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NELSON ASCHER

meu coração

Se tenho um coração maior que


o mundo, por que seus ventrículos
fecham-se em pontos tão ridículos,
quando oxigénio algum retorque

às carências da carne? À parte


isto, o lipídio, lento, encarde o
sangue que irriga o miocárdio
por dentro até que o seu enfarte

maciço torne, enfim as várias


figuras Iíricas, diletas –
letais. Dizei-me, então, poetas:
o amor entope as coronárias?

um anjo

Um anjo do Senhor, tangendo


harpa e trajando lingerie
a mais translúcida, outrossim
revela o quanto

é fútil discutir seu sexo,


pois intangível. Discutamos
o sexo da poesia, então,
pois feminino,

mesmo que esteja menstruado


seu metro, flácido seu ritmo
e embora tenha complacente
o hímen da rima.

meu verso

meu verso afio


(navalha velha)
dias a fio
e se me espelha
— mas não me fio —
é só de esguelha

CORRESPONDÊNCIAS

Há pássaros que tento


ouvir, mas sem sucesso
e, embora busque atento

virá-los pelo avesso


feito uma tela abstrata,
eu nunca os reconheço.

Pior quando se trata


das árvores, pois estas
escarnem da inexata

visão que nem atesta


se são, como se pinta,
diversas da floresta.

E o próprio tato, ainda


que insista, não discerne
o quanto são distintas

as pedras quando inertes


expõem com diferenças
seus diferentes cernes.

O ouvido não compensa


o olhar, nem este, assíduo,
compensa o tato; a avença

que houver no seu emprego


– sentidos sem sentido! –
restringe-se a um nó cego
*

NO CENTENÁRIO DA AV. PAULISTA

Enquanto após o rush,


na happy hour, o stress
das horas de brain storming
dissolve-se on the rocks,
estende-se, através
das fendas da camada
dc ozônio, a contra-céu
um arco-íris negro.

SONETO

Fiz o que não devia,


o que devia, não;
compus uma canção
sem letra ou melodia.

A meia-noite ardia
meu sol que, sem razão,
legara de antemão
trevas ao meio-dia.

E enquanto lia tudo


que não dizia nada,
ouvindo na calada

da noite um eco mudo,


pensava, sobretudo,
que pouco sobrenada.
*

PREGUIÇA

Algo de sol se infiltra


no quarto e, por um ápice,
embora, mais que fibra
de lã puída, esfiape-se,

ainda recalcitra,
riscando, como lápis
que escreva um verso capci-
osíssimo, a tez vítrea

de quem permite, imersa


em si mesma, conforme
o escuro se dispersa,

que um grão de luz transforme


em pérolas a inércia
e, sem tirá-las, dorme.

GATA

A minha gata feita


de pelo e de preguiça
ronrona satisfeita
e às vezes se espreguiça.

Seu pelo é muito preto,


seu passo é muito leve,
seu pulo é tão quieto
quanto o cair da neve.

Nobreza não lhe falta


no jeito aristocrata,
sua linhagem alta
se chama vira-lata.

De dia, no seu canto,


diverte-se sozinha
tomando sol enquanto
mastiga uma sardinha.
À noite, paciente,
embosca a sua presa
que, quando nem pressente,
é pega de surpresa.

Possui um fino olfato


de caçadora inata
que, se não acha rato,
persegue até barata.

Com garras afiadas


retalha em mil fatias
após suas caçadas
as presas arredias.

A minha gata feira


de pêlo e de preguiça
ronrona satisfeita
e às vezes se espreguiça.

OUTRA GATA
p/ haroldo, felinófilo

Embora seja tão


minúscula, está viva
a gata que se esquiva
enquanto minha mão,

com mais de um arranhão,


conclui a tentativa
inútil e, à deriva,
afaga o nada em vão.

Fruindo em paz de sete


vidas, no entanto, a gata
faz sua toilette

e assim não se constata


que esconde um canivete
suíço em cada pata.
*

SABORES

Para que serve a língua,


pedaço sempre dúbio
e, às vezes, comestível
de carne coleante?

Não foram feitos para


ver filmes e olhar telas
os olhos; nem, ao menos
de inicio, para ouvir

a Quarta Sinfonia
de Mahler, os ouvidos;
tampouco pressupõe
o olfato, o Chanel 5,

uma colônia ou mesmo


qualquer loção barata;
e o tato acaso existe
para apalpar de leve

cetim, seda e veludo?


Salgado e doce, azedo
e amargo, além de inúmeras
outras nuances mais

ou menos discerníveis,
mostram, porém, tornando
subsidiária a fala,
para que serve a língua.

Encontros

Há gente que eu encontro


na rua e me sorri
(o fósforo, dormindo
ensimesmado dentro

da caixa, sonha incêndios)


e eu lhes sorrio: há gente
que encontro numa loja
e me sorri (a lâmina

da faca que repousa


numa gaveta aguarda
o dedo distraído)
e eu lhes sorrio; há gente

que encontro na garagem


e me sorri (o fio
se aquece na parede
acalentando alguma

faísca) e eu lhes sorrio;


há gente que eu encontro
até no elevador
e me sorri (a carne

que está na geladeira


fermenta aos poucos sua
toxina), eu lhes sorrio
e cada qual de nós,

descendo em seu andar,


ligando o carro (salvo
se acaba de guardá-lo),
fazendo (ou não) as compras

e prosseguindo rua
abaixo ou rua acima,
medida na segunda
lei da termodinâmica.

Metade

Eles escrevem (elas


também) e têm metade
da minha idade escrevem
não sei se muito bem

tampouco escrevo bem


(eu sei) mas tenho o dobro
da idade que eles têm
(e elas também) mas tenho

metade ou talvez menos


(principalmente caso
não largue o tabagismo)
de sua expectativa

de vida e escrevo menos


por dia mês ou ano
também talvez metade
ou menos talvez tenha

escrito (e isso no dobro


do tempo) muito menos
do que a metade seja
(nem sei se muito bem)

do que eles escreveram


ou elas escreveram
(e nada me garante
que o tenha escrito bem).

Elegiazinha

i. m. nikita (gata da inês)

Gatos não morrem de verdade:

eles apenas se reintegram

no ronronar da eternidade.

Gatos jamais morrem de fato:

suas almas saem de fininho

atrás de alguma alma de rato.

Gatos não morrem: sua fictícia


morte não passa de uma forma

mais refinada de preguiça.

Gatos não morrem: rumo a um nível

mais alto é que eles, galho a galho,

sobem numa árvore invisível.

Gatos não morrem: mais preciso

– se somem – é dizer que foram

sofás no paraíso

e dormirão lá, depois do ônus

de sete bem vividas vidas,

seus sete merecidos sonos.

Arte poética

"Hol lettem részeg? elfeledtem részegen"


Sándor Weöres

Como é que vim parar


aqui quero dizer
no meio da poesia
quero dizer no meio

agora deste poema


aqui corno é que vim
quero dizer agora
mesmo parar aqui

quero dizer no meio


sei lá de onde nem quando
e é como se tivesse
sei lá me embebedado
e não lembrasse quero
dizer nem lembro mesmo
agora onde nem quando
nem quanto é que bebi

se é que bebi sei lá


o que mesmo mas vim
quero dizer agora
sei lá se vim parar

quero mas essa dor de


cabeça que não passa
dizer aqui no meio
sei lá mesmo do quê?

14 versos

Não zombes, crítico, da forma


que, além de poetas como Dante,
Quevedo ou Mallarmé durante
os séculos quando era a norma,

Púchkin, narrando com mestria


um duelo em seu Ievguêni Oniéguin
(num duelo desses morreria),
usou como outros não conseguem.

Sem rejeitar a própria era,


Drummond e Rilke, todavia,
levararn o soneto a extremos

de perfeição e, em sua cegueira,


Borges também, conforme via
mais do que nós, que vemos, vemos.
*

Algo de escuro

Hoje é meu turno de compor


algo de escuro, mais que preto,
que seja, em seu negror perfeito,
a negação de toda cor

e tenha além disto um sabor


inesquecivelmente abjeto
como o sabor de um grande inseto
numa feijoada ou coisa pior.

Quero também que este soneto


seja maçante, que o leitor
sinta-o no estômago, no peito,

no cérebro que nem torpor


e o aprenda a contragosto, feito
qualquer canção ruim, de cor.

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