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Uma Mulher Misteriosa

(Damas de Lantern Street 02)

Amanda Quick
Sinopse

Sob as saias austeras de seu vestido, Beatrice Lockwood esconde uma


arma. Não pode ser de outra forma, porque Beatrice é uma acompanhante
com uma missão secreta - tão secreta como seu passado - e deve estar
preparada para lutar pela vida ou morte a qualquer momento.
No entanto, quando se dispõe a impedir um crime nos jardins de uma
mansão onde se está celebrando um baile, ela recebe ajuda inesperada de um
homem de voz hipnoticamente serena. Depois de entregar o seu cartão, o
estranho desaparece nas sombras, deixando-a intrigada.
Joshua Gage, que é responsável de investigações secretas para a Coroa,
também está intrigado. Ele tem um interesse especial nessa beleza ruiva,
suspeita de roubo e assassinato, e talvez também culpada de fraude pela venda
de seus serviços como médium...
Capítulo 1

O calcanhar de uma das suas botas altas e abotoadas escorregou em


contato com a trilha de sangue que fluiu por baixo da porta. Beatrice
Lockwood esteve a ponto de perder o equilíbrio. Conteve a respiração e
conseguiu agarrar a maçaneta da porta a tempo de ficar de pé.
Não precisava usar seus poderes. Sabia que o que iria encontrar do
outro lado da porta deixaria em sua consciência uma impressão indelével. No
entanto, o horror que se ia acumulando nela acendeu sua visão interior.
Abaixou a vista ao chão e viu a violenta energia daquelas pegadas. O botão
também tinha traços sombriamente iridescentes. As correntes paranormais
borbotavam com uma luz doentia que gelou seu sangue.
Queria sair correndo, gritando no meio da noite, mas não podia virar as
costas para o homem que lhe tinha oferecido sua amizade e que lhe havia
proporcionado uma carreira lucrativa e respeitável.
Tremendo, abriu a porta do gabinete do Dr. Roland Fleming. Alguém
tinha quase apagado a luz da lâmpada de gás do interior, mas ainda assim
conseguiu distinguir o homem que estava deitado e sangrando no chão.
Roland sempre gostou de andar na moda com trajes feitos sob medida,
ternos, gravatas e lenços atados com elegância. Seus cabelos grisalhos e
encaracolados moldados de acordo com as últimas tendências, com costeletas
e o bigode perfeitamente aparado. O título de doutor havia-o outorgado ele
mesmo, mas tinha explicado a Beatrice que, na realidade, era um homem do
mundo do espetáculo. Com essa personalidade carismática e a presença
imponente, assegurava sempre um bom atendimento em suas palestras sobre
fenômenos paranormais.
Mas naquela noite, tanto as finas dobras da camisa de linho branca,
como o casaco de lã azul escuro, estavam ensopados em sangue. Beatrice
correu até ele e abriu a camisa com as mãos trêmulas.
Não levou muito tempo para encontrar a profunda ferida no peito. O
sangue jorrava. Pela cor, supôs que era uma ferida mortal. Mesmo assim,
apertou as mãos firmemente sobre a pele rasgada.
— Roland — sussurrou. — Meu Deus! O que aconteceu?
Roland gemeu e abriu os olhos, olhos cinzentos, baços, assombrados
pelo choque. Mas quando ele a reconheceu, algo que poderia muito bem ser
pânico superou brevemente a onda de morte que se abatia sobre ele. Agarrou
o pulso de Beatrice com uma mão sangrenta.
— Beatrice — disse com uma voz enrouquecida pelo esforço. Ouviu
um terrível tremor vindo de seu peito. — Ele veio por você. Eu disse a ele
que não estava. Mas ele não acreditou em mim.
— Quem veio por mim?
— Não sei como se chama. É algum louco que se fixou em você por
algum motivo. Ainda está neste edifício e procura alguma pista que o levará a
você. Por Deus, fuja, fuja, pela sua vida!
— Não posso deixar você — ela sussurrou.
— Pois você tem que fazê-lo. É tarde demais para mim. Ele quer você!
— Por quê?
— Não sei, mas seja qual for a razão, não há dúvida que se trata de algo
terrível. Não me deixe morrer com esse peso na consciência. Já tenho muito
do que me arrepender. Vá embora. Vá, agora. Eu lhe imploro.
Não havia nada que ela pudesse fazer por ele, e ambos sabiam. Mas de
qualquer forma, hesitava.
— Você sabe muito bem que eu sei cuidar de mim mesma — ela disse.
Com uma mão levantou a saia para tocar a arma feminina que carregava na
liga amarrada na coxa. — Afinal, foi você quem me ensinou a usar isto.
— Receio que não será de grande ajuda contra o homem que me
deixou assim. Ele se move em alta velocidade e é completamente implacável.
Fuja!
Sim, sem dúvida ele estava certo quanto à utilidade da sua pequena
pistola. Quando lhe havia ensinado como usá-la, tinha deixado muito claro
que as armas pequenas não tinham nenhuma precisão de longo alcance. Elas
foram projetadas para distâncias curtas. De um lado para outro de uma mesa
de jogo ou no interior de um carro, ali era onde poderia ser mortal. Mas além
disso, poderia ser considerada pouco mais que um brinquedo.
— Roland...
Apertou mais forte seu pulso.
— Você foi como uma filha para mim, Beatrice. Meu último desejo é
tentar salvar a sua vida. Honra-me cumpri-lo. Saia daqui, agora. Use o abrigo.
Sua bolsa e a lanterna. Quando estiver longe, você nunca poderá voltar. Ele
vai te procurar. A partir de hoje, para sobreviver você tem que lembrar de
tudo que lhe ensinei sobre entrar no palco. A Regra Número Um é a mais
importante.
— Tornar-se alguém diferente. Sim, eu entendo.
— Não se esqueça — disse Roland. — É sua única esperança. Vai, vai,
então, por tudo que você mais ama! Desapareça e, faça o que fizer, permaneça
desaparecida. Este monstro não se vai render facilmente.
— Eu vou sentir sua falta, Roland. Eu te amo.
— Você trouxe luz para minha solitária e desperdiçada vida, querida.
Eu também te amo. E agora, vá.
Roland voltou a tossir. Mas desta vez o sangue encheu sua boca.
Beatrice percebeu que ele já não estava respirando. O coração de Fleming
tinha parado de bater. O imparável líquido vermelho da ferida tornou-se mais
lento, até converter-se em um gotejamento.
Ela ouviu passos na escada que estava no final da sala.
Arma na mão, levantou-se e correu para o guarda-roupa do outro
extremo do gabinete.
Durante o tempo em que havia trabalhado para ele, independentemente
de onde estabelecesse a Academia, Roland sempre tinha disposto de um
esconderijo. Ele tinha explicado a ela que havia duas razões para tomar
precauções. A primeira era que quando o negócio passava por momentos
flutuantes, acumulavam uma quantidade de dinheiro que poderia atrair os
vilões, sempre desejosos de apropriar-se do que não era deles.
Mas a outra razão, que segundo ele era a mais importante, era que pela
natureza de suas atividades, às vezes, ele se inteirava de segredos que os
colocava em perigo. As pessoas costumavam confiar nos praticantes do
paranormal, especialmente nas lucrativas consultas privadas nas quais os
clientes estavam procurando alguns conselhos. Os segredos sempre eram
perigosos.
Se preparou para o barulho do metal quando abriu a porta interior do
grande guarda-roupa, mas respirou com alívio quando viu que não tinha
qualquer som. Roland havia mantido lubrificadas as dobradiças.
Recolhendo suas saias manchada de sangue, entrou no guarda-roupa.
Uma vez dentro, fechou a porta e procurou na escuridão a alavanca que
acionava a abertura de painel oculto.
A porta interior deslizou para o lado com um som abafado. Um ar
úmido e viciado da noite veio a partir da antiga passagem de pedra. A luz
proveniente das portas exteriores era apenas suficiente para revelar a pequena
lanterna oculta, bem como o pacote de fósforos e os dois pacotes de lona que
estavam no chão. Voltou a colocar a pistola na liga e pegou a lanterna e os
fósforos.
Colocou sua bolsa sobre o ombro e olhou para a massa escura da bolsa
de Roland. Era muito pesada para carregar junto com a sua, mas no interior,
ela tinha dinheiro guardado. Beatrice ia precisar dele para sobreviver, até que
encontrasse uma maneira de reinventar-se.
A toda a pressa desatou a segunda bolsa e vasculhou dentro dela.
Naquela escuridão, tinha que tatear. Os dedos tropeçaram com mudanças de
roupa e com um caderno grosso antes de encontrar um envelope. Assumindo
que o dinheiro para emergências estava dentro ela o abriu, mas resultou que
estava cheio de fotografias. Colocou-as dentro novamente e continuou
procurando. Desta vez ela encontrou um maço de cartas atadas com um
barbante.
Em um estado de frenesi, voltou a se debruçar sobre a protuberância.
Encontrou uma carteira de couro cheia de dinheiro. Pegou e jogou dentro de
sua própria bolsa.
Ela estava prestes a acender a lanterna e entrar na profunda escuridão
do túnel, quando ouviu que o assassino voltou para o gabinete de Roland.
Incapaz de resistir, queria dar uma olhada pela fresta nas portas do grande
guarda-roupa.
Ela podia ver muito pouco do homem que estava de pé ao lado do
corpo de Fleming, apenas uma parte das pesadas botas de couro e a borda de
um casaco preto e longo.
— Você mentiu. — A voz tinha um marcado acento russo. — Mas
você não vai me derrotar por morrer, velho miserável. Eu encontrei as
perucas. Encontrei vestidos que ela usa no palco. Eu vou encontrá-la. Aqui
está algo que vai me dizer onde está. O Homem Osso nunca falha.
A figura de casaco preto cruzou a habitação e saiu do campo de visão
de Beatrice. Ouviu que abria as gavetas e sabia que era só uma questão de
segundos, que o homem levaria muito pouco tempo para abrir o guarda-
roupa.
— Ah, sim, agora eu vejo! — Sussurrou o intruso. — Você está aqui,
verdade, cadela? Você pisou no sangue dele, estúpida! Vejo suas pegadas. Saia
agora mesmo daí, e não vou te machucar. Desafia-me, pelo contrário, e eu te
garanto que você vai pagar caro.
As pegadas! É claro. Não tinha pensado nisso.
Mal podia respirar. Estava tremendo tanto que teve que se esforçar para
fechar e bloquear o pesado painel de madeira que formava o fundo do guarda-
roupa. Quando Roland o tinha instalado, tinha garantido que tanto o fecho
quanto o painel eram resistentes. Mais cedo ou mais tarde, o homem russo
conseguiria passar através da porta interior, mas com sorte ela ia ter tempo
suficiente para fugir.
Um punho atingiu o fundo do guarda-roupa.
— Você não pode se esconder de mim. Eu nunca falho.
Ela acendeu a lanterna e a luz ofuscante iluminou a passagem de pedra
com sombras diabólicas.
Acomodou a bolsa por cima ombro e foi em direção à escuridão.
Estava segura de uma coisa: nunca ia esquecer a terrível energia que se
desprendia das pegadas do Homem Osso.
Capítulo 2

Alguns meses mais tarde...


— Está muito calor aqui, não? — Comentou Maud Ashton, se
abanando vigorosamente com uma mão, enquanto que com a outra levava um
copo de limonada aos lábios. — É um milagre que essas mulheres não tenham
caído mortas sobre a pista de baile.
— Sim está calor — disse Beatrice. — Mas a pista de dança tem portas
francesas que se abrem para o jardim. Os que estão dançando dispõem da
vantagem de receber o ar fresco da noite. Suponho que será por isso que
ainda não desmaiaram devido ao calor.
Ela e Maud, ambas damas de companhia, se mantinham sentadas sobre
uma banqueta numa área sossegada, bem ao lado do salão de baile. Maud não
conseguia ocultar a amargura em sua voz, e Beatrice se mostrava
compreensiva. Havia passado somente um curto tempo na companhia dessa
mulher, mas isso havia sido suficiente para ouvir uma grande parte da triste
história de Maud. Realmente era uma história triste, mas não era excepcional
entre as que não tinham outro remédio a não ser trabalhar como damas de
companhia.
Maud tinha deixado bem claro que o que havia sofrido era uma
vicissitude muito pior que a morte: uma catastrófica perda de status social,
devido à derrocada de seu marido. Depois de sua crise financeira, o senhor
Ashton havia viajado à América para fazer fortuna no Oeste Selvagem. Desde
então, não soube mais nada dele. Maud, uma mulher sozinha e de meia-idade,
ficou com as dívidas de seu marido. Não houve outra opção a não ser
converter-se em uma acompanhante profissional.
O mundo de Maud havia sido muito diferente. As bodas com um rico
cavalheiro pertencente à classe alta, haviam lhe outorgado a entrada em um
ambiente elevado e se vestia na moda, que agora se via obrigada a contemplar
à distância. Ela também havia desfilado em elegantes vestidos e havia bebido
bom champanhe, havia dançado valsas até o amanhecer à luz de velas... Agora
se via forçada a contentar-se com uma posição na periferia da sociedade. As
damas de companhia eram trabalhadoras que zelavam pela honra de suas
empregadoras, recentemente viúvas, ou solteiras, em todos os lugares: nos
saraus, em piqueniques, em festas campestres, em conferências, em teatro...
No entanto, era como uma governanta, era completamente invisível para
aqueles que circulavam ao seu redor.
O mundo podia ser um lugar muito duro para uma mulher
empobrecida que enfrentava tudo sozinha. Quando se tratava de encontrar
um trabalho respeitável, as opções eram muito escassas. Maud tinha todo o
direito de mostrar-se ressentida por sua sorte, pensou Beatrice. Porém, por
outro lado, também resultava evidente que ninguém havia se empenhado em
encontrar as razões desconhecidas que a levaram a mudar de vida. E não havia
indícios de que alguém assassinou um homem inocente no início de sua
caçada.
— Este baile parece eterno — reclamou Maud. Comprovou a hora no
relógio que carregava junto a uma pequena bolsa de sais aromáticos de sua
senhora —. Oh, meu Deus, é só meia noite ainda! É mais provável que
fiquemos ainda por mais três horas. E provavelmente iremos a outro baile, até
as cinco. A verdade é que tenho vontade de me atirar por uma ponte. Acho
que vou pegar outra taça de genebra1, que é muito melhor que esta horrível
limonada.
Buscou no interior de sua bolsa e extraiu um frasco. Começou a
derramar a genebra em sua taça de limonada quando esta escapou de entre os

1
Bebida destilada de cereais, contendo zimbro em seus ingredientes.
seus dedos. O conteúdo salpicou a saia de cor cinza apagado do vestido de
Beatrice.
— Sinto muito, carinho! — Disse Maud — Sinto muito mesmo!
Beatrice se levantou rapidamente e começou a sacudir a pesada saia de
seu vestido.
— Não há problema. É um vestido muito velho.
Possuía vestidos mais novos, mais caros e muito mais na moda, os mais
velhos de seu guarda-roupa eram para os compromissos que surgiam com a
Agência Flint e Marsh.
— Que torpe sou! — Se lamentou Maud, que com um lenço tentava
secar o vestido molhado.
O desastre se desencadeou em um abrir e fechar de olhos. O
formigamento perturbador no pescoço de Beatrice foi a única advertência que
algo não ia bem.
Se virou rapidamente para olhar a pista de baile. Daphne Pennington
havia desaparecido.
Em circunstâncias normais, a situação não teria sido tão alarmante.
Certamente, se a jovem tivesse escapulido até aos jardins para alguns beijos
furtivos, isso não seria nenhuma novidade. Porém nessa noite as
circunstâncias pareciam distanciar-se progressivamente do habitual. O que
tornava a situação muito mais estranha era que o homem com a bengala e a
cicatriz na cara também havia desaparecido.
Havia tomado consciência disso uns minutos antes, quando se havia
sentido observada. Imediatamente havia buscado pela sala para comprovar
quem poderia estar observando-a. Ninguém nunca olhava duas vezes para uma
dama de companhia.
Havia cruzado o olhar com o homem da cicatriz que se apoiava em
uma bengala de ébano e aço. O contato havia sido crispante, porque havia
sentido uma profunda e estranha sensação de reconhecimento. Por outro
lado, estava segura de não haver conhecido ele em sua vida.
Não era o tipo de homem que uma mulher pudesse esquecer. O que
chamava a atenção não era o talho profundo que havia visto no lado esquerdo
daquele rosto orgulhoso e bem desenhado, nem pelo fato de que ele utilizava
uma bengala. Se tratava mais da sensação de força que emanava dele. Tinha a
certeza de que naquele estranho havia um núcleo duro, de que naqueles olhos
se escondiam promessas implacáveis. Facilmente poderia imaginá-lo com uma
orgulhosa espada no lugar da bengala.
No espaço de alguns segundos, durante os quais foi incapaz de respirar,
ela havia visto os olhos fixos e atentos. Logo, como se o que havia visto fosse
o bastante, pareceu perder o interesse. O estranho havia dado meia volta e
desaparecido por um corredor deserto. Estava claro, pelo andar rígido da
perna esquerda, que a bengala não era nenhuma peça de vestuário. Lhe era
imprescindível.
Beatrice havia recuperado o fôlego, mas seguia sentindo-se
transtornada. Sabia, por intuição, que não seria a última vez que veria o
homem da bengala. Compreender isso era o mais perturbador, mas não tanto
como a certeza de que alguma parte dela, desejava com todas as forças, voltar a
encontrá-lo. Pensou, para tranquilizar-se, que era porque necessitava saber que
elemento de seu disfarce de dama de companhia havia chamado a atenção do
estranho. O objetivo de Beatrice, depois de tudo, era seguir sendo invisível.
No entanto, nesse momento tinha que permanecer concentrada em sua
missão. Daphne e o homem da cicatriz na cara não eram os únicos que agora
estavam ausentes da sala de baile. O par de Daphne, Richard Euston, um
jovem bonito que havia sido apresentado por um amigo da família
Pennington, tão pouco estava na sala.
A situação se deteriorava rapidamente.
— Perdão — disse Beatrice —, me parece que senhorita Pennington se
retirou a alguma sala. Talvez tenha ocorrido algo com seu vestido, ou talvez
tenha um furo nos sapatos de baile, não sei... Tenho que ir comprovar se
necessita da minha ajuda.
— Mas o seu vestido... — argumentou Maud com ansiedade —. Ficará
arruinado!
Beatrice ignorou-a. Pegou sua bolsa e cruzou a sala rapidamente.
Um vestido estropiado seria um desastre para a maioria das damas de
companhia com um guarda-roupas limitado, porém para Beatrice essa noite,
representava o menor de seus problemas. Havia chegado o momento de
ganhar o excelente salário que a Agência Flint e Marsh lhe pagava. Rogou aos
céus que não fosse demasiado tarde.
Daphne e Euston estavam dançando próximos as portas de vidro
quando os havia visto pela última vez. Era bem provável que houvessem se
ausentado da sala tomando esse caminho.
A avó de Daphne, lady Pennington, estava no extremo oposto do local
conversando com outras três senhoras. Não poderia de nenhuma maneira ir
até lá para explicar-lhe o que se havia passado, pois perderia um tempo
precioso para passar entre a multidão.
Beatrice havia estudado todas as saídas do salão de baile uma hora
antes, quando havia chegado com lady Pennington e Daphne. Naquele
momento havia chegado à conclusão de que se alguém tivesse a intenção de
comprometer a Daphne, como sua avó temia, o vilão optaria com toda
probabilidade por atraí-la para os jardins que a noite escondia.
No final do corredor pouco iluminado, Beatrice abriu a porta em que
havia reparado anteriormente. Saiu na noite de verão e fez uma breve pausa
para orientar-se.
Um alto muro rodeava os grandes jardins. Focos de luzes coloridas
iluminavam a área ao redor do terraço, mas ela se encontrava em uma parte
escura, perto do galpão do jardineiro. A porta que se abria sobre o estreito
caminho mais além dos jardins, não era muito longe. Qualquer um que
quisesse levar uma jovem, sem dúvida, dispunha de uma carruagem fechada
esperando. O terraço do salão de baile ficava a certa distância de onde se
encontrava. Se se movesse depressa, poderia chegar à porta antes de que
Daphne e seu raptor a alcançassem.
Se andasse depressa sim, mas e, se estivesse correta em suas conclusões.
Demasiados «ses». Era muito provável que estivesse equivocada. Talvez
Daphne estivesse desfrutando naquele momento de um ligeiro flerte com o
muito atrativo senhor Euston, e as intenções deste não fossem mais do que
isso.
Mas isso não explicava o desaparecimento do estranho com a cicatriz.
Intuitivamente sabia que não era nenhuma casualidade que esse tipo também
se houvesse ausentado.
Deixou a bolsa de lado, sobre os degraus, levantou a saia do vestido e
pegou uma pequena pistola presa pela liga bem acima do joelho. Se apressou
na direção da porta por um corredor ladeado de altas sebes. O vestido cinza
ajudava a camuflar-se entre as sombras.
Quando estava perto da porta ouviu o som abafado de pisadas de um
cavalo no caminho do outro lado do muro.
Chegou no final do corredor marcado pelos abetos2 e se deteve. A luz
da lua podia ver que a porta estava parcialmente aberta. Tal como esperava,
uma pequena carruagem aguardava. Dentro do veículo havia um segundo
homem.
Nesse momento ouviu o som brando de rápidas pisadas que se dirigiam
até ela através do jardim. Quem havia capturado a Daphne iria levá-la em
poucos segundos. Ela não podia enfrentar dois cafajestes ao memo tempo.

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Árvores coníferas da família das pináceas, de folhagem sempre verde.
Lhe ocorreu que se conseguisse chegar a tempo de fechar a porta, o homem
da carruagem não teria como auxiliar seu capanga.
Correu até a porta e conseguiu fechá-la antes de que o cocheiro se
desse conta do que ocorria. Fechou o trinco e se voltou bem quando Richard
Euston surgia de entre as sombras.
A princípio Euston não a viu porque ia concentrado em manter
Daphne presa, que se debatia com força. Levava as mãos atadas a frente e
estava amordaçada.
Beatrice apontou a Euston com sua pequena pistola.
— Solte a senhorita Pennington ou disparo. Nessa distância não
falharei.
— Mas que demônios...? — Exclamou Euston ao mesmo tempo em
que se detinha bruscamente. O assombro se transformou em seguida em fúria
—. Você não é mais que uma dama de companhia! O que crê que está
fazendo? Abra imediatamente esta porta!
— Solte ela — repetiu Beatrice.
— De maneira nenhuma! — Respondeu Euston —. Vale uma fortuna.
Abaixe essa ridícula pistola. Nós dois sabemos que não apertará o gatilho.
Você é uma dama de companhia, não uma escolta!
— Estou falando muito sério — disse Beatrice, e empunhou a pistola.
Parecia surpreendido de que ela tivesse verdadeiramente a intenção de
disparar-lhe, entretanto, se recuperou e empurrou Daphne para pô-la diante
dele, como um escudo.
Uma sombra emergiu da escuridão por trás de Euston, que não viu a
mão enluvada de negro que o pegou pelo pescoço e apertou.
Incapaz de respirar, e muito menos de falar, soltou Daphne e lutou por
liberar-se. Porém, em poucos segundos deixou de resistir. Inconsciente,
derrubou-a e caiu estendido no chão.
O estalido de um chicote se ouviu do outro lado do alto muro. Os
cascos dos cavalos e as rodas ressonaram sobre as pedras. O veículo saiu a
toda pressa, pois o cocheiro com toda probabilidade havia compreendido que
algo havia saído muito mal no rapto planejado.
Daphne correu para o lado de Beatrice. Ambas observaram o homem
com a bengala de ébano e aço sair à luz da lua. Beatrice mantinha a arma
apontada para ele.
— É algo habitual que as damas de companhia andem por aí armadas?
— Perguntou.
A voz era firme e surpreendentemente calma, como se estivesse muito
acostumado que apontassem uma pistola para ele. E como se considerasse
quem a empunhava com uma interessante curiosidade.
— Quem é você? — Perguntou Beatrice —. Se o que pretende é ajudar
Euston em suas intenções, melhor será que pense bem.
— Asseguro que não tenho nenhuma intenção de raptar a senhorita
Pennington. Quero falar é com você.
— Comigo? — Estranhou, não podia fazer mais que olhar para ele,
enquanto uma corrente parecida ao pânico lhe invadia o corpo.
— Permita-me que me apresente — continuou ele, sem abandonar o
tom sereno —. Joshua Gage, para servi-la. Temos amigos em comum em
Lantern Street.
Quase imediatamente, Beatrice sentiu um grande alívio. Não estava se
referindo a seus dias com a Academia Fleming, mas sim de Lantern Street. Se
esforçou em concentrar-se, tentando recordar se havia conhecido alguém
chamado Gage no percurso de seu trabalho para Flint e Marsh. Sem resultado.
— Quem você conhece em Lantern Street? — Perguntou com suspeita.
— Às suas patroas, a senhora Flint e a senhora Marsh.
— Por desgraça, não temos nenhuma das duas aqui para fazer as
apresentações — apontou ela.
— Talvez isso sirva. — Introduziu a mão no bolso interior do casaco e
pegou um cartão —. Compreendo que não pode distinguir à luz da lua, porém
quando voltar à sala de baile poderá ler meu cartão. E se de manhã o levar a
Lantern Street, a senhora Flint e a senhora Marsh reconhecerãao o selo. Diga-
lhes que o Mensageiro do senhor Smith envia saudações.
— Quem é o senhor Smith?
— Meu antigo patrão.
Sentiu um estranho sussurro em seu interior, que lhe despertava os
sentidos. De pronto teve a inquietante premonição de que aceitar esse cartão
iria mudar sua vida para sempre, e que seria de uma maneira que não podia
nem imaginar. Não havia volta. Ridículo, pensou.
Deu uns passos cautelosos pela grama molhada e pegou o cartão que
ele estendia. Por um instante ambos tocaram o cartão branco. Um calafrio lhe
estalou na nuca como uma faísca elétrica. Pensou que estava imaginando
coisas, mas não podia evitar ter uma certeza intuitiva de que seu mundo
acabava de virar do avesso. Deveria ficar preocupada, talvez assustada. Em
lugar disso se sentia mais desperta, quase poderia dizer que estava excitada.
Uma idiota excitada, pensou. Depois de tudo, não tinha dúvidas em sua
mente de que o Mensageiro do senhor Smith era um homem muito perigoso.
Olhou o cartão. Havia um nome, e presumivelmente teria que ser do
misterioso senhor Smith, mas era impossível decifrar ao luar. Com as mãos
desprovidas de luvas, podia sentir o relevo de um selo estampado. Hesitou,
mas finalmente introduziu o cartão no bolso do vestido.
— O amanhã ainda está longe e há decisões que tenho que tomar nesta
mesma noite — disse, tentando parecer autoritária.
Notava que o equilíbrio do poder se inclinava tanto para ela como para
o senhor Gage. E isso não convinha em absoluto. Um passo em falso e ela
sabia que ele tomaria o controle total da situação, se é que já não o havia
tomado. Porém ela estava a cargo desse caso, e Daphne era sua
responsabilidade. Tinha que permanecer no comando.
— Totalmente certo, mas com certeza as explicações detalhadas nos
levarão a gastar um tempo que não temos. — Disse Joshua —. Tem que
devolver a senhorita Pennington à sala de baile antes de que comecem os
murmúrios.
Tinha razão. Daphne era sua principal prioridade. O mistério do senhor
Gage deveria esperar. Tinha que tomar uma decisão, e tinha que fazê-la
imediatamente.
— Suponho que conhecer as proprietárias de Flint e Marsh possa servir
como referência por esta noite — disse.
— Agradeço. — Joshua parecia divertido.
Desarmou a pequena pistola e se virou para subir dissimuladamente as
anáguas. Devolveu a arma à sua posição, abaixou a liga e acomodou as saias
do vestido.
E quando levantou a vista percebeu que Daphne a olhava, fascinada.
Joshua também a olhava, com as mãos aferradas no punho da bengala. A
expressão de sua cara era difícil de interpretar, porém Beatrice chegou à
estranha conclusão de que a ele, parecia muito encantador que andasse
armada.
À maioria dos homens isso pareceria chocante, pensou. De fato, teriam
considerado escandaloso.
Se concentrou em tirar a mordaça de Daphne e em desatar-lhe as mãos.
— Senhorita Lockwood! — Chiou Daphne quando pode falar —. Não
sei como agradecer-lhe! — Se voltou para Joshua Gage —. E a você também,
senhor! Nunca em minha vida me senti tão aterrorizada! E pensar que minha
avó tinha razão em tudo o que me advertiu! Que alguém iria tentar raptar-me!
Nunca pensei que esse alguém poderia ser o senhor Euston. Parecia um
cavalheiro tão correto...
— Bem, pois esse assunto esta concluído — disse Beatrice com
simpatia —. Você se sente tonta?
— Não, por Deus! Não vou desmaiar agora! — O sorriso de Daphne
era temeroso, porém decidido —. Não ousaria sucumbir a tal debilidade
depois de vê-la defender-me com uma arma. Sua atitude é uma inspiração para
mim, senhorita Lockwood!
— Agradeço suas palavras, mas temo que o senhor Gage tem razão —
repôs Beatrice —. Temos que voltar imediatamente ao salão de baile se não
quisermos ser motivo de falatórios. A reputação de uma jovem senhorita é tão
fácil de manchar!
— Tenho o vestido em bom estado, porém temo que minhas sapatilhas
de baile estejam bem estragadas — disse Daphne —. Estão molhadas e têm
abundantes manchas de grama. Todo mundo saberá que acabo de passar um
bom tempo nos jardins.
— Precisamente por isso as damas de companhia que cuidam das
jovens senhoritas nos bailes, levam umas sapatilhas de reserva — disse
Beatrice —. Tenho-as aqui, no bolso. Vamos, devemos nos apressar.
Daphne começou a andar e logo se deteve para olhar abaixo, para a
figura inconsciente de Richard Euston.
— E com ele, o que vão fazer?
Joshua se moveu ligeiramente entre as sombras.
— Não se preocupe com isso, senhorita Pennington. Eu me encarrego.
— Sobre tudo, tem que procurar que não o detenham — disse Daphne
—. Do contrário se montará um grande escândalo. Meus pais me enviariam
ao campo e me veria obrigada a casar-me com algum viúvo gordo e bastante
velho para ser meu avô. E isso sim, que seria uma sorte pior que a morte.
— Euston não irá à polícia — disse Joshua —. Desaparecerá.
— Como vai ser possível semelhante coisa? — Preguntou Daphne —.
Anda pela sociedade.
Joshua olhou a Beatrice.
— Não crê que tem que acompanhar a senhorita Pennington o quanto
antes?
Beatrice pensou que não se importava que Euston desaparecesse para
sempre, mas o fato de que Joshua se mostrara tão confiante em sua
capacidade para conseguir, lhe parecia algo mais inquietante. Sem dúvida,
nesse momento tinha outros problemas, e salvar a reputação de Daphne
Pennington era a prioridade.
— Você tem toda a razão, senhor Gage — disse —. Vamos, Daphne.
E se apressou a caminhar até a porta lateral da mansão.
— Até logo, senhorita Lockwood — ouviu o que dizia Joshua Gage
por trás, em um tom muito tranquilo.
Não pôde discernir se essas palavras aparentavam uma promessa ou
uma ameaça.
*****
Pouco depois, se encontrava em um lugar da sala com lady Pennington,
uma mulher pequena e elegante de cabelos grisalhos. Ambas contemplavam a
dança de Daphne na pista de baile, acompanhada por um jovem cavalheiro.
Estava radiante com suas novas sapatilhas de baile e com os olhos brilhantes
pelo mistério e a emoção.
— Olhem-na — disse lady Pennington com orgulho —. Ninguém diria
que há menos de vinte minutos sofreu uma tentativa de rapto. Faltou muito
pouco para que sua reputação ficasse arruinada por completo.
— Sua neta é uma mulher muito valente — disse Beatrice —. Não são
muitas as mulheres que reagem tão bem quando próximas a uma tragédia e
que conseguem voltar à pista de baile como se nada houvesse ocorrido.
— Isso é algo próprio do meu lado da família — comentou lady
Pennington com um ar de grande satisfação.
— Eu acredito que sim, senhora — replicou Beatrice sorrindo.
Lady Pennington olhava através de um monóculo com pega de ouro.
— Esta noite salvou a minha neta, senhorita Lockwood. Sempre estarei
em dívida com você. Suas patroas em Lantern Street me asseguraram que seus
serviços são bem pagos, porém quero que saiba que amanhã lhe enviarei um
pequeno presente pessoal. Confio em que aceite, como prova de minha
gratidão.
— Agradeço, mas isso não é necessário.
— Insisto. E não quero que se fale mais sobre este assunto.
— Grande parte do mérito é seu, senhora — contestou Beatrice —. Se
não houvesse contatado com Flint e Marsh quando teve suas suspeitas, tudo
se haveria concluído de uma maneira muito diferente.
— Não foi mais que um pressentimento que tive faz alguns dias —
assegurou lady Pennington —. Não era nada que pudesse afirmar
categoricamente, você me entende?
— Creio que é isso que chamam de intuição feminina, senhora.
— Chamem como quiser, de algum modo eu sabia que Euston não era
o que parecia, por muito que tenha logrado ocultar sua autêntica natureza e,
também, o estado de suas finanças. Os pais de Daphne, ao contrário, caíram
na armadilha. Minha neta é uma grande herdeira. Se Euston houvesse tido
êxito em comprometê-la, o escândalo haveria sido enorme.
— Mas é a senhora quem controla o dinheiro na família — disse
Beatrice —. Pelo pouco que pude comprovar nos últimos dias, não creio que
a senhora houvesse insistido em que Daphne se casasse com Richard Euston,
por muito que ele triunfasse em seu plano.
— Não, claro que não iria insistir — respondeu lady Pennington —.
Estava claro que o único que perseguia Euston, era o dinheiro. Eu me casei
em circunstâncias similares, e lhe asseguro que nunca submeteria a minha neta
a uma experiência tão endiabrada. Somente tenho que estar agradecida ao meu
marido porque teve a gentileza de se matar num acidente em uma corrida, faz
alguns anos. De qualquer modo, a reputação de Daphne seria arruinada se
Euston tivesse conseguido fugir com ela esta noite. Se isso ocorresse, seria
obrigada a deixar de lado a sociedade.
— Ela parecia muito alarmada com a possibilidade de lhe enviaram ao
campo. Estava preocupada com a perspectiva de ter que casar-se com alguém
a quem havia descrito como um viúvo com excesso de peso e tão velho que
poderia ser seu avô.
— Esse é lord Bradley — disse lady Pennington contendo uma risada
—. Sim, fiz tudo que estava ao meu alcance para aterrorizá-la com essa
ameaça, num esforço para que tivesse cuidado aqui na cidade. É uma garota
com muita energia.
— Obviamente, também se parece à senhora nesse aspecto.
— Sim. — Lady Pennington havia deixado de sorrir, e sua boca se
torcia em uma careta —. Porém não quero ver sua vida arruinada por esse
espírito tão energético. Está segura de que Euston irá deixar de ser um
problema?
Beatrice retirou o cartão de visita do bolso e voltou a examiná-lo. O
único nome que constava era somente o do senhor Smith. O selo gravado era
uma imagem elegante de um leão heráldico3.
Pensou na certeza de que lhe havia transmitido a voz de Joshua Gage
quando lhe havia assegurado que Euston iria desaparecer.
— Algo me diz que Richard Euston não irá incomodar mais a senhora,
ou sua família, nunca mais.

3
A Heráldica é a ciência referente à simbologia dos brasões de famílias nobres.
Capítulo 3

Joshua apertou os dentes ao sentir o estalido de dor em sua perna


esquerda e içou o desmaiado Euston até o cabriolé4.
Henry, com a cara na sombra do chapéu e a gola levantada da sua capa,
olhava para baixo observando tudo.
— Tem certeza que não necessita ajuda, senhor? — perguntou.
— Onde estavas quando tive que arrastar este filho de cão para fora do
jardim e todo o caminho há alguns minutos? — Interrogou Joshua.
— Não tinha ideia de que iríamos ter que fazer cargo de um corpo esta
noite, senhor. Como nos velhos tempos, verdade?
— Não está morto. De momento, não. E não, não é como nos velhos
tempos.
— Como queira, senhor. Para onde o levaremos?
— A um lugar tranquilo próximo às docas, onde ele e eu poderemos
manter uma conversa privada — disse Joshua.
— E precisaremos dar um banho nesse tipo de madrugada depois de
falar com ele?
— Isso irá depender das respostas que me ofereça.
Joshua soltou sua carga sobre um assento e se deixou cair com cuidado
sobre o assento a frente. Outra pontada de dor se estendeu por sua perna
quando tentava agarrar a maçaneta para fechar a porta.
— Maldita perna — se queixou num murmúrio.

4
Carruagem pequena, leve e rápida, de duas rodas, capota móvel, e movida por apenas um cavalo.
Voltou a perder a concentração. Ele inalou lentamente e relembrou
seus anos de treinamento para tentar ignorar essa dor lancinante. Quando
recuperou o controle, agarrou a maçaneta da porta e a fechou.
Euston grunhiu, porém não abriu os olhos.
Joshua empunhou a bengala e a utilizou para dar um par de golpes no
teto. O veículo avançou.
Se perguntou se necessitaria levar máscara, e concluiu que não seria
necessário. As luzes interiores do carro estavam apagadas e as cortinas,
corridas. Somente se percebia o exterior por uma pequena fenda na cortina de
uma janela. A pouca luz que entrava no coche iluminaria a cara de Euston,
não a sua. Há muito tempo que havia aprendido a permanecer nas sombras.
Se apoiou no encosto traseiro e considerou até que ponto todos seus
planos tão cuidadosamente desenhados se haviam visto superados pelos
acontecimentos, e sobre tudo pelas ações imprevisíveis da senhorita Beatrice
Lockwood.
Essa noite não havia saído com a intenção de assistir a uma tentativa de
rapto. Beatrice havia sido sua presa desde o princípio. Mas os assuntos haviam
tomado um rumo inesperado.
Ponderou o que havia aprendido sobre ela no breve encontro. Somente
havia falado com Beatrice uns momentos no jardim, porém sempre se
considerou brilhante na hora de avaliar rapidamente o caráter de uma dama.
No passado, sua vida havia dependido um pouco dessa habilidade. Mas sua
intuição não era infalível, é claro. A perna ruim e a cicatriz eram evidências
dolorosas de que quando o fez de maneira espectacular. No havia meios
termos para o Mensageiro, certamente.
Estava seguro de que obteve pelo menos uma conclusão sobre Beatrice
Lockwood: iria ser um problema muito mais complicado do que ele havia
previsto.
Massajou a perna com ar ausente enquanto pensava nela. A impressão
inicial que lhe havia produzido poderia resumir-se em um nome, pensou:
Titania. Como a rainha das fadas do mito e da lenda do Sonho de Uma Noite de
Verão de Shakespeare, Beatrice era uma força a ter muito em conta.
Os olhos azuis como um lago, os traços delicados e o ar de frágil
inocência não o haviam enganado nem por um momento. Tão pouco o havia
feito esse vestido passado de moda. Há muito tempo foi treinado para olhar
por debaixo das capas de disfarces. Beatrice era uma excelente atriz, e lhe
reconhecia todos os méritos nesse aspecto, porém não havia conseguido
enganá-lo.
O que havia conseguido foi surpreendê-lo. Não estava seguro de como
se sentia por este feito em particular. Certamente, não era um bom assunto,
mas de algum modo sentia em seu interior que algo se movia, algo que havia
permanecido congelado em seu interior durante um ano. A antecipação. Tinha
vontade de encontrar-se de novo com Beatrice Lockwood.
Mas primeiro teria que acabar com o assunto que havia surgido de uma
forma tão inexplicável nessa noite.
Capítulo 4

Pouco depois das duas e meia da madrugada a carruagem dos


Pennington se detinha frente a uma pequena residência em Lantern Street.
Uma única luz brilhava no alto da escada, junto à porta de entrada. O lacaio
ajudou Beatrice a descer da carruagem.
— Está segura de que quer que a deixemos aqui? — Perguntou Lady
Pennington, olhando a porta do escritório através do monóculo —. A
Agência Flint e Marsh está fechada. Não há luz nas janelas.
— A senhora Flint e a senhora Marsh vivem em cima dos escritórios
— disse Beatrice —. Vou despertá-las.
— Tão tarde? — preguntou Daphne.
— Asseguro-lhe que elas têm grande interesse em conhecer o que
ocorreu nesta noite — respondeu Beatrice.
— Estupendo, então — disse lady Pennington.
— Boa noite, senhorita Lockwood — falou Daphne —. E obrigada
outra vez por salvar-me do senhor Euston.
Beatrice sorriu.
— Agradeça à sua avó. Foi ela quem suspeitou de que Euston não era
de confiança.
— Sim, eu sei — disse Daphne —. Uma coisa mais, antes de você ir.
Crê que talvez poderia ensinar-me a disparar uma pistola tão pequena como
essa que leva contigo? Gostaria muito de ter uma arma!
— Sobre o que está falando? — Perguntou lady Pennington com
dureza —. O que é isso sobre uma pistola?
— É uma longa história — respondeu Beatrice —. Vou deixar que a
senhorita Daphne dê os detalhes.
Subiu as escadas até à porta da Agência Flint e Marsh e puxou a
aldrava. Teve que deixá-la cair algumas vezes antes que uma luz se acendesse
em algum lugar dentro da casa. Se ouviram passos no vestíbulo.
A senhora Beale, a governanta, uma mulher de meia-idade, abriu a
porta. Ia vestida com uma bata de chita, sapatilhas e gorro de dormir de
rendas. Não parecia muito contente.
— São três da manhã, senhorita Lockwood. Que faz aqui a essas horas?
— Sabe muito bem que não despertaria a senhora Flint e a senhora
Marsh a menos que se tratasse de algo importante, senhora Beale.
— Sim — disse a senhora Beale —, suponho que não o faria. Entre,
então. Espero que ninguém tenha morrido nesta ocasião.
— Não perdi nenhum cliente, se é isso que quer dizer.
— Viu, eu sabia! Alguém foi morto.
Beatrice ignorou esse comentário. Se virou para fazer um pequeno
gesto ao coche para indicar que tudo corria bem antes de entrar no amplo
salão. A elegante carruagem dos Pennington seguiu seu caminho pela tranquila
rua.
A senhora Beale fechou a porta com a chave.
— Vou despertar as senhoras.
— Não é necessário que nos desperte — disse Abigail Flint do alto da
escada —. Estou descendo com Sara. Quem morreu?
— Ninguém morreu — respondeu Beatrice —. Pelo menos eu penso
que não.
Sara Marsh apareceu logo depois.
— Está bem a neta da nossa cliente?
— Daphne esta bem, porém faltou pouco para que não estivesse —
disse Beatrice.
— O que vão tomar as senhoras? — Perguntou a governanta com tom
de resignação —. Chá ou conhaque?
— Foi uma noite muito longa, senhora Beale — disse Beatrice.
A governanta voltou a suspirar, desta vez com um tom de
condescendência.
— Então irei pôr a bandeja de conhaque.
Momentos despois, Beatrice estava sentada junto a suas patroas frente a
uma pequena lareira. Todas tinham um copo de conhaque na mão. Abigail e
Sara estavam de camisola, mas iam convenientemente abrigadas com bata,
gorro de dormir e sapatilhas.
— Parece óbvio que nossa cliente tinha razão em confiar em seus
instintos quando o senhor Euston empenhou-se a mostrar tanto interesse por
Daphne — disse Abigail —. Lady Pennington não dispõe de dons psíquicos,
porém eu sempre digo que nesses assuntos não há nada como a intuição de
uma avó.
Abigail era uma mulher alta, magra e angulosa de uma certa idade. Os
traços afilados incluíam um nariz formidável e um queixo pontudo. Seus
cabelos negros estavam começando a ficar prateados rapidamente. Os olhos
escuros tinham um brilho curioso e velado; Beatrice tinha a certeza de que
ocultavam velhos mistérios e profundos segredos.
O temperamento de Abigail somente podia ser descrito como sombrio.
Se inclinava por ter uma visão pessimista do mundo em geral e da natureza
humana em particular. Quando Sara a recriminava de que sempre esperava o
pior, Abigail respondia invariavelmente que poucas vezes se via decepcionada.
Sua companheira de negócio, assim como também de vida, era seu pólo
oposto, tanto na aparência, como no temperamento. Sara Marsh tinha a
mesma idade, mas era difícil localizar tons grisalhos em seus cabelos louros.
Era de formas redondas e suaves, de modo que os homens, jovens e maduros
sem exceção, achavam-na muito atrativa. Era entusiasta, otimista e inquisitiva.
Como amante autodidata e apaixonada pela ciência, lhe fascinavam os
diferentes tipos de provas que permaneciam nas cenas de crime. Mantinha um
laboratório bem equipado na cave da mansão onde examinava tudo, desde as
impressões digitais até as amostras de veneno que os agentes da Flint e Marsh
lhe proporcionavam.
A senhora Beale não cessava de declarar que um dia Sara provocaria
acidentalmente uma explosão, que propagaria gases letais causando a morte de
todos os presentes na casa.
Tanto Abigail como Sara possuíam o que elas chamavam de um sexto
sentido. Em seus dias de juventude haviam montado uma livraria para os fãs
da parapsicologia. Porém há alguns anos haviam fechado a loja para lançar-se
com êxito nas aventuras das investigações particulares. A firma Flint e Marsh
atraia clientes da classe alta que desejavam encarregá-las de investigações
discretas.
Os volumes dos tempos da livraria agora preenchiam as prateleiras da
sala do chão até ao teto. Muitos dos livros estavam cheios de energia. Beatrice
estava ciente das correntes indefinidas que agitavam a atmosfera da sala.
— Um trabalho excelente, querida — disse Sara —. Não tem por que
culpar-se do ocorrido no jardim.
— Euston estava a ponto de raptá-la, e foi por minha culpa —
expressou Beatrice —. Me distraí com uma limonada que havia caído. E
quando o homem com a bengala desapareceu da sala de baile, quase ao
mesmo tempo que Daphne, me preocupou que também estivesse envolvido
no rapto.
— Sim, ao final o resultado foi um pouco caótico — comentou Sara —
mas tudo está bem o que bem acaba.
Se ouviu uma exclamação de Abigail.
— Neste caso não me parece que nada tenha acabado demasiado bem
para o senhor Euston. Porém não me preocupa a sorte dele. O que desperta
minha curiosidade é sobre esse cavalheiro que apareceu para ajudar-te, o da
bengala e da cicatriz. Essa parte da história é o mais preocupante.
— Sim — disse Sara —. Falemos dele.
Beatrice se esforçou em encontrar as palavras precisas para explicar sua
reação ante Joshua Gage.
— Primeiro apareceu na sala de baile. Esteve ali somente um momento,
mas sei que reparou em minha presença, que, disfarçadamente, estava me
observando. — Hesitou por um momento —. Digamos melhor que estava
me estudando. Sim, isso mesmo. Estava estudando-me.
Abigail franziu o cenho.
— A princípio não teria por que haver reparado na presença de uma
dama de companhia sentada em um local de uma grande sala.
— Sim, eu sei — disse Beatrice —. Mas lhe asseguro que se fixou em
mim. E mais: depois, quando se apresentou no jardim e se ofereceu para
livrar-se do senhor Euston, utilizou você e a senhora Marsh como referência.
Logo anunciou que queria falar comigo amanhã. — Olhou ao relógio —. Na
verdade, hoje.
— Bem, eu acredito que isso clarifica as coisas — disse Sara —. Se sabe
de Flint e Marsh e se é consciente de que era uma de nossas agentes, deve
tratar-se de alguém envolvido em um caso prévio. Essa seria uma explicação
perfeitamente razoável.
Abigail estreitou os olhos.
— Mas nenhuma de nós reconheceu o seu nome.
— Será porque na realidade não o conhecemos — respondeu Sara com
paciência — Mas obviamente conhece a um dos nossos clientes.
— Havia algo muito... muito inquietante nele — disse Beatrice.
— E esse senhor disse que queria falar contigo de manhã? — Inquiriu
Abigail com o cenho franzido.
— Sim. Também disse que Euston não voltaria a ser um problema.
Nisso foi muito claro. Se querem que lhes diga a verdade, me preocupa que de
um certo modo Euston acabe no rio.
— Euston poderia merecer essa sorte, mas a política de Flint e Marsh é
evitar qualquer classe de escândalo — disse Sara incomodada.
— Que bobagem! No rio sempre aparecem corpos. — Abigail fez um
gesto com o dedo indicador, como se deixasse de lado o assunto —. Euston
será apenas mais um, e basta.
Beatrice se estremeceu e trocou olhares com Sara, que soltou um
suspiro. Abigail se inclinava um pouco ao abordar os problemas de maneira
pragmática.
— Sabe muito bem, querida, que os corpos dos cavalheiros que se
movem na sociedade não costumam aparecer, como disse, no rio — disse
Sara —. Euston tão pouco tinha um futuro prometedor, mas era conhecido
em certos círculos. Resulta óbvio que tinha alguns contatos. Assim foi como
conseguiu que um respeitável amigo da família Pennington o apresentasse a
Daphne. Se agora o encontrarem morto em circunstâncias misteriosas, se
produziria uma investigação policial. Todos sabemos que a Agência Flint e
Marsh não pode permitir-se se envolver em um assunto assim.
— Sim, tem razão, claro que sim. — Abigail tamborilou os dedos sobre
o braço da poltrona —. O único que podemos esperar é que o senhor Gage
tome muito cuidado no desaparecimento de Euston, e que não nos cause
nenhum problema.
Beatrice clareou a garganta.
— A verdade é que me deu a impressão de que realmente tem muita
experiência em assuntos como este.
— Razão demais — respondeu Abigail, com a expressão iluminada —.
Razão demais para nos preocuparmos por Euston.
— Insisto em que Euston estava vivo quando o vi pela última vez —
disse Beatrice —. É possível que o senhor Gage não houvesse recorrido a
medidas extremas esta noite.
— O que temos que nos preocupar neste momento — apontou Sara
— é em seu interesse em si, Beatrice. Está segura de que não o reconhece de
seus dias na Academia do Oculto de Fleming?
— Estou convencida. — Beatrice bebeu um gole de conhaque —. E
lhes asseguro que não é um homem que se possa esquecer facilmente.
— Tão feia é a cicatriz? — Perguntou Abigail arqueando as
sobrancelhas.
— O que o faz memorável não é a cicatriz — disse Beatrice —. Nem
tão pouco sua deficiência em andar. Estão seguras de que não reconhecem
esse nome?
— Eu estou. — Abigail apertou os lábios —. Claro que poderia tratar-
se de um cliente dos nossos dias da livraria. Ao largo dos anos tivemos vários
deles. É impossível que recordemos os nomes de todos.
— Nossa, quase havia me esquecido! Me deu um cartão! — Exclamou
Beatrice. Deixou a um lado sua taça de conhaque e buscou no bolso do
vestido —. Creio que o nome que figura no cartão é de seu antigo patrão.
Pelo que me pareceu, ele acredita que vocês o reconheceriam.
Sara pegou os óculos da mesa de leitura que estava sobre a mesa e os
colocou.
— Deixa eu ver, deixa ver...
Beatrice lhe entregou o cartão. Sara leu e compôs uma expressão de
surpresa. Repassou o relevo do leão com o dedo.
— O senhor Smith! — Sussurrou —. Mas isso não é possível... Depois
de tanto tempo, não!
— É o senhor Smith? — Abigail franziu o cenho —. Deve tratar-se de
um erro. Deixa-me ver esse cartão...
Sara entregou o cartão para Abigail e esta o estudou com uma crescente
incredulidade que logo se converteu em assombro.
— Por todos os santos! — Sussurrou, acariciando o selo —. Crê que
ele realmente esteja vivo?
— Os rumores sobre sua morte nos faziam duvidar — disse Sara.
Beatrice observou o rosto de Sara, em busca de alguma resposta, e logo
olhou para Abigail.
— Quem é esse senhor Smith?
— Nunca soubemos! — declarou Abigail —. E nunca o conhecemos.
Tratávamos com seu Mensageiro.
Aquele tom ameaçador não preocupou tanto Beatrice, como a forma de
que o cartão tremia nos dedos de Abigail. Ela não era alguém que se deixava
agitar com um imprevisto qualquer. Normalmente, Abigail sabia fazer honra
ao seu nome Flint5.
— Estou segura de que o leão na realidade não se chamava Smith —
disse Sara —. Mas esse nome e o selo era tudo o que sabíamos dele. Como
disse Abby, quando tinha assuntos conosco, enviava seu Mensageiro.
— Precisamente, o senhor Gage me pediu que lhes dissesse que o
Mensageiro manda lembranças — comentou Beatrice.
— Oh, vá, vá... — sussurrou Sara —. Esta situação parece estranha
neste momento.
— Podem descrever-me esse Mensageiro? — Perguntou Beatrice.
— Não podemos te dar uma descrição física — disse Abigail —.
Quando nos encontrávamos com ele sempre o fazíamos em um lugar que ele
escolhia, e sempre estava entre as sombras. Nunca o vimos em plena luz. —
Fez uma pausa —. Mas estou quase segura de que não caminhava coxeando.
Não é mesmo, Sara?

5
Flint: rocha; pedra; duro como pedra; insensível.
— Não, realmente não havia indícios de que ele usava uma bengala —
disse Sara —. O que recordo é que sempre nos assustávamos quando ele
começava a falar da escuridão de onde estava, pois ele escolhia
cuidadosamente o local de encontro conosco. Nunca o víamos chegar e nunca
o vimos partir. Era como se ele mesmo fosse uma sombra.
— Eu — disse Beatrice. Pensou em como ele havia parado e em como
ele se apoiava na bengala —. Bem, sempre ocorrem acidentes. E imagino que
um homem com semelhante profissão deve atrair um grande número de
inimigos.
— Isso é muito certo — disse Abigail.
— Disseram que alguém a quem chamavam de o Mensageiro
trabalhava para o senhor Smith — disse Beatrice —. Não entendo o papel do
senhor Smith em tudo isso. Para que necessitava de um mensageiro?
Sara e Abby trocaram olhares. Logo, Sara se voltou para Beatrice.
— Abby e eu chegamos a uma conclusão sobre isso há muito tempo,
talvez Smith fosse um jogador no Grande Jogo, o que é como a imprensa e os
romancistas denominavam o negócio de espionagem.
— Quer dizer que ele era um espião? — Perguntou Beatrice.
— Um mestre dos espiões — disse Abigail —. O Mensageiro nos
assegurou que estava sob as ordens da Coroa, e nós não tínhamos razão
alguma para duvidar dele. Pelo que podemos deduzir, os domínios de Smith
se estendiam por toda a Inglaterra, através de Europa e mais além. Mas vai
saber o que se passa com as lendas.
— Nunca se sabe toda a verdade sobre elas. — apontou Sara.
— Estou a ver — disse Beatrice —. Suponho que isso convinha tanto
ao senhor Smith como ao seu Mensageiro. Nós sempre tememos mais o
desconhecido que o conhecido.
Sara fez uma careta.
— Na realidade, no caso do senhor Smith o que as pessoas sensatas
temiam era o seu Mensageiro, era o homem que o senhor Smith enviava para
caçar os traidores, os espiões que havia entre nós. O Mensageiro frustrava
todas as conspirações que houvesse, algumas delas realmente estranhas.
— E nós às vezes o ajudávamos — interviu Sara em tom de orgulho.
— Não entendo — disse Beatrice —. A que se referem com isso de
que eram conspirações estranhas?
— Quando o senhor Smith enviava o seu Mensageiro para investigar
uma conspiração ou um ato de espionagem, seguramente a ameaça estava
muito longe de ser algo comum, de qualquer forma o caso não seria o tipo de
caso que a Scotland Yard solucionaria. Sempre tinham um aspecto
paranormal.
Abigail deu uma risada forçada.
— Isso não quer dizer que o Mensageiro reconheceria nunca e nem
remotamente a ideia de que houvesse uma explicação paranormal nos casos
que investigava, entende? Não acreditava na energia oculta. Isso sempre me
chamou a atenção, porque me parecia óbvio que ele possuía talento nesse
sentido.
— É comum que as pessoas excluam o lado paranormal de suas
naturezas — apontou Sara —. Quando se vêem na obrigação de explicar suas
capacidades parapsíquicas sempre encontram outras explicações.
— E que tipo de capacidade tinha o Mensageiro? — Perguntou
Beatrice.
— Pelo visto seu talento não tinha comparação quando se tratava de
encontrar pessoas e coisas. Sempre o conseguia.
— Estão falando tanto do Mensageiro como do senhor Smith no
passado — interrompeu Beatrice —. Acaso lhes ocorreu algo?
— Nada se sabe — respondeu Abigail —. Há mais ou menos um ano,
fizeram circular rumores sobre a morte de Smith. No princípio não era mais
que isso, rumores, mas logo ficaram cada vez mais insistentes. Ao final, Sara e
eu chegamos à conclusão de que devia ser verdade.
— O Mensageiro desapareceu ao mesmo tempo — explicou Sara —.
Por isso acreditamos que ele também devia estar morto. O certo é que em
todos esses meses não contatou conosco. Se quer que diga a verdade, senti sua
falta.
— Bobagem — disse Abigail, um tanto agressiva —. Era um tipo
muito misterioso. Me fazia sentir incómoda em sua presença. — Fez uma
pausa —. Mas tenho que admitir, pagava bem pela informação.
— O certo é que, apesar da opinião que tinha sobre o paranormal —
explicou Sara com tristeza —, entendia o valor da visão científica na
investigação criminal. Sempre respeitava minhas opiniões, ao contrário de
certos inspetores da Scotland Yard que nunca prestaram atenção em minhas
opiniões, simplesmente porque sou uma mulher.
— Mas tem que reconhecer que, apesar do Mensageiro respeitar seus
conhecimentos científicos, não significa que não fosse extremamente perigoso
— disse Abigail.
— Sim, eu sei — contestou Sara —. De todos os modos tenho que
admitir que realmente analisei muito bem os materiais que ele enviava na
qualidade de provas.
Abigail olhou a Beatrice.
— Demos como certo que o Mensageiro havia sido assassinado pela
mesma pessoa que acabou com o senhor Smith. Era a única teoria que
permitia explicarmos como haviam desaparecido ao mesmo tempo.
Beatrice refletiu por um momento.
— E se o senhor Smith e o Mensageiro fossem a mesma pessoa? Isso
explicaria os seus desaparecimentos ao mesmo tempo.
Abigail e Sara se olharam.
— É uma possibilidade — admitiu Sara —, mas eu duvido. Sempre
tivemos a impressão de que o senhor Smith manipulava um extenso império
de espiões e de informantes. O Mensageiro, em troca, parecia concentrar-se
em investigações aqui em Londres.
— Tinham conexões que iam desde os clubes de cavalheiros mais
exclusivos, até ao mundo do crime — explicou Abigail.
— Parece óbvio que o homem que encontrei nesta noite, possa ser o
mesmo Mensageiro que vocês conheceram — disse Beatrice.
Abigail se endireitou de pronto.
— Talvez seja um impostor. Isso explicaria muitas coisas.
Possivelmente alguém tenha concluído que o Mensageiro autêntico esteja
morto, assim, achou seguro assumir sua identidade junto com as conexões
dele.
— Não creio que isso seja tão simples, querida — disse Sara —. Por
que alguém iria fazer algo assim?
— O Mensageiro do Leão era muito temido em certos meios —
prosseguiu Abigail —. Seguramente conhecia muitos segredos inconfessáveis,
alguns dos quais, sem dúvida, destruiriam pessoas muito poderosas. Também
há aqueles que matariam para adquirir a sua reputação, pois isso
proporcionaria a capacidade de intimidar e controlar os demais.
— Qual era exatamente a natureza de sua reputação? — preguntou
Beatrice —. Além de ser muito perigoso, quero dizer.
— Tal como te disse Abby, sempre encontrava o que se havia proposto
encontrar — disse Sara —. Sua outra característica era ser um homem de
palavra. Todos os que tinham trato com ele sabiam que se prometia algo, iria
cumpri-lo. Por outro lado, era incansável. Conhecê-lo era saber que o único
que podia deter-lhe era a morte.
— E isso foi exatamente o que, em nossa opinião, o deteve no final —
apontou Abigail.
— Desculpem a pergunta — interveio Beatrice —, mas como vocês
entravam em contato com o Mensageiro? Mencionaram que o ajudavam em
alguns de seus casos, não é mesmo?
Sara olhou para os volumes encadernados em pele que guardavam nas
paredes da sala.
— A princípio, o que o trouxe a nós foi a loja. Nós fornecíamos aos
clientes todo o tipo de assuntos relacionados com o ocultismo. Apesar de que,
pessoalmente, não dava muito crédito aos assuntos paranormais, embora
frequentemente estivesse envolvido nas investigações de crimes com
elementos desse tipo.
— O Mensageiro poderia reconhecê-lo ou não, mas certamente nós
reconhecíamos as conexões parapsíquicas na maioria dos casos — disse
Abigail —. A princípio utilizava nossa livraria para a investigação. Logo
descobriu o interesse de Sara pelas técnicas científicas de investigação.
— E uma coisa levou a outra, até que ao final, Abby e eu nos
convertemos em suas ajudantes ocasionais — concluiu Sara.
Abigail arqueou as sobrancelhas.
— Teve uma grande influência em nós, certamente. O fato de ajudá-lo
foi o que nos impulsionou a abrir nossa própria firma de investigação. Se
poderia dizer que se não fosse pelo Mensageiro seguiríamos pendentes dos
lucros de uma pequena livraria.
— Em outras palavras — disse Beatrice, divertida —, devo meu posto
atual como agente de Flint e Marsh ao Mensageiro.
— Sim, certamente, é uma maneira de enxergar as coisas — concordou
Sara.
Beatrice fez uma careta.
— Seguramente isso é irônico.
Sara pôs uma expressão pensativa.
— Não, não é.
— É coincidência? — Perguntou Abigail, claramente emocionada.
— Já sabe que eu não acredito em coincidência — retrucou Sara —.
Não, o que ocorreu foi uma sequência de pequenos sucessos com um
elemento em comum.
— E qual é o elemento? — Perguntou Beatrice.
— É um elemento paranormal. Você só tem que considerar os
ingredientes óbvios desta mistura: a carreira que você fez na Academia
Fleming, o trabalho que faz agora aqui conosco, o reaparecimento do
Mensageiro depois de todos esses meses, seu talento tão pouco comum e o
fato de que, frequentemente, investigava casos que continham um elemento
paranormal... — Sara negou com a cabeça, chateada —. Não pretendo poder
captar todos os elementos, mas esse elemento existe, e disso não tenho
nenhuma dúvida.
— Mas o que pode ele querer de mim? —perguntou Beatrice—. E
como pôde me encontrar no baile nesta noite?
— Não há como explicar o interesse dele sobre você — disse Abigail
incomodada —. Mas quanto a como possa ter descoberto em qual baile
estaria nesta noite, isso é fácil de explicar. Creio que eu tenha deixado
suficientemente claro: o Mensageiro sempre encontra o que busca.
Os olhos de Sara se escureceram.
— Obviamente estava buscando você, querida.
Capítulo 5

Não havia tráfego, apenas se via a luz de um poste a outro, e o cheiro


do rio no ar da noite era intenso. Eles tinham chegado ao seu destino.
Joshua usou a bengala para fazer o pacote bem vestido incorporar-se
no assento oposto.
— Acorde, Senhor Euston. Esta noite foi um grande inconveniente
para mim. Não desejo passar nenhum tempo em sua companhia mais do que
o necessário.
Euston gemeu e abriu os olhos. Pela janela parcialmente fechada
entrava quantidade de luz necessária para revelar a surpresa que expessavam
seus belos traços.
— Onde estou? - murmurou. — Benson, é você?
— Sente-se direito - ordenou Joshua.
— Como? - Euston conseguiu se ajeitar sobre o banco. Ele tentou se
concentrar. A surpresa transformou-se em alarme.
— Você não é Benson. Quem demônios é você?
— Não necesita saber meu nome. A única coisa necessária é que
entenda as instruções que vou dar.
— Mas… Que demônios? Do que está falando?
— À medida que o sol se levanta, você será a pessoa não grata nos
círculos sociais. Seu nome vai desaparecer das listas de convidados de toda a
cidade. Nenhum clube vai deixar você passar pela porta. Meu conselho seria
para navegar para a América ou partir para o continente quanto antes melhor.
— Como se atreve a me ameaçar? – Falou Euston.
— Vou deixar muito claro, não estou ameaçando-o. Eu nunca ameaço.
Lhe dou minha palavra que quando forem as doze, todas as pessoas que
contam em seu mundo terão plena consciência que você é um caçador de
fortunas, uma fraude.
— Isso não pode provar. A familia da menina nunca permitirá que você
vá à policía, aconteça o que acontecer.
— Eu não vou à polícia com esta história- Joshua disse. —Não há
necessidade. Nós dois sabemos que a sociedade não precisa de testes antes de
julgar. O mundo educado é mais do que rumores dizendo felizes sussurros.
Eu prometo a você a notícia de que foi exposto como um caçador de fortunas
tentando encontrar uma herdeira vai se espalhar por toda a cidade, e
certamente também na imprensa, em poucas horas.
— Não pode fazer isso, não deve estar falando sério.
— Amanhã vai descubrir que falo sério.
O carro parou. Joshua abriu a porta. O nevoeiro foi introduzido na
cabine, e com ela uma nova dose de cheiro do rio. Uma única lâmpada de gás
brilhava no fim da rua, mas a densidade do nevoeiro arrebatou a maior parte
da luz antes que pudesse ir muito além.
— Agora é quando tem que ir, Euston, disse Joshua. Vá rápido, antes
de eu perder a paciência. Tem sido uma longa noite e eu não estou no melhor
dos humores. Você interferiu em meus planos para a noite. Eu não costumo
tomar estes impedimentos muito bem.
Euston olhou apreensivo em direção à escuridão da rua esperando por
ele.
— Não, eu não conheço este lugar. Parece óbvio que é perigoso. Como
posso voltar ao meu quarto mobiliado?
— No lado oposto de um armazém há uma taberna. Eu acho que na
rua estarão esperando um ou dois cabriolés de aluguer. Mas talvez seria
desejável para si acelerar a sua passagem. É certo. Neste bairro há muitos
canalhas de todos os tipos e alguns cortam o pescoço por menos do que nada.
Euston não se moveu.
— Saia agora! - disse Joshua. Falava com muita suavidade.
Euston se contorceu como se tivesse sido atingido por um chicote. Ele
alcançou a porta e quase caiu quando saltou para o pavimento. Então ele
virou-se e parou para olhar o carro.
— Não sei quem você é, filho da puta! Mas você pagará por isso, nem
que seja a última coisa que eu faço! –disse ele.
— Bem, temo que terá que entrar na fila, que é muito longa por sinal.
Joshua fechou a porta e deu dois toques no teto da carruagem. Henry
abriu a aba.
— Onde, senhor?
— Saint James.
— Muito bem.
Henry fechou, estalou as rédeas e o carro entrou no nevoeiro.
Joshua puxou uma das cortinas e olhou para a noite. A dor aguda na
coxa havia se tornado uma palpitação e dor surda. Ele consolou-se
recordando que, quando voltasse para a casa, teria um excelente conhaque
esperando por ele na casa da cidade.
Essa noite nada tinha saído bem.
Teria sido mais correto dizer que nada tinha dado certo desde o início
desse assunto, lembrou. E isso era precisamente o que o tornava tão
interessante.
Não havia nem um par de semanas estava na casa de campo, cada vez
mais afundado na areia movediça de rotina tão terrivelmente chata que tinha
sido imposta por ele próprio. Esses dias soporíferos começavam com uma
meditação de manhã, seguida dos exercícios de artes marciais limitados, que
poderia continuar praticando, apesar da perna ruim. Os exercícios eram
seguidos por algumas horas passadas a rever alguns negócios. Ele
administrava a fortuna da família de sua irmã, seu sobrinho e dele próprio. No
final da tarde fazia uma parada em suas tarefas e ia para uma caminhada,
muitas vezes dolorosa, ao longo dos penhascos que fazem fronteira com o
mar, incansavelmente agitado.
Na maioria das noites eram passadas em branco, mas quando conseguia
dormir seus sonhos eram sempre variações do mesmo pesadelo recorrente.
Reviveu a explosão, viu o corpo de Emma deitado sobre as lajes e ouviu que
Clement Lancing gritando para ele do outro lado da barreira de chamas: "Foi
você, você bastardo! Ela está morta por causa de você! "
Todos os sonhos terminavam da mesma forma, com Victor Hazelton
observando das sombras, em silêncio, acusando-o de fracassar na hora de
salvar Emma.
Ele tinha plena consciência de que, recentemente, no curso de suas
caminhadas da tarde, tinha começado a passar muito tempo parado
precariamente na borda das falésias para assistir ao caos da terrível onda lá em
baixo. Teria sido tão fácil para um homem com uma perna fraca perder o
equilíbrio!
Mas ele não podia negligenciar responsabilidades. A consciência de que
tanto seu sobrinho, Nelson, como sua irmã, Hannah, dependiam dele, o fez
parar de olhar a correnteza todos os dias ao pôr do sol.
Aquela vida tão cuidadosamente orquestrada tinha parado quando ele
tinha recebido o telegrama de Nelson:
―Por favor, venha para Londres. Mamãe precisa de você‖.
Houve apenas uma força que o manteve forte o suficiente para iludir o
seu próprio inferno particular, pensou Joshua, a mesma força que o proibiu de
buscar refúgio em ópio ou no mar: a responsabilidade com sua família. Pela
primeira vez em quase um ano, ele tinha uma missão a cumprir.
Tinha planejado passar uma ou duas semanas em Londres enfrentar o
problema, em seguida, isolar-se novamente. Mas o caso, que parecia simples e
claro ao princípio, estava provando ser muito mais complicado e infinitamente
mais intrigante do que previra. Apesar de o quanto lhe doía a perna, sentiu-se
revigorado e fresco. O fato de ter encontrado Beatrice Lockwood naquela
noite, tinha agido como um tónico para o seu humor.
No começo, tinha a intenção de estender uma armadilha a uma
pequena aventureira de costumes pouco claros que, obviamente, vivia por
seus próprios meios, mas tinha descoberto que ela não era bem o que parecia.
A arma que foi utilizada para deter Euston foi apenas uma das muitas
surpresas com que se tinha deparado naquela noite.
Quando ele foi designado para a Agência Lantern Street já tinha sido
convencido de que a aparência inocente, com que Beatrice se disfarçava era
um sinal de seu talento como atriz, algo certamente muito útil em seu novo
emprego como agente da Flint e Marsh. Mas sabia que, não importa quão
inocente ela tivesse sido, já há muito isso tinha desaparecido. Como uma
mulher sozinha no mundo, ela era a única responsável por sua própria
segurança e sobrevivência. Nestas circunstâncias todos faziam o que achavam
necessário. Isso era algo que ele respeitava. Certamente ele não ia culpá-la se
ela tivesse deslizado do pedestal da virtude de vez em quando. Em qualquer
caso, ele admirava o fato de manter um espírito brilhante e orgulhoso.
Era evidente que os seus instintos de sobrevivência estavam muito
alerta, o que tornava ainda mais surpreendente a defesa arriscada de sua
cliente naquela noite. Sim, ele sabia que as senhoras acompanhantes
fornecidas pela empresa Flint e Marsh tinham características incomuns. As Sra
Flint e Sra Marsh eram, afinal, uma dupla incomum. No entanto, não esperava
uma mulher como Beatrice, uma mulher que, entre outras coisas, tinha feito
uma carreira como fraudulenta praticante de ocultismo, em seguida,
chantageando um dos seus clientes, aparecesse a ajudar outros. Quando
aparecia o perigo, as pessoas mais inteligentes, homens e mulheres,
independentemente da sua origem social, conseguiam não ser encontrados.
Na verdade, pensou ele, Beatrice tinha feito exatamente isso em uma ocasião
anterior: ela tinha desaparecido da Academia do Oculto Dr. Fleming após o
assassinato de seu empregador.
Tudo o que levantou novas perguntas sobre o que realmente aconteceu
na noite em que haviam matado Fleming. Morgan, da Scotland Yard, como os
tablóides, estava convencido de que Beatrice tinha matado seu empregador,
que tinha então roubado o dinheiro dos bilhetes daquela noite e tinha ido para
um local desconhecido. Mas para Joshua essas explicações não tinham
convencido em nenhum momento. Agora verificava que seus instintos tinham
sido corretos. Fosse o que fosse que tinha acontecido na noite da morte de
Roland Fleming, esse assassinato não tinha sido um móbil como um roubo
direto e fácil.
Henry parou o carro na frente de um dos clubes mais prestigiados de
Saint James. Joshua pegou sua bengala, chapéu e luvas. Apertando sua
mandíbula contra a dor que sabia que viria, abriu a porta da cabine, pegou a
maçaneta e o suporte de metal usado para ir até a calçada.
Longe iam os dias em que poderia saltar ágil e atleticamente, pensou.
Mesmo Euston, ainda se recuperando após o curto período de inconsciência,
conseguiu sair com mais dignidade quando ele lhe disse para deixar o carro.
Joshua enviou Euston e seu próprio passado ao diabo e subiu os
degraus para o clube. Um porteiro se materializou na entrada principal para
bloquear a passagem.
— Posso ajudá-lo senhor?
Joshua tirou do bolso o envelope contendo um de seus antigos cartões
de visita e entregou ao porteiro.
— Tenho uma mensagem para Lord Allenby. Por favor, entregue isso
imediatamente e diga que o espero em meu carro.
O porteiro olhou para ele com dúvida, mas aceitou.
— Darei o recado, senhor.
Pelo tom de voz, o porteiro transmitia a sensação de que não haveria
nenhuma resposta. Ele desapareceu novamente dentro do clube e fechou a
porta com firmeza.
Joshua voltou para o carro e subiu os degraus até a cabine. Ele sentou-
se e esfregou a perna enquanto esperava. "Não haverá muito tempo –prometeu a
si mesmo. Logo haverá conhaque.
O melhor dos clubes de cavalheiros de Londres era o tempo imóvel
dentro das paredes dos estabelecimentos. As mudanças ocorriam em um
ritmo frustrantemente lento, se elas fossem produzidas. Joshua sempre achou
muito úteis tanto a previsibilidade, como a confiabilidade dos costumes de
seus membros. Allenby, por exemplo, tinha orgulho de sempre saber os
últimos rumores. E quando ele vinha para espalhar esse rumor, ele era
extremamente eficaz.
Allenby, um homem corpulento de seus setenta anos, apareceu na porta
do clube. Ele viu o carro do outro lado da rua e caminhou em direção a ele.
— Se junta a mim senhor? - Joshua perguntou das sombras da cabine
apagada.
— Valha, em verdade é você. O Mensajeiro de Smith! Reconheço a sua
voz. Pelo que tinha ouvido encontrava-se morto. Suspeitava que alguém
estava tramando. - Allenby subiu ao veiculo e sentou-se.
— Agradeço que tenha encontrado um momento para me ver. - disse
Joshua.
— Naturalmente, naturalmente. Aos velhos tempos e tudo isso. Eu
sempre serei grato a você, pelo que fez para o meu filho há alguns anos atrás.
Tenho o prazer de ver que, na verdade, você está vivo. O que posso fazer por
si?
— Bem, na verdade, gostaria de pedir um pequeno favor.
— Claro, Claro! Pode pedir.- disse Allenby.
Joshua se instalou mais fundo no canto da cabine.
— Eu ouvi recentemente algumas notícias alarmantes sobre o caráter
de um jovem cavalheiro chamado Euston.
— Euston? Euston? — repitiu Allenby revirando os olhos—. Esse
jovem que dizem estar atrás da jovem herdeira dos Pennington?
— Sim — disse Joshua —. Euston não é o que parece, por desgraça.
Suas finanças são uma ruína, e inventou todos os seus contatos sociais.
— Meu Deus, um caçador de fortunas, não é?
— Temo que sim. Você trata com o pai da jovem. Pensava que seria
conveniente avisá-lo discretamente.
— Você tem toda a razão. — asintiu Allenby —. Conheço Pennington
há muito tempo. Estudávamos juntos em Oxford. O mínimo que posso fazer
é informá-lo que um caçador de recompensas está atrás de sua filha.
— Obrigada.
— Isso é tudo? —perguntou Allenby.
— Sim. Agradeço sua colaboração nesse assunto.
— Claro, claro — Allenby fez uma pausa e limpou a garganta —. Não
queria inquirir os motivos de sua ausência no ano passado, mas o porteiro
mencionou algo a respeito de uma bengala.
— Sim. Utilizo uma para andar nesses dias. — disse Joshua.
— Um acidente, verdade?
— Sim, algo assim.
— Bem, então estou encantado de comprovar que tenha sobrevivido.
— disse Allenby.
— Obrigado senhor.
— Volto ao clube. Pennington chegará mais tarde sem dúvidas.
Asseguro-me que chegará essa informação sobre Euston.
Allenby saiu do caro e voltou a passar pela porta do clube.
E isso era tudo, pensou Joshua. Na manhã seguinte, Euston haveria
sido convertido em uma pessoa ingrata em todos os lugares ricos de Londres.
As fofocas corriam mais rápido que um rio transbordado pelos clubes
londrinenses de cavalheiros.
Capítulo 6

Meia hora depois, Joshua subiu as escadas da frente de sua pequena


casa. Ele tinha adquirido a residência há vários anos atrás, quando ele se
tornou o Mensageiro de Leon. Suas necessidades naquela época eram muito
simples. Tinha basicamente a necessária privacidade. A modesta casa em uma
rua tranquila, onde os vizinhos se ocupavam de seu próprio negócio, lhe
convinha perfeitamente. Nenhuma das pessoas respeitáveis em torno dele
tinha qualquer ideia de que o ocupante do No. 5 tratava de investigações
sigilosas para a Coroa. Tudo o que sabiam era que ele era um homem de
meios muito limitados, sobrevivendo com o salário que ele recebia como
caixeiro, empregado de uma empresa de transportes.
A casa da cidade foi fechada durante o ano anterior, mas o sempre
confiável Chadwick tinha feito um trabalho notável em lidar com a apressada
volta para Londres.
Joshua introduziu-se na penumbra do corredor. Ele tirou o chapéu e
enviou-o voando pelo espaço pequeno e para o console polido. Sentiu uma
certa satisfação quando o chapéu caiu precisamente onde tinha proposto. Sim,
a perna ruim impeliu-o a mover-se de forma e passos hesitantes, e também os
movimentos mais fluidos das artes marciais, que tinham sido uma vez uma
segunda natureza, agora eram absolutamente impossíveis. Mas, caramba, a
pontaria dele continuava tão boa como sempre.
— Impressionante, Gage — lhe disse o homem do espelho, rindo. —
A próxima vez que tenha um duelo de chapéus, com segurança ganhará de seu
oponente.
O homem com o rosto cheio de cicatrizes e olhos sem alma devolvia o
olhar.
Ele fez uma nota para dizer a Chadwick para retirar o espelho pela
manhã.
Apoiou a bengala contra o console o suficiente para descartar as luvas e
casaco em pouco tempo. Chadwick saberia que estava em casa. Chadwick
sabia tudo o que acontecia em seus domínios. Mas ele também sabia que, a
menos que convocado, não havia necessidade de se levantar da cama. Joshua
deixou as luvas sobre a mesa, pegou sua bengala e caminhou pelo corredor
para o estúdio. Ele não se preocupou em acender a lâmpada. Sua visão
noturna sempre havia sido excelente. A luz da lua que passava pelas janelas
era suficiente para lhe permitir ver o que fazia.
Tirou a gravata, afrouxou o colarinho, desabotoando os botões da
camisa e atravessou a sala para a mesa de brandy.
Ele serviu o licor em um copo e sentou-se com cuidado em uma das
cadeiras de couro. Desdobrou a perna esquerda. Ela pulsava mais do que o
habitual. Ele teria que pagar o preço de elevar o corpo inconsciente de Euston
do carro.
Mas ele pensou que se o custo, foi alto, valeu a pena. Ele tinha
encontrado a evasiva Beatrice.
Capítulo 7

Beatrice abriu a porta da casa bem quando estava prestes a amanhecer.


George, que trabalhava para a Sra. Flint e Sra. Marsh como motorista e
mensageiro geral, esperou na rua com o pequeno e envelhecido carro até que
a viu entrando pela porta da frente. Ela virou-se da porta.
— Obrigada, George - disse. — Sinto muito que você teve que vir a
esta hora da noite.
— Não se preocupe com isso, Senhorita Lockwood.- George inclinou
para trás seu chapéu. — Não falta muito para o sol nascer. Quando chegar ao
serviço eu vou tomar o café da manhã.
Gentilmente sacudiu as rédeas contra o dorso do cavalo. O veículo
seguiu rua abaixo.
Beatrice fechou a porta. A casa estava em silêncio. A Sra Rambley, a
governanta, ainda estava na cama que ficava perto da cozinha. Clarissa Slate
devia estar dormindo.
O fornecimento de gás para os candeeiros de parede havia sido
ajustado para um mínimo, mas a luz era suficiente para iluminar as escadas.
Beatrice seguiu seu caminho até o piso onde ficavam os dormitórios e
avançou pelo corredor. A porta de um dos quartos foi aberta. Clarissa
apareceu com uma vela na mão. Durante o dia, sua aparência era séria, com o
cabelo preto amarrado em um coque suave com esses óculos que estavam
velando a expressão grave dos olhos cor de âmbar. As roupas que ela usava
eram sempre tão escuras e tão severamente cortadas, que as pessoas tinham
como certo vestia um luto perpétuo. Mas esta noite, com a camisola de
algodão branco e cascata de cabelo caindo sobre os ombros, tinha uma
aparência completamente diferente, muito mais inocente e vulnerável.
Naturalme, as aparências eram enganosas quando se tratava de
senhoras investigando e trabalhando para Flint Marsh, Beatrice recordou.
Todas e cada uma delas tinham seus próprios segredos.
— Ouvi o carro de George na rua. - disse Clarissa. Como você chegou
em casa a esta hora? Houve qualquer coisa que estava errado no caso
Pennington? Está bem?
Sim, estou perfeitamente -Beatrice disse tranquilizadora. Mas o caso
concluiu de forma um tanto abrupta no baile dos Trent esta noite. Richard
Euston tinha uma carta na manga. Ele tentou raptar a senhorita Pennington
com a intenção de a comprometer, de forma que seria forçada a se casar com
ele.
— Suponho que não conseguiu, verdade?
— Não, mas a situação se complicou, é uma historia bastante
complicada e grande. Prometo que contarei amanhã de manhã.
— Bom - disse Clarissa sorrindo. — O caso é que não terei que esperar
muito. Falta muito pouco para amanhecer. Melhor será que tente dormir um
pouco.
— Duvido muito que consiga. Já sabe o que acontece quando concluo
um caso. Sempre me atacam os nervos.
— Sim, eu entendo- falou Clarissa com uma expressão amável. —
Talvez um banho quente e um copo de brandy ajudem.
— Passei pelo escritório antes de vir. - acrescentou Beatrice sorrindo.
— A Sra. Flint e a Sra. Marsh já me ofereceram brandy. Volte a dormir. De
verdade, eu prometo lhe contar tudo amanhã de manhã.
— Muito bem, então. –assentiu Clarissa saindo fechando as portas. —
É um alívio que esteja em casa sã e salva. Durante toda a noite tenho tido uma
sensação incómoda. Estava começando a me preocupar e pensava em enviar
uma nota a Flint e Marsh para ver se estava indo tudo bem. Mas logo me
tranquilizei.
— Porque a sua intuição não falha. - disse Beatrice. A Senhorita
Daphne corria um certo perigo, mas no final tudo correu bem. No entanto,
entrou um novo personagem para a comédia.
— Um personagem? - perguntou Clarissa cerrando os olhos.
— Responde pelo nome de Joshua Gage.
Capítulo 8

— Sr. Gage está aqui? Beatrice olhou para cima a partir dos jornais da
manhã, com um tom de excitação e medo em sua voz. Tem certeza, senhora
Rambley?
A empregada era uma mulher formidável na casa dos quarenta anos.
Sua silhueta era a de uma estátua grega. Não fez segredo de que se sentia
ofendida pela sugestão de que houve um erro na identificação do visitante.
— Esse é o nome que me deu o cavalheiro. - disse a Sra. Rambley ao
endireitar o corpo para inclinar o nariz imponente.
— Ele me disse que você estaria esperando.
— Mas não às dez da manhã! - protestou Beatrice.
Ela e a Sra Rambley estavam sozinhas na casa. Clarissa tinha saído uma
hora mais cedo para obter os detalhes de sua nova missão em Flint e Marsh.
A irritação da Sra. Rambley de repente tornou-se um ponto de
ansidade. Beatrice imediatamente sentiu-se culpada. Não era culpa da
governanta se Joshua Gage tinha decidido chegar a essa hora. A Sra. Rambley
ainda estava a adaptar-se às suas não convencionais patroas e ao seu não
convencional trabalho. Agora, ela estava preocupada com ter cometido um
erro, ao permitir que uma visita do sexo masculino fosse introduzida na casa.
— Eu vou dizer ao Sr. Gage que você não está em casa.- disse ela,
baixando a voz para um sussurro. — Na verdade, parece perigoso. Ele tem
uma terrível cicatriz no rosto, e eu não gostaria por nada no mundo de saber
como ele a conseguiu. Estou certa de que a história é capaz de gelar o sangue
de qualquer um.
Ela se encaminhou para a entrada, mas Beatrice parou.
— Não se preocupe, senhora Rambley. Não creio que tenha nenhum
sentindo pedir-lhe que saia. Pelo pouco que eu sei dele, não é fácil se livrar do
senhor Gage. Por favor, faça-o chegar ao salão. E desculpe-me por pedir para
fazer isso.
— Você não tem nada para se desculpar resmungou a Sra Rambley-.
Claro que é um pouco cedo para os visitantes.
— E, especialmente, visitas masculinas –pontualizou Beatrice. Não há
necessidade de se sentir constrangida por isso, Sra. Rambley. Eu sei o que
você está pensando, e eu concordo com você. Não é adequado. Mas, na
realidade, o que conta aqui é o que pode estar pensando Gage.
A face da Sra. Rambley traduziu a preocupação.
— Você acha que talvez isso seja um problema? Você acha que ele
pode querer impor-se a você de qualquer maneira? Eu posso enviar por um
agente da polícia, se quiser.
— Seria muito interessante ver como reage Gage a um agente da
polícia, pelo caminho, mas podemos nos dar ao luxo de evitar esse tipo de
experiência. E sim, eu tenho a intuição de que o Sr. Gage irá provar ser um
problema; no entanto, eu tenho certeza que não é um perigo para mim.
— Se está tão segura, senhorita…
Beatrice pensou sobre o que ela tinha observado nos passos de Gage na
noite anterior. As razões para tomar precauções com ele eram fundadas. Mas
não tinha medo. Ela estava expectante, sim, e também curiosa. Ambas as
emoções pareciam lógicas. Mas ela não podia explicar por que a alterava tanto,
bastar saber que estava ali, bem ali em casa esperando por ela.
— Sim, estou completamente segura.- disse.
— Perfeito, então.
A Sra. Rambley deixou a sala e entrou no corredor. Beatrice se levantou
e foi até à porta.
Ela ouviu a Sra Rambley levar Joshua para o salão. O som da voz do
homem, tão sério, baixo e intensamente masculino, tocou-a. Tal como na
noite anterior, ela tinha experimentado sentimentos semelhantes. Ela tinha-se
enganado em pensar que tudo mudaria à luz do dia.
A Sra. Rambley correu de volta para a sala de jantar.
— Vou colocar a bandeja de chá, senhorita.
— Não creio que seja necessário, começou Beatrice.
Mas a Sra Rambley correu para a cozinha.
Beatrice respirou fundo, endireitou-se, jogou os ombros para trás e
caminhou pelo corredor para o salão. Deliberadamente tentou fazer o menor
ruído, no que ela sabia que seria uma tentativa fútil de surpreender Joshua
desprevenido. O vestido que ela usava era simples, sem agitar as saias que
roçam no chão. As solas de couro macio dos sapatos amorteciam seus passos.
Ela fez uma pausa na porta e aguçou os sentidos, concentrando-se no
olhar do chão. Os passos de Joshua queimavam de energia escura, mas não
viu nada para alterar as primeiras impressões que tinha dele. Ele era um
homem de gelo e fogo, um homem capaz de grandes paixões, mas também
um controle apertado. Se uma mulher tivesse a infelicidade de ser presa no
inferno, com certeza que ele era o homem certo para ir buscá-la. Beatrice
sorriu. Ele sabia que estava lá.
Ele estava próximo da janela, com as duas mãos segurando o punho da
bengala. Ele estava de costas, sem dar qualquer sinal de que a ouviu entrar.
Ele estava bem vestido, ela pensou, mas de uma forma muito discreta.
Casaco e calças do cinza antracite mais escuro. Beatrice suspeitava que sempre
devia vestir em tons escuros. Certamente, lhe favoreciam.
— Bom dia, Sr. Gage. - ela disse com um tom educado, mas frio. - Eu
não o esperava para o café da manhã.
Ele virou-se suavemente para ela, como se apenas naquele momento
houvesse notado a sua presença. Pela primeira vez ela teve uma visão do duro
rosto e daquela cicatriz à luz do dia. Olhos vorazes de fascinante mistura de
verde e ouro. A centelha de diversão em seus olhos, que apareceu e
desapareceu, lhe disse que ele tinha conhecido exatamente onde estava todos
os passos ao longo do caminho da sala de estar até ao salão. E também que
tinha tido conhecimento de que Beatrice tentou aproximar-se silenciosamente.
―Minha mãe! Pensou. É como se estivéssemos brincando de gato e rato. É como se
nós pensássemos que estamos desafiando um ao outro. "
Joshua não a tinha tocado em qualquer momento. A coisa mais
próxima de um contato físico na noite anterior, no jardim, tinha acontecido
quando ele lhe tinha dado o seu cartão. E, no entanto, houve uma intimidade
perturbadora entre eles, ou pelo menos se sentia assim. Foi uma sensação de
que a afetou profundamente e fez-lhe acelerar o pulso. Ao longo do dia, ele
tinha tentado se convencer de que ele tinha sentimentos experimentados
foram explicadas pelo perigo e emoção causada pelos eventos. Mas agora ela
não estava tão certa de que fosse o motivo. Entre eles havia algo mais,
pensou. Algo inexplicável. Algo misterioso.
— Desculpe se eu interrompi o seu café da manhã, Senhorita
Lockwood, disse Joshua, com tom tão educado e frio como o utilizado por
Beatrice. — Sempre me levanto cedo, e às vezes eu esqueço que outros se
levantam mais tarde, especialmente depois do que deve ter sido uma noite
muito longa para você.
Por algum lugar misterioso voltou a regra de Roland Fleming: "Não
entrar no palco até que esteja pronta para o controlar e também controlar o público."
— Eu estou acostumada a ficar acordada até tarde. - disse ela, enquanto
caminhava na sala. — Na minha profissão isso acontece muito
frequentemente.
— Não me surpreende.
— Confesso que uma das muitas questões para permanecer desperta
tinha a ver com o que aconteceu com o Sr. Richard Euston.
— Mr. Euston não mais será um problema para Miss Pennington.
— Poderia ser, se alguém pesca seu corpo esta manhã e o leva para fora
do rio. Todo o mundo sabe que ele gastou muito tempo na companhia de
Miss Pennington. Seria uma vergonha se a sua corte foi rejeitada e que, em seu
desespero, tomou sua própria vida. Alguns podem até pensar que a senhorita
Daphne é uma jovem inflexível e cruel.
Joshua olhou-a por um momento. Beatrice pensou que ele parecia que
não estava acostumado a que as suas decisões e ações fossem questionadas.
— Ao vir para aqui parei na casa de Euston -continuou em tom de
descontração. — O proprietário informou-me que Euston fez a bagagem e
partiu para o continente.
— Fascinante. E tão conveniente para todas as pessoas afectadas.
— Tenho muita fé em soluções convenientes.
Ela sorriu e se sentou no sofá antes de dizer:
— No entanto, eu gostaria de saber o que terá feito o Sr. Euston
decidir sair do país tão rapidamente...
— E quão importante é isso?
— Dado o meu envolvimento pessoal no assunto, sim, isso importa-
me, Sr. Gage. Mas sente-se, por favor.
Ele considerou um breve momento de reflexão, em seguida, ele se
sentou em uma cadeira, colocando a bengala ao seu alcance.
— Agora mesmo, enquanto falamos, é muito discutido nos círculos
sociais que Euston não era o que parecia, disse Joshua.
— A sua situação financeira é desastrosa, tornou-se claro que é uma
fraude que busca uma herdeira com a intenção de reestruturar a sua economia.
Felizmente para todos os envolvidos, o Senhor Pennington descobriu a
verdade a tempo de proteger sua filha das atenções de um perdulário.
— Caramba! - Beatrice parecia cada vez mais admirada. — E eu acho
que você tem muito a ver com estas revelações, não é, senhor?
Desta vez, Joshua não respondeu. Ele apenas olhou para ela. Ela tinha a
certeza de que poderia detectar algum calor naqueles olhos.
— Claro, você é responsável pela circulação desses rumores, ela
continuou rapidamente. Eu tenho que dizer que estou muito impressionada.
Ele ergueu as sobrancelhas.
— Está mesmo?
— É uma brilhante solução para o problema. Euston não pode
continuar alternando na sociedade e a reputação de Daphne Pennington
permanece intacta. E o pai foi premiado com o mérito de ter descoberto
Euston. Sim, como eu disse, é brilhante.
— Obrigado. - Joshua disse secamente. Tem também a vantagem de
que é verdadeiro.
— Naturalmente. Bem, então, em nome da minha cliente, eu agradeço
pelos serviços prestados na noite passada.
Joshua inclinou a cabeça uma fração de um centímetro.
— Não faltava mais.
Na mente de Beatrice novamente passou a imagem de gato e rato. “Eu
não sou nenhum rato, Sr. Gage."
Ouviu um tilintar de bandeja com o chá no corredor. A Sra Rambley se
aproximou. Beatrice pensou que não havia escolha: teria de convidar Joshua a
ficar.
— Suponho que tomará chá. — disse com certa aspereza. - Penso que
a minha governanta está trazendo um tabuleiro.
O senhor Gage esboçou um sorriso de genuíno divertimento.
— Com muito prazer. Eu aprecio isso. Uma xícara de chá forte me
faria bem. Na verdade, me faria ainda melhor uma xícara de café forte
também. Como mencionou, a noite foi muito longa.
— Sim, foi, não é certo? Concordou Beatrice. - Bem, é engraçado, mas
eu estava a desfrutar de um café quando você chegou. Vou dizer à Sra.
Rambley para trazer o café. Tenho certeza de que ainda haverá suficiente.
— Não há necessidade de me lembrar mais uma vez que eu interrompi
o seu café da manhã, Senhorita Lockwood. Estou muito consciente de que me
estou intrometendo.
A Sra. Rambley apareceu, as faces coradas com o esforço: carregando
uma bandeja pesada com o melhor bule da casa e xícaras e talheres de prata.
Ela deixou sobre a mesa baixa, em frente ao sofá.
— Deseja que sirva, senhora?- perguntou.
— Bem, parece que o Sr. Gage prefere café, disse Beatrice. - Você se
importaria de trazer o que tinha preparado para o pequeno almoço?
— Agora mesmo, senhorita.
A Sra. Rambley lançou um rápido olhar curioso para Joshua e saiu para
a entrada. Um silêncio pesado parece ter-se instalado na sala de estar. Quando
ficou claro que Joshua não iria quebrá-lo, Beatrice decidiu que não ia falar
também. Os dois poderiam jogar esse mesmo jogo.
A Sra. Rambley retornou ao salão com a bandeja do café.
— Obrigada, senhora Rambley —disse Joshua.
— De nada, senhor —A senhora Rambley se ruborizou e olhou de
relance para Beatrice.
— Isto é tudo, obrigada—disse Beatrice.
— Sim, senhorita.
A empregada saiu. Joshua ouviu os seus passos no corredor. Então
levantou-se e atravessou a sala, com a sua bengala percutindo fortemente no
chão. Ele fechou a porta, voltou para a cadeira e sentou-se.
Beatrice olhou-o. Sua desconfiança aumentando, a cada momento. Era
óbvio que este homem não queria que a empregada pudesse ouvir o que ele ia
dizer.
Ela derramou café em duas xícaras e entregou uma com um pires a
Joshua. Quando os dedos dele tocaram a porcelana ela sentiu outro tremor.
Ela largou o pires tão rapidamente que foi um milagre que o café não se
derramasse. Mas Joshua não pareceu notar nada.
— Quem a ensinou a usar uma arma escondida entre as roupas,
Senhorita Lockwood? - ele perguntou.
— Um antigo patrão.- comentou ela.
— E não seria esse antigo patrão por acaso o falecido Dr. Roland
Fleming, proprietário da Academia de Ocultismo?
Por um momento, Beatrice sentiu falta de ar. Era como se o quarto
tivesse dado uma sacudida repentina. A xícara de café tremeu na mão e o
pulso disparou freneticamente; experimentou um pânico que não tinha
experimentado desde a noite em que ela tinha deixado a cena do crime de
Fleming.
Ela usou todas as suas habilidades de atuação para se dominar.
— Eu não sei do que você está falando, Sr. Gage. Ou talvez eu devesse
chamar-lhe Messenger?
— Eu vejo que você falou com a Sra. Flint e a Sra. Marsh.
— Eu as fiz sair da cama muito cedo esta manhã. Eu tenho que dizer
que eles ficaram bastante impressionadas quando viram o cartão que você me
deu. Obviamente você e seu ex-empregador, o Sr. Smith, deixaram uma
impressão indelével sobre elas.
— Isso foi há muito tempo.
— Bem, eu acho que passou apenas um ano desde que elas trataram
consigo a última vez.
— Passaram uns longos onze meses, duas semanas e quatro dias, disse
Joshua.
Ela olhou para o seu rosto marcado e depois para a bengala.
— Parece que você é um prisioneiro que está contando os dias
apontando-os na parede de sua cela.
— Que não está longe da realidade. - disse Joshua entre goles de café.
— A Sra. Flint e a Sra. Marsh tinham como certo que estava morto,
mas acho que você já sabe.
— Para dizer a verdade, não tinha considerado essa questão seja de
uma forma ou de outra.
— Mr. Smith também está vivo? Beatrice perguntou.
— Os problemas que temos em comum não dizem respeito a Mr.
Smith. - respondeu Joshua severamente.
— Assim, está vivo.
— Pode ser mais preciso dizer que possa estar retirado.-Ela olhou para
a bengala.
— Eu posso supor que você também se retirou durante o ano passado?
— Sim — contestou ele bebendo mais café.
Ela elevou os seus sentidos e voltou a visualizar as pegadas. A
iridiscência dos resíduos psíquicos disse-lhe que o retiro não tinha sido uma
experiência agradável para Joshua. Dada a natureza dos ferimentos, não era
surpreendente que houvesse dor física. Mas havia outra evidência de outro
tipo de angústia, também, que lançava uma sombra sobre o coração e os
sentidos.
— As minhas patroas me informaram que tinha investigado casos
estranhos que têm uma ligação com o paranormal, mas que você,
pessoalmente, não acreditava no que é denominado como tal. - se aventurou a
dizer Beatrice.
— Eu nunca escondi que considero aqueles que se dizem profissionais
parapsíquicos, uns sonhadores, quando não fraudes.
Ele olhou para ela, à espera de uma resposta. Ela sorriu e tomou um
gole de café.
Seus olhos se estreitaram.
— Falei algo incoveniente, senhorita Lockwood?
— Sinto muito. Ela virou-se para deixar a xícara no pires. - Temo que a
ideia de que o famoso Messenger, um supostamente brilhante pesquisador,
capaz de encontrar qualquer um... empregue a Sra. Flint e Sra. Marsh como
consultoras, sem perceber que ambas têm habilidades paranormais... Acho
que é bastante curioso.
— Um investigador supostamente brilhante?
— Não pretendia pôr em dúvida suas habilidades, senhor. Estou segura
que você é brilhante.
— E encontrei você, não é verdade?
— Sim, você me encontrou. - disse Beatrice friamente. — E se você
tiver feito todo este caminho só para me acusar de exercer de forma
fraudulenta, você perdeu tempo. Eu estive fora do negócio desde alguns
meses.
— Eu não me importo sobre as habilidades que você mostrou no palco
durante a sua associação com a Academia do Dr. Fleming. Estou certo de que
suas performances foram excelentes. Sempre admirei a capacidade e
competência de qualquer tipo.
— Já vejo.
— E já que estamos no assunto, eu não nego que a Sra. Flint e a Sra.
Marsh têm considerável poder de observação. Além disso, eu sempre respeitei
a direção científica que a Sra. Marsh dá às suas investigações. Más não vejo
nenhuma razão para atribuir essas habilidades a sentidos paranormais.
Não havia interesse em argumentar com ele. Como a Sra. Flint e a Sra.
March muitas vezes disseram, as pessoas que não acreditavam no paranormal,
sempre encontravam explicações alternativas para os eventos psíquicos.
— Onde estava durante o ano pasado senhor Gage? - perguntou.
— Tinha ido para o campo, ali teria gostado de ficar se não fosse por
você, senhorita Lockwood.
Ela colocou a xícara e pires com cuidado requintado.
— Se você não me localizou para dirigir contra mim uma acusação de
fraude, o que quer de mim senhor Gage?
— A verdade é um ponto de partida estupendo. Mas segundo a minha
experiência é o último lugar por que as pessoas desejam começar. No entanto,
vamos tentar, mesmo se apenas pelo interesse da novidade. Eu vou dizer o
que eu sei. Você pode confirmar, ou negar os fatos que eu vou expor.
— E por que eu iria cooperar com o seu jogo senhor?
Estudou-a com uma expressão avaliadora.
— Acho que vai me ajudar porque eu estou procurando uma pessoa
que tenha feito chantagem, e pelo momento, Senhorita Lockwood, de acordo
com toda a evidência, o chantagista é você.
Capítulo 9

Ela olhou para ele em silêncio. Pensava que estava preparada para
quase tudo, mas isso era a última coisa que ela poderia ter imaginado. Quando
finalmente conseguiu recuperar o fôlego, ficou de pé, com as mãos apertadas
em cada lado do corpo.
— Que me acuse de ser uma profissional fraudulenta é uma coisa –
disse — mas me acusar de chantagem, isso...
Ele não parecia afetado pela raiva que ela demonstrava.
— Você poderia sentar-se, por favor? — Ele perguntou quase em tom
de irritação —. Se você permanecer em pé, as boas maneiras me obrigaram
também a levantar-me, mas prefiro ficar sentado. — Ele fez uma pausa—. É
pela perna, você sabe.
— Oh. — Ela hesitou. Incapaz de fazer qualquer outra coisa. Tornou a
sentar-se no sofá—. Explique-se, eu imploro.
— Não há nada complicado na situação. Ou pelo menos não parecia
haver, quando comecei. Estão chantageando minha irmã.
— E isso me surpreende, certamente, mas estou segura de que não
conheço sua irmã.
— Você está errada, Senhorita Lockwood. Sim, que a conhece, mas
talvez não se lembre. Ela se chama Hannah Trafford.
— Não me lembro... — Beatrice parou, porque de repente lembrou-se
de uma mulher atraente e bem vestida, de cerca de trinta e poucos anos, cujas
marcas parapsíquicas irradiavam ansiedade. — É a Sra Trafford sua irmã?
—Assistiu a várias performances na Academia Fleming. Viu você no
palco algumas vezes e ficou tão impressionada, que pediu algumas horas de
visitas em privado.
— Lembro-me dessas visitas, mas nada aconteceu durante esse tempo.
E o que eu posso afirmar é que eu não usei qualquer informação que obtive
sobre a Sra Trafford para chantageá-la.
— Alguém na Academia descobriu o segredo mais bem guardado da
minha irmã durante o tratamento que certamente incluía hipnose.
— Mas eu nunca usei a hipnose durante as sessões privadas —ela disse.
O especialista em magnetismo era o Dr. Fleming. Tenho a certeza de que a
Sra. Trafford não marcou qualquer reunião com o meu patrão. Ela insistia
muito em ser atendida por mim.
— O que na minha opinião, faz de você minha principal suspeita,
especialmente porque o Dr. Fleming morreu.
— Eu não entendo nada sobre tudo isso. — ela sussurrou, chocada.
— Pelo que pude verificar, não havia outros funcionários na Academia.
— Não — concordou Beatrice—. Ou pelo menos não havia quando a
Sra. Trafford reservou suas horas comigo. Por um tempo, tivemos um médio
que dirigia sessões. Algo muito popular. Mas fugiu com a assistente do Dr.
Roland. Pelo que sei, eles estão agora em turnê pela América.
— Eu pesquisei este casal. Você está certa, eles estão na América. É
muito pouco provável que estejam chantageando pessoas aqui em Londres,
porque em suas instruções, os chantagistas marcaram o local onde se deve
fazer o primeiro pagamento: uma casa de campo chamada Alverstoke Hall.
— Eu nunca ouvi falar desse lugar —ela admitiu—. A verdade é que as
únicas vezes que frequento os círculos sociais é quando eu tenho uma missão.
— Lorde Alverstoke é um excêntrico cuja a famosa coleção de
antiguidades egípcias deixa em evidência o Museu Britânico, dizem.
Beatrice ficou confusa.
— E o que tem ele em toda esta história de extorsão?
— Eu não tenho ideia —disse Joshua—. Ainda não. Mas, pelo que eu
sei de Alverstoke, suspeito que o estão utilizando. Foi-me dito que é fácil
confundi-lo estes dias, e que parecia distraído. Ele organizou uma festa
campreste em sua casa neste fim de semana. É um encontro anual em que
mostra sua coleção. Alverstoke e minha irmã se conhecem de vista, mas ela
nunca tinha estado na lista de convidados dessas reuniões. Não que goste de
festas campestres ou antiguidades egípcias. Mas o chantagista indicou que a
esta tem que ir.
— Alverstoke Hall estará cheia de convidados —, disse Beatrice—.
Para um chantagista é uma cobertura perfeita, entre tantos suspeitos.
— Exatamente. Se assumirmos por um momento que você não é
especialista em hipnose...
— Não sou — disse Beatrice, olhando para ele fixamente.
— Então, vamos considerar outro cenário. Minha irmã me disse que se
lembra dos encontros com você. Quando chegava na Academia, o Dr.
Fleming sempre a fazia entrar em uma sala escura e lhe dizia que você iria
chegar a qualquer momento. Lembra-se das consultas...
Beatrice ergueu a mão para interromper.
— Um momento, senhor. Sua irmã me descreveu?
— Descreveu Miranda, a clarividente. Esta era você, Senhorita
Lockwood. Usava uma peruca preta e um véu espesso em sua atuação.
— Em outras palavras, a Sra. Trafford nunca me viu, não é? Ela não
conseguiria me identificar.
— Não. No entanto, estou ciente de que você era Miranda, então não
há nenhum sentido tentar negar— Joshua explicou calmamente—. Mas
vamos continuar. Em cada uma das sessões faziam entrar minha irmã para a
consulta. Você entrava. Falava com ela por um tempo. Mas agora começo a
pensar que talvez em uma ou mais ocasiões o Dr. Fleming voltava para a sala
para colocá-la em transe, e que assim poderia ter acedido ao segredo. Talvez
ele lhe induziu uma sugestão pós-hipnótica em que ordenava que esquecesse
que ele tinha entrado no quarto. Minha irmã, então, teria deixado a Academia
com a única lembrança de ter consultado com você.
— Isso não foi assim— insistiu Beatrice—. Estou absolutamente certa
de que a Sra. Trafford jamais pediu uma terapia hipnótica. O Dr. Fleming
nunca a tratou, nem na minha presença, ou de qualquer outra forma.
— Então, como foi que alguém na Academia poderia saber o segredo?
— Não sei. — Beatrice parou e tentou ordenar seus pensamentos —.
O que o faz tão certo de que quem está chantageando sua irmã estava
envolvido na Academia?
— A nota que a minha irmã recebeu indicava que seu segredo foi
descoberto por recursos paranormais na Academia. Eu descartei a ideia de que
os poderes psíquicos estavam envolvidos, naturalmente.
— Naturalmente.
Ignorou seu sarcasmo. Ou talvez ele simplesmente não tivesse notado
sua frieza, pensou Beatrice.
— Mas minha irmã há muito tempo está interessada no paranormal,
continuou Joshua —. Hannah consultou muitos profissionais nos últimos
anos e pertence a uma pequena sociedade de pesquisadores. Está convencida
de que, se inadvertidamente, revelou seu segredo, só poderia ser durante as
sessões privadas com você na Academia.
Beatrice estreitou os olhos.
— E por que eu sou a suspeita mais óbvia?
— Em sua opinião, você é uma das poucas pessoas com talento
psíquico verdadeiro que ela tenha encontrado no curso da sua investigação.
Os outros não parecem ser suspeitos. Um, está em um lar de idosos. Outra, é
uma mulher maior e doente, que não pratica profissionalmente e não aceita
clientes. Dois, são pessoas muito solitárias, que não recebem visitas. E o
último candidato ganha a vida como jogador. Dois anos atrás, ele foi para a
América, porque ele recebeu a notícia de que poderia fazer um monte de
dinheiro nas mesas de jogo do Ocidente. Só resta você, Senhorita Lockwood.
— Já vejo — disse Beatrice com uma careta.
— Talvez lhe interesse saber que há um novo inquilino nas salas
ocupadas por Fleming e você para o seu negócio. — Joshua terminou o café e
colocou a xícara e pires de lado —. Mas o proprietário foi amável em me
deixar averiguar os locais.
Ela o olhou com cautela.
— O que esperava encontrar lá, depois de tantos meses?
— Entre outras coisas, eu encontrei algumas velhas manchas de sangue
no chão do escritório — disse Joshua —. O sangue é algo muito difícil de
limpar, muito.
Ela estava prestes a tomar um gole de café, mas os dedos tremiam
ligeiramente. Recolocou a xícara no pires com grande cuidado.
— Também encontrei um antigo túnel de pedra atrás de um velho
armário no escritório— acrescentou Joshua, com tom amigável.
Ela respirou fundo.
— Já vejo que fez uma inspeção completa, o Sr. Gage. Aquele túnel foi
a maneira que eu usei para escapar na noite em que Roland foi morto. — Ela
fez uma pausa para permitir o fluxo de memórias. —. Roland e eu
guardávamos nossa bagagem de emergência apenas entrando no túnel, caso
tivéssemos que fugir de ladrões, ou clientes descontentes.
— É mais provável que Fleming temia que, mais cedo ou mais tarde,
uma das vítimas de extorsões poderia aparecer por lá, procurando por ele —
disse Joshua. Ele levantou uma sobrancelha. —. Ou talvez tivesse medo de
que alguém na mesma linha fosse tentar roubar seus segredos.
— Será possível? — Estava exausta demais para pensar direito —. Eu
não posso acreditar que Roland estava chantageando as pessoas.
As últimas palavras de Roland ecoavam em sua mente: "Não me deixe
morrer com esse peso na consciência. Eu tenho o suficiente do que me
lamentar. "
— Você diz que você e Fleming mantinham a bagagem de emergência
no túnel? — perguntou Joshua.
— Sim. E eu tive que deixar a dele lá, naquela noite. Eu não podia levar
ambas. Mas eu abri a bagagem de Roland para pegar o dinheiro que sabia que
ele mantinha dentro. — Beatrice hesitou. —. Percebi que tinha coisas
estranhas naquela mala. Um caderno. Um envelope cheio de fotografias.
Alguns cartões...
— Você não podia levar a bagagem de Fleming... — salientou Joshua
—. Talvez pegou um punhado de itens para realizar chantagem, juntamente
com o dinheiro, e deixou o resto?
Ela sentiu uma onda de raiva.
— Não! — exclamou —. Peguei o dinheiro, e nada mais. Eu me
perguntava por que ele manteve esses itens em sua bagagem, mas cheguei à
conclusão de que tudo isso eram memórias com grande significado pessoal
para ele. Mas o homem que matou Roland deve ter encontrado a mala quando
ele fez o seu caminho a partir do fundo do armário. Encontre-o e terá o seu
chantagista, o Sr. Gage.
— Isso é precisamente o que pretendo fazer — disse Joshua,
exaltado—. Com a sua ajuda, senhorita Lockwood.
Capítulo 10

— Acredita em mim? — perguntou Beatrice, ainda cautelosa.


— Sim — disse ele.
— Você realmente acredita que não assassinei Roland e logo comecei a
chantagear os clientes da Academia?
— Tenho a certeza que você não matou Fleming.
— Bem — disse ela, recuperando o ânimo —, agora que me conhece já
não pensa que seja capaz de matar ou fazer extorsão.
— Todo mundo é capaz de assassinato nas circunstâncias certas. —
Joshua fez uma pausa, como refletindo na segunda parte de sua avaliação —.
Quanto à extorsão, o mesmo. Como eu disse, tudo depende das
circunstâncias.
Ela tornou-se séria.
— Você tem uma visão muito cínica da natureza humana, Sr. Gage.
— Eu prefiro considerá-lo uma visão realista — ele respondeu —. Mas,
neste caso, estou certo de que o assassino não é você.
— De verdade? Como você pode ter tanta certeza?
— As razões são diversas. A primeira é que eu li o relatório da autópsia
do médico. Foi muito bem feito, porque a morte de Fleming levantou paixões
em seu momento.
— Sim — disse Beatrice, balançando a cabeça. —. Todas estas
especulações absurdas da imprensa sobre se ele tinha sido assassinado pelas
forças do ―Além‖... foi enlouquecedor.
—Fleming administrava um negócio chamado Academia do Oculto —
respondeu Joshua asperamente. —. Parece bastante natural que, após o seu
assassinato, a imprensa fosse à loucura com as especulações sobre espíritos e
forças paranormais.
— Sim, a imprensa talvez, mas eu esperava uma melhor reação por
parte da polícia — disse ela —. Sim, é verdade, não atribuíram nenhuma
morte a fantasmas, mas em vez disso, voltaram sua atenção para mim.
— A assistente desaparecida, sim. Mas tem que admitir que eles tinham
boas razões. Pensar que você fosse a assassina, era lógico. Era a mulher
misteriosa da questão. Ninguém tinha visto o seu rosto por causa das roupas.
— Roland pensava que o véu e roupa de luto próprias de uma viúva
acrescentava um elemento dramático às manifestações — disse Beatrice —.
Também pensava que assim era mais seguro. Afirmava que entre o público de
um evento paranormal tinha sempre algumas pessoas estranhas. Temia que
pudesse atrair um indivíduo perturbado.
Joshua assentiu com ar muito sério.
— Essa é uma precaução muito justificada.
— E no final foi o que aconteceu. O homem que esfaqueou o pobre
Roland não era mais que um louco, alguém que estava obcecado por mim.
Roland morreu tentando me proteger.
A expressão de Joshua era quase selvagem.
— Você tem certeza disso?
— Eu não tenho nenhuma dúvida. O homem que matou Roland estava
vindo atrás de mim Eu o ouvi jurar que iria me caçar. Essa foi a principal
razão que me levou a pensar que eu tinha que desaparecer a todo o custo.
— Um homem com uma fascinação doentia por uma mulher que, ele
acredita, tem poderes ocultos, mata outro homem que se interponha e em
seguida, rouba o estoque de itens de chantagem da vítima e passa a explorar
os seus segredos, não é? — Joshua pensou por alguns segundos —. É
possível.
— É a única explicação que faz sentido — acenou ela com
exasperação.
— Uh-huh.
Ela estudou-o por um longo tempo.
— O que consta do relatório de autópsia para convencê-lo de que eu
não era fui a assassina?
— Roland Fleming era um homem grande. A ferida estava na parte
superior do tórax. A força e o ângulo da facada indicam que o assassino era
alto e forte, e provavelmente um especialista em lidar com a faca. Ou isso, ou
foi muito feliz em sua primeira tentativa. O fato é que você é uma mulher
bastante pequena e delicada. Se tivesse utilizado uma faca, a aparência da
ferida teria sido completamente diferente. Na verdade, para começar, não teria
corrido o risco de usar um punhal. Na minha experiência, as mulheres
preferem métodos mais limpos. Como o veneno, por exemplo.
Ela ficou impressionada com esta forma metódica e fria de analisar o
crime.
— Minha mãe! — exclamou, inspirando profundamente —. Parece
evidente que você tem uma experiência considerável em tais assuntos.
Joshua olhou para ela com olhos de aves de rapina, sem pronunciar
palavras.
— E se já havia concluído que não era a assassina, por que tentou me
assustar com as suas suspeitas? — perguntou ela.
— Peço-lhe que aceite minhas desculpas — disse ele —. Eu sabia que
não era você, mas eu não sabia, e ainda não sei, é qual a natureza da sua
ligação com o assassino.
Ela congelou.
— Não tenho nenhuma ligação com ele.
— Nenhuma que você sabe — a corrigiu.
— Por todos os diabos! Porque você acha que eu estou relacionada
com um assassino?
Seus olhos se estreitaram nos cantos.
— Há algo neste caso que me faz pensar que tudo está conectado —
disse ele —. Tudo, até você e o assassino.
— O assassino?
— Eu acho que quem matou Fleming era um profissional, que com
toda a probabilidade, trabalhou naquela noite em troca de dinheiro.
— Então, alguém mais estaria envolvido.
— Sim, acho que sim. Assim, estou procurando duas pessoas: o
assassino e seu patrão. Mas e você? Onde é que você se encaixa, senhorita
Lockwood?
— Eu não tenho a menor ideia.
— Você poderia descrever o assassino?
— Fisicamente não. Mas eu ouvi sua voz. Ele falava com um sotaque
russo pronunciado. — Beatrice fez uma pausa —. Ele chamou a si mesmo
Homem Osso. Eu o ouvi dizer que "o Homem Osso nunca falha.". E
também vi suas pegadas.
— Suas pegadas? — repetiu Joshua, franzindo a testa.
— Eu sei que você não vai acreditar em mim, mas eu vi essas pegadas...
paranormais no chão do escritório naquela noite. Se eu as voltasse as ver em
qualquer lugar, a qualquer momento, as reconheceria. — Beatrice estremeceu
—. Tinham tanta energia violenta!
— Uh-huh.
Beatrice ergueu as sobrancelhas.
— Já pensava que esta minha observação não iria impressioná-lo.
— Maldita seja. Este caso está se tornando cada dia mais estranho.
Ela serviu mais café para ambos.
— Como descobriu que eu era a clarividente Miranda? — perguntou.
— Encontrar as pessoas é algo em que eu sou muito bom.
— A Sra. Flint e a Sra. Marsh me deram a mesma opinião. — Ela lhe
deu um olhar inquiridor —. Qual é o seu segredo?
— Não há nenhum truque para encontrar o que foi perdido. É
simplesmente procurar no lugar certo.
As Sra. Flint e Sra. Marsh estavam certas, pensou seriamente.
Reconhecendo ou não, parecia que Joshua tinha uma habilidade paranormal
para localizar quem fosse, ou o que fosse.
Beatrice de repente considerou a possibilidade de fazer a bagagem e
embarcar no primeiro navio a sair para a América. Mas mesmo antes de que
este plano tomasse forma em sua mente, sabia que ele estava condenado ao
fracasso. Fugir não adiantava. Joshua já a havia encontrado uma vez. Claro
que a poderia encontrar outra vez. E outra.
Ainda assim, tinha que haver uma maneira de tirar proveito da situação,
pensou. Por certo que Joshua tinha as suas próprias razões para encontrar o
assassino, mas se conseguia —e com esse talento a possibilidade era real —
ela poderia finalmente se livrar do medo paralisante que a tinha dominado por
quase um ano.
— Eu não nego que Roland me apresentava como Miranda a
clarividente, durante a minha associação com a Academia do Oculto — disse
—. Mas também é verdade que eu nunca chantagiei ninguém na vida. E se
não lhe peço para sair imediatamente desta casa é porque eu estou um pouco
em dívida com você, após os acontecimentos de ontem à noite.
— E porque pensa que eu estou em posição de lhe fazer outro favor —
destacou ele —. Quando encontrar o chantagista, poderei chegar ao assassino
de Fleming. Você não só obterá alguma justiça para ele, mas também se livrará
da ansiedade que, certamente, tem sentido nos últimos meses. É difícil ter que
olhar constantemente para trás por cima do ombro, certo?
Era como se tivesse lido sua mente. Beatrice conteve-se de atirar a
xícara em sua cabeça. Realmente, como podia ter achado esse homem
atraente?
— Da maneira que fala, parece que não tem nenhuma dúvida de que
poderá encontrar o assassino de Roland e o chantagista — disse.
— Sempre consigo o que me proponho — disse ele.
Não se tratava de arrogância, pensou ela. No que a Joshua concernia,
simplesmente constatava um fato irrefutável.
— Nunca falha, Sr. Gage? — lhe perguntou com genuína curiosidade.
— Não —respondeu ele. Ele fez uma pausa —. Mas às vezes cheguei
tarde demais.
E de repente Beatrice soube, sem qualquer dúvida, que uma dessas
ocasiões — uma vez que havia chegado tarde demais para salvar alguém —
era a que marcava as sombras e suas impressões e também, muito
provavelmente, a cicatriz e a bengala.
Ele estendeu a perna esquerda e mudou ligeiramente de posição em sua
cadeira. Podia adivinhar a partir de uma tensão quase imperceptível nos cantos
da boca quanto lhe custou para fazer esse movimento.
— Você parece desconfortável, Sr. Gage.
— Uma velha ferida. Às vezes me incomoda.
— Como após carregar um homem inconsciente para levá-lo a um
carro que espera?
Sua boca se torceu em um sorriso amargo.
— Sim, eu estou ficando velho demais para esse tipo de exercício.
— E Richard Euston não era exatamente um homem pequeno.
Joshua fez como se não tivesse ouvido o comentário.
— Esta manhã eu parei no escritório da Flint e Marsh.
— Ah sim?
— A Sra. Flint e a Sra. Marsh me asseguraram que você é uma de suas
melhores agentes — disse.
— Estou feliz em saber que estão satisfeitas com os meus serviços.
— Também as informei que quero contratá-la como dama de
companhia — acrescentou friamente.
— O quê?
— Se você concordar, organizaremos uma armadilha para capturar o
chantagista, que por sua vez levará ao assassino que matou seu ex-
empregador. — disse Joshua.
— Parece que não tenho outra alternativa neste assunto — respondeu
ela —. Vou ajudá-lo a realizar o seu plano.
— Obrigado.
— E diga-me senhor, como um assunto de interesse geral, sempre leva
seus negócios desta forma?
— Perdoe-me, mas eu não tenho a certeza do que você quer dizer.
Ela deu um sorriso frio.
— Simplesmente eu estava pensando se tem o hábito de recorrer a
pressões e ameaças quando deseja a cooperação dos outros.
— Bem, sim, eu acho que a pressão é uma técnica eficaz. Quanto às
ameaças ... Eu nunca ameaço: somente prometo.
— Como diz o velho ditado, "Você pode pegar mais moscas com mel do que
com vinagre."
— Pois, eu nunca gostei de mel.
Capítulo 11

Clement Lancing acendeu a máquina de eletricidade e inseriu a


extremidade livre do cabo dourado no frasco de vidro cheio da preparação de
conservante. O resto do fio estava enrolado em volta do pescoço da estátua
de Anúbis, localizada ao lado do banco de trabalho.
Apareceram pequenas bolhas no líquido conservante. Clement teria
jurado que os componentes químicos começavam a mudar de cor. Mas
quando ele olhou para a estátua, viu que os olhos de obsidiana do Deus com
cabeça de chacal continuavam frios.
No entanto, ele não perdia a esperança. A água egípcia tinha se tornado
espumosa. Ele olhou o rato morto submerso no líquido. Ele tinha certeza que
tinha visto pequenos e bruscos movimentos nas pernas. Por um momento
pensou que finalmente tinha conseguido e que a criatura tinha despertado do
profundo estado de animação suspensa induzida pela fórmula.
Foi frustrante ser obrigado a repetir as suas experiências com ratos, mas
não se atrevia a tentar novamente com os humanos. Isso foi o que levou ao
desastre um ano atrás. Gage tinha se afastado, mas provavelmente ainda
dispunha dos seus contatos de rua. Se as pessoas começassem a desaparecer
de novo nos bairros mais pobres, com certeza a notícia iria alcançá-lo mais
cedo ou mais tarde. E então reconheceria o padrão. Gage era muito bom
quando se tratava de identificar padrões.
Clement manteve o cabo imerso no líquido durante dois minutos
completos, o tempo mais longo até agora. Mas quando ele retirou do frasco o
líquido clariou e descoloriu. O rato ficou flácido, absolutamente imóvel. Para
todos os efeitos, parecia morto.
No entanto, Clement pensou que não estava. Não havia nenhuma
evidência de decomposição. A criatura estava em um estado de animação
suspensa. Ela estava viva. Ao contrário era impossível. Ele não podia aceitar
nenhuma outra alternativa.
Ele observou o rato por um bom tempo antes de levantar os olhos para
os outros nove frascos que se alinhavam lá em cima, sobre uma prateleira
próxima. Em cada um, um rato imóvel conservado em água egípcia. Ele tinha
preparado a fórmula com extremo cuidado, seguindo as instruções de um
antigo papiro, as instruções que Emma tinha traduzido.
A água funcionou, isso era certo. O problema era a fonte de energia:
aquela maldita estátua. Tinha que encontrar a mulher com a capacidade de
ativar a energia armazenada nos olhos de obsidiana.
Ele olhou para a figura de Anubis e conteve a raiva e a frustração que
ameaçavam consumi-lo. Tinha que se controlar se não acabaria martelando a
estátua. Emma tinha levado meses para encontrar os olhos, mas assim que
eles os tinham inserido na estátua, haviam sentido a energia que emanava
daquela figura.
No entanto, a energia que não podia ser liberada e conduzida era inútil.
Emma tinha sido forte, mas talvez não suficientemente forte. No entanto, eles
tinham vindo fazendo progressos até que o desastre tinha acontecido.
Nos últimos meses, Clement tinha feito inúmeras experiências com
eletricidade, com a esperança de que a moderna fonte de energia ultrapassasse
o último obstáculo. Mas agora era claro que não havia nenhuma maneira de
ignorar as instruções do papiro. "O adormecido só pode ser despertado por aquele que
tem a capacidade de iluminar as jóias."
Tinha que encontrar Miranda, a clarividente.
Londres estava cheia de médiuns paranormais que afirmavam possuir
poderes ocultos, mas em sua maioria, eram fraudulentos ou enganosos.
Encontrar uma mulher com verdadeiro talento havia sido tão difícil como
encontrar uma agulha num palheiro. No entanto, eles tinham tido um golpe
de sorte. Miranda, a Clarividente, era o que eles realmente precisavam, mas
havia escapado para desaparecer nas ruas da cidade.
O tempo estava se esgotando. De acordo com o papiro, o adormecido
tinha que ser ressuscitado antes de expirar um ano inteiro. Para além deste
tempo, o processo se revelava irreversível. Não havia outra escolha. Eles
tinham que encontrar o médium paranormal, e só havia uma maneira segura
de obtê-lo.
O risco era extraordinário, mas havia um homem com que se podia
contar para encontrar o que foi proposto.
Clement afastou-se do banco de trabalho e atravessou o chão de pedra
do laboratório até ao sarcófago de quartzo. O ataúde vinha do túmulo de um
sacerdote de alto escalão de um culto egípcio antigo e menor. Ao contrário de
qualquer outro que tinha sido descoberto, a tampa não era de pedra, mas um
grande pedaço de um vidro espesso, transparente.
O sarcófago estava vazio quando ele e Emma o tinham descoberto. No
início, eles tinham pensado que os ladrões de túmulos haviam levado a
múmia. Só depois de que Emma decifrou os hieróglifos gravados nas laterais
compreenderam a magnitude da sua descoberta.
Permaneceu de pé e olhou através da parte superior de vidro. O ataúde
não estava mais vazio. Emma estava dentro, imersa em um sono profundo,
mergulhada em água egípcia. Seus olhos estavam fechados. Seu bonito cabelo
escuro flutuava entre os fluidos químicos. Na caixa não havia lugar para as
volumosas saias e anaguas que tinha vestido naquele dia terrível. Ele tinha sido
forçado a colocá-la no sarcófago, vestida em sua camisola.
Se tinha morrido foi por culpa de Gage. O bastardo era responsável
pelo que aconteceu.
A raiva voltou a crescer em seu interior. Ameaçava afogá-lo. Apertou
suas mãos.
— Já o fiz, Emma — disse em voz alta —. Não vai falhar. Ele nunca
falha. Você logo estará aqui. Até então dorme, meu amor.
Ele olhou mais de perto e percebeu que o nível do fluido no interior do
sarcófago era menor do que no dia anterior. A tampa se encaixava
perfeitamente, mas não se podia evitar certa evaporação.
Ele foi para as prateleiras da extremidade oposta da sala e pegou o
recipiente que tinha o fornecimento de sais especiais. Era o momento de
preparar um pouco mais de água para encher o sarcófago egípcio.
Capítulo 12

Joshua estava sentado sobre uma almofada na frente da mesa baixa de


laca preta e se concentrava na vela que ardia no centro do candelabro. Junto
dele havia um pequeno gongo suspenso em uma moldura de madeira. Era
todo o mobiliário nesta sala, convertida por ele em um lugar de meditação.
Em outros tempos ele havia realizado exercícios mentais, enquanto ele
estava sentado no chão, de pernas cruzadas, mas uma posição semelhante no
momento era impossível, por causa da lesão na perna. No entanto, a posição
física não tinha importância. Ele vinha praticando a rotina de meditação desde
que tinha cerca de dez anos. Poderia entrar em um leve transe quase em
qualquer circunstância.
Embora já não necessitasse mais da chama ou do gongo para alcançar o
estado mais profundo, a familiaridade dos rituais lhe pareciam cativantes.
Naquela manhã tinha muito a considerar.
Tomou o pequeno maço e deu um pequeno golpe no gongo. O som
baixo ressoou na atmosfera. Primeiro efetuou os exercícios de respiração. Um
dos axiomas do seu mentor susurrava através dele.
"Controla a respiração e você irá controlar o resto."
Encontrou o ritmo certo de inspiração-expiração e tocou o gongo de
novo. Desta vez, seguiu o tom até ao transe auto-induzido.
Neste estado os sentidos permaneceram atentos. Ele podia sentir o
cheiro fraco da vela e ouvir os cascos dos cavalos e carruagens na rua, mas era
como se ele estivesse em outra dimensão. Uma parede invisível impedia que
as distrações de fora afetassem a sua concentração. A partir de seu reino ele
podia ver as coisas através de outra luz; via padrões e conexões difíceis de
perceber quando ele estava em um estado normal de consciência.
Ele meditou sobre Beatrice Lockwood. Ele sabia que ela era
fundamental para o sucesso de seu plano. Mas o que não entendia era como
estava conectada com o resto dos fatores do caso. Ela injetava uma dissonante
nota de caos no que, de outra forma, era um esquema de precisão como de
um cronômetro. Apesar de ter como regra fazer tudo o que pudesse para
controlar os elementos de incerteza, por vezes as correntes de caos eram
precisamente o que era necessário para abrir as portas que, de outra forma,
permaneceriam fechadas.
Caos, no entanto, era por definição imprevisível. O caos era uma
energia que, pela sua própria natureza, não poderia ser canalizada ou
controlada. Era uma força bruta, e essa força era sempre potencialmente
perigosa.
Ele voltou a pegar a marreta e bateu o gongo pela terceira vez. O som
instalou no ambiente durante vários segundos antes de desaparecer
gradualmente.
Seu estado de meditação ficou mais profundo.
Beatrice Lockwood era importante, e não apenas porque ele precisava
de sua ajuda para encontrar o chantagista e assassino.
Era importante para ele de maneiras que ele ainda não conseguia
entender em toda a magnitude.
Ele estáva tentando distinguir padrões no caos quando percebeu que
alguém chamava discretamente à porta. Chadwick não teria interrompido seus
exercícios sem uma razão poderosa.
Ele saiu rapidamente do transe e apagou a chama. Ele envolveu o cabo
da bengala com a mão para se por de pé e atravessou o pequeno espaço vazio.
Ele abriu a porta. Chadwick estava no corredor, vestido
impecavelmente, como de costume. Homem magro e rijo, de idade
indeterminada, levava o vestuário de mordomo com a desenvoltura de um
oficial militar de uniforme completo. Sob o fogo ele manteve maior
serenidade que muitos dos oficiais que Joshua conhecia. Chadwick tinha se
encarregado de cuidar de seu patrão até à sua recuperação após o desastre que
quase lhe custou uma perna e um olho. Chadwick havia enfrentado o sangue,
a febre, delírios e periódicas explosões de mau humor por parte de seu
paciente e sempre de forma tranquila, digna e eficiente.
— Desculpe interrompê-lo durante sua meditação matinal, senhor—
disse Chadwick —. Mas chegou o jovem Sr. Trafford. Ele diz que é urgente.
— Com Nelson tudo é urgente.
— Gostaria de lembrar que seu sobrinho tem dezoito anos, senhor. Os
jovens não acreditam que a paciência seja uma virtude.
— Talvez tenham alguma razão — disse Joshua —. Afinal de contas, a
vida é curta. Diga-lhe que desço em poucos minutos. Tavez possa encontrar
algo que esse menino coma? Sempre parece faminto quando vem nesta casa.
— Já está devorando um muffin enquanto falamos, senhor.
Soaram passos na escada. Nelson apareceu e caminhou pelo corredor,
movendo-se com graça atlética e rapidez que fez suspirar Joshua. Em outro
tempo ele também havia se movido com facilidade parecida. Como Nelson,
ele tinha assumido que sempre iria manter essa excelente coordenação física e
esses reflexos rápidos. O poeta estava certo, pensou ele, a juventude é
desperdiçada nos jovens.
— Então, tio Josh, a Senhorita Lockwood concordou com o plano? —
perguntou Nelson antes de tomar o último pedaço de bolinho em sua boca.
Nelson tinha cabelos escuros, feições angulosas e magreza que
caracterizaram os homens da família Gage. Além disso, tinha uma sede de
aventuras que Joshua lembrava bem. Aos dezoito anos, ele também tinha sido
atraído pela excitação, perigo e uma causa nobre. Isso foi antes de descobrir
que essas emoções eram muitas vezes acompanhadas de sangue, morte e
traição.
Mas tentar alertar os jovens como Nelson da realidade que os
aguardava era inútil. Sob nenhuma circunstância eles considerariam tais avisos.
A natureza tornava isso impossível.
"Agora eu estou muito cansado", pensou Joshua. Ele sabia que nada podia
parar Nelson. O melhor que podia fazer era tentar impedir seu sobrinho de
cometer os mesmos erros que ele. Mas como se fazia para instruir um jovens
sobre os perigos de confiar nos outros? Algumas coisas tinham que se
aprender da maneira mais difícil.
— Sim, a senhorita Lockwood concordou em ajudar — respondeu —.
Esta manhã enviei a sua mãe uma nota para deixá-la saber que vai participar
da festa campestre de Lorde Alverstoke com uma dama de companhia da
Agência Flint e Marsh.
— Perfeito —disse Nelson. Ele fez uma careta de frustração. —. Eu
gostaria de poder ir também.
— Isso não é possível. Nenhum de nós dois pode ir a esse
compromisso, pela simples razão de que ninguém nos convidou.
— Onde você vai estar? — perguntou Nelson.
— Eu consegui alugar uma casa perto da propriedade durante o fim de
semana. Vou passar por um pintor que vai para o campo para pintar algumas
paisagens.
Nelson pôs cara de surpresa.
— Mas você não pinta...
— Aplicar tinta em uma tela não tem segredos, enquanto não tente
completar toda a obra.
— Você tem que estar próximo caso as mulheres precisem. Você não
pode pretender que a senhorita Lockwood vá lidar sozinha com um
chantagista. Não é mais que uma acompanhante profissional.
— Miss Lockwood tem um lado oculto — declarou, pensando: "E
também esconde uma arma" —. Certamente, não pretendo que trate sozinha do
chantagista. Se o meu plano sair como planejo, nem ela nem sua mãe entrarão
em contato com ele. Não se preocupe, Nelson, manterei as mulheres
protegidas.
— Mamãe está muito preocupada com o seu plano. Não pára de falar
de que em seu último caso você esteve prestes a morrer. Diz que o seu
temperamento é semelhante a outros homens da família Gage. Está
preocupada que você acabe mal.
— Você sabe que Hannah tende a exagerar.
— Sim, é verdade — disse Nelson ao mesmo tempo que olhava para a
bengala e fazia uma careta. —. Mas diz que não se pode esquecer que teve
uma premonição terrível logo depois que você saiu de Londres para investigar
o seu último caso.
— A situação agora é completamente diferente.
Joshua tinha tentado pensar em uma declaração menos óbvia, mas não
tinha pensado nada mais reconfortante para dizer. Hannah tinha boas razões
para estar preocupada. Foi ela que, aos dezessete anos, teve que cuidar de seu
irmão mais novo, quando o pai, Edward Gage, um buscador de emoções
fortes ao longo de sua vida e que tinha ficado viúvo recentemente, havia
falecido. Ele havia sido baleado acidentalmente durante uma viagem de caça
no oeste americano.
Imediatamente após receber o telegrama com a notícia da morte de
Edward Gage, ela teve que enfrentar um outro desastre, desta vez de natureza
financeira. Depois de ouvir a notícia da morte de seu cliente, o gestor de
negócios de Edward tinha fugido com a fortuna dos Gage.
Com a ameaça muito real de asilo para pobres pairando sobre eles,
Hannah teve que aceitar a única solução possível: aceitar uma proposta de
casamento de William Trafford, um homem rico, que tinha generosamente
aceitado a presença do irmão mais novo da noiva em sua casa.
Trafford tinha provado ser um homem bom e sábio, que tinha tratado
Hannah e Joshua com grande bondade. Ele tinha, então, cerca de sessenta
anos, por isso era suficientemente idoso para ser o avô de Hannah. Viúvo,
sem filhos de seu primeiro casamento, ele tinha ficado emocionado quando
Hannah tinha lhe dado um filho.
Trafford tinha sucumbido a um ataque cardíaco alguns anos mais tarde,
mas não antes de dar instruções a Joshua sobre como gerir a fortuna que tinha
deixado a Hannah, Nelson e Joshua. Controlar os investimentos da família
tinha sido uma ocupação tão relativamente simples como chata para Joshua.
Os homens da linhagem dos Gage tinham o dom de fazer dinheiro.
Naquele tempo, Joshua tinha "caído nas garras daquele homem
horrível", como o descrevia Hannah. Esse "homem terrível" era Victor Hazelton,
conhecido nas sombras do mundo da espionagem como o Sr. Smith.
Hannah tinha-se dedicado a Nelson, de modo a garantir que seguiria os
passos de serenidade e erudição próprios de William Trafford, e não os do
avô ou do tio por parte de mãe. Por um tempo tudo correu bem. Até
recentemente, Nelson tinha sido um filho dado a seus deveres e pronto a
agradar a sua mãe.
No entanto, durante o ano anterior, ele tinha começado a mostrar o
que Hannah chamava o sangue feral que envenenava a linhagem dos Gage.
Ela temia que seu filho descesse ao inferno do jogo e dos clubes escuros do
submundo de Londres, como tinha feito seu avô e bisavô. Como Joshua tinha
feito por um tempo.
Ela tinha suas razões para estar preocupada, pensou Joshua. Dois
meses atrás, quando ele tinha vindo para Londres para cuidar de alguns
assuntos de negócios, ele tinha sido forçado a retirar Nelson de um dos piores
lugares da cidade. Ele tinha chegado justo no momento em que o
administrador do local mandava seus capangas atirar para a rua o seu
sobrinho, acusado de fazer trapaça. A tensão era palpável no ambiente.
Algumas noites atrás, ele tinha sido forçado a roubar do seu tempo de
investigação sobre o chantagista para repetir o exercício.
— Olhe isto deste modo, tio Josh — Nelson lhe disse, com a voz tomada
por um grande número de bebidas baratas —. Eu sempre ganho.
— Isso não é um mistério — Havia respondido Joshua —. Tem a sorte dos
Gage quando se trata de cartas. Infelizmente, essa sorte não se estende a muito mais.
— Sim, bem... Talvez seja melhor não mencionar este incidente para minha mãe.
— De acordo. Eu também não mencionei nada do episódio anterior.
Hannah ficaria horrorizada se ela descobrisse que Nelson cada vez
gastava mais de suas noites em busca de emoções escuras e prazeres ainda
mais escuros, entre as ruas mais perigosas de Londres.
Joshua estava bem ciente das circunstâncias enfrentadas por Nelson,
porque ele em sua idade tinha experimentado uma etapa frenética e
imprudente similar. Era como se um incêndio o queimasse por dentro. A
busca de uma via de fuga para que essa energia que o consumia não o
dominasse tinha-o arrastado para as ruas violentas do submundo de Londres.
Victor Hazelton o tinha encontrado nessa ruas e havia mudado sua vida
para sempre. Victor o tinha entendido. O homem conhecido como Mr. Smith
lhe havia mostrado como controlar a energia tempestuosa enraizada em seu
interior, e como dirigir e controlar as forças selvagens da sua natureza. Victor
tornou-se seu mentor, seu pai em todos os sentidos, exceto o de sangue.
Joshua enfrentava agora uma vida com a consciência de ter falhado a
Victor, o homem que o havia salvo de si mesmo.
— Se tudo correr de acordo com a estratégia que eu planejei, este
assunto em Alverstoke Hall será concluída em um ou dois dias — disse.
— De qualquer forma, pode ser convenientemente útil me ter por
perto, você não acha? — apontou Nelson esperançosamente.
Que diabos!, pensou Joshua. Ele havia tentado manter Nelson fora da
investigação para fazer um favor para Hannah. Ela não queria ele exposto ao
mundo em que Joshua tinha estado antes. Mas Nelson foi o primeiro a
perceber que eles estavam chantageando Hannah. Ele tinha o direito de
participar.
— Bem — disse Joshua por fim —, Acontece que tenho uma missão
muito importante que certamente adoraria que você assumisse.
A emoção de Nelson era palpável. Tanto entusiasmo quase fazia que
brilhasse.
— Do que se trata?
— Quero que você investigue o assassinato de Fleming. É uma questão
de poucos meses atrás, e na imprensa foi bastante comentado pelas relações
de Fleming com o ocultismo. Eu quero que você entreviste todos os que você
possa encontrar que viveram ou trabalharam perto do edifício onde estava
instalada a Academia do Oculto. Quero dizer lojistas, pessoal de serviço,
inquilinos, homens das entregas, a polícia do bairro, o vendedor de batatas
assadas... perguntar-lhes se eles repararam em algum estranho circulando pelo
bairro nos dias antes do assassinato.
— Eu não entendo — disse Nelson, franzindo a testa. —. Eu pensei
que você disse que o chantagista tinha todos os números para também ser o
assassino. Na verdade, se você está indo para a área de Alverstoke é para
encontrá-lo, certo?
— Esta manhã eu revisei o relatório da autópsia. Eu encontrei uma
informação que me leva a acreditar que poderíamos estar a enfrentar a trilha
de um assassino de aluguel. Também é possível que seja um chantagista, mas
agora eu me inclino a pensar que é mais provável que contratasse um
profissional. E a chantagem pode não ser o alvo original.
— O que você quer dizer?
— Quem enviou o assassino para a Academia tinha a intenção de raptar
a Sra. Lockwood.
— Por quê? —perguntou Nelson.
— Há aqueles que se tornam obcecados pelo tema de ocultismo e se
dizem praticantes profissionais desse absurdo. Aparentemente, algum
indivíduo perturbado voltou a sua atenção para a Senhorita Lockwood e
enviou o assassino à sua captura. É óbvio que o assassino falhou, mas
evidentemente encontrou em seu lugar o material de chantagem que deu ao
seu patrão, e agora ele está tentando tirar vantagem disso.
— Por que deveria esperar por quase um ano para chantagiar minha
mãe?
Joshua sorriu com aprovação.
— Uma excelente pergunta. Pelo que podemos deduzir, o chantagista
tem recebido dinheiro de outras vítimas ao longo dos últimos meses e só
agora se dedica a ameaçar Hannah. Mas também há outras possibilidades.
— Como quais?
— Não sei — respondeu Joshua —Por isso voltamos os nossos
esforços de investigação para descobrirmos. Estamos à procura de respostas.
— De acordo. — Nelson voltou a transmitir vitalidade e entusiasmo —
. Eu não tinha ideia que poderiam contratar os serviços de um assassino,
assim como se contrata uma governanta ou um jardineiro.
— É muito mais complicado do que parece, especialmente se pensa
contratar um especialista — disse Joshua —. Eu acho que o assassino de
Fleming foi realmente um especialista. Homens como ele trabalham com
método e colocando um monte de cuidado para não ser capturados. Estudam
os hábitos e rotinas de suas vítimas por algum tempo, antes de fazer quaisquer
planos.
— Eu entendo. E você acha mais provável que o assassino de Fleming
passou um tempo considerável observando Miranda a partir de vários pontos
de vista perto das instalações da Academia.
— Se estivesse na pele do assassino, assim teria abordado a questão —
respondeu Joshua sem pensar.
De repente, ele percebeu que Nelson estava olhando para ele com
algum excesso de especulação e curiosidade.
— Não importa. Mas você tem que se preocupar — acrescentou
Joshua rapidamente —. Seria extremamente útil se você fosse capaz de obter
uma descrição completa do assassino, mas depois de todos esses meses, isso
não será possível. Por mais que alguns possam recordar um estranho que
passou um tempo em torno antes do assassinato, o que certamente não iram
lembrar é a cor de seus olhos ou cabelos. O único fato que podemos dizer
com certeza é que o assassino falava com um forte sotaque russo. Que muito
esclarece as coisas.
— Vou começar imediatamente — disse Nelson.
Ele se virou e começou a descer pelas escadas.
— Não deixe de tomar notas — disse-lhe Joshua —. Você verá como é
útil quando comparar as várias descrições que as pessoas lhe darão. As
descrições variam muito, eu te aviso. Não há duas pessoas que se lembram de
algo exatamente da mesma maneira. Você vai precisar localizar um ou dois
elementos que todas as anotações terão em comum.
Nelson parou no pé da escada e olhou para cima.
— Eu entendi.
— Só mais uma coisa — disse Joshua —. Não use seu nome real. Diga
às pessoas que entrevistar que você é um escritor que reúne material de
pesquisa para escrever um romance policial sobre o assassinato de Fleming.
— Tudo bem — disse Nelson.
Ele abriu a porta da frente e saiu rapidamente para fora da porta. Ela se
fechou atrás dele.
Houve um silêncio.
Chadwick continha o riso.
— Eu me lembro daqueles dias em que você começou a resolver os
seus casos com o mesmo entusiasmo, senhor. —Joshua tinha ficado olhando
fixamente para a porta.
— Sim, eu também me lembro.
Nos últimos meses, ele tinha se comportado como um homem velho,
ele pensou, como alguém incapaz de sentir o menor interesse no futuro. Mas a
investigação sobre a chantagem havia mudado o seu humor. Sim, seus dias de
subir as escadas em duas passadas já tinham passado há muito tempo. Mas,
certamente, ele estava esperando o momento em que ele iria ver novamente
Beatrice Lockwood.
Capítulo 13

— É a casa mais estranha em que entrei na minha vida. — Beatrice


olhava a estatueta de bronze de Bastet no criado-mudo. A deusa egípcia estava
representada em sua forma de mulher com cabeça de gato. —. E garanto-vos
que, no decurso da minha carreira com a Agência Marsh e Flint eu fui forçada
a entrar em algumas casas realmente estranhas.
A mansão Alverstoke estava cheia de antiguidades egípcias. Em alguns
casos, eram falsificações óbvias, ou réplicas, mas Beatrice tinha certeza de que
havia também um grande número de peças originais, a maioria das quais
vieram de túmulos e templos. Podia sentir a energia que emanavmam.
Muitas pessoas, não apenas aqueles com algum tipo de talento oculto,
eram sensíveis ao frio do túmulo e à paixão daqueles que acreditavam em
mistérios religiosos de qualquer espécie. Era um tipo de energia facilmente
absorvida pelos objetos colocados em seus templos e túmulos antigos. Fazia
apenas um momento, ao cruzar a porta da frente da Alverstoke Hall, Beatrice
sentiu que lhe arrepiavam os cabelos do pescoço e também uma sensação de
coceira nas palmas das mãos.
— É por todas estas antiguidades — disse Hannah Trafford. Olhou
desconfortável para a estátua de Bastet —. São fascinantes, mas eu admito que
é estranho decorar uma casa inteira com objetos que parecem mais adequados
para as vitrines de um museu.
— Eu estava pensando exatamente isso — disse Beatrice — que Bastet
me dá arrepios.
Hannah olhou para ela com uma expressão simpática.
— O que estamos percebendo é a energia paranormal que possui o
objeto, certo?
— Sim, acho que sim. Sim.
Beatrice e Hannah estavam de pé em seu quarto. A porta que conectava
ao de Hannah estava aberta. Beatrice podia ouvir Sally, a serva de Hannah, se
deslocar por ali enquanto desfazia os baús de sua patroa. Esse processo
envolvia um monte de trabalho, porque, tal como muitas senhoras ricas,
Hannah levava sua própria roupa de cama, bem como suas toalhas, durante a
viagem.
— Bem essa sua Bastet não é nada comparada com o vaso canopo que
eu tenho no meu quarto. — Hannah estremeceu. —. Não tive coragem de
olhar para dentro. Acho que se eu olhasse iria descobrir os restos do fígado de
alguém.
Beatrice sorriu. Durante a viagem de Londres a pequena cidade de
Alverstoke, ela e Hannah se sentiram estranhamente confortáveis. A
tranquilidade em suas relações também podia ser explicada, em parte, pelo
fato de que se tinham conhecido como conselheira ocultista e cliente há cerca
de um ano atrás. Mas também havia aumentado pela aceitação mútua do
anormal, como parte do normal. Hannah tinha explicado que sempre a
fascinaram as questões relacionadas com o ocultismo e tinha estudado o
campo extensivamente. Ela estava convencida de que ela, pessoalmente, tinha
premonições muitas vezes ao longo dos anos, e estava ansiosa para falar sobre
um monte de temas com Beatrice.
Hannah Trafford era uma mulher atraente que se aproximava dos
quarenta. Ela usava o cabelo em uma trança elegante. Seus olhos eram do
mesmo verde dourado dos de Joshua. Ainda estava com o vestido marrom de
viagem na moda e botas altas e abotoadas, que tinha usado durante a viagem
de trem.
— Embora não estivessemos aqui para pegar um chantagista, duvido
que alguma das duas fosse capaz de dormir durante as próximas duas noites
com esses objetos ao lado de nossas camas — disse Beatrice —. Nós já temos
bastante com o que temos em nossa mente. Eu sugiro que nós vejamos com a
Sally da possibilidade de que Bastet e o vaso canopo sejam armazenados
temporariamente em outro lugar.
— É uma excelente ideia — disse Hannah.
Ela foi até à porta e falou brevemente com Sally. Beatrice começou a
esvaziar o seu pequeno baú. Em seu papel como dama de companhia tinha
levado apenas dois vestidos: um para o dia, que já tinha usado no trem, e um
para a noite.
Hannah voltou justo quando Beatrice estava colocando o recatado
vestido de noite no guarda-roupa.
— Deixe que Sally cuide disso — disse rapidamente Hannah.
— Assim está muito bem — disse Beatrice —. Eu já quase terminei.
Não há muito para desfazer as malas.
— Já vejo. — Hannah olhou com desânimo o vestido antiquado
pendurado no armário —. Pensei que como agente de Flint e Marsh podia
comprar uns vestidos mais luxuosos.
— Asseguro-lhe que minhas empregadoras são muito generosas —
disse Beatrice —, mas quando estou envolvida em uma investigação, não
posso abandonar meu papel como acompanhante em nenhum momento.
Aprendi essa lição no meu trabalho anterior.
Hannah escolheu um dos assentos e uma vez que se tinha sentado, a
olhou pensativa.
— O desempenho que você oferecia como Miranda, a Clarividente era
brilhante. Você disfarçava muito bem esse cabelo vermelho, e não percebi que
você tinha olhos azuis. O véu que você usava era muito grosso.
— O Dr. Fleming acreditava que a presença de Miranda no palco tinha
que ser dominante. — Beatrice colocou uma camisola dobrada em uma
gaveta. —. Ele não achava que poderia conseguir sem essas roupas. Mas a
principal razão por que insistia em que eu sempre tinha que desempenhar o
papel de Miranda era porque ele se preocupava com aqueles que ficam
obcecados com uma mulher que consideram clarividente.
— Bem, ele estava certo em ser cauteloso. — Hannah hesitou —. Você
teve duas ocupações muito interessantes, Beatrice.
— Sim, a meu respeito tive sorte. E ambas bem pagas, também.
— Mas quando você interpretava o papel de Miranda não era tudo uma
atuação, certo? Você tem dons paranormais, não é? — Hannah ficou tensa,
como se estivesse se preparando para uma notícia má —. Você pode prever o
futuro?
— Não. — Beatrice fechou a gaveta e se sentou na beira da cama —.
Não, eu não vejo o futuro. Eu não acho que qualquer um pode fazê-lo,
embora seja certamente possível prever alguns resultados prováveis quando se
tem informação suficiente. Mas isso é uma função da lógica, não da
adivinhação. E, pela experiência que eu tenho, não faz bem a ninguém que lhe
digam que vai por mau caminho.
—Ah. —Hannah sorriu com tristeza —. Porque ninguém quer
realmente um bom conselho, certo?
— Rara é a pessoa que se deixar guiar pela lógica em vez da paixão.
— Sim, eu sei — concordou Hannah e depois suspirou
perceptivelmente —. Então qual é exatamente a natureza do seu dom?
— Eu vejo a energia oculta que os outros deixam para trás nas
impressões dos objetos que tocam. As cores e os padrões das correntes me
dão muita informação sobre o indivíduo que os gerou.
— Deve ser fascinante.
— Bem, não é essa palavra que eu usaria para o descrever — disse
Beatrice —. Não vou negar que esse dom tem a sua utilidade. Com a exceção
de duas tentativas breves de trabalhar como governanta, que não terminaram
muito bem, de uma forma ou de outra, eu fiz a vida com meus dons
paranormais. Mas em essa face oculta há aspectos que são perturbadores.
— Como você pode dizer isso? Que presente tão grande tem em poder
ler a personalidade de outras pessoas e observar os passos paranormais de
tudo o que tocam ...!
— A Energia Psíquica permanece por um longo tempo: anos, décadas,
séculos... — Beatrice olhou para a estatueta de Bastet e aguçou seus sentidos.
A deusa mulher-gato estava coberta, camada sobre camada, de uma energia
borbulhante e quente. Ainda posso perceber os flashes de vestígios do
escultor que fez esta figura, e as do sacerdote que a colocou na câmara
funerária. Eu posso ver vestígios dos ladrões que a tomaram e as dos
colecionadores obsessivos que a possuíram ao longo dos séculos.
— Como você pode distinguir as impressões de tantas pessoas
diferentes?
— É que eu não posso, ou pelo menos não posso vê-las com grande
precisão — disse Beatrice —. É o problema que têm os antigos objetos
antigos e os velhos casarões como este. Ao longo dos anos, as camadas de
energia que deixam as pessoas formam uma névoa escura que é... É muito
perturbador para contemplar, durante o tempo que seja. — Interrompeu seu
raciocínio —. Posso vislumbrar flashes dos diferentes padrões, mas não
impressões completas. Meus dons só são precisos quando estou ante vestígios
mais recentes: os que ficaram nos últimos meses são os mais proeminentes e
podem ser isolados do resto. Para além desses limites as coisas se confundem
muito rapidamente.
Hannah levantou-se e atravessou o quarto para fechar a porta que dava
para o outro quarto. Ela voltou e se sentou novamente. Com uma mão ela
agarrou fortemente o braço da poltrona.
— Quando contratei você para essas consultas privadas na Academia
do Dr. Fleming, viu a verdade em minhas impressões psíquicas — disse com
voz surpreendentemente firme e confiante, por muito que a tensão subjacente
vibrasse em cada uma das palavras. —. Você disse que meus nervos estavam
em frangalhos e que eu tinha que encontrar uma maneira de acalmar a minha
agitação interior. Você disse que minha ansiedade estava enraizada em um
medo subjacente.
— E você já sabia todas essas coisas antes de vir me ver — acrescentou
gentilmente Beatrice —. Na verdade, por isso veio até mim.
— Sim, claro. Você sugeriu que deveria identificar a origem desse medo
para enfrentá-lo. Me indicou que, se não o fizesse, a ansiedade poderia
continuar dominando-me por dentro. Eu tentei fazer o que você me disse,
mas eu não pude encontrar qualquer paz. E agora a ameaça dessa maldita
chantagem tem feito tudo muito pior. E o pavor, cada vez maior, faz que
dormir seja quase impossível.
Beatrice voltou-se para aguçar seus sentidos e examinou as impressões
que Hannah tinha deixado no chão. Alguns dos fluxos tinham o calor próprio
de uma febre.
— Eu posso ver que, de fato, seus nervos estão mais tensos agora do
que quando fez sua consulta comigo. Mas isso faz sentido, dada a situação que
está passando.
A boca de Hannah se curvou em um sorriso amargo. Ela se levantou e
foi até a janela. E ficou lá, olhando para fora.
— Não há nada como a chantagem para provocar um caso de nervos
em frangalhos.
— Eu duvidava em fazer esta pergunta — começou Beatrice com
precaução —, mas pode ser importante. Você não disse nada sobre a natureza
do segredo que a tornou vulnerável a uma tentativa de extorsão. Certamente,
isso não é da minha conta. Mas é possível que o seu segredo esteja, de alguma
forma, relacionado com a ansiedade que a levou a mim há tantos meses?
— Não, ou pelo menos eu não percebi dessa forma. Meu segredo está
relacionado com o passado de uma amiga muito querida, não com meu
próprio passado. Ela estava envolvida em um casamento horrível. O marido
abusou dela terrivelmente e morreu (em boa hora, deve ser dito) em, o que
alguns chamariam, de circunstâncias suspeitas.
— Oh, eu vejo — disse Beatrice —. Em outras palavras, sua amiga
ajudou o marido na viagem para o outro mundo.
Hannah virou com olhos arregalados.
— Foi um pouco mais complicado do que isso.
A compreensão tinha acabado.
— Esteve você envolvida? — perguntou Beatrice.
— De certa forma. Vou lhe contar toda a história. Você tem o direito
de saber o meu segredo.
— Não é necessáriio que...
Mas Hannah já estava falando com a voz entrecortada e tensa. Era
como se precisasse desabafar toda a história, como se tivesse que fazê-lo
rapidamente.
— Uma noite, minha amiga apareceu na porta do meu jardim — disse
—. Ela estava machucada e sangrando. O marido a havia espancado
impiedosamente. Nelson estava na escola. A governanta e eu estávamos
sozinhas na casa. Entre as duas levamos minha amiga para a cozinha.
Estávamos tratando suas feridas quando o marido quebrou o vidro da porta
de trás e irrompeu na cozinha. Ele tinha uma faca na mão e estava fora de si.
Ele não escondia sua intenção de matar sua esposa e nos matar a mim e
minha empregada por tentar ajudá-la.
— Isso é horrível! — sussurrou Beatrice —. O que você fez então?
— Agarrei uma cadeira da cozinha e tentei me defender, enquanto a
governanta fazia o mesmo com uma frigideira. Minha amiga estava
gravemente ferida, de modo que ela só poderia rastejar debaixo da mesa. A
governanta e eu tentamos protegê-la com a cadeira e a frigideira quando Josh
apareceu pela entrada da cozinha. — Ela fez uma pausa —. Ele tinha uma
faca na mão.
Hannah calou-se de repente.
— Agora você tem que me dizer o resto —pediu Beatrice —. Você não
pode me deixar com o suspense, por mais que queira...
— Até aquela noite eu não sabia que Josh é muito hábil com... com
facas — disse Hannah francamente.
— Oh! Nossa ... — Beatrice engoliu saliva —. Sim, já vejo. Bem, eu
tenho que dizer que estou muito feliz que ele tenha chegado naquele
momento.
— Oh, sim, todas ficamos contentísimas de vê-lo aparecer! — disse
Hannah. Ela lutou para se recompor e continuou —: A bagunça era absoluta,
como é fácil de entender. Havia sangue por todas as partes. Mas, no final,
conseguimos limpar tudo e, em seguida, Josh se encarregou do corpo. Ele foi
encontrado flutuando no rio no dia seguinte. Todos assumiram que o marido
da minha amiga tinha sido vítima de um ladrão que foi morto no caminho de
volta para casa depois de visitar um bordel.
— Adeus e vento fresco! Isso é tudo que eu posso pensar em dizer.
— Sim, mas aquele bastardo se movia em círculos influentes — disse
Hannah —. Ele era um homem rico. Se descobrem agora que há três anos
morreu na minha cozinha, a imprensa ficaria louca. Duvido muito que
abrissem uma nova investigação policial, porque já passou muito tempo. Josh
tem bons contatos na Scotland Yard. Eu tenho certeza que poderia parar uma
investigação em qualquer caso. Mas nem mesmo aquele homem tão terrível
para quem ele trabalhou, na época, poderia evitar que as fofocas fossem
repetidas nos jornais. Meu irmão e eu nos tornaríamos de repente muito
famosos.
Beatrice tamborilou com os dedos sobre a colcha.
— O que eu não entendo é como o Dr. Fleming descobriu o seu
segredo. Posso garantir que em nenhuma de suas visitas à Academia tentou
hipnotizá-la. — Ela fez uma pausa e franziu a testa —. A menos que você
tenha marcado uma visita privada com ele.
— Não — disse Hannah —. Além disso, estou absolutamente certa de
que minha amiga também não disse a ninguém. Eu sei que ela não
compareceu a qualquer uma das apresentações de Fleming. Não tem interesse
pelo ocultismo. E, quanto à governanta, ela é muito leal. Ela sempre manteve
os segredos da família. Mesmo se fosse o caso dela o ter confiado a alguém,
não posso imaginar que essa pessoa encontrasse o caminho da Academia do
Oculto. Parece tão improvável! Quanto a Josh, nunca disse a esse homem
terrível que lhe costumava contratar para fazer o seu trabalho sujo. E o
Senhor sabe que Josh confiava em Victor Hazelton como a um pai.
— Não te entendo. Quem é Victor Hazelton?
— É o verdadeiro nome desse homem terrível que se faz chamar Mr.
Smith.
— Ah, sim! —exclamou Beatrice—. Então, o segredo foi mantido, mas
acabou parando com o monte de material de chantagem do doutor.
— Você pode ver porque a teoria de Josh, segundo a qual eu estava
hipnotizada durante estas sessões privadas faz sentido. Era a única explicação
que lhe ocorreu pensar.
— Honestamente, eu não sei como ele poderia fazer isso sem o meu
conhecimento —respondeu Beatrice.
Hannah suspirou.
— E eu acredito em você.
— Mas, como você diz, não foi o incidente da cozinha que a levou a
estas consultas privadas.
— Não — concordou Hannah com tranquilidade.
— Vamos encontrar o chantagista, e quando descobrirmos vamos
encontrar resposta para todas as nossas perguntas. —concluiu Beatrice.
Hannah ofereceu-lhe um sorriso tímido.
— Não duvido. Eu nunca aprovei a carreira de Josh, mas eu sou a
primeira a admitir que ele tem um talento especial para conduzir investigações.
Sempre encontra o que se propõe encontrar.
— Foi o que me disse.
Capítulo 14

O telegrama era breve, mas a sua mensagem trouxe um sentimento de


alívio e emoção para Clement Lancing. Ele ficou ao lado do caixão e leu-o
duas vezes para se convencer que a notícia era verdadeira.
Ele colocou a mão na parte superior do vidro e olhou para a mulher
que estava flutuando na água egípcia.
— Você conseguiu Emma, o desgraçado do Gage encontrou a
ocultista. Você não vai acreditar, mas todo esse tempo estava trabalhando
como dama de companhia. Não é difícil de entender por que era tão difícil de
encontrá-la. Estávamos procurando nos lugares errados. A estratégia é seguir
em frente. Gage engoliu a isca.
A mulher no sarcófago não deu mostras do escutá-lo. Seu sono era
muito profundo.
Ele notou que o nível de água tinha baixado novamente. Teria que
preparar mais líquido. Foi até à estante onde guardava os suprimentos de
produtos químicos. Os sais estavam acabando, mas na verdade não ia precisar
deles por muito mais tempo.
Capítulo 15

O grande salão da mansão de Alverstoke estava repleto de uma energia


escura. As correntes giravam em torno da imensa coleção de objetos egípcios
que colocavam limites nos sentidos de Beatrice.
Grandes estátuas de pedra de deuses, deusas e demônios egípcios,
muitos deles decorados com cabeças de animais, observavam da sua imensa
altura a multidão, com olhares implacáveis. Vasos de vísceras, besouros e com
os ankhs6 expostos em tabelas. Pinturas detalhadas que descreviam a vida
cotidiana naquele país tão antigo. (Um barco de pesca com seus pequenos
pescadores jogando as redes, uma casa com um jardim cercado). Em
exposição nas prateleiras, estavam caixas com tampo de vidro, contendo peças
brilhantes de joalheria, como peitorais, colares e brincos.
Beatrice estremeceu, e se enrolou mais no xale sobre os ombros.
Haviam colocado um banquinho no corredor, do lado de fora da grande sala.
Um conjunto de vasos de plantas escondiam a vista das pessoas que
passavam. Daquele posto de observação ela podia olhar os elegantes
convidados, através das folhas das palmeiras. Com a exceção de Hannah, a
maioria dos convidados de Alverstoke não parecia consciente da atmosfera
altamente carregada, ou pelo menos não parecia perceber. Falavam uns com
os outros e bebiam champanhe caro, enquanto ficavam maravilhados com
tantas antiguidades do seu anfitrião.

6
ankh: símbolo de longevidade no Egito Antigo
http://www.dictionarist.com/english-portuguese/ankh
Para Beatrice, no entanto, parecia que a maioria das risadas estava fora
de sintonia e as conversações com tom muito alto. Sim, naquela sala se
percebia uma corrente densa e nervosa.
Ela se esforçava a todo o momento para manter o contato visual com
Hannah, (o que não era fácil com a multidão que enchia a sala), quando outra
forma de consciência passou em sua mente.
Virou-se abruptamente e viu surgir, de uma passagem escura atrás dela,
um idoso cavalheiro com uma barba espessa. Ele usava óculos de aro de ouro.
Tanto a jaqueta quanto as calças tinham um aspecto triste, velho e estavam
fora de moda. Se apoiava numa bengala de ébano, que parecia familiar.
— O decorador de Alverstoke parece ser louco, para usar tantos
detalhes e motivos egípcios. — disse Joshua.
— Oh meu deus, que susto que você me deu! — Beatrice o olhou —
por favor, não fique aparecendo desse jeito, fico muito nervosa.
— Algo me diz que seus nervos são fortes o bastante para suportar
alguma surpresa ocasional. — Olhou, através das folhas de palmeiras, para a
sala de recepção. — Onde está minha irmã?
— A última vez que a vi estava perto da grande estátua de Osíris,
conversando com um cavalheiro. — Beatrice se virou para olhar na multidão.
— Aí está, a do vestido azul.
— Sim, já a vi. Ela está falando com Ryeford. Eles são velhos amigos.
Joshua parou para examinar o punho de uma adaga dourada que estava
exposta em uma caixa de vidro nas proximidades. Finalmente, ele perguntou:
— Eu entendo que não houve nenhuma comunicação do chantagista,
não é?
— Exatamente, mas estava na hora de você aparecer. — disse Beatrice
— Onde você estava? Eu estava começando a me perguntar se alguma coisa
tinha acontecido. Nós não tínhamos falado sobre a maneira que usaríamos,
para entrarmos em contato com você, ou mesmo como contatá-lo se
recebermos instruções do vilão.
— Quando — perguntou Joshua. Falava com um tom ausente, com
toda a atenção sobre a sua adaga.
— O quê? — Perguntou Beatrice, com expressão confusa.
— Disse que «quando» recebermos as instruções do vilão, não «se». O
movimento será aqui provavelmente esta noite. O mais tardar amanhã à noite.
— Como você pode saber? — Ela perguntou curiosa. Parecia muito
seguro de si!
— É uma conclusão lógica. A festa campestre dura apenas três dias. O
chantagista vai querer tirar vantagem da multidão. — Joshua levantou a tampa
do mostruário — A lâmina do punhal é mais interessante. Gostaria de saber
se é de verdade. Ele enfiou a mão no armário.
— Não toque nisso! — Beatrice disse, incapaz de se conter.
Ele olhou para ela.
— Por quê?
— Porque é realmente autêntica. — Beatrice se recompôs — Eles a
têm usado para matar em mais de uma ocasião e está impregnada de uma
energia perturbadora.
— Você está dizendo que pode sentir esses detalhes com seus poderes
paranormais? — Ele perguntou com um olhar que demonstrava curiosidade.
— Mas, você não acredita em nenhuma palavra.
— Eu acredito é numa imaginação muito fértil. — Ele disse
educadamente.
— Por que eu deveria me preocupar? O senhor tem razão, vá em
frente, pegue a adaga, não me importo.
Ele olhou pensativo e deliberadamente fechou os dedos em torno do
cabo do punhal a barba falsa e as sobrancelhas espessas escondiam sua
expressão, mas ela poderia jurar que sentia o calor daqueles olhos quando seus
dedos entraram em contato com a lâmina tão antiga. Tinha certeza que ele
sentiu um pequeno tremor e uma formigação, mas ela sabia que ele jamais
admitiria tal coisa.
Ela esperou, pensando que iria colocar a arma no lugar e fechar a
tampa. Ao invés disso, ele levantou a arma contra a luz de um candelabro na
parede para examiná-la melhor.
— Que interessante! — Disse ele.
Ele admirou o punhal durante um momento mais e depois voltou a pô-
la no armário com alguma relutância. Ela tinha certeza que ele tinha recebido
um choque paranormal daquele objeto tão antigo, daqueles que fazem você
sentir arrepios de medo e pavor percorrendo sua coluna. Não, segurar aquele
punhal teve um efeito contrário nele. Havia sentido uma faísca de emoção.
Joshua fechou a tampa da caixa e se dirigiu ao banco. Jogou-se nas
almofadas de veludo e segurou com ambas as mãos o cabo da sua bengala.
— Qual é o seu quarto? — Perguntou.
— Eu estou com a sua irmã na ala leste no piso superior. Foi destinado
à Sra.Trafford os quartos no final do corredor. Meu quarto está situado
mesmo adjacente ao dela, e ambos têm vista para os jardins.
— Excelente. Eu posso ver as janelas da casa. Os métodos mais
simples são muitas vezes os melhores. Quando Hannah receber instruções do
chantagista acenda uma vela e coloque-a no peitoril da janela. Eu lhe respondo
com três flashes de uma lanterna para que saibam que eu vi o seu sinal. Então
vamos nos encontrar na biblioteca.
— Como conseguirá entrar na casa? Perguntou ela. Tenho certeza que
todas as portas são fechadas quando todos vão para a cama.
— Sou, de certo modo, um expert quando se trata deste tipo de coisas
— disse.
— Oh, sim, claro, você era um espião profissional. — O tom era cético
—. Não sei como pude esquecer. — Suponho que seja necessário habilidades
para abrir portas se você está nessa profissão.
— Você não tem uma boa opinião da minha antiga profissão, certo?
— Você merece a mesma opinião que demonstra com relação ao meu
trabalho anterior. O senhor terá que aceitar, você e eu estávamos no negócio
de fabricar ilusões, com a intenção de iludir as pessoas. Eu sigo essa mesma
linha. — Olhou com desprezo o traje fora de moda e a barba grande. — E
fica claro que você também.
Ele encaixou a acusação se inclinou e assentiu.
— Você está certa Srta. Lockwood. Parece que temos muito em
comum.
— Nem tanto, nem tanto. Apenas talento para enganar. Acredito que
suas habilidades não estejam enferrujadas. Seria embaraçoso para sua irmã e
para mim ser surpreendido esta noite tentando invadir a casa.
— Não se preocupe farei o possível para não incomodar. Ele observou
os objetos que rodeava. — Me pergunto quantas dessas antiguidades são
falsas.
— Algumas com certeza são. — Ela voltou a arrumar o xale em uma
inútil tentativa de manter-se aquecida. — Porém não todas.
Joshua estreitou os olhos.
— Você tem conhecimento sobre Antiguidades Egípcias?
— Nenhum, Sr. Gage. Mas eu não preciso de conhecimento para sentir
a energia escura que é difundida em várias dessas peças. Eu suspeito que você
também a sente, mas certamente você tem explicação e uma argumentação
lógica sobre essa sensação.
Parecia divertido e também curioso, segundo pensava Beatrice.
— Como poderia fazer exatamente isso? — Perguntou ele.
Ela moveu a mão em um pequeno gesto.
— Talvez você fale para si mesmo que a sua sensibilidade está acordada
simplesmente porque está no meio de uma investigação. Portanto, o seu
estado mental está em vigília total. Isto gera certo nível de excitação que por
sua vez explica qualquer sensação estranha que você possa sentir.
— É uma sequência lógica razoável, e não, porque se baseia numa
premissa falsa.
— Além disso, neste caso há um aspecto pessoal que explica
claramente, em parte pelo menos, a sua reação. Você está aqui para salvar sua
irmã de um chantagista. Para fazê-lo é forçado a trabalhar com uma mulher
em quem não confia plenamente. Algo assim com certeza tem que atingir os
nervos. Você prefere ter o controle de toda e de qualquer situação. Supõe-se
que eu sou um peão em seu jogo, mas algo em você, não esta seguro que sou
digna de sua confiança.
— Ah, Senhorita Lockwood. Nisso está errada.
— Verdade? Beatrice não se importou em esconder sua incredulidade.
— Sim, certamente você é um elemento imprevisível, mas não a
considero um peão em nenhum caso — apontou ele.
— Está falando sério? — Beatrice inclinou ligeiramente a cabeça para o
lado. — Então, como me vê?
— Eu ainda não tenho certeza. — Ele hesitou, como se esforçando
para encontrar uma resposta. — Eu ainda estou avaliando o seu papel neste
processo.
Pelo tom de voz parecia tão sério, que por pouco não começou a rir.
— Bem, acontece que eu também continuo a fazer muitas perguntas
sobre o senhor - Disse ela suavemente. — De qualquer forma, você dá-me
razão. Pode explicar a sua sensação incómoda sem recorrer ao paranormal.
— Em outras palavras, não pode provar que haja correntes de energia
paranormal emanando de algum dos objetos desta sala.
— Não — respondeu ela — Mas, não vejo nenhuma razão para tentar
lhe provar a existência do paranormal. A baixa opinião que eu lhe mereço, é
esmagadora claro, mas afinal de contas não tem importância.
Gage Sorriu.
— Tudo o que eu disse é que você tem uma imaginação muito fértil.
Isso não implica que minha opinião sobre você seja desfavorável. O que é
devastador para mim é que a minha opinião sobre você não tem nenhuma
importância.
— Por que teria importância, senhor? — Ela respondeu educadamente.
— Afinal, quando este caso, estiver concluído cada um continua no seu
caminho e nós nunca mais iremos nos encontrar.
— Qualquer um pensaria que está ansiosa para o momento da
despedida.
— Eu tenho certeza que você também — disse ela.
— Veja bem, não, eu não estou desejando que os nossos caminhos se
separem.
Ele parecia vagamente surpreso com suas próprias palavras.
— Isso é algo que eu acho difícil de acreditar, Sr. Gage.
— Ao contrário de você, eu acho que a nossa breve associação é algo...
estimulante.
Surpreendida, ela o olhou com suspeita.
— Tolice.
— Estou falando sério. — Ele esfregou a coxa distraidamente e
concentrou a sua atenção na multidão. — Você é uma mulher refrescante,
Senhorita Lockwood.
— Refrescante?
— Não sei se posso explicar.
— Não há necessidade de explicar-me, senhor — disse ela. — Eu
entendo muito bem.
Ele ergueu as sobrancelhas falsas.
— Você entende mesmo?
— O seu problema é que, você viveu uma vida muito chata durante o
ano passado. Não deveria ter ido para o campo quando você estava em seu
auge da vida. Mas enfim, o que você estava pensando?
O ar descontraído e zombeteiro desapareceu em instantes, voltando a
ter o olhar gelado.
— Quem diabos pensa que é, Senhorita Lockwood, para andar
oferecendo conselhos e fazendo perguntas pessoais?
Ela se surpreendeu com o tom incomum de sua voz. Sim, de fato, mal
distinguível, mas lá estava, como um tubarão sob as ondas. Durante sua
recente relação com Joshua, a única coisa que ela tinha aprendido era que ele
era um mestre do autocontrole. Era a primeira vez que o viu com um toque
de raiva ou impaciência.
Além disso, lembrou a si mesma, ele tinha adquirido um autocontrole
rígido de si mesmo por uma razão, um homem de desejos fortes tinha que ser
capaz de controlar esses desejos.
Talvez a questão mais interessante que gostaria de saber era o que podia
fazer para sair das sombras, mesmo que apenas por um momento. Seduzir um
tigre vivo dentro de uma gaiola auto-imposta era um jogo arriscado. Afinal de
contas, era o tigre que tinha as chaves.
— Bem, acontece que eu sou sua parceira em uma investigação, Sr.
Gage. — disse ela — E não se esqueça que, se nós compartilhamos este
trabalho é porque você sugeriu que eu poderia fazê-lo bem feito.
— Isso não lhe dá o direito de bisbilhotar em meus assuntos
particulares.
— Eu não estava bisbilhotando. Era uma simples observação.
— E dá conselhos.
— Lamento dizer que a necessidade de fazer isso é uma característica
lamentável própria do meu talento. — Ela disse. — Eu acho que você precisa
de algum tempo para se recuperar, tanto do ponto de vista metafísico, como
do ponto de vista físico, de suas feridas. No entanto, hoje, no decorrer de
nossa viagem a Londres, sua irmã me explicou que no ano passado ficou
praticamente confinado. Agora está começando a sair do seu isolamento e
voltando a ter uma vida normal.
— Faz muito tempo que não tenho uma vida normal.
Ela ignorou essa previsão.
— Você sabe muito bem o que quero dizer, senhor.
— Hannah explicou-lhe por que ela está sendo chantageada?
Beatrice hesitou, mas finalmente concluiu que não havia nenhuma
razão para esconder a verdade.
— Sim — disse.
— Imaginei — Assentiu com a cabeça.
— Eu tenho que lembrá-lo que não é a primeira vez que Hannah e eu
nos encontramos. Nós nos damos bastante bem. Uma questão de interesse
mútuo, é assim.
— Pelos interesses mútuos no ocultismo.
— Assim é. Mas acho que a Hannah acreditou em mim o suficiente
para confiar o seu segredo porque ela sabe que, dado o meu envolvimento
neste assunto, tinha o direito de saber.
Joshua permaneceu em silêncio por um momento, até que ele
perguntou.
— Suponho que ela disse qual era o meu envolvimento no assunto, não
é assim?
— Sim. Eu não posso dizer que me surpreendeu nesse papel. Afinal,
você é um profissional. Só posso dizer que estou feliz por você ter estado lá,
naquela noite, para enfrentar aquele homem terrível.
— Hannah e sua empregada estavam indo muito bem quando eu
cheguei, mas é difícil resistir a um homem enlouquecido e armado com uma
faca, que está determinado a matar.
Com memórias das linhas iridescentes ao redor do moribundo Roland
Fleming, um arrepio fantasmagórico percorreu o corpo de Beatrice.
— Isso foi o que Roland me disse naquela noite, quando ele estava
morrendo no chão do seu gabinete — ela sussurrou. — Ele disse que a minha
pequena arma não iria me ajudar na defesa contra um assassino determinado.
— Isto é verdade, principalmente quando o assassino é um profissional
treinado para matar e cumprir sua missão. — disse Joshua. — Só se tivesse a
chance de disparar antes. E se você tivesse errado o tiro, ou se não tivesse
acertado em um ponto vital, algo muito difícil, com uma pequena arma tão...
— Eu sei.
— Hannah está certa. — continuou ele — Você merece saber a
verdade. Mas quanto mais pessoas souberem desse segredo, maior o risco de
que mais cedo ou mais tarde, deixe de ser segredo.
— Eu lhe dou minha palavra de que não vou contar a ninguém.
Ele nada respondeu. Quando o olhou viu que parecia perdido em
pensamentos.
— Eu sei que não confia em mim senhor Gage. — disse ela franzindo a
testa — Não tem que ser rude. Lembre-se que de qualquer maneira eu
também sou uma profissional. Ao longo dos anos, tenho mantido os segredos
de meus clientes, tanto em meu papel como Miranda, como agora que eu sou
uma agente da Flint e Marsh. Quanto aos seus segredos, eu vou mantê-los
bem guardados também.
— Embora possa não parecer, sim, eu confio em você, Senhorita
Lockwood. — Sorriu — Não me pergunte por quê, porque eu mesmo não
sei, mas confio.
— Me acha engraçada, senhor?
— Não. Eu rio de mim mesmo.
— Porque decidiu confiar em mim?
— Algo assim.
— Se isso faz você se sentir melhor, — disse ela — cheguei à
conclusão de que eu também confio em você Sr. Gage. Por mais que eu não
encontre nenhuma explicação lógica.
Ele parou de sorrir.
— Nesse aspecto eu tenho uma certa reputação.
— Talvez, mas sua reputação não é o que faz com que confie em você.
Ele demonstrou expressão de surpresa.
— Por que você confia em mim, então?
Ela ofereceu-lhe seu melhor sorriso.
— Porque eu posso ler sua faixa energética e fico calma com o que
vejo. Mas, vendo por outro lado, eu sei que você não acredita nas explicações
paranormais, por isso, tentar explicar o meu raciocínio será perda de tempo.
— E o que você vê nas minhas faixas energéticas?
Ela o fitou de olhos arregalados.
— Você tem certeza que quer uma leitura psíquica feita por uma
médium fraudulenta?
— Acho que você é uma boa atriz, não uma boa enganadora.
— Aha! — Ela disse, rindo. — Essa foi uma boa resposta. Estou
impressionada.
— É verdade — Voltou a observar a multidão. — O que você vê nas
minhas impressões energéticas?
— De que serve a resposta de uma boa atriz?
— Não tenho nem ideia. Chame-o de curiosidade profissional.
Ela estava pensando se era apropriado dar a informação que ele queria
e, finalmente, decidiu que não havia nada de errado em satisfazer a sua
curiosidade. Não havia nada diferente entre ele e os outros clientes que teve
nos tempos da Academia. As pessoas, mesmo aquelas que não acreditavam
em seus poderes, sempre querem saber o que se passa nas suas faixas
energéticas. Neste caso Joshua, sem dúvida, atribuiria os resultados à sua
imaginação criativa.
Com certa preocupação, para aguçar os sentidos, estudou a energia
feroz que Joshua tinha deixado no chão. Havia várias digitais dele na caixa de
vidro e no punhal.
Linhas de uma luz escura e iridescente com um espectro de cores
indefinidas, forte e estável, irradiada a partir do resíduo de energia que
brilhava em tudo o que ele tinha tocado.
— Muito bem, Sr. Gage. — disse ela — Vejo poder, controle e uma
estabilidade mental subjacente.
— O que diabos é isso de "estabilidade mental subjacente"?
— Segundo a minha experiência, correntes fracas ou instáveis
geralmente indicam algum grau de estresse mental ou emocional. Todos nós
temos experiências ou conflitos emocionais, passamos por experiências que
incluem períodos de depressão, tristeza e ansiedade, todos nós sofremos
surtos de doença física. Há certas ondas altamente irregulares que parecem
permanentes ou são muito fracas. Elas estão submetidas à sua falta de
estabilidade. Estão entre os limites da loucura ou completa falta de
consciência. — Fez uma pausa — As do último tipo são as mais
preocupantes.
— Quantas vezes você encontra pistas como essa?
— São mais comuns do que pensamos. — Ela estremeceu — Acredite
em mim quando eu digo que eu não tenho que sair do meu caminho para
encontrá-los.
— E o que você viu nas pegadas do assassino de Fleming?
— A energia fria de um homem que não tem consciência. Não apenas
mata sem remorso algum, mas também sente satisfação e orgulho nesse ato,
um prazer perverso.
Joshua agarrou com as mãos o cabo da bengala. Ele parecia pensativo.
— Definitivamente um profissional.
— Você ainda não respondeu à minha pergunta, Sr. Gage. — ela disse
suavemente.
— Que pergunta?
— O que diabos estava pensando quando, há um ano, decidiu mudar-
se para o campo?
— Pensava que não tinha mais as qualidades e os atributos anteriores
que me tornaram um bom espião.
— Por conta do estado de seus ferimentos? É por isso? — Ela olhou
para a bengala. — Que absurdo! Eu entendo que tenha certas limitações
físicas que podem exigir outra maneira de trabalhar, mas as suas capacidades
analíticas permanecem intactas. — Ele examinou por um momento a barba
que cobria a cicatriz.
— E, obviamente, ainda tem talento para esconder sua identidade.
Joshua não desviou o olhar das pessoas ao seu redor.
— Na minha decisão de me aposentar pesaram outros aspectos, além
de minhas feridas, muito embora elas também fossem importantes.
— Estou vendo.
Ele não ofereceu nenhuma outra informação. Simplesmente
permaneceu ali sentado observando os convidados elegantes em suas
andanças ao redor das antiguidades.
E isso era tudo o que ele ia dizer, ela pensou. Ela não sabia o que
aconteceu durante a sua última missão, mas com certeza lhe causaram danos
emocionais além dos ferimentos físicos.
— Permita-me salientar, Sr. Gage, que a razão para que você se esteja
sentindo revigorado, não tem nada a ver comigo. — Disse Beatrice — É
porque foi chamado para um caso de extraordinária importância pessoal. Que
lhe deu um objetivo. Você precisava de um alvo adequado para sair do
isolamento, uma razão para voltar a usar seu talento.
— Revigorado — repetiu como se estivesse falando consigo mesmo —
Você pode estar certa. Ultimamente me sinto mais... Revigorado, sim.
Havia um pouco de calor nos seus olhos. A mulher que havia dentro
dela reconheceu isso de imediato. Ela ficou chateada quando percebeu que
estava corando.
— Eu não estou surpresa em ouvir-lo, senhor. — Ela respondeu,
mantendo um tom enérgico em suas palavras. — É óbvio que, deixando de
lado o que você precisa, você tem um corpo sólido e uma mente ágil,
deixando de lado a necessidade da bengala. Permanecer no campo por um
longo período de tempo deve ser deprimente para um homem como você.
— É uma teoria interessante — disse ele. Fazendo uma pausa antes de
acrescentar — Sim, admito que tem sido um longo ano. Na verdade, aqui
sentado com você, agora, estou bem ciente do quão longo foi o ano passado.
Algo em seu tom de voz demonstrava uma insinuação sexual, que fez
com que Beatrice sentisse uma sacudida em seus sentidos.
— Sim, bem, de uma forma ou de outra, eu tenho certeza que podemos
continuar com a nossa colaboração, porque no momento podemos dizer que
os nossos objetivos são os mesmos. — ela disse rapidamente.
— Você quer dizer que sempre que pudermos trabalharemos juntos? É
isso que você quer dizer? — ele perguntou.
— Sim, exatamente. Eu entendo que a sua prioridade é pegar a pessoa
que está chantageando sua irmã. Se verificar que a mesma pessoa é quem
contratou um assassino para matar o Dr. Fleming e me sequestrar por razões
desconhecidas, vou ser muito grata.
— Eu não quero sua gratidão, Sra. Lockwood.
Pronunciou cada palavra em tom gelado. Antes que pudesse responder,
Joshua pegou o bastão e se levantou.
— Está de saída, Sr. Gage? — perguntou ela — Espero que não seja
por minha causa.
— Esta conversa tem sido muito... interessante, sim. Mas acho que já
trocamos elogios demais para uma única noite, você não acha? Se seguirmos
assim, creio que em breve teremos atacado nossas respectivas gargantas. Isso
não deixaria de ser engraçado, mas certamente seria prejudicial para a
investigação. Boa noite, Senhorita Lockwood.
— Boa noite Sr. Gage.
Ela também poderia soar gelada em suas palavras.
— Eu estarei de olho na luz em sua janela — disse ele.
E desapareceu nas sombras da passagem que tinha usado para chegar
ali mais cedo. Por um momento, Beatrice pensou que podia distinguir o som
da bengala ressoando nas paredes, do final do corredor. Até finalmente não
escutar mais nada.
Quando teve a certeza que ele tinha ido embora, ela se levantou e foi
até a vitrine que ele tinha aberto.
Preparando-se, ela levantou a tampa de vidro e aguçou os sentidos. O
cabo da arma brilhava com a intensa energia das digitais de Joshua.
Com cuidado, ela colocou a mão dentro da vitrine e tocou o cabo
dourado.
Pequenos solavancos iguais faíscas foram sentidas nos seus dedos.
— Céus! Ela sussurrou. Isso dói.
Se apressou em tirar a mão e fechar a tampa da vitrine.
Quando tinha visto aquela lâmina já tinha percebido que estava
saturada com energia escura e com raiva da antiga violência. Mas as centelhas
invisíveis que giravam em torno de Beatrice naquele momento não eram nada
antigas. Joshua tinha-as deixado lá. Ela descobriu que era muito estimulante
para os seus sentidos, muito masculino. E sim, muito vigoroso.
Capítulo 16

— Da mesma maneira que eu te expliquei por que eles estão me


chantageando, posso explicar o que me levou a buscar você na Academia —
disse Hannah.
A recepção no grande salão tinha acabado. Os convidados estavam
indo lentamente para seus quartos. Beatrice e Hannah estavam no primeiro
quarto, aguardando que Sally terminasse de fazer a cama de Hannah.
— Por favor, não precisa se sentir forçada a me dizer qualquer coisa
que faça você se sentir constrangida. — disse Beatrice — A fonte de sua
ansiedade não é absolutamente a minha preocupação.
— Talvez fosse verdade há algum tempo atrás, mas as coisas mudaram.
— respondeu Hannah — Agora você está envolvida neste caso com Josh e é
fácil ver que a sua relação com ele não depende apenas de questões
profissionais.
— Isso não é verdade! — protestou Beatrice rapidamente.
— Conheço Josh. — Disse Hannah erguendo as sobrancelhas — Para
mim está claro que você o fascina. Agora que conheci você, entendo o
porquê.
— Não, você está errada.
— Eu disse, eu conheço meu irmão. — Insistiu Hannah — Eu quero,
mas ele é parte da razão por que não consigo encontrar a paz de espírito.
— Não, você não precisa confiar em mim.
— Mas eu tenho que falar com alguém. Agora você sabe mais sobre os
segredos da minha família que qualquer um que não é da família. Eu fiz tudo
o que podia para proteger Josh quando ele era pequeno. No final, eu falhei.
Perdi-o para a paixão irresponsável, que é tradição do lado masculino da
minha família. Este aspecto facilitou muito as coisas para esse homem terrível,
quando ele se propôs transformar o meu irmão em sua arma pessoal.
— O que exatamente Victor Halzeton fez ao seu irmão? — Beatrice
perguntou.
Hannah foi até a janela e ficou ali olhando para os jardins, na escuridão
da noite.
— Antes de completar vinte anos já estava claro que Josh tinha
herdado o sangue selvagem que circula no lado masculino da família.
— Sangue selvagem?
— Pode acreditar é como uma maldição, — disse Hannah. Ela tirou
um lenço do bolso para enxugar os olhos — que os empurra para o perigo, e
violência. Esse lado selvagem. Foi o que matou meu pai. Um ano atrás, estava
a ponto de também matar Josh. Agora, meu filho, Nelson, está mostrando
todos os sinais de ter herdado esse mesmo gosto para a emoção e para a
violência.
— Eu acho que entendo. Você teme que o sangue selvagem esteja
levando para a morte o seu único filho. — Beatrice, colocou-se ao lado de
Hannah na janela. Não é de admirar que você estivesse em tal estado de
ansiedade quando me consultava.
— Nelson tenta me proteger da verdade. — Hannah secou os olhos no
lenço —. Alguns meses atrás, ele saiu de casa e mudou-se para a sua própria
casa mobiliada.
— Isso é algo que muitos jovens fazem.
— Eu sei. Ele nunca explica o que está fazendo e não me deixa visitá-
lo. Mas reconheço nele as mesmas atitudes que vi em Josh quando tinha a sua
idade.
— Com essa idade os homens querem conhecer o mundo.
— Eu sei que Nelson não quer que a sua mãe fique à sua volta
controlando o que ele faz. Tentei não me intrometer. — Hannah secou
lágrimas — Mas, a intuição me diz que ele está fazendo o mesmo que Josh
fazia quando tinha a mesma idade. À noite, ele passeia nos piores bairros,
procurando emoções. Esta passando a vida nas salas de jogos. Ele está se
relacionando com pessoas de má indole.
— Em outras palavras, ele está à procura de problemas.
— E mais cedo ou mais tarde vai encontra-los, como Josh encontrou.
Neste caso, os problemas chegaram na forma de Victor Hazelton.
— O senhor Smith?
— Sim — disse Hannah.
—Entendo. — Beatrice hesitou — Talvez se você pedir para o Josh
falar com Nelson. - Verdade? Para um homem maduro, deve ser mais fácil
conversar e mostrar o caminho certo para um homem jovem.
Os dedos de Hannah apertavam o lenço.
— A última coisa que desejo neste mundo é que Josh leve Nelson pelo
mesmo caminho escuro a que Halzeton conduziu o meu irmão tanto tempo
atrás.
— Sim, eu entendo — Beatrice admitiu — Mas nesta situação...
Ela parou porque Sally abriu a porta que dava para o outro quarto.
— Desculpe interromper, senhora. —Disse a Hannah. —Mas eu achei
este envelope em seu travesseiro quando dobrava os lençóis de sua cama. Está
com o seu nome.
Hanna ficou congelada. Ela olhou para Beatrice.
— Vou desligar as luzes e acender uma vela — disse Beatrice.
Capítulo 17

Beatrice tinha deixado Hannah preocupada em seu quarto e tinha


descido a escadaria principal. Ela usava o mesmo vestido simples que tinha
usado durante o dia, e um par de sapatos de sola macia, numa tentativa de
fazer o mínimo de barulho possível, numa casa daquele tamanho e que
finalmente estava em silêncio. A casa grande tinha finalmente ficado em
silêncio. Senhor Alverstoke acordava cedo e saía para caminhar quando estava
no campo, e seus convidados se viam forçados a fazerem o mesmo. E não é
que as pessoas inteligentes e aborrecidas que ele tinha convidado e aceitaram o
convite estivessem preocupadas. O que ocorria era que tinham outros planos
para a noite.
Beatrice estava consciente de que esse silêncio era enganoso. Em seu
papel como acompanhante ela tinha participado de suficientes festas no
campo para saber que a atração principal em tais reuniões não era o ar livre e
as belas paisagens rurais. Os numerosos convidados de Alverstoke, por outro
lado, não estavam realmente interessados em sua coleção de antiguidades
egípcias. Se isso fosse do seu agrado, eles poderiam ir para o Museu Britânico
onde veriam um grande número de relíquias.
A popularidade das festas no campo tinha uma única razão, oferecer
oportunidades ideais para encontros ilícitos. A desordem em Alverstoke Hall,
com seus inúmeros quartos, antecâmaras, salas de armazenamento, jardins e
outros locais afastados, eram ideais para relacionamentos discretos. Beatrice
não tinha dúvida que os muitos passos ouvidos por toda a casa eram dos
amantes que se locomoviam entre os andares.
A casa não estava totalmente às escuras. Os servos, sabendo que muitos
dos convidados estavam interessados em questões diferentes das antiguidades,
tinham deixado acesos vários castiçais estrategicamente colocados na parede.
Mas, com as luzes apagadas e a mansão imersa em relativo silêncio, Beatrice
estava mais consciente da energia misteriosa que saia das antiguidades e se
espalhavam na atmosfera. Correntes paranormais sempre pareciam mais fortes
e mais facilmente detectáveis durante a noite.
Chegando ao piso térreo parou por um momento para orientar-se.
Tudo ao seu redor estava com um tom de mistério, e muito mais preocupante
agora, que estava cercada de sombras.
A energia que saia das antiguidades era nauseante, mas também tinha
outro problema. O núcleo original da estrutura da casa era muito antigo. Ao
longo do tempo seus vários donos reformaram alas inteiras ou construíram
novas alas ou pisos. Além disso, as modificações estruturais incluíram também
trazer os confortos da modernidade, como luz a gás, e um bom encanamento.
Como resultado, Alverstoke Hall era um labirinto de passagens, escadas e
corredores, ligados de modo improvável.
Antes, ela havia tido a precaução de anotar o caminho para a biblioteca,
mas descobriu alarmada quão diferentes as coisas pareciam agora que luzes
estavam apagadas.
Depois de um momento de reflexão, ela começou a andar. Ela
estremeceu quando passou pelas enormes portas que davam lugar à grande
sala. A sala em que estavam as antiguidades mais valiosas da casa, permaneceu
fechada durante a noite após a grande recepção. Falavam que Alverstoke
estava muito orgulhoso das medidas de segurança em Alverstoke Hall. Mas
não havia bloqueio que pudessem parar a energia escura que havia no
ambiente e que penetrava por debaixo das portas pesadas.
Deu um suspiro de alívio quando viu a longa galeria iluminada pelo luar
na qual ela estivera sentada algumas horas antes, quando Joshua a tinha
encontrado. Agora, ela pode orientar-se. A biblioteca estava na outra
extremidade da passagem.
A galeria estava cercada por sombras, mas ela podia ver a chama
bruxuleante de uma vela à distância. Enquanto observava, se moveu em
direção a ela, de forma hesitante, como se a pessoa que o levava mancasse.
Aliviada ela correu até ele.
Um baque, seguido de um grito de dor contido, serviu como um aviso
do seu erro. A luz da chama dançava incontrolavelmente nas paredes de
pedra.
— Maldito seja! — Disse um homem de voz rude e tomada pelo álcool.
— Malditas antiguidades!
"Não é Joshua", pensou Beatrice.
Ela parou e olhou ao redor em busca de uma sala ou de uma escada
onde pudesse se esconder. Mas não tinha tempo. O homem que havia apenas
tropeçado sobre uma das antiguidades estava quase a alcançando. À luz
bruxuleante da vela mostrava que o rosto tinha um aspecto demoníaco.
Quando a notou toda sua ira, de repente tornou-se uma alegre
expectativa.
— Ah, vamos! O que temos aqui? — Exclamou ele — Você tem que
ser uma das empregadas domésticas. Está indo encontrar-se com o seu
amante, não é?
— Esta cometendo um erro muito grave Senhor. — Protestou
friamente. — Agradeço que se afaste, por favor, Senhor.
— Não, você não é nenhuma empregada, com esse sotaque, não
mesmo. Nem tampouco é uma governanta. Aqui em Alverstoke não tem
crianças. Então você deve ser a dama de companhia de alguma senhora que
está hospedada aqui.
— O senhor tem razão. Eu estou levando uma mensagem muito
importante para a minha senhora. Se eu me atrasar ela ficará muito brava.
— Você leva um bilhete de seu amante, talvez? — Conteve o riso —
Bem pena, porque que a sua senhora deve ser muito difícil, não é? Você está
condenada a distribuir mensagens entre amantes, mas nunca pode ter qualquer
um.
— Eu sou forçada a pedir de novo para ficar longe de mim, senhor.
Ele simplesmente levantou o candelabro e a examinou criticamente.
— Você não é nenhuma beleza — disse — Uma figura sem brilho e de
cabelo vermelho, que é sempre inconveniente. Mas já fui visto com piores. —
Fez uma careta — Hoje à noite a fortuna sorriu para você. A raposa com
quem eu ia me encontrar abriu a porta para outro. Então, como eu vejo que
você está disponível e eu não sou muito exigente, vamos começar a trabalhar.
— Sinto muito, eu não estou interessada.
Jogou-se para frente na esperança de escapar. Mas ele a agarrou pelo
braço e grunhiu:
— Você verá o quanto se importa, assim que eu acabar com você.
Quem você pensa que é? O que é isso quer rejeitar os seus superiores? Uma
mulher como você tem que agradecer de joelhos por eu desejar passar alguns
minutos com você. Agora estou pensando que de joelhos será como
começamos. Se você mostrar algum talento com a boca, talvez você me
convença a oferecer outras lições nesta arte.
Ele colocou o castiçal em uma mesa próxima e a forçou a se ajoelhar.
Com a outra mão desabotoou as calças.
Ela pegou a garrafa de vidro que estava presa em uma correntinha.
— Solte-me.
— O que é isso? Será que são os seus sais aromáticos? Eu espero que
você não vá desmaiar justo agora. Vou te dar o melhor pau de Londres. Você
vai se lembrar desta noite para o resto de sua vida, eu prometo.
— E você também vai se lembrar da próxima vez que você assaltar
uma mulher. — respondeu ela.
Virando-se bruscamente ela abriu o frasco, e jogou-lhe metade do
conteúdo no rosto.
A mistura líquida feita a partir de pimenta fez o assaltante parar de
respirar por um momento. Ele a olhou com ódio e apertou os olhos, que
ardiam.
Em seus esforços para respirar, soltou-a e levou às mãos a garganta.
— Mas o que você fez? Sua cadela louca? — Ele chiou.
— Não é nada permanente — ela disse, recuando. — Espero que pelos
próximos minutos, considere o fato que nem todas as mulheres que encontra
são incapazes de resistir a seus encantos.
— Realmente não sabe com quem está falando, bruxa maldita! — ele
estava tentando gritar, mas a pimenta estava bloqueando sua garganta.
Arranhando as palavras, elas mal eram audíveis —. Eu sou Covington. Vou
mandar te prender.
— Por jogar um pouco de sal em seu rosto? Eu duvido que isso seja o
suficiente para me que me prendam.
— Isto não são sais aromáticos.
— Ninguém vai olhar para qualquer coisa, — lhe assegurou — O dano
não é permanente.
— Vou ter de informar o seu patrão. — Ele caiu enrodilhado — Você
é velha demais para trabalhar nas ruas. Você vai acabar com seus dias no asilo,
infeliz!
De repente, ouviram passos se aproximando. Uma sombra escura
apareceu. A luz da lua, Beatrice notou que Joshua não estava mais usando o
seu disfarce. Ele fez uma pausa para apagar a vela.
— Por fim a encontro querida — disse Joshua — Eu me perguntava o
que podia estar acontecendo. Eu teria me oferecido para ajudar, mas como
sempre, parece ter a situação sob controle.
— Quem fala? Quem está aí? — Covington virou-se para a voz de
Joshua, mas as lágrimas escorriam pelo seu rosto, e era óbvio que ele não
podia ver claramente. — Você tem que me ajudar senhor. Essa mulher me
atacou. Posso ter sido envenenado.
— Sobreviverá — Garantiu Beatrice dirigindo-se para Joshua. — Mas
demora um pouco antes dos efeitos dos meus sais desaparecerem.
— Então não faz sentido nós nos atrasarmos aqui — disse Joshua. —
Você e eu temos outras coisas para falar.
— Exatamente — Disse Beatrice. Apressou-se para sair do lado de
Covington e ficar junto de Joshua.
— Socorro - Gritou Covington. — querem me matar, Socorro!
— Você ouviu o que disse a Senhorita — Proferiu Joshua. — Você vai
viver. Eu não estou convencido de que é o resultado desejável, mas
provavelmente levantará menos poeira do que a alternativa possível.
— Quem diabos é você? Por que você se preocupa com o destino desta
prostituta? É apenas uma simples dama de companhia de alguma senhora.
— Já basta! — Joshua falou com tom peremptório — Eu o avisei.
Apoiando-se em sua bengala, ele se abaixou e pegou Tackles Covington
pelo pescoço.
— Minha mãe! — Beatrice gritou, vendo que ele prendeu Covington
que caiu sem sentidos no chão. — Eu espero que você não o tenha matado.
Eu aprecio o gesto, mas eu não acho o que o problema se resolva dessa
forma.
— Tem que confiar mais em mim, Senhorita Lockwood. Eu nunca sou
negligente quando se trata de trabalho. Fique tranquila, ele vai acordar em
poucos minutos. Com um pouco de sorte nem vai se lembrar, mas se lembrar
e se isso se tornar um problema, eu encontrarei uma solução mais
permanente.
— Muito bem, então!
— Venha, não perca mais tempo. Se você está aqui é porque tem
notícias para mim. Temos a biblioteca à nossa disposição.
Quando aquela mão forte pegou em seu braço, sentiu um
estremecimento que deixou em alerta todos os seus sentidos. Sempre
conseguiria distinguir esse toque. Não importava o que o futuro lhe reservasse
para o resto de sua vida, ela iria se lembrar daqueles sussurros vindo de uma
consciência profunda . "Eu nunca vou esquecer este homem”.
Os dedos de Joshua ficaram tensos durante uns momentos. Ela sentiu
que ele também experimentou essa mesma sensação quando houve o contato
físico e direto entre os dois. Ela pensou em como deveria interpretar esses
flashes de conexão. "Certamente alguma explicação lógica. — Pensou
divertida —, talvez algo que tem a ver com a eletricidade estática."
Ele a levou ao longo da galeria em direção ao portão. Ela passou à
frente dele e entrou em uma sala, iluminada pela luz do luar. Sentiu o cheiro
de livros encadernados em couro e mobiliário antigo que eram polidos com
frequência.
Joshua soltou seu braço com certa relutância. Fechou a porta com o
trinco. Quando ele se virou para encará-la. Beatrice sentiu a energia que enchia
o ar. Pela primeira vez ela percebeu que ele estava friamente furioso.
— Por acaso essa escória te machucou? — Perguntou.
— Não, verdade, eu estou bem. Garanto que não é a primeira vez que
tenho que lidar com um bêbado lascivo. Reuniões como esta são um dos
riscos do meu trabalho. Essa é precisamente a razão pela qual todas as agentes
da Flint e Marsh agora sempre levam os sais aromáticos novos e especiais da
Sra. Marsh.
— Eu não gosto da ideia de serem forçadas a tropeçar com homens
como Covington com alguma frequência.
— Em termos gerais, é relativamente fácil de evitar os Covington deste
mundo — Disse ela.
— Não se trata disso.
—E o que é então?
—Não deveria colocar-se em situações que exijam que se defenda.
Ela ergueu o queixo.
— Eu ganho a vida assim, Sr. Gage. E se considerarmos o que o
Senhor faz para ganhar a vida, não está em situação de criticar-me.
— Para o inferno com tudo isso. — Ele falou com grande emoção. Em
seguida, exalou com força — Lhe darei razão nesse ponto. E o que diabos
tem nesta garrafa que está carregando? Parece muito eficiente.
— A Sra. Marsh criou esta fórmula recentemente em seu laboratório.
Deu uma garrafa cheia com o líquido a cada uma das suas agentes. Pelo que
eu entendi, a fórmula é baseada na destilação de pimenta deixando-a
extremamente ardente.
— Sempre admirei o talento da senhora Marsh com a química — Disse
Joshua.
— A inspiração para fazer esta fórmula veio quando outra agente da
empresa, uma ótima amiga chamada Evangeline Ames quase foi assassinada.
Depois do caso de Cristal Gardens, as Sra. Flint e Sra. Marsh concluíram que
todas as suas agentes deveriam levar consigo algum objeto para se defender, e
que fosse mais discreto que uma arma de fogo para sua defesa.
— As armas de fogo são indicadas em certos casos, mas
frequentemente causam muito mais problemas do que resolvem — disse
Joshua — E não são nada discretas. A polícia muitas vezes, passa a ter muito
interesse quando alguém leva um tiro.
— A discrição é a principal razão pela qual os nossos clientes nos
procuram — Contou Beatrice, sem se preocupar em esconder o seu orgulho.
— As agentes da Flint e Marsh são introduzidas em algumas das famílias mais
ricas e exclusivas. O nosso objetivo é agir o mais discretamente possível.
— Esse é o objetivo de um bom investigador — apontou ele.
— Desde que falamos sobre a questão da autodefesa, eu estou muito
interessada em aprender esse truque que você usou com Euston e com
Covington.
— Por favor, não tome isso como um insulto, mas não é uma técnica
muito útil para uma mulher. Requer uma força considerável, isso sem
mencionar o treinamento e a prática.
— Ah, eu sei!
— Não precisa ficar ofendida — disse ele. Parecia divertido — Você
está bem armada. Mas vamos continuar com o nosso assunto. Pelo que
entendi, fez sinal com a vela por que tinha notícias do chantagista. É isso?
— Sim. — Beatrice tirou a nota do bolso e entregou a ele — Quando
sua irmã e eu subimos as escadas para nossos quartos, encontramos esse
bilhete. Estava sobre o travesseiro de Hannah, em um envelope endereçado a
ela. A caligrafia é masculina, eu tenho certeza.
Joshua acendeu uma lamparina e leu a nota em voz alta.
Na grande sala. Às três horas, em ponto. As portas estarão abertas.
Mandar a dama de companhia com o dinheiro. Se for ela a vir, não chamará a
sua atenção de ninguém. No entanto, se for você, poderá ficar chocante. Diga
a essa senhora que deixe o presente dentro da caixa de pedra que fica ao lado
do sarcófago. Se essas instruções não forem seguidas ao pé da letra, a primeira
de muitas revelações sobre a noite de 9 de janeiro, de há três anos atrás, será
entregue à imprensa.
Joshua olhou para cima. À luz da lâmpada, Beatrice percebeu que ele
estava muito concentrado.
— Especifica que é você quem tem que entregar o pagamento da
chantagem.
— Sua lógica é clara. Se alguém me vê indo e vindo pelos corredores
esta noite, ninguém vai me perguntar nada. Mas se eles virem Hannah fora de
seu quarto correrão os boatos. O chantagista não quer que ninguém faça
perguntas.
— A sala grande abriga os itens mais valiosos da coleção de Alverstoke.
À noite é mais seguro com a maioria das fechaduras modernas — apontou
Joshua.
— Como você sabe que as fechaduras são modernas?
— Eu vi Lorde Alverstoke e seu mordomo fechando a sala grande
durante a noite.
— Você estava vagando ao redor da casa naquele momento, senhor?
— Como o meu antigo empregador costumava dizer: Conheçam o terreno
e serão capazes de prever a estratégia do seu oponente.
— Ah, sim, não é esse o misterioso Senhor Smith, também conhecido
como Victor Hazelton?
Joshua ergueu as sobrancelhas.
— Parece óbvio que Hannah confia em você.
— Seu Senhor Smith pode ter algumas coisas em comum com o meu
velho patrão. Roland gostava de dizer: Conheça o seu público, mas certifique-se que
ele não te conheça, o mistério é tudo no palco.
— Excelente conselho — Joshua disse gravemente.
— Sim. Obviamente, quem enviou esta nota para Hannah tem acesso à
chave da sala grande. — Um pensamento repentino fez com que Beatrice
contivesse a respiração — Você acha que o Lorde Alverstoke faz parte deste
negócio de extorsão?
— Bem, não — Respondeu Joshua. Ele falou com grande segurança —
Eu pensei que tinha deixado claro, por conta do temperamento e
excentricidades de Alverstoke, acho impossível imaginá-lo como um
chantagista. Em qualquer uma de suas celebrações gasta uma fortuna. Não
tem nenhuma necessidade de correr riscos extorquindo dinheiro dos outros.
Eu tenho certeza que é um peão involuntário nessa coisa toda.
— Qual o grau de dificuldade para uma pessoa que quer roubar a chave
de entrada do salão grande?
— Se ficar com o que eu vi esta noite, seria uma questão relativamente
simples. Mas o malfeitor tem de saber o serviço da casa e sua rotina. —
Joshua parou para pensar — Claro que há uma alternativa, poderia tentar
subornar um dos empregados. De qualquer forma, o roubo da chave é o
aspecto mais fácil deste caso.
— Mas antes de tudo, por que criar um problema ao usar a sala grande
como o local para o pagamento da chantagem? — Beatrice bateu na mesa
enquanto pensava — Aqui em Alverstoke Hall, não há mais que cantos e
recantos, para não mencionar todos os tipos de lugares escondidos nos
jardins. Por que não organizar o pagamento em um lugar menos visível, mais
acessível, que não precisa do risco que envolve roubar uma chave?
— Boa pergunta, Senhorita Lockwood. E a resposta é óbvia.
— É óbvia? — Ela perguntou, franzindo a testa.
— A sala grande é um lugar que o chantagista sente que pode controlar.
É sem dúvida o único lugar onde não é provável que alguém vá se aventurar
nesta noite. Enquanto estiver escuro estará fechado.
— Claro, certamente! — Disse Beatrice, com uma expressão admirada
— Os convidados estão andando pela casa à procura de um lugar discreto
para seus encontros românticos. Mas não vai passar pela cabeça de ninguém
entrar na sala de antiguidades, já que todos sabem que à noite está fechada.
— Sim, senhor. Esta é uma excelente observação. Você é realmente
bom neste tipo de coisa.
— Tento.
Ela ignorou seu tom e acrescentou sarcasticamente:
— Fora isso, qual é a mulher que poderia ter inclinações românticas
entre tanta energia negativa como a que está vindo dos túmulos e templos?
— Há quem ache este ambiente algo exótico. — Joshua falava como se
considerasse o assunto com toda a seriedade — Como uma inspiração para a
imaginação.
— Agora — ela murmurou, franzindo o nariz — Está brincando?
— Perdoe-me. Eu não pude resistir.
— Simplesmente expressou sua opinião sobre os fenômenos
paranormais. Mas diga-me, você alguma vez experimentou algo para além de
qualquer explicação, Senhor Gage?
— Muitas vezes, sim. Mas o fato de não poder explicar certas coisas,
não significa que é por serem de natureza paranormal. Simplesmente o que
ocorre, é que a ciência ainda não tem todas as respostas que precisamos.
— E, no entanto, você sobreviveu em um trabalho muito perigoso por
muitos anos. — Ela apontou. — O que me leva a crer que a sua intuição é
muito forte, talvez mesmo seja de natureza psíquica.
— A confiança no que você chama minha intuição explica porque
agora eu sou forçado a andar com uma bengala e por que as crianças olham
fixamente para o meu rosto quando eu estou andando nas ruas — disse
Joshua.
— Perdoe-me — ela justificou envergonhada — Eu não queria trazer à
tona o tema do seu passado. Não, esta noite.
— Eu até aprecio ainda mais que não traga o assunto em qualquer
outra noite — acrescentou ele.
— Eu entendo, é um tema que deve ser muito difícil. — Ela sentiu-se
cada vez mais envergonhada — E quanto ao nosso plano para esta noite.
Acredito que você estará atento, e depois que eu sair você estará a postos para
descobrir quem entra para buscar o pagamento, não é isso?
Joshua sorriu — Parece que você tem experiência com as investigações
de extorsão.
— Bem, na verdade tenho sim. No decurso do meu trabalho para Flint
e Marsh temos tido alguns clientes que foram vítimas de chantagem. É um
problema muito comum nos círculos em que trabalho. Todo o mundo tem
segredos. As pessoas ricas têm muito mais segredos, que as deixam sempre
mais vulneráveis aos chantagistas.
— Eu nunca teria pensado que você poderia levar tão a sério uma
investigação de chantagem.
— Mas, o quê você acha que eu realmente faço como agente da Flint e
Marsh?
— Eu não quis ofender.
— Mas me ofendeu.
— Sinto muito, então. — Joshua olhou para o alto relógio de pêndulo
que estava em um canto — Para responder à sua pergunta, sim, esta noite
vigiarei a entrada da sala grande. Eu estarei lá quando você entrar. E quando
você entrar, eu estarei esperando a chegada do chantagista.
— E desculpe a pergunta, — ela disse depois de limpar a garganta —
mas, o que você vai fazer com ele quando o capturar?
— Bem, eu vou ter uma conversa muito esclarecedora com ele.
E então viu muito claramente que essa era toda a informação que iria
obter sobre o assunto.
— Eu entendo — disse ela.
— E agora eu vou lhe acompanhar até o seu quarto.
— Eu vou descer pela escadaria principal, porque acredito que pelas
escadas dos empregados alguém esteja circulando esta noite.
— Isso é um bom plano, mas a escadaria principal está muito à vista
para o meu gosto. ― Disse Joshua. — Não é conveniente que nos vejam
juntos indo em direção ao seu quarto. É melhor usar uma escada que eu
descobri há algum tempo atrás, quando explorava a casa. Toda a mansão é
cheia de escadas antigas. A que eu encontrei parece que faz anos que não é
usada.
Ele desligou a lamparina, abriu a porta e olhou a galeria que estava
envolta em sombras. Satisfeito, deu um passo para trás para que ela passasse à
sua frente.
— Não se distraia Senhorita Lockwood. — Ele acrescentou.
— Não penso nisso, Sr. Gage.
Agarrando as saias saiu rapidamente pela galeria. Fingindo não ouvir as
batidas da bengala no tapete.
Ela andou mais rápido, quase correndo. Ele tinha dito que não se
distraísse. Se ele quisesse segui-la e não aguentasse, o problema era dele, não
dela. Que homem insuportável era!
Ela ficou aliviada quando viu que Covington já não estava inconsciente
na galeria.
— Eu lhe disse, que ele acordaria em poucos minutos. — Joshua disse
suavemente — Não se preocupe, duvido que ele se lembre do que aconteceu
aqui.
— Tomara que você esteja certo.
— Se esse homem está à procura de problemas, eu vou fazer com que
ele esqueça de verdade tudo o que aconteceu entre vocês.
A frieza daquelas palavras fez com que Beatrice engolisse com
dificuldade.
— Oh, — ela respondeu — obrigada.
— Não há de quê. Por certo, a porta da qual falei, que dá para a
escadaria, está à sua direita no cruzamento desse corredor.
Ela parou e explorou as sombras mais escuras do corredor ao lado.
— Aqui eu não vejo nenhuma entrada — Disse.
Ele alcançou-a e agarrou seu braço. Ela respirou fundo.
— Vou-te mostrar — disse ele.
— A verdade, eu não acho que seja necessário que me acompanhe
durante todo o caminho até o quarto.
— Eu não vou tão longe. O que eu quero é ter certeza que você não
seja de novo incomodada.
— Isso é ridículo — retrucou ela — Posso cuidar de mim mesma,
Senhor Gage.
Ela estava prestes a continuar falando, quando houve uma mudança no
ambiente. Ela olhou e viu Joshua olhando a frente para a outra extremidade
da galeria.
— Que aconteceu? — Ela perguntou.
Foi quando viu o casal caminhando em direção a eles na galeria. O riso
da mulher sedutora ecoava ao mesmo tempo, que uma voz masculina
empastada pela bebida.
— Vem, minha querida. Um tempo atrás eu vi na ala mais antiga da
casa alguns quartos vazios. Eu acho que podemos encontrar a privacidade que
queremos.
— Eu insisto na cama — disse a mulher, entre risadinhas — Não vou
deixar que você exagere nos jardins como você fez da última vez. Foi muito
desconfortável, isso para não mencionar o vestido, que foi ficou arruinado.
— Eu tenho certeza que vamos encontrar um lugar que nos agrade.
O casal se aproximou. Beatrice se conteve para não soltar uma praga.
Era só uma questão de tempo. Esses dois iriam perceber que não estavam
sozinhos na galeria.
— Não há nada a fazer. — Beatrice sussurrou — Nós vamos ter que
jogar com a sorte. Nós podemos fingir que somos um casal à procura de um
canto para nosso encontro.
— Esse é um excelente plano. — Joshua disse — Por que eu não
pensei nisso antes?
Pelo seu tom seco ao pronunciar essas palavras, Beatrice percebeu que
ele já tinha elaborado uma estratégia similar. Antes de responder que sua
atitude era arrogante, ele a levou para as sombras densas de um canto perto de
onde tinha uma pequena esfinge de quartzo.
Seus sentidos ficaram aguçados de forma intuitiva. Teve tempo
suficiente para gravar as sombras tênues que emanam da esfinge, em seguida,
estava nos braços de Joshua. Ele encostou a bengala contra o pedestal da
escultura e se colocou de modo que seus ombros largos escondessem o rosto
de Beatrice.
E então ele a beijou na boca.
Relâmpago dançou pelos sentidos de Beatrice. Naquele momento, ela
soube que nada voltaria a ser igual.
Capítulo 18

O chantajista abriu a porta da grande sala. A chave girou na fechadura.


Não entendia o porquê da sua mão tremer, mas tinha que reconhecer que
naquela noite estava muito nervoso, bastante mais nervoso, sem dúvida, do
que ele tinha antecipado. Estava em jogo uma grande quantidade de dinheiro,
muito mais dinheiro que ele tinha visto em toda a sua vida.
Pensou com orgulho que havia pecorrido um longo caminho. Desde
seus primeiros dias como lacaio, quando roubava pequenos objetos de valor
de seus patrões ricos, e uma carreira como caloteiro de baixa categoria,
sempre viveu modestamente. Mas agora estava a ponto de dar o salto, e iria
alcançar de repente o nível mais elevado dos homens mais bem sucedidos nos
negócios. O dessa noite era simplesmente o princípio. A partir de então iria
vive uma vida muito diferente, uma vida de luxo, financiada em sua totalidade
por pessoas de classe alta, dispostas a pagar o que fosse para que seus
segredos permanececem bem guardados.
Finalmente, conseguiu que a porta se abrisse e escorregou na funda
escuridão que reinava na câmara cheia de antiguidades. A sensação de
desconforto que o havia mantido na expectativa durante toda a noite se
intensificou de maneira notável, para se converter em outra sensação mais
insuportável. O coração batia com força, lhe dificultando a respiração.
A culpa era da atmosfera desse lugar, disse. Depois de tudo, alguns dos
objetos que estavam ao seu redor vinham de sepulturas. Muito antigas sim,
mas sepulturas, no final de tudo. O medo que o aterrorizava não era diferente
da ansiedade que ele sentia quando caminhava por um cemitério tarde da
noite.
Um homem teria que se cuidar dos efeitos de sua própria imaginação.
Fechou a porta e esteve andando pela absoluta escuridão até que
conseguiu acender a lanterna. Respirou com mais facilidade quando o brilho
amarelado abrandou um pouco a escuridão. Logo viu as diabólicas sombras
que escorregavam entre as antiguidades e sentiu um frio que penetrava até os
ossos. Era espantosamente fácil imaginar que estava rodeado pelos deuses e
demónios do mundo inferior egípcio.
Se encontrou parado junto a uma escultura de granito que tinha corpo
de homem e cabeça de falcão. Com a luz da lanterna, os olhos do deus
pareciam brilhar com vida própria.
Apressou-se a afastar-se daquela figura e correu até à ampla plataforma
de pedra sobre a qual estava o enorme sarcófago e a caixa de pedra. A lanterna
balançava-se na sua mão. Nunca havia tremido tanto. Um fraco aroma de
incenso flutuava no ar.
Tem que se recuperar homem - disse- Nessa sala não há nada que possa te
preocupar. Não é nada mais que uma coleção de velhas antiguidades que estariam melhor
em um museu.
Seu medo, no entanto, aumentava a cada momento. As figuras
monstruosas pareciam se mover nas sombras. Naquela mesma noite tinha
escutado falar de maldições. Alguns dos convidados tinham morrido de rir
quando escutaram falar sobre o tema. Ele também tinha rido na altura. Mas
agora começava a pensar.
«Não pense em maldições. Não pense em tumbas. Pense no dinhero.»
O plano era muito simples. Iria se esconder entre aqueles objetos e
esperaría que a dama de companhia de Hannah Trafford entregasse o
pagamento. Haviam dado instruções para que deixasse dentro da caixa de
pedra ao pé do sarcófago. Enquanto ela saía daquela estadia, ele pegaría o
dinheiro e desapareceria.
Viu a caixa ao pé do sarcófago. A luz vacilante da lanterna iluminava a
figura de um gato rodeado por um local de caça gravada no quartzo. Alguém
tinha comentado que a caixa na realidade era um sarcófago em miniatura,
desenhado para guardar o corpo mumificado de um gato, mas ele não
acreditava. Não podía imaginar que ninguém tivesse todo esse trabalho
simplesmente para enterrar um gato.
Na verdade a função original da caixa não lhe importava. Essa noite o
único que contava era o dinheiro que iriam colocar ali dentro.
Assim que o tivesse pegado voltaria para o seu quarto, na parte inferior
da casa. No dia seguinte iria sair o mais rápido possivel. Ninguém iria reparar
nele. Ninguém nunca reparava nele. O disfarce era perfeito. Não era mais que
outro servente entre os muitos que tinham acompanhado seus patrões na casa
de campo para a festa do final de semana.
A luz da lanterna escorregou para cima do grande sarcófago quando ele
passou ao lado. Retraiu os olhos e tentou pensar nas lendas e histórias
absurdas como as que Lorde Alverstoke tinha contado a seus convidados essa
noite. Mas parecía difícil deixar de lado as fantásticas imagens de sua senhoria
tinha feito quando descreveu com entusiasmo as práticas embalsamadoras que
os antigos egipcios: «...O cérebro e outros orgãos vitais saíam com ferramentas especiais e
os corpos envoltos em soda para que secassem, enquanto recitavam feitiços mágicos..»
Tinha que deixar de pensar na morte, tinha que se concentrar em seu
futuro como um homem rico.
Viu um grande altar de pedra. Esse seria um bom esconderijo. Dali
poderia ver a dama de companhia da senhora Trafford deixar o dinheiro da
chantagem sem que ninguém, absolutamente ninguém, o visse.
O aroma do incenso era cada vez mais intenso. A densidade da fumaça
estava-o enjoando. Pela primeira vez pensou em sua procedência. Sim, de
onde podia vir? Um dos serventes talvez tivesse deixado um cigarro por ali
antes de fechar essa sala durante a noite...
Mas se de fato era isso, por que razão esse cheiro estava cada vez mais
forte?
Logo pensou que talvez não estivesse sozinho na câmara. Sentiu um
estremecimento. Levantou a lanterna, buscando entre as sombras.
— Quem esta aí? — disse, tentando parecer autoritário, como o criado
que simulava ser —. Saia, quem quer que seja. Ninguém está autorizado a
permanecer nesta sala a essa hora da noite.
Alguém ou algo deslizou pelas profundas sombras entre duas das altas
figuras. Uma figura se deslocava até ele. À luz amarela da lanterna comprovou
horrorizado que um dos deuses tinha ressucitado. Tinha o corpo de um
homem e a cabeça de um chacal.
O chantagista recordava a descrição que Alverstoke tinha feito do deus
relacionado com a morte e o embalsamento: Anubis.
— Não!
O chantagista apenas podia respirar. Essa única palabra havia saído da
sua boca como um rouco suspiro.
Anubis levantou uma mão na qual segurava uma adaga.
— Coloque a lanterna em cima do altar — ordenou Anubis.
O deus falava com um marcado acento russo.
— Você! — susurrou o chantagista.
— A lanterna.
Ouviu um ruido metálico quando o chantagista deixou a lanterna sobre
o altar.
— Mas o que é tudo isso? — peguntou —. Por que leva essa ridícula
máscara?
Isso não te interessa.
— Olhe aqui, nós tínhamos um acordo...
— Seus serviços já não são necessários.
O chantagista afastou-se, mas bateu com o altar de granito. Tentou
gritar, mas o medo apertou seus pulmões num punho.
Percebeu a faca e seu brilho diabólico. Sentiu a lâmina fria entrando
nele, e logo já não soube mais.
Capítulo 19

A impressão eletrizante do abraço fez com que Beatrice ficasse muito


quieta. Pensava que tinha se acostumado com as pequenas sensações que
sentia cada vez que Joshua a tocava. Mas a impressão devastadora daquele
beijo a havia pegado completamente desprevenida.
Freneticamente, queria recordar que não era a primeira vez que a
beijavam. E que também se tratava de um beijo teatral, dado com a intenção
de enganar o casal de intrusos. Não era um beijo real.
Como se não bastasse, havia sentido algo muito mais real do que com
os beijos que havia desfrutado com Gerald antes que este fugisse com a
asistente. Nessa época, se sentia decepcionada com os beijos em geral e havia
começado a pensar que talvez a paixão estivesse sobrevalorizada. Agora, nesse
momento, entendia que o que havia experimentado com Gerald somente era
uma leve paquera.
O beijo de Joshua, por outro lado, era a porta de entrada para essa
paixão e essa ferocidade tão abundante das novelas sensuais que escrevia sua
amiga Evangeline. Constituia a emoção ardente que podia ser devastador para
os sentidos e o bom juízo. Uma paixão como essa podia tentar uma mulher a
se arriscar.
A boca de Joshua era quente e faminta sobre a dela, como se exigisse –
como se necessitasse – uma resposta. O abraço tinha sido firme e
devastadoramente poderoso, e ainda assim não se havia sentido ameaçada.
Antes bem, havia gostado. Se sentia esmagada contra ele — apenas podia
respirar—, mas a sensação era deliciosamente enjoativa. No ar se percebia um
calor estranho. Os sentidos se despertavam de maneiras que não havia
conhecido nunca.
Se esqueceu do casal que se aproximava e envolveu o pescoço de
Joshua com seus braços. Ele gemeu e com grande esforço descolou sua boca
da dela.
— Cheira tão bem! — disse acariciando com a bochecha o pescoço de
Beatrice—, Poderia me embebedar com seu cheiro. Já quero me embebedar.
Ela sentiu que o seu pulso se acelerava, e não pelo perigo de que os
descobrissem. Estava segura de que Joshua já não simulava.
— Joshua — susurrou.
E então o casal chegou a até eles. Beatrice escutou a risada afogada da
mulher. O homem ofegou lascivamente.
— Parece como se esses dois não puderam esperar para encontrar uma
cama – disse.
— Mas não fique com ideias equivocadas- o advertiu a mulher-. De
certeza que não vou fazer isso em um canto, como uma qualquer.
Joshua ficou logo imóvel, como alcançado por uma corrente gelada.
Beatrice sabia que estava a ponto de se voltar para enfrentar o casal. Ficou
com os dedos nos ombros.
— Querido — disse, falando em um tom que imaginava ser sensual —.
Não pare.
Podia sentir que Joshua lutava para dominar a sua fúria.
— Por favor — insistiu ela.
O homem e a mulher riram suavemente e continuaram a seguir pelo
corredor.
Beatrice voltava a ficar sozinha com Joshua.
— Terá que me desculpar – disse ele, muito tenso —. Não era minha
intenção submentê-la a insultos como esses.
Beatrice se deu conta que o abraço tinha estragado em parte seu
penteado. Inspirou profundamente e começou a arrumá-lo.
— Ganho a vida como investigadora particular que se faz passar por
dama de companhia – disse, tentando recuperar o ritmo da respiração-. Antes
disso trabalhei como vidente para certo indivíduo que, com toda certeza, era
um chantagista. Lhe assseguro que para me insultar é necessário algo mais que
umas chacotas de gente que está acima de mim
— Eles não estão acima de você.
Ela fez uma pausa enquanto arrumava o cabelo.
— Quê?
— É muito melhor que eles….! — expôs ele. Tocou sua bochecha —.
Superior em atitude, superior em carácter, superior em todos os aspectos
inimagináveis. É… é incrível, Beatrice.
Surpreendida, ela se viu incapaz de fazer nada mais que olhá-lo,
consciente que tinha a boca aberta.
— Oh —disse. E logo se calou. Não tinha o que acrescentar.
Ele passou a ponta do dedo sobre os lábios. E então ele a beijou
novamente, com um beijo que era, a um tempo apaixonado, reivindicativo e
que, de alguma forma, continha a promessa do que estava por vir.
Mas antes que pudesse reunir seus sentidos em turbilhão, ele quebrou o
contato, agarrou-a pelo braço e arrastou-a para o corredor mais próximo.
Abriu uma porta. A luz vacilante do candelabro da galeria fazia com
que apenas pudessem distinguir os degraus de pedra desgastados pela idade de
uma escada em espiral.
— Esta escada leva até ao andar onde está seu quarto- disse Joshua-.
Permaneça perto da parede. Os degraus são bastante estreitos e não tem
corrimão.
Ela viu a escadaria, com uma grande apreensão. Uma vez que fechasse
a porta do corredor, iria ficar envolta em escuridão absoluta. Logo se
recordou da terrível fuga do gabinete de Fleming. Mas ao menos naquela
ocasião dispunha de lanterna. Tentou se dominar, mas sabia que não poderia
enfrentar a escuridão absoluta da escadaria, por muito que soubesse que
Joshua estava com ela.
— Desculpe, não posso subir por essa escadaria sem uma luz – disse
ela.
— Já tinha pensado que algo assim podia acontecer.
Joshua fechou a porta do corredor, cortando a pequena iluminação de
gás vinda de fora. Quando ficou escuto, Beatrice sentiu que o pânico
começava a crescer em seu interior. Estremeceu. Sentia que lhe fechava a
garganta. O medo se desenrolou. Sabia que aquela reação era ilógica. Não
corria perigo de fato. Mas saber isso não servia para a tranquilizar.
— Joshua, sinto te dizer que não posso permanecer nesse lugar durante
muito tempo – sussurrou —. Aprecio a elevada opinião que minha atitude
merece, mas a verdade é que sofro de uma grande fragilidade: sinto que meus
nervos me traem quando se trata de espaços escuros e fechados.
— Isso não é nenhuma fragilidade, senão um sentido comum. Os
lugares escuros e fechados podem ser perigosos.
Escutou o som de uma fricção. Uma faísca brilhou e queimou de um
segundo, e a maré da noite retrocedeu. Joshua tinha acendido um fósforo.
— Servirá isso? – perguntou em um sussurro —. Durará o bastante até
que cheguemos em cima.
— Obrigado – disse ela depois de uma profunda inspiração.
Agarrando as saias, começou a subir a escada, cuidadosamente pisando
na parte mais larga de cada um dos degraus. Joshua estava por trás, com a
bengala batendo pesadamente em cada passo.
Quando chegaram ao piso superior, Beatrice viu, aliviada, que bebaixo
da porta surgia uma pequena e pálida linha de luz.
— Isto se abre para uma sala que serve como um espaço de
armazenamento, que abre para o corredor- disse Joshua.
Apagou o fósforo e abriu a porta. Beatrice entrou em uma pequena
sala, no extremo oposto da qual vinha uma linha de luz, desta vez mais
brilhante. Foi tranquilizante. O mal estar tinha passado.
Joshua se aproximou da porta do corredor e aguçou o ouvido.
— Pelo que parece está deserto. A princípio deve chegar a seu
dormitório sem que ninguém a veja. Mas se aparecer alguém, deixe bem claro
que estava fazendo um recardo para sua patroa. Ninguém questionará uma
história como essa.
— Lhe assseguro que sou muito capaz de inventar minhas próprias
histórias – respondeu com frieza.
— Claro que sim. Me perdoe. É que tenho estado fora de circulação
durante muito tempo, e não estou acostumado a trabalhar com outros
investigadores profissionais.
Ela suspeitava que sorria, mas como estava muito escuro para ver,
decidiu ignorar.
Joshua abriu parcialmente a porta e olhou o corredor.
— Não tem ninguém, efetivamente - disse.
Beatrice atravessou a soleira e parou de repente, como se se lembrasse
de algo.
— Quase me esqueci. Tinha trazido isso para você.
Tirou um pequeno frasco do bolso e o entregou. Quando ele pegou, os
dedos de ambos se roçaram e ela experimentou outro estremecimento em sua
consciência. Pensou que as pequenas sacudidas íntimas estavam ficando mais
fortes.
— O que é? — preguntou ele.
— Um tónico para a dor. A senhora Marsh o prepara em seu
laboratório, e eu sempre viajo com uma garrafa. Pensava que talvez quisesse
provar. Acredito que pode ser muito útil para essa perna que dói.
— Obrigado — disse ele com escrupulosa educação, mas sem parecer
que apreciava o detalhe. Apertou o frasco na mão —. Pelo que sei do talento
da senhora Marsh no que se refere à química, suspeito que tenha bons
resultados. Mas nunca tomo medicação que derive da papoula. Interfere com
o meu pensamento.
Beatrice sorriu entre as sombras.
— Não me surpreende que descarte um tónico feito à base de ópio.
— Me conhece tão bem no breve tempo que passamos juntos?
— É natural que não queira tomar nada que possa perturbar seu juízo e
seus dons.
— Meus dons? — O sarcasmo tinha voltado à sua voz.
— Perdoe-me – disse ela com suavidade —. Não me refiro aos dons
paranormais, exceção a isso, se não os inegáveis dotes de observação e de
lógica. Acredite em mim, entendo o seu medo aos opiáceos. Mas se
tranquilize, porque este tónico não tem nada que provenha da papoula. A
senhora Marsh utiliza salicílico procedente do salgueiro e de outras plantas. É
uma fórmula própria e especial. Muito boa para estados febris e para certos
tipos de dores. Ela trata seu reumatismo somente com essa fórmula. Minhas
amigas e eu temos tomado uma dose ou duas de vez em quando, para a dor
de cabeça.
— Eu não gosto de tomar remédios de nenhum tipo.
— Isso é certo? Vai me dizer que nunca bebeu um brandy ou whisky
quando a dor nas pernas é mais forte?
Produziu-se um silêncio.
— Bem, confeso que tem razão nesse ponto – reconheceu ele por fim
—. Mas isso é diferente.
— Você é sempre tão ranzinza, senhor Gage? O que é apenas no trato
comigo que sai à luz o seu lado mais irracional?
— Acho que terá a ver com você. Sim, isso acredito.
No escuro, Beatrice não podía saber se estava voltando a zombar dela,
mas decidiu que não estava com humor para averiguar.
— Bem, faça o que quiser — disse —. Pode tomar a fórmula da
senhora Marsh ou pode descartar isso, como desejar. Não vou perder mais
tempo discutindo com você. Se me permite passar, voltarei ao meu quarto.
— Antes de que se vá — ele disse com muita suavidade —, tem uma
coisa que gostaria que soubesse.
— Do que se trata?
— Abaixo, no corredor em que estivemos nos beijando faz uns
minutos, não era consciente de nenhuma dor, na verdade. De fato, acredito
que nosso abraço foi mais terapêutico.
— Se esse comentário pretendia ser humorístico, falhou.
— Falo muito sério.
Sim, parecia sério. Ela tratou de advinhar o raciocinio que se escondia
por detrás dessa observação, mas não conseguiu.
— Bom, corríamos um certo perigo de que nos descobrissem – disse,
mais tensa —. Esse tipo de excitação pode fazer que se ignore por um tempo
a dor, que de outro modo é insuportável. Estou segura de que você é
consciente disso, dado os seus antecedentes.
— Eu sei tudo sobre o efeito anestésico que a excitação violenta tem
sobre o corpo- soltou ele com impaciência —. Mas esse casal no corredor não
podia representar um perigo tão sério. Não, senhorita Lockwood, estou
convencida de que foi o seu beijo que me fez esquecer da minha perna.
— Tal como me explicou... —Beatrice esclareceu—. Tal como me
explicou, acaba de passar um ano muito longo no campo. E agora devo ir.
Estamos em plena investigação, como você logicamente recorda, e tenho que
pagar uma chantagem.
Ele abriu mais a porta e foi para um lado. Ela saiu e correu para baixo,
até seu quarto. Sabia que ficaria de olho nela até que abrisse a porta e a
considerasse sã e salva. Assim o fez, e entrou no dormitório.
Capítulo 20

Joshua esperou até que a porta do dormitório de Beatrice estivesse


fechada e logo iniciou o caminho de volta pela velha escada até a parte de
baixo. Superar cada um dos lanços da escada lhe produzia uma careta de dor.
Descer escadas acabava sendo sempre mais difícil que subi-las. E o pior era
que Beatrice já não estava junto dele para distraí-lo da dor.
Ao chegar ao início da escada se deteve e abriu a porta. Não havia
ninguém no corredor. Na casa se respirava uma maior tranquilidade. O
trânsito voltaria a aumentar apenas antes do amanhecer. Nada era mais
previsível do que a rotina noturna em uma festa de uma casa de campo.
Dentro de uns instantes entrava em um pequeno cómodo que parecia
haver sido um tempo atrás a cela de um monge. A pequena estadia estava
vazia. Somente havia nela dois grandes baús que alguém tinha deixado ali fazia
anos e que evidentemente tinham esquecidos. Através da madeira
praticamente rachada da porta ele tinha uma clara visão das pesadas portas
que guardavam a grande sala, no extremo oposto do corredor.
Sentou-se em um dos baus e puxou do bolso o pequeno frasco
medicinal. O examinou atentamente durante uns momentos graças à luz que
penetrava através da porta.
Não estava certo do que pensava daquele remédio que Beatrice tinha
lhe dado, nem sobre o seu efeito. Certamente, ele se sentia em parte irritado.
Não gostava que Beatrice fosse consciente da sua dor. Mas a outra parte dele
estava estranhamente emocionada pela dádiva.
O que indicava, em qualquer caso que, apesar dos escassos dias que
tinham transcorrido desde que haviam se conhecido, Beatrice o conhecia
suficientemente bem para discernir em que momentos a perna o torturava.
Somente com esse dado bastava para ele saber que não estava fazendo bem na
hora de ocultar suas emoções.
O que o tinha alarmado mais, de qualquer jeito, foi o apaixonado beijo
do corredor. Ele não havia tido a intenção das coisas saírem do controle.
Tinha que ter sido uma farsa, nada mais. Mas ao mesmo tempo que ela tinha
se apertado nele, que tinha respirado seu perfume, que tinha percebido as
formas suavemente redondas daquela parte inferior do vestido, algo no seu
interior tinha ameaçado se liberar.
Na sua vida havia passado muito tempo aprendendo a controlar as
poderosas marés que ameaçavam seu mundo ordenado com tanto cuidado. O
rigoroso treinamento físico e mental a que havia se submetido durante anos o
havia ensinado a canalizar o fogo que levava dentro. Então, tinha aprendido
da mais difícil maneira que, quando violava suas próprias regras, ocorriam
coisas que não desejava.
Fazia um ano que tinha ultrapassado os limites da lógica no meio de
uma investigação e seguia pagando. Contiuava acordando banhado em suor
frio, pensando como podia ter-se equivocado tanto com Clement Lancing.
A resposta sempre o estava esperando. Tinha permitido que
governassem suas emoções, não a lógica.
Essa mesma noite, no corredor das sombras, tinha que ter-se
concentrado na investigação. Em lugar disso, tinha sido atraído para o fogo
sensual do beijo de Beatrice.
Nesse momento podia ter enviado sua capacidade de autocontrole ao
diabo se isso implicava ter Beatrice somente por uma hora.
Depois de tudo, que bem tinha feito tanto treinamento, tanta meditação
focalizada? No final, quando mais importava, tinha caído no maior erro da sua
vida. Tinha confiado precisamente na única pessoa em quem nunca deveria
ter confiado.
Agora, uma mulher ruiva com olhos incríveis e um passado duvidoso –
e provada capacidade para o engano – lhe estava pedindo que confiasse nela.
Queria que bebesse uma poção misteriosa que, por coincidência, levava essa
noite no seu bolso. E essa era a mesma assombrosa mulher, que ocultava uma
pistola abaixo das saias e um frasco de sais aromáticos com uma poção
abominável, era capaz de fazer que um homem ficasse de joelhos, chorando.
Tinha que ser louco para se arriscar a tomar ainda que fosse um pouco
desse tónico. Sim, certamente: a perna o machucava esta noite, mas não era
insuportável, nem muito menos. Tinha passado por noites piores.
«Confie em mim, senhor Gage.»
Abriu a garrafa e bebeu um pouco do tónico. Tinha um gosto
ligeiramente ácido, mas pôde beber facilmente.
Voltou a fechar a garrafa e pensou em como acabava de romper a regra
mais importante de uma investigação. Tinha confiado em alguém relacionado
com o caso, uma mulher que, sem dúvidas, tinha muitos segredos ocultar.
Dava a impressão de que ainda ia quebrar algunas regras mais, por
culpa de Beatrice Lockwood. O que não entendia era por que motivo não
levantava essa possibilidade com uma maior inquietude. O que não entendia
era por que lhe invadia uma impaciência febril, no lugar de uma profunda
preocupação.
Capítulo 21

— Acredita realmente que isso é seguro? — perguntou Hannah.


— Não há nenhum motivo para preocupar-se por mim — respondeu
Beatrice —. O chantagista somente está interessado em obter o seu
pagamento. Não tem nenhum motivo para fazer dano à pessoa que o entrega.
De resto, teria que ser o contrário. Acaso não estará em seus planos seguir
com as extorsões para receber mais no futuro?
— Monstro! — exclamou Hannah, indignadíssima.
— Aqui quem estará arriscando é seu irmão — disse Beatrice —. O
senhor Gage, sem duvida correrá certo perigo se quizer surpeender o
criminoso no momento de retirar o dinheiro da chantagem.
Hannah fez uma careta muito expressiva.
— Bem, o caso é que não há porque preocupar-se por Josh. Ele sabe
cuidar-se muito bem. Depois de tudo o que passou, estou segura de que um
simples chantagista não representará grande coisa.
— Mesmo assim, voce se preocupa por ele, não?
— Ele... — Hannah suspirou —. Durante todo o ano passado o demos
por perdido para nós. Era como se as sombras o houvessem sugado, como se
ja não houvesse solução. Sim, é certo que foi a Londres em várias ocasiões
para cuidar de algum assunto, e que escrevia pontualmente todos os meses.
Mas eram cartas sem importância, continham comentários sobre o tempo, os
planos de reparação que planejava fazer em sua casa de campo... Nelson foi
vê-lo algumas vezes e voltava dizendo que Josh parecia estranhamente
isolado. Na verdade era isso que eu temia...
— Sei muito bem que temia — a interrompeu Beatrice —, mas a
verdade é que não creio que tenha que preocupar-se por isso. O senhor Gage
necessitava de um certo tempo para recuperar-se das feridas, mas, tal como
lhe disse, pessoalmente, acho que ele permaneceu demasiado tempo no
campo. Ja era hora de que voltasse ao mundo real!
— E você falou com ele sobre isso? — preguntou Hannah, levantando
as sobrancelhas.
— Sim, falei com ele! Esta noite mesmo, conversei com ele.
— E como ele reagiu ao conselho?
— O caso é que — respondeu Beatrice enrrugando o nariz —, como
de costume, não o aceitou muito bem.
— Não estou surpreendida.
— Mas tenho a firme convicção de que vir ajuda-la, a sua irmã, foi o
melhor de todos os bons conselhos do mundo. Creio que voce poderá
comprovar que esse assunto da chantagem lhe deu um novo propósito de
vida, e com isso, o estado de ânimo de seu irmão sairá fortalecido.
— A verdade é que algo deve ter ocorrido em sua vida recentemente
que o mudou —disse Hannah. Olhou a Beatrice com olhos expertos —.
Notei essa diferença pouco antes de partirmos para Londres. Creio que voce é
o tónico que ele necesitava durante todo este tempo.
Beatrice sentiu calor nas bochechas. Aclarou a garganta, olhou o relógio
e disse:
— Preciso ir. Vou levar o pagamento e já volto, será questão de poucos
minutos.
— Por favor, querida, tenha muito cuidado. Este assunto me causa
arrepios na espinha, muito...
— Pronto logo tudo terá acabado.
Decidiu que não iria dizer a Hannah que ela também estava sentindo
apreensão. Hannah era a cliente. A senhora Flint e a senhora Marsh insistiam
em que era muito importante manter aqueles que pagavam as importantes
faturas de Flint e Marsh tão tranquilos como fosse possível, já que alguns
chegavam até mesmo a criar mais problemas no decurso da investigação.
Efetivamente, os clientes sempre estavam à mercê de suas conexões
emocionais com o caso.
Ela pegou o envelope que continha o dinheiro e uma vela por acender e
abriu a porta. O corredor estava deserto.
Levantou uma mão, em um gesto tranquilizador dirigido a Hannah, e
saiu do quarto.
A grande casa estava quase mergulhada num silêncio total, nesse
momento. Não se ouvia nem sussurros atrás das portas dos dormitórios, nem
passos amortecidos pela escada de serviço. As idas e vindas secretas haviam
cessado, até ao amanhecer.
Na parte de baixo seguiam acesas tenuemente as lâmpadas da parede.
Quando chegou à base da escada, dirigiu um olhar para a passagem que levava
até à grande sala. Olhou ao redor, mas não viu Joshua em nenhum local, nem
rastro algum de sua presença. Mesmo assim, sabia que estava por ali, nas
proximidades, observando das sombras.
A escuridão se acentuou à medida que se aproximava das grandes
portas. Pensou no que faria se as encontrasse fechadas. Isso poderia significar
que, por alguma razão, os planos do chantagista haviam saido mal. Mas
também havia outra possibilidade: se a sala de antiguidades seguia fechada,
isso podia indicar que o malfeitor havia descoberto a armadilha que Joshua lhe
estava estendendo.
Esse pensamento despertou mais nela tanto os sentidos como estado
de alarme. Seu coração começou a bater com força quando chegou às portas
maciças. Olhou para baixo e viu a energia de uma atividade equivalente de
varias décadas no solo. Todos os que haviam entrado na estância essa noite
haviam deixado algum resíduo paranormal atras de si, mas havia umas pegadas
em particular que brilhavam com o calor de um homem que vivia num estado
de grande agitação nervosa. E o único que Beatrice podía estar segura era de
que não reconhecia essas pegadas quentes.
Inspirou profundamente e envolveu com a mão um grande pomo de
latão. Empurrou a porta com cuidado.
Não oconteceu nada. Algo ia mal. Não estranhou estar uma penca de
nervos.
Empurrou mais forte, com todo seu peso. Desta vez a porta se abriu,
lenta e ceremoniosa, mas, surpreendentemente, com muito pouco ruído.
A escuridão estava carregada com energia desassossegante das
antiguidades concentradas ali dentro, abriu um pouco mais a porta. Beatrice
pensou que deveria estar experimentando um certo alívio, pois tudo parecia
indicar que o plano de Joshua seguia adiante. O chantagista havia mordido o
anzol.
Mas em lugar disso se sentia mais molesta que nunca. Os sentidos lhe
sibilavam como os de uma máquina elétrica. A intuição lhe gritava sem cessar.
«Devem ser os efeitos combinados das antiguidades», pensou. As
correntes de energía no interior desse espaço já lhe haviam resultado
desagradáveis naquela mesma noite com a sala iluminada. Agora, com todos
os rincões sumidos na escuridão, lhe pareciam muito mais intensas e
ameaçadoras.
Armando-se de valor ante a energia que, ora susurrava, ora uivava na
estância, se deslizou dentro. A pesada porta começou a fechar-se
imediatamente. Beatrice se apressou a acender a vela.
A pequena chama apareceu em seguida, mas sua luz não penetrava na
escuridão. Todos aqueles objetos antigos, todos esses deuses e deusas
pairavam sobre ela, ameaçadores e misteriosos. O ambiente era opressivo.
Até esse momento, somente havia visto as antiguidades do corredor
exterior. Sempre havia querido estar ali. Mas agora se encontrava em meio de
muitos objetos carregados de energia. A intensidade das correntes
paranormais naquele ambiente era surpreendente. A energia que cobria os
objetos provenientes das tumbas e templos de todo o tipo sempre era algo
sério, mas nessa noite a essência da morte se fazia sentir como uma horrivel
frescura.
Tão fresca que, ela podia jurar que havia captado o cheiro de sangue
que acabava de derramar-se.
Sangue e uma fumaça de incenso.
Era impossível.
Queria ser dona de si mesma, de modo que dominou sua mente antes
que a imaginação desbocada começasse a conjurar fantasmas e demónios.
O lado racional de sua natureza lhe assegurava que não havia nada a
temer das antiguidades. Essa noite a ameaça era um chantagista muito
humano, e Joshua era bem capaz de vencê-lo.
Seguiu avançando com precaução, consciente dos olhares lançados
pelas estátuas nos pedestais e vasos no interior da câmara. Não seria difícil
tropeçar em alguma das antiguidades mais pequenas. Um acidente desse tipo
não era desejável nesse momento.
Avançou por um corredor escoltado por deuses e deusas com cabeça
de animal sobre uma plataforma de pedra com os dois sarcófagos. A vela
tremeluzia na pequena caixa. Entre as sombras dançantes podia distinguir a
imagem de um gato e um quadro com uma cena de caça. Resultava
estranhamente emocionante saber que um gato havia sido merecedor de altas
honras.
Alguém havia aberto parcialmente a tampa do sarcófago do gato.
Beatrice começou a depositar o envelope em seu interior, mas sua mão ficou
imóvel no ar. O odor de sangue ficou de repente mais intenso. O mesmo
ocorreu com o do incenso.
Se afastou do sarcófago do gato e levantou a vela. Acima, mais acima.
Entre as luzes vacilantes viu um grande altar de granito. As figuras e os
simbolos gravados nele não eram obra de um talento que pudesse ultrapasar
as centurias. Mas essa pedra emanava outras correntes: capas e mais capas de
forças escuras e desassossegantes se retorciam no ambiente.
De todos os modos, as sacudidas de horror que Beatrice sentiu não
tinham ligação com a energia antiga, mas sim com a visão de uma cascata de
sangue fresco que transbordava do altar. Isso foi tão forte, que ela sentiu sua
garganta fechar, impedindo-a de respirar.
Retrocedeu um passo e levantou mais a vela. Então viu aquela silhueta
imóvil na parte superior do altar. O homem estava deitado de costas, com a
cabeça ligeramente voltada para um lado, de maneira que não podia ver-lhe a
cara.
Seu primeiro pensamento, acompanhado por uma onda de pânico, foi
que o homem morto era Joshua.
«Não.»
Se aproximou e se obrigou-se a olhar o rosto da vitima. A morte havia
esculpido um rictus na máscara, mas com um relâmpago de alívio viu que a
pessoa estendida sobre a tumba não era Joshua.
O impacto a deixou desnorteada. «Não é Joshua.» Isso era o mais
importante. Talvez se tratasse do chantagista. Certamente, isso estava fora do
reino das posibilidades que o chantagista houvesse sido assassinado por uma
de suas vítimas.
Joshua não iria ficar contente. Beatrice sabia que sua intenção era
interrogar o chantagista.
Não obstante, uma coisa era evidente. Teria que sair da sala
imediatamente. Não podia permitir que a encontrassem na cena de um
assassinato. Ela era só uma dama de companhia. Todo o mundo daria por
certo o pior: que havia matado um amante, ou que havia conspirado para
roubar alguns artigos valiosos. O mais provável era que a polícia concluísse
rapidamente que havia ocorrido desacordos entre malfeitores.
Tentou refletir, mas não era fácil. Tremia incontrolavelmente, e agora
sentia uma sensação mareante o que era pior. Não podia acreditar que
estivesse a ponto de desmaiar. Não, as agentes de Flint e Marsh não
desmaiavam nunca.
De repente, uma estranha névoa começou a crescer ao seu redor. E nas
profundezas daquelas sombras lhe pareceu que os deuses e demónios
adquiriam vida.
«É um sonho — sussurrou. Desesperadamente, tentou colocar em
ordem seus pensamentos e percepções—. Não é real. Nada disto é real.»
Então viu as pegadas febris na superficie do solo ao redor do altar.
— Acreditou que poderia voltar a escapar de mim, pequena prostituta?
Eu nunca falho.
O marcado sotaque russo havia surgido da escuridão à sua esquerda.
Tentou girar para aquela direção, mas esteve a ponto de cair ao chão, devido
ao enjoo. Aterrorizada ante a perspectiva de que a vela caísse e pudesse
provocar um incêndio, deixou a palmatória sobre o altar com a mão tremente.
Os sentidos se intensificavam, mas o incenso estava afetando a sua
outra visão, e lhe fazia ver coisas que a razão lhe dizia que não podiam existir.
Os olhos de uma figura com cabeça de falcão brilhava. Uma cobra com
pedrarias se levantou e sibilou. Uma imagem da deusa Nut abriu suas enormes
asas. Os deuses do inframundo egípcio — esses dos quais se diziam que
tinham a pele de ouro puro e o cabelo como lapis lazuli— voltavam à vida em
torno dela.
A fumaça perfumada ficou mais espessa. Tentou recolher a barra da
saia com a intenção de encontrar a pistola, mas não conseguiu. Era
impossível. Sabia que estava perdendo a conciência.
A débil luz da vela iluminou uma figura que vinha em direção a ela.
Beatrice reconheceu um Deus com cabeça de chacal.
— Anubis — disse —. Isto não pode estar ocorrendo. Estou
sonhando.
— Nunca falho.
Uma lanterna brilhou à distância. Se aproximava rápidamente. Beatrice
ouviu a batida de uma bengala no chão.
— Joshua — ofegou. A esperança e o medo lhe davam forças. Se
esforçou para levantar a voz — Há um assassino nesta sala!
— Tenho uma arma — disse Joshua.
Mas a figura de Anubis ia já a fugir em direção a um muro no outro
extremo da câmara.
E então Joshua chegou junto dela. Beatrice se deu conta de que levava
um pano atado como uma máscara ao redor da parte inferior do rosto. Ele
pegou-a sobre um ombro num piscar de olhos.
— Deveria saber que as coisas não sairiam de acordo com os planos
nesta noite — disse Joshua—. Nunca saem de acordo com o previsto se você
está envolvida.
Nesse momento se encontrava segura.
Desistiu do esforço de permanecer desperta e se deixou invadir pelo
mar de escuridão.
A última recordação consciente foi a das pegadas psíquicas que havia
visto próximo do altar e que lhe haviam resultado tão familiares. «É
impossivel», pensou. Estava alucinando.
********
Ele a levou para cima sem encontrar nenhum convidado ou criado.
Não tinha como saber se alguém os havia visto, mas se consolou pensando
que se fosse o caso, suspeitariam que a dama de compahia de Hannah havia
consumido muita genebra.
Hannah esperava no quarto. Olhou o seu irmão e a sua carga, muito
surpreendida.
— Meu Deus! Está...?
— Inconsciente —disse ele—. Mas tanto o pulso como a respiração
parecem normais. — Deixou o corpo frouxo de Beatrice sobre a cama—.
Creio que a drogaram. Não teria sais aromáticos aí com você?
— Naturalmente que sim. Sally sempre põe um pouco na mala para as
emergências. Mas vi que Beatrice trouxe os dela.
Hannah alcançou o frasco que estava preso por uma corrente na cintura
de Beatrice.
—Essa não é uma boa ideia —disse Joshua—. Te asseguro que não
desejarias utilizar estes sais em particular. É um preparado muito especial e
criado por uma de suas patroas. Devem ter sido criados especialmente para
desfazer-se de cães loucos e de assaltantes em potencial.
— Já vejo. Que raro. Josh, o que houve esta noite?
— Não sei, mas pretendo averiguar. Tenho que deixar Beatrice com
você para que cuide dela. Não me convém que me vejam neste quarto. Seja
como for, tenho que descobrir mais sobre o assassinato.
— Que assassinato? De que está falando?
—Suspeito que o homem que tencionava chantagear-te é a vitima. A
pergunta é: quem o matou?
Capítulo 22

Utilizou a velha escadaria em caracol para voltar para baixo. Quando


chegou à planta baixa, avançou pelo largo e escuro corredor que levava à
câmara de antiguidades. Era consciente de que seu estado de ânimo era dos
mais estranhos. Uma volátil tormenta de emoções fervilhava em seu interior.
Entre essas sensações tão carregadas, destacava uma fúria fria que, em grande
parte, dirigia a si mesmo. Essa noite havia posto Beatrice em perigo.
Tudo havia saído errado. Outra vez. «Como há um ano», pensou. Pelo
menos nesta ocasião não havia morrido nenhum inocente, mas o que havia
ocorrido era muito similar.
As maciças portas seguiam fechadas, tal como as havia deixado uns
minutos antes e sem o ferrolho corrido. Supostamente o assassino conseguira
fugir, era improvável que ele tivesse perdido tempo para fechá-las ao sair. Mas
era difícil afirmá-lo: as mentes criminosas são bem previsíveis, mas nem
sempre.
Pegou o pano que havia utilizado antes, quando se advirtiu que no local
havia vapores perigosos. Susteve o amplo pedaço de linho apertado contra o
nariz e a boca.
Entrou no espaço cavernoso, ascendeu um fósforo na porta atrás dele.
Boa parte do vapor perfumado se havia dissipado, mas ainda podia
perceber alguns de seus efeitos pertubadores. O braço de uma estátua
próxima dele pareceu mover-se. Ignorou as alucinações e se concentrou no
objetivo.
Ascendeu os candelabros da parede, e sua luz atravessou o corpo
estendido sobre o altar. Uma lanterna apagada estava pousada junto a uma das
mãos do homem morto.
Avançou alguns passos, atento para o caso de haver outra pessoa
escondida. Mas estava seguro de que nesse momento não havia nada mais. O
assassino havia ido embora.
A vítima não era nenhum dos convidados. Ia vestido como um
servente de alto nível, um ajudante de câmara, talvez. Joshua duvidava de que
alguém fosse reclamar a sua ausência no dia seguinte.
Ao ver a ferida sentiu a centelha de reconhecimento. Haviam matado
um ajudante de câmara fraudulento com uma só e certeira punhalada no
coração. Era possível que estivessem implicados dois assassinos altamente
capacitados, mas essa posibilidade era muito remota. Em qualquer caso, cada
profissional matava de uma maneira única. Não havia dois que o fizessem da
mesma forma. E ante ele havia uma evidência: o homem que havia
assassinado Roland Fleming há uns meses, também havia matado o ajudante
de câmara nessa mesma noite.
«Mas que demónios está ocorrendo aqui?», pensou Joshua.
No bolso do criado encontrou um bilhete de trem, algum dinheiro, um
relógio e pouco mais. O relógio era com toda a certeza demasiado caro para
um ajudante de câmara. No interior da tampa estavam inscritas umas letras
elegantemente gravadas: E. R. B. Joshua duvidava de que as iniciais do
homem morto, fossem as mesmas. Em algum momento havia roubado aquele
relógio.
— Eras um delinquente de pouca monta que se põs a fazer chantagem
— disse Joshua dirigindo-se ao cadáver —. Como pôde ocorrer isso?
Retrocedeu. A bota tocou um objeto no chão. Baxou os olhos e viu
todo o dinheiro que Beatrice havia trazido há pouco tempo.
Recolheu-o e iniciou uma busca minuciosa pelo local, expandindo
gradualmente o círculo ao redor do altar, até que encontrou o que queria. O
assassino não havia tido tempo de retirar os restos do pote de incenso que
antes havia colocado em uma taça de alabastro.
Joshua contemplou o mecanismo durante um bom tempo, enquanto
considerava um leque de diferentes explicações e conclusões. Mas ao final
sabia que não poderia escapar da verdade.
O passado não estava morto, depois de tudo. E agora, de algum modo,
se relacionava com Beatrice.
Capítulo 23

Os sais aromáticos estalaram seus sentidos.


Beatrice despertou rapidamente, surpreendida ao comprovar que estava
viva. Abriu os olhos e viu Hannah e Sally inclinadas sobre ela.
— Graças a Deus! — disse Hannah —. Nos deixou um pouco
preocupadas. Como se sente?
— Como se me ardesse o cérebro — respondeu Beatrice.
— Isso são os sais — explicou com satisfação Sally —. Não há nada
como o amoníaco para despertar a mente.
— Ainda se sente mareada? — preguntou Hannah com ansiedade.
Beatrice se sentou e considerou a pergunta. Inspirou cautelosamente e
comprovou com alívio que o mal estar diminuia.
— Não — respondeu por fim —. Não, estou segura de que não vou
desmaiar. Não creio que pudesse sobreviver a outra dose desses sais. —
Olhou ao redor, tentando pôr em ordem as lembranças —. Que ocorreu aqui?
Onde está o senhor Gage?
— Voltou lá em baixo depois de trazer você — explicou Hannah —.
Era algo referente a um cadáver.
— Oh, meu Deus, sim! O corpo no altar — disse Beatrice. Voltou a se
estender sobre a cama —. Temo que vamos assistir a uma grande exibição.
Nada como um assassinato para fazer com que uma festa campestre acabe
antes do previsto.
******
Meia hora depois, Joshua chamava com suavidade à porta do quarto.
Hannah o fez entrar e fechou a porta atrás de si.
Joshua olhou Beatrice, que estava sentada em uma poltrona.
— Como se encontra? — perguntou.
— Estou bem — o tranquilizou ela —, graças a você e aos sais
aromáticos de Sally. O que ocorreu aí fora?
— Ja estão despertando Alverstoke para dizer-lhe que tem um cadáver
em sua sala de antiguidades. Creio que isso lhe causou um grande sobressalto,
mas conservou o tino suficiente para mandar recado às autoridades locais.
Chegarão a qualquer momento.
— Tenho uma curiosidade, senhor — disse ela —.Você levava uma
arma esta noite?
— Não, as armas de fogo não me agradam. São muito ruidosas e não
são muito precisas. Tão pouco se pode dizer que sejam uma boa opção para
alguém que goste de discrição, como é o meu caso. Quando alguém empunha
uma arma, sempre se arma um escândalo. Mas devo admitir que as armas de
fogo são na verdade uma ameaça efetiva. De todos os modos, na escuridão o
assassino não podia ver se eu ia armado ou não.
— Entendo — disse ela. Recordava o que Hannah havia dito um
pouco antes: «Josh é muito hábil com as adagas.»
— Ha algo que quero que saiba antes que cheguem as autoridades —
continuou Joshua.
— O que é? — perguntou Beatrice.
— Não que eu pretenda saber o que houve aqui nesta noite, mas há
algo de que estou quase seguro. Seja quem for, o assassino do homem que
está ai abaixo é o mesmo que matou Roland Fleming.
Um gélido impacto de recordações a transpassou.
— Como é isso possível? Realmente me pareceu ver suas pegadas, mas
pensei que era produto de minhas alucinações. Onde nos leva tudo isso?
— Entre outras coisas, a deduzir que o que ocorreu aqui está conectado
com o que ocorreu na noite da morte de Fleming.
— Não entendo — disse Hannah —. Que ocorreu então com a
chantagem a que pretendiam submeter-me?
— Creio que foi uma armadilha — respondeu Joshua —. E eu mordi a
isca.
— Qual a necesidade de estender-te uma armadilha? — disse Hannah
—. Durante este último ano foste um recluso, em todo caso não estavas
escondido.
— Não, eu não — respondeu Joshua —. Mas há alguém que estava
escondido.
Beatrice tragou a saliva com dificuldade.
— Eu.
— Todavia não estou completamente seguro. Mas começo a creer que
alguém requeria os meus serviços para fazer o que melhor sei.
— Encontrar as pessoas — susurrou Hannah —.É possivel? Alguém
ter-te-ia enviado para encontrar Beatrice?
— Beatrice não — disse ele —. Mas sim a Miranda, a Clarividente.
Essa mulher que desapareceu na noite em que assassinaram Fleming.
Capítulo 24

— Um assassinato. — Lord Alverstoke secou o suor da testa com um


lenço —. É extraordinário. Realmente extraordinário. Um assassinato aqui,
em Alverstoke Hall, justo no lugar em que exponho as melhores peças de
minhas coleções! Isso é intolerável! Isso fará com que sejam reavivados
falatórios sobre uma maldição.
— A forma mais rápida de pôr fim aos rumores sobre maldições é
encontrar o assassino — sentenciou Joshua.
Beatrice olhou-o. Nesse dia ele não havia complicado a vida
disfarçando-se. A barba postiça e os óculos haviam desaparecido. Tiveram que
despertar o mordomo de Alverstoke com as notícias do assassinato. Explicou
sua presença na mansão com palavras muito próximas da verdade: disse a
Alverstoke que era o irmão de Hannah e que havia permanecido na
vizinhança para estar disponível na hora de a escoltar e à sua dama de
companhia na viagem de volta a Londres, uma vez concluída a visita. Havia
visto umas «estranhas luzes» na casa nessa noite, e o temor de que se tratasse
de ladrões lhe havia induzido a entrar para investigar o que ocorria.
Alverstoke seguia todavia demasiado impressionado com o
descobrimento da tentativa de roubo e de assassinato para questionar essa
história.
Joshua estava cada vez mais impaciente com a indecissão de
Alverstoke. Ao seu redor se percibia uma energia tensa que falava mais claro
que as palavras. Beatrice sabia que queriaía continuar com sua investigação,
mas necessitava da cooperação de Alverstoke. Sua senhoria, em troca, parecia
ausente. Seguia consumido pelo ultraje e pela incredulidade.
A mansão de Alverstoke Hall estava quase vazia. A notícia do
assassinato havia ocasionado uma tormenta de serventes frenéticos e de
carruagens convocadas a toda a pressa. Resultava surpreendente, havia
pensado Beatrice, a pressa que as classes altas podiam se dar quando se
sentiam ameaçadas por uma possível investigação da policía. Joshua, Hannah,
Sally e ela mesma eram os únicos convidados que ficaram no castelo.
Todos eles, menos Sally, que se ocupava da bagagem de Hannah na
parte de cima, estavam reunidos na biblioteca com seu desgotoso anfitrião.
Beatrice e Hannah estavam sentadas no sofá. Alverstoke se esparramou na
poltrona atrás da sua enorme escrivaninha de mogno. Joshua estava de pé
com um braço apoiado na lareira. Com a outra mão sujeitava fortemente o
cabo de sua bengala.
A investigação levada a cabo pelas autoridades locais havia sido
rotineira, para dizer que faziam algo, pensou Beatrice. Em seguida havia
parecido óbvio para todo o mundo que os ladrões haviam conspirado para
roubar uma ou mais antiguidades. Se haviam envolvido em alguma desavença
— talvez uma discusão sobre qual dos vilões se encarregaria das antiguidades
mais valiosas — e a consequência havia sido o assassinato.
Haviam assegurado a Lord Alverstoke que poderiam dar por concluído
o assunto, já que parecia óbvio que o assassino ja estaria a caminho de
Londres, e ali desapareceria nas escuras ruas do submundo do crime. Segundo
as autoridades, não havia razão para importunar a sua senhoria com
investigações adicionais.
Entretando, Joshua estava decidido a fazer precisamente isso.
— Em verdade não tenho nenhum interesse em saber quem matou
esse homem — anunciou Alverstoke—. Minha única preocupação neste
momento, é encontrar um bom chaveiro, um que seja capaz de proteger a
minha coleção como é devido. Pedirei a esse velho chaveiro que me restitua a
pequena fortuna que lhe paguei pelo que, segundo dizia ele, era uma
fechadura inviolável. É um milagre que nesta noite não tenham roubado nada,
ao menos aparentemente.
Beatrice notou certa tensão na mandíbula de Joshua. Seus olhos se
estreitaram de uma maneira que a ela pareceu perigosa. Se notava que estava a
ponto de perder a paciência. Nada de bem podia esperar-se ao se presionar
demasiado a Alverstoke, pensou. Se o pressionassem em demasia, o ancião iria
assustar-se, ficando difícil de manejar. Beatrice decidiu que já era hora de se
envolver.
— Sua senhoria não deve responsabilizar o chaveiro — disse com
suavidade —. Não é culpa sua se esses intrusos foram capazes de penetrar na
sala. A melhor fechadura do mundo não poderia impedir um ladrão que tem a
chave. O que o senhor Gage lhe propõe é descubrir primeiro como puderam
roubar a chave. — Olhou com intenção a Joshua —. Não é mesmo, senhor
Gage?
Joshua tamborilou com os dedos sobre a mesa e logo deixou a mão
imóvel. Parecia irritado, mas desta vez consigo mesmo.
— Já lhe disse — contestou — que roubar essa chave não seria dif...
— Não seria possivel na maioria dos casos — interveio Beatrice antes
que ele pudesse acabar a frase. — Alverstoke seguramente não havia gostado
de escutar que suas medidas de segurança eram inadequados —.
Precisamente. Era óbvio que lord Alverstoke havia tomado medidas seguras
para proteção de sua espectacular coleção.
— Gastei uma fortuma em segurança — murmurou Alverstoke.
— E mesmo assim os intrusos conseguiram entrar aqui — disse
Beatrice com gentileza —. Esta é precisamente a razão pela qual deveria
considerar a oferta do senhor Gage de uma investigação muito discreta.
A expressão de Joshua se fez mais arisca. Até aquele momento não
havia oferecido seus serviços a Alverstoke, apenas havia tentado convencê-lo
para iniciar uma investigação.
Beatrice olhou a Hannah, que captou a indireta em seguida.
— O que a senhorita Lockwood disse tem muito sentido — falou a
Alverstoke —. Como ira proteger seus tesouros no futuro, se não descobrir
quem falhou nesta ocasião?
— Uh — disse Alverstoke franzindo o cenho. Meditou sobre essa
pergunta durante o que pareceu um tempo muito grande.
— E resulta — continuou Beatrice com grande serenidade — que o
senhor Gage tem muita experiência neste tipo de assunto.
Joshua lhe dirigiu um olhar furioso. Ela o ignorou.
Alverstoke, com as sombrancelhas franzidas, olhava a Joshua com
evidente suspeita.
— Vamos ver, o que sabe você sobre investigação criminal?
— Trabalhei como assessor para a Scotland Yard — respondeu Joshua,
num tom deliberadamente confidencial, que implicava que esse trabalho de
assessoria era de natureza muito delicada—. Digamos que prestei minha
colaboração para solucionar certos assuntos que requeria uma discricão
absoluta. Sinto, mas não posso entrar em detalhes. Estou seguro de que vossa
senhoria me entende.
— Sim, sim, naturalmente. Discrição, discrição. — O alívio de
Alverstoke ante essas notícias era evidente—. Sim, talvez a senhorita
Lockwood tenha razão. Seria uma boa ideia descobrir primeiramente como os
ladrões conseguiram entrar na grande sala. Desta forma, poderei evitar que
algo assim volte a ocorrer.
— É uma excelente ideia! — concordou Hannah.
— Sim, é certo — reconheceu Joshua. Fixou sua atenção em
Beatrice—. Um plano excelente, senhorita Lockwood — acrescentou em um
tom muito seco.
— Obrigada, senhor —respondeu ela, dirigindo-lhe um discreto
sorriso.
— Bem, então — prosseguiu Alverstoke—. Nesse caso lhe agradeceria
que investigasse para mim este assunto da chave roubada.
— Ficarei encantado de levar a cabo uma investigação para a senhoria
— disse Joshua. Separou o braço da lareira e agarrou a bengala com ambas as
mãos—. Ha uma coisa mais que gostaria de sugerir.
Alverstoke pareceu receoso.
— Diga-me.
— Suponho que tennha um catálogo das antiguidades que estão
expostas na grande sala, não é mesmo?
— Naturalmente! — Para Alverstoke era uma ofensa que sugerissem
que não possuía uma lista completa dos artigos de sua coleção—. Conservo
um registro excelente de todas as minhas aquisições.
— Pois bem, seria mais conveniente levar a cabo a verificação completa
do inventário assim que acabar meu exame da cena do crime — acrescentou
Joshua.
— Como! — O pânico se refletiu no rosto de Alverstoke —. Crê você
que o assassino tenha fugido com algum dos meus tesouros?
— Não sabemos com segurança, a menos que você traga o inventário
—contestou Joshua.
Estava deixando evidente a sua impaciência, pensou Beatrice. Dirigiu
até ela uma expressão tranquilizadora. Se notava que estava irritado, mas não
acrescentou nada mais.
— Isso levará um tempo considerável — afirmou Alverstoke.
— Sim, claro, o entendo — respondeu Joshua —. Mas seria
extremamente útil para saber com exatidão o que estaria faltando, se é que na
verdade falta algo.
— Sim, é certo. — Alverstoke começava a se pôr nervoso outra vez —.
Não havia considerado a possibilidade de que o bandido realmente houvesse
levado uma de suas posses. — Se levantou e foi até à porta—. Se me
desculparem, ordenarei a meu mordomo que disponha tudo para começar
com o inventário assim que você tenha concluído a sua investigação, Gage.
Joshua esperou até que a porta se fechasse atrás de Alverstoke. Logo
olhou a Beatrice. Esta lhe dirigiu um simpático sorriso.
— De nada — lhe disse.
— Eu também poderia havê-lo convencido para que me permitisse
investigar — resmungou Joshua.
— Ora ora! À velocidade que você ia, não era mais que uma questão de
tempo: nos haveríamos encontrado todos fora da casa — disse Beatrice —.
Tem que admiti-lo.
Hannah, divertida com a cena, levantou as sombrancelhas.
—Beatrice tem razão, Josh, e tu o sabes muito bem. Tens que agradecer
a ela.
— Nos velhos tempos não havia tido que pedir permissão para realizar
uma investigação — grunhiu Joshua.
— Não, claro, tu utilizavas outros métodos — disse Hannah com
vivacidade —. Só necessitava do cartão de visita desse temível Victor
Hazelton. Mas seus dias de proteger a Coroa das conspirações acabaram, por
sorte.
— Talvez não tenham acabado de todo — respondeu ele.
Havia falado muito pausadamente, pesando cada uma das palavras.
Hannah o olhou.
Beatrice sentiu frio.
— A que te referes?
— A situação se complicou — respondeu ele.
— Do que está falando? — preguntou Hannah.
— Não disponho de todas as respostas, mas estou em condições de
dizer-te que o aroma do incenso que o assassino utilizou à noite para drogar
Beatrice me resultou muito familiar. Muito provavelmente procedia do
laboratório de um dos meus sócios anteriores.
— Que quer dizer isso? — perguntou Beatrice franzindo o cenho.
Mas Hannah havia olhado a Joshua, impressionada.
— Josh, está seguro?
— Creio que a fórmula para esse incenso era uma criação original de
Clement Lancing, efetivamente — disse Joshua —. Leva todos os seus selos
distintivos. O que não sei todavia, é quem o empregou nesta noite. É possivel
que os livros de notas de Lancing tenham caído nas mãos de alguém... Alguém
que disponha da habilidade científica que requeriam recriar suas fórmulas.
Mas tambem há outra posibilidade.
Hannah uniu com força as mãos.
— Acredita realmente que Lancing pudesse estar vivo, depois de tudo?
— Tenho que aceitar que isso seja verdade até que possa provar o
contrário — admitiu Joshua.
Beatrice franziu o cenho.
— Poderia alguém explicar-me de que estão falando?
Hannah suspirou e se pôs em pé.
— Deixarei que seja Josh quem te explique. Depois de tudo, é sua
história. Eu vou subir e supervisionar o empacotamento. Direi a Sally que
recolha também as suas coisas, Beatrice.
— Obrigada — respondeu ela.
Joshua cruzou a sala para abrir a porta a Hannah. Ela se deteve no
umbral, claramente preocupada.
— Tudo isso não me agrada, Josh — disse.
— A mim tampouco, mas tenho que descobrir a verdade. Agora não
tenho nenhuma outra opção.
— Não — respondeu Hannah —. Suponho que não.
E saiu ao corredor. Joshua fechou a porta com muita suavidade.
— E então, senhor? — lhe perguntou Beatrice.
Joshua não respondeu de imediato. Em lugar disso foi até a janela e
permaneceu ali calado, olhando para o jardim por um momento.
Finalmente, começou a falar:
— Clement Lancing era um químico brilhante com uma grande paixão
pela arqueologia, especialmente pelas antiguidades egipcias. Estava
convencido de que em seu desejo por descobrir uma maneira perfeita de
preservar os corpos dos mortos, os antigos egípcios haviam feito certos
descobrimentos científicos que durante séculos se haviam perdido. Seu
objetivo era encontrar esses segretos perdidos.
— E como foi que voce conheceu o tal Lancing?
— Em um tempo haviamos sido amigos —respondeu Joshua. A mão
se tensionou ao redor do cabo da bengala—. Nos conhecemos em Oxford e
descubrimos que tínhamos muito em comum. Nos recrutaram a ambos como
espiões da Coroa. Victor Hazelton se encarregou de fazê-lo.
— O misterioso senhor Smith.
— Sim. Clement Lancing e eu concluimos várias investigações juntos.
— Joshua fez uma pausa —. Éramos muito bons em nosso ofício.
— Entendo — disse Beatrice.
— Os interesses científicos de Lancing, esse dom de línguas que tinha e
sua paixão pelas antiguidades egípcias, o fazia muito valioso aos olhos de
Hazelton. Como arqueólogo, Lancing tinha a desculpa perfeita para viajar por
todas as partes. Estabeleceu conexões em diversas capitais com todo o tipo de
persoas, desde vendedores caixeiros, até oficiais de alta patente. Era capaz de
prover Hazelton de uma grande quantidade de informação. Também me
proporcionou informações secretas necessárias para persseguir os
conspiradores e os traidores em Londres.
— E tudo isso era coordenado por Victor Hazelton?
— Victor nos treinava e nos destinava as nossas missões — disse
Joshua.
— E quando se converteu Clement Lancing em um perigoso
criminoso?
Joshua se concentrou nos jardins que havia do outro lado da janela.
— Havia uma mulher.
— Naturalmente — respondeu Beatrice —. Deveria ter pensado nisso.
— Se chamava Emma. Era a filha de Victor Hazelton. Era muito bela.
Era brillante.
— E você e Lancing a desejavam.
Josh esboçou um débil sorriso.
— Tal como lhe disse, era bonita e brillante. E era a filha de Victor
Hazelton.
— Bem. E Hazelton era seu mentor e seu patrão. Suponho que isso
explica tudo.
— Victor era mais que um mentor e que um patrão — explicou Joshua
com calma —. Era o homem que me havia salvado de mim mesmo. Sempre
lhe estarei agradecido. Mas no final falhei com ele.
— Não entendo.
— Não se preocupe. Isso agora não importa. — Joshua se apoiou na
saliência da lareira —. Finalmente, Emma escolheu a Lancing. E embora eu
estivesse desgostoso, a entendia.
— De verdade? — Beatrice levantou as sombrancelhas.
— Entre os dois havia uma paixão que entre Emma e eu não existia...
Não podia existir. — Joshua fez uma pausa —. Eu não sou um homem de
paixões fortes.
Beatrice soltou um bufido educado. Pelo menos ela esperava que fosse
educado, e que não se interpretasse como uma vulgar tentativa de evitar uma
risada, algo impróprio de uma senhorita.
Joshua voltou a cabeça para olhar por cima do ombro.
— O que achou tão divertido? — perguntou.
— Não, apenas o achei equivocado.
— E que demónios poderia você saber sobre o meu temperamento?
— Evidentemente muito mais do que você crê, senhor, mas no
momento não estamos falando sobre isso, certo? — Encerrou a questão com
um gesto —. Estava falando de algo que possa servir-nos para situar nossa
investigação. Rogo-lhe que continue.
Por um momento Joshua pareceu indeciso, como se quisesse seguir
discutindo sobre o tema de suas paixões. Beatrice, paciente, esperava.
Finalmente, abandonou o tema.
— Emma compartilhava o interesse de Lancing pela química e pelas
antiguidades egípcias—disse.
— Continue — pediu Beatrice com tranquilidade.
— No transcurso de umas escavações no Egito, descubriram uma
tumba. Em seu interior encontraram um sarcófago dos mais insólitos, um
sarcófago que não continha múmia nenhuma. Também descobriram uma
estátua de Anubis. Faltavam os olhos dessa figura, presumivelmente, seriam
de pedras preciosas. No interior do sarcófago havia um papiro. Quando
Emma descifrou os hieroglifos, ela e Lancing comprenderam que haviam
dado com uma antiga fórmula destinada a preservar os corpos humanos.
Ambos se obcecaram a partir de então com a possibilidade de recriá-la.
— E com que objetivo poderiam querer criar uma fórmula
embalsamadora? — perguntou Beatrice.
— Segundo o papiro, os componentes químicos tinham propiedades
surpreendentes. De fato, aquela fórmula tinha o poder de despertar os
mortos.
— Magia! — exclamou Beatrice —. De verdade, não posso entender
que duas pessoas inteligentes e com um conhecimento extenso da ciência
possam crer em tais absurdos.
— Os dois se mostravam céticos a princípio — disse Joshua —. Mas as
experiências que fizeram com ratos os levaram a pensar que a água egípcia,
que era como chamavam a essa fórmula, podia funcionar realmente. Estavam
convencidos de que o fluido conservante tinha propriedades paranormais.
— Suponho que não está tentando me dizer que realmente
conseguiram devolver a vida a uns quantos roedores mortos — disse Beatrice
—. Isso seria uma bobagem.
— Nunca conseguiram reviver uma criatura morta, mas a água egípcia
realmente tinha umas propiedades surpreendentes. Se olhasse um rato que
houvesse sido preservado nesse fluido, juraria que estava em um estado de
hibernação. Era algo... — Joshua buscou a palavra —. Era algo misterioso.
— Sem dúvida, os ratos que se preservaram dessa maneira continuavam
mortos — insistiu Beatrice.
— Sim. Mas Emma e Lancing seguiam convencidos de que estavam
apenas a um passo do êxito. Acreditavam que o segredo residia nas
propiedades paranormais dos olhos da estátua de Anubis que haviam
descoberto.
As pedras preciosas que você disse que haviam desaparecido?
— Exato. Assim, iniciaram uma busca intensiva desse olhos.
— Me surpreende que acreditassem que iriam dispor de algo que
ressuscitasse algo — disse Beatrice—. Depois de tudo, a maneira tradicional
egípcia de preservar os mortos incluía tirar a maioria dos orgãos e o cérebro.
— Nesse caso o processo era completamente diferente. De acordo com
o que dizia o papiro, o essencial era o tempo. Os que acabavam de morrer
teriam que ser submergidos imediatamente em um banho químico que,
segundo se supunha, os deixavam em um estado de animação suspensa.
Permaneciam no líquido até que se restabelecessem da enfermidade ou da
ferida que havia causado a morte. Posteriormente, poderiam voltar à vida com
energia provida pela figura de Anubis.
— Que loucura! — exclamou Beatrice, negando energicamente com a
cabeça.
— Sim. — Joshua se voltou para olhá-la —. A obsessão que tinham
com a chamada água egípcia se converteu em uma forma de loucura, pelo
menos no que a Lancing concernia. Começou a realizar experiências com
humanos.
— Não é possivel! — Beatrice estremeceu.
— Escolhia suas vítimas entre os mais pobres e desamparados que
viviam na rua. Quando Emma descobriu que estava assassinando pessoas
inocentes em sua busca, ficou horrorizada. Cometeu o erro de enfrentá-lo.
Lancing a fez sua prisioneira em sua casa. Victor finalmente se deu conta de
que sua filha corria um grave perigo. Me enviou a resgatá-la. Mas cheguei
muito tarde.
O que houve?
— Emma tentou escapar — disse Joshua —. Lancing a pegou. Em sua
loucura pensou que ela fugia para unir-se a mim, que ela me queria. Acreditava
que ela o havia traído. A estrangulou. Encontrei seu corpo no chão do
laboratório. Lancing apareceu. Disse que Emma havia morrido por minha
culpa. Disse que estava me esperando, que iríamos morrer todos. Provocou
uma explosão.
— Era uma armadilha — sussurrou Beatrice —. Mas você sobreviveu.
Joshua olhava sua bengala.
— Ainda hoje, não entendo como cheguei até ao corredor de pedra a
tempo. Os muros me protegeram de algum modo de toda a força da explosão.
Mas a deflagração foi seguida de um incêndio.
— Como escapou?
— As lembranças que tenho do que ocorreu depois da explosão são
mais fruto de sonhos febris. Lancing guardava grande quantidade de produtos
químicos em seu laboratório, entre eles esse incenso que você respirou na
última noite. A explosão e o fogo liberaram vapores no ambiente. Utilizei
minha camisa para cobrir a boca e o nariz, mas no tempo que demorei para
sair da casa já estava sofrendo alucinações.
Beatrice estudou a cicatriz.
— E também perdia muito sangue. A combinação de ambas coisas
nublariam qualquer lembrança. Recuperaram os corpos?
— Sim, ao menos isso é que supomos naquele momento. As feridas me
impediram de voltar à cena do crime durante semanas. Victor Hazelton foi ao
lugar com uma equipe deoperários, mas tiveram que esperar durante dias até
que os escombros se esfriaram. Ao final encontraram os corpos. Ambos
estavam queimados até ao ponto de ser impossível reconhecê-los. O médico
que examinou os cadáveres declarou que um era de um homem e o outro, de
uma mulher. Fim do assunto. Hazelton ficou acabado desde esse dia. Segue
afetadíssimo, e assim seguirá pelo resto de sua vida.
— Foi esse o motivo que o levou a retirar-se de seu papel como senhor
Smith?
— Era o Leão, defensor do império — explicou Joshua, em tom de
reverência —. Mas depois de que Emma morreu disse que o futuro da
Inglaterra ja não lhe interessava. No que diz respeito a ele, está enterrado com
Emma.
— Culpa a você por essa morte?
— Nunca o expressou com esas palavras. Mas sim, ambos sabemos que
eu falhei com ele. A última vez que o vi foi no funeral de Emma. Desde então
não temos nos falado nem nos comunicado de alguma forma.
— Um duelo obsessivo pode conduzir ao mais profundo desespero —
disse Beatrice —. Nessa condições, um homem pode fechar-se, inclusive aos
que lhe são mais queridos.
Joshua voltou a olhar para os jardins do exterior.
— Sim, eu sei.
Beatrice se pôs de pé e foi a colocar-se a seu lado.
— E você segue culpando-se — disse.
Joshua não respondeu.
Incapaz de pensar nas palavras que pudessem confortá-lo ou consolá-
lo, fez o único que lhe ocorreu nesse momento: lhe tocou a mão fechada em
torno do cabo da bengala. Sentiu o formigamento de consciência que brotava
entre eles e que já se fazia familiar. Pensou se ele sentiria o mesmo.
Joshua baixou o olhar para fitar a mão sobre a sua, como se não
estivesse seguro do que fazer com esse gesto simples e íntimo. Beatrice quase
pode sentir como Joshua se esforçava em sair do passado para voltar ao
presente.
— E agora está pensando se é possivel que Lancing tenha sobrevivido
ao fogo — disse ela.
— É uma possibilidade muito remota, mas devo tê-la em conta. Há
mais possibilidades de que alguém tenha encontrado seus cadernos de
trabalho e os tenha utilizado para a fabricação desse incenso narcótico. O que
quer que seja, não me deixa opção a não ser descobrir a verdade, e a busca
começa aqui, em Alverstoke Hall.
— Devo supor que você irá falar com os serventes e que irá
inspeccionar a lista de convidados?
— Talvez. Mas primeiro darei outra olhada na grande sala. À noite me
foi impossível fazer um trabalho mais minucioso.
— Vou com você — Beatrice se apressou a dizer.
— Não quero que se envolva neste assunto.
— Você mesmo me explicou que já estou envolvida, e muito.
— Vou organizar tudo para que possa estar segura em Londres,
enquanto eu prossigo con a investigação — disse Joshua.
— Mas agora mesmo não estamos em Londres — respondeu ela, com
um tom de voz que não deixava de ser tranquilo e seguro. Joshua não
responderia a demandas apaixonadas nem a argumentos dramáticos. O único
que podia abrir passo nessa cabeça tão dura, era a lógica —. Antes dizia que
eu tinha poderes excepcionais de observação. Que prejuízo pode haver em me
permitir que volte à câmara de antiguidades? Quem sabe? Talvez veja algo que
possa despertar uma lembrança útil...
Capítulo 25

— Pois, pelo que vejo não sofri alucinações — disse Beatrice. Olhava
as ardentes pegadas de pé no chão —. O homem que matou Roland esteve
realmente aqui nessa noite. Esperou aí, detrás da grande estátua. Quando
chegou o chantagista, cruzou a sala até ao altar e ali o matou.
— Mas provavelmente antes, utilizou o incenso para incapacitar a sua
vitima — observou Joshua —. E voltou a usá-lo quando você chegou.
Ambos estavam muito próximos do sarcófago na grande sala, e
tentavam encaixar cada uma das peças para obter uma imagen do que havia
ocorrido durante a noite. As lâmpadas estavam acesas, mas com pouca
intensidade, como preferia Beatrice. Joshua não havia discutido quando ela
havia explicado que era mais fácil distinguir os evanescentes rastros da energia
nas sombras. Sabia que ele não acreditaria que, na realidade, pudesse distinguir
as pegadas paranormais do assassino e de sua vítima, mas de qualquer forma,
estava disposto a deixá-la fazer sua parte na investigação como acreditava
oportuno.
O olhou e viu que estava examinando a tigela de alabastro que continha
os restos de incenso.
— Tenho pendentes duas perguntas a fazer — disse Beatrice —.
Primeira, como é que não ficou afetado pela fumaça na noite passada?
— Fiz o mesmo que no ano passado ao sair do laboratório em chamas.
Cobri o nariz e a boca com um trapo e tentei não respirar mais que o
estritamente imprescindível. Não demorei muito tempo em encontrá-la e tirá-
la da sala. Foi questão de dois ou três minutos, não mais.
— Faz com que pareça tão simples!
— Quando entrei na sala percebi restos do preparado. Isso me
concedeu tempo para tomar precauções.
— No meu caso isso me afetou todos os meus sentidos — disse
Beatrice —. Era uma sensação mareante, além de começar a ter alucinações.
Era como se as estátuas adquirissem vida.
— Se voltar a sentir o cheiro disso em alguma ocasião, não deixe de
cobrir o nariz e a boca e tente se agachar para permanecer próxima ao solo.
— Por quê?
— Os vapores se comportam como a fumaça, a fumaça sobe.
— Claro, é verdade. Deveria haver pensado nisso.
— Para você foi tudo uma surpresa — disse ele, muito sério —.
Ademais, teve que lutar com a impressão de encontrar o corpo. Esse tipo de
coisas pode resultar muito desorientador.
Ela sorriu.
— Obrigado por sua compreensão. Se não me houvesse encontrado
quando o fez, suspeito que agora não estaríamos falando aqui. — olhou as
manchas de sangue no altar e estremeceu—. Isso me leva à segunda pergunta.
Joshua se aproximou do altar.
— Qual? — perguntou.
— Como sabia que eu estava em perigo? Ninguem entrou nem saiu
desta sala. O chantagista foi assassinado antes de eu chegar e quando entrei, o
assassino já estava dentro. Como pode saber que eu necessitava de ajuda?
— Às vezes temos a sensação de que as coisas que planejamos estão
saindo mal.
— Sim — disse ela —, conheço essa sensação. Se chama intuição.
— Se tem a intenção imediata de dizer-me que a intuição é um talento
próprio da vidência, suprima esse esforço.
— Não crê você que é algo de natureza paranormal?
— Não, não creio — acrescentou ele —. Na realidade é uma
combinação de observações, algumas tão ínfimas que nem sequer somos
conscientes delas, e também entra em jogo a percepção inconsciente das
conexões entre essas observações.
— Alguém poderia denominá-lo percepção vidente —disse ela.
Mas ele ja não a escutava mais.
— À noite, quando vigiava a porta desta câmara, percebi uma corrente
de ar muito fraca, mas detectável no corredor exterior. Procedia deste local.
— Uma corrente de ar, verdade? Isso que nos indica?
— Isso nos indica que aqui há outra porta, mais, provavelmente,
alguma escada para os serventes.
Ela olhou ao redor.
— Pois eu não vejo que haja outra porta.
— Vejamos, repasse comigo o que ocorreu na noite passada, tudo que
houve desde o princípio.
Ela obedeceu. Quando acabou a breve narração, se deteve frente ao
altar.
— Aqui é onde estava quando os vapores alteraram meus sentidos —
disse —. Acabava de ver o cadáver e havia reparado nas pegadas ocultas do
assassino. Senti outra presença na sala. Me pareceu que uma das figuras vinha
até mim.
— Qual figura?
— Era o Deus com cabeça de chacal, Anubis, em sua forma
parcialmente humana. — Beatrice enrugou o nariz —. Sei que agora parecerá
ridículo, mas nesse momento haveria jurado que era uma estátua que havia
cobrado vida.
— Ou um homem com uma máscara — sugeriu Joshua.
— E por que razão o assassino colocaria uma máscara?
— Por duas razões: a primeira, para proteger-se do incenso.
— Sim, claro. E a segunda?
— Para infundir terror em suas vítimas. Sabe que o incenso está
fazendo com que as vítimas tenham alucinações. A máscara sugere ainda mais
medo. A alguns professionais agrada esse aspecto do assassinato.
Ela tomou ar.
— Entendo.
— O que mais observou? — perguntou Joshua.
— Temo que não sirva de muito. Vi que Anubis vinha até mim. Falava
com sotaque russo. Disse algo assim como: «Acreditavas que poderias escapar
de mim, zorra?» E logo vi a luz atrás de você, avançando. O assassino se deu
conta de que o haviam descoberto e fugiu. Isso é tudo o que me lembro.
— Agora temos que encontrar a origem da corrente de ar que detectei.
Disse que a voz vinha detrás de você?
— Sim.
— O assassino não passou por mim em sua fuga, de modo que a
segunda porta tem que estar em algum lugar.
Joshua começou a caminhar próximo à parede. Beatrice sabia que tinha
a intenção de fazer uma busca metódica para encontrar a origem da corrente.
Aclarou a garganta.
— Creio que posso economizar seu tempo — disse.
Ele a olhou.
— Como?
Beatrice baixou o olhar para perceber o rastro de pegadas que ainda
borbulhava no solo.
— Creio que encontrará a porta ali, detrás daquela figura de granito.
Ele levantou as sobrancelhas. Ao principio Beatrice pensou que iria
fazer caso omisso de suas palavras e que seguiria buscando à sua maneira. Mas
para sua surpresa, ele cruzou a sala para ir até à grande estátua e desapareceu
atrás dela.
— Aqui há uma porta de serviço — anunciou —. Excelente
observação, Beatrice.
— Obrigado — disse ela —. O fiz com os meus sentidos
parapsíquicos.
Ele reapareceu de novo por detrás da estátua de granito e disse:
— Me inclino a pensar que você mesma sentiu a corrente à noite e que
a registrou no subconsciente e que tenha se aproximado por meio de seu
sentido comum.
— Voce é muito engenhoso para explicar como normal tudo o que é
paranormal.
— Isso é porque as explicações normais geralmente não bastam.
— Mmm...
Caminhou pelo labirinto de antiguidades para reunir-se com ele.
Quando rodeou a figura de granito viu que a porta havia sido desenhada para
ser o mais discreta possível. Situada atrás de um monte de objetos, fazia com
que fosse quase indetectável de qualquer ângulo da sala. Uma grande pintura
fúnebre se apoiava diretamente na parte frontal.
— O assassino conhecia a existência desta porta — comentou Joshua
—. Isso implica que conhece esta grande sala mais do que se estivesse aqui
somente de passagem. Clement Lancing se movia em círculos dos
colecionadores. Seguramente conhecia a Alverstoke.
— Crê que Lancing é o assassino?
— Não — respondeu Joshua —. Lancing não é hábil com uma adaga.
Ele teria utilizado outros métodos. O mais provável seria o veneno.
Joshua pegou a maçaneta da porta e a fez girar. A porta se abriu com
certa facilidade. Beatrice se encontrou olhando uma sucessão de degraus de
pedra que desapareciam na escuridão. As pegadas do assassino vibravam na
escada.
— Estava furioso — disse ela —. Se percebe a raiva que sentia porque
o haviam interrompido antes de poder acabar seu trabalho.
Joshua contemplou a escuridão durante um momento.
— Vou pegar uma lanterna — anunciou —. Vamos a comprovar onde
nos leva.
Capítulo 26

Pouco tempo depois iniciaram a descida pelos velhos degraus. Beatrice


segurava a lanterna. A luz se derramava sobre a antiga pedra, enquanto
avançavam até as profundidades da velha mansão.
— As pegadas do assassino se percebem na poeira —disse Joshua —.
Entrou na casa utilizando esta passagem e saiu da mesma maneira.
Beatrice aguçou seus sentidos e estudou as pegadas quentes.
— Sim, é o mesmo homem que estava me esperando na noite em que
assassinou Roland. Estou segura.
— É uma conclusão bastante óbvia.
— Estou acostumada a que as pessoas questionem minhas faculdades
— disse ela —. Creio que isso é uma sorte para você. De outro modo, a estas
alturas estaria muito ofendida por seu recalcitrante ceticismo.
— Não pretendia ofendê-la. — Em sua desculpa havia um tom de total
sinceridade —. O único que ocorre é que você tem uma imaginação muito
viva.
— E você, nunca se deixa levar por sua imaginação, senhor Gage?
— Faço tudo o que posso por guardar-me das distrações desse tipo.
Em minha opinião, raramente dão resultados práticos.
— Nem sequer uma ocasião? — insistiu ela.
— Sou humano, se é isso a que se refere.
— Disse como se tratasse de um defeito de caráter.
Desceram uns degraus mais e giraram em um recuo, atrás do qual se
introduziram por um umido corredor. Beatrice sentiu que o coração lhe dava
um pulo. O corredor que se estendia ante eles era estreito e a escuridão
parecia interminável. Sentiu que aquele nervosismo tão familiar se acentuava
nela. Carregava a lanterna no alto, com a esperança de enviar a luz o mais
longe, mais além das sombras.
— A noite — disse Joshua.
Essa palavra vinha de nenhuma parte. Beatrice pensou que talvez, em
sua luta por controlar os nervos, havia perdido algum detalhe da converssa.
— Perdoe-me — disse —. O que me disse sobre de noite? — Se
obrigou a respirar lenta e compassadamente. Podia fazê-lo. Tinha uma
lanterna. Joshua estava a seu lado.
— A noite, em que nos beijámos nesse lugar — continuou ele —. Essa
foi a última vez que me deixei levar pela imaginação.
— Oh, já entendo. — Não estava segura de ter de responder a isso.
Sabia que estava ficando vermelha, e por uns segundos se sentiu agradecida
pela escuridão que a rodeava.
Tentava dar uma resposta apropriada, quando Joshua se deteve de
pronto.
— O que houve? — perguntou, um tanto estremecida.
— O ar mudou. Agora cheira a mar.
Ela inspirou com cuidado, colocando muita atenção na atmosfera. E
então captou o inconfundível rastro do sal no ar. À distância se percebia um
rumor afogado. O bater das ondas em uma costa rochosa, pensou.
— Esta passagem leva ao mar. — Olhou mais baixo em busca de
rastros de energia sobre o chão de pedra —. Quando chegou aqui já estava
mais calmo, mais controlado. Mas continuava sentindo frustração e ira. Não,
era mais que ira. É como uma raiva obsessiva.
— Essa é uma conclusão lógica — disse Joshua —. É um profissional
em assuntos sangrentos. Mas do mesmo modo que qualquer profissional, tem
muita estima em sua habilidade e eficiência. Naturalmente, tinha que estar
furioso, porque a noite fracassou.
— É incapaz de admitir que eu tenha talento para detectar alguns
rastros de energia paranormal que tenham deixado, verdade?
— Você chegou à sua conclusão valendo-se da lógica e da intuição,
quer o saiba ou não.
— A senhora Flint e a senhora Marsh realmente tinham razão quando
diziam que os clientes são sempre a parte mais difícil do negócio.
— Está sugerindo que eu sou seu cliente? — perguntou ele.
— Isso é exatamente o que você é, senhor. Você está pagando a Flint e
Marsh por meus serviços. Isso faz de você um cliente.
— Está muito equivocada. Mas falaremos desse assunto em outro
momento.
Se pôs a andar mais rapidamente, marcando um ritmo mais acelerado
com a bengala sobre a pedra. Beatrice recolheu a barra do vestido, aliviada por
mover-se mais depressa. O movimento físico a ajudava a anular a sensação
opressiva que a rasgava.
O som das ondas rompendo se intensificou, o mesmo ocorreu com a
umidade. As paredes de pedra do túnel se interromperam de repente e
acabaram numa ampla caverna. A água agitada do mar chegava na porção
inferior da caverna, arremetendo e salpicando ao redor de uma pequena doca
de madeira desenhada para subir e baixar com a maré. A entrada exterior não
era visivel de onde se encontrava Beatrice, mas podia sentir as correntes de ar
fresco.
— É um velho esconderijo de contrabandistas — disse Joshua. Tomou
a lanterna e segurou-a no alto para examinar o embarcadouro —. Esse mal
nascido tinha um bote esperando-o aqui. A questão é saber se veio só, ou se
trouxe alguém para que se encarregasse de remar. Não é de todo impossível
que um assassino habilidoso, procedente de Londres, seja também um
remador competente que, ademais, esteja familiarizado com esta costa, mas
me parece pouco provável.
— Se baixarmos ao molhe poderei verificar a resposta para essa
pergunta — disse Beatrice.
Se sentia um pouco mais tranquila depois de haver abandonado a
passagem estreita e confinada. O ar salgado e o movimento da água ajudavam
a dissipar a atmosfera opressiva.
Joshua a olhou com expressão pensativa. Por um instante, Beatrice
acreditou que iria recusar sua oferta. Mas após alguns segundos, simplesmente
assentiu e começou a descer pela curta escada que conduzia ao embarcadouro.
Quando chegou abaixo se deteve, se voltou e lhe estendeu a mão para
ajudá-la a descer.
— Com cuidado — lhe disse —. Os degraus estão molhados e muito
escorregadios.
Apesar da situação, pensou que aquele pequeno ato de galanteria era
encantador. Até então a relação que se estabelecia entre eles parecia ir para a
frente e para trás, de um estado de suspeita a uma camaradagem prudente.
Sabia que o beijo apaixonado da noite anterior havia sido uma aberração, um
breve interlúdio, que os havia surpreendido a ambos. Pensou se seria possível
que Joshua voltasse a permitir o luxo de deixar-se levar pela imaginação.
Beatrice se perguntou se lhe deveria pegar a mão, temerosa de resvalar
nos degraus molhados e arrastá-lo em sua queda. Depois de tudo, ele tinha
somente uma bengala para auxiliar a manter o equilibrio. Logo recordou como
havia corrido para ajudá-la na noite anterior, apesar do incenso tóxico e como
a havia levado nos braços de volta a um lugar seguro.
Lhe estendeu a mão e os dedos de Joshua se fecharam em torno a ela
como uns grilhões. Beatrice supôs que havia reparado em sua ligeira vacilação.
— Não deixarei que caia — lhe disse em tom ofendido.
Ela conteve a respiração. Voltava a fase rabujenta.
— Eu já sei.
Uma vez superados os degraus tirou a mão para liberar-se e tentou
adotar um ar enérgico e profissional. Aguçou os sentidos e olhou as gavinhas
de energia quente que se retorciam nas pegadas. Além das pertencentes ao
assassino, viu que também haviam outras.
— Aqui estiveram duas pessoas — disse.
— Sim.
Tão rápido acordo da parte de Joshua fez com que Beatrice se voltasse
para olhá-lo. Ele havia avançado pelo velho molhe e se havia agachado para
examinar um objeto pequeno e estreito.
— O que é? — perguntou ela.
— Um cigarro. — Joshua se incorporou —. O remador esteve
fumando enquanto esperava a volta do assassino.
— O remador tem que ter sido um aldeão. Quem mais poderia
conhecer a entrada deste velho esconderijo de contrabandistas?
— Não teria sido demasiado difícil contratar os serviços de um homem
são e com os conhecimentos precisos da costa —raciocinou Joshua—. Estou
seguro de que nesta zona qualquer homem, qualquer garoto, sabe manejar um
bote e conhece o terreno local. O problema está em assegurar que o remador
mantenha a boca fechada. As notícias do assassinato em Alverstoke Hall já
devem ter chegado à aldeia. Mais cedo ou mais tarde se saberá que na noite do
assassinato alguém do povoado prestou seus serviços para levar um estranho
ao esconderijo dos contrabandistas próximo da mansão.
Beatrice levou a mão à boca.
— Temos que encontrar o remador.
— Não creio que isso seja um problema — disse ele —. Os cadáveres
sempre acabam na orla.
Capítulo 27

— A velha passagem dos contrabandistas? — Uma ruga se contraiu


entre as sombrancelhas de lord Alverstoke—. Havia duvidado que esse túnel
dava na caverna. Originalmente se construiu como via de escape, caso
houvesse algum assédio ao castelo. Mais tarde, o utilizaram para o
contrabando. Mas isso foi há muitos anos.
— Quem mais sabe da existência desse túnel além de sua senhoria? —
perguntou Joshua.
Estava custando manter sua atenção em Alverstoke. Não deixava de
olhar o relógio. Beatrice estava acima com Hannah e a criada acabando com
os preparativos para a viagem de volta a Londres. A lógica lhe dizia que ela
estava segura, mas não gostava perdê-la de vista.
— Bem, pois resulta muito difícil saber quem conhecia que o túnel ia
até à caverna — disse Alverstoke—. Vamos ver... Muitos dos serventes estão
comigo ha décadas. Suponho que eles o conhecem. O que talvez não saibam é
que isso é um segredo, entende? Esta velha mansão tem inúmeras passagens e
escadas que já não se utilizam.
— Já entendo. Mas, se lhe ocorrer pensar em alguém em particular, um
visitante, talvez, que houvesse se interesado pelo túnel e sua história?
Interrogar a Alverstoke talvez necessitasse de sentido, pensou Joshua.
Estava claro que o ancião não sabia nada do assassinato. Nem sabia como
haviam incluído Hannah na lista de convidados para a festa campestre. «Essas
coisas as deixo nas mãos de meu secretário», havia dito.
Joshua decidiu que não dispunha de tempo para falar com todos os
serventes da casa. Nesse momento sua prioridade era manter Beatrice fora do
alcance do assassino. Sem dúvida, seria de muita utilidade descobrir de que
maneira o homicida havia obtido um conhecimento tão detalhado da mansão
e da entrada secreta da câmara de antiguidades.
— Pois temo que não —disse Alverstoke, esta vez com firmeza —.
Não recordo a ninguém que mostrasse interesse por essa velha passagem dos
contrabandistas.
— E o que me diz dos estudiosos de antiguidades? Não terá convidado
a alguns colegas, ou a outros colecionadores, para fazer visitas prolongadas?
Talvez o bastante prolongadas para haver descoberto o túnel por acidente?
— Certamente, permiti que outros estudiosos examinassem a minha
coleção de vez enquando, mas nunca permaneceram aqui mais de um dia ou
dois, e eu sempre os acompanhava quando inspecionavam os objetos da
grande sala. — Alverstoke torceu os lábios —. Exceto no caso dessa jovem
tão agradável que me pediu para estudar as antiguidades para escrever um
artigo para um periódico. Mas isso foi há mais de um ano. Não vejo de que
modo essa visita poderia relacionar-se com o assassinato de ontem à noite.
Joshua sentiu um calafrio na espinha.
— Sua senhoria permitiu que uma mulher estudasse suas antiguidades?
— Sei o que está pensando. Ninguém espera que uma mulher possa
possuir um conhecimento profundo das antiguidades. Mas essa senhorita era
uma exceção. Estava surpreendentemente bem informada. De fato, inclusive
havia participado em alguma escavação no Egito.
— Senhoria, isto é muito importante. Como ela se pôs em contato com
o senhor, essa estudiosa em antiguidades?
— Me escreveu pedindo permissão para estudar os objetos. Assinou a
carta como E. Baecliff. Eu dei por supoesto que se tratava de um homem,
naturalmente. Quando a conheci fiquei chocada ao ver que se tratava de uma
mulher.
— Mas sua senhoria convidou-a que ficasse?
— Ia dizer-lhe que se fosse, quando me implorou que lhe mostrasse
algumas das antiguidades antes de tomar o trem de volta a Londres. —
Alverstoke piscou —. Uma senhorita muito atrativa. Tão inteligente, tão
encantadora... Não tive nenhum inconveniente em levá-la a dar uma volta pela
grande sala. Ao final cedi e acordámos que lhe permitiria estudar algumas das
antiguidades.
— Quanto tempo esteve aqui, em Alverstoke Hall?
— Não demasiado. Uns quantos dias. Ela foi chamada a Londres antes
de concluir sua investigação. Algo sobre uma morte na família, creio.
— Ela pediu para consultar o catálogo?
— Sim, claro — respondeu Alverstoke.
— Ela mostrou um interesse especial por alguma peça de sua coleção?
— Pelo que recordo insistiu muito em ver duas estranhas joias de
obsidiana. Na realidade não eram uns artigos de grande importância. Nós dois
estivemos de acordo que, sem dúvida, haviam sido os olhos de alguma estátua.
Alguém os haviam arrancado em algum momento, com toda a probabilidade
para vendê-los.
— De modo que encontrou os malditos olhos — disse Joshua. Mas
falava consigo mesmo, para reorganizar mentalmente as peças no tabuleiro de
xadrez invisível de sua cabeça —. Isso explica muitas coisas.
— Diga-me, pois — disse Alverstoke franzindo o cenho —, o que
ocorre com essos olhos?
— Creio que pode economizar algum trabalho com o seu inventário
— respondeu Joshua —. Comece por essas jóias de obsidiana. Descubrirá que
desapareceram. Desapareceram já há um ano, de fato. Ao redor de quando
essa mulher, que se fazia chamar E. Baecliff, recebeu esse telegrama
informando-a de uma morte na família.
— Você acredita que a senhorita Baecliff as roubou? Mas isso é um
absurdo... Era uma jovenzinha encantadora, como lhe disse. Encantadora!
— Sim. — A expressão de Joshua se fez evocadora —. Bela,
encantadora e perita em antiguidades.
— Inclusive se aceitarmos a possibilidade de que fosse uma ladra, por
que iria roubar precisamente uns objetos de tão pouca importância? Essas
pedras não são particularmente valiosas.
— Se não me equivoco, essas pedras eram os Olhos de Anubis.
— E o que tem isso? Se descobriram muitas representações de Anubis.
Eu mesmo tenho umas quantas em minha coleção. Para que iria querer a
senhorita Baecliff os olhos de uma estátua em particular?
— Para reviver os mortos.
Capítulo 28

— Pois eu não o entendo, Josh — disse Hannah —. Por que irão


descer Beatrice e tu aqui, em Upper Dixton? Este trem apenas demorará uma
hora e meia para chegar a Londres. Isso não é nada mais que um pequeno
povoado.
Beatrice olhou ao exterior das janelas do trem molhadas pela chuva.
Somente três pessoas aguardavam na plataforma. Todos se refugiavam
embaixo dos guarda-chuvas. A chuva era incessante. Embora fosse a primeira
hora da tarde, a tormenta havia trazido consigo um avanço do crepúsculo.
A notícia de que se havia encontrado um corpo na praia por um dos
pescadores locais, havia chegado a Alverstoke Hall no mesmo momento em
que ela e o resto se preparavam para sair para a estação. Tanto Lord
Alverstoke como quase todos os demais se haviam mostrado consternados
pela notícia de outra morte misteriosa na vizinhança, tão imediata ao
assassinato da sala de antiguidades.
Joshua era o único que não havia mostrado nenhuma surpresa. «Ele se
livrou do remador», foi o único comentário que fez. Estava claro que já esperava
uma notícia como essa.
— A senhorita Lockwood e eu desceremos aqui porque estou
convencido de que é muito provável que nos estejam seguindo — disse
Joshua a Hannah.
Estava de pé e nesse momento baixava a mala negra. Beatrice esperava
no corredor exterior ao compartimento privado, com sua bolsa em uma mão e
o guarda-chuva na outra. Joshua lhe havia informado de que não poderiam
sair com seu baú de viagem.
A súbita decisão de Joshua, anunciada uns minutos antes, a havia
surpreendido tanto como a Hannah e a Sally. Não as havia informado de seus
planos de descer em Upper Dixton até pouco antes de chegar à estação.
Beatrice pensava que talvez houvesse traçado seus planos inclusive antes de
subir ao trem na estação de Alverstoke, fazia quarenta e cinco minutos.
Realmente, esse homem necessitava lições de comunicação.
De todos os modos, havia chegado à conclusão de que não era o
momento adequado para discutir sobre o tema. A gélida intensidade que
tremeluzia ao redor de Joshua a havia posto em guarda. Segundo ele, ela corria
perigo, e, sem dúvida, havia chegado a essa conclusão baseando-se na fria
lógica e no conhecimento de sua oponente. Mas Beatrice suspeitava que fazia
caso de sua intuição. De qualquer modo, o resultado era o mesmo. Se Joshua
temia que alguém pudesse raptá-la, o melhor era dar-lhe razão.
— Rogo que me desculpe, senhor — disse Sally —, mas como pode
alguém seguir a um trem?
— Tem que pensar do ponto de vista do perseguidor — respondeu
Joshua —. Se alguém nos viu comprar os bilhetes para Londres, tal como
suspeito, quem o fez estará convencido de que sabe para onde nos dirigimos.
Baixará guarda e pensa que basta recuperar a pista no outro extremo: em
Londres.
— Sim, já entendo o que disse, senhor — disse Sally —. Que
pensamento mais arrepiante!
— Enviei um telegrama a Nelson antes de subirmos ao trem —
acrescentou Joshua —. Irá buscá-las na estação de Londres. Tem detalhadas
instruções de vigiar qualquer indício, por pequeno que seja, de que há alguém
suspeito esperando ali, ou de que uma pessoa suspeita desça do trem.
Nos olhos de Hannah se percebia certo alarme.
— Pensa que essa pessoa que nos vigia está neste mesmo trem?
— É possível — respondeu Joshua —. Por isso Beatrice e eu
esperaremos o último momento para descermos. Se ele então tentar descer
também para seguir-nos, se colocará em evidência imediatamente. Resultará
mais fácil localizá-lo nesta pequena estação de trem.
— Isso é algo que ele saberá — apontou Beatrice —. Tal como disse
Hannah, é um povoado muito pequeno. Muito pouca gente descerá aqui. Os
que não são habituais no povoado seguramente se destacariam.
— Precisamente por isso — disse Joshua —. Se eu estivesse em seu
encalço, permaneceria no trem até à próxima parada, e somente então tentaria
voltar a Upper Dixton em um coche de aluguer. Quando chegar, nós já
teremos ido.
— E onde irão? — perguntou Hannah.
— Alugaremos um coche para que nos leve ao povoado mais próximo,
e a partir dali seguiremos até Londres. — Joshua esboçou um sorriso gélido
—. Será interesante comprovar se coincidimos com ele na estrada, em sentido
oposto.
— Tudo isso me parece complicadíssimo — disse Hannah
incomodada.
— «O truque para deixar alguém que te vigia para trás, reside no fato de que possa
ver o oponerte sem que ele possa te ver — respondeu Joshua —. Seu ângulo cego sempre
está por detrás dele.»
— Outra citação do senhor Smith? — perguntou Beatrice levantando
as sobrancelhas.
— Sinto, mas temo que sim — disse Joshua.
A boca de Hannah se estreitou numa careta em reprovação.
— Esse horrivel Victor Hazelton!
— Sou muito consciente da opinião que você tem desse homem —
disse Joshua. Logo olhou a Beatrice —. Está pronta?
— Sim — respondeu.
Ele pegou a bengala e se dispôs a sair do compartimento. Hannah pôs
uma mão sobre seu braço para detê-lo, com uma expressão muito séria nos
olhos.
— Sabe o que está fazendo ao sair deste trem sozinho com Beatrice?
— disse em voz baixa —. Estou segura que você tomará as medidas indicadas
para garantir a sua segurança, porém...
— Não tem por que se preocupar, Hannah — susurrou ele —. Sei o
que estou fazendo.
Hannah o olhou durante uns segundos e logo olhou uma vez mais a
Beatrice. Evidentemente satisfeita, voltou a sentar-se.
— Tenham muito cuidado, os dois — disse —. Os estaremos
esperando em Londres.
Beatrice teve a sensação de que havia perdido algo na conversação, mas
não tinha tempo de analisar por mais tempo a situação. Joshua a urgia a que se
movesse com rapidez pelo estreito corredor. A seguiu até à porta.
— Agora — afirmou.
Baixou as escadas justo quando o revisor, encarando-os, voltava a subir
ao trem. A olhou, e logo olhou a Joshua com a surpresa evidente na cara.
— Rogo que me perdoem, senhor, senhora, mas esta não é sua parada
— disse —. Vocês vão a Londres.
Beatrice se esforçou em dedicar-lhe o sorriso mais tranquilizador que
pôde e levantou o guarda-chuva contra a chuva.
— Sinto, mas mudámos os nossos planos.
— Mas... e sua bagagem, senhora?
Joshua colocou o chapéu e desceu as escadas.
— Já tomamos as medidas oportunas para que recolham o resto de
nossas malas em Londres. Minha mulher e eu decidimos admirar a paisagem
aqui, em Upper Dixton.
As palavras «minha mulher» provocaram um impacto nos sentidos de
Beatrice. Quando se sentiu recuperada, ela e Joshua estavam na plataforma, o
revisor havia voltado a subir, a porta estava fechada e o trem abandonava a
estação.
Beatrice se voltou a Joshua com incredulidade, alarmada porque
começava a se dar conta dos motivos que haviam preocupado na última
conversa entre Joshua e Hannah. Nenhum de seus clientes, até esse momento,
se havia preocupado por sua reputação. Era uma agente de investigação
privada, acima de tudo, e não uma senhorita da alta sociedade. O objetivo era
sair de casa quando se completava a investigação.
Mas Joshua não estava prestando nenhuma atenção a ela. Olhava as
portas dos vagões de trem, esperando ver se alguém decidia sair no último
momento.
O trem tomou velocidade, deixou para trás a estação e desapareceu
entre a espessa bruma.
— Pelo visto quem nos vigia, se é que tal personagem existe, permaneu
no trem — aventurou Beatrice.
— Isso parece — disse Joshua. Olhou para único coche que esperava
na rua. O cocheiro se havia protegido com uma grossa capa e um chapéu. O
cavalo permanecia estoicamente disposto, com um casco levantado e a cabeça
abaixada ante o persistente aguaceiro —. Com um pouco de sorte esse veículo
nos levará ao próximo povoado.
O cocheiro os olhou desde a cabina.
— Posso ajudá-lo, senhor?
— O movimento do trem estava enjoando a minha mulher, de modo
que decidimos ir ao próximo povoado de coche.
— Sinto, senhor, mas temo que não seja possível. — O homem parecia
lamentá-lo de verdade —. As estradas se converteram em rios de lama, de
tanta chuva que tem caído. Ninguém sai de Upper Dixton em coche até que
pare de chover. O próximo trem passa amanhã de manhã.
— Nesse caso, necessitaremos um local para passar a noite — disse
Joshua —. Poderia sugerir um?
— No povoado há somente dois, senhor. Eu lhe recomendo A Raposa
Azul. É limpo e a comida é razoavelmente boa.
— Pois vamos para A Raposa Azul.
Joshua abriu a porta do coche e colocou as duas bolsas no interior.
Logo ofereceu sua mão a Beatrice para ajudá-la a subir. Ela recolheu o guarda-
chuva e entrou pela portinhola. Joshua a seguiu e se sentou frente a ela. O
coche se pôs em marcha pela única rua do povoado.
Joshua olhou para Beatrice.
— Lamento tudo isso — disse —. Deveria haver previsto a
possibilidade de que o tempo interferisse em meus planos.
— Como investigadora profissional que sou, faz tempo que aceitei que
não temos como prever todas as contingências.
Ela mesma se surpreendia pela atitude tão calma que mostrava. Mas era
uma profissional, sempre se esforçava em recordar disso.
Joshua soltou o ar pouco a pouco, enquanto olhava ao exterior pela
janela.
— Compreende que isto implica que teremos que compartilhar um
quarto esta noite?
— A pousada talvez disponha de dois quartos livres — aventurou.
— Nós estamos fazendo-nos passar por um casal. — lhe recordou ele
—. Não seria normal que nos alojássemos em quartos separados. Além disso,
esta noite não quero perdê-la de vista.
— Entendo que esteja muito preocupado por minha segurança, mas
esse assassino não tem razões para me matar.
— Talvez — disse Joshua, com ar duvidoso —, mas parece óbvio que
está decidido a sequestrá-la.
— Me parece difícil acreditar que alguém esteja seguindo
obsessivamente a Miranda, a Clarividente, depois de passado tanto tempo.
Não tem sentido.
— Lancing, ou quem quer que seja que tenha seus cadernos de
anotações a quer, porque está convencido de que seus poderes paranormais
são reais.
— O que têm a ver meus poderes com isto?
— Tenho uma teoria — respondeu Joshua —. É somente uma teoria,
mas tudo indica até agora que está correta. Creio que Lancing, ou outra
pessoa, conseguiu recriar a fórmula da água egípcia.
— Mesmo que isso esteja certo, para que me iria querer esse louco?
— Quando lhe contei a história esta manhã não me detive a explicar
um aspecto do caso. Lancing e Emma estavam convencidos de que a estátua
de Anubis era a chave para ativar as propiedades especiais da água egípcia.
— Entendo, mas o que tem isso a ver comigo?
— Acreditam que somente uma mulher com poderes paranormais
poderia canalizar a capacidade da figura para ativar a fórmula.
— Minha nossa!
— Naquela ocasião teriam planejado utilizar a Emma para concentrar a
energia da estátua — prosseguiu Joshua —. Os dois estavam convencidos de
que ela tinha poderes paranormais. Mas ela morreu, de maneira que Lancing
busca outra mulher que, segundo ele, conte com esses poderes ocultos. E por
alguma razão se fixou em você.
— Mas por quê em mim, por quê agora? Já se passou um ano. Por que
não tentou isso com outras profissionais? Há uma multidão delas!
— Suponho que já tenha tentado com outras substitutas — Joshua
sorriu sombriamente —, mas, sem dúvida, todas lhe pareceram ser uma
fraude. Seja qual for a razão, está convencido de que você sim, é autêntica.
Ela estremeceu.
— Está realmente louco, verdade?
— Sem dúvida. O que me leva a pensar que, realmente, estamos
tratando com Lancing. Qual a probabilidade de um segundo louco ter
encontrado seus cadernos?
— Não tenho nem ideia. Nunca fui boa em cálculo de probabilidades.
Sabia que parecia tensa. Não podia evitar. O conhecimento de que um
louco estava determinado a sequestrá-la já era bastante inquietante. O
pensamento de que iria passar a noite no mesmo dormitório que Joshua tão
pouco a tranquilizava demasiado. Mas aquele estado de nervos a deixava com
uma certa emoção. Que iria acontecer?, se perguntava. Embora talvez a
pergunta mais pertinente fosse: o que gostaria ela que ocorresse?
— Por favor, tem que acreditar em mim quando digo que não
pretendia pô-la nesta posição — continuou Joshua com calma —. Me dei
conta de que a perspectiva de passar a noite em um dormitório com um
homem que não é seu marido lhe resulta muito alarmante, mas eu juro
solenemente que nunca...
— Oh, por favor, pare de se desculpar! — exclamou ela —. Sou muito
consciente de como podem torcer-se as coisas no curso de uma investigação.
E também sei que você nunca se aproveitaria das circunstâncias. Você é um
homem honrado, senhor, um autêntico cavalheiro. Não temo por minha
virtude.
«Para o que me tem servido a virtude até agora...», pensou Beatrice.
— Sua reputação também ficará a salvo — continuou ele, como se não
a tivesse ouvido —. Ninguém conhecerá sua autêntica identidade esta noite.
Naturalmente, vou colocar no registro outro nome.
— Isso não será nenhum problema, senhor. Estou acostumada a
desempenhar um papel.
— Sim, eu sei — disse ele.
Essas novas e insuportáveis formas educadas entre eles eram tão frágeis
como um cristal, pensou Beatrice. Não era a única que estava nervosa com a
perspectiva de compartilhar o mesmo quarto nessa noite. Por algum motivo,
saber que Joshua também estava afetado com aquele plano lhe resultava
estranhamente tranquilizador, quase divertido.
Seguiu-se outro silêncio incómodo. Beatrice buscou um tema para uma
conversa segura.
— Parece que cada vez chove mais forte — se aventurou a dizer —.
Não se vê nem o outro extremo da rua.
— É certo — concordou Joshua —. Mas olhando o lado positivo, este
tempo também complicará a vida de quem esteja nos seguindo.
Permaneceu olhando a chuva por uns instantes.
— Se Lancing está vivo, e se está provocando todos esses problemas
para encontrar-me, incluindo o risco de fazê-lo sair de seu retiro, deve ter
bons motivos para isso.
— Sim.
Ela o olhou e perguntou:
— Acredita que ele tenha conseguido preservar o corpo de Emma
Hazelton na água egípcia e que agora planeja fazê-la reviver, não é verdade?
— Isso é exatamente o que acredito que está ocorrendo — respondeu
Joshua.
Ela estremeceu.
— Que loucura.
Joshua guardou silêncio. Seguiu contemplando a chuva enquanto durou
o curto trajeto até a pousada A Raposa Azul.
Capítulo 29

Se despertou com um sobressalto. Respirava demasiado depressa e o


coração havia acelerado.
— Beatrice, desperte. Não faça ruído.
A voz urgente de Joshua junto a seu ouvido. De pronto ficou
consciente daquela mão em seu braço. Havia sido esse toque o que a havia
despertado. Abriu os olhos e observou que ele estava inclinado sobre a cama.
Mas não a olhava. Tinha a vista fixa na janela que dava para a rua.
O primeiro pensamento que a assaltou foi que o mundo ao seu redor
havia ficado estranhamento quieto e silencioso. No ambiente se palpava um
silêncio pouco natural. Tinha uma vaga consciência de que havia deixado de
chover.
O segundo pensamento foi a surpresa de comprovar que havia sido a
primeira a pegar no sono. Depois da ceia que fizeram na sala de jantar privada
da pousada, havia subido a escada com Joshua que havia pedido mais um
lençol à mulher do dono da pousada. Quando o enviaram ao quarto, ela o
prendeu na janela e uniu o outro extremo na parede, para, com isso, poder ter
um pouco de privacidade. Joshua não fez nenhum comentário.
Havia previsto passar a noite completamente desperta a um lado da
cama até que amanhecesse. As únicas peças de roupa que havia tirado foram o
casaco molhado, o chapéu e as botas. Os havia posto para secar frente ao
pequeno fogo da lareira.
Joshua havia deixado suas botas, que eram muito mais pesadas, o
abrigo longo e negro e o chapéu, próximo às coisas de Beatrice. Esta havia
sido consciente da intimidade sensual na atmosfera, enquanto ambos se
ocupavam em dispor suas roupas molhadas. «Como se fossemos um par de amantes
surpreendidos pela chuva», pensou.
Havia se recordado com firmeza que, na realidade, quem havia sido
surpreendido pela chuva eram dois investigadores profissionais.
Quando por fim apagaram a lâmpada, Joshua nem sequer havia feito
uma tentativa de encostar-se nela. Em lugar disso, havia-se instalado na única
cama do quarto e havia-se posto a contemplar a noite.
Agora estava em pé próximo a ela, olhando a janela com a atenção
concentrada do caçador.
— O que está havendo? — sussurrou ela.
— Todavia não estou seguro — respondeu ele —. É bem possivel que
não seja nada. Mas há um momento vi alguém acendendo um cigarro na
calçada, do outro lado da rua.
— Nenhuma pessoa honesta teria uma razão para estar passando frente
a uma casa respeitável a estas horas da noite. Acredita que estão vigiando esta
pousada?
— É uma probabilidade. — Joshua saiu da cama —. Vou sair para dar
uma olhada. Quero que você permaneça aqui e que tenha à mão a sua pistola
até eu voltar. Me entende?
— Sim, claro, o entendo. — Beatrice se endireitou e balançou as pernas
a um lado da cama, de modo que as saias de seu vestido ficaram enroladas.
Sacou a pequena arma da liga presa em sua perna —. Por favor, tenha muito
cuidado.
— Dou a minha palavra. — Joshua vestiu o casaco e acrescentou —:
Feche a porta quando eu sair.
— Assim o farei.
— Não abra a ninguém exceto para mim.
— Assim o farei — disse ela.
Se levantou e seguiu até à porta. Ele saiu. Ela fechou a porta
silenciosamente e deslizou a tranca.
Ela ficou esperando ali, aguçando o ouvido por um momento. Lhe
pareceu perceber um débil barulho a retumbar da bengala pelo corredor, mas
não estava segura
Apesar de sua velha ferida, Joshua podia mover-se com muito sigilo
quando quería.
Capítulo 30

Uma espesa névoa havia chegado depois da chuva. Cobria a rua. A luz
dos postes nas ruas do povoado fazia com que a bruma brilhasse, como se
tivesse origem numa energia misteriosa. A fria luz da lua era como um halo,
não parecia natural.
Ultimamente houve ocasiões em que quase se havia visto obrigado a
crer nas coisas paranormais, pensou Joshua. Mas não era o estranho efeito das
lâmpadas de gás e da lua na névoa, o que o fazia pensar na existência da
energia oculta, mas era como uma sensação que experimentava sempre que
estava próximo de Beatrice. Sempre que pensava nela. E isso ocorria durante a
maior parte do tempo, ele compreendeu. Inclusive quando estava
concentrando no assassinato e em um louco, ela se encontrava todo o
momento ali, no limite de sua consciência.
O pouco familiar sentido da mútua intimidade ia mais além da atração
sexual, mais além da admiração pelo espírito e a inteligência de Beatrice, mais
além de tudo o que havia experimentado nunca com outra mulher. Quando na
última noite a havia beijado, havia sido como se no mais profundo de seu ser
se abrisse uma porta, como se houvesse entrado no reino em que as coisas
eram diferentes. O mundo do outro lado dessa porta era de algum modo mais
brilhante e mais interesante em todos os sentidos.
Pela primera vez desde a explosão de sua virilidade juvenil, reconhecia
que era capaz de paixões intensas.
No início de sua relação com Beatrice havia dito a si mesmo que, se não
estava envolvida na trama de chantagem, corria grave perigo, e que ele tinha a
responsabilidade de protegê-la. Mas algo em seu interior lhe dizia que o que
sentia era mais que uma responsabilidade: era o seu direito de cuidar dela.
O que era uma tolice, claro. Ele não tinha direitos alguns no que dizia
respeito a Beatrice. Mas havia uma parte dele que não estava convencida
disso.
Afastou para um lado aqueles pensamentos e olhou na direção oposta
da calçada, amparado pelas sombras da rua empedrada junto à pousada. Que
estava naquela calçada apagou o cigarro e andou até à pousada, deslizando
como um fantasma através da névoa brilhante. Era impossível distinguir suas
feições nessa névoa espessa, mas estava claro que se tratava de um homem
alto e magro e que se movia com a cautela de um predador.
Cruzou a rua e se dirigiu com rapidez até A Raposa Azul. Suas pisadas
ressoavam debilmente no profundo silêncio. Ia vestido com um casaco longo
e um chapéu de copa baixa enterrado até as sobrancelhas. Carregava um
pacote em cima do ombro.
No lugar de subir pela escada, que havia na porta da frente da pousada,
girou pela estreita calçada de pedra em que Joshua aguardava.
Durante uns segundos pareceu que ia acender outro cigarro antes de
entrar nas profundas sombras que inundavam a rua. Isso facilitaria as coisas,
parecendo mais simples e eficiente, segundo pensou Joshua. Assim aquele
homem não veria que havia alguém mais na proximidade.
Mas justo antes de que o desconhecido entrasse na rua estreita, se
deteve. Evidentemente havia notado que algo não ia bem, de modo que
retrocedeu um passo e levou a mão à bolsa.
As circunstâncias estavam longe de ser as ideais, mas Joshua sabia que
não tinha outra opção a não ser mover-se com a máxima rapidez. O homem,
que levava uma bolsa, iria vê-lo logo que acendesse o cigarro.
Joshua avançou tão rápido e silenciosamente como lhe foi possível,
mas, apesar do grande cuidado que colocou na manobra, sua bengala fez um
ruido surdo na superfície de pedra.
— Quem anda aí? — inquiriu com acento inconfundivelmente russo.
Deixou a bolsa no chão e sacou uma navalha do seu bolso.
— É de você que me advertiram, não é mesmo? Você é aquele que usa
uma bengala. Ele me disse que era muito perigoso. Eu lhe disse, que um
aleijado não seria um problema para o Homem Osso. Por sua culpa tive que
interromper meu trabalho a noite passada. — Avançou, agachado. A arma em
sua mão emanou uma luz estranha.
Joshua apoiou uma mão na parede da pousada e traçou um arco com a
bengala dirigindo-a ao braço em que o homem sustentava a navalha. Não
tinha ponto de apoio necessário para acertar-lhe um golpe que quebrasse a
mão, mas contava com o efeito surpresa. O assassino não esperava que a
bengala fosse chocar-se com a arma.
A bengala atingiu o antebraço do assassino com força considerável. O
homem lançou um grunhido, soltou a navalha e retrocedeu com a graça fluida
de um bailarino.
De imediato voltou a deslizar para a frente com a intenção de
recuperar a arma.
Joshua seguiu apoiando-se contra a parede e com a bengala lançou a
navalha para longe, fora do alcance do assassino.
O assassino retrocedeu. Joshua esperava que sacasse outra navalha. Mas
em lugar disso alcançou a bolsa e buscou em seu interior.
Joshua voltou a avançar.
O assassino extraiu um objeto da bolsa e jogou ao chão, aos pés de
Joshua. Se ouviu um ruído de cristal rompendo-se e surgiu um vapor umido.
Joshua instintivamente conteve o fôlego e retrocedeu para fora do alcance dos
vapores. Mas não pôde evitar todos os seus efeitos. Os olhos lacrimejaram e
sentia que a garganta se fechava. Esperava não haver respirado algum veneno
mortal.
O barulho de uma janela que se abria em algum lugar sobre a rua
reverberou na noite.
— Ei, você aí em baixo! — gritou Beatrice —. Pare ou eu atiro.
Outra janela se abriu imediatamente.
— Alerta! Ha um ladrão na rua!
Joshua saiu da área onde atuavam os vapores e alcançou uma zona em
que o ar não estava contaminado, mas o som de uns passos ao longe a toda
pressa lhe informava que sua presa escapava. Não havia possibilidade de
alcançá-lo. Uma pessoa com problemas de locomoção tinha que aceitar suas
limitações físicas.
Nesse momento, tinha vontade de dar um golpe na parede mais
próxima com a maldita bengala. Mas sabia perfeitamente, inclusive quando a
raiva e a frustração ameaçavam transbordar, que ceder a um impulso assim
implicaria provavelmente a destruição da bengala. Se isso ocorresse, ele seria
ainda menos capaz de proteger Beatrice.
E protegê-la era tudo que importava para ele.
Se abriram mais janelas. Joshua olhou para cima e viu o dono da
pousada, em camisa e com seu gorro de dormir. Beatrice e outros hóspedes
olhavam para a rua.
— O que houve aí em baixo? — perguntou o estalajadeiro —.Tenho
que chamar a polícia?
— Faça o que achar mais conveniente — respondeu Joshua —. Mas
duvido muito que consiga encontrar o criminoso.
— Um ladrão, verdade?
— Um que queria ser, mas cheguei a tempo para impedi-lo.
— Lhe agradeço pelo esforço, senhor, mas não deveria ter tentado
detê-lo por sua conta — disse o estalajadeiro —. Deveria ter-me chamado.
Como poderia um homem com bengala deter a um criminoso?
— Uma pergunta excelente — disse Joshua.
Recolheu a bolsa, e voltou para a pousada coxeando.
Capítulo 31

— Poderia se dizer que isto é bem a obra de Lancing — disse Joshua


—. O plano era tirar-nos do hotel por meio daquela fumaça.
Estava em mangas de camisa, com os punhos dobrados até aos
antebraços e a frente aberta até ao peito. O casaco e as botas estavam na
frente do fogo, secando. A sensação que sempre se seguia a um episódio de
violência deixava seu sangue fervendo. Saber que Beatrice estava ansiosa e
preocupada por ele aumentavam mais o fogo que ardia em seu interior.
«Aleijado idiota. Não é o que mais lhe convém, mas é tudo o que tem.»
Se esforçou em concentrar-se nos três frascos que havia tirado da bolsa.
Os colocou sobre uma mesinha e acendeu a lâmpada de gás. Estavam cheios e
eram de um vidro escuro e grosso, cada um com uma tampa de borracha.
— Não é de se estranhar porque manejava a bolsa com tanto cuidado
— afirmou ele —. O gás se libera quando o cristal se rompe.
— Será que tinha a intenção de queimar toda a pousada para capturar-
me? — perguntou Beatrice, horrorizada—.Muitas pessoas poderiam morrer, e
nós também!... Isso não tem sentido, a menos que a pessoa que me perssegue
deseja a minha morte. Tavez nos equivocássemos acreditando que me
necessita por alguma razão estranha.
— Não. — Joshua levantou um dos frascos para observá-lo através da
luz —. Estou seguro de que sua intenção era sequestrá-la esta noite. Estes
frascos geram uma fumaça desagradável e um vapor espesso que parece
fumaça. O efeito é como se houvesse fogo, mas sem as chamas. Se tivesse
sido capaz de lançar os quatro frascos no interior da pousada, teria provocado
uma situação de pânico. Todo o mundo teria saído correndo para a rua,
pensando que havia um incêndio. Seu plano consistia em aproveitar-se da
confusão para sequestrá-la.
— Mas sabia com segurança que teria que enfrentar você antes de
consegui-lo.
— Me disse que lhe haviam advertido sobre mim. — Joshua colocou o
frasco de vidro com muito cuidado sobre a mesa —. Mas não acreditava que
eu pudesse representar algum problema.
— Pela bengala?
— Sim.
— Suponho que a estas alturas já tenha reconsiderado sua opinião —
disse Beatrice —. Já o vi manejar a bengala. Em suas mãos se converte em
uma arma.
A satisfação que se percebia em sua voz teve um efeito surpreendente
nele. Saber que ela tinha uma fé tão grande nele — Embora talvez imerecida
— isso elevou de certa forma seu estado de ânimo.
— «Todos os objetos são armas potenciais — disse —. Somente requerem que os
vejamos com a iluminação adequada.»
— Outro aforismo do senhor Smith? — perguntou ela com um sorriso.
— Temo que sim — respondeu ele —. Não sei se o encontro desta
noite tenha modificado a opinião que nosso adversário tinha sobre mim. Se
fugiu, foi pela sua ameaça de disparar nele. Mas a próxima vez que nos
encontremos, com certeza estará melhor preparado.
— Não quero nem considerar a posibilidade de que volte a encontrá-lo.
— É só uma questão de tempo.
— Que pensamento mais horrível! — Beatrice fez uma careta de
espanto —. E como crê você que poderá encontrar-nos?
— A conversa que tivemos não foi muito extensa, mas creio que se
pode afirmar que esse tipo havia previsto que sairíamos do trem antes da
última parada em Londres. Ou, de outro modo, o que talvez seja mais
provável, alguém que sabe como penso pode prever essa manobra.
— Clement Lancing?
— Lancing e eu trabalhámos juntos durante muito tempo — explicou
Joshua —. Treinámos juntos. Ambos sabemos o que o outro pensa. Era
consciente de que existia certo risco quando nos detivemos aqui em Upper
Dixton até que a tormenta passasse, mas não tínhamos muitas saídas.
— Sim, eu sei — disse Beatrice —. E por isso insistiu em se manter em
guarda esta noite, não é mesmo?
— Sim.
— E graças a isso foi capaz de ser um obstáculo no caminho do
assassino —concluiu com vivacidade —. Me salvou. É a segunda vez que o
faz.
Joshua não disse nada. Não queria que soubesse tão próximo havia
estado de um desastre nessa noite. Saber somente a deixaria mais ansiosa.
— Onde você acha que o Homem Osso adquiriu esses frascos? —
perguntou Beatrice —. Seu plano original consistia em sequestrar-me em
Alverstoke Hall. Não parece provável que carregasse esses frascos somente se
fossem necessários.
— Duvido muito de que fosse ideia dele ter um plano alternativo, caso
o primero falhasse. Mas Lancing me conhece. Talvez tenha previsto a
posibilidade de que assim ocorresse.
— O que vamos fazer agora? — perguntou Beatrice.
— Talvez seja hora de deixar de evitar o encontro com o inimigo.
Tenho que agir em seu terreno. Conheço Lancing tão bem como ele me
conhece. O único que sei é que, se continua vivo, estará num laboratório, em
algum lugar. Quero conhecer a opinião da senhora Marsh sobre o conteúdo
destes frascos.
— Mas você já sabe que é obra de Lancing. O que pode dizer-lhe a
senhora Marsh que não saiba já?
— Ela pode indicar-me quem comercializa os produtos químicos
utilizados para preparar o conteúdo desses frascos.
A compreensão iluminou a expressão de Beatrice.
— Claro, já entendi. A fórmula para preparar esse produto, sem duvida
requer alguns ingredientes pouco habituais.
— O mesmo se aplica para as fórmulas do incenso e da água egípcia.
Não é possível que haja muitos comerciantes de produtos químicos em
Londres que possam proporcionar os ingredientes raros e exóticos que
Lancing necessita.
— E você crê que um boticário o conduzirá a ele.
— Creio que é nossa maior esperança neste momento. Mas também há
outra estratégia que quero pôr em prática.
— Pelo que entendi, viajaremos a Londres no trem de amanhã, certo?
— perguntou ela.
— Sim. As respostas que necessitamos se encontram ali.
— Nesse caso, você precisa dormir.
— Não é imprescindível.
Ela o olhou com expressão divertida.
— Já passou mais de um dia sem dormir. Necessita descansar.
— O fato de eu necessitar de uma maldita bengala para andar não
significa que não possa sobreviver a umas quantas horas sem dormir.
— Estou segura de que pode fazê-lo, mas não há necessidade. Me
manterei alerta enquanto descansa.
— Eu me encarregarei de protegê-la, Beatrice — prometeu ele. A voz
soava rouca, quase como um grunhido, inclusive a seus próprios ouvidos.
— Não duvido — retrucou ela —. Mas além da falta de sono, acaba de
sair de uma luta de vida e de morte. Não se requer um dom sobrenatural para
saber que necessita tempo para recuperar-se e fortalecer-se para o que possa
suceder mais adiante.
Ele abriu a boca para responder, mas voltou a fechá-la. Tinha razão. A
lógica e o sentido comum ditavam que teria que tentar descansar um pouco.
— Está certa quando disse que necessito fortalecer-me — disse por fim
—. Um pouco de sono desperto não seria má ideia.
— O que é isso de «sono desperto»?
— É uma forma de meditação, um transe auto induzido, que me
permitirá obter os benefícios do sono sem me desconectar dos meus sentidos.
A expressão de Beatrice se suavizou.
— Pode confiar em mim. Manterei a guarda enquanto descansa.
— Eu sei — disse ele, sem deixar de pensar.
Somente depois de pronunciar aquelas palavras foi consciente de todo
o seu significado. Podia confiar em Beatrice. Que demónios! Confiava
cegamente nela, assim havia sido quase desde o princípio, inclusive quando a
lógica o havia advertido de que não era o mais aconselhável. Havia quebrado
uma de suas regras básicas: não confiar nunca em uma pessoa envolvida em
um caso. Todo o mundo escondia algo.
Sem dúvida, a partir de um certo ponto, havia feito uma exceção para
Beatrice, uma exceção que não podia justificar pela lógica nem pela fria razão.
Havia permitido que a paixão o guiasse, e não se importava.
Era um descobrimento surpreendente e, certamente queria pensar
detidamente nele, mas não era o momento de fazê-lo.
Com certo atraso se deu conta de que Beatrice o olhava com muita
intensidade.
Ela aclarou a garganta.
— Perdoe-me — disse —, não quis intrometer-me, mas você está em
algum tipo de transe neste momento? Parece petrificado.
Ele se ergueu.
— Sim, estava petrificado. Embora ainda não tenha chegado ao transe.
Avançou coxeando até à cama e se estendeu sobre a colcha. Fechou os
olhos e começou a contar de trás para a frente a partir de mil.
Capítulo 32

Voltou da profundidade do transe em que se encontrava para a


superfície, consciente de que se sentia tranquilo e revigorado. Beatrice tinha
razão. Estava necessitado de descanso.
Abriu os olhos e voltou a vista para a janela. A névoa era mais espessa
que nunca, mas agora já aparecia a primeira luz do amanhecer.
Beatrice estava sentada na cadeira, olhando para a rua. Havia soltado o
cabelo, que caía sobre os ombros. Como era possível que uma mulher
parecesse tão inocente e delicada e ao mesmo tempo imbuída de tanto espírito
e poder feminino? Isso era algo que intrigava Joshua. Essa mescla, em todo o
caso, resultava cativadora e profundamente excitante.
Mas não era o momento de perder-se em pensamentos tão agradáveis.
Se levantou para ficar sentado a um lado da cama.
— Estou desperto.
Disse em voz baixa, pois não queria assustá-la.
Mas ela já se estava voltando em sua poltrona e o olhava
inquisitivamente. Fosse o que fosse, o que viu devia satisfazê-la, porque um
sorriso de aprovação iluminou sua expressão.
— Tem um aspecto muito melhor — disse.
Ele se inclinou mais adiante e apoiou os antebraços nas pernas.
— Quer dizer que eu tinha muito mau aspecto antes de entrar em
transe?
— Está melhor! — respondeu ela, com certo enfado — Você não
consegue evitar deturpar minhas palavras?
— Bem, sim — disse ele, sobressaltado —, tentarei não ser tão
suscetível no que respeita às minhas limitações físicas.
— Eu lhe sugeria no lugar disso, que não fosse tão melodramático. E já
que estamos, como vai sua perna?
— Minha perna está bem — respondeu ele, consciente de que voltava a
parecer suscetível.
— Ainda há o tónico da senhora Marsh?
— Sim.
— Está em sua bolsa? — perguntou ela levantando-se —. Eu o pegarei.
— Quieta! — ordenou ele —. Não se mova!
Ela se deteve, com expressão de alarme.
— O que ocorre? O que fiz de errado?
Joshua se levantou e pegou a bengala. Em um segunto se colocou
diante dela.
— Se der um passo mais — disse com parcimónia — chocará comigo,
e nesse caso podem ocorrer duas coisas.
— Sim — disse ela com um piscar de olhos.
— Ou o impacto me fará perder o equilíbrio e cairei não chão, ou...
— Isso é pouco provável — interrompeu ela, com olhos brillantes —.
Qual é a outra possibilidade?
— Bem, terei que agarrar-me a você, em um esforço desesperado para
não cair.
— Oh — meditou ela, e ficou olhando-o durante o que pareceu uma
eternidade. Joshua sentiu que lhe fervia o sangue. A atmosfera naquele
reduzido espaço pareceu como se se estivesse preparando uma tormenta. Não
se atrevia a mover-se.
— Talvez não seja capaz de soltar-me — disse ele.
Beatrice deu dois pequenos e muito cautelosos passos para a frente.
Quando se deteve, estava a uns centímetros dele. A barra do vestido roçava os
pés descalços. Levantou um dedo e o apoiou com delicadeza no peito de
Joshua.
Ele sentiu um profundo, comovedor e surpreendente estremecimento,
que sempre o assaltava quando ela o tocava. Sabia que essa sensação era
produto de sua imaginação, mas mesmo assim, era maravilhosa,
verdadeiramente maravilhosa.
— Acredita que, de algum modo, poderia sentir-se inseguro sobre seus
próprios pés? — perguntou ela, esboçando um sorriso misterioso.
— Quando estou perto de você, sempre encontro difícil manter o
equilíbrio — respondeu ele, enquanto pensava que essa era a realidade.
Ela colocou a mão no ombro dele.
— Então talvez queira sustentar-se em mim, senhor. Não quero que
caia.
Ele levantou sua mão livre e lhe tocou o cabelo, cuja textura tão sedosa
era irresistível.
— Não creio que tenha outra saída.
Afirmou a mão na bengala e envolveu Beatrice com o braço livre. A
atraiu junto a ele com deliberada lentidão. Era tão suave! Ela pousou a outra
mão sobre o ombro dele e o olhou fixamente com seus maravilhosos olhos.
Ele supôs que Beatrice sentia o mesmo arrebatamento de desejo que
fervilhava em seu interior.
Aspirou sua essência e logo a beijou na boca.
Queria utilizar o beijo para deter o fogo que queimava muito
lentamente. Iria lentamente, tal como se havia prometido. Havia passado um
ano muito longo no campo... Um ano muito longo sem uma mulher. Mas
podia controlar-se. Queria seduzir Beatrice, fazer com que ela o desejasse
tanto como ele a desejava.
Ela respondeu do mesmo modo que na noite anterior, com curiosidade
e uma paixão suave, que incendiou o seu sangue. Suspirou e se aconchegou
mais a ele. Os dedos apertaram, sujeitando-o pelo ombro. Ele se deu conta de
que ela estremecia um pouco. Ele moveu a boca para a orelha dela.
— Tem frio? — lhe perguntou com suavidade.
Ela apoiou a fronte contra seu ombro. Quando respondeu, sua voz se
havia convertido em um sussurro.
— Não, não tenho frio — respondeu.
Ele separou uma mecha de cabelo e beijou a curva do pescoço.
— Tem medo de mim?
— Medo de você? Isso nunca!
— Pois está tremendo.
Beatrice levantou a cabeça e esboçou um sorriso indeciso.
— Ouvi dizer que a paixão pode gerar algo parecido a uma febre, mas
nunca acreditei. Sempre achei que essas coisas eram um produto absurdo do
romantismo. No máximo, acreditava que poderia tratar-se de licença poética.
— Eu tão pouco acreditava que isso era possível — disse ele —. Mas
agora sei que os poetas tinham razão. Em tudo isso há muito fogo envolvido.
— Sim, mas nem te ocorra em deter-se para analisar a sensação de uma
maneira lógica.
— A única força na terra que agora poderia deter-me é você, minha
doce Beatrice.
Ela lhe rodeou o pescoço com os braços. Desta vez seu sorriso era
menos vacilante. Expressava agora uma radiante expressão, como a de uma
mulher que havia tomado a decisão de abandonar-se à paixão.
— Não tenho nenhuma intenção de detê-lo, senhor Gage. Estive
esperando em toda a minha vida por este momento. Começava a temer que
talvez nunca fosse experimentar emoções tão intensas. Se agora me detivesse,
sei que iria lamentá-lo durante o resto da vida.
— Pois asseguro — respondeu ele sorrindo — que eu o lamentaria
ainda mais e durante o mesmo tempo, senhorita Lockwood.
Um humor sensual e uma paixão esmagadora iluminavam os olhos de
Beatrice. Quando Joshua a conduziu à cama, ela o seguiu de boa vontade.
Ele deixou de lado a bengala, afirmou a perna boa contra a lateral da
estrutura de quatro postes e começou a abrir os pequenos colchetes que
fechavam a parte anterior do vestido. O processo de abrir o corpete resultou
todo um desafio. E não era que ele não contasse já de certa experiência,
pensou, divertido por sua própria torpeza. Mas nesta ocasião era diferente.
Beatrice era diferente.
Por fim conseguiu abri o vestido. Abaixou as mangas e a saia deslizou
até os tornozelos, deixando-a somente coberta com a camisa, com as meias e
as anáguas.
Ela desatou as anáguas, que tambem caíram. Na semi-penumbra da luz
do amanhecer, ele podia destinguir o rubor em seu rosto. Os seios pequenos e
firmes, se percebiam pela fina camisa.
— Que perfeita é! — sussurrou ele. Deslizou as mãos ao lado dos
quadris e logo as deslizou para cima para sentir os túrgidos seios —. É como
se a houvessem feito para mim.
— Me faz sentir bela — disse Beatrice.
O rubor se fez mais intenso. Ele poderia ter assegurado que havia certa
radiação naqueles olhos. Era um efeito da luz. Que bonito efeito!
Com muito cuidado ela se dedicou então a desabotoar a parte anterior
de sua camisa, com dedos trementes. Ele pensou que iria perder o controle
antes de que acabasse. Mas quando pôs as palmas sobre seus peitos desnudos,
pensou que aquela doce tortura havia valido a pena.
— Posso sentir a força em você — disse ela. Olhou seu tórax, fascinada
—. Não somente a força física, mas também a outra, essa força mais
importante que provém do interior.
— Ah, Beatrice, a força és tu!
Se sentou a um lado da cama e a atraiu até ele. Quando estiveram
próximos, Beatrice se lançou para ele com tanto entusiasmo, que despertou
pontos dentro de Joshua, que há muito tempo estavam adormecidos.
A beijou até que a sentiu abandonada sobre ele, até que começou a
emitir gemidos famintos e desesperados.
As pernas de Beatrice estavam descobertas, revelando a delicada liga
que sustentava uma arma.
— Nunca me havia ocorrido que as armas pudessem ser um atrativo
sensual — disse ele —. Mas neste caso me provoca um efeito curiosamente
estimulante. Tem algo que ver com o lugar em que a leva, suponho.
Ela soltou uma gargalhada.
Joshua deslizou a liga e a pequena pistola muito lentamente e pôs
ambas as coisas sobre a mesinha que havia junto à cama. Logo pôs uma mão
sobre a pele desnuda e sedosa que se estendia acima das meias.
Beatrice emitiu um suspiro agudo ante esse tato íntimo, mas não o
rechachou.
— Tão suave... — sussurrou ele contra seu pescoço.
— Mesmo sendo tão forte me trata como se fosse de cristal. Não sou
nada frágil, sabe?
Ele a tocou na comissura dos lábios.
— Ja sei que tem sua própria classe de força, mas um homem pode
esmagá-la com facilidade se não fôr com cuidado.
— Creio que me subestima, senhor! — exclamou ela com olhos
risonhos —. Mas não é culpa sua. É algo que ocorre sempre. Realmente, a
minha aparência infantil e tímida é a minha marca. É uma das razões pela que
sou uma investigadora de êxito. Mas você devia saber melhor que ninguém
que as aparências são um pouco enganosas. Não sou o tipo de inocente em
que parece estar pensando.
— Tenta dizer-me que é uma mulher do mundo?
— Minhas diversas ocupações me ensinaram mais sobre o mundo do
que muitas mulheres souberam em toda a sua vida.
Ele a beijou no ombro.
— Fala a sério?
— Sim — respondeu ela —. E agora mesmo sou muito consciente do
que estou fazendo.
— Então é consciente de que a estou seduzindo?
— Sei que estou permitindo a você que me seduza. — Juntou seus lábios
com os dele —. E que, em contrapartida, estou fazendo o que posso para
seduzi-lo. Na verdade, sei que estou tendo algum êxito.
Joshua sintiu uma onda de alegria. Soltou um grunhido e se jogou para
trás para se estender no leito, com o braço rodeando a cintura dela. Ela se
estendeu sobre ele, com as pernas enredadas nas de Joshua.
— Posso tomar isso como um sim, senhor Gage?
— Sim, sim que pode, senhorita Lockwood. — Enquadrou o rosto dela
entre a mãos —. E que acha de meus próprios esforços de sedução? Pode
dizer se têm algum efeito?
— Oh, sim, claro! Realmente, diria que você tem um dom oculto para a
sedução, mas como não acredita nos meus dons paranormais, não há grande
coisa para falar.
Ele a tocou no nariz com a ponta do dedo.
— Sim, é certo que não creio em poderes paranormais. Mas sim que
creio que sou um crente em practicar uma habilidade até que seja perfeita.
— E eu.
Ela voltou a beijá-lo, explorá-lo e saboreá-lo. Quando acabou com sua
boca, se concentrou na orelha e logo recorreu ao pescoço com seus cálidos
lábios.
— Cheira bem — sussurrou.
— Bem... —Joshua fez uma careta —. Diria que cheiro como cheira
um homem que acaba de ter uma luta e que tem que conformar-se em lavar-
se com uma esponja.
— Talvez devesse ter dito que cheira de uma forma muito interessante.
— O beijou no peito —. Quente. Excitante. Viril.
— Viril? — Aquela palavra despertou uma profunda risada nele, uma
que surgiu nas profundezas do peito.
Beatrice tambem riu, mas sua risada era etérea, encantadora. Se
incorporou apoiando-se nos pilares e olhou para ele com expressão
brincalhona.
— Me pareceu que estava grunhindo para mim, senhor.
— Não, isso nunca.
Ele se incorporou de pronto e rodou sobre ela. A prendeu debaixo do
seu corpo e abriu a parte dianteira da fina camisa. Com parcimónia, beijou
seus seios.
— Você sim, que cheira bem — disse —. É uma droga para meus
sentidos.
— E eu creio que você é o homem mais romântico que conheci.
— Não sou nenhum romântico, mas estou faminto de si de um modo
que nunca senti por nenhuma outra mulher. Jamais acreditei nos fenómenos
paranormais, mas tem que existir algo parecido à magia. Creio que me
enfeitiçou, Titania.
Ela afundou os dedos em seus cabelos.
— Se isso é verdade, então pode se dizer que realmente eu caí no
mesmo feitiço.
— E eu só posso agradecer por isso.
Voltou a colocar uma mão na perna dela e acariciou a coxa na parte
interior. Quando chegou ao centro a encontrou úmida e quente. Estava
preparada para ele, mas Joshua queria que estivesse algo mais que
simplemente disposta. Queria que ardesse de desejo por ele, do mesmo modo
que ele ardia de desejo por ela.
Introduziu os dedos por entre os cachos que cobriam seu sexo e
encontrou o núcleo sensível. Já estava duro, mas ele o acariciou até que ficasse
mais inchado. Beatrice ofegava e se agarrava a ele, rodeando-lhe os quadris
com uma perna.
Ele a acariciou até que sentiu que a mão estava úmida, e então era ele
quem já não podia mais esperar. Um passo em falso e estaria perdido. Mas
estava ansioso por superar essa fase.
Beatrice lhe cravava as unhas nos ombros.
— Não posso suportar mais esta pressão em meu interior — lhe disse
—. Faça algo.
Ele se despiu e voltou a ela. Utilizou uma mão para guiar-se até sua
entrada. Se introduziu nela até que sentiu a delicada barreira.
— Até aqui há chegado a sua experiência mundana — disse.
Ela lhe tomou o rosto com ambas as mãos e o olhou. E nesse
momento Joshua teve a certeza de que seus olhos ardiam com o fogo de uma
febre devastadora. Pensou que talvez seus próprios olhos haviam cobrado
esse aspecto aceso. O mais provável era que se devesse a um efeito da luz do
amanhecer, voltou a dizer-se. Era a única explicação razoável.
— Acabe com isto, senhor Gage — ordenou ela —, ou nunca o
perdoarei.
— Como você ordene, senhorita Lockwood.
Fez um pouco de força, retrocedendo ligeramente e logo empurrou
com força e profundamente em seu apertado corpo.
Sentiu a onda expansiva que a invadiu, porque ela sentiu também ao
mesmo tempo. Por uns segundos se sentiu confuso e desorientado. Era como
se houvesse submergido em um mar fervilhando de energia pura.
«Impossível.»
Advirtiu-se que Beatrice se havia posto tensa debaixo dele. Havia
aberto os lábios e afundado as unhas. Lhe cobriu a boca rapidamente,
afogando seu grito de surpresa, dor e agravo. Teve que deixar mão de toda sua
vontade para poder ficar muito quieto. Estava suando muito.
Quando o agravo pareceu reduzir-se a um incómodo, Joshua levantou a
cabeça e separou o cabelo da testa molhada.
— O sinto — disse. Apoiando a sua fronte suada na dela —. Sinto, não
queria fazer-te dano.
— Sim, bem, foi tudo culpa minha. — Beatrice tratou de recuperar a
respiração —. Fui eu quem insistiu. Cria que sabia o que fazia, mas suponho
que nada pudesse me preparar de verdade para algo que nunca havia
experimentado.
— Não — concordou ele —. Compreendo que agora não estará de
humor para ouvi-lo, mas as coisas serão muito mais cómodas na próxima vez.
Ela se relaxou um pouco mais e lhe rodeou o pescoço com os braços.
— E como poderei sabê-lo, senhor Gage?
— É a lógica que me diz — respondeu ele. — Será que agora me pode
chamar pelo meu primeiro nome?
Ela riu, movendo-se um pouco debaixo dele, que fez uma careta e
conteve a respiração.
Beatrice deixou de rir em seguida.
— Ocorre algo?
— Não estou seguro — disse Joshua entre dentes —, mas seria uma
grande ajuda se não se movesse.
— Então, que sentido tem tudo isto?
— Essa é uma pergunta excelente. — Conteve a respiração —. O que
ocorre é que se continuar movendo-se, eu também me verei obrigado a
mover-me.
— Já entendo. — Beatrice voltou a mover-se, mas apenas um pouco —
. Talvez seja certo. A coisa é bastante mais confortável agora. O que há aí em
baixo é enorme, verdade? É algo normal?
Ele gemeu.
— Já a adverti, Beatrice.
O calor voltou aos olhos dela.
— Sim, o disse — sussurrou —. Está bem, Joshua. Não vou quebrar-
me em suas mãos.
Ele retrocedeu lentamente e logo voltou a penetrá-la com cuidado. Ela
levantou as ancas para facilitar as coisas. Aquilo foi demasiado. Joshua
começou a mover-se mais rapidamente, porque era o único que podia fazer. A
necessidade de chegar ao clímax era agora o seu objetivo. Nem o fim do
mundo poderia pará-lo. Tinha que fazer saber a Beatrice que ambos deviam
estar juntos, porque se pertenciam um ao outro.
— Joshua — disse ela, aferrando-se a ele com força —.Joshua!
O corpo dela estremeceu. E logo ela, entre convulsões, jogou para trás
a cabeça e fechou os olhos com força.
Ele queria saborear a intensidade do clímax de Beatrice, mais as
pequenas pulsações que havia nas profundidades dessa mulher o estavam
levando a um torvelinho. Era algo completamente diferente do que havia
experimentado nunca. Voltou a mexer-se uma vez mais e se derramou em seu
interior, apertando os dentes para conter o urro exultante que surgia do mais
profundo do seu ser.
Quando acabou, caiu sobre ela. Seu último pensamento semi-coerente
foi que talvez se houvesse equivocado. Talvez houvesse algo de certo na
noção de energia paranormal, depois de tudo. Nada mais poderia explicar essa
surpreendente sensação de conexão que havia experimentado.
Durante toda a sua vida adulta havia velado por manter o equilibrio em
todos os aspectos, especialmente quando se referiam as paixões mais fortes.
Outra regra que infringia pelo bem de Beatrice. E sabia que não seria a
última.
Capítulo 33

Por mais relutante que fosse sair do luxurioso descanso, posterior ao


coito, finalmente se sentou a um lado da cama. Olhou pela janela e viu que a
névoa estava se levantando. Alcançou suas calças e pegou o relógio. Tinham
poucas horas antes de que o trem matutino para Londres parasse na estação
de Upper Dixton.
No extremo oposto do quarto, Beatrice se movia atrás da cortina que
havia improvisado ao redor da banheira. Joshua ouviu o ruído do líquido ao
verter-se e supôs que estava lavando a evidência física da paixão mútua
compartilhada.
Durante uns instantes permaneceu assim, sentado em silêncio,
perguntando-se o que podia dizer. Nunca havia compartilhado a intimidade
com uma virgem. Vestiu as calças. Logo agarrou a bengala e se apoiou nela
para incorporar-se.
— Está...? Está bem? — perguntou.
— Como? — Beatrice apareceu na parte superior da cortina. Levava o
cabelo recolhido de maneira algo descuidada, e pelo que podia ver de seus
ombros, estava parcialmente desnuda. Sua expressão revelava incompreensão.
Logo esboçou um sorriso e disse —: Sim, claro que sim. Estou muito bem.
Perfeitamente bem. Sempre gozei de boa saude.
— Olha, pois tem muita sorte — disse ele sorrindo.
Beatrice o olhou, preocupada.
— E o que me diz de si? Sua perna está doendo?
Ele levantou uma mão para impor o silêncio.
— Perdoa-me —disse ela rapidamente—. Simplesmente me
preocupava que tanto exercício pudesse fazer com que a velha ferida
despertasse.
Joshua lhe lançou um olhar severo.
Beatrice se calou e voltou a ocultar-se atrás da cortina e recomeçou suas
abluções.
— Bem, então quando iremos? — perguntou, depois de uma pausa.
— Pronto.
— Muito bem — disse Beatrice—. Minha principal preocupação agora
mesmo é colocar uma roupa limpa. Não vejo a hora de chegar em casa.
Se ouvia o frufru das roupas que Joshua supôs que ela estava vestindo.
— Beatrice, há algo que sempre quis preguntar-lhe, desde que a
conheci.
Houve uma ligeira pausa por detrás da cortina.
— Sim? — respondeu ela após um breve silêncio, com enorme cautela.
— Me parece que posso entender por que tenha acabado trabalhando
como agente para Flint e Marsh. Mas o que não logro entender é como
chegou à Academia do Oculto do doutor Fleming.
Se produziu outra pausa. Joshua teve a impressão de que não era essa a
pergunta que ela havia esperado.
— Já sabe o que ocorre quando uma mulher se encontra só no mundo
— disse com despreocupação —. Depois da morte de meus pais acabei em
um orfanato. As oportunidades de progredir pareciam bastante limitadas,
como pode imaginar.
— Sim, eu sei — respondeu ele —. O mundo é um lugar muito duro
para uma mulher que está sozinha.
— Me enviaram ao meu primeiro trabalho como preceptora quando
tinha dezesseis anos. Lamento dizer que não era muito boa. Os dois filhos de
meus patrões eram dois pequenos monstros e eu não tinha experiência nem
conhecimento para mantê-los na sala sob controle. Assim, não puderam
contar comigo. Consegui entrar para servir a casa de um viúvo muito bonito.
Parecia que ele se preocupava com o meu bem estar. Temo que, devido à
minha ingenuidade, confundira sua simpatia com uma emoção mais forte,
mais íntima...
— Te enamoraste dele.
Voltou a assomar a cabeça por cima da cortina.
— Tinha dezesseis anos, Joshua. Tudo o que sabia do amor era o que
havia lido nas novelas e nos livros de poesia. Mas não passou muito tempo
antes de que me desse conta do absurdo de minha maneira de proceder.
Durante os dois meses que dediquei a especular com fantasias românticas, ele
estava ocupado buscando uma esposa conveniente.
— Não tinha conhecimento de que planejava casar-se?
— Não. — Beatrice emergiu detrás da cortina, completamente vestida.
Lhe sorriu com cumplicidade —. Imagina a minha surpresa quando anunciou
que iria contrair matrimónio com uma senhorita muito rica e muito
encantadora, cuja família pertencia aos melhores círculos sociais.
— E suponho que deixaste o trabalho por essa boda. Me equivoco?
— Bem, poderia ser assim, porque eu estava destroçada. Dizia a mim
mesma que não suportaria viver debaixo do mesmo teto que ele e sua nova
esposa. Mas no final das contas não tive que dar esse passo tão drástico. A
noiva de meu patrão deixou muito claro que queria que me fosse antes de que
ela se mudasse. Nem tenho que dizer que ele se mostrou muito amável até ao
final. Me ofereceu a possibilidade de instalar-me numa casinha, em um bairro
tranquilo.
— Em outras palavras, que tentou converter você em sua amante.
— Sim.
Ele deu um rápido olhar para as manchas na colcha.
— E, obviamente, rechaçou a oferta.
— Já havia sido suficiente que me rompesse o coração. Era demasiado
insulto. Estava furiosa. Lhe lancei o conteúdo de um jarro de flores. Estou
segura de que lhe arruinei a jaqueta... Tenho o meu caráter.
— Voce é uma ruiva — disse Joshua —. Se supõe que tenha um caráter
forte. Deveria ter jogado a jarra na cabeça dele.
— Sim, bem, mas podem prender a gente por infligir esse tipo de lesão.
Estava muito enfadada, mas não sou uma completa idiota.
— Uma decisão muito acertada, dadas as circunstâncias... — disse ele,
contendo a risada —.Voltou a ver esse tipo?
Beatrice estava divertida com essa reação.
— Não é que ele fosse realmente um traste, mas tratava-se
simplesmente de um homem rico, que atuava de acordo com as convenções
de sua posição. Para ser justa, diria que realmente me apreciava, mas
naturalmente não podia casar-se com uma governanta. Disso ele se dava
perfeita conta, mas eu não. E sim, voltei a vê-lo. Nos cruzámos na rua uma
tarde, um ano depois. Ia com sua nova esposa. Nem me viu.
— Mas — disse Joshua, surpreendido — como é possivel que não te
visse?
— Realmente se pode dizer que no fundo é um romântico, Joshua
Gage — disse Beatrice entre risadas —. Não me viu, porque nesse momento
já havia esquecido absolutamente tudo o que concernia a mim.
— Em minha opinião isso é algo inconcebível.
Ela lhe sorriu.
— De verdade?
— Embora não voltasse a ver-te nunca mais, nunca te esqueceria. E
sempre saberei se estiver nas proximidades.
Os olhos de Beatrice se escureceram até converter-se em tanques
inescrutáveis.
— Tal comolhe dizia, é um autêntico romântico.
Incomodado, Joshua agarrou com mais força o cabo de sua bengala.
— Mas ainda não me disse — insistiu — como acabou na Academia do
Oculto do doutor Fleming.
— Ah, sim — disse ela, pestanejando —. Na realidade não há muito
mais que contar. Mudei de ocupação e me converti em dama de companhia.
Não na Agência Flint e Marsh, mas em outra. Tive a sorte de obter um posto
ao serviço de uma mulher que estava fascinada por tudo o que fosse
paranormal. Compartilhámos interesses.
— Naturalmente — disse ele, sorrindo.
— Uma tarde a acompanhei à Academia para assistir às demonstrações
do doutor Fleming. A minha patroa reservou uma sessão privada, e ali foi
onde Roland reconheceu em mim algum tipo de poder e me ofereceu trabalho
como vidente profissional. Minha patroa me fez aceitar. Me disse que isso me
permitiria uma vida mais confortável que a de dama de companhia. E na
verdade tinha razão, pelo menos até a noite em que assassinaram o pobre
Roland.
— Depois disso te reinventaste como investigadora privada.
— Bem, isso não foi de imediato — disse Beatrice —. Não tinha nem
ideia de que semelhante profissão existisse. No entanto, quando cheguei à
conclusão de que não tinha mais remédio que voltar à minha anterior
profissão de dama de companhia, comecei a buscar emprego em diversas
agências. Ouvi rumores sobre uma agência exclusiva em Lantern Street que
pagava muito bem. Se dizia que as propietárias eram extremamente seletivas,
mas decidi que não tinha nada a perder se solicitasse um posto de trabalho. A
senhora Flint e a senhora Marsh me ofereceram um, de imediato. Me disseram
que possuia certo talento para um trabalho desse tipo.
— Já sei que lhe disse isso alguma outra vez — comentou Joshua,
sorrindo —, mas não importa, voltarei a fazê-lo: é uma mulher surpreendente,
Beatrice.
— Fazemos o que podemos para sobreviver — respondeu ela.
Ele pensou por um momento nas ocasiões em que havia permanecido
na borda dos penhascos da sua casa de campo, olhando o mar enfurecido e
escuro. Sempre havia acabado por voltar para casa coxeando, dizendo-se que
não podia tomar esse caminho de saída porque tinha responsabilidades.
Mas agora perguntava-se se a verdadeira razão que lhe havia feito
afastar-se do mar era, simplesmente, porque no mais profundo de seu ser,
seguia ardendo uma pequena chama de esperança.
— Sim — disse ele. Atravessou o quarto para deter-se frente a ela. Lhe
tomou o queixo com a ponta dos dedos, inclinou a cabeça e a beijou
suavemente nos lábios —. E eu lhe aseguro, senhorita Lockwood, que estou
muito contente de haver sobrevivido durante o tempo suficiente para
conhecê-la.
Ela sorriu. Os olhos dela brilhavam.
— O sentimento é mútuo, senhor Gage.
Não era isso exatamente o que Joshua havia querido ouvir, mas não era
o momento de seguir com o tema. A soltou e foi em busca de seu casaco.
— Vamos tomar o desjejum. Logo tomaremos o trem para Londres.
Enviarei um telegrama a Nelson indicando que nos venha recolher e que nos
leve diretamente ao escritório de Flint e Marsh. Quero muito falar com a
senhora Marsh.
Comprovou que Beatrice seguia sorrindo, mas agora os olhos
transluziam vontade de rir.
— Estou divertindo-a inesperadamente, senhorita Lockwood? —
perguntou.
— Oh, não foi nada! — lhe assegurou ela.
— Quero sabê-lo! — exigiu ele, com o rosto crispado.
— Bem, se tanto quer sabê-lo, direi que, no meu entender o encanta
esta vida de conspirações e intrigas clandestinas. Naceu para esta classe de
trabalho, Joshua. Realmente, nunca conseguiria se retirar.
Capítulo 34

Nelson se encontrou com eles na estação de Londres. Os três estiveram


olhando todas as pessoas que saíam do trem, mas nenhuma parecia
particularmente suspeita.
— Isso não significa que não estivessem no trem — afirmou Joshua —.
Mas, en qualquer caso, com esta névoa será impossível seguir-nos.
Nelson os escoltou através da espessa névoa até um local próximo em
que os esperava um coche fechado. Quando Beatrice aguçou brevemente seus
sentidos pôde perceber o calor nas pegadas de Joshua.
— Tenho novidades, tio Josh — disse Nelson, enquanto abria a
portinhola a Beatrice.
— Estupendo — respondeu Joshua —. Enquanto seguimos nos conta.
Ajudou Beatrice a subir ao coche e logo se sentou a seu lado. Nelson
tomou assento frente a eles.
Joshua utilizou a bengala para dar golpes no teto da carruagem. O
veículo começou a se movimentar rapidamente.
Só de olhá-los Beatrice supôs que, deixando de lado alguns detalhes,
estava ante a imagem rejuvenecida de Joshua. Assim devia ser seu aspecto nos
dias anteriores às cicatrizes, tanto físicas como emocionais, que o haviam
mudado, pensou.
Os homems da estirpe dos Gage não eram bonitos no sentido clássico
da palavra, mas sim fascinantes à sua maneira. Talvez fosse a força masculina
de suas auras o que atraía a atenção de uma mulher, pensou Beatrice. Em
qualquer caso, a energia incontida de Nelson, combinada com a intensidade da
aura mais madura de energia controlada, que havia em Joshua, produziam
tanto calor que lhe davam vontade de se abanar.
— Não se preocupe, senhorita Lockwood — disse Nelson —. Nosso
cocheiro, Henry, é muito experiente, graças ao meu tio. Ele se assegurará de
que ninguém nos siga até ao escritório de suas patroas.
— Não tenho nenhuma dúvida — respondeu Beatrice.
— E tal como apontava tio Josh, a névoa vai fazer mais difícil ainda
que nos possam identificar — completou Nelson.
Beatrice lançou um olhar de curiosidade a Joshua.
— Era este o coche que usou na noite que nos conhecemos, no qual
levou o senhor Euston do jardim?
— Na verdade sim, é o mesmo. — Joshua assentiu. Logo olhou a
Nelson —. Diga-me o que tem averiguado.
— Fiz o que me pediu — respondeu Nelson —. Falei com todas as
pessoas localizáveis, que viveram ou trabalharam na rua da Academia do
Oculto, no momento da morte de Fleming.
— Como assim? — perguntou Beatrice olhando a Joshua —. Não me
havia dito que estava investigando o assassinato de Roland.
— Não comentei? — disse Joshua franzindo o cenho —. Sinto.
Ultimamente tenho outras coisas na cabeça.
— Por que pediu a Nelson que fizesse essa investigação? — perguntou
ela.
— Porque a raiz deste assunto deve estar no que ocorreu naquela noite
— explicou Joshua, sem ocultar a impaciência que sentia ante perguntas que o
apartavam de seu centro de interesse. Olhou a Nelson com expressão severa
—. O que descobriu?
Nelson tirou um caderno e buscou alguma informação nele. Se deteve
numa página.
— Tal como previa, encontrei numerosas incongruências nas
recordações das pessoas naquela época, em relação aos eventos desse tempo,
mas havia umas quantas coisas em que todos coincidiam. Havia vários que
suspeitavam que forças paranormais do além haviam participado nesse
assassinato. Naturalmente, não fiz caso dessa teoria.
— Desde logo — disse Joshua, desprezando essa possibilidade com um
gesto de desprezo —. O que mais?
— Sinto dizer — continuou Nelson, olhando a Beatrice com uma
expressão de solidariedade — que muitos dos residentes nessa rua chegaram à
conclusão de que a mulher conhecida como Miranda, a Clarividente, era a
assassina.
— Não precisa de se desculpar — disse ela suspirando —. Li os jornais
nesses dias. Saber que a polícia me buscava foi um dos motivos pelos quais
mudei de profissão. Ninguém espera que uma mulher faça tal coisa.
— Exato — respondeu Nelson. Virou outra página —. Mas aqui tenho
um material interessante. Havia dois lojistas e um vendedor de batatas assadas
que trabalham nesse bairro, que recordavam a um sujeito pouco habitual na
zona, que esteve rondando por ali durante um par de dias antes do
assassinato. Segundo me disseram, esse tipo os inquietava. Os lojistas
pensavam que talvez fosse um bandido que preparava um roubo e observava
o terreno.
— E estavam certos, mas o que planejava era um assassinato e um
sequestro, não um roubo.
— O interessante do assunto foi que em todos os casos a descrição
desse homem era surpreendentemente similar. Dizem que falava muito pouco,
mas que quando o fazia, tinha um sotaque estrangeiro marcadíssimo.
— As pessoas que vivem em pequenos bairros sempre recordam dos
forasteiros, especialmente os com sotaque estrangeiro — observou Joshua —.
Deram mais detalhes?
— Em geral tudo era bastante vago — respondeu Nelson —. Mas o
vendedor de batatas assadas disse que o estranho tinha uma cara que podia
fazer que uma criança tivesse pesadelos. Lhe recordava a uma caveira,
segundo disse. Os lojistas também estiveram de acordo neste ponto.
— Isso confirma a minha conclusão — disse Joshua —. Lancing utiliza
a um assassino profissional. Agora o que temos que fazer é localizar o homem
com rosto de caveira.
— E como o faremos? — perguntou Beatrice.
— Sim — conveio Nelson, que parecia muito interessado —, como
faremos isso, tio Josh?
— Um assassino profissional, e especialmente um com marcado
sotaque estrangeiro, não pode passar inadvertido pelo submundo dos
delinquentes — disse Joshua —. Esse também é um reduto pequeno.
— E como nos podemos introduzir nesse mundo para investigá-lo? —
perguntou Nelson.
— Tenho um sócio que alardeia saber absolutamente tudo o que se
passa nesse meio. E resulta que me deve um favor, ou dois.
— Agora sim, que estou surpreendida — disse Beatrice. Sorriu —. Me
surpreende ouvir que você está em contato com indivíduos dessa laia, senhor
Gage.
Nelson começou a rir. Joshua esboçou um sorriso.
«Tal tio, tal sobrinho», pensou Beatrice.
— Estou louca de vontade de tomar um banho e colocar uma roupa
limpa — disse ela.
Joshua lhe dirigiu um olhar sério.
— Não irá para sua casa. Ainda não. É demasiado perigoso. Existe a
possibilidade de que a esta altura o assassino tenha descoberto seu endereço.
Talvez esteja vigiando-a. Há somente um lugar em Londres em que posso
garantir sua segurança.
— Qual?
— Na casa de um velho amigo. Sempre que possa conseguir que aceite
ajudar-nos, claro.
— Talvez te deva um favor, como o seu associado do mundo do
crime? — Perguntou Beatrice.
— Não. Sou eu quem deve a ele — respondeu Joshua.
Capítulo 35

— O que há entre você e o senhor Gage? — perguntou Sara.


Estava sentada em uma pequena poltrona no dormitório, enquanto
olhava a Beatrice pôr umas anáguas e um vestido limpo.
— A que se refere? — disse Beatrice —. Já expliquei o que ocorreu em
Alverstoke Hall e depois. — Acabou de abotoar o vestido e se sentou frente
ao fogo, a fim de secar o cabelo —. O senhor Gage acredita que um louco
chamado Clement Lancing tenta sequestrar-me.
Se sentia com forças renovadas depois de um banho. Pouco depois de
sua chegada na porta traseira de Flint e Marsh, tanto ela como Joshua se
acomodaram nas habitações privadas da planta superior da casa. Haviam
enviado George a casa que Beatrice compartilhava com Clarissa. Lhe haviam
dado instruções para que dissesse à governanta que haviam chamado Beatrice
para uma tarefa especial em Flint e Marsh que requeria trocar de roupa e
alguns elementos de asseio. Havia voltado com uma bolsa que continha os
artigos que haviam solicitado e uns quantos mais, que poderiam resultar úteis,
segundo a senhora Rambley: uma escova de cabelo, ganchos do cabelo, uma
camisola e mudas de roupa interior.
Havia ficado agradecida de que Sara e Abigail tivessem feito poucas
perguntas quando encontraram Beatrice e Joshua na porta. Em seguida havia
ficado claro que a comida e os banhos tinham máxima preferência. Beatrice
havia resumido a Sara o sucedido, mas nesse momento era evidente que esta
não havia ficado inteiramente satisfeita.
— Sabe muito bem — disse olhando-a com ar severo — que ao que
me refiro é a sua relação pessoal com o senhor Gage.
Beatrice quis resguardar-se.
— Acredito que já expliquei que o senhor Gage quis se converter mais
ou menos em meu segurança, até que encontre Clement Lancing. Mas eu não
chamaria a isso uma relação pessoal.
— Besteira. Se vê a uma légua, por sua maneira de olhá-la, que Gage,
além de converter-se em seu segurança, se converteu em seu amante.
Beatrice fez uma careta e pegou a escova de cabelo.
— Parece tão óbvio assim?
— Sim — respondeu Sara, com expressão menos dura —. Em outras
circunstâncias, não desejaria por nada do mundo interferir em seus assuntos
privados. É uma mulher que tem cuidado de si mesma há bastante tempo.
Não é nenhuma garota ingénua e inocente. Mas sim uma agente de Flint e
Marsh, e, como tal, uma senhorita possuidora de consideráveis talentos. Se
não fosse capaz de cuidar-se não estaria trabalhando para nós. Mas o senhor
Gage tem pouco a ver com os homens que tem conhecido.
— Sou muito consciente disso, Sara.
Sara suspirou.
— Suponho que isso é parte de seu atrativo, não?
— Sim — respondeu Beatrice sorrindo —, suponho que sim.
Agora que o pensava, o diagnóstico de Sara talvez fosse correto. Havia
estado perguntando-se qual a razão que a levava a sentir-se atraída por Joshua
desde o momento em que se havia levantado da cama que haviam
compartilhado.
Durante toda a manhã se havia dito que a paixão que havia surgido
entre eles havia ocorrido por impulso, em parte, pela excitação que o perigo
gerava. Além disso, Joshua a atraía. Da parte dele, existia o fator de seu retiro
durante o ano que havia passado inativo no campo. E logo, ambos se haviam
encontrado a sós em um dormitório. Todos esses fatores se haviam
combinado em uma mescla explosiva. Visto assim, o encontro sexual que
havia tido lugar em um quarto de hotel, havia sido, portanto, inteiramente
previsível.
No entanto, não estava de todo segura de que todas essas razões
explicavam o poderoso vínculo metafísico que havia sentido entre Joshua e ela
essa manhã. Era como se o fato de fazer amor houvesse estabelecido um
vínculo invisível entre os dois. Recordou a si mesma que, se tal conexão
existia realmente, era muito possível que ela fosse a única a senti-la.
Por outra parte, a sensação de um vínculo íntimo podia ser
simplesmente a fantasia de uma imaginação febril, urdida para explicar essa
paixão desatada. Não havia dúvida: se havia visto arrastrada por uma febre
dos sentidos.
— Não me entenda mal — continuou Sara —. O senhor Gage sempre
teve toda a minha admiração. Mas provém de um mundo social muito
diferente, tal como estou segura que entendes muito bem. Ainda não está
casado, mas não pode tardar demasiado em fazê-lo, pelo bom nome de sua
família.
— Sei muito bem tudo isso que me está dizendo, Sara. — Beatrice
passou com mais força a escova —. Tal como me acaba de dizer, não sou
nenhuma ingénua. Sou muito consciente de que não existe a posibilidade de
um futuro para mim com Joshua. Mas também sei que nunca mais terei a
posibilidade de experimentar estes sentimentos e sensações com outro
homem. Ele é... único.
— O mesmo que tu, Bea. — Sara se colocou em pé e foi até à porta—.
Em circunstâncias normais, não costumo pôr objeções na paixão. Mas
segundo minha experiência, as agentes de Flint e Marsh que se enamoram de
uma pessoa conectada com um caso, geralmente o lamenta depois.
Recomendo que proteja o seu coração, enquanto o senhor Gage a protege
desse louco.
Capítulo 36

— Estamos conscientes de que, no momento, tem os interesses da


senhorita Lockwood em muita consideração — disse Abigail Flint.
Joshua estava a ponto de pegar outro pequeno sandwich, mas se deteve
e se voltou para Abigail com uma sobrancelha levantada.
— «No momento» implica que em alguma circunstância e lugar futuros
talvez não tenha os interesses da senhorita Lockwood em tal consideração —
respondeu ele.
Abigail o olhou com severidade.
— Não, não quería implicar nada do que você disse. Mas sim o que
desejo é deixar claro que a senhorita Lockwood, apesar de ser uma agente
com experiência, não deixa de ser uma mulher jovem, com muito pouca
prática no que respeita as emoções e paixões extremas, que possam gerar-se
quando duas pessoas enfrentam o perigo juntas.
— Em outras palavras, me está advertindo de que não me aproveite
dela.
— Na maioria dos casos, as agentes de Flint e Marsh realizam suas
investigações sem que as demais pessoas, e entre elas se incluem os
cavalheiros, reparem nelas — disse Abigail —. Em seu papel como damas de
companhia resultam invisíveis entre o resto dos serventes. Mas há algumas
exceções. Não é você o primeiro homem que se dá conta de que uma agente
de Flint e Marsh é, em virtude de sua profissão, alguém com muita experiência
nas coisas da vida.
— Mas é certo que as senhoritas de Lantern Street sabem cuidar de si
mesmas.
— Senhor Gage, nossas agentes têm todas uma coisa em comum, vêm
trabalhar para nós porque, devido a uma série de fatores, se encontram
empobrecidas e dependem somente delas mesmas. Não têm nenhuma família
que as proteja. Neste sentido, ambos sabemos que isso as faz vulneráveis.
— Assim, que você e a senhora Marsh se encarregam de velar por suas
agentes. — Joshua olhou por fim o sandwich e deu uma mordida nele—. Isso
é algo que as honra.
— Não nos agrada ver nenhuma de nossas senhoritas seduzida e
abandonada. São coisas que complicam terrivelmente nosso negócio.
Joshua sentiu que a paciência o abandonava. Não se decidia entre
sentir-se divertido ou ofendido pelo interrogatório e o aviso que estava
recebendo. Sim, de acordo, era culpado de haver seduzido Beatrice, mas não
tinha nenhuma intenção de abandoná-la. Se dava conta de que, na realidade,
não havia pensado demasiado no futuro que poderiam compartilhar. Durante
o ano anterior se havia desprendido do hábito de fazer qualquer tipo de plano
a longo prazo. Levava uma vida mortalmente aborrecida.
— É algo que ocorre muitas vezes? — perguntou —. Me refiro a isso
de que seduzem e abandonam suas agentes.
— A senhora Marsh e eu fazemos tudo o que está em nossas mãos para
reduzir ao mínimo este tipo de comportamento. — Abigail sorriu, mas a
dureza de sua expressão não se suavizou—. O que posso assegurar-lhe é que
tenho usado a informação obtida no decurso de nossas investigações como
advertência para mais de um homem, que pensava que podia divertir-se com
uma senhorita de Lantern Street.
— Ah, sim, chantagem. Sempre resulta muito útil.
— Tal como lhe dizia, a senhora Marsh e eu somos na maior parte dos
casos a única família que têm nossas agentes. Como suas patroas, temos a
responsabilidade de cuidá-las.
— Beatrice leva uma pistola e uns sais aromáticos muito fortes, mas,
mesmo assim, você se preocupa que não se possa proteger — disse ele.
— A paixão pode fazer que uma mulher duvide de suas defesas.
— Pois terá que permitir-me que lhe diga algo, senhora Flint. Em um
homem pode ter o mesmo efeito. Há considerado a posibilidade de que não
haja interpretado bem a situação? O que ocorre se eu sou o que está em
perigo de que se rompa o coração? Cuidariam vocês de mim, se de repente me
encontro abandonado?
Abigail bufou.
— Você não me preocupa em absoluto. O Menssageiro do senhor
Smith é muito capaz de cuidar de si mesmo.
— Não esteja tão segura disso, senhora.
Ela o olhou com dureza.
— Estou falando muito a sério, senhor Gage. Sou consciente de que
Sara e eu estamos em dívida com você. De resto, suponho que a metade de
Londres se encontra na mesma situação.
— A metade não.
— Mas quero — continuou, ignorando a contestação — que me dê sua
palavra de que não permitirá que Beatrice alimente sonhos que nunca possam
converter-se em realidade.
— E o que se passa com os meus sonhos, senhora Flint? — perguntou
ele.
— Creio que posso imaginar como são os seus sonhos, senhor Gage.
— Olhou com certo descaro a cicatriz no rosto de seu interlocutor, e logo sua
bengala—. Dado o que sei de seu passado, suspeito que não devem ser
particularmente agradáveis.
Abigail não esperou que ele respondesse. Se levantou e saiu pela porta.
Joshua a contemplou até que fechou a porta nas suas costas. Estava só
na habitação.
— Pois ultimamente meus sonhos têm melhorado muitíssimo —disse
para si.
Capítulo 37

Beatrice esperou que Abigail e Sara entrassem no laboratório. Então abordou


Joshua. Ele carregava no ombro o pacote de frascos de fumaça.
— É possível que te tenham dado uma lição sobre o tema de teus
propósitos honestos com respeito a mim? — susurrou.
Ele respondeu com uma educada expressão, como se encontrasse
surpreendente a pergunta.
— Por que diz isso?
— Porque a mim falaram dos homems que se acreditam capazes de
jogar com os sentimentos de afeto das jovens senhoritas. Algo muito
aborrecido, para não dizer algo pior.
— Aborrecido? Os homems ou a lição?
— Não é nada divertido, Joshua.
— Perdoa-me. — Se deteve junto à porta e a deixou entrar primero —.
Sim, me deram uma lição.
— Já o temia. Me desculpo em nome de minhas patroas. Fizeram isso
com boa intenção, sabe?
— Nunca duvidei.
— O que você respondeu? — perguntou Beatrice franzindo o cenho.
— Disse que leva uma pistola e esses sais tão potentes e que parece
muito capaz de cuidar de si mesma.
Ela sorriu, satisfeita.
— Excelente resposta.
— E você, como respondeu ao aviso sobre minhas intenções?
— Deixei muito claro que como já não sou inocente, a lição chegava
demasiado tarde para mim.
Beatrice saiu, ignorando a risada afogada de Joshua. Realmente, pensou,
aquele homem tinha um sentido de humor muito particular.
Sara e Abigail os esperavam. Sara estava pondo um amplo avental de
couro. Seu laboratório ocupava a cave da casa. As diferentes bancadas de
trabalho estavam providas de uma grande variedade de instrumentos
científicos, desde delicadas balanças até uma máquina geradora de eletricidade.
Nos armários acristalados que cobriam as paredes se via amostras de minerais
e gemas. Em outros se ordenavam garrafas e caixinhas, que continham
diversos produtos químicos.
— Vamos ver o que encontramos nesses frascos produtores de fumaça,
senhor Gage — disse Sara. O entusiasmo e a curiosidade brilhavam em seus
olhos e eram evidentes também em sua voz. Indicou uma bancada de trabalho
próxima a ele —. Pode deixá-los nessa mesa. Me disse que são voláteis?
Joshua foi até à bancada e deixou a sua carga sobre ela.
— O homem que utilizou esta substância como arma contra mim, o
provocou jogando um dos frascos aos meus pés. Dali surgiu uma grande
quantidade de fumaça, mas nenhuma chama. — Procedeu a abrir o pacote e
tirou dele os três frascos que ali estavam.
Sara colocou uma máscara que lhe cobria o nariz e a boca. Finalmente,
após colocar umas luvas resistentes, se aproximou da mesa.
— Afaste-se, por favor — ordenou.
Ninguém discutiu. Beatrice e os demais se afastaram da bancada de
trabalho. Todos contemplaram com interesse como Sara tomava um dos
frascos e o examinava com cuidado.
— Interessante — disse —. Vamos a ver que há dentro.
Ela abriu a tampa com cuidado. Um odor químico muito intenso se
estendeu pelo local. Beatrice enrugou o nariz.
— Uf! — Abigail agitou a mão frente a sua cara e retrocedeu
rápidamente alguns passos.
— Mmmm! — disse Sara.
Com a ajuda de um conta gotas extraiu uma amostra do conteúdo. O
fluido era claro. Colocou algumas gotas num tubo de ensaio e foi repetindo a
mesma ação até que teve preparadas diversas amostras. Logo voltou a colocar
a tampa no frasco.
Olhou Beatrice, Joshua e Abigail.
— Vou demorar um pouco — anunciou—. Não posso trabalhar com
tanta gente pendente de cada movimento que faço. Vão lá para cima e tomem
outro chá. Os avisarei quando tiver notícias para dar.
Beatrice e os demais, obedientes, retrocederam e subiram a escada.
Abigail os conduziu ao pequeno salão. Joshua se aproximou da janela e ficou
observando a névoa no exterior. Beatrice percebia a sua impaciência, tal como
Abigail.
— Sente-se, o resultado será o mesmo, senhor Gage — disse esta —.
Não ganhará nada olhando para a rua.
— Suponho que não. Além disso, com esta maldita névoa não vejo três
palmos além do meu nariz. — Se afastou da janela e, finalmente, se sentou
numa poltrona —. Mas eu tenho a sensação de que o tempo se acaba. Do
contrário, Lancing não se arriscaria a atrair-me até este caso. Tenho que
encontrar o fornecedor dessas substâncias químicas o quanto antes. E logo
encontrarei o assassino.
Entendo-o — disse Abigail —. Mas, entretanto, quais são seus planos
para esta noite? Tanto você como Beatrice podem ficar aqui conosco, se
quiserem.
— Agradeço, mas não — respondeu Joshua —. Beatrice estará mais
segura em outro lugar que tenho em mente. Necessito ter a certeza de que está
bem protegida, enquanto prossigo com meus planos para fazer com que o
assassino, a mando de Lancing, seja descoberto. O Homem Osso é um
obstáculo que quero superar o quanto antes.
— Pois a mim parece — disse Beatrice, olhando-o — que a maneira
mais fácil de o fazer cair em uma armadilha seria utilizar-me como anzol.
— Não — respondeu Joshua. E essa única palavra não admitia mais
que uma só interpretação.
— Acaso tem um plano melhor? — perguntou ela com suavidade.
— Digamos que tenho uma estratégia alternativa.
A ela não agradou a forma como soava aquela expressão.
— O que se propõe?
— Parece evidente que Lancing me utilizou para a encontrar, mas agora
me converti em um problema para ele — disse Joshua.
Abigail levantou as sobrancelhas e assentiu em um gesto de
compreensão.
— Lancing sabe que voce é um obstáculo no caminho — interveio —.
Embora consiga manter Beatrice protegida, está consciente de que seguirá
sendo um problema.
— Porque você não deixaria de buscar-me — complementou Beatrice
com tranquilidade.
— Nunca — disse Joshua.
Abigail o olhou com intensidade.
— Acredita que o primeiro objetivo de Lancing será livrar-se de você?
— Certamente, essa seria a estratégia que eu seguiria, em seu lugar. Ele
sabe como penso, mas isso também é certo ao inverso. Conheço seus
costumes, do mesmo modo que ele conhece os meus. Depois de tudo, ambos
fomos treinados pelo mesmo homem.
— Mas com quem tem que enfrentar-se primeiro é com o assassino,
não com Lancing — observou Beatrice.
— O assassino é o ponto vulnerável de Lancing — disse Joshua —. O
homem com rosto de caveira é a única pessoa que sabe como chegar a
Lancing. É uma particularidade dos assassinos contratados: há que seguir
pagando-os pontualmente. E isso implica que existe um ponto de encontro.
Quando o tenha, terei também o Lancing.
— Mas primeiro tem que atrair o assassino — observou Beatrice —. Se
não me utiliza como isca, como conseguirá?
— Comigo mesmo. Arderá em desejos de vingança depois dos dois
fracassos. O orgulho pode fazê-lo descuidado.
Beatrice conteve a respiração.
— Joshua — disse por fim —. Tenho que dizer-lhe que não me parece
um bom plano se...
O som abafado de uma explosão no sotão deteve a conversa nesse
ponto.
— Valha-me Deus! — exclamou Abigail. Se levantou de um salto e
correu para a porta —. Sara, está bem? Sara!
Beatrice e Joshua seguiram a Abigail até o vestíbulo e logo até a planta.
Se detiveram no alto da escada da cave. A fumaça e o aroma de produtos
químicos muito fortes, procedentes da parte de baixo, flutuavam no ambiente.
— Sara! — chamou Abigail com ânsia —. Sara, responda-me!
Sara apareceu na base da escada. Subiu muito depressa, através dos
vapores. Quando chegou ao umbral superior arrancou a máscara e as lentes e
os olhou com um sorriso triunfante.
— Tenho boas notícias, senhor Gage — disse —. Creio que conheço o
nome do boticário que forneceu os produtos químicos para os artefatos
fumíferos, e muito provavelmente também para a agua egípcia que você nos
há descrito. Em Londres só há uma pessoa a quem recorrer, quando se trata
de obter produtos químicos raros e exóticos, como esses.
— Só ha um? — perguntou Joshua.
— Pelo que sei, a senhora Grimshaw, em Teaberry Lane, é a única
boticária especializada na preparação de compostos e fórmulas com
propriedades paranormais.
Capítulo 38

— Se voltar novamente com o que "eu disse-lhe!" Garanto que serei


forçado a tomar medidas drásticas — avisou Joshua.
— Suas ameaças não me dão qualquer medo — disse Beatrice,
balançando, com um gesto de desdém, a mão enluvada. Sim, pensou, ela
reconhecia que estava exultante, mas simplesmente não conseguia resistir. —
Espero que da próxima vez que você relatar que não há provas de natureza
paranormal, preste mais atenção às minhas conclusões.
Eles estavam sentados no carro de Joshua, Henry, o motorista, tinha
parado na entrada do Teaberry Lane, porque a velha passagem de calçada era
estreita demais para o veículo.
A névoa cobria o beco, era impossível ver o distintivo do
estabelecimento, mas um brilho fraco na janela, indicava que o
estabelecimento estava aberto ao público.
Beatrice estava ciente da energia vibrante na cabine do veículo, o
avanço frio, rigidamente controlado, do lobo na caça, que emanava de Joshua.
Ela sabia que ele não iria acreditar nela se lhe disse que tinha um calor escuro
nos olhos, de modo que não ia mencioná-lo.
— Eu não acho que a senhora Marsh identificou a origem dos
componentes químicos, pelos traços da energia paranormal— Joshua disse —
Mas eu sempre respeitei suas habilidades como cientista. Nem por um
momento eu duvidei de seus poderes de observação, o que permitiu, por
exemplo, tirar suas conclusões ao estudar o fluido.
— Mas você tem certeza que não foi detectada nenhuma natureza
paranormal — apontou Beatrice.
— Eu acho que, em mais de uma ocasião, eu mencionei que não há
necessidade de recorrer ao paranormal para encontrar uma explicação.
— Como você diz — Beatrice murmurou — Naturalmente, o perito
quando se trata de investigação criminal é você.
Joshua olhou desconfiado, ela sorriu docemente e piscou várias vezes.
— Uf — ele disse, balançando a cabeça enquanto abria a porta, Você
pode esquecer o ar de inocência, comigo não funciona, lembra?
— Oh, é verdade! Sempre me esqueço deste detalhe!
— Vamos então para entrevistar com a Sra. Grimshaw — ele rosnou.
Ele baixou os degraus, agarrou sua bengala e desceu da carruagem. Ele
se virou para dar a mão a Beatrice, e ela sentiu uma emoção intensa de
consciência, quando percebeu a força da mão dele na palma da sua mão.
Ela espiou debaixo da aba do chapéu, seu rosto procurando um sinal de
que ele também tinha percebido o fluxo de energia que fluia entre eles. Mas o
perfil duro de Joshua revelava apenas uma disposição neutra de planos e
ângulos. Se ele realmente sentia algo incomum e inexplicável quando estavam
tão perto, ele estava usando o seu formidável auto-controle para esconder tal
reação.
Henry, no assento do motorista, inclinou-se para Joshua.
— Vou esperar aqui, senhor.
— Obrigado — disse Joshua, então, de frente para o beco envolto em
nevoeiro, acrescentou — Eu acho que tem o seu apito, certo?
— Claro, senhor. Vou estar alerta, como nos velhos tempos, se eu vir
algo suspeito, eu toco duas vezes para o alertar. Você acha que você vai ter
problemas dentro do estabelecimento, senhor?
— Não, mas ultimamente eu estou errando em minhas previsões.
Estou ficando velho, Henry.
— Senhor — Henry disse, segurando o riso — , ainda falta muito para
ser tão velho quanto eu.
Joshua tomou o braço de Beatrice e se dirigiu para o estabeleciento, o
som leve de seus passos e os golpes das batidas da bengala de Joshua
ressoaram sinistramente no nevoeiro. Beatrice olhou para trás e viu que Henry
e o carro já não eram mais que sombras difusas.
Um frio gélido os apanhou quando chegaram à porta, a sensação
desconfortável fez arrepiar os cabelos na nuca. Sabia que Joshua sentira o sinal
de aviso, porque ele tinha parado imediatamente, fazendo-a parar e virar.
— Que ocorre? — Joshua perguntou.
— Eu não tenho certeza —, disse ela.
Forçou seus sentidos e examinou o passo da entrada, a energia
depositada ali por um número desconhecido de pessoas ao longo dos anos,
tinha deixado um correntes grossas e ásperas de miasma paranormal. Muitas
dessas faixas foram ofuscados pela doença, dor, dependência e morte
iminente. No final do dia, era um estabelecimento, a maioria das pessoas tinha
franqueado o seu limiar em busca de uma cura, ou pelo menos alívio
temporário para seus males.
No entanto, alguns vestígios recentes queimavam com outra fonte de
calor, com aquela energia, de fato, já muito familiar.
— Joshua — sussurrou — Ele esteve aqui recentemente, mas ele se foi.
Joshua perguntou o que ela queria dizer. Ele apertou seu braço em um
alerta silencioso. Ela olhou para ele, surpresa, e notou que ele estava
estudando as janelas.
— Eles já baixaram as cortinas — disse muito suavemente, ele olhou
para as janelas superiores da loja — E estas também. Pegue a sua arma.
Ela não hesitou um segundo levantou as saias e anáguas foi e puxou a
arma da liga.
— Esconda-se atrás dessa porta — ele disse, apontando para o edifício
contiguo — entrando. — E não hesite em atirar se alguém vier até aqui e
olhar você duas vezes. Me entendeu?
— Sim, mas o que você está planejando?
— Vá embora. Vá agora.
Ela correu para se esconder na próxima entrada, de lá, ela viu Joshua
que com a mão enluvada agarrou a maçaneta. Também viu que havia
resistência, a porta estava trancada.
Ele pensou que talvez ele iria tentar forçar a fechadura. Mas os
métodos de Joshua foram mais eficientes do que isso. Pegou a bengala, com o
cabo de ébano e aço que atingiu uma das portas de vidro.
O vidro quebrou e Joshua introduziu o braço na abertura e abriu a
porta.
Ele desapareceu no interior.
Segundos depois, uma grande garrafa de vidro preto voou pela porta e
caiu no meio do beco, rompendo-se com violência, uma pequena explosão e
um ruído foi ouvido, chamas brancas que ardiam com intensidade por um
curto período de tempo antes de morrer.
Houve um profundo silêncio. Beatrice prendeu a respiração.
Joshua apareceu na porta.
— Já pode entrar — Ele olhou Beatrice com a arma empunhada —
Importa-se de guardar isso? Ou, pelo menos, você pode parar de apontar a
arma?
— Oh, sinto muito. — Beatrice levantou suas saias e colocou a
pequena arma na liga delicada.
Ele correu até a entrada da loja e olhou para trás de Joshua. O corpo de
uma mulher idosa estava deitado no chão, o cheiro fraco, mas inconfundível
de clorofórmio encheu a sala.
— Minha mãe! — Beatrice sussurrou. — Ela está ...?
— Não, continua viva — disse Joshua. — Chegámos a tempo. Essa
bomba foi ligada a um mecanismo temporizador, que foi programado para
explodir em dez minutos. Ele queria ter tempo para ficar longe da cena
quando o fogo começasse.
Capítulo 39

Graças a Deus que vocês vieram —, disse a Sra Grimshaw. — Sua


intenção era me matar. Ele disse que pareceria que eu acidentalmente causei
uma explosão ao misturar produtos químicos voláteis, a polícia nunca saberia
o que tinha acontecido.
Podia sentir um tremor na voz e nas mãos daquela senhora. Beatrice
colocou uma xícara de chá bem quente e inspecionou cuidadosamente. A
boticária ainda estava sob os efeitos de uma forte impressão.
— Tome um pouco de chá — disse Beatrice suavemente.

A Sra Grimshaw se animou quando viu o chá. Retirou um pequeno


pacote de dentro do seu avental e esvaziou metade de seu conteúdo nos
copos. Em seguida, se inclinou e inalou os vapores. Ficou claro que eles
tinham um efeito terapêutico sobre ela. Ela ficou mais tranquila e parou de
tremer.
Franziu a testa, com espanto ainda perceptível na expressão.
— Como descobriram que eu corria perigo?
— Não sabiamos, — disse Beatrice. — Ou pelo menos não temos
certeza do que ele fez. — Sentou-se à mesinha e serviu o chá na xícara de
Joshua e na sua. — Mas hoje a intuição do Sr. Gage nos trouxe aqui. Ele tinha
a sensação de que era imperativo que nos encontrássemos imediatamente.
Sra. Grimshaw tinha levado um grande choque, mas tinha saído ilesa da
experiência. Beatrice tinha preparado um chá, enquanto Joshua tinha saído
para explicar a Henry o que acontecera e enviar uma breve mensagem. Não
sabia qual conteúdo da mesma, mas Henry tinha saído rapidamente.
A Sra Grishaw olhou para Joshua com ar pensativo.
— Eu diria que você possui algum tipo de poderes paranormais. Isto
poderia explicar porque sabiam que eu estava em perigo.
— Isso é o que eu continuo dizendo. — Beatrice olhou para Joshua
com um sorriso.
Ele lhe lançou um olhar de irritação e, em seguida, olhou para a Sra.
Grimshaw.
— Se chegámos à sua porta esta manhã não foi qualquer intuição
paranormal, mas por um raciocínio dedutivo e lógico, e, — acrescentou, —
tenho que admitir, um pouco de boa sorte.
A Sra. Grimshaw olhou para Beatrice com ar interrogativo.
— O Sr. Gage disse que não acredita em fenômenos paranormais.
— Ah, — disse a Sra Grimshaw, com expressão mais clara, — isso
explica tudo. Bem, não será o primeiro homem com poderes que nega sua
própria capacidade, e ouso dizer que não será o último.
Beatrice tentou esconder um sorriso, mas sabia que Joshua perceberia.
Parecia aflito, não insistiria mais sobre o assunto.
— Lamento não ter mais tempo para se recuperar desta terrível
experiência, Sra. Grimshaw. Mas este assunto é de extrema urgência. Temos de
agir rapidamente, se quisermos evitar a morte de outras pessoas. Poderia
explicar o que aconteceu aqui hoje?
— Certamente, Sr. Gage, mas temo que eu mesma não saiba. Tudo o
que posso dizer é que pouco antes de vocês chegarem, um dos meus clientes
regulares, um que sempre compra um composto especial de sais, entrou na
loja e pediu-me para preparar a quantidade habitual. Não me pareceu
estranho, e fui fazer a fórmula. Quando ela estava pronta e comecei a colocar
tudo em cima do balcão, de repente senti que estava atrás de mim. Movia-se
como um gato na noite, era assim que ele se movia... Colocou um pano
molhado no meu rosto. Lembro que o cheiro era de clorofórmio e ele me
dizia que eu morreria em um grande incêndio... E então, nada, até que vocês
me despertaram.
Joshua franziu os lábios.
— Foi minha culpa, Sra. Grimshaw. O malfeitor de quem estou no
encalço sabia que, mais tarde ou mais cedo eu a entcontraria e temia que você
pudesse me levar até ele. Por isso a queria morta, mas não antes de levar um
novo lote de sais.
A Sra. Grimshaw parecia confusa.
— Não entendo. Quem é este malfeitor, do qual me fala?
— O homem que tentou matá-la e queimar sua loja trabalha para ele,
― Joshua explicou. — Seu nome é Lancing. É um cientista que está há cerca
de um ano usando os serviços de um assassino profissional.
— Oh, Deus! — Exclamou a Sra Grimshaw, preplexa.
— Pode descrever o homem que comprou os sais e que tentou matá-la?
— Sim, claro, — disse a Sra. Grimshaw, fazendo um esforço. — Em
nenhum momento ele disse o seu nome, mas me disse que tinha sido enviado
para comprar sal e outros produtos químicos raros, que só eu poderia
fornecer. Eu nunca gostei dele, mas sempre pagava imediatamente, não pedia
crédito. Não posso ser muito exigente quando se trata de clientes.
— Isso é verdade, — disse Beatrice. — O que mais poderia nos
explicar?
— Oh, era um tipo muito particular. Estrangeiro, com certeza. Ele
falava com um sotaque acentuado, era alto. Sempre usava um chapéu com aba
baixa, mas tenho quase certeza que ele é careca. Seu rosto e igual a um crânio,
tem os olhos mais frios que já vi.
— Sim, — disse Joshua. A sua descrição corresponde à do assassino
profissional.
— E você... acha que ele voltará? — A Sra Grimshaw estremeceu. —
Você acha que voltará quando perceber que falhou?
— Não, porque entendem que o risco não faz sentido — disse Joshua.
De qualquer forma, eu vou pedir a um ex-sócio que envie aqui um par dos
seus homens, para que você e sua loja permaneçam seguras até que o assunto
esteja resolvido.
— Você quer dizer guarda-costas? — Perguntou a Sra. Grimshaw com
os olhos arregalados.
— Exatamente. Mandei nosso cocheiro com uma mensagem um tempo
atrás. Seus guardas estarão aqui em breve. Nós não vamos sair até que eles
cheguem.
A Sra. Grimshaw suspirou com alívio.
— Eu, sinceramente agradeço, Sr. Gage. Mas, realmente, eu não
entendo por que motivo esse tal Lancing enviaria seu homem de aluguel para
me assassinar. Como eu já tinha falado, nenhuma botica de Londres pode
fornecer os produtos químicos que ele precisa.
— Acho que Lancing está convencido de que não vai precisar de um
fornecimento contínuo de longo prazo desses produtos tão raros— disse
Joshua. — Ele acha que está chegando ao fim de sua grande experiência.
Capítulo 40

— Eu não tinha ideia que os senhores do crime passeavam com tanto


estilo. — Disse Beatrice, maravilhada com o belo coche que se aproximava.
— O Sr. Weaver controla uma parte muito rentável do submundo de
Londres — explicou Joshua. — Ele é especialista em estabelecimentos de
jogo e tabernas. Mas também fornece serviços financeiros para aqueles que
não podem obtê-los de bancos respeitáveis.
— A taxas de juros muito elevadas, suponho.

— Claro; ele é um verdadeiro homem de negócios, — disse Joshua.


Olhou a brilhante carruagem negra puxada por dois cavalos pretos
magníficos, que parou na entrada do Teaberry Lane. Desceram dois homens.
Todos os seguranças de Weaver tinham alguma semelhança, pensou. Eram
corpulentos e intimidantes, estavam armados e bem-vestidos. Suas gravatas
negras eram bem conhecidas no submundo.
Os homens olharam para Joshua, à espera de instruções.
— Por favor, vigiem a boticária — pediu Joshua. — Não deixem
ninguém entrar ou sair pela porta principal, ou pela porta de trás. O
estabelecimento está fechado até novo aviso. Eu me preocupo com a
segurança da proprietária.
— Cuidaremos dela — disse um dos homens.
Depois se despediram levando a mão aos chapéus pretos, entraram
rapidamente no beco.
Um lacaio de libré preta desceu para abrir a porta da carruagem e baixar
os degraus. Um homem grande e corpulento, dentro do coche, olhava para
rua.
— Passamos muito tempo sem nos vermos, Joshua, — disse Weaver.
Observou a cicatriz e a bengala com ar pensativo. — Eu ouvi algo sobre um
acidente...

— As notícias correm, — Joshua respondeu. — Deixe-me apresentá-lo


a Miss Lockwood, uma boa amiga. Beatrice, este é o Sr. Weaver, um ex-sócio.
— Sir Weaver... — Beatrice disse com um sorriso.
Joshua fez um esforço para não sorrir. Não podia pensar em qualquer
outra senhorita do seu círculo de conhecidos capaz de cumprimentar um
personagem destacado do submundo com tanta graça e charme. Era evidente,
a surpresa refletida nos olhos de Weaver, que este não estava acostumado a
que um membro da classe respeitável o cumprimentasse tão cordialmente.
— É um prazer, senhorita Lockwood — disse Weaver. Olhou para
Joshua levantando as sobrancelhas e depois acenou com a mão enluvada. —
Espero que vocês dois não tenham problema em compartilhar comigo o
espaço deste coche enquanto conversamos. É que para mim os espaços
abertos não me convêm.
Joshua ajudou Beatrice a subir no coche e, em seguida, se juntou a ela.
Sentaram-se em almofadas de veludo negro.
Beatrice examinou Weaver com discreta curiosidade. Havia muito de
Weaver a examinar, pensou Joshua. Esse homem imenso e corpulento tomava
a maior parte do assento oposto. Seus olhos pálidos refletiam uma inteligência
fria e calculista. Estava muito bem-vestido, de acordo com os ditames da
última moda. O alfaiate tinha feito tudo em seu poder para camuflar o corpo
inchado de Weaver, mas isso só era possível até certo ponto. O que não
conseguia esconder era a aura de saúde precária ao seu redor, pensou Joshua.
Não tinha boa cor, e sua respiração era mais arfante que a última vez que eles
se haviam encontrado.
— Admito: eu tenho curiosidade de saber o que o leva a buscar a
minha ajuda depois de um ano de silêncio, — disse Weaver.

— É uma longa história, e eu ainda não posso explicar o final — disse


Joshua. — Tem algo a ver com o acidente que você mencionou. Eu acho que
uma das pessoas que se acreditava morta no mesmo acidente ainda está viva.
E que o homem se tornou um problema muito sério para a Miss Lockwood.
— Eu entendo. — Weaver apontou para Beatrice. — Lamento ouvir
isso, Senhorita Lockwood. — Ele olhou de novo para Joshua. — Fico feliz em
ajudá-lo neste momento, mas dois guardas não vão pagar a dívida que tenho
com você. Espero que peça ajuda quando voltar a necessitar.
— Eu tenho uma pergunta — Joshua disse. — Você já ouviu falar de
um cara independente, cujos serviços incluem o sequestro e o assassinato? Ele
é um estranho que fala com um forte sotaque russo. De acordo com
testemunhas é completamente careca, seu rosto se parece com um crânio. Ele
denomina-se o Homem Osso.
— Ele se parece com o personagem de um romance gótico. — Weaver
apertou os olhos. — Parece-me familiar. Há cerca de um ano ouvi rumores
sobre um homem igual a esse. Falaram que tinha acabado de chegar em
Londres e era um profissional muito experiente.
— Profissional em quê? — Perguntou Beatrice.
— Em assassinato, — disse Weaver.
— Oh, já entendi, — disse Beatrice.
— Fiz saber que estaria interessado nos serviços de um perito assim,
mas não me contatou. Na verdade, ele desapareceu quase imediatamente.
— É isso, tinha encontrado quem o contratou. — Opinou Joshua.
— E eu acho que é alguém do seu círculo, Joshua, porque se fosse
algum dos meus concorrentes que o tivesse contratado, eu com certeza teria
conhecimento.
— Seu novo patrão é um louco que responde pelo nome de Clement
Lancing. — Disse Joshua
Weaver assentiu.
— E eu suponho que você tem um plano, certo?
— A fraqueza do Homem Osso parece ser o seu orgulho profissional,
— disse Joshua. — O que eu quero é aproveitar isso para interceptá-lo, mas
preciso de sua ajuda.
— Conte com ela.
Joshua explicou a natureza do seu pedido. Weaver tomou nota.
— Não haverá nenhum problema, —disse. — Quando eu voltar ao
meu escritório vou organizar tudo.
— Obrigado, — disse Joshua. — E, por favor considere a sua dívida
completamente quitada.
— Não. — grunhiu Weaver. — Eu nunca serei capaz de pagar uma
dívida como essa.
Joshua abriu a porta do coche e desceu. Em seguida, ajudou Beatrice a
descer. Ficaram na calçada, olhando para o coche preto desaparecer na
neblina.
— Posso perguntar que tipo de favor você fez para o Sr. Weaver? —
Perguntou Beatrice.
— Um dos seus concorrentes no submundo sequestrou sua filha
quando era adolescente e lhe pediu um resgate. — disse ele. — Eu consegui
encontrá-la e devolvê-la sã e salva.
— Entendo. Por isso sente que nunca poderá terminar de pagar a
dívida.
Havia algo no tom de voz de Beatrice que o fez pensar que ela estava
preocupada com alguma coisa.
— Que queres dizer? — Joshua perguntou.
— Mr. Weaver é um homem muito doente, — disse suavemente. —
Ele está morrendo.
— Pelo que me disseram é o coração. Durante anos, ele tem mantido a
trégua no mundo do crime. Será interessante ver o que acontece quando não
estiver mais aqui.
Capítulo 41

Na biblioteca de Victor Hazelton reinava uma energia escura e sombria


de uma dor prolongada. Mas havia algo mais, pensou Beatrice, talvez uma,
raiva e uma angústia silenciosa. Victor mantinha uma aparência estóica, mas
Beatrice podia ver as correntes escuras em suas pegadas. Suspeitava que
grande parte daquela raiva tão controlada, era dirigida a si mesmo. Afinal, ele
era o lendário Mr. Smith a quem tinha sido confiada a missão de manter o país
a salvo de terroristas e conspiradores. Mas algo tinha falhado na hora de
proteger a sua própria filha de um louco.
Victor era um homem com cabelo leonino, olhos escuros, presença e
olhar imponente. Aparentava cinquenta e poucos anos, mas se movia com a
fluidez atlética de uma pessoa bem mais jovem. Não era muito difícil imaginá-
lo como um legendário espião, ciente de segredos dos mais altos níveis de
governo e da sociedade, enviando agentes de confiança para localizar os
traidores e para esmagar os conspiradores.
Sua surpresa ao vê-los era evidente quando se dirigiram para a
biblioteca, mas, mesmo assim, lhes deu as boas vindas. Beatrice notava certa
tensão entre Joshua e Victor, mas também palpitava uma energia
inconfundível com laços profundos e duradouros.
Os três estavam sentados com Victor por trás da enorme mesa no
escritório.
A sala, de tetos altos, era um santuário dedicado a Emma Hazelton. Ao
lado, numa prateleira, seus cadernos de anotações estavam organizados. Em
outra, os seus diários. As suas aquarelas, emolduradas, decoravam várias
paredes. Acima da lareira, no local mais privilegiado, estava exposto seu
retrato. Todo adornado com seda preta.
Emma tinha sido de uma beleza excepcional pensou Beatrice. Naquela
pintura ela brilhava. Com o requinte de suas características, cabelo e olhos
escuros, ela com certeza chamaria a atenção de qualquer homem. Mas o artista
também conseguiu transmitir a inteligência, a elegância e o charme que a
caracterizava.
— Temos que assumir que Lancing está vivo, Victor. — Joshua colocou
as mãos no cabo da bengala. — A esta altura, com certeza enlouqueceu.
Victor ficou muito quieto. As sobrancelhas grisalhas franziram-se sobre
o nariz aquilino.
— Você acha que sobreviveu à explosão?
— Sim, sei que para você é algo difícil de escutar, mas acredito que ele
conseguiu levar o corpo de Emma.
Victor empalideceu. Respirou fundo, engasgou e seus olhos se
estreitaram.
— Tem certeza? — ele perguntou, em um sussurro amargo.
— Tão certo quanto se pode ser, sem provas concertas. — Respondeu
Joshua.
— Mas nos escombros foram encontrados dois corpos, — disse Victor.
— De um homem e uma mulher.
— Carbonizados e irreconhecíveis. Vítimas de suas experiências, eu
acho. Lembre-se que naquele dia Lancing atraiu-me lá e ameaçou me matar e
destruir todas as provas em um incêndio de grandes proporções.
Possivelmente já tivesse esses dois corpos, antes inclusive de que eu chegasse.
Victor parecia profundamente comovido.
— Mas, então, Emma ...?
— São especulações, — Prosseguiu Joshua. — No entanto, estou quase
certo que todo este tempo manteve o corpo na fórmula.

— O que poderia levá-lo a fazer uma coisa dessas?


— Sabe o que é a razão — disse Joshua. A tensão marcando sua
mandíbula. — Está louco. Ele convenceu-se a si mesmo que pode devolver a
vida de Emma.
Victor respirou fundo e fechou os olhos por um momento. A dor que
sentia se via como uma força violenta e triste na atmosfera da sala.
— Lancing era um cientista brilhante — disse. Abriu os olhos. — Ele,
mais do que ninguém, deve saber o que é possível e o que não é.

— Ele ainda é um cientista brilhante — Joshua acrescentou. — Mas


isso não significa que ele não é louco. Você sabe como ele era obcecado com
Emma. Quando ela tentou escapar dele, ele a matou. Talvez a culpa e tristeza
o tenha empurrado para além do limite. Eu descobri que ele tem os olhos de
Anubis. Emma encontrou-os para ele pouco antes que a matasse. No ano
passado, Lancing adquiriu uns sais muito raros e necessários para preparar a
água egípcia no Boticário de Teaberry Lane.
— Esta notícia é inédita. — Victor se levantou, foi até à janela e olhou
para o jardim. ― Estou atordoado.
— Desculpe, — disse Joshua. — Sei que é doloroso para você, mas eu
temo que as notícias desagradáveis não parem aqui. A Senhorita Lockwood
está em grave perigo.
Victor virou-se para enfrentá-los, com linhas do rosto marcadas de dor.
— Como é isso?
— Parece claro que Lancing está convencido de que ela tem poderes
paranormais necessários para ativar a estátua de Annubis — disse Joshua. —
Ele acredita na necessidade de levar a termo a sua grande experiência. Deixou
claro que ele está disposto a tudo, inclusive sequestrá-la.
Victor olhou para Beatrice com franca curiosidade.
— Você tem poderes psíquicos, Senhorita Lockwood?
— Sim, — disse ela. — Embora o Sr. Gage não acredite no
paranormal, já me explicou que não é o caso de Clemente Lancing.
— Isso sem dúvida. — Victor cruzou as mãos atrás das costas. —
Lancing estava convencido de que há um espectro completo de forças
paranormais que se estendem além do normal. Na verdade, acredito que a
minha filha tinha esses poderes, em certa medida. Foi uma das razões por que
ele estava tão obcecado com ela. Ele tinha certeza que ela tinha a capacidade
de desencadear os efeitos revitalizantes da água egípcia.
— Mas, como Emma está morta, precisa de outra mulher com poderes,
— disse Joshua. — Ele enviou um criminoso profissional, que se chama o
Homem Osso para sequestrar Beatrice.
— Vaya! — Victor respondeu com uma sobrancelha levantada. —
Tenho o prazer de ver que seus esforços têm sido infrutíferos.
Beatrice olhou para Joshua.
— Graças ao Sr. Gage — disse.
Victor sorriu melancolicamente e com certa expressão paternal. Em seu
olhar notava-se o calor de memórias passadas.
— Você sempre foi meu melhor agente, Josh. Aparentemente, nem as
feridas mudaram essa prova. E agora eu acho que você veio a mim, porque
tem um plano, não é?
— Eu planejei uma armadilha para o assassino — disse Joshua. —
Esperemos que esta noite ele caia nela. Enquanto isso, eu ficaria muito grato
se você permitisse que Beatrice ficasse aqui com você, um lugar que eu sei que
é seguro.
— Claro, — disse Victor. — Diga-me qual a sua estratégia.?
Capítulo 42

— Eu sei que não acredita em poderes paranormais, portanto na


capacidade de ler o futuro tão pouco acredita, certo? Mas ambos
concordamos que existe algo chamado intuição — disse Beatrice.
Estavam sozinhos e passeavam pela grande estufa colada à mansão
Hazelton. Qualquer outra noite, o cenário teria favorecido o romance, pensou
Beatrice.
A luz do luar penetrava nas paredes e no teto de vidro para iluminar
uma impressionante exibição de vegetação. Isso incluía desde samambaias e
palmeiras, até orquídeas de todas as variedades imagináveis. Era o único
quarto da casa que não se viam invadidos pela tristeza. Aquele espaço
transbordava vida. Victor Hazelton devia passar muito tempo em sua estufa.
O jantar tinha sido um pouco sem graça. A sala de jantar, como a
biblioteca, refletia a profunda tristeza que se vivia naquela casa. Nas paredes,
pendurados acima sobre a lareira, tarjas de seda negra. Um retrato de Emma
em um vestido elegante, contemplava os visitantes. O lacaio cabisbaixo com
uma faixa preta no braço, tinha permanecido em silêncio em suas idas e
vindas da cozinha. Beatrice sabia que não teria desfrutado da comida mesmo
que o ambiente estivesse mais alegre. Durante toda a tarde, sentiu uma
sensação de desconforto, como se algo iminente estivesse para acontecer e
com a chegada da noite só tinha aumentado.
— Apesar das aparências, eu posso cuidar de mim mesmo, Beatrice. —
disse Joshua.
— Eu sei muito bem. Mas isso não significa que alguém não tenha que
prestar atenção à sua intuição. O que me diz da sua? — Ele parou junto a
umas exuberantes samambaias. Deixou o bastão de lado e puxou-a para ele.
— Eu já avisei que o tempo está se esgotando, — disse ele. Não posso
arriscar e esperar. Eu tenho que encontrar o Homem Osso esta noite e me
aproveitar dele para dar com Lancing. Não posso conceber outro plano no
momento.
Beatrice queria discutir, mas sabia que era inútil. Se eu tivesse uma
estratégia ou alternativa para apresentar, poderia convencê-lo, pensou. Mas ela
não conseguia pensar em nenhuma.
Pegou-o pelas lapelas do casado e disse: — Prometa-me que terá
cuidado e que voltará para mim.
— Prometo. — disse ele.
Joshua puxou-a em seus braços e beijou-a. Ansiedade, o medo que
sentia por ele, estimulou Beatrice. Agarrando seus ombros, beijou-o de volta
com desespero, como se temesse não voltar a vê-lo nunca mais. Ele respondeu
com uma onda de desejo que arrastou a ambos.
A levou para um canteiro de fetos e subiu suas saias até à cintura.
Encontrou a costura da calça e abriu o calção e acariciou até que a
sentiu úmida e latejante. Desabotoou as calças. Ela tomou seu pênis com uma
mão, guiando-o para dentro de si.
—Não posso parar, — ele advertiu apoiando o rosto no pescoço de
Beatrice. — Esta noite não. Você faz meu sangue ferver.
— Está tudo bem, — ela sussurrou. — Está tudo bem, meu amor.
Meu amor.
Então, Beatrice teve certeza, a verdade é que ela amava Joshua.
Não sabia se ele tinha ouvido, mas em qualquer caso não reagiu às suas
palavras. Febril de paixão avassaladora, o consumiu.
Ele fundiu-se nela empurrando duro e profundo: uma, duas, vezes e
depois apertou os dentes soltando um gemido exultante. Ela manteve seu
abraço forte, até que pararam as ondas do êxtase.
Por um momento desabou sobre ela. Quando o ritmo da respiração
tornou-se normal, grunhiu e rolou de lado no canteiro de fetos. Ele ficou
olhando para a lua através do teto de vidro da estufa.
Ele pegou sua mão e beijou a palma.
— Perdoe-me — disse, depois de um tempo. — Não te esperei. Não
consegui. Foi uma descortesia da minha parte.
Ela sorriu e levantou-se apoiando-se em um cotovelo para o encarar.
Seus olhos brilhavam.
— Certifique-se de voltar são e salvo e em segurança para que eu possa
terminar o que começámos aqui esta noite. — Disse com um tom irônico.
Ele não respondeu a essa tentativa de minimizar o problema. Ao invés
disso, seu olhar se tornou ardente. Envolveu a nuca com a mão e puxou-a até
que sua boca tocasse a dele.
— Eu lhe dou minha palavra que irei fazê-lo — disse. Virou-se para
beijá-la e selar sua promessa.
******
Vinte minutos mais tarde o viu sair na noite e entrar em um coche que
o levaria de volta para as profundezas das ruas escuras de Londres.
Quando o veículo desapareceu na bruma sentiu o gemido silencioso de
sua própria intuição. Mas não havia nada que pudesse fazer.
Victor pegou-a pelo braço e levou-a suavemente para dentro. Ele a
olhou com os olhos cheios de compreensão.
— Não se preocupe, — ele disse. — Josh tem sido sempre o meu
melhor agente. Mesmo em seu estado atual, tenho certeza que saberá cuidar
de si mesmo.
Capítulo 43

— Esta casa deve parecer um lugar muito sombrio, Senhorita


Lockwood. —Victor serviu conhaque em um copo. — Alguns dos meus
velhos amigos me disseram que já prolonguei o luto por muito tempo. De
acordo com eles, é hora de seguir em frente com minha vida.
— Sei que existem certas regras sociais que dizem respeito ao luto. —
disse Beatrice gentilmente. — Mas eu sou da opinião que cada um sente a dor
a seu modo. Claro, eu também reconheço que não pode haver uma perda
maior do que a de um filho.
Voltaram para a biblioteca. A governanta, vestida de preto, havia levado
café. Victor tinha servido duas xícaras e, em seguida, tinha acrescentado
algumas gotas de brandy em cada uma, mas Beatrice não tinha tocado na sua.
Sentia-se mais nervosa desde o momento em que Joshua havia saído
em busca do confronto com o assassino. Já passava da meia-noite. Ela se
esforçava para manter o controle com os nervos em frangalhos. Disse a si
mesma que Joshua sabia o que estava fazendo. Mas a sensação de pânico era
cada vez maior.
— Emma era tudo que eu tinha depois que sua mãe morreu. —
explicou Victor.
Apoiou o antebraço, coberto por roupas negras sobre a beira branca da
lareira e olhou para o retrato que tinha acima. — A sociedade espera um que
viúvo se case novamente depois de alguns meses, especialmente se fôr do sexo
masculino, para ter uma descendência.
— Sim, eu sei, — disse Beatrice.
— Mas eu queria à minha Alice, e sentia que não poderia trair sua
memória trazendo outra mulher para esta casa. Tinha minha brilhante e bonita
filha, e isso me parecia mais que suficiente.
— Eu compreendo.
As regras e os rituais de luto são complicados, mas a carga mais pesada
recaem sobre as mulheres. Tudo, desde o anúncio da morte, o
comportamento, o período de tempo prescrito para usar os vestidos negros e
depois cinza, era uma questão de grande preocupação para as mulheres.
Olhavam uma mulher de luto de perto, e as submetiam a um escrutínio
implacável. Em troca, os homens se limitavam a decorar o chapéu com uma
faixa negra e a maioria usava uma pulseira negra durante dois meses após a
morte. As viúvas eram aconselhadas a não voltarem a casar. Um segundo
matrimônio era considerado falta de sensibilidade. Aos homens, no entanto,
lhes recomendam tomar uma nova esposa, logo que possível.
— Minha vida teve também dois homens jovens que eram como filhos
para mim. — Continuou Victor. — Na verdade, vivi o meu momento mais
feliz quando Emma me disse que queria se casar com um deles.
— Clement Lancing. — disse Beatrice.
— Sim. Minha filha era muito bonita. Ela poderia ter o homem que
desejasse. Eu sabia que, tanto Joshua como Clement a amavam, mas no final,
eu achei que Lancing era a escolha certa, porque compartilhava com Emma a
mesma paixão pela Egiptologia. — Victor estava com a mandíbula tensa. —
Foi uma das poucas vezes em minha vida que errei na opinião sobre um
homem... E esse erro me custou Emma.
— Conhecia a obsessão que Lancing tinha pela Fórmula do fluido
egípcio?
— Claro que conhecia! — Exclamou Victor. — Emma também era
fascinada pelo assunto. Nós conversámos sobre o assunto em muitas ocasiões.
Estavam emocionados com a possibilidade que os antigos houvessem
descoberto uma maneira de preservar aqueles que tinham morrido
recentemente em um estado de animação suspensa.
Lancing estava convencido que uma vez no estado de sono profundo,
a fórmula exercia um efeito curativo sobre os órgãos. Uma vez que o processo
fosse concluído, os indivíduos poderiam ser trazidos de volta à vida com
sucesso.
— Como eu disse ao Sr. Gage, estou surpresa que cientistas tão
brilhante como Clement Lancing possam acreditar que o filtro realmente seja
capaz de ressuscitar os mortos — disse Beatrice.
— Às vezes pode ser muito difícil traçar a linha entre a genialidade e a
loucura. — Victor fez uma pausa. — Acredito que Lancing não pensava que
a água egípcia poderia ter algum resultado num cadáver com muito tempo
após a morte, mas apenas se a morte tivesse ocorrido horas antes da imersão
na solução. Então, se isso está certo, teria toda esperança de recuperar a vida.
Então ele começou a realizar experiências terríveis.
— Sr. Gage me falou sobre esse aspecto da questão.
— Quando a minha filha descobriu o que estava acontecendo, ficou
horrorizada. E o enfrentou e... Bom acredito que Josh já lhe contou o resto.
— Sim.
Victor negou a cabeça, e os lábios cerrados.
— É muito difícil aceitar que Lancing sobreviveu à explosão. A
possibilidade que o corpo de minha filha esteja mantidos em uma substância
química é ainda mais incrível. Todos esses meses…
— Só posso imaginar o inquietante que essa ideia deve ser para você.
— Joshua nunca levou a sério o trabalho de Emma e Lancing, porque
não acredita nos fenômenos paranormais.
— Sim, já deixou isso muito claro.
Victor assentiu.
— Todos nós temos nossas fraquezas. No caso de Josh é o grande
desejo de viver pela fria e lógica razão. Sempre há o temor de fazer o contrário
e comprometer o seu senso de controle. Sr. Hazelton, o senhor o conhece
muito bem, mas isso não seria nenhuma surpresa. Pelo que eu entendi, você o
guiou em um momento crucial de sua vida.
— Fiz o meu melhor —, disse Victor. — Aprecio muito o Joshua. O
que aconteceu há quase um ano causou uma dor profunda nos dois. Eu
percebo que os dois têm dedicado este ano para passar o luto. Agora que eu
sei, acho que poderíamos ter falado mais. — Ele olhou para o relógio. — Vai
ser uma noite longa. — Ela sentiu outra pontada de angústia. O pânico súbito
que a assaltou a fez ficar de pé. De repente, precisava ficar longe da atmosfera
fúnebre da residência, fora dessa casa parecida com um mausoléu. A energia
negativa que sentia estava afetando seus nervos.
— Você se importaria se eu subir para o meu quarto enquanto eu
espero pelo Joshua? — perguntou.
Victor a olhou com surpresa.
— Está tudo bem, querida? Não parece nada bem.
— Estou muito tensa. Acredito que, neste momento não seja uma boa
companhia.
— Sim, claro, é claro. — Victor a estudou com grande preocupação.
— Vejo que não tomou o café com brandy. Talvez queira somente um copo
de brandy? Ajudaria a te manter calma.
— Não, assim estou bem, obrigada. Por favor, me avise no momento
que o Joshua chegue.
— Avisarei, dou-lhe a minha palavra.
Victor abriu a porta. Ela se apressou para cruzar o corredor para a
grande escadaria. O alívio que tinha sentido ao sair da biblioteca revelou-se
efêmero.
Outra onda de medo estremeceu enquanto subia as escadas. Quando
chegou ao seu quarto estava perigosamente perto de um ataque de pânico. De
repente, sentiu que o que precisava era respirar o ar fresco da noite. Tinha que
sair daquela casa. Talvez alguns minutos no jardim lhe permitisse recuperar o
ritmo normal da respiração.
Abriu a porta do quarto, pegou a capa e uma vela e voltou para o
corredor. O longo tapete que cobriam as escadas amorteciam seus passos.
Não queria alarmar Victor. Tinha certeza que se ele percebesse que ia sair
sozinha e àquela hora da noite, se assustaria.
A casa estava mergulhada em silêncio. Os criados já haviam descido
para suas acomodações havia um bom tempo. A escadaria de serviço, no final
do vestíbulo era o caminho mais curto para os jardins. A briu a porta que dava
para uma escada, tentando fazer o menor ruído possível.
Ouviu os passos de Victor nas escadas principais, justo quando ele
fechava a porta. Acendeu a vela e começou a descer. A largura dos degraus fez
com que seu coração acelerasse. A necessidade de ar fresco era esmagadora.
Era como se a casa tentasse afogá-la.
Não havia nenhuma razão lógica para os ataques de pânico que a
assaltavam, mas durante muito tempo tinha sobrevivido graças à sua intuição,
e agora não podia ignorar essas mesmas sensações.
Desceu as escadas e parou para apagar a vela. Os candelabros da parede
também estavam quase apagados, mas a luz era suficiente para distinguir uma
porta que parecia servir como entrada de abastecimento da casa.
Acima de sua cabeça, ouviu o rangido abafado do piso. Victor
atravessou o vestíbulo dirigindo-se para a sala de diretor. Os suaves rangidos
dos tacos não a amedrontava. Deveria, mas não a amedrontava. Memórias da
noite, em tinha ficado com Roland enquanto ele agonizava, quando ouviu o
seu assassino voltar à cena do crime, a perturbava. O medo persistente surgia
dentro de si mesma.
Mas não foi Victor Hazelton quem tinha matado Roland, pensei. Por
que, então, estava com tanto medo? Talvez os acontecimentos dos últimos
dias tenham sido demais para o seu equilíbrio nervoso. Ela era uma pessoa
forte, mas todo mundo tem seu limite. E agora qualquer sombra a assustava.
Caminhou em silêncio em direção à entrada de serviço. Seus dons
aguçados em consequência do medo que sentia. Na penumbra, podia ver a
névoa criada pelas pegadas das muitas pessoas que passaram por aquela
porta: comerciantes que traziam os pedidos, carpinteiros e pintores
convocados para realizar reformas, cocheiros, jardineiros e todos os que
tinham sido chamados à mansão, na esperança de conseguir um emprego.
Décadas de pegadas tinham formado uma camada de sombria energia que se
enroscava pelo chão. Mas uma das séries de pegadas se destacava acima das
outras. Brilhavam, destacando-se sobre as outras. Ela as reconheceu
imediatamente.
O homem com cara de crânio tinha entrado por aquela porta e não
uma, mas várias vezes nos últimos meses. O fato de que havia usado a entrada
de serviço lhe disse tudo o que precisava saber. Trabalhava para Victor
Hazelton.
Ouviu-se outro som no piso superior, e depois um silêncio angustiante.
Era impossível dizer onde ele estava, mas a intuição lhe disse que
Victor tinha parado na porta de seu quarto.
Sacou a pistola e abriu a porta de serviço quase com expectativa de se
encontrar cara a cara com o assassino. Mas por outro lado, não tinha nada
mais que uma noite iluminada pelo luar.
Joshua pensava que ela havia caído em uma armadilha, mas estava
enganado; era ele quem ia cair em uma.
Capítulo 44

Corria pelas ruas desertas, com os sentidos embaralhados. Todos os


limiares, todas as ruas pareciam mergulhadas em uma escuridão ameaçadora.
Não se atrevia a tomar atalhos através de parques: sua pequena pistola não
serviria de nada frente a um bando de ladrões.
Pareceu-lhe que havia passado uma eternidade, conseguiu parar um
cabriolé. Sabia o que o cocheiro pensava enquanto juntava as saias e subiu no
pequeno coche. As mulheres respeitáveis não saiam por aí em cabrioleés. Só as
mulheres promíscuas eram autorizados a serem vistas nesses cabriolés leves e
ágeis. E somente uma prostituta poderia ter um bom motivo para ficar
rondando pela cidade a essa hora da noite.
Lantern Street, —disse — depressa, por favor.
— Tem um cliente a sua espera, certo? — Perguntou o cocheiro com
tom jocoso. — Mas obedientemente estalou o chicote. O cavalo saiu trotando.
Vinte minutos depois chegaram às portas de Flint e Marsh. Beatrice
desceu e pagou ao cocheiro. O cabriolé desapareceu na escuridão.
Subiu as escadas que levavam à entrada principal da agência. Não era
surpreendente que as lamparinas estivessem apagadas. Bateu com a aldrava
uma e outra vez, mas não obteve resposta.
O instinto lhe disse que entrasse com a arma na mão. Com cuidado,
tentou abrir a porta, e ficou surpresa ao ver que a maçaneta girou com
facilidade em sua mão. Era muito estranho: a senhora Beale nunca esquecia de
ter aquela porta bem fechada durante a noite.
Em seguida soube que havia cometido um erro terrível, mas neste
momento era tarde demais. Sentiu o cheiro sutil e o aroma de incenso.
— Tenho estado esperando, Beatrice. — disse Victor, saindo das
sombras do hall.
— Levou um longo tempo para chegar aqui. Mas sempre é difícil
conseguir um coche, a esta hora da noite, certo?
Ela começou a se afastar, com a intenção de virar-se e fugir.
— Se não entrar matarei as três, — acrescentou Victor. — Eu não
tenho nada a perder, você sabe? E neste momento eu posso garantir que as
três ainda estão com vida.
Victor acendeu a lamparina. Beatrice viu Abigail e Sarah deitadas no
chão diante dele. As duas estavam vestidas com seus camisolões. Ambas
estavam inconscientes.
— A governanta está no outro quarto — acrescentou Victor. — Não
tenho nenhuma intenção de matá-las, mas suas vidas estão em suas mãos.
Hoje à noite terei a sua colaboração, custe o custar.
— Oh céus! — Disse Beatrice. — Acredita realmente que Clement
Lancing pode devolver a vida de sua filha, não é?
— Ela é tudo que eu tenho — disse Victor. — Eu farei qualquer coisa
para salvá-la.
— E isso inclui mandar Joshua, a quem, segundo você mesmo dizia, era
com o um filho, para a morte nas mãos de um assassino?
— Acalme-se. Joshua pode sobreviver ao encontro. Em outras ocasiões
ele teve muitos recursos para enfrentar estes desafios. É verdade, perdeu
muito de sua velocidade e agilidade, mas ainda é formidável. Se fosse um
amante do jogo, apostaria nele. Mas no final não importa qual dos dois
sobrevive.
— Porque o que importa é ter a certeza que Joshua está ocupado
enquanto você me sequestra.
— Efetivamente.
— Sobreviverá — Disse Beatrice. — E voltará para mim. Sempre
encontra o que busca.
— Talvez a encontre, mas vai demorar algum tempo... um par de dias,
ao menos. Até então eu não precisarei mais de você. As questões que o
ocuparão terão concluído ainda esta manhã. E agora deixe esta arma ridícula
no console e volte-se para a parede.
— Por que tenho que me virar?
— Faça-o.
Deixou a pistola sobre a mesa e se virou-se muito lentamente. Victor se
moveu a uma velocidade incrível para ficar atrás dela, imobilizá-la com o
braço ao redor do pescoço e apertar um pano molhado no nariz e na boca.
Ela percebeu o cheiro de clorofórmio. Tentou não respirar, mas no
final não teve escolha senão fazê-lo.
A escuridão a engoliu por inteiro.
Capítulo 45

A primeira onda de rumores teve lugar na taberna Red Dog pouco


depois da meia-noite. Joshua estava sozinho em um quarto na parte de trás.
Ele estava vestido como o resto dos frequentadores, com roupas rústicas e as
pesadas botas características de um homem que ganha a vida de formas
escuras e perigosas. A cicatriz tinha sido um ativo em lugares como a Taverna
Red Dog e outros estabelecimentos que tinha visitado naquela noite.
Ele tinha ouvido vozes vindas do quarto ao lado, e tinha certeza de que
tinham falado o nome de Weaver, mas não tinha compreendido os detalhes.
Quando mencionavam o senhor do crime, sempre era em um sussurro.
Ele tinha feito a ronda pelas casas de jogos, favelas e tabernas perto das
docas, preparando o palco para a armadilha. Também aumentavam as fofocas
sobre o Homem Osso, mas não eram de todo confiáveis. Ninguém parecia
conhecer a identidade de quem havia contratado seus serviços, mas
especulava-se que trabalhava para um aspirante a senhor do crime, que
pretendia desafiar Weaver e os outros membros da velha guarda que
controlavam o submundo do crime.
Quando a garçonete, uma loira atraente de olhar de aço, veio com a
cerveja, Joshua tomou algumas moedas extras e colocou-as sobre a mesa. A
mulher olhou para o dinheiro, interessada, mas cautelosa.
— O que eu tenho que fazer para ganhar isso? — perguntou.
— Dê-me notícias sobre Weaver.
Ela olhou em volta, desconfiada e inclinou-se para deixar a garrafa
sobre a mesa. Baixou a voz.
— Ninguém pode dizer com certeza, mas na rua se diz que morreu.
Joshua olhou pasmo.
— O mataram?
— Não, isso é estranho. Se diz que o seu coração falhou.
Joshua pensou sobre o que Beatrice tinha dito naquela tarde: "Ele está
morrendo."
— Esclarecem esses rumores quando morreu? — perguntou Joshua.
— É muito estranho. Segundo o que dizem, ele foi se encontrar com
alguém, e quando voltou ao seu escritório, o lacaio que abriu a porta do carro
descobriu que estava morto. Também disse que seus capangas querem manter
em segredo por tanto tempo quanto possível, para fazer uma última visita a
todos os seus negócios e cobrar a taxa de proteção.
— Dinheiro com que os capangas ficam para eles. — Joshua levantou-
se e tomou sua bengala.
Ele tinha desperdiçado aquela noite. Weaver não tinha vivido o
suficiente para montar a armadilha.
— Não vai tomar a cerveja, senhor? — Gritou a garçonete.
Joshua não respondeu. Ele abriu caminho através da sala lotada,
desesperado para chegar até à porta. A mão tinha-se tornado um punho em
torno à empunhadura da bengala. Ele estava frustrado e com raiva. Ele tinha
uma vaga sensação de que as pessoas se colocavam de lado para deixá-lo
passar, mas deu pouca atenção: tudo o que ele queria era sair de lá.
Ele sabia que, naquele momento, os tentáculos de Lancing estavam
estreitando em torno de Beatrice. Quanto desperdício de tempo!
"Hazelton irá protegê-la", pensou. Mas, mesmo quando tentava se acalmar
sabia que não podia ter certeza de nada. Ele tinha errado muitas vezes, nesse
caso, e Beatrice pagaria as consequências.
Ele finalmente conseguiu sair para a rua. O ar frio da noite e o cheiro
do rio ajudaram-no a concentrar-se. Obrigou-se a controlar a respiração e
dominar as emoções. Sua mente era um caos de pensamentos evocados por
uma imaginação febril.
Não havia sentido lamentar as horas que ele tinha perdido. A estratégia
inicial não funcionou. Ele tinha que inventar uma nova, e logo, ou não teria
esperança. Desta vez, o tempo tinha acabado de verdade.
Ele desceu a rua, indo para o canto onde Henry estava esperando com
o carro. O toque do bastão e a cadência de sua claudicação eram os únicos
sons que quebravam o silêncio da noite.
Estava tão focado em fazer um novo plano que não notou a presença
do assassino até que o homem de rosto cadavérico investiu contra ele.
Aquele golpe era mortal, ou teria sido se no último momento não
tivesse ouvido o suave ofego do assassino antes de acertá-lo.
Os velhos hábitos e o longo treinamento levou-o a virar-se rapidamente
para enfrentar o atacante. A manobra o fez perder o equilíbrio, porque a perna
ferida cedeu sob o peso dele, que caiu para o chão... e acidentalmente, salvou
sua vida.
Levado pelo momento, o assassino deixou para trás Joshua alguns
passos até que pôde parar e voltar-se, para tentar um novo ataque.
Joshua lutou para ficar de pé. Ele advertiu que ainda segurava a bengala.
Ele a girou fazendo um semicírculo para defender-se do assassino.
O Homem Osso tinha previsto este movimento. Ele chutou e bateu
com a bengala.
Com a força devastadora do golpe, o bastão de aço e ébano foi lançado
e bateu na calçada, a uns poucos metros de distância.
O assassino avançou decidido. Os olhos eram poços de noite vazios. A
faca que segurava na mão brilhou à luz de uma lâmpada de gás nas
proximidades.
Ele não percebeu que Joshua tinha tirado do bastão um punhal afiado e
o lançou perfurando sua garganta.
O Homem Osso rosnou e deu uns tropeços para trás até parar. O
sangue regurgitou na boca. Olhava Joshua incrédulo.
Caiu de joelhos, inclinou-se para um lado e, finalmente, caiu de costas.
Um silêncio implacável encheu a rua. Joshua se levantou. Foi
mancando até onde ele tinha deixado cair o bastão nas pedras da rua e
agachou-se determinado a recuperá-lo.
Ele se aproximou do corpo reclinado e usou o bastão para afastar a faca
do Homem Osso da mão frouxa. Precauções nunca eram excessivas.
Ele se inclinou em sua bengala para se apoiar e tirou o pequeno punhal
da garganta do cadáver. Ele limpou a lâmina sobre a roupa do Homem Osso e
deslizou a arma de volta ao seu lugar no bastão.
Ele foi para o pequeno e leve carro que esperava por ele na esquina,
sem deixar de pensar em uma das máximas que havia aprendido de Victor.
"Todos nós temos nossas fraquezas"
"Você era a minha, Victor."
Capítulo 46

Nelson encontrava-se no seu pequeno estúdio, com um copo de brandy


na mesa que tinha ao lado. Fazia já um bom tempo que tinha perdido o
interesse pelo livro que estava a ler e agora dedicava-se a dar voltas ao seu
tema preferido: o seu aborrecido futuro. O fato de haver realizado aquelas
recentes investigações abrira-lhe o apetite. Era como se houvesse encontrado
a sua verdadeira vocação. Mas não era suficientemente tolo para imaginar que
o seu tio Joshua lhe pediria ajuda no futuro. Afinal, ele sabia muito bem que o
seu tio se tinha aposentado.
Planeava visitar o oeste americano, onde, segundo a imprensa, lhe
esperava a aventura, quando, de repente, o som da aldrava rompeu o silêncio
naquela avançada hora da noite.
Duvidou se lhe convinha ou não responder à chamada. O visitante
devia ser um dos seus amigos, completamente bêbado e desejoso de
companhia para uma incursão nos bairros mais perigosos. Pela primeira vez
em meses, a perspetiva de uma noite em antros de bebida e de jogo não
parecia a resposta à sua frustração.
Voltaram a chamar a porta, mais forte desta vez. Grunhiu e se levantou
e foi para o corredor para abrir a porta principal.
— Esta noite terá que ir sozinho. — disse — Não estou de bom
humor...
Interrompeu-se quando viu Joshua na porta.
Realmente, a visão de seu tio o deixou sem palavras por alguns
segundos. Em seus olhos havia uma luz terrível. Nelson pensou que talvez
estivesse ardendo de febre. Mas isso não explicava a escura energia que
parecia emanar dele. Era como se Joshua regressasse do inferno e pretendesse
retornar.
— Tio Joshua! — Nelson engoliu a saliva — Está bem?
— A raptaram — disse Joshua — e a culpa foi minha. Faltei com a
primeira norma de uma investigação. Confiei em alguém envolvido com ela.
— Espera! Referes a senhorita Lockwood? Quem a raptou?
— Hazelton. Tem estado trabalhando com Lancing todo este tempo.
Vão tentar reviver a Emma e acham que para fazê-lo precisam de Beatrice.
— Demónios! Os dois ficaram loucos?
— É a única explicação que me ocorre — disse Joshua — Necessito
que me ajude.
— Sim, claro, mas como sabe que Victor está implicado com Lancing?
— Pega a pistola e acompanha-me. Explico-te tudo pelo caminho.
Nelson levou apenas um momento para pegar a pistola, que guardava
numa caixa em seu estúdio. Saiu correndo da casa e subiu no pequeno coche
para sentar-se junto a Joshua. Nesse momento estava consciente do fogo que
ardia em seu próprio sangue. A excitação, a resolução e um sentido que guiava
sua vida, lhe conferiam uma energia que nunca, até então, havia sentido. Esta
noite não ia sair para embebedar-se e jogar sem sentido. Esta noite iria fazer
algo importante. Esta noite iria resgatar uma senhorita.
Henry estalou o látego e o coche pôs-se em movimento.
— Primeiro tem que me dizer como soube que Hazelton está
envolvido nesse assunto — disse Nelson.
— Enviou um assassino atrás de mim... — explicou Joshua —
Esperava que, se eu sobrevivesse, iria continuar com o meu próprio plano,
sem suspeitar nunca dele. Não podia saber que Weaver não viveria o
suficiente para ajudar-me a estender a armadilha. Hazelton era a única pessoa,
além de Beatrice, que sabia que esta noite iria estar na taberna O Cão
Vermelho. Ele era a única pessoa que podia ter dito ao Homem Osso.
— Trouxe um estrangeiro para se encarregar de seus assassinatos e
sequestros… deve ser alguém a quem conhecia desde os seus anos como Mr.
Smith. Sabia que se utilizava um homem do submundo londrino, qualquer
conhecido seu desse ambiente, um dos que lhe devem favores, o avisaria e
poderia se encarregar de eliminar o problema por sua conta.
— Exatamente — disse Joshua — Victor desejava tirar-me de
circulação, mas não queria correr o risco de tentar matar-me. Se falhava, não
haveria esperanças de reviver Emma.
— Foi ele que o treinou. Segue respeitando as suas capacidades, apesar
das lesões.
— Assim parece. Mas no final, quer viva ou morra, esta noite não tem
importância para ele. O único que quer é assegurar-se de me distrair o tempo
suficiente para raptar a Beatrice.
— Mas vamos encontrá-la? — disse Nelson.
— Sim. Mas primeiro temos que parar na minha casa, para pegar o
material que guardei faz um ano.
— Tio Joshua, não quero ser pessimista, mas não é possível saber o que
Victor fez com a senhorita Lockwood. Para onde a levou? Como é que a
vamos encontrar?
— Procurá-la-emos no lugar mais indicado.
Capítulo 47

Despertou percebendo a essência da morte e um intenso cheiro de


produtos químicos. Por um instante permaneceu quieta, temerosa de se
mover, temerosa de abrir os olhos, temerosa do que pudesse ver.
— Creio que a nossa convidada despertou.
Aquela voz masculina não lhe era familiar, mas não havia dúvida de que
uma emoção insana formava parte intrínseca dela, como uma obscura ameaça.
— Sim, despertou. — disse Victor — O mínimo que podemos fazer é
oferecer a ela uma estimulante taça de chá bem forte para ajudá-la a superar os
efeitos da droga.
Percebeu que estava deitada em uma cama. Uma estranha letargia
pesava-lhe nos sentidos. Sentia-se vagamente mareada. Uma cena borrada
abria-se em sua mente, como um sonho. Por um momento viu os corpos
inconscientes, da senhora Flint e da senhora Marsh, estendidos no chão da
sala de sua casa. Recordou-se então do penetrante e asfixiante cheiro de
clorofórmio.
Instintivamente pôs os seus sentidos em alerta, lutando por superar a
confusa apatia em que estava submersa.
Abriu os olhos e viu o céu noturno através de uma cúpula de cristal.
Brilhava uma lua branca e gélida, parcialmente oculta pelas nuvens. A cúpula
era de desenho moderno e o local estava iluminado por lâmpadas de gás, mas
as paredes de pedra que havia ao redor eram muito antigas.
Apareceu uma figura entre ela e a vista do céu noturno. Nunca o tinha
visto, mas sabia que se tratava de um homem.
— Clement Lancing — disse por fim. Tinha-lhe custado pronunciar
aquele nome. Pela sua voz parecia que tinha acabado de acordar ou talvez algo
ébrio.
— Seu chá, senhorita Lockwood —disse Clement — Nos tem deixado
as coisas muito difíceis. Tivemos que recorrer a medidas extremas para
encontrá-la, mas aqui está, por fim. Isso é o que conta.
Clement Lancing era alto, ombros largos e estava dotado de um físico
atlético. Levava o cabelo castanho-escuro muito comprido, de uma maneira
muito passada de moda, como se levasse muitos meses sem cortá-lo. Estava
preso, de maneira que lhe marcava a testa alta, um nariz aristocrático e uns
penetrantes olhos cinza.
— Que estranho — sussurrou Beatrice com voz narcotizada — Não
parece louco.
Havia pensado que o comentário o encolerizasse. Em vez disso, a
surpreendeu com um sorriso triste e compreensivo.
— Isso foi o que disse Gage? — perguntou — Ele disse que estou
louco? Bem, entendo que o diga, claro está. Porque o louco neste assunto é
ele. Foi ele quem assassinou a minha preciosa Emma.
— Mentira. Foi você quem a matou.
— Isso... — nos olhos de Clement brilhou uma luz perversa — Isso é
uma mentira.
— Já basta, vocês dois —interveio Victor — Não nos sobra muito
tempo. Temos que concluir o assunto esta noite.
Beatrice se incorporou com cuidado e colocou as pernas a um lado da
cama. Instintivamente buscou a fonte daquele forte cheiro de produtos
químicos e viu o grande sarcófago no outro extremo do local. Supôs que o
cheiro procedia dali. Sentiu que a invadia uma onda de terror. A morte
gotejava daquela antiga caixa de quartzo. Ela podia senti-la cruzar o local até
chegar a ela.
Uma alta figura de Anubis, com corpo humano e cabeça de chacal, se
levantava junto ao sarcófago. Ao redor do pescoço do deus enrolava-se um
comprido colar dourado. Os olhos de obsidiana brilhavam na luz
resplandecente. Beatrice podia sentir a energia paranormal que emanava
daquela escultura.
A exceção da velha caixa funerária e da figura de Anubis, o resto do
local era similar ao laboratório do sótão da senhora Marsh. As bancadas de
trabalho estavam cobertas com uma grande variedade de tubos de ensaio e
outros aparatos químicos. As estantes das paredes estavam cheios de caixas e
frascos que muito provavelmente, pensava, continham produtos químicos.
Recorrendo às suas faculdades paranormais, Beatrice comprovou que
aquela letargia tão pouco natural diminuía. Viu que as saias do vestido estavam
enrugadas e que alguém lhe havia tirado o casaco, mas comprovou, com
alívio, que pelo menos seguia completamente vestida. Quando olhou para
baixo viu que faltava o pequeno frasco que continha os sais aromáticos
especiais fabricado pela senhora Marsh.
Não conseguia aguçar os sentidos plenamente, mas podia ver as
pegadas quentes que cobriam o chão daquela câmara.
Olhou para Clement.
— Talvez pense que seja o único sensato neste assunto, mas pelas
pegadas parapsíquicas está claro que está muito louco.
Outra faísca estranha incendiou os olhos de Clement. Mas conseguiu
ignorá-lo de algum modo.
Foi Victor quem contestou a sua observação.
— Como eu disse, pode ser muito difícil traçar a linha entre a
genialidade e a loucura — disse com tranquilidade — Acredite em mim,
Beatrice, estive tentando encontrá-la todo o ano passado. Mas no final,
aparentemente, apenas temos que ter fé.
Clement lhe ofereceu uma taça.
— Tome seu chá. Isso servirá para se recuperar, senhorita Lockwood.
— Não, obrigada. —disse ela — Seguro que compreenderá que pense
que qualquer chá que você me prepare estará envenenado. — Olhou para o
sarcófago — Como tudo que está neste lugar.
— Está muito equivocada, senhorita Lockwood — disse Clement —
aqui não há nenhum veneno. Ao contrário, o que irá presenciar é um triunfo
da ciência da química. Na realidade, esta noite vai ser mais que uma
testemunha da história. Esta noite vai fazer uma grande contribuição.
Beatrice olhou ao redor.
— Joshua tinha razão. Dizia que, se estava vivo, teria que procurá-lo
em um laboratório.
— Gage me conhece bem. — assentiu Clement — Não tem sido fácil
ocultar-me dele durante o último ano. Tive a sorte de que escolheu recolher-se
depois de assassinar a minha amada, mas em um sentido muito real, eu
também tenho estado preso, porque não me atrevi a abandonar este lugar.
Mas tudo isso acabou. O que conta agora é que por fim você está aqui, em
meu laboratório. Tenho estado buscando-a durante meses.
— Por quê eu? — perguntou Beatrice.
— Porque somente uma mulher com poderes paranormais genuínos
pode liberar a energia da figura de Anubis.
— Mas em Londres há muitos médiuns...
— A maioria é fraudulenta. — interrompeu-a Clement — Eu necessito
de um talento autêntico.
— Como me identificou como a pessoa que buscava? — perguntou ela.
— Isso foi coisa de Victor.
Victor tocou a tampa do sarcófago com um gesto reverente.
— Estávamos cada vez mais desesperados. Sabia que tínhamos que
correr alguns riscos. Utilizei a Hannah Trafford para localizá-la.
— Não entendo —disse Beatrice.
— Hannah sempre se considerou estudante do paranormal. — explicou
Victor — Josh nunca acreditou nessas coisas, de modo que sempre desprezou
os interesses de sua irmã. Eu, por outra parte, sou muito consciente de que os
fenómenos paranormais existem. Tenho certos poderes ocultos.
— E isso pareceu-lhe uma boa estratégia? — perguntou Beatrice com
frieza.
Victor inclinou a cabeça.
— Sim, realmente. Devido à minha longa e próxima associação com
Josh disponho de muita informação sobre a sua família. Durante meus anos
como senhor Smith tomei como uma obrigação informar-me sobre a vida
pessoal dos meus agentes.
— Em outras palavras, espiava a seus espiões.
— Naturalmente. Hannah é uma especialista no tema paranormal,
embora não esteja seguro de que o saiba. Não me surpreenderia que ela
mesma tivesse poderes, também. Depois de assistir a tantos seminários de
Fleming na Academia do Oculto e de que reservara certas visitas com você,
informou aos membros de seu pequeno círculo de investigadores, que você
era uma mulher com qualidades de médium.
— Contratou os serviços do Homem Osso para me sequestrar. — disse
Beatrice — Havia necessidade de assassinar o Roland Fleming?
— A morte de Fleming foi lamentável, mas não tinha outra saída. Sabia
que se você simplesmente desaparecesse, Fleming iria a polícia e pediria uma
investigação.
Beatrice pôs-se de pé.
— Então foi por isso que pediu ao Homem Osso que o silenciasse.
— Mas nessa noite você escapou — prosseguiu Victor — Primeiro não
pensei que fosse difícil encontrá-la, mas depois achava que se tinha
evaporado, literalmente. Foi algo surpreendente, verdade.
— O Homem Osso encontrou a bolsa nessa noite, não foi?
— Sim, e trouxe-ma. No principio não tinha interesse nesses assuntos,
mas logo, quando me dei conta de que não poderia localizá-la, decidi-me a
correr o maior dos riscos.
— Fez chantagem com a Hannah e logo fez com que parecesse que eu
era a extorsionista. Sabia que isso arrastaria Joshua para a perseguição.
Victor suspirou.
— Nessa altura já estava desesperado. Temia que nunca fosse encontrá-
la.
— Havia algo na coleção de Roland que pudesse envolver Hannah?
— Não. Mas Hannah e Josh não podiam saber disso de nenhuma
maneira.
— Certamente, você tinha informação sobre o homem que havia
morrido na cozinha de Hannah. — disse Beatrice — Como descobriu?
— Josh guardava muito bem esse segredo, e não havia contado nem a
mim, que era a única pessoa em quem confiava além da família. Mas tal como
dizia, achava por bem manter vigiados meus agentes. Não havia maneira de
introduzir um espião na casa de Josh, mas a governanta de Hannah foi minha
informante involuntária. Havia sido testemunha da cena naquela noite, e ficou
impressionada. Contou a experiência à sua irmã, que havia trabalhado para
mim logo que comecei a treinar Josh. Nessa época não tinha nenhum
interesse particular na morte.
— Mas quando você se deu conta de que tinha que enviar Joshua à
minha procura, sabia que dispunha do anzol perfeito — raciocinou Beatrice
— Sim, com certeza, chantagear Hannah era demasiado perigoso para você.
— Isso me levou diretamente a Josh. — disse Victor — Necessitava
uma distração que estivesse à sua altura.
— E encontrou um criminoso barato e de alguma forma inepto, que
estava encantado de tentar obter dinheiro de pessoas ricas por meio da
extorsão. Você então falsificou um par de páginas de um diário inexistente e
nele insinuava a morte na cozinha de Hannah.
— Esse inepto necessitava uma quantidade considerável de conselhos,
mas no final a minha estratégia funcionou — repôs Victor.
— E ordenou ao Homem Osso que matasse o seu chantagista
cuidadosamente escolhido, em Alverstoke Hall.
— Não podia permitir que esse extorsionista vivesse depois de cumprir
com sua função. Sabia demasiado, entende? Sempre existia a possibilidade de
que, mesmo com todo o cuidado em manter o segredo da minha identidade
do chantagista, Josh seria capaz de me encontrar seguindo a pista.
— Imagino que estão conscientes de que Joshua está à minha procura
inclusive neste mesmo momento —disse Beatrice.
— Isso, se ele sobreviver ao encontro com o Homem Osso. —
respondeu Victor — De todos os modos, quando isso ocorrer, já teremos
acabado. Minha filha já terá despertado.
— Mas vocês não poderão correr o bastante depressa para escapar de
Joshua, deve sabê-lo.
— Não tenho nenhuma intenção de correr. — replicou Victor olhando
para o sarcófago — O único que me preocupa é Emma.
Clement soltou um suspiro.
— E eu lhe asseguro que Gage não irá sobreviver nas próximas vinte e
quatro horas. Inclusive se escapar da adaga do Homem Osso, morrerá nesta
casa quando vier buscá-la.
— Já tentaram matá-lo e falharam. — disse Beatrice — O que os faz
pensar que desta vez vão conseguir?
Os olhos de Clement se incendiaram em uma loucura selvagem.
— As coisas não estavam inteiramente sob o nosso controle naquelas
ocasiões. Mas se Josh vier aqui para buscá-la, estará no meu território.
Ela olhou de novo ao redor.
— Refere-se a esta casa?
— A escada e o corredor que conduzem a este laboratório estão cheios
de armadilhas. Cada uma contém um frasco do meu vapor produtor de
pesadelos. Somente Victor e eu conhecemos a rota segura até esta habitação.
Qualquer outra pessoa que tente subir a escada sofrerá uma morte lenta e
terrível.
— Por que não me explicam com mais precisão o que esperam que faça
para vocês? — disse ela.
— Sim — disse Victor, com tom cortante — já é hora.
— Acompanhe-me, senhorita Lockwood — ordenou Clement.
Voltou-se e aproximou-se do sarcófago. Ela seguiu-o lentamente,
tentando suprimir seus sentidos. Mas por muito que tentasse neutralizar seus
poderes, resultava impossível escapar das pegadas de decomposição e morte,
que estavam na atmosfera ao redor do antiquíssimo ataúde.
Clement rodeou o sarcófago e colocou-se à sua frente com ela no lado
oposto.
— Contemple a minha amada. — disse — Esta noite a despertará.
Beatrice havia tentado preparar-se para o que poderia ver quando
tirassem a tampa do sarcófago. Temia o que aquela visão podia mostrar-lhe,
mas esforçava-se em recordar que aquela não iria ser a primeira vez que via
um cadáver.
Foi uma surpresa descobrir que a tampa do sarcófago era formada por
um grande painel de cristal transparente. Debaixo daquela superfície,
mergulhada em um líquido translúcido, estava o corpo perfeitamente
preservado de uma mulher. Estava vestida com uma camisola branca e fina,
cujos braços estavam presos no corpo para impedir que flutuassem. Os
cabelos escuros emolduravam seu bonito rosto. Tinha os olhos fechados.
Beatrice se deteve a uma curta distância e conteve a respiração.
— Oh, céus. — sussurrou — É Emma.
— Sim. — disse Victor — Está dormindo um sono muito profundo.
Agora talvez entenda porque cheguei a estes extremos para a reviver.
Clement olhou a mulher morta.
— É uma beleza, não é?
Beatrice engoliu a saliva com dificuldade e tentou eliminar a sensação
incómoda em seu estômago. Não só haviam preservado a beleza de Emma
com requinte. As marcas no pescoço eram tão expressivas como se a
houvessem estrangulado no dia anterior.
— Realmente era preciosa —comentou Beatrice em voz baixa.
Os olhos de Clement voltaram a incendiar-se.
— É preciosa. Segue sendo-o!
— Está morta. — disse Beatrice com clareza — Não há nada nem
ninguém que a possa devolver à vida.
Os olhos de Victor se escureceram em desespero e por uma inexorável
determinação.
— Não está morta.
— Está a dormir, — acrescentou Clement — é um sono muito
profundo, somente um sono. Isso se chama animação suspensa.
— Confesso que estou surpresa pelos efeitos conservantes da fórmula,
mas a morte é a morte — sentenciou Beatrice.
— Maldita! — exclamou Clement com desprezo. Caminhou até ela
rodeando o sarcófago — Você não é cientista. Não sabe nada de química.
Trémulo pela fúria, com os olhos incendiados, quis lançar as mãos ao
pescoço de Beatrice.
Beatrice deu um passo tão rápido para trás que enganchou o salto na
barra do vestido. Caiu pesadamente ao chão.
Victor moveu-se com agilidade para interpor-se no caminho de
Clement.
— Páre de se comportar assim! Esqueceu-se de que necessitamos da
ajuda da senhorita Lockwood?
Clement se deteve. Pestanejou duas vezes, claramente confuso, respirou
fundo e se recompôs com um visível esforço. Os fogos da loucura se
apresentavam nos seus olhos, mas não na aura.
— Sim, claro — respondeu com um tom áspero.
Beatrice levantou-se. Clement não era o único que lutava por respirar.
Sentia o coração desbocado pelo terror.
Retrocedeu ante os dois homens e bateu com as costas num banco de
trabalho. Ouviu o ruído de instrumentos de metal atrás dela, mas fez caso
omisso e tentou encontrar um jeito de fugir daquele local.
A única saída era a porta no extremo oposto da habitação. Victor e
Clement fechavam-lhe a passagem. Não tinha mais remédio que continuar
ganhando tempo com a esperança de que Joshua a encontrasse. Isso implicava
não provocar Clement nem permitir que a sua fúria assassina despertasse.
— Tem razão, Victor. — disse Clement, que voltava a dominar-se —
Não vou matar a senhorita Lockwood agora. Esse prazer virá mais tarde.
— Não há necessidade de que morra ninguém hoje — respondeu
Victor.
Falava com um tom tranquilizador, como se tratasse do zelador de um
manicómio que tenta acalmar um doente. Estava claro que não era a primeira
vez que falava a Clement após um acesso de loucura.
Beatrice pensou no som metálico que havia ouvido ao bater com o
banco de trabalho. Olhou por cima do ombro para ver o que havia causado
esse ruído.
Ali, sobre o banco havia uma série de brilhantes instrumentos
cirúrgicos: bisturis, braçadeiras e seringas. Em uma estante próxima havia uma
fila de frascos de vidro que continham ratos mortos flutuando em um líquido.
Victor seguia acalmando Clement. Tinha que aproveitar a
oportunidade. Podia ser a última. Deslizou a mão para trás e apalpou com
cuidado. Os dedos se fecharam em redor do cabo de um bisturi. Deslizou-o
para o bolsinho oculto no vestido, que era destinado ao lenço.
Clement endireitou-se. Voltou a manter a compostura, mas seguia
tendo os olhos incandescentes.
— Já perdemos bastante tempo. — disse. Foi até à estátua que se
levantava junto ao sarcófago. — Traga a senhorita Lockwood, Victor.
Victor dirigiu um olhar displicente a Beatrice e começou a andar até ela.
— Não será necessário que volte a por as mãos em cima de mim —
disse ela com o tom mais frio que foi capaz de articular.
Victor se deteve, e esperou.
Ela retrocedeu e foi até o sarcófago.
— Continuo sem entender o que devo fazer para ajudá-los nesta
loucura — disse com tranquilidade.
— No processo de despertar há dois passos. — explicou Clement, num
tom próprio de um professor — O primeiro requer liberar a energia infundida
na figura de Anubis. — tomou a ponta extrema do arame dourado que
envolvia o pescoço do deus — Este é teu trabalho. A energia se conduzirá por
este cabo até a água egípcia. Isso causará uma reação química que inverterá o
estado de animação suspensa.
Beatrice pensou na conveniência de voltar a dizer-lho que estava louco,
mas, à vista da sua reação anterior, talvez não fosse o mais acertado.
— Qual é o segundo passo do processo? — perguntou.
— Uma vez que seja enviada a energia para a água egípcia será
necessário adicionar sangue fresco aos produtos químicos. Assim se
conseguirá manter o processo o tempo suficiente para conseguir o despertar.
Minha preciosa Emma era uma mulher de talento extraordinário. Resulta
evidente que outra mulher de capacidades mentais notáveis será a melhor
provedora de sangue.
Beatrice olhou os instrumentos cirúrgicos situados no banco de
trabalho.
— Eu.
— Sim, senhorita Lockwood. — disse ele, sorrindo — Você.
— Não se trata de nenhum sacrifício, senhorita Lockwood —
acrescentou Victor — Clement me assegurou que o processo não requer uma
grande quantidade de sangue, basta com uma pequena quantidade para desatar
a energia da água.
Beatrice fixou a vista nos olhos enlouquecidos de Clement.
— Você mentiu ao senhor Hazelton, não é mesmo? Esta noite irá
assassinar-me.
— Bobagens. — disse Clement — Tal como disse Victor, o processo
só requer uma pequena quantidade de sangue.
Estava claro que mentia, mas discutir não tinha sentido.
— O que ocorrerá se não puder despertá-la? — perguntou.
— Nesse caso não me será de grande utilidade, não acha? Você viverá,
na medida em que me resulte útil. Bem, já chega. Chegou a hora. Victor ajude-
me a tirar a tampa do sarcófago.
Victor adiantou-se, inclinou-se e colocou as mãos na borda da tampa de
cristal e pedra. Clement fez o mesmo. Entre os dois retiraram a tampa do
sarcófago, e a inclinaram de maneira que ficou apoiada aos pés deste.
A intensa fragrância dos produtos químicos ficou imediatamente mais
forte. Beatrice fez uma careta e retrocedeu. O corpo conservado no líquido
parecia irreal, como uma bonita boneca de cera a imitar uma mulher
adormecida.
Clement calçou um par de luvas de couro e recolheu a ponta do arame
dourado. Submergiu a ponta no líquido conservante.
— Toque os olhos da estátua e libere o poder — ordenou.
Beatrice estudou a figura de Anubis.
— O que quer exatamente que eu faça?
— O que eu acabei de dizer: toque os olhos. Quando estabelecer contacto
físico com as pedras de obsidiana sentirá a energia que está presa em seu
interior. Inclusive eu posso senti-la. Mas meus sentidos paranormais não são
bastantes fortes para liberá-la. Esperemos que os seus sejam, porque de outro
modo não haverá motivo para mantê-la viva.
— Já basta, Clement! — protestou Victor, indignado — Não há por
que ameaçar a senhorita Lockwood.
Beatrice aproximou-se da figura de Anubis. Levantou um braço e com
prudência tocou um olho de obsidiana com a ponta do dedo. Traspassou-a
uma corrente de energia gelada. Estremeceu e tirou o dedo.
— Não me parece uma boa ideia —disse.
— Faça-o! — ordenou Clement.
Estava voltando a perder o controlo, pensou ela. Com muito cuidado
apoiou as pontas dos dedos em um dos olhos e aguçou seus sentidos. Da
pedra surgia energia, e esta se expandia pelo ambiente. Por intuição quis
encontrar uma maneira de canalizá-la. Descobriu que havia algo
estranhamente atrativo no controle das correntes. Aguçou um pouco mais
seus sentidos.
Estava tão concentrada na estátua e seus fluidos de energia que não deu
conta de que estava ocorrendo algo no líquido conservante até que ouviu
Victor falar em um sussurro:
— Olhe! A água!
— Funciona! — exclamou Clement. Em sua voz percebia-se uma
orgulhosa satisfação — Funciona, funciona!
Beatrice manteve os extremos dos dedos no olho. Voltou a cabeça para
olhar o sarcófago. O fluido estava se convertendo numa tonalidade violeta e
começava a borbulhar. Nesse momento podia sentir as correntes de energia
paranormal que provinham dela.
Clement dirigiu-lhe uma olhada de impaciência.
— O que está esperando? Toque o outro olho! O dedo de Emma
moveu-se. Está despertando.
— Emma! — susurrou Victor — Oh, Deus, Emma! Desperta minha
filha!
Beatrice olhou a mão da morta. Os dedos realmente se moviam um
pouco, mas não com a força da vida. Os pequenos deslocamentos deviam-se
ao borbulhar da água. Clement e Victor enganavam-se, insistiam em enganar-
se. Mas a figura do deus estava acumulando algum tipo de energia, e ela estava
segura de que era perigosa. Não podia saber o que aconteceria se insistia, mas
podia constituir a distração que necessitava para escapar. Concentrou-se na
energia crescente das pedras.
Clement proferiu um grito de dor e surpresa.
Beatrice tirou os dedos da estátua e voltou-se para ver o que havia
sucedido. Clement tinha deixado cair o arame na água e estava a tirar as luvas
de couro.
— O que houve? — perguntou Victor com irritação.
— É muito forte — sussurrou Clement olhando para os dedos —
demasiado forte. Não me atrevo a sustentar o arame. As luvas não são
suficientes para me proteger. Vou deixá-lo submerso na água e permanecerei
ao lado, enquanto se gera a energia. — Retrocedeu — Tente outra vez,
senhorita Lockwood.
Ela pensou que aquilo não iria acabar bem. Mas não tinha nada que
perder.
Concentrou todo o poder das suas capacidades em ativar a energia da
obsidiana. A água egípcia agitava-se e formava redemoinhos borbulhantes. O
corpo submerso no tanque agitava-se espasmodicamente, mas Beatrice sabia
que não eram indícios de vida. O cadáver movia-se pelas turbulências do
fluido.
A energia da figura de Anubis incrementava-se cada vez mais. Não
estava de todo segura que pudesse controlá-la.
A explosão não teve origem no deus, tal como Beatrice havia previsto,
veio de cima. Um grande painel de vidro da abóboda do teto quebrou-se e
caiu. Produziu uma chuva de cristais.
Durante uns segundos, Clement e Victor pareceram confusos. Quando
compreenderam que todos aqueles cristais quebrados procediam do teto, já
era demasiado tarde.
Um anjo vingador vestido de negro e com uma espada de aço e ébano
em forma de bastão descia voando pela antecâmara do inferno.
Joshua.
Capítulo 48

Joshua havia considerado a situação antes de assaltar o laboratório.


Chegou à conclusão de que Victor era a primeira ameaça.
Aterrou com contundência junto a um dos bancos de trabalho, tal
como havia planeado. Apoiou a maior parte do peso na perna boa e firmou-se
agarrando com força a borda do banco.
Soltou o extremo da escada de corda que Nelson havia jogado do
telhado. Só dispunha de uma fração de segundo para recuperar o equilíbrio.
Nesse instante viu que Victor havia ficado imóvel pela surpresa. Joshua sabia
que essa iria ser sua única oportunidade.
Victor se recuperou em um instante. Introduziu a mão no interior do
casaco. Joshua deu uma forte pancada no antebraço com a bengala. O osso se
rompeu. A arma que Victor acabava de sacar caiu de sua mão. Ele caiu de
joelhos.
Nelson gritou do alto do telhado:
— Josh, ele a tem!
Joshua voltou-se, utilizando o banco de trabalho para manter o
equilíbrio. Comprovou que Clement havia agarrado Beatrice e que a sujeitava
com um braço ao redor do pescoço. Na outra mão sustentava um bisturi cujo
fio estava perigosamente próximo a pele da jovem.
— Já vejo que não perdeu sua forma, apesar de seu retiro no campo. —
disse Clement — Mas aconselho-o que diga ao seu companheiro que
permaneça ali. De outro modo, cortarei o pescoço da senhorita Lockwood.
Joshua olhou Beatrice. Parecia tranquila, embora de maneira quase
antinatural. Ninguém poderia manter essa calma e compostura com um bisturi
na garganta a menos que fosse um louco. Beatrice era realmente muito boa
atriz.
— Está bem? — ele perguntou.
— Sim —respondeu ela, com uma voz que transmitia segurança.
Fez um pequeno movimento com a mão. Os dedos apareceram por
entre as pregas do vestido e ele pode perceber o brilho de outro bisturi
metálico. Deste modo fazia-lhe saber que ela também estava armada.
Tudo o que necessitavam era distraí-lo por um instante, pensou Joshua.
Olhou ao sarcófago. O fluido seguia agitado. Viu que Emma parecia
quase viva. O cabelo dançava ao redor de seu rosto. Os braços faziam um
movimento ondulante e suave.
— Nunca acreditei. — disse — Mas vejo que está tendo êxito. Tem os
olhos abertos. Será melhor que a tire da água antes que se afogue.
— Emma! — suspirou Clement. Começou a arrastar Beatrice até o
ataúde, com a atenção posta na mulher morta. — Maldito seja! Tire-a da água,
Gage.
— Fá-lo-ei se soltar Beatrice.
— Matarei a senhorita Lockwood se não tirar Emma da água. Juro que
o farei.
— Pelo visto, cada um de nós tem um refém. — disse Joshua — Sugiro
que troquemos.
— Mas se solto a senhorita Lockwood, mata-me.
— Não — respondeu Joshua —, esta noite não o matarei. Se cumprir a
sua parte do trato, eu cumprirei a minha. Beatrice e eu iremos por onde eu
vim. Pode ficar aqui com a sua amada. Sabe muito bem que sempre fui um
homem de palavra.
Victor não dizia nada. Seguia ajoelhado e sujeitava o braço quebrado.
Olhava com expressão desesperada o corpo de sua filha. Joshua supôs que
por fim havia reconhecido a verdade. Emma estava morta.
O rosto de Clement expressava a angústia e a dúvida num grau
máximo. Finalmente, deu um empurrão tão forte em Beatrice que esta saiu
dando tropeções. Em seguida, Clement correu ao sarcófago e meteu os braços
no líquido borbulhante para agarrar o corpo.
Joshua segurou Beatrice.
— Subirá primeiro pela escada de corda.
Ela soltou o bisturi, recolheu a saia e começou a subir.
Ele a seguiu agarrando-se com as mãos enluvadas. Não foi fácil, pois a
perna ruim lhe doía.
Quando chegaram ao telhado, Nelson ajudou Beatrice e colocou-a num
lugar seguro.
— Está bem, senhorita Lockwood? — perguntou.
— Agora sim estou bem, graças a você e ao senhor Gage. — disse ela
— Suponho que teremos que utilizar a mesma escada de corda para baixar
deste telhado, não é mesmo?
— Por sorte, isso não será necessário. — respondeu Nelson, enrolando
a escada — Tio Joshua encontrou uma velha escada em uma das torres.
— Pelo que disse Clement Lancing, a escada e o corredor que leva até
ao laboratório estão cheios de armadilhas.
— Pensava que podia ser assim. Por essa razão viemos pelo telhado.
Ninguém espera que um oponente venha de cima.
— Essa é outra máxima do doutor Smith? — disse Beatrice.
— Pois sim, é verdade! — respondeu Joshua — Tinha esquecido de
uma de suas próprias regras. Mas todo o mundo tem suas limitações. Venha,
vamos embora daqui. O inspetor Morgan está à espera para poder fazer as
suas prisões.
— Mas e os gases? — disse Beatrice — Como fará a polícia para entrar
no laboratório?
— Do mesmo modo que fizemos, se for necessário. Mas não creio que
cheguem a esse extremo. Victor os deixará entrar. Sabe que está tudo acabado.
Um grito assustou-os. Um rugido de raiva e loucura de Clement
Lancing ressonou nos ecos da noite. Um único disparo o interrompeu.
Joshua olhou para baixo. Victor estava em pé junto ao corpo de
Lancing, com a pistola na mão. Olhou para cima, a Joshua.
— Você sempre foi o meu melhor agente —disse.
Capítulo 49

— Mas agora a sério Josh, como fizeram vocês para encontrar-me? —


perguntou Beatrice — E, por favor, não me diga isso de que há que olhar no
lugar indicado. Quero detalhes.
Ela e Joshua estavam reunidos ao redor da mesa, na sala de jantar, com
Sara e Abigail, na agradável sala de manhã de Lantern Street.
Afortunadamente, Sara e Abigail haviam saído ilesas de seu contacto com o
incenso narcótico. Joshua parecia conservar sua fleuma habitual, mas sempre
que a olhava do outro lado da mesa, parecia-lhe perceber um calor revelador
em seus olhos. Nelson, por sua parte, seguia explicando a Sara e Abigail com
mil detalhes, excitadíssimo, todos os passos do resgate.
A senhora Beale também estava recuperada da névoa alucinogénia.
Havia servido um desjejum consistente à base de ovos, batatas e torradas.
Todos bebiam grandes quantidades de um café muito forte, visto que não
tinham dormido. Beatrice duvidava de que nenhum deles, exceto Joshua, que,
evidentemente, podia ficar em transe quando estava com sono, foi capaz de
dormir. Todos se encontravam imersos no nervosismo que se seguia à
violência.
— Era uma simples questão de lógica. — disse Joshua. Pegou outra
torrada e passou nela uma boa quantidade de marmelada — Depois que
percebi que Victor estava envolvido no assunto, todas as peças se encaixaram.
Sabia que tinha construído um laboratório devidamente equipado para
Lancing, tinha que ser em um lugar considerado seguro e que estivesse sob
seu controlo absoluto. Também tinha que estar próximo de Londres, porque
Victor queria assegurar-se de que faziam progressos e que a sua filha estava
aparentemente próxima de recuperar a vida.
— Por outra parte, — assinalou Sara, com expressão pensativa —
também tinha que ser uma localização conveniente para a senhora Grimshaw,
a boticária de Teaberry Lane.
— Exatamente. — admitiu Joshua — Por essa razão, cheguei à
conclusão de que o lugar mais óbvio era o castelo de Exford, que pertence há
várias gerações à família de Victor.
Beatrice levantou os olhos ao céu, como pedindo paciência.
— Claro, era o lugar mais óbvio.
— Victor sabe como penso. — continuou Josh com tranquilidade —
Por isso sempre estava um passo à nossa frente. Mas eu também o conheço.
Uma vez que compreendi que era ele quem havia elaborado o estratagema, vi-
me em condições de adivinhar seus pensamentos.
— Que demónios se passava com essa estátua de Anubis? —
perguntou Abigail, com uma expressão de estranheza — Realmente tinha
poderes paranormais?
— Não. — respondeu Joshua, terminante.
— Sim. — respondeu Beatrice ao mesmo tempo.
Todos se voltaram para olhá-la. Ela deixou sua xícara sobre a mesa e
pensou no que havia ocorrido no laboratório de Clement Lancing.
— Essa figura de Anubis é como uma máquina, — disse lentamente —
uma máquina elétrica, creio. Requer certa habilidade sensitiva para ativar as
forças que encerra, mas a energia que libera não é mais que isso: pura energia.
— Como a que proporciona um motor de vapor, ou um gerador. —
apontou Nelson — Poderia aproveitar-se para fazer girar uma roda, ou para
acender uma lâmpada, mas isso é tudo.
— Exatamente. — interveio Beatrice — A energia de Anubis não é de
natureza mágica. Não tem propriedades especiais. As correntes, que se
conduziam até ao líquido conservante, agitavam a água egípcia, mas isso era
tudo o que faziam.
— Encantar-me-ia obter essa figura —declarou Sara com entusiasmo.
— É sua. — disse Joshua — Considere-a como um presente de
agradecimento por tudo o que tem feito por mim.
— Oh. — Sara abriu os olhos como pratos — Isso é um detalhe muito
generoso da sua parte.
— Acredite. — disse com expressão manhosa — Não tinha nenhuma
vontade de instalar essa antiguidade em minha casa.
— Eu entendo. — respondeu ela, e suspirou — Apesar de tudo, sinto
pena por Victor Hazelton. Durante todos estes meses viveu com a falsa
esperança que lhe havia vendido um louco. Ao final, sua própria dor também
voltou louco a Hazelton.
— Isso é muito certo. — admitiu Abigail — É muito triste. Duvido
muito de que vá preso. Provavelmente declaram-no louco e passará o resto de
sua vida num manicómio.
— Não. — disse Joshua, com uma certeza tranquila em sua voz —
Victor não poderia suportar um lugar como esse. Agora que sabe que Emma
esteve morta todo este tempo já não tem nada pelo que seguir vivendo, de
modo que não creio que vá sobreviver por muito tempo.
Nelson, surpreendido, levantou a vista do seu prato, no qual tinha ovos.
— Acha que a tristeza acabará com ele?
— Pode-se dizer que sim — disse Joshua.
Beatrice o entendeu. Supôs, por seu silêncio, que Sara e Abigail também
o haviam entendido. Nelson levou mais tempo a captar o significado das
palavras de Joshua.
— Já percebi. — disse, como tivesse uma revelação — Acredita que irá
acabar com a sua vida. Mas não pode sabê-lo com certeza...
— Conheço-o — disse Joshua — sei como pensa.
«Porque sabes que Victor pensa igual a ti», pensou Beatrice. Mas não o
expressou. Nesse momento, seu olhar encontrou o de Joshua, no outro lado
da mesa, e ela supôs que era consciente de seus pensamentos.
— Sabe uma coisa? Engana-se. — disse Beatrice — Os dois são
homens muito diferentes, apesar da vossa formação filosófica e das vossas
habilidades. Nunca se teria permitido acreditar no que cientificamente é
impossível: que os mortos voltam à vida, mediante a magia. Nunca
assassinaria pessoas que não lhe tivessem feito mal com o único fim de chegar
aos seus objetivos. Teria encontrado outras maneiras.
As sobrancelhas de Joshua se levantaram.
— Porque sou um homem lógico e racional, não é isso?
— Não — respondeu ela sorrindo — porque é um homem bom e
decente.
— Bem... — disse Sara, contendo a risada — O que tenta dizer é que
você é um herói, senhor Gage, e eu creio sinceramente que ela tem razão.
— Os heróis não existem —respondeu Joshua— Simplesmente são
aqueles que optam por fazer a coisa certa.
Nelson fez uma careta.
— Outra regra de Hazelton?
Joshua surpreendeu a todos com um sorriso.
— Não, na realidade essa frase é minha.
Beatrice o olhou.
— O que irá fazer agora?
O sorriso de Joshua se desvaneceu.
— Vou fazer a única coisa que posso fazer por Victor.
— Entendo. Posso ir consigo?
— Tem a certeza de que quer acompanhar-me?
— Sim. — respondeu ela — Quero estar consigo quando se despedir
dos dois.
Capítulo 50

Depois do desjejum, Joshua acompanhou Beatrice até sua casa numa


carruagem e logo continuou viagem para reunir-se com um de seus
misteriosos conhecidos da Scotland Yard. Nelson o acompanhava.
A casa estava vazia, e tudo ecoava. Clarissa continuava no campo. A
senhora Rambley havia deixado uma nota dizendo que havia saído para visitar
sua irmã, viúva recentemente.
Beatrice estava tomando um banho quando finalmente se sentiu
esgotada. Saiu da banheira e colocou um roupão e foi para o quarto para tirar
um cochilo.
Um ruído de chuva batendo contra a janela e batidas na porta da casa a
despertou. Se levantou da cama e foi até a janela para olhar quem poderia ser.
Joshua esperava no umbral. Levava um abrigo comprido e negro e
cobria a cabeça com um chapéu para resguardar-se da chuva. A carruagem em
que havia chegado desaparecia nas brumas.
Ela amarrou o cinto do roupão e correu escada abaixo, ansiosa por
escutar o resumo da conversa com a polícia. Quando abriu a porta já sabia,
tanto pelo halo energético que se formava ao redor de Joshua, como pela
força com que sujeitava a bengala, que se mantinha em pé somente por sua
vontade de ferro.
— Joshua — disse.—. Entra.
— Sinto, por a ter despertado.
— Não tem problema. Estava tirando um cochilo. — Ela corou. O
roupão era bem recatado, mas logo se deu conta de que não levava nada por
baixo dele —. A si sim, que iria bem dormir um pouco.
— Irei para casa e descansarei um pouco, depois de acabar aqui.
Isso de «depois de acabar aqui» não parecia um bom presságio. A incerteza
abriu seus sentidos e colocou em marcha os mecanismos intuitivos. Fosse
qual fosse o motivo da visita, era de uma grande seriedade para Joshua.
Joshua entrou e tirou o casaco úmido. Beatrice o colocou em um
gancho da parede e deixou o chapéu secando sobre o console.
Era estranho pensar que aquela era apenas a segunda vez que ele
cruzava a porta de sua casa. Sabiam tão pouco um do outro... E, mesmo
assim, sabiam tantas coisas de natureza infinitamente mais íntima! Mas isso era
o que ocorria com os que se permitiam amores ilícitos, recordou. A única
coisa que não podiam compartilhar era precisamente uma casa.
Um suspiro de melancolia escapou de seus lábios.
— Em que está pensando? — perguntou ele com tranquilidade.
Ela, surpreendida, convocou seus dotes interpretativos e deu um
pequeno sorriso:
— Pensava que, de algum modo, seguimos sendo uns estranhos. Se
diria que temos passado a maior parte de nossa relação tratando com
chantagistas, assassinos e um ou dois loucos.
Ele a olhou com bastante intensidade.
— Tenho estado esperando por toda minha vida para conhecer você,
Beatrice.
Ela conteve a respiração. Por uns segundos ficou imóvel. Por instinto
ter-se-ia lançado em seus braços. Mas a lógica lhe dizia que aquele tom
apaixonado dele poderia ser resultado da intensidade das rescentes emoções
que haviam experimentado juntos.
Para ocultar sua confusão o conduziu até uma pequena sala.
— Quer um chá? A governanta não está, mas sou muito capaz de
esquentar a água, se quiser.
— Não, obrigado.
— Parece que a perna o incomoda, não é mesmo? Não me admira,
depois de tudo o que ocorreu ontem. Acima, em meu quarto, tenho uma
garrafa do tônico da senhora Marsh. Posso ir e pegar bem rápido.
Começou a caminhar até à escada.
— Não. — Fez uma pausa. Logo disse —: Obrigado.
Beatrice considerou todas as situações pelas quais Joshua havia passado
nas últimas vinte e quatro horas.
A seguiu até à sala, mas não se sentou. Em vez disso, se apoiou com
ambas as mãos no cabo de sua bengala e a observou em silêncio.
— Parei aqui antes de ir a casa porque há algo muito importante que
tenho que dizer-lhe — disse —. E quero dizê-lo antes de dormir.
Ela sentiu pânico. A pequena sala pareceu escurecer. Tentou estar
preparada para o que vinha, fosse o que fosse. Talvez tivesse escolhido esse
momento para dizer o muito que ela representava para ele, mas que o
matrimónio estava descartado... E ela? Estava disposta a seguir com aquela
aventura? Oh, sim! Mas algo assim somente podia durar enquanto ele não
contraísse matrimónio. Não, de nenhuma maneira queria ser a amante de um
homem casado.
Sem dúvida, Joshua nunca iria pedir a ela algo assim, pensou. Ele não
iria enganar uma mulher. Ele era, por acima de tudo, um homem de palavra.
— Agora entendo porque os dois fizeram o que fizeram — disse.
Concentrada em suas especulações sobre seu futuro em comum, ou
sobre a falta de tal futuro, ao princípio não entendeu o que Joshua queria
dizer.
— O quê? — perguntou, como baixando de uma nuvem.
— Entendo porque Victor e Clement fizeram todas essas coisas.
Ela fez um esforço para ordenar seus confusos pensamentos. E nesse
momento se tratava de encerrar o caso, não de seus assuntos perssoais. Mas o
que havia pensado? Era natural que Joshua quisesse atar todos os cabos soltos
antes de permitir-se considerar o aspecto perssoal.
— Sim, claro — disse ela —. A dor de um pai e o complexo de culpa
de um amante são motivos muito poderosos.
— Não creio que tenha entendido o que estou tentando dizer, Beatrice.
Sei porque chegaram a esse extremo, porque se deixaram enganar, porque
perderam a razão. Por que estavam dispostos a matar para reviver Emma.
Entendo estas coisas completamente, por inteiro, porque não sou diferente.
— O quê? — Beatrice voltou a sentir um ângulo morto nela.
— Eu faria tudo para salvar você. — disse ele.
Beatrice tomou ar e se permitiu relaxar.
— Sim, eu já sei. Você naceu para proteger os demais. Mas encontrará
outra maneira de fazê-lo.
— Talvez — admitiu ele —. Se houvesse outra maneira. Mas ao final, o
que fosse necessário. Amo você, Beatrice.
Estava tão confusa que se limitou a olhá-lo em silêncio durante alguns
segundos. Logo, disse as primeiras palavras que lhe vieram à cabeça.
— Está tentando dizer-me que realmente crê no amor? — conseguiu
articular —. E nessa forma de energia que não se pode ver, nem medir, nem
provar?
— Seguramente não creio que o amor seja uma forma de energia
paranormal — respondeu muito sério —. E o que admitirei é que até
conhecer você nunca havia experimentado emoções da classe que sinto por si.
Mas não duvido deste sentido da certeza. Seria como duvidar da verdade, de
um amanhecer, ou de uma maré. Que algunas forças poderosas não podem
ser provadas, ou medidas, não significa que tenha que recorrer a explicações
ocultistas.
De pronto, Beatrice se sentiu desalentada. Um rugido peculiar lhe
invadiu os ouvidos. O mundo de fora da sala deixou de existir.
Freneticamente, tentava seguir conectada com a realidade.
— Bem, na realidade há outras explicações para as paixões fortes —
disse com cuidado —. A atração física e intelectual. Os efeitos estimulantes de
um perigo compartilhado. A admiração mútua. Esse ano tão longo que passou
no campo...
— Me quer? — perguntou ele —. Pode querer-me?
Com isso ela teve que deixar de lado os restos do sentido comum.
Rindo, lutou contra as lágrimas. Se jogou em seus braços. Ele cambaleou um
pouco, mas de algum modo conseguiu apartar a bengala para o lado,
agarrando-a para manter o equilíbrio, tudo ao mesmo tempo. Ela lhe rodeou o
pescoço com os braços.
— Oh, Joshua, sim, sim — disse sentindo a alegria transbordar seus
sentidos —. Claro que quero você. Mas estou segura de que isso é algo que já
sabe muito bem.
Joshua aspirou profundamente e exalou todo ar.
— Aprendi que há coisas que requerem palavras.
— Significa isso — perguntou ela, sorrindo — que nem tudo pode ser
deduzido através da lógica e da observação?
— Terei que ouvir durante o resto de minha vida você burlar-se de
mim por esse motivo?
— Isso depende. Seguiremos falando disso durante o resto de nossa
vida?
Ele franziu o cenho.
— Acaba de dizer que me quer. E eu também lhe quero. Isso quer
dizer que vamos casar.
— Não me fez o pedido. Há coisas que requerem palavras.
Ele utilizou seu sorriso lento e sensual, era isso que agitava todos os
sentidos de Beatrice.
— Se casará comigo, e assim terá oportunidade de se burlar de mim
sem cessar, por minha maneira de chegar às conclusões?
— E como poderia rechaçar uma oferta tão tentadora? — Ela colocou
as palmas das mãos sobre seu peito e disse: — Sim, Joshua, me casarei com
você.
Viu na escuridão de seus olhos um brilho que, pensou, quiçá se devesse
à alegria.
— Vou cuidar de si como se fosse ouro — prometeu ele.
— Eu também cuidarei de si da mesma forma.
Ele se apoiou na bengala com uma mão e a envolveu com o outro
braço. A beijou. Foi um beijo vinculante, um beijo de um futuro prometedor.
Foi o beijo, pensou Beatrice, que havia estado esperando toda a sua
vida.
Capítulo 51

No día seguinte, Joshua permanecia de pé junto a Victor, debaixo da


insistente chuva. Juntos contemplavam a descida do ataúde que continha o
cadáver de Emma à tumba. Um clérigo murmurou as palavras rituais.
— Pó és, e em pó te converterás...
As pernas de Victor estavam unidas por grilhetas. O braço direito
estava numa tipoia. Três agentes esperavam respeitosamente no cemiterio.
Mas, apesar de tudo, Victor permaneceu orgulhoso e intacto: sua presença
seguia imponente, seguia sendo o brilhante e misterioso Smith.
Beatrice e Nelson esperavam a uma distância prudencial. Um sombrio
empregado da funerária mantinha um guarda-chuva aberto sobre a cabeça de
Beatrice.
Quando a solene cerimónia terminou, Victor se inclinou e com a mão
esquerda recolheu um punhado de terra úmida. Foi até ao ataúde, se
incorporou, fechou os olhos em uma prece silenciosa e logo olhou a Joshua.
— Obrigado — disse —. Deveria ter-me despedido dela há muito
tempo. Agora ja está feito, de modo que sou livre para buscar minha própria
paz esta noite.
Joshua permaneceu em silêncio. Não havia nada a dizer.
Victor olhou Beatrice. Um sorriso melancólico surgiu na comissura de
seus lábios.
— Te felicito por encontrar uma mulher que sempre conhecerá teu
coração. És um homem afortunado.
— Sim, sou consciente disso — respondeu Joshua.
— Não te parece uma ironia pensar que nunca a haverias encontrado,
se não fosse por mim?
— Sim — respondeu Joshua —. Sim, assim é.
— Teu sobrinho me recorda a ti nessa idade. Pronto e rápido, com tuas
capacidades de lógica. Está te buscando para que o guies agora que está
chegando a maturidade. Tens uma tarefa adiante. Sei que não vais falhar.
— Tudo o que aprendi sobre ser um homem, aprendi consigo — disse
Joshua.
— Não. — Victor negou com a cabeça —. Te converteste no que
tinhas que ser. O único que fiz foi te ajudar a descobrir a força em teu interior
e ensinar a disciplina e o controle que necessitavas para fazê-lo. Uma força de
espírito como essa tem que existir em ti, ou de outro modo, nada nem
ninguém poderia infundir-te essas qualidades.
— Sentirei sua falta, Victor.
— Eras o filho de meu coração — disse este —. Estou muito
orgulhoso de ti.
— Entrou em minha vida quando lhe necessitava. Me salvou de mim
mesmo. Nunca lhe esquecerei.
A satisfação de Victor ao ouvir aquelas palavras era evidente.
— É bom sabê-lo. Adeus, meu filho.
— Adeus, senhor.
Os agentes levaram Victor ao coche e o fizeram entrar na jaula de ferro.
Joshua contemplou o coche em seu trajeto, até que desapareceu entre a chuva.
Após alguns instante se deu conta de que Beatrice estava a seu lado.
— Estávamos nos despedindo — explicou Joshua —. Me disse que
esta noite encontrará sua própria paz. Amanhã já não estará entre nós.
— Com as grilhetas que leva?
— Encontrará uma maneira de fazê-lo — respondeu Joshua —. É o
senhor Smith.
Tomou Beatrice pelo braço. Juntos caminharam embaixo de chuva até
onde Nelson os esperava.
Capítulo 52

— Nelson me disse que quer que você o instrua em meditação e artes


marciais — anunciou Hannah.
Parecia resignada, pensou Joshua, como se realmente se esforçasse em
aceitá-lo. Ele estava apoiado na borda de sua mesa, com a bengala ao seu
alcance. Hannah, junto à janela, olhava para o pequeno jardim. Não fazia
muito tempo que havia chegado. Havia-a olhado por um momento e isso foi
suficiente para saber que Nelson lhe havia falado de seus planos.
— Já lhe deixei muito claro que o primeiro que tinha que fazer como
seu filho era informar-te de sua decisão. Só depois poderíamos começar com
as lições — disse Joshua —. Mas realmente isto é a decisão dele, Hannah.
— Sim, eu sei. Sempre soube. Eu somente queria protegê-lo.
— E eu o entendo. Mas se converteu em um homem. Já não pode
protegê-lo mais.
— Está claro que tem razão. — Hannah se voltou para olhá-lo cara a
cara —. Beatrice e eu temos falado. Me disse que o maior presente que posso
dar a Nelson é livrá-lo das cadeias de culpabilidade em que eu o coloquei. Isso
é precisamente o que estou tentando fazer desde que me comunicou a sua
decisão. Lhe disse que o entendia e que tinha minha benção.
— Estou seguro de que está agradecido.
Hannah esboçou um sorriso.
— Também lhe disse que eu, pessoalmente, não imaginava que pudesse
existir um mentor e um professor melhor que você.
Joshua vacilou.
— Me surpreende ouvi-la dizer isso.
— Beatrice apontou o que para mim resultava mais óbvio. Assegura
que Nelson herdou claramente as aptitdões dos Gage, e que possuindo esse
dom, o mais prudente é aprender a controlá-lo e canalizá-lo de um modo
responsável.
— Mas o que Nelson herdou não foi o talento dos Gage, mas sim o
temperamento dos Gage.
Hannah voltou a sorrir.
— Pode chamar como quiser. Desde já, o que não desejo é que Nelson
siga por esse caminho que havia empreendido faz uns meses e que consistia
sobretudo em jogar e em beber em excesso.
— E já sabias sobre o assunto, verdade?
— É claro. É meu filho. A esse ritmo certamente teria acabado mal,
como papai.
— Nelson não é como nosso pai, Hannah. É um homem feito e
direito, com sua própria personalidade. Necessita descobrir para o que nasceu.
— E o que irá descobrir?
— Não sei — respondeu Joshua —. Mas com o tempo encontrará seu
próprio caminho.
Hannah saiu da janela.
— Encontrará o seu, agora que Victor Hazelton já não está entre nós?
Joshua juntou os dedos, considerando o quanto teria que lhe dizer.
Pensou que merecia saber a verdade.
— As pessoas para as quais Victor havia trabalhado têm feito contato
comigo — disse —. São cargos dos mais altos níveis do governo.
— E querem que o substitua? — perguntou Hannah, com grande
curiosidade.
— Sim.
Hannah fechou os olhos.
— Entendo.
— Falei com Beatrice, e decidi declinar a oferta. Não quero voltar a
uma vida nas sombras. Quero caminhar na luz do dia, a pleno sol, com
Beatrice... E se formos abençoados, com nossos filhos.
— Está bem, mas... — Hannah torceu em um gesto —. É que não
consigo ver você voltando as costas para o que melhor sabe fazer: encontrar o
que està perdido.
— Beatrice disse exatamente o mesmo — respondeu Joshua, enquanto
se inclinava para frente —. E as duas têm razão. Minha intenção é converter-
me em um investigador privado e especializar-me em encontrar pessoas e
coisas que estejam desaparecidas. Mas vou escolher os meus clientes com
grandíssimo cuidado. Nem todos que estão perdidos querem que os
encontrem.
Capítulo 53

A recepção das bodas foi realizada nos terrenos do Jardim de Cristal.


No espaço de uns poucos meses, era a segunda vez que convidavam Abigail e
Sara para as bodas de suas ex-funcionárias. Evangeline Ames, agora esposa de
Lucas Sebastian, o dono dos jardins, havia sido a primeira noiva a casar-se ali.
Ela era amiga de Beatrice, e havia insistido em preparar a recepção das bodas
para Beatrice e Joshua. Clarissa Slate, que acabava de concluir com êxito seu
caso mais recente, era a dama de honra.
O dia era ensolarado e cálido. Além de Evangeline, Lucas e Clarissa,
entre os convidados estavam Hannah Trafford e seu filho, Nelson.
Os jardins da misteriosa propiedade pareciam muito menos
ameaçadores que da última vez que todos se haviam reunido ali, pensou Sara.
O nível de energia paranormal se havia reduzido drasticamente, embora Lucas
houvesse explicado que, devido às propriedades do antigo manancial
subterrâneo do centro dos jardins, nada voltaria a ser normal na vida das
plantas que ali prosperavam.
Ninguém poderia imaginar que houve ali, durante décadas, estranhos
experimentos paranormais que o tio de Lucas havia realizado. Teria que ter
previsto que iria ter resultados muito perigosos, pensou Sara. No mundo
botânico havia uma tremenda quantidade de energia oculta.
Sara permanecia com Abigail junto à mesa do bufê e contemplava
Beatrice e Joshua falando com Lucas e Evangeline junto a uma fonte. Era
evidente que Joshua e Lucas se haviam tornado amigos. Talvez fosse devido à
semelhança de caráter e espírito, pensou Sara. Ambos estavam dispostos ao
que fosse a fim de proteger a quem amavam. E também compartilhavam algo
mais. Joshua seguia resistindo a dar alguma credibilidade aos acontecimentos
paranormais, mas segundo Sara, não havia dúvida de que aquele homem tinha
certa capacidade sensitiva.
— Nossa Beatrice está completamente radiante, não te parece, Abby?
— Sara secou uma lágrima com um lencinho—. E olha Joshua, como
permanece de pé junto a ela, tão perto. Resulta evidente o quanto estão
unidos. Sim, dá para ver que ele estaria disposto a cavalgar até o inferno para
protegê-la...
— Que romântica és! — exclamou Abigail, que naquele momento
apreciava um canapé de camarão —. Mas tens razão. As lesões de Joshua o
fizeram retirar-se durante um tempo, mas isso não quebrou seu espírito. Esse
homem tem fibra. É bom ver que as sombras que pareciam envolvê-lo
desapareceram.
— E tudo graças à energia curativa do amor.
— Eu me alegro pelos dois — disse Abigail rápidamente, enquanto
pegava outro canapé —. Mas me surpreende a velocidade com que estamos
perdendo as nossas agentes: a este passo, por culpa do matrimónio, Flint e
Marsh não tardará em quebrar.
— Logo encontraremos outras agentes — lhe assegurou Sara, sem se
perturbar com isso —. Por outro lado, não ficaremos sem suas colaborações.
Os quatro insistiram que estão à nossa disposição para casos futuros.
— Bah, dá no mesmo. Talvez o que deveríamos fazer era fechar as
portas de Flint e Marsh e estabelecermos um outro tipo de negócio.
— Como por exemplo?
— Nos podemos dedicar a fazermos de casamenteiras.
Sara começou a rir.
— Tens razão! Se diria que somos bastante boas nisso, verdade?
— Evidentemente. O que ocorre é que o negócio das investigações é
mais proveitoso.
— Isso é verdade. — Sara olhou a Nelson, que estava conversando
animadamente com o irmão de Lucas, Tony, com sua irmã, Beth —. Mas me
parece que, em lugar de nos reinventarmos como casamenteiras, talvez
deveríamos considerar a expansão dos serviços de investigação de Flint e
Marsh.
— A que te referes?
Sara golpeou com um dedo na mesa do bufê.
— Pelo visto o jovem Nelson herdou aptidões que são muito similares
às de seu tio. Pelo que temos visto ultimamente, seria de muita ajuda ter um
guarda-costas para proteger a uma de nossas agentes do perigo, em alguns
casos. Me pergunto se Nelson estaria interessado nesse tipo de trabalho.
Abigail arregalou os olhos.
— E por que não perguntamos?
********
Beatrice olhava para elas que até então haviam sido suas patroas e viu
que se aproximavam de Nelson, Beth e Tony.
— Humm...
Evangeline, Joshua e Lucas voltaram a cabeça para ver o que podia
estar chamando sua atenção.
— Em sua opnião — disse Evangeline —, o que estão tramando a
senhora Flint e a senhora Marsh? Parece como se estivessem em uma missão.
— Sim — respondeu Lucas —. Essas duas têm algum plano na cabeça.
— Se há algo que sei sobre a senhora Flint e a senhora Marsh, é que
são umas excelentes mulheres de negócios — observou Joshua.
Era impossível ouvir a conversa delas por estarem do outro lado das
roseiras, mas tirar conclusões sobre o que sucedia era fácil. Nelson prestava
atenção ao que diziam as senhoras. Quanto mais falavam, mais entusiasmado
parecia.
— Algo me diz que Nelson não tardará em ter um posto de trabalho na
Flint e Marsh — comentou Beatrice.
— Pois eu creio que está a ponto de encontrar a sua verdadeira carreira
— apontou Joshua —. Hannah ficará contente.
— Eu duvido — respondeu Beatrice, fazendo uma careta.
— Ela o entenderá — disse Joshua —. Eu me parecia muito a ele
quando tinha sua idade.
Capítulo 54

Passaram a noite de bodas no Cottage de Fern Gate. Uma casinha, de


ambiente agradável, que pertencia a Lucas Sebastian, e estava situada na parte
inferior dos Jardins de Cristal.
Beatrice vestia uma bonita camisola com que Sara e Abigail a haviam
presenteado. Esperava na cama, enquanto Joshua fazia a ronda pela casa,
comprovando que portas e janelas estavam fechadas. Sorriu quando entrou no
quarto, se deteve no vão da porta e dirigiu a ela um olhar interrogativo.
— O que te diverte tanto? — perguntou.
— Estava pensando no cuidadoso que és com os detalhes.
Joshua apoiou a bengala contra a mesinha de noite e começou a
desabotoar a camisa.
— Os detalhes são como pequenos buracos no fundo de um barco. Se
os tapas, o barco permanece flutuando.
— É outra de suas citações? — disse ela levantando as sombracelhas —
— Temo que sim — respondeu ele, sorrindo.
— São palavras boas para seguir na vida, estou segura. — arrumou as
almofadas que tinha atrás dela e contemplou complacidamente a Joshua
enquanto este despia a camisa —. Mas não pode prever tudo na vida.
— Disso sou muito consciente. — Joshua terminou de se despir,
apagou a lâmpada e se meteu na cama. A tomou entre seus braços —. Por
exemplo, nunca previ que tu pudesses aparecer, meu amor. Ignorei a maioria
de minhas regras por ti.
— Somente a maior parte? — disse ela, saboreando o calor de seus
olhos —. Não todas?
Ele a beijou nos lábios e com a mão poderosa lhe rodeou os quadris.
Ela sentia a energia da alegria, do amor e da paixão, que surgia em seu
interior, mas retrocedeu um centímetro para pôr os dedos na boca e assim
impedir que aprofundasse o beijo.
— Espera. Tenho que averiguar qual regra desobedeceste.
Ele lhe sorriu à luz da lua, com o amor brilnando em seu olhar.
— A regra segundo a qual, se algo não pode ser explicado, não significa
que não exista.
— Oh, céus! Estás me dizendo que, finalmente, acabarás acreditando
na existência do paranormal?
— Eu não iria tão longe — respondeu ele —. Mas te juro que acredito
no amor. E também te prometo que vou te querer agora e sempre.
Recordou o que Abigail e Sara haviam dito sobre ele na noite em que
lhes falou de seu encontro com o misterioso Mensageiro do senhor Smith:
«Todos os que tinham contratos com ele sabiam que se prometia algo, iria cumpri-lo.»
Tocou o lado marcado do rosto de Joshua com as gemas dos dedos.
— Isso bastará por agora.
Joshua voltou a beijá-la. A promessa estava ali, nesse beijo abrasador.
Agora e sempre.
Talvez Joshua não estivesse convencido de que o amor fosse uma
forma de energia paranormal, mas era capaz de amar, e a amava tanto como
ela a ele. Isso era mais que suficiente para esta noite.
Isso era mais que suficiente para toda uma vida.

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