algo parecido, porque sorriu, confiante.

— Sim — confessou.
Deixei o seio pesado com grande custo e segurei seu rosto.
Já que as confissões estavam em sessão, acreditei que também
deveria colocar as minhas na mesa.

— Então, se é assim, preciso confessar que também sonhei


em tê-la, Roxanne. Por noites seguidas. — Eu não podia lhe contar

meus sentimentos. Não podia transtorná-la com eles. Mas revelaria


os meus desejos e também as minhas verdades mais profundas. —
Mas há um problema, Rox. Eu gostaria de ser o homem gentil que

você merece, porém não sou. Você já deve ter percebido como falho

miseravelmente nisso. Então, se quiser ser o que preciso esta noite,


também precisará compreender que eu vou querer tudo de você.

Tudo com o qual venho sonhando. E não sei fazer amor, portanto,

não posso prometer que não falharei nisso se tentar.

Fui honesto e totalmente sério. Ela devia compreender


agora. Eu era um homem com um histórico de ausências quando se

tratava de amor, e Roxanne precisava de um cara melhor. Se ela…

— Eu não quero um homem gentil, Samuel. Quero você


como é. E do jeito que precisar me ter em sua cama.

Ela disse aquelas palavras com calma. Palavras de

aceitação como nunca ouvi antes.


O resto da minha resistência evaporou.
Foi o meu fim.

Eu estaria apaixonado por ela com ou sem contato físico. E


não se tratava mais de advogar por uma causa perdida, até porque

eu não era mais o advogado dela. Era apenas mais um homem

sentado no banco dos réus, com a sentença do amor pairando


sobre a cabeça. E eu a aceitava.

Meu sorriso permaneceu no meu rosto apenas por alguns

parcos segundos, enquanto eu me aproximava de vez da mulher por

quem estava perdidamente rendido.


— Então eu a terei.

ROX

Meus sentimentos, principalmente os que eu não queria

consultar, estavam tumultuados quando Sam se aproximou de mim.


O sorriso no canto dos seus lábios rígidos foi morrendo aos poucos,

e ele me beijou enquanto me envolvia no seu calor. Foi melhor do


que eu esperava. Melhor do que eu imaginava, poder beijá-lo como

eu queria. Aceitar a atração que tanto temi no início.

De alguma forma, eu sabia que aquele passo transformaria


tudo para mim. Ainda assim não consegui me importar mais com

isso, não quando tinha que cuidar do homem à minha frente. Eu

tinha mandado as ameaças de morte do Cartel para o inferno. Sam

precisava de mim. Do meu carinho. Quando ele deixou de me beijar,


explorei o seu peito nu. Experimentei sem temor algum os músculos

trabalhados da sua barriga e depois subi até tocar os mamilos

expostos que eriçaram instantaneamente.


Ele sibilou.

Nossos olhos se encontraram quando ergui o rosto.

— Ah, Roxanne…

— Você é lindo e merece ser amado, Samuel.


Os olhos dele brilharam de um jeito intenso.

As palavras pareceram libertá-lo de vez. A língua de Sam

invadiu minha boca com lascívia, aprofundando nosso beijo e


transformando meu coração em uma bateria frenética. Dessa vez

era uma carícia para consumir, para marcar. E Sam não foi o único

que se entregou como nunca. Eu também me perdi de mim nos

braços dele. Deixei minhas mãos passearem pelos fartos cabelos


escuros e descobrirem todas as coisas sobre ele que antes me

proibi descobrir.
Sam também não perdeu tempo. Suas mãos foram rápidas

em me puxar para sua cintura e me fazer montá-lo. Eu estava

completamente nua, e ele parcialmente vestido. E desde que saí da


casa onde cresci, no meio da noite, eu nunca mais senti que seguia

por um caminho tão certo.

Logo os dedos dele desciam pela minha barriga e

encontravam o meu monte de Vênus. Sam me abriu com os dedos


sem qualquer cerimônia, enquanto seus lábios ainda tocavam os

meus, o que me fez entrar em combustão.

— Sam…
— Porra! Você não pode fazer isso comigo, Rox. Não pode

já estar tão molhada para mim… — Ele me sondou com os dedos

grossos entre um beijo e outro.

Gemi e me arrepiei.
— Não pude evitar — sussurrei contra os seus lábios.

Mas quando comecei a me movimentar, ele parou de me

tocar.
— Me deixa ainda mais duro saber que seu desejo por mim

é inevitável. Mas não, não será assim, cariño. Esse momento é


precioso demais para mim, Roxanne.

Abri os olhos sem compreender sua súbita mudança.

Sam fitava o meu rosto com carinho.

— O quê?
— Quero que seja inesquecível para nós dois — disse,

paciente.

Em seguida, Sam se afastou e me colocou no chão. Ele


ficou sério como nunca, embora ainda acariciasse o meu rosto.

— Cama — ordenou de uma hora para a outra.

Pisquei confusa, ainda presa em seu olhar escuro.

— Não entendi.
— Você disse que eu poderia tê-la do jeito que preciso,

Roxanne. — Sam deu um passo para trás. — E preciso

urgentemente fazê-la sentir algo bom por um tempo incontável.


Então deite-se na minha cama agora. E fique de pernas abertas

para mim.

Meu coração atropelou a si mesmo diante do pedido que

mesclava afeto e sensualidade.


Sam não mudou a postura. Percebi que aquilo não era um

comando, apenas. Era um teste final antes do que estávamos

prestes a fazer. Ele queria saber se eu levaria até o fim. Se não me


assustaria ou fugiria. Porém, eu não tinha mais medo. Aquele

homem o tinha subjugado. E de mim Sam jamais precisaria esperar


um abandono.

A consciência da minha nudez, com seus olhos atentos em

mim, mesmo na escuridão, fez o meu rosto queimar. Eu nunca havia

sido tímida, apesar da minha vida sexual se resumir apenas ao


genitor de María. Além disso, o que vinha do olhar de Sam me fazia

arder de um jeito bom. Meu coração batia desembestado no peito

enquanto eu realizava, sem deixar de olhá-lo, o que ele pediu.


— Isso. Deite-se sobre o feixe de luz da lua — instruiu,

ainda sem se mover. — E de joelhos dobrados.

Fiz assim e pensei que fosse derreter. A forma como ele me


olhou, quando fiquei na posição correta, me aqueceu por inteira.

— Você também é linda, Rox — disse ele de um jeito

simples, quase terno. — Mas você já sabe disso. — Sam começou a

desabotoar a calça. — O que talvez não saiba é que a achei linda


desde a primeira vez em que a vi. Você mexeu comigo desde que

coloquei meus olhos em você. Quero que saiba de tudo isso. Quero

que se lembre de que é uma mulher que merece coisas boas na


vida. Que seu passado não é você.
Havia um tom diferente nas palavras dele. Um tom que
mexeu com as minhas partes doloridas e que fez minha vista nublar

um pouco.

Sam subiu na cama, ainda de cueca, e seu corpo másculo


cobriu o meu enquanto ele se encaixava entre as minhas pernas,

como se seu lugar sempre tivesse sido ali.

— Por que está me dizendo essas coisas? — Toquei seu


rosto com carinho. — Você está mudando tudo. Fui eu quem vim até

aqui para cuidar de você. Não o contrário, Samuel.

Ele afastou uma mecha de cabelo da minha testa. Na meia-

luz em que estávamos, a intimidade era devastadora.


— Só quero que se lembre disso mais tarde, Roxanne.

— Mais tarde?

— Sim. Quando eu não estiver mais por perto.


— Não estou entendendo nada, Sam.

Ele respirou fundo. Estava solene demais. Seus olhos


prenderam os meus. No entanto, em vez de me responder, Sam
procurou minha mão e a entrelaçou à sua, ao lado da minha cabeça,

desviando seu olhar para elas.


— Isso que estamos prestes a fazer vai mudar tudo para
mim. — Seus olhos evitaram os meus de propósito, permanecendo
focados nas nossas mãos. — Você e María consertaram a bússola
do meu coração, Roxanne. Agora ela está apontando para vocês.
O tumulto de emoções dentro de mim quis responder:

— Ah, Sam…
Ele estava me contando mais coisas com aquelas palavras
e com aquele olhar desviado. Porém, ele roubou qualquer

interpretação mais abrangente de mim assim que me beijou.


Preenchendo todos os espaços para que eu não pudesse pensar
em mais nada, além do calor que nascia entre os nossos corpos.

E conseguiu.
Minha mente se encheu dele. Da força do seu beijo. Do seu
cheiro e das batidas fortes do seu coração contra o meu peito.

Eu queria protestar. Queria encontrar de novo o fio daquela


conversa, porque parecia importante demais, mas ele não permitia.
— Pare de pensar, Rox — exigiu depois de deixar um rastro

de beijos molhados no meu pescoço.


— Mas você disse…

Sam sorriu.
— O que eu disse fica para depois. Não precisamos
conversar agora. Nossos corpos é que precisam. — Ele assoprou
meu mamilo direito, que se arrepiou. — É isso que você veio me
oferecer, não é? Seu carinho.
Assenti.

Mas não era apenas isso que estava acontecendo ali. Eu


tinha sido ingênua ao achar que iria para a cama com Samuel Mead

e que os meus sentimentos ficariam fora disso. Que conseguiria


pensar somente em como poderia apoiá-lo. Nós mal tínhamos
começado, e eu já tinha a certeza de que queria tomá-lo para mim

para sempre.
Sam tinha razão.
A conversa teria que ficar para depois. Eu poderia cometer

um erro terrível diante daquele olhar bonito dele para mim, e não
queria fazê-lo sentir-se obrigado a nada, depois que tudo aquilo
entre nós acabasse.

— Tem razão. É o que quero dar a você. — Afaguei sua


barba por fazer.
— Então me deixe retribuir com o meu e vamos nos ater ao

físico aqui. Sem perguntas que não podemos responder agora.


Assenti.

— É bem melhor assim.


Ele achou graça da minha resposta embolada.
— Teremos tempo depois.
— Teremos?

— Todo o tempo do mundo, se você quiser. Eu prometo.


Meu coração quis se atirar para ele, mas tratei de segurá-lo
no peito sem enchê-lo de esperanças incertas.

— Está bem. — Segurei seu rosto. — Contanto que eu


tenha você esta noite, acho que posso aceitar seus argumentos,

Sam Mead.
— Você é a esposa de um advogado, afinal.
— Esposa de mentira.

— Não depois que eu torná-la minha de verdade. — A


intensidade do olhar de Sam era mais do que eu podia aguentar.
Mas não consegui fugir, principalmente quando a mão dele alcançou

a cicatriz feia que eu carregava. — Já vi dor demais no seu rosto e


no seu corpo, Roxanne. Esta noite quero ver apenas prazer em
ambos, pela primeira vez.

— Sam…
— Estou falando demais. Facilite as coisas para nós e volte
a me beijar para que eu possa operar direito.

Eu beijei. Comecei a carícia, mas logo a sua boca a roubou


de mim. E Sam não parou mais. Como se temesse se perder outra
vez, ele me beijou até roubar meu fôlego. Depois me deu mais.

Suas mãos avançaram pelo meu corpo, explorando, tocando,


tomando. Seus beijos logo começaram a descer.
— Meus seios… — Vi-me falando de repente ao senti-lo

assoprar outro mamilo. — Estão cheios de leite. Sam, eu…


Nada o deteve.
— Não se preocupe, Roxanne. Há muitas partes suas que

tenho desejado beijar há algum tempo. — Então ele se afastou o


suficiente para sorrir. — E já tenho uma ideia fixa de por onde quero

começar. Dobre os joelhos outra vez para mim, meu amor. Você
está molhada demais contra a minha perna. Terei de resolver isso
com a boca, se quiser que dure o tempo que pretendo.

E ele sorriu como um garoto travesso antes de descer os


beijos pela minha barriga. Fiquei assistindo, vulnerável, quando ele
chegou ao meio das minhas pernas.

— Você vai gozar na minha boca, Rox — decretou. — E


então vamos recomeçar tudo. — Sem aviso, ele agarrou minha
bunda e apoiou minhas pernas em seus ombros. — Quero que

assista o que significa para mim tocá-la assim e enfim torná-la


minha.
Sam mergulhou de uma vez em mim.
Contorci-me e apertei os lençóis.
— Samuel…
Meus olhos se fecharam com força quando ele me chupou.

Nada dócil. Nada vagaroso. Do jeito que ele queria e do jeito que eu
também precisava. A língua chicoteando meu clitóris e depois
lambendo toda a minha fenda molhada.

— Sammi… — repeti, de repente perdida em todas aquelas


sensações.
— Isso, Rox, se liberte. Estou aqui para te dar isso. Abra os

olhos e veja.
Fiz o que ele me instruiu, e o que vi me deixou trêmula.
Meus quadris cavalgavam em sua direção, sem medo. E

Sam acompanhava o ritmo com a boca. Os olhos escuros estavam


abertos e vidrados em mim. A expressão de seu semblante era

maliciosa e só fez minha excitação aumentar.


De repente, eu estava desenfreada. Arqueando-me para a
boca dele, esfregando-me na curva do seu nariz em busca de um

prazer urgente. Ficou pior quando ele se afastou um pouco e


mergulhou dois dedos em mim de uma só vez.
Tentei me segurar. Aquilo não era para mim. Era para ele.
Sam compreendeu o que se passava na minha mente
dividida quando focou seu olhar em mim.

— Goze para mim, Rox. Eu preciso disso também.


Eu não queria contrariá-lo, mas não conseguiria fazer aquilo.
Não sem ele dentro de mim. A necessidade disso, de uma hora para

outra, não poderia mais ser ignorada.


Eu precisava dele. Como quem precisava de ar para
respirar.

— Não posso — confessei. — Não sem você, Sam.


Nunca sem você, reforçou minha mente sem permissão.
Todos os sentimentos que tentei ignorar para chegar até ali

transpareceram nas lágrimas que deixei cair.


Sam deixou de me tocar e se voltou para mim confuso.
— Oh, Rox. Por que está chorando? — Ele me estudou, um

tanto assombrado. — Se não quiser mais isso…


— Não. — Segurei o rosto dele. — Não é isso, Sam.

— Então diga, o que é, cariño?


Eu estava falhando em cuidar dele. E tudo porque não havia
enfrentado o óbvio antes: Sam disse que nós devíamos ir devagar,

mas eu tinha estragado tudo indo até ele e descobrindo a verdade.


Era tarde demais para controlar meus sentimentos por ele. Muito
tarde.

Como aquilo podia ter acontecido? Eu estava certa de que


meu coração estava fechado. Tinha problemas demais com os quais

lidar e tinha entrado em sua vida com a certeza de que não confiaria
em homem algum. Só que, mesmo assim, ele tinha se esgueirado e
atingido um ponto vital.

— Você também precisa de carinho — concluiu Sam um


segundo depois.
— Não, Sam. Você é o foco esta noite.

Ele negou.
— Não, Rox. Nós dois somos. — Ele me beijou com
delicadeza. — Vamos tentar isso juntos. Devagar.

Com os olhos nos meus, ele se afastou até sair da cama.


Observei-o ir até a gaveta de um móvel e mexer em algo.
Ele se vestiu com a camisinha. Quando voltou para perto da cama

outra vez, fez uma pausa.


— Milagros… — disse em um fiapo de voz. — Ele a

machucou, Roxanne? Nas vezes em que…


— Não! — Apressei-me a responder e me sentei na cama,
puxando um lençol para me cobrir. Meu passado me deixando mais
exposta que nunca. — Sam, eu fiquei grávida no final do nosso

relacionamento e depois fugi. Ele não teve chance.


O alívio em seu rosto foi nítido.
— Roxanne, olhe para mim.

Não percebi que tinha baixado a cabeça, envergonhada, até


ele me chamar.

— Você não é seu passado — repetiu o que tinha dito mais


cedo. — Vou fazê-la se lembrar disso quando estiver sobre o seu
corpo e fizermos amor.

E então ele afastou a última peça de roupa que ainda cobria


o seu corpo.
Sam era magnífico. Seu corpo nu, iluminado pelo luar da

janela, era esculpido como o de uma estátua grega. Exceto pela


parte mais máscula e rija, de um tamanho mais do que suficiente.
Não consegui afastar os olhos enquanto ele caminhava de

volta para a cama e depois pairava acima de mim.


— Você disse que não fazia amor — relembrei.
— Talvez seja diferente, se já existir amor. — Ele puxou meu

queixo e me beijou antes que eu pudesse pensar nas suas palavras.


— Talvez seja diferente porque é com você.
Outro beijo chegou e varreu todos os meus pensamentos.
Sam me deitou com delicadeza de volta na cama. Suas
mãos desceram para os meus quadris, e ele cercou sua cintura com
as minhas pernas. Senti sua ereção poderosa na minha entrada

úmida, enquanto seu olhar procurava o meu.


— Quero que olhe nos meus olhos enquanto isso acontece,
Roxanne. Enquanto tiro todas as suas marcas ruins. Toda a dor que

ele te causou.
E ele entrou em mim.
Gememos juntos.

O prazer da união me dominou com tanta força que precisei


morder o lábio por um instante.

Sam não abandonou meus olhos quando começou a se


mover. Primeiro lentamente. Conhecendo cada espaço dentro de
mim e se tornando íntimo. E então ganhando ritmo. Mais rápido e

mais fundo.
— Como está, Rox?
Arranhei suas costas molhadas de suor com força, mas ele

não reclamou.
— Preciso que seja mais forte, Sam.
— Quer o meu pau assim dentro de você?

As estocadas dele ficaram mais duras e cruas.


— Isso… Me fode assim…
Senti meus músculos o apertarem mais enquanto

entrávamos em nossa dança sensual. Sam descendo, e meus


quadris subindo para encontrá-lo. De repente, a mão grande dele
estava de volta ao meu sexo e encontrou o clitóris inchado. Seu

dedão o pressionou com força exata antes de friccionar de um jeito


que me fez gritar antes que sua boca cobrisse a minha.
— Samuel! — falei ainda dentro da boca dele, enquanto o

deixava me ter em todos os sentidos.


Não sobrou mais nada de ruim dentro de mim depois disso.
Cada sussurro de paixão e cada beijo trocado entre nós foi

substituindo o vazio, até que não restasse nada além dos meus
gemidos intensos e do rosnar baixo dele contra a pele do meu

pescoço.
— Faça como queria. Goze empalada no meu pau,
Roxanne. Sou seu — sussurrou contra o meu ouvido.

E foi assim que cheguei ao clímax. Foi assim que me


entreguei.
E assim também descobri que havia me apaixonado de

verdade pela primeira vez na vida. Justamente por um homem que


não poderia ficar.
Eu não poderia te deixar em meu coração
Mas agora minhas defesas desmoronaram.

— ALEXANDRA BURKE, “Overcome”.

SAM

— Eu estraguei tudo, não foi? Não consegui ser o que você


precisava esta noite. — A voz de Roxanne saiu sussurrada contra o

meu peito. Ainda estava trêmula depois do nosso encontro. — Em

vez de conseguir cuidar de você, eu acabei o coagindo a fazer amor


comigo.

Ri. Mais uma vez não era o melhor momento para isso, mas

aconteceu. Era difícil impedir o riso com a felicidade genuína que eu


sentia por tê-la nos meus braços.

Então era assim que era amar de verdade? Uma alegria que
parecia não compreender limites?

Eu gostava da sensação. Gostava muito.

— Você está achando graça? — Roxanne se inclinou no


meu peito e ergueu o rosto para mim.

Nós estávamos nus na minha cama. Sem cobertor e sem

reserva alguma um do outro, apenas com os raios de luar a nos


cobrir. Era magnífico. Mesmo que o sexo entre nós tenha acontecido

aos tropeços e de forma um tanto quanto complicada, eu me sentia

bem como nunca. Também sabia agora que minha intuição estava
correta quando cheguei. A presença de Roxanne aqui no meu

quarto tinha dividido a minha vida em antes e depois.


— Estou achando graça de você acreditar que poderia me

coagir a fazer amor.

Ela corou um pouco quando acariciei sua bochecha. Como

se não tivéssemos acabado de compartilhar intimidades poucos

momentos atrás.

— E não foi o que aconteceu?


— Não. O que aconteceu foi que você veio me oferecer uma

cura, mesmo ainda estando quebrada, Roxanne. Mesmo também


precisando de cuidados. Então fomos exatamente aquilo que um
precisava que o outro fosse. — Sorri para ela, tentando animá-la. —

Mas claro, acho que podemos ter performances melhores em um

futuro bem próximo. Vamos acreditar nisso.

Roxanne finalmente sorriu. O verde no seu olhar se

tornando brilhante.

— Então teremos mais disso… — Ela deslizou a mão pelo


meu peito. — Em breve?

Ri outra vez.

Roxanne não era tímida, mas estava claro que sua

experiência sexual era limitada, isso explicava toda aquela inocência

que transparecia ao me olhar.

— Com certeza, senhora Mead. — Fiquei sério e concentrei

meu olhar nos seus seios expostos, antes de voltar ao seu rosto. —
Você só precisa me dar alguns minutos.

Acariciei suas costelas e estiquei a mão até encontrar sua

cicatriz.

Ela baixou o olhar.

— É uma cicatriz horrível, eu sei. — De repente, ela recuou

um pouco. — Deve te dar nojo.


Não permiti que ela se afastasse e a olhei firme.
— Nenhuma parte sua poderia me causar aversão, Rox. —

Suspirei. — Mas sinto que vou passar muito tempo querendo sarar
tudo que ele machucou em você.

— E quanto a você?
Franzi o cenho.
Roxanne se empertigou, ficando séria de repente. Ela se

afastou do meu peito, e eu lamentei a perda de seu calor enquanto


ela apoiava as costas na cabeceira acolchoada da cama, ao meu

lado. Ergui-me e imitei seu movimento.


Qualquer que fosse a conversa que estivesse por vir,

percebi que seria muito séria.


— Sei que não devia ter perguntado ao seu pai sobre o que
se passou entre vocês e peço desculpas por isso, Sam.

— Você não tem que se desculpar, Rox — falei depois de


refletir um pouco. — Na verdade, sou eu quem precisa fazer isso.

Eu agi mal. Eu trouxe vocês duas para cá para deixá-las seguras,


mas devia ter contado a verdade sobre o relacionamento difícil com

o meu pai.
Roxanne estendeu a mão e cobriu a minha na cama.
— Você acreditou em mim antes de tudo, Samuel. Também

esperou para ouvir a minha versão dos fatos. Gostaria de ouvir a


sua, se quiser me contar.

A proposta inusitada me surpreendeu.


Eu queria contar a minha versão dos fatos? Uma coisa era

certa, eu nunca havia falado do meu pai para ninguém desde que
saí do Texas. Peter sempre soube o básico. Entretanto, eu nunca

havia tirado os esqueletos do armário. Nunca desenterrei todos os


sentimentos que aprendi a ignorar durante anos.
Mas era Roxanne que queria ouvir, então…

Então…
Então eu queria contar.

Respirei fundo e apertei um pouco a mão dela antes de


começar a tomar um caminho mais terrível do que o de volta ao
Texas. O caminho de retornar às minhas memórias.

— Eu deixei esta fazenda quando tinha dezoito anos, Rox.


— Parei, sentindo uma necessidade súbita ao olhar para a mulher

ao meu lado. — Acho que prefiro tê-la nos meus braços antes de
continuar com isso.

Roxanne assentiu com um brilho emocionado nos olhos. Em


seguida, fez o que pedi e me abraçou. Sua cabeça repousou sobre
o meu peito, e eu a puxei de imediato junto a mim. Era bem mais

tranquilizador assim.
— Antes disso, eu era um garoto solitário. Não conseguia
sequer ter amigos na escola que frequentava, porque era muito
quieto. Eu convivia com o medo absurdo de desagradar as pessoas

assim que tentasse estabelecer algum contato, já que meu próprio


pai parecia ficar chateado com qualquer coisa que eu dissesse ou

fizesse.
Roxanne me apertou mais.
— Eu também era quieta na escola. Principalmente depois

que meu pai morreu. Foi por isso que comecei a ler muito.
Assenti.

— Temos isso em comum, então. Livros não te julgam ou


abandonam. Por isso me agarrei muito a eles. Comecei a ler

Stephen King nessa época. Eu costumava acreditar que ler sobre o


medo me faria perder o medo de muita coisa.
— Como do seu pai?

— Dele. Do escuro desta casa. Dos pesadelos que eu tinha


nas noites frias, vendo uma mãe que me rejeitou desde o primeiro

instante…
Minha voz embargou na última frase.
— Ah, Sammi…
Ainda assim, decidi continuar falando sobre coisas que
jamais me permiti dizer em voz alta antes.
— Eu sonhava com a minha mãe quando morava aqui. Não

cheguei a conhecê-la, mas isso não me impedia de sonhar que ela


poderia me querer, em vez de ter me vendido em um acordo. No

acordo de divórcio mais caro da história do estado até hoje.


— Isso teve algo a ver com a carreira que você escolheu?
— sussurrou ela contra o meu peito.

— Teve tudo a ver — confessei enquanto acariciava o braço

dela. — Roxanne, eu cresci bastante ressentido com qualquer ideia


de família e filhos. Mas mesmo odiando a ideia, eu queria me vingar

de quem me impôs esse ódio. Com Wallace foi mais fácil, eu saí do

rancho e prometi não voltar mais. Também me separei do meu

sobrenome por parte de pai para renegá-lo. Quanto à minha mãe…


Bem, eu me tornei um advogado de divórcios que defendia apenas

homens. Eu quis puni-la nas esposas dos meus clientes ricos, já

que nunca poderia conhecê-la para puni-la com a minha indiferença


também.

Eu não sabia como aquilo me tornava horrível, até dizer em

voz alta o que eu fazia. Até aquele momento, eu tinha acreditado


que era diferente do meu pai. Talvez tivesse herdado algumas
coisas, como o fato de não conseguir me ligar emocionalmente a

ninguém. Entretanto, minha maior mágoa com Wallace Mead vinha


do fato de ele ter descontado em mim a frustração de ter sido

enganado.

De ter sido abandonado.


Mas agora eu descobria que vinha fazendo o mesmo. Vinha

descontando meus ressentimentos em pessoas que não tinham

qualquer culpa. Eu nunca me importei com nenhuma das esposas

que poderia estar prejudicando, independentemente do caráter


delas. Apenas fazia com que pagassem pela dor latente que me

acostumei a carregar.

Foi como levar um soco forte na boca do estômago.


Afastei Roxanne de mim, de súbito.

— Sam? Sam, o que está acontecendo?

Levantei-me nu.
— Eu sou igual, Roxanne.

Roxanne se sentou na beirada da cama sem entender.

— Do que você está falando, Sammi?

— De mim e do meu pai. Do ciclo vicioso de abuso que é a


minha família. — De repente, María veio à minha mente. — Deus, e

do que não quero para María. Achei que podia ser… — Minha
garganta travou com a dor que chegou de uma vez. — Achei que

podia ser quem ela precisa, mas não posso. Eu sou como Wallace.

Eu também passei anos descontando meus ressentimentos em


pessoas que nunca fizeram nada para merecerem isso. Mais

precisamente, nas esposas dos outros homens, com as quais posso

ter sido injusto. Provavelmente muito injusto. Deus do céu, eu

ganhei milhões sendo justamente como a pessoa que mais detestei


na vida…

Quis escapar. Fugir do quarto e da minha descoberta

angustiante. Todavia, uma mão firme me capturou pelo pulso e me


fez voltar a sentar na cama.

— Escute, Samuel Mead. — Roxanne segurou meu rosto.

— Você não é seu pai. Você não é sua dor. E aprendi com você que

certas coisas valem para os dois lados: Então você não é o seu
passado.

Eu me sentia perdido demais até para reagir, mas Roxanne

não desistiu.
— Venha.

Com carinho, Roxanne me puxou para que eu voltasse a me

deitar. Mas dessa vez foi ela quem me teve em seus braços. Deixei-
me ser envolvido por seu corpo quente e macio. A sensação de ser

aninhado por ela foi a coisa mais doce que já senti na vida.
— Você não precisa seguir por esse caminho para sempre,

Sam — discursou com delicadeza. — O rancor que guardamos

pode envenenar o coração, mas se você conseguiu enxergar isso,


agora significa que ainda tem tempo.

— Tempo?

Senti quando concordou com a cabeça enquanto afagava os

meus ombros.
— Sim. Tempo de ser você mesmo e não a repercussão de

uma série de erros. Se não quer ser como seu pai…

— Eu já sou, Roxanne.
—Então pare de ser, Sam. Ou pare de fazer o que acha que

o tornou igual. As pessoas pensam que é preciso uma receita

milagrosa para uma boa vida, mas se há algo que aprendi

recentemente, foi que se sua vida se tornou indesejável, apenas


você mesmo pode mudá-la.

— Rox, eu…

— Não é ruim percebermos no meio do caminho que


pegamos a direção errada. Se você der meia-volta, pode fazer
diferente e encontrar pessoas que te ajudem nisso. Como eu

encontrei você.

Não parecia ser tão simples. Nunca era fácil encarar as

próprias falhas, e de repente eu tinha anos de coisas para rever.


Anos de julgamentos mal executados para processar. Mas Roxanne

dizia que acreditava em mim. E aquilo valia muito.

— Se precisar de uma nova vida, Samuel, simplesmente


agarre-se a uma. Não perca tempo julgando a si mesmo. É o que

tenho tentado fazer também.

Virei-me para ela após aquela frase. Não disse nada.

Apenas a abracei e a beijei. Com todos os sentimentos que tinha em


meu coração e com o eco de suas palavras na minha mente. “Se

precisar de uma nova vida, simplesmente agarre-se a uma.”

Talvez eu não tivesse direito àquilo, afinal. Mas e daí? Eu


não precisava pensar nisso agora. Não quando a mulher que mexia

com meu coração me oferecia carinho, em vez de julgamento.

E era dela que eu precisava de verdade.

— Sam? — Ela pareceu um pouco confusa quando se viu


embaixo de mim.

— Os minutos já passaram. Acho que já podemos corrigir

nossa performance.
Eu sabia que era uma fuga momentânea. Ela também. No

entanto, Roxanne apenas sorriu e acariciou meus cabelos.


— É só me dizer por onde começar, cariño.

Mais tarde, entretanto, não pude fugir. Não depois de espiar

María. Nem de olhar Roxanne dormir tranquila ao meu lado. De

repente, eu soube exatamente a vida que queria agarrar. Soube


também que não desistiria dela.

E com isso, uma ideia se formou para que eu fosse capaz

de proteger para sempre tudo o que mais me importava.

ROX

— Você tem companhia.


Um beijo nos meus lábios e então um sussurro gentil no

meu ouvido. Logo depois, houve também muxoxos infantis. Abri os

olhos e vi María de banho tomado e se agitando ao meu lado na


cama. Sam estava sentado perto dela e sorria. Seus cabelos
estavam molhados como os da minha filha.

— Preciso dizer, no boletim desta manhã, que ela tinha cocô

até na nuca. Terminei sujo até a testa também, e nós dois tivemos
que tomar um banho para não a assustar quando acordasse.

María soltou um gritinho, como se protestasse.

— Ah, é? Agora você vai dizer à sua mãe que estou


mentindo, pardalzinha? — Ele abriu um sorriso amplo que eu não

via desde que chegamos. — Teremos de falar sobre mentiras

depois. Podemos ter algumas meias-verdades, mas só se você

entrar para a faculdade de Direito em Havard, como eu.


Ri e me sentei na cama para envolver minha filha nos

braços.

A neve que caía do lado de fora da janela era lenta e bonita.


— São apenas… — Procurei o relógio no aparador dele,

que passei tempos encarando na noite anterior. — São apenas sete


da manhã e você já está planejando o futuro dela em Harvard? —
brinquei, porém, a testa de Sam se enrugou de verdade.

— Dezoito anos passam mais rápido do que se pensa. E


nunca é cedo para falar de uma universidade exigente como
Harvard. — Sam se curvou e beijou a testa de María. — Sebastian
disse que não posso sair muito, mas vou à cidade com Wallace,
para comprar coisas que você e María precisam. Andei
negligenciando o nosso estoque de fraldas, e não confio em Wallace

para saber sobre condicionadores femininos.


Foram tantas informações novas que senti meu cérebro dar
uma volta.

— Será que eu fui dormir com um homem e acordei com


outro bem diferente? — Balancei María, que agora parecia estar
cada vez mais interessada nas próprias mãos. — Você disse que vai

à cidade com seu pai?


Ele nem queria vê-lo, mas agora estava prestes a aceitar a
sua companhia?

— Sim. Wallace tem negócios lá, e eu preciso aproveitar a


oportunidade — explicou Sam, depois de ajudar María a desprender
a mão do seu próprio cabelo. Em seguida, seus olhos encontraram

os meus. — Não queria deixá-las aqui, mas não será muito seguro
nem mesmo para mim, e o rancho conta com proteção.

Segurei o rosto dele.


— Se não é seguro, você não deve ir, Sam.
Ele beijou minha mão.
— Não se preocupe. Vou ficar bem. Austin é grande o
suficiente para que eu passe despercebido em um Walmart
qualquer. — Sam redirecionou minha mão para os seus cabelos,

pedindo um carinho. Acabei sorrindo e cedendo. — Além disso,


pensei no que você me disse, depois que fizemos amor na noite

anterior.
— Pensou no que falei sobre repetirmos a noite passada?
— Será que eu dormi com uma mulher e acordei com outra

mais espertinha esta manhã? — parafraseou. — Você está linda, e


sem dúvida mais livre. Eu também me sinto assim. Acho que a noite
mudou muitas coisas para nós.

— Sim — concordei, emocionada.


Sam também tinha emoção nos olhos, porém, pigarreou:
— Ontem você me disse que não sou meu passado —

reforçou.
— Você me disse isso primeiro.
— Sim — anuiu. — E às vezes precisamos ouvir outra

pessoa falar nossas próprias palavras para entendermos o peso


delas. Você me fez enxergar isso ontem à noite, Roxanne. Mas a

verdade é que o meu presente também não vinha sendo dos


melhores. Ao menos, não até você e María chegarem na minha
vida. Por isso decidi que, apesar de estar de volta a essa casa e
sem saber como lidar com o meu passado, eu não posso mais viver

preso nele. Nenhum de nós pode mudar o que passou, mas ainda
há tempo para consertar o presente.
Parecia que Sam havia tomado uma grande decisão. Suas

palavras e seu olhar revelavam parte disso, mas eu não estava


certa se gostava da mudança que via.

— O que você… Sam, seu amigo Sebastian disse alguma


coisa? — Lembrei-me de que ele tinha citado seu nome um pouco
antes e que eu havia deixado passar. — Você disse que me contaria

se ele dissesse. Disse que o veríamos juntos quando ele chegasse


ao Texas. Não é sua responsabilidade lidar com Juan. É minha, e
quero fazer isso, e…

Ele não me deu chance de terminar o discurso. Sam se


levantou e beijou meus lábios novamente.
— Discutimos isso depois, Rox. Preciso ir agora. O café já

está posto para você e deixei fórmula preparada para María, caso
ela recuse o seio, como faz às vezes pela manhã. A arrumadeira,
Magda Martinelli, vai ajudá-la se precisar de alguma coisa, enquanto

eu estiver fora. — Sam suspirou depois de acariciar os cabelos de


María. Era um gesto que ele fazia sempre. Mas, de repente, meu
coração batia com temor. — Não vou mais deixá-la sozinha,

Roxanne. Posso ter demorado para aprender essa lição, mas


aprendi. Prometo que vou me esforçar para ser um homem melhor a
partir de agora. Para vocês duas.

E com isso, ele se despediu.


Mas, infelizmente, a sensação temerosa dentro de mim não
partiu. Ficou pior.

— Ah, María, o que a sua mãe fez agora? O que Sam está
planejando fazer por nós?

María também olhava na direção da porta por onde ele


havia saído.
Talvez eu houvesse errado ao procurá-lo na noite passada.

Talvez ele houvesse percebido meus sentimentos. E se Sam os


correspondesse, ao menos um pouco, eu poderia tê-lo empurrado
em uma direção irreversível.

Minha filha ficou inquieta, tal qual meu peito estava.


— Tudo bem, mi hija. Não se preocupe. Eu não vou permitir
que nada aconteça ao nosso Sammi — decidi. — Ficarei de olho

nele.
Eu não o deixaria simplesmente planejar e executar o que
bem entendesse, sob o preço que estivesse disposto a pagar,
apenas para cuidar de nós.
Sam não era o único que tinha o direito de proteger quem
amava.

Eu também tinha. E lhe demonstraria o quanto poderia ser


digna disso.
Tudo do qual eu estava fugindo
É tudo que preciso para me salvar.

— ALEXANDRA BURKE, “Overcome”.

SAM

Eu sabia o que precisava fazer desde que entrei naquela


camionete com Wallace, mas isso não tornava nada mais fácil.

Muito pelo contrário. A tensão palpável entre nós também não

ajudava. Era mais do que complicado começar uma conversa que


vinha sendo evitada, ao menos, há trinta anos. Nos últimos dois

anos, em especial, por mim.


— Você poderia ter usado o outro carro, Samuel — pontuou

Wallace. — Essa velharia não faz o seu tipo. Vi uma matéria com
uma foto dos seus carros esportivos.

A picape vermelha dos anos setenta em que estávamos, na

verdade, tinha sido um sonho latente quando eu era adolescente e


imaginava como poderia ser ter um pai que me ensinasse a dirigir

nela.

No entanto, eu sabia que ele também estava questionando o


fato de eu estar ali, aceitando sua companhia enquanto ele dirigia

por uma autoestrada do Texas.

— Vi uma matéria sobre seus garanhões árabes também —


rebati, lembrando-me da matéria em que tinha me esbarrado no

jornal, há alguns anos. Era melhor do que falar sobre o assunto do


qual eu não poderia escapar, mas para o qual ainda não me sentia

preparado. — O rancho continua como antes, economicamente

falando?

Senti os olhos dele em mim. Provavelmente surpreso por eu

estender o assunto.

Não o olhei de volta.


Ouvi quando fungou antes de continuar.
— Bem… — A voz de Wallace falhou, mas ele pigarreou,
obstinado, antes de prosseguir. — Não trabalhamos mais com

cavalos árabes. Agora trabalhamos com a raça de cavalos Quarto

de Milha, e a partir dela desenvolvemos a nossa própria. Os cavalos

King’s Ranch.

A última informação me fez olhá-lo de forma automática.

— Exatamente como eu costumava me referir aos cavalos


quando era criança? Como cavalos “Rancho do Rei”?

Wallace assentiu.

— Eu me lembrei disso quando os batizei.

O sorriso dele se alargou quando deixou de fitar a estrada

para me olhar.

Virei-me, sem conseguir olhá-lo por muito tempo. Ainda

doía. Eu esperara muito por uma aprovação como aquela, anos


atrás. E apesar de ter descoberto, na noite anterior, que “quem sai

aos seus não degenera” e ter de reconhecer nossas semelhanças,

eu não me sentia mais próximo de sentir emoções melhores com

Wallace ao meu lado.

“Você não precisa seguir por esse caminho para sempre,

Sam. O rancor que guardamos pode envenenar o coração, mas se


você conseguiu enxergar isso agora, significa que ainda tem tempo.”
As palavras de Roxanne me apoiaram.

Torci para que ela estivesse certa quando passamos por um

marco do Dust Bowl[5] na estrada. O memorial indicava que uma


casa ali havia sido engolida por uma das terríveis tempestades de

areia que assolaram o estado entre os anos de 1930 e 1940. Eu já


tinha lido a placa esculpida em pedra, nos meus anos escolares, e
sabia que a família dona da casa havia sobrevivido às duras

sentenças de uma vida. Gente do Texas.


Como eu também era.

“Significa que ainda há tempo.”


Não havia como saber se funcionaria, mas, se aquela

poderia ser a chance de Roxanne e María, eu precisava tentar:


— Eu preciso da sua ajuda — confessei, tentando manter
toda atenção na estrada à frente. — Estou com problemas sérios. E

preciso de toda a ajuda que conseguir reunir.


— Ajuda?

Era falar depressa ou não falar nunca.


— Roxanne e María estão correndo perigo. Risco de vida.
— O quê?

Wallace deu um arranco no motor da picape, freando-a de


qualquer jeito no meio da estrada ladeada por tufos brancos de
neve.

— O que você está dizendo, garoto?


— Estamos no meio da estrada — apontei.

— Que se dane, ninguém anda saindo das fazendas com


esse tempo. O que você me disse é mais importante. Como sua

mulher e filha podem estar correndo risco de vida, Samuel?


Não havia mais como evitar encará-lo.
Os anos tinham nos transformado em dois estranhos,

entretanto, eu continuei. Pronto para entregar tudo o que eu mais


queria proteger nas mãos dele.

— Eu tive uma razão para voltar para casa. E não foi porque
Roxanne quis conhecê-lo. Ela apenas estava me protegendo
quando disse aquilo.

O semblante de Wallace endureceu.


— Conte-me o que está acontecendo, Sam.

— Antes, preciso avisar que se souber de tudo o que sei,


assumirá riscos enormes. A ameaça que temos em nosso encalço

não é uma brincadeira.


Tive de alertá-lo, porque apesar de todo o passado
conturbado, eu sentia que era o correto a se fazer.

— Você também está correndo perigo.


Não era uma pergunta, porém, assenti mesmo assim.
— Então conte-me o que está acontecendo, filho. Eu
assumo as responsabilidades, como já deveria ter feito há muitos

anos.
Senti uma ardência atrás dos olhos, mas a bani. O momento

não era propício para nada de cunho tão emocional, e o foco era
configurar, com a ajuda de Wallace, o plano que concebi para
proteger as duas mulheres da minha vida. Eu tinha pleno

conhecimento disso. Ainda assim, não pude evitar a pergunta que


simplesmente saltou de mim.

— Por que, depois de tanto tempo? — Wallace ficou confuso


com a súbita mudança de assunto. Insisti: — Por que você começou

a me procurar depois de todos esses anos? O que o fez mudar de


ideia sobre o fato de eu ter sido o maior engano da sua vida,
Wallace?

Não sei como consegui manter todas as palavras intactas,


mas no final estava feito.

Wallace, por outro lado, pareceu estremecer. As mãos


tremeram no volante. As rugas em torno dos seus olhos derreteram
quando água de lágrimas as preencheu.
— Meu maior engano foi ter feito você acreditar em uma
mentira tão cruel por todo esse tempo, Samuel.
— Você disse que eu era sua vergonha.

A última palavra falhou, e tive que cerrar os punhos contra o


banco do carona.

— Nunca foi você, garoto. Eu tinha vergonha de mim. Das


minhas falhas. Mas isso não era desculpa, eu devia ter insistido
mais e ido atrás de você. Pedido seu perdão e deixado que

descontasse todo o mal que fiz você carregar em mim de volta. Mas

então eu senti repulsa de quem me tornei para você e pensei que


poderia magoá-lo mais. Demorei mais algum tempo para perceber

que precisava vencer isso também. E consegui.

— E esperava que eu o aceitasse em algum momento?

Sinceramente, eu não sabia se conseguiria. Nem mesmo


em nome do futuro diferente que eu ansiava ter agora, longe de todo

o rancor do meu passado.

— Não. Não esperava — disse ele, e vi a honestidade clara


em seus olhos azuis. — Mas você é a única coisa boa que tenho de

fato neste mundo, Samuel. Então prometi a mim mesmo que lutaria

por você até que a morte viesse me buscar. Era a única prova de
amor que eu poderia oferecer ao meu único filho e a quem

machuquei tanto.
Senti as lágrimas fincando suas garras na minha garganta.

Precisei voltar a olhar atentamente para a estrada.

Wallace não me pressionou, e nosso silêncio cheio de


significado imperou dentro da velha camionete de fazenda por

algum tempo.

— Não quero que se preocupe em me perdoar, Sam. Perdi

tempo demais e sei que não há conserto para o que fiz. — Ele
mesmo quebrou nosso pacto tácito de silêncio, algum tempo depois.

— Mas quero que saiba que pode contar comigo agora. Ficarei do

seu lado, não importa o que eu precise enfrentar para isso.


Assenti com um gesto rígido.

Ao menos, aquilo era exatamente o que eu necessitava

ouvir.
O apoio que eu precisava.

— Ótimo, Wallace. — Foi tudo o que consegui emitir.

Wallace girou a chave de volta na ignição. Suas mãos

agarraram o volante com firmeza.


— Agora me conte o que o fez fugir para o lugar que jamais

desejou voltar com as garotas que ama?


Sebastian Knighton não costumava ser condescendente
com nada. Nas poucas vezes em que deixava a sede do seu

império em Manhattan e era visto no escritório de Washington, ele

havia deixado isso bem claro ao restante dos seus subalternos.

Apenas um simples olhar ou um gesto elegante das mãos bastava


para silenciar qualquer um que ousasse falar sem a sua permissão

em uma sala de reuniões.

Ninguém sabia muito sobre seu passado, exceto que ele


abandonara a Inglaterra muito jovem e atravessara o oceano com

seus outros dois irmãos, que agora também possuíam carreiras de

sucesso nas Américas. Um como estrela de Hollywood e outro como


um empresário multimilionário. De qualquer forma, eu não precisava

saber muito sobre quem era o homem que conhecia o lado

deplorável de boa parte da elite do país e jamais temia usar essa

vantagem. O que eu precisava era dos seus punhos de aço, para


assim pegar pela garganta o desgraçado que queria machucar a

minha mulher e a minha menina.


Com seus óculos escuros e vestido com o usual terno preto,

Sebastian não acenou quando desci da velha Chevrolet para a


calçada gelada de uma cafeteria qualquer de Austin. Ele continuou

lendo seu jornal e tomando sua bebida, embora eu soubesse que já

tinha me visto pelo vidro e que cronometrava o tempo que já


despendia comigo. Se o meu tempo valia seu peso em ouro, o de

Sebastian valia gemas de diamantes.

Wallace fechou sua porta em seguida e me olhou por cima

do teto lustroso do veículo.


Ele sabia de toda a verdade agora. Desde o momento em

que encontrei Roxanne prestes a dar à luz nas ruas de Washington.

Ainda era visível o abatimento em sua expressão, mas ele não


desistira de me ajudar.

Ainda.

— É aqui que você deve decidir — avisei.

O semblante dele se tornou concentrado, de súbito.


— Tudo já está decidido, Samuel. — Pela primeira vez, não

vi receio algum enquanto ele me encarava. — Não vou deixar você

e sua esposa correrem mais perigo. Muito menos minha neta.


— Ela não é sua neta. — Foi difícil empurrar aquelas

palavras para fora, mas eu fiz assim mesmo.


— Se você a ama como vejo que ama, então é, sim. Ela

pertence a esta família e é minha neta.

A defesa impetuosa me pegou desprevenido. Era de María

que ele falava, mas aquilo pareceu estender-se a mim de alguma


forma.

— Vamos encontrar o seu amigo.

Anuí. Não tinha tempo e nem vontade para explanar


emoções depois daquela conversa pesada durante o trajeto. Era

hora de voltar ao lado prático e crucial da coisa: proteger minhas

garotas e dar um fim no maldito Juan Milagros.

— Knighton — falei depois de parar diante da mesa.


Sebastian não levantou os olhos de seu jornal.

— Se espera por ajuda confidencial em seu esquema

perigoso, não devia ter trazido um terceiro membro desconhecido


para esta conversa, Mead.

— Ele não é um desconhecido. Esse é Wallace Huntington

III.

Isso tirou sua atenção do jornal.


— Seu pai.

Ele sabia, claro. O podre que qualquer um com bolsos

cheios de dólares tentasse esconder sempre acabava nas mãos de


Sebastian.

Nós não éramos amigos. Éramos colegas de trabalho e


bons no que fazíamos respectivamente dentro do mundo jurídico.

Entretanto, quando liguei para Sebastian, pouco após minha

cobertura ser incendiada, e disse que precisava proteger uma mãe

desesperada para também proteger sua filha, ele simplesmente me


aconselhou e me assegurou ajuda. Sem questionamentos. Sem

julgamentos.

Naquele momento, ele fez o mesmo quando ignorou tudo o


que provavelmente já conhecia sobre o meu histórico e disse

apenas:

— Sentem-se.
Wallace e eu tomamos nossas cadeiras. E somente nesse

momento eu me concentrei no lugar onde estávamos. Era uma

“cafeteria” estranha. Escura, com carpete vermelho, fotos de

paisagens de duzentos anos atrás e pessoas fumando charutos,


mesmo sendo cedo demais.

— É um pub inglês — explicou Sebastian depois de notar

meu olhar. — Pessoas não inglesas, em geral, não se sentem muito


à vontade ao frequentá-lo. Estaremos seguros de olhares curiosos

ou possíveis sentinelas do cartel.


Sebastian fez um gesto para o garçom. Nós ficamos em
silêncio até que ele voltasse com cervejas. Quando o homem

franzino se afastou, entretanto, ninguém tocou na bebida.

— Enquanto estive em Londres — prosseguiu Sebastian,


num tom que apenas nós poderíamos ouvir. — Eu mandei homens

investigarem o Cartel Milagros. O homem que você quer, Mead, é

escorregadio e letal como um punhal nas garras de um criminoso.


Ele trabalha com ceifadores silenciosos de Tijuana e tem industriais

poderosos e biltres de colarinho branco o protegendo dia e noite.

Não será fácil detê-lo.

Eu sabia disso. Claro que sabia. Mas ainda assim não


consegui evitar ficar irritado com o tom dele. Ele tinha vindo de

longe para me dar a porra de uma notícia que eu já tinha? Era óbvio

que eu reconhecia que não bastaria uma armadilha de pombos para


apreender o líder de um cartel mexicano.

— Se você está caindo fora, não deveria ter me enrolado


por tanto tempo, Knighton. Ou me prometido ajuda.
— Sente-se e pare de chamar atenção, Mead.

— Não posso perder mais tempo. — Não levantei a voz um


tom sequer, mas fui direto. — A mulher que eu amo está correndo
perigo a cada minuto que passa. Minha María corre perigo. Eu
posso perder tudo, Knighton. Será que consegue entender o que
isso significa para um homem como eu, que jamais teve qualquer
coisa?

Sequer me importei que estivesse externalizando coisas que


jamais me atrevi antes em um pub com cheiro de tabaco. E as
palavras sussurradas naquele tom pareciam carregar toda a

intensidade que sempre fingi não enxergar.


Deus, eu não teria mais nada. Não restaria mais nada para
mim se eu falhasse com Roxanne e María.

Se tudo fracassasse, eu aceitaria de bom grado ser


perfurado pelas balas de Milagros.
Apenas não fui sugado pelos meus pensamentos porque

Sebastian me surpreendeu com suas palavras:


— Eu entendo, Sam. — E, pela primeira vez, seu rosto
perdeu a crueza de sempre. — Entendo que quer proteger as

pessoas que ama e jamais ousaria debochar dos seus sentimentos.


Respeito-os, e por isso estou aqui para ajudá-lo.

— Meu filho, por favor. Acalme-se.


Wallace colocou uma mão sobre a minha, que eu apoiava
na mesa, e acabei me sentando depois disso, afastando sua mão

em seguida.
Sebastian pigarreou.
— Como eu dizia, Mead, não será fácil, mas não é
impossível.

— Deve haver formas de traçar uma estratégia — concluiu


Wallace.

Na verdade, eu tinha pensado em uma. Mas a tinha


empurrado para o fundo da minha mente diante da conversa pesada
com Wallace e, depois, com as palavras insensíveis de Sebastian.

Percebi que estava sendo levado pelas minhas emoções no pior


momento possível.
Era hora de usar a frieza que sempre foi uma característica

minha e passar por cima dos rastros de desespero.


— Eu pensei em algo. — comuniquei.
— Diga. — Sebastian afastou sua cerveja.

— Considerei uma armadilha.


— Não é a ideia mais original — disse Sebastian,
visivelmente insatisfeito.

— Pode não ser, mas não estou falando de sitiar os galpões


onde Milagros faz os seus negócios. Estou falando de uma

armadilha com isca.


O olhar de Sebastian se aguçou em uma aprovação
silenciosa.

Wallace demorou um pouco mais de tempo para entender.


— Espere, Samuel. Você está propondo que…
— Que servirei de isca para Juan. — Encarei-o com firmeza.

— Assim vamos obrigá-lo a sair da toca em que se esconde.


Sebastian assentiu. Seus olhos concentrados, como se ele

já planejasse alguma coisa detalhadamente.


— Ele incendiou sua casa, um ato nada sutil para um
homem que sempre se manteve bem escondido. Então podemos ter

boas chances de que isso funcione, caso ele esteja fora de si, como
parece estar. Uma armadilha com elementos certos pode ser o
caminho mais eficiente, e com os agentes da DEA, sem dúvida,

podemos montar alguma coisa.


— Samuel. — Wallace firmou uma mão nos meus ombros.
— Você me pediu para ajudá-lo… Quer que eu o ajude a se matar?

— Não. Quero que me ajude cuidando de Roxanne e de


María, se algo acontecer comigo durante um plano assim. Quero
que me prometa que elas terão seu apoio em minha falta.

— Não! — Wallace afastou-se, negando. — Não vou ficar


quieto escondido, apenas observando meu filho se arriscar. Se você
vai para uma armadilha, devo ir com você.

— Milagros não vai se interessar se a armadilha for


descuidada — interveio Sebastian. — Ele vai precisar acreditar que
encurralou somente o que deseja pegar. Deve ser uma isca exposta

e atraente.
— Samuel, o que você está me pedindo é terrível.
Decidi pegar pesado. Era o único jeito de conseguir executar

um plano que poderia colocar fim a tudo aquilo.


— Você disse que ficaria do meu lado, Wallace. Disse que

não se importaria com o que fosse preciso enfrentar. — Não vacilei


ao olhá-lo. Claro que eu tinha medo do que estava por vir, mas o
que eu sentia por Roxanne e María era mais forte. — Eu esperava

contar com você ao menos desta vez.


Wallace recuou. Senti quando a mão no meu ombro
estremeceu, ainda assim, continuei o encarando. Depois de todos

aqueles anos, eu pensei que não me sentiria mal por pressioná-lo.


Pensei que seria mais fácil. Mas não foi, e descobri no fundo dos
meus sentimentos uma preocupação legítima.

Por mais que evitasse enxergar, eu ainda me importava com


Wallace Huntington. Família, sem dúvida, era o laço que poderia se
tornar mais complexo e dolorido.
— É disso que precisa, Sam? — perguntou, mas não sem
dificuldade.
— É tudo o que eu preciso.

Wallace suspirou. Percebi quando ele cedeu, mesmo isso


parecendo lhe custar tanto.
— Muito bem, meu filho. Serei o que você precisa, como

prometi.
Foram apenas duas frases, mas tiveram um efeito mais
importante em mim do que eu poderia ter premeditado.

— Ótimo — respondeu Sebastian por mim. — Acredito que


podemos traçar um plano bem-feito para ser executado depois do
Natal. Claro, vamos precisar atrair Milagros para a região com as

pistas certas, mas os agentes da DEA nos ajudarão nisso. Essa


será a parte fácil. Porém, antes que ele se aproxime, vou enviar os

homens que cuidam da minha casa para criarem um esquema de


segurança e proteger o rancho de vocês. Seu detetive, Earnshaw,
ainda está na ativa para passar informações do cartel?

Eu estava atônito com a rapidez com que a mente dele


funcionava, mas consegui responder com um aceno firme.
— Sim.

— Então me passe o contato dele. Vamos precisar.


E antes que eu pudesse concordar com aquela última frase,
Sebastian Knighton se levantou e ajeitou a gravata. Um movimento

clássico, como se ele estivesse saindo de uma reunião de negócios


ou de um caso tão simples como um pedido de pensão alimentícia
no tribunal.

Levantei-me também.
— Knighton, espere. Aonde você vai?
— Não se preocupe, Mead. Eu vou cuidar dos seus

interesses. Aproveite o Natal e as noites tranquilas com a sua


família. Nos falaremos por telefone à medida que a estratégia
necessitar ser desenvolvida, até que chegue o dia em que

precisemos colocá-la em ação.


— Não quero ser enrolado dessa vez, Sebastian — alertei,
mesmo correndo o risco de irritá-lo. — Roxanne e María… elas são

tudo o que eu tenho.


Para a minha surpresa, Sebastian não encarou minhas

palavras com raiva. Ele apenas firmou uma mão no meu ombro
direito e assegurou:
— Acredite em mim, Mead. Como acha que defendi

inocentes e embosquei criminosos nos tribunais? É assim que os


capturo e que me protejo há anos dos canalhas que mandei para a
prisão. Sei com o que estou lidando. Além disso, eu nunca falhei
com os que dependem de mim, e garanto que não começarei agora.

Você apenas precisa confiar no meu jeito de fazer as coisas.


— Seus meios são conhecidos dentro e fora dos tribunais

por imitarem os de Maquiavel. Cruéis e impiedosos, se necessário.


— Então é uma sorte que eu esteja do seu lado. — Ele
consultou o relógio como se eu não houvesse dito nada demais. —

Agora preciso ir. Temos pouco tempo. Entro em contato, Mead.


E com um gesto seco de despedida, Sebastian nos deu as
costas. Eu o vi abrir a porta e sair, levando um pouco da fumaça do

estabelecimento pela calçada. Ele desapareceu com uma rapidez


surpreendente.
— Filho, você confia nele?

Wallace também fitava a calçada além do vidro.


Pensei nas minhas possibilidades. Tanto com relação a
Wallace quanto com relação a Sebastian Knighton. Dois homens

que eu não conhecia bem. Para alguém que nunca acreditou no


bom caráter das pessoas em geral, confiança parecia ser o teste

final que eu teria de enfrentar.


E não era mais uma questão de escolha.
Vamos lutar, com rancor
No fim, só a bondade importa.

— JEWEL, “Hands”.

ROX

Tentei gemer baixinho, mas falhei miseravelmente com a


boca quente e experiente de Sam Mead ao meu dispor.

— Não foi isso o que combinamos. — Ele derramou o

sussurro quente no meu ouvido.


Contorci-me embaixo dele. Nua. Exposta. Completamente

apaixonada.
Eu sempre me perguntava, a cada nova noite maravilhosa,

como eu poderia sobreviver depois de fazermos amor. Como eu


poderia voltar a sobreviver sem ter aquele homem na minha vida um

dia.

— Sam…
— María está sob os cuidados do meu pai e da senhora

Martinelli, para que possamos aproveitar a noite. — Ele beijou meus

ombros. Nos últimos dias, nós vínhamos aproveitando todas as


noites possíveis. — Eu gosto quando geme alto para mim, Rox.

Gosto de ouvir seu prazer. Me deixa duro como ferro. E se você me

deixar mais duro, eu a deixo mais molhada…


Mas ele não esperou meu gemido alto. Sua mão seguiu o

caminho que já lhe era familiar, passando pela minha barriga quente
e afundando entre as minhas coxas um instante depois. O que ele

fez, quando me abriu para si, não me deixou pensar direito.

— Acho que estou fazendo uma barganha tola. Você já está

ensopada, Rox.

— Oh, Sammi…

— De quatro para mim — ordenou ríspido, depois de me dar


uma palmada de surpresa. — Agora.
A última palavra tinha sido um sussurro travesso nos meus
ouvidos, e eu me senti ainda mais excitada.

Ele tinha razão quando disse que nós encontraríamos a

nossa melhor forma.

O mundo poderia estar caindo sobre nossas cabeças, mas

quando fazíamos amor nada mais parecia existir. Estar nos braços

dele me trazia paz, e eu compreendi, nos últimos dias, que poderia


ter o mesmo efeito sobre ele.

Por isso eu o obedeci de imediato. Sentei-me na cama e

então fiquei na posição que ele parecia apreciar mais e senti suas

mãos nos meus quadris. Depois, sua boca descia pela minha

coluna. Beijos em cada parte. Sam sempre se demorava um pouco

mais na região onde minha cicatriz ficava. Mas daquela vez, em vez

de seus beijos descerem mais, eu senti o corpo poderoso, do


homem que fazia o meu coração bater com força, cobrir o meu.

Sam beijou minha orelha.

Ergui uma mão e acariciei sua nuca.

— Não consigo parar de tocá-la, Rox. Parece que nenhum

toque é suficiente. Parece que nenhuma noite será suficiente —

revelou com um toque de desespero em sua voz.


Assenti, reconhecendo o mesmo desespero apaixonado

dentro de mim.
— Eu sinto o mesmo, Sammi.

As mãos dele foram para os meus seios. Ele os segurou


com alguma firmeza, mas apenas para curvar meu corpo até me ter
sentada de costas em seu colo.

— Mudança de planos. Preciso te abraçar mais esta noite.


— Sim, e eu também preciso que me abrace mais.

Sua cabeça se mexeu em concordância contra o meu


pescoço. Sam então desceu as mãos até as minhas coxas. Ele as

abriu e esfregou sua ereção protegida entre elas, mas apenas até
se ajustar melhor e começar a esfregar contra o meu sexo.
Grunhi e desci a mão para me abrir para ele e deixá-lo me

tocar no meu ponto mais sensível.


— Isso, se masturbe em mim… — disse Sam, olhando para

o meio das minhas coxas, onde a cabeça do seu pau surgia úmida
do nosso desejo. A visão era erótica o suficiente para fazer todo o

meu corpo tremer. — Tome o seu prazer de direito.


Não era como se eu pudesse evitar. Logo meus braços
estavam estendidos e cruzados contra a nuca dele, dando às mãos

de Sam um maior livre acesso ao meu corpo.


Eu tive tanto medo do sexo quando era mais jovem. Ele

sempre me pareceu um destino trágico. Também senti o mesmo


medo depois de perder minha virgindade com Juan. O carinho dele

tinha se mostrado ainda mais agressivo nesses momentos. Mas


com Sam tudo era novo e bom. Quando ele me tocava, o meu

mundo parecia melhor.


— Vou entrar em você — avisou quando ambos já
estávamos ofegantes e cobertos de suor.

— Sim, me dê tudo de você, mi amor.


E ele me atendeu com doçura.

Dentro de mim, entretanto, ele foi feroz. Deixei-o me ter por


completo e me deixei tê-lo também. Sam correu a mão pela minha
cintura, e seu polegar encontrou meu clitóris, masturbando-o forte

enquanto ele me possuía.


— Olhe o seu reflexo na vidraça da janela. — Ele indicou e

meus olhos obedeceram. —Você é linda fazendo amor comigo.


Perfeita. Não se esqueça disso.

As palavras dele me varreram para mais longe, e então tudo


ficou mais intenso entre nós. Sam começou a se mover mais rápido
e mais forte. Eu o acompanhei, imitando seu ritmo em nossa

sincronia de ardor e respirações entrecortadas. Então, de repente,


nós estávamos de volta à cama, deitados. Com nossos corpos
enrolados um no outro, apenas seguindo movimentos primitivos.
Sem nunca separar os nossos olhares.

Gozei primeiro, mas Sam não demorou a me seguir para o


paraíso particular que construímos juntos.

Um instante depois, Sam havia descartado o preservativo e


nós estávamos abraçados e felizes.
— Estamos melhorando com a prática — garantiu.

— Parece que sim. —Virei-me em seus braços para


enxergar seu rosto. O sorriso de Sam era tão largo quanto o meu. —

Apesar de tudo que nos rodeia, me sinto em paz quando estou aqui
com você. E feliz.

Ele acariciou minha bochecha.


— Eu também, Rox. Eu me sinto feliz como nunca quando
estou nos seus braços. Principalmente quando conseguimos

usufruir desses momentos antes de María nos interromper.


Ri quando a memória da noite anterior retornou.

— De fato, não tivemos o choro das três da manhã na babá


eletrônica.
Sam gargalhou.
— É a idade. Ela vai dormir cada vez mais nos horários
certos, à medida que ficar mais velha.
Ele disse e seu olhar se desviou para o aparelho na

cabeceira. Para o aparelho de monitoramento que ele trouxe em sua


última visita à cidade.

María tinha se acostumado a dormir sozinha desde quando


estávamos na casa de Sam. Ela havia ficado incomodada com o
arranjo de dormir conosco, por causa de qualquer barulho, então a

ajeitamos em um cômodo separado e Sam trouxe uma nova babá

eletrônica de uma de suas inúmeras idas a Austin na última


semana. O que me fez lembrar que essa era uma conversa que

ainda precisávamos ter e da qual ele vinha fugindo.

Sam era instintivo e percebeu a mudança no meu olhar

antes mesmo que eu pudesse falar.


— Não, Rox.

Ele tentou se afastar, porém, eu o detive pelo braço.

— Não, Sam. Você me prometeu. Disse que me contaria


seus planos e a razão de estar trabalhando com seu pai no

escritório por dias a fio.

Ele soltou uma imprecação e se sentou na cama,


completamente nu e glorioso.
Não me deixei abalar por seu semblante insatisfeito e me

sentei na cama também. Bem ao seu lado.


— Não vou deixar que faça as coisas por mim e María

sozinho, eu já disse. E isso não é um ponto discutível, Samuel Mead

Huntington. — Era a primeira vez que eu usava o nome que ele


tinha lutado tanto para esconder. Pensei que ficaria ainda mais

insatisfeito, mas a sobrancelha dele arqueou-se em leve surpresa,

apenas. Isso me incentivou. Aproximei-me dele e segurei suas mãos

fortes. — Você sabe que se não me contar o que está planejando


com todas essas visitas que tem feito à cidade, eu encontrarei um

jeito de descobrir.

Sam suspirou pesadamente.


— Sim, eu sei que encontrará. Eu a conheço bem. — disse.

E enfim pareceu desistir. Ele abriu um dos braços,

convidando-me a me aninhar em seu peito. Aceitei de imediato.


— Minha intenção nunca foi mentir para você, Roxanne.

— Apenas omitir.

Senti-o sorrir contra os meus cabelos revoltos.

— Talvez um pouco. Mas, ainda assim, você já sabe que


tenho me encontrado com Sebastian, não sabe?
Assenti. Não era difícil chegar àquela conclusão. Na

primeira vez em que ele fora a Austin, eu tinha acreditado na história

que iria fazer compras. Mas isso mudou quando suas saídas ficaram
mais frequentes no decorrer dos últimos dias, assim como os

telefonemas com o nome “Knighton”, que ele emitia pouco antes de

sair de perto de mim e se enfiar no escritório.

— Eu sei.
— Mas não há nada certo ainda, Rox. Por isso eu escolhi

não dizer nada a você.

Virei-me para encará-lo.


— E quanto às ligações secretas do seu amigo?

— São apenas continuações de conversas que ainda não

terminaram.

— Você está me dizendo a verdade?


— Toda a verdade que posso.

— Conversa de advogado. — Neguei com a cabeça. —

Dizer toda a verdade que pode não significa que não esteja
escondendo algo para nos proteger. — Estendi a mão e segurei o

seu rosto. — Milagros é assunto meu, Sam.

Ele discordou.
— Nosso. Porque não vou deixar você passar por mais nada

sozinha. — Ele voltou a tocar meu rosto. — Confie que estou


fazendo as coisas da melhor maneira, pensando em nós três, Rox.

— Eu já confio. Sempre confiei. Mas não quero perder você

— confessei. — Não vou saber lidar com isso. E não posso aceitar
que faça mais algum sacrifício por nós.

De repente, eu sentia o desespero travando a minha

garganta.

— Não serão necessários sacrifícios. — Sam compreendeu


minhas emoções e levou minhas mãos aos lábios. — E você não vai

me perder.

Não havia sombra de dúvida quanto ao fato de Sam


acreditar no que estava falando. Contudo, eu ainda estava inquieta.

Não tinha sido o suficiente, e ele compreendeu isso rapidamente.

— Minha Rox, não fique assim. Não fique tão nervosa. —

Ele entrelaçou nossos dedos. — O que posso dizer para que


acredite em mim?

Dizer que não vai tentar ser meu herói, pensei. Mas

encontrei palavras melhores.


— Preciso que me prometa que não vai fazer nada sozinho.
Desde que conheci Sam, eu não tive motivos para duvidar

de seu caráter e nem de que não honraria a sua palavra. Suas

promessas nunca eram vazias. Então, se eu conseguisse uma

promessa sua, sabia que não haveria volta.


Ele percebeu que eu sabia disso.

— Roxanne… — Ele me soltou.

— Preciso disso, Sam — insisti, solene, e prendendo seu


olhar ao meu. — Preciso que me garanta que não vai tentar

enfrentar Milagros sozinho.

Eu não podia deixá-lo escapar. Algumas vezes eu acordava

e o flagrava me olhando de um jeito melancólico. Esses olhares


também aconteciam na direção de María. Eu precisava me

assegurar de que Sam não faria nenhuma loucura para garantir a

nossa segurança.
Sam debateu internamente. Era visível sua luta contra suas

próprias palavras. Pensei que ele se irritaria e faria pouco caso da

conversa, no entanto, ele cedeu.

— Certo. Eu prometo que não tentarei nada sozinho.


Alívio me invadiu, e eu aproveitei a deixa.

— Também quero saber sobre a próxima reunião com seu

amigo Sebastian. Quero ir com você.


— Não. — Ele foi quase ríspido. — Isso está fora de

cogitação, Roxanne.
— Não, eu não vou mais permitir isso, Sam. Como pode

estar fora de cogitação para mim, se você continuará se arriscando

indo até lá e recebendo ligações secretas?

— Não são secretas.


— São para mim, já que você não me conta nada!

— Não por muito mais tempo…

— O quê?
Fiquei confusa com suas palavras, mas então Sam respirou

fundo e me puxou para os seus braços com delicadeza. Ele me

olhou nos olhos.


— Escute, Rox. Não pode me pedir isso. Você e María estão

seguras aqui, e não posso levá-la para correr riscos na cidade.

Precisa entender que não vou me arriscar a colocá-las na mira de

Milagros, como fiz quando estávamos em Washington. — Abri a


boca para protestar sobre essa última parte, entretanto, Sam me

impediu com um toque gentil nos meus lábios. — Mas posso

oferecer outra coisa para que confie em mim.


— E o que seria?

Sam cogitou um pouco.


— Posso oferecer outra promessa. Que tal?
— Que promessa?

Ele respirou fundo antes de falar.

— Prometo que não vou mais atender as ligações de


Sebastian sem que você conheça o conteúdo delas. Podemos

combinar assim?

Pensei um pouco. As ligações eram continuações das


conversas dos encontros, ele tinha dito. Sem dúvida, eu queria

conhecer o conteúdo delas. Mas ligações poderiam ser mais

manipuláveis do que um encontro presencial. Eu não gostava da

ideia de continuar de “braços cruzados”, todavia, também sabia que


ir à cidade criaria riscos para todos. Ou seja, não havia muitas

escolhas.

— Eu aceito — concordei, contrariada.


— Ah, Rox… — Sam me abraçou com força quando

percebeu os sentimentos no meu rosto. — Nada de mau vai me


acontecer. Precisa acreditar que vamos passar por tudo isso. Que
vamos vencer o que está por vir.

— Eu apenas não quero que se machuque por minha causa.


— E eu não vou permitir que ninguém as machuque
também.
Eu ia acrescentar mais alguma coisa, mas me perdi quando
um lamento tardio saiu juntamente com o som horrível de um chiado
da babá eletrônica sobre o aparador ao lado da nossa cabeceira.

Sam deixou a cama de imediato, quase como se a fazenda


estivesse pegando fogo. Isso me fez sorrir, apesar da conversa
pesada que estávamos tendo.

— María acordou. — Ele se enrolou em um dos robes


xadrez que seu pai nos emprestara e pegou o aparelho. — E isso já
está com defeito, mesmo sendo novo? — Bateu o aparelho na

palma da mão direita. —Ótimo. Odeio comprar coisas caras que


estragam rápido. Além disso, essa bugiganga infernal deveria
funcionar de forma impecável para manter María segura.— Sam

tirou as pilhas do aparelho. — Conserto isso mais tarde.


Amoleci, esquecendo os tormentos que me ameaçavam. De
repente, tudo mais sumiu e só restou aquilo: a preocupação legítima

dele com a minha filha. Não era difícil compreender por que, apesar
das circunstâncias, eu havia me apaixonado tão rápido por um

homem assim.
Apaixonar-se, não…
Mas eu decidi empurrar o pensamento, assim como decidi

não pressionar mais Sam sobre o assunto de antes. Ele era mais do
que digno da minha confiança. Então eu também desci da cama e
comecei a procurar pelo meu robe.
— Não se preocupe. Eu vou buscá-la. É a minha vez.

— Não. — Sam se adiantou até mim, antes que eu tomasse


o caminho para a porta, e me surpreendeu enlaçando-me pela

cintura e me beijando. — Eu a pego. Sei que prefere tomar banho


antes de amamentá-la. E, quem sabe, se trabalharmos em dupla
para fazê-la dormir rápido de novo, possamos ter um segundo

tempo esta noite.


Ri diante do olhar maroto dele.
Deus, eu não devia rir. Devia ter medo. Devia sentir aflições,

e não viver noites mágicas e felizes com aquele belo homem de


olhos escuros e queixo quadrado.
— Eu amamento, você troca as fraldas e vemos quem

ganha.
— Você sabe que já sou expert na troca de fraldas. Não há
como me superar, mi amor.

Seu espanhol tinha um sotaque terrível, mas ainda assim


soou lindo aos meus ouvidos.

— Tudo bem. — Foi a minha vez de agarrá-lo pelo robe. —


Vou para o banho, então. E espero por vocês, cariño.
Sam sorriu e me beijou de novo.
— Vai esperar pouco.

E então, quando ele saiu do quarto, eu aguardei como de


costume pela sua chegada cheia de adoração ao quarto onde María
dormia. Demorei um pouco para relembrar que ele tinha retirado as

pilhas da babá eletrônica. Fui até lá e as coloquei de volta no


momento certo:

“Você é impossível, pardalzinha. Não tem nenhuma pena


nesse seu coraçãozinho minúsculo…” Ouvi-o dizer assim que entrou
lá, e sorri. Quando aquilo acontecia no meio da noite, eu sempre

acordava com o som acalentador daquele monólogo de Sam com


María, pouco antes de ele a trazer para ser amamentada. Era a
coisa mais terna e adorável que eu já havia visto.

A vida podia ser um caso estranho: em seu pior momento,


as melhores coisas simplesmente podiam se revelar.
Como o amor.

Eu apenas precisava garantir que tudo aquilo não me


custasse caro demais.
Suspirei, ainda olhando para a porta por onde ele havia

saído, e depois fui tomar o meu banho.


SAM

Apenas quando tive certeza de que Roxanne estava em um

sono profundo, é que peguei María adormecida entre nós na cama e


me levantei.
— Desculpem — murmurei baixinho para as duas.

Porque de María eu perturbava o sono, e de Roxanne, bem,


talvez eu arrancasse toda a confiança que havíamos construído
desde que nos conhecemos. Entretanto, mesmo que aquele fosse o

preço a se pagar — perder a mulher que tinha meu coração nas


mãos — eu pagaria. Faria qualquer coisa para mantê-las a salvo.

Com os passos mais silenciosos que já dei na vida, deixei o


quarto e segui pelo corredor, guiado apenas por luminárias de
sensor. Quando passei pela porta certa, bati suavemente contra a

madeira. Seria o suficiente. Naquelas últimas noites, Wallace havia


me acompanhado no quesito dormir cada vez menos. Eu sabia que
logo ele estaria atrás de mim. Mas enquanto isso, eu entrei com
María em seu próprio quarto e arrumei seus pequenos cobertores.
Um instante depois, minha menina estava no berço. Sua

barriguinha, redonda e satisfeita com sua última refeição, subindo e


descendo tranquilamente. Fiquei ali, quieto, apenas vigiando sua
respiração serena enquanto aguardava.

— Será que sua mãe vai me perdoar? — questionei depois


de acariciar a cabecinha de María.
— Sam, foi você quem bateu na minha porta?

Respirei fundo antes de responder:


— Sim.
— Há algo com a minha netinha?

A forma como ele disse aquilo me pegou desprevenido, e eu


me virei de imediato para vê-lo. Entretanto, acabei me

surpreendendo com Wallace bem próximo a mim e espiando o berço


com preocupação. Nós usávamos robes e pijamas semelhantes.
— Ela parece bem — constatou, um segundo depois.

— Ela está.
Sua preocupação com María deveria me despertar alguma
emoção negativa, já que ele jamais se mostrara preocupado
comigo. Mas não despertava. Pelo contrário, apaziguava a mágoa
que existia dentro de mim.

— Qual é o problema, então, garoto? Do que precisa hoje?


Era uma pergunta tão simples, mas que abriu um buraco no
meu peito. Ou talvez só tenha piorado o que vinha crescendo desde

que emiti aquelas palavras cínicas para Roxanne.


E eu ainda a fiz sorrir. Tudo para esconder o que estava
prestes a acontecer.

— Temos um empecilho — admiti, empurrando a culpa para


o fundo de tudo e me afastando do berço para não acordar María.
Ele sequer pestanejou ao me seguir e mostrar sua boa

vontade em ajudar.
— Diga e resolverei. Já lidei com a burocracia dos
documentos com seu amigo Peter, como me pediu: os papéis que

garantirão o visto de Roxanne e também a certidão de nascimento


da menina com o nome da nossa família. O testamento…

A voz dele falhou nessa última palavra, mas eu facilitei as


coisas ao interrompê-lo.
— Não, não é isso. Peter me ligou para dizer que os papéis

estão prontos. E vamos continuar com essa parte intacta. — Passei


a mão pelos cabelos, sabendo bem o que estava prestes a fazer e
me sentindo horrível pelo que já tinha feito ao distorcer minhas
palavras na promessa que fiz para Roxanne. — O empecilho é que

não posso mais ir ver Sebastian e nem posso mais atender as


ligações dele. Porém, também não posso perder o contato nesta

última semana. Milagros já está seguindo o nosso rastro e vou


precisar de detalhes para ter mais segurança, até o feriado de Natal,
quando a armadilha para Milagros deve acontecer.

Seu semblante ficou confuso.


— O quê? Mas o que aconteceu? Por que você não poderá
finalizar isso com o Knighton?

Suspirei e cocei os olhos.


— Porque Roxanne estava muito nervosa esta noite, e eu
precisei prometer que não iria mais receber as ligações de

Sebastian sozinho, para evitar que ela descobrisse mais. Não tenho
dúvidas de que ela me seguiria, se eu fosse até a cidade mais uma
vez — revelei. — Em todo caso, agora não posso mais voltar com

minha palavra.
Wallace compreendeu as entrelinhas daquela frase muito

bem.
— Mas você tem um plano — emitiu em seguida.
— Um jeito de controlar a situação. Sim, eu tenho —

assenti, enfiando as mãos no robe para afastar o frio. — Você


deverá tomar meu lugar nesses últimos dias.
— Atendendo as ligações do Knighton? — Wallace enfiou as

mãos no robe exatamente como eu tinha feito antes.


— E indo ao encontro de Sebastian no pub, amanhã. —

Tirei uma das mãos do bolso, um pouco assustado com a forma


idêntica de como nos movimentávamos. Eu nunca havia me
aproximado o suficiente para notar essas coisas antes. — É um

problema para você?


Ele negou.
— Nenhum. Posso servir de canal e trazer as informações

que precisar, Sam. Na verdade, imagino que seja até mais seguro.
Acenei positivamente.
— Ótimo. Era apenas disso que eu precisava.

Silêncio pairou entre nós, exatamente como vinha sendo


nos últimos dias, durante os períodos em que trabalhávamos juntos
no escritório.

— Sinto por tê-lo acordado por isso.


— Não sinta por precisar de mim, Sam. É tudo que sempre
desejei nesses últimos anos.
— Mesmo que eu o esteja obrigando a se meter com o líder
de um cartel?
— Isso pouco importa, Sam. Você é meu filho. Farei

qualquer coisa por você. Queria ter feito antes.


Eu tinha percebido isso. Contudo, ainda tinha medo de ir
fundo demais naquilo. Por isso, em vez de responder Wallace, eu

caminhei até o aparador de cristal perto do berço de María e agarrei


a parte B da babá eletrônica danificada.
— Pretende fazer algo com isso a essa hora? — questionou

ele.
Olhei para o aparelho.

— Vou consertá-lo. Estava chiando mais cedo e o desliguei


no outro quarto. Além disso, eu não acho que vou conseguir dormir
depois de distorcer minha palavra para Roxanne, então pode ser um

passatempo.
— Posso? — Wallace surgiu novamente perto de mim e
estendeu a mão.

Achei inusitado, mas entreguei o aparelho.


— Acho que posso lidar com isso. Não deve ser difícil. —
Wallace analisou-o atentamente. — Nos últimos anos, tive como
hobby longas horas aprendendo a consertar coisas. Posso ajudar,
se quiser.

Era um pedido sutil para passarmos mais um tempo juntos,


eu sabia. Mas o mais surpreendente foi que eu não quis declinar.
Pelo contrário, eu sentia que tempo era o que eu menos tinha e

queria oferecê-lo a Wallace, mesmo diante dos meus sentimentos


tortuosos.
— Certo. — Foi então o que ouvi sair dos meus próprios

lábios: — Vai ser uma noite difícil.


E talvez eu precisasse apenas de um pouco de consolo. Um
consolo paternal.

Wallace sorriu. Um sorriso largo e feliz.


— Vou buscar a minha maleta de ferramentas, filho.

Ele saiu. Sem que eu o corrigisse por ter me chamado de


filho.
Percebi, apenas algum tempo depois, que não o fiz porque,

enfim, eu aceitara ser chamado assim. E isso me fez ter um


pequeno motivo para sorrir.
A noite inteira hoje,
sabemos que sentimos o mesmo.

Não temos passado.


— CYNDI LAUPER, “All Through The Night”.

ROX

Meu último Natal ocorreu apenas um pouco antes de eu

precisar planejar uma rota de fuga. Também um pouco antes de

María estar em meu ventre e toda minha perspectiva de vida se


modificar. Então, depois de todo aquele ano tumultuado, arriscado e

cheio de medo, estar em uma grande sala confortável, enfeitando


um abeto à luz de uma lareira aconchegante, parecia algo

completamente inusitado.
Ainda assim, era o que estava acontecendo.

Naquele momento, Sam estava no sofá com María nos

braços, enquanto mostrava a ela alguns enfeites brilhantes que


havia tirado de uma caixa embrulhada com papel de presente. Ela

estava enrolada em um cobertor vermelho de renas que havia sido

presente de Wallace. Sam sorria e parecia feliz de um jeito que, se


eu não o conhecesse tão bem, não poderia notar suas mudanças

sutis.

Até mesmo com o pai Sam estava diferente. Era visível que
ele ainda ficava desconfortável na presença de Wallace, mas ele

não fugia mais. Não saía quando Wallace entrava no mesmo


ambiente. Os dois também se viam todas as tardes na sala de estar,

para consertar equipamentos eletrônicos, e sempre havia uma

conversa neutra entre pai e filho. Assuntos que envolviam os

cavalos do rancho ou conhecidos locais.

Não mencionei nada. Já havia feito o suficiente, alterando a

vida de Sam de um jeito irreversível. Na verdade, se a relação de


Sam com o pai estivesse caminhando para um lugar melhor, depois

de toda a mágoa de anos que ele me confidenciou, seria algo pelo


qual eu deveria ficar feliz. Sem dúvida, eu ficaria contente por
qualquer coisa que fizesse bem àquele homem que entregava tudo

o que podia para cuidar de nós.

E apesar de tudo que nos rodeava, apesar de tudo que o

futuro próximo poderia guardar, eu me permiti me contaminar por

aquela satisfação. Por aquele pequeno instante de felicidade que eu

desejei que durasse para sempre.


— Esse aqui será o dela — disse Sam atrás de mim.

Virei-me logo após pendurar uma bengala doce de plástico

na árvore.

Sam sorriu, com María em um dos braços. Com a mão livre,

ele me estendeu um enfeite de árvore de uma bonequinha de

porcelana. Uma bailarina do Quebra-Nozes com o nome “María”

inscrito na base, abaixo de seus pés.


Senti minha boca se abrir em surpresa ao receber o enfeite

em minhas mãos.

— Sam… o que é isso?

Ele apenas deu de ombros.

— Quando eu era criança, queria ter meu próprio enfeite na

árvore de Natal, como as crianças dos filmes. Mas a árvore aqui do


rancho sempre foi enfeitada por equipes de decoração e nunca tive
a chance. — Seu olhar inocente quando disse aquilo moveu algo

dentro de mim.
Olhei para a bailarina delicada novamente e fiquei sem

palavras.
— Quando você… quando você fez isso?
Girei a peça e vi que havia uma surpresa adicional. Meu

próprio nome estava inscrito do outro lado do pequeno pedestal.


— Foi feito em uma loja especializada, na última vez em que

fui à cidade.
— O meu nome também está aqui.

Sam se aproximou mais enquanto María brincava com os


fios que conseguira arruinar no suéter branco dele. Ela sempre
ficava calma e natural quando estava com Sam. Os dois juntos

formavam a visão mais certa do mundo diante dos meus olhos.


Fiz o possível para memorizá-la.

— Sim. Eu queria que vocês duas entendessem que sempre


terão um lugar aqui, nesta casa. E que gostem disso. — Sam

colocou uma mecha do meu cabelo atrás da orelha. — Talvez assim


essa casa se torne um lar de verdade, um dia. Com mais natais de
verdade. Sei que pelo haras, onde você tem ido para ler nos últimos
dias, você já se apaixonou. A bailarina vai ajudar com o restante do

rancho.
Senti meu estômago pesar de um jeito ruim.

— Sammi…
— Não, não… — Ele se curvou e beijou meus lábios com

delicadeza. — Não quero que fique assustada, Rox. Nunca mais.


Darei tudo o que estiver ao meu alcance para que isso não
aconteça.

— Sei disso. E nunca mais me senti com medo desde que


nos conhecemos — confessei.

Ele apenas sorriu enquanto seu olhar vagueava pelos traços


do meu rosto.
— Tivemos um bom começo, não foi? — O seu sorriso se

alargou quando ele olhou para María. — Quero dizer, nós fizemos
tudo ao contrário. Tivemos um bebê primeiro, então fomos morar

juntos e depois eu a pedi em casamento. Os defensores da família


tradicional americana poderiam não sobreviver para conhecer o

amanhã diante da nossa história.


Ri. Não consegui evitar.
— Eu poderia ter facilitado tudo só esbarrando em você num

bar, não é? — brinquei, mesmo com a garganta contrita.


Sam gargalhou.
— Não. Eu sempre vou preferir que tenha acontecido como
aconteceu. Nunca gostei de coisas que vêm fáceis. Sei que elas não

permanecem. — rebateu. — Além disso, são muito entediantes. E


também gostei da adrenalina de presenciar um parto e descobrir

que tenho uma tolerância alta para desmaios.


Segurei a mão que ainda estava sobre o meu rosto.
— Você não teria desmaiado. Estava um pouco pálido,

preciso admitir, mas não teria desmaiado.


— Eu estava pálido? — Ele pareceu quase ofendido quando

abandonou a parte que o elogiava da minha frase.


Ri mais e o provoquei, erguendo minha mão livre e

acariciando seus cabelos.


— Sua boca estava azulada, cariño.
Ele deixou de me tocar e cobriu os lábios.

— Você está falando sério?


Foi a minha vez de gargalhar e menear com a cabeça.

— Não, não estou — admiti. — Você não estava pálido e


nem com lábios azuis. E você não teria desmaiado, porque já sabia
o quanto eu precisava de você. — Olhei para María entre nós, e isso

me fez corrigir a frase. — O quanto nós precisávamos.


Senti a emoção chegando aos meus olhos e a vi espelhada
nos olhos dele quando ergui o rosto para fitá-lo.
Abri a boca para falar. Quem sabe fugir do tom daquela

conversa. Deus sabe que não era daquilo que eu precisava naquela
noite tão importante. Mas Sam se antecipou.

— Eu nunca me importei com nada até vocês chegarem


para mim, Rox. Nunca me importei com quem eu havia me tornado
ou no rumo que a minha vida seguia. Estive vazio por dentro, mas

com vocês, não estou mais.

— Ah, Sam…
Aproximei-me e tomei seus sentimentos para mim com um

beijo profundo. Um toque tão sublime que poderia partir um coração.

Mas eu aproveitei cada minuto, cada instante do sentimento bonito

entre nós.
Quando nos afastamos, até Sam sorriu de um jeito que lhe

pareceu difícil.

— Tenho presentes de Natal para você e María. —


comunicou depois de pigarrear e balançar minha filha reclamona

nos braços. — Quero entregá-los no nosso quarto, depois da ceia

com o meu pai.


Assenti e me lembrei que a bailarina ainda estava nas

minhas mãos. Virei-me para colocá-la na árvore, mas me interrompi,


dizendo:

— Eu também tenho algo para você. Mais tarde.

Um beijo que disparou eletricidade pela minha pele tocou


meus ombros.

— Eu espero que comece com R e termine com Roxanne

nua na minha cama.

Ri, mas não me virei para manter a emoção onde vinha


mantendo nos últimos dias: longe do olhar dele.

— Tem um pouco disso, sim.

— Um pouco não serve para mim. — sussurrou, com seu


nariz ainda me acariciando. — Preciso de você inteira.

— Você terá. — garanti. — Vou até subir um pouco antes da

ceia terminar para me arrumar para você.


Senti seu sorriso contra a pele dos meus ombros.

— Gosto disso. Nesta noite não quero preocupações. Quero

apenas fazer amor com a mulher da minha vida. Coloque a bailarina

no topo. Onde todos possam ver. — indicou depois de notar minhas


mãos trêmulas. Então ele se afastou e observei, pela minha visão

periférica, quando ergueu María um pouco nos braços. — Acho que


há uma mocinha precisando de uma fralda limpa antes do Papai

Noel chegar. Eu volto logo.

E eles se foram.
Observei-o se afastar sem poder fazer nada.

E me senti horrível por isso. Colocar a bailarina na árvore

como ele pediu também não ajudou em nada.

SAM

Eu não podia mais adiar o que precisava dizer a ela.


Foi uma semana difícil para nós dois, e eu sabia que ela

havia percebido minha mudança de comportamento crescente.

Sabia que ela tinha reconhecido as inclinações dos meus

sentimentos melancólicos e poderia desconfiar deles. Sem dúvida,


isso explicaria a tensão em seus músculos quando estávamos

abraçados juntos na cama. Roxanne podia não saber, mas sua

intuição já pressentia o que viria.


Assim como a minha.

Desde que Sebastian passara o recado para Wallace, há


três dias, informando que Milagros já estava no Texas como os

agentes da DEA se empenharam em conseguir, eu sabia que o

desfecho inevitável pairava sobre a minha cabeça. Com Milagros


seguindo a trilha planejada, a data para a emboscada finalmente

tinha se consolidado: Aconteceria nos arredores de Rollingwood, na

cidade vizinha, um dia depois da manhã de Natal. E com esse dia

marcado, tudo na minha vida havia sido reorganizado em uma lista


curta de prioridades:

Família.

Quem diria que, no momento em que eu visse minha vida


passar diante dos meus olhos, fosse o aspecto que sempre

considerei perdido o que se tornaria a única coisa importante para

mim?

Não havia como não me sentir tenso, mesmo sabendo que


estava fazendo o que era certo e que minhas garotas ficariam

amparadas, sem importar o final daquilo. Entretanto, eu não queria

gastar o que poderia ser os meus últimos momentos com as


pessoas mais importantes da minha vida com temores. E parecia

que Roxanne havia concordado comigo naquela noite.


Parecia que ela apenas me queria. Muito.

Ao final da ceia de Natal, Rox abraçou meu pai e deixou a

mesa dizendo que esperaria por mim no quarto. Claro, não sem

antes me dar um beijo apaixonado. Ela não levou María. Permitiu


que ela ficasse nos braços do meu pai, mas agora a minha

pardalzinha estava comigo.

Wallace suspirou ao meu lado no sofá confortável. Nós


tomávamos café e olhávamos a neve natalina cair nos jardins em

frente à sala de estar.

— Ela parecia um pouco cansada. Apesar do seu cuidado

nesta última semana, talvez ela já desconfie que você tenha algum
plano. — Meu pai emendou: — As mulheres sempre percebem as

coisas antes.

Anuí enquanto observava María adormecer nos meus


braços.

— Talvez seja verdade. — Foi a minha vez de suspirar e

olhar para a direção que Roxanne seguiu. — E é provável que ela

vá me odiar quando souber toda a história, mas chegou o momento.


Ele olhava para algum ponto da noite congelada além das

janelas, quando me respondeu.


— Acho que sua mulher o ama demais para odiá-lo por

qualquer coisa que faça. — Wallace me surpreendeu, mas logo


mudou de assunto. — Você contará tudo a ela esta noite?

— Apenas o que ela precisar conhecer, por enquanto. Não

vou dizer onde colocaremos a armadilha. Sebastian escolheu os

arredores de Rollingwood para garantir segurança e distância do


rancho durante meu encontro com Milagros. Ele acreditará que

estou indo oferecer uma barganha financeira para que deixe

Roxanne em paz. Mas se algo me acontecer lá… se as coisas não


saírem como planejado você sabe o que precisará dizer e fazer.

— Eu sei.

Senti o olhar do homem que sempre me negligenciou sobre


o meu rosto, mas não consegui olhá-lo de volta. Mesmo sentindo

um aperto inesperado no peito, uma sensação verídica de que o

tempo entre nós estava se esgotando. Ainda assim não consegui

encará-lo. Entretanto, havia muitas coisas travadas na minha


garganta. Palavras que precisavam ser ditas, porque talvez aquela

fosse a última oportunidade para algo assim. Por sorte, Wallace

encontrou as dele primeiro.


— Quando você chegou, há duas semanas, com Mary e

Roxanne, eu pensei que finalmente teria um Natal feliz em família.


Pela primeira vez em anos.
María se moveu, já em sono, mas procurou meu indicador

para segurar. Exatamente como na primeira vez em que a fiz dormir.

O calorzinho frágil me fez sorrir, o que me salvou, já que, de


repente, eu sentia a ameaça de lágrimas se aproximar.

— Desculpe decepcioná-lo mais uma vez — lamentei.

Surpreendentemente, Wallace colocou a mão sobre a


minha.

— Não, meu filho. Você nunca me decepcionou. Eu

decepcionei você. Mas apesar de tudo que nos cerca neste

momento, eu estou feliz por termos esse Natal. Estou feliz por
estarmos juntos.

Finalmente encontrei forças para olhá-lo.

Wallace tinha lágrimas nos olhos e nas bochechas. E


parecia não ter vergonha alguma de expô-las ao mundo. Por um

instante, seu olhar se desviou para María nos meus braços. Mais
lágrimas verteram de seus olhos.
— Você será bem melhor do que eu nisso.

— Em quê?
— Em ser pai. Você será um ótimo pai para a sua
pardalzinha, garoto.
Dessa vez foi impossível segurar as lágrimas que chegaram
aos meus olhos. Eu nem mesmo sabia se veria María mais uma vez
depois do dia seguinte.

— O senhor acredita nisso?


— É a única coisa na qual acredito de verdade, Samuel. E
serei eternamente grato a Deus por isso, porque apesar de todo o

rancor que fiz você carregar, você ainda se tornou um homem


melhor do que eu. Você foi um ótimo bebê. Foi um menino
inteligente e agora é um homem de caráter capaz de amar e lutar

pelo que ama. Você é um homem bom, meu filho. E tenho muito
orgulho disso.
Havia algo no olhar dele. Uma certeza clara. Nós havíamos

conversado muito nos últimos dias, embora tivéssemos evitado o


tópico “pai e filho”, em específico. Tudo havia girado em torno de
advogados, documentos necessários para resguardar Roxanne e

María e aparelhos eletrônicos que precisavam de conserto. Em


nenhum desses momentos vi Wallace sequer pestanejar ou

demonstrar algo contra o meu plano. Mas ali, pela forma como ele
me observava, considerei pela primeira vez que ele pudesse estar
mudando de ideia.
— Você não fará nada para me impedir, fará? É o que
preciso fazer.
O semblante dele ficou um pouco mais contrito, entretanto

Wallace negou com a cabeça.


— Você me pediu para protegê-las. É o que farei. Não

falharei em cuidar da sua mulher e de sua menininha. Você tem a


minha palavra quanto a isso.
Assenti, sentindo-me aliviado na medida em que era

possível dentro da situação.


Foi então que uma verdade ficou clara para mim e percebi
que não teria tempo suficiente para entendê-la antes de revelá-la.

Eu não sabia o que me aguardava nos próximos dias, e não poderia


adiar mais nada para depois. Principalmente para um depois que
talvez se convertesse em um “tarde demais”.

— Sei que há muitos anos de complicações entre nós. Sei


também que algumas conversas e um Natal, que pode ser o último,
não podem ser capazes de consertar tudo. Tenho sentimentos

complexos que guardei por tempo demais dentro de mim — falei


tudo que subia diretamente do meu coração. — E talvez eu tenha

errado em trazer María e Roxanne para cá, porque precisavam de


proteção e você era o único que poderia oferecê-la. Mas quero que
saiba uma coisa, Wallace. Eu nunca quis que ficasse em risco. Por
isso não quero que participe disso. Quero que fique a salvo aqui na

fazenda, porque você é… — Engasguei-me, mas ainda mantive o


olhar no rosto dele, até conseguir formar as palavras que usei
vagamente apenas em pensamentos. — Você é o meu pai. Sempre

será o meu pai.


E era por isso que, em todos aqueles anos, havia sido tão

necessário criar uma nova imagem para mim mesmo.


— Ah, Samuel… Ah, meu filho…
Estendi uma mão, pedindo uma pausa. Eu precisava

terminar o que tinha começado.


— Sua rejeição me doeu, mesmo quando tentei mentir para
mim mesmo. Por isso eu precisei mudar. Até mesmo me desligar do

seu nome. Era custoso fingir não me importar, então eu precisei de


uma nova identidade — confessei. — Mas se tudo não correr da
melhor forma possível quando eu sair desta casa, quero que saiba

que não quero mais guardar essas mágoas entre nós. Não agora
que sei do que é capaz por mim.
Eu não sabia se aquilo era um perdão. Sinceramente,

minhas emoções estavam confusas por causa da perspectiva do


que poderia acontecer. Mas procurei ser o mais honesto possível.

Era o que eu poderia oferecer.


— Além disso, María precisará de um avô que a ensine tudo
sobre cavalos.

Wallace chorou e concordou com a cabeça.


— Quero ser o avô dela e seu pai.
— Acho que também posso vir a querer isso.

E era verdade. Mesmo reconhecendo que o caminho para a


reconstrução de toda uma família poderia ser um processo árduo,

nós éramos gente do Texas. Tempestades áridas não nos faziam


sucumbir no final das contas. Apenas nos tornavam mais fortes.
Pensando nisso e me sentindo mais tranquilo comigo

mesmo, passei María com cuidado para os braços dele.


— Vou subir e falar com Roxanne.
Ele assentiu.

— Vou tomar conta dela. Magda ficou aqui para me ajudar,


se for preciso. Aproveite a noite, meu filho.
— Sei que posso confiar em você. — Parei um pouco ao

sentir a palavra que evitei por anos se formar em meus lábios. —


Obrigado por tudo, meu pai.
Vi quando as três letras finais o afetaram diretamente, assim
como a forma que posicionei minha mão em seu ombro. Wallace se
levantou e me abraçou. Abracei-o de volta da maneira que era

possível com um neném entre nós. Afastei-me depois com a


sensação de que finalmente havia colocado uma coisa importante
de volta ao seu lugar na minha vida.

Contudo, quando cheguei às escadas, soube que mais uma


conversa tão importante quanto a que acabara de acontecer estava
por vir.

Eu nunca tinha acreditado no amor até Roxanne entrar na


minha vida, mas agora precisava ter fé de que aquele sentimento
seria o suficiente. Por nós dois.
Eu me arriscaria outra vez, levaria a culpa.
É tarde demais para se desculpar.

E preciso de você como uma batida precisa de um coração.


— ONE REPUBLIC, “Apologize”.

SAM

Encontrei-a concentrada na tarefa de dobrar as poucas

peças de roupa que constituíam o nosso guarda-roupa desde que

chegamos. Dessa vez não havia penumbra, como na primeira noite


em que fizemos amor. Por isso pude enxergar perfeitamente a

seriedade em seu rosto enquanto ela não tomava conhecimento da

minha presença ali.


Roxanne ainda continuava tensa, mesmo usando roupas de

frio e com o quarto quente graças à lareira. Infelizmente, o que eu


tinha para dizer não melhoraria seu estado de nervos. Não pude

evitar a sensação de culpa pelo que estava prestes a fazer, e talvez

um pouco desse sentimento tenha me feito caminhar mais devagar


até ela.

Eu já estava bem próximo da nossa cama, quando ela

deixou de dobrar as roupinhas de María para me olhar.


— Samuel. Já chegou.

Sorri diante do sotaque espanhol que tinha me conquistado

desde o primeiro instante.


— Você disse que se arrumaria para mim. — Enfiei as mãos

no bolso das calças de moletom. — Não disse nada a respeito de


uma faxina de Natal, mi amor.

Roxanne riu do meu espanhol ruim.

— É assim que é namorar uma mãe, mi amor — brincou,

frisando o som certo das palavras. — Mas eu só estava fazendo

isso enquanto esperava por você.

Suas palavras me fizeram acabar com a curta distância que


havia entre nós. Com delicadeza, tirei o pequeno agasalho rosa de

María das mãos dela e deixei sobre o cesto no estofado aos pés da
cama. Em seguida, a trouxe pela cintura para mim com uma mão, e
com a outra toquei seu rosto bonito.

— Eu também estive esperando por você. Por muito tempo

— revelei enquanto estudava seus traços bonitos, esforçando-me

para memorizar cada um deles. — E continuando o assunto que

começamos mais cedo na sala diante do abeto e antes de sermos

interrompidos por um bom cocô, eu gostaria de dizer que o


momento em que a conheci foi o mais importante para mim até aqui.

Seu parto foi a cena mais bonita que eu já presenciei na minha vida.

Pensei que ela pudesse estranhar minhas palavras ou o

meu tom, que poderia remeter a uma despedida, mas Roxanne

apenas ergueu uma sobrancelha com alguma emoção brilhando em

seus olhos incomuns.

— Um bebê saindo da minha vagina foi a cena mais bonita


que você já presenciou?

Ri.

— Também.

— Não seja mentiroso, Samuel Mead Huntington.

Meu coração se aqueceu por inteiro.

— Rox — insisti, segurando suas mãos —, sei que temos


que conversar e te prometi presentes. Mas acho que quero deixar
tudo isso para um pouco mais adiante e fazer amor com a única

mulher que transforma o meu nome completo na melhor coisa que


já ouvi na vida.

E eu não esperei. Não conseguiria mais.


Beijei-a.
Calculei que Roxanne fosse protestar ou iniciar uma

conversa para entender melhor o momento. Mas não aconteceu. Em


vez disso, ela entreabriu os lábios e recebeu meu beijo intenso.

Nossas línguas se enroscavam com naturalidade e tensão ao


mesmo tempo. Ela me tomou nos braços do mesmo jeito em que a

tomei. Suas mãos se emaranharam firmes nos meus cabelos,


enquanto sua boca começava a arrastar-se pela pele do meu
pescoço, deixando pequenos incêndios por toda a parte.

— Roxanne… — sibilei enquanto enfiava minhas mãos por


baixo do seu suéter.

Elas deviam estar um pouco frias, porque a senti estremecer


com o meu toque. Mas ela não se afastou. Na verdade, colou seu

corpo mais ao meu e seus lábios voltaram para os meus.


Não foi um beijo bonito. Foi um beijo selvagem e necessário.
Um que ansiava deixar marcas por toda uma eternidade.
Eu quis ter forças para recuar. Parte de mim, de repente,

quis fugir da responsabilidade que poderia ser tudo aquilo. Quis ter
o poder de apenas pegar Roxanne e María e desaparecer.

Desaparecer em uma noite mais feliz e onde o futuro para nós não
soasse tão incerto como o do dia de amanhã. Entretanto essa

alternativa não existia. Tudo o que eu podia fazer era me concentrar


nos momentos de paz e felicidade que teria ali, nos braços da
mulher que eu amava. Mesmo que esses não se repetissem.

Por isso, no lugar de pensar em qualquer outra coisa, eu


soltei Roxanne e arranquei o meu suéter do corpo. As calças saíram

em seguida, e quando eu me ergui, após afastá-las, encontrei


Roxanne saindo de suas roupas também.
Aconteceu um acordo silencioso e mútuo entre nós naquele

momento. Não emitimos palavra alguma quando voltamos a nos


jogar nos braços do outro. Quando me sentei na beirada da cama,

Roxanne apenas me seguiu e subiu no meu colo. Uma perna de


cada lado dos meus quadris e seus braços em volta do meu

pescoço.
Era uma combinação perfeita. Eu duro e ela completamente
molhada para mim.
Enfiei minha mão entre nós e a toquei. Roxanne gemeu,
enterrando a cabeça no meu pescoço para mordiscá-lo.
— Sammi…

Sorri enquanto esfregava seu clitóris duro e a sentia molhar


meu pau, que ficava ainda mais pulsante. Depois esfreguei minha

barba contra sua bochecha macia.


— Isso. Sou o seu Sammi, Rox. Sempre vou ser.
Ela ergueu a cabeça dos meus ombros para me fitar. Seus

olhos estavam brilhantes quando segurou meu rosto.


— Eu sei. Com cada parte do meu coração, eu sei. — E ela

me beijou de novo. Dessa vez, porém, foi sua mão que se colocou
entre nós. — Deite-se, Sammi.

Roxanne pediu com a voz cheia de ternura, e eu só pude


assentir. Se aqueles fossem nossos últimos momentos juntos, eu
faria o possível para agradá-la.

Quando me viu deitado embaixo de si, Rox espalhou beijos


pelos meus ombros e peito. Suas mãos delicadas me apertaram em

todos os lugares certos enquanto sua boca tomava uma direção


cada vez mais para baixo.
— Rox… — Segurei seus cabelos em uma tentativa fraca de

pará-la.
Mas falhei de forma miserável quando ela me tomou com a
boca. Não achava ser possível, mas fiquei ainda mais duro quando
a senti me lamber e depois me sugar para dentro de seu calor.

Roxanne mergulhou em mim e me chupou forte. Precisei me


segurar nos lençóis e fui incapaz de controlar a investida dos meus

próprios quadris.
— Não, Rox…
Não era assim que eu planejava aquilo. Não era para ela

tomar meu lugar na situação e controlá-la.

— Goze para mim, Sammi.


— Porra!

Foi como consegui me defender, mas ainda assim não fui

capaz de parar de me mover. A boca de Roxanne ainda estava em

mim. Minhas mãos em seus cabelos não conseguiam fazer nada


além de senti-la me possuir da forma mais íntima. Ela me fazia seu

de um jeito inesquecível.

Contudo não a deixei me dominar por completo. Eu ainda


precisava ter parte daquela noite apenas para mim. Precisava

daquilo.

Então, quando senti que meu controle estava por um fio, eu


a arranquei de mim. Não com tanta delicadeza como eu gostaria,
mas com a única que eu poderia oferecer no momento.

— Me cavalgue — pedi, ofegante.


Roxanne assentiu. Depois se curvou e beijou o suor da

minha testa.

Segurei meu pau e o encaixei em sua entrada molhada. Em


seguida, estiquei minhas mãos para o alto da cabeça, e ela me

seguiu com as suas, entrelaçando nossos dedos. Nossos olhos sem

deixar um ao outro quando ela começou a se mover.

— Ah, Sam…
Havia alguma coisa em sua voz, mas que foi encoberta pelo

gemido que seus lábios liberaram em seguida, quando estoquei

profundo dentro dela, ao mesmo tempo em que agarrava um dos


seus seios com a boca. Outros gemidos vieram e se misturaram aos

meus grunhidos quando não consegui parar mais.

Estocada.
Gemido.

Suor.

Desejo.

Nós éramos a mistura de tudo aquilo. Mas também éramos


amor. Amor em sua forma mais pura e devotada. Soube disso
quando ela gemeu meu nome uma última vez, e eu me derramei

dentro dela ao mesmo tempo.

Não pude mais esconder quando a abracei. Não tinha


premeditado falar sobre sentimentos naquela noite, todavia, percebi

que era o que estava fadado a acontecer.

— Eu amo você, Rox. — Confessei. — Seu carinho tirou a

amargura do meu peito e colocou amor no lugar. Você me deu uma


família. Sempre vou amá-la, Rox. Sempre.

Ela chorou contra o meu peito, sentindo toda a tensão do

momento.
Também senti que lágrimas desciam pelo canto dos meus

olhos enquanto minhas mãos acariciavam seu cabelo perfumado.

— Yo también te quiero, Samuel.

Roxanne soluçou e escondeu ainda mais seu rosto de mim.


Mas eu não precisava vê-la ou de qualquer tradução para sentir a

verdade em cada uma de suas palavras em sua língua nativa.

Foi maravilhoso e me fez ir do inferno ao céu. Num instante,


nada mais importava no meu mundo, senão aquela declaração.

— Está tudo bem. Tudo bem. — Tentei consolá-la. — Nós

vamos ficar bem, mi amor. Podemos conversar sobre isso depois.

Quando eu te der os presentes de Natal. Após dormirmos um


pouco, que tal? María está segura com meu pai, então não há

pressa.
As costas suaves de Roxanne tremeram como se ela

estivesse com frio. Passei minhas palmas abertas por elas,

procurando esquentá-la enquanto a sentia assentir devagar.


— Vamos ter tempo — prometi.

— Vamos…

Rox concordou, baixinho e com voz fraca.

Não pude fazer mais nada senão me entregar ao sono e ao


amor que sentia. Nenhuma dúvida restou dentro de mim.

Eu mataria e morreria por esse amor. E faria tudo isso certo

de que tinha sido o maior acerto de toda a minha vida.

ROX

Só me mexi quando senti a respiração do homem da minha


vida se acalentar, demonstrando que ele estava em sono profundo.
Então eu me virei para olhar Samuel Mead. Meus olhos se

encheram de lágrimas ao fitar o rosto másculo, bonito e adormecido.

Lembrei-me de cada momento que havia acontecido entre nós até

ali.
“Não pode ter um bebê no asfalto sujo e congelado de

Washington.”

“Lute. Fique comigo, Roxanne.”


“Não vou deixar que nada aconteça a você. Nem à menina.”

“Você e María consertaram a bússola do meu coração,

Roxanne. Agora ela está apontando para vocês.”

“Seu carinho tirou a amargura do meu peito e colocou amor


no lugar. Você me deu uma família. Sempre vou amá-la, Rox.

Sempre.”

Minha garganta travou e tive que contar com um esforço


hercúleo para não começar a soluçar alto e acordá-lo. O amor podia

trazer lágrimas, mesmo quando era real e puro. Mesmo quando era

a coisa mais bonita que alguém poderia ter na vida. Temendo perder

o pouco de controle que me restava, virei-me com um pouco mais


de cuidado e estendi a mão para tocar o rosto de Sam. Era

arriscado, mas eu não podia me negar àquele apelo necessário.


— Querido Sammi, mi amor. — Comecei baixinho, e vi

apenas seu cenho franzir-se um pouco. Talvez, de alguma forma,


minhas próximas palavras ficassem guardadas para sempre em seu

inconsciente. — Acho que terei de mudar a ordem da nossa troca de

presentes esta noite e vou me adiantar a você. Boa parte do que

vou dizer agora, eu deixei escrito para você em uma carta. Você vai
encontrá-la em cima dos papéis que queria me dar como presente

de Natal. Eu os trouxe do seu escritório mais cedo. O visto que viria

com o casamento que queria me propor de novo e o testamento que


fez em meu nome e no de María… está tudo sobre o aparador, e

você vai poder ler com calma, mas eu precisava…

Minha voz desapareceu. Precisei parar para conter o choro


que outra vez ficou perto demais de sair. Meu coração doía tanto

que era difícil respirar. Mas eu não desisti. Não poderia. Lutei contra

a dor no meu peito até poder retomar as palavras.

— Eu precisava dizer isso olhando para você. Ainda que


você não possa me escutar, tenho esperança de que possa ouvir ao

menos o meu amor e guardá-lo no seu coração. Vou apostar nisso

para que entenda tudo o que fiz, mais tarde. — Permiti que minha
mão deslizasse da forma mais suave possível por seu queixo bem-

feito. — Você entrou na minha vida justo no momento em que


pensei que não poderia acreditar em mais nada. Você me disse que
não era um homem bom, mas acho que você esteve falando contra

si mesmo por todos esses anos… — Senti um pequeno sorriso nos

meus lábios, tentando iluminar a saudade que já me tomava por


inteira e respirei fundo. — Porque está claro que você é o melhor

homem que qualquer mulher poderia encontrar. Eu achei que só

viveria dor na minha vida, mas hoje me vejo agradecida até mesmo
por cada ferida e tropeço, porque todos os caminhos tortuosos e até

as escolhas ruins me trouxeram até você.

“Cada noite que tivemos, cada toque e olhar ficarão

gravados em mim para sempre. Você é o amor da minha vida,


Samuel Mead. Nunca se esqueça disso. Provavelmente já é o

grande amor da vida de María também, mesmo que ela entenda

muito pouco sobre isso agora. Sei que, com você, ela estará segura
em cada passo que der para desbravar o que a vida lhe trouxer. E

onde quer que eu esteja, eu serei eternamente grata a você por


isso. Essa já é a maior dádiva que uma mãe pode receber, saber
que sua filha crescerá feliz e amada.”

Funguei baixinho enquanto sentia as lágrimas ultrapassarem


meu nariz e se empoçarem no travesseiro abaixo do meu rosto.
— Mas isso também é tudo que você pode fazer por mim.
Você já se sacrificou demais, Sam. Até aqui ajudou-me a enfrentar
as consequências dos meus erros, mas isso precisa acabar. Essa é

a minha batalha e só pode terminar comigo. Juan me quer, e


quando ele me tiver de volta para fazer o que desejar comigo, você
e María ficarão em paz. E no final, é só disso que eu preciso para

ter minha paz também. Saber que as duas pessoas que eu amo
estarão a salvo e felizes.
Um ruído quase alto demais escapou da minha garganta.

Mordi a mão para abafar o restante da dor que poderia sair.


Sam se moveu um pouco. Seus olhos chegaram a se abrir, mas
logo se fecharam com ele murmurando uma frase entrecortada, mas

ainda entendível.
— Amo você, Rox…
Passei a mão pelas minhas lágrimas para que elas não

pingassem sobre o seu rosto quando me aproximei para beijar seus


lábios adormecidos.

—También te quiero, Sammi. Siempre. Siempre. — A


segunda parte eu só disse quando já estava a uma distância segura.
— Meu coração ficará com você e com María, esse é meu presente

de Natal para vocês. Por favor, diga à minha filha que a amei mais
do que tudo que tive e que me senti abençoada por tê-la. Por ter
vocês dois.
Outro soluço ameaçou romper tudo que havia dentro de

mim, e percebi que aquele era o meu limite. Aquele seria o máximo
que eu poderia fazer para me despedir, antes de desabar

completamente.
Engolindo tudo o que fazia meu peito queimar, eu me afastei
do corpo quente do homem que eu amava. Depois desci da cama

devagar. Na penumbra do quarto, eu vesti as roupas que havia


dobrado antes. Mais grossas e próprias para a nevasca na noite lá
fora. Quando estava pronta, enfiei o braço embaixo da cama e

peguei a pequena bolsa com parcos pertences que organizei há


dias. Então fui até o aparador e procurei o celular de Sam. Eu havia
usado o aparelho furtivamente enquanto ele trabalhava com o pai,

durante os últimos dias. Encontrei-o perto dos papéis e da carta que


ele leria em breve.
Uma mensagem do número não identificado, com quem

andei conversando, chegou naquele momento.


“À espera. Dois minutos.”

Eu mal tinha lido a mensagem, quando uma luz que pareceu


ser de um farol de carro bateu contra a janela e piscou.
Ele já estava ali. E havia sido claro com relação ao tempo de
espera. De repente, compreendi que não teria mais tempo para me

despedir de María. Além de poder ser arriscado, já que era Wallace


que estava tomando conta dela. Meu peito tremeu, e fechei os olhos
com força, precisando me apoiar por um instante no aparador.

Procurei na minha mente o rostinho de María. Visualizei-o nas


tantas vezes em que a amamentei e embalei seu sono.

— Amo você, mi hija — sussurrei, segurando uma mão


contra o peito.
Pedi a Deus que meu amor chegasse até ela de alguma

forma.
E então eu fiz o que devia fazer.
Segurei a sacola de pertences com força e caminhei para a

porta do quarto. Meu melhor plano era me manter firme e não me


virar para vê-lo outra vez. Mas fracassei miseravelmente quando me
vi parada na entrada. Minha mão pareceu agarrar-se à maçaneta, e

não consegui simplesmente me virar e partir sem lançar último olhar


para a cama.
Sam estava completamente relaxado. O corpo forte um

pouco curvado na direção do lugar que eu ocupara antes. Como se


ele ainda me procurasse para o abraço que sempre era capaz de

mudar o ritmo do meu coração.


Minhas últimas lágrimas caíram.
— Por favor, mi amor. Se lembre de mim com carinho —

pedi.
E fechei a porta antes que minhas pernas não
conseguissem mais responder.

A escadaria principal tinha luzes de sensor, mas antes de


descer por ela, eu avistei as armas da família de Sam. Armas da

época da Guerra Civil Americana e que me fizeram perceber que eu


não tinha nada prático com o que me proteger. Eu poderia estar
caminhando para o meu próprio fim ao encontrar Juan, entretanto,

não cederia sem uma última luta. Por isso me aproximei e peguei o
menor revólver exposto na parede. O feito causou mais ruído do que
eu gostaria. Mas, no final, enfiei-o na sacola sem pensar muito e

tomei o caminho para descer as escadas.


Assim que atravessei o hall e saí pela porta principal da
casa, fui recebida por um terrível vento cortante e por flocos de neve

que caíam sem parar. O esquema de segurança havia sido


desmontado pelo chefe e amigo de Sam. Foi relativamente fácil
caminhar pelas árvores até o carro escuro que me esperava na
estrada. A porta de trás do veículo foi aberta tão logo fiquei próxima
o suficiente, e eu entrei em seguida.
Um homem, de cabelos escuros e com olhos azuis

profundos, esperava por mim. Ele me analisou dos pés à cabeça


sem receio algum.
— Roxanne Mead. — Ele estendeu a mão em apresentação

assim que o carro se colocou em movimento. — Sebastian


Knighton.
Eu podia corrigi-lo em relação ao sobrenome que me deu,

mas não o fiz. Não quis e não sabia se conseguiria pronunciá-lo


sem me desfazer.
— É um prazer conhecê-lo pessoalmente, senhor Knighton.

— Apertei a mão dele.


— Acredito que não será tão prazeroso assim por muito

tempo. Não para mim. Seu marido vai querer a minha cabeça
depois de perceber o que aconteceu.
— Sam estará seguro, e isso é tudo o que importa para

mim.
O amigo de Sam foi direto.
— Ele disse o mesmo sobre você e a criança. O que me faz

pensar que perdê-la pode devastá-lo mais do que se pensa. — E


então ele suspirou e olhou adiante. — O coração de um homem fica
frágil demais quando ele ama, senhora Mead, e sua partida pode

quebrar meu colega para sempre. Está certa do que quer fazer?
Isso não será fácil, e o preço poderá ser alto.
— O senhor quer que eu desista? — perguntei com a voz

estrangulada.
Eu não precisava repensar algo que já estava sendo difícil o
suficiente.

Sebastian Knighton negou com a cabeça.


— Não. Nós planejamos isso por dias e fomos longe
demais. Por razões práticas, você é uma isca melhor e mais ágil

para garantir Milagros. E desde que a senhora me mandou aquela


mensagem, mantive Sam acreditando que Milagros aceitaria
dinheiro e que a emboscada estaria montada para daqui a dois dias.

— Eu agradeço por ter aceitado ajudar em tudo isso, senhor


Knighton.

— Eu não assumo nada que tenha um final que eu não


possa controlar, senhora Mead. E no meu final, seu ex-namorado se
tornará parte do meu arquivo morto — disse ele, frio, demonstrando

que se importava mais com os fins do que com os meios. — Vamos


apenas fazer o que precisa ser feito já que estamos de acordo.
Assenti.
— Muito bem.

Ele me estendeu um telefone. Aceitei-o, mas só disquei os


números quando percebi que já estávamos afastados do rancho.

A voz surgiu do outro lado depois de três toques.


— Mi dulce, finalmente… Você quase me irritou, fazendo-me
esperar demais dessa vez. Mas tenho tentado ser generoso, agora

que sei que deseja me ver.


Apertei as pálpebras com força.
Pensei no primeiro sorriso de María.

Pensei no abraço protetor do meu homem.


Meus olhos arderam, mas os pensamentos me deram força.
— Eu disse na última ligação que iria ao seu encontro se

deixasse minha filha em paz, e vou, Juan. Apenas me diga o lugar.


Ouvi seu riso de satisfação. E pude visualizá-lo
perfeitamente enquanto lutava contra a onda de pânico que descia

pelo meu estômago. No entanto não era mais o momento de fugir.


Era o momento de lutar e pôr fim aos meus erros.

— Ah, mi dulce. — Ele quase cantarolou num tom mórbido.


— Eu tenho um ótimo lugar para nossa reconciliação. Você o amará
para sempre.
— Diga-me — falei, reunindo toda a minha coragem.

Ele disse e eu o ouvi, acreditando como nunca na minha


última escolha.
Boas decisões também feriam e causavam dor, no entanto,

eu finalmente estava pronta para encarar o meu desafio mais


terrível por aqueles que amava.
Enquanto dormia,
Eu sonhei que segurava você em meus braços.

Quando acordei, querida, eu estava enganado.


— ANNE MURRAY, “You Are My Sunshine”.

SAM

Foi o choro de María que me acordou.

Isso e batidas insistentes contra a porta do quarto.

Abri os olhos para a claridade pálida da manhã de Natal e


não vi nada além disso. O quarto estava vazio, assim como o

espaço da cama ao meu lado. O lençol estava enrugado, e quando

estendi a mão para tocá-lo, percebi que o local estava gelado. Não
era incomum. Com uma bebê, um de nós sempre acabava fora da

cama bem mais cedo. Eu já havia me acostumado. Entretanto, um


aperto que nunca senti no peito, em outras manhãs, me golpeou de

imediato.

— Senhor Mead! Senhora Mead!


Os socos fortes contra a porta me despertaram de vez, junto

com o choro claro de María. A voz feminina que me chamava não

era a de Roxanne. Mas ela também não precisaria me chamar à


porta do nosso quarto e nem chamaria pelo seu próprio nome.

Sentindo-me confuso, saltei da cama. Ainda estava nu, e por

isso precisei vestir um robe antes de ir até a porta para atendê-la.


María estava nos braços da arrumadeira. Seu rostinho

estava vermelho e ela se debatia e chorava com uma força que eu


ainda não tinha presenciado.

— Magda? O que aconteceu? Por que María está chorando

tanto? Ela já se alimentou?

Fiz as perguntas enquanto tomava minha menina de seus

braços e a aninhava nos meus.

— O que foi, pardalzinha? Por que está sofrendo assim?


— Ela já se alimentou, senhor Mead. Eu dei a mamadeira,

mas ela não para de chorar. Procurei pela senhora Mead, para que
pudesse descobrir o que estava acontecendo, porque sei que ela
sempre se levanta bem cedinho desde que chegou aqui. Mas não a

encontrei, nem perto do haras onde ela costumava ir nos últimos

dias. Então calculei que ela pudesse estar dormindo ainda. Mesmo

que fosse improvável.

— Não a encontrou? — María se acalmou um pouco

enquanto eu a balançava. Minha mente também tentou se ajustar


melhor ao que estava acontecendo diante dos meus olhos. — Como

assim não a encontrou?

Neve pesada caía do lado de fora, impedindo qualquer

pessoa de dar um passeio agradável. Além disso, Roxanne nunca

se afastava demais da casa. Nem da filha.

— Não a encontrei em parte alguma — explicou Magda,

passando as mãos nervosas nos cabelos grisalhos. — Seu pai


também não está em casa. Ele levou a bebê até o meu quarto

ontem, no meio da noite. Então, depois de me pedir para cuidar de

Mary, desapareceu.

— O quê?

Balancei a cabeça sem compreender mais nada do que

estava acontecendo.
— Espere, senhora Martinelli, a senhora está me dizendo

que não há ninguém no rancho esta manhã?


Ela assentiu.

— Sim, senhor Mead.


— Em nenhum lugar da propriedade?
— Eu enrolei bem sua filhinha em um cobertor e investiguei

tudo. Não há ninguém nos jardins, nos celeiros e nem no haras. Não
há ninguém no rancho além de nós três.

— Mas isso não pode ser possível, Magda. Eles não


poderiam ter ido a lugar algum…

Nada daquilo fazia sentido.


Porém, antes que eu pudesse pensar direito, meu celular fez
um barulho alto contra o vidro do aparador e começou a tocar. Não

pensei muito antes de me ver a caminho de atendê-lo. María estava


mais calma nos meus braços, embora algo dentro de mim

começasse a se agitar de uma forma terrível. Frases desconexas,


de repente, povoaram a minha mente.

“Ainda que você não possa me escutar, tenho esperança de


que possa ouvir ao menos o meu amor e guardá-lo no seu coração.”
“Essa é a minha batalha, e só pode terminar comigo.”
E então, mesmo antes de alcançar o celular, eu soube.

Alguma coisa de ruim tinha acontecido.


Instintivamente, apertei mais María nos braços, precisando

de mais força.
Ao chegar perto do celular, notei que não se tratava de uma

ligação. Tratava-se de uma mensagem de texto de um número que


eu nunca havia visto. Entretanto não foi isso que me prendeu a
atenção. O que roubou meu olhar foi o papel que se assemelhava a

uma carta dobrada ao meio. O papel estava justo em cima do


envelope fechado que eu tinha pretendido dar de presente para

Roxanne e María, na noite anterior.


Meu coração falou por mim mesmo antes que minhas mãos
agarrassem o papel.

— Não, Rox…
Outra frase que parecia surgir de um sonho escolheu esse

momento para ficar clara nos meus pensamentos.


“E, no final, é só disso que eu preciso para ter minha paz

também. Saber que as duas pessoas que eu amo estarão a salvo e


felizes.”
— Deus, não permita… — supliquei, mesmo nunca tendo

feito nada para merecer o favor de um bom Deus na vida.


Puxei o papel de qualquer jeito com a mão livre. Quase o
deixei cair, mas no final consegui abri-lo e segurá-lo para ler. As
letras ficaram embaralhadas e depois trêmulas diante das minhas

vistas, já que os músculos da minha mão não pareciam mais ter a


autonomia necessária para mantê-la firme.

“Querido Sammi,”
Era assim que começava o texto. Com duas palavras que
revelavam carinho. Mas o que elas guardavam em seguida fez um

som feio escapar do meu peito. Tão feio que logo senti Magda ao
meu lado, afastando dos meus braços uma María que voltou a

chorar.
— Senhor Mead, meu Deus… O que está acontecendo,

senhor Mead?
Sem María, de repente, eu estava sem força alguma e caí
no chão. Sentado no meio do quarto sem me preocupar nem um

pouco com o estado do meu roupão que se abrira e poderia estar


revelando minha nudez para a pobre mulher assustada parada perto

de mim.
Nada disso poderia ter qualquer significado agora. Na
verdade, todo o meu mundo parecia em queda livre de qualquer
sentido, enquanto eu lutava para conseguir finalizar a leitura das
palavras naquele papel marcado por lágrimas.

“Por favor, mi amor, perdoe-me pelo que fiz e não fique


zangado com o seu amigo que me ajudou nisso. Fui eu que pedi a

ele para mentir para você sobre como e quando seria montada a
emboscada que criaram para Milagros.
Eu sempre acordei ao ouvi-lo falar com María no berço,

desde a primeira noite em que passei na sua casa. Então, há uma

semana, quando coloquei as pilhas de volta na babá eletrônica, eu


ouvi o que você premeditava fazer por nós. Ouvi quando discutia

seus planos com seu pai no quarto de María, no meio da noite.

Depois disso, eu mandei mensagens para o seu amigo Sebastian e

fiz ligações enquanto fingia ler no haras. Pedi para assumir o seu
lugar na estratégia que estavam tramando e que acontecerá nesta

manhã de Natal. Por favor, perdoe-me por enganá-lo assim, mas eu

não podia deixar você fazer mais esse sacrifício. Não podia mais
permitir que continuasse a travar todas as minhas batalhas, Sammi.

É a minha hora de lutar pelas pessoas que amo. E você é

uma delas, Sam. Você segurou a minha mão quando ninguém mais
queria segurar. Você me ajudou a trazer a melhor parte de mim a
este mundo, e acho que você a amou desde aquele primeiro

instante. Ela é tão minha quanto sua. E é por isso que não temo em
deixar minha filha aos seus cuidados por escrito. Sei que será um

pai maravilhoso. Você a amará e a protegerá como fez desde o dia

em que ela abriu os olhos, mas se precisar provar isso a alguém na


justiça, esta carta mostrará a todos que era de minha vontade que

María ficasse com você. Sei que serão felizes juntos. Com direito a

Harvard e tudo. Por consequência, eu também serei feliz onde quer

que eu esteja. Obrigada por tudo o que fez por mim e obrigada por
entrar na minha vida naquela tarde coberta de neve, Samuel Mead.

Você se tornou a nossa família. Para sempre.

Te quiero siempre, siempre, mi amor.

Sua,

Roxanne Rivera.”

De repente, não eram apenas as lágrimas já secas de

Roxanne que marcavam o papel. Lágrimas novas — minhas —


também encharcavam a folha.

“Essa é a minha batalha, e só pode terminar comigo.”


“Saber que as duas pessoas que eu amo estarão a salvo e

felizes.”

As palavras fizeram todo o sentido naquele momento. E elas


não tinham vindo de um sonho. Aquela tinha sido a voz de Roxanne,

e tudo havia sido real. Ela tinha partido. Descobriu o meu plano e

tomara o meu lugar. Tudo para nos proteger.

Forcei-me a me levantar, e quase caí em cima do aparador


de vidro, devido à fraqueza que parecia dominar o meu corpo.

— Senhor Mead! — Magda soltou um grito estrangulado.

Não me importei. Consegui o que queria e agarrei o meu


celular.

A mensagem do número desconhecido não era tão

desconhecida assim no final das contas, porque claramente era uma

nota fria e vazia de Sebastian.


“Sinto muito, Mead. K.”

Era tudo o que o texto abrangia. Três palavras que me

lançaram em um inferno do qual eu sabia que tinha poucas chances


de escapar.

— Filho da puta! — berrei ao notar que tinha sido

ridiculamente enganado. — Ele a tirou de mim! Ele a levou, mesmo

depois de me prometer a segurança dela! Ele vai deixar que o


maldito a mate para pegá-lo! — E eu não tinha muito tempo para

impedir. Como eu podia ter confiado o amor da minha vida nas


mãos de um homem que sequer tinha coração? — Eu preciso ir.

Não posso permitir que isso aconteça. Não vou deixar que Milagros

machuque a mulher que eu amo!


Eu sabia que urrava e falava mais para mim mesmo, mas

não consegui me importar com isso também.

— Senhor Mead, por favor, me explique, o que está

acontecendo? Eu estou assustada…


A senhora Martinelli cortou a frase e soltou um grito agudo

quando eu afastei o roupão do corpo para entrar em roupas de

verdade. Comecei a falar, mesmo ainda me vestindo.


— Por favor, Magda, tome conta de María enquanto eu

estiver fora — pedi logo depois de entrar nas calças.

Eu não podia explicar direito. O tempo corria contra mim.

A armadilha tramada por Sebastian aconteceria longe. Isso


se aquela parte da trama houvesse sido verdadeira. Tudo estava

bagunçado na minha mente agora. Roxanne havia controlado as

coisas sem que eu me desse conta. Como eu pude ter sido tão
estúpido? Uma mulher como ela jamais ficaria parada, permitindo

que eu resolvesse sua vida. Por isso ela estivera tão tensa durante
os últimos dias. Por isso concordara em fazer amor comigo sem

uma conversa antes. Porque ela já tinha seus próprios planos.

Mas nós éramos uma família. Não foi apenas Roxanne que

sentiu aquilo. Eu também senti. E não se desiste da família. Não se


permite tão facilmente que ela seja arrancada de nós ou ferida de

qualquer forma.

E então, meu pai me veio à cabeça, assim como suas


palavras.

“Você me pediu para protegê-las. É o que farei. Não falharei

em cuidar da sua mulher…”

Ele tinha ido com ela para cumprir sua promessa a mim. Ou
a tinha seguido, uma vez que também desaparecera na calada da

noite.

Deus do céu, o que eu tinha criado? Eu poderia perder


todos…

— Senhor Mead… — insistiu Magda.

Virei-me já vestido para ela, mas apenas para beijar a

cabecinha frágil de María.


— Seu pai vai voltar e trará todos para casa — prometi a ela

sem conseguir mais conter as lágrimas. — Por favor, senhora

Martinelli, cuide da minha filha.


Era a primeira vez que eu deixava o amor pesar minhas

palavras completamente, chamando María de filha, e Roxanne nem


estava ali para testemunhar isso. Para saber que o laço de amor

que nos unia era mais sólido que qualquer um de sangue.

A arrumadeira italiana, pálida como seus cabelos, apenas

assentiu. Depois se aproximou e colocou uma medalhinha de São


José, o protetor da família, nas minhas mãos.

— Deus o guarde — disse ela.

Não consegui responder, apenas corri.


Você pode perder tudo de vista
E a escuridão dentro de você

Pode te fazer se sentir insignificante.


— CYNDI LAUPER, “True Colors”.

ROX

Desde que eu havia feito minha primeira ligação para Juan,

uma semana atrás, com a intervenção de Sebastian e de agentes

da DEA para mascarar minha localização, eu sabia bem o que


esperar.

Quando nos envolvemos, Juan se mostrou impetuoso e

dramático. No início de tudo, eu havia considerado seus atos


exagerados como românticos, mas não eram. Aqueles arroubos

ferozes eram apenas faíscas de sua personalidade deturpada. Da


forma maníaca como ele encarava a vida e de como ele podia ser

capaz de qualquer coisa quando assim desejava.

Por isso, não me espantei que o carro, que me buscou no


endereço indicado por ele no centro de Austin, estivesse abarrotado

de flores para mim. Um homem louro, alto e vestido como um chofer

elegante, deixou o banco do motorista e abriu a porta do carro como


um cavalheiro. Entretanto, quando deu um passo para trás para me

dar espaço para entrar no automóvel, eu vi a pistola com silenciador

em sua cintura. Ele colocou uma mão sobre ela enquanto me


esperava passar.

Ignorei o tremor no meu estômago e entrei no carro,


apertando-me contra os ramalhetes de flores variadas.

O homem se virou e deu a volta. Sem falar uma palavra, ele

assumiu o banco do motorista e travou as portas antes de começar

a viagem.

Apertei as mãos no meu colo enquanto tentava mentalizar o

que eu precisava fazer quando chegasse aonde quer que Juan


estivesse me esperando. Sebastian me disse que eu precisava

ganhar tempo, porque os agentes e os policiais selecionados a dedo


me seguiriam. Ainda assim eles não poderiam fazer isso tão de
perto. Não sem levantar suspeitas. Por isso nós teríamos uma

desvantagem de tempo, e se eu deixasse que Juan se livrasse de

mim cedo demais, tudo seria em vão.

Eu teria de entretê-lo com qualquer coisa quando chegasse

ao meu destino.

Apesar das garantias de Juan de que me tendo de volta ele


deixaria de perseguir María e Sam, eu duvidava muito de suas

palavras. Juan nunca teve esse tipo de caráter. Ele jamais seria

como Sam, que sofreria por distorcer promessas para esconder um

sacrifício de amor.

Não. Aquela armadilha precisava dar certo. Seria o único

jeito de manter Sam e María em segurança para viverem suas vidas

plenamente e terem um futuro bom.


Por isso, eu me mantive firme enquanto seguíamos por uma

rodovia congelada.

E seguimos… mais e mais. Por um caminho rodeado por

árvores raquíticas e uma paisagem desértica de inverno. Sem nada

adiante e nada atrás de nós. Abracei-me para espantar o frio, mais

emocional do que físico. Foi uma ótima escolha vestir o casaco de


Sam. Seu cheiro me sustentava.
— Por vocês.

Fiquei repetindo as duas palavras baixinho e com os olhos


bem fechados. Meu coração batia acelerado, e respirar era difícil.

Mas procurei ver na escuridão da minha mente todas as partes boas


recentes da minha vida. Cenas oferecidas pela minha filha e pelo
homem que eu amava. Não sei por quanto tempo fiquei assim, mas

foi o suficiente para que ao ouvir um estalo e abrir os olhos, eu me


deparasse com o motorista loiro abrindo a porta.

— Senhora. — disse ele finalmente.


Mas não me ofereceu ajuda para sair. Continuou com a mão

direita sobre a arma para sacá-la a qualquer momento. Também


senti o cano gelado da pistola que roubei no rancho cutucando a
minha coluna. Não era o local menos previsível para esconder uma

arma, e eu não tinha contado ao amigo de Sam sobre ela. Segundo


Sebastian, o plano dependia do fato de Juan acreditar que estava

no controle. Ele havia marcado o lugar e havia mandado o carro.


Estar armada na situação era um risco. Eu precisava torcer para

não ser revistada. No entanto contava com a obsessão de Juan


nessa parte, já que ele nunca deixou qualquer homem do cartel me
tocar.
Ainda assim, senti meu sangue gelar quando desci do carro

para o que parecia ser um aterro sanitário. Ao menos era o que dizia
na placa congelada exibindo o horário de funcionamento sobre o

portão forrado por cerca elétrica. Tremi quando o homem passou


atrás de mim para fechar a porta do carro, mas ele não me tocou.

— Por aqui, senhora.


Ele indicou com a cabeça, mas me fez seguir na frente, e
finalmente segurou a arma em mãos.

Engoli em seco, mas não deixei meus passos vacilarem.


Andei por uma planície congelada com o homem atrás de mim, até

que em uma elevação surgiu o que pareceu ser uma estação de


produção de gás natural.
— Espere aqui. — Ele saiu assim que me deixou dentro do

galpão com canos longos de metal que mais pareciam serpentes.


Depois que os seus passos se afastaram, não houve

nenhum barulho no labirinto de metal empoeirado.


Meu estômago se contorceu tanto que pensei que fosse

vomitar. Fiquei parada, mas girando a cabeça para todos os lados.


Esperando por uma sombra, a risada característica dele ou o som
de uma arma sendo engatilhada… Pensei que se ele fosse atirar à

queima-roupa, eu precisaria garantir que não acertasse nada vital.


Senão o tempo que prometi dar aos agentes americanos não
aconteceria.
Depois de momentos de silêncio e depois que as palmas

das minhas mãos já estavam em carne viva, graças à força com que
mantive minhas unhas cravadas nelas, é que eu ouvi o som de algo

deslizando pelos canos, a melodia de um assobio tranquilo o


acompanhando. Mas o barulho sumiu sem que ninguém surgisse de
lado algum.

E então, de repente:
— Revistem-na.

A ordem ríspida veio de cima da minha cabeça, mas não


tive tempo para procurar por ela com os olhos. Dois homens

grandes surgiram de trás dos canos e me agarraram. Não levou


mais do que dois segundos para um deles achar a arma e bater com
ela na minha cabeça.

Fiquei zonza e cambaleei enquanto o brutamontes jogava a


arma no chão e a chutava para perto dos ductos.

— Batam outra vez.


Recebi um novo golpe nos ombros, e berrei de dor ao ouvir
o som de osso e carne amassados.

— De novo.
A pancada no estômago me lançou no chão, mas não
terminou assim. Minhas costelas foram chutadas com tanta força
que minha ânsia de antes se transformou em realidade, e eu vomitei

no chão do galpão.
— Chega! Voltem aos seus postos.

Os homens se afastaram, deixando-me meio afogada no


meu próprio vômito. Não consegui forças para me mover quando os
sapatos italianos caros pararam diante de mim. Mas Juan me fez

esse favor. Ele segurou meus cabelos com força e ergueu meu rosto

para ele.
— Mi dulce. Há quanto tempo… Senti saudades. Muitas

saudades.

— Juan… — Tentei falar, mas sentia não ter ar o suficiente.

Um gosto de ferrugem subia pela minha garganta.


— Psiu… Não tente falar, mi amor. Está machucada.

E como se não houvesse sido ele o autor de tudo aquilo,

Juan me pegou nos braços. O sangue que chegou à minha boca


escorrendo e manchando o terno branco como a neve que ele

usava.

— Juan… — Tentei de novo.


Ele me embalou contra o peito.
— Quietinha — pediu.

Em seguida, me colocou sentada sobre uma plataforma de


concreto. Então desfez a gravata e a usou para limpar um lado do

meu rosto que parecia também verter sangue. Pensei que pudesse

ser o lado da coronhada, mas minha cabeça doía demais para


cogitar qualquer coisa direito. Minha visão do rosto do homem à

minha frente ainda estava turva.

— Está vendo o que me fez fazer? Eu não queria isso. Você

me obrigou a machucá-la, mi dulce… Mas não poderia querer nada


de diferente, depois de me deixar desesperado, procurando por

você e ainda trazer uma arma para o nosso reencontro de família.

Ele abriu um sorriso diante das últimas palavras, e


finalmente consegui enxergá-lo.

Juan Milagros. Minha escolha mais terrível e o genitor do

meu bebê.
E ele era o mesmo homem aparentemente inofensivo que

me ofereceu um saco de pãezinhos, há seis anos. Naquele

momento, estava até mesmo usando seus óculos de grau, como na

noite em que o conheci. O cabelo acobreado, quase louro, penteado


de um jeito espontâneo e rivalizando com os olhos escuros. O
impecável terno branco era parte do conjunto para levar um

observador desatento à conclusão errada.

Porém nada poderia esconder o brilho horripilante em seu


olhar.

— Por que você fugiu, Roxanne? — Ele acariciou meu rosto

com a gravata suja de sangue. — Por que você fugiu do pai da sua

filha? Eu poderia te matar por isso…


Ele segurou meu queixo com força.

— Você vai me matar. — Encarei aquela escuridão no olhar

dele, e minha voz saiu num rosnado baixo. — É um fato… Nós dois
sabemos disso.

Ele apertou mais os dedos na minha bochecha, fazendo

meus dentes cortarem a pele interna da minha boca. Então me

soltou e suspirou.
— Pode ser que sim. — Juan se afastou e deu de ombros.

— Pode ser que não. Isso vai depender das suas respostas e

reações. Quem sabe eu esteja disposto a perdoá-la se se comportar


bem.

Ele ergueu uma das mãos, e o mesmo homem que tinha

dirigido meu carro lhe trouxe um cigarro e um isqueiro. Tremi ao ver

o fogo brilhar nas mãos dele. Entretanto, logo que a dor das
pancadas contra o meu corpo cedeu, voltei a pensar mais

racionalmente.
Tempo, lembrei-me. Era isso que eu precisava garantir.

Sebastian tinha me dito que um segundo a menos poderia colocar

tudo a perder.
— Você me prometeu que iria parar de fumar. — falei assim

que ele terminou de acender o cigarro.

Juan sorriu.

— Então você ainda se preocupa com as promessas que fiz.


Curioso. — O sorriso dele se alargou depois que ele tragou o cigarro

bem diante do meu rosto. — Você também me fez promessas, mi

dulce. Prometeu que não tentaria fugir de mim outra vez, por causa
de um bebê indesejado. Mas me fez prossegui-la por todo esse

último ano aqui, na terra dos ianques. Na verdade, estou surpreso

que tenha me ligado e vindo me encontrar de tão bom grado. Pode

me explicar tamanha mudança de atitude?


Tossi sangue antes de responder.

— Eu não queria que mais ninguém corresse risco por

minha causa, e você... Você estava chegando perto. Você me


acharia. Era questão de tempo.
— É claro. Como eu achei em Washington. — Juan soprou

fumaça entre seus dentes brancos e perfeitos. Depois se aproximou

mais. Sua boca pairou sobre a minha quando ele forçou meu queixo

a se erguer. — Você é a mulher que eu amo, Roxanne. Sempre vou


encontrá-la, de um jeito ou de outro, porque você é minha desde

que a encontrei naquela rua de putas.

— Sei disso. Você me marcou para que eu não esquecesse.


— Doía falar, entretanto, eu não ia ceder a qualquer dor que Juan

me causasse. Não dessa vez.

— Talvez eu devesse marcá-la de novo para que não

cometa mais erros, então.


E antes que eu pudesse reagir, Juan me beijou.

E o toque esteve longe de qualquer carinho. Ele deturpou

sua natureza, usando-o para me machucar e me asfixiar. Tentei me


afastar, mas ele segurou a parte de trás da minha cabeça,

enterrando os dedos nos meus cabelos e puxando-os. No final, seus

dentes puxaram meu lábio inferior e o rasgaram.

Gritei e aspirei sangue.


Juan se afastou apenas o suficiente para olhar o que tinha

feito. O sorriso dele voltou a ficar aberto, e ele afagou a ferida

ensanguentada.
— Gosto de deixar cicatrizes em você, Roxanne. A dor é

mais memorável que os bons gestos. E você se esqueceu do seu


lugar enquanto fui o cara bonzinho que te tirou do lixo. Mas eu avisei

o que aconteceria se não me amasse, não avisei? Eu te disse que

enquanto fosse a minha garota obediente estaria a salvo. Que seria

a minha rainha. No entanto, também lhe mostrei como poderia punir


seus comportamentos inadequados. — disse ele, calmo. — Ainda

assim, você passou todo esse ano pensando que poderia me fazer

de idiota. Agora, como resultado da sua estupidez, outras pessoas


terão de pagar. Mas essa será uma boa lição, posso garantir. Nunca

mais ninguém se colocará entre nós.

— Por favor, Juan... — Segurei a mão dele. — Você


prometeu que não machucaria mais ninguém se eu viesse até

você...

Ele analisou nossas mãos juntas. Então fez menção de se

afastar um pouco. Porém foi apenas um truque para me distrair. De


repente, a mão que tinha acabado de me soltar afundou contra o

meu estômago. Juan me empurrou com força o suficiente para me

jogar de cima da bancada, e minha cabeça, já machucada, levou


outra pancada.
— Ah, Deus... — Chorei de dor, mesmo com pouco ar para
isso.

Juan esbravejou:

— Porra! Você está me cobrando promessas quando você


quebrou as suas? Você não cumpriu sua promessa de estar comigo

para sempre. Eu só tinha você para confiar depois que meu pai se

foi, e mesmo assim você me deixou sozinho, Rox! — Ele apontou


um dedo acusador para mim. — Depois de tudo o que fiz para te

ajudar, você não se importou comigo e com o peso infernal da vida

que eu levo. Você só conseguiu se importar com aquela coisa que

estava na sua barriga! Você resolveu me trocar por ela no momento


em que ficou grávida!

— Era o meu bebê, Juan! — berrei, mesmo cuspindo

sangue junto. — Não uma coisa! E você queria que eu a tirasse.


Você me deu uma surra na esperança de que ela morresse, e

quando isso não aconteceu, você ameaçou vendê-la!


Juan veio até mim e se abaixou antes de me agarrar pelos
cabelos.

— E se ela tivesse morrido ou se você tivesse me deixado


me livrar dela, não teria por que fugir, Rox. Nós estaríamos felizes
agora, e eu não estaria considerando sobre como encher a sua
goela traidora de balas! — Ele puxou os fios pela raiz até que eu
sentisse alguns se arrancarem e gritasse de angústia. — Desde a
primeira vez em que a vi mendigando, eu a quis apenas para mim,

Roxanne. Você era tão inocente. E eu precisava de inocência dentro


do meu mundo corrompido. Eu precisava de um pouco de pureza
para guardar comigo, sabia? E eu soube que poderia fazer o que

quisesse, se levasse as coisas do jeito certo com você. Soube que


seria apenas nós dois, para sempre. Mas então você estragou tudo,
a querendo. A criança. Ela nos separou! Como eu disse que

aconteceria, essa criança maldita a colocou contra mim desde que


surgiu nas nossas vidas!
Ele estava a ponto de me matar, tamanho era o seu ódio. Vi

quando sua mão livre pousou sobre a arma escondida dentro do


terno. No entanto, ele desistiu de súbito e voltou a se acalmar.
— Estou me excedendo antes da hora. — Juan soltou meus

cabelos e recuou um pouco. Ele chegou a fechar os olhos com força


e respirar fundo antes de continuar. Depois se levantou. —Não

posso estragar as coisas, agora que finalmente estamos juntos de


novo. E nem posso gastar tudo com você, mi dulce. Preciso guardar
surpresas para o seu advogadozinho. O imbecil para o qual você

tem aberto as pernas e do qual parece ter assumido o sobrenome.


Você me ludibriou por um bom tempo com isso. É outra falta da qual
vou me lembrar quando estiver arrancando as tripas do seu amante.
Puxei-o pela manga do terno com força. A menção a Sam

me deixou fora de mim.


— Deixe Sam fora disso! — rosnei.

Juan riu.
— Fora? Depois de ele brincar de casinha e foder com a
minha mulher? — Ele negou com a cabeça. — Não, Rox. Sua

traição terá um preço. Já fui forçado a deixar uma lembrancinha


para o seu novo namorado. Aliás, fui forçado a incendiar qualquer
lembrança que ele pudesse ter, mas isso não será tudo. Ele vai

pagar caro por ter ousado tocar no que é meu. Mas não se
preocupe. Vou contar a você todos os meus planos. Na verdade,
aceitei estar aqui porque quero que testemunhe como todos os que

tentaram nos separar vão encontrar seu fim mais doloroso. E vou
começar isso agora. — Juan procurou pelo homem loiro de antes.
— Ajude-a a se levantar.

O homem atendeu de imediato. Ele se aproximou e me


colocou de pé, mas manteve minhas mãos presas às costas.

Juan se levantou também e organizou sua própria roupa no


corpo.
— Eu preparei algo para nós, mi dulce. — Ele passou as
mãos pelos cabelos, o ordenando também. — Não vim de mãos

abanando, depois de tanto tempo. Mesmo que você tenha me feito


sofrer noite e dia, eu queria que pudéssemos ter um bom
reencontro. Com uma chance de final feliz, quem sabe. Mas antes,

eu precisava que ficássemos iguais em termos de sofrimento. Então


considerei que, em casos de desavenças como a nossa, uma

reunião de família poderia ser a solução mais acertada.


Fiquei confusa diante das palavras dele.
— Sobre o que você está falando? — inquiri.

Juan sorriu. Seus passos na minha direção foram lentos,


assim como o seu toque na minha bochecha quando ele parou
diante de mim.

— Estou falando sobre consertarmos as coisas, para enfim


ficarmos juntos, mi dulce. Planejei nosso reencontro desde que
recebi sua ligação na última semana, para garantir isso.

E então, ele curvou o rosto sobre o meu para sussurrar ao


meu ouvido.
— Foi por causa disso que não vim sozinho. — Lábios

gelados tocaram minha orelha. — Você não cometerá o erro de me


deixar de novo, Roxanne. Não depois de ver essa surpresa e

aprender com as consequências.


E eu soube. Quando a minha espinha gelou e as batidas do
meu coração se aceleraram a ponto de me fazerem sentir ânsia de

vômito.
— Juan... — gaguejei quando ele se afastou para me
encarar.

O brilho pavoroso no olhar dele se tornou cruel.


E então, com um sorriso horrível, ele ergueu o braço e fez

um sinal para alguém que devia estar atrás dos canos às suas
costas.
— Ouça o som, Rox. — Ele levou uma mão à orelha em

concha.
E eu o ouvi com perfeição, enquanto tudo em mim era
devastado.

Era um som ameno.


Conhecido.
Infantil.

Um que eu amava mais do que a mim mesma.


E um homem grande surgiu com ela. Bem atrás de Juan.
María ainda estava completamente enrolada no cobertorzinho de
Natal. Como eu a tinha deixado nos braços de Sam na noite
anterior. A arma que o capanga de Juan carregava às vezes
oscilava contra as renas natalinas.

— Não! María! — gritei com uma voz irreconhecível pelo


terror.
E me lancei para atacar Juan. No entanto, o homem que me

mantinha presa me segurou ainda mais forte.


Esqueci-me completamente de como agir de forma fria, em
prol do tempo necessário para a emboscada. Lutei com chutes e

socos contra o homem que me prendia.


Nem levar um tiro era mais desesperador. Nada importava
mais na minha vida. Juan tinha conseguido o que sempre quis.

Ele tinha conseguido pegar a minha filha.


Nada mais poderia ser salvo.

— Fique quietinha onde está, Roxanne, ou haverá morte. —


Juan avisou e estalou os dedos.
O homem vestido de preto e que estava segurando María

ergueu a arma com o braço livre. Mas não a apontou para mim. Ele
a colocou contra a cabeça da minha filhinha, o que me fez ficar
completamente paralisada como ele ordenou.

— Por Diós, Juan... Por Deus, por favor... — implorei.


— Chamar por Deus é inútil. Você pecou quando me traiu,
Rox. Mas escolheu viver essas consequências quando decidiu

planejar essa armadilha com o seu amante. Você achou mesmo que
eu não saberia que esse encontro repentino se tratava de uma
emboscada?

— Juan, por favor, me perdoe… Não faça isso. Não tire a


vida da minha filha, não a minha María… — Solucei, desesperada.
E quando o homem que me segurava me soltou e se afastou, eu me

agarrei ao terno branco dele. As lágrimas cegavam minha visão


quando caí de joelhos aos seus pés. — Eu te dou qualquer coisa.
Você pode me matar ou me levar e me fazer sofrer pelo resto da

vida, mas não machuque María… Não a machuque, por Díos…


Ele se abaixou e me segurou pelo pescoço, começando a
me estrangular.

— É o que você me pede agora, mi dulce? Por que você


não pensou nisso quando se envolveu com agentes da DEA e com

Sebastian Knighton para foder com o meu cartel? Não era o


suficiente para você me abandonar e se tornar a puta de outro, não
é? Mas eu sempre soube de tudo, Roxanne. Só fiquei esperando a

melhor oportunidade para ter de volta o que é meu. E foi fácil cercar
aquele rancho ianque quando todos saíram e só restou uma
velhinha com a minha filhinha inocente.

Eu não sabia mais como respirar.


Não tinha mais direção para nada.

Tudo o que eu tinha lutado para proteger estava prestes a


ser perdido para sempre, e eu sabia que seria condenada ao
inferno.

Juan apertou mais a minha garganta. Mas minha própria


vida estava em segundo plano.
— Por favor, deixe o meu bebê viver... — falei enquanto

engasgava, sem ar. — Me mate, mas a deixe ir.


Ele apenas sorriu.
— Você era o ponto de luz na minha vida de trevas,

Roxanne. Mas essa criança a levou de mim e isso partiu meu


coração.
— Juan...

A cabeça dele se moveu em negação:


— Lamento, mi dulce. Preciso que passe por isso agora.

Porque se eu também partir seu coração com só um tiro na


cabecinha certa, acho que teremos sofrido igualmente e poderemos
ficar juntos para sempre.
Não esquecerei as pessoas que amo,
Correrei o risco, me arriscarei…

— KELLY CLARKSON, “Breakaway”.

SAM

— Knighton! — berrei ao estourar a porta do velho casebre


de madeira que tínhamos visitado há três dias e decidido que seria o

ponto dos equipamentos durante a emboscada.

Entretanto ao entrar no lugar não consegui pronunciar mais


nada. Foram as minhas mãos que falaram por mim quando peguei

Sebastian pelo colarinho engomado e o soquei no rosto.


— Seu maldito! Eu confiei em você, e você a mandou para

ele! — Atirei-o contra o monitor que antes ele vigiava. — Onde ela
está? Onde está Roxanne?

Sebastian continuou me olhando friamente, mesmo com um

filete de sangue escorrendo por sua boca. Outros dois homens,


carecas e grandes, estavam com ele ali dentro do casebre

minúsculo, mas nenhum se moveu diante do meu ataque.

— Atrás. — Foi tudo o que ele disse.


Não compreendi nada. Minhas mãos tremiam como nunca

ao segurá-lo.

— O quê?
Ele cuspiu sangue no chão antes de responder.

— Atrás de mim, Mead.


— Atrás de você…?

Meus olhos finalmente alcançaram e se detiveram no

monitor. E eu a vi. Em uma câmera provavelmente bem acima de

sua cabeça. Roxanne estava encolhida em um ângulo estranho, em

meio a canos grossos de metal de um galpão do que parecia ser

uma fábrica. Eu não conseguia enxergá-la bem. Nem conseguia


saber o quanto ela poderia estar ferida. Principalmente porque um
homem vestido completamente de branco a cercava, impedindo sua
passagem para onde quer que fosse.

Juan Milagros.

— Esse soco será esquecido porque eu o mereci. —

Sebastian passou por mim. — Mas não temos mais tempo para

isso. Milagros está a menos de um quilômetro daqui. Na estação de

gás do aterro sanitário de Rollingwood. Tudo saiu como devia, e


este é o momento de ir pegá-lo. Meus homens já cercaram o lugar.

E sem dizer mais nada, Sebastian se virou e agarrou uma

arma para acomodá-la no cinto. Ele estava calmo. Quase feliz. Eu

estava prestes a alcançá-lo novamente para lhe dar outro soco,

quando me lembrei do que ele disse.

Aterro sanitário de Rollingwood.

Era lá que Roxanne estava. Virei-me parar abrir a maldita


porta e sair atrás da minha mulher, mas antes de alcançá-la, eu ouvi

o som.

Um muxoxo e depois um choro infantil. Ambos vindo do som

do monitor.

Tudo em mim se petrificou.

Não.
Era um pesadelo. Só poderia ser. Aquela realidade já era

terrível o suficiente. Não haveria como piorar. Não poderia. No


entanto, quando girei o pescoço, lá estava. A cena mais horrível que

eu poderia presenciar, capaz de me quebrar em pedaços


irreconhecíveis pelo resto da vida: Um homem surgia na câmera
bem atrás de Milagros. E ele tinha um bebê nos braços. Um bebê

em um cobertorzinho de renas de Natal.


— María!

O monstro segurou uma arma contra a cabeça da minha


filha, e eu me esqueci de como enviar ar aos pulmões. Me esqueci

de tudo mais que pudesse ser bom no mundo.


— Não! — A voz que saiu de mim não pareceu minha. Era
um traço amorfo de dor cega que nunca senti antes na vida. — Não,

não! Você a usou também! Você entregou a minha filha!


— Segurem-no — ordenou Sebastian. — Não o deixem

colocar tudo em risco.


E, de repente, os dois homens carecas se moveram na

minha direção e me agarraram.


— Me soltem! Me solte, Knighton! — Lutei contra os dois
homens com socos e chutes, mas eu estava em menor número e o
desespero arrancava minhas forças. — Seu maldito, seu filho da

puta!
Sebastian não se importou nem um pouco com os meus

xingamentos ou com a minha histeria. Ele não estava nem aí para a


dor que me queimava por dentro enquanto me tirava tudo. Quando

estava prestes a sair pela porta, tudo que o homem no qual confiei
cegamente fez, foi me lançar um olhar que, apesar das palavras que
vieram a seguir, não demonstrava qualquer arrependimento de fato.

— Sinto muito, Mead. Mas estou fazendo o meu melhor.


— Eu vou destruir você, seu desgraçado! — berrei e cuspi,

ainda tentando me libertar dos homens. — Eu vou matar você!


Lágrimas me deixavam cego.
Sebastian simplesmente me ignorou.

— Não o deixem sair até o momento apropriado.


E ele se foi.

Gritei. Xinguei e lutei como nunca. Mas as mãos que me


detinham eram como garras afiadas cravadas na minha pele,

rasgando-a no processo da tentativa de me soltar. E então, no meio


de toda a batalha excruciante, o pior aconteceu e me paralisou para
sempre:

Houve um som vindo do monitor.


Mortal.
Terrível.
Irreparável.

Ergui a cabeça para enxergá-lo na tela diante de mim. Mas


tudo que tive foi a visão desesperadora do meu próprio fim.

ROX

— Não, minha María!

Minha voz saiu como se não fosse parte de mim.


Empurrei Juan, com uma força que surgiu do fundo da dor

dilacerante que me devastava, e corri. Corri como se pudesse voltar


no tempo. Corri como se isso fosse o suficiente para pedir perdão.

Mas avançar parecia apenas me retroceder. De repente, camadas


de tempo perdido me impediam de chegar a ela. Me impediam de
chegar à minha filha, estendida no cimento frio no meio do
cobertorzinho vermelho de renas.
Com uma bala na cabeça.

Meus joelhos se abriram em carne viva quando me joguei no


chão e puxei o meu coração destruído para os meus braços. Mas

então…
Não era minha María.
Era uma boneca. Parecia um bebê recém-nascido, quase

real, mas era uma boneca com o mesmo cobertor. E emitia sons,

como se tivesse um gravador dentro de si.


— Fique onde está, Milagros! — O homem que tinha

segurado “María” antes empunhou a sua arma na direção de Juan,

mas levou um tiro dele à queima-roupa e caiu como uma pedra no

chão.
— Que porra está acontecendo aqui? — Juan se aproximou

depressa.

Não esperei. Nem cogitei os riscos. Pensei rápido, e meus


olhos encontraram a arma que eu trouxe comigo e que foi chutada a

alguns metros de distância, perto de um dos ductos de gás. Lancei-

me sobre ela e a agarrei:


— Fique longe! — A junção entre o meu ombro e braço

ardeu pela surra de antes, mas ainda assim aguentei firme e mirei o
revólver antigo nele com as mãos trêmulas.

Juan levantou as mãos com sua arma em uma delas

— Mi dulce…
— Coloque essa arma no chão ou eu vou estourar seus

miolos, hijo de puta!

Juan não se moveu por um instante. Ele concentrou seus

olhos frios no meu rosto e depois estudou a arma nas minhas mãos.
— Você não teria coragem, corazón. Sempre foi gentil,

desde quando a tirei daquela lata de lixo. Mesmo enquanto estava

no clã, você sempre se manteve afastada e pura para mim. — Ele


sorriu, como se estivéssemos tendo uma conversa tranquila. — Por

isso eu pedi a meu pai que a adotasse. Por isso tive paciência

sendo apenas seu irmão por um tempo. Eu a testei. Porque eu


queria uma mulher inocente e sem sangue nas mãos para mim, e

consegui você. Alguém que jamais tiraria uma vida.

Não pestanejei.

— Você disse certo, Juan. Eu jamais tiraria uma vida. Mas


isso foi no passado. Antes de você tirar toda a minha inocência e

antes de você também tentar me tirar o que tenho de mais precioso.


Portanto, agora eu vou ficar mais do que satisfeita em me tornar

uma criminosa e ter seu sangue nas minhas mãos. — Engoli em

seco. Meu coração batendo nos ouvidos com a perspectiva de


matá-lo, porém, nenhum receio do que eu precisava fazer. Se Juan

morresse, minha filha estaria segura para sempre. Era uma escolha

simples, no final das contas. — Você me disse uma vez que se eu

não o amasse, voltaria em pedaços para o lixo. Sei que escolheu


esse aterro pensando nisso, então poderá desfrutá-lo como seu

túmulo para sempre, seu desgraçado.

Enterrei o dedo no gatilho e atirei.


Nada.

Houve apenas o clique no silêncio.

Nenhuma bala saiu.

Juan gargalhou de um jeito que fez toda a minha pele se


arrepiar.

— Devia ter se preocupado em trazer uma coisa melhor

para se defender de mim, mi dulce. — Ele ergueu seu revólver, que


já tinha feito uma vítima, segundos atrás. Então o mirou na minha

testa. — Parece que sua arma da Segunda Guerra não funciona.

Prendi a respiração e me preparei para o meu fim.


— Não é uma arma da segunda guerra. — Uma voz solene

pronunciou. — É um revólver Beaumont-Adams da Guerra Civil, e


na nossa família, aprendemos a atirar com ele.

Um tiro acertou a perna de Juan antes mesmo da frase

terminar.
Ele caiu berrando de dor sobre um joelho, mas ainda

conseguiu disparar contra o homem que o acertara primeiro.

Wallace, o pai de Sam, era o homem parado na entrada do galpão.

Ele foi ferido no braço que segurava a arma, e Juan teria chance
para atirar mais uma vez e matá-lo, se não tivesse sido baleado

novamente de uma direção diferente. O primeiro projétil acertou seu

braço com a arma, e a pistola caiu. O segundo o acertou no meio da


testa, e seu corpo tombou para a frente. Seus olhos vidrados

pararam em mim por um instante, e ele tentou murmurar alguma

coisa, mas seu fôlego se esvaiu antes e ele caiu inerte no chão.

Sebastian Knighton surgiu atrás do homem sem vida,


acompanhado do ceifador de Juan. Um atirador profissional com um

colete à prova de balas da Drug Enforcement Administration, a DEA,

com suas letras amarelas e claras. O amigo de Sam estava ao


telefone.
— Dean e Wallace levaram tiro não letais. Roxanne está

ferida também — comunicou. — As ambulâncias e os paramédicos

devem subir o mais rápido possível. O local já está seguro e os

membros do cartel sob controle. Milagros está morto.


Outros homens, com a mesma roupa do atirador, invadiram

o local logo em seguida. Vi homens de Juan sendo arrastados dos

cantos, todos rendidos por agentes americanos e pela polícia.


Registrei tudo isso em poucos segundos, porque logo eu já estava

me arrastando até o pai de Sam, que estava escorado junto a um

dos canos.

— Senhor Huntington!
Curvei-me sobre o homem que havia salvado a minha vida,

sem conseguir parar de chorar.

— Senhor… — disse ele depois de gemer e segurar o braço


ferido. — Senhor está no céu, minha nora. E parece que eu vou ficar

na Terra mais um pouco, então Wallace, por favor.

E ele riu.

— Salvou a minha vida, Wallace… — gaguejei enquanto


rasgava um pedaço da minha blusa para estancar o seu sangue. —

Eu nunca terei como pagar isso, nunca poderei agradecer…


— Prometi ao meu garoto que cuidaria de você. E também

prometi que não falharia com ele outra vez.


Assim que ele terminou de mencionar Sam, eu o vi surgir na

entrada da sala de ductos.

— Pai, Rox! — gritou Sam como se não acreditasse no que

via.
Ele não teve receio algum de correr em meio ao

pandemônio de agentes que se aglomeravam cada vez mais no

local. Sam contornou algumas pessoas e esbarrou em outras no


caminho, mas logo estava junto de nós.

— Pai, o senhor está bem?

— Foi apenas um tiro no braço. — Wallace fez um gesto


com a mão boa, amenizando a situação. — Eu vou ficar bem, não

se preocupe, garoto.

— Ele se arriscou para me salvar, Sam — falei quando ele

me envolveu nos braços e beijou minha boca e rosto sem se


importar com o sangue e as lágrimas. — Juan ia atirar em mim, mas

seu pai tirou a atenção dele e me salvou. Só estou viva por causa

dele.
— Fiz apenas o que combinei com Sebastian nos últimos

dias. — Wallace amenizou seu próprio ato de heroísmo. — Eu a


segui no meio da noite para garantir a retaguarda.
Sam tinha lágrimas nos olhos quando segurou a mão livre

do pai.

— Esse maldito Knighton vai ter muito o que me explicar. Eu


vi o que fez, Wallace — declarou e olhou para o pai de um jeito que

eu nunca havia visto antes. Cheio de ternura e admiração. — O

senhor se arriscou para salvar o meu amor. O senhor foi o meu


herói, pai. Nunca poderei fazer nada que compense isso. Nada será

o suficiente…

— Ouvi-lo me chamar de pai já é mais do que o suficiente,

Samuel. — Wallace tocou o rosto do filho com carinho. — É apenas


isso o que quero ser na minha vida de agora em diante, o seu pai.

Sam soluçou.

— É claro que o senhor é o meu pai. Quero que seja sempre


— assentiu Sam. — E não quero mais perder tempo com

ressentimentos. Prefiro ganhar tempo com o perdão. Prefiro ganhar


tempo com a minha família, que é tudo o que mais me importa. Eu
queria abraçar o senhor, mas está ferido…

— Oh, meu filho… Não se preocupe com isso, eu ainda


tenho um braço bom — disse Wallace, abrindo o braço sem
ferimento. — Talvez eu desmaie durante, mas preciso mais do seu
abraço para me manter acordado neste momento.
Sam não se refreou. Ele abraçou Wallace, que sorriu,

gemeu e chorou ao mesmo tempo. Assim como Sam.


Foi bonito de se ver.
E então, mesmo sendo um momento de alegria, eu não

consegui enxergar mais nada. Porque, de repente, minhas vistas


escureceram e sangue subiu à minha boca.
— Rox?

Sam se virou e estendeu o braço rapidamente na minha


direção, mas já era tarde.
Tremi e desapareci por completo. Meus sentidos

simplesmente navegando para o fundo da escuridão.


Viajei tão longe para mudar essa vida solitária.
Eu quero saber o que é amor.

Eu quero que você me mostre.


— FOREIGNER, “I Want To Know What Love Is”.

SAM

Minhas mãos tremiam na sala de espera do Saint David

Medical Center, o hospital no centro de Austin para o qual Roxanne

fora transferida em um helicóptero de emergência. María estava nos


meus braços, envolta em um cobertor de peixinhos dourados. Sua

mãozinha pequena se enrolando no meu dedo como se quisesse


me acalmar, e eu fiz o possível para não derramar lágrimas diante

da minha pequena.
Além da costela fraturada que atingiu o pulmão e o perfurou,

ela teve uma ruptura no baço provocada por impactos repetitivos…

Será preciso removê-lo, e ela também precisará de uma transfusão


de sangue. Não vou mentir, senhor Mead. É um caso complicado e

com riscos altos. A senhorita Rivera perdeu muito sangue e também

perdeu muito tempo, mas vamos fazer o que estiver ao nosso


alcance.

As palavras ainda soavam como um eco. Um tipo de eco

que me esticava por dentro, abrindo um buraco doloroso dentro do


meu peito.

O médico tinha dito isso há horas e depois havia


desaparecido para dentro da sala de cirurgia e me deixado ali. Meu

pai já tinha finalizado sua cirurgia com sucesso, mas não podia

receber visitas. Sendo assim a única pessoa com quem eu podia

contar, além de María, era Sebastian. Ele havia chegado nos últimos

cinco minutos, embora ainda não tivesse dito nada.

— Sinto por isso, Mead.


Eu não tinha muita energia para despender com discussões.

Só conseguia pensar em Roxanne. No primeiro sorriso que me deu


quando nos conhecemos e no último, um pouco antes de fazermos
amor.

“Você se tornou a nossa família. Eu te amo.”

Eu não sabia mais se havia ouvido aquelas palavras na

noite anterior ou se as tinha lido naquela carta. Apenas reconhecia

que elas estavam ficando para trás. Que se perdiam em uma

realidade que ficava cada vez mais fora do meu alcance.


E isso doía. Doía tanto que era difícil respirar. Tive medo de

abrir a boca para consumir mais ar ou falar e acabar gritando. Mas,

estranhamente, palavras tomaram forma:

— Parece que são apenas essas as palavras que você tem

para mim, Knighton. E elas sempre chegam tarde demais.

Ele suspirou. Em seguida, saiu da sua posição de braços

cruzados e ocupou uma cadeira ao meu lado. Seus olhos


vaguearam por María, que se mexeu, animada, diante da

aproximação dele. Sebastian não sorriu, mas tocou com gentileza a

cabecinha dela.

— Minhas palavras podem soar repetidas ou tardias, Mead,

mas são verdadeiras. — Ele deixou de tocar María e me encarou,

sério. — Esta foi a melhor forma que encontrei para resolver o seu
problema. Milagros precisava saber da nossa intenção de
emboscada para acreditar que estava um passo à frente de todos.

Ele precisava comandar tudo e escolher o local. Apenas com essa


confiança, ele seria descuidado o suficiente para revelar seus

pontos cegos e nós poderíamos segui-lo e o prender dentro de sua


própria ratoeira. Mas nada foi deixado ao acaso por mim nem pelos
agentes. Você me ligou e pediu a minha ajuda quando eu ainda

estava em Londres. Então, antes mesmo de voltar aos Estados


Unidos, nós já havíamos colocado homens de confiança dentro do

cartel El Milagros para vigiar o seu dono.


— E eu não podia saber nada disso? — Senti uma lágrima

deslizar pela minha bochecha, e a sequei rapidamente para


escondê-la.
— Não se quiséssemos ter certeza de que daria certo. Mas

isso não significa que não calculei os riscos.


— E você calculou que eu iria atrás de Roxanne.

Não era uma pergunta, mas ele a respondeu assim mesmo.


— Sim.

— E afastou a equipe de segurança que você mesmo


colocou no rancho quando fiz isso. Mesmo sabendo que a minha
filha estaria lá.
— Deixei que Milagros entrasse no rancho, mas com os

homens da DEA que estavam sob disfarce. Eu jamais usaria um


bebê em uma armadilha. Os agentes entraram e tiraram a

empregada e sua filha apenas para deixá-las a salvo.


— Mas você entregou Roxanne. Minha Roxanne — insisti,

focando meu olhar em María durante todo o tempo.


— Tive de assumir os riscos necessários.
A frase caiu da pior forma possível no meu estômago,

fazendo-o se contorcer e minha mão embaixo de María se fechar


em punho.

— Você quis dizer que ela assumiu os riscos, Knighton. Ela,


e não você. — Minha voz saiu em um rosnado, mas precisei acabar
a frase de forma abrupta para conter as lágrimas que quiseram

aproveitar o momento para sair.


Sebastian ficou em silêncio por alguns segundos. Somente

os sons corriqueiros do restante do hospital, além das portas


brancas da sala de espera, passando por nós.

— Ela me disse que sabia o que precisava fazer e quis fazê-


lo, Mead. Roxanne disse que seria uma isca certeira. E foi. Milagros
sequer pensou antes de sair de seu esconderijo quando Roxanne se

comunicou. Ninguém mais teria conseguido tal coisa. — concluiu


por fim. — Eu também a avisei sobre não poder lhe contar tudo
sobre a emboscada e ela aceitou o fato. Sua mulher foi
irredutivelmente corajosa. Ela queria proteger vocês, e garantiu que

não aceitaria um não como resposta.


Eu não devia, mas soltei uma risada estranha.

Lembrei-me de ter ouvido aquelas palavras antes. Na minha


antiga biblioteca escura em Washington.
Não aceito um não como resposta, senhor Mead. Não se

puder evitá-lo.
— Minha Rox é assim. Ela não teria aceitado a sua negativa

— proferi.
De uma forma ou de outra, Roxanne teria feito alguma

coisa. Ela jamais aceitaria ficar sentada sem fazer nada enquanto
eu resolvia tudo. Essa era sua natureza. Obstinada, corajosa. Capaz
de tudo pelas pessoas que amava. Ela não fugiu de sua essência

desde o momento em que nos conhecemos. E nunca seria diferente


disso.

A raiva me deixou, e me vi abrindo o punho fechado antes.


— Tudo bem, Knighton — cedi. — Você fez o seu melhor.
Sei que a situação era terrível.

Para a minha surpresa, ele não concordou.


— Não. Eu sempre peco nisso. Meu melhor, na maioria das
vezes, não é o suficiente para impedir que as pessoas sofram.
Olhei para Sebastian de verdade pela primeira vez, ali

naquela sala. E apenas então notei o quanto ele parecia consumido.


O quanto estava angustiado ao meu lado. Seus métodos de

resolução de casos podiam ser implacáveis, mas talvez ele próprio


não fosse tão imune a eles.
De qualquer modo, não tive tempo para pensar sobre isso,

porque as portas da sala de espera se abriram de repente e um

rosto conhecido entrou por elas.


— Lia? — Levantei-me.

— Sam! Ah, meu menino!

Lia estava com a cabeleira vermelha um pouco

desgrenhada, coisa que não era de sua natureza. Ela se jogou nos
meus braços, do jeito que alguém pode se jogar quando a outra

pessoa está segurando um bebê.

— Ah, meu querido! — Ela segurou meu rosto e o beijou. —


Eu fiquei tão preocupada com todos vocês essas semanas! Mal

preguei os olhos, pensando em como vocês estavam, e o voo

pareceu interminável. Como está Roxanne?


Aquele olhar cheio de ternura e seu carinho de mãe foram o

que faltava para que meus ombros cedessem.


— Não sei… — falei com a voz embargada. — Não sei se

sobreviverá à cirurgia. — Olhei para María em meus braços. — Não

sei se voltará para nós. E também não sei como vou viver sem ela,
Lia...

— Ah, meu querido… Meu menino. — Lia me abraçou de

novo. — Seja forte, porque aquela menina também é e não vai

desistir fácil. Vamos ter fé em Deus.


Eu ainda estava dentro do abraço de Lia, lutando para me

manter em pé, quando percebi que estávamos sendo espiados por

outras pessoas que estavam na entrada da sala de espera. Na


verdade, duas pessoas. Duas mulheres estranhas que eu nunca

havia visto antes. Uma delas tinha o cabelo escuro raspado na

lateral, e a outra era loira.


— Quem são vocês? — Minha voz saiu alterada e alta

demais.

María não gostou, mas Sebastian interveio antes que eu

pudesse reagir de qualquer outra forma:


— Está tudo bem, Sam. Estas são a senhora Nice Litchfield

e senhorita Colton. Elas conhecem Roxanne.


Demorei um pouco para compreender o sobrenome.

— Colton. Billie Colton. A garota que roubou Roxanne pouco

antes de ela dar à luz à María? — Minha raiva retornou com todo o
direito. — Qual de vocês é Billie Colton?

A garota de cabelo raspado se encolheu um pouco, mas

ergueu uma mão de forma discreta. Então a escondeu dentro do

moletom das Indústrias Stark e começou a se explicar:


— Sinto muito por tudo o que causei, senhor Mead. Eu não

queria roubar minha colega de apartamento, mas meu ex-namorado

tinha se metido em uma roubada com traficantes e precisávamos


fugir de Washington.

Dei um passo furioso na direção dela.

— E na sua cabeça isso é justificativa para tirar tudo de uma

mulher grávida, deixá-la sem abrigo e desaparecer? Você sabe o


que poderia ter acontecido com ela? Ou com essa bebê que estou

segurando agora?

Eu teria me aproximado mais da mulher estúpida, mas


Sebastian e Lia me impediram.

— Acalme-se, Mead. A senhorita Colton está aqui porque se

arrepende do que fez — explicou Sebastian. — Seu investigador,

Earnshaw, a encontrou em Oklahoma e me notificou, mas ela já


estava prestes a vir devolver as coisas de Roxanne, graças à

senhora Litchfield.
A garota loira, com uma barriga levemente inchada pelo que

poderia ser uma gravidez, se aproximou e estendeu a mão para

mim em apresentação.
— Sou Nice Litchfield. Amiga de Roxanne. — Aceitei o

cumprimento, desconfiado. O nome dela também não me era

estranho. — Recebi uma mensagem de voz de Rox. Estava ruim e

difícil de entender, mas ela me comunicava que tinha acabado de ter


a bebê e que não tinha para onde ir.

— Nice…

E foi então que me recordei da ligação que Rox havia feito


no hospital. Ela chorava, e foi assim que descobri que ela realmente

não tinha para onde ir com María.

— Nice… a amiga — recordei.

— Não uma amiga tão boa — disse ela, triste, os olhos


castanhos claros se enchendo de lágrimas. — Eu devia tê-la levado

comigo para Indiana, mas não levei. Aceitei quando ela disse que

não queria ir… Rox nunca me contou sobre o pai do seu bebê.
Também não me disse que estava fugindo. Eu nunca a teria deixado

em Washington se soubesse.
— A senhora Litchfield encontrou Billie antes do seu

investigador — emendou Sebastian.

— Eu não consegui encontrar Roxanne por telefone, depois

de receber a ligação dela. Então fui até Washington para vê-la. —


retomou a senhora Litchfield. — Quando não consegui achá-la no

endereço que tinha procurei por Billie para tentar saber qualquer

coisa. Na verdade, eu tinha só uma chance e uma pista. Era uma


lembrança de uma conversa onde Rox me disse que sua nova

colega de apartamento já tinha morado algum tempo em Oklahoma.

Em Tulsa. Como não tinha mais onde procurar por ela viajei até lá.

Acabei encontrando Billie, mas apenas para descobrir que ela não
sabia muito mais do que eu sobre Roxanne.

— Eu ia voltar para Washington com Nice, quando um tal

Robert Earnshaw nos encontrou.


— Earnshaw já estava em contato comigo e me notificou. Eu

as trouxe para cá no meu avião particular com Lia — completou

Sebastian.

Billie se aproximou, temerosa, e me estendeu papéis.


— Esses são os documentos dela. De identificação,

imigração e os papéis do banco.


Não consegui pegar os papéis. Eles significavam tudo o que

nos uniu, mas aquele era o pior momento. Um momento que


poderia nos separar para sempre.

— Por favor, Lia. Segure-os para mim.

— Claro, Sam.

Lia pegou os papéis da mão de Billie, que deu um rápido


passo para trás. A mulher estava tão assustada ao me olhar que

pensei que fosse correr para longe da sala, mas ela me

surpreendeu ao se manter quieta no lugar.


— Eu gostaria de me desculpar, senhor Mead — pediu ela.

— Por toda a dificuldade que gerei para Roxanne.

— Não é a mim que você deve desculpas — frisei. — É à


Rox. Quando ela acordar… — Se acordar, pensei com dor. — Ela é

quem deve decidir se quer oferecer perdão. Quanto a mim… Se não

houvesse acontecido assim, eu jamais teria conhecido Rox ou

María, então…
Então estou feliz.

Era o que eu queria dizer, mas não consegui. Porque não

estava feliz. Não estaria se a perdesse. Malditos os que diziam que


amores belos eram os que nos ensinavam lições e sobreviviam

apenas em recordações. Eles não sabiam o que era ser partido ao


meio por perder o sentimento mais lindo que alguém poderia cultivar
no seu coração. Eu não queria recordar Roxanne. Eu queria um

futuro com ela.

Queria uma família. Com mais risos, mais natais e mais


bebês…

Eu nunca pensei que sentiria um anseio assim antes. Pensei

estar quebrado para sempre. Contudo Rox e María tinham me


devolvido sonhos nos quais jamais ousei acreditar. E era apenas

essa benção que eu desejava, depois de tudo o que nós passamos.

Tê-las na minha vida para vivermos bons sonhos. Para realizar os

sonhos delas também. Mas isso não estava nas minhas mãos.
Estava nas mãos de Deus e nas mãos de um médico.

Um médico que escolheu sair da sala de cirurgia justo

naquele momento.
Mãos tentaram me conter de imediato, mas ninguém me

impediria. Desvencilhei-me delas com certa brusquidão e me


aproximei do homem em uniforme verde cirúrgico.
— Como está a mãe da minha filha, doutor? — inquiri,

atropelando as palavras enquanto meu coração parecia prestes a


desaparecer.
Tive medo de ler em seus lábios um “Sinto Muito”. Essas
palavras, que eu já tinha ouvido desde a madrugada, me faziam
temer como nunca.

Mas não aconteceu.


O médico de longos bigodes sorriu e disse as frases pelas
quais eu seria grato a Deus para sempre.

— Ela lutou para ficar conosco. — Lágrimas quentes


brotaram dos meus olhos. É claro que ela lutaria. Por nós. — E
agora deseja ver as duas pessoas que mais ama no mundo.

ROX

A primeira coisa que notei quando acordei foi que María


tinha feito cocô. O cheiro terrível chegou antes de qualquer registro
de imagem, e eu senti meu nariz se enrugar.

— Ela precisa de uma fralda nova… — Consegui balbuciar


com a língua pesada, mesmo antes de conseguir abrir as pálpebras
pesadas como chumbo.
Escutei um bonito riso masculino. Ele iluminou tudo em mim,
mesmo na escuridão.

— Eu sei. — A voz dele soou difícil, como se estivesse


embaixo d’água. Assim como os sons de bipes que me rodeavam.

— Ela escolhe os melhores momentos para fazer cocô, como


qualquer bom bebê.
Minha mão foi acariciada com delicadeza. Consegui me

esforçar e fechar meus dedos em torno dos que me tocavam.


— Você… você trouxe uma troca de fraldas?
Outro riso difícil.

— Sim. Sou um pai precavido, você bem sabe, cariño.


— Só há fraldários em banheiros femininos… — lembrei de
repente.

— Sim. Um preconceito. Mas você não deve se preocupar


com isso agora, Rox. — Recebi um beijo na mão.
— Seu pai…

As duas palavras saíram no mesmo momento em que uma


enxurrada de lembranças me invadiu. Tudo se misturou e se

sobrepôs na minha mente. De repente, vi todas as cenas juntas, me


confundindo. A carta que deixei para Sam, minha fuga no meio da
noite… Juan com uma arma… Juan mandando atirar na minha filha,
que no fim não era a minha filha, e sim uma boneca, e o pai de Sam

que apareceu, arriscando-se tão próximo. E então… Então Milagros


estava morto. Caído no chão frio. Tudo terminado.
— Seu pai… Juan, a armadilha… — Tentei colocar tudo

para fora, mas meu abdômen se contorceu em uma dor surda que
me fez abrir os olhos e lutar para respirar dentro da máscara de

ventilação.
— Acalme-se, Rox. Está tudo bem, você está bem. — A
mão dele deixou a minha e encontrou a minha testa, fazendo-me

olhá-lo. Seus olhos escuros me enviaram paz, assim como a


presença de María em seus braços. Os dois naquela poltrona ao
meu lado eram tudo o que eu tinha de mais precioso. — A armadilha

deu certo e acabou. Milagros está morto e meu pai está bem. Está
descansando da cirurgia em um quarto aqui perto.
Tentei assimilar tudo que ele dizia, entretanto, levei um

pouco mais de tempo. Minha mente estava lenta, assim como minha
visão estava meio borrada.
— Não estou enxergando bem. — Afastei a máscara de ar

para ver se melhorava.


— É o efeito da anestesia geral — explicou Sam, ainda

afagando minha fronte. — Vai se sentir um pouco pesada e zonza. É


normal. Você fraturou uma costela que lacerou seu pulmão e
precisou retirar o baço rompido pelos capangas daquele

desgraçado. Agora está recebendo uma transfusão pois perdeu


muito sangue. Então precisa se manter quieta e descansar.
— Pedi para ver vocês dois — recordei de uma hora para

outra. Até meus pensamentos pareciam ter dificuldade para se


ordenarem. — Pedi ao médico… quando acordei.

— Eu sei — assentiu ele com pequenas lágrimas se


formando no canto de seus olhos. — Ele disse que você pediu para
ver as pessoas que mais amava no mundo.

Meneei a cabeça, também sentindo lágrimas brotarem.


— Sim. Vocês — confessei.
E aquela pequena confissão me encheu de sentimentos. Me

encheu de palavras que eu precisava dizer. O perdão que precisava


pedir a Sam e a María pelas coisas que fiz ambos passarem. De
repente, eu tinha consciência de que ainda estava viva. Que tinha

sobrevivido à ameaça mais terrível da qual tinha fugido e que não


queria perder mais tempo. Queria dizer o que eu sentia, e não como
naquela carta triste de despedida. Não; Sam e María mereciam
mais.
Tentei me mover para falar ao homem da minha vida tudo o

que eu queria, mas Sam me impediu, tocando meu ombro devagar


para manter-me no lugar.
— Preciso dizer a você, Sam…

— Não — interrompeu e negou com a cabeça. — Não


precisa. Sou eu quem precisa falar dessa vez, por favor. Não posso
mais perder um segundo sem expor meus sentimentos da maneira

mais clara em frente a vocês duas.


Mas ele não disse nada. Ao invés disso, enquanto Sam me
estudava, as lágrimas presas em seu olhar rolaram por suas

bochechas.
Vi a angústia em seu semblante.

— Ah, Sam... Está tudo bem. Eu vou ficar bem. — Coloquei


minha mão sobre a sua no meu rosto.
Ele assentiu, porém se afastou um pouco e fez um gesto

com a mão pedindo por tempo.


Cedi diante do apelo emocional em seu olhar e esperei.
Após alguns segundos, Sam suspirou. Em seguida, se

concentrou um pouco em María antes de voltar a me olhar. Sua mão


também repetiu o movimento de segurar a minha.
— Quando acordei esta manhã, eu tive tanto medo de

perder você... Mas o medo, às vezes, serve para coisas boas, afinal.
O medo de perder alguém, ao menos, serve para enxergarmos
como cada segundo de vida é precioso e como gastamos isso sem

ir em busca do que queremos de verdade. — Ele fez uma pequena


pausa e a usou para beijar a cabecinha de María. — Mas não é isso
o que preciso dizer a vocês, Rox.

— Então apenas diga o que precisa, Sam. — Apoiei


tentando achar um sorriso para presenteá-lo em meio à emoção.
Sam tentou esticar os lábios em um sorriso também.

— O que preciso dizer — Ele apertou mais minha mão. — É


que tenho esperanças de voltar para um lar de verdade, depois de
sairmos daqui.

Engasguei engolindo a onda de sentimentos.


— Sam…

— Me deixe falar e apenas descanse, Rox — pediu com a


voz embargada.
Anuí.

— Desculpe. — Minha voz estava como a dele.


Ele prosseguiu:
— E eu… eu tenho planos para esse lar, Roxanne. Quero
que seja uma casa. Nada parecido com uma cobertura escura e

sombria, embora eu ainda possa tocar piano para vocês duas nas
noites de inverno e possamos ter uma biblioteca com livros do

Stephen King.
— A palavra do Rei. — Tentei falar com um sorriso, mas
acabei chorando.

Sam acenou positivamente.


— Sim. Todos os nossos livros favoritos em uma bela casa
clara. As cercas brancas e a decoração ficam à sua escolha.

Podemos ter cachorros ou gatos, se María não tiver alergia a


quaisquer um deles, é claro. Porque alergias não são boas para
crianças.

— Não são…
— E posso trocar meus carros conversíveis por SUV’s. São
mais confortáveis para crianças e mais seguros. Podemos sair do

centro e irmos morar em um subúrbio, e María poderá crescer e


andar de triciclo na calçada. No Halloween, ela poderá se vestir da

princesinha que é e ir pedir doces com as crianças da vizinhança, e


vou me dedicar a não deixar nenhuma hera crescer perto de sua
janela quando ela estiver entrando na adolescência.
— Hera? — perguntei sem conseguir vê-lo, mas dessa vez

por causa das lágrimas.


— Sim — disse Sam com o sorriso mais lindo do mundo e
com os olhos tão marejados quanto os meus deviam estar. — Para

evitar que garotos cheios de hormônios subam por ela.


Ri.

Minha barriga doeu, mas o som me fez bem como nunca.


— Ah, Sammi…
Estendi minha mão para tocar seu rosto. Sam se levantou

da poltrona. Ele se aproximou da cabeceira da cama e apoiou sua


testa na minha, María ficou entre nós fazendo sons delicados.
— Estou dizendo tudo isso para deixar claro que quero que

fiquem na minha vida, Rox. Preciso que fiquem. Eu estive morto na


minha frieza e ressentimento, até você e María chegarem. Eu não
acreditava em nada. — Sam se afastou apenas o suficiente para

segurar minha mão em seu rosto. — Não acreditava nem nas


mentiras que contei para mim mesmo por anos. Mas vocês me
fizeram crescer. Me fizeram evoluir ao enfrentar meus medos. E

então eu pude ver o que eu queria de verdade. Pude ver todo o


amor que me fazia falta e que encontrei em vocês. Na nossa família.
Respirei fundo e a dor não retirou nada do sentimento
poderoso que embalava o meu peito.
— É o que você quer, mi amor? Que sejamos uma família?

— Sim, Rox. Eu amo vocês. Então peço que, por favor, me


aceitem sendo esse homem errado que sou…
— Ah, Sam. Você ainda não percebeu? — Funguei. — Você

já tem nossos corações. Desde o primeiro momento. Somos uma


família desde que você segurou a minha mão e María chegou para
nós. Nós te amamos muito, mi vida.

Senti as lágrimas quentes dele se misturarem às minhas


quando Sam se curvou e me beijou. Um beijo que chegou ao meu

coração e se alastrou por cada parte de mim.


Era uma espécie de milagre o que acontecia.
Um milagre que pedi a Deus quando ainda trazia María no

ventre e cheguei a um país estranho. Na época, eu estava perdida e


pensei que Ele nunca tivesse me escutado. Mas os céus me
ouviram e responderam a minha prece, colocando Samuel Mead no

nosso caminho, transformando todo o mal em bem. Toda a tristeza


em amor. E apesar das coisas terem começado da pior forma entre
nós, eu tinha a certeza de que a melhor parte da minha vida ainda

estava por vir.


Minha vida, não.
Nossas vidas.

Nossa família.
E quando Sam me soltou, eu li meus próprios pensamentos
em seus olhos.

— Te quiero, mi amor. Nós seremos muito felizes —


prometeu.
— Também amo você, Sammi — falei na língua dele e

invertendo os nossos papéis. — E sempre confiarei no homem que


nunca temeu estar do meu lado.
— Vou me esforçar todos os dias para ser digno disso, Rox.

— Sam me deu outro sorriso largo e depois outro beijo. Consegui


beijar a cabecinha da minha filha e então Sam se afastou. — Agora

durma um pouco. Sua amiga Nice virá vê-la mais tarde.


— Nice está aqui?
— E Billie Colton.

— Billie voltou?
— Sim.
— Aquela ladra. Ela trouxe... — Tentei falar com vigor, mas

bocejei, cansada. — Trouxe todas as minhas coisas, então? Eu


tinha uma coleção de moedas com o rosto de George Washington

que precisava para ficar nesse país...


— Suas moedas devem estar a salvo. — Ele balançou
María com um sorriso no rosto, ao entender a ironia nas minhas

últimas palavras. — Diferente da própria Billie, que está com um


medo terrível do que posso fazer a ela.
— Não abuse do seu lado de advogado sem coração,

Sam... — Me ajeitei nas cobertas. — Pode me prometer isso?


Sam riu. Em seguida, senti cobertores me acomodando
melhor, e apenas então percebi que tinha fechado os olhos. Minha

máscara de ar também foi colocada de volta no meu rosto.


— Posso prometer me lembrar de que, se não fosse por ela,
eu não teria as mulheres da minha vida comigo agora. — Ele beijou

minha testa. — Mas, por ora, apenas descanse, Rox. E não se


preocupe com Billie Colton. Ela pode entrar no fraldário. Sendo

assim, eu não preciso ser um advogado sem coração hoje para


puni-la pelo que te fez. Só preciso ser o pai de uma adorável
menininha com uma fralda muito suja...
Enquanto se abraçam, com sentimentos
Continuam seguindo em frente. Já são milagres.

Vocês têm que voar, encontrar seu próprio futuro.


— SEBASTIÁN YATRA, “Dos Oruguitas”.

SAM

Treze anos depois

— Atender o chamado do amor pode exigir coragem e

sacrifício sem igual, minha filha. Você me ensinou isso desde o

primeiro dia em que a tive nos braços. Mas também me ensinou que
lutar pelo amor é a única coisa capaz de nos tornar melhores. —

Suspirei, olhando para minha menina, agora uma pré-adolescente


de treze anos. — Nós sempre dissemos tudo a você, mas agora é

diferente. Acabamos de contar a história de como você chegou para

nós, da maneira mais completa, porque você já tem idade suficiente


para entendê-la melhor, María.

María não disse nada enquanto olhava para o chão de pinho

e apertava seu antigo chocalho de caubói, que se tornara um


pingente, em um colar. Ela estava vestida como a versão de treze

anos de Jennifer Gardner em De Repente 30, para comemorar seu

aniversário. Era o seu filme antigo favorito da nossa vasta coleção


de filmes antigos favoritos. Um hobby que criamos juntos, assim

como cavalgar e patinar no lago congelado perto do rancho.


Roxanne procurou minha mão sobre a cama de dossel cor-

de-rosa da nossa filha. O brilho de nossas alianças de casamento

se misturando, intacto há mais de uma década.

— Seu pai enfrentou muita coisa por nós, María — emendou

e me olhou com lágrimas nos olhos. — Desde o momento em que

segurou a minha mão, ele nunca nos abandonou.


— Fui eu quem estive abandonado, Rox. — Beijei a mão da

minha esposa. — Até vocês chegarem.


Minha filha finalmente ergueu o olhar, escuro como o meu,
para o meu rosto.

— Então, pai… o senhor e a mamá enfrentaram um líder de

cartel, de verdade?

Em momento algum ela chamou Milagros de pai.

Foi um alívio.

Podia ser tolo sentir ciúmes de um homem terrível que


María sequer conheceu, ainda por cima depois treze anos. Depois

dos seus primeiros dias de aula que me fizeram chorar escondido

no escritório, ao encarar o tapete e não ver mais a minha pequena

brincando enquanto eu conversava com clientes. Depois de cada

abraço e de cada “eu te amo mil milhões” que ganhei como o Tony

Stark ao final desses mesmos primeiros dias, quando María deixava

a professora e os coleguinhas para correr para os meus braços, tão


logo eu me ajoelhava no estacionamento do jardim de infância.

Depois dos papás em canecas feitas de macarrão e de recitais de

balé em comemoração ao Dia dos Pais. Eu sempre me sentava na

primeira fileira para ver melhor a minha pardalzinha, e Roxanne e

Lia riam do meu afobamento para garantir o lugar.

Apesar de tudo isso, ainda assim, tive medo de perder


espaço. Tive ciúmes, mesmo sem razão alguma. Àquela altura,
entretanto, eu já tinha aprendido que o coração de um pai podia ser

teimoso e irracional às vezes. Principalmente se tratando dos filhos.


— Sim, pardalzinha — afirmei. — Nós enfrentamos para

mantê-la segura. Com a ajuda do seu padrinho Sebastian.


A expressão no olhar de María era de pura admiração.
— E estamos contando tudo em detalhes, porque queríamos

que fosse um presente para a noite de hoje — prosseguiu Roxanne.


— Queríamos preencher de vez todas as lacunas. Explicar coisas

das quais talvez você sinta falta, mas nunca quis nos dizer, mi hija.
Concordei.

María era gentil e doce. Uma menina que jamais exigiu


demais de nós. No entanto talvez pudesse ter dúvidas sobre sua
chegada ao mundo, e Roxanne e eu tínhamos decidido que era a

melhor época para contar sua história com mais desenvolvimento.


Diferente do que havíamos feito nos últimos anos, quando ela era

jovem demais.
—Compreender nossa própria história e a história da nossa

família nos ajuda a compreender quem somos e quem queremos


nos tornar, minha filha. Sua mãe e eu queremos que você saiba
disso. Mas eu também quero que saiba de mais uma coisa, María.

— Estendi a mão na direção dela. María ergueu sua mão delicada e


a colocou na minha. Seus olhos estavam ficando úmidos. Os meus

também seguiam o mesmo caminho quando apertei seus dedos


suavemente. — Eu podia não saber disso quando dirigi sobre o gelo

de Washington, no inverno mais improvável do século, e encontrei a


sua mãe, mas meu coração já esperava por você.

— Papá…
— Seu nascimento mudou a minha vida e me tirou da
escuridão. Amar você foi a coisa mais extraordinária que já me

aconteceu e trouxe à tona o melhor de mim. — falei com a voz


embargada. — Amar você deu sentido à minha vida, María. Por

todos esses anos, eu só senti gratidão e alegria por poder ajudá-la a


dar seus primeiros passos e por ficar as madrugadas no hospital
quando você comia pasta de amendoim escondido de nós, mesmo

tendo alergia. Nossos laços são mais fortes do que sangue,


pardalzinha. Quero que saiba que sempre serei o seu pai.

— Ah, papai… — María se lançou nos meus braços. Ela


chorava e falava ao mesmo tempo. — É claro que o senhor é o meu

papá. O único que pode ser. O senhor é o melhor pai do mundo,


enfrentando cartéis ou não. Saber detalhes não muda nada. Eu não
pensaria diferente, papai… nunca vou pensar. Eu amo o senhor com

todo o meu coração. Serei sempre a sua pardalzinha.


Minha garganta se apertava, mas era em um choro de
felicidade. Lágrimas de alegria genuína com as quais eu esperava
poder agradecer a Deus por todas as minhas bençãos.

Em algum momento, senti Roxanne nos envolver em um


abraço também. E nós três ficamos assim por um tempo. Apenas

aconchegados um nos outros.


— Eca! O círculo da morte de novo? Abraço em família é
nojento… — Miguel, nosso filho apenas dois anos mais jovem que

María, proclamou. Então berrou em seguida: — Mamá, me solta, me


solta! Eu não quero abraçar! Eu vou contar tudo para o abuelo!

— Obedeça a sua mãe e a abrace, Miguel. — Abri um olho


por sobre os cabelos de María, para encará-lo com propriedade.

— Pai…
— Obedeça.
Ele suspirou, desanimado, e franziu os olhos verdes que

herdou da mãe, mas obedeceu.


Roxanne o enlaçou para dentro do nosso “círculo da morte”.

Miguel resmungou, mas começou a gargalhar quando a mãe o


encheu de beijos, e no final a abraçou de volta.
— Eu amo todos vocês — falei para a minha família. — Para

sempre.
— Nós também te amamos — disseram María e Roxanne
juntas.
Miguel ficou calado. Tirando os olhos que herdara da mãe, o

restante da aparência e da teimosia do garoto eram todos genes


que eu forneci.

— Não tem nada para dizer ao seu pai, Miguel? — inquiri.


— Sim. Vocês estão me sufocando dentro desse círculo da
morte.

Nós quatro rimos e nos soltamos.

Puxei meu garoto para mim.


— Sei que você nos ama também, garoto. — Baguncei seu

cabelo.

— Pai! As garotas estão vindo para a festa! — Ele tentou se

arrumar e ajustar sua roupa. — O senhor vai estragar meu charme.


— Não há charme e nem noras para mim antes da

faculdade, mocinho. — protestou Roxanne.

— Há-há — implicou María.


— O mesmo vale para os genros, María — avisei. — Já

estou vigiando as heras do jardim e também estou de olho naquele

tal de Noah Burns que desce do ônibus escolar com você


— Ele é só meu amigo, pai!
— Falou certo. Eu sou seu pai. Então é bom que ele tome

cuidado comigo na festa de hoje. Essa casa tem uma galeria de


armas.

— Sam! — Roxanne me repreendeu, mas acabou rindo em

seguida.
María apenas suspirou, aborrecida, jogando sua franja

ondulada para cima da testa.

Meu pai escolheu esse momento para surgir no limiar da

porta.
— Onde estão meus netos preferidos? — Ele se ajoelhou de

imediato.

Meus dois filhos correram para ele.


— Abuelo!

Wallace conseguiu força o suficiente para erguer Miguel e

María nos braços por um instante.


— Você só tem esses netos, pai. — relembrei-o.

Ele riu.

— Mas são os meus favoritos. — Então ele se voltou para

os dois. — O treinador já chegou com os cavalos adestrados que


vão se apresentar durante a festa. Lia está horrorizada. Acho que é
um bom momento para pregarmos uma peça na ex-governanta do

seu pai.

— Wallace, não faça Lia passar mal do coração. — Rox


pediu. — Ela veio de longe com a família para essa festa, e minha

farmácia não abrirá em Austin hoje.

— A gente não vai fazer nada de errado, mamá. — Miguel

prometeu, depressa.
— É, mãe. O abuelo nunca passa dos limites. — María

também o defendeu.

Meu pai acenou, concordando, ao se colocar de pé:


— Teremos limites rígidos. — prometeu, mas não me

escapou a mão escondida às suas costas.

Nem o riso conspiratório dos meus filhos.

Wallace vivia para fazer os netos felizes. Para algumas


pessoas, segundas chances não só funcionavam, como mudavam

tudo.

Pensei em falar algo para advertir os três animadinhos


diante de nós, mas Rox tomou a palavra antes, me surpreendendo:

— Tudo bem. Desçam com seu avô para verem os cavalos.

— Ela permitiu. — Mas, por Diós, tenham juízo, está bien?


Miguel desapareceu depressa com meu pai. María apenas

depois de dar um beijo na mãe e outro em mim.


Esperei tudo estar em silêncio para falar.

— Essa permissão fácil foi uma estratégia para ficarmos a

sós, senhora Mead?


Roxanne sorriu. Então se levantou da cama, mas apenas

para vir se sentar no meu colo. Suas mãos envolvendo-me pelo

pescoço.

— Não. Isso é uma estratégia para te agradecer — disse ela


depois de se curvar e me beijar.

Suspirei, apaixonado.

— Acho que gosto desse tipo de agradecimento. — Afastei


um cacho de cabelo para trás da orelha dela, como fiz desde a

primeira vez em que a toquei, ao expor meus sentimentos em um

avião. —O que mais há nesse pacote de gratidão?

Roxanne riu. Então deixou a cabeça pender para um lado


para pensar.

— Hmm… Talvez mais de mil milhões de beijos. — Ela

parafraseou nossas crianças fãs da Marvel. — Que tal isso para um


advogado difícil, que me resgatou na neve há mais de uma década?

— Mil milhões é um bom começo.


— E prometo que o fim será ainda melhor. Com tudo o que o

meu belo marido americano quiser.

— Desde que minha bela esposa mexicana esteja feliz, não

há argumentos por parte deste advogado difícil.


O sorriso de Roxanne se alargou. Lindo como sempre e

fazendo meu coração disparar no peito. Em seguida, ela beijou a

ponta do meu nariz e afagou meu queixo.


— Obrigada por tudo isso, mi amor. Por permitir que essa

noite tenha chegado para mim.

— Rox...

— Sei que já agradeci muitas vezes, mas relembrar a nossa


história me fez pensar novamente na sorte que tive ao encontrar

você. Eu estava desamparada e acreditava que jamais poderia

confiar no meu coração de novo, mas você foi meu milagre, Samuel
Mead Huntington. Então, obrigada por cuidar de nós e nos dar essa

vida aqui no Texas com tanto amor. Obrigada por essa família

maravilhosa que criamos juntos e por esses anos extraordinários,

Sammi.
— Ah, Rox... Eu prometi que seríamos felizes, não foi? E

pretendo cumprir isso enquanto tiver fôlego de vida — reforcei, e ela

assentiu, emocionada, quando segurei sua mão em meu rosto. —


Eu era um pobre diabo com uma vida amarga antes de conhecer

vocês duas — admiti —, mas vocês foram a minha redenção. Minha


inesperada redenção.

E os três seriam para sempre. Senti isso quando a minha

esposa se curvou e uniu nossos lábios e lágrimas. Éramos dois e,

como um milagre, também éramos quatro. E poderíamos ser mil


milhões no amor, mas, sobretudo, seríamos uma família. Até o fim.

E, por causa disso, eu sempre seria o homem mais feliz e

sortudo do mundo.
Caso encerrado.
Inesperada Redenção foi mais que um livro para mim. Ele

tinha tudo contra si mesmo quando resolvi fazer dele meu próximo
lançamento. Sinceramente, quando retornei à produção deste livro,
eu não tinha muita coisa além de força de vontade e personagens

que pareciam exigir mais do que eu poderia oferecer. Então, precisei


mergulhar em uma jornada de autodescobrimento sobre as coisas
que eu era capaz de fazer como escritora, mesmo nas

circunstâncias mais difíceis. Por isso, foi uma surpresa quando, no


momento mais improvável, eu terminei por me apaixonar
perdidamente pela história de Sam e Rox. E assim eles dominaram

meu coração, minhas emoções e me trouxeram até aqui.

Sinto que venci um gigante com a ajuda de Deus, que


atendeu as minhas orações e que também me enviou anjos por

esse caminho tortuoso que foi fazer esse livro respirar. E esses

anjos são: as minhas irmãs, que mesmo quando não aguentavam


mais, me ouviram falar sobre as minhas frustrações sem fim e a
minha mãe, Milene, que me ajudou em cada final de tarde com

nossas novelas tranquilizadoras. Alê, de “A Viagem”, foi um belo


relaxante emocional.

Meu muito obrigada também às minhas amigas Lora, Deza

e Sarah, que também me ouviram e me impulsionaram com gritos


de “uhul” no momento certo. À Carla e a KF Assessoria: Carla,

obrigada por sua visão biônica desse livro e por apagar os incêndios

das minhas paranoias. À Designer TTENÓRIO, por me dar a capa


mais linda, e à April, que aceitou pintar esse livro por dentro com

suas mãos de fada.

Agradeço também à minha revisora, com quem sempre


posso contar para melhorar qualquer coisa que eu escrever. E às

minhas queridas parceiras do grupo do WhatsApp, que se jogaram


nessa comigo e toparam oferecer suas primeiras impressões da

jornada de Sam e Rox.

Por último, mas nunca menos importante, eu gostaria de

expressar minha gratidão a todos os meus leitores da Amazon e do

Wattpad. Vocês são a razão de eu sonhar e tentar me tornar melhor

a cada dia como escritora. Obrigada por lerem o meu trabalho e


obrigada pelo incentivo que acelera o meu coração cada vez que

abro uma página em branco para digitar. O que eu faço por aqui é
sempre pensando em vocês. Que Deus guarde a todos nós, e até a
nossa próxima aventura.

[1]
A Ivy League é um grupo formado por oito das mais prestigiadas universidades
dos Estados Unidos.
[2]
Marca de automóveis que produz, entre outras coisas, veículos elétricos de alto
desempenho.
[3]
Termo aplicado originalmente a painéis de alta qualidade em carvalho.
[4]
Árvore de O Senhor dos Anéis.
[5]
Fenômeno climático que ocorreu na década de 1930, nos Estados Unidos,
caracterizado por tempestades de areia.

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