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AS

MORTES
POSSÍVEIS
Edição: Mar Morto – Editora
Direcção e produção editorial: Marco Polo
Título: AS MORTES POSSÍVEIS
Autor: J. Currie
1ª edição
Revisão: Maura Feitio; Marco Polo
Projecto gráfico e diagramação: Marco Polo e J. Currie
Designer de capa: Marco Polo e J. Currie
ISBN: 978-989-9093-35-5

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Copyright © 2023
J. Currie | Mar Morto - Editora
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responsabilização civil e criminal, segundo a Lei dos Direitos de Autor e Conexos.
À avó Emília Manuel Mutango,
pelas noites em que me rendo.
PREFÁCIO

Conheci o jovem Josias num segundo. No segundo a seguir, ele


escreveu um texto. É de imaginação fértil, mas é ao mesmo tempo um
jovem que já habita no seu próprio futuro, ainda que não totalmente, e
ainda bem.
Se fosse contemporâneo de Camus e se vivesse na mesma rua,
tenho a certeza que seriam amigos.
Se fosse o neto do JLB, tenho a certeza que este lhe iria dar a
responsabilidade de gerir a sua biblioteca.
Se já fosse o que vai ser, não tinha piada. E ele sabe.
Não sou eu que escrevo. Quando lhe escrevo, revisto-me,
ganho corpo, enriqueço-me com aqueles que estão no Fafandó.
Já disse, sem nunca o dizer, que Luanda dispersou de um sono
rameloso, para uma literatura doce e suorenta daqueles que não se
vergam ao imediatismo. A verdade tem cheiro e cor. A verdade está nos
olhos de alguns.
Tudo dá muito trabalho para conseguir, mas sobretudo para
manter. Para ficar. Para solidificar.
Não consigo falar do Josias e não referir o Escudo. A VPA. A
nossa Jerusalém, que passa por Argel, Roma, Sevilha, Alexandria e nos
imerge e desagua em Luanda.
Ler o Josias, é olhar e sentir no rosto alguns rapazes, e algumas
jovens de olho vibrante e de coração firme, alguns de vós, algumas de
vós, que são. Luanda a vossa casa. Eu um estrangeiro, mas comprometido
com uma causa que ainda estamos a definir.
Olavo e Imelda. Tanto vale o suor, como valem as lágrimas.
São faces da mesma moeda. O nosso Kwanza. O Josias é daqueles que
irá carregar o nome de Luanda.
A escrita do Josias tem velocidade e transgride. Não corta a
direito nem do avesso. Corta só. Vai. Segue. Avança.
Para vocês que o vão ler, avancem com ele. Não estamos
preocupados com regras nem com os supostos literários. Temos acesso
directo aos Maiores. E o Josias tem isso.
Se Cortazar aqui estivesse hoje e agora, convidaria o Josias e
mais alguns. Os escritores são assim. No entanto, os melhores dos
(melhores) escritores sabem que a escrita não é o mais importante. O
mais importante irá chegar no seu tempo.
Eu já conheço a escrita do Josias, a sua velocidade e a sua
vertigem. Tenho essa sorte. Mas sei que ele está nos seus inícios.
Este título que ele agora coloca no "mercado", só lhe vai trazer
problemas. Sorrio. Bons problemas. Sorrio novamente. No fundo o que
ele nos traz é um enorme sorriso. E o dele irá por certo trazer-lhe aquilo
que ele procura. De sorriso aberto, de Luanda para o mundo.

Jorge Salvador, Setúbal


Primeiro Texto 18.40 - 18.58 a 14 Abril 2023 Revisão 19.05 - 19.20
Último take. 11.00-11.08 20Abril 2023.
DO FOGO
E A LUANDA
UM

“ANÚNCIO:

COMO REFERIDO NA CARTA DE SUA EXCELÊNCIA


PRESIDENTE DA REPÚBLICA Dr. HUGO DE SOUSA, O
DECRETO QUE FAZ MENÇÃO ÀS SUBDIVISÕES DISTRITAIS
REFERENTES AOS BAIRROS ENTRARÁ EM VIGOR NO MÊS QUE
VEM. PELO QUE SUGERIMOS A RÁPIDA DECISÃO DE ONDE
ESCOLHERÃO VIVER, SENDO A ZONA "A" RESERVADA AOS
DE CORAÇÃO PACÍFICO E BONDOSOS POR ESSÊNCIA, A
ZONA "B" PARA OS QUE SE ACHAREM INCAPAZES DE
PRATICAR O BEM POR DELIBERAÇÃO. QUE SEJAM HONESTAS
A VÓS MESMAS AO CONTRIBUIR, ASSIM, PARA O QUE SE
MOSTRA SER A ÚNICA LUZ NO FUNDO DESTE TÚNEL
ESCURO E VIOLENTO.

ASSINADO, A SENHORA GOVERNADORA RITA CONCEIÇÃO


VASCONCELOS ”

CERTA MANHÃ, enquanto saia para comprar comida, Olavo


leu este anúncio fixado no quadro da entrada. Depois percebeu que
precisaria mais do que saciar a fome se quisesse processar o anúncio que
ele ouviu a respeito e até mesmo alguns zumbidos, mas nunca julgou
serem verossímeis.
Conheci Olavo em uma sexta-feira. Era final da tarde, daqueles
que não promete nada a ninguém. Daqueles que os deuses da filosofia
fazem morada em nossas cabeças. Porque cabeças cheias são oficinas
filosóficas. Portanto, conheci ele numa sexta-feira. Nada mais fazia a
não ser andar pela cidade com uma garrafa de whisky na mão esquerda
e na direita o cigarro.
Reconheci-o quando, em frente à vitrina de uma livraria,
olhou-me no fundo dos olhos. Seu olhar era carregado. Suas pálpebras
enegrecidas tornavam as pupilas em uma espécie de lugar secreto, longe
de tudo. Agora que menciono, cabe lembrar das vezes em que
estivemos mais perto de nos encontrar: ele esquivou-se.
Eu estava parado entre o passeio e a loja, com o corpo defronte
ao vidro. E Olavo, alguém que assumia a minha forma corpórea e que
habitava no mais secreto de mim, pareceu sorrir no reflexo. Pequenas
gotas de suor escorriam em fios na testa, seguindo o contorno da maçã
do rosto para convergir em seu queixo largo.
O calor de Angola! Você sabia que, dentre os principais
motivos, os problemas sociais-políticos-económicos-morais de Luanda
são subprodutos do calor? Não!? Claro que não, afinal de contas, acabei
de inventar. Mas bem que poderia ser. Por exemplo, para Olavo, está
claro que o calor rasga em dois a alma de quem penetra: entra pelas
frinchas de suas portas, janelas, onde der. E mesmo quando não der,
mesmo quando ele se tranca no seu apartamento julgando estar seguro,
o calor consome as paredes. Daí tem as suas desfeitas: semeia
pensamentos nele, impaciência, raiva, dúvidas. Raiva, pensamentos,
impaciência, dúvidas: o calor semeia.
Este mesmo calor que lhe possuía. Depois de olhar para ele no
reflexo da vitrine, recolhi-me e caminhei quatro quarteirões de volta à
casa. Quando cheguei ao edifício, abandonei a garrafa de whisky num
balde verde antes da entrada. Mas para chegar até ao lixo, claro, tive
que passar no meio de alguns carros estacionados (talvez dos vizinhos).
Aproveitei fumar o último cigarro. Na volta, embati contra alguns
carros. Impossível não embater! Outro acionou o alarme, pim pim, que
fez quatro cabeças saírem pelas janelas dos apartamentos a saber o que
era, medrosos do pior. Porém, todos voltaram em suas ocupações
quando me viram, neste estado, quase morto. Quase morto?
Girei a chave na fechadura e estava dentro do apartamento.
Com a porta meio aberta, sentei no sofá ao lado da prateleira. Era só
para repousar o corpo. Mas acabei por adormecer. Quando acordei,
com a única fonte de luz — e insuficiente — vinda da janela da cozinha
pelo corredor, abri todas as janelas para expulsar o bafo a álcool. No
banheiro, joguei água no corpo e senti que minhas mãos pareciam as de
outra pessoa. Lavei a boca. Voltei a sentar.
Um fiasco de ar fresco inconstante fazia os cortinados ao redor
da janela dançar e revelava a clareza de um sol tímido refletido no
edifício da frente. Ora uma vizinha que estendia peças de roupas de
criança, ora um velhote de óculos que lia jornal com um bule no colo,
ora a cortina, ora o ar fresco, ora a vizinha, ora o velho e as notícias.
Mas que importava aquela brisa, mesmo pelo facto de o restante do dia
ter sido um inferno?
Ouvia-se o barulho de alguns carros ao fundo, bem ao fundo,
como os efeitos sonoros de filmes nova-iorquinos. Na esquerda do sofá
iniciava a superfície de madeira antiga com algumas edições em capa
dura de O Avesso E O Direito, O Estrangeiro, O Primeiro Homem, as
últimas encomendas que chegaram de Portugal. Mas eu sequer estava lá
com vontade de ler! Aqueles livros de diabos pedetistas, que me
venderam o sofrimento do mundo como se fosse algo novo e apagaram
toda a luz que outrora havia no fundo do túnel para no lugar restar a
inconfundível verdade de que nada disso faz sentido e que este é
exatamente o sentido, não haver algum.
A falta de sentido tal que agora me deixou embarcar em um
estado de transe, mas aquele transe leve em que nos deixamos levar
pelos pensamentos e apenas seguimos seus trilhos como um observador
passivo, enquanto via fogo pela avenida e o calor entrava pelas janelas,
como sempre, para o fogo desaguar no centro da cidade.
Como sairemos desse cúmulo de desespero, desse fogo
transparente que entra pelas soleiras das nossas casas e mina nossos
corações? Como? E não havia como, escreveu Camus. Que barbaridade!
Então estamos postos aqui para morrer, pensei. E as respostas para as
grandes questões da existência? E a porta de sair dessa merda toda, o
único meio de obter a paz? Está claro que arte deste tipo não serve para
nada a não ser o negativo, não estamos ainda preparados para as
verdades radicais do Mito de Sísifo, que estas páginas nem para limpar
a cagada servem. Foi quando me levantei para pegar os volumes e
caminhei até à varanda de vista a rua e pensei jogá-los bem ali, pelo canal
à baixo, se bem que merecessem um final mais desastroso, como fogo
por exemplo e seria o final mais irónico de sempre, morto pela própria
espada, e talvez a saída para o fogo que queima Luanda constituísse
grande parte em queimar quem nos deixa dentro dele, quem nos
apresenta a ele, quem nos sincroniza com ele.
Atiraria os livros à rua? Bastou mais um segundo para eu ver
metade do Hyundai preto dobrando a esquina da rua adjacente e
nenhum fogo queimava mais. Voltei para o calor do apartamento. Mas
não antes de verificar se o interior estava asseado, ambientador por tudo
o quanto é canto, cheiro lindo pela casa. Juntei Albert Camus na
prateleira de Kafka e Orwell. Ajeitei os forros do sofá e na continuidade
das demais tarefas, ouvi fechadura girar, passos lentos entrar, sacos de
compras pousar, para me virar, enfim, e beijar Imelda.
Poderia se dar um beijo dos mais românticos da história
universal. Só que foi o comum de sempre quando ela chega com a
felicidade e deixa claro que fogo algum seria capaz de derreter o polo
norte. Isso me bastava, o de sempre. E nem sabia ela o quanto de fogo
consumia minha pobre alma...
Talvez, neste dia, esquecemo-nos da natural necessidade de
comida enquanto nos comíamos um ao outro e nos permitíamos
queimar pelas veias. Formigas nas veias. Fogo no sofá gasto que rangia
de dor no instante de prazer até que a quentura nos matasse, e se nos
matar, esta morte é possível e poética, e se renascemos, esta morte é de
fênix e teremos outra vez ânimo para os dias de fogo. Estômago
pressionado por dentro, virado mesmo. Bocas que dançam merengue,
confundidas na sincronia violentamente bela. Beijos que se esquecem de
terminar. Teríamos muitas mortes por fogo em pequenos instantes de
eternidade. E por detrás da porta, o saco branco com carne crua a
anunciar o jantar tardio.
Momentos depois, quando a ressurreição chegara, eu olhava
Imelda por baixo de mim, com o cabelo dela espalhado pela almofada
do quarto sem saber como fomos lá parar. A felicidade de certeza que
não passa disso: eu olhar Imelda por baixo de mim e a arte que suas
tranças pretas desenham na almofada branca, a ver em seus olhos rios
de lágrimas que não se permitiam sair, contidos no limiar das pálpebras
rosadas, diferente das do homem na vitrina que era alguém em mim que
não eu, um hóspede Olavo. Olhando-a, perguntei:
— Como... como sair desse fogo transparente que arde em
nós?
Imelda se ajeitou no encaixe. Depois de mover os ombros (que
roçaram com o cobertor), respondeu, voz abafada:
— Apenas saindo.
— Só assim? Sem grandes filosofias e leis universais?
— Deixe filosofias pra Sócrates. Apenas sair.
E morremos outra vez para renascermos outra vez. Na mesma
repetição de ciclos incansáveis. Até não haver algum fogo capaz de nos
con-sumir.
DOIS

NA BAÍA DE LUANDA, o mar recebia a luz vinda dos edifícios


do horizonte de forma extensiva. Estávamos sentados. Víamos as luzes
tremendo na borda como a lua treme no mar (Imelda, igualmente,
tremendo de tanto frio). A luz vinda do poste de iluminação ao lado caía
sobre nós e revelava o pouco de assento branco que já vira dias
melhores. O ar estava contaminado com liberdade e a liberdade tinha a
sensação de se estar a cheirar areia, areia fresca, areia fresca que vinha
do mar diretamente para os nossos pulmões e nos fazia sentir a vida
entrar e sair em nossas narinas entupidas, doloridas. Nem sequer
tínhamos comido desde que saímos do apartamento — com intenção de
comer, óbvio.
Imelda, tome cuidado, mínimo vestígio no casaco do gelado
que derrete e os ratos não perdoam. Imelda saiu de dentro da metade
do meu casaco para terminar de chupar o gelado que compramos havia
séculos. Ajeitei a outra metade em mim e é incrível como ela consegue
esquecer, sempre que saímos, o casaco. Enfim, Imelda se levantou e me
puxou pelas mãos.
— Onde vamos jantar esta noite? — perguntei.
— Conheço um lugar de tirar o fôlego!
— Não vale se for no fundo mar...
Bem-humorado, disse ela. Depois continuou a me carregar pela
mão.
Na volta, teve menos pessoas do que quando vínhamos. Só os
verdadeiros tinham restado. Só os verdadeiros ou os falsos como esses
adolescentes que trepam aqui mesmo por um motivo que não conheço
e não duvido que seja a patética imaturidade de adolescentes. Mas ainda
vimos pessoas quietas, estranhas até, suspeitas. Algumas postas em
danças aos pequenos grupos pela música de uma coluna móvel e se sentia
o calor angolano como nas tardes de domingo nos bairros.
Tenho boa memória dos bairros. Quando ainda estive na
Samba, lembro-me de dias completos passados com fome. Quando
chegava domingo, tinha sempre a possibilidade de alegria. A rua enchia.
Crianças que nunca soube de onde vinham! Crianças. Danças sem parar.
Sempre fomos um povo alegre. Povo. Que palavra mais estranha: Povo.
Ovop. Polvo. Vopo. Opov.
Povo: é injusto sermos chamados assim depois da notícia na
semana passada. Nada disso, algum dia, será a mesma coisa. Embora
nunca fosse mesmo. Mas também, o que eles esperam depois
— Olavo? Te desafio a atravessar esta ponte sem desviar o olhar
de mim. Eu vou estar do outro lado.
de uma decisão dessas? É irreversível os danos que causarão à nação
angolana. E o pior é que estamos de braços ata...
— E então? Vens ou não? — grita Imelda, impaciente.
Andei por cima da plataforma enquanto me sentia mal por ter
pisado as lâmpadas que acendiam no céu desde o baixo do chão. Tive a
sensação de que, enquanto as pisava, algo em cima de mim tremia.
Como não olhar nas laterais? E não houve remorso algum quando virei
a cabeça para cima a ver o que se passava: afinal as luzes do chão
reflectiam naquelas cenouras gigantes e brancas que simbolizavam o
sacrifício dos soldados tombados. Já que o desafio estava perdido, olhei
para a esquerda e para a direita. Despois olhei para a cenoura gigante ao
lado do antigo posto policial: de tão grande que é, muita gente deve ter
tombado. E para quê? Foram mortes em nome
— Perdeste o desafio, seu bobo. É tão difícil assim, para ti,
seguir regras?
da pátria.
— Às vezes. Mas eu não perdi ao todo. Andei pela metade,
amor. Controlei-me até ao meio. — Suspirei. — Devo estar a melhorar
bastante.
Minha cara Imelda, meu raro amor, meu divino amor: como
não olhar para o que grita dentro de nós? E se houvesse liberdade,
saberias já, nos abriria a possibilidade de andar por nossos próprios
caminhos para chegar até ti. Olhar-te e estar pasmo de tanta
incompreensão sobre como consegues aguentar aí parada, à espera de
mim, enquanto as pessoas choram e sangram e outras choram sangue.
Já dizia o velho escritor que há dois tipos de liberdade: a do homem que,
tendo que percorrer uma linha reta, perde a confiança por olhar para
direita ou para a esquerda; e a do homem que, tendo olhado para a
esquerda e para a direita, sente-se fortificado e prossegue a caminhada.
Quando eu chegar, pode ser que te admire por ainda estares aí parada,
a beber café com esse frio e a esperar por mim.
Como Luanda consegue ser tão fria mas tão quente? O fogo
passou por aqui pela manhã. Todos estavam mortos. Mas agora,
Imeldazinha, não éramos os únicos renascidos. Ouves o som das
colunas? Pessoas! Vivendo suas vidas...! E eu aqui vindo até ti sem olhar
para elas. Uma caminhada rápida e insatisfeita, digo. E digo mais: uma
caminhada insatisfeita é inútil. Porque é a caminhada em si, por todos
os lados da vida, que nos dizem os caminhos que convergem.
Atravessaste a rua primeiro que eu. Lá estás, em pé. Na espera
que eu passe (enquanto espero este carro da porcaria que parece uma
eternidade). Atravesso até ti e tinhas razão, como na maioria das coisas,
o restaurante era belo. Esforçaste o vidro da entrada com o ombro
direito porque a mão esquerda segurava a minha. E a tua mão direita?
Oh, céus, melhor eu seguir teu conselho. Pare de pensar tanto, seu
bobo. Ninguém, por pensar tanto, acrescentou um só côvado de vida a
si mesmo, dizias tu, refazendo as palavras do mestre. Tudo bem,
mestre. Eu aceito.
— O que vão querer, senhores?
— Ah, sim, obrigado por perguntar. É que o meu marido
prefere Bitoque, não é isso, Olavo?... Acertei! E eu vou querer... ahm...
vocês têm Mufete?
— Mas Mufete a esta hora, senhorita?
— Apetece-me! — respondeu ela e deu de ombros.
Logo o jovem de preto e branco deu as costas e Imelda me
contou as maravilhas do seu dia no trabalho. Dizia-me que passou por
lá uma menina, "pequeninita", disse. Procurava a mãe. Carregava uma
fotografia de bolso na mão, deverias ver Olavo, era aterrorizante.
— E advinha só onde está a mãe? — perguntou Imelda.
Sem me deixar tentar, ela indicou com o cotovelo uma senhora
de preto na mesa ao lado. Tinha a cabeça repousada nas mãos, olhos
fundos e medrosos. Ouvia um velhote que falava baixo.
— Que tal uma conversa com ela? — acrescentou.
Sim. Claro que sim. De perto, o senhor era mais pesado do que
parecia. Que eu não seja mal interpretado, pois não falo de peso
corporal. Um peso que se sente com os olhos, como quando me
reencontro ou encontro Imelda depois de cavalgadas constantes e sinto,
chego mesmo a vê-los espreitar o mundo pelos olhos. Vejo peso nos
olhos do senhor e um ar preocupado, agora que nos aproximamos.
Confiante, envolvido no espírito da cor preta que carregava e que me
fez adivinhar a cor da roupa interior.
— Boa noite, senhores — disse eu.
A mulher olhou, assustada, para o senhor. Parecia precisar de
uma petição por escrito e assinado até para falar. O senhor acenou um
sim e ela virou-se.
— Alguma coisa?
— A senhora tem uma filha no bairro do Prenda, não tem? —
perguntou Imelda.
O homem cruzou os braços.
— Não. Deve ter sido um engano.
Para cortar a conversa, segurei Imelda pelos braços e disse à
senhora foi mesmo um engano, dos grandes, esperamos nunca mais
voltar a cometê-lo.
— Interessante! — disse eu, de volta à mesa.
Um velho cadavérico cujas células suplicam de joelhos por mais
vida, uma mãe quase jovem. E o que mais importa hoje do que viver
mais? Morrer mais? Penso nisso, tenho a impressão que, daqui a mais
cem anos, como sempre tem sido com o mundo, a idade média de vida
baixe. Já imagino, por exemplo, essa bela jovem que passa pela rua
fazendo um jogo de cintura morrendo amanhã, assim saudável, por
causa da velhice. Eu próprio terei a honra de tecer o artigo, caso viva
até lá: O RECORDE DA HUMANIDADE: IDADE MÉDIA DE VIDA
< 50 ANOS. O tema será assim mesmo, com o sinal matemático lógico
de comparação, como se de vidas humanas não se tratasse, pois é o que
aprendi com os melhores, quando é trabalho nada mais importa. E por
uma homenagem ao contributo da ciência para a baixa da qualidade de
vida na tentativa do oposto, ponto parágrafo.
— Alguma notícia sobre quando voltarás ao trabalho? —
pergunta Imelda.
— Sim, pensava nisso agora mesmo. Volto na segunda para
falar com Mateus. Se tudo der certo, terça-feira retorno.
— Que bom. Que bom mesmo! Se não, eu é quem falaria com
ele na segunda-feira. — Imelda piscou-me o olho esquerdo. — A
comida está gostosa.
Imelda e seus mistérios que pesam e me arreiam por terra. O
contrário da leveza de se estar longe do mundo. O contrário de estar
longe do mundo, perto do céu. Imelda em mim é a singular percepção
de que há uma espécie de egoísmo na felicidade: se estou feliz ou triste,
quero ser um ou outro apenas ao lado de Imelda que faz parte de mim.
É com Imelda que me cabe partilhar. Apenas. Enquanto o mundo lá
fora...
TRÊS

UMA CASA, uma deusa, um deus. Uma deusa de um deus em


uma casa. Um deus que precisava, mais do que tudo, dela. O quadro
começava a ganhar forma. Apesar da fotografia retratar Imelda de dois
anos atrás, dá para sentir sua presença nessas cores que a tornam viva.
Aposto que, estando o quadro no centro da sala, com esses olhos
enormes a espionar cada canto como se fosse deus (só que um deus que
conseguimos ver), nunca mais teria uma recaída. Se Deus ao menos
tossisse em Luanda! Quando termina a pintura, ajeito o quadro para não
sujar a pasta que me atravessa o tronco e nem a mim, como se segurasse
uma bomba atômica, só que ninguém faria isso sem um bom motivo, e
eu tenho um bom motivo, porque como parte da punição por ter escrito
o artigo contra a opinião do feioso presidente, chegarei duas ou mais
horas cedo que Imelda e eu não quero passar mal pensando, prefiro
olhar em seu rosto grande como no quadro e encontrar um mundo nessa
expressão inumana aqui, um misto de desprezo e angústia. Por quem?
Imelda, Imelda, Imelda. Deves ter mais coisas aí dentro. Julgo que,
quando eu chegar ao apartamento, abrirás para mim outra vez a tua
caixinha de segredos para nos conhecermos mais e mais. Claro que o
pintor merece uma gorjeta e uma bronca pelo dedo que ficou marcado
no canto superior esquerdo e pela foto que agora está gravado em sua
memória. Dou-lhe o dinheiro, apenas. E penso que, por mais que ele
fantasie com a imagem, no final sou eu quem te encontro todas as vezes
que cruzo a soleira da porta. No final sou eu quem recebo o abraço teu
que diminui o peso dos dias, por isso não pinto quadros na rua. Apenas
por isso.
Por baixo dos prédios em que passo as pessoas se perguntam quem faria
uma coisa dessas em um tempo desses, certamente não alguém normal.
E eu respondo que não sou alguém normal e nem alguém de um tempo
desses, tempo da degradação de valores diversos. Olha para ti, aposto
que mais tarde fodes a pequenita filha do senhor que riu contigo e te
pagou cerveja, seu lixo galáctico, mas tudo isto o digo no coração, claro.
Não merecem sequer uma xingaria de boa moral, por mim. Mas tudo
bem. Também não mais me interesso em mudar Angola coisa nenhuma.
Estou focado em ti, Imeldazinha. Apenas em nós.
Quando, como sempre, girei a chave na fechadura, lá estavas
tu, animada. O beijo na testa, beijo da eternidade, deste-me.
Pois bem, na voz do capítulo anterior, Imelda lavava roupas de
criança. Não espantei. Poderia muito bem ser qualquer outra coisa. Ela
trabalha em uma companhia de autocarros, quais as chances?
No quarto, pendurei a pasta em um prego no alto da parede e
trocava a roupa enquanto conversava com Imelda a partir da sala,
espantada pela precisão do quadro, e eu fingindo que não tem nem uma
maleta cheia de roupas de criança por cima da nossa cama.
— ... é! Bastante espantoso como o conceito de beleza se
subordina à simetria. Parece algo nato em nós. Se meu rosto é
simétrico, sou bela. Se meu rosto é simétrico, mas os olhos tortos, não
sou bela. Se minha alma não é simétrica... Olavo, ainda me ouves?
Toc, toc.
— Amor, posso entrar? Obrigada! Olavozinho, aquela menina...
a que passou no trabalho outro dia... ela, na verdade, é que não tem
como passar as noites sozinha. Agora está a passar em cada prédio daqui
a procura da mãe. Disse-lhe que ficasse e que faríamos isto juntos... —
Imelda observa Olavo amassar os músculos da fase. — Sabes como lá
nos bairros é perigoso para uma criança viver sozinha. Não te disse, mas
ela dormia lá no estacionamento desde que nos vimos. Hoje, pensei que
estava a ser injusta com ela. Mas só até achar a mãe.
— E o que pretendes atingir com isso? — Eu procurava uma
camisa na trouxa de roupas usadas. — Não precisas abrigar nenhum
mendigo aqui para provares a mim ou a alguém que és uma boa pessoa,
Imelda.
— Não estou a tentar provar nada a ninguém. Apenas a ajudar.
Me fala uma coisa, por que é tão difícil para ti...
— Ajudar? E achas que a Cátia tencionava o quê quando o
jovem que abrigou espetou-lhe uma faca entre a terceira e a quarta
vértebra? Amor... — Segurei-a pelos ombros. — Luanda já era! O
mundo já era! Não há outro jeito! Aceitação é o primeiro passo para a
paz, te lembras da palestra, Imelda!? Aceitar o que não podes mudar.
— Nada dessas palestras idiotas agora! Eu aceitei que quero
ajudar ela, me dê a paz, porra! Achas que ela vai cortar a minha carótida
com uma faca de pão? Com esses sequestros pela cidade, sabes como me
sentiria se ela fosse levada por esses doidos que vendem os órgãos? Bem
provável que me mataria també...
— Imelda!
— Cale, cale, me deixa terminar! Qual é o problema com essa
tua cabeça de merda!? Só queria ajudar ela.
Imelda saiu do quarto, batendo com a porta. Deixou trilhos de
lágrimas pelo chão. Que tem essa mulher? Sete bilhões de humanos.
Todos enfrentando grandes dilemas mortais. Ela, uma entre os sete
bilhões, querendo abrigar uma garota e achar que vai mudar o mundo?
Eu não sou culpado da menina estar desabrigada, ora essa. Nem ela é.
Imelda, tu sabes quantas crianças estão sem abrigo só no Quénia?
Melhor nunca passar por lá que ainda constrói a Cidade Dos
Desabrigados. Mas tudo bem, apenas uma noite. Ou duas. Ou três. Ou
enes.
— Amor? — disse eu.
— Não fala comigo!
— Tudo bem. Só queria perguntar o nome da menina.
— Por que não pergunta pra ela?
Vista da porta do quarto, com o meu tronco cansado pousado
no aro, lá estava ela ao lado de Imelda, cabelo bagunçado e a tez de
quem não via água há dias. Ela, alguém que não tem ninguém além da
mãe, alguém como eu. Achar a mãe e me livrar logo disso. Pronto. Tão
simples!
— Sónia! — respondeu a voz infantil. — O meu nome é Sónia.
Certo, podes ficar, Sónia, disse. Ou julgo ter dito com um
aceno de cabeça.
— E então? Onde fica esse quadro? — perguntou Imelda.
QUATRO

Enquanto o mundo lá fora acontece, eu Olavo estou aqui peran-


Encontraríamos a mãe? Nós, os três, refazíamos o caminho vez-
te esta mesa. O meu ego não é menos do que o de Ícaro enquanto escr-
es sem conta até ao restaurante onde vimos a senhora mãe pela última
evo no velho caderno. Atiro palavras aqui e ali, uma pincelada noutra.
vez. A passar pelas ruas escaldantes que queimavam até o espírito; a ver
Caminho na escrita por um campo desconhecido: na busca pelo entend-
o calor no rosto da jovem de calção que grelhava a carne e fotografa para
imento. Sim, nada mais me cativa a não ser o entendimento. Se os passa-
o Facebook, seja pela contemplação de sentir ter compartilhado os bon-
rinhos cantam, se já, não cantam pelo simples prazer de cantar. Um m-
s momentos com os seus, seja pela carência de fazer as pessoas compr-
undo que quer dar o grito, que precisa dar o grito, que sabe das veze-
ovarem que ela é uma pessoa real, olhem pra mim, grelho carne e tudo,
s em que uma só palavra perfura o corpo de quem desamamos. Se o
existo, o que seria o ruído de um grito baixinho por socorro vindo do
pássaro canta é porque quer falar. E eu Olavo que escrevo quero falar,
fundo de um túnel escuro. Agora o jogo: como todo grito baixinho
mas antes de falar quero entender algumas coisas. Vou entendendo elas
vindo de um túnel escuro, apenas poucos ouviriam; como todo grito
melhor na medida em que escrevo. Só não posso esperar é pelo término
baixinho vindo de um túnel escuro, apenas poucos — ou ninguém —
de um ou de outro (falar e entender), visto que esta comunicação/ente-
saberiam trilhar o caminho até ao âmago e comover ela a dar as mãos
ndimento é apenas uma via mas a de dois sentidos: no primeiro parâmet-
para ser salva. Mas pode ser que depois o salvador descubra que é tudo
tro, o texto gramaticalmente suspeito a que uso para vos dizer. No seg-
tal qual com A Caverna. Numa dessas incansáveis buscas, começamos,
undo parâmetro, o indizível, o rio que de mim sai para desaguar em alg-
assim, a nos cansar. Não éramos cães farejadores e verdade seja dita, so-
um lugar dentro de ti que lês e que espero não estar a complicar com
mos humanos com mais coisas por fazer. Foi por isso que levamos o caso
uma escrita complexa de mais, mas é necessário agora e no final vocês
até à polícia local, embora suspeitávamos que resultaria em nada, pois,
me agradecerão. Também, se escrevo, quero me comunicar com vocês.
segundo os noticiários, em suspeitávamos que resultaria em nada, pois,
Tenho algo importante mas incompleto para vos comunicar. Nessas pá-
segundo os noticiários, em média, dez pessoas sumiam a cada dia
ginas acharão a metade de tudo. O resto é trabalho de vocês, certamente
— e isto só em Luanda. Mesmo assim fomos. Nos delegaram Neto Tch-
completarão. Do mesmo jeito que só nos é permitido pegar uma cháv-
hongo, um velho de cabelo desarrumado e aspecto que deixa a desejar.
ena de café pelo simples facto de também ser composto de átomo, não
O velho pediu que nos sentássemos apenas ao apontar com a ponta dos
espero acrescentar-vos (e seria impossível) algo que não fosse próprio
dedos às cadeiras. Imelda e eu sentamos nas cadeiras e Sónia ficou no
de vocês. Que não fosse parte de vocês. Nada mais farei a não ser (re)ac-
colo dela. Como aconteceu?, perguntou ele, sem método algum. Sónia
tivar um canto inanimado do aí dentro, uma terra longínqua onde reco-
contou a história. Ele anotava palavras específicas. Vi-o, se o olho não
nhecerão estes escritos como vosso e que poderão completar-lhe com
me engana, rabiscar até desenhos circulares. No final do interrogatório,
algum sentido em que peco ao tentar. Tomem muito cuidado com os
Neto Tchihongo pediu nossos contactos. Indicou, em seu jeito singular,
que apoiam a decisão louca de dividir o país em dois, por favor. A luta
a saída. Na ida, era de esperar que, pelo facto de serem palavras de uma
de classes será inevitável porque a contradição interna entre o bem e o
criança desprovida de credenciais de interpretação da realidade com
mal está dentro do mundo de nós próprios, das bolhas que nos circulam
noção, poriam logo a seguir os papéis no fundo de uma caixa por ter ca-
em nós. Uma contradição externa reparte e só passa com luta feroz.
sos mais importantes para tratar. E bem que se fala em desatenção, por-
Deixemos bem e o mal coexistirem, é a ordem das coisas, a forma de
que no apartamento a história era a mesma.
expressão natural, o meio de evolução...
Eu me esforçando em ser o melhor quase-pai do mundo e ela a
fingir ser boa apreciadora das minhas subtilezas, uma garota espertinha
para a idade. Como ser pai, se nunca tive um? Oh, céus, o que faz um
pai? O desespero era tanto que lia cada capítulo de Metamorfose como
história de embalar. Até chegar o dia que Imelda me acordou para
realidade, Olavo, ela é apenas uma criança. Digo: nunca se é criança
para entender o mundo. É bom ela não criar ilusões sobre as coisas.
Kafka vem para desconstruir! Deveria ser estudado desde a iniciação.
Ela diz: mas de nada vale apavorar as pessoas, amor. Se a verdade
machuca, por que contar? Há uma razão para ter existido as mentiras.
Primeiro a mentira. Depois, quem quiser, descobre as verdades
dolorosas por sua conta. Como ela me corta as palavras para no lugar
deixar um branco! No entanto, não preciso realçar que deixei das
secções de Kafka para embalar. Imelda sempre consegue o que quer.
Mesmo que o que queira seja contra minha vontade. Pode ser fruto do
amor. O amor e os seus mistérios... Antes, a um passo do quarto, ao
entrar para dormir, reparei que a tevê estava ligada. Sónia estava nem
aí para o desenho animado. Ela rabiscava coisas em folhas que Imelda.
Pensei em ir saber o que eram essas coisas que ela . Parei, concluí
que seria invasão de privacidade. Mas uma criança de sete anos já tem
privacidade? Melhor deixar, sabia, e dei o passo que faltava para entrar.
CINCO

Trabalho, procura, jantar. As coisas não eram tão diferentes nos


outros dias. Imelda focada em fazer a garota estar bem-posta, o que
resultava em no final dos dias não haver energias para actividades extras
que eu tanto precisava. Era difícil, se não impossível, olhar para ela de
perto. A pele em brilho sob a luz amarelada do candeeiro. O lençol pelo
rabo à baixo. O ar uivando pela janela e lá embaixo alguns carros que
passam (outros que param) — vrum, vrum —; aqui em cima o cheiro a
suor porque um de nós não banhou se confundindo com o cheiro a
hormonas sexuais que me excitam a tentar uma passada da mão pelas
suas costas. Antes, bem menos fazia Imelda enlouquecer. Mas agora até
as costas ela cobria. Se me virasse para ela, com a cara olhando-a de
modo que mesmo com os olhos fechados a alma sente o peso, ela fica
sempre deitada como um anjo, como uma criança, sempre.
Numa das procuras, quando achamos o mesmo garçom do dia
em que vimos a senhora mãe de Sónia, ele nos indicou suspeitas de quem
fosse o senhor que ela se fazia acompanhada. Ninguém comum, pelos
vistos. Seguimos as pistas e convergiu em uma casa parecendo
abandonada. Uma casa sem pintura, gárgulas petrificados a espiar a
entrada, um jardim seco protegido por uma cerca castanha. Batemos
que nos fartamos de tanto esperar. Mas esperamos o suficiente e mesmo
que metade de nós dissesse o tempo todo que tal espera era perca de
tempo, esperamos. E perdemos o tempo.
Faz-me lembrar o outro dia em que cheguei encharcado em
casa. Vinha caminhando do trabalho, como sempre. O primeiro desafio
foi chegar até a curva da primeira rua sem entrar em nenhum bar.
Passei por um vitral que exibia um velho e um jovem jogando
ao Xadrez na sala de espera. Com a luz sobre o tabuleiro, as peças e os
homens projetavam sombras para trás. Se pudesse os ouvir, aposto que
o velho contava enes histórias e o rapaz se limitava a acenar um sim,
queixo para o céu queixo pra terra, inexperiente, mas feliz no
inconsciente por ignorar palavras sábias e aprender da amargura de seus
próprios erros enquanto mexe a rainha de uma forma perigosa com
alguém que sabe que não se deve apostar a rainha e depois a dor de não
ter ouvido e por fim o aprendizado. Quiçá na próxima jogada ele ouça,
aprenda, se prive da perca de tempo que a idade média de vida baixou
e não se tem tempo, agora mais do que nunca, para mover rainhas de
forma errada. E se ele tiver movido outra vez, que mais poderá fazer
além de aprender? Ícaro que a asa leve ao ego infla, não vês o quão leve
estás flutuando? Voas longe da terra e a queda é desmedida. Ícaro
imprudente.
O sereno, agora longe de ser ameno, molhava minhas roupas
pelo lado direito do sentido da água. Apressei o caminho indo por
atalhos impensáveis que no fim custou caro. Passei por um beco
malcheiroso de chão negro, onde descobri um homem sendo
empurrado de uma porta para a rua, bêbado até à alma. O conjunto de
músculos que lhe atirou para rua enquanto eu passava por eles, fitou-
me. Senti a água suja vinda do chão saltar até minha calça. Depois, ele
gritava qualquer coisa, talvez para o homem no chão, talvez para mim.
Não havia como saber ao certo porque, ao lado, os telhados de zinco
recebiam a chuva com gritos de alegria e eu andava qual uma supernova.
Antes de sair do atalho, vindo do fundo no beco e da rua, um som
confundido com o da água nos tetos pareceu ser uma música tocando a
partir do refrão.
Atravessei uma estrada deserta. Atravessei outra vez, na
extremidade oposta, ao sinal do semáforo. No lado, uma mãe com o
guarda-chuvas pressionado no pescoço e as duas mãos ocupadas com o
carrinho do bebê, que pelo saco no colo do bebé julgo terem saído da
farmácia. Ofereci-me para segurar o guarda-chuvas antes de
atravessarmos e percebi que me molhava mais e a água já estava dentro
dos ténis. A jovem mãe continuaria até ao edifício seguinte quando
travamos uma conversa de praxe por baixo do meu apartamento.
Estávamos ao lado da parede, sugestão minha, o sereno poderia molhar
a gente ainda mais. Ou Imelda enfiaria a cabeça pela janela à fora por
motivos que eu nem sei e repetiria a chacota que fez com a vizinha do
dezanove.
Ela falava sobre como conheceu o pai idiota do anjo que
bocejava no berço coberto por uma manta verde a fugir pra azul, e, em
simultâneo, o velho porteiro Beto que nunca fica sóbrio batucava na
cadeira em que sentava enquanto cantava Jacinto Tchipa. Bom dia
mamãe... Eles se conheceram, como todas as garotas angolanas, no calor
de uma festa noturna. Linda como é, seria difícil Romana não chamar
atenção dos jovens que se desafiavam a cada dia, tendo se destacado
dentre as três amigas que até insistiram que fosse, por acaso... amanhã
mesmo voltarei... Ele, um pula que levou ela a conhecer seu apartamento
na sua motorizada. Entrou em seu coração na mesma velocidade que
conduzia.
Sabe? De princípio pareceu me amar, o caralho. Talvez te
amasse mesmo. Ele chegou a prometer que seria para sempre? Que
daria o mundo? Como todo amor que se valha, Romana, precisaria
acabar. Um preparo. E, hoje, estás aqui com esta pequena que parece
um anjo e eu nem gosto de crianças. Um pre-pa-ro.
Trocamos os números e ela continuou o caminho, com o pico
no cimo do guarda-chuvas a romper cada gota de sereno que desciam
em torno de si, para se juntar às poças no chão, sem tocar nela ou no
bebê. Vi ela sumir ao longe da rua, pela direita. Guardei o papel agora
dobrado dentro da pasta... não chores mais, mam...
Tenha uma boa noite, velho Beto. Subi as três dobras de escada até
chegar à porta do nosso apartamento. Travei quando ouvi gargalhadas
de pessoas estranhas. Verifiquei se eu estava arrumado. Sim, estava.
Entrei.
... amanhã mesmo, voltarei.
SEIS

POSTOS À MESA DE JANTAR, de costas à luz que vinha pela


janela, estava um menino de talvez dezoito anos que vestia roupas
esquisitas. Um casaco do Batman, preto, óbvio, com pedaços de algo
que reluzia e uma calça jeans escura e desfiada justaposta ao corpo. Uma
t-shirt com confusões de pinturas a vermelho e branco em um círculo.
Círculo este que sobressaía do casaco entreaberto. Quando levantava,
ouvia-se o tilintar de metal da corrente que rondava sua cintura. Mas
longe de ser o único metal em seu corpo! Restando os anéis nos quatro
dedos das duas mãos úteis que chocavam igualmente com os talheres.
Os seus olhos foram enegrecidos com lápis preto e ele nunca sorria.
Este jovem, de quem agora temos uma nítida imagem, fazia-se
acompanhar de sua avó. Sua avó era a típica avó angolana. Uma
pacificadora violentada pela guerra, tendo passado metade da juventude
a fugir para lugares que acreditava haver paz, aqui em Angola. O que
fez ela andar a vida toda. Achou um marido nestas andanças. Casou-se.
Teve filhos. Estabeleceu-se, enfim, no Bié. Lá viu metade de sua geração
brotar. Ela demonstrava um comportamento estranho. Porém, comum
nas demais avós. Falava para a chuva: "Pára já, ové!", como se, fosse por
que força fosse, as águas ouvissem e travassem lá fora, tendo congelado
no tempo, a milímetros do chão ou a centímetros do telhado. Durante
o jantar, até aos lagartos que foram fiéis companhias nossa ela chamou
de bruxos, alegando espionagem espiritual, proferindo julgamentos
severos.
Depois do jantar, agora com menos desconfiança nas novas
personagens que via, pus-me a pensar em como Imelda atrairia o seu
judas numa destas loucas empreitadas. Talvez ela fosse única nos limites
do nosso país que, ao chegar com a chuva na cabeça e encontrar pessoas
por baixo do prédio a espera que cessasse, convidaria elas a tomar uma
sopa quente. E há quem diga que não se fazem pessoas como
antigamente!
A avó perguntou à Sónia:
— E tua mãe, onde ela conheceu teu pai?
Logo a seguir, a menina ganhou um semblante sério e
reservado. Como se quisesse se abster de mais explicações que
arrastavam aquela mente infantil no labirinto da nostalgia. Mas ela
explicou. O pai tinha outra família. Na verdade, tinha uma família.
Conheceu a mãe dela em um momento de instabilidade nas casas de
tinta gasta do Bairro Operário. Foi lá onde os dois se conheceram e
cresceu a ardente paixão. Até chegar o dia da mulher marcar aquele
encontro em um lugar diferente, no quarto alugado dela, lá para os
subúrbios do Prenda. Ela deu-lhe a notícia enquanto bebia água com
gelo. Era natural para ela dar uma notícia dessas. Como esperado, o pai
revelou o segredo da família – que não tinha o porquê abalar a prostituta
não assumida que ela era – mas a verdade é que abalou. Ele saiu pela
porta depois de uma discussão feia. Ela amou-lhe com tudo, embora
soubesse poucas formas de manifestar este amor e a que conhecia,
repito, usava bem. A mãe suplicou de joelhos que este ficasse.
Lembrou-lhe que desde o momento que ele se pôs a olhar para outra
mulher na rua — como ela — era o universo inteiro a sugerir que talvez
não estivesse com a mulher certa, pois seus olhos pediram por mais. Só
que os olhos sempre pedem. Apenas ouve a batida forte da porta para
trás de si. Ela encostou-se de costas na porta e escorregou, deixando-se
levar pela fraqueza, até ao chão. Desde então, nem a mãe nem a filha
ouviram falar do homem que renunciou uma família.
Imelda não se conteve, inerte: verteu algumas lágrimas em
silêncio. Enquanto Sónia contava a história, em um modo mais
desorganizado do sugerido acima, a avó acompanhava o ritmo com
respostas em seu rosto. Em momentos engraçados, sorria de leve.
Franzia o cenho quando se tratasse de algo mais sério. Até chegou, no
calor do momento, a nos convidar para uma visita em sua casa. O seu
neto, o homem de negro, tal como eu, estava dividido entre o noticiário
na tevê e a conversa. No rodapé passava em letras azuis RÚSSIA
DECLARA GUERRA CONTRA UCRÂNIA. Por cima, nas imagens,
vê-se uma repórter sobre os escombros de um edifício que fora
explodido e falava algo que não ouvíamos, pois, o som estava no modo
mudo. Desliguei a televisão pela tomada. As mulheres continuaram
engajadas na conversa, sem perceber o que se passava para o lado de cá.
O jovem perguntou-me:
— Por que o senhor desligou?
— Deixa ver… porque a casa é minha. A ti parece um bom
motivo?
O rapaz se conteve a tentar medir o impacto do que diria,
julgando que eu guardasse qualquer tipo de ressentimento contra ele.
Escolheu as palavras e continuou:
— E o mundo, seu lar. Ignoras quando botam fogo na tua casa,
cota?
O que ele estava a sugerir? Que eu era pior do que os que
queimavam a casa por prazer porque não joguei baldes de água? E, o que
seria jogar baldes de água neste contexto? Se ele soubesse que eu
também tentei mudar o !
— Você, Imelda? Viste os teus pais? — continuou a avó.
— Ah, eu sim, senhora. Eles viviam aqui mesmo neste
apartamento. Os dois têm bom coração, disso não posso reclamar. Mas
é desde os primeiros rumores da divisão das zonas que eles acharam
melhor voltar para Portugal. Estão lá há um ano e meio. Fazem vídeo-
chamadas quase todos os dias, a senhora conhece vídeo-chamadas?
— O meu neto me mostrou um dia desses.
E lá fora o clima húmido, noite azulada, chuva que acalma,
carros que passam, vida que acontece.
SETE

QUANDO CHEGOU O DIA COMBINADO, batíamos a


porta de uma casa humilde no bairro, na parte suja do país, se
considerarmos o bairro como uma metáfora para aquele canto das
nossas casas que nos recusamos mostrar aos visitantes, ou ainda o canto
de nós humanos qual casa. A verdade é que batíamos a porta por um
bom tempo até a avó vir abrir. Nos acompanhou, atravessamos o quintal
que deu lugar a uma pequena varanda, onde sentamos.
Na frente estava o quintal que agora se mostrava ser mais grande
do que parecia. O sol a queimar cada canto de terra que outrora esteve
molhada. Bacias, vassoura, ténis. Nos lados, dentro dos limites da
varanda, jaziam, encostados ao parapeito: lixos. Coisas que, bem sei,
mentes velhas julgam ainda ter utilidade. Mas os meus anos de
experiência, embora poucos em relação ao que o cabelo branco da avó
comprova, não me deixa mentir: de nada lhe serviriam aquelas pilhas de
pneus, guarda-chuvas estrangulados, latas de leite, grelhas de
ventiladores, etcêtera. Se a avó guarda o que guarda, não é para
reutilizar. É para eternizar.
Perguntei pelo neto.
— Saiu cedo. Nunca diz onde vai! Mas, quando vem, é só
alegria, digo — respondeu ela.
Diferente de muitas crescidas longe das confusões da capital,
esta avó parece saber dos velhos costumes luandenses. Revelou-se ser
do tipo que quase nunca diz uma premissa de valor sem dizer "digo" e
diz-lhe com muito gosto, como se isto acrescentasse mais credibilidade
ao que se foi dito. Ou ainda quando dizia ter recitado alguém famoso ao
defender certa ideia apenas para dar peso ao argumento, a julgar que
nós somos desatentos!
Conforme a conversa foi se desabrochando em seus estágios
diversos, do mais desconfortável ao mais bem-humorado, a avó, em
suas histórias, revelou um lado seu que me parece ser o mais puro de si
por ter revelado em meio a uma outra história sobre um qualquer outro
assunto. Mas aí escondido, sem saber onde, como... em meio a tanto
palavreado tecido de frases no dialecto de sua terra, estava lá, como o
rato que arrastara um pedaço de osso e se escondera na tralha na
varanda, por exemplo.
Ela contou que, uma vez, quando ainda jovem, iam tirar múcua
em uma zona longe da aldeia onde haviam porções de Imbondeiros
inacreditáveis. Estava ela, dois amigos de infância e um visitante de
Luanda. Na aldeia, todo ser vivo que vinha de Luanda era olhado como
um aspirante a deus. Se vinha nem que fosse com animal de estimação,
o animal dele era estimado, invejado até, e tinha o chão onde pisava
beijado.
Iam eles. No regresso, sugerido pelo aventureiro do grupo,
apanhavam sondas de borracha em uma lixeira onde depositavam
materiais hospitalares utilizados em campanhas na província, que por
sorte ficava na volta. Aproveitaram muita coisa de valor ao olhar
inocente das crianças que eram. Em uma pequena esfera metálica, viam
uma bola de futebol caso embrulhassem com materiais mais felpudos
para os que gostassem do novo esporte que ouviam a falar dos filhos dos
missionários; ou viam um mapa-múndi, para os mais sonhadores que
esperavam, em vã esperança, descobrir o mundo.
Como previsto em uma das histórias que sua mãe contava às
noitinhas, mais tarde os quatro haveriam de se lembrar do ocorrido.
Ainda lhes vinha à memória um dos contos tradicionais angolanos. Seria
má ideia se eles, caso encontrassem uma tinta spray vermelha no meio
do lixo, pintassem a catana que o luandense levava na mão esquerda para
depois passarem em uma manada. Mas eles estavam se cagando para os
ditos populares. O rapaz de Luanda precisava ver como é a vida do povo
na aldeia. Eles pintaram a catana. E passaram por uma manada. Bem, a
manada passava por eles quando ela tirou a catana da mão do pequeno-
burguês e atravessou na frente, ignorando os gritos do pastor, atrás. O
primeiro gado, desperto pelo brilho escarlate que estava o pedaço de
metal, se desviou do grupo e correu com a menina. Ela achou abrigo
em um buraco qualquer, até perceber que era morada dos cães da
montanha (mais tarde, a avó terá achado o primeiro cachorro nesse
mesmo esconderijo).
Segundo indicam as aventuras, não resta dúvidas de que a
avozinha é do tipo que precisa pegar para crer, os insaciáveis de espírito
e alma que nunca se contentam com meras palavras. Precisa sentir, nem
que for doloroso.
Ou ainda, continua ela, sobre o dia em que quase se riram da
dor. Mesmo na floresta da múcua, estavam ela e os amigos. Um deles
ambicionou uma maior que nenhum pau conseguiria alcançar. Porém,
além da distância, aquele Imbondeiro era famoso por estar rodeado de
pequenos arbustos coberto de plantas espinhosas como se fosse a cerca
de um quintal. Dizia-se que era a casa de muitos espíritos idos na estrada
ao lado. Mas ele, teimoso, desejoso, passou pelos espinhos e subiu, com
a catana vermelha. Chegou a arrancar o cacho do galho. Ao descer, teve
que segurar com firmeza em um pedaço duro. Então pegou. Só que não
era apenas um galho. Na parte oposta ao tronco que segurou, sentiu
uma pele babosa e mole que se contorceu. Enrolou seu braço no tronco.
Ela se revelou, crescida, amarela com pontas verdes e laranja circulares.
Era a cobra mais linda que já alguma vez seus olhos acostumados com as
cobras viram. Mas, apesar do costume em ver, não era comum ele soltar
o tronco e tombar no espinheiro. Nem era comum a cobra cair por
cima. Sorte que o nosso corpo está feito para ignorar a dor física em
momentos oportunos! O rapaz correu entre os espinhos qual Jesus
sobre as águas e a cobra prescreveu seguidas letras S no lado oposto. A
múcua tinha sido deixado nos espinhos. Quem se atreveria a tirar?
Envolvida em suas memórias de juventude, a avó contava. Toda
energética, como se revivesse cada sensação, ela ajeitava o pano,
levantava mesmo, pulava, gritava quando necessário. Parecia esvaziar
em si. Às vezes, é natural, esvaziamos se falamos.
Assustamos quando a porta se rompeu e entrou o adolescente.
Já deveria ter jorrado uns 3 litros de suor. Parecia ter percorrido os
polos da terra. Quando chegou perto, com uma mão na testa e outra na
cintura, demorou para conseguir responder-nos o que se passava.
Andava em círculos.
O dia foi passado assim, entre histórias e conselhos que tornava
a avó cada vez mais leve.
OITO

CRESCI EM UMA CASA CHEIA DE TESTOSTERONA. A


porta abria-se cada minuto: tios, primos, sobrinhos, todos sob o mesmo
teto. Nas noites, estendidos sobre o chão da sala como peixes postos a
secar, tenho a memória de reservar sempre restos do jantar. O que fazia
com eles não passavam de meras brincadeiras criativas para encerrar a
noite em cheio. Numa delas, depois de comer carne de qualquer coisa,
joguei o osso na berma da entrada do buraco dos ratos, por trás das
madeiras que suportavam a pequena tevê estragada. Um dos ratos,
depois de esperar o suficiente, saiu de mansinho. Agarrou no osso e
levou-o, ou ao menos tentou, ao buraco. Era engraçado como
empregava esforços ao levar aquela metade, que até pesava mais do que
ele, para dentro. Virava-lhe de todos os ângulos. Rogava pela vida! Pode
ser que fazia preces a Deus dizendo que se o osso entrasse, se Deus
desafiasse as leis naturais da Física, ele faria ou ele seria algo de que não
fazia ou fosse.
Esta memória me veio, acredito, não por mero acaso. A
situação aqui tem-se agravado. É lastimável o nível de preocupação com
esta decisão imatura de separar as pessoas. Mas os revoltados não têm o
poder de decisão sobre isto. Porém, eles têm outro tipo de poder
massivo sobre as pessoas e agora que descobriram, usaram-no de um
jeito doentio.
Na manhã de ontem, enquanto trocava as cortinas da janela para
Imelda lavar, um grupo que pelos vistos tencionara passar em todos os
quarteirões sensibilizava as pessoas para manifestarem o
descontentamento. O lugar pouco importava, nem que fosse na porta
de alguém influente. Tudo quanto se movesse na rua eles paravam com
um respeitoso bom dia. Em alguns casos, até entravam para os segundos
pisos. Pessoas bebendo em uma sombra qualquer, idem; uma jovem que
vinha com um saco preto que estava farta de tanta conversa afiada, idem;
outro senhor que veio ter com eles por vontade, idem. Tudo segue o
mesmo padrão: eles tentando tomar posse de algo que é mais grande do
que qualquer humano. Uma coisa eu sei sobre lutar com os Golias da
vida, se não for de uma boa pontaria em um ponto chave, a luta está
perdida. Será que esta luta resultará em algo?
Antes que terminasse de interpretar o mundo lá embaixo,
entrou uma nova SMS. Era Romana. Na metade que passava no
cabeçalho, rodava: "...conversar comigo. Estarei à espera de uma
resposta..."
— Quem é, amor? — perguntou Imelda, da cozinha, pondo a
roupa na máquina.
— Nada importante, bebé. Deixa para lá.
Desci da cadeira para abrir a mensagem completa. O texto
dizia:
"Olá, meu bom amigo. Tenho uma decisão muito importante em mãos.
A respeito do futuro da minha filha e decidir não pode esperar. O idiota do pai
contactou-nos. Ele quer voltar. Diz estar arrependido e parece convincente. Estou
na praia. Ver o mar agitado me ajuda a pensar. Podes vir ao meu encontro? Quis
saber se poderias conversar comigo. Estarei à espera de uma resposta, meu bom
amigo..."

AS DOZE HORAS RECEBI a indicação que Romana enviou.


Quando cheguei lá, ela estava sentada sobre uma pedra, de costas para
as barracas onde estava o mundo e de frente ao mar. As suas mechas de
cabelo dançavam ao som do vento que vinha do mar.
O mar. O vasto e amedrontador mar. Lá dentro é tudo mais
perigoso; o perigo está em não se saber ao certo o que há. Poderia haver
a infinidade toda de uma vida. Ou nada. Visto da terra seca, não se sabe
o tamanho da profundidade. A única coisa que nos é permitido saber e
sentir com os olhos é a algazarra que ocorre na orla. Uns turbilhões de
relevos desajustados embatem-se e resulta em uma cacofonia de sons ao
longe e a cor da água é enegrecida. O que será que faz gritar? Poderiam
ser peixes lá no fundo, socorro, eles não podem nada contra a força do
mundo, sendo o mundo seu mar, e mesmo eles, pequeninos, remando
contra as ondas para ganhar o mundo para si, se perdem. Quando já não
há forças, nada pode fazer a não ser descansar. Erro. Crasso erro. É no
descanso das férias de nós onde a onda nos carrega em seus desfeitos e
nos tornamos naquilo que mais repudiamos. Para não haver mais
volta...
— Oi? Boa tarde, Romana.
NOVE

TENDO ACHADO A PORTA FECHADA, eu e Romana


sabíamos que sua irmã não trouxe a filha. Poderia ser qualquer coisa
relacionada com a manifestação.
O apartamento de Romana cheirava a fruta, mas com qual delas
foi feito este ambientador não ficava evidente.
O cheiro sincronizava com sua mão segurando a minha e seus
olhos a fitarem minhas mãos como se segurasse elas com os olhos ou
como se fosse um ovo que estourasse bem no chão no mínimo deslize:
sincronia suave.
Romana contava histórias de infância sobre sua melhor amiga,
retornando aos velhos tempos como manda a lei do crescimento. Pois é
claro que em tudo na vida chegamos ao núcleo das coisas para depois,
apenas depois de conhecermos as coisas, fazermos as regras do jogo.
Como as mentiras que Sónia precisava ouvir antes de conhecer a
verdade.
Estávamos confundidos entre falar e fazer, a espera do perfeito
toque dos deuses para ter uma iluminação do caminho a seguir e tudo
que fazíamos até então tinha a tez de embaraço.
Ela sorria e o tempo parava. Quando, na pausa de um sorriso,
fechou os olhos com o queixo erguido, recebi o sinal. Tomei seus
maxilares com as mãos e depois o beijo. Como dois adolescentes que
beijam pela primeira vez, atrapalhados, dançando músicas diferentes
com os lábios. Apressados, tendo achado a fonte da água viva depois de
dias com a bateria a findar. E o jogo perigoso das mãos.
Em uma das pausas estratégicas acabei por não retornar ao
beijo. Sabia que era errado. Romana, hirta, foi ao quarto e depois de
algum tempo ouvi ela chamar-me pelo nome, suave, como quem estava
preparada e suplicava para me ter. Não fui.
— Desculpa por isso — disse ela, quando saiu, enrolada em
uma toalha.
— Não precisas te desculpar. Nada por isso, Romana.
— Preciso sim. És um pai que adora sua família. O que fiz foi
errado, tu tens uma família, porra!
— Estás a ser injusta comigo.
— Injusta?
— A criança... olha, preciso apenas de...
— Tudo bem. Entendo perfeitamente. Bem, neste caso, é bom
ires ver como sua família amada está, suponho.
Ela tornou a entrar no quarto. Enquanto andava para a porta,
ouvi:
— Espere por mim. Te acompanho.
Na volta, tendo percorrido algumas ruelas, um atalho nos fez
sair na traseira do antigo Palácio da Justiça. Uma multidão exibia
cartazes e gritarias na entrada e alguns policiais tentando manter a
ordem à velha maneira angolana. Antes de dobrarmos com a parede
traseira, li, em um lençol azul segurado por dois senhores, a inscrição:
"DIREITOS HUMANOS 1/30: NASCEMOS TODOS LIVRES E
IGUAIS..."
Logo na curva, jogado sobre o chão e com ajuda de duas
mulheres, estava um jovem ensanguentado. Quando nos aproximamos,
as moças disseram que ele levou uma pancada com o cano ao tentar
enfrentar um policial que jogava lacrimogéneo tal e qual um louco.
Tanto as moças quanto ele, estavam bem apresentados, em pastas e
pranchetas com papelada. Uma delas fez de sua pasta de couro almofada
sob a cabeça do jovem.
— E vocês também vieram manifestar?
— Claro que não, senhor. Trabalhamos naquela empresa... —
A jovem apontou para uma rua.
— Antes de sair, ele disse que viu o seu irmão. Ainda lhe disse
não sai. Ai, meu Deus, Fernando? Ele foi mandar o irmão pra casa. Disse
antes que essa luta era uma causa perdida.
Atrás, fumaças e gritaria, pessoas a juntarem-se, separarem-
se...
Em um aceno de cabeça, decidimos ajudar. Romana e eu
pousamos seus braços no ombro quando ouvimos um estalido na
entrada de algo que descobrimos ser uma garagem, por trás. Vieram
dois guardas que nos afastaram com ameaças de arma apontada. Depois,
dois carros saíram do escuro. O primeiro seguiu na direção oposta à
multidão. O segundo seguia atrás mas parou na nossa frente. O vidro
preto baixou, mas não antes de reflectir Fernando apoiado em nossos
ombros. Lá estava ele, a figurinha do presidente Hugo, um pouco mais
claro do que a tevê insinua. Ao olhar o jovem Fernando, apenas abanou
a cabeça com o cenho franzido. Foi quando me lembrei da inscrição no
cartaz e repliquei:
— Direito humano número um: nascemos todos livres e iguais.
Se assim é, ent...
— Direito humano número vinte e oito: um mundo livre e
justo. Julgas que a justiça e a liberdade se consegue com sorrisos e
carinhos? As leis se devoram, meu jovem. As leis se anulam.
Silêncio.
— Tomás, vamos — disse Hugo. E o carro andou.
Quando chegamos ao posto médico mais perto, fomos
atendidos por enfermeiros na recepção. Puseram-no em uma maca
enquanto esperavam a ordem da recepcionista.
— Parece que vai morrer, não parece? — disse o enfermeiro
com um canto da boca a sorrir — mas está tudo bem! Todo dia entram
e saem pessoas daqui. Até em estado pior. Só um pouco de paciência e
já está. — Estalou os dedos.
— Senhor, hann... — Olhei para a placa de identificação. —
Doutor Pitrucas!
Romana soltou-me o braço.
As moças, no balcão, explicavam para a recepcionista que o
ferido tem seguro de saúde. Mas como a pasta estava no seu escritório,
no final de tudo tratariam do pagamento. Ouvi que até uma delas, a
vizinha de escritório, quis partilhar o seu seguro. Ele não era da família.
"Mas é meu namorado", disse ela. "Desculpa, jovem. Seguros não
cobrem namorados." Depois de algumas falas sussurradas, a senhora de
óculos na recepção acenou um sim e a maca, enfim, andou.
DEZ

PELA FORMA COMO os acontecimentos do dia iam-se


tecendo, nenhum de nós julgava que, no final, tal coisa aconteceria.
Hoje de manhã recebemos a chamada. Eu lia uma carta da Sónia
a agradecer pelos conselhos de uma amiga quando Imelda me informou.
Antes de ela atender o meu telefone, seja por qual motivo fosse, dizia-
me que, enquanto arrumava a casa achou a carta caída de um bolso da
mochila rasgado. Depois a notícia. Segundo o neto na chamada, sua
mãe, a velha faladora das experiências interessantes, havia, enfim,
morrido. É certo que não foi uma surpresa para nenhum de nós. Afinal,
já esperávamos por tal. Meio que pedíamos, em preces mais silenciosas,
pela diminuição de custos. O dia todo foi projectado para, depois das
ocupações, transmitirmos as nossas condolências à família.
Tomamos o pequeno-almoço com Sónia. Depois Imelda
preparou ela para o regresso às aulas. Sentada, a espera que Sérgia viesse
logo, pela ansiedade infantil, Sónia assistia tevê com a mochila entre as
pernas e o queixo nela. Imelda lavava a louça na cozinha, mas dando idas
frequentes ao quarto, no preparo da roupa para o trabalho. E eu,
sentado à mesa de jantar, escrevia uma coluna sobre o jovem bancário
que quase perdera a vida por injustiça.
Mais tarde bateram na porta e Imelda foi ver quem era. Bom
dia, senhora Imelda. Sónia está? Era Sérgia. Antes que fossem, Imelda
deu-lhes uma maçã e sanduíche cada. Bateram com a porta, sem querer,
ao saírem.
— Que tal anda este meu animal carnívoro? — disse Imelda,
da porta.
— Está bem! E a trabalhar. — Passei a mão no rosto.
— Agora que a casa está vazia... e nos falta umas horinhas para
o trabalho... bem que...
Imelda curvou com a orla da mesa para ir atrás de mim. Como
que a espera que eu parasse de digitar — e eu que estava no núcleo da
crônica —, fazia brincadeiras excitantes com a língua. A trança preta
caia pelo meu ombro esquerdo até ao colo, sentia seu pescoço na nuca,
sentia sua língua no globo das orelhas, por trás, húmida. No meu
pescoço, a subir e descer.
— Preciso escrever isso — disse.
— I quum vii escrevir im mim? — disse ela, ou ao menos suspeitei
que fosse, com a boca presa ao pescoço. Dei duas batidinhas de consolo
no seu ombro. Estava na hora de trabalhar. Imelda voltou aos seus
afazeres, não tão furiosa quanto pensava. Sabia que me teria quando
quisesse e que talvez agora não tenha querido o suficiente. Antes de sair,
tanto ela quanto eu recebemos uma mensagem do policial encarregado
pelo desaparecimento da mãe da Sónia. Depois de ter passado tanto
tempo, dissemos, só poderia ser uma descoberta nova. Ligamos para ele
e combinamos o encontro.
O encontro teve lugar fora de um café na Chicala, as dezessete
horas. O policial Neto apertou forte nossas mãos e nos convidou, em
seu jeito peculiar, a sentar. Aos lados tinha mais mesas espalhadas pelo
passeio com as respectivas sombrinhas e algumas delas já ocupadas. Ele
principiou a dizer:
— Espero que este encontro não se prolongue, senhores. O
motivo que nos traz aqui é que durante as investigações houve o
reconhecimento de uma mesma figura. As testemunhas confirmam ser
um velho bem trajado, do tipo que raramente incomodaria andar por
perto. Acredita-se, até então... — Numa pausa, o policial brincou com
a barba. — Que esta mesma figura foi a última ser vista com a sumida.
Claro que sabíamos! Contamos tudo o que sabíamos, sem
receios, até o que nos ia passando pela cabeça. De facto, ajudou o
endereço que nos foi dado. O homem anotou no seu caderno, mais uma
vez. Fez algumas perguntas sem conexões que pareciam chatas sobre a
roupa e o corte de cabelo da figura.
Antes que se consumasse a quinta chávena de café, deu-se como
terminado o massacre. Por sorte Imelda vinha de carro, o que facilitou
a nossa chegada ao óbito.
Ao entrarmos no bairro que impossibilitava a passagem de
carro, nas paredes que nunca foram pintadas estavam as fotos de muitas
pessoas, de diferentes pessoas, que findaram à existência material. Parei
em uma delas para reconhecer as rugas, embora jovem na foto, da avó,
por cima da foto de uma criança. Vi fotos de jovens nas paredes
passadas. Anúncios de rituais espíritas por marcação. Ao lado, um
pedaço do que antes foi uma folha completa dava lugar ao rosto de um
homem, um pastor, a falar sobre libertação na quinta-feira. Mais
adiante, no lado angular da parede, jazia uma folha na horizontal escrita
com lápis de colorir verde e laranja, que dizia: "FICA UMA PESSOA
BOA PRO MUNDU SE DIRRUBARI UMA ARVORI PLANTA DUAS
QI VOSSO NETOS VAU CUMER".
Na casa, algumas chapas que antes faziam e muito bem de
parede frontal, estavam sobrepostas às demais partes, de modos que o
quintal estivesse aberto na plenitude. Havia uma coluna de música
desligada por cima de meio bloco. O neto lutava, sem resultados, para
fazer sair dela música. Seu casaco preto, o do primeiro dia, estava
rasgado onde antes era o símbolo do Batman. Vi ele desistir e sentar
enquanto caminhávamos.
— Meus sentimentos — disse eu.
Sem responder ele abraçou-me forte. O mesmo com Imelda.
Pediu-nos para se sentar. Dentro estavam pessoas que ele garantiu
serem vizinhas, que famílias e amigos para a avó sempre fora aqueles.
Algumas a desramar folhas para os molhos, outras a cortarem legumes,
indo aqui e acolá, todos sendo prestáveis, despreocupados, em suas
bolhas singulares, sentindo o luto como só cada um sabe sentir.
DA ARDÊNCIA
EM NÓS
UM

Absorto, percorria a rua que o levaria até sua casa. Se de


princípio o rosto voltava para o chão, agora nada mais era escolha senão
os eventos que se acompanhavam, quer na esquerda quer na direita da
rua onde passava. Claro que precisaria tomar cuidado ora com as
viaturas que viam por trás ora com os conhecidos que vinham pela
frente, mas nada o faria deixar de olhar.
Uma banda de rock ensurdecia seus ouvidos. Ensurdecer: toda
atmosfera de erro que pairava, as notícias de pais bárbaros que violavam
filhos e filhas, as mães que queimavam as mãos de filhos por terem
roubado dinheiro para comer, filhas doando seus corpos em troca de,
de... Mas, sobrepondo-se a tantos des, estava a lei do mais forte que
vigora.
Ensurdecer tudo: eis o que ele mais queria.
Antes de entrar, ele, com as mãos erguidas, doou o seu melhor
sorriso pra senhora Marta que, apesar de tudo, ainda lhe restava tempo
para regar seu jardim branco e lilás na entrada da casa. Então abriu a
porta de um edifício sujo e inacabado, subiu a escada em duas dobras,
andou por um corredor até descobrir a inscrição na porta "APART ME
TO 17". Tirou uma chave enferrujada da pasta, rodou a fechadura e
entrou.
— ... mas é claro! E há quem pensa que estamos aqui por algum
motivo lógico.
— Olá a todos: Jaime, Francisco, Túlio — disse ele.
— Iruy! Nem demos por ti a entrar... — respondeu Túlio,
enquanto cortava pedaços da couve-flor e os deixava cair em uma
banheira azul. — Com a cidade assim...
Depois de chocarem os punhos e ter jogado a mochila no velho
sofá marrom, Iruy abriu a grande janela da sala que dava para a rua e
aproveitou o inconstante vento das dezessete para arejar dentro do T-3
que fedia a morto. Pegou uma chávena de café e chegou à varanda que
abrira.
— O que se conta por aqui? — perguntou Iruy, com a voz que
vinha da varanda.
— Mais uma! A mãe do Nimo, caiu em pleno dia e só Deus...
— Ahh... — interviu Túlio — Deus Deus e mais Deus!
Ninguém sai dessa com vida, Jaime. Estamos postos para morrer. E
Deus lá em cima a beber café...
— Nada de brigas idiotas outra vez, Túlio. Sabes bem que há
trabalhos que se faz bebendo café, já agora. E na última vez que
debatemos sobre os desígnios de... — Iruy ergueu as mãos para o
telhado húmido e desfeito — quase jantamos meia-noite.
O silêncio instalou-se. Iruy teve então o gosto de notar as ruas
vazias e as janelas dos edifícios protegidos. Na frente, atravessando a
rua, estavam alguns carros estacionados na berma da estrada e depois se
descobriam uma infinidade de edifícios que formavam um corredor de
estrada de edifícios que descia.
Por trás de si, no interior da casa, Túlio foi a primeira a se
desfazer do ambiente pesado. Pegou em sua banheira e continuou os
preparos por detrás do balcão, cortando os tomates e cebolas sobre o
mármore do balcão que, de certo, já vira dias melhores. Caso essa
conversa tivesse ocorrido sete anos recuando no tempo, o mais provável
seria Túlio usar as lâminas da faca que agora cortava os tomates nos
contornos de sua barriga como punição por não ter falado quando
necessário. Mas agora, desde a manhã em que se declarou, onde tudo
teve início, que Luanda seria dividida em A e B, nada tinha a temer.
Quando o jantar esteve pronto, ficaram postos à humilde e
humilhante mesa que era custeada pelos quatro jovens.
Quando terminaram a refeição, depois de assuntos e assuntos,
quando o sono veio cobrar sua porção dos dias, cada qual se recolheu
em seu canto para dormir. Não Iruy, claro. Ele que cutucou Túlio até
acordar, sonolenta. Um pensamento não lhe abandonava:
— Já pensou que uma verdade não passa de uma informação
que responde ao maior número de perguntas da pergunta original?
— Ainda acordado?
— Pense comigo: se eu pergunto quem é deus, você
certamente dirá que é tudo aquilo que o homem não explica, Jaime dirá
que é o criador de todas as coisas e merece ser adorado, e Francisco está
nem aí pra isto... talvez dirá que é uma pedra. Prontos.
— Mas eu não responderia assim — disse Túlio. — Eu diria
que deus foi fogo quando o homem não conseguia explicar o fogo. Deus
foi gelo quando o homem não conseguia explicar o gelo. Na medida em
que a ciência aumenta seu domínio sobre a matéria, deus diminui, de tal
modo que o círculo do que pode ser deus está cada vez mais pequeno e
logo se extinguirá. Deus é morte e vida hoje. Só! Já conseguimos
explicar tudo. E a física quântica está prestes a achar a partícula de deus,
a fonte da energia dinâmica. Quando tal acontecer, explicaremos a
morte. O que deus será?
— Acreditas realmente nisso?
— Sei lá. Mas não desacredito. Estou aberta a possibilidades.
— Como dizia, todas estas informações são candidatas à
verdade. Agora veja: a pergunta quem é deus tem sub-perguntas,
chamemos assim. Se deus é pedra, então qual é o lugar dos átomos em
uma pedra? Deus é átomo? Deste modo, interrogando os candidatos,
passarão de nível até elas ficarem mais próximas da verdade. A verdade
nada mais é do que a candidata que mais responde e as respostas façam
sentido em termos racionais. Faz sentido?
— Tente dormir um pouco. Amanhã falamos disso.
Pela manhã, a audição de Iruy acordou recebendo algumas
vozes que a princípio eram indistintas, mas depois as reconheceu.
Quando se sentou no pequeno e gasto colchão, espreguiçou-se
enquanto tentava processar o sonho da noite, este que o fizera acordar
pela madrugada e quase cair na insónia, mas o cansaço venceu.
Ele arrastou a costa da mão direita para baixo do colchão e
puxou de lá uma pequena fotografia. Era tudo mais fácil quando a figura
que lá estava ainda estivesse entre eles. Assim, ao meio de um sonho
ruim, tinha sempre como entrar de fininho pelo cobertor da mãe e
dormir como um bebé, que é o que ele sempre foi aos olhos protector
de sua mãe. Mas ela não estava com ele e levou consigo a possibilidade
de sol em dias frios.
Ao sentir-se pronto, ele saiu do quarto para as vozes que
vibravam já havia horas. Na pequena mesinha haviam bandejas com pães
e Francisco na cozinha segurando uma frigideira fumegante parecia
aflito. Mas, se sobrepondo a tudo isto, estavam Jaime e Túlio olhando a
reportagem na tevê pendurada no alto.
Iruy pigarreou para aquecer a voz e comentou em voz baixa,
porém audível:
— E lá vai mais um...!
— Onde isso vai parar!? — disse Francisco, da cozinha, mas
não obteve resposta.
Quando se aproximou da mesa em que pintava às vezes, Iruy
deu mais atenção à imagem de capa que exibia um corpo ao meio de
uma estrada, estrada que poderia muito bem ser a de baixo do prédio,
corpo que poderia ser de qualquer um naquela casa. Era tudo tão real!
Apesar da nitidez ter sido diminuída na edição, se notava a deformação
dos pés e onde antes teve uma face agora era o vermelho confuso de um
espectro de cores por cima de uma pele negra. O tema sobressaía: O
SEXTO CORPO DA SEMANA. E o repórter de voz animada instigava
o governo para que se fizesse sentir em uma investigação mais
competente, pois não era nem seguro dormir em casa.
Quando já a manhã estava no seu final, eles foram à praia.
As pessoas, por fim.
O sol, que estava no zênite, dava forma em toda matéria na
terra.
O reflexo do sol como uma corda a ligar o infinito do mar à
terra.
As pessoas, por fim, que cortavam a nadar essa corda reflexiva
entre os astros e nós. Pequenos grupos se formavam em diferentes
pontos e os quatro decidiram ir mais adiante, a procura do lugar ideal.
Apesar do caos que estava Luanda, os quatro amigos sentiam,
às vezes, o prazer de partilhar os dias juntos. Tendo achado o local ideal,
jogaram-se de costas e com acrobacias para o mar, confiando até suas
próprias vidas e certos de que a natureza nunca os tramaria alguma, o
mesmo não se diria pelos restantes, por exemplo, o jovem com o
quadrado da idade das crianças que o rodeiam, bem na direita dos
quatro, parece ser inofensivo e por solidariedade, ensinar as ingénuas
crianças nadar, orifício esse que sempre dá um jeito para quando nos
estivermos afogando. Ele pendura a criança. Põe elas em posições
duvidosas. Entram para o mar e demoram um bom bocado. E não existe
qualquer evolução nem expressão de prazer pelo aprendizado no rosto
das crianças. Nem ousaremos supor, por mais óbvio que seja, a verdade.
Iruy equilibra-se até ficar de costas. Movendo ordenadamente
os pés em coadjuvância das mãos, boiava como se fosse um material
plástico rumo ao infinito, e toda raiva pelo bairro B pareceu levitar para
longe de si enquanto estava em um estado de quase morto nas mãos dos
deuses quando deus é a sensação inexplicável de flutuar. Assim ficaria
se pudesse, sob o cuidado dos deuses, até já não haver dias. Porque é
duro viver e é um milagre estarmos vivos.
DOIS

Nas cidades, nos bairros, em pleno dia ou, não raro, noite, quer
na rua ou na porta de suas casas, as pessoas eram sensibilizadas à
mudança. As casas do lado B estão todas desocupadas, diziam os
policiais. Nós sabemos, respondiam. E então?
Era em torno do meio dia quando Iruy passava pela baía com o
saco de couve-flor que Túlio esperava para o jantar, ele vindo da barraca
onde pinta quadros, quando, enfim, fora interpelado por um polícia.
A saudação foi deveras apressada, conforme as formalidades,
claro, mas evitando cruzar seus olhos o máximo que podiam. Um
porque queria logo chegar ao cerne da questão, ao motivo de ter parado,
estando ainda a preparar o terreno; o outro porque queria sair de sua
presença, Iruy.
— ... e para que lado vocês irão? — perguntou o agente,
trocando de assunto.
— Lembro-me de ter lido em algum lugar que esta decisão é
confidencial — responde Iruy e é o primeiro a dar o passo de ida, está
apressado.
— Permita-me dizer-lhe que tenho conhecimento da
fragilidade da questão. Mas eu não sou um cidadão comum, como talvez
já tenhas notado. — Apontou a arma pendurada em sua cintura. — A
pátria é quem acaba de perguntar, não eu.
— E o que a pátria quer comigo?
Iruy se afasta mais um passo. Como que em um jogo de poder,
o policial dá os dois passos de diferença e está mais perto de Iruy.
— E o que a pátria quer comigo? — quer saber Iruy.
Notou os maxilares do homem moer seus dentes, um ranger de
ira. Por segurança, ele olhou para o que havia ao redor da Baía. Nada de
mal poderá me acontecer, concluiu ele. Com os policiais aos montes
que cá estão... e há outras pessoas sendo interpeladas. Não há o que
temer.
— Olha... Iruy, sim? — pergunta o policial que já sabe a
resposta. — Há tempos que nós temos esperado por este momento.
Vocês, os armados em corretamente dispostos... no fundo tudo merda!
Vocês e os teus amiguinhos têm o lugar reservado no lado B!
— Seu filho da puta — Iruy deixou escapar entre os dentes
cerrados.
No mesmo instante, o polícia levou os cinco dedos na cara dele,
deixando em seus ouvidos um inconfundível som de interferência na
frequência.
Iruy respondeu com um soco nos maxilares que rangiam,
fazendo-lhe cuspir sangue.
Os outros policiais vinham correndo.
Porra, deve ser um crime!
Deu uma meia volta e saiu da calçada. Não sem escapar ao
atropelamento, com esses carros loucos pela cidade...
Olhou para trás e os polícias vinham. Entrou por um atalho,
saiu por uma antiga praça agora desolada, seguiu com o corredor das
bancadas e saiu na parte traseira de seu edifício.
Bateu a porta traseira (que nunca abrem). O guarda abriu em
seguida. Pediu-lhe água para o rosto suado e ardente. Este deu-lhe.
Baixou a cara junto à pia para passar a mão no rosto. Olhou-se no
espelho, rosto umedecido. Para além das gotas de água quase fresca,
sentiu Iruy, sobressaía também algumas lágrimas quentes, confundidas
com a água, mas sentidas pela diferença térmica. E não eram lágrimas
de tristeza, que se diga aqui para evitar possíveis erros de compreensão
de texto.
TRÊS

Quando entrou no apartamento Iruy atirou o saco de couve-


flor por cima da mesa, interrompendo Túlio que lia apoiada na janela
com o barulho do legume que saiu do saco, rebolou por cima da mesa
plástica até cair no chão.
— Não tiveste o melhor dia de certeza — disse Túlio e apanhou
o legume. Depois voltou ao livro, marcou o capítulo em que estava. Foi
à cozinha buscar banheira com água e faca para começar o jantar.
— Que calor infernal — gritou Iruy.
— Pensei que havias dito não acreditar no inferno — disse uma
voz vindo do quarto.
Ao que ninguém respondeu.
Não, minto, depois de algum tempo quem respondeu era
Túlio, ela que percebeu que alguma coisa se passava com Iruy e este não
podia responder.
— Seu idiota, o salário do pecado é a morte, está na tua bíblia
em Romanos. Já viu um subsídio maior que salário?
Iruy soltou a primeira risada da noite. Não deixava de fitar as
pernas da mesa, pensativo. E só seus companheiros sabiam porque não
deveriam perguntar o que era...
— Sempre o mesmo argumento? — grita Jaime outra vez e
depois dá uma forte gargalhada.
— Jaime, seu cabeça de água, cérebro congelado. Se eu dizer
não bebas este café porque tem veneno que mata depois de uma semana,
tu bebes o café mesmo assim, eu vou ficar muito triste porque és meu
amigo e estás a morrer. Mas se eu bater em você por beberes o café,
este acto de bater em você é uma manifestação de raiva descontrolada.
Porque o salário da tua desobediência já foi teres bebido e só te resta
uma semana. Não acho que um deus que se diga perfeito seria capaz de
bater depois de beber o café. Deuses não podem sentir raiva
descontrolada, seu doido fanático! Se não já estaríamos todos mortos
aqui na terra. Acreditar no inferno é acreditar em um deus
descontrolado e perigoso, consequentemente. Um deus impulsivo.
— Mas o fogo eterno é para educar e repreender servos!
— Não é repreensão! Como você é difícil, Jaime! Seria
repreensão se teu deus dar outra chance aos que arderão no fogo. Mas
não há outra chance! Dói tanto acreditar que isto, em termos humanos,
não passa de uma manifestação de raiva? Pode ser masoquismo, castigo,
que são coisas humanas. Mas nunca será repreensão! Nunca! Porque eles
não terão uma segunda chace. É inútil queimá-los no...
— Pessoal — diz Iruy — arrumem as coisas agora mesmo!
Temos que sair daqui ainda esta noite...
QUATRO

Ainda eram 19h quando disse para arrumarem as coisas.


Ele disse que era para ser com pressa. Não foi uma decisão precipitada,
de certo. Às vezes parece que o universo (sim, digo o universo porque
certamente é um fenômeno de ordem universal, embora não saibamos
ainda o que é) quer nos comunicar algo e recebemos a informação sem
saber como, agimos de um modo em vez de outro, criamos outro
caminho no espaço-tempo diferente do que seria se decidíssemos sair
de casa na tarde de chuva em que ficamos em casa, se bebêssemos menos
ou mais refrigerantes, se fizéssemos menos ou mais sexo, um infinito de
tentativas que se abrem todas tão lindas como o desabrochar de uma
flor, todas tão perfeitas assim mesmo, se bem que seria legal se
pudéssemos tentar todos estes caminhos que bifurcam ainda nesta vida,
seria uma forma revolucionária de se instruir no bem-viver e bem-
morrer, a forma que inutilizaria a literatura. Uma vida não nos basta
para acertarmos, portanto. Em uma vez só nem se pode tentar...
O que ouviu do universo transmitiu-o precisamente
como ouviu. As 20h bateram na porta.
— Não abra! — sussurrou Iruy para Túlio.
— Quem é? — perguntou ela, não ao Iruy, claro, esta menina
rebelde e aventureira.
— É a polícia!
— Porra cara, o que a polícia faz aqui? — pergunta ela.
— Eu tentei avisar... vamos sair logo daqui.
— Um momento! — respondeu ela para os policiais.
— A polícia não espera!
Os pontapés na porta tinham começado.
Foi Jaime quem decidiu abrir a porta em meio aos pontapés dos
policiais. Depois deste acalmá-los com seu espírito brando cultivado em
longos anos de cristianismo praticante, os agentes falavam baixo:
— Só queremos Iruy!
— Mas qual Iruy? Depois do que nos fez hoje pela tarde, bater
em polícia, claro que não poderia continuar vivendo aqui conosco,
senhor agente! Expulsamos o gajo, ora essa!
— Está bem, camarada. Mas se vocês o virem por aí digam que
vai sentir a mão pesada da justiça.
Os policiais entregaram um formulário para Jaime preencher.
— Assine agora e depois têm menos de 24h para concluírem a
mudança!
— Tudo bem, senhor agente. Assim será!
E eles foram.
Quando tiveram tudo arrumado, o grupo de amigos decidiu
descer o prédio para se dirigir à zona B. Desceram pelas escadas.
Passaram pelo hall. Mas antes de sair do prédio, os policiais surgiram da
entrada outra vez, flagrando Iruy.
— Aqui estás tu — disse um deles, o da briga.
De imediato algemaram Iruy e saíram do prédio com ele em
algemas. Seus amigos seguiam atrás, acompanhando-os até a esquadra
na zona B. Na rua, do outro lado, viram uma família que também se
dirigia para a zona B.
O homem da família, quando olhou para os policiais e os amigos
seguindo, deu sua carga a sua mulher, disse qualquer coisa que os amigos
de Iruy não puderam ouvir (e que nós não queiramos ser fofoqueiros,
só nos interessa por agora os caminhos de Iruy) e depois de dar a carga,
a mulher seguiu com a menina em uma mão e a carga na outra. Outro
Olavo, não este que segue Iruy, continua com Imelda e Sónia,
transparente.
O Olavo original, de onda nasce o reflexo, se juntou aos
rapazes.
— O que ele fez? — perguntou.
— Brigou com a polícia.
— Posso ajudar. Eu conheço a lei!
— E por que farias tal coisa? — perguntou Túlio, sempre
desconfiada.
— Eu conheço Iruy — respondeu o homem. — Já pintou um
quadro da minha mulher.
Nas cidades, nos bairros, em pleno dia ou, não raro, noite, quer
na rua ou na porta de suas casas, as pessoas ainda eram sensibilizadas à
mudança.
Os quatro passavam pela cidade, atrás dos agentes e do Iruy,
como se passassem em uma miragem ou em um filme e apenas eles eram
reais.
Numa porta estava uma criança na bicicleta com carga a espera
de quem quer que seja. Na outra, um senhor arrumando as coisas na
bagagem do carro. Havia os que levavam na mão, peça por peça. Alguns
sozinhos. Outros acompanhados. As estradas engarrafada pelas pessoas
que se dirigem aos seus lugares.
Um mundo novo estava por nascer.
DO CADERNO
DE OLAVO
***

Se ouvimos o que se disse? Sim. E muito mais do que ouvir,


discordamos. Pois, quem iria acreditar em uma tolice dessas, uma tolice
que nos remete a colossal desfaçatez crença que resultaria de algo nos
colocar contra a carne de semelhantes, separando o trigo do joio, o leão
da caça, enquanto que a natureza insiste em nos unir na sua forma mais
genuína? Digo ainda mais, e aqui somente, o meu descontentamento em
crer que embora nos sintamos culpados por Leões comerem as Palancas
Negras Gigantes, não é responsabilidade cabida a nós enjaular ou um ou
outro a julgar que protegemos a espécie, pois mesmo cadáver morto
cria plantas saudáveis.
E se insistirmos na mesma ladainha, veremos um rapaz na
subdivisão "A" excitar os dejetos infundados em uma simples piscadela
de amor com própria filha caçula do governador, e talvez eles se amem
de loucura, o amor louco adolescente, e talvez eles façam besteiras,
besteiras loucas de adolescentes e humanos, para colocar em evidência
dois factos, o primeiro a dizer na cara que basta haver humanos para
haver dor. Ninguém é perfeito. Tentamos sobreviver como podemos.
E o segundo é que, como diz Romana, precisamos apenas viver. A causa
já está perdida, e isso há tempos.
Ou haveria outro no bairro "B", frustrado pelos erros, mas que
dá a vida pela comida do filho a cada pulo que faz pela janela de seu
semelhante à procura de pão naquele cesto sujo, pois os bons são
favorecidos, os que não mancharam as mãos nasceram em berços de
ouros, berços de ouros que foram moldados por mão ensanguentadas,
e só depois de os sangues secarem e os berços estiverem feitos decreta-
se o bem e o mal, o bom e o mau, as penas para tais.
Se ouvimos o que se disse? Claro que ouvimos. E, com toda a
dignidade que nos resta, estamos prontos para desobedecer tal
ordenado, senhor presidente.

***

Não foi esta primeira vez que a natureza luta contra si mesma.
Sei de um tempo em que ficava sentado à porta de casa, na caça de
peculiaridades das coisas.
Uma minúscula vala de drenagem que descreve a divisão da rua
em dois. Tão minúscula vala que era fácil passar de pernas sobre. De lá,
num dado dia, saiu um molusco invertebrado da fonte fervilhante de
vidas frágeis. Ousou sair. Talvez quisesse pegar sol ou seguir o curso
natural das coisas. Não tardou para que se visse invadido por um
formigueiro que chegou uma formiga atrás da outra. Ele dobrava-se em
todas direções, lutava como se fosse morrer, gritava por mim. Eles
arrastaram-no até a entrada de seu buraco, prontos para se banquetear
de carne alheia.
Saímos da vala contra vontade. Nossas células estão minadas
com o grito inquietante por mais. Por mais e por tudo. Todos para tudo.
Tudo para todos?

***
Lista de tarefas urgentes:

Ame;
Beije;
Sinta o perigo;
Leia Julio Cortázar;
Conheça o mundo;
Dance na festa da vida;
Faça algo sem pensar duas vezes;
Leia Valter Hugo Mãe;
Saiba jogar ao jogo do mundo;
Faça algo sem pensar uma vez;
Fique bêbado, santo pai, a êxtase é divina;
Jante fora;
Abrace alguém;
Ouça Edith Piaf;
Banhe na chuva;
Ande pela cidade (à noite);
Leia Gerge Perec;
Sorria para a vida;
Pratique o bem horariamente;
Sorria para desconhecidos na rua;
Fale sem olhar nos olhos se quiser;
Dance na calçada;
Caia dentro de si;
Cante música sem saber a língua (obs: gritando);
Escreva seus pensamentos;
Leia os clássicos da literatura mundial e saiba os motivos de serem
clássicos;
Esteja aberto a possibilidades;
Leia "A Extraordinária Garota Chamada Estrela";
Tropece no ar;
Aceite que não sabes nada sobre o mundo;
Descubra que estás longe de saber;
Procure;
Invente palavras;
Seja leve;
Experimente coisas;
Leia quadrinhos;
Coma doces até que os dentes doam;
Beba café sem açúcar;
Mas beba com açúcar, se quiseres;
Vista-se do que lhe convier no dia;
Use tênis surrados;
Leia Italo Calvino;
Desconfie de tudo em que acreditas;
Questione;
Entenda Saramago;
Contrarie;
Perca um domingo no TikTok;
Faça alguém sorrir;
Leia romance adolescente;
Não deite lixo na rua;
Beije violentamente;
Escreva cartas;
Abrace alguém que amas;
Abrace alguém que não amas até três minutos;
Distribua as cartas para desconhecidos;
Ria até perder o ar e a barriga doer;
Abrace o vento;
Exista para o amor;
Morra pequenas mortes;
Sinta êxtase;
Chore;
Repita tudo de novo;

***

Eram 18h quando Pavlo Vassilievitch chegou ao seu tacanho


aposento no 11º andar, onde jazia a família, completa, depois de um dia
labiríntico.
(2h antes)
… tendo empregado esforço munido de argumentos
persuasivos diversos, Pavlo logrou que sua mulher, Lyuba, tomasse um
duche em vez de fazer o jantar; enquanto esta banhava, o pai recrutou
sua filha de 16 anos para ajudar trinchar os legumes sobre a mesa de
mármore e de tal modo, adjuvados, ambos mimoseariam a mãe com
talvez o passadio mais horrível que uma cozinheira de profissão qual ela
teria provado, mas ainda assim constituiria a iguaria mais quista por ela.
(2 segundos antes)
… na cozinha, apenas Pavlo reconheceu o som anormal de algo
que descansou sobre a sala. A filha ouvia música alta nos fones de ouvido
e esperava a comida para levar à mesa. Lyuba, no quarto, estava em
apetrechos como se, ao invés do marido, se tratasse da primeira vez com
um novo derriço, e sabe ela que este é o segredo de seu casamento ter
perdurado.
(eis que acontece)
… primeiro as janelas. Ele pousou nas janelas como se fosse um
pássaro, um rouxinol que chora ou um corvo que mata. O vidro foi
parar estilhaçado pela calçada. Como se um líquido inflamável banhasse
a parede, metade dela caiu dos 4 pisos pra baixo e a sala de jantar, com
a mesa posta agora exposta, ficava na metade do apartamento que
preservou sua estrutura por se apegar à base do edifício.
(uma eternidade depois)
… quando Pavlo Vassilievitch assimilou a situação, percebeu
que apenas os pés dele e os de sua filha estavam machucados, para
perceber depois que talvez o braço esquerdo de sua mulher nunca mais
mexesse. O mundo se abria em uma janela de infinidades de escolhas
onde antigamente havia parede. A parte agular do edifício tinha sido
levado ao diabo. Apenas restava intacta a porta de entrada, por onde ele
carregou, apoiadas em seus ombros, a mulher e a filha. Portanto, é
assim que os anjos caem.

***

"Passageiro nascido de uma pátria / Você deu amor ao mundo quando


vê / Alguns grandes, que incomodam, alguns criados..."

Quem vai falar por eles? Estas foram as primeiras palavras que
o Word recebeu. Chateia-me bastante esse ponteiro que não pára de
piscar e piscar, piscar e piscar. Talvez devesse parar, e paro. Que calor!
Abro a porta e descubro, bem na clara escuridão (perdoa-me o
oximoro) algumas moscas. Sigo uma delas com os olhos... e me canso
de ser eu mesmo porque cansa falar por todos o tempo todo, porém,
sem o retorno.
"Você acabou de perguntar e perguntar a cada um deles / Por que você
perguntou por que / Homem morre, mas seu orgulho não morre..."

Uma delas, a mosca embebida de robustez, segue o seu rumo


até a porta de entrada. Talvez a luz, talvez qualquer coisa, mas ela se
vira contra a porta e não percebo patavina nenhuma de porquê não
escolhe sair, arejar, ser livre. Antes, por falta de atenção ou por excesso
de atração, tendo se virado de frente ao espelho, talvez não viu a si
mesma por ver por trás de si o caminho para a sua liberdade. E ela queria
ser livre!

"Há tantas criaturas, ninguém ri / O tormento do inferno é difícil, não


retirado / Você viu os animais sofrendo..."

A primeira batida doeu para si. Eu vi-a se contorcer de dor. Ela


volta em todo o bom bater das asas, regressa quase a entrada, e, com
toda a força que sabe ser possível, se arremessa contra o espelho. A dor
já não é dor, não apenas esta. É um misto de masoquismo e adrenalina.
Ele precisa e volta e embate e volta e espera que a qualquer momento
se safe da prisão que é estar com um jovem que apenas o assiste
derrubando a si mesma.

"Pessoas nascidas de humanos se tornam humanos / Aqueles nascidos


de animais se tornam animais / Todos eles vêm para este mundo / É o
principal direito, você terminou esse segredo?..."
Mas um detalhe de interesse ela não pareceu perceber, o de que
tal reflexo ao qual embatia era ela própria. Uma extensão de seu corpo
minúsculo estimado grande, que talvez a milhas da nossa galáxia seja
possível os unir, mas se vê em seu reflexo — e isto eu confirmo — que
Ele existe apenas porque ele existe. A menos que não. Talvez seja que
esta mosca do espelho se trate do primeiro projecto do que passou a se
estender ao material que hoje é o seu corpo de molusco que no fundo
não é assim tão forte. Mas sim, ele era a quem embatia a procura da
liberdade nesta porta, seguindo os impulsos da luz, e batia em si e
esperava liberdade e não sentia a dor. Coisa mais triste?

"A maturidade é exclusiva e antes de sua vida útil expirar / O custo


diante sem receber / Sua vida está sem a rosa da sua videira / Você veio
e deu uma bênção para você / Você se tornou um servo escravo? / Nós
choramos como um estranho rouxinol..."

E foi quando ela morreu. Que pena! Momento tão triste que
mesmo a palavra triste se perde na insuficiência do conceito, porque é
isso, as maiores lições são puxadas para o lado de cá apenas por meio de
coisas pequenas e tristes. Até se tornarem grandes... A última batida era
desprovida de força, talvez só fizesse pelo hábito, mas fez, e o seu
cérebro minúsculo e inexistente (cujo tamanho que o diga a visão
microscópica) se esmiuçou no reflexo de si. Como à milhas daqui o
reflexo de si pode ser o ante-si, talvez ele se tenha jogado em um
penhasco de distância que impossibilite a vida mosquiana e julgasse ter
jogado outra pessoa. Mas não.
"Lamentamos nas mãos da ignorância / Estamos tristes nas mãos de
pessoas ignorantes / Somos sempre passageiros, viemos assim,
seguimos assim / O mundo é sua pátria ou pátria?"

Se somos passageiros, por que agir assim!?... Por que invejar


por que mentir? Por que matar, por que ferir? Por que julgar? por
que... por que!? A cada amanhecer, um passo para o dia em que
voltaremos à milhas daqui. E seremos novamente nós.

Música: Yolcu, Netep Ertap


***

["Em termos gráficos, as equações representam duas retas no plano,


cujo ponto de intercessão (1,0;1,0) é o par ordenado e a solução do
sistema."
"A geometria perfeita. O que seria a simetria, além da distância
entre as tuas pequenas e amendoadas orelhas? E o triângulo virado
formado pelos teus olhos em junção da boca, aposto os meus meses de
vida se não conter, ainda que só em teu rosto, as coordenadas de um
mapa escondido para tirar a humanidade do caos que é viver. Buracos
negros? Teus olhos! É ilusão de óptica tamanha entrar em um olho teu
e sair no outro, me perder no esquerdo e reencontrar no direito,
Pepetela em Muana Puó, tens aqui mais uma referência, me reencontrei
em ti. Foi quando me tornei humano, pelo teu rosto, porque sempre
que o olho, olho no olho vejo a Celpe e os Corvos e os Morcegos todos
vivos em ti. Mas os Morcegos sempre vencem, que confirme o bom
escritor. Porque é só deste jeito que o homem deixa de ser animal, pela
pressão dos dias, para se tornar humano outra vez, um passo para a
humanidade é uma mudança para um homem e assim vamos todos nós,
Ubuntu. O famoso passo para a humanidade: teu rosto. E por último,
aposto minha vida que qualquer arqueólogo vai amar essa descoberta
quando a colocar na coluna de quinta-feira."]
***

"Eu estava ouvindo o oceano / Eu vi um rosto na areia / Mas quando


eu o peguei / Então ele desapareceu das minhas mãos, para baixo"

Meu bom e velho amigo Olavo, vi um homem esta manhã.


Estava no mesmo autocarro que eu. Percorremos longas distâncias lado
a lado. Em uma paragem próxima, quando os assentos iniciaram a
esvaziar, ele sentou-se no primeiro que conseguiu e eu me pergunto até
agora como ele consegue. Estava atento até nos assentos longe de si. Até
nos amarelos, dos deficientes e das grávidas. Os velhotes não têm
assentos amarelos porque, quando projectaram o autocarro, era de
supor que eles seriam usados pelos pobres e que os pobres, melhor do
que ninguém, aprenderam o valor da humildade e do respeito. Mas
parece que suspeitaram errado por jogar o futuro de velhos cansados nas
mãos de jovens cansados e ocupados demais, presos na tela do telefone,
para puder olhar bem ao lado e ver que há alguém com o triplo da idade
praguejando para que ele saia. É justo. Quantas vezes ele teve que ficar
em pé quando jovem? Quantas prioridades já deu? E se não fosse agora,
neste autocarro, que a vida lhe retribuísse a porra do gesto, então, de
que serviu tê-lo feito para o avô do pai de quem senta?

"Tive um sonho em que eu tinha sete anos / Escalando uma árvore /


Eu vi um pedaço do paraíso / Esperando, impaciente, por mim, lá
embaixo"

Vi um homem esta tarde, aqui mesmo na praia, Olavo. Ele era


um homem mau. A estrutura de seu corpo oco — porém, com os
músculos tonificados — eram suportados por um dos pés. Andava como
uma gazela ferida, a balançar o peso para o pé direito, como se se ousasse
suportar-se no esquerdo, cairia. Ele, não é esta a primeira vez que o
vejo, está sempre rodeado de crianças. Para quem o vê lá, onde o mar
engole até ao peito, rodeado de crianças, penduradas ou a nadar perto,
nada passa de um bom garoto a ajudar crianças a se iniciarem na natação
para o caso de Deus mandar outro dilúvio. Mas para quem percebe o
padrão, que são apenas mulheres crianças, apesar das adultas que não
sabem e gostariam de aprender a nadar como eu, quando se agacha para
conversar com uma das crianças por baixo deste sol, o que elas podem
revelar sobre o que acontece por baixo do mar é revoltante. Ninguém
merece saber.

"E eu estava correndo para muito longe / Eu fugiria do mundo algum


dia? / Ninguém sabe, ninguém sabe / E eu estava dançando na chuva /
Eu me senti viva e não posso reclamar"

Porém, tenho minhas alegrias. Verei a garota mais inocente do


sangue que sai pelos olhos do mundo ainda esta noite, quando regressar
a casa. Ela é a única razão de eu ainda acreditar na mudança, de lutar
pela mudança junto de muitos. Deverias ver o jeito como ela sorri; pena
que dormia no outro dia. Mas aposto que, se existir um céu com anjos
e deuses pra lá das nuvens, o único caminho possível tem as chaves
guardadas naqueles lábios quando curvados. Uma espécie de coração na
boca, deverias ver, mesmo! Um coração vermelho que escapa para rosa
no núcleo que me faz beijar ela vezes sem conta. Passou o final de
semana com minha irmã, a única que aceita manter contacto e a achar
que não fiz nada de errado ao decidir viver. Ela trará a Tamar hoje.
"Mas agora me leve para casa / Me leve para casa onde eu pertenço /
Eu não aguento mais"

Olavo, a nova dinâmica do mundo me obriga a comunicar-lhe


apenas quando tiver algo de real interesse para lhe escrever, por isso
nunca envio nenhuma dessas cartas manuscritas e antiquadas agora que
tem o E-Mail. É exigido que tenhamos sempre ideias que movam o
mundo, e essas ideias não costumo ter, por isso nunca enviei. Mas, no
fundo, acho que deverias ler. Talvez elas te mudem, e todos sabemos
bem que somos o mundo em miniatura dentro do nosso coração. Daí,
como toda boa mulher histórica, eu cumprirei o meu trabalho que é o
de inspirar ações sobre as quais os homens sãos conhecidos por terem
mudado o mundo.
Mas agora, ates de tudo, por favor, me leve para casa.
Eu não aguento mais.

Música: Runaway, Aurora


***

Quantas vezes mais nos será necessário voltar ao fundo do poço


para perceber que é necessário voltar ao fundo do poço e entender que
já não há outra saída possível além das mortes na madrugada? Baratas,
ratos, gatos. Se nos pegarem, digo éramos novos e não conhecíamos tão
bem o caminho. Entramos por baixo, na imensidão do escuro, longe da
luz do sol. Não sabíamos por onde daria; eu mesmo o digo e não seria
mentira. Nós também existimos. É por isso que suplicamos a Ele para
nos deixar existir, livres, o único modo possível. Escapamos deste fogo
sempre que nos dá, jogamo-nos aqui, atirados contra a parede o
caminho todo. Baratas, ratos, gatos.
Quantas vezes mais nos será necessário escapar do mundo para
perceber que é necessário escapar do mundo e entender que já não há
outra saída possível além dos mundos que criamos? Minhocas, aves,
peixes. Andamos por esta terra há anos por gerações. Sabemos muito,
mas sabemos tão pouco sobre a própria terra que nos sustenta.
Sobretudo sobre os nossos semelhantes, irmãos. Acordamos a meio da
madrugada com eles ao lado, na cama ou no mundo, mas quem são eles?
Sabemos que eles querem viver: bem e mais. Todo mundo quer viver e
alguns reinventam-se. Cérebros célebres tentaram evitar. Todo mundo
em debate, de uma forma ou de outra, sobre o grande dilema
existencial. Só que nós, anélitos de nós os dois... imaturos?
Conduzimos, naquela noite, a nossa carroça, e íamos de frente à morte.
Bem que te disse. Não me quiseste ouvir. Mas deixa pra lá, eu mesmo
digo-o agora. Estava escuro e não vimos nada, mas estávamos tão felizes
que não diferia em nada ver. Meu deus, vê lá como somos tão felizes
porque escolhemos não ver nada!?
***

Mas que história hé hessa de ho sol ter nascido hoje, bem


cedinho, hainda por cima derreter ha felpa do tapete na nossa sala? Por
que, logo hoje, ho sol nasce como nos outros dias, com ho raiar tímido
depois hassanhado, como se fosse hum dia qualquer? Tenha lá respeito
pelas pessoas pá, he vê se baixa hum pouco mais. Reduza ho hesplendor
da haurora que nem tudo handa bem por aqui. Pessoas ha morrerem he
haí como se não fosse nada ho sol nasce outra vez, ho mundo gira houtra
vez, ho ciclo vicioso nos obriga ha viver houtra vez: hesquecer houtra
vez das mortes que já passaram por cá para se viver como se não
fóssemos morrer he hesquecermos da morte houtra vez para sempre,
hesquecermos dos mortos higualmente. Resultar hem huma tarde de
velhice hacharem-nos mortos hem frente hà tevê? Hao menos diminua
ho sol, senhor. Que chova hem dias de morte, se hassim desejar.
Qualquer houtra coisa. Menos ho de sempre. Por favor. Menos heste
hardente.
***

Francisca, a menina de uma mão só, andava pela cidade apenas


aos sábados. Certo sábado
. ,
, .
; :
— .
— — .

. , , . .
:" ". , ...

,
. , ; .

: ...
***

Damião, na estrada é camião que passa


A romper tudo o que no caminho está
Ora rolhas, ora palha
De uma velha árvore falha
Que por perto se fez tombar
Por perto e pelo tempo
Este que não se deixa ficar
Levando a alma no vento
Trazendo hoje o amanhã
O amanhã, Damião
É o dia em que a folha cai
Entre a linha no centro da estrada
Ela amarelada
Quieta
Antiga...
E os carros a carrear.
***

mania das energias


que pelo corpo
celeste, se espalham:
descer no astro
rumo à velha terra

campo quântico,
tuas mãos criam
buracos negros
onde partículas
comunicam
desordenadas

norte sul
rosa-dos-ventos
e o alento
que dedo teu
espalha

norte sul
rosa-dos-ventos
e o tormento
que o tempo
falha

campo quântico
cria mãos tuas
buracos negros
onde partículas
comunicam no
mundo em que
povoas

... na galáxia bípede carbônica,


tuas mãos descansam
sobre a pele dourada...

onde o dedo e
o tempo se
espalham pelo
cosmo da lua
na cabeça tua
doida pelas forças
que o dedo espalha
no campo quântico
onde o tempo falha

campo quântico
cria mãos tuas
buracos negros
onde partículas
comunicam...
***

solto meus pensamentos neste labirinto em que já estive antes


no labirinto cujas paredes se assemelham tanto com as de onde me deito
depois de todos os dias iguais, todos os dias cancerígenos. As palavras
não têm grandes pretensões estéticas nem filosóficas. Proponho apenas
uma descrição fundamental de suas paredes e de como a cor cinzenta
cria em mim tez de indiferença, porque é a cor cinzenta que existe no
cinza de um corpo antes orgânico, porque é a cor cinzenta presente no
céu de fim de tarde em que o pôr-do-sol se ausenta, porque é a cor
cinzenta presente nos olhos frios e calculistas, vidrados e fechados dela
ao dizer adeus, porque é a cor cinzenta presente nas cinzas e nos céus e
nos olhos que significa indiferença
sim, já estive aqui antes
e pensar que a maior forma de sair de um labirinto é curvar sempre pelas
direitas (se bem que pela esquerda também), desde que seja uma direção
e uma única até ao fim e pode não haver um fim no tempo porque
porque conheço as paredes como as paredes da minha casa. tudo me é
familiar. cada beco que se cria e bifurca, que bifurca e se cria, que
bifurcam e renascem uns nos outros. Faz tanto tempo que já estive aqui.
Sim, o tempo se faz! Faz-se. Conheço-o tão bem como... este labirinto
não mais me inspira ou me amedronta: estou-me nas tintas para ele.
Cagando! A fazer toda o tipo de borrada,
não haver um fim no tempo porque fiquei preso suficiente na última
vez para hoje estar claro que não existe uma última vez dentro de um
mundo em que o tempo se faz
acontece-me, às vezes, ter algumas coisas por dizer sobre o déjà-vu de
se estar aqui antes e as raras coisas que fico por dizer estão em uma zona
perigosa e indizível, longe do que o olho viabiliza; mas teimo mesmo
assim
servir-me das palavras para, sei lá, fazer chegar mais próximo de sentir
o que digo, porque não se chega nunca ao cerne, apenas se sente estar
próximo. quando uma parte oculta de nós ganha existência e se
pressente estar a entender, embora não saibamos bem como, quando,
onde. Uma miragem. Uma miragem num sonho. Um lugar muito
distante daqui.
espero que sintas a agonia das paredes cinzentas que renascem e recriam
quartos infinitos e indiferentes. Que sintas a agonia do homem posto à
mesa, só, tão só quanto apenas ele está no mundo de uma galáxia de
possibilidades
mas depois o raio de sol a romper um dos cantos: o canto menos
esperado, o ponto angular de onde duas das paredes se encontram, na
parte superior
um raio de luz que nasce e atravessa meus olhos. um pedaço do sol de
sempre que corta a matéria negra que envolve meu corpo no abismo.
suficiente para aquecer meus fracos ossos de há muito que cá estão, basta
ser frequente para aquecer as paredes indiferentes do labirinto que tanto
se parece com o meu túmulo nocturno,
labirinto em que sempre me perco, todas as noites e para sempre;
labirinto em que sempre me perco e nunca me reencontrarei, voltando
nele e dizer já estive aqui antes no círculo da vida《porque, portanto,
apenas os círculos são eternos》
como diz o mestre
e sem a luz para romper o quarto não tem mais jeito porque a luz
e porque já estive aqui antes.
***

— Então por que faz um diabo de trabalho assim, prejudicando


a sua própria gente?
— Porque ganho três dólares por dia. Andei lutando como
diabo para ganhar com o que comer, e nada. Eu tenho mulher e filhos.
Temos que comer. Três dólares por dia, todo santo dia.

{....}

— Tá certo — falava o meeiro. — Mas por causa de seus três


dólares por dia, quinze ou vinte pessoas vão passar fome. Mais de cem
pessoas têm que ir embora, queimar estrada. Tudo por causa de seus
três dólares por dia. Isso tá direito?
E o homem do trator dizia:
— Que é que eu vou fazer? Tenho que pensar na minha família.
São três dólares, que vêm todos os dias. Os tempos mudaram, não sabe
disso? Não se pode mais viver da terra, a não ser que se tenha dois,
cinco, dez mil hectares e um trator. A lavoura não é mais pra pobretões
como a gente. Você não começa a reclamar porque não pode fabricar
Fords ou porque não é a companhia telefônica. Bem, as safras agora são
assim. Não há nada a fazer contra isto. A gente tem que se virar pra
arrumar três dólares por dia. É o único jeito.
— É, tudo isso é muito estranho — ponderou o meeiro. — Se
um homem tem um pedaço de terra, esse pedaço de terra é ele mesmo,
faz parte dele, é como ele mesmo. Se é dono de uma terra assim, pode
andar nela, tratar dela, e ficar triste quando ela não produz e contente
quando chove. Está sempre satisfeito, porque a terra é dele, é parte
dele, é igual a ele. Mesmo que não seja bem-sucedido, ele vale muito,
porque tem a terra. É assim.

(As Vinhas da Ira, Jonh Steinbeck)


***

Não nos provoca riso o amor quando chega ao mais profundo


de sua viagem, ao mais alto de seu voo: no mais profundo, no mais alto,
nos arranca gemidos e suspiros, vozes de dor, embora seja dor jubilosa,
e pensando bem não há nada de estranho nisso, porque nascer é uma
alegria que dói. Pequena morte, chamam na França a culminação do
abraço, que ao quebrar-nos faz por juntar-nos, e perdendo-nos faz por
nos encontrar e acabando conosco nos principia. Pequena morte,
dizem; mas grande, muito grande haverá de ser, se ao nos matar nos
nasce.

Eduardo Galeano, O Livro dos Abraços


PLAYLIST
The Beatles
Bob Dilan
Leonard Cohen
Boby Coldwell
Måneskin
Tom Rosenthal
Tom Odell
Edith Piaf
Haley Heynderickx
Keane
Patrick Watson

Luanda, aos 14 de março de 2022


SOBRE O AUTOR

Josias Currie, filho de Catarina


Sandala Currie e de Bernardo
Manuel Eduardo, nasceu aos 06
de 01 de 2003. Actualmente,
vive em Luanda, Mutamba.
Experimentou a escrita
pela primeira vez em 2015,
onde, com a ajuda de seu amigo,
Marco Polo iniciou uma
temporada de textos para
Facebook com intenção de
exteriorizar os seus sentimentos
e suas experiências na leitura
(que já era presente desde 2014).
Com o tempo, na medida em que sua qualidade de leitura
cresceu, foi tentando novas formas de escrita e se profissionalizando nos
conhecimentos de teorias literárias.
Josias Currie é co-fundador da Companhia Artística Mar Morto
(CAMM), onde trabalha na Mar Morto – Editora nas funções de Editor
e Designer.
Autor de dois volumes da sequência "Blá Blá Blá",
respetivamente "Textos inesperados" e "Contos e anotações" (ambos
digitais). Agora, traz a proposta de uma escrita diferencial da que o
público conhece, com uma prosa e propósitos de escrita bem mais
maduro por conta das leituras com a novela "As Mortes Possíveis" e
outras obras que se farão conhecer brevemente.
Mar Morto

A Companhia Artística “Mar Morto” (CAMM), foi fundada a 1 de


dezembro de 2019 por Marco Polo ao lado de Josias Currie e Marcia Mendes.
A companhia tem como objetivo divulgar e apoiar as carreiras de
artistas essencialmente nacionais, desde os veteranos aos iniciantes. Dando a
qualquer amante da arte a oportunidade de mostrar seus talentos do interior
para o mundo.
Incitar a criatividade pessoal é marca da companhia.
A companhia está vinculada à Mar Morto – Editora. E aos serviços da
editora, tenciona publicar livros através de projetos pessoais e antologias
diversas proporcionando um senso de realização a novos escritores e
desenvolver de maneira regular o hábito de leitura na sociedade em geral.
Se desejar mais informações ou solicitar nossos serviços, entre em
contacto:
OBRAS DA “MAR MORTO – EDITORA”

1. O CRIME QUASE PERFEITO – Vivendo Por Duas Vidas, Marco Polo


2. TEXTOS PARA DEPOIS do Amor e Outras Decepções, Marco Polo
3. MYHIRA e outros poemas de dor, Jessira Kissama
4. PRINCESA DESENCANTADA, Zoé Kifembe
5. AMOR À PRIMEIRA VISTA e mais uma semana para confirmar, Marco
Polo
6. EU TINHA QUE DIZER OBRIGADO, Manuela Andrea
7. RASCUNHOS DE QUEM NÃO QUIS ESCREVER, Isis Ramalho
8. BLÁ BLÁ BLÁ – Textos inesperados Vol. 1, Josias Currie
9. MARCAS DE TINTA VERSOS DA VIDA, Isabel de Lourane
10. CASTELOS PARA LÊ-LOS, Fernando da Silva
11. O DIÁLOGO COM A MINHA PRÓPRIA SOMBRA, Jeonário Anthony
12. NOSTALGIA – Antologia, Diversos autores
13. ENSAIO sobre a exclusão social de deficientes físicos, Dionísia Daniel
14. ECOS DE UMA TRAJECTÓRIA, Mateus Zua
15. OS QUE COMIAM IAM-SE EMBORA, Mero Panzito
16. AMOR PECADOR, Tchiza
17. PÉTALAS SEM PÉROLAS, Kulanda Kutima
18. PALAVRAS QUE FEREM, MATAM e outros contos, Zau Maiano
19. O CRIME QUASE PERFEITO – Passado em chamas, Marco Polo
20. A SOMBRA NEGRA DE UM REI, Jelson Angelino
21. MÁGOAS, Nzakimwena e Mwalafaia
22. A AMARGA INOCÊNCIA DE AMÁLIA, Júlia Bragança
23. DO AMOR AO AMOR, Isabel de Lourane
24. AMOR À PRIMEIRA VISTA e mais um ano para confirmar, Marco Polo
25. O AMANHÃ NÃO EXISTE, Mateus Pena
26. TEORIA DA SELECTIVIDADE, Faustino Fraco
27. NO CAMINHO DAS COISAS, Hélio Melodia Das Neves
28. EMENDAS, Hélio Melodia Das Neves
29. FALEI VERDADES E FECHARAM-SE AS PORTAS, Fernando da Silva
30. PASSADO SEM HISTÓRIA, Teríolo
31. O LIVRO QUE NUNCA FOI LIDO, Faustino Geraldo
32. NUNCA MAIS VOU FUMAR, Príncipe Nádio
33. O CÓDIGO DOS NIGGAS Vol. 2, Divua Antônio
34. ABRI-ME EM VERSOS, Luís Carlos Naval
35. OS MONSTROS TAMBÉM SENTEM, Luís Vidal
36. TEXTOS PARA DEPOIS da Morte e Outras Frustrações, Marco Polo
37. OS QUE COMIAM IAM-SE EMBORA VOL. 2, Mero Panzito
38. AS MORTES POSSÍVEIS. J. Currie

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