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Futuro do pretérito.

Meu nome é Rafael e, por mais que eu não goste de falar sobre mim, acho
que devo me apresentar. Sou designer gráfico, de uma simplicidade quase
tediosa. A verdade é que eu sou tão comum quanto um grão de areia na
praia.
Trabalho em casa, num pequeno escritório que montei para mim. É um
cômodo silencioso, onde as horas passam sorrateiras entre arquivos digitais
e xícaras de café. Minha rotina é praticamente a mesma todos os dias:
acordo cedo, medito por uns quinze minutos (um hábito que adotei
recentemente), tomo um banho rápido, preparo meu café e então me dirijo
ao meu escritório.
A maior parte do meu dia é passada ali, entre linhas e curvas, cores e
sombras. Muitas vezes, sinto que compreendo o mundo melhor através dos
pixels e vetores do que das palavras e pessoas. Meu trabalho é muito mais
do que criar imagens atraentes - é sobre captar a essência de uma ideia e
transformá-la em uma experiência visual que todos possam entender.
Eu também tenho essa mania, talvez um pouco estranha, de organizar tudo
ao meu redor. Desde a posição dos móveis até a disposição das minhas
ferramentas de trabalho, tudo precisa estar no lugar certo. Essa organização
me traz um senso de equilíbrio, uma sensação de controle que aprecio
muito.
Apesar de meu trabalho ser majoritariamente solitário, eu não me sinto
solitário. Me sinto completo na quietude do meu escritório, na companhia
de meus próprios pensamentos. Não preciso de muito para ser feliz, apenas
o suficiente para manter minha mente afiada e minha criatividade fluindo.
Talvez isso seja resultado da criação que tive, da forma como aprendi a
perceber o mundo ao meu redor. Cresci numa família que valorizava a
independência e a introspecção, que acreditava na importância do
conhecimento e do autodesenvolvimento. Meu avô, em especial, foi uma
grande influência em minha vida. Ele era um homem de muitos talentos e
uma inteligência notável, e me ensinou a ver a vida de uma maneira
diferente.
Hoje, olhando para trás, percebo que aprendi muito com ele. Talvez até
mais do que eu possa imaginar...
Era uma quarta-feira como qualquer outra quando a campainha soou
abruptamente, quebrando o silêncio do meu escritório. Frustrado, tirei os
olhos do projeto que estava desenvolvendo e fui atender a porta. Um
homem de terno e gravata me cumprimentou com um sorriso, estendendo
um cartão de visitas com o nome "Carlos Sampaio, Advogado".
Ele se apresentou como advogado do meu avô, o qual, estranhamente, eu
não via há mais de cinco anos. O homem parecia desconfortável, quase
embaraçado, enquanto explicava a situação. Segundo ele, meu avô havia
ido à falência e passado os últimos anos de sua vida morando numa
pequena chácara nos arredores da cidade. E agora, descobri que havia
herdado essa propriedade.
Eu fiquei em choque, incapaz de compreender o que estava acontecendo.
Como assim meu avô havia falido? E por que ele não entrou em contato
comigo durante todo esse tempo? O advogado pareceu entender minha
confusão e me entregou um envelope lacrado, alegando que continha todas
as explicações que eu precisava.
O conteúdo daquele envelope era um testamento detalhado. Segundo o
documento, meu avô havia decidido deixar sua propriedade para mim há
vários anos, mas instruído seu advogado a me entregar a chave e os papéis
apenas hoje. E apesar de meu coração estar repleto de dúvidas e incertezas,
eu não pude deixar de sentir uma pontada de curiosidade. Que segredos
aquela chácara poderia guardar?
O resto do dia foi uma confusão de papéis e assinaturas. E mesmo após o
advogado se despedir e deixar minha casa, eu continuei sentado ali,
segurando a chave de bronze em minhas mãos, sentindo o peso de uma
herança inesperada que carregava muito mais do que uma simples
propriedade.
Logo no dia seguinte, me pus a caminho da chácara. A viagem foi
estranhamente solene, como se eu estivesse sendo atraído por uma força
invisível. Os pensamentos sobre meu avô, sobre a vida que ele levou
naquele lugar, giravam incessantemente na minha cabeça.
O trajeto era repleto de curvas sinuosas e a paisagem rural pintava uma
atmosfera de calmaria que contrastava fortemente com o turbilhão que se
passava dentro de mim. Eu me lembrei das histórias que meu avô
costumava contar sobre as noites estreladas e o ar fresco do campo. De
alguma forma, eu sentia que estava me aproximando dele, mesmo que
estivesse tarde demais para um reencontro real.
Quando finalmente cheguei, a chácara se revelou de uma forma que eu não
esperava. Pequena, mas imponente, a casa em estilo gótico erguia-se
solitariamente no meio do terreno. Com seus longos arcos e janelas
estreitas, a construção parecia emanar um tipo de magnetismo silencioso.
Mesmo com sua aparência envelhecida, havia algo majestoso em sua
presença que me capturou instantaneamente.
A biblioteca, em particular, me fascinou. A vasta coleção de livros que meu
avô havia reunido ao longo dos anos preenchia as estantes do chão ao teto.
Cada volume parecia conter um mundo de conhecimento, histórias e
segredos que aguardavam ser desvendados.
Por um momento, pensei em voltar para casa, mas a curiosidade era forte
demais. Decidi passar a noite na chácara, naquela casa que agora era
minha. Eu queria desvendar os mistérios que aquele lugar carregava, queria
entender o legado deixado pelo meu avô. E, de alguma forma, eu sabia que
nada seria mais o mesmo depois dessa noite.
Passei o restante do dia explorando a casa. Mesmo depois de anos de
abandono, cada cômodo ainda guardava vestígios da presença do meu avô.
Mas a medida que me familiarizava com o lugar, algo me incomodava.
Como designer gráfico, sempre tive uma afinidade natural para entender e
interpretar espaço. E algo sobre a estrutura da casa não estava se
encaixando.
Foi na sala de estar que notei pela primeira vez. Apesar de parecer
proporcional por fora, a sala parecia um pouco mais estreita por dentro. Eu
sabia que essa sensação estranha não era infundada. Algo estava errado.
Decidi investigar. Comecei a medir cada parede, cada canto da casa. Depois
de horas de meticulosa análise, a suspeita se confirmou. A geometria da
casa estava errada. Havia um espaço não contabilizado, um cômodo
secreto.
No entanto, a questão persistia: como acessar esse espaço oculto? Passei o
restante da noite estudando a casa, analisando cada mínimo detalhe. E foi
apenas na aurora do próximo dia, exausto e à beira da frustração, que
encontrei a resposta.
Havia uma discrepância na estante de livros na biblioteca. Um livro parecia
fora do lugar, quase imperceptivelmente inclinado para fora. Com um
suspiro de expectativa, puxei o livro e ouvi um clique suave. A estante se
moveu lentamente para revelar uma passagem secreta.
Meu coração batia acelerado enquanto eu olhava para o escuro
desconhecido. O que meu avô estaria escondendo em um quarto secreto?
Ainda assim, mesmo com todas as perguntas rodando na minha cabeça, eu
sabia que tinha que continuar. Era a única maneira de realmente entender o
legado que meu avô havia deixado para mim.
Respirei fundo e entrei na passagem secreta, sentindo a suavidade do
veludo que revestia as paredes. Uma luz suave se acendeu
automaticamente, iluminando um corredor estreito que se estendia à minha
frente. Caminhei por ele, meus passos ecoando suavemente na quietude da
casa.
No fim do corredor, uma porta imponente se revelou. Com um toque
hesitante, a abri, revelando o que só poderia ser descrito como um
laboratório. A sala estava repleta de objetos estranhos e intrincados que
nunca havia visto antes. Fórmulas complexas estavam rabiscadas em
pedaços de papel espalhados pelo chão, enquanto desenhos técnicos
cobriam as paredes.
No centro da sala, uma grande mesa abrigava um dispositivo que parecia
ter saído de um romance de ficção científica. Prismas de luz projetados a
partir de uma série de lentes e espelhos giravam e refletiam de maneira
hipnotizante, criando um efeito caleidoscópico que enchia a sala com cores.
No canto da mesa, encontrei um bilhete escrito à mão pelo meu avô. Era
uma espécie de manual, contendo instruções passo a passo sobre como
ativar o aparelho misterioso. A escrita de meu avô era firme e clara, e a nota
exalava uma intensidade quase palpável.
Senti a textura do papel sob meus dedos, o cheiro de tinta e tempo,
enquanto os sons da casa pareciam desaparecer. O sabor do ar na sala era
metálico, como o de uma tempestade se aproximando. A sala secreta de
meu avô, seu laboratório, era um lugar de mistérios e maravilhas, e eu
estava prestes a mergulhar profundamente neles.
Sem saber ao certo o que esperar, preparei-me para seguir as instruções do
bilhete, para ativar a máquina que, de alguma forma, sentia que iria mudar
tudo.
Com o coração batendo forte, comecei a seguir as instruções. À medida que
girava os discos, alinhava os prismas e ajustava as lentes, a máquina
começou a zunir e tremular. A sala foi preenchida por um brilho intenso, à
medida que os prismas de luz começaram a girar mais rápido, formando um
turbilhão de cores vibrantes.
De repente, uma figura apareceu no meio das luzes. Meu coração parou.
Era o meu avô. Mas não como eu me lembrava dele. Parecia ter apenas 40
anos, sua postura era reta e seus olhos cheios de vida e energia.
Ele olhou para mim, um sorriso de reconhecimento iluminando seu rosto.
"Você seguiu as instruções," ele disse, sua voz tão familiar e, ao mesmo
tempo, tão estranhamente diferente. Ele então me fez uma pergunta
peculiar, perguntou-me a senha que tínhamos criado quando eu era criança,
uma senha que usaríamos se alguma vez fizéssemos uma viagem no tempo
juntos. Nunca pensei que essa brincadeira da infância pudesse se tornar
realidade.
"Estrelas no campo," respondi, lembrando-me da nossa senha. Seu sorriso
se alargou e ele assentiu, parecendo aliviado.
Ficamos em silêncio por um momento, olhando um para o outro através do
turbilhão de luz e cor. Meu avô estava ali, no mesmo quarto que eu, mas ao
mesmo tempo, ele estava em outro tempo, talvez em outra dimensão. Ele
estava aqui, mas não completamente. A realidade disso me atingiu como
um soco no estômago. Mas, antes que eu pudesse perguntar qualquer coisa,
ele começou a falar.
"Eu sei que isso deve ser uma surpresa para você", começou ele, com um
olhar sereno. "E eu sei que não terá muito tempo para processar tudo isso.
Mas há algo muito importante que você precisa saber."
Houve uma pausa, e por um momento, o único som na sala foi o zumbido
suave da máquina do tempo. Meu avô parecia escolher as palavras com
cuidado, sabendo o impacto que elas teriam.
"Eu venho do futuro", revelou ele. "Um futuro onde a humanidade está à
beira da destruição. Não pude ficar parado e assistir. Então, passei minha
vida trabalhando nesta máquina, nesta forma de voltar no tempo e talvez,
apenas talvez, mudar o curso da história."
Meu coração batia forte. A revelação era incrível, surreal, mas eu não
conseguia duvidar da sinceridade de meu avô.
"Você deve destruir este laboratório", continuou ele, entregando-me um
conjunto de instruções meticulosas. "Depois disso, ninguém mais pode
descobrir o que eu fiz aqui. As implicações seriam... catastróficas."
Eu mal tive tempo para fazer qualquer pergunta. Com uma última troca de
olhares, ele se despediu e, em um instante, a imagem de meu avô se
desvaneceu, e a sala voltou a ser o que era antes.
Fiquei ali, sozinho, com as instruções em minhas mãos e a revelação de
meu avô ressoando em minha mente. Eu tinha uma missão a cumprir, uma
responsabilidade que nunca poderia ter imaginado. E não podia falhar.
Com as instruções de meu avô em mãos, comecei a trabalhar para
desmantelar o laboratório. À medida que seguia as etapas, cada peça da
máquina do tempo era cuidadosamente desconectada, cada fórmula
meticulosamente apagada das paredes.
Enquanto eu desmontava a máquina, as palavras de meu avô reverberavam
em minha mente. Eu pensava sobre a revelação impressionante que ele
havia feito. Eu não era apenas o herdeiro de uma casa antiga; eu era o
guardião de um segredo que poderia mudar a trajetória da humanidade.
Era estranho, pensei, como cada peça da máquina parecia refletir uma parte
do que meu avô havia revelado. A luz dos prismas me lembrava da beleza
frágil do tempo; os complexos arranjos de fios e circuitos refletiam a
intrincada teia de possibilidades que ele havia navegado. E a fria superfície
metálica da máquina em si lembrava a dura realidade que ele havia
enfrentado.
Após horas de trabalho cuidadoso, finalmente terminei. O laboratório, uma
vez cheio de cores e som, agora estava escuro e silencioso. Eu havia
cumprido minha tarefa, preservado o segredo de meu avô. E embora eu
ainda sentisse o peso da revelação em minha mente, eu sabia que tinha feito
o que era necessário.
No dia seguinte, voltei à minha rotina de trabalho como designer gráfico,
mas algo tinha mudado. A cada desenho que fazia, a cada linha que traçava,
lembrava-me das formas geométricas do laboratório, dos prismas de luz e
das complexidades da máquina do tempo.
Comecei a perceber que a tecnologia que meu avô havia desenvolvido e a
que eu usava no meu trabalho não eram tão diferentes. Ambas exigiam uma
compreensão profunda do espaço, das formas e das cores. Ambas
requeriam uma mente que pudesse visualizar o invisível e transformá-lo em
algo tangível.
A revelação do meu avô mudou a maneira como eu via o mundo e a mim
mesmo. Eu não era mais apenas um designer gráfico, mas um guardião de
um segredo que poderia abalar o mundo.
E enquanto eu mergulhava no meu trabalho, pensava na efemeridade da
existência. Meu avô tinha atravessado o tempo, tudo em uma tentativa de
mudar o futuro. Mas, no final, tudo que restava eram ecos de sua presença:
a casa, o laboratório escondido e a memória de um encontro que
transcendeu o tempo.
Essa consciência me fez perceber que, mesmo que nossa existência seja
temporária, as marcas que deixamos são eternas. E mesmo que a vida possa
parecer sem sentido às vezes, é nossa responsabilidade encontrar um
propósito, uma razão para continuar.
Em meio às formas e cores que moldava, encontrei um novo sentido para
minha vida. Eu tinha uma missão: proteger o legado do meu avô, manter
seu segredo seguro e continuar meu trabalho, não apenas como designer,
mas como guardião do tempo.
A vida continuou, e embora a rotina tivesse voltado, eu sabia que nada seria
realmente o mesmo. Com cada linha que desenhava, cada cor que
selecionava, lembrava-me do laboratório, dos prismas de luz e do olhar de
meu avô. E sabia que, de alguma forma, eu tinha sido parte de algo maior,
algo que transcendia o tempo e o espaço. E isso, percebi, era o verdadeiro
significado da vida

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