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História nove

PICASSO: AS METAMORFOSES DA PINTURA

Picasso foi, sem dúvida, o artista mais inovador e fecundo do nosso tempo. Durante a
sua longa vida, realizou cerca de 30 000 obras, entre pinturas, desenhos e esculturas! Mas
ainda mais espantoso é o facto de a sua arte ter passado por contínuas e profundas
mudanças, por autênticas metamorfoses. Nunca outro artista manifestou, como ele, uma
capacidade de invenção aparentemente ilimitada.
Pablo Ruiz y Picasso nasceu em Málaga, no sul da Espanha, em 1881. Seu pai, que era
pintor e professor de desenho, percebeu desde muito cedo que o pequeno Pablo tinha um
talento extraordinário para desenhar e pintar. Quando ele tinha 11 anos já o punha a trabalhar
a seu lado e, aos 13, entregava-lhe mesmo encomendas dos clientes. A sua ambição era
fazer do filho um grande pintor académico. Inscreveu-o, por isso, na Escola das Belas-Artes
de Barcelona, onde o jovem obteve notas brilhantes, que lhe permitiram ingressar em seguida
na Academia Real de Madrid. Apenas com 16 anos, Picasso começou a tornar-se conhecido
como um excelente pintor de retratos e cenas naturalistas, tendo o seu quadro Ciência e
Caridade sido premiado numa exposição.
Todavia, este género de pintura académica, tradicional e conservadora, não interessava
ao jovem artista, que aliás sentia ter já pouco que aprender com os seus mestres de Madrid.
Ousado e irreverente, dificilmente se podia contentar em imitar as lições do passado. Aos 18
anos, fixou-se em Barcelona, passando a frequentar um círculo de jovens artistas e
escritores, apaixonados pelas tendências modernistas, que se reunia no café «Els quatre
gats». Também ele sonhava com voos mais arrojados e pretendia encontrar novos caminhos.
Em 1900, decidiu partir para Paris.
Paris era então o centro da vida intelectual e boémia, a capital da cultura, das
experiências artísticas mais revolucionárias. Não tardaria que o próprio Picasso fosse, por sua
vez, um dos primeiros nomes de vanguarda.
Ao mesmo tempo que pintava numerosos quadros, influenciados pelos grandes mestres
do final do século – Manet, Degas, Van Gogh, Gauguin, Toulouse-Lautrec –, Picasso
descobriu uma maneira própria de pintar, produzindo uma série de obras-primas entre 1901 e
1904, a que é comum chamar o «período azul». São quadros quase monocromáticos,
dominados por uma maravilhosa gama de tons azuis, representando figuras solitárias e
esguias (que se assemelham às de El Greco), de impressionante tristeza: mendigos,
prostitutas, velhos decrépitos, mães abraçando os filhos ou casais que se enlaçam,
miseráveis e sem esperança. Seriam as suas próprias condições de vida que levaram

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Picasso a identificar-se, de forma tão sofrida, com a sorte dos miseráveis? É bem possível,
porque durante todo esse período Picasso passou por profundos desgostos e provações: a
morte de um amigo muito próximo; uma vida instável, entre Paris e Barcelona, onde voltou a
residir por largos períodos, sempre mergulhado na pobreza e na boémia; e o desinteresse
com que o público e os críticos acolheram as suas novas obras.
O certo é que, quando entrou numa fase da vida mais feliz, Picasso abandonou o tom
deprimente do período azul. Fizera novas amizades no meio intelectual parisiense, entre as
quais a do poeta Apollinaire. Conheceu Fernande Olivier com a qual passou a viver, numa
relação que lhe trouxe amor e estabilidade. E conseguiu começar a vender alguns quadros,
obtendo assim maior desafogo económico.
Simultaneamente, os seus temas tornaram-se menos opressivos. Passou a pintar
essencialmente mulheres delicadas, jovens, grupos familiares e, sobretudo, saltimbancos e
arlequins. Era ainda em grande parte um mundo de marginais, afastado da sociedade
burguesa. Mas as figuras, embora marcadas por profunda melancolia, ganhavam vida,
deixavam transparecer laços de ternura e de solidariedade. Quanto à pintura, enriqueceu-se
com uma gama de tons mais variada, que incluía os vermelhos, os ocres e
predominantemente os rosas – esta breve fase da obra de Picasso (1904-1906) ficou
conhecida como «período rosa».
É erróneo pensar-se que durante estes dois períodos Picasso estava apenas dominado
por preocupações humanas e sociais. O que o seduz é a arte de pintar, o encontro de novas
soluções no domínio não só da cor mas também das formas, que ele já então distorcia
subtilmente para acentuar a expressividade (veja-se, por exemplo, Mulher com uma gralha).
No entanto, é só a partir de 1906 que Picasso realiza uma série de experiências que
culminam na famosa composição As meninas de Avinhão. Se bem que inspiradas no
geometrismo de Cézanne, essas experiências irão romper totalmente com os modelos
pictóricos herdados do passado. Porque, ao abolir a perspetiva e fragmentar o espaço em
numerosos planos, ao distorcer os corpos e deformar os rostos, ao geometrizar todas as
formas, Picasso baniu por completo a representação naturalista. Desta maneira abriu
caminho a quase todas as tendências da modernidade, a começar pelo cubismo, de que foi
ele próprio, juntamente com o seu amigo George Braque, o inventor.
Durante aproximadamente 10 anos (1907-1915), Picasso explora todas as virtualidades
do cubismo, sem se afastar da representação figurativa: pinta paisagens, naturezas mortas,
figuras humanas e retratos. Numa primeira fase – o chamado «cubismo analítico» –, o motivo
da representação é minuciosamente desmontado e analisado, ou seja, é decomposto em
numerosos (por vezes, inúmeros) planos que se misturam e sobrepõem na superfície do
quadro, criando um emaranhado jogo de formas geométricas. Já na segunda fase, o

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«cubismo sintético», os objetos, em vez de desmontados, são por assim dizer «recompostos»
a partir da combinação das suas partes essenciais.
Com o cubismo deu-se, pois, uma alteração radical do espaço pictórico. Sem esquecer
que, na sua última fase, Picasso (tal como Braque) abriram a pintura a novas dimensões pela
utilização de diferentes técnicas e materiais (colagem de papéis, cartões, folhas de jornal e
até pedaços de vidro, madeira ou metais). Mais do que qualquer outra expressão artística
anterior, o cubismo apela antes à inteligência do que à emoção, quer do criador quer do
observador da obra de arte. Picasso dizia: «Não pinto o que vejo, pinto o que penso».
Surpreendentemente, no auge da fama do cubismo, o artista que rompera com todas as
regras tradicionais da pintura regressou ao classicismo. Bastaria para explicar este facto a
permanente inquietação criativa que o acompanhou até ao fim da vida. Todavia, mais uma
vez se terão refletido nessa mudança de rumo aspetos da sua vida pessoal. Aos 36 anos,
tendo já alcançado o reconhecimento público do seu trabalho, Picasso passou a frequentar a
alta sociedade e os meios do bailado e do teatro, onde conheceu a bailarina russa Olga
Khokhlova, com quem casou em 1918. Ao acompanhá-la em várias viagens dos Ballets
Russes pelas capitais da Europa, teve oportunidade de contactar com as obras-primas da
Antiguidade e do Renascimento e daí terá surgido um renovado interesse pela arte clássica.
Nesta nova fase, em que de resto se desdobra por uma intensa atividade como
cenógrafo e figurinista de grandes espetáculos de ballet e de teatro, Picasso volta a privilegiar
a figura humana e o natural. Ora utiliza a fotografia como base para a feitura de retratos,
profundamente recriados pelo trabalho pictórico (retratos de Olga e do pequeno Paulo, seu
filho). Ora cria belas composições em que os corpos humanos, sobretudo femininos, sugerem
a estatuária clássica, mas ultrapassam o modo naturalista pela monumentalidade das suas
formas rotundas, maciças, por vezes mesmo desproporcionadas. E, além do mais, não
abandona as raízes cubistas, pintando algumas das melhores obras do género, como os
famosos Três músicos.
Esta diversidade de caminhos irá projetar-se no período seguinte (1925‐1936). Picasso
atinge então a maturidade, sintetizando todas as experiências anteriores na busca de formas
cada vez mais originais, em constante metamorfose, tanto na pintura como na escultura:
formas curvas ou angulosas, estáticas ou em movimento, definidas, nos quadros, pelo
traçado largo das linhas e por manchas de cores mais vibrantes. Se algumas dessas formas
sugerem motivos surrealistas, outras há que parecem resvalar para a pura abstração. Mas na
maior parte dos casos, mesmo quando marcadas por fortes distorções, continuam a
representar uma certa realidade física ou humana, ideias, sentimentos e emoções, que a vida
agitada do artista sempre lhe despertava: a paixão pelas mulheres, a ternura pelos filhos, o
horror pelo sofrimento dos outros.

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Aos 50 anos, rico e famoso, Picasso atravessou uma grave crise sentimental, dividido
entre a relação tempestuosa que mantinha com Olga e a paixão secreta que o ligara à jovem
Marie-Thérèse Walter, que se tornara o seu modelo favorito e de quem teve uma filha.
Ultrapassada essa crise, foi a vez de sofrer o abalo provocado pelo rebentamento da Guerra
Civil no seu país natal. A tragédia da Espanha inspirou-lhe Guernica. Pela sua força
expressiva, pelo seu valor mítico (Guernica transcende a situação concreta em que se
inspirou para se erguer como símbolo absoluto do horror da guerra), a obra ganhou uma
projeção universal.
Guernica representa, por outro lado, um novo marco na arte de Picasso, na medida em
que utiliza uma nova linguagem, fortemente expressionista, que o pintor irá reproduzir
noutras obras até ao final da II Guerra Mundial. Planos angulosos, rostos deformados,
expressões arrepiantes (Mulher a chorar) afinal não são mais do que o reflexo do terror e dos
dramas da época. Como ele próprio disse: «Nunca pintei outra coisa, senão o meu tempo».
Até 1936 Picasso nunca tinha manifestado interesse pela política, mas depois dessa data
começou a assumir claramente posições de esquerda. Primeiro, contra Franco; depois contra
a opressão nazi. Teimou em ficar em Paris sob a ocupação alemã, desafiando a sua
autoridade. Dizia-se até que, quando certos oficiais alemães lhe perguntaram se fora ele que
fizera a Guernica, terá respondido: «Não. Foram vocês.» Entretanto, aderiu ao Partido
Comunista, a que se manterá ligado durante vários anos, empenhando-se em defender, tanto
nas suas atitudes públicas como em muitas das suas obras, a causa da paz.
Terminada a guerra, abriu-se para ele um longo período de estabilidade. Era um dos
pintores mais famosos de todos os tempos, mesmo junto do grande público, e a celebridade
tinha-lhe trazido uma enorme fortuna. Conseguira encontrar a serenidade familiar junto de
Françoise Gilot, com quem teve dois filhos. E, com uma exuberante vitalidade, irá continuar a
produzir, até às vésperas da sua morte, uma obra multiforme, que celebrava a vida
(paisagens idílicas; retratos dos filhos e de Jacqueline, a sua última paixão) e celebrava a arte
(variações sobre obras dos grandes mestres, como a famosa série dedicada às Meninas de
Velasquez).
Picasso morreu em 1973, com 91 anos. A sua obra imensa, o seu prodigioso dom de
inventar permanentemente novos modos de expressar na pintura as múltiplas facetas da vida
fizeram dele o maior génio artístico do século XX.

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DOCUMENTOS ICONOGRÁFICOS

Imagem 1 Ciência e caridade, 1897.

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Imagem 2 Lista dos «Quatre gats», 1899.

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Imagem 3 Pobres à beira-mar, 1903.

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Imagem 4 Mulher com gralha, 1904.

Imagem 5 Mãe e filho (Saltimbancos), 1905.

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Imagem 6 A família de saltimbancos (Os acrobatas), 1905.

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Imagem 7 Retrato de Amboise Vollard, 1910.

Imagem 8 Rapariga com bandolim, 1910.

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Imagem 9 Violino preso à parede, 1913.

Imagem 10
Duas
mulheres a
correr na praia
(A
corrida), 1922.

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Imagem 11 Paul vestido de arlequim, 1924.

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Imagem 12 Rapariga diante de um espelho, 1932.

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Imagem 13 Mulher em lágrimas, 1937.

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Imagem 14 Retrato de Jacqueline com flores, 1954.

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Imagem 15 Busto de mulher com chapéu, 1962.

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