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O casal, não recebendo resposta aos seus acenos, quedou-se em sua varanda e passou
a um joguinho de adivinhação, buscando descobrir algo sobre os novos vizinhos através
da observação dos objetos da mudança. Inútil. Ao contrário do que se poderia esperar, a
bagulhada não tinha qualquer padrão. Haviam objetos velhos e novos, estragados em sua
maioria, mas alguns em bom estado. Quanto ao estilo, igualmente não se poderia deduzir
grande coisa, já que o conjunto mais parecia a mudança de duas famílias distintas ou de
um brexó. A noite já começava a cobrir a região com seu manto negro quando o processo
se encerrou. Finalmente o marido - deveria ser o marido afinal - saiu do fusquinha e
dirigiu-se à dupla de trabalhadores, conversou qualquer coisa inaudível ao e pagou pelo
serviço. Em mais alguns minutos e lá se foi o caminhão de mudança, aos peidos rua a
baixo. O homem era alto e magro e trajava terno escuro de cor indefinível naquele fim de
tarde. Portava chapéu, compondo uma figura estranha, parecendo de outra época. Por
uns dois minutos ficou no meio da rua, como a meditar. Olhava ao redor, para os dois
lados da rua, para o bosque por trás das casas e para sua nova morada, mas não chegou
a dirigir a vista na direção de Sergio e Sueli. Subitamente um choro agudo e lamentoso
partiu do interior do veículo verde, parecendo despertá-lo daquela letargia. Apressou-se a
abrir a porta traseira do carrinho, de onde emergiu como uma baleia vindo à tona, uma
mulher gorda, apertada num conjunto de bolinhas vermelhas em fundo branco.
Desajeitadamente a mulher procurava manter nos braços um bebê aos prantos. Ainda
agora, nem sequer uma olhadela que permitisse aos novos vizinhos se apresentarem e
darem as tradicionais boas vindas, ou mesmo ajudar. Dir-se-ia que os recém chegados
nem sequer se haviam apercebido do casal na varanda, não fosse pela dissimulada
mirada que o homem de terno lançou aos dois antes de fechar a porta da casa.
- que gente mais mal-educada!
- que é isso, Sueli? Devem estar cansados... Tu lá sabes de onde estão vindo? E tem o
bebê... Eles dão um trabalhão!
- Vais querer me ensinar? Não fui sempre eu que cuidei da nossa Clara? Você, às voltas
com teus escritos....
- Já esquecestes quando foi a última vez que pegastes um bebê no colo? Chorando, na
certa cagado... com fome...
- Tu é que não sabes nada disso, né? Mas vamos entrar que já está esfriando. Vi no
Simepar que esta noite vai ser a mais fria do ano..
Como sempre, a previsão do tempo do Paraná acertara em cheio. A caída da noite de lua
nova trouxera consigo, além da escuridão, um frio intenso e da represa aos poucos subia
uma névoa gelada que foi se acomodando nas ruas do pequeno bairro. Noite pra acender
lareira, com certeza. O agradável crepitar das grimpas e dos gravetos por baixo das
achas de lenha já se fazia ouvir quando Sergio voltou à varanda. Não fosse aquele som
continuo e triste e a cômica figura do fusca verde estacionado na garagem, ninguém diria
que a casa estava habitada. Nada de luzes, menos ainda a fumaça a sair da chaminé da
lareira. Ouvindo os gritos de Sueli anunciando a janta, ele regressou à sala de refeições e
ao voltar-se não percebeu que uma fraca luzinha se acendera no ático. Uma vela,
possivelmente.
- engraçado....
- o que Sergio?
- a casa em frente está toda as escuras...
- Ué... não foi tu mesmo que disse que deviam estar cansados e coisa e tal.... Vai ver
caíram no sono.
- ???
O resto da noite transcorreu sem maiores novidades. Por baixo dos edredons apenas um
baixo, contínuo e abafado choro de criança chegava aos ouvidos do casal. Nas suas
mentes as bizarras histórias de abusos e maus tratos a crianças, que vinham enchendo
os noticiários ultimamente. Pais abusando de filhos, mães entregando suas filhas nas
mãos de seus novos namorados, bebês largados na rodoviária ou em lixeiras. Parecia
que o mundo tinha ficado louco de um tempo para cá. Apesar do natural bloqueio que
impede os curitibanos de grandes expansividades com estranhos, o casal decidira entre
lençóis que na manhã seguinte iriam direto na casa em frente. Nunca que sabe o que
pode estar acontecendo por trás de portas trancadas.
A manhã chegou, límpida e gelada. Cada folha, cada pedra, cada casa, realçadas pela
claridade do ar. Sérgio Levantou-se de um pulo ao não perceber a mulher a seu lado.
Eram apenas oito horas e Sueli normalmente só saía da cama depois das dez. Mente
ainda confusa pelo despertar, o marido misturava as lembranças do pesadelo que tivera
essa noite com uma apreensão indefinível pela ausência da esposa. O alívio veio ao seu
encontro na forma de um delicioso aroma de café, como se fosse um cachorrinho a
saudá-lo no corredor. Nada poderia estar errado com aquela presença arábica a dominar
a casa. Com as pantufas mal enfiadas nos pés dirigiu-se à cozinha e lá encontrou Sueli
completamente vestida e quase terminando o desjejum. No lugar habitual de Sérgio, um
prato com uma torrada coberta de queijo outrora derretido e uma xícara de café
provavelmente morno.
- Bom dia. Pensei que não se levantava mais… Toma logo teu café.
- ??
- Ok. Sabes que tive um baita pesadelo esta noite? Algo com a criança…
- É? Eu também… e aquele choro que não para nunca.. Tem algo errado naquela família.
- Claro que acho! Damos as boas vindas e uma boa olhada por lá… Ademais, sabe lá o
que aquela criança pode estar passando. Até fiz uns brigadeiros para dar de presente…
Como costumava acontecer, Sérgio limitou-se a tomar seu café da manhã, retornando ao
quarto para vestir-se e seguir a ideia da mulher, tudo sob a supervisão da bandeja de
negrinhos colocada ao lado do micro-ondas.
Um sol frio recebeu os dois na rua deserta. Já eram mais de nove horas de uma segunda-
feira e as pessoas já tinham trabalhar. Sérgio e Sueli eram dos poucos aposentados no
bairro e seus horários pouco combinavam com os dos vizinhos. A mulher a conduzir a
bandeja de doces nas mãos e o marido dois passos atrás, dirigiram-se à casa dos recém
chegados. Ali tudo era silêncio, nem sinal de atividade dentro do imóvel e nem sequer o
choro que tanto os incomodara na noite anterior. Coube a Sérgio a imponente tarefa de
pressionar a campainha. Mais um fracasso em sua vida, pois som algum se ouviu em
resposta a seu gesto. O eterno olhar de censura muda de Sueli já procurava os olhos do
marido quando o ruído inconfundível de passos chegou até eles. Em seguida uma fresta
se formou na porta, apenas o suficiente para mostrar metade de um gordo rosto feminino,
encimado por um fixo olho azul. Tudo emoldurado em ralos cabelos louros. Intermináveis
dez segundos depois e a fenda ampliou-se o suficiente para revelar o segundo olho.
- Bom dia! Meu nome é Sueli e este é Sérgio, meu marido. Moramos bem em frente e
viemos dar boas vindas. Trouxemos esses docinhos aqui…
Enquanto falava, o olhar de Ivani esquadrinhava o espaço além do rosto da dona da casa,
claramente demandando um convite para entrar. A porta abriu-se completamente,
revelando a gorda senhora, num surrado robe-de - chambre cor de rosa. O interior, um
mundo de pó e caixas de papelão, terminando numa escada que levava ao andar
superior.
- É prá nós? Quanta gentileza.. Mas entrem, entrem, está gelado aí fora! Desculpem, nem
me apresentei. Meu nome é Ariane. Venham prá cozinha. Foi o que eu já consegui
arrumar. É por aqui.
Ao fundo da sala vazia, por baixo das escadas, se chegava à cozinha. Ali o casal
percebeu que a afirmação sobre a “arrumação” era puro otimismo. Estava tão sob o
domínio do pó quanto a sala e não se avistava sinal de cadeiras ou bancos. Nem parecia
que iriam habitar ali.
Por puro rito social, os três saboreavam os brigadeiros quando o som de passos na
escadas de madeira anunciaram a chegada do dono da casa e simultaneamente o
curioso choro de neném da véspera reiniciou.
- É Menelau, meu marido. Meu bem! Vem pra cozinha!! Temos visitas…
- Olá!
Um homem magro e alto chegara à cozinha, embrulhado num fino roupão preto que
acentuava ainda mais sua magreza. Calçava umas estropiadas sandálias de borracha e
parecia não sentir o frio que fazia.
- Prazer. Sou o Sérgio e essa é a minha mulher, Sueli. Viemos dar-lhes boas vindas.
Esperamos que gostem daqui. Eu..
- Bem, Sueli, vamos prá casa? Eles tem muito o que fazer. Olha só, o bebê está
chorando..
- Tem razão querido. Vocês não precisam de nada? Posso ajudar com a criança, ou vocês
podem almoçar lá em casa?
- Não, não. Muito obrigada, mas Menelau detesta sair de casa, não é meu bem?
- É sim. Depois, estou preocupado com meu enteado. Esse choro não passa…
- Menelau é muito dedicado, mas não se preocupem, o problema de minha filha é apenas
fome, nada mais.
- Bom dia amigos. Passem outra hora e mais uma vez obrigado pelos negrinhos. Estão
ótimos!
A visita assim terminou, não dando qualquer pista que pudesse alimentar as elucubrações
de Sueli. Deixando para trás o gemido contínuo da criança e as olhadelas dos novos
vizinhos dissimuladas por trás das janelas, o casal voltou para casa. Durante a
preparação do almoço e em seu decorrer, a mulher voltou ao tema. Sueli não era o tipo de
mulher que desistia facilmente.
- Tem coisa errada ali.. Aquele cara seminu, num frio desses! E a criança…
- Padrasto, esqueceu?
-Tanto faz…
- Mas vamos lá a troco de que? Não é melhor simplesmente avisar ao Conselho Tutelar e
pronto?
- Quando?
- Essa noite!
Passava pouco das sete, mas o mês de julho, aliado à lua nova, produzia uma
impenetrável escuridão. Apenas as luzes de sua própria casa iluminavam o caminho,
lançando as longas sombras de Sérgio e Sueli na direção do pardieiro em frente. Tudo
silencioso e imóvel.
- Mas…
Ignorando a ironia mas sentindo-se meio ridículo naquela situação, Sérgio premiu a
campainha e esperou. Novamente não se produziu qualquer som, como pela manhã.
Dessa vez, entretanto, nada de passos nem de olho azul. Já dava como encerrada a
absurda incursão quando sua mulher, agitada como sempre, apontou para a maçaneta. A
porta estava aberta.
Com as mãos apertadas com intensidade além do carinho, os dois iniciaram a subida. No
segundo andar o mesmo nada do térreo. Apenas o retângulo âmbar do acesso ao ático
prometia uma solução do impasse e assim o casal para lá se encaminhou, com uma
pressa que indicava a angústia que os dominava. O ruído-choro era nítido agora, mas
ainda sem permitir uma identificação precisa. Parados no umbral da porta do ático, Sérgio
e Sueli contemplavam seu interior num misto de decepção e raiva, pois não havia
ninguém. Em breve seus sentimentos mudariam radicalmente.
O cômodo era pequeno e baixo, localizado logo abaixo do telhado, sem forro. Ainda mais
sujo que o restante da casa, ostentava apenas dois móveis. Uma mesinha torta com um
castiçal de três braços em cima - a débil fonte de luz amarelada – e..um berço. Marido e
mulher, incapazes de mover algo mais que suas pálpebras, miravam o bercinho que se
movia lentamente, como que embalado por mão invisível. Dali vinha o som que os atraira.
Subitamente, algo escuro e repelente, do tamanho de um cão médio,saltou do berço
correndo parede acima, ocultando-se entre as traves de madeira. O som que emitia era
agora um silvo rascante, irreal, sublinhado por um tamborilar ritmado contra a madeira.
- Claro querida. Deus protege as crianças, mas os pais precisam fazer sua parte.
- Sim, faminto. Em umas horas subimos. Vai sobrar bastante prá nós. Como sempre…