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A REDE

Sempre digo que a perda de um filho é a maior tragédia que pode acontecer na vida de alguém. O
contrário, por mais terrível que seja, é quase natural, esperado, podemos assim dizer. Entretanto, o
que se passou com Antenor superou em muito o horror da morte de um filho. Tudo começou da
forma mais prosaica, como veremos...
"- Pai! O que é "Deep Web"? "
A inusitada pergunta deslocou-se da frente do computador até alcançar Antenor sentado num sofá
alguns metros adiante. As impressões subliminares da palavra o arrastaram bruscamente do blog
esportivo para o mundo real de trevas e pavor. Por intermináveis décimos de segundo, o celular
trepidou nas mãos do homem, indo parar no tapete aos seus pés, após cômicas piruetas no ar. Qual o
interesse que um menino de nove anos poderia ter em tal assunto - pensou ele.
"- O quê? Tite, o que estás vendo aí no computador?
- nada, pai... Só queria saber de que se trata. Muitos amigos falam sobre isso. Dizem que é um lugar
onde acontecem coisas horríveis... É verdade?
- não, Atílio, não é bem assim. É só uma parte da Internet onde não existem regras e você nunca
sabe com quem está lidando.
- humm...
- é mais ou menos como andar numa favela de madrugada...
- então acontecem coisas horríveis sim, pai!!
- hehehe... Bem, é hora de dormir! Amanhã tem aula. Já prá cama!! "
O menino correu pro quarto, mergulhando momentos depois num sono pesado, povoado por
assassinos de aluguel, sexy-dolls e traficantes de órgãos. Lá em baixo, o computador do jovem
manteve-se por alguns instantes em atividade, emitindo abafados sons eletrônicos e cintilações
luminosas, o que atraiu a atenção de Antenor.
"- O que esse moleque estava fuçando aqui? Vejamos.. Tudo apagado!? Mas não o vi... Bem, vamos
ao histórico de navegação. Aqui... Ué? Zerado? Impossível!"
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Pela mente do homem passaram as amargas lembranças de sua própria experiência com os
subterrâneos da Grande Rede. Uma rápida sucessão de recordações amargas, semelhantes àqueles
filminhos de aniversário. A descoberta da traição da mulher ; seu desaparecimento; o choque de se
ver só com uma criança pequena para criar; o abandono do emprego. Tudo que somado, o levou à
beira da loucura. Como produto desse verdadeiro inferno em vida, a mente de Antenor rachou.
Passou a empregar tempo cada vez maior navegando na web, negligenciando o cuidado com o filho
e com sua própria vida. Numa desesperada reação de sobrevivência, um resto saudável de seu
cérebro assumiu as tarefas do dia a dia, enquanto a parte doente mergulhou cada vez mais fundo no
mundo virtual. Esse equilíbrio instável inevitavelmente cobrou seu preço. Foram seis meses de
internação numa clínica, enquanto o pequeno Atílio ficou aos "cuidados" de uma tia distante e quase
desconhecida.
"- Parece que alguém apagou o histórico, mas Tite não teve tempo prá isso... Só tem um jeito de
saber."
Lutando intimamente contra a garra gelada que apertava seu coração, o olhar do homem se dirigiu
para a escada de acesso ao sótão onde, nos tempos de loucura que acreditava enterrados, havia
montado sua estação de trabalho conectada à rede da casa. Sua plataforma de exploração das
profundezas macabras da Rede.
Lentamente subiu os degraus, cada passo representando uma batalha titânica contra o medo.
Precisava avançar, porém. A verdade deveria estar alí.
Os dedos trêmulos introduziram e giraram a chave na porta, acendendo em seguida a luz da saleta,
uma fraca adversária para a treva densa. Por toda parte a onipresente poeira, exceto na cadeira
postada em frente ao computador. Antenor dirigiu-se ao equipamento, sentando-se. Os olhos
cansados em busca de informações.
- "quem andou mexendo aqui! Não pode ter sido Tite.. a porta estava trancada.. Será..? Não, claro
que não. Deus não permitiria!"
Seu cérebro afastou a pergunta sem resposta focando a atenção no mais urgente. Dali poderia checar
todos os acessos feitos por meio da rede doméstica, mesmo os registros deletados nas estações
periféricas. Algumas dedilhadas após e a lista de endereços visitados nas três últimas semanas
surgiu, piscando maliciosamente para o homem. Como esperava, do notebook do menino nada de
mais. Sites de filmes, um ou outro acesso mais picante, mas tudo na surface. O mesmo padrão no
equipamento central. Apenas logons quase diários, mas sem navegação alguma. Mistério...

- "caraca! Já passa da meia noite.. Preciso comer algo. Bem, aqui não consigo mais nada mesmo.
Talvez no celular dele, em outra rede. Na casa de algum colega, sei lá.."
Impulsionado pelos roncos no estômago, o homem deixou o Império do Pó para trás e dirigiu-se à
cozinha atrás de um lanche salvador naquela madrugada fria. Mas, nem a fome afastou o ricochete
de perguntas sem resposta em sua mente. Quase por acaso, algum dos questionamentos acendeu
uma luzinha, que rapidamente cresceu como um incêndio. Máquinas virtuais! Ele esquecera de
checar..
"- é isso! Claro! Ninguém navega na dark com sua própria máquina. Sim, vejamos!"
Em segundos a trilha escada acima foi refeita e em minutos, o diretório de máquinas virtuais expôs
seus segredos. Nos tempos de loucura que pensava ter deixado para trás, Antenor criara inúmeras
máquinas virtuais para navegar em relativa segurança na deep web. Lá estavam elas, todas
previsivelmente inativas. Menos uma. Inúmeros registros de atividade, in e out, subitamente
iniciada há cerca de trinta dias. Uma conversação. Com quem?
"achei! Mas, peraí... Como uma criança de nove anos consegue fazer isso? Como entrou aqui, prá
começo de conversa? Como descobriu a senha de acesso à conta?"
A resposta óbvia a tais perguntas gelou a alma de Antenor...
De qualquer forma, pouco antes do filho ir para seu quarto, ele estava navegando, com certeza. Ao
menos isso deveria ter ficado no histórico. Uma criança não teria o conhecimento nem a destreza
para limpar o acesso em segundos.
"um problema de cada vez. Primeiro, como esta conta virtual foi usada? Tite nem tem chave daqui
do sótão... Mesmo que se utilizasse de algum esquecimento meu, não tem a senha. Ademais, por
que? Não, não, ele não foi. Bem vamos descriptografar essa conversa... "
Aquela conta, em função de seus fins, fora dotada de um mecanismo de segurança que
automaticamente criptografava todo o tráfego na rede, diálogos, textos, enfim, tudo. O software de
decriptação, numa medida suplementar de segurança, ficava em outra máquina virtual com acesso
particular e diferente. Um intruso não conseguiria sequer entender os textos que chegassem. A
demonstração definitiva de que Atilio não tinha nada com tudo aquilo. Até onde Antenor soubesse,
desde sua internação na clínica a máquina não voltara a ser usada. Acessada a conta onde residia a
ferramenta de decriptação e acionada esta, o teor da conversa mantida no histórico metamorfoseou-
se rapidamente em um português razoável.
- oi, "feirante"!
- que?
- somos nós, "atravessadores-4" de novo. Lembra de nossa conversa semana passada? O acesso
remoto e tudo mais..
- não conheço ninguém...
- não precisa disfarçar. Sabemos que voltou à ativa. Precisamos de mais material. Você sabe, tem
muita gente necessitada no mundo..
- vocês devem estar enganados.
- já chega de brincadeira. Precisamos de algo muito especial desta vez. Vai ser bem mais difícil que
da vez passada e mais bem paga também! Razões sentimentais...
- não sei...
- como na entrega passada você tem o material em sua própria casa...
-??
- precisamos de..
Com uma incontrolável excitação, o homem desligou o computador diretamente no power. Uma
multidão de gotículas de suor se acumulavam em sua fronte, até formarem um filete que escorreu
face abaixo. Em pouco mais de cinco minutos um pequeno traço pulsante na tela, acompanhado de
um "plim" agudo e cortante indicou ao atônito Antenor que o equipamento fora religado. Seus olhos
arregalados além do natural acompanharam a indicação de nova mensagem.
"continuando:.. Medula óssea. Bem nova, nada além de.. digamos.. nove anos..?"
Antenor sentiu lhe faltarem as forças, exatamente como na época da internação. A vista escureceu e
seu corpo inerte deslocou-se lentamente para a direita até tombar no chão poeirento como um saco
de batatas.
" - pai? Que barulho foi esse? Pai! Você está bem?? Levanta pai.."
O despertar do homem, mais precisamente seu olhar gélido, quase repitiliano, foi como um tapa no
rosto da criança. O contraste entre o amor filial e a expressão inumana do pai, sublinhada pela voz
sussurrada, lançaram o pequeno Atílio porta afora. Antenor repôs a cadeira giratória em pé,
sentando-se. O ranger do móvel pareceu acalmá-lo. Uma mão firme e tranquila retomou o controle
da máquina.
- vejamos... Sim, sim. - oi, aqui é o "feirante"
- claro, quem mais? Vejo que está melhor...
- qual meu dead line? Prá quando a entrega?
- o que? Já esqueceu? Como conversamos semana passada, hoje passamos aí para fazer as
compras... Você não parece realmente recuperado. Isso é muito sério, meu caro. Nosso negócio
depende completamente da previsibilidade. Precisão nas entregas é essencial. Bem como sigilo...
- sim, claro. Não se preocupem. Até as dez e boas compras!
- Hehehe.. até.
O homem levantou-se deixando atrás de si o ruído de logoff e o progressivo mergulhar do sótão na
escuridão. Como um autômato, desceu as escadas, assobiando "Over The Rainbow" e, ao passar
pelo quarto do filho, não chegou a notar o olhar vidrado da criança. Ao chegar à cozinha abriu o
freezer, dele retirando uma embalagem térmica, enchendo-a de cubos de gelo. Em seguida, sempre
embalado pela melodia desafinadamente assobiada, alcançou uma caixa guardada na mais alta
prateleira do armário, dela retirando alguns instrumentos cirúrgicos. Uma expressão idiota,
emoldurada por um quase imperceptível sorriso, dava às suas feições um toque irreal. Concluída a
arrumação das peças de aço ao longo da mesa de mármore, o grito fatídico ecoou pela casa vazia:
" - Atílio! Vem cá! Rápido!!"
A mão direita do homem tamborilava tranquilamente no tampo frio da mesa, enquanto a esquerda se
contorcia como uma grande aranha ferida de morte.
FIM

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