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Amanda Quick
Sinopse
1
Bebida destilada de cereais, contendo zimbro em seus ingredientes.
seus dedos. O conteúdo salpicou a saia de cor cinza apagado do vestido de
Beatrice.
— Sinto muito, carinho! — Disse Maud — Sinto muito mesmo!
Beatrice se levantou rapidamente e começou a sacudir a pesada saia de
seu vestido.
— Não há problema. É um vestido muito velho.
Possuía vestidos mais novos, mais caros e muito mais na moda, os mais
velhos de seu guarda-roupa eram para os compromissos que surgiam com a
Agência Flint e Marsh.
— Que torpe sou! — Se lamentou Maud, que com um lenço tentava
secar o vestido molhado.
O desastre se desencadeou em um abrir e fechar de olhos. O
formigamento perturbador no pescoço de Beatrice foi a única advertência que
algo não ia bem.
Se virou rapidamente para olhar a pista de baile. Daphne Pennington
havia desaparecido.
Em circunstâncias normais, a situação não teria sido tão alarmante.
Certamente, se a jovem tivesse escapulido até aos jardins para alguns beijos
furtivos, isso não seria nenhuma novidade. Porém nessa noite as
circunstâncias pareciam distanciar-se progressivamente do habitual. O que
tornava a situação muito mais estranha era que o homem com a bengala e a
cicatriz na cara também havia desaparecido.
Havia tomado consciência disso uns minutos antes, quando se havia
sentido observada. Imediatamente havia buscado pela sala para comprovar
quem poderia estar observando-a. Ninguém nunca olhava duas vezes para uma
dama de companhia.
Havia cruzado o olhar com o homem da cicatriz que se apoiava em
uma bengala de ébano e aço. O contato havia sido crispante, porque havia
sentido uma profunda e estranha sensação de reconhecimento. Por outro
lado, estava segura de não haver conhecido ele em sua vida.
Não era o tipo de homem que uma mulher pudesse esquecer. O que
chamava a atenção não era o talho profundo que havia visto no lado esquerdo
daquele rosto orgulhoso e bem desenhado, nem pelo fato de que ele utilizava
uma bengala. Se tratava mais da sensação de força que emanava dele. Tinha a
certeza de que naquele estranho havia um núcleo duro, de que naqueles olhos
se escondiam promessas implacáveis. Facilmente poderia imaginá-lo com uma
orgulhosa espada no lugar da bengala.
No espaço de alguns segundos, durante os quais foi incapaz de respirar,
ela havia visto os olhos fixos e atentos. Logo, como se o que havia visto fosse
o bastante, pareceu perder o interesse. O estranho havia dado meia volta e
desaparecido por um corredor deserto. Estava claro, pelo andar rígido da
perna esquerda, que a bengala não era nenhuma peça de vestuário. Lhe era
imprescindível.
Beatrice havia recuperado o fôlego, mas seguia sentindo-se
transtornada. Sabia, por intuição, que não seria a última vez que veria o
homem da bengala. Compreender isso era o mais perturbador, mas não tanto
como a certeza de que alguma parte dela, desejava com todas as forças, voltar a
encontrá-lo. Pensou, para tranquilizar-se, que era porque necessitava saber que
elemento de seu disfarce de dama de companhia havia chamado a atenção do
estranho. O objetivo de Beatrice, depois de tudo, era seguir sendo invisível.
No entanto, nesse momento tinha que permanecer concentrada em sua
missão. Daphne e o homem da cicatriz na cara não eram os únicos que agora
estavam ausentes da sala de baile. O par de Daphne, Richard Euston, um
jovem bonito que havia sido apresentado por um amigo da família
Pennington, tão pouco estava na sala.
A situação se deteriorava rapidamente.
— Perdão — disse Beatrice —, me parece que senhorita Pennington se
retirou a alguma sala. Talvez tenha ocorrido algo com seu vestido, ou talvez
tenha um furo nos sapatos de baile, não sei... Tenho que ir comprovar se
necessita da minha ajuda.
— Mas o seu vestido... — argumentou Maud com ansiedade —. Ficará
arruinado!
Beatrice ignorou-a. Pegou sua bolsa e cruzou a sala rapidamente.
Um vestido estropiado seria um desastre para a maioria das damas de
companhia com um guarda-roupas limitado, porém para Beatrice essa noite,
representava o menor de seus problemas. Havia chegado o momento de
ganhar o excelente salário que a Agência Flint e Marsh lhe pagava. Rogou aos
céus que não fosse demasiado tarde.
Daphne e Euston estavam dançando próximos as portas de vidro
quando os havia visto pela última vez. Era bem provável que houvessem se
ausentado da sala tomando esse caminho.
A avó de Daphne, lady Pennington, estava no extremo oposto do local
conversando com outras três senhoras. Não poderia de nenhuma maneira ir
até lá para explicar-lhe o que se havia passado, pois perderia um tempo
precioso para passar entre a multidão.
Beatrice havia estudado todas as saídas do salão de baile uma hora
antes, quando havia chegado com lady Pennington e Daphne. Naquele
momento havia chegado à conclusão de que se alguém tivesse a intenção de
comprometer a Daphne, como sua avó temia, o vilão optaria com toda
probabilidade por atraí-la para os jardins que a noite escondia.
No final do corredor pouco iluminado, Beatrice abriu a porta em que
havia reparado anteriormente. Saiu na noite de verão e fez uma breve pausa
para orientar-se.
Um alto muro rodeava os grandes jardins. Focos de luzes coloridas
iluminavam a área ao redor do terraço, mas ela se encontrava em uma parte
escura, perto do galpão do jardineiro. A porta que se abria sobre o estreito
caminho mais além dos jardins, não era muito longe. Qualquer um que
quisesse levar uma jovem, sem dúvida, dispunha de uma carruagem fechada
esperando. O terraço do salão de baile ficava a certa distância de onde se
encontrava. Se se movesse depressa, poderia chegar à porta antes de que
Daphne e seu raptor a alcançassem.
Se andasse depressa sim, mas e, se estivesse correta em suas conclusões.
Demasiados «ses». Era muito provável que estivesse equivocada. Talvez
Daphne estivesse desfrutando naquele momento de um ligeiro flerte com o
muito atrativo senhor Euston, e as intenções deste não fossem mais do que
isso.
Mas isso não explicava o desaparecimento do estranho com a cicatriz.
Intuitivamente sabia que não era nenhuma casualidade que esse tipo também
se houvesse ausentado.
Deixou a bolsa de lado, sobre os degraus, levantou a saia do vestido e
pegou uma pequena pistola presa pela liga bem acima do joelho. Se apressou
na direção da porta por um corredor ladeado de altas sebes. O vestido cinza
ajudava a camuflar-se entre as sombras.
Quando estava perto da porta ouviu o som abafado de pisadas de um
cavalo no caminho do outro lado do muro.
Chegou no final do corredor marcado pelos abetos2 e se deteve. A luz
da lua podia ver que a porta estava parcialmente aberta. Tal como esperava,
uma pequena carruagem aguardava. Dentro do veículo havia um segundo
homem.
Nesse momento ouviu o som brando de rápidas pisadas que se dirigiam
até ela através do jardim. Quem havia capturado a Daphne iria levá-la em
poucos segundos. Ela não podia enfrentar dois cafajestes ao memo tempo.
2
Árvores coníferas da família das pináceas, de folhagem sempre verde.
Lhe ocorreu que se conseguisse chegar a tempo de fechar a porta, o homem
da carruagem não teria como auxiliar seu capanga.
Correu até a porta e conseguiu fechá-la antes de que o cocheiro se
desse conta do que ocorria. Fechou o trinco e se voltou bem quando Richard
Euston surgia de entre as sombras.
A princípio Euston não a viu porque ia concentrado em manter
Daphne presa, que se debatia com força. Levava as mãos atadas a frente e
estava amordaçada.
Beatrice apontou a Euston com sua pequena pistola.
— Solte a senhorita Pennington ou disparo. Nessa distância não
falharei.
— Mas que demônios...? — Exclamou Euston ao mesmo tempo em
que se detinha bruscamente. O assombro se transformou em seguida em fúria
—. Você não é mais que uma dama de companhia! O que crê que está
fazendo? Abra imediatamente esta porta!
— Solte ela — repetiu Beatrice.
— De maneira nenhuma! — Respondeu Euston —. Vale uma fortuna.
Abaixe essa ridícula pistola. Nós dois sabemos que não apertará o gatilho.
Você é uma dama de companhia, não uma escolta!
— Estou falando muito sério — disse Beatrice, e empunhou a pistola.
Parecia surpreendido de que ela tivesse verdadeiramente a intenção de
disparar-lhe, entretanto, se recuperou e empurrou Daphne para pô-la diante
dele, como um escudo.
Uma sombra emergiu da escuridão por trás de Euston, que não viu a
mão enluvada de negro que o pegou pelo pescoço e apertou.
Incapaz de respirar, e muito menos de falar, soltou Daphne e lutou por
liberar-se. Porém, em poucos segundos deixou de resistir. Inconsciente,
derrubou-a e caiu estendido no chão.
O estalido de um chicote se ouviu do outro lado do alto muro. Os
cascos dos cavalos e as rodas ressonaram sobre as pedras. O veículo saiu a
toda pressa, pois o cocheiro com toda probabilidade havia compreendido que
algo havia saído muito mal no rapto planejado.
Daphne correu para o lado de Beatrice. Ambas observaram o homem
com a bengala de ébano e aço sair à luz da lua. Beatrice mantinha a arma
apontada para ele.
— É algo habitual que as damas de companhia andem por aí armadas?
— Perguntou.
A voz era firme e surpreendentemente calma, como se estivesse muito
acostumado que apontassem uma pistola para ele. E como se considerasse
quem a empunhava com uma interessante curiosidade.
— Quem é você? — Perguntou Beatrice —. Se o que pretende é ajudar
Euston em suas intenções, melhor será que pense bem.
— Asseguro que não tenho nenhuma intenção de raptar a senhorita
Pennington. Quero falar é com você.
— Comigo? — Estranhou, não podia fazer mais que olhar para ele,
enquanto uma corrente parecida ao pânico lhe invadia o corpo.
— Permita-me que me apresente — continuou ele, sem abandonar o
tom sereno —. Joshua Gage, para servi-la. Temos amigos em comum em
Lantern Street.
Quase imediatamente, Beatrice sentiu um grande alívio. Não estava se
referindo a seus dias com a Academia Fleming, mas sim de Lantern Street. Se
esforçou em concentrar-se, tentando recordar se havia conhecido alguém
chamado Gage no percurso de seu trabalho para Flint e Marsh. Sem resultado.
— Quem você conhece em Lantern Street? — Perguntou com suspeita.
— Às suas patroas, a senhora Flint e a senhora Marsh.
— Por desgraça, não temos nenhuma das duas aqui para fazer as
apresentações — apontou ela.
— Talvez isso sirva. — Introduziu a mão no bolso interior do casaco e
pegou um cartão —. Compreendo que não pode distinguir à luz da lua, porém
quando voltar à sala de baile poderá ler meu cartão. E se de manhã o levar a
Lantern Street, a senhora Flint e a senhora Marsh reconhecerãao o selo. Diga-
lhes que o Mensageiro do senhor Smith envia saudações.
— Quem é o senhor Smith?
— Meu antigo patrão.
Sentiu um estranho sussurro em seu interior, que lhe despertava os
sentidos. De pronto teve a inquietante premonição de que aceitar esse cartão
iria mudar sua vida para sempre, e que seria de uma maneira que não podia
nem imaginar. Não havia volta. Ridículo, pensou.
Deu uns passos cautelosos pela grama molhada e pegou o cartão que
ele estendia. Por um instante ambos tocaram o cartão branco. Um calafrio lhe
estalou na nuca como uma faísca elétrica. Pensou que estava imaginando
coisas, mas não podia evitar ter uma certeza intuitiva de que seu mundo
acabava de virar do avesso. Deveria ficar preocupada, talvez assustada. Em
lugar disso se sentia mais desperta, quase poderia dizer que estava excitada.
Uma idiota excitada, pensou. Depois de tudo, não tinha dúvidas em sua
mente de que o Mensageiro do senhor Smith era um homem muito perigoso.
Olhou o cartão. Havia um nome, e presumivelmente teria que ser do
misterioso senhor Smith, mas era impossível decifrar ao luar. Com as mãos
desprovidas de luvas, podia sentir o relevo de um selo estampado. Hesitou,
mas finalmente introduziu o cartão no bolso do vestido.
— O amanhã ainda está longe e há decisões que tenho que tomar nesta
mesma noite — disse, tentando parecer autoritária.
Notava que o equilíbrio do poder se inclinava tanto para ela como para
o senhor Gage. E isso não convinha em absoluto. Um passo em falso e ela
sabia que ele tomaria o controle total da situação, se é que já não o havia
tomado. Porém ela estava a cargo desse caso, e Daphne era sua
responsabilidade. Tinha que permanecer no comando.
— Totalmente certo, mas com certeza as explicações detalhadas nos
levarão a gastar um tempo que não temos. — Disse Joshua —. Tem que
devolver a senhorita Pennington à sala de baile antes de que comecem os
murmúrios.
Tinha razão. Daphne era sua principal prioridade. O mistério do senhor
Gage deveria esperar. Tinha que tomar uma decisão, e tinha que fazê-la
imediatamente.
— Suponho que conhecer as proprietárias de Flint e Marsh possa servir
como referência por esta noite — disse.
— Agradeço. — Joshua parecia divertido.
Desarmou a pequena pistola e se virou para subir dissimuladamente as
anáguas. Devolveu a arma à sua posição, abaixou a liga e acomodou as saias
do vestido.
E quando levantou a vista percebeu que Daphne a olhava, fascinada.
Joshua também a olhava, com as mãos aferradas no punho da bengala. A
expressão de sua cara era difícil de interpretar, porém Beatrice chegou à
estranha conclusão de que a ele, parecia muito encantador que andasse
armada.
À maioria dos homens isso pareceria chocante, pensou. De fato, teriam
considerado escandaloso.
Se concentrou em tirar a mordaça de Daphne e em desatar-lhe as mãos.
— Senhorita Lockwood! — Chiou Daphne quando pode falar —. Não
sei como agradecer-lhe! — Se voltou para Joshua Gage —. E a você também,
senhor! Nunca em minha vida me senti tão aterrorizada! E pensar que minha
avó tinha razão em tudo o que me advertiu! Que alguém iria tentar raptar-me!
Nunca pensei que esse alguém poderia ser o senhor Euston. Parecia um
cavalheiro tão correto...
— Bem, pois esse assunto esta concluído — disse Beatrice com
simpatia —. Você se sente tonta?
— Não, por Deus! Não vou desmaiar agora! — O sorriso de Daphne
era temeroso, porém decidido —. Não ousaria sucumbir a tal debilidade
depois de vê-la defender-me com uma arma. Sua atitude é uma inspiração para
mim, senhorita Lockwood!
— Agradeço suas palavras, mas temo que o senhor Gage tem razão —
repôs Beatrice —. Temos que voltar imediatamente ao salão de baile se não
quisermos ser motivo de falatórios. A reputação de uma jovem senhorita é tão
fácil de manchar!
— Tenho o vestido em bom estado, porém temo que minhas sapatilhas
de baile estejam bem estragadas — disse Daphne —. Estão molhadas e têm
abundantes manchas de grama. Todo mundo saberá que acabo de passar um
bom tempo nos jardins.
— Precisamente por isso as damas de companhia que cuidam das
jovens senhoritas nos bailes, levam umas sapatilhas de reserva — disse
Beatrice —. Tenho-as aqui, no bolso. Vamos, devemos nos apressar.
Daphne começou a andar e logo se deteve para olhar abaixo, para a
figura inconsciente de Richard Euston.
— E com ele, o que vão fazer?
Joshua se moveu ligeiramente entre as sombras.
— Não se preocupe com isso, senhorita Pennington. Eu me encarrego.
— Sobre tudo, tem que procurar que não o detenham — disse Daphne
—. Do contrário se montará um grande escândalo. Meus pais me enviariam
ao campo e me veria obrigada a casar-me com algum viúvo gordo e bastante
velho para ser meu avô. E isso sim, que seria uma sorte pior que a morte.
— Euston não irá à polícia — disse Joshua —. Desaparecerá.
— Como vai ser possível semelhante coisa? — Preguntou Daphne —.
Anda pela sociedade.
Joshua olhou a Beatrice.
— Não crê que tem que acompanhar a senhorita Pennington o quanto
antes?
Beatrice pensou que não se importava que Euston desaparecesse para
sempre, mas o fato de que Joshua se mostrara tão confiante em sua
capacidade para conseguir, lhe parecia algo mais inquietante. Sem dúvida,
nesse momento tinha outros problemas, e salvar a reputação de Daphne
Pennington era a prioridade.
— Você tem toda a razão, senhor Gage — disse —. Vamos, Daphne.
E se apressou a caminhar até a porta lateral da mansão.
— Até logo, senhorita Lockwood — ouviu o que dizia Joshua Gage
por trás, em um tom muito tranquilo.
Não pôde discernir se essas palavras aparentavam uma promessa ou
uma ameaça.
*****
Pouco depois, se encontrava em um lugar da sala com lady Pennington,
uma mulher pequena e elegante de cabelos grisalhos. Ambas contemplavam a
dança de Daphne na pista de baile, acompanhada por um jovem cavalheiro.
Estava radiante com suas novas sapatilhas de baile e com os olhos brilhantes
pelo mistério e a emoção.
— Olhem-na — disse lady Pennington com orgulho —. Ninguém diria
que há menos de vinte minutos sofreu uma tentativa de rapto. Faltou muito
pouco para que sua reputação ficasse arruinada por completo.
— Sua neta é uma mulher muito valente — disse Beatrice —. Não são
muitas as mulheres que reagem tão bem quando próximas a uma tragédia e
que conseguem voltar à pista de baile como se nada houvesse ocorrido.
— Isso é algo próprio do meu lado da família — comentou lady
Pennington com um ar de grande satisfação.
— Eu acredito que sim, senhora — replicou Beatrice sorrindo.
Lady Pennington olhava através de um monóculo com pega de ouro.
— Esta noite salvou a minha neta, senhorita Lockwood. Sempre estarei
em dívida com você. Suas patroas em Lantern Street me asseguraram que seus
serviços são bem pagos, porém quero que saiba que amanhã lhe enviarei um
pequeno presente pessoal. Confio em que aceite, como prova de minha
gratidão.
— Agradeço, mas isso não é necessário.
— Insisto. E não quero que se fale mais sobre este assunto.
— Grande parte do mérito é seu, senhora — contestou Beatrice —. Se
não houvesse contatado com Flint e Marsh quando teve suas suspeitas, tudo
se haveria concluído de uma maneira muito diferente.
— Não foi mais que um pressentimento que tive faz alguns dias —
assegurou lady Pennington —. Não era nada que pudesse afirmar
categoricamente, você me entende?
— Creio que é isso que chamam de intuição feminina, senhora.
— Chamem como quiser, de algum modo eu sabia que Euston não era
o que parecia, por muito que tenha logrado ocultar sua autêntica natureza e,
também, o estado de suas finanças. Os pais de Daphne, ao contrário, caíram
na armadilha. Minha neta é uma grande herdeira. Se Euston houvesse tido
êxito em comprometê-la, o escândalo haveria sido enorme.
— Mas é a senhora quem controla o dinheiro na família — disse
Beatrice —. Pelo pouco que pude comprovar nos últimos dias, não creio que
a senhora houvesse insistido em que Daphne se casasse com Richard Euston,
por muito que ele triunfasse em seu plano.
— Não, claro que não iria insistir — respondeu lady Pennington —.
Estava claro que o único que perseguia Euston, era o dinheiro. Eu me casei
em circunstâncias similares, e lhe asseguro que nunca submeteria a minha neta
a uma experiência tão endiabrada. Somente tenho que estar agradecida ao meu
marido porque teve a gentileza de se matar num acidente em uma corrida, faz
alguns anos. De qualquer modo, a reputação de Daphne seria arruinada se
Euston tivesse conseguido fugir com ela esta noite. Se isso ocorresse, seria
obrigada a deixar de lado a sociedade.
— Ela parecia muito alarmada com a possibilidade de lhe enviaram ao
campo. Estava preocupada com a perspectiva de ter que casar-se com alguém
a quem havia descrito como um viúvo com excesso de peso e tão velho que
poderia ser seu avô.
— Esse é lord Bradley — disse lady Pennington contendo uma risada
—. Sim, fiz tudo que estava ao meu alcance para aterrorizá-la com essa
ameaça, num esforço para que tivesse cuidado aqui na cidade. É uma garota
com muita energia.
— Obviamente, também se parece à senhora nesse aspecto.
— Sim. — Lady Pennington havia deixado de sorrir, e sua boca se
torcia em uma careta —. Porém não quero ver sua vida arruinada por esse
espírito tão energético. Está segura de que Euston irá deixar de ser um
problema?
Beatrice retirou o cartão de visita do bolso e voltou a examiná-lo. O
único nome que constava era somente o do senhor Smith. O selo gravado era
uma imagem elegante de um leão heráldico3.
Pensou na certeza de que lhe havia transmitido a voz de Joshua Gage
quando lhe havia assegurado que Euston iria desaparecer.
— Algo me diz que Richard Euston não irá incomodar mais a senhora,
ou sua família, nunca mais.
3
A Heráldica é a ciência referente à simbologia dos brasões de famílias nobres.
Capítulo 3
4
Carruagem pequena, leve e rápida, de duas rodas, capota móvel, e movida por apenas um cavalo.
Voltou a perder a concentração. Ele inalou lentamente e relembrou
seus anos de treinamento para tentar ignorar essa dor lancinante. Quando
recuperou o controle, agarrou a maçaneta da porta e a fechou.
Euston grunhiu, porém não abriu os olhos.
Joshua empunhou a bengala e a utilizou para dar um par de golpes no
teto. O veículo avançou.
Se perguntou se necessitaria levar máscara, e concluiu que não seria
necessário. As luzes interiores do carro estavam apagadas e as cortinas,
corridas. Somente se percebia o exterior por uma pequena fenda na cortina de
uma janela. A pouca luz que entrava no coche iluminaria a cara de Euston,
não a sua. Há muito tempo que havia aprendido a permanecer nas sombras.
Se apoiou no encosto traseiro e considerou até que ponto todos seus
planos tão cuidadosamente desenhados se haviam visto superados pelos
acontecimentos, e sobre tudo pelas ações imprevisíveis da senhorita Beatrice
Lockwood.
Essa noite não havia saído com a intenção de assistir a uma tentativa de
rapto. Beatrice havia sido sua presa desde o princípio. Mas os assuntos haviam
tomado um rumo inesperado.
Ponderou o que havia aprendido sobre ela no breve encontro. Somente
havia falado com Beatrice uns momentos no jardim, porém sempre se
considerou brilhante na hora de avaliar rapidamente o caráter de uma dama.
No passado, sua vida havia dependido um pouco dessa habilidade. Mas sua
intuição não era infalível, é claro. A perna ruim e a cicatriz eram evidências
dolorosas de que quando o fez de maneira espectacular. No havia meios
termos para o Mensageiro, certamente.
Estava seguro de que obteve pelo menos uma conclusão sobre Beatrice
Lockwood: iria ser um problema muito mais complicado do que ele havia
previsto.
Massajou a perna com ar ausente enquanto pensava nela. A impressão
inicial que lhe havia produzido poderia resumir-se em um nome, pensou:
Titania. Como a rainha das fadas do mito e da lenda do Sonho de Uma Noite de
Verão de Shakespeare, Beatrice era uma força a ter muito em conta.
Os olhos azuis como um lago, os traços delicados e o ar de frágil
inocência não o haviam enganado nem por um momento. Tão pouco o havia
feito esse vestido passado de moda. Há muito tempo foi treinado para olhar
por debaixo das capas de disfarces. Beatrice era uma excelente atriz, e lhe
reconhecia todos os méritos nesse aspecto, porém não havia conseguido
enganá-lo.
O que havia conseguido foi surpreendê-lo. Não estava seguro de como
se sentia por este feito em particular. Certamente, não era um bom assunto,
mas de algum modo sentia em seu interior que algo se movia, algo que havia
permanecido congelado em seu interior durante um ano. A antecipação. Tinha
vontade de encontrar-se de novo com Beatrice Lockwood.
Mas primeiro teria que acabar com o assunto que havia surgido de uma
forma tão inexplicável nessa noite.
Capítulo 4
5
Flint: rocha; pedra; duro como pedra; insensível.
— Não, realmente não havia indícios de que ele usava uma bengala —
disse Sara —. O que recordo é que sempre nos assustávamos quando ele
começava a falar da escuridão de onde estava, pois ele escolhia
cuidadosamente o local de encontro conosco. Nunca o víamos chegar e nunca
o vimos partir. Era como se ele mesmo fosse uma sombra.
— Eu — disse Beatrice. Pensou em como ele havia parado e em como
ele se apoiava na bengala —. Bem, sempre ocorrem acidentes. E imagino que
um homem com semelhante profissão deve atrair um grande número de
inimigos.
— Isso é muito certo — disse Abigail.
— Disseram que alguém a quem chamavam de o Mensageiro
trabalhava para o senhor Smith — disse Beatrice —. Não entendo o papel do
senhor Smith em tudo isso. Para que necessitava de um mensageiro?
Sara e Abby trocaram olhares. Logo, Sara se voltou para Beatrice.
— Abby e eu chegamos a uma conclusão sobre isso há muito tempo,
talvez Smith fosse um jogador no Grande Jogo, o que é como a imprensa e os
romancistas denominavam o negócio de espionagem.
— Quer dizer que ele era um espião? — Perguntou Beatrice.
— Um mestre dos espiões — disse Abigail —. O Mensageiro nos
assegurou que estava sob as ordens da Coroa, e nós não tínhamos razão
alguma para duvidar dele. Pelo que podemos deduzir, os domínios de Smith
se estendiam por toda a Inglaterra, através de Europa e mais além. Mas vai
saber o que se passa com as lendas.
— Nunca se sabe toda a verdade sobre elas. — apontou Sara.
— Estou a ver — disse Beatrice —. Suponho que isso convinha tanto
ao senhor Smith como ao seu Mensageiro. Nós sempre tememos mais o
desconhecido que o conhecido.
Sara fez uma careta.
— Na realidade, no caso do senhor Smith o que as pessoas sensatas
temiam era o seu Mensageiro, era o homem que o senhor Smith enviava para
caçar os traidores, os espiões que havia entre nós. O Mensageiro frustrava
todas as conspirações que houvesse, algumas delas realmente estranhas.
— E nós às vezes o ajudávamos — interviu Sara em tom de orgulho.
— Não entendo — disse Beatrice —. A que se referem com isso de
que eram conspirações estranhas?
— Quando o senhor Smith enviava o seu Mensageiro para investigar
uma conspiração ou um ato de espionagem, seguramente a ameaça estava
muito longe de ser algo comum, de qualquer forma o caso não seria o tipo de
caso que a Scotland Yard solucionaria. Sempre tinham um aspecto
paranormal.
Abigail deu uma risada forçada.
— Isso não quer dizer que o Mensageiro reconheceria nunca e nem
remotamente a ideia de que houvesse uma explicação paranormal nos casos
que investigava, entende? Não acreditava na energia oculta. Isso sempre me
chamou a atenção, porque me parecia óbvio que ele possuía talento nesse
sentido.
— É comum que as pessoas excluam o lado paranormal de suas
naturezas — apontou Sara —. Quando se vêem na obrigação de explicar suas
capacidades parapsíquicas sempre encontram outras explicações.
— E que tipo de capacidade tinha o Mensageiro? — Perguntou
Beatrice.
— Pelo visto seu talento não tinha comparação quando se tratava de
encontrar pessoas e coisas. Sempre o conseguia.
— Estão falando tanto do Mensageiro como do senhor Smith no
passado — interrompeu Beatrice —. Acaso lhes ocorreu algo?
— Nada se sabe — respondeu Abigail —. Há mais ou menos um ano,
fizeram circular rumores sobre a morte de Smith. No princípio não era mais
que isso, rumores, mas logo ficaram cada vez mais insistentes. Ao final, Sara e
eu chegamos à conclusão de que devia ser verdade.
— O Mensageiro desapareceu ao mesmo tempo — explicou Sara —.
Por isso acreditamos que ele também devia estar morto. O certo é que em
todos esses meses não contatou conosco. Se quer que diga a verdade, senti sua
falta.
— Bobagem — disse Abigail, um tanto agressiva —. Era um tipo
muito misterioso. Me fazia sentir incómoda em sua presença. — Fez uma
pausa —. Mas tenho que admitir, pagava bem pela informação.
— O certo é que, apesar da opinião que tinha sobre o paranormal —
explicou Sara com tristeza —, entendia o valor da visão científica na
investigação criminal. Sempre respeitava minhas opiniões, ao contrário de
certos inspetores da Scotland Yard que nunca prestaram atenção em minhas
opiniões, simplesmente porque sou uma mulher.
— Mas tem que reconhecer que, apesar do Mensageiro respeitar seus
conhecimentos científicos, não significa que não fosse extremamente perigoso
— disse Abigail.
— Sim, eu sei — contestou Sara —. De todos os modos tenho que
admitir que realmente analisei muito bem os materiais que ele enviava na
qualidade de provas.
Abigail olhou a Beatrice.
— Demos como certo que o Mensageiro havia sido assassinado pela
mesma pessoa que acabou com o senhor Smith. Era a única teoria que
permitia explicarmos como haviam desaparecido ao mesmo tempo.
Beatrice refletiu por um momento.
— E se o senhor Smith e o Mensageiro fossem a mesma pessoa? Isso
explicaria os seus desaparecimentos ao mesmo tempo.
Abigail e Sara se olharam.
— É uma possibilidade — admitiu Sara —, mas eu duvido. Sempre
tivemos a impressão de que o senhor Smith manipulava um extenso império
de espiões e de informantes. O Mensageiro, em troca, parecia concentrar-se
em investigações aqui em Londres.
— Tinham conexões que iam desde os clubes de cavalheiros mais
exclusivos, até ao mundo do crime — explicou Abigail.
— Parece óbvio que o homem que encontrei nesta noite, possa ser o
mesmo Mensageiro que vocês conheceram — disse Beatrice.
Abigail se endireitou de pronto.
— Talvez seja um impostor. Isso explicaria muitas coisas.
Possivelmente alguém tenha concluído que o Mensageiro autêntico esteja
morto, assim, achou seguro assumir sua identidade junto com as conexões
dele.
— Não creio que isso seja tão simples, querida — disse Sara —. Por
que alguém iria fazer algo assim?
— O Mensageiro do Leão era muito temido em certos meios —
prosseguiu Abigail —. Seguramente conhecia muitos segredos inconfessáveis,
alguns dos quais, sem dúvida, destruiriam pessoas muito poderosas. Também
há aqueles que matariam para adquirir a sua reputação, pois isso
proporcionaria a capacidade de intimidar e controlar os demais.
— Qual era exatamente a natureza de sua reputação? — preguntou
Beatrice —. Além de ser muito perigoso, quero dizer.
— Tal como te disse Abby, sempre encontrava o que se havia proposto
encontrar — disse Sara —. Sua outra característica era ser um homem de
palavra. Todos os que tinham trato com ele sabiam que se prometia algo, iria
cumpri-lo. Por outro lado, era incansável. Conhecê-lo era saber que o único
que podia deter-lhe era a morte.
— E isso foi exatamente o que, em nossa opinião, o deteve no final —
apontou Abigail.
— Desculpem a pergunta — interveio Beatrice —, mas como vocês
entravam em contato com o Mensageiro? Mencionaram que o ajudavam em
alguns de seus casos, não é mesmo?
Sara olhou para os volumes encadernados em pele que guardavam nas
paredes da sala.
— A princípio, o que o trouxe a nós foi a loja. Nós fornecíamos aos
clientes todo o tipo de assuntos relacionados com o ocultismo. Apesar de que,
pessoalmente, não dava muito crédito aos assuntos paranormais, embora
frequentemente estivesse envolvido nas investigações de crimes com
elementos desse tipo.
— O Mensageiro poderia reconhecê-lo ou não, mas certamente nós
reconhecíamos as conexões parapsíquicas na maioria dos casos — disse
Abigail —. A princípio utilizava nossa livraria para a investigação. Logo
descobriu o interesse de Sara pelas técnicas científicas de investigação.
— E uma coisa levou a outra, até que ao final, Abby e eu nos
convertemos em suas ajudantes ocasionais — concluiu Sara.
Abigail arqueou as sobrancelhas.
— Teve uma grande influência em nós, certamente. O fato de ajudá-lo
foi o que nos impulsionou a abrir nossa própria firma de investigação. Se
poderia dizer que se não fosse pelo Mensageiro seguiríamos pendentes dos
lucros de uma pequena livraria.
— Em outras palavras — disse Beatrice, divertida —, devo meu posto
atual como agente de Flint e Marsh ao Mensageiro.
— Sim, certamente, é uma maneira de enxergar as coisas — concordou
Sara.
Beatrice fez uma careta.
— Seguramente isso é irônico.
Sara pôs uma expressão pensativa.
— Não, não é.
— É coincidência? — Perguntou Abigail, claramente emocionada.
— Já sabe que eu não acredito em coincidência — retrucou Sara —.
Não, o que ocorreu foi uma sequência de pequenos sucessos com um
elemento em comum.
— E qual é o elemento? — Perguntou Beatrice.
— É um elemento paranormal. Você só tem que considerar os
ingredientes óbvios desta mistura: a carreira que você fez na Academia
Fleming, o trabalho que faz agora aqui conosco, o reaparecimento do
Mensageiro depois de todos esses meses, seu talento tão pouco comum e o
fato de que, frequentemente, investigava casos que continham um elemento
paranormal... — Sara negou com a cabeça, chateada —. Não pretendo poder
captar todos os elementos, mas esse elemento existe, e disso não tenho
nenhuma dúvida.
— Mas o que pode ele querer de mim? —perguntou Beatrice—. E
como pôde me encontrar no baile nesta noite?
— Não há como explicar o interesse dele sobre você — disse Abigail
incomodada —. Mas quanto a como possa ter descoberto em qual baile
estaria nesta noite, isso é fácil de explicar. Creio que eu tenha deixado
suficientemente claro: o Mensageiro sempre encontra o que busca.
Os olhos de Sara se escureceram.
— Obviamente estava buscando você, querida.
Capítulo 5
— Sr. Gage está aqui? Beatrice olhou para cima a partir dos jornais da
manhã, com um tom de excitação e medo em sua voz. Tem certeza, senhora
Rambley?
A empregada era uma mulher formidável na casa dos quarenta anos.
Sua silhueta era a de uma estátua grega. Não fez segredo de que se sentia
ofendida pela sugestão de que houve um erro na identificação do visitante.
— Esse é o nome que me deu o cavalheiro. - disse a Sra. Rambley ao
endireitar o corpo para inclinar o nariz imponente.
— Ele me disse que você estaria esperando.
— Mas não às dez da manhã! - protestou Beatrice.
Ela e a Sra Rambley estavam sozinhas na casa. Clarissa tinha saído uma
hora mais cedo para obter os detalhes de sua nova missão em Flint e Marsh.
A irritação da Sra. Rambley de repente tornou-se um ponto de
ansidade. Beatrice imediatamente sentiu-se culpada. Não era culpa da
governanta se Joshua Gage tinha decidido chegar a essa hora. A Sra. Rambley
ainda estava a adaptar-se às suas não convencionais patroas e ao seu não
convencional trabalho. Agora, ela estava preocupada com ter cometido um
erro, ao permitir que uma visita do sexo masculino fosse introduzida na casa.
— Eu vou dizer ao Sr. Gage que você não está em casa.- disse ela,
baixando a voz para um sussurro. — Na verdade, parece perigoso. Ele tem
uma terrível cicatriz no rosto, e eu não gostaria por nada no mundo de saber
como ele a conseguiu. Estou certa de que a história é capaz de gelar o sangue
de qualquer um.
Ela se encaminhou para a entrada, mas Beatrice parou.
— Não se preocupe, senhora Rambley. Não creio que tenha nenhum
sentindo pedir-lhe que saia. Pelo pouco que eu sei dele, não é fácil se livrar do
senhor Gage. Por favor, faça-o chegar ao salão. E desculpe-me por pedir para
fazer isso.
— Você não tem nada para se desculpar resmungou a Sra Rambley-.
Claro que é um pouco cedo para os visitantes.
— E, especialmente, visitas masculinas –pontualizou Beatrice. Não há
necessidade de se sentir constrangida por isso, Sra. Rambley. Eu sei o que
você está pensando, e eu concordo com você. Não é adequado. Mas, na
realidade, o que conta aqui é o que pode estar pensando Gage.
A face da Sra. Rambley traduziu a preocupação.
— Você acha que talvez isso seja um problema? Você acha que ele
pode querer impor-se a você de qualquer maneira? Eu posso enviar por um
agente da polícia, se quiser.
— Seria muito interessante ver como reage Gage a um agente da
polícia, pelo caminho, mas podemos nos dar ao luxo de evitar esse tipo de
experiência. E sim, eu tenho a intuição de que o Sr. Gage irá provar ser um
problema; no entanto, eu tenho certeza que não é um perigo para mim.
— Se está tão segura, senhorita…
Beatrice pensou sobre o que ela tinha observado nos passos de Gage na
noite anterior. As razões para tomar precauções com ele eram fundadas. Mas
não tinha medo. Ela estava expectante, sim, e também curiosa. Ambas as
emoções pareciam lógicas. Mas ela não podia explicar por que a alterava tanto,
bastar saber que estava ali, bem ali em casa esperando por ela.
— Sim, estou completamente segura.- disse.
— Perfeito, então.
A Sra. Rambley deixou a sala e entrou no corredor. Beatrice se levantou
e foi até à porta.
Ela ouviu a Sra Rambley levar Joshua para o salão. O som da voz do
homem, tão sério, baixo e intensamente masculino, tocou-a. Tal como na
noite anterior, ela tinha experimentado sentimentos semelhantes. Ela tinha-se
enganado em pensar que tudo mudaria à luz do dia.
A Sra. Rambley correu de volta para a sala de jantar.
— Vou colocar a bandeja de chá, senhorita.
— Não creio que seja necessário, começou Beatrice.
Mas a Sra Rambley correu para a cozinha.
Beatrice respirou fundo, endireitou-se, jogou os ombros para trás e
caminhou pelo corredor para o salão. Deliberadamente tentou fazer o menor
ruído, no que ela sabia que seria uma tentativa fútil de surpreender Joshua
desprevenido. O vestido que ela usava era simples, sem agitar as saias que
roçam no chão. As solas de couro macio dos sapatos amorteciam seus passos.
Ela fez uma pausa na porta e aguçou os sentidos, concentrando-se no
olhar do chão. Os passos de Joshua queimavam de energia escura, mas não
viu nada para alterar as primeiras impressões que tinha dele. Ele era um
homem de gelo e fogo, um homem capaz de grandes paixões, mas também
um controle apertado. Se uma mulher tivesse a infelicidade de ser presa no
inferno, com certeza que ele era o homem certo para ir buscá-la. Beatrice
sorriu. Ele sabia que estava lá.
Ele estava próximo da janela, com as duas mãos segurando o punho da
bengala. Ele estava de costas, sem dar qualquer sinal de que a ouviu entrar.
Ele estava bem vestido, ela pensou, mas de uma forma muito discreta.
Casaco e calças do cinza antracite mais escuro. Beatrice suspeitava que sempre
devia vestir em tons escuros. Certamente, lhe favoreciam.
— Bom dia, Sr. Gage. - ela disse com um tom educado, mas frio. - Eu
não o esperava para o café da manhã.
Ele virou-se suavemente para ela, como se apenas naquele momento
houvesse notado a sua presença. Pela primeira vez ela teve uma visão do duro
rosto e daquela cicatriz à luz do dia. Olhos vorazes de fascinante mistura de
verde e ouro. A centelha de diversão em seus olhos, que apareceu e
desapareceu, lhe disse que ele tinha conhecido exatamente onde estava todos
os passos ao longo do caminho da sala de estar até ao salão. E também que
tinha tido conhecimento de que Beatrice tentou aproximar-se silenciosamente.
―Minha mãe! Pensou. É como se estivéssemos brincando de gato e rato. É como se
nós pensássemos que estamos desafiando um ao outro. "
Joshua não a tinha tocado em qualquer momento. A coisa mais
próxima de um contato físico na noite anterior, no jardim, tinha acontecido
quando ele lhe tinha dado o seu cartão. E, no entanto, houve uma intimidade
perturbadora entre eles, ou pelo menos se sentia assim. Foi uma sensação de
que a afetou profundamente e fez-lhe acelerar o pulso. Ao longo do dia, ele
tinha tentado se convencer de que ele tinha sentimentos experimentados
foram explicadas pelo perigo e emoção causada pelos eventos. Mas agora ela
não estava tão certa de que fosse o motivo. Entre eles havia algo mais,
pensou. Algo inexplicável. Algo misterioso.
— Desculpe se eu interrompi o seu café da manhã, Senhorita
Lockwood, disse Joshua, com tom tão educado e frio como o utilizado por
Beatrice. — Sempre me levanto cedo, e às vezes eu esqueço que outros se
levantam mais tarde, especialmente depois do que deve ter sido uma noite
muito longa para você.
Por algum lugar misterioso voltou a regra de Roland Fleming: "Não
entrar no palco até que esteja pronta para o controlar e também controlar o público."
— Eu estou acostumada a ficar acordada até tarde. - disse ela, enquanto
caminhava na sala. — Na minha profissão isso acontece muito
frequentemente.
— Não me surpreende.
— Confesso que uma das muitas questões para permanecer desperta
tinha a ver com o que aconteceu com o Sr. Richard Euston.
— Mr. Euston não mais será um problema para Miss Pennington.
— Poderia ser, se alguém pesca seu corpo esta manhã e o leva para fora
do rio. Todo o mundo sabe que ele gastou muito tempo na companhia de
Miss Pennington. Seria uma vergonha se a sua corte foi rejeitada e que, em seu
desespero, tomou sua própria vida. Alguns podem até pensar que a senhorita
Daphne é uma jovem inflexível e cruel.
Joshua olhou-a por um momento. Beatrice pensou que ele parecia que
não estava acostumado a que as suas decisões e ações fossem questionadas.
— Ao vir para aqui parei na casa de Euston -continuou em tom de
descontração. — O proprietário informou-me que Euston fez a bagagem e
partiu para o continente.
— Fascinante. E tão conveniente para todas as pessoas afectadas.
— Tenho muita fé em soluções convenientes.
Ela sorriu e se sentou no sofá antes de dizer:
— No entanto, eu gostaria de saber o que terá feito o Sr. Euston
decidir sair do país tão rapidamente...
— E quão importante é isso?
— Dado o meu envolvimento pessoal no assunto, sim, isso importa-
me, Sr. Gage. Mas sente-se, por favor.
Ele considerou um breve momento de reflexão, em seguida, ele se
sentou em uma cadeira, colocando a bengala ao seu alcance.
— Agora mesmo, enquanto falamos, é muito discutido nos círculos
sociais que Euston não era o que parecia, disse Joshua.
— A sua situação financeira é desastrosa, tornou-se claro que é uma
fraude que busca uma herdeira com a intenção de reestruturar a sua economia.
Felizmente para todos os envolvidos, o Senhor Pennington descobriu a
verdade a tempo de proteger sua filha das atenções de um perdulário.
— Caramba! - Beatrice parecia cada vez mais admirada. — E eu acho
que você tem muito a ver com estas revelações, não é, senhor?
Desta vez, Joshua não respondeu. Ele apenas olhou para ela. Ela tinha a
certeza de que poderia detectar algum calor naqueles olhos.
— Claro, você é responsável pela circulação desses rumores, ela
continuou rapidamente. Eu tenho que dizer que estou muito impressionada.
Ele ergueu as sobrancelhas.
— Está mesmo?
— É uma brilhante solução para o problema. Euston não pode
continuar alternando na sociedade e a reputação de Daphne Pennington
permanece intacta. E o pai foi premiado com o mérito de ter descoberto
Euston. Sim, como eu disse, é brilhante.
— Obrigado. - Joshua disse secamente. Tem também a vantagem de
que é verdadeiro.
— Naturalmente. Bem, então, em nome da minha cliente, eu agradeço
pelos serviços prestados na noite passada.
Joshua inclinou a cabeça uma fração de um centímetro.
— Não faltava mais.
Na mente de Beatrice novamente passou a imagem de gato e rato. “Eu
não sou nenhum rato, Sr. Gage."
Ouviu um tilintar de bandeja com o chá no corredor. A Sra Rambley se
aproximou. Beatrice pensou que não havia escolha: teria de convidar Joshua a
ficar.
— Suponho que tomará chá. — disse com certa aspereza. - Penso que
a minha governanta está trazendo um tabuleiro.
O senhor Gage esboçou um sorriso de genuíno divertimento.
— Com muito prazer. Eu aprecio isso. Uma xícara de chá forte me
faria bem. Na verdade, me faria ainda melhor uma xícara de café forte
também. Como mencionou, a noite foi muito longa.
— Sim, foi, não é certo? Concordou Beatrice. - Bem, é engraçado, mas
eu estava a desfrutar de um café quando você chegou. Vou dizer à Sra.
Rambley para trazer o café. Tenho certeza de que ainda haverá suficiente.
— Não há necessidade de me lembrar mais uma vez que eu interrompi
o seu café da manhã, Senhorita Lockwood. Estou muito consciente de que me
estou intrometendo.
A Sra. Rambley apareceu, as faces coradas com o esforço: carregando
uma bandeja pesada com o melhor bule da casa e xícaras e talheres de prata.
Ela deixou sobre a mesa baixa, em frente ao sofá.
— Deseja que sirva, senhora?- perguntou.
— Bem, parece que o Sr. Gage prefere café, disse Beatrice. - Você se
importaria de trazer o que tinha preparado para o pequeno almoço?
— Agora mesmo, senhorita.
A Sra. Rambley lançou um rápido olhar curioso para Joshua e saiu para
a entrada. Um silêncio pesado parece ter-se instalado na sala de estar. Quando
ficou claro que Joshua não iria quebrá-lo, Beatrice decidiu que não ia falar
também. Os dois poderiam jogar esse mesmo jogo.
A Sra. Rambley retornou ao salão com a bandeja do café.
— Obrigada, senhora Rambley —disse Joshua.
— De nada, senhor —A senhora Rambley se ruborizou e olhou de
relance para Beatrice.
— Isto é tudo, obrigada—disse Beatrice.
— Sim, senhorita.
A empregada saiu. Joshua ouviu os seus passos no corredor. Então
levantou-se e atravessou a sala, com a sua bengala percutindo fortemente no
chão. Ele fechou a porta, voltou para a cadeira e sentou-se.
Beatrice olhou-o. Sua desconfiança aumentando, a cada momento. Era
óbvio que este homem não queria que a empregada pudesse ouvir o que ele ia
dizer.
Ela derramou café em duas xícaras e entregou uma com um pires a
Joshua. Quando os dedos dele tocaram a porcelana ela sentiu outro tremor.
Ela largou o pires tão rapidamente que foi um milagre que o café não se
derramasse. Mas Joshua não pareceu notar nada.
— Quem a ensinou a usar uma arma escondida entre as roupas,
Senhorita Lockwood? - ele perguntou.
— Um antigo patrão.- comentou ela.
— E não seria esse antigo patrão por acaso o falecido Dr. Roland
Fleming, proprietário da Academia de Ocultismo?
Por um momento, Beatrice sentiu falta de ar. Era como se o quarto
tivesse dado uma sacudida repentina. A xícara de café tremeu na mão e o
pulso disparou freneticamente; experimentou um pânico que não tinha
experimentado desde a noite em que ela tinha deixado a cena do crime de
Fleming.
Ela usou todas as suas habilidades de atuação para se dominar.
— Eu não sei do que você está falando, Sr. Gage. Ou talvez eu devesse
chamar-lhe Messenger?
— Eu vejo que você falou com a Sra. Flint e a Sra. Marsh.
— Eu as fiz sair da cama muito cedo esta manhã. Eu tenho que dizer
que eles ficaram bastante impressionadas quando viram o cartão que você me
deu. Obviamente você e seu ex-empregador, o Sr. Smith, deixaram uma
impressão indelével sobre elas.
— Isso foi há muito tempo.
— Bem, eu acho que passou apenas um ano desde que elas trataram
consigo a última vez.
— Passaram uns longos onze meses, duas semanas e quatro dias, disse
Joshua.
Ela olhou para o seu rosto marcado e depois para a bengala.
— Parece que você é um prisioneiro que está contando os dias
apontando-os na parede de sua cela.
— Que não está longe da realidade. - disse Joshua entre goles de café.
— A Sra. Flint e a Sra. Marsh tinham como certo que estava morto,
mas acho que você já sabe.
— Para dizer a verdade, não tinha considerado essa questão seja de
uma forma ou de outra.
— Mr. Smith também está vivo? Beatrice perguntou.
— Os problemas que temos em comum não dizem respeito a Mr.
Smith. - respondeu Joshua severamente.
— Assim, está vivo.
— Pode ser mais preciso dizer que possa estar retirado.-Ela olhou para
a bengala.
— Eu posso supor que você também se retirou durante o ano passado?
— Sim — contestou ele bebendo mais café.
Ela elevou os seus sentidos e voltou a visualizar as pegadas. A
iridiscência dos resíduos psíquicos disse-lhe que o retiro não tinha sido uma
experiência agradável para Joshua. Dada a natureza dos ferimentos, não era
surpreendente que houvesse dor física. Mas havia outra evidência de outro
tipo de angústia, também, que lançava uma sombra sobre o coração e os
sentidos.
— As minhas patroas me informaram que tinha investigado casos
estranhos que têm uma ligação com o paranormal, mas que você,
pessoalmente, não acreditava no que é denominado como tal. - se aventurou a
dizer Beatrice.
— Eu nunca escondi que considero aqueles que se dizem profissionais
parapsíquicos, uns sonhadores, quando não fraudes.
Ele olhou para ela, à espera de uma resposta. Ela sorriu e tomou um
gole de café.
Seus olhos se estreitaram.
— Falei algo incoveniente, senhorita Lockwood?
— Sinto muito. Ela virou-se para deixar a xícara no pires. - Temo que a
ideia de que o famoso Messenger, um supostamente brilhante pesquisador,
capaz de encontrar qualquer um... empregue a Sra. Flint e Sra. Marsh como
consultoras, sem perceber que ambas têm habilidades paranormais... Acho
que é bastante curioso.
— Um investigador supostamente brilhante?
— Não pretendia pôr em dúvida suas habilidades, senhor. Estou segura
que você é brilhante.
— E encontrei você, não é verdade?
— Sim, você me encontrou. - disse Beatrice friamente. — E se você
tiver feito todo este caminho só para me acusar de exercer de forma
fraudulenta, você perdeu tempo. Eu estive fora do negócio desde alguns
meses.
— Eu não me importo sobre as habilidades que você mostrou no palco
durante a sua associação com a Academia do Dr. Fleming. Estou certo de que
suas performances foram excelentes. Sempre admirei a capacidade e
competência de qualquer tipo.
— Já vejo.
— E já que estamos no assunto, eu não nego que a Sra. Flint e a Sra.
Marsh têm considerável poder de observação. Além disso, eu sempre respeitei
a direção científica que a Sra. Marsh dá às suas investigações. Más não vejo
nenhuma razão para atribuir essas habilidades a sentidos paranormais.
Não havia interesse em argumentar com ele. Como a Sra. Flint e a Sra.
March muitas vezes disseram, as pessoas que não acreditavam no paranormal,
sempre encontravam explicações alternativas para os eventos psíquicos.
— Onde estava durante o ano pasado senhor Gage? - perguntou.
— Tinha ido para o campo, ali teria gostado de ficar se não fosse por
você, senhorita Lockwood.
Ela colocou a xícara e pires com cuidado requintado.
— Se você não me localizou para dirigir contra mim uma acusação de
fraude, o que quer de mim senhor Gage?
— A verdade é um ponto de partida estupendo. Mas segundo a minha
experiência é o último lugar por que as pessoas desejam começar. No entanto,
vamos tentar, mesmo se apenas pelo interesse da novidade. Eu vou dizer o
que eu sei. Você pode confirmar, ou negar os fatos que eu vou expor.
— E por que eu iria cooperar com o seu jogo senhor?
Estudou-a com uma expressão avaliadora.
— Acho que vai me ajudar porque eu estou procurando uma pessoa
que tenha feito chantagem, e pelo momento, Senhorita Lockwood, de acordo
com toda a evidência, o chantagista é você.
Capítulo 9
Ela olhou para ele em silêncio. Pensava que estava preparada para
quase tudo, mas isso era a última coisa que ela poderia ter imaginado. Quando
finalmente conseguiu recuperar o fôlego, ficou de pé, com as mãos apertadas
em cada lado do corpo.
— Que me acuse de ser uma profissional fraudulenta é uma coisa –
disse — mas me acusar de chantagem, isso...
Ele não parecia afetado pela raiva que ela demonstrava.
— Você poderia sentar-se, por favor? — Ele perguntou quase em tom
de irritação —. Se você permanecer em pé, as boas maneiras me obrigaram
também a levantar-me, mas prefiro ficar sentado. — Ele fez uma pausa—. É
pela perna, você sabe.
— Oh. — Ela hesitou. Incapaz de fazer qualquer outra coisa. Tornou a
sentar-se no sofá—. Explique-se, eu imploro.
— Não há nada complicado na situação. Ou pelo menos não parecia
haver, quando comecei. Estão chantageando minha irmã.
— E isso me surpreende, certamente, mas estou segura de que não
conheço sua irmã.
— Você está errada, Senhorita Lockwood. Sim, que a conhece, mas
talvez não se lembre. Ela se chama Hannah Trafford.
— Não me lembro... — Beatrice parou, porque de repente lembrou-se
de uma mulher atraente e bem vestida, de cerca de trinta e poucos anos, cujas
marcas parapsíquicas irradiavam ansiedade. — É a Sra Trafford sua irmã?
—Assistiu a várias performances na Academia Fleming. Viu você no
palco algumas vezes e ficou tão impressionada, que pediu algumas horas de
visitas em privado.
— Lembro-me dessas visitas, mas nada aconteceu durante esse tempo.
E o que eu posso afirmar é que eu não usei qualquer informação que obtive
sobre a Sra Trafford para chantageá-la.
— Alguém na Academia descobriu o segredo mais bem guardado da
minha irmã durante o tratamento que certamente incluía hipnose.
— Mas eu nunca usei a hipnose durante as sessões privadas —ela disse.
O especialista em magnetismo era o Dr. Fleming. Tenho a certeza de que a
Sra. Trafford não marcou qualquer reunião com o meu patrão. Ela insistia
muito em ser atendida por mim.
— O que na minha opinião, faz de você minha principal suspeita,
especialmente porque o Dr. Fleming morreu.
— Eu não entendo nada sobre tudo isso. — ela sussurrou, chocada.
— Pelo que pude verificar, não havia outros funcionários na Academia.
— Não — concordou Beatrice—. Ou pelo menos não havia quando a
Sra. Trafford reservou suas horas comigo. Por um tempo, tivemos um médio
que dirigia sessões. Algo muito popular. Mas fugiu com a assistente do Dr.
Roland. Pelo que sei, eles estão agora em turnê pela América.
— Eu pesquisei este casal. Você está certa, eles estão na América. É
muito pouco provável que estejam chantageando pessoas aqui em Londres,
porque em suas instruções, os chantagistas marcaram o local onde se deve
fazer o primeiro pagamento: uma casa de campo chamada Alverstoke Hall.
— Eu nunca ouvi falar desse lugar —ela admitiu—. A verdade é que as
únicas vezes que frequento os círculos sociais é quando eu tenho uma missão.
— Lorde Alverstoke é um excêntrico cuja a famosa coleção de
antiguidades egípcias deixa em evidência o Museu Britânico, dizem.
Beatrice ficou confusa.
— E o que tem ele em toda esta história de extorsão?
— Eu não tenho ideia —disse Joshua—. Ainda não. Mas, pelo que eu
sei de Alverstoke, suspeito que o estão utilizando. Foi-me dito que é fácil
confundi-lo estes dias, e que parecia distraído. Ele organizou uma festa
campreste em sua casa neste fim de semana. É um encontro anual em que
mostra sua coleção. Alverstoke e minha irmã se conhecem de vista, mas ela
nunca tinha estado na lista de convidados dessas reuniões. Não que goste de
festas campestres ou antiguidades egípcias. Mas o chantagista indicou que a
esta tem que ir.
— Alverstoke Hall estará cheia de convidados —, disse Beatrice—.
Para um chantagista é uma cobertura perfeita, entre tantos suspeitos.
— Exatamente. Se assumirmos por um momento que você não é
especialista em hipnose...
— Não sou — disse Beatrice, olhando para ele fixamente.
— Então, vamos considerar outro cenário. Minha irmã me disse que se
lembra dos encontros com você. Quando chegava na Academia, o Dr.
Fleming sempre a fazia entrar em uma sala escura e lhe dizia que você iria
chegar a qualquer momento. Lembra-se das consultas...
Beatrice ergueu a mão para interromper.
— Um momento, senhor. Sua irmã me descreveu?
— Descreveu Miranda, a clarividente. Esta era você, Senhorita
Lockwood. Usava uma peruca preta e um véu espesso em sua atuação.
— Em outras palavras, a Sra. Trafford nunca me viu, não é? Ela não
conseguiria me identificar.
— Não. No entanto, estou ciente de que você era Miranda, então não
há nenhum sentido tentar negar— Joshua explicou calmamente—. Mas
vamos continuar. Em cada uma das sessões faziam entrar minha irmã para a
consulta. Você entrava. Falava com ela por um tempo. Mas agora começo a
pensar que talvez em uma ou mais ocasiões o Dr. Fleming voltava para a sala
para colocá-la em transe, e que assim poderia ter acedido ao segredo. Talvez
ele lhe induziu uma sugestão pós-hipnótica em que ordenava que esquecesse
que ele tinha entrado no quarto. Minha irmã, então, teria deixado a Academia
com a única lembrança de ter consultado com você.
— Isso não foi assim— insistiu Beatrice—. Estou absolutamente certa
de que a Sra. Trafford jamais pediu uma terapia hipnótica. O Dr. Fleming
nunca a tratou, nem na minha presença, ou de qualquer outra forma.
— Então, como foi que alguém na Academia poderia saber o segredo?
— Não sei. — Beatrice parou e tentou ordenar seus pensamentos —.
O que o faz tão certo de que quem está chantageando sua irmã estava
envolvido na Academia?
— A nota que a minha irmã recebeu indicava que seu segredo foi
descoberto por recursos paranormais na Academia. Eu descartei a ideia de que
os poderes psíquicos estavam envolvidos, naturalmente.
— Naturalmente.
Ignorou seu sarcasmo. Ou talvez ele simplesmente não tivesse notado
sua frieza, pensou Beatrice.
— Mas minha irmã há muito tempo está interessada no paranormal,
continuou Joshua —. Hannah consultou muitos profissionais nos últimos
anos e pertence a uma pequena sociedade de pesquisadores. Está convencida
de que, se inadvertidamente, revelou seu segredo, só poderia ser durante as
sessões privadas com você na Academia.
Beatrice estreitou os olhos.
— E por que eu sou a suspeita mais óbvia?
— Em sua opinião, você é uma das poucas pessoas com talento
psíquico verdadeiro que ela tenha encontrado no curso da sua investigação.
Os outros não parecem ser suspeitos. Um, está em um lar de idosos. Outra, é
uma mulher maior e doente, que não pratica profissionalmente e não aceita
clientes. Dois, são pessoas muito solitárias, que não recebem visitas. E o
último candidato ganha a vida como jogador. Dois anos atrás, ele foi para a
América, porque ele recebeu a notícia de que poderia fazer um monte de
dinheiro nas mesas de jogo do Ocidente. Só resta você, Senhorita Lockwood.
— Já vejo — disse Beatrice com uma careta.
— Talvez lhe interesse saber que há um novo inquilino nas salas
ocupadas por Fleming e você para o seu negócio. — Joshua terminou o café e
colocou a xícara e pires de lado —. Mas o proprietário foi amável em me
deixar averiguar os locais.
Ela o olhou com cautela.
— O que esperava encontrar lá, depois de tantos meses?
— Entre outras coisas, eu encontrei algumas velhas manchas de sangue
no chão do escritório — disse Joshua —. O sangue é algo muito difícil de
limpar, muito.
Ela estava prestes a tomar um gole de café, mas os dedos tremiam
ligeiramente. Recolocou a xícara no pires com grande cuidado.
— Também encontrei um antigo túnel de pedra atrás de um velho
armário no escritório— acrescentou Joshua, com tom amigável.
Ela respirou fundo.
— Já vejo que fez uma inspeção completa, o Sr. Gage. Aquele túnel foi
a maneira que eu usei para escapar na noite em que Roland foi morto. — Ela
fez uma pausa para permitir o fluxo de memórias. —. Roland e eu
guardávamos nossa bagagem de emergência apenas entrando no túnel, caso
tivéssemos que fugir de ladrões, ou clientes descontentes.
— É mais provável que Fleming temia que, mais cedo ou mais tarde,
uma das vítimas de extorsões poderia aparecer por lá, procurando por ele —
disse Joshua. Ele levantou uma sobrancelha. —. Ou talvez tivesse medo de
que alguém na mesma linha fosse tentar roubar seus segredos.
— Será possível? — Estava exausta demais para pensar direito —. Eu
não posso acreditar que Roland estava chantageando as pessoas.
As últimas palavras de Roland ecoavam em sua mente: "Não me deixe
morrer com esse peso na consciência. Eu tenho o suficiente do que me
lamentar. "
— Você diz que você e Fleming mantinham a bagagem de emergência
no túnel? — perguntou Joshua.
— Sim. E eu tive que deixar a dele lá, naquela noite. Eu não podia levar
ambas. Mas eu abri a bagagem de Roland para pegar o dinheiro que sabia que
ele mantinha dentro. — Beatrice hesitou. —. Percebi que tinha coisas
estranhas naquela mala. Um caderno. Um envelope cheio de fotografias.
Alguns cartões...
— Você não podia levar a bagagem de Fleming... — salientou Joshua
—. Talvez pegou um punhado de itens para realizar chantagem, juntamente
com o dinheiro, e deixou o resto?
Ela sentiu uma onda de raiva.
— Não! — exclamou —. Peguei o dinheiro, e nada mais. Eu me
perguntava por que ele manteve esses itens em sua bagagem, mas cheguei à
conclusão de que tudo isso eram memórias com grande significado pessoal
para ele. Mas o homem que matou Roland deve ter encontrado a mala quando
ele fez o seu caminho a partir do fundo do armário. Encontre-o e terá o seu
chantagista, o Sr. Gage.
— Isso é precisamente o que pretendo fazer — disse Joshua,
exaltado—. Com a sua ajuda, senhorita Lockwood.
Capítulo 10
6
ankh: símbolo de longevidade no Egito Antigo
http://www.dictionarist.com/english-portuguese/ankh
Para Beatrice, no entanto, parecia que a maioria das risadas estava fora
de sintonia e as conversações com tom muito alto. Sim, naquela sala se
percebia uma corrente densa e nervosa.
Ela se esforçava a todo o momento para manter o contato visual com
Hannah, (o que não era fácil com a multidão que enchia a sala), quando outra
forma de consciência passou em sua mente.
Virou-se abruptamente e viu surgir, de uma passagem escura atrás dela,
um idoso cavalheiro com uma barba espessa. Ele usava óculos de aro de ouro.
Tanto a jaqueta quanto as calças tinham um aspecto triste, velho e estavam
fora de moda. Se apoiava numa bengala de ébano, que parecia familiar.
— O decorador de Alverstoke parece ser louco, para usar tantos
detalhes e motivos egípcios. — disse Joshua.
— Oh meu deus, que susto que você me deu! — Beatrice o olhou —
por favor, não fique aparecendo desse jeito, fico muito nervosa.
— Algo me diz que seus nervos são fortes o bastante para suportar
alguma surpresa ocasional. — Olhou, através das folhas de palmeiras, para a
sala de recepção. — Onde está minha irmã?
— A última vez que a vi estava perto da grande estátua de Osíris,
conversando com um cavalheiro. — Beatrice se virou para olhar na multidão.
— Aí está, a do vestido azul.
— Sim, já a vi. Ela está falando com Ryeford. Eles são velhos amigos.
Joshua parou para examinar o punho de uma adaga dourada que estava
exposta em uma caixa de vidro nas proximidades. Finalmente, ele perguntou:
— Eu entendo que não houve nenhuma comunicação do chantagista,
não é?
— Exatamente, mas estava na hora de você aparecer. — disse Beatrice
— Onde você estava? Eu estava começando a me perguntar se alguma coisa
tinha acontecido. Nós não tínhamos falado sobre a maneira que usaríamos,
para entrarmos em contato com você, ou mesmo como contatá-lo se
recebermos instruções do vilão.
— Quando — perguntou Joshua. Falava com um tom ausente, com
toda a atenção sobre a sua adaga.
— O quê? — Perguntou Beatrice, com expressão confusa.
— Disse que «quando» recebermos as instruções do vilão, não «se». O
movimento será aqui provavelmente esta noite. O mais tardar amanhã à noite.
— Como você pode saber? — Ela perguntou curiosa. Parecia muito
seguro de si!
— É uma conclusão lógica. A festa campestre dura apenas três dias. O
chantagista vai querer tirar vantagem da multidão. — Joshua levantou a tampa
do mostruário — A lâmina do punhal é mais interessante. Gostaria de saber
se é de verdade. Ele enfiou a mão no armário.
— Não toque nisso! — Beatrice disse, incapaz de se conter.
Ele olhou para ela.
— Por quê?
— Porque é realmente autêntica. — Beatrice se recompôs — Eles a
têm usado para matar em mais de uma ocasião e está impregnada de uma
energia perturbadora.
— Você está dizendo que pode sentir esses detalhes com seus poderes
paranormais? — Ele perguntou com um olhar que demonstrava curiosidade.
— Mas, você não acredita em nenhuma palavra.
— Eu acredito é numa imaginação muito fértil. — Ele disse
educadamente.
— Por que eu deveria me preocupar? O senhor tem razão, vá em
frente, pegue a adaga, não me importo.
Ele olhou pensativo e deliberadamente fechou os dedos em torno do
cabo do punhal a barba falsa e as sobrancelhas espessas escondiam sua
expressão, mas ela poderia jurar que sentia o calor daqueles olhos quando seus
dedos entraram em contato com a lâmina tão antiga. Tinha certeza que ele
sentiu um pequeno tremor e uma formigação, mas ela sabia que ele jamais
admitiria tal coisa.
Ela esperou, pensando que iria colocar a arma no lugar e fechar a
tampa. Ao invés disso, ele levantou a arma contra a luz de um candelabro na
parede para examiná-la melhor.
— Que interessante! — Disse ele.
Ele admirou o punhal durante um momento mais e depois voltou a pô-
la no armário com alguma relutância. Ela tinha certeza que ele tinha recebido
um choque paranormal daquele objeto tão antigo, daqueles que fazem você
sentir arrepios de medo e pavor percorrendo sua coluna. Não, segurar aquele
punhal teve um efeito contrário nele. Havia sentido uma faísca de emoção.
Joshua fechou a tampa da caixa e se dirigiu ao banco. Jogou-se nas
almofadas de veludo e segurou com ambas as mãos o cabo da sua bengala.
— Qual é o seu quarto? — Perguntou.
— Eu estou com a sua irmã na ala leste no piso superior. Foi destinado
à Sra.Trafford os quartos no final do corredor. Meu quarto está situado
mesmo adjacente ao dela, e ambos têm vista para os jardins.
— Excelente. Eu posso ver as janelas da casa. Os métodos mais
simples são muitas vezes os melhores. Quando Hannah receber instruções do
chantagista acenda uma vela e coloque-a no peitoril da janela. Eu lhe respondo
com três flashes de uma lanterna para que saibam que eu vi o seu sinal. Então
vamos nos encontrar na biblioteca.
— Como conseguirá entrar na casa? Perguntou ela. Tenho certeza que
todas as portas são fechadas quando todos vão para a cama.
— Sou, de certo modo, um expert quando se trata deste tipo de coisas
— disse.
— Oh, sim, claro, você era um espião profissional. — O tom era cético
—. Não sei como pude esquecer. — Suponho que seja necessário habilidades
para abrir portas se você está nessa profissão.
— Você não tem uma boa opinião da minha antiga profissão, certo?
— Você merece a mesma opinião que demonstra com relação ao meu
trabalho anterior. O senhor terá que aceitar, você e eu estávamos no negócio
de fabricar ilusões, com a intenção de iludir as pessoas. Eu sigo essa mesma
linha. — Olhou com desprezo o traje fora de moda e a barba grande. — E
fica claro que você também.
Ele encaixou a acusação se inclinou e assentiu.
— Você está certa Srta. Lockwood. Parece que temos muito em
comum.
— Nem tanto, nem tanto. Apenas talento para enganar. Acredito que
suas habilidades não estejam enferrujadas. Seria embaraçoso para sua irmã e
para mim ser surpreendido esta noite tentando invadir a casa.
— Não se preocupe farei o possível para não incomodar. Ele observou
os objetos que rodeava. — Me pergunto quantas dessas antiguidades são
falsas.
— Algumas com certeza são. — Ela voltou a arrumar o xale em uma
inútil tentativa de manter-se aquecida. — Porém não todas.
Joshua estreitou os olhos.
— Você tem conhecimento sobre Antiguidades Egípcias?
— Nenhum, Sr. Gage. Mas eu não preciso de conhecimento para sentir
a energia escura que é difundida em várias dessas peças. Eu suspeito que você
também a sente, mas certamente você tem explicação e uma argumentação
lógica sobre essa sensação.
Parecia divertido e também curioso, segundo pensava Beatrice.
— Como poderia fazer exatamente isso? — Perguntou ele.
Ela moveu a mão em um pequeno gesto.
— Talvez você fale para si mesmo que a sua sensibilidade está acordada
simplesmente porque está no meio de uma investigação. Portanto, o seu
estado mental está em vigília total. Isto gera certo nível de excitação que por
sua vez explica qualquer sensação estranha que você possa sentir.
— É uma sequência lógica razoável, e não, porque se baseia numa
premissa falsa.
— Além disso, neste caso há um aspecto pessoal que explica
claramente, em parte pelo menos, a sua reação. Você está aqui para salvar sua
irmã de um chantagista. Para fazê-lo é forçado a trabalhar com uma mulher
em quem não confia plenamente. Algo assim com certeza tem que atingir os
nervos. Você prefere ter o controle de toda e de qualquer situação. Supõe-se
que eu sou um peão em seu jogo, mas algo em você, não esta seguro que sou
digna de sua confiança.
— Ah, Senhorita Lockwood. Nisso está errada.
— Verdade? Beatrice não se importou em esconder sua incredulidade.
— Sim, certamente você é um elemento imprevisível, mas não a
considero um peão em nenhum caso — apontou ele.
— Está falando sério? — Beatrice inclinou ligeiramente a cabeça para o
lado. — Então, como me vê?
— Eu ainda não tenho certeza. — Ele hesitou, como se esforçando
para encontrar uma resposta. — Eu ainda estou avaliando o seu papel neste
processo.
Pelo tom de voz parecia tão sério, que por pouco não começou a rir.
— Bem, acontece que eu também continuo a fazer muitas perguntas
sobre o senhor - Disse ela suavemente. — De qualquer forma, você dá-me
razão. Pode explicar a sua sensação incómoda sem recorrer ao paranormal.
— Em outras palavras, não pode provar que haja correntes de energia
paranormal emanando de algum dos objetos desta sala.
— Não — respondeu ela — Mas, não vejo nenhuma razão para tentar
lhe provar a existência do paranormal. A baixa opinião que eu lhe mereço, é
esmagadora claro, mas afinal de contas não tem importância.
Gage Sorriu.
— Tudo o que eu disse é que você tem uma imaginação muito fértil.
Isso não implica que minha opinião sobre você seja desfavorável. O que é
devastador para mim é que a minha opinião sobre você não tem nenhuma
importância.
— Por que teria importância, senhor? — Ela respondeu educadamente.
— Afinal, quando este caso, estiver concluído cada um continua no seu
caminho e nós nunca mais iremos nos encontrar.
— Qualquer um pensaria que está ansiosa para o momento da
despedida.
— Eu tenho certeza que você também — disse ela.
— Veja bem, não, eu não estou desejando que os nossos caminhos se
separem.
Ele parecia vagamente surpreso com suas próprias palavras.
— Isso é algo que eu acho difícil de acreditar, Sr. Gage.
— Ao contrário de você, eu acho que a nossa breve associação é algo...
estimulante.
Surpreendida, ela o olhou com suspeita.
— Tolice.
— Estou falando sério. — Ele esfregou a coxa distraidamente e
concentrou a sua atenção na multidão. — Você é uma mulher refrescante,
Senhorita Lockwood.
— Refrescante?
— Não sei se posso explicar.
— Não há necessidade de explicar-me, senhor — disse ela. — Eu
entendo muito bem.
Ele ergueu as sobrancelhas falsas.
— Você entende mesmo?
— O seu problema é que, você viveu uma vida muito chata durante o
ano passado. Não deveria ter ido para o campo quando você estava em seu
auge da vida. Mas enfim, o que você estava pensando?
O ar descontraído e zombeteiro desapareceu em instantes, voltando a
ter o olhar gelado.
— Quem diabos pensa que é, Senhorita Lockwood, para andar
oferecendo conselhos e fazendo perguntas pessoais?
Ela se surpreendeu com o tom incomum de sua voz. Sim, de fato, mal
distinguível, mas lá estava, como um tubarão sob as ondas. Durante sua
recente relação com Joshua, a única coisa que ela tinha aprendido era que ele
era um mestre do autocontrole. Era a primeira vez que o viu com um toque
de raiva ou impaciência.
Além disso, lembrou a si mesma, ele tinha adquirido um autocontrole
rígido de si mesmo por uma razão, um homem de desejos fortes tinha que ser
capaz de controlar esses desejos.
Talvez a questão mais interessante que gostaria de saber era o que podia
fazer para sair das sombras, mesmo que apenas por um momento. Seduzir um
tigre vivo dentro de uma gaiola auto-imposta era um jogo arriscado. Afinal de
contas, era o tigre que tinha as chaves.
— Bem, acontece que eu sou sua parceira em uma investigação, Sr.
Gage. — disse ela — E não se esqueça que, se nós compartilhamos este
trabalho é porque você sugeriu que eu poderia fazê-lo bem feito.
— Isso não lhe dá o direito de bisbilhotar em meus assuntos
particulares.
— Eu não estava bisbilhotando. Era uma simples observação.
— E dá conselhos.
— Lamento dizer que a necessidade de fazer isso é uma característica
lamentável própria do meu talento. — Ela disse. — Eu acho que você precisa
de algum tempo para se recuperar, tanto do ponto de vista metafísico, como
do ponto de vista físico, de suas feridas. No entanto, hoje, no decorrer de
nossa viagem a Londres, sua irmã me explicou que no ano passado ficou
praticamente confinado. Agora está começando a sair do seu isolamento e
voltando a ter uma vida normal.
— Faz muito tempo que não tenho uma vida normal.
Ela ignorou essa previsão.
— Você sabe muito bem o que quero dizer, senhor.
— Hannah explicou-lhe por que ela está sendo chantageada?
Beatrice hesitou, mas finalmente concluiu que não havia nenhuma
razão para esconder a verdade.
— Sim — disse.
— Imaginei — Assentiu com a cabeça.
— Eu tenho que lembrá-lo que não é a primeira vez que Hannah e eu
nos encontramos. Nós nos damos bastante bem. Uma questão de interesse
mútuo, é assim.
— Pelos interesses mútuos no ocultismo.
— Assim é. Mas acho que a Hannah acreditou em mim o suficiente
para confiar o seu segredo porque ela sabe que, dado o meu envolvimento
neste assunto, tinha o direito de saber.
Joshua permaneceu em silêncio por um momento, até que ele
perguntou.
— Suponho que ela disse qual era o meu envolvimento no assunto, não
é assim?
— Sim. Eu não posso dizer que me surpreendeu nesse papel. Afinal,
você é um profissional. Só posso dizer que estou feliz por você ter estado lá,
naquela noite, para enfrentar aquele homem terrível.
— Hannah e sua empregada estavam indo muito bem quando eu
cheguei, mas é difícil resistir a um homem enlouquecido e armado com uma
faca, que está determinado a matar.
Com memórias das linhas iridescentes ao redor do moribundo Roland
Fleming, um arrepio fantasmagórico percorreu o corpo de Beatrice.
— Isso foi o que Roland me disse naquela noite, quando ele estava
morrendo no chão do seu gabinete — ela sussurrou. — Ele disse que a minha
pequena arma não iria me ajudar na defesa contra um assassino determinado.
— Isto é verdade, principalmente quando o assassino é um profissional
treinado para matar e cumprir sua missão. — disse Joshua. — Só se tivesse a
chance de disparar antes. E se você tivesse errado o tiro, ou se não tivesse
acertado em um ponto vital, algo muito difícil, com uma pequena arma tão...
— Eu sei.
— Hannah está certa. — continuou ele — Você merece saber a
verdade. Mas quanto mais pessoas souberem desse segredo, maior o risco de
que mais cedo ou mais tarde, deixe de ser segredo.
— Eu lhe dou minha palavra de que não vou contar a ninguém.
Ele nada respondeu. Quando o olhou viu que parecia perdido em
pensamentos.
— Eu sei que não confia em mim senhor Gage. — disse ela franzindo a
testa — Não tem que ser rude. Lembre-se que de qualquer maneira eu
também sou uma profissional. Ao longo dos anos, tenho mantido os segredos
de meus clientes, tanto em meu papel como Miranda, como agora que eu sou
uma agente da Flint e Marsh. Quanto aos seus segredos, eu vou mantê-los
bem guardados também.
— Embora possa não parecer, sim, eu confio em você, Senhorita
Lockwood. — Sorriu — Não me pergunte por quê, porque eu mesmo não
sei, mas confio.
— Me acha engraçada, senhor?
— Não. Eu rio de mim mesmo.
— Porque decidiu confiar em mim?
— Algo assim.
— Se isso faz você se sentir melhor, — disse ela — cheguei à
conclusão de que eu também confio em você Sr. Gage. Por mais que eu não
encontre nenhuma explicação lógica.
Ele parou de sorrir.
— Nesse aspecto eu tenho uma certa reputação.
— Talvez, mas sua reputação não é o que faz com que confie em você.
Ele demonstrou expressão de surpresa.
— Por que você confia em mim, então?
Ela ofereceu-lhe seu melhor sorriso.
— Porque eu posso ler sua faixa energética e fico calma com o que
vejo. Mas, vendo por outro lado, eu sei que você não acredita nas explicações
paranormais, por isso, tentar explicar o meu raciocínio será perda de tempo.
— E o que você vê nas minhas faixas energéticas?
Ela o fitou de olhos arregalados.
— Você tem certeza que quer uma leitura psíquica feita por uma
médium fraudulenta?
— Acho que você é uma boa atriz, não uma boa enganadora.
— Aha! — Ela disse, rindo. — Essa foi uma boa resposta. Estou
impressionada.
— É verdade — Voltou a observar a multidão. — O que você vê nas
minhas impressões energéticas?
— De que serve a resposta de uma boa atriz?
— Não tenho nem ideia. Chame-o de curiosidade profissional.
Ela estava pensando se era apropriado dar a informação que ele queria
e, finalmente, decidiu que não havia nada de errado em satisfazer a sua
curiosidade. Não havia nada diferente entre ele e os outros clientes que teve
nos tempos da Academia. As pessoas, mesmo aquelas que não acreditavam
em seus poderes, sempre querem saber o que se passa nas suas faixas
energéticas. Neste caso Joshua, sem dúvida, atribuiria os resultados à sua
imaginação criativa.
Com certa preocupação, para aguçar os sentidos, estudou a energia
feroz que Joshua tinha deixado no chão. Havia várias digitais dele na caixa de
vidro e no punhal.
Linhas de uma luz escura e iridescente com um espectro de cores
indefinidas, forte e estável, irradiada a partir do resíduo de energia que
brilhava em tudo o que ele tinha tocado.
— Muito bem, Sr. Gage. — disse ela — Vejo poder, controle e uma
estabilidade mental subjacente.
— O que diabos é isso de "estabilidade mental subjacente"?
— Segundo a minha experiência, correntes fracas ou instáveis
geralmente indicam algum grau de estresse mental ou emocional. Todos nós
temos experiências ou conflitos emocionais, passamos por experiências que
incluem períodos de depressão, tristeza e ansiedade, todos nós sofremos
surtos de doença física. Há certas ondas altamente irregulares que parecem
permanentes ou são muito fracas. Elas estão submetidas à sua falta de
estabilidade. Estão entre os limites da loucura ou completa falta de
consciência. — Fez uma pausa — As do último tipo são as mais
preocupantes.
— Quantas vezes você encontra pistas como essa?
— São mais comuns do que pensamos. — Ela estremeceu — Acredite
em mim quando eu digo que eu não tenho que sair do meu caminho para
encontrá-los.
— E o que você viu nas pegadas do assassino de Fleming?
— A energia fria de um homem que não tem consciência. Não apenas
mata sem remorso algum, mas também sente satisfação e orgulho nesse ato,
um prazer perverso.
Joshua agarrou com as mãos o cabo da bengala. Ele parecia pensativo.
— Definitivamente um profissional.
— Você ainda não respondeu à minha pergunta, Sr. Gage. — ela disse
suavemente.
— Que pergunta?
— O que diabos estava pensando quando, há um ano, decidiu mudar-
se para o campo?
— Pensava que não tinha mais as qualidades e os atributos anteriores
que me tornaram um bom espião.
— Por conta do estado de seus ferimentos? É por isso? — Ela olhou
para a bengala. — Que absurdo! Eu entendo que tenha certas limitações
físicas que podem exigir outra maneira de trabalhar, mas as suas capacidades
analíticas permanecem intactas. — Ele examinou por um momento a barba
que cobria a cicatriz.
— E, obviamente, ainda tem talento para esconder sua identidade.
Joshua não desviou o olhar das pessoas ao seu redor.
— Na minha decisão de me aposentar pesaram outros aspectos, além
de minhas feridas, muito embora elas também fossem importantes.
— Estou vendo.
Ele não ofereceu nenhuma outra informação. Simplesmente
permaneceu ali sentado observando os convidados elegantes em suas
andanças ao redor das antiguidades.
E isso era tudo o que ele ia dizer, ela pensou. Ela não sabia o que
aconteceu durante a sua última missão, mas com certeza lhe causaram danos
emocionais além dos ferimentos físicos.
— Permita-me salientar, Sr. Gage, que a razão para que você se esteja
sentindo revigorado, não tem nada a ver comigo. — Disse Beatrice — É
porque foi chamado para um caso de extraordinária importância pessoal. Que
lhe deu um objetivo. Você precisava de um alvo adequado para sair do
isolamento, uma razão para voltar a usar seu talento.
— Revigorado — repetiu como se estivesse falando consigo mesmo —
Você pode estar certa. Ultimamente me sinto mais... Revigorado, sim.
Havia um pouco de calor nos seus olhos. A mulher que havia dentro
dela reconheceu isso de imediato. Ela ficou chateada quando percebeu que
estava corando.
— Eu não estou surpresa em ouvir-lo, senhor. — Ela respondeu,
mantendo um tom enérgico em suas palavras. — É óbvio que, deixando de
lado o que você precisa, você tem um corpo sólido e uma mente ágil,
deixando de lado a necessidade da bengala. Permanecer no campo por um
longo período de tempo deve ser deprimente para um homem como você.
— É uma teoria interessante — disse ele. Fazendo uma pausa antes de
acrescentar — Sim, admito que tem sido um longo ano. Na verdade, aqui
sentado com você, agora, estou bem ciente do quão longo foi o ano passado.
Algo em seu tom de voz demonstrava uma insinuação sexual, que fez
com que Beatrice sentisse uma sacudida em seus sentidos.
— Sim, bem, de uma forma ou de outra, eu tenho certeza que podemos
continuar com a nossa colaboração, porque no momento podemos dizer que
os nossos objetivos são os mesmos. — ela disse rapidamente.
— Você quer dizer que sempre que pudermos trabalharemos juntos? É
isso que você quer dizer? — ele perguntou.
— Sim, exatamente. Eu entendo que a sua prioridade é pegar a pessoa
que está chantageando sua irmã. Se verificar que a mesma pessoa é quem
contratou um assassino para matar o Dr. Fleming e me sequestrar por razões
desconhecidas, vou ser muito grata.
— Eu não quero sua gratidão, Sra. Lockwood.
Pronunciou cada palavra em tom gelado. Antes que pudesse responder,
Joshua pegou o bastão e se levantou.
— Está de saída, Sr. Gage? — perguntou ela — Espero que não seja
por minha causa.
— Esta conversa tem sido muito... interessante, sim. Mas acho que já
trocamos elogios demais para uma única noite, você não acha? Se seguirmos
assim, creio que em breve teremos atacado nossas respectivas gargantas. Isso
não deixaria de ser engraçado, mas certamente seria prejudicial para a
investigação. Boa noite, Senhorita Lockwood.
— Boa noite Sr. Gage.
Ela também poderia soar gelada em suas palavras.
— Eu estarei de olho na luz em sua janela — disse ele.
E desapareceu nas sombras da passagem que tinha usado para chegar
ali mais cedo. Por um momento, Beatrice pensou que podia distinguir o som
da bengala ressoando nas paredes, do final do corredor. Até finalmente não
escutar mais nada.
Quando teve a certeza que ele tinha ido embora, ela se levantou e foi
até a vitrine que ele tinha aberto.
Preparando-se, ela levantou a tampa de vidro e aguçou os sentidos. O
cabo da arma brilhava com a intensa energia das digitais de Joshua.
Com cuidado, ela colocou a mão dentro da vitrine e tocou o cabo
dourado.
Pequenos solavancos iguais faíscas foram sentidas nos seus dedos.
— Céus! Ela sussurrou. Isso dói.
Se apressou em tirar a mão e fechar a tampa da vitrine.
Quando tinha visto aquela lâmina já tinha percebido que estava
saturada com energia escura e com raiva da antiga violência. Mas as centelhas
invisíveis que giravam em torno de Beatrice naquele momento não eram nada
antigas. Joshua tinha-as deixado lá. Ela descobriu que era muito estimulante
para os seus sentidos, muito masculino. E sim, muito vigoroso.
Capítulo 16
— Pois, pelo que vejo não sofri alucinações — disse Beatrice. Olhava
as ardentes pegadas de pé no chão —. O homem que matou Roland esteve
realmente aqui nessa noite. Esperou aí, detrás da grande estátua. Quando
chegou o chantagista, cruzou a sala até ao altar e ali o matou.
— Mas provavelmente antes, utilizou o incenso para incapacitar a sua
vitima — observou Joshua —. E voltou a usá-lo quando você chegou.
Ambos estavam muito próximos do sarcófago na grande sala, e
tentavam encaixar cada uma das peças para obter uma imagen do que havia
ocorrido durante a noite. As lâmpadas estavam acesas, mas com pouca
intensidade, como preferia Beatrice. Joshua não havia discutido quando ela
havia explicado que era mais fácil distinguir os evanescentes rastros da energia
nas sombras. Sabia que ele não acreditaria que, na realidade, pudesse distinguir
as pegadas paranormais do assassino e de sua vítima, mas de qualquer forma,
estava disposto a deixá-la fazer sua parte na investigação como acreditava
oportuno.
O olhou e viu que estava examinando a tigela de alabastro que continha
os restos de incenso.
— Tenho pendentes duas perguntas a fazer — disse Beatrice —.
Primeira, como é que não ficou afetado pela fumaça na noite passada?
— Fiz o mesmo que no ano passado ao sair do laboratório em chamas.
Cobri o nariz e a boca com um trapo e tentei não respirar mais que o
estritamente imprescindível. Não demorei muito tempo em encontrá-la e tirá-
la da sala. Foi questão de dois ou três minutos, não mais.
— Faz com que pareça tão simples!
— Quando entrei na sala percebi restos do preparado. Isso me
concedeu tempo para tomar precauções.
— No meu caso isso me afetou todos os meus sentidos — disse
Beatrice —. Era uma sensação mareante, além de começar a ter alucinações.
Era como se as estátuas adquirissem vida.
— Se voltar a sentir o cheiro disso em alguma ocasião, não deixe de
cobrir o nariz e a boca e tente se agachar para permanecer próxima ao solo.
— Por quê?
— Os vapores se comportam como a fumaça, a fumaça sobe.
— Claro, é verdade. Deveria haver pensado nisso.
— Para você foi tudo uma surpresa — disse ele, muito sério —.
Ademais, teve que lutar com a impressão de encontrar o corpo. Esse tipo de
coisas pode resultar muito desorientador.
Ela sorriu.
— Obrigado por sua compreensão. Se não me houvesse encontrado
quando o fez, suspeito que agora não estaríamos falando aqui. — olhou as
manchas de sangue no altar e estremeceu—. Isso me leva à segunda pergunta.
Joshua se aproximou do altar.
— Qual? — perguntou.
— Como sabia que eu estava em perigo? Ninguem entrou nem saiu
desta sala. O chantagista foi assassinado antes de eu chegar e quando entrei, o
assassino já estava dentro. Como pode saber que eu necessitava de ajuda?
— Às vezes temos a sensação de que as coisas que planejamos estão
saindo mal.
— Sim — disse ela —, conheço essa sensação. Se chama intuição.
— Se tem a intenção imediata de dizer-me que a intuição é um talento
próprio da vidência, suprima esse esforço.
— Não crê você que é algo de natureza paranormal?
— Não, não creio — acrescentou ele —. Na realidade é uma
combinação de observações, algumas tão ínfimas que nem sequer somos
conscientes delas, e também entra em jogo a percepção inconsciente das
conexões entre essas observações.
— Alguém poderia denominá-lo percepção vidente —disse ela.
Mas ele ja não a escutava mais.
— À noite, quando vigiava a porta desta câmara, percebi uma corrente
de ar muito fraca, mas detectável no corredor exterior. Procedia deste local.
— Uma corrente de ar, verdade? Isso que nos indica?
— Isso nos indica que aqui há outra porta, mais, provavelmente,
alguma escada para os serventes.
Ela olhou ao redor.
— Pois eu não vejo que haja outra porta.
— Vejamos, repasse comigo o que ocorreu na noite passada, tudo que
houve desde o princípio.
Ela obedeceu. Quando acabou a breve narração, se deteve frente ao
altar.
— Aqui é onde estava quando os vapores alteraram meus sentidos —
disse —. Acabava de ver o cadáver e havia reparado nas pegadas ocultas do
assassino. Senti outra presença na sala. Me pareceu que uma das figuras vinha
até mim.
— Qual figura?
— Era o Deus com cabeça de chacal, Anubis, em sua forma
parcialmente humana. — Beatrice enrugou o nariz —. Sei que agora parecerá
ridículo, mas nesse momento haveria jurado que era uma estátua que havia
cobrado vida.
— Ou um homem com uma máscara — sugeriu Joshua.
— E por que razão o assassino colocaria uma máscara?
— Por duas razões: a primeira, para proteger-se do incenso.
— Sim, claro. E a segunda?
— Para infundir terror em suas vítimas. Sabe que o incenso está
fazendo com que as vítimas tenham alucinações. A máscara sugere ainda mais
medo. A alguns professionais agrada esse aspecto do assassinato.
Ela tomou ar.
— Entendo.
— O que mais observou? — perguntou Joshua.
— Temo que não sirva de muito. Vi que Anubis vinha até mim. Falava
com sotaque russo. Disse algo assim como: «Acreditavas que poderias escapar
de mim, zorra?» E logo vi a luz atrás de você, avançando. O assassino se deu
conta de que o haviam descoberto e fugiu. Isso é tudo o que me lembro.
— Agora temos que encontrar a origem da corrente de ar que detectei.
Disse que a voz vinha detrás de você?
— Sim.
— O assassino não passou por mim em sua fuga, de modo que a
segunda porta tem que estar em algum lugar.
Joshua começou a caminhar próximo à parede. Beatrice sabia que tinha
a intenção de fazer uma busca metódica para encontrar a origem da corrente.
Aclarou a garganta.
— Creio que posso economizar seu tempo — disse.
Ele a olhou.
— Como?
Beatrice baixou o olhar para perceber o rastro de pegadas que ainda
borbulhava no solo.
— Creio que encontrará a porta ali, detrás daquela figura de granito.
Ele levantou as sobrancelhas. Ao principio Beatrice pensou que iria
fazer caso omisso de suas palavras e que seguiria buscando à sua maneira. Mas
para sua surpresa, ele cruzou a sala para ir até à grande estátua e desapareceu
atrás dela.
— Aqui há uma porta de serviço — anunciou —. Excelente
observação, Beatrice.
— Obrigado — disse ela —. O fiz com os meus sentidos
parapsíquicos.
Ele reapareceu de novo por detrás da estátua de granito e disse:
— Me inclino a pensar que você mesma sentiu a corrente à noite e que
a registrou no subconsciente e que tenha se aproximado por meio de seu
sentido comum.
— Voce é muito engenhoso para explicar como normal tudo o que é
paranormal.
— Isso é porque as explicações normais geralmente não bastam.
— Mmm...
Caminhou pelo labirinto de antiguidades para reunir-se com ele.
Quando rodeou a figura de granito viu que a porta havia sido desenhada para
ser o mais discreta possível. Situada atrás de um monte de objetos, fazia com
que fosse quase indetectável de qualquer ângulo da sala. Uma grande pintura
fúnebre se apoiava diretamente na parte frontal.
— O assassino conhecia a existência desta porta — comentou Joshua
—. Isso implica que conhece esta grande sala mais do que se estivesse aqui
somente de passagem. Clement Lancing se movia em círculos dos
colecionadores. Seguramente conhecia a Alverstoke.
— Crê que Lancing é o assassino?
— Não — respondeu Joshua —. Lancing não é hábil com uma adaga.
Ele teria utilizado outros métodos. O mais provável seria o veneno.
Joshua pegou a maçaneta da porta e a fez girar. A porta se abriu com
certa facilidade. Beatrice se encontrou olhando uma sucessão de degraus de
pedra que desapareciam na escuridão. As pegadas do assassino vibravam na
escada.
— Estava furioso — disse ela —. Se percebe a raiva que sentia porque
o haviam interrompido antes de poder acabar seu trabalho.
Joshua contemplou a escuridão durante um momento.
— Vou pegar uma lanterna — anunciou —. Vamos a comprovar onde
nos leva.
Capítulo 26
Uma espesa névoa havia chegado depois da chuva. Cobria a rua. A luz
dos postes nas ruas do povoado fazia com que a bruma brilhasse, como se
tivesse origem numa energia misteriosa. A fria luz da lua era como um halo,
não parecia natural.
Ultimamente houve ocasiões em que quase se havia visto obrigado a
crer nas coisas paranormais, pensou Joshua. Mas não era o estranho efeito das
lâmpadas de gás e da lua na névoa, o que o fazia pensar na existência da
energia oculta, mas era como uma sensação que experimentava sempre que
estava próximo de Beatrice. Sempre que pensava nela. E isso ocorria durante a
maior parte do tempo, ele compreendeu. Inclusive quando estava
concentrando no assassinato e em um louco, ela se encontrava todo o
momento ali, no limite de sua consciência.
O pouco familiar sentido da mútua intimidade ia mais além da atração
sexual, mais além da admiração pelo espírito e a inteligência de Beatrice, mais
além de tudo o que havia experimentado nunca com outra mulher. Quando na
última noite a havia beijado, havia sido como se no mais profundo de seu ser
se abrisse uma porta, como se houvesse entrado no reino em que as coisas
eram diferentes. O mundo do outro lado dessa porta era de algum modo mais
brilhante e mais interesante em todos os sentidos.
Pela primera vez desde a explosão de sua virilidade juvenil, reconhecia
que era capaz de paixões intensas.
No início de sua relação com Beatrice havia dito a si mesmo que, se não
estava envolvida na trama de chantagem, corria grave perigo, e que ele tinha a
responsabilidade de protegê-la. Mas algo em seu interior lhe dizia que o que
sentia era mais que uma responsabilidade: era o seu direito de cuidar dela.
O que era uma tolice, claro. Ele não tinha direitos alguns no que dizia
respeito a Beatrice. Mas havia uma parte dele que não estava convencida
disso.
Afastou para um lado aqueles pensamentos e olhou na direção oposta
da calçada, amparado pelas sombras da rua empedrada junto à pousada. Que
estava naquela calçada apagou o cigarro e andou até à pousada, deslizando
como um fantasma através da névoa brilhante. Era impossível distinguir suas
feições nessa névoa espessa, mas estava claro que se tratava de um homem
alto e magro e que se movia com a cautela de um predador.
Cruzou a rua e se dirigiu com rapidez até A Raposa Azul. Suas pisadas
ressoavam debilmente no profundo silêncio. Ia vestido com um casaco longo
e um chapéu de copa baixa enterrado até as sobrancelhas. Carregava um
pacote em cima do ombro.
No lugar de subir pela escada, que havia na porta da frente da pousada,
girou pela estreita calçada de pedra em que Joshua aguardava.
Durante uns segundos pareceu que ia acender outro cigarro antes de
entrar nas profundas sombras que inundavam a rua. Isso facilitaria as coisas,
parecendo mais simples e eficiente, segundo pensou Joshua. Assim aquele
homem não veria que havia alguém mais na proximidade.
Mas justo antes de que o desconhecido entrasse na rua estreita, se
deteve. Evidentemente havia notado que algo não ia bem, de modo que
retrocedeu um passo e levou a mão à bolsa.
As circunstâncias estavam longe de ser as ideais, mas Joshua sabia que
não tinha outra opção a não ser mover-se com a máxima rapidez. O homem,
que levava uma bolsa, iria vê-lo logo que acendesse o cigarro.
Joshua avançou tão rápido e silenciosamente como lhe foi possível,
mas, apesar do grande cuidado que colocou na manobra, sua bengala fez um
ruido surdo na superfície de pedra.
— Quem anda aí? — inquiriu com acento inconfundivelmente russo.
Deixou a bolsa no chão e sacou uma navalha do seu bolso.
— É de você que me advertiram, não é mesmo? Você é aquele que usa
uma bengala. Ele me disse que era muito perigoso. Eu lhe disse, que um
aleijado não seria um problema para o Homem Osso. Por sua culpa tive que
interromper meu trabalho a noite passada. — Avançou, agachado. A arma em
sua mão emanou uma luz estranha.
Joshua apoiou uma mão na parede da pousada e traçou um arco com a
bengala dirigindo-a ao braço em que o homem sustentava a navalha. Não
tinha ponto de apoio necessário para acertar-lhe um golpe que quebrasse a
mão, mas contava com o efeito surpresa. O assassino não esperava que a
bengala fosse chocar-se com a arma.
A bengala atingiu o antebraço do assassino com força considerável. O
homem lançou um grunhido, soltou a navalha e retrocedeu com a graça fluida
de um bailarino.
De imediato voltou a deslizar para a frente com a intenção de
recuperar a arma.
Joshua seguiu apoiando-se contra a parede e com a bengala lançou a
navalha para longe, fora do alcance do assassino.
O assassino retrocedeu. Joshua esperava que sacasse outra navalha. Mas
em lugar disso alcançou a bolsa e buscou em seu interior.
Joshua voltou a avançar.
O assassino extraiu um objeto da bolsa e jogou ao chão, aos pés de
Joshua. Se ouviu um ruído de cristal rompendo-se e surgiu um vapor umido.
Joshua instintivamente conteve o fôlego e retrocedeu para fora do alcance dos
vapores. Mas não pôde evitar todos os seus efeitos. Os olhos lacrimejaram e
sentia que a garganta se fechava. Esperava não haver respirado algum veneno
mortal.
O barulho de uma janela que se abria em algum lugar sobre a rua
reverberou na noite.
— Ei, você aí em baixo! — gritou Beatrice —. Pare ou eu atiro.
Outra janela se abriu imediatamente.
— Alerta! Ha um ladrão na rua!
Joshua saiu da área onde atuavam os vapores e alcançou uma zona em
que o ar não estava contaminado, mas o som de uns passos ao longe a toda
pressa lhe informava que sua presa escapava. Não havia possibilidade de
alcançá-lo. Uma pessoa com problemas de locomoção tinha que aceitar suas
limitações físicas.
Nesse momento, tinha vontade de dar um golpe na parede mais
próxima com a maldita bengala. Mas sabia perfeitamente, inclusive quando a
raiva e a frustração ameaçavam transbordar, que ceder a um impulso assim
implicaria provavelmente a destruição da bengala. Se isso ocorresse, ele seria
ainda menos capaz de proteger Beatrice.
E protegê-la era tudo que importava para ele.
Se abriram mais janelas. Joshua olhou para cima e viu o dono da
pousada, em camisa e com seu gorro de dormir. Beatrice e outros hóspedes
olhavam para a rua.
— O que houve aí em baixo? — perguntou o estalajadeiro —.Tenho
que chamar a polícia?
— Faça o que achar mais conveniente — respondeu Joshua —. Mas
duvido muito que consiga encontrar o criminoso.
— Um ladrão, verdade?
— Um que queria ser, mas cheguei a tempo para impedi-lo.
— Lhe agradeço pelo esforço, senhor, mas não deveria ter tentado
detê-lo por sua conta — disse o estalajadeiro —. Deveria ter-me chamado.
Como poderia um homem com bengala deter a um criminoso?
— Uma pergunta excelente — disse Joshua.
Recolheu a bolsa, e voltou para a pousada coxeando.
Capítulo 31