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MORTES
POSSÍVEIS
Edição: Mar Morto – Editora
Direcção e produção editorial: Marco Polo
Título: AS MORTES POSSÍVEIS
Autor: J. Currie
1ª edição
Revisão: Maura Feitio; Marco Polo
Projecto gráfico e diagramação: Marco Polo e J. Currie
Designer de capa: Marco Polo e J. Currie
ISBN: 978-989-9093-35-5
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Copyright © 2023
J. Currie | Mar Morto - Editora
Todos os direitos reservados.
Nenhuma parte deste livro pode ser reproduzida ou utilizada sob quaisquer meios existentes sem
autorização por escrito do autor ou da editora. Qualquer uso indevido deste conteúdo é passível de
responsabilização civil e criminal, segundo a Lei dos Direitos de Autor e Conexos.
À avó Emília Manuel Mutango,
pelas noites em que me rendo.
PREFÁCIO
“ANÚNCIO:
Nas cidades, nos bairros, em pleno dia ou, não raro, noite, quer
na rua ou na porta de suas casas, as pessoas eram sensibilizadas à
mudança. As casas do lado B estão todas desocupadas, diziam os
policiais. Nós sabemos, respondiam. E então?
Era em torno do meio dia quando Iruy passava pela baía com o
saco de couve-flor que Túlio esperava para o jantar, ele vindo da barraca
onde pinta quadros, quando, enfim, fora interpelado por um polícia.
A saudação foi deveras apressada, conforme as formalidades,
claro, mas evitando cruzar seus olhos o máximo que podiam. Um
porque queria logo chegar ao cerne da questão, ao motivo de ter parado,
estando ainda a preparar o terreno; o outro porque queria sair de sua
presença, Iruy.
— ... e para que lado vocês irão? — perguntou o agente,
trocando de assunto.
— Lembro-me de ter lido em algum lugar que esta decisão é
confidencial — responde Iruy e é o primeiro a dar o passo de ida, está
apressado.
— Permita-me dizer-lhe que tenho conhecimento da
fragilidade da questão. Mas eu não sou um cidadão comum, como talvez
já tenhas notado. — Apontou a arma pendurada em sua cintura. — A
pátria é quem acaba de perguntar, não eu.
— E o que a pátria quer comigo?
Iruy se afasta mais um passo. Como que em um jogo de poder,
o policial dá os dois passos de diferença e está mais perto de Iruy.
— E o que a pátria quer comigo? — quer saber Iruy.
Notou os maxilares do homem moer seus dentes, um ranger de
ira. Por segurança, ele olhou para o que havia ao redor da Baía. Nada de
mal poderá me acontecer, concluiu ele. Com os policiais aos montes
que cá estão... e há outras pessoas sendo interpeladas. Não há o que
temer.
— Olha... Iruy, sim? — pergunta o policial que já sabe a
resposta. — Há tempos que nós temos esperado por este momento.
Vocês, os armados em corretamente dispostos... no fundo tudo merda!
Vocês e os teus amiguinhos têm o lugar reservado no lado B!
— Seu filho da puta — Iruy deixou escapar entre os dentes
cerrados.
No mesmo instante, o polícia levou os cinco dedos na cara dele,
deixando em seus ouvidos um inconfundível som de interferência na
frequência.
Iruy respondeu com um soco nos maxilares que rangiam,
fazendo-lhe cuspir sangue.
Os outros policiais vinham correndo.
Porra, deve ser um crime!
Deu uma meia volta e saiu da calçada. Não sem escapar ao
atropelamento, com esses carros loucos pela cidade...
Olhou para trás e os polícias vinham. Entrou por um atalho,
saiu por uma antiga praça agora desolada, seguiu com o corredor das
bancadas e saiu na parte traseira de seu edifício.
Bateu a porta traseira (que nunca abrem). O guarda abriu em
seguida. Pediu-lhe água para o rosto suado e ardente. Este deu-lhe.
Baixou a cara junto à pia para passar a mão no rosto. Olhou-se no
espelho, rosto umedecido. Para além das gotas de água quase fresca,
sentiu Iruy, sobressaía também algumas lágrimas quentes, confundidas
com a água, mas sentidas pela diferença térmica. E não eram lágrimas
de tristeza, que se diga aqui para evitar possíveis erros de compreensão
de texto.
TRÊS
***
Não foi esta primeira vez que a natureza luta contra si mesma.
Sei de um tempo em que ficava sentado à porta de casa, na caça de
peculiaridades das coisas.
Uma minúscula vala de drenagem que descreve a divisão da rua
em dois. Tão minúscula vala que era fácil passar de pernas sobre. De lá,
num dado dia, saiu um molusco invertebrado da fonte fervilhante de
vidas frágeis. Ousou sair. Talvez quisesse pegar sol ou seguir o curso
natural das coisas. Não tardou para que se visse invadido por um
formigueiro que chegou uma formiga atrás da outra. Ele dobrava-se em
todas direções, lutava como se fosse morrer, gritava por mim. Eles
arrastaram-no até a entrada de seu buraco, prontos para se banquetear
de carne alheia.
Saímos da vala contra vontade. Nossas células estão minadas
com o grito inquietante por mais. Por mais e por tudo. Todos para tudo.
Tudo para todos?
***
Lista de tarefas urgentes:
Ame;
Beije;
Sinta o perigo;
Leia Julio Cortázar;
Conheça o mundo;
Dance na festa da vida;
Faça algo sem pensar duas vezes;
Leia Valter Hugo Mãe;
Saiba jogar ao jogo do mundo;
Faça algo sem pensar uma vez;
Fique bêbado, santo pai, a êxtase é divina;
Jante fora;
Abrace alguém;
Ouça Edith Piaf;
Banhe na chuva;
Ande pela cidade (à noite);
Leia Gerge Perec;
Sorria para a vida;
Pratique o bem horariamente;
Sorria para desconhecidos na rua;
Fale sem olhar nos olhos se quiser;
Dance na calçada;
Caia dentro de si;
Cante música sem saber a língua (obs: gritando);
Escreva seus pensamentos;
Leia os clássicos da literatura mundial e saiba os motivos de serem
clássicos;
Esteja aberto a possibilidades;
Leia "A Extraordinária Garota Chamada Estrela";
Tropece no ar;
Aceite que não sabes nada sobre o mundo;
Descubra que estás longe de saber;
Procure;
Invente palavras;
Seja leve;
Experimente coisas;
Leia quadrinhos;
Coma doces até que os dentes doam;
Beba café sem açúcar;
Mas beba com açúcar, se quiseres;
Vista-se do que lhe convier no dia;
Use tênis surrados;
Leia Italo Calvino;
Desconfie de tudo em que acreditas;
Questione;
Entenda Saramago;
Contrarie;
Perca um domingo no TikTok;
Faça alguém sorrir;
Leia romance adolescente;
Não deite lixo na rua;
Beije violentamente;
Escreva cartas;
Abrace alguém que amas;
Abrace alguém que não amas até três minutos;
Distribua as cartas para desconhecidos;
Ria até perder o ar e a barriga doer;
Abrace o vento;
Exista para o amor;
Morra pequenas mortes;
Sinta êxtase;
Chore;
Repita tudo de novo;
***
***
Quem vai falar por eles? Estas foram as primeiras palavras que
o Word recebeu. Chateia-me bastante esse ponteiro que não pára de
piscar e piscar, piscar e piscar. Talvez devesse parar, e paro. Que calor!
Abro a porta e descubro, bem na clara escuridão (perdoa-me o
oximoro) algumas moscas. Sigo uma delas com os olhos... e me canso
de ser eu mesmo porque cansa falar por todos o tempo todo, porém,
sem o retorno.
"Você acabou de perguntar e perguntar a cada um deles / Por que você
perguntou por que / Homem morre, mas seu orgulho não morre..."
E foi quando ela morreu. Que pena! Momento tão triste que
mesmo a palavra triste se perde na insuficiência do conceito, porque é
isso, as maiores lições são puxadas para o lado de cá apenas por meio de
coisas pequenas e tristes. Até se tornarem grandes... A última batida era
desprovida de força, talvez só fizesse pelo hábito, mas fez, e o seu
cérebro minúsculo e inexistente (cujo tamanho que o diga a visão
microscópica) se esmiuçou no reflexo de si. Como à milhas daqui o
reflexo de si pode ser o ante-si, talvez ele se tenha jogado em um
penhasco de distância que impossibilite a vida mosquiana e julgasse ter
jogado outra pessoa. Mas não.
"Lamentamos nas mãos da ignorância / Estamos tristes nas mãos de
pessoas ignorantes / Somos sempre passageiros, viemos assim,
seguimos assim / O mundo é sua pátria ou pátria?"
. , , . .
:" ". , ...
,
. , ; .
: ...
***
campo quântico,
tuas mãos criam
buracos negros
onde partículas
comunicam
desordenadas
norte sul
rosa-dos-ventos
e o alento
que dedo teu
espalha
norte sul
rosa-dos-ventos
e o tormento
que o tempo
falha
campo quântico
cria mãos tuas
buracos negros
onde partículas
comunicam no
mundo em que
povoas
onde o dedo e
o tempo se
espalham pelo
cosmo da lua
na cabeça tua
doida pelas forças
que o dedo espalha
no campo quântico
onde o tempo falha
campo quântico
cria mãos tuas
buracos negros
onde partículas
comunicam...
***
{....}