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"Ao que Norton replicou que, muito antes de Borges, Dickens e Stevenson tinham se

referido a Londres usando esse tropo. Coisa que, pelo visto, o taxista não estava
disposto a tolerar, pois ato contínuo disse que ele, um paquistanês, podia não
conhecer esse famoso Borges, e que também podia nunca ter lido esses famosos
senhores Dickens e Stevenson, e que inclusive talvez ainda não conhecesse
suficientemente bem Londres e suas ruas, e que por essa razão a tinha comparado com
um labirinto, mas que, em compensação, sabia muito bem o que era a decência e a
dignidade e que, pelo que havia escutado, a mulher aqui presente, ou seja, Norton,
carecia de decência e dignidade, e que em seu país isso tinha um nome, o mesmo que
se dava em Londres, que coincidência, e que esse nome era puta, embora também fosse
válido utilizar o nome de cadela ou égua ou vaga, e que os senhores aqui presentes,
senhores que não eram ingleses a julgar pelo sotaque, também tinham um nome em seu
país, e esse nome era o de gigolô ou cafetão ou cafifa ou chupa-caldo." (p. 82)

"[...] Meu amigo (talvez seja uma presunção de minha parte chamá-lo assim)
acreditava na humanidade, portanto acreditava na ordem, na ordem da pintura e na
ordem das palavras, que não é outra coisa que se faz a pintura. Acreditava na
redenção. No fundo, é bem possível que acreditasse no progresso. A coincidência,
pelo contrário, é a liberdade total a que estamos expostos por nossa própria
natureza. A coincidência não obedece a leis, e se as obedece nós as desconhecemos.
A coincidência, se me permite a comparação, é como Deus que se manifesta a cada
segundo em nosso planeta. Um Deus imcompreensível com gestos incompreensíveis
dirigidos a suas criaturas incompreensíveis. Nesse furação, nessa implosão óssea,
se realiza a comunhão. A comunhão da coincidência com seus rastros e a comunhão de
seus rastros com os nossos." (p. 98)

"[...] Morini, adotando um tom de voz casual, lhe disse que acreditava saber por
que Johns tinha cortado a mão direita.
– Que Johns? – disse Norton.
– Edwin Johns, o pintor que você me revelou – disse Morini.
– Ah, Edwin Johns – fez Norton – Por quê?
– Por dinheiro – disse Morini.
– Por dinheiro?
– Porque acreditava nos investimentos, no fluxo de capital, quem não investe não
ganha, esse tipo de coisa.
Norton fez cara de pensar duas vezes no assunto e depois disse: pode ser.
– Fez por dinheiro – disse Morini." (p. 104)

"A primeira impressão que os críticos tiveram de Amalfitano foi mais para ruim,
perfeitamente de acordo com a mediocridade do lugar, só que o lugar, a extensa
cidade no deserto, podia ser visto como algo típico, algo cheio de cor local, mais
uma prova da riqueza muitas vezes atroz da paisagem humana, enquanto Almafitano só
podia ser visto como um náufrago, um sujeito descuidado no vestir, um professor
inexistente de uma universidade inexistente, o soldado raso de uma batalha perdida
de antemão contra a bárbarie, ou, em termos menos melodramáticos, como o que ele
finalmente era: um melancólico professor de filosofia pastando em seu próprio
campo, o lombo de um animal caprichoso e infantiloide que teria engolido Heidegger
de uma só vez, na hipótese de que Heidegger houvesse tido o azar de nascer na
fronteira mexicano-americana." (p. 119-120)

"[...] Transformava a dor dos outros na memória de uma pessoa. Transformava a dor,
que é longa, natural e sempre vence, em memória particular, que é humana, breve e
sempre escapole. Transformava um bábaro relato de injustiças e abusos, um ulular
incoerente sem princípio nem fim, numa história bem estruturada onde sempre cabia a
possibilidade de suicidar-se. Transformava a fuga em liberdade, inclusive se a
liberdade só servisse para continuar fugindo. Transformava o caos em ordem, mesmo
que a preço do que comumente se conhece como sensatez." (p. 189-190)
"No século XIX, em meados ou fins do século XIX, disse o homem de cabelos brancos,
a sociedade costumava coar a morte no filtro das palavras. Se você lesse as
matérias da época diria que quase não havia delitos nem que um assassinato era
capaz de comover todo um país. Não queríamos ter a morte em casa, em nossos sonhos
e fantasias, mas é um fato que se cometiam crimes terríveis, esquartejamentos,
estupros de todo tipo e até assassinatos em série. Não há dúvida, a maioria dos
assassinos seriais não era capturada nunca, basta pensar no caso mais famoso da
época. Ninguém nunca soube quem era Jack, o Estripador. Tudo passava pelo filtro
das palavras, convenientemente adequado a nosso medo. O que faz uma criança quando
tem medo? Fecha os olhos. O que faz uma criança quando vão estuprá-la e depois
matá-la? Fecha os olhos. Também grita, mas primeiro fecha os olhos. As palavras
serviam para esse fim. E é curioso, porque todos os arquétipos da loucura e da
crueldade humana não foram inventados pelos homens desta época, mas por nossos
antepassados. Os gregos inventaram, por assim dizer, o mal, viram o mal que todos
levamos dentro de nós, mas as testemunhas ou as provas desse mal não nos comovem
mais, nos parecem fúteis, ininteligíveis. A mesma coisa pode ser dita da loucura.
Foram os gregos que abriram esse leque e, no entanto, agora esse leque não nos diz
mais nada. Você vai dizer: tudo muda. Não há dúvida, tudo muda, mas os arquétipos
do crime não mudam, da mesma maneira que nossa natureza tampouco muda. Uma
explicação plausível é que a sociedade, naquela época, era pequena. Estou falando
do século XIX, do século XVIII, do XVII. Claro, era pequena. A maioria dos seres
humanos estava além dos muros da sociedade. No século XVII, por exemplo, em cada
viagem de um navio negreiro morria pelo menos vinte por cento da mercadoria, quer
dizer, da gente de cor que era transportada para ser vendida, digamos, na Virgínia.
E isso não comovia ninguém, nem saía em manchetes garrafais no jornal da Virgínia,
nem ninguém pedia que enforcassem o capitão do navio que os tinha transportado. Se,
pelo contrário, um homem abastado sofria uma crise de loucura e matava seu vizinho,
depois voltava galopando para casa, onde mal apeava matava sua mulher, ao todo duas
mortes, a sociedade virginiana vivia atemorizada por no mínimo seis meses, e a
lenda do assassino a cavalo podia perdurar por gerações inteiras. Os franceses, por
exemplo. Durante a Comuna de 1871, morreram assassinadas milhares de pessoas e
ninguém derramou uma lágrima por elas. Por volta dessa mesma data, um amolador de
facas matou uma mulher e sua mãe velhinha (não a mãe da mulher, mas sua própria
mãe, caro amigo) e depois foi abatido pela polícia. A notícia não só correu os
jornais da França, como foi reproduzida em outros jornais da Europa e saiu até uma
nota no Examiner de Nova York. Resposta: os mortos da Comuna não pertenciam à
sociedade, a gente de cor morta no navio não pertencia à sociedade, enquanto a
mulher morta numa capital de província francesa e o assassino a cavalo da Virgínia,
esses sim, pertenciam, quer dizer, o que havia acontecido com eles era escrevível,
era legível. Mesmo assim, as palavras costumavam se exercitar mais na arte de
esconder do que na arte de desvelar. Ou talvez desvelassem algo. O quê?, confesso
que não sei." (p. 261-262)

"–As porras dos assassinatos são como uma greve, amigo, uma porra de uma greve
selvagem.
A equivalência entre assassinatos de mulheres e greve era curiosa. Mas assentiu com
a cabeça e não disse nada." (p. 280)

Florita Almada (411)

"a Santa tem feeling com o feridos, as crianças sensíveis e maltratadas, as que
foram estupradas e humilhadas, as que são objeto de chacotes e risadas" (p. 417)

"No fundo, todos os ventríloquos, de uma maneira ou de outra, sabemos que nossos
bonecos, alcançando certo ponto de ebulição, adquirem vida. Extraem-na das suas
atuações. Extraem-na dos vasos capilares dos ventríloquos. Extraem-nas dos
aplausos. E sobretudo da credulidade do público." (p. 419)

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