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Bia Crespo
Direitos autorais © 2023 Bia Crespo
Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, que entrou
em vigor no Brasil em 2009.
Os personagens e eventos retratados neste livro são fictícios. Qualquer semelhança com
pessoas reais, vivas ou falecidas, é coincidência e não é intencional por parte do autor.
Manter Lua longe do Caio foi mais fácil do que eu imaginava. Os casais
de homem e mulher têm um jeito muito específico de conviver em
sociedade: garotas para um lado, garotos para o outro. Parece que é
fisicamente impossível passarem tempo juntos fora do estritamente
necessário.
Assim que deixou as malas no quarto fedido dos homens, Caio se
enfiou em uma partida de truco com Pedro, meu pai e o pai dele. Tio Rafael
era o único homem que não gostava de baralho, por isso ele ficou
responsável pela churrasqueira.
Eu e Lua saímos do quartinho depois de arrumar nossas coisas no
armário velho que tinha a porta meio quebrada. Percebi que seu estilo
boiadeira não era só pra chegar no sítio a caráter — ela realmente tinha toda
uma coleção de camisas xadrez, chapéus, peças jeans. Quando Lua voltou
do banheiro vestindo um short bem curtinho, foi difícil não deixar meu
olhar se perder pelas pernas definidas dela.
— De onde você é? — perguntei enquanto atravessávamos a
cozinha a fim de voltar para as alas comuns do sítio.
— Uma cidadezinha aqui perto. Pequena que só. Eu sou da roça
mesmo.
— Não tinha notado — eu disse, brincando, e indiquei o chapéu
dela.
Lua deu risada.
— Cê é de São Paulo, né? — ela perguntou.
— Como você sabe?
— Roupinha da moda, braço coberto de tatuagem…
Conforme ela falava, seu olhar percorreu meus braços, depois meu
torso, até parar em meus seios. De novo.
Estufei o peito de propósito, deixando o que ela queria ver ainda
mais à mostra. Lua corou e desviou o olhar, caminhando mais rápido na
minha frente.
— Você tem alguma tatuagem? — perguntei.
— Até parece. Minha mãe me matava.
Chegamos à área da churrasqueira e Lua foi cumprimentar Caio, que
praticamente ignorou sua presença. Fiquei pensando no que ela acabara de
dizer. Se era do interior e tinha uma família conservadora, talvez realmente
tivesse uma questão com sua orientação sexual. Se eu tivesse conhecido
Lua em São Paulo, teria achado de cara que ela era sáfica.
Nenhuma mulher de bota e chapéu deveria ser hétero.
Pedro deu um grito e bateu com uma carta na testa de Caio. Ele logo
foi seguido por sons guturais dos outros homens, que batiam na mesa como
orangotangos enfurecidos. Eu nunca entendi por que eles tinham a
necessidade de ocupar tanto espaço e fazer tanto barulho.
Me aproximei de Lua para falar no seu ouvido, tentando ser ouvida
por cima daquela algazarra.
— Isso aí vai demorar horas. Vamos fazer outra coisa enquanto eles
jogam?
Lua ergueu a cabeça e me encarou por alguns segundos, assustada
com nossa proximidade. Eu senti o calor irradiando de suas bochechas
quando ela assentiu sem falar nada. Lançou um último olhar para Caio e me
seguiu.
Passamos por Yasmin e Bruna, largadas nas espreguiçadeiras da
piscina pintando as unhas do pé, e enfim trocamos a barulheira da minha
família pela paz da mata.
— Que coisa linda — disse Lua, observando a paisagem ao redor.
— A chegada foi tão corrida que eu nem reparei.
O sítio ficava no alto de um morro, com vista para um rio que
cortava a cidadezinha mais próxima. Ao longe, se ouvia o som de uma
cachoeira e de pássaros cantando.
— Mais bonito que sua roça? — perguntei.
— Muito mais. Lá é tudo plantio. Não tem mato, trilha, cachoeira…
Começamos a caminhar pela propriedade, apreciando o caminho
que se formava entre as primeiras árvores na beira da floresta. Lua se
dirigiu para a entrada da mata fechada, onde uma placa indicava o início da
trilha.
— Ah, não — resmunguei. — Trilha, não.
— Deixa de ser preguiçosa — ela disse, já me puxando para dentro
da floresta. — Pra que serve essa perna musculosa?
Sorri ao perceber que ela tinha notado minhas pernas. Não foi à toa
que passei a maior parte das férias de verão na academia, macetando aquele
leg press como se minha vida dependesse disso. A verdade é que eu queria
voltar para a faculdade no ano que vem e fazer a Carol se arrepender do que
tinha perdido. Agora, toda essa musculação teria outra utilidade.
Aproveitei a deixa para tirar a camisa, revelando o biquíni escuro
que usava por baixo. Não era meu biquíni mais sensual — se eu soubesse
que ia seduzir a namorada do meu primo hoje, teria escolhido uma peça
mais cavada, talvez até aquele biquíni branco que nunca tive coragem de
usar em público —, mas a estampa verde musgo contrastava com a minha
pele de forma harmoniosa.
Lua arregalou os olhos quando percebeu a quantidade de pele
exposta. Ela apertou o passo e se embrenhou na trilha rapidamente.
Amarrei a camisa na cintura, satisfeita. Continuei o caminho atrás
dela, reparando em como o short jeans marcava as curvas do seu quadril.
◆◆◆
◆◆◆
Quando despertei na manhã seguinte, Lua não estava mais lá. Enrolei
um pouco na cama, aproveitando para relembrar nosso momento na
cachoeira. Depois de uma noite de sono bem dormida, eu conseguia analisar
os fatos com mais frieza. Será que o quase beijo tinha sido coisa da minha
cabeça?
Fui tomada por um acesso de vergonha quando lembrei que havia
tirado a roupa toda na frente dela. Se eu tivesse mesmo vendo coisa onde
não tem, estava fazendo um papel de trouxa monumental, além de
constranger a coitada da menina.
Eu não tinha como saber se ela me queria, mas uma coisa era certa:
eu queria muito ela.
Enquanto me vestia, pensei que seria bom manter a distância de Lua
pelo menos por um dia. Se ela estivesse interessada, faria um esforço para
recuperar nosso contato. Se estivesse achando aquela paquera uma coisa
ridícula e desnecessária, ficaria na dela. E assim eu teria minha resposta.
Deixei o quarto em direção à cozinha, que estava tomada por um
cheiro gostoso de café fresco e aquele bolo maravilhoso que só tia Marisa
sabia fazer. Ela terminava de lavar a louça enquanto cantarolava uma
música animada, esbanjando um bom humor matinal que só ela tinha
naquela casa.
— Bom dia, tia — falei enquanto me servia de um pedaço de bolo.
— Quem cozinha não lava, hein?
— Tarde demais — ela disse, rindo. — Eu nem ligo. Não tem nada
pra fazer aqui mesmo.
Ao contrário da minha mãe e da tia Márcia, que adoravam a fuga
anual para o campo, tia Marisa era uma garota da cidade como eu. Sempre
tinha um momento da viagem em que a gente sentava num canto e ficava
conversando sobre São Paulo, como se tivéssemos deixado a capital anos
atrás, e não há menos de uma semana.
— Deixa eu pelo menos ajudar na ceia hoje à noite — falei de boca
cheia, terminando de engolir o bolo de fubá delicioso.
— Não precisa, Eliza. Tem bastante gente pra fazer isso.
Tia Marisa ainda me via como uma garotinha. Ela nunca deixava a
filha e as sobrinhas ajudarem em nada.
Tomei um gole de café e sacudi a cabeça em negação.
— Imagina, tia. Eu quero fazer alguma coisa.
Marisa desligou a torneira e limpou as mãos no pano de prato.
— Eu vi que você tá dividindo quarto com a namorada do Caio —
ela disse. — Por que não fica fazendo companhia pra ela?
Pelo visto o universo não ia me permitir ficar longe de Lua nem
mesmo por um dia, ainda que eu precisasse organizar meus pensamentos
sobre ela.
— Não sei… — falei. — A gente é bem diferente.
— Coitada, Eliza — minha tia se aproximou, abaixando o tom. —
Ela ficou a manhã inteira andando sozinha por aí. Na hora que eu acordei
ela já tava de pé… Você sabe como é seu primo. Ele só vai acordar depois
do meio-dia.
Virei em um gole só o restinho do café e coloquei a xícara sobre a
pia. Minha tia começou a lavá-la imediatamente, como uma máquina
programada para manter a cozinha sempre impecável.
— Tudo bem — falei, resignada. — Vou ver se ela quer companhia.
Atravessei a sala escura com cuidado para não acordar minhas
primas, que ainda dormiam espalhadas pelos colchões. Nessas viagens, eu e
tia Marisa passávamos a manhã inteira sozinhas, já que nunca
conseguíamos dormir até depois das dez. Eu não tinha a capacidade que
aquela galera tinha de ficar a madrugada inteira conversando, jogando
cartas e bebendo. Meu organismo gritava pela minha cama e um pouco de
solidão depois de passar o dia todo rodeada por tantos seres humanos.
Fiquei me perguntando por que Lua tinha começado a namorar alguém tão
diferente dela. Os dois não tinham gostos parecidos e, para completar,
dormiam em horários opostos.
Saí de casa e dei uma olhada no gramado em busca de Lua. Não vi
sinal dela. Desci pelo caminho de terra que levava até a entrada da trilha e
também não a encontrei. Eu me perguntei se ela estaria na cachoeira, mas
achei que ela poderia querer explorar outras partes do sítio que ainda não
havia conhecido. Cruzei de volta o gramado no sentido do estábulo, um
lugar que ficava a uns dez minutos de caminhada da casa principal.
O cheiro forte de cavalo, couro e feno invadiu minhas narinas.
Aquele era outro espaço que eu não frequentava desde o começo da
adolescência, porque minha habilidade em montaria era praticamente nula.
Quem mais passava tempo ali era a família nuclear da tia Márcia: tio
Rodolfo, Caio e Sabrina. Só mesmo os Perez mais ricos para ter um hobby
daqueles.
Abri um sorriso involuntário quando vi o chapéu de Lua
despontando por cima da última baia. Ela conversava baixinho com
Perséfone, uma égua marrom-claro de porte imponente. Perséfone era a
montaria de Sabrina, um animal afável, educado e muito habilidoso.
O total oposto de Jair, o cavalo branco e franzino que morava na
baia vizinha. Claro que aquele bicho temperamental e preguiçoso era do
Caio, que ainda por cima tinha escolhido o nome em homenagem ao ex-
presidente. Uma homenagem à altura, considerando que ambos eram
animais irracionais.
Passei pela baia de Jair com cuidado para não chamar atenção e me
aproximei de Lua devagar, sem fazer barulho, até chegar pertinho do seu
ouvido.
— Bom dia — sussurrei.
Lua soltou um grito de surpresa que gerou um verdadeiro efeito
dominó: Jair acordou com um relincho alto e assustado, deu um coice
atrapalhado que atingiu um balde, o balde caiu e saiu tilintando pelo
estábulo. Lua e eu observamos aquela cena em silêncio, depois caímos na
gargalhada.
— Cê é doida, ou? — ela disse, ajeitando o chapéu. — Chegou
assim de mansinho, sem falar nada. Da próxima vez eu vou acertar um
tabefe bem no meio da sua cara.
Eu estava vermelha de vergonha. Precisava me recompor para
continuar o meu plano.
— Na cara não, Lua. A não ser que eu peça.
Foi a vez de Lua corar. Ela desviou o olhar de volta para Perséfone,
que se manteve plena durante toda aquela confusão.
— Ainda bem que essa aqui não assusta fácil — ela disse.
— Ela chama Perséfone — contei. Em seguida, olhei feio para o
cavalo branco, que voltava para seu cantinho com cara de poucos amigos.
— Aquele é o Jair. Esse ninguém monta. Nem o Caio, que é o dono dele,
deu conta de domar o bicho.
— Tadinho — disse Lua, se aproximando de Jair. — Ele deve estar
se sentindo preso.
— Tá nada. Ele é preguiçoso mesmo. Todo mundo já tentou, mas
ele não deixa.
Eu me aproximei dela e acrescentei, em tom conspiratório:
— Mas ele me odeia mais que todo mundo. Eu acho que ele é
homofóbico.
Lua deu risada.
— Você sabe cavalgar? — ela perguntou.
Mordi o lábio para não fazer uma piadinha de duplo sentido e
respondi:
— Eu vim aqui algumas vezes com a minha prima. Sua cunhada
Sabrina.
— Cunhada, não, que eu ainda não casei — ela brincou.
Mais um ponto positivo. Só não tinha gostado do “ainda”. Se
dependesse de mim, aquele namoro ia acabar muito antes de qualquer
conversa sobre casamento.
— Faz tempo que vocês tão juntos? — perguntei. — Você e o Caio?
— Três meses.
— Você não me contou como foi que se conheceram.
— Você não perguntou.
Ela sorriu e coçou o pescoço de Jair. Lua parecia muito mais à
vontade ali, longe dos outros membros da minha família, perto dos animais
da fazenda.
— Tô perguntando agora — falei.
— A gente faz UNESP juntos lá em Bauru — ela disse. — De vez
em quando eu vou em umas festas da faculdade. Mas, assim, bem de vez
em quando. Minhas amigas começaram a me arrastar porque eu nunca saía
de casa.
Enquanto ela falava, aproveitei para me aproximar ainda mais, sob
pretexto de também acariciar o cavalo na nossa frente. Tomei cuidado para
não tocar de fato em Jair, que provavelmente arrancaria minha mão
(homofóbico), e pressionei meu corpo contra as costas de Lua, como se a
usasse de escudo contra o cavalo.
— Você não gosta de festa? — perguntei com a boca bem próxima a
seu ouvido.
Dessa vez a aproximação teve o efeito que eu queria. Lua
estremeceu de leve, mas não saiu de onde estava. Não queria demonstrar
que eu a estava afetando. Afinal de contas, que mal tinha em conversar
assim de perto com uma amiga?
— Prefiro ficar na fazenda com meus bichos — ela falou.
— Então por que você foi?
— Elas queriam que eu conhecesse gente. Arranjasse um namorado.
— Como se isso fosse difícil pra você — sussurrei. — Linda desse
jeito.
Eu sentia o calor emanando das bochechas dela. Lua virou para me
olhar e nossas bocas ficaram a centímetros de distância. O olhar dela desceu
por um segundo para meus lábios, e só então ela desviou a atenção de volta
para os cavalos.
— É mais difícil do que cê imagina — ela falou rapidamente. —
Bora montar essas belezuras?
Franzi a testa enquanto olhava para os animais. Eu era péssima
naquilo. Como poderia continuar seduzindo Lua se não tinha habilidade
nenhuma em algo que ela tanto gostava?
Seja criativa, pensei. Use de referência todos os filmes de romance
na roça que você já viu.
Mas que filmes, meu Deus???
Sei lá. Aquele da Hannah Montana?
— Eu tenho medo de cavalgar sozinha — confessei, me fazendo de
inocente. — Posso montar com você?
Lua empalideceu. Ela abriu e fechou a boca algumas vezes. Eu
mantive meu sorriso angelical, fazendo parecer que minhas intenções eram
muito puras.
E foi assim que deixei o estábulo agarradinha na cintura dela.
◆◆◆
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Foi só no final da tarde que consegui uma chance de ficar a sós com
Lua.
Não sei se o Caio percebeu nossa aproximação ou se ele só era
inconveniente mesmo, mas meu primo havia decidido grudar em Lua o dia
inteiro. Tive que implorar para Mirella distraí-lo de alguma forma,
prometendo tirar o lixo no lugar dela até o fim da viagem.
Quando Caio finalmente desapareceu da sala de estar, um silêncio se
abateu sobre o cômodo e eu suspirei aliviada. As outras meninas estavam na
piscina, ouvindo música alta e fazendo alguma brincadeira idiota que nossas
mães certamente reprovariam, se não estivessem ocupadas demais fazendo
compras no supermercado da cidade junto com os maridos.
Lua também parecia curtir a paz. Ela estava jogada no sofá, com as
pernas sobre a mesinha de centro, e assistia distraidamente a um filme da
Sessão da Tarde. Sentei ao lado dela — muito mais perto do que o
necessário —, e ela não fez menção de se mover.
— O que tá passando? — perguntei.
— Dez horas para o Natal.
Olhei para a TV, animada.
— Sério? Eu nunca vi esse filme.
— É brasileiro. Muito fofo!
— É legal ter filmes de Natal que se passam no Brasil, né? —
comentei. — Nada a ver esse negócio de neve, lareira… E a gente aqui
nesse calor, se abanando.
Lua deu risada. Eu estava com saudade daquele som.
— É verdade — ela concordou.
— Sabe o que podiam fazer? Mais filmes de Natal sapatão.
— Existe algum?
Arregalei os olhos e me ajeitei para ficar de frente para ela. Lua se
encolheu diante da minha intensidade.
— Lua, você vai me dizer que nunca viu Alguém avisa?
— Alguém avisa o quê?
Esfreguei os olhos com a ponta dos dedos, bufando. Aquela garota
precisava urgente de uma imersão no mundo sáfico.
— É um filme de Natal com a Kristen Stewart.
— A do Crepúsculo?
Santa Cássia Eller, por favor, me mande forças nesse momento de
provação.
— Você sabe que ela é lésbica, né? — perguntei, hesitante.
— Claro, Eliza. Todo mundo sabe disso.
Observei Lua com os olhos apertados. Hummmm… Interessante.
Nem todo mundo sabia. As héteros desavisadas não faziam ideia.
— Ela fez um filme que chama Alguém avisa — expliquei. — Ela
namora uma mulher que não contou ainda pra família que é lésbica. Aí elas
vão passar o Natal na casa dos pais dessa moça e ela finge que a Kristen é
só uma amiga.
Lua escutou em silêncio, como se estivesse em profunda reflexão.
— Tadinha — ela falou.
— Pois é, a Kristen não merecia isso…
— Tô falando da outra garota.
Franzi o cenho, confusa.
— Como assim?
— É difícil contar pros pais uma coisa dessas. Ainda mais no Natal
— ela falou.
Será que era isso que Lua escondia, afinal?
Decidi não insistir no assunto. Minha missão não era tirar a garota
do armário, muito menos para a família dela. Eu tinha um objetivo claro e
não podia desviar dele.
Dei uma espreguiçada bastante oportuna e aproveitei para chegar
mais perto dela. Se a gente estivesse na minha fantasia de Natal gringo,
tudo seria mais fácil: eu traria duas xícaras de chocolate quente cobertas por
mini marshmallows e reclamaria do frio, me aninhando sob um cobertor
fofinho ao lado dela.
Na realidade em que estávamos, diante de um ventilador girando tão
rápido que parecia prestes a levantar voo, era bem mais difícil arranjar
desculpas para me aproximar.
— Qual foi o presente de Natal mais legal que você já ganhou? —
perguntei, tentando puxar um novo assunto.
Lua franziu o nariz enquanto pensava. Era muito injusto que aquela
garota conseguisse ser fofa e sexy ao mesmo tempo. As pessoas tinham que
escolher uma coisa ou outra para manter o equilíbrio da Terra, senão ficava
difícil para os meros mortais como eu, que me encontrava totalmente
incapaz de não olhar para ela.
— Acho que foi o trator — ela respondeu.
— Trator!? Tipo, de colheita?
— Não, Eliza — ela riu e deu um tapinha na minha perna. — Isso é
uma colheitadeira.
Claro, óbvio, todo mundo sabe disso.
— Você ganhou um trator de Natal?
E não é sapatão???, quase perguntei.
— Foi um presente pra fazenda, na verdade — ela continuou. — A
gente tava precisando pra ajudar no preparo do solo. Mas eu queria muito,
desde criança. Meu sonho era dirigir um trator.
— E realizou?
— Claro!
Lua tirou o celular do bolso e deu play em um vídeo que mostrava
ela em um campo sendo preparado para o plantio. Ela estava de camisa
xadrez e chapéu, assim como no dia em que nos conhecemos, e dirigia um
trator enorme e barulhento com destreza.
— Olha aí a braba — ela comentou, rindo.
Eu não achei graça nenhuma. Muito pelo contrário. Quando ergui os
olhos de volta para ela, minhas pupilas estavam dilatadas.
— Achei muito sexy — sussurrei.
Lua empalideceu na hora. Ela pareceu notar o quão próximas
estávamos e desceu o olhar para minha boca. Eu suspirei devagar, tentando
alongar o momento, e comecei a diminuir a distância entre nós…
— E o seu? — ela falou, virando rapidamente o rosto. — Fala o
presente que cê mais gostou.
— Eu não ganhei ainda — respondi.
— Ué, como assim? — Ela me olhou, confusa. — O que cê quer?
Era a deixa que eu estava esperando. Sorri de lado, sedutora, e
coloquei uma mecha do cabelo dela atrás de sua orelha. As pálpebras de
Lua tremeram de leve quando ela piscou.
— Um beijo seu.
Ela arregalou os olhos, mas não disse nada. Era a primeira vez que
eu falava abertamente das minhas intenções. O flerte sutil era divertido e até
que estava funcionando, mas meu tempo era curto e eu precisava de
resultados. Talvez, se Lua soubesse o que eu realmente queria, fosse mais
fácil convencê-la a se entregar.
Lua permaneceu quieta, processando o que eu acabara de falar. Já
que estava totalmente exposta, decidi entrar de cabeça naquela investida.
Passei uma perna por cima do corpo dela e sentei em seu colo. A respiração
de Lua ficou mais rápida. Percebi que suas mãos estavam fechadas, as
dobras dos dedos brancas de tanto que ela fazia força para não me tocar.
Levei uma das mãos dela à minha boca e beijei seus dedos de leve,
tentando acalmá-la. O calor que emanava do corpo de Lua era
enlouquecedor. Eu já sentia a excitação me dominar por completo. Ter ela
assim bem no meio das minhas pernas me fazia pensar em tudo que
poderíamos fazer naquela posição…
— Eliza — ela disse em um sussurro quase inaudível. — Eu não
posso.
Me aproximei do ouvido dela e mordisquei de leve sua orelha. O
quadril de Lua descolou do sofá e subiu na minha direção.
— Não pode ou não quer? — perguntei diretamente em seu ouvido.
Lua estava com os olhos fechados e a testa franzida. As mãos
fechadas abriram aos poucos e pousaram sobre minhas coxas, que ela
apertou de leve. Quando abriu os olhos e me encarou, eles estavam cheios
de desejo. Eu me aproximei mais uma vez de sua boca, pronta para dar
aquele beijo que nós duas tanto esperávamos.
— Não posso — ela repetiu, com mais firmeza.
Eu suspirei resignada quando percebi que Lua estava se fechando
novamente. Ela tirou as mãos de minhas pernas e ficou rígida no sofá.
Parecia que o cérebro havia vencido a batalha contra seu coração — ou
clitóris, pra ser mais específica.
Desci do colo de Lua ao entender que nosso momento tinha
terminado. Mas não me dei por vencida.
— Tudo bem — falei enquanto me levantava, ajeitando a blusa para
deixar o decote ainda mais profundo. — Se mudar de ideia, já sabe onde me
encontrar.
Pisquei para ela e saí na direção do nosso quarto nos fundos da casa.
Lua não me seguiu.
Ainda.
Capítulo 06
◆◆◆
Acordei abruptamente, encharcada de suor.
A brisa suave que entrava pela janela me deu calafrios. Minha pele
estava sensível. Minha boca estava seca.
Fazia sentido; afinal, toda a umidade do meu corpo estava localizada
entre as pernas.
Eu havia sonhado com ela.
Lua apareceu pouco depois de eu me deitar. Ela entrou
discretamente, com passos leves e suaves. Tirou a roupa toda, mas, em vez
de vestir o pijama, ficou completamente nua na minha frente.
— Eliza — disse com firmeza. — Você tá acordada?
Não adiantava fingir que não observava seu corpo enquanto ela
tirava a roupa. Sentei no colchão e olhei devagar toda a pele exposta, todas
as partes dela que eu desejava conhecer. Quando nossos olhos se
encontraram, senti minha respiração parar.
— Eu pensei naquilo que você falou — ela continuou, se
aproximando de mim lentamente. — Eu também quero.
Lua passou a mão pelos meus cabelos e aproximou minha boca de
sua barriga. Eu beijei a pele, sentindo o calor dela queimar meus lábios. Lua
puxou meus cabelos com força, do jeito que eu gosto, e foi guiando minha
cabeça para mais baixo, até que chegasse aonde ela queria.
Eu vi o quão molhada ela estava antes mesmo de senti-la.
— Olha o que você faz comigo — ela arfou.
Revirei os olhos ao sentir aquele sabor que eu já tinha imaginado
tantas vezes. Me ajoelhei para melhorar o ângulo e segurei suas nádegas
com força, puxando-a para mais perto enquanto minha língua a tomava por
inteiro.
Lua gemia alto, confiante, sem se importar se alguém a escutasse.
E foi justamente esse som que me despertou.
Pisquei algumas vezes para que meus olhos se acostumassem ao
quarto escuro. A cama de Lua estava vazia. A tela do celular indicava que
já passava das cinco da manhã.
Eu queria procurar por ela, segurar seu pescoço, beijá-la com força.
Fazer tudo que fiz no meu sonho e descobrir o que ela faria comigo depois.
Mas Lua não estava pronta. Pior — ela poderia estar com o Caio.
Antes que eu deixasse essa imagem diminuir meu tesão, puxei o
travesseiro dela e inalei o cheiro que havia ficado na fronha. E foi com essa
sensação de estar perto de Lua que levei os dedos até meu centro e gozei em
menos de um minuto.
◆◆◆
◆◆◆
◆◆◆
A tal pipoca de leite Ninho era tão sem graça e enjoativa quanto
Caio. Se Lua não gostou, não deixou transparecer, pois ela comia
distraidamente enquanto assistia ao filme na televisão. O escolhido para
abrir nossa sessão foi Duro de matar, já que minhas primas e irmãs eram
apaixonadas pelo Bruce Willis de duzentos anos antes. No fundo, acho que
o Caio e o Pedro também tinham crush nele. Eu não entendia o apelo, mas
gostava do filme.
Dessa vez, no entanto, não prestei atenção em nenhuma cena. Só
conseguia observar de canto de olho Lua aninhada nos braços de Caio,
esparramados em um dos colchões no chão da sala. As solteiras haviam se
espremido no sofá, que Bruna apelidara de “Camarote das Encalhadas”.
Lua estava de costas para mim. Mesmo sem ver sua expressão, eu
sabia que ela estava desconfortável. Havia passado boa parte do filme
imóvel, em silêncio, deixando que Caio se apropriasse do espaço como bem
entendesse. Ele estava com as pernas esparramadas pelo colchão e um dos
braços ao redor dos ombros dela, enquanto a pobre da Lua ficava encolhida
em um cantinho. Era quase como se ela quisesse escapar dele.
No auge da cena de ação do fim do filme, Lua se levantou, incitando
reclamações.
— Sai da frente, Lua! — disse Caio, desnecessário como sempre.
— Eu preciso ir ao banheiro — ela falou, se retirando da sala o mais
rápido possível.
Antes que pudesse mudar de ideia, também levantei.
— Essa é a melhor parte do filme — reclamou Sabrina.
— Eu já volto — falei.
Cruzei a sala até a cozinha, que estava com a luz apagada. Já havia
escurecido e a chuva fina caía lá fora, deixando o clima um pouco menos
abafado que de costume.
Lua estava diante da pia da cozinha, observando a janela com um ar
pensativo.
— Não gostou do filme? — perguntei em voz baixa, tentando não
assustá-la.
Lua se surpreendeu ao me ver ali. Me arrependi de tê-la seguido,
imaginando que ela podia querer ficar sozinha. Devia ser difícil ser
obrigada a passar o dia com a família do namorado.
— Não tava conseguindo me concentrar — ela falou.
Me aproximei devagar, respeitando seu espaço.
— Aconteceu alguma coisa?
— Você sabe o que aconteceu, Eliza.
Eu não queria presumir nada. Não sabia se ela estava sendo
atormentada pelas mesmas lembranças que eu. Para ela, nosso beijo poderia
ser um acontecimento isolado, um deslize, uma memória tão difusa que
poderia até ser confundida com um sonho. Para mim, era tudo em que eu
conseguia pensar.
Encorajada pelas palavras dela, dei um passo em sua direção. Lua
ergueu a cabeça, como se me desafiasse a chegar mais perto.
— Você se arrependeu? — perguntei, corajosa.
Lá no fundo, eu já imaginava a resposta.
— Me arrependi, sim — ela disse com firmeza.
A decepção me tomou de surpresa, mas não tive tempo de processar
o sentimento porque Lua havia se aproximado. Ela me olhava com
intensidade, seus olhos escuros refletindo a luz da lua lá fora.
— Me arrependi de não ter continuado — concluiu.
Quando dei por mim, nossas bocas estavam coladas mais uma vez.
Dei alguns passos para a frente e a prendi contra a pia, acabando com
qualquer distância que existisse entre nossos corpos. De repente, era como
se o momento na piscina nunca tivesse terminado.
— Aposto que você tá molhada até agora — falei, passando os
lábios pela orelha dela.
Lua estremeceu de forma deliciosa, se desfazendo nos meus braços.
Isso que eu nem tinha começado a tocá-la como gostaria.
— Não fala isso — ela disse.
Reparei que seu rosto estava vermelho e quente de vergonha.
— Você não gosta quando falam essas coisas pra você?
— Ninguém nunca falou — ela confessou.
Brinquei com a barra da regata dela, pensando se ela deixaria eu
remover a peça. Se teríamos tempo antes do filme acabar e alguém aparecer
ali. Tinha tanta coisa que eu queria falar para ela, fazer com ela…
Decidi deixar a conversa para outro momento. Beijei Lua com
vontade, sentindo sua língua quente deslizar contra a minha. Dessa vez, ela
estava mais segura, mais certa do que queria. Lua me puxou pela nuca com
força e aprofundou o beijo, acertando o ângulo para que nossos corpos
também pudessem se encaixar perfeitamente.
O beijo ia ficando cada vez mais rápido, frenético, molhado. Eu
apalpava a bunda dela — não era grande como a minha, mas era firme e
cabia perfeitamente nas minhas mãos. Lua se aventurou em me tocar pela
primeira vez, levando a mão hesitante ao meu peito. Eu coloquei minha
mão por cima da dela e a encorajei a apertar. Quando ela obedeceu, eu
gemi, e ela me beijou com mais força.
De repente, tudo ficou claro, e eu ouvi passos se aproximando de
nós.
Me afastei de Lua o mais rápido que pude. Sabrina estava na porta,
com a mão sobre o interruptor, nos olhando com uma expressão
indecifrável.
Capítulo 07
Se Sabrina viu alguma coisa, ela não disse nada. Minha prima
simplesmente passou reto por Lua e eu e se enfiou no banheiro dos fundos.
— Tá tudo bem — falei assim que a porta fechou. — Ela não deve
ter visto nada.
Lua assentiu sem muita convicção. Me aproximei e segurei sua mão
para tentar acalmá-la.
— Mesmo se tivesse visto, ela não falaria pro Caio.
A menção ao namorado fez Lua despertar do choque. Ela soltou
minha mão e se afastou.
— Isso não pode acontecer de novo — ela disse. — É muito
perigoso, Eliza.
Antes que eu pudesse responder, Lua deixou a cozinha rumo à sala.
Eu nem precisava vê-la para saber que tinha sentado no colchão ao lado do
Caio, se aninhado nos braços dele, e retomado o papel da namorada
perfeita. A mão dela acariciando o peito dele enquanto seus lábios ainda
formigavam com o gosto do meu beijo.
Senti uma pontada forte de ciúme. Respirei fundo.
Ela não era minha. Ela era dele.
— Você enlouqueceu? — disse Sabrina assim que saiu do banheiro.
Ela me puxou até o quartinho dos fundos, fechando a porta atrás de
nós. Sua expressão era exasperada, como daquela vez que eu levei um
filhote de raposa para a cama dela achando que minha prima gostaria de
dormir abraçada a um animal silvestre não vacinado.
— Eu sabia — ela disse. — Eu sabia que você tava aprontando
alguma coisa com essa menina. Desde quando você faz amigas desse jeito,
Eliza? Você é a pessoa mais antissocial dessa família. Eu devia ter impedido
vocês de ficarem juntas lá no primeiro dia.
— Posso falar? — interrompi.
Sabrina me fitou com os braços cruzados e cara de poucos amigos.
— Não tá acontecendo nada — menti.
Sabrina revirou os olhos.
— Eu vi você com a mão na bunda dela, Eliza. E ela com a língua
dentro da sua boca.
— Foi só hoje — falei rapidamente, abaixando o tom para que
ninguém escutasse nossa conversa. — Quer dizer, teve um beijo na piscina
mais cedo…
— Sério — ela me interrompeu, irritada. — O que você acha que
vai acontecer? Que ela vai se apaixonar por você nesses oito dias de viagem
e abandonar o Caio, que ela namora há meses?
Não seria má ideia, pensei.
Eu dei risada, como se Lua apaixonada por mim fosse um conceito
totalmente absurdo.
— Claro que não. Eu só queria ferrar com o Caio, só isso.
Sabrina me observou com os olhos estreitos. Ela ainda estava brava,
mas não soltava mais fogo pelas ventas. Nosso ódio comum pelo Caio nos
unia.
— Como assim? — perguntou.
— Eu queria me vingar pelo que ele fez comigo no ano passado —
expliquei. — Imagina que delícia ver o Caio sendo humilhado, descobrindo
que é corno no meio da viagem de Natal da família? E ainda por cima que a
namorada traiu ele com a prima sapatão?
Sabrina me estudava em silêncio. Eu não sabia se ela achava aquela
ideia a mais absurda ou a mais genial que já tinha ouvido.
— Você seduziu a menina de propósito?
— Não foi do jeito que você tá pensando — falei. — Eu não forcei
nada. Dei uma flertada, beleza, mas ela também queria. Ela mesma me
disse.
— Eliza… — Sabrina disse naquele tom maternal que ela sempre
usava com as primas mais novas. — Isso vai dar merda.
— Não vai, eu juro. É só um casinho de férias, nada de mais. Ela
nem vai lembrar de mim depois que essa viagem terminar.
As palavras deixaram um gosto amargo na minha boca.
— Mas o Caio vai lembrar pra sempre da humilhação — continuei,
tentando focar no que realmente importava. — Não é como se eles
estivessem superapaixonados nem nada.
— Obviamente — comentou.
— Vai dar tudo certo — tentei soar convincente e segura. — Você
pode me ajudar a terminar isso mais rápido.
— Eu?
— Tô pensando em levar a Lua lá na cachoeira na noite de ano
novo, depois da meia-noite — falei. — Seria um ótimo momento pro Caio
pegar a gente no flagra. Se alguém pudesse levar ele até lá, como quem não
quer nada…
— Eu não vou me meter nessa história, Eliza.
— Por favor, Sá — implorei. — Ou então eu vou ter que fazer isso
na festa de réveillon, correndo o risco de todo mundo ver. A tia Márcia é
cardíaca, capaz até dela ter um treco. Pelo menos na cachoeira a gente
encerra esse assunto só com os envolvidos.
O ideal era expor o chifre do Caio para toda a família, mas eu não
podia fazer isso com Lua. Eu já a conhecia bem o bastante para saber que
era uma garota tímida — ela ficaria muito mal se todas aquelas pessoas
presenciassem sua traição. Levando em conta que ela mesma não parecia
resolvida com sua orientação sexual, mais um motivo para diminuir um
pouco a amplitude do plano. Eu só queria que o Caio descobrisse que foi
corno pelas minhas mãos. Se eu bem conhecia meu primo, ele não contaria
para ninguém, justamente para não perpetuar a humilhação.
Mas eu e ele saberíamos para sempre o que aconteceu.
E eu enfim estaria vingada.
— Só mais três dias — Sabrina falou. — Na madrugada do 31 essa
palhaçada termina.
— Combinado.
— E sem sexo em público! O objetivo é traumatizar o Caio, não eu
e as outras meninas.
Assenti, ainda que não pretendesse cumprir aquela condição. Se Lua
me quisesse, eu iria até o fim, seja lá onde a gente estivesse.
◆◆◆
◆◆◆
Gabi era tudo que eu podia querer em uma mulher. Bonita, confiante,
bem resolvida. Tinha um trabalho legal, uma conversa boa. Gostava das
mesmas cantoras que eu, das mesmas séries, dos mesmos filmes.
Mesmo com tantas coisas em comum, eu não consegui sentir nada
por ela. Nada além de amizade, aquele conforto tácito de estar com alguém
que é parecida com você. Por mais que eu me forçasse a encostar nela, dar
leves toques em seu braço sobre a mesa, a faísca simplesmente não
apareceu.
Mas é claro que Lua não precisava ficar sabendo disso.
Quando estava perto das dez da noite, Sabrina mandou mensagem
perguntando se podia me buscar. A estrada que levava ao sítio era escura e
sinuosa, portanto ela não queria fazer aquele caminho de madrugada. Eu
não apenas não dirigia como não tinha carro próprio, então dependia da boa
vontade da minha prima para não ter que dormir na praça. Uber era uma
realidade alternativa para aquela cidadezinha, ainda mais na semana do
Natal.
— Quer ir lá pro meu hotel? — perguntou Gabi quando os
funcionários da sorveteria começaram a descer as portas de ferro.
Eu sabia que deveria ir com ela. Passar a noite com uma garota
como Gabi seria o antídoto perfeito para curar meus pensamentos sobre
Lua. Só que eu não conseguia mais fingir que aquele encontro seria mais do
que amizade da minha parte. Não era certo com nenhuma de nós duas.
— Olha, Gabi, você é incrível... — falei. — Mas eu não deveria ter
aberto o Tinder hoje. Eu ainda tô com alguns problemas com a minha ex.
Faz pouquíssimo tempo que a gente terminou.
Achei que essa desculpa seria mais compreensível do que a verdade:
eu tô a fim da namorada do meu primo.
— Era aquela menina que tava com vocês na mesa? — perguntou
Gabi.
— Quê? Não, não. Ela não veio na viagem com a gente. — Pensei
um pouco, tentando entender de quem Gabi estava falando. — Que menina
você achou que era?
Gabi deu risada.
— Aquela garota que tava abraçada no único cara da mesa — ela
explicou. — É meio doido pensar nisso considerando que ela tava de casal
com ele, mas o jeito que ela ficava te olhando...
Meu corpo estremeceu diante daquelas palavras. A simples
lembrança do olhar de Lua em cima de mim me fazia querer voltar correndo
para o sítio atrás dela.
A verdade é que eu sentia falta de Lua. Sentia fisicamente nossa
distância. Eu precisava tocá-la novamente e, quem sabe, ter a sorte de
consegui fazer mais do que só trocar alguns beijos.
— Eliza? — disse Gabi, me trazendo de volta à realidade.
— Desculpa — eu respondi, corando. — Ela é a namorada do meu
primo, só isso.
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O sol já estava caindo quando deixamos o estábulo e cavalgamos
por toda a extensão da propriedade, evitando chegar perto das dependências
domésticas do sítio, onde estava minha família. Quase cruzamos com tia
Marisa, que saía de carro para fazer compras, mas, graças à habilidade de
Lua com as rédeas, ela conseguiu desviar o caminho no último segundo.
Não que fosse algo muito comprometedor ver duas garotas andando
juntas a cavalo, ainda mais considerando que uma delas era uma patricinha
da cidade que jamais seria capaz de cavalgar sozinha, mas a gente queria
evitar comentários constrangedores na mesa de jantar. Meu maior medo era
ter que encarar Sabrina diante de uma situação daquelas, pois minha prima
certamente descobriria o que estava rolando entre Lua e eu. Não o sexo —
isso ela já desconfiava que ia acontecer —, mas todo o resto.
Era irônico pensar que, depois de dias executando um plano para
que Caio descobrisse que era corno, essa era a última coisa que eu queria. A
revelação implicaria no fim do meu relacionamento com Lua. Se Caio
descobrisse tudo, não só um grande climão se instauraria, mas Lua
provavelmente teria que deixar o sítio.
De repente, a possibilidade de Lua ir embora e a gente nunca mais
se encontrar me atingiu com tudo.
— Tudo bem aí? — perguntou Lua, virando a cabeça.
Eu a tinha soltado. Minhas mãos estavam geladas, úmidas,
refletindo o pânico que senti ao pensar em perder Lua para sempre. Lua as
puxou de volta para sua cintura, garantindo que eu não me soltaria
novamente.
— Tudo, tudo, sim — respondi com a voz fraca.
Lua puxou as rédeas e Perséfone diminuiu a velocidade do trote até
parar completamente. Nós estávamos em uma área no extremo sul da
propriedade, protegida por copas de árvores altas e uma cerca que separava
o terreno de dois sítios vizinhos.
— É melhor a gente parar um pouco pra você descansar — ela
disse.
Lua desceu do cavalo com elegância e habilidade e me ofereceu a
mão. Eu desci de forma muito mais desengonçada.
Deixamos Perséfone sob a sombra de uma árvore alta e caminhamos
perto da cerca, apreciando aquela região. Ali a vegetação era mais fechada,
com árvores próximas e folhas muito verdes.
Para minha surpresa, havia duas pessoas caminhando do outro lado
da cerca, vindo na nossa direção. Reconheci que eram garotas da cidade:
elas usavam roupas da moda e cortes de cabelo curtos obviamente feitos em
barbearias descoladas do centro de São Paulo.
— Opa, tudo bem? — disse uma delas enquanto acenava pra gente.
Me refreei de falar “sapastê”, porque pra mim era óbvio que as duas
eram lésbicas. Era uma brincadeira que fazia com minhas amigas quando a
gente passava por pessoas da comunidade, ainda que a gente soubesse que
não dava pra identificar lésbicas só pela aparência.
Mas era muito divertido tentar.
— E aí — falei em resposta.
Paramos de frente para elas, uma dupla em cada lado da cerca que
separava os sítios vizinhos. Percebi que a acompanhante da primeira garota
era mais tímida, assim como Lua, que cumprimentou as meninas com um
aceno de cabeça discreto.
— A gente se conhece? — perguntou a mais velha, que usava uma
jaqueta de couro apesar do sol forte de verão. — Tenho a impressão que eu
já te vi antes.
— Desculpa ser tão direta, mas você é lésbica? — perguntei.
Lua ficou constrangida e me deu uma cotovelada. A garota do outro
lado da cerca deu risada. Até a menina tímida ao seu lado acompanhou.
— Claro — ela falou. — Minha irmã também. Tamires e Antônia,
prazer.
Apertei as mãos delas, satisfeita com meu gaydar, que nunca
falhava.
— Eu sou a Eliza e essa é a Lua — falei. — Vocês moram aqui?
— A gente é de São Paulo — disse Tamires. — Peraí… Você não é
a namorada da Carol Marques?
Por que todas as lésbicas de São Paulo tinham que se conhecer,
meu Deus?
— Ex-namorada — falei rapidamente.
Tamires assentiu, observando a proximidade entre Lua e eu. Aquela
garota era esperta e já devia ter entendido o que estava rolando.
— Estranho que a gente nunca se viu antes — ela continuou. —
Esse sítio é dos meus pais há quase vinte anos.
— Esse aqui é da minha tia — eu disse. — Eu venho com meus pais
e irmãs nessa época do ano desde que era criancinha.
— Ah, é isso, então. A gente costuma vir no meio do ano pra fazer
uma festa junina. No Natal é mais difícil.
— Eu adoro festa junina — disse Lua, animada.
— Camisa xadrez essa aqui já tem de sobra — falei.
Lua e eu sorrimos uma para a outra.
— Ano que vem vocês tão convidadas — disse Tamires. — Minha
irmã não fala muito, mas eu juro que ela é gente boa.
— Eu tento — disse Antônia, dando de ombros.
— Ela tá chateada que a namorada não veio com a gente —
sussurrou Tamires, piscando pra gente. — Vamo, Antônia, que eu cansei de
segurar vela pra esse casal.
— A gente não… — começou Lua.
— Bom dia pra vocês — falei rapidamente, segurando a mão de Lua
de forma possessiva.
A verdade é que eu tinha gostado de ser vista com ela em público.
Longe da minha família, eu e Lua poderíamos agir como um casal. Eu sabia
que estava sendo egoísta, mas aquilo parecia tão certo, tão natural… Muito
mais do que quando Lua segurava a mão de Caio sem vontade nenhuma,
como se estivesse cumprindo uma obrigação.
Continuamos andando até uma pequena clareira rodeada por árvores
altas, onde havia um pedaço grande de sombra e certa privacidade. Lua
trouxe consigo uma bolsinha com água e uma canga, justamente para o caso
de querer fazer uma parada durante o passeio. Ela estendeu a canga sob
uma árvore de tronco largo e nós duas nos sentamos.
— O que tá acontecendo, Eliza? — perguntou Lua subitamente.
— Como assim? — falei.
— Você deixou que aquelas garotas achassem que a gente era um
casal.
Voltei meus olhos para ela. Lua me observava atentamente. Seus
olhos escuros brilhavam com aquela intensidade que eu procurava sempre
que estava longe dela. Ninguém nunca tinha me olhado do jeito que ela me
olha.
— O que vai acontecer quando essa viagem acabar?
Me arrependi de ter falado aquilo assim que as palavras terminaram
de sair. Lua enrijeceu e desviou o olhar. Eu só tinha mais alguns dias com
ela e sabia que não deveria estragar nosso momento com esse tipo de
questionamento. Primeiro, porque ela não era assumida para a família e
para o mundo. Segundo, porque ela ainda era a namorada do meu primo.
Terceiro, porque eu não deveria estar me apaixonando por ela.
— Eliza…
— Esquece o que eu falei.
Eu me aproximei dela rapidamente, envolvendo seu pescoço com
meus braços. Encostei a testa na dela e fechei os olhos.
— Não faz diferença o que vai acontecer. Vamos aproveitar o que a
gente tem aqui, agora.
Lua hesitou por alguns instantes e enfim assentiu. Ela também não
queria falar naquilo, pensar nas consequências ou no que precisaria fazer
quando voltasse para sua cidade, para o namoro com o Caio.
Só nos restava sentir.
Juntei nossas bocas em um beijo urgente, desesperado, parecido
com o que compartilhamos à noite no estábulo. Eu sabia que o desejo era o
melhor antídoto para minhas preocupações, uma forma de ocupar a cabeça
com ações imediatas, e não planos para o futuro.
Lua subiu no meu colo com a mesma destreza com que montava a
sela do cavalo. Tirou a camiseta e jogou na grama ao nosso lado, retomando
o beijo rapidamente. Senti sua pele arrepiar sob meu toque conforme
deslizava os dedos pelos seus ombros até chegar no fecho do sutiã. Quando
seus seios estavam à mostra, soprei de leve os mamilos antes de tomar um
deles com a minha boca. Lua jogou a cabeça para trás, seus gemidos
ecoando pela clareira.
Nossos movimentos ficaram mais frenéticos. Tirei o short dela com
tanta pressa que deixei marcas de unhas nas pernas. Lua não pareceu se
importar. Ela mesma tirou a calcinha e se sentou de volta no meu colo, seu
peito subindo e descendo na altura dos meus olhos enquanto ela arfava.
— Eliza… Por favor…
As palavras dela quase me fizeram gozar ali mesmo. Ela tinha
pressa e eu pretendia dar a ela tudo que quisesse. Posicionei dois dedos na
sua entrada encharcada e deslizei facilmente para dentro. Com o outro
braço, enlacei sua cintura, a estimulando para se movimentar contra minha
mão que começava a penetrá-la.
Lua começou a subir e descer devagar, encontrando o ritmo perfeito.
Quando nosso encaixe se alinhou, ela passou a rebolar de forma cada vez
mais frenética, soltando sons de prazer que me deixavam maluca por ela.
Minha boca se revezava entre seus seios e seu pescoço, deixando
beijos molhados e mordidas leves conforme ela se desmontava em cima de
mim. Meu pulso latejava, mas eu estava determinada a levá-la até o auge do
prazer.
Lua então soltou um grito desesperado e gozou em cima de mim,
seu corpo inteiro tremendo de prazer. Eu sentia os poros dilatados de sua
pele, a respiração pesada, a batida rápida do coração. Era ela quem tinha
gozado, mas eu sentia cada onda de prazer como se fosse minha.
Sua lubrificação era tão intensa que escorria pela minha mão.
Depois que os espasmos terminaram, puxei os dedos devagar e os levei à
boca. O gosto dela era inesquecível e eu queria sentir quantas vezes fosse
possível. Pelo menos enquanto ainda podia.
— Quantas meninas você já fodeu desse jeito? — perguntou Lua em
tom de brincadeira.
Sua cabeça repousava sobre meu ombro enquanto ela se recuperava.
Eu acariciei seus cabelos enquanto ria.
— Desse jeito, só você — respondi.
A resposta saiu mais galanteadora do que eu planejara. A ideia não
era dizer que Lua era especial, mas a verdade é que ela era. Eu não
lembrava de ter sentido tanto prazer ao ver outra mulher gozar antes. De
sentir uma conexão tão forte, tão intensa.
Lua ergueu o pescoço para me olhar. Ela me deu um beijo lento,
sensual… Apaixonado.
Não. Isso não podia acontecer.
Aprofundei o beijo rapidamente, tentando voltar ao desejo
animalesco que tinha dominado nosso encontro. Lua entendeu o recado e
me acompanhou, parando apenas para tirar minhas roupas e me deitar sobre
a canga estendida no chão.
Gememos juntas quando nossos corpos se encontraram sem
nenhuma barreira. Lua deitou em cima de mim, me olhando como se eu
fosse a coisa mais deliciosa que ela já tinha visto.
— Você é muito linda, Eliza.
Puxei ela para um beijo a fim de disfarçar as batidas desenfreadas
do meu coração. Mas, quando os dedos dela me encontraram, eu sabia que
estava perdida.
Capítulo 11
◆◆◆
◆◆◆
Quando a contagem regressiva chegou ao fim, meu olhar recaiu
sobre Lua.
Eu deveria ter desviado. Deveria ter prestado atenção em Mirella e
Bruna, que postavam stories debochados e falavam com as câmeras dos
celulares sobre não ter ninguém para beijar naquela noite. Poderia ter
abraçado meus pais, que, pela primeira vez no ano, estavam acordados
depois das dez da noite. Queria ter ajudado tio Rafael a abrir a última
garrafa de champanhe, ter filmado Sabrina pulando as “sete ondas” em uma
poça d’água no jardim, queria ter fotografado o cachorro roubando um
pedaço de picanha que estava esfriando ao lado da churrasqueira.
O que eu fiz foi assistir ao beijo de Caio e Lua como quem vê um
acidente de carro acontecendo em câmera lenta.
Ela beijava o namorado como se eu não estivesse ali. Como se eu
nunca tivesse entrado em sua vida, tocado seu corpo, levado ela aos
momentos de prazer que não saíam da minha cabeça.
Como se ela nunca tivesse me mostrado quem realmente era.
Eu sabia que um beijo de Ano-Novo era mais do que um beijo: era
uma promessa. Não se beija uma pessoa no fim da contagem regressiva só
por beijar. Era ao mesmo tempo a última pessoa que ela beijaria em um ano
e a primeira que beijaria no novo ano. São muitas lembranças. Muitos
compromissos.
Ao beijar Caio, Lua estava mandando um recado para o mundo: eu
pretendo continuar com esse cara por mais um ano.
A foto que os dois tiraram com o celular confirmava isso. Eu já
imaginava a legenda cheia de emojis cafonas de estrelinhas brilhando e
hashtags de gratidão. Ele tinha a mania irritante de se referir a ela com um
— pasme! — emoji de lua cheia. Era a coisa mais ridícula que eu já tinha
visto.
E era tudo que eu queria pra mim.
Eu nunca tinha beijado ninguém à meia-noite. Ninguém nunca me
quis por tempo o bastante para estar comigo na virada do ano. Para fazer
planos ao meu lado.
A lembrança do término com Carol me atingiu em cheio. O jeito que
ela me disse que não queria mais nada, que eu estava indo rápido demais.
Que eu era intensa demais. Que eu estava apressando a ordem natural das
coisas.
Eu tinha feito aquilo de novo. Me apaixonei por uma menina que eu
tinha beijado dias antes, com quem eu tinha transado pouquíssimas vezes,
que não tinha nenhuma possibilidade de namorar comigo.
E nem vontade.
Senti as lágrimas queimando o rosto e dei as costas para a festa. A
última coisa que eu queria era estragar o evento de todo mundo, ou pior —
ter que explicar que eu chorava pela namorada do meu primo.
◆◆◆
Cria coragem
Não dá pra ser feliz existindo só pela metade
Arranca o segredo
Nenhum coração consegue suportar tanto tempo
◆◆◆
Quando cheguei ao final da trilha, era tarde demais. Não havia sinal
de Lua em nenhum lugar do sítio. Àquela altura da noite, todos os adultos já
tinham ido dormir, alheios ao drama que se desenrolava entre os filhos e
sobrinhos na cachoeira.
Minhas primas e irmãs sabiam que algo de estranho estava
acontecendo. Cheguei à área da churrasqueira com os cabelos molhados e
os pés sujos, usando apenas uma camiseta preta semi-transparente e mais
nada, seguida por uma Sabrina preocupada e um Caio furioso.
— Cadê a Lua? — perguntei.
Bruna olhou para mim, horrorizada com meu estado.
— Gente, o que tá acontecendo?
— Caio é um tremendo de um corno — disse Sabrina.
— Aí também não, né — ele falou, constrangido.
— Chega, Sabrina — eu disse. — Não precisa fazer isso.
— Cara, eu não tô te entendendo — Sabrina falou. — Você fez todo
esse corre pra seduzir a namorada do Caio e agora não quer comemorar a
vitória? Olha como ele tá, Eliza. Você conseguiu!
Apesar de irritado, Caio não tentou rebater as acusações. Ele sabia
que tinha sido traído e seu ego não suportaria a humilhação. Por mais que
eu fosse a pessoa errada na história, ninguém ia esquecer da noite em que
Caio foi corneado pela própria prima. Seria um causo contado pelo resto
dos Natais em família.
— Vai ter volta, Eliza — ele disse antes de dar as costas e entrar no
sítio.
— Eu gosto dela, Sabrina — confessei quando ele desapareceu. —
Eu fiz uma merda enorme.
— Por que você não me falou, criatura? — perguntou Sabrina,
desolada. — Eu não teria feito nada disso se soubesse…
— Eu sei, eu sei. Mas agora eu preciso encontrar a Lua. Alguém
sabe onde ela tá?
Olhei para as outras meninas.
— Eu acho que vi alguém correndo naquela direção — disse Pedro,
enfim servindo para alguma coisa além de comer todo o pão de alho do
churrasco.
Ele apontou para o caminho que levava até o estábulo. Como eu não
tinha pensado naquilo? Comecei a correr na direção que ele indicou, porém
Mirella me segurou.
— Pelo menos calça um chinelo — ela disse, me entregando seu par
de Havaianas brancas novinhas.
Apesar da boa ação, Mirella fez uma careta de profundo desgosto
quando enfiei os pés encardidos no calçado. Aquelas Havaianas nunca mais
seriam as mesmas.
— E cobre essa bunda, pelo amor de Deus — completou Bruna, me
emprestando uma canga que estava jogada perto da piscina.
Amarrei o tecido ao redor da cintura. Não tinha um espelho para
checar minha aparência, porém eu tinha certeza de que parecia uma
daquelas pessoas que enlouquecem lentamente dentro do BBB: meus
cabelos estavam começando a secar de forma desordenada, os pés,
imundos, a camiseta, do avesso e minha maquiagem, toda borrada.
— Se ela te quiser de volta desse jeito, é porque é amor de verdade
— disse Yasmin.
E partimos todas juntas em disparada na direção do estábulo.
◆◆◆
Fui recebida pelo meu inimigo de longa data, meu nêmesis, meu
rival: o cavalo Jair.
Não havia nem sinal de Perséfone. Era claro que Lua tinha fugido na
égua boazinha e deixado para trás aquele monstro homofóbico em forma de
equino.
— A gente tem que ir atrás dela — falou Sabrina. — Pode ser
perigoso ficar cavalgando à noite no estado que ela tá.
— Vamos pegar o carro — sugeriu Mirella.
— Esconderam as chaves todas — disse Sabrina. — Lembra?
Depois do ano retrasado.
No réveillon de dois anos antes, depois de tomar cinco garrafas de
champanhe e assistir a Velozes e furiosos na Tela Quente, minhas primas e
irmãs decidiram pegar os carros da família para tirar um racha. O resultado
foi uma cerca derrubada e a lateral de um carro completamente amassada,
além da nossa punição eterna de nunca mais poder acessar veículos em dias
de festa.
Enquanto elas debatiam qual era o melhor meio de ir atrás de Lua,
eu travava uma batalha silenciosa com o cavalo Jair. Nos encaramos como
se estivéssemos em um filme de faroeste, o feno rolando no chão e as mãos
prestes a sacar as pistolas.
— Eu vou a cavalo — anunciei.
As garotas pararam de falar e se viraram para mim, me olhando
como se eu tivesse falado alemão.
— Você nem sabe montar, Eliza — disse Sabrina.
— A Lua me ensinou.
— Acho que você tá confundindo as cavalgadas — disse Yasmin,
rindo.
Ignorei a gracinha dela e puxei a rédea de Jair, que, obviamente,
relinchou em protesto.
— Esse cavalo nunca deixa ninguém montar nele — disse Sabrina.
— Nem o Caio consegue.
— Mais um motivo pra eu insistir — falei. — A Lua vai perceber
que eu fiz um grande gesto por ela. Só assim pra me perdoar.
— Não vai ter o que perdoar se você cair e quebrar o pescoço —
disse Sabrina.
Puxei Jair com mais força e ele enfim se mexeu. Caminhou para
fora de sua baia com aquela má vontade característica e, enfim, me deixou
colocar a sela no lombo.
— Olha, Jair, é o seguinte — falei. — Essa é sua chance de se
redimir. Imagina quando ficarem sabendo que você foi o herói de uma
reconciliação homoafetiva! Ninguém mais vai te chamar de homofóbico.
Jair continuou me olhando com cara de cu. Eu suspirei resignada.
Dei alguns tapinhas carinhosos no pescoço dele, como tinha visto
Lua fazer. Então enfiei o pé no estribo e me joguei por cima da sela,
sentando desengonçada em cima do bicho.
Jair deu uma reclamada, mas não tentou me lançar para longe. Ele
pareceu aceitar seu destino tanto quanto eu aceitara aquela humilhação. Era
o único jeito.
— Cuidado, Eliza — disse Sabrina. — E boa sorte!
Quando enfiei o pé na lateral de Jair, ele deu uma relinchada e alta e
saiu galopando na velocidade de um raio enviado pelo próprio capeta.
Capítulo 13
— Você tem certeza que ele não vem? — perguntei à Sabrina pela
milésima vez.
— Ele só sabe falar nesse maldito intercâmbio — ela respondeu. —
Não vai perder o Natal em Dublin pra ser comido vivo pelos pernilongos
com a gente.
Eu não conseguia conter minha alegria. Confesso que estava com
receio de reencontrar o Caio depois de tudo que tinha acontecido no ano
anterior, então fiquei aliviada quando soube que ele ia fazer intercâmbio
fora do país. O fato de ele não voltar para as festas de fim de ano era a
cereja no topo do bolo.
Terminei de tirar as malas do bagageiro do carro de Sabrina. Ela
enfim tinha comprado um só para ela (porém a regra das chaves escondidas
durante festas no sítio continuava, como minha mãe deixara claro na nossa
chegada), então eu aproveitei para pegar uma carona. Era um alívio não
precisar ser espremida entre minhas irmãs, até porque naquele ano elas
levariam seus presentes de Deus para passar o Natal com a gente. Já tinha
sido apresentada aos namorados delas umas sete vezes, mas eu sempre
trocava o nome dos dois. Pra mim, eles eram exatamente iguais.
Eu estava atravessando o caminho de terra que ligava o
estacionamento ao sítio quando ouvi um galope rápido vindo na minha
direção.
— Eliza, cuidado! — gritou Sabrina.
Eu me virei a tempo de ver Jair se aproximando na velocidade da
luz. Ele estava com os olhos endemoniados, como se estivesse possuído, e
corria na minha direção com a sede de um psicopata pronto para assassinar
sua próxima vítima.
Jair estava vindo me matar. Eu sentia.
Fechei os olhos e aceitei o destino. Eu sabia que, no fim das contas,
aquele cavalo seria minha ruína.
— Êeeeeeeeee!
De repente, o galope parou. Abri os olhos e achei que tinha morrido
e chegado no paraíso. Se eu merecia ou não, era outra história.
Lua se aproximava, montada em Perséfone. Ela usava seu chapéu de
couro e vestia calça jeans e camisa xadrez. Estava mais linda do que nunca,
ainda mais porque havia vindo me salvar.
Jair parou ao ouvir seu chamado e ficou olhando para ela sem saber
o que fazer. Lua desceu de Perséfone e se aproximou devagar do cavalo
maligno, acariciando seu pescoço como se ele fosse um gatinho perdido.
— Muito bem, Jairzinho. Muito bem! — falou com voz de bebê.
— Jairzinho? — questionei. — Esse bicho quase me matou.
— Não é porque eu te perdoei que ele tem que te perdoar também
— disse Lua, ainda afagando o cavalo.
Eu dei de ombros. Ela tinha razão.
Eu me aproximei de Jair devagar e afaguei seu pescoço
tentativamente. O cavalo deu uma leve relinchada, mas não se afastou. Eu
tomei isso como uma oferta de paz. Ou, ao menos, uma trégua de final de
ano.
— Olha o que eu fiz pra você, Jair — falei com voz mansa. —
Aposto que agora você me perdoa.
Puxei a gola da camiseta até revelar meu ombro. Por cima do
desenho de Carol, eu havia tatuado um cavalo branco em homenagem ao
Jair.
Bom, não exatamente a ele, mas ao lugar a que ele me levara havia
quase um ano. Ao fato de que Lua tinha me dado uma segunda chance.
Jair obviamente não entendia o desenho, mas talvez compreendesse
o gesto, porque deu um passo para a frente e encostou a cabeça no meu
braço. Lua e eu nos olhamos, surpresas, e tentei não fazer nenhum
movimento que pudesse quebrar o momento.
Lua se jogou em mim e me beijou. O gesto fez Jair recuar,
relinchando alto ao correr de volta para o estábulo.
— Tá vendo? — falei. — Homofóbico. Não tem jeito.
Lua riu e passou os braços pelo meu pescoço. Eu abracei sua
cintura. Retomamos o beijo com a mesma paixão de um ano antes —
algumas coisas não mudavam nunca.
Assim que nossas línguas se encontraram, eu me perdi nos braços
dela, como tinha feito tantas vezes ao longo do último ano. Sem contar
todas as conversas picantes, as nudes e as ligações que trocamos nos
períodos em que ficamos afastadas, morando em cidades diferentes. Para
mim, todo o tempo que passava com Lua não era o suficiente.
Eu mal podia acreditar que ela era mesmo minha namorada.
— Lua, pode ir tirando suas coisas lá de trás — disse minha mãe
quando passou por nós.
Nós nos separamos rapidamente, lembrando que estávamos em
público. Não que isso tivesse sido um problema no passado…
— Esse ano não quero saber de vocês duas enfiadas naquele
quartinho do pecado! — continuou minha mãe, gritando para todo mundo
ouvir.
Entramos no sítio dando risada, querendo saber quem tinha contado
para dona Marlene as coisas que eu e Lua fizemos no ano anterior.
E, entre aquela provocação amigável e o sorriso lindo de Lua, eu
enfim me senti parte da família. Do jeito que eu sou. Sem precisa mudar
nada.
Eu tinha levado uma namorada para a viagem de fim de ano.
Eu daria um beijo à meia-noite.
E, mesmo que a gente não tivesse nosso quarto, Lua e eu sempre
teríamos o estábulo.
(Desculpa, Jair!)
Fim
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Em 2023 lançou seu primeiro romance, "Eu, Minha Crush e Minha Irmã",
pela Seguinte, selo jovem da Companhia das Letras. Mora em São Paulo
com a esposa Lucí e a as cachorrinhas Xena e Gabrielle.