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A namorada do meu primo

Bia Crespo
Direitos autorais © 2023 Bia Crespo

Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, que entrou
em vigor no Brasil em 2009.

Os personagens e eventos retratados neste livro são fictícios. Qualquer semelhança com
pessoas reais, vivas ou falecidas, é coincidência e não é intencional por parte do autor.

Nenhuma parte deste livro pode ser reproduzida ou armazenada em um sistema de


recuperação, ou transmitida de qualquer forma ou por qualquer meio, eletrônico, mecânico,
fotocópia, gravação ou outro, sem a permissão expressa por escrito da editora.

Capa e ilustração de capa: Isadora Zeferino

Preparação: Sofia Soter


Pra todas as sáficas desse meu Brasil,
um pouco de alegria, que a gente tá precisando!
Playlist

Pra quem quer entrar no clima da história, a playlist está disponível no


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Prólogo

Ninguém vai sofrer sozinho


Todo mundo vai sofrer

— “Todo mundo vai sofrer”, Marília Mendonça

O plano era simples: humilhar o insuportável do meu primo na frente da


família inteira.
Queria começar esta história deixando claro que eu não sou uma
pessoa ruim. Vocês precisam entender que crescer com o Caio não foi fácil.
Todo mundo que já foi comparado a um primo perfeitinho vai entender o
que eu tô falando.
Ele sempre teve tudo que quis, mesmo antes de nascer. Deu a sorte
de vir ao mundo pela barriga de Márcia, a tia rica da família. Caio ganhava
os brinquedos caros que todo mundo pedia no Natal, enquanto eu e as
outras primas ficávamos relegadas às meias e calcinhas compradas no Brás.
Conforme a gente foi crescendo, Caio se destacava pelas notas botas, pelo
rostinho angelical, pela habilidade musical, pelo jeito que falava em
público. Tudo era motivo para exaltar as inúmeras qualidades daquele anjo
andando em meio aos seres humanos na Terra.
Para completar, Caio era o único primo homem entre cinco
mulheres. O príncipe. O presentinho de Deus.
E é claro que eu odiava o Caio com todas as minhas forças desde
que me conhecia por gente.
Espero que vocês entendam meu nível de irritação quando, no
vigésimo Natal que fui obrigada a passar com ele, decidi fazer alguma
coisa.
Decidi fazer o Caio perder pelo menos uma vez na vida.
Capítulo 01

As boiadeira não dá pra encarar


Bota, fivela e chapéu karandá
Batom vermelho pros playboy chorar

— “Pipoco”, Ana Castela

— Filha, você lembrou de pegar absorvente?


Foi assim que meus oito dias de humilhação em público
começaram: com minha mãe gritando pra toda a vizinhança que eu tinha
esquecido de enfiar absorventes na mala. Em minha defesa, eu tinha
arrumado minhas coisas em menos de vinte minutos naquela manhã, porque
tinha lido fanfic até tarde e acordado atrasada.
A verdade é que eu preferia ser enterrada viva do que participar
daquela viagem outra vez.
Minha família não é grande, mas é uma das mais unidas que eu
conheço. Desde antes do meu nascimento, todo fim de ano acontece o
mesmo ritual: minha mãe e as irmãs dela pegam os maridos e filhos e
viajam para o sítio de Márcia, a tia rica, a cerca de três horas de São Paulo.
Quando eu era criança, eu contava os segundos para chegar o
momento de entrar no carro dos meus pais e sacolejar por horas debaixo do
sol quente de dezembro, esmagada entre minhas irmãs, até chegar ao lugar
onde viveria as maiores aventuras das férias. Como boa criança de cidade
grande, eu não tinha praticamente nenhum contato com a natureza além da
horta da escola e do jardim minúsculo do prédio, um lugar decorado com
mais lixo caído dos apartamentos do que plantas. Aquele sítio era minha
chance de explorar a mata, subir em árvores, comer frutas direto do pé e o
mais importante: passar algumas horas longe da supervisão dos meus pais.
A companhia também não era ruim. Eu ainda tinha que aguentar as
chatas das minhas irmãs, Mirella e Bruna, mas pelo menos podia passar o
tempo com Sabrina e Yasmin, minhas primas mais velhas. Elas eram
minhas ídolas, minhas grandes referências. Quantas vezes implorei para que
Sabrina cortasse meu cabelo igual ao dela, ou para que Yasmin me deixasse
usar seu batom vermelho? Cheguei até a fazer um piercing clandestino
pelas mãos das duas, e fugia sempre com elas para passear no centrinho da
cidade e ver os meninos bonitos. Quer dizer, assistir a elas assistindo aos
meninos bonitos, porque eu nunca liguei pra menino nenhum.
Sabe aquele ditado “se você não tem um primo gay, é porque o
primo gay é você”? Bom, se aplica perfeitamente a mim. Passei toda a
adolescência escutando minhas primas e irmãs falando de garotos: com
quem elas ficavam, os que namoravam, os que só beijavam, com quem
transavam, com quem queriam transar, os que deram fora nelas, os que
levaram fora delas, os que as queriam e os que elas queriam, mas não as
queriam de volta. Todas as possíveis combinações e descombinações.
No começo, eu achava o assunto divertido, até mesmo eletrizante —
eram meninas mais velhas falando de coisas que minhas amigas da escola
ainda não dominavam. E elas não poupavam nenhum detalhe. Nunca vou
esquecer do dia que Sabrina me contou de forma bastante gráfica como foi
receber sexo oral pela primeira vez.
Aos poucos, foi ficando chato não ter nada para compartilhar. E,
lentamente, essa falta de assunto se tornou uma certa pressão sobre mim. O
sítio ia ficando cada vez mais cheio com a presença dos namorados das
outras garotas, que se revezavam conforme eram trocados ano após ano. E a
pergunta clássica recaía sobre a única pessoa que nunca levava ninguém
para a viagem de família: “e os namoradinhos, Eliza?”. Enquanto isso, na
escola, eu estava começando a beijar garotas. Mas eu não podia levar
nenhuma delas pro sítio da família, podia?
E o Caio no meio disso tudo? O Caio, que não é nenhum Cauã
Reymond, conseguiu ficar com todas as primas — menos eu. Ele foi
paquerando uma em cada verão, se envolvendo em namoros secretos que
nunca davam em nada. Para não irritar nossos pais e tios, ele combinava
segredo com a ficante do momento, e assim nenhuma delas ficou sabendo
da anterior.
No verão passado ele me perseguiu por onde quer que eu fosse: nas
trilhas da mata, na cachoeira, na piscina, até no banheiro. Eu só queria ficar
no meu canto ouvindo Marília Mendonça e falando com garotas do Tinder
com quem eu nunca ia sair. Mas até isso o Caio estragou.
Ele não sabia ouvir não. Não sabia ser rejeitado. Criado a vida
inteira como o reizinho da família, era estranho para ele que uma das
primas não quisesse nem dar um beijo escondido. E foi assim que meu
querido primo Caio roubou meu celular, descobriu meu Tinder e contou
para toda a família que eu sou lésbica.
No dia 31 de dezembro. Faltando um minuto para a meia-noite.
Ainda lembro da tia Márcia segurando um pedaço de tender com a
pinça, olhando para mim com os olhos arregalados, a carne flutuando
ameaçadoramente sobre a mesa das sobremesas. Meus pais foram graciosos
e tentaram desviar a atenção de todo mundo — eles provavelmente já
desconfiavam da minha orientação sexual —, mas a sensação de me tornar
o centro das atenções por causa daquele moleque insuportável nunca saiu da
minha memória. A contagem regressiva foi meio desanimada, confusa, e
alguém derrubou uma garrafa de champanhe, que se estilhaçou em milhares
de pedacinhos. Quem estava descalço acabou se cortando.
Foi uma desgraça. Ao mesmo tempo o pior final e o pior começo de
ano que já tive.
Eu passei o ano inteiro pensando em como me vingar do Caio. Em
como faria ele sentir a humilhação, a exposição que me fez passar na frente
de toda a família, em uma data que era para ser tudo, menos isso.
Foi essa lembrança que me deu forças para entrar no carro e me
enfiar no lugar de sempre entre minhas irmãs, uma mais nova e outra mais
velha, que miraculosamente não estavam namorando naquele ano e por isso
não levariam acompanhantes.
Aproveitei que meus pais estavam terminando de arrumar as malas
no bagageiro para me inclinar para a frente e conferir meu reflexo no
retrovisor. Depois dos anos difíceis da adolescência, enfim me achava
bonita: meu rosto branco estava coberto por sardas bem marcadas pelo sol
graças às corridas no parque; os cabelos ruivos caíam em cachos leves na
altura dos ombros; e meus seios grandes estavam bem marcados em um
biquíni discreto que eu usava sob a camisa aberta, pronta para mergulhar na
piscina do sítio assim que chegasse, para aliviar aquele calor.
Reparei que a camisa estava meio caída no braço esquerdo,
revelando o desenho no ombro que eu tanto tentava evitar. Era uma
tatuagem recém-feita, uma ferida tão exposta quanto meu coração pela
pessoa que tinha desenhado aqueles traços. Era uma ilustração criada pela
Carol, minha ex, a garota que eu achei que ia levar para aquela viagem. Que
tinha terminado comigo na semana anterior, antes mesmo que eu pudesse
mostrar meu corpo marcado pela sua arte.
Puxei a camisa com força para tampar a lembrança da minha
idiotice.
— Tira essa bunda daí — disse Mirella ao entrar no carro,
praticamente sentando no meu colo.
— Eu tô no meu terço, olha aqui! — exclamei.
Eu indiquei o traço desbotado que delimitava três partes iguais do
banco traseiro, desenhado por uma canetinha permanente que minha mãe
nunca mais deixou a gente trazer para o veículo. Depois de anos brigando
por espaço naquele banco apertado, tínhamos decidido medir com uma
trena e dividir o espaço por três, estabelecendo os centímetros de cada uma
ali dentro. O que nossa medição não previa era que ainda íamos crescer —
principalmente no quadril.
— Isso aí não vale mais, Eliza — disse Bruna, me esmagando do
outro lado do banco.
— É fácil pra vocês que sentam na ponta — resmunguei.
Depois de algumas cotoveladas e ajeitadas de quadril, enfim nos
encaixamos e meus pais deram a partida. Passei a viagem inteira ouvindo
música, ignorando a palestra que Mirella dava sobre algum assunto chato da
faculdade. Ela estudava ciências sociais e estava sempre reclamando de
política. Eu não entendia nada que ela falava. Minha faculdade de design
gráfico tinha virado apenas o pano de fundo na minha vida desde que eu
tinha começado a namorar Carol, e depois do término estava se
transformando em uma lembrança distante composta por várias DPs e um
coração partido.
Chegamos no sítio pouco antes do almoço. O sol queimava,
implacável, como sempre fazia naquela época do ano. Era dia 23 de
dezembro, véspera da véspera de Natal, e eu sofri mais uma vez por não ter
nascido no hemisfério norte. Como eu queria passar o Natal vestindo um
suéter de lã, coberta por uma colcha confortável, lendo um romance na
frente da lareira, apenas esperando a nova vizinha — uma linda morena
misteriosa — vir me pedir especiarias para terminar de fazer biscoitos de
gengibre. E aí a gente terminaria a receita peladas no chão da cozinha.
É, talvez eu leia fanfic demais.
Estava a poucos passos da entrada do sítio quando quase fui
atropelada por um caminhão. Ou melhor, uma nave espacial. Era impossível
que aquele veículo fosse um carro — se fosse, deveria pagar IPVA em
dobro, porque certamente ocupava um espaço desproporcional nas ruas.
Assim que vi quem dirigia aquela jamanta, senti o sangue ferver.
Caio.
Ele abriu a porta e saltou daquela monstruosidade, pousando
graciosamente no gramado diante dos meus pés. Reparei que ele usava…
botas de couro? E, para completar, um chapéu de cowboy. Era a coisa mais
ridícula que eu já tinha visto.
— Vai ter festa junina fora de época, Caio? — perguntei, sarcástica.
— Não recebi o convite.
— Ninguém ia querer te convidar mesmo — ele respondeu, ainda
com o ego ferido por causa da minha rejeição de doze meses antes.
Soltei uma risada ao perceber que Caio já estava começando a
embarangar. Ao contrário das minhas primas e irmãs, que ficavam cada vez
mais bonitas com o tempo, ele já parecia os homens mais velhos da família:
os cabelos cada vez mais ralos, as rugas presentes na testa gigantesca, o
tronco levemente curvado para a frente. Quase um tio do churrasco.
— Caio, querido, como você tá lindo — disse minha mãe, puxando
ele para um abraço.
Ela falava aquilo toda vez que o encontrava.
— Obrigado, tia — respondeu, convencido. — Acabou que eu não
consegui avisar, mas eu trouxe uma pessoa esse ano.
Franzi o cenho diante daquela declaração. Uma coisa era enganar as
trouxas das minhas primas, outra coisa era arranjar uma namorada de
verdade, no mundo real. Quem em sã consciência ia querer deixar a família
para trás pra passar o Natal com o Caio?
— Você sequestrou ela? — perguntei.
— Nem todo mundo é encalhado que nem você.
A resposta estava na ponta da língua, mas eu perdi completamente a
fala quando a porta do passageiro se abriu e uma perna marcada pela calça
jeans justa apareceu.
Aos poucos, ela foi se revelando por completo. As botas, que
ficavam tão ridículas no Caio, eram estilosas naquela mulher. Suas coxas e
quadril ficavam perfeitos naquela calça, assentados pelo cinto de fivela
grossa que eu só tinha visto em séries americanas. Ela vestia uma camisa
xadrez folgada e um chapéu de couro preto sobre os cabelos igualmente
escuros, longos e lisos, prontos para serem levados pelo vento durante uma
cavalgada.
Eu senti a boca secar e o coração bater mais forte.
Meu Deus, pensei. É a mulher mais linda que eu já vi.
— Essa aqui é a Lua, minha namorada — disse Caio, como quem
revela que ganhou a Mega-Sena da virada.
Aquela deusa abriu um sorriso cheio de dentes brancos e perfeitos e,
em seguida, estendeu a mão na minha direção.
— Prazer — disse, com o “r” puxado típico do interior de São
Paulo.
Já tinha ouvido minhas primas falarem que peões são sexy, mas
nunca pensei que acharia a mesma coisa de uma garota do interior. Eu nem
sabia se ela boiadeira, mas estava presumindo, por causa da roupa. Ou isso,
ou ela vinha da mesma festa junina fora de época que o Caio.
Na hora que nossos dedos se encontraram, eu senti um calafrio
percorrer todo o corpo. Sua mão era áspera; o aperto, firme e seguro.
Retribuí o cumprimento olhando em seus olhos castanho-escuros, e então
uma constatação me atingiu como um raio:
Que mulher cumprimenta outra com um aperto de mão!? Uma
mulher que gosta de mulheres, obviamente.
E, como se lesse meus pensamentos, a namorada do Caio desceu o
olhar para meu decote, pega em flagrante antes que pudesse disfarçar. Ela
recolheu rapidamente a mão e se afastou para cumprimentar minhas irmãs,
mas já era tarde.
Eu sabia que ela tinha gostado do que via.
Meu presente de Natal tinha chegado mais cedo naquele ano. Assim
que Lua entrou no sítio de mãos dadas com meu primo, eu tive certeza do
que ia fazer nos próximos oito dias: roubar aquela mulher para mim.
Capítulo 02

Deixa ela com a parte ruim


Que eu fico com a parte boa
Ela fica com o seu estresse
E eu fico tirando sua roupa

— “Amizade colorida”, Mari Fernandes

A partilha dos quartos foi a primeira oportunidade para colocar meu


plano em ação.
Apesar de todo mundo já ser adulto e levar namorados para o sítio,
tia Márcia e tio Rodolfo, os pais do Caio, faziam questão de separar
meninos e meninas em cômodos diferentes. Só podia dormir junto se fosse
casado de papel passado, com a bênção do senhor, graças a Deus. O lugar
não tinha quartos para todo mundo, então a solução foi colocar os
namorados junto com o Caio no cômodo que ele dividia com Sabrina desde
criança, mas que ela não queria mais usar. Assim como eu, Sabrina não
suportava Caio, e preferia dormir em colchões espalhados pela sala com as
primas do que dividir um quarto com seu irmão mais novo. Havia um
quartinho nos fundos da casa, na antiga ala de serviço, mas era quente
demais para qualquer pessoa aguentar dormir lá.
— Você entende, né, querida? — disse tia Márcia depois de explicar
para Lua que ela não poderia dormir com seu namoradinho. — É melhor
assim, senão vira bagunça. Todas as meninas aqui estão sob nossa
responsabilidade.
— Tudo bem — disse Lua, tímida. — Não quero dar trabalho.
— Você pode ficar no quartinho dos fundos — continuou minha tia.
Senti pena de Lua. Devia ser muito difícil conhecer a família inteira
do seu namorado assim, em uma viagem, e ainda por cima nas festas de fim
de ano, quando todo mundo está em sua pior forma emocional. A gente mal
tinha pisado ali e três brigas diferentes já tinham começado, sempre pelos
mesmos motivos: meus pais disputando com tia Márcia e tio Rodolfo quem
ia ficar com o quarto que tem varanda; Sabrina e Yasmin quase saindo no
tapa pelo único colchão sem mofo; e meus tios Rafael e Marisa,
constantemente em crise no casamento, requentando alguma briga que os
acompanhava desde São Paulo. Para completar, Lua ia ter que ficar sozinha
em um quartinho minúsculo nos fundos do sítio, longe da única pessoa que
conhecia ali.
Eu me aproximei de Lua para participar da conversa. Nossos
ombros roçaram de leve e eu pude sentir o cheiro de couro que vinha de seu
chapéu. Tentei não pensar no meme da Nazaré Tedesco enquanto abria um
sorriso angelical, pronta para iniciar meu plano.
— Eu posso ficar com ela — sugeri, de forma despretensiosa.
— Resolvido, então — disse minha mãe, se aproximando com uma
montanha de travesseiros e roupas de cama. — Caio e Pedro ficam no
quarto perto da gente, as meninas dormem na sala e Lua fica com a Eliza lá
no fundo.
Pedro era o namorado de Yasmin naquele ano. No ano anterior, ela
tinha levado um tal de João… Ou era Miguel? Se colocasse todos eles na
minha frente, eu não saberia dizer quem era qual. Ainda assim, não queria
estar na pele deles. Imagina ter que aguentar o Caio durante oito dias?
— Não sei, Marisa… — disse tia Márcia, olhando de mim para Lua
com desconfiança. — Será que fica bem? Elas duas sozinhas, a Eliza
sendo…
Eu sustentei seu olhar, esperando que terminasse a frase, mas as
palavras morreram em sua boca. Era tão difícil assim falar a palavra
“lésbica”?
— A Eliza sendo muito gentil de fazer companhia pra sua nora —
completou minha mãe, sem tempo para a homofobia da minha tia.
Normalmente eu acharia absurdo ela cogitar que eu ia tentar alguma
coisa com a Lua só porque sou lésbica, mas, naquele caso específico, ela
tinha razão. Eu ia usar aquela oportunidade para ficar cada vez mais
próxima. Aliás, no quartinho dos fundos só tinha uma cama…
— Não se preocupa, bebê — disse Caio para Lua com uma voz
melosa que quase me fez vomitar. — A gente vai passar bastante tempo
juntos. É só pra dormir mesmo.
Ele abraçou Lua pela cintura e a puxou para um beijo exagerado,
todo babado, daqueles que só mesmo um homem seria capaz de dar. Revirei
os olhos e peguei minhas coisas no chão para não ter que ficar assistindo
àquele espetáculo desagradável. Em seguida, dei uns tapinhas nas costas do
Caio, talvez um pouco mais forte do que o necessário, até que os dois se
separassem.
— Deixa ela levar as coisas pro quarto. Depois vocês podem voltar
a se engolir.
Aproveitando que minha mãe e tia Márcia tinham deixado a sala, ele
me olhou de cima a baixo e abriu um sorrisinho que, em sua cabeça, devia
ser sexy.
— Não precisa ter ciúme, Eliza — disse ele em tom sedutor. — Tem
Caio pra todo mundo.
Não apenas ele não aceitava que eu era lésbica, como não entendia
que não queria nada com ele. E, para completar, ainda estava dando em
cima de mim na frente da namorada.
Caio era a pessoa mais lamentável que eu já tinha conhecido.
— Só se for ciúme dessa mulher linda perdendo tempo com você —
respondi, dando uma piscadinha para Lua.
O rosto dela ficou todo vermelho e eu sorri, satisfeita. Antes que
Caio pudesse falar qualquer besteira, puxei Lua pela mão para o corredor
que levava à cozinha. Atravessamos o cômodo até chegar na área de
serviço, onde havia um banheiro pequeno e o quartinho dos fundos.
O cômodo tinha mesmo só uma cama. Não era nem uma cama de
casal — era uma cama de viúva, daquelas que têm um colchão um pouco
maior que o convencional de solteiro. Joguei a mochila em cima da cama e
comecei a abrir as janelas para tirar a umidade ali de dentro, quando percebi
que Lua estava parada na porta, paralisada.
— Só tem uma cama? — perguntou.
Minha intenção era seduzi-la, não deixá-la desconfortável. Além
disso, eu só ia até onde ela me desse abertura. Não tinha nenhuma intenção
de criar um trauma na vida dela ainda maior do que namorar o Caio.
— Eu posso trazer um colchão pra cá e dormir no chão — respondi.
— Não, imagina — ela se apressou para responder. — Eu fico no
chão.
— Eu durmo no chão desse sítio desde criancinha. Não me
incomodo, de verdade.
Lua mordeu o lábio, ponderando o que falar. Olhei rapidamente para
o jeito que seus dentes marcavam a pele, tentando não pensar em como
aquela boca era convidativa.
— Obrigada por ter se oferecido pra ficar comigo — ela falou. —
Eu tava meio na dúvida se vinha mesmo. Sei que é meio estranho conhecer
a família do namorado assim, tão cedo.
— Estranho mesmo é você namorar o Caio — eu disse sem pensar.
Ela riu.
— Cê não gosta mesmo dele, né?
— Não mesmo. Mas você não tem culpa.
Lua sorriu e se aproximou de mim. Ela pegou minhas mãos e olhou
nos meus olhos com intensidade. Senti aquele calafrio percorrer minha
coluna.
— Eu prometo que sou bem mais legal que ele — falou, entre
risadinhas. — Espero que a gente possa ser amiga.
Amiga. Claro.
— Eu vou adorar ser sua amiga — respondi, abrindo um sorrisão
cheio de segundas intenções.
Uma amiga bem, bem colorida.
Capítulo 03

Se usar chapéu e bota e beijar mordendo


Passa longe desses moreno
Corpo tatuado e uma pegada com talento
Passa longe desses moreno

— “Alerta de golpe”, Ana CastelA

Manter Lua longe do Caio foi mais fácil do que eu imaginava. Os casais
de homem e mulher têm um jeito muito específico de conviver em
sociedade: garotas para um lado, garotos para o outro. Parece que é
fisicamente impossível passarem tempo juntos fora do estritamente
necessário.
Assim que deixou as malas no quarto fedido dos homens, Caio se
enfiou em uma partida de truco com Pedro, meu pai e o pai dele. Tio Rafael
era o único homem que não gostava de baralho, por isso ele ficou
responsável pela churrasqueira.
Eu e Lua saímos do quartinho depois de arrumar nossas coisas no
armário velho que tinha a porta meio quebrada. Percebi que seu estilo
boiadeira não era só pra chegar no sítio a caráter — ela realmente tinha toda
uma coleção de camisas xadrez, chapéus, peças jeans. Quando Lua voltou
do banheiro vestindo um short bem curtinho, foi difícil não deixar meu
olhar se perder pelas pernas definidas dela.
— De onde você é? — perguntei enquanto atravessávamos a
cozinha a fim de voltar para as alas comuns do sítio.
— Uma cidadezinha aqui perto. Pequena que só. Eu sou da roça
mesmo.
— Não tinha notado — eu disse, brincando, e indiquei o chapéu
dela.
Lua deu risada.
— Cê é de São Paulo, né? — ela perguntou.
— Como você sabe?
— Roupinha da moda, braço coberto de tatuagem…
Conforme ela falava, seu olhar percorreu meus braços, depois meu
torso, até parar em meus seios. De novo.
Estufei o peito de propósito, deixando o que ela queria ver ainda
mais à mostra. Lua corou e desviou o olhar, caminhando mais rápido na
minha frente.
— Você tem alguma tatuagem? — perguntei.
— Até parece. Minha mãe me matava.
Chegamos à área da churrasqueira e Lua foi cumprimentar Caio, que
praticamente ignorou sua presença. Fiquei pensando no que ela acabara de
dizer. Se era do interior e tinha uma família conservadora, talvez realmente
tivesse uma questão com sua orientação sexual. Se eu tivesse conhecido
Lua em São Paulo, teria achado de cara que ela era sáfica.
Nenhuma mulher de bota e chapéu deveria ser hétero.
Pedro deu um grito e bateu com uma carta na testa de Caio. Ele logo
foi seguido por sons guturais dos outros homens, que batiam na mesa como
orangotangos enfurecidos. Eu nunca entendi por que eles tinham a
necessidade de ocupar tanto espaço e fazer tanto barulho.
Me aproximei de Lua para falar no seu ouvido, tentando ser ouvida
por cima daquela algazarra.
— Isso aí vai demorar horas. Vamos fazer outra coisa enquanto eles
jogam?
Lua ergueu a cabeça e me encarou por alguns segundos, assustada
com nossa proximidade. Eu senti o calor irradiando de suas bochechas
quando ela assentiu sem falar nada. Lançou um último olhar para Caio e me
seguiu.
Passamos por Yasmin e Bruna, largadas nas espreguiçadeiras da
piscina pintando as unhas do pé, e enfim trocamos a barulheira da minha
família pela paz da mata.
— Que coisa linda — disse Lua, observando a paisagem ao redor.
— A chegada foi tão corrida que eu nem reparei.
O sítio ficava no alto de um morro, com vista para um rio que
cortava a cidadezinha mais próxima. Ao longe, se ouvia o som de uma
cachoeira e de pássaros cantando.
— Mais bonito que sua roça? — perguntei.
— Muito mais. Lá é tudo plantio. Não tem mato, trilha, cachoeira…
Começamos a caminhar pela propriedade, apreciando o caminho
que se formava entre as primeiras árvores na beira da floresta. Lua se
dirigiu para a entrada da mata fechada, onde uma placa indicava o início da
trilha.
— Ah, não — resmunguei. — Trilha, não.
— Deixa de ser preguiçosa — ela disse, já me puxando para dentro
da floresta. — Pra que serve essa perna musculosa?
Sorri ao perceber que ela tinha notado minhas pernas. Não foi à toa
que passei a maior parte das férias de verão na academia, macetando aquele
leg press como se minha vida dependesse disso. A verdade é que eu queria
voltar para a faculdade no ano que vem e fazer a Carol se arrepender do que
tinha perdido. Agora, toda essa musculação teria outra utilidade.
Aproveitei a deixa para tirar a camisa, revelando o biquíni escuro
que usava por baixo. Não era meu biquíni mais sensual — se eu soubesse
que ia seduzir a namorada do meu primo hoje, teria escolhido uma peça
mais cavada, talvez até aquele biquíni branco que nunca tive coragem de
usar em público —, mas a estampa verde musgo contrastava com a minha
pele de forma harmoniosa.
Lua arregalou os olhos quando percebeu a quantidade de pele
exposta. Ela apertou o passo e se embrenhou na trilha rapidamente.
Amarrei a camisa na cintura, satisfeita. Continuei o caminho atrás
dela, reparando em como o short jeans marcava as curvas do seu quadril.

◆◆◆

Chegamos à cachoeira quinze minutos depois, o que para mim


pareceu uma eternidade. Era difícil sensualizar em uma trilha, ainda mais
no calor de dezembro, então fiquei quieta a maior parte do tempo. Lua
parecia absorta em pensamentos enquanto caminhava com familiaridade
por entre as árvores. Ela só olhou para mim quando tropecei em um trecho
enlameado e quase despenquei de um barranco, mas felizmente consegui
me recuperar antes de passar tanta vergonha. Não sei se conseguiria manter
a pose de conquistadora coberta de lama, cheia de galhos e folhas no
cabelo.
Tirei os tênis e o short e mergulhei de cabeça na água cristalina. Eu
adorava aquela cachoeira quando era criança — na época em que trilhas
eram aventuras incríveis, e não um martírio — e meu corpo se lembrava de
cada detalhe daquele rio. As partes mais rasas, onde eu passava tardes
brincando de excursão da Barbie com as minhas primas; as mais fundas,
onde a gente fazia competição de saltos cada vez mais altos; e o cantinho
embaixo da cachoeira, onde a água gelada massageava nossos ombros
depois de um longo dia.
— Você não vai entrar? — perguntei quando voltei à superfície,
percebendo que Lua ainda estava vestida.
Ela piscou algumas vezes, como se estivesse voltando de um transe,
e se apressou em tirar a roupa. Eu não havia mergulhado com a intenção de
seduzi-la, mas ela estava mais uma vez vermelha e agitada. Não escondi
meu interesse pelo corpo dela quando começou a se despir: sua pele era
coberta por um bronzeado saudável de quem passa muitas horas por dia ao
ar livre, seus braços e pernas eram fortes, esculpidos naturalmente, e os
seios, pequenos e firmes, cobertos por um biquíni preto e simples que não
revelava nem escondia demais.
Lua encontrou meu olhar e corou mais ainda. Eu dei risada. Estava
começando a gostar daquele jogo. Não achei que seria assim tão fácil tirá-la
do sério. Ela correu até a margem e se jogou na água com um estrondo,
caindo a alguns metros de mim.
Nadei até ela para que ficássemos próximas quando Lua emergisse.
Aquele lugar era meu espaço, meu terreno. Eu ia aproveitar ao máximo a
oportunidade de conquistá-la longe de todos — principalmente do idiota do
meu primo.
— Que delícia de água — ela disse assim que voltou à tona. — Tá
vendo como valeu a pena fazer a trilha?
— Eu tinha esquecido como gostava daqui — falei, olhando ao
redor. — Fazia anos que não vinha nessa cachoeira.
— E eu te convenci em questão de minutos — ela riu.
— Parece que você tem algum poder sobre mim.
Lua desviou o olhar, tímida.
— Achei que não podia entrar na água depois de fazer tatuagem —
ela disse, indicando meu braço esquerdo.
Olhei para a pele enrugada do meu ombro, descascando ao redor do
desenho pintado de tinta preta. Mais uma vez, me senti uma grande imbecil
por ter feito aquilo. Por que eu tinha que ser uma lésbica tão emocionada?
— Melhor que infeccione mesmo — murmurei. — Quem sabe
assim o desenho desaparece.
Lua franziu o cenho e se aproximou. Eu me senti vulnerável pela
primeira vez desde que a gente se conheceu. Estava tão preocupada em
manter o controle daquele jogo de gato e rato que não tinha permitido
mostrar quem eu realmente era, mas sim a mulher que eu achava que ela
poderia querer. Ironicamente, foi só quando eu baixei a guarda que Lua se
aproximou por vontade própria.
— Você não gostou? — ela perguntou, olhando para o desenho. —
Ficou tão lindo.
Lua levou os dedos até meu ombro, circulando o desenho com
cuidado para não encostar na parte que estava cicatrizando. Eu senti meu
coração acelerar. Os olhos castanhos dela refletiam a água e a luz do sol que
entrava por entre as folhas das árvores. O jeito que ela juntou as
sobrancelhas enquanto analisava o traço foi muito fofo.
Não, peraí. Fofo? Não é pra eu achar nada nela fofo.
— O problema não é o desenho — falei. — É o significado.
Lua ponderou minhas palavras por alguns instantes, o olhar fixo no
meu ombro.
— O que significa? — perguntou baixinho. — Se você quiser falar.
Respirei fundo e me deparei com duas possibilidades: falar a
verdade e correr o risco de chorar na frente daquela deusa, o que não seria
nada sensual, ou inventar uma mentira qualquer que soasse super sexy e
confiante.
A segunda opção era perfeita, porém meu cérebro não teve tempo de
mandar a mensagem para a minha boca, que já estava aberta falando toda a
verdade.
— Minha ex-namorada que desenhou — expliquei rapidamente. —
Era uma das ilustrações favoritas dela. Eu achei que seria uma surpresa
legal tatuar em mim algo tão importante pra ela.
— E não foi?
— Ela terminou comigo no mesmo dia. Não deu nem tempo de
mostrar a tatuagem.
Lua arregalou os olhos, perplexa, do mesmo jeito que fizeram
minhas amigas quando contei aquela história. Eu apenas dei de ombros,
tentando não parecer afetada pela situação. A tristeza familiar me corroía
por dentro, mas o toque suave de Lua de alguma forma me acalmou.
— Que escrota — disse Lua.
— Ela não tinha como saber. Eu que fui burra de ter feito isso sem
falar com ela primeiro.
Lua refletiu por alguns segundos. Ela tinha um jeito calmo de pensar
nas coisas antes de falar — meu total oposto. Eu achei que isso me deixaria
ainda mais ansiosa, porém me sentia cada vez mais calma na presença dela.
— A gente nunca deve se culpar quando faz algo por amor.
As palavras dela pesaram entre nós como as gotas que caíam da
cachoeira. Nossos olhares se encontraram em uma troca profunda e
inesperada, cheia de significado. Quando dei por mim, eu tinha nadado para
a frente, entrando no espaço dela.
Lua não me impediu. Ela fechou os olhos, esperando que eu tomasse
alguma atitude. Apesar de água gelada, eu sentia o calor emanando do seu
corpo, me chamando para cada vez mais perto.
Apoiei as mãos na cintura dela e parecia que elas tinham sido feitas
para isso. Nosso encaixe era perfeito. A pele dela era macia e firme como
eu imaginava. Lua era um pouco mais magra que eu, porém menos
musculosa, e tudo nela era perfeito. Rocei meus lábios de leve em seu
pescoço e ela soltou um longo suspiro, arrepiando os pelos da minha nuca.
A coisa que eu mais queria era beijar aquela mulher.
Ela despertava algo dentro de mim que eu não sentia desde que
conhecera a Carol, e que achei que tinha perdido quando ela me deixara.
Pensando bem, nem mesmo com a Carol eu havia me sentido daquele jeito
— um desejo pulsante, vivo, como uma força da natureza.
Quando ergui a cabeça para beijá-la, Lua virou o rosto e se afastou.
— Acho melhor eu voltar — ela gaguejou enquanto saía da água e
começava a vestir suas roupas de qualquer jeito. — O Caio deve estar
preocupado.
Não questionei suas palavras e nem tentei impedir que ela fosse. É
claro que o Caio não estava nem aí. Eu o imaginava claramente, sentado em
uma cadeira de praia no quintal do sítio, já meio bêbado, jogando truco e
comendo linguiça, sem a menor preocupação. Todos os namorados que
minhas primas trouxeram até hoje agiam da mesma forma. Por mais
apaixonados que parecessem, eles só queriam ficar entre os homens e, de
preferência, o mais longe possível delas.
— Você consegue voltar sozinha? — ela perguntou quando já estava
vestida.
— Claro. Vou aproveitar mais um pouco essa água incrível.
— Até mais tarde — ela disse, e desapareceu pela mata.

◆◆◆

Decidi dar um descanso para Lua durante o resto do dia. Afinal, as


duas coisas mais importantes eu já havia garantido:
1) Confirmar se ela gostava de mulheres;
2) Confirmar se ela sentia atração por mim.
Nosso quase beijo na cachoeira não deixava nenhuma dúvida. Sorri
ao me lembrar das minhas mãos na cintura dela, tão perfeitamente
encaixadas… Mas não me permiti pensar muito naquela sensação.
Precisava manter o foco se quisesse seduzir aquela garota antes do final do
ano.
Decidi matar o tempo conversando com Sabrina, a prima de que eu
mais gostava. Ela era cinco anos mais velha que eu e já estava perdendo a
paciência para aquelas viagens. Se eu não aguentava mais, imagina ela!
Sabrina só ia porque sentia saudades das primas agora que morava no Rio
de Janeiro. Ter alguns dias de contato com a gente valia o tormento que era
aguentar o irmão e os pais conservadores.
— E a namorada do Caio? — ela perguntou enquanto se balançava
na rede, espantando os pernilongos com uma raquete elétrica.
Senti um frio na barriga quando ouvi a pergunta, mas tentei fingir
que não estava acontecendo nada de mais.
— Que que tem?
— Você passou a tarde inteira com ela. Como ela é?
Gata. Gostosa. Maravilhosa.
— Ela é legal — respondi, dando de ombros. — Tá meio tímida
ainda.
— Achei estranho você dar assunto pra ela — continuou Sabrina.
Minha prima sentou na rede para me olhar diretamente. Eu sustentei
seu olhar, evitando transparecer qualquer nervosismo.
— Por quê? — perguntei.
— Depois de tudo que aconteceu com o Caio no ano passado…
Achei que você não ia querer nada que tivesse a ver com ele.
— Ela é muito mais do que a namorada do Caio — respondi
automaticamente.
Sabrina franziu o cenho. Eu me levantei de supetão, querendo
encerrar a conversa.
— Vou entrar antes que esses pernilongos me comam viva — falei.
Sabrina segurou meu braço, séria.
— Olha lá o que você vai fazer, Eliza — falou.
Eu soltei uma risada debochada.
— A gente só tá dividindo o quarto, Sabrina. Que mal pode
acontecer?
Antes que ela pudesse responder, entrei no sítio e atravessei a sala
sem falar com ninguém.
Cheguei no quarto dos fundos e quase desmaiei com o bafo quente
que estava lá dentro. O sol batia diretamente naquele lado da casa durante a
tarde e transformava o cômodo em uma sauna. Não era à toa que ninguém
dormia ali.
Tomei um susto quando algo se mexeu em cima da cama e só então
percebi que Lua já estava deitada, coberta por um lençol fino.
— Eliza? — ela murmurou, grogue de sono.
— Você já tá dormindo? — Chequei a hora no celular e continuei:
— São nove e quarenta.
— Lá em casa a gente dorme cedo.
Onde tá seu namorado, hein?
Eu me freei antes de fazer a pergunta. Não era da minha conta. Mas
era uma grande vantagem saber que o Caio não estava dando atenção a ela.
Comecei a tirar a camiseta enquanto procurava pelo meu pijama
dentro do armário, quando reparei que Lua me observava discretamente.
Seus olhos escuros brilhavam mesmo com as luzes apagadas, indicando que
ela não havia voltado a dormir. Foi aí que tive uma ideia tão maravilhosa
que quase soltei uma risada.
— Tá um calor absurdo, né? — falei, tentando soar casual enquanto
tirava o resto da roupa. — Tudo bem se eu dormir pelada?
Não esperei pela resposta antes de tirar o sutiã, ficando totalmente
nua na frente dela. A respiração de Lua ficou mais rápida.
— Tudo — ela disse baixinho.
Deitei no colchão que havia deixado no chão, paralelo à cama dela,
e puxei o lençol só até a metade do corpo, deixando os seios à mostra.
Peguei no sono pensando até que horas Lua teria ficado acordada me
observando…
Capítulo 04

Cheiro de terra molhada, as bruta da pecuária


Fivela, chapéu, manga-larga marchador
E no seu alto-falante o som é do nosso berrante
Nem adianta arreio porque sem freio eu já tô

— “Não para”, Ana Castela

Quando despertei na manhã seguinte, Lua não estava mais lá. Enrolei
um pouco na cama, aproveitando para relembrar nosso momento na
cachoeira. Depois de uma noite de sono bem dormida, eu conseguia analisar
os fatos com mais frieza. Será que o quase beijo tinha sido coisa da minha
cabeça?
Fui tomada por um acesso de vergonha quando lembrei que havia
tirado a roupa toda na frente dela. Se eu tivesse mesmo vendo coisa onde
não tem, estava fazendo um papel de trouxa monumental, além de
constranger a coitada da menina.
Eu não tinha como saber se ela me queria, mas uma coisa era certa:
eu queria muito ela.
Enquanto me vestia, pensei que seria bom manter a distância de Lua
pelo menos por um dia. Se ela estivesse interessada, faria um esforço para
recuperar nosso contato. Se estivesse achando aquela paquera uma coisa
ridícula e desnecessária, ficaria na dela. E assim eu teria minha resposta.
Deixei o quarto em direção à cozinha, que estava tomada por um
cheiro gostoso de café fresco e aquele bolo maravilhoso que só tia Marisa
sabia fazer. Ela terminava de lavar a louça enquanto cantarolava uma
música animada, esbanjando um bom humor matinal que só ela tinha
naquela casa.
— Bom dia, tia — falei enquanto me servia de um pedaço de bolo.
— Quem cozinha não lava, hein?
— Tarde demais — ela disse, rindo. — Eu nem ligo. Não tem nada
pra fazer aqui mesmo.
Ao contrário da minha mãe e da tia Márcia, que adoravam a fuga
anual para o campo, tia Marisa era uma garota da cidade como eu. Sempre
tinha um momento da viagem em que a gente sentava num canto e ficava
conversando sobre São Paulo, como se tivéssemos deixado a capital anos
atrás, e não há menos de uma semana.
— Deixa eu pelo menos ajudar na ceia hoje à noite — falei de boca
cheia, terminando de engolir o bolo de fubá delicioso.
— Não precisa, Eliza. Tem bastante gente pra fazer isso.
Tia Marisa ainda me via como uma garotinha. Ela nunca deixava a
filha e as sobrinhas ajudarem em nada.
Tomei um gole de café e sacudi a cabeça em negação.
— Imagina, tia. Eu quero fazer alguma coisa.
Marisa desligou a torneira e limpou as mãos no pano de prato.
— Eu vi que você tá dividindo quarto com a namorada do Caio —
ela disse. — Por que não fica fazendo companhia pra ela?
Pelo visto o universo não ia me permitir ficar longe de Lua nem
mesmo por um dia, ainda que eu precisasse organizar meus pensamentos
sobre ela.
— Não sei… — falei. — A gente é bem diferente.
— Coitada, Eliza — minha tia se aproximou, abaixando o tom. —
Ela ficou a manhã inteira andando sozinha por aí. Na hora que eu acordei
ela já tava de pé… Você sabe como é seu primo. Ele só vai acordar depois
do meio-dia.
Virei em um gole só o restinho do café e coloquei a xícara sobre a
pia. Minha tia começou a lavá-la imediatamente, como uma máquina
programada para manter a cozinha sempre impecável.
— Tudo bem — falei, resignada. — Vou ver se ela quer companhia.
Atravessei a sala escura com cuidado para não acordar minhas
primas, que ainda dormiam espalhadas pelos colchões. Nessas viagens, eu e
tia Marisa passávamos a manhã inteira sozinhas, já que nunca
conseguíamos dormir até depois das dez. Eu não tinha a capacidade que
aquela galera tinha de ficar a madrugada inteira conversando, jogando
cartas e bebendo. Meu organismo gritava pela minha cama e um pouco de
solidão depois de passar o dia todo rodeada por tantos seres humanos.
Fiquei me perguntando por que Lua tinha começado a namorar alguém tão
diferente dela. Os dois não tinham gostos parecidos e, para completar,
dormiam em horários opostos.
Saí de casa e dei uma olhada no gramado em busca de Lua. Não vi
sinal dela. Desci pelo caminho de terra que levava até a entrada da trilha e
também não a encontrei. Eu me perguntei se ela estaria na cachoeira, mas
achei que ela poderia querer explorar outras partes do sítio que ainda não
havia conhecido. Cruzei de volta o gramado no sentido do estábulo, um
lugar que ficava a uns dez minutos de caminhada da casa principal.
O cheiro forte de cavalo, couro e feno invadiu minhas narinas.
Aquele era outro espaço que eu não frequentava desde o começo da
adolescência, porque minha habilidade em montaria era praticamente nula.
Quem mais passava tempo ali era a família nuclear da tia Márcia: tio
Rodolfo, Caio e Sabrina. Só mesmo os Perez mais ricos para ter um hobby
daqueles.
Abri um sorriso involuntário quando vi o chapéu de Lua
despontando por cima da última baia. Ela conversava baixinho com
Perséfone, uma égua marrom-claro de porte imponente. Perséfone era a
montaria de Sabrina, um animal afável, educado e muito habilidoso.
O total oposto de Jair, o cavalo branco e franzino que morava na
baia vizinha. Claro que aquele bicho temperamental e preguiçoso era do
Caio, que ainda por cima tinha escolhido o nome em homenagem ao ex-
presidente. Uma homenagem à altura, considerando que ambos eram
animais irracionais.
Passei pela baia de Jair com cuidado para não chamar atenção e me
aproximei de Lua devagar, sem fazer barulho, até chegar pertinho do seu
ouvido.
— Bom dia — sussurrei.
Lua soltou um grito de surpresa que gerou um verdadeiro efeito
dominó: Jair acordou com um relincho alto e assustado, deu um coice
atrapalhado que atingiu um balde, o balde caiu e saiu tilintando pelo
estábulo. Lua e eu observamos aquela cena em silêncio, depois caímos na
gargalhada.
— Cê é doida, ou? — ela disse, ajeitando o chapéu. — Chegou
assim de mansinho, sem falar nada. Da próxima vez eu vou acertar um
tabefe bem no meio da sua cara.
Eu estava vermelha de vergonha. Precisava me recompor para
continuar o meu plano.
— Na cara não, Lua. A não ser que eu peça.
Foi a vez de Lua corar. Ela desviou o olhar de volta para Perséfone,
que se manteve plena durante toda aquela confusão.
— Ainda bem que essa aqui não assusta fácil — ela disse.
— Ela chama Perséfone — contei. Em seguida, olhei feio para o
cavalo branco, que voltava para seu cantinho com cara de poucos amigos.
— Aquele é o Jair. Esse ninguém monta. Nem o Caio, que é o dono dele,
deu conta de domar o bicho.
— Tadinho — disse Lua, se aproximando de Jair. — Ele deve estar
se sentindo preso.
— Tá nada. Ele é preguiçoso mesmo. Todo mundo já tentou, mas
ele não deixa.
Eu me aproximei dela e acrescentei, em tom conspiratório:
— Mas ele me odeia mais que todo mundo. Eu acho que ele é
homofóbico.
Lua deu risada.
— Você sabe cavalgar? — ela perguntou.
Mordi o lábio para não fazer uma piadinha de duplo sentido e
respondi:
— Eu vim aqui algumas vezes com a minha prima. Sua cunhada
Sabrina.
— Cunhada, não, que eu ainda não casei — ela brincou.
Mais um ponto positivo. Só não tinha gostado do “ainda”. Se
dependesse de mim, aquele namoro ia acabar muito antes de qualquer
conversa sobre casamento.
— Faz tempo que vocês tão juntos? — perguntei. — Você e o Caio?
— Três meses.
— Você não me contou como foi que se conheceram.
— Você não perguntou.
Ela sorriu e coçou o pescoço de Jair. Lua parecia muito mais à
vontade ali, longe dos outros membros da minha família, perto dos animais
da fazenda.
— Tô perguntando agora — falei.
— A gente faz UNESP juntos lá em Bauru — ela disse. — De vez
em quando eu vou em umas festas da faculdade. Mas, assim, bem de vez
em quando. Minhas amigas começaram a me arrastar porque eu nunca saía
de casa.
Enquanto ela falava, aproveitei para me aproximar ainda mais, sob
pretexto de também acariciar o cavalo na nossa frente. Tomei cuidado para
não tocar de fato em Jair, que provavelmente arrancaria minha mão
(homofóbico), e pressionei meu corpo contra as costas de Lua, como se a
usasse de escudo contra o cavalo.
— Você não gosta de festa? — perguntei com a boca bem próxima a
seu ouvido.
Dessa vez a aproximação teve o efeito que eu queria. Lua
estremeceu de leve, mas não saiu de onde estava. Não queria demonstrar
que eu a estava afetando. Afinal de contas, que mal tinha em conversar
assim de perto com uma amiga?
— Prefiro ficar na fazenda com meus bichos — ela falou.
— Então por que você foi?
— Elas queriam que eu conhecesse gente. Arranjasse um namorado.
— Como se isso fosse difícil pra você — sussurrei. — Linda desse
jeito.
Eu sentia o calor emanando das bochechas dela. Lua virou para me
olhar e nossas bocas ficaram a centímetros de distância. O olhar dela desceu
por um segundo para meus lábios, e só então ela desviou a atenção de volta
para os cavalos.
— É mais difícil do que cê imagina — ela falou rapidamente. —
Bora montar essas belezuras?
Franzi a testa enquanto olhava para os animais. Eu era péssima
naquilo. Como poderia continuar seduzindo Lua se não tinha habilidade
nenhuma em algo que ela tanto gostava?
Seja criativa, pensei. Use de referência todos os filmes de romance
na roça que você já viu.
Mas que filmes, meu Deus???
Sei lá. Aquele da Hannah Montana?
— Eu tenho medo de cavalgar sozinha — confessei, me fazendo de
inocente. — Posso montar com você?
Lua empalideceu. Ela abriu e fechou a boca algumas vezes. Eu
mantive meu sorriso angelical, fazendo parecer que minhas intenções eram
muito puras.
E foi assim que deixei o estábulo agarradinha na cintura dela.

◆◆◆

A sensação de andar a cavalo não era minha favorita. Como boa


garota da cidade grande, minha definição de adrenalina era descer a
Teodoro Sampaio sacolejando dentro de um ônibus prestes a desafiar todas
as leis da física. Esse era o meio de transporte que eu conhecia. Depender
de um animal que poderia sair correndo a qualquer momento não era minha
definição de diversão.
No entanto, cavalgar junto com Lua foi muito mais tranquilo do que
eu imaginava. “Junto” era uma palavra forte — “de carona” seria o termo
mais apropriado. Ela fazia todo o esforço e eu estava apenas ali, curtindo o
passeio e sentindo as pontas dos cabelos dela chicotearem de leve minhas
bochechas. Pelo menos ela havia escolhido Perséfone para seu passeio de
estreia. Se estivéssemos no lombo do Jair, aposto que eu já teria sido
lançada ao chão.
Eu me ajeitei sobre a sela e enlacei a cintura de Lua, deixando
nossos corpos ainda mais próximos. A postura dela ficou rígida, atenta.
— Tudo bem? — ela perguntou, virando o rosto ligeiramente na
minha direção.
— Achei que eu ia cair — respondi inocentemente.
— Quer que eu vá mais devagar?
— Não precisa — falei. — Tô te incomodando?
Lua puxou minhas mãos na direção da barriga, apertando ainda mais
o meu abraço.
— Que nada. Segura firme que eu vou acelerar!
Pousei meu queixo no ombro dela e nossos rostos ficaram lado a
lado. Minha desculpa era tentar ver melhor o caminho na nossa frente, mas
preferi fechar os olhos para sentir o vento que nos atingia conforme o
cavalo ganhava velocidade.
Aquela era a oportunidade perfeita para tentar uma nova
aproximação. Lua tinha total controle da situação — se ela não gostasse do
que eu faria em seguida, poderia até me lançar ao chão. Mas eu desconfiava
que, no fundo, ela estava gostando do contato físico tanto quanto eu.
Deslizei mais para a frente na sela, apertando as pernas ao redor do
corpo dela. O cheiro amadeirado de Lua era inebriante, ainda mais
misturado com o aroma de couro da sela e o frescor do campo ao nosso
redor. Ela havia deixado o chapéu no estábulo para evitar que caísse durante
a cavalgada. Seus cabelos escuros brilhavam no sol do fim da tarde,
emoldurando o rosto lindo. Estava de olhos quase fechados, curtindo a
sensação de total liberdade que aquela atividade proporcionava.
Uma das minhas mãos foi descendo pelo seu quadril, até chegar em
sua coxa. Acariciei de leve sua perna e senti os músculos firmes por baixo
do jeans apertado. Lua abriu os olhos subitamente, atentos, mas ela não se
mexeu. Tomei isso como um sinal de aprovação e continuei o carinho,
aproveitando para descer a outra mão também.
Quando apertei as coxas dela com força, Lua arfou tão alto que eu
escutei através da ventania e do galope rápido. Só tirei a mão de sua perna
para afastar seus cabelos do pescoço e aproximei minha boca outra vez.
Pressionei os lábios no pescoço dela de leve, deixando ali um beijo discreto,
mas cheio de promessa.
A égua relinchou e parou subitamente, quase nos lançando ao ar.
Lua segurou as rédeas com força e eu agarrei a cintura dela como se minha
vida dependesse disso. Lua deu alguns tapinhas amigáveis no pescoço de
Perséfone, acariciando sua crina enquanto falava com ela.
— Tá tudo bem, já passou. Foi só um susto.
Aos poucos, o animal foi se acalmando.
— O que aconteceu? — perguntei.
— Eu puxei a rédea sem querer — ela disse, um pouco
constrangida. — Ela achou que era pra parar.
Sorri de lado, maliciosa, feliz por saber que ela tinha ficado mexida
com minha investida. Decidi provocar só mais um pouquinho.
— Nossa, Lua — falei perto do ouvido dela. — Aconteceu alguma
coisa pra você se distrair assim?
Lua pigarreou e se endireitou na sela, se inclinando para a frente a
fim de se afastar de mim.
— Nada, não — ela falou rapidamente. — Tava pensando na ceia.
Aliás, tá quase na hora, né?
Olhei para o sol ainda alto no céu, mas decidi dar um descanso para
ela.
Afinal de contas, era Natal, e eu pretendia ser uma boa menina.
— Melhor a gente voltar, mesmo — concluí. — Minha tia pode
precisar de ajuda.

◆◆◆

As horas que antecederam a ceia de Natal foram caóticas como


sempre. Enquanto tia Marisa comandava a cozinha, tia Márcia e minha mãe
passaram boa parte do dia discutindo a louça que seria usada, o horário do
jantar, a forma como os presentes seriam trocados etc. Eu me mantive
ocupada jogando baralho com Yasmin e Mirella, mas sempre de olho nas
interações entre Caio e Lua. De vez em quando, ela me pegava a
observando. Ficava vermelha e sorria rapidamente, desviando a atenção de
volta para Caio. Eu sorria ao imaginar o que estava passando pela sua
cabecinha… Com certeza não eram fantasias envolvendo o ridículo do
namorado.
A comida enfim foi servida quando já passava das dez, por mais que
tia Márcia insistisse que a gente devesse comer à meia-noite, de acordo com
os preceitos da igreja. Eu já estava varada de fome e não esperaria nem
mesmo se o próprio Jesus Cristo estivesse vindo jantar com a gente. Assim
que as pessoas começaram a sentar, corri para garantir um lugar ao lado de
Lua, me colocando de forma inconveniente entre ela e Caio.
— Deixa ela sentar com o namorado, Eliza — ralhou tia Márcia ao
ver o que eu tinha feito.
— Ela vê o Caio o tempo todo — expliquei. — Mas eu só tenho ela
por essa semana.
— Que amizade linda — falou minha mãe, animada. — Lembra
como era bom fazer amigas assim? Na minha idade as pessoas só se
aproximam pra pedir dinheiro.
Enquanto os mais velhos comentavam sobre os interesseiros em
suas vidas, cotovelei Lua de leve para chamar sua atenção.
— Como você tá conseguindo ficar acordada? — perguntei.
— Já tomei uns dez cafés — ela falou.
Soltamos algumas risadinhas cúmplices, mas nosso momento logo
foi interrompido por Caio, que puxou Lua pelo braço como o neandertal
que ele era.
— Você tem que provar o salpicão da minha mãe, bebê — ele disse
com uma voz enjoada de namorado carinhoso. — Depois ela te passa a
receita pra você fazer pra mim.
Quando Lua pegou a colher para se servir, Caio estendeu o próprio
prato.
— Me serve também?
Eu revirei os olhos. Decidi me ocupar com o que realmente
interessava naquela mesa: a coxa do peru. Eu sabia que Caio amava aquela
parte do bicho e que sempre rolava uma briga para ver quem conseguia
pegar. Aproveitei a distração dele para garfar a carne tenra e colocar no meu
prato.
— Ei, essa aí é minha — disse Caio ao perceber minha manobra.
— Tá escrito seu nome, por acaso?
Era só a gente se juntar que todos voltávamos a ter sete anos de
idade.
— Mãe, você disse que ia separar pra mim — sussurrou Caio para
tia Márcia.
Sério. Como que a Lua podia achar aquele cara atraente?
— Eu também quero — disse Mirella do outro lado da mesa.
— Por que só o Caio pode? — protestou Sabrina.
— Calma, pessoal! — gritou tia Marisa de dentro da cozinha. Ela
entrou na sala carregando uma travessa de vidro e a colocou sobre a mesa.
— Esse ano eu fiz coxa pra todo mundo.
As primas atacaram a travessa em uma explosão de alegria. Parecia
que a gente nunca tinha visto comida antes. A próxima discussão foi sobre
o tamanho de coxa que cada uma merecia, mas eu apenas observei de boca
cheia. Estava feliz da vida de ter sido a primeira a garantir a minha.
— Sua família gosta mesmo de coxa — murmurou Lua, perplexa.
— É que a tia Marisa tem uma receita incrível — falei. Em seguida,
virei para ela, sorrindo de lado. — Mas não se preocupa, Lua. Nenhuma
coxa é mais gostosa que a sua.
Capítulo 05

Sabe por que eu não te largo?


Cê faz gostoso, ainda põe leite condensado
Sabe por que você não me deixa?
É que eu misturo romance com safadeza

— “Romance com safadeza”, Anitta e Wesley Safadão

A ceia de Natal decorreu exatamente igual todos os anos: mais algumas


brigas de família começaram e se encerraram, comparações foram feitas
entre as vidas de todas as primas, tia Márcia ficou celebrando toda e
qualquer conquista medíocre do Caio na faculdade e, quando deu meia-
noite, trocamos presentes, sendo que a família nuclear do Caio esnobou
todo mundo, distribuindo itens caríssimos apenas entre eles.
Fingi que não prestava atenção quando Lua ganhou do Caio uma
caixa de joias feita de veludo. Só pela embalagem já dava para perceber que
tinha custado milhares de reais e que havia sido comprada pela minha tia.
Disfarcei o máximo que pude, mas não consegui tirar os olhos de Lua
quando ela se deparou com um colar de prata cravejado de brilhantes, uma
joia super chamativa que não tinha nada a ver com o estilo dela. Mesmo
assim, ela sorriu e agradeceu efusivamente. Desviei o olhar quando ela
beijou o namorado e os dois fotografaram uma série de stories enjoados de
casal.
Depois disso, não tive mais vontade de ficar na sala com o resto da
família. Fui dormir pensando na pergunta que tinha martelado minha cabeça
desde que conheci Lua: o que ela via no Caio? Podia ser uma questão de
dinheiro, mas ela não parecia interesseira.
Abri o aplicativo do banco torcendo para que magicamente eu fosse
ganhar algum dinheiro, mesmo sabendo que já fazia algumas semanas que
não pegava nenhum trabalho de design ou ilustração. O saldo de R$ 34,55
confirmou minhas expectativas. Pra eu conseguir competir com o dinheiro
do Caio, só mesmo se ganhasse na Mega-Sena da virada.

◆◆◆

Não vi Lua entrar no quarto naquela noite. Depois de ouvir música e


assistir a alguns vídeos no TikTok, peguei no sono e só despertei na manhã
seguinte, quando ela já estava adormecida na cama acima de mim. Tentei
não pensar no que ela ficou fazendo até tarde com o Caio. Preferi me
lembrar da cavalgada do dia anterior e de como o corpo dela reagiu sob
meu toque.
Observei o rosto de Lua parcialmente coberto pelos cabelos, seu
torso subindo e descendo suavemente enquanto ela dormia. Ela usava um
pijama fino de alcinhas que revelava seus braços firmes e mostrava o
contorno dos mamilos por baixo do tecido.
Como era bonita, a desgraçada.
Ou talvez eu estivesse mesmo carente.

◆◆◆

Foi só no final da tarde que consegui uma chance de ficar a sós com
Lua.
Não sei se o Caio percebeu nossa aproximação ou se ele só era
inconveniente mesmo, mas meu primo havia decidido grudar em Lua o dia
inteiro. Tive que implorar para Mirella distraí-lo de alguma forma,
prometendo tirar o lixo no lugar dela até o fim da viagem.
Quando Caio finalmente desapareceu da sala de estar, um silêncio se
abateu sobre o cômodo e eu suspirei aliviada. As outras meninas estavam na
piscina, ouvindo música alta e fazendo alguma brincadeira idiota que nossas
mães certamente reprovariam, se não estivessem ocupadas demais fazendo
compras no supermercado da cidade junto com os maridos.
Lua também parecia curtir a paz. Ela estava jogada no sofá, com as
pernas sobre a mesinha de centro, e assistia distraidamente a um filme da
Sessão da Tarde. Sentei ao lado dela — muito mais perto do que o
necessário —, e ela não fez menção de se mover.
— O que tá passando? — perguntei.
— Dez horas para o Natal.
Olhei para a TV, animada.
— Sério? Eu nunca vi esse filme.
— É brasileiro. Muito fofo!
— É legal ter filmes de Natal que se passam no Brasil, né? —
comentei. — Nada a ver esse negócio de neve, lareira… E a gente aqui
nesse calor, se abanando.
Lua deu risada. Eu estava com saudade daquele som.
— É verdade — ela concordou.
— Sabe o que podiam fazer? Mais filmes de Natal sapatão.
— Existe algum?
Arregalei os olhos e me ajeitei para ficar de frente para ela. Lua se
encolheu diante da minha intensidade.
— Lua, você vai me dizer que nunca viu Alguém avisa?
— Alguém avisa o quê?
Esfreguei os olhos com a ponta dos dedos, bufando. Aquela garota
precisava urgente de uma imersão no mundo sáfico.
— É um filme de Natal com a Kristen Stewart.
— A do Crepúsculo?
Santa Cássia Eller, por favor, me mande forças nesse momento de
provação.
— Você sabe que ela é lésbica, né? — perguntei, hesitante.
— Claro, Eliza. Todo mundo sabe disso.
Observei Lua com os olhos apertados. Hummmm… Interessante.
Nem todo mundo sabia. As héteros desavisadas não faziam ideia.
— Ela fez um filme que chama Alguém avisa — expliquei. — Ela
namora uma mulher que não contou ainda pra família que é lésbica. Aí elas
vão passar o Natal na casa dos pais dessa moça e ela finge que a Kristen é
só uma amiga.
Lua escutou em silêncio, como se estivesse em profunda reflexão.
— Tadinha — ela falou.
— Pois é, a Kristen não merecia isso…
— Tô falando da outra garota.
Franzi o cenho, confusa.
— Como assim?
— É difícil contar pros pais uma coisa dessas. Ainda mais no Natal
— ela falou.
Será que era isso que Lua escondia, afinal?
Decidi não insistir no assunto. Minha missão não era tirar a garota
do armário, muito menos para a família dela. Eu tinha um objetivo claro e
não podia desviar dele.
Dei uma espreguiçada bastante oportuna e aproveitei para chegar
mais perto dela. Se a gente estivesse na minha fantasia de Natal gringo,
tudo seria mais fácil: eu traria duas xícaras de chocolate quente cobertas por
mini marshmallows e reclamaria do frio, me aninhando sob um cobertor
fofinho ao lado dela.
Na realidade em que estávamos, diante de um ventilador girando tão
rápido que parecia prestes a levantar voo, era bem mais difícil arranjar
desculpas para me aproximar.
— Qual foi o presente de Natal mais legal que você já ganhou? —
perguntei, tentando puxar um novo assunto.
Lua franziu o nariz enquanto pensava. Era muito injusto que aquela
garota conseguisse ser fofa e sexy ao mesmo tempo. As pessoas tinham que
escolher uma coisa ou outra para manter o equilíbrio da Terra, senão ficava
difícil para os meros mortais como eu, que me encontrava totalmente
incapaz de não olhar para ela.
— Acho que foi o trator — ela respondeu.
— Trator!? Tipo, de colheita?
— Não, Eliza — ela riu e deu um tapinha na minha perna. — Isso é
uma colheitadeira.
Claro, óbvio, todo mundo sabe disso.
— Você ganhou um trator de Natal?
E não é sapatão???, quase perguntei.
— Foi um presente pra fazenda, na verdade — ela continuou. — A
gente tava precisando pra ajudar no preparo do solo. Mas eu queria muito,
desde criança. Meu sonho era dirigir um trator.
— E realizou?
— Claro!
Lua tirou o celular do bolso e deu play em um vídeo que mostrava
ela em um campo sendo preparado para o plantio. Ela estava de camisa
xadrez e chapéu, assim como no dia em que nos conhecemos, e dirigia um
trator enorme e barulhento com destreza.
— Olha aí a braba — ela comentou, rindo.
Eu não achei graça nenhuma. Muito pelo contrário. Quando ergui os
olhos de volta para ela, minhas pupilas estavam dilatadas.
— Achei muito sexy — sussurrei.
Lua empalideceu na hora. Ela pareceu notar o quão próximas
estávamos e desceu o olhar para minha boca. Eu suspirei devagar, tentando
alongar o momento, e comecei a diminuir a distância entre nós…
— E o seu? — ela falou, virando rapidamente o rosto. — Fala o
presente que cê mais gostou.
— Eu não ganhei ainda — respondi.
— Ué, como assim? — Ela me olhou, confusa. — O que cê quer?
Era a deixa que eu estava esperando. Sorri de lado, sedutora, e
coloquei uma mecha do cabelo dela atrás de sua orelha. As pálpebras de
Lua tremeram de leve quando ela piscou.
— Um beijo seu.
Ela arregalou os olhos, mas não disse nada. Era a primeira vez que
eu falava abertamente das minhas intenções. O flerte sutil era divertido e até
que estava funcionando, mas meu tempo era curto e eu precisava de
resultados. Talvez, se Lua soubesse o que eu realmente queria, fosse mais
fácil convencê-la a se entregar.
Lua permaneceu quieta, processando o que eu acabara de falar. Já
que estava totalmente exposta, decidi entrar de cabeça naquela investida.
Passei uma perna por cima do corpo dela e sentei em seu colo. A respiração
de Lua ficou mais rápida. Percebi que suas mãos estavam fechadas, as
dobras dos dedos brancas de tanto que ela fazia força para não me tocar.
Levei uma das mãos dela à minha boca e beijei seus dedos de leve,
tentando acalmá-la. O calor que emanava do corpo de Lua era
enlouquecedor. Eu já sentia a excitação me dominar por completo. Ter ela
assim bem no meio das minhas pernas me fazia pensar em tudo que
poderíamos fazer naquela posição…
— Eliza — ela disse em um sussurro quase inaudível. — Eu não
posso.
Me aproximei do ouvido dela e mordisquei de leve sua orelha. O
quadril de Lua descolou do sofá e subiu na minha direção.
— Não pode ou não quer? — perguntei diretamente em seu ouvido.
Lua estava com os olhos fechados e a testa franzida. As mãos
fechadas abriram aos poucos e pousaram sobre minhas coxas, que ela
apertou de leve. Quando abriu os olhos e me encarou, eles estavam cheios
de desejo. Eu me aproximei mais uma vez de sua boca, pronta para dar
aquele beijo que nós duas tanto esperávamos.
— Não posso — ela repetiu, com mais firmeza.
Eu suspirei resignada quando percebi que Lua estava se fechando
novamente. Ela tirou as mãos de minhas pernas e ficou rígida no sofá.
Parecia que o cérebro havia vencido a batalha contra seu coração — ou
clitóris, pra ser mais específica.
Desci do colo de Lua ao entender que nosso momento tinha
terminado. Mas não me dei por vencida.
— Tudo bem — falei enquanto me levantava, ajeitando a blusa para
deixar o decote ainda mais profundo. — Se mudar de ideia, já sabe onde me
encontrar.
Pisquei para ela e saí na direção do nosso quarto nos fundos da casa.
Lua não me seguiu.
Ainda.
Capítulo 06

Por que tudo que eu quero


Ou é proibido ou faz gostoso?
Sua boca é um mel
Deixa eu me lambuzar de novo

— “Bombonzinho”, Ana Castela e Israel & Rodolffo

Lua me evitou pelo resto do dia.


Por volta das dez da noite, dei uma volta pelo sítio para descobrir
onde ela estava, e a encontrei perto da churrasqueira, sentada no braço da
cadeira do Caio, observando as cartas do baralho por cima do ombro dele.
Por mais que ela estivesse ali fisicamente, seus olhos estavam distantes,
pensativos. Ela não prestava atenção no jogo.
Lembrei da barriga dela roçando contra minhas pernas abertas, seu
cheiro invadindo minhas narinas, sua pele macia sob meus dedos… As
mãos dela abertas, espalmadas sobre minhas coxas. O preto intenso de seus
olhos quando me encarou e disse que não podia.
Mas nunca disse que não queria.
Eu sabia que estava indo por um caminho perigoso. Era para ela
ficar obcecada por mim, e não o contrário. Se eu soubesse que seduzi-la
implicaria em me deixar seduzir junto, nem teria começado com esse plano
maluco. Eu mal havia me recuperado do pé na bunda que levei da Carol e já
estava me envolvendo em outro drama romântico com pouquíssimas
chances de final feliz.
A lembrança de Carol me paralisou por um segundo. Desde que
chegara ao sítio, só tinha pensado nela uma vez, quando contei para Lua
sobre a tatuagem. Mal lembrava do término e do meu coração partido. A
distração de seduzir Lua estava me ajudando a sair da fossa, pelo menos.
Distração. Era só isso que meu envolvimento com Lua poderia ser.
Observei quando Caio ergueu a cabeça e comentou algo sobre suas
cartas com Lua. Ela sorriu sem muito ânimo e assentiu. Dava pra ver que só
estava concordando para não ter que participar da conversa, mas é claro que
o Caio nunca ia notar que tinha algo errado com ela. Quanto mais sonsa a
garota, mais os homens gostavam.
Senti um pouco de vergonha quando lembrei do jeito que encurralei
Lua no sofá. Eu havia falado em alto e bom som sobre meu desejo por ela.
Que queria beijá-la. E fazer muitas outras coisas, se ela também me
quisesse.
De repente, um calafrio percorreu minha coluna. E se ela contasse
pro Caio?
Meu coração quase saiu pela boca ao imaginar Caio me humilhando
novamente na frente da família inteira, contando para todo mundo que,
além de ser lésbica, eu era uma prima tóxica que ficava tentando seduzir a
namorada dele.
Não que fosse mentira.
Mas eu havia estabelecido muito bem os limites do nosso flerte. Se
ela não me quisesse, se me pedisse para parar, eu não faria mais nada.
Poderia facilmente voltar a ser apenas sua amiga, alguém que ela nunca
mais veria depois que a viagem terminasse. A não ser que ela continuasse
namorando o Caio por mais um ano, o que eu achava bem difícil. Mesmo
assim, a gente poderia conviver como se nada tivesse acontecido, talvez até
dando risada da vez que eu tinha tentado beijá-la enquanto o futuro marido
dela estava no cômodo vizinho.
Voltei para dentro do sítio, tentando me acalmar. Não adiantava ficar
pensando naquelas coisas. Passei reto pelas minhas primas, que estavam
sentadas ao redor da televisão, e fui para o quarto tentar dormir.
Mais uma vez, sozinha.

◆◆◆
Acordei abruptamente, encharcada de suor.
A brisa suave que entrava pela janela me deu calafrios. Minha pele
estava sensível. Minha boca estava seca.
Fazia sentido; afinal, toda a umidade do meu corpo estava localizada
entre as pernas.
Eu havia sonhado com ela.
Lua apareceu pouco depois de eu me deitar. Ela entrou
discretamente, com passos leves e suaves. Tirou a roupa toda, mas, em vez
de vestir o pijama, ficou completamente nua na minha frente.
— Eliza — disse com firmeza. — Você tá acordada?
Não adiantava fingir que não observava seu corpo enquanto ela
tirava a roupa. Sentei no colchão e olhei devagar toda a pele exposta, todas
as partes dela que eu desejava conhecer. Quando nossos olhos se
encontraram, senti minha respiração parar.
— Eu pensei naquilo que você falou — ela continuou, se
aproximando de mim lentamente. — Eu também quero.
Lua passou a mão pelos meus cabelos e aproximou minha boca de
sua barriga. Eu beijei a pele, sentindo o calor dela queimar meus lábios. Lua
puxou meus cabelos com força, do jeito que eu gosto, e foi guiando minha
cabeça para mais baixo, até que chegasse aonde ela queria.
Eu vi o quão molhada ela estava antes mesmo de senti-la.
— Olha o que você faz comigo — ela arfou.
Revirei os olhos ao sentir aquele sabor que eu já tinha imaginado
tantas vezes. Me ajoelhei para melhorar o ângulo e segurei suas nádegas
com força, puxando-a para mais perto enquanto minha língua a tomava por
inteiro.
Lua gemia alto, confiante, sem se importar se alguém a escutasse.
E foi justamente esse som que me despertou.
Pisquei algumas vezes para que meus olhos se acostumassem ao
quarto escuro. A cama de Lua estava vazia. A tela do celular indicava que
já passava das cinco da manhã.
Eu queria procurar por ela, segurar seu pescoço, beijá-la com força.
Fazer tudo que fiz no meu sonho e descobrir o que ela faria comigo depois.
Mas Lua não estava pronta. Pior — ela poderia estar com o Caio.
Antes que eu deixasse essa imagem diminuir meu tesão, puxei o
travesseiro dela e inalei o cheiro que havia ficado na fronha. E foi com essa
sensação de estar perto de Lua que levei os dedos até meu centro e gozei em
menos de um minuto.

◆◆◆

Não consegui voltar a dormir.


Vesti rapidamente um biquíni e deixei o quarto rumo à piscina. Não
estava tão quente lá fora, mas as imagens evocadas pelo meu sonho
deixaram meu corpo inteiro pegando fogo. Nunca tinha sentido tanta
saudade de um objeto quanto do meu sugador de clitóris. Como é
praticamente impossível conseguir privacidade em uma viagem de família,
nem tinha cogitado levá-lo.
A cozinha estava silenciosa e vazia. A porta que ligava à sala estava
entreaberta e eu ouvia o ronco suave das minhas primas. Decidi sair pela
porta dos fundos para não acordar ninguém.
Contornei a casa sentindo o orvalho da grama sob os pés. Respirei
fundo e deixei que a tranquilidade da natureza naquela hora da manhã
acalmasse as batidas do meu coração.
Até que eu cheguei na piscina e vi Lua.
Por um instante, achei que estava sonhando novamente. Os
primeiros raios de sol surgiam sobre a copa das árvores e iluminavam a
água suavemente. No meio daquele brilho lânguido e amarelado, Lua
despontava de um mergulho, seus cabelos longos colados ao rosto e às
costas. Quando ela abriu os olhos e me viu, quase gritou de susto.
— Eliza? O que você tá fazendo aqui?
— Shhhh — falei, me aproximando. — Tá todo mundo dormindo.
Entrei na piscina com cuidado. A água gelada deixou minha pele
arrepiada. O olhar de Lua percorreu meu pescoço, desceu pelo meu colo e
pousou no desenho dos meus mamilos endurecidos, que estavam visíveis
através do tecido fino do biquíni. Quando percebeu que eu a olhava de
volta, ela virou o rosto.
— Não conseguiu dormir? — perguntei.
— Eu tenho muito sono às dez da noite, mas, se passa desse horário,
eu desperto tudo de novo — ela explicou.
A cadência de sua fala estava rápida, nervosa, muito diferente da
Lua que eu vira até então.
— Eu também não consigo dormir quando já tá perto do amanhecer
— falei, oferecendo um sorriso cúmplice. — Foi legal ontem à noite?
Lua abriu e fechou a boca algumas vezes, hesitando em me
responder. Ergui as sobrancelhas, curiosa.
— Eu tô tão confusa, Eliza — ela disse finalmente. — Quando eu tô
perto do Caio, eu…
Nadei para mais perto dela e coloquei a mão em seu ombro,
tentando acalmá-la.
— Tá tudo bem — falei. — Eu preciso te pedir desculpa.
Lua me olhou em silêncio.
— Não foi legal eu ter chegado em você daquele jeito — continuei.
— Você veio aqui com o Caio e eu passei dos limites. É só que… Eu nunca
me senti assim antes — confessei suavemente. — Você mexe demais
comigo, Lua.
Lua engoliu em seco, e vi o movimento da garganta subindo e
descendo. A água da piscina já não parecia mais tão fria quando ela me
olhava daquele jeito.
Para minha surpresa, ela aumentou nosso contato, levando a mão à
minha cintura embaixo da água. Era um toque leve com a ponta dos dedos,
hesitante, inseguro. As sobrancelhas unidas indicavam que ela estava
passando por um debate interno, sem saber o que faria em seguida.
— Eu sei como é — ela sussurrou.
Lua deu um passo lento na minha direção. Nossas respirações se
misturaram, seu toque na minha cintura ficou mais firme e decidido. Sua
outra mão veio ao meu maxilar e ela traçou o caminho até meu pescoço. Eu
fechei os olhos, aproveitando cada momento.
— Desde aquele dia na cachoeira eu só consigo pensar em te beijar
— ela confessou.
Minhas costas colidiram com a borda da piscina, mas isso não
impediu Lua de se aproximar ainda mais. Quando abri os olhos, ela estava a
milímetros de distância, de olhos semicerrados e boca aberta, esperando que
eu tomasse a iniciativa.
Capturei os lábios dela e envolvi seu pescoço com os braços,
aprofundando o beijo imediatamente. Lua correspondeu, ávida para sentir o
contato das nossas línguas. O gosto dela era melhor do que eu imaginava.
Lua beijava com desespero, urgência, com o desejo que eu sabia que ela
tinha guardado aquele tempo todo.
Diminuí aos poucos o ritmo do beijo. Ela estava claramente
acostumada a beijar homens, então decidi mostrar a ela o que estava
perdendo. Mordi seu lábio inferior de leve e, em seguida, desci pelo maxilar
e pescoço, dando beijos leves, provocantes. Puxei as pernas dela para cima,
colocando-as ao redor da minha cintura e, com um giro rápido, troquei
nossa posição, fazendo com que ela ficasse contra a borda da piscina.
Lua gemeu de leve quando seu centro colidiu com a minha barriga.
Ela puxou meu queixo para cima e me beijou de novo, devorando minha
boca. Eu nunca imaginaria que aquela garota tímida e reservada teria tanta
pegada, tanta vontade. Aos poucos, Lua se mostrava ainda mais perfeita do
que na minha imaginação.
Beijei ela de volta com o mesmo entusiasmo, puxando seus cabelos
molhados de leve. Encaixei meu quadril entre as pernas dela e comecei a
me mover num ritmo que eu sabia que a levaria à loucura. Eu sentia o calor
que vinha dela através do tecido do biquíni.
Enquanto uma de minhas mãos a segurava naquela posição, a outra
subiu pelo seu corpo. Apalpei um dos seios dela e gemi de prazer, abrindo
os olhos para eternizar aquele momento na minha mente. Ela era linda e eu
queria desvendar todo seu corpo, conhecer cada pedaço, saber quais toques
fariam sua cabeça cair para trás e que sons sairiam dela quando chegasse ao
clímax.
— Eliza… — ela gemeu.
Ouvir meu nome na boca de Lua daquele jeito me fez ficar ainda
mais excitada. Eu queria que ela me tocasse, que puxasse a calcinha do
biquíni de lado e sentisse como eu estava molhada por causa dela, mas
sabia que aquele momento era da Lua.
Mordi seu pescoço ao mesmo tempo em que apertei seu mamilo por
baixo do biquíni. Ela rebolava, desesperada, procurando um pouco de alívio
contra meu quadril.
Comecei a descer a mão pela sua barriga, traçando o caminho até o
lugar onde ela mais me queria…
O som de uma porta abrindo me trouxe de volta para a realidade. A
porta da frente do sítio era dupla e tinha trancas em cima e embaixo, ambas
enferrujadas, o que nos deu alguns segundos de alerta para nos separarmos.
Lua ficou paralisada, sem saber o que fazer. Eu ajeitei a parte de cima do
seu biquíni bem a tempo da tia Marisa aparecer.
Ela pareceu surpresa ao me ver àquela hora na piscina.
— Eliza? Lua? O que vocês tão fazendo aí?
Minha tia olhou desconfiada de mim para Lua. Eu observei
discretamente nosso estado. Estávamos ambas vestidas; não havia nada
suspeito na nossa aparência além do fato de estarmos coradas e Lua,
levemente descabelada. Não achava que tia Marisa notaria à distância.
— Bom dia, tia — respondi com a maior naturalidade. Lua seguia
catatônica, então tentei fingir por nós duas. — A gente acordou cedo e
decidiu vir pra cá. Faz muito calor naquele quartinho.
Tia Marisa pareceu acreditar na mentira. Todo mundo sabia que o
quartinho dos fundos parecia o escritório de Satanás em dias de verão.
— Vem me ajudar com o café, então, já que vocês caíram da cama.
Ela deu as costas para nós e voltou para dentro do sítio. Pela porta
que deixou aberta, eu vi minhas primas deitadas pelo chão, ainda em sono
profundo.
Seria arriscado demais continuar qualquer coisa com Lua.
— Melhor eu ir ajudar ela — falei.
— Eu… — ela falou meio rouca, ainda saindo do torpor. — Eu vou
tomar um banho e depois encontro vocês.
Eu sabia bem o que ela ia fazer naquele banho.

◆◆◆

Justamente naquele dia, todo mundo decidiu acordar mais cedo.


Sabrina e Yasmin entraram na cozinha poucos minutos depois que
eu me juntei à tia Marisa. Lua ainda tomava seu banho longuíssimo. Minha
mente estava lá no chuveiro junto com ela, imaginando seus dedos
trabalhando furiosamente, terminando o que eu havia começado. Tive que
me segurar para não largar tudo e ir atrás dela. Não podia ser tão óbvia
assim, ainda mais depois de quase ser pega em flagrante.
— Presta atenção, Eliza!
Tia Marisa se adiantou e desligou a boca do fogão que estava na
minha frente. Eu tinha ficado responsável por esquentar o leite, que
espumava por cima da panela.
— Tá distraída hoje, hein? — disse minha tia.
— É que eu não dormi direito — expliquei.
— Aconteceu alguma coisa? — perguntou Yasmin, a mais
fofoqueira entre as primas.
— Tava muito calor no quartinho — usei a mesma desculpa, dando
de ombros.
— Você e a Lua podem dormir na sala com a gente se quiserem —
disse Sabrina.
Sabrina era a prima mais velha, portanto estava sempre arranjando
formas de administrar as mais novas. Ela era uma espécie de irmã mais
velha honorária de todas nós.
— Acho melhor não — falei rapidamente. Já era difícil estar a sós
com Lua, imagina se a gente tivesse que dormir com mais quatro garotas.
— A Lua pode ficar desconfortável. Ela não conhece vocês direito.
— Tem razão — disse Sabrina. — A gente precisa integrar a Lua
melhor no grupo, passar mais tempo com ela.
Quase derrubei a leiteira no chão. Tia Marisa correu para tirar o
objeto da minha mão antes que eu provocasse um acidente.
— Deixa que eu faço isso — murmurou, levemente irritada. — Tá
muito mão de alface hoje, menina.
— Como assim, integrar ela no grupo? — perguntei para Sabrina.
— Ela é muito tímida — disse Yasmin. — Como você fez pra ela se
abrir com você, Eliza?
Beijei a boca dela, falei umas sacanagens no seu ouvido…
— Ah, sei lá — eu disse rapidamente. — A gente conversou sobre
um monte de coisa.
— Já sei — disse Sabrina, empolgada. — Vamos fazer uma
maratona de filmes.
— Adoro! — exclamou Yasmin. — Ainda mais que hoje vai chover.
— Não sei se precisa — falei, tentando demovê-las da ideia.
Uma sessão cinema seria o fim de qualquer possibilidade de escapar
discretamente com Lua naquela tarde.
— Vai ser bom pra ela se integrar — insistiu Sabrina. — Todo
mundo adora um cineminha nas férias. E depois vocês podem dormir lá na
sala. A gente faz tipo uma festa do pijama.
Minha cabeça fervia, procurando desculpas para me livrar daquele
programa em família, mas não encontrei nada que fizesse sentido. Em
qualquer outra circunstância, eu teria aceitado o convite de bom grado. Até
a noite passada, teria sido uma boa ideia. Justo naquele dia, porém, minutos
depois de ter conseguido beijar Lua pela primeira vez… Era muita
sacanagem.
Como se lesse meus pensamentos, Lua entrou na cozinha. Ela estava
linda — a pele brilhava depois do banho quente, e o cabelo estava penteado,
arrumado atrás das orelhas. Ela vestia um short curtinho, regata branca e
uma camisa xadrez amarrada ao redor da cintura.
Ela sorriu, tímida, e eu senti minha pele esquentar.
— Lua! — exclamou Yasmin, indo até ela. — Vamos fazer uma
sessão de filmes hoje?
Lua me olhou rapidamente, tão encurralada quanto eu. Dei de
ombros, sem saber o que dizer para nos livrar daquela situação.
Lua enfim voltou-se para Yasmin e sorriu, fingindo animação.
— Claro, Yasmin. Que ideia boa!
— Pede pro Caio fazer aquela pipoca de leite Ninho — disse
Sabrina.
— Ele nunca fez pra mim — disse Lua.
Eu serrei o pão francês na minha frente com um pouco mais de força
do que o necessário, espalhando migalhas pela toalha de mesa. Era fácil
imaginar que aquela casca era a pele do Caio…
— Quê? — Yasmin ficou surpresa. — Não, que absurdo. Ele vai ter
que fazer hoje.
— Só não vale ficar de pegação, hein? — brincou Sabrina. — É pra
ver o filme mesmo. Ninguém aqui quer ficar segurando vela.
Lua riu junto com elas. Eu já conhecia sua linguagem corporal bem
o suficiente para saber que estava constrangida, mesmo tentando se
encaixar com as outras meninas.
— Ela pode ficar do meu lado, só pra garantir — falei. — Eu
protejo ela do Caio.
Lua corou furiosamente e abaixou a cabeça, evitando me encarar. Eu
passei manteiga no pão, sorrindo satisfeita.
— Também não é pra tanto, Eliza — disse Sabrina. — A menina
mal ficou com ele desde que chegou aqui. Dá um tempo, né.
— Dá um tempo você — joguei uma bola de miolo de pão nela e
recebi de volta um tapa no braço.
— Nem comecem, vocês duas — disse tia Marisa, se enfiando entre
nós com uma jarra de suco de laranja. — Credo, parece criança.
Enfiei o pão na boca, irritada. De todos os dias que minha prima
tinha para bancar o cupido entre Lua e Caio, tinha que escolher justo
aquele?

◆◆◆

A tal pipoca de leite Ninho era tão sem graça e enjoativa quanto
Caio. Se Lua não gostou, não deixou transparecer, pois ela comia
distraidamente enquanto assistia ao filme na televisão. O escolhido para
abrir nossa sessão foi Duro de matar, já que minhas primas e irmãs eram
apaixonadas pelo Bruce Willis de duzentos anos antes. No fundo, acho que
o Caio e o Pedro também tinham crush nele. Eu não entendia o apelo, mas
gostava do filme.
Dessa vez, no entanto, não prestei atenção em nenhuma cena. Só
conseguia observar de canto de olho Lua aninhada nos braços de Caio,
esparramados em um dos colchões no chão da sala. As solteiras haviam se
espremido no sofá, que Bruna apelidara de “Camarote das Encalhadas”.
Lua estava de costas para mim. Mesmo sem ver sua expressão, eu
sabia que ela estava desconfortável. Havia passado boa parte do filme
imóvel, em silêncio, deixando que Caio se apropriasse do espaço como bem
entendesse. Ele estava com as pernas esparramadas pelo colchão e um dos
braços ao redor dos ombros dela, enquanto a pobre da Lua ficava encolhida
em um cantinho. Era quase como se ela quisesse escapar dele.
No auge da cena de ação do fim do filme, Lua se levantou, incitando
reclamações.
— Sai da frente, Lua! — disse Caio, desnecessário como sempre.
— Eu preciso ir ao banheiro — ela falou, se retirando da sala o mais
rápido possível.
Antes que pudesse mudar de ideia, também levantei.
— Essa é a melhor parte do filme — reclamou Sabrina.
— Eu já volto — falei.
Cruzei a sala até a cozinha, que estava com a luz apagada. Já havia
escurecido e a chuva fina caía lá fora, deixando o clima um pouco menos
abafado que de costume.
Lua estava diante da pia da cozinha, observando a janela com um ar
pensativo.
— Não gostou do filme? — perguntei em voz baixa, tentando não
assustá-la.
Lua se surpreendeu ao me ver ali. Me arrependi de tê-la seguido,
imaginando que ela podia querer ficar sozinha. Devia ser difícil ser
obrigada a passar o dia com a família do namorado.
— Não tava conseguindo me concentrar — ela falou.
Me aproximei devagar, respeitando seu espaço.
— Aconteceu alguma coisa?
— Você sabe o que aconteceu, Eliza.
Eu não queria presumir nada. Não sabia se ela estava sendo
atormentada pelas mesmas lembranças que eu. Para ela, nosso beijo poderia
ser um acontecimento isolado, um deslize, uma memória tão difusa que
poderia até ser confundida com um sonho. Para mim, era tudo em que eu
conseguia pensar.
Encorajada pelas palavras dela, dei um passo em sua direção. Lua
ergueu a cabeça, como se me desafiasse a chegar mais perto.
— Você se arrependeu? — perguntei, corajosa.
Lá no fundo, eu já imaginava a resposta.
— Me arrependi, sim — ela disse com firmeza.
A decepção me tomou de surpresa, mas não tive tempo de processar
o sentimento porque Lua havia se aproximado. Ela me olhava com
intensidade, seus olhos escuros refletindo a luz da lua lá fora.
— Me arrependi de não ter continuado — concluiu.
Quando dei por mim, nossas bocas estavam coladas mais uma vez.
Dei alguns passos para a frente e a prendi contra a pia, acabando com
qualquer distância que existisse entre nossos corpos. De repente, era como
se o momento na piscina nunca tivesse terminado.
— Aposto que você tá molhada até agora — falei, passando os
lábios pela orelha dela.
Lua estremeceu de forma deliciosa, se desfazendo nos meus braços.
Isso que eu nem tinha começado a tocá-la como gostaria.
— Não fala isso — ela disse.
Reparei que seu rosto estava vermelho e quente de vergonha.
— Você não gosta quando falam essas coisas pra você?
— Ninguém nunca falou — ela confessou.
Brinquei com a barra da regata dela, pensando se ela deixaria eu
remover a peça. Se teríamos tempo antes do filme acabar e alguém aparecer
ali. Tinha tanta coisa que eu queria falar para ela, fazer com ela…
Decidi deixar a conversa para outro momento. Beijei Lua com
vontade, sentindo sua língua quente deslizar contra a minha. Dessa vez, ela
estava mais segura, mais certa do que queria. Lua me puxou pela nuca com
força e aprofundou o beijo, acertando o ângulo para que nossos corpos
também pudessem se encaixar perfeitamente.
O beijo ia ficando cada vez mais rápido, frenético, molhado. Eu
apalpava a bunda dela — não era grande como a minha, mas era firme e
cabia perfeitamente nas minhas mãos. Lua se aventurou em me tocar pela
primeira vez, levando a mão hesitante ao meu peito. Eu coloquei minha
mão por cima da dela e a encorajei a apertar. Quando ela obedeceu, eu
gemi, e ela me beijou com mais força.
De repente, tudo ficou claro, e eu ouvi passos se aproximando de
nós.
Me afastei de Lua o mais rápido que pude. Sabrina estava na porta,
com a mão sobre o interruptor, nos olhando com uma expressão
indecifrável.
Capítulo 07

Sabe aquele gemido


Que eu cantava em seu ouvido
E te deixava louco?
Tá no repertório de outro

— “Repertório de outro”, Maiara e Maraísa

Se Sabrina viu alguma coisa, ela não disse nada. Minha prima
simplesmente passou reto por Lua e eu e se enfiou no banheiro dos fundos.
— Tá tudo bem — falei assim que a porta fechou. — Ela não deve
ter visto nada.
Lua assentiu sem muita convicção. Me aproximei e segurei sua mão
para tentar acalmá-la.
— Mesmo se tivesse visto, ela não falaria pro Caio.
A menção ao namorado fez Lua despertar do choque. Ela soltou
minha mão e se afastou.
— Isso não pode acontecer de novo — ela disse. — É muito
perigoso, Eliza.
Antes que eu pudesse responder, Lua deixou a cozinha rumo à sala.
Eu nem precisava vê-la para saber que tinha sentado no colchão ao lado do
Caio, se aninhado nos braços dele, e retomado o papel da namorada
perfeita. A mão dela acariciando o peito dele enquanto seus lábios ainda
formigavam com o gosto do meu beijo.
Senti uma pontada forte de ciúme. Respirei fundo.
Ela não era minha. Ela era dele.
— Você enlouqueceu? — disse Sabrina assim que saiu do banheiro.
Ela me puxou até o quartinho dos fundos, fechando a porta atrás de
nós. Sua expressão era exasperada, como daquela vez que eu levei um
filhote de raposa para a cama dela achando que minha prima gostaria de
dormir abraçada a um animal silvestre não vacinado.
— Eu sabia — ela disse. — Eu sabia que você tava aprontando
alguma coisa com essa menina. Desde quando você faz amigas desse jeito,
Eliza? Você é a pessoa mais antissocial dessa família. Eu devia ter impedido
vocês de ficarem juntas lá no primeiro dia.
— Posso falar? — interrompi.
Sabrina me fitou com os braços cruzados e cara de poucos amigos.
— Não tá acontecendo nada — menti.
Sabrina revirou os olhos.
— Eu vi você com a mão na bunda dela, Eliza. E ela com a língua
dentro da sua boca.
— Foi só hoje — falei rapidamente, abaixando o tom para que
ninguém escutasse nossa conversa. — Quer dizer, teve um beijo na piscina
mais cedo…
— Sério — ela me interrompeu, irritada. — O que você acha que
vai acontecer? Que ela vai se apaixonar por você nesses oito dias de viagem
e abandonar o Caio, que ela namora há meses?
Não seria má ideia, pensei.
Eu dei risada, como se Lua apaixonada por mim fosse um conceito
totalmente absurdo.
— Claro que não. Eu só queria ferrar com o Caio, só isso.
Sabrina me observou com os olhos estreitos. Ela ainda estava brava,
mas não soltava mais fogo pelas ventas. Nosso ódio comum pelo Caio nos
unia.
— Como assim? — perguntou.
— Eu queria me vingar pelo que ele fez comigo no ano passado —
expliquei. — Imagina que delícia ver o Caio sendo humilhado, descobrindo
que é corno no meio da viagem de Natal da família? E ainda por cima que a
namorada traiu ele com a prima sapatão?
Sabrina me estudava em silêncio. Eu não sabia se ela achava aquela
ideia a mais absurda ou a mais genial que já tinha ouvido.
— Você seduziu a menina de propósito?
— Não foi do jeito que você tá pensando — falei. — Eu não forcei
nada. Dei uma flertada, beleza, mas ela também queria. Ela mesma me
disse.
— Eliza… — Sabrina disse naquele tom maternal que ela sempre
usava com as primas mais novas. — Isso vai dar merda.
— Não vai, eu juro. É só um casinho de férias, nada de mais. Ela
nem vai lembrar de mim depois que essa viagem terminar.
As palavras deixaram um gosto amargo na minha boca.
— Mas o Caio vai lembrar pra sempre da humilhação — continuei,
tentando focar no que realmente importava. — Não é como se eles
estivessem superapaixonados nem nada.
— Obviamente — comentou.
— Vai dar tudo certo — tentei soar convincente e segura. — Você
pode me ajudar a terminar isso mais rápido.
— Eu?
— Tô pensando em levar a Lua lá na cachoeira na noite de ano
novo, depois da meia-noite — falei. — Seria um ótimo momento pro Caio
pegar a gente no flagra. Se alguém pudesse levar ele até lá, como quem não
quer nada…
— Eu não vou me meter nessa história, Eliza.
— Por favor, Sá — implorei. — Ou então eu vou ter que fazer isso
na festa de réveillon, correndo o risco de todo mundo ver. A tia Márcia é
cardíaca, capaz até dela ter um treco. Pelo menos na cachoeira a gente
encerra esse assunto só com os envolvidos.
O ideal era expor o chifre do Caio para toda a família, mas eu não
podia fazer isso com Lua. Eu já a conhecia bem o bastante para saber que
era uma garota tímida — ela ficaria muito mal se todas aquelas pessoas
presenciassem sua traição. Levando em conta que ela mesma não parecia
resolvida com sua orientação sexual, mais um motivo para diminuir um
pouco a amplitude do plano. Eu só queria que o Caio descobrisse que foi
corno pelas minhas mãos. Se eu bem conhecia meu primo, ele não contaria
para ninguém, justamente para não perpetuar a humilhação.
Mas eu e ele saberíamos para sempre o que aconteceu.
E eu enfim estaria vingada.
— Só mais três dias — Sabrina falou. — Na madrugada do 31 essa
palhaçada termina.
— Combinado.
— E sem sexo em público! O objetivo é traumatizar o Caio, não eu
e as outras meninas.
Assenti, ainda que não pretendesse cumprir aquela condição. Se Lua
me quisesse, eu iria até o fim, seja lá onde a gente estivesse.

◆◆◆

A festa do pijama foi um sucesso. Em determinada hora da


madrugada, todo mundo foi pegando no sono lá na sala mesmo. Apesar de
ter detestado ver Lua aninhada nos braços de Caio, gostei de adormecer ao
lado das minhas primas e irmãs, como antigamente.
Acordamos no dia seguinte, quando tia Marisa nos chamou para o
almoço. Lua parecia atordoada por ter dormido até tão tarde; a noite que
passara em claro havia drenando toda sua energia. E a minha também. Eu
não estava evitando Lua, mas também não tentei me aproximar dela depois
do que aconteceu entre nós na cozinha.
Sabrina continuou a missão de integrar o grupo e propôs uma visita
ao centro da cidade. Depois do feriado de Natal, o comércio local voltaria a
funcionar e a gente poderia mudar um pouco de cenário. Não que tivessem
muitas atrações por lá, especialmente naquela época, mas qualquer coisa era
melhor do que ficar naquele sítio sendo ignorada por Lua.
Eu fui a primeira a concordar com a proposta de Sabrina. Em
seguida, as outras meninas foram murmurando aprovação, exceto por
Mirella, que estava com cólica. Yasmin preferiu ficar no sítio com o
namorado. Eu achava que Lua e Caio fariam a mesma coisa, até que ela
segurou a mão dele e fez cara de pidona.
— Vamos também, bebê?
Bebê. Um brutamontes de 1,90m.
— Será? — Caio hesitou. Ele era uma das pessoas mais preguiçosas
que eu conhecia. — Tá tão bom aqui…
— Por favor? — Lua pediu com uma vozinha manhosa que
claramente servia para convencer o namorado a fazer o que ela queria.
Quase vomitei meu almoço.
— Tudo que você quiser, bebê.
Quando Caio deu um selinho na namorada, eu desviei o olhar.
Sabrina me encarava com um sorrisinho no canto da boca, estudando minha
reação. Eu revirei os olhos, indicando que estava de saco cheio daquela
conversa melada de namorados, e deixei a cozinha para buscar minha bolsa.

◆◆◆

A cidade podia não ser muito animada, mas a sorveteria de quilo


que tinha na pracinha central era uma delícia. No centro de São Paulo, onde
eu morava, essas sorveterias eram praticamente inexistentes e, se existiam,
tinham preços exorbitantes. No interior eu podia afogar todas as mágoas em
sorvete sem entrar no rotativo do cartão de crédito.
Deixei o bufê equilibrando uma montanha de delícias adocicadas e
fui encontrar o grupo em uma das mesas da calçada. Era fim de tarde e a
sorveteria estava lotada; os jovens obrigados a viajar com a famílias sempre
se encontravam ali. Lembro de quantos beijos minhas primas e irmãs
trocaram com garotos aleatórios na esquina daquela ruazinha.
Parei por um instante quando vi Caio e Lua sentados bem próximos.
Ele passou o braço pelos ombros dela e a trouxe para perto. Lua estava
estranhamente dengosa com ele naquele dia, fazendo carinho no peito dele
e dando beijinhos no pescoço.
Contornei o casalzinho e sentei entre Sabrina e Bruna do outro lado
da mesa, de frente para a rua. Pelo menos assim eu poderia me distrair com
o movimento.
— Aquele ali — disse Bruna para Sabrina, entre risadinhas. — O de
boné vermelho.
Procurei o menino do qual minha irmã falava. Ele estava em uma
mesa cheia de garotos barulhentos que haviam acabado de começar uma
guerra de Nescau Ball. Nenhum deles era bonito. Mas, para agradar Bruna,
bastava preencher o quesito “ser homem”.
— Que horror — falei, enfiando uma colherada de sorvete na boca.
— Olha quem fala — disse Bruna. — Sua ex era medonha.
Senti os olhos de Lua em mim, mas me forcei a não encará-la.
— A Carol tinha muitos defeitos, mas ninguém pode dizer que era
feia — respondi.
— É verdade — concordou Sabrina. — Pelo menos alguém na
família tem bom gosto. Esteticamente, né. Que pra personalidade todas tem
dedo podre!
Sabrina riu e eu acompanhei. Não tinha como discordar; eu sempre
me senti atraída por meninas meio complicadas. Lua parecia gente boa, mas
a situação em que a gente se encontrava já mostrava minha quedinha por
situações difíceis.
— Melhor ser realista do que exigente — disse Bruna, dando um
sorrisinho para o garoto do boné vermelho. — Eu só queria dar uns beijos.
Não tô procurando casamento, não.
— Graças a Deus — falei. — Imagina se você casa com esse
menino e a gente tem que ficar vindo nessa cidade o tempo todo?
Dessa vez até Lua deu risada. Meus olhos encontraram os dela por
uma fração de segundo. Quando vi que a cabeça dela descansava sobre o
ombro de Caio, meu coração apertou.
Afastei o sorvete e tirei o celular do bolso. Estava na hora de tomar
uma atitude. Eu não ia admitir ficar ali sofrendo por uma garota que nem
sequer tinha sido nada minha.
— Não custa nada dar uma olhada no Tinder — falei.
Sabrina e Bruna ficaram superanimadas. Elas adoravam dar opinião
nas meninas do aplicativo que apareciam pra mim. Olhei rapidamente para
Lua e reparei que ela não estava mais sorrindo. Caio, por sua vez, não
prestava atenção na nossa conversa, totalmente envolvido com algum
joguinho do celular.
— Parece que várias sapatonas vieram passar o Natal nesse fim de
mundo — falei.
— Tá vendo? — disse Sabrina. — Você é preconceituosa. Nunca
nem tinha aberto o Tinder aqui e já ia reclamar.
Fui passando pelos perfis, tentando encontrar algum que me
agradasse. As garotas pareciam todas vindas de outras cidades,
principalmente de São Paulo, e não tinha ninguém que chamasse minha
atenção.
— Opa, peraí — disse Bruna, animada. — Que linda!
Gabriela. Uma garota de pele bronzeada e cabelos loiros. Ela dizia
ser do Rio de Janeiro e tinha várias fotos com pranchas de surf na praia.
— Gata mesmo — falei.
— Deixa eu ver?
Ergui os olhos e encontrei Lua me encarando com curiosidade. Ela
estendeu a mão para que eu entregasse o celular.
— Pra quê, bebê? — perguntou Caio.
— Só fiquei curiosa, ué — ela explicou.
Eu conhecia muito bem a curiosidade dela. Decidi morder a isca e
entreguei o celular para Lua. Nossos dedos se tocaram brevemente, mas foi
o bastante para que meu corpo inteiro acordasse. A lembrança da mão dela
no meu peito inundou meus pensamentos no momento mais inoportuno
possível.
Lua passou as fotos de Gabriela e analisou seu perfil em silêncio.
Sabrina nos observava segurando a respiração, como se esperasse uma briga
de casal a qualquer momento.
— Não achei nada de mais — ela disse, me devolvendo o celular.
Perto de você, não é mesmo, pensei.
Quase dei um tapa na minha própria testa. De onde tinha vindo
aquilo? Lua era bonita, mas era também tímida e reservada. Não era sexy
nem confiante. E pior de tudo: tinha namorado. Gabriela era linda,
extrovertida, livre. Estava fora do armário e disponível. A opção perfeita
pra mim.
— Eu gostei — falei.
Sem tirar os olhos de Lua, cliquei no coração embaixo da foto que
mostrava Gabriela segurando uma prancha em uma mão e um copo de mate
na outra.
A tela foi tomada pelo anúncio do match.
— Ahhhh! — exclamou Sabrina, animada.
— O que você vai falar? — perguntou Bruna, curiosa. — Manda
mensagem logo, vai que ela tá aqui.
Eu dei risada.
— Qual a chance, Bruna?
Uma mensagem apareceu na tela. Era Gabriela: Vc tá aqui na
sorveteria? Blusa preta, short branco…?
Meu queixo caiu. Olhei ao redor, procurando por cabelos loiros que
encontrei rapidamente.
Gabriela acenava para mim, sentada em uma mesa dentro da
sorveteria. Ela era ainda mais bonita do que nas fotos, sua pele brilhando
em contraste com a camisa branca que usava aberta.
— Sério — disse Bruna, incrédula. — É fácil demais ser lésbica.
— Quando a gente não tá sendo perseguida na rua ou tendo nossos
direitos ameaçados, é realmente maravilhoso — respondi.
— Vai lá falar com ela — disse Sabrina, me empurrando para fora
da cadeira.
Levantei antes que minha prima me derrubasse no chão. Lua estava
de braços cruzados, irritada. Ela cutucou Caio e sussurrou alguma coisa no
ouvido dele.
— A gente quer ir embora — ele falou. — Tá chato aqui.
Sabrina revirou os olhos, mas tirou a chave do carro de dentro do
bolso.
— Depois me avisa pra vir te buscar — disse Sabrina para mim. —
Bom date!
Troquei um último olhar com Lua quando nos cruzamos; ela indo
embora e eu indo em direção a Gabriela. Eu sentia o ciúme exalando por
todos seus poros.
Dessa vez, quando Lua segurou a mão de Caio, não senti tristeza,
mas sim a mais pura satisfação.
Capítulo 08

Tô precisando de dengo, não vê?


Tô nem aí pra rolê, tô nem aí pra rolê
Só tô querendo você
Eu só tô querendo você

— “Dengo”, João Gomes

Gabi era tudo que eu podia querer em uma mulher. Bonita, confiante,
bem resolvida. Tinha um trabalho legal, uma conversa boa. Gostava das
mesmas cantoras que eu, das mesmas séries, dos mesmos filmes.
Mesmo com tantas coisas em comum, eu não consegui sentir nada
por ela. Nada além de amizade, aquele conforto tácito de estar com alguém
que é parecida com você. Por mais que eu me forçasse a encostar nela, dar
leves toques em seu braço sobre a mesa, a faísca simplesmente não
apareceu.
Mas é claro que Lua não precisava ficar sabendo disso.
Quando estava perto das dez da noite, Sabrina mandou mensagem
perguntando se podia me buscar. A estrada que levava ao sítio era escura e
sinuosa, portanto ela não queria fazer aquele caminho de madrugada. Eu
não apenas não dirigia como não tinha carro próprio, então dependia da boa
vontade da minha prima para não ter que dormir na praça. Uber era uma
realidade alternativa para aquela cidadezinha, ainda mais na semana do
Natal.
— Quer ir lá pro meu hotel? — perguntou Gabi quando os
funcionários da sorveteria começaram a descer as portas de ferro.
Eu sabia que deveria ir com ela. Passar a noite com uma garota
como Gabi seria o antídoto perfeito para curar meus pensamentos sobre
Lua. Só que eu não conseguia mais fingir que aquele encontro seria mais do
que amizade da minha parte. Não era certo com nenhuma de nós duas.
— Olha, Gabi, você é incrível... — falei. — Mas eu não deveria ter
aberto o Tinder hoje. Eu ainda tô com alguns problemas com a minha ex.
Faz pouquíssimo tempo que a gente terminou.
Achei que essa desculpa seria mais compreensível do que a verdade:
eu tô a fim da namorada do meu primo.
— Era aquela menina que tava com vocês na mesa? — perguntou
Gabi.
— Quê? Não, não. Ela não veio na viagem com a gente. — Pensei
um pouco, tentando entender de quem Gabi estava falando. — Que menina
você achou que era?
Gabi deu risada.
— Aquela garota que tava abraçada no único cara da mesa — ela
explicou. — É meio doido pensar nisso considerando que ela tava de casal
com ele, mas o jeito que ela ficava te olhando...
Meu corpo estremeceu diante daquelas palavras. A simples
lembrança do olhar de Lua em cima de mim me fazia querer voltar correndo
para o sítio atrás dela.
A verdade é que eu sentia falta de Lua. Sentia fisicamente nossa
distância. Eu precisava tocá-la novamente e, quem sabe, ter a sorte de
consegui fazer mais do que só trocar alguns beijos.
— Eliza? — disse Gabi, me trazendo de volta à realidade.
— Desculpa — eu respondi, corando. — Ela é a namorada do meu
primo, só isso.

◆◆◆

Quando eu e Sabrina chegamos no sítio, os adultos já tinham ido


dormir, mas os jovens ainda estavam bebendo perto da churrasqueira.
Quando me viram, começou a maior gritaria. Assobios, provocações,
insinuações sexuais. Claro que todo mundo já sabia o que eu estava fazendo
na cidade. No fundo, eu torcia para que tivessem aquela reação.
Especialmente na frente de Lua.
Meus olhos não saíram dela enquanto caminhava na direção das
minhas primas e irmãs. Ela era a única que não participava da zoação;
apenas bebia em silêncio pendurada no braço do Caio.
— E aí, pegou? — perguntou Bruna.
Fiz um pouco de charme só para estender o suspense... E, enfim,
sorri.
— Claro.
Mais uma chuva de gritos e assobios. Sabrina mandou todo mundo
calar a boca para que não acordassem nossos pais e tios.
— Como foi? — perguntou Yasmin, curiosa.
— Fala todos os detalhes! — disse Mirella.
— Não sabia que vocês curtiam romance lésbico — falei brincando.
— Tudo falsa hétero!
— A gente tá tão entediada aqui que qualquer fofoca tá valendo —
respondeu Yasmin.
Peguei uma cerveja e dei um gole, ganhando tempo para inventar
detalhes sobre a pegação que não havia acontecido.
— A conversa foi ótima. A gente tem tudo a ver. — Até aí, era tudo
verdade. — Daí começou a rolar um clima...
— Que é isso, filme da Sessão da Tarde? — brincou Pedro,
escolhendo um péssimo momento para sair do lugar de figurante.
— Ninguém tá falando com você — rebateu Sabrina, colocando o
garoto em seu lugar.
— Ela é muito gata, né. Vocês viram — falei enquanto Sabrina e
Bruna concordavam. — Não tinha como não querer beijar ela.
Era como se eu mesma tentasse me convencer daquilo.
— Quem que beijou quem? — perguntou Mirella.
— Ela me beijou primeiro — falei. — Sabe como é. Eu sou mais
tímida.
Lua soltou uma risada pelo nariz. Todos olhares recaíram sobre ela.
Eu a encarei com uma sobrancelha erguida, como se a desafiasse a
compartilhar mais opiniões sobre meu comportamento sexual.
— Ué, gente — disse Lua, com as bochechas coradas pela atenção.
— Todo mundo sabe que a Eliza é bem saidinha.
Minhas primas e irmãs concordaram. Eu revirei os olhos.
— Nem sempre, Lua — o nome dela escorreu pelos meus lábios
como se fosse veneno. — Às vezes eu gosto que os outros tomem a
iniciativa.
Mais uma onda de zoação. Lua sustentou meu olhar por alguns
instantes, até que Caio cochichou alguma coisa em seu ouvido. Ela desviou
na direção dele por um segundo, relutante em parar de me olhar.
— E o que mais? — perguntou Sabrina, animada. — Você não quis
contar nada no carro!
— O beijo dela era incrível — eu falei, ainda olhando para Lua.
Lua tentava prestar atenção no que Caio dizia, mas era incapaz de
tirar os olhos de mim. Ela estava hipnotizada.
— Ela me puxou pra ruazinha que fica do lado da sorveteria. Me
encostou na parede e me beijou com vontade — continuei.
Àquela altura, até Caio prestava atenção.
— Tinha gente na rua? — perguntou Sabrina. — Se você for presa
por atentado ao pudor eu não vou te buscar na delegacia.
— A rua tava deserta, pode ficar tranquila — falei, rindo. — E a
gente tirou bastante proveito disso.
Lua levantou de súbito. Mordi o lábio inferior ao ver que o pescoço
dela estava vermelho, assim como a ponta de suas orelhas. Só não dava pra
saber se era de raiva ou de tesão.
— Aonde você vai? — perguntou Caio.
— Eu esqueci uma coisa no estábulo — ela falou rapidamente.
Em seguida, abriu caminho por entre as outras garotas e deixou a
área da churrasqueira.
Eu sorri como um demônio. Meu trabalho ali estava feito.

◆◆◆

Não demorou nem quinze minutos para que eu arranjasse uma


desculpa e fosse procurar Lua no estábulo. Caio, idiota como era, não se
deu ao trabalho de ir atrás da namorada, mesmo que ela tivesse
desaparecido de noite em um sítio enorme e escuro.
Lua caminhava de um lado para o outro dentro de uma das baias,
escovando com raiva a crina de Perséfone.
— Não quis ficar pra ouvir o fim da minha história? — falei em tom
de provocação.
Lua não se assustou com minha presença. Era como se ela soubesse
que eu a seguiria.
— Você transou com a menina — disse Lua entre dentes. — Legal.
Quer que te dê parabéns?
Dei mais um passo à frente. Lua continuava de costas para mim,
totalmente focada no trabalho. Como se escovar um cavalo no meio da
noite fosse uma grande prioridade.
Coloquei as mãos em sua cintura. Os movimentos dela pararam
imediatamente. Ela ficou em estado de alerta, esperando pelo meu próximo
passo.
— Se você quisesse, poderia estar no lugar dela — falei em seu
ouvido.
Lua ficou tanto tempo parada que eu comecei a desconfiar que algo
de errado havia acontecido. Ela não se mexia, não respirava, não saía do
lugar.
De repente, meu corpo foi jogado contra a parede da última baia,
onde só havia um monte de feno e nenhum cavalo.
Lua segurou meus braços perto da minha cabeça, imobilizados por
uma força que eu não sabia que ela tinha. Seu corpo estava colado ao meu;
seu rosto tão próximo que eu via o fogo no olhar. Era uma confiança e uma
fúria que eu nunca tinha visto nela.
De alguma forma, parecia algo que sempre esteve ali, adormecido,
só esperando a hora certa para transparecer.
— É disso que você gosta, então? — ela perguntou com firmeza. —
Que te dominem?
Minha respiração acelerou diante das palavras dela. Meu peito subia
e descia rapidamente e Lua desceu até meu decote o olhar, que escureceu de
desejo.
Por mais que estivesse adorando conhecer aquele lado de Lua, não
podia deixar que ela ficasse com todo o controle. Eu queria levá-la até o
limite. Queria fazer ela perder a cabeça.
— Eu preciso te contar um segredo — sussurrei. — Quando eu
gozei com ela, eu tava pensando em você.
Lua apertou ainda mais meus pulsos contra a parede de madeira.
— Eu tô cansada das suas provocações, Eliza.
— Tem um jeito de fazer elas pararem.
Mordisquei de leve o lóbulo da orelha dela. Lua arfou e inclinou a
cabeça para o lado, me dando acesso total. Deixei alguns beijos abertos no
pescoço dela e enfim juntei nossas bocas em um beijo sedento, cheio de
língua e dentes, uma batalha por dominação que eu estaria feliz em perder.
Mas antes eu daria trabalho pra ela.
Aproveitei o beijo para me soltar das mãos de Lua. Apalpei os seios
dela por cima da camisa e gemi quando percebi que ela estava sem sutiã.
Lua encaixou a coxa entre minhas pernas e começou a pressionar contra
meu centro, provando que tinha aprendido direitinho com nossos últimos
encontros.
Tive que me conter para não estourar os botões da camisa dela. Por
mais que eu tivesse urgência em vê-la nua, a última coisa que a gente
precisava era que alguém pegasse Lua voltando para o sítio com a camisa
toda aberta e sem botões.
Finalmente consegui remover sua roupa e joguei a camisa no chão,
envolvendo um de seus mamilos com a boca. Lua puxava meus cabelos
com força; às vezes para mais perto, às vezes para mais longe, quando a dor
da minha mordida era demais para ela. Eu aproveitei o ângulo para
desabotoar seu short e descê-lo por suas coxas firmes.
Lua despertou do êxtase e decidiu virar o jogo. Ela também não ia
se deixar dominar tão facilmente. Me empurrou mais uma vez na direção da
parede e puxou minha camiseta até tirar por cima da cabeça. Abri o fecho
do meu sutiã e joguei a peça longe antes que ela pudesse tentar fazer aquilo
sozinha.
Lua girou meus mamilos de forma hesitante, como se testasse o que
eu gostava e o que ela era capaz de fazer.
Àquela altura, qualquer coisa que ela fizesse me deixaria maluca.
— Você é uma gostosa — sussurrou Lua, sem fôlego. — Faz dias
que eu só penso em te ver assim.
Segurei seus cabelos com força, trazendo sua boca para um dos
meus mamilos. Ela entendeu o recado e chupou com vontade, aos poucos
ganhando confiança para deixar a língua provocar a pele livremente.
Eu gemi alto. Ainda bem que o estábulo era longe o suficiente do
sítio para que ninguém ouvisse a gente.
E era só o começo. Até o fim daquela noite, eu queria gritar de
prazer.
Deixei que Lua explorasse mais um pouco a parte de cima do meu
corpo e ela não perdeu tempo. Fiquei me perguntando quantas vezes ela se
imaginara fazendo aquilo, quantas noites havia passado revirando na cama
com a mão no meio das pernas e a outra sobre a boca para que ninguém a
ouvisse gemer por outra mulher.
Puxei seus cabelos mais uma vez e fiz ela me olhar. Seu rosto estava
corado, seu cabelo, bagunçado, seus lábios, vermelhos e inchados. Eu
precisava da boca de Lua em mim.
Enfiei meus dedos nos cantos do short e puxei para baixo junto com
a calcinha. Eu estava tão quente que senti um arrepio quando entrei em
contato com o ar frio do estábulo. A boca de Lua abriu levemente quando
ela desceu os olhos pelo meu corpo e viu minhas pernas nuas se afastando,
revelando para ela o quanto eu estava molhada.
Mais uma vez, enrosquei a mão nos cabelos dela e a guiei para onde
queria. Lua entendeu rapidamente o recado e se ajoelhou na minha frente. A
visão dela com as mãos nas minhas coxas, pronta para me satisfazer, foi
quase o suficiente para me levar ao orgasmo.
Ela lambeu minha entrada de forma hesitante, testando o
movimento. Eu estava tão sensível, tão inchada, que qualquer contato seria
o suficiente para me fazer tremer. Assenti para que continuasse. Lua fechou
os olhos, fincou os dedos nas minhas coxas e envolveu meu clitóris com os
lábios, passando a língua pelo meu ponto mais sensível enquanto eu me
acabava em prazer.
Lua ganhou confiança conforme meus gemidos ficaram mais altos.
Meus joelhos tremiam, ameaçando colapsar. Lua puxou uma de minhas
pernas para cima e a posicionou sobre o ombro, distribuindo meu peso entre
ela e a parede atrás de mim. Afundei ainda mais a mão em seus cabelos.
Sua língua agia cada vez mais rápido; minha cabeça tombou para trás e eu
fechei os olhos com força ao sentir que estava perto do clímax.
Enfim, o orgasmo explodiu dentro de mim em ondas que me fizeram
gritar o nome dela.
Lua continuou os movimentos até que eu afastasse sua cabeça
devagar. Quando abri os olhos, quase gozei de novo ao ver os cabelos
bagunçados e o queixo dela coberto com a minha lubrificação.
— Vem aqui — falei com a voz rouca.
Lua atendeu meu pedido e se levantou. Eu a puxei para um beijo
intenso, sentindo os resquícios do meu gosto na língua dela. Lua se derreteu
em meus braços e começou a rebolar contra a minha coxa, buscando
desesperadamente algum alívio.
— Calma — eu disse. — Agora eu vou cuidar de você.
Lua engoliu em seco. Ela não disse nada. Parecia ter perdido a
capacidade de articular frases. Suas pupilas dilatas evidenciavam o nível da
excitação.
Desci os dedos até a calcinha dela e movi o tecido para o lado.
Enfiei a ponta do indicador de leve na entrada dela, só para sentir a
lubrificação. Ela estava tão molhada que eu quase deslizei para dentro, mas
ainda não era a hora.
Lua e eu gememos ao mesmo tempo. Levei os dedos à boca e
chupei devagar, sentindo o gosto dela pela primeira vez.
Eu sabia que ia ser delicioso. Como tudo que vinha dela.
Sentir a excitação de Lua renovou minhas energias. Enquanto a
beijava lentamente, tirei sua calcinha, a última barreira que havia entre
nossos corpos.
Sem aviso, joguei Lua sobre o monte de feno nos fundos da baia.
Bebi a visão que era seu corpo, completamente à mostra pela primeira vez.
Eu me debrucei sobre Lua com movimentos calculados. Beijei mais
uma vez o lugar que ela gostava no pescoço, logo abaixo da orelha, e
prossegui para seus mamilos. Enquanto isso, deixei que meus dedos fossem
até seu clitóris, e comecei a fazer os movimentos circulares que eu sabia
que a levariam à loucura.
Lua jogou a cabeça para trás e fechou os olhos. Ela sussurrava meu
nome como uma prece, seu orgasmo se aproximando cada vez mais rápido,
impossível de controlar.
— Mais alto — falei. — Eu quero te ouvir.
— Eliza... — ela gemeu, com mais confiança.
Apressei o movimento dos dedos e aumentei a pressão contra o
clitóris. Deixei beijos molhados pelo seu colo, seios, barriga.
— Olha pra mim — ordenei.
E Lua obedeceu.
Quando ela abriu os olhos e fixou a visão em mim, circulei seu
clitóris com os dedos de forma decidida, tomando um ritmo tão frenético
que nós duas sacudíamos.
Lua respirava cada vez mais forte, falava meu nome cada vez mais
alto, se perdia cada vez mais rápido nos meus movimentos.
Até que ela me segurou com força e contraiu ao redor dos meus
dedos.
— Eliza! — gritou tão alto que os pássaros lá fora voaram para
longe.
Capítulo 09

Na cama cê faz o que eu quero


Eu faço o que cê manda
Pensando bem
Tomara que a gente não encontre ninguém

— “Quando o assunto é cama”, Maiara e Maraísa

O gosto de Lua era viciante. Eu só conseguia pensar nisso enquanto


afundava minha língua dentro dela, sem me importar com o fôlego
acabando ou com meus joelhos começando a doer contra o chão do quarto.
Lua soltou um gemido alto, que eu tinha aprendido a arrancar dela
nas últimas horas. Eu ergui a mão que estava em seu peito e tapei sua boca.
Lua abriu os olhos e abaixou a cabeça para me encarar, frustrada por eu ter
parado momentaneamente os movimentos da língua.
— Se você não conseguir se controlar, eu vou ter que parar — falei
em tom de provocação.
Quando estávamos no estábulo, longe de todo mundo, não
precisávamos nos preocupar com aquilo. Lua e eu exploramos nossos
corpos sem nos privar de nada, expressando nosso prazer em alto e bom
som. Depois do segundo orgasmo, tive um lampejo de clareza e lembrei que
existiam outras pessoas naquele sítio além de nós, e que alguém poderia
estar nos procurando.
Foi um esforço enorme sair de lá fingindo que nada aconteceu.
Enquanto eu me vestia, Lua estava jogada sobre o monte de feno, de olhos
pesados e corpo totalmente nu. Salivei quando vi o estado dela e soube que
eu tinha feito aquilo.
Ela era a coisa mais linda que eu já tinha visto.
Estendi a mão para ajudá-la a levantar. Lua relutou, preguiçosa, mas
a promessa de continuar aquele encontro no quarto fez com que ela
ganhasse ânimo. A caminhada de volta para o sítio foi demorada, pontuada
por beijos roubados, jogadas contra as árvores mais escondidas.
Eu estava adorando aquilo. Se fosse ser sincera, a adrenalina de
sermos pegas estava contribuindo muito para todo aquele tesão.
Foi só quando passamos pela churrasqueira que nos soltamos. Eu
tive que ajeitar bem a camiseta para disfarçar as marcas vermelhas das
mãos de Lua no meu pescoço, o caminho que suas unhas deixaram da
minha nuca até o fim das costas. Não teve muito o que fazer com o cabelo
dela — eu tinha puxado tanto os fios que ela parecia ter saído de uma
tempestade de vento. Por sorte, estávamos voltando do estábulo, então
todos partiram do pressuposto de que Lua estivera cavalgando.
Não estão errados, pensei, sorrindo de lado.
Nos despedimos rapidamente de todos, alegando que estávamos
com sono, sem nos aproximar do grupo. Caio não pareceu se importar
muito com a distância de Lua; ele já estava envolvido em mais uma partida
de truco.
Se ela fosse minha namorada, pensei, eu nunca a trataria desse
jeito.
Não. Eu não podia ir por aquele caminho.
Era só sexo. Depois que a viagem terminasse e nós duas
estivéssemos satisfeitas, a gente nunca mais ia se ver.
Foi assim que acabamos emboladas na cama de Lua noite adentro,
tomando cuidado para não fazer barulho demais. Já passava das cinco da
manhã quando eu me ajoelhei no chão diante dela e a tomei com a boca,
sentindo meu novo sabor favorito.
Vi Lua chegar ao clímax junto aos primeiros raios de sol entrando
pela janela. A luz amarelada refletia em seus cabelos escuros e brilhantes,
sua cabeça jogada para trás no auge do prazer.
Finalmente deixei a exaustão dominar meu corpo. A gente tinha
transado de tantas formas diferentes que eu já nem lembrava mais quantos
orgasmos tinha dado ou recebido naquela madrugada.
Subi na cama dela e, deixando a cautela de lado, me aninhei em seus
braços para dormir.

◆◆◆

Quando acordei, Lua não estava mais lá.


Fiquei decepcionada por não sentir seu corpo contra o meu, mas
logo deixei essa sensação de lado. A gente não tinha compromisso nenhum.
O que tivemos foi uma noite incrível que eu esperava repetir muito em
breve.
Enquanto tomava banho, pensei na última vez que tivera uma
conexão tão intensa com alguém. Com a Carol tinha sido diferente.
Primeiro fomos amigas e só depois desenvolvemos o interesse romântico.
Nosso sexo era calmo, gentil, carinhoso, cheio de promessa de futuro —
promessa que, aliás, ela não cumpriu. Totalmente diferente da Lua, que não
prometeu nada e entregou tudo.
Eu nunca tinha sentido tanta atração por alguém, aquela necessidade
física e visceral de estar perto, de tocá-la, de fazê-la gritar meu nome. Era
um pouco assustador. Eu deveria estar feliz por enfim ter seduzido a
namorada do meu primo, mas temia que o feitiço tivesse virado contra a
feiticeira.
Quando vi meu reflexo no espelho do banheiro, notei a tatuagem
recente no meu ombro. Estava quase cicatrizada, apesar da minha falta de
cuidado. Eu não queria que outra mulher tivesse o poder que Carol tinha
sobre mim. O poder de me quebrar em mil pedaços e me deixar para trás
sem pensar duas vezes.
Devidamente vestida e com as marcas de chupão cobertas por
maquiagem, decidi explorar o sítio. Fazia um dia lindo e ensolarado como
havia muito esperávamos, então minhas primas e irmãs estavam
aproveitando a piscina.
— Bom dia, bela adormecida — disse Bruna, de dentro da água. —
Achei que você tinha morrido.
— Falou a pessoa que nunca acorda antes do meio-dia — respondi.
— Hoje você bateu meu recorde.
— Cadê a Lua? — perguntou Sabrina.
— Como eu vou saber? — falei sem pensar, tentando me defender
antes mesmo da acusação ser feita.
— Credo, garota, foi só uma pergunta — disse Sabrina, jogando um
pouco de água na minha direção. — Vocês dormem no mesmo quarto.
Achei que ela tava com você.
— A Lua tá um saco hoje — resmungou Caio, que estava
esparramado em uma espreguiçadeira. — Mal me deu bom dia e já sumiu
pelo mato. Acho que tá na tpm.
— Ela disse que ia pensar na vida — disse Mirella. — Eu encontrei
ela na trilha mais cedo. Ela tava subindo o morro.
Eu me sentei na beira da piscina e tentei me distrair com minhas
primas, mas tudo que elas falavam passava reto por mim. Minha cabeça
estava em Lua. Eu não queria me envolver mais do que o necessário, não
queria deixar transparecer que me importava com ela além do sexo, mas
precisava saber se ela estava bem. Ainda que nossa noite tivesse sido
consensual, eu sabia que tinha forçado a barra. Tinha empurrado Lua para
além dos limites, e ela devia estar passando por uma ressaca moral pesada.

Encontrei Lua exatamente onde Mirella dissera que ela estaria:


sentada de costas para a saída da trilha, observando do alto do morro a
cidadezinha lá embaixo. Era um lugar tranquilo, uma espécie de mirante
natural aonde ninguém ia porque estava no fim da trilha mais íngreme.
Cheguei quase sem fôlego, com a testa coberta de suor por causa do
esforço.
— Oi — falei com dificuldade, enquanto tentava estabilizar a
respiração. — Tô atrapalhando?
Lua se surpreendeu com minha chegada. Seu semblante estava
sombrio, tomado por preocupações profundas. Aos poucos, ela tentou
forçar um sorriso.
— Não, não — ela falou. — Pode sentar, se quiser.
Sentei ao seu lado, talvez um pouco mais perto do que o necessário.
Nossas coxas se encostaram e Lua corou, desviando o olhar. Eu soltei uma
risada baixa. Depois de tudo que a gente tinha feito juntas era aquilo que
fazia ela corar?
— Tá tudo bem? — perguntei.
Lua continuou fitando a paisagem e suspirou. Eu não conseguia
desviar os olhos dela.
Meu Deus, como eu sou trouxa. Transei uma vez com a menina e já
emocionei.
— Mais ou menos — ela disse, enfim se virando de volta para mim.
— Ontem foi…
Um erro? Um arrependimento? O motivo pra eu nunca mais querer
te ver?
— … perfeito — concluiu.
Antes que pudesse me controlar, peguei a mão dela. Lua não rejeitou
o toque. Pelo contrário, ela apertou minha mão de volta, retribuindo a
intensidade do meu olhar.
— Lua — comecei, tomando coragem para fazer uma pergunta que
não saía da minha cabeça —, por que você tá com o Caio?
O sorriso de Lua murchou diante da menção ao namorado.
— É complicado — ela falou, hesitante. — Eu cresci na roça, Eliza.
Interiorzão profundo mesmo. Lá não tem essas coisas…
Ela indicou nossas mãos unidas. Eu ri.
— Não tem gay no interior? Até parece.
— Você entendeu — ela rebateu. — Não tem gente que nem você,
que fala sobre isso com a família, que é toda coberta de tatuagens e faz o
que quer. Gente que é aceita.
Eu assenti. Mesmo com o preconceito velado da minha tia e com a
humilhação que o Caio me fez passar ao me tirar do armário, eu sabia que
minha situação poderia ser bem pior. Meus pais me acolheram do jeito que
eu sou, assim como minhas primas e irmãs, e isso era mais do que a maioria
das pessoas LGBTQIAP+ do nosso país tinham em suas vidas.
— Quando eu cheguei na faculdade, foi como se um mundo novo se
abrisse pra mim — ela disse. — Logo na primeira festa eu vi duas mulheres
se beijando. E isso mexeu muito comigo. Como se alguma coisa dentro de
mim acordasse, uma coisa que eu nem sabia que existia aqui dentro.
Lua indicou o peito com a mão livre. Eu compreendia bem o que ela
estava falando.
— Não é só quem vive na fazenda que passa por isso — falei. —
Mesmo crescendo na capital, em uma família de mente mais aberta, eu não
sabia que ficar com meninas era uma opção. A gente passa a vida inteira
vendo casais héteros na mídia e aí, quando chega nossa vez de se relacionar,
a gente fica procurando por isso.
— Quando eu vi que era diferente das minhas colegas, decidi me
preservar. Parei de ir nas festas da faculdade pra não correr o risco…
— Pra não cair em tentação — brinquei.
Lua abriu um sorriso triste.
— Até consegui ficar na minha por um tempo, mas, depois de quase
um ano de faculdade, eu tinha que frequentar algumas festas, pelo menos —
disse Lua. — Também não queria ser a esquisita da turma.
— Você é bonita demais pra ser a esquisita da turma.
Lua corou e abaixou a cabeça. Tive que me segurar para não afastar
a mecha de cabelo que caiu sobre seu rosto. Ela ficava tão fofa, tímida
daquele jeito…
— Minhas amigas também falavam isso — continuou. — Que eu
era bonita, que ia desperdiçar meu tempo na faculdade se não ficasse com
ninguém. Que tinha um monte de menino a fim de mim.
Senti uma pontada de ciúme. Uma coisa era aguentar o Caio
urubuzando ao redor dela, outra era pensar em um monte de agroboys
pegando em Lua, puxando ela pelo braço em uma festa universitária.
— Que nojo — falei.
Lua riu e deu de ombros.
— Eu nunca tinha beijado ninguém. Nem homem, nem mulher. Não
custava nada tentar.
— E aí você foi beijar justo o Caio, de todos os caras que existem
no mundo? — falei, indignada.
Lua gargalhou. Era bom vê-la ficando mais leve.
— Ele não chegou em mim que nem os outros caras, que já queriam
beijar sem nem dar oi. A gente ficou conversando, tomando cerveja juntos.
Ele parecia legal.
Aquele Caio eu definitivamente não conhecia. Provavelmente era o
Caio que ele fingia ser quando queria ficar com alguém, como tinha feito
com minhas irmãs e minha prima nos verões anteriores.
— Ficar com ele era… sei lá, normal? — ela disse, sem muita
convicção. — Eu não senti os arrepios que todo mundo fala, o frio na
barriga, a vontade de transar o tempo todo. Eu achava que isso nem existia.
Até…
Lua desviou o olhar e parou de falar de repente.
— Até ontem? — perguntei baixinho, esperançosa.
Lua assentiu. Seus olhos se encheram de lágrimas que ela limpou
rapidamente, evitando que caíssem pelas bochechas. Senti um aperto no
peito ao vê-la daquele jeito.
— Foi como se uma represa estourasse — ela confessou. — Tudo
que eu senti a vida inteira virou verdade pela primeira vez. Só que agora eu
não posso mais me esconder de mim mesma.
Passei a mão pelos seus ombros e a trouxe para perto em um meio
abraço. Ficamos em silêncio observando a paisagem e aproveitando a
companhia uma da outra. Aos poucos, eu sentia que Lua ficava mais leve,
aliviada de tirar tudo aquilo do peito.
Quem carregava o peso era eu: a culpa de estar tirando Lua do
armário por causa de uma rivalidade idiota com meu primo.
Capítulo 10

Eu troco quatro vidas de solteiro, fácil


Pra viver o resto dessa do seu lado

— “Não era você”, João Bosco e Vinícius

— Para com esse medo bobo, Eliza!


Lua me olhava com as mãos na cintura, achando graça da minha
falta de traquejo diante do cavalo que eu tentava montar.
— Não é bobo, é um medo muito racional — falei. — Olha o
tamanho desse bicho!
Indiquei o cavalo Jair, que me olhava com aquela cara de poucos
amigos que ele sempre tinha. Cavalos tinham expressão facial? Eu poderia
jurar que sim, apesar de Perséfone estar sempre com a mesma cara de
plenitude, como se nenhum problema no mundo pudesse abalá-la.
— Ele tá sentindo sua negatividade, por isso te rejeitou — disse
Lua, passando a mão pelo pescoço de Jair. — Olha aqui! Comigo ele não
faz nada.
— É porque você é irresistível — falei, galanteadora.
Lua sorriu, tímida.
— E você não?
Aproveitei a deixa para me aproximar dela e a abracei pela cintura.
Ela não resistiu; apenas se deixou ser puxada contra meu corpo e ergueu de
leve a cabeça para me olhar.
Dei um beijo rápido em seus lábios e acariciei seu cabelo com
leveza. Nós estávamos mais carinhosas desde a conversa no mirante. Lua
praticamente não falara com Caio naquele dia e a gente tinha inventado um
monte de atividades para ficar longe de todo mundo. Eu estava amando
viver aquele idílio de lua de mel com ela.
Pulei de susto quando ouvi o um relincho alto bem na minha orelha.
O cavalo Jair me encarava com reprovação, balançando a crina enquanto
reclamava.
— Eu falei que ele era homofóbico — acusei.
Lua riu e afagou mais uma vez o bicho. Ele se acalmou
imediatamente sob o toque dela.
— Eu te disse; é o jeito que você age com ele.
— E se eu for com você na Perséfone, que nem a gente fez daquela
vez? — sugeri.
Lua ergueu uma sobrancelha.
— Pra você ficar me apalpando? — ela disse. — Ou você acha que
eu não percebi?
Senti minhas bochechas queimarem. Será que minha tentativa de
seduzi-la tinha sido tão ridícula quanto soava?
— Desculpa — murmurei.
— Ei — ela falou, erguendo meu queixo com cuidado. — Eu gostei.
Se você não tivesse feito aquilo, a gente não estaria assim agora.
— Assim como?
Lua me beijou. Dessa vez, não conseguimos nos controlar. Quando
ela passou a língua pelos meus lábios e invadiu minha boca, eu apertei a
cintura dela com força e ergui o tecido da camisa, tocando a pele macia da
barriga em seguida. Lua levou as mãos aos meus seios, demonstrando uma
confiança que me encheu de orgulho. Vê-la assim, tão certa do que queria,
tão segura de si, era muito sexy. Bem melhor do que apenas dominá-la,
como eu tinha planejado inicialmente.
Quando Jair relinchou novamente, eu tive que me segurar para não
cometer um crime contra os direitos dos animais.
— Melhor a gente sair daqui — disse Lua, rindo. — O Jair precisa
de espaço.

◆◆◆
O sol já estava caindo quando deixamos o estábulo e cavalgamos
por toda a extensão da propriedade, evitando chegar perto das dependências
domésticas do sítio, onde estava minha família. Quase cruzamos com tia
Marisa, que saía de carro para fazer compras, mas, graças à habilidade de
Lua com as rédeas, ela conseguiu desviar o caminho no último segundo.
Não que fosse algo muito comprometedor ver duas garotas andando
juntas a cavalo, ainda mais considerando que uma delas era uma patricinha
da cidade que jamais seria capaz de cavalgar sozinha, mas a gente queria
evitar comentários constrangedores na mesa de jantar. Meu maior medo era
ter que encarar Sabrina diante de uma situação daquelas, pois minha prima
certamente descobriria o que estava rolando entre Lua e eu. Não o sexo —
isso ela já desconfiava que ia acontecer —, mas todo o resto.
Era irônico pensar que, depois de dias executando um plano para
que Caio descobrisse que era corno, essa era a última coisa que eu queria. A
revelação implicaria no fim do meu relacionamento com Lua. Se Caio
descobrisse tudo, não só um grande climão se instauraria, mas Lua
provavelmente teria que deixar o sítio.
De repente, a possibilidade de Lua ir embora e a gente nunca mais
se encontrar me atingiu com tudo.
— Tudo bem aí? — perguntou Lua, virando a cabeça.
Eu a tinha soltado. Minhas mãos estavam geladas, úmidas,
refletindo o pânico que senti ao pensar em perder Lua para sempre. Lua as
puxou de volta para sua cintura, garantindo que eu não me soltaria
novamente.
— Tudo, tudo, sim — respondi com a voz fraca.
Lua puxou as rédeas e Perséfone diminuiu a velocidade do trote até
parar completamente. Nós estávamos em uma área no extremo sul da
propriedade, protegida por copas de árvores altas e uma cerca que separava
o terreno de dois sítios vizinhos.
— É melhor a gente parar um pouco pra você descansar — ela
disse.
Lua desceu do cavalo com elegância e habilidade e me ofereceu a
mão. Eu desci de forma muito mais desengonçada.
Deixamos Perséfone sob a sombra de uma árvore alta e caminhamos
perto da cerca, apreciando aquela região. Ali a vegetação era mais fechada,
com árvores próximas e folhas muito verdes.
Para minha surpresa, havia duas pessoas caminhando do outro lado
da cerca, vindo na nossa direção. Reconheci que eram garotas da cidade:
elas usavam roupas da moda e cortes de cabelo curtos obviamente feitos em
barbearias descoladas do centro de São Paulo.
— Opa, tudo bem? — disse uma delas enquanto acenava pra gente.
Me refreei de falar “sapastê”, porque pra mim era óbvio que as duas
eram lésbicas. Era uma brincadeira que fazia com minhas amigas quando a
gente passava por pessoas da comunidade, ainda que a gente soubesse que
não dava pra identificar lésbicas só pela aparência.
Mas era muito divertido tentar.
— E aí — falei em resposta.
Paramos de frente para elas, uma dupla em cada lado da cerca que
separava os sítios vizinhos. Percebi que a acompanhante da primeira garota
era mais tímida, assim como Lua, que cumprimentou as meninas com um
aceno de cabeça discreto.
— A gente se conhece? — perguntou a mais velha, que usava uma
jaqueta de couro apesar do sol forte de verão. — Tenho a impressão que eu
já te vi antes.
— Desculpa ser tão direta, mas você é lésbica? — perguntei.
Lua ficou constrangida e me deu uma cotovelada. A garota do outro
lado da cerca deu risada. Até a menina tímida ao seu lado acompanhou.
— Claro — ela falou. — Minha irmã também. Tamires e Antônia,
prazer.
Apertei as mãos delas, satisfeita com meu gaydar, que nunca
falhava.
— Eu sou a Eliza e essa é a Lua — falei. — Vocês moram aqui?
— A gente é de São Paulo — disse Tamires. — Peraí… Você não é
a namorada da Carol Marques?
Por que todas as lésbicas de São Paulo tinham que se conhecer,
meu Deus?
— Ex-namorada — falei rapidamente.
Tamires assentiu, observando a proximidade entre Lua e eu. Aquela
garota era esperta e já devia ter entendido o que estava rolando.
— Estranho que a gente nunca se viu antes — ela continuou. —
Esse sítio é dos meus pais há quase vinte anos.
— Esse aqui é da minha tia — eu disse. — Eu venho com meus pais
e irmãs nessa época do ano desde que era criancinha.
— Ah, é isso, então. A gente costuma vir no meio do ano pra fazer
uma festa junina. No Natal é mais difícil.
— Eu adoro festa junina — disse Lua, animada.
— Camisa xadrez essa aqui já tem de sobra — falei.
Lua e eu sorrimos uma para a outra.
— Ano que vem vocês tão convidadas — disse Tamires. — Minha
irmã não fala muito, mas eu juro que ela é gente boa.
— Eu tento — disse Antônia, dando de ombros.
— Ela tá chateada que a namorada não veio com a gente —
sussurrou Tamires, piscando pra gente. — Vamo, Antônia, que eu cansei de
segurar vela pra esse casal.
— A gente não… — começou Lua.
— Bom dia pra vocês — falei rapidamente, segurando a mão de Lua
de forma possessiva.
A verdade é que eu tinha gostado de ser vista com ela em público.
Longe da minha família, eu e Lua poderíamos agir como um casal. Eu sabia
que estava sendo egoísta, mas aquilo parecia tão certo, tão natural… Muito
mais do que quando Lua segurava a mão de Caio sem vontade nenhuma,
como se estivesse cumprindo uma obrigação.
Continuamos andando até uma pequena clareira rodeada por árvores
altas, onde havia um pedaço grande de sombra e certa privacidade. Lua
trouxe consigo uma bolsinha com água e uma canga, justamente para o caso
de querer fazer uma parada durante o passeio. Ela estendeu a canga sob
uma árvore de tronco largo e nós duas nos sentamos.
— O que tá acontecendo, Eliza? — perguntou Lua subitamente.
— Como assim? — falei.
— Você deixou que aquelas garotas achassem que a gente era um
casal.
Voltei meus olhos para ela. Lua me observava atentamente. Seus
olhos escuros brilhavam com aquela intensidade que eu procurava sempre
que estava longe dela. Ninguém nunca tinha me olhado do jeito que ela me
olha.
— O que vai acontecer quando essa viagem acabar?
Me arrependi de ter falado aquilo assim que as palavras terminaram
de sair. Lua enrijeceu e desviou o olhar. Eu só tinha mais alguns dias com
ela e sabia que não deveria estragar nosso momento com esse tipo de
questionamento. Primeiro, porque ela não era assumida para a família e
para o mundo. Segundo, porque ela ainda era a namorada do meu primo.
Terceiro, porque eu não deveria estar me apaixonando por ela.
— Eliza…
— Esquece o que eu falei.
Eu me aproximei dela rapidamente, envolvendo seu pescoço com
meus braços. Encostei a testa na dela e fechei os olhos.
— Não faz diferença o que vai acontecer. Vamos aproveitar o que a
gente tem aqui, agora.
Lua hesitou por alguns instantes e enfim assentiu. Ela também não
queria falar naquilo, pensar nas consequências ou no que precisaria fazer
quando voltasse para sua cidade, para o namoro com o Caio.
Só nos restava sentir.
Juntei nossas bocas em um beijo urgente, desesperado, parecido
com o que compartilhamos à noite no estábulo. Eu sabia que o desejo era o
melhor antídoto para minhas preocupações, uma forma de ocupar a cabeça
com ações imediatas, e não planos para o futuro.
Lua subiu no meu colo com a mesma destreza com que montava a
sela do cavalo. Tirou a camiseta e jogou na grama ao nosso lado, retomando
o beijo rapidamente. Senti sua pele arrepiar sob meu toque conforme
deslizava os dedos pelos seus ombros até chegar no fecho do sutiã. Quando
seus seios estavam à mostra, soprei de leve os mamilos antes de tomar um
deles com a minha boca. Lua jogou a cabeça para trás, seus gemidos
ecoando pela clareira.
Nossos movimentos ficaram mais frenéticos. Tirei o short dela com
tanta pressa que deixei marcas de unhas nas pernas. Lua não pareceu se
importar. Ela mesma tirou a calcinha e se sentou de volta no meu colo, seu
peito subindo e descendo na altura dos meus olhos enquanto ela arfava.
— Eliza… Por favor…
As palavras dela quase me fizeram gozar ali mesmo. Ela tinha
pressa e eu pretendia dar a ela tudo que quisesse. Posicionei dois dedos na
sua entrada encharcada e deslizei facilmente para dentro. Com o outro
braço, enlacei sua cintura, a estimulando para se movimentar contra minha
mão que começava a penetrá-la.
Lua começou a subir e descer devagar, encontrando o ritmo perfeito.
Quando nosso encaixe se alinhou, ela passou a rebolar de forma cada vez
mais frenética, soltando sons de prazer que me deixavam maluca por ela.
Minha boca se revezava entre seus seios e seu pescoço, deixando
beijos molhados e mordidas leves conforme ela se desmontava em cima de
mim. Meu pulso latejava, mas eu estava determinada a levá-la até o auge do
prazer.
Lua então soltou um grito desesperado e gozou em cima de mim,
seu corpo inteiro tremendo de prazer. Eu sentia os poros dilatados de sua
pele, a respiração pesada, a batida rápida do coração. Era ela quem tinha
gozado, mas eu sentia cada onda de prazer como se fosse minha.
Sua lubrificação era tão intensa que escorria pela minha mão.
Depois que os espasmos terminaram, puxei os dedos devagar e os levei à
boca. O gosto dela era inesquecível e eu queria sentir quantas vezes fosse
possível. Pelo menos enquanto ainda podia.
— Quantas meninas você já fodeu desse jeito? — perguntou Lua em
tom de brincadeira.
Sua cabeça repousava sobre meu ombro enquanto ela se recuperava.
Eu acariciei seus cabelos enquanto ria.
— Desse jeito, só você — respondi.
A resposta saiu mais galanteadora do que eu planejara. A ideia não
era dizer que Lua era especial, mas a verdade é que ela era. Eu não
lembrava de ter sentido tanto prazer ao ver outra mulher gozar antes. De
sentir uma conexão tão forte, tão intensa.
Lua ergueu o pescoço para me olhar. Ela me deu um beijo lento,
sensual… Apaixonado.
Não. Isso não podia acontecer.
Aprofundei o beijo rapidamente, tentando voltar ao desejo
animalesco que tinha dominado nosso encontro. Lua entendeu o recado e
me acompanhou, parando apenas para tirar minhas roupas e me deitar sobre
a canga estendida no chão.
Gememos juntas quando nossos corpos se encontraram sem
nenhuma barreira. Lua deitou em cima de mim, me olhando como se eu
fosse a coisa mais deliciosa que ela já tinha visto.
— Você é muito linda, Eliza.
Puxei ela para um beijo a fim de disfarçar as batidas desenfreadas
do meu coração. Mas, quando os dedos dela me encontraram, eu sabia que
estava perdida.
Capítulo 11

Agora o nosso quadro, casando na igreja


Não vai ser pendurado, só existe na minha cabeça
Nós dois tocando o gado, a filha boiadeira
Nossa vida no mato só existe na minha cabeça

— “Nosso Quadro”, Ana Castela

Depois de quase dois dias inteiros juntas, isoladas graças às nossas


desculpas e à ocupação da minha família com os preparativos para a festa
de réveillon, enfim Lua e eu fomos obrigadas a encarar a realidade.
Na noite do dia 31, Lua terminava de se arrumar diante do espelho
do nosso quarto. Eu já estava vestida e a observava discretamente, tentando
não parecer uma boba apaixonada. Era impossível não olhar para ela — Lua
usava um vestido verde musgo que era meu, mas, no corpo dela, ganhava
outros contornos. O decote que eu preenchia com meus seios grandes ficava
mais profundo no peito dela, revelando a extensão do seu colo bronzeado.
Ela não tinha levado nenhuma roupa provocante daquele jeito. Na verdade,
Lua não tinha nada além de calças jeans, camisetas básicas, shorts e
camisas xadrez na mala.
— Como você não sabia que era lésbica? — perguntei em tom de
brincadeira enquanto analisava as roupas dela mais cedo.
Lua abriu um sorriso discreto e deu de ombros, deixando o quarto
rumo ao banheiro. Mordi meu lábio, me reprimindo por ter feito aquela
piada. Ela ainda não estava confortável com sua orientação sexual.
Agora, parecendo uma deusa grega diante do espelho, ela havia
recuperado a confiança. Seus cabelos estavam presos em um rabo de cavalo
alto e seu rosto havia sido coberto por uma leve camada de maquiagem.
— Que tal? — ela perguntou ao se virar para mim.
Perfeição encarnada, dona do mundo inteiro, rainha do meu
coração, musa, referência de beleza para qualquer obra de arte, rival de
todas as estrelas, milagre da natureza…
— Que bom que serviu — respondi, tentando disfarçar meus
verdadeiros sentimentos.
Lua murchou e se virou de volta para o espelho. Eu sabia que ela
queria um elogio mais entusiasmado. Acontece que todas aquelas
declarações que tentavam escapar do meu coração, ultrapassar as barreiras
do meu cérebro e escapar da minha boca não podiam existir. A gente estava
prestes a voltar para o mundo lá fora, onde meu primo Caio ia passar a noite
inteira ao lado de Lua.
A namorada dele.
Que ele ia beijar à meia-noite.
O pensamento me trouxe um calafrio. Já era ruim ter que ver Lua
com Caio, mas ver os dois iniciando um ano juntos…
Não é da minha conta, pensei. Não vou me meter. Não vou fazer
uma loucura e estragar a festa de todo mundo.
Uma batida na porta chamou nossa atenção. A maçaneta girou e
uma fresta se abriu.
— Todo mundo decente? — era a voz de Sabrina.
Levantei para abrir o restante da porta e deixei que ela entrasse.
— Uau, que gatas — ela disse ao ver nossas roupas.
— Você também — disse Lua. — Adorei esse brinco.
Sabrina e Lua trocaram elogios enquanto eu terminava de fazer o
delineado ao redor dos meus olhos. Eu vestia um conjunto de calça e top
pretos com alguns detalhes brilhantes, nada muito chamativo. Por cima,
uma camiseta preta meio transparente que ia até metade das minhas coxas.
Não estava a fim de participar da festa, mas sabia que ninguém me deixaria
em paz se eu passasse o réveillon no quarto.
Me obrigar a passar o ano de branco, porém, ninguém conseguiria.
— Tá todo mundo lá na churrasqueira — disse Sabrina quando me
levantei da cama. — Eu preciso de ajuda pra carregar as garrafas de
champanhe.
— Que chique — falou Lua.
— O pessoal dessa família é capaz de ficar sem comer, mas
champanhe no Ano-Novo nunca falta — falei.
— Caio tá lá te esperando — disse Sabrina. — Vai na frente que a
gente te encontra.
Lua e eu trocamos um olhar rápido que minha prima fingiu não
notar. Não esperávamos ser interrompidas daquele jeito, sem uma chance de
nos despedir. Por mais que a gente ainda fosse dormir juntas naquele
mesmo quarto, cada segundo com ela era precioso — afinal, a viagem
terminava na manhã seguinte.
— Te vejo lá? — perguntou Lua com a voz fraca, mesmo já sabendo
a resposta.
Eu assenti. Nossos dedos roçaram de leve quando Lua passou por
mim e deixou o quarto.
Sabrina fechou a porta com força e me encarou de braços cruzados.
— A menina tá gostando de você, Eliza — ela disse em tom de
reprovação.
Eu sacudi a cabeça em negação.
— Até parece. A gente só deu uns beijos.
— Vocês sumiram desde aquela noite do estábulo — ela continuou.
— Não vai achando que ninguém percebeu. O Caio pode ser uma porta,
mas eu não sou, não.
Eu virei de costas para ela e suspirei enquanto ajeitava o cabelo
diante do espelho.
— O que você quer que eu diga? Você sabia que eu tava atrás dela.
Sabrina me virou de volta para ela e estreitou os olhos.
— Você disse que ia seduzir a garota pro Caio quebrar a cara. E até
agora isso não aconteceu. Você tá gostando dela também?
— Não! — exclamei. — Claro que não, tá maluca?
Eu me afastei de Sabrina e caminhei em direção à porta, tentando
respirar um pouco. A última coisa de que eu precisava era ser interrogada
pela minha prima mais esperta, a pessoa que melhor me conhecia naquela
casa.
— Então por que você não continuou com o plano? Cadê o flagrante
que me prometeu?
Eu não queria confessar que tinha feito uma besteira. Que, em vez
de seduzir a namorada do meu primo, eu tinha me apaixonado por ela. Que
eu não tinha terminado de executar o plano porque não queria ficar longe
dela, não queria que todo nosso envolvimento girasse em torno do Caio.
Mas eu não estava pronta para aceitar a verdade. No instante que
aquele sentimento ganhasse forma, eu estaria vulnerável. Perdida.
— Vai ser hoje— falei com firmeza. — Fica ligada.
Sem deixar minha prima falar mais nada, saí do quarto e segui para
a festa.

◆◆◆

Ver o Caio foi mais horrível do que eu achei que seria.


Não só porque ele estava com a Lua, mas porque eu me lembrei de
tudo que tinha acontecido no ano anterior.
Ele usava a mesma camisa branca amassada, a mesma bermuda
amarela, o mesmo sapatênis ridículo.
Fazia exatamente um ano que ele tinha contado para a família inteira
que eu era lésbica.
Notei que Lua sorria para mim quando entrei na área da
churrasqueira, mas rapidamente desviei dela e fui até a geladeira pegar uma
bebida. Em seguida, me envolvi em uma conversa com Mirella e Bruna,
que debatiam a ordem das garrafas que seriam abertas naquela noite.
Quase uma hora depois, quando vi Lua no canto da festa, reparei
que ela estava triste. Desanimada, encolhida no canto como no dia em que
ela chegou naquele sítio. Caio trouxe um copo cheio que ela virou sem nem
ver o que tinha dentro. Ele riu; ela sorriu de volta. Não era o mesmo sorriso
que reservava para mim — não vinha junto com o brilho que iluminava
seus olhos. Mas era treinado. Era um sorriso de defesa.
E, como num passe de mágica, parecia que a gente tinha voltado
para onde tudo começou: eu de um lado, ela de outro, curtindo a festa com
seu namorado.

◆◆◆
Quando a contagem regressiva chegou ao fim, meu olhar recaiu
sobre Lua.
Eu deveria ter desviado. Deveria ter prestado atenção em Mirella e
Bruna, que postavam stories debochados e falavam com as câmeras dos
celulares sobre não ter ninguém para beijar naquela noite. Poderia ter
abraçado meus pais, que, pela primeira vez no ano, estavam acordados
depois das dez da noite. Queria ter ajudado tio Rafael a abrir a última
garrafa de champanhe, ter filmado Sabrina pulando as “sete ondas” em uma
poça d’água no jardim, queria ter fotografado o cachorro roubando um
pedaço de picanha que estava esfriando ao lado da churrasqueira.
O que eu fiz foi assistir ao beijo de Caio e Lua como quem vê um
acidente de carro acontecendo em câmera lenta.
Ela beijava o namorado como se eu não estivesse ali. Como se eu
nunca tivesse entrado em sua vida, tocado seu corpo, levado ela aos
momentos de prazer que não saíam da minha cabeça.
Como se ela nunca tivesse me mostrado quem realmente era.
Eu sabia que um beijo de Ano-Novo era mais do que um beijo: era
uma promessa. Não se beija uma pessoa no fim da contagem regressiva só
por beijar. Era ao mesmo tempo a última pessoa que ela beijaria em um ano
e a primeira que beijaria no novo ano. São muitas lembranças. Muitos
compromissos.
Ao beijar Caio, Lua estava mandando um recado para o mundo: eu
pretendo continuar com esse cara por mais um ano.
A foto que os dois tiraram com o celular confirmava isso. Eu já
imaginava a legenda cheia de emojis cafonas de estrelinhas brilhando e
hashtags de gratidão. Ele tinha a mania irritante de se referir a ela com um
— pasme! — emoji de lua cheia. Era a coisa mais ridícula que eu já tinha
visto.
E era tudo que eu queria pra mim.
Eu nunca tinha beijado ninguém à meia-noite. Ninguém nunca me
quis por tempo o bastante para estar comigo na virada do ano. Para fazer
planos ao meu lado.
A lembrança do término com Carol me atingiu em cheio. O jeito que
ela me disse que não queria mais nada, que eu estava indo rápido demais.
Que eu era intensa demais. Que eu estava apressando a ordem natural das
coisas.
Eu tinha feito aquilo de novo. Me apaixonei por uma menina que eu
tinha beijado dias antes, com quem eu tinha transado pouquíssimas vezes,
que não tinha nenhuma possibilidade de namorar comigo.
E nem vontade.
Senti as lágrimas queimando o rosto e dei as costas para a festa. A
última coisa que eu queria era estragar o evento de todo mundo, ou pior —
ter que explicar que eu chorava pela namorada do meu primo.

◆◆◆

Quando dei por mim, estava submersa.


A água gelada envolvia meu corpo ainda vestido e ajudava a aplacar
o incêndio que tomava meu peito. Eu gritei debaixo d’água, sabendo que
ninguém escutaria, e deixei um pouco da frustração sair.
Voltei à superfície para recuperar o fôlego e tentei me acalmar,
respirando fundo uma, duas, três vezes. Aos poucos, o barulho dentro da
minha cabeça começou a diminuir e deu lugar aos sons ao meu redor. A
água da cachoeira caindo com força. O farfalhar das árvores. O piado de
uma coruja. Passos se aproximando.
Abri os olhos, assustada. Passos?
— Eliza!
A voz de Lua invadiu o ambiente. Quando a vi parada na beira do
rio, lembrei da primeira vez que fomos juntas à cachoeira. Seus cabelos que
brilhavam sob a luz do sol, o calor que sua pele emanava na primeira vez
que a toquei.
As lágrimas insistiam em cair, mas eu não queria chorar na frente
dela.
— O que você tá fazendo aqui? — falei com a voz trêmula.
Ela se aproximou, preocupada.
— Você tá bem? O que aconteceu?
— Eu quero ficar sozinha.
Mergulhei e nadei para longe dela. Foi uma atitude infantil, uma
coisa que eu fazia quando meus pais vinham me buscar e eu não queria
deixar a cachoeira.
Quando voltei à superfície, Lua não estava mais lá.
Olhei ao redor, um pouco decepcionada com seu desaparecimento.
Ela tinha ido até ali para perguntar como eu estava, só para ir embora
quando me encontrou?
De repente, Lua despontou ao meu lado. Ela também tinha
mergulhado de roupa e tudo.
— Ai, droga — resmungou.
Lua tirou o celular do bolso. O aparelho estava todo molhado, uma
corrente de água pingando pela entrada do carregador.
— O que você tá fazendo aqui, Lua? — perguntei, me aproximando
dela. — Não era pra estar curtindo com seu namoradinho?
Eu sabia que as palavras eram injustas. Lua não me devia nada.
Ainda assim, ali estava ela.
— Eu achei que era isso que você queria — ela respondeu, e seu
tom me assustou. — Você me ignorou a festa inteira.
— Não era esse o combinado? A gente fica escondido e depois você
volta pros braços dele.
— Se isso te incomoda, você deveria ter falado — ela continuou,
firme. — Em vez de fugir e se esconder aqui.
— Teria feito alguma diferença? — Eu senti minha voz embargar e
torci para que as lágrimas não caíssem. — Você teria me beijado à meia-
noite no lugar dele?
Intensa. Apressada.
As palavras de Carol ecoaram pela minha cabeça, me assombrando.
— Era isso que você queria? — Lua perguntou.
Seu tom soou mais suave. Quase esperançoso.
Eu estava exausta. Não podia mais me esconder, fingir que não
sentia nada.
— Claro que sim, Lua — confessei baixinho. — Eu quero você
inteira.
Lua me olhou sem falar nada. Então, finalmente, abriu um sorriso.
Aquele sorriso. O que iluminava todo o rosto, que fazia os olhos
brilharem.
Quando ela me beijou, eu ouvi fogos de artifício estourando no céu.
Não abri os olhos para confirmar se era coisa da minha cabeça. O
importante é que estávamos juntas.
— Você é uma imbecil, Eliza — ela falou entre beijos. — Uma
idiota.
— Fã ou hater? — perguntei, brincando.
— Sua fã número um.
Ela me deu um selinho longo e então me encarou com seriedade.
— Eu vou terminar com o Caio — declarou. — Quero ficar com
você.
Eu estava tão leve que parecia prestes a sair boiando pelo lago.
— E sua família? — perguntei, preocupada.
— Uma coisa de cada vez — falou, com tanta certeza que parecia já
ter pensado sobre o assunto. — Você consegue esperar?
Eu assenti.
— Se a gente estiver juntas, eu espero o tempo que for.
Enquanto Lua me ajudava a tirar minhas roupas molhadas, eu
pensava na sorte que tinha de encontrar alguém tão emocionada quanto eu.
Alguém que acompanhava meu ritmo, que espelhava minha intensidade,
que queria as mesmas coisas, ao mesmo tempo que eu.
Não tinha nada de errado comigo. Eu só não tinha encontrado a
mulher certa pra mim.
E Lua era perfeita.
— Aquele dia que você me trouxe aqui — ela falou assim que
terminou de tirar meu top. — Você tava tão linda na água. Eu tava louca pra
te beijar.
— Eu só penso nisso desde a primeira vez que te vi, Lua.
Continuei beijando sua boca até que nossas respirações se tornaram
uma só. Eu já nem sentia mais a baixa temperatura da água. Só sentia o
corpo dela contra o meu, nossos seios encaixados, a excitação que ela me
dava ao fazer pressão na minha coxa. Apertei sua cintura para baixo,
criando mais fricção, lambendo as gotas de água que caíam pelo seu queixo.
Eu me separei dela só para sair da água. Queria vê-la por inteiro,
cobrir o corpo dela com o meu. Deitei sobre uma pedra à margem do rio e
puxei Lua comigo, rolando por cima dela em seguida. Tiramos as últimas
peças de roupa e enfim ficamos nuas sob a luz do luar, que me permitia ver
todos os detalhes do corpo mais lindo que eu já tinha conhecido.
Beijei as penas dela inteiras, começando pelos tornozelos, passando
pelas canelas e pelas coxas. Me aproximei do seu centro devagar, sentindo o
calor que ela emanava. Lambi sem pressa, saboreando aquele momento
com a certeza de que teríamos muitos outros pela frente.
Não era um beijo de Ano-Novo, mas era a promessa que eu tanto
esperava.
— Lua?
Duas lanternas de celular iluminavam a beirada do rio e,
consequentemente, os nossos corpos expostos.
Capítulo 12

Cria coragem
Não dá pra ser feliz existindo só pela metade
Arranca o segredo
Nenhum coração consegue suportar tanto tempo

— “Coragem”, Rensga Hits!

Lua levantou rapidamente e cobriu os seios com o braço. Eu me joguei


na frente dela, tentando protege-la de uma ameaça que eu nem sabia qual
era.
— Eliza?
O tom de decepção fez minha espinha gelar. Quando meus olhos
enfim se acostumaram às luzes, eu vi o rosto de Caio atrás de um dos
celulares.
— Vocês tão de brincadeira comigo — ele continuou, cada vez mais
irritado. — Não pode ser verdade.
— Calma, Caio — disse Sabrina.
Ela tentou segurar o braço dele, mas Caio se apressou em nossa
direção.
— Que merda é essa, Lua? — ele esbravejou.
Em seguida, enfiou o dedo indicador na minha cara.
— Foi você, não foi? Sua sapatão nojenta!
Dei um tapa no braço dele para que abaixasse a mão.
— Olha como você fala comigo, seu merda — falei.
— Eliza, não complica ainda mais — disse Sabrina.
— Caio, vamos conversar em outro lugar? — disse Lua, que enfim
se recuperava do choque.
Ela havia encontrado o vestido verde e o usava para cobrir a frente
do corpo.
— Eu vou acabar com você — falou Caio, ignorando Lua
completamente.
Ele veio na minha direção como um touro raivoso. Mal sabia ele que
eu fazia aulas de combate na academia.
Usei a força do impulso dele para torcer seu corpo e jogá-lo dentro
da água. Caio caiu com tudo lá dentro, todo retorcido e de mau jeito. Devia
ter doído.
Ele merecia.
Uma risada chamou minha atenção. Sabrina filmava tudo com o
celular.
— O que você tá fazendo? — perguntou Lua.
— Completando a humilhação dele — disse Sabrina, e se virou para
mim. — Não era isso que você queria?
Lua franziu o cenho. Eu gelei por completo. Peguei a camiseta, que
era comprida, e vesti para não ficar tão exposta — ainda que ela fosse
transparente e eu não usasse nada por baixo.
— Você fez isso pra se vingar de mim, não foi? — perguntou Caio
de dentro do lago. — Sua porca ridícula.
— Cala a boca — falei. — Senão da próxima vez eu te jogo numa
pedra.
— Você come minha namorada e ainda me ameaça? — esbravejou
Caio.
— Não foi nada disso, Caio — disse Lua. — A gente se gosta de
verdade.
Caio olhou de mim para Lua e, enfim, voltou-se para Sabrina, que
ainda filmava tudo. Para nossa surpresa, ele começou a rir.
Caio saiu do lago como se fosse um monstro, pingando água por
todos os lados. Eu preferia mil vezes o Caio nervoso. Aquele Caio sabia de
alguma coisa.
— Ela te usou, Lua — ele falou. — Eliza me odeia. Ela queria me
humilhar.
— Não é nada disso — tentei interromper, mas Caio falava mais
alto.
— Agora eu tô entendendo tudo — continuou Caio, apontando para
Sabrina, que tinha parado de filmar. — Eu nem ia atrás de você, Lua, mas a
Sabrina insistiu. Foi ela que me trouxe aqui.
Todos os olhares se voltaram para Sabrina. Ela abriu e fechou a boca
como um peixe.
— Eu achei que era o que você queria — ela confessou baixinho,
olhando para mim.
Lua se afastou de mim. Eu sentia que a perdia a cada segundo, como
areia escorrendo entre os dedos.
— O que você fez, Eliza? — perguntou Lua.
A mágoa era clara em sua voz. Não havia outra opção senão contar
a verdade.
— No começo era tudo um plano pra humilhar o Caio — eu falei
rapidamente —, mas depois virou outra coisa, Lua, eu juro! Muito mais!
Lua não quis ouvir o final da frase. Antes que eu pudesse explicar o
que tinha acontecido, ela pegou as botas do chão e saiu correndo pela trilha,
deixando todos nós para trás.

◆◆◆

Quando cheguei ao final da trilha, era tarde demais. Não havia sinal
de Lua em nenhum lugar do sítio. Àquela altura da noite, todos os adultos já
tinham ido dormir, alheios ao drama que se desenrolava entre os filhos e
sobrinhos na cachoeira.
Minhas primas e irmãs sabiam que algo de estranho estava
acontecendo. Cheguei à área da churrasqueira com os cabelos molhados e
os pés sujos, usando apenas uma camiseta preta semi-transparente e mais
nada, seguida por uma Sabrina preocupada e um Caio furioso.
— Cadê a Lua? — perguntei.
Bruna olhou para mim, horrorizada com meu estado.
— Gente, o que tá acontecendo?
— Caio é um tremendo de um corno — disse Sabrina.
— Aí também não, né — ele falou, constrangido.
— Chega, Sabrina — eu disse. — Não precisa fazer isso.
— Cara, eu não tô te entendendo — Sabrina falou. — Você fez todo
esse corre pra seduzir a namorada do Caio e agora não quer comemorar a
vitória? Olha como ele tá, Eliza. Você conseguiu!
Apesar de irritado, Caio não tentou rebater as acusações. Ele sabia
que tinha sido traído e seu ego não suportaria a humilhação. Por mais que
eu fosse a pessoa errada na história, ninguém ia esquecer da noite em que
Caio foi corneado pela própria prima. Seria um causo contado pelo resto
dos Natais em família.
— Vai ter volta, Eliza — ele disse antes de dar as costas e entrar no
sítio.
— Eu gosto dela, Sabrina — confessei quando ele desapareceu. —
Eu fiz uma merda enorme.
— Por que você não me falou, criatura? — perguntou Sabrina,
desolada. — Eu não teria feito nada disso se soubesse…
— Eu sei, eu sei. Mas agora eu preciso encontrar a Lua. Alguém
sabe onde ela tá?
Olhei para as outras meninas.
— Eu acho que vi alguém correndo naquela direção — disse Pedro,
enfim servindo para alguma coisa além de comer todo o pão de alho do
churrasco.
Ele apontou para o caminho que levava até o estábulo. Como eu não
tinha pensado naquilo? Comecei a correr na direção que ele indicou, porém
Mirella me segurou.
— Pelo menos calça um chinelo — ela disse, me entregando seu par
de Havaianas brancas novinhas.
Apesar da boa ação, Mirella fez uma careta de profundo desgosto
quando enfiei os pés encardidos no calçado. Aquelas Havaianas nunca mais
seriam as mesmas.
— E cobre essa bunda, pelo amor de Deus — completou Bruna, me
emprestando uma canga que estava jogada perto da piscina.
Amarrei o tecido ao redor da cintura. Não tinha um espelho para
checar minha aparência, porém eu tinha certeza de que parecia uma
daquelas pessoas que enlouquecem lentamente dentro do BBB: meus
cabelos estavam começando a secar de forma desordenada, os pés,
imundos, a camiseta, do avesso e minha maquiagem, toda borrada.
— Se ela te quiser de volta desse jeito, é porque é amor de verdade
— disse Yasmin.
E partimos todas juntas em disparada na direção do estábulo.

◆◆◆

Fui recebida pelo meu inimigo de longa data, meu nêmesis, meu
rival: o cavalo Jair.
Não havia nem sinal de Perséfone. Era claro que Lua tinha fugido na
égua boazinha e deixado para trás aquele monstro homofóbico em forma de
equino.
— A gente tem que ir atrás dela — falou Sabrina. — Pode ser
perigoso ficar cavalgando à noite no estado que ela tá.
— Vamos pegar o carro — sugeriu Mirella.
— Esconderam as chaves todas — disse Sabrina. — Lembra?
Depois do ano retrasado.
No réveillon de dois anos antes, depois de tomar cinco garrafas de
champanhe e assistir a Velozes e furiosos na Tela Quente, minhas primas e
irmãs decidiram pegar os carros da família para tirar um racha. O resultado
foi uma cerca derrubada e a lateral de um carro completamente amassada,
além da nossa punição eterna de nunca mais poder acessar veículos em dias
de festa.
Enquanto elas debatiam qual era o melhor meio de ir atrás de Lua,
eu travava uma batalha silenciosa com o cavalo Jair. Nos encaramos como
se estivéssemos em um filme de faroeste, o feno rolando no chão e as mãos
prestes a sacar as pistolas.
— Eu vou a cavalo — anunciei.
As garotas pararam de falar e se viraram para mim, me olhando
como se eu tivesse falado alemão.
— Você nem sabe montar, Eliza — disse Sabrina.
— A Lua me ensinou.
— Acho que você tá confundindo as cavalgadas — disse Yasmin,
rindo.
Ignorei a gracinha dela e puxei a rédea de Jair, que, obviamente,
relinchou em protesto.
— Esse cavalo nunca deixa ninguém montar nele — disse Sabrina.
— Nem o Caio consegue.
— Mais um motivo pra eu insistir — falei. — A Lua vai perceber
que eu fiz um grande gesto por ela. Só assim pra me perdoar.
— Não vai ter o que perdoar se você cair e quebrar o pescoço —
disse Sabrina.
Puxei Jair com mais força e ele enfim se mexeu. Caminhou para
fora de sua baia com aquela má vontade característica e, enfim, me deixou
colocar a sela no lombo.
— Olha, Jair, é o seguinte — falei. — Essa é sua chance de se
redimir. Imagina quando ficarem sabendo que você foi o herói de uma
reconciliação homoafetiva! Ninguém mais vai te chamar de homofóbico.
Jair continuou me olhando com cara de cu. Eu suspirei resignada.
Dei alguns tapinhas carinhosos no pescoço dele, como tinha visto
Lua fazer. Então enfiei o pé no estribo e me joguei por cima da sela,
sentando desengonçada em cima do bicho.
Jair deu uma reclamada, mas não tentou me lançar para longe. Ele
pareceu aceitar seu destino tanto quanto eu aceitara aquela humilhação. Era
o único jeito.
— Cuidado, Eliza — disse Sabrina. — E boa sorte!
Quando enfiei o pé na lateral de Jair, ele deu uma relinchada e alta e
saiu galopando na velocidade de um raio enviado pelo próprio capeta.
Capítulo 13

Só sei que eu tô amando e já tá dando medo


Já me apaixonei desde o primeiro beijo
Eu e a torcida do Brasil cruzando os dedos
Pra ela me amar do mesmo jeito

— “Eu e a torcida do Brasil”, Xand Avião e Wesley Safadão

Avistei Perséfone parada perto da cerca onde eu e Lua tínhamos


encontrado as vizinhas do sítio. Me pareceu óbvio que Lua estaria por ali, o
lugar mais distante ao qual era possível chegar cavalgando sem deixar a
propriedade.
Lua estava de costas para mim, ainda montada em Perséfone, e
observava a escuridão do campo que se estendia depois da cerca. Ela
parecia ponderar se deixava o sítio ou não. Eu precisava agir rápido.
— Lua!
Lua se virou na minha direção, assustada. Eu imaginava o choque
dela ao me ver montada no Jair, cavalgando sozinha em sua direção. Para
minha surpresa, ao invés de saltar em meus braços e me receber como uma
rainha amazona, ela simplesmente mexeu as rédeas e Perséfone correu para
mais longe.
— Lua, espera!
A égua galopou ainda mais rápido. Estava indo de encontro à cerca
que marcava o fim da propriedade. No último segundo, Lua fez uma
manobra com as rédeas e Perséfone saltou por cima da cerca, aterrissando
do outro lado com elegância.
— Eu nem sabia que a Perséfone sabia fazer isso — falei para mim
mesma. — É bom que vocês tenham ido pra mesma escola, Jair.
Acelerei o galope e Jair correu a todo vapor na direção da cerca.
Conforme a gente ia chegando mais perto, minha certeza de que ele ia
conseguir fazer o salto foi esmorecendo. Jair era um cavalo preguiçoso que
comia e dormia o dia inteiro; a que horas ele teria aprendido aquele truque?
— Eliza, cuidado — disse Lua ao ver o que eu estava fazendo.
Eu estava prestes a desistir quando percebi que era tarde demais.
Fechei os olhos, segurei firme as rédeas e rezei para que Santa Cássia Eller
e São Paulo Gustavo me protegessem. Só abri quando estava voando por
cima da cerca, pois queria que a última coisa que eu visse antes de morrer
fosse Lua.
E então aterrissamos do outro lado com um baque tão forte que eu
quase caí da sela.
Jair relinchou e me sacudiu, chegando ao limite. Acho que aquela
quantidade de exercício era mais do que ele tinha feito a vida inteira, ainda
que ele jurasse que tinha histórico de atleta.
Eu tentei descer do cavalo com o mínimo de dignidade, mas uma
última sacudida dele me fez despencar como uma jaca madura. Por sorte,
estávamos em baixa velocidade, então a única coisa que doeu foi meu ego.
— Eliza! Tá tudo bem?
Lua parecia um anjo pairando sobre mim. Enquanto eu estava no
momento mais deplorável da minha existência, ela seguida linda, o vestido
verde esvoaçando como se ela fosse uma fada.
— Tudo, sim — falei, ao sentar no chão com ajuda dela.
Quando percebeu que eu não tinha sofrido nenhum ferimento e
ainda tinha capacidade de falar, Lua trocou o semblante de preocupação
pelo de raiva.
— Que bom — ela disse secamente. — Agora você pode voltar
sozinha.
Segurei a mão dela, impedindo que se levantasse.
— Espera. Eu vim aqui montada no Jair, usando as Havaianas
minúsculas da minha irmã e uma canga mofada, e, pra completar, tive que
pular uma cerca como se estivesse nas Olimpíadas. Você podia pelo menos
falar comigo.
Lua bufou, mas não se mexeu. Ela soltou minha mão e sentou ao
meu lado, contrariada.
— Fala logo.
Era agora ou nunca. Eu só tinha uma chance de consertar aquela
confusão, e não pretendia voltar sozinha pro sítio montada em um cavalo
homofóbico que provavelmente me odiava mais ainda.
— Desculpa. Sério, eu não sei nem por onde começar a explicar o
quanto eu tô arrependida do que eu fiz.
Lua não falou nada. Ela nem se mexia. O único movimento nela era
dos cabelos, que tinham se soltado do rabo de cavalo durante sua fuga e
dançavam livremente ao redor do rosto dela.
— Eu não quero justificar nada, porque sei que errei — continuei.
— Mas talvez se eu explicar o que aconteceu desde o começo você possa
pelo menos me dar uma segunda chance.
— Acho difícil — disse Lua, implacável.
Tentei evitar que as palavras dela me atingissem. Eu precisava
tentar, precisava ter coragem para convencê-la a me perdoar.
— O Caio me tirou do armário no ano passado — confessei. — Foi
nessa mesma viagem, nesse mesmo sítio, no réveillon. Na frente da família
inteira, incluindo meus pais.
Lua me olhou pela primeira vez desde que começamos aquela
conversa. Ela estava com o cenho franzido.
— Eu não sabia — ela disse. Em seguida, ajeitou a postura e
desviou o olhar. — Mais um motivo pra eu estar brava com você. De uma
certa forma, você fez a mesma coisa comigo.
— Eu juro que não foi essa minha intenção. Ninguém vai falar nada
de você, eu prometo. Sua família não vai ficar sabendo.
— E o Caio?
— O Caio é um frouxo. A última coisa que quer é que todo mundo
saiba que ele é corno.
Lua refletiu sobre minhas palavras. Dei um tempo para que ela
assimilasse as informações.
— Você se aproximou de mim pra atacar o Caio — ela conclui
amargamente.
— No começo, sim — confessei, sentindo meu coração contrair. —
Mas eu juro, Lua. Eu juro que eu nem lembrava mais desse plano quando a
gente ficou junta.
Lua riu com escárnio, balançando a cabeça. Ela tirou os cabelos do
rosto e eu vi a raiva em seu olhar.
— Eu não acredito que eu fui idiota desse jeito — ela disse. — De
achar que uma garota que nem você ia se interessar por mim assim, do
nada.
— Isso não teve nada a ver com o plano — falei. — Você é linda,
Lua. Interessante, inteligente, divertida. Eu decidi te seduzir justamente
porque me senti atraída por você. Quando você começou a corresponder, eu
fui a mulher mais feliz desse mundo.
— Porque eu abri as pernas pra você rapidinho — ela disse, furiosa.
Lua se levantou subitamente, encerrando nossa conversa.
Enquanto ela caminhava na direção de Perséfone, eu pensava no que
fazer. Não adiantava explicar o que tinha acontecido, nem arranjar
justificativas; eu precisava baixar a guarda. Falar o que estava sentindo,
mesmo que ela me rejeitasse.
Mesmo que ela fizesse a mesma coisa que Carol havia feito algumas
semanas antes.
Eu me levantei e estufei o peito, projetando a voz para que Lua me
ouvisse.
— Eu tô apaixonada por você.
Lua parou de costas para mim, segurando a rédea de Perséfone.
Eu me aproximei dela devagar, mantendo um pouco do espaço que
ela havia criado entre nós.
— Quando a gente ficou pela primeira vez, eu… Eu não queria que
ninguém interrompesse aquilo. A questão não era mais o Caio, era nós duas.
— Podia ter sido mesmo, Eliza — ela disse, finalmente se virando
para mim. — Mas você estragou tudo.
— A última coisa que eu queria no mundo era me apaixonar por
você — falei com firmeza. — Depois de levar um fora da minha ex, depois
de ver você o tempo todo com o Caio, postando foto, andando de mão
dada…
— Você não tem o direito de me cobrar nada.
— Não tenho mesmo. E foi isso que acabou comigo.
Dei mais um passo na direção dela. Estávamos próximas o bastante
para que eu a alcançasse se erguesse o braço, mas não fiz isso. Não queria
arriscar perdê-la novamente.
— Eu só conseguia pensar em você, Lua. Em dormir e acordar com
você todo dia, não só nessa viagem. Em levar você pra São Paulo, mostrar
os lugares de que eu gosto, beijar você numa festa. Visitar sua cidade, sua
fazenda, conhecer sua família… Mesmo que fosse como amiga. Assistir
você desabrochar. Ver você mostrando pro mundo a mulher incrível que é e
que só eu tive a sorte de conhecer até agora.
Tomei coragem e segurei a mão dela. Lua estremeceu, mas não
impediu o toque.
Beijei as costas da mão dela com leveza. Com a delicadeza e o
cuidado que ela merecia.
— Se você me der uma segunda chance, a gente começa do zero.
Sai juntas em encontros românticos, troca mensagem, conversa. Beija só de
leve, dá tempo ao tempo. É isso que eu mais quero… Mesmo que eu precise
andar no lombo do Jair e pular mil cercas pra te convencer do meu amor.
Os cantos dos lábios de Lua subiram sutilmente. Ainda não
formavam um sorriso, mas era um início.
E só eu sabia o quanto estava precisando de um novo começo.
Epílogo
Um ano depois

Tantos sorrisos por aí e você querendo o meu


Tantos olhares me olhando e eu querendo o seu
Eu não duvido, não, que não foi por acaso
Se o amor bateu na nossa porta… Que sorte a nossa

— “Que sorte a nossa”, Paula Mattos

— Você tem certeza que ele não vem? — perguntei à Sabrina pela
milésima vez.
— Ele só sabe falar nesse maldito intercâmbio — ela respondeu. —
Não vai perder o Natal em Dublin pra ser comido vivo pelos pernilongos
com a gente.
Eu não conseguia conter minha alegria. Confesso que estava com
receio de reencontrar o Caio depois de tudo que tinha acontecido no ano
anterior, então fiquei aliviada quando soube que ele ia fazer intercâmbio
fora do país. O fato de ele não voltar para as festas de fim de ano era a
cereja no topo do bolo.
Terminei de tirar as malas do bagageiro do carro de Sabrina. Ela
enfim tinha comprado um só para ela (porém a regra das chaves escondidas
durante festas no sítio continuava, como minha mãe deixara claro na nossa
chegada), então eu aproveitei para pegar uma carona. Era um alívio não
precisar ser espremida entre minhas irmãs, até porque naquele ano elas
levariam seus presentes de Deus para passar o Natal com a gente. Já tinha
sido apresentada aos namorados delas umas sete vezes, mas eu sempre
trocava o nome dos dois. Pra mim, eles eram exatamente iguais.
Eu estava atravessando o caminho de terra que ligava o
estacionamento ao sítio quando ouvi um galope rápido vindo na minha
direção.
— Eliza, cuidado! — gritou Sabrina.
Eu me virei a tempo de ver Jair se aproximando na velocidade da
luz. Ele estava com os olhos endemoniados, como se estivesse possuído, e
corria na minha direção com a sede de um psicopata pronto para assassinar
sua próxima vítima.
Jair estava vindo me matar. Eu sentia.
Fechei os olhos e aceitei o destino. Eu sabia que, no fim das contas,
aquele cavalo seria minha ruína.
— Êeeeeeeeee!
De repente, o galope parou. Abri os olhos e achei que tinha morrido
e chegado no paraíso. Se eu merecia ou não, era outra história.
Lua se aproximava, montada em Perséfone. Ela usava seu chapéu de
couro e vestia calça jeans e camisa xadrez. Estava mais linda do que nunca,
ainda mais porque havia vindo me salvar.
Jair parou ao ouvir seu chamado e ficou olhando para ela sem saber
o que fazer. Lua desceu de Perséfone e se aproximou devagar do cavalo
maligno, acariciando seu pescoço como se ele fosse um gatinho perdido.
— Muito bem, Jairzinho. Muito bem! — falou com voz de bebê.
— Jairzinho? — questionei. — Esse bicho quase me matou.
— Não é porque eu te perdoei que ele tem que te perdoar também
— disse Lua, ainda afagando o cavalo.
Eu dei de ombros. Ela tinha razão.
Eu me aproximei de Jair devagar e afaguei seu pescoço
tentativamente. O cavalo deu uma leve relinchada, mas não se afastou. Eu
tomei isso como uma oferta de paz. Ou, ao menos, uma trégua de final de
ano.
— Olha o que eu fiz pra você, Jair — falei com voz mansa. —
Aposto que agora você me perdoa.
Puxei a gola da camiseta até revelar meu ombro. Por cima do
desenho de Carol, eu havia tatuado um cavalo branco em homenagem ao
Jair.
Bom, não exatamente a ele, mas ao lugar a que ele me levara havia
quase um ano. Ao fato de que Lua tinha me dado uma segunda chance.
Jair obviamente não entendia o desenho, mas talvez compreendesse
o gesto, porque deu um passo para a frente e encostou a cabeça no meu
braço. Lua e eu nos olhamos, surpresas, e tentei não fazer nenhum
movimento que pudesse quebrar o momento.
Lua se jogou em mim e me beijou. O gesto fez Jair recuar,
relinchando alto ao correr de volta para o estábulo.
— Tá vendo? — falei. — Homofóbico. Não tem jeito.
Lua riu e passou os braços pelo meu pescoço. Eu abracei sua
cintura. Retomamos o beijo com a mesma paixão de um ano antes —
algumas coisas não mudavam nunca.
Assim que nossas línguas se encontraram, eu me perdi nos braços
dela, como tinha feito tantas vezes ao longo do último ano. Sem contar
todas as conversas picantes, as nudes e as ligações que trocamos nos
períodos em que ficamos afastadas, morando em cidades diferentes. Para
mim, todo o tempo que passava com Lua não era o suficiente.
Eu mal podia acreditar que ela era mesmo minha namorada.
— Lua, pode ir tirando suas coisas lá de trás — disse minha mãe
quando passou por nós.
Nós nos separamos rapidamente, lembrando que estávamos em
público. Não que isso tivesse sido um problema no passado…
— Esse ano não quero saber de vocês duas enfiadas naquele
quartinho do pecado! — continuou minha mãe, gritando para todo mundo
ouvir.
Entramos no sítio dando risada, querendo saber quem tinha contado
para dona Marlene as coisas que eu e Lua fizemos no ano anterior.
E, entre aquela provocação amigável e o sorriso lindo de Lua, eu
enfim me senti parte da família. Do jeito que eu sou. Sem precisa mudar
nada.
Eu tinha levado uma namorada para a viagem de fim de ano.
Eu daria um beijo à meia-noite.
E, mesmo que a gente não tivesse nosso quarto, Lua e eu sempre
teríamos o estábulo.
(Desculpa, Jair!)

Fim
Gostou?

Conheça meu outro livro:

Eu, minha crush e minha irmã (editora Seguinte)

Antônia se meteu numa baita confusão. Ela topou um namoro de


mentira com sua maior crush, Júlia. Tudo porque Júlia quer ficar mais perto
de Tamires, irmã de Antônia ― e a lésbica mais disputada da faculdade.
Antônia não quer enganar a irmã e tem plena consciência de que Júlia está
se aproveitando da situação, mas é impossível dizer “não” quando sua crush
tem os olhos grandes e expressivos, o cabelo cheiroso, um sorriso
radiante… Quanto mais dates falsos as duas têm, mais elas se aproximam, e
Antônia pode jurar que aquela conexão é pra valer. Mas Júlia está
irredutível em sua missão de conquistar Tamires, e talvez Antônia esteja
perdendo a chance de se envolver com Camila, uma colega do curso de
cinema que parece gostar de Antônia do jeitinho que ela é. Agora caberá a
Antônia decidir até onde consegue levar essa mentira sem machucar quem
ama ― e o próprio coração.

Disponível em versão física e também ebook pela Amazon.


Sobre o autor
Bia Crespo
Roteirista, produtora e escritora, Bia assina os longas Galeria Futuro, A
Sogra Perfeita e 10 Horas Para o Natal, vencedor do Grande Prêmio do
Cinema Brasileiro e do Prêmio ABRA de Roteiro 2021. Bia é responsável
pela ideia original e roteiro dos longas Férias Trocadas e Caindo na Real,
previstos para serem lançados em 2024, e fez parte da sala de roteiro de três
temporadas da série Rensga Hits!.

Em 2023 lançou seu primeiro romance, "Eu, Minha Crush e Minha Irmã",
pela Seguinte, selo jovem da Companhia das Letras. Mora em São Paulo
com a esposa Lucí e a as cachorrinhas Xena e Gabrielle.

Instagram, TikTok e Twitter: @abiacrespo

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