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DEUS PROTEJA AS CRIANCINHAS

O caminhão de mudanças parou na calçada, sendo imitado por um maltratado fusca


verde. Sergio e Sueli, sentados na varanda da casa oposta, descansavam após o almoço
de domingo e, por absoluta falta de opção, passaram a acompanhar o que parecia ser a
chegada de novos vizinhos. Os dois residiam numa solitária rua sem saída, no bairro
Augusta, às margens da represa do Passaúna. Uma região remota, além do anel viário
que delimita Curitiba. Os otimistas incorrigíveis a consideram uma área calma e tranquila,
enquanto os mais realistas a classificam pura e simplesmente como mato. Uma espécie
de aldeia isolada, composta por meia dúzia de ruas pequenas formando um tosco
quadrilátero voltado para as águas da represa. Ao redor, muita vegetação cerrada, o que
dava razão aos realistas. Do caminhão desceram dois homens que imediatamente
começaram a descarga da mudança. No banco de trás do fusca, além do motorista, uma
mulher com um bebê no colo. O casal na varanda bem que tentou acenar aos recém-
chegados como um gesto de boas vindas, mas estes, se chegaram a perceber o
movimento, não deram qualquer mostra disso. Duas horas foram necessárias para
descarregar o caminhão. Os móveis, eletrodomésticos e caixas eram disciplinadamente
levados pela dupla de trabalhadores, formando uma língua multicor engolida lentamente
pela precária residência de madeira. A casa que seria ocupada pelos novos moradores
esteve à venda por longos anos, tendo depois mudado para o status de "aluga-se",
igualmente sem sucesso. Sergio e a esposa não chegaram a conhecer os donos ou
mesmo os ocupantes mais recentes, pois quando adquiriram sua casa, esta já se
encontrava vazia.

O casal, não recebendo resposta aos seus acenos, quedou-se em sua varanda e passou
a um joguinho de adivinhação, buscando descobrir algo sobre os novos vizinhos através
da observação dos objetos da mudança. Inútil. Ao contrário do que se poderia esperar, a
bagulhada não tinha qualquer padrão. Haviam objetos velhos e novos, estragados em sua
maioria, mas alguns em bom estado. Quanto ao estilo, igualmente não se poderia deduzir
grande coisa, já que o conjunto mais parecia a mudança de duas famílias distintas ou de
um brexó. A noite já começava a cobrir a região com seu manto negro quando o processo
se encerrou. Finalmente o marido - deveria ser o marido afinal - saiu do fusquinha e
dirigiu-se à dupla de trabalhadores, conversou qualquer coisa inaudível ao e pagou pelo
serviço. Em mais alguns minutos e lá se foi o caminhão de mudança, aos peidos rua a
baixo. O homem era alto e magro e trajava terno escuro de cor indefinível naquele fim de
tarde. Portava chapéu, compondo uma figura estranha, parecendo de outra época. Por
uns dois minutos ficou no meio da rua, como a meditar. Olhava ao redor, para os dois
lados da rua, para o bosque por trás das casas e para sua nova morada, mas não chegou
a dirigir a vista na direção de Sergio e Sueli. Subitamente um choro agudo e lamentoso
partiu do interior do veículo verde, parecendo despertá-lo daquela letargia. Apressou-se a
abrir a porta traseira do carrinho, de onde emergiu como uma baleia vindo à tona, uma
mulher gorda, apertada num conjunto de bolinhas vermelhas em fundo branco.
Desajeitadamente a mulher procurava manter nos braços um bebê aos prantos. Ainda
agora, nem sequer uma olhadela que permitisse aos novos vizinhos se apresentarem e
darem as tradicionais boas vindas, ou mesmo ajudar. Dir-se-ia que os recém chegados
nem sequer se haviam apercebido do casal na varanda, não fosse pela dissimulada
mirada que o homem de terno lançou aos dois antes de fechar a porta da casa.
- que gente mais mal-educada!

- que é isso, Sueli? Devem estar cansados... Tu lá sabes de onde estão vindo? E tem o
bebê... Eles dão um trabalhão!

- Vais querer me ensinar? Não fui sempre eu que cuidei da nossa Clara? Você, às voltas
com teus escritos....

- Já esquecestes quando foi a última vez que pegastes um bebê no colo? Chorando, na
certa cagado... com fome...

- Tu é que não sabes nada disso, né? Mas vamos entrar que já está esfriando. Vi no
Simepar que esta noite vai ser a mais fria do ano..

Como sempre, a previsão do tempo do Paraná acertara em cheio. A caída da noite de lua
nova trouxera consigo, além da escuridão, um frio intenso e da represa aos poucos subia
uma névoa gelada que foi se acomodando nas ruas do pequeno bairro. Noite pra acender
lareira, com certeza. O agradável crepitar das grimpas e dos gravetos por baixo das
achas de lenha já se fazia ouvir quando Sergio voltou à varanda. Não fosse aquele som
continuo e triste e a cômica figura do fusca verde estacionado na garagem, ninguém diria
que a casa estava habitada. Nada de luzes, menos ainda a fumaça a sair da chaminé da
lareira. Ouvindo os gritos de Sueli anunciando a janta, ele regressou à sala de refeições e
ao voltar-se não percebeu que uma fraca luzinha se acendera no ático. Uma vela,
possivelmente.

- engraçado....

- o que Sergio?
- a casa em frente está toda as escuras...

- Ué... não foi tu mesmo que disse que deviam estar cansados e coisa e tal.... Vai ver
caíram no sono.

- pode ser, mas o bebê continua chorando...

- ???

O resto da noite transcorreu sem maiores novidades. Por baixo dos edredons apenas um
baixo, contínuo e abafado choro de criança chegava aos ouvidos do casal. Nas suas
mentes as bizarras histórias de abusos e maus tratos a crianças, que vinham enchendo
os noticiários ultimamente. Pais abusando de filhos, mães entregando suas filhas nas
mãos de seus novos namorados, bebês largados na rodoviária ou em lixeiras. Parecia
que o mundo tinha ficado louco de um tempo para cá. Apesar do natural bloqueio que
impede os curitibanos de grandes expansividades com estranhos, o casal decidira entre
lençóis que na manhã seguinte iriam direto na casa em frente. Nunca que sabe o que
pode estar acontecendo por trás de portas trancadas.

A manhã chegou, límpida e gelada. Cada folha, cada pedra, cada casa, realçadas pela
claridade do ar. Sérgio Levantou-se de um pulo ao não perceber a mulher a seu lado.
Eram apenas oito horas e Sueli normalmente só saía da cama depois das dez. Mente
ainda confusa pelo despertar, o marido misturava as lembranças do pesadelo que tivera
essa noite com uma apreensão indefinível pela ausência da esposa. O alívio veio ao seu
encontro na forma de um delicioso aroma de café, como se fosse um cachorrinho a
saudá-lo no corredor. Nada poderia estar errado com aquela presença arábica a dominar
a casa. Com as pantufas mal enfiadas nos pés dirigiu-se à cozinha e lá encontrou Sueli
completamente vestida e quase terminando o desjejum. No lugar habitual de Sérgio, um
prato com uma torrada coberta de queijo outrora derretido e uma xícara de café
provavelmente morno.
- Bom dia. Pensei que não se levantava mais… Toma logo teu café.

- ??

- Quero ir na casa em frente ainda de manhã.

- Ok. Sabes que tive um baita pesadelo esta noite? Algo com a criança…

- É? Eu também… e aquele choro que não para nunca.. Tem algo errado naquela família.

- Mas tu achas uma boa ideia…

- Claro que acho! Damos as boas vindas e uma boa olhada por lá… Ademais, sabe lá o
que aquela criança pode estar passando. Até fiz uns brigadeiros para dar de presente…

Como costumava acontecer, Sérgio limitou-se a tomar seu café da manhã, retornando ao
quarto para vestir-se e seguir a ideia da mulher, tudo sob a supervisão da bandeja de
negrinhos colocada ao lado do micro-ondas.

Um sol frio recebeu os dois na rua deserta. Já eram mais de nove horas de uma segunda-
feira e as pessoas já tinham trabalhar. Sérgio e Sueli eram dos poucos aposentados no
bairro e seus horários pouco combinavam com os dos vizinhos. A mulher a conduzir a
bandeja de doces nas mãos e o marido dois passos atrás, dirigiram-se à casa dos recém
chegados. Ali tudo era silêncio, nem sinal de atividade dentro do imóvel e nem sequer o
choro que tanto os incomodara na noite anterior. Coube a Sérgio a imponente tarefa de
pressionar a campainha. Mais um fracasso em sua vida, pois som algum se ouviu em
resposta a seu gesto. O eterno olhar de censura muda de Sueli já procurava os olhos do
marido quando o ruído inconfundível de passos chegou até eles. Em seguida uma fresta
se formou na porta, apenas o suficiente para mostrar metade de um gordo rosto feminino,
encimado por um fixo olho azul. Tudo emoldurado em ralos cabelos louros. Intermináveis
dez segundos depois e a fenda ampliou-se o suficiente para revelar o segundo olho.

- Bom dia! Meu nome é Sueli e este é Sérgio, meu marido. Moramos bem em frente e
viemos dar boas vindas. Trouxemos esses docinhos aqui…

Enquanto falava, o olhar de Ivani esquadrinhava o espaço além do rosto da dona da casa,
claramente demandando um convite para entrar. A porta abriu-se completamente,
revelando a gorda senhora, num surrado robe-de - chambre cor de rosa. O interior, um
mundo de pó e caixas de papelão, terminando numa escada que levava ao andar
superior.

- É prá nós? Quanta gentileza.. Mas entrem, entrem, está gelado aí fora! Desculpem, nem
me apresentei. Meu nome é Ariane. Venham prá cozinha. Foi o que eu já consegui
arrumar. É por aqui.

Ao fundo da sala vazia, por baixo das escadas, se chegava à cozinha. Ali o casal
percebeu que a afirmação sobre a “arrumação” era puro otimismo. Estava tão sob o
domínio do pó quanto a sala e não se avistava sinal de cadeiras ou bancos. Nem parecia
que iriam habitar ali.

Por puro rito social, os três saboreavam os brigadeiros quando o som de passos na
escadas de madeira anunciaram a chegada do dono da casa e simultaneamente o
curioso choro de neném da véspera reiniciou.

- É Menelau, meu marido. Meu bem! Vem pra cozinha!! Temos visitas…

- Olá!

Um homem magro e alto chegara à cozinha, embrulhado num fino roupão preto que
acentuava ainda mais sua magreza. Calçava umas estropiadas sandálias de borracha e
parecia não sentir o frio que fazia.

- Sejam bem vindos… Menelau, a seu dispor.

- Prazer. Sou o Sérgio e essa é a minha mulher, Sueli. Viemos dar-lhes boas vindas.
Esperamos que gostem daqui. Eu..

- Sérgio! Desculpem, ele é assim mesmo. Fala… Eu, de minha parte…

- Bem, Sueli, vamos prá casa? Eles tem muito o que fazer. Olha só, o bebê está
chorando..

- Tem razão querido. Vocês não precisam de nada? Posso ajudar com a criança, ou vocês
podem almoçar lá em casa?

- Não, não. Muito obrigada, mas Menelau detesta sair de casa, não é meu bem?

- É sim. Depois, estou preocupado com meu enteado. Esse choro não passa…

- Menelau é muito dedicado, mas não se preocupem, o problema de minha filha é apenas
fome, nada mais.

- Bom dia amigos. Passem outra hora e mais uma vez obrigado pelos negrinhos. Estão
ótimos!

A visita assim terminou, não dando qualquer pista que pudesse alimentar as elucubrações
de Sueli. Deixando para trás o gemido contínuo da criança e as olhadelas dos novos
vizinhos dissimuladas por trás das janelas, o casal voltou para casa. Durante a
preparação do almoço e em seu decorrer, a mulher voltou ao tema. Sueli não era o tipo de
mulher que desistia facilmente.

- Temos que voltar lá.

- Que? Tá doida? Por que?

- Tem coisa errada ali.. Aquele cara seminu, num frio desses! E a criança…

- Que é isso mulher? O pai não…

- Padrasto, esqueceu?
-Tanto faz…

-Tanto faz? Até parece que não assiste telejornal…

- Mas vamos lá a troco de que? Não é melhor simplesmente avisar ao Conselho Tutelar e
pronto?

- Só tu mesmo, Sérgio! Não adianta nada..Precisamos de algo mais concreto. Pretexto?


Podemos ir buscar nossa bandeja, que achas?

- Quando?

- Essa noite!

Passava pouco das sete, mas o mês de julho, aliado à lua nova, produzia uma
impenetrável escuridão. Apenas as luzes de sua própria casa iluminavam o caminho,
lançando as longas sombras de Sérgio e Sueli na direção do pardieiro em frente. Tudo
silencioso e imóvel.

- Isso está cada vez mais esquisito, Sérgio…

- Que há de estranho num casal cansado ir dormir cedo?

-Às sete da noite?

- E daí? Em casa com bebê quem define horário é ele…

- Bem, de qualquer forma, vamos até o fim. Alguém tá acordado.

- Como sabes, Sueli?

- Não viu a luz acesa no ático ?

- Mas…

- Para de resmungar e vai na frente. Tu que és o homem, não?

Ignorando a ironia mas sentindo-se meio ridículo naquela situação, Sérgio premiu a
campainha e esperou. Novamente não se produziu qualquer som, como pela manhã.
Dessa vez, entretanto, nada de passos nem de olho azul. Já dava como encerrada a
absurda incursão quando sua mulher, agitada como sempre, apontou para a maçaneta. A
porta estava aberta.

Os “o de casa! “ não respondidos acabaram por autorizar a invasão. Afinal, algum


imprevisto poderia ter acontecido, um acidente, talvez. O casal avançou até o meio da
sala, de mãos dadas como há muito não acontecia. Em instantes suas pupilas já se
tinham adaptado à penumbra, fornecendo uma imagem em tons escuros. Ao fundo, o
retângulo negro da já conhecida cozinha. Na sala os tons de cinza pouco a pouco iam
clareando a cada lance de escada que levava ao segundo piso.

Momento de decidir o que fazer. Ir embora ou insistir na tese do acidente, subindo as


escadas até achar alguém? Já passava pela mente de ambos o velho ditado gaúcho a
respeito do “rato metido na guampa” quando o fatídico som veio decidir a parada. O
choro, ou melhor, o estranho ruído, monótono, abafado e lamentoso que ouviram antes. A
diferença é que agora, ouvido de tão perto, já não parecia um choro.

Com as mãos apertadas com intensidade além do carinho, os dois iniciaram a subida. No
segundo andar o mesmo nada do térreo. Apenas o retângulo âmbar do acesso ao ático
prometia uma solução do impasse e assim o casal para lá se encaminhou, com uma
pressa que indicava a angústia que os dominava. O ruído-choro era nítido agora, mas
ainda sem permitir uma identificação precisa. Parados no umbral da porta do ático, Sérgio
e Sueli contemplavam seu interior num misto de decepção e raiva, pois não havia
ninguém. Em breve seus sentimentos mudariam radicalmente.

O cômodo era pequeno e baixo, localizado logo abaixo do telhado, sem forro. Ainda mais
sujo que o restante da casa, ostentava apenas dois móveis. Uma mesinha torta com um
castiçal de três braços em cima - a débil fonte de luz amarelada – e..um berço. Marido e
mulher, incapazes de mover algo mais que suas pálpebras, miravam o bercinho que se
movia lentamente, como que embalado por mão invisível. Dali vinha o som que os atraira.
Subitamente, algo escuro e repelente, do tamanho de um cão médio,saltou do berço
correndo parede acima, ocultando-se entre as traves de madeira. O som que emitia era
agora um silvo rascante, irreal, sublinhado por um tamborilar ritmado contra a madeira.

Um derradeiro impulso do instinto de sobrevivência, fez o casal correr em busca da saída.


Entretanto, o suave fechar da porta e o ruído metálico da chave trancando-a, esmagou
seus corações como uma garra de gelo. Só lhes restou contemplar o Horror que já
descera da parede e se aproximava, silvando cada vez mais alto. Um louco pensamento
final passou pela mente de Sérgio: “teria sido uma benção não haver luz suficiente”.

- Nosso bebê está bem agora, não é Menelau?

- Claro querida. Deus protege as crianças, mas os pais precisam fazer sua parte.

- Estou com fome… Você não, querido?

- Sim, faminto. Em umas horas subimos. Vai sobrar bastante prá nós. Como sempre…

- Amanhã tudo recomeça. Já sabes pra onde vamos?


- Sim, sim. Tem uma casa abandonada lá pros lados do Pilarzinho. É ideal. Poucos
vizinhos e longe de ruas movimentadas.

- Será que teremos visitantes caridosos? Ou abelhudos?

- Claro meu amor, claro. Quem pode resistir a um choro de criança?

As risadas felizes do par perderam-se na noite do Augusta.

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