Vivendo no coração de São Paulo, em um pequeno apartamento, eu, João,
levava uma vida mais reservada que a média, como um eremita urbano. Meu universo, recheado de linhas, formas e cores digitais, parecia compreensível e mais controlável em comparação ao caos do mundo lá fora. A minha rotina era uma sinfonia bem afinada: acordar, saborear um café preto e repleto de sutis nuances, mergulhar no mar das criações gráficas, nutrir o corpo com uma refeição modesta e retornar ao meu mundo em tons de RGB. Embora vivesse sozinho, não era um homem de temperamento frio ou distante. Na verdade, acredito que tenho um carisma peculiar que contradiz o meu estilo de vida solitário. Costumam me dizer que sou aquele tipo de pessoa que, em apenas alguns minutos de conversa, conquista a simpatia do interlocutor, que se sente como se estivesse encontrando um velho amigo. No entanto, algo em mim sempre se destacou, uma espécie de sexto sentido para compreender o mundo ao meu redor. Desde pequeno, tive uma habilidade natural para perceber detalhes que passavam despercebidos pela maioria, compreendendo a geometria e a disposição espacial de tudo ao meu redor de forma intuitiva. É curioso, pois jamais me gabei dessa habilidade, sempre a vi como uma ferramenta útil para o meu trabalho e para a vida em geral. Como designer, essa habilidade me permitiu criar layouts equilibrados e instigantes, manipulando as formas e cores com uma precisão quase matemática. Não obstante, essa capacidade também me ajudou a manter minha vida pessoal organizada. Tudo em meu apartamento tinha um lugar, um propósito e uma posição exata. Minha vida era, portanto, uma tela em constante criação, uma mistura de arte e ciência, de ordem e criatividade. Não percebi naquele momento, mas essa combinação insólita estava prestes a se tornar ainda mais complexa. Era uma terça-feira comum quando minha rotina foi interrompida por uma batida suave na porta. Intrigado, coloquei de lado as camadas digitais em que estava imerso e abri a porta para um homem de aparência impecável e olhos sérios, um advogado, como se revelou. "Bom dia, senhor João," ele começou, sua voz soando formal e contida. "Meu nome é Carlos Albuquerque. Represento o escritório de advocacia Albuquerque & Associados. Vim até aqui para tratar de um assunto de extrema importidade, envolvendo seu avô, senhor José." Meu avô? Meu avô José havia falecido cinco anos antes, depois de ir à falência em uma série de investimentos mal sucedidos que nunca entendi completamente. Depois de sua morte, ele caiu no esquecimento e não deixou nada além de lembranças e um vazio inexplicável. Então por que, depois de tanto tempo, seu nome estava sendo mencionado? O advogado, percebendo minha confusão, continuou: "Seu avô deixou uma herança para você, que, de acordo com suas instruções, só deveria ser entregue nesta data." Uma herança? De um homem que tinha perdido tudo? Não conseguia acreditar, mas a expressão séria do advogado não me deixava dúvidas. Ele estendeu um envelope amarelado, selado com o símbolo do escritório de advocacia. Dentro, encontrei a escritura de uma propriedade rural, uma chácara, localizada em uma pequena cidade não muito distante de São Paulo. Eu tinha herdado uma casa. Uma casa que nunca soube que existia, mas que estava prestes a mudar minha vida de maneiras que eu jamais poderia imaginar. Parti para a chácara na manhã seguinte, deixando a vida urbana para trás enquanto me aventurava no desconhecido. A estrada parecia um caminho para outra dimensão, cercada por paisagens que raramente presenciava. Em pouco tempo, o cinza concreto de São Paulo foi substituído por um manto de verde, que se estendia até onde os olhos podiam ver. Finalmente, após horas de viagem, cheguei ao destino. A chácara era envolta por uma atmosfera de quietude e parecia ter sido congelada no tempo. A casa, de arquitetura gótica, se erguia com uma presença imponente. Era menor do que eu esperava, mas a grandiosidade de seus arcos longos e a beleza austera de sua fachada lhe conferiam uma majestade peculiar. A madeira antiga rangia sob meus pés enquanto eu explorava os corredores silenciosos e os quartos vazios. Cada cômodo parecia contar uma história, e eu podia sentir uma presença passada em cada rincão da casa. A biblioteca, em particular, era um verdadeiro tesouro. Repleta de livros antigos, com seus encadernados desbotados e páginas amareladas pelo tempo, era uma prova do amor do meu avô pela literatura e pelo conhecimento. O sol já estava se pondo quando terminei a exploração inicial. O brilho dourado do entardecer se infiltrava pelas janelas empoeiradas, lançando um véu de luz mágica sobre o ambiente. Estava ficando tarde, então decidi ficar ali para passar a noite. Ainda havia muito a ser descoberto e eu estava ansioso para desvendar os segredos dessa casa enigmática que agora era minha. Passei a noite na biblioteca, mergulhado nos livros do meu avô e adormeci envolto em histórias e conhecimentos antigos. Na manhã seguinte, com os primeiros raios de sol iluminando a casa, minha exploração continuou. Tendo sempre tido uma compreensão aguçada do espaço, comecei a notar algo estranho na geometria da casa. Apesar de pequena, a construção parecia mais vasta por dentro do que se poderia supor olhando de fora. Um sentimento de incongruência cresceu em mim - algo não estava encaixando. Armado com um bloco de notas e uma caneta, comecei a esboçar a planta baixa da casa, percorrendo cada cômodo, anotando as dimensões. Aos poucos, a verdade se revelou. Havia um espaço não contabilizado, um cômodo escondido. Caminhei pelos corredores, meu olhar varrendo cada centímetro da parede. Encontrei-me diante de uma estante de livros na biblioteca que não havia examinado na noite anterior. Ao tocar um dos livros, senti um clique surdo e a estante se moveu, revelando uma passagem secreta. E ali estava, um quarto escondido, como um segredo guardado pelo tempo. Preenchido com uma antecipação pulsante, entrei. O que encontraria ali, escondido por meu avô, eu não tinha ideia. Mas estava prestes a descobrir. Meu coração pulsava em meus ouvidos enquanto eu cruzava o limiar do quarto escondido. A luz do dia se infiltrava por uma pequena janela alta, lançando feixes de luz poeirentos que iluminavam o espaço de forma etérea. O cômodo era um antro de maravilhas científicas. Mesas cobertas de papéis, fórmulas matemáticas e esquemas técnicos preenchiam o ambiente, junto com equipamentos que mais pareciam pertencer a uma obra de ficção científica do que a uma casa na zona rural. Prismas de vidro pendurados no teto capturavam a luz do sol e a dispersavam em arco-íris coloridos que dançavam nas paredes. Nas estantes, livros de física avançada, matemática e história conviviam harmoniosamente com cadernos de anotações meticulosamente escritas. Ao lado de um desses cadernos, encontrei um bilhete. "Para João," estava escrito, a caligrafia familiar do meu avô instigando uma onda de nostalgia. As instruções a seguir eram um enigma, um conjunto de passos que deveria seguir para ativar uma máquina. No canto da sala, coberta por uma lona empoeirada, estava a referida máquina, uma construção impressionante de metais e vidros, luzes adormecidas e cabos que se enroscavam como serpentes. O ar parecia vibrar com possibilidades. Cada objeto, cada detalhe na sala, a máquina e o bilhete, tudo parecia impregnado de um propósito grandioso. Eu estava em um limiar, à beira de algo desconhecido e ao mesmo tempo terrivelmente íntimo. Eu podia sentir o cheiro do papel e do óleo de máquina, o toque frio dos instrumentos de metal, o sabor da poeira e da expectativa. Ao redor, o silêncio parecia carregar uma melodia suave, quase imperceptível, de revelações à espera. De repente, a quietude da casa adquiriu um novo significado. Eu não estava sozinho. Eu estava acompanhado pelas memórias e sonhos do meu avô, pela presença inegável de algo insólito que ele havia trabalhado em segredo. E agora, a responsabilidade recaía sobre mim. Respirei fundo, preparando-me para seguir as instruções do bilhete, para dar vida à máquina e, quem sabe, desvendar o legado do meu avô. As instruções eram complexas, mas precisas. Girei válvulas, ajustei alavancas e inseri uma sequência numérica em um painel de controle coberto de poeira. No momento em que pressionei a última tecla, o quarto se encheu de um zunido suave. A máquina ganhou vida, suas luzes se acendendo em um coro cintilante. Em seguida, tudo se transformou. Prismas de luz explodiram em existência, girando e pulsando de maneira caótica. Eu senti o chão tremer sob meus pés, e uma força invisível pareceu sugar todo o ar do quarto. E então, de repente, tudo parou. No epicentro das luzes cintilantes, uma figura se materializou. Meu coração quase parou quando reconheci quem era. Meu avô. Mas não o avô que eu me lembrava, idoso e debilitado, mas um homem no auge de seus 40 anos, vigoroso e com uma faísca nos olhos que eu nunca havia visto. "João," ele disse, sua voz ecoando estranhamente no quarto. "Você pode me dizer a senha?" Nós tínhamos uma senha, uma brincadeira da minha infância que usávamos para nossas "viagens no tempo". Nunca imaginei que aquela brincadeira se tornaria realidade. "É... 'Relatividade'", respondi, minha voz quase um sussurro. Ele assentiu, um sorriso triste dançando em seus lábios. Era ele. Era mesmo o meu avô. E nós estávamos em uma verdadeira viagem no tempo. Nós ficamos ali, parados, olhando um para o outro em silêncio. Meu avô parecia estudar meu rosto, como se estivesse memorizando cada traço. E então, com uma profundidade em seus olhos que nunca havia visto antes, ele começou a falar. "João," ele começou, sua voz cheia de emoção. "Eu tenho algo para te dizer." Ele fez uma pausa, respirando fundo antes de continuar. "Eu sinto muito por não estar lá para você quando você mais precisava. Eu estava aqui, neste quarto, perdido em meu próprio mundo." Senti uma onda de compreensão. Meu avô não tinha falido, não da maneira que eu pensava. Ele não tinha desaparecido do mundo, ele simplesmente tinha desaparecido para este quarto, este santuário escondido da realidade. "Eu te deixei esta casa, este laboratório, porque eu queria que você soubesse a verdade," ele continuou. "Mas agora, eu peço que você destrua tudo. Há instruções na minha escrivaninha, em um envelope lacrado. Siga- as à risca." A revelação, embora pessoal, balançou meu mundo. O homem que eu acreditava ter me abandonado estava na verdade se sacrificando em um experimento extraordinário. As palavras dele ecoavam na minha mente, junto com a tristeza que enchia seus olhos. "Eu te amo, João," foram suas últimas palavras. E então, antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, ele desapareceu, as luzes giratórias desaparecendo com ele. O quarto voltou a ser como antes, apenas eu, a máquina silenciosa e o legado esmagador do meu avô. Fiquei ali parado por um longo tempo, as palavras do meu avô reverberando na quietude do quarto. O mundo que eu conhecia parecia ter se desintegrado, substituído por esta nova realidade inimaginável. Mas a pedido do meu avô, eu tinha uma tarefa a realizar. Encontrei o envelope na escrivaninha dele, sua superfície amarelada selada com um lacre de cera. Dentro, um conjunto meticuloso de instruções delineava o processo de desmontagem da máquina do tempo. Com a imagem do meu avô gravada na minha mente, comecei o trabalho meticuloso. Cada peça desmontada, cada cabo desconectado, cada componente da máquina desativado parecia um adeus, uma despedida do legado do meu avô. Com cada movimento, refleti sobre a revelação dele. Eu sempre senti uma ausência na minha vida, uma lacuna que atribuí ao desaparecimento do meu avô. Mas agora, sabendo que ele estava vivendo seu sonho, uma nova perspectiva se abriu para mim. Era como se a vida tivesse feito um círculo completo, e eu estivesse vendo tudo de uma nova maneira. Os dias seguintes foram uma névoa. Devolvi a casa ao seu estado original, um monumento silencioso ao homem que meu avô havia sido. Logo, eu estava de volta à minha rotina de trabalho, minhas mãos deslizando sobre o teclado e o mouse, meu olhar perdido nos designs digitais que eu criava. Mas algo havia mudado. Eu não conseguia parar de pensar sobre a tecnologia que meu avô havia desenvolvido, a complexidade das máquinas e fórmulas que ele havia criado. Parecia haver um paralelo entre seu trabalho e o meu - ambos demandavam uma visão espacial avançada, um entendimento profundo de como as coisas se encaixam. Refleti sobre a efemeridade da vida, a maneira como meu avô tinha dedicado seus anos a um projeto que agora jazia em ruínas. Era uma lembrança brutal da nossa mortalidade, da maneira como nossos esforços, não importa o quão grandiosos, podem se desfazer com o tempo. E, no entanto, havia algo reconfortante nisso. A vida de meu avô não tinha sido uma perda, não importa como poderia parecer de fora. Ele havia vivido seus sonhos, havia feito o impossível. E ele me deixou uma herança inestimável - a verdade. Assim, enquanto eu voltava à minha rotina, eu carregava comigo um novo senso de propósito. A vida pode ser fugaz, mas é também cheia de possibilidades infinitas. E eu estava decidido a explorar cada uma delas, a viver cada dia ao máximo, exatamente como meu avô teria desejado.