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Jardins de cristal

Amanda Quick
SINOPSE

Depois de ser vítima de um ataque nas ruas de Londres, Evangeline


Ames alugou uma casinha de campo nos arredores da cidade. Quando sua vida
volta a correr perigo, ela procura refúgio nos jardins de Crystal Garden, uma
propriedade próxima que exerce sobre ela uma atração sobrenatural. Ali é
resgatada pelo proprietário, Lucas Sebastian, que insiste em manter o assunto
em segredo, pois já existem muitos rumores sobre um tesouro enterrado em
seus jardins.
Ainda que Lucas e sua nova vizinha percebam imediatamente suas
respectivas faculdades psíquicas, bem como sua mútua atração, devem
primeiro enfrentar algo mais urgente: quem tentou matar Evangeline voltará a
tentá-lo...
Para meu esposo, Frank,
com todo meu amor
1

O ruído surdo que a fechadura fez ao ser arrombada ressoou como


um trovão em meio ao profundo silêncio que cobria Fern Gate
Cottage. Evangeline Ames reconheceu o barulho imediatamente. Já
não estava sozinha em casa.
Sua primeira reação foi ficar completamente imóvel embaixo
das cobertas. Talvez não fosse nada. A casa era velha. As tábuas do
chão e o telhado rangiam e gemiam muitas vezes durante a noite.
Mas ainda que tivesse repassado mentalmente as possibilidades
racionais, sabia a verdade: eram duas horas da madrugada, alguém
tinha entrado à força na casa e não era provável que estivesse ali
atrás de dinheiro. Não tinha o suficiente para tentar a algum ladrão.
Tinha estado uma pilha de nervos a tarde toda, sua intuição
estava lhe enviando sinais sem nenhum motivo aparente. Algumas
horas antes, quando havia caminhado até o povoado, não tinha
deixado de olhar para trás uma e outra vez. Havia estremecido ao
ouvir sussurros insignificantes no espesso bosque que margeava
todo o caminho. Enquanto fazia suas compras na concorrida rua
principal de Little Dixby, tinha sentido os pelos da nuca ficarem
eriçados. Tinha a sensação de estar sendo observada.
Havia lembrado a si mesma que ainda estava se recuperando
do terrível ataque que tinha sofrido há duas semanas. Estiveram a
ponto de assassiná-la. Portanto tinha motivos de sobra para estar
com os nervos à flor da pele. Além disso, sua novela não ia nada
bem e estava chegando o dia em que teria que entregá-la. Não se
atrevia a atrasar. Tinha muitos motivos para estar tensa.
Mas agora sabia a verdade. Sua intuição psíquica estava
tentando avisá-la já tinha horas. Esse era o motivo de não ter
conseguido dormir esta noite.
Uma corrente de ar frio percorreu o corredor, vindo da
cozinha. Soaram passos fortes. O intruso não fazia questão de
manter-se em sigilo. Estava convencido que a tinha presa. Tinha que
se levantar da cama.
Separou as cobertas, jogou as pernas para fora da cama e se
colocou de pé. O chão estava gelado. Calçou seus sapatos de couro e
pegou sua bata.
O ataque que tinha sofrido nas semanas antes a tinha deixado
precavida. Ao alugar aquela casa, tinha analisado todas as possíveis
rotas de fuga. Ali, no seu quarto, sua maior esperança era a janela
situada na altura de sua cintura. Dava ao pequeno jardim que ficava
em frente á porta de madeira. Do outro lado desta porta tinha um
caminho que serpenteava através do bosque escuro até a velha casa
de campo conhecida como Crystal Garden.
Uma tábua solta no piso rangeu sob a bota do intruso. Ele
estava indo direto para o quarto. Isso resumiu o assunto. Com
certeza não estava ali por dinheiro e sim por ela.
Não tinha sentido mover-se sem fazer barulho. Abriu as
estreitas janelas sem fazer caso do chiado das dobradiças e deslizou
pela abertura. Com sorte o intruso não passaria por ela.
— Onde pensa que vai, mulher estúpida? —A voz áspera do
homem rugiu da porta. Tinha um forte acento dos bairros pobres de
Londres… — Ninguém escapa de Sharpy Hobson.
Não tinha tempo para perguntar como um bandido das ruas
de Londres tinha conseguido chegar até Little Dixby nem porque
estava atrás dela. Evangeline decidiu que procuraria as respostas
depois, se sobrevivesse.
Pulou ao chão e correu o quanto pode pela pequena selva de
gigantes narcisos do jardim. Muitas plantas ali eram maiores que
ela.
E pensar que tinha ido ao campo para descansar e se recuperar
do antigo atentado... Pensou consigo mesma.
—Maldita seja, volte aqui! —gritou Hobson da janela do
quarto. — Quer deixar isso mais difícil, né? Quando te pegar, vou
brincar muito com você, já verá. Morrerá bem depois, te prometo.
Muito tempo depois.
O tom de fúria na voz de Hobson indicava que era impossível
ele passar pela janela. Teve uma leve esperança quando não ouviu
passos atrás dela. Hobson foi obrigado a sair por uma das portas da
casa, o que lhe dava uma certa vantagem, o tempo suficiente, assim
esperava, para chegar ao único refúgio possível.
Não teria escapatória pelo bosque que margeava o caminho.
No verão, as grossas folhagens das copas tampavam a luz prateada
da lua cheia não deixando ver o caminho. Ainda que tivesse uma
lanterna, não conseguiria se orientar por ali. Sabia o quanto era
impenetrável àquela vegetação que crescia nas proximidades da
velha abadia porque a tinha explorado bastante sob a clara luz do
sol. As árvores e as ervas daninhas que rodeavam as ruínas eram
muitas e davam ao lugar um toque sobrenatural.
Encontrou o caminho que levava ao jardim e começou a correr
como alma perseguida pelo diabo. Parou somente para abrir o
passador do velho portão de madeira e recomeçou a correr. Sabia
que Hobson poderia vê-la quando saísse da casa.
Ouviu fortes pisadas às suas costas.
—Peguei você, maldita. Agora irá provar da ira de Sharpy.
Se arriscou a olhar por sobre o ombro e viu a escura e imensa
figura se aproximando. Tinha gritado, mas isso só tinha servido
para perder mais ainda seu fôlego. Correu mais ainda, com o
coração acelerado.
Os velhos muros de pedra que protegiam os vastos jardins de
Crystal Garden pareciam impenetráveis à luz da lua. Graças às
explorações anteriores, sabia que os portões de ferro estavam
fechados com chave.
Não tinha sentido seguir todo o muro até a entrada da extensa
casa de campo. Não tinha tempo. Hobson já estava alcançando-a.
Seus passos estavam cada vez mais próximos, quisera poder ouvir
somente sua própria respiração, mas não era o caso.
Chegou ao muro da antiga abadia e correu até onde um monte
de folhagens que ocultava uma parte irregular no muro de pedra.
Tinha descoberto esse espaço alguns dias atrás e tinha se dado o
capricho de explorar discretamente a propriedade antes que o novo
dono ocupasse a casa. Tinha conseguido se conter. Sua curiosidade
estava ligada de certo modo à suas faculdades psíquicas, e o
mistério de Crystal Garden a tinha fascinado desde o início. Essa
tinha sido a razão que a levara a alugar uma casa em Fern Gate
Cottage em vez de outras propriedades bem melhores e mais
próximas a Little Dixby.
Que o aluguel da casa fosse bem mais barato que o das outras
também tinha influenciado, mas logo descobriu porque a casa era
uma pechincha. Os moradores locais tinham medo da abadia e do
bosque que a rodeava.
Parou em seco ante o monte de folhas. A abertura irregular do
muro estava há um pouco mais de meio metro de altura. Era
bastante grande para que uma pessoa pudesse passar por ela,
mesmo que fosse um homem corpulento como Hobson. Mas se a
perseguisse até os jardins, talvez tivesse alguma possibilidade.
Olhou para trás pela última vez. Hobson ainda não tinha
dobrado a esquina do muro, mas o faria a qualquer momento. Podia
ouvir seus passos e sua respiração entrecortada, mas seguia sem vê-
lo. Contava com poucos segundos.
Passou uma perna por cima da pedra, depois a outra e estava
então nos jardins de Crystal Garden.
Perdeu o fôlego, paralisada pela cena fantasmagórica que a
rodeava. Tinha visto aqueles insólitos jardins à luz do dia o que já
foi suficiente: sua energia era estranha e sua vegetação não era
normal. Mas à noite os elementos paranormais eram inconfundíveis.
A folhagem do imenso jardim brilhava com uma luminosidade
fantasmagórica. E no mesmo lugar, onde segundo diziam, ficavam
situada às ruínas dos antigos banhos romanos, a luz psíquica era tão
escura e ameaçadora como uma violenta tempestade.
Graças aos guias que havia comprado da senhorita Witton, a
proprietária da livraria de Little Dixby, sabia que Crystal Garden
estava dividido em duas seções. A região mais exterior, onde se
encontrava, recebia nos mapas o nome de Jardim Diurno. Rodeado
por paredes que formavam um elaborado labirinto, onde estava à
parte interior dos jardins, chamado de Jardim Noturno.
Nas quase duas semanas que vinha vivendo em Fern Gate
Cottage, não tinha se atrevido a entrar nos jardins muito além de
onde estava esta noite. Mas sabia instintivamente que na natureza
peculiar do lugar, uma vez ultrapassado o muro que tinha mais a
frente, teria mais possibilidades de escapar da perseguição de
Sharpy Hobson.
Ouviu Hobson separar as folhas e maldizer.
—Ninguém faz Sharpy Hobson de idiota. Vou ensiná-la a me
respeitar, já verá isso.
Evangeline lançou um olhar ao redor enquanto tentava
recordar a distribuição dos jardins. O labirinto seria sem dúvida o
melhor lugar para se esconder. Com certeza suas faculdades
psíquicas a impediriam de se perder. Mas na expedição anterior que
tinha feito aos jardins, tinha descoberto que a entrada ao labirinto
estava fechada com chave.
Caminhou até o gazebo, seu elegante teto em forma de
abóboda e suas colunas reluziam com uma tênue luz azul que
parecia emanar da própria pedra da qual estava construído.
Acelerou o passo sem chegar a correr. Queria que seu perseguidor a
visse.
Finalmente, Hobson conseguiu pular o muro, grunhindo e
maldizendo. Ela parou e voltou-se, perguntando-se até que ponto
ele veria a luz paranormal. Se fez silêncio enquanto Hobson,
surpreso, assimilava onde havia entrado.
—Que demônio é isso? —murmurou enquanto abria mais os
olhos.
Então a viu, e imediatamente esqueceu-se da estranha
luminosidade que o rodeava. Tirou a faca da bolsa funda que levava
na cintura e lançou-se sobre ela.
— Acreditava que tinha se livrado de mim, verdade?
A moça correu para o gazebo. Seu objetivo era a lagoa cuja
superfície brilhava a frente deste. Com sorte, Hobson não poderia
vê-lo até que fosse muito tarde. Sua intuição lhe dizia que se ele
caísse nas reluzentes águas escuras, deixaria de interessar-se por ela.
Aquelas águas tinham algo assustador.
Estava tão concentrada em seu plano para atrair Hobson até a
lagoa que não foi consciente da presença de um homem de jaqueta
negra até que ele saiu da penumbra e foi iluminado pela lua. Parou
na frente dela, impedindo o passo.
—É costume do lugar visitar as pessoas numa hora tão
avançada assim? —perguntou.
Tinha uma voz tão escura como a superfície da lagoa e parecia
carregada com uma energia assustadora também. Todos os sentidos
de Evangeline ficaram alertas. Em meio às sombras estranhas
projetadas pela lua ficava difícil distinguir claramente o rosto do
homem, mas isso não era necessário. O reconheceu no mesmo
instante. A verdade é que estava segura que o reconheceria em
qualquer parte. Lucas Sebastian, o misterioso novo proprietário de
Crystal Garden.
Parou, presa entre Lucas e Sharpy Hobson.
—Senhor Sebastian —disse. Faltava o ar e seu coração batia
com força. Esforçou-se por identificar-se, pois temia que não a
reconhecesse na penumbra, com os cabelos caídos soltos pelos
ombros e vestida só com um robe e uma camisola. Afinal só tinham
se visto uma única vez. . — Perdoe-me por ter entrado assim. Sou
Evangeline Ames, sua inquilina de Fern Gate Cottage.
—Sei quem é você, senhorita Ames.
—Disse que viesse vê-lo se tivesse algum problema. Pois agora
mesmo acontece que tenho um.
—Já vejo —respondeu Lucas.
Na mesma hora apareceu Hobson, que parou em seco e moveu
ameaçadoramente a faca.
—Afaste-se e eu não te machucarei. Só quero a moça.
Lucas o olhou de uma forma que só poderia ser descrita como
curiosidade indiferente.
—Entrou sem autorização em minha propriedade. É muito
perigoso fazer isso aqui, em Crystal Garden.
—O que acontece com este lugar? —Hobson olhou ao redor
intranquilo.
—Não ouviu as histórias? —perguntou Lucas. — Por estes
lados todos sabem que esses jardins são encantados.
—Sharpy Hobson não tem medo de fantasmas —mofou
Hobson. — Além disso, não ficarei o bastante para ver nenhum. Só
quero a moça.
—Para que quer a senhorita Ames? —quis saber Lucas.
Lucas falou como se tivesse apenas uma curiosidade sobre o
destino de Evangeline. Não parecia muito interessado, ainda que
continuasse a observar o que Hobson fazia.
—Isso não é assunto seu —grunhiu Hobson. — Mas vou dizer
que vale um bom dinheiro morta e não vou deixar que ninguém se
interponha em meu caminho.
—Não parece entender a situação —disse Lucas. — A
senhorita é minha inquilina, e portanto, está sob minha proteção.
—Estou te fazendo um grande favor tirando-a de cima de você
—bufou Hobson. — Pelo que me disseram, é uma vagabunda.
—Quem contratou você para matá-la? —perguntou Lucas.
Hobson começava a dar mostras de incerteza. Era evidente que
as coisas não sairiam como estava acostumado.
—Não vou perder mais tempo falando com você —disse, e se
lançou contra Lucas com a faca preparada. — É um homem morto.
—Pois me parece que não —falou Lucas.
Uma energia escura e assustadora iluminou o gazedo.
Evangeline teve apenas tempo de dar-se conta de que quem a
gerava era o próprio Lucas, antes que Hobson soltasse um grito de
terror animal.
—Não, deixe-me! —gritou. Soltou a faca e se agarrou a algo
que só ele via. — Deixe-me. —Girou sobre si mesmo e saiu correndo
às cegas pelo interior dos jardins.
—Por todos os demônios! —disse Lucas em voz baixa. —
Stone?
Uma segunda figura surgiu das sombras.
—Sim, senhor.
A voz soou como se emanasse das profundezas de uma imensa
caverna subterrânea, e tinha o mesmo acento dos baixos bairros
londrinos que Sharpy Hobson.
Graças à estranha luz que emanava das folhagens, Evangeline
viu que a Stone cairia bem o nome de «pedra». Assemelhava-se a
um bloco de granito e parecia ser tão imune quanto o mesmo a
todos os elementos. A luz da lua reluzia em sua cabeça raspada. As
sombras e a estranha luminosidade fantasmagórica que os rodeava
deixava difícil calcular sua idade, mas parecia estar perto dos trinta.
—Veja se consegue achar Hobson antes que penetre no
labirinto —pediu Lucas. — Mas se ele chegar a ir tão longe, não se
atreva a segui-lo por nenhum motivo.
—Sim, senhor.
Stone começou a correr sem fazer nenhum ruído, algo
verdadeiramente estranho em se tratando de um homem tão
corpulento.
Lucas se voltou para Evangeline.
—Está bem, senhorita Ames?
—Sim, acredito que sim. —Evangeline tentava recobrar a
calma, mas estava bem difícil. — Não sei como lhe agradecer.
Um grito agudo, queixoso, ressoou de algum lugar das
profundezas dos jardins. O alarido sobrenatural deixou Evangeline
gelada, paralisada, e sem fôlego.
Terminou tão bruscamente como começara. Evangeline tremia
tão violentamente que mal podia manter-se em pé.
—Sharpy Hobson... —sussurrou.
—Evidentemente, Stone não chegou a tempo de impedi-lo de
entrar no labirinto —disse Lucas.
—Está...? —Engoliu em seco e tentou novamente. — Está
morto?
—Hobson? Com certeza estará logo. É uma pena.
—Uma pena? —balbuciou Evangeline. — É só isso que tem a
dizer sobre a morte de um homem?
—Gostaria de tê-lo interrogado. Mas como isso parece
impossível agora, você e eu vamos ter uma pequena conversa.
—Não vejo o que poderia dizer, senhor Sebastian.
—Nossa conversa não será longa, senhorita Ames. Agora
entrará na casa comigo, vou te servir um copo de algo que seja útil
para seus nervos, e me contará o que estava fazendo em meus
jardins a esta hora da noite e porque um homem armado com uma
faca tentava matá-la.
—Pois é justamente o que estou tentando dizer. Não tenho
ideia do motivo de Hobson ter me atacado.
—Então teremos que deduzir juntos.
Tirou sua jaqueta e a colocou nos ombros de Evangeline antes
que ela pudesse pensar. Quando os dedos de Lucas roçaram sua
nuca, a emoção de tê-lo tão próximo fez com que ela estremecesse. A
jaqueta ainda conservava o calor de seu corpo, aspirou sua
fragrância masculina, o que despertou seus sentidos de uma forma
desconhecida.
Stone apareceu.
—Sinto muito, senhor. Viu a porta aberta e correu diretamente
para o fundo. Com certeza pensou que era à saída dos jardins.
—Depois me encarregarei do corpo —falou Lucas. — Primeiro
preciso falar com a senhorita Ames e depois vou acompanhá-la de
volta à sua casa.
—Sim, senhor. Precisa de mais alguma coisa?
—No momento, não.
—Muito bem, senhor.
Stone sumiu nas mesmas sombras de onde surgiu. Evangeline
viu esfumaçar-se e se perguntou se estaria no meio de algum sonho
maluco, quisera tudo isso fosse uma alucinação. Sim, isso era
possível, decidiu. Suas chefes e suas amigas estavam convencidas
que o ataque que tinha sofrido há dias atrás tinha afetado seus
nervos. Deviam estar com a razão.
Lucas segurou seu braço com uma mão forte. O contato físico a
fez estremecer. Seus sentidos continuavam extraordinariamente em
alerta. Agora podia perceber com claridade a aura de Lucas.
Intensas ondas de energia gelada e quentes a deixaram sem fôlego.
—Relaxe, senhorita Ames —disse Lucas. — Não vou te fazer
mal.
Não tinha nada em sua aura que indicasse que mentia. Assim
foi que Evangeline decidiu que estava a salvo, ao menos por
enquanto. Tranquilizou-se e relaxou seus sentidos psíquicos.
—Por aqui, senhorita Ames. —Fez com que rodeasse um
grande arbusto. — Ande com cuidado. Neste jardim existem muitos
perigos, inclusive as rosas.
A energia que tinha vislumbrado em Lucas a advertia que
seguramente ele era o que havia de mais perigoso naqueles
peculiares jardins.
Sharpy Hobson tinha parado de gritar, mas Evangeline sabia
que durante muito tempo ouviria em seus pesadelos o eco de seus
últimos gritos de horror.
2

Evangeline sentou-se tensa, na borda de uma das cadeiras gastas da


biblioteca; a lapela da jaqueta de Lucas parecia grudada em seu
pescoço. Ficou observando enquanto ele servia dois copos de
brandy.
A luz a gás da lamparina revelava uma grande mesa de
mogno, duas poltronas de leitura e algumas mesinhas auxiliares. Os
móveis, junto com as almofadas puídas e descoloridas e as grossas
cortinas que cobriam as janelas, tinham passado de moda a décadas
atrás. As estantes estavam abarrotadas de livros encadernados em
couro. Por toda a sala estavam espalhados vários ensaios científicos
e instrumentos, inclusive um microscópio e um telescópio.
Lucas Sebastian era um mistério não só para ela, mas para
todos os habitantes de Little Dixby. Tinha chegado há três dias para
instalar-se em Crystal Garden e imediatamente se converteu no
motivo de especulações e falações.
Evangeline o tinha conhecido um dia antes na livraria
Chadwick, a única da cidade. Lucas tinha entrado pouco depois que
ela tinha cruzado a porta. Apresentou-se a ela e a proprietária, Irene
Witton.
A loja de livros era algo novo para Irene, que tinha comprado à
loja da viúva do antigo proprietário alguns meses antes. Mas era
uma mulher ambiciosa e saltava a vista que estava encantada por ter
Lucas como cliente. Não tinha nada melhor para os negócios do que
o boca a boca de que o proprietário da casa mais importante de toda
a região fosse seu cliente e comprava em seu estabelecimento.
Evangeline, em troca, tinha sido incapaz de interpretar com
clareza suas próprias reações perante Lucas. Quando ele entrou na
loja, algo fez com que se sentisse inquieta. Tinha sido uma reação
instintiva, intuitiva. Ainda que não a tivesse tocado, tinha percebido
que tinha grandes poderes psíquicos. Desde essa hora, tornou-se
impossível ignorar a troca sutil de energia na atmosfera da loja. Seus
pelos da nuca ficaram eriçados e uma estranha mescla de
entusiasmo e receio percorreu seu corpo.
—Acredito que sou sua inquilina senhor Sebastian —disse.
—Exato, senhorita Ames —respondeu Lucas com um sorriso.
— O administrador de meu tio me informou que tinha alugado Fern
Gate por um mês. Estava muito feliz. Segundo me disse, não
conseguia alugar aquela casa há anos. Espero que esteja desfrutando
de sua estadia aqui, em Little Dixby.
Esteve próxima a dizer que, fora uma ou outra entrada ilícita
nos jardins da velha abadia, nunca havia se sentido tão aborrecida
em toda sua vida. Mas naquele momento, sem dúvidas, isso tinha
deixado de ser verdade. Mas dificilmente poderia dizer que sua
percepção dos prazeres da vida campestre tinha mudado por
completo quando ele entrou na livraria Chadwick.
—O campo tem sido muito... Estimulante —comentou em
troca.
Lucas ergueu as sobrancelhas escuras e uma expressão que
bem poderia ser definida como regozijo iluminou seus olhos verdes.
—Excelente —disse. — Mande informar em Crystal Garden se
a casa precisar de algum reparo?
—Claro, obrigado, mas estou certa que não será necessário.
—Nunca se sabe —disse Lucas.
Escolheu alguns velhos mapas e um guia das ruínas locais
pagou suas compras e se despediu. Evangeline e Irene ficaram
olhando enquanto ele saia para a rua e se perdia entre a multidão
que enchia Little Dixby no verão. A localidade estava a três horas de
trem de Londres e era, desde muito tempo, uma atração graças às
ruínas romanas muito bem conservadas nas imediações.
Irene apoiou os cotovelos sobre o aparador de cristal com ar
reflexivo. Era uma solteirona que rondava os quarenta anos.
Evangeline tinha certeza de que não foi por seu aspecto que Irene
permanecera solteira. Era uma mulher muito bonita, instruída e com
um corpo excelente, tinha cabelos escuros, olhos azuis e uma grande
elegância. A moderna chatelaine de prata que levava na cintura para
guardar seus óculos estava decorada com mariposas e algumas
turquesas preciosas.
Evangeline pensou que aos dezoito ou dezenove anos, idade
de se casar, Irene tinha sido de uma beleza única. Mas a formosura e
a inteligência nem sempre eram o que se desejava em um
matrimônio, porque todo mundo sabia que o casamento era uma
transação comercial. A posição social e o dinheiro importavam
muito mais que o verdadeiro amor e a conexão metafísica entre
casais ao contrário do que os novelistas românticos contavam em
suas histórias.
—Então esse é o novo dono de Crystal Garden —comentou
Irene. — Não posso dizer que seja como todo mundo esperava. Ao
menos, ele não parece estar tão louco quanto seu tio.
— Do que está falando? —perguntou Evangeline, piscando.
—Não está há muito tempo por aqui—respondeu Irene. —
Mas certamente já ouviu algumas das histórias e lendas sobre
Crystal Garden, não?
—Sim, mas não sabia que o dono anterior estivesse louco —
disse Evangeline. E depois de vacilar um instante, continuou: —
Bom, devo admitir que minha criada me advertiu que Chester
Sebastian tinha fama de excêntrico.
—Uma forma educada de dizer que ele estava louco de pedra
—afirmou Irene, rindo entre dentes. — Veja bem, Chester Sebastian
era um botânico brilhante, e pelo menos eu vou sentir muito a sua
falta.
—Por quê?
—Era meu melhor cliente. Consegui alguns livros e gravuras
raros sobre botânica para ele. O preço não era importava. Contudo,
nem todos os moradores de Little Dixby são tão benevolentes com
Chester Sebastian. Segundo me assegurou a suma autoridade em
fofoca Arabella Higgenthorp, a diretora do clube de jardinagem,
Sebastian realizava em Crystal Garden experimentos agrícolas
antinaturais.
Evangeline pensou na estranha energia que percebeu nos
jardins da velha abadia.
—O que será que a senhora Higgenthorp queria dizer com
«antinaturais»?
—As pessoas dizem que Sebastian misturava artes ocultas e
botânica com resultados desastrosos.
—Oh, pelo amor de Deus! Que absurdo!
—Não esteja tão segura. —Irene arregalou os olhos com uma
expressão melodramática e baixou a voz até convertê-la em um
sussurro. — Os habitantes daqui estão convencidos que a morte de
Chester Sebastian foi produzida por essas forças escuras
sobrenaturais que ele liberou em seus jardins.
—Ridículo —disse Evangeline. Mas precisava admitir que
tinha notado certas correntes perigosas de poder em Crystal Garden.
Sim, podia até imaginar a possibilidade de Chester Sebastian ter
sido vítima de um de seus experimentos botânicos psíquicos.
—Não são mais que tolices, claro —disse Irene com um
sorriso—, mas a história até que se encaixa bem com essas lendas
locais. Os visitantes se encantam com esse tipo de coisas.
—E compram guias e mapas relacionados com essas
apaixonantes lendas locais? —perguntou Evangeline, divertida.
—Eu acredito. Em particular, é a história do tesouro perdido
em Crystal Garden que dispara as vendas.
—Que tesouro é esse?
—Dizem que tem um tesouro de ouro romano enterrado em
algum lugar nos jardins da velha abadia. —Irene fez uma careta. —
Mas se quer saber minha opinião, já o encontraram faz anos.
—Sem dúvida —se mostrou de acordo Evangeline, e olhou de
novo para a rua, onde não viu mais Lucas por nenhuma parte.
Irene seguiu seu olhar e deixou de sorrir.
—Agora, a sério: muitos acreditam que tem uma veia de
loucura na família.
—De verdade?
—Segundo as escrituras locais, Chester Sebastian assegurava
possuir poderes paranormais. —fez um gesto depreciativo com as
mãos. — Precisa ser um perturbado ou um farsante para afirmar
algo assim, não te parece?
—Pode ser, é para se pensar —respondeu Evangeline,
elegendo cuidadosamente suas palavras.
No entanto, não podia acreditar que Lucas estivesse louco; que
fosse fascinante e talvez até perigoso, sim, mas, louco? Não mesmo.
Sentindo-se subitamente inspirada, correu de volta para Fern
Gate Cottage para fazer anotações detalhadas sobre o protagonista
de sua novela. Já estava no quarto capítulo e John Reynolds estava
se convertendo no centro de sua narrativa. Suas feições e seu porte
ainda não estavam claros, mas agora Evangeline sabia exatamente
que aspecto ele teria: exatamente o mesmo que Lucas Sebastian, ou
seja, cabelos negros, olhos verdes, feições duras e a aura de muito
poder. Em resumo, o tipo de homem que romperia com as regras da
sociedade quando tivesse vontade.
O problema era que até aquele momento tinha planejado que
John Reynolds fosse o bandido da história.

—Prove isto —disse Lucas estendendo o copo de brandy. — É bom


para os nervos.
—Obrigado. —Evangeline tomou um pequeno gole. Queimava
um pouco, mas fez com que se sentisse melhor, revigorada.
Lembrou-se do grito agonizante de Sharpy Hobson e o copo tremeu
em sua mão. — Não deveríamos chamar a polícia?
Lucas se sentou na poltrona em frente a ela e respondeu:
—Estou certo de que a polícia é razoavelmente discreta, mas
dadas as circunstâncias duvido que pudessem evitar as
especulações, especialmente em uma população pequena como
Little Dixby. Entre outras coisas, precisamos levar em conta sua
reputação.
Evangeline notou o rubor em seu rosto, mas não pelo calor
produzido pelo brandy, e sim pelo olhar sugestivo que lhe dirigiu
Sebastian.
—Ah, claro —sussurrou.
—Se correr a informação que você estava no Crystal Garden
vestida de camisola e robe as duas da manhã, todo mundo irá
pensar que estava tendo um momento íntimo comigo.
—Mas o homem com a faca...
—E que fomos interrompidos por um intruso armado com
uma faca, isso só daria mais elementos sensacionalistas para a
história. Pela manhã a notícia seria o comentário do dia em Little
Dixby. Em vinte e quatro horas estaria nos jornais de Londres.
Pouco depois os editores de novelas dramáticas começariam a
propagar suas próprias versões dos fatos. —Lucas bebeu um trago
de seu brandy e continuou: — E algum repórter ficaria de plantão
por horas para conseguir histórias mais escandalosas.
—Meu Deus! —exclamou Evangeline, mas sabia que ele tinha
razão. A imprensa faria o impossível para realçar os aspectos mais
horríveis e excitantes da história, ainda que não houvesse nenhum.
Isso era previsível e explicava por que muitas mulheres decidiam
não denunciar na polícia seus agressores. No seu caso,
possivelmente ainda colocaria em perigo sua carreira inicial de
novelista. O primeiro capítulo de Winterscar Hall ia aparecer na
semana seguinte em seis dos jornais do senhor Guthrie, incluído o
Little Dixby Herald. Se tornasse público que a autora estava
envolvida em um crime que incluía assassinato e um caso ilícito com
um homem rico, Guthrie sem duvida cancelaria o contrato.
Recordou vagamente de uma clausula de moralidade.
Dada às circunstâncias, a bravura de Lucas Sebastian parecia
surpreendente, assombrosa na realidade. Ela ganhava a vida como
dama de companhia. Não tinha família nem conexões sociais. Igual
a outras mulheres em sua mesma situação, se apegava com unhas e
dentes à sua respeitabilidade. Bastaria muito pouco para que a
perdesse. Por sua experiência, os homens da categoria e riqueza de
Sebastian poucas vezes se preocupavam com a reputação das
mulheres da sua classe.
Pensou que Lucas podia ter seus próprios motivos para não
querer que a polícia fosse envolvida procurando um cadáver nos
jardins de Crystal Garden.
—Compreendo suas razões, senhor Sebastian —assegurou—, e
aprecio sinceramente sua consideração. Mas não podemos fingir que
esta noite não aconteceu.
—Não estou de acordo, senhorita Ames —disse Lucas,
esboçando um sorriso gelado. — Ficaria surpresa se soubesse como
seria fácil fazer exatamente isso. Ainda que você esteja disposta a
sacrificar-se no altar das línguas locais, eu não.
—Perdão?
—Vamos, senhorita Ames, reflita. Não é a única protagonista
deste pequeno drama que seria alvo das grandes especulações se a
história aparecesse na imprensa. Eu também estou envolvido nela.
E Evangeline que tinha acreditado que ele se preocupava com
ela e sua reputação! No que estaria pensando? Por um momento,
seu romantismo tinha vencido seu senso comum. Lucas estava
protegendo a si mesmo, não ela. Porque nenhum cavalheiro
desejaria ver seu nome manchado pela imprensa marrom.
— Claro —disse energicamente. — Eu entendo. Perdoe-me,
não pensei em sua posição.
— Acontece que enquanto eu estiver morando aqui em Little
Dixby, preciso da maior privacidade possível. Preferia não estar
envolvido em nenhuma investigação policial, isso para não falar do
fato de ter que tratar com os chamados cavalheiros da imprensa.
—Entendo perfeitamente —disse Evangeline. — Não tem por
que entrar em detalhes. —Evangeline não podia reprová-lo. Ela
mesma tinha tomado uma decisão similar há apenas algumas
semanas. Ambos tinham segredos para esconder.
—Compreenderá que preciso fazer algumas perguntas,
senhorita Ames —prosseguiu Lucas. — Ainda que decidimos evitar
a polícia e a imprensa de todas as formas, gostaria de saber no que
fui envolvido esta noite.
—Sim, claro —respondeu ela—, mas temo que não esteja em
condições de responder isso. —Viu que os olhos de Lucas brilhavam
com uma paixão fria. Ou quem sabe fosse sua imaginação. Porém
ainda estava com os nervos abalados.
—Conhecia este homem, o tal Sharpy Hobson? —ele quis
saber.
—Estou certa de que nunca o vi na minha vida —foi sua
resposta. — Mas confesso que esta tarde tive a desagradável
sensação de que estavam me observando. À noite não consegui
pregar o olho, por isso estava acordada quando ele entrou na minha
casa.
—O que me leva a outra pergunta —disse Lucas. — Fico feliz
que tenha conseguido escapar, foi uma verdadeira façanha. Como
conseguiu isso?
—Saí pela janela do meu dormitório. Hobson tentou me seguir,
mas não conseguiu passar por ela. Teve que usar a porta da cozinha.
Isso me deu uma certa vantagem.
—Correu até aqui, até Crystal Garden.
—Tampouco tinha outra opção. Você é meu vizinho mais
próximo.
Lucas assentiu uma vez, reconhecendo que era a verdade e
tomou um gole de brandy enquanto refletia em silêncio.
—Teria chamado na porta principal para pedir ajuda, mas teria
levado segundos preciosos para correr até a parte da frente da casa
—continuou Evangeline. — Hobson estava me alcançando. Por isso
me meti nos jardins.
—Sabia como entrar pelo muro —apontou Lucas, olhando-a
fixamente.
—Admito que já tinha feito algumas explorações antes de você
chegar —respondeu Evangeline com um suspiro.
—Esteve explorando, entrando sem permissão — corrigiu ele,
mas não parecia bravo.
—Bom ninguém vivia aqui ainda. A quem deveria pedir
permissão?
—Esses jardins são perigosos. Você mesma comprovou esta
noite.
—Sim. —Evangeline estremeceu e tomou mais um gole de
brandy. — Mas até agora não sabia o quanto era perigoso. Tinha
ouvido algumas histórias e as lendas locais, mas não acreditei.
—Apesar disso, ainda sentiu curiosidade, verdade?
—Acredito que sim.
—Diga-me, senhorita Ames sempre se deixa levar pela
curiosidade?
Evangeline titubeou porque pressentia que ele estendia uma
armadilha.
—Nem sempre —respondeu por fim. — Porém, neste caso não
parecia estar fazendo mal a ninguém.
—Os jardins te atraíram não só por suas lendas, mas por sua
energia paranormal.
Não era uma pergunta. O curso que estava seguindo o
interrogatório de Lucas a deixava cada vez mais nervosa. Afirmar
que possuíam poderes psíquicos era sempre algo arriscado, mas não
considerou imprudente dizê-lo, convencida como estava de que
Lucas também possuía esses poderes paranormais.
—Sim —assegurou. — A energia deste lugar é fascinante.
—Ontem, quando a conheci na livraria, tive certeza que você
tinha uma forte natureza psíquica —disse Lucas, esboçando um
sorriso. — Seus poderes despertaram minha curiosidade sobre você,
Evangeline Ames. Mas, bem, você já tinha despertado meu interesse
desde que o administrador de meu tio me informou que a nova
inquilina de Fern Gate Cottage ganhava a vida como dama de
companhia.
Seu nervosismo aumentou. Agora estava certa de que entrava
em águas perigosas, mas não via jeito de evitá-lo.
—Por que isso despertou sua curiosidade? —perguntou com
cautela.
—O valor do aluguel é baixo. Isso é fato, mas jamais conheci
nenhuma dama de companhia que pudesse se permitir um mês de
férias no campo enquanto procura outra vaga.
—Meus chefes foram bem generosos —disse ela com certa
frieza, sentindo-se em terreno mais firme. Afinal era muita falta de
educação perguntar a alguém diretamente sobre sua situação
financeira. Isso não se fazia, socialmente. — Nem todos, tem a sorte
de estar vinculado à empresa Flint e Marsh e receber comissões
muito satisfatórias pelo serviço.
—Compreendo. Isso explica o vestido caro e o bonito chapéu
que usava ontem quando a vi na livraria, e também como consegue
pagar o aluguel da casa.
Se deu conta que a resposta que tinha dado não tinha satisfeito
sua curiosidade. Preparou-se para a seguinte pergunta.
—Existem outras coisas sobre você que acho interessante,
senhorita Ames.
—Verdade? Que estranho. Apenas nos conhecemos de vista.
—Graças aos acontecimentos desta noite, nossa relação está
muito mais próxima, não parece? —comentou com um sorriso. —
De fato, quase poderíamos chamar de uma relação íntima.
De repente foi muito consciente de que estava vestida apenas
de camisola e robe. Lançou uma olhada para a porta. Sentiu um
desejo instintivo de fugir, mas sabia que seria inútil tentar.
—Como ia dizendo, tem várias coisas sobre você que acho
fascinante —prosseguiu Lucas. Não deu indícios de ter percebido a
crescente ansiedade de Evangeline. — Mas a que me vem à cabeça
nesta noite é sobre seu último trabalho como dama de companhia de
lady Rutherford.
Evangeline percebeu que estava contendo a respiração. Tomou
um gole de brandy e se engasgou. Tossiu varias vezes e por fim
recuperou o fôlego. Voltou a respirar. Respirar era importante.
—E o quê? —procurou articular.
—Nada, na realidade. É só que me pareceu muito estranho que
pouco depois de ter deixado seu posto na casa dos Rutherford, um
cavalheiro que recentemente tinha pedido a mão da neta de lady
Rutherford, e aqui cabe dizer que sua petição foi rechaçada, fosse
encontrado morto aos pés de uma escada. A casualidade é que esta
escada estava em um edifício desabitado situado numa rua próxima
às docas.
—Sabe disso? —surpreendeu-se Evangeline.
—A morte de Mason e o lugar do acidente saíram nos jornais
—indicou Lucas. Soava quase como uma desculpa por ter se
recordado de algo tão banal. — O mesmo sobre o fato de que há
poucos dias o pai da jovem dama tinha recusado o pedido de sua
mão sem mais motivos.
—Sim, claro —Evangeline recobrou a compostura e adotou o
que esperava fosse um ar de desconcerto com um toque de
impaciência. — Perdoe-me, mas me surpreende muito que preste
atenção a esta classe de comentários da alta sociedade.
—Com certeza, não ligo, senhorita Ames, somente quando
averiguo que minha nova inquilina tinha certas relações com a
família Rutherford e que deixou de prestar seus serviços um dia
antes de encontrarem Mason.
—Tinha sido acertado desde o início que o trabalho seria
temporário. —Evangeline dirigiu seu olhar para o alto relógio e
fingiu um ligeiro sobressalto de surpresa. — Céus, veja o horário!
Preciso voltar para casa.
—Claro, mas não antes de terminar sua bebida para os nervos
— ele disse acenando para o copo de brandy.
Evangeline baixou a vista para o copo, levou aos lábios e o
esvaziou de um só trago, um longo gole que se mostrou maior do
que esperava.
Voltou a engasgar, desta vez não tossiu, mas quase cuspiu o
líquido.
—Você está bem, senhorita? —Lucas parecia preocupado.
—Sim, sim, estou bem. —Evangeline deixou o copo sobre a
mesinha que tinha ao lado e agitou debilmente a mão para se
abanar. — Mas acredito que não seja correto estar preocupado com
meus nervos. Na verdade acredito que os tenho em frangalhos.
Preciso de uma cama e de meus sais.
—Algo me diz que nunca usou sais em sua vida.
—Tem sempre uma primeira vez para tudo —respondeu ela, já
se levantando. — Desculpe-me, senhor Sebastian. Agradeço muito o
que fez por mim esta noite, mas agora devo voltar para minha casa.
—Muito bem, vou acompanhá-la. —Lucas deixou seu copo e
colocou-se de pé. — Continuaremos esta nossa conversa amanhã.
—Eu lamento muito, mas não será possível —disse ela com
empolgação. — Amanhã chegarão algumas amigas minhas de
Londres para passarem alguns dias.
—Entendo.
Evangeline pensou com rapidez. A última coisa que queria era
estar sozinha em casa quando Lucas fosse vê-la para continuar com
a conversa.
—Acredito que ficarão umas duas noites —retificou. — Duas
noites, com certeza. Planejamos explorar as ruínas locais. São muito
pitorescas, sabe?
—Isso me disseram.
Pegou seu braço para saírem da biblioteca e percorreram um
longo corredor. Evangeline voltou a sentir curiosidade.
—A moça que vem me ajudar com as tarefas da casa
mencionou que ainda não contratou nenhum criado—se atreveu a
comentar.
—Tenho Stone o que me basta —respondeu Lucas com certa
aspereza.
—É uma casa muito grande para que uma só pessoa possa dar
conta.
—Stone e eu somos os únicos que vivemos aqui e é minha
intenção que continue assim. Não ficaremos por muito tempo. A
única coisa que usamos aqui é a cozinha, a biblioteca e dois quartos.
O resto da casa esta fechado há muitos anos. Quando tio Chester
estava vivo, ele e sua governanta, a senhora Buckley, só mantinham
abertos certos cômodos.
—Já vejo. Veio colocar ordem nos assuntos de seu tio, então?
—Vim para fazer algo mais que isso, senhorita Ames. Tenho a
intenção de descobrir quem o assassinou.
3

A afirmação deixou Evangeline em silêncio que, Lucas tinha certeza,


não seria muito longo. Enquanto ela tentava assimilar aquela
informação, ele a fez sair da casa pela porta principal e começaram a
andar em direção a Fern Gate Cottage com o caminho iluminado
pela lua.
—Acreditava que seu tio tinha tido um enfarte —disse por fim
Evangeline.
—Isso foi o que me falaram.
—E você não acredita?
—Não, senhorita Ames, eu não acredito. Estou convencido que
a senhora Buckley, a governanta também foi assassinada.
—Céus! —Evangeline o olhou rapidamente e voltou a
concentrar-se no caminho— Posso perguntar se tem algum motivo
específico para acreditar que a morte de seu tio foi provocada?
—Por hora, a única coisa que tenho são suspeitas.
Evangeline voltou a ficar calada um instante.
—Compreendo —disse por fim.
Lucas supôs então que já tinha ouvido os rumores sobre a veia
de loucura na família Sebastian. Lembrou a si mesmo que isso era
inevitável. A fofoca já era muito antiga em Little Dixby. Chester
tinha vivido quase trinta anos em Crystal Garden; tempo suficiente,
sem dúvida, para impressionar aos habitantes com seu
comportamento estranho.
«Devia ter imaginado que pensaria que sou um perturbado»,
pensou. Que possuísse alguns poderes consideráveis não significava
que não daria ouvidos a falatórios.
Como tinha aprendido desde tenra idade, seus poderes
paranormais incomodavam e assustavam as pessoas, tinha feito
todo o possível para ocultar sua verdadeira personalidade. Mas com
sua família isso tinha sido impossível. Era muito consciente sobre os
rumores da loucura dos Sebastian que procediam do seio de sua
própria família.
—Não, senhorita Ames, não sou perturbado —disse sem
alterar-se. — E meu tio Chester, apesar de suas excentricidades,
também não era.
—Compreendo —respondeu Evangeline, e ficou em silêncio.
Lucas percebeu que, em outras circunstâncias, teria desfrutado
do passeio à luz da lua até a casa. Nem mesmo o fato de Evangeline
não saber muito bem o que pensar diminuía a intensa emoção que
sentia ao estar próximo a ela. Notou que Evangeline também era
consciente da energia que havia entre eles. Mas pensava que era
devido ao fato da tensão que sofreu minutos atrás com a experiência
desagradável do atentado.
Há alguns momentos atrás, na biblioteca, tinha desfrutado
observando a forma com que a luz da lamparina envolvia seus
dourados olhos castanhos e mostrava as suaves ondas de seu cabelo
em um tom âmbar intenso e escuro. No entanto, suas feições não
possuíam uma beleza especial, mas no conjunto compunham um
rosto imponente acompanhado de sua inteligência e sua forte
personalidade. O homem que quisesse seduzi-la teria que ganhar
sua confiança e seu respeito. E o mais provável é que depois
descobrisse que havia sido ele o seduzido.
A lógica e o bom senso sugeriam que se concentrasse nas
circunstâncias que rodeavam a senhorita Ames, não em sua atração
por ela. E ela estava envolvida em diversos mistérios.
Não podia ser mera coincidência que uma jovem com grandes
poderes psíquicos tivesse escolhido alugar uma casa de campo na
qual ninguém tinha querido viver por anos; uma casa de campo
situada a pouca distância de antigas ruínas de onde emanavam
energia paranormal escura. Seu trabalho como dama de companhia,
surpreendentemente bem remunerado, suscitava ainda mais
perguntas. Também ficava o assunto de sua relação com a família
Rutherford, que estava, por sua vez, relacionada com um homem
que tinha sido morto em circunstâncias misteriosas. E para fechar,
porém não menos importante, estava o fato de um homem ter
tentado assassiná-la com uma faca ainda nesta mesma noite.
Qualquer que seja a situação em que Evangeline Ames estava
envolvida, a coincidência não tinha nada a ver com aquilo. Mas os
mistérios que a cercavam a faziam ainda mais fascinante.
—Está certa que não tem a mínima ideia de quem era o
homem que a atacou? —perguntou.
—Não, nenhuma. —Evangeline estava preocupada em não
tropeçar nos muitos buracos do caminho. — Suponho que ele deve
ter averiguado que vivia sozinha na casa e deduziu que eu era uma
vítima fácil.
—Seu acento era dos baixos bairros londrinenses.
—Sim, me dei conta disso também.
—Por minha experiência, os criminosos que exercem suas
atividades na cidade não saem a se aventurar pelo campo.
Evangeline o olhou. Ao perceber que tinha despertado sua
curiosidade, Lucas esboçou um sorriso.
—Por que diz isso? —quis saber Evangeline.
—Porque o ambiente lhes é estranho —explicou Lucas. —
Ficam bem nas ruas escuras, nos cantos escuros e escondidos nos
edifícios abandonados. São como ratos urbanos. Não sabem
sobreviver fora de seu habitat natural. Ainda mais, que no campo
acabam por chamar a atenção sobre si mesmo.
—Percebo o que quer dizer. —Evangeline parecia
verdadeiramente intrigada. — A roupa e o acento delatam que são
de fora.
—Ainda assim, Sharpy Hobson seguiu você até Little Dixby.
—Bom, também não viajei até o fim do mundo, nem sequer até
Gales.
—Não —admitiu Lucas com um sorriso. — Londres está
somente a algumas horas de trem.
—Correto. —Evangeline suspirou. — Se bem que devo admitir
que às vezes parece que Little Dixby está no lado oposto do mundo
e talvez até de outra dimensão.
—Ontem, na livraria, me deu a impressão que gostava de viver
no campo, sem contar essa noite.
—Digamos que, até esta noite, minha vida era tão tranquila
que beirava o aborrecimento.
—Você é de Londres —comentou Lucas.
—Sim.
—Como Hobson.
—Está insinuando que existe alguma relação entre esse
assassino e eu? —perguntou ela, saindo sua voz um pouco aguda.
—Cabe a possibilidade.
—Compreendo seu raciocínio, mas, sinceramente, sou incapaz
de imaginar qual possa ser. Já lhe disse, jamais tinha visto Sharpy
Hobson. Acredite, se o tivesse conhecido, me lembraria.
—Existem homens desequilibrados mentalmente que às vezes
desenvolvem obsessões por certas mulheres. Seguem suas vítimas
para tentar assustá-las e controlá-las. No final, acabam ficando
violentos.
—Não sou ingênua, senhor Sebastian, e não vivi entre
algodões. Sei que esse tipo de homem existe. Mas ainda que tivesse
atraído a atenção de um indivíduo assim, mesmo sem querer,
porque não teria me atacado em Londres? E porque me seguiu até
Little Dixby? Estou vivendo aqui há quase duas semanas.
Lucas percebeu que estava mesmo sem saber a resposta.
—É impossível saber como pensa um louco —disse.
—Sim. —Evangeline estava de acordo. — Mas terá que admitir
que esta noite Sharpy Hobson não parecia um desequilibrado.
Afirmou que eu valia dinheiro para ele.
—Pode ser que não seja Hobson o desequilibrado. Quem sabe
a pessoa desequilibrada desta história seja quem o mandou até aqui
para buscá-la.
—Céus! —exclamou Evangeline, estremecendo. — Sim, talvez
tenha razão. Porém, este argumento também é falho. Não me ocorre
ninguém que queira me ver morta, e muito menos alguém disposto
a pagar para outro fazê-lo.
Lucas prestou atenção aos murmúrios lúgubres e suspiros que
vinham do bosque, do outro lado do caminho e pensou em seus
conhecimentos sobre assassinatos. Alguns acreditavam que ele sabia
muito sobre esse tema. Tinham razão.
—Um namoro desfeito poderia gerar vingança e contratar um
assassino para a mulher que o rechaçou —sugeriu.
—Um namorado? —exclamou Evangeline com um chiado
prolongado pela incredulidade. Mas ficou calma e seguiu: — Por
Deus, te asseguro que este não é o caso.
Lucas achou interessante a reação da moça. Evangeline parecia
convencida que aquela ideia era decididamente absurda. Mas para
ele, por sua vez, era difícil acreditar. Evangeline Ames era muito
interessante, muito fascinante.
—Talvez a pessoa que encarregou o assassinato não seja um
homem. Conhece alguma mulher que possa estar brava assim com
você?
—Até parece, você tem uma imaginação e tanto. Não é escritor
de novela, é?
—Não, senhorita Ames. E também não as leio.
—Tem algo contra as novelas, senhor Sebastian? —perguntou
Evangeline, dirigindo-lhe um gélido olhar.
—Prefiro adotar uma visão realista do mundo, senhorita
Ames. Por sua própria natureza, as novelas, com suas cenas de
emoções exaltadas e seus ridículos finais felizes, estão muito longe
da realidade.
—Por isso se chamam ficção —sentenciou ela em tom
depreciativo.
—Sim, é verdade —concordou Lucas.
—Ler novelas é muito terapêutico para algumas pessoas,
justamente porque lhes permite ver a realidade por um lado
diferente.
—Se você está dizendo, eu acredito. Voltemos a nosso mistério.
—E eu já disse: não tenho nenhuma resposta —insistiu
Evangeline.
—Pois voltemos ao início.
—Ao início?
—Por que você está aqui, em Little Dixby? Deixou claro que
não gosta da vida no campo.
Percebeu que Evangeline pesava a pergunta por alguns
instantes. Na luz da lua não podia distinguir sua expressão, mas
pressentiu que estava decidindo até que ponto poderia lhe contar a
verdade.
—Como já sabe, sou dama de companhia —disse.
—Uma dama de companhia muito bem remunerada a julgar
por sua roupa e por poder alugar uma casa de campo.
—Já expliquei que trabalho para uma firma exclusiva. —A voz
de Evangeline soou áspera devido à impaciência. — Mas acontece
que tenho outras aspirações. Não me interprete mal, gosto muito de
meu trabalho na agência Flint e Marsh, mas estou resolvida a mudar
de profissão.
—E o que fará?
—Algo que sem dúvida não vai aprovar —respondeu
levantando o queixo — Espero ganhar a vida como autora de
novelas.
—Deveria ter imaginado —disse Lucas depois de soltar uma
gargalhada que a ele mesmo surpreendeu.
—De fato, faz pouco tempo assinei contrato com um
cavalheiro dono de vários jornais, o senhor Guthrie. Talvez já tenha
ouvido falar dele.
—Claro que conheço o império jornalístico de Guthrie.
Ganhou uma verdadeira fortuna com suas colunas de fofoca, relatos
de crimes hediondos e novelas semanais... —Deixou a frase sem
concluir ao se dar conta do que acabara de falar. — Oh,
compreendo.
—Publicará minha primeira novela —indicou Evangeline. — O
primeiro capítulo de Winterscar Hall aparecerá na próxima semana
em seis jornais locais embora ainda pequenos. Se tiver êxito na
imprensa regional, publicará minhas histórias em Londres.
—Boa sorte, então —disse Lucas.
—Não precisa se esforçar. Já deixou bem claro sua opinião
sobre as novelas românticas.
—É verdade que não leio novelas, mas aplaudo sua
determinação para ser dona de sua própria vida. É uma mulher
fascinante, Evangeline Ames. Jamais havia conhecido alguém como
você.
—Sim, bem, também confesso que nunca conheci nenhum
homem como você, senhor Sebastian.
—Não respondeu ainda minha pergunta —comentou
suavemente.
—A razão por estar em Dixby? —perguntou em um tom que
agora refletia diversão— Não é fácil despista-lo, verdade?
—Não quando quero muito alguma coisa.
—E agora quer respostas.
—Sim —respondeu Lucas. «E também quero você», pensou.
—Eu te entendo, sabia? —assegurou Evangeline. — Eu mesma
sou muito curiosa.
—Ah, sim, suas incursões nos jardins antes de minha
chegada...
—Precisa reconhecer que foram úteis —comentou Evangeline.
—Nesta noite, sim. Quando Hobson te atacou, sabia que
poderia esconder-se nele se conseguisse atravessar o muro.
—Não estava certa de que me seguia claro, mas pressenti que
se o fizesse, com certeza não poderia orientar-se nos jardins tão bem
como eu.
—Parecia que se dirigia ao gazebo. Qual era seu plano? —
perguntou Lucas.
—A lagoa —respondeu Evangeline. — Tem uma espécie de
energia estranha naquelas águas. Esperava que se Hobson caísse
nelas, ficasse desorientado e talvez entrasse em pânico.
—Muito bem, senhorita Ames. Tem razão. As correntes
paranormais da lagoa produzem uma enorme confusão na maioria
das pessoas, especialmente à noite.
—Isso foi o que me pareceu.
—Porém ainda não respondeu minha pergunta. O que a trouxe
a Little Dixby?
—Minha novela —respondeu ela. — Acreditei que tinha
entendido. O senhor Guthrie vai publicar minha história por
semana, porém só escrevi os três primeiros capítulos. Para cumprir
os prazos de Guthrie de completar um capitulo por semana, e o
contrato estipula que cada capítulo deve ter no mínimo quatro mil
palavras. Não posso me dar ao luxo de perder o prazo.
Lucas percebeu que estava falando a verdade. E que também
estava mentindo descaradamente.
4

Lucas parou Evangeline em frente da entrada da casa de campo. O


pequeno portão de madeira tinha o trinco caído. Estava pendurado
pelas dobradiças, parcialmente aberto. Ao ver este indício silencioso
da fuga desesperada de Evangeline, foi invadido por uma imensa
raiva. Se Hobson já não estivesse morto...
Deixou de lado esse pensamento. Deixar as emoções se
interporem sempre entorpece a lógica, pensou.
Abriu totalmente o portão e fez Evangeline entrar pelo jardim
coberto de samambaias. O caminho mal se via entre o espesso mar
de plantas iluminadas pela lua.
—Parece que meu tio não prestava muita atenção a esta casa —
comentou Lucas. — Mas, como pode ver, fez alguns experimentos
com as samambaias.
—Tinha percebido. —Evangeline fez um gesto que abrangeu
tudo que os rodeava— Tudo parece crescer com mais exuberância
quanto mais perto estiver da velha abadia.
—É a energia do manancial de águas termais situado no centro
dos jardins, as correntes paranormais não são tão fortes fora do
recinto, mas mesmo assim afetam a vegetação que fica ao redor.
Não comentou que o poder do manancial não tinha parado de
crescer nos últimos anos.
—Como Hobson entrou na casa? —perguntou.
—Pela porta da cozinha —respondeu Evangeline. — Forçou a
fechadura.
—Deixe-me dar uma olhada.
Rodearam a casa até a parte de trás e cruzaram com o que
outrora tinha sido uma horta e, igual ao jardim da frente, era agora
uma pequena selva de samambaias.
Quando chegaram à porta aberta, Lucas intensificou um pouco
seus poderes e examinou a fechadura quebrada.
O miasma sinistro tinha deixado impregnado no ambiente as
más intenções de Hobson.
Lucas desativou seus sentidos antes que o resíduo psíquico
provocasse uma reação mais intensa em seus poderes.
Endireitou-se e entrou na cozinha.
—Não tentou fazer silêncio.
—Não —confirmou Evangeline. — Estava muito seguro de si
mesmo. Agora que penso, acho que queria que o ouvisse.
—O bastardo pretendia te deixar assustada.
—Como sabe?
—Porque está aqui, em seu rastro. —Lucas assinalou a
fechadura quebrada.
—Pode saber suas intenções a partir de seu rastro? —
perguntou Evangeline enquanto contemplava as enlameadas marcas
de botas no chão da cozinha.
—A partir de seu rastro, não, mas posso ler o resíduo psíquico
que deixou.
—Esta habilidade é um aspecto de seus... Poderes? —
Evangeline voltou-se para ele com os olhos arregalados.
—Sim.
Ela refletiu por alguns instantes na resposta e finalmente
assentiu e disse:
—No final foi ele quem sentiu um medo enorme. —estremeceu
e continuou: — percebi em seu último grito.
—É muito provável que se feriu com os espinhos de sangue —
disse Lucas distraidamente. Acendeu uma lamparina. A luz a gás
iluminou o pequeno cômodo. — Segundo meu tio, seu veneno
provoca alucinações terríveis e pânico. Hobson com certeza
começou a correr, e não é inteligente que se corra em um labirinto.
—Tentarei me lembrar disso —comentou Evangeline,
dirigindo-lhe um olhar estranho.
—Não vai entrar no labirinto —assegurou Lucas. — Ninguém
mais entra nele a não ser eu. É muito perigoso. Normalmente a
porta está fechada com chave. A única razão de esta noite estar
aberta é que eu estava lá dentro quando você e Hobson chegaram.
—lançou um olhar à porta. — Mandarei alguém para concertar isso
amanha pela manhã.
—Obrigado.
—Espere aqui —disse Lucas. — Vou dar uma olhada rápida
antes de ir.
—Estou certa que não corro perigo agora que Hobson está
morto —disse Evangeline, e ao final de uns instantes disse: — pelo
menos esta noite.
—Estou de acordo. Mas de qualquer forma enviarei Stone aqui
para que vigie a casa até que amanheça. Não falta muito para isso
acontecer.
—Oh, não é necessário, de verdade.
—Não precisa se preocupar com Stone. Ele é de confiança. Em
todo caso, darei instruções para que fique do lado de fora.
—Senhor Sebastian —disse ela—, estou tentando fazê-lo
entender que não existe nenhuma razão para vigiar a casa. —Havia
um tom rude em suas palavras. Lucas percebeu que ela não gostava
muito de receber ordens.
— Será que não poderia aceitar para minha própria
tranquilidade? —perguntou com um sorriso.
—Não entendo.
—Gostaria de dormir um pouco esta noite. E isso não será
possível se estiver preocupado com sua segurança. Como seu
senhorio, você está sob minha proteção.
—Pelo amor de Deus, isso é um absurdo —protestou
Evangeline.
—Para mim, não. Gostaria de descansar um pouco. Não
poderei fazê-lo sabendo que está aqui sozinha.
Evangeline abriu a boca, mas voltou a fechá-la imediatamente.
Revirou os olhos, era evidente que tinha se dado conta que seria
inútil prosseguir protestando.
Lucas cruzou o pequeno salão e percorreu o corredor, onde
estava a porta do banheiro, até chegar ao quarto. Ao ver as cobertas
revoltas e a janela aberta uma fúria gelada percorreu de novo seu
corpo. Aquele maldito bastardo tinha estado muito perto de
conseguir fazer o trabalho. Se Evangeline não estivesse acordada, se
não tivesse escutado o ruído da porta da cozinha ao ser forçada, se
não tivesse sido uma mulher enérgica e rápida de reflexos com certa
quantidade de poderes... muitas hipóteses. Não podia continuar
dando voltas ao que esteve a ponto de acontecer.
Desta vez não intensificou seus poderes. Não se atrevia. Sabia
o que encontraria, sabia o que provocaria em seus sentidos. Não
podia permitir-se perder o controle, não agora, não com Evangeline
a apenas alguns passos de distância. Não podia arriscar-se que ela
visse esse lado sujo.
Afinal, o homem estava morto.
Ficou quieto alguns segundo mais com uma mão agarrada
com força ao batente da porta. Quando esteve seguro que tinha
pleno domínio de si mesmo, voltou para a cozinha.
Não questionou sua reação ante a cena do dormitório, mas
ficou surpreso com a intensidade. Afinal, já sabia o que poderia
encontrar. Depois da descrição do ataque feita por Evangeline, tinha
uma ideia bem precisa do que veria na casa. Deveria ter presente
que o mais importante é que ela estava ilesa. Estava a salvo, ao
menos por enquanto. Isto era a única coisa que importava.
Ainda assim, a intensidade de sua reação era inquietante. Não
podia dizer que já não tivesse visto cenas de crimes muito piores e
mais horríveis que aquela. Mas, por alguma razão, os indícios físicos
do ataque a Evangeline tinham derrubado suas defesas psíquicas
que tão cuidadosamente havia erguido e tinham golpeado o mais
profundo de seu ser. Apenas conhecia aquela mulher e, ainda assim,
estava reagindo como se estivessem relacionados mais intimamente,
como se ela pertencesse a ele. Como se tivesse o dever de protegê-la.
De algo estava seguro: a partir de agora pensava protegê-la sempre.
Se afastou do dormitório e percorreu o corredor de volta à
cozinha. Evangeline estava esperando por ele.
—Satisfeito? —perguntou.
—Está tudo bem —afirmou Lucas.
—Estava certa de que estaria —disse Evangeline, e lhe dirigiu
um sorriso envergonhado. — De qualquer forma, foi muito amável
de se assegurar.
—Procure dormir um pouco.
—Uma excelente ideia. Como disse, amanhã chegam minhas
visitas de Londres. Estarei bastante ocupada atendendo-as.
—Fico feliz em saber que terá companhia nos próximos dias —
comentou Lucas.
Evangeline estudou a expressão de seu rosto.
—Preocupa-se com o fato de que quem enviou Hobson para
me matar volte a tentá-lo, verdade?
—Dadas as circunstâncias, acredito ser bem possível. Por
agora, diria que teremos um tempo antes que a pessoa que
encomendou sua morte dê seu próximo passo.
—Porque agora Hobson não poderá alertá-lo de que falhou?
—Exato. E inclusive depois que perceber que o assassino não
voltou para receber o que lhe deve, com certeza levará um certo
tempo para arquitetar outro plano. Também não conseguirá sair na
rua e já encontrar com esse tipo de pessoa em qualquer esquina.
—Esse tipo de pessoa? —perguntou ela, divertida.
—Não foi uma forma acertada de descrevê-lo —admitiu Lucas
com uma careta. — Existe também a dificuldade de contratar um
assassino disposto a viajar para o campo, e você ter escapado ilesa
do primeiro atentado fará com que quem quer acabar com sua vida
seja mais cuidadoso.
Evangeline virou ligeiramente a cabeça e o olhou fixamente.
Lucas poderia jurar que seus olhos brilharam, ainda que não
pudesse assegurar-se se foi por interesse, alarme ou simplesmente,
curiosidade.
—Não me leve a mal, mas me assombra o muito que parece
conhecer como se realiza esse tipo de negócio.
—Poderia dizer que a natureza de meus poderes me levaram a
estudar conduta criminal. —Lucas fez uma pausa e, em seguida,
decidiu contar-lhe o resto. — Para consternação de minha família, às
vezes assessoro um inspetor de polícia da Scotland Yard que é um
velho amigo meu.
—Sua família não aprova?
—Acredito que para os gêmeos, meu irmão e minha irmã,
parece fascinante, mas para sua mãe, não —respondeu com um
sorriso.
—A mãe deles, não é a sua?
—Legalmente falando, Judith é minha madrasta. Minha mãe
morreu quando eu tinha quinze anos. Judith tem feito todo o
possível para que meu trabalho na Scotland Yard seja um grande e
escuro segredo familiar.
— Sim. Devo dizer que concordo com seus irmãos. Seu
trabalho de assessoria parece fascinante.
—Não estou seguro que «fascinante» seja a palavra correta
para descrevê-lo —comentou Lucas depois de refletir alguns
instantes. — «Inevitável» se aproxima mais.
—Entendo —comentou Evangeline com cumplicidade. — Tem
algo a ver com seus poderes?
—Por desgraça, sim.
Lucas sentiu que a atmosfera ficava mais densa, e decidiu que
seria melhor partir. Quanto mais estivesse a sós com Evangeline,
mais seria difícil afastar-se.
—Já está na hora de ir —anunciou.
—Tome, já não necessito mais. —Evangeline tirou a jaqueta e a
estendeu.
Ele pegou e, incapaz de pensar em uma desculpa para
prolongar o momento, saiu da casa. Parou com o pé no segundo
degrau e se voltou para Evangeline.
—Sugiro que trave a porta com uma cadeira.
—Boa ideia, eu farei isso.
Esperou que fechasse a porta. O barulho dos pés de uma
cadeira contra o piso e um suave golpe indicou que tinha seguido
seu conselho.
Satisfeito, colocou a jaqueta. Ainda conservava o calor de
Evangeline e estava impregnada de sua doce fragrância. Era um
cheiro único que transmitia a essência dela e estava imbuída, de
algum modo, de sua energia. Lucas sabia que nunca esqueceria esse
cheiro.
5

Stone estava esperando na cozinha. Tinha preparado café.


—Que boa ideia! —exclamou Lucas.
—Imaginei que não iria dormir em seguida —disse Stone, e
encheu duas xícaras. — Não com esse cadáver esperando no
labirinto.
—É verdade. Se quiser examiná-lo terei que encontrá-lo antes
do amanhecer. Os cadáveres não duram muito no labirinto,
tampouco no jardim noturno, de fato. Para essas plantas, Sharpy
Hobson não é mais que uma boa quantidade de fertilizante.
Sentou-se na velha mesa da cozinha. Stone fez o mesmo
diante dele. Tomaram seu café num silêncio cômodo. Eram patrão e
empregado, mas também amigos que se tinham salvado
mutuamente em mais de uma ocasião. Stone era uma das poucas
pessoas no mundo na qual Lucas confiava, uma das poucas que
conhecia seus segredos e não se colocava nervoso em sua
companhia.
—Quando terminar seu café, quero que vá até Fern Gate e a
vigie até de manhã —disse Lucas depois de um momento. — Estou
certo que não há nada para nos preocupar esta noite, mas quero que
a senhorita Ames fique tranquila. Passou por uma experiência
terrível.
—Vou protegê-la. —Stone deixou a xícara sobre a mesa e se
levantou. — Tem certeza que não precisa de ajuda com o cadáver?
—Não. Vou examiná-lo, ainda que não tenha muitas
esperanças de achar algo. Mas nunca se sabe.
—Pois então, vou indo.
Stone saiu da cozinha e se afastou pelo corredor. Lucas
esperou ouvir o abrir e fechar da porta lateral. Depois, deixou a
xícara sobre a mesa, se levantou e abandonou a casa.
Cruzou o terraço, baixou as escadas e ficou olhando o estreito
caminho rodeado por sebes altíssimas, ligeiramente luminosas.
Umas flores estranhas, de tamanho e cor sobrenaturais, brilhavam
na noite. Chester Sebastian tinha transformado Crystal Garden em
um laboratório botânico vivente. Os resultados dos experimentos
paranormais que tinha realizado por longas décadas tinham
cobrado vida própria. Nos últimos anos, tinham escapado
perigosamente do controle.
Não foi por acaso que os híbridos que Chester criou floresciam
nos jardins. Tinha escolhido instalar seu laboratório na velha abadia
pelas propriedades sobrenaturais de suas águas termais.
Diferente das águas que tinham convertido Bath em um
destino popular tanto para os romanos quanto para os visitantes
atuais, o manancial que vinha de Crystal Garden tinha adquirido a
má fama de ser sinistro.
Os habitantes do lugar não eram os únicos que estavam
convencidos que Chester tinha sido assassinado por um de seus
próprios inventos. Isso também acreditava a maioria dos membros
da família Sebastian.
Não levou muito tempo para encontrar o cadáver no labirinto.
Hobson estava caído no chão com a boca para cima e uma expressão
de horror desfigurava seu rosto. Algumas videiras começavam a
enrroscar-se ao redor de suas pernas e seus braços.
Lucas colocou uma luva de jardinagem feita de pele e liberou o
cadáver do forte puxão das videiras. Não foi fácil.
Ele rapidamente analisou o cadáver. Não foi muito o que
encontrou: uma grande soma de dinheiro, um bilhete de trem, o
recebimento de uma entrada e duas facas. A entrada era de um
teatro barato onde se representava um melodrama intitulado El
secreto de lady Easton. O bilhete de trem indicava que Hobson tinha
chegado a Little Dixby nesse mesmo dia no trem da tarde. O horário
encaixava com o momento em que Evangeline calculava que tinham
começado a observá-la.
Lucas colocou as facas, a entrada e o bilhete de trem no bolso
da jaqueta, devolveu com um pontapé o cadáver para as plantas
famintas e saiu do labirinto.
6

Beatrice Lockwood direcionou sua bonita sombrinha enfeitada para


o sol da tarde.
—Quem iria dizer que o campo seria tão perigoso? —
perguntou. — Little Dixby é muito bonita, mas parece bem
aborrecida. Não é precisamente um criadouro de criminosos.
—E pensar que a senhora Flint e a senhora Marsh te enviaram
aqui para que se recuperasse dos nervos destroçados. —disse
Clarissa Slate. — Espere só até contarmos para ela que um homem
armado com uma faca te atacou em sua própria cama.
—Por favor, assegurem e deixem claro que não estava na cama
quando o meliante entrou na casa —pediu Evangeline. — Não
precisa deixá-la mais nervosa que o necessário. Quando Hobson
entrou no quarto, eu já estava saindo pela janela.
—Como se isso fosse deixá-la mais tranquila —comentou
Clarissa. — Já sabe que tem estado muito preocupada com você
desde o incidente relacionado com o assunto dos Rutherford. Te
enviaram ao campo para que se recuperasse e veja só o que
aconteceu.
—Tentei dizer a senhora Flint e a senhora Marsh que os
incidentes que mencionaram não me provocaram nenhum trauma
—disse Evangeline.
Era meio da tarde e estavam passando pelo caminho que
conduzia a Little Dixby, onde planejavam tomar um chá e visitar as
ruínas. Mais cedo, Evangeline tinha ido buscar suas amigas na
estação com um coche de aluguel. Mathew, o dono do único veículo
deste tipo que existia no povoado, tinha conduzido as mulheres e
sua bagagem a Fern Gate Cottage. Depois de instalarem-se, Clarissa
e Beatrice tinham manifestado o desejo de percorrer o local.
Evangeline sentia um enorme alívio agora que suas amigas
estavam lá. Ainda acreditava que o acontecido na noite anterior não
tivesse afetado seus nervos, o certo era que pela manhã percebeu
que estava muito mais alterada do que queria admitir. O ataque
tinha revivido as espantosas emoções que tinha experimentado
semanas antes, quando Douglas Mason tinha colocado uma faca em
sua garganta.
«Mas bem —pensou; — quantos ataques assim bem violentos
tem que sofrer uma mulher em um mês?»
Ficou feliz que Clarissa e Beatrice pensassem em ficar mais
duas noites com ela. Com sorte, conseguiria dormir um pouco.
Estava certa de que se fosse obrigada a passar as duas noites
seguintes sozinha naquela calma desconcertante do campo, não
pregaria o olho, receando ouvir o ruído de passos no corredor e
sombras nas janelas de seu quarto.
Tinha conhecido Beatrice e Clarissa pouco depois de entrar na
agência Flint e Marsh. Entre as três se estabeleceram laços de
amizade, na boa medida, porque estavam sozinhas no mundo e não
parecia que as coisas fossem mudar no futuro.
As mulheres tinham poucas opções de obter um emprego
respeitável. Uma vez descartado o matrimônio devido a sua má
situação financeira e a falta de conexões sociais, enfrentavam a
pouca lisonjeira perspectiva de ganhar a vida como governanta ou
dama de companhia. Todos sabiam, ambas as profissões eram muito
mal remuneradas. Depois de vinte ou trinta anos em qualquer dos
dois, era provável que a mulher fosse tão pobre quando como
começou a trabalhar. Sua única esperança era que em algum
momento um patrão generoso deixasse um pequeno legado a seu
favor em seu testamento, esperança que quase sempre era
cruelmente frustrada.
Depois de começar a visitar agências que proporcionavam
governantas e damas de companhia aos ricos, Evangeline ouviu
falar de uma empresa muito exclusiva. Segundo se dizia a agência
Flint e Marsh, da Rua Lantern, colocava suas funcionárias nas casas
mais elegantes. E pagava a diferença de seus competidores,
honorários bem mais generosos. Evangeline se apressou a
apresentar-se no escritório da Rua Lantern. Depois de uma
minuciosa entrevista, a proprietária da empresa em pessoa a
contratou.
Para os honorários serem tão altos, se obedeciam a duas coisas.
Flint e Marsh não era uma agência de contratação de damas de
companhia como as demais, mas proporcionava serviços incomuns
a seus clientes ricos. E ainda que tomasse todos os cuidados
possíveis, de vez em quando corriam certo perigo. A senhora Marsh
tinha explicado que nem todo mundo estava capacitado para esse
trabalho.
A segunda razão para a agência pagar bem era que exigia uma
característica incomum às mulheres contratadas: certa quantidade
de poderes paranormais.
Suas habilidades psíquicas junto com sua determinação para
sobreviver a sua maneira em um mundo que era duro para as
mulheres tinham estabelecido entre Evangeline e suas amigas laços
afetivos tão fortes como se estivessem unidas por vínculos
familiares. Mais fortes até. Em seu trabalho para Flint e Marsh
tinham compartilhado intimidade suficiente com algumas das
famílias proeminentes para saber que as aparências podiam
enganar. Nunca deixava de surpreender o ciúme, a raiva, a
amargura e até a violência que podia morar no seio de grupos
familiares tidos como os mais respeitáveis.
Quando Evangeline se apresentou na Flint e Marsh, Beatrice e
Clarissa já levavam meses trabalhando na agência e já tinham
combinado em dividir o aluguel de uma casa na cidade. Logo a
convidaram para morar com elas. Aceitou a oferta com gratidão.
A perspectiva de compartilhar uma casa, para não falar os
gastos, a atraía muito, e não só pelo aspecto econômico. Saboreava
prazeres simples, como comer com suas novas amigas, trocar as
notícias do dia e comentar um trabalho interessante que realizavam
para Flint e Marsh. Tinha vivido só nos meses posteriores a morte de
seu pai e não tinha gostado da experiência. Embora, como sempre
recordava a si mesma, Reginald Ames não tivesse sido uma grande
companhia quando vivo. Sua obsessão por inventar artefatos
mecânicos que funcionassem com energia paranormal o consumia.
Raramente o via, mas sempre tinha estado ali, ao fundo de sua
vida. Para ser mais exato, normalmente poderia ser encontrado em
sua oficina no sótão. Contudo, ainda que estivesse vivo, sabia que
tinha mais alguém na casa além da ama de chaves e das donzelas,
nenhuma das quais durava muito tempo. Os experimentos e as
trocas imprevisíveis de humor de Reginald motivavam uma
renovação constante do reduzido pessoal da casa.
Na vida com seu pai, Evangeline tinha se sentido sozinha em
mais de uma ocasião, mas seus sonhos de tornar-se escritora e sua
imaginação sempre lhe fizeram companhia. Não soube o que era
estar realmente sozinha no mundo até que encontrou Reginald
morto em sua oficina no sótão, com uma pistola no chão, a seu lado,
e uma nota de despedida no seu banco de trabalho.
Ainda que tinham muito em comum, Evangeline e suas
amigas eram diferentes em muitos aspectos. Beatrice, com seu
cabelo vermelho e seus olhos azuis, possuía um ar de inocência que
levava os demais a subestimar sua inteligência e sua perspicácia. A
aparência de inocência e ingenuidade ia muito bem em seu trabalho
para a agência, mas não podia ser mais errônea.
Beatrice teve uma vida muito diferente antes de chegar à
agência da Rua Lantern; uma vida que tinha acabado com qualquer
rastro de inocência e ingenuidade. Sua experiência com
clarividência na Academia de Ciências Ocultas do doutor Fleming
ainda a perseguia.
De cabelos escuros e olhos cor de âmbar, Clarissa contemplava
o mundo através de óculos de moldura dourada que lhe conferiam
um ar empertigado e erudito. Poucas pessoas viam a mulher
animada que tinha embaixo daquele aspecto severo. Isso fazia bem
à Clarissa. Somente vestia roupas confeccionadas sob medida e o
cabelo recolhido, enquanto que os óculos pareciam ocultar os
segredos de seu passado, segredos que podiam acabar com a sua
vida.
—Se quer saber minha opinião —disse Beatrice, fazendo girar
distraidamente a sombrinha—, o verdadeiro problema está na
conclusão do assunto dos Rutherford que colocou nossas chefes
muito nervosas. Tinham subestimado o quão perigoso que era.
Sempre se alteram quando cometem um erro desse tipo.
—Acredito que tem razão —concordou Evangeline. — Mas se
formos justas, era impossível prever o que ocorreria depois que o
caso estivesse encerrado.
—Isto é certo —Beatrice concordou—, mas isso não significa
que não se sintam responsáveis. Depois de tudo, se não te
enviassem à casa dos Rutherford, não teria tropeçado com aquele
homem horrível.
Clarissa franziu o cenho, preocupada.
—A questão é que não podemos atribuir os ataques da semana
passada como simples coincidência —comentou. — Vai contra toda
a lógica.
—O primeiro acidente pode ser explicado facilmente, claro,
dada a natureza de nossa profissão —disse Beatrice. — Mas este
segundo ataque não tem o menor sentido.
—Já me assinalaram as poucas probabilidades de dois ataques
serem coincidência —disse Evangeline, apertando o cabo da
sombrinha com a mão.
—Quem fez isso? O cavalheiro que te salvou? —perguntou
Beatrice com curiosidade.
—Sim, o senhor Sebastian —respondeu Evangeline.
—E disse que parece possuir certas habilidades psíquicas? —
insistiu Clarissa.
Evangeline pensou no desespero de Sharpy Hobson, gritando,
até morrer.
—Não tenho nenhuma dúvida quanto a isso, acredite —disse
estremecendo. — Além disso, o senhor Sebastian admitiu ter estes
poderes e reconheceu minhas habilidades psíquicas. Como nós,
aceita o paranormal como normal.
Andaram por um tempo em silêncio, pensando nessa questão.
Beatrice foi a primeira a falar:
—Preciso dizer que a presença do senhor Sebastian também
parece uma coincidência assombrosa.
Evangeline e Clarissa a olharam.
—O que você quer dizer? —perguntou à última.
Beatrice moveu a mão enluvada para assinalar a paisagem que
as rodeava.
—Qual a probabilidade de que, em meio a todas as pitorescas
paisagens rurais da Inglaterra, Evangeline eleger como retiro o
único lugar onde fosse encontrar um cavalheiro dotado de
consideráveis poderes psíquicos?
—Sabe muito bem que não posso dizer que elegi esse lugar ao
azar. —Evangeline sorriu. — Se você se recorda, quando a senhora
Flint e a senhora Marsh me informaram que deviam me enviar ao
campo por um mês, imediatamente decidi que viria aqui, a Little
Dixby.
—Sim, eu me lembro —disse Clarissa. A sombrinha se moveu
impaciente em suas mãos. — Comentou algo sobre ter encontrado
uma referência a este lugar naquele velho diário de seu pai.
—Meu pai estava convencido que tinha lugares espalhados
pela Inglaterra, ainda mais, pelo mundo, onde as forças paranormais
da terra parecem ser mais potentes —explicou Evangeline. —
Sempre quis explorar alguns desses lugares.
—Já vejo —assegurou Beatrice. — Mas tinha outros lugares
onde poderia ter se escondido.
—Todos eles ainda mais longes que Little Dixby —reafirmou
Evangeline. — Ao menos esta localidade tem uma estação de trem e
uma livraria, assim como umas ruínas interessantes. Tinha
esperança que a energia desta região me inspirasse na hora de
escrever.
Clarissa revirou os olhos atrás das lentes de cristal dos óculos.
—E tem sido assim? —quis saber.
—Não —admitiu Evangeline. — Ao menos recentemente.
Sinto informá-las que tenho escrito muito pouco desde que me
instalei na casa. Tenho tido problemas com a história.
—Isso é uma má notícia —disse Beatrice. — O que acontece?
—É como se tivesse topado com uma parede. Por sorte, nem
tudo está perdido. Estou fazendo progressos. Finalmente, faz dois
dias, me dei conta de que tinha cometido um erro terrível.
—Que erro? —quis saber Beatrice.
—Descobri que tinha me equivocado de personagem ao
escolher o protagonista —explicou Evangeline. — Agora me dou
conta que o mau, John Reynolds, é na realidade o protagonista. O
cavalheiro atrativo que parece ser o protagonista no primeiro
capítulo resultou ser um caça fortunas.
—Céus! —exclamou Clarissa. — Como diabos pode cometer
semelhante erro?
—É difícil dizer como isso pode acontecer com um escritor —
respondeu Evangeline.
—Isso é raro! —comentou Beatrice.
—É um incomodo, asseguro —disse Evangeline. — Mas agora
que resolvi o problema, estou certa que poderei acabar facilmente o
próximo capítulo e enviá-lo ao senhor Guthrie.
—Isso soa melhor —assegurou Beatrice com um sorriso. — E
as ruínas locais? Serviram de inspiração para sua história?
—As antigas vilas romanas que veremos no povoado, não —
contestou Evangeline. — Desafortunadamente, os vestígios mais
interessantes dos arredores estão concentrados nos jardins de
Crystal Garden. Que não estão abertos ao público.
—Mas agora conhece o novo dono. Acredita que o senhor
Sebastian não te daria permissão para visitá-los? —perguntou
Clarissa, que parecia fascinada.
—Tenho a intenção de convencê-lo —disse Evangeline com
um sorriso.
—Evie —interveio Beatrice, intranquila, com o cenho
franzido—, sei que sente muita curiosidade pelos mistérios. De fato,
as três sentimos ou não trabalharíamos para Flint e Marsh. Mas,
francamente, a velha abadia parece um lugar muito perigoso e, pelo
que nos contou o senhor Sebastian pode ser tão perigoso como seus
jardins.
Clarissa a mirou.
—Por que diz isso? —perguntou. — Ontem à noite o senhor
Sebastian salvou a Evie.
—Não te parece oportuno que o senhor Sebastian aparecesse
tão depressa? —perguntou Beatrice em tom neutro.
—Oh! —exclamou Clarissa. — Já vejo o que quer dizer.
—Pois eu não. —Evangeline fulminou as duas com o olhar. —
Do que está falando, Bea?
—Disse que fugiste para os jardins de Crystal Garden as duas
da madrugada? —disse Beatrice com as delicadas sobrancelhas
arqueadas.
—Aproximadamente —corroborou Evangeline.
—E te encontraste com o senhor Sebastian e seu empregado, o
homem chamado Stone, quase no mesmo instante.
—Sim.
—Iam todos vestidos? —insistiu Beatrice.
—Sim —afirmou Evangeline, titubeante. — Aonde quer
chegar?
—Os dois homens passeavam casualmente pelos jardins que,
segundo você comentou, são muito perigosos, às duas horas da
madrugada? —disse Beatrice colocando ênfase em suas palavras.
—Boa pergunta —soltou Clarissa. — Não parece que
levantaram da cama e saíram correndo ao jardim para investigar os
barulhos. Se tivesse sido assim, teriam ido meio vestidos.
—Já estavam fora —assegurou Beatrice, e fez uma pausa para
dar mais ênfase à suas reflexões. — Uma hora bastante estranha
para dar um passeio pelo jardim, não te parece?
—Entendo o que quer dizer —disse Evangeline em voz baixa.
Estava chateada consigo mesma por não ter feito esta observação. —
Deveria ter questionado o motivo da presença de Sebastian nos
jardins àquela hora, mas para ser sincera, naquele momento, em
meio a tanta agitação e alvoroço, senti-me feliz quando ele apareceu.
Tenho que admitir que estava bem nervosa.
—Isso é compreensível —disse Beatrice.
—Totalmente —acrescentou Clarissa. — Depois de ter sofrido
dois ataques violentos em duas semanas qualquer um estaria
nervoso.
—Agradeceria se deixassem de me consolar como se tivesse
realmente com os nervos em frangalhos. —Evangeline fez a
sombrinha girar com mais força. — Asseguro que meus nervos estão
no lugar.
—Claro —disse Beatrice com doçura. — Nunca foi nossa
intenção sugerir o contrário, Evie. Só estamos preocupadas com
você querida.
—Você sabe disso —acrescentou Clarissa.
Evangeline reprimiu sua irritação. Lembrou a si mesma que
tinha sorte por ter amigas tão boas, ainda que às vezes fossem
irritantes.
—Agora que penso nisso, vejo que o senhor Sebastian fez a
maioria das perguntas —comentou. — Me pareceu que tinha direito
a algumas respostas dadas as circunstâncias. Depois de tudo, tinha
entrado sem permissão em seus jardins.
—Que perguntas ele fez? —perguntou Clarissa com os olhos
bem abertos.
—Tinha investigado um pouco sua nova inquilina —disse
Evangeline. — Tinha averiguado que meu último trabalho foi na
casa de lady Rutherford e estava sabendo sobre a morte de Douglas
Mason. Tinha curiosidade sobre essa coincidência.
—Ah, caramba! —murmurou Beatrice. — A senhora Flint e a
senhora Marsh não vão gostar disso. Sabe o muito que valorizam
sua discrição.
—Não tenho culpa se o senhor Sebastian fez investigações
sobre minha pessoa —exclamou Evangeline, agora na defensiva.
—O que você contou sobre o assunto dos Rutherford? —
perguntou Clarissa enquanto o sol brilhava em suas lentes.
—Nada que possa preocupar as senhoras, isso eu garanto. O
senhor Sebastian sabe, simplesmente que fui contratada durante um
breve período de tempo como dama de companhia de lady
Rutherford. Isso é tudo. —Titubeou. — Mas parece que o senhor
Sebastian sabe algo sobre a verdadeira personalidade de Mason.
—Sim, bem, a carreira de Mason como caça fortunas apareceu
nos jornais —comentou Beatrice. — O mais inquietante é que o
senhor Sebastian tenha observado uma relação entre seu trabalho
com a família e o acidente de Mason.
Evangeline não disse nada.
—É interessante, mas não acredito que seja motivo de
preocupação —disse Clarissa com sua lógica habitual. — Afinal, não
tinha nada na imprensa que indicasse que a morte de Mason foi algo
mais que um simples acidente.
—Não —corroborou Beatrice em voz baixa. — De qualquer
forma, acredito que Sebastian sabe muito mais de você do que
deveria Evie. Disse se acreditava que a morte de Douglas Mason foi
um acidente?
—Não saberia dizer isso —respondeu Evangeline. — Mas tem
algo da qual estou segura.
—E o que é? —perguntou Clarissa.
—O senhor Sebastian não estava preocupado com a morte de
Mason —disse Evangeline. — Só da possibilidade de ter alguma
relação com o ataque que sofri à noite.
Clarissa e Beatrice pensaram um momento sobre isso.
—Não podemos ignorar essa possibilidade, não é? —disse
Clarissa por fim. — Não gosto de você morando aqui sozinha, Evie.
—Nem eu —concordou Beatrice. — Quem sabe não deveria
voltar para Londres.
Um alarme disparou em Evangeline. Ficou buscando motivos
para voltar a Londres, mas isso parecia uma péssima ideia.
—Ainda não —disse. — Finalmente minha imaginação está
revigorada. Little Dixby me inspirou de verdade. Tenho que
aproveitar o momento. Não me atrevo a sair até que tenha escrito
alguns capítulos mais de meu livro.

Quando Evangeline fez Beatrice e Clarissa entrarem na livraria,


Irene Witton estava atrás do mostrador, finalizando a venda de
vários postais que mostravam fotos das ruínas locais. Levantou os
olhos e olhou por cima de seus óculos.
—Ah, senhorita Ames. Que alegria voltar a vê-la.
—Permita-me que apresente minhas amigas de Londres... —
disse Evangeline, fazendo rapidamente as apresentações. — Estão
interessadas nos guias das trilhas.
—Sim, claro, tenho uma excelente seleção de livros e mapas. —
tirou os óculos do nariz e guardou na bolsinha de prata que levava
na cintura. — Me permitam que lhes mostre.
Saiu de trás do mostrador e cruzou o local até aproximar-se de
uma estante. Pegou um livro.
—Esta é a história dos vestígios romanos nas imediações de
Little Dixby, de Samuel Higgins. Acredito ser esse um dos melhores
relatos sobre as ruínas locais.
—Gostaria de dar uma olhada se possível —disse Beatrice.
—Claro, naturalmente. —Irene lhe deu o livro e buscou outro.
Clarissa colocou os óculos na ponta do nariz e examinou a
chatelaine de Irene.
—Tem uma bolsinha para óculos muito elegante. Estou
procurando uma dessas para mim. É muito prático ter os óculos
sempre à mão. Se importa se pergunto onde a comprou?
—Bolsinha para os óculos? —Irene entendeu que falava do
objeto prateado que levava preso a cintura e sorriu. — Oh, obrigado.
É novo. Faz um tempo que perdi o que tinha. Fiquei muito feliz
quando encontrei este faz um pouco de tempo em uma loja em
Londres. Anotarei o nome do estabelecimento antes que se vão.
—Fico muito grata —disse Clarissa, animada. — Minhas
amigas dizem que sou muito séria e aborrecida em questão de
moda. Estou decidida a ser mais moderna.
Beatrice levantou a vista para o teto.
—Pelo amor de Deus, Clarissa — disse—, Evie e eu nunca
dissemos isso de você, verdade, Evie?
—Nunca —manifestou Evangeline.
—Lamento informar, mas dizerem que me visto como uma
professora de internato para moças dá no mesmo —comentou
Clarissa.
Meia hora depois, com as compras bem embaladas, as três
amigas cruzaram a rua até um salão de chá.
Evangeline esperou até serem servidas de chá e um prato com
salgados insípidos para olhar para Clarissa.
— Verdade que Beatrice e eu insinuamos que te vestes de
modo muito sóbrio? —perguntou com doçura.
—Parece que «sem graça» seja a expressão mais adequada —
disse Clarissa. Pegou um salgado do prato. — Mas não tem
problema. São minhas amigas e as perdoo.
Beatrice mordeu um lábio.
—De verdade que nunca quisemos te fazer sentir mal com isso
—assegurou. — É só que Evie e eu acreditamos que poderia gostar
de se vestir de uma forma mais alegre às vezes. Já é bem ruim que
tenhamos que nos vestir como damas de companhia quando
trabalhamos. Não tem motivo para usar isso o resto do tempo. Isso
não é bom para nossa autoestima.
—Minha autoestima esta muito bem, obrigada —respondeu
Clarissa com a testa franzida.
—Se é assim, porque perguntou pelo bonito estojo de óculos
da senhorita Witton? —perguntou Evangeline com uma xícara na
mão.
Clarissa mordeu seu salgado.
—Simplesmente tive curiosidade. É um estojo muito elegante,
não parece?
Evangeline trocou um olhar de cumplicidade com Beatrice e
foi muito evidente que ambas pensavam o mesmo. O aniversário de
Clarissa seria no mês seguinte. Um estojo chatelaine de prata para os
óculos seria um presente perfeito.
7

—Isso é tudo? —disse Clarissa em um tom que refletia


aborrecimento e incredulidade de uma só vez. — É tudo que se
pode fazer em Little Dixby? Ver algumas ruínas, tomar chá e comer
alguns salgadinhos insípidos e entrar em uma livraria?
—Temo que sim —confirmou Evangeline. — Os lugares mais
interessantes dos arredores estão trancados entre os muros de
Crystal Garden.
Regressavam andando à Fern Gate Cottage. Eram só quatro e
meia e ainda tinham várias horas de sol antes do anoitecer. Mas as
sombras que se projetavam do espesso bosque no caminho estreito
eram largas e escuras. Já não era necessário usarem a sombrinha.
Evangeline fechou a sua. Beatrice e Clarissa a imitaram
—Como pôde sobreviver estas últimas semanas? —perguntou
Beatrice. — Não me estranha que estivesse morta de aborrecimento.
—Isso foi até ontem a noite —disse Evangeline.
—Eu sempre digo que não há nada melhor que um ataque de
alguém que queira te degolar para não cair em profundo tédio. —
disse Clarissa sem poder segurar a língua.
Evangeline ia responder, mas um calafrio eriçou os pelos de
sua nuca. Instintivamente olhou o caminho à frente e viu Lucas
Sebastian se aproximar. Parou.
Beatrice e Clarissa pararam a seu lado. As três observavam
Lucas, que estava vestido para dar um passeio pelo campo com uma
jaqueta informal, calças e botas. Tinha a cabeça descoberta. Avançou
entre as sombras quase em silêncio.
—Deixa que adivinhe —sussurrou Beatrice. — Por acaso não
será este homem o senhor Sebastian?
—Sim —confirmou Evangeline com voz baixa. Notou que a
energia vibrava no ambiente e soube que suas amigas tinham
recorrido a seus outros sentidos.
—Caramba —disse Clarissa, muito séria. — Tinha razão ao
dizer que possui um grande poder psíquico. Vejo em sua aura,
mesmo desta distância. Muito escura, potente. Poderia ser muito
perigoso, Evangeline. Deve ter cuidado.
Os olhos clarividentes de Beatrice se desfocaram por um
momento.
—Não —contradisse. — Evie estará a salvo com ele.
—Está segura? —perguntou Clarissa.
—Totalmente —respondeu Beatrice.
—Estou de acordo que seja pouco provável que lhe cause
algum dano físico —disse Clarissa. — A energia de sua aura não
mostra nenhuma impureza de luz turva que se vê em homens que
maltratam aos que são mais fracos que eles. Mas nós três sabemos
que existem muitas outras formas com que prejudicar uma mulher.
No que se refere a assuntos do coração, uma mulher precisa sempre
estar em guarda.
—Assuntos do coração? —exclamou Evangeline, indignada. —
Você está louca? Não tem nenhum assunto do coração aqui. Alguém
tentou me matar ontem à noite. Asseguro que não tinha nada a ver
com meu coração. Ainda que não acredite, minha principal
preocupação é descobrir quem pretendia fazer isso.
—Sim, claro —disse Beatrice.
Desta vez esticou uma mão para dar uma palmadinha em
Evangeline, ainda que não na cabeça, e sim no braço. Evangeline
suspirou e lembrou que suas amigas tinham boas intenções.
—Dadas as circunstâncias, é pouco provável que entregue meu
coração ao senhor Sebastian —comentou em voz baixa. — E ainda
que fosse tão tonta em fazer isso, estou certa que ele me devolveria
imediatamente.
—Humm... —disse Beatrice. Mas seguia observando Lucas e
não parecia convencida.
Evangeline se deu conta que não dispunha de tempo para
corrigir a impressão errônea de suas amigas. Lucas já estava
praticamente em cima delas. Esboçou um sorriso.
—Senhor Sebastian —disse. — Me alegro de voltar a vê-lo.
Permita-me apresentá-lo à minhas amigas, a senhorita Slate e a
senhorita Lockwood. Eu contei a elas o que ocorreu ontem à noite.
Lucas parou ante elas e inclinou a cabeça.
—Senhorita Ames. Senhoritas.
—Encantada, senhor Sebastian —disse Clarissa.
—Senhor Sebastian —murmurou Beatrice educadamente.
Evangeline notou outro calafrio de energia no ambiente e
soube que Beatrice e Clarissa estavam observando Lucas com maior
interesse. E pelo brilho de diversão que via em seus olhos, soube
que ele era consciente daquele exame psíquico.
«Isso é ridículo», pensou enquanto buscava alguma forma de
distração.
—O que fez com o cadáver, senhor Sebastian? —Se abaixou
para puxar a tranca do portão do jardim. — Conseguiu recuperá-lo
do labirinto e examiná-lo para obter pistas?
Os lábios de Lucas distenderam em um leve sorriso.
—Sabe, senhorita Ames? Não conheço nenhuma outra dama
que tenha começado uma conversa com uma pergunta como essa.
—Não preste atenção a Evie —disse Beatrice. — É escritora.
Suas conversas podem dar voltas estranhas.
—Sim, já estou ciente disso —comentou Lucas.
—Perdão, mas tinha essa pergunta na cabeça o dia todo. —
Evangeline, ruborizada, abriu a porta.
Clarissa interveio adotando sua atitude intelectual:
—O outro problema em tratar com escritores é que possuem a
tendência de querer tirar proveito até dos incidentes mais
insignificantes, por assim dizê-lo. Sempre estão buscando inspiração
para suas histórias e seus personagens. Vão reunindo material em
toda parte.
—Obrigado pela advertência, senhorita Slate —disse Lucas
sem deixar de olhar para Evangeline.
—Bom, já chega —anunciou Evangeline. Avançou
energicamente pelo caminho de cascalho que cruzava o bosque de
hibiscos. — Estou tentando manter uma conversa importante com o
senhor Sebastian. O menos que espero é uma resposta as minhas
perguntas.
—A resposta a sua pergunta é que encontrei o corpo de Sharpy
Hobson, mas averiguei muito pouca coisa sobre ele que já não
tivéssemos deduzido —explicou Lucas. — Ao que parece, era um
criminoso pago que viajou até aqui de trem. Encontrei um par de
facas e um bilhete de trem, junto com uma entrada de teatro. Parece
evidente que Hobson gostava de dramas.
Tinha ficado educadamente de um lado, esperando que
Clarissa e Beatrice entrassem no jardim. As seguiu e se deteve para
correr o passadiço da porta.
—Isso foi tudo que pode averiguar? —quis saber Evangeline.
—Levava uma grande quantidade de dinheiro —prosseguiu
Lucas. — A primeira metade de seu pagamento, acredito.
—Seu pagamento? —surpreendeu-se Beatrice, que voltou-se
para olhá-lo. E, em seguida, acrescentou:— Oh, entendi, para
assassinar Evie. Meu Deus!
—Quanto valho senhor Sebastian? —perguntou Evangeline
enquanto subia os degraus.
—Parece que muito. — e disse a quantidade exata de dinheiro
que tinha o cadáver.
—Minha mãe de Deus! —exclamou Evangeline, horrorizada.
—Estranho se arriscar a viajar com tanto dinheiro assim! —
refletiu Clarissa. — Parece bem perigoso, com o tanto de ladrões e
batedores de carteira que infestam as estações de trem.
—O que iria fazer com ele, se não trouxesse? —indicou Lucas.
— Vinha de ambientes criminosos, com certeza nasceu e se criou nas
ruas. Não confiaria em nenhum de seus cúmplices e nenhum banco
legal o teria aceitado como cliente. Com certeza chegou à conclusão
de que o dinheiro estaria mais seguro com ele do que em alguma
outra parte. Afinal, era um assassino. Quem seria tão idiota para
tentar roubá-lo?
—Parece ter certos conhecimentos da conduta criminal, senhor
Sebastian —disse Beatrice, impressionada.
—Se dedicou a estudá-la —esclareceu Evangeline antes que
Lucas pudesse dizer algo.
—Verdade? Que fascinante! —comentou Clarissa, com os
olhos muito abertos.
Evangeline se precaveu que Lucas estava se divertindo de
novo. Com certeza não era um bom sinal.
—Tanto faz a perícia do senhor Sebastian —soltou. — A
questão é que o dinheiro que Hobson levava com ele parece ser mais
uma prova de que alguém o contratou para me matar.
—Eu não tinha dúvidas quanto a isso —disse Lucas com
suavidade.
—Bom, pois eu sim —assegurou Evangeline. — Suponho que
isso seja um engano, uma funesta confusão.
—Não acredito —contradisse Lucas.
Evangeline tirou a chave do bolsinho de sua chatelaine que
levava presa a cintura.
—É que não posso imaginar...
A porta se abriu antes que pudesse introduzir a chave na
fechadura. Molly Gillingham, a moça que ajudava na limpeza abriu
a porta neste mesmo instante. Tinha as bochechas coradas de
entusiasmo.
—Bem vinda a casa, senhorita Ames —saudou à Evangeline
com uma solenidade nada própria dela enquanto dirigia olhares
rápidos à Lucas.
—Obrigado, Molly. —Evangeline esperou, mas ao ver que
Molly não se movia, lhe sorriu. — Se importaria se entrássemos?
—Sim, claro, peço que me desculpe, senhorita Ames —disse
Molly, coradíssima, saindo da frente na maior velocidade. E, depois
de dirigir outro olhar rápido a Lucas, perguntou: — Querem chá,
senhorita?
Evangeline estava a ponto de informar a Molly que elas
tinham acabado de tomar chá no povoado, mas lhe ocorreu que
Lucas poderia aceitar uma xícara. Não tinha mais remédio que
oferecer o chá.
—Sim, obrigada, Molly —respondeu enquanto desatava as
fitas do chapéu. — Vamos tomá-lo no salão.
—Já irei levá-lo, senhorita. —Molly fez uma reverência inepta
e saiu disparada para a cozinha.
Evangeline esperou que suas amigas tirassem o chapéu e
assinalou a elas e a Lucas o salão.
—Sente-se, por favor, senhor Sebastian. Irei falar um momento
com Molly.
Os fez passar ao salão e fechou a porta dirigindo-se
rapidamente até a cozinha. Encontrou Molly movendo-se de um
lado a outro emocionada.
—É mesmo o senhor Sebastian aqui, nesta casa — tentou
sussurrar a moça em voz bem alta.
—Sim, já percebi isso.
—Vamos ver quando disser a mamãe e papai que servi ao
novo dono de Crystal Garden.
—Procure se conter, Molly —pediu Evangeline.
—No povoado dizem que é muito provável que o senhor
Sebastian esteja tão louco como seu tio, mas não pareceu assim.
—Eu também não acredito nisso —disse Evangeline
energicamente. — E acredito que seja melhor que não alimente
ainda mais essas fofocas.
—Não, senhorita.
—Só queria saber se consegue preparar chá para tantas
pessoas.
—Não se preocupe senhorita. Todos os dias ajudo mamãe a
preparar o café da manhã para minha família, e somos dez no total.
Durante a colheita, fico na cozinha com as outras mulheres
cozinhando desde cedo até o anoitecer para os homens que
trabalham nos campos. Chá para quatro não é nada.
Era evidente que Molly tinha muita ilusão por estar tão
próxima ao misterioso dono da velha abadia. Evangeline não teve
coragem de estragar seu entusiasmo. A bonita moça de bochechas
rosadas tinha dezoito anos. Era uma jovem inteligente, irreprimível,
que se encantava em ler as novelas nos jornais. Quando descobriu
que Evangeline estava escrevendo uma dessas histórias, tinha
suplicado que lhe permitisse ler os primeiros capítulos que eram
enviados ao editor a cada semana. No começo, Evangeline se
mostrou reticente em deixar, mas no final tinha cedido. O prazer de
Molly com cada nova cena de Winterscar Hall tinha sido gratificante.
Para Evangeline era uma pena que Molly estivesse destinada a
casar-se com algum dos camponeses locais. A moça tinha uma
enorme curiosidade pelo que havia além dos limites do povoado
onde tinha nascido e crescido. Frequentemente falava sobre juntar
dinheiro para viajar até Londres. Mas Evangeline sabia que não era
provável que viajasse tão longe e o mais provável é que fosse até o
povoado vizinho para ver um circo ou uma feira itinerante. Com
certeza nunca iria a Londres.
Lembrou-se que o futuro de Molly não era nenhuma novidade.
Na realidade, a vida em um povoado pequeno e seguro, muito
distante dos perigos das ruas de Londres tinha suas vantagens. Mas
essa vida prometia muito trabalho debaixo do sol na fazenda e
muito pouco estimulo mental. Pressentia que cedo ou tarde, o
trabalho rotineiro e pesado acabariam desanimando Molly.
—Volte com seus convidados, senhorita Ames —disse Molly.
— Em seguida levarei a bandeja. —Usou ambas as mãos para pegar
a pesada chaleira do fogão. — Oh, quase me esqueci de dizer que
meu tio veio enquanto estava fora para trocar a fechadura da porta
da cozinha. Ficou nova em folha.
Evangeline olhou para a nova fechadura. Era muito resistente.
—Por favor, agradeça a seu tio de minha parte.
—Não tem importância. —Molly abriu um armário e começou
a pegar xícaras e pratos. — Disse que parecia que alguém tinha
forçado quando você saiu para dar um passeio à tarde. O ladrão
deve ter se assustado antes de poder roubar alguma coisa.
«Não sair para dar um passeio —pensou Evangeline”. — “Sair
correndo, como se tivesse sendo perseguida pelo próprio diabo,
para que não me matassem.»
—Ou algum cachorro latiu —comentou, e logo mudou. — Ou
um dos vizinhos passou pelo caminho e o assustou.
—Não é provável que alguém que viva por aqui tenha passado
por este caminho que leva a Crystal Garden há essas horas —disse
Molly. — Todo mundo acredita que o bosque é encantado. Meu tio
pediu que lhe dissesse que ninguém desta região faria algo tão
terrível como destroçar sua porta.
—Nunca pensei que tinha sido alguém de Little Dixby —
assegurou Evangeline. E, isso era a verdade.
—Meu tio acha que foi algum dos rufiões do circo ambulante
que está em Ryton. Já sabe como são essas pessoas de circo. Todo
mundo diz que é preciso vigiá-los bem.
No campo era normal culpar aos membros dos circos
ambulantes qualquer coisa que sumisse como uma roupa ou
ferramenta. Era, sem dúvida, a explicação mais sensata neste caso,
mas Evangeline não ia deixar que a culpa recaísse nos ombros de
gente inocente.
—Não acredito —disse. — Quando tentaram entrar na casa, o
pessoal do circo de Ryton estava muito ocupado recolhendo suas
coisas para seguirem ao próximo acampamento. Não, estou certa
que foi alguém de Londres que chegou no trem em busca de
cometer alguma safadeza. Pode ser que se viu obrigado a ir da
cidade para fugir da polícia.
—Bem, seja como for, já se foi. —Molly verteu água quente em
um bule. — Posso colocar alguns salgadinhos que fiz, na bandeja.
Um cavalheiro forte e saudável como o senhor Sebastian precisa
comer.
Evangeline sorriu. Estava claro que não era a única mulher da
região que tinha observado Lucas, especulações sobre seu estado
mental à parte, era um homem forte e saudável.
—Obrigado, Molly. —dirigiu-se à porta.
Molly destampou um prato que continha alguns salgadinhos
de excelente aparência.
—Oh, senhorita Ames. Queria dizer que ontem à noite fiquei
acordada depois que mamãe e papai se retiraram para terminar de
ler o segundo capítulo de Winterscar Hall. Foi apaixonante.
—Obrigado, Molly —disse Evangeline, encantada.
—Morro de vontade de saber o que vai acontecer agora que
Patrícia está presa no quarto com o espantoso John Reynolds, que
planeja comprometê-la para que seja obrigada a casar-se com ele.
Tal como ficou o final, parece que a única opção que Patrícia tem
para salvar sua honra seja saltar pela janela e quebrar o pescoço nas
rochas que ficam no fundo do penhasco.
—O que não daria certo porque terminaria a história um
pouco cedo demais, não acha?
—Sim, senhorita. —tinha marcas nos olhos ao sorrir. — Estou
segura que Patricia encontrará outra forma de escapar das garras do
mal sem perder sua honra nem quebrar o pescoço.
—Acredito que posso dizer sem medo de errar que você tem
razão. —«Porque John Reynolds já não é o cara mal», pensou
Evangeline . — Após levar o chá, pode ir para casa.
—Está certa, senhorita? —perguntou Molly, cabisbaixa. — Não
me importo ficar mais um pouco. Vai precisar que lave os pratos
quando o senhor Sebastian tiver ido.
—Agradeço a oferta, mas nos arrumaremos sem você.
—Sim, senhorita. Com certeza, meu irmão, Ned, trouxe os
ovos, o leite, a manteiga e o queijo que a senhorita pediu. E eu
preparei um delicioso pastel de salmão e alho poro para que possam
jantar a senhorita e suas amigas de Londres esta noite.
—Seu pastel de salmão e alho poro é o melhor que já
experimentei —disse Evangeline.
—Obrigado, senhorita. —O sorriso de Molly era de orgulho e
satisfação. — Espere até que conte à minha mãe que o senhor
Sebastian veio vê-la hoje.
Evangeline se perguntou o que diria a senhora Gillingham se
soubesse que a presença de Lucas Sebastian em seu salão se devia
unicamente ao fato de um assassino armado com faca a ter
perseguido até os jardins de Crystal Garden passadas às duas da
madrugada. Mas estes detalhes não provocariam uma fofoca tão
grande quanto à notícia de que a jovem inquilina tivesse chegado à
antiga abadia vestida unicamente de camisola e robe. Tinha coisas
que eram melhor não serem explicadas.
—Vá para o salão, senhorita. —Molly assinalou para a porta.
— Não faça esperar um cavalheiro tão refinado como o senhor
Sebastian. É uma grande honra que tenha vindo tomar o chá.
—Obrigado por me recordar de minhas obrigações como
anfitriã —disse Evangeline.
Mas Molly, que se entretinha com as coisas do chá não captou
a ironia.
Umas vozes afogadas chegavam pelo corredor. Alarmada,
Evangeline regressou a toda pressa para o salão. Abriu a porta de
um golpe e a fechou rapidamente.
—Pelo amor de Deus, falem baixo —sussurrou em voz
audível. — Se Molly os ouvir falar de Sharpy Hobson ou sobre o
ocorrido ontem à noite, o povoado inteiro vai ficar sabendo antes do
por do sol.
Lucas lhe deu um sorriso lento. Estava relaxado, apoiando um
ombro na parede próxima à janela em uma elegante postura
masculina. Tinha os braços cruzados ante o peito amplo.
Clarissa e Beatrice estavam sentadas em duas poltronas, com a
bainha dos vestidos bem presos ao redor das botinas. Estalaram a
língua para ela.
—Ficará surpresa ao saber que já nos tínhamos dado conta
disso —soltou Beatrice. — De fato, estávamos falando de temas
agrícolas.
—Agrícolas? —Evangeline encostou-se à porta com ambas as
mãos no pomo atrás dela. — Por que diabos haveriam de estar
falando em agricultura em um momento desses?
—Estava explicando a senhorita Lockwood e a senhorita Slate
que os campos ao redor de Little Dixby sempre foram muito
produtivos —respondeu Lucas. — Os cultivos crescem muito bem
por aqui. Os moradores te dirão que podes cultivar qualquer coisa
nestas terras e assim tem sido por gerações. As rosas dos jardins
locais são extraordinárias.
—Oh, compreendo —disse Evangeline com a testa franzida,
pensando no que tinha acabado de ouvir. — Suponho que o fato
deste lugar ser carregado de energia tenha algo a ver com a
prosperidade dos campos e dos jardins da região. — Lucas ergueu
as sobrancelhas.
—Sabe que Little Dixby pode ser um vórtice paranormal? —
perguntou com um brilho em seus olhos de animal de rapina.
—Sim, claro; e se meu pai tinha razão, seu centro está em
Crystal Garden —respondeu Evangeline. — Por isto estou aqui,
sabe?
—Não. Não sei —disse Lucas pausadamente.
—Sem problemas, não é importante. —Ouviu um repique de
louças na bandeja. — Deve ser Molly.
Voltou-se e abriu a porta. Molly entrou no salão, movendo-se
com muito cuidado com a carregada bandeja. Lucas ficou ereto.
—Parece estar muito pesada... —comentou. — Permita-me
ajudá-la.
—Não se preocupe, senhor —disse Molly, muito corada.
Mas Lucas já tinha pegado a bandeja de suas mãos. A deixou
na mesinha.
—Obrigado, senhor. —Molly dirigiu um olhar esperançoso
para Evangeline. — Quer que sirva, senhorita?
—Não, obrigado, Molly —respondeu Evangeline com um
sorriso enquanto se sentava no sofá e arrumava a barra de seu
vestido. — Eu mesmo me encarregarei. Pode ir para casa agora.
—Sim, senhorita. Obrigado. —fez outra reverência torta e saiu
ao corredor e fechou a porta sem fazer ruído.
Evangeline pegou o bule e começou a servir. Todos os
presentes prestavam muita atenção ao chá até que ouviram o ruído
surdo da porta da cozinha se fechar. Um momento depois, viram
pela janela da frente que Molly se afastava depressa pelo caminho.
A notícia que Lucas estava tomando chá com sua nova
inquilina e suas elegantes amigas de Londres não tardaria muito em
ser de conhecimento público em todo o povoado. Evangeline
pensou que era uma sorte que Clarissa e Beatrice estivessem ali. Sua
presença garantia a respeitabilidade.
As normas sociais que regiam as relações entre os sexos eram
mais relaxadas no campo que em Londres, mas tinha certos limites,
e bastava muito pouco para que as pessoas começassem a falar em
um povoado tão pequeno como Little Dixby. Evangeline era muito
consciente que as últimas duas semanas já se tinha especulado
muito sobre ela. Uma mulher jovem e solteira vivendo sozinha era
sempre muito observada. Uma mulher solteira de Londres que se
vestia na moda e, que segundo rumores, escrevia uma novela era
muito interessante.
—Já podemos falar —anunciou Evangeline.
—É uma lástima que o espantoso Hobson esteja morto —
indicou Clarissa. — Teria sido muito útil interrogá-lo. Não entendo
muito bem como morreu. Evangeline disse algo sobre espinhos.
—Por desgraça, o senhor Hobson entrou dando encontrões em
uma das partes mais perigosa dos jardins —explicou Lucas. — Sua
morte foi devido a um acidente. —Provou um gole de chá. — Algo
parecido com o acidente de Douglas Mason.
Evangeline congelou. Clarissa e Beatrice pareciam de repente
muito concentradas em seu chá.
Como era previsto, a primeira que recobrou a compostura foi
Clarissa:
—A questão é: Porque diabos alguém iria querer enviar um
sujeito até aqui para assassinar Evangeline?
—A única coisa que posso dizer por hora é que este alguém
estava disposto a pagar a Sharpy Hobson uma soma considerável —
disse Lucas, examinando Evangeline com o olhar. — Alguém quer
você morta, senhorita Ames, e se está segura de que não tem
nenhum namorado ciumento por aí...
Evangeline se engasgou com o chá. Como escapou um pouco
pela boca, pegou um guardanapo.
—Disso estou segura.
—Estou de acordo com ela —interveio Beatrice, que tinha a
boca franzida. — Podemos descartar a ideia de um namorado
rechaçado. No caso de Evangeline, simplesmente não tem ninguém.
—E sua morte não beneficiaria a ninguém —acrescentou
Clarissa com vontade de ajudar. — Não tem dinheiro nem imóvel.
—Sempre é agradável saber o quanto se vale —soltou
Evangeline para a xícara de chá.
—Parece que só resta uma opção possível —indicou Lucas.
Soltou o último salgado na bandeja e sacudiu as migalhas que
tinha nas mãos. Evangeline teve a impressão que seus olhos
brilhavam. Mas se percebeu que não era de desejo. A vontade que
percebia nele era muito diferente: a aura perigosa de um caçador
espreitando sua presa. Estava segura que não era a primeira vez que
o fazia.
Beatrice também detectou o ambiente carregado.
—Que opção seria essa? —perguntou expectante, à Lucas.
—Os homens como Hobson, os que podem ser contratados
para que cometam um assassinato, não existem em grande número,
como se supõe. —explicou Lucas. — Os experts nesta classe
particular de trabalho são conhecidos nos ambientes criminosos.
—Imagino que sim —comentou Clarissa sentindo um calafrio.
—Teremos que investigar quem contratou Hobson —
prosseguiu Lucas. — Por sorte, temos Stone.
Evangeline levantou a vista de sua xícara.
—O que o senhor Stone tem a ver com isto? —disse surpresa.
—Tem contatos nas ruas de Londres. —Lucas contemplou o
bosque pela janela. — Conhece algumas pessoas desse mundo. Esta
manhã tomou um trem para a cidade, onde perguntará sobre
Hobson. Com sorte, vai conseguir alguma informação sobre a
pessoa que o contratou.
Evangeline ficou em silêncio. Estava consciente que Beatrice e
Clarissa estavam tão caladas quanto ela. Olhavam entre si e viu as
perguntas em seus olhos. Arqueou as sobrancelhas e comentou:
—Já disse que o senhor Sebastian tem estudado a conduta
criminal.
—Sim, tem razão. —Beatrice ergueu as costas e deixou a xícara
com ar resoluto. — É uma sorte que possamos nos beneficiar de seus
conhecimentos e seus contatos. O problema é que estamos lidando
com criminosos profissionais. Esse não é um terreno que
dominamos.
Clarissa batia com os dedos no braço da poltrona.
—Não, com certeza —comentou com uma expressão de
preocupação em seu rosto sério.
—Seria muito estranho que vocês três tivessem alguma
experiência prática com crimes — comentou Lucas, observando-as
pensativo. — Normalmente estes assuntos só correm no meio
policial.
—Humm... —disse Beatrice educadamente, e bebeu um gole
de chá.
—Sim, claro —murmurou Clarissa. — O que acontece é que,
quando avisam a polícia, logo acabam indo parar na imprensa. A
polícia tem suas virtudes, mas não é famosa por sua discrição.
—Por acaso o senhor Sebastian e eu comentamos exatamente
isso na noite passada —indicou Evangeline depois de clarear a
garganta.
—Quando estava em seu jardim, vestida somente com roupas
de dormir? —Clarissa arqueou as sobrancelhas de repente. — Sim,
suponho que devam ter falado se deviam ou não avisar as
autoridades.
—Pelo amor de Deus —repreendeu Beatrice. — Agora não é o
momento de falar dessas coisas.
—Bobagens —replicou Clarissa. — Todos nós conhecemos os
fatos. Evangeline e o senhor Sebastian tomaram a decisão correta.
Imagine o escândalo que isso teria gerado se a história chegasse aos
jornais de Londres.
—Se a tentativa de assassinato foi à raiz do incidente que
ocorreu depois que deixei meu último posto, como o senhor
Sebastian acredita, duvido que a polícia tivesse servido de alguma
ajuda neste caso —disse Evangeline. — A morte do senhor Mason
foi um infeliz acidente.
—Certo —corroborou Beatrice em tom neutro.
Se produziu um breve silêncio. Evangeline percebeu que Lucas
voltava a observá-las com muita atenção.
—Acredito que chegou o momento de me contarem o que
fazem para ganhar a vida —disse passado um instante. — E, mais
ainda, gostaria muito de saber algo mais sobre o que aconteceu
enquanto ocupava seu último posto, senhorita Ames.
Evangeline olhou para Clarissa e Beatrice.
—Acredito que podemos confiar no senhor Sebastian —
aconselhou Beatrice.
—Não vejo outra opção —concordou Clarissa. — Está em jogo
à segurança e até mesmo a vida de Evangeline.
—Já lhe disse, senhor Sebastian, que minhas amigas e eu
trabalhamos para uma agência que fornece damas de companhia a
uma clientela muito exclusiva —começou a contar Evangeline,
muito ereta, com uma xícara e um pires na mão.
—Ontem a noite mencionou sua profissão —acenou Lucas. —
Mas ficou claro que nenhuma de vocês é a típica infeliz que se vê
obrigada a dedicar-se a esta profissão.
—Sério? —Evangeline olhou por cima de sua xícara. — E
quantas damas de companhia conhece pessoalmente?
—Agora me pegou, senhorita Ames. —Lucas esboçou um
ligeiro sorriso. — Tenho que admitir que vocês são as primeiras
damas de companhia com as quais falei mais que trinta segundos.
Além de serem reservadas e manterem-se em um discreto segundo
plano, tecendo ou lendo enquanto suas patroas fazem sua vida.
Ninguém costuma se fixar nelas.
Evangeline lhe dirigiu um sorriso frio.
—E é precisamente por isso que somos tão boas no que
fazemos. Ninguém se fixa em nós enquanto trabalhamos.
—E no que consiste esse trabalho? —quis saber Lucas.
—Somos investigadoras particulares — anunciou Evangeline.
Esperou que o semblante de Lucas mostrasse os inevitáveis
sinais de assombro e incredulidade. Sabia que Clarissa e Beatrice
também estavam esperando isso. As três teriam uma decepção.
—Que interessante —disse Lucas. Curiosamente, parecia
satisfeito. Bebeu um pouco de chá e deixou a xícara sobre a mesinha.
— Agora sim, isto explica algumas coisas.
—Que coisas? —perguntou Clarissa com olhos bem abertos.
—Para começar, o comentário da senhorita Lockwood
indicando que os ambientes criminais não são terrenos que vocês
dominem. Vocês trabalham com crimes da alta sociedade.
—Com a máxima discrição — afirmou Evangeline.
—Evidentemente —Lucas sorriu, — se não fosse assim à
agência Flint e Marsh já teria fechado há muito tempo. Seu trabalho
profissional explica também a engenhosidade e audácia que você
teve na noite passada. Era evidente que tinha certa experiência para
conservar a cabeça fria ao enfrentar o perigo.
—Lhe asseguro que raras vezes correram algum perigo físico
em nossa profissão — aclarou Evangeline. — Nossas chefes tem
muito cuidado para não nos colocar em situações semelhantes.
Depois de tudo, não somos policiais. Pelo geral, nossos clientes são
damas que querem que se faça indagações discretas sobre a
personalidade de alguém e a situação econômica dos cavalheiros
que tentam acessar as finanças familiares.
—Desmascaram os caça fortunas. —os olhos de Lucas
brilharam com frieza ao compreender a situação.
—E aqueles que tentam defraudar viúvas e solteironas —
emendou Clarissa.
—Mas tem razão —prosseguiu Beatrice. — De um jeito ou de
outro, a maioria de nossas funções consiste em desmascarar caça
fortunas. Às vezes nos pedem que investiguemos as origens de
homens que desejam se casar com uma jovem herdeira ou com uma
viúva que possua algum dinheiro próprio para proteger.
—Como conseguem os clientes? —perguntou Lucas. — Não
imagino a empresa anunciando seus serviços nos jornais.
—A senhora Flint e a senhora Marsh recebem clientes que são
enviados por outras pessoas — explicou Evangeline.
—E as investigadoras? —Lucas estava claramente interessado.
— Como encontram mulheres tão pouco comuns quanto vocês três?
—Da mesma forma — afirmou Beatrice. — Corre no boca a
boca. Nem todo mundo está capacitado para este trabalho. Exigem
certas... Habilidades.
Lucas refletiu sobre isso com uma expressão pensativa.
—Essas aptidões para o trabalho, incluem por acaso certa
quantidade de poderes psíquicos?
Clarissa e Beatrice olharam para Evangeline.
—Já disse que o senhor Sebastian leva muito a serio o
paranormal —disse. E então se dirigiu a Lucas: — Quero lhe
perguntar algo: Ontem à noite tínhamos motivos para não
avisarmos as autoridades. Mas cedo ou tarde precisará informar a
morte. Como pensa explicar para a polícia a presença de um cadáver
em seus jardins?
—Não terei necessidade de explicar nada a ninguém —
assegurou Lucas. — Os cadáveres não duram muito em Crystal
Garden.
8

Lucas observou com muito interesse como as três mulheres


assimilavam a notícia do desaparecimento do cadáver nos jardins. A
impressão que se refletia em seus rostos. Os olhos
desmesuradamente abertos, a boca ligeiramente aberta, as xícaras
suspensas no ar.
Evangeline engoliu com força. Mas foi a primeira em
recompor-se e Lucas decidiu que isso se dava porque sabia como
Hobson tinha sido morto.
—Compreendo —disse. — Bem, suponho que não temos que
sentir muito por Hobson. Depois de tudo, tentou me matar.
—Eu penso da mesma forma —interveio Lucas.
Clarissa fechou a boca e assentiu satisfeita.
—Dadas as circunstâncias, parece uma forma muito oportuna
de abordar o problema.
—Foi isso o que me pareceu — insistiu Lucas.
—Fala a sério, senhor Sebastian? —Beatrice olhou para ele com
certo receio. — Espera que o cadáver de Sharpy Hobson
simplesmente desapareça em seus jardins?
—Não será a primeira vez, senhorita Lockwood. Quanto mais
se adentra nos jardins, mais agressivas se tornam as plantas. No
labirinto e no jardim noturno, a natureza atua muito depressa,
especialmente à noite.
Esta informação pareceu interessar a Clarissa:
—Importa qual seja a hora do dia?
—Tenho observado que a escuridão aumenta qualquer tipo de
energia paranormal —respondeu Lucas. — Mas as correntes que
emanam das forças naturais da Terra são sempre mais potentes pela
noite. Segundo a teoria de meu tio, a luz do sol interfere nas
longitudes de ondas nos extremos do espectro o, que é muito
provável, e dificulta que quem tem certas habilidades psíquicas
capte essas correntes.
—Meu pai chegou à mesma conclusão — falou Evangeline.
Lucas se dirigiu a ela:
—Mencionou que seu pai gostava de estudar os fenômenos
paranormais, senhorita Ames.
—Sim —respondeu Evangeline. — Ele mesmo tinha algumas
habilidades psíquicas, sabe?
—É algo hereditário —comentou Lucas sem separar os olhos
dos dela.
—Foi seu interesse pelos fenômenos naturais que me levaram
a decidir passar este mês aqui, em Little Dixby—explicou
Evangeline. — Escreveu em um de seus diários que acreditava que
esta região era um vórtice.
—Um lugar no qual as forças paranormais da Terra se juntam
de tal forma a gerar uma quantidade considerável de energia —
assentiu Lucas, pensativo. — Fascinante. O tio Chester estava
convencido do mesmo. Acreditava que Crystal Garden era o centro
desse vórtice em Little Dixby. —Parou um instante. — De modo que
foi por seu interesse na ciência que se interessou em alugar a casa de
campo de meu tio, senhorita Ames?
—Bem, não. Não exatamente —admitiu Evangeline. — Não
sou apaixonada por temas científicos. Mas quando tomei a decisão
de passar um mês no campo, recordei do que tinha lido no diário de
meu pai. Vim aqui buscando inspiração para escrever. Pensei que os
elementos paranormais da região poderiam dar ideias para minha
história.
—Tinha que ter imaginado isso —disse Lucas com uma careta.
—Os escritores são muito sensíveis, senhor Sebastian —
comentou, olhando-o com frieza. — Obtemos inspiração de todas as
coisas, inclusive da energia do ambiente que nos rodeia.
—Muito bem. Me lembrarei no futuro.
—O que quis dizer com as plantas dos jardins da velha abadia
se tornam mais fortes e agressivas? Afinal o que está acontecendo
em Crystal Garden? —perguntou Evangeline com a mandíbula
tensa.
—Ainda não descobri bosta nenhuma —respondeu Lucas
irritado.
Dizia muito a gravidade da situação e da força das três jovens
sentadas no salão que nenhuma delas prestara a menor atenção ao
termo chulo que Lucas acabara de soltar. Mas ele certamente teria
gostado muito de escandalizar as três empregadas da agência de
Flint e Marsh.
Evangeline virou ligeiramente a cabeça e entortou os olhos
para perguntar:
—De verdade que não sabe o que está ocorrendo?
—Só posso supor que os experimentos de meu tio têm, de uma
certa maneira, a culpa —respondeu. — Um manancial subterrâneo
de águas termais gera as forças que existem entre os muros dos
jardins. E essas águas já eram sagradas para os antigos. Quando os
romanos chegaram, construíram as termas neste lugar porque
estavam convencidos que a água do manancial possuía
propriedades revigorantes, até curativas. Mais à frente, se fundou a
abadia nesse mesmo lugar. Se acreditava que as águas deste
manancial aumentavam o poder das orações e favoreciam as visões
religiosas. Com o tempo, contudo, a abadia foi abandonada. Meu tio
comprou a propriedade há uns trinta anos e começou a realizar nela
seus experimentos botânicos. E tudo parecia estar mais ou menos
sob controle até os dois últimos anos.
—Que tipo de experimentos fazia seu tio? —perguntou
Clarissa, batendo com um dedo na borda de uma xícara.
—Suas intenções eram boas —assegurou Lucas. — Criou
várias samambaias para tentar desenvolver plantas com
propriedades psíquicas. Buscava novas fontes de medicamentos e
cultivos que cresciam mais rápido e fossem mais produtivos. Mas
em algum momento as coisas começaram a dar errado. A vegetação
está se impondo. Os jardins se converteram em uma selva perigosa.
Algumas áreas são praticamente inacessíveis.
—Não me estranha que falem de ocultismo —comentou
Beatrice.
—Nestes últimos anos, pelo menos três intrusos tentaram
chegar até o labirinto e talvez tenham inclusive chegado ao Jardim
Noturno —prosseguiu Lucas. — Mas tio Chester não podia ter
certeza porque os cadáveres tinham desaparecido.
—Por que diabos alguém iria querer correr o risco de entrar
sem permissão em um lugar tão perigoso? —se surpreendeu
Beatrice.
Lucas dirigiu os olhos até Evangeline.
—Talvez a senhorita Ames gostaria de responder a essa
pergunta.
Viu que Evangeline se ruborizava como uma mocinha que foi
pega saindo escondida de casa para encontrar-se com o namorado.
—Estava aborrecida e senti curiosidade — justificou com certa
atitude e desafio. — Essa é a única razão que me fez entrar nos
jardins. Não fui imprudente. Só explorei um pouco. Não tentei
entrar no labirinto.
—Com certeza porque estava fechado com chave —replicou
Lucas.
Evangeline ficou mais corada ainda, mas fingiu não ter ouvido
a acusação implícita.
—À parte a curiosidade da senhorita Ames —prosseguiu
Lucas—, o principal motivo de algumas almas aventureiras terem
tentado entrar no labirinto e no jardim noturno é a lenda sobre o
tesouro.
—Sim —se animou Clarissa—, a senhorita Witton, da livraria a
menciou ainda hoje. Acredita-se que existe uma grande quantidade
de ouro dos romanos enterrados em algum lugar dos jardins.
—Não há nada como a perspectiva de encontrar um cofre
cheio de ouro para atrair buscadores de tesouro —indicou Lucas. —
Mas, em sua maioria, as forças do jardim noturno assustam os
possíveis intrusos.
—E os que conseguem entrar rara vez são vistos —finalizou
Clarissa.
—Em geral, sim —disse Lucas.
—Ouvi as histórias de fantasmas e de forças diabólicas —
comentou Evangeline. — Mas descartei a maioria das fofocas
dramáticas. De fato, a ideia de que as pessoas desapareçam nos
jardins, consumidas por plantas, é muito mais arrepiante que as
explicações que falam em fenômenos sobrenaturais.
—Tem aquela expressão, Bea —disse Clarissa com o cenho
franzido.
—Sim, já o vejo —concordou Beatrice.
—Que expressão? —perguntou Lucas, observando
atentamente o semblante pensativo de Evangeline.
—Evangeline sempre adota esta expressão quando está
pensando em uma nova ideia para suas histórias —explicou
Clarissa. — Acredito que seus comentários sobre plantas carnívoras
a deixaram inspirada.
—Asseguro que não era minha intenção. —Lucas conteve um
gemido.
—Não se preocupe —disse Beatrice. — No final irá se
acostumar aos pequenos hábitos de Evangeline. De volta ao tema do
labirinto... se encontrou o corpo de Hobson em seu interior, é
evidente que você pode entrar.
—Sim. — Relutantemente deixou de olhar para Evangeline. —
Meu tio também podia percorrê-lo. É possível se mover pelo
labirinto se você tem uma boa quantidade de poderes. Mas mesmo
assim, tem vários perigos, como os espinhos venenosos e as videiras
que podem enroscar-se a seu redor, derrubá-lo e prendê-lo com a
mesma força de algemas de ferro.
—Se importariam se saísse um momento, para pegar pluma e
papel? Gostaria de tomar algumas notas —soltou Evangeline,
animada.
—Sim, me importaria, senhorita Ames. —Lucas imprimiu certa
dureza em sua voz. — Pois se não se deu conta, temos outras
prioridades aqui.
—De acordo —aceitou Evangeline, e pegou sua xícara com o
olhar perdido.
Lucas apertou os dentes. Entendeu que estava tomando notas
mentalmente.
—Evie nos disse que seu tio morreu nos jardins... —disse
Beatrice. — Por acaso foi vítima dessas plantas espantosas?
—Na realidade, faleceu na mesa do café da manhã. Já que foi
neste lugar que a senhora Buckley, a governanta, o encontrou.
—Pois tinha ouvido que ele havia desmaiado nos jardins —
disse Evangeline surpresa e com o cenho franzido.
—Os rumores nunca contam bem os fatos —disse Lucas. — Os
moradores preferem acreditar que ele foi morto por forças
sobrenaturais. Mas tenho minhas dúvidas, estou convencido que foi
assassinado, mas não por demônios ou espíritos do além.
Evangeline trocou olhares com Clarissa e com Beatrice. Lucas
notou sua curiosidade e seu crescente entusiasmo. Compreendeu
que todas elas se encantavam com a emoção de um mistério. Sem
dúvida, isso tinha algo a ver com seus poderes.
—Descobriu algum motivo para a morte de seu tio? —
perguntou Clarissa.
—Ainda não... —contestou Lucas pensativo. — Mas suponho
que está relacionado com sua recente descoberta nos jardins.
—E o que foi que ele descobriu? —quis saber Beatrice.
—Não sei —admitiu Lucas. — A única coisa que recebi foi um
breve telegrama urgente, onde dizia que tinha descoberto algo
muito importante no Jardim Noturno. Morreu antes que eu pudesse
chegar até ele.
—Não sentiu curiosidade? —estranhou Evangeline.
—Vejam, meu tio Chester sempre estava me informando de
seus novos descobrimentos botânicos e os resultados de seus
últimos experimentos —explicou Lucas. — Se tivesse vindo a
Crystal Garden cada vez que recebia uma mensagem onde falava de
algum novo híbrido fantástico, teria que vir aqui toda a semana.
—Mas dessa vez parece que topou com alguma coisa
realmente importante, não acha? —insinuou Evangeline.
—Parece uma explicação provável, mas tem outras —disse
Lucas.
—Seu tio tinha inimigos? —interveio Beatrice.
—Que eu saiba, nenhum —respondeu Lucas. — A maioria das
pessoas achava que ele estava louco. Mas existem vários botânicos
que levam anos fazendo experimentos parecidos. Não muitos, claro,
dado a natureza paranormal do trabalho. Ainda assim seria mais
adequado classificá-los como rivais do que colegas.
—De modo que o ciúme profissional poderia ser um fator —
disse Evangeline.
—Tudo isso é fascinante —murmurou Clarissa.
—Gostaria muito de ver seus jardins, senhor Sebastian —disse
Beatrice.
—Eu também —assegurou Clarissa.
—Eu também gostaria de visitar Crystal Garden como é
devido —se animou Evangeline.
—E eu estarei encantado em mostrar-lhes todas as partes
seguras —assegurou Lucas.
—Esplêndido —exclamou Beatrice.
—Que emocionante! —ajuntou Clarissa.
—Obrigado. —Evangeline sorriu. — Como vê, uma visita gera
muito entusiasmo.
—Os jardins são mais interessantes depois que anoitecer —
informou Lucas, sem afastar o olhar de Evangeline. — Organizarei
uma visita esta noite, mas com uma condição.
—Quer mais detalhes sobre meu último caso, não é? —disse
Evangeline, fazendo uma careta.
—Como estou envolvido no que ocorreu na sequência da
situação, acredito que é importante que tenha mais informações a
respeito.
Evangeline titubeou antes de falar:
—Porém não sabemos se a tentativa de assassinato está
relacionada com o assunto dos Rutherford.
Todos a olharam. Ninguém disse nada.
—Mas tem razão. —Suspirou. — Acreditar que não tem
nenhuma ligação entre ambas às coisas é demais. Ainda que por
mais que tente, não me ocorre nenhuma. Contarei a história esta
noite, quando visitarmos os jardins.
9

Aquela noite, as três estavam com Lucas no terraço da casa de


campo observando como os jardins e o caramanchão brilhavam a
luz da lua.
—Espetacular. —Clarissa inspirou fundo. — Absolutamente
lindo.
—Mas pode-se notar as sinistras correntes subterrâneas que
existem neste lugar —disse Beatrice. — Até meus sentidos normais
às detectam. —Estremeceu de forma visível. — Compreendo que
seu tio não tivesse demasiado problemas com os intrusos, senhor
Sebastian.
—Não —disse Lucas, que dirigiu seu olhar para Evangeline.
— A maioria não chegava tão longe como você, senhorita Ames.
—Bem, tenho certos poderes —disse Evangeline com frieza. —
E este lugar me parece fascinante.
Lucas sorriu. Em meio ao esplendor prateado, o rosto de
Evangeline ficava sombreado e resultava misterioso.
—Sim, já vejo —comentou antes de fazer uma ligeira pausa. —
Lembro que tínhamos chegado a um acordo.
—Será melhor que conte logo —sugeriu Clarissa.
—Estou de acordo —interveio Beatrice. — Acredito que
podemos confiar no senhor Sebastian. Não vai fofocar por aí.
—Não tem muito que contar —disse Evangeline, cruzando os
braços. — Foi um caso rotineiro. A cliente era uma mulher mais
velha, lady Rutherford, que tinha começado a ter certas suspeitas
sobre o homem que desejava se casar com sua neta. Os pais da moça
não a escutavam. Acreditavam que era um partido estupendo, e a
jovem considerava seu pretendente bonito e encantador. O senhor
Mason podia ser muito... convincente.
—A imprensa comentou —assegurou Lucas.
—Comecei a trabalhar como dama de companhia da cliente.
Dessa maneira, a acompanhei a vários atos aonde o pretendente
também ia: uma festa ao ar livre, uma recepção, um baile, este tipo
de coisas. A primeira vez que vi Mason soube que era um farsante,
claro. O problema era demonstrá-lo.
—Suas faculdades permitiram que visse o seu engodo? —
insinuou Lucas com o cenho franzido.
Evangeline duvidou um longo momento antes de responder:
—Por assim dizer. Naturalmente, nunca se fixou em mim.
—Porque era somente a dama de companhia da avó. —Lucas
sorriu.
—É incrível como uns óculos, uma peruca cinza e um vestido
passado de moda trocam o aspecto de uma pessoa. —comentou
Beatrice.
—Sei muito bem que a maioria das pessoas só veem o que
querem ver —disse Lucas. — Siga contando a história, senhorita
Ames. Suponho que informou a sua cliente de que suas suspeitas
eram corretas.
—Sim, e ela tratou de persuadir aos pais da moça para
investigarem mais a fundo as finanças de Mason. Mas, como disse,
era muito inteligente na hora de ocultar sua verdadeira
personalidade. Lady Rutherford estava muito angustiada. Assim
que me dispus a encontrar provas.
Lucas se deu conta que estava fascinado, como se estivesse
olhando uma bola de cristal.
—Conseguiu as provas? —perguntou.
—Sim. —Evangeline moveu ligeiramente a mão. — Nisso
consiste meus poderes, sabe? Me dou bem, mas muito bem, em
encontrar coisas. É uma habilidade que tenho e que é útil, isso sim.
Mas não era mais que um entretenimento para festas e reuniões até
que me incorporei á agência.
—Imagino que possa ser um poder muito útil em sua profissão
de investigadora —assegurou Lucas.
—Para abreviar, consegui localizar alguns documentos que
deixavam claro que Mason era um farsante. O pai da jovem estava
horrorizado e indignado. Mandou Mason embora imediatamente.
Lady Rutherford me despediu discretamente e pagou sua fatura.
Isso teria que finalizar o assunto e concluir o caso.
Uma sensação fria e sombria se apoderou de Lucas.
—Mas não finalizou o assunto, verdade? Mason descobriu de
algum jeito que tinha sido você que o tinha desmascarado —disse.
Evangeline voltou á cabeça, surpresa. Clarissa e Beatrice
também estavam assombradas.
—Como você...? —Evangeline não terminou a frase. —
Esquece. Tinha que ter imaginado que descobriria a verdade. Tem
razão, claro. Deve ter me espionado depois que deixei a casa de lady
Rutherford. Me estendeu uma armadilha. Recebi o que acreditava
ser uma mensagem de um velho amigo de meu pai. Dizia algo sobre
o descobrimento de algumas velhas ações que tinha meu pai e que
de repente tinham adquirido valor. Fui diretamente onde me tinham
indicado.
—O edifício abandonado próximo ao cais onde mais tarde
encontraram o cadáver de Mason —indicou Lucas. — O encontro foi
lá.
—Sim —confirmou Evangeline, que deixou os braços
cruzados.
Beatrice suspirou.
—Você é muito intuitivo, senhor Sebastian. —Clarissa se
moveu, incômoda.
—Siga, por favor, senhorita Ames —pediu Lucas.
—Quando cheguei ao endereço que tinham me dado, tive que
subir uma íngreme escada. Mason estava escondido em um cômodo,
localizado no desembarque. Colocou uma faca em meu pescoço.
—Tal como quis fazer Hobson ontem à noite. —Lucas
reprimiu a fúria que o invadia com uma grande força de vontade. —
O bastardo — disse em voz baixa.
Foi consciente do silêncio que tinha invadido o terraço. Se
preveniu que as três mulheres o estavam olhando, assim que refreou
a energia não canalizada que estava gerando.
Clarissa foi a primeira a falar:
—Esteve a ponto de conseguir. Até agora sinto calafrios só em
pensar.
—O que aconteceu depois, Evangeline? —perguntou Lucas.
Com o canto do olho viu que Beatrice e Clarissa trocavam um
olhar. Percebeu que tinha usado o nome de Evangeline. O pequeno
ato de familiaridade não tinha passado despercebido. Dadas as
circunstâncias, era muito provável que a intimidade implícita
escandalizara mais as amigas de Evangeline que o palavrão que
tinha usado um momento antes para descrever Mason.
—Mason saiu de onde acredito era um quarto vazio —explicou
Evangeline. Sua voz era estranhamente regular e muito forte. —
Rodeou meu pescoço com um braço. Levava a faca na outra mão.
Disse que iria me castigar pelo que tinha feito. Disse que se não
colaborasse na minha própria violação, me mataria. Soube que tinha
intenção de matar-me independente do que fizesse, assim decidi que
tinha pouco tempo a perder. Lutamos. Ele tropeçou, caiu pelas
escadas e acabou sobre a própria faca. Eu fugi dali.
Sem dizer uma palavra, Clarissa tocou o braço de Evangeline
para reconfortá-la. Beatrice se aproximou de ambas.
Lucas ficou muito quieto. A escuridão rugia e se agitava em
seu interior. Lembrou que não tinha nada que pudesse fazer. Mason
estava morto. Mas agora aquela energia negra uivava em silêncio
pela perda da presa. Concentrou-se em controlar seus poderes.
Levou alguns segundos para perceber que as três o olhavam
com certo receio. Captaram sua tensão e souberam que ele era a
origem dela. Se esforçou ainda mais para controlar a avidez que
tomava conta dele.
—Está segura que Mason está morto? —disse.
A pergunta acabou com a quietude antinatural do ambiente.
Evangeline foi à primeira em relaxar. Clarissa e Beatrice inspiraram
fundo.
«Fiz isso —pensou Lucas. — Deixei as três assustadas.»
Mas Evangeline, ao menos, não parecia assustada,
simplesmente cautelosa.
—Tenho certeza que Douglas Mason morreu nesse dia —
assegurou. — Não tenho a menor dúvida quanto a isso.
—Ainda assim, alguém teve o trabalho de contratar um
homem para matá-la —assinalou Lucas. — A única suposição
lógica é de que os incidentes estão relacionados. Mas ainda que
estivesse equivocado, é evidente que alguém tem intenções muito
desagradáveis contra você.
—O senhor Sebastian tem razão, Evie —disse Clarissa com a
boca tensa. — Hobson vinha dos bairros mais perigosos, mas temos
que supor que este crime tenha sua origem no assunto dos
Rutherford. E este é um mundo que a agência Flint e Marsh conhece
bem. Amanhã de manhã, Beatrice e eu regressaremos a Londres e
informaremos as nossas chefes o que aconteceu.
—Iniciaremos imediatamente uma investigação —completou
Beatrice. — Com os esforços do senhor Sebastian nos ambientes
criminais e nossos conhecimentos da alta sociedade, vamos
averiguar quem está por trás de tudo isso.
—Regressarei a Londres com vocês —anunciou Evangeline,
que descruzou os braços e fez um movimento para voltar a entrar na
casa. — Precisamos ir para casa e começar os preparativos da
viagem em seguida.
—Não me parece que isso seja prudente —disse Lucas.
Evangeline e suas amigas o olharam.
—Por que não? —se surpreendeu Evangeline. — Este caso é
meu. Conheço os detalhes melhor que ninguém. Posso ajudar com
as investigações.
—Pense sob o ponto de vista de quem quer matá-la —disse
Lucas pacientemente. — Na cidade será muito mais vulnerável do
que aqui, no campo.
—Por que diz isso? —estranhou Evangeline. — Na cidade
estarei em minha casa. Conheço bem.
—Pode ser, mas parece que o meliante também. De outro
modo não teria como saber fazer negócios com criminosos como o
tal Sharpy Hobson. E mais, será muito mais fácil para ele,
aproximar-se de você no entorno urbano. Aqui, no campo as
pessoas se fixam nos desconhecidos que espreitam a vizinhança.
—Gostaria de lembrá-lo que me atacaram aqui, não em
Londres —replicou Evangeline.
—De noite —assinalou Lucas. — Quando tinha certeza que
estaria sozinha em uma casa no campo. Sharpy Hobson não tentou
matá-la de dia porque corria o enorme risco de que alguém o visse
na cena do crime.
—Está sugerindo que Evangeline siga vivendo sozinha nesta
casa de campo? —perguntou Clarissa. — Depois do que ocorreu,
não me parece o mais acertado.
—Estou de acordo —disse Lucas. — Para tanto, sugiro que se
mude para Crystal Garden.
Houve um momento de assombro total. Para, em seguida, as
três mulheres começarem a falar junto.
—Isso é impossível —comentou Evangeline. — Entendo que
sinta responsabilidade por minha segurança porque sou sua
inquilina, e lhe agradeço por isso. Mas, como poderá compreender,
não posso me instalar em sua casa.
—Não nos apressemos —interveio Clarissa. — Pode ser que
seja uma boa investigadora, mas nunca enfrentou uma situação
como esta.
—Clarissa tem razão —concordou Beatrice. — Pelo amor de
Deus, Evie, alguém veio atrás de você. Não entende? Quem quer
que seja este meliante, é evidente que quer te fazer mal,
seguramente te matar. Teve muita sorte ao sobreviver em um
ataque, a dois se levarmos em conta que Mason tentou te matar.
Talvez não tenha tanta sorte da próxima vez.
—Supondo que haja uma próxima vez —se queixou
Evangeline.
—Haverá —sentenciou Lucas.
Evangeline deve ter pressentido o convencimento da frase
porque soltou um suspiro resignado.
—Sim—concordou. — Suponho que é possível.
—Ouça à suas amigas —pediu Lucas. — Sabe que elas tem
razão.
—Não é isso —disse Evangeline. — É só que...
—Essa situação seria indecorosa —se antecipou Lucas. — Eu
entendo. Ainda assim não acredito, que acredita que não levei em
conta sua reputação. Se você se recorda, tenho uma irmã. Sei muito
bem que uma dama não pode instalar-se em uma casa ocupada por
um homem solteiro e seu servente masculino. Esta tarde enviei um
telegrama para minha tia Florence. Chegará amanhã no trem do
meio dia. Te asseguro que será uma dama ideal.
Evangeline abriu a boca, mas não conseguia decidir. Clarissa,
assombrada, soltou um grito afogado. Beatrice sacudiu a cabeça,
incrédula.
—É evidente que pensou muito na questão —disse Evangeline
quando recuperou a fala.
—Depois de trazê-la aqui ontem à noite, passei um bom tempo
refletindo sobre você e sua situação.
E ainda mais se perguntando por que ela não tinha dito a
verdade sobre o que tinha acontecido aquele dia com Douglas
Mason sendo morto na escadaria.
10

Na manhã seguinte Evangeline acompanhou Clarissa e Beatrice


para pegar o trem das oito e quinze para Londres. Quando estavam
juntas na plataforma, era consciente o tempo todo que Lucas estava
esperando a pouca distância.
—Terá cuidado, verdade, Evie? —perguntou Clarissa pela
enésima vez.
—Claro que sim —respondeu Evangeline. — Procurem não se
preocupar comigo. Estou certa que estarei perfeitamente a salvo com
o senhor Sebastian. Beatrice e você precisam me prometer que me
manterão informada por telegrama de tudo o que conseguirem
descobrir, até da pista mais insignificante.
—Sim —prometeu Clarissa. — Do mesmo jeito, faça-nos saber
o resultado das investigações do senhor Sebastian.
—O que averiguar seu empregado, Stone, e os contatos de
Stone nos bairros perigosos nos pode ser muito útil em nossas
investigações —indicou Beatrice.
—Mandarei recado sobre a informação que traga o senhor
Stone de sua volta de Londres —disse Evangeline.
—Não gosto de deixá-la sozinha, Evie. Tenho a sensação de
que isso é um tremendo risco —comentou Beatrice com aspecto
triste.
—Você mesma viu: Crystal Garden foi construído como uma
fortaleza. —Evangeline sorriu. — Ali estarei segura. A tia do senhor
Sebastian chegará esta tarde. Sua presença evitará qualquer possível
falta de decoro e estou convencida de que os jardins me
proporcionarão um material maravilhoso para minha novela.
—O risco que preocupa Beatrice é de caráter mais pessoal, Evie
—soltou Clarissa sem rodeios. — Quando o senhor Sebastian te
olha, há certa energia no ambiente.
—Estou certa que estão imaginando coisas —se apressou a
dizer Evangeline.
—Não, Bea tem razão. —Clarissa sacudiu a cabeça. — Precisa
ir com cuidado, Evie.
Evangeline olhou Beatrice e se voltou para Clarissa.
—Por quê? —perguntou tomando o cuidado de falar em voz
baixa. — Falem abertamente. Já conversamos sobre este tema e
chegamos à conclusão de que não será provável que alguma de nós
tenha muitas oportunidades de viver uma paixão. Acredito que
tínhamos jurado aproveitar a oportunidade se esta se apresentasse.
—Sim, mas isto é diferente —insistiu Beatrice.
—Não vejo por que —disse Evangeline. — Se o senhor
Sebastian está interessado em uma relação romântica, porque teria
que me preocupar sempre e quando formos discretos? E não se pode
pedir um lugar mais discreto para uma aventura amorosa que Little
Dixby. Pelo amor de Deus, uma vez que tenha retornado a Londres
jamais voltarei a ver ninguém daqui.
Clarissa e Beatrice se olharam, inseguras.
—Visto dessa forma —comentou Beatrice—, não tem
discussão. Só gostaria de dizer que não é tua honra que me
preocupa.
—Me alegra ouvir isso —soltou Evangeline—, porque decidi
que não vale a pena preocupar-se com ela.
—É você que nos preocupa —assegurou Beatrice.
—Oh, pelo amor de Deus! —exclamou Evangeline. — Na
minha idade não é nada provável que me apaixone. Isso é para os
românticos de dezoito anos. Asseguro que sei o que faço.
—Mas, e se cometer o erro de se apaixonar? —perguntou
Clarissa. — Não queremos te ver sofrer, Evie.
Evangeline lançou um olhar ao redor para assegurar-se que
nenhum dos demais passageiros pudesse ouvi-la e de que Lucas
continuava bem distante.
—O que acontece é que me dei conta que minha falta de
experiência pode comprometer minha história —explicou.
—Do que esta falando? —disse Beatrice com as sobrancelhas
arqueadas.
—Cheguei à conclusão de que se quero escrever sobre a paixão
em minhas novelas, tenho que vivê-las em primeira pessoa. Mas
evidentemente ninguém vai querer me deixar acompanhar tudo
para poder documentá-la. Preferiria estudar o tema com um
cavalheiro por quem me sinta atraída e que me ache atrativa.
—É por isso que está planejando ter uma aventura com o
senhor Sebastian? Pela sua história? —disse Beatrice com alívio
refletido nos olhos.
Evangeline corou, muito consciente que Lucas a estava
observando. Sabia que não poderia ouvi-las por cima do barulho do
motor a vapor e das pessoas na plataforma, mas de todo o jeito,
estava envergonhada. Afinal, normalmente esse tipo de coisa não se
comentava em uma estação de trem.
—Estou tentando explicar que não tem motivos para se
preocuparem com meu coração —disse.
—Se tem certeza do que está fazendo... —falou Clarissa.
—Tenho certeza —afirmou Evangeline, mentindo de forma
descarada.
Soou o apito que anunciava a partida eminente do trem.
—Vamos, Clarissa, temos que subir a bordo —indicou
Beatrice, que se dirigiu depois a Evangeline. — Promete que tomará
cuidado.
—Eu prometo.
Observou como Clarissa e Beatrice subiam ao vagão de
primeira classe. Lucas ficou atrás dela.
—Possui umas amigas muito interessantes, Evangeline —
disse.
—Sim, sou afortunada nesse aspecto.
Pensou que era mesmo afortunada porque tanto se tivesse ou
não uma aventura com Lucas, com certeza iria se apaixonar por ele.
Necessitaria muito de suas amigas quando voltasse à Londres.

—Olha ali, com nossa Evie —comentou Beatrice. Aguçou seus


sentidos e examinou Evangeline e Lucas pela janela enquanto o trem
saía da estação. — É como se ela já pertencesse a ele de algum modo.
Vejo o calor de suas auras. É como se já fossem amantes.
Clarissa os observou na plataforma.
—Pode-se notar a energia que os rodeia quando estão juntos.
Por mais que Evie fale de sacrificar sua honra por seus escritos,
tenho medo de que esteja entrando em águas muito profundas.
—Esse homem vai partir seu coração.
—É muito provável. —Clarissa deu uma palmadinha nas mãos
que estavam encaixadas. — Mas não tem como evitar. Nós já
havíamos aceitado esta possibilidade. Uma mulher na nossa idade
pode sobreviver a um desengano amoroso.
—Evie é uma mulher dessa idade.
—Sim —concordou Clarissa. — Mas no positivo, acredito que,
ainda que esteja em vias de partir seu coração, o senhor Sebastian a
manterá a salvo.
—Supondo que seja capaz de protegê-la.
Evangeline e Lucas desapareceram. Clarissa se recostou no
assento e olhou sua amiga.
—Tem muitas coisas que não sabemos do senhor Sebastian,
mas de algo estou segura: sabe uma ou duas coisas sobre a violência.
Evie não poderia ter melhor guarda-costas —sentenciou.
11

—Genial. —Lucas entrou com passadas iradas na biblioteca e


colocou sua jaqueta no encosto da poltrona. — Estou tentando
salvar seu pescoço e a única coisa que parece importante para você é
colocar ordem nesta casa monstruosa.
Evangeline o seguiu e fechou a porta com firmeza.
—Não toda a casa —se desculpou. — Só esta ala. Parece que a
maioria da velha abadia leva anos fechada. E para deixar as coisas
bem claras, agradeço seu interesse em me proteger. O que acontece é
que não vejo porque precisamos viver como se estivéssemos em
uma caravana pelo oeste americano.
Ouviu-se uma serie de golpes sutis, afogados. Lucas elevou os
olhos ao teto. Molly, a moça que ajudava nas tarefas na casa de
Evangeline, e um grande numero de parentes de Molly estavam
dedicando seus esforços ao chão do piso superior. Além da furiosa
atividade no andar superior, era como se sua cozinha estivesse em
meio de uma batalha entre cavaleiros armados. O ruído de metal
contra metal das panelas de ferro e aço e os talheres ressoava por
todo o corredor.
—Acreditava ter lhe explicado que meu tio e sua governanta
eram os únicos que viviam aqui —comentou Lucas. — Não
precisava ter abertos tantos quartos assim.
—Segundo Molly, seu tio nunca contratava ninguém do
povoado. A senhora Buckley era a única criada da casa. Não é
estranho que a maioria dos salões estivesse fechados.
—Tio Chester não recebia em casa e não gostava de visitas —
grunhiu Lucas. — Ficava dedicado às suas investigações e não
gostava de interrupções. Eu também não gosto disso. Preciso estar
concentrado nos problemas que preciso resolver.
—Eu entendo —assegurou Evangeline. — Mas não se
preocupe, o grosso da limpeza não levará mais que alguns dias.
—Alguns dias? Caramba, mulher! Quero todo mundo fora
desta casa ao final do dia, fui claro?
—Muito claro —respondeu Evangeline. De repente seu tom
tinha ficado gelado.
«Estou gritando», pensou Lucas.
Enjoado com seu mau gênio, dirigiu-se ao escritório e
aumentou a intensidade da luz. Ainda que o sol brilhasse lá fora e as
cortinas estivessem abertas, a biblioteca estava imersa em uma
grande penumbra. As janelas davam para o jardim. Uma mata de
videiras retorcidas e entrelaçadas cobria praticamente todos os
vitrais da janela. A espessa vegetação tapava com eficácia a maior
parte da luz. O mesmo ocorria em todas as janelas daquele lado da
casa.
Lucas se sentou em uma quina da velha mesa com um pé
apoiado no chão e olhou para Evangeline. Uma intensa sensação de
desejo percorreu seu corpo, já estava habituado com isso porque
acontecia sempre que estava perto dela. Mas apesar do fato de estar
se acostumando às pontadas do desejo não era fácil. O que lhe
induzia a pensar que era por isso que estava tão irritado com ela.
Não era culpa de Evangeline se tê-la tão próxima aguçava seus
sentidos e o deixasse crispado. Tinha convencido a si mesmo que
conseguiria controlar-se e estaria mais concentrado enquanto ela
estivesse a salvo entre as paredes de Crystal Garden. Era evidente
que tinha se equivocado. Ainda que não tivesse nenhuma outra
opção. Não poderia ter pregado o olho se a tivesse deixado sozinha
por uma noite que fosse enquanto aquele bastardo desconhecido de
Londres tramava para assassiná-la.
Aquela tarde, Evangeline tinha um aspecto muito diferente do
que de manhã. Tinha tirado o bonito vestido azul de passeio, os
pingentes, o chapéu e as botinas que levava quando tinha ido se
despedir de suas amigas na estação. . Agora, de acordo com a
imunda tarefa que estava supervisionando, vestia um simples
vestido e um avental. Ambos passados de moda e muito grandes,
especialmente no busto. Se perguntava qual das parentes peitudas
de Molly tinha emprestado ele. Estava com o cabelo preso com uma
fita branca. O avental estava manchado do que parecia ser água suja
de alguma bacia que tinha esfregado e tinha sujeira nas bochechas.
Em uma das mãos tinha um espanador.
Estava cativante.
—Pelo que vejo, seu tio não usava nem mesmo a sala de jantar
—indicou Evangeline. — Parece que comia na cozinha, se é que isso
é possível.
—É exatamente isso que Stone e eu fazemos desde que
chegamos —disse Lucas. — E estávamos muito bem com isso. Stone
preparava a comida e era muito mais fácil comer lá na cozinha
mesmo.
—Isso está muito bem para Stone, mas não espera que sua tia
coma na cozinha e, não pode dizer a ela que precisará dormir em
um quarto que está fechado há anos. —Assinalou com um dedo. —
No andar de cima tem mais de um dedo de poeira por toda a parte.
Graças a Deus, os móveis e as almofadas de todos os cômodos
estavam cobertos e, pelo visto, a governanta de seu tio cuidou das
roupas de cama. Ainda assim, tem muito trabalho que fazer antes
que sua tia chegue hoje. Por sorte, a família de Molly pode vir nos
dar uma mão.
—Sabe Evangeline? Acreditava que tinha levado em conta até
o mínimo detalhe quando planejei mudá-la para cá, mas jamais me
ocorreu que insistiria em esfregar a casa de cima abaixo —soltou
Lucas depois de cruzar braços.
—Só alguns cômodos, não a casa toda. —Evangeline avançou
até a metade do cômodo e parou. — Dá a impressão de estar
zangado. Ninguém está pedindo que esfregue nada.
—E porque não deveria estar zangado? Talvez porque esteja
obrigado a me refugiar neste cômodo enquanto uns desconhecidos
colocam a casa de pernas para o ar? Será por acaso, que te trouxe
aqui hoje porque pensava em uma limpeza geral ou porque estava
preocupado com a tua segurança? Ou acredito que possa ter a ver
simplesmente por não gostar de tropeçar em alguém a toda hora
segurando uma escova em qualquer canto que vou? Estou tentando
resolver um assassinato e impedir outro, o teu, para ser mais
preciso. Maldição, não tenho tempo de me esquivar de pessoas
armadas com baldes e escovas.
—Ah, então é isso —disse Evangeline com calma. — Imaginei.
—O que você imaginou?
—Acredito que faz muito tempo aprendeu a dar por certo o
funcionamento de uma casa. Mas, como um piano, uma casa precisa
estar bem afinada e de forma eficiente.
—Esta casa em questão, não precisa funcionar. Com um pouco
de sorte, não estaremos mais nela daqui a algumas semanas.
—É muito tempo para dormir com pulgas, comer comida fria e
não ter a comodidade das lareiras durante a noite. Por mim, você
pode viver assim sem nenhum problema se é o que lhe apetece, mas
enquanto eu estiver vivendo aqui quero desfrutar das comodidades
da civilização. O que inclui, no mínimo, uma cozinha limpa, uma
despensa cheia, um banheiro adequado e lençóis limpos nas camas.
Estou certa que sua tia concordará comigo.
—Sem querer ofender, Evangeline, mas dada a delicadeza da
situação pela qual está passando neste momento, me surpreende
que esteja tão obstinada em manter seus níveis de exigência tão
altos.
—Onde estaríamos sem os níveis de exigência, senhor
Sebastian? —disse Evangeline atrás de um sorriso frio.
—Excelente pergunta. Parece evidente que perdi essa batalha.
O que está feito, feito está. Procure que nenhum dos parentes de
Molly vá mais além do que o terraço, certo?
—Sim, claro, ainda que não acredite que teremos algum
problema nesse sentido. Os Gillingham, como as demais pessoas de
Little Dixby, tem verdadeiro terror a seus jardins.
—E com razão —disse Lucas. — E falando dos Gillingham,
quero que até o último membro desta família tenha sumido daqui
até o anoitecer. Como já te expliquei, os jardins ficam mais perigosos
depois do entardecer.
—Entendido. Confie em mim, ninguém salvo Molly parece ter
vontade de ficar próximo aos jardins à noite. Molly teve muito
trabalho em convencer sua família para virem limpar durante o dia.
Tive que prometer que lhes pagaria o dobro do habitual...
—Sério mesmo? —Arqueou uma sobrancelha. — Está bem
feliz por gastar meu dinheiro, verdade?
—Bobagens, sabe perfeitamente bem que como dono de
Crystal Garden se espera que contribua com a economia local.
Contratar pessoas é uma forma de fazê-lo.
—Não vou discutir esse ponto.
—Por que é tão contrário a que tenha algum servente na casa
pela noite? —perguntou Evangeline com o cenho franzido. — Estou
segura que poderíamos convencer Molly a ficar. É muito mais
aventureira que seus parentes.
—Tenho a intenção de fazer minhas investigações sobre os
jardins depois do anoitecer, quando a energia alcança seu ponto
máximo. Só faltava uma jovem como Molly ou algum de seus
parentes saindo ao jardim à meia noite. Já circulam muitos rumores
sobre as atividades ocultas desta casa.
—Caramba, entendo o que quer dizer. —Evangeline lhe
dirigiu um sorriso compreensivo. — Mas acredito que já seja muito
tarde para convencer aos habitantes locais que não é tão excêntrico
quanto seu tio.
—Isso que eu temia —disse Lucas com uma careta.
—É por isso que estava lá fora aquela noite, quando cheguei
aos jardins às duas da manhã? Estava fazendo suas investigações?
—Sim.
—Entendo. Bem, isso explica tudo então.
—Explica o que? —perguntou Lucas com o cenho franzido.
—Clarissa e Beatrice me perguntaram por que você estava tão
oportunamente próximo quando precisei de ajuda. Fui obrigada a
dizer que naquele momento estava tão nervosa que me esqueci de
perguntar o motivo de você e Stone terem aparecido daquela forma
mágica completamente vestidos no meio do jardim em hora tão
tardia.
—Não tem nenhum mistério. Como disse, já estávamos fora
quando ouvimos você entrar nos jardins.
—E falando de Stone, teve alguma notícia?
—Enviou um telegrama dizendo que chegará no mesmo trem
que minha tia Florence. Indicava que tinha conseguido certa
informação.
—Parece bom. —o entusiasmo se refletiu no semblante
expressivo de Evangeline.
—Já veremos.
Evangeline dirigiu os olhos para as janelas cobertas de
trepadeiras e, depois para ele.
—Sabe que estou agradecida por me oferecer proteção, mas
não posso evitar pensar que teria que estar em Londres com minhas
amigas.
—Não — contradisse Lucas.
—Não gosto que tenham que realizar investigações sobre este
assunto sem mim. Afinal, eu estou até a raiz com este problema.
Teria que estar trabalhando eu mesma para resolvê-lo. Me sinto
muito inútil perdendo tempo aqui, em Little Dixby, enquanto elas
investigam.
—Não pode dizer que está perdendo seu tempo sem fazer
nada. Passou a manhã toda trabalhando como uma governanta
frenética.
—Suponho que estou tentando me manter ocupada —admitiu
depois de soltar um breve suspiro cheio de tristeza. — A atividade
me permite deixar de pensar no que está acontecendo em Londres.
—Se te faz sentir mais útil, asseguro que é muito mais
provável que obtenhamos resultados se você estiver aqui, no campo
—disse Lucas, que se separou da mesa para se aproximar dela.
—Por que diz isso? —mudou sua expressão. — Oh, já entendo.
Acredita que a pessoa que contratou Hobson voltará a tentar e será
mais fácil pegar o bastardo se fico aqui no campo. Sim, compreendo
seu raciocínio. Mas e se estiver enganado? E se simplesmente o
assassino decide esperar que eu vá embora? Cedo ou tarde terei que
voltar. Não posso ficar aqui para sempre. E tenho certeza que ele
sabe disso.
Lucas ficou diante dela.
—Estou convencido que estamos tratando com alguém
desesperado, Evangeline. As pessoas desesperadas não sabem
esperar.
«olhe para mim, por exemplo —pensou ele. — Quanto tempo
mais poderei esperar para tê-la?»
Estava cada vez mais desesperado para tocá-la. Tinha
despertado algo em seu interior que chegava a avidez. Era uma
necessidade que não podia saciar até que Evangeline fosse sua.
Precisar dela com tanta intensidade deveria tê-lo assustado. Na
maioria das circunstâncias sabia esperar muito bem. Tinha muito
tempo que dominava a arte do autocontrole. Tinha sido obrigado a
isso, não por nenhuma coação externa e sim por necessidade de
controlar seus poderes.
Tinha compreendido desde a mais tenra idade que se não
dominasse a parte psíquica de seu ser, esta se apoderaria dele do
mesmo modo que tinha feito com vários membros de sua árvore
genealógica que tinham sido absorvidos por seus poderes. Tinha
jurado a si mesmo que ele romperia o ciclo, até que se convencesse
que tinha alcançado seu objetivo.
E agora Evangeline o estava levando a questionar a segurança
que tinha em si mesmo. A energia que ela emitia era uma droga
potente para seus sentidos. Quando estava próximo a ela se sentia
audaz, o que sabia ser perigoso, mas não era capaz de manter-se a
distância.
Naquele momento ela olhou com seus enormes olhos com
interesse e disse:
—Parece saber muito bem como pensam os meliantes. Já sei
que disse ter estudado a conduta criminal, mas como fez isso
exatamente?
—É uma longa história, aborrecida e muito complicada.
—Dito de outro modo, não vai contar.
—Pode ser que algum dia. —Lucas sorriu.
—Muito bem, tem direito a ter seus segredos —comentou
Evangeline com os ombros eretos. — Pode ao menos falar sobre seu
trabalho como assessor da Scotland Yard?
«Estou perdido», pensou Lucas.
Mas não se importou em nada. Entregou-se a seu destino como
queria, mais certo ainda, se entregou a Evangeline. Morria de
vontade de estreitá-la em seus braços e recostá-la no velho sofá.
Queria sentir a suave curva dos seios dela contra seu tórax nu e
segurá-los com as mãos. Queria emergir em sua embriagadora
energia e perder-se nela.
«É um idiota, cedo ou tarde vai pagar por isso», pensou.
—Te falei de um conhecido meu na Scotland Yard —disse,
escolhendo com muito cuidado suas palavras.
—Sim, um inspetor.
—Donovan também tem certas aptidões. Sabe que a energia
psíquica é real e que frequentemente deixa rastros na cena de um
crime. Só é difícil pegar os criminosos que possuem grandes
poderes.
—Sim, imagino —comentou Evangeline.
—Quando Donovan chega á conclusão que pode estar
seguindo a alguém que possui poderes paranormais, às vezes me
pede opinião.
—Compreendo. —Franziu a testa enquanto refletia sobre esta
informação. — O que se pode saber sobre o criminoso a partir de
sua energia que fica na cena de um crime?
Como já tinha chegado até ali podia, pensou, contar-lhe mais
um pouco, mas não tudo, só algo mais. Dados os fortes poderes que
ela tinha, poderia ao menos entender a compulsão que sentia para
utilizar seus outros sentidos.
—Na maioria das vezes me pedem que investigue um
assassinato, Evangeline. — A observou detidamente, preparando-se
para ver o primeiro sinal de repugnância. — São crimes que deixam
emoções mais intensas.
—Percebe as emoções do assassino?
—Sim. Frequentemente me indicam algo sobre sua
personalidade e me proporcionam pistas. Essa é a classe de coisas
que Donovan pode utilizar para realizar suas investigações.
A energia brilhante dos olhos de Evangeline trocou, mas não
como ele tinha previsto. Tinha impressionado, mas não repugnado
com horror. O que viu e captou foi compreensão, um autêntico
reconhecimento do que se passava na cena de um crime.
—Pode vislumbrar o que pensa um assassino —disse
Evangeline em voz baixa.
—Sim, em certo sentido.
—Compreendo. —estremeceu. — Não tinha me dado conta
disso.
«Acaba de contar tudo», disse Lucas a si mesmo.
—O assassinato é sempre um ato inquietantemente íntimo
onde afloram as emoções mais escuras. —comentou com
serenidade.
—Suas investigações devem ser uma experiência horrorosa
para você.
—Gostaria de dizer que é assim, pois isso me faria parecer
decente para ti —disse Lucas. — Mas a verdade é que caçar um
assassino me resulta ser apaixonante. É muito satisfatório, até
gratificante, de modo que nenhum cavalheiro decente deveria
admitir...
—Entendo o que esta dizendo —sussurrou.
—De verdade?
—Sim, claro —assegurou Evangeline. — Que sair à caça de um
assassino seja muito satisfatório não significa que não seja um
homem decente, honrável. Simplesmente significa que está fazendo
aquilo que nasceu para fazer: encontrar justiça para as vítimas.
—Realmente nasceu para escrever novelas, verdade? —disse
Lucas, sorrindo relutantemente.
—Não brinque comigo — queixou-se Evangeline, com os olhos
cheios de raiva. — Você caça assassinos. O que faz é muito nobre.
—É muito ingênua, Evangeline —soltou Lucas, sacudindo a
cabeça.
—A mim não parece assim.
—Caçar assassinos não é sadio. —Dirigiu a vista aos escuros
jardins. — E quando assassinos usam meios paranormais são os
piores de sua classe.
—Não duvido.
—É impossível descrever a forma íntima da experiência. —
Agora que tinha começado, não conseguiu forças para parar. Queria
que Evangeline soubesse como era aquilo para ele. Necessitava que
soubesse. — Em um caso de assassinato por meios paranormais, a
aura do assassino precisa estar em harmonia com a da vítima até a
última batida de seu coração. É assim que se faz, sabe? O assassino
precisa encontrar as correntes vulneráveis no campo de energia de
sua vítima e interrompê-las até que seu coração pare. —olhou para
Evangeline. — O assassino experimenta a morte de sua vítima da
forma mais íntima possível. O que faz com que seja mil vezes mais
espantoso é que este tipo de assassino geralmente desfruta ao
cometer o crime. Para alguns é como uma droga, a máxima sensação
de poder.
—Entendo —disse Evangeline, fundindo seus dedos no
avental.
Lucas se virou para a janela coberta de trepadeiras antes de
prosseguir seu relato:
—É necessário muita energia para parar o coração de outra
pessoa. Por isso sempre tem rastros de resíduos psíquicos na cena
do crime.
—E é isso que você percebe —disse Evangeline em voz baixa.
— Deve ser como estar dentro da cabeça dela no momento que
infringe a morte. Deve ser terrível para você!
«... em que ela infringe a morte.» Para Lucas pareceu uma
forma estranha de dizê-lo. A maioria das pessoas teria usado o
gênero masculino ao falar genericamente dessas questões.
—Felizmente não me chamam frequentemente a este tipo de
cena —esclareceu. — O assassinato por meios paranormais não é
habitual pela simples razão de que não são muitos os assassinos
dotados de poderes suficientes para cometer semelhante ato.
—Espero que tenha razão, mas temo que possa haver outra
razão para que não o chamem frequentemente para este tipo de
crime. —Evangeline parecia muito pensativa. — Suspeito que em
muitos casos os crimes passam despercebidos. Uma morte por
meios paranormais seria como o veneno perfeito: impossível
identificar.
—É uma observação excelente, Evangeline. Tem toda a razão.
—disse Lucas depois de voltar-se para ela.
Evangeline olhou em seus olhos.
—O chamam para que desempenhe um trabalho duro, mas
honrável, e sim, decente —assegurou.
—Basta. —Deu dois passos até ela e segurou seus ombros com
as mãos. — Não me converta em um herói, Evangeline.
O deixou pasmado com um sorriso de cumplicidade.
—Muito tarde. Já trocou de papel John Reynolds.
—Quem diabos é John Reynolds?
—Era o vilão de minha história, mas felizmente me dei conta
justo a tempo de que ele é o protagonista. E estou tomando você
como meu modelo.
—Maldita seja, Evangeline... —Ela o fez calar colocando a
ponta de seus dedos em seus lábios.
—Vamos voltar ao assunto em questão... —soltou.
—Você é o assunto em questão.
—Me referia a suas deduções sobre o estado mental e
emocional da pessoa que contratou Sharpy Hobson para me matar
—esclareceu Evangeline. — Ontem a noite não estava aqui. Como
pode ter chegado à conclusão de que está desesperado?
Lucas se armou de paciência.
—Nem sempre precisamos de poderes psíquicos para analisar
como pensa um criminoso —explicou sem alterar-se. — O bom
senso e a lógica podem até ser melhores. Te asseguro que ninguém
contrata um assassinato e o envia até Little Dixby a não ser que
esteja muito certo. O atentado que não deu certo aliado ao
desaparecimento de Hobson colocará sem dúvida mais frenético a
quem estiver por trás de tudo isto. Sinceramente espero que ao ter
perdido seu assassino pago, a pessoa que queira matá-la venha aqui
em pessoa. Então o apanharemos.
—Compreendo. Sim, me parece lógico. —Evangeline arqueou
as sobrancelhas. — Ainda que não seja uma ideia muito otimista. De
qualquer forma, não posso evitar desejar participar mais ativamente
das investigações.
—Parece uma menina que descobriu que as amigas foram à
feira sem ela. Já sei que preferia estar investigando, mas insisto que
fique aqui no campo, isso é para seu próprio bem.
—«Para seu próprio bem» são as quatro palavras mais
irritantes que existem
—Sim, já me disseram isso várias vezes —comentou Lucas
com ar divertido.
—Quem?
—Beth e Tony, meus irmãos. E acaba que estou de acordo. Mas
não acredito que não esteja tendo um papel útil nisso tudo.
—Assegurar-me que os móveis não tenham pó e que o chão
esteja limpo em Crystal Garden é um papel?
—Acredito ter deixado claro —replicou Lucas. — Não gosto,
mas é um gancho que vamos utilizar para fazer com que o assassino
saia de seu esconderijo.
—Claro —soltou Evangeline, animada de imediato. — Não
tinha visto dessa forma. Assim que sou o gancho, não? Então eu sou
algo util.
Lucas sacudiu a cabeça.
—Uma afirmação muito estranha para uma dama que nas
últimas semanas enfrentou dois assassinos, um dos quais a atacou
em sua própria cama —comentou.
—Como não deixo de recordar a todo mundo, não estava na
cama quando aquele meliante chegou ao quarto —disse Evangeline
com o cenho franzido.
—Sim, já sei. —Levantou seu queixo com a mão. — Já tinha
saído pela janela e corria para a segurança de um jardim muito
perigoso. É uma mulher incrível, Evangeline Ames. Acredito que já
tinha falado algo assim antes.
—Você também me parece incrível —assegurou Evangeline,
ruborizada, com um sorriso trêmulo nos lábios. — De fato, é um
modelo ideal para John...
Lucas tapou sua boca com a mão.
—Rogo que não volte a mencionar o nome de seu personagem
—pediu.
—Muito bem.
A palma da mão de Lucas apagou suas palavras. Quando a
tirou cuidadosamente de seus lábios, ela o observou com seus olhos
fascinantes, e pareceu conter um sorriso. Mas não disse mais nada
A energia do ambiente começou a vibrar entre dos dois e
incendiou a paixão de Lucas, que pensou que com certeza seria um
erro beijá-la.
A beijou.
Ia somente roçar sua boca com seus lábios. Disse a si mesmo
que só seria um instante para ter uma ideia. Mas a euforia
repentinamente apaixonada lhe percorreu o corpo quando suas
bocas entraram em contato aturdindo todos os sentidos.
Sentiu que Evangeline ficava muito quieta e se deu conta que
apesar de ser dona de si mesmo, o beijo a tinha emocionado. Pois
muito bem. A ele também.
Um ruído suave e rouco escapou de seus lábios, soltou o
espanador e rodeou-lhe o pescoço com os braços e se apertou contra
ele. Quando abriu um pouco a boca, Lucas a estreitou ainda mais
contra seu corpo e se abandonou ao beijo.
O ambiente zuniu carregado de uma energia que despertou
todos os sentidos de uma forma que lhe era totalmente
desconhecida. O prazer, a necessidade e a ânsia o invadiram. O beijo
não era simplesmente sedutor e excitante, mas sim incrível e
terrivelmente íntimo. Era um homem do mundo. Tinha estado com
outras mulheres, mas jamais tinha sentido aquele tipo de paixão
física e psíquica. Deslumbrava seus sentidos.
Segurou a cintura de Evangeline com as mãos. Graças a Deus
que não levava espartilho embaixo do vestido. Através do grosso
tecido notou a forma esbelta e sensual de sua cintura e a curva de
suas cadeiras. Então ela tocou sua nuca com os dedos. Sua
fragrância nublou sua mente.
O golpe de uma bacia ao tocar o chão do outro lado da porta e
o ruído de vozes no corredor quebrou o feitiço. Levantou a cabeça e
olhou os olhos ligeiramente aturdidos de Evangeline. Não pareceu
estar indignada nem assustada. Assombrada, talvez. Mas não era a
única.
—Evangeline —disse. Acariciou com muito carinho sua
bochecha rosada com os dedos. Ficou calado, pois não sabia o que
mais poderia dizer.
—Perdão, tenho que ir ver como estão as coisas na cozinha. —
Evangeline estava sem fôlego, como se acabasse de subir correndo
as escadas. — A senhora Hampton e o senhor Stone não vão
demorar a chegar.
—Te ofendi?
—Não seja... não seja ridículo, Lucas. Não posso dizer que seja
a primeira vez que me beijam.
—Compreendo. —pegou uma mecha de seu cabelo comprido.
— Espero que esse beijo tenha ficado em um bom lugar.
—Sim, com certeza. Foi muito apaixonante. A verdade é que
não sei se saberia encontrar palavras para descrevê-lo.
Um calafrio percorreu o corpo de Lucas.
—Se o que acaba de passar entre nós aparecer descrito em sua
novela, não vou achar nenhuma graça, Evangeline —advertiu com a
mandíbula tensa.
Viu que seus olhos brilhavam ao ouvi-lo e, então, para seu
desgosto, lhe dirigiu um sorriso brincalhão.
—Como não lê novelas, nunca saberá como descrevi o beijo
entre meus protagonistas, não?
—Maldita seja, Evangeline...
—Terá que me desculpar. Tenho muito trabalho a fazer e
quero me assegurar que Molly e sua família vão embora antes do
anoitecer.
Se abaixou, recolheu o espanador, abriu a porta de par em par
antes que Lucas pudesse fazê-lo e saiu em disparada para o corredor
com o vestido ondeando atrás de si.
Lucas ficou no umbral da porta olhando como desaparecia
pelo corredor. Depois, fechou a porta.
Cruzou o cômodo até a janela e ficou contemplando os jardins
através de uma estreita faixa que tinha se criado entre as frondosas
trepadeiras. Pensou que era como olhar através da cela de um
monge.
Não era nenhum monge, mas soube então que, graças a seus
poderes, tinha passado a maior parte de sua vida em uma versão
psíquica de cela.
Estava muito seguro de ter encontrado a mulher que tinha a
chave.
12

Evangeline estava com Molly, fazendo a cama do quarto destinado à


tia de Lucas, quando ouviu os ruídos de rodas de carruagem. As
janelas do lado da casa onde Molly e ela estavam trabalhando dava
para o caminho de entrada. Lançou uma olhada e viu que era o
coche de aluguel do povoado. Mathew, o dono do veículo, ia à
boleia e Stone estava sentado a seu lado, com sua cabeça raspada
coberta por um gorro.
—Acredito que a senhora Hampton tenha chegado —disse
Evangeline.
—Bem na hora, do meu ponto de vista. —Molly também foi à
janela. — Já acabamos de arrumar seu quarto.
Observaram como Stone saltava com facilidade da boleia para
abrir a porta da carruagem. Quando tirou o gorro de forma
respeitosa, a luz do sol brilhou sobre sua cabeça calva.
—Nossa! —sussurrou Molly. — Esse é o empregado do senhor
Sebastian?
—Sim —respondeu Evangeline. — Se chama Stone.
—Caramba! —repetiu Molly. — Me tinham dito que era um
homem corpulento. E eu acreditava que era mesmo. Apostaria que é
mais forte que um touro. Mas muito mais bonito.
A aprovação feminina que refletia em seus olhos fez
Evangeline sorrir. Lançou um olhar para seu lado e viu que Molly
contemplava Stone embasbacada.
—É a primeira vez que o vê? —perguntou.
—Sim, mas tinha ouvido falar dele no povoado.
—Pois se te serve de algo, não acredito que o senhor Stone
saiba muito sobre o campo. Foi criado em Londres.
—Para mim, não tem problema —disse Molly. — Não tenho
nenhum interesse em me casar com um camponês. Conheço essa
vida e preferia evitá-la.
—Por Deus, olha o que está dizendo! —Evangeline riu. —
Ainda nem conheceu o senhor Stone e já esta falando em casamento.
—As moças precisam pensar nessas coisas quando ainda são
bem jovens para poder escolher, senhorita. Se esperamos, de repente
estamos sozinhas.
—Sim, eu sei bem.
—Perdoe-me senhorita —se desculpou Molly, horrorizada
pelo comentário. — Não quis dizer que fosse muito velha para se
casar, quero dizer, você não é nenhuma solteirona, senhorita Ames.
—Fique tranquila, Molly. Nós duas sabemos que sou
exatamente isso. Em Londres, as mulheres que seguem estando
solteiras ao chegar a minha idade quase nunca se casam, a não ser
que tenham algum dinheiro.
—Acontece o mesmo no campo. Como a fazenda será de meus
irmãos, tenho que fazer meus próprios planos, que não incluem
acabar sendo a mulher de um camponês. Vou abrir um salão de chá
aqui em Little Dixby. Será um lugar muito elegante com salgadinhos
e empadas que serão muito mais apetitosos que a comida de má
qualidade que a senhora Collins tem em seu salão de chá. Haverá
limonada e sorvetes de verão. Com a quantidade de gente de fora
que vem atualmente para ver as ruínas, sei que daria certo.
Evangeline pensou sua resposta. A última coisa que queria era
pisotear os sonhos de Molly. Abrir um salão de chá custaria muito
dinheiro e era evidente que os Gillingham não tinham muito. Mas
Molly tinha brio, energia e inteligência. Com sorte, estas qualidades
seriam suficientes para alcançar suas metas.
—Parece um bom plano —disse.
—Obrigado, senhorita. —Molly voltou a olhar o caminho de
entrada. — Veja, esta deve ser a senhora Hampton. Impressionante,
verdade?
Evangeline observou a mulher que Stone estava ajudando a
descer da carruagem. Florence Hampton era alta para uma mulher.
Comportava-se com a autoridade e o porte de um capitão de barco.
Estava vestida com um chapéu de tecido cinza enfeitado com
plumas brancas que repousava sobre um cabelo prateado. Usava um
elegante vestido de viagem cinza escuro e umas botas de passeio de
pele cinza. Com uma mão segurava uma bengala de prata.
—Tenho que descer para saudá-la —anunciou, e voltou-se
afastando-se da janela.
—Espere, senhorita, tem mais alguém saindo da carruagem —
informou Molly.
Evangeline parou na porta.
—Com certeza a senhora Hampton trouxe sua donzela pessoal
—disse. — Não me surpreende. Esta é uma das razões pelas quais
me pareceu melhor abrir toda esta ala.
—Não é uma donzela, senhorita. É outra dama elegante. Olhe
esse vestido rosa e verde. É o vestido mais bonito que vi na minha
vida.
—Que diabos...?
Evangeline voltou correndo para a janela. Olhou abaixo e viu
uma jovem muito bonita e ruiva de uns dezenove anos descendo da
carruagem.
—Tem razão —concordou. — Não é nenhuma donzela.
—Olhe, agora sim desce a donzela da senhora
A última pessoa que saiu do veículo era sem dúvida do
serviço. Era de meia idade e evidentemente esperta. Em seguida se
colocou no comando e começou a dar instruções a Stone e ao
condutor, que estavam descarregando a bagagem.
—São mais três pessoas a quem devemos dar comida —
comentou Molly. — Será melhor que vá buscar mais salmão.
Também vamos precisar de muito mais ovos.
—Algo me diz que o senhor Sebastian vai levar uma surpresa
—disse Evangeline. — Estou segura que não esperava ninguém
mais que sua tia. Será melhor que o avise.
Desceu as escadas traseiras a toda velocidade, pois era a que
estava mais próxima da biblioteca. Mas chegou muito tarde para
avisar Lucas sobre a troca de planos. Chegou à porta da biblioteca
justo a tempo de vê-lo receber as visitas.
—Que raios acontece aqui? —perguntou com voz fria. —
Mandei chamar somente você, tia Florence. Não esperava que viesse
com Beth e seus criados.
—Eu também estou encantada de voltar a te ver, Lucas —disse
Florence. — Deixe-me que te esclareça algo: não trouxe todo meu
serviço, só Rose. Não esperava que viajasse sem ela.
Florence tinha os traços duros e a expressão severa de um
falcão, e a voz era uma concordância daquilo. Evangeline achou
uma mulher formidável.
—E o que Beth esta fazendo aqui? —perguntou Lucas. —
Precisa estar em Londres buscando um marido.
—Já tomei uma decisão —respondeu Beth com frieza. —
Quero me casar com o senhor Charles Rushton. Quando disse a
mamãe, me assegurou que ele não era o homem apropriado. Então
decidi não me casar com ninguém.
Elizabeth Sebastian era uma jovem bonita que se parecia muito
com seu irmão. Evangeline pensou que seria interessante ver como
Lucas a tratava.
—Rushton? —se surpreendeu Lucas. — O arqueólogo? O que
estuda línguas mortas e não tem onde cair morto?
—O senhor Rushton é um cavalheiro brilhante —afirmou Beth.
— Aliás, vem de uma das famílias mais respeitáveis. Da vez que
falou com ele, comentaste o quanto ele parecia muito inteligente e
culto.
—E o que tem isso? Conhece sua mãe tão bem quanto eu. A
inteligência e a respeitabilidade não bastam. Tem razão em se
preocupar com os recursos financeiros do senhor Rushton.
Praticamente não tem nenhum.
—Charles não precisa de dinheiro —declarou Beth.
—Que bom para ele! —disse Lucas com muita educação.
—Eu tenho o suficiente para mantermos a nós dois. Mamãe
disse que quando me casar, tenho direito a uma parte generosa do
dinheiro da família.
—Não diga bobagens, Beth —gruniu Florence. — Não pode se
casar com um homem pobre como Rushton. É uma herdeira. Sua
mãe tem todo o direito de temer os caça fortunas.
Um rubor irado coloriu as faces de Beth.
—Charles não é nenhum caça fortunas —protestou.
—Não pode estar segura disso —contradisse Florence. Então
viu Evangeline na porta e sua expressão se tencionou
ostensivamente para mostrar sua desaprovação. — Teremos esta
conversa em outro momento, não diante dos serviçais.
Evangeline decidiu que esse era o momento de intervir. Voltou
à cabeça para se dirigir a Molly, que estava bem atrás dela.
—Chá, Molly. Prepare um grande bule de chá.
—Sim, senhorita. —Molly foi rapidamente à cozinha.
—Boa tarde, senhoras —disse Evangeline, e entrou no cômodo.
Florence e Beth a olharam.
—Suponho que seja a governanta —soltou Florence. — Parece
bem jovem para o cargo, mas imagino que meu sobrinho não tinha
muito tempo para escolher aqui no campo. Mas não importa. Minha
donzela, Rose, vai informá-la de minhas necessidades. Advirto que
sou muito seletiva quanto ao café da manhã. Quero que me sirvam
em meu quarto as oito em ponto exatamente. Acredito que terá café?
Nunca tomo chá de manhã.
13

—Peço desculpas de novo pelo mal entendido, senhorita Ames —


disse Beth.
—Não é necessário —Evangeline riu. — Levava posto um
vestido velho, um avental sujo e uma touca, e segurava um
espanador. A conclusão a que chegou sua tia era perfeitamente
lógica.
Estavam sentadas juntas no pequeno terraço que dava ao
caramanchão coberto de trepadeiras e ao lago de águas escuras.
Florence e sua donzela, Rose, tinham ido ao andar de cima. Lucas
tinha se retirado para a biblioteca.
—Devo dizer que está sendo muito amável a respeito —
insistiu Beth. — Acredito que Lucas não achou graça nenhuma na
situação. Estava furioso porque tínhamos insultado você.
—Asseguro que não me senti insultada.
—Fico aliviada em ouvi-la, mas suspeito que Lucas ainda
esteja bem nervoso por este incidente.
Evangeline achou surpreendente o quanto Lucas tinha se
incomodado com a pequena confusão de sua tia.
—Seu irmão tem muitos assuntos urgentes nas mãos. Neste
momento está um pouco irascível. —explicou.
—O que não é próprio dele —comentou Beth.
Evangeline piscou e observou Beth.
—Isso é uma piada, não é? —perguntou.
—Não, céus! Te asseguro que meu irmão é um homem mais
suave do mundo. Às vezes pode ser frio e reservado. Também tem
uma tendência a ser teimoso e inflexível. Mas rara vez fica irritado.
Não recordo a última vez que o vi tão irritado como pareceu estar
hoje.
—Temo que você e sua tia o fizeram mudar de planos. Não
esperava três pessoas esta tarde.
—Insisti em acompanhar tia Florence e não se pode culpá-la
por trazer Rose —comentou Beth. — Não sabíamos muito bem o
que esperar quanto aos serviços desta casa. Não tínhamos ideia do
que estava se passando. O telegrama de Lucas era sucinto, mas
típico dele. Dizia algo sobre uma acompanhante para uma dama
que se alojaria em Crystal Garden. Era muito misterioso e muito
interessante já que a família desconhecia que Lucas estivesse em um
relacionamento amoroso atualmente.
O alarme e algo que poderia ser chamado de pânico invadiram
Evangeline. Era divertido que a confundissem com a governanta.
Mas era algo muito diferente que a tomassem como uma possível
prometida.
—Meu Deus! Foi isso que você e sua tia deduziram? —disse
com a voz entrecortada. — Que Lucas mandou chamar á senhora
Hampton porque estava em um relacionamento romântico comigo e
queria proteger minha reputação?
—Era a conclusão lógica —respondeu Beth com o cenho
franzido. — A não, por Deus, agora parece que arruinei a surpresa,
verdade? Peço perdão mais uma vez.
—Viajaram até aqui no trem com o senhor Stone. Ele não
explicou nada?
—Stone fala poucas vezes com alguém que não seja Lucas, e
quando o faz, utiliza frases curtas, te asseguro —contestou Beth,
rindo entre dentes. — Em todo caso, ele vinha em um vagão de
segunda classe, enquanto tia Florence e eu estávamos no de
primeira classe. Nem sequer o vimos até que chegamos a Little
Dixby.
—Entendo. Nesse caso, devo dizer que...
—Foi uma surpresa, claro.
—O que foi uma surpresa?
—Saber que por fim Lucas tinha se interessado por alguém.
Até agora não tinha dado nenhuma amostra de que estivesse
planejando casar-se.
—Por favor, Beth, permita-me que lhe diga...
—Ele gosta da companhia feminina. Tony e eu estamos certos
disso. Mas sempre levou seus relacionamentos da forma mais
discreta possível. No geral, prefere as viúvas independentes que tem
menos interesse em se casar. Naturalmente, todos sabíamos que
certamente cedo ou tarde se casaria.
—Compreendo. —Para seu pesar, Evangeline ficou
desanimada. Claro que Lucas se casaria algum dia. Conhecia a
realidade do mundo no qual viviam cavalheiros como Lucas. — É
esperado que um homem da posição de seu irmão se case pelo nome
da família.
—Sim, ainda que no caso de Lucas não seja, estritamente
falando, necessário. Depois de tudo, está meu irmão gêmeo. Faz
pouco tempo que fizemos dezenove anos. Acredito que mamãe
tinha começado a esperar que Lucas tivesse decidido não se casar,
no caso a responsabilidade de perpetuar o nome da família e a
fortuna recairiam finalmente em Tony. Isso ela teria gostado muito.
É sem dúvida, seu maior sonho.
—Compreendo.
—Me dói admitir isso, mas minha mãe e Lucas nunca tiveram
uma relação cordial —explicou Beth com o cenho levemente
franzido. — Se toleram mutuamente, mas nada mais. Lucas tinha
quinze anos quando sua mãe morreu. Seu pai voltou a se casar
quase que imediatamente, claro.
—É o que faz a maioria dos viúvos —comentou Evangeline. —
A sociedade espera isso deles. —O único motivo de seu próprio pai
não ter se casado novamente depois da morte de sua mãe tinha sido
porque estava muito ocupado com seus inventos em seu laboratório
no sótão para dar-se conta que, depois de dezessete anos, sua esposa
já não estava mais ali.
—Mamãe tinha apenas dezoito anos quando se casou —seguiu
contando Beth—, só três a mais que Lucas. Estou certa que foi
violento para os dois. Além disso, os poderes psíquicos de Lucas
começaram a manifestar-se. Mamãe me contou que, pouco depois
do casamento, tinha muito medo dele. Ainda a deixa inquieta. Ela
não acredita na existência de fenômenos paranormais, sabe?
Acredito, que mesmo depois de tantos anos, segue pensando que
Lucas é um perturbado e que pode ser muito perigoso.
—Por Deus! —exclamou Evangeline. E, depois de um
momento, disse: — Deduzo que você não tenha nenhum problema
com os poderes de seu irmão.
—Não, de jeito nenhum. —Beth moveu elegantemente uma
mão. — Os acho fascinantes. E Tony também. Temos pedido à Lucas
que nos permita estudar e avaliar seus poderes psíquicos, mas ele se
nega. Sempre tem sido muito generoso e indulgente conosco. A
verdade é que foi mais nosso pai do que o nosso próprio pai foi, ele
morreu quando tínhamos três anos. Mas quanto a submeter-se a
experimentos científicos, Lucas sempre se manteve firme.
Evangeline pensou brevemente no problema e sacudiu a
cabeça.
—Não sei se seria possível evocar suas faculdades —disse. —
Como se demonstra a existência de energia paranormal? Não
existem instrumentos que a detectem.
—Ainda não, mas Tony está trabalhando para resolver esse
problema. Ele e eu estamos muito interessados nos fenômenos
paranormais devido à nossa relação com Lucas. Gostaríamos de
provar alguns experimentos ainda que só fosse para demonstrar que
seus poderes são autênticos.
—Para que serviria isso?
—Tony e eu pensamos que se pudéssemos demonstrar que as
habilidades de Lucas são reais e que os fenômenos paranormais são
normais, por assim dizê-lo, não teria que ocultar seus poderes dos
demais. —disse Beth, inclinada para frente, muito séria.
—Entendo.
Beth se virou para a casa coberta de videiras para se assegurar
de que não tinha ninguém por perto e baixou a voz.
—Cá entre nós, acredito que foram os poderes de Lucas que
fizeram com que ele demorasse a encontrar uma esposa.
—Verdade?
—Mamãe esta de acordo comigo, mas por motivos diferentes.
Segundo minha teoria, Lucas nunca teve a sorte de encontrar uma
mulher que pudesse aceitá-lo com seus poderes. Mamãe, contudo,
está convencida que as jovens damas respeitáveis e educadas tem
medo dele, ainda que não saibam o por que. Assegura que sua
intuição lhes adverte do que ela insiste em chamar suas
excentricidades, a que as inquieta.
—Diria que tanto você como sua mãe tem razão —disse
Evangeline, tentando abordar o tema diplomaticamente. — Os
poderes paranormais são bastante desconhecidos.
—Sim, exatamente, isso é o que Tony e eu levamos anos
dizendo. —O entusiasmo iluminou o semblante de Beth. — Quanto
tempo você conhece meu irmão?
—Somente há alguns dias —admitiu Evangeline. — Mas sei
que possui um dom muito poderoso.
—Ele não considera um dom, te asseguro —disse Beth com a
boca tensa. — Nem alguém mais da família.
—Por que diz isso?
—Lucas não é o primeiro homem da família Sebastian que tem
enormes poderes psíquicos —respondeu Beth com uma careta. —
Existem aqueles que acreditam que a linhagem está manchada de
algum modo pelo poder paranormal, ainda que não o chamem
assim, claro.
—Chamam de loucura —sentenciou Evangeline, afundando os
dedos nos braços da poltrona.
—Sim, veja tio Chester, por exemplo. —Beth moveu uma mão
para indicar os sinistros jardins. — Mamãe e praticamente todos os
que conhecem seus experimentos aqui, em Crystal Garden, estão
convencidos que estava louco e que no final foi vítima de suas
próprias criações.
—Sabe que seu irmão acredita que seu tio possa ter sido
assassinado? —perguntou Evangeline com muito cuidado.
—Não, é sério? —Beth arqueou suas elegantes sobrancelhas. —
Isso explica por que está aqui, em Crystal Garden. Tony e eu
tínhamos imaginado algo assim. Mas agora está muito claro.
—O que você quer dizer? —perguntou Evangeline com
cautela.
—Quando se produz uma morte repentina, é natural que
Lucas suponha sempre o pior, ao menos até que se demonstre o
contrario. É assim por natureza.
—Sim, claro, por seu trabalho com a polícia —disse Evangeline
com o cenho franzido.
—Aja, quer dizer que já falou com você sobre isso? —Beth
parecia satisfeita. — Que interessante. Quero só ver quando contar
isso ao Tony.
—Por que te parece tão estranho que Lucas tenha me contado
sobre seu trabalho como assessor?
—Porque só conta a poucas pessoas —respondeu Beth com um
olhar de cumplicidade. — Quase ninguém fora da família sabe que
dá assessoria sobre assassinatos, e muito menos que utiliza seus
poderes ao fazê-lo. Mas tinha a sensação de que poderia ter contado
a você.
—Por quê?
—Tem algo diferente quando você e Lucas estão juntos no
mesmo cômodo. —Beth fez outro movimento vago com a mão. —
Uma espécie de conhecimento que só vocês dois tem. É como se, se
comunicassem em silêncio em um código secreto. Eu sinto. Não
posso explicar. Simplesmente sabia que era muito provável que
Lucas tivesse te contado sobre suas investigações policiais. É um dos
seus segredos mais bem guardados.
—Entendo —disse Evangeline com um sorriso. — Pode ser
que você também tenha certos poderes psíquicos.
—Oxalá fosse verdade. —Beth riu. — Por desgraça, nem Tony
nem eu temos mostrado o menor indício de habilidades
paranormais. —ficou de novo séria. — Não sei como Lucas pode
fazer o que faz. É muito duro para ele; estou certa disso. Mas sempre
que seu conhecido da Scotland Yard o chama, ele acode.
—Pode ser algo que ele sente que precisa fazer —apontou
Evangeline, escolhendo com cuidado as palavras.
—Acredito que tenha razão. Os crimes que pedem que ele
investigue são quase sempre assassinatos dos mais espantosos.
Mamãe me disse que as pessoas normais e respeitáveis não se
misturam com semelhantes assuntos. Sempre acreditou que se a
fascinação de Lucas por crimes tão horrorosos chegasse a alguém
fora da família, seria uma das coisas mais vergonhosas. Tem medo
de que a boa sociedade não nos acolhesse mais. Bah! Como se nos
importasse muito a vida social.
—E o senhor Rushton...? —perguntou Evangeline. — O
afetaria saber a verdadeira personalidade de Lucas?
—Estou certa que não. Charles Rushton é um homem de
mentalidade moderna com um interesse enorme pela ciência e
nenhum pela alta sociedade. Se souber dos poderes de Lucas, estou
segura de que irá querer estudá-los, assim como eu e Tony.
—Não falou com o senhor Rushton sobre as habilidades de
Lucas?
—Não, por Deus! —Beth fechou os olhos. — É um segredo de
família, sabe? O que me deixa mais fascinada ainda pelo fato de
você conhecer seus poderes. Mas bem, suspeito que você também
deve ter habilidades psíquicas.
—Sim, eu tenho —concordou Evangeline.
—Estava certa disso. Faz muito tempo que eu e Tony estamos
convencidos que Lucas não se interessaria por uma mulher que não
o compreendesse, mas sim numa mulher que possuísse poderes
também.
Evangeline decidiu que tinha chegado o momento de
esclarecer as coisas.
—Está equivocada —disse. — Seu irmão não me trouxe aqui
porque está planejando casar-se comigo.
—Por que a trouxe então? —Beth parecia sem entender.
—Porque alguém está tentando me matar.
—Meu Deus! —A surpresa de Beth foi evidente. — Está
falando sério?
—Muito sério —respondeu e decidiu contar a Beth uma versão
resumida dos fatos. — Aluguei Fern Gate Cottage este mês, sabe?
Anteontem à noite um homem me atacou com uma faca, um
assassino frio contratado por uma pessoa desconhecida.
—Não sei o que dizer. Isso é realmente horrível. Não tinha
nem ideia.
—Consegui fugir até aqui. Seu irmão me salvou e agora
acredita que tem a responsabilidade de me proteger até que
encontremos a pessoa que contratou o assassino. É por esta razão
que Stone viajou até Londres. Para fazer investigações pelas ruas.
Beth assimilou essa informação em um silêncio
surpreendentemente pensativo.
—Humm... —disse por fim.
—O que? —perguntou Evangeline, cautelosa.
—Pode ser que tenha poderes psíquicos, senhorita Ames —
disse Beth com os olhos brilhando de especulação—, mas até eu
pude ver que o que Lucas sente por você vai muito além do sentido
de responsabilidade para com sua inquilina.
—Não acredito nisso.
—O que aconteceu com o homem que atacou você com a faca?
—quis saber Beth.
Evangeline limpou a garganta e dirigiu os olhos ao
caramanchão.
—Quando Lucas apareceu, ele entrou correndo nos jardins.
Houve um acidente.
—Ah, ou seja, as plantas acabaram com ele —disse Beth, que
parecia bem satisfeita. — Lucas mencionou uma ou duas vezes que
aqui, em Crystal Garden, cresciam algumas espécies interessantes
de híbridos carnívoros. Tony e eu queríamos estudá-los, mas Lucas
disse que a vegetação estava se tornando perigosa.
—Perdoe-me, Beth, mas parece que toma as coisas estranhas
com muita calma.
—Suponho que seja meu caráter —disse, e ergueu os olhos de
novo. — Além do que, conheço Lucas a vida toda. Acredita que
tenha ocultado de mim e de Tony a maioria de seus segredos, mas
somos seus irmãos. Sabemos muito mais do que ele imagina.
14

—O que esta acontecendo, Lucas? —Florence avançou pela


biblioteca como um tanque de guerra que chegava ao porto e
derrubava os muros. Deu vários golpes no tapete com sua bengala
de prata. — Acredito que tenho direito a algumas explicações.
Lucas se sentou atrás da mesa.
—Passou mais de duas horas com Stone no trem, estou certo
que ele lhe disse o que está acontecendo —disse.
—Pois não disse. Stone estava em um vagão de segunda classe.
E, em todo caso, não é muito falador. Duvido que se estivesse
sentado em minha frente, teria contado algo.
—Muito bem. Em resumo, antes de ontem à noite a senhorita
Ames foi atacada em Fern Gate Cottage.
—Meu Deus! —exclamou Florence dirigindo-lhe um olhar de
assombro.
—Como pode ver, saiu ilesa do ataque, mas a alojei aqui, onde
estará segura até que se possa localizar a pessoa que contratou o
assassino.
—Meu Deus! —repetiu Florence. — É... Incrível. — clareou a
garganta e olhou para o rapaz. — Mas, porque acha que tem a
responsabilidade de protegê-la? Com certeza isso é algo que a
polícia deveria fazer.
—Acreditei ter deixado claro. A senhorita Ames tinha alugado
Fern Gate Cottage quando sofreu o ataque.
—Sim, isso eu sei —assegurou Florence com o cenho franzido.
— Oh, entendo. Acredita que tem a obrigação de protegê-la porque
é uma inquilina sua? É um pouco excessivo, não acha?
—A polícia não é guarda-costas. Não tem ninguém mais que
possa mantê-la a salvo até que este assunto termine.
—Deveria ter imaginado que a situação era muito mais
complicada do que se supunha.
—Precisava de uma acompanhante em Crystal Garden para
dar um ar de respeitabilidade.
—Sim, sim, entendo. —Florence deu um par de golpes no
tapete com a bengala. — E pensar que Beth e eu viemos correndo
porque acreditávamos que por fim tinha conseguido uma noiva.
—Tia Florence...
—Você é imprevisível, Lucas. Tem ideia de quem possa querer
assassinar a senhorita Ames?
—Ainda não. Espero que Stone tenha trazido notícias. Viajou a
Londres para fazer investigações. Tenho a intenção de ir falar com
ele assim que terminar de explicar a situação aqui. Por que diabos
trouxe Beth com você?
—Não tive outro remédio. Quando mencionei seu telegrama e
disse que estava arrumando as malas para vir para cá, insistiu em
me acompanhar. Já sabe o quanto consegue ser teimosa.
—Maldição. —mas agora estava mais resignado que irritado.
— Pode ser bem difícil quando tem um objetivo.
—Igual a seu irmão mais velho —observou Florence. —
Contudo, nesta ocasião, acredito que a curiosidade só foi uma parte.
Temo que tiveram outros fatores.
—Judith.
—Está obsecada em achar um marido para Beth. Depois de
tudo, sua irmã está com dezenove anos.
—E tem dote. Que pena!
—Não é divertido —respondeu Florence. — Não seria
prudente esperar muito tempo. A seguinte temporada terá que
enfrentar uma enorme concorrência com a nova leva de senhoritas
que serão apresentadas em sociedade.
—Ao que parece, Beth já tomou uma decisão. Conheci Charles
Rushton. É um jovem correto, inteligente e moderno e é evidente
que está perdidamente apaixonado por Beth.
—Pode ser todas essas coisas, mas não tem um centavo em seu
nome —disse Florence de maneira inexpressiva. — Judith nunca
permitirá que Beth se case com ele. Voltemos ao tema da senhorita
Ames.
—O que quer saber?
—Tem algo a ver com lorde e lady Ames da praça Pemberton?
—Estou certo que não. Que Evangeline saiba, não tem
ninguém no mundo.
—Não tem família? —perguntou Florence com o cenho
franzido.
—Evidentemente, não.
—Compreendo. Que má sorte! Bom, a julgar pelo vestido que
colocou depois de tirar o de governanta e o avental, parece ter certos
encantos. Alguém deve ter deixado algum dinheiro para ela. A
maioria das jovens em suas circunstâncias acabam trabalhando
como governantas ou damas de companhia.
—De fato —Lucas sorriu—, Evangeline ganha a vida como
dama de companhia.
—Brincas, é claro. É impossível que pudesse ter semelhante
roupa e muito menos alugar uma casa de campo com o salário
obtido como dama de companhia.
—Evangeline é uma mulher de muitos recursos.
Se deu conta muito tarde de como suas palavras poderiam ser
interpretadas.
—Lucas Sebastian —disse, horrorizada, com os olhos
arregalados—, não estará me dizendo que é essa classe de mulheres.
Não posso acreditar que tenha perdido a decência até o ponto de ter
uma amante aqui, embaixo de seu próprio teto.
—Nem mais uma palavra, tia Florence. —Lucas tinha se
levantado, cheio de raiva, apoiou as mãos na mesa. — Não vou
permitir que ninguém, nem sequer a senhora, insulte a senhorita
Ames. Está claro?
—Mas Lucas, está reagindo de uma forma um pouco
exagerada, não acha? Me desculpe se interpretei mal a situação, mas
compreenderá que...
—Está claro? —repetiu com os dentes apertados. — Se não,
pedirei a Stone que lhe acompanhe a Little Dixby imediatamente.
Pode passar a noite em uma pousada e tomar o trem de volta para
Londres amanhã pela manhã.
Florence ficou olhando para ele, enquanto segurava com muita
força sua bengala com a mão crispada.
—Por favor, Lucas, está me assustando.
Lucas fechou os olhos e se conteve. Tardou alguns instantes,
mas sufocou o fogo que ardia em seu interior. Quando sentiu que
tinha o controle total de si mesmo, abriu os olhos e se sentou com
calma.
—Talvez fosse melhor que voltasse a Londres de qualquer
modo —sugeriu com frieza. — A presença de Beth na casa já é
suficiente para proteger a reputação da senhorita Ames.
Florence ficou alguns minutos sem dizer nada. Finalmente
disse.
—Não será necessário me mandar de volta a Londres —disse.
— Ficarei aqui. Peço desculpas de novo pelo mal entendido.
—Como queira —soltou Lucas. — Mas se ficar, tem que ficar
muito claro que não quero ouvir mais insultos, nem velados nem de
nenhum outro tipo, a senhorita Ames.
—Expressou seus desejos de forma muito clara. —Florence se
levantou. — Se me desculpar, irei acima me assegurar que Rose tem
tudo sob controle. Sua jovem governanta parece muito diligente,
mas é evidente que não é muito experiente.
Lucas se levantou de novo. Rodeou a mesa, cruzou o cômodo e
abriu a porta. Florence se dirigiu a ela e parou diante dele e o olhou
com atenção.
—De verdade que a senhorita Ames ganha a vida como dama
de companhia?
—Sim.
—Sem querer ofender —disse Florence—, não tem o aspecto
típico de uma dama de companhia.
—Não —concordou Lucas. — Não é a típica dama de
companhia.
—Humm... Imagino que um de seus clientes lhe deixou um
bom legado. Isso explicaria o vestido caro.
Saiu majestosamente ao corredor. Lucas pensou em chamá-la e
explicar que Evangeline era, na realidade, uma investigadora que
trabalhava para uma agência privada e que tinha começado uma
segunda carreira como escritora de novelas semanais. Decidiu não
fazê-lo. Às vezes era mais fácil e eficiente deixar que os outros
tirassem suas próprias conclusões.
15

Uma hora depois, Evangeline entrava na biblioteca para falar com


Lucas. Quando viu que ele estava apoiado na escrivaninha, falando
com Stone, ficou em dúvida na porta. Os homens pareciam sérios.
—Vejo que está ocupado, senhor Sebastian —disse. —
Regressarei mais tarde.
—Não precisa —assegurou Lucas. — Stone já terminou seu
informe. Ao que parece, sabemos um pouco mais que antes. Stone
contratou um de seus antigos conhecidos nas ruas para que siga
fazendo averiguações.
—Isso é tudo? —perguntou Evangeline a Stone.
—Não, senhorita Ames —contestou ele antes de olhar Lucas e
esperar.
Lucas seguiu a partir dali.
—Stone descobriu que Sharpy Hobson cresceu nas ruas, como
já sabíamos. Era membro de uma pequena gangue formada por três
meninos que sobreviviam da forma tradicional: roubando carteiras e
traficando artigos roubados. Mais adiante começaram a cometer
delitos mais violentos. Mas, em algum momento, dois dos moços
desapareceram das ruas. Ninguém sabe o que aconteceu com eles.
—Todo mundo sabe que nos ambientes baixos impera a
violência —comentou Evangeline. — Talvez os dois moços tiveram
um final trágico. Não seria estranho.
—Stone verificou que circulam rumores de que os cúmplices
de Hobson conseguiram prosperar. Eram irmãos e os outros
meninos das ruas os consideravam muito inteligentes.
Evidentemente, eram mesmo, pois conseguiram sair daquele
ambiente. Hobson, contudo, não tinha vontade de subir na vida. —
Lucas cruzou os braços. — Segundo dizem, gostava demais do
trabalho que fazia nas ruas.
Evangeline voltou-se para Stone.
—Espera encontrar os antigos comparsas de Sharpy Hobson,
verdade? —perguntou.
—Sim, senhorita —respondeu Stone.
—Por quê? Para que serviria isso?
Stone olhou para Lucas, que respondeu a pergunta.
—Segundo os rumores que Stone ouviu, faz pouco tempo
Hobson aceitou o encargo de um trabalho para o qual teve que
comprar um bilhete de trem. Alguém lhe perguntou se ia embora de
Londres e ele respondeu que iria fazer um favor bem pago a um de
seus antigos sócios.
O entusiasmo invadiu Evangeline.
—Excelente trabalho, senhor Stone —disse com um sorriso. —
Se o seu investigador conseguir encontrar esse antigo cúmplice de
Hobson, teremos o homem que o contratou para me matar.
—O encontraremos, senhorita Ames —assegurou Stone,
completamente sem graça.
—Obrigado, senhor Stone. —Evangeline sorriu de novo. —
Agradeço muito seus esforços.
Stone abaixou a cabeça e saiu da sala com sua habitual
elegância felina e fechou a porta.
—Acredito que fez Stone ficar ruborizado. —Lucas sorriu.
—Sim, bom, não era minha intenção envergonhá-lo. A verdade
é que fez um excelente trabalho em Londres. Ao menos, temos uma
pista.
—Isso é o que parece. Para que queria me ver?
—Sei que não é meu assunto, mas acredito que esteve um
pouco cortante, para dizer suavemente, com sua tia e com sua irmã
—indicou, endireitando os ombros. — Tiveram muito trabalho para
virem correndo até Little Dixby para fazer sua vontade. Poderia ao
menos ser um pouco mais educado com elas.
—Que minha irmã viesse com minha tia não fazia parte dos
planos. Estou tentando fazer uma investigação, não celebrar uma
festa de vários dias em minha casa.
—Eu entendo. Mas isso não é desculpa para falta de educação.
—Não conhece minha família, Evangeline —gemeu Lucas. —
Preciso levar meus familiares com pulso firme, acredite-me.
—É você quem cuida de seus assuntos? —perguntou enquanto
se acomodava em uma poltrona.
—Para meu castigo, sim. —Lucas estendeu os braços e se
sentou atrás da escrivaninha. — Depois da morte de meu pai, meu
avô me encarregou dessa tarefa. Ainda que não tivesse muitas
opções. Tony era muito jovem e meu avô não gostava muito de
nenhum de seus sobrinhos.
—Mas se tivesse podido escolher, teria preferido dar outro
rumo para sua vida —insinuou Evangeline, que tinha
compreendido a situação.
—Não tem muita gente que possa escolher suas
responsabilidades. São o que são.
—Sim —admitiu Evangeline—, mas nem todo mundo aceita.
Não vivo em um mundo imaginário, Evangeline. E dá a
casualidade que gosto muito de ganhar dinheiro.
—Não tinha duvidado disso nem por um minuto —disse
Evangeline com um sorriso
—Resulta que realizar bons investimentos tem muito em
comum com caçar assassinos. Precisam de habilidades e faculdades
parecidas.
—Que tipo de habilidades e faculdades? —quis saber
Evangeline.
—A habilidade de prever fatos, certa falta de piedade e um
grande instinto de sobrevivência —explicou, olhando em seus olhos.
—Recordarei isso se algum dia tiver dinheiro suficiente para
investir.
16

Os jardins brilhavam debilmente na penumbra da noite. A luz


luminosa procedia da vegetação e da escura superfície reluzente do
lago.
Evangeline estava junto à janela de seu quarto, de bata e
sapatilhas, contemplando a misteriosa paisagem. As videiras que
cobriam a parte inferior das paredes da velha casa não cresciam com
tanta intensidade nos pisos superiores. Era como se em sua subida,
quanto mais se afastavam de sua fonte de nutrientes, aquela
vegetação estranha menos florescia. Do seu quarto não conseguia
ver os jardins em toda sua extensão, mas podia ver uma parte mais
ampla do terreno. Na parte de baixo da casa não era possível ver
pelas janelas por conta da vegetação.
Um momento antes tinha percebido, mais que ouvido que
Lucas passava ante sua porta. Sabia que tinha descido e que, sem
dúvida, sairia aos jardins para iniciar suas investigações.
Não tinha conseguido dormir apesar do quarto e dos lençóis
limpos. O beijo daquela tarde, na biblioteca, a tinha desconcertado.
Uma vez sozinha em seu quarto, não tinha deixado de pensar nele.
Ao recordá-lo, um novo arrepio de energia gélida e ardente
percorreu seu corpo. Disse a si mesmo que já tinha sido beijada
antes, mas com Lucas foi diferente.
Uma luz deslumbrante apareceu nos jardins. Lucas saiu da
casa e avançou para o terraço. Levava um farol e ia sozinho. Stone
também estava fora em alguma parte, patrulhando a penumbra do
grande muro que rodeava os jardins. À tarde, Evangeline tinha
ouvido Lucas falando em voz baixa, pedindo que vigiasse a casa
enquanto seus hóspedes dormiam. «Pedindo a ele que me proteja»,
pensou.
Lucas parou nos degraus do terraço. A iluminação potente do
farol revelou brevemente sua expressão dura e resoluta. Naquele
momento revelava claramente seu temperamento. Evangeline
prendeu o fôlego. Era um homem que faria o que fosse necessário
para cumprir com o que acreditava ser sua responsabilidade. Agora
estava se preparando para entrar no perigoso Hades verde que era o
jardim Noturno para averiguar a verdade sobre a morte de seu tio.
Observou como descia os degraus, rodeava a lagoa da cor de
rochas vulcânicas e se metia no caramanchão coberto de videiras.
Viu como saía pelo outro lado e desaparecia quase imediatamente
entre a frondosa folhagem luminosa.
Sabia que se dirigia para a entrada do labirinto. Durante um
ou dois segundos pode seguir seu avanço graças aos raios
esporádicos de luz do farol no interior da vegetação.
De repente, o último raio de luz se extinguiu. Suspeitou que
Lucas tivesse apagado o farol porque preferia confiar em seus
instintos paranormais para se orientar pelas zonas mais escuras dos
jardins.
Se afastou da janela tempo suficiente para pegar a cadeira do
tocador. A aproximou da janela e se sentou para esperar Lucas
terminar sua missão noturna. Sabia que não poderia dormir até que
ele estivesse a salvo de novo no interior da casa.
Uma tênue centelha que captou com o rabicho do olho, fez
com que dirigisse seu olhar para o Jardim Diurno. Esperava ver
Stone fazendo sua ronda. O brilho de um farol, de pouca
intensidade, era visível próximo ao muro. O homem que o segurava
era apenas uma silueta escura à luz da lua, mas em seguida viu que
não era bastante corpulento para ser Stone.
Tinha um intruso nos jardins.
Levantou-se de um golpe e se agarrou ao parapeito da janela,
esperando muito tensa, que Stone aparecesse para enfrentar o
recém-chegado.
Passaram os segundos. Um segundo homem se reuniu com o
primeiro. O farol foi apagado, mas a luz da lua bastava para
permitir a Evangeline observar as duas sombras escuras. Se dirigiam
para o caramanchão e a entrada do Jardim Noturno.
Não tinha nenhum rastro de Stone. Algo andava muito mal.
Sua intuição enviou um frenético alarme a seus sentidos já
aguçados.
Ascendeu à vela na mesinha de cabeceira. Com um candelabro
nas mãos, saiu ao corredor e desceu as escadas. Uma vez no piso
inferior correu até o quarto que Stone ocupava próximo a cozinha.
Pensou que talvez não estivesse fora, depois de tudo. Talvez
dormisse.
Chamou com força na porta. Não obteve resposta.
—Senhor Stone —disse em voz baixa. — Está aí, senhor Stone?
O silêncio retumbou.
Rodeou o pomo com uma mão e fez girar muito lentamente. A
porta se abriu facilmente. Vacilou. Tanto ela como ele passariam um
vergonhoso momento se o homem estivesse na cama.
Mas não importava. Não podia perder nem um minuto mais.
Escancarou a porta com o candelabro nas mãos. A luz bruxuleante
da chama revelou uma cama vazia, porém feita. Stone não estava.
Sua primeira reação foi de alívio. Afinal, estava fora, no
jardim. Com certeza deteria os intrusos. Lucas e ele eram
perfeitamente capazes de cuidar de si mesmos.
Mas e se Stone não se desse conta que haviam entrado dois
homens?
A sensação de que iria ocorrer algo terrível nos jardins foi mais
forte e a inquietou ainda mais.
Fechou a porta do quarto de Stone e percorreu rapidamente o
corredor até a cozinha. Apagou a vela, abriu a porta e saiu ao
terraço. O ar frio da noite brincou com a abertura de sua bata.
O caramanchão reluzia imponente a luz da lua. Buscou Stone
com o olhar e não viu rastro dele. Buscá-lo levaria um tempo
valioso, mas ele era sua maior esperança. Stone saberia como
proteger Lucas.
Não havia alternativa possível. Se dava muito bem em
encontrar o que estava perdido. Aquela noite era Stone. Evocou suas
impressões psíquicas sobre ele e concentrou seus sentidos na busca.
Quando baixou o olhar, viu que uma tênue neblina de energia
rodeava seus pés. De uma forma que não sabia explicar soube que
era o que estava buscando: o rastro psíquico de Stone.
Com os sentidos aguçados, rodeou a lagoa com cuidado de
não olhar diretamente suas águas prateadas embaixo da luz da lua.
A perturbadora energia se apegava a ela, mas suprimiu a
necessidade de aproximar-se para contemplá-la.
Percorreu a toda velocidade o caminho que margeava os
muros imponentes sem prestar atenção às imensas flores noturnas
que brilhavam nas paredes verdes.
Deixou o caminho e rodeou um roseiral exageradamente
coberto de flores que emitiam uma luz incandescente. Estava no
Jardim Diurno e não no Jardim Noturno, mais perigoso, mas sua
intuição lhe dizia que não seria prudente roçar os pequenos
espinhos nem para inalar sua fragrância.
Estava tão concentrada mantendo-se afastada das rosas que
não se preveniu das correntes de energia pulsantes do solo até que
seu pé chocou com um objeto largo, imóvel. Tropeçou e caiu
bruscamente de quatro. Sobressaltada, inspirou profundamente.
Tardou um segundo em dar-se conta do que havia no chão.
Stone.
Se abaixou e examinou a figura quieta de Stone com todos os
seus sentidos. As correntes fortes e constantes de energia que o
rodeavam lhe asseguravam que estava vivo, mas o calor mitigado
de algumas das longitudes de onda lhe indicava que estava
submerso em um sono profundo, antinatural. Tremeram um pouco
seus dedos. Stone nunca teria dormido durante uma patrulha e,
nem tão profundamente.
Se ajoelhou e buscou em seu corpo indícios de alguma ferida.
Para seu alivio, não tinha nenhuma, mas algo traumático tinha
acontecido com ele. Tinha a boca aberta com os olhos fechados à luz
da lua. Não se movia.
—Senhor Stone —sussurrou.
Enlaçou com cautela seu imenso ombro. Ao não obter
nenhuma reação, colocou a ponta dos dedos em seu pescoço. Sentiu
um alivio enorme ao descobrir que seu pulso era regular e forte.
Mas estava claro que esta noite não ai ser útil a Lucas.
Não tinha sentido perder tempo regressando a casa para
chamar Florence e Beth. Nenhuma das duas poderia de noite dar
alguns passos no jardim sem desorientar-se.
Voltou pelo caminho, seguiu a orla da lagoa e abriu passo
entre uma cortina de orquídeas e videiras para entrar no
caramanchão. Tinha os sentidos completamente aguçados,
concentrados em sua nova busca. Tinha que encontrar Lucas.
Não custou nada detectar a energia fria e furiosa de suas
pisadas no solo reluzente de pedra.
Saiu pelo outro lado do caramanchão e seguiu o rastro das
pisadas até a entrada do labirinto. A porta de ferro estava aberta. O
interior do labirinto estava iluminado com uma energia escura.
Entrou cautelosamente no corredor iluminado que formavam
as paredes vivas de plantas. Em seu elevado estado de percepção,
podia ter jurado que ouvia como a vegetação respirava e sussurrava
ao seu redor. Sabia que era impossível, mas não conseguia tirar de
cima essa sensação de que de algum modo o labirinto sabia que ela
estava ali.
Parou para ouvir algo, mas não se ouvia nada. O ambiente era
extremamente silencioso, como se a vegetação paranormal
absorvesse e apagasse o ruído normal.
O solo do labirinto estava coberto por um tapete de folhas
verdes de formas curiosas. O teto e as paredes estavam formados
por uma folhagem frondosa, repleta de espinhos de ponta roxa e de
flores que recordavam bocas abertas.
Ainda que a luz da lua não penetrasse no labirinto, a
luminescência paranormal das folhas e das ameaçadoras flores que
salpicavam as paredes proporcionava luz suficiente para que
pudesse ver por aonde ia.
Seguiu os passos furiosos de Lucas até o interior do labirinto.
Seu rastro desenhava um passeio extremamente complicado, cheio
de giros e trocas de sentido. Não tinha nenhum rastro dos intrusos.
Pouco depois chegou a outra intersecção e viu que Lucas tinha
virado para a esquerda. Seguiu, apressando-se ainda mais. Suas
sapatilhas não faziam o menor ruído no tapete verde.
Dobrou a esquina e se chocou com Lucas, que lhe rodeou a
cintura com um braço e tampou sua boca com uma mão antes que
pudesse dar um grito de surpresa.
—O que acredita que está fazendo? —disse em seu ouvido.
Pelo menos podia ouvi-lo agora que estava tão próximo.
Tratou de contestar, mas foi impossível com a palma da mão dele
sobre seus lábios.
—Mmppff... —soltou.
—Fale em voz baixa — advertiu ele. — Aqui o som não chega
muito longe, mas se, se aproximarem o suficiente, poderiam nos
ouvir.
Tirou cautelosamente a mão de sua boca.
—Sabe que dois homens te seguiram até aqui? —sussurrou.
—Os percebi faz alguns minutos. O que está fazendo aqui?
—Os vi entrar no jardim. Vim avisá-lo.
—Teria que ter avisado Stone.
A irritação em sua voz era a mais irritante.
—Ainda que não acredite, eu pensei —explicou com frieza. —
Por desgraça, o senhor Stone está incapacitado.
—O que?
Evangeline notou que perguntava com a cabeça posta em
outra parte e percebeu que estava concentrado em ouvir os intrusos.
—Stone esta inconsciente no jardim Diurno —respondeu em
voz baixa.
—O que?
Agora sim Lucas prestava toda sua atenção nela.
—Acredito que esses dois homens fizeram algo com ele —
acrescentou. — Por isso eu vim te avisar.
—Silêncio. —Voltou a tapar-lhe a boca com a mão. — Já estão
vindo. Não vão demorar muito em dar-se conta que estão
equivocados de direção.
Evangeline assentiu para que visse que entendia que o silêncio
era necessário e lhe destampasse a boca. Agora podia ouvir umas
vozes fantasmagóricas no labirinto. Havia uma distorção
inquietante, como se os homens estivessem falando em outra
dimensão. Era impossível saber o quão próximos estavam e muito
menos calcular sua posição no labirinto. Mas à medida que se
aproximavam, suas palavras foram se distinguindo.
—E se o guarda estiver morto? —a voz era masculina e estava
carregada de ansiedade. — Amanhã pela manhã, quando não o
encontrarem, iniciarão uma busca.
—Já não há nada a fazer. Se estiver morto, parecerá sem
dúvida, que morreu de um infarto ou de um derrame cerebral.
Este segundo homem tinha falado com impaciência e
autoridade. Era o que estava no comando.
Evangeline percebeu que tinha esperado ouvir o acento tosco
dos delinquentes de rua. Mas os intrusos pareciam homens
respeitáveis, educados.
—Já tinha dito que era perigoso vir até aqui a noite —insistiu o
homem nervoso.
—Não pode dizer que tivemos uma opção nisso. Uma coisa era
esperar alguns dias com a esperança de que Sebastian não ficasse
muito tempo. Mas o povo diz que abriu toda uma ala da velha
abadia. Agora estão hospedadas lá três mulheres e uma donzela,
maldição. Contratou serviço externo. É evidente que pensa em
passar o verão aqui.
—Podemos esperar até que se vá —sugeriu esperançoso o
homem ansioso.
—Não podemos correr esse risco. Tudo indica que tem
pensado em converter Crystal Garden em sua casa de campo e os
habitantes asseguram que está tão louco quanto seu tio. Precisamos
encontrar o ouro antes que comece a buscá-lo ele mesmo. Ao ritmo
que está acumulando visitas e aumentando o serviço, logo será
impossível chegar aos jardins. Esta noite tivemos sorte ao superar o
guarda. Pode ser que não tenhamos nenhuma outra oportunidade.
—Eu entendo, mas precisamos ir daqui o quanto antes
possível.
—Tenho a mesma vontade de ficar aqui que você. Acredite.
—Nestes jardins nada é natural —advertiu o homem ansioso—
, especialmente este labirinto.
—Não te queixes —respondeu o outro homem. — Se não fosse
pela energia paranormal dos arredores e pelos experimentos
botânicos de Chester Sebastian, já teriam encontrado o ouro e o
levado há muito tempo.
Os dois homens dobrariam a esquina em alguns segundos.
Evangeline se fixou que não tinham onde esconder-se, o que os
deixava com duas opções: ou enfrentavam os intrusos ou fugiam
adentrando ainda mais o labirinto.
Lucas segurou seu braço com uma mão e a conduziu para
outra intersecção do labirinto, onde dobraram uma esquina.
—Fique aqui —sussurou em seu ouvido. — Não toque na
vegetação.
Evangeline assentiu de novo para indicar que tinha entendido
as instruções.
Viu que Lucas se dirigia para a entrada do corredor e se
colocava a um lado da abertura, de modo que soube que iria
enfrentar aos intrusos. Sua intuição lhe enviou uma advertência.
—Acredito que não é um bom plano —sussurrou.
Lucas não lhe deu atenção. Talvez não tivesse ouvido. Não
tinha tempo para dizer mais nada. As vozes fantasmagóricas se
aproximavam.
Observou como um dos intrusos passava a entrada. Com a
iluminação etérea do labirinto, apenas se via uma silueta. Viu o
suficiente para distinguir que era alto e magro, com um perfil
anguloso e estreito. Segurava com ambas as mãos um farol pequeno
com uma forma muito curiosa, que levava adiante dele, como se o
estivesse oferecendo. O aparato emitia um halo delgado de luz
paranormal. O homem tinha toda sua atenção posta nela. Nem
sequer lançou um olhar ao corredor que estava cruzando.
Lucas o deixou passar.
—Espera. —Deu a impressão que o homem nervoso sucumbia
ao pânico. — Se perco você de vista, não poderei sair deste maldito
labirinto.
—Pois se apresse então, Horace —lhe aconselhou o homem.
—Já vou. Não me atrevo a me mover depressa aqui dentro. Os
espinhos, lembra?
O homem chamado Horace passou velozmente ante a entrada
do corredor. Era uma cabeça mais baixo que seu companheiro e bem
mais roliço. A luz refletiu nos cristais dos óculos que levava na
ponta do nariz. Era evidente que suava copiosamente porque não
deixava de levar um pano à testa.
Lucas deslizou até o exterior do corredor atrás de Horace.
Evangeline sentiu um repentino aumento de energia ameaçadora e
se preveniu que não vinha da vegetação. Quem gerava as correntes
escuras de poder era Lucas. Estremeceu ainda que as ondas de
energia escura não eram dirigidas a ela. O ambiente estava
carregado de pesadelos.
—Que diabos...? —a voz de Horace se elevou em meio de um
medo crescente. — Espera, Burton. Aqui tem algo, algo espantoso...
Suas palavras se interromperam bruscamente. Seguidas por
um golpe surdo, e Evangeline soube que o intruso tinha caído no
chão do labirinto.
—Filho da puta, você deve ser Sebastian. —A voz de Burton
ressoou de modo fantasmagórico. — Tinha esperado evitar usar isto
outra vez esta noite, mas não me deixa outra alternativa.
—Não gosto de caçadores de tesouros —disse Lucas. —
Deveria deixar que os jardins se encarregassem de vocês, mas estas
malditas plantas não precisam de mais alimento. Tal como estão às
coisas, já prosperaram muito.
Um halo penetrante e intenso de energia paranormal verde
brilhou no corredor. Evangeline se deu conta de que era uma
versão mais potente do raio que emitia o estranho farol. Ao mesmo
tempo, a energia carregada de pesadelos de Lucas agitou o
ambiente.
Um fogo psíquico explodiu no corredor. As ondas de choque
reverberavam através da frondosa vegetação. As folhas e as videiras
se bambolearam como se esqueletos imóveis por longos tempos
tivessem despertado e começassem a dançar...
Começaram a soprar ventos fantasmagóricos em voleios.
Evangeline correu para a entrada do corredor. Estava se
formando uma tormenta sombria que encheria tudo.
—Lucas —gritou. Mas sua voz se perdeu com o estrondo do
tornado paranormal que se desenrolava rapidamente.
Uma figura escura avançou através do vendaval. Alguns
segundos depois, Lucas saiu da violenta tormenta. Entrou
tropeçando no corredor onde ela estava. Ele estava rodeado de um
abrasador arco-íris de energia. Evangeline deduziu que era sua
aura, que tinha sido usada de algum modo para se proteger das
poderosas forças desatadas. Mas pressentiu que o escudo psíquico
lhe custaria caro. Tinha que estar utilizando uma quantidade
enorme de energia para se manter.
—Lucas. —os terríveis ventos de poder não lhe permitiram
ouvir sequer sua própria voz. Segurou seu braço. Lucas tropeçou e
chocou seu rosto com o solo, mas logo levantou-se de novo.
Um pequeno objeto cruzou rodando a entrada atrás dele.
Evangeline reconheceu o farol que o intruso tinha levado. Sem
pensar, se agachou e o pegou pela asa.
Lucas rodeou sua outra mão com seus fortes dedos e puxou ela
para cima. Evangeline notou sua palma cálida na pele. Muito cálida.
Pelo menos o arco íris quente tinha desaparecido.
—Corre —ordenou Lucas.
Não precisava que lhe dissesse de novo. Lucas a puxou pelo
corredor e dobrou uma esquina para entrar em outra avenida do
labirinto. Evangeline pareceu ouvir um grito de pânico, mas não se
voltou para olhar. Naquele momento notava a energia da tormenta
atrás dela. Os ventos violentos eram canalizados para os distintos
corredores do labirinto. A vegetação se retorcia como se houvesse
um ninho de serpentes por toda a parte.
Lucas a puxou rapidamente em outra intersecção.
—Haja o que houver, cuidado com os espinhos de ponta roxa.
Advertiu Lucas. Sua voz era áspera, como se fosse um esforço
enorme para falar.
—Estou fazendo todo o possível para evitar tocá-los, acredite-
me. O que aconteceu?
—Acredito que eles estavam utilizando a energia do seu farol
para orientar-se pelo labirinto. Então um deles dirigiu até mim e fiz
algo para intensifica-la. Assim se converteu em uma arma. Mas
aqui tem muita energia instável neste ambiente. Suspeito que o feixe
da lanterna desencadeou a tormenta paranormal.
Evangeline notou que a mão com a qual segurava o pulso
estava cada vez mais quente, como se tivesse muita febre.
—Lucas —disse arquejando enquanto tropeçava para seguir
seu passo—, você está bem?
—Não podemos sair pelo portão devido à tormenta.
Precisamos chegar às termas do Jardim Noturno.
—Feriu-o a explosão, verdade? Noto que tem febre. Diga-me o
que está acontecendo, te suplico.
—Não sei o que esta acontecendo —respondeu Lucas. — Foi
como se meus poderes psíquicos tivessem se debilitado. —Limpou a
garganta e sacudiu a cabeça várias vezes, como se tentasse enfocar a
vista.
—Tenho que levá-lo de volta para casa.
—Esta noite, não —soltou.
—O que quer dizer?
—Estamos presos aqui até amanhã de manhã. Já te disse, a
tormenta bloqueou a única saída. Dada à quantidade de energia que
tem neste lugar e do modo que as forças estão potentes à noite, as
coisas levarão horas para acalmar-se o suficiente para podermos sair
sem perigo.
—Meu Deus!
Puxou-a para outra intersecção. O farol que Evangeline tinha
recolhido do chão tilintou.
—Que ruído é esse? —perguntou Lucas.
—A arma que aquele homem usou contra você. Caiu e rodou
até o corredor onde eu estava te esperando. Acreditei que poderia
querer examiná-lo.
—Que diabos...? —Lucas baixou os olhos até o farol. — Toma
cuidado para onde apontas com isso. Não sabemos como funciona e
o que pode fazer.
—Claro que tenho cuidado —assegurou com frieza. — Não
sou idiota, Lucas. Cresci na casa de um inventor. Sempre manejo
com precaução qualquer artefato desconhecido.
Lucas tencionou a mandíbula. Percorreu rapidamente outro
corredor estreito, arrastando-a com ele.
—Peço desculpas. Com certeza, vou querer examiná-lo quando
sairmos daqui.
—Não precisa se desculpar. Compreendo sua preocupação. E
me dou conta de que não está acostumado a trabalhar com uma
mulher que também é uma investigadora qualificada.
—Te agradeço que seja tão compreensiva comigo —disse,
esboçando um sorriso forçado.
—Tem alguma ideia de quem eram aqueles homens?
—Não. Nunca os tinha visto. Buscadores de tesouros ao que
parece. Acredito que podemos supor sem risco de erro que
estiveram envolvidos com a morte de meu tio.
Evangeline ia fazer mais perguntas, mas naquele momento
dobraram a última esquina e entraram na selva que consistia o
Jardim Noturno.
—Meu Deus! —sussurrou. — Este lugar é incrível.
As folhas imensas e os ramos retorcidos da alta vegetação
tapavam por completo a luz da lua, mas o jardim reluzia com uma
energia iridescente. O brilho era mais forte que a luz da meia noite
do Jardim Diurno. O ambiente era mais cálido também. Mas
instintivamente soube que o que tornava essa parte tão perigosa
eram as demolidoras ondas de poder paranormal.
As correntes de energia fluíam ao seu redor de forma
imprevisível. Pressentiu que alguns dos rios de poder podiam
arrastar uma pessoa e submergi-la nas profundezas paranormais
que aguardavam abaixo da consciência.
Um sem fim de sonhos aguardavam ali, na escuridão: sonhos
de mundos maravilhosos e prazeres infinitos, sonhos onde
conheceria um poder e uma paixão inimagináveis.
—Evangeline. —Lucas a sacudiu. — Acorde.
—Mas se estou acordada —assegurou e, sobressaltada, limpou
a garganta um par de vezes enquanto aguçava seus sentidos. A sutil
sensação de transe se desvaneceu. Captou o delicado e tênue
perfume de um irresistível perfume exótico. — Sente esse perfume?
—A Rosa dos sonhos. —Lucas a incitou a percorrer uma mata
de samambaias radiantes. — Uma das últimas criações de meu tio.
Esperava produzir uma variedade que pudesse usar para induzir ao
sono. Como muitos outros de seus experimentos, esta também saiu
errado. Procure não respirar fundo até que estejamos dentro das
termas.
—O que pode ter uma flor que cheire tão bem para que seja tão
horrível?
—De longe exerce um efeito sedutor nos sentidos. À medida
que nos aproximamos se torna hipnótico, irresistível. Uma só flor
libera perfume suficiente para fazer uma pessoa sumir em um
transe. Mas não é um autêntico sono. Mas se sonha, só que não são
sonhos e sim pesadelos.
—Fala como se já tivesse experimentado o efeito das flores.
—Eu fiz uma vez. E uma vez é mais que suficiente, acredite-
me.
—Acredito. —Baixou os olhos e viu um maço de flores
espetacularmente luminosas. — Olhe estas flores. São incríveis.
—Faça o que fizer, não as toque, especialmente agora a noite.
—Também são perigosas?
—Aqui, tudo é perigoso. Acreditava ter deixado isso claro.
Esta planta é carnívora. As jovens comem insetos. A versão maior
atraem os rato e ratazanas e os mata.
—Meu Deus!
—Outro experimento botânico que devia ter uma aplicação
prática. —Lucas estava suando. Secou o suor dos olhos. — Meu tio
estava convencido que algumas dessas plantas dentro de casa
controlaria os insetos e as pragas de bichos. Sua teoria era correta.
Você percebeu que, apesar de uma grande parte da casa estar
fechada há anos, não temos ratos nem teias de aranha?
—Agora que o menciona, me aliviou muito descobrir que não
tinha rastros de bichos na cozinha e na despensa —comentou
Evangeline sentindo um calafrio. — Achei que era por conta da
governanta desaparecida.
—O perfume atrai os bichos para este jardim. Muito poucos
escapam
—Conheço muitas governantas e esposas que pagariam uma
fortuna para adquirir uma planta assim. Mas não estará me dizendo
que as plantas devoradoras de ratos devorariam uma pessoa viva,
verdade?
—Não, mas as flores produzem uma substancia toxica que é
muito potente e produz uma queimadura química. A lesão demora
dias para se curar. —Lucas sacudiu a cabeça como para despertá-la.
— Já não falta muito. A entrada das termas está à frente. Uma vez
que estejamos dentro, estará a salvo enquanto eu durmo para que
me cure desta condenada febre.
Depois de desviar a atenção de um formoso conjunto de
orquídeas que brilhavam enigmaticamente, Evangeline viu a
entrada das antigas termas. A alma caiu a seus pés ao se dar conta,
de repente, que o interior parecia estar cheio de uma noite densa,
infinita.
—Lucas, já sei que quer me proteger dos perigos do jardim —
comentou—, mas devo dizer que não suporto a ideia de passar o
resto da noite ali. Não sem um farol. —olhou o artefato parecido a
um farol que levava na mão. — Não acredito que isto sirva.
Preferiria me arriscar aqui fora, onde tem alguma luz.
—A falta de luz é enganosa —esclareceu Lucas. — Quando
estivermos dentro, verás a que me refiro. Em todo caso, não posso
permitir que fique aqui fora. Prepare-se. Cruzar a entrada pode
afetar um pouco. Meu tio disse que era para manter fora aos animais
e os insetos que pretendessem viver aqui no jardim. Também
pretendia que desanimasse aos intrusos que pudessem chegar até
aqui.
—Os dois que encontramos esta noite pareciam conhecer
muito bem esses jardins —comentou Evangeline.
—Sim —admitiu Lucas com voz monótona. — É verdade.
Com relutância o seguiu através da escura abertura. Era como
cruzar uma pequena tormenta de energia, ainda que de uma
intensidade muito menor que a que estava acontecendo no labirinto.
Sentiu os pelos da nuca ficarem eriçados. Seus sentidos reagiram
como se tivessem recebido algumas pequenas descargas elétricas.
Inspirou rapidamente. Lucas apertou sua mão com força.
—Mais um passo e estaremos dentro —prometeu.
E já estavam do outro lado da entrada. Lucas parou e soltou
seu pulso. Evangeline olhou ao redor, assombrada.
Uma piscina de água cristalina iluminava suavemente o
interior do lugar onde estavam. Levou um instante em dar-se conta
que era a energia da água que iluminava a sala arredondada. Mas,
diferente das correntes absolutamente inquietante dos jardins, era
uma energia suave, tranquilizadora. Da superfície da antiga piscina
se elevavam volutas de vapor úmido que enchiam o lugar de um
calor agradável.
—É assombroso —disse, encantada. — Precioso. E está muito
bom aqui. Por favor, não me diga que a sensação é enganosa e
oculta alguma forma de energia perigosa.
—A piscina desta sala e a da seguinte sala são seguras. A
perigosa é a terceira.
Olhou o corredor da sala ao lado e viu outra piscina brilhante.
—Não vejo uma terceira piscina, somente duas.
—A terceira está em uma sala anexa à segunda. Mas tio
Chester quis impedir seu acesso com uma porta fechada com chave.
Ainda que não esperasse nenhum intruso chegando tão longe,
tomou precauções adicionais com essa piscina.
—Que tem nessa piscina que é tão perigosa?
—Te explicarei um outro dia. —A guiou pelo corredor até a
sala da segunda piscina. — Mas não esta noite. A febre me deixou
exausto. Apenas consegui cruzar a entrada por um momento. Não
poderei estar muito tempo mais acordado.
—Compreendo —disse Evangeline, cada vez mais
preocupada.
O seguiu até a segunda sala e o observou em meio as correntes
flutuantes de luz paranormal. Tinha um semblante tenso devido ao
esforço que estava fazendo para manter-se de pé. Umas
pronunciadas rugas marcavam seus olhos enfebrecidos. Tocou seu
braço, ativou seus sentidos e se concentrou em sua aura. Ficou sem
ar ao ver o calor elevadíssimo nas ondas mais escuras.
—Essa febre parece ser de origem paranormal —comentou.
—Eu já sei. —tirou a jaqueta e atirou em um banco de pedra.
— Tenho muito calor! É como se estivesse ardendo por dentro.
—Talvez deveria se refrescar nas piscinas?
—Não. —Pelejou com os botões da camisa com os dedos
anormalmente torpes. — São muito quentes. Já não aguento mais o
calor.
Quando tinha a camisa meio desabotoada, abandonou a tarefa.
Se dirigiu com passos vacilantes até um pequeno banco.
—Espere. Aonde vai? —perguntou Evangeline, seguindo-o.
Lucas parou, agarrando-se com uma mão na borda oca. Tinha
os dedos brancos.
—Vou ao banheiro —comentou sem se alterar. — Os romanos
eram encanadores excelentes.
—Oh, está bem —disse, envergonhada, e se afastou
imediatamente.
Lucas saiu em seguida, recolheu a jaqueta e se sentou no chão
de pedra com as costas apoiadas na parede. A olhou com seus olhos
enfebrecidos.
—Conseguiu seguir estes homens e a mim até o interior do
labirinto —comentou. — Suponho que essa habilidade forma parte
de seus poderes.
—Na realidade, segui você. Se preciso muito encontrar alguma
coisa e me concentro, normalmente eu encontro.
—Dizendo de outro modo, saberia encontrar a saída do
labirinto?
—Sim, acredito que sim. Mas, porque me pergunta isso?
—Se não despertar desta febre, terás que sair sozinha.
—Pelo amor de Deus, nem diga isso.
—Se eu não acordar pela manhã —prosseguiu, resoluto ao não
se deixar vencer—, ou se não parecer eu mesmo quando despertar,
terá que voltar para casa sozinha. O Jardim Noturno será muito
menos perigoso pela manhã, mas tenha cuidado de qualquer jeito. E
quando sair do labirinto, busque Stone. Conte o que aconteceu. Ele
te manterá a salvo.
—Lucas, está tentando me dizer que não conseguirá recuperar-
se desta febre?
—Que me prendam se eu sei. —Secou o rosto com as mãos. —
Já estive ardendo antes, mas não desse jeito.
—Não estou segura —comentou Evangeline, aproximando-se
dele no espaço—, mas é possível que possa ajudá-lo.
—Não tem nada que possa fazer —contradisse em voz baixa.
— Com sorte, estarei dormindo. Prometa-me que aconteça o que
acontecer, não saia daqui até que seja dia.
—Te dou minha palavra. Mas por favor, deixa-me tentar
ajudar a baixar a febre.
A surpreendeu com um ligeiro sorriso.
—Minha querida senhorita Ames, não sabe que tenho estado
ardendo desde o momento que a conheci?
—Isso não é um bom sinal —soltou Evangeline. — Tem febre
tão alta que está tendo alucinações.
—Pois desta alucinação estou gostando muito. —Deixou de
sorrir. — Mas, por desgraça, parece que irá se acabar. Acredito que
estou sumindo em alguma espécie de noite. Tenho que descansar.
Preparou uma almofada improvisada com a jaqueta e
praticamente caiu de lado. Alçou os olhos para ela, entortando-os
um pouco como se fosse difícil distingui-la.
—Sinto muito, Evangeline —disse. — Queria te proteger, mas
te coloquei em perigo. É minha culpa e morrerei com esse peso na
consciência.
—Não, Lucas. —Se agachou a seu lado e pegou sua mão. —
Não vou deixar que fale assim.
—Confio plenamente em você, Evangeline —assegurou
enquanto apertava convulsivamente a mão com os dedos. — É a
mulher de mais recursos que conheci. Encontrara a saída do
labirinto. E Stone te protegerá de quem está tentando matá-la.
Fechou os olhos. Evangeline percebeu que estava sumindo em
um sono profundo. Tinha que descansar, mas sabia que não poderia
deixar que adentrasse demais na escuridão. O calor que desprendia
abandonava seu corpo em correntes violentas. Sua mão ardia ao
tato.
Só tinha uma vaga ideia intuitiva do que tinha que fazer. A
única coisa que tinha certeza era que tinha que ir muito cuidado. A
conexão física entre os dois poderia potencializar os efeitos que
tentasse para baixar sua febre. Se, se excedesse, mataria Lucas igual
ao fogo que ardia em sua aura.
Aguçou com precaução seus sentidos e começou a concentrar
seus poderes nas correntes excessivamente quentes. O impacto da
energia cintilante que escorria do corpo de Lucas foi tão intenso que
quase teve que soltar sua mão. Encheu os pulmões de ar por alguns
segundos. Temia que parasse o coração.
Combateu instintivamente, esfriando as longitudes de onda
chamejantes com sua energia refrescante e balsâmica. Fez isso com
cuidado, por medo de exceder-se. A dolorosa lembrança do que
tinha feito à última vez que tinha utilizado seus poderes desta
forma, porém eram muito vivas.
Mas Lucas não era Douglas Mason. Seu campo de energia era
muito mais potente. Pensou que talvez seus poderes o faziam
psiquicamente forte, ou talvez fosse o domínio de si mesmo que
tinha desenvolvido para controlar sua força paranormal. Fosse qual
fosse à explicação, o medo que tinha de congelar sem querer a aura
de Lucas foi desaparecendo. Viu que seria necessário muitíssimo
poder para extinguir as fortes correntes de energia que irradiava,
podia até ser mais dele do que ela podia utilizar.
Saber que não iria fazer-lhe nenhum mal foi um alívio
estimulante. Mais audaz, aumentou a intensidade e se concentrou
mais. A febre começou a baixar. Lucas estava mais frio ao tato. A
mão que ela segurava deixou de arder. Já não suava copiosamente.
Os minutos pareceram eternos.
Ao final de um momento, pareceu que a energia da aura de
Lucas voltava a ser normal e estável. Lucas dormia, mas já não
estava à beira do abismo do que poderia ter sido um estado
permanente de inconsciência e inclusive a morte. Estava esgotado,
mas desfrutava agora do sono reparador que tanto precisava.
Evangeline se sentou no chão de pedra, segurando sua mão
para controlar sua aura e assegurar-se de que a febre não voltasse a
subir. Passado um tempo, convencida de que não corria mais
perigo, se colocou de pé.
Aproximou-se de joelhos a segunda piscina e olhou suas águas
luminosas. Podia ver claramente o piso de pedra, os degraus e os
bancos submersos na água. A energia sutil, revigorante, estimulou
seus sentidos.
Tirou suas sapatilhas úmidas, abriu um pouco a camisa e a
bata e se agachou na beira da piscina. Com cuidado, afundou os
dedos na água. Uma deliciosa sensação de bem estar formigou por
todo seu corpo.
Sentou-se na borda de pedra, balançou os pés na água
agradavelmente quente e pensou no que tinha feito quando baixou a
febre de Lucas.
Desde o dia em que tinha encontrado Douglas Mason nas
escadas, tinha vivido com o terrível conhecimento de que podia
matar alguém só com o toque das mãos.
Mas graças a Lucas, agora sabia que também poderia salvar.
17

Acordou com a segurança e a certeza de que tinha ocorrido um


milagre. Ainda estava vivo.
Não só vivo, mas sentindo-se forte e cheio de vida outra vez. A
febre já não o queimava. Por algum incrível capricho do destino,
tinha sobrevivido a devastadora febre.
Sua memória regressou de uma só vez, e com ela, a última
imagem enfebrecida de Evangeline ajoelhada a seu lado, segurando
sua mão. Lembrou o suave calor de seus olhos.
Foi Evangeline quem tinha salvado sua vida, não a sorte. Sabia
disso com tanta certeza como sabia que tinha voltado todos os seus
poderes. Não tinha ideia de como Evangeline tinha acalmado a
energia psíquica que ardia em seu interior, mas não tinha a menor
dúvida que ela era à razão ainda que tivesse todos seus sentidos, a
razão de que ainda estava vivo.
Abriu os olhos e voltou à cabeça para localizá-la. Estava
sentada na borda da piscina, com as mãos apoiadas no chão à suas
costas, deslizando lentamente os pés na água. Tinha a bata e a saia
puxados acima dos joelhos, o cabelo solto cobria suas costas. Parecia
estar absorta contemplando a piscina reluzente: uma ninfa em sua
lagoa no bosque. Quase tinha medo de falar e quebrar a magia do
momento pelo sobressalto que ela certamente teria.
E de repente não só estava vivo, mas estava total,
dolorosamente e vorazmente excitado.
Levantou-se depressa, deixando que o ruído de sua roupa
anunciasse que estava acordado.
Evangeline voltou à cabeça depressa, com um sorriso de alívio
e, a entender, também de outra emoção. Aguçou um pouco seus
poderes e poderia jurar que via calor de desejo sexual em seus olhos.
Uma fantasia, sem dúvida, produto do seu próprio desejo.
—Como você está? —perguntou Evangeline.
—Muito melhor do que esperava, em vista do que se passou
no labirinto —respondeu e depois de refletir um pouco, acrescentou:
— estou me sentindo muito bem.
—Fico feliz.
Lucas aproximou-se enquanto pensava em algo inteligente a
dizer. Se deu conta que estava com a camisa desabotoada.
Evangeline olhava seu tórax exposto com muito interesse. Também
se fixou que ela não tinha feito o menor esforço para tirar os pés da
água ou tapar seus joelhos com a roupa.
Colocou as mãos nos bolsos da calça e tirou seu relógio. Os
ponteiros estavam parados a meia noite, mais ou menos quando
tinha entrado no labirinto. Então, fechou a tampa.
—Meu relógio parou —anunciou. — A energia dos jardins é
tão forte que podem afetar os mecanismos delicados dos relógios.
Tem ideia de quanto tempo eu dormir?
—Não, sinto muito. Um bom par de horas acredito. — salpicou
um pouco os pés na água e se reclinou, esboçando um sorriso
misterioso. — observei que as correntes das águas tendem a nos
deixar bem relaxados. O tempo aqui dentro não parece importar
muito.
—Não —confirmou Lucas, que olhou para o corredor de pedra
que conduzia à entrada das termas. A entrada de energia seguia
muito escura como uma boca de lobo. Não havia rastro de luz do
outro lado. — Não deve faltar muito para o amanhecer.
—Não. —Deixou de olhar o tórax dele e olhou diretamente em
seu rosto como se fosse algo raro e fascinante.
Como seus dedos pareciam não obedecê-lo, deixou de tentar
abotoar a camisa.
—Evangeline, precisamos conversar — disse.
—Agora? —perguntou Evangeline com expressão melancólica.
—Logo irá amanhecer.
—Sim, já tinha mencionado isso — disse enquanto brincava
um pouco mais com os pés na água. E então fez um gesto de
impaciência com a mão e levantou o cabelo da nuca. — Aqui faz
muito calor, não?
A curva delicada e vulnerável de seu pescoço fascinou Lucas.
—As piscinas soltam muito calor — disse. Sua voz soou um
pouco pastosa até para ele mesmo.
—É a energia... —acrescentou Evangeline, sorrindo como se
achasse graça de algo.
—Sim. —Deixou a jaqueta no chão de pedra e se aproximou
lentamente para onde estava sentada na borda. — Também a
energia.
—É muito estimulante. E espumante. Como o champanhe,
ainda que admita que não tenha bebido muito champanhe na vida.
É muito caro. Em geral, as damas de companhia se limitam ao xerez,
ainda que tenha conhecido uma ou duas que passaram à genebra. A
maioria das damas de companhias ficam muito aborrecidas, sabe?
—Mas não você.
—Não, eu não. Rara vez me aborreço. Gosto de meu trabalho
na agência, e quando estou sozinha, tenho minha escrita. Nunca
deixa de me fascinar. Mas admito que às vezes me sinta muito só.
Lucas se debatia entre a frustração e a diversão.
—Acredito que agora mesmo te sente um pouco embriagada
também, não?
—É verdade — respondeu com um sorriso. — Mas te asseguro
que tenho as ideias muito claras.
—Ah, sim?
—Sim. De fato, penso que nunca tinha percebido as coisas com
tanta clareza em toda minha vida. Sinto-me livre, Lucas, e graças a
você.
—Eu te libertei?
—Sim, senhor.
—E como fiz isso?
—É complicado — respondeu Evangeline, balançando a
cabeça. — A verdade é que não quero falar disso agora.
—Quanto tempo está com os pés dentro da água desta piscina?
—Não tenho a mínima ideia. —brincou de novo com eles. —
Agora é minha vez de fazer uma pergunta. Quantas mulheres já
trouxe aqui, senhor Sebastian?
Lucas sorriu. Estava flertando com ele e disso ele gostava.
Pensou que era um passatempo perigoso, mas que demônios, a sorte
estava lançada. Evangeline logo seria sua. Ela ainda não sabia tão
bem quanto ele. Por isso estava utilizando suas artimanhas
femininas, por isso se sentia livre. O mais estimulante de tudo era
que ele também sentia-se como se tivesse sido liberto de sua cela
auto imposta.
Pensou que eram feitos um para o outro. Podia ter sido a sorte,
o destino, o karma o que os tinha conduzido até aquele momento.
Não acreditava que estas forças sobrenaturais, e o que tinha
acontecido aquela noite nos jardins seria o método escolhido para
conquista-la. Mas feito, feito está. O que aconteceu naquela noite
tinha selado seu destino.
—Nunca convidei nenhuma outra mulher para vir ao Jardim
Noturno e muito menos as termas... —respondeu. Aproximou-se
um pouco mais e ficou de joelhos junto à piscina. — Vou te contar
um segredo.
—Formidável — disse Evangeline com um sorriso. — Adoro
segredos.
—O motivo pelo qual jamais tinha convidado ninguém a vir
comigo a esta piscina é que jamais tinha conhecido uma mulher que
pudesse desfrutar desta experiência comigo, uma mulher com
poderes.
—O que quer dizer?
—Segundo consta em documentos antigos, é evidente que
estas águas tem efeitos muito fortes sobre as pessoas como nós,
Evangeline.
—As que tem poderes paranormais?
—Quanto mais poderes, mais forte o efeito.
—Suponho que faz sentido. —Se inclinou para frente e
percorreu a água com os dedos. — Se as propriedades desse
manancial são paranormais, é lógico que afetem mais as pessoas que
possuem fortes poderes psíquicos, simplesmente porque poderiam
perceber a energia com mais intensidade.
—Esta sempre foi à teoria de meu tio. —Lucas sorriu,
saboreando o momento.
Evangeline deu outro sorriso sedutor e o olhou nos olhos.
—Se seu tio tinha razão, duas pessoas com fortes poderes
psíquicos que tivessem uma relação romântica nesta sala,
seguramente a viveriam de uma forma muito intensa.
Para Lucas aquele era o melhor mundo possível. Ainda que
fosse que o que estava se passando fosse uma consequência da febre
paranormal que teve. Ou melhor, poderia estar alucinando. Fosse
como fosse, sua futura esposa estava tentando seduzi-lo. Se era um
sonho, só esperava não acordar nunca.
—É a suposição... —disse. — Te conto outro segredo?
—Sim, por favor.
—Meu tio comprovou esta suposição com sua governanta, a
senhora Buckley. Ela também tinha certos poderes, sabe?
—Não...? —Os olhos de Evangeline se abriram. Depois, soltou
uma gostosa gargalhada. — Não me diga que seu tio e a senhora
Buckley eram amantes.
—Foram durante muitos anos. Claro, era um segredo de
família. Mas suspeito que passaram várias noites neste lugar.
—Vá, vá, vá. —Evangeline se inclinou para frente e passou de
novo a mão na água. — Mas, e você? Não acredito que nunca
conheceu uma mulher a que quisesse trazer aqui.
—Você é a primeira —assegurou Lucas enquanto tirava uma
mecha de cabelo sedoso do ombro.
—Excelente. —Evangeline sorriu com certo ar de satisfação e
girou o olhar— Me alegra saber disso.
Salpicou um pouco de água para fora da piscina e as gotículas
cintilaram como diamantes líquidos. Molharam as botas e a barra
das calças de Lucas.
—Está se banhando em águas perigosas, senhorita Ames —
advertiu em voz baixa. — Literalmente.
—Acreditava que estávamos conversando, Lucas.
—Obrigada por me lembrar. —Sorriu.
—Acredito que tenha vivido a vida em todos os sentidos.
—Verdade?
—Sim, sem dúvida.
Enrolou o robe e a camisola, e se colocou de pé em um dos
bancos submersos. A água chegava até a curva elegante de suas
panturrilhas. Esticou uma mão e o contemplou com ar de
expectativa.
Lucas se levantou depressa e pegou sua mão. E quando notou
o contato com os dedos de Evangeline foi invadido por uma
sensação eufórica de cumplicidade. Era como se todas as forças do
universo tivessem conjurado para aquela noite, para que existisse
aquele momento.
Depois de sair delicadamente da piscina, Evangeline soltou a
mão e sacudiu brevemente sua roupa. As dobras das roupas de
dormir caíram ao chão molhado. Lucas se perguntou se tinha
consciência que sua bata estava aberta.
—Acredito que sei o verdadeiro motivo de que não tenha
trazido nenhuma namorada neste lugar — comentou Evangeline.
—Ah, sim? E que motivo é esse? —perguntou enquanto
percorria suavemente sua mandíbula com um dedo.
—Em uma palavra: controle. —Sorridente, se afastou dele e
girou sobre si mesmo como uma bailarina de balé. Ao parar o olhou
de novo. — Não gosta da ideia de perder o controle, e é muito nobre
para se aproveitar de uma senhorita que poderia se embriagar na
atmosfera deste lugar.
Aproximou-se dela até que a parte inferior de seu robe e sua
camisola molhada roçassem suas botas. Segurou seu queixo com a
mão.
—Tem razão em partes... —assegurou. — O autocontrole é
importante para mim porque dele depende minha habilidade para
dominar e concentrar meus poderes. Mas me acha muito mais
cavalheiro do que sou.
—Bah. Mantenho meu veredito. Nunca te aproveitarias de
uma senhorita
—Acredito. Agora verás — disse, e sorriu lentamente.
Cobriu sua boca com os lábios de modo deliberadamente
provocativo. Disse a si mesmo que queria lhe dar uma pequena
lição; algo para recordar, quando tivesse passado algumas horas,
quando os efeitos da piscina tivessem se desvanecidos. Acreditava
que dominava a situação. Que tinha tudo sobcontrole.
Mas não tinha contato com os efeitos eletrizantes que a reação
de Evangeline poderia ter nele.
—Lucas — sussurrou em seus lábios. — Meu Deus, Lucas.
Rodeou seu pescoço com os braços e se apoiou nele,
devolvendo o beijo com uma energia e uma paixão feminina que o
incendiou em todos os sentidos. Tinha estado excitado desde o
início desta cena temerária, mas seu domínio sobre si mesmo tinha
sido total. Agora era evidente que tinha cometido um erro de
cálculo. Notava uma grande tensão entre as pernas e começava a
suar de novo. Mas esta febre era muito diferente.
A aproximou ainda mais e colocou mais paixão ao beijo.
Quando os dedos de Evangeline correram por seu cabelo, sentiu
uma energia eufórica. Não era só por estar tão excitado fisicamente,
mas também se sentia mais forte, mais poderoso, mais consciente
em todos os níveis. Era como se a paixão feminina de Evangeline
estivesse de alguma forma em harmonia com as correntes de sua
própria força vital e realçava seus sentidos.
Evangeline estremeceu em seus braços e se agarrou a ele com
mais ímpeto. Sua boca se abriu embaixo de seus lábios e, pela
primeira vez na vida, Lucas compreendeu o incrível poder
metafísico da paixão. Até que a tivesse conhecido, tinha estado
seguro de que sabia tudo que precisava saber sobre desejo. Ele
controlava sua luxúria, e não se deixava ser controlado por ela.
Mas Evangeline tinha mudado isso. Com ela poderia ser livre.
Levantou a cabeça, abriu os olhos e viu que ela tinha os seus
fechados. Como tinha a cabeça para trás, ficava visível a curva do
pescoço. Assim abandonou o sedutor néctar que tinha estado
bebendo dos lábios dela, lhe rodeou a nuca com as mãos e beijou a
delicada área atrás de sua orelha. Ela cravou nele suas unhas
enquanto emitia um ruído suave, ansioso.
—Atravessaria o inferno, para que fosse minha esta noite —
confessou com os lábios no pescoço de Evangeline.
—Sim, eu sei, mas não é necessário. —Abriu os olhos. — Estou
aqui e isto não é o inferno. É o céu. Te juro que não posso pensar em
nada mais que nesta sensação. É tão emocionante. Sempre me tinha
perguntado como podia uma pessoa se perder totalmente na paixão.
Agora eu sei.
O brilho provocativo em seus olhos era excitante. Soltou uma
risada que soou rouca, mas com um grunhido dolorido de
necessidade.
—Por casualidade acabo de ter uma revelação parecida —disse
Lucas.
A fragrância de Evangeline era embriagadora, excitante,
irresistível. Deslizou as palmas das mãos para baixo até que o peso
suave de seus seios descansou em suas mãos. Usou a gema dos
polegares para acariciar os mamilos duros através do tecido do robe
e da camisola.
Evangeline colocou as palmas aberta em seu peito e o beijou
nos ombros enquanto ele baixava as mãos até sua cintura e as metia
embaixo do robe. Então, com um leve suspiro, Evangeline enredou
os dedos nos pelos que cobriam seu tórax.
Era muito. Não podia suportar mais aquele doce tormento.
A pegou nos braços e se dirigiu ao banco de pedra mais
próximo e sentou-se com ela rodeando seus ombros, de modo que o
robe escorregou. Abaixou a cabeça para beija-la e deslizou a mão
embaixo da camisola. Percorreu o interior da perna, detendo-se para
saborear a incrível suavidade de sua pele.
Evangeline agarrou sua boca por um momento e depois, com
um gemido entrecortado, soltou e afundou seu rosto em seu ombro.
Lucas notava a tensão sensual, tanto física quanto metafísica que a
tinha subjugado. Tinha os sentidos postos na necessidade de lhe dar
prazer. Queria ver seu rosto quando alcançasse o clímax.
Subiu mais as mãos. Quando chegou ao pequeno manancial
secreto entre suas pernas, a encontrou molhada e preparada. Só o
perfume exótico do corpo excitado de Evangeline bastava para ele
alcançar o clímax. Apenas podia conservar o último vestígio de
controle.
Acariciou delicadamente seu sexo. Evangeline fechou os olhos
enquanto se agarrava com força à sua camisa com os dedos.
—Lucas — ofegou. — Não posso suportar mais. Esta
acontecendo algo comigo.
—Deixa que aconteça, minha vida. Deixe ir. Goze para mim.
Deslizou um dedo para dentro. Estava tensa e úmida. Notou
como os músculos de sua entrada se oprimiam para tentar resistir à
sua intrusão. Prosseguiu cuidadosamente seu acesso ao interior
enquanto excitava seu clitóris com o nó dos dedos.
Soube quando ia alcançar o clímax antes que ela. Estava tensa
e rígida, comprimindo uma e outra vez seu dedo, e, em seguida,
estremeceu em meio a pequenas ondas convulsivas.
Seu grito afogado, entre surpreso, assombrado e maravilhado,
ressoou na sala de pedras.
—Lucas.
Saber que tinha seu nome nos lábios ao chegar ao orgasmo foi
quase tão gratificante como fazê-la completamente sua. Quase.
Abriu a parte dianteira das calças.
Quando a penetrou cuidadosamente, Evangeline estava
começando a relaxar depois de seu clímax.
—Lucas — ofegou enquanto se punha tensa devido à surpresa.
Piscou várias vezes, confusa e alarmada. — Algo não está bem.
—Ainda me quer carinho?
—Sim, claro, mas não estou segura...
—Intensifica outra vez seus sentidos — indicou.
O ambiente se carregou de energia. Os olhos de Evangeline
voltaram a se encher de paixão. A aura de Lucas reagiu aumentando
também sua intensidade.
Lucas segurou a cabeça de Evangeline com uma mão, retomou
sua boca e com um empurrão rápido superou a pequena barreira.
Evangeline se liberou de seu beijo e soltou um pequeno grito.
Arranhou seus ombros e Lucas soube que deixaria marcas, o que o
excitou ainda mais. Mas de repente notou que tinha ainda mais
energia desmoronando na sala e que vinha de Evangeline. Seus
olhos já não brilhavam levemente de desejo feminino. Ardiam.
Notou que as correntes de suas auras tinham se chocado de
um golpe e estavam em harmonia. A esquisita sensação, quase
insuportavelmente intima, o deixou sem ar.
Obrigou-se a conter-se um momento mais, muito consciente da
respiração agitada de Evangeline e de seu pulso rápido e excitado.
Beijou sua mandíbula, suas bochechas e seus lábios.
Quando percebeu que tinha se adaptado a sensação de tê-lo
dentro dela, começou a mover-se. Tinha planejado empurrar
devagar e com cuidado, mas o contato úmido, agradável e quente
do corpo de Evangeline foi demais para ele. Perdeu o pouco
domínio que tinha de si mesmo. Penetrou ainda mais fundo, em
meio a um clímax demolidor.
Estava perdido na tormenta, mas não importava. Evangeline
estava com ele.
18

Sharpy Hobson tinha falhado. Isto estava muito claro.


Tinham se passado dois dias desde que ele tinha ido de trem
para Little Dixby. Hobson não tinha voltado para cobrar a parte
restante de seu dinheiro, e a imprensa não tinha informado
nenhuma morte violenta ocorrida no campo. Nem tampouco tinha
alguma noticia de terem prendido algum delinquente de Londres
em algum povoado.
Só tinha uma explicação. Hobson não tinha conseguido
realizar o que tinha sido contratado para fazer. Seguramente tinha
voltado para Londres e estava naquele momento afogando-se em
genebra em sua taberna favorita porque não lhe apetecia ter que dar
a má notícia a seu velho comparsa.
Garrett Willoughby andava impaciente de cima para baixo em
seu pequeno vestuário. Seguia levando a maquiagem e a roupa de
sua obra. O local só tinha estado meio cheio esta noite, o que não lhe
parecia nada estranho. O ridículo melodrama com sua má
encenação de fogo simulado e restos de trem acidentado tinham
chegado ao fim sem nem ao menos ter durado um mês inteiro. O
diretor do teatro decidira que não mais deixaria apresentar a obra
ali.
Parou em frente ao espelho e se olhou nele. Tinha sido ator por
tempo suficiente para saber quando era o momento de buscar outro
papel. Mas as coisas não deveriam ser sido assim. O plano era quase
perfeito. Se tivesse saído como tinham planejado, agora Douglas
estaria comprometido com a herdeira dos Rutherford. Em alguns
meses, ele estaria se casando com a jovem dama.
A herdeira estava predestinada a morrer em um trágico
acidente logo depois do casamento e seu aflito esposo teria se
convertido em um homem rico. Garrett e Douglas sempre
compartilharam tudo. Tinham a intenção de repartir também o
dinheiro da jovem. Tudo tinha parecido muito fácil e tranquilo. Mas
o plano tinha saído errado. Era Douglas quem estava morto e a
culpa era de Evangeline Ames. Garrett não sabia como uma simples
mulher tinha vencido seu irmão, que tinha sido criado nas ruas, mas
de algum jeito o tinha feito. Talvez tenha conseguido colocar
Douglas no alto da escadaria. Fosse como fosse, ela tinha culpa por
ter desmascarado Douglas, por tê-lo morto, de pelo plano ter dado
errado.
Ela tinha culpa de que agora ele teria que procurar outro papel
mal pago em outro melodrama, em vez de levar a vida de um
cavalheiro.
A raiva o carcomia por dentro como um veneno terrível. A
única cura era a vingança.
Tinha contratado Sharpy Hobson porque os três, Douglas,
Sharpy e ele mesmo, tinham se conhecido quase a vida toda.
Tinham crescido juntos nas ruas. Mas enquanto Douglas e ele
tinham podido tirar proveito de seu aspecto físico e sua inteligência
para subir na vida e abandonar os ambientes criminosos, Sharpy era
demasiado burro para segui-los. Ainda que Sharpy não se
importasse. Tinha se conformado em dormir em sua pequena cama
naquele inferno, deleitando-se com sua fama de assassino
contratado. Nunca falhava.
Perguntava-se como Ame poderia ter sobrevivido. Sharpy não
era o bandido mais inteligente de Londres, nem de longe, mas se
dava muito bem no que fazia e não tinha piedade. Desfrutava de seu
trabalho, especialmente quando a vítima era uma mulher. Custava
acreditar que não tinha podido com Evangeline Ames.
Mas se lembrou de que se tratava da mesma cadela que tinha
matado Douglas jogando-o da escada. A fúria o envolveu.
Pegou um pote de maquiagem de teatro e lançou contra o
espelho. O cristal de rompeu em pedaços, que caíram sobre o
tocador.
Quando pode voltar a respirar, abriu a gaveta do tocador e
tirou a pistola.
19

Evangeline demorou alguns minutos para recuperar o fôlego e


serenar-se. Quando abriu os olhos, viu que Lucas a estava
observando com uma expressão inquietante, muito íntima e
carinhosa, mas que continha também possessividade masculina. Era
como se tivesse averiguado seu maior segredo e quisesse que ela
soubesse disso.
Ainda meio aturdida, levantou a cabeça, que tinha apoiada nos
ombros de Lucas. O que uma mulher poderia dizer em um
momento assim?
—Lucas — sussurrou enquanto percorria a forte mandíbula
com as gemas dos dedos, maravilhada pelo que tinha acabado de
acontecer.
Lucas pegou seus dedos e os beijou.
—Está tudo bem? —perguntou, olhando em seus olhos.
—Acredito que sim. —Sorriu. — Isso foi... Maravilhoso.
—Sim —concordou Lucas. — Foi extraordinário. —Sorriu
também. — Mas isso é porque você é uma mulher extraordinária,
Evangeline Ames.
Sobressaltada, deu-se conta que ainda estava entre os braços
dele, com as pernas de uma forma imoral que nunca imaginou
poder ser capaz. O robe tinha escorregado de seus ombros e levava
a camisola enrolada por cima das coxas.
Saiu do seu colo como pode e, envergonhada se colocou de pé.
Não era a única que estava meio nua. Lucas estava com a camisa
desabotoada e a parte dianteira das calças, ainda estava aberta.
Precisou fazer uma enorme força de vontade para não ficar olhando
aquele peito maravilhoso de Lucas, mas não ousou baixar o olhar.
—Não sei o que dizer — soltou.
—Não precisa dizer nada. —Lucas se agachou e tirou as botas.
— É uma mulher apaixonada. A paixão é uma emoção normal. Não
precisa de palavras. Salvo, claro, nas novelas românticas.
—Não sou uma jovem ingênua — protestou, fulminando-o
com o olhar. — Pois se não se recorda, te direi que tenho lido muitas
novelas românticas e sou autora desse tipo de história. Sou uma
expert na matéria.
—Claro. —Levantou-se e tirou a camisa. — Peço desculpas.
—Não posso dizer que ignorasse o desejo antes de nosso... —
Evangeline, muito reta, agitou as mãos enquanto buscava as
palavras adequadas. — Antes de nosso encontro. Já me tinham
beijado várias vezes — explicou com o cenho franzido enquanto
tentava recordar o número exato. — Ao menos três vezes, acredito.
—Ah, sim, isto explicaria sua perícia.
—Ainda que tenha que admitir que até esta noite tivesse que
usar a minha imaginação quando se tratava de descrever certas
sensações —disse com o cenho franzido de novo, sem perceber o
tom de brincadeira na voz dele — Na verdade a experiência desta
noite foi muito instrutiva. Esclarecedora, de fato.
—Fico feliz por tê-la ajudado, minha querida autora. —
Dirigiu-lhe um sorriso prazeroso, a classe de sorriso que um leão
poderia luzir depois de comer uma gazela roliça. — No futuro,
tenha certeza que estarei encantado em estar a seu dispor para que
siga com suas experiências. Espero que me considere uma fonte de
inspiração.
—Você está brincando comigo — se queixou Evangeline com
uma careta.
—Isso nunca, senhorita Ames. —Tirou suas calças. — Bom,
pode ser que um pouquinho.
Finalmente, Evangeline se deu conta que ele estava tirando as
roupas na sua frente. Estava escandalizada, quase, mas não de todo,
sem dúvida.
—O que pensa que está fazendo? —exclamou.
—Preparando-me para tomar banho na piscina que tem aí
atrás. Vai me acompanhar?
Estava horrorizada. Ao menos deveria estar.
—Espera que tome banho com você?
—Diria que depois da relação íntima que acabamos de
desfrutar, não pode dizer que tomarmos banho juntos seja uma
sugestão escandalosa. De fato, soa bastante agradável. Já estamos
nus.
Vale dizer que ele estava nu. Evangeline achava instrutivo
observá-lo. Os únicos outros nus que tinha visto eram estátuas de
mármore. A realidade era muito mais interessante. Os músculos
potentes e bem delineados dos ombros de Lucas a deixavam com
vontade de tocá-lo.
—Somente um dos dois está sem roupas — assinalou.
—Um descuido de minha parte. —aproximou-se dela. — Da
próxima vez precisaremos encontrar uma cama. Seria muito mais
cômodo que um banco de pedra, não acha?
«A próxima vez.» Essas palavras retumbaram em sua cabeça,
ressoando sem parar. Estava falando de uma próxima vez. Era
emocionante e também desconcertante. Ouviu ao fundo a
advertência de Clarissa e Beatrice: «Não queremos te ver sofrer,
Evie.»
Lucas parou diante dela e segurou as lapelas do robe.
—Tenho estado pensando no que disse antes sobre as
propriedades das águas destas piscinas. —comentou Evangeline
depois de clarear a garganta.
—Sim? —Passou o robe por seus ombros e deixou que caísse
ao chão. — O que foi que eu disse? Parece que eu me esqueci.
—Algo sobre como as correntes distorcem os mecanismos dos
relógios de bolso e o sentido de tempo em nós.
—E o que tem? —Roçou sua boca com os lábios.
Evangeline voltou a sentir a mesma paixão fascinante que
antes. Fez um esforço para conservar a razão. Mas isso foi inútil.
Lucas estava beijando seu pescoço. Foi vagamente consciente de que
ele estava subindo sua camisola por cima da cintura.
—Mencionou que a piscina desta sala é conhecida por
provocar uma excitação peculiar.
—Tentei avisá-la — disse enquanto passava a camisola por sua
cabeça e a lançava ao lado.
—Sim, é verdade. —Suspirou. — Pode ser que as correntes
desta sala me excitem um pouco.
—Evangeline...
—Não tem por que se desculpar. —esticou a mão para indicar
que se calasse. — O feito, feito está, e tenho que admitir que o único
que lamento é ter me aproveitado de você.
—Vamos deixar isso claro, entre nós. Não se aproveitou de
mim.
A carregou nos braços.
—Está certo disso? —perguntou Evangeline, agarrando-se aos
ombros de Lucas. — Me comportei de uma forma que só posso
descrever como extremamente atrevida.
—Te asseguro que estarei encantado de que se porte assim em
qualquer momento.
—Está brincando comigo outra vez.
—Pode ser. —Se dirigiu até a beira da piscina. — Mas só
porque esta fazendo um grande drama por nada.
—Nada?
—Nada —repetiu Lucas.
Um ligeiro pavor atingiu seus sentidos. Talvez o apaixonado
encontro tivesse significado muito pouco para ele. Afinal era um
homem do mundo.
Lucas começou a baixar os degraus para submergir na água
quente. Ela respondeu em seguida. Agora também tinha experiência
com a paixão e o desejo. Graças a Lucas tinha conhecido a máxima
relação com um homem. Sua história seria muito melhor graças a
ele.
—Pode ser que tenha razão — disse. — Estou levando as
coisas muito a sério, verdade?
—Acredito que sim — respondeu Lucas. — Mas isso é, sem
dúvida, porque é uma escritora e, portanto, usa expressões bem
dramáticas.
—Sem dúvida — aceitou Evangeline.
Lucas mergulhou mais na piscina quente com ela nos braços.
Então, Evangeline pensou que não voltaria a passar outra noite
como aquela. Se não a saboreasse ao máximo, lamentaria pelo resto
de sua vida.
Abandonou-se ao momento e a carícia sedosa da água com um
leve suspiro.
Lucas sentou-se em um dos bancos submersos e Evangeline se
mexeu em seus braços. As águas quentes e embriagadoras se
enrolavam docemente ao seu redor.
—Como conseguiu baixar minha febre? —perguntou depois
de um momento.
—Não consigo explicar — admitiu. — Não de todo. Percebi o
calor antinatural em sua aura e... esfriei as correntes até que
pareceram estar normais.
—Já tinha feito isso antes?
—Não exatamente. —Era a última coisa que queria falar.
Somente Beatriz e Clarissa conheciam seu obscuro segredo. O que
Lucas pensaria dela se soubesse o que tinha feito, do que era capaz
de fazer? — Bom, sim, por assim dizer. Mas só uma vez e os efeitos
foram contrários. Mesmo naquela ocasião não sabia dizer como
podia fazer aquilo. Não até que chegou o momento.
—De quem baixou a febre nesta ocasião?
A suspeita a invadiu. Lucas a estava interrogando.
—Por que quer saber? —perguntou.
—Pode ser que esteja com ciúmes — disse Lucas com um
sorriso.
—Não tem motivos para estar com ciúmes, te asseguro —
disse com um arrepio.
—Quem era Evangeline?
—Um cavalheiro que uma vez tinha tentado me amar. Pediu
minha mão em matrimônio. No começo, achei que era tudo o que
sempre quis encontrar em um marido. Inteligente, atencioso,
considerado. Trazia-me flores e me escrevia poemas. Admirava
minha escrita.
—Verdade?
—Me disse que tinha um dom para descrever as sensações
metafísicas das paixões mais escuras assim como a transcendência
do amor. Assegurou que somente pessoas excepcionais poderiam
experimentar as coisas com tanta paixão.
—Pessoas excepcionais como você?
—Humm... Sim.
—Mas nunca alcançou estas coisas com ele — comentou Lucas.
— Depois de hoje, sei disso com certeza.
—Te disse que tinham me beijado antes. Desde sempre, Robert
era muito esperto.
Pareceu que estava falando com muita liberdade. Si tivesse
algum juízo, pararia. Se perguntou vagamente se as águas da
piscina não a estariam afetando como se tivesse bebido muito
champanhe, a fazendo faladora.
—Robert realmente dizia coisas como «transcendência do
amor»? —perguntou Lucas.
—Sim. —Moveu distraidamente uma mão para trás e para
frente na água. — Era o mais encantador nele. Sempre sabia o que
dizer. Riamos juntos e tínhamos muito em comum. Íamos a museus
e à galerias de arte.
—Era seu namorado ideal? —os olhos de Lucas brilharam, mas
não de paixão.
—Acabou que não era tão ideal assim. —tirou uma mão da
água e aproximou o dedo polegar do indicador, quase se tocando
para ilustrar o que disse em seguida: — mas estava perto de ser,
muito perto. Naquele tempo eu ainda não podia perceber a energia
da aura de uma pessoa com tanta claridade como agora, sabe? Só
era capaz de ver uma gama muito limitada de luz. Assim que me
escapou totalmente a escuridão de Robert.
—O que aconteceu? —perguntou Lucas.
—Olhando agora, poderia dizer que tiveram várias pistas que
revelavam sua verdadeira personalidade.
—Que tipo de pistas?
—Está começando a parecer muito com um inspetor de polícia,
Lucas — se queixou Evangeline, cada vez mais receosa.
—O que foi que delatou a verdadeira personalidade de
Robert? —insistiu Lucas com um esforço evidente para parecer mais
paciente, ainda que não convencesse.
—A primeira foi que desapareceu logo depois que soube do
suicídio de meu pai e de nossas perdas econômicas. Eu disse a mim
mesma que ele tinha todo o direito de terminar com nosso noivado.
Depois de tudo, acreditava que eu iria receber uma herança
considerável.
—Mas seus atos arruinaram a imagem romântica que tinha
dele, é isso? Deixou claro que estava mais interessado no dinheiro
que em você.
—Sim, mas não se pode dizer que tenha sido o único
pretendente que tenha feito isso, não?
—Não —admitiu Lucas. — E qual foi a segunda pista?
A energia cálida e efervescente da água a distraia e dificultava
concentrar-se.
—Perdão? —disse.
—Disse que tinha tido uma segunda pista da verdadeira
personalidade de Robert.
—Oh, é verdade. Descobri o segundo indício de sua falsidade
quando tentou me assassinar.
—Douglas Mason, o caça fortunas que desmascaraste no caso
dos Rutherford? —Lucas a olhou sem piscar.
—Sim — respondeu Evangeline, que estava muito quieta, um
pouco temerosa sobre o que ocorreria se continuasse e, mesmo
assim, querendo que Lucas soubesse toda a verdade sobre ela. —
Quando me cortejava, disse se chamar Robert.
—Bastardo — soltou Lucas em voz muito baixa.
—Não conseguia acreditar quando me dei conta de que o
homem ao qual minha cliente queria que investigasse fosse ele.
Pouco depois de assumir meu papel como dama de companhia de
lady Rutherford assisti a uma recepção em uma galeria de fotos com
sua neta. Fiquei paralisada quando Robert entrou na sala. Não só
usava outro nome, mas tinha concedido a si mesmo um título.
—Te reconheceu?
—Não. —Sorriu ironicamente. — Usava óculos e um vestido
muito simples. Um grande chapéu, com um véu de viúva, me cobria
os cabelos. Eu também usava um nome falso. Esse é meu disfarce
habitual. Mason não se fixou em mim. Afinal, eu era só a dama de
companhia de uma senhora mais velha.
—É incrível o quantos as pessoas são tão pouco observadoras
das outras.
—As empregadas da Flint e Marsh contam com isso. Como
sabe, segui com minhas investigações e descobri a prova que lady
Rutherford poderia usar para desmascarar Mason.
—Que mais adiante soube que você tinha tido culpa nisso e
tratou de querer matá-la.
—Sim.
—Sei que é difícil, mas não se lembra de nada que pudesse
identificar seu irmão? —perguntou Lucas.
—Não. Já pensei muito nisso desde que Stone trouxe a
informação de Londres. Mas nunca soube que Robert… quero dizer,
Douglas tivesse um irmão. Nunca o mencionou enquanto me
cortejava.
—Diga-me o que aconteceu no dia em que tentou te matar.
—Quando se apresentou diante de mim no alto das escadas,
estava furioso. Era como se tivesse ficado louco. Só falava das coisas
terríveis que me faria antes de cortar meu pescoço.
—Bastardo — disse Lucas de novo em voz baixa. A abraçou
com força. — Fico feliz de que esteja morto, claro. A única coisa que
lamento é que sua morte foi um acidente. Teria gostado muito de tê-
lo ajudado a ir para outro mundo.
Ficou tão estarrecida que não conseguiu falar por alguns
segundos. Ninguém nunca tinha tentado protegê-la.
—É muito... cavalheiresco de sua parte —sussurrou.
Para seu horror, apoiou o rosto no ombro de Lucas e começou
a chorar.
Lucas a abraçou por um tempo, deixando-a chorar. Não disse
nada. Era como se soubesse que não tinha palavras.
Ao final, sorveu o nariz várias vezes, levantou a cabeça e jogou
um pouco de água no rosto.
—Me perdoe — disse. — Te asseguro que não tenho por
costume chorar como uma Madalena por qualquer coisa.
—Ainda que isso pareça estranho, eu já sabia.
—Sim, bem — comentou Evangeline, que tinha recobrado a
compostura com algum esforço—, já sabe toda a história de meu
sórdido grande romance. Como pode ver, não terminou bem. Meu
Deus, suponho que já está a ponto de sair o sol. Logo poderemos
sair desta sala.
—Outra coisa antes de deixarmos o tema de Douglas Mason —
pediu Lucas.
—Sim?
—Não tropeçou e caiu pela escada, verdade? Você fez algo a
sua aura, parecido ao que fez com a minha, mas foi mais além.
Congelou sua aura.
A segurança de sua voz indicou a Evangeline que não tinha
sentido tentar negar. Também não queria mentir. Necessitava que
soubesse a verdade sobre o que podia fazer com seus poderes
precisava que aceitasse ou recusasse a verdadeira Evangeline Ames.
—Parei seu coração — sussurrou.
—Tem um poder psíquico muito útil. —Lucas esboçou um
sorriso predador.
Ficou impressionada que aceitasse com tanta tranquilidade seu
poder letal.
—Lucas, matei um homem com meus poderes — realçou para
se assegurar por completo que ele tinha entendido. — Juro que
quando comecei a baixar a raiva de sua aura, não sabia o que
aconteceria, ao menos não no princípio, mas nos últimos segundos
sabia o que estava fazendo e não parei.
—Não, estou certo que não entendia toda a força de seus
poderes até que teve a ocasião de utilizá-los. Não é exatamente uma
classe de habilidades que se possa praticar, verdade? Desesperada
como estava, todos os seus sentidos estariam aguçados ao máximo e
concentrados exclusivamente em sua sobrevivência. Foi então
quando percebeu do que podia fazer.
—Ainda não sei muito bem o que fiz. Só sei que quando
coloquei minhas mãos em cima, notei o calor de sua fúria assassina.
Percebi a distorção pelas longitudes da onda. Sabia que podia
atenuar essas correntes com minha própria energia mental. E o fiz. E
segui fazendo até que... Despencou do alto da escadaria.
—E foi então que deste um empurrãozinho que o enviou
escada abaixo, de modo que parecesse um acidente, o que evitou
tanto uma investigação policial como um terrível escândalo que
teria uma acusação por violação e assassinato.
—Parecia a melhor maneira de controlar a situação —admitiu.
A beijou brevemente. Foi um beijo rápido, possessivo, que lhe
fez estremecer os sentidos. Quando Lucas levantou a cabeça, viu que
seus olhos brilhavam cheios de admiração e um escuro desejo.
—Bem feito, carinho. Onde esteve esse tempo todo, Evangeline
Ames?
—O caso é que aquele dia algo mudou em mim. Foi como se
usar tanta energia abrisse um novo canal de visões psíquicas. Depois
daquilo podia ver com mais clareza a aura de uma pessoa. —
estremeceu. — Muito mais do que queria ver na maioria dos casos.
É muito inquietante, se quer saber a verdade.
—Seja o que for que tenha visto, lembre-se que já vi coisas bem
piores.
—Sim, não sei como faz o que faz, Lucas.
—A única coisa que me importa é que não te assuste com o
que ver em minha aura.
—Não, nem pensar. —olhou para ele com uma crescente
incerteza. — Mas não te preocupa que eu seja capaz de matar uma
pessoa com meus poderes?
—Não. —Os olhos de Lucas se escureceram. — Tenho levado
homens á morte com as minhas.
—Ainda assim, estou certa de que muitos homens ficariam
horrorizados de terem acabado de ter um... Encontro sexual com
uma mulher que é capaz de algo semelhante — disse depois de
pensar um pouco no que Lucas acabara de dizer. — Pensar nisso
lhes provocaria a visão de uma viúva negra com um cavalheiro
comum.
—Pareço um cavalheiro normal?
—Não, Lucas. —Evangeline sorriu. — É qualquer coisa menos
normal. É o homem mais extraordinário que conheci.
—A única coisa que não gosto, Evangeline, é que só desfrutei
um encontro sexual contigo. —Deslizou a mão abaixo da água para
cobrir seu seio. — E eu gostaria muito de ter outro.
De repente, Evangeline foi consciente que Lucas voltava a ficar
excitado. Sua ereção lhe pressionava com urgência. Quando a fez
girar em seus braços, viu quais eram suas intenções.
—Aqui? —perguntou surpresa e fascinada. — Na piscina?
—Aqui — concordou Lucas. — Na piscina.
—Caramba! Não tinha ideia que algo assim fosse possível.
—Já disse que ficarei encantado de te ajudar nesta nova
experiência.
20

—Como as coisas puderam sair tão terrivelmente erradas assim? —


perguntou Horace Tolliver. — Todo o planejamento, toda a
investigação, tudo para nada. E, ainda, perdemos o artefato.
Mas estava falando sozinho. Baixou os olhos para seu irmão
mais velho, que estava caído sobre alguns lençóis empapados de
suor. Burton sempre tinha sido mais alto e mais forte do que ele. E
agora estava as portas da morte.
Horace ainda não sabia muito bem o que tinha ocorrido no
labirinto, mas tinha conseguido reconstruir a maior parte do
sucedido a partir de suas poucas recordações e do pouco que Burton
tinha contado antes de sucumbir à febre.
Cruzou o pequeno quarto até o tocador. Molhou outro pano
em água fria na bacia que tinha colocado ali, escorreu e voltou junto
à cama. Tirou o pano que tinha aplicado na testa quente de Burton
alguns minutos antes e o substituiu pelo frio.
Jogou o pano usado na bacia e foi até a cadeira que tinha ao
lado da cama. Sentou-se com um suspiro cansado e recordou os
arrepiantes fatos daquela noite.
—Tudo saiu mal desde o princípio, Burton. Mas, como íamos
saber que Sebastian poderia orientar-se pelo labirinto e menos ainda
que estava dentro dele quando nós entramos?
Tinha uma lembrança borrada do que se tinha passado no
labirinto. Recordava-se de ter se voltado e visto Sebastian atrás dele
no corredor. E depois foi apoderado de pesadelos terríveis que seu
cérebro tinha buscado refugio na inconsciência. Tinha voltado a si
depois de um tempo e se viu no chão frio e úmido no caminho,
olhando a lua. Burton o estava chamando.
«Acorda, Horace. Precisa despertar. Não posso te carregar
mais. Aconteceu alguma coisa comigo, me sinto fraco e com febre.
Essa maldita tormenta de energia está afetando meus sentidos.
Precisa andar o resto do caminho até a casa de campo.»
Horace se levantou como pode, vagamente surpreso por ainda
estar vivo. Burton, contudo, mal conseguia se manter de pé. Horace
tinha apoiado os ombros de seu irmão e assim, juntos, tinham
conseguido percorrer cambaleantes os aproximadamente oitocentos
metros que os separavam do final do caminho, onde Burton caiu.
De algum jeito, Horace tinha reunido forças suficientes para
carregar Burton nas costas e transportá-lo o resto do caminho até a
casa de campo que ocupavam. Agora tinha uma febre altíssima.
Tinha lhe aplicado compressas frias a noite toda, mas não
apresentava sinais de melhora. Pouco antes do amanhecer, já
desesperado, tinha ido ao povoado para acordar o médico, que pelo
dobro de sua tarifa habitual, tinha ido atender o enfermo.
O médico tinha saído pouco tempo depois, sacudindo a
cabeça.
«Nunca tinha visto uma febre assim. Não posso ajudar seu
irmão», disse ante de sair.
Tinha aconselhado que continuasse com as compressas frias e
lhe deu um vidro de láudano para ser ministrado caso Burton
tivesse muitas dores. Mas estava claro que não esperava que o
paciente se recuperasse.
—Eu falhei Burton. —Horace afundou a cabeça entre as mãos.
— Você sempre cuidou de mim, até o fim. Me tirou daquele
labirinto e daqueles condenados jardins. Mas agora que precisa de
mim, não posso fazer nada por você.
Burton se moveu em meio de um sonho enfebrecido. Não
abriu os olhos.
21

Lucas lhe fez amor outra vez ali, nas águas cintilantes das termas.
Depois, a pegou nos braços e usou sua camisa como toalha para
secar aos dois. Não queria que aquela noite terminasse. Ficaria
encantado de passar mais uma ou duas noites mais ou o que
restasse da vida, naquele lugar idílico com Evangeline. Mas isso não
era possível.
Quando terminou de secar as últimas gotas reluzentes do
corpo suave e deliciosamente ardente de Evangeline, esticou a
camisa molhada e começou a vesti-la. Evangeline colocou
rapidamente a camisola e o robe, e dirigiu a vista para a entrada no
longo corredor.
—Já deve ter amanhecido — comentou.
—Sim. —Lucas abotoou a calça e sentou-se em um banco de
pedra para calçar as botas. — Vamos averiguar o que aconteceu com
Stone e com os homens que entraram sem serem convidados.
—Espero que o senhor Stone esteja bem — disse Evangeline.
—Não seria fácil matá-lo.
—Acredita que os intrusos tenham sobrevivido à explosão do
labirinto?
—Nós conseguimos — lembrou. Levantou o pequeno farol e
lançou outro olhar, perguntando-se de novo como funcionava e qual
seria sua função. — Mas precisavam deste artefato para se orientar
no labirinto, por isso pode ser que ainda estejam ali dentro, dando
voltas. Se for assim, ficaram mais algumas horas. Vou me encarregar
deles depois de te levar para casa.
—O que faremos se a tormenta de energia não tiver
diminuído? —quis saber Evangeline.
Lucas esboçou lentamente um sorriso depois de pensar nas
várias possibilidades.
—Se for este o caso, pode ser que tenhamos que passar outra
noite aqui — disse.
—Por Deus! —exclamou Evangeline, que parecia alarmada.
—A ideia te parece tão terrível assim?
—Você está brincando comigo de novo — se queixou
Evangeline com o nariz enrugado.
—Claro. —Se aproximou dela e beijou sua testa. —
Desafortunadamente, temo que a tormenta já terá amainado e, por
mais que gostaria de passar outra noite com você, suspeito que não
terei nenhuma desculpa para fazê-lo.
—Sim, bem —soltou Evangeline, coradíssima, muito atarefada
de repente em abotoar o robe. — Vamos depressa, Lucas.
Precisamos regressar a casa antes que alguém acorde. Não ficaria
bem que sua tia e sua irmã nos vissem voltar dos jardins há esta
hora, isso para não dizer o pessoal do serviço. —olhou seu peito nu.
— Ao menos, não neste estado.
—Não quero que passe vergonha — assegurou Lucas, sério de
novo.
—Pois pelo que mais queira, ande logo.
Evangeline colocou as sapatilhas, se virou com rapidez e
percorreu o corredor até a entrada das termas. Lucas pensou que
ainda não tinham falado sobre o que ocorreria quando estivessem
fora. Tinha querido comentar com ela antes de sair do labirinto, mas
agora não parecia ser o momento adequado. Haviam outras
prioridades.
Evangeline parou um momento e lançou um olhar ao corredor
de pedra que conduzia a sala onde estava a terceira piscina.
—O que houve? —perguntou Lucas.
—Nessa sala deve haver uma quantidade enorme de energia
—comentou Evangeline. — Posso percebê-la daqui.
—Está captando sem dúvida, as correntes de energia da
entrada que impede o acesso. São muito potentes. Que me lembre,
tio Chester jamais encontrou uma forma adequada para cruzá-la,
ainda que estivesse obcecado em entrar nessa sala.
—Por quê?
—Segundo consta em documentos antigos, é a piscina mais
potente das três. Muito poucas pessoas puderam entrar nessa sala.
Evangeline mudou de rumo e percorreu o largo corredor.
Lucas a seguiu até a porta da sala.
—A porta é nova.
—Tio Chester quem instalou. Mas a verdadeira barreira está na
tormenta de energia do outro lado.
—A energia que tem atrás dessa porta parece antiga — indicou
Evangeline depois de colocar a palma da mão aberta na madeira.
—Sim. A entrada de energia já existia quando tio Chester
comprou a velha abadia.
Evangeline separou a mão da porta e olhou com expressão
angustiada ao dizer:
—Acredito que tem algo importante oculto nesta sala, mas não
tenho nem ideia do que seja. Pode ser simplesmente o poder da
piscina que vem dela.
—Agora não temos tempo para pensar nisso. Regressaremos
em outra ocasião.
—Verdade, Lucas —disse Evangeline, observando a porta.
—Verdade.
Pegou sua mão e a tirou da sala da piscina das visões.
Uma vez cruzada á cortina de energia viu que, efetivamente o
sol já tinha saído. De fato, já estava a certa altura. Os efeitos
desorientadores da energia das termas, somado ao relógio de bolso
parado, tinham feito calcular mal a hora.
Mas esta desculpa não era válida. Sorriu por dentro, consciente
de que só ele tinha culpa de que saíssem mais tarde do que o
necessário. Tinha sido incapaz de resistir a fazer amor com
Evangeline uma última vez.
O Jardim Noturno era um lugar totalmente diferente de dia. O
efeito fosforescente era praticamente imperceptível a não ser que
intensificasse seus poderes. As flores noturnas tinham fechado suas
pétalas ao sair do sol. Não voltariam a se abrir até que caísse a noite
de novo. Mas as ameaçadoras correntes escuras de energia que
impregnavam o ambiente ainda estavam ali, espreitando abaixo da
superfície.
—Toma cuidado — avisou Lucas. — Que tudo pareça menos
perigoso de dia não significa que o seja. Na verdade é ainda mais
perigoso de dia porque as ameaças são menos evidentes para os
sentidos.
—Não se preocupe — o tranquilizou Evangeline, dirigindo um
olhar receoso a um maço de orquídeas—, não vou cortar nenhuma
flor para colocar entre as páginas de um livro de poesia.
—Alguma vez colocou uma flor entre as páginas de um livro
de poesias?
—Eu não — admitiu ela. — Mas a protagonista de minha
novela, sim.
—Por quê?
—Porque o vilão, que eu tinha inicialmente destinado ao papel
de protagonista, lhe presenteou com flores depois de roubar-lhe um
beijo. Como acredita que nunca voltará a vê-lo, conserva uma das
rosas no livro de poesia que ele também lhe deu de presente. Mas há
pouco tempo me dei conta que fiz mal em tê-lo feito meu
protagonista.
—Confundiu o protagonista com o vilão de sua própria
história?
—São coisas pelas quais passam um autor — disse Evangeline.
— Faz parte do processo criativo.
—Já vejo.
—Por sorte, percebi antes de terminar o quarto capítulo. Esse é
o problema em escrever para os jornais, sabe? Não pode trocar o que
contou antes. Não pode voltar atrás e revisar nada porque os
capítulos anteriores já foram publicados.
—Soa agonizante — comentou Lucas.
—Não tanto como estar a ponto de ser assassinada no alto da
escadaria.
—Tem razão. —Lucas sorriu.
A tormenta do labirinto tinha amainado. As correntes de poder
seguiam sendo desorientadoras, mas voltavam a serem as normais.
Lucas conduziu Evangeline pelo labirinto até o corredor onde tinha
havido a explosão.
—Não vejo nenhum cadáver — comentou Evangeline, olhando
com apreensão ao redor. — Não é possível que a vegetação já tenha
feito desaparecer duas pessoas a estas horas.
—Não. Demora dois ou três dias para digerir um ser vivo do
tamanho de um rato. Dois cadáveres demorariam um período mais
longo de tempo para desaparecer. Os intrusos seguem dando
tombos aqui dentro ou escaparam.
—O mais baixo ficou inconsciente. Não teria voltado a si a
tempo de fugir.
—O outro pode tê-lo levado daqui — sugeriu Lucas.
—Não teria sucumbido aos efeitos da explosão como você?
—Sim, mas não imediatamente. Lembre-se que consegui
chegar até as termas.
—Mas já não podia seguir mais — disse Evangeline. — Não
posso imaginar que o homem alto tenha conseguido se afastar muito
dos jardins, especialmente se carregava seu companheiro.
—Em todo caso, encontraremos a um deles ou aos dois
próximos daqui, pode até ser nos jardins.
Pouco depois, saíram do labirinto. Não tinha nenhum cadáver
próximo à entrada. Porem tinha um grupo considerável de pessoas
no terraço. Stone, Florence, Beth, Molly e uma grande quantidade
dos familiares de Molly Gillingham tinham se reunido, muitos deles
armados de picaretas, enxadas e facões.
Molly foi a primeira que os viu.
—Senhor Sebastian, senhorita Ames. Estão vivos — exclamou
com cara de alívio.
Stone, que se virou em seguida, se iluminou o semblante.
—Senhor Sebastian.
—Lucas — soltou Florence. — Graças a Deus que estão a salvo.
Tinha medo do pior.
—Eu não — assegurou Beth, que sorriu a Lucas. — Sabia que
sairia ileso e que traria a senhorita Ames contigo. Disse a todos que
esperaria que fosse de dia para sair do Jardim Noturno. Mas Stone
queria estar preparado para entrar para te buscar se não aparecesse.
—E o que pensavam fazer? Destruir o labirinto? —perguntou
Lucas depois de observar os reunidos.
—Era isso ou tentar incendiá-lo, e não me pareceu que
poderíamos atear muito fogo nessa massa sólida de folhagem —
explicou Stone.
—Não — confirmou Lucas, que sentia um alívio imenso.
Era uma sorte que Stone e os demais não tivessem tratado de
incendiar o labirinto ou destroçá-lo a machadadas. A folhagem teria
muitas formas de proteger a si mesma. Olhou Molly e aos demais
Gillingham.
—Agradeço a todos por virem nos resgatar. Pelo bem de todos,
me alegra que não foi necessário tentar destruir o labirinto, mas não
duvido que estavam dispostos a realizar a tarefa. Tenho sorte por ter
vizinhos tão bons. Por favor, se puder corresponder de algum
modo, não precisam mais que pedir.
Uma série de «Imagine, senhor Sebastian», «Foi um prazer
ajudá-lo» e «Me alegra que você e a senhorita estejam bem».
E então um silêncio incômodo caiu sobre o grupo. Lucas se
deu conta de que todos estavam se esforçando muito para não olhar
para Evangeline, que estava ao seu lado vestida com roupas de
dormir.
—Beth — disse Florence, que foi a primeira a reagir—,
acompanhe a senhorita Ames a seu quarto. Deve estar exausta.
—Sim, claro. —Beth dirigiu a Evangeline um sorriso amável.
— Vamos entrar.
—Obrigado — disse Evangeline.
Evidentemente aliviada ante a perspectiva de escapar,
começou a andar até a casa com Beth.
—Sim — soltou Lucas, alçando a voz o suficiente para
assegurar-se de que todos os Gillingham pudessem ouvi-lo. —
Minha prometida viveu uma experiência terrível, como já
imaginam. Por favor, encarreguem-se de que esteja bem atendida.
Necessitará de um pouco de chá e muito descanso.
Por alguns instantes, incluindo Evangeline, todos ficaram
calados. Ela foi a primeira que saiu do transe. Voltou-se e olhou a
Lucas com uma expressão de quem acaba de ouvir uma sentença.
—O que você fez? —perguntou em voz baixa, e em seguida
começou a correr até a casa como se fosse perseguida pelo próprio
diabo.
22

—Eu falhei senhor Sebastian. —Stone estava de pé, muito rígido,


diante da mesa da biblioteca. — Ontem à noite me disse que
montasse guarda e deixei que esses bastardos me colocassem para
dormir como um bebê.
—Não exatamente como um bebê. —Lucas levantou o
pequeno farol e o aproximou da lamparina de gás que tinha sobre a
mesa. — Esta arma gera alguma classe de radiação que não é
normal. Não tinha forma de se proteger dos efeitos das correntes.
—Não é mais que um condenado farol —comentou Stone,
observando o artefato com o cenho franzido. — Recordo que a luz
era verde. Mas quando a olhei diretamente, de repente não pude me
mover. E isso é a última coisa que me lembro.
—A luz vinha deste cristal —explicou Lucas enquanto abria a
portinha de cristal do farol e examinava mais detidamente o
apagado cristal cinza do interior. — Percebi seu poder —
acrescentou—, mas não sei muito bem como ativá-lo. Por desgraça,
não tenho tempo para fazer os experimentos adequados. Neste
momento nossas prioridades são outras. Identificar aos dois intrusos
é a primeira delas.
—Sim, senhor.
Lucas deixou o farol. Assinalou uma cadeira próxima.
—Sente-se e conte-me tudo que recorda sobre o que se passou
na noite de ontem —disse.
—Sim, senhor. —Stone fez o que lhe pedia, com expressão
concentrada. — Estava fazendo a ronda, atento a qualquer sinal que
indicasse a presença de um intruso, prestando atenção a vozes e
ruídos que faz uma pessoa normal ao se mover.
—Continue —pediu Lucas, aproximando-se da janela coberta
de videiras.
—Recordo ter ouvido um murmúrio na escuridão, do outro
lado do muro, próximo à velha cerca. Achei ter visto um rastro de
luz. Logo, ouvi o ruído das dobradiças.
—Entraram pela velha cerca? —Lucas se voltou para olhá-lo.
—Sim, senhor.
—Vá. Acreditava ser impossível forçar essa fechadura.
—Soou como se usassem uma chave. Ouvi girar na fechadura.
—Interessante. Continue.
—Não tem muito mais para contar —disse Stone, que ficou
encurvado e abatido na cadeira. — Fui comprovar se a velha cerca
estava aberta. Cheguei a tempo de pilhar a dois homens entrando
nos jardins. Estou muito seguro de que não me ouviram chegar até
que lhes disse alto.
—Então o que aconteceu?
—O mais baixo se colocou muito nervoso ao me ver. —Stone
cerrou os punhos e olhou fixamente ao pequeno farol... — acredito
que teria fugido se o mais alto não o houvesse detido.
—Qual dos dois usou o farol para te atacar?
—O alto. Tirou das mãos do outro e me apontou com ele como
se fosse uma pistola. Vi um halo de luz e no momento seguinte
recordo ter despertado justo antes de amanhecer. Quando não
consegui encontrá-lo, nem a senhorita Ames, temi o pior. Imaginei
que estavam presos no Jardim Noturno. Para então, Molly tinha
chegado a fim de preparar o café da manhã. Vinha acompanhada de
uma de suas primas. A prima foi então correndo pedir ajuda e eu
despertei sua tia e sua irmã. Já sabe o depois.
—Sim.
—Acredita que poderíamos ter entrado a machadadas no
Jardim Noturno? —perguntou Stone com expressão de curiosidade.
—Eu não sei —admitiu Lucas. — De dia não é tão perigoso,
mas essas plantas possuem muitas propriedades desconhecidas. No
mínimo, teria demorado dias para penetrar na vegetação e fazê-lo
teria sido extremamente arriscado para qualquer pessoa que
entrasse em contato com a folhagem.
—Como lhe disse, pensei em incendiar o labirinto, mas não
estava seguro de que fosse arder bem.
—Tem razão. Além disso, um incêndio poderia ter
desencadeado uma explosão de energia paranormal que poderia ser
perigosa para quem estivesse próximo.
—Se não se pode nem mesmo incendiar os jardins, como os
destruiria? —disse Stone com o cenho franzido.
—Não tenho nem ideia. —Lucas regressou à mesa. — Mas
primeiro o mais importante. Ontem à noite averiguamos várias
coisas importantes.
—Que coisas?
—Os intrusos eram buscadores de tesouro que entraram atrás
do ouro dos romanos, que segundo dizem, está enterrado no Jardim
Noturno. Não eram os primeiros a entrarem sem permissão em
busca do tal tesouro. Mas estes dois chegaram muito mais longe que
a maioria graças às suas habilidades psíquicas, este pequeno farol e
uma chave da cerca velha.
—Sim, senhor —admitiu Stone com o cenho franzido ainda. —
O que mais averiguou?
—Que soubessem por aonde iam e a posse da chave os
converte nos principais suspeitos do assassinato de meu tio.
—Acredita que voltarão?
—Talvez — respondeu Lucas. Levantou outra vez o farol e
pensou na violenta tormenta que tinha desatado no labirinto. —
Supondo que conseguiram sobreviver aos efeitos da explosão. Os
buscadores de tesouro não vão se render facilmente. Estão
obcecados.
—Se saíram do labirinto, com certeza saíram também dos
jardins — indicou Stone. — Esta manhã percorri até o último palmo
do velho muro e não tinha nenhum cadáver.
—Pode ser que saíram dos jardins, mas isso não significa que a
tormenta não os afetou. Eu mesmo mal sobrevivi.
—Como disse? —Stone levantou a cabeça, estupefato... — Não
tinha me dado conta de que estava ferido. A pouco quando saiu do
labirinto, parecia sadio e forte.
—Devo minha saúde e meus sentidos intactos a minha
prometida — explicou Lucas.
—A senhorita Ames te salvou?
—Sim — respondeu Lucas. — Ela me salvou.
—Bem, pois se os intrusos não contavam com a ajuda da
senhorita Ames, hoje poderiam estar muito mal.
—Uma excelente observação, Stone — disse Lucas, esboçando
lentamente um sorriso. — Por favor, faça vir imediatamente um dos
familiares de Molly.
—Sim, senhor. —Stone se levantou de um salto e se dirigiu
para a porta. Parou a meio caminho. — Qual deles quer que venha?
—Não tenho nenhuma preferência. Só preciso de alguém que
possa ir ao povoado para averiguar se esta noite o médico teve que
visitar a um homem que tinha uma febre muito alta.
23

As onze da manha, Evangeline andava de um lado ao outro da


biblioteca, com uma frustração que beirava o pânico. Estava tão
tensa que estremeceu violentamente quando a porta se abriu.
Voltou-se e viu Lucas.
—Você ficou louco? —soltou e teve que se esforçar muito para
falar em voz baixa para que ninguém a ouvisse se estivesse
passando pelo corredor naquele momento.
Lucas fechou a porta e a olhou com cautela.
—Diria que não. Mas bem, não sei como se sabe se perdemos a
cabeça. A pergunta é complicada, não te parece? Os loucos muitas
vezes se acreditam sãos.
—Isso não é brincadeira, Lucas. Levou-nos ao desastre.
—Fique tranquila, minha vida. —Lucas cruzou a sala até onde
estava Evangeline. Levantou o queixo e lhe deu um beijo rápido. A
soltou antes que pudesse protestar e seguiu avançando até sua
mesa. . — Se não te conhecesse melhor, juraria que estava a ponto de
sucumbir a um ataque de histeria feminina.
—Não estou histérica.
—Não, claro que não. —A olhou desde o outro lado da mesa.
— Acreditava que estava acima, recuperando-se da terrível
experiência.
—Estou me recuperado muito bem, obrigado — soltou entre
dentes. — Sua irmã não parou de me oferecer chá. Molly fez com
que subissem uma bandeja com ovos cozidos e torradas. E sua tia
me informou que quer falar comigo a sós quando estiver recuperada
de minha «terrível experiência».
—Sinto ouvir isso — disse Lucas. — Mas estou seguro que
pode se defender sozinha de tia Florence. Faça o que faça, não deixe
que te intimide.
—E o que sugere que eu diga? —perguntou Evangeline, muito
erguida.
—Sei que vai te ocorrer algo. —Se aproximou de uma de suas
estantes e pegou um volume encadernado em couro. — Como está
evidente que já se recuperou de sua terrível experiência, sugiro que
passemos a um tema mais urgente.
—Posso saber que assunto pode considerar mais urgente que
este desastre? —disse, cruzando os braços.
—Enquanto estava acima me banhando e trocando de roupa,
pensei em algo. —Lucas levou o livro à mesa. — Me ocorreu que
poderia ser útil repassar os diários de meu tio, especialmente os que
escreveu nos meses prévios à sua morte. Se conhecia esses homens
que nos encontraram nos jardins ontem à noite, acredito que seja
possível, que o tenham visitado antes do assassinato, o mais
provável é que os mencionou em suas anotações. Seguia muito de
perto a alguns botânicos que, como ele, estudavam os fenômenos
paranormais. Afinal, não tem tantos assim e aposto o que queira que
tio Chester conhecia a todos.
Distraída, Evangeline observou as fileiras de diários nas
estantes.
—Não tem tempo para fazer esse tipo de investigação. Por que
não pede a Beth que o faça?
—A Beth? —perguntou Lucas com o cenho franzido.
—Estou segura que ficaria encantada em ajudar em sua
investigação.
—Acredito que seja uma excelente ideia, mandarei chamá-la
em seguida — disse enquanto esticava a mão para o puxador de
veludo que ficava junto à escrivaninha para fazer soar a campainha.
Foi muito. Evangeline correu pelo escritório com o vestido
enrolando em seus pés e golpeou a mesa com fúria com as mãos
abertas.
Lucas levantou os olhos do diário com o cenho franzido de
surpresa primeiro e de preocupação depois.
—O que diabos...?
—Maldição Lucas, acredito que o assassinato de seu tio pode
esperar.
—Não acredito. Sobre tudo depois do que aconteceu ontem à
noite.
—Temos uma crise entre as mãos devido ao que se passou
ontem à noite, e foi você quem provocou. O mínimo que pode fazer
é falar dele com verdadeiro interesse.
—Muito bem. —Lucas fechou o diário. As rugas dos olhos se
marcaram um pouco mais. — Mas antes tenha a amabilidade de
dizer-me de que crise estamos falando aqui se não for do
assassinato.
—Como pode perguntar isso? Já sabe a resposta.
—Ah, assim é esse o problema — disse, relaxando um pouco.
— É a sua situação que está te incomodando. É totalmente
compreensível, não se preocupe. Não me esqueci de que alguém
está atrás de você, carinho. Mas aqui, em Crystal Garden, está a
salvo. É só uma questão de tempo para que recebamos mais notícias
de Londres. E quando soubermos a identidade do homem que
contratou Sharpy Hobson, vou informar-lhe imediatamente.
—Não é dessa crise que estou falando, seu asno. Refiro-me a
que estamos enfrentando nesse mesmo momento. E mais, não pode
jogar a culpa dessa situação ao meliante de Londres. O culpado está
neste espaço.
—Asno? —perguntou Lucas surpreso e com as sobrancelhas
arqueadas.
—Perdoe a expressão —se desculpou Evangeline, que se
endireitou e tirou as mãos da mesa. — Mas não é minha culpa que
me tenha irritado.
—Voltamos ao princípio. —A voz de Lucas tinha um novo
tom. — Defina esta crise que faz com que você esteja tão alterada.
—Pelo amor de Deus, disse ao grupo que estava no terraço que
estamos noivos. Como pode?
—Acredito que manejei muito bem a situação, modéstia parte.
—O que?
—Estou certo que todos me entenderam. Acredita que deixei
alguma margem para dúvidas?
—Pare de tirar a importância dessa catástrofe —gemeu
Evangeline.
—Lamento não ter podido anunciá-lo com mais solenidade,
mas precisa admitir que, dadas as circunstâncias, não tinha mais
alternativas —comentou Lucas com a mandíbula tensa.
—O que quer dizer? —perguntou Evangeline, petrificada.
—Acabava de sair o sol. Era evidente que tínhamos passado a
noite juntos nos jardins. Eu estava com minha roupa arruinada e
você estava de robe e camisola. Tínhamos público. Tive que
anunciar imediatamente. Maldita seja não esperaria publicarmos
nos jornais e enviar os convites para nosso baile de compromisso
primeiro, verdade?
—É o que temia.
—O baile de compromisso?
—Sei que tuas intenções eram boas, Lucas. Mas complicou
muito as coisas —disse Evangeline, que notou que algo tinha se
quebrado em seu interior.
—Você acredita nisso? Não vejo onde está o problema. A mim
parece muito simples. Não como, identificar a pessoa que quer te
matar ou resolver o assassinato de meu tio.
—Não me interprete mal, por favor. Sei que estava tentando
proteger minha reputação, foi muito amável de sua parte, mas...
—Amável?
Evangeline levantou o queixo.
—É um homem honrável, Lucas, um autêntico cavalheiro —
disse.
—Porque tenho a sensação de que esta conversa não vai por
um bom caminho?
Evangeline prosseguiu sem fazer caso dele:
—Estava tentando me proteger e te agradeço mais do que
imagina —indicou enquanto piscava para conter as lágrimas que
enchiam seus olhos. — Acaso não vê? Agora estamos vivendo uma
mentira. Antes ou depois terá que contar a verdade para sua família.
O que vão pensar?
Uma energia ameaçadora carregou o ambiente. Lucas rodeou a
mesa e se dirigiu até ela.
—Está me perguntando o que pensarão de você? —disse. —
Porque te dou minha palavra de que qualquer que se atreva a
questionar sua honra terá que responder a mim.
A forma como Lucas avançava até ela, a deixou nervosa.
Retrocedeu instintivamente alguns passos.
—Não diga bobagens —soltou. — Dá-me igual o que sua
família ou os habitantes do lugar pensam de mim quando souberem
a verdade. Eu posso desaparecer como sempre fiz depois de um
caso e pronto. O que me preocupa é o que pensaram de você
quando terminar nosso suposto compromisso. Para salvar minha
reputação, colocou a sua em jogo. Não posso permitir isso.
—Já está feito, Evangeline. E para que fique claro, quando
anunciei nosso compromisso esta manhã, sabia exatamente o que
estava fazendo.
Não se deteve. Movia-se para ela com passo deliberado como
um grande animal de rapina. Evangeline retrocedeu outro passo, e
outro mais até que chocou suas costas com as estantes. Lucas
terminou de aproximar-se. Apoiou as mãos na estante, uma de cada
lado da cabeça de Evangeline, de forma que a deixou presa, não só
fisicamente, mas também psiquicamente.
—Lucas?
—Pelo que me consta, não estamos vivendo nenhuma mentira.
—assegurou. — Estamos prometidos. E quanto a minha reputação,
eu me preocuparei com ela.
De repente, Evangeline sentiu certo receio, pois seu alarme se
transformou rapidamente em excitação. As longitudes de onda da
aura de Lucas rugiam e armavam estrondos a seu redor, exigindo
uma reação. Notou que suas próprias correntes buscavam entrar em
harmonia com ele. Tratou de resistir, mas exigia uma enorme
quantidade de energia. O esforço a deixou sem fôlego.
—Suponho que quando se saiba a verdade, podemos explicar
que nosso compromisso foi simplesmente algo que montamos para
atrapalhar os assassinos de seu tio —sugeriu, esforçando-se por
conservar a compostura e o raciocínio lógico. — Podemos dizer aos
demais que me contratou para interpretar o papel de sua prometida
e que queríamos fazer uma atuação convincente.
—Deixa que te diga algo: a atuação foi mais que convincente.
Minha irmã, minha tia e as pessoas do povoado jamais acreditarão
que ontem a noite foi uma montagem. E mais, você e eu sabemos
que tudo foi muito real. —parou de falar com os olhos brilhando. —
Ou não?
—Lucas...
—Fizemos ou não amor ontem à noite?
—Bom, sim, mas não se trata disso.
—Do que se trata então?
—Á noite estávamos submetidos à influência de toda a energia
que emanava das piscinas termais —respondeu Evangeline, já sem
fôlego. — E vai saber como afetou nossos sentidos aquela explosão
no labirinto.
—Você e eu não somos a classe de pessoas que recorrem a
desculpas. Fizemos amor porque nós dois queríamos, e eu, por
enquanto, não lamento. E você?
O poder de sua aura a estava superando. Simplesmente não
ficavam forças para combater por mais tempo. «Não, a verdade é
que não quero lutar contra essa magnífica sensação», admitiu para si
mesmo. Pode ser que tivesse outros amantes ao longo de seu
solitário futuro, que a aguardava, mas no fundo sabia que teria
aquela incrível conexão íntima só com ele, com nenhum outro
homem.
—Está tentando me confundir —sussurrou à Lucas.
—Verdade?
—Oh, maldição! —murmurou. — Acredito que tem razão,
estou reagindo de forma exagerada. É perfeitamente capaz de cuidar
de si mesmo, Lucas Sebastian. Se você não se preocupa com sua
reputação, por que eu deveria me preocupar?
—Isso é exatamente o que penso.
—Também não se pode dizer que não se rompam
compromissos —acrescentou, procurando adotar uma atitude
positiva. — Pelo geral, isso acaba só com a reputação da mulher. —
Se animou. — A não ser que seja ela quem rompa o compromisso,
claro —comentou e voltou a se desanimar. — Mas isso só acontece
quando sua família tem uma posição social igual ou maior que a do
homem.
—Evangeline...
—O que não é nosso caso. A questão é que é um homem
endinheirado de boa família, não tem nada a temer, socialmente
falando. E quanto a mim, posso voltar a minha antiga vida sem que
nada se altere.
Lucas segurou com mais força as estantes.
—Acredito que já chega de falar, Evangeline —soltou. — Disse
que estava começando a ficar confusa.
—Sim, disse isso, não? Agora mesmo não pareço pensar com
clareza.
—Nem eu tampouco. Pode ser que seja o momento de
pararmos de tentar manter uma conversa inteligente.
A beijou antes que pudesse responder. Os lábios de Lucas
desceram sobre os seus em um ataque implacável que lhe
estremeceu todos os sentidos.
Perguntou-se por que o combatia. O temor que havia se
apoderado dela na noite anterior voltou a aflorar para afastá-la do
sentido comum e da lógica. Agarrou-se aos ombros de Lucas e se
abandonou ao beijo. O ambiente chispava de paixão e energia.
Não ouviu abrirem a porta, mas evidentemente Lucas sim,
porque interrompeu o beijo a contra gosto. Não soltou as estantes,
mas voltou à cabeça para olhar para trás.
—O que quer Molly? —perguntou com uma impaciência
glacial.
Evangeline, horrorizada, se escondeu atrás de Lucas. Molly
estava na porta e parecia petrificada. Atrás dela vinha uma mulher
bonita vestida com um vestido de viagem e um chapéu muito
moderno, e a seu lado, um jovem muito parecido com Beth.
—Eu sinto muito, senhor —gaguejou Molly. — Mas eu bati. A
senhora Sebastian e o senhor Sebastian vieram vê-lo, senhor.
—O dia está cada vez mais e mais irritante —disse Lucas, mas
fez isso em voz muito baixa. Soltou a estante e se voltou para a
porta. — Evangeline, permita-me apresenta-la à Judith Sebastian,
minha madrasta, e a meu irmão, Tony.
24

Uma hora depois, Lucas falou com Judith a sós na biblioteca. Sua
madrasta estava sentada, rígida pela tensão, em uma das poltronas
de leitura. Ele a olhava atrás da escrivaninha. Não era a primeira vez
que se reuniam assim. Os encontros jamais terminavam bem para
nenhum dos dois lados.
—O que faz aqui? —perguntou. — Tinha a impressão que
detestava Crystal Garden.
—E detesto. —Judith dirigiu sua vista para as janelas cobertas
de videiras e estremeceu. — Tinha que ter destruído os espantosos
experimentos botânicos de seu tio. Estes jardins são muito
antinaturais.
Pouco depois de chegar, Judith tinha sido conduzida a um dos
quartos do piso acima, onde trocou de roupa. Agora usava um
vestido verde escuro e o cabelo ruivo recolhido em um coque
elegante que realçava seus delicados traços e seus olhos azuis.
—Crystal Garden não é o Real Jardim Botânico de Kew,
admito —disse Lucas. — E também não sugeriria celebrar uma festa
ao ar livre nos jardins. Mas as plantas e as flores que tem nele são
totalmente naturais. É só que crescem graças aos elementos
paranormais das águas deste lugar.
Os olhos de Judith brilharam de raiva e de um velho medo que
Lucas conhecia bem.
—Já sabe que não acredito em fenômenos paranormais —
replicou.
—Pelo que se supõe que é uma das razões pelas quais nós
nunca tenhamos nos dado bem, sem afinidades e sem diálogos —
sentenciou Lucas, sorrindo com certa frieza.
—Não vim aqui para brigar com você, Lucas —indicou Judith,
ruborizada.
—Por que chegaste sem avisar, então? E porque arrastou Tony
contigo?
—Não te enviei um telegrama porque sabia que seguramente
me responderia de imediato dizendo que não seria bem vinda.
Quando Tony soube que vinha, insistiu em acompanhar-me. Temo
que ache muito interessante este lugar horrível.
—Não estou aqui para atender uma casa cheia de convidados.
Estou envolvido em dois projetos muito importantes na velha
abadia. Preferia não ter ninguém aqui, acredite. Mas sem me dar
conta minha casa está se enchendo de parentes que viajam sem me
avisar cheios de bagagens e uma ou duas donzelas. A este passo,
Molly terá que abrir mais uma ala.
—Foi você quem enviou um telegrama para Florence. Não é
culpa minha se Beth decidiu acompanhá-la até aqui.
—E você esta aqui pela Beth, não? Não aprova o jovem que a
fascinou.
—Sim, vim para conversar contigo sobre o futuro de Beth —
aceitou Judith. — Mas antes de abordar este tema, devo perguntar
que raios está se passando aqui. Florence me contou que ontem à
noite tiveste uma aventura com a senhorita Ames nos jardins e que
pegaram aos dois voltando para casa ao amanhecer. Os dois
estavam com as roupas arruinadas sendo que ela vestia roupa de
dormir e agora assegura que está comprometido.
—A senhorita Ames e eu estamos comprometidos.
—Não está pensando em se casar com ela, verdade? Mas
Florence disse que ela ganha a vida trabalhando como dama de
companhia, pelo amor de Deus. Compreendo que pense que é uma
questão de honra. Agora bem, os cânones sociais não se aplicam
nesta situação. A senhorita Ames não pertence à alta sociedade.
—Quando viu que me importo um pouquinho que seja com os
cânones sociais?
—Está me dizendo que realmente tem intenção de se casar
com ela?
—Em uma palavra? Sim.
—Não acredito. Conheço-te muito bem, Lucas. Está tramando
algo.
—Sugiro encarecidamente que me diga por que veio aqui —
disse enquanto pegava o abre cartas de prata de lei e o balançava
entre os dedos. — Se não abordar o assunto em questão, vai estar
sentada no primeiro trem de volta a Londres.
—Muito bem, suponho que teu compromisso é assunto seu —
concedeu Judith depois de franzir os lábios.
—Sim, exatamente. E vou lhe dar um conselho: trate à
senhorita Ames com respeito. Entendeu?
Judith juntou as mãos na mandíbula tensa.
—Claro. — respondeu.
—Diga o que tem para dizer. Pode passar a noite aqui e
regressar a Londres pela manhã.
—Tão gentil como sempre —comentou Judith com um sorriso
amargo.
Lucas reuniu toda sua força de vontade e conseguiu dominar
seu gênio.
—Por favor, Judith, não é necessário que tenhamos
formalidades. Você e eu nos conhecemos muito bem desde o
primeiro dia.
—Tem razão —disse Judith, que conservou a compostura
apesar de ter empalidecido. — Vim por Beth. Não gostaria de pedir,
Lucas, mas se precisar ser assim, me colocarei de joelhos.
—O que você quer de mim?
—Sabe tão bem como eu que neste último ano rechaçou três
jovens de família estupendas.
—E o que?
—Tem dito que se não pode se casar com Charles Rushton, não
se casará com ninguém.
—Sim, falou algo sobre isso. Acredito que é um expert em
antiguidades e línguas mortas. Já sabe que sempre se interessou por
esses temas.
—Beth está interessada em muitos temas. O que significa isso?
—Acredito que Beth está convencida de que o senhor Rushton
e ela são intelectualmente compatíveis e que possuem muito em
comum.
—Estas coisas não tem nada a ver com matrimônio —
assegurou Judith com o punho fechado.
—Já sei que, para você, o matrimônio é uma transação
comercial.
—Não me trate com condescendência. Para uma mulher, é
exatamente isso: uma transação comercial.
Não tinha sentido tentar ter uma conversa civilizada e racional
com Judith. Lucas pensou que aquelas alturas, já deveria saber
disso. Ainda assim, tinha que tentar, ainda que fosse só por Beth.
—Beth é uma moça inteligente e sensata —afirmou. — Te
sugiro que lhe deixe tomar sua própria decisão, pois estou seguro
que o fará de qualquer forma.
—As moças raras vezes são sensatas quando se trata do
matrimônio.
—Tem algo concreto pelo qual considera Charles Rushton
inaceitável?
—Por Deus, não tem um centavo em seu nome! —exclamou
Judith, exasperada.
—Está segura disso?
—Sim, claro que estou segura. Pedi a Miller que investigasse
sua situação financeira quando me dei conta de que Beth começava
há passar muito tempo em museus em sua companhia. O homem
sobrevive com uma pensão que seu avô deixou para ele. Mal pode
manter a si mesmo, nem pensar em uma esposa. E não tem nada por
vir. É evidente que é um caça fortunas.
—Ainda que o que disse for correto, o que espera que eu faça a
respeito?
—Precisa deixar claro a Beth que proíbe este casamento.
—De verdade acredita que isso a deteria? Se por acaso, isso
tiver o efeito contrário. É muito mais provável que se case
clandestinamente se chegar à conclusão que todos estamos contra
ela.
—Pois então vá falar com Rushton —indicou Judith,
levantando-se da poltrona. — Você controla o dinheiro da família.
Ele sabe disso. Estou segura de que se deixar claro que te opõe a
esse matrimonio e que Beth não receberá nada se casar-se contra sua
vontade, desaparecerá.
—E o que acontece se você estiver equivocada com Rushton,
Judith? —perguntou Lucas, que também ficou de pé. — O que vai
acontecer se ele realmente ama Beth e ela o ama?
—Duvido muito estar equivocada. Mas ainda que resulte que
eu esteja, isso não muda nada. O amor é frágil, fugaz e variável. Não
pode confiar que manterá unido a duas pessoas por toda a vida.
Não quero que Beth fique mal.
—Como você? —perguntou Lucas.
—Como se atreve, Lucas? —o olhar de Judith refletia raiva e
dor de uma única vez.
Ao vê-lo, Lucas lamentou suas palavras. Custava se
compadecer de Judith, mas tinha limites que nunca deveria
ultrapassar. Ele acabara de fazê-lo e se sentia mal consigo mesmo.
—Perdoe... —tratou de se desculpar em voz baixa. Cruzou a
habitação para abrir a porta. — Não era necessário este último
comentário.
—Pois sim —concordou Judith. — Não precisa que me lembre
de meu próprio passado. Nunca esqueci, acredite-me. Penso nele
todos os dias de minha vida.
—Sei muito bem que casar-se com meu pai não te fez feliz.
Mas, de verdade que quer obrigar Beth a mesma classe de
matrimônio sem amor?
—Não, claro que não. Mas com os méritos que tem, aparecerão
outros pretendentes. Encontrará outro jovem mais adequado.
Diferente de mim, poderá escolher.
Judith passou ante ele e saiu ao corredor.
Depois de fechar a porta, Lucas cruzou de novo á sala para
contemplar os jardins desde a janela coberta por videiras. As
palavras de Judith pareciam ressoar na biblioteca silenciosa:
«Diferente de mim, ela poderá escolher».
Ficou ali um bom tempo, pensando que tinha feito isto esta
mesma manhã. Ao anunciar seu compromisso às pessoas que os
estavam esperando fora do labirinto, tinha tirado de Evangeline seu
direito a escolher por si mesma. Agora ela parecia estar com um
pouco de pânico. Nos últimos dias ela tinha vivenciado uma
extraordinária série de perigos, o que tinha afetado seus nervos.
Pensou que precisava de tempo para dar-se conta de que
casar-se com ele seria o melhor para ela, para os dois.
Precisava cortejá-la. Ela merecia isso. Mas como um homem
poderia cortejar uma mulher como manda Deus, quando tentava
protegê-la de ser assassinada?
25

Evangeline estava no salão, terminando uma xícara de chá com Beth


e Florence enquanto desfrutava do sol da tarde que entrava
abundante pelas janelas quando Judith apareceu na porta.
O salão estava situado na parte da casa que Evangeline tinha
considerado ser o lado onde o sol batia sempre, ou seja, o lado
oposto dos jardins murados. A luz cálida no entanto, não duraria
muito mais. Em uma hora o sol começaria a esconder-se atrás dos
espessos bosques, e a velha abadia seria submersa no crepúsculo do
verão.
—Senhorita Ames —disse Judith. — Esperava encontrá-la
aqui.
—Senhora Sebastian, entre, por favor —disse Evangeline.
—Sente-se e tome um pouco de chá, mamãe —interveio Beth
com a xícara nas mãos.
—Sim, Judith, venha tomar um pouco de chá —disse Florence.
— Me dá a impressão de que necessita recuperar suas forças. Eu
entendo, acredite-me. Aqui o ambiente nos coloca os nervos à prova,
eu juro. Este lugar sempre foi desagradável, mas agora é ainda mais
angustiante.
—Sei a que se refere —assegurou Judith em voz baixa.
—Ontem tomei duas doses de meu tônico especial para
conseguir dormir, ainda assim não consegui descansar... —
prosseguiu Florence. — Finalmente consegui dormir um pouco
antes do amanhecer e, quando mal consegui, fui despertada pelo
barulho que causou ao se descobrir que tanto Lucas como a
senhorita Ames tinham desaparecido. Essa visita esta sendo muito
estressante, na verdade.
—A tia Florence acabou de decidir que partirá amanhã pela
manhã —explicou Beth.
—Está claro que já não precisam de mim por aqui e a verdade
é que não aguento mais este lugar —indicou Florence com um
calafrio. — Rose está acima, preparando a bagagem. Amanhã
tomaremos o trem pela manhã até Londres.
—Eu gostaria de ter uma palavrinha em particular com a
senhorita Ames —disse Judith, dirigindo-se a Beth e a Florence. —
Se importariam de nos deixar a sós um momento?
Florence a olhou com os olhos penetrantes e voltou depois às
vistas para Evangeline. Deixou sua xícara ao lado entendendo a
situação.
—Claro —respondeu. — Irei acima para tentar uma sesta.
Levantou-se e saiu do salão.
Evidentemente aliviada por poder sair, Beth deixou a xícara na
mesa e se colocou em pé de um salto.
—Vou até a biblioteca —anunciou. — Só estava descansando
um pouco.
—Descansando de que? —quis saber Judith, que parecia
perplexa.
—Tony e eu estamos ajudando Lucas em uma investigação.
—Que tipo de investigação estão fazendo? —perguntou Judith
com o cenho franzido.
—Estamos lendo os diários mais recentes de tio Chester para
ver se encontramos os nomes de alguns colegas que pudessem ter
vindo até Crystal Garden nos últimos meses.
—Para que isso?
—Ainda não soube? —disse Beth da porta. — Lucas acredita
que tio Chester tenha sido assassinado.
—Meu Deus! —exclamou Judith, horrorizada.
—E a governanta de tio Chester, a senhora Buckley, também
pode ter sido vítima —assegurou Beth. — Ontem à noite alguns
intrusos estiveram aqui em Crystal Garden. Evie e Lucas os
encontraram nos jardins e quase foram mortos. Ao senhor Stone
deixaram inconsciente.
—Não, por favor. —Judith, escandalizada, praticamente caiu
sobre a poltrona. — Chega de assassinatos. Aqui, não. O que
acontece com esse homem? A morte é sua obsessão, sempre foi.
—Evie pode explicar melhor —sugeriu Beth. — Eu preciso
voltar à biblioteca. Lucas espera impaciente pelos resultados.
Naturalmente, teme que o assassino possa escapar.
Saiu apressada pelo corredor. Evangeline esperou até que seus
passos rápidos deixaram de ser ouvidos. Então pegou o bule e
serviu uma xícara para Judith.
—Obrigada —sussurrou esta. Levantou a xícara com uma mão
tremente, tomou um pouco de chá e depois deixou a xícara com
extremo cuidado. — Como se atreve a envolver Beth e Tony em uma
de suas espantosas investigações?
—Em honra da verdade, Lucas não queria fazê-lo. Foi ideia
minha. Mas o assunto pareceu interessar a Beth e Tony.
—Naturalmente —disse Judith debilmente. — Os gêmeos
sempre consideraram apaixonantes e espantosos o hobby de Lucas.
—Não parece representar nenhum perigo —esclareceu
Evangeline em seguida. — Simplesmente estão lendo os diários e
tomando notas.
—Você não entende, ninguém entende. —Judith parecia
cansada.
—O que é que não entendo? —perguntou Evangeline.
—Desde o primeiro momento, soube que me detestava.
—Quem? Lucas?
—Sim, Lucas. Tinha apenas quinze anos, três a menos que eu,
quando me casei com seu pai. Assustou-me desde o primeiro dia.
Era um jovem muito estranho, tanto que estava convencida de que
era mentalmente instável. Quando os gêmeos nasceram, me negava
a deixa-lo se aproximar.
—Não acredito que Lucas poderia ser um perigo para você e
seus filhos.
—Naquele tempo, não estava segura de que alguém estivesse a
salvo perto de Lucas. Seu comportamento era cada vez mais
estranho. Vivia recluso. Passava horas fechado em seu quarto com
seus livros. Às vezes saia dali com um aspecto de não ter dormido
nada. Quando estava no internato, eu podia dormir tranquila, mas
quando estava em casa, não pregava o olho até que saísse à noite
para as ruas. Rara vez voltava antes do amanhecer. Quando foi
viver sozinho, fiquei muito aliviada.
—Entendo.
—Fiquei sabendo que suas incursões noturnas às ruas não
cessaram. Ouvi o pessoal do serviço falar. Circulavam rumores que
Lucas desaparecia cada vez com mais frequência pela noite e que
algumas vezes regressava com a roupa manchada de sangue.
—Como o pessoal do serviço sabia disso?
—Porque quando se mudou, levou com ele Paul, um dos
lacaios —respondeu Judith muito séria. — Mas passado um ou dois
meses, Paul deixou de trabalhar para Lucas e perguntou a meu
mordomo se poderia recuperar seu antigo posto. Uma vez
recontratado, contou a alguns dos demais membros do serviço que
tinha medo de que Lucas estivesse metido em prática de magia
negra.
—Lucas estava descobrindo seus poderes paranormais. Suas
faculdades psíquicas são muito fortes. Podiam perfeitamente
assustar um rapaz tão jovem. Estava se esforçando por controlar
seus novos poderes e, sem duvida, ao fazê-lo comportava-se de
forma pouco convencional.
—Dizer «pouco convencional» é pouco, senhorita Ames. Digo
que regressava com a roupa manchada de sangue.
—Porque tinha começado a investigar assassinatos usando
suas faculdades psíquicas —disse Evangeline com doçura. — Estou
segura que as cenas de crimes devem ter uma grande quantidade de
sangue.
—Fala dos poderes paranormais como se não fossem nada,
senhorita Ames. —Judith apertou a mandíbula. — Já sei que está na
moda assistir sessões de espiritismo e leituras psíquicas, mas tenha
em conta que para muitas pessoas este tipo de coisas são só
superstições e falácias de ciências ocultas.
—A energia paranormal não tem nada a ver com ocultismo ou
superstição —esclareceu Evangeline. — É somente energia. —mas
sabia que estava gastando saliva a toa. — O pai de Lucas sabia que
seu filho estava passando por isso e que buscava respostas?
—George era um inútil —disse Judith depois de soltar um
ruído de indignação. — Não me escutava quando lhe contava o que
me preocupava com relação a Lucas. Na realidade, nunca prestou
muita atenção a ninguém, nem a seu próprio filho. Raras vezes
estava em casa e quando estava ali, se retirava a seu estúdio com
seus livros sobre o antigo Egito e Roma. De vez em quando escrevia
alguns artigos para jornais que ninguém lia. Mas a maior parte do
tempo estava fora, escavando em algum sitio arqueológico no
estrangeiro. Três anos depois de nos casarmos, faleceu em uma de
suas expedições: as paredes de uma tumba que estava escavando
desabaram em sua cabeça.
—E o avô de Lucas?
—Com certeza, foi mais pai que George, mas ficou muito
preocupado quando Lucas afirmou possuir poderes paranormais.
Ficou preocupado com a mácula na linhagem, sabe?
Evangeline segurou com mais força a xícara, ainda com
esforço, para não alterar a voz disse:
—Os poderes psíquicos não são uma mácula na linhagem.
—Essa é a sua opinião. A única coisa que sei dizer é que o avô
de Lucas se preocupava com sua estabilidade mental. Ao final,
contudo, admitiu que Lucas era muito astuto na hora de manejar os
investimentos dos Sebastians. Converteu Lucas em seu único
herdeiro. Lucas tem o controle absoluto da fortuna familiar há
muitos anos.
—Tenho a impressão de que seu matrimônio com o pai de
Lucas não era o que podia se chamar de casamento por amor.
—E isso existe? —soltou Judith com uma careta. — Me casei
com George Sebastian pelos motivos habituais. Meus pais não
tinham dinheiro. A única coisa que tinha a oferecer era minha
juventude e minha beleza. George e meu pai eram colegas. Os dois
eram obcecados por arqueologia. Pouco depois da morte da mãe de
Lucas, meu pai sugeriu a George que eu seria uma esposa excelente.
George considerou que seria uma solução muito prática para seu
problema.
—Qual problema?
—George precisava de alguém para cuidar da casa —explicou
Judith em um tom seco. — Custava a ele conservar as governantas,
acredito que, em parte, por causa de Lucas. Foi por esse motivo que
George e eu nos casamos naquele mesmo mês.
—Tão rápido?
—George não tinha o menor interesse em celebrar uma
cerimônia com muita pompa. Estava ocupado fazendo planos para
sua seguinte expedição. Partiu para o Egito menos de uma semana
depois de nosso casamento.
—Fico surpresa por ter aceitado se casar com ele.
Judith voltou à cabeça para a janela e depois de novo para
Evangeline. Seus olhos refletiam dor, mas não alterou a voz:
—Já te disse, tinha acabado de fazer dezoito anos. Meus pais
insistiram que me casasse com George. Não podia fazer outra coisa
a não ser obedecer. A gente faz o que precisa fazer. Mas isso forma
parte do passado. Se sou franca com você, é só porque desejo deixar
claro que entendo sua situação.
—A que se refere?
—Sei que te apareceu uma oportunidade de ouro para entrar
para a endinheirada família Sebastian. Mas de mulher para mulher,
te aviso para que tenha cuidado com o que deseja.
—Acontece que sei muito bem os riscos de um casamento por
conta da fortuna e da posição social —disse Evangeline. — Asseguro
que não tenho nenhum interesse em cometer esse erro.
—Me alegra ouvir isso, pois posso assegurar que um
matrimônio assim acaba por se transformar em uma prisão
perpétua.
—Mas seu marido faleceu há anos.
—Sua morte não mudou em nada minha vida —explicou
Judith. — Lucas controla toda a fortuna, o que significa que sigo
presa em minha preciosa jaula de ouro. Mais ainda, meus filhos
estão presos junto comigo.
—Não entendo. Com certeza seu marido previu algo para você
e para os gêmeos.
—George nunca prestou atenção aos assuntos financeiros. A
única coisa que previu para os gêmeos e para mim foi que Lucas
estava obrigado a nos manter até que nos casássemos, se o fizermos.
Isso nunca foi um problema para mim. Nunca tive o menor desejo
de voltar a me casar. Mas tenho medo do que Lucas irá fazer
quando Beth e Tony estiverem no momento do casamento.
—Não acredita que Lucas vai deserdá-los quando se casarem,
verdade? —se surpreendeu Evangeline.
—Eu já te disse: eu o conheço mais que você, senhorita Ames.
Sempre soube que um dia encontraria uma forma de vingar-se de
mim pelo que considera um delito contra sua mãe.
—Não pode estar falando sério. Pode até ser que Lucas tenha
se incomodado quando tinha quinze anos. Afinal, acabara de perder
sua mãe e seu pai já levava outra mulher para casa. Mas isso faz
anos e ele já não é nenhum menino. Agora compreende esse tipo de
coisas. Sabe que você não teve culpa.
—Está equivocada, senhorita Ames. Lucas me culpa e tem
intenção de castigar-me. E mais, o fará na forma que sabe que
provocará mais danos, através de meus filhos.
—Não, não posso acreditar nisso —insistiu Evangeline. —
Nem por um segundo. Ainda que estivesse ressentido com você,
jamais faria Beth e Tony pagar por isso. É evidente como os quer
muito.
—Não acredita por que não o conhece tão bem quanto eu,
senhorita Ames. Lucas está planejando deserdar tanto Beth como
Tony. Mas para isso teriam que se casar. Nada faria mais completa
sua vingança que ver minha filha fugir com o caça fortunas de
antiguidades.
—Estou certa que julga muito mal ao Lucas —comentou
Evangeline. — Acredito que Beth tem uma ideia muito mais precisa
de como ele é, pois não tem medo dele.
—Não precisa me dizer isso —assegurou com um ruído breve,
áspero, exasperado. — Beth e Tony idolatram verdadeiramente
Lucas. É o mais parecido a um pai que tiveram na vida. E devo
admitir que interpretou bem seu papel. Os gêmeos são muito
ingênuos, muito inocentes. Não tem nenhuma ideia de que Lucas
está esperando o momento oportuno para usá-los em sua vingança
contra mim.
—Isso não é verdade —contradisse Evangeline. — Me nego a
acreditar.
—Só faz uns dias que conhece Lucas. Não sabe nada dele.
—Sei o suficiente para estar convencida de que o medo que
tem de Lucas é injustificado. Baseia-se, sem dúvida, em seus
poderes paranormais. Até compreendo que a tenha colocado
nervosa quando acabara de casar-se. Mas a estas alturas já deveria
ter visto que ele não é nenhum desequilibrado.
—Ele te contou sobre o desagradável hobby que tem, senhorita
Ames?
—Está se referindo à que algumas vezes assessora à Scotland
Yard? —perguntou Evangeline sem alterar-se.
—Já é bem ruim que se misture em investigações policiais. Não
pode dizer que algo assim se inclua no âmbito de atuação de um
cavalheiro. Mas Lucas só os assessora nos casos de assassinatos mais
horrendos, o tipo de crime horrível que aparece nos jornais
sensacionalistas. E agora ainda me vem com a conclusão de que seu
tio foi assassinado quando é mais que evidente que Chester
Sebastian foi vítima de um de seus antinaturais experimentos
botânicos. Diga-me, senhorita Ames, não te parece isso uma atitude
de um homem desequilibrado?
—Você está analisando isso de um ponto de vista equivocado.
—Não queira me dar lições sobre Lucas Sebastian —disse
Judith, levantando-se. — Tenho tratado com ele desde que tinha
dezoito anos. Aterra-me saber que o futuro de meus filhos está em
suas mãos.
—Escute-me, por favor. O melhor ainda, escute Beth.
—Só uma mulher muito tola e ingênua poderia convencer a si
mesma de que está apaixonada por Lucas —comentou Judith com
dureza. — Algo me diz que você não é nenhuma dessas coias,
senhorita Ames.
—Espero que não.
—Então é uma oportunista. —O sorriso de Judith era amargo.
— Não a culpo em nada. Mas está saindo de seu terreno. Estou certa
de que acredita ser muito esperta por ter salvado sua reputação por
um cavalheiro rico que, ao que parece, se sente obrigado a fazer o
que é devido. Mas não é isso o que acontece. É você quem está
sendo usada, senhorita Ames.
—De que forma, posso saber?
—Não se engane acreditando que é a honra que leva Lucas a
casar-se com você por ter comprometido sua honra. Te asseguro que
ele segue suas próprias regras, não as convenções sociais. Não faça
ilusões pensando que esteja apaixonado por você. Lucas não
conhece o significado dessa palavra. Se está decidido a casar-se com
você é porque chegou a conclusão que você será útil para ele.
Evangeline deixou sair seu gênio. Se colocou de pé
bruscamente.
—Como? —quis saber.
—Não pretendo conhecer seus planos. Ninguém nunca foi
capaz de entender Lucas. Mas sei que sempre tem um objetivo e que
é implacável quando se trata de consegui-lo, esteja avisada.
—Obrigada. —Evangeline não tentou ocultar a frieza de sua
voz. — Uma última coisa.
—Sim? —Judith parou.
—Esse hobby de Lucas que mencionou.
—O que tem ele?
—Acontece que nesse momento eu preciso desses
conhecimentos.
—Não entendo —confessou Judith com o cenho franzido.
—Alguém esta tentando me matar.
—Você está brincando comigo? Porque se for isso, saiba que é
de muito mau gosto.
—Meu atacante já tentou uma vez. Temos motivos para
acreditar que fará novamente. Naturalmente, espero que Lucas
encontre a pessoa que quer acabar com minha vida antes que ela
consiga.
—Meu Deus! —Judith estava chocada. — Não consigo evitar
me perguntar se você é tão perturbada e desequilibrada quanto
Lucas. Retiro a advertência que lhe fiz sobre os riscos de casar-se
com ele. Ao que parece, pode ser que sejam feitos um para o outro.
Abriu a porta do salão e saiu ao corredor. Um instante depois
se ouviu seus passos nas escadas.
26

Evangeline ficou um tempo sentada, tomando seu chá. Ao final se


levantou e saiu ao corredor para dirigir-se à biblioteca. A porta
estava aberta. Lucas estava de pé atrás da mesa, examinando sob a
luz de uma lâmpada a gás o farol que se convertia em uma arma. Ao
vê-la seus olhos brilharam.
—Evangeline —disse. — Excelente. Ia pedir a alguém que
fosse chamá-la. Entre e feche a porta. Está quase impossível ter
alguma intimidade nesta casa. Qualquer pessoa diria que estou
celebrando uma dessas malditas festas que duram vários dias. E
pensar que tinha planejado fazer uma simples investigação de
assassinato.
Evangeline entrou no cômodo e fechou a porta.
—Existem investigações simples de assassinato?
—Boa pergunta. Depende do que entenda por «simples». Pode
ser bastante fácil identificar o assassino ou assassina. O difícil é
entender o motivo de ele ter feito isso. As pessoas te surpreendem
com explicações e desculpas incríveis. Mas, segundo minha
experiência, só existe um punhado de razões para matar alguém.
—E quais são elas?
—Ciúmes, vingança, cobiça, medo e prazer.
—Prazer?
—O termo mais habitual é «loucura». —Lucas arqueou as
sobrancelhas. — Alguns assassinos gostam de matar, Evangeline.
Para eles é um jogo fabuloso e é a esses, na maioria das vezes, que
eu vou caçar.
—Os assassinos loucos.
—Sim.
—Não parece que seu tio foi assassinado por nenhum louco —
comentou Evangeline, lançando uma olhada ao farol.
—Acredito que podemos recorrer a um dos demais motivos
tradicionais para explicar o assassinato de tio Chester e
possivelmente da senhora Buckley. A partir do que averiguamos
ontem à noite quando nos encontramos com os intrusos, parece que
o motivo foi à cobiça. —Lucas olhou o farol. — Pode ser que esta
seja a arma do crime.
—Isso explicaria por que o cadáver de seu tio não apresentava
nenhuma ferida.
—O assassinato por meios paranormais não deixa nenhum
vestígio evidente. A morte só pode ser descrita como infarto ou
derrame cerebral.
—Meu Deus, tem investigado esse tipo de assassinato?
—Sim, mas são raros. —Deixou o farol sobre a mesa. —
Existem poucas pessoas com poderes psíquicos capazes de cometer
um assassinato dessa forma.
Evangeline ficou gelada.
—Você não é nenhuma assassina, Evangeline —assegurou
Lucas, quando se deu conta. — Matou em defesa própria. Isso é algo
muito diferente. Sente-se e diga-me porque veio me ver.
Evangeline se sentou em uma das poltronas de leitura e
arrumou a saia distraidamente.
—Acabo de ter uma conversa bem incômoda com Judith.
—Isso não é estranho —soltou Lucas. — A maioria das minhas
conversas com Judith podem ser qualificadas como incômodas. —Se
apoiou na beira da mesa. — Algumas poderiam ser classificadas
como bem desagradáveis. Suponho que tenha te advertido que sou
um homem perigoso, mentalmente desequilibrado, dado ao
passatempo horrível de investigar assassinatos dos mais espantosos.
—Vejo que é bem consciente da ideia absurda que a perturba
tanto sobre você.
—Gosto que tenha usado o verbo «perturbar» —comentou
Lucas depois de cruzar os braços. — Ainda que deva admitir que
tenha seus motivos para pensar como pensa.
—Tem medo de você.
—Evidentemente.
—Entendo que a coloca-se nervosa quando acabara de se casar.
Afinal, você estava enfrentando a aparição de seus poderes e ela
nem mesmo acredita nos fenômenos paranormais. Não é estranho
que acreditasse que podia estar um pouco desequilibrado.
—Sua reação foi, sem dúvida, compreensível —concordou
Lucas.
O tom perfeitamente neutro de sua voz despertou a intuição
de Evangeline, que soube que tinha algo mais.
—Você, de sua parte, se sentia mal com ela porque tinha
acabado de perder sua mãe — prosseguiu Evangeline com cautela.
— Além do que, estava se transformando em um homem. A última
coisa que queria era ter uma madrasta. Que Judith não fosse muito
mais velha que você dificultou ainda mais as coisas.
—Sim — concordou Lucas, que não disse mais nada.
—Ainda assim, caberia pensar que a hostilidade entre os dois
teria se suavizado um pouco com o passar dos anos.
—Sim, caberia pensar. —Lucas esteve de acordo.
Evangeline reconhecia um muro quando se chocava de cabeça
em um. A relação tumultuosa entre Lucas e Judith não era assunto
seu. Depois de tudo, não era membro da família. Mas não conseguiu
resistir.
—Judith disse que quando era mais jovem tinha o costume de
sair pelas ruas à noite e não regressava até o amanhecer. Suponho
que tenha sido quando começou a investigar assassinatos.
—Sim.
—Mas tinha algo mais, verdade?
—Quer saber o que eu fazia aquelas noites?
—Algo me diz que é importante.
Lucas ficou olhando fixamente um tempo com olhos lúgubres
e impenetráveis. Ao vê-lo, soube que duvidava se deveria ou o
quanto deveria contar, não porque não confiasse nela, sim porque
não sabia como iria reagir.
Quando o silêncio se prolongou, Evangeline suspirou e se
recostou em seu assento.
—Não importa, Lucas. Compreendo que não queira contar.
Tem direito a ter seus segredos.
—Você me confiou seus segredos mais íntimos. O justo é que
conte os meus.
Separou-se da mesa para se aproximar das janelas meio
tampadas. Ficou um momento em silêncio. Evangeline aguardou.
—Tratei de falar sobre meus poderes paranormais com meu
pai, mas logo me deixou claro que os considerada um defeito. Ficou
enojado e assegurou que tinha herdado esses poderes por parte da
família de minha mãe, o que era falso. Mandou-me que guardasse
silêncio sobre minhas habilidades. Falei com meu avô, que me
confirmou que tinha herdado minhas afinidades pela energia
psíquica mais escura de minha linha paterna. Os poderes não
apareciam com frequência, mas quando apareciam, podiam ser
desastrosos.
—De que jeito?
Lucas segurou o batente da janela com uma mão.
—Alguns de meus antepassados podiam controlar seus
poderes, outros não —respondeu. — Os que não conseguiam, assim
como outros membros da família, acreditavam que isso era obra de
forças demoníacas. Mais de um de meus predecessores terminou
seus dias em um manicômio.
—Os fenômenos paranormais não eram muito conhecidos no
passado.
—Os fenômenos paranormais não são muito mais conhecidos
agora, como sabemos muito bem —disse Lucas, olhando-a.
—Certo. —Conseguiu esboçar um ligeiro sorriso. — Na
atualidade, as habilidades psíquicas são vistas como uma espécie de
entretenimento para festas e reuniões. Estamos imersos entre
médiuns farsantes e pessoas que asseguram possuir poderes
psíquicos.
—O problema em supor que todos os que praticam os
fenômenos paranormais são farsantes é que se pode passar por alto
os autênticos até que seja muito tarde para isso.
—O que quer dizer com isso?
—Quando percebi que minhas faculdades estavam mais fortes
e me conduziam até as cenas de crimes violentos, soube que tinha
que aprender a controlar meu aspecto psíquico. A alternativa era
arriscar-me a ficar louco ou algo ainda pior.
—O que poderia ser pior?
—Converter-me em um predador humano, em um dos
monstros.
—Isso nunca —disse Evangeline com certeza. — Você não é
assim.
—Gosto de pensar que isso é certo, mas quando tinha
dezenove anos, estive muito próximo, Evangeline.
—Não, jamais.
—Fui em busca de um mentor, um guia, alguém como eu que
pudesse ensinar-me o que necessitava saber para dominar minhas
faculdades —explicou Lucas sem ouvi-la. — Visitei todos os
médiuns de Londres e assisti a todas as demonstrações de poderes
psíquicos que pude encontrar. Mergulhei nos ambientes de quem
pratica os fenômenos paranormais e, passado algum tempo,
começaram a confiar em mim. Nem todos os médiuns eram
farsantes, claro, alguns dos que afirmavam possuir habilidades
paranormais eram autênticos.
—Imagino.
—Comecei a ouvir rumores sobre um homem com umas
faculdades especialmente poderosas a quem chamavam Maestro. Os
que tinham poderes falavam dele em voz baixa. Decidi procurá-lo.
—Porque diziam que era tão poderoso?
—Não, porque pelos indícios que me chegavam, estava
convencido de que seus poderes eram muito parecidos aos meus.
—O encontrou? —perguntou Evangeline.
—Seria mais correto dizer que ele me encontrou. Ele também
tinha ouvido rumores, sabe? Nas ruas tinham corrido os boatos de
que havia um moço que percorria as cenas de assassinatos e atos
violentos, um moço que fazia pouco tinha chego a uma cena de
crime a tempo de deter o assassino, que mais tarde foi encontrado
morto em uma rua, aparentemente vítima de um infarto.
—Coisa sua? —perguntou Evangeline em voz baixa.
—Foi a primeira vez que usei meus poderes dessa forma —
confessou Lucas. — A primeira vez que vi que podia fazer aquilo. O
homem me atacou. Estava armado com uma faca que tinha
planejado cravar em uma mulher. Houve uma luta. Nublei sua
mente com horrores insuportáveis. A forte impressão parou seu
coração.
—Reagiu instintivamente em defesa própria, igual a mim
quando me encontrei com Douglas Mason no alto das escadas.
—Aquele homem não morreu na hora —esclareceu Lucas. —
Levou alguns segundos.
—Tempo em que esteve em contato físico com ele. Sentiu as
espantosas correntes da morte, a impressão que eu vivi quando
Mason morreu. Só a senti uma vez, mas suspeito que a sensação
rondará meus sonhos pelo resto de minha vida.
—Não há nada comparável à terrível energia que se gera no
momento em que se produz uma morte violenta.
—Acredito que tenha vivido esta terrível sensação mais de
uma vez —comentou Evangeline, compreensiva.
—Muitas vezes. Não é bom para a alma.
—Não, estou de acordo. Mas nessa ocasião salvaste não só sua
vida como também a da mulher que seria vítima. Teria matado se
não tivesse interrompido a tempo o assassino.
—E todas as demais antes dela, Evangeline? As que não
consegui salvar porque me custou muito tempo em averiguar a
forma de o assassino atuar?
—Não pode se culpar por não ler o pensamento de um louco.
Ninguém pode fazer isso. A questão é que o deteve. Como um
médico que perde pacientes, tem que aprender a se concentrar nas
pessoas que salvou.
—Uma analogia interessante —disse Lucas com um sorriso
forçado nos lábios. — Como pode seguir sendo tão romântica
depois de tudo que passou?
—Não estou sendo romântica. Simplesmente destaquei que
tem salvado uma grande quantidade de pessoas. E por qualquer
ângulo que se olhe, isso sempre te converte em um herói.
—Não, Evangeline. Faço o que tenho que fazer devido à
natureza de meus poderes. Poderia dizer que me forçam a fazê-lo.
—Pode ser que se sinta obrigado a salvar outras pessoas e a
destruir quem ataca sem piedade aos vulneráveis, mas não pode
dizer que isso seja um defeito. Pelo amor de Deus, Lucas, é evidente
que é dono de seus poderes e, portanto de si mesmo.
—Não de todo —disse com os olhos brilhantes. — Não quando
estou com você, Evangeline.
—Se está se referindo ao que aconteceu entre nós ontem à
noite... —comentou, tensa.
—Desde já.
—Pois se recorde que fui eu quem o seduziu.
—É assim que se lembra? —Lucas sorriu.
—Lembro muito bem do que aconteceu —disse com firmeza.
— Assim que voltemos ao tema de tua relação com esse homem
chamado Maestro.
—Foi esse caso, onde matei um homem pela primeira vez, que
chamou sua atenção. Colocou-se em contato comigo. Falamos.
Afinal, me tomou sob sua proteção e me ensinou muitas coisas.
Ensinou-me que os assassinos predadores eram um desafio maior.
Durante certo tempo fomos à caça juntos, e o fizemos em segredo.
—Disse caça? —se surpreendeu Evangeline, com o cenho
franzido. — Investigou seus próprios assassinatos?
—Ah, sim, vejo que capta a verdade. —o sorriso de Lucas não
expressava diversão, só um triste pesar. — Te felicito, Evangeline.
Compreendeu a diferença bem mais rápido que eu.
—Estou segura que a diferença entre investigar e caçar é muito
pequena, às vezes indistinguível. —Titubeou. — Acredito que isso
nem sempre importe muito.
—Importa. —começou a passear pela biblioteca. — Seguindo
com a narrativa, o Maestro era um cavalheiro rico que levava uma
vida dupla. Se divertia com a alta sociedade e pertencia aos
melhores clubes. Guardava em segredo seus poderes paranormais e
seu interesse pelos assassinatos. Ensinou-me a fazer o mesmo.
—Me parece muito sensato —sorriu Evangeline. — Como
todos sabemos, os cavalheiros não afirmam possuir poderes
psíquicos e não se interessam pelas investigações de assassinatos.
—Sim, claro. —Lucas sorriu fugazmente com frieza.
—Muito bem, este cavalheiro e você começaram a caçar juntos
os assassinos durante certo tempo. Suponho que o Maestro tinha
alguma relação com a polícia.
—Nunca revelou sua identidade às autoridades —explicou
Lucas. — Mas sim, assegurava para que encontrassem as provas que
conduziam até o assassino. Iniciaram-se algumas detenções.
—Só algumas? —Evangeline piscou.
—Vários dos assassinos simplesmente desapareciam das ruas.
—Deve ter visto a forma como ela o olhou, porque sacudiu a cabeça.
— Não foi coisa minha.
—O Maestro se elegeu juiz, jurado e carrasco?
—Em vários casos, sim. Mas demorei um tempo para me dar
conta do que estava acontecendo. O Maestro sabia muito bem o que
fazer para não deixar rastro. Desde já, os assassinos que se
encarregava eram malvados. Não me davam nenhuma lástima. Mas
logo percebi que não podia fazer o que ele fazia.
—Não podia se converter em um assassino a sangue frio, nem
sequer em nome da justiça.
—O que finalmente compreendi é que Maestro desfrutava com
o que fazia, não só caçar, como confesso que gosto, mas também
matar. Inevitavelmente, nos enfrentamos. Disse-me que eu era
muito brando, muito fraco para fazer o que precisava ser feito.
Estive de acordo que não estava feito para ser seu herdeiro. Nos
separamos. Alguns meses depois começaram os assassinatos.
—Que assassinatos?
—Foi a uma década, treze anos para ser exato. Todas as
vítimas eram amantes de homens da alta sociedade. Todas as mortes
ocorreram de forma que parecessem estranhos acidentes, mas não
passou muito tempo para que a polícia e a imprensa se dessem
conta de que eram obra de um assassino sem piedade. O assassino
sempre deixava algo na cena do crime. Os jornais ficaram loucos
com a história. Até batizaram ao assassino.
Evangeline fez mentalmente alguns cálculos rápidos.
—Você esta falando do assassino das cortesãs?
—Recorda os crimes? —Lucas franziu o cenho. — Naqueles
tempos você era muito jovem.
—Tinha treze ou quatorze anos. O que contavam os jornais me
causaram uma grande impressão.
—E a mim também —disse Lucas em tom grave. — Me
chamaram imediatamente a atenção porque não seguiam a forma de
atuar que tinha aprendido nas ruas. Os predadores a quem tinha
aprendido a caçar somente escolhiam vítimas que ninguém daria
falta, ao menos a sociedade respeitável. Prostitutas, mendigos e
meninos de rua em sua maioria.
—Entendo o que quer dizer. Estas vítimas eram prostitutas,
mas eram prostitutas muito elegantes. Cortesãs.
—Era como se o assassino estivesse desafiando a quem se
movia em círculos mais altos. Vários cavalheiros enviaram a suas
amantes para a Europa continental para passar umas férias
prolongadas. Outros contrataram guarda costas. Mas a maioria
deixou que as mulheres de defendessem sozinhas. Fui à cena dos
primeiros assassinatos e me fixei que o assassino tinha uma forma
de atuar concreta. Mas antes que pudesse encontrá-lo houve uma
terceira morte. Consegui chegar ao lugar do quarto crime quando a
mulher ainda estava viva.
—Recordo ter lido que a quarta cortesã sobreviveu e que o
assassino foi achado morto no lugar do crime. A vítima afirmava
que tinha sido salva por um desconhecido que passava por ali e
tinha se dado conta de como sua situação era desesperadora. Nunca
encontraram ao desconhecido. Suponho que era você.
—Tudo teria que ter terminado de um modo bem diferente. O
assassino tinha notado que eu estava me aproximando. Assim que
planejou matar tanto a cortesã como a mim e deixar provas nas
cenas do crime para que me fizesse parecer culpado pelos
assassinatos. Mas então eu já sabia a verdadeira identidade do
assassino. E cheguei bem antes que ele esperava.
—Salvou a quarta mulher e pegou o assassino. Me esqueci do
nome do criminoso que cometeu os assassinatos das cortesãs, mas
recordo que era um cavaleiro que se movia pelos altos círculos da
sociedade.
—Edward Cox —disse Lucas. — Meu professor e meu mentor.
O Maestro que me ensinou a caçar e matar.
27

Lucas estava inclinado sobre a escrivaninha com as palmas das


mãos estendidas sobre um grande mapa dos terrenos da velha
abadia que tinha despregado da parede enquanto estudava as três
marcas estranhas que seu tio Chester tinha feito nele. Algo lhe dizia
que aquelas marcas eram importantes, mas ainda não conseguia ver
o por que. Não tinham nenhuma anotação.
No corredor soaram alguns passos. Deduziu serem duas
pessoas, um homem e uma mulher. Ambos quase correndo.
Levantou a vista justo quando Beth e Tony chegavam à porta.
Beth tinha um dos diários de Chester nas mãos. Estava
resplandecendo de entusiasmo. Tony também parecia eufórico.
—Acredito que encontramos algo muito importante no último
diário do tio Chester —anunciou Beth.
Seu entusiasmo iluminava o ambiente que a rodeava. Não era
estranho que não quisesse casar-se com nenhum dos homens
aborrecidos e arrogantes que a cortejavam. Necessitava de alguém
que pudesse valorizar sua inteligência e sua vivacidade.
—Entrem, entrem —pediu Lucas. — Conte-me o que
descobriram.
—Encontramos uma referência a dois colegas de tio Chester
que parece terem-no visitado aqui em Crystal Garden, perto de um
mês antes de sua morte —explicou Beth. Aproximou-se da mesa e
deixou o diário sobre o mapa. — Por desgraça, tio Chester só os
identificou por suas iniciais, não por seus nomes completos, mas as
iniciais dos nomes coincidem com a forma em que ouvistes aqueles
homens se chamarem entre si ontem a noite: H & B.
—Horace e Burton —disse Lucas em voz baixa. A energia
estimulou seus sentidos e despertou o caçador que levava dentro.
—Sim. —Tony se situou junto a Beth. Ele também estava
exultante e animado. — Mais ainda, a última inicial dos dois é a
mesma: T.
—O que significa que podem ter sobrenomes iguais —deduziu
Lucas. — Poderiam ser parentes.
—Exato —concordou Tony. — Nos ocorreu que talvez
poderíamos repassar a correspondência de tio Chester para
encontrar nomes que coincidam com as iniciais e, com sorte, a
direção destes homens. É evidente que tio Chester os convidou ao
jardim. Teria que ter escrito algo: uma carta ou um telegrama.
—É uma notícia excelente —disse Lucas. — Parabéns aos dois.
Beth estava radiante. Tony sorriu feliz.
—Mostrem o que mais encontraram —pediu Lucas.
—As primeiras referências a HT e BT são de princípios de
junho. —Beth abriu o diário pelo lugar que tinha marcado com uma
tira de papel e assinalou uma das entradas escritas a mão. — Tio
chester menciona que convidou aos dois para ver os resultados de
seu último experimento. Alguns dias depois afirma ter recebido um
telegrama onde os homens avisam que chegariam à sexta-feira
seguinte. Menciona o fato de que a senhora Buckley não gosta da
ideia de convidados, mas argumenta que Buckley já está a um bom
tempo de mal humor. Parece irritado com ela.
Tony esticou a mão para passar algumas páginas.
—Estas anotações são da semana seguinte. HT e BT chegaram
e estavam alojados nesta casa. Tio Chester está muito esperançoso
porque os dois convidados trouxeram um novo artefato que pode
ser usado para orientar-se pelo Jardim Noturno. Disse que lembra
um farol pequeno e que funciona graças a um cristal.
Os três olharam para o pequeno farol de metal e cristal que
descansava em uma mesa próxima.
—Filhos da... —começou a dizer Lucas, mas lembrou-se que
Beth estava justo diante dele e parou em seco. — Agora, isto
responde, pelo menos em parte, uma das perguntas que nos
estávamos fazendo. Tem razão, o seguinte passo é identificar esse
HT e BT.
—Se não tiver nenhuma objeção, Beth e eu começaremos a
repassar imediatamente a correspondência do tio. Temos uma ideia
bem aproximada da data. Não vamos demorar a encontrar esses
nomes.
—O plano tem um problema —indicou Lucas. — Já li toda a
correspondência de tio Chester, a pouca que tem. Pelo visto era
muito impaciente para escrever cartas e raramente guardava as que
recebia.
A expressão de entusiasmo de Tony rapidamente se
transformou em decepção.
—Maldição —grunhiu. — Estava certo de que tínhamos
encontrado a solução.
—Deveríamos ter imaginado que não seria tão fácil —
comentou Beth, também abatida.
—Pode ser que tenhamos outra opção —sugeriu Lucas. — Tio
Chester era um homem moderno. Quando se dava ao trabalho de
comunicar-se com alguém, normalmente o fazia por telegrama.
Poderiam ir ao povoado falar com o telegrafista. Devem haver
registros dos telegramas que tio Chester enviava e recebia. E já que
estarão ali podem falar com o chefe da estação de trem e com
Mathew, que tem a carruagem de aluguel. Little Dixby recebe
muitos visitantes nesta época do ano, mas a maioria vem para ver as
ruínas no povoado. Nunca teve muitas visitas em Crystal Garden.
Alguém poderia se lembrar de algo interessante.
—Como isso não tinha me ocorrido! —exclamou Tony, se
animando na hora.
—Vamos agora mesmo ao povoado —acrescentou Beth. —
Com um pouco de sorte, em algumas horas teremos averiguado
algo.
Saíram correndo da biblioteca antes mesmo que Lucas pudesse
dizer algo. Voltou à mesa e contemplou o mapa. Um pouco depois,
quando ainda estava analisando-o, ouviu passos. Antes que
Evangeline aparecesse, ele já sorria.
—Molly me disse que Beth e Tony foram ao povoado —
comentou ela. — Descobriram algo interessante?
—No ultimo diário de tio Chester encontraram dois pares de
iniciais que poderiam pertencer aos dois homens que encontramos
no labirinto. Vão fazer algumas perguntas na estação de trem e falar
com o telegrafista.
—É uma noticia maravilhosa, mesmo que pode ser
desnecessária. Norris, o primo de Molly, acaba de chegar e
informou-nos que alguém chamou o médico na primeira hora da
manhã para que atendesse um homem que tinha uma febre
estranha. Evidentemente o médico voltou para casa temendo o pior.
Lucas saiu de trás da mesa e dirigiu-se rapidamente até a
porta.
—Disse a direção?
—Uma casa de campo em Willow Pond. Segundo Molly, está
mais ou menos a uma milha daqui se você tomar o atalho pelo
bosque uma vez que chegar ao final do caminho.
—Pode-se ir a pé —indicou Lucas. A energia da caça percorria
seu corpo. — Se sobreviveram à tormenta de energia, pode ser que
conseguiram chegar à casa de campo.
—Te acompanho —anunciou Evangeline.
—Não —negou Lucas depois de parar na porta. — É
impossível saber como seremos recebidos. Se HT e BT estão ali,
podem estar armados.
—Pode ser que um dos dois esteja morrendo —apontou
Evangeline. — Se está abatido pela mesma febre que você estava
ontem à noite, pode precisar de mim.
28

Horace estava tirando da testa ardente de Burton outro pano que a


febre tinha esquentado quando ouviu que chamavam com força e
exigência na porta principal. Quem sabe não seria o médico de volta
com alguma solução.
Deixou cair o pano na bacia do toucador e correu até o
pequeno salão. Parou para lançar um olhar através das cortinas. Ao
ver Sebastian e a mulher no umbral quase teve seu coração parado.
Não tinha sentido tentar fugir pela horta. Não poderia abandonar
Burton. Sua única esperança era enganá-los.
—O que desejam a estas horas? —perguntou atrás da porta.
—Sou Lucas Sebastian —disse este. — Esta é minha prometida,
a senhorita Ames. Nos conhecemos ontem à noite quando você e seu
companheiro entraram sem permissão nos jardins de Crystal
Garden.
—Não tenho nem ideia do que está falando —soltou Horace,
esforçando-se para dominar seu pânico. — Tem um enfermo em
casa. Poderia ser contagioso.
—Está vivo então? —perguntou rapidamente Evangeline. —
Talvez eu possa ajudá-lo.
—O médico já o visitou —assinalou Horace, olhando-a de
soslaio através dos óculos. — Disse que não pode fazer nada.
—Acreditamos que seu companheiro está tendo uma febre
paranormal. Não é provável que o médico tenha visto jamais algo
semelhante.
—E você, senhorita Ames?
—Sim —afirmou Evangeline. — Eu já vi. De fato, a vi ontem à
noite. O senhor Sebastian estava apresentando uma febre parecida
pouco depois da tormenta de energia no labirinto. Como pode ver,
ele está vivo e goza de boa saúde.
—Graças a você? —Horace ficou surpreso, debatendo-se entre
o receio e o desespero.
—A senhorita Ames salvou minha vida ontem à noite —
explicou Lucas. — Que mal tem em deixá-la examinar seu
companheiro?
—Não é meu companheiro —disse Horace abrindo a porta. —
É meu irmão.
Evangeline levantou o vestido e entrou.
—Onde ele está? —perguntou.
O desespero venceu o pânico e Horace se afastou para deixá-la
passar ao salão ensombreado. Sebastian a seguiu. Consciente de
que tinha perdido a pequena batalha, Horace fechou a porta.
—Burton está no quarto —respondeu.
Mas estava falando com as costas de Evangeline, que já estava
entrando no quarto.
Sebastian lançou um olhar rápido ao quarto. Evidentemente
convencido de que Evangeline não corria perigo com Burton, se
voltou e lançou um olhar frio e inexpressível para Horace.
—Você e eu vamos falar enquanto a senhorita Ames comprova
se pode fazer algo por seu irmão —disse.
—Não, não o entendo —piscou Horace. — Meu irmão e eu
viemos a Little Dixby para ver as ruínas.
Sabia que soava pouco convincente e pouco sincero. Jamais
tinha sido bom em mentir. A aura ameaçadora que rodeava
Sebastian era aterradora. O certo era que aquela energia inquietante
saturava o ambiente do salão. Os olhos de Sebastian brilhavam.
«Como os olhos de um demônio», pensou Horace. Era um cientista,
um pensador moderno, mas nunca tinha estado tão assustado em
sua vida. Aquele dia Burton não podia protegê-lo.
Sebastian nem se deu ao trabalho de questionar sua pobre
explicação.
—Suponho que assassinaram meu tio porque não permitiu que
vocês buscassem o ouro dos romanos, que segundo dizem, está
enterrado no Jardim Noturno.
—Assassiná-lo? —Horace deixou de respirar alguns segundos.
— Olhe, juro que não matamos Chester Sebastian. Todo mundo sabe
que morreu devido aos efeitos de uma planta tóxica de seus jardins.
—Pode ser que esta seja a teoria generalizada em Little Dixby,
mas estou convencido de que foi vítima de um assassinato. Suspeito
também que mataram sua governanta, provavelmente porque
poderia identificá-los.
—Não, por favor. Eu juro. Burton e eu não matamos ninguém.
—Você e seu irmão visitaram meu tio o mês passado, pouco
antes de sua morte.
—Como pode saber disso?
—Em seu último diário fala sobre sua visita ao local.
—Seu diário —repetiu Horace sem nenhum ânimo— Claro.
—Levaram o farol que funciona com um cristal —prosseguiu
Sebastian, implacável. — O artefato permitiu que se orientassem
pelo labirinto e imagino que pelo jardim interior. Também serve
como arma. Por certo, ficará aliviado em saber que meu empregado,
Stone, sobreviveu.
Sebastian sabia tudo. Horace sentia que o chão se abria sob
seus pés. Estava sobre um enorme poço escuro. Não tinha sentido
tentar mentir. O diabo tinha ido buscá-lo para arrastá-lo até o
inferno. Tremia tanto que não conseguia manter-se em pé. Caiu
sobre a cadeira mais próxima.
—O farol não era para ser uma arma —assegurou. — O cristal
pode ser utilizado com uma luz que permite orientar-se em lugares
onde há uma enorme quantidade de energia que nubla aos sentidos.
Esperávamos que pudesse usá-lo para encontrar o ouro enterrado.
Mas depois de produzi-lo me dei conta de que também podia
produzir uma luz que desestabilizava temporariamente todos os
sentidos, tanto de pessoas normais como de paranormais, o que
provoca um período de inconsciência.
—Ontem à noite, quando seu irmão usou a máxima potência
no labirinto, desencadeou uma tormenta de energia.
—Não tínhamos nem ideia de que poderia fazer isso —se
desculpou Horace. — Precisa acreditar. Burton só queria deixá-lo
inconsciente. É esse maldito tesouro, sabe? Está obcecado por
encontrá-lo.
—A obsessão pode levar um homem a cometer um
assassinato.
Um imenso cansaço se apoderou de Horace. Sebastian ia fazer
que o prendessem por assassinato e Burton estava morrendo. Não
tinha nenhuma esperança.
—Não, senhor Sebastian —disse. — Nós não matamos seu tio.
—Por que estavam atrás do tesouro que acreditam que está no
Jardim Noturno? Existem tesouros romanos enterrados por toda a
Inglaterra, do mesmo modo que existem ruínas espalhadas por sua
superfície. Frequentemente os romanos ricos enterravam seus cofres
que continham objetos de valor quando se viam obrigados a fugir de
seus atacantes ou quando tinham que deixar suas propriedades por
algum motivo.
—Sim, mas poucas vezes deixavam mapas, e as probabilidades
de encontrar por casualidade um cofre de ouro enterrado por
séculos nas terras de algum camponês são muito poucas, no
mínimo. Mas as lendas do tesouro nos jardins da velha abadia são
muito mais específicas. As investigações de Burton indicam que o
tesouro está no Jardim Noturno. Acreditava que com nossas
faculdades e a ajuda do artefato de cristal, teríamos uma
oportunidade excelente de o localizarmos.
—Sabiam que os jardins são perigosos.
—Naturalmente —suspirou Horace. — Também lembrei
Burton que Chester Sebastian estava a décadas fazendo seus
experimentos em Crystal Garden e que se tinha algum tesouro por
encontrar, ele o teria descoberto. Mas meu irmão pode ficar bem
obsessivo com seus objetivos.
—Nenhum dos dois é botânico, verdade?
—Não, mas como nos interessavam muito os fenômenos
paranormais, não foi difícil convencer seu tio para que nos
convidasse a visitar Crystal Garden.
—Sempre tinha vontade de falar com pessoas que levassem
seu trabalho a sério, mas era precavido —comentou Sebastian. —
Alguns de seus colegas se opunham às suas investigações. Outros
queriam roubar-lhe exemplares, ainda que advertisse que nenhuma
das plantas sobreviveria muito tempo se separadas de suas origens,
próxima das águas do lugar.
—Fomos ver Chester e mostramos meu pequeno farol. Ficou
entusiasmado e aceitou realizar um experimento dentro do labirinto.
Disse que cada vez era mais difícil percorrê-lo, mesmo com suas
habilidades. Estava convencido de que a energia dos jardins estava
ficando mais forte.
—Tinha razão.
—Nos acompanhou para ver os jardins. Burton comprovou
que o farol funcionava. Agradecemos a seu tio e fomos embora para
elaborar nossos planos. E, quando nos demos conta, Chester
Sebastian estava morto. Supúnhamos que isso nos daria muito
tempo para explorar os jardins de uma forma lógica. Alugamos esta
casa de campo e começamos a fazer os preparativos. Logo você
chegou. Burton temeu que você fosse se instalar em Crystal Garden.
Ficou desesperado. —Estendeu as mãos. — Já sabe do resto.
Evangeline apareceu na porta.
—Seu irmão descansa comodamente. Já baixei sua febre.
—Burton vai sobreviver? —perguntou Horace, colocando-se
de pé em um salto, sem atrever-se a ter esperanças.
—Acredito que irá se recuperar, mas pode ser que seus
sentidos tenham sofrido algum dano permanente devido à duração
da crise. Não posso assegurar nem em um sentido nem em outro
porque não tenho muita experiência neste assunto.
Horace correu até a porta e lançou um olhar ao quarto. Burton
dormia placidamente. Era evidente, inclusive a poucos passos de
distância, que a febre paranormal já não o consumia.
—Não sei como agradecê-la, senhorita Ames —disse Horace.
—Pode fazê-lo respondendo às perguntas do senhor Sebastian
—propôs Evangeline.
—Já contei tudo. —olhou para Sebastian. — Dou minha
palavra que não tenho nada mais para dizer. Só queríamos o
tesouro. Não tínhamos intenção de machucar ninguém e juro que
não matamos seu tio.
—E o que houve com a governanta? Sabe alguma coisa dela?
—Não, nunca prestei muita atenção nela. Parecia um pouco
mal humorada. —Subiu os óculos pelo nariz. — Tem a intenção de
prender a mim e a Burton?
—Não —respondeu Sebastian. — Mas pode ser que queira lhes
fazer mais perguntas em outro momento. Não saiam de Little Dixby
até que eu os autorize. Está claro?
—Perfeitamente claro, senhor Sebastian. —Horace tossiu. — E
quanto ao farol de cristal, não o encontrou? Era único.
—Por enquanto está muito bem guardado, mas parece que o
cristal não funciona.
—Suponho que seja devido à explosão dentro do labirinto —
indicou Horace depois de refletir sobre isso um momento. — Sem
dúvida, estragou o cristal. É muito sensível.
—Meu irmão se interessa muito pelo estudo dos fenômenos
paranormais. Pode ser que queira falar com você sobre seu invento.
—Seu irmão? —se surpreendeu Horace com o cenho franzido.
— Não entendo.
—Isso agora não importa —disse Sebastian. Pegou no braço de
Evangeline e se dirigiu a porta. — Trataremos desse assunto em um
outro momento.
—Muito bem.
—Existe algo que não entendo, Tolliver —soltou Sebastian da
porta. — Sem duvida, tinham visto suficientes exemplos dos
experimentos botânicos de meu tio para saber o quanto são
perigosos, como puderam pensar que conseguiriam cavar em
qualquer lugar dos jardins da velha abadia.
—Tentei advertir Burton, mas não quis me escutar.
Sebastian sacudiu a cabeça.
—Buscadores de tesouros — comentou. — Não possuem o
mínimo de bom senso.
29

Evangeline desamarrou as fitas de seu chapéu e o entregou a Molly.


—O senhor Sebastian e eu tomaremos um chá. Poderia levar
uma bandeja para a biblioteca?
—Sim, senhorita Ames —respondeu Molly, mas vacilou com o
chapéu na mão. — Posso perguntar se encontrou aos dois homens
que buscava? Os intrusos?
—Sim, Molly, os encontramos, graças a seu primo —explicou
Evangeline.
—Para o que isso nos serviu... —grunhiu Lucas, indignado.
—Vão prendê-los? —perguntou Molly com entusiasmo.
—Não —disse Lucas. Percorreu o corredor até a biblioteca. —
Estavam buscando o tesouro, não eram assassinos.
Os olhos de Molly quase saíram pelas órbitas. Voltou-se para
Evangeline:
—O que ele quer dizer, senhorita Ames?
—Quer dizer que estava equivocado —respondeu Evangeline
enquanto tirava as luvas. — O senhor Sebastian não está
acostumado a cometer erros dessa classe. O irrita.
—Oh, compreendo. —Molly franziu o cenho. — Significa então
que seu tio e a senhora Buckley não foram assassinados então?
—Não, não significa que não foi cometido nenhum assassinato
em Crystal Garden —falou Lucas em voz alta estando já na metade
do corredor. — Só significa que eliminamos dois possíveis suspeitos.
Quando entrou na biblioteca, Evangeline sorriu a Molly.
—Chá, Molly —recordou.
—Sim, senhorita Ames.
Molly colocou o chapéu de Evangeline no chapeleiro e foi
rápido para a cozinha. Evangeline deixou as luvas na mesinha do
corredor, entrou na biblioteca e fechou a porta. Lucas estava de
frente à janela, olhando a vista limitada dos jardins.
—Continua seguro de que seu tio e a senhora Buckley foram
assassinados? —perguntou ela.
—Continuo convencido que a morte de meu tio não foi devido
a causas naturais. Acreditei ter deixado claro que nunca estive certo
sobre o que ocorreu com a senhora Buckley. Só sei que seria útil
encontrá-la, viva ou morta.
—Estou de acordo. —Evangeline se sentou e, distraidamente,
acomodou sua saia.
—Estava certo de que esses dois homens o tinham matado,
Evangeline.
—Parecia à explicação mais provável, de fato, haveria até
quem dissesse que ainda parece. Diga, porque acredita em Horace
Tolliver?
—Que me pendurem se eu sei —disse Lucas, encolhendo os
ombros. — Só posso dizer que acreditei. Por quê? Você tem
dúvidas?
—Não, me inclino a estar de acordo com você.
—Agora vou precisar voltar ao início da investigação. —Se
afastou da janela. — Fiquei obcecado em achar Horace e Burton
Tolliver.
—E com razão. Foram os últimos a visitar Crystal Garden
segundo o diário de seu tio, e possuem certas habilidades psíquicas.
Entraram sem permissão nos jardins. Estavam munidos de uma
arma paranormal que utilizaram tanto contra Stone como contra
você. Tudo indicava que eram os culpados.
—Mas não são. Estou certo disso.
—Como te disse, estou de acordo com você —assentiu
Evangeline.
Lucas juntou as mãos nas costas.
—Precisamos analisar as provas sobre outro ponto de vista.
Evangeline ocultou um sorriso de satisfação. Gostava que
tivesse se referido aos dois como uma equipe.
—Estamos supondo que depois dos irmãos Tolliver ninguém
mais visitou Crystal Garden. Mas chegamos à conclusão a partir do
diário de seu tio.
—No que esta pensando? —perguntou Lucas.
—Beth mencionou que Chester usava seus diários basicamente
para documentar seus experimentos botânicos e efetuar anotações
de caráter científico. Fazia constar as visitas de seus colegas e de
outros botânicos, mas segundo Beth, não tinha nenhuma menção
das suas visitas à velha abadia, Lucas.
Lucas regressou a mesa e pegou o abre cartas de prata.
—Não haveria nenhuma razão para anotar a visita de um
membro de sua família no diário dedicado a seus experimentos
botânicos.
—Pode ser que ele também não anotasse outras visitas por não
considerá-las colegas seus.
Lucas deu golpes na palma da mão com o abre cartas.
—Não teria anotado a visita de um vizinho ou de um
revendedor. Nem tampouco se daria ao trabalho de apontar a visita
de algum camponês ou de alguém a quem conhecesse bem.
Um golpe imperioso foi à única advertência antes que a porta
fosse aberta de um golpe. Beth e Tony entraram correndo na sala.
Ambos irradiavam entusiasmo.
—Temos algo muito importante para dizer, Lucas —soltou
Beth sem fôlego.
—Averiguaste os nomes das visitas de Chester — se antecipou
Lucas suavemente. — Muito bem. Mas acontece que já os
encontramos.
—Sim, já sabemos que teve conhecimento da identidade desses
homens e que chegastes à conclusão de que eles não mataram tio
Chester —respondeu Tony. — Não é isso que viemos correndo para
dizer. Quando estávamos no povoado, fomos à oficina de telégrafos
como sugeriu.
Beth se voltou para Evangeline agitando uma tira de papel.
—Acontece que tinha acabado de chegar um telegrama para
você, Evie. Foi enviado por sua amiga, a senhorita Slate. O
telegrafista estava organizando tudo para que o senhor Applewhite
viesse te entregar. Naturalmente Tony e eu o trouxemos para você.
—Clarissa e Beatrice devem ter descoberto algo importante. —
Evangeline se colocou de pé em um salto e tomou o telegrama nas
mãos. Leu depressa e levantou a vista. — Douglas Mason tinha
mesmo um irmão.
—Isso encaixa com a informação que recebemos do contato de
Stone —disse Lucas.
—Ah, mas tem mais —indicou Evangeline cheia de orgulho. —
Clarissa e Beatrice averiguaram que o irmão é um ator chamado
Garrett Willoughby, que há pouco tempo aparecia em um
melodrama chamado El secreto de lady Easton.
—A entrada de teatro que encontrei com o cadáver de Sharpy
Hobson era de uma apresentação dessa obra —recordou Lucas. A
energia carregou o ambiente. — É uma notícia excelente. Enviarei
Stone a Londres imediatamente.
—Pode demorar um pouco para encontrar o irmão de Mason
—disse Evangeline. — Segundo o telegrama, a obra se apresentou
pela última vez ontem à noite. Ninguém sabe para onde foi
Willoughby. Clarissa e Beatrice estão fazendo mais indagações.
30

—Você nunca dorme, senhor Stone? —perguntou Molly.


—Ontem à noite, graças aquela condenada arma em forma de
farol que os intrusos usaram em mim, dormi bastante —grunhiu
Stone.
—Graças a Deus que sobreviveu.
Estavam no terraço que dava ao Jardim Diurno. A luz da lua
conferia um tom prateado à paisagem. Com a chegada de mais
pessoas e suas donzelas, Lucas tinha anunciado que Molly e mais
uma prima sua deveriam ficar alojadas na velha abadia até um novo
aviso. Com a quantidade de pessoas vivendo na casa fazia-se
necessário dispor de certa quantidade de pessoas do serviço a toda
hora.
Molly tinha lançado um olhar ao relógio na entrada antes de
sair com uma xícara de café recém-feito para servir ao senhor Stone.
Eram quase dez. A casa estava em silêncio. Depois do jantar a
senhorita Ames tinha se retirado ao piso superior para trabalhar no
quarto capítulo de seu livro. A senhora Sebastian e a senhora
Hampton tinham se retirado aos seus aposentos. O senhor Sebastian
e os gêmeos estavam trabalhando na biblioteca.
Molly tinha esperado que Stone saísse sem fazer ruído pela
porta traseira para fazer sua ronda antes de segui-lo com a xícara.
—Achei que gostaria de um café —atreveu-se a dizer.
Stone, a quem aquela consideração surpreendeu por um
momento, pegou a xícara de bom grado. Molly gostou do roce das
suas mãos em seus dedos.
—Obrigado. —Ouviu com gosto evidente. — Cheira bem.
—Acabei de fazer.
—O frango assado que preparou para o jantar foi o melhor que
já comi — disse Stone.
—Como disse à senhorita Ames, um homem forte como você
precisa se alimentar. Está seguro de ter se recuperado bem da
experiência de ontem à noite?
—Não se preocupe; esta noite não dormirei —assegurou
parecendo sem graça.
—O que vai fazer se os intrusos voltarem?
—O senhor Sebastian e eu já falamos antes. Decidimos que se
alguém tentar entrar outra vez nos jardins, não o enfrentarei
sozinho. Despertarei ao senhor Sebastian e vamos juntos nos
encarregar do assunto.
—Nunca tinha conhecido ninguém com poderes paranormais
até que conheci a senhorita Ames e o senhor Sebastian. Não
acreditava, as pessoas dos arredores sempre souberam que o senhor
Chester, o tio do senhor Sebastian, tinha algo estranho, mas nunca o
vi muito. Era bem reservado.
—Chegou a ver sua governanta?
—Oh, sim, várias vezes. Ainda que não fosse muito sociável.
Somente ia algumas vezes por semana ao povoado para fazer suas
compras. Sempre se queixava aos lojistas quando o senhor Chester
Sebastian tinham convidados. Dizia que as visitas lhe davam muito
trabalho porque seu patrão não queria contratar ninguém para
ajudá-la.
—Tem alguma ideia para onde ela possa ter ido depois de
encontrar o cadáver de Chester Sebastian?
—Não, mas acredito que foi embora. Os Sebastian são ricos.
Deve ter recebido alguma pensão.
—O senhor Sebastian disse que tinha pagado suas
necessidades, mas que jamais pediu nada a ele.
Para Molly foi difícil entendê-lo.
—Quer dizer que nunca pediu sua pensão? —disse.
—Isso foi o que me disse.
—Que estranho! —comentou Molly. — A senhora Buckley se
foi do povoado pouco tempo depois da morte de Chester Sebastian;
no dia seguinte, de fato. Aposto que já sei o que aconteceu.
—O que?
—Com certeza deve ter roubado a prata e os objetos de valor
que pode meter no seu baú antes de subir no trem. Por isso não foi
pedir dinheiro ao senhor Sebastian. Tinha medo de que se desse
conta de que ela era uma ladra.
—Suponho que pode ser possível. Mas o senhor Sebastian fez
algumas indagações e não a encontrou em nenhum lugar.
—Porque não quer ser encontrada —indicou Molly.
—O senhor Sebastian acredita que pode ter ocorrido algo com
ela.
—Como o que? —Molly olhou seu rosto.
—Quem sabe —respondeu Stone. E olhando para a paisagem
suavemente iluminada, sentenciou: — Às vezes as pessoas
desaparecem nesses jardins.
—Isso são histórias —disse Molly, estremecendo.
—Está certa disso?
—Não acredito em magia nem em demônios.
—Nem eu também. Mas depois de conhecer o senhor
Sebastian acredito nos fenômenos paranormais. Tem muita energia
estranha nesses jardins. Até eu posso notá-la.
Molly lançou um olhar à vegetação prateada.
—Já sei e o disse, a senhora Buckley foi embora do povoado.
Não sei para onde foi, mas nos jardins ela não esta.
—Disse que partiu muito depressa. Talvez quisesse que todo
mundo acreditasse que tinha ido.
—Foi vista subindo no trem.
—Talvez voltou —sugeriu Stone.
—Porque iria fazer isso?
—Não sei. Não tenho poderes como o senhor Sebastian. Ele
disse que é importante averiguar o que se passou com a senhora
Buckley e eu suponho que tem razão. Sempre tem.
—Deve ser raro possuir poderes psíquicos.
—O senhor Sebastian assegura que a maioria das pessoas
possuem algum poder —comentou Stone. — Só que não sabem.
Dizem que o chamam de intuição.
—Minha mãe diz que tenho muita intuição. Às vezes sei coisas
sem mais.
—Eu também —concordou Stone. — A primeira vez que vi o
senhor Sebastian soube que queria trabalhar para ele.
—É o mesmo que senti quando comecei a trabalhar para a
senhorita Ames. Disse a mim mesma que podia levar-me há algo
muito melhor.
—Melhor que o que?
—Melhor que passar o resto de minha vida neste lugar. —
Molly sorriu. — Não tenho medo de trabalhar duro, pode acreditar,
mas ordenhar vacas e dar de comer as galinhas não é muito
apaixonante.
—Quer se dedicar ao serviço?
—Não —contestou Molly. — Vou abrir um salão de chá.
—Que interessante. —Stone se balançou um pouco sobre os
pés. — Cozinha muito bem.
—Obrigada, senhor Stone.
Stone bebeu um pouco de café e baixou a xícara.
—Nunca tinha conhecido ninguém que quisesse abrir um
salão de chá —soltou. — Você é uma mulher muito interessante,
Molly Gillingham.
—E você um homem muito interessante, senhor Stone —disse
Molly depois de admirar as costas amplas de Stone recortadas
contra os jardins iluminados pela lua.
—A maioria das pessoas acredita que sou tolo e insensato.
—É por ser grande e forte —explicou Molly. — As pessoas
veem um homem alto e forte como você e supõe que não tenha mais
que músculos. Mas com certeza isso não é certo.
—E como você sabe disso?
—Por vários motivos. —Molly juntou as mãos nas costas. —
Para começar, o senhor Sebastian é um homem muito inteligente.
Jamais o teria contratado se acreditasse que você fosse um tolo ou
caipira.
—Não esteja tão segura —contradisse Stone com certo tom de
amargura na voz. — Existem muitos homens ricos e poderosos que
gostam de empregar mastodontes como eu para impressionar seus
refinados amigos.
—Você não é nenhum mastodonte —assinalou Molly com
aspereza. — É um homem forte, sadio e inteligente. É algo muito
distinto.
—Acredita nisso? —Stone sorriu pela primeira vez, violento,
mas encantado.
Molly o examinou com aprovação dos pés à cabeça.
—Eu acredito, senhor Stone. Diga-me, como conheceu o
senhor Sebastian?
—Ele me encontrou nas ruas e meu deu trabalho de cocheiro.
Sempre pensei que a sorte o colocou no meu caminho.
—A sorte é recíproca. O senhor Sebastian teve sorte por
encontrá-lo, senhor Stone. —Molly sorriu.
Stone não disse nada. Terminou seu café em silêncio e lhe
devolveu a xícara.
—Será melhor que comece minhas rondas —disse.
—Deixarei o bule sobre o fogão para que fique quente —
explicou Molly, e se voltou para entrar de novo na casa. — Também
vou deixar algumas magdalenas.
—Eu agradeço —assegurou Stone, começando a baixar os
degraus. Parou na metade. — Molly?
Molly parou na porta.
—Sim, senhor Stone? —disse.
—Espero que consiga abrir esse salão de chá.
—Vou conseguir, senhor Stone. Não duvide.
—Não —disse Stone, enquanto sorria brevemente na
penumbra. — Nem por um segundo.
—É o primeiro homem que acredita que vou conseguir por
mim mesma.
—Nesse caso, os demais não a conhecem muito bem.
—Não. Tem razão.
31

Lucas pensou que já tinha tido contato suficiente com a família por
um dia. Necessitava estar sozinho um tempo. Não, sozinho não.
Necessitava estar com Evangeline.
Fechou o herbário antigo que estava lendo e se levantou da
mesa. Beth estava em um pequeno sofá, lendo um dos diários de
Chester e tomando notas. Tony tinha um montão de velhos mapas
dos jardins estendidos pelo chão.
—Se me desculpam um momento —disse Lucas—, irei dar um
passeio. Preciso de ar fresco.
—Desfrute do passeio —disse Tony sem levantar a vista dos
mapas.
—Tenha cuidado nos jardins —interveio Beth antes de tomar
outra nota. — Está de noite.
—Já me dei conta —assegurou Lucas, que começou a dirigir-se
à porta.
—Suponho que não tenha encontrado nada interessante no
herbário —comentou Tony.
Lucas parou com a mão sobre o pomo.
—Não. Em sua maioria, as anotações se referem às
propriedades medicinais e metafísicas de diversas plantas e flores.
Suponho que tio Chester o usava para consulta —explicou.
—O herbário é bem antigo —disse Beth. — Com certeza é
muito raro. Gostaria de saber onde tio Chester o conseguiu.
—Isso eu sei —indicou Lucas. — Na Chadwick, a livraria no
povoado. O recibo estava dentro dele. Também encontrei uma
grande quantidade de desenhos botânicos raros que evidentemente
a senhorita Witton, dona da livraria, conseguiu. Mas não encontrei
nada que faça referência ao que está ocorrendo nos jardins.
Saiu ao corredor, onde parou um momento. A escadaria
traseira estava mais próxima. Subiu os degraus de dois em dois até o
primeiro piso e ficou parado diante do quarto de Evangeline.
Consciente que Florence e Judith também tinham se retirado aos
seus aposentos no final do corredor, chamou com muita suavidade à
porta.
Ouviu um ligeiro movimento no interior. Um momento depois
a porta se abriu. Evangeline vestia um dos vestidos simples que
gostava de levar quando estava ocupada escrevendo. O olhou com
uma expressão esperançosa.
—Lucas —disse. — Encontrou algo interessante nos livros
velhos?
—Ainda não. —Dirigiu seu olhar até a mesa que estava situada
próxima à janela. Nela estavam várias folhas de papel a pluma de
Evangeline. — Precisava dar um passeio pelos jardins. Gostaria de
me acompanhar?
Viu que vacilava e teve a sensação de que não acreditava
inteiramente nele. Pensou que era uma mulher perspicaz. Não
precisava de ar fresco, precisava dela.
Então Evangeline sorriu e o desejo enfebrecido que o consumia
a fogo lento se converteu em chama abrasadora.
—Vou apagar a lamparina —disse Evangeline.
Baixaram a escadaria traseira e saíram ao terraço. Os jardins
resplandeciam.
—É realmente uma paisagem surpreendente, verdade? —disse
Evangeline—Está um pouco difícil descrevê-la em minha história.
—Por favor, não me diga que está usando Crystal Garden
como cenário para sua novela —gemeu Lucas. — Já estamos tendo
suficiente problema com os buscadores de tesouros. Não quero ver
por aqui um monte de leitores visitando a velha abadia para ver o
cenário que serviu de inspiração para sua história.
—Não se preocupe. O chamei por outro nome e o coloquei em
outro lugar.
—Suponho que devo agradecê-la por isso.
—Uma escritora precisa inspirar-se no que pode.
—Preciso recordar isso. Não me deixe esquecer.
Pegou seu braço e a fez baixar os degraus do terraço.
—Vamos ao Jardim Noturno? —perguntou Evangeline.
—Não —respondeu. — Vamos a um lugar onde não
precisaremos ficar preocupados com cada espinho e cada flor.
—E que lugar é esse?
—Ao secador. Eram os domínios da senhora Buckley. Gostava
muito de cultivar e secar ervas. Tinha pout pourris, poemas ,
bolsinhas e coisas desse estilo com ela. Algumas das lojas do
povoado às vendiam aos visitantes. Também tinha uma sala de
destilação onde preparava perfumes e sabonetes.
O secador era na realidade uma habitação anexa a uma das
paredes do antigo claustro. Quando Lucas abriu a porta, chegou
uma fragrância embriagadora de ervas secas.
—Que cheiro bom aqui dentro! —exclamou Evangeline.
Diferente dos jardins, o secador estava submerso em
escuridão. A única luz que tinha era dos raios de lua que entravam
pela janela.
—Acredito que estas ervas vinham do jardim —comentou
Evangeline. — Por que não são luminosas?
—A senhora Buckley cultivava todas as suas ervas no Jardim
Diurno, não no Jardim Noturno —esclareceu Lucas. — A luz
paranormal que pudessem ter emitido em algum momento,
desapareceria pouco depois de serem cortadas.
—Ah, sim, porque deixavam de ter sua fonte de energia: a
água. Estas plantas estão mortas.
Evangeline se voltou para ele. De onde estava, era iluminada
pela lua. O cabelo brilhava, prateado. Lucas viu um tênue brilho em
seus olhos. O desejava. Saber disso bastou para aumentar ainda
mais seu desejo enfebrecido.
—Evangeline —disse.
Não pode dizer mais nada. Se bem que o desejo o deixava sem
palavras, sem dúvida o deixava incoerente.
Aproximou-se a tomando em seus braços. Ao fazê-lo, sentiu o
aroma embriagador das ervas que o rodeavam e sua essência
feminina vital. A beijou à luz da lua, adorando seu sabor.
Quando Evangeline sussurrou seu nome e se apertou ainda
mais contra ele, começou a desabotoar seu vestido.
—Não sabe como fico contente por não levar espartilho —disse
em seu pescoço.
—Não trouxe nenhum espartilho comigo para Little Dixby
porque sabia que ninguém me ajudaria a tirá-lo —explicou
Evangeline depois de soltar uma risada suave e cantada.
Lucas então riu rouco e isso se converteu em um gemido
quando Evangeline começou a desabotoar sua camisa.
—Rara vez levo, exceto com meus vestidos mais elegantes —
confessou, e beijou seu peito nu. — Minhas amigas e eu estamos
convencidas que não é bom para a saúde.
—Não sei se são saudáveis, mas te asseguro que dão um
maldito trabalhão quando precisamos fazer algumas coisas.
—Vou lembrar-me disso no futuro.
Sabia que o estava provocando, mas a ideia de algum dia
estaria com outro homem gelou seu sangue. Deixou cair o vestido
que acabava de desabotoar no chão e rodeou os ombros com as
mãos.
—Não será necessário que se lembre dele, pois eu estarei aqui
para recordá-la — assegurou.
—Verdade? —perguntou Evangeline enquanto acariciava sua
mandíbula. Seus olhos eram insondáveis.
—Sim — prometeu. Deu-lhe outro beijo, um beijo para selar
sua promessa.
Finalmente tirou seu vestido. Quando já não vestia nada mais
que a camisola, os calções e as meias, a deitou sobre um montão de
ervas e a contemplou assim, banhada pela luz da lua. O ambiente
ficou carregado de uma energia crepitante, cintilante.
Ajoelhou-se junto a ela e desabotoou a parte dianteira das
calças.
—Lucas —sussurrou Evangeline, esticando a mão para ele.
Aproximou-se e colocou a mão sobre sua perna, justo sobre a
liga que segurava sua meia branca. Evangeline emitiu um ruído
suave e introduziu a mão quente em suas calças para rodear o que
tinha entre as pernas. Lucas pensou que ficaria louco. Desabotoou
sua camisa e beijou um seio. A mão de Evangeline segurou com
mais força o que sabia ser uma reação instintiva.
—Não tem nem ideia do que esta fazendo comigo —advertiu a
Evangeline.
—Está tentando me assustar? —Sorriu. — Porque não está
conseguindo.
—Não, já vejo. Muito melhor, porque já é muito tarde.
—Para você ou para mim?
—Para mim —disse Lucas. — Estou perdido.
—Então somos dois.
—Então não estou perdido. Você me encontrou.
A beijou e deslizou os dedos pela abertura de seus calções.
Estava molhada e preparada. A acariciou com cuidado, fazendo
tudo que estava em suas mãos para aumentar a tensão que notava
estar crescendo no interior de Evangeline. Era como se competissem
para ver quem podia mais, pois ela estava fazendo o mesmo com
ele.
No final, ambos se renderam. Posicionou-se sobre ela e a
penetrou profundamente. Evangeline rodeou seu corpo com as
pernas.
Ainda que desta vez estivesse preparado para a força daquela
intimidade, lhe deslumbrou os sentidos. Evangeline soltou um grito
entrecortado. Quando ela chegou ao clímax, a energia irresistível de
seu orgasmo foi mais poderosa que todas as forças que tinha
experimentado antes. Ele não poderia resistir mesmo se quisesse.
Não se importou.
«Perdido —pensou. — E encontrado.»
32

Um tempo depois, Evangeline se moveu a seu lado. Ao fazê-lo,


liberou mais fragrâncias aromáticas das ervas. Abriu os olhos e a
olhou.
—Como pode ser que não tenha ninguém neste mundo? —
perguntou.
Evangeline se sentou depressa, sem dizer nada a princípio. Seu
cabelo tinha se soltado das forquilhas e ela passou os dedos pelas
mechas para tirar os pedaços de ervas secas.
—Meu pai era inventor —disse por fim. — Os inventores são
um desastre em questões financeiras.
—Me compadeço. Sei o que acontece com eles. Sempre
precisam de dinheiro para comprar equipamentos e materiais.
—Isso mesmo —concordou baixando os olhos para ele. —
Como você sabe?
—Um de meus primos, Arthur, é inventor. Como controlo as
finanças da família, tenho notícias suas sempre.
—Bom, nesse caso, talvez o entenda. —disse Evangeline,
esboçando um sorriso sardônico. — Minha mãe morreu quando
completei dezessete anos. Me ensinou a levar a economia familiar e
a manter uma casa. Depois de sua morte, me ocupei de ambas as
coisas. Pelo menos, tentei fazê-lo. Foi quando me dei conta do difícil
que tinham sido suas tarefas.
—Deduzo que as coisas não iam bem.
—Levar a casa não era nenhum problema, mas meu pai não
tinha nenhuma noção de dinheiro. Sua única preocupação era ter o
suficiente para financiar seus inventos.
—Conseguiu alguma patente?
—Acredito que não. Seus inventos não eram o que a maioria
das pessoas chamaria de prático.
—Inventar artefatos pouco práticos é um defeito muito comum
entre os inventores.
—O problema com os inventos de papai é que só poderiam ser
utilizados por quem possuísse poderes psíquicos.
—Inventava máquinas paranormais? —perguntou Lucas com
uma careta.
—Tentava. Temo que não era muito próspero. O mercado para
esse tipo de artefato é muito reduzido, sabe?
—Porque existem poucas pessoas que possuem quantidade
suficiente de poder que seriam necessários para utilizar máquinas
que funcionem com energia paranormal —deduziu Lucas, que
cruzou os braços atrás da cabeça.
—A maioria das pessoas ria dele e o considerava um farsante.
Era muito complicado, mas te asseguro que era dificílimo produzir
os artefatos de meu pai, quase impossível demonstrar seu
funcionamento e ainda menos comercializá-lo. Também tinham
outros problemas. Cada artefato que meu pai desenhava tinha que
sintonizar-se com as longitudes de onda de cada pessoa que iria
utilizá-lo. A mim parecia ir bem, mas dava no mesmo porque
tínhamos poucos clientes.
—Mas seu pai seguia adiante com seus inventos —disse Lucas.
— E seguia precisando de dinheiro.
—Como disse, os inventores são assim. E eu, simplesmente
não podia controlar a forma como papai gastava o dinheiro. Mamãe
tinha tentado intimidá-lo durante anos. Era assim como nos
mantínhamos. Mais depois que ela morreu, papai se comportava
como se tivesse sido liberto do cárcere. Ficou louco com nosso
dinheiro. Comprou equipamentos para seu laboratório. Adquiriu
artefatos e cristais caríssimos para usá-los em seus experimentos. Eu
estava cada vez mais desesperada. Ocultava dele nossa verdadeira
situação econômica. Escondia informações sobre nossos
investimentos. Mas era como tentar esconder dinheiro de um
jogador. Simplesmente comprava a crédito o que queria e eu era
obrigada a pagar as faturas.
—Compreendo.
—Consegui nos manter por alguns anos —explicou
Evangeline. — Mantive as coisas mais ou menos até os vinte anos.
Esse foi o ano em que Robert, Douglas Mason, me cortejou.
Acreditava que receberia um bom dote. Mas esse mesmo ano, papai
conseguiu acabar com a maior parte de nossos recursos financeiros.
Ao final, só restou a casa e um colar que mamãe tinha deixado.
Antes de morrer, me fez jurar que nunca falaria dessa joia com
papai. Isso foi um excelente conselho.
—O que aconteceu?
—Falei com papai e disse que estávamos quebrados. Esperava
assustá-lo para fazê-lo entender nossa terrível situação econômica.
Acreditava que isso o obrigaria a entrar em razão.
—Sua terapia não funcionou, verdade? Raciocinar nunca
funciona com esse tipo de gente.
—Naturalmente, tem razão. Para meu horror, papai chegou à
conclusão que a única solução era obter um empréstimo utilizando a
casa como garantia. Investiu o dinheiro em um projeto que resultou
ser uma fraude. Não soube o que tinha feito até que o encontrei
morto em seu laboratório no sótão. Tinha dado um tiro na cabeça.
—Deixou que você encontrasse seu cadáver —comentou
Lucas, apoiando-se nos cotovelos.
—Duvido muito que pensou neste detalhe.
«Com certeza que não —pensou Lucas—, mas com isso
acrescentou mais crueldade e dor ao assunto.» Conteve a raiva que
crescia em seu interior. Reginald Ames não era o primeiro homem
que tirava a própria vida depois de uma catástrofe financeira nem
seria o último. Mas isso nunca deixava de assombrá-lo e horrorizá-
lo, que homens que em outras circunstâncias se orgulhariam de sua
honra pudessem abandonar suas responsabilidades de uma forma
que destroçava aqueles que deixavam para trás. Como apertar o
gatilho em semelhante situação, sabendo que a filha teria que
enfrentar a ruína social e financeira?
—O que fez com o colar? —perguntou em voz baixa.
—Por sorte, jamais falei dele com papai. Tampouco mencionei
aos credores.
—Uma sábia decisão.
—Depois do enterro, o empenhei. Consegui dinheiro suficiente
para me manter até encontrar trabalho na Flint e Marsh.
—Deve ter sido muito difícil para você.
—Houve alguns momentos ruins —admitiu Evangeline. —
Mas em certo sentido foi muito melhor por minha própria conta.
Graças à agência, agora tenho a minha escrita. Atualmente controlo
meu próprio destino.
—Isso é algo digno de menção.
—Sim.
Relutantemente se colocou de pé e esticou a mão para ajudá-la
a levantar-se de sua cama improvisada.
—Nos dois vamos cheirar a ervas quando voltarmos para casa
—indicou Evangeline enquanto sacudia o vestido. — Devo estar
com um aspecto terrível. O que é certo, suponho.
—Voltaremos pelas escadas traseiras. —Abotoou as calças. —
Ninguém nos verá.
Colocou a camisa por dentro das calças, saboreando a
agradável sensação de relaxamento e satisfação que se tinha
apoderado dele. Um homem poderia se acostumar com aquilo.
«Não —pensou. — Um homem poderia ficar viciado naquilo.»
—Estas fragrâncias são encantadoras —comentou Evangeline,
esticando a parte da frente de seu vestido. — Já vejo porque a
senhora Buckley gostava de dedicar-se a esta atividade
suplementaria.
—Seus produtos tinham muito êxito entre os visitantes. —
Lucas assinalou uma porta. — Ali é a sala de destilação.
—Minha mãe tinha uma —disse Evangeline enquanto se
dirigia até a porta da sala contígua. — Recordo que quando era
pequena me encantava vê-la preparar tônicos e remédios para dor
de garganta, febre e coisas desse estilo. Era muito esperta. Acredito
que em uma época diferente, mais tolerante poderia ter sido
química.
Lucas ficou atrás de Evangeline e lançou um olhar à segunda
sala. A luz da lua entrava pela janela e iluminava um banco de
trabalho cheio de frascos de cristal, pequenos potes e um
queimador. Uma sensação gélida o colocou em sentido de alerta.
Intensificou seus poderes.
Uma energia escura brilhava no banco de trabalho e no chão.
—Lucas —exclamou Evangeline, inquieta. — O que te ocorre?
Que está acontecendo?
—Acredito que já sei como assassinaram meu tio. Utilizaram
veneno. O preparou aqui, nesta sala.
—A senhora Buckley?
—Sim.
—Está certo disso? —perguntou Evangeline.
—Isso explica porque se foi deste povoado com tanta pressa e
porque nunca veio me ver para falar de seu pagamento.
—Mas, porque diabos mataria seu tio depois de ter trabalhado
tantos anos para ele? —se surpreendeu Evangeline. — Disse que
eram amantes.
—Não posso dizer por que o matou, ainda não, mas a energia
que tem próximo a este banco de trabalho deixa algo claro.
—O que?
—A senhora Buckley estava muito furiosa quando destilou o
veneno.
33

—Já sei que tua relação com sua família é assunto seu e não meu —
assegurou Evangeline. — Ainda assim, me vejo obrigada a te dar
um conselho.
—Tenho a impressão que muitas vezes é obrigada a dar sua
opinião aos outros —comentou Lucas.
—Acredito que esse é um dos meus melhores atrativos.
—«Atrativos» não é a primeira palavra que me ocorre para
descrever suas características mais concretas. O que acredita
precisar me dizer?
Estavam sentados na mesa do terraço, bebendo limonada que
Molly tinha servido. Era meio da tarde. Judith e Florence tinham se
retirado para seus quartos. Beth e Tony estavam na biblioteca. Beth
estava analisando as contas da casa que tinha descoberto no quarto
antigo da senhora Buckley. Tony tinha encontrado algumas
ferramentas no laboratório de Chester e as estava utilizando para
desmontar o farol que se convertia em arma.
—Me preocupa essa tensão entre você e Judith —disse
Evangeline.
—Isso não é assunto seu Evangeline.
—Eu sei, mas deve saber que a principal preocupação de
Judith são seus filhos. Beth é sua prioridade neste momento porque
acredita que precisa casá-la bem ainda este ano.
—Não deveria ter nenhum problema. Beth atrai os
pretendentes como moscas no mel.
—Judith está convencida que deixará sua irmã sem sua
herança quando ela se casar. Também teme que está favorecendo
deliberadamente sua relação com Charles Rushton precisamente
porque conhece sua situação financeira.
Lucas esboçou um ligeiro sorriso forçado.
—Dito de outro modo, destroçarei o futuro de Beth e a deixarei
sem um centavo para vingar-me de Judith.
—Já sei que não é sua intenção —assegurou Evangeline.
Sorveu um gole de limonada e deixou o copo na mesa. — Mas quem
sabe não poderia deixar isso claro para Judith.
—Para que ia me dar esse trabalho? Não vai acreditar.
Acredita que sou um louco. Acredita nisso desde o primeiro dia.
—Realmente começou com o pé errado faz anos, verdade?
—Não tinha outra forma de fazê-lo —disse Lucas. — Para
nenhum dos dois.
—Não entendo.
—Não, não entende —soltou Lucas. — Só vou te dizer que não
vou permitir que Beth cometa o mesmo erro de Judith.
—O erro de casar-se com um homem muito mais velho devido
à pressão familiar?
—Algo assim, sim. —Lucas deixou o copo e se levantou. —
Acredito que chegou o momento de averiguar se podemos entrar na
sala da terceira piscina.
—Está tentando me distrair.
—Meu plano astuto está funcionando?
—Pode ser que sim. —Se colocou de pé de um salto. — Mas
ainda não são nem três horas da tarde. Disseste que a maioria dos
segredos do jardim permanecem ocultos durante o dia.
—É verdade. Mas outras coisas às vezes se revelam com mais
claridade.
—Devemos avisar a alguém sobre o que vamos fazer? —
perguntou Evangeline, assinalando a casa com o olhar.
—Não será necessário. Antes informei a Stone que tinha
intenção de voltar hoje ao jardim. Ele cuidará de tudo.
—Se pergunta se o ouro romano está escondido nesta terceira
sala, verdade?
—Foi você quem disse que os segredos ocultos em seu interior
são antigos.
—Não, disse que a energia que sela a entrada é antiga. Não
tenho como saber o que tem dentro da sala porque não tenho nada
que possa me ajudar na concentração.
—Então não sabia o que estava buscando —indicou Lucas. —
Agora sabe.
—Não funciona desse jeito. Se não, já teria encontrado algum
ouro romano por aí já há algum tempo, acredite-me. Acredito ter
explicado que minha sensibilidade psíquica está relacionada com
meu sentido do tato. Necessito alguma relação com o objeto que
estou buscando, algo que me ajude a concentrar nele.
—Vejamos o que podemos encontrar. —Se dirigiu até a área
coberta. — Mas antes vamos recolher algumas coisas que possam
ser úteis.
A sensação de mistério a entusiasmou. Apressou-se a seguir
Lucas.
—Tem mais uma coisa que gostaria de falar, Lucas —
comentou.
—Eu sabia —soltou sem a o menos parar. — Simplesmente é
mais forte que você, verdade?
—Sim, sinto. —Segurou a parte inferior do vestido para correr
e manter-se ao passo de Lucas. — A última observação que gostaria
de fazer, ao menos, tem familiares a quem enfrentar. Posso
assegurar, por experiência própria, que existem coisas piores que ter
uma família difícil.
Ao ouvi-la, deixou de andar e voltou-se para olha-la com olhos
compungidos.
—Está se referindo a não ter família? Pode ser que tenha razão,
ainda que tenha vezes que não estaria totalmente de acordo com
você.
—Vamos, Lucas, sabe perfeitamente bem que quer muito à
Beth e a Tony.
—De vez em quando.
—Tenho visto os três juntos. —Sorriu. — Estão muito unidos.
—Somos uma família —disse Lucas, encolhendo os ombros.
—Exato.
—Mas agora me dou conta de que não tinha olhado pelo seu
ponto de vista —assegurou Lucas com o cenho franzido.
—Significa que vai se dignar a escutar meus conselhos sobre
como tratar Judith?
Ele esticou a mão e prendeu alguns cabelos soltos atrás de sua
orelha. A energia do desejo agitou o ambiente a seu redor. Lucas lhe
deu um beijo na testa, um beijo suave, terno, despreocupadamente
possessivo, que a marcava como sua de mil maneiras indescritíveis.
—Escutarei, porém é provável que vou ignorar —comentou.
Avançou de novo para o coberto.
—Isso que eu temia —se queixou Evangeline, que o seguiu em
seguida. — Já te disseram que é muito teimoso?
—Acredito que você mesma já me disse isso em alguma
ocasião. Lembro que utilizou a palavra asno.
—Já me desculpei por isso.
—Isso não significa que não ouvi seu comentário. —parou no
coberto sem janelas, abriu a porta e entrou na penumbra. Quando
saiu, levava nas mãos dois pares de luvas de jardinagem. Lhe deu
um par. — Coloque-as. Te protegerão um pouco.
Voltou a entrar no coberto enquanto ela obedecia. As luvas
eram muito grandes e grosseiras, o que a fazia se sentir torpe.
Lucas voltou a sair do coberto, desta vez abotoando um largo
cinturão na altura das cadeiras. Pendurou duas facas de caça, uma
bem grande e outra menor. Deve ter visto a curiosidade refletida em
seus olhos porque explicou:
—O pequeno é para pegar amostras. O maior é um facão. Tio
Chester o trouxe de uma de suas expedições botânicas. Como ele se
pode cortar parte da folhagem dos jardins. —Dirigiu um olhar a
uma das cortinas de orquídea que estava próxima. — Ao menos, se
podia, a última vez que estive aqui.
—Lástima que não o tivéssemos conosco na outra noite.
—Não o levei ao labirinto porque não serve de muita coisa
depois do anoitecer. A energia do Jardim Noturno é muito potente
então é quase impossível cortar algo tão frágil em aparência como
um maço de margaridas ou uma mata de samambaias.
Evangeline examinou o imenso portão de ferro que protegia a
entrada do labirinto.
—Seria possível destruir o Jardim Noturno de dia?
—Acredito que de dia se poderia fazer certos progresso, mas
seriam muito lentos. —Lucas tirou uma chave do bolso e abriu o
portão. — E acredito que a vegetação que destruíssemos de dia,
cresceria novamente à noite.
—Tão rápido?
—Atualmente a única coisa que parece limitar o crescimento
das plantas é a proximidade das águas paranormais deste
manancial. Sempre foi assim, mas por alguma razão, séculos depois,
as forças que rodeiam o manancial estão se tornando mais
poderosas. Preciso averiguar por que.
—Seria possível usar produtos químicos potentes para destruir
a vegetação? —perguntou Evangeline enquanto observava como o
portão se abria lentamente e deixava a mostra a enorme boca verde
do labirinto.
—Tio Chester fez alguns testes para ver se ácidos podiam
destruir as plantas, mas não teve muito resultado com isso.
—Dito de outro modo, pode ser que jamais consiga destruir o
Jardim Noturno.
—Não com nenhum dos métodos testados até agora. —Lucas
entrou na boca escura do labirinto e, quase no mesmo instante
desapareceu fantasmagoricamente em meio à escuridão. — Tenha
cuidado. O que lhe disse vale tanto para de noite como para de dia.
Procure não encostar em nenhuma folha de aspecto mais inofensivo
e, haja o que houver, não se arranhe com nenhum espinho.
Evangeline parou na entrada. As correntes de energia que
emanavam do labirinto eram distintas de dia; mais tênues mas
igualmente inquietantes. As ondas de energia paranormal fizeram
estremecer seus sentidos.
Intensificou suas habilidades e entrou na energia intensa e
primária do labirinto. Seus sentidos se aguçaram. A vegetação
suspirava e sussurrava a seu redor.
—É como se agora as plantas estivessem dormindo —
comentou.
—Mas estão bem vivas.
Lucas usou a velha chave para fechar de novo o portão.
—Não quero me arriscar que Tony e Beth tentem nos seguir.
Ambos são muito curiosos e muito aventureiros.
—Nisso saíram ao seu irmão mais velho —disse Evangeline
com um sorriso.
Lucas lhe dirigiu um olhar penetrante.
—Você acha? —perguntou.
—Judith me assegurou que é o mais parecido com um pai para
Tony e Beth. É evidente que foi um bom pai. Te adoram e admiram.
—Judith exagera —disse Lucas. — Sempre faz isso.
Ainda que seu tom fosse áspero, Evangeline viu que estava
contente. Sua voz refletia satisfação de pai.
—Será um excelente pai para seus filhos —soltou antes mesmo
de pensar.
—Persigo monstros e às vezes os mato —replicou Lucas, que
parecia surpreso.
—Falando como criança, asseguro que isso é uma virtude dos
país. É muitos tranquilizador saber que seu papai pode encarregar-
se dos monstros que se escondem embaixo da cama.
Lucas deu uma suave gargalhada. Evangeline teve a impressão
que ele também estava surpreso.
—Vamos —disse Lucas depois de soltar o facão.
Evangeline lançou um olhar ao redor e ficou aliviada ao ver as
paredes e o teto do labirinto com a mesma claridade de quando era
noite.
—Oh, estupendo —comentou. — Não vamos precisar de
nenhum farol.
—Não —confirmou Lucas.
Quando ele avançou depressa até o final do corredor,
Evangeline duvidou durante alguns segundos. Caiu em si que a
noite anterior só estava vestida com a camisola e o robe, mas hoje
estava com um vestido e botas de passeio. A forma do vestido era
bem estilizada e chegava até os tornozelos, era bem estreito, com um
casaquinho pequeno e discreto. Ainda assim, não queria correr o
risco de ficar enganchada nos espinhos venenosos.
Recolheu a saia e segurou as pregas com força com as mãos e
seguiu Lucas até o interior do labirinto.
A exuberante energia verde das plantas que a rodeavam a
fazia estremecer os sentidos uma e outra vez.
—Me pergunto se era tudo assim no começo da criação,
quando o mundo tinha acabado de se formar e estava submerso no
verdadeiro poder da vida —sussurrou.
—Isso é algo para ser respondido pela poesia, não pela ciência
—assegurou Lucas. — Mas estou de acordo que tem muito poder
aqui dentro. Percebe o quanto seria difícil destruir este jardim.
—Sim —confirmou Evangeline. — Além do que, acredito que
isso seria muito mal, ainda que fosse possível. Este lugar é
maravilhoso.
—Talvez o melhor fosse colocar uma bilheteria e cobrar
entrada —disse Lucas esboçando um sorriso.
—Uma ideia brilhante. Uma lastima que haja tantas partes
perigosas por aqui.
Saíram do labirinto e avançaram até o Jardim Noturno com
sua entrada escura que escondia as antigas termas. Evangeline se
preparou para as suaves descargas de energia e seguiu Lucas até o
interior.
Cruzaram a sala da primeira piscina e percorreram o corredor
até a seguinte. As ondas de energia chispante da segunda piscina
cobriram seus sentidos como joias líquidas. A lembrança da noite
apaixonante voltou brevemente. Notou o calor que lhe assomou as
bochechas.
Depois de contemplar a sala, os olhos de Lucas brilhavam.
—Não sei você —disse—, mas eu jamais vou me esquecer
desta sala.
Evangeline limpou a garganta e se concentrou na porta do
corredor de pedra que dava para a terceira piscina.
—Suponho que tem a chave da porta da terceira sala, verdade?
—disse energicamente.
—Esta tentando mudar de assunto? —perguntou Lucas
erguendo as sobrancelhas.
—Viemos aqui para investigar. Não parece que seja o
momento de fazer comentários que não tem nada a ver com o
intuito.
—De acordo. —Lucas olhou o corredor de pedra. — Voltemos
ao tema da terceira piscina. A porta em si não será nenhum
problema. Não tem chave. A fechadura é um mecanismo engenhoso
que pede um código. É só apertar uma série de clavinhas metálicas
em certa sequência e a porta se abre.
—Imagino que tenha esse código.
—Sim. Tio Chester me deu faz alguns anos. O mais difícil é
abordar a energia dessa sala. Vai compreender quando eu abrir a
porta. Nem eu nem tio Chester conseguimos entrar mais do que
alguns passos. E olha que nós tentamos várias vezes, acredite.
Percorreu o corredor e parou diante da imensa porta chapada
de ferro. Evangeline o seguiu e observou como teclava várias
clavinhas na fechadura.
Ouviu-se o chiado das dobradiças e a porta se abriu devagar
para mostrar um umbral arqueado ladeado por grandes blocos de
pedra maciça.
Uma das pedras brilhava com uma luz interior que lhe
conferia um aspecto ameaçadoramente radiante.
Um caldeirão de energia quente fervia do outro lado da porta.
Alguns raios de luz paranormal rasgavam o que parecia ser um breu
impenetrável. As correntes de poder chegavam à sala onde eles
estavam e carregavam o ambiente já sobrecarregado. Os sentidos de
Evangeline se aguçaram e seu cabelo se eriçou, de modo que
flutuava ao redor de sua cabeça. A emoção se mesclava com terror
em seu interior. Estava fascinada, entusiasmada, encantada.
Avançou devagar e parou diante da entrada de energia.
—Assombroso —sussurrou.
—Acredita que pode dominar esse tipo de energia? —
perguntou Lucas sem afastar a vista da entrada.
—Sim —disse segura. — A entrada é obra de uma pessoa, não
de forças da terra.
—Não foi meu tio, isso posso te assegurar. Ele instalou a nova
porta, mas a entrada de energia já estava aqui quando comprou a
velha abadia.
—Esta entrada é antiga —explicou Evangeline. — Tem
quinhentos talvez mil anos. Mas foi criada com o poder de uma aura
humana, de modo que posso reduzi-la com minhas longitudes de
onda. O padrão parece... Feminino.
—Consegue perceber isso?
—Sim. Uma mulher muito poderosa construiu esta entrada.
Acredito que só uma mulher poderia abri-la.
Observou atentamente o reluzente cristal incrustado na porta.
—E acredito que sei exatamente por onde começar —disse.
Deu um passo e logo outro e finalmente esticou a mão. Com
cautela, situou a palma aberta no cristal, que se iluminou
imediatamente. Uma descarga de eletricidade paranormal percorreu
seu corpo, mas não sentiu dor, mas sim uma alegra eufórica.
Tateou depressa as intensas correntes de poder que o cristal
irradiava. Uma vez que identificou as ondas de energia mais fortes,
respondeu a elas com força para reduzi-las. No começo parecia não
estar dando certo, mas depois de alguns segundos, a energia da
entrada começou a diminuir.
Um momento depois, a tormenta deixou de existir como a
chama extinta de uma vela.
—Assombroso —disse Lucas. — É uma mulher incrível,
Evangeline. Mas acredito que já fiz este comentário várias vezes.
—Sim, mas obrigada. —a admiração e o respeito que refletia a
voz de Lucas a reconfortou.
—Vamos ver se o tesouro esta aí dentro —indicou Lucas.
Ao ver a expectativa que vibrava no ambiente que o rodeava,
Evangeline soltou uma gargalhada. A aventura mexeu com ele tanto
quanto com ela.
Lucas atravessou a porta e parou, observando algo que
Evangeline não conseguia ver.
—Deveria saber que não seria tão simples —soltou.
—O que acontece? —Evangeline entrou rapidamente na sala e
seguiu seu olhar.
—Aqui não tem nenhum tesouro. —Moveu uma mão para
assinalar a sala de pedra vazia. — Adeus à minha teoria.
A única coisa que tinha na sala era uma piscina grande e
profunda situada no centro. A diferença das outras nas salas
exteriores, é que esta estava rodeada de pedaços de cristais
prateados. A água reluzia, igual as das outras salas, mas a luz desta
era diferente. A superfície parecia um espelho iluminado pela luz da
lua.
—Bom, uma teoria excelente —assegurou Evangeline.
—Obrigado —grunhiu Lucas. — Isso me parecia.
Evangeline se aproximou e lançou um olhar à piscina. As das
salas exteriores eram cristalinas, mas esta, não. Lucas ficou ao seu
lado. Seu reflexo cintilou e chispou na superfície da piscina.
—É como olhar um espelho líquido —soltou Evangeline. —
Pode perceber a profundidade, mas não pode ver abaixo da
superfície.
—Um efeito da luz —assegurou Lucas. — É até difícil olhar
para a água . —Se afastou para examinar a sala.
Evangeline se ajoelhou na borda da piscina e mergulhou a
ponta dos dedos em suas águas prateadas. Ela não tinha nenhum
problema em olhar para a água. A energia lhe percorria o corpo.
A superfície ficou mais brilhante. Apareceram umas visões
fantasmagóricas. Vislumbrou uma mulher com uma túnica branca e
o cabelo recolhido em um monte trançado de uma forma que podia
ser visto nos vestígios dos antigos murais romanos.
Agitou de novo as águas e observou fascinada, como
apareciam e desapareciam outras imagens, que flutuavam na
superfície da piscina: uma mulher com o hábito de uma monja
medieval, outra vestida conforme a moda do século XVII.
Evangeline compreendeu que ao longo dos séculos outras
mulheres tinham cruzado a entrada de energia e tinham entrado
naquela sala para olhar as águas da piscina. De alguma forma a
superfície refletiva tinha capturado e retido alguns de seus reflexos.
Perguntou-se o que teriam visto as demais, que teriam descoberto
naquele lugar.
Agitou as águas deslumbrantes com a ponta dos dedos,
buscando o padrão das correntes de poder. Quando encontrou o que
buscava, outra onda de euforia percorreu seu corpo.
—Que diabos está fazendo? —Lucas se agachou e segurou
seus ombros para levantá-la. — Te disse que essas águas são
perigosas. Segundo as lendas, provocam alucinações e visões.
—Olhe —disse Evangeline em voz baixa enquanto tirava as
mãos dele e voltava a colocar os dedos na água . — Isto não é
nenhuma visão.
Lucas seguiu segurando-a pelo ombro com a mão, mas lançou
um olhar para a piscina.
—Maldita seja —exclamou. — O tesouro.
As águas estavam claras para deixar descoberto no fundo da
antiga piscina de pedras o único banco de pedra situado de um lado,
logo abaixo da superfície. No fundo se viam montes de objetos:
pingentes, colares, anéis e braceletes delicados, que estavam no
fundo da piscina e reluziam debilmente com o brilho inconfundível
do ouro antigo.
—Quantos objetos valiosos! —exclamou Evangeline,
assombrada ante semelhante imagem. — Quem deixou aqui este
tesouro era muito rico de qualquer ponto de vista.
—Podia ser um joalheiro —arriscou Lucas. — Talvez
guardasse aqui sua mercadoria, nas piscinas, para que não a
roubassem.
—Pode até ser que o dono dessas joias fosse um homem, mas
estou segura que somente uma mulher poderia entrar nesta piscina
e tirar dela o ouro. —Duvidou um momento. — E devia ser muito
poderosa.
—Para cruzar a entrada de energia quer dizer? —perguntou
Lucas, olhando para ela.
—Sim, mas acredito que esse é só o primeiro obstáculo. Estou
convencida que as águas da piscina sejam uma segunda barreira.
—Entendo que precisa ter poderes para clarear a superfície e
poder observar assim o fundo da piscina, mas não vejo porque a
água possa ser um obstáculo.
—Nem todas as mulheres capazes de revelar o tesouro podem
entrar na piscina para tirá-los de lá. As águas são profundas.
Chegariam no mínimo ao pescoço e acredito que podem ser muito
perigosas, inclusive letais.
Tirou os dedos da água. A superfície mudou e voltou a ser um
espelho líquido. O tesouro já não era visível.
—O que acredita que aconteceria se colocar minha mão na
piscina? —perguntou Lucas.
—Não tenho nem ideia, mas estou segura que tenha um risco
considerável.
—Que tipo de risco?
—Não saberia dizê-lo —respondeu, olhando-o.
—Eu gostaria de experimentar.
—Me pareceu que gostaria de fazê-lo —disse Evangeline com
uma careta.
Lucas tirou a jaqueta e subiu a manga da camisa. Com cuidado
mergulhou os dedos na água .
E os tirou de um golpe com uma expressão de agonia em seu
rosto.
—Maldição! —Apertou a mandíbula e os dentes e ofegou.
Sacudiu rapidamente as gotas de água da mão.
—Você está bem? —perguntou Evangeline assustada.
—Sim, acredito que sim —respondeu em tom áspero. Inspirou
fundo para relaxar. — Mas não acredito que vá fazer mais
experiências no momento.
—O que sentiu?
—Não estou certo. Digamos que tive a clara impressão de que
ia cair diretamente no fogo dos infernos.
—Uma alucinação?
—Mais que uma simples visão. Senti as chamas. —Duvidou
com o cenho franzido. — Também senti um frio de mil demônios.
Era indescritível.
—Acredito que posso alcançar o tesouro sem perigo.
—Esta certa disso? —comentou Lucas, que não parecia
convencido.
Evangeline colocou a mão na água e enviou uma delicada
carga de energia para a corrente que mudava suavemente. A
superfície ficou clara.
—Sim —respondeu. — Estou certa de que não existe nenhum
perigo para mim. O que fazemos agora, Lucas?
—Temos encontrado um tesouro, mas não estamos mais
próximos de encontrar a senhora Buckley nem de responder as
diversas perguntas —disse, levantando-se. — Podemos deixar
tranquilamente o tesouro aqui até que possa organizar tudo para
transportá-lo sem riscos para Londres. O ouro está há séculos seguro
nesta sala, pode muito bem ficar assim um pouco mais.
—Vai precisar de mim para tirá-lo daí.
—Outra razão para mantê-la bem próxima de mim, carinho. —
Lucas sorriu.
—Sempre é agradável sentir-se útil —assegurou Evangeline
enquanto agitava as águas e saboreava a exultante sensação do
poder feminino que fervia em seu sangue.
Um brilho totalmente pícaro, totalmente masculino iluminou
os olhos de Lucas.
—Asseguro que posso te dar inumeráveis utilidades,
Evangeline. Mas não vamos discuti-las neste momento. É hora de
irmos. —parou um momento e ficou sério. — Algo mais. Quando
voltarmos para casa, não comentaremos isso com ninguém. Ainda
não.
—Nem com os membros de sua família?
—Fico preocupado que deixem escapar o segredo devido a seu
entusiasmo—disse enquanto sacudia a cabeça. — Existe o risco de
que Molly ou algum de seus familiares possam ouvir uma conversa
que teria que ser privada. Pouco depois todo o povoado estaria
sabendo. Não quero perder tempo tendo que resgatar aos
buscadores de ouro pelos jardins.
—Compreendo. —começou a tirar a mão da água , mas deixou
de fazê-lo ao ver um objeto que tinha caído em um degrau
submerso. Observou com mais cuidado. — Lucas?
—O que foi? —perguntou Lucas, voltando-se.
—Vê esse pedaço cilíndrico no degrau?
—Sim. O que tem ele de especial?
—Parece de prata, não de ouro como os demais objetos do
tesouro. Depois de tantos séculos deveria estar negro.
—Imagino que as propriedades paranormais das águas da
piscina não permitiram isso —sugeriu Lucas.
—O aspecto e o trabalho parecem modernos. Não acredito que
faça parte do tesouro.
Lucas se agachou de novo na borda da piscina e lançou um
olhar mais profundo.
—Tem razão. Alguém mais conseguiu entrar nesta sala e não
faz muito tempo. Esse objeto caiu de alguém que foi na água. Foi
parar nos degraus, mas não posso recuperá-lo. Gostaria de saber se
era do meu tio.
—Não —soltou Evangeline. — Não acredito. Vou tirá-lo da
água e saberei com certeza.
—Esse degrau está muito distante.
—Se me esticar acima da borda, poderei alcançá-lo. Segure-me
para evitar que eu caia.
—Não acho uma boa ideia —indicou Lucas.
—Não vai acontecer nada comigo, te prometo.
—Está segura de que este objeto é importante?
—Completamente.
Já estava desabotoando o casaco do vestido. O baixou até a
cintura, de modo que ficou só com a camisa de baixo.
—Em outro momento, teria gostado muito disso —comentou
Lucas. — Mas agora só posso pensar em segurá-la para que não caia
nessa piscina.
—Não vou cair. —Voltou a se ajoelhar na borda da piscina. —
Segure minha mão.
Quando a mão de Lucas segurou seu pulso, Evangeline se
inclinou para adiante e meteu o braço desnudo na água até o ombro.
A energia da piscina fez chispear e cintilar seus sentidos. Aquela
sensação era impressionante. De repente teve um impulso quase
irresistível de desnudar-se por completo e banhar-se naquelas
águas, de abandonar-se aos mistérios e os segredos que estava preso
naquela piscina.
—Evangeline.
A voz forte de Lucas rompeu o feitiço.
—Sim —disse Evangeline. — Perdoe-me. Me distraí.
Segurou o objeto no degrau e tirou-o da água. Endireitou-se,
colocou o objeto de prata de modo que ambos pudessem vê-lo.
—É um estojo de óculos —assinalou Lucas. — Tio Chester
usava lentes, mas não os guardava em nenhum estojo.
—Este desenho é de uma mulher —esclareceu Evangeline. Deu
a volta ao estojo e olhou as iniciais gravadas na parte posterior. — E
mais, sei de qual mulher.
34

—Está segura de que esta chatelaine pertence à Irene Witton, a


proprietária da livraria? —perguntou Lucas. Seus outros sentidos se
estremeceram e tinha eriçado os cabelos de sua nuca.
—Não posso estar totalmente segura —disse Evangeline—,
mas posso dizer que a senhorita Witton parece saber muitas coisas
sobre as lendas locais. Dispõe de sortidos mapas de tesouro. Mais
ainda, suas iniciais são IW, as letras da parte posterior do estojo. E,
por último, ainda que não menos importante, recordo perfeitamente
que quando Clarissa elogiou sua chatelaine , Irene mencionou que
era nova e que tinha substituído outra que tinha perdido. Dadas às
circunstâncias, não posso imaginar que o estojo seja de ninguém
mais. Tem alguma ideia melhor?
—Não.
A rua principal estava concorrida. As lojas estavam cheias, os
vendedores de rua gritavam seus souvenires e os vendedores de
antiguidades, verdadeiras ou falsas, não paravam de fazer negócio.
Mas a livraria Chadwick estava fechada. Tinha um aviso preso
à porta e tinha as persianas abaixadas.
—Chegamos muito tarde —disse Lucas com uma sensação
gélida em seus sentidos.
Evangeline ficou olhando o aviso de FECHADO.
—Irene Witton teve medo de que começássemos a suspeitar.
Recolheu suas coisas e foi-se de Little Dixby.
—Quem sabe —admitiu Lucas. — Mas também é possível que
não teve essa sorte.
—O que quer dizer? Não está pensando que... —Evangeline
deixou a frase pelo meio porque Lucas já a estava levando rua
abaixo. — Espera. O que está fazendo?
—Ver se posso estabelecer o que passou com Irene Witton.
Quero dar uma olhada no interior da livraria.
—Não vai entrar, verdade?
—Fique quieta. —Balançou a cabeça para assinalar uma pessoa
que passava pela rua. — Preferia não anunciar minhas intenções.
Em alguns bairros menos instruídos o arrombamento de casas é
considerado ilegal. Ainda que tenha a certeza de que dessa vez
ninguém irá se queixar as autoridades.
—E se estiver errado? Witton vive em cima da loja. —
Evangeline levantou os olhos até as janelas com os pórticos
fechados. — Poderia estar doente.
—Se for assim, nos desculparemos e diremos que temíamos
por sua saúde quando vimos o aviso de fechado.
Evangeline tocou na bolsinha que levava. Continha a chatelaine.
—Parece uma explicação razoável. Mas e se suspeitar que seja
o ruído de um ladrão em sua loja.
—Prometo que não farei barulho.
Lucas pegou a estreita ruazinha que cruzava a rua principal e
Evangeline acelerou para seguir seus passos. Quando chegaram à
rua que dava na parte de trás da loja, ambos se voltaram para
assegurar-se de que ninguém os visse. Depois, se dirigiram até a
porta da livraria Chadwick.
Depois de chamar várias vezes sem obterem resposta, Lucas
colocou a mão sobre o pomo, que girou sem dificuldade.
—Esqueça o arrombamento —ironizou.
—Se a senhorita Witton partiu com pressa, pode ser que tenha
esquecido de fechar a porta traseira com chave.
—Segundo minha experiência, quem normalmente não fecha a
porta com chaves são os assassinos que fogem da cena do crime.
—Pois claro, porque não tem a chave.
—Às vezes é assim.
Não acrescentou que tinha assassinos que não fechavam com
chave a porta da cena do crime porque queriam que seus terríveis
atos fossem descobertos: assassinos que ansiavam ver sua obra na
imprensa. Mas este assassino não seria desse tipo. Nesta situação
tinha motivos em abundância. Não era necessário pensar na
possibilidade de um assassino perturbado.
Abriu a porta e entrou na parte detrás da loja. Não precisou
que as correntes de energia escura que se amotinavam no ambiente
lhe indicassem que tinha tido violência e que tinha sido agora a
pouco. O cadáver da mulher estava caído de boca para baixo no
chão. O sangue da ferida que tinha na cabeça empapava as tábuas
de madeira. O pesado segura livros de ferro que tinha sido utilizado
como arma estava próximo. Viu os restos de cabelo e pele grudados
nele.
Evangeline soltou um grito afogado de consternação.
—Tinha razão —disse. — Chegamos muito tarde. Mas isto não
tem sentido. Suponho que se encontrássemos um cadáver na
livraria, ele seria de Irene Witton. Mas esta não é Irene Witton.
Lucas se agachou junto à defunta e a voltou para cima o
suficiente para que pudesse ver seu rosto. Evangeline se aproximou
mais, com cuidado para não tocar na poça de sangue com a ponta de
suas botas de passeio nem com a barra de seu vestido.
—Não a reconheço —disse.
—Eu sim —comentou Lucas. — É a senhora Buckley, a
governanta que tinha desaparecido.
—Meu Deus! —Evangeline olhou ao redor, intranquila. — O
sangue parece muito recente.
—Sim —concordou Lucas. — Não está morta há muito tempo.
De fato, a assassina ainda está aqui.
Ouviu-se um suave barulho procedente da escada que
conduzia aos quartos do piso superior.
Evangeline ficou imóvel.
—Já pode descer, senhorita Witton —indicou Lucas, que se
voltou para a estreita escadaria. — Sabemos o que aconteceu aqui.
Não estamos armados.
Ouviu-se outro barulho de queixa das tábuas de madeira.
Irene Witton apareceu no alto das escadarias com uma pistola
segura com ambas às mãos.
—Mas eu estou —anunciou.
35

—Não precisava ter terminado assim —comentou Irene.


—Estas coisas nunca parecem terminar como tinham que ser.
—Lucas observou como descia a escadaria com passo constante.
Irene não tremia com a pistola nas mãos.
—A senhora Buckley estragou tudo —explicou sem deixar de
apontar para Lucas. — Agora não tenho mais remédio que partir no
trem pela manhã. Estava fazendo a bagagem quando escutei vocês
entrando alguns minutos atrás. Estava tão nervosa depois do que
aconteceu com a senhora Buckley que me esqueci de fechar a porta
com chave.
—Isso não nos teria detido —assegurou Lucas sem olhar para
a arma. Toda sua atenção estava nos olhos de Irene.
—Não, já vejo —aceitou Irene.
Evangeline se afastou um passo dele. Foi um movimento sutil,
mas Lucas sabia que sua intenção era conseguir que tivesse certa
distância entre os dois para obrigar Irene a apontar para um ou para
o outro.
—Quieta —ordenou Irene com a voz fria e controlada. — Não
se mova, senhorita Ames.
Evangeline obedeceu. Mas levantou a bolsinha que levava na
mão.
—Encontramos o estojo de óculos que perdeu. Caiu na sala da
Piscina das Visões.
—Impossível. —Pela primeira vez pareceu fraquejar. — Se caiu
na piscina, ninguém poderia recuperá-lo entrando tanto naquelas
águas.
—Eu fiz —disse Evangeline.
—Não acredito.
—Quer que te mostre?
—Sim —respondeu com brusquidão. — Esvazie a bolsa.
Evangeline desatou devagar a fita que fechava a bolsinha e
virou-a. O estojo de prata caiu em suas mãos.
—Se encontraram a chatelaine, conseguiram ver o tesouro —
disse Irene, atônita.
—Sim —confirmou Lucas. — O deixamos bem guardado na
piscina.
—Acredito que sei o que aconteceu —indicou Evangeline. —
Veio a Little Dixby porque se interou de algum modo da existência
desse tesouro.
—Meu pai era um expert em antiguidades. Tinha faculdades
psíquicas que lhe permitiam fazer descobrimentos extraordinários
no Egito e na Itália. Pode ser que tenham ouvido falar dele: o doutor
Howard Witton.
—Witton é uma verdadeira lenda no mundo das antiguidades
—assegurou Lucas. — E você é sua filha?
—Sim. Herdei seus poderes, mas como sou mulher, não pude
seguir seus passos. Muito nova percebi claramente que jamais
poderia explorar e escavar os depósitos importantes. Os colegas de
meu pai se negavam a aceitar-me como igual. Me vi obrigada a
conformar-me em ser ajudante de meu pai.
—Se bem me lembro, Witton morreu já faz alguns anos —
comentou Lucas.
—Fui sua única herdeira —explicou Irene, sorrindo com frieza.
— Seus colegas me rogaram que doasse seus documentos e os
objetos de sua coleção privada a um dos museus. Alguns se
ofereceram para comprá-los. Valem uma fortuna. Senti um prazer
enorme em rechaçar a todas suas ofertas e súplicas, acreditem. Não
precisava do dinheiro, sabe?
—Não a culpo por obter satisfação desse jeito —disse
Evangeline.
—Significava que nunca poderia me casar, claro —comentou
Irene.
—Não —concordou Evangeline. — Se, se casasse, o mais
provável é que perderia o controle da sua herança. Muitos homens
ficariam encantados de vender a maioria das antiguidades valiosas.
—Não lamentei minha escolha nem um só instante. —a boca
de Irene se contorceu em um sorriso amargo. — Não posso dizer
que tenha me faltado companhia masculina. Ficaria surpresa saber
quantos cavalheiros atrai uma mulher que possui dinheiro e
poderes, mesmo já fazendo um bom tempo que tenha deixado para
trás os dezoito anos.
—Como soube da existência do tesouro de Crystal Garden? —
perguntou Lucas.
—No final de sua vida meu pai estava muito fraco para viajar
ao estrangeiro —disse Irene. — Durante esse tempo, deu com alguns
documentos que mencionavam um tesouro que supostamente
estava enterrado nos jardins da velha abadia de Little Dixby.
Segundo a história, o tesouro estava protegido por forças mágicas.
—Seu pai não acreditava em magia —deduziu Evangeline. —
Mas se preveniu da possibilidade dos jardins terem forças
paranormais.
—Sim, e isso despertou sua curiosidade —prosseguiu Irene. —
Se colocou em contato com Chester Sebastian e pediu permissão
para buscar o ouro. Mas Chester negou.
—Meu tio só se interessava por seus experimentos botânicos
—disse Lucas. — Não gostava dos caçadores de tesouros.
—Depois da morte de meu pai, me fascinou a lenda do ouro
romano e os aspectos paranormais da história. Mas sabia que seu tio
jamais iria me permitir buscá-lo.
—Viu que representava sua oportunidade quando o dono
desta livraria faleceu —disse Lucas. — Comprou-a de sua viúva e se
dispôs a seduzir Chester com desenhos e livros raros sobre botânica.
—E com minhas faculdades —acrescentou Irene. — Usei meus
poderes como uma cortesã utiliza seus encantos, lançando pequenas
indiretas sobre minhas habilidades ao longo de vários meses. Afinal,
Chester me pediu que participasse de alguns experimentos. Deixei
que visse algo de meus poderes para que quisesse ver mais. Quando
descobriu que podia orientar-me pelo labirinto, ficou encantado.
Logo se deu conta de que era muito mais poderosa que sua
governanta. Ela tinha sido incapaz de entrar na Sala das Visões.
—Mas pensou que você sim seria capaz de fazê-lo —deduziu
Lucas.
—No começo me neguei. Me mostrei muito prudente a
respeito. Lhe disse que duvidava poder realizar uma tarefa tão
grande. Mas ele insistiu para que eu tentasse. Até me prometeu o
tesouro se eu pudesse tirá-lo de onde estava. Não se importava com
o ouro. Para então estava obcecado em encontrar a fonte das águas
paranormais. Estava convencido que esta estava na Sala das Visões.
—Deve ter ficado eufórico quando demonstrou que podia
entrar na sala —disse Lucas.
—Ficou —admitiu Irene. — Quando clareei as águas da
piscina e vimos o ouro, acreditei que iria desmaiar de emoção. Mas
ele só pensava em uma forma de canalizar a energia da piscina para
seus condenados experimentos botânicos. Estava feliz em dar-me
todo o tesouro como agradecimento ao meu trabalho.
—Foi então que descobriu que clarear as águas era só o início
—disse Evangeline. — Logo se deu conta de que não podia
mergulhar na piscina.
—Só precisava de tempo para averiguar como controlar as
correntes dessas águas —se queixou Irene com a raiva refletida no
semblante. — Estava segura de poder fazê-lo, mas então ela nos
encontrou na sala.
—A senhora Buckley? —perguntou Lucas, dirigindo seu olhar
ao cadáver.
—Sim. A tonta acreditou que eu tinha uma aventura com seu
tio. Tinha tirado o corpete do vestido para tentar colocar o braço na
água, sabe? A senhora Buckley ficou louca de ciúmes.
—Não sem razão —disse Evangeline. — A senhora Buckley e
Chester eram amantes há muitos anos até que você chegou e pode
dar-lhe o que ela não podia: acesso a sala e à piscina. Ainda por
cima, estar meio desnuda deve ter dado a impressão de que estavam
tendo um caso.
—Buckley montou uma cena terrível. Se lançou sobre mim,
batendo e maldizendo. Arrancou minha chatelaine do vestido. Era
absurdo, mas a muito estúpida não atendia as razões. Chester tentou
acalmá-la. Disse-me para sair para poder manejar a situação com a
senhora Buckley.
—Saiu da sala, mas esqueceu a chatelaine — disse Evangeline.
— No meio de todo aquele barulho, de algum jeito foi parar no meio
da piscina e ficou sobre o degrau submerso.
—Me vesti, saí do labirinto e fui embora de Crystal Garden.
Supus que Chester resolveria a situação com a senhora Buckley e
pela manhã ele e eu começaríamos a resolver como tirar o tesouro
da Piscina das Visões.
—Mas pela manhã, a senhora Buckley chamou ao medico,
quem declarou que tio Chester tinha falecido de um infarto sentado
a mesa do café da manhã —soltou Lucas.
—O matou —sentenciou Irene, indignada. — Estou segura
disso. Não sei como conseguiu que parecesse um infarto, mas não
tenho a menor dúvida de que o matou por ciúmes.
—Estou de acordo com você —assegurou Lucas em voz baixa.
— Lhe deu veneno que tinha preparado em sua sala de destilação
utilizando plantas letais dos jardins.
—Se acreditava que tinha assassinado Chester Sebastian —
disse Evangeline, olhando-a com atenção—, deve ter se perguntado
se não tentaria matar você também.
—Fiquei preocupada durante um breve período de tempo —
explicou Irene. — Mas no dia seguinte partiu do povoado no trem
pela manhã. No início, achei que seria até mais fácil sem eles.
—Voltou aos jardins, verdade? —deduziu Lucas. — Tinha a
chave da porta. Podia cruzar a entrada de energia e podia clarear as
águas. Mas viu que não poderia descer os degraus da piscina. Só
conseguia colocar os dedos dentro dela.
—Eu já te disse, só precisava de tempo para estudar a energia
—disse Irene. — Mas antes mesmo que me desse conta fiquei
sabendo que chegaria para encarregar-se da propriedade de seu tio.
Supus que tentaria vendê-la. Mas em vez disso, se estabeleceu nela.
—A voz de Irene era acusadora. — Logo a senhorita Ames e sua
família se mudaram para a velha abadia. Contratou alguns
moradores locais. No povoado se dizia que tinha intenção de
converter Crystal Garden em sua casa de campo. As pessoas
comentavam que um homem muito forte vigiava os jardins.
—A única coisa que poderia fazer era esperar o momento
oportuno —indicou Lucas. — Esperava que no final fossemos
embora.
—Só um excêntrico obcecado como seu tio iria querer viver ali
de forma permanente —disse Irene. — As forças dos jardins estão se
tornando cada vez mais inquietantes. Chester sabia disso. Estava
convencido que era devido à energia da Piscina das Visões.
—Comentou por que acreditava que as forças do manancial
estavam tão potentes? —perguntou Lucas.
—Não, e me dava igual. Eu só queria o tesouro. Esta manhã a
senhora Buckley se apresentou na porta traseira da livraria. Teve a
cara de pau de tentar me chantagear.
—Com o que? —quis saber Lucas.
—Disse que se não pagasse uma grande quantidade de
dinheiro, diria a você que eu estava atrás do tesouro e que era a
culpada pela morte de seu tio. Acreditava que tinha tudo muito bem
planejado, sabe? Estava convencida de que você iria acreditar nela,
pois a conhecia há muitos anos e não tinha motivos para desconfiar
dela.
—Esperou que desse a volta e golpeou sua cabeça com esse
pegador de livros —indicou Lucas.
—Decidi que a única coisa que poderia fazer era ir embora
deste povoado até que as coisas se acalmassem —disse Irene.
—Mas nós chegamos antes que pudesse fugir —comentou
Lucas.
—Os dois me complicaram a vida de forma inimaginável. Não
posso fazer outra coisa além de desfazer-me de vocês. Não
desfrutarei fazendo, acreditem, mas não me deixaram outra opção.
Lucas encontrou o foco que precisava e intensificou seus
poderes para enviar a energia carregada de terror para a aura de
Irene.
A pistola começou a tremer em suas mãos.
—O que está acontecendo? —exclamou com os olhos
desorbitados de horror. — Vocês estão fazendo algo. Eu percebo.
Meu coração. Não posso respirar.
Tentou apertar o gatilho, mas era muito tarde. Caiu
inconsciente.
36

—A polícia prendeu Irene Witton pelo assassinato da senhora


Buckley. —Evangeline deixou a edição matutina do Little Dixby
Herald e tomou uma xícara de chá. — Afirma possuir poderes
paranormais e está dizendo a todo mundo que teve uma visão
horrenda de demônios e monstros que vigiavam uma piscina
prateada que contém ouro antigo. Quando se recuperou desta visão,
encontrou o cadáver. No povoado, se opina que a impressão de
matar Buckley deixou Witton desequilibrada. Se especula que
acabará presa em um manicômio.
—Que pode ser o que busca —assegurou Lucas. Pegou um
pouco de ovo com o pegador. — Supondo que esteja realmente
louca.
Evangeline olhou em seus olhos e soube que estava meditando
se teria levado Irene além do limite da sanidade com a força de seus
poderes.
—Não está louca —disse. — Vi sua aura quando comprovei se
tinha pulso. Não vi nenhuma mácula de loucura. Mas acredito que
tenha decidido fingir uma enfermidade mental. Sem dúvida, chegou
à conclusão de que será mais fácil escapar de um manicômio que de
uma prisão.
—Lucas e você falam com muita tranquilidade da
possibilidade de que fuja —se surpreendeu Beth enquanto untava
de manteiga uma torrada.
—Pelo pouco que a conheço, acredito que podemos dizer sem
erro que Irene Witton é uma mulher de recursos. —Lucas tomou um
pouco de café. — Mas pelo menos já não é nenhum problema para
nós. Estava obcecada com o ouro. Se alguma vez pensar em voltar a
Little Dixby, será muito tarde. Para então, o tesouro já estará muito
bem guardado em algum museu.
Tony apareceu na porta. Evangeline o olhou, assombrada.
Tinha o cabelo despenteado e a camisa e as calças muito enrugadas.
Levava um mapa enrolado nas mãos. Seu entusiasmo era evidente.
—Você está bem? —perguntou. — Tem a aparência de ter
dormido com a roupa posta.
—O certo é que não dormi muito. —Olhou para Beth. — Tinha
razão sobre esses cristais.
—Sério? —Beth amassou o guardanapo e o deixou na mesa. —
Encontrou?
—Sim, acredito que sim. —Tony correu até a mesa, afastou os
pratos e os salgadinhos que Molly tinha colocado para ele e
desenrolou o mapa.
—O que encontrou? —perguntou Lucas, colocando-se de pé.
—Os cristais —respondeu Tony, levantando a vista do mapa.
—Que cristais? —insistiu Lucas com paciência.
Beth também tinha se levantado.
—Lembra-se de ter dito que a energia dos jardins começou a
aumentar há alguns anos. Busquei nos diários de tio Chester esse
período e encontrei anotações sobre um experimento que planejava
fazer.
Evangeline se levantou e rodeou a mesa para examinar o mapa
—Que tipo de cristais? —perguntou
—Tio Chester não tinha certeza —contestou Beth. — Os
encontrou em uma loja de antiguidades numa Rua de Londres.
Eram três. Segundo suas anotações, eram cinza, apagados, não
muito interessantes à primeira vista, mas percebeu o poder que
tinham. O antiquário tinha chegado à conclusão de que as pedras
não valiam muita coisa. Tio Chester então as comprou bem barato.
—Trouxe para cá e fez alguns experimentos com eles —
explicou Tony. — Estava convencido de que podiam entrar em
harmonia com a frequência das águas do manancial.
—Provou diversas técnicas, mas nenhuma funcionou —
prosseguiu Beth. — Então lhe ocorreu que os cristais talvez teriam
que estar abaixo da terra para poder entrar em harmonia com as
forças naturais da região. Os enterrou em vários lugares.
—Que por acaso se limitam com o Jardim Noturno —
acrescentou Tony.
—As marcas que observei em um dos mapas —assinalou
Lucas.
—Exato. —Os olhos de Tony brilhavam triunfantes. Tocou
várias vezes com os dedos os círculos que tinha assinalado no mapa.
— Anotou os lugares para poder encontrá-los se o experimento não
saísse bem.
—Por que não os desenterrou quando pressentiu que algo
estranho ocorria nos jardins? — Evangeline perguntou surpresa.
—Porque não lhe ocorreu que os cristais fossem a raiz do
problema —respondeu Beth. — Estava convencido de que a origem
do problema era a Piscina das Visões. Concentrou toda sua atenção
nessa possibilidade e não lhe ocorreu que podiam existir outras
causas.
—Um erro clássico em qualquer investigação —assegurou
Lucas—, tanto se for um assassinato como um assunto científico.
Precisamos localizar esses cristais e desenterrá-los o quanto antes.
Então veremos se esse nível de energia muda.
37

Quando bateram na porta da biblioteca, Lucas teve um


pressentimento que provocou um calafrio. Era uma mulher, mas
não era Molly. Nem Evangeline. Nem Beth. Resignado, se levantou.
—Entre, Judith —disse.
—Sabia que era eu —comentou depois de abrir a porta e entrar
devagar na sala. — Parece sempre saber coisas assim.
—Neste caso foi um simples processo de eliminação. Não
precisei nenhum poder psíquico. O que quer?
Fechou a porta, cruzou a metade da sala e parou. Tinha uma
mão enluvada presa ao lado.
—A senhorita Ames me aconselhou a enfrentar meus medos
—anunciou.
—Deveria ter imaginado que Evangeline estava de algum jeito
por trás disso. —Lhe indicou uma cadeira com gravidade. — Será
melhor que te sente porque suspeito que logo terá que fazê-lo. Algo
me diz que vamos ter outra conversa difícil.
—Nossas conversas sempre foram difíceis. —Judith ficou de
pé.
—Por estranho que pareça, lembro ter feito uma observação
parecida à senhorita Ames —disse Lucas com uma careta. — Vamos
nos sentar?
—Prefiro ficar em pé.
—Como queira. —Não teve mais remédio que fazer o mesmo e
observá-la do outro lado do escritório. — Suponho que se trata de
Beth e de Tony.
—Naturalmente. —Uma mescla de raiva e medo ensombrecia
os olhos de Judith. — Em certo sentido, trata-se deles desde o
primeiro dia, não?
—Judith, acredito que seria muito melhor que não falasse mais
nada a esse respeito —assegurou Lucas, esfregando as têmporas
pensativo.
—Não acredita que já está na hora de falarmos a verdade sobre
o passado? —perguntou furiosa. — Sei o que pensou durante todos
esses anos, quando me casei com seu pai com uma pressa
indecorosa. Sei o que pensou quando os gêmeos nasceram quase
dois meses antes do previsto. Acreditava que tinha perdido a honra
com outro homem, que estava grávida quando me casei com George
e que por isso meus pais me obrigaram a contrair um matrimônio
tão espantoso. Nunca disse nenhuma palavra, mas sempre via seu
olhar acusador.
—Isso já não importa, Judith. Nem antes nem agora —
comentou Lucas, baixando a mão.
—Importa porque estava certo —disse depois de aproximar-se
um passo dele com os ombros rígidos. — Fiquei grávida de um
homem casado que me dobrava em idade. Não porque tenha me
seduzido. Foi uma violação, mas, claro, ninguém podia dizer isso
em voz alta.
—Já basta, Judith.
—Se chamava Bancroft. Há cinco anos o encontraram morto, o
bastardo, em uma rua diante de um bordel. A imprensa não prestou
atenção onde havia falecido, claro. Houve enormes protestos sobre o
horroroso aumento de crimes nas ruas.
Era evidente que Judith não iria se sentar. Lucas se dirigiu até
a janela e contemplou os jardins escuros.
—Todo mundo se perguntou onde iríamos parar se um
cavalheiro da categoria social de Bancroft não podia andar seguro
pelas ruas —prosseguiu Judith, sem alterar a voz. — Mas quando vi
os relatos sobre sua morte nos jornais, me alegrei. Aquele bastardo
estava morto. Um infarto, segundo a imprensa. Não era o tipo de
justiça que tinha ansiado todos aqueles anos, não era uma autêntica
vingança, mas pelo menos estava morto. Durante um tempo, dormi
melhor à noite.
—Terminou? —perguntou Lucas sem afastar os olhos dos
jardins.
—Não. — Judith sentiu um nó na garganta. — Dormi melhor
até que seu avô morreu e deixou tudo para você. Já era muito ruim
que George não tivesse previsto nada para os gêmeos, mas quando
me dei conta de que seu avô também não tinha feito isso e que você
controlava a fortuna da família, comecei a conhecer um tipo de
pânico que jamais entenderá.
Lucas voltou à cabeça para olha-la.
—De verdade, acredita que deserdaria Beth e Tony para te
castigar?
—Não levam o mesmo sangue —disse Judith com amargura.
— E você sabe disso.
—Isso não me importa.
—Porque a lei os reconhece como descendentes de George?
Sou muito consciente disso. Mas você sabe a verdade. Pode deixá-
los tranquilamente sem nada quando se casarem ou dizer a si
mesmo que não lhes deve nada.
—Isso não vai acontecer.
—Esperou todos esses anos para se vingar de mim, pelas
mentiras as quais tive que viver todos esses anos. Seu pai estava no
Egito quando os gêmeos nasceram. Nunca deu a menor mostra de
que suspeitava de que os meninos não eram dele.
—Meu pai tinha muito pouco interesse em seus filhos —
assegurou Lucas.
—É verdade. Mas seu avô sempre suspeitou da verdade. Eu
via em seus olhos. Estou segura de que foi isso o que o levou a
deixar tudo para você.
—Nada disso importa —disse Lucas olhando diretamente em
seus olhos. — Já pode deixar de se atormentar com seus medos.
Uma semana depois de herdar o patrimônio de meu avô, redigi os
documentos necessários para assegurar de que se algo me
acontecesse, Tony, Beth e você receberem a maior parte da fortuna
familiar.
—Por que iria ser tão generoso se sabia que não tem laços de
sangue unindo vocês? —soltou Judith, incrédula.
—Porque isso não importa —respondeu Lucas. — Quantas
vezes vou precisar repetir? Beth é minha irmã e Tony é meu irmão.
Sempre serão. Te asseguro que os deixei bem assegurado em meu
testamento. Você também está incluída. Nenhum de vocês acabará
nas ruas, pode acreditar.
Judith parecia desconcertada.
—Eu gostaria muito de acreditar —comentou com o semblante
iluminado.
—Sei que não tem muito boa opinião sobre mim, mas menti
alguma vez para você, Tony ou Beth?
—Não —aceitou Judith, mordendo seus lábios.
—Então pelo bem de sua sanidade e de seus nervos, espero
que acredite.
—Não sei como te agradecer —sussurrou Judith.
—Não é preciso. Beth, Tony e você são minha família. Isso é a
única coisa que importa.
—A senhorita Ames me disse que pensava assim.
Bateram com vontade na porta. Lucas, que agradecia a
interrupção, se situou outra vez atrás da mesa.
—Entre, Evangeline —disse. — Acredito que Judith e eu já
terminamos. —olhou a Judith. — Ou quer mais alguma coisa?
—Não —respondeu Judith, já recuperada. — Mais nada.
A porta se abriu e Evangeline lhes dirigiu um sorriso.
—Certeza de que não estou interrompendo nada?
—Com certeza. —Judith respondeu com um sorriso tremente.
— Vou para meu quarto preparar minha bagagem. Decidi voltar a
Londres com Florence pela manhã. Nossas donzelas nos
acompanharão, claro.
—Já nos deixa? —lamentou Evangeline.
—Beth e Tony acharam esse lugar fascinante, mas nem
Florence nem eu temos nos sentido muito cômodas em Crystal
Garden. —Judith avançou até a porta. — A presença de Beth basta
para evitar qualquer possível falta de decoro. Se me desculpam...
—Naturalmente —respondeu Evangeline.
Lucas duvidou um instante antes de tomar uma decisão:
—Judith, existe algo que talvez queira saber.
—Do que se trata? —perguntou Judith, tensa, cansada e
temerosa de novo.
—Investiguei a morte de Bancroft. Pode ser que goste de saber
que os relatos da imprensa não eram corretos. Ainda que sempre
sejam, claro.
—Não te entendo —disse Judith.
—Bancroft não morreu de causas naturais. Alguém o matou.
—Está certo disso?
—Não tenho a menor dúvida.
—De modo que devo a um delinquente comum a justiça que a
sociedade jamais tinha me proporcionado — comentou Judith
depois de respirar fundo.
—Isso é uma forma de ver —disse Lucas.
—Espero que tenha sofrido ao morrer —soltou Judith com o
queixo levantado.
—Sofreu. Te asseguro que sentiu pânico antes de morrer.
Judith assentiu mais uma vez. Uma grande calma a invadiu.
Parecia cansada e aliviada ao mesmo tempo.
—Obrigado, Lucas. Hoje me deu um presente excelente, um
presente que sempre estarei agradecida, mas Beth e Tony jamais
devem saber de nada sobre Bancroft.
—Não saberão, te dou minha palavra —prometeu Lucas. —
Mas conheço Beth e Tony. Estou convencido de que são capazes de
assumir a verdade. Em minha opinião tem o direito de saber. Em
todo caso, conhecendo-os, cedo ou tarde vão averiguar. Seria melhor
se você fosse a primeira a dizer tudo isso.
—Estou de acordo —interveio Evangeline. — Beth e Tony são
jovens admiráveis. São muito fortes, e assimilarão os fatos que
rodeiam seu nascimento. Como disse Lucas, eles têm o direito, a
saber, dos fatos. Entenderão porque você fez isso.
—Você também sabe a verdade, não? —Judith suspirou. —
Sabe que Beth e Tony não são do meu marido.
—Lucas não me contou nada a respeito, mas minha intuição
me disse que poderia ser isso. —disse Evangeline. — Explicava
muitas coisas, sabe?
Judith ficou em silêncio um bom tempo. Depois inspirou
fundo.
—Talvez tenham razão —disse e olhou Lucas. — Está certo
quando diz que Beth e Tony são fortes. E mais, devem a você grande
parte de sua fortaleza interior e seu caráter. Agora que me dei conta.
—Não descarte seu valor e sua determinação para proteger
seus filhos, Judith —disse Lucas. — Beth e Tony herdaram de você
uma grande parte de sua força de vontade e seu caráter.
Judith dirigiu um sorriso tremente a Evangeline.
—Obrigado por me animar a falar hoje com Lucas. Me tirou
um enorme peso das costas.
Saiu ao corredor e fechou a porta atrás de si sem fazer o menor
ruído.
—É evidente que conseguiu tranquilizá-la —disse Evangeline
a Lucas.
—Fiz o que pude. Mas já se passaram quase vinte anos de
nervos à flor da pele. Pode levar um tempo aceitar que não tenho
nenhum interesse de me vingar dela e muito menos de privar Beth e
Tony do que é deles por direito.
—De sua parte, quando era jovem, deve ter se sentido
atrapalhado e sem saída.
—Quando deduziu a verdade? —quis saber Lucas.
—Quase imediatamente. Como disse a Judith, explicava
muitas coisas do passado.
—Sua intuição é melhor que a minha, ao menos neste assunto.
Sempre tinha estado seguro de que estava grávida quando se casou
com meu pai, mas supunha que tinha um amante que, por algum
motivo, não podia se casar com ela. Levou muito mais tempo para
dar-me conta de que a tinham violado. —Lucas recolheu o abre
cartas de prata e o balançou entre os dedos. — Seu agressor era um
homem velho, casado, que se acotovelava com a alta sociedade.
—Me assombra ter te confiado semelhante segredo.
—Hoje me contou a verdade, mas o certo é que dei com ela há
cinco anos. No transcurso de um caso que estava investigando, me
interei de alguns velhos rumores. Um cavalheiro tinha atacado
violentamente e quase matou uma jovem prostituta da qual era
cliente. Não era a primeira vez. A dona do bordel pediu a meu
conhecido da Scotland Yard que investigasse. Ele suspeitava de
Bancroft há muitos anos, mas não podia fazer nada devido a sua
posição social.
—E seu amigo da Scotland Yard te pediu para investigar o
assunto?
—Sim. Entrei na biblioteca de Bancroft e encontrei seus diários.
Tinha anotado com muito cuidado os detalhes do que ele
denominava suas conquistas. Não tinha se dado ao trabalho de
mencionar os nomes das prostitutas que tinha atacado. Mas sim
figuravam os nomes e as descrições das mulheres que considerava
respeitável. Ao longo dos anos tinham sido vítimas suas várias
governantas, damas de companhia e jovens de famílias que
careciam de poder social.
—Encontrou o nome de Judith na lista?
—Sim.
—Me alegra saber que se assegurou de que sua morte fosse
bem violenta —indicou Evangeline com o punho fechado.
—Isso soou um pouco sanguinário —comentou Lucas com as
sobrancelhas arqueadas.
—Sim, verdade não é? Todo este tempo o motivo de sua
agitação interior não eram teus poderes, sim que tivesse feito justiça
há tantos anos, por não falar do trauma que viveu e do preço que
pagou. Decidiu que você era a origem de seu medo porque
pressentia que conhecia seu maior segredo.
Lucas deixou o abre cartas com cuidado.
—Não contei tudo sobre a morte de Bancroft.
—Contou o suficiente. O importante para Judith é que Bancroft
pagou pelo que fez. Não era necessário dizer que foi você o
responsável de sua morte.
—Também adivinhou isso? —se surpreendeu Lucas.
—Te conheço. Sei o que teria feito depois de encontrar o nome
de Judith na lista.
—Me assegurei de que afinal Bancroft soubesse exatamente
porque iria morrer. Lhe custou um pouco fazer ideia de que ia matá-
lo pelo que tinha feito anos antes a uma mulher.
Evangeline se aproximou de Lucas e rodeou seu corpo com os
braços.
—Explicou as coisas a Bancroft, suponho.
Lucas a estreitou contra seu coração.
—Lhe disse que tinha cometido um crime contra minha família
e que iria pagá-lo.
—Claro —disse Evangeline.
38

A escura energia que carregava o ambiente impregnou os sentidos


de Beatrice com uma onda de água gelada. Segurou o ar e se deteve
junto depois de cruzar a porta principal de sua casa na cidade. Ficou
olhando o pé da escadaria.
—Clarissa —disse, a impressão era que sua voz tinha se
convertido em um mero sussurro.
—O que aconteceu? —Clarissa fechou a porta principal e a
olhou. — Percebeu algo? O que está acontecendo?
—Esteve aqui —confirmou Beatrice depois de voltar-se para
ela. — Aqui mesmo em nossa casa
—Quem?
—O ator, Garrett Willoughby. É a mesma energia que percebi
em seu camarim nem há uma hora.
O enorme homem que varria o teatro havia pedido um
dinheiro considerável em troca de deixá-las entrar no camarim de
Willoughby, mas a senhora Flint e a senhora Marsh tinham deixado
claro que o dinheiro não era obstáculo para a investigação.
—Deve ter estado vigiando a casa —sugeriu Clarissa. — Deve
ter visto que nessa manhã nossa governanta foi visitar sua irmã e
esperou que saíssemos para entrar.
A raiva e o pânico invadiram Beatrice, que se lembrou da
horrorosa época que passou na Academia de Ciências Ocultas do
doutor Fleming. Reprimiu seu passado com grande força de
vontade e se obrigou a concentra-se na ameaça imediata.
—Então estava aqui mexendo em nossa casa enquanto nós
perguntávamos por ele no teatro nesta mesma manhã — disse com
raiva.
—Então podemos descartar a hipótese que tivesse embarcado
para a América em busca de oportunidades — disse Clarissa. —
Mas o que esperava encontrar aqui? É evidente que sabe que
Evangeline está em Little Dixby. Enviou Hobson até a casa de
campo para matá-la.
—Esperava encontrar algo para poder usar contra Evangeline.
—Mas o que seria?
—Não sei o que —disse Beatrice. — Mas precisamos averiguar.
Estava importunada com uma enorme sensação de urgência.
Se voltou, recolheu um pouco o vestido e subiu correndo as escadas.
Clarissa a seguiu.
—Tome cuidado, pelo amor de Deus! —exclamou Clarissa. —
Ainda pode estar aqui em casa.
Beatrice aguçou seus sentidos e sacudiu a cabeça.
—Não, já se foi —anunciou.
Pararam no loby e lançaram um olhar ao corredor. Beatrice viu
os pomos das portas com os restos reveladores de energia.
—Estava procurando o quarto de Evangeline —disse. — O
encontrou, e deixou a porta aberta.
Se dirigiram rapidamente para a porta e lançaram um olhar
para dentro. Não tinha nenhum indício de que tivesse tocado em
algo. A cama estava arrumada. Os armários e as gavetas da pequena
escrivaninha estavam fechados.
—Esteve aqui —comentou Beatrice. — Eu percebo. Acredito
que vasculhou esse quarto, mas o que estava procurando? O que
pode ter encontrado?
—Buscava seus segredos — declarou Clarissa.
Beatrice não questionou essa afirmação. Clarissa sabia mais
que a maioria das pessoas sobre os segredos e como podiam ser
utilizados contra uma mulher. Afinal, ela mesma tinha sido
obrigada a inventar uma nova vida, uma nova identidade.
—Bem, não terá encontrado os maiores segredos de Evie —
comentou Beatrice, cheia de alivio. — Estou certa de que não foi tão
tola para escrevê-los em seu diário. E, em qualquer caso, levou o
diário com ela.
Clarissa se aproximou da escrivaninha e começou a abrir as
gavetas. Parou ao ver o arquivo de correspondência, perfeitamente
organizado de Evangeline.
—Aqui ele encontrou algo útil —disse.
—Mas Evie troca cartas com poucas pessoas. —Beatrice cruzou
o quarto a toda velocidade. — Não tem família nem amigos, salvo
nós mesmas.
—Isso não significa que não envie ou receba cartas. —Clarissa
pegou um punhado de papel do arquivo e os estendeu na cama. —
Aqui está a correspondência relativa ao aluguel da casa de campo
de Little Dixby, por exemplo. Também tem uma nota de sua
modista para informá-la que seu novo vestido está pronto para a
entrega.
Beatrice olhou mais alguns papéis.
—Recordo desta nota da livraria de Oxford Street onde a
faziam saber que tinha chegado à novela que lhes tinha pedido.
Tinham mais algumas cartas no mesmo estilo, mas quando
encontraram a correspondência certa, Beatrice soube. As correntes
escuras de energia que impregnavam as páginas eram
inconfundíveis. Clarissa percebeu ao mesmo tempo.
—Era disso que precisava —disse. — Encontrou seu ponto
vulnerável.
—Escolheu bem seu papel — soltou Beatrice em tom grave.
—Precisamos enviar um telegrama imediatamente para Evie
—indicou Clarissa com os olhos postos nos papéis que Beatrice
tinha em mãos.
39

Evangeline estava em seu quarto, trabalhando com o seguinte final


em suspense e aproveitando o ambiente tranquilo da casa quase
vazia. Lucas, Stone, Beth e Tony estavam trabalhando nos jardins,
usando o mapa de Chester para identificar o lugar onde estavam os
três cristais.
Soaram alguns passos rápidos no corredor e Molly apareceu
na porta, cheia de entusiasmo.
—Tem um senhor Guthrie querendo vê-la, senhorita Ames.
—Guthrie? Meu editor? —Evangeline deixou a pluma, incapaz
de acreditar em seus ouvidos. Notou que os nervos lhe retorciam o
estômago. — Está aqui? Nesta casa?
—Sim, sim, é ele — disse Molly enquanto Evangeline se
levantava da cadeira de um salto. — Disse que está alojado em uma
das pousadas do povoado. E perguntou se não recebeu um
telegrama onde avisava sua chegada.
—Não.
—Imagino que o senhor Applewhite voltou a se acidentar com
a bicicleta.
—Quem o trouxe foi o senhor Mathew em seu coche de
aluguel?
—Não, senhorita. Imagino que veio andando.
—Não importa. O importante é que o senhor Guthrie está aqui.
Deixe-me pensar. Não podemos leva-lo à biblioteca. As videiras nas
janelas colocam nervosos a maioria das pessoas. Por favor, leve-o ao
salão. Está na parte ensolarada da casa.
—Sim, senhorita. Vai querer que leve chá?
—Sim, sim, claro. E também algumas de suas maravilhosas
criações para servir com o chá. Quem sabe não consigo convencê-lo
a jantar conosco. Não, espera, pode não ser uma boa ideia. Teria que
regressar ao povoado pelo bosque e, depois do anoitecer, pode ser
muito inquietante.
—Vou preparar a bandeja de chá —anunciou Molly depois de
sair de novo ao corredor.
—Obrigado, Molly.
Evangeline parou em frente ao armário. Levava um de seus
vestidos de dia mais cômodo: um fácil vestido azul escuro. Carecia
de um drapeado mais elaborado e só usava uma anágua. A
necessidade de colocar algo mais bonito era tentadora, mas não se
atrevia a fazer o senhor Guthrie esperar.
Contentou-se em ajeitar os cabelos e arrumar o lenço que tinha
colocado sobre seu decote. Depois respirou fundo para tranquilizar-
se e saiu ao corredor para descer as escadas.
Um momento depois, entrou no salão e parou. O homem
estava junto à janela de costas para ela. Tinha os cabelos cinza e
usava uma jaqueta de corte sóbrio e conservador, como se esperava
de um cavalheiro de meia idade. Segurava uma bengala com as
mãos.
A intuição alertou seus sentidos. Tinha algo estranho no cabelo
de Guthrie. De repente estava segura que usava uma peruca. Não
seria o primeiro homem calvo que o fazia, os homens tinham direito
a suas pequenas vaidades.
Mas a explicação não satisfez sua intuição. Conteve sua
inquietação e esboçou um sorriso de boas vindas.
—Senhor Guthrie — disse. — Que amável de sua parte vir me
ver. Não sabe como sinto não ter recebido seu telegrama. Mas por
sorte estou em casa.
—É realmente uma sorte, senhorita Ames. —Guthrie se voltou.
— Já tive muitos problemas por sua culpa. Não teria gostado se
tivesse me colocado as coisas ainda mais difíceis.
O sangue de Evangeline gelou. Agora podia ver a mão direita
de Guthrie. Era de um homem que estava muito longe da meia
idade, e tinha uma pistola nela. A impressão a deixou sem fôlego
alguns segundos.
—Você não é o senhor Guthrie —disse. — Deveria ter prestado
atenção ao que meus sentidos tratavam de me dizer.
—Não tenho ideia do que está falando, mas não, não sou seu
editor. Me chamo...
—Garrett Willoughby. O irmão de Douglas Mason.
—Estou impressionado, senhorita Ames —disse Garrett, com
um olhar duro. — Você é muito rápida, verdade? Meu irmão me
disse que era muito correta para seu próprio bem.
—Existem pessoas procurando por você.
—Sim, eu já sei disso. —Garrett tirou um pedaço de papel do
bolso. — Isto era para você. É de uma tal de senhorita Slate,
advertindo que ela e sua amiga acreditam que não estou indo rumo
a América em busca de oportunidades teatrais. Suspeitam que, na
realidade, posso estar viajando de trem para Little Dixby e que estou
disfarçado como seu editor. Tinham razão. Quando encontrei as
cartas de Guthrie e o contrato em uma gaveta de sua escrivaninha,
soube que ele era a pessoa a quem você receberia sem dúvidas.
—Como interceptou um telegrama?
—Estava preocupado que alguém em Londres não acreditasse
que tinha zarpado para a América. Esta tarde, de caminho para cá,
tomei a precaução de apresentar-me na oficina de telégrafos do
povoado para perguntar se tinha alguma mensagem para algum
visitante que estivesse alojado em Crystal Garden. Quando me
interei de que tinha acabado de chegar um, me ofereci para entregá-
lo já que estava vindo para cá. —Assinalou a porta com a pistola. —
Vamos.
Evangeline saiu devagar ao corredor.
—Não espera conseguir escapar. Lucas Sebastian vai caçar
você.
—Está equivocada, senhorita Ames. Sebastian é um homem
brando e estragado da classe alta. Eu fui criado nas ruas de Londres
roubando homens que eram muito mais perigosos do que ele pode
imaginar.
—Não o conhece muito bem, verdade?
—Nunca o vi e espero seguir assim. Mas para me assegurar,
aluguei um cavalo e uma pequena carruagem fechada na quadra do
povoado. Está esperando escondida na estrada. Você e eu vamos
fazer uma pequena viagem. Breve para você, melhor dizendo.
Mova-se cadela assassina.
Evangeline saiu devagar ao corredor. O silêncio da grande
casa a envolveu. Garret a conduziu até a porta principal.
—Saia —ordenou. — Se gritar, morrerá no mesmo instante.
Evangeline abriu a porta e avançou até os degraus da entrada.
—Está fazendo uma bobagem, senhor Willoughby. Se tivesse
bom senso, sairia correndo como alma que leva o diabo antes que
seja muito tarde.
—Não gaste saliva tentando me assustar. —Garrett a seguiu
para fora e fechou a porta. Voltou a assinalar com a pistola. —
Rápido, vá para as árvores que rodeiam o caminho.
Evangeline adentrou o espesso bosque que rodeava o caminho
pavimentado. Garret ia bem atrás dela. As árvores os rodeavam e
tapavam em grande parte a casa.
—Aonde pensa me levar? —perguntou em voz baixa.
—Para algum lugar onde fiquemos a sós. Com sorte, Sebastian
e os demais tardarão alguns dias para encontrar seu cadáver neste
bosque, se chegarem a encontrá-lo. Para então já estarei
efetivamente rumo a América.
—Porque deveria dar outro passo?
—Pelo mesmo motivo que muitos prisioneiros se dirigem
obedientemente a sua morte. Enquanto estiver viva, tem uma débil
esperança de fugir ou de suplicar por sua vida. E acontece que
quero fazer algumas perguntas.
—Quer saber como seu irmão morreu, verdade? Não acreditou
que caiu por aquela escadaria, mas não entende como pude vencê-
lo.
—Sei muito bem que não caiu e quebrou o pescoço. —A voz de
Garrett tremeu com a força de sua raiva. — Aquele dia foi ali para
matá-la. Estava furioso porque tinha arruinado seus planos para se
casar com a herdeira dos Rutherford. Disse-me que era sua culpa ter
sido desmascarado como um farsante. Disse que você o estava
perseguindo.
—Por mais curioso que pareça, eu pensei que era ele quem me
perseguia. Nem pude acreditar quando o vi no primeiro dia que
trabalhava para os Rutherford. Sei que não me reconheceu. Quando
se deu conta de quem eu era?
—Vigiou durante certo tempo a casa de lady Rutherford
depois que sua proposta de matrimônio tinha sido rechaçada.
Queria saber como tinham descoberto que ele era um farsante.
Quando viu que partia com a maleta em mãos, começou a suspeitar.
Disse que já não andava nem se comportava como uma dama de
companhia. Comentou que tinha algo familiar em você.
—Me seguiu de volta a agência.
—Quando saiu sem a peruca e sem os óculos, a reconheceu no
mesmo instante.
Evangeline viu o cavalo e uma pequena carruagem entre as
árvores.
—Então ele estendeu a armadilha —disse.
—O que fez para meu irmão naquele dia?
—Porque deveria dizê-lo? —Evangeline parou e se voltou a
ele. — Quando responder a sua pergunta, me matará.
—Aqui não. A não ser que me obrigue a fazê-lo. —Garrett
sorriu. — Quem sabe? Acho melhor responder minhas perguntas,
assim te darei uma oportunidade. Deixarei que saia correndo.
—Duvido.
—Suba na carruagem. —os olhos de Garrett brilhavam com
raiva.
—Não — disse Evangeline.
Garrett levantou a pistola como se fosse golpea-la com o cabo.
—Fará o que digo, cadela assassina, ou sofrerá muito antes de
morrer.
Uma escura energia saiu das árvores. O cavalo levantou a
cabeça, aterrado e saiu disparado, puxando a carruagem pelo
caminho.
—O que é isso? —Garrett, sobressaltado, se virou em busca da
origem da energia carregada de pesadelos. — O que está
acontecendo?
—Aqui termina o espetáculo que montou —assinalou
Evangeline.
Garrett ficou petrificado ao ver Lucas a pouca distância,
avançando entre as árvores até ele. A erva daninha se movia
ligeiramente a sua direita. Apareceu Stone.
—De uma coisa estou seguro —comentou Lucas com um olhar
gélido nos olhos. — Não estou de humor para palhaçadas.
—Bastardo. —Garrett segurou Evangeline quando ela tentou
afastar-se. Rodeou seu pescoço com o braço e a puxou para seu
corpo. — De onde saíram?
—Solte-a — ordenou Lucas em voz baixa.
—Deixe de fazer o que está fazendo ou a matarei agora
mesmo, eu juro.
—Você está bem? —perguntou Lucas a Evangeline.
—Logo estarei — respondeu ela.
Tinha o contato físico que precisava. Segurou o braço de
Garrett com ambas as mãos e buscou as correntes mais fortes, sua
força vital. Começou a reduzi-las com cuidado. Recordou a si
mesma que tinha aprendido com a experiência de curar Lucas. Não
teria que matar Garrett para detê-lo. A única coisa que precisava
fazer era deixá-lo inconsciente.
—O que esta acontecendo? —Garrett segurou Evangeline com
mais força.
—É a energia deste lugar —explicou Lucas. — Não ouviu falar
das lendas locais? Este bosque é perigoso. Tem quem diga que é
encantado.
—Não —disse Garrett com voz entrecortada. Separou-se de
Evangeline.
Quando deixou de ter contato com ele, Evangeline perdeu a
capacidade de manipular sua aura. Mas Lucas tomou o controle. O
ambiente se encheu de mais ondas de uma energia intensa.
Garrett cambaleou, desesperado por alguns horrores que só ele
podia ver, e tentou freneticamente apontar para Evangeline com a
pistola.
—Tudo isso é sua culpa —soltou com dificuldade. — Tudo.
—Afaste-se dele, Evangeline —pediu Lucas em voz baixa.
Evangeline já estava se afastando, fora de seu alcance. Mas ele
tinha deixado de prestar atenção. Estava perdido na tormenta de
pesadelos que o tinha envolvido. O horror substituiu a raiva em
seus olhos.
Levou a arma à cabeça e apertou o gatilho.
40

—Sei que está muito cedo para estar seguro de termos conseguido
—disse Lucas—, mas a sensação ali fora era diferente, como se a
energia fosse menos intensa.
—Eu também noto isso. —Evangeline aguçou seus sentidos. —
O excesso de calor está desaparecendo. As correntes parecem voltar
ao normal neste lugar.
Lucas e ela estavam no terraço com Beth e Tony. Estavam
observando os jardins sumidos na escuridão da noite. Fazia um
tempo, tinham avisado as autoridades locais para que se
encarregassem do cadáver de Willoughby. Lucas tinha contado uma
versão reduzida e muito revisada dos fatos que não tinha nenhuma
menção a tentativa de assassinato, simplesmente a um triste caso de
suicídio.
Todo mundo tinha encenado a mesma peça, mas se a polícia e
o coveiro se perguntavam por que um ator sem trabalho tinha ido
até Crystal Garden para tirar sua vida, tinham sido muito educados
e Lucas os intimidava muito, para que fizessem perguntas. Depois
de tudo, era conhecido que os atores eram pessoas temperamentais,
dados a estados de ânimo exagerados, tanto positivos quanto
negativos.
Molly tinha preparado um jantar leve que ela mesma tinha
chamado de «sopa reconstituinte com sabor de curry» e seu
extraordinário pastel de salmão e alho poro. Afirmava que ambos os
pratos iam bem para os nervos. Evangeline não estava segura dos
poderes curativos da sopa e do pastel, mas estava mais calma, ainda
que suspeitasse que aquela noite não dormiria bem. Ver Garrett
Willoughby estourar os miolos lhe tinha trazido a lembrança de seu
próprio pai e de seu suicídio.
—Tony e eu não temos sua sensibilidade para os fenômenos
paranormais —disse Beth. — Mas também notamos a troca que teve
no ambiente.
—Os jardins não estão tão luminosos—observou Tony. —
Ainda que produzam uma sensação misteriosa, mas não tão forte
como antes de desenterrarmos os cristais.
—Olhe a superfície da lagoa do caramanchão —acrescentou
Beth. — Ontem a noite parecia um espelho que refletia a luz da lua.
Mas hoje está menos iluminado.
Evangeline observou a laguna com os sentidos aguçados. Era,
efetivamente, menos ameaçadora.
—Tem razão. Porém ainda tem energia na água, mas já não
está tão ameaçadora — confirmou.
Lucas se situou junto a ela de modo que lhe roçou o braço.
Quis se voltar para ele e reconfortar-se em sua fortaleza. Mas não
era o momento nem o lugar para semelhante intimidade. Pensou
que talvez nunca mais teria a oportunidade de se perder nos braços
de Lucas. A grande aventura estava terminada. Pela manhã teriam
que encontrar a forma mais discreta de terminar seu falso
compromisso.
—Tony, Beth e você tinham razão sobre os cristais —disse
Lucas. — Aumentavam a energia natural dos jardins ao aumentar e
reforçar o poder do manancial.
—O problema era que o padrão oscilante das correntes estava
ficando instável —explicou Tony. — E essa instabilidade era
perigosa. Tio Chester sabia que tinha algo errado, mas desconhecia
que os cristais fossem a causa. Estava convencido de que os poderes
da Piscina das Visões estavam se intensificando de algum jeito.
—Por isso ficou tão entusiasmado ao encontrar uma mulher
que podia entrar nela —comentou Lucas. — Agora a pergunta é: o
que faremos com esses condenados cristais?
—Poderíamos transportá-los até a costa e lança-los ao mar —
sugeriu Beth.
—Acredito que não deveríamos destruí-los —interveio Tony
com o cenho franzido. — Suas propriedades paranormais poderiam
ser muito valiosas no futuro. Gostaria de ter a oportunidade de
estudá-los.
—Não estou certo de que seja uma boa ideia — comentou
Lucas.
—Segundo os papéis de tio Chester, encontrou os cristais em
uma loja que vendia principalmente antiguidades falsas — disse
Tony. — Ficaram anos em uma gaveta sem provocar nenhum
problema. Não foi até que os enterrou nos terrenos da velha abadia
que começaram a entrar perigosamente em harmonia.
—Se conservá-los, terá que protegê-los — advertiu Evangeline.
— Sempre haverá pessoas que, como Chester Sebastian, buscaram
cristais e pedras com fama de possuir poderes paranormais. O pior
que poderia acontecer é que um cientista louco se apodere deles.
—É verdade — disse Lucas. — Mas Tony tem razão, algum dia
os cristais poderiam ser importantes. Pode ser que o melhor seja
conservá-los até que possamos averiguar mais coisas sobre eles.
—Onde sugere que os guardemos? —disse Beth em um tom
astuto.
Lucas contemplou a folhagem ainda luminosa.
—Acredito que de momento, Crystal Garden seja um
esconderijo tão seguro quanto qualquer outro. Vou encomendar
uma Caixa de aço, uma Caixa segura, para guardá-los. —olhou para
Tony. — Te parece bem?
—Sim, estou seguro que o aço será mais que suficiente para
conter a energia. —Tony franziu os lábios. — Mas, para maior
precaução, quem sabe se não seria melhor que o interior da Caixa de
segurança estivesse coberto de cristal. Se minhas teorias sobre
energia paranormal estão corretas, esse material tem propriedades
isolantes.
—Muito bem — disse Lucas. — Decidido. Conservaremos os
cristais, pelo menos no momento.
Beth lhe dirigiu um olhar.
—Mas se conservar os cristais na velha abadia, não poderá
vendê-la —comentou. — Alguém terá que viver permanentemente
nesta casa e vigiar os cristais e os jardins.
—Acontece que decidi que chegou o momento de ter uma casa
de campo —anunciou Lucas.
Todos voltaram à vista para ele. Tony foi o primeiro a
recuperar-se:
—Não acredito. Desde quando te interessa pela vida no
campo?
—Desde que decidi me casar e formar uma família —
respondeu Lucas. — Todo mundo sabe que o campo é um lugar
mais saudável para as crianças que a cidade com seu ar poluído e
muita gente.
Tony e Beth desviaram sua atenção para Evangeline.
—Sim, claro —disse Beth com um sorriso. — Crystal Garden
será uma excelente residência de campo para todos.
Evangeline estava estupefata. Lucas estava complicando cada
vez mais as coisas. Quanto mais enfeitasse seu futuro fictício, mais
difícil seria terminar seu falso compromisso. O olhou nos olhos para
tentar enviar-lhe uma mensagem silenciosa, mas ele não se deu
conta.
—Quando Evangeline e eu estivermos em Londres, Stone
estará aqui para encarregar-se de tudo —prosseguiu.
—E porque Stone ficará aqui? —quis saber Beth.
—Me informou que planeja se casar com Molly, que está
decidida a abrir um salão de chá em Little Dixby —explicou Lucas.
Sorriu ao ver suas expressões de assombro e adicionou: — Vou
financiar o salão de chá, que, pelo que sei de Molly, será um
verdadeiro êxito. Tenho certa habilidade para identificar um bom
investimento, sabem?
—É uma noticia esplêndida —exclamou Evangeline, encantada
apesar do pânico que sentia naquele momento. — Molly ficará
muito feliz.
—E quanto à Stone, será feliz enquanto estiver com Molly —
disse Lucas. — Imagino que Tony também passará muito tempo
aqui porque estará fazendo algumas investigações sobre os cristais.
Sugiro que se una ao senhor Horace Tolliver, que é muito
interessado no estudo dos fenômenos paranormais.
—Farei isso —assegurou Tony com um sorriso de orelha a
orelha. — Tenha certeza que me verá muito por aqui no futuro.
Gostaria muito de estudar também as propriedades paranormais
dos jardins.
Lucas se dirigiu então a Beth.
—Se decidir se casar com o senhor Rushton, estou seguro de
que lhe interessaria os vestígios que tem na velha abadia. Os dois
serão bem vindos.
—Como sempre, pensou em um plano para resolver todos os
nossos problemas —disse Beth com um sorriso.
—Não todos —contradisse Lucas. E olhou para Evangeline: —
ainda resta um problema para resolver. Se você e Tony tiverem a
amabilidade de deixar-nos, tentarei fazê-lo.
—Por que precisamos sair? —perguntou Tony com expressão
intrigada.
—Porque temos que fazê-lo —respondeu Beth. — Vem
comigo, Tony. Já.
—Não entendo o porquê ... —parou no meio da frase porque
Beth tinha segurado seu braço e tirava ele para o interior da casa.
Voltou-se para Evangeline e Lucas, que não tinham se movido. —
Sim — soltou. — Preciso fazer algumas anotações sobre a extração
dos cristais. Não gostaria de esquecer os detalhes.
—Exato — concordou Beth.
Ela e Tony entraram na casa e fecharam a porta.
Evangeline estava só com Lucas.
—Fez muitos planos para todo mundo —comentou. — Mas
tem algo que não levou em conta.
Lucas ficou diante dela e rodeou seu rosto com as mãos.
Evangeline foi muito consciente da energia íntima de sua aura.
Acariciou-lhe os sentidos e levantou seu ânimo.
—O que foi que não levei em conta? —perguntou Lucas com
um sorriso.
—Se converter Crystal Garden em seu lugar, que acontecerá
com seu trabalho de assessor? Não pensa deixá-lo, verdade?
—Não —respondeu Lucas com um brilho nos olhos enquanto
lhe percorria suavemente a mandíbula com os polegares. — Não
acredito que pudesse deixá-lo por completo ainda que quisesse.
Você sabe disso melhor que ninguém.
—Sim.
—Mas só pedem minha ajuda algumas vezes por ano, e
Londres não está tão longe assim de trem. Em todo caso, tenho a
intenção de conservar a casa da cidade. Será muito prático quando
estivermos em Londres.
—Sim, claro. Teria que ter recordado o horário do trem. —na
realidade, não podia pensar com claridade em nada naquele
momento. Foi feito um... «quando estivermos em Londres.»
—Espero compartilhar o trabalho de assessoria com alguém no
futuro, sabe? —disse Lucas.
—A quem se refere? —Sentia-se enganada.
—Seria muito útil compartilhar com alguém que tenha poderes
para encontrar algo que se tenha perdido.
Foi como se o ar tivesse se esfumaçado. Mas pensou que não
precisava respirar. Poderia viver estupendamente da energia que os
envolvia agora mesmo.
—Tinha a impressão de que trabalhava sozinho —comentou.
—Tenho feito assim todos esses anos, esperando você chegar à
minha vida, jamais conheci a uma mulher a quem pudesse pedir
que compartilhasse a carga de conhecer o que só eu sei, de ver o que
eu vejo. Mas você me conhece tal como sou e não me rechaçou.
Conhece a besta que há em mim, mas não tem medo nenhum.
—Claro que não tenho medo de você, Lucas. —seguro as
lapelas de sua jaqueta. — Quando começou a escrever melodramas?
Não tem nenhuma besta em você, por Deus. Tem um homem forte,
poderoso e Valente que se fosse necessário daria sua vida para
proteger aqueles que tem sob sua guarda.
—Excelente — exclamou com um brilho pícaro nos olhos. — Já
voltou a ficar romântica. Tenho que convencê-la para se casar
comigo antes que descubra que o papel de herói não me cai bem.
—Ah, mas você é meu herói. —Sorriu e se colocou nas pontas
dos pés para roçar seus lábios com os dela. — Eu soube desde o
primeiro dia que te vi. Gostaria muito compartilhar suas
investigações e também sua vida.
Como por arte de magia a diversão de Lucas se transformou
em uma necessidade enorme, apressada. Pegou sua mão e beijou a
palma.
—Te amo, Evangeline. Te amei desde o primeiro dia, quando
nos conhecemos na livraria. Aquela noite quando te encontrei
fugindo da morte em meu jardim, soube que tinha que encontrar
uma forma de protegê-la e te fazer minha. Não sou um homem
normal e jamais poderei te oferecer uma vida normal. Mas te darei
tudo que tenho, todo meu amor e toda minha confiança. Tem meu
coração em suas mãos.
A felicidade se apoderou dela.
—Cuidarei bem dela — prometeu. — Te amo, Lucas. Sempre
te amarei. A estas alturas teria que ser evidente que não sou mais
normal que você. Mas como qualquer autor te diria, o normal não é
muito interessante.
Lucas soltou uma gargalhada, cujo som ressoou pelos jardins
como uma onda de energia. Estreitou Evangeline entre seus braços e
a beijou. Ela reagiu como sabia o que faria com o que lhe restava de
vida: corresponderia com a mesma paixão e energia, e com a
promessa de um amor duradouro.
Evangeline não precisou de sua intuição psíquica para saber
que era uma promessa que ambos iriam cumprir.
Crystal Garden reluziu ao seu redor com a luz da lua.
41

O casamento foi celebrado no Jardim Diurno. Evangeline


ainda se inquietava que o lugar não fosse de tudo seguro. Afinal, só
tinha passado um mês desde que tinham desenterrado os cristais.
Mas Tony e Beth, junto com seu novo colega, Horace Tolliver, lhe
asseguraram que nenhum dos convidados seria vítima de uma rosa
anômala nem de uma videira carnívora.
Ainda assim, foi feito uma vala ao redor da lagoa de águas
escuras situada diante do caramanchão. «Para maior segurança»,
tinha explicado Tony. Depois de tudo tinham crianças pequenas
presentes já que tinham convidado a todos da família Gillingham.
Houve poucos comentários, se é que houve, sobre a questão do
noivado escandalosamente breve do casal. A falta de fofocas teve
vários fatores. O primeiro, que era evidente para todo mundo que os
noivos estavam apaixonados.
O segundo motivo de tanta discrição era também muito claro:
ninguém queria arriscar-se a despertar a ira do novo dono de
Crystal Garden. Se subentendia que Lucas Sebastian não duvidaria
em vingar até a ofensa mais insignificante à honra de sua amada.
O sol de verão brilhou para uma grande quantidade de
pessoas que incluíam Judith, tia Florence, Tony e Beth, e outros
membros da família Sebastian. Tony foi padrinho, Beatrice e
Clarissa, as damas de honra.
A senhora Flint e a senhora Marsh, as proprietárias de meia
idade da agência de damas de companhia da Rua Lantern, se
sentaram na primeira fila ao lado da nave correspondente à noiva.
Ao longo da cerimônia, sorveram o nariz e levaram discretamente o
lenço de linho aos olhos.
—Estavam chorando porque sabiam que tinham perdido uma
de suas melhores investigadoras —depois disse Clarissa a
Evangeline. — Sabem que será difícil substituí-la.
—Lhes recordamos que poderiam contar contigo e com o
senhor Sebastian para trabalhos de assessoria —acrescentou
Beatrice. — Naturalmente, nos asseguraram que a agência não
voltaria a envolver-se em casos de assassinato. Parece que agora a
vida será muito aborrecida para Clarissa e para mim, mas assim são
as coisas.
Depois da cerimônia, os noivos e os convidados desfrutaram
de um elaborado banquete organizado por Molly. As pessoas
estavam impressionadas. A longa mesa colocada no terraço estava
decorada de modo festivo. Entre os pratos destacava-se o pastel de
salmão e alho poró, um sortimento de carnes assadas, manjar
branco, salada de lagosta, uma seleção de frutas de verão recobertas
com chantilly, sorvetes e gelatinas.
Na cabeceira da mesa tinha uma espetacular torta nupcial
decorada com rosas incrivelmente realistas. Evangeline sentiu
pânico na hora de cortar a torta e fixou-se nas flores.
—Molly. Estas rosas, não...
Molly se inclinou para ela e baixou a voz:
—São feitas de açúcar, senhora. Não se preocupe, não as cortei
do jardim.
Lucas e Evangeline passaram a noite de bodas nas salas de
banho romanas situadas no coração do Jardim Noturno. Se alguém
pensou que aquele lugar era algo inusual para começar uma lua de
mel, ninguém foi bastante tonto para comentá-lo. Ninguém também
disse nada quando um dia antes Lucas levou um colchão, almofadas
e roupas de cama limpas ao labirinto.
Agora era motivo de orgulho que os noivos e novos donos de
Crystal Garden não fossem um casal normal. Era de se esperar que
não passassem a noite de núpcias em um lugar normal.

A energia da sala onde estava à segunda piscina era boa.


Lucas pegou a garrafa de champagne que acabava de abrir e
encheu os copos. Levou até a borda da piscina chispante onde
estava sentada Evangeline, que fazia seus delicados pés oscilarem
na água. Tinha colocado uma camisola. O cabelo solto lhe cobria as
costas e tinha os olhos cheios de inumeráveis mistérios que sabia
seriam explorados pelo resto de suas vidas.
Deu-lhe um dos copos e sentou-se junto a ela. Tinha tirado as
botas e levava sua camisa desabotoada, mas seguia com as calças
postas. Levantou a barra da calça e colocou os pés na piscina.
—Felicidades, senhora Sebastian —disse.
—Diz isso pelo meu casamento? —perguntou com olhos
entusiasmados. — Obrigado, senhor Sebastian. O fato é que estou
muito feliz.
—Me referia ao extraordinário êxito que teve com sua
publicação de mais um capítulo de Winterscar Hall. —levantou o
copo para fazer um brinde. — Conseguiu convencer a seus leitores
de que o homem que tinham suposto ser mau em tua novela era, na
realidade, o protagonista. Somente um grande escritor poderia ter
dado um giro tão inteligente no argumento.
—Obrigado —disse Evangeline com um sorriso depois de
tomar um gole de champagne. — Preciso admitir que tive sorte de
poder me inspirar em ninguém mais ninguém menos que meu
próprio marido.
—Que está sempre encantado de ajudá-la.
—Isso me será muito prático — assegurou Evangeline.
Lucas tocou seu rosto, se agachou para ela e a beijou.
—Te amo, Evangeline.
—Te amo, Lucas.
Uma felicidade imensa se apoderou dele. Deixou seu copo e
fez o mesmo com o de Evangeline.
A estreitou nos braços e a beijou.
As águas efervescentes da antiga piscina chisparam e
cintilaram, refletindo a energia do amor.

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