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PASSAGEM

Noutros tempos, numa província do Sul, um homem negro e de barbas brancas que
se apoiava a uma bengala criou sua família com base nos princípios de convivência dos
seus antepassados. Teve oito filhos e três mulheres fiéis a ele, dentre os filhos, uma era
Tabita, a cassula, que por força do destino foi obrigada a deixar o "Kimbo" para estudar no
Lubango, terra dos intelectuais, e a outra era a Cassova, de feliz memória. A província era
um lençol de pastos verdejantes, albergava animais das mais variadas espécies e paisagens
intrigantes.

Certo dia, já à noitinha, hora em que o sol arrecolhia-se por entre as margens do
horizonte, cansado do seu passeio sobre as terras huilanas e para ceder lugar à noite
miudinha que já no início da sua caminhada via-se seguida de esbeltas estrelas, sô Kimbito,
o "Humbi", estava sob sua cubata de dois quartos e uma sala feita de pau-a-pique, junto com
suas três esposas, seu sobrinho que é filho único da sua irmã mais velha e os seus sete
filhos. As três das mulheres estavam adornadas com missangas acastanhadas sobre a cabeça
e em torno das cinturas, à volta dos pescoços haviam cordões que se esticavam sobre as
peles nuas e negras até bem perto dos seios tesos. O fogo chamejante consumia ferozmente
a lenha arrumada sobre a "matela" ao centro da sala com uma tal maestria que só podia ser
concebida pelo próprio "Ngana Nzambi". Por entre a porta de madeira esburacada, a brisa
noturna invadia o interior da cubata, a aragem impelia-se sobre as partes dos corpos das
mulheres não cobertas por roupas, o que as obrigava a buscarem aconchego bem mais
pertinho da lenha que se contorcia ao calor do fogo.

Tudo acontecia em "Quilenge". Foi num dia de sexta-feira, os rostos e o bocejar


constante entre os presentes no lugar denunciavam a canseira do após -trabalho. Como era
costume, primeiro os filhos, o sobrinho e as duas segundas mulheres, convidados da casa,
tiveram que receber os seus assentos cobertos de pele de animal, os também chamados
banquinhos, e se acomodarem até ficarem confortados. No seu "ocoto", sô Kimbito desata
as cordas vocais e expele a primeira das suas palavras: -"epioko"?! -"tyietu", -responderam
os rapazes com a mais bela sinfonia vocal. -"Ká...!" - Acompanham as meninas
angelicalmente. -"Mwatokelelapó!?" -"Tyietu", "ká...!" Twatokelelapovó?! - rebateram eles,
- "tyetu!"- sô Kimbito continuou escorregando na sua língua nativa: - Hono etu tuquefi
papeke mokonda liomona wetu watundilila koluvango wakatanguele. - Tabita sem
entender a linguagem na qual se falava, franziu a testa e arregalou os olhos num gesto de
desentendida, sô Kimbito ao se dar conta do alheamento d'sua filha, resolve arriscar-se ao
Português. - Ndjá si passaram muindos anos ndesnde que a nós nó andámu a se reuniri. -
PAUSA. O português do sô Kimbito era dos mais incomuns e era por isso um autêntico
desalinhamento da ordem natural da sapiência linguística, infelizmente, as barbas brancas
não mudam o que se é. PONTO. - ndesnde o ndia que moreu a minha filha Cassovita, a nós
tamem matamo as relação. - Dona Ana, a primeira das esposas, bota mais lenha ao fogo, o
sentimento de pesar e de consternação irrompe a pouca alegria nos rostos, velho Kimbito
puxa da aguela de sua garganta a saliva, escarra e cospe num dos cantos da casa uma
quantidade significativa de "tchicoluila", e sem se incomodar continua: - Maji não é ndisso
que a nós viemos tratari, vocejis memo é que vão mim inderrar, juro com sangue - passou o
dedo indicador direito no pescoço e o estalou com os outros, por fim, fez um risco ao chão
em forma de "x" sinalizando um juramento à Bantu. - Aqui memo no Quilenge, todos mi
sambem que sou muindo rico, esses oitocendos cambeças nde gado são minha, e vocejis
que são a minha família é que vão cuindar ndisso, você mô sombrinho tens nde tere muindo
cuindando co'essas pissoas ndas norti do país, eu arecebi isso ndo meu tio ndi "Quipungo"
e voce vai mi areceber eu. Ovimus nem? - Sim, tio. Sô Kimbito sempre deixara claro a sua
posição de irreverência em relação ao povo do norte de Angola, ele os acusava de ladrões
de gados, tudo por causa de um cenário com o seu ex- -vizinho de Luanda que morreu por
causa de uma mina tradicional, a "tala", e que ninguém sabe quem o alvejou.

O sermão introdutório foi demorado e todos os outros começaram a se sentir mais à


vontade e prontos para se envolverem na conversa quando ele detalhou o "ulonga". O
assunto colocado à mesa era sobre as celebrações e os ritos, sô Kimbito era perito na
matéria, - OS VELHOS JÁ FALAVAM, MULHER QUE NÃO FAZ O EFIKWO AINDA
QUE CASAR NÃO VAI TER FILHOS- falou o sobrinho que tinha estudado fora. -Ndesnde
há muindo tembo que nas família temo a trandição, já fizemos o "ekwendje" nos rapazes,
eu ando a ser o "ndejendjekulu" de tondas as minha sombrinhas e netas nda Quipungo,
Namimbe, até memo ndo Cunene; - QUEREMOS QUE AMANHÃ MESMO TABITA VÁ
FAZER O EFIKWO, MAS ELA NÃO PODE SABER DE NADA. AS TIAS VIRÃO E
MENTIR-LHE-ÃO QUE A VÃO LEVAR PARA IR CONHECER OUTRAS PRIMAS, -
falavam em códigos para que Tabita não entendesse.Todos os outros concordaram com a
ideia e essa foi a decisão derradeira. De todos os que estavam no interior da cubata, apenas
Tabita, a cassula, filha da última esposa, não tinha sido submetida a um outro rito
tradicional e também não entendia a Língua dos seus pais, o "Nyaneka-Humbi", por causa
da aculturação que teve no Lubango.

No dia seguinte, o amanhecer esclarecia o significado dos termos "Nyaneka" e


"Humbi", O SOL MOSTRAVA-SE bem na diáspora, os homens e mulheres do kimbo
começaram a acordar com novas forças para mais um dia nas suas lavouras. As três
mulheres de sô Kimbito ajuntaram-se, o que evidenciava a poligamia na sua cultura como
sendo coisa normal, para tratarem dos detalhes de como fazerem para Tabita ser levada fora
do Kimbo para um lugar mais reservado e por onde ficaria por pelo menos duas semanas
aos cuidados das tias, convidaram-na a ir visitar um outro lugar para conhecer a família
restante, com "quimbalas", panos e cestas nas cabeças, arrumaram-se a caminho da estrada
picada e em fileirinha, as três descalças e a outra com as suas sandálias cor do céu,
puseram-se a andar. Pelo caminho, o charmoso vento assobiava levemente e as árvores
dançavam com entrega àquele som, Tabita já começava a ter os pés doridos e cochichava
por causa da distância. Depois de andarem cerca de dois quilômetros e meio, no meio do
mato, entre os arbustos, apareceu um grupo escondido de jovens fortes que tinham as caras
pintadas a carmim e branco, com um ar que os identificava como ladrões, assustada, as três
rivais desataram a gritar lançando pragas numa língua que Tabita desentendia, -
BANDIDOS, NOS DEIXEM EM PAZ, a mãe da jovem desembanhou de seus panos um pó
chamado"Mpeyo", atirou-o a Tabita e disse "Wafukala", cercadas e sem possiveis rotas para
fuga, a cassula pôs-se a chorar, pois estava ciente do perigo a que estavam expostas. De
repente, um deles cobre com um saco branco de sarapieira o rosto da Tabita, amarrou-a,
elevou-a até ao ombro direito e saiu com ela a correr entre os arbustos. A menina gritou,
chorou, mas nada adiantou, ela foi raptada. Depois de estarem já fora do alcance das vistas,
todas as rivais começaram a sorrir na companhia dos jovens que na verdade eram os primos
de Tabita, riram-se, riram-se até que as lágrimas fazerem-se acompanhar dos risos pelo
facto do seu plano ter funcionado na perfeição.

Tabita foi levada a uma cabana no meio da floresta, onde já estavam um monte de
senhoras que tinham tranças com enfeites de missangas, e amarraram, muitas delas, panos
de "samakakas"em torno de suas cinturas, quando o jovem primo a deixou nunca mais pisou
o local. Amarraram em seus mamilos carne de cabrito para que secasse sobre ela, foi
explicado a ela que era já momento em que seria submetida a um processo de passagem
feminina, depois de ficar dias ali, ela não sairia como a mesma pessoa, seria uma mulher
preparada para cuidar, com responsabilidade, a sua casa e que teria a felicidade plena dentro
do lar, depois do "Efiko", Tabita amadureceria bastante sem nenhuma maldição dos antigos.

No princípio, foi muito difícil para ela entender o que se estava a passar, mas
quando se apercebeu da situação, começou a ficar mais calma e com o tempo foi se
submetendo aos costumes e ensinamentos da sua cultura. Volvido um espaço temporal de
duas semanas, no mesmo local do ritual, começaram a aparecer mais pessoas que
organizavam o local para uma festa enorme, prepararam barris de "macau" e "canhome",
mataram bois, trouxeram da cidade alguns panos novos que serviram de adorno para ela,
depois de ter sido esfregado óleo "mupeque" na sua pele macia. Com novas tranças e panos,
com uma maquiagem tradicional, Tabita viu-se no meio de uma festa grande, seus irmãos,
pais, tios e o resto da família estavam no local. Velho Kimbito com sua altura comprida,
entra no meio da roda interrompendo os dançarinos do "ovindjomba "ao som do batuque, e,
apesar de velho, dá uma cambalhota e grita, para surpresa de todos: -Vamos ndançare. Isso
nué ndos civilissados nem dos calcinhas. Fim!

Aos: 01/07/2022

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