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Gabriel Swan vive o dilema do homem que precisa escolher entre a ação e a reflexão, a vida
e o trabalho, a experiência e a criação. Gênio em matemática, o jovem irlandês tenta dissolver
essa dualidade e responder à aparente desordem do mundo com uma espécie de equação
existencial.
Essa busca de entendimento transforma-se pouco a pouco em uma viagem dantesca, na qual
é guiado pelo estranho e sedutor Felix, que o faz conhecer criaturas bizarras e o envolve em
situações insólitas. Fábula moderna que em alguns momentos lembra as histórias criadas por
Swift e Lewis Carroll, Mefisto alia lirismo e humor negro, revelando ao leitor brasileiro um
dos mais talentosos escritores jovens da Irlanda.
John Banville nasceu em Wexford, Irlanda, em 1945. Seu primeiro livro, Long Lankin,
foi publicado em 197O. Seguiram-se Nightspawn, Birchwood e os elogiados romances
Copernicus, que recebeu o James Tait Black Memorial Prize em 1976, e Kepler, com o
qual obteve em 1981 o Guardian Fiction Prize. Escreveu também uma novela, The
Newton Letter, adaptado pela televisão britânica. Mefisto, lançado em 1986, é seu mais
recente romance.
contracapa
“Banville é esplêndido.”
The Economist
JOHN BANVILLE
MEFISTO
tradução
Celso Nogueira
Título do original em inglês: Mefisto
Tradução: Celso Nogueira
Copyright © John Banville, 1986
Capa: Eliane Piccardi sobre reprodução de The Judecca-Lucifer, de Gustave Doré
Composição: Editora Globo, 1988
Digitalização e edição em ePub: Sepulmetal, 2012
a Janet
MARIONETES
I
Jack Kay desce a escada, parando a cada três degraus para olhar para trás, para
o quarto, resmungando. Ela não podia ficar gritando com ele daquele jeito,
como se fosse uma louca, não era correto. Abriu a porta da frente com cuidado.
Uma tarde qualquer de verão. Ele escutou por um momento, depois deu um
passo para fora e fechou a porta atrás de si, segurando a folha com o calcanhar,
deixando-a encostar com suavidade. Vá chamar alguém, repetiu, mexendo a
cabeça, rápido, rápido! Ele cuspiu. Um cachorro chegou perto. Ele ergueu a
bengala e o animal encolheu-se, lambendo os beiços finos. A bengala era um
peso reconfortante em suas mãos, boa e sólida, gasta até adquirir uma textura
encerada, com um enfeite de prata de lei e ponta de aço. Ele franziu o cenho,
tentando lembrar quando e onde a encontrara. Pensou rapidamente na morte,
depois baixou a aba do chapéu sobre um olho e caminhou devagar através da
praça. E não ouviu o grito que saiu pela janela aberta do andar de cima, atrás de
si, nem o segundo, mais um gemido fraco, que ondulou e naufragou como uma
pequena mão que afunda.
II
Não sei quando foi que ouvi falar pela primeira vez da existência, se é que é a
palavra, de meu irmão morto. Desde o começo, sabia que eu era o sobrevivente
de alguma pequena catástrofe, as ondas de choque ainda estão reverberando
debilmente dentro de mim. O fenômeno misterioso que nos produziu é o
resultado, dizem os livros escolares, de uma pequena parada no
desenvolvimento inicial de um único óvulo, de forma que o embrião começa a
se dividir por fissão binária. Prefiro imaginar algo como uma figura de um
cartão-postal de mau gosto do litoral, uma mulher gorda, cara de maçã, peitos
grandes e bunda enorme, repartida bem ao meio por seu pequeno marido
sobrecarregado. De qualquer forma, a causa não importa, só o efeito.
Escapamos de inúmeros perigos. Poderíamos ter sido siameses. Um de nós
poderia ter seu sangue exaurido pela circulação do outro. Ou poderíamos
simplesmente ter estrangulado um ao outro. A tudo isso escapamos, e viemos à
tona, soluçando. Eu saí primeiro. Meu irmão foi um infeliz segundo. Nadador
perdido, afogou-se no ar. Meu pai, quando Jack Kay finalmente o levou para
casa, olhava atônito para a cena: o recém-nascido choramingando nos braços da
mãe, e sua réplica sem vida estendida no lençol.
Minha mãe temia que eu também fosse morrer. Jack Kay lembrou-a de como
os irmãos dele, os homúnculos, haviam sucumbido no mesmo dia. Ela me
embalava com certa veemência, querendo que eu vivesse. Ela não me perdia de
vista. Fez um berço para mim na gaveta grande do guarda-roupa em seu quarto.
Eu me vejo ali deitado, anormalmente silencioso, flexionando devagar minhas
pernas e braços tortos, como uma tartaruga virada de costas. Quando ela se
debruça sobre mim, olho para ela hesitante, franzindo o cenho. Meu olhar vago,
embaçado, é o de um viajante que volta de algum lugar extremamente distante e
estranho. De noite ela permanece acordada, ouvindo os ruídos furtivos que
aquela nova vida faz, suas viradas e suspiros suaves, e, vez por outra, algo que
soa como uma exclamação abafada de impaciência. Mais tarde, quando eu havia
aprendido a andar e podia me mover por minha conta, desenvolvi uma
linguagem particular, um balbuciar rápido, aquático, que deixava as pessoas
incomodadas. Soava como se eu estivesse conversando com alguém. Ao me
ouvir, minha mãe parava do lado de fora da porta, na escada - eu, ao ouvi-la,
imediatamente ficava em silêncio. Assim permanecíamos, nós dois, por longo
tempo, alertas, imóveis, escutando nossos próprios corações inexplicavelmente
palpitantes. Jack Kay, cofiando o bigode, comentava alto que talvez eu fosse
ruim da cabeça.
Sinto uma preocupação terna, retrospectiva, mesclada a um traço de
ressentimento, é verdade, por este pequeno menino desconcertante que se move
no meio de minhas lembranças daqueles primeiros anos em solidão atenta,
cautelosa. Eu me apegava à casa. Meu quarto dava para a praça, tinha duas
pequenas janelas, era como estar escondido dentro de uma cabeça. Eu não me
percebia nem inteiro nem totalmente real. Os contos de fadas me fascinavam,
havia algo desanimadamente familiar neles, a lógica louca, a descontinuidade, a
crueldade cega do destino. Fui levado para um circo, lembro, o ruído, as luzes
piscando, os metais da banda, o cheiro incongruente de mato esmagado
erguendo-se por entre os assentos. Havia anões acrobatas, uma mulher com
uma cobra e um contorcionista reluzente, fino como uma lâmina, que se sentava
sobre o cóccix e montava uma série de painéis torturantes com a indiferença
pétrea de um vendedor de pornografia exibindo seu material. Foram os
palhaços, no entanto, que realmente me enervaram, com suas cabeças pontudas
e pés de borracha e gritos estranhamente difusos, a forma com que eles ficavam
se atormentando uns aos outros, a maneira como o mais baixo ficava parado,
chorando frustrado, mostrando sofrimento, e, de repente, virava-se para atingir
seu companheiro magricela direto na cara, com insensível insolência. Fiquei
sentado imóvel durante todo o espetáculo, olhando fixo para o picadeiro
iluminado, ávido e silencioso, como aquele garoto da história que queria
aprender a tremer.
Minha mãe me levava para passear, primeiro num carrinho, depois
cambaleante à sua frente com um tipo de rédea, em seguida zanzando mais e
mais longe, atrás dela, por entre as sebes. De vez em quando íamos para lá de
Ashburn e vagávamos pelo mato. Ela mostrou a casinha onde havia nascido,
atrás do estábulo. Ashburn seria sempre um sonho para ela. A vida na casa
enorme, em cujos limites passeava saudosa. Dela se recordava, com uma mímica
langorosa, a música do poc-poc das bolas de tênis nas quadras verdes e o som
distante da corneta do caçador nas manhãs de geada, uma cena diminuta e
distante, e mesmo assim detalhada à perfeição, tilintando com risadinhas, como
um quadro flagrando aristocratas do século XVIII em pleno jogo numa clareira.
No centro desta pintura bucólica ficava a casinha, onde o sapo rei Jack Kay
havia reinado. Ali suas memórias eram mais nítidas, de cal e ratos no telhado, a
tina de banho no fogo nas noites de sábado, uma galinha pedrês parada numa
perna só sob um raio de sol da porta da cozinha. E os bate-bocas intermináveis,
é claro, os gritos, os ouvidos tapados. Agora os estábulos estavam desabando e a
forja onde Jack Kay trabalhara estava silenciosa. Um dia, num caminho largo,
sob uma árvore imensa, encontramos a srta. Kitty, a última dos Ashburn de
Ashburn Park, uma solteirona distraída e pouco limpa, de nariz aquilino e cabelo
desgrenhado, que conversou conosco calmamente, por algum tempo, e depois
virou-se abrupta e nos expulsou da propriedade, agitando os braços e berrando.
Havia outros espetáculos, outros temores. Tenho apenas uma única
lembrança do Avô Swan, uma figura enorme sentada na cama, rindo, na
pequena casa de Queen Street. Era manhã de Páscoa, e eu tinha cinco anos de
idade. Seu quarto de doente cheirava a fumo de cachimbo e mijo. O sol lá fora
brilhava, depois de uma recente pancada de chuva. O avô Swan estivera fazendo
a barba; a cuia, a navalha e um pedaço de espelho ainda estavam a seu lado, e
havia um pingo de sangue fresco no colarinho de seu pijama. Suas mãos
tremiam, mas fora isso parecia em forma. Mas ele estava morrendo. Eu estava
consciente da solenidade da ocasião. Dedos rijos me apertavam entre as
omoplatas, e eu dei um passo à frente, encarando assustado a sobrancelha
branca bem desenhada e o bigode grande, as unhas de ágata, os tufos de cabelo
cinza-chumbo esticados para trás, como se alguma força os houvesse puxado da
cabeça para trás e para cima, para a janela, para o telhado reluzente, até chegar
ao céu de primavera, azul pálido e frio como seus olhos. Ele deve ter falado
comigo, mas eu só lembro de sua risada, não como um som, mas como algo que
o rodeava, como uma aura, bem pouco benigna. Por muito tempo a morte me
pareceu um tipo de folia sinistra, descarnada, sentada a minha espera naquele
pequeno quarto fedorento.
Mesmo assim, fico pensando. É mesmo esta a imagem do Avô Swan, ou eu,
com minha imaginação, substituí de propósito, naquela manhã de Páscoa, aquele
homem condenado por um outro, mais rijo? Quero dizer, Jack Kay. A risada, as
unhas ameaçadoras, o bigode à escovinha manchado de amarelo no meio, será
mesmo que tudo isso era dele? Jack Kay. Para mim, ele sempre teve oitenta
anos. Usava seus anos como um símbolo de tenacidade, sombrio, com certa
truculência. Mas deixe que eu termine sua história. Ele morava em Ashburn e
trabalhava na forja. Era um bêbado intermitente. Casou com Martha não sei do
quê, esqueci o nome, ajudante de copeira na casa grande. Eles tiveram filhos.
Eram infelizes.
Ou pelo menos Martha era. Não consigo vê-la claramente. Ela e vovó Swan
morreram na mesma época. Mesclavam-se uma na outra, duas velhas judiadas,
por alguma razão menores que o tamanho natural, hidrópicas, de roupa preta,
sempre indispostas, sempre reclamando. Suas vozes para mim são um murmúrio
fraco, em segundo plano, como o ciciar de ratos atrás dos lambris. Elas devem
ter tido alguma influência, contribuído com um gene ou dois, mas mesmo assim
não restou quase nada delas. Na questão da hereditariedade elas não eram páreo
para seus companheiros masculinos. Da mesma forma, há uma lembrança que,
apesar de nenhuma das mulheres estar realmente presente, é inspirada por elas.
Fui um daqueles dias de vento úmido de começo de outono, com céu de nuvens
baixas, cinzentas, o chão lustroso coberto de folhas, e uma lata de lixo vazia
rolando pelo meio da rua. Alguém me havia dito que vovó estava morta. A
notícia, longe de ter sido melancólica, foi estranhamente hilariante, e ali, na rua,
fui repentinamente tomado por uma excitação aconchegante, que não posso
explicar, mas que de algum modo estava relacionada com a vida, com o futuro.
Eu não pensava na mulher viva, ela havia sido pouco significativa para mim. Na
morte, no entanto, ela se havia tornado uma daquelas pedras de toque secretas,
cuja evocação me sustentava misteriosamente, e confortava: pequenos animais
perdidos, pobres pitorescos, avisos de tempestades no mar, o pé descalço dos
franciscanos.
Não sei qual das duas mulheres morreu. Que a recordação daquela luz
prateada na rua chuvosa seja um monumento, mesmo insignificante, para as
duas.
Meu pai, nas lembranças da minha infância, é uma figura remota, enigmática,
e no entanto particularmente vívida. Ele trabalhava como contador para um
atacadista de cereais. Ele cheirava a palha, poeira, juta, coisas ressequidas. Sofria
de asma e mancava. Seus silêncios, nos quais um comentário a respeito do
tempo ou da proximidade da morte sumiam sem deixar vestígios, tinham certo
poder dentro de casa, como um bumbo que cessou de ser ouvido, mas que
ainda ressoa vagamente incômodo. Sua presença, tímida e transitória, dava um
peso misterioso à ocasião mais trivial. Certo dia, ele me levou para o monte
Fort, no cano de sua bicicleta. Era setembro, claro e calmo. As urzes estavam
florindo. Sentamos em uma vala para comer sanduíches, bebendo leito morno
em garrafa de refrigerante que minha mãe havia enchido para nós e arrolhado
com papel torcido. O sanatório erguia-se atrás da gente, oculto entre os
pinheiros, exceto por seu telhado pontudo e um monte de chaminés, fechadas,
quietas, sedutoras. Eu brinquei de sonhar comigo reclinado em desmaio
intemporal na varanda, lá em cima, enrolado nos cobertores, com o prédio
branco brilhante atrás de mim, e o sol à frente descendo lento pelo céu, e um
rádio em algum lugar tocando calmamente música para dançar. Meu pai usava
um boné reto e um casaco pesado, de corte quadrado, grande para seu tamanho,
com cheiro de naftalina. Ele apontou para um águia que voava em círculos no
zênite.
- Elas arrancam o olho da gente - disse. - Aquelas ali.
Ele era um sujeito baixo, com braços longos e pernas tortas. Sua cabeça
pequena fazia com que seu tronco parecesse mais pesado do que era. Com tais
membros, aquela cara fina, de olhos escuros próximos, tinha algo dos
anõezinhos guerreiros, os de cabelos pretos, Pict ou Firbolg, não sei, que se
ocultam nos limites distantes da história. Posso vê-lo, com roupa de couro e
sapatos pontudos, mancando no crepúsculo por entre as samambaias. Um
homem pequeno que os deuses vingativos ignoram. Um sobrevivente.
Por vezes me pego mergulhando naquele sonho em que a infância é uma festa
interminável, com bandos de crianças loiras e sorridentes, correndo sob o sol
pelas ruas. Quase posso ver as túnicas, as sandálias nos pés, os mais velhos em
seus robes brancos a observar indulgentes sob a sombra das oliveiras. Algo deve
ter alimentado esta fantasia clássica, uma brincadeira de pegador, quem sabe, em
uma noite de domingo no verão, as casas abertas para o ar fresco, as mães nos
degraus da frente conversando e a irmã de alguém, com seu primeiro batom,
inclinando-se para espiar pela janela de cima.
A cidade tinha doze mil habitantes, três igrejas e um salão metodista, uma rua
principal estreita, uma mina de carvão abandonada, um rio e um porto
assoreado. Fragmentos do passado grudam no presente, recifes na maré do
tempo: um túmulo viking, uma torre normanda, um trecho de uma parede
imemorial, como um molar quebrado. A história ali era rica. Giraldus
Cambrensis conheceu aquele porto. Os templários mantiveram um hospício na
península de Spike. A região cumprira sua parte em mais de um levante
frustrado. Atualmente o resplendor havia esmaecido. Houve também, quase
esqueci, a grande guerra contra as Testemunhas de Jeová. Eu vi a última rixa:
um padre socando a barriga de um jovem magro de capa, a multidão gritando,
os pacotes do Sentinela voando no ar. E houve ainda um assassinato muito
comentado, uma velha surrada até a morte numa noite escura, em sua loja de
doces, numa ruazinha. Foi o recheio dos pesadelos: o corpo atrás do balcão, os
doces nos vidros, o sangue.
Um quadro da cidade ficou pendurado em minha mente, como uma daquelas
inestimáveis, mas não muito apreciadas, miniaturas medievais, de origem
obscura, com símbolos de difícil compreensão atualmente, a transparência de
suas cores debotadas dando a elas um singular e acidental encanto. Pode tudo
isso ter sido há tanto tempo, tão distinto, ou esta pátina antiga é apenas o verniz
que a memória aplica mesmo no passado recente? É verdade, há um toque de
laca na luz desses dias que recordo. O cinza de uma tarde úmida de inverno seria
o tom mais adequado, mas penso também nos pratos de latão de uma balança
de mercearia sob o brilho empoeirado do sol, um caco de porcelana azul lisa
encontrado no jardim e guardado por anos a fio, para depois desabrochar
perante meus olhos interiores o reluzir de asas ouro pálidas num diáfano céu
azulado.
Junto com a torre e o muro partido havia as antiguidades humanas, o aleijado
e o louco, os corcundas, as velhas histéricas, encarquilhadas, com suas toucas e
casacos pretos, e os mongoloides, com olhos pequenos, pés defeituosos e
sorrisos doces, rebolando nos calcanhares de suas comovedoras mães de meia-
idade. Lá estavam todos eles em uma espécie de irmandade, na qual eu era um
mero acólito. Tinha seus cardeais também. O pequeno homem que chegou no
verão para ficar com seus parentes, do outro lado do nosso quarteirão. Ele usava
ternos azuis e sapatos brilhantes, abotoaduras de pérolas, um anel de rubi. Tinha
cabeça grande e bonita e peito forte. Seu cabelo era uma obra-prima: preto e liso
como goma-laca, parecia que um disco de vitrola havia sido moldado em seu
crânio. Pedalava um triciclo gigante. Encarapitado em sua máquina, passeava
sob as árvores da praça, rodeado por um bando de crianças deslumbradas, os
braços dobrados e uma biqueira reluzente tocando o solo com delicadeza de
bailarino. Ele era de certa forma o adulto ideal, enfeitado, elegante e maquiado,
magistralmente seguro, e media apenas um metro e trinta. Seus modos eram
especiais. Que tato! Em sua presença eu quase não me sentia diferente das
crianças comuns.
Quando ele partiu, uma alegria confusa floresceu brevemente, como se a casa,
como um navio frágil, tivesse sobrevivido a um desastre. Depois um silêncio
sério desceu.
Tio Ambrose veio fazer uma visita. Ele hesitou depois de entrar, farejando a
atmosfera tensa. Era uma versão aumentada de meu pai. Seu corpo parecia
grande demais para a pequena cabeça pregada nele. Tinha olhos apertados e
cabelo ondulado, e um queixo esfolado, como um pequeno par de nádegas
limpas. Ele tratava sua feiura com atenção invejosa, vestindo-a com riqueza,
mimando-a como uma mãe a um filho defeituoso. Mesmo assim seus ternos
eram um pouco apertados, seus sapatos um pouco lustrados demais. O silêncio
saía dele em lufadas, como uma intimidação de dor. Ele sempre parecia a ponto
de fazer alguma confissão terrível, angustiante. Sua reticência e seu ar de
dolorosa preocupação davam-lhe certa autoridade em nossa casa. Sua opinião
era respeitada. Minha mãe relatou a visita do professor, distendendo as narinas e
quase gritando, como se contasse um insulto. “Ponha-o em minhas mãos”, o sr.
Pender havia intimado, sorrindo como seu sorriso tenso, dental. Tio Ambrose
maneou a cabeça sério.
- É mesmo? - disse cauteloso.
Ela esperou. Tio Ambrose continuou a evitar seu olhar. Ela virou-se com
raiva para o fogão, retirando uma frigideira de um prego na parede. Meu pai se
levantara silenciosamente e dirigia-se para a porta. Bang, fez a frigideira. Ele
parou na soleira da porta e olhou para ela por cima dos óculos. Ele estava em
mangas de camisa e suspensórios, com o jornal da semana em uma das mãos e a
maçaneta na outra. Ele suspirou.
- O quê? - disse desanimado. - O que foi?
- Nada - ela gritou, sem se virar, e riu amarga. - Nada mesmo!
Ela jogou um punhado de linguiças na frigideira, e uma nuvem de fumaça e
banha voou no ar. Meu pai parou, ofegante. As brigas deles eram assim, um
reflexo no espaço, encerradas em um relâmpago, como o número de um
atirador de facas.
Jack Kay, cochilando perto do fogão, acordou com um resmungo. Ele o
olhou de soslaio, lambendo os beiços. Desprezava a velhice, suas enfermidades
intermináveis. Levantou-se. Ele não havia gostado nada do jeito do sr. Pender.
Meu pai voltou da porta e sentou-se pesadamente, segurando o jornal como a
um chicote. Tio Ambrose limpou a garganta e estudou a borda cariada da pia.
- Tem gente nova em Ashburn - disse calmamente, para ninguém em
particular. - Um pessoal esquisito.
Tio Ambrose conhecia as idas vindas da cidade. Ele dirigia um carro de
aluguel e sentava-se ao volante na parte externa da estação ferroviária o dia
inteiro, esperando pelos trens.
Minha mãe não permitiria a mudança de assunto. Ela varria o chão com
expressão envergonhada e riu outra vez estridente.
- Ponha-o em minhas mãos, esta é boa! - disse.
Ninguém respondeu. Ela ficou parada, hesitante, por um momento, corada e
furiosa, e depois virou-se abruptamente para a frigideira quente. Houve outro
silêncio incômodo. Tio Ambrose tamborilava na mesa com os dedos,
assobiando sem produzir nenhum som. Jack Kay olhou para o alto com olhos
inexpressivos, leitosos, a boca entreaberta. Meu pai, mexendo os lábios,
percorria o jornal atentamente. Eles pareciam desconfortáveis, tentando
suprimir alguma coisa, como se um fantasma tivesse aparecido entre eles, mas
quisessem fingir que não haviam visto nada. Eu os observei com interesse. Por
que eles precisavam ficar alarmados? Fora em minha direção que o espectro
havia apontado sua mão pálida, implacável.
IV
No final das contas foi o próprio sr. Pender que acabou desaparecendo. Um
dia ele simplesmente sumiu, ninguém soube para onde tinha ido. Desapareceu
da escola, desvanecendo-se com seus sarcasmos sem deixar vestígios. Padre
Barker também foi removido silenciosamente. Ele ficou doente e foi mandado
para um sanatório. Essas coisas me atingiram como sinais secretos, indecifráveis,
apesar de vívidos. As férias de verão haviam começado. Eu acordava de manhã
com um pulo, como se houvessem chamado meu nome. O tempo, como se
soubesse de algo, deitava seus mais adoráveis efeitos. Eu caminhava sob árvores
modorrentas, através do silêncio sonhador de tardes ensolaradas, e tinha uma
consciência tão aguda de estar ali a ao mesmo tempo em outro lugar, em um
presente de tal maneira fugaz que parecia puro potencial, de forma a me ver não
tanto como a mim quanto como lembrança vívida de alguém que um dia eu
tivesse sido. Ficava parado sob o sol salgado na frente do brilho ondulante do
mar, e o fustigar constante do vento em meu rosto era como o próprio futuro
rugindo para mim, censurando-me por estar já atrasado.
Eu passava horas trancado em meu quarto, que dava para a praça, debruçado
nos livros escolares, rascunhando cálculos. Metade do tempo eu mal sabia o que
estava fazendo ou o que viria depois, ou o porquê de estar fazendo aquilo. As
coisas aconteciam de estalo. Em um momento a questão estava ali - uma
equação para ser resolvida, por exemplo - e em seguida estava solucionada,
presto! Entre um momento e outro, eu tinha apenas noção de um bater de asas,
uma espécie de piscada, como se uma tampa houvesse sido aberta na imensidão
cega e instantaneamente fechada. Pode ter havido alguém dentro de mim
fazendo os cálculos, alguém que tivesse mais certeza do que eu e fosse
infinitamente mais rápido. Assim, às vezes esse outro eu parecia a ponto de me
abrir e sair para fora, intacto e impiedoso como um imago. Curvado sobre a
mesa perto da janela do quarto, eu parava subitamente e erguia a cabeça, como
se acordasse apavorado de um pesadelo, meu coração batendo forte, enquanto
ao meu redor, profundamente imóvel, uma espécie de presença lutasse para se
materializar. Eu me recordo de um quadro pendurado na parede da classe,
quando eu era criança e estava na escola do convento. Fora pintado em tons
acetinados de rosa e azuis densos, esmaltados, e mostrava um pequeno garoto
sorridente jogando bola na margem de um rio tempestuoso, vigiado por uma
enorme figura de camisola branca, com cabelos dourados e grandes asas
também douradas. Era seu anjo da guarda. Eu olhava fixo para a pintura,
impressionado com a ideia de ter sempre aquela criatura pairando atrás de mim,
com aquelas asas, aquelas mangas largas e aquela expressão que para mim não
revelava solicitude, mas uma maldade especulativa, cruel.
Eu não tinha amigos. Os números eram os meus únicos amigos. O ábaco
dentro de minha cabeça nunca ficava inativo. Eu podia dedicar dias a um único
exercício, embriagado com as contas. Por vezes, durante a noite, eu acordava ao
descobrir uma fileira de cálculos abrindo caminho através de meu cérebro como
uma centopeia cega, entocada. Um número, para mim, nunca era só ele mesmo,
mas uma massa hirsuta de outros números, complexa e volátil. Não podia ouvir
uma soma de dinheiro ser mencionada ou ver uma data anotada sem desmontar
o montante em seus fatores, frações e raízes. Eu via propriedades matemáticas
em todas as coisas a minha volta. Número, reta, ângulo, ponto eram as
coordenadas secretas do mundo e de tudo que ele continha. Não havia nada,
por mais diminuto, que não pudesse ser repartido em partes menores e menores
ainda.
Minha mãe estava ficando preocupada comigo. O que eu andava fazendo em
meu quarto aquele tempo todo?
- Nada - eu respondia. - Contas.
- Contas? Contas?
Ela balançava a cabeça, atônita. Atrás dela, Jack Kay olhava para mim e ria
afetado.
Ela me obrigava a sair para tomar ar, brincar, ser um menino como os outros.
Ela ficava imóvel na escada, como costumava fazer quando eu era bebê, e
escutava atrás da porta do quarto, como um médico auscultando um coração
suspeito. Eu não tinha jeito, ela dizia, não tinha jeito, era isso aí. Ela me entupia
de xaropes milagrosos. Eles tinham gosto de sangue e catarro.
- Eu estou bem - resmungava, afastando a colher cheia. - Estou bem.
E, quando ela insistia, eu em levantava e ia para fora, batendo a porta da
frente atrás de mim, fazendo com que a casa toda tremesse.
Eu andava e andava. Pessoas nas ruas passavam por mim indistintas, como as
barras de uma jaula. Quando eu esgotei a cidade, passei para a periferia. Andava
pela rua Coolmine, passava pelo depósito de lixo, as palmas suadas e a cabeça
quente. Houvera uma boca de mina ali, no tempo em que o carvão ainda estava
sendo extraído, e o elevador da mina continuava lá, esquelético, imóvel e
alucinado. Agora o local era depósito das fábricas da cidade. Caminhões da
olaria e da fundição de ferro desciam desajeitados por uma trilha esburacada,
torcendo-se e bufando como ruminantes alucinados, para então parar, agachar e
despejar uma pilha de dejetos, com urgência fecal, de suas traseiras basculantes.
Por entre os montes empoeirados, bandos de catadores escavavam em busca de
aparas de metal, e velhas carregando sacos procuravam pedaços de carvão,
enquanto enormes gaivotas reuniam-se em bandos, levantavam voo e pousavam
de novo, gritando furiosas. Sob o solo havia uma teia de túneis de poços, onde
fora a mina, e de vez em quando um buraco se abria na terra, no qual uma
encosta de detritos e poeira desaparecia vagarosamente, com um suspiro. Foi ali
que vi pela primeira vez o sr. Kasperl. Ele perambulava perto do portão do
depósito certa manhã, com as mãos nas costas e um charuto na boca, um
homem grande com pernas curtas e barriga enorme. Tinha um andar estranho,
feminino, ao mesmo tempo pesado e afetado. Usava um tipo de guarda-pó que
esvoaçava por trás dele e galochas de borracha preta. O casaco e as galochas,
incongruentes em um dia de verão, eram de certa forma impressionantes, como
se tivessem algum significado secreto, como se fossem uma insígnia denotando
uma autoridade singular, clandestina. Tinha uma cabeça rombuda, cabelo à
escovinha, orelhas pequenas, cor de malva nas pontas e delicadamente
espiraladas, como uma variedade exótica de cogumelo. Ao passar, ele olhou para
mim, inexpressivo. Seus olhos eram de um azul desbotado, impenetrável. Ele
prosseguiu em direção à cidade, deixando um rastro rico de fumaça de charuto
atrás de si, no surpreso e ensolarado ar.
De vez em quando eu ia a Ashburn e caminhava por onde havia caminhado
com minha mãe anos atrás. Até mesmo a srta. Kitty se fora agora. A casa grande
estava trancada, o parque transformara-se em matagal. Aqui e ali, dilapidados,
restavam sinais de um mundo desaparecido. Faisões ciscavam na grama alta. Em
meio a uma folhagem agitada pelo vento, um gamo poderia se materializar,
silenciosamente - um olho acetinado e um rastro cintilante, um coto de cauda, o
passo elegante de um unicórnio. Em uma touceira de amoreiras jazia uma
estátua inclinada, mutilada, olhos esbugalhados e taciturnos, como os de uma
rainha embriagada. Eu segui meu caminho por entre a forja, os estábulos vazios,
onde o ar ainda conservava o cheiro dos cavalos. Parei no meio das ruínas da
casinha onde minha mãe nasceu. Um silêncio enlevado, intencional, me cercava,
como se tudo estivesse me observando, chocado com minha intrusão nesses
locais desertos. Um cacho de sementes de tremoço pipocava, um tordo dava um
assobio agudo, fazendo com que eu pulasse. Um punhado de pó de tijolo
desprendendo-se de uma fissura em uma parede que desmoronava parecia uma
ameaça sussurrada.
Um dia ouvi vozes. Era meio-dia. Um vento quente soprava. Eu estava
parado em um pomar abandonado. Não, minto, eu estava caminhando no meio
de uma alameda de faias, plátanos, algo assim. As árvores curvavam-se sob o
vento, cada folha agitando-se alucinada. As vozes ondulavam, imagino que por
causa do vento, e no início não pude determinar de que direção provinham
aqueles sons curiosamente singulares, em miniatura. Atrás das árvores havia uma
sebe alta, densa. Fui até uma abertura, esgueirei-me por ela e me dei conta de
que estava em um atalho que descia suavemente até a margem de um riacho
banhado pelo sol. Fiquei quieto, escutando minha própria respiração e o vento
que zunia pelas árvores atrás de mim. Minhas mãos estavam impregnadas com o
cheiro de mijo de gatos das alfenas. O sr. Kasperl estava andando no riacho,
com uma garota a seu lado. Eu o reconheci imediatamente, não havia como
confundir aquele passo de pomba. Naquele dia ele usava um paletó de linho
branco encardido, um chapéu de palha de abas largas e empunhava uma
bengala, com a qual batia na grama, ao léu, conforme caminhava. A garota era
alta e pálida, com cabelos grossos, compridos, escuros. Ela estava segurando um
ramalhete de flores do campo? Não, não. Sua saia florida ia até o chão. Notei as
pontas de seus sapatos negros como pequenas línguas recatadas, brotando,
virando e revirando a cada passada, sob a barra ondulada e molhada pela grama
alta, onde se prendiam sementes de feno e pó de botão-de-ouro. O sr. Kasperl
parou e ergueu a cabeça, olhando em volta, para o céu e para as árvores
ondulantes, fumando contemplativo seu charuto, cujo cheiro eu sentia mesmo
daquela distância. A garota seguiu um pouco em frente, mas depois também
parou e ficou olhando inexpressiva, os braços estendidos ao longo do corpo.
Havia, no que diz respeito àqueles dois, uma sensação de opressão, de
inquietação sufocante, como se fossem ambos prisioneiros, e aquela fosse sua
dose diária de liberdade. Senti uma comichão excitada, furtivo na sombra entre
os odores corporais de folhas e terra preta. Então algo se moveu ali perto e meu
coração pulou dentro do peito. A menos de dez metros de onde eu me
encontrava, encostado em uma árvore caída ou enroscado nela, como deu a
impressão no início, havia um sujeito jovem, que deveria estar ali o tempo todo,
me vigiando enquanto eu vigiava os outros. Ele era magro, com um rosto
afilado de raposa, maçãs proeminentes e uma mandíbula aguçada, comprida. Sua
pele era pálida como papel, seu cabelo de um vermelho vívido. Ele usava um
terno surrado em risca de giz, que havia sido confeccionado para alguém mais
robusto do que ele, e uma camisa encardida sem colarinho. Ele se separou da
árvore e avançou, me examinando com interesse amigável.
- Qual seu nome, meu caro? - perguntou.
- Swan, senhor.
Ele deu um passo para trás e lançou um olhar extravagante, pressionando a
mão contra o peito.
- Swansenhor?
- Não, senhor, só Swan.
- Ora! Um pequeno cisne, por Zeus.1
Ele tirou uma lata amassada quase cheia de pontas de cigarro, selecionou uma
com cuidado e acendeu. Tinha dentes ruins e um tremor nas mãos. Fumou em
silêncio, pensativo, a cabeça abaixada, olhando para mim com um dos olhos
semicerrado.
- Meu nome é Felix - ele disse.
Sorriu, revelando uma falha escura nos dentes. O sujeito gordo e a garota
haviam se aproximado através do gramado e estavam agora parados atrás de
nós, na beira do arvoredo, curvando-se um pouco para observar e olhando para
nós com atenção impassível. O rosto comprido, em forma de coração, da
garota, era ligeiramente torto, como se a metade esquerda tivesse perdido um
pedaço, dando-lhe uma expressão ao mesmo tempo ansiosa e suplicante. Ela era
mais velha do que me pareceu inicialmente, quase uma mulher. Felix voltou-se
para ele e contou:
- Ele diz que seu nome é Swan.
Eles não responderam, e ele me olhou novamente, piscando.
- Aquele - disse, apontando com o polegar -, aquele é o sr. Kasperl.
Eu comecei a recuar. A garota de repente sorriu para mim e tocou o gordo no
ombro, fazendo um gesto complicado com as mãos, mas ele não prestou
nenhuma atenção. Felix, ao ver que eu me retirava, jogou fora sua ponta, enfiou
as mãos no bolso e riu.
- Até logo, menino passarinho - disse.
Eu corri pela alameda arborizada, tomado por repentina agitação. Ainda
posso ver claramente o olho de gaivota do sr. Kasperl, os punhos brancos,
pelados, de Felix, o sorriso súbito da garota. O vento rugia no topo das árvores,
como algo de passagem, a caminho de causar devastação em outro lugar. Eu
atingi a estrada principal e não olhei para trás. Quando cheguei em casa o lugar
parecia ter mudado, como se uma coisa familiar, ínfima, tivesse sido removida
silenciosamente.
Em seguida, vi Felix e o sujeito gordo no hotel Black, onde minha tia era
gerente. Foi de manhã, e o local exalava um cheiro de ressaca. No bar, as
cadeiras estavam emborcadas no tampo das mesas e um garçom em mangas de
camisa, em pé, de braços cruzados, apoiava-se em um cabo de vassoura. No
andar de cima, em algum ponto, uma arrumadeira cantava com voz rouca.
Caminhei como um fantasma pelos corredores silenciosos. Era com estar atrás
do palco de uma grande, desorganizada produção teatral. Espiei o sr. Kasperl
sentado sozinho perto de uma janela banhada de sol no deserto salão de jantar,
tomando café e observando a rua com ar distante. Tia Philomena estava no
cubículo que ela chamava de seu escritório. O ar estava pesado com o forte odor
de pó-de-arroz e fumaça de cigarro. Ela era irmã de meu pai: uma mulher alta,
pesada, assemelhando-se a uma aranha com sua saia e blusa negras, as pernas
magras, o traseiro grande e olhos brilhantes, dementes. Eu havia ido lá para
dizer a ela - deixe ver, para dizer a ela - ora, não importa. Não posso pensar em
nada. Estava a ponto de sair quando Felix enfiou a cabeça no vão da porta e
começou a falar animadamente, chamando minha tia por seu nome. Ao me ver,
parou. Ficou em silêncio por um segundo e depois disse:
- Ora, ora, vejam só quem está aqui.
Tia Philomena sorriu desengonçada e corou, apanhando coisas em sua mesa e
devolvendo-as a seu lugar.
- Ah, ele... - disse, como que explicando uma circunstância atenuante - ele é o
filho de meu irmão.
Felix ergueu uma sobrancelha.
- Não diga! - comentou.
Ele havia me reconhecido no ato, é claro.
Andei de volta pelos corredores silenciosos, passei pelo bar, cruzando com o
garçom, e pelo salão de jantar com seu ocupante solitário, saindo por uma porta
nos fundos, para a luz ofuscante do sol uma carroça da cervejaria estava
estacionada no pátio, e homens com aventais de couro levavam barris para o
portão. Sentindo o cheiro nauseante da cerveja, repentinamente lembrei-me de
ter brincado ali uma vez em um dia de outono, há alguns anos, com um garoto
sorridente com roupa de marinheiro que estava hospedado com seus pais no
hotel. Ele havia capturado um sapo, que guardava em uma lata de biscoitos.
“Veja isto”, ele me disse e enfiou um canudo pela goela do sapo e estufou e
estufou a barriga do bicho como se fosse um balão. Eu me recordo do cheiro de
musgo outonal do pátio, do quadrado de céu azul acima de nós, com nuvens
pequenas, de ouro pálido. Recordo-me do rosto de elfo do menino, deformado
pela risada, e sua pequena língua úmida abrindo caminho, gorda, no canto da
boca. Também me recordo do sapo, da barriga pálida inchada, das pernas
remexendo, dos olhos que pareciam querer saltar das órbitas. O menino soprava
o canudo e deixava que desinchasse de novo. Seria isso possível? É o que eu
recordo, não importa se é possível ou não. A coisa parecia incapaz de morrer.
Finalmente pulou no chão com um estalo úmido, como uma luva encharcada, e
esgueirou-se para um canto, tentando escapar. “Nada disso, você não vai!”, disse
o menino, rindo e pisando nele com força, com o salto de seu pesado sapato de
verniz. Fez um ruído como um arroto alto, e uma coisa rosada esguichou em
arco, caindo no chão atrás de mim. Billy, este era o nome do menino, acabei de
lembrar. Sim, Billy. Mas sapatos de verniz? Roupa de marinheiro?
Encontrei Felix certo dia na cidade. Ele vinha trotando pela rua Owl, com a
mão no bolso, assobiando. Senti um espasmo de excitação, um tipo de medo
ansioso, como o que eu sentira quando o vi pela primeira vez, na pequena
clareira acima do riacho. A rua era estreita e íngreme, correndo por uma colina
acima do porto. A torre da igreja de Assumption pairava por sobre os telhados,
parecendo voar. Havia um cheiro de maresia, e um fedor de carne de galinha
saindo da casa de um granjeiro, no beco.
- Olá, cisne - disse. - Seguindo no mesmo rumo que eu?
- Não - eu disse. - Eu...
- Está bem, então eu sigo no seu.
Ele sorriu.
Caminhamos ladeira abaixo, para o porto. O sol batia em um dos lados da
rua, barrado no final por uma sombra diagonal. Havia pouca gente fora de casa,
um velho de muletas, maltrapilho, atravessava a rua. A cada penoso passo ele
batia o pé esquerdo no asfalto com um ruído raivoso. Ele parou na sarjeta e
esperou intencionalmente, impaciente, que passássemos. Daquele ponto alto
podíamos ver toda a cidade, um amontoado geométrico escuro, espalhado a
nossa frente sob o calor do verão. Felix parou, tirou uma ponta de cigarro de
sua caixa e a segurou pensativo entre os dedos, removendo pedaços de tabaco
da ponta enegrecida.
- Estive conversando com sua titia - ele disse. - Ela contou que você é um
mágico com os números.
Ele acendeu um fósforo e o segurou no ar, olhando para mim de lado.
- É verdade? - perguntou.
Lá no porto, uma sineta tocava e tocava. Eu podia sentir o sangue subindo
para a minha face. Continuei a andar rápido, e Felix me seguiu. Atrás de mim, o
aleijado bateu a muleta e, a não ser que eu tenha imaginado, riu.
Viramos na viela Goat. Felix já sabia se movimentar por aquelas ruazinhas.
Ele me guiou por um pátio ensolarado atrás de uma peixaria, e descemos por
uma escada estreita com degraus de pedra escorregadia. Um rato corria a nossa
frente, levando uma cabeça de peixe entre os dentes. Abruptamente saímos no
cais. O mar estava alto, batendo espalhafatoso no madeirame como as costas
curvas de um ser vivo. Um lanceiro de bronze, escuro e sem brilho sob a luz do
sol, apontava com o braço decidido na direção da estação ferroviária. Nós
cruzamos o cais. Atrás de nós podíamos ouvir a maré indo e vindo. Felix jogou
sua ponta de cigarro na água, e ela chiou baixinho. Sob a intensa luminosidade
de beira-mar o branco dos olhos dele ficava sujo e a pele em volta do olho
estava contraída como se puxada, e marcada por pequenas rugas, como trincas
na porcelana. A brisa trazia até mim lufadas de seu hálito, carregado com cheiro
do cigarro e o odor metálico de seu dente podre. Eu podia sentir também o
cheiro de suas roupas, sob o sol, a jaqueta brilhante, de colchetes, com os bolsos
fora do lugar e lapelas murchas, as calças sanfonadas e sapatos como lanchas.
- O sr. Kasperl andou perguntando por você - disse. - Queria saber quem
você era. Eu disse a ele. Falei: o garoto é um prodígio. Ele ficou interessado.
- Por que ele andou perguntando sobre mim?
- Hã? Bem, não sei. Apenas perguntou. Escute, ele é legal.
Continuamos a caminhar. Nossas passadas ecoavam nas tábuas alcatroadas, o
mar sugava e cuspia. Felix falava. Imitou vozes engraçadas, recordou casos,
contou histórias bizarras. Falou sobre a guerra, sobre os alemães e japoneses e
sobre as bombas de enxofre que foram atiradas em Dresden. Sabia todos os
fatos, os números. Ele parou de repente e fez uma pose, com uma das mãos no
coração e a outra apontando para o céu, e cantou alegre:
Felix sempre estava ocupado, de uma forma vaga, acidental. Ele nunca
parecia terminar ou começar algo, dava a impressão de estar sempre no meio. As
chaves que ele estivera investigando na primeira vez em que vim a casa ficaram
semanas em cima da mesa da cozinha. Ele se levantava e ficava olhando para
elas, as mãos no bolso e o queixo enfiado no peito, e soltava um suspiro
engraçado, enfastiado, antes de perambular até alguma outra tarefa obscura. Ele
gastava horas rondando o andar de cima, fuçando nos armários e debaixo das
camas ou remexendo os guarda-roupas que ficavam, como largos sarcófagos, em
quartos de vestir úmidos e boudoirs desbotados, ainda abarrotados de roupas, as
relíquias roídas pelas traças de gerações de Ashburn. Ele resgatava partes de
roupas antigas - uma calça larga xadrez, um fraque embolorado, um boné de juiz
de críquete folgado - e as usava pela casa com pose estudada. Eu o encontrei um
dia no quintal, andando em volta das árvores com calça de tweed e jaquetão,
carregando uma espingarda enferrujada.
- Achei que seria bom dar uns tiros nos pássaros - disse. - Quer ser meu
ajudante?
Estivera chovendo, e agora um forte sol brilhava. As árvores molhadas
cintilavam. Caminhamos por uma trilha fustigada pelo vento. Havia vermes e
insetos por todos os lados, sob as folhas. Eu não tinha me livrado de uma certa
sensação de desconforto em sua presença. Sempre respondia a suas observações
com rapidez excessiva, ria com muita pressa de suas piadas, como se para
mantê-lo ao alcance da mão. Ele caçoava de tudo. Fazia caretas para o sr.
Kasperl, as costas dele, imitando seu andar de matrona. Atirava a cabeça para
trás e fingia rir alto, como se alguém houvesse dito algo incrivelmente
engraçado, até que Sophie, com a inépcia astuta dos surdos, começasse a rir
junto com ele; depois ele escondia o rosto com a mão, ocultando a face das
vistas dela e sorria, piscando para o sr. Kasperl e para mim. Mas não eram seus
gracejos que eu mais temia. Chegamos a um campo verde. As plantas brilhavam.
Um pequeno bando de cervos pastando nos viu e desapareceu silenciosamente
no bosque. Paramos, e Felix olhou em torno de si, sorridente.
- Isso parece um paraíso, igualzinho - disse. - Às vezes, penso se merecemos
este mundo. O que você acha, menino passarinho?
Ele riu e continuou a andar, carregando a espingarda na dobra do braço.
Caminhamos pela borda do campo até atingir a sebe alta e o rio. A casa estava
bonita, sob o sol, as janelas luzindo. Pássaros mergulhavam no ar claro, as
grandes árvores estavam paradas, como que ouvindo. Por um instante
experimentei uma felicidade pura, penetrante, incomensurável, efêmera como
um apagar de luzes. Um menino de entregas vinha pela estrada atrás de nós em
sua bicicleta, pedalando tranquilo, com só uma das mãos no guidão e os joelhos
para fora. Eu o conhecia. Seu nome era Clancy, um garoto baixo, musculoso,
com negros cabelos grossos e queixo pontudo, e um defeito em um olho. Ele
usava botas altas com abraçadeiras, e um avental comprido listrado. Fôramos
colegas de classe na escola, anos atrás. Ele era um ignorante e sentava sozinho
em uma carteira no canto. Os professores faziam gracejos a seu respeito,
mostrando seus cadernos para que víssemos suas lições desleixadas, enquanto
ele afundava no assento e olhava em volta ameaçador com o olho defeituoso.
De vez em quando, nessas ocasiões, ele não aguentava e chorava, lamentando-se
como um adulto, com dor e raiva, sufocando soluços irregulares e enterrando os
punhos cerrados no colo. Agora, ao me ver na sua frente, parou, brecando tão
abruptamente que a roda da frente de sua bicicleta entortou. Felix interrompeu a
caminhada e esperou, observando-o. Ele desmontou e cruzou a estrada,
andando pesada e vagarosamente, curvado, empurrando a bicicleta, franzindo o
cenho como se algum pensamento importante acabasse de ter ocorrido. A
bicicleta era uma máquina preta resistente, com rodas pequenas e grossas, tendo
na frente uma enorme cesta de vime cheia de pacotes.
- Você aí - Felix chamou arrogante. - Quem é você? Clancy parou e o fitou
com uma elaborada expressão de surpresa. Ele costumava esperar por mim no
caminho de casa, me jogar no chão e me socar, sentando em cima de meu peito
e bafejando seu bafo de fera na minha cara. Sua fúria sempre parecia uma
espécie de fracasso. Com o tempo, uma intimidade horrorosa, quente, cresceu
entre nós. Agora, completamente embaraçados, evitamos olhar um para o outro,
como se alguma vez tivéssemos cometido um pecado juntos. Ele abriu a boca,
fechou, depois tossiu e tentou de novo. Ele estava fitando a arma aninhada nos
braços de Felix.
- Do Walker, senhor - disse pesadamente. - Com as encomendas.
- Encomendas? - Felix indagou. - Que encomendas? Clancy começou a suar.
Lambeu os lábios e mostrou os pacotes na cesta.
- Estas, senhor. As encomendas que foram pedidas.
Felix voltou-se para mim.
- Do que é que esse cara está falando? - perguntou. - Você tem alguma ideia?
- As encomendas do armazém - Clancy falou, erguendo a voz. - As
encomendas que...
- Ah, do armazém - disse Felix, dando uma risadinha. - Entendo. Claro. Bem,
então você tem a lista aí?
- Como, senhor?
Felix olhou para o céu e suspirou.
- A lista, seu! A lista que foi entregue no armazém. Ela está aí com você?
Clancy piscou devagar e limpou o nariz nas costas da mão.
- Acho que tenho, sim - disse cauteloso.
Ele colocou a bicicleta em seu apoio, tirou um punhado de papéis amassados
do bolso do avental e começou a procurar tristonho, com o grosso polegar.
- Muito bem, leia isso, cara - Felix gritou. - Leia isso!
Um rubor escuro surgiu no rosto manchado de Clancy. Ele lambeu os lábios
de novo e debruçou-se sobre seus pedaços de papel, pesquisando com um olhar
apático, desesperançado. Felix grunhiu de impaciência.
- Vamos logo, cara! - repetiu. - O que há de errado com você?
Clancy, o rosto em brasa, olhou finalmente para mim, como um animal
ferido, furioso, em uma espécie de rogo. Ele não sabia ler. Passou um momento.
Eu desviei os olhos daquela expressão suplicante. Felix riu.
- Está bem - ele disse a Clancy -, pode ir. Leve as coisas pela porta dos
fundos.
Clancy enfiou os papéis no bolso, montou na bicicleta e pedalou em direção à
casa, recurvado sobre o guidão, como se enfrentasse uma ventania. Felix sorriu,
balançando a cabeça. De repente, ele jogou a espingarda para mim. O peso dela
me surpreendeu.
- Vá em frente, Barrabás - disse. - Comece a atirar.
VII
Revivi aquele momento na cama de Sophie tantas vezes em minha mente que
os detalhes se gastaram, ficaram ocos, perderam a solidez. Apenas eu estava ali,
real, sempre intensamente presente. De repente, tive uma noção vivida de mim
mesmo. Eu fora suspenso, erguido no ar, como algo precioso, reluzente,
colocado com cuidadoso ritual em minhas mãos. Não era o beijo que importava
tanto, mas o que ele parecia significar. Um mundo se abrira a minha frente,
desordenado, perigoso e estranho, e pela primeira vez na vida quase me senti em
casa.
Quando encontrei Sophie de novo, porém, experimentei um choque
surpreendente. Ela era tão palpitante em minha imaginação que agora,
confrontada com sua pessoa real, como se eu acabasse de ter abandonado sua
cópia mais perfeita. Ela deve ter percebido um lampejo desse choque em meus
olhos, pois sorriu enigmática, virou-se e afastou-se lentamente, olhando para
mim por sobre o ombro. Foi naquele dia que ela me levou no quarto do sr.
Kasperl.
Eu não percebi que ela me levava para lá. Estávamos só andando sem destino
pela casa, como fazíamos sempre. Mas, quando ela empurrou e abriu a porta,
lembro que senti uma aflição vaga, quase agradável, como se estivesse sendo
seduzido, com delicadeza, gentilmente, para o mal. Ele não estava lá, tinha ido
para a mina. O quarto era grande, o teto alto, e estava cheio de mobília pesada,
feia; escrivaninha, cômoda e sua cama enorme, desarrumada. Havia uma
atmosfera abafada, vigilante, como se algo estivesse acontecendo e fosse
interrompido com nossa entrada. Estava chovendo lá fora, uma tempestade de
verão a ponto de desabar. Sophie foi até a janela iluminada e parou com a testa
encostada no vidro, olhando sonhadora para o mundo verde, líquido. Eu passei
os olhos pelos papéis do sr. Kasperl, espalhados na cama, livros, mapas
militares, plantas dos subterrâneos de Coolmine. Havia um caderno preto
grande, grosso como um livro de bruxaria, com uma capa gasta de pano e
páginas cheiras de orelhas. Eu o peguei negligentemente e o abri, e no ato ele
começou a falar comigo com uma voz forte, clara, familiar. Eu me sentei
devagar na beira da cama.
Era o trabalho de muitos anos. As páginas, uma após outra, estavam cobertas
de cálculos, diagramas, fórmulas algébricas, dispostas com uma letra miúda,
quadrada. Muita coisa eu não conseguia entender. Cálculos quaternários, teoria
das matrizes, números infinitos, eu mal havia ouvido falar naquelas coisas.
Percebi que tínhamos algumas coisas em comum, no entanto, uma afinidade
especifica por simetrias, por exemplo, por equivalências de espelho e séries
palindrômicas. Mas aquele era o jogo de um mestre, e eu era um iniciante. Que
intrincado, que elegante! Prossegui a leitura, enlevado. Tudo para lá da cama
tornou-se indistinto, como se um tipo de penumbra luminosa houvesse descida.
A garota aparentemente passeava pelo quarto, aqui neste instante, acolá no
outro, desaparecida depois, como uma enfermeira difusa vista da cama do
doente. Por algum tempo ela ficou parada a meu lado, o cotovelo
negligentemente tocando meu ombro, mas quando ela se foi era como se eu
tivesse imaginado tudo, aquele calor, sua sombra, as mãos largadas ao longo do
corpo. A tempestade caiu, os raios cortaram o céu, chocalhando a moldura da
janela. O ar tinha um brilho sulfúrico. Então, subitamente, houve calma de
novo, e olhei para cima, através da luz ondulante da chuva, encontrando o sr.
Kasperl parado na porta, a capa ensopada, me observando.
Ele entrou pesadamente no quarto, limpando a chuva da testa com um lenço
grande vermelho. Tirou a capa e, sem olhar para ela, passou-a para Sophie. A
chuva parou, e o sol surgiu repentinamente, com um silvo quase audível,
refletindo na janela. Fechei o caderno calmamente e o depositei de novo na
cama. O sr. Kasperl não me deu atenção, mas seu jeito não era inamistoso.
Sophie pegou um cabide para sua capa e a pendurou na janela para secar ao sol.
Ele andava para lá e para cá, pelo quarto, com seu passo lento, deliberado,
rolando sobre seus pés redondos. Ele abriu uma caixa de charutos que ficava em
cima da escrivaninha, escolheu um, sentiu seu aroma, cortou a ponto e o
acendeu. Eu pensei em sair de fininho. Ele cuidava de seu charuto sem pressa,
fazendo com que acendesse por igual, depois finalmente virou-se e veio na
direção da cama. Levantei. Ele parou, ainda sem olhar para mim, e jogou uma
conta no caderno preto, um olho semicerrado, como se fosse um alvo distante,
depois o pegou e folheou suas páginas. Achou o que procurava e voltou-se para
mim, indicando a página com o dedo. Era uma série de equações, elegantes,
porém enigmáticas, todas as soluções possíveis perdiam-se no infinito. Ele as
contemplou por um momento, com o que parecia ser um ar de satisfação,
depois depositou o caderno aberto na minha mão e afastou-se deixando fumaça
de charuto e um cheiro fraco de roupa molhada e carvão. Sente¡ de novo na
cama. Ele me olhou com seu sorriso fino, estreitando os olhos.
- Eu estava procurando por você, e você estava aqui no templo todo o tempo
- disse.
Ele acompanhou os movimentos de Felix, que entrava no quarto, uma das
mãos no bolso, coçando o saco. O sr. Kasperl passou por ele e saiu, suas costas
quietas curvadas contra a porta. Sophie virou-se para a janela novamente. Eu
afastei o caderno.
Jack Kay ficou doente. Ele sentava na beira de sua cadeira de balanço com
um cobertor cobrindo os joelhos. Estava resfriado, dizia, resfriado, olhando
ressentido para o sol que brilhava na janela da cozinha. Suas enormes mãos
brancas descansavam imóveis no colo, como um par de ferramentas grotescas
sem cabo. Ele não queria comer. Poças de pus começaram a surgir no chão, sob
a cadeira. O médico foi chamado e o mandou para a cama. Nós o carregamos da
cadeira, meu pai, tio Ambrose e eu, e o levamos para cima. Ele se apoiava em
nós completamente, como uma grande estátua de gesso, mudo e furioso. Ele era
inexplicavelmente leve. Os anos haviam trabalhado dentro dele em silêncio,
esvaziando-o. Nós o pusemos na cama, apoiado em uma pilha de travesseiros, e
demos um passo para trás, esfregando as mãos. Ele nos olhou apavorado, como
uma criança, a boca em movimento, os dedos agarrados nos cobertores
dobrados sobre o peito, como se eles fossem a beira de um parapeito sobre o
qual ele estivesse escorregando vagarosa e inapelavelmente. Alguns dias, disse o
medico, uma semana no máximo. Mas as semanas passaram e ele ainda estava lá
deitado, olhando a luz na janela, o céu sub-reptício. Ele não falava com
ninguém, curtia sua raiva em silêncio, como um homem traído. Ficou com
escaras. Eu tinha que virá-lo de lado enquanto minha mãe o untava com
pomada. Sua pele estava seca, porém macia, como um papel de embrulho com
algo mole por dentro, e eu pensei naqueles pacotes moles que minha mãe me
fazia carregar do açougue até em casa, quando eu era criança. Na cama estreita
ele parecia enorme, apesar de frágil, um grande casco morto, descorado, dentro
do qual o homem vivo ainda se escondia, olhando com olhos em pânico, de
certa forma surpreso. O verão estava terminando, mas o tempo continuava
quente, como que para zombar dele. Sua mente começou a devanear. Ele ficava
horas deitado falando sozinho, em voz baixa, furioso. De vez em quando gritava
subitamente, e se jogava de um lado para outro, agarrado nas cobertas, como
um bêbado cambaleante tentando se erguer e lutar. Um dia ele caiu da cama, e
nós o achamos no assoalho, no meio dos lençóis, mexendo os braços
fracamente, como se afastasse um atacante. Seu penico havia virado.
- Olhe o que você fez - minha mãe disse. - Olhe só uma coisa!
Ele a encarou desconfiado, atônito, temeroso.
- Mãe - ele disse rouco -, você está ai, mãe?
Ele grunhiu. Não havia como sair da confusão imensa em que se encontrava.
Ele permitiu que o puséssemos na cama e recostou-se nos travesseiros, débil.
Voltou os olhos para a janela e uma lágrima grossa, lúgubre, correu por sua
têmpora, por sobre a veia vivida, pulsante.
Lá vem a noiva
Louca para dar...
Ele riu de novo e vagou pelo quarto, negligente, pegando coisas e largando-
as em seguida. Ele me olhou de lado e disse:
- Em que você esta pensando, menino passarinho?
- Em nada.
Eu estava pensando que sempre teria um pouco de medo dele.
- Nada, hem? - ele disse. - Bem, isso é mentira, eu sei. Você está pensando
em sacanagem, não está?
Ele fez uma cara safada, uma mesura, e deu uma cambalhota, gemendo
suavemente. Eu fui obrigado a rir. Sophie voltou, arrastando atrás de si o baú
com as fantasias, que tirava do armário embaixo da escada. Ela estava usando o
vestido de noiva por cima da saia e tinha colocado uma cartola amassada que
Felix encontrara no sótão. O vestido era pequeno demais para ela, e ficou torto,
repuxado nos quadris, os punhos e tornozelos aparecendo. Ela remexeu o baú e
retirou de lá um fraque e uma calça cinza listrada, oferecendo-as a mim. Mas
Felix tinha outros planos. Ele fez um sinal rápido, ela riu, tirou o vestido e o deu
a ele. Ele se virou para mim.
- Vamos lá, Doçura -, você vai ser a noiva.
Eu me afastei, mas ele me seguiu, rindo, e enfiou o vestido, como se fosse
uma rede, por cima de minha cabeça. Eu tremi com o deslizar da seda fria. Das
dobras e pregas ocultas saiu um cheiro de cânfora e cera, e de algo mais
irreconhecível, um odor de mulher, fraco, antigo. O corpete apertava minhas
axilas, as saias justas envolviam meus joelhos. Sophie ria e batia palmas.
- Salve! - Felix gritou. - Salve, vagina coeli!
Ele ajeitou o véu em minha cabeça, e Sophie arranjou um batom e pintou
minha boca, franzindo concentrada as sobrancelhas e mordendo a ponta da
língua. Ela remexeu novamente o baú e tirou um par de sapatos requintados,
brancos, de salto alto. Ela se ajoelhou na minha frente e tirou os meus sapatos, e
sorriu para mim, segurando meu calcanhar úmido com a mão.
- Viva! - Felix gritou. - O sapato serve!
Eu arrisquei avançar, instável nos sapatos de salto, as pernas bambas. Eu me
sentia quente e frívolo. Um espasmo de excitação me sacudiu, uma mistura de
prazer e incômodo. Era como se, dentro daquele vestido, estivesse uma outra
pessoa, e não eu, algum outro corpo, moldável, disponível, completamente a
minha mercê. Cada passo trêmulo que eu dava era igual a uma contorção
espasmódica de um cativo que eu prendesse com força junto a meu coração
impiedoso. Percebi minha imagem refletida em um pedaço de espelho partido
pendurado na parede, e por um segundo uma outra pessoa olhou para mim,
confuso e rindo alucinado, por detrás de meu próprio rosto.
- Radiante - Felix disse, levando as mãos ao peito. - Simplesmente radiante.
Sabe, a própria srta. Havisham não ficaria tão atraente.
Sophie vestiu o fraque e inclinou a cartola em um ângulo gracioso, dando o
braço para mim. Felix curvou-se a nossa frente, abençoando o ar e
murmurando.
- Em nome do punheteiro, do sodomita e do porco santo, eu os declaro
malandro e mexeriqueira. Aleluia. O que o cão uniu, que os homens não joguem
um balde d' água em cima.
Ele curvou-se novamente, solene, e fechou os olhos, movendo os lábios em
uma invocação silenciosa, depois deu as costas para nós e, erguendo os braços
para cima, entoou:
- Hic est hocus, hoc est pocus.
E peidou alto.
- Nunc dimittis. Amém.
Sophie puxou meu braço bem para perto de si e encostou a cabeça na minha,
sacudida pelo riso. Fiquei da mesma altura que ela, com meus sapatos de salto.
Senti seu perfume morno, lilás. Felix esfregava as mãos.
- É isso aí - ele disse. - Agora vamos tirar a foto.
Ele trouxe uma câmera de madeira, com um tripé, e a colocou a nossa frente;
curvou-se e espiou pela lente, mexendo o traseiro e batendo os pés.
- Olha o passarinho! Clic! Pronto.
Jogou a câmera para o lado e saiu dançando em direção à porta.
- Vamos, pessoal - gritou. - Vamos, Cinderela, vamos dançar agora!
Ele abriu a porta e foi para o hall com os braços erguidos, regendo a si
mesmo.
Era um sujeito alto, magro, moreno, com ombros largos e pés pequenos, e
uma cabeça pequena, lisa. Usava óculos de lentes grossas, que faziam com que
seus olhos parecessem arregalados de surpresa. Tinha um imenso nariz pálido, e
um pequeno bigode negro como uma impressão digital borrada. Seus sapatos
pretos, caros, de bico fino, haviam sido engraxados até brilhar. O sobretudo
castanho parecia estranhamente lotado, como se alguém alto estivesse agachado
dentro dele, com um companheiro pequeno, autoritário, sentado sobre os
ombros. Lutei para tirar o vestido e escondê-lo atrás de mim. Ele olhou dos
meus pés descalços para a cartola de Sophie, as sobrancelhas erguidas, depois
encarou Felix e disse:
- O sr. Kasperl.
Felix fez uma espécie de mesura contorcida, rindo ofegante e esfregando as
mãos.
- Ah, não - disse - Não sou o sr. Kasperl.
Os olhos arregalados se arregalaram mais.
- Quero dizer, onde está ele? Sei quem você é.
Feliz curvou-se novamente e riu.
- Ah, entendo - disse. - Bom, ele está na mina, acho.
Houve uma pausa. O jovem alto enfiou a mão no bolso do sobretudo e olhou
para o hall.
- Na mina, é? - disse.
Ele parecia cético. Seu olhar pousou nas tiras penduradas de papel de parede
e ele franziu o cenho. Virou-se para Felix.
- Você sabe quem sou?
Felix sorriu solicito.
- Sim, acho que...
- Meu nome é D'Arcy. Estou aqui representando certos interesses. Você
entende?
- Certos?...
- Isso. Certos grupos. Acabei de chegar.
Ele manteve os olhos de peixe presos em Felix, por um instante, com uma
expressão dura, reveladora. Felix tremeu. Houve outro período de silêncio.
Sophie se mexeu e deu um pequeno suspiro, largando meu braço.
- Muito bem, então - D'Arcy disse, repentinamente ríspido -, vamos dar uma
olhada por ai, está bem?
Ele girou nos calcanhares e atravessou o hall. Felix fez uma careta nas suas
costas, balançando a cabeça e rindo, a língua para fora. Sophie passou por ele e
seguiu D'Arcy até o estúdio.
- Opa! - Felix disse. - Salve o servo do Senhor!
No estúdio, ela já estava abrindo as janelas. Virou para D'Arcy com um
sorriso radiante, como se tivesse deixado que a luz entrasse só para ele. D'Arcy a
examinou indeciso.
- E você, qual é seu nome?
Ela deu de ombros, ainda sorridente. Felix tossiu, pôs a mão na boca e disse:
- Surda, eu acho.
Uma ruga surgiu na testa lisa e pálida de D'Arcy.
- Surda?
Felix fez que sim, com ar triste.
- Como uma porta. Muda, também.
D'Arcy olhou para mim.
- E?...
Felix concordou de novo.
- Muito triste - disse. - Muito triste.
D'Arcy olhou para ele intrigado, por um momento, depois virou-se
abruptamente e saiu do estúdio. Sophie o seguiu imediatamente. Felix, curvado
pelo riso silencioso, agarrou meu braço.
- Ora, ora - sussurrou - Mas que idiota!
Mas ele não estava tão alegre quanto demonstrava.
D'Arcy tinha ido para cima, com Sophie nos seus calcanhares. Nós os
seguimos. D'Arcy passava de um quarto para outro, distribuindo olhares de
desaprovação para a poeira e a bagunça, torcendo o nariz.
- Vocês vivem aqui? - perguntou incrédulo.
Felix apontou para o teto.
- Lá em cima.
- Onde?
- No sótão. Esta casa tem muito espaço.
Ele riu. O olhar de D'Arcy foi frio.
- É mesmo? - disse.
- Mais arejado, sabe? Tem uma vista linda. E estrelas à noite, como... como...
D'Arcy caminhou até a janela e parou, olhando o crepúsculo, as mãos para
trás. Atrás dele, Felix fazia mais uma careta grotesca, pondo os polegares nas
orelhas e mexendo os dedos, mostrando a língua. Sophie fez uma expressão de
censura.
- Isso não está certo - D'Arcy murmurou, como que para si mesmo.
- Isso não está nada certo.
Ele se voltou para Felix.
- É mesmo? - falou. - Nada foi feito, nenhum conserto, sujeira por todo lado,
pessoas andando por aí descalças maltrapilhas.
Felix sorriu, mostrando as mãos vazias.
- Não é o paraíso, posso garantir - ele disse. - Mas serve para nós, senhor.
- Não estou interessado no que serve para vocês - disse D'Arcy, com um olhar
terrível.
Nós todos descemos novamente, acompanhando D'Arcy. Ele parou no hall e
tirou os óculos, limpando a lente com um lenço branco imaculado. Os olhos
voltaram para as órbitas, duas contas pequenas, vivas. Ele nos observou míope,
as lentes brilhando em suas mãos.
- Soubemos de algumas coisas - ele completou. - Comentários a respeito de
dinheiro, algum tipo de jogada por fora. Vou investigar tudo.
Colocou os óculos solenemente e olhou duro para cada um de nós.
- Você vai ouvir falar de nós, pode ter certeza.
Caminhou em direção à porta da frente. Sophie chegou lá antes dele e abriu-a
devagar, sorrindo ansiosa na sua frente. Ele evitou seu olhar e saiu para a noite
úmida. Seu carro esperava na entrada, uma máquina grande, moderna, dourada,
o teto pontilhado de gotas de chuva. Ele abotoou seu sobretudo.
- Diga para o sr. Kasperl - falou por cima do ombro - que ele vai ter notícias
nossas.
- Ah, digo sim - Felix falou sério. - Eu digo a ele.
D'Arcy demorou-se, observando o fraque de Sophie, o sorriso atento de
Felix, os restos de batom na minha boca. Ele estava a ponto de dizer mais
alguma coisa, mas uma gota gorda de chuva da calha por dentro do colarinho
fez com que se arrepiasse, as omoplatas movendo-se como asas. Ele deu as
costas e desceu rapidamente os degraus. Sophie acenou até que as luzes traseiras
do carro sumissem na estrada. Felix fechou a cara, batendo o punho fechado na
palma da outra mão.
- Como ele chegou até aqui - resmungou -, aquele...
Ele percebeu que eu o observava e sorriu.
- Encrenca à vista, hem? - ele disse, piscando. - Para mim e para eles, também.
X
Sonhei com D'Arcy, uma figura imensa descendo lentamente por um buraco
no telhado de Ashburn, envolto em seu luxuoso sobretudo castanho, e os olhos
arregalados fixos e os braços presos ao peito. A chuva caía com ele pelo buraco,
e passarinhos mortos e galhos e pedaços de papel. Pensei: agora tudo vai mudar,
vai acabar. Mas nada aconteceu. Um dia chegou uma carta para o sr. Kasperl,
dentro de um envelope branco grosso, com o nome de D'Arcy e o endereço de
uma firma de advocacia impresso na aba. Felix o segurou junto e o sacudiu com
força, zombando do medo. O sr. Kasperl o leu, impassível, e o jogou em um
canto. Sophie o guardou com respeito. No meio das marionetes enfeitadas ao
longo da parede de seu quarto, havia uma que ganhara um sobretudo, óculos
pintados na cara e uma peruca rudimentar de lã preta colocada na cabeça.
Minha mãe ficou sabendo da visita de D'Arcy pelo tio Ambrose. Ela sacudiu
a cabeça, desconsolada. Ele logo vai acabar com eles, disse. Se vai. Ela olhou em
volta pedindo aprovação, depois fechou a cara e virou de costas. Todos estavam
contra ela. Primeiro tia Philomena havia desertado, depois tio Ambrose. A
morte de Jack Kay também fora uma traição. Agora ela estava sozinha. Ela
nunca mencionava Ashburn ou seus inquilinos pelo nome. Era sempre aquele
lugar e eles, a boca rígida empalidecendo. Então as pessoas ficavam em silêncio e
olhavam para as mãos, como se ela houvesse dito algo insensato ou inadequado,
e todos tivessem ficado sem graça. Por que eles não conseguiam entender? Algo
estava sendo destruído, pisoteado. Ela pensava no passado. Quando era menina
havia trabalhado em uma loja de tecidos na cidade. Fora feliz naquele santuário
sombrio. A textura rústica da vida que ela conhecera em Ashburn, na pequena
casa, dera lugar ali à suavidade das sedas e fazendas. Os balcões envernizados, o
acabamento em latão, mesmo os espelhos, tudo tinha um toque de cetim para
seus dedos, fresco e suntuoso. Ela gostava mais do começo da tarde, quando a
loja ficava calma, e ela livre para ficar simplesmente parada no meio de toda
aquela paz, escutando as vozes rápidas das outras balconistas fofocando na
seção de linhos, enquanto o dono, no fundo da loja, um sujeito gordo de óculos,
tirava peça após peça de tecido e alisava o pano com o movimento hábil da mão
branca, olhando por cima dos óculos para a freguesa a sua frente, parada, com
meias tricotadas e touca emplumada, resmungando pensativa, um dedo apertado
contra o queixo. Mas ela também apreciava as horas extras aos sábados, quando
tudo era barulho e movimento, os cilindros de madeira nos suportes altos iam e
vinham para os balcões e o ar ficava impregnado com refinado perfume de suor.
Sua seção era a de armarinho. Tinha um balcão só para si, equipado com muitas
gavetas pequenas, vitrines e mostruários de veludo, como uma elaborada caixa
de brinquedos. Ela passava os dedos enlevada pelas miudezas que controlava, os
carretéis de linha, os botões, de marfim, osso, madrepérola, as caixas de alfinetes
e agulhas arrumadas, brilhantes, e pensava no paraíso de alegria e tranquilidade
que ela vira de relance do outro lado dos gramados verdes de Ashburn.
Depois ela casou, e um dia, no começo da primavera, o dono a chamou em
seu escritório particular atrás do caixa. Ela ficou parada na frente da
escrivaninha, tentando esconder sua barriga já proeminente. Percebeu que os
lábios dele se moviam. Ele jogou o lápis sobre a mesa.
- Afinal - comentou petulante -, esta é uma loja de modas, minha garota, e
veja só o seu estado!
Ela andou por toda a extensão da loja, passando o dedo pelo balcão, em
direção à porta e ao dia cinza de março, sentindo uma pontada de dor dentro de
si, como uma espada flamejante.
Essas eram as coisas em que pensava, as coisas de que se recordava.
A primavera chegou cedo naquele ano - não, minto, chegou tarde. Mas
quando veio foi gloriosa. Eu recordo os junquilhos florescendo no gramado em
Ashburn. Todo o trabalho na mina foi interrompido. As escoras do teto
apodreceram. As pessoas diziam que o lugar era mal assombrado; ouviam-se
gemidos de fantasmas lá embaixo, e de vez em quando, à noite, um brilho
azulado podia ser visto em cima da boca do poço. Todas as manhãs, as nove, tio
Ambrose chegava em seu carro, e esperava do lado de fora da casa, por uma
hora, e depois seguia devagar, triste, indo embora novamente. O sr. Kasperl
ficava dentro de casa, subindo e descendo a escada e percorrendo os quartos
vazios. Eu encontrava com ele em lugares esquisitos, em pé, imóvel, como um
robô empacado, olhos no vazio, ausente. Ele parecia estranho, não era como o
resto de nós. Ele deve ter vindo de um país onde ninguém mais vivia.
Uma manhã bem cedo fui ao sótão e encontrei Felix agachado no corredor,
do lado de fora do quarto de Sophie. Ele colocou um dedo nos lábios e
apontou. A porta estava entreaberta. Ela ainda estava na cama, deitada de lado,
uma das mãos sob a face e os olhos fechados. Uma cerração branca luminosa
cobria a janela circular no alto, refletindo o sol fraco. Suas roupas estavam
jogadas de qualquer jeito, em uma cadeira ao lado da cama. O sr. Kasperl estava
parado um pouco distante dela, como que mergulhado em seus pensamentos,
apalpando seu lábio inferior carnudo com o polegar e o indicador. Do lado de
fora, sob os ramos, uma pomba arrulhava suave, indecente.
- Veja! - Felix sussurrou animado, pegando meu braço. - Olhe agora!
O sr. Kasperl deu um passo à frente, ficando ao lado da cama, e parou,
observando o rosto de Sophie. Depois, com esforço, as botas rangendo, ele
ajoelhou-se perto da cadeira e pegou suas roupas nos braços, mergulhando nelas
o rosto, ronronando suavemente. Felix deixou escapar uma risadinha e levou a
mão à boca. O sr. Kasperl estava deslumbrado, cheirando o monte de roupa,
devorando suas fragrâncias secretas, os velhos ombros gordos trêmulos. Sophie
tinha aberto os olhos e estava imóvel, a observá-lo. Depois ela olhou em direção
à porta e nos viu ali, nossos rostos contra a fresta. Ela sorriu.
- Olhe para ele, olhe! - Felix murmurava extasiado.
- Oh! Que velho sacana.
Felix também estava se escondendo. Houve encrenca no Black, quando
parentes das vitimas tentaram atacá-lo, e ele teve que fugir pela porta dos
fundos. Ficou indignado. Por que queriam pegá-lo? Não foi culpa dele. Com
certeza um daqueles imbecis - quem sabe o próprio Paddy ou mesmo Mick, ou
seja qual for seu nome - havia insuflado o pessoal. Mas a cidade estava
revoltada. Minha mãe ouvira os comentários e decidiu que havia chegado a hora
de agir. Cheguei em casa uma noite e a encontrei passando seu melhor vestido e
as luvas brancas de algodão, batendo com o ferro na tábua de passar, desferindo
golpes irados. Tio Ambrose estava lá, corado e carrancudo, olhando para o
chão, tentando controlar o tremor em seu joelho. Meu pai prudentemente
erguera a sobrancelha.
Na manhã seguinte tio Ambrose chegou para acompanhá-los com o carro.
Minha mãe já estava esperando, sentada à janela da sala, com sua bolsa, chapéu e
luvas brancas. Era um domingo de maio; lembro-me do sol na janela, o cheiro
forte e enjoativo de sua maquilagem. Meu pai, barbeado e penteado, descia a
escada resmungando. Tio Ambrose torcia as mãos desconsolado. Ele lançou um
olhar furtivo para mim, seu pomo-de-adão mexendo. Nós dois havíamos sido
seduzidos por Ashburn, de qualquer forma. Ele parecia aprisionado em seu
terno justo. Os três pararam na calçada, sob o sol, por um instante, um pouco
confusos com a luz, a brisa suave, as árvores começando delicadamente a
florescer. Depois tio Ambrose liderou o cortejo até o carro e acomodou-se no
banco do motorista com o cuidado costumeiro. Ele segurava o volante com os
braços esticados, como se tivesse medo, e apertava os pedais e mexia com o
câmbio enquanto os outros entravam. Meu pai sentou ao lado dele, minha mãe
ficou no banco de trás. Ela dizia algo para mim, mas a janela estava fechada, e
ela não sabia girar a manivela; depois o carro gemeu quando tio Ambrose pisou
nos pedais e a última coisa que vi, atrás do reflexo da paisagem movendo-se pelo
vidro, foi seu rosto tenso falando sem emitir um som sequer, afastando-se.
Foi tia Philomena quem veio me buscar. No começo pensei que ela estivesse
bêbada. Sua boca estava torta e uma mecha de cabelo caía em seu rosto.
Quando abri a porta ela já estava falando. Sua voz estava carregada com o que
me pareceu uma risada demente.
- Não sei de nada! - ela trinou. - Eles me ligaram, mas não disseram nada!
Corremos para a cidade. As ruas domingueiras encontravam-se desertas. Um
disco cegante de luz solar nos seguia pelas janelas das lojas. Tia Philomena
tropeçava com seus saltos altos, suando e resmungando.
- Você é da família? - ela repetia. - Você é da família? Foi o que me perguntaram.
Da família, ora essa! Que descaramento!
O hospital era um prédio branco, no alto do morro, impressionante sob o sol
da primavera, como um grande hotel do sul, as janelas revestidas pelo azul
festivo do céu. Havia outras pessoas lá, completamente diferentes de tia
Philomena e eu, estiolados, enobrecidos por seus males secretos. Mesmo as
visitas que desciam os degraus tinham um ar especial - pensativo, solene, um
pouco aturdido -, como se eles tivessem bebido, mas já estivessem novamente
sóbrios. O hall de entrada cheirava a chá e cera. Uma freira, na recepção,
vestindo um hábito esmeralda, com asas na cabeça, preenchia uma ficha. Tia
Philomena e eu esperamos, em pé no assoalho reluzente, no meio de um imenso
silêncio. Finalmente chegou uma enfermeira, uma mulher pequena de cabelo
vermelho e olhos belos, emoldurados de rosa, e com um relógio em uma
corrente pendurado no peito. Reparei em seus sapatos brancos limpos. Ela disse
seu nome que eu me esqueci imediatamente, e apertou nossas mãos
carinhosamente. Sua mão era quente e seca, e ela apertou a minha mão como se
desse um pequeno presente, olhando para mim em silêncio, com um tipo de
devoção atenciosa. Ela nos levou por um corredor até uma escada curva. Uma
janela larga dava para a cidade e para uma faixa de mar azul-escuro. Uma
imagem em tamanho natural do Salvador em um nicho na parede mostrava um
coração vermelho como rubi, em chamas. O rosto era igual ao de uma mulher
barbada, suave, cremoso e triste.
Nós entramos em uma enorme enfermaria, cheia de luz e som, como um
ginásio. Meu pai e tio Ambrose estavam deitados de costas, em leitos vizinhos,
ainda pálidos como um par de cavaleiros de mármore. Os dois estavam com a
mão direita no peito e o braço esquerdo esticado ao longo do corpo, ligado por
um tubo a uma garrafa em um pedestal. As cabeças, cobertas de ataduras.
Respiravam com dificuldade, em uníssono. O nariz de tio Ambrose levantava-se
em seu rosto como um machado de pedra. Eu nunca tinha reparado que era tão
grande. Ele abriu os olhos e fitou tia Philomena e a mim com ar de certa
surpresa.
- Sr. Swan! - a enfermeira gritou com espantoso vigor. - O senhor tem visitas.
Sr. Swan, olhe!
Mas ele não respondeu, e depois de um momento fechou novamente os
olhos, com um suspiro fraco.
Meu pai dormia tranquilamente.
Chegou um médico, um jovem atarracado de olhos inquietos e uma mecha de
cabelo liso e claro nas lapelas de seu jaleco branco, e seu hálito quente cheirava a
bolo.
- Para-brisa - ele disse, batendo com o punho na palma. - Deste jeito. Eles
tiveram sorte. Um enorme cachorro preto, ele contou, enfiou-se bem debaixo da
roda.
Tia Philomena virou para o lado sufocando um soluço com um lenço
amassado, que levou à boca. O médico olhou para o sapato e franziu a testa.
Um velho gordo, na cama do outro lado do corredor, de pijama listrado, sentou-
se e nos observava intensamente com olhos inflamados, ávidos.
- Bem - disse o médico ríspido - vocês vão querer?...
Tia Philomena, ainda mastigando seu lenço, balançou a cabeça com violência,
soltando outro suspiro abafado.
Acompanhei o doutor até sair da enfermaria, depois pela escada, passando
pela estátua tímida e pela janela panorâmica. O ruído dos bules de chá e dos
talheres subia pelo vão da escadaria. O médico seguia rápido à frente, os joelhos
virados para fora como cotovelos, o jaleco branco esvoaçando. Ele me disse seu
nome, mas eu também o esqueci. Um carregador corcunda com jaleco hospitalar
verde passou no pé da escada. O médico o chamou e ele parou, olhou para nós
desconfiado, uma das mãos meio enfiada no bolso do jaleco, como se estivesse
segurando uma arma. Tinha cabelos crespos, oleosos e negros, e óculos de lente
grossa e armação pesada, que pereciam fazer parte dele, como um osso em
miniatura projetando-se de seu crânio.
- Que foi? - ele perguntou.
O médico falou pacientemente, e ele moveu a cabeça, concordando, guiando-
nos por um corredor, tirando do bolso um enorme molho de chaves, em uma
argola de metal. Eu não conseguia afastar os olhos de sua corcunda. Entramos
em uma passagem curva, verde-escura, com pequenas janelas redondas como
escotilhas situadas no alto da parede, e chegamos a uma porta de metal cinza,
onde paramos e esperamos enquanto o carregador procurava a chave certa. O
médico afastou o jaleco e enfiou as mãos nos bolsos da calça.
- Domingo - disse com um encolher de ombros apologético -, eles trancam
tudo.
A porta se abriu, dando para um pequeno quarto alto, iluminado por uma
lâmpada pendurada. Uma imensa geladeira com portas de aço estava encostada
na parede. O carregador a abriu, revelando três cadáveres gelados, bem
arrumados nas gavetas. Olhei para o alto de suas cabeças, as orelhas lívidas
envoltas em cristais de gelo. O carregador abaixou-se e leu os nomes escritos nas
etiquetas das gavetas, forçando os olhos atrás das lentes grossas, cutucando um
dente lateral.
- Não - ele disse. - Não está aqui.
Fechou a porta e dirigiu-se para uma sala maior, pedindo que o seguíssemos.
Havia uma pia no canto, uma mesa com uma banqueta e uma janela minúscula
pela qual penetrava um raio grosso e incongruente de sol. Nossos sapatos
rangiam no chão de borracha. Uma maca. Uma figura coberta. O médico batia
suavemente na mão.
- Há uma formalidade, infelizmente - disse, em tom confidencial. -
Identificação. Temos que fazer isso nestes casos. Você apenas diz se é ela, e está
terminado. Está bem?
O carregador tirou o lençol.
A mulher na maca parecia mesmo um pouco com minha mãe. Ela era mais
velha, tinha uma testa estreita, e o cabelo também era diferente, mas havia uma
semelhança, mesmo assim, e por um instante eu não soube o que fazer. Será que
aquela era mesmo minha mãe, e eles haviam, de algum modo mexido em seu
rosto? Seria por isso que eles precisavam que eu a identificasse, para que
fizessem os consertos necessários? Fechei os olhos. Não, não era impossível.
Mas aí havia o problema do que dizer. O constrangimento abriu suas
mandíbulas e exalou seu bafo quente em meu rosto. O tempo passava
diminuindo mais e mais. O doutor estava ficando impaciente. Dei um passo
para trás. Precisei tossir para que minha voz saísse.
- Não - eu disse. - Não, eu não creio, deve haver algum... esta não é... - O
doutor piscou.
- Não?...
- Minha mãe. Não.
Ele virou-se rapidamente para o carregador, que coçou a cabeça e franziu a
testa. Depois abriu a boca.
- Tá - disse -, esperem.
Ele atravessou a sala, e de trás de uma cortina, com um quase floreio, puxou
pelas rodas de borracha outra maca, no qual o corpo de minha mãe jazia,
embrulhado em um cobertor xadrez. Suas mãos estavam cruzadas. Seu rosto
virado de lado, o queixo apertado contra o ombro. Os olhos não estavam bem
fechados. Eu não podia ver nenhum sinal do acidente, a não ser por um
pequeno corte na testa. Mas havia algo no jeito em que estava deitada, toda
torta, como se tivesse sido erguida e sacudida com violência, e tudo dentro dela
tivesse sido quebrado e despedaçado. Senti um pouco o cheiro de sua
maquilagem. O médico estava com a mão em meu ombro. Balancei a cabeça
aturdido, identificando o que não estava ali, pois aquilo não era minha mãe, mas
algo que ela deixara para trás, como um luva esquecida.
Não me lembro bem das coisas depois disso. Há lacunas. Recordo que estava
sentado em um pequeno quarto, um dispensário, creio, com uma caneca de chá
verde esfriando em minhas mãos. Havia cartazes coloridos na parede ao lado,
mostrando cortes de pulmões, estômagos abertos e um coração enorme, rubro,
com suas válvulas e ventrículos expostos. Senti uma calma profunda, como no
final de uma extenuante e perigosa aventura. Parte de minha mente estivera se
distanciando por sua própria conta, e repentinamente, vinda de lugar nenhum, a
solução de uma das equações do caderno negro do sr. Kasperl me veio à cabeça,
em três rápidos saltos transformacionais, movendo-se através da escuridão
como um acrobata vendado executando um salto mortal triplo, sem erro. No
corredor, a enfermeira Eu conversava com o dr. Blur. Sem aviso, comecei a
chorar. Era como um sangramento de nariz. Meus soluços tinham o efeito de
uma queda inevitável para dentro, com se um imenso buraco se abrisse em mim
e eu fosse atirado de cabeça para dentro dele. A tempestade cessou tão
abruptamente como havia começado. Enxuguei os olhos, assustado, um pouco
tímido, mas no fundo, orgulhoso de mim mesmo, de uma dor tão pródiga, tão
abrangente. Depois o médico foi embora, e eu o segui. Subimos a escadaria
curva novamente. Já era noite, eu mal podia crer. Um sol poente vasto,
deslumbrante, mergulhava no horizonte, como um naufrágio em mar aberto.
Meu pai e tio Ambrose ainda estavam dormindo. O rosto de tia Philomena
estava borrado e torto. Ela pegou no meu braço e saímos da enfermaria. O hall
de entrada brilhava com a luz do sol. A freira de hábito havia sumido, batera
asas, deixando as fichas sobre a mesa. Não, não houve nenhuma freira, eu a
tinha inventado. Caminhamos para casa vagarosamente pelas ruas desertas. O
céu era de um azul pálido, manchado de vermelho, tão alto, incrivelmente alto.
Tia Philomena suspirava e fungava. Eu queria me afastar dela. As árvores
estavam cobertas de flores, na praça, rosadas, cor de marfim e brancas,
imaculadas. Um corvo passou voando baixo em cima de nossas cabeças,
limpado a garganta. A chave estava embaixo do capacho.
XII
Tia Philomena vinha todo dia da rua Queen para cuidar de meu pai e de mim.
No começo ela era toda gentileza, fazendo as tarefas com as mangas
arregaçadas, mas logo a tensão começou a se mostrar. Tio Ambrose não
melhorava. Eles haviam retirado os pontos de sua cabeça, disseram que ele
estava bem, mas ainda assim ele só ficava sentado sorrindo, comunicando-se
consigo mesmo em uma espécie de feliz devaneio. Em certos dias ela tinha que
tirá-lo da cama e vesti-lo. Ele tinha crises de incontinência. Ela o alimentava
com uma colher.
E ela se sentava de repente, o rosto pálido, e acendia um cigarro com as mãos
trêmulas.
Meu pai só ficava na sala, agora. As horas passavam brancas, vagarosas,
silenciosas, como icebergs em um mar gelado. A atadura em sua testa fora
trocada por um curativo de pano preso com esparadrapo cor-de-rosa. Sua asma
piorara, o ar chiava e estalava em seu peito, como o som de um relógio
enferrujado preparando-se para despertar. Ele agarrava o braço da poltrona com
a mão, os pés dentro dos chinelos ficavam plantados rígidos no chão. Ele se
mantinha atento, preparado, como se estivesse esperando alguém chegar para
explicar tudo a ele, como aquilo havia acontecido, e por quê.
Eu me sentava à mesa perto da janela, em meu quarto, com a mão na cabeça,
como nos velhos tempos, ou o que pareciam ser os velhos tempos para mim,
naquela hora. Achava restos de comida esquecidos sob minha cama, ou varridos
para baixo do guarda-roupa, podres até criar bicho, cobertos de tufos de
penugem azul acinzentada. O quarto adquiriu um cheiro rançoso, fulvo.
Escancarei as janelas. O ar do verão fluiu pelo peitoril, vago, sedoso, como o ar
de um outro mundo. Eu trabalhava, perdido nos sonhos dos números puros.
Como elas eram calmas, quietas, aquelas noites brancas de junho. Eu olhava
para cima e percebia que o dia se fora, que a noite me rodeava intencionalmente,
retendo o fôlego e ainda incandescente. Eu era sonâmbulo, acordando em meio
a uma luz estranha, em um jardim de estátuas cegas, confuso, sofredor,
querendo novamente o sonho interrompido. Lá era tudo harmonia, a imensidão
fora domada, coisas estilhaçadas se refaziam. Ali também, de algum modo, eu
não estava sozinho.
Ah, eu trabalhava. Ashburn, Jack Kay, minha mãe, o cachorro preto, a batida,
tudo isso não era como os números, e no entanto também deveria ter suas
regras, uma ordem, algum tipo de padrão. Eu sempre pensei nos números
caindo sobre o caos das coisas, como granizo sobre a água, as partículas
minúsculas domadas e divididas, os cristais quebrando, o traçado gelado
espalhando-se em todas as direções. Podia sentir isso em minha mente, a
sequência dos eventos interrompida, a calma quebrada, o ar parado, branco.
Mas, ordenando os fatores como eu estava fazendo, eles não iriam mais se
compatibilizar. Tudo era oscilante e fluido e repentinamente cambaleante.
Superfícies que pareciam sólidas começavam a ceder sob meus pés. Eu não
podia reter nada nas mãos, tudo escorria inapelavelmente por entre meus dedos.
Zero, quantias ínfimas, números irracionais, o próprio infinito, de repente estas
coisas se mostraram como elas realmente eram, sempre foram. Fiquei mais
confuso. A luz desapareceu. Um melro assobiava na escuridão. Enfiei as mãos
no rosto, e isso também desapareceu, as feições derretiam, até as órbitas se
esvaziavam, até que nada mais restasse a não ser uma máscara de carne
uniforme, lisa.
O tempo ficou esquisito, névoa o dia inteiro, e nem um sopro de vento, o sol
um disco pálido preso no meio de um céu leitoso. De noite a névoa virava
garoa, cobrindo tudo com uma camada inconsútil de orvalho acinzentado. As
sirenes de nevoeiro tocavam a noite inteira no mar. Algo estava acontecendo
sob a terra. O asfalto derretia nas ruas, pequenas rachaduras surgiam na calçada.
Os jardineiros revolviam torrões fumarentos de terra fervilhando de larvas,
lesmas gordas e montes de vermes rosados, gordos. A vegetação ficou louca.
Cogumelos gigantescos surgiam em todos os lugares, nos gramados, sob as
sebes, nas ruas entre as plantações de batata, abrindo caminho através do solo
tépido, como crânios prateados lisos. Um cheiro rançoso tomou conta do ar.
Miasmas ocultavam a salina em Coolmine. Quando as ondas se agigantavam
jorrava um vapor negro da boca da mina. Corriam comentários a respeito de
incêndios súbitos, depressões misteriosas. Uma criança, brincando no jardim da
avó, caiu em um buraco flamejante que se abrira a seus pés, e foi encontrada,
chamuscada e trêmula, presa as raízes expostas de uma árvore, os pés
balançando sobre a fenda incandescente.
Eu vagueava pela cidade dia após dia. Vi o carro de D'Arcy e depois, outro
dia, o próprio D'Arcy, sentado melancolicamente perto da janela, no Black, no
lugar onde o sr. Kasperl costumava fazer sua vigília matinal. Comecei a passear
novamente pela estrada de Coolmine. Vi o local onde tio Ambrose bateu o
carro, na metade do caminho para Ashburn. Uma pedra caíra do muro, um
poste telegráfico foi arranhado. Fora um estrago tão pequeno: fiquei surpreso.
Os caminhões estavam usando o depósito novamente. Os portões haviam
desabado, as velhas com seus sacos haviam voltado ao trabalho, entre as pilhas
de lixo.
Fui até Ashburn, é claro. Andei pelo jardim, evitando a casa, como costumava
fazer. Aí, um dia, encontrei Sophie. Ela estava caminhando sob as árvores.
Levava uma cesta de vime no braço, coberta por um pano. Estava mais magra, o
rosto mais pálido, os olhos encovados. Mas sorriu para mim radiante como
sempre, como se tivesse me encontrado no dia anterior. Fomos até a casa. Eu
carreguei a cesta. Estava cheia de urtigas.
Felix estava sentado à mesa da cozinha, de costas para a porta, cantando.
Não é segredo
O que Deus pode fazer,
O que Ele já fez aos outros
Ele pode fazer a você...
Caminhei com Felix pelos arredores. Um sol fraco brilhava no céu branco. As
árvores reluziam, engraxadas pela névoa. Podia sentir o cheiro do mar, seu fedor
cinza. Felix estava mastigando um naco de pão. Ele usava o boné e uma capa de
chuva suja, parda, além da gravata listrada e suja.
- Meu traje de adeus - disse. - Você gosta? Ele jogou o pão fora. Uma gaivota
enorme mergulhou na névoa, fechando as asas, e o pegou no ar. Felix ficou
meditando em silêncio por um tempo, chupando o dente.
- Sim - ele falou -, tenho que cair fora. Aquela mina...
Ele ficou pensativo por um momento e depois riu.
- O pequeno investidor, pelo que descobri, não tem senso de humor. Um
mau perdedor, de ponta a ponta.
Ele parou, e virou para mim. Nós estávamos parados no meio do caminho. O
topo das árvores estava oculto na névoa.
- Ouça - ele disse -, você gosta de saber a verdade, não é mesmo? No início
era o fato, e tudo mais? Bem, vamos lá, então. Vou lhe mostrar uma coisa.
Voltamos para casa, subimos ao sótão, até o quarto do sr. Kasperl. Felix
delicadamente abriu a porta um centímetro. Meti o olho na fresta. O quarto
estava inundado por uma calma luz branca. Uma mosca zumbia contra o vidro
da janela. O sr. Kasperl estava deitado de costas na cama, os olhos fechados, a
boca aberta, como uma criatura marinha enorme na praia. Suas pernas eram
inesperadamente magras, com veias roxas emaranhadas. Sua imensa barriga
brilhava pálida, subindo e descendo, levemente coberta por uma penugem
arruivada. Seu sexo pendia em seu ninho espesso, lívido, infantil e mole. Sophie
estava em pé na beira da cama, calçando o chinelo. Ela ergueu as mãos acima da
cabeça, e por um segundo, antes que o vestido a cobrisse eu vi as sombras de
suas axilas e seios prateados e o pequeno tufo de cabelos negros entre suas
pernas. Ela se virou e me viu. Sorriu, e veio em nossa direção, com uma meia na
mão. Dei um passo para trás, e Felix fechou habilmente a porta.
No andar de baixo ele procurou algo no bolso úmido de sua capa de chuva, e,
tirando o despertador, olhou para ele.
- Meu querido - disse -, já está na hora?
Uma mala de papelão gasta jazia no hall. Ele a ergueu.
- Bem, eu estou fora. Felizmente, no final do verão. Quer ir comigo até a
estação de trem?
XIII
Ashburn estava em silêncio. Caminhei pelos quartos vazios, sob o teto alto,
sombreado. Uma janela quebrada, tábuas podres no chão, uma vista das árvores.
As marionetes continuavam onde Sophie as havia deixado, no estúdio,
espalhadas em torno do palco de papelão. Com que habilidade ela conseguiu
criar semelhanças! O cabelo de D'Arcy, a careca reluzente, aqueles olhos azuis
que me fitavam agora, impassíveis como sempre. Não, não impassíveis, mas
muito distantes, tão distantes que ele mal podia me ver. Ela ficou perfeita, a
mesma expressão remota. Ela estava sorrindo. Ela se ergueu de um salto, um
estalo abafado. O sr. Kasperl ficou atrás dela, ofegante. Eu falei. Mas eles não
podiam responder. Como poderiam eles responder? Tudo ficou tão silencioso,
repentinamente, oscilando na beirada. Então, sob meus pés, começou uma
espécie de rufar, fraco no inicio, aumentando rapidamente de volume, um
grande tambor tocado dentro da terra. O assoalho tremeu, rugindo, e desabou
com violência. O gordo e a garota afundaram lentamente, como se
mergulhassem na água, e não no fogo. Seu olho azul. O sorriso dela. Meu cabelo
pegou fogo. Uma chama vermelha saiu do buraco, e eu voei com asas de fogo,
agarrado em meu livro negro, pela fumaça e pó e vidro partido, na imensidão
fria do espaço.
ANJOS
I
Ah, Lâmia, minha adorada, minha querida, Lâmia, meu amor. Como você era
diligente, como cuidou bem de mim. Eu ainda posso vê-la, sua pele macia da
mais tenra malva, seu interior branco, seu nome em letras pequenas,
espantosamente nítidas, e aquela pequena letra R, gravada em um anel, como
uma verruga em seu queixo gordo. Você derretia sob minha língua, você se
enrodilhava em torno de meus nervos. O que teria sido de mim sem minha
Lâmia, como poderia eu ter passado minha temporada no inferno? Outros
cuidaram de mim também, mas nenhum deles me ajudou tanto. Eis aqui Oread,
a ninfa branca do esquecimento, e Lêmures, os tranquilizantes, como pequenas
contas negras, e a volúvel, amarelada Empusa, duende da rainha dos espíritos.
Eles são anjos de categoria inferior, mas mesmo assim preciosos.
Eu gostava das noites. O silêncio era distinto daquele que reinava durante o
dia, quando não era silêncio de verdade, mas interrupção, como se as coisas a
minha volta segurassem a respiração, atônitas, caladas de admiração. Durante a
noite um grande nada brotava como uma flor. O quarto era mal iluminado.
Quando virei a cabeça, quando fui capaz de virar a cabeça, pude ver a porta
aberta e depois um outro quarto, ou um corredor, escuro, no final do qual havia
uma mesa, com alguém sentado vestido de branco que jamais se mexia, mas que
mantinha a vigília por toda a longa noite. Uma lâmpada esverdeada na mesa
lançava seus raios para baixo, só dava para ver seus ombros e as mangas do
casaco branco, e algo em volta de seu pescoço, brilhante. Um raio de luz caia no
chão encerado, como o reflexo da lua na água escura.
Meu quarto ficava fechado de dia. Eu me esforçava para identificar o zunzum
vago para além da porta, vozes e passos, o ruído das máquinas. Havia uma
escada ali perto, e no andar de cima pessoas subindo e descendo. Como elas
pareciam atarefadas! Uma vez alguém gritou, um uivo longo, desolado, que
ergueu-se como um foguete vermelho, mais e mais, depois hesitou e caiu
devagar até virar um gemido. Isso foi o máximo, naqueles dias, o dia do grito.
Eu não estava só.
Uma coisa lascada, incompleta. Algo fora podado quando eu estava sendo
tratado. Eu não era isso nem aquilo, meio aqui, meio em outro lugar.
Extraviado. A cada dia, quando acordava, tinha que me reconstruir, me refazer a
partir de partes e restos, de memórias, sensações, palpites. Agora sei como
Lázaro deve ter se sentido, parado ao sol do meio-dia com sua mortalha, com
dor de cabeça, confuso, desconfiado, ainda carregando a lembrança vívida de
outro lugar, incerto se aqui era melhor do que lá.
- Você teve sorte - disse o dr. Cranitch com seu jeito cansado. - Queimaduras
profundas como as suas destroem os nervos.
- Mas eu posso sentir - falei.
- O quê? Onde, mostre.
Ele ergueu os óculos e observou o local que eu indicava.
- Não, não - disse. - Impossível. Isso é só ilusão sua.
Ele estava sentado ao lado do leito em uma banqueta giratória. Estava
fazendo sua ronda, de paletó de tweed, gravata de laço estreito. Alto, magro,
pálido, com um osso descarnado pelo mar. Um ar remoto de surpresa. Aquele
sorriso abatido, como se estivesse recordando uma piada velha, sem graça. Ele
me tocou com suas mãos frias, fazendo com que eu virasse de um lado para
outro, um escultor com um monte de gesso. A persiana estava abaixada, o ar
abafado.
- Nós temos muitas esperanças - disse. - Não é verdade, enfermeira? Sim,
muitas esperanças.
Ela não disse nada... Uma brisa cortante dedilhou minhas costas esfoladas.
- Amanhã, então. Amanhã vamos começar.
A srta. Barr era uma pessoa grande, loira, com bochechas coradas e olhos
saltados, de um azul pálido. Ela usava uma pequena túnica branca, calças
brancas desbotadas e sapatos fechados brancos, com solas grossas de crepe. Seu
cabelo cor de palha estava preso com firmeza atrás, em coque; eu a imaginava,
logo de manhã, quando saía da cama, prendendo-o, agarrando-o e dando-lhe um
belo golpe, forte, esticando a pele nas têmporas, fazendo com que os olhos
saltassem. Ela cheirava a sabonete, curativo, linimento. Eu costumava sonhar
com ela. Meu eu adormecido curava-se a sua frente, fraco pela antecipação de
um sofrimento requintado. No primeiro dia em que veio ao meu quarto, ela
arregaçou as mangas e disse bruscamente:
- Muito bem, meu jovem. Hora da fisioterapia.
Pensei que ela era louca, não sabia do que estava falando. Ela pegou meu
braço, minha perna, pesquisando.
- Nossa, você fez mesmo um estrago de si. Mas não tema, nós vamos deixá-lo
novo em folha.
Subimos e descemos juntos, como dois lutadores decrépitos, gemendo. Ela
tinha propensão a peidar. Contou-me a respeito de sua infância, passada
principalmente com cavalos. Imediatamente, eu a imaginei, uma espécie de
centauro, correndo sobre o gramado, bufando. Às vezes eu me imaginava junto,
montando nela, o vento em meu rosto, ouvindo o bater dos cascos, sentindo o
enorme coração pulsando e embaixo de mim. Ela colocou o joelho em minha
espinha, sentou no meu peito, me jogou por cima do ombro.
- Puxe, puxe! - ela gritava. - Vamos esticar este corpo! Vamos fazer de você
um novo homem.
O dia em que saí do quarto. Um dia para ser lembrado. Sentei na cama, de
pernas cruzadas, com a mão no colo, os olhos fixos na porta e então vi a mim
mesmo, como se fosse uma outra pessoa, levantar, girar a maçaneta e sair
andando. Uma enfermaria comprida, de teto baixo, cheia de camas enfileiradas,
com sujeitos em cima delas, sentados, olhando para mim. Todos aqueles olhos!
Eu estava esperando um grande vazio, halls imensos, uma figura solitária,
esquisita, desaparecendo. Um homem pequeno, de chinelo, e uma espécie de
bata, aproximou-se de mim. Pele curtida, olhos fundos, um pouco de cabelo
preto oleoso. Ele me saudou como se me conhecesse, sorrindo com um lado de
seu rosto fino e pequeno.
- Ora, ora - ele disse -, eis nosso homem misterioso.
Ele me guiou por entre as camas, apresentando os ocupantes. Não perguntou
meu nome. Ele era um cartão de visita, com vocação para a galhofa. Os mais
velhos davam risada, os jovens sorriam. Todos tentavam não me ver, minhas
cicatrizes.
- Vou entrar na faca - ele disse, mostrando a bata.
Ficou silencioso quando passou por algumas camas. Cabeças enfaixadas,
rostos de cera, olhos impenetráveis, fixos.
- Problemas no cérebro - ele sussurrou, sombrio.- Melhor ficar de olho neles.
Seu nome era Sykes, Stokes, algo assim. Ele me ofereceu uma ameixa, que
tirou de um saco em seu criado-mudo.
- Você sofreu um acidente, não é? - disse.
No dia seguinte, quando saí, ele havia ido embora. Os lençóis haviam sido
removidos da cama, a porta do criado-mudo estava aberta. Só sobrou um caroço
de ameixa, grudado no fundo do cinzeiro. A faca cuidara dele. Meu cicerone.
Não, meu Virgílio. Porque aqui, afinal, é o inferno.
Suspiros, gemidos. Gritos na noite. Um velho vomitando uma pasta verde,
inclinado para fora da cama, uma jovem enfermeira segurando sua testa.
Golfadas lentas, meladas, como o ruído de bombas de sucção defeituosas
trabalhando com esforço. Nos banheiros grandes, azulejados, brancos, pequenos
avisos pediam aos pacientes que não cuspissem na pia. Por toda parte, a mesma
tinta creme espessa, lisa como esmalte, porosa como a pele. Eu usava uma
camisola cor de rato com manchas vermelhas desbotadas. Alguém morrera com
ela, imagino, antes que fosse dada a mim. Eu andava, maneando pelos
corredores vermiformes, arrastando um pé. As pessoas desviavam os olhos de
mim, principalmente as visitas, os não-iniciados. Jovens franziam o cenho, numa
espécie de careta meiga, com se vissem um espetáculo de mau gosto. Eu seguia
em frente, puxando minha dor atrás de mim.
Dor tem cheiro. Plano, cinza, levemente doce; penso em uma mistura de
caspa e fezes. Era assim que eu reconhecia meus companheiros de sofrimento,
aqueles para os quais a dor era uma presença constante, um tipo de segundo eu,
fantasmagórico. Havia silêncio, também, de uma forma especial. Nós
sentávamos no que chamavam de salão de recreação, em grupos, sem fazer
nada, sem dizer palavra, e assim mesmo de algum modo em contato, como
participantes de uma sessão espírita.
Havia momentos em que eu imaginava ser apenas este ectoplasma, flutuante,
transparente, invisível aos sãos. Um dia achei o caminho para a maternidade e
me detive na parede de vidro do berçário, observando as fileiras e fileiras de
recém-nascidos com cara de ameixa em suas calças plásticas, e por um instante
fiquei confuso, um velho fantasma entrando em um novo mundo. Eles se
pareciam comigo! Eu apertei a testa contra o vidro, comovido. Uma mãe com
camisola cor-de-rosa olhou para mim e gritou, e eu fui levado, trêmulo,
silencioso, aquele pé arrastando atrás de mim, morto.
Pensei em minha morte. Pensei em Sykes, ou Stokes, que fora embora, levado
para a faca. Ele não estava mais em nenhum lugar. Certo, parte dele ainda estava
por aqui, no necrotério, provavelmente, e provavelmente ainda em melhor
forma do que eu, com metade da minha carne arrancada do osso. Mas o resto
dele, aquele sorriso, o olhar penetrante, as piadas, onde estava? Foi embora. Isso
era a morte. Nenhum desconhecido sombrio de capuz, nenhum amigo gentil,
nem mesmo o espaço vazio, com todo o seu potencial implícito, mas ausência,
apenas ausência. O nada, o lugar nenhum, o não estar aqui. Mas por que não
este algo me empurrando para a frente irresistivelmente, como se tudo, em
torno de mim, tornasse lentamente fôlego?
- Não morra - disse o padre Plomer. - Não é uma boa ideia.
Ele sentava ao lado da cama, olhando para mim animado, de pernas cruzadas,
balançando o pé grande, coberto pelo sapato preto. Ele era o capelão do
hospital. Tinha uma aura de água de barbear e vinho quente.
- É claro - dizia para me confortar - que a vida é uma coisa ruim, e
praticamente inútil. Mas, mesmo assim, devemos viver, do mesmo jeito.
Eu estava cansado dele, sua grande cara lisa e voz suave, seu distanciamento
genial.
- Para quê? - eu disse.
Rir era complicado, com uma cara como a minha. Não o faço com
frequência. Ele sorriu, comprimindo os lábios, como se mordesse uma pequena
semente com os dentes da frente.
- Porque - ele respondeu - precisamos ensaiar para a vida eterna que vem
depois!
Agora era a vez dele de rir; ele se recostou na cadeira, os óculos brilhando, ha,
ha, haa! Tive uma visão, seu rosto arrancado do crânio, a carne rubra, os
músculos, muco, o reluzir dos ossos, os olhos rolando.
- Acho que temos um jovem pagão aqui, enfermeira - ele disse. - Sim,
precisamos tomar conta dele.
Ela parou atrás de mim e olhou para a nuca dele, em silêncio, por um
segundo, depois deu as costas. Ele riu e riu mais, uma série de pufs suaves,
explosivos, os lábios arredondados, como se estivesse soprando anéis de
fumaça.
Ele me ensinou a jogar xadrez. Ele tinha um jogo de viagem, de plástico, nós
o colocávamos entre nós, na beirada da cama. Não demorou muito até que eu
aprendesse. Era uma espécie de geometria móvel. Ele jogava como um
principiante, mergulhando em cima do tabuleiro, fazendo movimentos
repentinos, bruscos, para depois voltar atrás com um riso amarelo, só para se
meter em uma encrenca maior.
- Você se sente melhor agora? - perguntou, franzindo a testa em meio a uma
confusão de peões. - Melhorou?, quero dizer. Xeque, por falar nisso. Será? Não.
Ele olhava como coruja para o tabuleiro, resmungando infeliz. O último
bispo dele fez um movimento para se libertar. Ele não havia percebido meu
cavalo.
- Sim - ele disse distraído -, a vida, a vida é...
O cavalo recuou, deslizou para o lado, parou em sua casa.
- Mate - eu disse.
Ele deu um gritinho de surpresa, erguendo as mãos.
- Ora, é mesmo! - gritou, rindo. - É mesmo!
Saia um pouco, me disseram. Sim, vá dar uma volta. Vá até a cidade, olhe a
paisagem, misture-se com as pessoas. Coisas simples, comuns. Tudo está lá,
esperando por você, por direito de nascença. Seja um dos viventes, um ser
humano. Eles me deram roupas, uma camisa, sapatos, calça, um casaco. Quando
me vesti senti uma espécie de convulsão excitada, como se eu tivesse posto não
apenas as roupas de uma outra pessoa, mas também a pele de uma outra pessoa.
III
Parei nos degraus do hospital. Um fim de tarde dourado de outono caía sobre
os telhados. Depois disso, para todo o sempre, eu iria pensar na cidade daquele
jeito, como os restos de um magnífico naufrágio, afundando. Minhas mãos
tremiam, enfiadas naqueles bolsos inesperados. Tanto espaço, tanta distância.
Eu estava tonto, sentia que, se caísse, cairia para a frente, no ar sem limites. Uma
horda de números desconexos zumbia em minha cabeça. Grama, árvores,
cercas, a estrada. A estrada! Um ônibus passou rápido, balançando na curva.
Poderia ter sido um mastodonte. As visitas da noite estavam chegando. Desviei
meu rosto deles, e me escondi na beira do caminho.
Ah, aquele primeiro outono. Céus suaves, vastos, galhos negros contra o azul,
uma sensação de espera e vaga dor, no ar luminoso, denso. Eu perambulava
pelas ruas como um amnésico, tudo era novo e ainda assim incrivelmente
familiar. Eu relembro principalmente a breve hora no final da tarde, quando os
balconistas das lojas já tinham ido para casa, e tudo estava fechado, e uma
quietude misteriosa cobria todos os lugares. Aí os mendigos e os bêbados
tinham sua chance, os catadores de lixo, as velhas frenéticas que viviam das
sobras das lojas, e aqueles homens esfarrapados, mas estranhamente fortes, com
queixos azuis e olhos alucinados, marchando pelo meio da rua, mexendo os
braços e resmungando furiosamente. Eles pareciam saber algo horrível, todos
eles, um tipo de segredo, cujo peso havia arruinado suas vidas. E eu era um
deles, ou quase. Um aprendiz, digamos. Um acólito. Eu os seguia horas a fio,
circulando em torno deles nas pontes dos canais, ou sob os arcos, onde
arrulhavam as pombas, e a poeira e os restos de papel giravam em redemoinhos,
e tudo era gasto e cinza e de cortar o coração. Não posso explicar o prazer
melancólico daqueles momentos, dos quais eu fugia rapidamente quando a
última luz do dia era sugada pelo céu, e a luz da rua chegava intermitente, no
crepúsculo azulado do outono.
Ah, as praças, as avenidas, os parques. A manhã banhada de sol, de névoa,
cheiro de calçadas lavadas, peixe, cerveja estragada. Passa um cavalo de tração
deixando cair bolas de estrume marrom. Confusão no tráfego. Um vento súbito,
sombrio, fazendo com que o dia escurecesse. Depois a chuva. O domo
aranhado das calhas do coreto, ameaçador. Novamente o sol, um clarão
molhado. Parada na esquina, perto da ponte. Um açougue, uma quitanda, um
banco de tijolos vermelhos, como uma casa de brinquedo de criança, com letras
douradas na janela e um grande relógio pendurado. Um trabalhador com uma
escada amarrada à bicicleta espera o sinal verde, assobiando. Um caminhão
treme ao parar, com um guinchar dos freios. O que será isto, esta sensação de
algo pendente, como se aqui um crime estivesse esperando a hora propícia para
ser cometido? A luz mudou. Percebo a lenta ruína das coisas, o interminável,
arrepiante colapso.
E depois as noites, prateadas e preto polido, os prédios sombrios agachados
sob uma lua tímida. Um luminoso de neon acende e apaga, em estranho silêncio.
Em algum lugar uma mulher ri. Nas ruas varridas pelo vento, ao longo do rio,
dois velhos maltrapilhos estão brigando. Eles pulam um pouco, cambaleantes,
mexendo os braços, a aba do casaco esvoaçando. Um forte estalo de punho
contra a carne, e um deles cai, o outro se anima, bate de novo, e mais uma vez,
com força. A rua molhada reluz. Um jornal voa ao longo da calçada, e bate em
uma cerca. Uma enorme gaivota passa na rua, olhando-me intrigada com o olho
redondo. Eu paro na porta de uma casa, espero, ansioso e apavorado. Alguma
pequena verdade suja está sendo vagarosamente revelada aqui. A gaivota
flexiona uma das asas, e a dobra de novo. O vagabundo caído no chão tosse e
tosse, escondendo o rosto. O outro fugiu. Um forte suspiro do rio, salpicando
água escura, que volta e bate de novo. Puxa! Um espírito conjurado?... Puxa!
A rua Chandos era curva, decadente, georgiana, com uma igreja protestante
em uma ponta e uma praça cercada na outra. Perambulei por ali noite após
noite, passando pelos postes de luz, observando a casa, aquela com o terraço
alto, com escada de granito gasto e porta da frente preta. Pessoas entravam e
saíam. Não, ninguém entrava, ninguém saía, a porta jamais se abria. De vez em
quando uma prostituta manca sentava nos degraus, cantando baixinho. Uma vez
me pediu fósforos e me chamou de bundão quando eu disse que não tinha. Nós
não éramos os únicos desocupados. Um casal surgia na esquina perto da igreja, à
mesma hora, todas as noites, um homem com cara de doente, trêmulo, e sua
garota arrepiada, cabelos desgrenhados, com pernas de gambitos. Eles ficavam
por ali mais ou menos uma hora, perscrutando ansiosamente a rua mal
iluminada, depois viravam e iam embora desconsolados. O sujeito começou a
me cumprimentar, tocando a testa com um dedo magro e tentando sorrir. Uma
noite ele me parou, segurou meu braço com a mão trêmula e olhou para trás
cautelosamente, como se estivesse a ponto de revelar um importante segredo.
Em vez disso, me pediu dinheiro. A garota não tirava os olhos inexpressivos da
minha barriga. Dei a ele um punhado de comprimidos de Empusa. Ele me
olhou maravilhado e assobiou baixo.
- Grande lance, cara - disse. - Vou rezar uma novena para você.
E havia uma outra garota, também magra, com pernas magras e rosto aflito e
pulso fino. Ela usava uma capa de chuva plástica, sapatos brancos e segurava
com força uma bolsa de plástico. Fumava e andava de um poste de luz trêmula a
outro, vigiando a rua, as casas. Ela me ignorava. O sujeito jovem, que tremia,
aproximou-se dela, e ela também o ignorou. Uma noite tentei segui-la. Depois
que ela passou uma ou duas ruas, virou-se repentinamente e subiu em um
ônibus. Eu me ocultei nas sombras e vi quando ela passou por mim, sentada
empertigada na janela, seu pequeno rosto fino e branco, cabelos negros como
corvo, curtos.
No final de uma semana, Felix finalmente apareceu, subindo a rua com o
casaco aberto e as mãos nos bolsos. A garota avançou rapidamente e o
encontrou nos degraus. Ele parou, o dedo erguido para apertar a campainha, e
recuou um passo. Ela falou com ele calmamente, ameaçadora. Atravessei a rua e
fiquei logo abaixo deles, na calçada. A garota ficou quieta no ato. Felix olhou
por cima do ombro.
- Meu caro amigo - disse -, você veio.
A garota virou-se alguns centímetros em minha direção, mas manteve os
olhos baixos. Houve um momento de silêncio. Felix olhou para um e para
outro.
- Vocês estão juntos? Não? Mas que coincidência, então.
Ele tocou a campainha, mas ninguém atendeu. Ele tocou de novo. Nós
esperamos. A garota, com um gesto furioso, abriu a bolsa e tirou uma chave.
Felix sorriu para ela. Ela o ignorou, enfiando a chave na fechadura.
Um hall desolado, paredes cor de oliva, uma lâmpada suja em uma luminária
de papel sujo, marrom. O carpete da escada estava rasgado. Nós entramos
silenciosos na penumbra. Felix ria sozinho, assobiando baixo. A garota andava a
nossa frente. Seu cabelo era eriçado atrás, em tufos, como se alguém tivesse
tentado arrancá-lo com a mão. Ela bateu na porta do terceiro andar, mas foi só
um gesto, pois ela também tinha aquela chave. Lá dentro estava escuro, a não
ser por um fraco brilho sádico penetrando pela parte de cima das altas janelas.
Felix acendeu a luz.
- Alô - ele chamou. - Você está aí, amigo?
Ninguém respondeu.
Havia caixas de papelão no chão, do lado de dentro, pilhas de livros e um
capote preto e um guarda-chuva pendurados em um cabide. A cozinha cheirava
a gás e linóleo e a coisas podres. Felix acendeu o fogo, abriu um armário. A
garota foi para o quarto da frente. Eu a segui. Ela ficou parada na janela,
olhando para fora. A torre da igreja brilhava na noite, contra um céu ácido.
Muita bagunça ali também, mais caixas, livros, pratos sujos na mesa. A garota
estava acendendo um cigarro. A chama do fósforo tremulava.
- Você me seguiu - ela disse. - Naquela noite.
Ela continuou a olhar pela janela. Seu pensamento parecia estar voltado para
outras coisas.
- Você não deveria ter me seguido.
Felix entrou, trazendo um bule de chá.
- Pronto! - disse animado. - Uma bela xícara de chá.
Ele usava uma velha capa de chuva e sapatos gastos, de bico fino. Ele
colocou o bule sobre a mesa, afastando para o lado os pratos sujos e os talheres
espalhados.
- Fazendo amizade, pelo que vejo - continuou.
Ele levou três xícaras até o fogão e despejou os restos no cesto de lixo.
- Não quero nada disso - ela falou.
Ele franziu a testa, olhando em volta, com exagerada expressão de surpresa.
- Não quer o quê? Ah, o chá, você quer dizer. Ah.
Ele riu sozinho e retornou a mesa, balançando a cabeça. Serviu três xícaras de
chá, dando uma a ela.
- Você sabia que nosso amigo também esteve no hospital? Ele já te contou? -
ele disse.
Pela primeira vez ela me olhou de frente. Tinha olhos pequenos, escuros,
apertados, um pouco vesgos. Ela me estudou por um instante, mordendo os
lábios. Sua capa plástica estava abotoada até a garganta.
A porta atrás de nós se abriu, e um homem pequeno, com expressão
ameaçadora, entrou. Ele usava ceroulas de lã e um cobertor no ombro. Seu
cabelo claro era eriçado, em tufos, e ele tinha uma barba ruiva, de três ou quatro
dias. Começou a dizer alguma coisa, mas em vez de continuar assoou o nariz.
Seus pés descalços eram pequenos, com unhas ossudas, amarelas.
- Ah, professor - disse Felix. - Pensamos que havia saído.
O sujeito baixo o encarou.
- Estou doente - falou.
Como se enfatizasse as suas palavras, ele espirrou com violência. Felix
apontou para o bule escuro na mesa.
- Quer chá, professor?
Desta vez o pequeno homem ignorou sua pergunta. A garota havia voltado
para a janela. Ele ergueu o cobertor, olhou para ela e depois para mim.
- Quem é você? - perguntou.
Felix tossiu.
- Este é o rapaz de quem lhe falei, professor. O senhor se lembra, não?
O professor abriu a boca e semicerrou os olhos. Nós esperamos, mas o
espirro não veio.
- Ah - ele disse azedo. - O prodígio.
Seu nome era Kosok.
IV
Já mencionei os ônibus? Gosto deles, o jeito com que passam pelas ruas,
soluçando e tremendo, como animais enormes, sérios, trabalhadores. Eu pegava
um, ao acaso, e ia até o fim da linha, no banco da frente, no andar de cima,
vendo a cidade se desenrolar a minha volta, as alamedas arborizadas e os
pequenos parques, os domos e torres e fachadas com arabescos. Passava por um
armazém, pela margem castigada do rio, depois por um beco com carros
estacionados e crianças jogando bola, sob uma ponte ferroviária enferrujada. Eu
me familiarizei com a metade superior das coisas, os mezaninos sujos das lojas
finas, os anúncios desbotados, de sabão, fumo para cachimbo e velas para
navios afixados nas paredes de tijolo. E depois os subúrbios, a vastidão cortada
pelo vento das mansões, com jardins dispersos, sapos pulando nas sarjetas e o
súbito reflexo de um espelho nas profundezas da janela de um quarto.
Quando relembro essas jornadas ao acaso, como sonhos, penso sempre na
garota. Quando deixou o apartamento na primeira noite, fui com ela.
Caminhamos pelas ruas escuras em silêncio. Quando passou o ônibus, subimos.
Éramos os únicos passageiros, a não ser por um bêbado deitado no banco
comprido do fundo. Acompanhamos a escuridão esmaltada passando pela
janela. Ela fumava um cigarro. Seu nome era Adele. Ela me olhou penetrante.
- Não sou judia, sabe - disse. - Não precisa ficar pensando que sou judia.
O cobrador disse que não era permitido fumar. Ela não lhe deu ouvidos.
Manteve o cigarro aceso em seus dedos magros, brancos, brincando com a
ponta com uma unha roída. Fomos para a margem do rio, sob as sombras
dentadas dos armazéns e guindastes. O bêbado acordou e ficou algum tempo
gritando, depois mergulhou de novo em seu estupor. O cobrador ia e vinha pelo
corredor, mastigando um palito, olhando muito para nós, para meu rosto, meu
cabelo desgrenhado, rindo sozinho. Adele mantinha os olhos fixos na janela,
brincando com o cigarro, brincando, brincando, tremendo de leve, como se uma
corrente elétrica fraca, contínua, passasse por ela.
- Eu o odeio - ela disse. - Aquele cabelo. O jeito dele andar, como se não
tivesse espinha.
Eu sabia a quem ela se referia.
Ela riu subitamente, um gritinho curto, de pássaro. Depois franziu a testa,
levantou rapidamente e deu o sinal. O bêbado resmungava em seu sono.
Descemos em uma esquina deserta, sob uma lâmpada. Havia um trecho de
muro caído pintado de azul e uma cerca de madeira bamba, com inscrições,
nomes, palavrões e corações flechados, e uma mulher gorda, partida, desenhada
com giz. Adele olhava em volta com ar preocupado, apertando a bolsa contra o
colo magro. Seus lábios ficaram negros à luz da rua. O silêncio da noite
acomodou-se no meio de nós dois.
- É aqui que você mora? - perguntei.
Ela me olhou surpresa.
- Não. Por quê?
Uma pontada de dor atingiu meu braço direito, como um cachorro velho
puxando a coleira. Eu engoli um comprimido.
- Onde você os consegue? - ela perguntou. - Isso aí? Ofereci um para ela. Um
Oread, o último do meu suprimento. Ela o examinou e o colocou na boca,
engolindo-o cuidadosamente, como se não fosse um comprimido, mas um
pouco da minha dor que eu estivesse dando a ela. Pela segunda vez me olhou
diretamente.
- Gabriel. Não é o seu nome?
Ela nunca sorria. Só sabia dar aquela risada, e de vez em quando fazia uma
careta, arregalava os olhos, agitada. Um ônibus se aproximava, do outro lado da
rua. Ela abaixou a cabeça e afastou-se de mim rapidamente, atravessando a rua,
os saltos de seus sapatos brancos tiquetaqueando no asfalto. Os faróis do ônibus
a iluminaram por um instante. Ela subiu e o ônibus desapareceu na escuridão.
Fui novamente ao cais na manhã seguinte, mas tudo parecia diferente durante
o dia; não consegui encontrar a esquina com o muro azul e a cerca de madeira.
Os guindastes e as laterais pálidas dos armazéns davam a impressão de coisas
reviradas, agitando-se desesperadas.
Adele me levou para conhecer lugares da cidade que eu jamais havia notado,
jardins murados no meio de edifícios comerciais, pequenos pátios de formas
estranhas, um cemitério saturado entre uma padaria e um banco. Ela andava
rapidamente pelas ruas, inclinada um pouco para a frente, seu pequeno rosto
esticado. De vez em quando parava e olhava em volta, curiosa, como se
esmiuçasse algo, um detalhe da cena. Ela pouco falava comigo, olhando de
esguelha para meu joelho. Fomos às grandes lojas de departamentos e
passeamos por entre os corredores iluminados, olhando silenciosos para os
cabides de roupas da moda e artigos de toalete e latas de alimentos, como se
fossem artigos de museu, as obras de uma remota era dourada. As pessoas nos
encaravam, as crianças grudavam nas saias das mães e apontavam, vorazes e
boquiabertas. Adele não ligava. Vivia na cidade como se fosse a única pessoa,
como se ela lhe pertencesse de algum modo, um imenso jardim, batido pelo
vento, deserto e decadente.
Jantávamos em um café ordinário, sentados nas mesas de fórmica atrás de
janelas embaçadas, no meio do cheiro de chá e pão quente e cigarro. Eu
observava as pessoas a nossa volta, os motoristas de caminhão de olhos
inchados, as garotas gordas de cabelos tingidos de louro e meias listradas, os
jovens atentos, cansados, em capas de chuva menores que eles. Comiam com
uma espécie de circunspecção tímida, curvados sobre o prato, as mandíbulas
trabalhando em movimentos circulares, rítmicos. Tinham uma aura depressiva,
chocada, que os envolvia, como se fossem sobreviventes de um desastre
horrível. Eu observava Adele também, discretamente, seu rosto fino, em forma
de coração, suas mãos infantis. Ela pouco comia, mas em compensação fumava
sem parar, bebendo xícaras seguidas de café preto ralo. Quando levava o cigarro
à boca ela fechava um olho, como se sentisse dor, e tragava fundo, com um
pequeno suspiro. Às vezes falava baixo, intensamente, os olhos fixos na janela
embaçada a seu lado. As pessoas a seguiam, dizia, os homens a cercavam á noite,
nas ruas, sentavam do seu lado no ônibus e a apalpavam, murmurando coisas.
Uma mulher de cabelo vermelho chegou por trás dela um dia e a amaldiçoou,
gritando e cuspindo em sua cara. E também havia os vagabundos, os catadores
de olhos alucinados, olhando para ela. Um negro parou atrás dela em uma loja
lotada e a apertou.
- Ele usava perfume - disse. - As palmas das mãos dele eram cor-de-rosa.
Nesse ponto ela soltou seu grito agudo de pássaro, sua risada, e me encarou
com aquele olhar fora de centro, carregado.
Mostrei a ela os lugares que costumavam frequentar, as ruelas e os arcos, as
ruas perto do rio, os caminhos de pedra ao longo do canal, onde eu vira os
mendigos e o maluco naqueles primeiros dias de outono, que pareciam agora tão
distantes no tempo. Ela foi ficando impaciente, virando indecisa de um lado
para outro, como se procurasse um jeito de escapar. Às vezes afastava-se de
mim abruptamente, como naquela primeira noite no cais, e subia em um ônibus
ou desaparecia em uma rua lateral. Não o fazia por raiva, nem por grosseria.
Acho que, de vez em quando, minha presença de algum modo obscurecia sua
mente. Eu às vezes ficava dias a fio sem vê-la, sem saber onde ia. Ela devia ter
um quarto em algum lugar. Ela insistia que não morava no apartamento da rua
Chandos, apesar de dormir lá com frequência, em um dos quartos encardidos do
fundo. Guardava suas coisas lá, também, jogadas no meio da confusão geral.
Havia uma mala cheia de roupas que era arrastada dos quartos para a sala da
frente e, depois, voltando pelo mesmo caminho. Tudo se movia de um lado para
outro assim, as roupas do professor, inclusive; o lugar sempre parecia ter uma
família grande, se mudando para lá, ou a ponto de ir embora. Adele abria
caminho no meio do lixo com seu passo sonâmbulo, como se estivesse
procurando algo e esquecido o que era. Uma noite me mostrou sua seringa, uma
peça antiga, fora de moda, com tubo de vidro graduado e agulha com proteção
de aço. Tinha uma caixa especial, como uma caixa de joias, com uma tampa que
fechava estalando e forro de veludo azul-escuro.
- Ele a arranjou para mim - disse.
Nós nos debruçamos sobre ela, as testas quase encostando, a contemplá-la
em silêncio. Depois ela suspirou e fechou a tampa, levando-a consigo para fora
do quarto. A noite de inverno estava a caminho. Eu podia escutar o ruído
distante do tráfego na hora do congestionamento. Os restos de um de seus
cigarros jaziam em um cinzeiro na borda da lareira. Ele nunca conseguia apagar
completamente as pontas, não importava com que força os esmagasse, mexendo
a boca.
Ela estava no quarto grande, vazio, nos fundos da casa. Havia uma cama
estreita no canto, uma única lâmpada fraca pendurada no teto. Um aquecedor a
gás assobiava. As grandes janelas não possuíam cortinas, dando para uma
confusão de jardins. A noite, como um gás negro, se espalhava pela cidade sob
um céu luminoso, cor de malva. Ela sentou-se em um dos lados da cama, a
cabeça abaixada, uma das mãos pendente, a outra repousando sobre o joelho,
com a palma para cima. Ela tinha tirado o vestido. Uma alça da combinação
caíra do ombro. Ela ergueu a cabeça na hora em que entrei, olhando em volta
distraída, com expressão indiferente. Passou a mão no cabelo.
- Eu o cortei todo uma vez. Mas cresceu de novo.
Ela piscou, franzindo a testa, e balançou a cabeça. Depois levantou, tirando a
camisola pela cabeça, jogando-a no chão, a seus pés. Punhos frágeis, tornozelos
frágeis, traseiro magro. Os ombros delicados, reluzentes. Ela colocara uma
atadura em um dos dedos do pé, onde havia estourado um furúnculo. Andava
de um lado para outro do quarto, deixando cair o resto de suas coisas, tão
desligada como sempre. Ela me parecia muito estranha agora, aquela cabeça
familiar no corpo desconhecido, magro, branco como amêndoa. Havia um
pequeno espaço triangular entre as pernas, abaixo do chumaço de pelos pretos.
Ela acendeu um cigarro. Quando eu a toquei ela se virou rapidamente, surpresa.
Sua boca estava aberta, eu a beijei desajeitado, sentindo o gosto do cigarro. Ela
não fechou os olhos.
Apagou a luz, e nós deitamos juntos na cama estreita. Ela estava tremendo.
Aos poucos as formas mal iluminadas do quarto saíram da escuridão, como
criaturas reunindo-se silenciosamente a nossa volta. Ela me abraçou com força,
mas, ao mesmo tempo, parecia me manter a distância, como se parte de sua
atenção estivesse em outro lugar, concentrada em algo mais, além de mim. O
lençol era pegajoso. Eu sentia frio e queimava. Minhas mãos tremiam. Eu lambi
suas pálpebras, suas axilas, pus a língua na sua orelha, no umbigo, na pequena e
fria concha na base de sua garganta. Quando eu quis tentar entrar nela, no
entanto, ela se afastou de mim, e houve um silêncio súbito, apavorante. Eu
tentei de novo, cautelosamente, mas ela se afastou de novo. Ela não permitiria
que eu a penetrasse, pelo menos não onde eu mais queria penetrá-la; e, no fim,
com um suspiro de impaciência, deu-me as costas.
Ficou na beira da cama, curvada e tensa, encarando a escuridão como um
animal atento, pronto para o perigo. Tomei um de seus seios pequenos e frios
nas mãos, minha boca estava colada em sua nuca. Sua pele tinha um cheiro
adocicado, adolescente. Eu tremia. A noite era escura. A janela olhava para a
escuridão lá fora, atônita. Um avião cruzou o céu, os motores zumbindo
esforçados; vi de relance suas luzes de rubi, na asa, passando pelo canto da
janela, lá no alto. Eu estava pensando em um momento, há muito tempo,
quando eu era criança, não havia nada de especial nele, não sei por que me
recordei daquele momento, numa curva da estrada em uma montanha qualquer,
à noite, no inverno, a estrada molhada, reluzente, e as folhas mortas caindo; e a
luz do poste da rua tremendo de frio. Ausência, eu suponho, o peso triste de
tudo o que não estava lá, eu acho que foi disso que me lembrei.
Nós nos vestimos em silêncio. O aquecedor a gás cantava sua canção aguda.
Minhas mãos ainda tremiam. Adele andava de um quarto para outro,
preocupada, procurando por alguma coisa. Estava com fome, anunciou. Saímos,
e ela comprou um saco de batatas fritas e sentou na calçada do lado de fora da
loja, devorando-as, os olhos fixos, concentrados no chão a sua frente, como se
não estivesse alimentando a si mesma, mas alguma coisa faminta dentro de si.
Fomos dar uma volta. Era uma noite fria, tempestuosa e clara. A lua cheia
aparecia e sumia entre as nuvens. Vimos uma briga do lado de fora de um bar e
encontramos uma mulher pequena empurrando um cachorrinho em um carro
de boneca. Em um terreno baldio um bando de bêbados estava sentado em
volta de uma fogueira, como um círculo de decadentes estátuas de pedra.
Paramos em uma ponte e observamos uma barcaça deslizar por nós, escura e
quieta, no rio escuro. Voltamos para a rua Chandos, e o jovem com cara de
doente estava lá, esperando na esquina, agarrado em seu casaco para se proteger
do vento, com a garota esquelética do lado. Ele tentou um sorriso amigável, a
boca torta.
- Alô, cara - ele disse. - Tem alguma coisa hoje? Sabe, a gente está mal, muito
doente.
Ofereci um frasco de Lêmures a ele. Ele o arrancou de minha mão, mas
quando leu o rótulo pensei que fosse chorar.
- Isso não - ele disse -, não presta. O outro lance, sabe? Que nem da outra
vez?
Ele estava suando. A garota começou a choramingar. Ele se voltou e mandou
que calasse a boca, a voz trêmula. Adele seguira em frente, de cabeça baixa.
- Não tenho mais - eu disse, afastando-me dele.
Ele veio atrás de mim, fuçando no bolso do casaco, tirando um relógio de
pulso, que meteu embaixo do meu nariz.
- Posso te dar isso - ele falou. - Vê? É de ouro.
Pus a mão em seu peito e o empurrei para longe. Ele ficou parado, de cabeça
baixa, acompanhando minha retirada. Soltou uma espécie de soluço e bateu o
pé.
- Pelo amor de Deus, cara...
Adele estava à porta. Conforme subi os degraus, ela entrou e a fechou
calmamente na minha cara.
V
Felix me abordou de surpresa uma noite, no hall. Havia algo que ele queria
me dizer, era hora de termos uma conversa. Uma porta se abriu lá em cima em
algum lugar, ele pegou meu braço e me arrastou por uma passagem escura, sob a
escada. Saímos em um pátio. Havia latas de lixo e um cheiro forte. Ele olhou
por cima do ombro, cauteloso, e piscou para mim, enterrando suas garras
trêmulas em meu braço.
- Precisamos tomar cuidado - disse. - Ele está sempre á espreita.
- Quem?
Ele riu.
- Quem? Quem você acha?
Eu o segui pelo pequeno jardim. Tudo havia crescido demais, estava cheio de
mato e sarça. Os esqueletos dos cardos do ano anterior levantam-se, espetados.
Os fundos das casas erguiam-se a nossa volta. O céu ainda estava claro. Uma
nova lua podia ser vista acima das chaminés. Felix colocou as mãos nos bolsos e
parou para observar o cenário.
- Existe ordem em tudo - disse. - Isso não é maravilhoso. Olhe para este
lugar. Parece um mato, mas há um jardim oculto.
Ele me olhou de lado, sorrindo.
- O que você diz?
Eu disse:
- Não sei.
Ele segurou novamente meu braço.
- Ah, mas você sabe, sim. Mais que qualquer outro.
Caminhamos por uma trilha, cheia de mato, e chegamos a um laguinho
encimado por uma árvore mirrada, desfolhada. Formas escuras moviam-se nas
profundezas da água. Paramos e nos debruçamos para olhar, e os peixes subiram
vagarosamente, como que saídos de um sonho, abrindo bocas frágeis,
esperançosas, as nadadeiras pálidas batendo fracas na água marrom-escura. O
rosto de Felix fez uma careta para mim, tendo uma boca de peixe no lugar do
olho.
- O que são os números, afinal? - perguntou - Música, por exemplo, é só uma
soma, não é?
O reflexo de bronze de uma nuvem navegou na superfície da água, e a lua
árabe estava lá, também, uma fatia em forma de chifre, brilhante.
Os peixes mergulharam de novo, vagarosamente, nas profundezas.
- Venha - Felix chamou -, vamos dar uma volta. Tenho negócios
importantíssimos a resolver.
O crepúsculo tornava conta das ruas, as luzes começavam a acender. Havia
um vento cortante e poças d'água na calçada. Andamos acompanhando a cerca
do parque, sob as árvores escuras. Felix apontou para a sarjeta.
- Sempre imaginei... quem é que remove os gatos atropelados da rua? Havia
um aqui, essa manhã, mas já se foi.
Ele parou, levando a mão em concha ao ouvido. A música soava fraca a
distância, um ruído débil.
- Ah! - ele disse. - Os anjos da anunciação.
Os funcionários dos escritórios estavam indo para casa, passando como
sombras pelo crepúsculo brumoso, correndo para suas vidas inimagináveis.
Atravessamos a rua, passamos por arcos enormes colunados e fachadas de
granito e viramos em direção ao rio. Duas figuras, com sobretudos compridos,
estavam paradas sob um poste de luz, examinando uma garrafa dentro de um
saco de papel pardo. A água borbulhava por uma fenda na calçada, onde um
cano havia arrebentado. Repentinamente, por um instante, vi o coração escuro
das coisas, e uma onda de alegria alucinada ergueu-se em minha garganta como
azia.
- O professor, sabe, é um caso perdido - Felix estava dizendo. - Eu estou
avisando, acho que ele não tem jeito. Uma pequena chance, ele diz, uma
pequena chance, e isso é tudo. Como se a chance pudesse ser pequena. Nós
sabemos mais, não é, Castor?
Passamos sob uma ponte ferroviária. Uma ruazinha exalava o cheiro azedo do
rio. A maré estava alta. Nós seguimos nosso caminho ao longo do cais, pelas
pedras cheias de limo, e paramos ao lado de um navio cargueiro enferrujado. A
proa curva balançava no alto, sobre nossas cabeças, afiada como a lâmina de um
machado. Felix perscrutou na escuridão e soltou um assobio baixo. Nuvens
apressadas passavam pelos trilhos lá em cima, como fumaça iluminada. Ele
assobiou de novo, e desta vez houve uma resposta fraca. Apareceu uma cabeça,
uma mão que acenava, e finalmente duas figuras desceram pela prancha de
desembarque, correndo silenciosamente na ponta dos pés. Felix moveu-se na
direção deles, mas parou e se virou para mim.
- Por falar nisso - disse -, o velho quer que você vá trabalhar com ele, não te
contei?
Os marinheiros eram homens baixos, robustos, com pernas e braços
arqueados. Um deles usava um pequeno boné com pala. Seu nome era Brand.
Ele tinha o rosto rosado e olhos tão próximos que quase grudava. Ele não disse
nada, só sorriu, mostrando a boca cheia de dentes quebrados. Seu companheiro
chamava-se Frisch. Tinha uma testa alta, um nariz proeminente e quase nada de
queixo.
- Meus caros amigos!... - disse Felix.
Frisch fez um gesto brusco com a mão.
- Ruhe! - ele rosnou. - Você quer que alguém nos ouça, porra!
Fomos para o Estrela do Mar, um bar pequeno e enfumaçado, com assentos
de plástico e quadros amarelados de navios nas paredes. O bar estava
barulhento, todos conversavam. Sentamos em uma mesa de canto, Felix trouxe
conhaque para os marinheiros, sentou-se e olhou enquanto bebiam,
tamborilando os dedos na mesa e sorrindo. Frisch, que parecia encarar tudo
com um ceticismo raivoso, profundo, enfiou o bico fino no copo e olhou em
torno de si carrancudo, para as paredes úmidas e quadros e faixas de papel de
parede coloridas. Ele me fitou também e disse para Felix:
- Este é seu experimentador, é? Seu chemiker? Felix riu suavemente.
- Ah, não, não - ele disse. - Meu... sócio.
E piscou para mim.
- Ja - Frisch disse azedo -, é o que ele parece.
Eles começaram a discutir sobre dinheiro, ou pelo menos Frisch começou,
enquanto Felix esperava e ria. No meio da multidão, no bar, alguém caiu, e
ouvimos uma vaia. Brand olhava em volta, com seu olho ciclópico, em uma
espécie de grata surpresa, erguendo seu boné de couro e coçando o cabelo cor
de palha, como se jamais tivesse visto um lugar como aquele, com tanta gente
contente. Ele bebeu mais um drinque e, batendo com o copo na mesa, cantou:
A porta foi aberta por um sujeito gordo, jovem, com malha amarela, chinelos
de camurça e gravata de seda. Tinha cabelo encaracolado e uma cara larga,
flácida, com uma pequena boca úmida como uma válvula de abertura de um
complicado órgão interno. Seu nome - deixem que eu diga - era Leitch. Ele
olhou para Felix irritado e disse:
- Ele não está.
Felix apenas sorriu para ele e, após um momento de hesitação, deu de
ombros e afastou-se para que entrássemos. Quando dei um passo à frente, para
o claro, ele riu.
- Quem é este aí? - perguntou. - O fantasma da ópera?
Felix sorriu de novo, com os lábios comprimidos, e apontou um dedo para
ele, em uma censura jocosa. Estávamos em um corredor comprido, limpo, sem
nada, com paredes brancas e piso de borracha branca no chão. O ar vibrava
com um zumbido denso, sem som, que pressionava os ouvidos. Andamos até
uma outra porta, no final do corredor. Leitch vinha atrás de nós, podia-se
perceber seu olhar hostil. Ele chegou primeiro à porta, no entanto, deslizando
por entre nós dois com seus pés nos chinelos, como um bailarino corpulento, a
mão gorda erguida antecipadamente.
- Deem licença - disse em tom maligno.
A sala era uma caixa imensa, retangular, com um teto baixo feito de placas de
algum material sintético branco. O chão também era coberto por um piso
branco. Não havia janelas. A máquina estava protegida por gabinetes de aço
cinza, grandes, que tinham um ar sutil de surpresa. Eles eram tão grandes,
dispostos com tanta graça, que pareciam ter sido interrompidos no meio de uma
dança. Felix hesitou por um momento, à porta. Aquela sala era deles. Não
combinávamos com o lugar.
- Entrem - Leitch convidou. - Conheçam o monstro.
Ele riu malicioso, a boca rosa espumando, e afastou-se.
- Dê um tempo, meu chapa - Felix disse suavemente. - Você não vai mostrar
o lugar para seu novo colega?
Leitch olhou para ele, para mim, e novamente para ele com profundo
desprezo. Parecia que iria se recusar, mas algo no sorriso de Felix fez com que
mudasse de ideia. Deu de ombros, alisando furioso a gravata.
- O que ele quer ver?
Felix riu.
- Tudo, ora essa! - disse, voltando-se para mim.- Não é mesmo? Você quer
tudo!
A máquina era uma Reizner 666. Nunca vira nada parecido em toda a minha
vida, nem sabia que uma coisa daquelas existia. Mas ainda assim eu a reconheci.
Ela sussurrava nas profundezas de seu mecanismo, sonhando seu imenso sonho
de números. Tinha um cérebro, uma memória. Eu percebi isso. Leitch me
mostrou os rudimentos de seu trabalho. Eu mal o ouvi. A própria coisa falou
comigo, eu toquei seu coração e ela tremeu sob minhas mãos. Quando apertei as
teclas do console da impressora, a tecla bateu no papel com um toque suave.
Felix, ao meu lado, ria.
- Que brinquedo, hem? - ele sussurrou.
O professor Kosok chegou, com seu casaco preto, seu chapéu e seu guarda-
chuva esburacado. Parou ao cruzar a porta e nos encarou. Depois tirou o casaco,
jogando-o sobre uma cadeira, e veio ver os números que eu havia escrito.
- O que é este jogo? - indagou. - Isto aqui não é um brinquedo.
Ele estava olhando para Leitch. O jovem ficou embaraçado. Felix disse:
- Bem, eu vou indo.
E, com uma piscada, ele se foi.
VI
As coisas nunca mais foram as mesmas entre mim e Leitch depois daquela
noite. Era como se nós dois tivéssemos sido pegos juntos em uma tragédia
intensa, acidental, e que o perigo compartilhado nos forçasse a uma intimidade
tão esdrúxula quanto inevitável. Ele passou a conversar. Reclamava do
professor, chamava-o de velho fodido, contou os absurdos que ele havia feito
antes daquela noite. Ele sentava-se recurvado sobre o console, gordo e ferino,
resmungando. De alguma forma a visita da srta. Hackett havia feito aflorar toda
a sua amargura, e agora o veneno estava subindo a superfície. Ele não havia sido
bem tratado, nunca fora bem tratado. Estavam todos contra ele, todo mundo
contra ele só porque... mas aí ele parava e me lançava um olhar penetrante,
desconfiado. Seus olhos estavam fundos, mergulhados nas órbitas sombreadas
de violeta, vermelhos, e de algum modo viscosos, como duas lesmas marrons.
Ele falava na srta. Hackett também, baixo, em uma espécie de devaneio de
repulsa. Fazia piadas nas quais ela passava toda sorte de indecências. Seu
conhecimento da anatomia feminina era impressionante, Felix o chamava de
ginecologista equivocado. Ele punha a mão morna no meu pulso, rindo, e
aproximava a cabeça da minha orelha para contar mais uma das boas. Nunca
consegui dar mais que um sorriso constrangido como resposta mas não fazia
diferença, ele mal percebia, só queria ouvir sua própria voz dizendo aquelas
palavras. Quando Felix estava ali, no entanto, ele ficava quieto. Felix o
observava deliciado, seus chinelos, sua gravata, sua barriga enorme, o olho
perdido, aquático.
- Devo dizer, Basil - ele dizia -, o que faz um rapaz alegre como você em um
buraco como este, hem?
E piscava para mim, com um sorriso safado, punha os pés no console e
acendia uma ponta de cigarro de sua caixa.
Esperamos para ver o que ia acontecer. Quem viria depois da srta. Hackett.
Leitch esperava pelo pior, apesar de ele nunca ter dito exatamente o que achava
que poderia ser o pior. Uma noite o telefone tocou, até então eu sequer
percebera que havia um ali. O professor Kosok atendeu, em pé, ouvindo a voz
fina, irada, por um longo tempo, mordendo o lábio inferior, carrancudo. Ele não
disse quase nada, e no fim bateu o telefone. Quando tocou novamente ele o
tirou do gancho. Depois a quantidade de mensagens começou a diminuir, mal
dava para perceber no começo. De vez em quando a impressora parava
abruptamente, no meio de uma série de números, e ficava silenciosa por vários
minutos, com um ar sinistro de presunção e sabedoria. Leitch insistia em que
não havia nada errado, que não estavam transmitindo nada do outro lado, e o
professor gritava com ele, até que a impressora recomeçasse, como se nada
tivesse acontecido. O pessoal diurno ficava cada vez até mais tarde; uma vez,
quando cheguei, eles estavam saindo. Percebi a mão que fechava a porta e ouvi
seus risos na escada. Os assentos das cadeiras ainda estavam quentes.
Felix aparecia a qualquer hora, chegando às vezes no começo da manhã,
quando já estávamos terminando. Ele sempre parecia ter ficado acordado a noite
inteira, agitando suas coisas. Eu e ele saiamos juntos pela madrugada e
andávamos ao longo do rio cinzento, na névoa. Lembro-me daquelas manhãs
com clareza peculiar, o silêncio sobre a cidade, as gaivotas voando, a luz pálida
do sol de primavera lutando contra a neblina, o tom particular de lavanda no ar
denso sobre os telhados. Ele falava do professor, perguntava de modo oblíquo
sobre o trabalho que estávamos fazendo. Acho que pensava que eu andava
escondendo coisas dele, pois me olhava detidamente, sorrindo enigmático, a
cabeça para trás e uma sobrancelha hirsuta arqueada. Contei a ele a visita da srta.
Hackett, e ele riu.
- Quer dizer que eles estão no pé dele, hem? Melhor tomar cuidado,
Philemon, para não ser jogado fora junto com ele.
IX
Foi em uma daquelas manhãs junto com Felix - não, ele não estava lá, foi
apenas em uma manhã de abril. O professor também havia saído, não sei para
onde, mas isso não tem importância. O apartamento estava silencioso. Havia
restos de uma refeição na mesa do quarto da frente e um cinzeiro lotado. Eu
estava parado à janela, sem querer sair, sem querer ficar tampouco. A dor
começara a entoar sua canção latejante, como fazia naquela hora aborrecida,
todas as manhãs; eu imaginava que havia algo dentro de mim, feito só de joelhos
e cotovelos terríveis, cutucando meus nervos. A rua estava deserta. Em uma das
casas em frente eu podia ouvir o ruído fraco de um telefone que tocava, sem
parar. O silêncio, reunido as minhas costas, era como uma enorme besta muda,
acenando para mim gentilmente, com uma espécie de insistência triste. Não
gostava de ficar sozinho daquele jeito, em um quarto que não era o meu; sentia-
me como se fosse um estranho, quero dizer, um estranho para mim mesmo,
como se houvesse dois de nós, eu e o outro, o intruso erguendo-se dentro de
mim, compartilhando em segredo aquele pilar de carne frágil e dor. Mas,
percebi, eu não estava sozinho.
Ela estava no banheiro encardido, embaixo; eu a encontrei quando tentei
abrir a porta e alguma coisa me impediu. Ela estava deitada, recurvada, os
joelhos no peito e um braço desnudo para fora. Usava a capa de chuva de
plástico por cima da roupa. Um de seus pés descalços encostava-se à porta. Tive
que prender a respiração e deslizar de lado pela abertura. Quando ajoelhei a seu
lado ela tremeu e soltou um suspiro fraco, vagamente irritado, como uma
criança adormecida que não quer ser acordada de um sonho. Suas mãos
estavam, frias, ela devia estar deitada ali há horas. No buraco em seu cotovelo,
uma mancha azul amarelecia.
- Adele - eu disse - Adele.
Soou estúpido.
Eu a carreguei nos braços. Ela se molhara toda. Era inesperadamente pesada,
um peso morto, flácido, que eu mal podia aguentar. Sua capa chiou e estalou
quando eu a ergui. Coloquei o pé na porta para abri-la, mas perdi o equilíbrio e
cambaleei para o lado, como um cavaleiro tonto, e por um instante fiquei preso,
com um pé no ar e o ombro apertado contra a parede. Uma torneira pingava na
pia. A janela atrás da privada estava aberta, e lá no jardim um melro trinava uma
nota repetitiva, líquida, que também era igual ao som da água pingando. Quando
virei a cabeça um olho aumentado, o meu próprio, me observava em um
espelho de barba. Olhei para as coisas a minha volta, a torneira, o velho
barbeador, uma caneca com uma escova de dente em pé, suas texturas
indistintas e espessas na luz de marfim da manhã, e achei, por um segundo, que
algo estava sendo revelado, piscara para mim brevemente e se fora, como uma
moeda desaparecendo na mão de um mágico.
Eu a levei para o quarto da frente e a instalei no sofá, apoiada no braço. Sua
cabeça ficava caindo. Devo ter permanecido ali parado por um longo tempo,
paralisado, só olhando para ela. Depois fui até a cozinha e para os quartos,
esfregando as mãos, procurando não sei o quê. Eu trouxe seu casaco de pele
puído e a cobri com ele. Eu penso que estive falando com ela todo o tempo;
lembro-me vagamente do som fraco de uma voz, lá no fundo, adulando e dando
broncas, só pode ter sido a minha. Lembro-me também da delicadeza parisiense
da manhã de primavera, com débeis sons do tráfego e o rufar das asas das
pombas, uma nuvem branca no canto da janela, o grande e pálido paralelogramo
de um raio de sol no assoalho, a meus pés.
Depois a ambulância chegou e um torpor curioso, sonhador, tomou conta de
tudo. Suponho que esperava uma grande comoção, sirenes e barulho de freios,
botas na escada, gritos. Em vez disso houve um toque educado na campainha, e
dois homens alegres, corpulentos, de uniforme, entraram, carregando uma maca
enrolada. Eles tinham um ar de quem sabia exatamente o que iria encontrar.
Trabalhavam calmamente, um deles enrolando Adele em um cobertor vermelho,
enquanto o outro desenrolava a maca. Depois, juntos, a ergueram sem
dificuldade do sofá e ataram uma correia de couro nos ombros, e outra nos
joelhos, e um deles abaixou e afastou uma mecha de cabelo molhado de seu
rosto. Ela estava tão pálida, tão calma agora, como a efígie de um mártir infantil.
Lá embaixo, na rua, o rádio da ambulância transmitia mensagens de tempo em
tempos. Eles puseram a maca na calçada enquanto abriam as portas de trás.
Adele acordou e olhou para eles alucinada. Ela agarrou minha manga.
- O que você foi fazer? - disse com um gemido fraco, rouco. - Oh, o que você
foi fazer...
Eles a puseram na ambulância e a levaram embora. No prédio em frente o
telefone tocava de novo.
Havia um único hospital para onde ela poderia ser levada, é claro. Caminhei,
quieto com minhas memórias, por aqueles corredores familiares. Tudo
continuava igual. Havia momentos como aquele, lembro-me bem, quando as
coisas ficavam repentinamente silenciosas, sem razão alguma, no meio de uma
manhã agitada, e a calma se espalhava como éter por entre as enfermarias. Um
rádio, em algum lugar, tocava suavemente, e embaixo, na cozinha, um ajudante
cantava. Eles me disseram que Adele estava dormindo, como se dormir fosse
um tipo caro e especial de terapia. E me deram uma olhada gelada. Mas quando
voltei, à noite, ela estava acordada, sentada ereta em uma cama branca, como um
pássaro ansioso preso em uma gaiola, com as mãos magras agarradas ao lençol e
o pescoço esticado para fora. O quarto cheirava a leite e violetas, o cheiro dela.
Felix estava lá, e o professor Kosok. O professor estava sentado de pernas
cruzadas, tamborilando com os dedos no joelho, olhando para o teto. Parei na
porta.
- Eis aí o nosso Robin querido - disse Felix. - Então, não trouxe doces para
sua amada donzela, nem flores molhadas de orvalho?
Os olhos de Adele estavam abertos, febris, e ela não parava de rir.
- Olhem para este lugar - ela disse. - O que estou fazendo aqui? Estou
perfeitamente bem.
Seu olhar passou por mim, não se fixando em nada. Havia uma marca
vermelha no canto da boca, que ela coçava com a unha, coçava e coçava. Ela
ainda estava de camisola, com o casaco de pele por cima do ombro. Andara
arrancando os cabelos, ele estava eriçado, preto azulado, brilhando, como penas
arrepiadas. Felix falou comigo escondendo a boca com a mão, com solenidade
jocosa.
- Ela é insistente, apesar de distraída.
Ele riu. A luz da tarde refletia na janela. Do lado de fora havia o alto de um
muro de tijolos e uma extensão reta do telhado, com uma chaminé igual à de um
navio, soltando fumaça branca. O professor levantou da cadeira e suspirou.
- Já é tarde - disse, sem se dirigir a ninguém em particular. - Preciso ir.
Mas continuou sentado ali, com os olhos semicerrados, os dedos
tamborilando, tamborilando. Um momento passou, como alguma coisa
carregada cuidadosamente no meio da neblina. Depois Felix riu de novo, baixo,
e disse:
- Sim, chefe, vamos nessa, está na hora de ir.
O professor hesitou à porta, fingindo procurar algo no bolso. Ele franziu a
testa. Adele não olhou para ele. Felix deu um soco nele, de brincadeira, e piscou
para mim por cima do ombro, e depois eles saíram.
Fiquei olhando a fumaça que saía lá fora. O céu do final da tarde estava
pálido. Podia-se ver a silhueta fraca das montanhas ao longe. Adele continuava
escondendo o rosto. Tentei pegar sua mão, mas ela a afastou, não com rancor,
mas com firmeza, como uma criança tira um brinquedo.
- Não tenho sossego aqui, entende - disse. - Nenhum sossego. E o que vou
ficar fazendo aqui?
Ela suspirou e balançou a cabeça, com ar meio aborrecido, como se tudo
aquilo fosse uma intromissão, e coisas infinitamente mais importantes tivessem
agora que esperar,
- Sinto muito - eu disse.
No céu, ao longe, um bando de aves mergulhava e planava, a escuridão
transformando-se repentinamente em luz quando mil asas viravam como se
fossem uma. Ícaro. Adele olhou em volta, distraída.
- Eles levaram meus cigarros embora - disse. - Você vai ter que me trazer
mais.
E, pela primeira vez desde que eu chegara, ela me olhou diretamente, com
aquele jeito feroz, estrábico.
- Você traz? - perguntou. - Você vai ter que...
A porta atrás de mim se abriu, eu me virei, e a supervisora parou antes de
entrar e olhou para nós.
Ordem, padrão, harmonia. Aperte qualquer coisa com força, todas as coisas, e
o problema será resolvido. Esperei, impaciente, em um estado de melancólica
exaltação. Eu havia jogado fora as barreiras acumuladas durante anos, estava à
procura da simplicidade agora, a coisa pura, imaculada. Havia sinais secretos em
todos os lugares. A máquina cantava para mim, pois eu não era feito também de
códigos binários? Um e zero eram os pólos. A chegada da primavera chocalhou
meu coração. Eu perambulava pelas ruas luminosas por horas, preso a uma
espécie de hilaridade sem alegria. Estava sentindo dor. Quando me deitei
finalmente, exausto, olhando para o céu, para a frota de nuvens, uma dor surda,
cinzenta, alojava-se na boca de meu estômago, como um rato cinza, morando
ali. No crepúsculo cinzento eu me levantei, as pálpebras queimando, com
alguma coisa latejando em minha cabeça, e segui para o hospital.
Também ali um estado de espírito louco tornara conta. Eu chegava no quarto
de Adele e a encontrava com Felix e o padre Plomer, os três com os olhos
brilhando, de certo modo sem fôlego, como que no final de uma discussão
acalorada. O padre era uma visita frequente; punha sua cabeça redonda pela
porta, com um sorriso conspirador, e entrava na ponta dos pés, gordo e imenso
em seu terno preto e estola bordada, os óculos reluzentes. Batia palmas e ria,
mostrando os dentes brancos e obturações de ouro. Era como uma enorme
garota estranha, excitada. Ele adorava ficar lá. Vamos fazer uma festinha, dizia, e
mandava uma das garotas da cozinha trazer um bule de chá e travessas de pão
com manteiga. Antes que sentássemos, removia a estola e a beijava reverente,
fechando os olhos por um instante. Depois erguia as mãos para o céu e dizia
baixo;
- Ah, a liberdade!
Felix o tratava com uma espécie de trêmula familiaridade, andando em torno
dele nervoso, rindo de suas piadas.
- Oh, você é demais - dizia. Demais!
E Felix olhava por cima dos ombros do padre e encontrava meu olho,
sorrindo, os lábios finos apertados com força.
Adele sentava-se no meio de nós com a cara branca e o cabelo eriçado. Ela
havia trocado a camisola por outra de cetim, com rosas e pássaros, que faziam
com que o quarto parecesse uma gaiola. Ela ria cada vez mais, e cada vez mais
sua risada soava como os gritos agudos de alguma coisa que mergulhasse com as
asas abertas em uma rede. Seus olhos tornaram-se embaçados, um filme branco,
fraco, espalhara-se sobre as pupilas. Ela reclamava da luz, que não era
suficientemente clara, mas quando as venezianas eram erguidas, ou outra
lâmpada acesa, ela cobria o rosto e desviava a vista do brilho.
Do lado de fora do quarto, após uma de nossas visitas, o padre Plomer virou
com um ar de excitação solene e falou para Felix e para mim.
- Vou tentar salvá-la, sabe - disse. - Sim, ela concordou em receber alguns
conselhos.
Felix deu um passo para trás, com olhos arregalados de surpresa.
- Uau! - respirou e ergueu a mão para disfarçar o pequeno sorriso sarcástico
que não conseguiu evitar.
Depois, por algum tempo, aquele ar animado que eu costumava encontrar
quando entrava em seu quarto cedeu lugar a uma atmosfera reverente, tensa, na
qual alguma coisa parecia vibrar, como se um pequeno sino tivesse acabado de
badalar. Uma vez eu até os interrompi quando rezavam, o padre ajoelhado, a
mão na testa e o missal aberto, e Adele recostada no travesseiro com as mãos
postas sobre o colo e os olhos virados para cima, pálida e cerácea em sua
camisola de cetim, como um quadro de uma donzela afogada atirada nas
margens floridas de um riacho. Mas não durou muito. Um dia ela arrancou o
livro de orações das mãos dele com uma gargalhada e o atirou do outro lado do
quarto, e, apesar de ele circular pelos corredores com ar magoado, ela não quis
mais saber de vê-lo.
- Não se aborreça, padre - Felix disse lépido -, ela vai achar seu caminho para
a luz, por conta própria.
Naquela noite ela estava alegre e sentou-se com os tornozelos cruzados sob as
cobertas e um cinzeiro no colo. Havia passado batom e pó e pintara as unhas de
vermelho. Mexia o cigarro, piscava e fazia caras e bocas como uma vamp.
- Ele tentou enfiar a mão debaixo da minha roupa- disse. - Imaginem!
Felix assobiou baixo.
- Uau! - gritou, cerrando os punhos. - Tudo pela salvação, né?
Depois que ele se foi, ela se sentou e puxou as cobertas, franzindo o cenho.
Não me olhava no rosto. Pegou uma revista e a folheou distraída.
- Escuta uma coisa - disse -, você tem que me arranjar algo. Aquela vaca só
me dá aquela droga, a que eles deixam, nem sei como chama, mas não presta.
Parou de folhear as páginas coloridas e sentou, quieta, a cabeça baixa. Houve
um silêncio. Largou o cigarro no cinzeiro e observou com os olhos meio
fechados a fina pluma azul de fumaça que subia.
- Não posso - disse. - Como poderia?
Por um instante ela não disse nada, nem piscou, como se não tivesse
escutado.
- Bem - disse calmamente. - É o que ele diz, também. E depois ri.
Ela olhou para mim e tentou sorrir. O machucado no canto de lua boca
pintada estava em carne viva. Seu lábio inferior tremia.
- Ela te dá umas coisas, não dá? - perguntou.- Comprimidos, estas coisas, não
é? Você pode pedir a ela. Por que não diz que é para você?
Deu um pulo, derrubando o cinzeiro, e ajoelhou-se na beira da cama,
colocando os braços em volta do meu pescoço e apertando a boca trêmula
contra a minha. Começou a chorar. Batom, fumaça, lágrimas salgadas. Aquele
gosto, ainda posso senti-lo.
- Deixo você fazer aquilo comigo - murmurou.- Tudo, tudo o que quiser.
Tudo...
X
Roubei o que ela queria. Sabia onde procurar, o que pegar. A supervisora não
estava na mesa dela, a chave do dispensário ficava na gaveta. Subi a escada. Era
a hora do chá, ninguém prestou atenção em mim. Em um hospital até eu podia
passar despercebido. Tranquei a porta do dispensário atrás de mim. Como
aquilo ali ficou quieto de repente, era como estar embaixo d'água, no meio de
todas aquelas prateleiras de vidro esverdeado, aqueles frascos repletos de sono.
Logo achei o que procurava, mas fiquei um pouco por ali, debruçado na janela.
Era um crepúsculo fustigado pelo vento. Um céu cheio de ruinas passava por
minha cabeça em silêncio. No solo uma cerejeira chicoteava e dobrava-se, os
botões caldos ondulavam na grama cinzenta. Quantos momentos como este eu
conheceria, quando tudo se detém de algum modo, como um carrossel parando
repentinamente: percebi novamente, com os olhos cansados, que a coisa estava
lá o tempo todo. Apertei minha testa contra o vidro. Ficar ali, ficar ali para
sempre, daquele jeito. Terminar tudo, finalmente.
Quando fui à capela naquela tarde, Adele não estava lá. Não fiquei surpreso.
Estava no quarto, dormindo, estirada por cima dos lençóis desarrumados, como
se uma onda a tivesse depositado ali. Fiquei sentado algum tempo, em meio à
calma, olhando para ela. Ainda estava claro lá fora mas a janela estava fechada, e
uma meia-luz cinza se espalhava pelo quarto. O crepúsculo, a hora dela.
Também era dela aquele tom de cinza, fraco, descorado. Seus lábios se
entreabriam, uma das mãos repousava no travesseiro sob a face. Coloquei as
ampolas no bolso da camisola, saí em silêncio e fechei a porta atrás de mim.
O ônibus balançava e tremia nas ruas estreitas, inclinando-se nas curvas, as
engrenagens rangendo. As árvores avançavam apressadas na direção dos sinais,
os galhos abertos atônitos, depois mergulhavam na escuridão novamente. Eu
estava no banco perto da porta, próximo ao motorista, um homem pálido,
magro, taciturno, sentado com os joelhos ossudos abertos, girando o volante
grande e plano com um movimento rotativo dos braços, como se estivesse
erguendo uma corda. Nas paradas ele se inclinava para a frente e descansava os
cotovelos no volante, os punhos cruzados, e chupava o dente olhando para a
rua. Passamos por uma vila e paramos em um cruzamento escuro, onde subiu
um homem de muleta. Ele parou no degrau e olhou para mim, batendo o pé, a
velha boca desdentada aberta. Subimos por um longo tempo, depois chegamos a
um planalto aberto, eu podia ver as estrelas desbotadas à esquerda e a direita e
uma lua convexa brilhando no topo de um monte distante. De vez em quando,
nos momentos em que a estrada voltava sobre si mesma, eu via de relance as
luzes da cidade, perdidas na distância. Depois passamos em uma depressão e
paramos; o motorista olhou para mim.
Um ar diferente, e o cheiro dos pinheiros, e um vento fresco, e estrelas.
Acompanhei com o olhar o ônibus que partia, as luzes traseiras balançando
suavemente na encosta da colina. Depois, o silêncio e o som da água. Uma luz
fraca brilhava sobre a porta do bar, e havia uma luz na janela suja também.
Atravessei o gramado. Ele devia ter ouvido a chegada do ônibus, ou talvez
estivesse observando pela janela. Ficou oculto na escuridão da soleira da porta,
até terminar de me examinar detidamente, depois avançou com a mão estendida
em saudação.
- Ah, Melmoth - disse baixo. - Estávamos esperando por você.
Vagamos pelas colinas durante horas, Felix e eu, dia após dia. O tempo estava
claro e ventoso, final de primavera, o ar pesado ganhava vida com o canto dos
rouxinóis. Me deixava tonto ficar tanto tempo em um lugar tão alto. Tudo se
aproximava do céu aqui, como se a gravidade de alguma forma tivesse perdido a
força. As nuvens brancas voavam para cima, saindo de trás de um pico de
granito. Não havia nada em que se agarrar, tudo que nos cercava estava distante
como o horizonte, que aumentava as planícies marrons e verdes de pântanos e
pastos. Então, repentinamente, chegávamos a uma curva do caminho e
percebíamos que estávamos na beira de uma cratera pedregosa, com um lago
cinza como aço abaixo de nós e um chumaço de nuvem pálida flutuando no
meio do ar.
- Ah, que maravilha! - Felix gritou. - Não faz a gente se sentir como algo saído
de Caspar David Friedrich?
Ele levou a mão ao peito e respirou fundo, sorrindo de alegria, os olhos
fechados e as narinas abertas. Usava calça larga e boné e levava um bastão alto,
pontudo. Eu observava as sombras que escorriam como água pelo lado distante
da cratera.
- O que você andou falando de mim para o Leitch? - perguntei.
Ele arregalou os olhos e me encarou com exagerada surpresa. Depois soltou
uma risada silenciosa, a ponta da língua saindo para fora e desaparecendo
novamente, rápido.
- Por quê? - indagou tímido. - Está preocupado com sua reputação, é isso?
- Era um lugar para ficar - eu disse. - Agora não posso voltar mais lá.
Ao ouvir isso ele riu alto, batendo com o bastão no chão pedregoso.
- Uh, uh! - disse, fungando. - Olha, aquele lugar está acabado, você sabe disso.
Eles achavam que o velho estava fazendo alguma coisa brilhante até que
descobriram que apenas usara a preciosa máquina para provar que nada pode ser
provado.
Ele andou até a beira do buraco e ergueu braços hieráticos acima do abismo,
levantando o bastão.
- Ó mundo caótico! - entoou. - Energia cega, girando no vácuo! Tudo se
move, e volta. Assim falou o profeta.
Voltou depois, cambaleando e ofegando, um velho encarquilhado agora,
usando seu bastão como muleta e olhando de lado para meu rosto.
- Este é o lugar e a hora - disse.
O vento soprava abaixo de nós, na encosta, e enrugava a superfície metálica
do lago. A luz do sol brilhava. Ele segurou meu braço e me conduziu, solicito
como um padre.
- Coloque-se nas minhas mãos - disse. - Tenho grandes planos para você,
sabia? É verdade, tenho mesmo.
Contornamos outra curva do caminho e chegamos a um barranco pedregoso.
Dali podíamos ver, ao longe, a densa cortina de fumaça azul que cobria a cidade.
Abaixo de nós estava o bar e a estrada que se perdia na distância. Ele apertou
meus braços contra suas costelas.
- O que você acha, hem? Pense no que já passamos, você e eu. E pense no
futuro.
Segui na frente, na descida da colina. Na ponte por cima do riacho atrás do
bar, parei para tomar um comprimido. Ele parou a um passo de mim, sorrindo
levemente e arranhando o chão com seu bastão.
- E então - ele disse - os anjos vieram e lhe fizeram oferendas.
Perdi o caderno preto, larguei em algum lugar, ou joguei fora, não sei. Não fiz
eu mesmo meu próprio caderno negro?
Sofrimento, é claro, e culpa. Não posso entrar nessa. Dor também, mas não
tanto quanto antes, e a cada dia um pouco menos. Meu rosto está quase bom,
um dia vou me levantar de manhã e não mais me reconhecerei no espelho. Um
novo homem. Tenho ficado longe do hospital. O que há para mim naquele
lugar? Não quero mais proteção. Quero ser, ser o que não sei. Nu. Sem casca.
Um bebê que grita, mexendo os punhos furiosos. Eu não sei.
Será que amarrei todas as pontas? Mesmo um mundo inventado tem suas
regras, tediosas, talvez absurdas, mas que não podem ser negadas.
Às vezes ainda tenho aquela sensação, acho que nunca vou me livrar dela,
de que estou sendo seguido. Mais de uma vez, também, eu me virei na rua ao
ver um reflexo de cabelo vermelho, um rosto sorrindo tímido entre os rostos
inexpressivos. Será minha imaginação? Será que alguma vez foi outra coisa? Ele
vai voltar, de uma forma ou de outra, não há como escapar dele. Recomecei a
trabalhar, uma tentativa. Voltei para o começo, para as coisas simples. Simples?
Gosto disso. Vai ser diferente desta vez, acho que vai ser diferente. Não vou
fazer como antes, nos dias passados. Não. No futuro, vou deixar as coisas, eu
vou tentar deixar as coisas por conta do acaso.
Fim
Nota