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abas do livro

Gabriel Swan vive o dilema do homem que precisa escolher entre a ação e a reflexão, a vida
e o trabalho, a experiência e a criação. Gênio em matemática, o jovem irlandês tenta dissolver
essa dualidade e responder à aparente desordem do mundo com uma espécie de equação
existencial.
Essa busca de entendimento transforma-se pouco a pouco em uma viagem dantesca, na qual
é guiado pelo estranho e sedutor Felix, que o faz conhecer criaturas bizarras e o envolve em
situações insólitas. Fábula moderna que em alguns momentos lembra as histórias criadas por
Swift e Lewis Carroll, Mefisto alia lirismo e humor negro, revelando ao leitor brasileiro um
dos mais talentosos escritores jovens da Irlanda.

John Banville nasceu em Wexford, Irlanda, em 1945. Seu primeiro livro, Long Lankin,
foi publicado em 197O. Seguiram-se Nightspawn, Birchwood e os elogiados romances
Copernicus, que recebeu o James Tait Black Memorial Prize em 1976, e Kepler, com o
qual obteve em 1981 o Guardian Fiction Prize. Escreveu também uma novela, The
Newton Letter, adaptado pela televisão britânica. Mefisto, lançado em 1986, é seu mais
recente romance.

contracapa

“Incontestável mestre da linguagem, da pausa lacônica e do humor negro, Banville é um


estilista do mais alto grau. [...] É um mágico. [...] Mefisto é outra esperada, surpreendente e
ousada manifestação deste talentoso escritor.”
Eileen Battersby
Time Out

“Fábula, thriller intelectual, espetáculo gótico e charada simbolista. [...] No livro, um


símbolo nunca é apenas um símbolo. [...] Como um literário cubo mágico para o qual não há
solução.”
Terence Brown
Sunday Independent

“Se a literatura irlandesa necessitava de um John Fowles próprio, isto é, de um escritor


sombrio, meditativo, que cerca e emite ideias profundas numa prosa limpa, então não precisa
procurar mais.”
Frank Delaney
Sunday Press

“Banville é esplêndido.”
The Economist
JOHN BANVILLE

MEFISTO
tradução
Celso Nogueira
Título do original em inglês: Mefisto
Tradução: Celso Nogueira
Copyright © John Banville, 1986
Capa: Eliane Piccardi sobre reprodução de The Judecca-Lucifer, de Gustave Doré
Composição: Editora Globo, 1988
Digitalização e edição em ePub: Sepulmetal, 2012
a Janet
MARIONETES
I

O acaso marcou o início. Estou pensando naquele nadador minúsculo, único


no gênero, agitando-se com vigor frenético ao encontro do centro ardente, a sala
branca e castor morto. Estranho que uma vida tão metida com as ondas e
hordas dos números tivesse que começar, como um arabesco entre dois
espelhos, pela matemática banal da geminação. O fim também ficou por conta
do acaso.
Houve um Polydeuces também, é claro. Só que escapou sozinho etecetera.
Nós não fomos os primeiros, em nosso gênero, na nossa tribo. Do lado de
minha mãe houvera um outro par, também idêntico, mas os dois pereceram,
suas vidas um dia curto. Pena que não foram preservados; eu poderia tê-los
como a um mascote, meus pequenos tios-avôs transparentes, punhos cerrados,
cenhos franzidos no seu fluido. Também há um eco mais sutil no arranjo
simétrico dos avós, Jack Kay e Avô Swan com suas esposas em miniatura. Assim
o mundo sorrateiramente nos espicaça, desmascarando o caso aparente como o
que realmente é. Eu poderia prosseguir. Devo prosseguir. Também tenho
minhas equações, minhas simetrias, e irei insistir nelas.

Quando minha mãe percebeu a natureza da carga que estava carregando?


Talvez as dualidades a fascinassem, súbitos reflexos, coincidências, é claro. Um
par de pegas esvoaçando por entre os repolhos lhe davam um arrepio. Velhas
expressões a aturdiam com novos significados: ervilhas na vagem, um par de
alfinetes, água e vinho. Quem sabe uma vez ou outra imaginasse que nos
pudesse ouvir, horrivelmente juntos em nosso apertado mar amniótico,
cantando e choramingando.
Ela mesma passava por uma espécie de geminação. Sua condição não a
transformou apenas, produziu uma nova pessoa. Seus tornozelos incharam, seus
quadris cresceram. Mesmo seus ombros pareciam mais largos, recheados de
carne flácida. Ela começou a usar o cabelo preso para trás, em duas asas firmes,
pretas e brilhantes, presas na nuca com rede, em coque. Quando ela saiu para ir
a Ashburn, Jack Kay a encarou pesarosamente e disse:
- Onde vai minha garota, minha garotinha?
Ela o olhou de esguelha, séria, e por um instante ele viu claramente sua
própria mãe. Ele balançou a imensa cabeça grisalha.
- Ora! - disse, amargo - você agora é uma mulher.
Eu a imagino na última primavera da guerra. Minha versão dela é outra, não a
da mãe que estava se tornando, não a filha que Jack Kay havia perdido, mas uma
estranha, silenciosa e enigmática, sorrindo desconsolada, como uma sombria
madona sob a luz castanho-marinho de algum velho quadro. A carga que leva
no coração pesa como um fardo de tristeza Ela não solicitou aquela visita de
fora. Começou a sentir uma revulsão secreta. Sangue, carne dilacerada, as bordas
abertas de um corte antes do começo da percolação, tais coisas sempre a
assustaram. No açougue não podia ver as peças de carne penduradas, pingando
sub-repticiamente o caldo rosado na serragem do chão. Sentia-se como uma
ferida ambulante, febril e intumescida. Certos odores a enjoavam, como repolho
cozido, alcatrão, couro. Imagens alojavam-se em sua cabeça; qualquer coisa
servia, um ovo quebrado, um pano de prato manchado, como se sua mente
estivesse desesperada por coisas que a atormentassem. Não conseguia dormir.
- Não estou bem. Não me sinto bem.
- Você deve rezar, minha filha.
Seus olhos cintilavam através da treliça, seus dentes pareciam expostos em
uma careta sorridente. Ela podia sentir o vinho da missa em seu hálito.
- Tenho medo.
- Como assim?
- Tenho medo, padre.
- Nada disso. Peça a Nossa Senhora que a proteja.
Tudo se amontoa dentro dela. Seus pais são despejados da casinha em
Ashburn e vão morar com ela. Sua mãe, sob o peso da morte iminente, logo
desaparece no hospital local. Jack Kay fica. Ele anda pela casa silenciosamente,
fitando-a com olhos trágicos, como se de algum modo tudo fosse culpa dela.
Ela não tinha sossego. Ela está sufocando. Ela faz passeios longos, sem
destino, cruzando penosamente a cidade, seguindo pelo caminho de Coolmine,
perto do depósito de lixo. Um dia um corvo cai morto de uma árvore, bem na
sua cabeça. Ela não sabe se ri ou se chora. Durante semanas continuará a ouvir
o baque súbito, o farfalhar das penas, e a sentir aquela coisa mole, de um preto
azulado, escorregando na sua testa. O verão está quente. A Europa está em
ruínas. Vagueia até chegar em casa e encontra Jack Kay sentado no parapeito da
janela ao lado da porta da frente, balançando uma perna, as mãos brancas
enormes agarradas ao cabo da bengala. Ela diz:
- A chave está ali.
- A chave? Que chave? Não sei de chave nenhuma.
- Ali! Sempre fica ali!
Ele observa calmo enquanto ela ergue furiosamente o capacho e aponta. Um
besouro ágil corre para se abrigar. Ela enfia a chave na porta. Umidade no ar da
sala e um silêncio sombrio como de coisas interrompidas num jogo furtivo. Ela
começa a dizer algo, mas para, retendo o fôlego. Jack Kay, meio cego na
penumbra, quase colide com ela, e dá um passo para trás, resmungando. Ela está
encostada à parede, tensa. Quando vira em direção à luz que entra pela porta,
seu rosto está lívido, suado e brilhante.
- Vá chamar alguém - ela murmura. - Rápido!
Ele abre a boca e a fecha em seguida.
A luz suntuosa do verão inunda o quarto. Uma cortina de amarrar esvoaça
preguiçosa na janela escancarada. Tudo parece tomado pelo desalento. Ela se
acomoda vagarosamente na cama, escondendo o rosto com a mão, como se
aprisionada sob o peso das formas que lutam ferozes em silêncio. Jack Kay a
seguira até em cima, e está agora parado na porta, os olhos arregalados.
- Sai daqui! - ela grita. - Sai daqui!
Ela finalmente compreende o que significa ter dentro de si uma coisa que está
viva, viva.

Jack Kay desce a escada, parando a cada três degraus para olhar para trás, para
o quarto, resmungando. Ela não podia ficar gritando com ele daquele jeito,
como se fosse uma louca, não era correto. Abriu a porta da frente com cuidado.
Uma tarde qualquer de verão. Ele escutou por um momento, depois deu um
passo para fora e fechou a porta atrás de si, segurando a folha com o calcanhar,
deixando-a encostar com suavidade. Vá chamar alguém, repetiu, mexendo a
cabeça, rápido, rápido! Ele cuspiu. Um cachorro chegou perto. Ele ergueu a
bengala e o animal encolheu-se, lambendo os beiços finos. A bengala era um
peso reconfortante em suas mãos, boa e sólida, gasta até adquirir uma textura
encerada, com um enfeite de prata de lei e ponta de aço. Ele franziu o cenho,
tentando lembrar quando e onde a encontrara. Pensou rapidamente na morte,
depois baixou a aba do chapéu sobre um olho e caminhou devagar através da
praça. E não ouviu o grito que saiu pela janela aberta do andar de cima, atrás de
si, nem o segundo, mais um gemido fraco, que ondulou e naufragou como uma
pequena mão que afunda.
II

Não sei quando foi que ouvi falar pela primeira vez da existência, se é que é a
palavra, de meu irmão morto. Desde o começo, sabia que eu era o sobrevivente
de alguma pequena catástrofe, as ondas de choque ainda estão reverberando
debilmente dentro de mim. O fenômeno misterioso que nos produziu é o
resultado, dizem os livros escolares, de uma pequena parada no
desenvolvimento inicial de um único óvulo, de forma que o embrião começa a
se dividir por fissão binária. Prefiro imaginar algo como uma figura de um
cartão-postal de mau gosto do litoral, uma mulher gorda, cara de maçã, peitos
grandes e bunda enorme, repartida bem ao meio por seu pequeno marido
sobrecarregado. De qualquer forma, a causa não importa, só o efeito.
Escapamos de inúmeros perigos. Poderíamos ter sido siameses. Um de nós
poderia ter seu sangue exaurido pela circulação do outro. Ou poderíamos
simplesmente ter estrangulado um ao outro. A tudo isso escapamos, e viemos à
tona, soluçando. Eu saí primeiro. Meu irmão foi um infeliz segundo. Nadador
perdido, afogou-se no ar. Meu pai, quando Jack Kay finalmente o levou para
casa, olhava atônito para a cena: o recém-nascido choramingando nos braços da
mãe, e sua réplica sem vida estendida no lençol.
Minha mãe temia que eu também fosse morrer. Jack Kay lembrou-a de como
os irmãos dele, os homúnculos, haviam sucumbido no mesmo dia. Ela me
embalava com certa veemência, querendo que eu vivesse. Ela não me perdia de
vista. Fez um berço para mim na gaveta grande do guarda-roupa em seu quarto.
Eu me vejo ali deitado, anormalmente silencioso, flexionando devagar minhas
pernas e braços tortos, como uma tartaruga virada de costas. Quando ela se
debruça sobre mim, olho para ela hesitante, franzindo o cenho. Meu olhar vago,
embaçado, é o de um viajante que volta de algum lugar extremamente distante e
estranho. De noite ela permanece acordada, ouvindo os ruídos furtivos que
aquela nova vida faz, suas viradas e suspiros suaves, e, vez por outra, algo que
soa como uma exclamação abafada de impaciência. Mais tarde, quando eu havia
aprendido a andar e podia me mover por minha conta, desenvolvi uma
linguagem particular, um balbuciar rápido, aquático, que deixava as pessoas
incomodadas. Soava como se eu estivesse conversando com alguém. Ao me
ouvir, minha mãe parava do lado de fora da porta, na escada - eu, ao ouvi-la,
imediatamente ficava em silêncio. Assim permanecíamos, nós dois, por longo
tempo, alertas, imóveis, escutando nossos próprios corações inexplicavelmente
palpitantes. Jack Kay, cofiando o bigode, comentava alto que talvez eu fosse
ruim da cabeça.
Sinto uma preocupação terna, retrospectiva, mesclada a um traço de
ressentimento, é verdade, por este pequeno menino desconcertante que se move
no meio de minhas lembranças daqueles primeiros anos em solidão atenta,
cautelosa. Eu me apegava à casa. Meu quarto dava para a praça, tinha duas
pequenas janelas, era como estar escondido dentro de uma cabeça. Eu não me
percebia nem inteiro nem totalmente real. Os contos de fadas me fascinavam,
havia algo desanimadamente familiar neles, a lógica louca, a descontinuidade, a
crueldade cega do destino. Fui levado para um circo, lembro, o ruído, as luzes
piscando, os metais da banda, o cheiro incongruente de mato esmagado
erguendo-se por entre os assentos. Havia anões acrobatas, uma mulher com
uma cobra e um contorcionista reluzente, fino como uma lâmina, que se sentava
sobre o cóccix e montava uma série de painéis torturantes com a indiferença
pétrea de um vendedor de pornografia exibindo seu material. Foram os
palhaços, no entanto, que realmente me enervaram, com suas cabeças pontudas
e pés de borracha e gritos estranhamente difusos, a forma com que eles ficavam
se atormentando uns aos outros, a maneira como o mais baixo ficava parado,
chorando frustrado, mostrando sofrimento, e, de repente, virava-se para atingir
seu companheiro magricela direto na cara, com insensível insolência. Fiquei
sentado imóvel durante todo o espetáculo, olhando fixo para o picadeiro
iluminado, ávido e silencioso, como aquele garoto da história que queria
aprender a tremer.
Minha mãe me levava para passear, primeiro num carrinho, depois
cambaleante à sua frente com um tipo de rédea, em seguida zanzando mais e
mais longe, atrás dela, por entre as sebes. De vez em quando íamos para lá de
Ashburn e vagávamos pelo mato. Ela mostrou a casinha onde havia nascido,
atrás do estábulo. Ashburn seria sempre um sonho para ela. A vida na casa
enorme, em cujos limites passeava saudosa. Dela se recordava, com uma mímica
langorosa, a música do poc-poc das bolas de tênis nas quadras verdes e o som
distante da corneta do caçador nas manhãs de geada, uma cena diminuta e
distante, e mesmo assim detalhada à perfeição, tilintando com risadinhas, como
um quadro flagrando aristocratas do século XVIII em pleno jogo numa clareira.
No centro desta pintura bucólica ficava a casinha, onde o sapo rei Jack Kay
havia reinado. Ali suas memórias eram mais nítidas, de cal e ratos no telhado, a
tina de banho no fogo nas noites de sábado, uma galinha pedrês parada numa
perna só sob um raio de sol da porta da cozinha. E os bate-bocas intermináveis,
é claro, os gritos, os ouvidos tapados. Agora os estábulos estavam desabando e a
forja onde Jack Kay trabalhara estava silenciosa. Um dia, num caminho largo,
sob uma árvore imensa, encontramos a srta. Kitty, a última dos Ashburn de
Ashburn Park, uma solteirona distraída e pouco limpa, de nariz aquilino e cabelo
desgrenhado, que conversou conosco calmamente, por algum tempo, e depois
virou-se abrupta e nos expulsou da propriedade, agitando os braços e berrando.
Havia outros espetáculos, outros temores. Tenho apenas uma única
lembrança do Avô Swan, uma figura enorme sentada na cama, rindo, na
pequena casa de Queen Street. Era manhã de Páscoa, e eu tinha cinco anos de
idade. Seu quarto de doente cheirava a fumo de cachimbo e mijo. O sol lá fora
brilhava, depois de uma recente pancada de chuva. O avô Swan estivera fazendo
a barba; a cuia, a navalha e um pedaço de espelho ainda estavam a seu lado, e
havia um pingo de sangue fresco no colarinho de seu pijama. Suas mãos
tremiam, mas fora isso parecia em forma. Mas ele estava morrendo. Eu estava
consciente da solenidade da ocasião. Dedos rijos me apertavam entre as
omoplatas, e eu dei um passo à frente, encarando assustado a sobrancelha
branca bem desenhada e o bigode grande, as unhas de ágata, os tufos de cabelo
cinza-chumbo esticados para trás, como se alguma força os houvesse puxado da
cabeça para trás e para cima, para a janela, para o telhado reluzente, até chegar
ao céu de primavera, azul pálido e frio como seus olhos. Ele deve ter falado
comigo, mas eu só lembro de sua risada, não como um som, mas como algo que
o rodeava, como uma aura, bem pouco benigna. Por muito tempo a morte me
pareceu um tipo de folia sinistra, descarnada, sentada a minha espera naquele
pequeno quarto fedorento.
Mesmo assim, fico pensando. É mesmo esta a imagem do Avô Swan, ou eu,
com minha imaginação, substituí de propósito, naquela manhã de Páscoa, aquele
homem condenado por um outro, mais rijo? Quero dizer, Jack Kay. A risada, as
unhas ameaçadoras, o bigode à escovinha manchado de amarelo no meio, será
mesmo que tudo isso era dele? Jack Kay. Para mim, ele sempre teve oitenta
anos. Usava seus anos como um símbolo de tenacidade, sombrio, com certa
truculência. Mas deixe que eu termine sua história. Ele morava em Ashburn e
trabalhava na forja. Era um bêbado intermitente. Casou com Martha não sei do
quê, esqueci o nome, ajudante de copeira na casa grande. Eles tiveram filhos.
Eram infelizes.
Ou pelo menos Martha era. Não consigo vê-la claramente. Ela e vovó Swan
morreram na mesma época. Mesclavam-se uma na outra, duas velhas judiadas,
por alguma razão menores que o tamanho natural, hidrópicas, de roupa preta,
sempre indispostas, sempre reclamando. Suas vozes para mim são um murmúrio
fraco, em segundo plano, como o ciciar de ratos atrás dos lambris. Elas devem
ter tido alguma influência, contribuído com um gene ou dois, mas mesmo assim
não restou quase nada delas. Na questão da hereditariedade elas não eram páreo
para seus companheiros masculinos. Da mesma forma, há uma lembrança que,
apesar de nenhuma das mulheres estar realmente presente, é inspirada por elas.
Fui um daqueles dias de vento úmido de começo de outono, com céu de nuvens
baixas, cinzentas, o chão lustroso coberto de folhas, e uma lata de lixo vazia
rolando pelo meio da rua. Alguém me havia dito que vovó estava morta. A
notícia, longe de ter sido melancólica, foi estranhamente hilariante, e ali, na rua,
fui repentinamente tomado por uma excitação aconchegante, que não posso
explicar, mas que de algum modo estava relacionada com a vida, com o futuro.
Eu não pensava na mulher viva, ela havia sido pouco significativa para mim. Na
morte, no entanto, ela se havia tornado uma daquelas pedras de toque secretas,
cuja evocação me sustentava misteriosamente, e confortava: pequenos animais
perdidos, pobres pitorescos, avisos de tempestades no mar, o pé descalço dos
franciscanos.
Não sei qual das duas mulheres morreu. Que a recordação daquela luz
prateada na rua chuvosa seja um monumento, mesmo insignificante, para as
duas.
Meu pai, nas lembranças da minha infância, é uma figura remota, enigmática,
e no entanto particularmente vívida. Ele trabalhava como contador para um
atacadista de cereais. Ele cheirava a palha, poeira, juta, coisas ressequidas. Sofria
de asma e mancava. Seus silêncios, nos quais um comentário a respeito do
tempo ou da proximidade da morte sumiam sem deixar vestígios, tinham certo
poder dentro de casa, como um bumbo que cessou de ser ouvido, mas que
ainda ressoa vagamente incômodo. Sua presença, tímida e transitória, dava um
peso misterioso à ocasião mais trivial. Certo dia, ele me levou para o monte
Fort, no cano de sua bicicleta. Era setembro, claro e calmo. As urzes estavam
florindo. Sentamos em uma vala para comer sanduíches, bebendo leito morno
em garrafa de refrigerante que minha mãe havia enchido para nós e arrolhado
com papel torcido. O sanatório erguia-se atrás da gente, oculto entre os
pinheiros, exceto por seu telhado pontudo e um monte de chaminés, fechadas,
quietas, sedutoras. Eu brinquei de sonhar comigo reclinado em desmaio
intemporal na varanda, lá em cima, enrolado nos cobertores, com o prédio
branco brilhante atrás de mim, e o sol à frente descendo lento pelo céu, e um
rádio em algum lugar tocando calmamente música para dançar. Meu pai usava
um boné reto e um casaco pesado, de corte quadrado, grande para seu tamanho,
com cheiro de naftalina. Ele apontou para um águia que voava em círculos no
zênite.
- Elas arrancam o olho da gente - disse. - Aquelas ali.
Ele era um sujeito baixo, com braços longos e pernas tortas. Sua cabeça
pequena fazia com que seu tronco parecesse mais pesado do que era. Com tais
membros, aquela cara fina, de olhos escuros próximos, tinha algo dos
anõezinhos guerreiros, os de cabelos pretos, Pict ou Firbolg, não sei, que se
ocultam nos limites distantes da história. Posso vê-lo, com roupa de couro e
sapatos pontudos, mancando no crepúsculo por entre as samambaias. Um
homem pequeno que os deuses vingativos ignoram. Um sobrevivente.

Por vezes me pego mergulhando naquele sonho em que a infância é uma festa
interminável, com bandos de crianças loiras e sorridentes, correndo sob o sol
pelas ruas. Quase posso ver as túnicas, as sandálias nos pés, os mais velhos em
seus robes brancos a observar indulgentes sob a sombra das oliveiras. Algo deve
ter alimentado esta fantasia clássica, uma brincadeira de pegador, quem sabe, em
uma noite de domingo no verão, as casas abertas para o ar fresco, as mães nos
degraus da frente conversando e a irmã de alguém, com seu primeiro batom,
inclinando-se para espiar pela janela de cima.
A cidade tinha doze mil habitantes, três igrejas e um salão metodista, uma rua
principal estreita, uma mina de carvão abandonada, um rio e um porto
assoreado. Fragmentos do passado grudam no presente, recifes na maré do
tempo: um túmulo viking, uma torre normanda, um trecho de uma parede
imemorial, como um molar quebrado. A história ali era rica. Giraldus
Cambrensis conheceu aquele porto. Os templários mantiveram um hospício na
península de Spike. A região cumprira sua parte em mais de um levante
frustrado. Atualmente o resplendor havia esmaecido. Houve também, quase
esqueci, a grande guerra contra as Testemunhas de Jeová. Eu vi a última rixa:
um padre socando a barriga de um jovem magro de capa, a multidão gritando,
os pacotes do Sentinela voando no ar. E houve ainda um assassinato muito
comentado, uma velha surrada até a morte numa noite escura, em sua loja de
doces, numa ruazinha. Foi o recheio dos pesadelos: o corpo atrás do balcão, os
doces nos vidros, o sangue.
Um quadro da cidade ficou pendurado em minha mente, como uma daquelas
inestimáveis, mas não muito apreciadas, miniaturas medievais, de origem
obscura, com símbolos de difícil compreensão atualmente, a transparência de
suas cores debotadas dando a elas um singular e acidental encanto. Pode tudo
isso ter sido há tanto tempo, tão distinto, ou esta pátina antiga é apenas o verniz
que a memória aplica mesmo no passado recente? É verdade, há um toque de
laca na luz desses dias que recordo. O cinza de uma tarde úmida de inverno seria
o tom mais adequado, mas penso também nos pratos de latão de uma balança
de mercearia sob o brilho empoeirado do sol, um caco de porcelana azul lisa
encontrado no jardim e guardado por anos a fio, para depois desabrochar
perante meus olhos interiores o reluzir de asas ouro pálidas num diáfano céu
azulado.
Junto com a torre e o muro partido havia as antiguidades humanas, o aleijado
e o louco, os corcundas, as velhas histéricas, encarquilhadas, com suas toucas e
casacos pretos, e os mongoloides, com olhos pequenos, pés defeituosos e
sorrisos doces, rebolando nos calcanhares de suas comovedoras mães de meia-
idade. Lá estavam todos eles em uma espécie de irmandade, na qual eu era um
mero acólito. Tinha seus cardeais também. O pequeno homem que chegou no
verão para ficar com seus parentes, do outro lado do nosso quarteirão. Ele usava
ternos azuis e sapatos brilhantes, abotoaduras de pérolas, um anel de rubi. Tinha
cabeça grande e bonita e peito forte. Seu cabelo era uma obra-prima: preto e liso
como goma-laca, parecia que um disco de vitrola havia sido moldado em seu
crânio. Pedalava um triciclo gigante. Encarapitado em sua máquina, passeava
sob as árvores da praça, rodeado por um bando de crianças deslumbradas, os
braços dobrados e uma biqueira reluzente tocando o solo com delicadeza de
bailarino. Ele era de certa forma o adulto ideal, enfeitado, elegante e maquiado,
magistralmente seguro, e media apenas um metro e trinta. Seus modos eram
especiais. Que tato! Em sua presença eu quase não me sentia diferente das
crianças comuns.

Fui para a escola do convento. Corredores pintados num tom claro de


vômito, janelas altas de guilhotina, com cordas tesas como nó, e freiras,
espécimes imensas de rapina, negras, revoando pelas salas de aula, os rosários
presos como piós. Eu temia meus colegas de classe e também os desprezava.
Ainda posso vê-los, os rostos de gárgulas, os cachos, o ranho. Meu nome, por
algum motivo, era tido como engraçado. Eles traziam seus irmãos ou irmãs
maiores para me provocar no recreio.
- Lá está ele. Pode perguntar.
- Ei, qual é o seu nome?
- Nenhum.
- Vamos lá, pode dizer.
Eles me agarravam pela nuca.
- Gabriel... ai! ... Gabriel Swan.
Eles caíam na gargalhada, não falhava nunca.
Em minha turma havia um outro par, sim de gêmeos idênticos, caras apáticos
com olhos pálidos e joelhos protuberantes, indefesos. Eu ficava fascinado. Eles
eram tão calmos, tão despreocupados, como se ser parecido fosse um truque
que eles tivessem dominado há muito tempo atrás, não se importando mais com
ele agora. Eles poderiam ter se divertido muito, pregando peças, trocando de
lugar, enganando a todos. Era isso que me fascinava, a possibilidade de escapar
sem esforço, como se fosse mágica, para um outro nome, um outro eu - isso e a
facilidade com que podiam estabelecer suas identidades separadas, simplesmente
afastando-se um do outro. Longe, cada gêmeo era ele mesmo. Só juntos
tornavam-se monstrengos.
Mas eu, eu tinha alguma coisa sempre ao meu lado. Não era uma presença,
mas uma ausência importante. Dela não havia escapatória. Um fio de união
permanecia, que nem mesmo o parto ou a morte haviam rompido, e através do
qual se percebiam os puxões sutis e dedilhados do que não estava ali. Nenhuma
cópia viva poderia ser tão tenaz quanto aquela morta. O vazio pesava sobre
mim. Parecia que eu não era meu, que estava sendo repartido. Se eu caísse,
digamos, e ferisse o joelho, perceberia imediatamente um eco, um tipo de
repique, como de um copo de vinho tilintando em algum lugar fora da vista, e
eu sentia um choque suave, como alguém que sonha estar na escuridão, e coloca
um pé em um degrau que não está lá. Talvez a dor diminuísse - como eu poderia
saber?
Vez por outra a sensação de carregar um peso, de suportar uma imposição,
dava lugar a uma ternura vaga e aparentemente sem endereço. Numa tarde
chuvosa, na casa de uma amiga de minha mãe que era parteira, pus as mãos num
manual de obstetrícia, que folheei ávido por cinco emocionantes minutos,
trêmulos de excitação e medo daquelas novas e surpreendentes descobertas.
Não foram as surpresas ginecológicas, no entanto, que me atraíram, deixando-
me de queixo caído e arquejando suavemente, como se eu tivesse tropeçado no
mais emocionante erotismo, mas a seção das ilustrações polidas, coloridas à
Rubens, revelando alguns dos maiores equívocos da mãe natureza, blastômeros
miscigenados, os andróginos unidos no peito ou quadris, monstros bicéfalos
com mãos membranosas e espinhas fendidas, todas aquelas coisas estranhas,
imprestáveis, entre as quais eu e meu irmão fantasma poderíamos ter estado.
Parece que foi aí que, de algum jeito, meu dom para os números se
desenvolveu. Desde o começo, suponho, fiquei obcecado pelo mistério da
unidade, e o resto foi consequência. Mesmo assim não posso ver o um e o zero
justapostos em sentir dentro de mim a vibração de uma nota grave
reverberando. Antes de andar eu já sabia contar, dispondo meus blocos em
quadrados organizados, esperneando se alguém ousasse desarranjá-los. Lembro-
me de um ábaco de brinquedo que guardei como um tesouro, durante anos,
com contas de madeira coloridas, uma moldura de madeira e uma pequena base
aplainada para que ficasse em pé. Minha brincadeira favorita era somar
instantaneamente na cabeça números grandes, franzindo o cenho, a mão na
sobrancelha, os olhos no chão. Não era a manipulação das coisas que me dava
prazer, a simples facilidade, mas o senso de ordem que sentia, de harmonia, de
simetria e plenitude.
III

A escola de St. Stephen ficava em uma colina no centro da cidade, uma


construção alta, estreita, de tijolos vermelhos, com um telhado negro de ardósia
e um cata-vento de metal penso em lajotas escorregadias e no retinir das botas,
chuva no pátio, e o cheiro dos bueiros, e algo mais, a sensação de
aprisionamento, de rostos afastados do mundo em pânico sagrado. No meu
primeiro dia de aula sentei com os outros garotos novatos em respeitoso silêncio
enquanto um professor ruivo retirava de um bolso incrivelmente fundo, com
carinho, uma palmatória.
- Diga bom-dia - ele falou - para o mascote do professor.
A coisa balançava frouxa em sua mão como uma língua escura e ressequida.
Cada um dos meninos podia ouvir o vizinho engolindo em seco.
Repentinamente, toda a existência, até aquele momento, dava impressão de ter
sido uma travessura negligente, uma semiembriagues. Fora da janela ficava uma
árvore doente, e para lá pinheiros, e mais para lá o azul desmaiado do céu limpo
de setembro.
Eu sentei na frente da classe, estarrecido e fascinado. Cada professor, mesmo
o mais calmo, parecia louco, à sua maneira. Todos estavam convencidos de que
conspirações eram tramadas pelas suas costas. Eles podiam girar nos
calcanhares, na frente do quadro-negro, giz em suspenso, e encarar um garoto
ou outro sem falar, com um olhar latente de desconfiança. Sem avisar, tinham
terríveis ataques de fúria, mergulhando por entre as carteiras atrás de um
depravado, despejando golpes sobre ele como contra um obstáculo rombudo no
qual tivessem esfolado a canela. Depois todos ficavam timidamente
ameaçadores, enquanto o resto da classe evitava olhar para a vítima debruçada
na carteira, soluçando baixinho e esfregando os olhos.
No início, tentei acalmar esses homens perturbados, violentos, ofertando a
eles minha habilidade nas adições, experimentalmente, como uma pequena
dádiva. Surpreendentemente, eles pouco se impressionavam, até se indignavam,
como se pensassem que fosse tudo um truque , um tipo de feitiçaria,
espalhafatosa e frívola. Eu os intrigava, suponho. Podia fazer qualquer tipo de
operação mentalmente, mas as coisas simples me desconcertavam. As datas
eram especialmente escorregadias. Nunca tinha muita certeza da minha idade,
sem saber com exatidão o que subtrair de que, já que meu primeiro aniversário
não caíra no ano em que eu havia nascido, mas no ano seguinte, e desde então,
até a metade do ano que se seguia, quando chegava o aniversário subsequente,
eu me dava conta de que estava um ano mais velho, tendo ainda pela frente mais
meio ano a transcorrer no calendário. Havia um excesso de realidade preso a
tudo isso. Eu me sentia à vontade apenas com os números puros, e se uma soma
tinha coisas sólidas incluídas, eu tropeçava, como um mágico incompetente,
hesitando e esquivando-me freneticamente, enquanto moedas e repolhos,
dominós e níqueis giravam descontrolados em volta de minha cabeça. E
também havia aqueles homens padrão, sem rosto, medindo quilômetros de A
até B e de B até C, cada qual com seu passo resoluto, eu os vejo em minha
mente, solitários, amontoados, trabalhando sozinhos em estradas brancas, sob
uma luz intensa, branca. Essas coisas, esses objetos sibilantes e figuras
incansáveis e pomposas, removidas de sua humilde obscuridade, tinham em si
um ar de sobressalto e urgência de encontro que me dava pena. Eles nunca
haviam previsto ser tão intensamente notados.
- Muito bem, Swan, são quantas maçãs, afinal, hã?
Uma forma vermelha, madura, sob um raio de sol que tremulava em sua face
pálida, ondulava e ondulava em meu cérebro, forçando todo o resto para fora.
- Você é um lerdo, garoto. Você é o quê, mesmo?
- Um lerdo, senhor.
- Exatamente. Agora estenda a mão.
Eu nunca chorava. Não importava a intensidade com que me batiam. Ficava
sentado com os dentes cerrados, as palmas formigando apertadas contra os
joelhos e o sangue vagarosamente tingindo todo o meu rosto, e, de vez em
quando, deleitosamente, me parecia que o professor, e não eu, havia sofrido a
pior humilhação.
Mesmo assim me dei bem, apesar de tudo. Virei o primeiro da classe. Todo
ano ganhava a medalha que a escola dava para cálculos mentais. Em casa,
mantinha essas coisas em segredo. No último dia de cada período de verão, eu
parava no portão da eclusa, atrás do depósito de malte, no caminho de casa,
para rasgar meu boletim e espalhar o papel picado na correnteza.
Então, sem qualquer aviso, fui levado um dia para a sala do diretor. Minha
mãe estava lá, de chapéu e casaco domingueiro, a bolsa sobre os joelhos e as
mãos sobre a bolsa, imóvel, olhando para o carpete. A sala sufocante e escura.
Em um pedestal, na parede, uma Nossa Senhora esquálida erguia-se com o
coração trespassado, as pequenas mãos estendidas em um gesto lúgubre. O pé
enorme de padre Barker apontava sob a mesa, protegido por botas pretas de
amarrar, com solas grossas remendadas e o couro de cima gasto até adquirir a
textura de papel crepom preto. Ele era um sujeito grande e infeliz, com cara de
lua, bochecha azulada a andar pesado. Seu apelido era Mastim. Um figurante.
Ele se ergueu, pesquisando sob a saia de sua batina, e tirou um maço de cigarros
sujos. Fumava com certa violência, carrancudo, como se cumprisse um dever
maçante e inevitável. Estivera dizendo, ele disse, que eu era um aluno exemplar.
Ele saiu de trás da mesa e andou de um lado para outro, a batina esvoaçando. A
cada vinda ele virava pesadamente, como um cavaleiro a dominar uma montaria
indócil. Vermes grisalhos de cinza caíam pelas negras escarpas de sua barriga.
Ele tinha muitas esperanças, explicou. Parou de voltou-se para minha mãe com
veemência.
- Muitas esperanças, dona!
Finalmente ela dirigiu o olhar para mim, recriminador, silencioso, como um
conspirador menor que acabasse de descobrir a plenitude do plano. Desviei os
olhos dela, para a janela e o dia claro, ventoso. Árvores distantes balançavam em
silêncio, sofrendo enormemente. Eu não disse nada. Padre Barker, acendendo
mais um cigarro, foi engolido por uma nuvem de fumaça e fagulhas voadoras.
Mais tarde, quando voltei para casa, um silêncio terrível reinava na habitação.
Minha mãe andava altiva pela cozinha, ainda usando seu chapéu, ainda tomada
por um turbilhão de emoções, raiva e orgulho, vaga ameaça, um ressentimento
sufocado.
- Banquei a idiota - ela gritou. - Banquei a idiota, sentada ali! Ela tinha horror
de ser escolhida.

No ginásio, nosso professor de matemática era um homem chamado Pender.


Ele era inglês e leigo. Ninguém parecia saber como tinha vindo parar em St.
Stephen. Velho, magro, com uma cabeça fina em forma de cunha e membros
compridos, tortos, ele se movia com passos lentos como os de uma criatura que
subia em árvores. Seus ternos, de boa casimira, brilhantes de tanto uso, tinham a
aparência amarrotada e desleixada de uma pele pronta para ser curtida. Tinha
atração pelos desvios e becos sem saída de sua matéria, por paradoxos, enigmas
e jogos matemáticos. Ele incluía em suas aulas as coisas mais extravagantes,
geometrias curvas, álgebras estranhas e formas esquisitas de numeração. Ainda
posso recitar a estranha ladainha de nomes bizarros que ouvi pela vez naquela
classe: Minkowski e Euler, Peano e Heaviside, Infeld, Sperner, Tarski e Olbers.
Ele gostava de impressionar os alunos, era uma forma de opressão. Circulava
pela sala de aula em passo lento, os longos braços cruzados de forma intrincada,
vigiando com riso sardônico as fileiras de rostos voltados em sua direção com
perplexidade atenta. Palavras corriqueiras, quando pronunciadas por ele
naqueles momentos - grupo, sistema, transformação, cruzamento - adquiriam
um sentido quase religioso. Ele mesmo tinha um ar litúrgico, quando parava à
janela, seu perfil recortado pela luz fraca do dia, uma aura de cabelos brancos
brilhando no alto da cabeça, falando com sua voz fina, sibilante, de teorema
binomial, da álgebra de Boole ou da misteriosa afinidade entre os números da
sequência de Fibonacci e o padrão espiralado das sementes na flor do girassol.
Ele ficava maravilhado comigo, claro, mas também desconfiado, como se
suspeitasse de uma armadilha. Ele andava em torno de mim com jocosidade
nervosa, curvando-se em minha direção subitamente, como se fosse me agarrar,
as veias de seu pescoço magro pulsando, e em seguida afastava-se rápido, com
uma risada ferina, metendo a ponta da língua pelo vão dos dentes, por entre um
vão onde faltava um canino. Naquela época eu já sabia cálculo diferencial e pode
resolver os mais delicados problemas de trigonometria.
- Espantoso. - O sr. Pender suspirava, esfregando suas papiráceas. -
Espantoso demais.
E ele ria, os lábios finos curvando-se numa espécie de nó, com a ponta da
língua aparecendo.
A turma começou a me chamar de mascote do Pender. Mas eu não gostava
daquela associação excessiva e de certa forma perigosa. As palmadas que
costumava levar eram menos embaraçosas, menos difíceis de lidar do que a
proteção furtiva do sr. Pender. Eu tentei escapar dele, cometendo erros
propositais, mas ele via através de mim, e sorria, com a boca semicerrada e a
sobrancelha erguida: beliscava minha nuca e passava gentilmente para outro
assunto.
Certa tarde ele apareceu sem avisar em nossa casa. Usava chapéu de feltro e
bengala. Longe da escola tinha o ar vulgar e irascível de um ator desempregado.
- Sra. Swan? Eu estava passando por aqui e...
Ele sorriu. Ela se afastou dele, limpando as mãos no avental. Nosso bairro,
ela sabia, não ficava em uma parte da cidade na qual o sr. Pender pudesse estar
passando por acaso. Estranhos que chegavam de repente a assustavam. Ela o
instalou na sala de visitas e serviu um cálice de xerez, segurando o dedal de
xarope vermelho com cuidados trêmulos.
- Oh, muito obrigado.
Ela ficou parada, como num transe, as mãos unidas, sem olhar diretamente
para ele, mas absorvendo-os aos poucos, seu chapéu, seus dedos longos, a
gravata-borboleta frouxa. Ele falava manso, com intensidade, os olhos fixos na
mesa. Ela mal ouvia, cativada por sua presença delicada, suave. Sentia ânsia em
tocá-lo. Ele estava sentado, um joelho magro cruzado sobre o outro, segurando
a haste do cálice. Tinha a segurança levemente sinistra de um original precioso
entre cópias. Em torno dele as coisas familiares sucumbiam sob seu deprimente
encanto. O carpete florido, a lareira de ferro forjado, os patos de gesso voando
na parede, essas coisas nunca mais seriam as mesmas.
- Um fenômeno extraordinário, sra. Swan. Um dom precioso. Um milagre, na
verdade. O que mais posso dizer? É para se sentir privilegiado.
Um brilho impaciente surgiu em seus olhos verde azulados, e flocos de saliva
surgiram no canto da boca. Ela notou seus dentes desalinhados. Ele parou e a
observou, espalhando o silêncio a sua frente como um vendedor teria feito com
uma amostra de alguma mercadoria valiosa e bela. Ela o ouvia, prendendo a
respiração. Havia um cerzido no cano de sua meia. Ela teve uma visão global do
que seria a casa dele, a mancha gasta no tapete, as luzes cansadas imóveis nos
cantos, a poeira. Ela se levantou.
- Sim - disse, alisando o avental na altura do joelho. - Sim, eu entendo.
Eu estava sentado no sofá, olhando o sr. Pender com espanto silencioso. Sua
presença era uma enorme e de certa forma ameaçadora violação. Ele sorriu
nervoso quando deu uma olhada em minha direção e ergueu a voz, falando
rapidamente, como se para manter alguém encurralado. Minha mãe me olhava
como se eu fosse um pássaro exótico, de plumagem colorida que surgisse
repentinamente na sala. Primeiro fora o padre Barker e suas esperanças, e agora
aquilo. Ela sentia uma frustração familiar, irada. As coisas que ele estava
dizendo, aqueles planos, aquelas propostas, ela sentia medo. Eram
incongruentes ali, tanto quanto o chapéu caro sobre a mesa e a bengala que ele
girava nas mãos brancas como giz. Finalmente ele se levantou. Ela o
acompanhou até a porta.
- Foi um prazer, foi um prazer encontrá-la, sra Swan.
Ela ficou cansada dele de repente, de seus modos educados, seu sorriso, seus
gestos, o jeito como pronunciou seu nome, forçando-o suavemente sobre ela,
como uma lisonja. Do lado de fora ele hesitou, olhando para as árvores
espinhosas da praça. Precisava fazer mais uma tentativa, sabia, de impressionar
aquela mulherzinha medíocre, para conseguir uma promessa de parte dela, mas
ela parecia tão apavorada, com os braços cruzados e a boca fechada, e ele não
gostaria de provocar uma confusão. Mas, oh, será que ela percebia, que
extraordinário - que excepcional? A raiva e a frustração ergueram-se nele como
uma onda, e se quebraram, deixando para trás uma esteira de tristeza. Como eu
sei dessas coisas? Eu apenas sei. Sou onisciente, de vez em quando. Ele sorriu
desanimado e se virou, erguendo um dedo do cabo da bengala em melancólico
adeus.

Quando ele partiu, uma alegria confusa floresceu brevemente, como se a casa,
como um navio frágil, tivesse sobrevivido a um desastre. Depois um silêncio
sério desceu.
Tio Ambrose veio fazer uma visita. Ele hesitou depois de entrar, farejando a
atmosfera tensa. Era uma versão aumentada de meu pai. Seu corpo parecia
grande demais para a pequena cabeça pregada nele. Tinha olhos apertados e
cabelo ondulado, e um queixo esfolado, como um pequeno par de nádegas
limpas. Ele tratava sua feiura com atenção invejosa, vestindo-a com riqueza,
mimando-a como uma mãe a um filho defeituoso. Mesmo assim seus ternos
eram um pouco apertados, seus sapatos um pouco lustrados demais. O silêncio
saía dele em lufadas, como uma intimidação de dor. Ele sempre parecia a ponto
de fazer alguma confissão terrível, angustiante. Sua reticência e seu ar de
dolorosa preocupação davam-lhe certa autoridade em nossa casa. Sua opinião
era respeitada. Minha mãe relatou a visita do professor, distendendo as narinas e
quase gritando, como se contasse um insulto. “Ponha-o em minhas mãos”, o sr.
Pender havia intimado, sorrindo como seu sorriso tenso, dental. Tio Ambrose
maneou a cabeça sério.
- É mesmo? - disse cauteloso.
Ela esperou. Tio Ambrose continuou a evitar seu olhar. Ela virou-se com
raiva para o fogão, retirando uma frigideira de um prego na parede. Meu pai se
levantara silenciosamente e dirigia-se para a porta. Bang, fez a frigideira. Ele
parou na soleira da porta e olhou para ela por cima dos óculos. Ele estava em
mangas de camisa e suspensórios, com o jornal da semana em uma das mãos e a
maçaneta na outra. Ele suspirou.
- O quê? - disse desanimado. - O que foi?
- Nada - ela gritou, sem se virar, e riu amarga. - Nada mesmo!
Ela jogou um punhado de linguiças na frigideira, e uma nuvem de fumaça e
banha voou no ar. Meu pai parou, ofegante. As brigas deles eram assim, um
reflexo no espaço, encerradas em um relâmpago, como o número de um
atirador de facas.
Jack Kay, cochilando perto do fogão, acordou com um resmungo. Ele o
olhou de soslaio, lambendo os beiços. Desprezava a velhice, suas enfermidades
intermináveis. Levantou-se. Ele não havia gostado nada do jeito do sr. Pender.
Meu pai voltou da porta e sentou-se pesadamente, segurando o jornal como a
um chicote. Tio Ambrose limpou a garganta e estudou a borda cariada da pia.
- Tem gente nova em Ashburn - disse calmamente, para ninguém em
particular. - Um pessoal esquisito.
Tio Ambrose conhecia as idas vindas da cidade. Ele dirigia um carro de
aluguel e sentava-se ao volante na parte externa da estação ferroviária o dia
inteiro, esperando pelos trens.
Minha mãe não permitiria a mudança de assunto. Ela varria o chão com
expressão envergonhada e riu outra vez estridente.
- Ponha-o em minhas mãos, esta é boa! - disse.
Ninguém respondeu. Ela ficou parada, hesitante, por um momento, corada e
furiosa, e depois virou-se abruptamente para a frigideira quente. Houve outro
silêncio incômodo. Tio Ambrose tamborilava na mesa com os dedos,
assobiando sem produzir nenhum som. Jack Kay olhou para o alto com olhos
inexpressivos, leitosos, a boca entreaberta. Meu pai, mexendo os lábios,
percorria o jornal atentamente. Eles pareciam desconfortáveis, tentando
suprimir alguma coisa, como se um fantasma tivesse aparecido entre eles, mas
quisessem fingir que não haviam visto nada. Eu os observei com interesse. Por
que eles precisavam ficar alarmados? Fora em minha direção que o espectro
havia apontado sua mão pálida, implacável.
IV

No final das contas foi o próprio sr. Pender que acabou desaparecendo. Um
dia ele simplesmente sumiu, ninguém soube para onde tinha ido. Desapareceu
da escola, desvanecendo-se com seus sarcasmos sem deixar vestígios. Padre
Barker também foi removido silenciosamente. Ele ficou doente e foi mandado
para um sanatório. Essas coisas me atingiram como sinais secretos, indecifráveis,
apesar de vívidos. As férias de verão haviam começado. Eu acordava de manhã
com um pulo, como se houvessem chamado meu nome. O tempo, como se
soubesse de algo, deitava seus mais adoráveis efeitos. Eu caminhava sob árvores
modorrentas, através do silêncio sonhador de tardes ensolaradas, e tinha uma
consciência tão aguda de estar ali a ao mesmo tempo em outro lugar, em um
presente de tal maneira fugaz que parecia puro potencial, de forma a me ver não
tanto como a mim quanto como lembrança vívida de alguém que um dia eu
tivesse sido. Ficava parado sob o sol salgado na frente do brilho ondulante do
mar, e o fustigar constante do vento em meu rosto era como o próprio futuro
rugindo para mim, censurando-me por estar já atrasado.
Eu passava horas trancado em meu quarto, que dava para a praça, debruçado
nos livros escolares, rascunhando cálculos. Metade do tempo eu mal sabia o que
estava fazendo ou o que viria depois, ou o porquê de estar fazendo aquilo. As
coisas aconteciam de estalo. Em um momento a questão estava ali - uma
equação para ser resolvida, por exemplo - e em seguida estava solucionada,
presto! Entre um momento e outro, eu tinha apenas noção de um bater de asas,
uma espécie de piscada, como se uma tampa houvesse sido aberta na imensidão
cega e instantaneamente fechada. Pode ter havido alguém dentro de mim
fazendo os cálculos, alguém que tivesse mais certeza do que eu e fosse
infinitamente mais rápido. Assim, às vezes esse outro eu parecia a ponto de me
abrir e sair para fora, intacto e impiedoso como um imago. Curvado sobre a
mesa perto da janela do quarto, eu parava subitamente e erguia a cabeça, como
se acordasse apavorado de um pesadelo, meu coração batendo forte, enquanto
ao meu redor, profundamente imóvel, uma espécie de presença lutasse para se
materializar. Eu me recordo de um quadro pendurado na parede da classe,
quando eu era criança e estava na escola do convento. Fora pintado em tons
acetinados de rosa e azuis densos, esmaltados, e mostrava um pequeno garoto
sorridente jogando bola na margem de um rio tempestuoso, vigiado por uma
enorme figura de camisola branca, com cabelos dourados e grandes asas
também douradas. Era seu anjo da guarda. Eu olhava fixo para a pintura,
impressionado com a ideia de ter sempre aquela criatura pairando atrás de mim,
com aquelas asas, aquelas mangas largas e aquela expressão que para mim não
revelava solicitude, mas uma maldade especulativa, cruel.
Eu não tinha amigos. Os números eram os meus únicos amigos. O ábaco
dentro de minha cabeça nunca ficava inativo. Eu podia dedicar dias a um único
exercício, embriagado com as contas. Por vezes, durante a noite, eu acordava ao
descobrir uma fileira de cálculos abrindo caminho através de meu cérebro como
uma centopeia cega, entocada. Um número, para mim, nunca era só ele mesmo,
mas uma massa hirsuta de outros números, complexa e volátil. Não podia ouvir
uma soma de dinheiro ser mencionada ou ver uma data anotada sem desmontar
o montante em seus fatores, frações e raízes. Eu via propriedades matemáticas
em todas as coisas a minha volta. Número, reta, ângulo, ponto eram as
coordenadas secretas do mundo e de tudo que ele continha. Não havia nada,
por mais diminuto, que não pudesse ser repartido em partes menores e menores
ainda.
Minha mãe estava ficando preocupada comigo. O que eu andava fazendo em
meu quarto aquele tempo todo?
- Nada - eu respondia. - Contas.
- Contas? Contas?
Ela balançava a cabeça, atônita. Atrás dela, Jack Kay olhava para mim e ria
afetado.
Ela me obrigava a sair para tomar ar, brincar, ser um menino como os outros.
Ela ficava imóvel na escada, como costumava fazer quando eu era bebê, e
escutava atrás da porta do quarto, como um médico auscultando um coração
suspeito. Eu não tinha jeito, ela dizia, não tinha jeito, era isso aí. Ela me entupia
de xaropes milagrosos. Eles tinham gosto de sangue e catarro.
- Eu estou bem - resmungava, afastando a colher cheia. - Estou bem.
E, quando ela insistia, eu em levantava e ia para fora, batendo a porta da
frente atrás de mim, fazendo com que a casa toda tremesse.

Eu andava e andava. Pessoas nas ruas passavam por mim indistintas, como as
barras de uma jaula. Quando eu esgotei a cidade, passei para a periferia. Andava
pela rua Coolmine, passava pelo depósito de lixo, as palmas suadas e a cabeça
quente. Houvera uma boca de mina ali, no tempo em que o carvão ainda estava
sendo extraído, e o elevador da mina continuava lá, esquelético, imóvel e
alucinado. Agora o local era depósito das fábricas da cidade. Caminhões da
olaria e da fundição de ferro desciam desajeitados por uma trilha esburacada,
torcendo-se e bufando como ruminantes alucinados, para então parar, agachar e
despejar uma pilha de dejetos, com urgência fecal, de suas traseiras basculantes.
Por entre os montes empoeirados, bandos de catadores escavavam em busca de
aparas de metal, e velhas carregando sacos procuravam pedaços de carvão,
enquanto enormes gaivotas reuniam-se em bandos, levantavam voo e pousavam
de novo, gritando furiosas. Sob o solo havia uma teia de túneis de poços, onde
fora a mina, e de vez em quando um buraco se abria na terra, no qual uma
encosta de detritos e poeira desaparecia vagarosamente, com um suspiro. Foi ali
que vi pela primeira vez o sr. Kasperl. Ele perambulava perto do portão do
depósito certa manhã, com as mãos nas costas e um charuto na boca, um
homem grande com pernas curtas e barriga enorme. Tinha um andar estranho,
feminino, ao mesmo tempo pesado e afetado. Usava um tipo de guarda-pó que
esvoaçava por trás dele e galochas de borracha preta. O casaco e as galochas,
incongruentes em um dia de verão, eram de certa forma impressionantes, como
se tivessem algum significado secreto, como se fossem uma insígnia denotando
uma autoridade singular, clandestina. Tinha uma cabeça rombuda, cabelo à
escovinha, orelhas pequenas, cor de malva nas pontas e delicadamente
espiraladas, como uma variedade exótica de cogumelo. Ao passar, ele olhou para
mim, inexpressivo. Seus olhos eram de um azul desbotado, impenetrável. Ele
prosseguiu em direção à cidade, deixando um rastro rico de fumaça de charuto
atrás de si, no surpreso e ensolarado ar.
De vez em quando eu ia a Ashburn e caminhava por onde havia caminhado
com minha mãe anos atrás. Até mesmo a srta. Kitty se fora agora. A casa grande
estava trancada, o parque transformara-se em matagal. Aqui e ali, dilapidados,
restavam sinais de um mundo desaparecido. Faisões ciscavam na grama alta. Em
meio a uma folhagem agitada pelo vento, um gamo poderia se materializar,
silenciosamente - um olho acetinado e um rastro cintilante, um coto de cauda, o
passo elegante de um unicórnio. Em uma touceira de amoreiras jazia uma
estátua inclinada, mutilada, olhos esbugalhados e taciturnos, como os de uma
rainha embriagada. Eu segui meu caminho por entre a forja, os estábulos vazios,
onde o ar ainda conservava o cheiro dos cavalos. Parei no meio das ruínas da
casinha onde minha mãe nasceu. Um silêncio enlevado, intencional, me cercava,
como se tudo estivesse me observando, chocado com minha intrusão nesses
locais desertos. Um cacho de sementes de tremoço pipocava, um tordo dava um
assobio agudo, fazendo com que eu pulasse. Um punhado de pó de tijolo
desprendendo-se de uma fissura em uma parede que desmoronava parecia uma
ameaça sussurrada.
Um dia ouvi vozes. Era meio-dia. Um vento quente soprava. Eu estava
parado em um pomar abandonado. Não, minto, eu estava caminhando no meio
de uma alameda de faias, plátanos, algo assim. As árvores curvavam-se sob o
vento, cada folha agitando-se alucinada. As vozes ondulavam, imagino que por
causa do vento, e no início não pude determinar de que direção provinham
aqueles sons curiosamente singulares, em miniatura. Atrás das árvores havia uma
sebe alta, densa. Fui até uma abertura, esgueirei-me por ela e me dei conta de
que estava em um atalho que descia suavemente até a margem de um riacho
banhado pelo sol. Fiquei quieto, escutando minha própria respiração e o vento
que zunia pelas árvores atrás de mim. Minhas mãos estavam impregnadas com o
cheiro de mijo de gatos das alfenas. O sr. Kasperl estava andando no riacho,
com uma garota a seu lado. Eu o reconheci imediatamente, não havia como
confundir aquele passo de pomba. Naquele dia ele usava um paletó de linho
branco encardido, um chapéu de palha de abas largas e empunhava uma
bengala, com a qual batia na grama, ao léu, conforme caminhava. A garota era
alta e pálida, com cabelos grossos, compridos, escuros. Ela estava segurando um
ramalhete de flores do campo? Não, não. Sua saia florida ia até o chão. Notei as
pontas de seus sapatos negros como pequenas línguas recatadas, brotando,
virando e revirando a cada passada, sob a barra ondulada e molhada pela grama
alta, onde se prendiam sementes de feno e pó de botão-de-ouro. O sr. Kasperl
parou e ergueu a cabeça, olhando em volta, para o céu e para as árvores
ondulantes, fumando contemplativo seu charuto, cujo cheiro eu sentia mesmo
daquela distância. A garota seguiu um pouco em frente, mas depois também
parou e ficou olhando inexpressiva, os braços estendidos ao longo do corpo.
Havia, no que diz respeito àqueles dois, uma sensação de opressão, de
inquietação sufocante, como se fossem ambos prisioneiros, e aquela fosse sua
dose diária de liberdade. Senti uma comichão excitada, furtivo na sombra entre
os odores corporais de folhas e terra preta. Então algo se moveu ali perto e meu
coração pulou dentro do peito. A menos de dez metros de onde eu me
encontrava, encostado em uma árvore caída ou enroscado nela, como deu a
impressão no início, havia um sujeito jovem, que deveria estar ali o tempo todo,
me vigiando enquanto eu vigiava os outros. Ele era magro, com um rosto
afilado de raposa, maçãs proeminentes e uma mandíbula aguçada, comprida. Sua
pele era pálida como papel, seu cabelo de um vermelho vívido. Ele usava um
terno surrado em risca de giz, que havia sido confeccionado para alguém mais
robusto do que ele, e uma camisa encardida sem colarinho. Ele se separou da
árvore e avançou, me examinando com interesse amigável.
- Qual seu nome, meu caro? - perguntou.
- Swan, senhor.
Ele deu um passo para trás e lançou um olhar extravagante, pressionando a
mão contra o peito.
- Swansenhor?
- Não, senhor, só Swan.
- Ora! Um pequeno cisne, por Zeus.1
Ele tirou uma lata amassada quase cheia de pontas de cigarro, selecionou uma
com cuidado e acendeu. Tinha dentes ruins e um tremor nas mãos. Fumou em
silêncio, pensativo, a cabeça abaixada, olhando para mim com um dos olhos
semicerrado.
- Meu nome é Felix - ele disse.
Sorriu, revelando uma falha escura nos dentes. O sujeito gordo e a garota
haviam se aproximado através do gramado e estavam agora parados atrás de
nós, na beira do arvoredo, curvando-se um pouco para observar e olhando para
nós com atenção impassível. O rosto comprido, em forma de coração, da
garota, era ligeiramente torto, como se a metade esquerda tivesse perdido um
pedaço, dando-lhe uma expressão ao mesmo tempo ansiosa e suplicante. Ela era
mais velha do que me pareceu inicialmente, quase uma mulher. Felix voltou-se
para ele e contou:
- Ele diz que seu nome é Swan.
Eles não responderam, e ele me olhou novamente, piscando.
- Aquele - disse, apontando com o polegar -, aquele é o sr. Kasperl.
Eu comecei a recuar. A garota de repente sorriu para mim e tocou o gordo no
ombro, fazendo um gesto complicado com as mãos, mas ele não prestou
nenhuma atenção. Felix, ao ver que eu me retirava, jogou fora sua ponta, enfiou
as mãos no bolso e riu.
- Até logo, menino passarinho - disse.
Eu corri pela alameda arborizada, tomado por repentina agitação. Ainda
posso ver claramente o olho de gaivota do sr. Kasperl, os punhos brancos,
pelados, de Felix, o sorriso súbito da garota. O vento rugia no topo das árvores,
como algo de passagem, a caminho de causar devastação em outro lugar. Eu
atingi a estrada principal e não olhei para trás. Quando cheguei em casa o lugar
parecia ter mudado, como se uma coisa familiar, ínfima, tivesse sido removida
silenciosamente.
Em seguida, vi Felix e o sujeito gordo no hotel Black, onde minha tia era
gerente. Foi de manhã, e o local exalava um cheiro de ressaca. No bar, as
cadeiras estavam emborcadas no tampo das mesas e um garçom em mangas de
camisa, em pé, de braços cruzados, apoiava-se em um cabo de vassoura. No
andar de cima, em algum ponto, uma arrumadeira cantava com voz rouca.
Caminhei como um fantasma pelos corredores silenciosos. Era com estar atrás
do palco de uma grande, desorganizada produção teatral. Espiei o sr. Kasperl
sentado sozinho perto de uma janela banhada de sol no deserto salão de jantar,
tomando café e observando a rua com ar distante. Tia Philomena estava no
cubículo que ela chamava de seu escritório. O ar estava pesado com o forte odor
de pó-de-arroz e fumaça de cigarro. Ela era irmã de meu pai: uma mulher alta,
pesada, assemelhando-se a uma aranha com sua saia e blusa negras, as pernas
magras, o traseiro grande e olhos brilhantes, dementes. Eu havia ido lá para
dizer a ela - deixe ver, para dizer a ela - ora, não importa. Não posso pensar em
nada. Estava a ponto de sair quando Felix enfiou a cabeça no vão da porta e
começou a falar animadamente, chamando minha tia por seu nome. Ao me ver,
parou. Ficou em silêncio por um segundo e depois disse:
- Ora, ora, vejam só quem está aqui.
Tia Philomena sorriu desengonçada e corou, apanhando coisas em sua mesa e
devolvendo-as a seu lugar.
- Ah, ele... - disse, como que explicando uma circunstância atenuante - ele é o
filho de meu irmão.
Felix ergueu uma sobrancelha.
- Não diga! - comentou.
Ele havia me reconhecido no ato, é claro.

Andei de volta pelos corredores silenciosos, passei pelo bar, cruzando com o
garçom, e pelo salão de jantar com seu ocupante solitário, saindo por uma porta
nos fundos, para a luz ofuscante do sol uma carroça da cervejaria estava
estacionada no pátio, e homens com aventais de couro levavam barris para o
portão. Sentindo o cheiro nauseante da cerveja, repentinamente lembrei-me de
ter brincado ali uma vez em um dia de outono, há alguns anos, com um garoto
sorridente com roupa de marinheiro que estava hospedado com seus pais no
hotel. Ele havia capturado um sapo, que guardava em uma lata de biscoitos.
“Veja isto”, ele me disse e enfiou um canudo pela goela do sapo e estufou e
estufou a barriga do bicho como se fosse um balão. Eu me recordo do cheiro de
musgo outonal do pátio, do quadrado de céu azul acima de nós, com nuvens
pequenas, de ouro pálido. Recordo-me do rosto de elfo do menino, deformado
pela risada, e sua pequena língua úmida abrindo caminho, gorda, no canto da
boca. Também me recordo do sapo, da barriga pálida inchada, das pernas
remexendo, dos olhos que pareciam querer saltar das órbitas. O menino soprava
o canudo e deixava que desinchasse de novo. Seria isso possível? É o que eu
recordo, não importa se é possível ou não. A coisa parecia incapaz de morrer.
Finalmente pulou no chão com um estalo úmido, como uma luva encharcada, e
esgueirou-se para um canto, tentando escapar. “Nada disso, você não vai!”, disse
o menino, rindo e pisando nele com força, com o salto de seu pesado sapato de
verniz. Fez um ruído como um arroto alto, e uma coisa rosada esguichou em
arco, caindo no chão atrás de mim. Billy, este era o nome do menino, acabei de
lembrar. Sim, Billy. Mas sapatos de verniz? Roupa de marinheiro?

O sr. Kasperl vinha de Ashburn para o hotel todas as manhãs e ficava


sentado no salão de jantar por uma hora, tomando café e espiando pela janela.
As pessoas que passavam pela rua olhavam para ele, não inquiridoramente, mas
com um sorriso leve, sonhador, esquecendo-se de si mesmas. Era como se
alguma coisa que há muito esperassem tivesse finalmente chegado, e fosse
apenas um pouco decepcionante. Às vezes Felix vinha com ele e passeava pelo
hotel com a mão no bolso, conversando com as garçonetes, com o pessoal da
cozinha e com as arrumadeiras. Ele fazia com que rissem. Tinha um jeito teatral
de falar, pedindo apartes, como em prol de uma plateia invisível. Ele imitava
diferentes vozes também, e era difícil dizer qual delas era a dele. Quando
contava uma piada, ria e ria e continuava a rir depois que todos os outros
haviam ficado em silêncio constrangedor, como se houvesse na piada algo
incrivelmente mais engraçado, e que só ele soubesse. Era um palhaço, todos
diziam isso. O sujeito gordo olhava para ele inexpressivo, em silêncio, e Felix
virava de costas e saía de fininho, curvado em alegre silêncio, uma mão tapando
a boca e suas sobrancelhas mexendo muito.
Tia Philomena estava encantada. Felix e o sr. Kasperl eram tão diferentes dos
clientes costumeiros do hotel Black, os caixeiros viajantes e compradores de
gado de pescoço gordo, tão comuns, tão prosaicos. Aquela dupla era algo que
ela poderia ter inventado, pois era dada a fantasias e sempre se via no centro de
um drama impossível. Ela repartia a casa da família na rua Queen com tio
Ambrose. Quando ela veio a nossa casa naquele dia, ostentava um ar de triunfo,
como se, com a chegada de Felix e do sujeito gordo, todos os seus arroubos
selvagens tivessem, até que enfim, se tornado realidade. Ela nos falou das
pequenas manias do sr. Kasperl, de como ele gostava do café forte e bem quente
e de como, em determinados dias, virava-se subitamente e pedia um copo de
conhaque, bebendo-o de um só gole, com um pequeno movimento de cabeça.
- E aquele casaco! - ela gritava. - E as galochas!
O inglês dele não era muito bom, o que tornava difícil compreendê-lo. Seu
sotaque fazia com que as coisas que dizia parecessem ao mesmo tempo
profundas e antiquadas, como antigos discursos. Ele tinha uma boa formação,
havia estudado de tudo, filosofia, ciência, oh, tudo! Mas agora ele desistira de
tudo. Ao dizer isso, ela fazia um ar trágico, como se também houvesse
renunciado a coisas importantes em sua época e soubesse de tudo a esse
respeito. Eu pensava no sr. Kasperl, sentado solitário na janela iluminada do
hotel Black, observando a cidade como um deus decrépito frente a um mundo,
consciente de seu próprio trabalho, mais intrigado com ele.
- O que ele está fazendo aqui, afinal? - minha mãe perguntou. - O que ele
quer?
Ela não gostava nem um pouco dessa história de gente mudando para
Ashburn, sua Ashburn. Tia Philomena franziu o cenho, enrugando a boca
vermelha.
- Não sei se ele quer alguma coisa - disse com dignidade. - O que ele poderia
querer aqui?
Ninguém poderia responder a isso. Ela deu uma olhada astuta em volta.
- Na verdade - disse -, ele tem algo a ver com mineração...
Jack Kay fungou.
- Estrangeiro, não é? Deve ser um judeu qualquer, se querem minha opinião.
O assunto provocara nele uma raiva surda, misteriosa. Tia Philomena o
ignorou diplomaticamente.
- Ele é engenheiro, creio - disse calmamente.
- Engenheiro, meu rabo! - Jack gritou, batendo com o punho no braço da
cadeira de balanço.
Ele olhou em torno. Um fio de baba escorria por seu queixo. Ele o chupou
furioso. Todos ficaram em silêncio. Tia Philomena limpou a garganta e ergueu
as sobrancelhas, alisando as pregas com a ponta dos dedos, até a barra da saia
preto-azulada, depois tocando a mancha de nascença no lábio superior úmido.
- Bem! - disse com suavidade, suspirando, depois ergueu-se bruscamente,
como a figura de proa de um navio, saindo da casa.
V

Eu saía todos os dias para ir até Ashburn e me escondia na pequena clareira


acima do riacho banhado pelo sol. Foi ali que a garota me encontrou, como eu
esperava, não como eu sabia que faria; numa das tardes chegou por trás sem
emitir nenhum som e colocou a mão em meu ombro. Eu me virei, sentindo meu
rosto corar intensamente. Ela ficou parada bem pertinho de mim, a me
examinar com intensidade com seu sorriso ansioso, torto, e fez um som choroso
com a garganta. Eu me sentia como se estivesse cara a cara com uma criatura
selvagem, um gamo, talvez, ou quem sabe um pássaro grande, delicado, sem
penas. Comecei a dizer algo, mas ela balançou a cabeça e tocou levemente com
os dedos na orelha e nos lábios, para me mostrar que era surda e que não podia
falar.
Ela se afastou de mim e seguiu pelos arbustos, olhando para trás e
gesticulando para que eu a seguisse. Eu hesitei, e ela acenou vigorosamente,
sorrindo e gesticulando. Ela vestia a mesma saia florida que estava usando
quando a vi pela primeira vez e uma blusa branca manchada de suor nas axilas.
Caminhamos riacho acima. O dia era quente, com uma brisa suave. Tudo
parecia tremer levemente, o ar, a grama, até mesmo o tronco das árvores, como
se tudo estivesse recebendo sopro imenso, suave. Dei uma olhada para a garota
e notei que me inspecionava avidamente, os olhos estavam brilhantes e os lábios
sorridentes se comprimiam, como se fosse algo que ela tivesse capturado e
pretendesse conservar. A casa, reluzindo através das árvores, como o sol que
batia nas janelas, sinalizando para mim, impassível. Chegamos a uma trilha de
carroça e ela pegou um graveto e rabiscou seu nome no chão duro. Sophie.
Apontou para si, tentando dizê-lo, a polpa pálida de sua língua rolando por entre
os dentes.
Chegamos à casa e subimos os degraus da frente. Sophie tirou uma enorme
chave de ferro de um bolso da saia. No hall, um raio de sol batia no chão, como
um acrobata inclinado. O papel de parede caía em tiras, farfalhando como folhas
de palmeiras desbotadas sob o vento que entrava pela frente. Havia um cheiro
seco, amarelado, como algo que tivesse terminado de apodrecer e virado poeira.
Na entrada, uma cerca parecia se erguer a minha frente, uma membrana
invisível. O ar estava fresco e seco. Não havia sinal de vida. A poeira se
acumulava por toda parte, cinza-camundongo, em flocos, como uma camada de
feltro, absorvendo nossas pegadas. Fomos para um aposento grande, escuro. As
janelas estavam fechadas, brilhando como lâminas oblíquas de sol. Ouviu-se um
arranhar de pequenas patas em um canto, depois silêncio. Sophie abriu as
janelas. O local agradeceu a luz súbita com uma exclamação muda de surpresa.
Uma poltrona inclinou-se para trás, os braços presos, em uma postura de
assombro e pasmo. Nós ficamos nos olhando por um momento, e então,
abruptamente, Sophie pegou minha mão e me obrigou a segui-la para fora dali,
escada acima. Ela ia correndo na minha frente, pelos quartos fechados, abrindo-
os para o dia radiante. Ria excitada, fazendo sons guturais, o queixo e a boca
fechados com força, como para impedir que algo saísse. Eu ainda sentia, como
um fragmento da sabedoria secreta, a marca fresca e úmida de sua mão na
minha. Eu a segui, de janela em janela. Uma folha cedeu em minha mão, como
gigantesca asa petrificada, uma outra desabou com uma explosão abafada de
madeira podre e lascas de tinta e casulos esfarelados de larvas de cupins.
Subimos mais e mais. A casa se tornava um campo esterilizado a nossa volta,
com aquela luz toda a inundá-la, e o forro alto, acinzentado, da cor das nuvens,
e as janelas que se confundiam com o verde do céu.
O sótão era um fila de pequenos quartos eu davam um no outro, como uma
imagem que se repetia nas profundezas de um espelho. Era quente e abafado
sob o telhado. Fora, andorinhas eram atiradas como flechas em direção dos
beirais. No que fora um quarto de estudos, encostei a mão em um globo e,
imediatamente, como se esperasse sua vez, a bola pintada soltou-se de seu
suporte e rolou pelo assoalho fazendo barulho. Sophie me mostrou um quarto
estreito, com forro inclinado e uma janela circular, igual a um olho arregalado.
Havia uma cama, e uma cadeira de madeira e um lavatório com um jarro e uma
bacia esmaltada com uma lasca. Duas moscas voejavam preguiçosamente, em
torno de uma lâmpada. Aquele era seu quarto. A janela dava para o topo das
árvores e campos distantes. Seguimos por um corredor escuro. Espiei por uma
porta entreaberta e vi o sr. Kasperl deitado em uma cama grande, desarrumada,
de colete e botas, fumando um charuto e estudando o que aparentava ser um
enorme mapa ou gráfico. “Aparentava ser”, gosto disso. Ele me olhou
brevemente e depois voltou para seu trabalho.
Sophie me levou de novo para baixo. Pequenos tremores de excitação ainda a
percorriam. Aqui e ali uma nota aguda, de flauta, como um suspiro de quem
sofre de insônia, saía por conta própria de sua garganta, ela me mostrou coisas
que encontrara espalhadas, uma casa de boneca sofisticada, um manequim de
costura em sua base, teso como um ponto de exclamação, uma caixa de
marionetes com fios embaraçados e membros desajeitados, como uma pilha de
homens em miniatura enforcados. Ela engatinhou até um armário embaixo da
escada e arrastou um baú de roupas antigas e emboloradas. Olhava-me
ansiosamente, com intensidade, os olhos fixos em meu rosto, em meus lábios.
Depois, franziu as sobrancelhas, afastou as marionetes e fechou a tampa do baú;
em seguida, sentou-se nos calcanhares e suspirou, como se esses objetos, essas
bonecas e vestidos e pedaços de seda fossem coisas que ela estava me contando,
e eu não estivesse respondendo. Mais um momento, no entanto, ela estava
novamente em pé, correndo pelo hall, pedindo que a seguisse. Ela abriu uma
porta pesada, com tachões, que dava para um pequeno quarto transformado em
estúdio fotográfico. O lugar estava abarrotado de peças de câmeras antigas e
caixas manchadas de produtos químicos e pilhas de negativos de vidro. A luz era
densa e uniforme. Sophie sentou-se em um banco com um punhado de fotos
granuladas, de pontas retorcidas, no colo. Indicou o lugar vago a seu lado,
convidando-me a sentar. Havia um zumbido fraco, febril, no ar quente, e um
cheiro acre, químico. Examinei as fotos com atenção, conforme ela as passava,
uma a uma. Ela já havia visto antes, tinha suas favoritas, um close de um bebê
com cabeça de césar de olhos brancos, um flagrante engraçado de jumento com
chapéu de palha, um retrato formal dos criados dispostos como uma orquestra
nos degraus da frente da casa, em algum domingo longínquo de verão.
Chegando ao fundo da pilha, os assuntos mudavam. Havia uma foto de uma
mulher gorda de costas, com anquinhas, debruçada em uma sacada, enquanto
atrás dela um sujeito de suíças olhava com vívida surpresa para um pêssego
apetitoso, maduro, que ela segurava nas mãos, pronta para morder. Havia
estudos sobre o mesmo casal, ele de malha e ela só de corpete, posando em uma
cama ornamentada, em posturas lúbricas, pouco recatadas. Havia algo triste nos
dois, aqueles fantasmas cinza-pérola e preto-azeviche, cujo futuro já era nosso
passado. A última foto era só da mulher. Ela estava sentada, nua e ereta, em uma
cadeira de espaldar alto, sorrindo para a câmara, com as mãos nos seios fartos e
as pernas abertas. Seu sexo, indefeso e emocionante, era como uma criatura
intrincada, cabeluda, trazida das profundezas remotas do mar. Eu limpei a
garganta e olhei de lado para Sophie. Ela estava me observando novamente com
aquele sorriso intencional, ansioso. Havia sombras violetas sob seus olhos. E
uma sombra suave, escura, em seu lábio superior. Ela tinha um odor leitoso,
com algo de acre, como o cheiro de urtigas esmagadas. Seu cabelo era uma
maçaroca quente, pesada. Podia senti-lo, seu peso escuro, sua espessura. Ela pôs
as fotos de lado e nós deixamos o estúdio e passamos por um quarto grande,
comprido, com estantes envidraçadas que cobriam as paredes e enfeites de gesso
no forro. As estantes estavam vazias. Janelas de persiana davam para o brilho do
dia claro, abafado, transformando o quarto numa tenda vasta, ofuscante. Houve
intrusos ali; um painel de janela fora quebrado, havia folhas secas espalhadas no
tapete e, no chão, no canto, uma enorme bosta marrom. Abri as janelas em par e
debrucei para olhar. Degraus de pedra davam para jardins afundados na grama
alta. O ar tremulava, devido ao intenso calor. Um passarinho voou até uma
árvore, sem fazer barulho. Sophie colocou um disco em uma vitrola antiga e
girou a manivela. Houve um estalo e um chiado e uma orquestra trêmula atacou
uma valsa. A música se perdia na atmosfera do verão, alegre e antiquada. Ela se
ajoelhou em uma poltrona bamba, com as mãos apoiadas no encosto e o queixo
nas mãos, observando o disco girando e girando. Eu imaginava se ela podia
sentir a música, uma espécie de zumbido bêbado na cabeça, como se alguém
distante tocasse um pente com papel. A valsa chegou ao fim, e ela tirou o disco,
colocando-o cuidadosamente de volta na capa. Eu ainda posso ver a cena, o
braço reluzente da vitrola, curvo e gordo como o braço de um bebê, e o pino de
cromo girando no centro do prato, e os braços longos de Sophie erguendo o
disco. O que mais? O jeito com que o prato continuava a girar devagar,
silencioso, em velocidade vertiginosa, como um cachorro a caçar sua cauda. Que
mais? O selo do disco, vermelho-vinho. A figura no selo, um pequeno cão
caçando sua cauda, não, ouvindo, com uma orelha erguida. Que mais? A capa de
papel pardo, com um canto dobrado. Que mais? Que mais?

Felix estava sentado na cozinha, fuçando uma coleção de velhas chaves, de


todos os tipos e tamanhos, espalhada a sua frente, na mesa. O aposento era
estreito, com forro alto e janelas baixas, os batentes emparelhados com uma
faixa de grama alta do lado de fora. Havia uma pia lascada e um fogão mal-
encarado, preto, encardido. A pia estava lotada de louça suja, e algo borbulhava
indolente em uma panela engordurada no fogão. Felix olhou para mim e sorriu.
- Ora - disse - se não é o Queridosenhor Swansenhor. Não consegue ficar
longe da gente, não é?
Sophie espiou dentro da panela fervente e franziu o nariz. Trouxe pratos e
canecas e os espalhou na mesa, expulsando Felix para um dos cantos, sem
cerimônia. Ele se afastou com um suspiro preguiçoso, observando-me
negligente, um braço apoiado no encosto da cadeira e a boca fina esticada em
um sorriso. Ouvi passos atrás de mim. O sr. Kasperl apareceu na soleira da
porta.
- E os mortos ressuscitaram a apareceram para a multidão! - Felix murmurou.
O sujeito gordo sentou-se à mesa, deixando cair seu corpo pesadamente na
cadeira, que rangeu protestando. Ele esfregou os olhos com as juntas dos dedos
e sentou-se olhando fixo para o prato.
- Descansando um pouco, não é? - Felix gritou animado, balançando a cabeça
na direção dele, do outro lado da mesa. - Tirou uma soneca?
Sophie trouxe a panela que estava no fogo e deitou uma porção de ensopado
marrom-escuro em cada prato. Felix gesticulou com o braço, expansivo,
convidando-me para me unir a eles. Sentei do lado oposto do sr. Kasperl.
Sophie serviu um chá de um bule enegrecido. Havia um pequeno ninho de
aranhas em minha caneca, no fundo. O sr. Kasperl tossiu uma vez, duas, e
depois uma terceira, inclinando o ouvido, como se testasse alguma coisa dentro
dele. O calor aumentava, penetrando na casa. Os pássaros cantavam
desanimados lá fora. A cozinha alta oscilava sobre nós, como se estivesse no
fundo de um poço profundo. Uma aranha escaldada aflorou na superfície de
meu chá, girando em círculos lentos. Senti o olhar do sr. Kasperl diretamente
sobre mim. Olhamos um para o outro por um instante. Achei que podia
perceber algo se movendo, como um peixe lerdo, nas sombras mortas de seus
olhos. Ele parou subitamente de mastigar e, franzindo os lábios, extraiu um
pedaço de cartilagem da boca, depositando-a de propósito ao lado do prato. Eu
olhei para o outro lado. Sophie me observava, assim como Felix. Estavam todos
os três a me observar, com uma atenção calma e de certa forma remota, como se
estivessem se virado para me olhar do lado distante de um vale, esperando para
ver se eu conseguia atravessá-lo para juntar-me a eles.
VI

Encontrei Felix certo dia na cidade. Ele vinha trotando pela rua Owl, com a
mão no bolso, assobiando. Senti um espasmo de excitação, um tipo de medo
ansioso, como o que eu sentira quando o vi pela primeira vez, na pequena
clareira acima do riacho. A rua era estreita e íngreme, correndo por uma colina
acima do porto. A torre da igreja de Assumption pairava por sobre os telhados,
parecendo voar. Havia um cheiro de maresia, e um fedor de carne de galinha
saindo da casa de um granjeiro, no beco.
- Olá, cisne - disse. - Seguindo no mesmo rumo que eu?
- Não - eu disse. - Eu...
- Está bem, então eu sigo no seu.
Ele sorriu.
Caminhamos ladeira abaixo, para o porto. O sol batia em um dos lados da
rua, barrado no final por uma sombra diagonal. Havia pouca gente fora de casa,
um velho de muletas, maltrapilho, atravessava a rua. A cada penoso passo ele
batia o pé esquerdo no asfalto com um ruído raivoso. Ele parou na sarjeta e
esperou intencionalmente, impaciente, que passássemos. Daquele ponto alto
podíamos ver toda a cidade, um amontoado geométrico escuro, espalhado a
nossa frente sob o calor do verão. Felix parou, tirou uma ponta de cigarro de
sua caixa e a segurou pensativo entre os dedos, removendo pedaços de tabaco
da ponta enegrecida.
- Estive conversando com sua titia - ele disse. - Ela contou que você é um
mágico com os números.
Ele acendeu um fósforo e o segurou no ar, olhando para mim de lado.
- É verdade? - perguntou.
Lá no porto, uma sineta tocava e tocava. Eu podia sentir o sangue subindo
para a minha face. Continuei a andar rápido, e Felix me seguiu. Atrás de mim, o
aleijado bateu a muleta e, a não ser que eu tenha imaginado, riu.
Viramos na viela Goat. Felix já sabia se movimentar por aquelas ruazinhas.
Ele me guiou por um pátio ensolarado atrás de uma peixaria, e descemos por
uma escada estreita com degraus de pedra escorregadia. Um rato corria a nossa
frente, levando uma cabeça de peixe entre os dentes. Abruptamente saímos no
cais. O mar estava alto, batendo espalhafatoso no madeirame como as costas
curvas de um ser vivo. Um lanceiro de bronze, escuro e sem brilho sob a luz do
sol, apontava com o braço decidido na direção da estação ferroviária. Nós
cruzamos o cais. Atrás de nós podíamos ouvir a maré indo e vindo. Felix jogou
sua ponta de cigarro na água, e ela chiou baixinho. Sob a intensa luminosidade
de beira-mar o branco dos olhos dele ficava sujo e a pele em volta do olho
estava contraída como se puxada, e marcada por pequenas rugas, como trincas
na porcelana. A brisa trazia até mim lufadas de seu hálito, carregado com cheiro
do cigarro e o odor metálico de seu dente podre. Eu podia sentir também o
cheiro de suas roupas, sob o sol, a jaqueta brilhante, de colchetes, com os bolsos
fora do lugar e lapelas murchas, as calças sanfonadas e sapatos como lanchas.
- O sr. Kasperl andou perguntando por você - disse. - Queria saber quem
você era. Eu disse a ele. Falei: o garoto é um prodígio. Ele ficou interessado.
- Por que ele andou perguntando sobre mim?
- Hã? Bem, não sei. Apenas perguntou. Escute, ele é legal.
Continuamos a caminhar. Nossas passadas ecoavam nas tábuas alcatroadas, o
mar sugava e cuspia. Felix falava. Imitou vozes engraçadas, recordou casos,
contou histórias bizarras. Falou sobre a guerra, sobre os alemães e japoneses e
sobre as bombas de enxofre que foram atiradas em Dresden. Sabia todos os
fatos, os números. Ele parou de repente e fez uma pose, com uma das mãos no
coração e a outra apontando para o céu, e cantou alegre:

Oh, os judeus pregaram Jesus,


Mas Jesus ferrou os judeus!

Especulou a respeito do último segredo de Fátima, que é tão terrível que o


papa o mantém trancado em um cofre no Vaticano.
- Talvez - ele disse -, talvez tenha algo a ver com os três dias de escuridão que
vão avisar o fim do mundo, quando nada vai produzir luz, exceto as velas bentas
feitas de cera de abelha. - Ele bateu palmas e gargalhou. - Tire esta vela daí -
gritou. - Foi o que madre superiora disse para a freira.
Saímos do cais e caminhamos pela cidade. A rua principal estava animada.
Felix ria para tudo, como se tudo aquilo, as ruas, as pessoas, as vitrines das lojas
decoradas com espartilhos e ferramentas de carpintaria, tivesse sido disposto
unicamente para sua diversão. As donas-de-casa que faziam suas compras nos
olhavam com interesse. Todas conheciam Felix. Ele as saudava genialmente,
acenando e fazendo mesuras, tirando um chapéu de três pontas imaginário e ao
mesmo tempo fazendo comentários insolentes a respeito delas, como o canto da
boca. Passamos pelo depósito de malte, pelo lugar onde o rio Horse corre por
baixo da rua e chegamos ao nosso quarteirão. Paramos sob as árvores, perto do
bebedouro dos cavalos, um tubo de metal encimado por um cisne de ferro
pintado de branco, que lançava um jato fraco de água pelo bico enferrujado.
- Cisne - Felix falou, apontando. - Ha-ha.
Era ali que, há alguns anos, o anão costumava sentar em seu triciclo e
conversar comigo, passando a mão pelos cabelos oleosos é arrumando os
punhos imaculados de sua camisa. Felix encostou no bebedouro, braços e
pernas cruzados. De repente fiquei com vontade de contar alguma coisa para
ele, qualquer coisa, de fazer confidências; a urgência era tão forte que, por um
segundo, as lágrimas apontaram nos meus olhos e minha garganta ficou seca.
Ele estava me observando com um leve sorriso, os olhos entrefechados por
causa da luz.
- Acho que somos muito parecidos, sabe - ele disse -, você e eu.
Um bando de estorninhos levantou voo das árvores e passou por cima de
nossas cabeças com um farfalhar de asas, escurecendo o céu por um instante.
Minha mãe apareceu na porta da frente de nossa casa e ficou parada, as mangas
enroladas, nos vigiando. Felix enfrentou seu olhar severo com um sorriso
irônico apologético. Dei as costas para ela, que entrou novamente e bateu a
porta. Felix ergueu-se, espreguiçando. Ele estudou o céu, os telhados, o verde
delicado das árvores.
- Mas, falando sério, os números, sabe, isso é muito interessante. O sr.
Kasperl está muito interessado, é verdade.
Quando entrei em casa, minha mãe não falou nada. Subi para o meu quarto.
Meus livros, papéis estavam sobre a mesa, perto da janela. Eles tinham, de certo
modo, um ar cúmplice.

Depois disso, passei a ir regularmente a Ashburn. Minha presença foi aceita


sem comentários. Parecia que eu era parte da casa. Felix e eu jogávamos cartas
na mesa da cozinha e comíamos os ensopados de Sophie. Eu caminhava com
ela pelas redondezas ou explorava a casa. O sr. Kasperl não dava a mínima
atenção, a não ser quando, às vezes, nos defrontávamos cara a cara um com o
outro, de surpresa, e ele me dirigia um de seus olhares distantes, vazios,
franzindo levemente o cenho como se me reconhecesse vagamente.
Minha mãe agora queria saber onde eu passava tanto tempo. Ela preferia
quando eu me trancava no quarto, aquele silêncio sobre sua cabeça era menos
preocupante do que as ausências inescrutáveis. Mas em casa, nesta época, eu me
sentia como um exilado que voltara para uma visita breve, aborrecida. Como
tudo aquilo parecia pequeno, restrito. Em Ashburn o horizonte não conhecia
limites. Lá eu me movia em um novo meio, uma coisa densa, prateada, que
brilhava e piscava, nada a ver com o ar, mas com o fluido puro que mantinha as
coisas unidas e trêmulas, como a água jorrando de uma fonte.
Eu me dedicava a Sophie como a um dos difíceis problemas do sr. Pender.
Mas não conseguia resolvê-la. Havia uma falha nela, um detalhe fora de lugar,
que não permitia que a equação fosse solucionada, ela se mostrava na curva de
seus ombros, em seu rosto delicado, comprido, torto. Seu modo de andar era
um voo, um exercício de natação no ar. Ela favorecia o lado esquerdo, de modo
que, a cada passo, parecia a ponto de cair pesadamente para a direita, como se
houvesse coisas a clamar suavemente por sua atenção. Ela estava sempre se
movendo, sempre na minha frente, eu conhecia intimamente os buracos em
forma de concha de seus tornozelos, a porcelana fendida da parte de trás dos
joelhos, o lento bater de asas sincopado de suas omoplatas. Ela parecia
construída não por ossos, mas por alguma estrutura mais sutil. Seus polegares
eram superflexíveis. Ela podia pegar coisas com os dedos do pé. Tinha ataques
de violência lúdica, voltava-se subitamente em minha direção gargalhando e me
dava um empurrão ou me batia com força no ombro com seu pequeno punho
afiado. Tinha um jeito de repentinamente se enrijecer, com um soluço, e se
agarrar com os braços, como para prevenir uma explosão. Mesmo rígida ela
tinha repentes de excitação, como uma caçadora oculta atrás de um pilar com o
arco retesado. Ela era uma garrafa fechada, precária, cheia até a boca com tudo o
que tinha a dizer. Ela podia até não ser muda, estar só esperando, segurando o
fôlego. Sua surdez era como uma vigilância. Ela podia se fixar na coisa mais
trivial, com atenção total, como se qualquer coisa, a qualquer momento, fosse
começar a falar com ela, em voz baixa, saindo daquele imenso mar de silêncio
sem ondas no qual estava suspensa. Ela se comunicava com uma linguagem
aérea, sem substância, constituída não por palavras, mas por formas móveis,
transparentes e, ainda assim, precisas e aguçadas, como silhuetas de vidro no ar.
Quando eu estava longe dela, não conseguia entender como ela podia fazer
aquilo. Ela raramente recorria ao alfabeto de sinais e quando o fazia era com
impaciência, de cara amarrada, como se estivesse sendo obrigada a gritar. No
entanto, aqueles signos rápidos, hábeis, nunca deixaram de me surpreender e
impressionar. Eles pareciam ser uma espécie de truque com as mãos, astutos e
suavemente triunfantes. O sr. Kasperl, apesar de aparentar entender o que dizia,
mal respondia, ficava apenas parado na frente dela de cabeça baixa, olhando-a
sem expressão, com os pensamentos misteriosos, distantes. Felix apenas ria dela,
movendo os braços para afastá-la, como se ela estivesse fazendo exigências
absurdas a ele.
- Escutem ela falar! - dizia divertido. - Ela é louca, louca!
E ela ria também, em mímica exasperação, sacudindo o punho fechado na
cara dele.

Felix sempre estava ocupado, de uma forma vaga, acidental. Ele nunca
parecia terminar ou começar algo, dava a impressão de estar sempre no meio. As
chaves que ele estivera investigando na primeira vez em que vim a casa ficaram
semanas em cima da mesa da cozinha. Ele se levantava e ficava olhando para
elas, as mãos no bolso e o queixo enfiado no peito, e soltava um suspiro
engraçado, enfastiado, antes de perambular até alguma outra tarefa obscura. Ele
gastava horas rondando o andar de cima, fuçando nos armários e debaixo das
camas ou remexendo os guarda-roupas que ficavam, como largos sarcófagos, em
quartos de vestir úmidos e boudoirs desbotados, ainda abarrotados de roupas, as
relíquias roídas pelas traças de gerações de Ashburn. Ele resgatava partes de
roupas antigas - uma calça larga xadrez, um fraque embolorado, um boné de juiz
de críquete folgado - e as usava pela casa com pose estudada. Eu o encontrei um
dia no quintal, andando em volta das árvores com calça de tweed e jaquetão,
carregando uma espingarda enferrujada.
- Achei que seria bom dar uns tiros nos pássaros - disse. - Quer ser meu
ajudante?
Estivera chovendo, e agora um forte sol brilhava. As árvores molhadas
cintilavam. Caminhamos por uma trilha fustigada pelo vento. Havia vermes e
insetos por todos os lados, sob as folhas. Eu não tinha me livrado de uma certa
sensação de desconforto em sua presença. Sempre respondia a suas observações
com rapidez excessiva, ria com muita pressa de suas piadas, como se para
mantê-lo ao alcance da mão. Ele caçoava de tudo. Fazia caretas para o sr.
Kasperl, as costas dele, imitando seu andar de matrona. Atirava a cabeça para
trás e fingia rir alto, como se alguém houvesse dito algo incrivelmente
engraçado, até que Sophie, com a inépcia astuta dos surdos, começasse a rir
junto com ele; depois ele escondia o rosto com a mão, ocultando a face das
vistas dela e sorria, piscando para o sr. Kasperl e para mim. Mas não eram seus
gracejos que eu mais temia. Chegamos a um campo verde. As plantas brilhavam.
Um pequeno bando de cervos pastando nos viu e desapareceu silenciosamente
no bosque. Paramos, e Felix olhou em torno de si, sorridente.
- Isso parece um paraíso, igualzinho - disse. - Às vezes, penso se merecemos
este mundo. O que você acha, menino passarinho?
Ele riu e continuou a andar, carregando a espingarda na dobra do braço.
Caminhamos pela borda do campo até atingir a sebe alta e o rio. A casa estava
bonita, sob o sol, as janelas luzindo. Pássaros mergulhavam no ar claro, as
grandes árvores estavam paradas, como que ouvindo. Por um instante
experimentei uma felicidade pura, penetrante, incomensurável, efêmera como
um apagar de luzes. Um menino de entregas vinha pela estrada atrás de nós em
sua bicicleta, pedalando tranquilo, com só uma das mãos no guidão e os joelhos
para fora. Eu o conhecia. Seu nome era Clancy, um garoto baixo, musculoso,
com negros cabelos grossos e queixo pontudo, e um defeito em um olho. Ele
usava botas altas com abraçadeiras, e um avental comprido listrado. Fôramos
colegas de classe na escola, anos atrás. Ele era um ignorante e sentava sozinho
em uma carteira no canto. Os professores faziam gracejos a seu respeito,
mostrando seus cadernos para que víssemos suas lições desleixadas, enquanto
ele afundava no assento e olhava em volta ameaçador com o olho defeituoso.
De vez em quando, nessas ocasiões, ele não aguentava e chorava, lamentando-se
como um adulto, com dor e raiva, sufocando soluços irregulares e enterrando os
punhos cerrados no colo. Agora, ao me ver na sua frente, parou, brecando tão
abruptamente que a roda da frente de sua bicicleta entortou. Felix interrompeu a
caminhada e esperou, observando-o. Ele desmontou e cruzou a estrada,
andando pesada e vagarosamente, curvado, empurrando a bicicleta, franzindo o
cenho como se algum pensamento importante acabasse de ter ocorrido. A
bicicleta era uma máquina preta resistente, com rodas pequenas e grossas, tendo
na frente uma enorme cesta de vime cheia de pacotes.
- Você aí - Felix chamou arrogante. - Quem é você? Clancy parou e o fitou
com uma elaborada expressão de surpresa. Ele costumava esperar por mim no
caminho de casa, me jogar no chão e me socar, sentando em cima de meu peito
e bafejando seu bafo de fera na minha cara. Sua fúria sempre parecia uma
espécie de fracasso. Com o tempo, uma intimidade horrorosa, quente, cresceu
entre nós. Agora, completamente embaraçados, evitamos olhar um para o outro,
como se alguma vez tivéssemos cometido um pecado juntos. Ele abriu a boca,
fechou, depois tossiu e tentou de novo. Ele estava fitando a arma aninhada nos
braços de Felix.
- Do Walker, senhor - disse pesadamente. - Com as encomendas.
- Encomendas? - Felix indagou. - Que encomendas? Clancy começou a suar.
Lambeu os lábios e mostrou os pacotes na cesta.
- Estas, senhor. As encomendas que foram pedidas.
Felix voltou-se para mim.
- Do que é que esse cara está falando? - perguntou. - Você tem alguma ideia?
- As encomendas do armazém - Clancy falou, erguendo a voz. - As
encomendas que...
- Ah, do armazém - disse Felix, dando uma risadinha. - Entendo. Claro. Bem,
então você tem a lista aí?
- Como, senhor?
Felix olhou para o céu e suspirou.
- A lista, seu! A lista que foi entregue no armazém. Ela está aí com você?
Clancy piscou devagar e limpou o nariz nas costas da mão.
- Acho que tenho, sim - disse cauteloso.
Ele colocou a bicicleta em seu apoio, tirou um punhado de papéis amassados
do bolso do avental e começou a procurar tristonho, com o grosso polegar.
- Muito bem, leia isso, cara - Felix gritou. - Leia isso!
Um rubor escuro surgiu no rosto manchado de Clancy. Ele lambeu os lábios
de novo e debruçou-se sobre seus pedaços de papel, pesquisando com um olhar
apático, desesperançado. Felix grunhiu de impaciência.
- Vamos logo, cara! - repetiu. - O que há de errado com você?
Clancy, o rosto em brasa, olhou finalmente para mim, como um animal
ferido, furioso, em uma espécie de rogo. Ele não sabia ler. Passou um momento.
Eu desviei os olhos daquela expressão suplicante. Felix riu.
- Está bem - ele disse a Clancy -, pode ir. Leve as coisas pela porta dos
fundos.
Clancy enfiou os papéis no bolso, montou na bicicleta e pedalou em direção à
casa, recurvado sobre o guidão, como se enfrentasse uma ventania. Felix sorriu,
balançando a cabeça. De repente, ele jogou a espingarda para mim. O peso dela
me surpreendeu.
- Vá em frente, Barrabás - disse. - Comece a atirar.
VII

Os trabalhadores começaram a chegar na casa, sozinhos, com um punho no


bolso e um braço rígido balançando ou ombro a ombro em grupos silenciosos
de dois ou três. Eu e Sophie os observávamos das janelas de cima. Eles ficavam
cada vez menores conforme se aproximavam, como se estivessem entrando
chão adentro. Batiam uma vez na porta da frente e davam um passo atrás,
segurando os bonés nas mãos, muito pacientes, esperando. Usavam jaquetas
disformes, camisas brancas abertas no colarinho e calças encardidas. Seus rostos
e nucas reluziam, eu os vejo debruçados nas pias das copas exíguas ao
amanhecer, esfregando-se até se esfolar. Um deles tinha uma careca, rosa e
regular como uma tonsura. Eram trabalhadores da construção civil e biscateiros,
e uns poucos operários dispensados da olaria ou da fundição. O sr. Kasperl
entrevistava em uma das imensas salas vazias do andar de baixo. Ele sentava-se
em uma escrivaninha engordurada, revestida de couro, perto da janela,
brincando com um toco de lápis, enquanto Felix andava de um lado para outro
fazendo perguntas. Os homens, agrupados no centro, evitavam olhar um para o
outro, como se estivessem envergonhados. Eles tentavam mostrar-se
despreocupados, ajeitando os cintos e olhando em volta para as paredes
manchadas de umidade e cornijas deterioradas. Felix arengava jovial, como um
camelô de feira.
- Está bem, vamos, vamos lá - dizia -, mostrem seus músculos agora. Só
queremos tipos fortes, com vontade de trabalhar. Certo, patrão?
O sr. Kasperl olhava para ele em silêncio, girando o lápis em suas mãos
pesadas. Os homens sorriam e resmungavam, mexendo os pés.
No final todos foram contratados, mesmo aquele careca. Um dia cheguei e os
encontrei reunidos na frente da casa, com pás nos ombros, fumando cigarros e
cochichando entre si. Um caminhão com o motor ligado estava parado na
estrada, um modelo potente, alto, sem para-lamas, com um tipo de chaminé
apontando para cima. Ele tremia como um cavalo doente, soltando golfadas
negras de fumaça pelo escapamento. A tampa traseira estava salpicada de
esterco, marcas de uma vida anterior. Felix deixou o assento do motorista e
tocou os trabalhadores para dentro. Ele piscou para mim, e fingiu estar exausto,
baixando os ombros e deixando a boca aberta, caída para o lado. O sr. Kasperl,
com guarda-pó e galochas, parou na porta da casa e olhou em torno, para a
manhã clara, com olhar sinistro, desaprovador, e depois desceu os degraus com
seu jeito afetado e subiu, resmungando, na cabine. Felix engrenou a marcha e
girou o volante, e o caminhão foi embora vacilante, em uma nuvem de pó e
fumaça de diesel. Um dos trabalhadores, em pé na traseira, cambaleou, depois
sorriu timidamente e olhou fixo para a frente. O ruído do motor desapareceu na
direção de Coolmine, e o canto desavisado de um tordo, que estivera ali o
tempo todo, ergueu-se no silêncio.
Ficou uma impressão de espaço vazio no ar da casa. Galguei a escada como
se por uma corda subisse para o infinito. Sophie estava no alto da escada,
olhando para baixo, mãos no corrimão, o rosto suspenso como se se preparasse
para um salto, como um trapezista indeciso na hora do pulo. Vagamos pelo
sótão. Os pavimentos estavam tensos como trampolins sob nossos pés. Pensei
em todos aqueles quartos abaixo de nós, sem ninguém dentro, o céu cuidando
de sua vida enorme, furtivamente, nas janelas, o sol desenhando suas geometrias
complexas no chão empoeirado.
No quarto de Sophie, ficamos sentados na cama. Eu havia tentado ensinar-lhe
algumas coisas a respeito dos números ali, mostrando truques com palitos e
problemas de álgebra, esparramando meu dom a sua frente, na colcha. Eu
abrigava muitas esperanças. Como poderia ela resistir àquelas coisas, sua
simplicidade e elegância, a forma como, pouco a pouco, os modelos cresciam,
como cristais reunidos no ar claro, frio? Mas não adiantava, ela olhava para os
números e para mim, os olhos inexpressivos, o rosto uma máscara sorridente.
Seu silêncio era um tipo de ausência. Portanto, desisti. Agora ela se ajoelhara,
esticando-se para espiar pela janela redonda acima de nós. Havia trazido a caixa
de marionetes e as consertava, todas espalhadas no assoalho entre potes de tinta,
pincéis e vidros de cola. Ela bateu em meu ombro, querendo que eu olhasse
para algo na estrada. Quando me levantei, ela perdeu o equilíbrio por um
instante e caiu em cima de mim, em uma confusão de mãos e hálito e cabelo
emaranhado. Sua pele era fria: posso ainda sentir o calor de meu próprio rosto,
repentinamente corado, refletido em sua sobrancelha lisa e face sombria. Ela se
afastou de mim com uma risada curta, gutural. Ela me beijou, ou eu a beijei, não
sei, tão de leve, tão rápido que no primeiro momento pensei ter imaginado tudo.
Meu coração disparou, como algo balançando sobre uma borda, a ponto de cair.
Ela agora estava novamente ajoelhada na janela e olhava para fora. Ela se virou e
sorriu, desta vez não para mim, mas em direção a porta. Felix estava ali,
espiando nós dois com ar divertido.
- Por favor, não se levantem - disse malicioso. - Sou apenas eu.
Ele entrou no quarto, dando uma olhada lateral para as marionetes no chão.
Eu não ouvira a volta do caminhão. Suas botas estavam enlameadas e havia
pequenas listras negras, como restos de uma pintura de guerra, no queixo e na
testa. Ele disse:
- Droga de poço, cara.
Sophie o empurrava excitada até a janela. Ele veio e ficou em pé ao lado dela,
tentando ver o que mostrava. Lá embaixo, no cascalho a frente da casa, Jack
Kay estava parado, de chapéu e roupa de domingo, apoiado em sua bengala. Ele
olhava para o alto: fiquei pensando se ele poderia nos ver, três cabeças
amontoadas na pequena janela acima dele. Felix virou o rosto em minha direção,
um índio sorridente.
- Quem é esse aí, me pergunto - disse. - Parece familiar, creio.
Jack Kay estava subindo os degraus, e depois ouvimos as pancadas distantes
na porta da frente. Felix levou um dedo aos lábios. Ele se sentou na cama, e
Sophie ficou ajoelhada atrás dele, apoiada ansiosamente em seu ombro. Ele
procurou algo no bolso de sua jaqueta, depois tirou a mão e a abriu devagar. Um
pequeno camundongo marrom aninhava-se em sua palma, as patas e a ponta
rosa de seu focinho trêmulo. Ele virou para um lado e para outro, cheirando o
ar com pequenos movimentos de cabeça. Sophie, deliciada, tentou pegar o bicho
nas mãos, mas Felix o segurava no alto, fora de alcance, até que ela deu um pulo
e o capturou. Ela o ergueu na altura do rosto, e camundongo e moça estudaram-
se mutuamente. Depois ela se curvou para a frente com agilidade e tocou seus
lábios cerrados no focinho trêmulo, rapidamente. Felix riu.
- Ora! - gritou. - Olhem. A bela e a fera!
Jack Kay batia com força na porta da frente, lá embaixo. Felix deixou escapar
um suspiro.
- Já-vai, já vai! - resmungou.
Ele saiu e logo eu o ouvi falando com Jack Kay, na escada. A voz do velho se
erguera. Sophie sentou-se sobre os calcanhares, na cama, com o camundongo
no colo, alisando-o em movimentos rítmicos com a ponta dos dedos, da cabeça
à cauda, fazendo um sulco no pelo fino. A cada movimento suave, a abertura
rosada na ponta do focinho pontudo da pequena criatura se abria e fechava
úmida, por um segundo Sophie baixou a cabeça, o cabelo escuro caindo no
rosto. Sua unha, deslizando no pelo fendido, reluzia como uma conta
lubrificada. O quarto ficou em silêncio. Jack Kay gritava. A porta da frente
bateu. Sophie olhou para mim com um sorriso intencional, atenuado, como se
ela estivesse vagamente incomodada. O ratinho acomodara-se docilmente em
seu colo, palpitando. Dei um passo à frente, como se cambaleasse, e estendi a
mão para tocar a pequena criatura. Imediatamente ela pulou de seu colo e
escondeu-se embaixo da cama. Felix, entrando no quarto, disse despreocupado:
- Ah, você não sabe o jeito. Vamos ter que ensiná-lo, não é?
Ele agachou ao lado da cama e agarrou novamente o camundongo. Ele o
levou até a janela e olhou para fora
- Lá vai ele - falou. - Um velho rijo, devo admitir. Ele estava procurando
você, sabia, cisne? Eu disse para ele que nunca havia ouvido falar em você.
Nenhum Swan aqui, meu caro, eu disse. Aqui só temos gansos. Agi bem?
Ele olhou para mim, para Sophie e de novo para mim. Ficamos em silêncio.
Eu podia ouvir vagamente o som das botas de Jack Kay afastando-se no
caminho. Sophie levantou-se da cama, alisando a saia. Ela me olhou intrigada,
como se não pudesse lembrar direito quem eu era. Felix ofereceu-lhe o
camundongo, mas ela passou reto como um sonâmbulo, saindo do quarto. Ele
acompanhou sua saída e depois olhou para mim com malícia.
- São todas minhas criaturas - ele sussurrou alegre, revirando os olhos.
Ele abriu a mão e me mostrou o camundongo, esticado imóvel, de lado, as
patas da frente dobradas, uma bolha de sangue rubi em seu focinho.

Em casa encontrei Jack Kay sentado de lado na mesa da cozinha, branco de


raiva, um punho plantado entre as xícaras de chá e o outro agarrado no cabo da
bengala. Pela segunda vez na vida fora expulso de Ashburn Park. Quem eles
pensavam que eram, aquele gringo gordo e aquele outro, o filho da mãe ruivo?
Que direitos tinham eles? Olhou em torno, os nós dos dedos lívidos, desafiando
alguém a responder. Felix riu na cara dele... riu na cara dele, Jack Kay!
- Que vá para o inferno - ele murmurou grosseiro e bateu com a bengala no
chão.
Ele me fitou duro, com o olho vermelho e grunhiu, carrancudo. Minha mãe
estava quieta. Fora ela, é claro, que o enviara a Ashuburn. Agora fazia cara de
santa, pensativa. Ela serviu meu chá na mesa e ficou parada do meu lado,
irritada, e mesmo assim calma. Ela havia sentido naquele dia o toque de algo frio
e cruel, uma espécie de perversidade, como se uma doença houvesse se instalado
em seu corpo. Ela também havia perdido Ashburn pela segunda vez. Na
primeira, quando saiu de casa, e agora de novo, com a vinda do sr. Karperl e seu
amigo. Eles estavam tentando tirar-me dela também. Mas ele não iria permitir
que fizessem isso - não, não iria permitir! Sua mão tremeu, a xícara e o pires
balançaram, e ela sentou apressada, com um pequeno estalo.
VIII

Revivi aquele momento na cama de Sophie tantas vezes em minha mente que
os detalhes se gastaram, ficaram ocos, perderam a solidez. Apenas eu estava ali,
real, sempre intensamente presente. De repente, tive uma noção vivida de mim
mesmo. Eu fora suspenso, erguido no ar, como algo precioso, reluzente,
colocado com cuidadoso ritual em minhas mãos. Não era o beijo que importava
tanto, mas o que ele parecia significar. Um mundo se abrira a minha frente,
desordenado, perigoso e estranho, e pela primeira vez na vida quase me senti em
casa.
Quando encontrei Sophie de novo, porém, experimentei um choque
surpreendente. Ela era tão palpitante em minha imaginação que agora,
confrontada com sua pessoa real, como se eu acabasse de ter abandonado sua
cópia mais perfeita. Ela deve ter percebido um lampejo desse choque em meus
olhos, pois sorriu enigmática, virou-se e afastou-se lentamente, olhando para
mim por sobre o ombro. Foi naquele dia que ela me levou no quarto do sr.
Kasperl.
Eu não percebi que ela me levava para lá. Estávamos só andando sem destino
pela casa, como fazíamos sempre. Mas, quando ela empurrou e abriu a porta,
lembro que senti uma aflição vaga, quase agradável, como se estivesse sendo
seduzido, com delicadeza, gentilmente, para o mal. Ele não estava lá, tinha ido
para a mina. O quarto era grande, o teto alto, e estava cheio de mobília pesada,
feia; escrivaninha, cômoda e sua cama enorme, desarrumada. Havia uma
atmosfera abafada, vigilante, como se algo estivesse acontecendo e fosse
interrompido com nossa entrada. Estava chovendo lá fora, uma tempestade de
verão a ponto de desabar. Sophie foi até a janela iluminada e parou com a testa
encostada no vidro, olhando sonhadora para o mundo verde, líquido. Eu passei
os olhos pelos papéis do sr. Kasperl, espalhados na cama, livros, mapas
militares, plantas dos subterrâneos de Coolmine. Havia um caderno preto
grande, grosso como um livro de bruxaria, com uma capa gasta de pano e
páginas cheiras de orelhas. Eu o peguei negligentemente e o abri, e no ato ele
começou a falar comigo com uma voz forte, clara, familiar. Eu me sentei
devagar na beira da cama.
Era o trabalho de muitos anos. As páginas, uma após outra, estavam cobertas
de cálculos, diagramas, fórmulas algébricas, dispostas com uma letra miúda,
quadrada. Muita coisa eu não conseguia entender. Cálculos quaternários, teoria
das matrizes, números infinitos, eu mal havia ouvido falar naquelas coisas.
Percebi que tínhamos algumas coisas em comum, no entanto, uma afinidade
especifica por simetrias, por exemplo, por equivalências de espelho e séries
palindrômicas. Mas aquele era o jogo de um mestre, e eu era um iniciante. Que
intrincado, que elegante! Prossegui a leitura, enlevado. Tudo para lá da cama
tornou-se indistinto, como se um tipo de penumbra luminosa houvesse descida.
A garota aparentemente passeava pelo quarto, aqui neste instante, acolá no
outro, desaparecida depois, como uma enfermeira difusa vista da cama do
doente. Por algum tempo ela ficou parada a meu lado, o cotovelo
negligentemente tocando meu ombro, mas quando ela se foi era como se eu
tivesse imaginado tudo, aquele calor, sua sombra, as mãos largadas ao longo do
corpo. A tempestade caiu, os raios cortaram o céu, chocalhando a moldura da
janela. O ar tinha um brilho sulfúrico. Então, subitamente, houve calma de
novo, e olhei para cima, através da luz ondulante da chuva, encontrando o sr.
Kasperl parado na porta, a capa ensopada, me observando.
Ele entrou pesadamente no quarto, limpando a chuva da testa com um lenço
grande vermelho. Tirou a capa e, sem olhar para ela, passou-a para Sophie. A
chuva parou, e o sol surgiu repentinamente, com um silvo quase audível,
refletindo na janela. Fechei o caderno calmamente e o depositei de novo na
cama. O sr. Kasperl não me deu atenção, mas seu jeito não era inamistoso.
Sophie pegou um cabide para sua capa e a pendurou na janela para secar ao sol.
Ele andava para lá e para cá, pelo quarto, com seu passo lento, deliberado,
rolando sobre seus pés redondos. Ele abriu uma caixa de charutos que ficava em
cima da escrivaninha, escolheu um, sentiu seu aroma, cortou a ponto e o
acendeu. Eu pensei em sair de fininho. Ele cuidava de seu charuto sem pressa,
fazendo com que acendesse por igual, depois finalmente virou-se e veio na
direção da cama. Levantei. Ele parou, ainda sem olhar para mim, e jogou uma
conta no caderno preto, um olho semicerrado, como se fosse um alvo distante,
depois o pegou e folheou suas páginas. Achou o que procurava e voltou-se para
mim, indicando a página com o dedo. Era uma série de equações, elegantes,
porém enigmáticas, todas as soluções possíveis perdiam-se no infinito. Ele as
contemplou por um momento, com o que parecia ser um ar de satisfação,
depois depositou o caderno aberto na minha mão e afastou-se deixando fumaça
de charuto e um cheiro fraco de roupa molhada e carvão. Sente¡ de novo na
cama. Ele me olhou com seu sorriso fino, estreitando os olhos.
- Eu estava procurando por você, e você estava aqui no templo todo o tempo
- disse.
Ele acompanhou os movimentos de Felix, que entrava no quarto, uma das
mãos no bolso, coçando o saco. O sr. Kasperl passou por ele e saiu, suas costas
quietas curvadas contra a porta. Sophie virou-se para a janela novamente. Eu
afastei o caderno.

Jack Kay ficou doente. Ele sentava na beira de sua cadeira de balanço com
um cobertor cobrindo os joelhos. Estava resfriado, dizia, resfriado, olhando
ressentido para o sol que brilhava na janela da cozinha. Suas enormes mãos
brancas descansavam imóveis no colo, como um par de ferramentas grotescas
sem cabo. Ele não queria comer. Poças de pus começaram a surgir no chão, sob
a cadeira. O médico foi chamado e o mandou para a cama. Nós o carregamos da
cadeira, meu pai, tio Ambrose e eu, e o levamos para cima. Ele se apoiava em
nós completamente, como uma grande estátua de gesso, mudo e furioso. Ele era
inexplicavelmente leve. Os anos haviam trabalhado dentro dele em silêncio,
esvaziando-o. Nós o pusemos na cama, apoiado em uma pilha de travesseiros, e
demos um passo para trás, esfregando as mãos. Ele nos olhou apavorado, como
uma criança, a boca em movimento, os dedos agarrados nos cobertores
dobrados sobre o peito, como se eles fossem a beira de um parapeito sobre o
qual ele estivesse escorregando vagarosa e inapelavelmente. Alguns dias, disse o
medico, uma semana no máximo. Mas as semanas passaram e ele ainda estava lá
deitado, olhando a luz na janela, o céu sub-reptício. Ele não falava com
ninguém, curtia sua raiva em silêncio, como um homem traído. Ficou com
escaras. Eu tinha que virá-lo de lado enquanto minha mãe o untava com
pomada. Sua pele estava seca, porém macia, como um papel de embrulho com
algo mole por dentro, e eu pensei naqueles pacotes moles que minha mãe me
fazia carregar do açougue até em casa, quando eu era criança. Na cama estreita
ele parecia enorme, apesar de frágil, um grande casco morto, descorado, dentro
do qual o homem vivo ainda se escondia, olhando com olhos em pânico, de
certa forma surpreso. O verão estava terminando, mas o tempo continuava
quente, como que para zombar dele. Sua mente começou a devanear. Ele ficava
horas deitado falando sozinho, em voz baixa, furioso. De vez em quando gritava
subitamente, e se jogava de um lado para outro, agarrado nas cobertas, como
um bêbado cambaleante tentando se erguer e lutar. Um dia ele caiu da cama, e
nós o achamos no assoalho, no meio dos lençóis, mexendo os braços
fracamente, como se afastasse um atacante. Seu penico havia virado.
- Olhe o que você fez - minha mãe disse. - Olhe só uma coisa!
Ele a encarou desconfiado, atônito, temeroso.
- Mãe - ele disse rouco -, você está ai, mãe?
Ele grunhiu. Não havia como sair da confusão imensa em que se encontrava.
Ele permitiu que o puséssemos na cama e recostou-se nos travesseiros, débil.
Voltou os olhos para a janela e uma lágrima grossa, lúgubre, correu por sua
têmpora, por sobre a veia vivida, pulsante.

No enterro minha mãe não chorou. Ela acompanhou com interesse


melancólico quando o caixão foi baixado na cova. Meu pai ficou do lado,
passando a mão na gravata. A sombra violeta de uma nuvem escurecer: um
riacho distante. Na fímbria do pequeno grupo de acompanhantes uma figura
surgiu, meio oculta pela série de lápides, as mãos nos bolsos, uma mecha de
cabelo ruivo estendida sobre a testa estreita. Ele sorriu para mim, piscou e fez
um breve sinal, erguendo três dedos e simulando uma espécie de rápida bênção.
Atrás dele um serafim manchado encimava a cena com asas de mármore
estendidas.
IX

São estranhas as paisagens que ficam na memória, aquele velho quadro,


escolhido por seu plano de fundo, as distâncias ao crepúsculo, com rios cheios
de curvas e penhascos cobertos de musgo marrom e pequenas figuras
fantasiadas fazendo coisas inexplicáveis, muito longe. Hoje, quando penso
naquele outono, vejo de estalo o depósito de malte, não sei por quê. Era uma
fortaleza de pedra cinza, com telhado de ardósia e uma fileira de janelas
pequenas, gradeadas, altas, sob o beiral. Através de uma abertura nos arcos de
entrada saía um guindaste, como uma forca complicada. O malte ficava ali para
secar, antes de ser enviado para as cervejarias. A fumaça insinuava-se pelas
janelas, noite e dia, e o cheiro do grão que secava, azedo como cerveja,
impregnava o ar. O serviço de meu pai devia obriga-lo a ir lá com frequência,
apesar de eu nunca tê-lo visto - na verdade, agora que penso nisso, nunca vi
ninguém por lá. O lugar onde ficava era conhecido como Folly, uma esquina
fustigada pelo vento, entre os fundos de duas ruas pequenas. O ambiente
carregava um ar melancólico e uma espécie de sabedoria fatigada. Outubro ali
sempre parecia nublado e firo. Folhas secas, como as mãos de pianistas mortos,
deslizavam pelos andares com um ruído de raspagem. O vento sussurrava nas
árvores, e painéis de nuvens pálidas, flocadas, entravam em silêncio por um
retângulo inclinado de céu. Um cachorro está latindo ao longe, algo range
monótono e eu paro e espero, como se tudo estive a ponto de se reunir e se
dirigir a mim.
A escola agora era grotesca, um transe absurdo e vergonhoso. Eu havia
ultrapassado tudo isso, o barulho, os cheiros, o tédio. Todas as tardes, quando
tocavam a sineta, eu ia imediatamente para Ashburn. Em Coolmine, o portão
havia sido consertado e um sinal de aviso fora pendurado, com um crânio e dois
ossos cruzados desenhados. Eu podia ver, da estrada, os homens trabalhando na
beira do poço da mina, correndo como formigas. Às vezes via também o sr.
Kasperl andando de um lado para outro ou junto com Felix, estudando mapas
abertos na traseira do caminhão. As velhas não podiam mais entrar para pegar
carvão; eu iria encontra-las, com seus rostos sujos e suas pernas pesadas
cobertas de farrapos, vagando atordoadas pela estrada, perto da nova cerca de
arame farpado.
Conforme o ano ia escurecendo, a casa se tornava mais sombria, rígida contra
o céu cor de faca, um bando de corvos cansados voando em torno das
chaminés. As primeiras tempestades da estação limparam metade das árvores do
parque, abrindo horizontes inesperados. Ficar dentro de casa era como estar a
bordo de um grande navio, no mar. As janelas, em suas molduras empenadas,
batiam e estalavam, e uma névoa cinza, oceânica, banhava o forro. Debaixo dos
estalos, dos rangidos, havia um silêncio profundo, submarino. Aquele era o meio
de Sophie. Era como se algo fosse deixado desligado, como as luzes da casa de
um cego. Ela ficava tão quieta que era difícil encontrá-la. Eu podia subir
furtivamente para o andar de cima, vagar pelos corredores, o coração batendo
descontrolado, e dar com ela em um dos quartos, parada imóvel na janela, os
braços cruzados e a testa apertada contra o vidro, tão rígida que parecia que ela
estava ali há horas, sem se mexer. Ao sentir minha presença atrás de si, virava
devagar e sorria devagar, piscando seus olhos escuros de boneca.
Também com frequência eu a encontrava com o sr. Kasperl, sentada
calmamente em seu quarto, em uma velha poltrona, as pernas dobradas embaixo
do corpo e as mãos descansando no colo, como um par de pássaros pálidos,
enquanto ele ficava na cama lendo ou trabalhando em suas plantas. O quarto era
escuro e quente, como a toca de um grande carnívoro indolente. Ele ficava de
camiseta, o cordão da bota desamarrado. Ele mal me notava. Seu silêncio era
profundo, um lugar distante onde ninguém podia segui-lo. De vez em quando
ele trabalhava no seu caderno. Franzia o cenho, imóvel em cima de uma página,
por longo tempo, para depois se curvar para a frente repentinamente e escrever
uma ou duas linhas, fungando, apertando a caneta com força, com exatidão
implacável. Ele permitia que eu olhasse algumas coisas, certas minúcias
insolúveis, mas de forma tão casualmente elaborada, indireta, que tudo pode ter
acontecido por acidente. Ele deixava o caderno aberto perto de mim e se
afastava, passeando de um lado para outro do quarto, enquanto eu examinava
avidamente o ponto em que estivera trabalhando. Era sempre algum paradoxo
ou tautologia. Ele ficava fascinado com coisas para as quais poderia haver, no
máximo, um resultado inconclusivo. Estranhas geometrias o divertiam, mundos
curvos onde nenhum paralelismo era possível, onde não havia infinitos, onde
todas as perpendiculares a uma linha se encontravam em um local absurdo. Ele
vinha e ficava parado a meu lado, estudando aqueles estranhos axiomas,
arquejando, flexionando suavemente os dedos grossos, e eu tinha a impressão de
ouvir, bem no fundo, uma risada fraca, sinistra.
Eu saía desses momentos com uma espécie de febre, a cabeça latejando,
como de uma orgia. As coisas tremiam e balançavam continuamente, com um
brilho fosforescente. Os detalhes se separavam de seus fundos indistintos, como
que subitamente focalizados por lentes, e avançavam ansiosos, com insistência
muda, sugerindo a mim significados amplos, misteriosos. Um raio de sol em um
alto muro branco, trepadeiras apontando nas janelas de uma casa em ruínas, um
cachorro na sarjeta cheirando cuidadosamente um pedaço ensopado de jornal,
tais coisas me atingiam com estranha força. Elas eram como lembranças, mas de
coisas que ainda não haviam acontecido. Ao atravessar a cidade a caminho de
casa, naquelas noites enfumaçadas de outono, passando por bares iluminados e
trabalhadores das fábricas de bicicleta- a bonomia quase sinistra dos lojistas
gordos sentados à porta -, eu sentia um arrepio de antecipação, não por aquilo
que me aguardava agora, a aconchegante inutilidade do lar, mas pelo mar vasto e
perigoso que se estendia todo a minha frente, cintilante e vagamente móvel,
misterioso em sua distância.

Em uma tarde de novembro vi o carro de tio Ambrose chegando pelo


caminho, em Ashburn. Eu me escondi atrás de uma árvore até que ele passasse.
Quando cheguei em casa ele estava lá, sentado empertigado à mesa, olhando em
torno de si com um sorriso atônito, sua pequena cabeça brilhante balançando
vagarosamente e seu pomo-de-adão proeminente.
- O quê? - meu pai estava dizendo, com aquilo que nele servia de risada. - Um
chofer?
Tio Ambrose concordou, ainda sorrindo meio confuso, surpreso com sua
própria audácia. Ele disse:
- De Ashburn até Black, apenas, e depois até a mina.
Minha mãe havia parado atrás dele e olhava fixo para sua nuca.
- O quê? - ela disse ríspida. - O quê? Quando vai ser isso?
Tio Ambrose esticou o queixo para a frente, enfiando um dedo pelo
colarinho da camisa.
- Ora, todo dia - disse. - segunda a sexta. E tenho que levá-lo de volta para
casa a noite.
- Para casa - minha mãe disse. - Ah!
Ele começou o serviço imediatamente. Chegava em Ashburn as nove em
ponto, todas as manhãs, e estacionava perto da porta da frente, com um toque
discreto na buzina. Ele não se aventurava dentro da casa, só ficava esperando
pacientemente no carro, sentado imóvel atrás do volante, olhando impassível
pelo para-brisa, com um ar de desinteressada retidão, que ele usava como se fora
um uniforme. Frequentemente transcorria mais de uma hora até que o sr.
Kasperl aparecesse. Tio Ambrose não ligava. Não havia lugar onde ele se
sentisse melhor do que em seu carro. Era um sedã preto enorme, dos antigos,
com um capô comprido inclinado e traseira curva, como um carro funerário.
Umas poucas vezes, no final da tarde, quando retornava mais cedo da mina, ele
parava - devia ser por ordem do sr. Kasperl - e me pegava na saída da escola, a
caminho da casa. Eu sentava no banco de trás com o sujeito gordo, a pasta presa
sobre os joelhos. Ninguém falava. O sr. Kasperl olhava pela janela, fumando um
charuto, os braços dobrados e as pernas robustas cruzadas. Aqui e ali eu flagrava
os olhos de tio Ambrose no espelho retrovisor, e imediatamente nós dois
desviávamos a vista, em um sobressalto de culpa. Ele guiava bem devagar,
virando o volante com extrema atenção, como um arrombador de cofres. A
cada mudança de marcha ele segurava a embreagem por um instante e o carro
dava um tranco leve, breve, e o sr. Kasperl era erguido alguns poucos
centímetros e depois depositado suavemente no assento alto e macio. Assim que
parávamos na casa, tio Ambrose saía e dava a volta, com um movimento
contínuo, girando sobre os calcanhares no cascalho para abrir a porta do sr.
Kasperl, enquanto eu descia pelo outro lado e subia os degraus. De vez em
quando Felix fazia com que ele me levasse até em casa. Essas jornadas eram as
piores. Eu sentava no banco da frente, suando, enquanto tio Ambrose agarrava-
se ao volante em exasperado silêncio, como um gago encrencado no meio de
uma palavra.
Felix pouco andava de carro, preferindo caminhar, mesmo no frio do
inverno, com as mãos nos bolsos e o casaco aberto esvoaçando. Mas ficou
maravilhado com tio Ambrose e o estudava entusiasmado, aquele homem
grande, moreno, aquoso, com seu sorriso constrangido, seus ternos justos e sua
aura de talco e dor. Nas manhãs em que o sr. Kasperl estava atrasado, Felix
descia e se debruçava na janela do carro, provocando-o jovialmente, com
piscadas marotas e socos. Tio Ambrose respondia com um sorriso tonto,
apavorado, balançando a cabeça e resmungando. Felix virava para mim com
olhos arregalados de fascinação zombeteira.
- Quantos parentes você tem! - disse. - Puxa, eles estão por toda parte.
Tia Philomena não sabia se ficava com inveja de tio Ambrose ou orgulhosa
dele. Ambrose, em Ashburn! Quem poderia imaginar isso! Encorajada pela
situação, ela intensificou seus ataques ao isolamento pétreo do sr. Kasperl, em
vão; ele sentava sozinho com seus pensamentos na janela do salão de jantar,
como sempre fizera, ignorando a presença de quem quer que fosse. Ela tentou
Felix, em seguida, esperando por ele em recantos remotos do hotel, sentando-se
aprumada com o pescoço esticado e os lábios comprimidos, com uma xícara de
café perto do cotovelo, um cigarro com dois centímetros de cinza presos com
força entre dois dedos contraídos, trêmulos. Felix a escutava atento, com um
sorriso brando, sonhador.
- Ah, o Ambrose! - ela dizia, com um suspiro de desprezo. - As coisas que eu
poderia lhe contar sobre o coitado do Ambrose...
E ela seguia em frente, num tom esganiçado de sinceridade veemente,
enquanto a nata se formava em seu café com leite e o cinzeiro na mesa baixa á
frente dela desabrochava em um buquê de pontas encarnadas, as maiores delas
separadas por Felix, que as guardava com cuidado em sua lata de tabaco.

O estúdio fotográfico, uma tarde de inverno, o gás aceso assobiando. Eu


gostava dali, a desordem, o silêncio, o cheiro dos produtos químicos, a luz difusa
que parecia, nesta época do ano, vir do teto, um elemento denso, estranho,
como uma névoa tênue, ali outro mundo espalhava-se em volta de mim, uma
confusão de imagens. Quão nítidas elas eram, quão claras, aquelas cenas da terra
dos mortos. Eu as examinei detidamente, uma a uma, como se procurasse
alguém conhecido, um rosto familiar, com sorriso anuviado e trajes estranhos,
olhando para cima, em uma mesa de piquenique, no verão, sob o sol, entre as
árvores. Eu não teria ficado surpreso, creio, se o rosto fosse o meu próprio, tão
real aquele mundo parecia ser, ao contrário do outro, de certa forma tão fugaz.
Sophie, sentada perto do aquecedor a gás, voltou seu olhar para a porta, com
um sorriso de expectativa. Eu não tinha ouvido nenhum som. Felix entrou.
- Olá, Hansel - disse. - Ora, e Gretel, também!
Ele olhou para um e para outro, rindo. Carregava um vestido branco dobrado
volumosamente nos braços.
- Vejam o que achei - ele disse.
Era um vestido de noiva, profusamente bordado, a seda grossa puída e
manchada pelo tempo. Sophie, com um gritinho alegre, levantou-se e o pegou,
colocando-o contra o corpo rindo, virando de um lado para outro. Felix levou a
mão ao coração e gritou:
- Ah, tu, ainda intocada noiva da quietude!
Ele mostrou um véu branco esburacado e o colocou em sua cabeça com uma
mesura. Ela riu de novo, a língua enrolando no lábio inferior, e saiu correndo do
quarto. Nós a ouvimos subir a escada e passar pelos quartos, em busca de um
espelho. Felix sorriu e aproximou-se do aquecedor a gás para esquentar as mãos,
que esfregou na frente da chama, os olhos voltados para a janela. Uma rajada de
chuva bateu no vidro com um estalo abafado. As gralhas discutiam do lado de
fora, nas árvores escurecidas. Ele cantarolou a marcha nupcial, sorriu para mim
por cima do ombro e cantou suave:

Lá vem a noiva
Louca para dar...

Ele riu de novo e vagou pelo quarto, negligente, pegando coisas e largando-
as em seguida. Ele me olhou de lado e disse:
- Em que você esta pensando, menino passarinho?
- Em nada.
Eu estava pensando que sempre teria um pouco de medo dele.
- Nada, hem? - ele disse. - Bem, isso é mentira, eu sei. Você está pensando
em sacanagem, não está?
Ele fez uma cara safada, uma mesura, e deu uma cambalhota, gemendo
suavemente. Eu fui obrigado a rir. Sophie voltou, arrastando atrás de si o baú
com as fantasias, que tirava do armário embaixo da escada. Ela estava usando o
vestido de noiva por cima da saia e tinha colocado uma cartola amassada que
Felix encontrara no sótão. O vestido era pequeno demais para ela, e ficou torto,
repuxado nos quadris, os punhos e tornozelos aparecendo. Ela remexeu o baú e
retirou de lá um fraque e uma calça cinza listrada, oferecendo-as a mim. Mas
Felix tinha outros planos. Ele fez um sinal rápido, ela riu, tirou o vestido e o deu
a ele. Ele se virou para mim.
- Vamos lá, Doçura -, você vai ser a noiva.
Eu me afastei, mas ele me seguiu, rindo, e enfiou o vestido, como se fosse
uma rede, por cima de minha cabeça. Eu tremi com o deslizar da seda fria. Das
dobras e pregas ocultas saiu um cheiro de cânfora e cera, e de algo mais
irreconhecível, um odor de mulher, fraco, antigo. O corpete apertava minhas
axilas, as saias justas envolviam meus joelhos. Sophie ria e batia palmas.
- Salve! - Felix gritou. - Salve, vagina coeli!
Ele ajeitou o véu em minha cabeça, e Sophie arranjou um batom e pintou
minha boca, franzindo concentrada as sobrancelhas e mordendo a ponta da
língua. Ela remexeu novamente o baú e tirou um par de sapatos requintados,
brancos, de salto alto. Ela se ajoelhou na minha frente e tirou os meus sapatos, e
sorriu para mim, segurando meu calcanhar úmido com a mão.
- Viva! - Felix gritou. - O sapato serve!
Eu arrisquei avançar, instável nos sapatos de salto, as pernas bambas. Eu me
sentia quente e frívolo. Um espasmo de excitação me sacudiu, uma mistura de
prazer e incômodo. Era como se, dentro daquele vestido, estivesse uma outra
pessoa, e não eu, algum outro corpo, moldável, disponível, completamente a
minha mercê. Cada passo trêmulo que eu dava era igual a uma contorção
espasmódica de um cativo que eu prendesse com força junto a meu coração
impiedoso. Percebi minha imagem refletida em um pedaço de espelho partido
pendurado na parede, e por um segundo uma outra pessoa olhou para mim,
confuso e rindo alucinado, por detrás de meu próprio rosto.
- Radiante - Felix disse, levando as mãos ao peito. - Simplesmente radiante.
Sabe, a própria srta. Havisham não ficaria tão atraente.
Sophie vestiu o fraque e inclinou a cartola em um ângulo gracioso, dando o
braço para mim. Felix curvou-se a nossa frente, abençoando o ar e
murmurando.
- Em nome do punheteiro, do sodomita e do porco santo, eu os declaro
malandro e mexeriqueira. Aleluia. O que o cão uniu, que os homens não joguem
um balde d' água em cima.
Ele curvou-se novamente, solene, e fechou os olhos, movendo os lábios em
uma invocação silenciosa, depois deu as costas para nós e, erguendo os braços
para cima, entoou:
- Hic est hocus, hoc est pocus.
E peidou alto.
- Nunc dimittis. Amém.
Sophie puxou meu braço bem para perto de si e encostou a cabeça na minha,
sacudida pelo riso. Fiquei da mesma altura que ela, com meus sapatos de salto.
Senti seu perfume morno, lilás. Felix esfregava as mãos.
- É isso aí - ele disse. - Agora vamos tirar a foto.
Ele trouxe uma câmera de madeira, com um tripé, e a colocou a nossa frente;
curvou-se e espiou pela lente, mexendo o traseiro e batendo os pés.
- Olha o passarinho! Clic! Pronto.
Jogou a câmera para o lado e saiu dançando em direção à porta.
- Vamos, pessoal - gritou. - Vamos, Cinderela, vamos dançar agora!
Ele abriu a porta e foi para o hall com os braços erguidos, regendo a si
mesmo.

Tum tunti tum!


Tum tunti tum!
Eu cambaleei para a frente, torcendo a canela. Sophie, tonta de alegria,
segurava meu braço. Achei que nós dois iríamos cair. Eu virei a cabeça e a beijei
rapidamente, desajeitado, no canto da boca. Ela riu, com seu hálito quente em
meu pescoço.
- Ahá! - disse Felix, sacudindo o dedo em riste.- Nada de beijocas! Das ist
verboten.
Ele pulava na nossa frente, cantando e balançando alucinadamente os braços.
Atrás dele, um sujeito com sobretudo de lã de camelo saiu da biblioteca e parou,
olhando fixo para nós. Sophie enterrou as unhas no meu braço. Felix parou ao
perceber o silêncio e olhou para trás, seu sorriso transformado em uma careta.
Ele baixou os braços.
- Ora - disse por entre os dentes -, se não é o Príncipe Encantado!

Era um sujeito alto, magro, moreno, com ombros largos e pés pequenos, e
uma cabeça pequena, lisa. Usava óculos de lentes grossas, que faziam com que
seus olhos parecessem arregalados de surpresa. Tinha um imenso nariz pálido, e
um pequeno bigode negro como uma impressão digital borrada. Seus sapatos
pretos, caros, de bico fino, haviam sido engraxados até brilhar. O sobretudo
castanho parecia estranhamente lotado, como se alguém alto estivesse agachado
dentro dele, com um companheiro pequeno, autoritário, sentado sobre os
ombros. Lutei para tirar o vestido e escondê-lo atrás de mim. Ele olhou dos
meus pés descalços para a cartola de Sophie, as sobrancelhas erguidas, depois
encarou Felix e disse:
- O sr. Kasperl.
Felix fez uma espécie de mesura contorcida, rindo ofegante e esfregando as
mãos.
- Ah, não - disse - Não sou o sr. Kasperl.
Os olhos arregalados se arregalaram mais.
- Quero dizer, onde está ele? Sei quem você é.
Feliz curvou-se novamente e riu.
- Ah, entendo - disse. - Bom, ele está na mina, acho.
Houve uma pausa. O jovem alto enfiou a mão no bolso do sobretudo e olhou
para o hall.
- Na mina, é? - disse.
Ele parecia cético. Seu olhar pousou nas tiras penduradas de papel de parede
e ele franziu o cenho. Virou-se para Felix.
- Você sabe quem sou?
Felix sorriu solicito.
- Sim, acho que...
- Meu nome é D'Arcy. Estou aqui representando certos interesses. Você
entende?
- Certos?...
- Isso. Certos grupos. Acabei de chegar.
Ele manteve os olhos de peixe presos em Felix, por um instante, com uma
expressão dura, reveladora. Felix tremeu. Houve outro período de silêncio.
Sophie se mexeu e deu um pequeno suspiro, largando meu braço.
- Muito bem, então - D'Arcy disse, repentinamente ríspido -, vamos dar uma
olhada por ai, está bem?
Ele girou nos calcanhares e atravessou o hall. Felix fez uma careta nas suas
costas, balançando a cabeça e rindo, a língua para fora. Sophie passou por ele e
seguiu D'Arcy até o estúdio.
- Opa! - Felix disse. - Salve o servo do Senhor!
No estúdio, ela já estava abrindo as janelas. Virou para D'Arcy com um
sorriso radiante, como se tivesse deixado que a luz entrasse só para ele. D'Arcy a
examinou indeciso.
- E você, qual é seu nome?
Ela deu de ombros, ainda sorridente. Felix tossiu, pôs a mão na boca e disse:
- Surda, eu acho.
Uma ruga surgiu na testa lisa e pálida de D'Arcy.
- Surda?
Felix fez que sim, com ar triste.
- Como uma porta. Muda, também.
D'Arcy olhou para mim.
- E?...
Felix concordou de novo.
- Muito triste - disse. - Muito triste.
D'Arcy olhou para ele intrigado, por um momento, depois virou-se
abruptamente e saiu do estúdio. Sophie o seguiu imediatamente. Felix, curvado
pelo riso silencioso, agarrou meu braço.
- Ora, ora - sussurrou - Mas que idiota!
Mas ele não estava tão alegre quanto demonstrava.
D'Arcy tinha ido para cima, com Sophie nos seus calcanhares. Nós os
seguimos. D'Arcy passava de um quarto para outro, distribuindo olhares de
desaprovação para a poeira e a bagunça, torcendo o nariz.
- Vocês vivem aqui? - perguntou incrédulo.
Felix apontou para o teto.
- Lá em cima.
- Onde?
- No sótão. Esta casa tem muito espaço.
Ele riu. O olhar de D'Arcy foi frio.
- É mesmo? - disse.
- Mais arejado, sabe? Tem uma vista linda. E estrelas à noite, como... como...
D'Arcy caminhou até a janela e parou, olhando o crepúsculo, as mãos para
trás. Atrás dele, Felix fazia mais uma careta grotesca, pondo os polegares nas
orelhas e mexendo os dedos, mostrando a língua. Sophie fez uma expressão de
censura.
- Isso não está certo - D'Arcy murmurou, como que para si mesmo.
- Isso não está nada certo.
Ele se voltou para Felix.
- É mesmo? - falou. - Nada foi feito, nenhum conserto, sujeira por todo lado,
pessoas andando por aí descalças maltrapilhas.
Felix sorriu, mostrando as mãos vazias.
- Não é o paraíso, posso garantir - ele disse. - Mas serve para nós, senhor.
- Não estou interessado no que serve para vocês - disse D'Arcy, com um olhar
terrível.
Nós todos descemos novamente, acompanhando D'Arcy. Ele parou no hall e
tirou os óculos, limpando a lente com um lenço branco imaculado. Os olhos
voltaram para as órbitas, duas contas pequenas, vivas. Ele nos observou míope,
as lentes brilhando em suas mãos.
- Soubemos de algumas coisas - ele completou. - Comentários a respeito de
dinheiro, algum tipo de jogada por fora. Vou investigar tudo.
Colocou os óculos solenemente e olhou duro para cada um de nós.
- Você vai ouvir falar de nós, pode ter certeza.
Caminhou em direção à porta da frente. Sophie chegou lá antes dele e abriu-a
devagar, sorrindo ansiosa na sua frente. Ele evitou seu olhar e saiu para a noite
úmida. Seu carro esperava na entrada, uma máquina grande, moderna, dourada,
o teto pontilhado de gotas de chuva. Ele abotoou seu sobretudo.
- Diga para o sr. Kasperl - falou por cima do ombro - que ele vai ter notícias
nossas.
- Ah, digo sim - Felix falou sério. - Eu digo a ele.
D'Arcy demorou-se, observando o fraque de Sophie, o sorriso atento de
Felix, os restos de batom na minha boca. Ele estava a ponto de dizer mais
alguma coisa, mas uma gota gorda de chuva da calha por dentro do colarinho
fez com que se arrepiasse, as omoplatas movendo-se como asas. Ele deu as
costas e desceu rapidamente os degraus. Sophie acenou até que as luzes traseiras
do carro sumissem na estrada. Felix fechou a cara, batendo o punho fechado na
palma da outra mão.
- Como ele chegou até aqui - resmungou -, aquele...
Ele percebeu que eu o observava e sorriu.
- Encrenca à vista, hem? - ele disse, piscando. - Para mim e para eles, também.
X

Sonhei com D'Arcy, uma figura imensa descendo lentamente por um buraco
no telhado de Ashburn, envolto em seu luxuoso sobretudo castanho, e os olhos
arregalados fixos e os braços presos ao peito. A chuva caía com ele pelo buraco,
e passarinhos mortos e galhos e pedaços de papel. Pensei: agora tudo vai mudar,
vai acabar. Mas nada aconteceu. Um dia chegou uma carta para o sr. Kasperl,
dentro de um envelope branco grosso, com o nome de D'Arcy e o endereço de
uma firma de advocacia impresso na aba. Felix o segurou junto e o sacudiu com
força, zombando do medo. O sr. Kasperl o leu, impassível, e o jogou em um
canto. Sophie o guardou com respeito. No meio das marionetes enfeitadas ao
longo da parede de seu quarto, havia uma que ganhara um sobretudo, óculos
pintados na cara e uma peruca rudimentar de lã preta colocada na cabeça.
Minha mãe ficou sabendo da visita de D'Arcy pelo tio Ambrose. Ela sacudiu
a cabeça, desconsolada. Ele logo vai acabar com eles, disse. Se vai. Ela olhou em
volta pedindo aprovação, depois fechou a cara e virou de costas. Todos estavam
contra ela. Primeiro tia Philomena havia desertado, depois tio Ambrose. A
morte de Jack Kay também fora uma traição. Agora ela estava sozinha. Ela
nunca mencionava Ashburn ou seus inquilinos pelo nome. Era sempre aquele
lugar e eles, a boca rígida empalidecendo. Então as pessoas ficavam em silêncio e
olhavam para as mãos, como se ela houvesse dito algo insensato ou inadequado,
e todos tivessem ficado sem graça. Por que eles não conseguiam entender? Algo
estava sendo destruído, pisoteado. Ela pensava no passado. Quando era menina
havia trabalhado em uma loja de tecidos na cidade. Fora feliz naquele santuário
sombrio. A textura rústica da vida que ela conhecera em Ashburn, na pequena
casa, dera lugar ali à suavidade das sedas e fazendas. Os balcões envernizados, o
acabamento em latão, mesmo os espelhos, tudo tinha um toque de cetim para
seus dedos, fresco e suntuoso. Ela gostava mais do começo da tarde, quando a
loja ficava calma, e ela livre para ficar simplesmente parada no meio de toda
aquela paz, escutando as vozes rápidas das outras balconistas fofocando na
seção de linhos, enquanto o dono, no fundo da loja, um sujeito gordo de óculos,
tirava peça após peça de tecido e alisava o pano com o movimento hábil da mão
branca, olhando por cima dos óculos para a freguesa a sua frente, parada, com
meias tricotadas e touca emplumada, resmungando pensativa, um dedo apertado
contra o queixo. Mas ela também apreciava as horas extras aos sábados, quando
tudo era barulho e movimento, os cilindros de madeira nos suportes altos iam e
vinham para os balcões e o ar ficava impregnado com refinado perfume de suor.
Sua seção era a de armarinho. Tinha um balcão só para si, equipado com muitas
gavetas pequenas, vitrines e mostruários de veludo, como uma elaborada caixa
de brinquedos. Ela passava os dedos enlevada pelas miudezas que controlava, os
carretéis de linha, os botões, de marfim, osso, madrepérola, as caixas de alfinetes
e agulhas arrumadas, brilhantes, e pensava no paraíso de alegria e tranquilidade
que ela vira de relance do outro lado dos gramados verdes de Ashburn.
Depois ela casou, e um dia, no começo da primavera, o dono a chamou em
seu escritório particular atrás do caixa. Ela ficou parada na frente da
escrivaninha, tentando esconder sua barriga já proeminente. Percebeu que os
lábios dele se moviam. Ele jogou o lápis sobre a mesa.
- Afinal - comentou petulante -, esta é uma loja de modas, minha garota, e
veja só o seu estado!
Ela andou por toda a extensão da loja, passando o dedo pelo balcão, em
direção à porta e ao dia cinza de março, sentindo uma pontada de dor dentro de
si, como uma espada flamejante.
Essas eram as coisas em que pensava, as coisas de que se recordava.

Quando seguia para Ashburn, eu às vezes parava em Coolmine. Gostava de


vadiar no meio das pilhas de terra e dos lagos de vidro quebrado; havia algo
melancolicamente reconfortante em tamanha extensão de desperdício. Os
caminhões das indústrias haviam construído uma rampa de areia e entulho, e eu
descia pelas encostas íngremes dessa rampa, sentindo um arrepio de pavor
quando todo o aterro, por vários metros em volta, começava a tremer e deslizar.
Uma profusão de coisas aflorava nesses deslizamentos e novamente mergulhava
devagar no meio do entulho revolvido, molas enferrujadas e placas de metal
carcomidas, espirais de aparas de aço, com bordas afiadas e um brilho nu,
subterrâneo. Os catadores haviam voltado. Mas algo acontecera a eles, no
entanto. Não procuravam mais restos de metal, mas ficavam sentados em
grupos, embriagados, discutindo e chorando, bebendo no gargalo de grandes
garrafas marrons. Eles gritavam comigo quando eu passava, me chamavam de
bunda-mole e me ofereciam um gole. Tinham rostos enfurecidos e olhos
alucinados, vermelhos. De vez em quando um deles se erguia e corria atrás de
mim, tentando dizer alguma coisa, agitando um braço maltrapilho. Lembro-me
de suas bocas, buracos disformes, moles, como ferimentos não cicatrizados.
O serviço na mina ia devagar. Houve desabamento e inundações. Os homens
não estavam contentes, eu os encontrava a caminho de casa, todas as noites,
taciturnos e irritados, o branco do olho brilhando. Felix estava cheio.
- Hora de cair fora - ele disse. - Não tem mais nada aqui. Olhe só.
Estávamos na beira da ladeira, acima da boca do poço. Alguns homens saiam
do buraco, outros desciam. O caminhão estava caído, como um bêbado, do lado
de uma trilha imunda, onde quebrara um dia e nunca mais funcionaria
novamente. Podíamos ver o sr. Kasperl sentado no táxi, com suas plantas e seu
charuto. Um vento cinza ondulava na encosta fumacenta, trazendo um toque de
enxofre dos pátios da ferrovia do outro lado da estrada. A nossa frente havia
uma extensa salina, e, mais longe, o mar. Tudo errado, sem dúvida, com essa
geografia, ou devo dizer topografia? Não importa. Felix batia com as mãos para
espantar o frio.
- Sim - disse ele -, hora de cair fora.
Caminhamos pela rampa. Abaixo de nós, no pé da encosta, um fio de água
deslizava por entre margens de lama azul polida. Uma vez eu vi ali um martim-
pescador, um reflexo de seca opalescente, deslizando na superfície. Hoje a água
só refletia o céu de ferro.
- E quanto a você, menino passarinho - Felix disse -, que tal vir com a gente?
Eu poderia ser sua Leda. Podemos ir, ora, para qualquer lugar. Para o exterior.
Ver coisas novas selvagens nas planícies da Rússia, caravanas de camelos no
Saara. A selva, garotas negras dançando em volta do fogo, nuas. Ou que tal o
extremo-norte? As mulheres esquimós são esguias como enguias. E colocam a
língua em qualquer lugar.
Ele riu.
- O que você diz?
Eu não disse nada. Descemos a encosta e seguimos pela trilha em direção ao
portão. Eu estava pensando. Pensava em... ora, em nada. Não estava pensando
em nada. Repentinamente Felix gargalhou e bateu em meu ombro.
- Oh, Malvolio! - gritou. - Seu rosto!
O sr. Kasperl estava nos espionando pelo para-brisa escuro. Felix acenou para
ele alegremente.
- Fique longe dele, também - ele disse -, de seu bico e de seu canto.
Agarrou meu braço.
- E você - falou -, você deve ficar longe dele. É sério, para valer. Ele é muito...
muito negativo. Eu, sabe, gosto de tudo certo, regras, ordem, certeza. É por isso
que somos parecidos, eu e você. Você não acredita em mim? Bem, você vai ver.
O mundo é grande. Tenho planos.
Então ouvimos a explosão, ou melhor, a sentimos, uma espécie de tremor sob
os pés. No momento seguinte tudo estava quieto.
- Opa! - disse Felix calmamente, e abafou o riso.
Seguiu-se uma gritaria confusa. Uma nuvem de fumaça ergueu-se
rapidamente no ar, sobre a boca do poço, virando do avesso. Parecia
estranhamente festiva. O sr. Kasperl estava correndo para fora do caminhão.
Silhuetas começavam a esticar pernas moles para fora da entrada na mina.
Corremos na direção deles. Eu preferia ter me afastado, mas não pude evitar.
Como o sangue era vívido em seus rostos enegrecidos. Eles soltavam um som
estranho, gemiam. Um homem, cuja calça havia sido arrancada, ajoelhou-se na
lama, chorando, chorando, as mãos postas como se rezasse. Um outro levantou-
se e praguejou, sacudindo os punhos em direção de qualquer um que se
aproximasse dele. Percebi que ele havia perdido um olho, havia apenas uma
pasta púrpura no local onde estivera. A fumaça saía da mina, e nas profundezas
alguém gritava sem parar, pequenos berros, como um bebê, dizendo ah! ah! ah!
O sr. Kasperl estava parado, rígido, no alto de um monte de piçarra, em pose de
estátua, punhos cerrados ao longo do corpo para trás, olhando para a cena em
torno dele com uma expressão nem tanto de surpresa quanto, parecia, de
ceticismo, como se tudo fosse um truque para enganá-lo, e ele tivesse percebido
a farsa. Olhou desconfiado para Felix, que ergueu as mãos e deu um passo para
trás com uma risada, balançando a cabeça.
- Não olhe para mim, chefe - disse. - Tenho um álibi.
Algum tipo de gás havia explodido em um dos túneis. Dois homens
morreram, doze ficaram feridos. A história apareceu em todos os jornais. Eles
escreveram errado o nome do sr. Kasperl. Felix não foi citado, o que provocou
um de seus raros ataques de raiva. Durante vários dias ele não falou com
ninguém, mantendo um silêncio raivoso, despeitado.
XI

A primavera chegou cedo naquele ano - não, minto, chegou tarde. Mas
quando veio foi gloriosa. Eu recordo os junquilhos florescendo no gramado em
Ashburn. Todo o trabalho na mina foi interrompido. As escoras do teto
apodreceram. As pessoas diziam que o lugar era mal assombrado; ouviam-se
gemidos de fantasmas lá embaixo, e de vez em quando, à noite, um brilho
azulado podia ser visto em cima da boca do poço. Todas as manhãs, as nove, tio
Ambrose chegava em seu carro, e esperava do lado de fora da casa, por uma
hora, e depois seguia devagar, triste, indo embora novamente. O sr. Kasperl
ficava dentro de casa, subindo e descendo a escada e percorrendo os quartos
vazios. Eu encontrava com ele em lugares esquisitos, em pé, imóvel, como um
robô empacado, olhos no vazio, ausente. Ele parecia estranho, não era como o
resto de nós. Ele deve ter vindo de um país onde ninguém mais vivia.
Uma manhã bem cedo fui ao sótão e encontrei Felix agachado no corredor,
do lado de fora do quarto de Sophie. Ele colocou um dedo nos lábios e
apontou. A porta estava entreaberta. Ela ainda estava na cama, deitada de lado,
uma das mãos sob a face e os olhos fechados. Uma cerração branca luminosa
cobria a janela circular no alto, refletindo o sol fraco. Suas roupas estavam
jogadas de qualquer jeito, em uma cadeira ao lado da cama. O sr. Kasperl estava
parado um pouco distante dela, como que mergulhado em seus pensamentos,
apalpando seu lábio inferior carnudo com o polegar e o indicador. Do lado de
fora, sob os ramos, uma pomba arrulhava suave, indecente.
- Veja! - Felix sussurrou animado, pegando meu braço. - Olhe agora!
O sr. Kasperl deu um passo à frente, ficando ao lado da cama, e parou,
observando o rosto de Sophie. Depois, com esforço, as botas rangendo, ele
ajoelhou-se perto da cadeira e pegou suas roupas nos braços, mergulhando nelas
o rosto, ronronando suavemente. Felix deixou escapar uma risadinha e levou a
mão à boca. O sr. Kasperl estava deslumbrado, cheirando o monte de roupa,
devorando suas fragrâncias secretas, os velhos ombros gordos trêmulos. Sophie
tinha aberto os olhos e estava imóvel, a observá-lo. Depois ela olhou em direção
à porta e nos viu ali, nossos rostos contra a fresta. Ela sorriu.
- Olhe para ele, olhe! - Felix murmurava extasiado.
- Oh! Que velho sacana.
Felix também estava se escondendo. Houve encrenca no Black, quando
parentes das vitimas tentaram atacá-lo, e ele teve que fugir pela porta dos
fundos. Ficou indignado. Por que queriam pegá-lo? Não foi culpa dele. Com
certeza um daqueles imbecis - quem sabe o próprio Paddy ou mesmo Mick, ou
seja qual for seu nome - havia insuflado o pessoal. Mas a cidade estava
revoltada. Minha mãe ouvira os comentários e decidiu que havia chegado a hora
de agir. Cheguei em casa uma noite e a encontrei passando seu melhor vestido e
as luvas brancas de algodão, batendo com o ferro na tábua de passar, desferindo
golpes irados. Tio Ambrose estava lá, corado e carrancudo, olhando para o
chão, tentando controlar o tremor em seu joelho. Meu pai prudentemente
erguera a sobrancelha.
Na manhã seguinte tio Ambrose chegou para acompanhá-los com o carro.
Minha mãe já estava esperando, sentada à janela da sala, com sua bolsa, chapéu e
luvas brancas. Era um domingo de maio; lembro-me do sol na janela, o cheiro
forte e enjoativo de sua maquilagem. Meu pai, barbeado e penteado, descia a
escada resmungando. Tio Ambrose torcia as mãos desconsolado. Ele lançou um
olhar furtivo para mim, seu pomo-de-adão mexendo. Nós dois havíamos sido
seduzidos por Ashburn, de qualquer forma. Ele parecia aprisionado em seu
terno justo. Os três pararam na calçada, sob o sol, por um instante, um pouco
confusos com a luz, a brisa suave, as árvores começando delicadamente a
florescer. Depois tio Ambrose liderou o cortejo até o carro e acomodou-se no
banco do motorista com o cuidado costumeiro. Ele segurava o volante com os
braços esticados, como se tivesse medo, e apertava os pedais e mexia com o
câmbio enquanto os outros entravam. Meu pai sentou ao lado dele, minha mãe
ficou no banco de trás. Ela dizia algo para mim, mas a janela estava fechada, e
ela não sabia girar a manivela; depois o carro gemeu quando tio Ambrose pisou
nos pedais e a última coisa que vi, atrás do reflexo da paisagem movendo-se pelo
vidro, foi seu rosto tenso falando sem emitir um som sequer, afastando-se.

Foi tia Philomena quem veio me buscar. No começo pensei que ela estivesse
bêbada. Sua boca estava torta e uma mecha de cabelo caía em seu rosto.
Quando abri a porta ela já estava falando. Sua voz estava carregada com o que
me pareceu uma risada demente.
- Não sei de nada! - ela trinou. - Eles me ligaram, mas não disseram nada!
Corremos para a cidade. As ruas domingueiras encontravam-se desertas. Um
disco cegante de luz solar nos seguia pelas janelas das lojas. Tia Philomena
tropeçava com seus saltos altos, suando e resmungando.
- Você é da família? - ela repetia. - Você é da família? Foi o que me perguntaram.
Da família, ora essa! Que descaramento!
O hospital era um prédio branco, no alto do morro, impressionante sob o sol
da primavera, como um grande hotel do sul, as janelas revestidas pelo azul
festivo do céu. Havia outras pessoas lá, completamente diferentes de tia
Philomena e eu, estiolados, enobrecidos por seus males secretos. Mesmo as
visitas que desciam os degraus tinham um ar especial - pensativo, solene, um
pouco aturdido -, como se eles tivessem bebido, mas já estivessem novamente
sóbrios. O hall de entrada cheirava a chá e cera. Uma freira, na recepção,
vestindo um hábito esmeralda, com asas na cabeça, preenchia uma ficha. Tia
Philomena e eu esperamos, em pé no assoalho reluzente, no meio de um imenso
silêncio. Finalmente chegou uma enfermeira, uma mulher pequena de cabelo
vermelho e olhos belos, emoldurados de rosa, e com um relógio em uma
corrente pendurado no peito. Reparei em seus sapatos brancos limpos. Ela disse
seu nome que eu me esqueci imediatamente, e apertou nossas mãos
carinhosamente. Sua mão era quente e seca, e ela apertou a minha mão como se
desse um pequeno presente, olhando para mim em silêncio, com um tipo de
devoção atenciosa. Ela nos levou por um corredor até uma escada curva. Uma
janela larga dava para a cidade e para uma faixa de mar azul-escuro. Uma
imagem em tamanho natural do Salvador em um nicho na parede mostrava um
coração vermelho como rubi, em chamas. O rosto era igual ao de uma mulher
barbada, suave, cremoso e triste.
Nós entramos em uma enorme enfermaria, cheia de luz e som, como um
ginásio. Meu pai e tio Ambrose estavam deitados de costas, em leitos vizinhos,
ainda pálidos como um par de cavaleiros de mármore. Os dois estavam com a
mão direita no peito e o braço esquerdo esticado ao longo do corpo, ligado por
um tubo a uma garrafa em um pedestal. As cabeças, cobertas de ataduras.
Respiravam com dificuldade, em uníssono. O nariz de tio Ambrose levantava-se
em seu rosto como um machado de pedra. Eu nunca tinha reparado que era tão
grande. Ele abriu os olhos e fitou tia Philomena e a mim com ar de certa
surpresa.
- Sr. Swan! - a enfermeira gritou com espantoso vigor. - O senhor tem visitas.
Sr. Swan, olhe!
Mas ele não respondeu, e depois de um momento fechou novamente os
olhos, com um suspiro fraco.
Meu pai dormia tranquilamente.
Chegou um médico, um jovem atarracado de olhos inquietos e uma mecha de
cabelo liso e claro nas lapelas de seu jaleco branco, e seu hálito quente cheirava a
bolo.
- Para-brisa - ele disse, batendo com o punho na palma. - Deste jeito. Eles
tiveram sorte. Um enorme cachorro preto, ele contou, enfiou-se bem debaixo da
roda.
Tia Philomena virou para o lado sufocando um soluço com um lenço
amassado, que levou à boca. O médico olhou para o sapato e franziu a testa.
Um velho gordo, na cama do outro lado do corredor, de pijama listrado, sentou-
se e nos observava intensamente com olhos inflamados, ávidos.
- Bem - disse o médico ríspido - vocês vão querer?...
Tia Philomena, ainda mastigando seu lenço, balançou a cabeça com violência,
soltando outro suspiro abafado.
Acompanhei o doutor até sair da enfermaria, depois pela escada, passando
pela estátua tímida e pela janela panorâmica. O ruído dos bules de chá e dos
talheres subia pelo vão da escadaria. O médico seguia rápido à frente, os joelhos
virados para fora como cotovelos, o jaleco branco esvoaçando. Ele me disse seu
nome, mas eu também o esqueci. Um carregador corcunda com jaleco hospitalar
verde passou no pé da escada. O médico o chamou e ele parou, olhou para nós
desconfiado, uma das mãos meio enfiada no bolso do jaleco, como se estivesse
segurando uma arma. Tinha cabelos crespos, oleosos e negros, e óculos de lente
grossa e armação pesada, que pereciam fazer parte dele, como um osso em
miniatura projetando-se de seu crânio.
- Que foi? - ele perguntou.
O médico falou pacientemente, e ele moveu a cabeça, concordando, guiando-
nos por um corredor, tirando do bolso um enorme molho de chaves, em uma
argola de metal. Eu não conseguia afastar os olhos de sua corcunda. Entramos
em uma passagem curva, verde-escura, com pequenas janelas redondas como
escotilhas situadas no alto da parede, e chegamos a uma porta de metal cinza,
onde paramos e esperamos enquanto o carregador procurava a chave certa. O
médico afastou o jaleco e enfiou as mãos nos bolsos da calça.
- Domingo - disse com um encolher de ombros apologético -, eles trancam
tudo.
A porta se abriu, dando para um pequeno quarto alto, iluminado por uma
lâmpada pendurada. Uma imensa geladeira com portas de aço estava encostada
na parede. O carregador a abriu, revelando três cadáveres gelados, bem
arrumados nas gavetas. Olhei para o alto de suas cabeças, as orelhas lívidas
envoltas em cristais de gelo. O carregador abaixou-se e leu os nomes escritos nas
etiquetas das gavetas, forçando os olhos atrás das lentes grossas, cutucando um
dente lateral.
- Não - ele disse. - Não está aqui.
Fechou a porta e dirigiu-se para uma sala maior, pedindo que o seguíssemos.
Havia uma pia no canto, uma mesa com uma banqueta e uma janela minúscula
pela qual penetrava um raio grosso e incongruente de sol. Nossos sapatos
rangiam no chão de borracha. Uma maca. Uma figura coberta. O médico batia
suavemente na mão.
- Há uma formalidade, infelizmente - disse, em tom confidencial. -
Identificação. Temos que fazer isso nestes casos. Você apenas diz se é ela, e está
terminado. Está bem?
O carregador tirou o lençol.
A mulher na maca parecia mesmo um pouco com minha mãe. Ela era mais
velha, tinha uma testa estreita, e o cabelo também era diferente, mas havia uma
semelhança, mesmo assim, e por um instante eu não soube o que fazer. Será que
aquela era mesmo minha mãe, e eles haviam, de algum modo mexido em seu
rosto? Seria por isso que eles precisavam que eu a identificasse, para que
fizessem os consertos necessários? Fechei os olhos. Não, não era impossível.
Mas aí havia o problema do que dizer. O constrangimento abriu suas
mandíbulas e exalou seu bafo quente em meu rosto. O tempo passava
diminuindo mais e mais. O doutor estava ficando impaciente. Dei um passo
para trás. Precisei tossir para que minha voz saísse.
- Não - eu disse. - Não, eu não creio, deve haver algum... esta não é... - O
doutor piscou.
- Não?...
- Minha mãe. Não.
Ele virou-se rapidamente para o carregador, que coçou a cabeça e franziu a
testa. Depois abriu a boca.
- Tá - disse -, esperem.
Ele atravessou a sala, e de trás de uma cortina, com um quase floreio, puxou
pelas rodas de borracha outra maca, no qual o corpo de minha mãe jazia,
embrulhado em um cobertor xadrez. Suas mãos estavam cruzadas. Seu rosto
virado de lado, o queixo apertado contra o ombro. Os olhos não estavam bem
fechados. Eu não podia ver nenhum sinal do acidente, a não ser por um
pequeno corte na testa. Mas havia algo no jeito em que estava deitada, toda
torta, como se tivesse sido erguida e sacudida com violência, e tudo dentro dela
tivesse sido quebrado e despedaçado. Senti um pouco o cheiro de sua
maquilagem. O médico estava com a mão em meu ombro. Balancei a cabeça
aturdido, identificando o que não estava ali, pois aquilo não era minha mãe, mas
algo que ela deixara para trás, como um luva esquecida.

Não me lembro bem das coisas depois disso. Há lacunas. Recordo que estava
sentado em um pequeno quarto, um dispensário, creio, com uma caneca de chá
verde esfriando em minhas mãos. Havia cartazes coloridos na parede ao lado,
mostrando cortes de pulmões, estômagos abertos e um coração enorme, rubro,
com suas válvulas e ventrículos expostos. Senti uma calma profunda, como no
final de uma extenuante e perigosa aventura. Parte de minha mente estivera se
distanciando por sua própria conta, e repentinamente, vinda de lugar nenhum, a
solução de uma das equações do caderno negro do sr. Kasperl me veio à cabeça,
em três rápidos saltos transformacionais, movendo-se através da escuridão
como um acrobata vendado executando um salto mortal triplo, sem erro. No
corredor, a enfermeira Eu conversava com o dr. Blur. Sem aviso, comecei a
chorar. Era como um sangramento de nariz. Meus soluços tinham o efeito de
uma queda inevitável para dentro, com se um imenso buraco se abrisse em mim
e eu fosse atirado de cabeça para dentro dele. A tempestade cessou tão
abruptamente como havia começado. Enxuguei os olhos, assustado, um pouco
tímido, mas no fundo, orgulhoso de mim mesmo, de uma dor tão pródiga, tão
abrangente. Depois o médico foi embora, e eu o segui. Subimos a escadaria
curva novamente. Já era noite, eu mal podia crer. Um sol poente vasto,
deslumbrante, mergulhava no horizonte, como um naufrágio em mar aberto.
Meu pai e tio Ambrose ainda estavam dormindo. O rosto de tia Philomena
estava borrado e torto. Ela pegou no meu braço e saímos da enfermaria. O hall
de entrada brilhava com a luz do sol. A freira de hábito havia sumido, batera
asas, deixando as fichas sobre a mesa. Não, não houve nenhuma freira, eu a
tinha inventado. Caminhamos para casa vagarosamente pelas ruas desertas. O
céu era de um azul pálido, manchado de vermelho, tão alto, incrivelmente alto.
Tia Philomena suspirava e fungava. Eu queria me afastar dela. As árvores
estavam cobertas de flores, na praça, rosadas, cor de marfim e brancas,
imaculadas. Um corvo passou voando baixo em cima de nossas cabeças,
limpado a garganta. A chave estava embaixo do capacho.
XII

Ela foi enterrada no antigo cemitério de Ashburn, no mesmo túmulo de sua


mãe e Jack Kay. Acompanhei o carro funerário a pé. Era um dia quente,
nublado, um dos primeiros do verão. Os espinheiros estavam carregados de
flores, havia aquilégias nas valas e papoulas e beija-flores. Apareceu gente que eu
nunca tinha visto antes, mulheres enormes, barrigudas, com chapéus horrorosos
e meias elásticas, e velhos recurvados, ágeis como duendes, que disputavam os
melhores lugares entre as lápides exageradas, loucos para pegar cada detalhe.
Uma pá fora enterrada, inclinada, no monte de terra ao lado da cova. O padre
era baixo, atarracado, de rosto rosado. Sua voz erguia-se e baixava com uma
cadência lamurienta. A nossa volta, os campos transpiravam. O ar estava
carregado com fragrâncias de feno e pó e esterco. Tia Philomena chorava alto,
parada, com os ombros baixos e os cotovelos pressionados contra as costelas,
como para impedir que algo se quebrasse dentro dela. Meu pai e tio Ambrose
estavam em pé, lado a lado, na beira da cova. Suas cabeças enfaixadas davam aos
dois um certo aspecto de piratas. Tio Ambrose sorriu para si e resmungou por
entre os dentes. A batida havia danificado alguma coisa dentro de sua cabeça,
que não podia mais ser consertada.
Procurei por Felix, mas, se ele estava por ali, eu não o vi.
Todos seguiram para nossa casa, as mulheres gordas e os velhos, e sentaram
na sala bebendo cerveja preta e xícaras de há e comendo travessas de carne fria
que tia Philomena preparara. Havia um ar de frivolidade reprimida. Era como
uma festa na qual o convidado de honra tivesse ido para casa cedo. Tia
Philomena trouxera um buquê de rosas do jardim de minha mãe e o colocara em
um vaso sobre a mesa; elas ficaram ali, no meio de nós, nuas, labiadas e úmidas,
como as partes íntimas de alguma criatura fabulosa, esquecida. Tio Ambrose
sentava-se em uma cadeira reta em um canto, com as mãos sobre os joelhos. Ele
era como um menino grande, cordato, vestido para a ocasião com o terno de
outra pessoa. Ele ficava olhando em volta com um pequeno sorriso malicioso,
os lábios movendo-se silenciosamente. Era como se ele tivesse sido admitido
para compartilhar algum grande segredo, que todos sempre ocultaram dele.
- Que Deus a tenha - tia Philomena sussurrou, os olhos arregalados.
Ela não conseguia reprimir um tremor de excitação em sua voz. Ali estava um
drama mais generoso do que qualquer um que ela jamais ousara sonhar.
Finalmente as pessoas se foram, e um silêncio imenso, impressionante, desceu
sobre a casa.

Tia Philomena vinha todo dia da rua Queen para cuidar de meu pai e de mim.
No começo ela era toda gentileza, fazendo as tarefas com as mangas
arregaçadas, mas logo a tensão começou a se mostrar. Tio Ambrose não
melhorava. Eles haviam retirado os pontos de sua cabeça, disseram que ele
estava bem, mas ainda assim ele só ficava sentado sorrindo, comunicando-se
consigo mesmo em uma espécie de feliz devaneio. Em certos dias ela tinha que
tirá-lo da cama e vesti-lo. Ele tinha crises de incontinência. Ela o alimentava
com uma colher.
E ela se sentava de repente, o rosto pálido, e acendia um cigarro com as mãos
trêmulas.
Meu pai só ficava na sala, agora. As horas passavam brancas, vagarosas,
silenciosas, como icebergs em um mar gelado. A atadura em sua testa fora
trocada por um curativo de pano preso com esparadrapo cor-de-rosa. Sua asma
piorara, o ar chiava e estalava em seu peito, como o som de um relógio
enferrujado preparando-se para despertar. Ele agarrava o braço da poltrona com
a mão, os pés dentro dos chinelos ficavam plantados rígidos no chão. Ele se
mantinha atento, preparado, como se estivesse esperando alguém chegar para
explicar tudo a ele, como aquilo havia acontecido, e por quê.
Eu me sentava à mesa perto da janela, em meu quarto, com a mão na cabeça,
como nos velhos tempos, ou o que pareciam ser os velhos tempos para mim,
naquela hora. Achava restos de comida esquecidos sob minha cama, ou varridos
para baixo do guarda-roupa, podres até criar bicho, cobertos de tufos de
penugem azul acinzentada. O quarto adquiriu um cheiro rançoso, fulvo.
Escancarei as janelas. O ar do verão fluiu pelo peitoril, vago, sedoso, como o ar
de um outro mundo. Eu trabalhava, perdido nos sonhos dos números puros.
Como elas eram calmas, quietas, aquelas noites brancas de junho. Eu olhava
para cima e percebia que o dia se fora, que a noite me rodeava intencionalmente,
retendo o fôlego e ainda incandescente. Eu era sonâmbulo, acordando em meio
a uma luz estranha, em um jardim de estátuas cegas, confuso, sofredor,
querendo novamente o sonho interrompido. Lá era tudo harmonia, a imensidão
fora domada, coisas estilhaçadas se refaziam. Ali também, de algum modo, eu
não estava sozinho.
Ah, eu trabalhava. Ashburn, Jack Kay, minha mãe, o cachorro preto, a batida,
tudo isso não era como os números, e no entanto também deveria ter suas
regras, uma ordem, algum tipo de padrão. Eu sempre pensei nos números
caindo sobre o caos das coisas, como granizo sobre a água, as partículas
minúsculas domadas e divididas, os cristais quebrando, o traçado gelado
espalhando-se em todas as direções. Podia sentir isso em minha mente, a
sequência dos eventos interrompida, a calma quebrada, o ar parado, branco.
Mas, ordenando os fatores como eu estava fazendo, eles não iriam mais se
compatibilizar. Tudo era oscilante e fluido e repentinamente cambaleante.
Superfícies que pareciam sólidas começavam a ceder sob meus pés. Eu não
podia reter nada nas mãos, tudo escorria inapelavelmente por entre meus dedos.
Zero, quantias ínfimas, números irracionais, o próprio infinito, de repente estas
coisas se mostraram como elas realmente eram, sempre foram. Fiquei mais
confuso. A luz desapareceu. Um melro assobiava na escuridão. Enfiei as mãos
no rosto, e isso também desapareceu, as feições derretiam, até as órbitas se
esvaziavam, até que nada mais restasse a não ser uma máscara de carne
uniforme, lisa.

O tempo ficou esquisito, névoa o dia inteiro, e nem um sopro de vento, o sol
um disco pálido preso no meio de um céu leitoso. De noite a névoa virava
garoa, cobrindo tudo com uma camada inconsútil de orvalho acinzentado. As
sirenes de nevoeiro tocavam a noite inteira no mar. Algo estava acontecendo
sob a terra. O asfalto derretia nas ruas, pequenas rachaduras surgiam na calçada.
Os jardineiros revolviam torrões fumarentos de terra fervilhando de larvas,
lesmas gordas e montes de vermes rosados, gordos. A vegetação ficou louca.
Cogumelos gigantescos surgiam em todos os lugares, nos gramados, sob as
sebes, nas ruas entre as plantações de batata, abrindo caminho através do solo
tépido, como crânios prateados lisos. Um cheiro rançoso tomou conta do ar.
Miasmas ocultavam a salina em Coolmine. Quando as ondas se agigantavam
jorrava um vapor negro da boca da mina. Corriam comentários a respeito de
incêndios súbitos, depressões misteriosas. Uma criança, brincando no jardim da
avó, caiu em um buraco flamejante que se abrira a seus pés, e foi encontrada,
chamuscada e trêmula, presa as raízes expostas de uma árvore, os pés
balançando sobre a fenda incandescente.
Eu vagueava pela cidade dia após dia. Vi o carro de D'Arcy e depois, outro
dia, o próprio D'Arcy, sentado melancolicamente perto da janela, no Black, no
lugar onde o sr. Kasperl costumava fazer sua vigília matinal. Comecei a passear
novamente pela estrada de Coolmine. Vi o local onde tio Ambrose bateu o
carro, na metade do caminho para Ashburn. Uma pedra caíra do muro, um
poste telegráfico foi arranhado. Fora um estrago tão pequeno: fiquei surpreso.
Os caminhões estavam usando o depósito novamente. Os portões haviam
desabado, as velhas com seus sacos haviam voltado ao trabalho, entre as pilhas
de lixo.
Fui até Ashburn, é claro. Andei pelo jardim, evitando a casa, como costumava
fazer. Aí, um dia, encontrei Sophie. Ela estava caminhando sob as árvores.
Levava uma cesta de vime no braço, coberta por um pano. Estava mais magra, o
rosto mais pálido, os olhos encovados. Mas sorriu para mim radiante como
sempre, como se tivesse me encontrado no dia anterior. Fomos até a casa. Eu
carreguei a cesta. Estava cheia de urtigas.
Felix estava sentado à mesa da cozinha, de costas para a porta, cantando.

Não é segredo
O que Deus pode fazer,
O que Ele já fez aos outros
Ele pode fazer a você...

Ele se virou quando entramos, e ao me ver sorriu seu sorriso de raposa,


ergueu as mãos e gritou:
- Puxa, olhem quem está aqui! Tragam o banquete de boas-vindas,
imediatamente. Pegou a lata de tabaco e acendeu uma ponta, me examinando
com atenção amiga. Usava sua calça listrada ensebada e um boné de caçador.
Em volta do pescoço havia um lenço de seda vermelha. Na mesa havia um
relógio despertador, com a traseira aberta e o mecanismo à vista. Ele o mostrou
e disse:
- Acha que consigo arrumar isso?
Sophie estava pondo as urtigas em uma panela, com água e um monte de
ossos. Ele riu tristonho.
- Veja a que ficamos reduzidos.
Pegou o relógio e o sacudiu pesaroso, obtendo um som fraco, metálico, como
o retinir distante de pequenos sinos.
Nós comemos a sopa de urtiga. Um losango de sol tremia na mesa, perto do
meu punho. Sophie, sorrindo, me observava por trás da colher. O sr. Kasperl
chegou pesadamente e sentou-se. Ele me olhou uma vez e desviou a vista. Felix
falava e falava.
- Há coisas queimando animadamente lá embaixo, pelo jeito. A cidade inteira
está em cima do fogo. Vai ser o inferno, aqui. Ah, o inferno!
Ele sorriu para mim.
- O que você acha, menino passarinho. Hora de voar? Sophie tirou a mesa, e
Felix sugeriu um jogo de cartas. Nós três jogamos, enquanto o sr. Kasperl
observava, os braços gordos cruzados e o queixo afundado no peito. Um carro
chegou pelo caminho. Felix pôs um dedo nos lábios. Ouvimos uma batida forte
na porta da frente, e a voz de D'Arcy, que chamava. Depois de algum tempo ele
foi embora. Felix tinha um trunfo. Ele disse:
- A pulga comum, pulex irritans, que é o nome que os cientistas dão a ela, pode
sobreviver por muito tempo sem comida. Ela gosta de uma saborosa gota de
sangue, bom, vermelho, de homem ou mulher, para ela não faz diferença. Ela
não pica, sabe, por prazer. Na verdade nem mesmo pica. Ela fere, suga uma gota
rubra e sai fora. Sua prima, por exemplo, xenopsylla cheopis, ou pulga de rato, é de
um tipo diferente, essa moça não gosta nem um pouco de sangue humano, não
mesmo, ela vomita, o que é uma chateação para uma figura tão animada. Mas
quando seu hospedeiro, o rato preto, rattus rattus, entrega a alma a Deus, ela não
tem outra escolha senão vir em nosso encalço. E os proventrículos da coitada
ficam infestados com enxames de bacilos, cujo nome é pasteurella pestis, será que
preciso dizer mais alguma coisa? Então, morrendo de fome, ela domina sua
repulsa, movida pela necessidade, e logo acha um alvo humano. Enfia o ferrão
afiado, e uma gota de sangue é aspirada pelos proventrículos. Já saciada, nossa
pequena saltadora relaxa, mas, puxa vida, uma parte daquele sangue é devolvi
do, temo que agora contaminado pelo bacilo, e vai direto para o local da picada.
A vítima, com uma comichão, coça o local, enquanto o pasteurella pestis segue de
roldão para o lugar da reação. Uma semana transcorre, e as bolhas surgem,
febre, estupor e, é claro, um cheiro ruim, como se o pobre-coitado já estivesse
morto. Depois a mulher pega, o nenê também, em seguida Fred, o carteiro, sim,
e Fred, o filho do carteiro, e em seguida, numa piscada, metade da cidade se foi.
A peste espalha-se como fumaça, abatendo os fracos e os fortes, e logo
continentes inteiros caem sob suas garras. E tudo por obra de sua majestade,
nossa senhora do tumulto, a pulga Harry Hotspur! Agora lembrem-se, quando
sentirem uma picada, terá sido um honra, não uma desfeita. O rei está morto,
vida longa ao príncipe, e... aí está o patife! Minha vez, creio. Ganhei.

Sophie preparou um show de marionetes. Limpou uma bancada no estúdio


fotográfico e montou um palco feito de caixas de papelão. A parte interna das
caixas fora coberta com fotografias. Ali estavam o bebê imperial, o jumento com
chapéu de palha, o cavalheiro de malha e a moça nua na cadeira, as pernas
gordas abertas. Felix curvou-se para examiná-la, e soltou um assobio baixo e me
deu uma cotovelada.
- Ora, ora - disse. - Isso vai ser bom.
As marionetes viravam e chocavam-se, abaixavam e oscilavam. Os fios não
pareciam guiá-las, mas prendê-las, como se elas tivessem vida própria, como se
tentassem escapar. Elas contavam minha história. Tudo estava lá, o encontro
perto do riacho, minha primeira refeição com eles, a visita de D'Arcy, Jack Kay,
o beijo, tudo.
- Do além! - Felix gritou, aplaudindo. - Uau, do além!
Sophie surgiu por detrás da bancada e fez uma mesura.
O sr. Kasperl ficou parado na porta, os braços pendentes. Sophie foi em sua
direção.

Caminhei com Felix pelos arredores. Um sol fraco brilhava no céu branco. As
árvores reluziam, engraxadas pela névoa. Podia sentir o cheiro do mar, seu fedor
cinza. Felix estava mastigando um naco de pão. Ele usava o boné e uma capa de
chuva suja, parda, além da gravata listrada e suja.
- Meu traje de adeus - disse. - Você gosta? Ele jogou o pão fora. Uma gaivota
enorme mergulhou na névoa, fechando as asas, e o pegou no ar. Felix ficou
meditando em silêncio por um tempo, chupando o dente.
- Sim - ele falou -, tenho que cair fora. Aquela mina...
Ele ficou pensativo por um momento e depois riu.
- O pequeno investidor, pelo que descobri, não tem senso de humor. Um
mau perdedor, de ponta a ponta.
Ele parou, e virou para mim. Nós estávamos parados no meio do caminho. O
topo das árvores estava oculto na névoa.
- Ouça - ele disse -, você gosta de saber a verdade, não é mesmo? No início
era o fato, e tudo mais? Bem, vamos lá, então. Vou lhe mostrar uma coisa.
Voltamos para casa, subimos ao sótão, até o quarto do sr. Kasperl. Felix
delicadamente abriu a porta um centímetro. Meti o olho na fresta. O quarto
estava inundado por uma calma luz branca. Uma mosca zumbia contra o vidro
da janela. O sr. Kasperl estava deitado de costas na cama, os olhos fechados, a
boca aberta, como uma criatura marinha enorme na praia. Suas pernas eram
inesperadamente magras, com veias roxas emaranhadas. Sua imensa barriga
brilhava pálida, subindo e descendo, levemente coberta por uma penugem
arruivada. Seu sexo pendia em seu ninho espesso, lívido, infantil e mole. Sophie
estava em pé na beira da cama, calçando o chinelo. Ela ergueu as mãos acima da
cabeça, e por um segundo, antes que o vestido a cobrisse eu vi as sombras de
suas axilas e seios prateados e o pequeno tufo de cabelos negros entre suas
pernas. Ela se virou e me viu. Sorriu, e veio em nossa direção, com uma meia na
mão. Dei um passo para trás, e Felix fechou habilmente a porta.
No andar de baixo ele procurou algo no bolso úmido de sua capa de chuva, e,
tirando o despertador, olhou para ele.
- Meu querido - disse -, já está na hora?
Uma mala de papelão gasta jazia no hall. Ele a ergueu.
- Bem, eu estou fora. Felizmente, no final do verão. Quer ir comigo até a
estação de trem?
XIII

Na estrada de Coolmine ele começou a assobiar, balançando a mala, lépido.


Saía fumaça da boca da mina, subindo para o céu claro como cal. Um caminhão
entrava pelo portão, com uma carga de tijolos quebrados. Um bando de
catadores amontoava-se na beira do monte de detritos, tristes figuras escuras
contra o céu branco. Os catadores estavam atarefados. Uma nuvem de fumaça
erguia-se sobre o lixo. Felix parou para observar a cena. Ele ergueu um braço
em uma saudação irônica e disse:
- Adeus, lindos campos!
Passamos pela parede danificada, pelo poste telegráfico arranhado. Ele
fingiu que não notou, e não disse nada.
As ruas da cidade estavam úmidas e cheiravam a alga marinha. Não havia
muita gente na rua, mas durante todo o tempo Felix avançou cauteloso,
mantendo-se oculto, perto dos muros. Ele parou no Black.
- Hora da última olhada, não acha? - disse. - Oh, claro, vamos entrar, correr
o risco; se você topar, eu topo. Sou um velho sentimental, eu sei.
Sentamos na mesa do sr. Kasperl, perto da janela. Felix deu as costas para a
rua, escondendo o rosto com a mão. Eu contei a ele que vira D'Arcy por ali. Ele
deu de ombros.
- Ora - ele disse -, não se preocupe. Ele é sé um moleque de recados.
A garçonete chegou, uma garota caipira de cara limpa. Felix esfregou as
mãos. Ele estava com fome, queria uns petiscos.
- Presunto - pediu. - E salsichas. E um pouco de fígado.
A garota sorriu para ele apavorada, mordendo os lábios.
- Não posso servi-lo - desculpou-se.
Felix a encarou indignado.
- Hã?
- A sra. Swan disse...
- A sra. Swan? Sra. Swan? Diga á sra. Swan que vou conversar com ela
pessoalmente. Agora.
Ela saiu rápido, ainda rindo nervosa. Felix piscou para mim. Olhei para a rua
lá fora, através de nossos reflexos pálidos dos na janela. Ele tocou meu braço.
- Estou dizendo, meu amigo, não esquente. Não vale a pena, creia em mim.
Esqueça o que passou, este é o meu lema. Cancele, cancele e recomece.
Eu não estava com inveja, nem mesmo magoado. Eu me sentia excluído. Pela
fresta da porta eu espiara um mundo sutil, intrincado, inédito, onde eu jamais
poderia penetrar. Felix acendeu uma ponta e fumou silencioso durante algum
tempo, olhando para mim com ar compenetrado.
- Foi para o seu bem - disse. - Além do mais, você poderia ter ido com ela,
também. As dicas que eu dei! Mas tudo bem, você fica melhor fora disso, longe
dele. Sabe, fui eu quem a achou para ele. Era esse o tipo de serviço que eu tinha,
alguma surpresa por eu cair fora?
Seus olhos encontraram os meus e tremeram.
- Tem mais, sabe - falou envergonhado. - Eu encontrei você para ele,
também, sabe?
Pensei nas marionetes, debatendo-se nas cordas, lutando para se tornarem
humanas, suas expressões rígidas, o jeito com que erguiam os braços,
desajeitadas, implorando. Tanta ansiedade, tanta espera. E eu pobre Pinóquio,
cantando e dando cambalhotas, tentando ser real.
Felix bateu na mesa furioso com os punhos e levantou-se.
- Muito bem! - gritou. - Se eles não querem me atender, vou embora.
Jogou a ponta do cigarro no carpete e a pisou com o salto, e ergueu a mala
com um gesto largo. Na porta encontramos tia Philomena, tendo a garçonete
sorridente atrás dela. Felix deu um passo para atrás, erguendo o chapéu.
- Ora - disse, com uma risadinha. - Sra. Swan, que prazer.
Ela estava parada, de cara fechada, as mãos juntas à frente, olhando para o
chão sob os pés dele. Ela me ignorou. Havia grumos de pó-de-arroz grudados
nas rugas, nos cantos da boca. Ela dispensou a garçonete com um movimento
de ombros. Os nós dos dedos ficaram lívidos. Ela disse:
- Tenho um assunto para tratar com você.
Felix brindou-a com seu melhor sorriso.
- Mas é claro. Só que agora não posso. Estou com pressa. Vou pegar o trem.
Houve um silêncio. Ela não queria sair da frente da porta. Ainda com os
olhos fixos no chão ela moveu o ombro resoluto em minha direção, só um
centímetro. Eu deslizei e passei por ela. A garçonete, esperando no salão, piscou
cúmplice para mim. Atrás de mim, Felix dizia:
- O quê? Economias? O quê? Minha senhora, sinto muito, mas isso faz parte
do risco do investimento, pensei que já tivesse entendido. A senhora não é a
única, afinal...
Eu esperei na rua e finalmente ele saiu, balançando a cabeça.
- Xii! - disse. - Percebe o que quero dizer? Nenhum senso de humor. Eles mal
podem esperar para entrar em uma jogada, mas, no primeiro minuto que
acontece algo errado, puxam a faca, clamando por sua parte da carne.
Ele riu e bateu em meu ombro.
- Menos você, né? - falou. - Não, você não.
Subimos a rua Owl, sob o morro. As galinhas cacarejavam no pátio do
granjeiro. A nossa frente a cidade mergulhava na névoa.
- Venha comigo - disse Felix - por que não? Podemos fazer uma boa dupla,
você e eu. Ele diz que você tem um grande futuro, realmente brilhante. Ele
entendeu, já teve um futuro brilhante, uma vez. Ora!
Ele me guiou através da rua Goat, descemos os degraus cheios de limo até o
cais. O mar estava calmo, cor de lama.
- Por falar nisso, eu trouxe algo para você.
Ele abriu a mala sobre os joelhos e tirou de lá o grande caderno preto do sr.
Kasperl.
- Guarde para você - disse. - Como se fosse um mau presságio. E, escute
bem, siga meu conselho, fique longe dele. Ele está acabado. Seu tempo passou.
Os dois, acabados.
Chegamos a estação. O trem estava lá. Ele esgueirou-se para dentro,
balançando a mala, virou-se e debruçou na janela. Soou o apito.
- Até logo - falou, piscando. - Auf Wiedersehen.
O trem arrancou com um solavanco, e ele foi levado ao longo da plataforma,
acenando sorrindo, passando pelo sinaleiro e pela caixa de sinal, na direção da
longa curva descendente de Coolmine.

Cancele, sim, cancele e recomece.

Ashburn estava em silêncio. Caminhei pelos quartos vazios, sob o teto alto,
sombreado. Uma janela quebrada, tábuas podres no chão, uma vista das árvores.
As marionetes continuavam onde Sophie as havia deixado, no estúdio,
espalhadas em torno do palco de papelão. Com que habilidade ela conseguiu
criar semelhanças! O cabelo de D'Arcy, a careca reluzente, aqueles olhos azuis
que me fitavam agora, impassíveis como sempre. Não, não impassíveis, mas
muito distantes, tão distantes que ele mal podia me ver. Ela ficou perfeita, a
mesma expressão remota. Ela estava sorrindo. Ela se ergueu de um salto, um
estalo abafado. O sr. Kasperl ficou atrás dela, ofegante. Eu falei. Mas eles não
podiam responder. Como poderiam eles responder? Tudo ficou tão silencioso,
repentinamente, oscilando na beirada. Então, sob meus pés, começou uma
espécie de rufar, fraco no inicio, aumentando rapidamente de volume, um
grande tambor tocado dentro da terra. O assoalho tremeu, rugindo, e desabou
com violência. O gordo e a garota afundaram lentamente, como se
mergulhassem na água, e não no fogo. Seu olho azul. O sorriso dela. Meu cabelo
pegou fogo. Uma chama vermelha saiu do buraco, e eu voei com asas de fogo,
agarrado em meu livro negro, pela fumaça e pó e vidro partido, na imensidão
fria do espaço.
ANJOS
I

Ah, Lâmia, minha adorada, minha querida, Lâmia, meu amor. Como você era
diligente, como cuidou bem de mim. Eu ainda posso vê-la, sua pele macia da
mais tenra malva, seu interior branco, seu nome em letras pequenas,
espantosamente nítidas, e aquela pequena letra R, gravada em um anel, como
uma verruga em seu queixo gordo. Você derretia sob minha língua, você se
enrodilhava em torno de meus nervos. O que teria sido de mim sem minha
Lâmia, como poderia eu ter passado minha temporada no inferno? Outros
cuidaram de mim também, mas nenhum deles me ajudou tanto. Eis aqui Oread,
a ninfa branca do esquecimento, e Lêmures, os tranquilizantes, como pequenas
contas negras, e a volúvel, amarelada Empusa, duende da rainha dos espíritos.
Eles são anjos de categoria inferior, mas mesmo assim preciosos.

Dormi. Foi uma espécie de sono. Lá no fundo, na escuridão, uma faísca de


lucidez reluziu e desapareceu e reluziu de novo. Uma palavra surgia, ou raio de
luz, ramificando-se durante horas. No geral eu estava tranquilo, não sentia nada.
Fora do domo de torpor em que me encontrava, eu sabia que havia algo à
espera, como um animal espera na escuridão. Era a dor. A dor era a besta que
meus anjos mantinham a distância.
Eles vieram ter comigo, meus guardiões, numa fila interminável descendo da
interminável escada transparente, entrando no braço, quando eu finalmente abri
os olhos vi o sol brilhando na bolsa plástica em cima de mim, uma bolsa de fogo
branco espalhando-se para fora, em todas as direções. O quarto era branco, na
verdade cor de creme, mas parecia branco aos meus olhos, tão acostumados
agora ao preto. Estilhaços de luz metálica coruscavam na parede e no teto,
como reflexos de um mar cintilante.
Água. Penso na água.
No início foi só a mente, girando na escuridão como um dínamo. Depois,
gradualmente, o resto de mim retornou, arregaçando as mangas e cuspindo na
mão com o entusiasmo melancólico de um torturador. Observei o líquido no
tubo de plástico, uma lágrima gorda oscilando em sua haste firme e fina. Aí a
haste cedeu, a gota caiu. A dor bateu.
Como descrevê-la? Não o fazendo. Eu era Marsias, preso a minha árvore, o
deus entretido ao meu lado com sua faca, assobiando por entre dentes enquanto
trabalhava. Eu estava só, ninguém poderia me ajudar. A diferença, a estranheza.
Este era um lugar onde eu nunca havia estado antes, que eu nem sabia existir.
Ficava dentro de mim. Eu voltava, a cada vez, mais iluminado. Agora, pela
primeira vez, eu via o mundo a minha volta radiante de dor, o vidro da janela
sofrendo com a lâmina afiada do sol, a cama como um touro ferido, ajoelhado
sobre as patas, aquela bolsa de soro sobre minha cabeça, pingando. Até o
próprio ar parecia sofrer. E depois as vespas moribundas, as mariposas batendo
na vidraça, o cão que ganiu a noite inteira. Eu nunca soubera, nunca sequer
sonhara. Nunca.
A solidão. O estar além. Indescritível. Ninguém podia me seguir até o lugar
onde estive. Ainda assim alguém deu um jeito de segurar minha mão. Eu me
agarrei a ela, trêmulo sobre o abismo, queimando.
Nunca soubera, nunca sonhara.
Nunca.
Mãos queimadas, costas queimadas, pernas marcadas até o osso. Careca,
claro. E meu rosto. Meu rosto. Um chumaço pastoso, lívido, cheio de bolhas e
nódoas, com nariz de palhaço, sem queixo, dois pequenos olhos aquosos
movendo-se incrédulos. Sim, eles permitiram que eu me visse. Isso aconteceu
depois. Eles me deram um espelho. Imagino de onde ele teria surgido. Era
redondo, com um cabo de plástico cor-de-rosa e o fundo em forma de leque,
como uma concha marinha. Eu não acho, não, eu não acho que pertencesse a
ela, apesar de ter sido ela que o colocou em minha garra intumescida. Quando
terminei de examinar meu rosto e virei o espelho para baixo, fiquei assustado
com o brilho metálico.
- Papel estanhado - o dr. Cranitch explicou. - Para impedir a perda de calor.
Uma técnica nova.
Mas ele estava atrasado novamente.

Eu gostava das noites. O silêncio era distinto daquele que reinava durante o
dia, quando não era silêncio de verdade, mas interrupção, como se as coisas a
minha volta segurassem a respiração, atônitas, caladas de admiração. Durante a
noite um grande nada brotava como uma flor. O quarto era mal iluminado.
Quando virei a cabeça, quando fui capaz de virar a cabeça, pude ver a porta
aberta e depois um outro quarto, ou um corredor, escuro, no final do qual havia
uma mesa, com alguém sentado vestido de branco que jamais se mexia, mas que
mantinha a vigília por toda a longa noite. Uma lâmpada esverdeada na mesa
lançava seus raios para baixo, só dava para ver seus ombros e as mangas do
casaco branco, e algo em volta de seu pescoço, brilhante. Um raio de luz caia no
chão encerado, como o reflexo da lua na água escura.
Meu quarto ficava fechado de dia. Eu me esforçava para identificar o zunzum
vago para além da porta, vozes e passos, o ruído das máquinas. Havia uma
escada ali perto, e no andar de cima pessoas subindo e descendo. Como elas
pareciam atarefadas! Uma vez alguém gritou, um uivo longo, desolado, que
ergueu-se como um foguete vermelho, mais e mais, depois hesitou e caiu
devagar até virar um gemido. Isso foi o máximo, naqueles dias, o dia do grito.
Eu não estava só.

Gritei também, preenchendo o dia de alguém, sem dúvida, levando a ele um


certo consolo, um sinal de companheirismo. Ficou claro que eu iria sobreviver:
se podia gritar, eu ia viver. Ela veio correndo, no ato, com sua sola de borracha,
e esvaziou uma ampola de Lâmia dose dupla em meu conta-gotas. Já era noite
quando acordei de novo. Ela estava em sua mesa, cabeça cortada pela lâmpada.
Imaginei que era sempre ela. Todas as mãos eram a mão dela, todas as vozes, a
sua voz. Levou muito tempo até que eu começasse a distinguir os outros, a
diferenciá-los dela, quero dizer. Eu mal os notava. Foi ela que me manteve vivo.
Ela ficou comigo, e não largou minha mão, até que finalmente eu consegui
subir, saindo do poço.
Semanas, semanas. Eu podia sentir o verão passando lá fora, os lentos dias
caindo, um a um. Os visitantes chegavam ao anoitecer. Eu os ouvia caminhando
pelos corredores, seu passo pesado, oscilante. Eu pensava em procissões
religiosas. De vez em quando eu até conseguia capturar o cheiro das flores que
traziam. Eles não se demoravam muito, e passavam por mim de novo, com
passo mais leve. Poucos ficavam até que tocasse a campainha. Em seguida o chá
era servido, as atendentes cantavam. Um murmúrio vinha da capela, quando
rezavam o terço. Eu ouvia, mal respirava. Pensava nos outros, pois sabia que
devia haver outros, ávidos como eu por aqueles sons derradeiros, as últimas
gotas, perdendo-se na areia.
Agora eu não conseguia dormir, eu, que havia dormido por tanto tempo. Eu
erguia paredes de números, tijolo a tijolo, para manter a dor afastada. Todas elas
desabavam. Equações se partiam ao meio, zeros surgiam como buracos.
Eu sempre era deixado no meio do entulho, de cara para a escuridão.

O padre Plomer me visitou. Abri os olhos e lá estava ele, com as pernas


cruzadas sob a saia negra, reluzente, de sua batina, e suas mãos pálidas, sem
pelos, agarradas ao joelho. Ele sorriu para mim, movendo a cabeça, encorajador,
como se fosse um hipnotizador, e eu seu cliente saindo de um transe. Eu não
podia ver seus olhos, ocultos pelas grossas lentes de seus óculos. Ele se inclinou
para a frente, com ar cúmplice, e falou calmamente.
- Como vai você, meu jovem?
- Quero morrer - disse.
- Como?
Tentei de novo, me esforçando para dominar meus lábios cheios de bolhas.
- Morrer - falei. - Eu quero morrer.
- Ah, não. Eles disseram que você vai ficar bom.
Enquanto eu dormia, as sereias cantavam para mim, ainda posso ouvir sua
canção suave.
- Não morra - disse o padre, sorrindo gentil, balançando a cabeça para mim. -
Não é uma boa ideia.

As enfermeiras eram animadas, animadas e rudes, ou talvez preocupadas. Mas


ela, não. Ela se movia com deliberada lentidão, falando pouco. Suas mãos eram
grandes. Era jovem, mais ou menos jovem, ou não era velha, pelo menos. É
difícil dizer. Eles riam nas costas dela, a chamavam de vaca. Ela falava com eles
num tom baixo, formal, seco, sem jamais olhá-los diretamente. Sim, supervisora,
eles diziam cuidadosos, os lábios cerrados. E ela seguia em frente. Seu rosto era
coberto de sardas, enormes manchas de cor café, bem como as costas das mãos.
Ela usava um crucifixo em uma corrente fina de ouro no pescoço. Ele balançava
a minha frente no dia em que ela cortou minha armadura de metal. Levou muito
tempo. Ela usou a tesoura e depois algodão, e eu virava e virava de novo. Seu
rosto era impassível, rígido de concentração. Eu não ouvia nenhum som a nossa
volta, como se o hospital inteiro tivesse sido evacuado para a ocasião. O sol
forte de verão banhava a janela. Um prato de níquel brilhou. A folha de metal
cedeu, um casulo que se abria. Chorei, gemi, lembro-me de uma tira de material
vermelho, saindo interminavelmente de minha boca. O dr. Cranitch apareceu
acima de mim, as mãos no bolso do jaleco branco.
- Muito bem - ele disse. - Você conseguiu sair dessa.
II

Uma coisa lascada, incompleta. Algo fora podado quando eu estava sendo
tratado. Eu não era isso nem aquilo, meio aqui, meio em outro lugar.
Extraviado. A cada dia, quando acordava, tinha que me reconstruir, me refazer a
partir de partes e restos, de memórias, sensações, palpites. Agora sei como
Lázaro deve ter se sentido, parado ao sol do meio-dia com sua mortalha, com
dor de cabeça, confuso, desconfiado, ainda carregando a lembrança vívida de
outro lugar, incerto se aqui era melhor do que lá.
- Você teve sorte - disse o dr. Cranitch com seu jeito cansado. - Queimaduras
profundas como as suas destroem os nervos.
- Mas eu posso sentir - falei.
- O quê? Onde, mostre.
Ele ergueu os óculos e observou o local que eu indicava.
- Não, não - disse. - Impossível. Isso é só ilusão sua.
Ele estava sentado ao lado do leito em uma banqueta giratória. Estava
fazendo sua ronda, de paletó de tweed, gravata de laço estreito. Alto, magro,
pálido, com um osso descarnado pelo mar. Um ar remoto de surpresa. Aquele
sorriso abatido, como se estivesse recordando uma piada velha, sem graça. Ele
me tocou com suas mãos frias, fazendo com que eu virasse de um lado para
outro, um escultor com um monte de gesso. A persiana estava abaixada, o ar
abafado.
- Nós temos muitas esperanças - disse. - Não é verdade, enfermeira? Sim,
muitas esperanças.
Ela não disse nada... Uma brisa cortante dedilhou minhas costas esfoladas.
- Amanhã, então. Amanhã vamos começar.

Eu me lembro do retinir metálico dos instrumentos, o cheiro acre, químico, o


brilho das luzes facetadas sobre mim, como um sol forte varando a chuva.
Fiquei consciente todo o tempo, dia após dia. A atmosfera neste quarto alto
tinha um jeito curiosamente neutro, como se o próprio ar tivesse sido tratado
com um gás antisséptico. Uma das enfermeiras, de tempos em tempos, retirava
os óculos do dr. Cranitch e limpava as lentes, enquanto ele ficava olhando o
vazio, as mãos moles para cima. Aí ele se debruçava novamente sobre mim,
hábil, suave, um pouco distraído, por vezes resmungando. Seus alunos
acompanhavam o trabalho, furtivamente amontoados. Eu pensava maravilhado
nas pessoas nas ruas, cuidando impávidas de suas vidas. Como eu, antes,
enquanto mundos se debatiam em agonia.
Enxertos. Fórceps. Gaze. Ouço estas palavras, e ainda tremo.
Agora era hora de um novo tipo de dor, o irmão maior da dor, que me pegou
em um golpe brutal e me puxou de um lado para outro, não iria aceitar nenhum
argumento, até meus anjos ministráveis ergueram as mãos, impotentes, ante o
furioso ataque.
Assim foi a convalescença.
- Sim - o dr. Cranitch murmurou -, os pontos estão ótimos.
Eu não consegui erguer meu braço esquerdo acima da altura do ombro, o
direito era um bastão marrom retorcido. Eu não tinha mais mamilos. Metade da
pele de minha barriga se fora, para remendar minhas pernas, minhas costas. Meu
rosto era agora uma máscara carnavalesca reluzente, com testa de porcelana e
bochechas imensas, nariz aquilino, cavidade ocular morta. Acima dele, o crânio
era um capacete de couro com tufos, a pele escura e vítrea, como lama seca.
- Vai cicatrizar - o dr. Cranitch disse. - Ficar como novo, ou quase.
Mas ficou diferente. Eu era um outro, alguém que eu conhecia e não
conhecia. Olhei no espelho. Eu me dava medo. Aquela cara de louco. Aqueles
olhos.

Meus primeiros passos, curtos, vacilantes. Andei até a porta como um


caranguejo, as mãos estendidas de medo, parei ali, de olhos fechados, e depois,
em pânico, voltei cambaleando para a cama, errei o local, caí no chão. Depois
voltei ao ataque, e falhei. Por um instante, porém, eu esquecera a dor. Ela estava
de volta agora, latindo e saltitando, e lambeu meu rosto lívido, novamente em
chamas.
Ela pegou minha mão, meu cotovelo. Seu toque masculino. Ela olhou para
meus pés, dentro de velhos chinelos de feltro cinza, inchados.
- Vamos lá - disse calmamente, sussurrando. - Vamos lá.
Que par nós dois fazíamos, aquela mulher grande larga, triste e eu torto e
manco, careca como um bebê.
- Não posso. Não posso.
Parei, levantei, não ia para a frente nem para trás. Ela esperava, sem dizer
nada; já havia passado por isso antes. Chegamos até a janela. Ela abriu as
venezianas, o estalo, quando as folhas se dobraram, fez com que eu rilhasse os
dentes. Sol brilhando lá fora, uma encosta gramada descendo até uma cerca e
uma parede, e depois, ao longe, a cidade mergulha em um halo azul. A cidade!
Demos, demais. No parapeito da janela havia uma jardineira com brincos-de
princesa e vespas. Demais. Eu deitei no chão e solucei, apertando a bochecha
encaroçada contra o piso frio de borracha.
- Vamos lá, agora. Tente.
Suas sardas, minhas chagas.
Comecei a explorar meu pequeno mundo. Havia um criado-mudo de madeira
ao lado da cama, uma cadeira de metal, um cesto de lixo com saco plástico
dentro. Em um nicho havia uma pia e um espelho parafusado na parede. Uma
rachadura exuberante, funda, prateada percorria o vidro, dividindo meu rosto no
meio, em diagonal, da testa ao queixo. O criado-mudo estava vazio, a não ser
por um caroço de maçã marrom e uma medalha presa a um alfinete. E o
caderno negro. A capa estava chamuscada. Eu fechei a porta ao vê-lo.

A srta. Barr era uma pessoa grande, loira, com bochechas coradas e olhos
saltados, de um azul pálido. Ela usava uma pequena túnica branca, calças
brancas desbotadas e sapatos fechados brancos, com solas grossas de crepe. Seu
cabelo cor de palha estava preso com firmeza atrás, em coque; eu a imaginava,
logo de manhã, quando saía da cama, prendendo-o, agarrando-o e dando-lhe um
belo golpe, forte, esticando a pele nas têmporas, fazendo com que os olhos
saltassem. Ela cheirava a sabonete, curativo, linimento. Eu costumava sonhar
com ela. Meu eu adormecido curava-se a sua frente, fraco pela antecipação de
um sofrimento requintado. No primeiro dia em que veio ao meu quarto, ela
arregaçou as mangas e disse bruscamente:
- Muito bem, meu jovem. Hora da fisioterapia.
Pensei que ela era louca, não sabia do que estava falando. Ela pegou meu
braço, minha perna, pesquisando.
- Nossa, você fez mesmo um estrago de si. Mas não tema, nós vamos deixá-lo
novo em folha.
Subimos e descemos juntos, como dois lutadores decrépitos, gemendo. Ela
tinha propensão a peidar. Contou-me a respeito de sua infância, passada
principalmente com cavalos. Imediatamente, eu a imaginei, uma espécie de
centauro, correndo sobre o gramado, bufando. Às vezes eu me imaginava junto,
montando nela, o vento em meu rosto, ouvindo o bater dos cascos, sentindo o
enorme coração pulsando e embaixo de mim. Ela colocou o joelho em minha
espinha, sentou no meu peito, me jogou por cima do ombro.
- Puxe, puxe! - ela gritava. - Vamos esticar este corpo! Vamos fazer de você
um novo homem.

O dia em que saí do quarto. Um dia para ser lembrado. Sentei na cama, de
pernas cruzadas, com a mão no colo, os olhos fixos na porta e então vi a mim
mesmo, como se fosse uma outra pessoa, levantar, girar a maçaneta e sair
andando. Uma enfermaria comprida, de teto baixo, cheia de camas enfileiradas,
com sujeitos em cima delas, sentados, olhando para mim. Todos aqueles olhos!
Eu estava esperando um grande vazio, halls imensos, uma figura solitária,
esquisita, desaparecendo. Um homem pequeno, de chinelo, e uma espécie de
bata, aproximou-se de mim. Pele curtida, olhos fundos, um pouco de cabelo
preto oleoso. Ele me saudou como se me conhecesse, sorrindo com um lado de
seu rosto fino e pequeno.
- Ora, ora - ele disse -, eis nosso homem misterioso.
Ele me guiou por entre as camas, apresentando os ocupantes. Não perguntou
meu nome. Ele era um cartão de visita, com vocação para a galhofa. Os mais
velhos davam risada, os jovens sorriam. Todos tentavam não me ver, minhas
cicatrizes.
- Vou entrar na faca - ele disse, mostrando a bata.
Ficou silencioso quando passou por algumas camas. Cabeças enfaixadas,
rostos de cera, olhos impenetráveis, fixos.
- Problemas no cérebro - ele sussurrou, sombrio.- Melhor ficar de olho neles.
Seu nome era Sykes, Stokes, algo assim. Ele me ofereceu uma ameixa, que
tirou de um saco em seu criado-mudo.
- Você sofreu um acidente, não é? - disse.
No dia seguinte, quando saí, ele havia ido embora. Os lençóis haviam sido
removidos da cama, a porta do criado-mudo estava aberta. Só sobrou um caroço
de ameixa, grudado no fundo do cinzeiro. A faca cuidara dele. Meu cicerone.
Não, meu Virgílio. Porque aqui, afinal, é o inferno.
Suspiros, gemidos. Gritos na noite. Um velho vomitando uma pasta verde,
inclinado para fora da cama, uma jovem enfermeira segurando sua testa.
Golfadas lentas, meladas, como o ruído de bombas de sucção defeituosas
trabalhando com esforço. Nos banheiros grandes, azulejados, brancos, pequenos
avisos pediam aos pacientes que não cuspissem na pia. Por toda parte, a mesma
tinta creme espessa, lisa como esmalte, porosa como a pele. Eu usava uma
camisola cor de rato com manchas vermelhas desbotadas. Alguém morrera com
ela, imagino, antes que fosse dada a mim. Eu andava, maneando pelos
corredores vermiformes, arrastando um pé. As pessoas desviavam os olhos de
mim, principalmente as visitas, os não-iniciados. Jovens franziam o cenho, numa
espécie de careta meiga, com se vissem um espetáculo de mau gosto. Eu seguia
em frente, puxando minha dor atrás de mim.
Dor tem cheiro. Plano, cinza, levemente doce; penso em uma mistura de
caspa e fezes. Era assim que eu reconhecia meus companheiros de sofrimento,
aqueles para os quais a dor era uma presença constante, um tipo de segundo eu,
fantasmagórico. Havia silêncio, também, de uma forma especial. Nós
sentávamos no que chamavam de salão de recreação, em grupos, sem fazer
nada, sem dizer palavra, e assim mesmo de algum modo em contato, como
participantes de uma sessão espírita.
Havia momentos em que eu imaginava ser apenas este ectoplasma, flutuante,
transparente, invisível aos sãos. Um dia achei o caminho para a maternidade e
me detive na parede de vidro do berçário, observando as fileiras e fileiras de
recém-nascidos com cara de ameixa em suas calças plásticas, e por um instante
fiquei confuso, um velho fantasma entrando em um novo mundo. Eles se
pareciam comigo! Eu apertei a testa contra o vidro, comovido. Uma mãe com
camisola cor-de-rosa olhou para mim e gritou, e eu fui levado, trêmulo,
silencioso, aquele pé arrastando atrás de mim, morto.
Pensei em minha morte. Pensei em Sykes, ou Stokes, que fora embora, levado
para a faca. Ele não estava mais em nenhum lugar. Certo, parte dele ainda estava
por aqui, no necrotério, provavelmente, e provavelmente ainda em melhor
forma do que eu, com metade da minha carne arrancada do osso. Mas o resto
dele, aquele sorriso, o olhar penetrante, as piadas, onde estava? Foi embora. Isso
era a morte. Nenhum desconhecido sombrio de capuz, nenhum amigo gentil,
nem mesmo o espaço vazio, com todo o seu potencial implícito, mas ausência,
apenas ausência. O nada, o lugar nenhum, o não estar aqui. Mas por que não
este algo me empurrando para a frente irresistivelmente, como se tudo, em
torno de mim, tornasse lentamente fôlego?
- Não morra - disse o padre Plomer. - Não é uma boa ideia.
Ele sentava ao lado da cama, olhando para mim animado, de pernas cruzadas,
balançando o pé grande, coberto pelo sapato preto. Ele era o capelão do
hospital. Tinha uma aura de água de barbear e vinho quente.
- É claro - dizia para me confortar - que a vida é uma coisa ruim, e
praticamente inútil. Mas, mesmo assim, devemos viver, do mesmo jeito.
Eu estava cansado dele, sua grande cara lisa e voz suave, seu distanciamento
genial.
- Para quê? - eu disse.
Rir era complicado, com uma cara como a minha. Não o faço com
frequência. Ele sorriu, comprimindo os lábios, como se mordesse uma pequena
semente com os dentes da frente.
- Porque - ele respondeu - precisamos ensaiar para a vida eterna que vem
depois!
Agora era a vez dele de rir; ele se recostou na cadeira, os óculos brilhando, ha,
ha, haa! Tive uma visão, seu rosto arrancado do crânio, a carne rubra, os
músculos, muco, o reluzir dos ossos, os olhos rolando.
- Acho que temos um jovem pagão aqui, enfermeira - ele disse. - Sim,
precisamos tomar conta dele.
Ela parou atrás de mim e olhou para a nuca dele, em silêncio, por um
segundo, depois deu as costas. Ele riu e riu mais, uma série de pufs suaves,
explosivos, os lábios arredondados, como se estivesse soprando anéis de
fumaça.
Ele me ensinou a jogar xadrez. Ele tinha um jogo de viagem, de plástico, nós
o colocávamos entre nós, na beirada da cama. Não demorou muito até que eu
aprendesse. Era uma espécie de geometria móvel. Ele jogava como um
principiante, mergulhando em cima do tabuleiro, fazendo movimentos
repentinos, bruscos, para depois voltar atrás com um riso amarelo, só para se
meter em uma encrenca maior.
- Você se sente melhor agora? - perguntou, franzindo a testa em meio a uma
confusão de peões. - Melhorou?, quero dizer. Xeque, por falar nisso. Será? Não.
Ele olhava como coruja para o tabuleiro, resmungando infeliz. O último
bispo dele fez um movimento para se libertar. Ele não havia percebido meu
cavalo.
- Sim - ele disse distraído -, a vida, a vida é...
O cavalo recuou, deslizou para o lado, parou em sua casa.
- Mate - eu disse.
Ele deu um gritinho de surpresa, erguendo as mãos.
- Ora, é mesmo! - gritou, rindo. - É mesmo!

Saia um pouco, me disseram. Sim, vá dar uma volta. Vá até a cidade, olhe a
paisagem, misture-se com as pessoas. Coisas simples, comuns. Tudo está lá,
esperando por você, por direito de nascença. Seja um dos viventes, um ser
humano. Eles me deram roupas, uma camisa, sapatos, calça, um casaco. Quando
me vesti senti uma espécie de convulsão excitada, como se eu tivesse posto não
apenas as roupas de uma outra pessoa, mas também a pele de uma outra pessoa.
III

Parei nos degraus do hospital. Um fim de tarde dourado de outono caía sobre
os telhados. Depois disso, para todo o sempre, eu iria pensar na cidade daquele
jeito, como os restos de um magnífico naufrágio, afundando. Minhas mãos
tremiam, enfiadas naqueles bolsos inesperados. Tanto espaço, tanta distância.
Eu estava tonto, sentia que, se caísse, cairia para a frente, no ar sem limites. Uma
horda de números desconexos zumbia em minha cabeça. Grama, árvores,
cercas, a estrada. A estrada! Um ônibus passou rápido, balançando na curva.
Poderia ter sido um mastodonte. As visitas da noite estavam chegando. Desviei
meu rosto deles, e me escondi na beira do caminho.

Ah, aquele primeiro outono. Céus suaves, vastos, galhos negros contra o azul,
uma sensação de espera e vaga dor, no ar luminoso, denso. Eu perambulava
pelas ruas como um amnésico, tudo era novo e ainda assim incrivelmente
familiar. Eu relembro principalmente a breve hora no final da tarde, quando os
balconistas das lojas já tinham ido para casa, e tudo estava fechado, e uma
quietude misteriosa cobria todos os lugares. Aí os mendigos e os bêbados
tinham sua chance, os catadores de lixo, as velhas frenéticas que viviam das
sobras das lojas, e aqueles homens esfarrapados, mas estranhamente fortes, com
queixos azuis e olhos alucinados, marchando pelo meio da rua, mexendo os
braços e resmungando furiosamente. Eles pareciam saber algo horrível, todos
eles, um tipo de segredo, cujo peso havia arruinado suas vidas. E eu era um
deles, ou quase. Um aprendiz, digamos. Um acólito. Eu os seguia horas a fio,
circulando em torno deles nas pontes dos canais, ou sob os arcos, onde
arrulhavam as pombas, e a poeira e os restos de papel giravam em redemoinhos,
e tudo era gasto e cinza e de cortar o coração. Não posso explicar o prazer
melancólico daqueles momentos, dos quais eu fugia rapidamente quando a
última luz do dia era sugada pelo céu, e a luz da rua chegava intermitente, no
crepúsculo azulado do outono.
Ah, as praças, as avenidas, os parques. A manhã banhada de sol, de névoa,
cheiro de calçadas lavadas, peixe, cerveja estragada. Passa um cavalo de tração
deixando cair bolas de estrume marrom. Confusão no tráfego. Um vento súbito,
sombrio, fazendo com que o dia escurecesse. Depois a chuva. O domo
aranhado das calhas do coreto, ameaçador. Novamente o sol, um clarão
molhado. Parada na esquina, perto da ponte. Um açougue, uma quitanda, um
banco de tijolos vermelhos, como uma casa de brinquedo de criança, com letras
douradas na janela e um grande relógio pendurado. Um trabalhador com uma
escada amarrada à bicicleta espera o sinal verde, assobiando. Um caminhão
treme ao parar, com um guinchar dos freios. O que será isto, esta sensação de
algo pendente, como se aqui um crime estivesse esperando a hora propícia para
ser cometido? A luz mudou. Percebo a lenta ruína das coisas, o interminável,
arrepiante colapso.
E depois as noites, prateadas e preto polido, os prédios sombrios agachados
sob uma lua tímida. Um luminoso de neon acende e apaga, em estranho silêncio.
Em algum lugar uma mulher ri. Nas ruas varridas pelo vento, ao longo do rio,
dois velhos maltrapilhos estão brigando. Eles pulam um pouco, cambaleantes,
mexendo os braços, a aba do casaco esvoaçando. Um forte estalo de punho
contra a carne, e um deles cai, o outro se anima, bate de novo, e mais uma vez,
com força. A rua molhada reluz. Um jornal voa ao longo da calçada, e bate em
uma cerca. Uma enorme gaivota passa na rua, olhando-me intrigada com o olho
redondo. Eu paro na porta de uma casa, espero, ansioso e apavorado. Alguma
pequena verdade suja está sendo vagarosamente revelada aqui. A gaivota
flexiona uma das asas, e a dobra de novo. O vagabundo caído no chão tosse e
tosse, escondendo o rosto. O outro fugiu. Um forte suspiro do rio, salpicando
água escura, que volta e bate de novo. Puxa! Um espírito conjurado?... Puxa!

Eu estava sentado em um banco de jardim quando o encontrei, quando ele


me encontrou. Era um fim de tarde de outono, a grama acinzentada de orvalho.
Eu estava ouvindo as árvores, seu farfalhar impaciente. Ele passou por mim
uma vez, voltou e passou de novo, retornou mais uma vez, devagar, e parou.
Rosto magro de raposa, bico de viúva e sorriso fino, tímido. Levou a mão ao
bolso, ergueu uma sobrancelha.
- Por acaso... - ele disse - já não o conheço?
Ele me observava, meu perfil de menino passarinho.
- Jamais esqueço um rosto, sabe.
Ele riu. Não fiquei surpreso ao vê-lo. Ele sentou do meu lado, ajeitando as
abas do capote surrado. Contei minha história para ele. Ele escutou, imóvel, as
mãos apoiadas sobre o joelho ossudo. A escuridão avançava pelo parque. Os
sinos da cidade badalavam, perto e distantes.
- Todo esse tempo no hospital, né? - ele disse. - Mas olhe para você agora, um
novo homem.
Um morcego passou de um lado para outro no espaço violeta.
- Me ajude - pedi.
Ele olhou para o gramado escuro, balançando a cabeça pensativo.
- Ora, Caliban - ele respondeu, -, você deveria ter vindo comigo quando o
convidei. Não disse que estava tudo acabado por lá, não o preveni? E veja só o
que aconteceu.
Ele deu um suspiro. Um grupo de crianças mascaradas saiu do meio das
moitas, gritando. Eu levei as mãos ao rosto.
- Me ajude.
- Você quer ser um garoto de verdade, né?
Ele se recostou no banco e cruzou as pernas, olhando para os ramos
sombrios no alto.
- A gente se divertiu bastante, mesmo assim, não foi? - ele disse. - Bons
tempos. Parece que tudo aconteceu há muito tempo. Ainda gosta das contas?
- Sim.
As crianças sorridentes retornaram e correram em círculos, dando voltas no
banco onde nos encontrávamos.
- Acho que querem brincar com você - Felix falou.
Ele se levantou, e elas fugiram para as moitas. Ele ficou parado por um
momento, olhando em volta no crepúsculo pensativo. Depois mostrou um
pedaço de papel e um lápis e rabiscou um endereço que entregou a mim.
- Fico aqui, às vezes - disse. - À noite. Não é longe.
Ele se afastou um pouco, parou, voltou.
- Está vendo? Eu falei para você, nunca esqueço um rosto.

A rua Chandos era curva, decadente, georgiana, com uma igreja protestante
em uma ponta e uma praça cercada na outra. Perambulei por ali noite após
noite, passando pelos postes de luz, observando a casa, aquela com o terraço
alto, com escada de granito gasto e porta da frente preta. Pessoas entravam e
saíam. Não, ninguém entrava, ninguém saía, a porta jamais se abria. De vez em
quando uma prostituta manca sentava nos degraus, cantando baixinho. Uma vez
me pediu fósforos e me chamou de bundão quando eu disse que não tinha. Nós
não éramos os únicos desocupados. Um casal surgia na esquina perto da igreja, à
mesma hora, todas as noites, um homem com cara de doente, trêmulo, e sua
garota arrepiada, cabelos desgrenhados, com pernas de gambitos. Eles ficavam
por ali mais ou menos uma hora, perscrutando ansiosamente a rua mal
iluminada, depois viravam e iam embora desconsolados. O sujeito começou a
me cumprimentar, tocando a testa com um dedo magro e tentando sorrir. Uma
noite ele me parou, segurou meu braço com a mão trêmula e olhou para trás
cautelosamente, como se estivesse a ponto de revelar um importante segredo.
Em vez disso, me pediu dinheiro. A garota não tirava os olhos inexpressivos da
minha barriga. Dei a ele um punhado de comprimidos de Empusa. Ele me
olhou maravilhado e assobiou baixo.
- Grande lance, cara - disse. - Vou rezar uma novena para você.
E havia uma outra garota, também magra, com pernas magras e rosto aflito e
pulso fino. Ela usava uma capa de chuva plástica, sapatos brancos e segurava
com força uma bolsa de plástico. Fumava e andava de um poste de luz trêmula a
outro, vigiando a rua, as casas. Ela me ignorava. O sujeito jovem, que tremia,
aproximou-se dela, e ela também o ignorou. Uma noite tentei segui-la. Depois
que ela passou uma ou duas ruas, virou-se repentinamente e subiu em um
ônibus. Eu me ocultei nas sombras e vi quando ela passou por mim, sentada
empertigada na janela, seu pequeno rosto fino e branco, cabelos negros como
corvo, curtos.
No final de uma semana, Felix finalmente apareceu, subindo a rua com o
casaco aberto e as mãos nos bolsos. A garota avançou rapidamente e o
encontrou nos degraus. Ele parou, o dedo erguido para apertar a campainha, e
recuou um passo. Ela falou com ele calmamente, ameaçadora. Atravessei a rua e
fiquei logo abaixo deles, na calçada. A garota ficou quieta no ato. Felix olhou
por cima do ombro.
- Meu caro amigo - disse -, você veio.
A garota virou-se alguns centímetros em minha direção, mas manteve os
olhos baixos. Houve um momento de silêncio. Felix olhou para um e para
outro.
- Vocês estão juntos? Não? Mas que coincidência, então.
Ele tocou a campainha, mas ninguém atendeu. Ele tocou de novo. Nós
esperamos. A garota, com um gesto furioso, abriu a bolsa e tirou uma chave.
Felix sorriu para ela. Ela o ignorou, enfiando a chave na fechadura.
Um hall desolado, paredes cor de oliva, uma lâmpada suja em uma luminária
de papel sujo, marrom. O carpete da escada estava rasgado. Nós entramos
silenciosos na penumbra. Felix ria sozinho, assobiando baixo. A garota andava a
nossa frente. Seu cabelo era eriçado atrás, em tufos, como se alguém tivesse
tentado arrancá-lo com a mão. Ela bateu na porta do terceiro andar, mas foi só
um gesto, pois ela também tinha aquela chave. Lá dentro estava escuro, a não
ser por um fraco brilho sádico penetrando pela parte de cima das altas janelas.
Felix acendeu a luz.
- Alô - ele chamou. - Você está aí, amigo?
Ninguém respondeu.
Havia caixas de papelão no chão, do lado de dentro, pilhas de livros e um
capote preto e um guarda-chuva pendurados em um cabide. A cozinha cheirava
a gás e linóleo e a coisas podres. Felix acendeu o fogo, abriu um armário. A
garota foi para o quarto da frente. Eu a segui. Ela ficou parada na janela,
olhando para fora. A torre da igreja brilhava na noite, contra um céu ácido.
Muita bagunça ali também, mais caixas, livros, pratos sujos na mesa. A garota
estava acendendo um cigarro. A chama do fósforo tremulava.
- Você me seguiu - ela disse. - Naquela noite.
Ela continuou a olhar pela janela. Seu pensamento parecia estar voltado para
outras coisas.
- Você não deveria ter me seguido.
Felix entrou, trazendo um bule de chá.
- Pronto! - disse animado. - Uma bela xícara de chá.
Ele usava uma velha capa de chuva e sapatos gastos, de bico fino. Ele
colocou o bule sobre a mesa, afastando para o lado os pratos sujos e os talheres
espalhados.
- Fazendo amizade, pelo que vejo - continuou.
Ele levou três xícaras até o fogão e despejou os restos no cesto de lixo.
- Não quero nada disso - ela falou.
Ele franziu a testa, olhando em volta, com exagerada expressão de surpresa.
- Não quer o quê? Ah, o chá, você quer dizer. Ah.
Ele riu sozinho e retornou a mesa, balançando a cabeça. Serviu três xícaras de
chá, dando uma a ela.
- Você sabia que nosso amigo também esteve no hospital? Ele já te contou? -
ele disse.
Pela primeira vez ela me olhou de frente. Tinha olhos pequenos, escuros,
apertados, um pouco vesgos. Ela me estudou por um instante, mordendo os
lábios. Sua capa plástica estava abotoada até a garganta.
A porta atrás de nós se abriu, e um homem pequeno, com expressão
ameaçadora, entrou. Ele usava ceroulas de lã e um cobertor no ombro. Seu
cabelo claro era eriçado, em tufos, e ele tinha uma barba ruiva, de três ou quatro
dias. Começou a dizer alguma coisa, mas em vez de continuar assoou o nariz.
Seus pés descalços eram pequenos, com unhas ossudas, amarelas.
- Ah, professor - disse Felix. - Pensamos que havia saído.
O sujeito baixo o encarou.
- Estou doente - falou.
Como se enfatizasse as suas palavras, ele espirrou com violência. Felix
apontou para o bule escuro na mesa.
- Quer chá, professor?
Desta vez o pequeno homem ignorou sua pergunta. A garota havia voltado
para a janela. Ele ergueu o cobertor, olhou para ela e depois para mim.
- Quem é você? - perguntou.
Felix tossiu.
- Este é o rapaz de quem lhe falei, professor. O senhor se lembra, não?
O professor abriu a boca e semicerrou os olhos. Nós esperamos, mas o
espirro não veio.
- Ah - ele disse azedo. - O prodígio.
Seu nome era Kosok.
IV

Já mencionei os ônibus? Gosto deles, o jeito com que passam pelas ruas,
soluçando e tremendo, como animais enormes, sérios, trabalhadores. Eu pegava
um, ao acaso, e ia até o fim da linha, no banco da frente, no andar de cima,
vendo a cidade se desenrolar a minha volta, as alamedas arborizadas e os
pequenos parques, os domos e torres e fachadas com arabescos. Passava por um
armazém, pela margem castigada do rio, depois por um beco com carros
estacionados e crianças jogando bola, sob uma ponte ferroviária enferrujada. Eu
me familiarizei com a metade superior das coisas, os mezaninos sujos das lojas
finas, os anúncios desbotados, de sabão, fumo para cachimbo e velas para
navios afixados nas paredes de tijolo. E depois os subúrbios, a vastidão cortada
pelo vento das mansões, com jardins dispersos, sapos pulando nas sarjetas e o
súbito reflexo de um espelho nas profundezas da janela de um quarto.
Quando relembro essas jornadas ao acaso, como sonhos, penso sempre na
garota. Quando deixou o apartamento na primeira noite, fui com ela.
Caminhamos pelas ruas escuras em silêncio. Quando passou o ônibus, subimos.
Éramos os únicos passageiros, a não ser por um bêbado deitado no banco
comprido do fundo. Acompanhamos a escuridão esmaltada passando pela
janela. Ela fumava um cigarro. Seu nome era Adele. Ela me olhou penetrante.
- Não sou judia, sabe - disse. - Não precisa ficar pensando que sou judia.
O cobrador disse que não era permitido fumar. Ela não lhe deu ouvidos.
Manteve o cigarro aceso em seus dedos magros, brancos, brincando com a
ponta com uma unha roída. Fomos para a margem do rio, sob as sombras
dentadas dos armazéns e guindastes. O bêbado acordou e ficou algum tempo
gritando, depois mergulhou de novo em seu estupor. O cobrador ia e vinha pelo
corredor, mastigando um palito, olhando muito para nós, para meu rosto, meu
cabelo desgrenhado, rindo sozinho. Adele mantinha os olhos fixos na janela,
brincando com o cigarro, brincando, brincando, tremendo de leve, como se uma
corrente elétrica fraca, contínua, passasse por ela.
- Eu o odeio - ela disse. - Aquele cabelo. O jeito dele andar, como se não
tivesse espinha.
Eu sabia a quem ela se referia.
Ela riu subitamente, um gritinho curto, de pássaro. Depois franziu a testa,
levantou rapidamente e deu o sinal. O bêbado resmungava em seu sono.
Descemos em uma esquina deserta, sob uma lâmpada. Havia um trecho de
muro caído pintado de azul e uma cerca de madeira bamba, com inscrições,
nomes, palavrões e corações flechados, e uma mulher gorda, partida, desenhada
com giz. Adele olhava em volta com ar preocupado, apertando a bolsa contra o
colo magro. Seus lábios ficaram negros à luz da rua. O silêncio da noite
acomodou-se no meio de nós dois.
- É aqui que você mora? - perguntei.
Ela me olhou surpresa.
- Não. Por quê?
Uma pontada de dor atingiu meu braço direito, como um cachorro velho
puxando a coleira. Eu engoli um comprimido.
- Onde você os consegue? - ela perguntou. - Isso aí? Ofereci um para ela. Um
Oread, o último do meu suprimento. Ela o examinou e o colocou na boca,
engolindo-o cuidadosamente, como se não fosse um comprimido, mas um
pouco da minha dor que eu estivesse dando a ela. Pela segunda vez me olhou
diretamente.
- Gabriel. Não é o seu nome?
Ela nunca sorria. Só sabia dar aquela risada, e de vez em quando fazia uma
careta, arregalava os olhos, agitada. Um ônibus se aproximava, do outro lado da
rua. Ela abaixou a cabeça e afastou-se de mim rapidamente, atravessando a rua,
os saltos de seus sapatos brancos tiquetaqueando no asfalto. Os faróis do ônibus
a iluminaram por um instante. Ela subiu e o ônibus desapareceu na escuridão.
Fui novamente ao cais na manhã seguinte, mas tudo parecia diferente durante
o dia; não consegui encontrar a esquina com o muro azul e a cerca de madeira.
Os guindastes e as laterais pálidas dos armazéns davam a impressão de coisas
reviradas, agitando-se desesperadas.

Felix foi comigo ao hospital, para a consulta semanal. Tivemos de esperar


bastante tempo, sentados em bancos de madeira, no hall dos pacientes externos.
Havia mães com crianças assustadas, jovens de terno, garotas com cara de
boneca e penteados impossíveis, as bocas pintadas de vermelho. Todos olhavam
fixos para a frente, com a mesma expressão, uma mescla de tédio, incredulidade
e medo. A porta a nossa frente se abria a intervalos e uma enfermeira aparecia
para chamar um nome; um garoto de muletas se levantava ou um velho
reumático trêmulo, arrastando-se para a frente com dificuldade. Aí todos se
moviam, deslizavam para o lado, e quem estava no fim de um banco pulava para
o lugar vago no banco da frente. Felix riu.
- Como em uma pequena capela - ele disse. - E nós todos vamos confessar.
Ele estava sentado, à vontade, com as pernas cruzadas e um braço estendido
ao longo do encosto do banco, sorrindo para os sujeitos que tossiam e as
garotas maquiadas. Cutucou-me e cochichou.
- Que turma, hem?
Quando chegou minha vez, ele se levantou, ansioso para me acompanhar,
mas a enfermeira o impediu. Ele foi até a porta do consultório e conseguiu dar
uma boa olhada para dentro antes que a porta fosse batida em sua cara.
- Que atrevido! - a enfermeira disse.
Mas ele sorriu assim mesmo.
O lugar estava cheio, como sempre, ajudantes de jaqueta branca andando de
um lado para outro, apressados, levando pastas sob o braço, os médicos em suas
mesas, extremamente aborrecidos, meio atentos aos relatos sussurrados de
pavores e suores noturnos e dores súbitas, insuportáveis. Um velho estava sendo
pesado, parado trêmulo na balança, segurando a cinta da calça com a mão
ossuda. Em um cubículo devassado uma velha gorda estava sentada na beira da
cama, entretida com suas ligas, enquanto uma enfermeira esperava, mexendo os
pés. O dr. Cranitch me fitou inexpressivo e consultou sua ficha.
- Ah, sim, Swan - ele disse. - Como vai?
Mostrei meus braços, minha canela. Os enxertos estavam firmes, a nova pele
se espalhava, um líquen rosado. Ele balançou a cabeça, resmungando. Pedi uma
receita. Ele cerrou os lábios e olhou através de mim como se não tivesse
escutado.
- Não consigo dormir - disse.
Ele balançou a cabeça.
- É possível que você queira ficar acordado - disse em tom ausente.
Ele dobrou meu braço direito, estudando a articulação.
- Muita dor?
Não respondi. Ele largou meu braço, debruçou-se sobre minha ficha e
escreveu alguma coisa, com sua caligrafia lenta, meticulosa.
- Você pode levar uma vida normal. Não há nada que o impeça.
Ele não olhou para cima. Seu modo de falar era neutro, sem paixão, como se
estivesse sozinho, experimentando as palavras só para ver como soavam.
- Me dê uma receita - pedi - Me ajude.
Mas ele continuou a escrever, lenta e cuidadosamente.
- Eu já o ajudei - murmurou.
Felix não estava na sala de espera. Eu o encontrei no corredor, fumando. Ele
me perguntou o que o médico havia dito, e quando contei ele soltou uma
gargalhada, jogou a ponta no chão e a pisou. Depois subimos, e a supervisora
me deu um punhado de comprimidos. Ela olhou silenciosa para Felix. Ele
sorriu. Na saída disse:
- Estas coisas, ela dá para você assim, sem mais nem menos, não é? Nenhum
registro, nada?
Chuva de novembro nas ruas, o tráfego fumegando e fungando. Ele gostava
de me ouvir contar as horas que passei na mesa de operação, as ataduras de
papel estanhado, o algodão e as tesouras. Ele piscava, rilhando os dentes, e
fechava um olho, acenando para mim, fingindo que queria que eu parasse.
- Mas eles o trouxeram de volta à vida - disse. - E aí você me encontrou de
novo. Você vê como são as coisas? Deus dá o frio conforme o cobertor.
As luzes estavam acesas no apartamento, em pleno meio-dia. O professor
Kosok andava de um lado para o outro, no quarto desarrumado da frente.
Usava calças pretas largas, sapatos de laço, uma gravata-borboleta ensebada.
Tinha um andar raivoso, gingado, suas pernas gordas balançavam, e movia os
braços, como se estivesse preso pelas axilas. Ele me encarou com seus olhos
pequenos, escuros, nublados. Adele estava sentada em uma poltrona perto do
aquecedor, usando sua capa de chuva plástica, debruçando-se para a frente com
os braços dobrados sobre os joelhos, olhando fixo para a resistência do
aquecedor elétrico. Havia sombras escuras em volta de seus olhos. O fogo
produzira um reflexo de diamante em sua canela. Havia um cinzeiro atrás dela,
no chão.
- Muito bem! - disse Felix contente, olhando para nós e esfregando as mãos. -
Aqui estamos de novo!

Adele me levou para conhecer lugares da cidade que eu jamais havia notado,
jardins murados no meio de edifícios comerciais, pequenos pátios de formas
estranhas, um cemitério saturado entre uma padaria e um banco. Ela andava
rapidamente pelas ruas, inclinada um pouco para a frente, seu pequeno rosto
esticado. De vez em quando parava e olhava em volta, curiosa, como se
esmiuçasse algo, um detalhe da cena. Ela pouco falava comigo, olhando de
esguelha para meu joelho. Fomos às grandes lojas de departamentos e
passeamos por entre os corredores iluminados, olhando silenciosos para os
cabides de roupas da moda e artigos de toalete e latas de alimentos, como se
fossem artigos de museu, as obras de uma remota era dourada. As pessoas nos
encaravam, as crianças grudavam nas saias das mães e apontavam, vorazes e
boquiabertas. Adele não ligava. Vivia na cidade como se fosse a única pessoa,
como se ela lhe pertencesse de algum modo, um imenso jardim, batido pelo
vento, deserto e decadente.
Jantávamos em um café ordinário, sentados nas mesas de fórmica atrás de
janelas embaçadas, no meio do cheiro de chá e pão quente e cigarro. Eu
observava as pessoas a nossa volta, os motoristas de caminhão de olhos
inchados, as garotas gordas de cabelos tingidos de louro e meias listradas, os
jovens atentos, cansados, em capas de chuva menores que eles. Comiam com
uma espécie de circunspecção tímida, curvados sobre o prato, as mandíbulas
trabalhando em movimentos circulares, rítmicos. Tinham uma aura depressiva,
chocada, que os envolvia, como se fossem sobreviventes de um desastre
horrível. Eu observava Adele também, discretamente, seu rosto fino, em forma
de coração, suas mãos infantis. Ela pouco comia, mas em compensação fumava
sem parar, bebendo xícaras seguidas de café preto ralo. Quando levava o cigarro
à boca ela fechava um olho, como se sentisse dor, e tragava fundo, com um
pequeno suspiro. Às vezes falava baixo, intensamente, os olhos fixos na janela
embaçada a seu lado. As pessoas a seguiam, dizia, os homens a cercavam á noite,
nas ruas, sentavam do seu lado no ônibus e a apalpavam, murmurando coisas.
Uma mulher de cabelo vermelho chegou por trás dela um dia e a amaldiçoou,
gritando e cuspindo em sua cara. E também havia os vagabundos, os catadores
de olhos alucinados, olhando para ela. Um negro parou atrás dela em uma loja
lotada e a apertou.
- Ele usava perfume - disse. - As palmas das mãos dele eram cor-de-rosa.
Nesse ponto ela soltou seu grito agudo de pássaro, sua risada, e me encarou
com aquele olhar fora de centro, carregado.
Mostrei a ela os lugares que costumavam frequentar, as ruelas e os arcos, as
ruas perto do rio, os caminhos de pedra ao longo do canal, onde eu vira os
mendigos e o maluco naqueles primeiros dias de outono, que pareciam agora tão
distantes no tempo. Ela foi ficando impaciente, virando indecisa de um lado
para outro, como se procurasse um jeito de escapar. Às vezes afastava-se de
mim abruptamente, como naquela primeira noite no cais, e subia em um ônibus
ou desaparecia em uma rua lateral. Não o fazia por raiva, nem por grosseria.
Acho que, de vez em quando, minha presença de algum modo obscurecia sua
mente. Eu às vezes ficava dias a fio sem vê-la, sem saber onde ia. Ela devia ter
um quarto em algum lugar. Ela insistia que não morava no apartamento da rua
Chandos, apesar de dormir lá com frequência, em um dos quartos encardidos do
fundo. Guardava suas coisas lá, também, jogadas no meio da confusão geral.
Havia uma mala cheia de roupas que era arrastada dos quartos para a sala da
frente e, depois, voltando pelo mesmo caminho. Tudo se movia de um lado para
outro assim, as roupas do professor, inclusive; o lugar sempre parecia ter uma
família grande, se mudando para lá, ou a ponto de ir embora. Adele abria
caminho no meio do lixo com seu passo sonâmbulo, como se estivesse
procurando algo e esquecido o que era. Uma noite me mostrou sua seringa, uma
peça antiga, fora de moda, com tubo de vidro graduado e agulha com proteção
de aço. Tinha uma caixa especial, como uma caixa de joias, com uma tampa que
fechava estalando e forro de veludo azul-escuro.
- Ele a arranjou para mim - disse.
Nós nos debruçamos sobre ela, as testas quase encostando, a contemplá-la
em silêncio. Depois ela suspirou e fechou a tampa, levando-a consigo para fora
do quarto. A noite de inverno estava a caminho. Eu podia escutar o ruído
distante do tráfego na hora do congestionamento. Os restos de um de seus
cigarros jaziam em um cinzeiro na borda da lareira. Ele nunca conseguia apagar
completamente as pontas, não importava com que força os esmagasse, mexendo
a boca.
Ela estava no quarto grande, vazio, nos fundos da casa. Havia uma cama
estreita no canto, uma única lâmpada fraca pendurada no teto. Um aquecedor a
gás assobiava. As grandes janelas não possuíam cortinas, dando para uma
confusão de jardins. A noite, como um gás negro, se espalhava pela cidade sob
um céu luminoso, cor de malva. Ela sentou-se em um dos lados da cama, a
cabeça abaixada, uma das mãos pendente, a outra repousando sobre o joelho,
com a palma para cima. Ela tinha tirado o vestido. Uma alça da combinação
caíra do ombro. Ela ergueu a cabeça na hora em que entrei, olhando em volta
distraída, com expressão indiferente. Passou a mão no cabelo.
- Eu o cortei todo uma vez. Mas cresceu de novo.
Ela piscou, franzindo a testa, e balançou a cabeça. Depois levantou, tirando a
camisola pela cabeça, jogando-a no chão, a seus pés. Punhos frágeis, tornozelos
frágeis, traseiro magro. Os ombros delicados, reluzentes. Ela colocara uma
atadura em um dos dedos do pé, onde havia estourado um furúnculo. Andava
de um lado para outro do quarto, deixando cair o resto de suas coisas, tão
desligada como sempre. Ela me parecia muito estranha agora, aquela cabeça
familiar no corpo desconhecido, magro, branco como amêndoa. Havia um
pequeno espaço triangular entre as pernas, abaixo do chumaço de pelos pretos.
Ela acendeu um cigarro. Quando eu a toquei ela se virou rapidamente, surpresa.
Sua boca estava aberta, eu a beijei desajeitado, sentindo o gosto do cigarro. Ela
não fechou os olhos.
Apagou a luz, e nós deitamos juntos na cama estreita. Ela estava tremendo.
Aos poucos as formas mal iluminadas do quarto saíram da escuridão, como
criaturas reunindo-se silenciosamente a nossa volta. Ela me abraçou com força,
mas, ao mesmo tempo, parecia me manter a distância, como se parte de sua
atenção estivesse em outro lugar, concentrada em algo mais, além de mim. O
lençol era pegajoso. Eu sentia frio e queimava. Minhas mãos tremiam. Eu lambi
suas pálpebras, suas axilas, pus a língua na sua orelha, no umbigo, na pequena e
fria concha na base de sua garganta. Quando eu quis tentar entrar nela, no
entanto, ela se afastou de mim, e houve um silêncio súbito, apavorante. Eu
tentei de novo, cautelosamente, mas ela se afastou de novo. Ela não permitiria
que eu a penetrasse, pelo menos não onde eu mais queria penetrá-la; e, no fim,
com um suspiro de impaciência, deu-me as costas.
Ficou na beira da cama, curvada e tensa, encarando a escuridão como um
animal atento, pronto para o perigo. Tomei um de seus seios pequenos e frios
nas mãos, minha boca estava colada em sua nuca. Sua pele tinha um cheiro
adocicado, adolescente. Eu tremia. A noite era escura. A janela olhava para a
escuridão lá fora, atônita. Um avião cruzou o céu, os motores zumbindo
esforçados; vi de relance suas luzes de rubi, na asa, passando pelo canto da
janela, lá no alto. Eu estava pensando em um momento, há muito tempo,
quando eu era criança, não havia nada de especial nele, não sei por que me
recordei daquele momento, numa curva da estrada em uma montanha qualquer,
à noite, no inverno, a estrada molhada, reluzente, e as folhas mortas caindo; e a
luz do poste da rua tremendo de frio. Ausência, eu suponho, o peso triste de
tudo o que não estava lá, eu acho que foi disso que me lembrei.
Nós nos vestimos em silêncio. O aquecedor a gás cantava sua canção aguda.
Minhas mãos ainda tremiam. Adele andava de um quarto para outro,
preocupada, procurando por alguma coisa. Estava com fome, anunciou. Saímos,
e ela comprou um saco de batatas fritas e sentou na calçada do lado de fora da
loja, devorando-as, os olhos fixos, concentrados no chão a sua frente, como se
não estivesse alimentando a si mesma, mas alguma coisa faminta dentro de si.
Fomos dar uma volta. Era uma noite fria, tempestuosa e clara. A lua cheia
aparecia e sumia entre as nuvens. Vimos uma briga do lado de fora de um bar e
encontramos uma mulher pequena empurrando um cachorrinho em um carro
de boneca. Em um terreno baldio um bando de bêbados estava sentado em
volta de uma fogueira, como um círculo de decadentes estátuas de pedra.
Paramos em uma ponte e observamos uma barcaça deslizar por nós, escura e
quieta, no rio escuro. Voltamos para a rua Chandos, e o jovem com cara de
doente estava lá, esperando na esquina, agarrado em seu casaco para se proteger
do vento, com a garota esquelética do lado. Ele tentou um sorriso amigável, a
boca torta.
- Alô, cara - ele disse. - Tem alguma coisa hoje? Sabe, a gente está mal, muito
doente.
Ofereci um frasco de Lêmures a ele. Ele o arrancou de minha mão, mas
quando leu o rótulo pensei que fosse chorar.
- Isso não - ele disse -, não presta. O outro lance, sabe? Que nem da outra
vez?
Ele estava suando. A garota começou a choramingar. Ele se voltou e mandou
que calasse a boca, a voz trêmula. Adele seguira em frente, de cabeça baixa.
- Não tenho mais - eu disse, afastando-me dele.
Ele veio atrás de mim, fuçando no bolso do casaco, tirando um relógio de
pulso, que meteu embaixo do meu nariz.
- Posso te dar isso - ele falou. - Vê? É de ouro.
Pus a mão em seu peito e o empurrei para longe. Ele ficou parado, de cabeça
baixa, acompanhando minha retirada. Soltou uma espécie de soluço e bateu o
pé.
- Pelo amor de Deus, cara...
Adele estava à porta. Conforme subi os degraus, ela entrou e a fechou
calmamente na minha cara.
V

Felix me abordou de surpresa uma noite, no hall. Havia algo que ele queria
me dizer, era hora de termos uma conversa. Uma porta se abriu lá em cima em
algum lugar, ele pegou meu braço e me arrastou por uma passagem escura, sob a
escada. Saímos em um pátio. Havia latas de lixo e um cheiro forte. Ele olhou
por cima do ombro, cauteloso, e piscou para mim, enterrando suas garras
trêmulas em meu braço.
- Precisamos tomar cuidado - disse. - Ele está sempre á espreita.
- Quem?
Ele riu.
- Quem? Quem você acha?
Eu o segui pelo pequeno jardim. Tudo havia crescido demais, estava cheio de
mato e sarça. Os esqueletos dos cardos do ano anterior levantam-se, espetados.
Os fundos das casas erguiam-se a nossa volta. O céu ainda estava claro. Uma
nova lua podia ser vista acima das chaminés. Felix colocou as mãos nos bolsos e
parou para observar o cenário.
- Existe ordem em tudo - disse. - Isso não é maravilhoso. Olhe para este
lugar. Parece um mato, mas há um jardim oculto.
Ele me olhou de lado, sorrindo.
- O que você diz?
Eu disse:
- Não sei.
Ele segurou novamente meu braço.
- Ah, mas você sabe, sim. Mais que qualquer outro.
Caminhamos por uma trilha, cheia de mato, e chegamos a um laguinho
encimado por uma árvore mirrada, desfolhada. Formas escuras moviam-se nas
profundezas da água. Paramos e nos debruçamos para olhar, e os peixes subiram
vagarosamente, como que saídos de um sonho, abrindo bocas frágeis,
esperançosas, as nadadeiras pálidas batendo fracas na água marrom-escura. O
rosto de Felix fez uma careta para mim, tendo uma boca de peixe no lugar do
olho.
- O que são os números, afinal? - perguntou - Música, por exemplo, é só uma
soma, não é?
O reflexo de bronze de uma nuvem navegou na superfície da água, e a lua
árabe estava lá, também, uma fatia em forma de chifre, brilhante.
Os peixes mergulharam de novo, vagarosamente, nas profundezas.
- Venha - Felix chamou -, vamos dar uma volta. Tenho negócios
importantíssimos a resolver.
O crepúsculo tornava conta das ruas, as luzes começavam a acender. Havia
um vento cortante e poças d'água na calçada. Andamos acompanhando a cerca
do parque, sob as árvores escuras. Felix apontou para a sarjeta.
- Sempre imaginei... quem é que remove os gatos atropelados da rua? Havia
um aqui, essa manhã, mas já se foi.
Ele parou, levando a mão em concha ao ouvido. A música soava fraca a
distância, um ruído débil.
- Ah! - ele disse. - Os anjos da anunciação.
Os funcionários dos escritórios estavam indo para casa, passando como
sombras pelo crepúsculo brumoso, correndo para suas vidas inimagináveis.
Atravessamos a rua, passamos por arcos enormes colunados e fachadas de
granito e viramos em direção ao rio. Duas figuras, com sobretudos compridos,
estavam paradas sob um poste de luz, examinando uma garrafa dentro de um
saco de papel pardo. A água borbulhava por uma fenda na calçada, onde um
cano havia arrebentado. Repentinamente, por um instante, vi o coração escuro
das coisas, e uma onda de alegria alucinada ergueu-se em minha garganta como
azia.
- O professor, sabe, é um caso perdido - Felix estava dizendo. - Eu estou
avisando, acho que ele não tem jeito. Uma pequena chance, ele diz, uma
pequena chance, e isso é tudo. Como se a chance pudesse ser pequena. Nós
sabemos mais, não é, Castor?
Passamos sob uma ponte ferroviária. Uma ruazinha exalava o cheiro azedo do
rio. A maré estava alta. Nós seguimos nosso caminho ao longo do cais, pelas
pedras cheias de limo, e paramos ao lado de um navio cargueiro enferrujado. A
proa curva balançava no alto, sobre nossas cabeças, afiada como a lâmina de um
machado. Felix perscrutou na escuridão e soltou um assobio baixo. Nuvens
apressadas passavam pelos trilhos lá em cima, como fumaça iluminada. Ele
assobiou de novo, e desta vez houve uma resposta fraca. Apareceu uma cabeça,
uma mão que acenava, e finalmente duas figuras desceram pela prancha de
desembarque, correndo silenciosamente na ponta dos pés. Felix moveu-se na
direção deles, mas parou e se virou para mim.
- Por falar nisso - disse -, o velho quer que você vá trabalhar com ele, não te
contei?
Os marinheiros eram homens baixos, robustos, com pernas e braços
arqueados. Um deles usava um pequeno boné com pala. Seu nome era Brand.
Ele tinha o rosto rosado e olhos tão próximos que quase grudava. Ele não disse
nada, só sorriu, mostrando a boca cheia de dentes quebrados. Seu companheiro
chamava-se Frisch. Tinha uma testa alta, um nariz proeminente e quase nada de
queixo.
- Meus caros amigos!... - disse Felix.
Frisch fez um gesto brusco com a mão.
- Ruhe! - ele rosnou. - Você quer que alguém nos ouça, porra!
Fomos para o Estrela do Mar, um bar pequeno e enfumaçado, com assentos
de plástico e quadros amarelados de navios nas paredes. O bar estava
barulhento, todos conversavam. Sentamos em uma mesa de canto, Felix trouxe
conhaque para os marinheiros, sentou-se e olhou enquanto bebiam,
tamborilando os dedos na mesa e sorrindo. Frisch, que parecia encarar tudo
com um ceticismo raivoso, profundo, enfiou o bico fino no copo e olhou em
torno de si carrancudo, para as paredes úmidas e quadros e faixas de papel de
parede coloridas. Ele me fitou também e disse para Felix:
- Este é seu experimentador, é? Seu chemiker? Felix riu suavemente.
- Ah, não, não - ele disse. - Meu... sócio.
E piscou para mim.
- Ja - Frisch disse azedo -, é o que ele parece.
Eles começaram a discutir sobre dinheiro, ou pelo menos Frisch começou,
enquanto Felix esperava e ria. No meio da multidão, no bar, alguém caiu, e
ouvimos uma vaia. Brand olhava em volta, com seu olho ciclópico, em uma
espécie de grata surpresa, erguendo seu boné de couro e coçando o cabelo cor
de palha, como se jamais tivesse visto um lugar como aquele, com tanta gente
contente. Ele bebeu mais um drinque e, batendo com o copo na mesa, cantou:

Es war eine Ratt' im Kallernest,


Lebte nur von Fett und Butter,
Hatte sich ei Ränzlein angemäst't
Als wie der Doktor Luther.

- Muito bem, Lars - Felix disse. - Continue cantando!

Die Köchin hatt' ihr Gift gestellt,


Da ward's so eng ihr in der Welt,
Als hätte sie Lieb' im Leibe.

Depois houve mais drinques, e os resmungos rancorosos de Frisch tornaram-


se ininteligíveis. Brand ergueu-se, colocou um pé na mesa e aproximou um
fósforo aceso do vão da perna e peidou, acendendo uma pequena e breve
chama. Depois sentou-se com um sorriso tímido, balançando os ombros
envergonhado, e abaixou a aba do boné, escondendo a cara.
- Bravo, velho incendiário! - Felix disse.
- Arschloch - Frisch murmurou, mordendo os lábios.
Brand riu de novo e abaixou a cabeça.
- Bebam - disse Felix. - Pip pip!
Frisch estava ficando cada vez mais furioso, olhando em volta incomodado,
com olhar assassino, falando sozinho. Brand começou a cantar de novo, mas já
não podia lembrar a letra. Seu humor tornou-se sombrio. Felix fez um sinal para
mim e levantou-se; depois de um momento eu o segui. Estava esperando por
mim na rua. Pegou em meu braço, sem dizer palavra, e caminhou comigo pela
lateral do bar. Logo Frisch saiu e ficou parado olhando para cima e para baixo
do cais, gritando bêbado. Depois Brand apareceu, respirou fundo o ar da noite e
vomitou em seguida na calçada. Felix riu. Nós nos retiramos por uma viela.
- A gente tem que aturar cada um quando trabalha! - Felix disse.
A lua estava alta, e um vento negro varria as ruas. Chegamos a uma esquina e
vimos que estávamos no cais de novo. Havia uma parede azul rachada, e uma
cerca de madeira, e uma mulher desenhada a giz. Nós paramos sob o poste de
iluminação.
- Você vê quanta diversão pode ter quando está comigo? - Felix comentou. -
Novos amigos, fugas noturnas, momentos divertidos. Só há uma condição. Ele
estava olhando para a noite escura. - É que você nunca leve uma vida normal. E
riu.
Duas figuras se aproximaram, cambaleando. Pensei que fossem Frisch e
Brand, mas não eram eles, e sim o jovem trêmulo da rua Chandos e sua garota
magricela. Felix avançou para encontrá-los, levando algo - algo, esta é boa!- no
fundo do bolso interno de sua capa de chuva. Ele e o outro sujeito conversaram
rapidamente. A garota esperou atrás. Em seguida eles desapareceram de novo na
escuridão e Felix retornou.
- Como eu digo - disse. - Que gente!
Andamos ao longo do rio e atravessamos a ponte. Não havia muita gente na
rua naquela noite fria. Um grupo de jovens estava parado na porta de uma loja,
cantarolando uma música natalina. Havia lâmpadas coloridas penduradas em um
fio, de um poste a outro, dançando e balançando ao vento. Sob a fachada escura
de um enorme edifício de escritórios decadente Felix parou e disse:
- Bem, aqui estamos nós.
Ele riu de meu olhar espantado.
- Eu o avisei - disse. - Ele quer que você trabalhe com ele. Prometi que você
iria. Agora você não vai me deixar na mão, não é?
Mostrou um lance de degraus que desciam para uma porta no porão do
prédio. Ele sorria. Ao longe, na noite tempestuosa, soavam sinos festivos.
- Não se preocupe - disse. - É o momento de começar, afinal!
Ele desceu os degraus, a aba do casaco esvoaçando, e apertou a campainha
com um floreio.

A porta foi aberta por um sujeito gordo, jovem, com malha amarela, chinelos
de camurça e gravata de seda. Tinha cabelo encaracolado e uma cara larga,
flácida, com uma pequena boca úmida como uma válvula de abertura de um
complicado órgão interno. Seu nome - deixem que eu diga - era Leitch. Ele
olhou para Felix irritado e disse:
- Ele não está.
Felix apenas sorriu para ele e, após um momento de hesitação, deu de
ombros e afastou-se para que entrássemos. Quando dei um passo à frente, para
o claro, ele riu.
- Quem é este aí? - perguntou. - O fantasma da ópera?
Felix sorriu de novo, com os lábios comprimidos, e apontou um dedo para
ele, em uma censura jocosa. Estávamos em um corredor comprido, limpo, sem
nada, com paredes brancas e piso de borracha branca no chão. O ar vibrava
com um zumbido denso, sem som, que pressionava os ouvidos. Andamos até
uma outra porta, no final do corredor. Leitch vinha atrás de nós, podia-se
perceber seu olhar hostil. Ele chegou primeiro à porta, no entanto, deslizando
por entre nós dois com seus pés nos chinelos, como um bailarino corpulento, a
mão gorda erguida antecipadamente.
- Deem licença - disse em tom maligno.
A sala era uma caixa imensa, retangular, com um teto baixo feito de placas de
algum material sintético branco. O chão também era coberto por um piso
branco. Não havia janelas. A máquina estava protegida por gabinetes de aço
cinza, grandes, que tinham um ar sutil de surpresa. Eles eram tão grandes,
dispostos com tanta graça, que pareciam ter sido interrompidos no meio de uma
dança. Felix hesitou por um momento, à porta. Aquela sala era deles. Não
combinávamos com o lugar.
- Entrem - Leitch convidou. - Conheçam o monstro.
Ele riu malicioso, a boca rosa espumando, e afastou-se.
- Dê um tempo, meu chapa - Felix disse suavemente. - Você não vai mostrar
o lugar para seu novo colega?
Leitch olhou para ele, para mim, e novamente para ele com profundo
desprezo. Parecia que iria se recusar, mas algo no sorriso de Felix fez com que
mudasse de ideia. Deu de ombros, alisando furioso a gravata.
- O que ele quer ver?
Felix riu.
- Tudo, ora essa! - disse, voltando-se para mim.- Não é mesmo? Você quer
tudo!
A máquina era uma Reizner 666. Nunca vira nada parecido em toda a minha
vida, nem sabia que uma coisa daquelas existia. Mas ainda assim eu a reconheci.
Ela sussurrava nas profundezas de seu mecanismo, sonhando seu imenso sonho
de números. Tinha um cérebro, uma memória. Eu percebi isso. Leitch me
mostrou os rudimentos de seu trabalho. Eu mal o ouvi. A própria coisa falou
comigo, eu toquei seu coração e ela tremeu sob minhas mãos. Quando apertei as
teclas do console da impressora, a tecla bateu no papel com um toque suave.
Felix, ao meu lado, ria.
- Que brinquedo, hem? - ele sussurrou.
O professor Kosok chegou, com seu casaco preto, seu chapéu e seu guarda-
chuva esburacado. Parou ao cruzar a porta e nos encarou. Depois tirou o casaco,
jogando-o sobre uma cadeira, e veio ver os números que eu havia escrito.
- O que é este jogo? - indagou. - Isto aqui não é um brinquedo.
Ele estava olhando para Leitch. O jovem ficou embaraçado. Felix disse:
- Bem, eu vou indo.
E, com uma piscada, ele se foi.
VI

O professor Kosok sempre trabalhava à noite. Eu cruzava com ele


frequentemente durante o dia, em um dos quartos da rua Chandos, dormindo
em um colchão, sem lençol, sob uma pilha de cobertores e casacos, só com a
alto da cabeça e o nariz para fora. Agora eu também comecei a viver uma vida
noturna, na sala branca. O professor mal me notava. Vivia em um estado de
preocupação irada constante, andando para lá e para cá de colete e gravata,
fungando debilmente e esfregando a mão em sua cabeça desgrenhada. A
máquina estava ligada a outras similares, em outros lugares do mundo, e
repentinamente, no meio da noite, a impressora ganhava vida por conta própria,
matraqueando peremptória perguntas em código, como em sessão espírita. Ele
corria para o console e começava a responder excitado, mas não conseguia
operar o teclado adequadamente, sempre cometendo erros, para aborrecimento
progressivo da máquina, que costumava falar rudemente com ele, e depois calar-
se abruptamente em seu silêncio teimoso, até que Leitch, com uma expressão
amuada, vinha e apertava as teclas corretas. Então, durante horas, folha após
folha de número caía na bandeja, cada uma se dobrando sobre a companheira
com um suspiro idêntico, sedoso. Quando terminava a transmissão Leitch e eu
pegávamos os números e os estudávamos dias a fio, procurando intricados
padrões de correspondência e repetição. Algumas vezes não buscávamos mais
que a repetição de um único valor.
- Trufas - o professor costumava dizer, com um sorriso torto. - E vocês são
os porcos.
Era sua única piada.
Mas ele parecia querer apenas trechos desconexos, oásis de ordem em um
deserto de acasos. Quando tentei mapear um padrão genérico ele tornou-se
rude, jogou seu lápis no console e saiu batendo os pés, fumegando. Eu me virei
para Leitch. Ele fez uma cara pensativa, encostando um dedo na testa.
- Nós estávamos á procura do sentido da vida - ele disse.
E depois riu e me olhou com desprezo.
- Como é que posso saber o que ele está fazendo? O gênio aqui é você, então
você tem que me explicar. Estatísticas, probabilidades, chances ínfimas, sei lá.
Por que não pergunta a ele? Ele é meio doido, de qualquer maneira.
Mas não adiantava fazer qualquer pergunta ao professor, ele fingia não ouvir,
e dava as costas, resmungando.
A animosidade de Leitch era pura e desinteressada. Ele a dirigia
igualitariamente a todos que se aproximavam dele. Era como uma tarefa que
tivesse sido confiada a ele, maçante, da qual não pudesse se descansar. Seu nome
era Basil. Sofria de ataques de falta de ar, que tentava esconder de mim. Seus pés
também iam mal, havia algo errado com a curvatura, ele usava chinelos como
patins, balançando o volumoso fundo da calça. Tinha uma expressão sofredora,
lustrosa, que falava de longas sessões no banheiro, de desnudamentos e sujeiras,
e olhares cinzentos para um espelho cruel. Usava uma pulseira de ouro e um
anel com duas mãos de ouro segurando um coração de ouro. Ele se consolava
com comida. Ele comia sozinho; um sibarita lúgubre sentado em um canto
distante da sala com um saco plástico no colo e um guardanapo de papel preso
sob a gravata. Levava sanduíches, tortas de carne, bolos, coxas frias de frango.
Eu o imagino em um quarto ensebado em algum lugar, alguma outra rua
Chandos, fatiando e passando manteiga, conforme a luz diminuía, em mais uma
tarde solitária de inverno. Mesmo assim havia algo quase impressionante em sua
intransigência, em sua pobre autossuficiência. Mordendo um pêssego
machucado ou engolindo um punhado de uvas rubras, ele tinha o ar de um
imperador arruinado, com aqueles cachos, com a cara grande, pálida, e olhos
magoados, ressentidos.
- Faça seu serviço, tá legal? - ele disse. - Apenas faça seu serviço, e me deixe
sozinho.
Eu raramente falava com ele, à noite.
- Que serviço? - perguntei. - Isso é um serviço? Ele se voltou para mim com
os olhos vermelhos.
- Você está aqui, não está? - rosnou. - O que mais você quer?
Nada. Eu não queria nada. Eu era quase feliz ali. Como as noites eram
calmas, só com o murmúrio da máquina e os resmungos baixos do professor,
tendo tudo a nossa volta mergulhado na escuridão. Poderíamos estar um
quilômetro abaixo do oceano. Não víamos ninguém. Vivíamos nas horas
mortas. Os verdadeiros usuários da máquina eram aqueles que vinham durante o
dia, dos escritórios de cima. Eu pensava neles e procurava seus traços. Às vezes
havia uma xícara de café deixada para trás, ou um cinzeiro onde um cigarro
fumado pela metade se auto extinguira, deixando uma frágil cinza fóssil e um
cheiro de alcatrão. Numa noite cheguei e encontrei um pulôver amarelo
dobrado nas costas de uma cadeira, alguém o esquecera. Não mexemos nele, até
mesmo Leitch evitou tocá-lo, e conforme a noite avançava, ele se tornava uma
presença mais e mais marcante, numérica, inconstante como um par de asas
douradas.
A máquina também era uma presença, uma grande besta pacífica, presa em
sua jaula branca. Ela tinha sua própria voz, o débil sussurro do banco de
memória funcionando, os estalos e toques da impressora. Um dos discos de
memória emitia um gemido agoniado quando era ligado pela primeira vez. E
sempre havia aquele zumbido denso, que fazia com que o ar vibrasse. Às vezes,
de madrugada, quando um ou outro de meus membros começava a cantar,
como uma vara em chamas canta no fogo, parecia a mim ouvir uma espécie de
assobio, como uma nota baixa, sustenida, como se a voz da máquina e a voz da
minha dor tivessem encontrado um tom comum. Quando algo dava errado,
deveríamos chamar um técnico, mas nunca o fizemos. Em vez disso, Leitch
pegava seu alicate e chaves e mergulhava na intimidade delicada, passando pela
teia de botões e feixes de fios finos como cabelo, até chegar ao centro secreto.
Ai, por um momento, esquecido de si mesmo, ele se transformava, ajoelhado no
meio daquela luz branca, absorto, compenetrado, como um figurante na fimbria
de um nascimento luminoso. Ele falava com a máquina em tom baixo, irado,
xingando e praguejando. Ela sempre desistia. Ele se sentava nos calcanhares,
com suor cinza a escorrer da testa pelo lábio superior, limpando as mãos, os
ombros gordos arqueados e olhos mortos.
Eu trouxe o caderno negro, e nas horas vagas percorria novamente os
problemas antigos, insolúveis, brincando com eles, movimento a movimento,
como um jogo de grandes mestres. O infinito continuava sendo o infinito, o
zero ainda abria claros, voraz como sempre. O professor parou atrás de mim,
espiou por cima dos ombros.
- Ah - ele disse. - Coisas antigas. Histórias.

De madrugada, sem uma palavra, nós três seguimos nossos caminhos


distintos, o professor enrolado em seu casaco preto, Leitch com sua sacola de
comida vazia sob o braço e eu atrás deles, zanzando. Eu gostava de andar pelas
ruas nas primeiras horas do dia. O vento varria a calçada, duro e cinza como
osso, e as gaivotas ciscavam nas sarjetas. Os sinais de trânsito floresciam de
verde e vermelho e verde de novo, silenciosos como flores. Um carro solitário
passava por mim, o motorista duro como um manequim atrás de um para-brisa
percorrido por reflexos do céu cinza frio e das nuvens cor de papel. Às vezes eu
ia até a rua Chandos, esperando que Adele estivesse lá. Em vez disso eu sempre
encontrava o professor, sentado à mesa perto da janela grande da cozinha, ainda
de casaco e chapéu, olhando para a rua, uma caneca de chá esfriando nas mãos.
Esses encontros eram um pouco embaraçosos, inexplicavelmente.
Adele nunca perguntou onde eu ia à noite, e eu nunca perguntei onde ela ia
quando desaparecia por dias a fio. Acho que, quando eu estava longe dela, ela
me esquecia. Oh, eu não quero dizer esquecia, exatamente, mas que ela perdia
contato com algo, algum aspecto essencial da minha existência. Pois era isso que
acontecia comigo, alguma coisa dela sumia da minha mente, ela ficava
transparente. Mesmo quando estava em meus braços, ela de alguma forma
estava ausente. Eu nunca tive, nem por um instante, sua completa atenção.
Talvez acontecesse o mesmo comigo. Parece que eu não sobreviveria á força
total de sua presença. O que significa isso? Não sei, não sei... Há tanta escuridão
aqui. Ela olhava para minhas marcas como se não fizessem parte de mim, como
se fossem alguma coisa que grudou em mim, como um cachorro vira-lata. Ela se
erguia nos cotovelos e me estudava, tocando meu braço marcando ou passando
o dedo pelos caroços e cicatrizes de meu peito, franzindo a testa. Em que estaria
pensando? Ela não teria respondido. Um dia ela perguntou:
- Você achou que ia morrer, quando aconteceu?
Ela estava sentada na cama, com um cobertor nos ombros e um cinzeiro no
colchão, a seu lado. O dia lá fora estava amargo, sob um céu cinza-lápide, e no
jardim as árvores nuas tremiam. Penso naquele momento e volto para cá
novamente.
- Tem alguma coisa dentro de mim se gastando - ela disse. - Uma parte... se
gasta.
Eu a havia encontrado no hall. Ela usava bota de couro, boina e um casaco de
pele roído pelas traças. Seu estado de espirito era frenético, ela apertou meu
pulso com os dedos gelados e riu, e uma bolha de saliva saiu de sua boca e
estourou. No andar de cima tirei seu casaco. Rajadas de frio de fora caíram
como peixes prateados de uma rede. Na cama ela segurou meu sexo com as
mãos frias e riu e riu, jogando a cabeça para trás e oferecendo a garganta para
que eu me satisfizesse. Ela não permitia que eu a penetrasse, fechando as pernas.
Eu a apertei contra meu corpo, resmungando e gemendo, e no final, para me
acalmar, ela se ajoelhou impaciente e pôs a cabeça no meu colo, e eu me
derramei numa série de pequenos tremores voluptuosos na cavidade quente e
úmida de sua boca. Seu braço repousou em torno de meu peito, com sua trilha
de marcas de agulha correndo do cotovelo ao pulso, como a cicatriz pontilhada
de um arranhão de sarça coçado, e eu pensei na infância.
Felix estava no quarto da frente, descansando no sofá de crina, lendo jornal.
- Ah, você está aí, Grendel - ele disse. - Como tem passado? Sente-se,
converse comigo. Não nos vemos há bastante tempo, você esqueceu dos velhos
amigos.
Eu me sentei à mesa. Uma pomba desceu no parapeito do lado de fora e
olhou para dentro, o vento eriçando as penas de seu pescoço. Felix jogou o
jornal de lado e inclinou-se para a frente com as mãos comprimidas contra os
joelhos. Ele estava usando sua capa e um boné chato enterrado na cabeça. Havia
marcas fundas em suas têmporas, eu nunca as havia notado antes. Às vezes,
quando eu o olhava de perto, como agora, ele parecia um estranho.
- Como vai seu importante trabalho? - perguntou. - O professor te tratava
bem? E o cara gordo, ele gruda em você, hem?
Adele veio do quarto, descalça, com o casaco de pele. Ao vê-lo ela fez uma
pausa, depois veio até a mesa e procurou um cigarro na bolsa, com umas das
mãos, mantendo o casaco fechado com a outra. Ele sorriu para ela, curvando-se
para olhá-la no rosto. Ela disse:
- Como foi que você entrou aqui?
- Ah - ele disse. - Boa pergunta.
Ele continuou a sorrir. Houve um momento de silêncio. Adele fumava,
franzindo a testa de leve, os olhos fixos na mesa. Felix olhou para ela e para
mim, e depois para ela de novo. Ele riu.
- Fazendo farra, vocês dois, não é? - brincou. - Farra e folia, não é?
A pomba voou do parapeito com um rufar de asas. Felix recostou-se
novamente no sofá, a canela cruzada sobre o joelho, e pescou uma ponta na lata
de tabaco.
Perguntei-lhe:
- Por que você disse que ele queria que eu trabalhasse lá?
Ele acendeu uma ponta pequena e soprou dois cones grossos de fumaça pela
narina. Ele me olhou firme e sorriu.
- Porque ele queria. Que outra razão poderia haver?
- Ele não fala comigo.
- Ah, é só o jeito dele, sabe?
Adele sentou-se na frente do aquecedor elétrico, levantando um pé descalço e
depois o outro na direção do calor. A última réstia de luz do dia estava
morrendo na janela.
- É verdade - Felix disse -, posso ter exagerado um pouco. Mas eu não disse
que ele havia dito isso, não é? Eu só disse que ele o queria, o que é diferente.
Ele se levantou e andou até a janela, e ficou lá, de costas para o quarto,
olhando para fora, para o crepúsculo de inverno.
- As pessoas não sabem reconhecer o que querem - comentou. - É preciso
mostrar a elas. Eu tenho que... interpretar.
Ele me deu uma olhada por cima do ombro.
- É isso aí, Pinóquio - ele disse. - Diacho, é isso!
Adele riu de repente, um de seus gritos breves, agudos, e jogando o cigarro no
lixo, acendeu um outro. Depois colocou a mão na testa e abaixou a cabeça. Felix
ainda estava sorrindo para mim. A escuridão tomou conta do quarto.
VII

Agora eu só ia até o hospital quando precisava de uma nova provisão de


pílulas. Evitava o dr. Cranitch. A supervisora me olhava com seus olhos tristes,
sem dizer nada. Eu prestava toda a atenção nos avisos na parede do dispensário,
enquanto ela enchia os pequenos frascos cor de malva para mim. Ela punha um
pequeno chumaço de algodão em cada um e escrevia novos rótulos, com sua
caligrafia regular, de ginasiana. A srta. Barr perguntara por mim, dizia, bem
como padre Plomer. Não olhava para cima. Pela janela atrás dela eu podia ver o
gramado. Um facho de sol caiu na grama e se extinguiu imediatamente. Um
velho de muleta subia pelo caminho. Peguei os comprimidos. Ela observou
minhas mãos e afastou-se.
No portão um carro parou e Felix colocou a cara para fora e acenou para
mim.
- Mas que sorte - exclamou. - Entre, nós vamos a uma festa.
O carro era uma máquina castigada, barulhenta, tossindo e peidando em meio
a uma nuvem azul de fumaça de escapamento. O jovem que tremia estava no
volante. Sua garota sentava atrás dele, no banco de trás, apertada contra a janela.
Começava a chover.
- Vamos lá - Felix disse para mim -, não seja um desmancha-prazeres.
O nome do jovem era Tony. Quando entrei ele virou e piscou para mim.
- Oi, cara - disse.
Havia bolsas lívidas sob seus olhos.
Cruzamos o rio. Rajadas de vento castigavam a água azulada como aço, e os
pedestres na ponte caminhavam de lado, as abas dos casacos pingando.
- Tem umas pessoas - dizia Felix - que nós precisamos encontrar no Goat...
Tony riu, uma risada aguda.
- O Goat! - ele gritou.
A garota se encolheu, afastando-se de mim, olhando pela janela do seu lado
com a mão na boca. Ela tinha uma cara branca inexpressiva, olhos assustados e
um nariz pequeno, rosado na ponta. Seu nome era Liz. Grandes pingos de
chuva batiam no para-brisa.
- Droga de limpador - Tony disse.
E aí, abruptamente, a chuva parou e o sol saiu. Seguimos paralelo ao canal.
Os choupos ainda não tinham folhas. Grandes amontoados de nuvens cruzavam
os céus de porcelana. Felix virou-se para mim e me encarou.
- Foi ver a dama de branco, não foi? - disse. - Ganhou mais bombons dela,
não? Deixa eu ver.
Ele segurou o pequeno vidro de Lamia entre o polegar e o indicador,
olhando-o contra a luz como se fosse um vinho raro, e balançou a cabeça rindo
de contentamento.
- Você sabe o quanto valem estas coisas? Sabe? - perguntou.
- Valem ouro, cara - Tony respondeu, balançando a cabeça pelo espelho
retrovisor. - Puro ouro.
Ele queria uma. Felix riu.
- Anthony, será aconselhável?
- Porra, se é - disse Tony.
Ao meu lado Liz enrolava um cigarro com sua pequena máquina. Ela teve que
parar duas vezes e recomeçar. Depois ela derrubou uma caixa de fósforos no
assento. Por um instante pareceu que ela ia chorar. Tentei ajudá-la a catar os
fósforos, mas, quando estiquei a mão em sua direção, ela recuou apavorada e
ficou rígida de repente, desviando o rosto do meu, seu pequeno nariz rosado
franzido.
Íamos em direção às montanhas.
Tony pulava no assento, fazendo batucada com as costas da mão no volante.
- Uau! - ele disse. - Que lance!
Ele me olhou de novo pelo espelho, os olhos arregalados e brilhantes.
- Ouro - disse, girando o volante.
- Vê se fica calmo! - Felix gritou, rindo. - Assim, vamos todos morrer.
Deixamos a cidade para trás e subimos um morro alto, o velho carro gemia,
depois cruzamos um platô árido, marrom. O sol e a sombra se alternavam nos
picos mais altos. Os carneiros pulavam nos fossos a nossa passagem. Tony
falava baixo consigo mesmo.
- Ah, como é bom vir para o campo - Felix comentou. - As montanhas, as
montanhas, sempre me senti em casa nas montanhas.
Descemos uma estrada castigada pelo vento e paramos num pequeno oásis de
pinheiros curvados pelo vento. Havia um bar antigo, com janelas estragadas, e
uma bomba de gasolina velha na frente da entrada. As galinhas ciscavam em um
pátio manchado de óleo, no meio de uma dúzia de carros estacionados. Saí para
o ar frio, cortante. Uma rajada de vento balançou os pinheiros, e de repente, a
primavera.
O bar era escuro. Um rádio tocava em algum lugar. Figuras indistintas que
habitavam a penumbra olharam para nós cautelosamente, assim que entramos.
Um sujeito gordo de avental sujo surgiu em uma porta atrás do bar, mastigando
algo. Ele limpou a boca no avental e pôs as mãos grandes sobre o balcão,
olhando para nós com uma expressão que mesclava subserviência e astúcia.
Felix sorriu gentil.
- Dan, meu amigo...
Eu estava olhando para os outros fregueses, reunidos atrás de nós como
sombras, observando. Eles também eram da cidade. Tinham algo em comum
que eu podia identificar. Havia garotas parecidas com Liz e homens maltrapilhos
como Tony, mas não era isso. Pensei na minha temporada no hospital, as horas
que passei entre a irmandade dos doentes. Era aquele ar sombrio, nevrálgico, de
espera, suspenso. Aquele silêncio. Eles chegaram mais perto. Felix virou-se e os
estudou, sorrindo, um pé no trilho e os cotovelos plantados no bar.
- Olhe para ele - disse ao meu ouvido. - Sabem que o doutor chegou.
Tony foi para o banheiro. Os outros o seguiram, alguns aos pares. Ele não
voltou, demorando-se muito. A tarde chegava ao fim, o sol poente brilhou
avermelhado na janela, sumindo depois. Liz sentava-se em uma banqueta alta,
bebendo cerveja preta sem parar. Eu a peguei me observando. Desta vez ela não
desviou os olhos. Pediu um comprimido. Quando tirei o frasco, Felix colocou a
mão rapidamente sobre a minha, olhando feroz para nós dois.
- Isso é ouro, lembre-se - disse com um sorriso.- E aqui é terra de ninguém.
Uma espécie de alegria bêbada começou a se espalhar. Dois sujeitos jovens
deram os braços e dançaram como aranhas. Uma garota ria e ria. Dan, o dono
do bar, ficou atrás da caixa registradora observando com ar preocupado o
tráfego que ia e vinha pelo corredor do banheiro. Felix suspirou contente e
cantou suave:
"Oh, Deus, como são vãos nossos frágeis prazeres..." Depois Tony voltou
com as mãos enfiadas nos bolsos de sua calça justa, rindo e se retorcendo.
- A operação acabou? - perguntou Felix - Todos curados?
- Menos eu - Tony disse.
O tremor se espalhara de seu maxilar para seus braços, e agora uma das
pernas começava a tremer. Liz estava segurando sua manga.
- Ele me deu - ela disse, rindo -, ele me deu algumas...
Ele empurrou sua mão.
- Sai de perto de mim! - gritou. - Jesus.
Ele suava. Olhou para o rosto de Felix, suplicante, com um sorriso partido.
Felix riu e virou-se para mim.
- O doutor está doente - disse.
- Vamos lá - Tony sussurrou, rangendo os dentes. - Vamos lá, não...
Felix deu as costas para ele, calmamente.
- Mas Anthony, diga uma coisa, quem vai levar a gente para casa, se você ficar
feliz?
Os dois jovens que dançavam estavam, agora, caídos no chão, e ficaram
deitados de costas balançando os braços e as pernas debilmente no ar. Um deles
parecia chorar. Tony pôs a mão na testa. Liz o observava com uma espécie de
curiosidade embaçada.
- Vou ficar numa boa - disse. - Sério, eu vou...
Felix ergueu a mão.
- Está bem - disse -, vá se tratar.
Tony arrastou-se para o banheiro, cambaleando por entre a multidão
compacta. Havia estourado uma briga, ouviam-se gritos e pragas, e Dan movia-
se pesadamente atrás do balcão, agitando os braços. Uma garota com o olho
sangrando caiu de cabeça no chão. Alguém continuava a rir. Liz desceu do
banco com ar pensativo, cinzento.
- Oh - disse -, acho que vou vomitar.
E então, repentinamente, eu estava do lado de fora, na noite fria, negra de
esmalte, sob uma imensidão de estrelas. Podia sentir o perfume dos pinheiros e
ouvir o vento assobiando por entre os ramos. Alguma coisa se levantou dentro
de mim, gritando para a escuridão. E, de um só golpe, vi de novo, claramente, o
segredo que eu perdera de vista há tanto tempo: o caos não é nada mais do que
uma quantidade infinita de coisas ordenadas. O vento, aquelas estrelas, a água
caindo por entre as pedras, todo o movimento, o mundo decadente podia ser
equacionado. Avancei para a escuridão, os braços abertos e um abraço cego. No
gramado perto da bomba de gasolina uma mulher agachou para mijar. A briga
continuava não sei onde. Eu podia ouvir os gritos e gemidos. Felix apareceu na
minha frente com uma gargalhada sombria.
- Criaturas da noite! - disse. - Que música elas produzem!
Subimos pela estrada, ao vento, até o topo do morro. Dali podíamos ver as
luzes brilhantes da cidade, ao longe.
O vento batia no alto de nossas cabeças, zunindo por entre as aberturas do ar.
- Pense bem! - Felix disse em voz alta, como se estivesse se dirigindo a uma
multidão. - Não é satisfatório, não é valioso este mundo?
Uma lua recortada surgira; eu podia ver seu sorriso sob sua luz fraca. Ele
pegou em meu braço.
- Não te levo aos lugares, hem? - disse. - E mostro ou não as coisas que
acontecem? Benditos sejam os desajustados, pois eles herdarão a terra.
Depois Tony subiu o morro de carro, agarrado ao volante com os olhos
arregalados. Liz dormia, desabada no banco de trás. Felix entrou, mas eu
continuei na estrada escura, embriagado com o conhecimento do segredo da
ordem das coisas. O vento uivava, as estrelas tremiam. Eu me sentia como que
caindo para cima, para dentro da noite.
VIII

Todas as coisas contribuíram para me dar este conhecimento. Não há evento,


por menor que seja, que não tenha desempenhado sua parte na trama. Ou talvez
eu deva dizer: para me devolver. Por que eu não soube sempre, afinal de contas?
Desde o inicio o mundo foi, para mim, uma imensa fórmula. Concentre-se
bastante em alguma coisa, uma nuvem, um crepúsculo, um grito na rua, e ela vai
revelar seu segredo, suas equações intrincadas. Mas a diferença hoje é que não
são mais os números que se encontram no centro das coisas. Os números,
percebi finalmente, são apenas um método, uma forma de fazer. A coisa em si é
mais sutil, mais segura, mesmo, do que o mero modo da descoberta. E eu, eu a
teria encontrado, disso não tenho dúvida, mesmo que não soubesse, como agora
sei, a maneira. Seria uma questão de espera, pensei. Alguma coisa se abrira
dentro de mim na montanha, uma coisa paciente, infinitamente atenta; extasiada,
como uma flor escura abrindo sua garganta para a noite. Agora, quando a
primavera me envolvia rapidamente, a cidade ganhava vida, como um jardim,
corada e vibrante, impaciente, batendo o pé, com vagos tremores e giros para
todos os lados, no ar de aquarela, ligeiro. Deixei de lado o caderno preto, ele me
aborrecia agora, com sua sequência de contradições e pequenos paradoxos, suas
insinuações minuciosas. Por que deveria me preocupar com a natureza dos
números irracionais, ou ocupar por mais tempo meu cérebro com a charada do
que, na realidade, poderia ser uma quantidade negativa? Zero é ausência. Infinito
é o lugar onde ocorrem as impossibilidades. Tais definições eram o suficiente.
Por que não? Saí pelas ruas, andei e andei. Estava ali, no mundo imenso, o que
eu queria encontrar, que me esperava, aquela fórmula perfeitamente simples,
arrebatadora, iluminando a ponto de derreter a máscara das contingências. De
vez em quando parecia que a coisa iria explodir na existência, por conta própria.
E, com ela, certamente viria alguma coisa a mais; a metade morta de mim que
trago a meu lado permanentemente iria de algum modo ganhar vida, e eu me
tornaria inteiro, não sei, não sei, mas eu acreditava nisso, queria acreditar nisso.
A sensação era tão forte que comecei a achar que estava sendo seguido, como
se, realmente, uma presença difusa houvesse se materializado atrás de mim. Eu
parava na rua e virava rápido para trás, e imediatamente tudo assumia um ar
estudado de inocência, as vitrines das lojas e as fachadas das casas parecendo
suspeitas, planas e sem substância, como um cenário erguido às pressas. Mais de
uma vez me convenci de que vira uma sombra de movimento, a desvanecente
imagem que restou de uma figura escondendo-se atrás de uma entrada, ou
oculta pelo tronco de uma árvore. Aí, por um segundo, antes que eu tivesse
tempo de dizer a mim mesmo que eu havia imaginado tudo, sentia, arrepiado, a
presença de um outro mundo, mais perigoso, mais escuro, mesclado
invisivelmente com este feito de céu e folhas verdes e tijolo desbotado.
Tudo precisava mudar. O que mais eu havia feito a não ser vaguear? Agora,
finalmente, eu teria um propósito, ordem. Felix aprovou.
- É isso aí - disse, positivo. - O que eu te disse? Sabia que éramos parecidos,
desde o começo.
De repente vi o erro que vinha cometendo. Confundira multiplicidade com
unidade. Pois o mundo é como os números, as coisas que nele acontecem nunca
são tão pequenas que não possam ser divididas em coisas menores ainda. Como
eu pude perder isso de vista? Pesquisei o passado recente, a procura de padrões
que eu poderia ter deixado passar. Mas, como aconteceu uma vez com os
números e acontecia agora com os eventos, quando eu os desmontava, eles não
se simplificavam, mas espalhavam-se, e, quanto mais eu sabia, menos eu parecia
entender.
Eu me atirei ao trabalho na sala branca com paixão renovada. Haveria lugar
melhor para que a luz da certeza se apagasse? O professor retornava de um de
seus ataques de irritação.
- O que é exato nos números - ele disse - senão sua própria exatidão?
- Não - argumentei -, não os números em si, mas...
Ele cruzou os braços curtos e me olhou como uma coruja envergonhada. Seu
olho direito era maior que o esquerdo, fazendo com que ele parecesse estar
usando um monóculo.
- Então? - ele disse. - O que, diga a mim.
- Eu não sei - respondi. - Algo mais.
Ele fungou.
- O que mais há ali, a não ser números?
A impressora explodiu com sua vida de matraca, ele se voltou para ela com
uma carranca. Leitch me olhou de esguelha e grunhiu, enfiando um pedaço de
chocolate naquela pequena boca rosada, preênsil.
Foi naquela noite que a srta. Hackett veio nos visitar. Ela era uma mulher alta
e magra, de meia-idade, com um rosto fino proeminente e cabelos cor de latão
cheios de laquê. Apontou a cara na porta que dava para os escritórios do andar
de cima, com um pequeno sorriso que era ao mesmo tempo astuto e brincalhão.
Leitch, enterrado no console, sentou-se ereto e olhou para ela. Ela entrou,
fechando a porta atrás de si, e avançou de propósito em sua direção, com a mão
estendida, ainda sorrindo marota, os lábios comprimidos, como se fôssemos
crianças e ela tivesse entrado no quarto de brinquedos para nos dar uma bronca.
Usava um vestido de tweed, e uma blusa branca, rendada no pescoço. Tinha um
andar masculino, os saltos altos batendo bruscos no assoalho, numa série de
golpes rápidos, hábeis. Leitch levantou-se, escondendo a embalagem vazia de
sua barra de chocolate no bolso, com habilidade sub-reptícia.
Ela parou na frente dele com um estalo.
- Sr. Cossack - ela disse alegre -, sou Hackett. Muito prazer.
Havia uma mancha de batom em um de seus dentes grandes da frente. Leitch
tremia de medo e pôs as mãos nas costas.
- Oh! - ele disse. - Não, eu não sou...
Uma pequena falha surgiu no sorriso da srta. Hackett, como uma rachadura
diminuta em uma xícara de porcelana. Ela distribuiu um olhar inquisidor em
torno. Já havia percebido minha presença, sem me olhar diretamente. O
professor Kosok entrou, vindo do banheiro no corredor, ainda atrapalhado com
a braguilha. Por um momento não notou a presença dela. Ela esperou, sorrindo,
enquanto ele se aproximava. Quando ele finalmente a viu, parou de repente,
recuando um pouco, seu olho maior arregalado. Ela pegou sua mão e a sacudiu
uma vez, com força, como se vibrasse um chicote. Ela parecia acreditar que ele
era surdo, pois gritou ao falar.
- Hackett! - disse. - Pensei em dar uma passada para dizer alô!
Ele continuava a olhá-la com uma carranca surpresa. Ela soltou um pequeno
suspiro e olhou em volta interessada.
- Muito bem. E como vai indo nosso trabalho? Leitch e eu olhamos um para
o outro e imediatamente um tácito pacto foi feito entre nós. Em função de
todas as coisas que possivelmente a srta. Hackett representava, mesmo Leitch
sentia necessidade de um aliado. Ela carregava uma pasta debaixo do braço, uma
bolsa fina feita de couro macio, que lhe dava uma importância excepcional.
Ficou atenta ao console, apontando um dedo que terminava em vermelho.
- Este deve ser o centro nervoso, suponho - ela disse. - Parece tão
complicado!
Houve um breve silêncio. O professor grunhiu e deu as costas, gesticulando
para que Leitch lhe mostrasse a máquina. Leitch extraiu um sorriso insípido e
pigarreou. Antes que ele pudesse falar, no entanto, a srta. Hackett ergueu a mão
para calá-lo.
- Sim, muito obrigada - disse rapidamente, com uma espécie de polidez
metálica. - Acho que sou um caso perdido quando se trata destas máquinas.
O professor estava inclinado sobre a impressora. Vestia colete, em mangas de
camisa, as presilhas dos suspensórios a mostra. Meio de lado, ela o estudou,
olhando para ele por cima dos ombros.
- Só vim para uma visita - murmurou. - Só uma visita.
Ela avançou e parou na frente da impressora, ê por um instante ambos
observaram em silêncio as folhas cheias de números que surgiam.
- Como ela é rápida! - disse, debruçando-se para ver melhor. - E quanta coisa!
Sabe, ficamos impressionados com a quantidade de material que vocês têm
produzido aqui.
O professor Kosok grunhiu novamente e mais uma vez afastou-se dela. Ela
continuou a acompanhar a impressão, balançando a cabeça com ar teatral de
maravilhosa admiração. O professor sentou-se no console, respirando com
dificuldade, e começou a apertar as teclas com os indicadores rígidos, como um
pianista amador furioso. Leitch e eu ficamos cada um de um lado dele. A srta.
Hackett veio até nós e debruçou-se sobre seu ombro. Era como um pequeno
recital, poderíamos estar reunidos em torno do piano da sala.
- Mas, por outro lado - a srta. Hackett disse com uma risada cristalina -,
notamos uma certa falta de... resultados, digamos assim.
Ela aguardou, mas ele continuou a bater nas teclas, como se não tivesse
escutado. Ela respirou fundo e, pegando meu braço, me puxou para o lado com
firmeza, executando uma meia volta que a deixou em uma posição adequada,
meio sentada no console, de frente para ele, de braços cruzados e tornozelos
elegantemente entrelaçados. Ela ligou de novo seu sorriso amigável e, inclinando
a cabeça, o encarou, piscando para ele.
- O ministro - ela disse em tom jocosamente ameaçador -, o ministro gosta de
resultados.
Finalmente, ele ergueu as mãos do teclado com violência e, dando a volta
com a cadeira, olhou para Leitch soltando uma risada irônica.
- Resultados! - ele disse. - Ela quer resultados.
Ele se virou de novo e olhou para ela.
- Do que é que você está falando? - perguntou. - O que quer dizer, que
resultados são estes que o ministro espera?
Ela avançou, inclinando-se para a frente com súbita energia, unindo as mãos
em uma palma silenciosa.
- Mas esta é a questão - ela gritou excitada. - É isso que queremos que nos
conte! Percebe agora?
Leitch, por algum motivo, ria.
Ela saiu de sua posição no console, apertando a pasta com mais firmeza
debaixo do braço, passando por mim. Teve o cuidado de não me tocar desta
vez, lembrando-se, sem dúvida com mais nitidez do que gostaria, do toque
naquela coisa dura e seca dentro de minha manga. Ela desviou um pouco, a
cabeça baixa, pensativa, e depois virou-se, refazendo seu percurso lentamente.
- Todos nós temos consciência - ela disse - da honra que temos em contar
com sua presença aqui, com seu trabalho, uma pessoa da sua... sua... E, é claro,
em um caso destes, o custo não é o maior problema.
- Custo? Que custo? - gritou o professor. - Trabalhamos à noite.
Leitch tossiu.
- Nas horas vagas - ele disse suavemente.
O professor virou sua cadeira novamente e o encarou severo. A srta. Hackett
ignorou estas interrupções, franzindo a testa, fazendo o maior teatro para dar
continuidade a sua linha de pensamento.
- Mas nós temos nossos chefes, sabe - ela disse -, até mesmo o ministro tem
que prestar contas.
Ela parou na sua frente, sorrindo pensativa para ele, deixando que seu olhar
percorresse a sobrancelha irada, o olho arregalado, o maxilar cerrado com os
pelos loiros, a gravata-borboleta, as botas. Depois, num movimento rápido, ela
pegou uma cadeira e se acomodou, com a bolsa apertada con tra os joelhos, e
um ar de quem estava deixando todos os constrangimentos de lado e entrando
finalmente no assunto que interessava.
- Meu caro senhor - ela disse. - Entenda. Quando veio a nós, falou
inicialmente em desenvolver certas pesquisas. Tenho os documentos aqui
comigo.
Ela deu um beijo amigo na pasta, como se ela fosse a cabeça de um cachorro
de estimação.
- É vago - disse. - Os documentos são vagos. Estávamos confusos, na época.
O senhor, devo dizer, era o mais vago de todos.
O professor ergueu-se abruptamente e afastou-se dela, coçando a cabeça, as
pernas curtas movendo-se raivosas.
- Pesquisas sim! - ele disse. - Estou fazendo pesquisas! Você acha que eu
menti?
A srta. Hackett balançou a cabeça, ainda sorrindo educada.
- Não, não, não - disse calma, os lábios cerrados.- Mas que ideia! É claro que
não existe a possibilidade de... fraude. É só que esta máquina, entenda, custa
muito dinheiro, mesmo nas... - Ela olhou para Leitch, que respirou
constrangido.
- Nas horas vagas - ele completou.
Ela o agradeceu com um movimento quase gracioso da cabeça, seus cachos
ondulados balançando.
- Custo! - o professor disse. - Ora!
A srta. Hackett, discretamente, consultou o relógio, depois tomou fôlego e
tentou de novo. Ela falava com voz suave, devagar, fazendo uma pausa, um
ponto de interrogação, no final de suas frases.
- Só estamos perguntando - ela disse -, o ministro só está pedindo alguma
espécie de relatório dos objetivos exatos deste programa. Tudo o que nos
mostra parece tão... bem, tão confuso, tão... incerto!
Ao ouvir isso o professor fez um som sibilante com o nariz, como um
nadador tomando fôlego na superfície, e virou-se para ela furioso.
- Não existe certeza! - gritou. - Este é o resultado! Por que você não entende
isso, sua, sua, sua!... Droga, estou rodeado por malucos e crianças. Onde você
pensa que está vivendo, hem? Isto aqui é o mundo, olhe em volta! Olhe para ele!
Você quer certeza, ordem, tudo isso? Então, vai ter que inventar!
Ele se enfiou na cadeira, resmungando, movendo a cabeça de um lado para
outro e alisando a gravata-borboleta, as pernas balançando furiosamente. Houve
um silêncio. A srta. Hackett pigarreou delicadamente e tocou o cabelo com a
mão. Olhou de lado para Leitch, depois para mim, com um sorriso breve,
brilhante, corajoso, para nos mostrar como ela era paciente, como era calma, e
depois estudou o professor novamente, como se ele fosse um bebê enorme,
teimoso.
- Não tive nenhuma intenção de irritá-lo - disse.- Só vim para termos uma
conversa amigável. O ministro queria mandar outra pessoa, mas eu disse não,
não é preciso, por enquanto. Deixe que eu vá, eu disse, ele vai conversar
comigo. Afinal, de certa forma, trabalho com estatísticas.
O professor fez um gesto de desprezo.
- Ora, estatísticas!... - murmurou, balançando a cabeça.
- Mas, pelo que vejo - a srta. Hackett continuou- estava enganada. Na
verdade, perdi meu tempo não é? Sei que é tarde e preciso ir embora.
Ela levantou alisando a saia e apertou a pasta embaixo do braço. Leitch
inclinou-se para a frente, por um segundo pareceu que ele ia erguê-la e para
desculpar-se respeitoso, carregá-la no colo até a porta. Repentinamente o
professor soltou outra de suas risadas curtas, levantou e aproximou o rosto do
dela, apontando um dedo para mim.
- Ali! - ele disse. - Ele! Ele é a pessoa que procura, ele acha que os números
são exatos, e rigorosos, fale dele para seu ministro!
Eles viraram, os três, e me olharam por um momento, em silêncio. A srta.
Hackett franziu a testa. O professor balançou a cabeça de novo.
- E olhe para ele - disse. - Apenas olhe.
Eles poderiam estar na beira de um buraco, olhando para dentro. Depois a
srta. Hackett levantou-se e produziu um último sorriso metálico.
- Muito bem - disse ao professor -, boa noite, sem dúvida o senhor vai ter
contato conosco novamente, no momento apropriado.
A meio caminho da porta ela parou. Leitch, grudado em seus calcanhares,
quase a atropelou. Ela olhou para a sala, torcendo o nariz, como se reparasse no
local pela primeira vez. A impressora matraqueava, o ar zumbia.
- Que calabouço é este lugar - disse. - Não sei como podem aguentar!...
Depois que ela saiu, Leitch olhou para o professor com ar vingativo.
- Agora você estragou tudo - disse. - Ah, estragou mesmo, sem dúvida.

As coisas nunca mais foram as mesmas entre mim e Leitch depois daquela
noite. Era como se nós dois tivéssemos sido pegos juntos em uma tragédia
intensa, acidental, e que o perigo compartilhado nos forçasse a uma intimidade
tão esdrúxula quanto inevitável. Ele passou a conversar. Reclamava do
professor, chamava-o de velho fodido, contou os absurdos que ele havia feito
antes daquela noite. Ele sentava-se recurvado sobre o console, gordo e ferino,
resmungando. De alguma forma a visita da srta. Hackett havia feito aflorar toda
a sua amargura, e agora o veneno estava subindo a superfície. Ele não havia sido
bem tratado, nunca fora bem tratado. Estavam todos contra ele, todo mundo
contra ele só porque... mas aí ele parava e me lançava um olhar penetrante,
desconfiado. Seus olhos estavam fundos, mergulhados nas órbitas sombreadas
de violeta, vermelhos, e de algum modo viscosos, como duas lesmas marrons.
Ele falava na srta. Hackett também, baixo, em uma espécie de devaneio de
repulsa. Fazia piadas nas quais ela passava toda sorte de indecências. Seu
conhecimento da anatomia feminina era impressionante, Felix o chamava de
ginecologista equivocado. Ele punha a mão morna no meu pulso, rindo, e
aproximava a cabeça da minha orelha para contar mais uma das boas. Nunca
consegui dar mais que um sorriso constrangido como resposta mas não fazia
diferença, ele mal percebia, só queria ouvir sua própria voz dizendo aquelas
palavras. Quando Felix estava ali, no entanto, ele ficava quieto. Felix o
observava deliciado, seus chinelos, sua gravata, sua barriga enorme, o olho
perdido, aquático.
- Devo dizer, Basil - ele dizia -, o que faz um rapaz alegre como você em um
buraco como este, hem?
E piscava para mim, com um sorriso safado, punha os pés no console e
acendia uma ponta de cigarro de sua caixa.
Esperamos para ver o que ia acontecer. Quem viria depois da srta. Hackett.
Leitch esperava pelo pior, apesar de ele nunca ter dito exatamente o que achava
que poderia ser o pior. Uma noite o telefone tocou, até então eu sequer
percebera que havia um ali. O professor Kosok atendeu, em pé, ouvindo a voz
fina, irada, por um longo tempo, mordendo o lábio inferior, carrancudo. Ele não
disse quase nada, e no fim bateu o telefone. Quando tocou novamente ele o
tirou do gancho. Depois a quantidade de mensagens começou a diminuir, mal
dava para perceber no começo. De vez em quando a impressora parava
abruptamente, no meio de uma série de números, e ficava silenciosa por vários
minutos, com um ar sinistro de presunção e sabedoria. Leitch insistia em que
não havia nada errado, que não estavam transmitindo nada do outro lado, e o
professor gritava com ele, até que a impressora recomeçasse, como se nada
tivesse acontecido. O pessoal diurno ficava cada vez até mais tarde; uma vez,
quando cheguei, eles estavam saindo. Percebi a mão que fechava a porta e ouvi
seus risos na escada. Os assentos das cadeiras ainda estavam quentes.
Felix aparecia a qualquer hora, chegando às vezes no começo da manhã,
quando já estávamos terminando. Ele sempre parecia ter ficado acordado a noite
inteira, agitando suas coisas. Eu e ele saiamos juntos pela madrugada e
andávamos ao longo do rio cinzento, na névoa. Lembro-me daquelas manhãs
com clareza peculiar, o silêncio sobre a cidade, as gaivotas voando, a luz pálida
do sol de primavera lutando contra a neblina, o tom particular de lavanda no ar
denso sobre os telhados. Ele falava do professor, perguntava de modo oblíquo
sobre o trabalho que estávamos fazendo. Acho que pensava que eu andava
escondendo coisas dele, pois me olhava detidamente, sorrindo enigmático, a
cabeça para trás e uma sobrancelha hirsuta arqueada. Contei a ele a visita da srta.
Hackett, e ele riu.
- Quer dizer que eles estão no pé dele, hem? Melhor tomar cuidado,
Philemon, para não ser jogado fora junto com ele.
IX

Foi em uma daquelas manhãs junto com Felix - não, ele não estava lá, foi
apenas em uma manhã de abril. O professor também havia saído, não sei para
onde, mas isso não tem importância. O apartamento estava silencioso. Havia
restos de uma refeição na mesa do quarto da frente e um cinzeiro lotado. Eu
estava parado à janela, sem querer sair, sem querer ficar tampouco. A dor
começara a entoar sua canção latejante, como fazia naquela hora aborrecida,
todas as manhãs; eu imaginava que havia algo dentro de mim, feito só de joelhos
e cotovelos terríveis, cutucando meus nervos. A rua estava deserta. Em uma das
casas em frente eu podia ouvir o ruído fraco de um telefone que tocava, sem
parar. O silêncio, reunido as minhas costas, era como uma enorme besta muda,
acenando para mim gentilmente, com uma espécie de insistência triste. Não
gostava de ficar sozinho daquele jeito, em um quarto que não era o meu; sentia-
me como se fosse um estranho, quero dizer, um estranho para mim mesmo,
como se houvesse dois de nós, eu e o outro, o intruso erguendo-se dentro de
mim, compartilhando em segredo aquele pilar de carne frágil e dor. Mas,
percebi, eu não estava sozinho.
Ela estava no banheiro encardido, embaixo; eu a encontrei quando tentei
abrir a porta e alguma coisa me impediu. Ela estava deitada, recurvada, os
joelhos no peito e um braço desnudo para fora. Usava a capa de chuva de
plástico por cima da roupa. Um de seus pés descalços encostava-se à porta. Tive
que prender a respiração e deslizar de lado pela abertura. Quando ajoelhei a seu
lado ela tremeu e soltou um suspiro fraco, vagamente irritado, como uma
criança adormecida que não quer ser acordada de um sonho. Suas mãos
estavam, frias, ela devia estar deitada ali há horas. No buraco em seu cotovelo,
uma mancha azul amarelecia.
- Adele - eu disse - Adele.
Soou estúpido.
Eu a carreguei nos braços. Ela se molhara toda. Era inesperadamente pesada,
um peso morto, flácido, que eu mal podia aguentar. Sua capa chiou e estalou
quando eu a ergui. Coloquei o pé na porta para abri-la, mas perdi o equilíbrio e
cambaleei para o lado, como um cavaleiro tonto, e por um instante fiquei preso,
com um pé no ar e o ombro apertado contra a parede. Uma torneira pingava na
pia. A janela atrás da privada estava aberta, e lá no jardim um melro trinava uma
nota repetitiva, líquida, que também era igual ao som da água pingando. Quando
virei a cabeça um olho aumentado, o meu próprio, me observava em um
espelho de barba. Olhei para as coisas a minha volta, a torneira, o velho
barbeador, uma caneca com uma escova de dente em pé, suas texturas
indistintas e espessas na luz de marfim da manhã, e achei, por um segundo, que
algo estava sendo revelado, piscara para mim brevemente e se fora, como uma
moeda desaparecendo na mão de um mágico.
Eu a levei para o quarto da frente e a instalei no sofá, apoiada no braço. Sua
cabeça ficava caindo. Devo ter permanecido ali parado por um longo tempo,
paralisado, só olhando para ela. Depois fui até a cozinha e para os quartos,
esfregando as mãos, procurando não sei o quê. Eu trouxe seu casaco de pele
puído e a cobri com ele. Eu penso que estive falando com ela todo o tempo;
lembro-me vagamente do som fraco de uma voz, lá no fundo, adulando e dando
broncas, só pode ter sido a minha. Lembro-me também da delicadeza parisiense
da manhã de primavera, com débeis sons do tráfego e o rufar das asas das
pombas, uma nuvem branca no canto da janela, o grande e pálido paralelogramo
de um raio de sol no assoalho, a meus pés.
Depois a ambulância chegou e um torpor curioso, sonhador, tomou conta de
tudo. Suponho que esperava uma grande comoção, sirenes e barulho de freios,
botas na escada, gritos. Em vez disso houve um toque educado na campainha, e
dois homens alegres, corpulentos, de uniforme, entraram, carregando uma maca
enrolada. Eles tinham um ar de quem sabia exatamente o que iria encontrar.
Trabalhavam calmamente, um deles enrolando Adele em um cobertor vermelho,
enquanto o outro desenrolava a maca. Depois, juntos, a ergueram sem
dificuldade do sofá e ataram uma correia de couro nos ombros, e outra nos
joelhos, e um deles abaixou e afastou uma mecha de cabelo molhado de seu
rosto. Ela estava tão pálida, tão calma agora, como a efígie de um mártir infantil.
Lá embaixo, na rua, o rádio da ambulância transmitia mensagens de tempo em
tempos. Eles puseram a maca na calçada enquanto abriam as portas de trás.
Adele acordou e olhou para eles alucinada. Ela agarrou minha manga.
- O que você foi fazer? - disse com um gemido fraco, rouco. - Oh, o que você
foi fazer...
Eles a puseram na ambulância e a levaram embora. No prédio em frente o
telefone tocava de novo.

Havia um único hospital para onde ela poderia ser levada, é claro. Caminhei,
quieto com minhas memórias, por aqueles corredores familiares. Tudo
continuava igual. Havia momentos como aquele, lembro-me bem, quando as
coisas ficavam repentinamente silenciosas, sem razão alguma, no meio de uma
manhã agitada, e a calma se espalhava como éter por entre as enfermarias. Um
rádio, em algum lugar, tocava suavemente, e embaixo, na cozinha, um ajudante
cantava. Eles me disseram que Adele estava dormindo, como se dormir fosse
um tipo caro e especial de terapia. E me deram uma olhada gelada. Mas quando
voltei, à noite, ela estava acordada, sentada ereta em uma cama branca, como um
pássaro ansioso preso em uma gaiola, com as mãos magras agarradas ao lençol e
o pescoço esticado para fora. O quarto cheirava a leite e violetas, o cheiro dela.
Felix estava lá, e o professor Kosok. O professor estava sentado de pernas
cruzadas, tamborilando com os dedos no joelho, olhando para o teto. Parei na
porta.
- Eis aí o nosso Robin querido - disse Felix. - Então, não trouxe doces para
sua amada donzela, nem flores molhadas de orvalho?
Os olhos de Adele estavam abertos, febris, e ela não parava de rir.
- Olhem para este lugar - ela disse. - O que estou fazendo aqui? Estou
perfeitamente bem.
Seu olhar passou por mim, não se fixando em nada. Havia uma marca
vermelha no canto da boca, que ela coçava com a unha, coçava e coçava. Ela
ainda estava de camisola, com o casaco de pele por cima do ombro. Andara
arrancando os cabelos, ele estava eriçado, preto azulado, brilhando, como penas
arrepiadas. Felix falou comigo escondendo a boca com a mão, com solenidade
jocosa.
- Ela é insistente, apesar de distraída.
Ele riu. A luz da tarde refletia na janela. Do lado de fora havia o alto de um
muro de tijolos e uma extensão reta do telhado, com uma chaminé igual à de um
navio, soltando fumaça branca. O professor levantou da cadeira e suspirou.
- Já é tarde - disse, sem se dirigir a ninguém em particular. - Preciso ir.
Mas continuou sentado ali, com os olhos semicerrados, os dedos
tamborilando, tamborilando. Um momento passou, como alguma coisa
carregada cuidadosamente no meio da neblina. Depois Felix riu de novo, baixo,
e disse:
- Sim, chefe, vamos nessa, está na hora de ir.
O professor hesitou à porta, fingindo procurar algo no bolso. Ele franziu a
testa. Adele não olhou para ele. Felix deu um soco nele, de brincadeira, e piscou
para mim por cima do ombro, e depois eles saíram.
Fiquei olhando a fumaça que saía lá fora. O céu do final da tarde estava
pálido. Podia-se ver a silhueta fraca das montanhas ao longe. Adele continuava
escondendo o rosto. Tentei pegar sua mão, mas ela a afastou, não com rancor,
mas com firmeza, como uma criança tira um brinquedo.
- Não tenho sossego aqui, entende - disse. - Nenhum sossego. E o que vou
ficar fazendo aqui?
Ela suspirou e balançou a cabeça, com ar meio aborrecido, como se tudo
aquilo fosse uma intromissão, e coisas infinitamente mais importantes tivessem
agora que esperar,
- Sinto muito - eu disse.
No céu, ao longe, um bando de aves mergulhava e planava, a escuridão
transformando-se repentinamente em luz quando mil asas viravam como se
fossem uma. Ícaro. Adele olhou em volta, distraída.
- Eles levaram meus cigarros embora - disse. - Você vai ter que me trazer
mais.
E, pela primeira vez desde que eu chegara, ela me olhou diretamente, com
aquele jeito feroz, estrábico.
- Você traz? - perguntou. - Você vai ter que...
A porta atrás de mim se abriu, eu me virei, e a supervisora parou antes de
entrar e olhou para nós.

Ordem, padrão, harmonia. Aperte qualquer coisa com força, todas as coisas, e
o problema será resolvido. Esperei, impaciente, em um estado de melancólica
exaltação. Eu havia jogado fora as barreiras acumuladas durante anos, estava à
procura da simplicidade agora, a coisa pura, imaculada. Havia sinais secretos em
todos os lugares. A máquina cantava para mim, pois eu não era feito também de
códigos binários? Um e zero eram os pólos. A chegada da primavera chocalhou
meu coração. Eu perambulava pelas ruas luminosas por horas, preso a uma
espécie de hilaridade sem alegria. Estava sentindo dor. Quando me deitei
finalmente, exausto, olhando para o céu, para a frota de nuvens, uma dor surda,
cinzenta, alojava-se na boca de meu estômago, como um rato cinza, morando
ali. No crepúsculo cinzento eu me levantei, as pálpebras queimando, com
alguma coisa latejando em minha cabeça, e segui para o hospital.
Também ali um estado de espírito louco tornara conta. Eu chegava no quarto
de Adele e a encontrava com Felix e o padre Plomer, os três com os olhos
brilhando, de certo modo sem fôlego, como que no final de uma discussão
acalorada. O padre era uma visita frequente; punha sua cabeça redonda pela
porta, com um sorriso conspirador, e entrava na ponta dos pés, gordo e imenso
em seu terno preto e estola bordada, os óculos reluzentes. Batia palmas e ria,
mostrando os dentes brancos e obturações de ouro. Era como uma enorme
garota estranha, excitada. Ele adorava ficar lá. Vamos fazer uma festinha, dizia, e
mandava uma das garotas da cozinha trazer um bule de chá e travessas de pão
com manteiga. Antes que sentássemos, removia a estola e a beijava reverente,
fechando os olhos por um instante. Depois erguia as mãos para o céu e dizia
baixo;
- Ah, a liberdade!
Felix o tratava com uma espécie de trêmula familiaridade, andando em torno
dele nervoso, rindo de suas piadas.
- Oh, você é demais - dizia. Demais!
E Felix olhava por cima dos ombros do padre e encontrava meu olho,
sorrindo, os lábios finos apertados com força.
Adele sentava-se no meio de nós com a cara branca e o cabelo eriçado. Ela
havia trocado a camisola por outra de cetim, com rosas e pássaros, que faziam
com que o quarto parecesse uma gaiola. Ela ria cada vez mais, e cada vez mais
sua risada soava como os gritos agudos de alguma coisa que mergulhasse com as
asas abertas em uma rede. Seus olhos tornaram-se embaçados, um filme branco,
fraco, espalhara-se sobre as pupilas. Ela reclamava da luz, que não era
suficientemente clara, mas quando as venezianas eram erguidas, ou outra
lâmpada acesa, ela cobria o rosto e desviava a vista do brilho.
Do lado de fora do quarto, após uma de nossas visitas, o padre Plomer virou
com um ar de excitação solene e falou para Felix e para mim.
- Vou tentar salvá-la, sabe - disse. - Sim, ela concordou em receber alguns
conselhos.
Felix deu um passo para trás, com olhos arregalados de surpresa.
- Uau! - respirou e ergueu a mão para disfarçar o pequeno sorriso sarcástico
que não conseguiu evitar.
Depois, por algum tempo, aquele ar animado que eu costumava encontrar
quando entrava em seu quarto cedeu lugar a uma atmosfera reverente, tensa, na
qual alguma coisa parecia vibrar, como se um pequeno sino tivesse acabado de
badalar. Uma vez eu até os interrompi quando rezavam, o padre ajoelhado, a
mão na testa e o missal aberto, e Adele recostada no travesseiro com as mãos
postas sobre o colo e os olhos virados para cima, pálida e cerácea em sua
camisola de cetim, como um quadro de uma donzela afogada atirada nas
margens floridas de um riacho. Mas não durou muito. Um dia ela arrancou o
livro de orações das mãos dele com uma gargalhada e o atirou do outro lado do
quarto, e, apesar de ele circular pelos corredores com ar magoado, ela não quis
mais saber de vê-lo.
- Não se aborreça, padre - Felix disse lépido -, ela vai achar seu caminho para
a luz, por conta própria.
Naquela noite ela estava alegre e sentou-se com os tornozelos cruzados sob as
cobertas e um cinzeiro no colo. Havia passado batom e pó e pintara as unhas de
vermelho. Mexia o cigarro, piscava e fazia caras e bocas como uma vamp.
- Ele tentou enfiar a mão debaixo da minha roupa- disse. - Imaginem!
Felix assobiou baixo.
- Uau! - gritou, cerrando os punhos. - Tudo pela salvação, né?
Depois que ele se foi, ela se sentou e puxou as cobertas, franzindo o cenho.
Não me olhava no rosto. Pegou uma revista e a folheou distraída.
- Escuta uma coisa - disse -, você tem que me arranjar algo. Aquela vaca só
me dá aquela droga, a que eles deixam, nem sei como chama, mas não presta.
Parou de folhear as páginas coloridas e sentou, quieta, a cabeça baixa. Houve
um silêncio. Largou o cigarro no cinzeiro e observou com os olhos meio
fechados a fina pluma azul de fumaça que subia.
- Não posso - disse. - Como poderia?
Por um instante ela não disse nada, nem piscou, como se não tivesse
escutado.
- Bem - disse calmamente. - É o que ele diz, também. E depois ri.
Ela olhou para mim e tentou sorrir. O machucado no canto de lua boca
pintada estava em carne viva. Seu lábio inferior tremia.
- Ela te dá umas coisas, não dá? - perguntou.- Comprimidos, estas coisas, não
é? Você pode pedir a ela. Por que não diz que é para você?
Deu um pulo, derrubando o cinzeiro, e ajoelhou-se na beira da cama,
colocando os braços em volta do meu pescoço e apertando a boca trêmula
contra a minha. Começou a chorar. Batom, fumaça, lágrimas salgadas. Aquele
gosto, ainda posso senti-lo.
- Deixo você fazer aquilo comigo - murmurou.- Tudo, tudo o que quiser.
Tudo...
X

Roubei o que ela queria. Sabia onde procurar, o que pegar. A supervisora não
estava na mesa dela, a chave do dispensário ficava na gaveta. Subi a escada. Era
a hora do chá, ninguém prestou atenção em mim. Em um hospital até eu podia
passar despercebido. Tranquei a porta do dispensário atrás de mim. Como
aquilo ali ficou quieto de repente, era como estar embaixo d'água, no meio de
todas aquelas prateleiras de vidro esverdeado, aqueles frascos repletos de sono.
Logo achei o que procurava, mas fiquei um pouco por ali, debruçado na janela.
Era um crepúsculo fustigado pelo vento. Um céu cheio de ruinas passava por
minha cabeça em silêncio. No solo uma cerejeira chicoteava e dobrava-se, os
botões caldos ondulavam na grama cinzenta. Quantos momentos como este eu
conheceria, quando tudo se detém de algum modo, como um carrossel parando
repentinamente: percebi novamente, com os olhos cansados, que a coisa estava
lá o tempo todo. Apertei minha testa contra o vidro. Ficar ali, ficar ali para
sempre, daquele jeito. Terminar tudo, finalmente.

Ela estava acordada, andando de um lado para outro, abraçando a si mesma


com força. Correu para mim, onde eu me meti? Dei a ela as pequenas ampolas
de plástico. Ela as escondeu em um bolso da camisola e ficou imóvel por um
instante, com uma espécie de sorriso vago, olhando para o vazio. Depois franziu
a testa. Não, ela murmurou, o quarto não era seguro, a porta não trancava,
qualquer um poderia entrar. Além do mais, suas coisas não estavam ali, ela as
escondera. Ela começou a andar de novo, falando sozinha, uma das mãos
apertando os cabelos e a outra arranhando o ferimento da boca. Então ela
parou, balançando a cabeça.
- Não vai ter ninguém lá - disse. - Nunca tem ninguém lá a esta hora, vai ser
tranquilo.
Ela agarrou meu braço.
- Sim - ela disse - sim, vai ser tranquilo.
Percebi, de repente, como aqueles corredores se pareciam com um convento,
com seu teto em arco, suas estátuas e lírios, aquela quietude que não era
exatamente silêncio. Ela corria a minha frente, próxima à parede, um espectro
descalço. Guiou-me até a capela. Era uma pequena cela abobadada, com
estandartes e pinturas sacras em grandes molduras marrons. Uma janela, na qual
a última luz desaparecia, tinha um vitral com a Assunção da Virgem em rosa e
azul-claro. Havia narcisos no altar em miniatura. Uma lamparina a óleo, com
globo vermelho rubi, estava presa ao teto por uma grossa corrente. O lugar,
enfeitado e escuro, tinha um ar gasto levemente sibarítico, como a tenda de um
xeque do deserto. Havia um odor de madeira a cera. Ali também o silêncio era
de certa forma murmurante, como se percorrido por ecos esquecidos. Adele
procurou atrás de um quadro de São Sebastião torto e tirou um saco plástico,
que fora preso com fita adesiva no fundo do quadro. Ficamos parados por um
momento no silêncio sagrado, as cabeças próximas, admirando seus tesouros.
Havia uma pequena garrafa e uma colher, uma tira de borracha e uma seringa
descartável, com a agulha torta, que ela recolhera na lata de lixo. Eu estava
pensando em uma outra ocasião, quando ficamos do mesmo jeito, sentindo um
o calor do outro, nossas respirações mescladas. Lá fora o vento soprava. As
mãos dela tremiam. O santo ferido nos estudava com seu olhar honesto, triste,
lascivo.
Ela se ajoelhou em um degrau na frente do altar, para fazer a mistura,
enquanto eu sentava em um banco e observava. Ela trabalhava com atenção
cuidadosa, embevecida, mordendo o lábio e franzindo a testa. Eu mal a
reconhecia, ali ajoelhada, transfigurada, entretida com sua tarefa. uma
sacerdotisa dedicada. De vez em quando ela precisava parar, esperar que
passasse o tremor nas mãos, e olhava em torno distraída, com os olhos cegos.
Ela acendeu uma pequena vela e a posicionou no degrau, depois aqueceu a
mistura na colher. Em seguida, sentou-se nos calcanhares e levantou a manga da
camisola, até o ombro. Seu braço desnudo reluzia sob a luz fraca. Ela achou
uma veia e apertou até que ela saltasse, gorda e púrpura, cheia de sangue. No
começo a agulha não quis entrar, e ela tentava forçar, fazendo um som baixo,
como gemido, curvando as costas. Depois, repentinamente, a ponta penetrou-a,
e a pele inchada a envolveu, como uma pequena boca ávida, puxando a pequena
ponta de aço para o fundo; ela apertou o êmbolo devagar, enquanto a veia
pulsante sugava, e no final ela deitou a cabeça para trás, os olhos revirados, e
soltou um suspiro longo, trêmulo.
Ajoelhei no chão frio e a segurei. Ela olhava para mim fixamente, sem
suspirar. Sua mão, ainda segurando a seringa, ficou largada a seu lado, no
degrau. Amassei o material sedoso e frio de sua camisola nas mãos.
- Você prometeu - eu disse. - Você prometeu.
Eu a levantei e a levei até a porta, e fiz com que ela ficasse em pé, de costas,
de modo que ninguém pudesse entrar. Ela colocou um braço em volta de meu
pescoço e, com o outro, segurou minha cabeça, em um abraço selvagem,
esfregando seu queixo em meu rosto. Suas coxas estavam frias. Escutei,
embevecido, meus próprios gemidos e soluços cada vez mais rápidos. Sua nuca
batia surda contra a pesada porta de carvalho. Ela estava rindo, ou chorando,
não sei qual dos dois.
- Você vai arranjar mais, não é? - disse na minha orelha. - Diga que sim, diga
que vai arranjar mais.
Mas eu não precisava conseguir mais. Eu tinha mais, o suficiente para mantê-
la por várias semanas, ainda estava em meu bolso, o suficiente para nos manter,
aos dois, por semanas.
E assim, todas as tardes, na mesma hora, íamos até a capela, e eu lhe dava sua
ração diária de tranquilidade, e como recompensa ela abria a camisola e me
recebia por um momento, soluçando, apertado contra sua carne trêmula.
Lembro-me da quietude em nossa volta, a luz diminuindo na janela, e o cheiro
daquele lugar, igual ao cheiro de caixões, e o vago clamor da hora do chá do
lado de fora, nas enfermarias, um ruído do outro mundo. Depois, ficávamos
sentados por muito tempo, sob a luz fraca da lâmpada trêmula do altar,
enquanto mais um dia morria e a noite chegava. Às vezes uma velha de camisola
entrava e ficava ajoelhada por algum tempo, suspirando e gemendo, com o rosto
nas mãos. Ela não prestava atenção em nós, talvez nem nos visse. Era maio, mês
de Maria, flores frescas eram postas diariamente no altar, jasmins e tulipas, e
lírios do vale. Adele sentava-se com a cabeça baixa e as mãos no colo, tão rígida
que parecia quase não respirar. Falei dos números para ela, como eles
funcionavam, como eles eram simples, tão puros. Nem sei se ela ouvia. Falei
para ela daquele momento na montanha, também como ele chegara para mim
outra vez, com mais peso do que nunca, que, sob o caos das coisas, uma ordem
oculta permanecia. Uma espécie de excitado subiu a minha boca, eu a agarrei
como se sofresse. Ela recostou o ombro no meu.
- Preciso ir embora deste lugar - falou. - Me ajude.
Uma campainha tocava, logo eles viriam para rezar o terço. Eu me levantei
para irmos. Ela me olhou, de dentro de seus olhos embaçados.
- Me ajude - pediu novamente.

Felix me ouviu, ele compreendia.


- É isso aí, é isso aí - disse sorrindo e concordando, me incentivando.
Saber, fazer, mergulhar nas profundezas secretas das coisas, não fora isso que
sempre me pressionara? Agora ele iria me ajudar. Ele tinha contatos, tinha
influência. Havia outras pessoas além do professor, havia máquinas também,
maiores e melhores, é claro, e iria me mostrar tudo! Gostava de ouvi-lo falar
daquele jeito, despertava uma espécie de zumbido excitado dentro de mim,
cheio de atenção e pressentimentos e prazer mórbido. E se, de vez em quando,
eu erguia os olhos inesperadamente e o flagrava a me observar com um olhar
jocoso, sorrindo daquele seu jeito malandro, bem, eu não me importava.
Durante a tarde eu às vezes andava com ele pela cidade. Fomos ao zoológico,
um de seus passeios favoritos. Ele achava tudo irresistivelmente engraçado por
lá. Ficava parado na frente da jaula do tigre ou na casa tórpida e escura do jacaré,
dividindo seu tempo igualmente entre elas. Os animais, por sua vez, o
observavam com o que me parecia um olhar intrigado. Olhe, olhe! Ele gritava
em transe, agarrando meu braço e apontando o dedo trêmulo para o babuíno
que coçava sua bunda roxa ou para o hipopótamo que tentava montar sua
parceira.
- Que mundo estranho e antigo - dizia -, com tantos monstros, hem, Caliban.
Ele encontrava pessoas lá, elas surgiam de trás de uma árvore ou baixavam o
jornal e olhavam para ele com os olhos úmidos arregalados. Havia algo nelas,
um ar de tensão, de certo tormento, que combinava com o lugar. Elas poderiam
estar olhando por barras invisíveis de uma jaula. Quando as via, ria sozinho,
baixo, e caminhava rapidamente ao encontro delas, sempre de costas para mim.
Nunca mencionava esses encontros depois, mas apressava o passo para retornar
para perto de mim e continuava a contar o que havia começado. Mas, em certos
dias, eu o via olhando em volta, vigilante, um traço de tensão preso ao sorriso,
preferindo os espaços abertos.
- Se algum dia você precisar me achar - disse -, já sabe onde me encontrar,
não é?
Estávamos andando às margens de um lago artificial.
O dia estava carregado, o ar com o brilho de uma pera úmida. Ele comia um
sorvete rosado e chutava os patos que se agrupavam na lama da margem do
lago, a esmo.
- Quero dizer - ele disse -, se você conseguir me achar, se eu não estiver por
aí. Quando as coisas se complicam, um período de afastamento é a melhor
solução, creio.
Olhou para mim e sorriu. Um cisne negro passou nadando por nós, em
silêncio, com seu porte casto, tímido. Os patos grasnaram. Ele jogou o resto do
sorvete no meio, houve uma confusão. Em uma pequena ilha no meio do lago
os macacos pulavam e conversavam nos ramos de uma árvore morta.
- Precisamos ficar juntos - Felix disse. - Nós dois somos muito parecidos.
Ele pegou no meu braço e seguimos pelo portão, depois subimos a colina até
o ponto de ônibus. A cidade ficava abaixo de nós, agachada sob um céu baixo.
Estávamos parados no trânsito, perto do rio, quando a chuva caiu, tamborilando
contra a lateral do ônibus. Ela cessou tão abruptamente como começara, e um
raio pálido de sol caiu sobre os telhados e as torres brilhantes, e nas alturas um
pássaro solitário desapareceu no meio de uma parede de nuvens arroxeadas.
Como tudo era tão inocente, tão despreocupado, eu me lembro bem, a luz
molhada, as torres, aquele pássaro, como um fundo de sonho, feito por um
aprendiz, talvez, enquanto, no primeiro plano, cavalos arremetiam e negros
reviravam os olhos, e um pobre-coitado morria atado a uma árvore.
Na rua Chandos, encontramos Liz encolhida nos degraus na frente da porta.
Quando nos aproximamos ela se ergueu e protegeu o rosto com o braço. Havia
uma marca lívida sob o olho, e seu lábio inferior estava partido e cheio de
sangue. Ela não ficou em pé, mas encostada na porta, com os joelhos apertados
contra o peito. Ajoelhei ao lado dela, mas escondeu o rosto de mim, com um
soluço. Felix parou na frente, com a mão no bolso, batendo um pé.
- Tony andou ficando nervoso de novo, não é? - disse. - Aquele garoto é tão
sensível.
Liz murmurou algo. Um dos dentes da frente havia sido arrancado, e era
difícil compreender o que dizia.
- Ele se foi! - ela gritou.
Houve um silêncio, rompido por seus soluços abafados. Estava ficando
escuro na rua. Felix a estudou pensativo, mexendo nas moedas do bolso.
- Foi embora? - perguntou calmo. - Como assim?
Ela fechou os olhos, apertando-os, mas as lágrimas continuavam a correr. Seu
lábio havia começado a sangrar novamente. Ela se abraçou, tremendo.
- Eles estavam esperando por nós na esquina - ela falou. - E o obrigaram a ir
com eles.
Felix olhou para um lado e para o outro da rua, depois debruçou-se sobre ela
novamente, com a mão no joelho, e sorriu.
- Fale deles - disse. - Quem eram, exatamente? Ela balançou a cabeça.
- Sei - Felix disse. - Estranhos. Diga, querida, será que eles não seriam, por
acaso, marinheiros?
Ele olhou para mim, ainda sorridente.
- Bem, bem, um par de desconhecidos, nada mais. Fico imaginando, agora,
quem poderia ter sido.
Ele desceu os degraus e ficou parado na calçada, olhando de novo para a rua,
desta vez com mais cuidado. Depois voltou. Examinou detidamente o rosto de
Liz, agachado à frente dela, balançando a cabeça.
- Você não parece nada bem, tá sabendo? Nem um pouco.
Ela olhou assustada, fungando e passando a mão pelo cabelo emaranhado,
cor de cinza. Ele sorriu e ergueu as sobrancelhas, inclinando a cabeça para o
lado.
- Vou te dizer uma coisa. Que tal um trato, para melhorar tudo? O que acha?
Não será melhor?
Ele tirou de um bolso interno um pequeno envelope plástico quadrado e o
segurou para que ela o visse, balançando-o brincalhão na frente de seu nariz. Ela
imediatamente pulou na direção dele e tentou pegá-lo, mas ele recuou, rindo.
- Ah ah! - disse. - Primeiro, uma pergunta. O que eles queriam, exatamente,
aqueles marinheiros?
Ela olhava para o pequeno envelope, lambendo os lábios partidos.
- Você - ela disse. - Eles estavam procurando por você.
Ele arregalou os olhos, surpreso, levando a mão ao coração.
- Eu? - engasgou. - Eu? Meu Deus do céu! Ele riu e levantou-se do ponto
onde estivera agachado, afastando-se dela. Com um grito ela arrastou-se até ele
de joelhos, agarrando a aba de sua capa de chuva. Ele parou.
- Ah, seu saquinho, sei - disse. - Aqui.
Jogou o envelope no chão. Ela o pegou e rasgou, e com os dedos abaixou seu
lábio ferido e despejou o conteúdo entre o lábio e a gengiva. Depois se arrastou
novamente e sentou-se perto da porta, apertando o peito com o joelho. Ela
estava chorando, podíamos ouvi-la enquanto nos afastávamos na penumbra.
Em um telefone público na esquina, Felix parou. Ele colocou o fone debaixo
do queixo, mantendo a porta aberta com o joelho, piscando para mim enquanto
falava.
- Sim, rua Chandos, sim. Acho que ela tomou alguma coisa, parece tão...
Quem é? Eu, seu guarda? Ora, apenas um cidadão cumpridor de seus deveres.
Até logo.
Deixou que a porta batesse atrás dele, levantou a gola do casaco e revirou os
olhos.
- A trama se adensa - disse. - Não é, Watson?

Apareceu na edição vespertina, briga nas docas, o corpo de um jovem


retirado do rio, ferimentos profundos no rosto e na cabeça, irreconhecível. A
polícia estava investigando.
XI

A cidade que eu acreditava conhecer estava transfigurada. O medo alterara


tudo. Eu vigiava as ruas com uma espécie de paixão, sob cujo manto as coisas
aumentavam seu aturdimento, pareciam se encolher com a minha presença,
como se acometidas de timidez. Elas nunca haviam sido percebidas, ou pelo
menos não desta forma, com este feroz escrutínio, concupiscente. Eu via
perseguidores em todos os lugares, não, perseguidores não, não se trata disso, o
termo é muito forte. Mas nenhuma coisa era mais inocente. As praças, as
avenidas, os pequenos parques, todos os meus antigos fantasmas, eles eram
agora apenas uma fachada, atrás da qual uma presença maligna, indecente,
chafurdava. O pânico estava soldado em mim como uma febre crônica, pronta
para voltar, ao mais leve arrepio. Ao andar pelas ruas eu apressava subitamente o
passo, até começar a correr, a cabeça baixa, o coração palpitando, a respiração
entrecortada por pequenos gritos, e quando eu finalmente parava, exausto, e
olhava para trás, nunca havia nada, só uma sensação difusa de uma risada baixa,
vingativa. Achava o crepúsculo especialmente assustador; aquela hora de
sombras e perspectivas, eu fugia dela, indo para o santuário fluorescente da sala
branca, onde tudo parecia ter sua própria fonte de luz, as superfícies impassíveis,
sem abismos traiçoeiros, e a atmosfera neutra e inerte, como um vidro fino,
transparente.
Pouco havia que fazer lá agora. As transmissões externas tinham cessado
completamente. O professor perambulava e resmungava furioso, um homem
traído. O telefone ficava permanentemente fora do gancho. Certas noites ele
simplesmente não aparecia, e eu e Leitch ficávamos sozinhos, em uma
intimidade carregada, desconfortável. Leitch também estava inquieto, andava de
um lado para outro de chinelo, as mãos enfiadas nos bolsos da calça. Não
importava em que parte da sala ele estivesse, eu achava que estava ouvindo sua
respiração. Ele me contava suas piadas e oferecia bocados escolhidos de seu
saco de guloseimas. Teria preferido a antiga animosidade em vez deste calor de
certa forma ameaçador. Eu me sentia como se estivesse segurando uma corda
no escuro, e a qualquer momento quem estivesse na outra ponta poderia virar e
me atacar. Ele cuidava da máquina agora com uma espécie de vigilância
frenética, observando-a como um pai invejoso, frustrado, amaldiçoando-a,
chutando-a, jogando migalhas de pão em cima dela. A coisa aceitava essas
afrontas em silêncio, muda, sua atenção de certa forma desviada, como se
estivesse pensando em uma coisa completamente diferente. Isso o enlouquecia,
esse modo imperturbável, essa estupidez completa, irredutível, teimosa.
- Ela não sabe nada - o professor disse -, nada, a não ser o que lhe foi dito.
Leitch enfiou a cabeça grande nos ombros, o olhar ferido, andando sombrio
de um lado para o outro da sala.
- Sim - disse amargamente, por entre dentes - igual a nós.
Numa noite ele veio por trás de mim no banheiro e colocou os braços em
volta da minha cintura. Tentei me livrar, e lutamos por um instante, rolando de
um lado para outro em uma espécie de dança elaborada. Cambaleamos pela
porta, chegando ao corredor, onde nossos grunhidos e soluços soavam como os
ruídos de uma briga de verdade. Encostei o cotovelo em seu peito, finalmente, e
empurrei-o com força. Ele deu um passo para trás, curvou-se e encostou-se à
parede com a boca aberta e a mão no peito. A gravata estava torcida, perto da
orelha, e ele perdera um chinelo. Olhou-me exaltado, com o olho bem aberto.
- O que há de errado com você? - perguntou. - Ele me falou que... - Fez uma
pausa.
- Sabe o que ele falou? - eu disse. - Ele falou uma mentira.
Eu queria bater nele, quase podia sentir meu pé enterrado naquela barriga
flácida; podia vê-lo de quatro vomitando seu jantar pegajoso. Eu não estava
bravo porque ele tentara me agarrar, mas porque já sabia que não poderia ir mais
lá.
- Olhe só para você - dizia. - Meu Deus, que monstro! Ele virou a cara para a
parede e chorou, de dor e raiva, os ombros gordos trêmulos. Saí pela noite. O ar
estava negro e úmido, as sirenes de neblina ecoavam na baía. O edifício se erguia
por sobre minha cabeça, parecendo desaparecer vagarosamente na neblina, suas
janelas escuras. Não havia ninguém lá. Saí andando. Mais um santuário se fora.

Adele estava sentada em uma cadeira ao lado da cama, escovando os cabelos


com movimentos lentos, rígidos. Usava uma velha camisola atada com um
cordão puído. Seu rosto, sem maquilagem, era pálido e embaçado, como se
tivesse sido esfregado com tanta força que os traços se gastaram. Olhava para a
frente, para o vazio. Padre Plomer se encontrava ao lado da janela, olhando o
quarto, com os braços cruzados e a cabeça para trás. Atrás dele o sol brilhava no
telhado plano e na chaminé, e ao longe um avião reluzia, arrastando-se para cima
no céu claro, azul. Seu rosto estava na sombra, as lentes prateadas dos óculos
brilhando como moedas. A supervisora também se encontrava lá, parada atrás
de Adele, rígida, um pouco curvada para a frente, como costumava ficar, os
braços pendentes. Eles pareciam estar posando, todos os três, como se tivessem
sido reunidos para uma fotografia. Adele não olhou para mim, como se não
soubesse que eu estava ali. Eu havia trazido cigarros para ela. A supervisora
esticou a mão silenciosamente e os pegou.
- Adele parou de fumar - o padre Plomer disse.- Não escutou, meu amigo?
Uma nova vida. Ela vai levar uma nova vida.
E ele sorriu, os olhos inexpressivos e brandos. Adele continuou a escovar os
cabelos, devagar. A supervisora continuou olhando para mim, por algum tempo,
depois se virou e saiu, pela última vez.

Quando fui à capela naquela tarde, Adele não estava lá. Não fiquei surpreso.
Estava no quarto, dormindo, estirada por cima dos lençóis desarrumados, como
se uma onda a tivesse depositado ali. Fiquei sentado algum tempo, em meio à
calma, olhando para ela. Ainda estava claro lá fora mas a janela estava fechada, e
uma meia-luz cinza se espalhava pelo quarto. O crepúsculo, a hora dela.
Também era dela aquele tom de cinza, fraco, descorado. Seus lábios se
entreabriam, uma das mãos repousava no travesseiro sob a face. Coloquei as
ampolas no bolso da camisola, saí em silêncio e fechei a porta atrás de mim.
O ônibus balançava e tremia nas ruas estreitas, inclinando-se nas curvas, as
engrenagens rangendo. As árvores avançavam apressadas na direção dos sinais,
os galhos abertos atônitos, depois mergulhavam na escuridão novamente. Eu
estava no banco perto da porta, próximo ao motorista, um homem pálido,
magro, taciturno, sentado com os joelhos ossudos abertos, girando o volante
grande e plano com um movimento rotativo dos braços, como se estivesse
erguendo uma corda. Nas paradas ele se inclinava para a frente e descansava os
cotovelos no volante, os punhos cruzados, e chupava o dente olhando para a
rua. Passamos por uma vila e paramos em um cruzamento escuro, onde subiu
um homem de muleta. Ele parou no degrau e olhou para mim, batendo o pé, a
velha boca desdentada aberta. Subimos por um longo tempo, depois chegamos a
um planalto aberto, eu podia ver as estrelas desbotadas à esquerda e a direita e
uma lua convexa brilhando no topo de um monte distante. De vez em quando,
nos momentos em que a estrada voltava sobre si mesma, eu via de relance as
luzes da cidade, perdidas na distância. Depois passamos em uma depressão e
paramos; o motorista olhou para mim.
Um ar diferente, e o cheiro dos pinheiros, e um vento fresco, e estrelas.
Acompanhei com o olhar o ônibus que partia, as luzes traseiras balançando
suavemente na encosta da colina. Depois, o silêncio e o som da água. Uma luz
fraca brilhava sobre a porta do bar, e havia uma luz na janela suja também.
Atravessei o gramado. Ele devia ter ouvido a chegada do ônibus, ou talvez
estivesse observando pela janela. Ficou oculto na escuridão da soleira da porta,
até terminar de me examinar detidamente, depois avançou com a mão estendida
em saudação.
- Ah, Melmoth - disse baixo. - Estávamos esperando por você.

Quando penso naquela segunda visita ao Goat, imagino uma taverna


comprida, baixa, marrom, com lamparinas de óleo e canecas de cobre
reluzentes, e presunto e coisas penduradas nos caibros. O quadro só precisa de
um garoto de avental e um velho excêntrico de costeletas e um cachimbo
aquecendo seus dias finais ao pé da lareira. De onde vinham estas fantasias?
Quando entrei, o lugar parecia deserto. Dan, o gordo, estava em pé no bar,
palitando cuidadosamente os dentes laterais com a unha do dedinho. Usava uma
camisa sem colarinho e um colete verde, justo como um arreio, que terminava
na metade da barriga. Ele me recebeu com uma careta enorme, lenta,
envolvendo mais o fechar de um olho do que o abrir de um canto da boca.
- Um toddy quente, Dan, para o viajante - Felix disse.
Sentamos nas banquetas do bar. Logo que me acostumei com a penumbra,
descobri alguns poucos fregueses, aqui e acolá, caipiras grandes e silenciosos,
com capotes compridos desabotoados e bonés, cujos olhos desviavam-se como
peixes quando encontravam os meus. Felix me observava enquanto eu sorvia o
liquido quente. Ele usava calças largas e meias cor de argila, e um boné de pano
com um botão no topo.
- Fico feliz por você ter vindo - disse. - Fico mesmo. Isso aqui é incrivelmente
monótono.
Contei a ele que o corpo de Tony fora encontrado. Ele levou um dedo rápido
à boca, olhando significativamente na direção de Dan.
- Sim - disse calmamente. - Também vi. Muito triste. Fiquei chocado, sabe?
Eu não disse nada. Ele me estudou com um sorriso pesaroso.
- Eu acho - ele disse -, que você não vai pensar que sou culpado, não é? Não
os levei à rua Chandos, afinal. Não era a mim que seguiam.
Pegou sua lata de tabaco e acendeu uma ponta, observando-me através da
fumaça, ainda sorridente.
- Agora não fique mais imaginando coisas. Não foi culpa de ninguém. Só uma
espécie de acidente.
- Um acidente - eu disse.
Ele sorriu.
- É claro - disse -, mas você não acredita em acidentes, não é? Eu esqueci.
Tudo se encaixa em algum padrão. Bem, talvez a perda do pobre Anthony seja
um elo em algum grande plano, ou complô, mas ainda assim isso não quer dizer
que alguém tenha que ser culpado, não é?
Ele fumou em silêncio por algum tempo, depois encostou um dedo em meu
pulso e disse:
- Você não precisa se preocupar, tampouco. Lembre-se apenas de que os
navios têm que partir, algum dia.
- Eles também voltam - eu disse.
Ele riu.
- Ah, sim - concordou. - Die ewige Wiederkunft, né?
Dan, o gordo, aproximou-se, apoiou o antebraço no bar, inclinando a cabeça
em minha direção, discretamente. Será que eu também ia ficar?, ele perguntou.
- Qualquer amigo do sr. Felix é bem-vindo aqui - disse, exalando sinceridade
calorosa e sorrisos.
Ele me guiou pela escadaria estreita, suas costas grandes reluzentes tremendo
à frente. Lembro-me de que ele pegou um candelabro, mas com certeza isso é só
mais uma fantasia. Seu cabelo fora cortado atrás até o alto da cabeça, onde uma
pequena franja infantil se erguia. Seu pescoço era um grande naco de carne
vermelha, com sardas. Ele parou na escada, batendo o pé de leve, e olhou para
mim com uma espécie de careta cúmplice, como se houvesse algum segredo
escandaloso que compartilhássemos em silêncio. Ele apontou para baixo com a
cabeça, na direção do bar, e disse:
- Ele é uma figura estranha, e daí?
Mostrou-me um quarto minúsculo, com um teto baixo, sujo, uma única janela
pequena quadrada, e uma cama enorme de latão. O papel de parede, estampado
com flores, um dia fora branco, mas agora era de um âmbar pegajoso, como se
tivesse sido envernizado. Os lambris eram marrons, pintados de forma a
parecerem com carvalho. Dan ficou parado olhando na soleira, por um instante,
com ar solene.
Ele suspirou e disse mais baixo ainda:
- Ficava aqui quando ainda era magra.
Depois que ele se foi eu apaguei a luz e sentei na cama, no escuro, por um
longo tempo. A lua estava mais alta agora, em um canto da janela. Eu podia ver
as silhuetas vagas dos pinheiros lá fora, balançando no vento, e, para lá deles,
nas encostas distantes das colinas que nos rodeavam, as pequenas luzes das
cabanas e fazendas, pontilhando aqui e ali, frágeis faróis em meio á densa
escuridão. Percebi que o último dos fregueses saia e cambaleava pela estrada da
colina, e depois os ruídos de Dan, que trancava a casa. Um cachorro latiu por
algum tempo ao longe, desanimado. Minhas cicatrizes doíam.
Em que mesmo eu pensava?
Em nada. Números.
Em nada.

Vagamos pelas colinas durante horas, Felix e eu, dia após dia. O tempo estava
claro e ventoso, final de primavera, o ar pesado ganhava vida com o canto dos
rouxinóis. Me deixava tonto ficar tanto tempo em um lugar tão alto. Tudo se
aproximava do céu aqui, como se a gravidade de alguma forma tivesse perdido a
força. As nuvens brancas voavam para cima, saindo de trás de um pico de
granito. Não havia nada em que se agarrar, tudo que nos cercava estava distante
como o horizonte, que aumentava as planícies marrons e verdes de pântanos e
pastos. Então, repentinamente, chegávamos a uma curva do caminho e
percebíamos que estávamos na beira de uma cratera pedregosa, com um lago
cinza como aço abaixo de nós e um chumaço de nuvem pálida flutuando no
meio do ar.
- Ah, que maravilha! - Felix gritou. - Não faz a gente se sentir como algo saído
de Caspar David Friedrich?
Ele levou a mão ao peito e respirou fundo, sorrindo de alegria, os olhos
fechados e as narinas abertas. Usava calça larga e boné e levava um bastão alto,
pontudo. Eu observava as sombras que escorriam como água pelo lado distante
da cratera.
- O que você andou falando de mim para o Leitch? - perguntei.
Ele arregalou os olhos e me encarou com exagerada surpresa. Depois soltou
uma risada silenciosa, a ponta da língua saindo para fora e desaparecendo
novamente, rápido.
- Por quê? - indagou tímido. - Está preocupado com sua reputação, é isso?
- Era um lugar para ficar - eu disse. - Agora não posso voltar mais lá.
Ao ouvir isso ele riu alto, batendo com o bastão no chão pedregoso.
- Uh, uh! - disse, fungando. - Olha, aquele lugar está acabado, você sabe disso.
Eles achavam que o velho estava fazendo alguma coisa brilhante até que
descobriram que apenas usara a preciosa máquina para provar que nada pode ser
provado.
Ele andou até a beira do buraco e ergueu braços hieráticos acima do abismo,
levantando o bastão.
- Ó mundo caótico! - entoou. - Energia cega, girando no vácuo! Tudo se
move, e volta. Assim falou o profeta.
Voltou depois, cambaleando e ofegando, um velho encarquilhado agora,
usando seu bastão como muleta e olhando de lado para meu rosto.
- Este é o lugar e a hora - disse.
O vento soprava abaixo de nós, na encosta, e enrugava a superfície metálica
do lago. A luz do sol brilhava. Ele segurou meu braço e me conduziu, solicito
como um padre.
- Coloque-se nas minhas mãos - disse. - Tenho grandes planos para você,
sabia? É verdade, tenho mesmo.
Contornamos outra curva do caminho e chegamos a um barranco pedregoso.
Dali podíamos ver, ao longe, a densa cortina de fumaça azul que cobria a cidade.
Abaixo de nós estava o bar e a estrada que se perdia na distância. Ele apertou
meus braços contra suas costelas.
- O que você acha, hem? Pense no que já passamos, você e eu. E pense no
futuro.
Segui na frente, na descida da colina. Na ponte por cima do riacho atrás do
bar, parei para tomar um comprimido. Ele parou a um passo de mim, sorrindo
levemente e arranhando o chão com seu bastão.
- E então - ele disse - os anjos vieram e lhe fizeram oferendas.

Fui embora naquela noite. Felix e eu esperamos no bar a hora da chegada do


ônibus. O sol poente batia de vez em quando na janela, depois as sombras
tornaram conta. Dan, o gordo, estava ofendido porque eu não queria ficar. Com
movimentos lentos, ele limpava o balcão com um pano, olhando para mim
magoado, de quando em quando. No final, no entanto, sua curiosidade
ultrapassou o ressentimento, e ele se aproximou mais e mais, movendo o pano
com gestos cada vez mais largos, e finalmente falou.
- Estas queimaduras, você despejou ácido ou o quê? Felix revirou os olhos.
- É a marca de Caim, Dan - ele disse.
Contei minha história. Dan ficou maravilhado, ele nunca ouvira nada
parecido: ataduras, faixas de folha de metal, tudo aquilo. Dobrou-se sobre o
balcão, encostando os peitos gordos nos braços, e me encarou pasmo, como se
eu tivesse realizado um feito incrível.
- Meu Deus - disse - você esteve em uma guerra, sem dúvida!
- E agora ele foi banido para a terra de Nod - completou Felix.
Dan não prestou atenção, mas olhou para o bar, como se houvesse alguém
que pudesse ouvir, e debruçou-se para ficar mais perto de mim, com ar
importante.
- Venha cá - chamou -, venha cá agora.
Tirou uma enorme chave de ferro de um gancho atrás dele, ergueu uma parte
do balcão, e ficou de lado para que eu entrasse. Olhei para Felix. Ele deu de
ombros.
- Vá em frente - disse. - Há certas coisas que nem eu conheço.
Dan mostrou o caminho através de uma porta atrás do bar, que dava em uma
passagem estreita, escura, com prateleiras lotadas e engradados no chão. Havia
um cheiro de maçãs e de barro. Por um momento senti que já estivera ali antes,
há muito tempo. Chegamos a outra porta. Dan fez uma pausa, com a chave na
fechadura.
- Eu sabia que você não era igual aos outros que ele traz aqui - disse. - Eu
sabia que você era diferente.
Então ele sorriu e piscou.
O quarto era pequeno, lotado de coisas. Um aquecedor de carvão queimava
no canto. Ao lado do fogo, em uma enorme poltrona, havia uma mulher
sentada. Ela tinha uma cabeça grande, redonda, como a cabeça de uma estátua
de pedra, e cabelos ralos desgrenhados. Sua cara gorda brilhava sob a luz do
carvão, como uma máscara de cera que começasse a derreter. Usava uma espécie
de camisola de um tecido negro brilhante e um casaco de tricô sobre os ombros,
como uma capa.
- Esta é mamãe - Dan apresentou.
Para fora daquela máscara mole dois olhos pequenos e vivos fixaram-se em
mim, encarando-me ávidos, imóveis. Ela não falou nada. Uma janela, do outro
lado do quarto, dava para um trecho abandonado de jardim, onde umas poucas
galinhas ciscavam no monturo. As pontas dentadas dos pinheiros erguiam-se
pontiagudas como dentes negros contra o céu, como se uma imensa boca se
fechasse vagarosamente sobre nós. Estava ficando escuro. Dan trouxe uma
cadeira e eu sentei. Mamãe cheirava a hortelã e a coisas que usara durante muito
tempo junto à pele. Cada vez que ela respirava era como se sorvesse o ar sôfrega
e tremesse. Depois se acalmava e ficava quieta por um momento, recomeçando
em seguida. Dan sentou-se a meu lado, esfregando as palmas nos joelhos, seu
grande rosto brilhando.
- Não deixo muitas pessoas entrarem aqui - disse alto. - Não é mesmo,
mamãe?
Ele sorriu tímido, olhando para ela orgulhoso, como se de algum modo ela, e
não ele, fosse o rebento. Ela o ignorou como se ele não estivesse ali. Sua mão
jazia no braço da poltrona, a meu lado, grudada como uma rolha na ponta de
seu braço gordo. Seu rosto quase não tinha feições, nariz, boca, bochechas, tudo
se misturava na gordura informe. Só os olhos permaneciam abertos. Desde o
momento em que eu entrara, seu olhar não se desviara de mim nem um
segundo; era ao mesmo tempo remoto e penetrante, como se ela não estivesse
acostumada a ver seres humanos. O ar zumbia suavemente, pesado de calor.
Havia uma mesa, armários, um depósito de carvão de latão, um sofá com o
enchimento saindo para fora, dois gatos de porcelana olhando um para o outro
no consolo da lareira, uma bailarina de porcelana com um tutu feito de filó, um
prato de bolo de prata, uma estante sem livros, um globo de vidro com uma
cena alpina dentro e uma coisa que imitava uma tempestade de neve, uma
bandeja de cetim vermelho, tirado de uma caixa de chocolate, um par de canecas
com formato humano, um navio de velas enfunadas dentro de uma garrafa, um
desenho colorido de Maria, a Mãe de Deus, com um punhal atravessado no
coração. Dan estava indo embora, mas eu não percebi. A escuridão ficou mais
densa, o fogo rubro. Eu queria sair, ir embora, mas não conseguia. Uma espécie
de letargia voluptuosa tornava conta de mim, minhas pernas pesavam, como
barris cheios de um liquido pesado. E me parecia que, de algum modo, eu
sempre estivera ali, e de certo modo ficaria ali para sempre, no meio das coisas
de mamãe, seu pequeno olho inquieto fixo em mim. Ela significava alguma
coisa, não, ela não significava nada. Ela não tinha sentido. Simplesmente estava
ali. E ficaria ali, esperando, naquele pequeno quarto fétido, para sempre.

O ônibus estava atrasado. Felix e eu andamos de um lado para o outro na


porta do bar. A noite era clara e estrelada. Felix tinha um ar pensativo,
assobiando baixinho por entre dentes. Ele não sabia por que eu estava indo
embora; perguntou-me por que não esperava mais um pouco, uns dias. Ele
também partiria, então. Poderíamos ir juntos. Ele me olhou de lado, tentando
estudar minha expressão no escuro.
Minha expressão.
- Não vou conseguir tentá-lo, né? - disse. - Muito bem, fica para uma outra
oportunidade.
Olhei para a estrada. Ele tocou de leve meu braço.
- Sim, sempre há uma outra oportunidade.
Depois afastou-se, rindo, para o meio da noite.
A estrada da colina brilhava, os pinheiros suspiravam, a luz da lâmpada na
porta da frente do bar balançava com o vento. Ausência, ausência, o peso triste
de tudo que não estava ali.
XII

O lilás floria no jardim do hospital. Os primeiros aventureiros frágeis da


temporada passeavam de chinelo e camisola, virando seus rostos cinzentos
assustados para o sol. Nos telhados, rolos alegres de fumaça branca espalhavam-
se pelo vento, fazendo com que o prédio parecesse um grande navio cruzando o
azul. O hall de entrada era um exagero de luz. Um pardal conseguira entrar de
algum modo, e batia as asas contra o vidro de uma janela alta; ainda posso ouvi-
lo, aquela comoção mínima, frenética. Eles me pararam na escrivaninha.
- Você é algum parente? - perguntaram.
Um raio de sol batia cheio de pó na escada, como um pilar caindo, caindo.
Mãe.
Atravessei um corredor, esperei em um quarto. Havia uma mesa, cadeiras de
plástico, um vaso de flores secas. O tempo passou, uma era. Eu estava lá, e não
estava lá. Finalmente o padre Plomer chegou e ficou parado na minha frente
com as mãos flácidas unidas. Não estava usando óculos, sem eles seus olhos
tinham um jeito frio, magoado. Balançou a cabeça, como se tivesse se
desapontado um pouco ou reclamasse da inclemência do tempo.
Sinto muito - disse.
Ícaro. Ícaro.
A xícara está cheia.
Pedi para ver seu quarto. A cama fora desfeita, o cesto de lixo esvaziado, a
porta do criado-mudo estava aberta. Mesmo assim, para mim, ela estava lá,
estava tudo que faltava. Alguma vez foi diferente? Debrucei a cabeça pela janela,
olhando a fumaça no telhado, as pequenas nuvens, as colinas distantes,
sombrias. Um mar de gelo rugia dentro de mim. O padre Plomer andava de um
lado para outro, a sola de couro rangendo.
- Ela foi encontrada na capela, sabe - disse. - Tomo isso como um sinal; que
tenha ido até lá para ficar em paz.
Fez uma pausa e olhou para mim, com aquele jeito inseguro, inexpressivo,
depois começou a andar de novo.
- É claro que a questão é onde conseguiu arranjar aquela coisa horrível,
horrível, e em tamanha quantidade. A direção tem suas suspeitas, e, se elas
estiverem corretas, uma certa pessoa, eu garanto, que vai perder sua :posição
aqui, e muito depressa.
Olhou-me novamente com um olhar significativo e balançou a cabeça uma
vez, vagarosamente. Será que imaginei ou ele esfregou mesmo as mãos?

Encontrei o professor Kosok no apartamento da rua Chandos. Ele estava


sentado perto da janela da cozinha, com sobretudo e chapéu. Um punho
cerrado jazia diante dele, na mesa. Seus olhos estavam vermelhos, lágrimas
gordas rolavam pelo lado de seu nariz ensebado. Eles haviam dado as coisas
dela, em um saco plástico: a bolsa, a camisola florida. Ele me olhou cansado.
- Onde está sua ordem agora? - perguntou.
Ela era filha dele, eu já havia mencionado isso? Andei pelos quartos do fundo.
Como o sol brilhava grandioso ali entrando pelas janelas grandes, luz de um
outro tempo. E fiquei parado, chorando. Verão? O jardim estava florido. Uma
pomba aterrissou no parapeito, falou baixo e voou de novo.
Quando saí levei a seringa dela comigo, em sua caixa de veludo, como
lembrança.
Uma parte de mim também havia morrido. Levanteime uma manhã e
descobri que não conseguia mais somar dois e dois. Algo abrira caminho, o gelo
se partira. As coisas entravam, apenas coisas. Uma gota d' água mais uma gota d'
água não faziam duas gotas, mas apenas uma. Duas laranjas e duas maçãs não
formariam quatro em alguma nova síntese, mas continuavam a ser elas mesmas,
teimosamente. Oh, não quero dizer que não tenha pensado nisso antes, só que
agora não conseguia pensar em mais nada. Sabia tudo a respeito dos números, e
não entendi nada.

Perdi o caderno preto, larguei em algum lugar, ou joguei fora, não sei. Não fiz
eu mesmo meu próprio caderno negro?

Sofrimento, é claro, e culpa. Não posso entrar nessa. Dor também, mas não
tanto quanto antes, e a cada dia um pouco menos. Meu rosto está quase bom,
um dia vou me levantar de manhã e não mais me reconhecerei no espelho. Um
novo homem. Tenho ficado longe do hospital. O que há para mim naquele
lugar? Não quero mais proteção. Quero ser, ser o que não sei. Nu. Sem casca.
Um bebê que grita, mexendo os punhos furiosos. Eu não sei.
Será que amarrei todas as pontas? Mesmo um mundo inventado tem suas
regras, tediosas, talvez absurdas, mas que não podem ser negadas.
Às vezes ainda tenho aquela sensação, acho que nunca vou me livrar dela,
de que estou sendo seguido. Mais de uma vez, também, eu me virei na rua ao
ver um reflexo de cabelo vermelho, um rosto sorrindo tímido entre os rostos
inexpressivos. Será minha imaginação? Será que alguma vez foi outra coisa? Ele
vai voltar, de uma forma ou de outra, não há como escapar dele. Recomecei a
trabalhar, uma tentativa. Voltei para o começo, para as coisas simples. Simples?
Gosto disso. Vai ser diferente desta vez, acho que vai ser diferente. Não vou
fazer como antes, nos dias passados. Não. No futuro, vou deixar as coisas, eu
vou tentar deixar as coisas por conta do acaso.

Fim
Nota

[1] (em língua inglesa, swan é cisne. N. do E.) <<1

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