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2ª.

Edição
2022
Copyright © Ágatha Santos
Produção Editorial: Criativa TI
Esta é uma obra de ficção. Seu intuito é entreter as pessoas.
Nomes, personagens, lugares e acontecimentos descritos são produtos da
imaginação da autora. Qualquer semelhança com nomes, datas e
acontecimentos reais é mera coincidência.
Esta obra segue as regras da Nova Ortografia da Língua
Portuguesa.

Todos os direitos reservados. São proibidos o armazenamento e/ou


a reprodução de qualquer parte dessa obra, através de quaisquer meios –
tangíveis ou intangíveis – sem o consentimento escrito da autora.
Criado no Brasil. A violação dos direitos autorais é crime
estabelecido na lei n°. 9.610/98 e punido pelo artigo 184 do Código Penal.
Sumário
Nota da Autora
Sinopse
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28
Capítulo 29
Capítulo 30
Capítulo 31
Capítulo 32
Capítulo 33
Capítulo 34
Capítulo 35
Capítulo 36
Capítulo 37
Capítulo 38
Capítulo 39
Capítulo 40
Capítulo 41
Capítulo 42
Capítulo 43
Capítulo 44
Capítulo 45
Capítulo 46
Capítulo 47
Capítulo 48
Capítulo 49
Capítulo 50
Capítulo 51
Capítulo 52
Capítulo 53
Capítulo 54
Capítulo 55
Capítulo 56
Capítulo 57
Capítulo 58
Capítulo 59
Capítulo 60
Epílogo
Agradecimentos
Sobre a Autora
Nota da Autora

Olá, Króchkas, bem-vindas ao mundo da Rússia.

Quando idealizei esse livro, almejei um personagem com uma


sobrecarga na vida, no passado ou presente, mas teria um contexto diferente
de tudo que já abordei até hoje.

Foi então que o cenário da Rússia iluminou minha mente e resolvi


agregar um pouco da cultura desse país, que é tão rica e diferenciada de
nós.

O livro contém notas e esclarecimentos sobre a ambientação,


costumes, culinária, trejeitos e vocábulo de lá, a fim de levá-las para um
lugar diferente do que estão acostumadas.

Dominada por Krigor, faz parte da trilogia Paixão Russa,


entretanto a única coisa que une as histórias é a ambientação e perfis
escolhidos para as obras.

Leia sem medo.

Essa história tem começo, meio e fim, espero surpreendê-las no


caminho.
Sinopse

Publicado anteriormente como "Krigor: a dívida" por ÁGATHA


SANTOS.

O misterioso Krigor Stepanov é assombrado pelo passado. Lutador


clandestino, estava envolvido com a máfia russa enquanto se divertia com o
assédio das mulheres no final de cada evento.
Tudo muda quando uma jovem rebelde e destemida cruza o seu
caminho e o desafia de todas as formas.

Aleksandra Nicolaeva, mais conhecida como Sacha, está pagando


uma dívida de jogo feita pelo pai. Na mira de mafiosos, ela não esperava
que o impetuoso Krigor assumisse parte da sua obrigação.

Apesar dos embates, Sacha desperta os sentimentos mais


profundos do lutador. Ele a protegeria de todos os perigos enquanto a
dominava em sua cama.

No mar de acontecimentos, o amor teria de sobreviver enquanto


aliados e inimigos eram revelados.
Capítulo 1

Levantar às oito da manhã não é uma tarefa tão fácil quando se foi
dormir a uma, da mesma madrugada. Quando isso já é uma rotina, você
pode acabar se acostumando, entretanto, não significa que se torna mais
amena.

Meus olhos ardem, como se tivesse um punhado de areia dentro


deles, mesmo assim, o faço, o corpo dolorido e cansado, pedindo por mais
um par de horas na cama quente e convidativa, corro com a minha higiene
matinal, visto o uniforme do emprego número um e arrumo a mochila com
tudo que preciso para mais um longo dia de trabalho.

— Sacha, venha tomar seu café — minha mãe chama, da pequena


cozinha, quando passo pela sala a caminho da porta.

O cheiro do mingau e das blinis sobre a mesa despertam o apetite e


meu estômago protesta, querendo provar um pouco de comida caseira, uma
pena estar em cima da hora. Aquelas panquequinhas saborosas, cobertas
com uma boa camada de mel ou geleia, aguçam qualquer paladar.

— Não tenho tempo. Hoje o dono do restaurante pediu para eu


chegar mais cedo e compensar o atraso de ontem.

Para o meu azar e excesso de cansaço pela rotina que tenho vivido,
não ouvi o despertador e cheguei com mais de uma hora de atraso no
trabalho. Ivo Smirnov, dono do restaurante Pardes, onde trabalho meio
período diurno, para cobrir o horário de maior movimento, não é nada
tolerante com atrasos, aliás, nenhum russo costuma ser, entretanto, foi a
primeira vez, em três anos, que um episódio desses aconteceu comigo, por
isso só irei repor as horas ao invés de perder o ganho do dia anterior.

Não posso me dar ao luxo de perder qualquer kopek[1], trabalho em


dois empregos e me mato todos os dias para quitar aquela maldita dívida.
Em breve, conseguirei livrar minha família desse desespero e poderei
pensar em minha vida enfim.

— Você precisa de um descanso, Sacha. — Ela limpa a mão no


pano de cozinha apoiado em seu ombro.

Estava concentrada em fechar a mochila que comporta mais coisas


que o seu interior permite, depois de um pequeno embate com ela, sai
vencedora e consegui fechá-la. Fito minha mãe, o corpo apoiado no batente
da porta, me observando com certa aflição.

— Não se preocupe, mãe. É divertido, no fim das contas, conheço


muitas pessoas diferentes. — Ergo os ombros, tentando passar uma
impressão impassível.

Ela não precisa carregar culpa por tudo que nos aconteceu nos
últimos anos. Sei de seus sonhos para que minhas oportunidades fossem
diferentes das que ela e meu pai tiveram, entretanto, a vida nem sempre
corre o curso que esperamos e algo indesejado sempre poder descer sobre
nossas cabeças e mudar o rumo de tudo.

— Tenha cuidado. — Aceno em concordância, visto meu casaco e


chapéu que estão no bengaleiro.

Calço minha bota de couro preta sem salto, solado de borracha


ideal para caminhar, principalmente com pressa, como tenho feito
constantemente nos meus dias.
Ajeito a mochila nas costas, o peso dela às vezes faz meu ombro
doer um pouco, mas evito reclamar em casa, caso contrário, minha mãe
colocará à mesa sua lista interminável de motivos para que eu pare com
essa rotina maluca que me enfiei.

Quase na porta do prédio, vejo Katrina, minha prima, chegando de


algum lugar, que provavelmente não é trabalho, dada a maquiagem
carregada que usa no rosto.

— Dóbraie útra[2] — ela grita, quando me vê saindo do prédio.

— Onde estava, Katrina? Não tem trabalho agora pela manhã? —


questiono, sem devolver o cumprimento.

— Acalme-se, Sacha. Vou só trocar as roupas e sair. Se quiser me


esperar, podemos ir para a estação, juntas. — Ela passa por mim, um leve
sorriso no rosto e o cheiro de vodca acompanhado do seu perfume
permeiam no ar.

— Você será despedida desse jeito — ralho, baixo.

— Eu estou vivendo a vida, prima. Você deveria fazer o mesmo. —


Ela aponta o dedo em minha direção, andando de costas.

Seu humor parece inalterado, sendo que normalmente quando


qualquer um tenta dizer à Katrina Kolyavna Pavlova o que fazer, ela sempre
tem uma resposta ácida na ponta da língua. Até para mim, que fomos
criadas como irmãs.

— Não tenho tempo para isso. Preciso trabalhar.

Em resposta, ela só abana a mão para o ar, dando as costas para


mim e segue seu caminho. Sei que em algum momento preciso ter uma
conversa séria com minha prima, seu comportamento de uns tempos para cá
tem sido completamente fora do normal, não que Katrina fosse uma pessoa
centrada durante a vida, mas irresponsável, jamais.

Confiro meu celular e percebo que se não apertar o passo, chegarei


atrasada novamente, acelero meu passo e rezo para que o trânsito caótico
das manhãs moscovitas esteja a meu favor hoje. Dois atrasos seguidos
caracterizarão demissão na certa e não posso correr esse risco.

Subo a escada, pela quarta vez, para buscar mais suprimentos e


estocar os materiais que faltam na retaguarda do pequeno restaurante. Uma
tarefa que Frans não completou ontem e acabou acarretando ainda mais
serviço para o horário de movimento.

Aquele rapaz é muito descuidado, mas é sobrinho do dono e seu


tratamento, obviamente, é diferenciado dos demais funcionários. Uma falta
dessa jamais passaria despercebido se fosse qualquer outro a errar, algo bem
injusto, só não posso dar voz aos meus pensamentos igualitários, ou perco a
renda que tenho aqui em um piscar de olhos.

Coloco todos os itens que preciso em um caixote de plástico, pela


quantidade coletada, tenho ainda mais certeza de que Frans não fez
absolutamente nada do que precisava ser feito.

Gemo quando ergo a caixa e percebo que seu peso está além do
que normalmente eu suportaria, entretanto, não posso cogitar a
possibilidade de fazer duas viagens, ou isso vai atrasar ainda mais os
atendimentos no salão. Apoio a caixa na minha coxa e, devagar, desço o
lance de escadas, cuidadosa para não derrubar tudo e causar um acidente
desnecessário.

Entro na área das preparações com a caixa e vejo Frans sentado na


banqueta, no canto, conversando com seu tio, que administra os pedidos
para o cozinheiro preparar.

— Será que pode me dar uma ajuda, Frans? — falo, um pouco


mais alto, indignada com a cena que presencio.

— Sacha, onde estava? Têm clientes aguardando para tirar pedido


na mesa — Ivo repreende, assim que percebe minha presença.

— Estava no estoque, pegando o material que já deveria estar


reposto para hoje — respondo, direta, quando coloco a caixa no chão,
próximo do pé de Frans.

— Ei, cuidado! — Ele puxa o pé em reflexo.

— Vá atender a mesa dez, eles estão aguardando há um tempo. —


Ivo ignora o comentário e volta a atenção ao sobrinho.

Balanço a cabeça, irritada, pego o bloco de pedidos e caneta que


havia deixado sobre a bancada e vou atender a mesa. Só preciso aguentar
mais alguns meses e tudo estará resolvido.

Não vejo a hora de me livrar deste emprego e finalmente poder


pensar no meu futuro, mesmo que ainda não saiba o que fazer dele.

Planejar além do momento nunca foi meu forte, antes eu era uma
adolescente sonhadora, depois, quando soube da dívida, foquei totalmente
no problema, não dando brecha para qualquer sonho bobo ou ilusões a
longo prazo.

— Dóbridién[3]. Qual o seu pedido?


— Queremos duas solyanka[4] de peixe, uma sem pepino. Odeio
pepino! — O homem se estremece quando cita a conserva. — Traga
também algumas blinis com presunto e azeitonas para degustar.

Ele e o outro grandão que o acompanha não me dirigem o olhar


uma única vez desde que cheguei à mesa, inclusive o segundo está mais
preocupado em digitar algo no celular que tem em mãos.

O mais velho fecha o cardápio, entregando ambos para mim.

— Vou providenciar. — prendo os cardápios embaixo do braço


enquanto caminho para o balcão terminando de anotar o pedido.

Destaco a folha, deixo sobre o balcão, de onde Ivo observa o


pequeno salão. Coloco os cardápios de volta no lugar e dou uma olhada
rápida em volta, buscando por algum cliente solicitando atendimento.

Meus olhos pousam na mesa dos amigos, ou parentes, não sei,


ambos têm a atenção voltada para o celular e, por um momento, penso o
quanto minha mãe repreenderia essa ação.

Em casa, o momento que estamos na mesa é sagrado e não


fazemos nada além de aproveitar a refeição, a conversa é mínima, fato, mas
respeitamos o momento em família.

Poucos e espaçados ultimamente.


Capítulo 2

Olho de relance para o balcão e vejo que finalmente Frans resolveu


se mexer e está colocando o material no lugar certo. Seus olhos cruzam com
os meus, ele ergue as sobrancelhas em um questionamento claro, desvio
com desgosto e volto a encarar o pequeno salão.

Ele tem consciência de que errou feio ao não cumprir suas tarefas
corretamente, entretanto, sua certeza sobre não ser punido supera qualquer
tipo de consideração que deveria ter com os colegas.

— Pedido da mesa dez. — Ivo coloca os pratos sobre a bandeja já


posicionada e confere a comanda uma última vez.
Recolho a bandeja com os quatro pratos e rumo para a mesa. Peço
licença por puro costume e cordialidade, já que nenhum dos dois ocupantes
se dignaram a me olhar novamente. Quando termino de colocar a última
tigela e os talheres, viro meu corpo para me retirar.

— Moça. Esqueceu nosso chá — o homem que fez o pedido cobra.

— Você não pediu chá. — Volto minha atenção para a mesa.

— Claro que pedi.

— Não, você não pediu — rebato, quando noto sua imposição no


engano que comete.

— Eu pedi. Você que não anotou.

— Bóris, você não pediu. — O grandão quieto toma à frente,


esclarecendo o mal-entendido.
Ao colocar o celular sobre a mesa, pela primeira vez desde que
chegou, ergue a cabeça e fico impressionada com a perfeição do seu rosto.
Já tinha reparado no corte moderno e diferente, mas não fazia ideia do
quanto ele combinava com o contorno de seu rosto bem modelado.

As laterais do cabelo são raspadas deixando uma camada grande


no centro, levemente aloirado, que está penteada para trás. Os olhos
pequenos e analíticos encaram os meus de forma atormentadora, uma
vivacidade latente em sua íris, combinando perfeitamente com o delineado
do nariz e mandíbula, são tão simétricos, que facilmente ele poderia fazer
capa de qualquer revista.

— Que seja. Traga agora, então — o tal Bóris responde, ainda


irritado.

— Seja educado, amigo. A moça só está fazendo o trabalho dela.


Qual o seu nome, lápatchka?

Franzo a sobrancelha quando ele me chama de forma tão pessoal,


um apelido carinhoso para alguém que acabou de conhecer, soa bem
estranho ao meu ouvido. Apesar de ter uma beleza exótica e totalmente
cativante, o homem sabe ser ousado e passar do limite.

— Vou trazer o chá. — Viro em meus pés não respondendo sua


pergunta.

Paro no balcão, onde Frans prepara alguma bebida, atento ao que


faz.

— Frans, me cobre na mesa dez. Eles querem dois chás. Preciso ir


ao banheiro.

— Você quer que eu pare o meu serviço para fazer o teu? — Ele
torce os lábios, em desgosto.
— Não vai custar nem dois minutos do seu tempo. — Ele para o
que está fazendo, me encarando — Por favor? — Uno as mãos enfatizando
o pedido.

— Tak[5]! Só não demora. Não vou ficar cobrindo o salão pra você.

— Obrigada! — Vou para a porta da área de serviços.

Antes de entrar, arrisco um olhar em direção à mesa do grandão


inconveniente e percebo seu olhar atento, feito um falcão, observando o
salão. Passo rapidamente pela porta e a fecho atrás de mim, encaro o teto
por um momento e solto a respiração em alívio.

Normalmente, quando me deparo com clientes ousados, o que não


é comum, mas vez ou outra acontece, respondo prontamente e o coloco em
seu lugar, mas esse estranho me fez perder a fala.

Sua beleza é tão impactante que me deixou desconcertada, ainda


mais quando me chamou de forma carinhosa, fiquei sem reação e um medo
gigantesco se abateu sobre mim, como se voltar até àquela mesa fosse um
risco a minha sanidade.

Nunca fui uma garota desenvolta na paquera. Obviamente já tive


minha cota de romance, alguns namorados que não deram em nada, mas
lidar com o sexo oposto nunca foi uma tarefa grandiosa.
Tudo piorou depois que entrei nessa rotina de trabalho intensa, o
foco somente no pagamento da dívida dos meus pais, acabei me alienando
de praticamente todo convívio social, sinto que perdi uma parte da vontade
de me relacionar neste processo.

São quase três anos trabalhando incansavelmente, em que posso


contar em uma mão a quantidade de vezes que permiti Katrina me arrastar
para algum lugar, mesmo um barzinho qualquer, para umas doses de vodca.

Sento na cadeira de ferro que fica próximo a uma pequena mesa,


onde os funcionários costumam fazer um lanche rápido, antes de voltar a
trabalhar, tapo o rosto com as mãos e esfrego levemente, voltando ao
prumo.

Devo estar no limite do cansaço, só pode.

Nada disso tem qualquer relevância para eu sair fugindo feito uma
garotinha do salão, com medo de encarar um homem bonito.

Bonito é um eufemismo, ele é realmente lindo e completamente


intimidador com o olhar, contudo, posso ser tão desafiadora quanto, se eu
quiser.

Levanto da cadeira apressada e vou até a porta, abrindo-a com


determinação. Não tenho nada a temer e vou colocar esse homem em seu
lugar, se me chamar por mais algum apelido descabido.

Volto para o salão confiante, mas quando vejo a mesa dez vazia e a
comida ainda intocada sobre ela, enrugo o cenho, intrigada.
— O que houve com a mesa dez? — Apoio o cotovelo no balcão
quando pergunto ao Frans.

— Saíram correndo. Um dos homens pagou a conta e mandou


entregar a comida em um hotel aqui perto.

— Ah... — respondo, simplesmente, e vou até a mesa recolher os


pratos.

Sinto-me levemente desapontada com a oportunidade perdida.


Esperava ter a chance de falar para o grandão inconveniente que eu não era
sua lápatchka.
Chance perdida, vida que segue.

Retorno para o balcão com os pratos e peço que embrulhem para


viagem.

— Sacha, preciso ir ao banco. Você entrega a encomenda no hotel.


O endereço está aqui. — Frans aponta para um papel na bancada.

— Eu? — Fico tão espantada, que minha voz eleva


consideravelmente.

— Sim, você. Não posso sair daqui e Frans vai me ajudar com os
depósitos. — Ivo toma frente da conversa e coloca uma sacola de Kraft à
minha frente. — Pegue o endereço e entregue logo, antes que esfrie a
comida e o cliente devolva.

Bufo, completamente indignada e revoltada com o pedido


descabido do meu patrão. Claro que atribuo todo o nervosismo ao fato de
executar mais uma tarefa que não faz parte do meu serviço e não a
possibilidade de encontrar com o tal grandão de novo.

Pego o pacote com brusquidão, não me importando com o quanto


isso pode soar insolência da minha parte, não farei cara de boa moça
estando contrariada com a tarefa que me foi dada.

Confiro o endereço no papel e franzo a sobrancelha, curiosa em


como dois homens que se hospedam no Radisson Blu Olympiyskiy Hotel,
foram parar em uma pequeno restaurante como o Pardes.

O hotel oferece todo e qualquer tipo de serviço, com uma


qualidade de alto padrão, não é comum eles terem escolhido o Pardes para
degustar de uma boa refeição, os ambientes são como óleo e água.
Trinta e cinco minutos depois, cansada e irritada o suficiente, entro
na recepção do grande hotel e, por um breve momento, sinto-me deslocada
com meu casaco de segunda mão. As pessoas aqui emanam riqueza, até os
funcionários têm um ar diferente do comum.

Anuncio a entrega, pensando que eles mesmos o farão para o


hóspede, mas contrariando toda a minha boa sorte de hoje, o recepcionista
me instrui de qual caminho pegar para chegar ao quarto.

Entro no elevador de serviço, bufo, desacreditada, enquanto o visor


marca os andares que passa.
Meu coração parece acelerar um pouco mais a cada vez que o
número sobe no indicador e um pequeno tremor percorre meu corpo quando
o ding do elevador abre as portas metálicas.

Não gosto dessa sensação incômoda me permeando, resolvo acabar


logo a tarefa e voltar para minha rotina. Quero me livrar definitivamente do
grandão de olhos perturbadores que tumultuou minha manhã.
Capítulo 3

Com passos muito vagarosos chego à porta do quarto indicado pelo


recepcionista, levo meu dedo à campainha, como se fosse um grande e
nojento bicho comedor de dedos, respiro fundo e toco, ouvindo o barulho
do lado de dentro.

— Só um minuto. — Escuto, em seguida, uma voz grossa


avisando.

Meu coração já não tem mais qualquer compasso coordenado, por


reflexo, aperto o saco na minha mão, tentando aplacar o nervosismo que
sinto. Cogito a possibilidade de deixar o pacote no chão e sair correndo,
enquanto o elevador ainda está com as portas abertas no andar, entretanto,
antes que eu possa dar ação aos pensamentos, a porta é aberta pelo homem
que me desestabilizou no restaurante.
— Aqui está a encomenda. — Ergo o pacote, mantendo meu braço
estendido e o mais distante possível da entrada do quarto.

— Lápatchka. Entre, vou pegar algo para você. — Ele não sorri,
mas age tão naturalmente, como se fôssemos velhos conhecidos.

Ele volta para dentro e caminha até uma grande mesa de vidro. Seu
quarto é praticamente um apartamento, pelo que posso perceber de fora. O
ambiente começa com uma sala e mesa de jantar que dividem o espaço e as
portas em torno devem ser os quartos.

Agora entendo a necessidade da campainha, ele jamais ouviria


minhas batidas se estivesse em outro cômodo.
— Entre, Lápatchka. — Ele volta sua atenção para mim, enquanto
segura uma carteira nas mãos.

— Não há necessidade de gorjeta. Se puder pegar seu pacote, por


favor, preciso voltar ao trabalho.

O homem misterioso franze o cenho, como se algo o incomodasse


profundamente, a boca firme em uma linha fina, mostra que não ficou feliz
com minha rejeição.

Dispensando a carteira sobre a mesa, ele vem até mim, cauteloso, o


trocar de peso das pernas, o tronco movendo-se calidamente,
acompanhando a caminhada como um felino, prestes a atacar uma presa.

No caso, eu.

Por instinto, recuo um passo, minha garganta tornou-se tão seca


que um gole de vodca agora seria bem-vindo. Não costumo beber, mas com
certeza ajudaria a diminuir meu ritmo cardíaco, ou talvez, daria mais
coragem para enfrentar esse homem insolente.

— Está com medo de mim, Lápatchka? — Vejo um pequeno


levantar de sobrancelhas, tornando-o desafiador e ainda mais quente, se isso
é realmente possível.

Levanto meu nariz, na tentativa de passar uma impressão altiva,


mesmo que tenha falhado miseravelmente desde que o vi no restaurante.
Esse homem precisa de um corretivo, cogitar que possa agir como bem quer
é um grande erro, e se eu fui a eleita para desbancar seu ego gigantesco, que
assim seja.

— Não preciso temer a nada, sinceramente. Vim até aqui cumprir


meu trabalho e lhe entregar o almoço. E agradeceria se parasse de me
chamar dessa forma, não temos, nem teremos intimidade alguma para me
tratar de forma tão pessoal. — Sacudo levemente o pacote que permanece
em minha mão esticada.

— Se tivesse dito seu nome quando perguntei, poderíamos ter


corrigido isso. Apesar de que ainda prefiro te chamar de Lápatchka.

— Suas preferências não me interessam. — Sacudo o saco


novamente à sua frente.

— Por que é tão arisca e fechada?

— Eu não dou intimidade para quem eu não conheço — respondo,


de cara feia, e arrisco um olhar para o elevador, que ainda está aberto e
praticamente berrando para que eu pule dentro dele.

— Muito prazer, sou Krigor Dmitrievitch Stepanov. — Ele estende


a mão, passando o batente da porta e saindo para o corredor, evitando a má
sorte[6], já que tem ciência que eu não entraria naquele cômodo com ele.

Evito o contato e, sem responder absolutamente nada, mais uma


vez sacudo o saco de papel com a comida, provavelmente já revirada,
dentro dele. Com a mão desocupada, ele pega o saco rapidamente, seu
rompante me assusta um pouco, mas não deixo transparecer.

— Dóbri viétcher[7] — despeço-me e ignoro deliberadamente sua


mão estendida.

Contorno seu corpo grande, caminhando até o elevador, que para


meu total azar, se fecha antes que consiga alcançá-lo. Chego a acelerar os
passos, praticamente correndo no corredor, mas não o suficiente para
conseguir me livrar dessa situação.

— Yeb vas[8]! — xingo, baixo.


Aperto o botão do elevador umas cinco vezes seguidas, como se
isso fosse fazê-lo retornar ao andar mais rápido, cruzo os braços na altura
do peito, parada e rígida no lugar, encaro meus pés.

— Parece que sua tentativa de fuga não funcionou. — Escuto sua


voz baixa muito próxima e fecho os olhos, em lamento.

Continuo calada, sem lhe dirigir a palavra ou ao menos um olhar.


O homem sabe ser insistente, contudo, o que me preocupa realmente, é eu
gostar disso mais do que deveria.

Eu não o conheço, por que estou tão feliz de ter sua atenção?

— Lápatchka...

— Já disse para não me chamar assim. — Viro o rosto, encarando-


o, brava.

Sua postura se mantém inalterada, as mãos no bolso da calça preta


ajustada que usa, uma camisa de manga comprida, também preta, que
desenha todo seu corpo. Forte e truculento, dificilmente alguma peça não
marcaria seu contorno.
— Então, me diga seu nome. — Ele ergue os ombros, como se a
culpa de sua ousadia fosse somente minha.

— Para um russo, você é invasivo e insistente demais — respondo,


voltando a atenção para a porta metálica, ansiosa para que se abra.

— Sou um homem determinado. Quando vejo algo que valha


minha atenção, busco de todas as formas conquistá-la.

— Então, nitidamente você gosta de um desafio e


consequentemente de um prêmio. Superficial, não acha?
— Desafios sempre fizeram parte da minha vida, isso você acertou.
O prêmio sempre foi a consequência das vitórias, mas não acredito em
superficialidade, não neste caso.

— Você não faz sentido algum.

— Eu sei. Esse é meu charme. — Noto um leve humor no seu


timbre e arrisco outro olhar para trás e ele continua com a mesma postura
impenetrável.

Svolach[9]!

Finalmente eu ouço o sonoro “ding” e agradeço mentalmente que


as portas se abram e eu possa saltar para dentro da minha salvação. Giro
meu corpo, os olhos daquele homem estranho cravados em mim, por isso,
ergo o nariz, soando o mais impositiva possível.

— Poka[10], lápatchka.

— Meu nome é Aleksandra Yakovna.

Antes que as portas se fechem, consigo vislumbrar um sorriso,


contido e discreto, no canto dos seus lábios. Provavelmente, está se
vangloriando por ter conseguido tirar de mim a informação que tanto
insistiu.
Capítulo 4

Entro no restaurante ainda atordoada com o tudo que acabou de


acontecer. Isso não é algo comum na minha vida, ao menos, não me lembro
de conhecer um russo tão atirado e invasivo.
Krigor Dmitrievitch...

Um nome forte e imponente, combina perfeitamente com a


imagem que transparece às pessoas, não só pelo seu porte e tamanho físico,
já que perto dele sou uma pequena boneca, como também pela sua energia
densa e impenetrável.

Confiro as horas e vejo que logo tenho que sair correndo daqui
para começar a trabalhar no segundo turno e emprego. Essa carga horária
tem causado uma exaustão descompassada no meu corpo e mente, culpo a
ela toda a confusão de hoje.

Por sorte, as coisas aqui seguem bem mais tranquilas do que


quando eu saí para fazer a entrega, isso me permite limpar as mesas e deixar
minha estação de trabalho em ordem para o próximo turno.
Entro na saleta que usamos como vestiário, troco minha roupa
colocando o uniforme do Zolotaya Vobla, um bar noturno, bem animado,
que tem a tradição de às sextas-feiras realizar uma gincana daquelas que
toca uma música e as pessoas precisam adivinhar o nome do filme.

É bem engraçado e à medida que o público bebe, as afinações, que


não são muitas, se perdem ainda mais, o que deixa o ambiente mais leve e
convidativo.
Confiro com Ivo as horas pagas do meu atraso de ontem e me
despeço, vestindo o casaco quente, para sair às ruas da fria Moscou. Dizem
que este ano o frio irá nos castigar severamente, prevejo tempos caóticos
para conseguir, de forma mais rápida, chegar ao trabalho.

Sinto-me mais leve quando entro pela área de serviço do Zolotaya


Vobla, aqui as pessoas são mais receptivas, tanto os funcionários como os
clientes.

As pessoas deixam seus empregos em busca de descontração, o


ambiente moldado para entreter, então é comum que se soltem mais por
aqui.

Irina é a proprietária do lugar, vez ou outra acontece um


desentendimento ou confusão, o que não a impede de colocar qualquer
marmanjo para fora, a ponta pés, se for preciso. Por isso, já mantém
Serguei, seu fiel segurança, que fica de olho em tudo e todos.

— Que bom que está aqui. O carregamento de bebidas acabou de


chegar e eu não posso sair. Consegue recebê-lo? — Encontro com Irina no
vestiário.

— Sim, claro. Só vou guardar minhas coisas.

Ela acena com a cabeça, saindo como entrou, tão rápido quanto um
foguete.

Amarro o avental na cintura, prendo o cabelo em um coque e


coloco o boné com a logotipo do bar. Caminho direto para a área de
recebimentos, onde um homem, bem mais velho, aguarda com a nota e
mercadoria.

Passo os próximos minutos conferindo as bebidas, que, diga-se de


passagem, é uma quantidade imensa, nem acredito que tudo isso sai em
somente uma semana, se não fosse eu a vender cada uma delas lá no balcão,
acharia impossível.

Quase quarenta minutos depois, vou para o salão, as mesas já estão


praticamente todas ocupadas, hoje o movimento começa cedo, devido à
gincana, as pessoas chegam antes para garantir lugar.

— Hoje, a noite será longa — Irina comenta, assim que me


aproximo.

— Nem me fale — solto, já lamentando as horas de sono que não


terei.

Irina fecha a torneira, pegando um pano seco para enxugar as mãos


e me encara de forma questionadora.

— Sabe que posso te emprestar o dinheiro. Você quita a dívida e


trabalha para mim.

— Não posso fazer isso. Você sabe.

— Não seja boba, Sacha. Eu posso te ajudar — ela insiste, e solto o


ar, cansada.

Já tivemos essa discussão incontáveis vezes e em todas elas


terminamos irritada uma com a outra.

Comecei a trabalhar aqui antes do restaurante, no período noturno,


a afinidade com o lugar e, principalmente, a proprietária, foi algo tão
espontâneo e natural que parecíamos amigas de longa data, apesar da nossa
diferença de quase dez anos na idade.

Irina não tem marido, nem ao menos namorado, ela herdou este bar
do seu pai, na época era uma espelunca, que aos poucos conseguiu
remodelar e tornar o que é hoje.
Não é um lugar para ostentações, não carrega a tradição e nome de
um grande pub, mas é aconchegante o suficiente para as pessoas quererem
passar horas a fio por aqui, se divertindo.

— Já disse que resolvo isso sozinha. Mas obrigada por oferecer.

— Você quem sabe. — Ela dá de ombros, desgostosa como


sempre, com a minha escolha.

Encerramos o assunto quando me afasto para atender um cliente no


balcão. Ela não mentiu quando disse que a noite hoje seria longa e
trabalhosa, exigindo o máximo de nossas habilidades como barista, para dar
conta de todos os pedidos.

Só consigo uma folga quando a gincana começa e as pessoas já


beberam o suficiente para se concentrarem na brincadeira. Esse momento é
mais tranquilo nos pedidos, o que me permite apreciar e observar os grupos
brincando e se divertindo.

Irina avisa que vai verificar algo no estoque e fico sozinha no


balcão, aproveito para lavar os copos acumulados na pia, estou distraída na
tarefa, pensando que a noite ainda não acabou e já sinto minhas forças
drenadas e implorando por uma cama aconchegante.

— Aleksandra Yakovna. — Levanto os olhos, boquiaberta com


quem vejo.

Não é possível. Ele está me seguindo?

— O que faz aqui? — pergunto, chocada.

— Me divertindo. O que parece? — Ele olha ao redor, enfatizando


sua pergunta.

— Como me achou aqui? — A pergunta sai sem que eu espere.


— Na realidade, não achei que a sorte estaria tão a meu favor hoje,
mas, pelo que vejo, me enganei. — Ele apoia os braços fortes sobre o
balcão, encarando meus olhos, com firmeza.

— O que vai beber?

— Água.

— Vodca? — confirmo, confusa.

— Não. Água mesmo. Tenho trabalho amanhã, não posso beber


nada alcoólico.

— Consegui uma mesa, ali. — Reconheço seu amigo de mais cedo


que se aproxima.

— Eu já vou — ele responde, sem ao menos olhar para o lado.

O amigo se afasta, volto minha atenção para os copos que ainda


estou lavando, a tranquilidade que sentia antes arruinada, principalmente
por saber que ele ainda me encara da mesma forma impositiva que lhe é
peculiar.

— Como explicar o destino, que nos colocou pela segunda vez no


caminho um do outro?

— Eu não chamaria de destino. — Continuo com os olhos na pilha


de louça.

— Chamaria do que, então?

— De nada. — Fecho a torneira, encarando seus olhos. — Você


está hospedado na área em que trabalho, em dois empregos diferentes, é
normal que nos encontremos — minto vergonhosamente, fingindo que sua
presença aqui por mera coincidência, não me espantou tanto quanto a ele.
— Por isso achou que eu estava te perseguindo? — Ele retorna
meus questionamentos anteriores.
— Pela forma que age, posso pensar que você é um maluco.

Ele ri, desta vez abertamente, confesso que não estava preparada
para essa visão, fico embevecida com sua imagem leve e descontraída e um
sorriso tão lindo, que torna seus traços ainda mais harmoniosos.

Um pecado em forma de homem.

— Sacha, prima. Ainda bem que te achei aqui. — Katrina solta sua
bolsa sobre o balcão, me encarando.
— Eu sempre estou aqui. É meu trabalho.

— Não seja rude. Estava na região e resolvi passar para uma


visitinha. — Sua atenção finalmente se volta para o homem à minha frente
e, após uma avaliação minuciosa dos seus olhos, ela ergue as sobrancelhas,
me encarando. — É seu amigo?

— Não.

— Sim.

Respondemos ao mesmo tempo e volto a fitá-lo, agora com raiva.


Desde quando nos tornamos amigos? Começo a pensar que minha teoria
dele ser maluco possa ter um fundo de verdade.

— Sou Katrina Kolyavna. — Ela estende a mão, solícita.

— Krigor Dmitrievitch. — Ele retribui o cumprimento e me


encara, com ironia, como se estivesse me ensinando a como socializar de
maneira correta.

Svolach!
— O lutador? — Katrina praticamente grita, abismada.

— Exatamente — ele responde, tranquilo.

Encaro de um para o outro, inevitavelmente, chocada. Um lutador.


Agora consigo compreender parte de sua insistência.
Capítulo 5

Katrina dispara a falar feito uma vitrola, comentando sobre as lutas


que já presenciou, em que, segundo ela, ele foi certeiro, levando o oponente
a nocaute com agilidade e eficácia.
Volto minha atenção para o último copo que enxaguo, mas os
ouvidos permanecem atentos à conversa dos dois. Pelo tanto que minha
prima elogia a desenvoltura dele no ringue, o homem provavelmente é um
destruidor em ação.

— A próxima luta é amanhã.

— Já divulgaram? Não vi nada sobre isso.

— Saiu a nota essa manhã. Se quiserem, consigo dois ingressos


para vocês, em um lugar privilegiado.

Levanto os olhos rapidamente e encontro os seus cravados em


mim, desvio para minha prima, que também me encara, com o semblante
ansioso, na expectativa de que concorde. Quando franzo o cenho, pensando
em negar, ela toma a frente:

— Adoraríamos! — bate a palma das mãos, empolgada.

— Não! Eu não vou, tenho trabalho. — Ignoro o lutador de


propósito e mantenho a atenção em Katrina.

— Prima, você tem ideia do quanto é difícil conseguir um ingresso


comum para essas lutas? Ele está oferecendo a área vip! — Ela ergue as
sobrancelhas, falando um pouco mais baixo, mesmo assim, ainda pode ser
ouvida por ele.
— Eu trabalho.

— Pago pelo seu dia de serviço, Aleksandra Yakovna. — Estreito


os olhos em sua direção.

Não perco a ironia que usa quando menciona meu nome da forma
correta.

— Não estou à venda. — Enxugo as mãos no pano, dando-lhe as


costas. — Svolach! — xingo, caminhando para longe dos dois, mas tenho
certeza de que ouviu.

Encontro com Irina, que volta do depósito com uma caixa cheia de
bebidas destiladas, quase causo um acidente esbarrando de frente com ela.

— Ei, cuidado!

— Deixa isso comigo, Irina. Eu reponho a prateleira. — Pego a


caixa das suas mãos.

Abaixo no balcão, enfileirando as bebidas de acordo com as


marcas, tento focar na tarefa e esquecer que o homem abusado, que desabou
sobre meu dia rotineiro, não está a um metro de mim, conversando com
Katrina.

Demoro mais tempo que o necessário para terminar a missão,


enrolando deliberadamente para não retornar ao balcão e ter que lidar com
ambos novamente. Conheço minha prima o suficiente para saber que usará
de todas as armas e persuasão possível para me convencer a ir nessa luta.

Ergo meu corpo e solto a respiração, aliviada, por perceber que


Krigor não está mais no balcão, por reflexo, corro os olhos pelo salão
também não o encontro e isso me intriga. Basta eu me afastar por alguns
momentos e esse homem consegue evaporar, feito fumaça.
— Sacha, venha até aqui. — Katrina sinaliza para mim.

Não consigo evitar meus olhos tediosos quando caminho até ela,
sabendo exatamente o que quer e o quanto vai lutar para que isso aconteça.

— Minha resposta é não. — Apoio as duas mãos no balcão.

— Mas você nem sabe o que vou dizer. — Ela tem a audácia de
parecer ofendida.

— Você vai tentar me convencer de ir a essa luta e eu não vou.


Tenho trabalho.

— Tá, mas você não tem ideia de quem é esse homem. Ele fez...

— Sacha! — Irina se aproxima, interrompendo a conversa. —


Amanhã não vou abrir o bar. A manutenção que venho protelando vai
acontecer, finalmente. A equipe só pode amanhã.

— Sério? — Fico apreensiva, já que ganho por dia e não trabalhar,


significa não receber.

— Não se preocupe. Vou pagar seu dia normalmente. — Ela pisca


um olho, entendendo minha cara de preocupação.

— Não precisa, Irina. Eu não vou trabalhar, então...

— Sem questionar. Eu sou a chefe, eu decido como, quando e


quanto.

Com um sorriso vitorioso, ela se afasta, sabendo que desta vez, não
terei como recusar sua ajuda. Tenho ciência de que Irina faz esse tipo de
coisa de propósito, às vezes chega a pagar um valor extra, alegando que é
uma gorjeta de algum cliente, o que tenho minhas dúvidas se é realmente
verdade.
— Está vendo! Sua sorte é favorável. Conseguiu a noite de folga e
podemos ir — Katrina comemora.

— Eu não vou! — enfatizo a frase, para que ela entenda de uma


vez por todas.

— Você precisa de um pouco de diversão na sua vida, prima. Só


trabalhar fará que se torne uma velha chata e mal amada.

— Isso não me importa no momento. — Dou de ombros.

— Pois deveria. Você chamou a atenção de um brawler — ela


menciona, baixo e empolgada.

— O quê? — Não entendo o termo.

— É assim que se chama um lutador com estilo brigão, porradeiro,


o mesmo comportamento se estivesse numa briga de rua. — Ela curva o
corpo sobre o balcão, se aproximando mais. — Dizem que ele deixou o
circuito aberto de luta por conta disso. Foi convidado a se retirar das lutas
legais e hoje ganha a vida na informalidade.

— Informalidade?

— Sim. Luta livre, praticamente sem regras, custeada por fontes


duvidosas. Por isso o anúncio do evento ocorre vinte e quatro horas antes de
acontecer e normalmente são em lugares improvisados, contudo bem
estruturados.

— Ilegal? Ele luta ilegalmente? — Encaro-a, espantada. — Ele é


da máfia? — pergunto, mais alto que o pretendido.

— Fala baixo. — Katrina olha para os lados, certificando-se de que


ninguém me ouviu. — Sim, a máfia está envolvida nisso, de certa forma, ou
como você acha que eles garantem que a polícia não descubra os lugares
que rolam essas lutas?

— Agora que eu não vou mesmo! Você é maluca, Katrina. Como


se envolve com esse tipo de gente? — disparo a falar, apavorada em saber
como e onde minha prima tem passado seu tempo.

— Não tem perigo algum, Sacha, não seja uma chata. As lutas são
seguras e apesar de ter a proteção — ela faz aspas com os dedos,
enfatizando — da máfia, eles não estão diretamente ligados. Uma pequena
organização cuida de todos os trâmites e convida os lutadores que, em sua
maioria, foi expulso ou não luta mais pelas ligas convencionais.

— E como você conhece tanto disso?

— Já saí com um desses lutadores uma vez. Foi bem... interessante


— ela pondera a palavra, antes de finalizar.

— Não estou gostando nada de saber do seu envolvimento nisso


tudo. O que seus pais iriam dizer?

— Eles não sabem, nem precisam saber. Venha amanhã comigo, os


ingressos que o Krigor deu, vai nos colocar em um ótimo lugar. Nem
estaremos na aglomeração do povo.

— Você aceitou os ingressos? — Não sei como ainda me espanto


com a ousadia dela.

— Claro! São da área vip, nunca que eu ignoraria esse acordo.

Balanço a cabeça em negação, até que uma luz se acende em


minha mente, que me faz estreitar os olhos em sua direção.

— Katrina Kolyavna, que acordo você fez com aquele sujeito?


Capítulo 6

Ela me encara, pende a cabeça para o lado, para logo em seguida


voltar ao normal, pega o celular do balcão e concentra sua atenção
exclusivamente nele.
— Prima? — chamo, uma sobrancelha erguida, questionadora e
ameaçadora na medida.

— Eu disse que garantiria sua presença.


— Suchka! Como pôde fazer isso? — Mesmo imaginando a
resposta, não consigo conter a indignação.

— Não me chame de cadela! Sou sua família!


— Família que me barganhou para um desconhecido. Que bem
arranjada estou. Pois só lhe digo uma coisa: eu não vou a essa luta, e você
que se vire com o svolach.

— Para alguém muito certinha, você está com a boca suja demais,
prima.

— Tem razão. Talvez seja um lutador maluco me perseguindo ou a


minha prima mais doida que o perseguidor, que resolveu me apunhalar
pelas costas.

Ela tem a decência de nada responder, o que me permite sair dali


batendo o pé, revoltada com sua jogada.

Quem aquele svolach pensa que é?


Armar com a minha prima para me levar ao seu covil, sendo que já
deixei mais do que claro a minha negação para ele.

— Sacha, espera. — Tento passar por Irina, que atendia o lado


oposto ao meu no balcão. — O que houve? Você está visivelmente nervosa.

— Não é... nada. — Solto o ar, com pesar. — Só cansada de tudo.

— Quer encerrar por hoje? Consigo dar conta sozinha.

— Não! — Nego veemente com a cabeça. — O trabalho, no final


das contas, é minha distração. E não é justo te deixar sozinha bem agora.
Amanhã já estou de folga.
— Mas trabalha no restaurante durante o dia.

— Sim, mas depois terei todo o tempo do mundo para dormir. —


Ergo os ombros, justificando.

Passo o resto da noite me ocupando dos afazeres, repondo o


estoque e organizando as prateleiras, no intervalo em que atendia um cliente
ou outro, consigo assim ignorar deliberadamente minha prima, que
permaneceu grande parte da noite sentada na mesma banqueta, me
observando.

Ela conseguiu me deixar realmente brava por sua ousadia. Onde já


se viu, barganhar a prima, sua família, como uma peça de carne em um
mercado, em troca de um par de ingressos para ver homens trocando socos.
Para tudo na vida existe um limite e Katrina precisa entender que o dela
excedeu hoje.

No fim da noite, estou exausta o suficiente para não conseguir


contestar a presença dela ainda no bar, provavelmente aguarda eu encerrar
as atividades para que possamos partir para casa.
— Tome, Sacha. — Irina entrega o pagamento do dia e confiro,
vendo que tem muito além do que dois dias de serviço.

— Irina...

— Está certo. Você ganhou boas gorjetas hoje — ela corta minha
tentativa de protesto e opto por calar.
Com o cansaço que sinto, não tenho a menor condição de
argumentar sobre qualquer coisa.

Vou até o depósito, recolho minhas coisas e volto para o salão


encontrar com a minha prima maluca. Não vejo a hora de chegar em casa e
tirar essas roupas, me jogar na minha cama quente e dormir.

— Vamos?

— Pensei que fosse continuar me ignorando. — Katrina recolhe a


bolsa da mesa e eu rumo para a porta.

— Ainda estou, mas vamos para o mesmo lugar, no meio da noite,


então, que seja juntas.

Por todo o trajeto no metrô, Katrina e eu não trocamos uma


palavra, ela permanece atenta em seu celular, digitando mensagens, ou, seja
lá o que for, enquanto eu ressono em alguns momentos, cansada demais
para manter os olhos abertos.

Quando passamos pelo pequeno portão do prédio, Katrina avança


alguns passos e para abruptamente, vira o corpo em minha direção com os
lábios torcidos, em desgosto.

— Desculpa. Eu passei do limite. — Sua voz sai baixa e quase não


consigo ouvir.
— Sim, você passou. Mas você é minha prima e eu continuo
gostando de você.

Assim que as palavras saem da minha boca, Katrina abre um lindo


sorriso e caminha até mim, com pressa, entornando seus braços no meu
pescoço.

— Vamos sair amanhã. — Afasto seu corpo, desconfiada. —


Calma. Nós só vamos tomar umas vodcas e voltar para casa. Sem lutas
clandestinas ou lutadores maníacos.

Acabo rindo com a sua careta para mim e aceno, em concordância.

— Tudo bem. Poucas doses e só.

Minha cabeça gira mais do que meu corpo e, por um breve


momento, paro meus passos, buscando equilíbrio. Não posso dar um
vexame de cair na pista de dança por ter bebido vodcas demais.

Quando aceitei o convite de Katrina, na madruga, fui ingênua o


suficiente em acreditar que daria conta de acompanhar minha prima na
virada de copos. Além de ela estar habituada a sair para as noitadas, Katrina
sempre bebeu mais do que eu.

Somar essa constatação ao cansaço acumulado da semana e o dia


terrivelmente difícil que tive no restaurante, minha condição de ser
resistente ao álcool que ingeri é praticamente nula.

— Sacode esse corpo, prima. — Katrina ergue minhas mãos, se


remexendo à minha frente.
— Só um minuto. Acho que bebi além da conta. — Levanto o
dedo, sinto minha língua levemente amortecida e opto por uma pausa.

Solto minhas mãos das suas e vou para o balcão da boate em busca
de uma água e uma trégua para meu corpo. Distante do aglomerado de
pessoas, consigo respirar melhor e sentir certo alívio ao perceber que minha
zonzeira está sob controle, ou eu achava que estaria.

Katrina conseguiu me arrastar para o Pravda Clube, um lugar


muito bem localizado, bastante movimentado e com shows aleatórios
durante a noite. A parte boa do local é o preço acessível para meu bolso, por
se tratar de Moscou, que é uma cidade completamente turística, consegue
manter um ambiente de qualidade e satisfatório para o bolso dos
moscovitas.

O bacana daqui é o quanto consegue ser versátil. Composto por


dois ambientes em um, uma parte é destinada a várias mesas onde atendem
como um restaurante de comidas rápidas e a outra, mais à frente, tem uma
área aberta de frente para o palco, onde acontecem as apresentações das
bandas e Djs locais.

Para quem quer certa individualidade, eles colocaram há pouco


tempo uma área nova, separada por uma escada e isolada do grande
público, mas para ter acesso, você paga uma espécie de ingresso.

Gosto do estilo do clube, ele consegue separar por um jogo de


luzes bem esquematizados, as áreas de atendimento e mesas para se
alimentar, da agitação das pessoas que só querem beber e dançar. Apesar de
que quando a coisa realmente esquenta e quem está no palco consegue
influenciar com uma boa música, todos, sem exceção, pulam e dançam no
ritmo da música.
O atendente coloca a garrafa de água na minha frente e, com
pressa, eu a abro, sorvendo o líquido direto do bico, sem me importar com o
copo que ele colocou junto dela.

Cinco goladas deliciosas e refrescantes depois, Katrina se


aproxima e tira a garrafa da minha mão, substituindo-a por uma dose de
vodca.

— Não. Estou parando. Já deu minha cota.

— A noite mal começou, prima! — Ela ergue seu copo, chamando


para um brinde.

Russos e sua mania de brindar a cada dose.

Torço os lábios, mas imito seu gesto e viro a bebida em um único


gole, fazendo uma careta no final, quando meu estômago protesta pelo
líquido quente que aquece minha garganta.

— Lápatchka! — Escuto a voz baixa e grossa próxima ao meu


ouvido e automaticamente giro meu corpo, assustada.

— Svolach...
Capítulo 7

Sua postura imponente e próxima do meu espaço pessoal causa um


incômodo e por instinto afasto para trás. Seu olhar duro e compenetrado
percorre por todo meu corpo e começo a me perguntar se essa cara feia é
característica do lutador ou dele como um todo.

— O que faz aqui? — pergunto alto, transpondo o som ambiente.

— Você já foi rude o suficiente me chamando de idiota e agora


questiona minha presença em um lugar público? Tenho certeza de que essa
não foi a educação que seus pais lhe deram, Aleksandra Yakovna. —
Mesmo sabendo que seu intuito é me provocar, não resisto e caio na
armadilha do mesmo jeito.

— Não fale dos meus pais — ergo o dedo em sua direção —, você
está me seguindo desde ontem.

— Lápatchka! Não seja tão presunçosa. Isso não é verdade. — Ele


ergue a mão, chamando o garçom. — Uma dose.

— Como me achou aqui? — Cruzo os braços apertados em torno


do peito, um reflexo protetor.

Krigor volta me encarar, parando os olhos em meu colo, que por


reflexo também observo e percebo que o movimento soa mais como uma
provocação do que uma tentativa de me blindar, já que meus seios, não tão
avantajados, se tornam chamativos no decote do vestido.
Pigarreio e solto as mãos, sem saber ao certo como agir, apoio o
braço no balcão do bar. Ele parece despertar do seu momento e volta a me
encarar nos olhos, intimidador em sua feição fechada e completamente
envolvente com a aura pesada que carrega.

— Vim comemorar minha vitória e espairecer a raiva.

Franzo as sobrancelhas, confusa, mas ele não explica o que quis


dizer. Sua dose de vodca é servida, ele a ergue em minha direção e vira em
um só gole, inclinando a cabeça para trás.

Só agora consigo notar uma vermelhidão próxima do seu olho


esquerdo, o lábio também tem um pequeno corte, quase imperceptível,
ambos provavelmente adquiridos na luta.

— Pelo jeito, tomou uma surra hoje. — Viro o corpo parcialmente


observando o salão.

— Garanto que meu oponente saiu muito pior que eu — ele


responde, cortante, mas o ignoro deliberadamente. — Se estivesse lá,
confirmaria com seus próprios olhos.

— Não teria ido, de qualquer maneira, mesmo se o convite fosse


feito diretamente a mim. — Volto a encará-lo, com determinação.

— Por quê? — É uma pergunta, entretanto soa mais severo do que


deveria.

— Porque eu não sou manipulável, muito menos comprável.


— Você está dando importância demais para o que não deveria. Eu
fui gentil em convidar sua amiga e você. Deveria ser grata. — Sua
repreensão me incomoda profundamente.

— Você barganhou minha presença em troca de ingressos na área


VIP. Não sou uma Maria tatame. — Empino o nariz, desafiadora.
— Isso eu percebi — ele responde, a contragosto.

— Então pegue a deixa e se afaste de vez. — Consigo soar


determinante o suficiente para deixá-lo com a feição espantada.

Aproveito sua falta de resposta lhe dando as costas e rumo à pista


de dança, onde minha prima errante dança com um homem de forma pouco
convencional. Imagino que ainda tenho a atenção do lutador e, por isso, me
remexo ao som de Say It Rigth da Nelly Furtado.

A batida é envolvente o suficiente para que meu corpo embale em


movimentos suaves e sensuais. Nunca me senti uma mulher extremamente
sedutora, muito menos, uma dançarina exímia, entretanto, neste momento,
quero provocar e mostrar para o lutador que sou muito mais do que ele
pensa.

O ritmo envolve minha mente, troco um olhar com Katrina, que


parece entender exatamente o que estou fazendo, pelo sorriso parco que
ostenta.

Minhas pálpebras se fecham e deixo a letra, assim como o som, me


envolver por completo, permaneço de costas e canto baixinho a parte que
diz exatamente o que penso e espero dele para hoje. Absolutamente nada.
Obviamente somos opostos, ele é a sombra perigosa que ronda o pouco de
luz que carrego, deixar me envolver com esse tipo é ser tragada para um
buraco negro de emoções que não posso e nem estou disposta a vivenciar.

A música parece eternizada em minha mente e mesmo quando ela


acaba, ainda continuo me movendo e sentindo uma vibração diferente
percorrer por todo meu corpo.
Pode ser pelo fato de eu permanecer em sua linha de visão,
enquanto danço, e ele observa, sentado em sua banqueta, ou simplesmente
por sentir cada palavra dita na música como uma declaração de tudo que
preciso evitar, mesmo que o magnetismo que sinto me influencie ao
contrário.

Giro meu corpo quando a música acaba e abro as pálpebras,


surpresa, ao constatar que ele não está mais onde o deixei. A banqueta
vazia, percorro meus olhos para os lados e nenhum sinal daquele homem
grande e sisudo, isso faz uma pequena decepção brotar dentro de mim e
rapidamente afasto-a de lá.

Ele não significa nada!

Um novo acorde começa, mais intenso e ritmado que o anterior, a


voz suave de Bishop Briggs, canta suavemente River, sinto a batida
eletrônica tremer meu interior e, desta vez, quando fecho os olhos,
realmente me imagino como um rio, porém, correndo para bem longe de
toda essa intensidade.

Volto o corpo para sair dali e trombo com uma parede de músculos
que estava próxima demais de mim.

Ergo a cabeça, encontrando os olhos furiosos do lutador fervilhar


em minha direção, quase gargalho com a cena, sem saber ao certo por que,
mas a audácia, misturada a vontade de provocá-lo constantemente retornam
com força total.

Abro a boca para dizer algo mordaz, mas sou impedida por Krigor,
que cobre minha boca com um dedo, exigindo meu silêncio. Sua outra mão
circula minha cintura, trazendo meu corpo para ainda mais próximo, de
forma rápida e certeira.

Arregalo os olhos, sem reação alguma, o coração bate fortemente,


tão intenso quanto a música, que ainda toca e nos envolve em suas batidas
sensuais.

— “Cale a boca e me corra como um rio” — ele menciona a letra,


antes de tirar o dedo dos meus lábios e cobri-los com os seus.

Sua mão escorrega para minha nuca, aperta firmemente o lugar e


mantém os movimentos como bem quiser. Seus lábios tocam os meus e,
sem qualquer cuidado, ele invade minha boca com sua língua exigente,
serpenteando ao redor, buscando pelo meu sabor. Há algo desesperado em
seu beijo, como se todas as respostas para as perguntas nunca formuladas
estivessem contidas nesse ato.

Nossas línguas empenhadas em sugar o máximo daquele contato,


ao mesmo tempo que mergulhamos em um abismo de sentimentos
contraditórios, onde o querer e dever guerreiam entre si.

Meu corpo permanece em alerta constante, aguardando o momento


em que deixarei a mente tomar conta das minhas ações e afastar
definitivamente esse lutador abusado de perto de mim.

Em algum momento, eu farei isso, mas não agora, não quando


estou sentindo tanta coisa que ainda não fui capaz de decifrar, a dúvida
entre o bom e o ruim, o certo e o errado, o calmo e o tempestuoso, duelam
em meu íntimo e só sei sentir, seja o que for, estou tomando por inteiro.

Sinto meus pés saírem do chão, por um breve momento acredito


que é devido ao momento tórrido entre nós, só então, percebo que ele
realmente me alçou, sem interromper o beijo e minhas mãos, que já
estavam em torno da sua nuca, se apertam ainda mais.

Quando finalmente nos afastamos, ele puxa meu lábio inferior


causando um leve amortecer prazeroso, puxo o ar pela boca, levando mais
oxigênio para a escassez anterior.
Encaro seus olhos, agora brandos, analisarem minha feição, parece
tentar entender tudo que se passou tanto quanto eu.
Capítulo 8

Sacolejo os pés sutilmente, ainda não sentindo o piso.


— Pode me colocar de volta ao chão? — pergunto, erguendo uma
sobrancelha.

— Não pretendia — ele desce meu corpo rente ao seu e mantém o


aperto firme —, entretanto, acredito que iria gritar se não o fizesse.

— Eu deveria fazer bem mais que isso pela sua ousadia.

— Você queria isso tanto quanto eu, Króchka[11].


— Mais um apelido ousado?

— Não gosta de ser bem tratada? — Sua sobrancelha enruga,


duvidoso.
— Por quem eu conheço, sim. Você é um estranho perseguidor.

Sem dizer nada, sua mão sobe tocando com o dorso minha
bochecha. Os olhos atentos ao toque, a ruga ainda presente em sua
expressão, parece tentar me compreender através do contato singelo, o que
acaba por me incomodar e afasto o rosto, reticente.

— Vem comigo. Passe esta noite comigo, Króchka. — Não é uma


pergunta, por isso não soa como uma.

— Não — respondo, dando um passo para fora do seu agarre.

Sua atitude compreensiva muda completamente, traz à tona o olhar


quente e desafiador, a postura altiva e arrogante, muito característica, desde
que o conheci.
— Não faço esse jogo de gato e rato, Aleksandra. Se não quer, tem
quem queira. — A voz dura e cortante atinge em cheio meus tímpanos.

Sem aguardar uma resposta, mesmo que não tivesse uma para dar,
Krigor contorna meu corpo caminhando de volta ao bar. Curiosa, olho para
trás e aquele mesmo amigo se aproximar com duas mulheres enganchadas,
uma em cada braço.

Quando as duas percebem o lutador, rapidamente soltam o homem


e se penduram no ombro dele, acariciando seu peitoral, rindo abertamente
para ele.
Sinto meu estômago revirar, uma súbita raiva me atingindo e,
arrependida por tê-lo beijado, começo a repreender minha mente por não ter
controlado a situação.

Seus olhos cruzam com os meus, estática em meio ao aglomerado


de pessoas que dançam, riem e se divertem, devo parecer uma namorada
abandonada. Antes que posso tomar uma atitude, o svolach puxa uma das
mulheres pela cintura e sela sua boca com a dele.

Audacioso, seus olhos permanecem abertos, cravados em mim,


enquanto a beija sem qualquer pudor, como acabou de fazer comigo na pista
de dança. Quando sua mão escorrega pela cintura, parando em um limite
muito íntimo, na curvatura do seu traseiro, giro no lugar e decido findar a
noite, antes que faça algo impensado.

Vou até Katrina e aviso que estou encerrando a noite, ela não
parece feliz em fazer o mesmo, por isso, digo para ficar com o rapaz que
conheceu e aproveitar a noite, tomaria um táxi logo que saísse dali.

Seus olhos me examinam rapidamente e percebe que estou


incomodada, sorrio fracamente e logo me afasto. Não quero ter que explicar
a ela nada do que aconteceu esta noite.

Amanhã, quando me questionar sobre o lutador e eu na pista,


culparei a bebida e direi que foi só um momento. Nada de mais.

Tenho o trabalho de dar a volta pelo outro lado do salão, evito,


assim, qualquer contato com o svolach. Espremendo meu corpo entre as
pessoas que dançam na pista, finalmente consigo atravessar, caminhando,
apressada, para a saída.

Pego o meu casaco no guarda-volumes, coloco minha touca e luvas


e saio para a fria Moscou. A noite de hoje está alguns graus mais baixo que
o normal, o vento gelado castiga minha pele e torço para que ache um táxi
rapidamente aqui.

Observo a rua e estico o braço, dando sinal para um carro que se


aproxima.

— Moça. — Escuto uma voz atrás de mim e viro o corpo.

O amigo do lutador inconveniente.

— O que quer? — pergunto, sem qualquer cordialidade.

— Sou treinador do Krigor, Bóris, muito prazer. — Ele estica a


mão para me cumprimentar.

Estendo a minha, sem ao menos tirar as luvas, algo completamente


rude nos bons modos, entretanto, quero deixar claro a minha não
receptividade a tudo que se relaciona àquele homem.

— Krigor pediu para lhe entregar isso. — Ele estende um cartão e


dois tickets. — Disse que sua presença amanhã será muito bem-vinda.
Encaro os papéis e volto a olhar para o Bóris, imaginando que
piada de mau gosto aquele lutador sem noção está fazendo comigo.

Com a paciência transpassada do limite, sorrio, dissimulada, pego


os tickets e cartão e os ergo na altura dos nossos olhos e pico, em várias
partes, soltando tudo no chão entre nós.

— Diga ao svolach que não tenho interesse nenhum de estar no


mesmo local que ele.

Viro meu corpo para a rua e logo o táxi encosta, dando a deixa que
precisava para sair deste lugar e nunca mais sequer olhar para aquele
imbecil ou qualquer coisa que se relacione a ele.

Arrisco um olhar pela janela e o tal Bóris permanece parado,


encarando o carro, imparcial, sem transparecer qualquer reação.

Tão esquisito quanto o lutador.

Chego em casa, ainda muito brava com tudo que aconteceu, mas
principalmente decepcionada comigo mesma. Não acredito que cedi tão
fácil à investida daquele brutamontes. Uma frase, um aperto e estava
completamente rendida a seu bel prazer, agindo igualmente aquelas
descaradas no balcão do bar.

Encaro minha bota, o salto mais alto que tenho, e ainda tive que
ouvi-lo me chamar de Króchka, pelo meu tamanho. Eu realmente sou baixa,
com salto me torno tolerável, ainda assim, comparada com aquele armário
humano, sou um cisco.

Puxo a bota, uma sai com facilidade, mas a outra tenho dificuldade
e acabo deitando na cama, segurando o sapato, ainda encaixado no meu pé,
para cima.
Minha mente traidora resolve trazer as lembranças do beijo, assim
como sua mão tocando minha pele de forma tão íntima e carinhosa, aquela
voz baixa e envolvente, pronunciando o apelido, deixando-me
momentaneamente derretida.

Recobro o juízo, estendo os braços na cama, sacudindo meu corpo,


enquanto esmurro o colchão, extravasando a raiva e desejo de tê-lo socado a
cara pela ousadia.

Ele queria me provocar e irritar, tirar completamente meu juízo,


fazer com que eu corresse até ele, reivindicando a atenção há pouco
direcionada somente a mim, mas dessa vez não caí em seu jogo.

Provavelmente, ele está acostumado a lidar com esse tipo de


mulher, que imploram pela atenção do homem imponente e, por mais bonito
e envolvente que seja, com aquela fachada de perigo estampada por toda
sua postura, nunca permitiria me igualar a esse jogo.

É fato que ele está mais do que acostumado com isso. Manipular as
mulheres com suas artimanhas, como se realmente estivesse em uma luta,
em que vencer o desafio é sempre o objetivo e todas fossem seus troféus a
serem conquistadas.

Ergo o pé novamente e puxo a bota, usando a raiva que sinto


daquele lutador vigarista e, desta vez, tenho sucesso em removê-la. Levanto
e tiro minhas roupas rapidamente, visto o pijama e me afundo embaixo das
cobertas.

Fecho os olhos m conflito, Krigor é página virada, aliás, nunca foi


de fato uma página em minha vida. Só um acidente pelo caminho que
serviu para movimentar um pouco a rotina pacata. Um simples momento de
incômodo.
Capítulo 9

Definitivamente sou a moscovita mais fora do comum que existe.


Acordei mais tarde que de costume, um dia de folga na semana atribulada,
meu corpo pesado e dolorido, parece que corri dez quilômetros no dia
anterior, o estômago revirando a ponto de me fazer pular o café da manhã.

Obviamente a vodca e eu não somos melhores amigas. Preciso me


lembrar disso a próxima vez que sair com a minha prima.

Já é tarde quando finalmente levanto da cama, o dia está frio, ainda


mais que ontem, por isso, opto por continuar com meu pijama de flanela e
pantufas de lã, quentinhas em meus pés.
Ajeito a cama e coloco algumas coisas em ordem, facilitando o
trabalho doméstico que normalmente minha mãe faz. Não gosto de
sobrecarregá-la, por isso, no meu dia de folga, limpo o meu espaço, assim
ela não precisa se preocupar com mais um cômodo.

Propositalmente ignoro todos os momentos em que o lutador


aparece em minha mente, forçando sua presença nas lembranças dos
últimos dias. Infelizmente a que mais me atormenta é a cena dele devorando
a boca daquela desconhecida com os olhos cravados nos meus.

Posso jurar que senti cada entrelaçar de língua dos dois, como foi
comigo, um momento antes. A raiva retorna, mesmo que eu tente afugentá-
la socando meu travesseiro mais do que o normal, quando o ajeito na cama.

Não tenho motivos para sentir isso, ele não é o primeiro a agir de
forma tão idiota comigo, apesar de puxar na memória e não encontrar
nenhuma situação tão ultrajante quanto a de ontem.
Não temos nada, só um beijo roubado que ficou esquecido naquela
pista, quando não dei o que buscava. Um momento quente e sem
compromisso.
Não sou puritana, longe disso, acho perfeitamente normal e comum
duas pessoas se conhecerem numa noite e, se a química rolar, terminarem
juntos e curtir o prazer no corpo alheio.

Entretanto, por mais que eu quisesse isso com ele desde que o vi
pela primeira vez, algo me freou. O sentimento de desafiar sua
determinação era maior que qualquer outro desejo.
Finalmente saio do quarto com um punhado de roupas sujas nas
mãos, meu pai não está em casa, do contrário o veria em sua poltrona na
sala, assistindo a algum programa de domingo na televisão. Vou até a
pequena área de serviço e coloco as peças dentro da lavadora.

— Finalmente. — Minha mãe para próximo ao batente. — Achei


que não levantaria da cama hoje.

— Estava cansada.

— A noite foi boa?

— Você não faz ideia. — Rolo os olhos, suspirando.

— Conte-me, então. — Voltamos para a cozinha, juntas.


Ocupo meu lugar na pequena mesa de quatro lugares, enquanto ela
vai até a chaleira no fogão, servindo um pouco de água na xícara. Logo sou
agraciada por um aroma de frutas vermelhas, quando deposita o objeto à
minha frente.

— Foi divertido, porém, tomei mais doses de vodca do que


deveria.
— Tak[12]! Sua prima e você são diferentes, não adianta tentar
acompanhá-la.

A fama de festeira de Katrina sempre foi conhecida entre a família,


alguns parentes a julgavam mal por seu comportamento extrovertido, mas
em casa isso nunca aconteceu. Minha mãe a trata como uma filha,
ocasionalmente ocorre uns puxões de orelha aqui, outros ali, mas, no fim, é
o cuidado e zelo que ela sempre teve pela sobrinha.

— Onde está o pai? — Mudo de assunto propositalmente.

— Disse que ia encontrar uns amigos — responde, evasiva.

Sua postura altera, ela se vira, pegando o pano sobre a bancada e


torna a dobrá-lo, como já estava feito. Fico preocupada e levanto da cadeira,
indo direto ao armário da cozinha e pego a lata verde, velha e enferrujada,
onde costumava guardar biscoitos quando era criança.

— O que está fazendo?

— Só conferindo. — Torço o pote e a tampa na mão para abrir.

Esbravejo quando noto, pelo volume dentro da lata, que está


faltando dinheiro. Solto o objeto sobre a mesa e pego somente o conteúdo.
Todo o montante que venho trabalhando por três anos, juntando cada
Kopek, sacrificando meu futuro e juventude para quitar a dívida com o
agiota.

— Ele não pegou muito — minha mãe declara, e paro tudo que
estou fazendo, fitando-a — Eu vi. Ele disse que era só para uma bebida.

— Bebida? Como pode ser ingênua, mãe? Ele contraiu essa dívida
por conta de bebida, de jogos, ele não sabe se controlar e está afundando
nossa família. — Altero minha voz, indignada.
— Não fale assim. Ele é seu pai! — ela grita, mas noto a lágrima
saltar dos seus olhos.

Sei o quanto é sofrido e dolorida toda a situação, mas não posso


permitir que ela continue a se enganar e pensar que tudo o que está
acontecendo sobre nossas cabeças é somente uma fase.

— Ele é um viciado. Precisa de ajuda e tratamento, mãe. Negar


isso, só vai fazer com que tudo piore.

— É só uma fase, Aleksandra! Ele vai melhorar.

— Já faz quatro anos! — Bato a lata sobre a mesa, mal


conseguindo me conter.

Por todos esses anos, sempre trabalhei e tentei manter o mínimo de


decência em nossa vida. Arrumei dois empregos, larguei qualquer sonho ou
expectativa de vida, focando somente em deixá-los confortáveis e sem
dívidas, entretanto, agora, sinto que todo meu esforço não tem qualquer
valor.

— Ele é seu pai, provedor da casa e devemos respeitá-lo.


— O respeito acabou quando ele se enfiou em dívidas levianas. A
senhora reforma roupas para ganhar alguns trocados, eu trabalho em dois
empregos, mal consigo dormir, para ter dinheiro suficiente que cubra a
dívida e os juros abusivos que esses infelizes colocam, entretanto, o pai não
faz nada. Passa o dia fora, não consegue trabalho e ainda usa do dinheiro
que pago todo o mês para aquele agiota asqueroso. — Bato os braços com
minha explosão.

— Ele sempre fez tudo sozinho, você está sendo ingrata — minha
mãe acusa, e afasto um passo, indignada.
— A senhora está cega, não quer enxergar que seu marido, que
deveria cuidar e proteger a família, se tornou um viciado. Estou tentando
salvar o pouco de dignidade que ainda nos resta, mãe. Para isso, preciso da
sua ajuda, preciso que o faça entender que não pode mais agir assim.

— Não queira me ensinar como viver. Esse não é seu papel,


Aleksandra.

Ergo as mãos em rendição e caminho para trás, desistindo de


qualquer conversa sobre o assunto. Entro no quarto e bato a porta, cubro a
cabeça com as mãos, caminhando pelo pequeno espaço, inconformada.

Há quatro anos, meu pai perdeu o emprego em uma caldeiraria,


desde então, ficou muito difícil conseguir um trabalho decente que
sustentasse a casa. Com o tempo ocioso e a decepção de não servir mais à
família como deveria, ele começou a frequentar bares e rodas de carteados.
No começo, de forma sutil e ocasionalmente, no entanto, as coisas tomaram
proporções sérias em pouco tempo e logo um credor bateu à nossa porta.

Zhenya Gorky, um agiota envolvido com jogatinas ilegais e, mais


algumas coisas que ouvi por aí, tem ligação com a máfia russa. Ao que
indica, ele paga a proteção de manter a polícia longe dos seus clubes
clandestinos.

Basicamente, ele atrai apostadores de pequeno porte, os enreda em


jogos amistosos para, em seguida, mostrar uma possível fonte de renda, em
clubes secretos frequentado por pessoas com mais dinheiro. Meu pai foi a
presa fácil, já que estava tomado pela desolação de perder o emprego e
fascinado com a possibilidade de ganhar dinheiro, jogando.

O único problema nisso, é que ninguém o avisou que a banca


sempre ganha e, no caso desse homem, tornou meu pai uma fonte viciada e
inesgotável de renda.
Capítulo 10

Cortez e educado, Zhenya Gorky, em sua primeira visita,


esclareceu passo a passo de como meu pai contraiu a dívida de trezentos mil
rubros. Jogando incansavelmente em uma mesa de apostas altas, mesmo
sendo alertado pelo homem de que não deveria se arriscar tanto, sem ter
como pagar. Minha mãe, inocente, pensou que ele facilitaria o pagamento,
dividindo esse montante em pequenas parcelas para que pagássemos.
Ele sorriu, com escárnio dessa vez, informando minha mãe que a
vida não era dessa forma e que cada um deveria arcar com as
responsabilidades das escolhas que faz. Assim, ele avisou que cobraria uma
mensalidade pela espera, até que tivéssemos todo o dinheiro. O problema é
que o valor dos juros mensais, quase não permitia termos reserva para
guardar.

No dia seguinte à sua visita, saí de casa com o objetivo de arrumar


um emprego, pretendia fazer algum curso e engajar no ramo administrativo,
mas tudo mudou com essa bomba sobre nossas cabeças.
Consegui trabalho com Irina no bar, nos primeiros meses percebi
que dessa forma nunca teríamos dinheiro para pagar a dívida e estaríamos
amarrados a esse homem para sempre, foi então que procurei um segundo
emprego e comecei a guardar uma reserva mensal.

Por mais que demorasse, sabia que um dia conseguiria ter todo o
dinheiro para quitar a dívida e livrar minha família desse compromisso.

Não foi a primeira vez que senti falta de dinheiro onde costumo
guardar. Das outras vezes, não falei nada, só a troca de olhares com minha
mãe e a lamentação estampada em sua face, era o suficiente para me fazer
calar.

Talvez o cansaço tenha me colocado no limite e fez minha boca


proferir palavras duras a uma mulher que não merece meu rancor. Ela é tão
vítima em tudo isso quanto eu, mas o estafe, a sensação de enfrentar uma
guerra sangrenta e nunca ter fim, está fazendo minha mente cansar tanto
quanto o corpo.

Troco as roupas, preciso sair e espairecer a mente, antes que meu


pai volte e acabe falando mais do que devo. Coloco minha calça térmica,
meias de linho preta, um vestido também em linho vinho e as botas cano
alto no pé. Pego as luvas e a touca cinza que combinam com a bota. Olho
ao redor e vejo minha bolsa pendurada no puxador do gaveteiro, a pego e
coloco meu celular dentro.

Sigo até a porta a passos largos. Quando paro na pequena entrada


para pegar o casaco, não vejo ninguém, por isso saio sem me despedir.

É melhor assim, não suportaria ver seu semblante sofrido, a culpa


que já mina em meu peito aumentaria.

Desço as escadas, apressada, só consigo pensar em uma pessoa que


pode me distrair e coloca um pouco de leveza neste dia desgastante. Espero
que encontre Katrina em casa, depois da noite de ontem, vendo a forma
como ela interagia com aquele rapaz na boate, imagino que o encontro não
acabou cedo e provavelmente a diversão se estendeu pela madrugada.

Ergo a mão para bater na porta do seu apartamento, mas ela se abre
e dou de cara com minha prima, toda arrumada e sorrindo.

— Oi, prima. Estava mesmo querendo falar com você.

— Aonde vai?
— Sair. Quer vir junto? — ela pergunta, animada.

— Quero. Não quero ficar em casa.

— Para qualquer lugar? — Sorri de lado, misteriosa.

— Qualquer um — respondo, cansada.

— Ótimo. Só espero que se lembre disso quando quiser gritar


comigo. — Ela passa por mim, a caminho da saída.

Dou de ombros e sigo seus passos. Nenhum lugar será exaustivo


tanto quanto minha casa. Só quero esquecer os problemas por um dia, fingir
que tudo está bem e amanhã, quando retomar minha vida, volto a lamentar.

Chegamos à porta de um hotel elegante, um pouco afastado da


grande movimentação de Moscou, mas ainda assim, bonito e bem
iluminado. Seguimos por um acesso lateral e vejo que há dois lances de
escada para descer.

— Aonde estamos indo? — questiono, confusa.

— Pode confiar. É seguro. — Katrina lidera, descendo os primeiros


degraus.

Durante o caminho todo ela não desgrudou do celular, digitando


mensagens furiosamente, com semblante tranquilo e alegre. Optei por não
falar nada sobre as desavenças de casa ou ela começaria seu discurso de que
preciso seguir minha vida e largar mão de quem me suga.

Apesar de termos tido praticamente a mesma criação, Katrina


desenvolveu uma independência que nunca tive. Sua mãe é irmã de meu
pai, por toda a vida vivemos próximas, apesar de nunca ter passado fome
nem necessidade, Katrina nunca se contentou com sua vida.

Ela sonhava em ser atriz, modelo, cantora ou qualquer coisa que a


colocasse em foco. Temos dois anos de diferença, ela é mais velha, mas por
toda a vida agimos em papéis contrários, sendo eu a centrada que
aconselhava sempre que extrapolava algum limite.

Depois de descer os degraus, paramos diante de uma porta de


madeira toda entalhada e um segurança grande e severo em frente a ela.
Katrina tira algo da bolsa e o entrega, ele confere os tickets e abre a porta,
nos dando passagem.

Nenhuma palavra é trocada, seu rosto permanece impenetrável e


sinto meu corpo estremecer, pensando em que tipo de lugar minha prima
desajuizada me trouxe.

Uma sala ampla e clara surge em minha visão, paramos no canto,


entregando nossos casacos, luvas e touca para uma mulher que os solicita.
Vestida de preto, cabelos presos no alto da cabeça, um batom vermelho nos
lábios e maquiada de forma impecável, ela tem uma placa dourada presa à
roupa, com sua função de recepcionista marcado.

— A área VIP é bem ali, irei acompanhá-las. — Ela aponta para o


lado oposto à sala e toma à frente, caminhando.

Confusa e curiosa, ao mesmo tempo, deixo Katrina seguir a mulher


e vou logo atrás. As pessoas elegantes à nossa volta, mulheres em vestidos
bem desenhados, homens com ternos alinhados, bebidas sendo servidas e
conversas sussurradas permeiam o ambiente.

Passamos pela porta que a recepcionista indicou, um ambiente


menor e reservado, independente do grande salão a frente. Algumas
cadeiras estão ocupadas, Katrina passa direto e senta em frente à grade que
nos separa de todo o restante.

Sento ao seu lado e torço o pescoço para os lados, observando


tudo. Não tenho ideia do que vai acontecer aqui, uma espécie de palco é
destaque no lugar, ficando no meio do grande salão, várias cadeiras
circulam a sua volta, a maioria já ocupada.

— Onde estamos? — pergunto, ainda observando. — É algum tipo


de show.

— Com certeza, é um show. — Seu tom de voz me alerta e


automaticamente giro a cabeça em sua direção.

— Que lugar é esse, Katrina? — pergunto, incisiva.

— Lembra que eu falei sobre você me matar antes de sairmos de


casa?

— Katrina... — advirto.

— Ontem, depois que você partiu da boate, Krigor veio até mim e
entregou dois ingressos para a luta de hoje e pediu que eu a trouxesse. Ele
disse que queria se desculpar com você e pediu que eu desse o recado.
Quando você bateu em casa, pensei que era o destino agindo e só lhe guiei
para cá.

— Katrina! Por que não me avisou? — ralho, baixo.

— Eu tentei, você quem disse que queria sumir. — Ela balança os


ombros, como se fosse normal.
De todas as distrações que poderia ter hoje, tinha que cair
justamente nas garras do homem que consegue testar meu limite somente
com o olhar?
Destino é algo tão irônico e perigoso, pena que só agora estou me
dando conta disso.
Capítulo 11

Meu cérebro entra em conflito com a avalanche de sensações que


me tomam neste momento. Raiva por estar onde aquele lutador afrontoso
gostaria, indignação pelo alvoroço que borbulha em meu interior,
expectativa e desejo duelando no intuito de vê-lo.

Quando finalmente consigo sair do meu estado de torpor, faço um


movimento para levantar e sair definitivamente deste lugar, mas sou parada
pela minha prima, que segura meu braço rapidamente.

— Já vai começar — ela avisa, sem tirar os olhos do que agora


percebo ser uma arena.
Sento-me novamente e lamento não ter conseguido fugir a tempo.
As luzes se tornam parcas e um holofote ilumina o meio do ringue
adaptado, que foge totalmente do convencional, não é cercado por nenhuma
proteção, o que me faz imaginar se algum lutador já caiu em cima da
plateia.

— Boa noite a todos. Hoje teremos uma luta épica e aviso aos mais
próximos — um senhor moreno, vestido em um terno preto, ocupa o meio
da arena e aponta para as pessoas que ocupam as cadeiras da primeira fila
— que podem tomar um banho de sangue.

Todos riem, incluindo Katrina, já eu levo a mão cobrindo a boca,


chocada com o que possa se desenrolar da luta que irei presenciar. Não sei o
que Krigor pretende em me fazer assisti-lo apanhar. Definitivamente, se eu
tivesse qualquer intenção de puni-lo pela cafajestagem de ontem, seria eu
mesma a agredir.
— Hoje nós teremos uma batalha difícil, camaradas. Espero que
estejam preparados para algo realmente violento. Os dois competidores
trazem um histórico de rincha dentro e fora dos ringues. Além de terem
acumulado um número significativo de vitórias nos circuitos internos de
luta.

— Do que ele está falando? — pergunto baixo para Katrina.

— Circuitos internos são os campeonatos desenvolvidos aqui em


Moscou. Várias regiões recrutam lutadores experientes ou não, em
campeonatos pequenos, lutas de desafio que determinam um vencedor.
Conforme o lutador vai adquirindo vitórias, ele sobe no circuito e passa a
lutar com os grandes vencedores. Krigor já é considerado um lutador
consagrado no circuito e eu nem posso acreditar que vou presenciar uma
luta com seu maior rival.

Balanço a cabeça, atordoada, entendendo muito pouco do que


Katrina explica rapidamente.

— Você está dizendo que essa luta especificamente faz parte de um


circuito mais seleto? É isso?

— Sim. De certa forma. Você já percebe isso, notando o tipo de


pessoas à nossa volta. Lutadores iniciantes não têm essa chance tão
facilmente. Precisa bater muito e acumular certo número de vitórias para se
tornar integrante e ter ajuda de custo.

— E quem patrocina isso, afinal?

Katrina finalmente volta seus olhos para mim e parece temer a


minha reação, antes de dizer qualquer coisa.

— Recebam nosso lutador, com mais de vinte e cinco vitorias


invictas neste ano, dez anos na liga e sanguinário em seu modo de agir:
RUSSELL! — o apresentador, seja lá que nome se dá, anuncia o lutador e o
alvoroço se forma em nossa volta.

— Chto za huy[13]! — Katrina grita e fica de pé, igual aos demais.

Levanto, por puro reflexo, não entendendo se estão ovacionando a


favor ou contra o homem truculento, que acaba de entrar na arena
improvisada.

— Isso é bom ou ruim? — pergunto, alto, para que Katrina ouça.

— Ruim e bom, ao mesmo tempo. — Ela bate palmas antes de


sentar.

Imito seus movimentos, ainda perdida em como me comportar


aqui, parece que todos estão prontos para uma briga e qualquer coisa que
fuja do protocolo costumeiro te coloca em evidência para receber um soco.

— Os dois são rivais desde sempre. Já lutaram diversas vezes e


mantêm o mesmo número de vitórias e derrotas de cada. Foram dez
combates, em que cada um venceu cinco vezes e, coincidência ou não,
sempre é intercalado, uma vitória de cada. Ano passado, Russell venceu,
então se espera que Krigor leve a melhor hoje.

— E se ele não levar? — Seguro seu braço, preocupada.

— Aí você faz os curativos dele. — Ela sorri, debochada, quando


pisca um olho para mim.

Solto meu agarre rapidamente, fazendo uma cara insatisfeita para


seu comentário jocoso. Obviamente, eu não trataria das feridas daquele
lutador, sequer pretendo falar com ele hoje. Pela quantidade de pessoas e a
importância da luta, facilmente conseguirei sair sem que ele perceba minha
presença.
— Agora, para ocupar o outro lado desta batalha de titãs, temos um
lutador com um cartel invejável. Um diamante bruto e sanguinário, que
derruba todos os seus oponentes, sem piedade. — Ele aponta para o canto
oposto e vejo uma movimentação de homens grandes e truculentos
adentrando o ambiente. — Com vocês, KRIGOR, o volk das lutas! —
Todos no salão se levantam, urrando e gritando o apelido e o nome de
Krigor.

Levanto também, as mãos unidas, estática, observo seu caminhar


pesado, uma capa preta cobrindo seu corpo, com uma touca que não
permite visualizar seu semblante. Quando ele para ao lado do apresentador,
ergue os dois braços, enquanto as pessoas gritam volk em coro.

Ele tira o capuz e sua feição fechada e sombria se apresenta. Seus


olhos percorrem o ambiente, meu coração acelera descompassado e, antes
que possa me mover, seus profundos olhos cravam em mim. Nos encaramos
por um longo tempo, até ele acenar sutilmente com a cabeça em
cumprimento.

— Lutadores, hoje se trata de uma luta amistosa. Não queremos


sangue. — O apresentador pausa por um momento sua fala. — Mentira!
Nós queremos ver o pior de vocês. Alguém vai sair derrotado daqui hoje!
— As pessoas gritam todos os tipos de incentivo e xingamento em resposta.

— O que ele quer dizer, Katrina? — pergunto, tentando abrandar o


medo que começo a sentir.

— Que a coisa vai ser feia. Sempre é, com esses dois.

— E por que ele me quis aqui, então? — Essa pergunta não era
para ter sido verbalizada e só me dou conta do erro quando um sorriso
gracioso surge nos lábios da minha prima.
— Você será o objetivo dele. Simples.

— O que quer dizer? — Franzo as sobrancelhas, confusa.

— Garanto que ele já te viu aqui, bem de frente para ele. Isso só
aumenta sua expectativa e pressa em acabar logo com Russell. Dada a
última luta, no ano passado, em que ele perdeu, é como se já soubesse da
sua vitória hoje. Ele é um bruiser, com certeza fará jus a isso.

— Fala a minha língua, Katrina. O que é bruiser?

— São lutadores com aspecto selvagem e bruto nas arenas. Ambos


carregam essa fama, mas eu sempre achei Krigor mais.

Antes que eu possa questionar mais alguma coisa, os lutadores se


cumprimentam e vão cada um para um canto, sendo rodeados por outros
homens com o mesmo semblante matador.

— Por que todos estão com feições tão fechadas?

— Porque são todos briguentos e se odeiam. Rivais, prima. —


Katrina sorri, parece animada demais, constatando a rincha entre os
oponentes.

Minha cabeça gira com tanta informação e, no fim da minha curta


análise, chego à conclusão de que não tenho motivo algum para permanecer
aqui.

Krigor não é um homem descomplicado e fácil de lidar,


obviamente, ver o que faz da vida e como lida com ela, só faz a impressão
perigosa que tenho dele aumentar.
Colocar um ponto final em tudo isso é o caminho mais seguro e,
por mais que esteja tentando fugir de casa para esquecer meus problemas,
agora eles parecem mais seguros do que permanecer aqui.
— Aonde vai? A luta vai começar. — Katrina segura meu braço
novamente quando levanto da cadeira.
— Vou embora. Não tenho nada para fazer aqui, Katrina.

— Mas...

— Só me deixa ir. — Ela entende minha necessidade e solta meu


braço.

No fim das contas, não pretendo falar com o lutador, então não
vejo motivos para assistir ao banho de sangue que se prenuncia.
Capítulo 12

Só alguns passos e estarei fora definitivamente desse mundo que


não tenho qualquer intenção de mergulhar. Minha vida já tem perigo,
inconstância e desgaste o suficiente para me ocupar. Não preciso somar
mais nada a essa equação.

Quando estou próxima à porta, um homem todo de preto entra na


minha frente e cruza os braços. O encaro, confusa, e espero que saia da
minha frente, mas isso não acontece.

Escuto um burburinho atrás de mim e quando me viro, Krigor está


de pé, apoiado na grade de contenção que separa a área vip do restante do
salão.

— O que...

— Sente sua bunda linda e gostosa nesta cadeira, Króchka. Você


não vai embora tão cedo.

— Você é maluco!

— Posso ser, mas você não sai daqui hoje, sem que conversemos.
Anda logo. — Ele estica a mão me chamando.

Balanço a cabeça em negativa e afasto um passo para trás. Noto as


pessoas em volta, em silêncio, aliás, todo o salão que parecia em polvorosa
animação está quieto, observando o que esse lutador sem noção está
fazendo.
— Vai me fazer ir até aí? — Krigor pergunta, em tom de
advertência com as sombrancelhas erguidas.
Arrisco dizer que seus olhos brilham de prazer e expectativa.

— Volk! Volte agora para a arena ou será penalizado! — o


apresentador anuncia no microfone.

Ele ignora deliberadamente o recado dado e continua me


encarando, prestes a pular aqui para me pegar. Olho novamente em volta e
noto que as pessoas que pareciam curiosas com suas atitudes, agora me
encaram em reprovação, provavelmente pela promessa prejudicial
anunciada.

Desacreditada do tamanho da confusão que aquele svolach criou,


resigno-me e retorno ao lugar que ocupava. Quando passo por ele, na grade,
desvio da sua tentativa de segurar meu braço e só o encaro, com a raiva
borbulhando em mim.

Um sorriso muito discreto, quase imperceptível aparece no canto


dos seus lábios e, o ignorando completamente, sento e cruzo os braços,
incomodada com a imposição que me foi dada.

— Não acredito que ele fez isso. Uau! — Katrina comenta,


empolgada.

— Sem animação. Só voltei para não prejudicar a luta e eu sair


como a culpada dele ser penalizado. Isso não agradaria em nada a multidão.
— Não mesmo. — Katrina ainda sorri, mas volta a encarar a área
da luta.

O homem que fez as apresentações se afasta e logo um outro,


grande e forte, aparece. Todo de preto, com luvas pretas de borracha na
mão, ele ocupa o meio da arena improvisada e chama a ambos os lutadores.
Quando estão próximos, tocam suas luvas, que são menores das
usadas no boxe e deixam os dedos livres, em cumprimento e um “ding” dá
início à luta. O árbitro se afasta e Krigor avança rapidamente, acertando um
soco no meio do rosto de Russell, totalmente de surpresa.

— Isso aí, volk! — Katrina grita e eu puxo seu braço.

— Para de chamar a atenção, doida!

— Mais do que você já fez hoje? Impossível.

Torço os lábios, contrariada, e volto a encarar a luta, eles


prosseguem entre socos e chutes, que na minha opinião parecem doer
bastante. Quando o apresentador mencionou sobre algo sanguinário, não
imaginei que seria literalmente.

O primeiro soco que Krigor deu em seu oponente fez um filete de


sangue descer do nariz e automaticamente inchar, em resposta, ele acertou
próximo à sobrancelha de Krigor e logo ele também sangrava.

Imaginei que a luta teria uma pausa para tratar do sangramento de


ambos, porém, isso não acontece. Ambos trocam socos, alguns desviados,
outros mal encaixados, determinados a derrubar o oponente.
O tal Russell se aproxima de Krigor e consegue enlaçar sua
cintura, levando a luta para o chão. Eu nem imaginava que isso era
permitido, mas pelo que posso ver, é parecido com um MMA[14], só que
mais sangrento e menos correto nas aplicações das regras de segurança.

— Isso é barbárie — falo mais alto, e Katrina me olha, surpresa.

— É luta, prima. Crua e pura. Não se preocupe, ninguém sai do


ringue morto. Seu lutador está seguro.
— Ele não é meu lutador, Katrina — desdenho do seu comentário
provocativo.

— A luta foi para o chão. Agora Krigor ganha.

— Por quê?

— Ele é bom no corpo a corpo. — Ela me olha, rindo, e balança as


sobrancelhas.

Não consigo evitar meu rolar de olhos e torcer de lábios com o


comentário sugestivo.

Meu conhecimento sobre qualquer tipo de luta é praticamente nulo,


mas pelo que observo do desenrolar, somada a animação do público, Krigor
parece estar indo muito bem.

Com um movimento rápido, Krigor gira suas pernas, transpassando


no pescoço de Russel, suas mãos seguram seu braço esticado sobre o peito e
isso faz o público começar a gritar, animado.

— Ele encaixou um triângulo! — Katrina comemora.

— E o que isso quer dizer?


— Que, ou Russell bate ou ele morre.

— Mas você disse que ninguém morre no ringue! — declaro,


indignada, me lembrando do seu comentário anterior.

Antes que ela responda, o público começa a gritar em uníssono e


ela se distrai, empolgada com o mantra rolando no ambiente.

— Bate! Bate! Bate! — todos gritam e batem o pé no chão, criando


um ritmo impositivo para o combate.
Vejo quando o juiz se aproxima dos lutadores que estão no chão,
observando qualquer movimento de ambos os lados, mas tudo parece
travado. O homem permanece no aperto de Krigor, que pela careta que faz,
se esforça para manter o golpe encaixado.

Com a mão livre, Russell bate três vezes no chão e


automaticamente o árbitro interfere e separa ambos.

Krigor levanta com os braços para o alto, cospe o protetor de boca


que usava e urra, comemorando a vitória. Russell continua no chão,
parecendo se recuperar do tempo que passou no estrangulamento.

Os companheiros de equipe invadem a arena e erguem Krigor para


o alto, comemorando a vitória. Ele acena para um deles e aponta na minha
direção.

Meus olhos arregalam e por mais que eu queira levantar e fugir


daqui, sei que ele viria atrás de mim, como fez antes de começar o combate.

Olho para os lados e as pessoas sorriem e comemoram, enquanto


meu desespero toma conta das ações. Encaro Katrina, que ri da minha
situação, e sinto vontade de aplicar o golpe, que acabou de dar a vitória para
aquele lutador maluco, nela.

Fecho os olhos por alguns segundos e respiro fundo, sei que não
conseguirei fugir desta vez, então, que seja a hora de enfrentar o Volk
lutador. Quando os abro novamente, Krigor está apoiado na grade, me
encarando, minucioso.

— O que quer? — Levanto o nariz, enfrentando meu oponente.

— Quero meu prêmio. Eu venci. — Transpassa as pernas pela


grade e permanece de pé à minha frente.
Seu rosto impenetrável continua a me observar, mesmo que eu não
mova um músculo sequer para atender a qualquer que seja seu pedido. O
rosto manchado do próprio sangue, o corpo todo suado e sujo, que me faz
salivar quando conto, sem qualquer vergonha, o número de gomos que
formam seu abdômen. São oito montes, bem definidos e adornados por
veias grossas, próximas do calção, que fazem minha boca parcialmente
aberta.

— Pode olhar o quanto quiser, Króchka, mas antes quero o meu


prêmio. Depois, deixo até você passar a mão.

Fecho a boca, voltando minha atenção para os seus olhos, chocada


com seu palavreado chulo.

— Eu não quero nada de você, lutador. Só que me deixe ir embora.

— Não, sem antes, conversarmos. Vem. — Ele estende a mão para


mim.

— Não — respondo, sucinta.

— Sua prima também virá. Terá uma recepção para a luta de hoje
no salão do hotel e vocês são minhas convidadas.

Encaro Katrina, que parece implorar com os olhos para que eu


aceite o convite e, mesmo contradizendo toda a minha razão e saber que no
fundo esse caminho não terá um final feliz, eu aceito.

Dou a mão para o volk e decido acreditar de que não serei mordida.
Capítulo 13

Estou em uma sala no andar acima onde ocorreu a luta. Se lá


embaixo o ambiente é bonito e bem organizado, aqui é o paraíso. O lugar
reservado para o vencedor se assemelha a um salão de festa, bebida e
comida à vontade, as mesmas pessoas que presenciaram a luta, estão agora
comemorando, bebendo e dançando a vitória de Krigor.

Percorro os olhos pelo ambiente, sem encontrar o motivo dos meus


tormentos recentes. Depois de me convidar para a festa, o homem que
bloqueou minha passagem, quando tentei ir embora, nos escoltou até este
lugar e tem se mantido na única porta de entrada e saída, desconfio de que
está garantindo minha permanência aqui.

— Aqui, prima. Vamos comemorar. Vache zdoróvie! — Ela ergue


sua dose de vodca para o brinde.
— Vache zdoróvie! — Pego o copo da sua mão e ergo, imitando
sua atitude.

Ambas viramos as doses ao mesmo tempo e, com uma careta, me


pergunto como posso brindar à saúde, matando meu fígado mais um pouco
com o álcool. Não sou tão adepta a bebida quanto Katrina, tudo que ingeri
só neste fim de semana ultrapassa minha cota mensal.

Escuto ovações atrás de mim e giro o corpo, sabendo que o lutador


inconveniente acaba de entrar no recinto. Conforme ele caminha, as pessoas
o cumprimentam, alguns com tapinhas nas costas, outros gritam palavras de
incentivo e as mulheres, como deve ser costume, se atiram para ele.
Quando seus olhos encontram com os meus, desvio
automaticamente, focando no outro lado da sala, que não tem nada além de
pufes para as pessoas sentarem.
— Króchka! — Sua voz faz meu coração bater ainda mais rápido
e, mesmo relutando alguns segundos, volto minha atenção para ele. — Fico
feliz que tenha ficado.

— Não tive muita escolha. Seu capanga quis garantir que eu não
fugisse.

Aponto com a cabeça para a porta, que ainda é guardada pelo


homem grande, Krigor vira o corpo, conferindo sobre o que falo, e volta a
me encarar com um leve ar risonho na face.

— Precauções.

— Abuso. Isso, sim. — Desvio os olhos dos seus, encarando o


salão. — Afinal de contas, o que estou fazendo aqui?

— Preciso me redimir da noite anterior.

— Desculpas aceitas. Agora posso ir embora? — Tento sair, mas


sou parada quando sua mão agarra firmemente meu pulso.

— Mais tarde conversaremos. Preciso dar atenção aos


patrocinadores, mas eu volto para você — ele responde, ignorando
completamente minha pergunta e tentativa de fugir.

Encaro Katrina, que dá de ombros, enquanto assiste a nossa


interação fora do contexto. Ele solta meu pulso e logo se afasta, sem ao
menos se despedir, suas atitudes só me fazem acreditar cada vez mais que
ele é uma encrenca sem tamanho para eu ter de lidar.
— Vamos brindar! — Katrina finalmente solta e pega duas doses
da bandeja que o garçom ofertava.

Resignada, imagino que esses cumprimentos vão demorar mais do


que minha paciência consegue tolerar, por isso, aceito o copo da mão de
Katrina e, mais uma vez, brindando à nossa saúde, enquanto danificamos o
fígado, sorvo a dose de uma vez.

Meus olhos buscam automaticamente por algo no salão e encontro


o lutador, me encarando com foco, participa de uma conversa com mais
quatro homens, entretanto, seus olhos não saem de mim. É tão evidente, que
um dos homens, que está de costas, vira o corpo e busca para onde Krigor
tanto olha.

Na tentativa de preservar algo, desvio os olhos e giro o corpo, me


colocando de costas para seu campo de visão.

Apesar do brutamontes na porta estar assegurando minha


permanência, de alguma forma estranha eu sei que, se quisesse partir, o
lutador jamais me impediria.

Contraditório eu pensar dessa forma, já que quando tentei sair


discretamente da luta, fui impedida por ele. Mesmo assim, minha cabeça
maluca, que não anda tomando as decisões mais acertadas nos últimos dias,
acredita nessa provável autonomia.

— Oh, yebat[15]! Não olhe agora, Sacha — Katrina arregala os


olhos, encarando sobre meu ombro.

A curiosidade não aceita o conselho dela e viro meu corpo, vendo


Krigor devorar a boca de alguma moscovita atirada. Como na boate,
permaneço estática, sem saber como agir, só a raiva fervilhando
gradualmente dentro de mim e isso faz meu peito arfar, com força.
— Svolach! — xingo alto e percebo algumas pessoas me
encarando.

Antes que ele termine o pequeno show erótico com a garota, viro
meu corpo e vou até um garçom, pegando duas doses da bandeja. Se tenho
que tolerar toda essa merda, sabe-se lá por que, farei isso bêbada.

Viro uma seguida da outra e, antes que o garçom se afaste, troco os


copos vazios por mais dois cheios. Volto até minha prima, que permaneceu
no mesmo lugar, me observando, entrego um copo para ela e ergo o meu,
brindando.

— Vache zdoróvie! — anuncio.

Ela toca seu copo no meu, por reflexo, já que seu rosto ainda me
examina minuciosamente, aguardando o próximo passo. Posso ter que lidar
com esse lutador abusado, svolach, um sem noção que tem o ego maior que
o próprio...

— Quer saber de uma coisa? Vou embora. Não sou obrigada a nada
— declaro, afirmando com a cabeça.

— Estou contigo — Katrina responde, sorvendo agora sua dose.

Olho em volta e não encontro o svolach. Aproveito a chance e


contorno entre as pessoas até chegar próximo da porta, Katrina e eu
pegamos nossos casacos e luvas, logo vejo o brutamontes guardando a
entrada e saída de todos.

Tento passar direto, sem hesitar, no entanto, sou impedida pela sua
mão grande e forte, que levanta e barra minha saída.
— Com licença. — Fecho a cara, tentando passar, e sou impedida
novamente.
— Aonde vai, Aleksandra? — Ouço a voz do lutador logo atrás de
mim.

Giro no lugar e, antes que possa dizer qualquer coisa, sinto uma
tontura tomar meus sentidos e acabo apoiando nele para me manter em pé.
Seus braços automaticamente circulam minha cintura, algo muito bem-
vindo por meu corpo, entretanto, rechaçado pela razão.

Empurro seu peito sutilmente, me afastando do seu aperto e o


encaro, com fúria.

— O que pensa que sou?

— Vem comigo.

— Não. Você é sempre assim, abusivo e ditador? Acha que pode


me tratar como um joguete? — Sinto que minha voz está alterada.

— Fala baixo. Não precisamos de um escândalo aqui — ele


adverte, olhando para os lados.

— Svolach! — retruco, ignorando sua advertência.

Sua expressão se fecha, mostrando o mesmo semblante duro e


determinado que vi no ringue, algo que só aconteceu quando ele estava
comigo, confirmando minha teoria de que realmente me vê como um
desafio a ser vencido.

Antes que ele diga algo, a mulher que ele beijou, ainda há pouco,
se aproxima de nós e apoia as mãos em seu ombro direito. Tenho o súbito
desejo de arrancá-la de lá aos tapas, fecho minhas mãos em punho e
mantenho os olhos cravados no contato de ambos.

— Sobe comigo. Quero conversar com você — ele não pede, mas
soa gentil na forma de falar.
— Volk, você vai convidá-la também? — a estranha, com uma voz
irritante, questiona Krigor.
Cruzo os braços na altura do peito, para conter qualquer ímpeto
sanguinário que passe pela minha mente já alterada pela bebida, ergo as
sobrancelhas e fito de um para o outro.

— O convite é somente para você, Króchka.


Capítulo 14

Não posso negar que uma pontada de felicidade tomou conta dos
meus sentimentos, alimentando meu ego perante essa oferecida, que ainda o
usa de apoio.
Por que ele ainda não a afastou? Se ele não o fizer logo, não
responderei por mim.

— Não tenho certeza disso, já que parece tão aberto a qualquer


uma. — Arrisco um olhar para a morena ao seu lado e volto a observá-lo.
— Se afaste. Agora. — Ele olha para o lado e anuncia, cortante.

A mulher parece chocada, tira as mãos do seu ombro, indignada


com a situação de ser dispensada dessa forma, simplesmente sai,
marchando para longe de nós.

— Você acha que isso é suficiente para eu te acompanhar? Você


realmente não sabe o tipo de mulher que eu sou, Krigor.

— Eu sei que você traz o melhor e pior de mim, desde que te vi


pela primeira vez, Króchka. Estou disposto a fazer tudo exatamente como
você desejar, desde que aceite meu convite e suba comigo. — Direto, como
sempre.

Ele estende a mão, mas antes de aceitá-la, olho ao redor e não vejo
minha prima, que sumiu em algum momento e eu nem ao menos percebi, já
que estava focada na mulher que usava Krigor de apoio.
Fecho os olhos por um minuto e no seguinte estendo minha mão,
que ele entrelaça a dele e logo passamos pela porta, que o brutamontes
guardava, indo para o elevador.

— Aonde vamos?

— Para minha suíte.


— Eu não vou transar com você. — Isso sai sem que eu consiga
segurar.

— Veremos sobre isso depois. Antes, eu quero aproveitar a sua


companhia.

— Poderia fazer isso aqui, na festa. — Aponto para trás.

As portas do elevador se abrem e ele me puxa para dentro, socando


o botão do último andar.

— Não poderia fazer da forma que gostaria. Não quero plateia para
tudo que pretendo desfrutar com você.

Minha mente começa a processar todas as possibilidades, passo a


duvidar que tenhamos o mesmo entendimento da palavra desfrutar, um
calor peculiar começa a subir pelo meu corpo e se aloja no fundo do ventre.

Maldição! Por que fui beber tantas doses de uma vez?

Não mencionamos qualquer palavra depois disso, o elevador


parece subir mais lento que o normal, a cada andar sinto a ansiedade
tomando conta do meu nervosismo, minhas mãos suam e tento desvencilhar
nosso contato para limpá-la.

Krigor me encara com a testa franzida e arrisca um olhar para


baixo, quando tento abandonar seu aperto.

— Quero limpar minhas mãos — falo baixo e um pouco acanhada.


Estou agindo como uma típica adolescente que está prestes a dar o
primeiro beijo no rapaz mais cativante da escola.

— Eu também transpiro quando estou ansioso. — Ele abre a palma


da outra mão, mostrando um filete molhado nela.

Acabo sorrindo devido a cumplicidade.


As portas se abrem, Krigor me puxa a passos determinantes, que
me faz praticamente correr. Quando finalmente entramos em seu quarto,
paro por um momento, esquecendo de toda a confusão que estou
vivenciando e admiro a parede de vidro à minha frente. Uma das visões
mais lindas que já tive da noite moscovita estampada como uma pintura em
tela.

— É lindo — falo, enquanto caminho, cautelosa.


— Você é linda. E ficaria ainda mais bonita nua, com as mãos
espalmadas no vidro, admirando a noite.

Saio do meu estado de admiração e caio literalmente na teia


luxuriosa que este homem enreda à minha volta. A cena que ele acabou de
descrever se fixa em minha cabeça, incluindo-o atrás de mim, também nu,
empalando-me com todo seu vigor.

Balanço a cabeça em negativa e giro meu corpo, observo Krigor


que usa uma camiseta e calça em tons escuros, cabelo alinhado naquele
corte moderno e estiloso, mãos no bolso e um físico que, puxa, faz minha
imaginação ainda mais criativa, principalmente depois de tê-lo visto com os
oito gomos à mostra.

— Sei que quer isso tanto quanto eu, Króchka. Ontem tentei te
provocar, achei que tomaria uma atitude e se colocaria perante as garotas.
— Você faz de tudo um jogo? Uma luta a ser vencida?

— Nem tudo. Mas você consegue trazer o meu senso de


competitividade em evidência e, cada vez que nega, debocha ou age com
descaso, tenho vontade de forçar a verdade dentro de você.

— E que verdade é essa, lutador?

Sem dizer nada, ele se aproxima de mim, cauteloso. Acho que o


apelido que ele carrega na arena, pode facilmente ser aplicado aqui. Ele age
como um lobo, tácito e com cuidado, espreitando a presa, que no caso, sou
eu.

— Que você me quer tanto quanto eu te quero. É mais que carnal,


quase uma necessidade. Você não sai da minha cabeça desde que a vi
naquele restaurante. — Ele toca meu rosto, em uma caricia cálida e suave.

— Eu não...

— Não diga não, Króchka. Permita-se... só por hoje...

Sua boca cobre a minha, devagar e contido, testando as reações,


aguardando que eu dê o aval para continuar em sua investida. Por isso,
desta vez, enfio minha língua, pedindo passagem por seus lábios e sou
recebida de bom grado.

Suas mãos fechando em um aperto gostoso pela minha cintura,


espremendo minha carne na necessidade de sentir mais de mim.

Não posso negar a verdade de suas palavras, comigo também


aconteceu isso. Nunca conheci um homem que conseguisse me tirar de
órbita e testasse meus limites como ele faz, desde o primeiro momento.

Se tudo isso é um jogo para ele, também é para mim. Pois nunca
senti prazer maior do que desafiar esse lutador inconveniente, levá-lo ao
limite somente com palavras, perceber que seu olhar determinado e duro, o
mesmo que usa na luta, é direcionado para mim.

É insano e contraditório, ao mesmo tempo que faz total sentido em


minha mente. Poderia culpar as doses de vodca por essa conclusão
descabida, mas a verdade é que estar nos braços de Krigor, sentindo seu
desejo por mim, só me faz acreditar que toda essa loucura é mais do que
certa.

Seguro sua nuca e fico na ponta dos pés, para alcançá-lo melhor,
nosso beijo aprofundando gradativamente, nos enredando a entrega que
parecia cada vez mais inevitável.

Neste exato momento, eu sei que a confusão que estou me


colocando é muito maior que previa. Suas mãos habilidosas serpenteiam
por minha barriga, sabendo exatamente a pressão do toque para aflorar
ainda mais minha excitação.

O juízo obviamente foi perdido no momento em que aceitei o


convite para entrar em seu quarto. Normalmente, eu jamais me prestaria
ao papel de ser uma tiete de luta, que faz qualquer coisa para um momento
com esse homem, que cheira e emana perigo.

Para minha sorte, ou azar, ainda não defini muito bem, as doses
de vodca com Katrina empurraram meu bom senso em algum armário
escuro e empoeirado dentro da minha própria mente, dando vazão a uma
mulher desinibida que nunca fui.

Um fraco tremor agita meu abdômen quando seus dedos atingem


um ponto sensível e mesmo que tentasse manter algum controle, seria em
vão, um gemido alto escapa da minha boca.
— Temos a noite inteira, Króchka. Você vai gritar muito quando
meu pau se enterrar em você... — aproximando sua boca do meu ouvido,
ele completa a frase: —... com força.
Capítulo 15
— Chto za huy[16]! — Já estava difícil segurar o tesão, ouvir seu
gemido só me joga ainda mais para o limite.
— Sua boca é muito suja, lutador. — Ela desliza as mãos pelo meu
peitoral, as palavras saindo baixo.

Minha vontade é jogá-la sobre a cama e mostrar o quão sujo pode


ser nosso sexo juntos. O desejo insano de domá-la é surreal e faz meu
autocontrole, sempre bem exercitado em um combate, se esvair
rapidamente.

Aperto sua cintura com mais força, testando sua carne macia,
enquanto esfrego minha ereção já eminente em sua barriga. Ela é tão baixa,
pequena realmente, que temo machucá-la se for com muita sede ao pote.

Controle-se, Krigor!

— Minha boca pode ser e fazer muitas coisas, Króchka. — Arrasto


minha barba pelo seu rosto, até encontrar seus lábios.

Mergulho profundamente, como um abismo sem fim, enfio minha


língua tomando todo seu fôlego durante o beijo. Ele é desesperado e revela
toda a necessidade de possuí-la, mas que se foda. Eu precisava disso e sei
que ela também.

Impulsiono sua cintura para cima e ela entende o movimento,


contornando as pernas no meu quadril. Sem quebrar o contato, caminho
pela sala, chuto as portas duplas do quarto, escancarando-as. Caminho até
sentir a cama tocar minhas pernas e, com cuidado, a coloco sobre o colchão.

Encerro o beijo, encarando seu rosto, tomado pelo desejo, tão


esperançoso quanto eu, querendo sugar o máximo de prazer do nosso
momento, e eu pretendo saciá-la. De todas as formas possíveis, quero
enlouquecer essa mulher para que nunca mais me esqueça.

— Fique aqui. Eu já volto. — Beijo a ponta do seu nariz.

Antes de me afastar, acaricio seu rosto, não resistindo ao contato.

Saio do quarto, apressado, tomando o cuidado de fechar as portas


que chutei para que ela não ouça minha ligação. Preciso avisar Bóris que a
noite de hoje não será a costumeira farra que acontece sempre que venço
uma luta. Apesar de ser uma vitória maravilhosa em cima daquele svolach
do Russell, hoje quero aproveitar a noite com privacidade e me esbanjar na
ruiva em minha cama.

Tiro o celular do bolso e disco o número do meu treinador, que


atende no terceiro toque, me deixando irritado e ansioso.

— Que demora! — solto logo que ele atende.

— Onde você está? Te procurei na festa inteira para apresentar


umas garotas.

— Sem garotas por hoje. Já tenho companhia.

— Sério? Quantas? — Ele fica animado e isso me incomoda.

— Uma e é minha. Nem ouse subir — rosno ao telefone.


— Tak! Você quem sabe, egoísta. É a ruiva da luta? — Bóris me
conhece bem o suficiente para saber o momento de recuar.

— Sim. Nos falamos amanhã. — Encerro a chamada antes que ele


tenha qualquer brecha para mais questionamentos.

Dispenso o celular sobre a mesa e retorno para o quarto, o desejo


nunca me abandonando, faz meu membro pulsar ainda mais, na espera de
me enterrar logo dentro dela.

Abro as portas com brusquidão, Aleksandra ainda está deitada, da


mesma forma que a deixei antes de sair, o que é estranho, principalmente
vindo dela, que nunca consegue seguir qualquer coisa que eu diga.

Dou alguns passos em sua direção, pronto para retomar o que


comecei e ouço um ressonar baixo. Avanço mais rápido, só para confirmar
que ela dorme, como um anjo, totalmente tranquila.

— Chto za huy! — esbravejo, inconformado.

Não levei dois minutos na ligação e ela cai no sono? Que boa sorte
que estou tendo hoje.

Penso em tentar acordá-la, mas me lembro de sua exaustão por


trabalhar em dois empregos, somado às doses de vodca que a vi engolindo
depois de presenciar o beijo roubado daquela morena na festa, resigno-me.

Frustrado com a chance perdida, abaixo e passo minhas mãos por


baixo do seu corpo e a ergo, colocando-a corretamente na cama. Tiro suas
botas, torço os lábios imaginando que não era dessa forma que eu gostaria
de fazer, ajeito a coberta e coloco sobre seu corpo.
Preciso me afastar antes que faça uma burrada e perca a única
chance de tê-la para mim. É óbvio que sentimos um grande tesão um pelo
outro, no entanto, ele se iguala ao desafio velado que vivenciamos sempre
que estamos juntos. Um embate que não parece ter fim nem vitoriosos. Só o
prazer de atiçar o outro, a ponto de irritá-lo.

Saio do quarto, fechando a porta, não posso ao menos permanecer


no mesmo ambiente, para não ser tentado a fazer o que não devo. Quando
eu a tocar, preciso que esteja bem alerta, vivaz e gemendo meu nome para ir
cada vez mais fundo.
Ajeito meu pau na calça, muito dolorido, vou até a bancada onde
várias garrafas de bebidas estão dispostas para mim e sirvo uma dose de
vodca.

— Vache zdoróvie! — Levanto o brinde para a porta que nos


separa.

Ah, Króchka moya[17]! Você só está tornando meu lado selvagem


ainda mais sedento.

Acordo com o corpo dolorido, esse sofá apesar de ser bonito e


aconchegante, não é nada confortável para um homem do meu tamanho
passar a noite. Alongo o pescoço logo que empertigo o tronco, sentindo
uma pequena pontada durante o movimento.

Confiro as horas no celular que dispensei no chão ao meu lado


quando finalmente consegui pegar no sono, por volta das três da manhã.
Ainda é cedo, levanto e vou até a porta do quarto, abrindo cuidadosamente,
me aproximo da cama e vejo que Aleksandra ainda dorme tranquilamente,
resolvo sair para correr e não a incomodar, por ora.

Ontem estávamos enredados na mesma névoa luxuriosa, tão


desejosos que tudo parecia ser mais do que certo. Hoje já não posso garantir
que acordá-la, empolgado em terminar o que começamos ontem, irá
realmente funcionar.

Troco de roupa aqui mesmo, não me preocupando se me vê pelado,


afinal, ocupa minha cama, estávamos prestes a foder feito loucos, cedo ou
tarde ela me veria nu. Coloco meu moletom flanelado, calço os tênis de
corrida e saio.

Paro na recepção, pedindo que não interfone para o quarto, farei


uma corrida curta, mas quero garantir que o sono de Aleksandra não seja
interrompida e que eu possa acordá-la quando retornar.

Alongo as pernas logo que saio pela porta giratória e caminho


rapidamente pela avenida. Logo começo a correr e sinto meu corpo aquecer
gradativamente, blindando o frio desta manhã moscovita.

Coloco os fones de ouvido, o som me isolando completamente do


barulho do trânsito, transportando meus pensamentos para a ruiva fujona
que dorme em minha cama.

Ainda não sei como não permaneci naquele quarto e a acordei de


forma pouco convencional. Sinto uma necessidade insana de possuí-la, ao
mesmo tempo que quero manter seu bem-estar e proteção, é estranho, nunca
senti isso por ninguém fora da minha família.

Mulheres, no geral, sempre foram isso, mulheres. Sou um cara


ativo e nunca neguei uma boa diversão, principalmente, quando se referia a
uma orgia com mais de uma. Ultimamente minha cota estava entre três e
quatro, vários corpos femininos para saciarem minha necessidade de sexo,
entretanto, com ela é diferente.

Não quero dividir minha atenção com mais de uma, preciso ter
todo meu foco no prazer de Aleksandra, pois quando finalmente acontecer,
sei que será inesquecível para ambos.

Confiro o celular e vejo que já passou metade do tempo, faço o


contorno na rua, voltando o caminho para o hotel. A corrida não aplaca em
nada meu tesão acumulado, cada passada de perna me faz ansiar ainda mais
e a imagem que idealizei ontem, dela com as mãos apoiadas no vidro,
completamente nua, acorda meu pau de vez.
Capítulo 16

Chto za huy! Se não me controlar, serei preso.


Passo por uma cafeteria e tenho a ideia de comprar algo para
comer. Um café da manhã é a desculpa perfeita para acordá-la assim que
chegar.

Finalmente alcanço a porta giratória do hotel e retiro os fones de


ouvido, enquanto caminho apressado para o elevador. Aperto o seu botão de
chamada, minhas pernas balançam, denunciando a pressa.
Agradeço internamente quando as portas se abrem e salto para
dentro, acionando meu andar. Vejo meu telefone tocar, é minha mãe, mas
ignoro a ligação. Sei que se atendê-la agora, perderei, no mínimo, trinta
minutos de conversas e cobranças de que preciso voltar ao Daguestão para
visitá-los.

Apesar de ser um voo de duas horas e meia, somente, com os


treinos e lutas marcadas de forma espontânea pelos organizadores, não
sobra muito tempo livre para ir e vir. Por isso, opto por fazer três viagens ao
ano e a próxima ocorrerá somente daqui a três meses, quando encerra a
temporada desse.

As portas finalmente abrem e saio em disparada para meu quarto.


Qualquer um que me observe agora, pode pensar que estou prestes a apagar
um incêndio, o que não seria completamente mentira, já que sinto um
fogaréu dentro da calça.

Chuto a porta para fechar, deixo o pacote com a comida sobre a


mesa e vou direto para o quarto. Abro as duas portas com brusquidão e vejo
a cama bagunçada, porém, vazia. Vinco as sobrancelhas, vou até a porta do
banheiro, dando uma batida suave.

— Króchka? Está aí? — Aguardo pela resposta e nada.

Testo a maçaneta e a porta abre, olho o interior e não encontro a


ruiva. Volto para a sala, sentindo meu sangue ferver, mas agora na cabeça,
quando concluo que ela simplesmente partiu, sem nem ao menos se
despedir.

— Krigor, sua mãe me ligou — Bóris fala, assim que entra pela
porta.

— Ela foi embora. — Entrelaço os dedos atrás na nuca,


caminhando pela sala.

— Quem? Do que está falando?

— Sacha. Ela foi embora.

— A garota que subiu ontem com você? — Ele aponta para o


quarto.

— Sim.

— Normalmente elas partem no outro dia, amigo. — Ele solta


caminhando até a mesa e abre o pacote com a comida.
Na dúvida de saber o gosto de Aleksandra, acabei pedindo comida
suficiente para alimentar várias pessoas e Boris ataca a refeição, esfomeado.

— Preciso encontrá-la. Vou tomar banho e vamos naquele


restaurante que fomos almoçar e saímos correndo para a pesagem.

— Não podemos sair daqui hoje. Temos uma reunião com os


organizadores.
— Você resolve isso, eu vou sair.

— Krigor, você sabe que as coisas não são assim. Os caras não são
os bonzinhos e temos que seguir as regras de acordo com eles.

— Já lutei ontem e venci. O que mais eles querem de mim?

— Publicidade. As lutas trazem uma boa rentabilidade e


visibilidade para esses associados. Hoje os eventos de luta funcionam mais
como uma transição de negócios ilícitos, que camufla o que não deve ser
visto. Você bem sabe disso.

— Eu só quero comer fora. Nada de mais.

— O que essa menina tem de tão especial, afinal? Você quase foi
penalizado na luta porque simplesmente abandonou o ringue, quando viu
que ela iria embora. Depois a trouxe para cá, passou a noite se esbaldando
com ela e fica puto pela garota ter dado o fora. No fim, é isso que
queremos, sempre, que elas partam e não se tornem pegajosas.

— Não rolou nada ontem. Ela dormiu — declaro, cortando suas


conclusões precipitadas.

— Espera um pouco. — Ele me olha, risonho. — Chto za huy!


Você passou a noite dormindo... só... dormindo. — Bóris solta uma
gargalhada em seguida.

— Fico feliz que minha frustração te alegra. Sim, passei dormindo.


Deixei-a no quarto, me esperando, enquanto te chamei ao telefone, quando
voltei, ela tinha apagado. Provavelmente bebeu vodca demais. Hoje saí para
correr e quando cheguei aqui, pouco antes de você, vi que ela havia sumido.

— Amigo, a coisa é pior do que imaginei. Você sabe que é


perigoso se envolver emocionalmente com alguém em suas condições.
Ainda tem três anos de contrato para ser liberado. Precisa manter o foco,
Krigor. — Bóris fica sério no fim da frase, trazendo o peso da minha
condição para a conversa.

— Não estou desviando de nada, Bóris. Sei da minha


responsabilidade e o porquê de aguentar essa merda toda. Só que ela é
diferente, gosto de sua companhia, do desafio que desperta em mim, coisa
que nem a luta tem feito há algum tempo.

— Perigoso, amigo. Perigoso! Se ela se foi, sem, ao menos, se


despedir, é porque não quer nada com você e sem o efeito da vodca de
ontem, caiu em si. É melhor deixar as coisas como estão.

Relutante, balanço a cabeça, concordando com suas palavras.

Caminho para o banheiro, tomar uma ducha rápida e ir cumprir


mais uma exigência dos organizadores. Tem quase dez anos que vivo essa
rotina, cidade em cidade, envolvido em eventos e lutas clandestinas,
jogando o jogo perigoso que acordei quando era jovem e tinha uma carreira
promissora no esporte.

Talvez meu treinador e amigo tenha razão, deixar Aleksandra


seguir sua vida e fingir que nada aconteceu, seja a melhor coisa que tenha
para fazer por nós dois. Já a expus demais, quando saí da linha,
abandonando a luta antes de começar, só para fazer com que ficasse ali.

A essa altura, a organização e, muito provavelmente, Russell, meu


maior oponente, sabem quem ela é, me manter distante agora será bom e
tira qualquer atenção indesejada das suas costas. Logo vão pensar que foi
um capricho meu ou algum gracejo para conquistar a ruiva.

Termino o banho e visto uma roupa rapidamente, chego à sala e


Bóris está terminando de se esbaldar no café da manhã, só resta um copo de
chá, que pego de imediato.

— Você vai pagar por esse café — declaro, caminhando para a


porta.

— Eu não. Você já tinha comprado tudo isso. Seria desperdício


deixar aqui.

Descemos para a sala de reunião, juntos, onde havia sido marcada


a reunião entre nós e a organização das lutas. Quando entramos, ela já está
ocupada por dois homens sisudos, vestidos inteiramente de preto e, antes
que eu os cumprimente, Russell passa pela porta, acompanhado do seu
treinador.

— O que ele faz aqui? — pergunto.

— Vamos acalmar os ânimos e deixar essa raiva para o ringue.

— O que foi, volk? Não fodeu o suficiente sua ruiva ontem? A


achei bem gostosinha — Russell comenta, com escárnio, e não me contenho
partindo para cima dele.

Acerto um soco direto no seu nariz, fazendo a luxação de ontem


ainda maior e o sangue tornar a escorrer dali. É sempre prazeroso arrancar
sangue desse cão sarnento.

— Krigor! — Bóris me segura por trás, me puxando para longe.

— Você me paga, Stepanov! — Russell se altera.

— Isso, eu quero ver.

— Parem agora com isso! Somos homens civilizados, sabem disso,


mas se as coisas saírem do controle, não somos muito convencionais para
liquidar o problema. — Cossack bate na mesa, alterado.
Esse não é seu nome verdadeiro, todos eles usam uma espécie de
codinome, que definem seu grau de participação e importância na
organização. Cossack, era o nome de um antigo soldado e cavaleiro russo,
por isso, sei que ele está abaixo na escala hierárquica, mas tem valor
suficiente para deter poder de cumprir sua promessa.

— Sentem-se. Vamos discutir a próxima rodada de lutas e, vocês


dois, farão uma grande final — ele anuncia, e ambos, Russell e eu, nos
entreolhamos, desgostosos.
Capítulo 17

Atendo a última mesa, antes de finalmente tirar esta roupa. Apesar


de ter acordado cedo e chegado antes do meu horário, no restaurante, não
tive tempo de ir até em casa para trocar de roupa e preparar a mochila de
hoje, então, fui obrigada a trabalhar de vestido justo, meias e bota cano alto.
Completamente desproporcional, o que acarretou olhares desejosos dos
homens e um tanto reprovadores das mulheres.
Tentei obter uma muda de roupa com Katrina, mas aquela loira
maluca não atendeu nenhuma das minhas ligações, o que me forçou a
permanecer nessas condições.

Encerro meu expediente e quando me despeço do pessoal, percebo


Ivo e Frans me observando de forma estranha, passaram assim a manhã
inteira, desde que cheguei. Posso ver os questionamentos curiosos no olhar
de cada um, Frans ainda mais, chegou a mencionar como eu estava
diferente, mas fingi demência e foquei no trabalho, afinal, não devo
satisfações da minha vida pessoal a nenhum deles.
Saio do restaurante e caminho direto para a estação, preciso ir até
em casa buscar uma roupa para trabalhar no bar. Não tenho a menor
condição de aguentar o restante do dia usando essas botas. Se no
restaurante, já recebi olhares interessados, não quero nem imaginar como
seria no bar à noite.

As lembranças da noite anterior retornam à minha mente, por mais


que tenha feito de tudo para mantê-las afastadas por todo o dia, agora, sem
qualquer ocupação, não consigo evitar. Acordar sozinha naquela cama
imensa e confortável do quarto, procurar por Krigor e não o encontrar lá,
não foi a melhor maneira de finalizar a noite maluca em que me enfiei.

Lembro que fui deixada na cama, depois de um beijo quente e


cheio de promessas, fechei os olhos e tudo se esvaiu. Estava cansada
emocionalmente, aquela luta sangrenta havia mexido com meus sentidos e,
para completar, resolvi virar doses de vodca, como se fosse água, o
resultado foi um belo apagão.

Provavelmente, se irritou o suficiente para me deixar dormir


naquele quarto e voltar para a festa, a fim de concluir com outra garota o
que começou comigo. Claro que um homem como ele, não frustraria sua
libido velando o sono de uma bêbada, e mulheres para saciar seus ímpetos
sexuais não faltavam naquela festa.

Ainda consigo sentir o gosto do seu beijo, algo quente e abrasador,


misturado à vodca, que acabou potencializando um sabor viciante, que
parecia nunca chegar à saciedade. Fecho os olhos e instintivamente toco os
lábios, ainda sentindo o ardor das vezes em que puxou e mordeu com
volúpia ali.

Tentei aplacar todos esses pensamentos por todo esse tempo, me


lembrando da frustração de acordar em um quarto luxuoso e completamente
sozinha. Senti a desolação e o abandono socar fundo dentro do peito, calcei
minhas botas, que provavelmente ele tirou de mim na noite anterior, e corri
o mais rápido possível para longe.

Nunca mais o verei novamente, depois da vergonha de ontem, ele


não ousaria me procurar em nenhum dos meus trabalhos. Não vou negar
que senti meu coração pular a cada cliente grande o suficiente que entrou no
restaurante, me fez pensar que fosse ele querendo tirar satisfações comigo.
Quem é você na fila imensa de mulheres que aquele volk tem,
Aleksandra?

Repreendo minhas ilusões errôneas quando abro a porta de casa,


pensamentos tão dispersos e distantes da realidade me fizeram chegar, sem,
ao menos, me dar conta do caminho.

Vou direto para meu quarto, tiro as roupas da noite anterior para
um banho rápido, dessa forma já vou pronta para o bar e não preciso
carregar o peso da mochila que levo todos os dias.

— Onde estava, Sacha? — Minha mãe abre a porta, questionadora.

— Na casa de uma amiga. Ficou tarde para vir embora e resolvi


dormir por lá.

— Poderia ter avisado, ao menos, filha.

Puxo o ar profundamente e olho por cima do ombro. Seu


semblante cansado atinge minha consciência em cheio e vou até ela,
abraçando seu corpo, tão miúdo quanto o meu. Todos dizem e não posso
negar, somos iguaizinhas na aparência, no entanto, somente nisso, pois em
gênio não me considero tão permissiva.
— Desculpe. Eu acabei ficando sem carga no celular e não pensei
que pudesse te preocupar. Sinto muito. — Ela retribui o abraço.

— Você tem que se divertir mesmo, filha, tem muito tempo que só
vive para o trabalho, mas, por favor, não me deixe mais preocupada, assim.

Afasto meu corpo do seu, dando-lhe um beijo na testa.

— Pode deixar. Isso não irá se repetir. Agora, preciso tomar banho
e ir para o bar.
Ela concorda com a cabeça e volta para seus afazeres.

O tempo que permaneço no apartamento não ouço a voz ou vejo


meu pai, provavelmente saiu novamente para mais um dia de farra e jogos,
não sei bem quando isso terá um fim, mas sinto que meu limite está muito
próximo e, mesmo contradizendo todos os ensinamentos sobre família que
recebi minha vida toda, darei um basta.

Banho tomado, roupa limpa e a irritação pela situação da minha


família rondando minha mente, rumo para o bar. Talvez um pouco da
agitação noturna e a praticidade de Irina me tragam de volta ao eixo, focada
em resolver logo todas essas questões e seguir adiante.

A noite de hoje está mais fria e por se tratar de começo de semana,


o bar não tem um grande movimento e acabamos matando o tempo
assistindo a algum reality que passa na TV.

— Acho que vou fechar mais cedo — Irina comenta, entediada, e


solta o pano sobre o balcão.

— Tem certeza?

— Tenho. Ficar aqui só vai nos desgastar para amanhã. Pode ir,
que eu fecho tudo. — Ela toca meu braço e segue em direção ao depósito.

Antes de sair, ajeito umas garrafas na prateleira, confiro a parte de


baixo da bancada e depois de ter certeza de que tudo está em ordem para
amanhã, pego minha bolsa para ir embora.

Visto o casaco quente, as luvas e a touca, quando saio pelas portas


aperto ainda mais os braços em torno de mim. Pelo frio da noite,
provavelmente enfrentaremos uma neve castigadora pela manhã.
Caminho pela calçada, a rua pouco movimentada, ainda não é tão
tarde, mas o frio que se faz presente afugentou as pessoas de um passeio
noturno.

Sinto um incômodo, olho ao redor, desconfiada de que possa estar


sendo seguida. É estranho, já que nunca senti esse alarde antes, mas, de
alguma forma, parece que sou observada e não gosto da sensação.

Aperto o passo, já próxima da estação, e quando vou atravessar a


rua, sem olhar para os lados, escuto o barulho de freios e um farol cega
meus olhos. Ergo os braços no rosto, tentando me proteger e posso jurar que
fui atingida, sentindo o para-choque do carro tocar minha perna.

— Cuidado, moça. — Um homem com casaco e capuz sai do


carro.

— Eu estava na faixa. Você quase me atropelou.

— Isso que dá estar no lugar errado e na hora errada.

Sua fala me alerta, o farol do carro me atrapalha de ver sua


fisionomia, por isso, ergo a mão, fazendo sombra para a luz forte. Logo
tenho visão parcial do seu rosto, por estar com um capuz grande cobrindo
parte dele, mas reconheço seu semblante, é Russell, o lutador que enfrentou
Krigor ontem.

— Você é o lutador de ontem.

— Sim. E você é o novo brinquedinho do volk. Tenha cuidado


moça, nosso mundo não é para garotas como você.

— Garotas como eu?

— Sim. Certinhas e corretas.


— Não sei por que está falando isso. Eu não sou nada de Krigor.
Mal nos conhecemos.
— Não foi o que pareceu quando ele abandonou a luta para te
impedir de partir.

— Ele é só um maluco. — Dou de ombros.

Apesar da conversa soar normal, sinto minhas pernas tremerem,


imaginando as possibilidades em sua real intenção. Não pode ser mera
coincidência, justamente o rival de Krigor quase me atropelar.

— Ele seria o menor dos seus problemas, se resolver insistir nessa


história. — Seu tom frio e ameaçador me coloca em alerta.

Onde você foi se meter, Aleksandra?


Capítulo 18

— Não pretendo permanecer na vida de ninguém. Não precisa se


dar ao trabalho de vir me ameaçar. — Tento soar o mais imponente que
consigo.
O homem acaba rindo, com deboche, e avança alguns passos
próximo de mim. Por segurança, ou instinto, recuo um. Sei que se ele
resolvesse fazer qualquer coisa comigo, não teria a menor chance de
escapar, ele tem a preparação física de um atleta, já eu, não tenho coragem
de correr um quarteirão que seja.

— Isso não é de longe uma ameaça, Aleksandra Yakovna. Só um


conselho de um amigo. — Engulo em seco quando ele menciona meu
nome, escondo o medo que percorreu a espinha e também mostro as garras.

— Não somos amigos, nem nunca seremos — anuncio, lhe dando


as costas.

— Quem sabe um dia, precisemos um do outro — ele fala mais


alto, e ignoro, deliberadamente.
O corpo inteiro treme com a adrenalina do que acabei de passar,
minha cabeça girando nas milhares de possibilidades, caçando o melhor
motivo que o fizesse se voltar para mim. Sou apenas uma garota que
desafiou o ego daquele lutador, por qual motivo seu rival viria, com um
recado declarado?

Meu instinto sempre me alertou sobre Krigor, sua energia emana


perigo e dominância, mas no sentido sexual, um envolvimento de pele, que
poderia me tornar dependente dele. Nunca imaginei que me causaria risco
de vida.

Pensar que ele possa ser um perigo para mim, de forma literal, só
faz com que eu acredite ainda mais em meu sexto sentido, que me afastou
dele deliberadamente. Ainda bem que seu ego é grande o suficiente para ter
agido como um babaca ontem, me deixando sozinha hoje de manhã e
fazendo-me literalmente correr para longe de seu agarre.

Não quero mais saber de lutas, ameaças, lutador com ego gigante e
nem de vodcas. Estou abolindo tudo isso da minha vida e retomando minha
rotina exaustiva e pacata, focando somente em pagar a maldita dívida da
minha família, para que possa seguir adiante, esquecendo completamente
que Krigor, sequer um dia, passou pelo meu caminho.

Acordo na manhã seguinte mais cedo que de costume, o sono mal


dormido me deixou além de cansada, entretanto, minha cabeça não
conseguiu se desligar do encontro nada convencional com o tal Russell
ontem. A curiosidade de desvendar todo esse mistério, mesmo que
evidentemente perigoso, manteve meu estresse e ansiedade em níveis
exorbitantes.

— Já vai sair? Sem comer, filha? — ouço a voz da minha mãe


enquanto caminho apressada para fora de casa.

Arrisco um olhar rápido para a porta da cozinha, enquanto visto


meu casaco, minha mãe empunhada de uma escumadeira e um prato de
blinis nas mãos, minha boca automaticamente enche de água.
— Eu preciso falar com a Katrina, vou descer e subo rapidinho. —
Abro a porta. — Guarde alguns desses para mim — falo, antes de sair.

Desço as escadas, ansiosa, fecho o casaco mais apertado em torno


de mim, como imaginei, hoje a neve castiga a manhã moscovita e já
imagino as dificuldades que enfrentarei para chegar ao trabalho.

Alcanço a porta do apartamento dos meus tios e bato com mais


força do que pretendia. Logo ela é aberta por uma face rabugenta da minha
tia Vanya.

— Oi, tia, Katrina está?

— Ah, é você, menina. Entre, ela está no quarto. Ainda não


levantou.

Passo batido por ela, caminhando até os aposentos da minha prima.


Já conheço o ambiente como a palma da minha mão, passamos a infância
enfiadas uma no apartamento da outra.

Entro rapidamente, fechando a porta, Katrina ainda dorme enrolada


em sua coberta. Penso por um segundo no inferno que enfrentarei, assim
que ela perceber que foi acordada cedo demais para seu costume, mas
minha necessidade de respostas supera qualquer rompante que minha prima
possa ter.

— Katrina, acorda! — Sacudo seu corpo.

— Uhumm... — ela resmunga e rolo os olhos.

— Vamos, Katrina! Preciso falar com você sobre o dia da luta.

— Me deixa dormir... — Ela cobre a cabeça, não dando ouvidos


para mim.
— Tudo bem. Eu ia te contar que fui ameaçada ontem pelo lutador
rival do volk, mas você não deve estar mesmo interessada.

Antes que eu termine a frase, Katrina empertiga o tronco, jogando


a coberta para o lado, completamente desperta.

— Como é que é?

— Pensei que quisesse dormir. — Cruzo os braços, irônica.

— Deixa de idiotice e sente sua bunda aqui. Como assim, você foi
ameaçada?

Por não conseguir mais segurar todo o acontecido para mim,


atendo seu pedido grosseiro e sento na cama, relatando cada palavra do que
foi dito ontem. Ao terminar, seus olhos chocados, assim como a boca
aberta, me encaram, sem nada dizer.

— Estou enlouquecendo, pensando nas possibilidades, prima. Por


que ele veio atrás de mim?

— Eu não faço ideia. Mas se pensar bem, na forma como volk agiu
com você, todo possessivo, quebrando regras instransponíveis naquela luta
e te arrastando, sozinha — ela ergue um dedo enfatizando essa parte — para
o seu quarto, é óbvio que você tem importância para ele.

— Discordo, totalmente. Na noite em que subi para o seu quarto,


acabei pegando no sono, acho que pela quantidade de vodca, sei lá. Acordei
sozinha no outro dia. Ele nem ao menos deixou um bilhete. Provavelmente
se esbaldou com as mulheres que estavam na festa — respondo, com
descaso, apesar de a constatação incomodar bastante.
— Ele não voltou para a festa.

— Como não?
— Não voltando. Bóris, seu treinador, comandou a festa por um
tempo e logo depois encerrou tudo, subindo com duas garotas.

Levanto da cama, espantada com a revelação. Jurava que ele havia


me deixado sozinha naquele quarto, assim que peguei no sono, garantindo a
noite de farra que ele me prometera.

— Se ele não desceu, para aonde foi? Ele não estava lá quando
acordei.

— Talvez, ele só tenha saído por um momento e coincidiu de você


acordar e não o encontrar.

Isso me atinge duramente, em momento algum cogitei a


possibilidade de um desencontro, tomando como verdade a pior das
hipóteses, em que fui trocada por outra.

No entanto, se tudo não passou de um engano, por que ele não veio
me procurar no dia seguinte? Ele sabe onde trabalho, nos dois empregos, se
quisesse explicar as coisas, poderia ter ido até mim.

— Antes que pense besteiras sobre Krigor, você deveria procurá-lo


para esclarecer tudo.

Volto a encarar minha prima, que havia ignorado deliberadamente


depois das revelações, me fechando em teorias na mente. Abano os braços,
em descaso, com o que acaba de dizer.

— Não tenho que procurá-lo para nada. Esqueceu o recado de


Russell? Ele foi bem claro em dizer que deveria manter a distância de
Krigor.

— Mais um motivo para você procurar Krigor e contar sobre isso


também. A rusga deles sempre permaneceu nos ringues, mesmo que
estivessem em um ambiente incomum, nunca perderam a linha. Nunca
fiquei sabendo de nada parecido sobre isso, nenhuma ameaça a terceiros,
sequer a família do Krigor. Por que justamente com você isso aconteceria?

— Não sei e não quero saber. Isso é um vespeiro, Katrina, e quanto


mais eu cutucar, mais corro o risco de se voltar contra mim. É melhor
manter as coisas como estão e não procurar Krigor.

— Se acha isso realmente, por que me acordou tão cedo para


contar? Está doidinha para procurar o lutador, que eu sei — ela debocha,
levantando da cama.
— Vai dormir, você ainda está com sono. — Empurro seu ombro,
fazendo-a cair sentada na cama novamente.

— Eu, com sono e você, uma enganadora.

Ela declara, entretanto, ignoro epicamente, abrindo a porta do


quarto e saindo de lá, sem lhe dar qualquer resposta.

Por mais que quisesse dizer algo, sei que, no fundo, minha prima
está falando a verdade: eu sou uma enganadora de mim mesma.
Capítulo 19

Três dias se passaram desde a minha conversa reveladora com


Katrina. Até aquele momento, estava convicta de que Krigor só queria de
mim o que qualquer mulher estava disposta a lhe oferecer aquela noite. Um
pouco de diversão, sexo quente e satisfação pela noite de prazer.

No entanto, minha prima, como a boa alcoviteira que sempre foi,


plantou a semente da dúvida dentro de mim e fez minha cabeça começar a
imaginar as infinitas possibilidades para o nosso desencontro, depois que
apaguei no seu quarto de hotel.

Próxima ao balcão da recepção, estaco no lugar, mais uma vez me


perguntando como vim parar aqui. Quando peguei minhas coisas no
restaurante e encerrei o expediente, sabia que meu trajeto seria para o lado
oposto, a caminho do bar, onde já havia combinado com Irina de conferir o
estoque de bebidas para noite que prometia movimento, já que a
temperatura aumentou e estimávamos um maior volume de pessoas.

Ao contrário do que deveria fazer, cada passo que dei em direção a


este hotel, minha consciência me cobrava por uma justificativa que não
estava disposta a encarar. Mesmo aqui, prestes a perguntar sobre o lutador,
feito uma mulher desesperada, não tinha a resposta. Talvez ela existisse,
mas não queria dar o braço a torcer.

— Pois não? — Uma moça simpática e gentil chama minha


atenção, despertando-me do momento conflitante.

— Olá. Eu... acho que entrei no lugar errado... — Sorrio


fracamente, enquanto ela me observa, duvidosa.
— Precisa de ajuda? — questiona, interessada.

— Não. Na verdade, foi um erro vir aqui. Com licença. — Volto-


me para a saída e topo com o tormento que vem importunando minha mente
há dias.

O volk!

— Aleksandra? O que faz aqui? — Seu semblante confuso e


fechado atinge minha insegurança.

Agora, mais do que nunca, acredito que vir até aqui foi o maior dos
meus erros.
— Nada. Eu me confundi com uma entrega. Já estou indo. —
Tento passar por ele, mas sua mão agarra meu punho em um aperto forte.

— Não minta. Veio aqui por mim e quero saber o porquê.

Encaro seus olhos, determinada, as incertezas de segundos atrás


foram substituídas pela soberba da sua confiança desmedida. Encaro meu
pulso, ainda preso em seu agarre e com um puxão, nada discreto, me solto
dele.

A brasa quente do seu contato ferve o lugar e, por reflexo, acabo


esfregando-o com a outra mão, tentando aplacar o que seu toque me causou.

— Você é muito convencido. — Empino o nariz, desafiando sua


figura altiva.

Em resposta, Krigor cruza os braços na altura do peito, usando um


moletom preto de capuz, que totalmente ajustado no seu corpo, marca o
tamanho de cada músculo dos seus braços. Esse ar perigoso que ele
transmite tem efeito contrário em mim, que ao invés de inibir minha
audácia, a torna ainda maior.
— Você não espera que eu acredite na sua desculpa de entrar justo
no meu hotel, por engano.

— Não sabia que você era dono ou hóspede único neste lugar.

Minhas atitudes são de uma criança de cinco anos de idade, dando


birra por algo irrelevante, só para provocar a figura autoritária à minha
frente, mas não consigo evitar.

Impaciente, Krigor avança, segurando meus braços, sua atitude foi


tão repentina que solto um pequeno gemido quando ele me aperta próximo
de si.

— Corta a merda, Króchka! O que a fez vir até aqui?

— Só vim pedir que não deixe mais seu amigo lutador rondar meu
trabalho. Não gostei de ser cercada na saída do bar, aquela noite. — Não
entrego meus reais motivos, pega desprevenida, não consegui admitir que
gostaria de entender o que aconteceu na nossa noite juntos.

— Do que está falando? — Krigor franze as sobrancelhas, confuso


e um tanto preocupado.

— Russell. O lutador que você derrotou aquele dia, foi até o bar,
esperou que eu saísse, para me parar na rua e fazer ameaças sobre estar
próxima de você.

— Quando foi isso? — ele questiona, severo.

— Há três dias.

— E por que esperou tanto tempo para me dizer? Chto za huy! —


Ele solta seu aperto e pega minha mão, praticamente me arrastando para os
elevadores.
— Ei, aonde você está me levando? Krigor, eu preciso ir para o
trabalho.

Tento puxar minha mão enquanto argumento sobre seu rompante


sem cabimento, mas ele ignora epicamente, até que acerto seu braço, que
mantém minha mão esmagada entre os dedos dele, e isso finalmente o faz
parar e me fuzilar, com raiva no olhar.

— Você vai subir e me contar detalhadamente tudo que Russell te


falou, entendeu?

— Você não manda em mim! — Ergo ainda mais a cabeça,


desafiadora.

As narinas do lutador chegam a mexer quando ele inala e solta a


respiração pesadamente, mostra que está chegando ao limite do bom senso,
que na minha opinião, nunca existiu.

— Ou você sobe por bem ou teremos uma cena nada satisfatória


nesta recepção.

— Vai me carregar nos ombros? — desdenho, com um riso, e seu


olhar determinado prova que acertei em cheio. — Você não faria isso.

— Pague para ver, Króchka.

Sua voz soa baixa e tranquila, mas em seus olhos posso ver o quão
sério ele fala, e se não for eu a ponderar, sofrerei a humilhação de ser
carregada como uma criança impertinente neste saguão.

— Vamos logo com isso — respondo, resignada.

Seguimos para o elevador, tento algumas vezes soltar minha mão


do seu aperto, porém, Krigor não alivia a pressão, sem dizer nada, mas
mantém nosso contato por todo caminho, até entrarmos em seu quarto.
— O que você quer? Sou eu quem preciso de respostas.

— Para que eu lhe dê alguma, antes você precisa me dizer como,


onde e o que, Russell falou para você — ele fala, enquanto digita no celular.

Ele dispensa o aparelho sobre uma poltrona e vai até o frigobar do


quarto, pega uma garrafa de água e dois copos. Serve o líquido e quando me
oferece um e nego, a porta é aberta e Bóris passa por ela.

— O que houve?

— Russell procurou Aleksandra e a ameaçou.

— Como assim? — Ele olha de mim para Krigor, desacreditado.

— Quero que fale com a organização. Ele não poderia ter feito
isso. É contra as regras.

— Ela não é membro e nem contribuinte do circuito, Krigor. Eles


não vão interferir em algo pessoal.

— Isso é errado! Yebat! — Salto no lugar com o grito de Krigor. —


Ele poderia tê-la machucado, Bóris.

— Não foi para tanto — respondo, a fim de tranquilizar seus


ânimos.

— Se não foi tão sério assim, por que veio até mim? Se não se
sente ameaçada, não teria motivos para falar disso. — Ele dirige sua raiva
na minha direção e recuo um passo.

— Krigor, acalme-se. Você está assustando a moça. — Krigor


esfrega o rosto com as duas mãos, indo até a janela. — Aleksandra, me
conte detalhadamente tudo que aconteceu. Por favor? — Bóris senta no sofá
e aponta para a poltrona.
Coloco os braços em torno do meu corpo, sento e lhe conto tudo o
que se passou, a forma como Russell me abordou, falando sobre o mundo
deles não ser bom para mim e que poderia me machucar, se insistisse nisso.

— O que ele quer com isso? Por que com ela, Bóris? Já houve
tantas e nunca foram ameaçadas por ninguém. — Krigor vem até próximo
de nós, questionando, indignado.

Não perco o comentário sobre as tantas que existiram antes de


mim, o que causa desconforto e meu estômago protesta, revirando.

— Mas nenhuma delas fez você parar uma luta. Eu te avisei que
você colocou um holofote sobre a cabeça dessa moça.

Acho que a situação é mais perigosa do que imaginei.


Capítulo 20

— Acho que não é para tanto. Ele só quer mexer com seu
psicológico, Krigor.

— Você não tem ideia da yebat que está falando! — ele responde,
com aspereza, caminhando de um lado para outro.

— Não precisa ser grosseiro. Eu não tenho culpa em nada disso.


Você que foi imprudente de parar a luta e me forçar a ficar ali.
De costas para nós, Krigor para seus movimentos e vejo que seus
ombros caem quando ele solta o ar, com força. Quando se vira, a feição
raivosa deu lugar ao lamento e a culpa.

— Tem razão. Eu não deveria ter pedido que sua prima a levasse
até lá, nem tentado impedir que fosse embora. Você se tornou meu ponto
fraco perante eles e preciso dar um jeito nisso.
Seus olhos estão mirando o chão, suas palavras saem da sua boca
com peso, e são tão desagradáveis para ele proferir, quanto foram para eu
ouvir. Bóris levanta do sofá e caminha até próximo dele, tocando seu
ombro.

— Você vai ter que mostrar publicamente a todos eles que ela não
tem qualquer importância.

— Espera! — Levanto, desacreditada. — De fato, eu não tenho.


Aquilo na luta só foi uma provocação entre Krigor e eu, nada de mais.
— Que confirmou quando ele sumiu só com você da festa. Mais
uma atitude contraditória do volk. — Bóris sorri, desgostoso, e recebe um
olhar de advertência de Krigor. — Você sabe que isso foi a cereja no topo
do bolo, lutador. O cara que tem a fama de levar cinco, seis ou mais
mulheres para sua toca, principalmente em vitórias como foi aquela luta,
optou por sumir com a moça e não dar mais as caras. As notícias correm,
amigo.

Encaro os dois, chocada com as revelações. Já havia escutado algo


parecido da minha prima, mas nunca tão abertamente assim. Cinco? Seis?
Até mais? Esse homem é uma máquina, só pode.

— E o que sugere? Que eu vá a uma festinha que vocês


organizaram e assista ao lutador insaciável aí coletar a alcateia sem mim.
Isso fará todos pensarem que não sou a “favorita”? — Faço aspas com os
dedos no final e rio com a situação hipotética.

Bóris me olha de relance e o ar parece se iluminar diante de seus


olhos.

— Perfeito! Isso pode acontecer daqui a dois dias, na festa do


circuito.

— Esqueça! — Krigor determina, cortante.

— É o único jeito de tirar o foco de Aleksandra, Krigor. Depois,


cada um segue sua vida, sem mais preocupações.
O lutador encara Bóris, ponderando suas palavras e volta seu olhar
para mim, pesaroso.

— Eu não vou passar pela humilhação de ser trocada por meia


dúzia de mulheres, só para despistar seja lá quem for.

— Você sabe de quem estamos falando, Króchka? — Sua voz sai


tão contida quanto a feição descontente.
— Tenho ideia. Não sou burra.

— A máfia. Eles não lidam diretamente com o sistema de lutas


ilegais, mas são os donos por trás dos organizadores, testas de ferro deles —
Bóris esclarece, e confirma o que já tinha ouvido sobre.

— Eu gostaria que tivesse outra maneira, Króchka, juro que queria.


Não te procurei mais para te preservar, imaginei que deixar o hotel, sem
falar nada, era sua resposta para o que não aconteceu. Não fazia ideia de
que Russell tivesse a procurado.

— Onde você estava, quando acordei na manhã seguinte? —


Finalmente questiono o que tem martelado minha sanidade, desde que
acordei sozinha naquele quarto.

Um pigarreio nos desperta momentaneamente e Bóris parece


entender a deixa e sai do quarto, sem ao menos se despedir.

— Depois de te colocar para dormir, fui para a sala e deitei no sofá,


apagando em seguida. Na manhã seguinte, quando acordei, muito cedo, vi
que estava dormindo pesado e resolvi sair para correr e deixá-la descansar
um pouco mais. Comprei café da manhã e planejava te acordar quando
chegasse.

— Você ficou lá... a noite inteira... — As palavras saem falhas e


desacreditadas de mim.

Avanço alguns passos, cautelosamente, como se um magnetismo


em torno de Krigor puxasse meu corpo em sua direção, necessitando de um
pouco mais do seu cheiro, já que pelo desenrolar das coisas, nunca
chegaremos a consumar nossa história louca e tortuosa.

— Claro que fiquei. Gostaria de ter estado mais próximo, mas não
poderia correr o risco de me aproveitar de você, que estava apagada pela
bebida.

— Desculpe por isso, eu passei da conta nas doses. — Torço os


lábios, desconfortável.

No fim de tudo, a única a estragar a noite e a manhã gloriosa que


poderíamos ter tido, fui eu mesma. Primeiro, por beber feito uma louca e,
segundo, por tirar conclusões precipitadas.

— Não era para ser, Króchka. Eu te coloquei nesta confusão e vou


resolver tudo. Você só precisa estar na festa e próxima o suficiente para
ver... — Ele engole em seco.

— Para ver você pegar um bando de mulheres, esfregar na minha


cara e subir para fodê-las. — As últimas palavras saíram mais altas, devido
à raiva que explodiu meu autocontrole. — Preciso trabalhar, dê um jeito de
me avisar a hora e o local dessa festa. Estarei lá.

Contorno seu corpo, apressada, e diferente da outra vez, Krigor não


move um músculo sequer para me parar, quase me fazendo lamentar, apesar
da raiva que sinto dele, de mim e de tudo que aconteceu desde que coloquei
meus olhos sobre esse lutador no restaurante.

Bato a porta, com força, pouco me importando com a educação que


deveria ter. Marcho até o elevador, esmurrando o botão de chamada, que,
por sorte, abre as portas e o interior está vazio.

Cruzo os braços na altura do peito, sinto minhas bochechas


pegarem fogo com a raiva borbulhando, tomando proporções à flor da pele.
Olho para frente e, antes que as portas se fechem, Krigor caminha
apressado em direção ao elevador, chega a correr, mas elas se fecham e
respiro, aliviada.
Uma ponta minúscula de esperança se acende em meu íntimo,
imaginando que ele veio dizer que tudo isso não passa de uma idiotice sem
tamanho e que não será tão babaca assim comigo.

Minha vida não tem sido um mar de rosas há muito tempo, acho
que nunca foi, agora não poderia ser diferente. Desde que coloquei meus
olhos nele, no restaurante, algo me alertou sobre seu jeito, que emanava
perigo.

Não era um homem que roubava corações de donzelas inocentes,


pelo contrário, ele faria de tudo para manter o coração de cada moça que
passou em sua vida da mesma maneira, como se ele nunca tivesse tocado.

Isso poderia não parecer, mas era ainda mais cruel do que se
tivesse os levado com ele. A frieza que transparecia em suas ações,
condiziam exatamente com sua personalidade egoísta e singular.

Vencer e bancar o macho alfa é o seu único prazer e eu já sabia


disso, mesmo assim resolvi pagar para ver.
Capítulo 21

O dia seguinte ao encontro catastrófico não foi muito melhor para


meu humor. Depois de sair a passos largos e determinados do hotel de
Krigor, fui direto para o bar e cheguei arrumando todo o estoque, não dei
qualquer espaço para Irina auxiliar. A raiva e indignação eram tão grandes
dentro de mim, fervilhando meu corpo, a ponto de me despertar um desejo
insano de gritar, irada.
Para evitar um episódio difícil de explicar e deixar Irina ainda mais
curiosa do que já demonstrava, calei e simplesmente acionei o modo
mecânico, organizei tudo que precisava no estoque, com rapidez,
determinação e eficiência.

Mesmo depois de uma boa noite de sono, em que milagrosamente


não pensei em nada que não fosse o conforto e aconchego da minha cama,
apaguei e levantei atrasada para trabalhar no restaurante. Mal tive tempo de
escovar os cabelos, vesti a touca e saí feito uma louca apressada.

— Aleksandra, pedido da mesa nove — Frans chama do balcão,


colocando duas xícaras com pires sobre a bandeja pequena.

— Onde está a conta? — peço, quando não vejo a caderneta de


cobrança.

— Aqui está. — Ele estende o pequeno objeto em minha direção e


quando tento alcançá-lo, Frans recua me encarando, desconfiado. — O que
você tem? Está agitada e ao mesmo tempo calada. Passou o tempo todo,
desde que chegou, olhando mais para a porta do que para os clientes.
— Não deixei de tirar nenhum pedido, nada foi trocado ou
confundido e ninguém reclamou. Deve ser só impressão sua, Frans. —
Torço os lábios e sinalizo com a mão para que entregue a caderneta.
— Pode ser, mas, ainda sim, acho que está estranha.

— Isso não é uma condição proibida para trabalhar. Agora, me dê


essa conta — falo, com pouca paciência e ele finalmente me passa o objeto.

Sirvo a mesa e deixo a conta sobre ela, retornando para meu ponto
de costume no salão. Daqui consigo visualizar tudo, além de estar próxima,
suficiente, para escutar se Ivo ou alguém solicitar alguma coisa de dentro do
balcão.

Frans não poderia estar mais certo, estou completamente fora de


órbita com todos os acontecimentos da noite anterior. Apesar de uma ótima
noite de sono, acordei com a sensação de carregar um saco gigante de
batatas sobre os ombros, tornando meu caminhar pesado, o corpo cansado e
a mente exausta.

Só gostaria que tudo isso acabasse de uma vez. Pensar que ainda
estarei próxima dele e que, na ocasião, teremos que fingir indiferença, não é
algo agradável. Imaginar que presenciarei Krigor em sua normalidade,
rodeado de mulheres e, por favor, levando quatro ou cinco delas para um
quarto de hotel, chega a ser ridículo.

Eu deveria ter negado participar dessa palhaçada, mas a seriedade


com que ele tratou o ocorrido, somado ao comentário de seu treinador sobre
me deixar em evidência perante a organização, sabe-se lá o que realmente
está por trás disso, fez meu receio aumentar e se tornar um medo real.

Confiro o relógio e vejo que meu expediente encerrou, vou até a


área privada, pego minhas coisas e quando saio novamente, Katrina me
espera no salão, com os olhos apreensivos.

— O que foi? — Me aproximo, amarrando a faixa do casaco.

— Recebi dois convites, do Krigor. Veio um bilhete para você. —


Ela aponta um pequeno envelope branco.

Meus olhos queimam o pequeno objeto nas mãos da minha prima,


meu coração salta tão forte no peito, que as batidas pressionam minha
garganta e acabo pigarreando na tentativa de afugentar a sensação.

Pego sua mão, sem nada dizer, praticamente arrastando-a para fora
do restaurante. Frans, hoje em particular, está observador demais e, se for
para fazer isso realmente acontecer como se deve, não posso dar margem
para qualquer dúvida ou especulação.

Acho que estou ficando neurótica com tudo isso.

— Aonde vamos? Você não vai abrir o envelope? — Katrina


questiona, enquanto eu ainda a arrasto pela rua.

— Agora não. Guarda isso na sua bolsa. — Olho de relance para


ela, que obedece prontamente.

Passamos por uma pequena doceria e resolvo entrar. Caminho


direto para o banheiro, trancando a porta, com Katrina ao meu lado.

— Posso saber por que está agindo como uma louca? — Seu olhar
assustado combina com o timbre nervoso.

— Me passa o envelope — peço, sem responder sua pergunta.

Ela torce o nariz, desgostosa, mas faz o que pedi.

Quando o objeto finalmente está em minhas mãos, abro com


cuidado, tirando um pequeno bilhete de dentro. A letra não é das mais
bonitas, na realidade, é quase um garrancho dificilmente interpretável, mas
que faz meu coração aquecer de uma forma familiar e prazerosa quando
leio a primeira linha:

“Króchka moyá, gostaria que esses convites simbolizassem algo


realmente valioso e significativo para ambos, mas, como outras coisas em
minha vida, preciso abrir mão mais uma vez pelo bem de quem tenho
apreço.

Nunca esquecerei seu rosto quando lhe chamei de Lápatchka pela


primeira vez.

Fique bem...

Volk.

PS: queime o bilhete.”

O sorriso, que não consegui esconder enquanto lia o conteúdo,


morreu parcialmente quando vi seu pedido para dar fim no recado. Gostaria
de poder guardar algo dele como lembrança, mas com a paranoia tomando
conta dos meus sentidos, acabo por acatar seu comando.
— Você tem isqueiro?

Katrina ergue as sobrancelhas, devagar abre sua bolsa e tira o


objeto de lá, relutante em entregar-me. Assim que tomo posse do isqueiro,
risco a pedra e miro a chama na ponta do bilhete que seguro. Logo o fogo se
alastra pelo papel e as pequenas labaredas apaga qualquer vestígio do que
estava escrito ali.

— Por que fez isso? — Katrina, questiona.

— Porque o volk não significa mais nada para mim. Ele mandou
ingressos, não foi? — Faço minha melhor cara de descaso, enquanto ela
concorda com a cabeça. — Então, nós vamos a essa festa e mostrar que
aquele lutador não é tanta coisa assim.

Não fazia ideia o que se tornaria minha rotina nas próximas vinte e
quatro horas. Depois do meu discurso motivacional sobre superar o volk,
para que Katrina não desconfiasse do plano arquitetado, já que não disse
uma palavra sobre minha visita ao hotel de Krigor, ela se esforçou de todas
as formas para me deixar linda e sedutora para a ocasião.

Ela levantou a bandeira da união feminina e disse que o volk não


tripudiaria sobre mim, faria questão de me deixar mais bela e atraente do
que qualquer mulher no raio de um quilômetro do lutador, o que motivaria
toda a atenção masculina junto.

Não sei dizer até onde tudo isso foi positivo, minha prima e eu
temos conceitos tão diferenciados de vestimenta, comportamento e
ambientação, que temo me sentir completamente deslocada com as escolhas
que ela fez para esta noite.

Chegaremos à recepção com horário apertado, pois tive que ajudar


Irina no bar, apesar de ela ter dito que não precisaria me preocupar, já que
havia chamado alguém para me cobrir. Como se trata do dia mais
movimentado da semana, minha consciência não me permitiu simplesmente
virar as costas, além do mais, só auxiliei com o estoque e alguns
preparativos, com folga suficiente para ir embora e me preparar.

Para facilitar o trabalho da minha prima, que atacou de personal


stylist, optamos por fazer um rabo de cavalo bem alto, no topo da minha
cabeça. Minhas madeixas lisas e compridas caíram em cascatas no
vermelho vívido destacando a pele branca.
Uma maquiagem marcante, com as pálpebras em preto
esfumaçado, cílios longos postiços, um pouco de cor na maçã do rosto e
iluminador nos lugares certos destacando meus traços finos, estou pronta. A
boca em tom natural, com um brilho simples e delicado, só dando ênfase
nos lábios.

— Você está maravilhosa! — Katrina sorri, satisfeita.

Levanto da cadeira que ocupava em frente à sua penteadeira, que


no momento parece uma zona de guerra, com a quantidade de pincéis,
paletas de sombras, blushes, pós e corretivos espalhados para todo o lado.

Giro o corpo encarando o espelho que fica preso em sua porta.


Impressionada e chocada parecem adjetivos tão simples para o impacto que
sinto. Não me reconheço, literalmente, avanço dois passos para ficar ainda
mais próxima do meu reflexo, confirmando que sou mesmo a mulher
poderosa refletida ali.

Por ser mais baixa que Katrina, tenho o corpo um pouco mais
avantajado que ela nos quadris, pernas e bunda. Por isso, o vestido que ela
escolheu para eu usar, está agarrado em todas as minhas curvas, marcando
cada pedacinho de mim. O tecido de veludo faz um desenho plissado
retangular na parte de cima, onde uma enorme fenda divide meu colo e as
costas, desce ajustado e liso da cintura até o meio das coxas.

Sim, um modelo ousado e muito revelador, até exagerado para a


fria Moscou, mas quando tentei argumentar isso, Katrina me mostrou suas
botas de verniz que vão até acima dos joelhos e um sobretudo preto que
cobre até a canela.
Sem qualquer argumento mais plausível, me dou por vencida
quando encaro minha imagem linda e exuberante no espelho, meus olhos
transmitindo o único desejo desta noite: fazer Krigor se arrepender
amargamente de não ter feito tudo diferente.
Capítulo 22

Chegamos ao centro de Moscou, onde uma famosa casa de festas é


iluminada com holofotes e luzes coloridas, vários carros formam um
trânsito pesado com o desembarque dos passageiros.
Descemos do carro depois de pagar a corrida, Katrina roda em
torno de si mesma maravilhada com a grandiosidade do evento.

— Prima. Isso, sim, é uma festa com estilo. — Ela sorri com a
boca colorida em um vermelho chamativo.
Katrina usa um casaco cinza, que imita pele de chinchila. Sei que
não é verdadeiro, afinal, nunca teria dinheiro para bancar um item tão
exótico quanto esse, entretanto, tem uma qualidade excelente. Por baixo, ela
usa um vestido prateado de manga comprida e bem curto, as costas
completamente expostas e o tecido fino o torna ainda mais sensual que a
própria modelagem.

A garota sabe como abalar na escolha de uma roupa e chamar


atenção com seu jeito completamente aberto e despudorado.
Aproximamo-nos da entrada, uma hostess recolhe nossos convites
e nos direciona para a área do guarda-volumes. Retiramos os casacos,
pegamos o ticket e quando viro para sair dali, dou de cara com uma parede
de músculos, grande e dura à minha frente.

Automaticamente afasto um passo, miro seu corpo, já sabendo que


se trata dele pela energia que emana. Acho que o reconheceria mesmo
vendada e com o olfato limitado.
Sapatos pretos brilhantes, bem polidos; calça social; cinto; camisa
e terno, todo em preto. Sem gravata, só com o primeiro botão do colarinho
aberto, a barba rala, pequena, mas presente e quando finalmente chego ao
seu rosto, sou tragada para uma miríade de sensações incompreensíveis.

Raiva, desejo, luxúria, posse e desafio, este último mais do que


gritante, tomando frente no meu modo de agir. Ergo as sobrancelhas,
encarando-o, e um leve e quase imperceptível sorriso surge naquela boca
pecaminosa.

Os olhos de Krigor não saem do meu decote, a não ser quando


descem para o filete de pele que fica à mostra entre a barra do vestido e o
início da bota.

— Venha, Katrina — chamo minha prima, saindo dali a passos


determinados.

Internamente agradeço a superprodução de Katrina, que me


permitiu não ter vacilado no momento, consegui manter a pose determinada
e confiante que pretendia. Posso até ser trocada publicamente hoje, mas não
sairei por baixo.

Descemos um pequeno lance de escadas, carpete vermelho


cobrindo todos os degraus até dar lugar ao piso de porcelanato preto, tão
brilhante e limpo que provavelmente mostraria o fundo da minha calcinha
se eu abrisse as pernas o suficiente.

Olho em volta, observando as pessoas, notoriamente de uma classe


social diferente da minha, todas muito elegantes e bem vestidas, alguns
homens com aspectos sisudos, então me recordo que se trata de um baile
para anunciar um novo circuito de lutas, o que justifica a cara de mau.
— Isso aqui é lindo! — Katrina continua admirada, os olhos
parecem de uma criança que acaba de desembrulhar o melhor dos presentes.

— Realmente — concordo, ainda mirando o ambiente, com a


iluminação bem colocada em torno do salão redondo, circulado por duas
fileiras de mesas à sua volta, deixando o centro do espaço um palco
improvisado baixo, onde uma banda toca música ambiente.

Um grande fluxo de pessoas não param de entrar, Katrina e eu


vamos procurar por nossa mesa, onde apreciaremos um jantar antes dos
discursos. A programação está sendo anunciada em um imenso telão
inclinado próximo do teto, acima da escadaria pela qual descemos para o
salão.

Caminhamos pelo lugar, meus olhos inspecionam tudo e todos,


mesmo tentando manter minha mente focada no ambiente mais diferenciado
e de requinte que, provavelmente, colocarei meus pés em toda a minha vida.
Não consigo parar meu tolo coração de saltar, cada vez que um homem
grande e forte, vestido de preto, passa pelo meu campo de visão.

— Achei! — Katrina fala mais alto, chamando a atenção de


algumas pessoas próximas.

Sentamos à mesa, que já está preenchida por algumas mulheres,


lindas e tão bem vestidas quanto nós, que conversavam animadamente.

— Oi, sou Nikita — uma loira platinada, de franja e cabelos


compridos nos cumprimenta, animada.

Sua forma íntima de falar, mostra que não é habituada com nossos
costumes.

— Oi, sou...
— Boa noite, garotas! — Sou interrompida, e quando olho para
cima, vejo Bóris de pé ao meu lado.

Meu coração salta e quando arrisco um olhar, desviando a cabeça


ligeiramente do seu corpo, vejo Krigor mais à frente, conversando com um
grupo de homens.

— Bóris, meu querido! Desta vez vocês não pouparam na


ostentação.

— Isso é responsabilidade da organização, Nikita, mas podem


desfrutar à vontade. Mais tarde, Krigor virá chamar uma, ou algumas, de
vocês para uma festinha particular — ele fala o final mais baixo, piscando
um olho.

Não consigo evitar a careta quando meus lábios torcem, segurando


o enjoo que acabou de atacar minhas entranhas. Sinto-me como um
verdadeiro pedaço de carne, disponível na vitrine para quem quiser levar.

Troco um olhar com Katrina e vejo que ela está tão incomodada
quanto eu com a situação. Sei que está tomando minhas dores, mesmo sem
saber que tudo isso faz parte de um teatro previamente montado.

— Se quiser ir embora... — ela se aproxima, sussurrando.

— Não. Tudo bem. — Sorrio, complacente, para tranquilizá-la.

Depois que Bóris se afasta, a mesa fica em polvorosa com a


falação empolgada das três mulheres que já a ocupavam quando chegamos.
O garçom se aproxima, servindo uma taça de espumante para mim e
Katrina, aproveito para pedir duas doses de vodca.
Não há a menor possibilidade de eu passar por essa palhaçada sem
um pouco de álcool em meu corpo.
— Boa noite, Aleksandra Yakovna.

Olho, espantada, para cima do meu lado direito, vejo o homem que
me ameaçou há alguns dias e causou toda essa armação por parte do lutador
sem noção que conheci.

— Russell!
Capítulo 23

Estendo a mão, aceitando o cumprimento galanteador de Russell,


nada coerente com o homem impetuoso da arena, muito menos, o
ameaçador de dias atrás. Quando seu corpo curva em minha direção, sinto
uma pequena repulsa por aceitar o contato, entretanto, lembro-me do
motivo de estar aqui.

— Não esperava vê-la aqui hoje. — Ele percorre o olhar pela


mesa, analisando as mulheres.

— Uma festa dessas é difícil de recusar.

— Então, você resolveu esquecer meu conselho daquela noite? —


Seu tom é baixo, entretanto, não soa ameaçador. Está mais para alguém
curioso com a situação.

— Como te disse aquele dia, Krigor e eu não temos absolutamente


nada — respondo, sucinta.

— Muito prazer, sou Katrina Kolyavna. — Minha prima, quase


saltando sobre mim, estendendo a mão para Russell.

— Muito prazer. — o homem tem um ar risonho quando aceita o


cumprimento dela.

— Festa bem interessante, mas é meio arriscado você permanecer


na mesa das convidadas do volk, não é? — direta e sem rodeios, ela cutuca
o lutador.
— Eu não tenho medo de Krigor dentro da arena, fora muito
menos.
— Mesmo assim, soa um tanto desrespeitoso. Tenho certeza de que
ele não está cercando suas mesas. Isso é tipo o quê? Um fetiche por atiçar a
ira do lutador? — Para enfatizar a ironia de suas palavras, Katrina apoia o
cotovelo na mesa e encosta o queixo na mão.

Vejo as narinas de Russell dilatarem com a ingestão de ar súbita


que ele faz, provavelmente acalmando seu gênio para não responder
grosseiramente a uma mulher audaciosa que acabou de conhecer.

— Isso não é da sua maldita conta. — Russell ajeita a frente do


paletó, prendendo o único botão. — Nos vemos depois, Aleksandra. — Ele
acena com a cabeça, se retirando.

Katrina e eu nos entreolhamos, incertas, para logo em seguida


começarmos a rir da situação.

— Você não tem jeito, prima. — Balanço a cabeça em negativa,


pego minha taça espumante e sorvo um gole.

— Pelo menos, ele foi embora. — Ela dá de ombros.

— De onde vocês conhecem Russell? Já foram em alguma festinha


dele? — a tal Nikita, que percebo estar muito focada em nós, questiona,
curiosa.

— Conheço ele há pouco tempo — respondo, séria.

— Dizem que nas festas que ele promove tudo é liberado,


absolutamente tudo. — Ela aproxima o corpo da mesa, falando baixo: —
Sexo grupal, drogas pesadas e algumas gratificações. — Enrugo as
sobrancelhas para o final e ela esclarece: — Quando as coisas extrapolam
os limites.
Recuo o corpo, encostando na cadeira, olho para Katrina que
parece tão chocada quanto eu, mas optamos por nos manter em silêncio.
Nem conhecemos essa garota e atestar a veracidade de tudo que disse é
praticamente impossível.

Sentindo um incômodo repentino, levanto e me retiro. Minha


prima quer me acompanhar, mas aviso que só vou tomar um pouco de ar
próximo ao bar, onde na parte de trás, tem uma área externa que fica
blindada por vidros espessos.

Entrego meu ticket do guarda-volumes para uma atendente e


espero que busque meu casaco. Seria suicídio sair deste lugar sem qualquer
proteção. Apesar das longas botas que resguardam grande parte das minhas
pernas, o vestido não tem um forro duplo ou térmico, o que me faria
congelar em poucos minutos.

Assim que a hostess retorna, visto o sobretudo, fechando-o em


torno de mim, com firmeza, e saio para o jardim, literalmente de inverno,
do lugar. Um espaço lindo e bem dividido, uma boa opção para os fumantes
que o frequentam. Claro que isso requer o sacrifício de estar exposto ao
frio, como na noite de hoje, mas é o preço a se pagar.

Fecho os braços em torno do meu corpo, observando o fino tapete


esbranquiçado se formar pela grama seca no chão. Algumas pessoas estão
aglomeradas no outro canto, fumando seus cigarros e se aconchegando o
mais próximo possível.

Miro o nada e passo algum tempo assim, sentindo o ar gelado bater


em meu rosto, causando um ardor bem-vindo, já que por dentro estou a
ponto de gritar e fugir deste lugar.
— Boa noite, Króchka. — Ouço sua voz baixa logo que para ao
meu lado.

Não me admira nem surpreende, acho que inconscientemente


acabei saindo aqui para ter esse momento, só ele e eu, sem os olhares e a
encenação programada.

— Boa noite, volk — respondo, mantendo os olhos na paisagem.

Passamos algum tempo quietos, aproveitando o silêncio e a energia


que paira entre nós quando estamos próximos. Algo que nunca teríamos o
direito de negar é que a química sempre funcionou de forma instantânea
para ambos.

— Você está bem acomodada? — Olho para ele repentinamente.


— Digo... bem servida?

— Claro. Eu e sua alcateia estamos nos dando muito bem. Todas


estão ansiosíssimas para serem as sortudas da noite. Já decidiu, volk? Se
hoje quer todas em sua cama ou só algumas? — Não consigo evitar meu
sorriso de escárnio.

— Você sabia o que enfrentaria ao vir aqui hoje.

— Eu não escolhi nada disso. Você me obrigou, desde sempre. No


segundo em que entrou naquele maldito restaurante — explodo, alterada.

— Tem razão! Por isso estou dando um jeito de consertar tudo. À


minha maneira — ele responde baixo, porém, enérgico.

— Quer saber? Yeb vas você e sua maneira de lidar com tudo.

Tento girar para sair o mais rápido possível, mas ao contrário do


que pretendia, Krigor segura meu pulso e puxa meu corpo de encontro ao
seu. Mesmo com a bota, que tem um salto significativo, ele continua mais
alto e praticamente me cobre com seu corpo.

Sua mão livre segura minha nuca, mesmo na tentativa de afastar o


rosto, entendendo muito bem o que ele pretende, bato o punho livre em seu
peitoral, através do casaco grosso, que não surte efeito algum e sou
confrontada com um beijo duro e direto.

Seus lábios exigentes pedem passagem e, fraquejando brevemente


em minha ira, acabo cedendo. O aperto se intensifica em torno de mim, a
respiração engata e se torna difícil encher os pulmões, conforme ele
consome minha boca a cada passada de língua.

Krigor não quer um beijo punitivo, não tenta se impor a mim e


mostrar quem manda, na realidade, ele está ofertando, entregando de
bandeja toda sua intensidade na única oportunidade e, tenho certeza, está se
esforçando muito para não arrancar nossas roupas bem aqui.

Aproveito por um momento, ciente de que será a última vez que


terei o prazer de sentir seus lábios sobre os meus, os braços me apertando
em seu calor, faz com que meu ventre vibre com todas as sensações
causadas, choques prazerosos, tirando por completo o juízo.

Por mais que não tivesse aproveitado a contento, terá de ser


suficiente para aplacar esse desejo insano e deixar que o tempo se
encarregue do esquecimento necessário.

Quando ele geme baixo, finalmente separando nossos lábios, sua


testa se encosta na minha, as respirações aquecendo a pele um do outro e a
falta de coragem nos mantêm de olhos fechados, eternizando esses
segundos.

— Króchka... — A voz rouca e baixa toca minha pele.


Afasto meu corpo, com rapidez, quebrando todo o encanto,
sentindo a chama queimar meu corpo por inteiro, decido eu, dar o passo
para seguirmos com o plano.

— Continue seu jogo, volk, está indo bem. Russell está interessado
em minha presença à mesa. Arrumarei uma companhia para o grande final
— comento, como se fosse uma profissional tratando de negócios.

— Do que está falando? — ele pergunta, com um aspecto nada


feliz e isso causa uma pequena alegria em meu ego.

— Que não farei o papel da tiete pegajosa e chorona. Vou arrumar


alguém para afogar as mágoas.

— Króchka! Eu acabo com qualquer um que ousar te tocar. — Isso


soa tão ameaçador, apesar de acreditar que ele fará, sinto-me tomada pela
empolgação.

Só posso estar louca!

— Você não está em posição de fazer isso, volk. Siga com seu
plano e boa sorte. — Dou um sorriso discreto.

Viro meu corpo e saio dali a passos firmes. Não me atrevo olhar
para trás, mas tenho certeza de que o lutador ficou muito irritado, bufando e
a ponto de explodir com qualquer um.
Capítulo 24

Visto minha máscara vitoriosa e diferente de quando cheguei, sento


à mesa ao lado de Katrina, sentindo-me poderosa e bem resolvida. Saber
que causo a mesma irritação que Krigor me faz sentir, de alguma forma,
aplaca toda essa situação bizarra.

— Você está corada. O que andou aprontando? — Katrina sussurra


próxima de mim.

— Aguarde e verá. — Sorrio de lado, misteriosa.


Em seguida, o jantar é servido e as pessoas que ocupavam o salão,
em rodas de conversa ou simplesmente arriscando alguns passos de dança
na pista, sentam-se para comer.

Não consigo tocar direito na comida, meu estômago embrulhado


por todas as emoções vividas até aqui, não me permite apreciar o cardápio.
Fico somente no espumante e nas duas doses de vodca que brindei e tomei
com Katrina.

Meus olhos correm para a mesa ao lado oposto e vejo Krigor


sentado com um bando de homens grandalhões, rindo e comendo, todos
interagem, incluindo ele.

Observo seus trejeitos por um tempo que não sou capaz de


calcular, mas é o suficiente para que perceba minha encarada e volte sua
atenção para onde estou. Permanecemos assim, até que tenho uma ideia e
decido começar a agir.
A sobremesa está sendo servida e outra banda começa a tocar
músicas mais atuais e modernas, ainda para serem dançadas a dois, o que eu
acho uma porcaria, já que não tenho essa habilidade toda, mas conto com a
sorte de achar um parceiro adequado.

A única vez que me aventurei, foi quando Krigor me abordou na


pista daquele bar e não durou tempo o suficiente para aprender passos
descentes.

— Aonde vai? — Katrina pergunta, assim que levanto.

— Vou arrumar um parceiro de dança — respondo, caminhando


para longe.

— Mas você não dança a dois! — Posso ouvir sua declaração, um


pouco distante.

Munida da minha taça de líquido encorajador, caminho devagar até


a mesa de Krigor e, mesmo longe, posso ouvir as risadas e o falatório
diminuírem, quando um a um, percebem minha aproximação.

— Mílaya[18], volte para a mesa. Logo Krigor dará atenção a vocês


— Bóris fala, rindo, mas vejo em seus olhos a preocupação por me
aproximar assim.

— Na verdade, eu não vim aqui pelo Krigor — disfarço, como se


não fosse nada ofensivo sua frase anterior. — Gostaria de saber se você
aceita dançar comigo. — Aponto para um grandalhão loiro, que ocupa a
cadeira ao lado do volk.

— Andrey, não! — Krigor declara, o rosto tomado pela


determinação e aspereza.
— Será um prazer... — Ele levanta, com ar risonho, estendendo
sua mão para mim.

Retribuo, receptiva, e me espanto com o tamanho do homem. Ele


tem o dobro da altura e largura de Krigor, que não parece nada intimidado
em rosnar para nossa interação.

— Aleksandra Yakovna, mas pode me chamar de Sacha. — Sorrio,


delicada.

Ele sinaliza para que eu saia à frente, deixo minha taça sobre a
mesa, bem em frente a Krigor e caminhamos para a pista de dança. Escuto o
barulho de uma cadeira arrastando bruscamente e alguém manda Krigor
ficar calmo, imagino ser Bóris.

Sorrio, triunfante, atingi meu objetivo e deixarei o lutador com


cara de bobo perante todos. Tínhamos que encenar uma separação, um
descaso para nosso possível envolvimento, mas isso não significa que eu
deveria ser a rechaçada, o volk também poderia provar um pouco desse fel.

— Então, Sacha... — o tal Andrey pondera o que dizer, escolhendo


as palavras com ar risonho na face —... o que faz na mesa do volk hoje?

Suas mãos grandes e fortes descansam na minha lombar e eu apoio


meus braços em seu peitoral, já que não alcançaria seu pescoço nem com
uma escada.

O que deu nesses homens russos para serem tão altos? Sinto-me
uma anã perto deles.

I Hate U, I Love U, Gnash começa a tocar, entoada pela cantora da


banda de forma lenta e melodiosa, a letra, assim como o timbre de sua voz,
parecem me envolver de forma irrevogável e o desejo de estar com outro
homem aqui e agora me incomoda bastante.
— Vontade de estar em um evento como este — respondo sua
pergunta, com uma expressão convencida.

— Já vi muitas mulheres usarem a mesma tática que você, sabe?


— Ele tomba a cabeça para o lado, intrigado, enquanto me observa.

— Mesmo? E que tática seria?

— Trazer um competidor para a disputa, mas já adianto que isso


nunca funcionou.

— Acha mesmo que estou te usando para atrair a atenção do volk?


— De certa forma ele está certo, mas não pelos motivos que pensa.

Não quero a atenção do lutador e, sim, sua ira.

— Acho. Já protagonizei alguns desses momentos, já assisti a


tantos outros, mas diferente de todas às vezes anteriores, nunca presenciei a
cena de hoje.

— Que seria... — incentivo, curiosa.

Andrey, demonstrando muito habilidade no balanço a dois, gira


nossos corpos, me colocando agora de frente para a mesa de Krigor e vejo o
lutador de pé, nos encarando como um touro furioso, prestes a atacar.

— Aquilo? Ego — respondo, e rio com desdém.

— Pode ser, mas eu acho que posso sair seriamente ferido, se não
me afastar de você nos próximos trinta segundos.

— Vai me deixar aqui sozinha? — pergunto, desacreditada.

— Não. Jamais abandonaria uma dama à própria sorte, Sacha.


Principalmente se ela é importante o suficiente para meu amigo parar uma
luta caríssima, só para fazê-la ficar.
Fico séria, interrompendo meus passos, encaro o semblante
cúmplice de Andrey, processando suas palavras.

— Você pode me dizer que aquilo também foi uma questão de ego,
mas eu estava lá. Vi, ouvi e tirei a limpo com meu amigo de muitos anos,
tudo que aconteceu.

— Pelo visto, escolhi um aliado dele para a noite — respondo,


incomodada, e Andrei volta a mover nossos corpos no ritmo da música.

— Sim, mas em cinco segundos isso pode mudar.

— O que você está... — Não consigo completar a frase, quando um


braço grande e forte envolve minha cintura, tirando-me do chão e do
contato com Andrey.

— Tak! Já chega desse chyort voz'mi[19]! Chega de dançar! —


Krigor quase urra para o amigo que se mantém sereno.

Arrisco um olhar à nossa volta e minha indignação aumenta na


mesma proporção do susto que fui acometida. Todos encaram a cena
ridícula que o lutador resolveu causar, tendo-me suspensa pela cintura em
seu aperto, parecendo uma marionete em suas mãos.

— Me coloca no chão, volk! — grito, dando um soco em seu


braço.

— Com você, me entendo daqui a pouco, Króchka! Escolha


qualquer uma daquela mesa, Andrey, mais que uma, mas não chegue perto
dessa de novo.

Abro a boca, chocada, com esse lutador sem qualquer noção.


Começo a me sacudir em seu aperto, batendo minhas pernas até acertá-lo de
alguma forma e finalmente me ver livre do seu ataque.
— Você acha que sou um pedaço de carne negociável? Acha que
não sou capaz de decidir com quem quero ou não sair daqui hoje, volk?
— Króchka... Não teste minha paciência. — Ele troca o peso do
corpo entre as pernas, na tentativa de se conter.

— E você não aja como um troglodita!

— Já chega, os dois! — Bóris intervém, se colocando entre Krigor


e eu. — O que nós combinamos para hoje, volk? Você está colocando tudo a
perder... — ele fala mais baixo, somente para nós dois.

— Você tem razão. — Krigor ergue o nariz, altivo, afastando um


passo. — Vou pegar as meninas e encerrar a noite do meu jeito. — Ele
enfatiza as últimas palavras, provocante.

Antes de sair, Krigor troca um olhar significativo com o amigo


Andrey e parte, sem ao menos me olhar por uma última vez.

Vejo-o pegar três meninas da mesa, enganchá-las em seus braços e


passear pelo salão, desfilando para a saída.

Pelo visto, o lutador venceu outra vez, tudo aconteceu como ele
quis e eu não posso evitar o sentimento de humilhação que me toma agora.
Capítulo 25

Depois da saída triunfal de Krigor, vou até a mesa e pego minha


bolsa, saindo com rapidez deste lugar. Katrina me acompanha, sem dizer
uma palavra e internamente, agradeço por isso.
Quando estamos recolhendo os casacos na portaria, Russell, outro
babaca que tive o desprazer de conhecer, aparece ao meu lado.

— Parece que o volk já te trocou. — Encaro seu rosto zombeteiro,


o prazer em destilar seu veneno transborda.
— Pouco me importa o volk, você ou qualquer merda que envolva
essa droga de circuito de lutas.

— Se quiser uma vingança, posso te oferecer uma excelente


oportunidade, Aleksandra Yakovna. — Seus olhos deslizam pelo meu
corpo, atento.
— Você é bem babaca... — Katrina toma à frente, mas eu a corto
ao segurar seu braço.

— Eu jamais ficaria com um tipo como você — respondo, e viro as


costas, saindo dali.

Logo que alcançamos a calçada, agora, ainda mais irritada, Katrina


saca o celular, fuçando o aplicativo para chamar um carro e sairmos logo
daqui.
Um conversível preto estaciona quase à nossa frente e um homem
de terno preto desce e vem abrir a porta.
— Boa noite, Krigor Dmitrievitch oferece o transporte para ambas
— o homem declara.

— Que ótimo! — Katrina se empolga.

— Não é, não! Obrigada, mas não precisamos de carona —


respondo, contendo minha prima.

— Tá doida, Sacha? Nunca conseguiremos um carro aqui. O


aplicativo está indisponível.

— Eu não vou aceitar nada daquele lutador — falo, entredentes.

— Algum problema, moças? — Olho para o lado e mais uma vez


Russell está nos cercando.

— Nenhum.

— Tem certeza? Pelo que vejo, o volk garantiu que um dos seus
homens a leve em segurança para casa, enquanto ele se esbalda com a
alcateia.

Fecho os olhos por um breve instante, só para tornar a abri-los e


fuzilar o homem ao meu lado com toda a ira que consigo emanar.

— Afinal de contas, o que você tem com tudo isso? Qual o seu
problema comigo? O que ganha ao ficar me cercando? Não viu que o volk e
eu não temos nada? — emendo uma pergunta seguida da outra, sem lhe dar
tempo de resposta.

— Desestabilizar o oponente é sempre a peça-chave de qualquer


luta, Aleksandra Yakovna.

— E onde eu me encaixo nisso?


— Conheço o volk bem o suficiente, para ter certeza de que ele
odiaria ver você ao meu lado.

Pondero suas palavras por um momento. O desejo de pagar na


mesma moeda todos os sentimentos que aquele lutador me causou até aqui,
batem à porta, mesmo que tudo não passe de uma encenação para livrar
minha pele da ameaça feita por esse mesmo homem.

É uma completa incoerência e, ao mesmo tempo, um absoluto


atrativo.

— Estou hospedado no mesmo hotel que ele. Se formos agora, é


provável nos encontrarmos lá — ele instiga um pouco mais.

— Krigor insiste que vocês aceitem o carro — o motorista, que


estava quieto até o momento, manifesta-se.
— Sacha, é melhor aceitarmos a carona — Katrina argumenta.

— Pense bem, Sacha. — Russell pronuncia meu apelido devagar.


— Essa oferta não será feita de novo. É sua chance.

Meus olhos percorrem para as três figuras paradas à minha volta,


razão e emoção duelando dentro de mim, ora priorizando minha segurança
e o fim de toda essa história descabida, ora instigando para que eu vá fundo
e mostre para Krigor que ele não é o ditador que pensa ser.

— Eu... — Solto o ar estafada. — Agradeço o convite, Russell,


mas encerro a noite por aqui. Minha cota de lutadores valentões já se
esgotou e só quero ir para casa, seguir minha vida.

Escuto Katrina respirar ao meu lado, aliviada com minha decisão.


— Não posso dizer que escolheu mal. Boa noite! — Russell ajeita
o paletó, com o semblante leve, e parte.
Fico olhando-o se afastar, minha mente processa o que acabou de
dizer sem qualquer conclusão. Entramos no carro luxuoso e, com certeza,
muito caro de Krigor. O motorista parece bem feliz depois de concordar
com a carona e logo seguimos pelas ruas de Moscou.

— Por um momento, achei que você sairia daqui com aquele


lutador. Ele me dá calafrios — Katrina comenta, estremecendo o corpo de
forma proposital.

— Ele não é tão ruim assim.

— Você esqueceu que te ameaçou há alguns dias? — ela eleva a


voz, questionadora.

Dou de ombros sem uma resposta coerente para rebater, já que está
coberta de razão. Minha cabeça parece não fazer conexão com meu senso
protetor desde que deixei Krigor, depois daquela conversa estranha, no seu
quarto de hotel.

A verdade, da única resposta que encontro no turbilhão de


acontecimentos que tenho vivido, é que a minha necessidade de desafiar,
enfrentar e vencer aquele lutador inconveniente sempre fala mais alto. Sua
audácia em bagunçar minha vida é tanta, que mal consigo me lembrar da
antiga rotina antes dele.

Chegamos em frente ao nosso prédio e Katrina é a primeira a saltar


do carro, sem nem aguardar que o pobre motorista contorne o caminho para
abrir a porta.

— Obrigada pela carona.

— Disponha.
Aceno para o funcionário de Krigor e caminhamos para o pequeno
portão que separa a entrada do prédio da calçada. Algo chama a atenção ao
meu lado e viro o rosto por reflexo, firmando os olhos num canto distante
da rua.

Há um carro preto discreto parado ao fim dela, a porta abre e um


homem com sobretudo preto e chapéu desce. Os pelos do meu corpo se
arrepiam inteiros e posso garantir que não é pelo frio moscovita.

O estranho caminha calmamente em nossa direção e vejo, pela


visão periférica, Katrina tomar o molho de chaves que estavam na minha
mão, apressando-se para abrir o portão.

— Consegui. Vem! — Katrina puxa meu braço, assim que abre


passagem.

Minha atenção ainda está voltada para o estranho que continua


caminhando em nossa direção, o carro com o motorista de Krigor se
mantém parado no meio-fio e o homem deixa a porta do passageiro aberta.

— Vem, Aleksandra! — Katrina chama, já do lado de dentro.

— Calma. Estou indo — respondo, dando alguns passos em


direção à rua.

— Aleksandra!

Ignoro a advertência da minha prima, que deve achar que sou uma
louca por sair a essa hora em direção a um estranho na rua. No entanto, algo
me diz que esse arrepio familiar só ocorre, ou ocorreria, na presença de um
único ser, que não acredito que tenha a intenção de me fazer mal. Ao
menos, não diretamente.
— Volk — confirmo, assim que estou perto o suficiente para
reconhecer seu rosto, parcialmente coberto pelo chapéu.
— Króchka — ele cumprimenta, parando os passos.

— O que faz aqui?

— Esperando que você chegasse em casa, em segurança.

— Eu pensei que você estaria com aquelas...

— Mulheres? Fazia parte da encenação, não lembra? Todos


precisavam me ver sair daquele lugar com várias delas e sem você.

— Sim... Sobre isso, acho que exagerei e...


— Você foi ótima! Acabei me perdendo quando Andrey aceitou
seu convite para dançar. Deveria ter me contido. — Mais uma vez, ele
interrompe minha fala.

— Então é isso. Problema resolvido, não sofro mais ameaça


alguma. Encontrei com Russell na saída, ele parece ter acreditado em tudo.

— Acredite, ele é o que menos importa ser convencido.

Aproximo um passo, intrigada. As palavras soltas que Krigor


sempre coloca, fora do contexto, entretanto, com significados ocultos,
instigam-me.

— Quem deveria ser, então? Por que tudo isso foi necessário,
Krigor?
Capítulo 26

Sem dizer uma palavra, ele se aproxima, fechando a curta distância


que ainda nos mantinha separados e passa seus braços sobre meu corpo, em
um aperto protetor.
— O importante é que você não está mais envolvida nessa merda.
Pode seguir sua vida, sem se preocupar, Króchka. — Ele beija minha testa
com carinho.

Encosto minha cabeça em seu peito, mesmo com diversas camadas


de roupas térmicas e quentes nos separando, posso sentir o calor do seu
corpo ou talvez seja o meu próprio, que se torna brasa quando estou em à
sua volta.

— Eu nunca mais vou te ver? — A pergunta sai baixa, sem que, ao


menos, eu consiga raciocinar.

Por um segundo, fecho os olhos, lamentando minha demonstração


de vulnerabilidade diante dos tantos embates que já travamos até aqui, mas
quando seus olhos pousam sobre os meus, consigo ver a mesma incerteza
refletida neles e sei que sou compreendida.

— Passa esta noite comigo, Króchka? Deixa-me mostrar tudo que


posso te fazer sentir. Quero marcar minha alma com teu corpo, para que
nunca mais me esqueça de você.

O coração troveja no peito com tanta força, que temo ter um ataque
a qualquer momento. Minha razão e emoção ficam na costumeira guerra
interna, que é iniciada, ao ouvir seu pedido.
Ceder esta noite ao volk não irá só marcá-lo, mas a mim também, e
preciso ter a certeza de que saberei lidar com qualquer consequência que
venha depois.
— Eu vou.

Quando entro no mesmo carro que me trouxe até em casa, meus


sentimentos, mente e corpo, estão em outra sintonia, completamente
diferente de quando cheguei.

O lado racional, que sempre foi determinante em minhas ações,


pulou fora há muito tempo. As emoções transbordam, tornando as
expectativas ainda maiores e meu corpo reage da forma mais torturante ao
menor movimento dele.

No carro, seguimos em lados opostos do banco, nenhum contato,


nem ao menos a mão. Desde que concordei, Krigor pareceu afundar dentro
de suas introspecções e mantém a atenção na janela o tempo todo.

O carro entra na garagem de um grande hotel, próximo de onde a


festa aconteceu, anda até o final do estacionamento e para em frente a uma
pequena porta, sinalizada como área restrita.

— Venha, temos que ser rápidos. — Ele abre a porta, saltando do


carro.

Agilizo meus movimentos e logo estou ao seu lado, ele segura


minha mão, entrelaçando nossos dedos através das luvas de couro,
caminhamos para o acesso à nossa frente. Há um pequeno corredor dividido
por um elevador e uma escada, ele opta pelo primeiro e logo estamos
subindo os andares pela caixa metálica.

— Jeito diferente do hóspede entrar. — Tento brincar para


espairecer a tensão que ele emana.

— É a única maneira de ninguém nos ver. O hotel está repleto de


lutadores, funcionários do circuito e até membros da organização.

— E as suas... Convidadas? Você deveria ter entrado com elas —


questiono, a curiosidade evidente.

— Eu entrei. — Torço a cabeça em sua direção, chocada. — Pela


porta da frente, acompanhado de Bóris. Deixei todos na minha suíte e saí
em seguida com o motorista, pela área de serviço.

Ergo as sobrancelhas, compreendendo parte do que fez e entendo


como soube que eu estaria em casa naquele momento.

— Como sabia que iria aceitar sua carona?

— Contava com sua inteligência e bom senso. — Ele ergue


ligeiramente os lábios, disfarçando um sorriso que desponta.

Saímos do elevador e Krigor nos direciona para a primeira porta à


direita, ele a abre com um cartão de acesso e fecha em seguida. Observo em
volta, um quarto bonito e grande, mas não chega aos pés dos outros que já o
vi se hospedar.

— Este quarto é do motorista — ele esclarece, quando me vê


analisar o ambiente.

— Muito bonito e quase tão grande quanto o apartamento dos


meus pais, inteiro. — Passo a mão pela poltrona que fica em frente à cama.
Não tem nada muito grandioso no ambiente, cortinas em tons de
camurça cobrem a janela, uma cama grande e espaçosa, com lençóis de
excelente qualidade, imagino, e duas mesinhas de cabeceira, uma de cada
lado.

Vejo uma pequena porta no canto, que deve ser o banheiro, deste
lado alguns quadros enfeitam a parede, uma penteadeira com um espelho
relativamente grande e duas poltronas. O mobiliário é refinado e de bom
gosto, ornamentando todo o ambiente. Basicamente, um quarto digno
demais para um motorista, no entanto, pouco para um lutador renomado e
suas peculiaridades.

— Vou pedir algo para beber. Você está com fome ou precisa de
alguma coisa específica? — ele oferece, quando tira o telefone do gancho.

— Bebo o que beber — respondo, e removo o casaco.

— Tak!

Sem saber como agir, enquanto Krigor pede serviço de quarto, vou
para o banheiro e me tranco ali. Atitude muito coerente, depois de dizer sim
ao homem que prometeu uma noite marcante para mim, no meio da rua.

Aleksandra Yakovna Nicolaeva, onde está sua bendita cabeça?

Por que, depois de tudo que fiz e vivi para me livrar dessa
confusão, aceitei vir para a toca do volk? O que ele tem que me atrai tanto?

Espalmo as mãos sobre o balcão de mármore polido e encaro a


imagem da mulher completamente transformada pela produção no reflexo.
Os olhos esfumados de preto, que dentro da íris mostra a vivacidade e
desejo de intensidade pela existência. Sentimento esse que ofusquei por
tanto tempo, desde que assumi as obrigações financeiras da minha casa, no
entanto, adormecido em meu ser, aguardando o momento de vir à tona.
Krigor foi o gatilho perfeito.

A profundidade dos seu olhar, o ar desafiador constante, que


cutucava e instigava esse sentimento enervante, mesmo que meu consciente
tentasse oprimi-lo a qualquer custo.

Sua fala baixa e imperativa, somada às palavras provocativas,


combinação perfeita que coloca minha sanidade no limite.

Determinada, abro a porta do banheiro e vejo Krigor próximo à


cama, já sem o casaco e o chapéu. Entreolhamo-nos por um momento e
logo tomo partido de tirar o sobretudo, sem quebrar nosso contato.

Sua postura fica estática, parece nem respirar, atento aos meus
movimentos. Assim que o sobretudo deixa meu corpo, ergo a perna,
apoiando a ponta da bota na cama.

Tenho plena ciência de que meu vestido, muito colado, subiu e,


agora, Krigor tem uma visão privilegiada da minha calcinha preta de renda.
Deslizo as mãos para o feixe atrás da bota e puxo o zíper, abrindo o calçado.

Repito o movimento com a outra perna e removo os pés no final.


Ele ainda permanece no mesmo lugar, só me observando com olhos
semicerrados, as mãos nos bolsos da calça, postura altiva e intransponível,
exceto pelos olhos, que transmitem um fogo nunca visto antes por mim.

— Terminou o seu show, Króchka?

Apesar de ele soar debochado, entendo seu intuito de me provocar.


Balanço a cabeça em concordância e aguardo o seu próximo movimento.

— Você só aumentou ainda mais minhas expectativas, Króchka. E


eu deveria ter te avisado que não lido bem com elas. Se, em algum
momento, for demais para você, precisa me dizer para parar.
— O que quer dizer com isso, volk? — questiono, com o peito
arfando.
— Que a farei perder a consciência.
Capítulo 27

Um leve tremor percorre pelas minhas pernas, sobe em direção à


espinha e atinge todo meu corpo. Sua voz está baixa e dura, um tom que soa
ameaçador de todas as formas, mas que só faz aumentar a tensão sexual que
emana do meu corpo.

Parada, não rebato seu comentário, não teria palavras para fazê-lo
realmente. Krigor caminha até mim, a cada passo ele parece ainda mais
ameaçador, movendo-se com determinação e certeza, faz minha mente
imaginar todas as possibilidades para quando finalmente me tiver sob seu
domínio.

Assim que seu corpo está a um palmo de distância, finalmente ele


para e com os olhos atentos aos meus, o volk observa, por tanto tempo que
chega a incomodar, aumentando a expectativa do que virá a seguir. Não
saber qual seu próximo passo mexe demais com a minha cabeça e o reflexo
é visível em meu corpo inquieto.

— Pare de apertar os dedos das mãos, Króchka. — Só quando fala


me dou conta que estava esmagando em um aperto forte.

— O que vai fazer? — Minha respiração acelera, não conseguindo


mais segurar tanta ansiedade.

A pergunta parece satisfazê-lo significativamente, já que a dureza


de seu olhar se torna quente e reconfortante, acompanhado do leve sorriso
em sua boca. Ele tem prazer em me deixar com os nervos aflorados.

— Eu gostaria de parar o tempo, só para mantê-la aqui e realizar


todos os meus desejos, mas, infelizmente, não é possível. Por esse motivo,
vou priorizar alguns deles, talvez os mais devassos. — Ele pausa,
analisando meu rosto, à espera de uma rejeição. — Ou, quem sabe, os mais
intensos. Quando, finalmente, começar, Króchka, deixarei que nossos
corpos decidam o ritmo.

Apesar da pouca saliva na boca, engulo com muita dificuldade, na


tentativa de apaziguar meu coração que bate descompassado na garganta.

Meu corpo está aceso, quente, posso sentir minhas bochechas


ferverem e, apesar do ambiente estar climatizado para algo confortável,
estou em chamas.
Krigor ergue a mão e com o dedo indicador, somente, trilha o
caminho pela fenda frontal do meu vestido. Seu toque é sutil entre os meus
seios, minha respiração fica curta e acelerada, nossos olhos estão cativos
um no outro. Seu toque para na borda do vestido, torna o momento
suspenso.

Com um solavanco, Krigor rapidamente gira meu corpo. Atônita,


permaneço de costas para ele, seus dedos ágeis puxam o zíper discreto para
baixo e finaliza ao abrir o feixe na gola do vestido. Toda sua destreza e
eficácia realiza a tarefa em segundos, mal começamos e não tenho tempo de
processar as sensações que ele vem causando em mim.
Agora, com calma, a palma da sua mão sobe pela minha lombar,
caminhando pelo meio das costas até alcançar os ombros e deslizar pelos
braços, baixando o tecido que estava impedindo seu contato.

O vestido para na cintura, onde o modelo é mais ajustado. Ele


move as mãos que estavam em meus ombros, desce pela lateral das
costelas, ambos os lados em sincronia perfeita, deixa o rastro em brasa por
onde passa. Quando finalmente alcança o tecido, ele faz um gancho com o
polegar, puxando para baixo e logo a peça está em meus pés.

Fiz bem em escolher uma calcinha de renda preta, ajustada em meu


corpo e sensual o suficiente para aplacar a timidez que sinto. Nunca fiquei
nua diante de um homem que mal conhecia, principalmente na condição
que nos encontramos.

Suas mãos apertam minha cintura, desta vez com mais pressão, sua
respiração toca a pele do pescoço, arrepia o lugar e alastrando pela minha
espinha um frisson prazeroso.

— Eu vou devorar você, Króchka. — Sua voz é baixa e tão rouca


que mal consigo compreender o que diz.

Ele puxa meu corpo de encontro ao seu, sinto sua dureza


proeminente se esfregar nas minhas costas, instigando-me a mover de
encontro ao contato. A respiração, ainda presente em meu pescoço, faz-me
fechar os olhos e desfrutar da pequena provocação.

Quando a fricção encontra um ritmo abrasador, seu corpo se afasta


do meu repentinamente, o prazer já me leva pelos caminhos luxuriosos, a
mente imagina seu próximo ato, entretanto, sua atitude me deixa em
suspense e alerta.

— Vire-se.

Atendo ao seu comando, prontamente giro, mantenho a cabeça


erguida. Logo, meus olhos cruzam com os seus, a imponência evidenciada
em toda sua postura, há determinação para executar a missão, tenho
absoluta certeza de que pretende me enlouquecer, física e psicologicamente.

— E agora, volk? — pergunto, conseguindo disfarçar,


parcialmente, o quanto ele me afeta.
— Para todos, eu sou o volk, Króchka. Mas hoje e por você, quero
ser somente Krigor e... é esse nome que você vai gritar quando atingir seu
prazer — declara, convicto.

Não tenho tempo de rebater, já que o lutador habilidoso avança


sobre mim e, segurando minha cintura com as mãos, joga-me sobre a cama,
o que me faz quicar no colchão macio. Um gritinho escapa dos meus lábios
por ser pega de surpresa, ele se aproxima, apoiando os punhos sobre a
beirada da cama, seu corpo inclina para frente, próximo das minhas pernas
abertas.

— Fique assim e não se mexa — ele decreta, e uma das suas mãos
escorrega do meu calcanhar e sobe rapidamente até a lateral da minha
calcinha. — Linda peça, mas darei uma utilidade melhor para ela. — Com
os dedos, ele torce a renda e ouço o tecido se partir.

Arregalo os olhos, surpresa, então, com a outra mão, ele faz a


mesma coisa e puxa a peça destruída, afastando-a de mim. Estou aberta e
completamente exposta, seus olhos estão focados na minha intimidade,
deixando-o hipnotizado.

Ergo meu tronco, apoiando os cotovelos na cama, não consigo


conter a ansiedade e sua insistência em fazer tudo tão calmamente, me
coloca à beira de um colapso.

— O que vai fazer com minha calcinha destruída? — questiono,


com um leve balançar de cabeça.

— Prefiro mostrar, no momento certo.


Ele deixa a peça sobre a cama, ao lado, se afasta e tira a camisa,
abrindo cada botão com tanta calma que fico irritada. Quando, finalmente, a
remove, tenho o prazer de contemplar seus músculos, obviamente sua
profissão o obriga a se exercitar, mas acho que nunca vi um homem com o
corpo tão bem trabalhado quanto Krigor. Não é exagerado, tudo é
proporcional ao seu tamanho, cada gomo bem talhado e esculpido no lugar
certo, faria qualquer pintor querer torná-lo uma tela.

É completamente encantador!

Krigor remove a calça, resta somente uma cueca preta impedindo


sua nudez total, que quase não cobre toda a sua glória excitada. Ao perceber
que minha atenção está ali, ele faz questão de se ajeitar com a mão,
fazendo-me buscar seus olhos de imediato.

O safado está sorrindo.

Krigor sobe na cama apoiando-se nos joelhos, suas mãos passam


por baixo das minhas pernas e ele suspende meu corpo, fazendo com que eu
caia deitada novamente no colchão.

Estou suspensa pelos quadris, minha intimidade muito próxima do


seu rosto, permitindo que só enxergue seus olhos, que não abandonam os
meus.

Sinto o hálito quente dele tocar minha pele sensível, a expectativa


do que está por vir me faz fechar os olhos, um aperto forte das suas mãos
quase na virilha me alerta para abrir novamente.

Seu recado é dado com um leve balançar de cabeça, sei que tenho
que manter meus olhos nele, mas é tão difícil diante dessa tortura. Sinto
vontade de gritar para que acabe logo com isso, entretanto, seguir seu
comando e sentir meu desejo sobre seu domínio, aumenta ainda mais a
excitação no meu ventre e acabo por acatar.

É um misto confuso e sinto que estou afundando em um mar


luxurioso que não quero emergir.
Capítulo 28

Sinto sua língua passar pela minha fenda, quase fecho os olhos,
mas outro apertão de advertência me atenta. Com um pouco de pressão, ele
começa a me lamber, como se meu prazer fosse sua fonte e ele, realmente,
cumprindo o papel de volk, está focado em saciar sua sede.

O ritmo aumenta, não tem trégua, a pressão intensifica em meu


ventre, os batimentos cardíacos acelerados e, o sangue correndo pelas
minhas veias, desenfreado, faz as batidas soarem em meus tímpanos.

Krigor passa a trabalhar com afinco meu ponto de prazer, fazendo


movimentos de sucção que beiram à dor. Pela pressão no lugar, fecho os
olhos, gemendo alto, e mais um apertão é dado como alerta.

— Tak! — ralho, e volto a gemer.

Sem interrupção, ele alterna entre sugar e lamber, agora de forma


apressada, levando todos os meus sentidos para o limite. Logo o primeiro
tremor de prazer atinge o ventre e se alastra por todo corpo.

Minha cabeça gira e não consigo mais manter o olhar cativo ao


seu, um grito estrangulado somado ao seu nome sai pela garganta e minhas
pernas sacodem descontroladas com o orgasmo que sua maestria me
proporcionou.

Sim, ele foi um perito!

Krigor suga ainda mais, agora meu canal, extraindo todo e


qualquer vestígio de prazer, até que desce meu corpo sobre o colchão e
paira sobre mim, segurando minha mandíbula e nuca, com força.
Olho-o, assustada, sem entender o que pretende, então, ele enfia
dois dedos entre meus lábios, abrindo minha boca.

Ele alinha seu rosto sobre o meu e juntando os lábios, Krigor cospe
a saliva que cai espessa em minha língua e escorrega direto para o fundo da
minha garganta. Um ato completamente incomum para tudo que já vivi até
hoje, que poderia repudiar e acabar completamente com o clima, mas ao
contrário, só atiçou ainda mais minha libido já saciada.

— Engole — ele ordena, e eu faço. — Beba do seu prazer,


Króchka, entenda, de uma vez, por que estou tão enlouquecido por você.
Seu cheiro, seu gosto, tudo em você me chama e me atrai cada vez mais
para perto.

Ele cola sua boca na minha, sua língua consome todo o espaço,
meu gosto evidente é palco do sabor desfrutado por ambos. Gemidos
escapam, respirações entrecortadas, mãos apertando cada parte que possa
ser tocado e sinto a necessidade de liberação voltar para meu corpo.

Krigor se ajeita, sem interromper o beijo, fica parcialmente sobre


meu corpo. Suas mãos escorregam para o vão das minhas pernas e logo
sinto dois dedos entrarem em mim, com força.

— Ah...

Escapo do beijo exacerbando o prazer que me consome, para logo


ele capturar minha boca mais uma vez, engolindo todos os meus gemidos
em pleno deleite. Seus dedos, no vai e vem intenso, acariciam minhas
paredes e um formigamento familiar no ventre começa a ser construído.

Sua tortura perdura por tempo demais, causa um desespero em


todo meu corpo por mais uma libertação, algo que não julguei possível.
Assim que seu polegar pressiona meu ponto sensível, explodo, ainda mais
intensamente que a primeira vez.

Por reflexo, mordo seu lábio, prendendo entre os dentes, enquanto


meu corpo convulsiona com o prazer que me percorre como um raio. Só
quando os tremores abrandam, que o solto, sentindo um gosto metálico no
paladar.

Abro os olhos e vejo sangue em sua boca, causado pela minha


mordida. Ele passa a língua ali e traz para meu lábio, que sugo, sorvendo
ainda mais do seu gosto.

— É delicioso vê-la gozar, mas a próxima, será junto comigo,


Króchka.

Quero dizer que não acho possível mais um orgasmo. Meu limite
sempre foi dois em um encontro, mas não nessa velocidade. Normalmente,
isso acontecia durante uma noite toda de sexo, mas com Krigor, parece que
cada vez é mais rápido e mais intenso.

— Vire de costas — ordena, levantando da cama.

— O que vai fazer? — Ergo a cabeça, questionando.


— Camisinhas. — Ele pega a calça do chão e tira o pacote do
bolso de trás.

Volta para a cama e pega a calcinha que ainda estava largada ao


meu lado.

— Vire de costas, mãos para trás — comanda, e eu acato.

Não sei dizer como, mas ele conseguiu dominar minha mente a tal
ponto, que mesmo achando tudo diferente do que já vivi, até estranho se
comparado com minha pouca experiência, não consigo contestar.
Simplesmente, aceito e obedeço.

Faço como pede e logo a renda da calcinha é entrelaçada em meus


punhos e um aperto forte é dado, atando um nó. Ele se afasta, saindo da
cama e logo está à minha frente, de pé na borda.

A cueca já removida deixa seu membro exposto e só consigo


pensar em como tudo aquilo vai entrar em mim.

— Abra a boca.

Obedeço prontamente e segurando meu queixo para cima, já que a


posição restringe os movimentos, Krigor agarra seu membro pela base e o
coloca entre os meus lábios.

Fecho os olhos, saboreando o momento, meus lábios pressionados


e a língua movendo em torno da sua carne o faz gemer. Logo, seus quadris
começam a se deslocar em um vai e vem constante e ritmado.

Não imaginei que fosse possível, mas ouvir seus gemidos, somado
à cena erótica de estar subjugada à sua mercê e vontade, aviva ainda mais
minha libido e acabo pressionando as pernas juntas, na tentativa de aplacar
um pouco do desejo.

— Acalme-se, Króchka. Eu já vou enfiar meu pau em você.

Percebendo minha necessidade, Krigor se afasta, quebrando o


nosso contato e resmungo em protesto.

Sinto a cama se afundar próximo às minhas pernas, ouço barulho


do invólucro sendo rasgado e logo as mãos de Krigor seguram a base da
minha bunda, abrindo-a.
A ponta do seu membro encaixa na minha entrada e, devagar, ele
avança. Centímetros tortuosos, que empalam meu canal pouco a pouco,
fazem-me fechar os olhos, saboreando o momento.

Quando, finalmente, está encaixado, totalmente dentro de mim,


uma mão segura a restrição e a outra, a nuca. Seus quadris movem devagar,
entrando e saindo, a pressão no lugar traz o desejo e minha lubrificação
natural tornam o processo ainda mais escorregadio e gostoso.

Sua mão abandona meu pescoço e logo sinto meu cabelo ser
enrolado em seu punho. Ele puxa o suficiente para curvar um pouco minha
cabeça, aumenta gradativamente seus movimentos, até que a cama passa a
ranger em seu compasso.

— Vai gozar comigo, Króchka? — A voz está entrecortada.

— Não... consigo...

Ele estaca os movimentos, sai completamente de mim e suspende


meu quadril com uma mão, colocando-me de joelhos. Ele puxa meus
cabelos e meu corpo arqueia totalmente, deixando o traseiro ainda mais
empinado para seu agrado e volta a me penetrar com ainda mais força e
vontade. Estou imobilizada por completo, só recebendo sua cota de prazer
pelas investidas e dor devido à restrição.

Ambas se misturam às sensações que me tomam, minha mente já


não sabe mais distinguir qual é mais intensa e, quando sua mão escorrega
para a frente, manipulando meu clitóris, mais uma vez entro em frenesi.

Meus olhos rolam, nublando a visão, as estocadas batem fundo


dentro de mim e quando ouço Krigor gemer alto, o gatilho é acionado.

— Krigor! — Meu corpo estremece em total prazer.


Ele cai sobre mim, gemendo palavras incoerentes. O pulsar do seu
membro explode dentro de mim e eu, simplesmente, sou consumida.
A exaustão toma meus sentidos, o êxtase do momento sobrecarrega
meu sistema e sinto que vou desfalecer.

Estou entregue e saciada, mas ouço uma frase, que me preocupa,


antes de perder a consciência:

— Acho que não posso te deixar ir, Króchka.


Capítulo 29

Estico meu corpo, todos os músculos protestam ao mesmo tempo e


um leve gemido escapa dos meus lábios, a sensação de ter corrido uma
maratona inteira me faz encolher na cama.
Abro os olhos repentinamente, o quarto está parcialmente escuro,
só uma fresta da cortina consegue trazer luz e dar visibilidade ao
emaranhado de cobertas e lençóis que me cobrem.

Arrisco um olhar cauteloso para o lado e lá está. Em toda sua


glória, deitado de bruços, parte da coberta cobrindo sua bunda, mas as
costas musculosas e grandes, completamente à mostra.
Seu corpo está virado para o lado de fora da cama, então, só tenho
a visão da sua nuca raspada e, sendo sincera, consigo sentir a baba
escorrendo pelo canto da minha boca, que me faz limpar por reflexo.

Com o máximo de cuidado, levanto meu corpo, ouço um resmungo


vindo dele e paraliso, temendo que o tenha acordado. Dou uma espiada por
cima do ombro e constato que ainda dorme, levanto-me rapidamente e
caminho direto para o banheiro.

Abro o chuveiro, faço minha higiene pessoal da melhor maneira


possível, já que não tenho uma escova de dente decente para usar. Entro na
água quente e lavo meu corpo.

Enquanto me esfrego com o sabonete, noto uma marca vermelha


no pulso, paro os movimentos e os analiso, colocando-os em paralelo. As
marcas da minha calcinha, que serviu de restrição para Krigor ontem, estão
ali, evidentes.
Solto a respiração quando uma onda prazerosa das lembranças que
vivenciei ontem vem à mente, a forma como tudo aconteceu, tão intenso,
perverso e ao mesmo tempo fácil, como se não existisse outra maneira para
nós dois.

Era uma guerra luxuriosa onde ambos sairiam vitoriosos: ele, por
ter o controle, a dominação e, a mim, entregue e submissa, da forma mais
lasciva, nunca desejada antes.

Encerro o banho rapidamente, ainda não sei como vai ser quando
acordar, afinal, só teríamos essa noite e nada mais. Ele quer me manter
segura, fora do seu mundo e não tenho condições de pensar diferente. Já
tenho problemas demais na vida para adquirir mais um.

Coloco o roupão no meu corpo ainda molhado, volto para o quarto


e vejo que ainda dorme, do mesmo jeito que o deixei. Vasculho pelo chão à
procura da minha roupa, infelizmente terei de partir sem calcinha.

Ouço um zumbido constante e insistente vindo do aparador, minha


bolsa está sobre ela e, automaticamente, me lembro do celular. Provável, ser
minha mãe questionando onde passei a noite, já que nem tive o trabalho ou
a decência, de inventar uma desculpa para acobertar minha escapada.

Pego o celular e vejo a imagem de Katrina piscando em uma


ligação. Pondero a possibilidade de ignorar, não é momento para detalhar
minha noite com o lutador e, por saber o quanto é curiosa, sei que existe
uma grande possibilidade da ligação se dar por esse motivo.

Olho de relance para a cama, Krigor parece inalterado em seu


sono, por isso opto em atender a chamada de uma vez.

— Alô — sussurro.

— Finalmente! Por que tá sussurrando?


— O que você quer? — Ignoro sua pergunta.

— Vem logo pra casa, Zhenya Gorky está na casa dos seus pais.

— O que ele quer? — Elevo a voz e repreendo-me


automaticamente.

— O que ele sempre quer: dinheiro. Vem logo, Sacha! — A voz de


Katrina soa alarmada e isso me preocupa ainda mais.

— Chego aí o mais rápido possível.

Encerro a chamada, tirando o roupão, coloco o vestido, as botas e


meu casaco. Procuro fazer o mínimo de barulho possível para não acordar o
lutador, não quero ter que explicar minha pressa em partir. Por mais que
isso fosse esperado, não tenho intenção de deixar Krigor a par dos meus
problemas.

Pego a bolsa, pronta para sair, mas antes que saia de uma vez por
todas da vida desse homem, movo meu corpo até próximo dele, acaricio seu
cabelo com cuidado e delicadeza, memorizando seu rosto parcialmente
amassado, dormindo tranquilo e, finalmente, me afasto.

Hora de voltar à realidade, Sacha!

Entro no apartamento, que tem a porta escancarada. Daqui, vejo


meu pai sentado na cadeira da cozinha, um filete de sangue escorre do seu
supercílio, avanço meus passos até ele, preocupada, mas uma mão forte
agarra meu braço, fazendo com que pare.
— O que está acontecendo aqui? — Minha voz está alterada e
irritada.

Olho no ambiente e minha mãe encolhida no canto, entre o fogão e


o armário, as mãos unidas à sua frente, lágrimas banhando a face. Ao seu
lado está o nosso ardiloso credor, Zhenya Gorky.

— Vamos com calma, dyévatchka[20]!

O sorriso perverso, sempre presente em seu semblante, demonstra


o prazer que sente ao coagir qualquer uma de suas vítimas. Não é a primeira
vez que recebemos sua visita, ocasionalmente acontece, só uma passada
para lembrar seu poder sobre nós, em outras, usando a força, para coagir e
nos pressionar.

— Me solta! — Sacudo o corpo, me desvinculando do aperto do


brutamonte ao meu lado.

— Vim receber a parcela do mês, dyévatchka, mas seu pai disse


que não tem. Como pode isso? O pagamento é a única coisa que mantém
vocês sadios, fico me perguntando, como não valorizam a vida? Por que
deixar as coisas ficarem críticas desse jeito?

— Eu tenho o dinheiro — falo, assim que ele termina seu discurso


ameaçador.

— Que ótimo! Finalmente alguém que sabe conversar — ele


comemora, batendo as palmas e esfregando-as.

Ameaço ir até meu quarto e sou barrada pelo capanga.

— Preciso ir buscar o dinheiro. — Encaro, contrariada, o rosto


dele.
— Deixe-a ir. Ela não vai tentar nos enganar, como o velhote aqui
— ele aponta para meu pai —, não arriscaria machucá-los. Não é mesmo,
dyévatchka?

Engulo em seco e aceno levemente com a cabeça, concordando.

Sou liberada e corro direto para meu quarto. Ergo o tapete, no


canto, próximo da mesa de cabeceira, tiro o assoalho falso e pego o bolo de
dinheiro que escondo ali.

Depois que meu pai passou a tirar pequenas quantias do pote na


cozinha, achei melhor esconder o dinheiro em outro lugar, ou nunca teria a
quantidade correta para pagar esse homem.

Volto para a cozinha e entrego ao agiota a quantia do pagamento


deste mês. Ele confere nota por nota e finalmente sorri, satisfeito.

— Muito bom fazer negócios com vocês. Yakov, camarada, veja se


aprende algo com sua filha — ele fala, antes de fazer sinal para seu capanga
e sair do apartamento.

Solto a respiração, aliviada, um soluço audível chama minha


atenção e vejo minha pobre mãe, chorando copiosamente no mesmo lugar
que estava.

— Mat’[21]! — Vou até ela, abraçando seu corpo frágil e trêmulo.

Acabo sucumbindo à sua dor e, juntas, choramos.

Arrisco um olhar para a mesa e meu pai levanta da cadeira,


caminhando para longe.

— Isso precisa mudar, pai — falo baixo, mas o suficiente para ser
ouvida por ele.
— Você é a culpada. — Ele aponta o dedo para mim, enérgico. —
Se não tivesse tirado o dinheiro do lugar de costume, nada disso
aconteceria.

Solto minha mãe, indignada com a acusação feita.

— Nada disso aconteceria se o senhor não fosse um viciado em


jogo!

— Olhe como fala comigo! — Ele dá um passo ameaçador em


minha direção.

— Só falo a verdade. Há anos o senhor perdeu tudo e tem


afundado a família nesse vício desgraçado. Se eu não mudasse o dinheiro de
lugar, não teria o suficiente nem para pagar a parcela do mês.

Vejo a ira brilhar em seus olhos, tarde demais prevejo o golpe.


Capítulo 30

— Sua insolente! — Ele avança dois passos e acerta um tapa no


meu rosto.

O impacto me faz virar, cubro o local com ambas as mãos. Mais


lágrimas escorrem pelo meu rosto, agora não mais de lamento, mas sim, de
raiva, de indignação e inconformismo.

— Parem! Por favor. — Minha mãe entra no meio de nós.


— Isso é culpa sua, Eleni, não criou sua filha como deveria. Ela
não tem respeito por nós — ele acusa minha mãe, esbravejando, e sai do
apartamento em seguida.

Ficamos paradas no lugar, minha mãe de costas para mim,


ponderando as palavras que ele acabou de dizer.

— Mat’?

— Ele tem razão, filha. Você não pode desrespeitar sua família
assim.

— Mas ele pode trazer o perigo para perto de nós? — pergunto,


irritada.

— Já chega! Aleksandra Yakovna, você precisa entender que seu


pai está em uma fase difícil.

— Isso já tem anos!


— Família se apoia. Para o bem ou para o mal.
Balanço a cabeça em negação, mesmo que ela não esteja vendo.
Não creio como pode ser cega a esse ponto, não enxergar que toda essa
situação já extrapolou qualquer limite aceitável.
— Sim, mat’ — respondo, simplesmente.

Entrar em qualquer embate é causa perdida e, provavelmente,


geraria ainda mais mágoa e chateação para nós duas. Vou direto para o
quarto, troco de roupa e confiro as horas confirmando que nunca chegarei a
tempo no restaurante.

Ainda terei que lidar com as reclamações de Ivo sobre


pontualidade.

Meus trinta minutos de atraso rendeu quase uma hora de conversa


e sermões sobre o quão importante é a pontualidade no ambiente de
trabalho. Ivo fez questão de apresentar uma lista de tarefas acumuladas com
meu atraso, engraçado é que a maioria delas não compete aos meus
afazeres.

Engoli qualquer indagação ou argumento, mesmo que palpável,


para seu discurso ridículo e sem cabimento. Na hierarquia, ele é o chefe e
deixá-lo mais irritado só prejudicaria a mim. Ainda preciso do emprego
para quitar aquela dívida idiota do meu pai.
Finalmente, o horário de expediente voa, a conversa com Ivo
rendeu mais acúmulo de serviço do que meu próprio atraso, mas nunca
poderia verbalizar isso em voz alta.
Entro na pequena sala, tiro o avental e coloco na mochila. Quando
viro para sair, Frans entra e fecha a porta atrás de si.

— Já vai?

— Sim, já deu o horário e preciso ir para o bar.

— Não entendo por que trabalha tanto assim, Sacha. Percebi que
chegou abatida, algo aconteceu, não foi?

— Nada aconteceu. Só perdi a hora e sabia que seu tio não ficaria
feliz.

— Eu posso te ajudar. — Ele dá um passo em minha direção. — Se


você se abrir comigo, posso tentar facilitar as coisas aqui para você. — Ele
avança mais um passo e, por instinto, recuo um.

— Não preciso de nenhum tipo de ajuda ou favoritismo, Frans.


Mesmo assim, agradeço sua intenção. — Tento passar por ele, que está
entre mim e a porta.

— Você poderia ter muito aqui, se fosse mais... maleável. — Ele


pausa ao final, antes de escolher a palavra.

Com a mão na maçaneta, respiro fundo, a cota para merdas hoje já


está no limite e não pretendo aceitar mais um sapo de bandeja.

— Prefiro as coisas assim e você bem distante de mim. Espero que


entenda o recado, Frans. — Olho por cima do ombro, seu rosto demonstra
toda a insatisfação com minha recusa e, finalmente, saio.

Apressada, caminho pela calçada, inconformada de como o destino


gosta de jogar com as pessoas. Uma noite maravilhosa, uma manhã
perturbadora, ameaças, brigas e, para completar, um assédio.
As lembranças de Krigor dormindo dominam meus pensamentos,
levando parte da chateação do dia para um fundo esquecido da minha
mente. Ele parecia tão calmo, ressonando, todo seu lado arrogante e
impositivo apagado. O semblante era de um rapaz comum, bom, nem tão
comum, já que sua beleza é incomparável, mas ele facilmente parecia um
homem normal que passou a noite com uma garota tão normal quanto.

Pena que a realidade é cruel o suficiente para bater à porta antes


mesmo de um bom dia.

Como será que ele ficou quando não me viu ao seu lado? Será que
já esperava por isso? Contava com o fato de eu não estar mais lá quando
acordasse?

Tantas perguntas que não têm a menor importância. Fato é, não


posso estar com ele, por vários motivos, que em sua maioria desconheço.
Aquele alerta de problema piscando em minha consciência só reafirma que
não é para ser.

Chego ao bar e vejo Irina carregando umas caixas de bebidas para


dentro do depósito, deixo a mochila no chão e corro ajudá-la.

— Olá, para você também — ela fala, com humor.

— Oi.

— Pensei que estaria com uma cara melhor depois da noitada de


ontem. — Torço os lábios para o comentário

— Andou falando com a Katrina?

— Não! Deduzi pela sua cara azeda mesmo.

Ambas rimos juntas e apoio a caixa sobre o balcão.


— Foi legal. Nada de mais. — Dou de ombros.

— Sei... bom, quando quiser dar mais detalhes, me avisa. — Ela


toca meu ombro, antes de voltar para o depósito.

Volto para recolher a mochila e aproveito a empolgação, tiro o


casaco pesado, dispensando em um canto e começo a arrumar a retaguarda
com as bebidas que trouxemos. Hoje, o movimento é tão intenso quanto a
noite anterior e se eu puder poupar trabalho para compensar minha ausência
ontem, farei.

Agachada, limpando algumas garrafas empoeiradas, escuto um


pigarrear, imagino ser Serguei, que costuma chegar sempre próximo de
abrir o bar, levanto-me de supetão, rindo.

— Chegou meu homem favorito! — O riso morre em meus lábios


assim que vejo de quem se trata.

Os braços cruzados sobre o balcão, o corpo apoiado sobre eles,


projetando seu tronco para frente, estamos próximos o suficiente para sentir
seu cheiro perturbador.

Seus olhos curiosos e um pouco confusos fitam meu semblante,


enquanto tomba parcialmente a cabeça para o lado.

— Espero que seja eu, seu homem favorito, Króchka.

— O que faz aqui? — pergunto, espantada.

— Por essa pergunta, vejo que não era de mim que estava falando.

— Krigor, você não pode ser visto aqui. Sabe disso tão bem quanto
eu. — Meus olhos correm da porta para o ambiente, imaginando quem
possa estar nos observando, mesmo que ainda nem estejamos abertos. —
Espera! Como entrou aqui? — Franzo a sobrancelha.
— Para quem estaria sorrindo daquele jeito, Króchka? —
Novamente, ele ignora minha fala, focando na brincadeira que fiz.
— Chega disso! Você precisa ir embora.

— Não quer que ele me veja aqui?

— Ele quem?

— Seu homem favorito. — Seu maxilar aperta quando responde.

— Isso não é da sua conta.

— Ah, é sim, Króchka. É mais do que meu interesse, é a minha


necessidade — ele rebate, cauteloso, medindo meu rosto com aqueles olhos
penetrantes e hipnotizadores.

— O que você faz aqui, Krigor? — Torno a perguntar.

— Precisamos conversar.

— Não precisamos.

— Sim, Króchka, precisamos.

— Não... nós não...

— Vai logo falar com ele, Sacha! — Olho, assustada, para o lado e
vejo Irina apoiada no balcão.

— Estou em horário de trabalho.

— E eu sou sua chefe e estou lhe dando um intervalo.

Desvio meu olhar para Krigor, que sorri, vitorioso, franzo o nariz,
irritada, solto uma lufada de ar e, finalmente, marcho para fora do balcão.

— Você tem dez minutos, lutador! — Aponto o dedo para a porta


do depósito.
— Normalmente, eu preciso de bem mais que isso, Króchka, você
sabe — ele responde, com gracejo.

— Cala a boca!

Escuto ao fundo a risada de Irina, ignoro deliberadamente,


prometendo que me resolvo com ela depois de conversar com o teimoso
que me segue.
Capítulo 31
Abro os olhos, assim que a porta é fechada e levanto rapidamente
da cama. Percebi, no momento em que Sacha se levantou, que fugiria de
mim na primeira chance.
Tenho ciência do que foi combinado, que toda a encenação tinha a
finalidade de protegê-la acima de tudo, porém, como ficar longe depois da
noite que acabamos vivenciar?

Seu toque ainda queima em brasa pelo meu corpo, seu ar


desafiador totalmente apagado pela luxúria que nos envolveu no momento,
entregando tão docemente o controle a mim, facilitando que meu lado
dominador rugisse e tomasse posse dela por completa.

Visto uma roupa qualquer, pego o celular e faço uma chamada.


— Oi, sou eu. Aleksandra está saindo do hotel agora, siga-a. —
Mal termino de falar e encerro.

Não preciso dar explicações ao meu motorista, ele sabe que só tem
que seguir as instruções sem saber o motivo e é por isso que está comigo há
tantos anos.

A ligação que atendeu antes de sair me deixou em total alerta.


Quem poderia chamá-la a essa hora da manhã? A pessoa avisou sobre
algum homem que está à sua procura e, pela pressa que a tomou depois
disso, deixou-me preocupado.

Seria alguém da organização? Ela poderia estar envolvida em


algum esquema de Russell?

— Chto za huy[22]! Tire seus pensamentos daí, Krigor.


Repreendo minha mente desconfiada, esse caminho, ao qual
escolhi, é tortuoso e cheio de artimanhas, mas eu vi Sacha, enxerguei a
verdade em seus olhos, duvido que seria capaz de participar de alguma
trama contra mim.

Assim que estou vestido e pronto, saio do hotel sorrateiro, da


mesma forma que entrei ontem, coloco o boné na cabeça e os óculos
escuros, a fim de ocultar minha identidade. Para todos os efeitos, pensam
que estou na cobertura, rodeado de mulheres em uma orgia particular.

Normalmente, estaria mesmo, saciando meus desejos mais insanos


em corpos desconhecidos e descartáveis depois de uma noite animada. No
entanto, imaginar isso agora, depois da noite que passei com a Króchka
moyá[23], chega a me incomodar.

Já no carro, disco o número do motorista, que atende no primeiro


toque, relatando as coordenadas do caminho que Sacha tomou. Encerro a
chamada e piso no acelerador, pelo horário, consigo chegar antes dela e
investigar o que a fez sair correndo de perto de mim.

Estaciono no fim da rua, distante o suficiente para não ser notado,


desço e caminho até seu prédio, silencioso e inabitado, facilita minha
entrada despercebida. Bóris já havia feito um levantamento sobre
Aleksandra, por isso sei onde mora.

Subo as escadas, com agilidade, quando estou no último lance,


ouço passos apressados vindo de baixo e arrisco um olhar constatando que
se trata dela, correndo degraus acima, afoita. Entro no corredor do quarto
andar para não ser visto e deixo que ela passe na frente.

Aguardo um momento antes de subir, cauteloso, vejo que a porta


do apartamento está aberta e luto contra o impulso de invadi-la, mantendo o
controle dos meus atos e, principalmente, não a colocando em risco.

Encosto próximo ao batente, ouvindo toda a conversa que se


desenrola, respiro fundo por vários momentos, por muito pouco não entro e
esmurro seja lá quem for que está ameaçando Aleksandra e sua família.

Assim que ouço o tal Zhenya Gorky se despedir, vou até o fim do
corredor e aguardo por ele.

Quando passa por mim, não penso e simplesmente agarro sua nuca,
puxando-o de encontro à parede e torço seu braço para trás.

— Chyort voz'mi[24]! — ele protesta.

Sinto algo maciço encostar em minha nuca e sei que é seu capanga
armado.

— Larga ele.

— Não, até me dizer o que quer com essa família. — Pressiono


ainda mais seu braço e o homem geme feito uma menina.

— Isso não é da sua maldita conta! Me solta ou vai ter um buraco


no meio da sua cabeça em três segundos.

— O que você quer com eles? — Aproximo minha boca do seu


ouvido, em tom ameaçador, sentindo meu bom senso se esvair.

A arma é engatilhada, sinto o movimento em minha nuca, mas


estou determinado demais para ponderar a situação.

— Dívida de jogo. — Assim que ele me fala, solto-o.

O homem segura o ombro e protesta com uma careta, movendo a


articulação.

— Quanto?
— Quem você pensa que... — Ele para a fala no meio, suas
sobrancelhas enrugam duvidosas, analisando minha fisionomia.

— Quer que eu acabe com ele, chefe? — o urso ao meu lado


questiona, o cano da arma ainda apontado para mim.

— Espera um pouco. Eu conheço você. Você é o...

— Volk. Sim, sou eu. — Travo a mandíbula.

— Claro! Vi sua última luta com Russell, você acabou com ele —
fala, animado, nem parece que acabei de lhe imobilizar.

— Diz o valor.

— Qual seu interesse aqui, volk? — Leva a mão ao queixo e coça,


curioso.

— Isso não importa. Só responda minha pergunta.

— Chefe? — o capanga torna a questionar.

— Abaixe essa arma, svolach. Ele é uma das estrelas da


organização. Se algo acontecer com esse homem, na minha área, não vai ser
nada bom.

— Ainda bem que sabe quem sou e a importância que tenho.


Quero saber o valor da dívida, a partir de agora, sou eu quem você cobra e
esqueça essa família. Entendeu?

— Tak! Agora entendi. A blad[25], é ela, não é?

Antes que ele termine de fechar aquela boca imunda, meu punho
acerta em cheio seu nariz e sangue esguicha do corte que acabei de deixar
como lembrança no rosto desse rato.

— Chto za huy! — ele xinga, segurando o local com as duas mãos.


Seu capanga ameaça partir para cima de mim, no entanto, um olhar
questionador foi o suficiente para impedi-lo. Além de acabar com ele em
segundos, como seu chefe disse, encostar em mim traria consequências
muito ruins para ambos.

— Nunca mais, na sua vida miserável, se refira a ela assim. Ligue


para o Bóris, não é difícil encontrar o contato dele com a organização, passe
o valor e terá o dinheiro ainda hoje.

Encaro-os, ameaçador, e saio dali, antes que Aleksandra me veja.


Desço o lance de escadas com pressa, saco o celular do bolso e disco para o
meu treinador, que atende depois do quarto toque.

— Bóris, as coisas mudaram.

— Do que está falando, campeão? — Sua voz é sonolenta.

— Aleksandra se tornou minha prioridade e isso a coloca em


evidência.

— Volk... — Escuto seu lamento e preparo minha mente para a


enxurrada que ele jogará em cima de mim.
Capítulo 32

Entro no depósito, observando a pequena figura irritada, que


marcha à minha frente, não sei como é possível, mas ela consegue ficar
ainda mais linda quando seu mal humor aflora.
— Fala, volk, não tenho todo tempo do mundo!

— Você fica encantadora assim, sabia? — Tombo a cabeça


ligeiramente para o lado, fascinado.
Sua postura dura vacila, ligeiramente, mas logo retoma seu
posicionamento firme, cruzando os braços ao me encarar, determinada. Ela
tem metade do meu tamanho, porém, não se intimida em nada para me
desafiar. Gosto disso.

— Corta as piadas. Diga logo o que veio fazer aqui.

— As coisas mudaram, Króchka. A organização sabe que passei a


noite com você e que estamos juntos.

— O quê? Como? — Seus braços se abaixam e o timbre aumenta,


surpresa.
— Ainda não sei como, Bóris está verificando. Preciso que você
fique comigo, até acabar esse circuito, assim posso te proteger.

— Você só pode estar maluco! — Ela bate os braços na lateral do


corpo, em protesto. — Isso não tem o menor cabimento, Krigor.

— É o mais seguro. Para você e para seus pais.


Ela para por um momento, analisando meu rosto, nitidamente
desconfiada dos motivos que fizeram o jogo virar. Seu instinto deve
funcionar melhor do que eu previa, já que essa desculpa foi a única que
encontrei para acobertar a verdade sobre sua proteção.

A organização ainda não sabe sobre nós, por enquanto, já que


quitei a dívida da família de Sacha e paguei um ótimo bônus para o agiota
ficar de boca fechada e não mencionar nada para ninguém.

Não sei até quando ele manterá a palavra, seu tipo costuma seguir
as regras do dinheiro, onde mais render, lá estará sua fidelidade.
— Nunca mencionei meus pais. Como sabe que moro com eles?

— Katrina não é o tipo de pessoa que segura muita coisa. — Dou


de ombros e coloco as mãos no bolso, tentando soar relaxado.

— Não sei como tudo isso pode ser bom para mim. Por que não
segue sua vida e eu, a minha? Se parar de me procurar, com certeza,
esquecerão de mim, em breve.

— Não estou disposto a pagar o preço, Króchka — respondo, de


imediato e irredutível.

— E por que não?

Seus olhos expressivos me encaram, corajosos, muita curiosidade


e, talvez, um pouco de esperança. Minha impressão pode ser fruto do
desespero por ela me querer tanto quanto a quero, entretanto, não posso
confirmar. Não quando estou tão tomado pela necessidade de protegê-la.

— Porque eu te coloquei nisso e não quero arcar com


consequências indesejadas.

— Uma crise de consciência, então?


Ela ficou decepcionada ou foi impressão minha?

— Eu chamaria de fazer o que é certo.

— Tak! Farei o que me pede, mas em meus termos. — Ela ergue o


dedo quando cita o final da frase.

— O que quiser.

— Ficarei em um quarto só meu.

— Tudo bem.

— Katrina vai comigo e me fará companhia.

— Tak! — Começo a não gostar do rumo desses termos.

— E nós não teremos nada.

Ela quer jogar, mostrar que está no controle, mesmo que não seja
totalmente assim. Torço o lábio e levo a mão até o pescoço, coçando de
baixo para cima, ponderando suas palavras.

— Tak!

— Tak? — Ela sorri, desacreditada.

— Sim, Króchka. Se esses termos a deixam mais confortável, eu


concordo.

— Tem mais uma coisa, volk.

Ergo as sobrancelhas, sua ousadia cresce exponencialmente, assim


como meu desejo de agarrá-la aqui e agora.

— Quero saber em detalhes o porquê de tudo isso. Você disse, mas


não explicou nada. Quero entender onde me meti e por que é necessário
todo esse cuidado.
— Quanto menos souber, é melhor, Króchka.

— Ou isso funciona com todos os meus termos ou não temos


acordo algum.

Respiro fundo, agora irritado, ela conseguiu atingir seu objetivo de


tirar minha paz.

— Tak! — solto, a contragosto.

— Ótimo! Temos um acordo.

— Agora, quero que me responda uma coisa, Króchka: quem era o


homem que você confundiu comigo? — Minha boca automaticamente
amarga quando menciono a pergunta.

Imaginar que Aleksandra tenha alguém na vida, um antigo amor ou


um caso passageiro, é inconcebível dentro da minha mente. Quero aquele
sorriso genuíno que ostentava quando levantou de trás do balcão
intencionado somente a mim.

Possessivo, eu sei, mas não me importo! Ela é minha!

— Isso não é da sua conta, volk — Uma resposta displicente, como


imaginei que daria.

Ao tentar passar por mim, agarro seu corpo, prensando-o na parede


ao lado. Ergo uma perna sua, cavando meu pau em sua virilha e quando ela
geme, desejosa, afundo minha língua em sua boca, buscando todo seu
fôlego.

Ela não vai admitir, mas sabe tão bem quanto eu, que fomos feitos
para nos perder um no outro. Uma conexão, a névoa lasciva, que só
acontece quando nos tocamos.
Sugo sua língua com meus lábios, enquanto projeto o quadril para
frente, iniciando um processo deliciosamente doloroso para nós dois. Minha
razão se esvai a cada segundo, cogito a possibilidade de rasgar suas roupas
e fodê-la aqui, desse jeito.

— Sacha, eu... Nossa! — Escuto uma voz feminina próxima e


Sacha me empurra na mesma hora.

— Oi, Irina. — Ela pigarreia, alisando as mãos no quadril.

— Bem, eu só ia dizer que tem um homem procurando pelo


lutador. — Irina aponta para mim.

— Deve ser meu treinador. Preciso ir, mas te pego depois do


expediente.

— Eu ainda tenho que ir para casa, pegar minhas coisas e falar


com Katrina.

— Pode deixar que resolvo isso com a sua prima. Ela pega o que
for necessário.

— Virou meu dono agora? — E a rebeldia retorna.

— Não, Króchka. Só estou facilitando as coisas.

— Tak! — ela responde, torcendo os lábios, e a vontade de calar


sua atitude com um beijo urra novamente em mim. — Nem pense nisso,
volk.

Ela sai pela porta rapidamente.

— Em quê? — Vou atrás, como sempre faço quando se trata dela.


— Conheço esse olhar determinado e você está quebrando um dos
termos. Como posso confiar em você assim? — Ela apoia as mãos na
bancada e capta minha atenção em seus olhos.

Eu não gostaria de mentir, Króchka.

Vacilo ao baixar a cabeça e só volto a olhá-la quando me sinto


seguro em não entregar toda a verdade.

— Prometo que não tocarei em um fio de cabelo seu, Króchka —


declaro, convicto.

— Sério?

— Sério. Ao menos que você peça. — Seus olhos descem até meus
lábios e logo retornam, afetada.

— Não conte com isso, volk.

Sinto meu lábio mover levemente para o lado, adorando o desafio


velado que acaba de se criar. Um ótimo jogo para nos distrair de todas as
merdas que estão nos cercando.

Afasto um passo, ainda observando-a, tão linda e determinada, viro


e simplesmente saio dali. Preciso resolver algumas coisas antes de vir
buscá-la definitivamente.

— Demorou — Bóris reclama, jogando o cigarro que fumava para


longe. — Então, falou com ela?

— Sim. Voltaremos ao fim do expediente para pegá-la.

— Ela reagiu bem quando disse que quitou a dívida da família? —


Bóris me segue, curioso.

— Eu não falei.

— Volk!
— Vou falar, quando for o momento.

— Você vai ferrar com a sua vida e a dela, juntos. Deveria ter
deixado como estava.

— Com ela sendo ameaçada por uma merda de agiota? — Paro de


andar e viro em direção ao meu amigo de longa data, irritado.

— Poderia só ter pago anonimamente, Krigor. Não tinha por que se


expor. Aquele imbecil vai entregar essa história para a organização e você
terá mais uma coisa para se preocupar.

— Isso só vai durar até o final desse circuito. Depois, ela está livre.
— Tomara que você não estrague tudo até lá.

Não respondo ao seu comentário, porque, sinceramente, torço pela


mesma coisa.

Trazê-la para minha vida tortuosa não foi certo, mas como manter
distância de um imã potente que te chama? Puxa e envolve com tamanho
magnetismo, que ao perceber, está tão tomado e só não consegue se manter
longe o suficiente, mesmo que seja o correto.
Capítulo 33

Como combinado, no fim da noite, o mesmo carro que levou


Katrina e eu até aquela festa, está estacionado em frente ao Zolotaya Vobla,
aguardando por mim.
Durante o trajeto, o motorista se limita a avisar que o cartão de
acesso ao quarto está na recepção, que eu devo solicitar ao atendente.

Então, o volk já está fugindo da nossa conversa.


Ainda não sei o porquê de estar seguindo as exigências desse
homem, mal sei da história, ao que parece, ele é o mocinho. Mas, e se essa
for uma percepção errada? Se eu estiver literalmente entrando na toca do
lobo?

Desde que o conheci, tudo se tornou tão confuso. Minha vida já


seguia um padrão determinado, apesar de estar cansada de só trabalhar,
ainda era minha rotina e estava conformada com ela. Ao menos, até as
coisas em casa se tornarem pior do que já estavam.

Por mais que eu tente argumentar com minha mãe sobre a doença
viciosa que meu pai se afundou, ela não quer ouvir. Como esposa, acredita
que independente da circunstância, deve-se estar junto, apoiando no
momento difícil. O problema é que sua atitude só dá mais espaço e acaba
fortalecendo o vício dele.

Como orientado, pego o cartão de acesso na recepção, no mesmo


hotel que passei a noite anterior com Krigor, rumo para meu andar, que fica
abaixo da cobertura, onde provavelmente seja o seu.
Não entendo essa mania de ficar mudando de hotel. Desde que o
conheci, já passou por três lugares diferentes, um mais requintado que o
outro. Esse lance de luta deve render mais dinheiro do que imaginei.
Abro a porta e sou atacada por duas mãos que envolvem meu
pescoço com um abraço apertado, reconheço a impetuosidade de Katrina e
acabo por sorrir.

— Olá para você também.

— Já estava entediada de ficar neste quarto, sozinha. — Ela se


afasta, indo até a cama e se joga sobre o colchão.

— Faz tempo que está aqui?

— Sim. Krigor me ligou logo que saiu do bar, contou uma história
muito esquisita, que você precisava ficar com ele por um tempo, por
segurança, mas eu deveria estar junto.

— Nem me fale sobre isso. Não sei aonde fui me meter, mas tenha
certeza de que vou descobrir. — Coloco minha mochila sobre o aparador no
canto.

O quarto é basicamente o mesmo modelo de ontem, com a


diferença de serem duas camas ao invés de uma de casal. Nem muito
grande, nem muito pequeno, no entanto, bem mais confortável e maior que
o meu no apartamento.

— O que você disse aos meus pais?

— Que a Irina viajou e pediu para você ficar no quartinho do bar,


de olho nas coisas. Sua mãe me ajudou a fazer uma mala pequena, ela
parecia bem abatida, Sacha.
Solto a respiração e desabo na cama, cansada o suficiente para
processar tudo que aconteceu nesse dia conturbado.

— O agiota ameaçou meu pai, pois o dinheiro do mês não estava


onde deveria. Tive que mudar de lugar, sumiu pequenas quantidades e tinha
certeza de que até o pagamento não teria o valor completo.

— E ela brigou com você por isso? — Katrina se senta na cama,


atenta ao assunto.

— Não. Brigamos depois, meu pai me bateu quando disse que ele
está afundando a família e ela, como sempre, foi a favor dele.

— Que ruim, prima.

— Sim.

— Por isso está aqui com o volk? — Um sorriso maroto brota no


canto dos seus lábios.

Katrina e suas artimanhas para me distrair das frustrações que


enredam minha vida.

— Isso é outro problema. A encenação da festa ruiu, apesar de


todos os cuidados que ele teve, alguém soube que passamos a noite juntos e
agora, estou visada.

— Por causa de Russell?

— Ainda não sei. Ele diz que tem algo pior que o seu inimigo de
ringue. Talvez, a organização.

— Isso é bem estranho. — Ela pondera por um momento. — Se ele


quer te proteger de algo, o mais sensato é se afastar.
— Foi o que eu disse, mas, de alguma forma, ele me convenceu de
que assim será melhor. — Jogo meu corpo, deitando na cama. — Uma das
minhas exigências em concordar estar aqui é saber direitinho qual a história
por trás disso.

— Eu estar aqui é outra. Por quê?

— Você está aqui com a missão de não me deixar sucumbir a outra


exigência que fiz.

— Qual?

Ergo a cabeça, encarando seus olhos curiosos, antes de responder:

— Não deixar ele me tocar.

Katrina solta uma gargalhada estrondosa, volta a jogar o seu corpo


na cama, e eu fecho os olhos, pensando que minhas escolhas no momento
do trato não foram as mais inteligentes e, agora, terei que contornar toda
essa confusão, sem sair arranhada demais.

Acordo, sobressaltada, com uma batida forte na porta, tateio o


móvel ao meu lado e acendo o abajur. Encaro a porta, confusa, Katrina
dorme na cama ao lado, levanto-me para verificar quem é.

Usando uma camiseta velha que adoro, meias e nada mais, abro a
porta, um olho ainda meio fechado, cansado demais para despertar por
completo.

— Por que não conferiu o olho mágico? — Krigor está parado à


minha frente, usando um conjunto esportivo preto, fones de ouvido
pendurados por cima da gola, a testa e o cabelo, levemente, úmidos.

— Que horas são?

— Cedo.

— O que você quer? Daqui a pouco tenho que trabalhar.

— Vim convidá-la para o café, antes de sair.

Ergo só uma sobrancelha, olho para mim mesma, volto meu olhar
para Krigor que está hipnotizado pela barra da minha camiseta, que termina
no topo das coxas.

— Vou trocar de roupa e subo. Está na cobertura, não é?

— Sim.

— Ótimo — respondo, séria, e fecho a porta, na sua cara.

Só me faltava essa, agora. Lidar com o lutador que vai querer me


acordar na madrugada para lhe dar atenção, parece que estou me tornando a
dama de companhia de um marmanjo.

Faço uma higiene básica, prendo os cabelos no alto da cabeça,


displicentes, visto uma calça de flanela cinza, troco a camiseta por uma
blusa de gola branca, calço minhas botas forradas com pele de carneiro e
saio do quarto.

Katrina continua dormindo, poderia ter o prédio desabando ou em


chamas, que só acordaria depois que um bombeiro a tirasse do lugar. Nunca
vi um sono tão pesado.

Bato na porta do quarto de Krigor e abro uma fresta, colocando a


cabeça para dentro, tudo muito quieto e meio escuro, já que as cortinas
estão fechadas.
Entro e fecho a porta atrás de mim, observando a beleza do lugar.
Isso é praticamente um apartamento de luxo, com sala de estar, uma mesa
próxima as cortinas para refeições e artigos de decoração por todo o
ambiente. Duas portas, uma de cada lado, separam os quartos,
provavelmente. Pelo tamanho da área de lazer, deve ter quartos conjugados.

Uma das portas é aberta e por ela passa um lutador, deliciosamente


molhado, com uma toalha cobrindo suas partes e nada mais. Arregalo os
olhos, surpresa e ao mesmo tempo, desejosa, é muito músculo para não ser
cobiçado.

— O que você está fazendo? — pergunto, arredia.

— Vou tomar café.

— De toalha? Não sente frio?

— O climatizador está em temperatura ambiente, Króchka, não


precisa se preocupar comigo. — Ele vai até a mesa e destampa algumas
travessas que não havia percebido ali.

— Não se faça de bobo. Está praticamente nu na minha frente. —


Aponto para seu corpo de cima a baixo, enfatizando o inconveniente.

— Você viu bem mais que isso ontem, Króchka. — Ele pega um
pedaço de fruta e coloca na boca, mastigando demoradamente.

Por que tudo que ele faz soa tão erótico para mim?
Capítulo 34

Passo algum tempo admirando seu corpo enquanto mastiga a fruta


que ingeriu, limpo o canto da boca com certa descrição e retomo o juízo
momentaneamente perdido.
— Pois, prefiro que você vá colocar uma roupa. Não se esqueça
dos termos.

— Tak! — Ele solta a fruta e volta pelo caminho de onde veio.


Ocupo uma cadeira na grande mesa e destampo meu prato.

— Blinis! — comemoro.

— Sua prima disse que você ama comer isso no café — Krigor
comenta, quando retorna e, agora vestido decentemente, vem até a mesa,
ocupa a cadeira de frente para mim, seus olhos penetrantes analisam cada
movimento meu.

É fácil perceber quando está sendo observada, principalmente


sendo o volk quem o faz, já que não tem qualquer sutileza e não se importa
de usar a intimidação para atingir seu objetivo, seja ele qual for.
— Então, volk, acho que agora é um bom momento para começar a
falar.

— Prefiro degustar de um bom café da manhã em sua companhia.

— Se continuar me enrolando desse jeito, vou pegar minhas coisas,


Katrina e partir. Dane-se seus avisos sobre segurança, ameaças e todo o
perigo — falo, de forma calma, mas deixo clara a intenção para que não
duvide que executarei.

— Tak! — Ele serve um copo de chá para ele e estende ao meu. —


Você tem mais concessões minhas do que meu treinador de anos.

— Em compensação, estou mais no escuro do que ele com toda a


nossa situação. Que perigo é esse que você tanto teme?

— Você já ouviu sobre quem está por trás da organização das lutas.

— Sim, a máfia.

— Exato. Eles não têm uma forma muito branda de lidar com as
coisas, Sacha, usam qualquer tipo de pressão para manter tudo na linha.

— Isso, eu entendi. Só não sei o que tem a ver comigo.

— Eu e alguns lutadores somos vistos como peças-chaves no


circuito das lutas. Basicamente, seguimos as regras do MMA, as disputas
acontecem de acordo com a popularidade e o ganho que cada luta trará.
Quanto mais o embate é esperado pelo público, mais dinheiro a organização
ganha e, consequentemente, os lutadores que participam do evento.

— Você está me dizendo que é tipo uma estrela no meio? — Não


consigo esconder o tom de sarcasmo.

— Sim, assim como Russell e, hoje, nossos embates são os mais


esperados por todos. Criaram um novo circuito, em que eu devo chegar à
final com meu maior oponente. Começa nas próximas semanas.

— Faz quanto tempo que você luta para eles?

— Dez anos.

— Bastante tempo. E onde está o perigo nisso tudo?


— O fato de Russell ter lhe procurado, isso nunca aconteceu antes.
Talvez seja por minha culpa, por expor você naquela luta, mas algo me diz
que ele foi mandado por alguém.

— A organização?

— Sim.
— Acha que podem te ameaçar, me usando? — As coisas
começam a fazer sentido na minha mente.

— Exatamente.

— Então, por que não me deixou em paz? Estar aqui hoje é ainda
pior, sabia?

— Já disse. Souberam da nossa noite e que não fiquei com as


garotas. Estão em alerta, Króchka.

— E tudo isso é culpa sua! Agora estou presa a você pelas


próximas semanas. — Levanto da mesa, me dando conta da situação.

— Eu diria meses.

— Meses? Isso é total loucura. — Caminho para longe,


necessitando de espaço.

Suas informações fogem completamente do que esperava, imaginei


que isso duraria alguns dias e não todo esse tempo.

— É tão ruim assim estar em minha companhia? — Ele se levanta


também, olhando-me com mágoa.

— Não tem nada a ver com você e, sim, com a minha vida. Não
posso passar meses fora de casa. Isso está muito confuso, Krigor.
— Eu vou dar um jeito de resolver tudo. Só te peço um pouco de
paciência, está bem?

— Por que você entrou nisso? Não sabia do que se tratava? —


Minha curiosidade sobre seu passado cresce.

— Escolhas erradas me fizeram chegar aqui.

Vejo seus olhos endurecerem parcialmente, a mandíbula travar,


movendo sutilmente o maxilar.

— Não vai me falar nada a respeito?

— Não.

— Inacreditável. Você até agora só falou mais do mesmo e, no fim,


não esclareceu quase nada. Acho melhor eu ir trabalhar naquele emprego de
merda que não me valoriza e agora, assedia. — Ergo os braços girando o
corpo para sair dali.

— Como é que é? — A voz cortante de Krigor me paralisa e fecho


os olhos lamentando minha boca tagarela.

— Nada... eu só estou estafada — respondo, caminhando para a


porta.

Quando giro a maçaneta para sair dali o mais rápido possível, sem
dar mais explicações da minha revelação, Krigor espalma a mão na porta,
empurrando a pequena fresta de volta, fechando-a.

— Quem está te assediando? — Sinto sua respiração ofegante.

— Ninguém — respondo, ainda de cabeça baixa.

— Vá se aprontar para o trabalho, eu vou te levar.

— Não vai, não! — Encaro seu rosto, determinada.


— Com certeza vou e, no caminho, você vai me dar só um nome.
O resto, eu resolvo.

— Não posso perder esse emprego, Krigor.

— E você não vai. — Ele aproxima sua face da minha e passa o


nariz ligeiramente sobre o meu.

Tão sutil, mas o suficiente para colocar meu corpo em alerta, à


beira de sucumbir ao desejo de beijá-lo.

— Te espero na recepção, Króchka.

Ele se afasta repentinamente, quebrando a energia que aflorava


exponencialmente entre nós e abre a porta, para que eu saia.

Respiro fundo quando entro no Pardes, Krigor ao meu lado,


segurando minha mão com firmeza. A caminho daqui, relatei o acontecido
ontem, enfatizei que só foi daquela vez e que já estava tudo resolvido com
Frans, mas ele não quis saber da última parte, disse que daria seu próprio
recado.

— Bom dia. Quero falar com Frans — Krigor anuncia, alto


demais.

— Sou eu. — Frans sai de trás do balcão, vindo até nós.

Em um movimento rápido, assim que o homem está próximo o


suficiente, Krigor solta minha mão e segura a camisa de Frans, esmagando-
a entre seus dedos e o traz para bem perto.
— Eu só vou avisar uma vez. Se você chegar perto da Aleksandra,
mesmo que seja um esbarrão sem importância, eu virei aqui e as coisas não
serão tão diplomáticas como agora, entendeu? — A voz de Krigor soa baixa
e ameaçadora.

— O que está acontecendo aqui? — Ivo surge ao nosso lado. —


Aleksandra, o que seu amigo está fazendo com meu sobrinho?

— Ele a assediou ontem e você, como um patrão de merda, não viu


isso acontecer — Krigor toma à frente.

— Impossível. Frans nunca fez algo do tipo com nenhuma das


funcionárias.

— Sim, ele fez — afirmo, encarando meu patrão. — Krigor, pode


soltá-lo. — Toco o braço do lutador.

Agradeço quando ele me ouve e solta Frans, que parece assustado


o suficiente para sair correndo a qualquer momento.

— Isso é inveja dela, tio, porque queria estar no meu lugar aqui —
Frans argumenta, ardiloso.

Assim que as palavras saem de sua boca, enfurecida, não penso


direito e acerto meu punho no meio do seu olho.

— Ai! — Abano minha mão, sentindo o impacto.

— O que é isso? Você está demitida! Entendeu? Demitida! — Ivo


se altera e Krigor dá um passo em sua direção.

— Não, Krigor, não vale a pena. Eu já estava estafada dessa merda


mesmo. — Puxo o braço de Krigor para sair dali.
Vejo Frans apalpar o olho avermelhado e, sem qualquer
arrependimento, saio porta afora. Cansei de trabalhar mais do que todos,
ganhar uma miséria e ainda, aguentar merdas de um homem tão babaca
quanto Frans. Se Ivo não tem coragem de tomar uma atitude decente, então,
sou eu quem deve tomar.

— Belo cruzado de direita, Króchka.

Encaro seu rosto, que se mantém atento à calçada, enquanto


caminhamos de volta para o carro, e acabo sorrindo.

De alguma forma, que ainda não descobri qual, Krigor está me


mudando. Só espero que no fim, seja para melhor.
Capítulo 35

Quando finalmente estamos dentro do carro, seguro meu punho, os


dedos avermelhados e bem doloridos pelo meu rompante impensado.
Acabei de jogar fora quase metade da minha renda, se estava difícil antes
juntar o dinheiro da dívida, agora, tornou-se impossível.

— Não se culpe. — Krigor cobre minha mão com a sua, puxando-a


para seu colo.

Ele acaricia o lugar, examinando qualquer ferimento que possa ter


causado.

— Não me culpo, ele mereceu aquele soco. O problema é que


preciso do dinheiro para... — interrompo a frase, não quero despejar meus
problemas para ele —... viver.

— Eu posso te ajudar.
Encaro o rosto de Krigor e vejo que ele fala sério. Puxo minha mão
automaticamente, na defensiva.

— Não sou uma mercadoria para ser comprada, lutador. Se


costuma fazer isso com aquelas mulheres, não vai funcionar comigo.

— Você está entendendo tudo errado e exagerando. Não quero


comprá-la, até porque, seu valor seria incalculável, de qualquer maneira —
responde, de forma direta, parece até um pouco ofendido comigo.
Meus lábios vacilam, ameaçando um sorriso quando ouço o final
da sua frase. A irritação momentânea se foi, com uma pequena declaração,
que nem ao menos tenho certeza da veracidade, mas bastou para afugentar o
sentimento ruim.

Isso é preocupante, não posso permitir esse homem complicado


ditar meu humor ou pior, criar esperanças onde não há espaço para mais
nada. Tudo que ele está fazendo é por pura crise de consciência, seu medo
obsessivo de que algo de ruim possa me acontecer, por sua culpa, faz com
que tenha esse zelo com meu bem-estar, nada mais.

Preciso ser sincera comigo mesma e admitir que um homem como


Krigor, lutador implacável, envolvido com uma organização clandestina e
ligado à máfia, não é o herói que em alguns momentos minha mente
projeta. Ele pode estar agindo com hombridade, entretanto, isso deve estar
ligado a algum peso do passado.

— Já que tem o dia livre, quer me acompanhar no treino? — Sua


voz me desperta.

— Tanto faz — respondo, ainda olhando pela janela.

Manter distância é a única arma de defesa que tenho. Não posso


dar espaço e correr o risco de alguma investida de sua parte. Apesar de ter
prometido que não tocaria em mim, conheço meu corpo o suficiente para
saber que ele me trairá na primeira oportunidade, sucumbindo ao desejo.

O carro ruma cada vez mais para longe do centro de Moscou, a


viagem dura tempo suficiente para que o perfume do lutador me faça querer
inalar todo o ar de dentro do veículo. Antes de perder o controle, chegamos
em frente a um prédio de tijolos à vista.

A construção é mal acabada, parece ter sido depredado em algum


momento, entretanto, ainda é melhor do que o cenário à nossa volta. Pela
janela, vejo mais prédios em estado pior que esse e fico me perguntando
como ainda não foram embargados.

— Chegamos. Evite encarar as pessoas — ele alerta, antes de abrir


sua porta.

— Eu não encaro ninguém — rebato, afetada.


Ele não responde e bate à porta, olho pela janela novamente, a
película escura impede que me vejam, o que é bom, já que estou receosa em
sair daqui.

Krigor abre minha porta e estende a mão para que eu desça. Ignoro
sua gentileza e ajo por mim mesma, avanço alguns passos à frente e espero
por ele.

— Você encara, sim, Króchka — ele sussurra próximo ao meu


ouvido, quando finalmente para ao meu lado.

— Quanto tempo vai durar esse circuito? — Mudo de assunto,


lembrando a nossa conversa interrompida no quarto de hotel.

— Três meses, em média.

— O quê? — grito, levantando a cabeça e encaro sua face tranquila


e intransponível.

Ele me olha de cima, sem qualquer alteração, entrelaça seus dedos


nos meus, quando captura minha mão e me reboca em direção às portas
chapadas de metal.

Um homem de terno preto está parado na frente, uma roupa muito


alinhada e refinada destoa totalmente do ambiente, entretanto, recordo-me
dos seguranças que estavam nas lutas e festas da organização.
Os mafiosos.

Um arrepio indesejado passa pelo meu corpo, estremecendo-o


fracamente.

Krigor acena com a cabeça em direção ao homem, que não reage,


atento e com a expressão sisuda. Deve existir um tipo de requisito para
adentrar esse mundo e, com certeza, uma cara fechada faz parte do pacote.

— Ignore as provocações e tudo ficará bem.

— Do que você está...

— Volk! Resolveu trazer um docinho para o treino hoje? — Um


grandalhão entra na nossa frente, interrompendo minha fala.

Encaro de um para o outro, obviamente erguendo a cabeça, já que


sou a única baixinha do recinto. Imagino que o lutador esquentadinho vai
armar a maior cena, porém, contradizendo totalmente meu temor, Krigor
ergue o punho e o outro bate em cumprimento.

— Danya, camarada, como vai? — Krigor soa simpático.

— Bem. Voltei ontem do circuito de lutas no sul.


— Fiquei sabendo que as coisas ficaram tensas por lá.

— Sim, bem tensas. Mas rendeu um bom dinheiro.

— É por isso que estamos aqui.

Continuo parada, pareço um chaveiro ou peça de adereço, grudada


a Krigor, que interage de forma espontânea com o homem à nossa frente.

O estranho parece notar minha presença, ou curiosidade, e


direciona sua atenção para mim.
— Como vai? Sou Danya Viktorovich. — Ele estende a mão.

— Vou bem, obrigada. Sou Aleksandra Yakovna.

— Pela primeira vez, vejo o volk trazer uma distração para o


treino. Por que será? — Seus olhos risonhos me cativam.

Diferente de outros lutadores ou pessoas do meio que conheci,


Danya é o único que transmite alegria e leveza em sua expressão. Essa
receptividade me ganhou de forma completa e instantânea.

— Acho que sou a arma secreta dele — respondo baixo, brincando.

— Ela está comigo, Danya. Isso já é o suficiente para você saber


— Krigor corta nosso pequeno gracejo.

— Como sempre, de bom humor, volk. — Danya toca o ombro do


amigo e finge tédio. — Bom te conhecer, Aleksandra Yakovna, espero vê-la
novamente.

— Igualmente. — Sorrio simpática.

— Não tem por que vocês se verem novamente. Chega disso. —


Krigor contorna o amigo, me arrastando junto com ele.

Desta vez, sou eu a fingir tédio. Não sei onde ele adquiriu essa
educação, mas começo a duvidar muito de sua base familiar.

Ele me coloca sentada em um banco de madeira comprido, distante


da área de luta, abaixa à minha frente, como se fosse advertir uma criança
por algo.

— Você fica aqui, quieta. Não fala com ninguém. Vou me trocar
para o treino.

— Sim, papa[26] — respondo, imitando uma voz infantil.


— Adoraria ser seu papa por um tempo, só que mais tarde,
Króchka.
— Não se esqueça dos termos — respondo rapidamente e sinto o
rubor subir pelas bochechas.

— Nem que eu quisesse, você permitiria. — Ele pisca um olho e


segue para uma porta próxima, sinalizada como vestiário.

Agora, sem sua presença, consigo observar o ambiente. Bem


melhor que a aparência externa, as paredes são todas revestidas por placas
de isolamento térmico, em um tom claro de cinza. As vigas aparentes
servem de apoio para os sacos de areia, distribuídos ao redor, algumas
aparelhagens de musculação estão organizadas do outro lado, há um ringue
principal com cordas e acolchoados no centro e, deste lado, alguns tatames
menores que simulam áreas de combate.

A única mulher no ambiente sou eu, apesar de não estar tão cheio,
os poucos homens espalhados não tiram os olhos de mim, que claro,
começa a me incomodar e questiono até onde foi uma boa ideia ter vindo.
Capítulo 36

Passo um tempo admirando a paisagem e pensando quanto tempo


mais o volk precisa a fim de se aprontar para um treino.

— Aí está você. — Bóris senta-se ao meu lado.

— Que lugar é este?

— Aqui é um dos muitos centros de treinamento para os lutadores


do circuito Diamante. — Enrugo as sobrancelhas e ele esclarece: — Os
lutadores são divididos em vários níveis, esse é o maior deles.

— O das estrelas — brinco.

— Basicamente. Os treinos só acontecem em comum com


lutadores parceiros e que não existe possibilidade de se enfrentarem. Os
mais novos — ele aponta alguns deles no salão —, são possíveis
recrutamentos. Estão aqui para observar e aprender.

— Danya, no caso, não lutaria contra Krigor. Por quê?

— Ele é lutador de outra região. A organização dividiu a Rússia


em setores, cada setor tem sua cota de lutadores e não mesclam entre elas,
assim mantém os fãs concentrados.

— Entendi. Esses garotos, possíveis recrutas, vem parar aqui,


como?

— Isso é muito particular. Cada um tem uma história, Sacha, não


tem como saber.
— E qual a história do Krigor? — A curiosidade se sobressai e não
consigo conter.

— A mais pesada de todas. — Bóris abaixa a cabeça, pesaroso.

— Estou pronto. — Krigor surge ao nosso lado e acabo me


assustando.

— Vamos para o ringue, então. — Bóris levanta e faz sinal com a


cabeça para que eu o siga. — Danya! Sparring! — grita, chamando pelo
amigo de Krigor.

— O que é isso? Sparring?


— É uma modalidade de treino que simula uma luta real. Ambos
testam suas habilidades e possíveis eventos em um combate verdadeiro.

— É sangrento? — Enrugo o nariz ao me lembrar da luta de Krigor


com Russell.

— Não. Não chega tão perto assim da realidade. Hoje tem vários
principiantes, é bom uma demonstração do que os aguarda.

— Bom? Na visão de quem?

Olho para frente e vejo Krigor dentro do ringue principal,


aquecendo o corpo com alguns golpes repetitivos com os braços, chutes
para o ar e corridas no mesmo lugar.

Danya separa as cordas, passando seu corpo entre elas e assim que
está no ringue, repete os movimentos de Krigor. Os garotos que estavam
executando algum tipo de exercício nos aparelhos param e vão até próximo
ao ringue, fascinados.
— Para eles, independe o motivo de estarem aqui, todos só sonham
em lutar.

— Então, isso tudo é só para criar mais uma ilusão na cabeça


deles? — Olho para Bóris.

— Esse é o jogo, Sacha — ele responde, sem empolgação. —


Vamos lá, volk. Mostre ao lutador do sul como as coisas funcionam por
aqui.

Krigor bate suas luvas e arma a guarda, Danya faz o mesmo e


ambos começam a caminhar em círculo, a atenção totalmente direcionada
ao oponente. O semblante leve de Danya se foi, agora veste a máscara
padrão dos homens por aqui, perigoso e letal.

Danya arrisca alguns socos e Krigor se esquiva, com facilidade, em


resposta ele chuta elevado e acerta a costela do adversário, o barulho é alto
e fico espantada pelo homem não fazer uma careta de dor sequer.

— Danya tem um excelente cartel, tanto quanto Krigor, está na


cidade para o próximo circuito de lutas.

— Mas você disse que ele pertence a outro setor, eles não lutam
entre si. E o que é cartel?

— Ele fará algumas lutas do circuito como amistoso, nada que


valha muita coisa, já que aqui ele não é tão conhecido quanto os efetivos. E
cartel é o currículo de um lutador, apresentando as lutas realizadas
separadas por vitórias, empates e derrotas.

— E qual o cartel de Danya?

— Cento e trinta e sete vitórias, dez empates e três derrotas.

— Isso é bem positivo.


— Sim, mas Krigor supera com duzentas vitórias, nenhum empate
e cinco derrotas.

— Mas ele teve mais derrotas que o Danya. Não entendi.

— As derrotas do Krigor só ocorreram contra Russell, por isso a


fama da rincha entre eles. Se comparar as vitórias, tempo de luta, já que
Krigor tem o dobro que Danya, mais os empates e as derrotas, Krigor ainda
supera o cartel dele.

— Ele só perdeu até hoje para um único lutador?

— Sim. Não é à toa que o público fica tão empolgado com o


histórico dos dois. Russell e Krigor têm o mesmo tempo na organização,
nenhum dos dois apresentam empates, mas Krigor tem menos derrotas que
Russell. Hoje, o cartel dele está com duzentos e noventa vitórias para dez
derrotas. As derrotas que não aconteceram com o volk, ocorrem em um ano
meio turbulento para Russell, tanto que ficou alguns meses afastado do
circuito.

— Impressionante.

— Muito. Por isso é importante, Sacha, que você entenda onde está
se metendo. Russell é perigoso, um lutador ardiloso e que gosta de estar no
topo, mas o maior problema entre você e o volk é ele mesmo. A organização
o tem em alto valor e não vai pensar duas vezes para tirar um problema do
caminho.

— Então, eu não devo ser um problema.

— Exatamente.
Um baque repentino nos desperta desse pequeno momento de
confidências e esclarecimentos, volto meu olhar para a arena e vejo Danya
deitado no tatame e Krigor sobre ele.

— Muito bem, volk. Sequência! — Bóris, ordena.

— Ele vai matar o próprio amigo — protesto, assustada.

— Não, não vai. — Bóris ri do meu desespero.

Ao comando do treinador, Krigor começa a acertar repetidos


golpes na cabeça de Danya, que defende com os braços à sua frente,
amenizando o impacto. Quando Bóris mencionou uma simulação, não
pensei que seria algo tão a sério.

Até tentei contar, mas a rapidez com que Krigor acerta seu
oponente tornou impossível saber quantas vezes ele foi golpeado, até que
consegue reagir, girando seu quadril entre as pernas de Krigor. Danya, por
um segundo, desequilibra-o e acerta um soco em seu estômago,
empurrando-o para trás.

— Tak! Já chega! — Bóris decreta e ambos, imediatamente,


afastam-se.

Danya sai da arena e alguns garotos o rodeiam, fazendo diversas


perguntas e comentários ao mesmo tempo. Krigor, que ainda está no tatame,
levanta devagar e vai até o outro lado, oposto à movimentação, para sair.

— Foi bem, garoto! Só precisa melhorar sua previsão de golpe.

— Não é o estilo do Danya aquele soco.

— Por isso ele foi mais inteligente. Te surpreendeu.

— Tak! — Krigor responde, desgostoso, tirando as luvas.


— Volk! Você é demais. — Um garoto se aproxima, animado.
Krigor o encara e volta sua atenção para a garrafa de água que
estava no chão ao lado do ringue, toma um gole e nada responde. O menino,
parado à sua frente, permanece na expectativa de uma palavra que seja do
seu ídolo.

— Tudo bem, menino. Depois o volk vai assinar umas camisetas


— Bóris intervém, segurando os ombros do garoto.

— Mas... volk, você poderia me treinar, dar umas dicas, qualquer


coisa. — A expectativa do rapaz é latente, chega doer o coração, a forma
como é tratado com descaso pelo lutador.
— Treinar? Esqueça, rapaz. Você não deveria nem estar aqui —
Krigor responde, cortante, joga sua garrafa no canto e sai.

O menino fica desapontado, seus ombros caem e Bóris o incentiva,


falando algo sobre o circuito que começa em poucas semanas.

Indignada e tomada pela decepção do garoto, marcho a passos


largos atrás de Krigor. Se ele pensa que tem o direito de tratar um ser
humano como lixo, só por que ele é o tal diamante da organização, está
redondamente enganado.

— Ei, svolach! — Krigor para imediatamente. — Isso mesmo.


Você não passa de um arrogante infeliz, que gosta de se aparecer para todos.

Ele não tem a decência de me dar atenção, sua cabeça vira,


ligeiramente para o lado, sem dar muita importância para meu arroubo.

— Você não sabe o que diz. — Sua voz é gélida e cortante,


mostrando toda frieza que esse homem carrega na alma.
Capítulo 37

Fico parada do lado de fora do vestiário, braços cruzados, pé


direito batendo impacientemente no chão, inconformada com tudo que
acabei de presenciar e pronta para continuar nosso embate.
Danya passa por mim e antes de entrar pela porta, ele para e me
encara por um breve momento.

— Ele é assim. Não tente mudá-lo.


— Não quero mudar ninguém, mas ele precisa aprender o
significado de educação e bons modos.

— O volk? — Ele ergue o dedo, apontando para dentro do


vestiário. — Esqueça isso, garota. Ele é o que é.

— Bom, então essa sou eu e ele vai ter que lidar com isso também.

— Boa sorte! — Danya sorri, amistoso e desacreditado, ao mesmo


tempo.

Um tempo depois, Krigor passa pela porta, roupa trocada, cabelos


molhados. Quando me vê parada na saída, ele estaca, seus traços tão
fechados e, sem nada falar, continua caminhando.

— Aonde ele vai? — pergunto aleatoriamente, girando meu corpo.

— Embora. Vamos. — Bóris surge ao meu lado.

Balanço a cabeça, aborrecida por ser ignorada dessa forma, sua


atitude só estimula ainda mais a necessidade de lhe ensinar bons modos,
alguém precisa mostrar ao volk que ele não é um rei intocável.
Ocupo meu lugar no carro e faço questão de bater a porta, com
toda a força possível. Ele tira os olhos da janela, mirando em mim, com
advertência, e ergo as sobrancelhas, esperando pela primeira palavra.
Nada.

Tão rápido como me olhou, ele volta a encarar a janela, ignorando


minha presença. Cruzo os braços, minhas atitudes são mais evidentes do
que o normal, pareço uma adolescente impertinente, mas pouco me
importo, se isso bastar para tirá-lo dessa bolha de autossuficiência, assim o
farei.
Quando o carro começa seu percurso pelas ruas, o sistema de som
é acionado e uma música começa a tocar no alto-falante. Reconheço a letra,
é do Royal Deluxe, I'm Gonna Do My Thing.

Por golpe do destino ou intencional, a letra retrata exatamente o


impulsivo narciso ao meu lado, o refrão repete diversas vezes que ele fará
as coisas à sua maneira, que não existe ninguém que possa controlá-lo e que
a pessoa que o fizer, deve segurar sua opinião.

— Eu não vou me calar! — falo, alto o suficiente para que ele


possa ouvir.

Sua atenção se volta para mim, com o cenho franzido, não me


intimido com a cara amarrada e encaro-o, de igual para igual.

— Do que está falando?

— Colocar uma música de autoafirmação não vai mudar o que


acho e, muito menos, me fazer calar.

— Eu não coloquei nada nem mandei o motorista colocar. Talvez


seja o destino lhe dando um sinal, para que seja menos julgadora.
— Eu, julgadora? Você esnobou o pobre rapaz.

— Não. Eu apenas não o incentivei a viver um sonho vazio —


Krigor fala, com tanta veracidade, que me calo.

Seus olhos flamejam em cima de mim, tão revoltado quanto eu.

— Não seria malvisto dar um pouco de atenção ao garoto. Os olhos


dele brilhavam quando te observava — respondo baixo, desarmando a
guarda.

— É exatamente isso que a organização espera de mim, mas eu me


nego a compactuar com essa fantasia que eles montam. Já passei por ela um
dia e sei o quão duro é no momento em que a realidade se apresenta.

Suas palavras soam como charadas, ele fala dos sentimentos e de


situações, mas não abre absolutamente nada e essa dúvida me deixa ainda
mais intrigada, quase maluca por desvendar o mistério.

— Por que você não é claro no que diz? — Deslizo minha mão no
banco, tocando a dele.

Krigor pisca algumas vezes, a névoa de tristeza que vi passar por


seus olhos toca fundo dentro de mim, contudo, ele deve ter percebido, já
que torna a endurecer a postura e puxar sua mão que estava embaixo da
minha.

— Não tenho nenhuma história bonita para contar, Aleksandra.

Subimos o elevador, juntos, Krigor mais fechado e quieto que o


normal, o assunto morreu no carro e achei melhor deixar assim. Forçar a
situação só o incomodaria ainda mais e eu não teria minhas respostas.

Desço no meu andar, acompanhada de Krigor, o que me


surpreende, pensei que seguiria para seu quarto direto, na tarefa de
continuar me ignorando epicamente.

— Você aceita almoçar comigo no restaurante do hotel? — Sua


voz é baixa.

Estou com a mão na maçaneta, encarando a porta, pondero antes de


responder:

— Sim.

— Obrigado, Króchka.

Entro, sem dizer uma palavra mais, fecho a porta atrás de mim,
respirando profundamente. Percebo que estou sozinha, Katrina deve ter ido
para o trabalho, entretanto, deixou a bagunça dela para trás.

Roupas esparramadas na cama, que não foi estendida, a


penteadeira com diversos itens de maquiagem espalhados, sua toalha no
chão, próximo da cama, e alguns sapatos jogados pelo ambiente.

Mesmo sabendo que o serviço de quarto poderia dar conta disso


em algum momento, resolvo eu mesma limpar e distrair minha cabeça.

Enquanto ajeito as coisas, penso que preciso arrumar outro


emprego no período diurno, quem sabe o hotel precise de alguém para
trabalhar, já que estarei aqui por um tempo. Posso unir o útil ao agradável.

Tenho que continuar juntando o dinheiro da dívida, meus pais não


têm condições de pagar por ela, mesmo depois da briga, me falta coragem
de abandoná-los à própria sorte.
Se eu não tivesse socado a cara do Frans, estaria segura, mas nada
tem sido normal desde que conheci Krigor. De alguma forma, ele despertou
um senso de autopreservação em mim, que não consegui conter meu ímpeto
quando aquele rato mentiu sobre minhas intenções.

A verdade, é que ele já merecia aquele soco bem antes, eu só


protelei o feito.

Termino minha arrumação, tomo um banho e abro o closet para


escolher uma roupa. Não que isso seja um encontro, claro que não é, mas o
hotel que estamos é de renome e as pessoas aqui andam mais bem vestidas,
quero estar à altura também.

Escolho uma calça de linho preta e uma blusa de tricô rose, sua
gola é grande e sobrepõe os ombros, charmosa e conveniente para o lugar.
Coloco minha bota de camurça preta, faço um coque bagunçado e aplico
um pouco de batom nos lábios.

Escuto uma batida leve na porta e meu coração acelera


exponencialmente. Coloco o objeto sobre a mesa, respiro fundo e confiro
uma última vez minha imagem no espelho.

Isso não é um encontro, Aleksandra!

Abro a porta, Krigor está encostado na parede oposta, um pé


apoiando nela, mãos no bolso da calça jeans preta, camiseta e jaqueta de
couro na mesma cor.

Seus olhos percorrem meu corpo, examinando, da mesma forma


que acabei de fazer com ele.

— Vamos? — Ele finalmente desencosta de lá, se ajeitando.

— Sim.
Desta vez, ele não toma minha mão para si entrelaçando nossos
dedos, e mesmo que minha razão castigue meus sentimentos, sinto falta do
contato. Estava me acostumando com o fato de ele me rebocar para todos os
lados, quando estamos juntos.

No restaurante, sentamo-nos em uma mesa no canto, distante o


suficiente da movimentação principal, o garçom nos entrega o cardápio e
me assusto assim que vejo o preço dos pratos.

— Só escolha o que quer.

— É tudo muito caro, Krigor — falo baixo, inclinando o corpo em


sua direção.

— Escolha ou eu farei isso por você — ele insiste, sem me olhar.

— Claro que você fará — respondo, com deboche, e retorno para


as opções.

— Frango à Kiev. E um chá — aviso minha escolha.

— Gostei, vou pedir o mesmo. — Krigor ergue a mão, sinalizando


para o garçom.

O lutador quer me agradar, mas ele não sabe o quanto posso ser
impertinente.
Capítulo 38

Assim que o atendente se afasta, o silêncio volta a nos acompanhar,


esfrego as mãos umas nas outras por baixo da mesa, mordendo a língua
para não dizer nada inconveniente, apesar da minha mente tentar fazer o
oposto.

— Onde está Bóris? Ele não almoça com você? — pergunto, para
quebrar o incômodo que começa a surgir entre nós.

— Não sei e, não, ele não almoça comigo sempre.


— Entendi.

Olho para os lados, procurando por outro tema que eu tenha um


diálogo mais proveitoso, quando noto o homem grande e mal-encarado
entrar no restaurante e seus olhos automaticamente cravam nos meus.

— Russell — falo baixo.

— Quem? — Krigor olha na mesma direção que eu e vê seu


inimigo ali. — Por que ele está aqui? Ele mudou de hotel, ontem.

— Não sei, mas você deveria perguntar a ele. — Levanto a mão e


aceno em cumprimento.

O lutador inimigo retribui e caminha em nossa direção.

— Por que você fez isso? — Krigor protesta, baixo.

Dou de ombros, já que não tenho uma resposta para minha atitude.
Posso culpar minha irritação, frustração, ou o dia de merda que mais uma
vez estou tendo, mas a verdade é uma só: quero deixar o lutador irritado.
— Aleksandra Yakovna, como vai? — ele me cumprimenta.

— Bem, Russell. E você?

— Melhor agora. — Ele finalmente encara Krigor, que bufa como


um touro bravo. — Volk.

— Russell — Krigor responde, entredentes. — O que faz por aqui?


Já não saiu deste hotel?

— Pelo visto, seus informantes estão bem inteirados, Krigor. —


Russell sorri de lado.

— Sempre.

— No final de semana começam as lutas amistosas, vim conhecer


meu oponente para o próximo embate.

— Você vai lutar contra Danya? — Krigor pergunta, surpreso.

— Sim. E estou ansioso para acabar com ele.

— Mas não é uma luta amistosa? — Percebo a satisfação


sanguinária em sua face.

— No ringue, não existe isso, Kóchetchka[27].

Ele abaixa o corpo em minha direção e um baque na mesa o faz


afastar imediatamente. Krigor tem o punho fechado sobre ela, encarando
seu inimigo, com fúria nos olhos.

— Afaste-se.

— Claro. Até mais, volk! — Russell afasta alguns passos, sorrindo,


misterioso.
Krigor pega o celular e começa a digitar rapidamente alguma coisa
na tela, penso em questionar sobre sua mudança repentina de humor, mas
antes que fale, o garçom se aproxima com nosso pedido.

Um apetitoso e muito cheiroso frango à Kiev é colocado à nossa


frente. A carne suculenta cozida, recheada com ervas, presunto e queijo,
águam minha boca. Sempre achei engraçada a alusão à cidade de Kiev,
sendo que o prato foi criado em Moscou.

Dou a primeira garfada e fecho os olhos, gemendo em


contemplação. O sabor está muito melhor que a aparência, a carne derrete
na boca e o tempero é magnífico. Quando abro os olhos, vejo Krigor me
observando, com o celular nas mãos.

— O que foi?

— Você não tem ideia mesmo das coisas que faz, não é, Króchka?

— Do que você está falando?

— Nada. Vamos comer. — Ele solta o celular, pegando os talheres.

— Você pareceu surpreso por Russell lutar com Danya.

— Sim. Normalmente as lutas amistosas ocorrem com os novatos


e, não com veteranos, dos dois lados.

— Mas isso é errado?

— Ainda não sei. Já avisei Bóris e ele vai verificar com a


organização.

— Mas o que pode acontecer de tão ruim?

— Vindo dele — Krigor sinaliza com a cabeça e ambos olhamos


para o outro lado do salão, onde Russell cumprimenta Danya que acaba de
chegar —, não duvido de nada.

Comemos em silêncio pelo resto da refeição. Krigor atento à mesa


dos lutadores, em total agonia. Assim que acabamos nosso prato, ele se
levanta, segura minha mão, daquela forma possessiva de costume, e saímos
dali.

Seu caminhar é rápido, o suficiente para me fazer quase correr,


devido às minhas pernas curtas, na tentativa de acompanhá-lo.

— Pode ir mais devagar?

Ele esmurra o botão do elevador e solta um pedido de desculpas


engasgado.

Já no corredor do meu andar, Krigor caminha mais cauteloso,


agora retardando a chegada ao nosso destino.

— Ligue quando for trabalhar no bar. O motorista vai te levar.

— Não precisa, estamos perto, posso ir andando.

— De forma alguma. Você vai e volta acompanhada.

— Sou uma prisioneira agora?

— Não. Mas todo cuidado é necessário.

— Só não sei o porquê — respondo, incomodada.

Krigor segura meus ombros, ficando de frente para mim, curva o


corpo até seu rosto estar na mesma altura do meu, com uma das mãos ele
acaricia minha bochecha lentamente e eu aceito, de bom grado.

— Não quero lhe comprometer, Króchka. Só confie em mim e tão


logo estará livre, para sempre.
— Eu...

— Odeio seus termos. — Ele desce o polegar, passando no meu


lábio inferior. — Minha vontade agora é devorar sua boca. — Sua
entonação grossa é cativante.

— Faça.

Fecho os olhos, assim que solto a permissão, e rapidamente o volk


atende ao apelo mútuo. Meu corpo é prensado contra a parede, sou
esmagada pela sua truculência e força, sua língua duelando com a minha,
consumindo nosso desespero e esvaindo qualquer bom senso que
deveríamos ter.

Suas mãos descem pelas laterais do meu quadril, espalmam em


minha bunda e pressionam ainda mais de encontro à sua coxa. Entrelaço
meus dedos na sua nuca, puxo ainda mais seu rosto para mim, quase nos
fundindo um no outro.

Meu corpo está em brasa, seu toque queima com sua exploração
libidinosa, os sentidos se perdem na névoa luxuriosa que sempre nos cobre
quando temos esses momentos.

Escuto um pigarrear alto, próximo de nós, afastamos


imediatamente, como se um choque repelisse o contato.

Vejo Katrina, parada no meio do corredor, braços cruzados e os


olhos brincalhões, acompanhando o sorriso de lado que ostenta.

— Vocês sabiam que isso aqui é um hotel e existem os quartos para


essa finalidade?

— Desculpe — respondo, envergonhada.


— Não se preocupe, prima. Se eu tivesse um volk, não pensaria
duas vezes em me atracar com ele. Pouco importando o local — ela fala,
enquanto caminha, passa no meio de nós dois e destranca a porta.

— Acho que vou entrar também.

— Avise quando for sair. — Krigor coloca as mãos no bolso,


deslocado.

— Sim, eu aviso.

— Por favor, não parem por mim. — Katrina ergue as mãos, em


sinal de rendição.
— Não seja boba. — Empurro seu corpo para dentro do quarto e
lhe acompanho.

Antes de fechar a porta, encaro Krigor uma última vez, um sorriso


cúmplice enfeita seus lábios, assim como os meus, aceno com a cabeça e
finalmente fecho a porta.

— Nossa! Eu preciso de uma pegada dessas — Katrina fala, se


jogando na cama.

— Cala a boca. — Rio, envergonhada.

— É sério, prima. Se eu tivesse um pote comigo, conseguiria


apanhar no ar a tensão sexual de vocês.

— Foi só um momento, que não vai se repetir. Você está aqui para
garantir isso — falo, me sentando na cama.

— Tak! Fiquei sabendo hoje de uma boate muito legal, amanhã é


sua folga, o que acha de conhecermos?

— Não sei, prima, ando tão cansada.


— Sacha! Não seja chata. Olha o que estou fazendo por você. Não
custa me acompanhar.

— Vamos ver. Preciso te contar uma coisa: não trabalho mais no


Pardes.

— Não? Aqueles idiotas te demitiram? Por quê?

— Soquei a cara do sobrinho do Ivo.

Katrina arregala os olhos, à medida que sua boca cai,


completamente aberta, em choque.

Aproveito para colocá-la a par de todo o acontecido e, no fim, ela


chega à mesma conclusão que eu.

Krigor está realmente me mudando.


Capítulo 39

Encontro com Irina na entrada do bar, seu olhar surpreso é evidente


quando percebe o carro que acabou de me deixar. Sem esclarecer qualquer
dúvida, tomo à frente e destranco a porta para entrarmos.
Caminho direto para o depósito, onde deixo minhas coisas, agora
em menor quantidade, já que não preciso trazer várias mudas de roupa
comigo. Ajeito o cabelo em um coque displicente, visto meu avental e vou
para o balcão.

— Boa noite, Serguei! — Vejo o segurança do bar passar pela


porta.
— Boa noite. Você viu a Irina?

— Eu a deixei aqui, agora mesmo, não tem cinco minutos. —


Percorro meu olhar de um lado para o outro, procurando por ela.
— Vou olhar lá nos fundos. — Serguei aponta para o outro lado,
caminhando naquele sentido.

— Tak — respondo, voltando minha atenção para o balcão.


Enquanto preparo os insumos e ajeito a bancada para melhor
atender o movimento da noite, minha maior preocupação vem à mente e
começo a pensar em como farei para quitar a dívida com o agiota.

Se antes já era difícil juntar a quantidade da parcela, pagar as


contas do apartamento, comprar comida e ainda conseguir guardar uma
reserva para quitar o montante, agora, sem um emprego, se tornou
impossível.
Depois de contar à Katrina sobre o soco bem dado em Frans,
deitei-me na cama e pensei em uma solução. Preciso de um serviço que
substitua o restaurante, urgente, caso contrário, no próximo mês faltará
verba para tudo que preciso arcar.

Cogitei a hipótese de pedir à Irina o valor restante da dívida, não


falta muito, cem mil rubros e tenho o montante para quitar o débito, mas
não tenho coragem. Irina já tem seus próprios problemas, apesar de sempre
oferecer quando mencionamos o assunto, acho abusivo aceitar a oferta.

Quando fiquei a par da situação que minha família se encontrava,


assumi a responsabilidade de resolver essa questão e tenho feito isso, por
meus próprios meios e esforços. Tenho orgulho de conseguir ao menos
manter a dignidade de vida deles, mesmo que pareçam lutar contra.

Ainda tenho esperanças de meu pai cair em si e, finalmente,


procurar ajuda ou algum tratamento para seu vício. Gostaria que minha mãe
fosse essa alavanca, que o impulsionasse a se tratar, mas já entendi que sua
condição não a permite.

Ela foi criada em costumes muito severos e rígidos, numa época


em que a mulher não tinha voz e obedecia ao mando dos pais e, depois de
casada, o marido. O valor familiar é latente para o russo de forma geral, ela
que vem de uma época ainda mais retrógrada, é exacerbado esse costume e
nada a fará mudar.

Não me cabe ditar a forma como eles escolhem viver esse dilema,
entretanto, a cada dia que passa, sinto menos obrigada a ajudar de alguma
forma. É cruel o pensamento, afinal, são meus pais e os amo mais que tudo
na vida, mas estou cansada de toda essa situação.
— Onde estão seus pensamentos? — Olho para cima e vejo Irina
encostada no balcão.

— Olá. Serguei está te procurando.

— Já encontrou. Não mude o foco e me conte o que lhe atormenta.

— Não é nada. Eu saí do restaurante e preciso arrumar outro


trabalho, urgente.

— Você saiu? Finalmente! Sempre me perguntei quando perceberia


que aquele lugar te subjugava.

— Na verdade, fui demitida por socar a cara do sobrinho de Ivo —


esclareço, um pouco baixo, envergonhada.

Irina explode em uma gargalhada alta e aberta, sua mão espalma no


balcão, batendo repetidamente sobre ele.

— Incrível!

— Você acha incrível eu não ter emprego? É isso mesmo? —


questiono, provocativa.

— Sim. O destino age de formas intrigantes para, no fim, nos


colocar no caminho que devemos estar, desde sempre.

— O que quer dizer?

— Que você é a solução para o meu dilema e eu, para o seu. Como
sempre imaginei que seríamos, Sacha. — Irina ergue o dedo, enfatizando
sua fala otimista.

— Vai falar de uma vez ou não?

— “Meça sete vezes, corte uma[28].”


— Irina, você já está me irritando com todo esse mistério. — Largo
a garrafa que segurava sobre a bancada.

— Minha amiga, você acabou de confirmar o que venho pensando


há muito tempo. Você sabe que pretendo expandir os negócios e fazer um
Zolotaya Vobla no Sul.

— Sim, você sempre fala sobre isso.

— Pois bem. Finalmente consegui o empréstimo para investir e já


tenho até o lugar.

— Nossa, Irina. Parabéns, isso é maravilhoso!

— Sim, é. Eu só tinha um problema, mas você acaba de me dar a


solução.

— Precisa que eu soque a cara de alguém? — brinco, lembrando o


fato ocorrido.

— Não, Aleksandra. Quero saber se você aceita o cargo de gerente


do Zolotaya Vobla original, enquanto me dedico a filial no Sul?

Ouço suas palavras, entendo-as, mas por algum motivo, meu corpo
trava, a garganta fecha e permaneço encarando seu rosto em expectativa por
uma reação minha.

— Sacha? O que acha? — Irina questiona, empolgada. — Seu


salário será bem maior e compensaria o primeiro emprego. Assim, pode se
dedicar somente aqui.

— Eu... eu... não sei o que dizer... — finalmente destravo e


respondo, balbuciando.
— Se disser sim, com certeza eliminará boa parte dos meus
problemas agora.

— Claro que aceito! — respondo, empolgada.

— Ótimo! Viajo daqui a algumas semanas para começar as


reformas do lugar e sua primeira tarefa, como gerente, é encontrar um braço
direito que te ajude, como você faz.

— Sim, chefe. — Estendo a mão e ela aceita o cumprimento. —


Muito obrigada pela oportunidade, Irina, não irei te decepcionar.

— É só não socar a cara de ninguém, que o resto você dá conta. —


Ambas rimos da piada. — Há algum tempo, já pensava sobre isso, a
resposta do banco saiu hoje e você mencionar sua demissão só confirmou
que fiz a escolha certa.

— Nunca serei grata o suficiente por tudo que está fazendo por
mim, Irina.

— Sem sentimentalismo, garota. Outra tarefa para você, ache um


bom segurança. Serguei irá comigo para o sul.

Corro os olhos para a porta, onde Serguei está e volto a encarar


minha chefe. Sempre achei que acontecia algo ali, pela forma como o
segurança a observa admirado nas oportunidades que tem.

— Interesses somente profissionais? — Ergo os lábios de lado, não


escondendo o gracejo.

— Tak! Sem gracinhas, gerente. Vamos abrir daqui a pouco e


temos muito serviço.

Irina desconversa, como sempre faz quando jogo alguma indireta


sobre o segurança gostar dela muito mais do que como patroa. Tenho
certeza de que o homem carrega sentimentos, mas Irina parece ser a única a
não querer enxergar isso.
— Estamos abertos — Serguei menciona, alheio à nossa conversa.

— Tak! — respondemos em uníssono.

Logo a clientela começa a chegar, os garçons tiram as comandas


nas mesas e o trabalho no balcão se intensifica, ocupando a todos com
muito serviço. Torço por uma folga rápida a fim de ligar para Katrina para
contar a novidade.

Quando, finalmente, consigo fazer uma pausa, confiro as horas e


mesmo sendo tarde, chamo Katrina em uma ligação, sei que aquela maluca
não dorme cedo e que, provavelmente, está na rua.

— Oi, prima — ela atende, animada, e pelo barulho no fundo, está


em alguma boate.

— Onde você está?

— Virou minha fiscal agora, Sacha?

— Não. Liguei para contar uma novidade maravilhosa.

— Qual?

— Sou a nova gerente do Zolotaya Vobla.

— AH! — Seu grito do outro lado da linha me faz afastar o


aparelho do ouvido. — Isso é maravilhoso! Temos que comemorar.
— Você só pensa em beber, Katrina?

— Quase sempre. Estou a caminho e levando companhia.

— Quem?
— Você vai ver quando eu chegar.

— Katrina, eu estou... — a linha fica muda —... trabalhando. —


Baixo o celular, soltando uma lufada de ar.

Claro que nada impediria Katrina de fazer exatamente o que quer.


Capítulo 40

Retorno para o salão e assumo meu lugar no balcão, dando uma


folga para Irina. Atendo algumas pessoas aleatórias, sirvo muitas doses de
vodca e preparo vários coquetéis. Trabalhar aqui é bom em todos os
sentidos, mas, principalmente, pelo tempo correr desenfreado com o tanto
de coisas que precisamos fazer.

— Olá, Aleksandra Yakovna. Como vai? — Olho para a direção da


voz e vejo Russell sentado em uma banqueta com os braços apoiados no
balcão.

— O que faz aqui? — questiono, limpando as mãos em um pano.


— Até onde sei, o lugar é público.

— Sim, ele é. Mas o inimigo do volk vir aqui não é algo comum.

— A vida não gira em torno dele, Aleksandra Yakovna, nem eu.


Você deveria seguir esse conselho também.

Caminho cautelosa até próximo dele, determinada a colocar todas


essas frases soltas com clareza entre nós.
— O que você quer aqui? Aliás, o que quer comigo, Russell?

— Você é bem direta.

— Muito. Não gosto de protelar nada. Fala de uma vez, por que
está me cercando.
— Terei uma luta amistosa contra Danya na próxima semana, você
sabe. — Concordo com a cabeça, recordando do que disse no restaurante do
hotel. — Gostaria que fosse, como minha convidada.

— Definitivamente, não.

— Por causa do volk? Ele não precisa saber que está lá. Pode ficar
ao meu lado, na área VIP.

— Por que aceitaria isso? A única coisa que tem feito é me cercar,
ameaçar e falar sobre vingança.

— Digamos que, para o bem dele, o seu e, consequentemente, o


meu, é bom que você esteja lá. — Ele empurra dois ingressos com a ponta
dos dedos em minha direção. — Leve sua prima.
Russell se levanta da banqueta, sua expectativa é palpável e algo
me diz que tem muito mais por trás de toda essa história. Preciso saber o
que é.

— O que você faz aqui? — Assusto-me com a voz raivosa ao


nosso lado.
Krigor está focado em Russell, que não se altera em nada. Seu
maxilar está trincado e o ódio emana dele, pronto para atacar ao menor
movimento do seu oponente.

— Só trouxe um convite para Aleksandra Yakovna.

— Do que chyort voz'mi ele está falando, Króchka? — A ira do


lutador se volta para mim.

— Podemos nos acalmar um pouco. Se segura aí, grandão. —


Katrina entra no meio dos dois, chamando a atenção para si.

Só agora percebo as pessoas que cercam nossa pequena interação


nada amistosa. Danya está ao lado de Krigor, assim como Bóris, mas o que
chama realmente minha atenção, são três meninas que estão próximas
demais do volk. Reconheço uma delas da festa em que estive, a tal Nikita.

— Onde estavam? — pergunto no geral, mas meus olhos não


abandonam as blads[29].

— Krigor me ligou e disse que eles iriam a uma boate bem bacana,
então, resolvi ir também — Katrina toma à frente, contando, animada.

Meus olhos vão direto para Krigor em total questionamento.

— Precisávamos ir. Algo da organização — Krigor fala, em tom


lamentador.

— Vamos beber ou não, volk? — Vejo uma mão com unhas


vermelhas deslizar por cima do ombro de Krigor e Nikita surge ao seu lado.

— Parece que o volk continua formando a alcateia — Russell


comenta, provocante, Krigor ameaça dar um passo em sua direção, mas é
barrado por Bóris e Danya, que o contém.

Mesmo sabendo que farei o jogo de Russell, seja ele qual for, não
consigo deixar a razão falar mais alto que a raiva que sinto agora.

— Russell, conte comigo. Estarei lá assistindo à sua luta.

Um sorriso debochado surge nos lábios do lutador, que


simplesmente acena e se retira do lugar.

— Você não vai! — Krigor praticamente ruge, batendo o punho no


balcão.

Sorrio abertamente, sua atitude em nada me surpreende, na


realidade, já esperava por ela. Cruzo os braços na altura dos seios e,
tombando a cabeça de lado, simplesmente respondo:
— Tenha uma única certeza na sua vida: eu irei.

Viro e saio dali, escutando um lutador muito irritado pronunciar


inúmeros xingamentos, enquanto Bóris tenta contê-lo.

Provavelmente, estou fazendo a coisa mais perigosa da minha vida,


aceitar o convite de um algoz, entretanto, a ira cega quando mais
precisamos de razão.

Contando no relógio, já que tenho um dentro do balcão, constato


que já faz trinta minutos que Krigor está sentado, no lugar que antes era
ocupado por Russell. Seus olhos assassinos seguem todos os meus
movimentos, o que me faz querer rir em diversos momentos.

— Prima, quero mais uma dose. — Katrina bate seu copo de shot
sobre o balcão.

— Tak! — Sirvo outro e lhe entrego.

— Vai deixar o volk de castigo até quando? — Ela aponta com a


cabeça na direção do lutador.

— Pela eternidade, se for possível.

— Por que ficou tão brava com ele, afinal? Ele nunca aceitaria que
você fosse a qualquer luta na área VIP do Russel.

— Não estou brava por isso.

— Ah, então, me deixa adivinhar? — ela debocha, e eu cruzo os


braços, encarando-a. — Você ficou brava por ele chegar aqui com três
mulheres a tiracolo.
Torço os lábios e não respondo. Katrina explode em uma
gargalhada e sinto vontade de socar minha própria prima. Preciso aprender
a controlar esse hábito recém-adquirido.

— Ele não pode me manter com ele e ficar se esfregando em blads


por aí!

— Concordo. Por isso, eu era a acompanhante dele da noite. —


Arregalo os olhos, surpresa. — Você acha que ele me convidou por que,
prima? Essa festa era obrigatória, você estava trabalhando, então, Krigor me
chamou para acompanhá-lo e ajudar a manter as mulheres longe o
suficiente.

— Mas, e a tal Nikita?

— Aquela atira para todos os lados. Deu em cima do Danya e


Bóris. Aquilo que fez no balcão foi só para te tirar do sério. Provocação.

— Oh, merda — solto, baixo, me dando conta do que fiz.

— Sim, priminha. Você assumiu um compromisso com Russell por


estar com raivinha do seu volk — ela verbaliza meu lamento.

— Tak! Já entendi — respondo, contrariada.

Arrisco um olhar para o canto da bancada e vejo Krigor na mesma


posição desde que se sentou ali. Seus olhos cravados em mim, irritados o
suficiente para me dar um corretivo, como uma criança malcriada
mereceria.

Lavando minha alma com um pouco de culpa, somado à


resignação, caminho cautelosa até próximo dele, criando coragem para
finalmente me desculpar por passar do limite, mais uma vez.

— Krigor, eu...
— Você faz um péssimo juízo de mim, Króchka. Eu só não
entendo o porquê. — A voz dele é baixa e contida, seus olhos expressam a
dúvida em seu comentário.

— Talvez seja o momento de você falar mais sobre tudo que lhe
cerca, Krigor. Pode ser que eu tenha mais credibilidade quando estou a par
do que me espera.

— Você vai à luta de Russell?

— Ainda não sei. Vai depender de tudo o que me falar sobre a


história que envolve o passado de vocês.

— Nós vamos conversar, Króchka. Hoje.


Capítulo 41

É inacreditável como as horas não passam quando mais precisamos


que isso aconteça. Já conferi os ponteiros diversas vezes, olhei para as
poucas mesas ainda ocupadas no salão, com impaciência, e talvez esteja
sendo até grosseira com a minha cara amarrada no balcão.

Katrina encerrou a noite há um tempo e levou toda a turma com


ela, o que não me desagradou, já que as três fãs de Krigor não tiravam os
olhos dele no canto do balcão. Quando se despediram, todas fizeram
questão de cumprimentar o lutador e, mesmo de longe, ponderei o quão
minha mira seria eficaz em acertar algum objeto neles.

Desde que Krigor disse que revelaria mais sobre seu passado, meu
corpo entrou em estado de alerta, trabalhando no automático e com pressa,
para que a noite finalmente encerre no bar.
— Hoje você está com segurança particular? — Irina encosta ao
meu lado no balcão.

— Sim. Vamos para o mesmo lugar, então... — Ela ergue as


sobrancelhas em resposta, surpresa. — Nem queira saber, Irina. Minha vida
virou de cabeça para baixo.

— Isso parece bom.

— O quê? — Agora, sou eu a ficar espantada.

— Verdade. Sua vida, desde que a conheci, estava parada demais,


monótona demais e sem qualquer brilho. Hoje, mesmo que essa energia seja
raiva em torno de ambos, é o vigor que lhe faltava.
— Não sei se entendi.

— Ele te incomoda. Te joga para fora da sua zona confortável, faz


você sacudir o marasmo. Isso é bom, porque não te estagna.

— Compreendo, mas e você?

— O que tem eu? — Ela troca o peso nas pernas e cruza os braços,
na defensiva.

— Não acha que está na hora de sacudir o marasmo da sua vida?


— Olho de relance para a portaria, fitando Serguei.

— O assunto aqui é você e não eu.

— Bom, pode até ser, mas se desde que me conhece, observa o


quanto minha vida é chata e parada, saiba que a sua não é muito diferente.
Ao menos, você já tem alguém que realmente se importa. — Faço um
movimento com a cabeça para a portaria e Irina ergue os olhos na mesma
direção.
— Você está falando besteira — ela protesta, contrariada.

— Para todo homem, como para toda fechadura, é preciso


encontrar a chave certa. — Sorrio, complacente.

— Amanhã, você abre o bar para ir assimilando a rotina de


comando. — Irina muda de assunto, pigarreando. — Também farei sua
apresentação oficial à equipe.

— Sim, chefe.

— Pode encerrar a noite. Seu lutador está impaciente, batendo o


dedo no meu balcão. É capaz de abrir um buraco ali.
Ambas olhamos para Krigor, que observa o salão, entediado, seu
dedo martela o mesmo lugar da madeira e acabamos rindo disso.

Vou até o fundo, recolho minha bolsa, tiro o avental e volto para o
salão indo até o lutador, que levanta, animado, assim que me vê pronta para
partir.

— Finalmente. — Sua fala é aliviada.

— Eu não disse para ficar. Deveria ter ido com suas amiguinhas
aproveitar o resto da noite. — Torço os lábios em total desgosto,
caminhando para a saída.

— Eu tenho certeza de que você não queria realmente isso. —


Posso sentir o riso em seu tom de voz.

— Pense o que quiser, volk. — Dou de ombros e passo pela porta.


— Até amanhã, Serguei.

— Até, Sacha. Parabéns pela promoção. — Sorrio como resposta.

— Boa noite. — Krigor entra no meio de nós, passa a mão em


minha cintura e me puxa, continuando a caminhar.

— Muita grosseria isso.


— Ainda não sei para quem foi o comentário daquele dia no bar e
nem o sorriso aberto em seu rosto, mas desconfio que esse segurança tenha
alguma chance, então, não irei facilitar.

Olho para cima, desacreditada, e não resisto, soltando uma


gargalhada sonora. Krigor abre a porta de trás do carro e cede passagem
para eu entrar.

— Só para saber, sim, meu sorriso e comentário foi para Serguei.


— Eu sabia. — Ele bate a mão espalmada na coxa. — Preciso dar
um jeito nele. — Seu tom é brincalhão.

— Não fale besteiras. — Acerto seu braço com um tapa.

Krigor captura minha mão, puxando-a para si, o que faz meu corpo
projetar para cima dele, deixando-nos bem próximos.

— Parabéns, Króchka. Soube da sua promoção.

— Obrigada.

Nossos rostos estão tão próximos, um pequeno movimento e posso


selar minha boca na sua, aplacando parcialmente a vontade de consumi-lo
que me invade sempre que estou em sua companhia. É difícil manter
qualquer indiferença quando, na realidade, só consigo pensar nas diversas
formas de me jogar em cima dele.

— É melhor você se afastar ou esquecerei os termos. — Sua fala é


baixa e grossa.

Apesar de difícil, acato sua advertência. Se o beijar, as coisas


tomarão um rumo diferente do pretendido e, mesmo parecendo mais
atrativo, preciso começar a obter respostas.

— Tem razão. Temos uma conversa pendente.

— Sim. — Krigor beija o dorso da minha mão. — Assim que


chegarmos ao hotel.

Entramos na cobertura com as mãos unidas. Krigor me reboca da


forma costumeira que faz e me leva direto para a porta do seu quarto.
— O que está fazendo? — Freio meus passos.

— Vamos conversar.

— No seu quarto? Aqui tem espaço suficiente. — Aponto para as


salas conjuntas.

— Bóris, provavelmente, está com alguma daquelas mulheres aqui


e tenho certeza de que você não quer presenciar nenhuma cena
constrangedora. — Ele abre a porta e tomo à frente, entrando. — Foi o que
pensei.

Seu quarto é ainda mais bonito que o restante do ambiente. Uma


cama grande e aparentemente confortável, em dossel, com tecidos claros
amarrados em cada base e uma parede toda de vidro, que ruboriza minha
face quando me lembro da sua sugestão na primeira noite que passamos
juntos e nada aconteceu.

— Vidros se tornaram um fetiche nos quartos que escolho —


Krigor menciona, próximo o suficiente, quando me vê observando por
tempo demais.

— Então... — Pigarreio, me afastando. — Qual a história por trás


de todo o ódio entre Russell e você? — Escolho uma das poltronas no canto
oposto para me sentar.

— Direta.

— Como sempre.

Krigor tira seu casaco, senta-se na poltrona próxima a mim e,


apoiando os cotovelos no joelho, pondera por um tempo até começar a
narrar e fazer meu coração se apertar para o tamanho de uma ervilha.
Capítulo 42

“Ambos tínhamos dezessete anos quando entramos para o circuito


de lutas. A arrogância sempre foi algo latente em nós, mas nunca calhou de
lutarmos juntos e colocar à prova qual dos dois era o melhor naquilo que
fazíamos.

Meses depois de estarmos nas competições, conhecemos Mavra,


uma garota de espírito livre, impetuosa e apaixonada pelos ringues e lutas.
Na época, eu era um garoto inconsequente e amava provocar quem quer
que fosse.

Uma noite, vi Mavra e Russell discutindo no fim de uma luta, ao


que parece, ela estava dando um fora nele e o cara não aceitava muito bem
a decisão.

Intervi, colocando as mãos sobre os ombros dela e disse que se ele


tinha algum problema, poderia resolver comigo. Russell estava muito
nervoso, parecia a ponto de agredi-la, então, tomei essa ira para mim. Foi
nossa primeira briga, ele me pegou de surpresa e acertou meu rosto com
um soco, eu revidei e acabamos machucados.

No dia seguinte, a organização nos chamou junto com os


treinadores e determinou que isso não poderia mais acontecer. Tomei uma
bela bronca de Bóris e segui com a minha vida.

Meses depois, soube que Russell tinha se drogado tanto que ficou
hospitalizado. Não sabia que ele fazia esse tipo de coisa, já que somos
testados frequentemente, para manter a mente e o físico focados no circuito
de lutas, por isso minha surpresa.
Fiquei preocupado e acabei procurando-o na reabilitação. Ainda
não sei por que fiz isso, nunca fomos amigos, mas algo me dizia que ele não
estava bem, esse não parecia ser seu modo de agir normalmente. Russell
sempre foi um lutador determinado, faria qualquer coisa para subir na
escala dos circuitos e se drogar não o colocaria em um bom patamar.

Na visita, ele foi agressivo, dizia a todo o momento que a culpa era
minha e que um dia ele me faria pagar na mesma moeda. Questionei do que
estava falando, afinal, eu não tinha nenhuma ligação com a sua vida dentro
ou fora dos ringues, nem ao menos nos enfrentamos, até aquele momento.

Fui retirado de lá antes de ter minha resposta, mas procurei Bóris


e pedi que investigasse. Descobrimos que Mavra, a mulher por quem
Russell era apaixonado, tinha sido morta um tempo depois da nossa briga.

Liguei a fúria de Russel à advertência da organização e não foi


difícil concluir que tinha um dedo deles no fato ocorrido. Procurei pelo
responsável e questionei o que havia acontecido e ele foi claro e objetivo
em dizer que a organização nunca perde.

Russell, eu e muitos outros lutadores éramos o futuro de algo


maravilhoso para eles e não seria uma boceta que atrapalharia tudo. O
cara que se tornaria meu inimigo começou um ano ruim, perdendo cinco
lutas consecutivas e isso não era bom, então, a organização tomou as
medidas para evitar que Russell se perdesse.”

— Mas o que você tem a ver com isso? Por que Russel te culpou?
— questiono confusa após ouvir seu breve relato.

— Bóris levantou a história, pois viu que eu não me calaria, então,


descobriu que a noite em que me intrometi na conversa dos dois, Mavra
estava terminando com Russell a mando da organização. Ele tinha perdido
cinco lutas de propósito, para que fosse desclassificado e saísse do circuito.
Tudo isso para ficar com ela. A organização percebeu, não aceitou e, depois
da nossa briga, resolveram acabar com tudo de uma vez.

— Nossa... — Levanto-me da cadeira, perplexa. — Mas Russell


não pode te culpar. Isso já aconteceria de qualquer maneira, como você
disse.

— Nunca mais tivemos a chance de conversar sobre isso, Króchka.


Apesar de saber que seria inevitável, penso que se não tivesse me
intrometido, as coisas poderiam ser diferentes. Depois da morte dela,
Russell começou a se drogar e a organização o colocou em reabilitação. Só
tive notícias dele um ano depois, quando nos confrontamos em nossa
primeira luta.
— Isso é completamente louco. — Volto a sentar, inconformada.
— Por isso, ficou tão assustado quando ele me abordou?

— Sim. Eu não sei do que Russell é capaz, Króchka. Ele pode


querer usá-la para algum plano contra mim. Por sua vingança obsessiva.

— Sabendo quem comanda a organização, de fato, por que você


entrou nisso, Krigor?

Ele baixa a cabeça, suas mãos se apertam, entrelaçadas uma à


outra, demorando tempo demais para dizer qualquer coisa.

— Eu era um garoto estúpido e idiota. Iludido com algo que nunca


aconteceria na minha vida.

— O que quer dizer?

— Não quero falar sobre isso, Króchka. — Ele se levanta,


caminhando até próximo à janela. — Você pediu respostas sobre meu
passado com Russell e já as tem.

— O que me disse, explica algumas coisas, mas não tudo.

— É o que posso lhe dar. — Ele vira para mim. — Entende o


porquê não posso me descuidar de você? Não quero que tenha o mesmo
destino daquela moça.

— Mas eles tinham uma história juntos, Krigor. Russell estava


disposto a sair do circuito por ela. Isso em nada se assemelha conosco.

Arriscando alguns passos em minha direção, Krigor tem o olhar


dolorido, quase pedante. Quando toca meu rosto com a ponta dos dedos, sua
outra mão enreda minha cintura, unindo nossos corpos.

— Todos já perceberam o que nem você ou eu queremos enxergar,


Króchka. — Sua voz baixa, somada às palavras misteriosas e cheia de
significados ocultos, fazem com que meu coração salte, acelerado, e minha
respiração se torne ofegante.

— E o que seria, volk? — questiono, baixo, fechando os olhos.

Sua boca se aproxima o suficiente da minha pele, para que sinta


sua quentura. O ar que exala arrepia minha pele por onde passa. A órbita
lasciva nos contorna, minha mente se apaga gradativamente da realidade,
enquanto o sentimento gritante envolve meu ser.

A vontade de ser consumida por ele é algo insano, que foge


completamente do meu sentido de autopreservação, tornando minha
existência dependente desse momento, como uma dose do vício mais
prazeroso do planeta.
— Que somos destinados um para o outro — ele solta, antes de
capturar minha boca.
Seus dentes cravam em meus lábios e um gemido dolorido escapa
de mim. Krigor alivia a pressão, passando sua língua no lugar e logo a
mergulha em minha boca. Os movimentos com ela despertam a compulsão
e só sei querer ainda mais desse gosto.

Suas mãos agarram minha bunda com força, puxando meu corpo
para cima, o que me faz envolver as pernas em sua cintura. Aperto os
braços em torno do seu pescoço, aprofundando ainda mais nosso beijo.

Sou colocada sobre a cama, sentindo seu corpo enorme me cobrir,


suas mãos buscam o feixe da minha calça, abrindo-a com desespero.
Aproveito para puxar a barra da sua camisa para cima, interrompendo o
beijo só para removê-la por sua cabeça.

Antes de voltarmos a nos consumir, Krigor para por um momento,


encarando meus olhos com firmeza.

— Os termos... — ele fala, ofegante.

— Dane-se! — respondo, puxando sua nuca com as mãos.

Sinto seu sorriso presunçoso surgir, mas o interrompo


imediatamente com um beijo apressado.

Terminamos de nos despir como dois desesperados, peças, sapatos


e tudo que separava nossas carnes foram jogados para os lados. Pouco
importava onde caíssem, o foco é somente na necessidade de nos
entregarmos a esse desejo insano.

Krigor escorrega os dedos pelo meu ventre e quando toca minha


intimidade, percebe que já estou pronta para recebê-lo.

— Toda molhada para mim, Króchka — ele fala, ao afundar dois


dedos em meu canal.
Meu corpo arqueia, sentindo minhas paredes dolorosamente
contraírem no movimento que ele inicia. Levo a mão até seu membro ereto
e o bombeio, com afinco.

Ele geme em minha boca e isso me incentiva ainda mais em


continuar. Torturamos um ao outro por um longo momento, levando nossos
corpos ao limite do prazer, até ele segurar meu punho com firmeza.

— Quero te foder naquela janela — ele fala, ofegante.

— Agora? — pergunto, atônita.

— Eu preciso disso, Króchka. — Krigor levanta, me levando com


ele.

Ele me passa à sua frente e, segurando minha cintura, coloca meu


corpo de frente para a imensa parede de vidro, erguendo meus braços,
espalmando minhas mãos ali. Um toque sutil no lado interno da minha coxa
me faz afastá-la um pouco mais.

— Fique assim... — ele fala em meu ouvido, antes de se afastar


completamente.

Minha umidade pulsa em expectativa, quase bato o pé no chão


ritmadamente, ansiosa pelo próximo passo.

— Você está completamente linda, Króchka. E a minha vontade de


te devorar aumentou ainda mais.

— Krigor... — Arfo.

Sua mão junta um punhado do meu cabelo com força, apertando o


suficiente para manter meus movimentos cativos à sua vontade. Ao puxar
para trás, ele faz meu corpo arcar, minha bunda empina, ainda mais exposta
e logo sinto seu membro encapado tocar minha entrada.
Sua outra mão vai até a frente do meu pescoço, apertando-o de
leve, isso restringe parcialmente o ar que tento inalar, pressionando meus
pulmões ofegantes.

— Pronta para perder a consciência, Króchka? — ele sussurra ao


meu ouvido.

Fecho os olhos e gemo baixo, sentindo as terminações nervosas do


meu corpo trepidarem e ser concentradas em uma região muito específica
do meu prazer.

— Responda! — Ele aperta meu pescoço, enfiando parte do seu


membro em mim.

— Sim! — solto, alerta.


E ele cumpre. Sua promessa é exercida com maestria e sou
completa e irrevogavelmente entregue a esse prazer vicioso.
Capítulo 43

Estico meu corpo e sinto o prazer dolorido nos lugares certos. As


memórias da noite anterior retornam em minha mente e reavivam o calor do
momento.
Krigor me consumiu, literalmente, dose a dose, momento a
momento e, simplesmente, apagou tudo em torno de nós, só restando o
prazer e o desejo como companhia. Nossa conexão foi tão intensa que a
sensação que ficou, antes de desligar por completo, foi de pertencimento,
assim como ele mencionou.

Abro os olhos e vejo que estou sozinha na grande cama, a claridade


invade o quarto pela brecha na cortina e fecho os olhos, inalando o cheiro
de sexo que ainda permeia o ambiente.

Vou direto para o chuveiro, tomo um banho quente, que amortece


meus músculos e demoro mais do que o pretendido. Quando estou me
enxugando, ouço o barulho abafado do meu celular tocar, me lembro de
Katrina e o fato de não a ter avisado que estava aqui e corro para atender.

— Alô? — Não confiro o identificador.

— Filha? Como está? — A voz aflita da minha mãe me faz


suspirar.

— Oi, mãe. Estou bem... humm... trabalhando muito. — Busco por


desculpas que justifiquem minha ausência, mesmo que ela não seja certa.
— Imagino. Eu liguei para saber notícias suas e para contar uma
novidade.
— Mesmo? Qual?

— Seu pai procurou por ajuda. Começou esta semana em um


grupo que trata o vício.

— Sério? Mãe! Isso é maravilhoso! — Meu coração se enche de


alegria.

— Sim, é. Não te ver aqui depois daquele homem horrendo nos


ameaçar, o fez finalmente enxergar que era hora de mudar.

Engulo em seco, sinto-me parcialmente culpada por não estar ao


seu lado, mentindo sobre minha real situação, mas como explicar algo que
nem eu compreendo totalmente? Quanto menos souber, menos irão
questionar e se preocuparem.

— Isso é bom.

— Vai demorar para Irina voltar?

— Sim. Na verdade, fui promovida à gerente e acho que consigo o


restante do dinheiro da dívida mais rápido. Tenho que focar no trabalho, é
uma grande oportunidade.

— Oh, que noticia incrível. Isso é maravilhoso, minha filha. Venha


no seu dia de folga, farei muitas blinis para você.

— Tak! Eu irei.

Encerro a chamada com a promessa feita, meus olhos estão


marejados. Internamente, agradeço por meu pai cair em si e procurar ajuda
para seu problema.

Ao que parece, uma parte da minha vida, finalmente, está tomando


jeito e agora só tenho que juntar o restante da dívida e me livrar daquele
trapo de homem que nos ameaça.

Visto as mesmas roupas de ontem e escuto vozes vindo do lado de


fora. Penso que seja Krigor e saio, apressada, me deparando com duas
mulheres seminuas sentadas à mesa, se fartando de um belo café da manhã.

— Oi, Sacha! — Nikita me cumprimenta. — Venha comer. Os


homens saíram bem cedo, Krigor precisava treinar, mas deixaram um belo
café de despedida.

Fico sem palavras com a sua declaração. Ela pensa que estamos na
mesma condição de uma noite com um lutador e, depois, cada um segue seu
caminho.

— Eu acho que tomarei café com a minha prima.

— Aproveita, garota. Eles estão bancando tudo mesmo. Difícil ter


chances como essas. Normalmente, o Bóris despacha antes do volk levantar.

— Eu dispenso. Katrina deve estar maluca no quarto me


procurando. Obrigada. — Arrisco uns passos, me afastando.

— Você está hospedada aqui também? — Nikita para sua xícara de


chá no ar, me observando, curiosa.

— Sim.

— Interessante. — Ela sorri de lado.

— Bom desjejum. — Corto o assunto e saio dali o mais rápido


possível.

Eu não sei qual tipo de rotina aqueles homens tinham com as


mulheres, mas cada vez que me deparo com um pouco disso, mais asco
sinto. Estremeço meu corpo inteiro, na tentativa de livrar minha mente dos
pensamentos que se formam.

Entro em meu quarto e vejo que está arrumado, as camas


estendidas e organizadas e nada da minha querida prima. Confiro as horas
no celular e ainda é cedo para ela já ter saído para o trabalho, então, resolvo
telefonar.

Disco seu número umas quatro vezes e deixo tocar até entrar na
caixa postal, em que, na última tentativa, deixo uma mensagem acusando-a
de desnaturada por não falar aonde foi.

Nem cinco minutos se passa e meu celular apita com uma


mensagem. Pego-o, sorrindo, imaginando a quantidade de palavras chulas
que Katrina vai usar para me contestar pela mensagem, entretanto, minha
alegria morre quando vejo um “oi” de um número desconhecido.

— Quem será?

Abro o aplicativo e respondo a mensagem. Logo chega outra.

** Espero que não desista do meu convite para a luta, só porque


passou a noite com o volk. **

— Russell — constato, espantada.

** Como conseguiu meu número? **

** Não foi difícil. Não se esqueça do combinado. Espero que sua


noite tenha sido minimamente agradável.**

** Difícil é querer ir ao encontro de um perseguidor. Sobre


minha noite, ela não lhe diz respeito. **
** Sou bem menos perseguidor que o cara com quem dormiu.
Tenha certeza. Nos vemos no sábado. **

Continuo encarando o celular, curiosa e intrigada, imaginando de


que maneira Russell sabe tanto da minha vida assim. Provavelmente, ele
investiga Krigor, mas, até saber a noite que passamos juntos, é um pouco
demais para um rival de luta.

Sinto-me ainda mais tentada em estar lá no sábado para descobrir o


seu lado da história. A parte difícil disso será enfrentar a ira do volk, que
não vai concordar nunca com o intuito.

— Prima! Até que enfim! — Katrina praticamente grita, quando


abre a porta.

— Onde você estava?

— Eu poderia fazer a mesma pergunta, já que você não veio para


cá, depois de fechar o bar.

— Você estava aqui?

— Vim só tomar um banho e trocar de roupa, depois fui visitar


uma suíte do hotel — ela fala, de forma jocosa, jogando sua pequena bolsa
na poltrona.

— De quem?

— Danya. — Ela une as mãos à sua frente. — Prima... ele é


simplesmente...

— Não estou interessada em saber.

— Claro que não. Você tem o volk.


— Falando nele, preciso de sua ajuda para enrolar o lutador, no
sábado.
— Isso tem a ver com os ingressos do Russell, não tem?

— Sim. — Espremo a boca em aflição.

— Vai dar confusão, mas eu topo!

Corro até a poltrona ao seu lado e sento, confabulando minha ideia


e usando suas habilidades para desenvolver o plano perfeito que convença o
volk e não o deixe em alerta sobre minhas reais intenções.

Já passa do almoço, Katrina está roncando na cama, segundo ela, a


noite foi muito puxada para o corpo aguentar ficar acordado. Ainda não sei
como ela não foi demitida do emprego, já que faz os horários mais malucos
e nunca tem uma estabilidade neles.

Termino de vestir minha roupa, pego a mochila para arrumar meu


uniforme quando ouço uma batida suave na porta. Estou me preparando
para ir mais cedo, hoje Irina vai me apresentar como a nova gerente e quero
estar bem arrumada para a ocasião.

Abro a porta e vejo um mensageiro do hotel, ele está com uma


bandeja onde contém um pequeno papel dobrado e uma rosa vermelha. Eu o
encaro e nenhuma palavra é mencionada, então, pego os itens, verificando,
primeiro, o conteúdo do bilhete.
“Olá, Króchka. Sinto por não estar no quarto quando acordou,
mas precisei treinar. Tudo aqui se tornou grande e vazio demais sem você.
Aceita almoçar comigo? Estou te esperando.

Krigor.”

Agradeço o mensageiro e fecho a porta, cheirando a rosa que me


foi ofertada. Sinto as batidas do meu coração acelerarem pouco a pouco e a
euforia me faz agilizar as coisas e preparar o mais rápido possível.
Capítulo 44

Toco a campainha e aguardo, os dedos das mãos tamborilam na


lateral da perna, ansiosa. Não sei dizer por que estou tomada por esse
sentimento afoito, já estamos convivendo há dias e não tem motivos para
isso, minha mente repreende, mas meu estado alegre não lhe dá atenção
alguma.

A porta é aberta e Krigor, usando seu jeans preto rasgado nas


coxas, descalço e sem camisa, me presenteia com um sorriso contido nos
lábios e acabo me derretendo um pouco mais.

— Króchka. Entre. — Ele cede passagem.


Quando passo ao seu lado, Krigor agarra minha cintura, puxando-
me para junto do seu peitoral firme e quente, unindo nossos lábios em um
beijo duro.

— Senti sua falta — ele fala, com a testa unida à minha.

— Eu também posso ter sentido — respondo, risonha, e recebo


uma mordida sutil no lábio inferior.

— Você é muito provocadora, Króchka.

— E você sabia disso no mesmo dia que me conheceu.

— Tem razão. — Ele se afasta e fecha a porta. — Vamos comer.


Estou com fome.

A mesa está servida para duas pessoas, um vaso de rosas


vermelhas faz a decoração e isso me faz sentir especial de alguma forma.
Isso não é bom, nada bom.

— Seremos só nós? — Ele puxa a cadeira para que eu sente.

— Sim. Bóris está ocupado, resolvendo algumas coisas.


— Conseguiu descobrir por que Russell vai enfrentar Danya, no
final de semana?

Krigor franze a testa, intrigado, provavelmente ele não queria a


pauta luta em nosso momento, mas não consigo evitar meus
questionamentos. Quanto mais informações obtiver, mais tenho para
argumentar ou cavar de Russell, quando o momento chegar.
— Ainda não. Ao que parece, a organização quer criar algo menos
regional e a luta dos dois será um dos testes para fazer isso acontecer. Mas
não tem que se preocupar com isso.

— Entendi. Ah, hoje serei apresentada como a nova gerente do bar.


Terei tanto trabalho a partir de agora, não que esteja reclamando, mas ficará
difícil uma folga.

— Você merece, tenho certeza. — Krigor alisa minha mão.

— A parte boa é que não preciso mais de um segundo emprego.


Posso me dedicar integralmente a esse e reservar uma boa grana para... —
corto minhas palavras ao meio, quase entrego meu maior dilema.
— Para quê? — Krigor franze a sobrancelha, em expectativa.

— Para viver. Viajar, quem sabe? — Dou de ombros, disfarçando.

— Entendo. — Krigor mexe em sua comida, pensativo. — Você


sabe que pode contar comigo para qualquer coisa, não é? — Seus olhos me
observam, cauteloso. — Independente do que seja.
— Ahmm... acho que sim... — respondo, incerta.

Uma ponta de culpa começa a crescer diante da situação, estou


prestes a mentir para o homem que tem feito de tudo para proteger minha
integridade física e como retribuição, aceitei o convite do seu arquirrival.

— Sobre a luta de sábado...


— Eu não vou! — falo, de uma vez, tão convicta quanto possa
parecer. — Tenho que focar no bar, Irina viaja em poucos dias e preciso
arrumar a equipe.

— Isso é bom, Króchka. Não seria prudente estar perto de Russell.


Agora que sabe do nosso passado, consegue compreender o quão arriscado
tudo isso pode ser. — Krigor parece tão aliviado, aberto e receptivo, que
sinto minha boca amargar com o fel da culpa.
Eu sou uma completa mentirosa, não consigo nem usar uma
justificativa plausível que explique minha artimanha, já que estou tomada
pela necessidade insana de entender todo esse passado conturbado.

— Quando será sua luta? — Mudo de assunto.

— Em algumas semanas. Mas ainda não sei quem será o oponente.

— Isso é tão esquisito.

— É como as coisas são. Já estou acostumado.

— O que sua família acha disso?

Krigor mastiga a comida, parece ponderar sua resposta.

— Conformados, eu acho.

— Eles sabem o que envolve todo seu estilo de vida?


— Meu estilo? — Krigor sorri com descaso. — Não existe estilo
para aquilo que lhe é imposto, Sacha. — Sua voz é dura. — Minha família
sabe o que tem que saber.

— Desculpe, eu não queria me intrometer. — Opto por recuar.

O almoço a partir dali transcorre com uma carga pesada sobre o


ambiente. Não trocamos uma palavra sequer, quando faço um comentário
aleatório, Krigor só balança a cabeça e nada mais. Quando terminamos me
despeço e aviso que estarei a caminho do bar, ele informa que o motorista
estará à minha disposição e some para dentro do quarto.

Comportamento contraditório que só aumenta mais aquele maldito


bichinho da curiosidade. Começo a pensar que Russell pode ter mais
respostas do que as que já espero.

O sábado chegou tão rápido que mal tive tempo de processar todo
o plano armado pela minha prima. Encontrei com Krigor nos corredores do
hotel depois daquele almoço, ele sempre focado em algo e eu fingindo que
não me importava.

A distância era boa, tenho certeza de que não conseguiria disfarçar


minha aflição por muito mais tempo e ele acabaria percebendo qualquer
vacilo meu.

Aproveitei para mergulhar no bar e aprender toda a dinâmica


necessária, assim como na seleção de um segurança e a avaliação da equipe
para nomear meu braço direito.
Combinei com Irina de sair por três horas, Katrina trouxe minha
roupa para o evento, fiz um rabo de cavalo alto e me virei com uma
maquiagem básica para melhorar a aparência.

Como garantia de que as coisas do lado do volk não sairiam de


controle, Katrina o acompanharia na luta, alegando que gostaria de torcer
para Danya, já que os dois tinham tido um lance no começo da semana.

Manteríamos contato por telefone, eu iria até lá sozinha, ficaria


escondida em meio à área de Russell e o encontraria para saber
definitivamente o que pretendia. Sairia a tempo de retomar o expediente e
voltar para o hotel, como se nada tivesse acontecido.

Tudo perfeitamente cronometrado.

Para sair do bar, usei a porta dos fundos, não sei por que, mas tinha
a sensação de estar sendo vigiada aquela noite. Poderia ser só mais uma
paranoia minha, por via das dúvidas, resolvi me precaver.

Coloquei o vestido de linho salmão, reforcei o batom, calcei as


botas escuras e me agasalhei. Pedi um carro na saída do depósito e
rapidamente já estava a caminho do lugar.

Para minha sorte, a entrada da área VIP de cada lutador era de


lados opostos, então, não correria o risco de encontrar com o volk ou algum
aliado dele.

Deixei meu casaco e as luvas no roupeiro e entrei direto para o


camarote, onde a luta já acontecia. O embate parecia sangrento e
empolgante o suficiente, já que toda a plateia gritava, xingava e aplaudia
Russell.

Foi pouco mais de meia hora entre socos, chutes e corpos no chão
para finalmente Russell ser considerado o vencedor. Seu rosto inchado e as
marcas de sangue pisado enfeitavam sua face quando o locutor lhe passou o
microfone a seu pedido.
— Hoje é um dia especial para mim. Venci uma luta contra o
melhor lutador do sul, mas o que me alegra mesmo é ter roubado a distração
do volk. — Russell aponta para mim na área VIP e um holofote me ilumina.

Arregalo meus olhos, busco do outro lado do ambiente e cravo na


imagem de Krigor, que está completamente pasmo. Vejo a ira se desenhar
em seu semblante, tomando à frente de todo e qualquer outro sentimento ou
razão. Quando ele tenta pular a grade, Bóris o para.
— Agora, se me derem licença, preciso comemorar com a minha
garota. — Ele ergue o punho e a multidão fica em polvorosa.

Quando tento sair dali para ir atrás de Krigor e explicar o que está
acontecendo, um homem me barra, apanhando meu braço com força.

— Você tem um encontro com Russell.


Capítulo 45
Meu dia foi além de perturbador, algo dentro de mim advertia a
todo o instante que a qualquer momento o jogo viraria e a paz momentânea
pela qual eu passava agora, seria tragada de mim tão rápido quanto uma
rajada de vento.

Comecei meu treino pesado, logo terei a primeira luta desse novo
circuito e preciso estar preparado. Bóris passou os últimos dois dias
brigando comigo a cada golpe, passada ou luta corporal que venho
desempenhando. Meu corpo executa todos os movimentos, mas minha
cabeça não sai dela.

Króchka moyá.

Gostaria de ter dito muito mais naquele almoço, a ideia era algo
romântico, em que eu finalmente dissesse tudo que venho sufocando dentro
do peito, mas ela não pareceu tão receptiva.

Quando citou minha família e o passado retornou com seu peso


costumeiro sobre meus ombros, achei prudente recuar e deixar toda essa
besteira de sentimento de lado.

De qualquer maneira, seria impossível assumir qualquer


relacionamento agora, ainda tenho três anos de contrato com a organização
e não quero comprometê-la mais do que já está.
A única boa notícia que alivia meu dilema é saber que Sacha estará
ocupada o suficiente com sua promoção para nem cogitar a hipótese de ir à
luta como convidada de Russell. Por via das dúvidas, deixei uma pessoa de
olho nela no bar, assim trago um mínimo de paz para minha mente.
Entro na área reservada a Danya, acompanhado de Katrina, que
tem sido minha melhor arma para afugentar as mulheres de perto.
Acomodamo-nos nas primeiras cadeiras, bem próximo de onde ocorrerá a
luta.

— Olá, volk. — Uma mão toca meu ombro e vejo Nikita ao nosso
lado.

— Conseguiu estar aqui mais uma vez?

— Bóris gosta de mim — ela responde, risonha, e roça sua perna


na minha quando senta ao meu lado.

— Krigor, troca de lugar comigo? — Katrina questiona alto o


suficiente encarando a mulher ao meu lado.

— Claro — respondo, prontamente, fingindo não entender seus


motivos.

Por isso gosto dessa garota, ela prevê o perigo feminino e me


bloqueia sem que ao menos grite por socorro.

— Obrigado — falo baixo, me acomodando no lugar que ela


ocupava.

— Não por isso. — Ela sorri.

As luzes se apagam, ficando somente um holofote concentrado no


centro da arena improvisada. Bóris tentou levantar com a organização essa
mudança de rotina nas lutas, eles alegaram que se trata de promoção,
somente isso.

Os lutadores são apresentados. Russell, por ser um lutador do


território, detém o maior número de seguidores na plateia, mas quando
Danya é anunciado como aliado do sul do “volk”, o público fica dividido.
A luta começa e Russell pega pesado com Danya, com golpes
certeiros e violentos. Ele dispara na frente com a pontuação, inclino meu
corpo para frente, atento ao desenrolar e estranho o posicionamento de
Danya.

— Bóris? — chamo, encarando meu treinador, que está na outra


ponta.

— O que foi? — Ele inclina a cabeça, me dando atenção e sinalizo


para que venha até mim.

— Tem alguma coisa errada com Danya.

— Como assim?

— Repara no pé de apoio dele? — Aponto com o dedo e Bóris se


atenta.

— Ele não está usando o pé... — Bóris aperta os olhos, ainda mais
atento. — Danya está alterado.

— Foi o que pensei.

— Mas ele não se droga. Nunca.

— Alguém pode tê-lo drogado.

— Chyort voz'mi[30]!

— Chame alguém da organização. Precisam parar essa luta.

— Calma, Krigor. — Bóris me para.

— Como, calma? Russell não pode sair impune disso.

— Não sabemos se foi realmente ele. Deixa a luta rolar e no fim,


tiro Danya a tempo de testar seu sangue.
— E ele apanha feito um saco de pancadas.

— Você não pode se expor dessa maneira. A coisa já está estranha


o suficiente, depois do seu envolvimento com Sacha.

— Yeb vas[31]! — Tento ficar de pé e Bóris me barra.

— Pense em Sacha! Ela é seu calcanhar de Aquiles agora. —


Contrariado, volto a sentar, entendendo o recado de Bóris.

Não tive coragem de revelar a ela o real motivo de mantê-la


comigo no hotel, mas as coisas se complicaram muito depois que paguei
aquela maldita dívida de seus pais.

De alguma forma, a organização descobriu o que fiz com aquele


agiota e, se antes eles tinham uma atenção sobre mim e Sacha, agora, o foco
se tornou nós dois.

— Tak!

A luta transcorre e mesmo alterado, Danya resiste bravamente e


luta com todo seu potencial. Inclino meu corpo para frente, apertando meus
dedos entrelaçados, esperando que a luta se encerre de uma vez.

Assim que o sino toca levanto, pronto para ir ao vestiário e


verificar como está meu amigo de perto, quando Russell toma o microfone
à mão, algo incomum para ele, que normalmente grita e urra com seus
seguidores em uma vitória.

— Hoje é um dia especial para mim. Venci uma luta contra o


melhor lutador do sul, mas o que me alegra mesmo, é ter roubado a
distração do volk. — Russell aponta para mim na área VIP e um holofote
ilumina uma pessoa.
Fico completamente cego, meu único foco se tornou a ruiva que
está no camarote à minha frente, lindamente vestida e aparentemente
assustada.

— Agora, se me derem licença, preciso comemorar com a minha


garota. — Ele ergue o punho e ouço as pessoas gritarem em comemoração.

— Eu o mato! — Seguro a grade com as mãos, pronto para pular.

— Não! Volk! — Bóris me segura por trás e sacudo meu corpo, lhe
dando um tranco.

— Me deixa! — grito. — Preciso tirar ela de lá. — Olho na


direção de onde está e não a vejo mais ali. Desespero me toma. — Onde ela
está?

Ergo a cabeça, procurando, as pessoas se movem para a saída e não


consigo encontrá-la na multidão.

— Krigor, calma...

— Você! — Viro meu corpo repentinamente e seguro Katrina pelos


braços. — Sabia que ela viria, não sabia? — Minhas narinas se movem,
com a respiração ofegante.

— Sim. Sabia.

— Chto za huy[32]! — esbravejo, soltando-a.

— Vamos sair daqui. Tentarei descobrir alguma coisa sobre tudo


isso — Bóris intervém.

— Pegue Danya, verifique o que aconteceu. Sobre Sacha... só


deixe como está. Ela fez a própria escolha.
— As coisas não são como está imaginando, Krigor. — Katrina
toca meu braço e recuo.
— Não me interessa. É melhor fazer sua mala e ir encontrar sua
prima. Agora, vocês estão sob a proteção de Russell.

— Mas...

Viro as costas e saio dali a passos determinados.

Minha têmpora pulsa e uma dor absurda me presenteia assim que


abro os olhos e percebo que estou na minha cama. Gemo baixo, girando
meu corpo para o lado de fora do colchão, quase caindo dela.

Vacilante, levanto meu tronco e protesto com mais uma pontada.


Lampejos da noite de ontem retornam em minha mente, lembrando a
quantidade de vodca que bebi no bar do hotel.

Meu estômago embrulha e a bile sobe, corro para o banheiro e


solto tudo dentro da pia, não dando tempo de alcançar o vaso sanitário.
Seguro minha cabeça, apoio os cotovelos na bancada e a cada ânsia, coloco
mais para fora.

— Bom dia. — Arrisco um olhar para a porta e vejo Nikita.

— O que faz aqui? — Mais uma ânsia e miro a pia.

— Depois daquela cena na luta, você resolveu beber até perder a


consciência e eu lhe fiz companhia.
Capítulo 46

Quando mais eu forço minha mente para processar cada maldito


passo dado ontem, mais sinto enjoo e vontade de desmaiar.

— Onde está Bóris? — Lavo a boca e aproveito para jogar água no


rosto e nuca.

— Não tenho ideia.

— Pode se vestir — miro seu corpo seminu à minha frente — e ir


embora.

— Recobrou a consciência e, agora, quer aquela cobra de volta,


volk?
— Isso não é da sua conta. — Passo por ela e busco uma roupa no
closet.

— Eu deveria ter te proibido de me chamar de Króchka durante a


noite.

Estaco no lugar, busco na minha cabeça latejante algo sobre nós


dois e não consigo me recordar de nada. Só me lembro de começar minha
primeira garrafa de vodca sozinho no bar, sem companhia.

— Vai embora, Nikita.

— Tak! Mas não me chame quando vê-la desfilar com seu rival por
aí.
Praticamente rosno, lembrando o motivo da minha derrocada.
Como ela pôde fazer isso comigo? Será que estava todo esse tempo me
enganando para colher informações para ele?

Não pode ser. Eu via em seus olhos a verdade, não é possível que
tenha me enganado tanto a seu respeito.

Visto uma roupa e saio determinado a buscar por respostas e


Katrina será meu ponto de partida.

Desço de escada, praticamente espanco a porta do quarto de


ambas. Já sei do sono pesado de Katrina, mas pela forma como bato, já era
para ter acordado.

— Posso lhe ajudar? — Um funcionário, que passava no corredor,


me aborda.

— Preciso falar com a minha amiga, ela não dormiu bem e não
atende a porta.

— Esse quarto está desocupado. Foi liberado ontem à noite.

— O quê? — Sinto a raiva surgir. — Obrigado!

Retorno para meu quarto e encontro Bóris sentado com Danya na


pequena sala.

— Até que enfim, volk! — Bóris se levanta.

— Onde está Katrina? Preciso falar com ela.

— Bom dia, amigo. Aliás, já é boa tarde. — Danya sorri e fecho os


olhos, culpado por não me importar com seu estado ontem.

— Camarada, me desculpe. — Sento-me na poltrona ao seu lado.


— O que aconteceu ontem?

— Ainda não sei, mas mandei testar meu sangue assim que a luta
acabou. Eu estava um pouco entorpecido, mais lento.
— O laboratório ainda não entregou os resultados, mas já sabemos
que a equipe de Russell não tem qualquer relação com o ocorrido — Bóris
se aproxima quando informa.

— Tem certeza? — questiono, desconfiado.

— Sim. Meu treinador e equipe limpou a área antes da luta e só


consumo o que levo, que foi uma garrafa de água e nada mais — Danya,
esclarece.

— Isso é estranho.

— Muito, por isso temos que agir com a máxima cautela, Krigor.

— Claro. Preciso falar com Katrina e entender o que foi aquela


palhaçada com Aleksandra ontem.

— Acho que a prima não vai lhe dar ouvidos, ainda mais depois de
te ver no bar do hotel com a Nikita. — Danya sorri de lado quando se
levanta.

— Você sabe dela? — questiono e ignoro sua provocação.

— Está no meu quarto, comigo. E você não vai incomodá-la.

— Eu só quero falar com ela — praticamente suplico.

— Eu aviso que você a está procurando. — O olhar de Danya


confirma que não adianta insistir.

Apoio as mãos na cintura, incomodado, parece que todos


resolveram se voltar contra mim de uma hora para outra e isso está me
levando ao limite.

— Yeb vas! — Chuto a mesa de centro, arrastando-a do lugar.


— Acalme-se, volk. Precisa focar sua mente no treino e deixar
Sacha para lá. Você foi enganado, homem. Aceita.

— Tem alguma coisa aí e eu vou descobrir. — Aponto o dedo em


sua direção.

Vou para o quarto e preparo uma mochila para o treino, chamo


Bóris e vamos para o galpão, onde me afundo em malhar, treinar e estudar
golpes e contra-ataques, com a mente focada em acertar o máximo de vezes
cada encaixe, imaginando somente Russell como meu oponente.

A ira despertada é o combustível certo para manter minha mente


alinhada com a determinação em esmagar aquele infeliz. Com isso, o dia
corre mais rápido e a exaustão me faz desmaiar depois do banho no hotel.

Meus sonhos são conturbados, onde vejo Sacha gritar para que eu
não desista dela, que ela pertencia a mim e que tudo não passava de um
terrível engano.

Acordo na madrugada, assustado, meu corpo está úmido de suor e


a mente ainda mais perturbada pensando nela.

Tomo uma ducha rápida, visto um agasalho quente, chapéu e luvas.


Mando mensagem para meu funcionário, que coloquei sob vigília no bar, de
olho nela e ele me informa que ainda está lá, finalizando o expediente.

Confiro o relógio e praticamente corro para fora, sem que ninguém


me veja, desço pela área de serviço e logo estou a caminho. Meus dedos
tamborilam apressados no volante do carro e acredito que tenha passado uns
três sinais vermelhos, não me importando com a imprudência do ato.

Estaciono o carro na parte de trás do bar, onde recebem as


mercadorias. Testo a porta e vejo que está aberta. Aliviado, entro sem ser
percebido. Fico em um canto entre algumas caixas, aqui é escuro o
suficiente para não ser notado tão fácil e espero por ela.

Se ainda estiver com Russell, provavelmente, algum informante


dele deve estar no bar, aguardando por ela ou, quem sabe, por mim.

— Boa noite, pode deixar que eu fecho tudo, Irina. — Escuto


Sacha falar da porta, antes de entrar no depósito com a luz apagada.

Observo-a tirar o avental, dobrar com cuidado e colocar dentro da


pequena bolsa. Puxando o prendedor do cabelo, Sacha enfia as mãos nas
madeixas ruivas soltas, alisando para ajeitar o penteado.

Contrariando minha intenção, meus olhos percorrem pelo seu


corpo, a luz parca está favorável ao seu contorno, faz minha boca salivar
por tocá-la e me xingo mentalmente por isso.

— Pode sair, volk. — Sua voz é baixa, mas só assimilo o que diz
quando gira seu corpo ficando de frente para onde estou.

— Como sabe que estou aqui? — questiono, saindo de trás da


pilha.

— Conheço seu cheiro.

Ela comprime os olhos, tentando me ver melhor, já que ainda me


mantenho na escuridão.

— Por que fez aquilo?

— Eu precisava.

— Me enganar? — Não consigo disfarçar a raiva.


— Não era minha intenção, mas você não me deu muitas
alternativas.
— Eu lhe dei tudo de mim. — Avanço alguns passos.

Estamos frente a frente, Aleksandra tem o semblante tranquilo, não


parece afetada em ser confrontada por mim e começo a duvidar da verdade
que eu pensava ter visto em seus olhos anteriormente.

— Só não deu a verdade.

— Do que está falando?

— Sei que quitou a dívida da minha família com o agiota. — Suas


palavras saem brandas, mas sinto a acusação em seu timbre.

— Eu ia te contar...

— Você não ia. Queria me ver presa a você, sabendo que não
aceitaria bancar mais uma fêmea da alcateia. Como sempre, o volk quer
exercer controle sobre tudo e todos. Mas adivinha: eu não sou um boneco
manipulável.

— O que Russell te disse?

— Nada que eu já não teria enxergado se fosse mais esperta. Aqui


está! — Ela tira um pacote do bolso de trás. — Trezentos mil rubros. Minha
dívida está quitada e não temos mais nada para conversar.

— Króchka... — Engulho em seco.

— Feche a porta quando sair. Não quero acabar baleada por andar
com você.

Ela sabe...

Meus olhos se arregalam, a culpa toma à frente em minhas ações,


quando a vergonha atinge seu objetivo. Sem palavras, aceito o pacote
estendido a mim e saio dali o mais rápido possível.
Capítulo 47

Sou rebocada pelo grandalhão até a saída do vestiário, onde


aguardamos juntos pelo svolach do Russell. Sinto meu corpo formigar em
desespero, imaginando tudo que está se passando na cabeça de Krigor
agora.

— Aí está minha garota! — Russell passa pela porta, abrindo os


braços, com um sorriso vitorioso nos lábios.

— Você é um completo svolach! — Aponto o dedo, ameaçadora.


— Como sempre, arisca — ele menciona, quando fecha os braços
em torno de mim.

Tento me soltar dele e, pega de surpresa, Russell sela nossos lábios


em um beijo muito estranho. Permaneço de olhos abertos, enquanto alguns
homens em volta soltam palavras de encorajamento.
— Seja boazinha e me acompanhe. Confie em mim — ele sussurra
em meu ouvido e beija minha têmpora.

Seu braço pousa sobre meus ombros, ele estende a mão livre
cumprimentando algumas pessoas, passo a somente acompanhá-lo, mesmo
que meu desejo seja sair correndo para o mais longe possível.

Quase meia hora depois, finalmente conseguimos entrar no carro


que nos levará até o hotel em que está hospedado. Ocupo a outra
extremidade do banco, vigilante com os movimentos desse lutador. Se ele
ousar me tocar, juro que soco seu rosto já machucado.
— Não precisa ficar arredia, não vou encostar em você — ele fala,
encarando a janela.

— Não preciso? Mesmo? Que porcaria foi aquela na luta? Krigor


não sabia que eu estaria ali. Você me enganou.

— Eu imaginei que ele não saberia. Conhecendo bem aquele


teimoso, jamais permitiria que você ficasse no mesmo ambiente que eu,
principalmente no meu lado da arena.

— Se sabia, por que fez aquilo? Ele vai acabar com você! —
declaro, convicta.

— Ou, ele, agora, não vai mais querer saber de você. — Seus olhos
se voltam para mim, convencido.

A verdade em suas palavras me atinge em cheio e o desespero


inicial retorna. Por instinto, testo a porta ao meu lado.

— Está trancada.
Bufo, encarando o banco à minha frente e cruzo os braços,
impaciente como tudo se desenrola.

— Preciso voltar ao trabalho.

— Tudo bem. Antes, passaremos na minha recepção, preciso


marcar presença e depois, te levo de volta ao bar.

— Você e o volk têm mais em comum do que imaginam.

— Você não faz ideia.

— Então me dê algo, ou juro que chego à esta recepção te


acusando de sequestro e estupro — ameaço.
Sua cabeça gira vagarosamente em minha direção, a fisionomia
demonstra espanto e há um leve sorriso no rosto. Quando Russell não tenta
fazer o gênero malvado, ele é bem bonito, não tanto quanto volk, mas, ainda
assim, bem atraente.

— Krigor fez uma péssima jogada quando parou aquela luta para
evitar que fosse embora. Seu cartel sempre foi invejável e valioso para a
organização, principalmente, por nunca ter saído da linha. Era o exemplo, a
propaganda, o brilho dos olhos e estímulo para os que pretendiam iniciar no
circuito de lutas.

— Uma pequena falta e fez nossas vidas correrem risco? Por favor
— debocho, desacreditada.

— Exatamente isso, Aleksandra. Esse pequeno ato repercutiu na


organização, vocês se tornaram foco de especulações. A organização temia
que vocês fossem além, como alguns já foram e pagaram o preço.

— Você se refere à Mavra? — Seus olhos nublam em dor com a


minha pergunta.

— Krigor te falou sobre isso. — Balanço a cabeça concordando,


mesmo que não tenha sido uma pergunta. — Tem muito mais por trás dessa
história do que ele realmente sabe. Nunca tivemos a chance de esclarecer
tudo, mas é melhor assim, precisamos manter a rivalidade almejada por
todos.

— Você não odeia Krigor? Quer dizer, vocês sempre se tratam com
hostilidade e tem toda a história de inimigos, desde sempre.

— Isso é o que a organização alimenta, Aleksandra.

— Então, por que não conversa com ele?


— Não posso. Principalmente agora, com vocês dois bancando o
casal de conto de fadas.

— Nós não somos um casal. Krigor só quer me proteger de você.


— Aponto em sua direção.

— Não seja tola, garota. Aquele lutador rasteja em qualquer arena


por você e a organização já sabe disso. Ele bateu em um agiota que tem
ligação com a máfia, além de pagar a dívida da sua família com ele,
colocando-os sob sua proteção. Krigor nunca se importou com ninguém,
que não fosse sua família, a ponto de se colocar em evidência dessa forma.

Minha boca abre e fecha diversas vezes, atordoada com o que


acabo de saber. Remexo no banco e busco na mente qualquer sinal de que
seja verdade, balanço a cabeça negando.

— Não. Ele não sabe sobre a dívida.

— Sim, ele sabe e pagou. Isso terminou de acionar a cúpula da


organização e eles começaram a mexer os pauzinhos. Pretendem te tirar da
jogada, como fizeram com Mavra, temendo que influencie o volk a sair do
circuito antes de finalizar o contrato.

— Por isso você tem me perseguido? O que ganha com isso,


afinal? Você não deveria se importar comigo ou com ele.

— Não. Eu não deveria. Mas sei que Krigor carrega uma parcela
de culpa pela mulher que eu amo ter morrido, mesmo ele não sendo
culpado. Precisava corrigir isso de alguma forma.

— Por que você faz esse gênero de mau? — Fico intrigada com
tudo que ele revela.
Apesar de não ter motivos para acreditar em uma palavra sequer
que Russell diz, algo dentro de mim confia nele, que a casca dura que
sempre mostrou, não era a real.

— Chegamos. Lembre-se de agir como se quisesse estar aqui.

— Você não pode me beijar.

— Isso, não posso garantir... — Ele sorri de lado e abre a porta.

Ele estende a mão para mim e aceito de bom grado. Com um


sorriso forçado nos lábios, caminho ao seu lado, agindo como uma
acompanhante feliz e realizada.

Entramos em uma pequena sala onde várias pessoas uivam,


ovacionam e gritam o nome de Russell, que ergue o punho para o alto,
respondendo da mesma forma.

Agradeço quando ele finalmente me solta e se entrosa com as


pessoas, recebendo cumprimentos e abraços acalorados das mulheres.
Afasto o suficiente para não ser percebida, pego um shot de vodca que
estava sobre uma bandeja e viro de uma vez.

— Noite agitada. — Percebo Nikita se aproximar.

— Você aqui? — pergunto, pegando outro copo de shot.

— Eu quem deveria lhe fazer essa pergunta. O que houve? O volk


te dispensou?

— Ele e eu não temos nada. Nunca tivemos.

— Sei. — Ela saca o celular, digitando alguma coisa. — Então,


não vai se importar de eu ir lamber as feridas dele, não é mesmo?
Paro o copo no ar, a caminho da boca, encarando seus olhos
debochados e provocadores, estreito os meus em resposta, termino meu
movimento e viro a bebida de uma vez. O líquido rasga minha garganta e
finalizo com uma careta.

— Já tenho meu prêmio de hoje. — Sinalizo com a cabeça em


direção de Russell, que coincidentemente acena ao me chamar.

Sufoco o desejo de arrancar todos os fios de cabelos tingidos


daquela mulher na unha e caminho em direção a Russell. Preciso de
respostas o quanto antes ou me tornarei extremamente violenta.
Capítulo 48

Passei tempo demais naquela comemoração, cada vez que tentava


puxar Russell pelo braço, alguém nos parava e, o mais impressionante,
ninguém mencionava sua vitória sobre Danya e, sim, o fato da garota de
Krigor estar ao seu lado.

Preciso dar credibilidade ao seu relato sobre o volk e eu. As


pessoas estão realmente interessadas em nós, fomentando ainda mais a
intriga entre os dois lutadores.

— Preciso voltar para o bar — falo em seu ouvido, em


determinado momento.
— Meus amigos, eu preciso ir. Minha garota quer comemorar e eu
sou um cara romântico, tenho que atender ao pedido dela. — Todos riem e
aplaudem o discurso mais ridículo que já ouvi. — Sorria, Króchka —
Russell sussurra para mim.

— Não me chame assim — respondo, entredentes, e faço como


disse.
Finalmente nos livramos da multidão e entramos no mesmo carro
que nos trouxe até aqui. Russell tem o cuidado de erguer o vidro que separa
o ambiente para que o motorista não nos veja ou ouça.

— Termine de falar.

— Direta.
— É o que Krigor costuma dizer.
— O que você precisa saber, já está dito. Agora, você pertence a
mim e será tratada como uma das minhas garotas.

— Como é que é?

— É só por um tempo, curto, na verdade. Não costumo aparecer


com a mesma mulher nos lugares que frequento, algumas semanas e você
está livre. Mande uma mensagem para sua prima e peça para ela recolher
suas coisas do quarto de hotel, precisa cortar todo e qualquer vínculo com
Krigor.

— Espera um pouco. Preciso falar com ele, explicar as coisas e...

— Aleksandra, você não entendeu nada do que eu disse? Krigor


não vai aceitar facilmente você se afastar, principalmente se souber que
tudo hoje não passou de uma armação.

Olho pela janela, minha mente trabalha em busca de qualquer


possibilidade que possa justificar minha volta para o hotel e me permita
explicar para Krigor tudo que está acontecendo. Entretanto, não consigo
encontrar uma saída.

— Sabe que tenho razão, por mais que não entenda


completamente. Você não quer ser a terceira culpa nas costas do lutador,
Sacha.
— Terceira?

— Além da culpa por Mavra, Krigor carrega o peso familiar sobre


os ombros. Sua entrada no circuito foi por livre vontade, mas logo ele se
tocou de todo o esquema e tentou sair, só que era tarde demais.

— O que aconteceu?

— Seu pai levou um tiro, em seu lugar.


Levo as mãos à boca, meu coração pesa com as revelações e pouco
a pouco começo a repassar nossas poucas conversas e algumas coisas
começam a fazer sentido agora.

— Vou chamar Katrina e avisar que volto para casa hoje.

— Pode ficar no meu hotel, pego um quarto para você.


— Não! Quero a minha casa — declaro, e ele concorda.

Nunca pensei que passaria por algo tão confuso e perigoso em


minha vida. Sabia que o volk cheirava a encrenca, mas nunca imaginei algo
nessa proporção.
Já passei por várias coisas na vida, ultimamente, meu problema
familiar vinha sendo a maior dor e dificuldade já enfrentada por mim, mas
nada se compara ao olhar que Krigor me dirigiu, antes de sair porta afora.
Minha garganta se fechou ao ponto de me fazer engasgar, busco
por ar para encher os pulmões, depois que partiu. Usar sua culpa como
blindagem para se afastar de mim definitivamente foi além da capacidade
de lidar com a situação.

No começo, quando senti seu perfume no ambiente, quase sucumbi


ao desejo insano de agarrá-lo e dizer que tudo ficaria bem. Usei de todo
meu esforço e um bocado da raiva por ter quitado a dívida do meu pai, para
manter minha mente no jogo e executar o plano que Russell havia
orquestrado ontem.

Depois de voltar para o bar, liguei para Katrina e expliquei tudo o


que tinha acontecido. Ela mencionou o que Krigor disse ainda no camarote
da luta e depois de tê-lo visto no bar do hotel com Nikita, por si mesma,
juntou nossas coisas e foi para o quarto de Danya, no mesmo hotel.

Pedi que liberasse o quarto e não falasse absolutamente nada para


ninguém, afinal, não sabemos ao certo quem é realmente de confiança.

Doeu mais do que imaginei saber que Krigor estava aplacando seu
ódio por mim nos braços de outra e precisei usar minha razão para
compreender que isso era ainda mais benéfico para ambos.

Não tive coragem de voltar para casa, passei a noite em uma cama
improvisada no depósito mesmo e hoje, provavelmente, farei a mesma
coisa. Katrina ficou de trazer minhas coisas para cá, ontem ela passou o dia
com Danya — segundo ela —, bancando a enfermeira do lutador devido à
luta.

— Que cara é essa? — Minha prima finalmente chega.

— Você demorou.

— Desculpe. Estava trabalhando.

— Até agora? — Confiro as horas no relógio.

— Sim. Então, vai dormir no depósito novamente?

— Estava me questionando sobre isso.

— Vamos para minha casa, pode dormir comigo e afogamos as


mágoas em uma garrafa de vodca.

— Tak! Mas não quero beber. Tenho muito serviço por aqui
amanhã.

— Tudo bem. Krigor tentou falar comigo, mas Danya o impediu.


Ergo os olhos em expectativa.

— É melhor assim. Quanto menos Krigor tiver contato comigo,


melhor.

— Você vai continuar saindo com Russell?

— Ele disse que precisamos aparecer mais algumas vezes juntos e


só.

— Não acha estranho tudo isso? Quer dizer, ele é um oponente que
não é inimigo verdadeiramente, mas não esclarece tudo com Krigor. Já
pensou que tudo possa ser um jogo para desestabilizar Krigor nesse novo
circuito. Danya foi drogado para a luta contra Russell.
— Eu não sabia disso.

— Claro que não. Você estava nos braços do rival. — Faço uma
careta para seu comentário. — Ele não te falaria nada sobre isso, de
qualquer maneira. É vergonhoso demais um lutador com o cartel dele
admitir que jogou sujo.

— Ou não jogou.

— A fama dele nunca foi boa, prima.

— Mas agora que estou em contato com ele, posso tentar descobrir
algo.

— Qual parte de se livrar de uma vez disso você não entendeu,


Aleksandra?

— Eu vou me afastar. Já fiz. Mas como preciso manter contato


com Russell, posso continuar investigando.

— A troco de quê? A dívida já está paga, seu pai finalmente


procurou tratamento para o problema com o vício e você está a um passo de
se livrar disso tudo.

— Eu sei... mas... e se Krigor estiver sendo enganado? Obviamente


que está, mas a questão é: por quem? — Esfrego o queixo com a mente
fervilhando com as possibilidades.

— Você é mais maluca do que eu imaginava.

Katrina joga um braço sobre meus ombros e juntas saímos do bar,


finalizando o dia. Como combinado, Russell deixou um carro à minha
disposição para que eu fosse embora em segurança e mantivesse a
encenação para todos, de que estamos ligados de certa forma.
Chegamos ao apartamento de Katrina e contradizendo o meu
pedido, ela pega uma garrafa de vodca, liga o canal de músicas no celular e
enche dois copos. Antes que eu negue a minha dose, ouço River, Bishop
tocar e lembro o nosso primeiro beijo na boate. Viro as duas doses, uma em
seguida da outra.

— É disso que estou falando — Katrina comemora.

Não lembro exatamente quando parei de entornar as doses, mas já


estava alta o suficiente para pedir que Katrina me cobrisse feito um
pacotinho com o cobertor encaixado no meu corpo, como minha mãe fazia
quando era criança.

Só espero que o dia de amanhã, assim como os próximos, sejam


melhores do que hoje, ou estarei fadada a me entorpecer todos os dias.
Capítulo 49

Assim que abro a porta do apartamento, vejo minha mãe na


cozinha preparando algo no fogão. Sorrio, saudosa, desde sempre minhas
lembranças de vida sempre foram essas, ela cozinhando algo e a casa com
um cheiro muito bom de comida.

— Mat’? — Dispenso minha mala de roupas no canto e vou até


ela.

— Sacha! — Ela vira e vem de encontro a mim.


Abraçamo-nos apertado, meus olhos lacrimejam quando sinto seu
calor me contornar e a sensação de que tudo acabará bem invade meu
coração. Abraço de mãe tem o costume de ser um ótimo remédio para as
feridas emocionais que carregamos.

— Como estão as coisas por aqui? — Afasto-me, alisando seu


rosto.

— Bem. Muito bem. Você que não parece feliz. Seus olhos... —
Ela franze o cenho, me observando, atenta.

— O que tem? — Desvinculo-me do seu aperto, temerosa.

— Eles perderam o brilho que tinham quando saiu daqui, dias


atrás. O que houve?

— Nada. Só muito trabalho — respondo, evasiva, e recolho a mala


dispensada. — Vou arrumar essas coisas no quarto, mais tarde tenho que
trabalhar.
— Tak! Vou preparar um belo almoço para a família. Seu pai está
no encontro do grupo, mas não tarda a chegar.

— Tak!

Entro no meu quarto, fecho a porta e largo a mala no canto


próximo da cama. Vou até o esconderijo onde guardo o dinheiro que estou
juntando gradativamente e pego o montante.

Para quitar a dívida com Krigor, pedi um adiantamento para Irina


do valor total, alegando que reembolsaria a maior parte dele hoje. Por saber
do motivo, ela não questionou e simplesmente me entregou o valor,
alegando que poderia ser pago em pequenas parcelas mensais o que
faltasse.

Cortar qualquer vínculo com Krigor era necessário e, no fundo, o


fato de dever para ele e não ao agiota me incomodava ainda mais. Engoli o
orgulho e pedi o empréstimo, assim eliminaria o maior problema no
momento.

Enviei mensagem para Russell que aceitou me encontrar no bar


mais tarde para conversarmos sobre algumas coisas. Preciso tirar a limpo a
droga que Danya ingeriu e confirmar se Katrina tem razão em desconfiar
dele.

Minha cabeça ainda dói pela bebedeira indevida com Katrina, ao


menos serviu para amortizar toda a confusão na qual me enfiei. O problema
é recobrar a consciência e só lembrar o olhar dolorido de Krigor depois do
que falei ontem.

Tomo um banho demorado, visto a roupa de trabalho, pego minha


mochila e saio do quarto. Vejo meu pai sentado na poltrona da sala,
assistindo a um noticiário, coloco minha mochila no sofá e finalmente o
encaro.

Ele levanta, me observando, seus olhos conflitantes parecem


ponderar e buscar por palavras. Não nos vemos desde o acontecido com o
agiota, o qual apanhei por lhe dizer a verdade.

Sem que eu espere, meu pai me abraça, sou pega completamente


de surpresa, já que nunca foi do seu feitio ser aberto a troca de carinhos. Ele
nunca foi um homem ruim com a família, mas sua postura séria sempre
colocou um limite entre nós e momentos assim se tornaram cada vez mais
raros conforme eu crescia.

— Sinto muito, filha. — Sua voz está embargada.

Fecho os olhos e aperto os braços em torno da sua cintura, as


palavras engatam em minha garganta, tornando o gesto minha única
resposta e aceitação. Escutamos um fungado próximo e nos separamos,
vendo minha mãe parada no batente da porta, com as mãos unidas em
oração e o rosto banhado por lágrimas de felicidade.

— Nós somos uma família. — Ela se aproxima, segurando minha


mão e a do meu pai. — Passaremos por isso, juntos.

— Eu preciso contar algo para vocês. Algo bom. — Ambos me


observam com expectativa. — A dívida com o agiota está quitada,
finalmente.

— Graças... — Minha mãe leva as mãos à boca, chocada.

— Como? Era muito dinheiro, filha.

— Desde que comecei a trabalhar, sempre poupei parte do que


ganho para quitar a dívida. Com a promoção no bar, consegui um
empréstimo com a minha chefe para inteirar o valor e pagar, de uma vez por
todas.

— Eu vou lhe reembolsar, filha. Juro! — Meu pai abaixa a cabeça.

Ele parece derrotado, sei que no fundo a sensação de alívio


permeia seu coração, agora a família não corre mais o risco por conta do
seu erro, mas entendo seu sentimento, já que não conseguiu resolver a
questão por seus próprios meios, devido ao vício.

— Não me deve nada, pai. Só continue se cuidando. Agora,


finalmente podemos viver em paz.

Minha mãe contorna os braços em torno de mim e de meu pai e


nos une em um abraço coletivo. Todos sucumbimos à sensação de liberdade
sobre nosso teto e agradecemos a vitória.

É inevitável não pensar em Krigor. A dívida estava paga há alguns


dias, já não sofreríamos mais qualquer pressão, graças a ele.

Entrevisto a última pessoa para ocupar o lugar de Serguei, fiz todas


as anotações sobre cada candidato para discutir com Irina antes que ela
viaje, na semana que vem.

Serguei fará um treinamento com o escolhido para se certificar que


ele dará conta do recado. Apesar dos acontecimentos caóticos dos últimos
dias, percebi o quanto Irina e Serguei estão mais próximos, até íntimos, mas
finjo não notar para não atrapalhar qualquer lance entre eles.

— Olá, Sacha.
— Serguei. Meu homem favorito. — Sorrio em cumprimento.

— Já escolheu meu substituto?

— Tenho alguns nomes e vou apresentar para Irina, hoje.

— Isso é bom. Preciso ensinar o novato a como se portar e


também, definir quem pode ou não estar próximo de você.

— Do que você está falando?

Ele sinaliza com a cabeça em direção à porta. Ainda não abrimos,


mas para o lado de dentro vejo Russell aguardando, com a expressão
fechada e contrariada.

— Ele pode se aproximar. — Faço sinal com a mão para Russell.

— Se você diz... — Serguei concorda com a cabeça e volta seu


caminho.

Ambos se encaram quando cruzam no salão e posso jurar que ouvi


um rosnado quando isso acontece. Parece que Serguei não é um grande fã
desse lutador.

— Segurança linha dura esse. — Russell aponta para trás quando


ocupa a banqueta à minha frente.

— Serguei é protetor, só isso.

— Acho que não sou o lutador que ele admira. — Russell torce os
lábios.

— Lide com isso. — Dou de ombros, empilhando as fichas dos


entrevistados.

— Então, o que quer comigo?


— Queria lhe perguntar algo sobre a luta com Danya.

— Sim.

— Ele foi drogado. Antes da luta.

— Como? — Russell franze o cenho.

— Minha prima estava com ele e confirmou a história. Testaram


seu sangue depois da luta e teve alterações.

— E todo mundo pensa que fui eu. — Ele bate na bancada,


irritado. — Não preciso fazer essa merda para derrubar oponente nenhum!
— ele enfatiza, com os olhos cravados nos meus.

— Imaginei isso, mas a grande questão é: quem fez?

— Como vou saber?

— Já que você sabe de tudo, isso deveria lhe preocupar.

Jogo a isca e Russell para por um momento, analisa minhas


palavras e parece ponderar sobre o assunto.

— Vou procurar saber sobre. É só? — Ele se levanta da banqueta.

— Sim.

— Te pego depois do expediente, então. Me mande uma


mensagem. — Ele recolhe o celular e tenta sair, mas eu o impeço.

— Posso saber para quê?

— Tem uma boate nova, a organização apoia o dono e alguns de


nós precisam marcar presença.

— Alguns? — Meu coração acelera diante às possibilidades.


— Sim, o volk estará lá e sugiro não ficar tão animada com a
possibilidade, como está agora.

— Svolach — xingo baixo.

Sigo minha rotina totalmente dispersa, saber que em poucas horas


estarei cara a cara com Krigor não fez bem para minha sanidade e a falta de
foco ficou evidente, quando erro em três pedidos para as mesas.

Irina sugere uma pausa, mas sou orgulhosa o suficiente para não
admitir estar afetada com o encontro e continuo trabalhando.

Aviso Katrina sobre a boate, ela responde que já sabe e irá com
Danya, o que será uma coisa péssima. Russell e Danya não são aliados e
provavelmente, estarão em lados opostos do salão.
Peço que traga uma muda de roupa para eu ir a tal boate, já que
desempenharei o papel de acompanhante de Russell e, de quebra, encararei
o volk com uma alcateia de mulheres, preciso estar mais apresentável.
Capítulo 50

— Sejam bem-vindos à Casa Lenusya. — Uma loira seminua, com


a boca vermelha e olhos bem marcados em pretos, recepciona.

Encaro sua vestimenta ousada, um maiô preto em tiras, que tapam


somente as partes íntimas e nada mais. Olho de relance para Russell, que
praticamente baba em cima da loira, cutuco seu braço e ele desperta do
transe.

— Fique tranquila, Króchka, minha atenção é toda sua hoje. — Ele


pisca um olho e sorri de lado.

— Já disse para não me chamar assim — respondo baixo, quando


lanço um olhar ameaçador em sua direção. — Que lugar é esse, afinal? —
Observo o ambiente, receosa.

Várias mesas circulam o lugar, todas grande o suficiente para ter


um bastão no meio. No fundo, um palco maior e bem-iluminado tem três
mastros dispostos, o ambiente se divide com duas escadas nas laterais com
uma placa de reservado de cada lado.
— Um strip Club. — Estaco no lugar.

Russell tenta continuar caminhando, mas seguro sua mão, o


fazendo parar também.

— Você me trouxe a uma boate de strip-tease? — Estou perplexa.


— Não seja pudica. É só uma danceteria com um entretenimento a
mais.
— Com mulheres nuas.

— Isso — ele responde, gracioso, provavelmente amando por me


pegar desprevenida.

— Eu não acho uma boa ideia isso. Não quero estar em um


ambiente como este.

Russell é empurrado para cima de mim por alguém que esbarrou


em suas costas e quando nos viramos, vejo Danya e Katrina.

— Olha, se não é o perdedor. — Russell muda a postura, sorrindo


com escárnio.
— Mais tarde, Russell — Danya informa e olha para mim, com
descaso.

Katrina me cumprimenta discreta e segue com o lutador, quando


ele a reboca para longe.

— Isso é só parte do jogo, não se preocupe — Russell sussurra. —


Vamos, nosso camarote é aquele. — Ele lidera o caminho em direção
oposta a que Danya foi.

Um segurança libera nossa entrada na ponta da escada, subimos e


passamos por uma cortina preta com um ambiente ainda mais escuro, com
um sofá enorme preto e algumas mesas de apoio. Algumas pessoas já
estavam ali e cumprimentam Russell animadamente.

Enquanto ele socializa com todos, vou para o canto da sala e ocupo
um lugar, uno as pernas, lamentando consideravelmente em aceitar um
vestido de Katrina para hoje. Meus quadris mal cabem na peça, o que a faz
subir e mostrar mais do que deveria das minhas coxas.
Não posso negar que o tom verde água do vestido, seu pano leve e
bem encaixado no corpo, deixou minha autoestima mais confiante em
enfrentar o grande momento. Fiz um rabo de cavalo, o mais prático devido
ao tempo limitado, passei um pouco de maquiagem e pronto.

O espaço tem uma espécie de janela aberta, onde temos a visão de


toda a área abaixo, assim como a vista da janela oposta, do outro camarote.
Obviamente, meus olhos cravam lá, à procura de um grandalhão muito
específico.

— Você está dando na cara. — Russell se senta ao meu lado e


passa a mão sobre meus ombros.

— O quê? — Remexo, desconfortável, por ser pega.

— Se continuar querendo pular para o camarote à nossa frente, as


pessoas vão perceber.

— Por quanto tempo teremos que ficar? — Mudo de assunto.

— Um par de horas e estará livre.

— Ótimo.

— Quer dançar?
— Não.

— Vamos dançar. — Russell levanta e estica a mão em minha


direção.

Penso em recusar, mas ele ergue as sobrancelhas questionadoras e


olha em volta, faço o mesmo e vejo que as pessoas nos observam
atentamente. Solto o ar com pesar e aceito o convite, a contragosto.
Descemos as escadas e ocupamos um lugar na pista de dança,
agradeço a batida ser algo que nos permita dançar separados e, mesmo sem
vontade alguma, remexo meu corpo no ritmo.

Um homem se aproxima e entrega dois copos para Russell que


aceita e me repassa um. Observo o conteúdo incolor, cheiro e testo o gosto,
duvidosa.

— É água — declaro e ele sorri.

— Claro. Não arriscaria te embebedar e tê-la fazendo uma cena


pelo volk.

Antes que eu o mande para qualquer lugar muito inconveniente,


um moreno alto e forte o aborda, cumprimentando animadamente. Vestido
em uma camiseta branca ajustada no corpo, a ponta de uma tatuagem sai
pela manga e cobre parte do braço forte. Além de uma barba bem
desenhada, seus olhos profundos me encaram.

— Yerik Petrovich. — Ele estende a mão, se apresentando.

— Aleksandra Yakovna.
— Gostou da boate? — Seu olhar mede todo meu corpo,
abertamente.

— Para falar a verdade, não — respondo e solto sua mão


imediatamente.

Russell solta uma gargalhada, observando nossa interação.

— Ele é o dono, Sacha. — Olho de um para o outro.

— Uma pena não ter gostado, com certeza você chamaria a


atenção em um palco.
— Não antes da sua mãe, imbecil — falo alto o suficiente para que
ele ouça.

Giro meu corpo, saindo dali, ultrajada com a audácia do homem,


enquanto Russell continua gargalhando do tal Yerik, que permaneceu em
seu lugar, espantado com minha ousadia.

Caminho para fora da pista e vejo uma placa indicando os


sanitários, agradeço internamente, enquanto caminho direto para lá. A noite
mal começou e minha cabeça está explodindo, meus nervos abalados e a
vontade de socar algo crescem gradativamente em mim.

Fecho a porta atrás de mim, respiro aliviada e vou até a pia, abro a
torneira, molho a mão e passo na nuca. Permaneço ali, observando meu
reflexo no grande espelho e só consigo me perguntar como minha vida
virou completamente sem que eu, ao menos, me desse conta.

Quando finalmente me sinto mais calma, pronta a continuar com a


encenação patética, destranco a porta e me choco com uma parede de
músculos familiar ao abri-la.

Krigor tem um olhar duro e com um pequeno empurrão, estou de


volta ao banheiro, que se tornou pequeno demais para seu corpo truculento
ocupar. No entanto, aqui estamos os dois, medindo forças e gritando
acusações somente pelo olhar.

— Me deixa sair, volk.

— Só depois de você explicar por que está com o Russell. Você


sabe de todo o perigo que está correndo e ainda insiste nisso.

— Você não tem nada a ver com isso. A vida é minha e a única
coisa que nos unia era uma dívida que já foi paga.
— Yeb vas! Não me importo com o dinheiro, nunca quis aquele
pagamento, Króchka.
— Não tinha o direito de se intrometer na minha vida — acuso,
irritada.

— Eu me importava com você! Vi aquele agiota pressionando sua


família, não poderia permitir isso.

— Por quê? Você não esperou para afogar sua ira com a Nikita.

— Você não pode me cobrar por dormir com ela. Me traiu esse
tempo todo, estando ao lado do meu maior inimigo.
— Isso só prova o quanto é um cego.

— Cego eu fui por acreditar em você. — Sua fala é tão convicta,


que sinto meu coração doer.

— Então sai daqui e me deixa em paz.

— Não sem a minha despedida.

Krigor avança um passo, puxando minha cintura para si, nossas


bocas automaticamente se encaixam e a paz para todos os meus tormentos
finalmente reina.

Se eu pudesse ao menos parar o tempo...


Capítulo 51
O inferno pode congelar e eu nunca estarei acostumado a sentir
esse gosto. Sua língua encaixa tão perfeitamente à minha, que a porcaria de
uma sinfonia se forma no meu corpo, ditando os movimentos e tornando
minha necessidade por ela desesperada.

A raiva e o prazer duelam em meu íntimo, um tão descompassado


quanto o outro e, só neste momento me permito ser rendido e admitir que
ela significa muito mais que uma boa foda.

Aperto sua cintura para que fique ainda mais próxima de mim.
Engulo seu gemido que tenta escapar pelos lábios, minhas mãos escorregam
para a barra do vestido completamente indecente que usa, subindo o
suficiente para desnudar seu traseiro delicioso.
— Não! — Ela empurra meu peito devagar.

— Você quer isso tanto quanto eu, Króchka...

— Estou acompanhada, Krigor. Além disso, você tem uma alcateia


lhe aguardando, não precisa querer me usar para provar algum ponto ao seu
rival.

O momento quente e prazeroso se esfria como uma nevasca e


afasto-me, enquanto cruzo os braços e apoio meu corpo na bancada ao meu
lado. Encaro os olhos dela, analisando suas palavras e só consigo ver o
ciúme lhe tomando.

Será que estou tão obcecado assim, que enxergo coisas que não
existem?

— Eu vim sozinho. Não quero nenhuma outra na minha cama que


não seja você, Króchka.
— Discordo. Saiu daquela luta enfurecido e foi se esbaldar nos
braços de outra.

— Nikita me fez companhia, mas não rolou nada. Bebi até cair e
sabe por quê? — Aproximo meu tronco dela, o suficiente para que olhe
claramente dentro dos meus olhos. — Porque você me apunhalou pelas
costas.

— Você só enxerga o que quer ver, volk. Sua arrogância não lhe
permite olhar além — ela retruca e cruza os braços, imponente.

— E eu pensei que tinha lhe enxergado de verdade. Parece que me


enganei... completamente. — O amargor toma meu paladar quando concluo
a verdade que sempre neguei.

Aleksandra Yakovna nunca me pertenceu.

Destranco a porta e saio dali o mais rápido que consigo, a repulsa


se instala dentro de mim, toma frente de qualquer sentimento que tenha
brotado por aquela mulher e decido colocar um ponto final nessa história.

Encontro com Bóris no camarote, conversamos rapidamente, aviso


que tirarei uns dias sozinhos e irei para o Daguestão visitar minha família.
Logo as coisas ficarão mais intensas no circuito de lutas e quero focar
minha mente nisso. Lutar para manter os meus em segurança e nada mais,
como sempre foi e deve permanecer.

Chego em frente ao pequeno armazém, que mantém as mesmas


características desde que me entendo por gente, onde, por muitas vezes,
corria me escondendo dos meninos da vizinhança em alguma brincadeira.
Passo pela porta e vejo a trança comprida que a garota usa. Quando
deixei nossa casa, Anya tinha apenas cinco anos, era tão apegada a mim que
chegava a ficar irritado, mas minha mãe sempre dizia que eu era seu herói e
precisava protegê-la. Isso se tornou tão parte de mim que nunca fraquejei,
principalmente por acreditar que ela estaria segura.
— Anya, pegue mais farinha no depósito... — Minha mãe entra
pela porta e estaca quando me reconhece. — KRIGOR!

Ela solta o cesto que carregava no chão e vem até mim. Anya, que
estava distraída, assusta-se e a acompanha quando percebe minha presença.
Aceito ambas em meus braços, abraçando-as apertado, beijando o topo de
suas cabeças e, em paz, por constatar que estão bem.

— Por que não avisou que viria? — Anya acerta um tapa no meu
peito, a voz embargada.

— Qual seria a graça? Surpreendê-las é muito melhor.

— Você faz falta, meu filho. — Minha mãe acaricia meu rosto. —
Cada vez que te vejo, está mais diferente. Precisa vir mais vezes — ela
ralha, se afastando.

— Faço o que posso, mat’. Não é fácil fugir da rotina de treinos e


lutas.

— Quando isso vai acabar, Krigor? — Seu tom muda


completamente, tornando-se pesaroso.

— Só mais três anos.

— Eu terei dezoito e posso ir para Moscou com você — Anya


comemora.

— Seu lugar é aqui, ao lado de nossos pais — advirto.


— Se você saiu para viver o mundo, eu também posso.

— Está disposta a pagar o preço? O meu foi bem alto, irmã. —


Meu tom é cortante.

— Você não tem culpa, filho. Foi tão enganado quanto nós.

— Do que estão falando? — Anya corre os olhos de mim para


nossa mãe, sem compreender.

— Filho. — Olhamos para a porta dos fundos e vejo meu pai.

Sorrio feliz em vê-lo, mas quando caminha e puxa uma perna,


sequela da minha imprudência no passado, abaixo a cabeça e deixo a culpa
e vergonha me tomar, como sempre acontece.

— Olga, prepare um chá, nosso filho finalmente veio nos ver.

Minha mãe se afasta, enquanto ele se aproxima, não tão rápido


como costumava ser, mas ainda carrega seu mesmo perfil imponente. Ele é
um pouco mais baixo que eu e isso não fazia a menor diferença quando
queria impor seu respeito.

— Bem vindo de volta. — Ele me abraça e me sinto ainda menor.


Volto a ser o garotinho que aprontava brincando pelo quintal,
sempre levando uma advertência dele, que logo se esquecia e deixava eu
voltar a reinar. Meu pai sempre foi e será meu único herói.

— Me perdoe por ficar tanto tempo fora.

Ele afasta e segura meu rosto com as mãos, seus olhos estão
límpidos e livres de qualquer julgamento ao falar:

— Já chega de perdão. Você fez e faz o que precisa ser feito. Honra
com sua palavra e arca com as consequências das escolhas, isso te torna um
grande homem. Tenho orgulho de você.

— Do que vocês tanto falam? — Anya interrompe o momento e


agradeço internamente.

Provavelmente, eu choraria feito uma menininha e isso acabaria


com a moral do lutador na minha cidade de origem.

— Tak! Vamos entrar, estou com fome. — Desvio do assunto,


rindo.

— Você sempre está com fome, Krigor — Anya provoca e pega


minha bolsa no chão. — Venha, fiz um bolo agora mesmo, você tem que
provar.

— É seguro? — Olho desconfiado e ela acerta um soco no meu


braço.

Depois de uma boa refeição com minha família, vou até um dos
ginásios de treino. Daguestão é conhecida por formar os melhores lutadores
da Rússia, praticamente todos os campeões olímpicos saíram daqui.

Desde muito cedo, são treinados para isso, a família investe na sua
capacitação para que, no futuro, seja um campeão e possa ajudar os seus. A
região ainda é uma área de conflito, mais brando que no passado, mas,
ainda assim, limitada de recursos e ajuda do governo.

Os que têm habilidade o suficiente, além de dinheiro e apoio de


parentes, podem ser convidados a se unir à alguma equipe e conquistar a
glória, uma medalha olímpica ou o cinturão do UFC[33].
Foi assim comigo, quando demonstrei interesse, aos treze anos, por
luta e meu pai investiu todas as economias da família na minha formação.
Aos dezessete, estava pronto para qualquer competição, foi quando
conhecemos Bóris e embarquei para a capital em busca do sonho de ganhar
um cinturão.

Um sonho glorioso que em pouco tempo se tornaria meu maior


pesadelo.
Capítulo 52

Meu estilo de luta e, obviamente, a arrogância, desviou meu foco


do esporte e me jogou direto para o lado errado das competições. Depois de
ser advertido em uma luta amistosa, que me escalaria para uma competição
importante e legalizada, fui abordado por um membro da organização que
ofereceu um bom dinheiro por alguns combates.

Bóris achou imprudente aceitar, mas eu estava no auge, queria lutar


e derrubar o máximo de oponentes possíveis, tornar-me o grande lutador
que sempre quis.

No fim da primeira luta, Bóris recebeu uma ligação da liga


nacional, avisando que eu estava cortado pelos próximos anos, por lutar em
um circuito não legalizado. Fiquei revoltado e em resposta, aceitei a
proposta da organização de recrutamento pelo período de afastamento
imposto.

Meses depois, percebi onde realmente estava me metendo, tentei


sair, avisei Bóris que embarcaria para o Daguestão e contaria tudo ao meu
pai. Juntos daríamos um jeito de me recolocar nas lutas legais e encerraria
meu envolvimento com a organização.

Foi minha primeira e mais dura lição de que toda ação tem
consequências e pago essa dívida com ardor, ciente de que se não o fizer, as
pessoas que amo estariam condenadas.
— Continua pensando demais no que não deve, filho. — Meu pai
para ao meu lado.
Estava perdido, observando os garotos treinando no espaço, todos
determinados a mostrar a melhor técnica, principalmente por me verem ali.
Aqui, sou tratado como um herói, mesmo estando longe de ser um. A
organização faz questão de espalhar as histórias mais gloriosas do volk, para
que eles vivam a ilusão de uma vida maravilhosa nos circuitos de luta
informal e não posso fazer nada a respeito disso.

— Tudo poderia ser diferente, se eu não fosse um presunçoso, pai.

— As coisas aconteceram como deveriam acontecer. Logo, tudo


termina e teremos paz, finalmente.
— Alguém procurou por vocês? — questiono, preocupado.

— Não. Tudo caminha normalmente, filho. Desde que você


continue sendo o volk.

— Quando tudo acabar, quero fazer algo bom, quem sabe ajudar
esses meninos a serem grandes, de verdade.

— Isso é ótimo e terá meu apoio. Você está diferente, parece mais
desapegado e distante do seu foco. O que aconteceu? — Encaro meu pai,
que está atento a mim.

— Nada. Só o cansaço disso tudo.

— Você não veio nos visitar. Está fugindo de algo, posso sentir.
— Conheci alguém e ela não era o que imaginei.

— Pensei que nunca teríamos essa conversa.

— Que conversa?

— Mulheres.

Solto uma risada discreta.


— Não há necessidade disso, pai. Acredite.

— Pode até não haver, mas me permita um conselho: se ela


conseguiu mexer tanto com você, a ponto de vir para casa, é porque ela faz
a diferença na sua vida. Não afaste ninguém por arrastar uma culpa
desnecessária, filho. Carrego com orgulho o ferimento de um tiro que era
para você e não me arrependo. Foi a minha escolha.

— Mas foi por minha causa. Eu os trouxe até aqui e enfrentei algo
que nunca teria chance de vencer.

— Você agiu de acordo com o que acreditava e isso lhe trouxe


consequências. Assumiu o fardo e dedica sua vida a algo que abomina, para
manter todos seguros e isso já é o preço suficiente para qualquer coisa.

— E a vida, mais uma vez, provou o quanto não sei escolher bem.
Ela me trocou pelo meu inimigo de arena.

— Toda história tem sempre dois lados, Krigor. Não se esqueça


disso.

Como sempre, meu pai tenta me livrar da culpa por ele arrastar
uma perna, mas não consigo me perdoar, arrisquei a vida de quem deveria
proteger e isso não tem justificativa que aplaque.

“Estamos no galpão que usamos como depósito, o homem à nossa


frente se apresentou como Cossack, responsável pelo meu contrato com a
organização, que recentemente descobri ser protegida pela máfia russa.

Bóris está conosco e relata para meu pai todo o ocorrido com as
lutas legais e minha insistência em fazer as lutas clandestinas. Sinto tanta
vergonha, que não consigo erguer os olhos para encarar o homem que me
criou e ensinou tudo na vida.
— Entende a importância do seu filho cumprir o trato? Ou ele
cumpre o contrato de treze anos que assinou ou terá que pagar com a vida.

— Isso não. — Meu pai entra na minha frente. — Ele fará o que
tiver que ser feito.

Ele gira o corpo, ficando de frente comigo, segura meus ombros


para que eu o encare e assim o faço. Vejo toda a determinação em seus
olhos, a coragem e valentia de um homem que sempre lutou para trazer a
dignidade em nossa vida.

— E não quero lutar para bandidos, pai.

— Você fez uma escolha errada, filho. Agora, precisa arcar com as
consequências. Faça o que tem que ser feito.

Relutante, aceno com a cabeça e caminho até próximo de Bóris.

— Farei isso, desde que minha família fique segura.

— Considere feito. Leve o menino de volta a Moscou, Bóris —


Cossack ordena, e caminha para a saída. — Espere! Todos sabem que
sumiu e simplesmente voltar deixaria a moral da organização abalada, por
isso, preciso de um pagamento pela sua rebeldia.

Um homem se aproxima com uma arma na mão, sinto meu corpo


inteiro gelar, mas não fraquejo perante ele. Não mostraria meu medo
àquele rato.

— Atire em mim — meu pai intervém.

— Não! — grito.

— Boa escolha. Não quero correr o risco de danificar o corpo do


lutador.
Cossack pega a arma da mão do seu capanga e, antes que alcance
meu pai, dispara, acertando seu joelho.

— Pai! — Corro até ele, que cai no chão, segurando o local


atingido com as mãos.

— Chame um médico e cuide do homem, Bóris. E volk — olho


para o homem com ira, o desejo de socar seu rosto até a morte quase me
cega —, antes que pense em desviar do acordo, lembre-se de que ainda
tenho outras opções para tiro ao alvo.”

— Volk, pode autografar minha camisa? — um garoto, de dez anos


no máximo, aproxima-se, livrando-me das lembranças perturbadoras.

— Claro. Qual seu nome? — Pego a caneta que ele me estende.

— Lenin. Quero ser como você quando crescer, vou me inscrever


no circuito.

Paro a caneta no ar, fecho com a tampa e me curvo, apoiando nos


joelhos para ficar de igual com o garoto.

— Vamos fazer um trato. Se você continuar praticando com


determinação, não aceitar nenhum treinador e, principalmente, nenhum
contrato, daqui a três anos, preparo você pessoalmente.

O menino fica tão chocado com a minha proposta, que não


responde absolutamente nada, fica estático, me encarando.

— Vou entender como um sim. — Bagunço seu cabelo e


finalmente assino sua camiseta.
Passo dois dias incomunicável com o mundo, aproveito minha
família, aceito o colo da minha mãe e infernizo minha irmã, que começa a
perguntar quando, finalmente, irei embora.
Renovado e focado em meu propósito, retorno a Moscou, ansioso
por terminar logo esse circuito e tirar férias. São só mais três anos e poderei
ser livre.

Aleksandra, infelizmente, não se tornou uma lembrança amarga em


minha mente ainda, mas tenho certeza de que conseguirei fazer isso
acontecer em algum momento. Só preciso evitar encontrá-la, focar nos
treinos, derrubar todos os meus oponentes e ansiar, pelo grande momento,
em que eu acabarei com Russell e descontarei toda minha ira nele.

Apesar de Bóris e Danya não acreditarem no seu envolvimento na


sabotagem, tudo aponta para ele, o mais interessado em ganhar aquela luta.

Prejudicar um amigo, tomar minha garota, tudo isso faz parte de


algum plano, posso sentir, só preciso estar atento para o próximo passo e eu
sei que ele vai acontecer na nossa luta.
Capítulo 53

3 meses depois

Sentada do lado de fora do balcão, vasculho a pilha de papéis à


minha frente, procurando o comprovante de pagamento das contas de
ontem. Jurava que havia deixado tudo junto, pelo visto, me enganei. Já que
é a terceira vez que olho os mesmos documentos e não encontro nada.
Tenho dado o meu máximo para que tudo funcione perfeitamente
no Zolotaya Vobla. Faz meses que Irina partiu e, com a equipe bem
entrosada, tenho conseguido manter a ordem, ao menos, no bar.

Minha rotina voltou à mesma monotonia de antigamente, antes do


lutador. Acabei dividindo minha vida nesse pequeno — entretanto,
avassalador — acontecimento.
Depois do nosso momento no banheiro daquele clube de stripper,
decidi encerrar de uma vez nossa história. Quando Russell percebeu que
fiquei realmente chateada, imediatamente me tirou de lá, tentou argumentar
em defesa de Krigor, mesmo sem conhecimento de toda a conversa.

“— Ele é teimoso, eu te disse. Vai pensar várias merdas, afinal,


você está ao lado do maior rival dele.

— Se ele fosse um pouco mais esperto, saberia que tem muita coisa
errada em tudo isso.

— Tenho investigado sobre o caso de drogas na luta.


— Descobriu algo novo? — Sinto uma pequena fagulha de
esperança crescer.

— Ainda nada, mas tive a chance de conversar com Danya, sem


que alguém visse. Ele não acredita que tenha sido eu, pois sua equipe
verificou tudo antes da luta. O que nos leva a crer que é alguém da
organização.

— Isso, eu já tinha imaginado.

— Alguém ligado a eles. Diretamente.

Vasculho minha mente com a informação, buscando por alguém


suspeito, que pudesse estar traindo a confiança de Krigor e da equipe, mas
não tive tempo o suficiente ao seu lado para levantar qualquer informação.

— Krigor é sempre muito reservado com treinamentos e sua equipe


é pequena.

— Isso aumenta as chances de pegar o traidor.


— Boa sorte com isso. — Solto o ar, com pesar. — Não tenho
qualquer interesse nesse assunto e quero saber se podemos dar por
encerrada toda essa palhaçada. Já fomos vistos o suficiente juntos.

— Tudo bem. Depois de hoje, acho difícil o volk lhe procurar, isso
vai afastar a organização do seu pé. Manterei contato por telefone,
Aleksandra.”

Meu único contato com qualquer coisa relacionada ao mundo das


lutas tem sido Russell, que, a primeiro momento, era meu algoz, agora se
tornou um amigo, de certa forma.

Como prometeu aquele dia, mantemos contato pelo telefone,


sempre me envia mensagens sobre o circuito de lutas, atualizando quem
vence ou perde. Tem o cuidado de colocar em uma lista, em que
obviamente o nome de Krigor está inserido e não consigo evitar sempre
conferir seu cartel.

Algumas vezes, ele menciona suas investigações, pequenas


informações veladas, de que as coisas estão caminhando e tem provas e
novidades sobre as artimanhas que envolvem ele, Danya e Krigor.

Apesar de sentir meu coração falhar algumas batidas quando ele


cita o assunto, faço um grande esforço para encerrar a conversa ou mudar o
foco, prometi a mim que não me envolveria mais e assim farei.

— Sacha, faltam quinze minutos para abrir — o substituto de


Serguei se aproxima e avisa.

— Tudo bem. — Recolho os papéis que revirava ainda há pouco e


vou para o escritório.

Entro na pequena sala, antes usada por Irina, mas agora sou eu
quem mais passo o tempo por aqui, ainda me adaptando às questões
burocráticas. Pensei que o maior desafio seria comandar a equipe, lidar com
pessoas nunca foi meu forte, entretanto, fiquei surpresa em me adaptar
facilmente com essa tarefa.

Desafiador é conseguir manter essa mesa organizada e sem


qualquer papel pendente ou algum relatório para fazer. Definitivamente,
trabalhar em uma sala fechada não é nada fácil ou agradável.

Meu celular toca e olho o identificador sorrindo amplamente.

— Oi, chefe!

— Olá, gerente! Como vão as coisas por aí?


Irina, sempre animada, liga para mim uma vez por semana e
colocamos a par os assuntos importantes, faturamento, rotina do bar,
funcionários e tudo que é relevante informar.

Ela aproveita para falar sobre a inauguração da filial, que tem


demorado mais do que o previsto, pois o galpão que comprou, por um
ótimo preço, estava mais defasado que o esperado e tem exigido muitas
obras.

— Já estamos na parte elétrica. Serguei garantiu que mais um par


de semanas e estaremos funcionando.

— Isso é ótimo. Quero estar aí.

— Claro! Venha sim, deixe um responsável pelo bar e aproveita


para trazer Katrina, ela vai amar os russos deste lado do país.

— Aquela, eu pouco tenho visto, mas farei o convite. — Franzo as


sobrancelhas, lembrando que faz mais de uma semana que não tenho
notícias da minha prima.

Katrina tem estado estranha desde aquela fatídica noite no clube.


Mal nos falamos, já que estava acompanhada de Danya. No outro dia,
procurei-a em casa para contar o que aconteceu e a decisão que tomei, mas
ela não havia chegado ainda.

Depois disso, ficou muito difícil nos encontrarmos, afundei minha


vida no trabalho. Dei tudo de mim para que o bar funcionasse como se a
própria dona ainda estivesse aqui. Em contrapartida, Katrina se tornou uma
visita muito escassa, suas vindas esporádicas se tornaram inexistentes.

— De qualquer forma, te aguardo para o grande dia.

— Conte comigo, mande a data e estarei aí.


— Claro... o que foi, Serguei? — Ela afasta o telefone. — Já vou,
radnóy[34]. Preciso ir, Sacha, nada funciona sem que eu olhe tarefa a tarefa.

— Tudo bem. Fique bem. — Encerro a chamada, sorrindo.

Minhas suspeitas se confirmaram pouco mais de um mês que Irina


e Serguei partiram de Moscou. O fato de estarem um pelo outro somente,
um novo lugar, aproximou-os e o segurança deixou a timidez de lado e se
declarou para ela.

Estão juntos e felizes, desde então, torço muito pela felicidade de


ambos. Eles são perfeitos um para o outro, só precisavam desse pequeno
empurrãozinho do destino.

Sinto um pequeno aperto no peito, recordando os feitos do destino


em minha vida há um tempo. Concluo que até ele pode errar às vezes, como
foi no meu caso. Krigor e eu nunca foi algo para durar, talvez ele só tivesse
o papel de mola propulsora para mudar o rumo das coisas em minha vida.

No entanto, como explicar isso para um coração tolo?

Tanto tempo distante, mas ainda consigo me lembrar perfeitamente


do gosto daquele último beijo, o desejo de que o momento se eternizasse e,
de certa forma, aconteceu, ao menos na minha memória.

Um barulho de vidro quebrando desperta meus pensamentos


saudosos e torturantes, saio correndo em direção ao depósito e vejo cacos
espalhados pelo chão.

— Desculpa, Sacha. Eu pago, não se preocupe — Lenusya, minha


nova barwoman, justifica.

— Não se preocupe, Lenusya, acidentes acontecem.


Ajudo-a a juntar e limpar toda a bagunça bem a tempo de as portas
serem abertas e ficarmos imersos em muitos pedidos, ocupando boa parte
da noite com o serviço.
Capítulo 54

Não fazia ideia de que precisava dessa folga até ela acontecer.
Depois da noite movimentada de ontem, acordei sentindo que havia sido
atropelada por um caminhão de carga, avisei a equipe que não apareceria
hoje e que lidassem com tudo.

Quando Russell mandou uma mensagem no meio da madrugada,


avisando que hoje ele teria uma luta importante e gostaria muito da minha
presença, achei estranho. Nunca mais me pediu para participar de nada,
pensei em recusar, mas ele disse que era necessária minha ida.

— Olá, prima. — Ergo os olhos e vejo Katrina, na entrada do


prédio.

Saí para colocar o lixo que minha mãe pediu e acabei parada,
encarando o celular na tela de mensagens, ponderando se era mesmo uma
boa ideia voltar àquele lugar.

— Olá, sumida. — Katrina vem até mim, fechando os braços em


torno do meu pescoço.
— Senti sua falta.

— Posso dizer o mesmo, já que você resolveu desaparecer.

— Trabalho. — Ela se afasta com um sorriso amarelo no rosto e


estreito meus olhos em desconfiança.
— Moramos no mesmo prédio, não é difícil subir alguns andares
para me visitar.
— Você nunca está em casa. Agora que virou gerente, só respira
trabalho.

— Nisso, você tem razão.

— Vai à luta hoje?

— Você está sabendo?

— Sim. Ia subir agora mesmo para te chamar.

— Até onde eu sei, você não é uma grande fã de Russell.

— Não mesmo, mas adoro o oponente que ele enfrenta hoje. —


Ela sorri, enigmática.
— Pensei em recusar, mas Russell mencionou umas três vezes que
é muito importante minha presença.

— Então, vá. Você precisa mesmo de um pouco de diversão. Está


com a aparência devastada.

— Obrigada pela parte que me toca.

— Disponha.

— Aliás, daqui a duas semanas será a inauguração da filial do


Zolotaya Vobla e Irina pediu para convidá-la.

— Jura? Conte comigo! Agora vem. — Ela passa pelo portão e


estende a mão, chamando. — Temos que deixar você, no mínimo,
apresentável para hoje.

— Tem horas que eu deveria esquecer que temos o mesmo sangue


e te bater — respondo, a contragosto, mas a sigo.

— Sorte a minha.
Meu dia de descanso foi embora, assim que Katrina passou pela
porta do quarto e iniciou a operação reconstituição, assim definido por ela.
Fez minhas unhas, que realmente precisavam de cuidado, hidratou meu
cabelo, que não recebia qualquer tratamento há meses e, graças a ela, será
usado solto hoje.

A roupa, escolhida por Katrina, foi um vestido azul escuro, alça


fina, tecido delicado, com um caimento perfeito. Ela carregou a maquiagem
em meus olhos, em tom de azul com um esfumaçado preto, deixando-o bem
marcado. Para ela, um vestido dourado de manga e gola, curtíssimo,
completamente solto, bem moderno e perfeito em seu corpo.

Chegamos em frente ao mesmo hotel da primeira luta de Krigor


que presenciei, meus batimentos aceleram o suficiente para incomodar
quando entramos no salão onde todos aguardam o início do evento.

— Muitas lembranças? — Katrina provoca, tocando seu ombro


levemente ao meu.

— Algumas... — respondo, soltando o ar com pesar pela quinta


vez.

— Katrina, Aleksandra? Oi. — Danya surge ao nosso lado.

— Olá, como vai? — Katrina toma à frente e abraça o lutador.

Cheguei a pensar que seu sumiço fosse por ele, mas descobri, uns
dias depois da festa no clube, que não estão mais saindo juntos.

— Como vai, Danya? — Estendo a mão em cumprimento.


— Bem. Muito bem. — Ele aceita, receptivo. — Uma pena que
tenha perdido as outras lutas, foram incríveis.

— Fiquei ocupada com o bar, mas Russell me manteve a par de


tudo.

— Veio vê-lo hoje? — Um sorriso cúmplice surge em seus lábios.

— Sim. Viemos a convite dele — Katrina responde em meu lugar.

— Boa sorte com isso. Preciso ir. — Ele acena e sai.

Antes que eu questione a estranheza do momento para Katrina,


alguém anuncia que a luta começará em breve e que devemos tomar nossos
lugares. Entramos em um camarote, igual ao que estive da outra vez, mas
do lado oposto, no ambiente de Russell.

Acomodamo-nos na primeira fila, com visão de todo o local,


principalmente da arena onde ocorrerá o combate. Lembranças do lutador
audacioso vindo até a grade para barrar minha saída retornam com força.
Até hoje não consigo acreditar que tudo isso aconteceu, só pelo seu desejo
de medir forças comigo.
— Com licença. — Um atendente se aproxima. — Você deve ser
Aleksandra Yakovna. — Confirmo com a cabeça.

Ele estende um buquê de rosas vermelhas, grande o suficiente para


tapar minha visão do ambiente. Fico desconfortável com o presente, por
chamar a atenção de todos.

— De quem é? — questiono, quando procuro rapidamente por um


cartão e não encontro.

— Do lutador — o rapaz responde e se vai.


— Russell é um svolach. Para que tudo isso?

— Vai ver, não é dele. — Katrina ergue os ombros.

— Como não? Quem me daria flores no camarote do único lutador


que conheço?

— Ele não é o único.

Minha cabeça pende para o lado, analisando minuciosamente a


feição de Katrina, que parece relaxada e confortável. Volto minha atenção
para o camarote do outro lado do salão e vejo Danya, sentado ao lado de
algumas pessoas conhecidas.

O pessoal do volk.

— Não acredito... — solto, em um respirar.

— Acredite! Hoje é o grande duelo. Volk e Russell.

— Por quê... como... Eu não posso ficar aqui. — Levanto-me


rapidamente.

— Aonde vai? A luta vai começar.


— Tenho que ir embora — declaro, caminhando apressada.

Um homem grande de expressão sisuda entra na minha frente e a


enxurrada de lembranças invadem minha mente, meu coração acelera a
ponto de fechar minha garganta. O peito sobe e desce, com pressa,
buscando por qualquer equilíbrio.

Um arrepio se alastra da minha nuca até a base da coluna, minhas


mãos, fechadas em punho, suam, descontroladas. Giro o corpo, voltando a
atenção para a grade que separa o camarote do restante do salão.
— Volk... — Arfo, vendo o motivo do meu tormento parado na
grade.
As pessoas em volta não se sentem felizes, ele é o inimigo que está
invadindo a área do oponente, mas seu sorriso arrogante mostra que não se
abala em nada com a hostilidade ofertada.

— Acho bom você sentar sua bunda na cadeira, Króchka. — O


tom provocador de sempre, quase as mesmas palavras já usadas e o
semblante determinado me impactam.

— Não desta vez. — Reúno toda a minha determinação para


confrontá-lo.

Krigor passa a grade de contenção e caminha até mim. Seus passos


são determinados e firmes, ninguém se atreve a entrar em seu caminho,
apesar dos olhares ultrajados em sua direção.

— Por favor, Sacha. — Sua mão toca meu cabelo com delicadeza.
— Hoje tudo isso acaba e finalmente poderei tê-la por inteiro, Króchka
moyá.

— Eu não pertenço a ninguém. — Minha voz falha, mas ainda


consigo manter a dignidade.

— Sim, eu sei. E foi exatamente isso que me fez cair tão


facilmente por você. Me apaixonei naquele restaurante, quando me
confrontou apenas com o olhar.

Paralisada, fico presa em seu olhar, sem rebater o que acabou de


dizer, ainda processando suas palavras, totalmente desacreditada.

— Krigor, sai já daí! Você será penalizado. Isso é contra as regras.


— Somos tirados da pequena bolha que se formava ao redor por Bóris, que
esbraveja da grade.

— Mais tarde, Króchka... — Ele solta meu cabelo e se afasta, ainda


me encarando.

Quando Krigor pula a grade novamente, o povo ovaciona,


encantados, achando que isso foi só uma provocação contra Russell, algo
para esquentar as coisas na hora da luta e começo a me questionar se não foi
mesmo uma encenação.
Retorno para meu lugar, Katrina ainda segura o ramalhete de rosas
e sorri abertamente.

— Você me enganou, de novo.


— E eu sei que, no fundo, você adorou isso.

Disfarço um sorriso e sou salva pelo locutor que anuncia a grande


luta final deste circuito.
Capítulo 55
Caminho de volta para o vestiário com Bóris em meu encalço,
gritos soam do quão imprudente fui por agir dessa forma. Pouca
importância dou, precisava ver a reação dela ao presente que mandei lhe
entregar. Nunca ofertei flores a mulher antes, também nunca fui louco por
uma, como sou pela Sacha.
— Já basta! — Ergo a mão, virando na direção dele.

— Sou seu treinador. Você precisa manter o foco, volk. A luta de


hoje é a mais importante da sua carreira. Tem ideia da quantidade de
dinheiro envolvida nisso?
Aperto os olhos, mirando no fundo da sua íris, aproximo um passo,
cauteloso, segurando meu ímpeto de vomitar todas as verdades que descobri
recentemente.

— Não tenho, camarada. Mas você pode me dizer, afinal, sempre


cuidou dessa parte, não é? — A expressão de Bóris muda, drasticamente,
vejo-o engolir com dificuldade.

— Muito, Krigor. Sabe bem que os embates envolvendo você e


Russell são os mais lucrativos.

— Claro. Como posso me esquecer? Russell e eu protagonizamos a


maior palhaçada dessa organização.

— O que quer dizer? — Bóris questiona, interessado.

— Que estou cansado de tudo isso. Russell tomou minha garota


por uma vingança infundada.

— Então, tire o que ele tanto quer. Vença hoje e quebre de vez essa
rotina de vitórias intercaladas.
— Farei isso.

— Sabe que serão três rounds. Deixe o gás para o final. Controle o
primeiro, pontue no segundo e acabe com ele no último.

— Farei isso, camarada. — Levanto o punho e Bóris o toca em


cumprimento.

— Está na hora — um rapaz abre a porta e avisa.

— Não esquece, Krigor, leve a luta até o terceiro round e acabe


com ele — Bóris alerta, antes que eu passe pela porta.

Aceno com a cabeça, visto meu roupão preto, que tem o nome
VOLK bordado nas costas em tom azul e o contorno de um lobo abaixo.
Coloco o capuz e salto no lugar, sentindo a adrenalina tomar conta do meu
corpo.

Hoje é uma noite importante, todo esse circuito de lutas criado com
os melhores lutadores da Rússia aconteceu para que a organização
finalmente unificasse todos os campeonatos e fundasse a liga nacional de
combate.

Por sermos moscovitas, Russell e eu, faríamos a grande final, de


qualquer forma, assim mantiveram o público local cativo. Por isso, a
reunião há meses foi feita, com diretrizes bem definidas sobre todas as
lutas, salvo a de hoje, que, por curiosidade de Cossack, ficaria a critério do
melhor vencedor.

Não gosto da encenação, mas até onde fomos informados, ninguém


saberia disso, a não ser nós dois. Eles dariam o próprio jeito de garantir que
sairíamos vitoriosos se a luta em questão fosse um embate difícil de ser
vencido.
Escuto a música tocar e sei que é minha deixa. Caminho devagar
pelo corredor, ao som de Wicked Games, The Hot Damns, escolhida
especialmente para Aleksandra e sei que vai entender minha provocação.

Quero ser perverso, tocar sua pele com intensidade, castigar seu
corpo pela distância e sucumbir a necessidade da falta que me faz. Observá-
la de longe nunca foi o suficiente, pelo contrário, sempre causou ainda mais
vontade e desejo de que tudo isso acabe de uma vez e, finalmente, eu a
tenha para mim.

As luzes piscam, as pessoas gritam, assoviam, batem palmas e


extravasam quando tomo meu lugar na arena. Ergo os punhos para o alto e
pendo a cabeça para trás e, assim que o capuz descobre meu rosto, miro os
olhos nela.
Suas mãos seguram firmemente a grade, com o corpo projetado
para frente, o olhar aflito e, por muito pouco, não saio da minha posição
para ir ao seu encontro e acalmá-la sobre o que está por vir.

Se eu não morrer nas mãos do meu inimigo hoje, com certeza


viverei para provar a ela que somos perfeitos juntos.

— Para a grande final, deste lado da arena temos um lutador linha


dura, tão violento e impetuoso quanto o volk, seu cartel é admirável e a
rincha... — o locutor faz um suspense e a multidão grita ainda mais —...
bom, veremos se hoje teremos um empate ou uma vitória no histórico deles.
Recebam o incrível, destemido e sangrento lutador: RUSSELL!

Entre vaias e aplausos, Russell entra na arena e fugindo ao


protocolo de cumprimentar a plateia, caminha direto até mim e acerta um
soco no meu nariz, sem que eu espere.
— Fica longe dela! — Russell grita, enquanto eu levo a mão à área
atingida, que escorre um filete de sangue, já que o babaca não está com as
luvas ainda.

— Parece que a coisa será tensa hoje, camaradas! — o locutor


brinca e o público aplaude.

Antes de se afastar, ele sorri de lado e pisca um olho, debochado.


Avanço um passo, pronto para revidar sua afronta, no entanto, Bóris entra
na frente.

— Vem, esqueça isso, Krigor. Foco na estratégia de hoje. — Ele


puxa meu ombro para que não revide.

— O filho da mãe nem estava de luva, cortou meu nariz. — Sento-


me no banco e deixo Bóris examinar.

— Vou colocar uma pomada que vai estancar, não é nada de mais.
Guarde sua ira para o terceiro round.

— Acho que vou acabar com ele no primeiro — protesto, irritado.

— Não! — Bóris segura meu rosto, encarando meus olhos. — Só


siga o plano e tudo dará certo.

— Tak!

O locutor se despede e dá lugar ao árbitro, que assume o centro da


arena e sinaliza para que Russell e eu tomemos as posições. O sinal é dado,
tocamos nossas luvas e começamos a circular o tatame, atentos ao
movimento um do outro.

Arriscamos alguns cruzados e fintas[35], testando os reflexos e estilo


abordado hoje, mas nada com muito contato.
— Tá com medo, volk? — Russell provoca, a fala sai abafada pelo
protetor bucal.

— De você? Nunca — respondo.

— Então, é só medo de tomar uma surra na frente da namoradinha.


— Ele tenta sorrir e retruco com um gancho[36], que acerta sua têmpora e o
faz recuar alguns passos.

Russell se irrita e vem para cima, com toda a força, encaixando um


chute na minha costela, que me faz desviar a posição e isso o favorece,
encaixando um direto no meu maxilar.

Aproveito sua jogada de corpo lateral e cinturo[37] seu corpo,


quedando[38] o infeliz. Travo meus braços nos seus, na tentativa de
imobilizá-lo, qualquer movimento errado e posso receber uma chave e dar a
vitória antes da hora para meu oponente.

A sineta aciona e o árbitro se aproxima, separando nós dois.


Caminhamos para as extremidades e minha equipe está a postos para checar
quaisquer ferimentos.

— Bem, muito bem. Mantenha sua guarda agora no segundo


round. — Bóris segura meu maxilar, observando o local.

— Água — falo, e cuspo meu protetor.

— Aqui, garoto. — Bóris aponta a garrafa para mim.

Está acabando e eu não sei como vou me sentir no final disso.


Capítulo 56

“— Você está agindo como um garoto, Krigor! — Bóris grita,


quando saio do quarto.

A noite de ontem foi uma merda e não estou no clima de ouvir


conselhos de que as coisas são assim mesmo e preciso aceitar. Estou farto
de simplesmente concordar e quando ajo por mim, caio na cilada de
Russell.

— Ainda bem que te encontrei. Precisamos conversar. — Cruzo


com Danya no corredor.

— Não estou com cabeça para nada. — Passo direto por ele, indo
a caminho do elevador.

— É sobre Sacha. — Estaco e giro meu corpo, cauteloso. — Tem


muita coisa acontecendo, Krigor. Você precisa estar a par de tudo e
entender por que ela se afastou.

— Isso é fácil, ela é uma das garotas de Russell, estava comigo só


para me desestabilizar e provocar.

— Não! Camarada, ela não é nada disso.

— Como sabe? — questiono, aproximando uns passos.

— Tem muitos ouvidos aqui, vou marcar uma conversa com


Russell e ele poderá esclarecer tudo.

— Não preciso dele tripudiando no meu ego. — Fico irritado.


— Você vai querer ouvir o que ele tem a dizer. Te mando uma
mensagem com a hora e o local. Não fale isso para ninguém,
principalmente ao Bóris.”
— Ei, garoto. Está aqui? — Bóris estala os dedos no meu campo
de visão.

— Sim, estou. — Estendo a mão e pego outro protetor que me foi


ofertado. — Vamos acabar logo com isso.

— Calma, segura a empolgação. Temos que fazer isso direito.

Balanço a cabeça em concordância, a sineta toca e me levanto,


retornando para o centro da arena. Russell e eu tocamos as luvas e logo sou
surpreendido por um direto, perco meu apoio no pé e essa é a deixa para ser
cinturado e a luta vai para o chão.

Russell assume uma posição de dominação e começa seu Ground


and Pound[39], com uma sequência de socos fortes, intercalados com
cotoveladas que atingem minha cabeça e faz minha visão turvar. Tento
erguer a guarda, mas ele age rápido o suficiente para eu ser atingido
consideravelmente.

— Reage, garoto! — Escuto a voz de Bóris, desesperada.

Consigo erguer minha defesa novamente e quando Russell vacila


em sua sequência de golpes, acerto seu rosto e ele perde a posição, o que
facilita minha saída e fico de pé novamente, restabelecendo meu corpo para
o próximo movimento.

“— Você só pode estar brincando! — Empurro a cadeira, do


galpão sujo e abandonado que estamos, para longe.
Danya me deixou curioso com toda aquela conversa e, quando
enviou a mensagem, prontamente vim saber do que se tratava.

— Não é brincadeira. Você tem ao seu lado um traidor.

— Ouvir conversas aleatórias e ter informantes não prova nada,


Russell.
— Camarada, acredite, eu também fiquei chocado. Mas se esfriar
a cabeça e juntar as peças, a única pessoa que teria todas essas
informações e acesso a mim na luta é ele.

— Eu o conheço há muito tempo.

— E como acha que ele ganhava a vida, volk? — Russell intervém.


— Bóris sempre esteve envolvido com a máfia, vendia lutas clandestinas e
quando viu você lutando, enxergou a possibilidade de ganhar mais, sem se
sujar tanto.

Parto para cima dele, disposto a fazê-lo engolir cada uma de suas
acusações.

— Nada de briga! Estamos aqui para pensar juntos! — Danya


entra no meio.

— Pense com a cabeça, Krigor. A única pessoa que sabia sobre a


dívida com o agiota era ele, a quantia que pagou para o cara fechar o bico
o faria manter a distância pelo menos até o final do circuito, mas não levou
vinte e quatro horas para a verdade estar esparramada pela organização.

— Por que você a seguiu? Aquele dia no bar?

— A pedido da organização.

— Por quê? Isso nunca aconteceu antes.


— Porque eles temiam que ela fosse um problema como... — Ele
interrompe as palavras.

— Como Mavra foi. Eu já imaginava que tudo isso se tratava de


uma vingança sua — acuso, irritado.

— Eu não o culpo, volk. Mavra era uma garota cheia de


problemas, incluindo, drogas, nossa briga foi só mais um item no meio de
tanta merda. Ela devia uma alta quantia para traficantes, coisa que na
época não conseguiria pagar. Foi quando tive a brilhante ideia de
fugirmos, mas a organização tem olhos e ouvidos em todos os lugares,
então eles eliminaram o problema.

— Eu não sabia...

— Não tinha como saber. Quando me visitou naquele hospital, eu


ainda vivia a dor cega de perder um grande amor, queria culpar a todos
para aplacar o desespero que carregava. Mavra não teria outro destino que
não fosse esse, ela era tóxica para si mesma e qualquer um em volta seria
respingado.

— Sinto muito.

— Eu também sinto. Já se passaram muitos anos, Krigor, no


começo, confesso que queria sua cabeça em uma bandeja, principalmente
pela arrogância que sempre mostrou. — Ambos rimos. — Depois, isso se
tornou um teatro que a organização sempre gostou de alimentar, já que o
público vibrava. Deixei as coisas correrem e não me importei em acertar
nada, até vê-lo sair de uma luta importante por causa de uma garota. Isso
foi o prato cheio para gerar especulações.

— Eu fui imprudente. Agi no impulso.

— Você agiu com o coração, lutador, e pagou um preço.


— O que não entendo é o que Bóris ganharia com tudo isso.

— Manter você no foco pelo restante do contrato. Assim como eu,


ele também percebeu sua mudança e isso era perigoso para os negócios.
Sabe qual é o maior beneficiário e apostador de suas lutas? — Balanço a
cabeça em negação. — Seu treinador. Ele tem contatos nas apostas e usa
nomes falsos ou pessoas de sua confiança para apostar no resultado certo.

— Não acredito nisso.

— Tenho provas. Fotos, vídeos ou qualquer outra merda que


quiser. Você é enganado por ele há muito tempo. Ele entregou você e Sacha
de bandeja para a organização, esperando que eles fizessem com ela o que
fizeram com Mavra. Intervi, montei uma história convincente de que só
queria roubar um brinquedo do volk para que tirassem o foco dela. Sabia
que seu orgulho não o faria ir mais a fundo nisso tudo e ela finalmente
poderia seguir em paz com a própria vida.

— E a droga que foi dada para Danya?

— Foi ele também. O único, fora minha equipe, a ter acesso ao


vestiário aquele dia foi ele. Queria causar mais confusão entre vocês dois,
assim te afastaria de uma vez de Sacha — Danya toma a palavra,
esclarecendo.

— Chush' sobach'ya[40]! Eu vou acabar com ele.

— Nós vamos, mas da maneira certa. — Encaro Russell por um


momento.

— O que você ganha com tudo isso?

— Consciência tranquila. Estou cansado de alimentar farsas e


alguém precisa se dar bem com a própria garota.”
O sinal toca novamente e o árbitro separa Russell e eu, cada um
seguindo para seu lado. Esse intervalo é maior que os outros, deixei que
Russell me batesse muito, confesso que vi prazer no olhar do filho da mãe,
mas era necessário para seguir com o plano.

Antes de sair para o vestiário, arrisco um olhar no camarote e vejo


Sacha, debruçada no gradil com o corpo tenso, olhar sofrido. Lamento tê-la
aqui presenciando tudo isso, entretanto, não conseguia mais manter
distância, precisava saber que ela estaria ao meu alcance quando tudo isso
terminar.
Capítulo 57

Não tenho experiência alguma em luta, mas está claro que algo não
vai bem com Krigor. No último embate de ambos, o volk acabou com
Russell em pouco tempo e hoje parece que nem ao menos sabe o que está
fazendo.

Assim que seus olhos cruzaram com os meus da arena, senti que
está diferente, como se ele tentasse me passar tranquilidade. Sua arrogância
natural estava totalmente esquecida.

— Ele não está no seu melhor dia — Katrina comenta.

— Não. Tem alguma coisa errada com ele. — Levanto-me.

— Aonde vai? — Katrina também se levanta e me segue.

— Vou descobrir o que está acontecendo com o volk.

— Você é maluca? Está na área de Russell, não vão te deixar entrar


no vestiário do oponente.

— Darei meu jeito.


Saímos da área VIP, com meu buquê nos braços, desta vez o
brutamontes não tenta nos impedir. Liderada por Katrina, que conhece o
lugar melhor que eu, chegamos à porta do vestiário de Russell, onde dois
armários fazem a guarda.

— Quero falar com Russell.


— Não pode entrar, ele está no intervalo da luta — um deles
responde, sem, ao menos, dirigir-me o olhar.
— Escuta aqui, grandalhão! — Katrina entra na frente e estala os
dedos para o alto. — Essa garota é convidada especial do Russell e precisa
falar com ele.
— Vadias não entram no vestiário durante a luta — o outro
responde, medindo ambas, dos pés à cabeça.

— Como é que é? — Katrina avança para cima do segurança e eu a


seguro pelo braço.

— Vem, vamos voltar. — Ela tenta retrucar, mas a arrasto pelo


braço. — Vamos achar outra entrada — sussurro, quando estamos longe o
suficiente.

Reviramos os corredores, este lugar parece um labirinto nos


bastidores, diversos caminhos que se cruzam e não dão a lugar algum.
Enfim, encontramos a entrada para a arena, por onde os lutadores passam
no começo e final das lutas. Comemoro internamente quando vejo que a
porta não é vigiada, apressamos os passos e entro de forma repentina.

— Russell, exijo saber o que está acontecendo! — solto, assim que


entramos, mas minha determinação falha consideravelmente quando
percebo Krigor sentado em um banco de madeira, cercado da sua equipe.

— Chyort voz'mi! O que essa garota faz aqui? — Ouço Bóris


esbravejar, irritado.

— Controle-se! — Krigor fala, mordaz, e volta sua atenção para


mim. — O que faz aqui, Króchka? — Ao levantar-se da cadeira, ele
caminha alguns passos em minha direção. ꟷ Gostou das flores? ꟷ aponta
o buquê me minhas mãos.

— Eu... pensei... achei que aqui fosse o vestiário de Russell... —


balbucio, nervosa.
— Mentira! O vestiário dele fica do outro lado, não teria como
errar. Ela quer te distrair, Krigor, não caia nessa. — Bóris se aproxima, seu
tom acusatório me incomoda.

— Eu não estou mentindo — defendo-me e entrego o buquê para


Katrina.

— Eu sei. Acredito em você. — Krigor tem o olhar convincente,


suas palavras parecem ter mais significados do que somente a crença desse
acontecimento.

— Krigor, mande-a sair. Estamos em um intervalo importante e


precisamos decidir o próximo round.

— Decidir o que exatamente? — Krigor se vira para seu treinador.


— Estou tomando uma surra, provavelmente perderei o último round.
— Você não pode perder! — Bóris se altera, completamente
irritado. — Vou garantir isso, fique tranquilo.

— O que quer dizer?

— Nada. Eu sei que na volta você vai dar tudo de si, a luta não está
perdida.

— Tak!

— É melhor ela sair daqui, antes que Russell faça outra cena. —
Bóris aponta para mim e estranho sua hostilidade.

— Ela não sai mais do meu lado, Bóris. Ele que venha e verá o que
lhe acontece.

— Sem essa cena de macho alfa, Krigor. Você tem anos de contrato
ainda para cumprir, não precisa ter distrações no caminho.
— Bóris, você não era tão chato assim. — Katrina vai até uma
pequena mesa e pega a garrafa de água. — Estou com sede.

— Larga a garrafa, Katrina — Krigor avisa, assim que ela abre a


tampa.

— Por quê? — questiono, ao ver Krigor mudar o semblante.

Ele passa o olhar dela para Bóris, que também parece curioso com
a mudança de humor do lutador.

— Qual o problema, Krigor? — Bóris leva as mãos à cintura


quando questiona.

— Essa água está contaminada. — Danya entra por outro acesso,


acompanhado de Russell.

— Como assim? — Katrina solta a garrafa no balcão novamente.

— Mas o que é isso? Russell, você não pode entrar aqui.

— Soube que a minha garota estava aqui — Russell dá de ombros


e Krigor rosna ao meu lado — Essa garrafa era para mim, não é, Bóris? Eu
deveria tomar dessa água, ficar alterado e Krigor vencer a luta.
— Não sei do que você está falando.

— Eu também duvido dessas acusações, Russell, por isso meu


treinador — Krigor caminha até a mesa e pega a garrafa — vai tomar a
água que troquei do seu vestiário e provar que não há qualquer falcatrua da
nossa parte. — Krigor estende o objeto para Bóris.

— O quê? — Bóris recua um passo, parece nervoso. — Eu não vou


beber essa merda — ele nega veemente. — Isso é loucura e não prova nada
contra mim.
— Mas o fato do meu sangue testado, depois daquela luta, em que
você foi o único a ter acesso ao meu vestiário, prova — Danya menciona.

— E o seu bilhete com nome falso na aposta do resultado de hoje


— Russell completa, com os olhos vitoriosos e um sorriso cínico nos lábios.
— Nikita não é tão confiável assim, Bóris. Uma vadia dos tatames se vende
fácil por uma boa quantia de dinheiro.

Então era Bóris o tempo todo... Nunca imaginaria isso.

— Você me traiu por todo esse tempo. Mentiu, burlou, ganhou


dinheiro nas minhas costas e quase colocou a vida de Sacha em perigo.

— Ela ia te afundar. — Bóris aponta o dedo em minha direção em


tom acusatório. — Você só tem mais três anos de contrato e não poderia
deixar seu nome ser rebaixado perante a organização. Batalhei muito para te
tornar o que é.

— Então, posso beber essa água e nada acontecerá, certo?

— Não! Você tem que vencer.

Krigor ergue as sobrancelhas, um sorriso irônico no rosto e, com


rapidez, ele vira a garrafa na boca, engolindo parte da água contaminada.

— Você não vai ganhar nada hoje. — Ele entrega a garrafa para
Danya. — E acho bom sair daqui antes que eu chame Cossack e conte as
suas artimanhas. A organização não fica feliz com quem tenta ganhar em
suas costas. — Krigor se aproxima alguns passos e cospe no chão próximo
ao pé do seu treinador. — Está demitido!

— Krigor... Não... eu... — o homem balbucia, mas basta um acenar


de cabeça do volk e dois homens escoltam Bóris para fora.
— O que está acontecendo aqui, afinal? — Katrina levanta a
questão que está me corroendo por dentro.
— Descobrimos o verdadeiro traidor, Bóris vinha armando jogadas
de apostas nas costas do volk, minha e quem mais fosse necessário —
Russell comenta. — Você só correu riscos, porque ele envenenava a
organização contra os dois. — Ele aponta de mim para Krigor.

— Eu sinto muito por isso. — Encaro o volk e vejo seu rosto


derrotado.

— Você não tem culpa, Króchka. — Krigor se aproxima e toca


meu rosto com delicadeza. — Senti falta da sua pele, do seu cheiro, de você
toda.

— Você me esqueceu depois daquela noite na boate — desdenho,


ao fazer graça.

— Nunca. Passei os últimos meses me esgueirando no bar para não


ser visto por você e, por alguns momentos, pude desfrutar da maravilha de
te observar. Linda, imponente e eficaz ao fazer seu trabalho e comandar
aquele lugar.

Se as revelações da noite já não fossem o motivo suficiente para


me chocar, esse lutador vem e termina de tomar meu coração para si.
Capítulo 58

Afasto um passo e miro seus olhos ternos, nunca vi um semblante


tão compassivo no rosto desse lutador, algo raro e incrível de se presenciar.

— Você ia lá escondido? — Preciso confirmar, é quase


inacreditável.

— Sempre que possível. Escondido de todos, parecia um lunático,


mas sabia da necessidade para te manter segura.
— Por que você nunca mencionou isso? — Olho para Russell, que
sorri da forma debochada que sempre faz.

— Qual a graça disso tudo, se não fosse para ver essa cara de
espanto? — Ele dá de ombros.

— Preciso te agradecer, Russell. Você nos salvou de uma possível


tragédia. — Krigor tem o tom pesaroso ao recordar o acontecido com seu
oponente.

— Não agradeça. Ainda vou acabar com você hoje. — Ele pisca
um olho, descontraído. — Por sinal, vamos todos sair daqui, antes que a
organização perceba.

O vestiário esvazia, Katrina vai para a porta me esperar, mas ainda


não estou preparada para me afastar desse lutador convencido.

— Você vai perder? Propositalmente? — questiono, preocupada.

— Sim, mas Russell prometeu pegar leve comigo. — Seus braços


se fecham em torno do meu corpo e o abraço, inspirando seu cheiro. —
Fique do meu lado da arena, não precisamos mais esconder nada.

— Tem certeza de que não há riscos? Não quero te prejudicar.

— Não. Terei uma reunião com a organização e colocarei tudo às


claras, cumprirei meus três anos restantes e eles nos deixarão em paz.

— Sinto muito passar por tudo isso.

— Eu tenho você, Króchka. Nada mais me importa. Falei sério


quando disse que estou completamente apaixonado por você. — Ele baixa a
cabeça e busca por meus lábios.

Desvio, risonha e balanço a cabeça em negação. Krigor franze o


cenho, contrariado com minha atitude e sorrio ainda mais.

— Depois da luta irei lamber suas feridas, volk. Mas agora, se


concentre em perder com dignidade. — Afasto-me bem a tempo de o
assistente informar que ele deve voltar à arena.

— Cobrarei por cada lambida, Króchka.

Entramos no quarto de hotel, Krigor praticamente pendurado em


meu ombro, o que era quase impossível, dado ao seu tamanho perto de
mim, mas o efeito da droga somado à exaustão da luta o deixou um pouco
lento.
— Vamos direto para o quarto — aviso, e aponto em direção aos
aposentos.

— Você já quer começar a festa, Króchka? Ótimo, porque estou


pronto. — Krigor tem a fala arrastada e visivelmente alterada.
— Ainda estou aqui, só para constar — Katrina comenta, em tom
de brincadeira, e escuto a gargalhada de Danya.

— Svolach! — xingo, antes de passar pela porta do quarto.

Krigor finalmente sai do meu apoio e se joga na cama quando está


próximo o suficiente, levando-me com ele.
— Hora de pagar as lambidas prometidas, Króchka. — Seus braços
fortes me prendem em seu domínio.

— Nada disso, lutador. Preciso falar com a minha prima.

Consigo me soltar de Krigor com facilidade, já que ele mal


consegue coordenar seus movimentos. Retorno para a sala e vejo Danya
bem próximo da minha prima, pronto para agarrá-la.

— Acho que vou passar a noite aqui — anuncio, quebrando o


momento dos dois.

— Eu vou embora — Katrina, avisa.

— Pode ficar comigo, se quiser — Danya joga charme e Katrina


afasta alguns passos.

— Melhor não. Nos vemos depois, prima. — ela se despede.

Danya também se despede, desanimado com a recusa de Katrina e


se vai.

Volto para o quarto e escuto um ronco alto, aproximo-me da cama


e observo Krigor esparramado, dormindo pesado. Tiro seu sapato, cubro o
corpo com uma manta e fico velando seu sono por um tempo.

Escuto meu celular tocar na sala e corro para atender.

— Alô?
— Olá, Króchka. — A voz risonha e provocadora de sempre não
me surpreende.

— Já disse para não me chamar assim.

— Como ele está?

— Agora, apagado. Testaram seu sangue, como orientado depois


da luta.

— Amanhã ele estará bem.

— Você não precisava ter batido tanto nele.

— Acredite, eu peguei leve.

— E como serão as coisas agora? — Levanto a questão que está


me consumindo.

— Seguiremos como sempre. O público gosta da nossa rivalidade


e, para todos os efeitos, manteremos assim.

— Vocês não podem mesmo ser amigos? — Ele solta um riso


debochado.

— Volk e eu somos orgulhosos demais para combinarmos um


jantar íntimo, Sacha. Estou satisfeito por termos resolvido nossas
diferenças, mas nunca seremos grandes amigos.

— Obrigada por tudo, Russell.

— Não precisa me agradecer. Fiquei com o cinturão. — Ele faz


outra piada, mas o silêncio permeia entre nós. — Seja feliz, Aleksandra, e
mantenha o volk na linha.

— Pode deixar.
Acordo cedo no outro dia, Krigor ainda dorme, apagado ao meu
lado e mesmo desejando ardentemente ficar e pagar minha promessa com o
lutador, preciso voltar para casa e me arrumar para trabalhar.

Hoje tem muito serviço me aguardando, que não posso me dar ao


luxo de protelar ainda mais minha ida, mesmo que isso signifique adiar por
mais tempo a saudade de me jogar nos braços de Krigor.

Chego ao bar quando as mercadorias do dia começam a ser


descarregadas, confiro o estoque com as notas, fecho o movimento de
ontem e me inteiro dos acontecimentos. Passo mais horas que pretendia no
escritório, fritando a cabeça com alguns relatórios, mas só encerro quando
dou por finalizada todas as pendências.

Meu celular apita com uma mensagem e confiro o visor, vendo o


nome de Krigor na tela. Ainda não nos falamos e já é tarde o suficiente para
saber que acordou e não me encontrou lá.

** Você fugiu de mim, novamente. Mas, desta vez, vim buscar o


que é meu. Siga as pétalas... **

Pareço uma adolescente deslumbrada quando termino de ler a


mensagem. Faço como disse e caminho até a porta do escritório, abro,
cautelosa, e não vejo ninguém, coloco a cabeça para fora, procurando por
ele e nada.

Pronta para desistir e mandar uma mensagem questionando, noto o


chão à minha frente com uma trilha de pétalas que seguem para o salão do
bar. Caminho por elas, o coração bombeando fortemente, a ansiedade
tomando conta de mim e, finalmente, quando o vejo, estaco no lugar,
pasma.
Krigor está parado no meio do salão, com um buquê de rosas
vermelhas enorme nas mãos, usando terno e pétalas espalhadas no chão em
torno de si. Cubro a boca com uma das mãos, chocada com sua atitude,
nunca imaginei algo tão romântico vindo desse homem naturalmente rude.

— O que está fazendo? — Arrisco um passo à frente.

— Conquistando seu coração... — ele responde baixo, tímido, já


que alguns funcionários estão atentos à cena.

Sinto os sentimentos transbordarem de mim e corro até ele, que


abre os braços e ergue meu corpo, assim que o alcanço. Capturo sua boca
em um beijo saudoso, minha língua relembra o gosto da sua e gemo em
apreciação. A falta que ele me fez toma conta de mim e sinto uma lágrima
escorrer dos meus olhos fechados, impossível de conter.

— Você já conquistou, lutador. Sou completamente apaixonada por


você.

Seu sorriso aberto e sincero é a imagem mais bonita que já vi. Ele
me coloca no chão novamente e acaricia meu rosto com cuidado,
nitidamente aliviado com a minha declaração.

— Então, não precisava de nada disso? — Ele afasta, apontando


para si, vestido formal e com um buquê nas mãos.

Balanço a cabeça em negação e rio do seu semblante


desconcertado.

— Eu mato o Danya.
— Mas isso te garantiu pontos extras, lutador. — Seguro a lapela
do seu paletó e com a mão livre, ele puxa minha cintura para si.

— Então, mais tarde eu cobrarei tudo que tenho direito, Króchka.

— E eu estarei muito feliz em cumprir cada uma das suas


exigências, volk.
Capítulo 59

Depois da cena mais romântica que já vivi na vida, Krigor parte


com a promessa de me buscar mais tarde e colocar em prática todas as
facetas que têm em mente. Conclusão disso, foi uma gerente ansiosa e
desejosa que mal conseguiu se concentrar para tirar uma tulipa de chope
que fosse.

Mantenho meus olhos na porta e só respiro aliviada quando


finalmente o vejo passar por ela, agora usando seu jeans escuro de costume
e camiseta preta. Mantém a mesma cara fechada, que me encara, em
desafio, mas sorri docemente.

— Olá, lutador.

— Króchka. — Ele acena, assumindo a banqueta no canto do


balcão. — Já está livre?

— Estamos finalizando, saio em cinco minutos.

— Te dou três — ele avisa, impetuoso.

— Farei em sete. — Cruzo os braços e empino o nariz.


Krigor solta uma gargalhada, projeta seu corpo para frente e com
uma mão puxa meu braço para mais perto. A outra ele usa para segurar
minha nuca e beijar minha boca ardentemente.

— Senti tanta falta dessa ousadia — ele fala baixo, arrastando os


lábios pelo meu rosto.

— Saio em um minuto.
Ele retorna para o banco, feliz por ter ganhado mais do que pediu
em tempo e pouco me importo. A verdade é que, se pudesse, nem teria
saído daquele quarto hoje pela manhã, saciaria todo meu desejo reprimido.

Olho para fora, atenta ao lugar, ainda estamos nos arredores do


centro de Moscou, mas em uma área residencial, com vários prédios novos.
O motorista estaciona na entrada social de um deles e olho para Krigor, que
se mantém enigmático.

— Onde estamos? Seu hotel não fica aqui perto.

— Logo você vai ver.


Ele desce do carro e estende a mão para que eu o siga. Suas mãos
se entrelaçam na minha e sinto meu peito aquecer, lembrando o quanto ele
gosta de me rebocar para todos os lugares.

Krigor cumprimenta o porteiro, assim que ele libera nossa


passagem, entramos no elevador e subimos para o último andar. Ouço um
barulho repetitivo e ambos olhamos para baixo, percebo que meu pé batia
constantemente no chão, denunciando minha ansiedade.

As portas se abrem e Krigor nos leva até a porta de um


apartamento, tira um molho de chaves do bolso, acha a correta e insere na
fechadura.

— Se não gostar do lugar, posso procurar por outro.

— Do que você está falando?


Krigor ignora minha pergunta e abre a porta, sou presenteada por
um ambiente amplo, sem nenhum móvel, mas repleto de suportes com velas
acesas no chão, iluminando o lugar.

Passamos por uma saleta, onde fica o cabideiro, mas meus olhos se
mantêm totalmente focados na parede de vidro que preenche toda à nossa
frente, sem cortinas, dando visão longínqua da cidade.

— É maravilhoso. — Estou boquiaberta.

— Comprei tem um mês, mas não tive coragem de me mudar ou


de colocar qualquer móvel. Precisava te mostrar antes. — Giro meu corpo
com as mãos na boca, impressionada.

— Você comprou um apartamento?

— Sim. Estava cansado da rotina de hotéis, a maioria dos circuitos


acontece por aqui, o mais distante são quatro horas de viagem, posso ir e vir
em pouco tempo. Queria um lugar fixo para ter aonde voltar e me sentir em
casa.

— É lindo, Krigor. Parabéns. — Vou até ele e o abraço.

— Sei que ainda é cedo, Króchka, isso pode soar meio assustador,
mas minha maior motivação em comprar este apartamento é que você
viesse passar uns dias aqui. — Afasto, encarando-o, assustada. — Ou, quem
sabe, morar? — O final soa como uma pergunta.

— Eu...

— Não responde ainda. Pensa com calma, não quero te pressionar


a nada. Vem, quero que conheça o quarto. — Krigor entrelaça nossos dedos
e me arrasta para uma porta à direita.
O quarto tem um ótimo tamanho, espaçoso, a mesma parede de
vidro de fora a fora, velas espalhadas no chão iluminando a vista e uma
cama, grande o suficiente para umas quatro pessoas dormirem, forrada com
uma colcha escura.

— A cama, eu comprei. Precisava de um lugar confortável para te


foder hoje.

— Nossa, que romântico. — Faço cara de tédio e Krigor abaixa,


passando um braço por trás das minhas pernas e me ergue.

— Ai! — Seguro seu pescoço, assustada.

— Quero te amar calmamente, lápatchka. E amanhã, quando partir,


quero sentir seu cheiro no travesseiro, olhar para cada canto deste lugar e
perceber seu toque, sua presença, quero você na minha vida para sempre,
Aleksandra Yakovna.

Com cuidado, Krigor abre cada botão da minha blusa, assim como
da calça, tira as peças de mim como se despisse um item valioso e delicado,
sem pressa, beijando cada ponto desnudado e, ao final, quando estou nua e
ávida o suficiente, afasta-se.

Em pé, abre o botão da calça e desce o zíper, sua mão segue para a
nuca e ele puxa a camiseta, se livrando dela. Tira a calça, deixando somente
a boxer com um volume protuberante na frente.

— Sente em suas pernas e mantenha-as afastadas, Króchka. —


Apesar da fala mansa, sinto a imposição em seu olhar.

Desafiar Krigor é algo natural, um jeito particular que nos


identificamos desde sempre, mas dentro do quarto, quando ele toma à frente
dominadora, é ainda mais prazeroso aceitar do que contestar. Sei que o
resultado, de qualquer coisa que esteja em sua mente, terminará comigo
saciada e desfalecida.

Ele contorna a cama, acompanho seus movimentos com os olhos e


viro a cabeça de lado, quando para atrás de mim e tira a cueca antes de subir
no colchão. O svolach ocultou propositalmente a visão do seu membro
grande e firme de mim.

— Feche os olhos, Króchka. — Faço como pede, sinto o colchão


afundar atrás de mim e logo seu corpo aquece o meu, nos unindo. — Você
já sabe como funciona, só relaxe e me deixa desfrutar do seu orgasmo. —
Uma mão sobe delicadamente, arrastando a ponta dos dedos pela minha
lateral até encontrar meu seio, pesado e dolorido, ansiando seu toque.

A outra mão desce, encaixando em meu vão, ele belisca um bico,


enquanto seus dedos começam a trabalhar lá embaixo. Tombo a cabeça em
seu ombro, gemendo de prazer, ele aproveita e abocanha meu pescoço,
mordendo com vontade o local.

— Krigor... — gemo, levando minha mão até sua nuca, puxando-o


mais para mim.

— Senti tanta falta disso, Króchka. Seu gemido, sua umidade e,


principalmente, sua entrega — ele sussurra em meu ouvido, enquanto
trabalha em meu prazer. — Me dê o primeiro, para que eu possa te chupar e
comer, lápatchka.

Suas palavras de posse somado aos movimentos certeiros em meu


prazer transportam meu corpo para o frenesi de sensações que só Krigor
tem o poder de causar e estremeço completamente tomada pelo orgasmo.

A noite será longa e muito prazerosa.


Capítulo 60

Escuto um grito escandaloso quando passo pela porta de entrada do


Zolotaya Vobla Sul, nome dado para a filial da empresa que Irina inaugura
hoje. O local é praticamente uma cópia do original e achei interessante a
ideia de manter todo o conceito.

— Sacha! Você veio! — Ela me abraça e nos emocionamos juntas.

— Claro que eu vim! — ralho, me separando do seu aperto e


seguro suas mãos. — Isso daqui está incrível.
— Obrigada. Você tem ido tão bem na capital, que me senti
confiante de afundar a cara no projeto e colocá-lo para funcionar.

— Não foi só no projeto, não é? — Olho por cima do seu ombro e


vejo Serguei se aproximar.

— Não seja, boba. — Ela finge ultraje, mas seu sorriso entrega a
felicidade por mencionar seu amor recém-descoberto. — Olá, lutador,
obrigada por ter vindo — Irina cumprimenta Krigor, que eu já havia
esquecido ao meu lado, assim que me distraí com o lugar.

— Simplesmente maravilhoso! — Katrina surge entre nós.

— Você veio! Fique à vontade — Irina cumprimenta minha prima.

— Olha o meu homem favorito aí — brinco com Serguei, que


chega à roda, mas olho de relance para Krigor, que discretamente pressiona
minha cintura com a mão.
— Sacha, seja bem-vinda. Espero que este grandalhão esteja lhe
tratando como se deve.

— Isso, com certeza. Ainda estamos nos adaptando a essa coisa de


morar juntos, mas chegaremos lá.

— Sei bem o que é essa fase, vivemos isso há dois meses. — Irina
sorri e Serguei passa a mão sobre seus ombros, olhando admirado para sua
amada.

— Está muito doce o ambiente, vou para o balcão tomar uns shots.
— Katrina atravessa no meio de nós, caminhando para seu destino.

Irina nos leva até uma mesa próxima ao balcão onde colocamos o
papo em dia. Brindamos à inauguração, nossas vidas completamente
diferentes e à felicidade.

Krigor está de recesso das lutas, até o retorno no próximo ano,


normalmente, nesses períodos costuma visitar a família no Daguestão, mas
com o meu trabalho a todo vapor, decidiu por ficar um tempo comigo em
Moscou.

Quando fez o pedido para que morássemos juntos, achei um passo


muito arriscado, mal nos conhecíamos e, convenhamos, nosso começo não
foi nada brando. Levei uma semana para lhe dar uma resposta, não por falta
de confiança em meus sentimentos por ele, mas por temer atropelar as
coisas e estragar o que havíamos acabado de reconquistar.

Ele mencionou sua conversa com o responsável pela organização,


disse que Bóris não era mais de sua confiança e que para cumprir o restante
do contrato, ele acharia um novo treinador. Nosso relacionamento deveria
ficar fora de tudo aquilo.
Seu ex-treinador sumiu completamente, Krigor ouviu dizer que ele
saiu da Rússia, temendo que a máfia fosse ao seu encalço.

— Está feliz? — Krigor pergunta em meu ouvido.

— Mais do que isso. Estou grata. — Trocamos alguns beijos. —


Semana que vem você vai visitar seus pais e eu vou para a casa dos meus.
— Não quero viajar sem você. — Sua teimosia chega a ser
charmosa.

— Você vai. Não quero que sua família pense que estou te
afastando deles. Minha mãe me contou ontem que meu pai tem um novo
emprego, quero visitá-los, ainda não se acostumaram com o fato de eu
morar com meu namorado. — Beijo a ponta do seu nariz.

— Poderia mudar isso facilmente, Króchka.

— Nada de casamento. Nosso relacionamento já sofreu mudanças


demais, vamos levar as coisas com calma, lutador. Não pense que por
minha mãe ter se derretido quando te conheceu, você os tem na palma das
mãos.

— Jamais pensaria isso. — Ele me olha de soslaio. — Apesar de


achar que tenho. — Acerto um tapa em seu braço, rindo.

— Olá, casal. Volk. — Danya se aproxima de mãos dadas com uma


morena linda.

— Meu amigo. — Krigor levanta e o cumprimenta.

— Essa é Jelena. — A morena nos cumprimenta, cortês.

— Sentem-se conosco — Irina oferece, enquanto Serguei coloca


mais dois lugares à mesa.
— Danya, como vai? — Katrina se aproxima da mesa e
cumprimenta o lutador.

— Katrina. Essa é Jelena.

— Muito prazer — minha prima a cumprimenta, com altivez.

— Pensei que estivesse em Moscou, na boate — Danya comenta


com ela e estranho.

— Que boate? — questiono.

— Nenhuma. Vou a muitos lugares em Moscou, mas nenhum em


particular, de fato.

— Zólattse mayó[41].

Um homem grande e forte, pele morena, olhar sedutor e barba bem


alinhada contorna a cintura de Katrina, age com intimidade. Reconheço seu
rosto de algum lugar, já vi aquele olhar, só não me lembro de onde.

— Yerik Petrovich, bom vê-lo — Krigor levanta, cumprimentando


o homem.

Automaticamente, me lembro do seu nome, o dono da boate de


stripper em Moscou. Mas o que ele está fazendo tão próximo de Katrina?
Não sabia que se conheciam.

— Volk, meu lutador favorito.

— Pensei que fosse Russell seu favorito.

— Os dois são. — Ele ri abertamente. — Olá, Aleksandra, um


prazer revê-la.

— Olá. Não sabia que você conhece minha prima.


O homem volta o olhar para o lado, Katrina está emburrada com as
mãos cruzadas na altura do peito, imóvel. Ele parece se perder por um
momento, admirando o perfil dela, mas rapidamente recupera a postura e,
com a expressão debochada, responde:

— Nos conhecemos muito bem, não é, Zólattse mayó?

— Infelizmente — ela responde, entredentes.

O clima pesa na mesa, encaro Krigor, que dá de ombros, e antes


que eu possa chamar minha prima para o banheiro e tirar a limpo qual é seu
envolvimento com esse dono de boate duvidosa, Feel It do Michele
Morrone toca e Katrina grita, se desvinculando de Yerik e vai para a
pequena pista de dança.

Observo Yerik se afastar até a bancada do bar e fazer algum pedido


ao atendente, minha prima continua na pista dançando e decido aproveitar
meu tempo, já que é raro folgas assim com Krigor.

— Vamos dançar.

Arrasto meu lutador para o meio da pista improvisada, olho para o


lado e vejo Danya acompanhado da morena que trouxe, Irina e Serguei,
agarrados, dançando, e não encontro Katrina.

— Onde está minha prima?

— Esquece sua prima, Króchka. Se concentre em não pisar no meu


pé.

— Está reclamando das minhas habilidades, volk? — Ergo as


sobrancelhas, reprovando sua provocação.

— Claro que não. Amo tudo em você, até seus dois pés esquerdos.
Solto uma gargalhada e Krigor me acompanha. Sinto meu corpo
acolhido no seu, nossos passos contidos, risos e brincadeiras e todo o
sentimento que nos envolve, faz-me perceber que fomos destinados a ficar
juntos. Nunca funcionaria individual, somos metades de um só e
compreender isso traz a alegria e a paz que preciso para minha vida.
Epílogo

A fria Moscou resolve nos brindar com uma nevasca logo pela
manhã, impossibilitando que os veículos saiam para as ruas e a maioria
acabe atrasando para os compromissos matinais.
Aperto o casaco em torno do meu corpo, mesmo com a vestimenta
certa para enfrentar o frio, sinto meus dedos congelarem dentro das luvas.

Confiro o celular novamente só para me certificar de que Krigor


recebeu a mensagem, ainda não acusa a entrega e isso me deixa mais
preocupada.

Ele estava tão ansioso com a inauguração oficial da academia de


lutas mistas, que saiu de casa antes mesmo do dia amanhecer, o que acabou
sendo conveniente, dado ao mau tempo.

Não o acompanhei, estava cansada demais, depois da noite puxada


no bar, que me faz sentir orgulho. Três anos na gerência e o negócio se
expandiu, tornando o movimento ainda maior e o prestígio benquisto entre
os moscovitas.
Irina e Serguei estão felizes no Sul, agora casados e à espera do
primeiro bebê, continuam cuidando da filial Zolotaya Vobla Sul, que tem
crescido exponencialmente.

Entro no metrô e, como previa, está tão cheio que nem consigo
passar a bilheteria. A nevasca deixou somente essa opção para nos
deslocarmos e o caos se instaurou no subsolo de Moscou.
Tento outra chamada a Krigor novamente e, para minha surpresa,
cai direto na caixa postal, todas as outras só tocou.

Sinto-me uma péssima namorada, deveria estar lá, ao seu lado, no


momento mais ansiado por ele, pelos últimos treze anos. Finalmente ele
concluiu seu contrato com a organização e encerrou a carreira de lutador,
para fazer algo de bom com a lição que sofreu em seu início de carreira.

Krigor abriu uma rede de academias para treinar meninos que


almejam seguir o esporte de forma legalizada. Montou uma academia em
sua cidade de origem, Daguestão, onde seu pai comanda o lugar e, de
tempos em tempos, Krigor vai até lá selecionar os destaques para a bolsa
intensiva na capital.

Hoje é a inauguração da escola principal, os garotos selecionados


farão uma apresentação junto com Krigor e alguns lutadores convidados, e
passarão a viver em Moscou no período de treino, orientados diretamente
com o volk.

Ele não gosta mais de usar o apelido, mas ter a oportunidade de


acompanhá-lo em algumas dessas viagens e ver como os garotos tratam
com tanto orgulho e estima o codinome, fica difícil desprender agora.

Apesar de sempre negar, Krigor é um homem incrível. Claro que


temos nossas diferenças corriqueiras, normais entre qualquer casal, mas em
todo esse tempo nunca poderei reclamar de como ele me trata. Sua forma
carinhosa e cuidados somados a dominação na intimidade e o desejo de
sempre me satisfazer, só fez minha estima aumentar ainda mais por esse
lutador.

Quando finalmente consigo entrar no vagão e seguir para meu


destino, confiro o relógio e sei que o evento já começou e isso me
entristece. Gostaria de estar lá para ele, como ele sempre esteve para mim.
A academia está cheia, apesar de alguns atrasos devido ao tempo
ruim, os convidados especiais, assim como os meninos que iniciarão a
primeira etapa em suas carreiras, estão aqui.
Familiares, conhecidos de longa data e contatos do meio esportivo
já estão no salão de treino, aguardando pela abertura, mas falta ela.

A mulher que mudou o rumo da minha existência e me fez querer


um final diferente para o que previa do meu futuro, minha Króchka.

Quando a deixei, ainda de madrugada, dormindo, combinamos de


ela estar aqui logo que acordasse, mas a nevasca atrapalhou todo o
andamento e sinto-me desencorajado a começar sem sua presença.
O discurso que planejei para o final envolve totalmente Sacha e,
sem ela aqui, tudo perde o sentido.

— Volk. — Giro o corpo e vejo Russell parado na entrada do


vestiário, me encarando com a mesma opulência de sempre.
Nunca mais nos enfrentamos depois daquela noite conturbada, ele
venceu a luta e assumiu o posto de campeão entre nossa disputa peculiar.
Para mim, foi ótimo, já que a organização tirou o peso das minhas costas e
tornou Russell o mais quisto no circuito.

Nós nos esbarramos vez ou outra durante as disputas e lutas


programadas, mas já não era mais a tensão que ocorria anteriormente, nem
as pessoas esperam mais por isso. O foco havia mudado e isso garantiu um
término de contrato tranquilo para mim.

— Russell. Como vai?

— Bem. Fiquei surpreso com o convite.


— Imagino. — Vou até ele e estendo a mão, cumprimentando. —
Acho que você é o único convidado que ainda está envolvido com a
organização.
— Por pouco tempo.

— Mesmo?

— Sim. Quero sair no próximo ano. Não sou mais o rapazote que
amava dar e tomar socos.

— Compreendo. — Ambos rimos da verdade, estamos velhos


demais para aguentar uma arena.
— Fique à vontade, estou esperando Sacha chegar, e começamos.

— Ela acabou de enviar mensagem e perguntou de você.

— E por que minha mulher está te enviando mensagem, e não


mandou para mim? — Faço uma careta e Russell ri debochado.

— Deve ser meu charme.


Ignoro sua provocação, vou até o armário e pego o celular, percebo
que está desligado e quando tento ligar, acusa falta de bateria.

Sempre fiquei intrigado com o fato dos dois trocarem mensagens,


não por desconfiar da lealdade dela, jamais duvidaria da integridade de
Sacha, mas no fundo, sinto ciúme da afinidade de ambos.

— Estou sem bateria.

— Ela disse que está chegando.

— Ótimo, podemos começar, então.


Um dos coordenadores que contratei avisa que a plateia começou a
ficar impaciente, então opto por iniciar de uma vez e deixar meu discurso
para o final, assim Króchka moyá já estará aqui.

O evento começa com as apresentações dos alunos escolhidos,


alguns colaboradores falam sobre o projeto e, por fim, anunciam a
demonstração entre Russell e eu.

Quando entramos na arena, lado a lado, o público vibra e confesso


que o prazer de estar em combate novamente aquece minhas veias. Sempre
amei isso.

Um locutor anuncia o amistoso e quando cumprimento Russell, ele


sinaliza com a cabeça para um canto e confiro, Sacha está lá, de pé,
aplaudindo nós dois.

Sorrio e jogo um beijo para minha mulher, quando a sineta toca e


começamos a luta.

Diferente dos nossos embates, hoje Russell e eu combinamos de só


demonstrar golpes e estratégias de luta durante um combate, não há
violência ou sangue derramado.

Quando termina, o público aplaude de pé e, após cumprimentá-lo


na arena, recebo o microfone para o meu discurso.

— Gostaria de agradecer a presença de todos, principalmente


minha família, que viveu os últimos treze anos aguardando por esse
momento. — Meus pais, assim como minha irmã, estão na primeira fila. —
Lutar sempre foi um sonho, desde pequeno, nunca imaginei nada diferente
para o meu caminho, até conhecer um garoto, há três anos.

Olho para onde os alunos estão e vejo Lenin, o menino que jurei
treinar quando estivesse livre do contrato.
— O desejo por ensinar, ter a possibilidade de mostrar como um
sonho pode se tornar real e, da maneira certa, de que seriam muito mais que
lutadores de combates clandestinos, me fez chegar aqui. Mas nada disso
seria possível, camaradas, se não fosse pela Króchka moyá. — Aponto para
Sacha, que já ocupa seu lugar ao lado da minha família. — Venha até aqui.
— Faço sinal com a mão e ela nega com o dedo. — Vai me fazer ir te
buscar?

Sacha levanta na mesma hora e passa as cordas, subindo a arena. Já


vivenciamos diversas vezes essa cena, para saber que eu repetirei sempre
que necessário o que ela chama de dominação pessoal.

Gosto mais do termo louco de amor, mas nunca chegaremos a um


veredito sobre a questão.

— Está bancando o dominante de novo — ela fala baixo, para que


só eu escute.

— Isso é amor — respondo, e pisco um olho. — Você mudou


completamente minha vida quando o destino nos colocou no mesmo lugar
várias vezes, comprovando para mim que algo diferente aconteceria
conosco. Somos tão parecidos e, ao mesmo tempo, contraditórios e isso
funciona bem, pois só faz com que nos amemos cada vez mais. Hoje, um
novo ciclo se inicia e, com ele, quero encerrar algumas situações da minha
vida. — Sacha franze as sobrancelhas e vejo uma pequena preocupação
surgir em seu olhar.

— O que está querendo dizer?

Solto minha mão da sua e afasto um passo, descendo um joelho no


chão. Pego no bolso a caixa que já carrego por alguns meses, imaginando
qual seria o melhor momento para propor.
— Króchka moyá, aceita casar comigo e ser minha para sempre?

— Pensei que eu já fosse sua — Sacha responde, petulante, o que


arranca alguns risos da plateia.

— Sim, você é, mas agora será oficial e no papel.

— Não sei… isso soa tão definitivo — Sacha provoca novamente,


e acaba com a minha calma.

Levanto rapidamente, largo o microfone no chão e seguro sua mão


direita, colocando o anel em seu dedo.

— Diz logo que sim e acaba com a minha agonia, Aleksandra.

Em resposta, ela gargalha e pula no meu colo, seguro seu corpo e


giro a ambos, enquanto ela cobre meus lábios com os seus. Nunca me
acostumarei com seu gosto, é enlouquecedor da mesma forma que acalma
minha alma e faz com que aceite que não existiria um depois sem ela.

— Claro que aceito, lutador desaforado.

— Króchka moyá…

Nunca gostei de monotonia, minha vida sempre foi adrenalina pura


e eu sei que, com ela, sempre terei motivos para viver intensamente.
Agradecimentos

Mais um projeto concluído com sucesso e Deus sempre presente


em minha gratidão, pela benção de cada dia e por me manter firme em cada
propósito que estabeleço.
A minha família que sempre me apoia e é a base solida que tanto
preciso.

Aos leitores, que acompanham meus trabalhos e tratam com tanto


carinho e esmero meus sonhos. Obrigada por partilharem cada momento
comigo, levo vocês em meu coração sempre.

As minhas betas desse projeto, também autoras, Mari Canan e


Mari Sales, vocês foram fundamentais na construção desse enredo e cada
opinião foi de suma importância para o desenvolvimento da história.

E, em especial, agradeço imensamente a Cassandra Gia, autora


maravilhosa, que foi extremamente solicita e prestativa ao me auxiliar com
as pesquisas de um mundo que ela conhece tão bem: a Rússia.

Eternamente obrigada, a todo o meio literário, que torna meus dias


tão bons.
Sobre a Autora

Ágatha Santos, casada, sem filhos, umbandista na alma e no


coração. É natural de Taubaté, interior de São Paulo.
Formada em Administração de Empresas, ex-gerente
administrativa no ramo de varejo de combustíveis e atualmente trabalha
como escritora.

Sempre gostou de leitura, mas sua paixão se enraizou com a Série


Cinquenta Tons. É uma devoradora de romances eróticos e há algum tempo
descobriu o encantamento pela escrita.

Suas obras trazem uma temática leve e regada de comédia, hoje


conta com diversos títulos publicados, todos disponíveis na Amazon.

A frase que leva para a vida: “Se você sonha, você pode fazer.”

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[1]
Kopek ꟷ caracteriza parte do Rubro, moeda corrente na Rússia. Seria o centavo aqui no Brasil.
[2]
Dóbraie útra ꟷ Bom dia. (pela manhã)
[3]
Dóbridién ꟷ bom dia (ao meio dia)
[4]
Solyanca ꟷ é uma sopa picante e cremosa popular na cozinha russa .
[5]
Tak ꟷ Ok, está bem!
[6]
Os russos são muito supersticiosos. Sempre entrar antes de apertar as mãos: nunca ficar na porta - Apertar as
mãos enquanto você está fora e seu anfitrião está dentro de casa é sinal de má sorte. Ou você entra, ou ele sai.
[7]
Dóbri viétcher ꟷ Boa tarde.
[8]
Yeb vas ꟷ Foda-se.
[9]
Svolach ꟷ algo como “idiota”.
[10]
Poka ꟷ Adeus, por agora.
[11]
Króchka ꟷ Migalha de pão, a palavra carinhosa que usa se para mulher no sentido de pequena.
[12]
Tak! ꟷ algo como “OK”, “está bem”. Dependendo da entonação pode soar como concordância ou relutância.
[13]
Chto za huy ꟷ Que porra.
[14]
MMA: Mixed Martial Arts, artes marciais mistas. Esporte de combate do tipo full contact que cobre uma
diversidade enorme de técnicas de lutas, é uma evolução do que antigamente era conhecido por Vale-tudo. De acordo com
a evolução do esporte, o MMA vem se tornando um estilo de luta definido.
[15]
Yebat ꟷ Caralho, porra. (xingamento chulo)
[16]
Chto za huy ꟷ Que porra.
[17]
Króchka Moyá ꟷ Minha pequena.
[18]
Mílaya — Querida.
[19]
Chyort voz'mi — Caralho, Porra! (xingamento forte)
[20]
Dyévatchka — Garota.
[21]
Mat’ — mãe.
[22]
Chto za huy — Que porra.
[23]
Króchka Moyá — Minha pequena.
[24]
Chyort voz'mi — Caralho, Porra! (xingamento forte)
[25]
Blad — Puta.
[26]
Papa — Papai.
[27]
Kóchetchka — gatinha.
[28]
Meça sete vezes, corte uma. — (Pense duas vezes antes de agir) Este provérbio recomenda que você se
prepare cuidadosamente antes de fazer algo, porque só há uma chance.
[29]
Blads — Putas.
[30]
Chyort voz'mi — Caralho, Porra! (xingamento forte)
[31]
Yeb vas — foda-se.
[32]
Chto za huy — Que porra!
[33]
UFC ꟷ é a sigla de Ultimate Fighting Championship, uma organização americana de artes marciais mistas,
também conhecida por MMA (Mixed Martial Arts). As lutas deste campeonato envolvem uma mistura de estilos, como o Jiu Jitsu,
Boxe, Wrestling, Muay Thay, Karate e outras.
[34]
Radnóy ꟷ Querido, literalmente pessoa próxima.

[35]
Finta ꟷ ato de simular um golpe para enganar o oponente. Com uma finta um lutador pode conseguir brecha
necessária para atingir o adversário.
[36] Gancho (ou hook) ꟷ da família dos golpes curvos, bastante semelhante ao cruzado, com a diferença que é
executado em curta distância e contornando a guarda do adversário.

[37]
Cinturar ꟷ gíria que significa pegar o adversário pela cintura a partir das costas.
[38]
Quedar ꟷ derrubar o adversário. Manobra normalmente pontuada no MMA.
[39]
Ground and Pound ꟷ tática de luta de chão criada e introduzida no MMA pelo wrestler americano Mark
Coleman, visa quedar o adversário, obter uma posição dominante e atingi-lo predominantemente com socos e cotoveladas. Hoje é
uma parte essencial do estilo MMA.
[40]
Chush' sobach'ya ꟷ Merda, mentiroso. (xingamento forte)
[41]
Zólattse mayó ꟷ Meu ouro (palavra carinhosa no diminutivo).

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