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EDIÇÃO REVISADA

Joed Venturini
Esta história missionária é uma obra de ficção missionária baseada
em fatos e acontecimentos reais da região leste da Guiné-Bissau.
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Capítulo 1
Um arrepio de frio percorreu o corpo magro e pequeno de
Demba. O menino reagiu procurando o pano que lhe servia de
lençol. Como o pano era curto, ele se encolheu ainda mais para
poder se cobrir por completo.
Um clarão iluminou repentinamente o quarto onde a criança
estava e seguiu-se após uns segundos um forte ribombar de
trovão. O vento fresco que entrava pela porta aberta levantava
poeira que chegava ao nariz de Demba.
Ainda deitado, ele abriu os olhos. Estava totalmente escuro!
Era alta madrugada, talvez duas ou três horas da manhã. Novo
relâmpago clareou o quarto. Demba podia ver a mãe e a irmã
numa cama, do outro lado do lado do quarto. O teto de palha que
dava um cheiro característico. A casa parecia tremer ao rugir da
tempestade.
Um novo relâmpago permitiu que o menino visse um ratinho
que saía sorrateiramente do local aonde se guardava o arroz.
Demba podia ouvir o ressonar do pai no quarto ao lado, pois as
paredes não iam até o teto deixando que os sons passassem
livremente de um quarto para o outro.
O menino sentou-se na esteira que lhe servia de cama. Tinha
uns 8 anos, era extremamente magro com uma bela cor castanha
clara e a cabeça redonda, meticulosamente rapada. O nariz, de
base larga, era arredondado, as bochechas altas, o sorriso fácil, os
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olhos enormes, amendoados, de um negro profundo e


sentimental.
Com um ar de sonolência, a criança olhou para fora de casa
apenas para ver o início da chuva forte, barulhenta, que caía em
toalhas sobre as casas da tabanka (aldeia). Demba deitou-se
novamente. Tentou dormir, mesmo com o barulho da tempestade
e o frio que lhe penetrava do lençol até os ossos. Algumas goteiras
começavam a fazer sentir o seu tilintar. Uma era bem perto da
esteira do menino que se afastou para evitar o incómodo.
Começou a adormecer.
Naquele local mágico, entre a realidade e os sonhos, ele
reviveu as emoções do dia anterior. E tinham sido muitas! Logo
cedo, chegara à sua morança (conjunto de casas, em regra de um
mesmo dono, que abarca sua família alargada) um grupo de
homens de uma tabanka não muito distante.
Eram, na sua maioria, homens garandis (idosos). Todos com
um ar severo e gestos estudados. Em especial um deles chamara a
atenção de Demba, por seu aspecto sério e por parecer ser o líder
da delegação. Uma mulher comentara que ele era um homem
rico. Tinha muitas vacas e uma candonga (pau de arara). Na sua
casa havia até um gerador e uma televisão! Demba ficara muito
impressionado. Nunca vira uma televisão, mas tinham lhe
explicado que era um rádio grande que mostrava imagens. Era
difícil de imaginar, mas, sem dúvida, deveria ser algo fantástico!
Os homens tinham se sentado com seu pai, que era o chefe
da tabanka, e outros anciãos da aldeia. Longas saudações foram
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trocadas entre todos os presentes, ritual que levou mais de uma


hora, numa interminável repetição de perguntas cerimoniais.
Ninguém demonstrava pressa em tratar do assunto que motivara
o encontro.
Um jovem casado, que se juntara ao grupo, acendeu um
pequeno fogareiro de carvão onde colocou um pequenino bule
colorido com água. Ia fazer uarga, um chá forte e adocicado,
costume herdado dos árabes do Norte, trazido pelos mauritanos e
de grande aceitação entre os Fulas, povo de Demba. Logo o cheiro
doce do chá enchia o ar e começava o ritual de passar o líquido de
um copinho para o outro, a fim de esfriar o mesmo. Era uma
maneira de se passar o tempo e enganar a fome.
Enquanto os homens conversavam sobre assuntos banais, as
mulheres trabalhavam febrilmente, preparando o almoço. Duas
delas pilavam o arroz num pilão de 60 centímetros de altura, com
pancadas rítmicas, quase musicais. Algumas galinhas foram
trazidas aos visitantes para que se pronunciassem sobre seu
aspecto. Seriam o mafé (acompanhamento). Os hóspedes se
mostraram satisfeitos, selando assim o destino das aves que
foram logo degoladas.
Grandes panelas escurecidas pelo tempo foram colocadas na
fogueira à lenha e em breve se cozinhava o arroz, parte essencial
e básica da alimentação Fula, que é a etnia predominante na
região leste da Guiné-Bissau.
Demba estava curioso para ouvir a conversa e juntamente
com outros meninos da tabanka ficou rondando a reunião dos
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homens, mas foram logo enxotados, como as galinhas e cabritos


que abundavam no local e andavam soltos por todo lado.
Por volta das duas horas da tarde o grupo de homens foi
orar, estendendo esteiras no chão, voltados para o leste,
repetindo suas monótonas rezas maometanas, prostrando-se com
o rosto em terra.
Foi só aí que o menino se deixou levar pelos camaradas de
brincadeira até o mato para pegar e caçar passarinhos com uma
espécie de funda. No regresso da floresta encontrara sua irmã de
15 anos rodeada por outras mulheres e moças. A garota parecia
assustada. Era muito bonita. Tinha a pele cor de jambo, com o
rosto levemente anguloso, e olhos um tanto oblíquos e nariz
arrebitado. Os dentes impecavelmente brancos num sorriso
gracioso. Era um semblante exótico, mas certamente belo.
Porém, sua expressão de medo era por demais evidente para
ser esquecida. Instintivamente Demba percebeu o que estava
acontecendo. Aquele grupo de homens viera tratar de um pedido
de casamento. Sua querida mana Aminata era a escolhida! A
pobre adolescente, a quem as formas femininas mal tinham se
formado completamente, deveria se casar.
Na roda dos homens, o garoto vira os sinais de sua
desconfiança. Perto do pai, que estava sentado de pernas
cruzadas numa esteira, era possível ver dois montinhos de cola
(pequenos frutos medicinais que são produzidos por árvores
pequenas e que são muito apreciados em vastas regiões da
África). Aquilo era a prova do contrato de casamento!
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Para surpresa do menino, descobrira também que o


interessado era justamente o homem que tanto o impressionara.
Quase sem querer ele reagiu com desgosto. Era um homem velho!
Devia ter mais de 50 anos e com quatro esposas! Sua irmã seria
apenas mais uma, a empregada das outras, em particular da
primeira esposa. Em menos de um ano já teria o primeiro filho ao
peito e estaria sobrecarregada de trabalho… Mas não era essa a
sina da mulher Fula?
As outras cumprimentavam e se congratulavam com
Aminata. Diziam que era uma honra casar com um homem tão
rico! Demba não se agradara nada desta ideia. Aminata era boa e
amorosa com ele! Certamente bem mais paciente do que o
habitual e estava acostumado à presença de sua “mãezinha”, já
que a irmã funcionara como verdadeira mãe de criação, à falta de
atenção da sua mãe. Essa tinha tanto trabalho que não podia
dispensar muito tempo aos rebentos da sua numerosa prole.
À noite, o menino virou-se no sono e teve um sonho quase
tão real quanto a própria experiência! O sonho lhe era doloroso e
ele não gostou de lembrar-se da dor estampada no rosto da irmã
e sua feição assustada. O sonho, porém, se prolongou e tornou-se
estranho e diferente.
Demba se viu num local desconhecido com várias casas parecidas
com as das tabankas. Logo adiante, havia duas casas muito
bonitas, com telhados de zinco, pintadas de azul e branco. Havia
uma placa, mas ele não sabia ler…
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Aproximou-se mais e ouviu as vozes de inúmeras crianças


cantando na sua língua! Diziam: “Fii mim mi subii abade Issa”
(Estou seguindo a Jesus). A canção era agradável e permanecia no
ouvido. Havia muitas crianças num salão cantando
animadamente. Demba ouviu então, distintamente, uma voz que
lhe dizia: “Aqui encontrarás a verdade!”. A frase se repetiu duas
ou três vezes, e então o menino acordou assustado. Era já manhã
clara e tudo não passara de um sonho.
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O Sonho de Demba
Capítulo 2
Várias semanas tinham se passado desde que Demba tivera o
sonho daquele lugar diferente onde se cantava sobre Issa (Jesus).
O sonho já se repetira algumas vezes e ele aprendera a gostar
daquele sonho.
Entretanto, a vida lhe foi cruel. A irmã, de quem Demba tanto
gostava, foi embora para a aldeia de seu marido. Aquele
casamento amargurara o menino, mas o pior estava por vir. Uma
tarde sua mãe deitou-se febril e com dores do corpo. Cobriu-se
com vários panos para suportar os calafrios que sentia e queixava-
se que a cabeça parecia querer arrebentar. A prostração dela era
grande. Já tivera malária tantas vezes que perdera a conta, mas
esta parecia de algum modo pior, mais forte.
O feiticeiro veio com seus tratamentos. Receitou certos chás
de plantas da floresta. Fez um novo amuleto e declarou que
alguém queria mal à mãe de Demba. O menino, assustado, pediu
a seu pai que rezasse por ela a Alá (Deus) para que ficasse boa.
Porém, a resposta não veio. A mulher piorou e entrou em coma.
Não havia meios para tratá-la. O hospital ficava a muitas dezenas
de quilómetros e, provavelmente, não poderiam fazer nada pois
carecia de medicamentos. Era preciso esperar o desenlace; e ele
veio mais cedo do que Demba esperava.
Foi numa tarde. A cumbosa (outra mulher do mesmo
marido) de sua mãe saiu de casa com gritos de lamento. Com uma
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roupa desleixada e os braços levantados, atirou terra para o alto e


continuou gritando num choro forçado, mas intenso. Como que
por hipnotismo, várias mulheres começaram a sair das suas casas
e vieram se juntar à primeira carpideira. Os gritos cresceram de
intensidade, e Demba viu, horrorizado, o pai deixar a casa com os
olhos vermelhos de lágrimas. Era a notícia temida: a mãe do
menino falecera!
O enterro foi rápido, como na tradição dos fulas da Guiné em
seu islamismo africanizado. Vieram pessoas das aldeias vizinhas e
a cada novo grupo de mulheres que chegava, repetia-se a cena do
choro descontrolado e teatral. Na manhã seguinte, havia muita
gente presente ao choro, o que atestava a boa posição social que
o pai de Demba desfrutava como chefe de tabanka.
Um chefe da mesquita mais próxima fez algumas exortações e
poucas pessoas prestaram atenção. Do lado de fora da casa
sentaram-se os homens em grandes esteiras, formando grupos
conforme as faixas etárias.
Dentro da cabana, onde o corpo aguardava, sentaram-se as
mulheres. Por fim, na hora do enterro, os homens juntaram-se
todos na frente da casa, em pé lado a lado, e o corpo foi trazido
todo embrulhado em lençóis brancos. Uma oração curta foi feita
por todos, entremeada por gritos de Allah Akbar (Deus é Grande).
Assim que a oração terminou, os gritos das mulheres
recomeçaram em coro e com maior intensidade. Tinha sido a
despedida.
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Os homens tomaram o corpo e seguiram em rápida procissão


em direcção à floresta. As mulheres não iriam ao cemitério. O
local na floresta, onde se enterravam os mortos, era identificado
apenas por algumas madeiras que cobriam as sepulturas mais
recentes.
Demba seguiu ao lado do pai. Junto à cova rasa foi levantado
um lençol no ar e por baixo dele o menino e o pai rezaram uma
última vez, antes de o corpo ser descido. Um conhecedor de árabe
repetiu em voz alta e em tom de lamentação um trecho
apropriado do Alcorão, com uma pronúncia pouco clara, mas
suficiente para a ocasião. E estava tudo acabado!
Nos dias seguintes, muitas pessoas vieram trazer seus
pêsames ao pai de Demba. Pessoas que, impossibilitadas irem ao
funeral, chegavam para dar seus sentimentos.
O menino estava alheio, ausente. Emagrecera ainda mais e
em seu rosto já não se via o sorriso fácil de outrora. Seu olhar
comprido e lânguido transmitia desalento, renúncia e falta de
esperança. Por que Deus não respondera? Por que a irmã se foi?
Por que a mãe morrera? E o sonho tão lindo? Seria apenas um
sonho?
Finalmente, o pai do menino o chamou com ar de gravidade.
Tinha algo importante a lhe comunicar. Com a morte da mãe e as
constantes viagens que o pai precisava fazer para negociar os
produtos agrícolas da aldeia, ele temia pela criação do rapaz. Sua
outra esposa estava agora sobrecarregada e havia crianças
menores que exigiam mais atenção.
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Resolvera que Demba teria uma formação especial. Ouvira de


um professor de árabe, um marabu muito bom, numa grande
aldeia Mandinga que ficava não muito longe. Ele decidiu que
Demba deveria ir para lá, a fim de estudar árabe e o Alcorão, a fim
de, no futuro, ser um chefe de mesquita ou talvez mais, pois o pai
sabia que menino era esperto!
A notícia não teve grande impacto. Demba estava um tanto
indiferente. A mudança era novidade. Só não sabia se seria boa. A
perspectiva da viagem, porém, o tirou um pouco do desânimo e
logo tudo estava pronto para a grande aventura!
Partiram da aldeia de madrugada, ainda escuro. O menino
ganhara uma roupa nova, uma túnica comprida que se usava por
cima de calças largas. Ele se sentia importante vestido assim como
os homens, em vez dos eternos calções de criança.
O pai chamou um homem da aldeia vizinha que tinha uma
carroça de burro para os levar até a estrada. O caminho era bonito
neste tempo de chuvas, com tudo muito verde e vivo. As
mangueiras carregadas e os pés de caju davam um cheiro doce e
agradável ao ar.
Pouco depois de deixarem a aldeia, saíram da floresta e
entraram numa grande clareira. Na verdade era uma bolanha.
Tratava-se de um terreno baixo, perto do rio e que inundava nos
tempos de chuva, sendo ideal para o plantio de arroz. A vista era
linda, pois a bolanha era enorme e se perdia ao longe, orlada pela
floresta. Passadas quase três horas de solavancos na carroça,
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entraram no caminho de terra batida, e agora o condutor


acelerava o passo, levantando nuvens de poeira.
E lá estava a estrada de asfalto! Demba a olhava com
admiração! Deixaram a carroça e ficaram à espera da candonga
(pau de arara). Foi preciso paciência, pois a maioria passava
totalmente lotada. Por fim, uma parou. Era um caminhão de caixa
aberta que foi adaptado para o transporte público. Pela primeira
vez em sua vida Demba andava de carro e seu coração disparava
forte com a velocidade do veículo. Aquele dia todo foi de aventura
e, ao cair da tarde, chegaram à aldeia do marabu.
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O Sonho de Demba
Capítulo 3
Após a aventura da viagem, Demba foi entregue aos cuidados do
professor de árabe. A aldeia onde estavam era grande e tinha
duas mesquitas rivais onde meninos de várias idades aprendiam a
ler, em tábuas de madeira, os estranhos caracteres da língua de
Mohamed (Maomé).
A etnia predominante ali era Mandinga, e Demba não
entendia a língua deles, o que era o que bastante assustador para
alguém que estava longe da família. Havia, porém, outros
meninos no seu grupo que eram fulas, e logo Demba se ligou
muito a um deles, de nome Mamadu.
A rotina era pesada para os meninos. Eram acordados cedo,
todos os dias, e tinham que ir aos campos do mestre lavrar a
terra, pois era tempo de chuvas e havia que semear o milho, a
batata-doce e o amendoim. Não era o que o menino esperava,
mas não podia reclamar. A fome, porém, era seu maior obstáculo.
De manhã não comiam nada! Trabalhavam até umas duas
horas da tarde, quando lhes era oferecida uma tigela de arroz
para cada três meninos. À tarde, e já com o corpo moído e
cansado, eram obrigados a sentar-se por várias horas decorando
os textos do Alcorão, sem entenderem nada do que estavam
dizendo. Na maioria das vezes deitavam-se sem mais nenhuma
refeição. Num feriado muçulmano, ou alguma ocasião especial,
tinham a sorte de jantar o mesmo que no almoço.
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As semanas foram se passando assim, sem que Demba


pudesse entender por que motivo o pai o deixara em tal lugar. O
professor de árabe era um personagem de aspecto austero. Muito
magro e alto, com um rosto comprido e uma barbicha
esbranquiçada na ponta do queixo. Parecia estar sempre mau
humorado. Era respeitado na comunidade, mas tratava os
meninos muito mal e por qualquer coisa era capaz de espancá-los
severamente.
O rigor do marabu ficara mais marcado ainda num episódio
estranho e incompreensível para Demba. Foi um dia de folga da
lavoura. Duas mulheres brancas foram à tabanka do marabu.
“Eram simpáticas, apesar de muito brancas” - pensava Demba.
Fizeram consultas a várias pessoas doentes e deram balas a
algumas crianças. Depois tinham pedido permissão para mostrar
um filme de Jesus. Demba ouvira essa notícia com grande
entusiasmo. Nunca vira um filme e o nome de Issa (Jesus) o fazia
recordar o sonho de que tanto gostava. Em princípio os anciãos
pareciam inclinados a permitir que o filme fosse projectado.
Mas o marabu, com sua proverbial má vontade, esbravejara
contra eles, reclamando que era um filme mal, que visava desviar
o povo do caminho de Mohamed, e que aquelas mulheres
deveriam ser proibidas até de vir à aldeia.
Os anciãos cederam e proibiram o filme, mas não deixaram
de mostrar interesse em que as mulheres trouxessem remédios
outras vezes. Elas partiram com ar triste, mas ainda com um
sorriso nos lábios.
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As chuvas se foram. A última trovoada foi no mês de


Outubro. Com o final da lavoura, e antes do período de colheita, o
marabu tinha novos planos para os seus alunos. Levava-os de
aldeia em aldeia para pedirem esmolas. Fixava uma quantia
mínima que tinham que conseguir e espancava quem não
atingisse o estabelecido.
Demba estava cada vez mais desgostoso com sua nova vida.
Fora ensinado que pedir esmola era coisa de gente pobre. Ele era
filho do chefe da sua aldeia. Não deveria pedir esmolas. Ressentia-
se mais ainda das surras que via os companheiros levar. Ele era
um menino esperto. Aprendia bem o Alcorão e por isso evitava
apanhar, mas pedir esmolas não era algo que fizesse com gosto e
foi pego duas vezes sem a soma exigida. A surra consequente o
deixara marcado e ressentido. Não tinha mais qualquer dúvida
sobre o carácter daquele professor de árabe. Certamente não era
de Deus!
O marabu, por sua vez, era também muru, uma espécie de
feiticeiro muçulmano conceituado. Tinha sempre um texto árabe
que se aplicava às várias situações do quotidiano ou doenças das
pessoas. Foi essa, também, uma das causas por que se ressentira
com as mulheres brancas que traziam remédios e desviavam sua
clientela.
Pessoas vinham de longe para conseguir os mésinhos
(remédios) e guardas (amuletos) do muru. Ele cobrava caro! Por
vezes bem além das possibilidades dos pobres camponeses, mas
isso não parecia intimidar as populações que recorriam a ele com
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frequência. Demba se lembrava do muru que tratara sua mãe sem


conseguir curá-la. E
Certa manhã, ficou assustado e aflito quando seu melhor
amigo, Mamadu, amanheceu febril e cheio de dores no corpo.
Inicialmente o muru não acreditou na doença do menino,
julgando ser uma artimanha para se furtar ao trabalho. Mas, ao
ver o estado da criança limitou-se a deixá-lo na esteira todo o dia
sem comida, pois dizia que não iria desviar alimentos dos que
trabalhavam para dar a um doente.
Demba, com muito custo, conseguira arranjar um pedaço de
pão, e à noite, quando já se ouvia o ressonar do marabu, ele o
levou ao amigo.
_ Eu vou morrer - disse Mamadu triste.
_ Não digas isso - repreendeu Demba aflito.
_ Eu sei que vou - reiterou o outro calmamente. E não estou
tão preocupado. É melhor do que continuar aqui! Mas quero que
me faças um favor.
_ Tudo que quiseres - respondeu solicito o amigo.
_ Tenho escondido algum dinheiro - revelou Mamadu com
um brilho fugaz nos olhos. Quando consigo mais do que o muru
pede eu guardo numa cova atrás da casa. Está assinalada com
uma pedra vermelha. Tu a acharás, és esperto! Quero que fiques
com esse dinheiro e tente guardar mais até teres o suficiente para
fugir!
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_ Fugir? Admirou-se Demba de olhos esbugalhados.


_ É o único jeito - confirmou Mamadu. No ano passado houve
um menino que conseguiu. Sei que tu podes fazê-lo. És o mais
inteligente de nós todos! Prometes?
_Prometo! - disse Demba com pouca convicção. Mas agora
trates de ficar bom e fugiremos juntos! Acrescentou, perante um
sorriso amarelo do companheiro.
Apesar dos cuidados que Demba teve com seu amigo e de
todas as tentativas de animá-lo, Mamadu foi enfraquecendo dia-
a-dia e, por fim, faleceu numa tarde ventosa. Logo após o enterro,
Demba foi procurar o esconderijo e o encontrou com facilidade.
Estava agora convicto de que só havia uma coisa a fazer. Era
urgente fugir!
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O Sonho de Demba
Capítulo 4
Aproximava-se o Ramadão, mês em que os muçulmanos
comemoram a suposta revelação do Corão pelo anjo Gabriel a
Mohamed. Todos os muçulmanos de idade adulta devem jejuar
durante o tempo em que haja luz solar durante o mês. O marabu
ordenara que os meninos cortassem todo o mato à volta da casa,
pois queria tudo bonito para as festas sagradas. E foi
pessoalmente supervisionar o trabalho.
Demba tremia de medo à medida que ia se aproximando do
local onde Mamadu começara a esconder o dinheiro e onde ele
agora guardava suas economias. O muru parou bem ao lado da
pedra vermelha que servia de marcação ao local. A certa altura,
estranhando aquela pedra de cor diferente, a chutara para longe.
Demba fechou os olhos certo de que fora descoberto, mas o
professor de árabe já se afastara do local, sem dar importância ao
pequeno buraco que se tornara visível com a retirada da pedra.
Imediatamente, Demba cobriu o buraco com algumas
palhas, certificando-se de que ainda estava assinalado, para não
perder o dinheiro. Por pouco não foi apanhado! Deveria tratar
dessa fuga o mais depressa possível!
A data escolhida foi o início do jejum. O mês de Ramadão é
uma época difícil para todos os muçulmanos, mas os primeiros
dias são os piores, pois o jejum é bem mais difícil de se tolerar
enquanto o corpo não se habitua à falta de alimentos. O marabu
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ficava de mau humor, ainda pior do que lhe era habitual. Deitava-
se a maior parte do dia, para melhor suportar o sacrifício, com um
ar de grande sofrimento e um gemido ocasional.
Demba reparou que o homem se desleixava no controle dos
meninos por causa da provação e resolveu agir sem mais
delongas. Naquele dia deveriam ir pedir esmola em uma aldeia
vizinha. Quando se viu só, o rapaz voltou para casa tendo o
cuidado de evitar o caminho principal. Retirou o dinheiro que
escondera e o contou novamente. Deveria chegar e sobrar para
pagar o transporte.
Partiu então para o local onde paravam as candongas. Seu
coração batia descompassado. E se o muru se levantasse por
qualquer motivo e saísse de casa? E se o encontrasse? E se alguém
estranhasse sua presença ali com todos os meninos foi da aldeia?
Tudo era possível, mas agora era tarde para começar com medos
e receios.
Resoluto, o menino avançou. No ponto de parada das
candongas tudo seria decidido. Se o carro se demorasse demais a
chegar ele estaria perdido, pois seu plano dependia de rapidez.
Tinha que contar também com a boa vontade do pessoal do carro,
pois poderiam negar-lhe o embarque estranhando um menino
que viajava só. Com tais considerações, Demba se posicionou
atrás de uma árvore onde podia ver o local da paragem dos carros
sem ser visto. Mas, de repente, vinda não se sabe de onde, passou
a mulher que cozinhava para o marabu.
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_Demba? Estranhou ela.


_O que fazes aqui? Então não devias estar em Sintchã Bari
com teus companheiros?
O menino gelou, apesar do calor que se fazia sentir, e engoliu
em seco tentando mostrar-se calmo e rematou:
_ Estou à espera da candonga.
_ E para quê? (insistiu a cozinheira)
_ É que meu pai ficou de mandar uma camisa nova.
Respondeu o garoto, tremendo de pavor.
_ Bem que precisas! Concluiu a mulher, olhando o traje roto
e sujo que a criança trazia.
_Mas, por que não vais para perto das pessoas?
_ É que aqui, está sombra, replicou Demba tentando sorrir.
_ Está bem! A mulher pareceu satisfeita. Vou te deixar
sossegado! E que a camisa te saia bonita! Até amanhã!
O menino não respondeu de tanto que tremia, apesar de
todo o esforço que fazia para parecer o contrário. Novamente
sentia o coração saindo do peito, e nem sequer conseguira ainda
embarcar. E se desistisse de tudo? Se o muru o apanhasse
certamente seria surrado e ficaria sem comer por vários dias.
Mas, eis que a candonga chegava. Que sorte! E vinha
aparentemente vazia. Melhor ainda! Demba olhava em total
alerta. Apenas algumas pessoas desceram do caminhão e outras
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duas subiram com suas bagagens. Uma delas tinha um saco de


arroz de 50 kg e um cabrito, que foram colocados sobre a
cobertura traseira do carro. O menino esperava a hora certa de
agir.
As pessoas que tinham entrado no carro ali não eram
daquela aldeia. Estavam só de passagem e não deveriam conhecê-
lo, o que era vantajoso. Quando o carro deu o arranque ele correu
e pulou para o caminhão já em andamento. O ajudante do
motorista se aproximou. Era ele que ficava na parte de trás do
veículo para embarcar e desembarcar as cargas e controlar o
pagamento das passagens. Era um rapaz de uns 17 anos e olhou
Demba com curiosidade.
_ O que é quer? Esmolas? Arguiu ele.
_ Não! Disse Demba com voz sumida. Quero ir até Contubel.
_ Mas tu és um dos talibês (alunos) do marabu! Retrucou o
rapaz. Eu já te vi por aqui mais vezes. O muru sabe que estás
a viajar sozinho?
_ Sabe sim! Disse o menino sem olhar para o interlocutor
_ E deixou-te? Estranhou o outro.
_ É que meu pai está doente… Respondeu rápido a criança.
O cobrador pareceu se satisfazer e ia se afastar quando
voltou atrás e tornou a perguntar:
_ E tu tens dinheiro para pagar a viagem?
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_ Sim! Respondeu Demba, aliviado, mostrando o saquinho


com as moedas tilintando.
O carro partiu. Demba olhou as casas da aldeia se
distanciando lentamente até sumirem na estrada poeirenta.
Desejava ardentemente nunca mais ter que voltar ali! No seu
coração ele orava a Deus por isso. As pessoas no caminhão
estavam preocupadas demais com seus próprios problemas para
reparar num garoto sujo e mal cheiroso, com cara de esfomeado.
A viagem transcorreu sem sobressaltos até a aldeia da
estrada mais perto de sua casa. Demba comprou um pão, que
devorou com rapidez, e pôs-se a caminho. Conseguiu carona
numa carroça até perto de sua aldeia. O trajecto final, cerca de
hora e meia, foi a pé. Como ele se sentia bem ali! Aqueles lugares
familiares, o cheiro da floresta, a ansiedade de estar em casa.
Antes que se fizesse noite ele chegou causando grande alvoroço.
A fuga deu certo! Agora era esperar a reação paterna.
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O Sonho de Demba
Capítulo 5
Duas semanas tinham se passado desde que Demba
conseguira fugir das mãos do marabu. Os anciãos de sua aldeia
tinham aconselhado seu pai a levá-lo de volta, pois a fuga foi uma
grave falta de disciplina e desonra para a família. Mesmo que o
menino tivesse sofrido um pouco, isso era parte da vida e valia a
pena aguentar alguma dor para ser um dia chefe de mesquita.
O pai de Demba, porém, viu o estado em que o filho
retornara e ouviu seus relatos sobre o tratamento recebido nas
mãos do “mestre”. Já tinha ouvido de outras pessoas histórias
semelhantes e concluíra que aquele marabu não era de confiança
e que Demba não lhe seria devolvido.
No entanto, decidiu que seria um desperdício deixá-lo na
aldeia. Ele foi destinado a estudar e ali não havia escola. Então
ficou resolvido que Demba seria levado para Bafatá, onde poderia
ficar na casa de um tio e frequentar a escola. E lá estava o menino
de novo na estrada e desta vez para a cidade.
Bafatá era a segunda cidade do país, porém estava
decadente. As casas, do tempo colonial, sem manutenção e
deixavam a cidade com um ar de “cidade fantasma”. Mas era uma
grande cidade mesmo assim! Havia até electricidade algumas
horas por dia! E, à noite, se houvesse luz, podia até ver televisão!
Demba estava deslumbrado com tudo aquilo! O tio o
recebera muito bem! O primo de Demba tinha a mesma idade que
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ele e se chamava Sori. Estudava numa escola de estrangeiros que


foi aberta ali naquele bairro, a Ponta Nova. O tio de Demba
tentaria colocá-lo nessa escola também, pois era muito boa.
O menino ainda se lembrava das duas mulheres brancas
bondosas que tinham ido à tabanka do marabu. Ele ficara com boa
impressão dos brancos, apesar do que se dizia deles. O pai
mostrava-se contente com a ideia da escola de estrangeiros, pois
isso era, certamente, garantia de bom ensino!
A confirmação veio por Sori que, apesar de estar ainda no
primeiro trimestre do primeiro ano, já era capaz de ler muitas
coisas, para orgulho da família. Era quase o final do ano. Os
cristãos chamavam de Natal e haveria festa na escola. Sori tinha
que participar e levaria Demba para conhecer tudo.
O dia da festa amanheceu claro e limpo. Os dois meninos
foram correndo pelo caminho de terra. Sori vestia uma camisa
cinzenta com um quadro negro na frente, onde se lia em letras
brancas: “Colégio Batista de Bafatá”. Quando chegaram perto da
escola, Demba parou com o olhar espantado.
Era a casa de seu sonho! Ele a conhecia bem demais! Vira
aquele local tantas vezes em seus sonhos que não tinha qualquer
dúvida! Era o mesmo local, o mesmo letreiro! Sori lhe explicou
que aquela era a “Missão Batista” e passou a explicar as
maravilhas que ia ver, os materiais escolares novinhos, os quadros
nas paredes e a biblioteca!
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Demba estava ansioso e um pouco nervoso. Dezenas de


crianças estavam reunidas em brincadeiras à frente da escola.
Muitas estavam com camisas iguais à de Sori, mas outras eram
convidadas, como Demba.
O clima de festa era quase palpável! Que diferença do ar
pesado e sofrido da escola do marabu! A escola contava com duas
casas bonitas, bem pintadas. As salas eram espaçosas, com
quadros de escrever bem grandes e muitos desenhos pendurados.
O chão era de cimento, as paredes rebocadas. Tudo parecia muito
luxuoso aos olhos do menino de aldeia.
Por trás das casas, outra surpresa. Uma quadra de futebol de
salão cimentada, com traves de madeira e rede, como nos campos
de verdade! Parecia mesmo um sonho! Demba tentava garantir a
si mesmo que não estava dormindo, pois queria aproveitar cada
momento.
Os professores foram chegando. Eram nacionais, mas
pareciam simpáticos e alegres. Sori contara a seu primo que os
professores não batiam nos alunos. Demba quase não acreditava!
“Seria possível existir tal escola?” Ele sorria feliz. Aquele sorriso
que há tanto tempo o deixara parecia querer retornar para ficar.
Logo chegaram também os estrangeiros. Eram três mulheres
e um homem. Havia também duas crianças, um menino e um
bebé. Demba nunca havia visto um bebé branco. Parecia uma
bonequinha com o cabelo muito loiro e fino. As crianças
estrangeiras pareciam não estranhar nadado ambiente. O menino
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também era aluno da escola e falava perfeitamente em crioulo


(idioma local) com os colegas.
Cadeiras foram colocadas na quadra, de modo a acomodar
todas as crianças. O alvoroço e o entusiasmo eram grandes. Uma
das professoras estrangeiras dirigiu as crianças em cânticos
alegres ao som de um violão. De repente, como numa cena fora
da realidade, aquelas 200 crianças começaram a cantar a plenos
pulmões: “Fii Mim mii subii abade Issa” (Estou seguindo a Jesus).
Demba ficou paralisado e arrepiado! Duas lágrimas
encheram o canto de seus olhos. Era a música de seu sonho...
Afinal, existia, era real! E ele estava agora dentro desta realidade.
Ninguém reparou nas lágrimas de Demba. Ninguém o conhecia
ainda. Mas o sorriso que ele abriu e a força com que cantou eram
sinais claros de uma nova vida que se iniciava para ele.
O homem estrangeiro tomou a palavra. Demba ouviu que ele
era doutor e tratava também os meninos da escola. Não pôde
deixar de recordar Mamadu morrendo naquela esteira suja na
escola do marabu. O doutor contou uma bonita história sobre três
árvores e pela primeira vez em sua vida Demba ouviu falar de
Jesus como o Salvador, que dera sua vida por nós para limpar-nos
de nossos pecados. Era uma mensagem estranha, mas que
aquecia o coração.
A reunião terminou com um lanche delicioso de cachorro-
quente e suco de laranja. No fim, todas as crianças receberam um
saquinho com balas e bombons.
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Demba estava maravilhado e mal podia falar ou entender o


que vira. Foram tantos meses de sofrimento... A perda da irmã, a
morte da mãe, os maus-tratos do muru. Agora, ali, ele via um tipo
de carinho que lhe era totalmente desconhecido.
Uma das professoras estrangeiras foi apresentada a ele por
Sori. Ela sorria com naturalidade e o convidara a voltar no
domingo para ouvir mais histórias. A professora ficou contente ao
saber que Demba entraria na escola e comentara que ele
certamente seria um bom aluno.
O menino, acanhado, apenas balançara a cabeça com
timidez. No fim da tarde, quando voltava para casa, ele corria com
o primo. Ainda não entendia o significado das palavras, mas
cantava a plenos pulmões: “Fii mim mii subii abade Issa”!

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Conto baseado em factos reais, inspirado na vida do povo


Fula da Guiné-bissau.

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