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GEENA

Fabrício vagava sem rumo pela rua impulsionado unicamente pela sensação de que
encontraria uma explicação mais adiante, em qualquer esquina. Um presságio lhe
dizia isso. Que horas seriam? A julgar pelas trevas que dominavam sua alma,
certamente três da madrugada, a hora dos espíritos. Arrastava nas costas um fardo
enorme, cheio de mágoas, planos brutalmente destruídos e.. culpa. Era como se
caminhasse há anos, sempre à noite, enregelado e cansado, sempre a ponto de
gritar. Sua vida se transformara numa eterna noite de inverno. No fundo de sua
consciência se alternavam as imagens da mãe, da irmã e sobrinhos, todos
banhados em sangue. Compunham o quadro mental a casa onde nascera,
consumida em chamas; um culto evangélico dominado pelo cadáver do pastor,
prostrado na frente da assistência, braços abertos num arremedo macabro de
Cristo; um machado ensopado de sangue, ainda com entranhas aderidas à lâmina.
A pergunta “que tenho eu com tudo isso”, voltava repetidas vezes e quando a
inevitável resposta começava a emergir das profundezas de seu espírito, Fabrício a
recalcava de volta ao abismo do ser, pois enfrentar todo aquele horror de novo seria
insuportável. Em sua caminhada incessante não cruzara com ninguém. Sombras
escuras, recolhidas sob toldos de lojas e recessos de prédios, não chegavam a
convencê-lo de que eram humanos.

Após vagar sem rumo certo, Fabrício se deparou com um letreiro luminoso de neon
vermelho, piscando lascivamente: Geena. A visão era estranha, pois ele passava
com frequência pela região nos tempos em que sua vida tinha manhãs e jamais
notara tal lugar. Fabrício trabalhara numa loja ali perto e era realmente improvável
nunca ter esbarrado em Geena. A única coisa familiar era o nome. Mesmo assim,
não atinava com a referência, pois a lembrança vinha de suas antigas leituras
bíblicas. O que poderia ligar o texto sagrado àquele pardieiro? A indistinta conexão
do nome com sua vida anterior, o atraiu irresistivelmente. Geena - o que quer que
fosse aquilo - era um prédio insignificante, sujo e palidamente tingido de rosa pelo
letreiro de neon. Uma porta metálica de correr parecia indicar um armazém, não
fosse o letreiro. Quem já ouviu falar de armazém com letreiro de neon e nome de
fantasia? Ao lado da tal porta se podia perceber uma mancha escura, lembrando
um agá minúsculo. Aproximou-se devagar até reconhecer na mancha um homem
sentado numa cadeira.
- Chegue mais, moço! Venha, aqui é o seu lugar..
O agá desdobrou-se lentamente revelando um negro enorme. Sem esperar
qualquer resposta, o homem puxou a porta para cima, com surpreendente
facilidade. O espaço escuro que se formou com a subida da porta, associada ao
guincho metálico, transmitiram a Fabrício a incômoda sensação de defrontar-se
com uma enorme boca banguela, de alguma criatura desconhecida. Não se
perguntou por que, mas penetrou resolutamente na bocarra. Nada ali dentro poderia
ser pior do que o que deixava atrás de si. O tronco de ébano e suas indistintas
palavras ficaram igualmente perdidas no mundo que ele abandonava ao entrar em
Geena. Novo guincho às suas costas. Uma nova etapa na vida. Vida? Talvez.
Numa daquelas quase-lembranças que abordam nossa consciência quando
tentamos recuperar um dado arquivado no subconsciente, Fabrício quase encontrou
o significado de "Geena". Algo a ver com Jerusalém..

Uma antessala igualmente rosada pela mesma luz fria da fachada, panos puídos de
cor indefinível e um improvável tanque de peixes no fundo à direita, cujas águas
lodosas eram tão desprovidas de vida como o mundo lá fora. A passagem dobrava-
se à esquerda, desembocando numa saleta redonda, em cujo centro situava-se,
muito apropriadamente, um "sofá de puta", circular como de hábito. Quantas
pessoas terão sentado ali, se expondo, escolhendo ou meramente esperando o
fechamento da conta da noitada. Em frente daquele carrossel de almas, um balcão,
cujo revestimento de fórmica descolado dava ao móvel um aspecto risonho. Este
cômodo, como tudo o mais, parecia morto, desocupado há tempos. Na extremidade
oposta ao balcão abriam-se duas passagens dotadas de escadas. Uma subindo,
seguramente dando acesso a quartos no segundo piso e imensa em escuridão. A
outra descendo, de onde provinha a mesma luz difusa e avermelhada da fachada e
da antessala. Pendurado na parede acima da abertura, um quadro de gosto e
técnica duvidosos, retratando algum tipo de cigana, ou coisa assim. O andarilho da
noite eterna podia jurar que daquela goela rosada provinham sons abafados. Risos?
Conversas? Nada mais destoante do ambiente geral. Fabrício, após examinar a
superfície do balcão - apenas uma camada grossa e antiga, misto de pó e suor -
encaminhou-se à abertura descendente. Uma apertada escadinha em dois lances
mergulhava fundo nas entranhas de Geena. As paredes, tomadas por desenhos de
mofo e umidade, podiam ser lidas como quem lê folhas de chá: maus augúrios. A
medida que descia, chegavam mais sons aos ouvidos de Fabrício. Agora teve
certeza que haviam diversas pessoas lá em baixo, em animada conversação. Ao pé
da escada uma ridícula cortina de contas de madeira fazia as vezes de porta,
isolando o final das escadas da fonte dos risos e conversas. Fabrício estendeu a
mão, acariciando as descascadas bolotas, saboreando as vozes abafadas,
entrecortadas por risinhos forçados. Sabia perfeitamente não ter opção a não ser
entrar, mas sentiu um gozo irracional em retardar a entrada. Finalmente mergulhou
no seu fado, capturando cada pequeno toque das contas de madeira, como se
estivesse atravessando uma queda d'água. Uma vertigem o dominou, gerada pela
necessidade de contato humano e pela forte impressão de que chegara ao "seu
lugar". Subitamente... choque! Nada nem ninguém. Apenas mais uma província
desabitada e dominada pelo pó. Uma sala retangular, com laterais ocupadas por
longos sofás que conduziam a vista até uma espécie de palco, imerso em trevas.
Apenas indistinguíveis bricabraques e caixas quebradas substituíam os antigos
"artistas". Na extremidade anterior, logo depois da cortina de bolotas, um bar tão
abandonado, poeirento e engordurado como todo o resto. Dominando o bar, um
enorme espelho cortado na diagonal por uma rachadura semelhante a uma cicatriz.
Por estranho capricho da iluminação, as duas metades pareciam emitir reflexos
diferentes. Fabrício equilibrou-se no único banquinho razoavelmente inteiro,
cotovelos apoiados no balcão do bar. A solidão absoluta do lugar teve o dom de
afrouxar os poderosos laços de sua inibição. Começou a curtir a sensação de estar
num tipo de antro que só conhecera de ouvir contar. Já conversava animadamente
com o inexistente barman quando um rubro reflexo de luz preencheu a metade
inferior direita do espelho. Fixou a vista na superfície iluminada e pode discernir
movimentos e luzes coloridas no palco do fundo da sala. Pouco a pouco fumaça de
gelo seco e spots de diversas cores deixavam o palco pronto para alguma
"atração". Mesmo os frangalhos de mente de Fabrício perceberam que algo não
estava certo, mas descartou a noção com um movimento de cabeça. Virou-se
resolutamente para o palco e estacou, boquiaberto. Teve que concordar com o
frequentador no banquinho ao lado: era mesmo uma deusa! Ela se enroscava
lascivamente com uma cadeira, arrancando preguiçosas palmas de uma plateia que
não podia estar ali. Por trás das costas, o ruído rascante do copo empurrado pelo
barman deslizando pelo balcão. Fabrício esvaziou-se uma só vez, sem atentar para
o fato de nunca ter posto álcool na boca antes. Das fileiras de sofás, os casais, ou
melhor, as damas dos casais, lançavam olhares significativos em sua direção. Já se
preparava para seguir o comando de uma longa unha escarlate, mergulhando do
banquinho na direção do sofá, quando a mão do barman o deteve: "não, não, ela te
alcança. Sente só, lá perto do palco...". Sem a lembrança de como chegara lá,
Fabrício viu-se instalado na última posição lateral, afundado no sofá bem defronte
ao palco. A apresentação anterior - a deusa loura e sua cadeira - já terminara e o
gelo seco dominava a cena novamente. O garçom acabara de depositar na mesinha
de apoio, um baldinho de gelo e uma garrafa provida de uma escala graduada e
cheia de um líquido âmbar. De sua posição, Fabrício podia apenas enxergar o
garçom até a cintura, mas nem chegou a encara-lo pois uma salva de palmas
anunciou a entrada da nova atração.
No centro do palco já sem fumaça, uma poltrona de dois lugares em mau estado,
ocupada por uma velha senhora. Meio tombada de lado, a idosa parecia ausente,
com um olhar de profunda dor. Mais ao fundo, sentada numa cadeira, uma mulher
de meia idade acariciava os cabelos de um menino de mais ou menos dez anos,
sentado a seus pés. Por trás da mulher uma menina em pé apoiava sua mão direita
no espaldar da cadeira. O trio pareceria um retrato de lambe-lambe não fosse a
expressão de dor estampada nas três faces. Fabrício não compreendia o que se
passava. Circunvagou o olhar pela plateia em uma busca inútil de explicação. Nem
as faces cadavéricas onde antes haviam rostos excessivamente maquiados, nem
seu finado pastor travestido de garçom lhe causaram maior estupefação do que a
presença no palco de sua família. Sentiu-se rasgado por dentro, aniquilado por um
terror que vinha tentando manter oculto na alma. A plateia parecia eletrizada pela
cena. Os murmúrios e risinhos contidos foram subitamente substituídos por palmas,
gritos e assobios estridentes, saudando a chegada de novo ator à ribalta. Um
homem carregando um machado entrara pela passagem lateral do palco, postando-
se de costas para a plateia e de frente para a velha do sofá. A cena que se seguiu,
espantosa em sua violência caótica, misturava o movimento frenético e implacável
do machado, carnes dilaceradas a voar, sangue jorrando e escorrendo pelas
paredes, tudo em meio a uivos inumanos oriundos da plateia e a um curioso efeito
teatral, semelhante a um incêndio. Ao final da performance, uma figura hedionda e
negra emergiu do fundo do palco e aproximando-se da plateia, apontou suas
ossudas garras para Fabrício, dizendo: "o autor! O autor!". A última lembrança do
andarilho foi a cabeça de sua mãe de lado no piso do palco a contempla-lo. Sorria.

Fabrício continuava a caminhar, acompanhado pela imagem de sua mãe a sorrir.


Ao virar a esquina deparou-se com o letreiro em neon vermelho que piscava
incessantemente: Geena... Geena... Geena. Resolveu entrar e ver de que se
tratava. Um presságio lhe dizia que acharia uma resposta...

Serpentes, raça de víboras! como escapareis da condenação da geena?

Mateus 23:33

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