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LAÇOS DE FAMÍLIA

ou
ALBERGUE DOS SOLITÁRIOS

O corpo inerte do homem, enrolado num lençol sujo, foi rapidamente retirado do quarto. Apertada
no pescoço do cadáver, projetava-se pelas dobras do pano, uma incongruente gravata vermelha.
Como numa linha de montagem, o volume foi levado até o alçapão de descarte de lixo da cozinha e
por este desapareceu. O ruído seco da tampa se fechando e o reverberar abafado da queda, foram o
ponto final daquela existência.

Alonso tomara uma decisão afinal. Apesar da posição irredutível de seu pai, Armando, buscaria por
todos os meios descobrir o paradeiro de seu irmão. Já se havia passado mais de ano desde que, em
decorrencia de uma briga com o pai, Afonso saira de casa. Banalidades do dia-a-dia que
temperamentos exaltados e incompatíveis levaram ao ponto da ruptura. Curioso como dois irmãos,
ainda mais gêmeos idênticos, podiam ter personalidades tão diferentes. Enquanto Afonso era
rebelde desde pequeno, Alonso era totalmente o oposto. Sua introversão beirava o Autismo e
qualquer manifestação de vontade ou discordância, uma verdadeira guerra interior. A ausência da
mãe, Amanda, falecida no parto dezessete antes, só acentuara tais características, já que o pai pouco
tinha a oferecer em termos de carinho e orientação. Assim, os dois irmãos foram moldando suas
personalidades de uma forma "natural", ao sabor do ambiente.
Ao longo daquele ano, Alonso, além de reunir forças para enfrentar o pai, pesquisara febrilmente
informações sobre seu irmão. Afinal, hoje em dia, com todas as conexões virtuais da Sociedade, é
praticamente impossível desaparecer sem deixar rastros. A maior dificuldade fôra fazer as pesquisas
sem o conhecimento de Armando. Assim, os trabalhos limitaram-se às ausências profissionais do
pai, representante em Porto Alegre de uma vinícola da Campanha.
Após a partida de Afonso, todas as suas coisas foram apressadamente encaixotadas e enfiadas no
sótão da casa, inclusive o computador, pivô da briga entre pai e filho. Armando era homem às
antigas e que detestava tudo que parecesse "moderno", definição que abrangia tanto tecnologia
quanto comportamentos sociais. Não podia dispensar o uso da Web, mas a considerava "um mal
necessário". Desde sempre decretara que o filho desaparecido era "independente demais" e que
"vivia metido naquela merda de computador". A amigos, Armando costumava dizer que era
facílimo distinguir os filhos gêmeos. Bastava contemplar o "olhar metido a besta" de Afonso. Já
Alonso, como se acostumara a fazer, simulava junto ao pai um desinteresse pelo assunto, tendo
construído sua vida virtual à sombra da do irmão. Mesmas contas, senhas e, é claro, identificação
biométrica.. Esta verdadeira existência nas trevas se revelaria muito útil, quando iniciou a busca por
Afonso.
O primeiro passo foi puxar dissimuladamente um fio elétrico até o sótão, de forma a poder religar o
equipamento do irmão. Isto seria essencial, já que sabia que a maior parte das navegadas de Afonso
ocorriam na Deep e, portanto, smartphones não ajudariam muito. Trabalhava na ausência do pai,
roubando tempo da preparação para o ENEM. Às vezes se imaginava um prisioneiro, cavando um
túnel na ausência do carcereiro, para fugir da cela odiada.

Em algumas semanas pouco descobriu. Na Deep nada de históricos, como era de se esperar e dos
sites usuais, nada chamou à atenção. Um fiapo de pista foi a compra com cartão de crédito, de uma
passagem rodoviária Porto Alegre - São José do Norte. Não dava para saber a data da viagem, mas
apenas da compra, uns poucos dias antes do desaparecimento. Era pouco mas era alguma coisa.
Transportes Rodoviários Estrela Solitária. Restaria descobrir o trajeto e, o mais difícil, a parada
exata, não necessariamente a rodoviária do destino final. Pensando bem, dificilmente alguém da
empresa lembraria do ocorrido numa viagem de um ano atrás, mas ele devia persistir. Ao verificar
os trajetos, um nome surgiu, brilhando como uma vela que se acende na escuridão: Tavares.
Sim, a pequena cidade fica a pouco mais de cem quilômetros de São José, a última parada antes do
fim do trecho comprado por seu irmão. O revelador porém, era o fato de Tavares ser o berço - e
também o túmulo - de sua falecida mãe, Amanda. Afonso, presa da emoção do abandono do lar,
talvez buscasse suas raízes, ou uma espécie reencontro espiritual com a mãe que não chegara a
conhecer. De qualquer forma, não havia outra pista a seguir. A lógica, ou pelo menos o que Alonso
queria que assim o fosse, lhe sussurrava que aquilo tudo não podia ser coincidência.

Nos dias seguintes, dissimulando o interesse, buscou extrair do pai o que pôde sob a morte e o
sepultamento de sua mãe. Aquele sempre fora um tabu em sua casa. Armando jamais quis tratar do
assunto, guardando-o no armário empoeirado da alma como um esqueleto acusador. Pela primeira
vez na vida, Alonso vislumbrou uma brecha na armadura de sisudez do pai. Chegou mesmo a
perceber alguma emoção, contida a duras penas, na voz e no olhar cansado de Armando. Não
conseguindo o velho homem, responder as indagações do filho, levantou-se e buscou algo na gaveta
da cristaleira. Voltou-se para Alonso e, sem encará-lo, depositou na mesa à frente do filho um
livreto em mau estado. Ainda com o olhar preso ao chão, afastou-se em direção ao dormitório como
se caminhasse para o próprio túmulo.

Aquela foi uma noite interminável para Alonso. As terríveis páginas do livrinho abriram uma ferida
lancinante em sua alma. Delas escorria como sangue, um relato cheio de ódio e revolta. Na loucura
da dor, sua mãe lançava sobre o marido e os recém-nascidos, a culpa pela morte que se aproximava.
As últimas palavras que deixou, com toda a energia do desencarne, eram um verdadeiro testamento
de vingança.
Na manhã seguinte, ainda sob o efeito da noite em claro, o rapaz levantou-se, arrumou
apressadamente sua mochila e rumou à cozinha. Em sua mente agitada, se perguntava se o irmão
tivera acesso ao testemunho da mãe, pois tal fato daria um sentido a sua hipótese. Após engolir
mecanicamente um gole de café solúvel e meia torrada, chamou um Uber e foi encontrá-lo em
frente à casa. Uma chuva fina e fria veio de encontro a seu rosto e Alonso partiu para a Rodoviária
sem se dar ao trabalho de fechar a porta da casa.
O solavanco sincopado dos pneus na rodovia esburacada, tivera o efeito dum berço a balançar.
Junto com a sucessão de imagens cinzentas que se sucediam na janela do ônibus, como uma canção
de ninar, acabaram por mergulhar Alonso num sono profundo. Neste, uma sequência de imagens
terríveis se sucediam. A mãe, em meio a lençóis sujos e amarfanhados, amaldiçoando a família nos
estertores finais. A briga idiota porém decisiva, de Alonso e Armando. Seu irmão a vagar sem rumo
numa rua desconhecida, pisando ruidosamente numa camada de areia agitada pelo vento. Pequenas
casas semi soterradas pela areia. A porta do casarão decrépito a se abrir, revelando uma bocarra
negra. A incongruente imagem de uma gravata vermelha sobre um criado mudo. Um porão escuro,
salpicado de indistinguíveis objetos brancos.

O estridente assobio do ônibus, aliado ao grito do motorista anunciando a chegada em Tavares,


arrancou o rapaz das garras de seu pesadelo. Fronte molhada de suor, gozou a sensação agradável
de se ver fora daquela agonia. Sob o olhar de reprovação do motorista, e dos poucos outros
passageiros, juntou a mochila que havia rolado corredor a fora e ganhou a rua. A tarde, prestes a se
transformar em noite, apresentava-se sombria, fria e ventosa. A rodovia, uma interminável reta de
asfalto, pouco mais apresentava naquele ponto do que a parada do ônibus: solidão. O cinza
onipresente torna indistintos os limites da estrada, mato e areia. Sentado dentro do abrigo, um velho
que aparentava dormir, imóvel, incorporado à paisagem. Face indistinguível da vestimenta. A voz
baixa, sobressaltou Alonso, como se viesse do além.
- Boa tarde, piá. Indo pra Tavares?
- É... quer dizer... Na verdade não sei.
-?
- Estou a procura de uma pessoa. Mas não sei se está aqui ou não..
- Hehehe.. É como procurar uma agulha num palheiro, mas por sorte, aqui o palheiro é bem
pequeno! A cidade só tem um hotel.. A tal pessoa chegou no ônibus de ontem?
- Aí é que está.. Não sei, mas deve ter chegado a mais ou menos a um ano atrás..
- Bah! Aí fica bem difícil, piá...
- O senhor vive aqui há muito?
- A mais tempo do que posso me lembrar..
- Talvez se lembre dos Almeida? Da Amanda?
- Claro! O pessoal do albergue da praia.. Que eu saiba, dona Amanda morreu tem tempo. Uns
quinze anos ou mais. Foi enterrada aqui, vinda da Capital. Descansa lá pras bandas do
Lagamarzinho, onde nasceu.
- Sim, sou filho dela.
- Bah.. Um pouco tarde pra pêsames, não é? Vai visitar o túmulo?
- Não é bem isso. Procuro por meu irmão.
- Ele veio pra cá? Quando foi isso? Não me lembro de ninguém chegar aqui nas últimas semanas.
Muito menos a caminho daquele fim de mundo..
- Afonso saiu de casa no fim do ano passado e..
- Peraí.. Já me lembro! Um moleque como tu.. Igual, na verdade. Gêmeos?
- Sim. Não tenho certeza de nada, só um palpite. Ele comprou uma passagem pra São José, mas
nada teria a fazer lá.
- Sim, sim. O gajo veio pra cá, exatamente como tu. E foi pro Lagamarzinho sim, em busca do
Albergue. Eu mesmo indiquei o caminho. É por ali, pela trilha de areia, na direção da lagoa. O
povoado fica logo depois da pinguela por cima do alagado, quase na praia.
- Muito obrigado! Vou pra lá então, antes que a noite caia de todo.
- Espera aí... Ei! Espera... Bah, igualzinho ao irmão.. O que será que pensa encontrar por lá? O
povoado está abandonado há anos.. Bem, cada doido com sua mania!
As palavras do velho ficaram sem resposta, mortas na parada de ônibus, já tomada pelas primeiras
sombras da noite. O rapaz, pondo a mochila nas costas, apressou-se na direção da trilha indicada,
lançando um "obrigado" na direção do velho, sem sequer um olhar. Tinha pressa, só não sabia o que
faria em seguida.

O som triturante das botas esmagando a areia fina e compactada, parecia quase natural em meio
àquela desolação. Uma vegetação rasteira, enfezada e triste, varrida incessantemente pelo vento
salgado do mar. O alarido ocasional das aves migratórias a fazer o contraponto do vento, pontuado
pelo croc-croc da caminhada.
Não era sem razão que as tentativas de ocupação humana naquele trecho da traiçoeira costa gaúcha
tinham fracassado na maioria das vezes. Hoje, restavam faróis, alguns ainda funcionando, e
diversos assentamentos abandonados, semi cobertos pela areia.

Após várias horas da hipnótica caminhada pela trilha arenosa, Alonso chegou ao assentamento. O
ruído surdo do mar transmitia paz e quietude, em contraste à sensação ameaçadora das construções
abandonadas. O conjunto arquitetônico transmitia a incômoda sensação de um bando de enormes
animais adormecidos sobre o areal, imersos em trevas. No meio do conjunto, um brilho solitário,
como um olho enorme, parecia oferecer-lhe a única opção possível. Afrontando a areia fina que
atacava seu rosto, o rapaz aproximou-se da luz, um lampião a querosene que já vivera tempos
melhores. A seu lado, balançando zangada uma tabuleta: Albergue dos Solitários. O assentamento
do Lagamarzinho não estava totalmente abandonado, afinal.
A mão fria de Alonso não encontrou qualquer resistência da maçaneta. Entrou no albergue e dirigiu-
se ao balcão da recepção, onde o esperava uma mulher, alta e magra, feições indistintos em meio a
penumbra. . A atmosfera interior podia ser considerada acolhedora, a despeito da umidade reinante e
do cheiro indefinível, algo como flores secas, ou coisa parecida. Sua primeira intenção foi indagar
pela passagem do irmão por ali, mas não teve a chance para tanto.

- Boa noite, filho. Vai pousar, é claro.


- Sim, mas gostaria de...
- Temos todo o tempo do mundo para isso, mas antes, deves descansar, comer algo. Daí acertamos
as contas...
- Não tenho fome. Preciso perguntar algo sobre meu irmão. Deve ter passado por aqui mais ou
menos...
- Ninguém sai daqui a muito tempo, meu filho. Venha, vou levá-lo a seu quarto. Se não quer comer,
tanto melhor. Ao menos descanse para a próxima jornada. Vem...meu filho!
A mulher saiu de trás do balcão e mergulhou através de uma cortina de contas de madeira. As
bolotas ficaram se entrechocando até se imobilizarem por completo. Alonso seguiu-a
mecanicamente, em busca de respostas. O pequeno corredor era fracamente iluminado por um
lampião pendurado na extremidade oposta, delineando o perfil negro da mulher, de pé ao lado de
uma porta já aberta.
- É aqui o seu lugar, filho.
O jovem entrou no cômodo, que aparentava não ser arrumado há tempos, sentando-se na cama.
Mesmerizado como um pomba a encarar uma serpente, observou a lenta aproximação da mulher
que estendeu a mão em sua direção. Seu corpo amoleceu de prazer ao sentir seus cabelos
acariciados pela garra. Nada podia contrastar mais com os gestos carinhosos, do que a expressão
quase irreal de ódio, estampada na face da mulher. Na outra mão, balançava uma gravata vermelha.
O Jeep freiou estrepitosamente em frente à parada de ônibus no trevo de Tavares.
- Boa noite!
- Buenas.. Em que posso ajudar?
- Preciso chegar no Albergue dos Almeida. Não consegui nenhuma indicação e...
- Mais bah! Nem quando o povoado ainda estava vivo tinha tanta procura.. Já é o terceiro vivente
que quer ir lá... Será que tem um tesouro no Lagamarzinho e só eu é que não sei? Bem, já que estás
de 4x4, é só pegar a trilha ali ao lado da BR. Depois da pontezinha são só cinco minutos. Mas não
tem onde ficar, ainda mais a está hora. Só se pousar no albergue, hehehe...

A partir da pinguela, o automóvel podia seguir a direção indicada pela luzinha amarela, já perto da
costa. O albergue, na certa. Após uns cem metros sobre a areia, o veículo deteve-se junto à porta da
casa. No pórtico uma mulher, de fisionomia bastante familiar ao motorista, ostentava um sorriso de
triunfo nos lábios e uma gravata vermelha na mão.
- Pode entrar, Armando... Só falta você!

FIM

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