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Copyright © 2021 Mary Wars

Capa: Danny Albuquerque


Revisão: Lara Silva
Diagramação: C. Oliveira
Betagem: A. Feppin
Leitura Sensível: R. Barnes
Créditos de imagem: Canva Plataforma de edição.

Esta é uma obra literária de ficção. Todos os nomes, personagens, cidades,


estabelecimentos e acontecimentos retratados aqui são produtos da
imaginação da autora. Qualquer semelhança com pessoas e acontecimentos
reais é mera coincidência. Todos os direitos reservados. São terminantemente
proibidas a distribuição ou reprodução de toda ou qualquer parte desta obra
por qualquer forma sem a autorização da autora. Plágio é crime!
NOTA DA AUTORA
PROLÓGO
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EPÍLOGO
SEGUNDA PARTE
EXTRA
CENA EXTRA
BÔNUS
AGRADECIMENTOS
Olá, Nova Elite de Bolfok Town.
Espero que seus carros já estejam prontos, porque a largada será dada, antes
que a corrida comece, gostaria de deixar alguns avisos.
1- Os personagens, sem exceções, cometerão erros, assim como todo ser
humano. Mantenha-se na estrada para acompanhar a evolução deles.
2- Evite promover rivalidade feminina, e reflita se seu julgamento está sendo
mais pesado em cima de um erro de uma mulher.
3- Cidades reais serão apenas citadas. Todos os lugares em que se passa a
história são fictícios, e fazem parte do Maryverso, com exceção do país que é
os EUA. Justamente por não existir, algumas leis e regras serão fictícias e
estarão misturadas com a realidade.
5- Nesse livro contém consumo de álcool, drogas lícitas e ilícitas, que podem
vir a causar danos graves a saúde. Nada disso será romantizado.
4- Haverá cenas de sexo implícito e explícito.
Gatilhos: violência doméstica, relacionamento abusivo e transtornos
psicológicos. Se tais problemáticas te afetam, interrompa a leitura por aqui.
Ou me chame no privado das redes sociais para que eu resuma o capítulo
com o gatilho indicado. Sejam gentis com vocês mesmos.
Essa obra é recomendada para maiores de 18 anos.
Estando todos devidamente preparados, apertem os cintos e pisem fundo no
acelerador, porque foi dada a largada.
Sejam bem-vindos a Bolfok Town!
Para todas vocês que almejam ser grandes sem ao menos saber
que já são imensas.
— Finalmente, gostoso. — Ouço a voz de Indiana soar ao meu lado.
— O carro já está pronto para o Rei.
Ignoro a ironia escorrendo em seu tom de voz e sorrio um pouco.
A sexta-feira está sendo um caos, se o ordinário do meu pai não fizesse tanta
questão de infernizar minha vida, talvez meu dia estivesse um pouco melhor.
Sem querer pensar em toda essa merda que me rodeia, hoje opto por correr
movido a ódio. Essas são as melhores vitórias.
O sítio amplo que sedia o maior racha de Bolfok Town está lotado. Há
pessoas interagindo por todos os lados e uma caixa de som enorme profere
um trap que não é saudável aos tímpanos de absolutamente ninguém. A
Bolfok Ride é o lugar onde as corridas acontecem, uma fazenda repleta de
mato, à beira da maior avenida da cidade– deserta o suficiente para carros
rugirem em alta velocidade, deixando apenas rastros de poeira.
Só de pensar na corrida sinto meu sangue borbulhar, correndo pelas veias em
alta velocidade. O coração também acelera as batidas, assim como os
primeiros sinais de suor se acumulam nas palmas das mãos, indicando que a
adrenalina já está se apossando do meu corpo.
As pessoas gostam de me chamar de “O Rei de Bolfok Town”, porque há três
anos, quando cheguei à cidade para estudar, não perco uma corrida sequer. E
como poderia?
Eu sou o melhor.
Estou acostumado com as altas velocidades e manobras arriscadas desde os
dezessete anos, quando descobri esse mundo e entendi que não precisava me
limitar à zona de conforto e ao tédio que era minha vida. Esse é o meu habitat
natural, correr é como uma válvula de escape, um refúgio de toda essa merda
que me cerca.
Um Mitsubishi 3000 GT branco está a minha espera todo lustrado,
aguardando o momento da largada. Sei que vou ganhar com esse carro
porque eu trabalhei nesse motor, e tenho certeza que ninguém fará um
trabalho melhor que esse. Pelo menos não nessa cidade esquecida pelo
mundo, que abriga uma faculdade um tanto famosa.
Não que a cidade seja ruim, o ponto é que ninguém vem até aqui sem ser
universitário, então o lugar de no máximo oito mil habitantes tem um público
majoritariamente jovem. Meus devaneios são interrompidos assim que Chad,
o locutor das corridas e um dos sócios da fazenda, se pronuncia.
— E aí Bolfok Ride!— Ele grita a plenos pulmões, com uma animação que
contagia a galera.— Prontos para ver fumaça no ar e pneus cantarem?
Um grito ensurdecedor se faz audível em resposta ao incentivo de Chad.
Agora o público se amontoa nas arquibancadas dispostas ao redor da rodovia.
Sim, é extravagante a esse ponto.
Assim que Chad começa seu falatório sobre as corridas da noite passo a
bandana preta pela cabeça, arrastando-a pelos fios displicentes do cabelo e
deixando-a na altura dos olhos, de modo que apenas do meu nariz para cima
fique a mostra.
— Parece que temos um corredor novo hoje.— Ouço alguém atrás de mim
proferir e apuro os ouvidos.
Depois de três anos consecutivos ganhando, a maioria dos competidores
desistem de competir comigo. Até porque o público desistiu de apostar nos
meus oponentes. Logo, tem muito tempo que não corro com alguém
desconhecido.
— Chegou a Bolfok Town ontem, eu acho. E já veio atrás das corridas.
Aperto os olhos, encarando o horizonte à frente e subitamente sinto uma
vontade enorme de fofocar com meus amigos acerca do novo corredor. No
entanto, sei que Dominic e Andrew preferem beber e se atracar com alguém
por aí do que me assistir ganhar sempre.
A verdade é que, em alguma hora, se torna entediante ver uma mesma pessoa
levar a vitória em todas às vezes.
Outra verdade é que sou um filho da puta arrogante.
Dominic e Andrew sempre fazem questão de relembrar esse ponto da minha
personalidade. Contudo, não é como se esse defeito me incomodasse muito
no momento. Para ser um bom corredor é necessária autoestima alta e muita
autoconfiança.
— Sem mais delongas.— Chad inicia, com o mesmo tom animado.— Com
vocês, nosso primeiro corredor da noite: o rei da Bolfok Ride, Thomas
Eckhoff.
Sou instantaneamente ovacionado pela plateia, principalmente pelo público
feminino, e isso me faz sorrir. Lanço um aceno contido a multidão, ouvindo
os gritos aumentar enquanto me encaminho até o carro. Estou curioso quanto
à pessoa que competirá comigo, mas não importa muito já que sabemos que
ele vai perder.
— E agora, seu oponente e mais novo corredor do Bolfok Ride... — Chad
volta a falar, aguçando minha curiosidade, mas logo empertiga a postura,
aperta os olhos para o papel e prossegue. — Me desculpem, houve um
equívoco da minha parte. Na verdade, teremos uma corredora. Seja bem-
vinda, The Queen.
Antes que eu possa sequer raciocinar, um Dodge Charger R/T 1970 preto
ruge ao meu lado, com a força de um motor de mil cavalos. Estou
exagerando, é claro. Mas, essa porra é uma relíquia.
Eu já havia corrido contra uma mulher apenas duas vezes, me lembro de
entrar em um dilema entre deixá-las ganhar ou competir como qualquer
outro. Bom, tratá-las como café com leite não deve ser algo que elas gostem,
eu, por exemplo, odiaria que me deixassem ganhar. Ainda mais se fosse
apenas pelo meu gênero. Não precisa ser muito inteligente para chegar a essa
conclusão.
O carro é alinhado ao lado do meu, e quando já estou no controle do volante
encaro minha oponente. O insulfilme não me permite ver quase nada,
contudo, para a alegria do bichinho curioso que vive dentro de mim, ela
abaixa um pouco o vidro da janela. Seus cabelos castanhos estão presos em
tranças como de uma lutadora, e há uma bandana parecida com a minha
cobrindo seu rosto, exatamente como eu, só que a dela é vermelha.
Ao perceber que estou encarando-a, tão rápida como uma pantera, ela pisca
um dos olhos para mim e logo volta a olhar para frente.
Ok, isso foi muito sexy.
Chego à constatação de que não posso cair nos seus encantos, talvez seja uma
distração para me ver perder. Não hoje, queen.
Indiana caminha até o meio da pista com um lenço vermelho em mãos, se
posicionando entre nossos carros. Coloco o cinto, ajeito o retrovisor e aperto
os dedos ao redor do volante, ajeitando a postura. Respiro fundo, dando três
batidas leves com o indicador no painel como um ritual. E, antes que a
largada seja dada, encaro-a de novo, mas já não posso ver mais nada porque o
insulfilme escuro me impede.
O lenço sobe e desce com fúria e meu carro pula assim que arranco com tudo.
É dada a largada.
Que o melhor vença.
Acelero com tudo pela avenida, tendo a visão da minha oponente pelo
retrovisor. Abro um sorriso vitorioso ao perceber que ela já está atrás de mim.
Começar levando vantagem é sempre muito bom.
A adrenalina pulsa forte por todo o meu organismo, o coração bate quase em
uma arritmia, a respiração torna-se pesada, e um estado de letargia vai se
apossando de mim, como se eu estivesse ingerindo uma boa dose de heroína.
Só não é tão bom quanto um orgasmo.
Fico feliz ao saber que rodamos Bolfok Town quase que inteira com ela atrás
de mim, passando por todas as ruas extremamente vazias, como se a
população inteira tivesse a noção de que sexta à noite é perigosa demais estar
no meio da rua.
Em um momento, tudo estava bem, o Dodge preto atrás de mim quase que
em um ritmo tranquilo, no outro segundo, o carro é jogado com tudo para
cima de mim, me fechando.
Desgraçada.
Descubro que essa é uma tática dela. Fingir que está perdendo, quando na
verdade tem tudo sob controle. Como ela consegue recuperar a distância em
tão pouco tempo, eu sinceramente não sei.
Tento de tudo, já estou no modo turbo, então, apenas acelero ainda mais,
tentando uma manobra arriscada, como um grito de desespero à beira do
penhasco.
Quando consigo, finalmente, alinhar meu carro ao dela, a vejo tombar a
cabeça para trás. Não tenho acesso visual ao seu rosto, mas é óbvio que é
uma gargalhada.
Ela é a porra de uma dissimulada.
Em mais uma de suas táticas desconhecidas por mim, ela gira o volante com
tudo e me faz perder o controle. E é aí que percebo que estou rodando na
pista, como um verdadeiro tolo.
Recupero o controle da direção com rapidez, mas logo me dou conta de que
não em tempo o suficiente porque já alcançamos a linha de chegada. Quer
dizer, ela sim, eu não.
Porque pela primeira vez, após três anos de vitórias consecutivas, eu perco.
Eu perdi.
É como ser tombado no instante em que você está caminhando livremente
por um campo aberto, porém não percebe o cadarço desamarrado. E então,
pisam nele.
E você cai.
Dizem que quando se está no topo o tombo é muito maior. Estou provando
disso neste exato momento.
E a última coisa que vejo antes de manobrar para voltar à fazenda é os dois
dedos médios dela erguidos na minha direção.
Quem é essa mulher?
Lúcifer abriu o portão do inferno e liberou uma criatura para atazanar minha
vida?
Essa é a única explicação para a minha maré de azar que acaba de começar.
Assim que o luxuoso carro estaciona em frente ao lugar onde viverei
pelos próximos quatro anos, um arrepio alastra desde a base da coluna até a
nuca. Jared, meu motorista, me encara pelo retrovisor com as sobrancelhas
meio levantadas, como em uma pergunta muda, indagando se enrolarei mais
dentro do veículo ou se finalmente sairei.
— Obrigada por me trazer — suspiro. — Eu realmente precisava disso, que
alguém viesse comigo.
— Estarei sempre ao seu dispor, senhorita Lennon. — Abro um sorriso
contido, feliz em saber que tenho alguém. — Mandarei trazerem seu carro
amanhã mesmo.
Inspiro, inflando as bochechas com ar e logo expiro aliviada em saber que em
breve terei meu bebê comigo. Já estou com saudades dele.
Saio do automóvel, assistindo Jared dar partida e arrancar com o carro.
O assisto sumir pelo horizonte enquanto o nervosismo vai se apossando de
mim através das pequenas gotículas de suor que se acumulam em minhas
mãos. A verdade é que quero meus pais aqui comigo, mais do que tudo. Olho
em volta, sendo assombrada pela recepção de calouros que chegam com seus
pais. Os responsáveis o acompanham até o alojamento, auxiliam na
instalação do filho em um lugar novo e desconhecido, assim como se
certificam de que suas proles ficarão bem. No entanto, estou sozinha. Eu e
minhas malas enormes.
Tento, pelo menos, ligar para avisar que cheguei bem, contudo a ligação para
meu pai cai na caixa postal. Na vez de minha mãe, ela se limita a me dar um
pequeno sermão por estar atrapalhando sua reunião de trabalho. Bom, eles
estão ocupados demais. Está tudo bem. Desisto de contatá-los e passo a
admirar o ambiente novo.
A Bolfok Town é conhecida como a cidade do gelo, pequena e aconchegante,
como uma pequena cidade no interior da Inglaterra ou como os Alpes Suíços.
O vento gélido agride meu rosto, bagunçando os cabelos, gelando a ponta do
nariz e ressecando os lábios. Pesco as luvas do bolso do sobretudo rosa chá e
visto em ambas as mãos, agasalhando-as.
A construção vitoriana extravagante a minha frente, pavimentada em diversos
prédios é o ápice dessa cidade universitária, em que tudo gira ao redor da
gloriosa Bolfok College. Não é como Harvard ou qualquer universidade
presente na lista das Ivy League, porém é perfeita. Abriga uma quantidade
menor de estudantes, os professores têm a fama de serem donos de egos
menos inflados e os pilares que sustentam a construção dão ideia de
grandeza. A faculdade não deixa a desejar, sendo o lugar perfeito para quem
quer um pouco de sossego. E paz é tudo que preciso para contrastar com a
adrenalina que me cerca durante a noite.
Começo a arrastar as malas pelo Campus, tentando me equilibrar em cima
das botas Prada de salto. O casaco pesado se embola na mala de mão,
dificultando ainda mais as passadas largas pela extensão do gramado. Quando
passo por paralelepípedos, a caminhada parece ficar ainda mais
desengonçada. Com toda certeza a cena está um tanto cômica perante outros
olhares.
— Precisa de ajuda, gata? — Ouço uma voz masculina atrás de mim, e giro
sob os calcanhares para olhá-lo.
Um homem de estatura alta, ombros largos e rosto anguloso me encara
sorrindo abertamente. Seus cabelos loiros escuros, com mechas mais claras
são bagunçados pelo vento castigante da cidade. Estreito os olhos e o analiso
minuciosamente, ser nova em um lugar abre margem para alguns
engraçadinhos pensarem que podem fazer o que quiser, ainda mais dado seu
jeito estranho de me abordar. Quando percebe minha falta de resposta, ele se
aproxima mais e estende a mão para me cumprimentar.
— Sou Lewis Johnson. — Aperto sua mão e abro um sorriso contido.
— Mackenzie Lennon. — O canto de seus lábios se ergue e ele exibe sua
fileira de dentes alinhados, ao passo que ergue minha mão e beija o dorso.
— Esse é um nome muito bonito, combina com você.
Estranho a hospitalidade exacerbada, porém guardo as suposições para mim.
E apenas me limito a agradecer educadamente.
— É um prazer te conhecer. — Abro um sorriso fechado e assisto o seu
sorriso rasgar no rosto, digno do Coringa.
— Igualmente, Lennon.
A partir desse ponto, entro em um assunto animado com Lewis acerca da
separação de grupos ou panelinhas. Ele diz que se estivéssemos no Ensino
Médio os mais populares seriam os estudantes de medicina, depois os
empresários, os nerds das ciências exatas, os jogadores de futebol americano,
as líderes de torcida, e só depois os famosos bad boys, mas é claro que
desses, eu quero distância. Descubro que Lewis é o quarterback do time, o
que não é muito surpreendente porque seu porte atlético praticamente anuncia
seu posto na faculdade. Ele diz que seremos bons amigos, de modo que fico
um tanto feliz. Seria no mínimo frustrante se ele estivesse sendo solícito
apenas para me levar para a cama.
Balanço a cabeça, espantando as lembranças amargas e voltando a
acompanhar Lewis até meu alojamento.
Subimos as escadas do prédio com o homem carregando todas as minhas
bagagens como se elas não pesassem nem cem gramas, meu estado ofegante
é um contraste a sua normalidade. Encaro a porta de madeira com o número
505 pregado em material dourado, depois volto o olhar ao chaveiro em minha
mão, afirmando que estou no lugar certo.
— É aqui que eu fico. — Aponto para a porta. — Muito obrigada pela
ajuda.
Ter chegado antes na cidade me adiantou consideravelmente, já que dias
como esses contam com filas enormes de alunos novos querendo pegar suas
chaves. E as minhas já estão seguras comigo.
— Não foi nada. — Ele sorri e tenho a impressão de que seus olhos
tremulam um pouco. — Posso entrar com você para ajudar.
Assim que adentro o alojamento vejo que o lugar não é tão pequeno quanto
imaginei. Cabem duas camas de solteiro perfeitamente, há uma grande janela
que abre caminho para a escada de incêndio, e entre as camas, uma mesa com
tamanho suficiente para duas pessoas estudarem. Cada lado tem um pequeno
guarda-roupa e algumas prateleiras, de costas para nós, uma mulher de
cabelos cacheados e volumosos tem o rosto enfiado em um livro, sua pele
preta recebe o raio solar diretamente através da janela e ela parece reluzir.
— Olá! — Saúdo animadamente, andando pelo quarto com Lewis ao meu
encalço. — Sou Mackenzie Lennon.
Ergo a mão para cumprimentá-la e a ouço murmurar algo como“muita gente
branca em um lugar tão pequeno”, seu tom de voz beira a ironia e isso faz
com que Lewis solte uma risada, assim como eu.
— Nevaeh Williams. — Sinto seu aperto forte até que Lewis se pronuncie.
— Seu nome é Heaven ao contrário? — Ele recebe um aceno de confirmação
e beija a mão dela também. — Significa paraíso. Se o seu está ao contrário, o
que quer dizer?
Lewis abre um sorriso sugestivo, com um tom brincalhão e observo Nevaeh
revirar os olhos, provavelmente já deve ter ouvido muito essa.
— Ainda quer dizer paraíso, meu pai só achou que Heaven ficaria muito
comum.
— Bom, combina com você. Sou Lewis Johnson.
Levo a mão na boca, a fim de abafar a risada que ameaça escapar por entre os
lábios. Percebo então, que Lewis jamais esteve flertando comigo, só é um
cara generoso que trata bem as mulheres.
— Obrigada. — Ela abre um sorriso pequeno e prossegue: — E eu sei quem
você é.
Assim, a conversa se dá por encerrada e eu entendo que minha colega de
quarto não é muito de conversar. Então, controlo meu ímpeto de tagarelar e
respeito seu espaço. Decido aceitar a ajuda de Lewis com as malas, logo ele
as ergue, acomodando-as ao lado do quarto que sobrou, que por coincidência
é o mesmo que eu escolheria se pudesse. Quando o agradeço pela ajuda, ele
nos convida para a recepção definitiva dos calouros mais tarde, me animando
instantaneamente. Nevaeh não gosta da ideia e até começa a recusar, mas
minha expressão pidona a convence.

O Campus está lotado, mais do que imaginei. Há calouros se misturando com


veteranos em meio às conversas animadas e gargalhadas escandalosas.
Algumas barracas de atividades extracurriculares como futebol americano,
teatro e equipe de líderes de torcida já angariam os novos alunos desse ano.
— Faço parte do Decatlo Acadêmico. — Nev, como eu a chamo agora,
murmura baixo ao meu lado. Franzo o cenho sem ter a mínima ideia do que
isso significa, e ela percebe já que prossegue: — É como um grupo de
pessoas que estudam durante um tempo até uma competição de perguntas e
respostas. Nós temos que resolver grandes fórmulas e expressões numéricas
em um curto espaço de tempo.
Ah, finalmente entendo. Geralmente esse grupo é composto pelas notas mais
altas da faculdade.
— Isso é muito legal, Nev — respondo verdadeiramente animada. — Que
curso você faz?
— Química. — Não me surpreendo. A julgar pelo seu moletom estampado
com vários modelos atômicos. — E você, vai cursar o quê?
Abro um sorriso largo.
— Direito. — Vejo seus olhos arregalarem.
Bom, lido com esse tipo de surpresa o tempo todo. As pessoas não esperam
que uma garota vestida de rosa da cabeça aos pés e entupida de grifes escolha
esse curso. Durante meu tempo na escola, eu aceitava o estereótipo de menina
rica e fútil e nunca me incomodei muito com ele. Fui criada para ser bonita,
segundo a minha mãe, limitada a sorrir e acenar. No entanto, embora seja
muito atrativo, o posto de herdeira é verdadeiramente entediante.
— Te julguei pela aparência. — Ela acrescenta. — Achei que você fosse falar
algo como moda.
Solto uma risada baixa, apreciando sua sinceridade.
— Pois posso dizer que só me visto bem porque minha mãe é estilista, sou
bem ignorante no quesito artístico. — É inevitável não se lembrar de Lidia e
da quantidade de vezes que me orientou a não fazer faculdade e ser modelo
de sua grife.
Nevaeh murmura algo inaudível, porém é o bastante para que eu entenda que
o assunto acabou por hora.
Continuamos caminhando pelo Campus até que avistamos um grupo de
pessoas brincando com água, sendo molhados por uma mangueira. Embora
seja final de verão, sinto um frio se esgueirar pelo corpo só de pensar nessa
água gelada em mim diante do tempo que está fazendo.
— Trote dos calouros. — Ela aponta para o grupo que se diverte com a água.
— Inclusive, são os calouros do meu curso. Os veteranos ficam com a tarefa
de molhá-los.
— E por que você não está lá? — indago, arqueando uma das sobrancelhas.
— Pelo mesmo motivo que você não está no seu.
Touché.
Trotes não são para mim, ainda mais os que envolvem água, pois prefiro o
conforto do meu alojamento debaixo das cobertas. Então, ela aponta para um
dos presentes na brincadeira e se pronuncia.
— Aquele é Thomas Eckhoff. — Ela aponta para um homem loiro que acaba
de tirar sua jaqueta de couro, exibindo sua pele branca um tanto bronzeada e
seus braços fortes através da regata branca. — É bom ficar longe, o cara é um
problema para os corações.
Analiso as botas de combate, os anéis reluzindo no dedo, as tatuagens
fechando o braço esquerdo e os cabelos desgrenhados. Um típico bad boy e
desses quero distância. Minha consciência grita: é bom ficar longe mesmo,
porque você não quer problemas. Veio atrás de paz, não queira dar uma de
assistente social.
Antes que eu possa sequer respondê-la, um jato forte de água começa
molhando meu colo e abrange pelo resto do meu corpo. O frio toma conta em
uma velocidade incrível, me fazendo tremer da cabeça aos pés. Prego as
vistas devido ao susto e ergo os braços, paralisando qualquer função motora.
Quando finalmente o jato de água abandona meu corpo consigo abrir os
olhos. A boca está entre aberta, ainda herança do susto e tremo
violentamente. Com a mangueira em mãos, o homem em minha frente, de
porte alto, cabelos loiros caindo sobre a testa e olhos azuis faiscantes me
encara prendendo a risada.
— Oh! — Ele põe a mão no peito em falsa surpresa. — Você não é caloura
de química?
O sorriso sarcástico que decora seu rosto entrega facilmente que ele sabe que
não sou do mesmo curso do trote, ainda mais se considerarmos a quantidade
de roupas em meu corpo. Filho da puta. Aperto os lábios com força,
considerando o quão mal educada posso ser nesse exato momento. E, antes
que eu possa me segurar, já acelero os passos, pisando duro, diminuindo
nossa distância. Acabo lambuzando minhas botas com a lama proveniente da
grama molhada, porém isso não importa muito para uma pessoa que está
completamente encharcada. Choco meu indicador em seu peitoral firme e
tento não perder o foco na sombra de uma tatuagem que tenho vislumbre
graças ao tecido quase transparente de sua regata.
— Sabe o que você faz com essa mangueira? — indago, chocando mais uma
vez o dedo em seu peito. — Enfia bem fundo no meio do seu...
Impedindo que eu termine, Nevaeh cobre minha boca com a mão enquanto
me arrasta para longe. Sei que está tentando ser diplomática e evitar que uma
briga se instaure no meio do Campus, mas homens como esses precisam ser
colocados em seu devido lugar. Não satisfeita, retiro sua palma de meus
lábios, ao passo que viro na direção do ridículo, gritando-o.
— Eu ia dizer rabo. — Aponto novamente na direção dele. — Enfia a
mangueira no rabo.
Ele solta uma gargalhada escandalosa, me deixando ainda mais furiosa. E
assim, ouço seu último grito.
— Sou Thomas Eckhoff. — Claro que sim, o cara que Nevaeh apontou há
minutos. — É um prazer te conhecer, Regina.
Regina?
Demoro alguns segundos até entender do que se trata a alusão. Ele acaba de
me associar a Regina George, a abelha rainha do filme adolescente Meninas
Malvadas. Dessa forma, chego a uma ótima conclusão.
Esse cara é simplesmente intragável.
Não será necessário muito esforço já que, definitivamente, ficarei longe dele.
Prosseguir repassando minha derrota não me levaria a lugar algum.
Olheiras se acumulam embaixo dos olhos, o cabelo desgrenhado deve estar
bem próximo de um ninho de pássaros e eu estou, de fato, destruído. Há uma
semana me enfurno na Thunderstorm, minha oficina, trabalhando avidamente
em um novo carro, porque me recuso a aceitar que meu pódio será abalado
tão facilmente.
Eu quero revanche.
Dominic diz que é perda de tempo e que serei derrotado, assim como Andrew
alega que comerei poeira, mais uma vez. No entanto, as poucas horas sem
dormir treinando e criando novas manobras precisa acarretar em uma vitória.
Eu realmente necessito ganhar essa.
Conhecer as estratégias e como seu oponente corre pode abrir uma vantagem
imensurável contra ele. É por isso que decido ir de pessoa em pessoa, tanto
na cidade quanto na faculdade, perguntando se alguém conhece a tal
misteriosa dos rachas. Contudo, minhas tentativas caem por terra quando
entendo que a mulher é como um fantasma. Simplesmente aparece para
correr, nem sai do carro, recebe a grana e evapora. E é exatamente por isso
que me encontro sentado em uma das mesas do amplo refeitório com meus
dois amigos, tentando adivinhar a identidade real dela.
— Já parou para pensar que ela talvez nem estude aqui? — Andrew
questiona, apoiando a mão no queixo em uma pose pensativa.
— Com certeza estuda — afirmo veemente. — Conhecemos todos os
comércios e estabelecimentos locais e ninguém vem até Bolfok Town a não
ser para trabalhar e estudar.
Percebo Dominic alheio a nossa conversa, encarando um ponto atrás de nós.
Viro-me discretamente, tendo acesso visual a figura extravagante que passa
pela porta grande do refeitório. A cópia morena da Regina George veste uma
calça de algum pano chique que desconheço, já que gente rica dificilmente
usa jeans, acompanhada de uma blusa e casaco rosa-claro. Odiei a mulher
assim que pus os olhos nela, pois seu jeito esnobe de olhar as pessoas de cima
me remete ao caos que já vivi lidando com pessoas como ela. No entanto, não
sou imaturo ao ponto de molhar alguém sem motivo algum. Naquele dia,
realmente fui imprudente ao mirar a mangueira em sua direção, sem saber se
ela estava participando do trote, e então, já era tarde demais quando me dei
conta de que Regina estava vestida demais para qualquer brincadeira com
água.
Honestamente, não preciso trocar nem meia dúzia de palavras com ela para
saber que a mulher é insuportável. Conheço esse tipo, o olhar faiscando
julgamento, as sobrancelhas sempre levantadas em um ar de superioridade e
o canto dos lábios erguidos, estampando um sorrisinho arrogante. Regina é
exatamente como Jessie, e se estivéssemos no colegial, ela seria a pessoa que
inferniza a vida de todos os desajustados.
— O que você tanto olha? — Andrew parece se dar conta só agora de que
Dominic está aéreo.
— Você ainda pergunta? — Indico a caloura com a cabeça e prossigo: — Vai
olhar para alguém da sua idade, porra.
— Já estou olhando. — Ele alega baixo, mas sem desviar sua íris da mesa em
que ela está sentada com a amiga. — Apesar de a caloura ser gostosa, não
estou interessado nela.
Acerto um tapa leve em sua nuca, vendo-o encarar Regina de um jeito não
muito respeitoso.
— Não fala assim. A garota não deve ser muito legal, mas você parece estar
elogiando um objeto — repreendo. — E Nevaeh Williams tem senso, pode
esquecer porque você não tem chances.
Dominic pede desculpas, mas mantém o olhar na outra mesa.
— Por quê?
— Muita areia para o seu caminhão precário, Hopkins. — Andrew se adianta,
respondendo-o.
— Posso fazer quantas viagens forem necessárias. — Dominic cultiva um
sorrisinho sapeca enquanto diz.
Reviro os olhos para sua insistência e me pergunto os motivos de gostar tanto
desse ridículo.
Andrew cobre a boca com a mão repleta de anéis, abafando sua risada. A pele
preta contrastando com o dourado das joias e o cabelo em um corte
totalmente novo, raspado nas laterais, deixando boa parte de fios crespos
despojados no topo. Dou uma batida de leve na mesa, recobrando a atenção
deles.
— Podemos voltar ao meu caso? — indago, estalando os dedos na altura de
seus rostos. — Tenho que descobrir quem é a tal mulher misteriosa.
— Pode ser a Jules. — Nego rapidamente, discordando da observação de
Andrew.
Jules é uma de nós, mesmas botas de combate, jeans rasgados e surrados,
assim como sua jaqueta do moto clube que participa e suas muitas tatuagens.
Ela não teria motivos de esconder que corre em um racha.
— Ela não se esforçaria para esconder sua identidade real. — Aperto os olhos
em direção ao nada. — Acho que é alguém que não leva essa vida.
— Hannah? — Dom questiona e eu nego rapidamente.
— A gente transa desde que entramos na faculdade, duvido muito que eu não
perceberia.
Mais uma porção de mulheres é citada na mesa, embora nenhuma pareça se
encaixar em todas as características analisadas na última corrida.
— Já sei! — Andrew bate com as mãos na mesa, nos fazendo pular de susto.
— Talvez seja Claire Edwards.
Franzo o cenho, pensando na possibilidade. Claire faz parte da equipe de
líderes de torcida, assim como Hannah, e as duas andam juntas há um bom
tempo. Porém, não demoro a descartar a ideia.
— Não. — Balanço a cabeça. — Claire é loira, e a mulher daquele dia tem
cabelos castanhos.
Não é como se tivesse visto muita coisa, por causa do insulfilme escuro.
Todas as análises que faço são com base no que consegui ver quando ela
abaixou o vidro por poucos minutos.
— Ela poderia estar de peruca. — Dom sobe e desce os ombros.
— Vocês viram que ela usava uma trança, sei lá, embutida. — Massageio o
vinco que se forma entre as sobrancelhas. — Não tem como ser peruca.
— Não se pode fazer trança boxeadora estando de peruca? — Dominic adota
uma postura realmente pensativa. — A Elza usa.
Demoro um tempo até, de fato, compreender o que ele quer dizer, e quando
finalmente entendo, tombo a cabeça para trás em uma gargalhada.
— A Elza é um desenho animado, que peruca o que, porra.
— Caralho. — Andrew observa seriamente. — Como você é ignorante, Dom.
Mais uma série de xingamentos é disparada, por Hopkins ter cogitado a ideia
de que uma animação de computador usaria peruca enquanto ele tenta se
defender, dizendo que está falando sobre a personagem que perambula pelos
parques da Disney fantasiada. E, sinceramente, suas defesas não fazem
diferença porque até o penteado da personagem é diferente do qual a mulher
usou nos rachas. Assim que as risadas cessam, vejo Hannah caminhando até
nós, vestida em seu uniforme de animadora de torcida. Ela se senta em meu
colo e acaricia os fios da nuca, me fazendo expandir o sorriso no rosto.
— Estão te procurando. — Ela murmura em meu ouvido e beija meu
pescoço, provocando um arrepio imediato.
— Quem? — Encaixo a mão na abertura de seu uniforme e acaricio sua pele
macia.
— O senhor Leighton.
Bufo exasperado assim que ouço o nome, sabendo que problemas estão vindo
por aí. Robin Leighton é o coordenador do grêmio estudantil, grupo esse que
organiza eventos beneficentes em prol de angariar dinheiro para a faculdade.
Sim, sou um deles. E por culpa de Dominic. Esse ridículo parece ter prazer
em se envolver em brigas com os otários das fraternidades que amam uma
boa fama de valentões, e quando ele precisava, lá estava o tolo do Thomas
defendendo-o. Na última, deixei que Dom se safasse e fui brindado com uma
nomeação para fazer parte do grêmio em troca de não levar uma suspensão—
que culminaria na perda da minha bolsa de estudos.
— Isso é tudo sua culpa. — Aponto, cobrindo os lábios de Hannah com um
beijo.
— Minha nada, ninguém manda você dar uma de justiceiro.
Um mal agradecido, isso que esse ridículo é. Ignoro-o enquanto caminho até
a sala do grêmio.

Após entrar na sala e me deparar com o coordenador do grêmio sentado ao


lado da reitora, ocupo a cadeira posicionada no outro lado da mesa, em frente
a eles. Saúdo-os educadamente, percebendo o assento vago ao meu lado.
— Bom, — a reitora Hayes inicia — decidimos que precisaremos de você,
senhor Eckhoff, para organizar os próximos três eventos. O primeiro será
uma festa em formato de luau que arrecadará fundos para a obra na nossa
biblioteca, o segundo um jantar entre o corpo docente da instituição e o
terceiro a festa de Halloween.
Considerando hoje como o primeiro dia letivo, meus próximos dois meses
serão cheios. Tendo que dividir a atenção entre as aulas, eventos do grêmio e
a oficina. A senhora Hayes prossegue, interrompendo minha organização
mental de tarefas.
— Decidimos que o senhor não fará tudo sozinho, tendo disponíveis os
outros membros do grupo para ajudar na organização. Ademais, encontramos
uma pessoa ótima para ocupar ao seu lado o cargo de organizador dos
eventos, ideal para dividir as responsabilidades e colocar um pouco de juízo
nessa sua mente desavisada. — Tento não revirar os olhos para sua
alfinetada. — Ela era uma aluna esplêndida no colegial e teve um ano
sabático trabalhando fora e sendo voluntária na Guatemala.
— E por que tanto mistério? — indago, erguendo o canto dos lábios. — Cadê
o exemplo de universitário?
— Está atrasada.
— Então, não é tão exemplo assim — murmuro, torcendo que ninguém ouça
meu resmungo. Porém, é claro que a boa audição dos dois captaria minha
fala, e ambos me lançam um olhar repreendido.
Antes que o diálogo continue, a porta se abre em um rompante e tudo que eu
vejo é rosa.
Ah, não.
Regina George não.
— Mil desculpas, senhor Leighton e senhora Hayes. — Ela tenta equilibrar
todas as suas coisas de um jeito afobado. — Como vocês sabem sou nova
aqui e tive um problema com esses corredores e a grandeza desse lugar.
— Está tudo bem, senhorita. — A reitora abana as mãos e não posso evitar
me sentir indignado, já que se fosse eu chegando atrasado receberia um
puxão de orelha. — Já adiantamos o tempo explicando ao senhor Eckhoff
como será o trabalho de vocês.
Quero muito rir da expressão que adorna seu rosto no instante em que ela
percebe que estou sentado aqui, e piora quando ela ouve a senhora Hayes
explicar que passaremos dois meses convivendo por muito tempo,
trabalhando juntinhos. Isso só pode ser uma piada. E, mais uma vez, reafirmo
que Lúcifer abriu os portões do inferno, liberando criaturas para atazanar
minha vida. Primeiro a misteriosa dos rachas, e agora a Regina George
falsificada. Inacreditável.
— Olha, senhora Hayes. — Regina inicia com uma cara de sonsa. — Houve
algum grande engano, não será possível trabalhar ao lado do senhor Eckhoff.
Não gosto de sua entonação ao dizer meu sobrenome, dotada de escárnio.
Porém, não posso culpá-la dessa vez, ela com certeza não simpatiza em nada
com o cara que a encharcou em um dia tão gelado quanto ontem. E é claro
que a mimada tentaria reverter a situação em que nos metemos, alguém
deveria avisá-la que na faculdade as coisas não funcionam como no colegial.
Patética.
— Eu tenho certeza que vocês trabalharão muito bem juntos. — Um sorriso
desponta nos lábios cheios da senhora Hayes e eu tenho uma leve impressão
de que aquele gesto é dotado de maldade. — Pode não parecer, mas até que o
senhor Eckhoff é bom com responsabilidades, sendo um bom aluno, assim
como sei que a senhorita também será. Portanto, são perfeitos para
trabalharem em dupla.
A Reitora é uma mulher esperta porque sabe que qualquer aluno veterano
negaria o posto de organizador de qualquer evento. Só o tolo aqui que está
preso nessa corda bamba com a bolsa, e a patética ali que acredita fielmente
na potencialidade de participar de uma atividade extracurricular como o
grêmio estudantil. Semicerro os olhos para mulher de meia-idade, que sorri
para nós, os dentes brancos alinhados contrastando com a pele escura. Eu só
posso ter jogado pedra na cruz, até o Halloween, Regina e eu já teremos nos
matado.
— Fique tranquila, Regina. — Abro um sorriso petulante. — Nossa relação
será estritamente profissional.
Ela parece perder o foco por uns instantes, mas se recupera em uma rapidez
invejável. Regina apruma a postura e um sorriso claramente falso desponta
em seus lábios.
— O meu nome é Mackenzie. — Eu esperava alguma provocação ou algo do
tipo, contudo essa é a única coisa que escapa por entre seus lábios em
formato de coração.
Perco um tempo considerável reparando, pela primeira vez, em seu rosto. A
pele branca livre de qualquer mancha ou espinha, decorada apenas com umas
pintinhas salpicadas na bochecha, os olhos castanhos vibrantes, nariz
arrebitado e cabelos brilhosos, parecendo bem hidratados. Essa garota não
tem um defeito?
Deve gastar sua fortuna com milhares de procedimentos estéticos. Tadinha.
O que você tem a ver com os procedimentos estéticos dela? Minha
consciência grita, me repreendendo pelo comportamento inadequado.
A reunião entre nós termina no segundo em que a reitora e o coordenador—
que não abriu o bico durante a reunião— declaram que teremos sim que
trabalhar juntos, sem abertura para argumentos ou discussões. Isso, é claro, se
estivermos vivos até lá.
Saio da sala sem trocar uma palavra com minha nova dupla. Com o objetivo
de garantir uma trégua para o nosso bem durante esses meses, me pronuncio.
— Você só usa rosa mesmo? — A curiosidade me faz escapar a pergunta
antes que eu possa segurar a língua. Inferno.
— Não, só nas quartas. — O tom de voz é dotado de ironia, e isso é
perceptível. A referência ao apelido de Regina me dá vontade de rir, mas logo
seguro, me recusando a dar o braço a torcer.
Recebo mais um olhar crítico, de cima a baixo, provavelmente reprovando
tudo que inspeciona. E inspiro e expiro, reunindo minha paciência para lidar
com sua pose soberba.
É, me parece que os próximos meses serão mais longos do que o normal.
Estou encarando meu bebê no estacionamento do alojamento há, pelo
menos, uns dez minutos. Esse Cadillac 1955 Rosa é uma réplica quase
perfeita do carro que está exposto no museu do Elvis. O ganhei de Tia
Lindsay em meu aniversário de dezesseis anos, embora tivesse aprendido a
dirigir aos quatorze.
Quando vi o Cadillac vermelho, desbotado e quebrado, estacionado em frente
à mansão em que eu vivia, sabia que o transformaria no carro da minha vida.
Usei toda a mesada que estava guardando para deixá-lo do jeito que eu
queria, e modéstia à parte, o veículo é perfeito.
— Pretende passar mais quanto tempo encarando esse carro? — O habitual
tom tedioso de Nevaeh me faz sorrir levemente. — Temos aula daqui a
pouco.
— Ele não é lindo? — Aponto para o carro com a cabeça.
Minha colega de alojamento, que se transforma em uma amiga aos poucos, se
limita a balançar a cabeça, confirmando. Ela se adianta, pulando para o banco
do carona animada demais para quem vai enfrentar horas tediosas de aula.
Não sei como consegue, as aulas começaram quarta-feira, porque os dias
anteriores serviram apenas para trotes e recepções de calouros. Estive apenas
duas vezes dentro de sala, e já tenho trabalhos a fazer.
Ter sido molhada por aquele tolo no primeiro dia me trouxe a percepção de
que comecei tudo com o pé esquerdo. Inclusive, a brincadeirinha inocente na
recepção de calouros me causou uma dor de garganta infernal, que perdurou
por longos três dias. Para completar o péssimo cenário, ainda terei que
conviver com ele durante três meses. Sinceramente, é um absurdo que eu seja
obrigada a aguentar um ser tão arrogante, mal educado e repugnante.
Thomas me traz lembranças amargas de uma época que odeio relembrar. De
uma pessoa que me fez acreditar em seu caráter, extremamente duvidoso, e
no final, a ferrada fui eu. Eles são iguais, as mesmas jaquetas de couros, botas
de combate, tatuagens, correm em rachas, exibem sorrisos cafajestes dotados
de arrogância.
— Um dólar pelos seus pensamentos. — Ouço a voz de Nev soar próxima a
mim, enquanto caminhamos pelo estacionamento da faculdade.
— Estou medindo a quantidade de paciência que vou precisar para aturar o
tal Thomas.
Nevaeh solta uma risada baixa, prosseguindo com o diálogo.
— Acho que até o fim dos eventos, até o Halloween, já terá rolado algo entre
vocês.
— Nossa, Nevaeh. — Arregalo os olhos, desacreditada de tamanho absurdo.
— Para alguém tão inteligente essa constatação foi de uma tolice sem
tamanho.
— Estou falando sério. — Estranho um pouco a certeza com qual ela afirma.
— Vocês se xingam e dizem “se odiar”, mas nunca trocaram palavras o
bastante para isso.
— Ódio é uma palavra muito forte, eu acho — pondero um pouco, pensando
nos poucos momentos que interagi com ele. — Mas, abomino tudo que ele
representa, e principalmente, a pessoa que ele me lembra.
— Você é cheia de mistérios — profere, subindo e descendo as sobrancelhas.
Nosso papo perdura por todo o caminho até nosso prédio, que por
coincidência, é um do lado do outro. O que facilita bastante para nós, mas me
faz dividir a mesma sala de descanso, refeitório e restaurantes do Campus
com pessoas insuportáveis como Thomas.
Estou a exatos cinco minutos aguardando que o primeiro professor do dia
entre em sala, e comece a tagarelar incansavelmente sobre Economia Política,
uma das matérias obrigatórias do curso. O ponto é que a maioria dos
professores pouco se importa em dinamizar algo para facilitar o entendimento
do aluno, pois em menos de uma semana já tive que me virar sozinha em
muitas ocasiões.
— Oi, docinho. — Uma voz meio grave soa ao meu lado.
Desanuvio a mente dos pensamentos pessimistas e volto à atenção para o
garoto sentado ao meu lado. Não preciso de muito para perceber que é um
dos amigos de Thomas. Reconheço o cabelo liso caído sobre o rosto, as
inúmeras tatuagens por toda a pele descoberta, e os anéis nos dedos.
Dúvida para o meu TCC: por que um homem fica tão mais sexy com
tatuagens?
— Bom dia. — Me limito a fazer uso apenas da educação, pouco a fim de
prolongar assunto com homens perigosos o bastante para o bem da minha
sanidade.
— Por que colocou uma matéria de um período tão adiantado na sua grade de
caloura? — questiona, com um sorrisinho pairando nos lábios.
Quanta sutileza, Senhor Tatuagens.
— Na verdade, essa matéria é do terceiro período, o que não me faz tão
adiantada assim.
— Bom ponto — maneia a cabeça, batucando assiduamente com a caneta no
tampo da mesa. — Eu quem estou atrasado, na verdade. Sabe, no início da
faculdade eu me metia em muitos problemas. Quando soube que essa matéria
era ministrada pela mulher com quem eu havia transado na dispensa de
limpeza, resolvi protelar e cursar a disciplina com outra pessoa. E claro,
pensando com a cabeça de cima, me sinto maduro o bastante agora.
Tenho vontade de rir desse cara, cujo nome nem sei, porém já veio contando
sua vida está no sétimo período. Fazendo uma contagem supérflua, ele deve
ter vinte e um ou vinte e dois anos. E só agora se sente maduro o suficiente
para cursar Economia Política. Que piada.
— Maduro o bastante? — questiono sem tentar mascarar meu tom de ironia.
— Homens amadurecem mais tarde, é natural — diz. Bufo irritada, mal
podendo acreditar no que estou ouvindo.
— Acho que não é natural, e sim uma construção social que nos empurra
goela abaixo a ideia de que mulheres aprendam a cuidar, e homens a serem
cuidados. Ela não amadurece mais cedo, é forçada a amadurecer.
— Você até pode estar certa. — Enquanto ele inicia, peço mentalmente que o
professor chegue logo. — Mas, vi um estudo da Newcastle University que
atestava cientificamente o amadurecimento precoce feminino.
— Tudo bem. — Solto uma risada sarcástica. — Porém, você não tem
material para refutar o fato de que meninas são cobradas a vida inteira para
serem responsáveis, ao passo que a imaturidade de vocês é justificada por
uma simples frase: “Ah, ele é homem”.
Sinto-me em uma daquelas cenas em que dizem que todos os estudantes de
Direito enfrentam, discutindo na primeira semana de aula.
— Ok. — Ele finalmente parece ceder, me fazendo estranhar a rápida
desistência. — Tenho um amigo que sempre diz que nós homens, não
devemos contrariar vocês a respeito desse assunto. Porque não é nosso lugar
de fala.
Porra, finalmente! Pensei que teria de ficar discutindo pelo resto do dia, até
prová-lo meu ponto. Agradeço a esse amigo mentalmente, por preservar meu
gasto desnecessário de saliva.
— Pelo menos você tem algum amigo minimamente inteligente — resmungo,
remexendo nos meus pertences da bolsa para me distrair.
— É mesmo? — afirmo com um balançar de cabeça. — Porque o nome dele
é Thomas Eckhoff.
Então, percebo que esse estudante de Direito safado armou toda a situação.
Caio em uma cilada sem nem ao menos perceber, tudo que ele queria, desde
o início, era me colocar nessa saia justa. Ele me instiga, apenas para chegar
onde quer.
— Não precisa se preocupar. — Ele volta a dizer. — Não contarei ao Thomas
que você o acha muito inteligente.
— Ridículo — murmuro, sem querer acreditar na facilidade em que caí em
sua armadilha.
— Sei que deve fazer parte da elite do lugar de onde veio, mas não subestime
nossa inteligência. — Me sinto um pouco mal por ter feito pouco caso de sua
esperteza, julgando-o pela aparência, contudo pago a língua mais cedo do que
penso. — A propósito, sou Dominic Hopkins.
— Mackenzie Lennon— sussurro, torcendo para que ele não escute, porém,
seus ouvidos bem apurados captam minha voz.
No entanto, antes que ele possa dizer qualquer coisa, a professora entra em
sala.

Tem, pelo menos, trinta minutos que Lewis está sentado em nossa mesa de
um dos restaurantes do Campus, tagarelando acerca de uma festa que terá
sábado, em uma das fraternidades. A oficial recepção de calouros, que
segundo ele, nós precisamos comparecer. Como uma boa apreciadora de
festas, não hesito em confirmar minha presença e a de Nevaeh, que está
pouco animada com a ideia.
— Não gosto de festas. — Ela repete pelo que parece ser a milésima vez,
desde que Lewis iniciou o assunto.
O quarterback, depois que nos conhecemos na segunda, quase não anda mais
com seus parceiros de time. Ele gosta de alegar que somos muito mais legais,
o que nos faz apertar os olhos em sua direção, desacreditando de sua
“desculpa esfarrapada”. Nevaeh tem algum tipo de certeza de quem tem algo
por trás dessa amizade suspeita, e que talvez essa aproximação seja vontade
de me levar para a cama. Contudo, não gosto de pensar nisso, e correr o risco
de ser egocêntrica.
Por muito tempo, dei importância demais a coisas que não valiam nada. Eu
gostava da imagem de fútil e egocêntrica que pregava na escola, apenas para
passar por cima de algumas regras que não se aplicavam para mim, porque
todos sabiam da influência dos meus pais. Não que eu fosse de fato, uma
Regina George como Thomas gosta de me chamar, contudo eu não era
alguém muito agradável. E, foi só durante meu intercâmbio voluntário para a
Guatemala que pude perceber o quanto era tóxica. Sem a mínima consciência
de classe.
— Vamos apenas nessa, por favor. — Lewis me arranca dos devaneios, e o
vejo juntar as mãos na frente do corpo, projetando um bico pidão que
desarma Nevaeh.
— Tudo bem, mas só nessa. — Troco um olhar com ele, tendo a plena
certeza de que ainda iremos a muitas outras festas.
Antes que o assunto mude, o clima do ambiente passa de ameno para tenso.
Perscruto o local com os olhos, a fim de achar o que está errado, até chocar as
vistas com as safiras de Thomas. Ele caminha em nossa direção a passos
decididos. Junto da sua habitual pose arrogante e despreocupada. Chacoalho
a cabeça em negação, antes mesmo que ele chegue.
— Olá, Regina. — Enrugo o nariz pelo apelido, ao passo que ele se joga no
assento ao meu lado.
— O que faz aqui? — interrompo-o, dispensando qualquer gesto de
educação.
Percebo o olhar inquisitivo de Lewis, quase como se estivesse indagando o
mesmo que eu silenciosamente.
— Vim falar sobre a organização de eventos.
Inspiro e expiro, reunindo paciência para lidar com esse olhar zombeteiro de
Eckhoff.
— Começaremos semana que vem — atesto sem dar espaço para
argumentação.
— Acha que será assim? — Arqueia as sobrancelhas, fazendo com que um
sulco surja por entre as minhas. — Que vai comandar esse trabalho como
uma ditadora?
Eu nem havia pensado nisso, mas até que é uma boa ideia.
— Na verdade, já pensei até mesmo em organizar esses eventos sozinha, só
para não ter que te aturar. — Ergo os ombros. — Mas, eu estaria sendo boa
demais. Você merece essa responsabilidade.
Thomas finge estar resmungando algo, como uma criança fazendo pirraça.
— Trabalharemos juntos, compartilhando as ideias e dividindo tarefas —
afirmo com a cabeça enquanto ele fala, em um gesto que tenho certeza que é
infantil. — Iniciaremos amanhã na minha casa.
Sinto vontade de rir.
— Começaremos semana que vem, porque eu mereço uns dias de descanso
antes de ter que olhar para a sua cara quase todos os dias.
Dessa vez, ele quem solta uma risada contida.
— Pode ter certeza que esse rostinho aqui. — Ele aponta para a própria face.
— Você ainda vai ver muito.
— Oh, Deus. — Ponho a mão no peito, fingindo estar afetada. — Que pecado
cometi para aguentar tamanho castigo?!
Thomas enruga os lábios, tentando frear o sorriso ou risada que ameaça
escapar. Me pego reparando em alguns detalhes de seu rosto, e antes que eu
me repreenda pelo ato, outra pessoa faz-se presente.
A mesma mulher que estava em seu colo outro dia. Ela tem os cabelos
ondulados, e a pele branca me permite enxergar algumas veias espalhadas
pelo rosto e barriga. Seu uniforme azul escuro de líder de torcida contrasta
com os tênis extremamente brancos.
— Ei, meu bem. — Ela proclama em alto e bom som, pondo as mãos nos
ombros dele e dando um beijo em sua bochecha.
Pergunto-me se ela está tentando marcar território, mas prefiro acreditar que
não, é um tanto ridículo pensar que Thomas valha tal preocupação. A mulher
me olha com um ar de riso, inspecionando minha roupa de cima a baixo.
— Onde você comprou não tinha para gente jovem? — O tom de voz escorre
escárnio, e Thomas a acompanha em uma risada baixa.
Reservo alguns instantes para escrutinar meu corpo, encarando a blusa de lã
branca de gola alta, e o conjunto xadrez preto e branco de blazer e saia de
pregas. A brincadeira por parte dela não me abala, porque me sinto bonita, e é
isso que importa.
— A estilista que criou para mim não pensou muito em idade. — Dou de
ombros, e sei que minha fala soa meio fútil pelo clima tenso que se embrenha
pela mesa.
Porém, as faces risonhas de Nevaeh e Lewis contrastam com os semblantes
de escárnio presentes no rosto do casal.
— Me chamo Mackenzie. — Tento amenizar o clima, estendendo a mão para
a mulher apertar, em um cumprimento educado.
Ela encara minha mão estendida por poucos segundos, parecendo ponderar se
responde ao cumprimento ou não. Por fim, abre um sorriso singelo e encaixa
a palma na minha.
— Hannah Reed.
— É um prazer te conhecer. — Ela responde um “igualmente” baixo, e chego
à constatação de que sua falta de simpatia comigo talvez não tenha nada a ver
com Thomas.
A Bolfok College não é uma universidade estadunidense elitizada como as
outras. Pelo contrário, há um programa de bolsas muito amplo, assim como a
mensalidade é quase popular se comparada às outras. Ou seja, a diferente
aqui sou eu. Já que não tem como disfarçar de onde vim, pela maneira que
me visto ou até por ser acostumada demais com luxo.
Olho para o lado, e me dou conta de que Thomas ainda está aqui, me
encarando com um sorrisinho cínico estampado nos lábios rosados. Me
pergunto se ele não tem nada melhor para fazer.
— O que você ainda faz aqui, Eckhoff? — maneio a cabeça para o lado. —
Circulando. — Balanço a mão, em um gesto elegante e me viro para sua
acompanhante. — Você pode ficar se quiser, Hannah.
Ele se levanta, e ela ri baixo da minha displicência com Thomas. Porém,
decide acompanhá-lo seja lá para onde. Antes que o loiro esteja longe o
suficiente, escuto sua voz novamente.
— Segunda-feira, Regina. Sem falta.
Suspiro exausta. Esse será um longo período.
A sexta-feira chega tão rápido que mal percebo o tempo passando. No
fim das contas, resolver iniciar os preparativos dos eventos com Mackenzie
apenas na segunda foi uma boa decisão. Já que posso ter tempo o bastante
para me preparar para uma vitória hoje.
Estou trabalhando em um Ford Gran Torino 1972 há horas. Para completar, a
oficina ainda está lotada, o que é um tanto comum em dias de racha. A
Bolfok College, infelizmente, não conta com a minha ilustre presença na
aula, porque estou totalmente focado na corrida de hoje. E espero mesmo que
Nevaeh me passe os conteúdos e artigos depois.
— O que falta no motor? — Luke, um dos meus melhores mecânicos e
funcionário, indaga conferindo a parte elétrica do carro.
Não consigo evitar que o sorriso largo rasgue por entre os lábios.
— Não falta nada. Troquei por um motor V10, e posso te dizer que esse
carro, com mais de 600cv. — Faço um suspense desnecessário. — Acelera de
zero a cem km/h em 2,5 segundos.
— Uau. — Luke arregala os olhos acinzentados, ao passo que arrasta a mão
pelo cabelo crespo cor-de-cobre. — Você vai levar a vitória hoje, chefe.
Realmente espero que Luke esteja certo, porque preciso do dinheiro. Ser
dono da única oficina de Bolfok Town traz algumas vantagens. Como a de
saber os carros que irão correr nos rachas, que são direcionados aos cuidados
de outros mecânicos, obviamente. Até porque, um automóvel de outro
corredor sob a minha responsabilidade pode configurar uma espécie de
trapaça. Se algo acontece com um desses veículos sob os meus cuidados, eu
seria acusado de milhões de coisas diferentes. Então, é melhor evitar esse tipo
de estresse.
A história da Thunderstorm não tem nada de extraordinário, mas talvez essa
oficina seja uma das minhas poucas alegrias na vida. A minha atração por
automóveis me impulsionou a abrir um espaço pequeno para consertar alguns
carros em Bolfok Town, já que os moradores da cidade precisavam ir até a
urbe vizinha caso algo acontecesse com seus veículos. Então, com uma
pequena ajuda financeira, consegui realizar um sonho de garoto.
Tio Mason foi o maior responsável pelo meu amor por carros, já que
consertávamos os motores juntos, cuidávamos da pintura, e deixávamos os
automóveis repaginados. E aos meus dezessete anos, decidi experimentar
uma sensação diferente do que a apreensão de ler algum HQ ou jogar um
vídeo game. Assim, fui ao meu primeiro racha. Não sei se foi sorte de
principiante ou algo do tipo, porém naquele dia, eu ganhei. Experimentar a
sensação de vencer com os veículos que eu preparo contribuiu para que eu
mergulhasse nesse novo mundo.
É quando decido que comprar carros e transformá-los em máquinas de correr
é o que amo fazer.
Ainda não é inverno em Bolfok Town, pelo contrário, está um pouco distante
da época. No entanto, parece que há um frigorífico ligado em cima dos
moradores dessa cidade. O vento gélido batendo na face, congelando a ponta
do nariz e ressecando os lábios. O sol até que dá o ar da graça, camuflado por
entre as nuvens, contudo nada que espante esse frio cortante que nos abriga
em casacos pesados.
Depois de terminar o expediente na oficina, passo por uma boutique de
roupas. Meus olhos são instantaneamente atraídos por um sobretudo felpudo
rosa-chá, igual ao que Regina usava no dia em que a molhei. Parte de mim se
afoga na culpa de ter encharcado a menina em um tempo tão frio. Além de
que as notícias correm no Campus, e eu já sei que minha brincadeira imatura
desencadeou uma crise de dor de garganta na patricinha.
Percebo, então, que estou encarando a vitrine da loja por tempo demais. Por
isso, sigo meu caminho. A pergunta que assola minha mente é se ainda devo
um pedido de desculpas a ela, ou se a situação já caiu no esquecimento. Mal
podendo conter meus instintos, interrompo os passos, ficando estático na
calçada. Retrocedo a caminhada até estar em frente à boutique de novo,
olhando para o casaco consigo me decidir. Posso odiar tudo o que Mackenzie
representa, mas não sou tão otário assim.
Ao voltar para a faculdade sigo até o prédio de Direito, a fim de conferir se
ainda pegarei Regina a tempo. Confiro a grade de horários presa no quadro
de cortiça e vejo que ela ainda está em aula. Soco a sacola de qualquer jeito
no fundo da mochila e estagno os passos em frente a sua sala.
Enxergo Dominic sentado ao lado dela, ao passo que os dois cochicham com
avidez. Ignorando seja lá o que o professor explica diante dos alunos pouco
interessados na aula entediante.
Tenho vontade de rir da Senhora Hayes e sua garantia de que Regina é uma
excelente aluna. Conversas paralelas não geram uma aprovação com honra ao
mérito. Desisto de entregar o casaco pessoalmente, e me limito a deixar um
bilhete grudado na sacola. Pouso-a no chão, e saio dali a passos apressados.
Sentindo o peso da culpa abandonando meus ombros aos poucos.

A Bolfok Ride está lotada. Infestada de pessoas bebendo, interagindo, rindo e


dançando. Avisto de longe Lewis Johnson, Nevaeh Williams e Regina
conversando entre si, gargalhando alto de algo muito interessante. Não
estranho a presença deles aqui, pois os rachas são o único entretenimento da
cidade pacata na sexta à noite. Aperto os olhos em direção ao grupo, e a
situação fica ainda mais estranha quando vejo Dominic se juntar ao grupo em
um assunto que parece ser animado.
— Além de roubar minha paz, Regina também roubará meus amigos? — Me
viro para Andrew, pouco me importando em parecer infantil.
— Calma, bonitão. — Andrew põe a mão em meu ombro. — Ainda estou
aqui.
Franzo o nariz, e continuo observando o grupo de amigos em minha frente.
Regina perscruta o local, chocando as vistas com a minha, nossas íris ficam
pregadas durante poucos segundos e eu finalizo o contato com uma piscadela.
Ela revira os olhos e bufa, me fazendo rir baixo. Vê-la com raiva é quase um
hobbie de tão prazeroso.
O clima muda drasticamente quando um grupo de seis homens chega à
fazenda, em seus carros turbinados, tatuagens cobrindo até mesmo a cabeça,
bandanas e jaquetas personalizadas. São os Lions, gangue da cidade vizinha
que sempre vem infernizar nossas vidas correndo por aqui. John Lion, um
dos líderes do grupo, odeia qualquer pessoa que ganhe dele, ou seja, seu
apreço por mim é negativo. Porém, a voz de Chad soa alta novamente
interrompendo meus devaneios.
— E aí, Bolfok Ride! — Ele grita, iniciando seu habitual bordão. — Prontos
para verem fumaça no ar e pneus cantarem?
A plateia responde com mais gritos escandalosos, e antes mesmo que ele
prossiga, já passo a bandana pelo rosto ao passo que sigo até meu Ford.
Pouso os olhos onde Regina estava com seus amigos, entretanto, ela não está
mais lá, provavelmente foi pegar uma bebida. Esfrego as mãos uma na outra,
pronto para ganhar minha revanche, com manobras e táticas prontas para
garantir a vitória.
Vejo John surgir e estranho sua presença ao meu lado.
— Como um perdedor se sente? — Sua voz soa grave em meu ouvido e eu
quase estremeço.
— Me diga você. — Abro um sorriso cínico. — Sabe que para chegar ao meu
nível, você tem que melhorar muito.
Antes que ele possa me responder, a voz de Chad soa novamente.
— Hoje teremos pequenas mudanças. Nosso Rei correrá contra a Rainha e
John Lion. — Seu comunicado me faz franzir o cenho. Eu já havia visto
corridas em dupla, e até mesmo individuais com quatro carros, mas em
Bolfok Town nunca houve uma em trio. — Façam suas apostas em um dos
três, no final, teremos o ranking de primeiro, segundo e terceiro lugar. A
grana será dividida dessa forma.
Não faz muito sentido acontecer uma mudança drástica, que parece ser de
última hora. Como se o intuito fosse facilitar para o lado de alguém.
— Indy — chamo a loira com a mão, vendo-a caminhar graciosamente até
mim. — Por que a corrida vai ser assim?
— Foi pedido da Queen, para dinamizar um pouco e te dar a chance de
ganhar pelo menos um dinheirinho. — Ela ri, e sinto meu rosto queimar. —
Palavras dela.
— Filha da puta.
Suas intenções, de certa forma, fazem sentido. Já que nas concepções dela, eu
jamais ganharia competindo com a Rainha. Então, com John na jogada tenho
a oportunidade de ganhar em segundo, levando alguma grana. É muita
audácia sequer cogitar que eu poderia vencê-la.
Indiana solta uma gargalhada alta, parecendo se divertir muito às minhas
custas.
— Quem ela pensa que é? — Passo a mão na nuca, em um claro gesto de
nervosismo. — Que é a Rainha da cidade? Chegou agora e já quer sentar na
janela.
— Na verdade, ela é meio que isso tudo mesmo. — Indiana discorre, com um
sorriso pairando sobre os lábios cheios e rosados. Cerro os olhos para ela,
sentindo-a acariciar meu bíceps. — Mas, eu adoraria te consolar mais tarde.
Divido minha atenção entre Indiana e Hannah desde que cheguei a Bolfok.
Não faço o tipo que transa com muita gente, até porque esse tipo de conquista
casual demanda força de vontade, tempo e paciência. E eu não tenho nenhum
dos três. Portanto, estou satisfeito com minha relação sem compromisso com
as duas. Deixando-as livres para estar com quem quiserem. Às vezes, até me
disponho a conhecer outras pessoas, mas nada demais.
Sou chamado de novo para que a largada seja dada, e ajeito a bandana sobre
o rosto.
— Isso não vai ficar assim — aponto, me referindo a mulher misteriosa que
costuma disputar comigo.
Escuto o rugido do motor e vejo a misteriosa Rainha em seu mesmo Dodge,
com a bandana igualmente vermelha, e as habituais tranças boxeadoras. Ela
me olha, mas nem se preocupa em se demorar no ato, já que desvia as órbitas
rápido demais. O carro de John para ao lado dela e ele a direciona um sorriso
sujo, que me dá muito nojo. Puxo o cinto, ajeito o retrovisor, e dou três
batidas leves com o dedo indicador no painel. Indiana vai até a frente, entre
meu carro e o da mulher, sobe o lenço vermelho e desce com fúria.
É dada a largada.
Arranco com tudo, fazendo meu Ford pular, subindo para o turbo antes do
momento certo em uma tentativa de ganhar tempo contra os dois que já estão
comendo minha poeira. Me lembro da tática dela de se manter para trás como
se tivesse tudo sob controle. Piso levemente no freio e alinho meu carro ao
dela. Como se já soubesse de minha tática, como a porra de uma vidente, ela
joga seu carro no meu, me fazendo frear para evitar uma colisão. John está
gargalhando e eu percebo que implicar com a misteriosa não é de bom tom
nesse momento, já que dará vantagem ao líder da gangue. Acelero de novo,
pouco me fodendo para o que virá a seguir.
Percorremos Bolfok Town inteira, deixando rastros de fumaça e asfalto por
onde passamos, mantenho o olhar compenetrado na estrada, dando tudo de
mim para vencer dessa vez, eu preciso do dinheiro, tenho que me livrar do
meu pai, pagar as dívidas. Essas frases são repetidas em minha mente como
mantras, a fim de me dar a força necessária para cruzar a linha de chegada.
Quando avisto a rotatória que marca a fronteira de Bolfok com a cidade
vizinha, sei que só precisamos fazer a última curva e ultrapassar a linha. Na
rotatória, jogo minha traseira em John, o fazendo desviar por reflexo e passo
em sua frente. Estou alinhado com a misteriosa, acelerando o máximo que
consigo até meu corpo estar totalmente grudado ao banco. Entretanto, minha
surpresa não é grande ao reparar que o carro da Rainha ultrapassa o meu por
pouco. Dessa vez, não há grandes diferenças entre nós, o que serve de alento
a mim. Encaro, pelo retrovisor, o semblante furioso de John.
Bom, pelo menos o terceiro lugar não é meu. Descanso minha cabeça no
apoio do banco e pouso meu olhar na misteriosa novamente, a vejo fazer um
cavalo de pau, e logo depois aponta para mim com o indicador e dedo médio
grudados, levando-os até a cabeça, como em um cumprimento amistoso.
Prego os lábios para evitar que a sombra de um sorriso adorne o rosto. É
óbvio que ainda tenho contas a pagar, dívidas a serem sanadas, e preciso me
livrar do meu pai, mas John sempre fica furioso quando perde, e isso basta
para garantir minha diversão.
Então pela primeira vez em toda a semana, a ideia de perder para ela não
parece tão ruim.
Acordo no sábado sentindo todos os músculos gritarem por
misericórdia. Assim como os ossos, que doem por causa do frio cortante de
Bolfok. Cogito a ideia de ir ao restaurante dos alojamentos tomar minha
refeição matinal enrolada em um saco de dormir e um edredom bem grosso.
Porém, após considerar os prós e contras de me levantar ou continuar deitada,
decido por fim, dormir mais um pouco.
Ao despertar bem próximo do horário do almoço, me levanto em um pulo,
reparando a ausência de Nevaeh, e junto meus pertences para enfrentar o
banheiro comunitário. Espero mesmo que os estudantes já tenham tomado
banho hoje. No entanto, antes de sair não evito que meus olhos voem até a
sacola grande de uma boutique da cidade, me lembrando do acontecimento
peculiar de ontem.
Quando estava saindo da aula de Economia Política, havia esse grande pacote
encostado ao lado da porta da sala. Uma menina o pegou, perguntando a
todos sobre quem era Regina, a dona da embalagem. E, se não fosse Dominic
me relembrando acerca do apelido carinhoso que Thomas me deu, eu nem ao
menos associaria que a sacola era minha. Dentro havia um sobretudo rosa
chá, quase igual ao que eu usava no meu primeiro dia na faculdade. Além
disso, também havia um post it amarelo colado na embalagem com os
seguintes dizeres:
Para Regina,
Considere como um pedido de desculpas por ter te molhado.
Sei que isso é obra de Thomas, e acho bom que ele tenha sentido o peso da
culpa por ter sido um grande imaturo. Isso mostra que ele tem, pelo menos,
algum tipo de noção. Comprar o casaco novo é exagerado e desnecessário, já
que um pedido de desculpas já basta. Contudo, mesmo sem conhecê-lo é
perceptível que Eckhoff é meio fã de grandes gestos, o cara é muito
extravagante. Assim como Rafe, mas antes que eu possa me lembrar do quão
otária já fui nessa vida, espanto as lembranças amargas e sigo para o banho.
Os prédios que abrigam os alojamentos da Bolfok College são agrupados
como um grande condomínio ou conjunto habitacional divididos em blocos.
Para alimentar a modesta sociedade de jovens que vivem aqui, há alguns
restaurantes e lanchonetes distribuídos pelo local, me dando a sensação de
que moro em uma pequena cidade dentro de outra. Nesse horário, podemos
considerar o estabelecimento lotado, por causa da grande fila que rodeia
algumas mesas.
— Boa tarde, Regina. — A voz característica de Thomas soa ao meu lado, no
fim da fila, me fazendo pular pelo susto e pôr a mão no peito.
— Céus! — arfo. — Como você é sorrateiro.
Suas sobrancelhas se abaixam e levantam em um gesto sugestivo, me
gerando uma sensação de asco.
— Como um tigre? — Sua mão imita garras, e eu levo o dedo indicador a
boca, simulando vômito.
— Como uma assombração.
E, quando penso que o assunto já está dado como finalizado, ele entreabre os
lábios rosados novamente.
— Sabe, agora que teremos meses na companhia um do outro... — Ele
começa a dizer e não acho que venha uma boa proposta por aí, mas me
mantenho calada para ouvi-lo. — Eu proponho uma pequena trégua.
Arqueio as sobrancelhas, sem esconder que estou surpresa pela proposta.
— Qual é, Regina. — Thomas contorce as feições em desagrado. — Não
estou dizendo que agora me simpatizo mais com você, porque continua me
parecendo uma rica chata e arrogante. Mas, não vamos conseguir organizar
um evento sequer sem uma trégua nessas implicâncias.
Veja bem, esse cara não me desce de jeito nenhum. Porque ao mesmo tempo
em que ele adora jogar na minha cara os motivos pelo qual não gosta de mim,
eu também tenho os meus. E, se sou a rica chata e arrogante, ele é o garoto
que finge ser mau, mas que é só um tolo frustrado. Porém, em prol dos meses
que conviveremos juntos, decido aceitar a trégua.
— Tudo bem. — Balanço a cabeça. — Como selaremos essa trégua?
Antes que eu perceba o teor da pergunta, Thomas enruga os lábios, tentando
esconder um sorriso que provavelmente é sugestivo. No entanto, acredito que
em prol da nossa trégua, ele não diz nada malicioso.
— Vamos começar do jeito educado dessa vez, sem a água. — Ele esfrega as
palmas uma na outra e eu elevo as bochechas em uma careta de desdém. —
Sou Thomas Eckhoff.
Encaro sua mão erguida em punho, imagino que para eu chocar a minha na
dele em um soquinho. Estranho o cumprimento, mas dou um leve soco de
volta.
— Mackenzie Lennon.
Assisto o sulco se formar por entre suas sobrancelhas, e até imagino a
pergunta que está prestes a escapar de sua boca.
— Como o John Lennon? — Inspiro e expiro com calma, reunindo toda a
minha paciência para lidar com ele. — Você é parente do cara?
Inacreditável.
É difícil acreditar no que ouço, como alguém pode ser tonto ao ponto de
cogitar isso? Como se no mundo, todos que tenham o sobrenome Lennon
automaticamente recebem os genes do cantor.
— Claro, Eckhoff. — Ironia escorre pelos lábios. — Sou filha do John
Lennon, como não me viu na edição passada da revista Rolling Stones?
Ele tomba o corpo para frente, sua mão afasta uma mecha que cai por cima
do meu rosto, o dando uma visão ampla da minha face. E, antes que a tensão
se embrenha entre nós dou um tapa em seus dedos atrevidos, expulsando-o do
meu espaço pessoal.
— É. — Ele continua escrutinando meu rosto até que diz. — Eu vejo a
semelhança.
Ignoro a brincadeira imatura, ainda pensando na nossa trégua. E resolvo ser
uma pessoa decente, apenas para variar.
— Apesar de não precisar, obrigada pelo presente. — Me refiro ao casaco,
assistindo seu semblante mudar para um surpreso, como se não esperasse por
um agradecimento.
— Comprei porque sou um cara educado. — Thomas faz uma reverência
discreta e eu contorço os dedos das mãos, tentando manter minha paciência.
— Ainda te odeio.
— É claro que odeia. — Tento, com muito custo, prender a risada.
Não há um motivo concreto que justifique seu desprezo por mim, mas até que
é engraçado vê-lo explicar suas boas ações. Esse cara é, definitivamente, um
ridículo.

Depois de saciar meu apetite resolvo voltar ao alojamento para revisar todos
os conteúdos dados na semana, e finalizar um trabalho enorme de Economia
Política. Sou neurótica ao ponto de estudar todos os dias, sem exceções, mas
nada como um sábado para mergulhar ainda mais nos estudos.
O sumiço de Nevaeh é, no mínimo, muito suspeito.
O que será que ela tem para fazer em um sábado antes das nove da manhã e
não voltar até agora? Até penso em mandar uma mensagem, mas nossa
relação está progredindo aos poucos e eu não quero ser invasiva. Talvez ela
goste de um tempo sozinha para aproveitar da própria companhia. Ou pode
estar apenas fugindo da festa.
Confesso que até eu fugiria. Já que o meu maior prazer é me animar para algo
dias antes, e perto do horário ficar desmotivada por completo.
Próximo ao horário do nosso compromisso recebo uma mensagem dela,
alegando que já está quase chegando. E Lewis avisa, em nosso grupo, que
passará para nos buscar às nove.
— Até que enfim! — sobressalto assim que a porta abre. — Quero muito
saber onde você estava, mas não quero ser invasiva. Só que se quiser me
contar estou de ouvidos abertos.
Ela ri da minha curiosidade, e eu acabo acompanhando-a na risada.
— Gosto de ir à biblioteca da cidade aos sábados. — Ela sobe e desce os
ombros. — Acordo bem cedo, fico por lá o dia todo, e volto quando fecha.
Isso é totalmente algo que eu esperaria vindo de Nevaeh.
— Ah — pondero por uns instantes, e abro um sorriso sugestivo. — Pensei
que estava com Dominic.
Ele vem se aproximando de nós, e está sendo bonitinho vê-lo tentar.
— Mackenzie, eu já tenho problemas o bastante, e não preciso de mais um.
— Cerro os olhos, e balanço a cabeça, fingindo acreditar nela. — Dominic é
uma dor de cabeça que quero evitar, e você devia fazer o mesmo.
— Eu tento, né. — Tombo a cabeça para trás, sentindo o encosto da cama
apoiar a nuca. — Mas parece que o universo não colabora, fala sério, dupla
no grêmio estudantil?
Nevaeh usa a mão para cobrir a boca, abafando a risada que lhe escapa.
— Desculpa rir, mas é que parece que o universo quer vocês dois convivendo
juntinhos por um mês. — Suas sobrancelhas bem desenhadas se movem em
um gesto malicioso.
— Eu odeio o universo. — Giro os olhos.
— Ah, para. — Ela ergue a mão, as palmas estendidas. — Qual seu grande
motivo para evitá-lo? É claro, se estiver confortável para dizer.
Pondero, por uns instantes, mas decido que confio em Nevaeh o suficiente
para contar uma parte significativa da minha vida.
— Eu tive essa pessoa, Rafe, nos conhecemos no colegial. Eu tinha dezesseis
anos, e ele me apresentou lugares novos, prometeu muitas coisas, me induziu
a sair um pouco da bolha em que cresci, e isso até que foi bom. — Deixo de
fora o fato de que ele me levou em meu primeiro racha. — Eu o considerava
um grande amigo, o melhor de todos. Confiava nele como nunca confiei em
ninguém, já que eu tinha muitas pessoas ao meu redor, mas nenhuma delas
estava lá para todas as horas. Ele era como Thomas, juro. Mesmo cabelo
louro, olhos azuis, jaquetas de couro, mais velho, as tatuagens, e dirigia um
carro antigo muito bonito. Rafe me fez acreditar que era importante até me
descartar por completo, depois que tirou minha virgindade. Qual a fixação
dos caras por garotas que nunca transaram? Depois que dormimos juntos três
vezes, uma em meu quarto, a outra em um dos laboratórios da escola, e a
última no banco de trás de seu Dodge, ele passou a me ignorar.
“Eu vestia um uniforme de líder de torcida, usando uma máscara para me
encaixar em um lugar que não era para mim. Sentava agarrada a ele no
refeitório da escola, me sentindo incrível por breves momentos, até que não
servi mais. Eu o questionei na época, e ouvi que sou o tipo de garota para
diversão, que foi ótimo, mas que havia acabado.”
Trazer as lembranças ainda dói porque, na época, eu passei a me questionar
acerca do que eu não tinha. O que faltava em mim, o que me fazia tão
desinteressante. Eu me olhava no espelho e não gostava de uma estria aqui,
uma celulite ali, achava os seios caídos demais, procurando defeitos onde não
tinha. Apenas para justificar o fato de ter sido descartada por alguém que eu
achava ser meu amigo. Ademais, demorou um tempo considerável para eu
entender que o problema nunca esteve em mim.
— Sinto muito. — Nev acaricia meu ombro, me confortando mesmo que eu
não aparente estar vulnerável.
— Acho que minha repulsa por Thomas — prossigo engolindo o choro que
ameaça vir. — É totalmente inconsciente. Enxergo tantas semelhanças que
me recuso a me aproximar o suficiente para cair em sua lábia, e talvez for
feita de tola de novo.
— Longe de mim querer defender homem. — Nevaeh abana a mão. — Mas,
conheço Thomas há uns três anos, e bom, eles não são a mesma pessoa.
Não posso ler os pensamentos dela, mas reconheço em seu tom de voz que
ela tem um tipo de carinho especial por Thomas.
— Eu sei que não. — Dou de ombros. — Só que Eckhoff continua sendo
muito irritante e eu prefiro prevenir a remediar.
Antes que o assunto renda mais, incentivo que nos arrumemos logo. Visto um
vestido branco de alças finas e separo um sobretudo creme, para aguentar o
frio cortante da cidade. Nevaeh veste uma calça preta com alguns rasgos, e
um moletom curto. Fico embasbacada com sua beleza. Os cachos armados, a
pele preta, os olhos escuros, as sobrancelhas delineadas, e o sorriso de dentes
alinhados. É como se seu rosto tivesse sido cuidadosamente desenhado pelo
artista mais talentoso.
A casa da fraternidade nomeada por algum nome grego que não faço questão
de saber está beirando a uma lata de sardinha. Já tem alguém vomitando no
gramado do jardim frontal, e alguns copos vermelhos espalhados pelo chão.
Dentro da residência ampla, jovens dançam livremente, entornam bebida no
copo um do outro, fazem body shot, e tomam cerveja direto do barril. Os
móveis da sala estão em algum lugar desconhecido, deixando espaço o
bastante para que a festa aconteça. No espaço de lazer nos fundos, pessoas já
se aventuram na piscina enorme, e alguns universitários extravasam os
hormônios se agarrando nas espreguiçadeiras do quintal.
O cheiro é de bebida alcoólica e suor, e meus tímpanos já reclamam do som
alto. Porém, me livro dos resmungos para aproveitar a recepção de calouros.
— Dança comigo? — A voz de Lewis soa alta, tentando sobrepor o volume
da música.
O puxo pela mão até o meio da pista, ele me roda e para meu corpo em frente
ao seu. Algum pop animado explode nas caixas de som, tremendo meu corpo
de leve. Balançamos no ritmo da música, pulando com as mãos remexendo
no ar. As bebidas que ingeri desde o início da festa tornam-se aparentes no
organismo, deixando meus olhos menores e as bochechas coradas. Continuo
dançando com Lewis, me sentindo imersa na atmosfera animada do local,
esquecendo qualquer problema que me ronda. Já não penso em trabalhos
acadêmicos, no grêmio e nem Eckhoff pode me abater nesse momento.
Porque uma Mackenzie bêbada e feliz é imbatível.
Quando sinto o cansaço me dominar, e uma gota de suor escorrer da nuca até
a base da coluna, resolvo dar um tempo da dança. Encosto no balcão que
divide a ampla sala da cozinha, passando a prestar atenção no body shot que
acontece próximo a mim. Nunca havia feito em ninguém, por isso uma
apreensão toma meu corpo, inundando-me de vontade de participar.
— Faz em mim? — Ouço uma voz grave soar perto do meu ouvido, me
causando um sobressalto.
O homem desconhecido me encara com os olhos cinzentos vibrando em
expectativa. Os ombros largos compõem o porte atlético do corpo, e a blusa
preta adorna seus músculos que realça a íris clara. O sorriso de dentes
alinhados e brancos realça as covinhas que aumentam seu charme. Baixo o
olhar para sua mão que segura o copo de shot com um líquido que creio ser
tequila. Sem respondê-lo com palavras, me aproximo com calma, sem
desconectar nossas órbitas, e percebo sua pupila dilatar, escurecendo as
vistas. Pego o corpo de sua mão, derramando bem pouco em seu pescoço, e
não perco tempo ao lamber todo o conteúdo. Finalizo com uma leve sugada
em sua pele, escutando-o soltar um gruído baixo.
Antes que eu me afaste, suas mãos grandes agarram minha cintura, e a boca
se choca a minha. Os lábios estão gelados, assim como a língua tem uma
aspereza agradável, e consigo sentir o gosto do álcool, tequila e cerveja. Ele
beija bem, aliás, muito bem. Um dos melhores que já provei, superando até
mesmo Rafe, o que me deixa repentinamente animada. Finalizamos o contato
com um selinho, e nossas respirações aceleradas se misturam, criando uma
harmonia envolvente.
— Sou Joshua Collins. — Ele abre um de seus sorrisos brilhantes.
— Mackenzie Lennon. — Ergo a mão para cumprimentá-lo, e ele devolve o
aperto. — É um prazer te conhecer.
— O prazer é todo meu. — Assisto um sorriso malicioso se estender em seu
rosto, me provocando uma risada.
Sinto uma sensação estranha, como se estivesse sendo observada, e perlustro
o local, procurando algo de estranho. Até que descubro. Choco meus olhos
nas safiras de Thomas, que me encara com um sorrisinho sugestivo. Ele
ergue o copo em minha direção, como em um brinde, balançando a cabeça
negativamente. Desço as vistas pela camisa preta de mangas compridas, o
jeans surrado, as botas de combate, e o cigarro atrás da orelha. Um completo
sem graça, como sempre.
Solto uma bufada, dando-o a língua. Ele sobe os lábios em surpresa, e me
lança uma piscadela. Sinto vontade de rir, mas me recuso a deixá-lo ver que
me divirto com uma de suas caretas.
Josh engancha o braço ao redor dos meus ombros, porém não quero ficar de
casal na festa. Por isso, sou sincera e vou para o lado de fora atrás de mais
diversão. Acho uma mesa de Beer Pong um pouco mais distante da piscina e
caminho até lá.
Na faculdade, você enfrenta novas experiências e descobre mais coisas sobre
si. No meu caso, entendo que sou péssima de mira. Faço dupla com Andrew,
um dos amigos de Thomas, e estou errando todas. Pelo que parece, meu
parceiro já está arrependido de ter aceitado me acompanhar nessa. A cada
copo de cerveja virado por nós, recebo um olhar feio dele.
— Vou fazer dupla com Nevaeh. — Andrew anuncia, assim que avista minha
amiga se aproximar com Dominic, arrastando a mão pelo cabelo crespo.
Acho que ela quase agradece ao universo por não ter que fazer dupla com
Dominic.
— Ah, é? — Arqueio as sobrancelhas para Andrew. — Está desdenhando de
mim. — Dou de ombros. — Sem problemas, seu Karma vai vir.
— Não é por nada não, Mackenzie. Mas sou um pouco competitivo e não
aguento mais perder.
Desconheço o motivo pelo qual gargalho disso, deve ser a bebida.
Sinto-me leve e feliz, esquecendo as inseguranças que sempre surgem, e as
preocupações com a faculdade e o curso difícil que escolhi. Tento não
lembrar que o aniversário de Lidia, minha mãe, está chegando e não recebi o
convite da comemoração. As frustrações estão sendo descontadas na bebida
no momento, apesar de eu ainda não estar tão chapada quanto quero.
O jogo inicia e é óbvio que, em todas às vezes, erro o maldito copo. Dominic
tem a íris escura derramando ira, porque Andrew não alivia, zombando das
nossas derrotas. Está a ponto de virar um copo de cerveja em sua amiga, e
aposto que só não fez isso ainda, porque quer causar uma boa impressão em
minha amiga. O que é engraçado, já que Dominic exala a energia de valentão,
sendo tão desenhado pelas tatuagens que parece um gibi.
Quando ouço “No Doubt- Just a Girl”, um hino de 1995, reverberar
imponente pelos alto falantes, sinto a adrenalina se apossar do corpo. Encaro
Nevaeh, e com apenas um olhar, ela entende. Nós precisamos dançar essa.
Largamos o Beer Pong e corremos até o interior da casa.
Canto à plenos pulmões, como se a Gwen Stefani pudesse escutar minha
devoção onde quer que esteja. Algumas meninas se compadecem com nosso
estado de letargia e se juntam a nós. A pista de dança está tomada por
universitárias tendo seu momento de glória. Nós gritamos a letra, mandando
uma espécie de recado para a sociedade.
Em algum momento no meio de gritos, pulos e risadas, perscruto o local, me
sentindo extasiada, até que pouso os olhos na figura de Thomas beijando
outra garota— e ela não é Hannah. Rapidamente fico em alerta assim como
Nevaeh, seja lá a relação que eles têm é inegável que ela é apaixonada por
ele. Procuro a mulher de cabelo ondulado, achando-a encarando a cena com o
semblante retorcido, parecendo estar muito triste. Ela se move com rapidez, e
eu vou atrás dela. Pronta para dar qualquer suporte que seja, ou sequer
segurar sua mão. Não sei o quanto de cerveja já bebi, mas ainda posso
ajudar.
Empurro a porta do banheiro apenas a tempo de segurar o cabelo de Hannah
enquanto ela despeja quase seu estômago no vaso. Estou exagerando um
pouco, é claro. Fico ali, pelo tempo que ela precisa, acariciando suas costas
com uma mão e segurando seus fios em um rabo de cavalo com a outra.
Assim que termina, a ajudo a levantar, limpo sua boca com o papel, e ela
bochecha com a água algumas vezes.
— Porque está me ajudando? — Sua voz escapa rouca, imagino que pelo
desgaste de vomitar.
— Porque você precisava de ajuda. — Subo e desço os ombros. — Onde
estão suas amigas?
— Acho que bêbadas demais para perceber que estou mal.
Pondero por uns instantes, não sei o que dizer, quero falar sobre Thomas, mas
temo ser invasiva demais.
— Gosto dele mais do que pensei. — Ela se adianta, suspirando. — Juro que
quando começamos a ficar, eu não sentia nada além de tesão. Até era
apaixonada por outro cara. Mas em algum momento, não sei qual, percebi
que me incomoda vê-lo com outras. Sinto ciúme e meu coração bate mais
forte na presença dele. Você sabe os sintomas, certo?
Sim, conheço bem os sintomas.
— Já conversaram sobre isso?
Hannah balança a cabeça com fervor, negando.
— Thomas sempre fez questão de ser muito sincero comigo quanto aos seus
sentimentos. Diz o tempo todo que quando não estiver melhor para mim,
pararemos na hora. Mas, fico me perguntando se não tem nada de errado
comigo. Afinal, por que ele não pode gostar de mim?
Sinto muita vontade de chorar. O relato de Hannah faz eu me recordar da
Mackenzie de dezesseis anos, apaixonada pela primeira vez. Fazendo
questionamentos nocivos. À semelhança entre o que ela passa agora e o que
já passei só me faz reafirmar que talvez Thomas e Rafe sejam mais parecidos
do que penso. Abraço Hannah, querendo protegê-la de qualquer homem que
possa quebrar nossos corações, e mal percebo as lágrimas caindo. Em um
segundo, estamos chorando e rindo.
— Quando te vi pela primeira vez. — Ela começa, enxugando as lágrimas. —
Pensei que fosse mais uma rica mimada que tem problemas com os pais e por
isso decidiu vir até uma faculdade mais barata. Mas, até que você é legal.
— Obrigada, eu acho. — Meu sorriso é contido, porque não consigo alargá-
lo. Suas palavras me atingem em cheio.
Problemas com os pais. Check
Rica. Check.
Mimada. Meio check.
Talvez Hannah não tenha errado em nada do que disse de forma inocente.
— E cuidado, Mack. — Seu tom me faz ficar em estado de alerta. — Com
esse negócio de conviver quase o tempo todo por causa do grêmio, você pode
cair nas graças dele.
Desmancho o semblante cuidadoso, mudando-o para um desgostoso. Um
rosto e corpo bonito não me farão perder as estribeiras.
— Não teremos nada — digo com firmeza.
Hannah ri alto, como se meu tom firme não seja o bastante para fazê-la
acreditar nas minhas palavras.
— Eu não me importarei se tiverem. — Ela aperta meu ombro levemente. —
Não vou odiá-la ou qualquer coisa do tipo.
Gosto de Hannah, e gosto ainda mais porque percebo que ela entende tudo. O
quanto a sociedade tenta nos colocar uma contra a outra, e que essa união nos
faz mais fortes. Porque nenhum homem vale a nossa sanidade mental,
ninguém vale, na verdade.
— Não vai rolar nada — reafirmo mais uma vez.
— Talvez seja bom que não aconteça. — Hannah profere com um semblante
pensativo. — Porque você ainda não o conhece direito, mas Thomas é como
uma praga. Se deixá-lo chegar perto demais, ele te toma por inteiro. E depois
disso, só basta rezar para não ter o coração quebrado.
Talvez seja efeito da bebida, mas Hannah promove diálogos muito poéticos.
Ela não precisa gastar saliva discursando sobre isso, não cairei nas graças
desse cara. Não mesmo.
A segunda-feira me entristece apenas pelo fato de chegar tão rápido.
Ainda sinto que tenho sono acumulado e já estou com saudades do fim de
semana. O início do planejamento do luau é hoje, o que significa que passarei
boa parte do meu tempo convivendo com ela. Falando em Regina, avisto o
prédio de Direito, e caminho pelo Campus até lá. Com o objetivo de definir
um horário para começarmos.
O frio não dá descanso em Bolfok. Esfrego as mãos uma na outra, formando
um vácuo entre elas para esbaforir o hálito quente, tentando amenizar o
aspecto morto delas. De nada adianta, maldita a hora que me esqueci de
colocar luvas. Há grandes chances de o meu pênis ter encolhido uns
centímetros, se escondendo por entre o pano da cueca, de tão gelado que está
o tempo. O pensamento me faz rir sozinho pelo Campus.
Avisto Regina de longe, no meio de uma pequena roda de alunos, sendo
questionada acerca de algum assunto que os faz sorrir às oito da manhã. O
modo como as pessoas a olham, ou melhor, admiram, chegaria a ser cômico
se não fosse trágico. Embora não tenha intenção, ela consegue ser a abelha
rainha de qualquer lugar. Talvez seja a postura ereta, o nariz empinado e as
sobrancelhas arqueadas, que exalam confiança. Sua expressão facial, para
muitos ali, pode ser de pura simpatia. Contudo, sei reconhecer o ar de
superioridade.
Quando entro em seu campo de visão percebo a mudança de postura. Os
ombros enrijecem, a expressão se fecha e as sobrancelhas arqueiam mais
ainda. Estando próximo o suficiente consigo identificar melhor a
superioridade estampada em seu rosto, porém seu perfume também invade
meu espaço pessoal. E nem posso fazer alguma piada acerca dele, porque a
porra do cheiro é muito bom.
— Rainha de Bolfok. — O apelido que acaba de surgir na mente condiz
exatamente com a bajulação que ela recebe.
— Apelido novo? — Assisto seu semblante contorcer em uma careta
desgostosa.
— Sim. — Abano as mãos. — Combina com a babação de ovo que fazem
contigo.
Regina não se abala muito, apenas bufa baixinho.
Lembro que minha oponente nos rachas se autodenomina uma rainha, mas
nem a conheço o bastante para atestar se seu pseudônimo condiz com ela ou
se a mulher é apenas convencida.
— Ok, Thomas. — Regina suspira, parecendo reunir paciência para lidar
comigo. — Agora me diga por que já está me importunando logo de manhã.
— Quero marcar um horário para começarmos a organizar o tal luau. —
Aponto para o relógio imaginário em meu pulso. — Sabe como é, sou um
cara atarefado, então preciso anotar na minha agenda.
— Como você é ridículo — ignoro a alfinetada, mantendo o sorrisinho que
sei que a incomoda. — Enfim, minha última aula é antes do almoço. Porém,
gosto de dar uma estudada à tarde. Então só estou livre ao final do dia.
Ela finaliza retirando de seu rosto uma mecha do cabelo, me dando visão
ampla das pintinhas que decoram suas bochechas. A consciência me lembra
que estou prestando atenção demais no inimigo, por isso balanço a cabeça,
espantando os pensamentos perigosos.
— Então, você estuda mesmo, achei que estivesse na faculdade por
obrigação. — Exponho a realidade de muitos jovens da classe dela.
— Você nem me conhece.
Bom, ela tem um ponto. Não que eu queira realmente conhecê-la. A
implicância é até um pouco cansativa, e me impressiona que eu tenha que ser
maduro para lidar com tantos aspectos da vida, mas volte tão rápido a ser
criança em prol de uma provocação com Mackenzie.
— Você também não me conhece — discorro, tentando parecer inabalável.
— E mesmo assim supõe várias coisas sobre mim.
— Não suponho nada, Thomas. — Regina parece um pouco cansada. —
Você foi um ridículo desde a primeira vez que nos vimos, tudo que sei sobre
você é o que me mostra.
Relembro da nossa trégua, e entendo que não conseguiríamos deixar as
implicâncias de lado por nada. Nem por um instante.
— Também tenho meus motivos.
Não quero falar sobre. Muito menos sequer pensar no nome de Jessie. Odeio
os fios castanhos alongados, as sobrancelhas delineadas, os olhos felinos e
tudo que me leva em uma viagem no tempo a uma época péssima.
— Imagino que sim. — Regina engancha a alça da bolsa no ombro, pronta
para ir embora. — Tenho que ir para a aula, nos vemos às cinco.
Percebo que Lennon tem uma facilidade gritante em conduzir a situação do
jeito que quer. Eu que vim até aqui a fim de marcar a hora do nosso encontro,
para no fim das contas, tudo sair da maneira que ela deseja. Estou dormindo
no ponto, pois preciso assumir o controle.
A constatação já me provoca uma vontade de rir instantânea.
Quem eu quero enganar?
Nunca estou no controle quando se trata de Mackenzie Lennon.

A língua de Hannah desliza sobre a minha, iniciando mais um beijo intenso.


Agarro sua cintura, trazendo seu corpo para mim.
Levo uma das mãos a sua nuca, e enrolo suas madeixas, dando um puxão.
Um gruído escapa de sua garganta, e solto uma arfada. O beijo é
interrompido pelo som do meu alarme. Ela solta um suspiro frustrado, assim
como eu. Me afasto para conferir e vejo a tela brilhar em um lembrete do meu
encontro com Regina.
— Tenho que ir. — Abro a porta do banheiro abandonado, situado no quarto
andar do prédio de química.
— Por quê?
— Primeiro encontro com Mackenzie para iniciar os preparativos do luau. —
Coloco a mochila sobre os ombros, e aguardo até que Hannah ajeite as roupas
desarrumadas.
— Temos nos encontrado pouco, Thomas. — Encaro seu sorriso pequeno,
quase triste, e estranho sua reação. — O que está acontecendo?
O questionamento me provoca uma sensação de que algo está errado. Em três
anos que temos essa espécie de amizade colorida, nunca fizemos esse tipo de
indagação.
— Tenho muitas coisas para fazer, Hannah Banana. — Aperto seu nariz,
relembrando o apelido carinhoso. — A oficina demanda tempo, assim como
os trabalhos sem fim da faculdade. Além de ter os rachas. Não é nada demais,
só ando muito ocupado.
Seu semblante muda, se iluminando um pouco.
— Entendi. — Ela olha para os lados, antes de fincá-los em mim. —
Desculpe.
Ok, Hannah definitivamente está estranha.
— Não me peça desculpas por tudo. — Planto um beijo no topo da sua
cabeça. — Fale comigo sempre que quiser sobre o assunto que estiver afim.
Só continuaremos com isso enquanto estiver bom para você, ok?
— Está ótimo assim. — Assisto o canto dos seus lábios erguerem. — Nos
vemos depois.
Deposito um beijo casto em seus lábios, e caminho até o prédio de Direito.
Preciso trocar telefones com Regina urgentemente, não dá para ficar indo
atrás dela sempre.
— Regina Lennon. — Aceno em falsa animação, beirando a ironia, assim que
a vejo pisar para fora do prédio.
— Você sempre surge do nada, céus.
Ignoro seu comentário, assistindo-a girar sobre os calcanhares, caminhando
de volta ao prédio.
— Onde está indo?
Ela interrompe os passos, virando-se.
— Para a biblioteca, oras.
— Não. — Finco os pés no chão. — Só fico nas dependências da
Universidade depois do horário para fumar um baseado no terraço.
Regina contorce o semblante, em uma expressão que parece transbordar
repulsa.
— Por favor. — Junto as mãos na frente do corpo. — Tem uma cafeteria
ótima aqui perto, tão rosa quanto seu closet. Se eu ficar aqui encarando essas
paredes centenárias por mais um segundo entro em colapso.
— Vamos agora. — A maneira como ela muda de ideia com tanta rapidez me
traz a certeza de quem vem alfinetada por aí. — Se você já é insuportável em
sã consciência, imagina no ápice da sua loucura.
— No ápice da minha loucura. — Envolvo seu antebraço com leveza, pondo
a boca perto de seu ouvido. — Eu te prensaria em uma dessas pilastras e te
beijaria até nossas línguas implorarem por descanso.
Sinto o momento em que Regina enrijece a postura, soltando o ar pela boca
de uma vez, fazendo seu peito subir e descer. Acompanho os movimentos
com atenção, logo recobrando a consciência dos meus atos.
— Mas, como eu disse, isso aconteceria apenas se eu tivesse um parafuso a
menos. — Ela recobra os sentidos em uma velocidade impressionante.
— Acho que você está ansiando por um chute nas bolas. — O sorriso
maldoso se estende pelo rosto, intensificando sua expressão dissimulada. —
O que não me falta é vontade.
Solto uma risada baixa, dispersando o assunto constrangedor. Retomo o
controle da caminhada, guiando-a até o estacionamento. Quando percebe para
onde está indo, ouço a voz aguda soar de novo.
— Você disse que é perto.
— E é. — Prossigo a caminhada até meu carro que reina em um
estacionamento lotado de carros sem graça. — Mas, suponho que você não
queira caminhar nem um pedaço em cima desses saltos.
Na verdade, as botas de Regina não são tão altas. Entretanto, não perco a
oportunidade de provocar.
— Não precisamos ir no seu carro, o meu está estacionado no parqueamento
lateral. — Nego com a cabeça, pouco a fim de largar meu bebê aqui para
entrar no veículo sem graça dela.
— Vamos no meu, por favor. Depois te deixo aqui de volta. — Rodo a chave
na mão. — Até te deixo dirigir.
Descubro que esta é uma péssima ideia assim que noto a expressão de Regina
tornar-se animada. Céus, ela com certeza têm planos de bater meu carro em
um poste de propósito, ou usaria da chave para furar o estofado de couro. A
ideia tosca só escapa dos lábios porque supus que ela não teria interesse em
dirigir, na verdade, não tenho ideia do motivo pelo qual inventei essa merda.
Ao acionar o alarme, meu Eagle Speedster Jaguar E-Type 1970 preto se
anuncia. As luzes da lanterna piscam em toda a sua glória. O carro chamando
atenção no estacionamento pacato me faz sorrir. Regina analisa o conversível
de estofado de couro vermelho, como se estivesse deslumbrada com a obra de
algum museu.
— Uau. — Ela entreabre os lábios, passando a mão no veículo em estado
contemplativo. — Esse carro é...
Antes que termine, a interrompo, respondendo por ela.
— Lindo, impressionante, uma relíquia. Sim, já ouvi isso tudo — proclamo
impaciente, ocupando o banco do carona. — Não vai entrar?
— Eu ia dizer extraordinariamente exuberante. — Ela pula para o motorista e
prossegue: — Sabia que é falta de educação interromper os outros?
— Tudo por você, Rainha de Bolfok. — O tom escorrendo ironia a faz bufar.
— E o Stormi agradece o elogio.
— Quem é esse?
— Oras. — Ergo os ombros. — Meu carro.
Dou batidinhas leves no painel, indicando o automóvel.
— Agora me diga por que raios o seu carro tem o nome da filha da Kylie
Jenner? — Um sulco cresce por entre as sobrancelhas.
— Maldita Jenner — nego a cabeça em descontentamento. — Plagiadora.
Regina não consegue segurar a risada. Uma gargalhada escapa do fundo de
sua garganta, melodiosa como uma canção estimada. Ela tomba a cabeça para
trás, e embora o movimento não seja estranho, perco o foco ao me dar conta
de que em seu pescoço há pintinhas exatamente como na bochecha.
— Inacreditável. — Ela nega com a cabeça, ainda rindo. — Seu carro tem o
mesmo nome que a filha da Kyle Jenner.
— Para a sua informação — inicio, entregando a ela as chaves, que não
hesita ao por o carro em movimento. — Eu não sabia que esse era o nome da
criança, combina muito mais com meu carro.
— É claro que sim. — Ela balança a cabeça, ainda sorrindo largo.
Percebo que esse é o primeiro momento em que Regina age com
espontaneidade ao meu lado, sem se preocupar em se conter ou fingir uma
expressão de desgosto.
Na verdade, me recordo da festa de sábado, em que sua risada era solta, o
corpo balançava de um jeito livre, como se nada pudesse detê-la. Lembro do
vestido de alças finas que adornava suas curvas sutis, e de sua língua
lambendo o pescoço de Joshua Collins. Um alerta vermelho pisca em minha
mente, mas o ignoro, não há nada a se preocupar. Mackenzie é bonita e
gostosa, apenas isso. É normal reparar nela.
Espanto os devaneios, percebendo que estamos indo rápido demais.
— Você quer causar um acidente? — Puxo o cinto pelo tórax.
— Só se você fosse o único no carro. — O sorriso que ela abre mistura um
pouco de malícia e provocação.
— Não se engane, Mack. — Cutuco sua axila de leve, fazendo-a dar um pulo.
— Eu voltaria para te atormentar até nos seus sonhos eróticos.
Inexplicavelmente, ela não retorce o semblante em asco, apenas tomba a
cabeça para trás em outra gargalhada.
— Você é muito sem noção.
A leveza no ambiente me acalma de certa forma. Assisto seus cabelos voarem
por causa do vento, contrastando com as tinturas coloridas que se estendem
no céu pelo horário do sol se pondo. Vejo Mackenzie sendo livre, e começo a
acreditar um pouco mais na nossa trégua.
— Você não sabe nada sobre universitários. — Essa é a terceira vez
que ouço algo do tipo sair da boca de Thomas.
Depois de ter dirigido como uma irresponsável pela curta distância da
faculdade até a cafeteria, assistindo Thomas transpassar o cinto de segurança
por seu tórax e apertar o assento firmemente até os nós dos dedos estarem
esbranquiçados, aqui estamos, na Pink Bolfok Coffee, sentados lado a lado,
com o notebook e planner abertos tentando chegar a algum lugar quanto à
organização da festa.
Contudo, em uma coisa ele havia acertado. Esse lugar, com certeza, já havia
se tornado o meu preferido em Bolfok Town. Entre a única boate existente
em uma área mais afastada da cidade, a fazenda onde ocorrem os rachas, e
alguns bares que incentivam a vida boêmia de universitários, essa cafeteria
meio livraria ganha meu coração. O lugar abusa dos tons rosa pastel até o
branco, instigando uma palheta de cores que torna o ambiente aconchegante e
sonhador, é como estar em uma casa de bonecas. O cheiro de café e bolo
acorda as tripas do meu estômago, fazendo-as gritar insandescidas.
Induzindo-me a devorar uma torta de limão rapidamente.
— Tudo bem, grande conhecedor de universitários. — Bato uma palma na
outra. — Qual sua sugestão?
— Comprar apenas bebidas e alguns salgadinhos como Chips e Doritos. —
Ele sorve um gole de seu cappuccino. — As pessoas não irão às festas
esperando que seja como as de elite que você ama, cheia de comidas
refinadas e champanhe. Eles querem cerveja, bebida barata e diversão.
— Eu sei, porra. — Meu nível de paciência desce um pouco, chegando perto
do limite. — Eu só estou dizendo que deveria ter algo sem álcool também,
nem todos os jovens gostam de beber, precisamos atender a todos, mesmo
que o número de bebida alcoólica seja muito maior. E não vou organizar uma
festa apenas com chips e Doritos, sempre me dá fome em algum momento e
tenho certeza que não sou a única. Além do mais, uma festa apenas com
bebidas e pouca comida, é pedir para ter uma multidão em coma.
— Precisamos ter uma palavra de segurança. — Thomas bufa, se jogando no
apoio da cadeira.
— Do que diabos você está falando? — Fazer o exercício da paciência
aturando Thomas pode ser melhor do que ioga, mais um dia em sua
companhia sem pular em cima dele e eu viraria um ícone da serenidade.
Já faz, pelo menos, uma hora que estamos aqui, e ainda não chegamos a lugar
algum. A única coisa que transcorre em minha mente envolve um cenário, em
que eu passo com meu carro por cima dele ao som de "Man Down" da
Rihanna.
— Quando estivermos discutindo muito, prestes a perder a cabeça um com o
outro, ou que nossa briga esteja saindo da linha saudável a nossa sanidade,
usamos a palavra de segurança.
Pela primeira vez, algo sensato sai da boca dele.
— E qual seria? — Dou um gole no meu café preto e vejo a expressão de
Thomas tornar-se iluminada.
— Oh meu Deus. — Ele põe a mão no peito em falsa surpresa, arqueia as
pestanas e arregala os olhos, essas são as feições que adota quando está
prestes a falar merda. — Pela primeira vez você concordou comigo,
precisamos dar uma festa, mais uma na verdade.
— Rosa — solto assim que bato os olhos na placa do lugar que estamos.
— Por quê?
— É a minha cor favorita. — Subo e desço os ombros.
— Certo. — Ele olha para os lados e finca sua íris em mim. — Então, quando
você estiver tagarelando como uma insensata, eu direi Rosa.
Semicerro os olhos.
— Então, quando você estiver falando merda atrás de merda, eu
direi Rosa. — Thomas abre um sorriso pequeno que deixa sua única covinha
a mostra, me fazendo perder o foco por uns instantes.
O fato de Thomas ser insuportável poderia ser somado a mais algum defeito,
porque deveria ser crime ser tão bonito, ou cheiroso, ou gostoso. Não, não,
Mackenzie. Nada de pensar nele assim.
— Certo, Rainha de Bolfok. — Bufo pelo apelido, que sempre faz meu
coração errar uma batida pela aflição de ser descoberta. — Vamos planejar
esse Luau.
— Pensei que para ser um Luau, deveria ocorrer na praia. — Franzo o cenho,
rodando meu dedo indicador pela beirada da caneca de um café, que agora, já
deve estar frio.
— Se tem fogueira e música acústica, é Luau. — Ele discorre, passando a
mão na testa, tirando alguns fios loiros que teimam em cair sobre seus olhos.
— Estamos de acordo que não haverá apenas música acústica, certo?
— Estamos de acordo.
Depois de horas, finalmente concordamos em algo, quando percebemos tal
fato, uma felicidade instantânea se apossa de nós. Arregalamos os olhos ao
mesmo tempo, e não nos seguramos ao comemorar batendo nossas palmas da
mão uma na outra, como em um HI-5. O alívio se apossa do corpo na forma
de um suspiro.Talvez não seja tão difícil organizar essa festa.

Após a tarde cansativa com Thomas ontem, ele me levou de volta ao


estacionamento e arrancou com o carro assim que pulei para fora do carona,
cheguei ao alojamento apenas para estudar mais um pouco e dormir como
uma pedra. Sinto como se alguma energia estivesse me consumindo aos
poucos, sugando toda a minha leveza, deixando bolsas profundas abaixo de
meus olhos, o cansaço já deu as caras e estamos apenas no início do período.
— Bom dia, morena. — Levanto a cabeça do tampo da mesa assim que ouço
a voz de Dominic soar ao meu lado.
— Bom dia para quem? — divago, com os olhos caídos por causa do
cansaço.
— Vejo que a faculdade está lhe fazendo um bem danado. — Seu tom
zombeteiro combina com a postura despreocupada. — Preciso da sua ajuda.
Dominic praticamente se joga na cadeira ao meu lado, chamando atenção
considerável de alguns dos estudantes que lancham no restaurante.
— Me diga que tipo de ajuda e eu vejo se consigo fazer algo. — O homem
tatuado cruza os dedos cheios de anéis sobre o tampo da mesa, e pondera por
uns instantes antes que começar a falar.
— Como eu tenho te ajudado bastante com Direito Constitucional. — Ele
brinca com a mecha do meu cabelo. — Pensei que pudesse me retribuir o
favor.
É engraçado o modo como criamos algum tipo de laço em pouco tempo.
Dominic se ofereceu para me ajudar com um trabalho de Constitucional e, a
partir desse dia, passamos a compartilhar inúmeros assuntos nas aulas ou no
intervalo delas. Impressionante como um cara tão interessante como ele
consegue ser amigo de Thomas.
Encaro seu olhar pidão, sabendo que sua hesitação para lidar com o assunto
significa que vem merda por aí.
— Desembucha.
— É sobre Nevaeh Williams. — Agora sim minha risada escapa da garganta
um pouco menos contida, atraindo alguns olhares curiosos dos estudantes
presentes no restaurante. — Estou falando sério.
— Talvez você não faça o tipo dela. — Resolvo brincar um pouco, é
inevitável não ser levemente maldosa com Dom em relação à Nev, até porque
está claro para mim que minha amiga tenta a todo custo não ceder aos
encantos dele.
— Ah, qual é. — Ele bate de leve no tampo. — Eu faço o tipo de todo
mundo.
Não sei bem se é verdade. Mas, eu jamais poderia contrariá-lo quanto a isso.
Porque seu cabelo castanho sedoso, que cai às vezes na frente do rosto,
somado a mandíbula demarcada e ao maxilar saltado, compõe uma beleza
comum e ao mesmo tempo envolvente. Quase não há pele branca no meio de
tantas tatuagens, Dominic possui desenhos que fecham ambos os braços,
mãos, falanges dos dedos e pescoço. Segundo ele, deixou que sua amiga,
Jules, treinasse as ilustrações nele quando estava em treinamento. É visível
que Nevaeh está terrivelmente atraída pelo Hopkins, porém não quer se
envolver.
— De que tipo de ajuda você precisa?
— Quero atrapalhar Lewis. — Tento raciocinar durante alguns minutos, até
que finalmente caio na risada.
— Olha, seja lá o que você e Thomas usam juntos, não está te fazendo bem.
— Ele põe a mão no queixo fingindo estar pensativo, até que se pronuncia.
— Já compartilhamos um baseado, será que estava estragado? — Não
consigo frear a risada que escapa. — Mas voltando ao Lewis, você já
percebeu que ele está sempre jogando charme para cima dela? Beijando a
mão, abraçando, se eu atrapalhar um pouquinho ganho tempo até que ela
perceba o quanto sou maravilhoso.
— Você é muito sem noção, sério — repreendo. E Dom contorce as feições,
demonstrando o quanto está contrariado. — Mesmo que você mate Lewis,
isso não fará com que ela goste mais de você.
— Vontade é o que não me falta — resmunga, me fazendo contrair as
sobrancelhas em confusão.
— Por que você e Thomas parecem o odiar tanto?
— Não é assunto meu. — Dominic dá de ombros, encerrando o assunto.
Aperto os olhos em sua direção e sinto como se um pequeno mistério os
rodeasse, já que eu claramente estou por fora de algum assunto que envolve o
motivo de meus surtos diários e o meu amigo.
— Por que insiste tanto em Nevaeh? — pergunto, resolvendo mudar de
assunto.
Tenho medo de que isso tudo seja para transar com ela, é óbvio que sei que
nem todos os homens são Rafe. Mas quando a decepção é muito grande, você
acaba ficando em alerta com todos, até porque, desconfiar de homens não é
uma escolha, é quase político. Uma reação compreensível acerca do que eles
costumam aprontar.
— Você já olhou para ela? — Sua voz esganiça um pouco. — Nevaeh
Williams é a mulher mais linda que já vi em toda a minha vida. Além de ser
tão inteligente que chega a ser cruel. Nunca troquei muitas palavras com ela,
porém assisti às vezes em que ela ajudou Thomas sem esperar nada em troca.
Gosto dela.
Suspiro de leve com sua pequena confissão, ao passo que desconfio de todo
esse mistério envolvendo Eckhoff.
— Ajudou Thomas? — questiono, um sulco se formando entre as minhas
sobrancelhas. Dominic massageia as têmporas em resposta, entendendo que
falou mais do que devia.
— Ele já teve uns probleminhas com a faculdade, nada demais.
Identifico o ar de mentira, contudo resolvo não invadir um espaço que em
nada me diz respeito. Assim, opto por ignorar essa história com Eckhoff e
focar totalmente em Nevaeh.
— Então aqui vai um conselho de amiga: se você quer apenas sexo, seja
sincero desde o início, ateste os fatos antes de iniciar qualquer coisa. Não a
faça pensar que gosta dela, ou que vocês poderiam ser algo mais, se seu único
objetivo seja transar.
Ele respira fundo e parece ponderar por um momento.
— Já fizeram isso com você, não é? — Me assusto com sua perspicácia,
balanço a cabeça em um gesto afirmativo e ele fecha os punhos sobre a mesa.
— Quem foi? Pode falar para mim que eu encho o filho da puta de porrada.
Tombo a cabeça para trás em uma gargalhada.
— Você resolve tudo no soco? — indago, vendo Dom dar de ombros, me
fazendo sorrir contido. — Foi há um tempo, não importa mais. Só me diga
que não fará isso com Nevaeh.
— Acredite quando digo que gosto dela. Não tenho nenhum tipo de trauma
quanto a relacionamentos, se as coisas derem certo entre nós estou pronto
para qualquer coisa envolvendo Nevaeh.
Essa resposta me surpreende, ainda mais pela fama que Dominic tem entre os
que o conhece. Um cara que nunca assume nada que envolva
responsabilidade ou seriedade.
— Sei o que está pensando — prossegue. — Acha que só porque fico com
muita gente, não quero nada com ninguém. Mas não é assim, só nunca me
interessei por nenhuma garota ao ponto de ir além de sexo casual. — Ele
finaliza com uma risadinha baixa, me fazendo apertar os olhos em sua
direção.
— Certo — solto em um lapso. — Vou te ajudar com Nevaeh.
Hopkins não se contém, me agarrando em um abraço de urso. Solto uma
risada contida e implico para que ele me solte.
— Dominic! — Ouço a voz um tanto rouca de Thomas soar ao nosso lado. —
Estou te procurando há horas.
Desfaço o contato com Dominic, sentindo a frustração de ter que lidar com o
loiro.
— Ah. — Thomas junta o dedo indicador e médio na altura da testa, em um
cumprimento. — Fala, Regina.
Devolvo o aceno, sem querer prolongar qualquer papo que termine em ambos
imersos em uma maré de provocações. Tento, com muito esforço, não reparar
no modo como seus cabelos desgrenhados caem bem com o tom oceano dos
olhos. Acho que Dom percebe a minha encarada nada discreta, porque cobre
a boca com a mão, imagino que na tentativa de abafar uma risada.
— Diga o que quer, irmão. — Thomas bate com leveza no ombro de
Hopkins.
Os dois embarcam em um assunto que envolve a casa deles, algo sobre a
manutenção urgente de algo que quebrou por causa da festinha desnecessária
que Dom inventou. Paro de prestar atenção no assunto para transportá-la até
os lábios finos e rosados de Thomas se mexendo.
Nunca vou contá-lo, mas sua provocação ontem surtiu algum tipo de efeito
em mim. Porque foi um tanto impossível ignorar o modo como o ar pareceu
tornar-se rarefeito, e o arrepio que a voz rouca de Thomas me provocou.
Balanço a cabeça, desanuviando os pensamentos, e decido que o melhor
nesse momento é dar o fora daqui.
— Eu vou embora — anuncio, interrompendo a conversa dos dois. — Tenho
um compromisso.
É mentira, não tenho nada para fazer até minha próxima aula começar.
Porém, mais um segundo ao lado de Thomas não faria bem a minha sanidade.
Recebo um aceno de mãos dos dois, troco número de telefones com eles, já
que não posso contar sempre com o dom de Thomas de me achar em todos os
lugares.
Caminho a esmo pelos corredores, cantarolando "Another Brick in the
wall" do Pink Floyd, imersa no tédio o suficiente para quase contar todos os
tijolos que compõe o pilar que sustenta a construção vitoriana da faculdade,
analiso os murais, brinco de pular as linhas que dividem os pisos, reparo até
mesmo no cheiro de poeira impregnado no filtro do aquecedor. Não percebo
que tenho companhia até sentir o cheiro levemente cítrico, característico do
perfume de Lewis.
— Olá. — Ele saúda em um sorriso leve me contagiando também. — Eu
estava mesmo querendo falar com você.
Faz sentido que ele esteja no prédio de Direito apenas para falar comigo, já
que o edifício da School of Business (Escola de Negócios), fica um pouco
mais afastado.
— Oi. — Deixo um beijo em sua bochecha. — O que quer comigo?
— Te chamar para irmos à Bolfok Club. — Franzo o cenho, descontando
minha confusão. — É a única boate daqui, mas é boa, e só funciona sábado.
Pondero por uns instantes, chegando à conclusão de que quero conhecer o
máximo de lugares possíveis na cidade em que eu morarei pelos próximos
anos.
— Podemos, sim. — Dou de ombros. — Marcamos direito quando estiver
mais próximo.
Demoro a me dar conta de que estamos próximos demais, parados em um
ponto deserto do corredor, imersos no assunto banal de marcar algo sábado,
meu nariz resvala no peitoral de Lewis assim que inclino meu pescoço, a fim
de manter o contato de nossas órbitas. Um arrepio se apossa de mim desde a
base de minha coluna até a nuca, fico confusa por não entender bem as ações
de meu amigo. Que ele é muito gentil com as mulheres e as trata muito bem,
eu já sei, mas é difícil decifrar se em algum momento ele esteve flertando
comigo.
— Mackie. — Sua voz baixa interrompe meus devaneios. — Você não
precisa ter medo.
Engraçado, porque o medo se intensifica mesmo com o aviso.
Ele põe uma mecha do meu cabelo atrás da orelha e se inclina em minha
direção, por um momento, acho que vai me beijar. Contudo, Lewis apenas
me olha com ternura, exalando um ar de riso.
— Da fruta que você gosta, eu chupo até o caroço.
Aguardo um longo momento para processar as informações que chegam a
mim, até que finalmente entendo, Lewis é gay. Um suspiro de alívio me
escapa assim que percebo o quanto eu estava tensa pela situação.
— Obrigada. — Percebo que agradeço a orientação sexual de alguém e
rapidamente me recomponho. — Quer dizer, não estou agradecendo por você
ser gay. Na verdade, eu...
— Eu entendi. — Ele me interrompe, percebendo meu desconcerto. — É
triste que vocês tenham receio de todo homem que chega tão perto, mas é
perfeitamente compreensível. Está tudo bem.
Mesmo sendo meu amigo, eu o conheço há apenas poucas semanas, com
Rafe, nós convivemos por dois meses até que eu tivesse segurança de perder
minha virgindade com ele, e ainda assim, fui feita de tola.
Após o susto, uma vontade repentina de rir me atinge, Dominic estava
entrando em colapso por medo que Nevaeh se encantasse pelo charme de
Lewis, que nem mesmo existiram. É incrível como nossa mente cria diversas
perspectivas baseadas em nossos surtos.
— Em nenhum momento você esteve flertando comigo ou com Nevaeh, não
é? — questiono, embora eu já saiba a resposta.
— Óbvio que não. — Ele balança a cabeça rindo baixo. — Só fui gentil e
legal. Na verdade, é até um tanto engraçado ver Dominic com uma carranca
quando me vê sendo carinhoso com Nevaeh.
Deixo que minha risada surja do fundo de minhas cordas vocais, em alto e
bom som, tombo a cabeça para trás em uma gargalhada. Como fui
egocêntrica por um tempo achando que Lewis estivesse dando em cima de
mim.
— Qual o lance entre vocês? — Ele enruga a testa, demonstrando que não
havia entendido e eu me prontifico a explicar. — Thomas, Dominic e você.
— Ah. — Ele olha para os lados, como se estivesse tentando achar um
refúgio para escapulir da pergunta. — Não é algo que eu possa sair por aí
falando.
Os cantos de meus lábios se voltam para baixo quando percebo que minha
curiosidade não será sanada hoje, pelo visto, o que acontece entre eles é mais
sério do que eu havia pensado.
O outono em Bolfok Town tem que ser renomeado para amostra
grátis do inverno, já que o clima álgido não dá descanso, e eu posso sentir o
cheiro emanado da terra molhada e das folhas secas características da estação.
O cacto em nossa janela do alojamento atesta que a luz recebida é suficiente,
mas o broto desfalecido constata que não. Até minhas plantas anseiam pela
primavera ou pelo verão. E meus ossos doídos já reclamam por antecedência
do inverno que virá daqui poucos meses.
Há três semanas, eu pisava pela primeira vez na calçada do campus, e hoje,
com três textos acumulados para ler, um teste cognitivo surpresa anteontem e
dois artigos acadêmicos a ser preparado, eu descubro definitivamente que os
próximos cinco anos serão mais do que exaustivos.
Durante a última semana, eu havia conhecido a Bolfok Club, única boate e
entretenimento dos jovens nessa cidade pacata. Mas era um bom lugar, a
decoração era em tons quentes, entre um preto fosco e vermelho sangue. O
estabelecimento contava com um enorme espaço para dança, bancada do bar,
algumas mesas altas para pessoas que cansam rápido como eu e, no hall de
entrada, alguns sofás estavam bem dispostos para descanso. No segundo
andar, poltronas acolchoadas de dois lugares eram bem organizadas,
divididas por cortinas de veludo vermelho para que casais tivessem sua
privacidade, a luz ambiente era quente e o local cheirava a sexo. Mas era
propício para a quantidade de jovens exalando hormônios por ali. Foi
divertido estar lá, dancei com Lewis até que meus pés clamassem por
descanso, mas resolvemos ir embora cedo assim que começou a tocar indie.
Não é exatamente o gênero musical que eu esperava ouvir em um clube como
aquele.
Nevaeh Williams estava estranha, mesmo com muita insistência ela preferiu
ficar no alojamento na companhia de seus amados livros. Mas às três da
manhã, quando pisei meus pés no cômodo em que compartilhávamos, a
figura de minha amiga largada na cama em um sono pesado, vestida de jeans
rasgados no joelho e um sobretudo goiaba a cobrindo, me deixou
desconfiada. Era como se ela tivesse saído e apenas se jogado no colchão ao
chegar. Sendo que, antes de eu sair, ela vestia um pijama do Star Wars e lia
algum livro de ficção científica. A suposição de que isso, talvez, contasse
com dedo de Dominic me fez rir e ativar meu espírito de fofoqueira.
Óbvio que eu aproveitaria o fato de ter que aguentar Thomas quase todos os
dias no planejamento do evento e tentaria arrancar algo dele em relação ao
casal Domivaeh. Nossa, sou péssima com isso. Porém, a única resposta que
recebi foi um sonoro "se quisessem que você soubesse de algo, teriam te
contado". Lidar com ele torna-se cada dia mais insuportável, nós sempre
entrávamos em algum tipo de discussão, não poupando xingamentos um ao
outro e utilizando com frequência nossa palavra de segurança. Mas, a notícia
boa é que estávamos com quase tudo pronto para o Luau que seria daqui a
quase uma semana.
Meus devaneios são interrompidos quando percebo uma atenção excessiva
em minha pessoa. O professor me encara com as sobrancelhas arqueadas, o
olhar transbordando de expectativa, e os alunos têm os olhos fixos em mim,
como se aguardassem a resposta de algo.
— Senhorita Lennon, eu lhe fiz uma pergunta. — O senhor Collins, professor
de Direito Constitucional espera pacientemente até que eu tenha o que
rebater.
O problema é: eu não faço a mínima ideia do que ele havia perguntado. Varro
o local com os olhos como se a resposta fosse aparecer magicamente no rosto
de algum aluno, ou no tampo da mesa, e quem sabe nesse estojo preto com
estampa de bichinhos da menina ao meu lado? Essa é, definitivamente, a
primeira vez que eu passo tanta vergonha em sala de aula.
— Desculpa, senhor Collins. — Me ergo no assento, endireitando a postura.
— Pode, por favor, repetir a pergunta?
Ele parece decepcionado por confirmar sua suposição de que eu estava
perdida em meus pensamentos. A verdade é que nunca imaginei que me
sentiria tão exausta assim. Algumas matérias são difíceis de pegar, e eu me
sinto muito cansada mesmo não tendo feito esforço excessivo, logo, os
pensamentos de autossabotagem começam a ocupar minha mente. Talvez eu
tenha sido feita apenas para sorrir e acenar, ou talvez eu não seja tão
suficiente para um curso difícil como esse, e talvez, no fim, as pessoas
estivessem certas. Eu devia ter aceitado a chance de se tornar uma das
modelos da grife de mamãe, porque não tenho capacidade de ser aluna de
Direito.
— Eu perguntei qual o objetivo principal da Carta Constitucional dos Estados
Unidos ter sido elaborada com poucos artigos? — Todos, sem exceções, me
encaram em expectativa, aguardando se poderiam soltar risadinhas baixas
caso eu não soubesse.
A princípio, me sinto pressionada, enxergando tudo enevoado em minha
mente. A resposta foge de meu cérebro em uma velocidade inquestionável, e
agora eu só consigo ouvir a cacofonia das engrenagens trabalhando a todo
vapor, já que eu tenho certeza de que estudei sobre isso essa semana. A
solução correta está aqui e eu não poderia perdê-la apenas por causa de meu
nervosismo. Pessoas que gostam de mim já haviam me dito que o nervosismo
e pressão me paralisam de certa forma, me impedindo de pensar com clareza.
— O objetivo era garantir um equilíbrio entre as duas forças políticas que
promoveram a independência das treze colônias. Os federalistas defendiam o
poder central, ou seja, a unificação dos estados, enquanto os republicanos
julgavam necessária a autonomia de tais estados. Logo, para entrar em
consenso, optaram por criar uma carta com poucos artigos, que assegurava a
eficácia do poder central, porém concedia uma noção de liberdade jurídica
para os estados. Funcionando assim sob as bases da Common Law inglesa.
Finalizo em um pequeno sorriso vitorioso. Sei que o nervosismo poderia ter
me limitado, mas saber a resposta ali, naquele momento, me mostra que
talvez eu seja sim capaz de cursar Direito, e de que sou inteligente. Isso
ninguém pode me tirar.
— Muito bom, senhorita Lennon. — Seu meio sorriso me mostra que ele
confia na minha capacidade e que aguardaria todo o tempo do mundo se isso
significasse obter uma resposta correta de mim. Ele parece estar orgulhoso, e
o resto da sala, ao se dar conta de que não teriam ninguém para olhar com
desprezo hoje, dispersam a atenção antes voltada a mim.
Tento me manter mais focada pelo resto do tempo, captando todas as
informações úteis que Senhor Collins derrama em nós. Ao finalizar a aula,
junto meus pertences com rapidez, a fim de me aliviar o mais rápido possível,
porque eu posso fazer xixi nas calças caso alguém interrompa meu caminho.
Assim que adentro a cabine ouço passos largos e sinuosos irrompendo porta
adentro. Duas mulheres conversam animadamente. Quando o nome Thomas
Eckhoff é citado na conversa, apuro os sentidos, deixando os ouvidos bem
abertos.
— Ele é uma delícia. — Uma voz aguda profere e reviro os olhos para esse
comentário. — Pena que é um bastardo.
— E o que tem isso? — A outra questiona e estou quase que colada na porta
da cabine para ouvir melhor. Nesse ponto, já tento me equilibrar, não
encostar meu corpo na privada, fazer um xixi silencioso e ouvir a fofoca.
— Você ia querer estar com alguém que é filho da empregada? — O tom de
escárnio em sua voz me incomoda. Como se auxiliar de limpeza não fosse
um trabalho digno. — Além disso, fruto de um adultério, de um pecado.
Essa garota nasceu em que ano? Provavelmente, deve ouvir um discurso
convincente o suficiente em sua bolha familiar e social, como se o fato de ser
proveniente de uma traição amaldiçoasse Thomas de algum jeito.
— Pensando bem, você tem um pouco de razão. — A outra espera um tempo
até continuar. — As pessoas comentariam muito em Oroland County.
Elas finalizam o assunto e saem do banheiro, espero uns segundos até sair da
cabine com milhões de questionamentos. Essa conversa havia ativado o
bichinho da curiosidade que vive em mim, me fazendo perceber que Eckhoff
está envolto em um mistério talvez muito maior que o meu. Já que durante
nossa convivência frequente na última semana, as únicas coisas que eu sei é
que ele tem uma oficina, ama carros antigos, corre em rachas e tem uma
paixão estranha por balas de ursinhos. Ao passo que eu me mostrava menos
resulta em compartilhar os detalhes sobre minha vida. Cada vez mais, fatos
como a minha infância em Dilshad Town, meu amor por filmes de terror e
músicas dos anos oitenta se tornavam pauta de nossas conversas. Além disso,
ele também já ouviu um pequeno desabafo meu em relação à falta de atenção
que eu recebia da minha família. Mesmo com o aumento dos nossos números
de diálogos, ainda tenho um pé atrás com ele. Só é bom desabafar com
alguém que não te lançará olhares de julgamento ou se meterá em suas
escolhas e opiniões.
Tenho vontade de sair à procura de Thomas nesse exato momento para expor
minha curiosidade, mas o receio de estar sendo invasiva demais me faz
estagnar os dedos prontos para enviá-lo uma mensagem questionando seu
paradeiro. Penso um pouco em quem poderia sanar minhas dúvidas ou sequer
aguçar ainda mais minha curiosidade e decido ir atrás de Lewis.

O espaço destinado a práticas de esportes na Bolfok College é um dos


aspectos na faculdade que não abre brechas para reclamações. O gramado
bem cuidado unicamente para os treinos do time de futebol americano conta
com as marcações em tinta branca que significam alguma coisa que eu não
faço ideia. A arquibancada é em formato trezentos e sessenta graus, rodeando
todo o campo, uma pista de corrida bem cuidada também faz parte da
decoração, apenas para a prática de atletismo ou corridas matinais para alunos
não sedentários.
A cada passo meu em direção ao grupo de jogadores que conversam
livremente portando uma pose egocêntrica, como se fossem os reis da
faculdade, meu estômago reclama. As quantidades exorbitantes de filmes
hollywoodianos vistos por mim me fizeram tomar traumas de atletas. As
líderes de torcida também estão ali, entregando que o "estilo de vida
americano" exposto pela mídia não foge tanto da realidade. O primeiro a
perceber minha presença é o carinha que fiquei em uma festa de fraternidade,
acho que o nome dele é John, ou Joe, bom, não faço ideia, mas tenho certeza
de que é algo com J. Ele abre um sorriso largo me fazendo relembrar o
quanto seus dentes alinhados fazem um composto bonito com as covinhas e
seus olhos meio acinzentados brilham em reflexo a luz do sol. Ele vem até
mim a passos moderados e ergo o canto dos lábios em simpatia.
— Mackenzie Lennon. — Sua voz grave soa alta, tentando sobrepor-se ao
burburinho próximo a nós. Repuxo meus lábios para cima na famosa
expressão "sorriso amarelo". Eu nunca a entendi muito bem, mas ao ser
chamada pelo nome e não ter a mínima ideia do dele, descubro o significado.
— Olá... — Tento não deixar transparecer que não faço ideia de como
chamá-lo, mas talvez eu seja péssima nisso, já que um sorriso divertido dança
em seus lábios.
— Você provavelmente não se lembra, mas sou Joshua Collins — repito
entorno de quarenta vezes esse nome em meu cérebro, quem sabe assim eu
grave.
— Me desculpe por isso, Josh. — Ele abre um sorriso ainda maior ao
perceber que eu o apelido. — Sou realmente péssima com nomes. — Penso
um pouco. — Aliás, você não se importa que eu te chame assim, não é?
Inconveniente, sem noção, atirada, são alguns dos adjetivos que eu já havia
ouvido em minha vida por sempre achar que já sou íntima de alguém antes de
conhecê-la. Sendo aquela que distribui apelidos por preguiça de clamar o
nome completo, a que expõe a vida na fila do banco e cria diálogos amenos
na padaria. Quem conhece essa Mackenzie jamais desconfiaria que ela
guarda um segredo.
— Claro que não. — Ele se aproxima de meu ouvido, como se fosse contar
um segredo e sussurra. — Eu não gosto muito de Joshua.
Penso em concordar, já que também não sou fã desse nome, apesar do
apelido ser bonito. Entretanto, pondero que talvez ele enxergue a
concordância como falta de educação e prefiro ficar calada.
Sorrio em sua direção, porém antes que eu possa me pronunciar novamente
vejo Lewis caminhando até nós com o braço enganchado no ombro de um
dos membros do time, eles conversam sobre algo que parece ameno, e o
homem se despede com tapinhas no ombro do loiro.
— Ei, Mack!— exclama, estendendo o sorriso pelo rosto. — O que faz aqui?
— Preciso falar com você. Seu treino acabou? — Ele afirma em um aceno
com a cabeça, levanto as sobrancelhas em alívio e me despeço de Josh antes
de puxar Lewis ao meu encalço.
Percorro todo o caminho do campo esportivo até o estacionamento do
Campus comentando sobre a simpatia dos jogadores. Lewis conta que alguns
são realmente caras legais, mas que outros são ridículos. Ele diz que Josh é
alerta verde, ou seja, uma pessoa boa. Mas não deixa de comentar que
Maxon, da linha de defesa, seria alerta laranja e Brian, uma luz LED
extremamente vermelha. Pondero um pouco, pensando em perguntá-lo mais
acerca de seus colegas de time, mas antes que eu possa me pronunciar, Lewis
volta a dizer.
— Então, pode falar — diz assim que ocupamos uma das mesas da área
aberta do Campus.
Inicio um pequeno monólogo deixando claro que estou sendo fofoqueira e
tenho plena consciência disso, mas que é inevitável não me sentir curiosa.
Conto sobre tudo que ouvi das meninas no banheiro dando ênfase a palavra
"bastardo", e sem deixar de fora a parte que Thomas é filho da empregada de
alguma família. Adiciono alguns comentários, exponho o quanto elas foram
conservadoras, antiquadas e preconceituosas. Parece que estou defendendo a
honra de Eckhoff, como se não tivesse gostado nada de ouvir alguém falando
dele de forma tão baixa, mas me recuso a aceitar essa possibilidade.
— Thomas é meu irmão.
Demoro uma quantidade considerável de tempo para processar a informação
jogada em meu colo. Busco nas expressões de Lewis algo que declare que
isso é apenas uma brincadeira, e quando chego à conclusão de que ele fala
sério, meu queixo despenca um pouco e estaria no chão se fosse possível.
Inúmeros questionamentos rondam minha mente, como o fato de que os dois
quase não se olham, a falta de interação, o ódio que parecem perpetuar e,
principalmente, os sobrenomes diferentes.
— Sei que você provavelmente tem muitas perguntas a fazer, algumas não
posso responder. — Ele prossegue. — Mas tentarei ser o mais sincero
possível.
Tento respeitar o espaço pessoal da família alheia, então me contento em
balançar a cabeça em compreensão e faço apenas as perguntas básicas.
— Por que vocês não têm o mesmo sobrenome?
— Somos irmãos apenas de pai, na verdade, somos Johnson. — Ele respira
fundo. — Mas Thomas não usa esse, só o da mãe.
Imagino que provavelmente há uma boa explicação para isso, e considerando
todas as expressões de desgosto de Thomas para Lewis, fazendo com que até
mesmo Dominic não goste dele, sinto que a história é muito mais profunda.
Ignoro o bichinho da curiosidade que grita dentro de mim para saber mais
sobre e apenas me limito a mais uma pergunta.
— Por que vocês parecem não se gostar?
— Olha. — Ele varre todo o local com os olhos como se buscasse um
refúgio. — Thomas é filho da ex-empregada da família, que teve um caso
com meu pai quando minha mãe nem sabia ainda, mas já estava grávida de
mim. Não me contaram direito a história, mas ela pediu demissão assim que
tomou conhecimento de sua gravidez, e sei que quando meu pai descobriu
que teria um filho, lutou por ele. Há muitos processos de guarda na justiça
por Thomas, sei que ele corre nos rachas para ajudar a mãe a pagar as dívidas
com os advogados, e sei também que meu pai sempre ganhava no final.
Eckhoff morou conosco dos seis anos de idade até os treze, e quando teve
autonomia para escolher com quem ficaria escolheu a mãe. E isso é tudo.
Meu olhar questionador ainda está nele, já que não obtive resposta para
minha pergunta.
— Ah, desculpe. Perdi o fio da meada. — Ele pondera um pouco e
prossegue. — Thomas tem os motivos dele para não gostar de mim, e isso
não deve ser espalhado para outras pessoas além de nós. As coisas lá em casa
não são fáceis, e para ele foi ainda pior. Só posso dizer que tivemos uma
infância incrível, éramos muito unidos, mas quando atingimos o colegial tudo
ruiu.
Meus instintos me gritam que há peças faltando nessa história. Claro que é
tudo digno de novela mexicana, especialmente esse lance de caso com o
patrão, e de isso gerar frutos, brigas na justiça. Mas, por um momento, um
sentimento de empatia ensurdecedor me possui. A vítima nessa história toda
é Thomas. O trauma de ver seus pais brigando por ele na justiça, conviver
com uma família em que ele não se encaixa e ser obrigado a entender toda a
situação que o envolve não deve ter sido fácil. E então, me compadeço um
pouco. Nenhuma de suas atitudes ridículas é meramente justificável, mas dá
para entender um pouco o porquê ele é assim.
E pela primeira vez, sinto vontade de ouvir a versão de Thomas Eckhoff
"Johnson".
O momento em que você percebe pela primeira vez que está
endividado fica gravado na sua mente, talvez para sempre. Eu encaro com
afinco todos os boletos abertos em cima da mesa com um grande carimbo em
vermelho, indicando seu atraso. Misturar o dinheiro da empresa com minhas
dívidas pessoais pode ser um caminho sem volta, porque ninguém em sã
consciência se arrisca dessa forma, na verdade, essa pode ser a causa da
falência de muitos. A Thunderstorm me dá um bom lucro, acreditem ou não,
comprar carros ferrados em leilões e vendê-los após o conserto gera uma boa
grana. Além disso, nós também fazemos a manutenção de vários automóveis
dos universitários da Bolfok College.
Entretanto, o lucro da oficina não é suficiente para arcar com todas as minhas
pendências. Leio e releio a planilha em minha mão com os gastos do mês e
suspiro frustrado. Estou com um mês de aluguel atrasado, deixando na mão
de Dominic e Andrew, prometendo pagá-los o mais rápido possível, mesmo
que eles não estejam cobrando. A minha prioridade é limpar o nome de
minha mãe, depois de ter lutado tanto por mim na justiça, o mínimo que
posso fazer é arcar com as dívidas dos advogados. Embora Noora Eckhoff
brigue comigo toda semana tentando recusar o dinheiro que mando, tanto
para sua alimentação mensal quanto para o banco, insisto que esse é o meu
dever como filho.
Depois de ajudá-la com o necessário, ainda preciso me manter na faculdade,
tendo gastos como aluguel, alimentação, impostos e afins. E, além disso,
ainda junto dinheiro para pagar ao meu pai o que eu o devo.
Entrei como acionista majoritário na Thunderstorm. A empresa está no meu
nome, entretanto, há um pequeno valor investido pelo meu pai. Mesmo que
nossa relação não seja boa, e que eu não queira nada vindo dele, na época, o
desgraçado conseguiu me convencer a receber sua ajuda. Mal sabia eu que
esse era apenas um de seus modos de me manter por perto, sob seu controle.
Então me desdobro mensalmente para dar conta de tudo. Encaro fixamente a
planilha de gastos em minha mão, os pessoais e os da empresa. Analiso
calmamente as tabelas mensais e me pergunto onde tudo começou a
desandar, mas no fundo, já sei a resposta. Desde que comecei a perder nos
rachas, fui perdendo também o controle das cobranças, já que quando eu
ganhava em todas as semanas, angariava uma ótima grana, o suficiente para
me deixar viver confortavelmente. Acreditem, corridas informais dão muito
dinheiro.
Contudo, agora estou enrolado até o pescoço, me afogando nesses boletos
como em uma porra de areia movediça. Sinto-me exausto por ter que dar
conta da faculdade, seus inúmeros trabalhos e provas, da oficina e das dívidas
bancárias. Pouso meu olhar na semana de workshops e palestras que estão
acontecendo na faculdade, e decido que talvez seja uma boa ideia ir a
algumas de Direito Empresarial e Educação financeira. Sou questionado
frequentemente sobre os motivos por ter escolhido cursar química, e não
administração. A resposta é simples; se eu tivesse escolha, nem estaria
cursando nada, porém, ainda me sinto totalmente sob o controle de meu pai,
acatando a maioria de suas vontades e com medo do que aconteceria se eu
não seguisse o que ele deseja. Estou cansado de sentir medo. Assim, escolhi
Química porque sempre fui bom na matéria, sou apaixonado pelo que
podemos fazer misturando tantos experimentos, com tantas possibilidades e
perspectivas diferentes.
Olho no relógio e percebo que se eu quiser chegar a tempo para a primeira
apresentação, preciso correr. Tomo uma ducha rápida e decido me vestir um
pouco mais social, para não estar tão diferente dos Universitários que já se
sentem como grandes empresários ou advogados, se vestindo a rigor, sem
economizar sapatos sociais e blazers. Que piada.
Tiro o maço de cigarros do bolso, coloco um atrás da orelha, caso eu precise
em uma emergência, pego as chaves do carro e saio de casa. A faculdade hoje
se assemelha a uma grande feira de profissões, com barracas diferentes e o
hall do edifício lotado com pessoas aguardando a próxima palestra.
Abro um sorriso pequeno assim que avisto Mackenzie e Dominic em um
papo animado na fila do auditório, enquanto caminho até eles, percebo que a
primeira está usando o sobretudo que dei, e fica bem nela. Como se alguma
coisa não ficasse boa em Regina. Antes de chegar até eles, avisto um homem
de estatura alta, com o cabelo loiro escuro bem alinhado, e trajando um terno
que com certeza é de grife. Ele encara fixamente o cigarro em suas mãos,
parecendo decidir se o acenderá ou não.
— Precisa de um isqueiro? — indago assim que me posiciono ao seu lado.
Ele me encara por uns segundos, parecendo ponderar acerca de algo.
— Não — responde, pousando seus olhos meio azulados em mim enquanto o
lanço um sorriso amigável. Seu semblante permanece inexpressivo, quase
como se estivesse morrendo de tédio. — Eu tenho isqueiro, só prometi a
alguém especial que tentaria parar um pouco com o cigarro, mas vou dar duas
palestras hoje e estou nervoso.
Retiro do bolso uma cartela com chicletes de nicotina, sei que esse não é o
tratamento ideal para um viciado, mas pode aliviar um pouco. Estico para ele
colocando a embalagem em seu campo de visão.
— São chicletes de nicotina, tenho outras cartelas dessa, então pode ficar.
Mas use com moderação. — Sua expressão se ilumina levemente e ele pega.
— Sou Thomas Eckhoff, aluno de química.
— Benjamin Chapelle, advogado público. — Ele me cumprimenta em um
aperto de mãos educado e varre o Campus com os olhos. — Pela primeira vez
vou palestrar sobre duas coisas que gosto: Direito Empresarial e Defensoria
Pública. Uma hoje e outra amanhã, mas estou nervoso.
— Vai dar tudo certo, cara. — Dou uma batidinha em seu ombro. — Veio
sozinho?
Prolongo o assunto, fugindo do tema nervosismo, para que ele esqueça um
pouco de tudo que envolve ministrar uma palestra.
— Não. — Agora o sorriso alarga em seu rosto como se o tédio tivesse, de
repente, desaparecido. — Vim com a minha mulher. Reservei um hotel para
nós por aqui, mas ela está à uma hora vidrada em uma barraca que o tema é
sustentabilidade. Ela é ambientalista.
Acabo me contagiando com sua animação de falar sobre quem ama, porque
seus olhos adquirem um brilho, que só sendo muito tonto para não perceber.
Vejo que Regina e Dom agora estão mais próximos de nós e parecem ter os
ouvidos bem abertos em nossa conversa. Dois fofoqueiros.
— Isso é legal. Estão casados há quanto tempo? — Quando mudo o foco do
assunto para sua esposa, ele parece ficar mais relaxado.
— Na verdade, não somos casados, ainda. — Ele diz, uma careta
contorcendo as feições do rosto e solto uma risada baixa, e damos mais
alguns passos assim que a fila anda. — Talvez o pedido venha apenas daqui
uns anos. Ela tem algum tipo de regra contra matrimônios.
Antes que eu possa responder, nossa atenção é tomada pela mulher de pele
marrom, olhos castanhos vibrantes e cabelos arrumados em trancinhas
dreadlocks. Sua estatura é alta, quase do meu tamanho e seu caminhar é
gracioso. Fico quase que hipnotizado com sua beleza e entendo tudo assim
que percebo o sorriso brilhante que ela direciona ao advogado ao meu lado.
— Amor, esses estudantes têm ideias sustentáveis incríveis, e me lembram de
quando eu estava no lugar deles... — Então, ela desembesta a falar sobre os
assuntos mais variados e misturados, me assustando com seu fôlego para
proferir tantas palavras de uma vez só.
Nunca pensei que existisse alguém tão tagarelo quanto Mackenzie, que a
cada encontro nosso tagarelava por horas sobre algo diferente. Assim que seu
namorado ou futuro esposo a interrompe educadamente para indicar que eu
estava em sua companhia até ela chegar, a mulher pede desculpas e se
apresenta como Akya Sawyer. Ela também diz que se formou ano passado e
que eles moram em Nova Iorque. Conta também um pouco da história do
relacionamento deles, dizendo que foi consultora ambiental da empresa que
ele era presidente, e assim ele se apaixonou perdidamente (palavras dela).
Acho bonita a dinâmica do casal, a troca de olhares que só eles entendem, as
provocações, piadinhas e até mesmo os apelidos.
— Belle. — Ele a interrompe mais uma vez. — Você não precisa contar toda
nossa vida para ele. Tenho certeza de que Thomas não está tão interessado
assim.
Acabo soltando uma risada baixa ao ver que ela põe a mão tampando a boca
como se estivesse chocada por ter falado tantas coisas sobre sua vida e nem
ao menos ter percebido. Tenho vontade de dizer que ela se daria muito bem
com Mackenzie, mas prefiro ficar calado.
— Me desculpa, Thomas. — Balanço a cabeça negativamente. — Acabo
achando que todos estarão tão interessados em me ouvir quanto o Riquinho
Rico aqui.
Tenho vontade de rir mais uma vez pelo apelido e penso que, com certeza, eu
chamaria Mackenzie assim, mas decido que prefiro Regina.
— Está tudo bem, Akya. Você tem uma boa voz e bons assuntos. — Ela ri
meio desconcertada, suas bochechas ganham um tom avermelhado e ela põe
uma mecha de seus locks atrás da orelha.
Benjamin cerra os olhos em minha direção, parecendo ponderar se estou
flertando com ela ou não. E é claro que não estou, mas não a culpo por ficar
desconcertada com o meu charme. Ergo os dois braços em rendição para
deixar claro que não fui mal intencionado, e eles soltam uma risada baixa.
— Vamos ter que entrar mais cedo, pois sou o próximo palestrante. — Ele
tira o braço direito que rodeia a cintura da mulher para me cumprimentar. —
Foi um prazer te conhecer, e muito obrigado pelos chicletes.
— Não foi nada. — Abano a mão. — Boa sorte com as palestras, vocês
formam um casal muito bonito.
Não minto, eles realmente ficam lindos juntos, tanto esteticamente quanto na
forma que se tratam. É claro para qualquer um que se amam muito, e a beleza
de ambos é fascinante.
— Obrigada. — Ela me dá um abraço rápido, me deixando brevemente
inebriado com seu perfume cítrico. Acho que sinto cheiro de protetor solar
também.
Seu namorado põe o dedo indicador e médio na altura dos olhos e aponta
para mim, como se dissesse "estou de olho em você, garoto" ou algo como
"fica longe da minha mulher". Mas expõe que está apenas brincando assim
que sua risada baixa reverbera entre nós, deixando sua namorada corada.
Acabo rindo de novo e me pergunto se, algum dia, terei um relacionamento
como o deles.
Depois de passar pelo menos duas horas ouvindo como gerir gastos,
multiplicar lucros e administrar uma empresa, saio do auditório frustrado.
Infelizmente, eles não ensinaram como fazer um milagre e multiplicar a grana
assim como Jesus fez com os pães. Sinto que perdi meu tempo, até porque fui
obrigado a aturar Regina fazendo inúmeros comentários em meu ouvido
como a boa tagarela que é. Imagina essa mulher no cinema? Pena de quem
estaria na sessão. Torço silenciosamente que ela não perceba meu
desconforto ao ter sua voz soando quase que sussurrada em meu ouvido,
como uma diaba, cuja tentação eu não poderia cair.
Tenho vontade de rir quando ela satiriza o palestrante, dizendo que ele se
assemelha muito a um coach. Prendo a risada o máximo que consigo, mas em
algum momento, não sei se é quando Regina dá uma roncada de leve em meu
ouvido ou quando baba em meu ombro, acabo soltando uma gargalhada
silenciosa. Perceber que ela não é tão insuportável quanto pensei, faz com
que eu me esqueça em uma frequência perigosa o motivo de minha raiva.
Será que eu realmente a odeio? Será que houve algum momento em que eu a
odiei? Ou eu só quis que fosse assim?
Depois de ter arrumado o DJ para o Luau, as decorações, comidas e bebidas,
iremos ao local que acontecerá a festa. O certo seria se tivéssemos ido antes,
mas como eu conheço bem o lugar, entrei em uma discussão acalorada com
ela tentando atrasar nossa ida até lá. Sem poder prolongar mais o inadiável,
caminho ao seu lado até o estacionamento. Até tento convencê-la de irmos no
meu carro, já que amo Stormi, porém ela insiste que usará o seu. Quando ela
aciona o alarme fico estarrecido, e se meu queixo pudesse bater no chão, ele
com certeza já estaria lá.
Um Cadillac 1955 absurdamente lindo e... Rosa? Como uma réplica bem
reproduzida do carro de Elvis Presley? Nunca passaria pela minha cabeça que
o automóvel de Mackenzie Lennon poderia ser uma obra digna de estar em
um museu, na verdade, o original está mesmo, exposto em toda a sua glória
no Museu do Elvis, em Memphis. Jamais imaginaria Regina dona de um
carro como esse, mas se considerarmos o dinheiro que sua família deve ter,
entendo que transformar um carro qualquer em uma réplica como essa não
deve ter sido nada demais.
— Tem um otário babando no meu carro. — Sua voz próxima até demais de
meu ouvido faz com que eu não consiga evitar o arrepio que me sobe.
Maldita.
Seus lábios quase roçam no lóbulo de minha orelha, e ela se diverte com
minha tentativa de não estremecer, tentando fingir que Regina não me afeta.
Inexplicavelmente, ela afeta pra caralho, me fazendo parecer o adolescente
virgem que eu era no colegial.
— Tem razão. — Subo e desço os ombros, tendo êxito em mascarar os
efeitos que essa dissimulada causa em mim. — Eu não imaginava que você
pudesse ser dona de um carro tão...
— Perfeito? — Ela me interrompe, parecendo revidar o dia em que eu fiz o
mesmo com ela em relação ao meu carro. Seus lábios cheios estão erguidos
para cima me fazendo desviar rapidamente a atenção.
Aceno em concordância.
— Você não sabe nada sobre mim, Eckhoff. — A expressão de escárnio me
faz rir.
Eu poderia citar o quanto ela ama músicas dos anos oitenta, ou sua fissura por
filmes de terror, e suas grifes favoritas. Poderia relembrar seu desabafo
acerca de sua família monótona, que passa muito tempo negligenciando o
bem estar da filha em prol de seus trabalhos exaustivos que garantem os zeros
em suas contas. Sei que ela ama café preto sem adoçar, lê romances água com
açúcar, é sedentária, sua cor preferida é rosa, e toda vez que "No Doubt-Just a
girl" começa a tocar, ela necessariamente precisa fazer uma performance.
Captei todas essas informações apenas em duas semanas em que
trabalhávamos arduamente para ter um Luau decente, já que Regina parece
minha mãe contando sua vida para qualquer um em fila de banco.
— É claro que não. — Meu tom escorre em ironia, mas se ela percebe,
prefere ficar calada.
Regina assume o volante, me fazendo apertar o cinto pelo tórax em uma
provocação que a faz bufar.
— Vamos jogar. — Franzo o cenho assim que ouço o que ela propõe. — Não
sei nada sobre você. E me sinto muito exposta sabendo que te contei minha
vida quase toda.
— Qual jogo seria esse? — Ela pondera um pouco e gravo os detalhes de seu
semblante pensativo.
— Responde ou come. — Regina pensa um pouco e nega com a cabeça. —
Não faz sentido. Vai ser assim: faremos perguntas um ao outro, e só
poderemos comer as balas de ursinho, que sei que você tem na mochila, se
respondermos.
Arregalo os olhos ao me dar conta de sua perspicácia. Aparentemente, Regina
também andou reparando em meu vício por balas de ursinho. Aceno
positivamente e digo que ela pode começar.
— Comida favorita.
— Pizza de palmito — rebato automaticamente e como uma das balas sabor
morango.
Mackenzie murmura um "eca" e eu ignoro, prosseguindo com o jogo.
— Música favorita. — Ela pondera um pouco, parecendo pensar na resposta
e logo toma fôlego para responder.
— Girls Just wanna have fun, Cindy Lauper. — Imagino que essa também
seja mais uma dos anos 80 e sorrio levemente. Ergo o saco de balas e ela tira
a mão da marcha para pegar uma e comer. — Banda ou música favorita.
Regina é articulada, porque faz duas perguntas de uma vez só aguardando
que eu caia na cilada que montou para mim, decido não comentar e apenas
respondê-la.
— Não tenho banda favorita, gosto de qualquer coisa que soe bem em meus
ouvidos. — Subo e desço os ombros. — Minha música favorita é Lose my
Religion, mas também gosto de Don't you (Forget about me), da trilha sonora
de Clube dos Cinco.
— Adoro esse filme! — Ela comenta e arregala os olhos, provavelmente
constatando que essa, talvez seja a primeira vez que percebemos ter um gosto
em comum.
— Filme favorito?— indago enquanto o gps se encarrega de mostrar o
caminho correto.
— Dez coisas que eu odeio em você — responde, e por um instante, penso
que ela vai realmente citar dez coisas que odeia em mim, ou muito mais, mas
me lembro da existência de um filme de romance.
— Espera. — Ergo a palma da mão. Ela pousa os olhos em mim, porém logo
volta à estrada. — Isso não é de terror.
Regina dá de ombros, ajeitando os fios do cabelo que atrapalham sua visão.
— Meu gênero favorito é terror, mas gosto de alguns romances.
Assim que o carro embica em uma curva mais elevada e ela não pode tirar as
duas mãos do volante, pego uma bala e levo aos seus lábios. Finjo que não
sinto nada quando sua boca encosta levemente em meus dedos. Tento não
transparecer que algo muito estranho está acontecendo ali, essa onda de
arrepios, quase como uma eletricidade subindo por meu corpo não é normal.
Puta que pariu.
Estou atraído por ela. Como posso odiar alguém e ao mesmo tempo sentir
vontade de fodê-la?
A brincadeira acaba e a tensão paira no ar, de repente, o carro fica pequeno
demais para nós. Bolfok Town está um gelo lá fora, mas aqui dentro, sinto
uma quentura anormal se apossar de mim. Não posso deixar de reparar em
seu semblante compenetrado, nas sobrancelhas franzidas e nos lábios
crispados. Regina não parecia nada afetada com aquele pequeno contato entre
nós, e é claro que ela não se afetaria, porque Mackenzie me odeia. Abro a
janela do carro e quase ponho a cabeça para fora em busca de mais ar.
Regina não fala nada, apenas deixa sua concentração na estrada de lado por
um momento, me olha e solta uma risadinha, logo voltando sua atenção ao
trânsito. Franzo o cenho, descontando minha confusão no vinco que se forma
entre minhas sobrancelhas.
— Está rindo para mim por quê? — Ela parece conter-se ao máximo para não
deixar que uma risada muito mais potente fuja por entre seus lábios. Não
entendo onde Regina vê tanta graça.
— Não estou rindo para você, e sim, de você.
Bufo audivelmente, me afundando no banco e apoio meu rosto na mão bem
próximo da janela. Isso faz com que eu sinta o vento gélido chicotear meu
rosto sem dó, deixando minhas bochechas e a ponta do nariz ainda mais
gelada.
Continuo sem entender o motivo da graça, e sei que prosseguirei na dúvida,
pois Regina não está nada disposta a me explicar. Contudo, os
questionamentos são deixados de lado assim que saímos da estrada asfaltada
e entramos no caminho de cascalhos que nos leva até o píer por cimado lago,
e ao espaço que faremos a fogueira. Saímos do carro ao mesmo tempo,
caminhando pelo local, inspecionando se é bom o suficiente. E mesmo que
não seja, é o único que temos.
— Não gostei daqui. — Respiro fundo, tentando reunir paciência para a
sessão diária de pirraça.
— É mesmo? — Meu tom escorre ironia. — Porque não existe outro lugar
em Bolfok que dê para fazer um Luau.
— É sério, Eckhoff. Um lugar deserto desses, com jovens mal intencionados
e bêbados, têm tudo para dar errado. — Vejo o medo em seus olhos e tenho
vontade de perguntar se algo de ruim já aconteceu a ela em uma festa dessas.
Mas, a mera possibilidade de ver Regina dizer que alguém já a machucou
dessa forma me provoca um arrepio.
Sua resposta me desestabiliza por completo, fazendo com que eu afaste
qualquer implicância ou provocação. Penso em maneiras viáveis de organizar
um evento aqui, deixando Mackenzie confortável com a ideia do lugar um
tanto deserto.
— Vamos cercar a área, reduzir o espaço da festa e pedir à reitoria que
coloquem policiamento. — Me aproximo dela em passos contidos até estar
em sua frente. — Se fosse possível, eu mudaria o lugar da festa e desistiria
dessa ideia de Luau, mas foi o que a Reitoria pediu, então podemos adaptar
tudo do jeito que for melhor para você, ok?
Ela afirma em um aceno de cabeça leve, e a atmosfera entre nós muda assim
que nossas vistas ficam presas uma à outra. O castanho vibrante de
Mackenzie me deixa hipnotizado, e ela também não parece ter muita vontade
de desprender seu olhar do meu. Se não fosse pelo barulho das folhas batendo
contra si devido ao vento e o chacoalhar leve da correnteza calma do lago, o
silêncio reinaria entre nós. Quando meus olhos descem para os lábios em
formato de coração de Regina, me obrigo a cortar o clima que se instaura
entre nós.
— Até que você não é tão escroto assim, Eckhoff. — Um sorriso pequeno
pende em seus lábios, me contagiando também.
Faço uma reverência, como se estivesse diante da realeza e me pronuncio.
— Tudo por você. — Ela franze o nariz em desgosto me fazendo alargar mais
ainda o sorriso irônico. — Vossa Alteza.
Não é novidade que o clima em Bolfok Town é muito frio.
Geograficamente falando, não que essa seja a minha área, é perceptível que o
tempo gelado com frequência pode ser explicado porque a cidade fica situada
no meio de um vale. Tornando a incidência de raios solares
consideravelmente menores, não que aqui seja como em Rjukan na Noruega,
cidade entre um vale em que foi necessário implantar espelhos na parte mais
alta das montanhas para que refletissem os raios solares. Mas, Bolfok ainda
conta com um clima gélido na maior parte do ano, tendo um inverno rigoroso
e verão de temperatura amena.
Contudo, hoje acordo com um raio de sol irrompendo glorioso pela janela,
percebo então que essa é a maior temperatura que enfrento desde que cheguei
aqui. Decido que o fato de meus ossos não estar doendo, é motivo suficiente
para uma comemoração. Fico feliz ao me dar conta de que posso muito bem
comemorar esse milagre mais tarde, no Luau. Levanto-me da cama em um
pulo, percebendo que Nevaeh já estava em aula, deixando seu lado no
cômodo devidamente organizado, concluo por fim, que renovarei minha
beleza em um dia de spa. Enfrento o banheiro comunitário com um sorriso no
rosto mesmo que eu odeie compartilhar de um espaço tão íntimo com outras
pessoas, faço minha higiene e volto ao quarto para passar argila verde no
rosto.
Fico me olhando no espelho com a face completamente tomada por um verde
musgo quase beirando a cor de um cocô de neném, pensando que não posso
deixar nunca alguém me ver nesse estado, isso acabaria com a minha
reputação. As pessoas estão sempre acostumadas a verem uma Mackenzie
perfeita, sem erupções no rosto, cabelos devidamente hidratados, unhas feitas
e tudo extraordinariamente alinhado. O lado ruim disso tudo, é ter receio do
julgamento alheio quando eu quisesse sair minimamente desarrumada, não é
todo dia que o ânimo para se arrumar aparece. O som de batidas contínuas na
madeira maciça da porta de meu alojamento interrompe meus devaneios. Não
estou esperando ninguém e não quero que me vejam assim, com o cabelo
preso no topo da cabeça, uma tiara felpuda com um laço enorme e rosto
tomado por máscara facial. Portanto, deixo que a pessoa bata até que se
canse, porém quando ouço a voz de Eckhoff me chamar caminho até a porta.
É só o Thomas, não me importa que ele lide com meu estado deplorável.
— Bom dia, Rainha de Bolfok. — Seu tom é arrastado, como se tivesse
acabado de acordar, afirmo a veracidade de minha observação assim que
desço os olhos a sua calça de flanela com estampa do Snoopy, subo por seu
tronco coberto por um moletom preto, os dois copos da Pink Bolfok Coffee e
óculos de sol na cabeça, afastando seus fios loiros do rosto inchado pelo
sono. — Você fica linda de Fiona.
— Bom dia. — Antes que eu prossiga com minha fala, ele entra em meu
alojamento sem ser convidado, deixando os copos na mesa e se jogando na
minha cama. — O que está fazendo aqui?
— Não estava conseguindo dormir sozinho. Então, lembrei que minha colega
de trabalho provavelmente tem lençóis de trilhões de fios e que precisamos
fazer a playlist de hoje. Ou seja, estou apenas unindo o útil ao agradável. —
Thomas acha que tem uma intimidade comigo, que na verdade não existe.
Observo seu corpo grande ocupar minha humilde cama de solteiro e se
enrolar em meu edredom.
— Na verdade, você está sendo abusado e inconveniente, nada fora do
normal. — Pego o copo de isopor que contém apenas o líquido preto
essencial em todas as minhas manhãs, meu adorável café expresso sem
açúcar. Contrastando com o frappuccino de Unicórnio extravagante que
Thomas tanto ama, o líquido é uma mistura de várias cores e granulados
coloridos.
Obrigo-me a ocupar a cama de Nev, já que nem em sonho dividiria a minha
com Eckhoff. Ele ignora minha implicância e se limita a suspirar, terminando
de beber seu líquido entupido de corante e afundando a cabeça no travesseiro.
— É sério que você resolveu me importunar a essa hora? — Olho no relógio
e vejo o ponteiro apontar para as oito da manhã. — Sai do meu quarto.
— Por favor, Mackenzie. — Sua voz sai abafada pelo travesseiro que abraça
seus cabelos desgrenhados. — Eu tenho alguns pesadelos, e não gosto de
dormir sozinho quando eles aparecem. Dom e Drew estão em aula, apenas
nós estamos liberados hoje.
O fato de estarmos liberados das aulas de hoje, se dá apenas por fazermos
parte da comissão organizadora, não entendo bem o motivo, mas me
compadeço com o pedido dele. Finjo ponderar por um momento, mesmo já
sabendo que irei ceder ao seu pedido. Pesadelos são horríveis e enxergar um
Thomas moderavelmente vulnerável mexe com algo dentro de mim.
— Chega pra lá. — Cutuco seu ombro para que ele cole o corpo na parede,
me dando espaço para dividir a cama. — Não ouse encostar em mim.
Sua risada reverbera rouca pelo quarto e me faz estremecer levemente,
constato que provavelmente é a fina brisa gélida que bate em nós e passo o
cobertor por nossos corpos. Estamos lado a lado, com os braços quase se
roçando, encarando as estrelinhas coladas no teto por mim e minha amiga.
Thomas ergue o braço por cima de mim e prendo minha respiração, não sei o
que está havendo comigo hoje, mas quando percebo que sua intenção é
apenas deixar o cigarro antes atrás de sua orelha, na minha mesa, suspiro em
alívio.
— Qual é a do cigarro? — Decido sanar minha curiosidade de semanas atrás.
— Sempre estão atrás de sua orelha, mas nunca te vejo fumando.
— Reparando em mim, Mack? — Aquela é a primeira vez que o ouço se
referir a mim por um apelido normal.
— Não enche — ri baixo mais uma vez, porém decide me responder.
— Fumo só quando estou muito nervoso, uso chicletes de nicotina na maioria
das vezes. — Ele faz uma pausa ponderando acerca de algo. — Evito fumar
porque tenho asma.
Tento me segurar, mas acabo explodindo em uma gargalhada escandalosa.
— Está rindo do que?
— Estou rindo de a sua asma atrapalhar sua pose de bad boy. — Ainda com
vestígios de risada na voz prossigo. — Confesso que problemas respiratórios
e cigarros é uma combinação bem destrutiva.
— É por isso que evito. — O encaro pelo canto dos olhos e vejo um pequeno
sorriso brotar em seus lábios. — Sou muito bonito para morrer.
— Apenas pessoas feias podem morrer? — Assisto seu sorriso se alargar
assim que ele ouve minha indagação.
— Pessoas normais e bonitas podem morrer agora eu, sou muito mais do que
bonito. — Ele tomba a cabeça para o meu lado, como se quisesse me dar
ampla visão de seu rosto.
Encaro a covinha única, a mandíbula bem marcada, o maxilar ressaltado, o
nariz reto e pontudo, os lábios finos, e por fim, a composição entre os olhos
oceano e os cabelos desgrenhados que caem sobre a testa.
— Não te acho muito bonito — minto. — Você é no máximo bonitinho.
— Corta essa, Lennon. — Agora tombo minha cabeça para o seu lado,
ficando de frente para ele. — Você me acha lindo, admite.
— Bonitinho.
— Lindo.
— Bonitinho.
Ele bufa.
— Posso me contentar com isso. — Acabo rindo mais uma vez ao perceber
que Eckhoff sempre perde para mim, a última palavra acaba sendo minha na
maioria das vezes e isso nem parece o irritar tanto mais.
— Droga, sujou o travesseiro — praguejo assim que a mancha verde
proveniente da argila em meu rosto entra em meu campo de visão. — A culpa
é sua, ridículo.
— Estranho seria se não fosse. — Reviro os olhos e começo a retirar a fronha
para colocar no cesto de roupas para lavar. — Isso aí é para que?
— Controla a oleosidade da pele, hidrata, desintoxica, enfim, tem vários
benefícios.
Thomas analisa cada parte do meu rosto com cuidado, inspecionando a argila
que cobre a face. Ele aperta o laço felpudo que faz parte da tiara, soltando
uma risadinha.
— Passa em mim?
Estreito os olhos, me deparando com seu lábio projetado para a frente, em um
biquinho pidão como um cachorro que caiu da mudança. Bufo audivelmente,
mas acabo pegando os produtos para passar em seu rosto. Oriento que ele
lave a face no banheiro comunitário, passe o sabonete de limpeza, e volte
com um pano úmido. É difícil de acreditar que estou mesmo passando uma
manhã com Thomas, por vontade própria, e fazendo máscaras faciais. Onde
eu vou parar?
— Aí, que mão pesada. — Ele reclama e eu reviro os olhos pela milésima
interrupção do homem em minha frente. Esfolio seu rosto com um algodão e
não faço muita questão de ser delicada. — Não que você se importe, mas eu
ainda preciso do rosto intacto.
Ignoro a alfinetada, passando a argila verde em seu rosto com um pincel.
Com a face devidamente infestada de verde, Thomas se senta ao meu lado
para montarmos a playlist de mais tarde. Sentindo a respiração bater em
minha nuca desprotegida pelo cabelo que está preso. Um arrepio se alastra
por todo o meu corpo, provocando uma quentura anormal em minha derme.
O clima antes ameno torna-se quente, de um jeito insuportável. Algo se
contorce no estômago, me fazendo erguer os ombros, colando-os na nuca.
— O que houve?
Pigarreio.
— Quer parar de respirar na minha nuca? — Levanto da cama, pondo ambas
as mãos na cintura.
Assisto o sorriso de Thomas se estender pelo rosto de modo limitado, por
causa da argila quase seca que impede os lábios de se erguerem tanto. Não
consigo ver sua covinha, mas o dente tortinho, que se apoia no incisivo
discretamente, adiciona um charme no resto dos dentes alinhados.
— Por que, Regina? — Thomas anda um ou dois passos, se aproximando
com esse sorriso cafajeste. — Está te incomodando?
Engulo em seco, fingindo que não estou afetada pelo modo como sua
sobrancelha fina se ergue, enrugando sua testa.
— Óbvio que está. — Subo e desço os ombros. — Faz cócegas.
Thomas escova os fios desgrenhados para trás enquanto solta uma risada
baixa.
— Não acho que seja por isso. — Finjo não reparar no inicio da tatuagem em
seu pulso e nos anéis espalhados pelos dedos. — Ousaria dizer que está
excitada.
É inevitável não ficar boquiaberta, assustada com tamanha audácia.
— Não estou não, você é sem noção. — Tento me recompor com a maior
rapidez possível, mas parece haver uma labareda dentro de mim e a única
coisa que quero é me abanar com força, entretanto ele descobriria os efeitos
que causa em meu corpo.
Empenho-me em repetir silenciosamente que odeio Thomas com todas as
minhas forças, mas a quem eu quero enganar? Quando sinto ódio por alguém,
a última coisa que faria é uma manhã de spa com a pessoa.
Arregalo os olhos assim que ele se levanta e tira o moletom que o cobre.
Assisto os movimentos de seus músculos tencionando, como se tudo
estivesse em câmera lenta. Não quero ser descarada, mas é impossível não
analisar suas tatuagens no braço esquerdo, a adaga envolta por flores se
movendo a cada movimento de seu bíceps, a rosa imponente em seu
antebraço e todos os outros desenhos que ocupam seu membro.
— Calma, Mack. Eu não vou tirar a blusa também. — Não sei se fico
aliviada ou frustrada, já que sinto uma vontade repentina de saber o que eu
encontraria por baixo de sua blusa branca do pijama. Um abdômen sarado
com tatuagens, definido ou indefinido? — É só que fez calor aqui, não é?
— Não estou sentindo nada. — Sei que ele sabe que estou mentindo.
— Você é uma péssima mentirosa — diz, sorrindo de leve. Tenho vontade de
me bater por ser tão expressiva, por sentir tudo com muita intensidade e por,
acima de tudo, sempre cair na pilha dele.
Sei que a tensão se instaurou entre nós desde o dia em que fomos ao lago,
qualquer bom espectador perceberia nossas órbitas conectadas intensamente,
ou o nervosismo que nos tomou. Assim como a quentura em meu corpo
semelhante a essa. Reprimo todos esses sentimentos, não posso ceder aos
seus olhos safiras e ao seu charme barato.
— Sabe, eu estava pensando...— murmuro um "uau você pensa" e recebo um
olhar feio dele. — Você deveria dar um nome para o seu carro. — Quase
agradeço em voz alta por ele ter mudado o rumo do assunto.
— Por quê?
— Seu carro é importante para você. — Thomas inicia, me encarando com
convicção transbordando em seu olhar. — Ele tem que ter um nome.
— Isso não faz sentido. — Balanço a cabeça, exalando tédio.
— Mas é claro que faz. — Ele se ajeita em minha cama confortavelmente,
como se fosse o dono dela. — Você acha legal alguém importante para você
ser um indigente?
Mais uma vez, me vejo encontrando sentido para algo dito por Thomas, e
considero que talvez possa ser uma doença grave concordar com ele.
Entretanto, acabo realmente cogitando possíveis nomes para o meu carro.
— Isso é difícil. — Bufo. — Me sinto dando nome a um filho.
— Bom ponto de partida, embora exista nomes horríveis para crianças, você
não gostaria de dar qualquer um para o seu filho. Precisa pensar com carinho.
A relevância que Thomas concede a assuntos considerados banais por mim,
me dá vontade de sorrir. Encaro sua mandíbula marcada, as íris azuis, as
sobrancelhas franzidas, os lábios rosados e o cabelo desgrenhado, e me
pergunto por que do nada estou prestando atenção demais nele. O que
mudou? Respiro fundo e repito a mim mesma, mais uma vez, que não posso
me deixar levar.
A falta de criatividade me faz nomear o carro de Rose Lennon. Eckhoff diz
que é bom ao considerar meu amor pela cor rosa e pelas flores, acabo
gostando também e torno a nomeação oficial. Passo o resto da manhã na
companhia do homem irritante, falando sobre assuntos banais, e esqueço um
pouco do ódio que cismamos em reafirmar um ao outro, me concentrando na
capacidade que ele tem de me fazer rir mais do que o recomendado.
— O que é, o que é: — Reviro os olhos ao saber que lá vem merda. —
Maconha enrolada no jornal?
Estamos sentados na mesa do restaurante dos alojamentos, e nos últimos
quinze minutos Thomas recita todo o seu estoque de piadas ruins.
— Não sei, Eckhoff.
— Baseado em fatos reais. — Continuo olhando para ele com um semblante
fechado, mas a piada é tão ruim que tenho vontade de me esfaquear com a
faca sem ponta e de serrinha da mesa. Entretanto, o fato dele tombar a cabeça
para trás em uma gargalhada escandalosa depois de todas as piadas que conta
acaba me contagiando na risada.
— Já sei outra. — Me jogo no encosto da cadeira de saco cheio, porém ele
não parece ligar para minha expressão entediada. — O que todos têm dois,
você tem um, e eu não tenho nenhum.
— Ah, essa é fácil. — Sorrio largo. — O senso.
— Errou, engraçadinha. — Ele franze o nariz para mim e eu continuo rindo.
— É a letra O.
— Essa foi péssima, prefiro a minha resposta. — Continuamos a comer e
Thomas parece finalmente desistir de compartilhar comigo seu acervo de
piadas horríveis.
Nós coordenamos o comitê de decoração, o buffet e todo o resto do Luau
pelo grupo no aplicativo de mensagens. Decidimos chegar um pouco mais
cedo já prontos para a festa apenas para conferir se está tudo do jeito que
orientamos. Questiono o cara em minha frente se ele vai me largar durante o
resto do dia, já que são quase duas da tarde e estou prestes a ter uma overdose
de Thomas Eckhoff.

O local onde ocorre o Luau não parece mais com a floresta abandonada e
perigosa de antes. Há balões de papel coloridos pendurados no alto, algumas
lâmpadas meio amareladas que dão um clima aconchegante ao local. Tochas
acesas, uma fogueira, um pequeno palco com violão e aparelhagem para DJ,
a bancada do bar coberta por uma cabana de palha seca, que me lembra de
Cancun ou qualquer cidade praiana. Consigo até sentir o cheiro de maresia se
eu me esforçar muito, mas o aroma de canapés me leva a uma realidade ainda
mais bonita, é claro que convencer Thomas a colocar pelo menos um
alimento mais elaborado foi fácil demais para alguém como eu.
Sinto meu vestido se elevar pela brisa amena que abraça meu corpo, exibindo
minha perna pela fenda da peça de roupa. A sandália baixa briga com os
cascalhos do caminho que percorro para o interior da festa, e sem me esforçar
muito, avisto Eckhoff segurando um copo vermelho, que combina com sua
blusa de botões decorada por listras finas azuis, a calça está dobrada nos
tornozelos e até mesmo os óculos de grau enfeita seu rosto. Tento não o achar
muito bonito, mas a missão torna-se quase impossível quando ele abre um
sorriso grande em direção à mulher loira que conversa.
Assim que aceleroos passos, seus olhos se voltam a mim, só agora
percebendo minha presença. Analisa-me de cima a baixo, desde meus pés até
o cabelo. Sinto uma quentura semelhante à de hoje mais cedo se apossar de
mim e logo dissipo nossa conexão.
Cumprimento algumas pessoas que já conheço da faculdade. Avisto Nev,
Dom e Andrew em uma conversa animada, exceto a primeira que revira os
olhos a cada segundo, e me aproximo deles a passos contidos, vendo-os notar
minha presença. Minha amiga veste um vestido sem alças amarelo que realça
ainda mais o escuro de sua pele, já Dom e Andrew usam camisas de botões
parecidas com a de Thomas.
— Uau, você está linda. — Andrew pega minha mão e me faz dar uma volta,
me analisando com um sorriso largo. Os outros concordam com ele e me
limito a agradecer e devolver o elogio.
A festa se passa incrivelmente calma, pessoas conversam animadas entre si,
alguns arriscam passos de dança pela pista improvisada, assim como Thomas
que performa "Like a Virgin" como um grande fã da cultura pop. Tento não
rir do grande papelão que ele passa, mas é inevitável assim que o vejo forçar
um rebolado grotesco.
Quando o momento acústico começa tento não bufar de tédio, porém
compreendo que esse é o protocolo praxe para um Luau. Alguns estudantes
se arriscam a dedilhar algumas cordas, uns produzem sons horrendos,
entretanto outros até conseguem promover um som agradável aos nossos
ouvidos. Gargalho de Andrew que tem um comentário satírico para cada
pessoa presente, principalmente aos candidatos ao The Voice de plantão.
Surpreendo-me assim que vejo Dominic tomar posse de um dos violões,
alegando nos fornecer uma apresentação digna do melhor reality musical que
existe. Surpreendentemente, seu amigo não o lança nenhum tipo de palavra
sarcástica, pelo contrário, diz para mim que Dom é realmente bom. Isso me
faz ficar mais apreensiva e animada.
Quando os primeiros acordes começam, penso já conhecer a música, meu
cérebro fervilha tentando adivinhar o que a melodia tem de tão familiar. Mas,
assim que Dom começa a proferir as estrofes em seu tom levemente rouco,
reconheço ser "I kissed a Girl" da Katy Perry. Thomas como um grande fã da
cultura pop, quase dá pulinhos em seu próprio lugar, e vejo os olhos de Dom
pousar em Nevaeh e não saírem da direção dela.
— Eu beijei uma garota e eu gostei. — Entendo, por fim, que a canção está
sendo dedicada a ela. Troco um olhar cheio de significados com Thomas, em
uma conexão que eu nem sabia que tínhamos. Como se estivéssemos muito
animados por ter fofocado acerca de nossos amigos durante muito tempo e
agora descobrimos que nossas suposições estão corretas. — Do gosto de seu
brilho labial de cereja.
Nevaeh não esboça nenhuma reação ao final da canção, apenas gira os pés e
cai fora dali. Em contraste aos aplausos e assobios animados de todos que
aprovam o show, Dom percebe a reação negativa de Nev e vai atrás dela.
Faço uma anotação mental para perguntá-la acerca desse assunto, ela tem
estado bastante misteriosa nas últimas semanas.
Dou mais um gole no líquido de sabor indefinido em meu copo, deixando o
álcool cada vez mais presente em meu paladar, tornando-se rapidamente
desagradável. Frustro-me um pouco com o andamento da festa, algumas
horas já se passaram, entretanto, os jovens prosseguem em uma animação que
não me contagia, pulando e dançando, gargalhando entre velhos amigos,
jogando algo em uma roda que eu não soube identificar. Talvez fosse "eu
nunca", ou quem sabe, um "verdade e consequência".
Perlustro o local, buscando algo de interessante, e recebo notícias
desagradáveis. Isto é, o tempo alugado para que o policiamento fique ali
acaba. Permitindo assim, que os policiais tomem seus caminhos em suas
viaturas barulhentas. Um mau pressentimento percorre por todo o meu
sangue, como se algo de bom não fosse sair dali em algum momento.
Sinto-me uma mera espectadora de mais uma festa universitária, não consigo
entrar no clima animado, muito menos aproveitar os drinks servidos com
guarda sóis decorativos, e a angústia em meu peito arranca qualquer
animação que possa aparecer.
A primeira hora de festa após o policiamento terminar prossegue tranquila,
algumas pessoas desrespeitando os limites definidos pela fita amarela, casais
ansiando por um pouco de privacidade indo se pegar na floresta, mas no
momento em que pouso meu olhar na figura de uma Hannah levemente
alterada tentando desgrudar um cara de sua cola, percebo que é ali que as
coisas vão desandar. O homem está visivelmente bêbado e parece tentar
forçar algo com ela. Procuro Thomas com as vistas e o vejo de costas para a
cena, fazendo alguma palhaçada para Drew e Dom como o bobo que é.
Aproximo-me de Hannah a passos largos com o objetivo de ajudá-la com
qualquer que seja a situação.
— Tudo bem por aqui? — questiono, passando meu braço ao redor dos
ombros dela. Seus olhos tentam passar para mim o quanto ela está com medo.
Consigo notar o pavor em suas íris e aperto mais meu braço ao seu redor.
— Olha só, você não devia agarrar a garota do Thomas assim. — Sinto
vontade de vomitar. — Mas é bom que você tenha chegado, assim posso
chamar mais um amigo para completar nossa festa.
Ele ergue a mão na direção de um homem de estatura alta e o chama com o
dedo, o cara rapidamente caminha em nossa direção e o medo de Hannah se
transfere para mim.
— Não precisa chamar ninguém, minha amiga e eu estamos indo. — Tento
puxá-la comigo, mas ele a agarra pelo pulso.
— Você não precisa defendê-la, gata. Todo mundo da faculdade sabe o quão
libertina sua amiguinha é, sendo o chaveirinho de Thomas e dando para
qualquer homem que dê um pouco mais de atenção que o Eckhoff. — Ele
cospe as palavras dotadas de um escárnio que me enoja ainda mais.
— Solte-a agora — murmuro entredentes e me mexo com brutalidade,
tentando atrair a atenção de alguém com um pouco mais de força que eu para
lutar com homens tão altos e másculos quanto esse.
Parece-me que palavras não vão resolver, e a única solução que se passa no
mundinho cor de rosa dentro de minha mente é desferir um soco na cara dele.
Por isso, sinto meu punho estalar assim que há o impacto entre meu membro
e sua face dura, que se contrai ao sentir o impacto da minha mão. Uso ali
tudo que sei sobre defesa pessoal, mas também entendo que não é uma das
melhores escolhas assim que o vejo erguer a mão aberta pronto para revidar
minha agressão. Só fecho os olhos com força, pronta para senti-lo desferir um
tapa em minha face. É provável que eu voe para dentro do lago devido à
tamanha força que ele usará ao me bater. Contudo, não sinto nada em meu
rosto, só escuto o impacto de corpos caindo ao chão.
Ergo as pálpebras com rapidez suficiente para ver Dominic pular em meu
possível agressor, assim como vejo os óculos de Thomas voar ao chão
quando ele desfere o primeiro soco no amigo do abusador. A briga torna-se
generalizada assim que Andrew também enfrenta o homem que tentou ir para
cima de Dom em defesa do ridículo. Um grupo defende os caras de porte
atlético que iam me bater e o outro, os enfrenta com louvor. Joshua e Lewis
também estão no chão brigando com outros homens, provavelmente do time
oposto, e meus olhos se encontram com os de Nevaeh assim que percebemos
a gravidade da situação. A pancadaria não pararia do nada, precisamos fazer
alguma coisa. Vejo quando Thomas parece perceber que se excede na
violência. Sóbrio demais para o horário, ele olha para seu oponente como se
ele fosse portador de alguma doença contagiosa, encara seus punhos feridos e
se analisa com o que parece ser repulsa. Antes de correr até ele, vou até o
som, desligo a música e pego o microfone.
— Parem agora mesmo ou então chamarei a polícia.
Percebo que minha alternativa para acabar com a briga funciona, já que a
maioria interrompe os socos e pontapés e parece finalmente se dar conta de
que já bateram demais. Dominic ainda está preso na tarefa de espancar o
homem, seu tronco esguio ainda consegue dominar com maestria o corpo
atlético que tenta a todo curso sair da imobilização feita por Dom.
— Dominic Hopkins. — A voz imponente de Nev reverbera alta pelo local
silencioso, até porque nenhum jovem trata de proferir nada, prestando
atenção demais na briga que ainda rola. A mão de Dom para no ar assim que
ele ouve a voz de Nev. Talvez ele saiba que dormirá no jardim hoje, ou que
receberá uma punição severa. Mas sei que minha amiga pegará leve, afinal,
essa briga só aconteceu por culpa minha.
As pessoas se dispersam naturalmente, a partir do momento que nada
interessante acontece mais no meio da pista. Os garotos que estavam em
defesa do meu possível agressor saem da festa no momento que a briga
acaba, como se soubessem que não há nada mais para eles ali. Ao contrário
dos que entraram na pancadaria em minha defesa, os homens levemente
machucados com os punhos feridos estão jogados nas almofadas bem
dispostas para o descanso dos jovens. Nevaeh surge com algumas caixas de
primeiros-socorros pegos na enfermaria da faculdade por mim, que julguei
ser necessária em qualquer festa de universidades. Sempre acontece alguma
briga, por menor que seja.
Sinto-me extremamente culpada por tudo o que aconteceu, porque é claro que
medir forças com um homem tão alto e forte quanto aquele causaria algo
muito maior. Apenas na bolha em que vivo daria certo bater em um cara que
tem o triplo da minha força. Ter envolvido tantas pessoas em algo que apenas
se diz respeito a mim e a minha falta de responsabilidade me irrita
profundamente. Estrago a festa que Thomas e eu organizamos com tanto
esforço, e a culpa me assola, gritando ao meu cérebro o quão ingênua sou.
Minha amiga se encarrega de cuidar de Dom, e logo surgem algumas pessoas
para tratar dos ferimentos dos valentões. Um cara da defesa do time, que não
lembro o nome, limpa com um pano úmido o rosto de Lewis, uma loira está
colocando um esparadrapo em Andrew e antes que eu chegue a Joshua,
Hannah vai até ele para tratar de seus machucados. Encaro um Thomas que
apoia a mão em um dos machucados do supercílio, e me aproximo.
Encaro-o calmamente e passo os dedos em um movimento leve por cada um
de seus ferimentos. O sinto estremecer em minha frente, tendo conhecimento
de meu semblante murcho, como se nada pudesse me fazer sorrir considerada
a tamanha culpa que me assola.
— Você não tem culpa do que houve. — Odeio que ele adivinhe tão fácil
minhas expressões faciais.
— Tenho, sim — pigarreio. — Eu deveria ter ajudado Hannah de outra
forma, ter batido naquele homem foi irresponsável. Eu poderia ter tomado um
tapa que destruiria meu rosto e ainda envolvi inúmeras pessoas na minha
briga. Além de ter estragado a festa que trabalhamos tanto para organizar.
Atravesso o olhar até a figura de Hannah, que ajuda Josh com os poucos
machucados em seu rosto, e logo depois recebe um abraço caloroso dele.
Imagino que o Collins esteja tentando ajudá-la de algum jeito também.
— Para de falar merda. — Ele segura minhas mãos pousadas em seu rosto.
— Aquele foi um dos melhores socos que eu já vi na vida. Você foi muito
corajosa e não havia nada que pudesse ser feito. O único culpado ali foi o
homem que iniciou isso tudo, xingando Hannah e erguendo a mão para te
bater. Andrew, Dom e eu sabíamos que você poderia resolver aquilo sozinha,
só intervimos no momento que um cara enorme daquele quis medir força
com você. E todos nós estamos bem, Mack.
— Obrigada por isso. — Talvez aquela seja a primeira vez que o agradeço
por algo, mas suas palavras realmente me tranquilizam. — Até que você não
está tão machucado. — Escrutino seu rosto com atenção. Há apenas um
hematoma no olho, corte no supercílio e lábio cortado.
— É porque eu brigo muito bem. — diz, piscando um dos olhos. Ignoro seu
momento de egocentrismo e prossigo.
— Não, é porque você parou primeiro. Eu percebi quando pareceu se odiar
por ter entrado em uma briga e rapidamente se afastou — rebato, assistindo
ele gemer de dor quando passo água oxigenada em sua sobrancelha. — Quer
falar sobre isso?
Thomas dá de ombros.
— Só não gosto de violência — responde, dando de ombros. — E estou
sóbrio o suficiente para saber meus limites.
Me parece mais que isso, contudo me contento a acenar em concordância.
Sinto vários questionamentos serem aprisionados dentro de mim, tenho
vontade de saber sobre sua família e o boato que a ronda, tenho curiosidade
acerca de seu ódio por Lewis e tantas outras coisas que não me sinto íntima o
suficiente para perguntar.
— Resolveu não beber hoje?
— Eu não bebo nunca. — responde. Franzo o cenho e tento repassar em
minha mente todas as vezes que o vi beber algo alcoólico, não tendo êxito na
tarefa.
— Já te vi em festas bebendo. — Ainda assim, não me contenho em refutá-lo.
— Você já me viu com um copo na mão, mas não sabia o conteúdo. — Seu
argumento é bom, portanto sou incapaz de rebater, até porque, de fato, não
posso comprovar meu ponto. — E antes que você crie uma história na sua
mente envolvendo traumas com álcool, eu só nunca gostei muito do gosto de
nenhuma bebida.
— Poucos bebem para apreciar o gosto da bebida, Eckhoff. — Deixo de
limpar seu rosto para tratar de seu punho esfolado pela quantidade de socos
que ele desferiu em seu adversário.
Tento ignorar os pequenos choques elétricos que percorrem todo o meu corpo
no momento que junto minha mão na dele para limpar seu ferimento com a
outra.
— Sim. — Ele acena com a cabeça. — Bebem para descontar suas
frustrações em um prazer momentâneo. Só que pra isso, eu fumo um baseado.
— Está explicada a origem dos seus neurônios queimados— alfineto, um
sorrisinho esperto se esgueirando pelo meu rosto.
Sua mão corre ágil para o meu pulso, me fazendo estremecer pelo carinho
que seu dedão desfere em círculos. Ele leva meu braço até seu ombro,
pousando minha mão ali, e esse é o contato mais direto que temos desde
nosso primeiro dia juntos.
— Vou colocar a culpa nos meus neurônios queimados por não ter dito nada
sobre você nesse vestido. — Quase me despe com os olhos e sinto como se a
peça de roupa estivesse saindo de meu corpo à medida que suas íris me
devoram. — Mackenzie Lennon, mesmo que eu não me simpatize com você,
não posso deixar de fazê-la tomar conhecimento do quão
extraordinariamente linda está hoje.
Não sei exatamente o que me desarma naquele momento, a intensidade de
seu olhar conectado ao meu, meu nome completo sendo proferido com gosto
por ele, ou se é, cruamente o elogio que sai por entre seus lábios. Acho que
na verdade, me sinto um tanto desestruturada pelas pequenas coisas, ou seja,
o fato de Thomas não se referir a mim como motivo de seu ódio, e sim de sua
"falta de simpatia" me impacta de um jeito muito mais significativo.
O filósofo natural e físico, Isaac Newton, diz que o que sabemos é
uma gota, e o que ignoramos é um oceano, e nada poderia ser melhor do que
essa frase para explicar tudo que nos rodeia. Nevaeh e Dominic têm uma
espécie de relacionamento complicado em que nenhum dos dois compartilha
com ninguém. Andrew está sempre misterioso, indo e voltando de lugares
desconhecidos por nós. Lewis tem essa relação complexa com Thomas e se
recusa a me explicar. Não que eu esteja reclamando, é perfeitamente normal
não querer compartilhar alguns segredos da sua vida com alguém de fora.
Thomas já havia me visto dirigindo diversas vezes, e para me associar a
Rainha dos Rachas seria um pulo, entretanto, ele parece ignorar qualquer
perspectiva diferente do que ele quer enxergar.
A moral disso tudo? Bom, eu não sei. Mas finalmente entendo o critério de
ser amigo de alguém, e ainda assim compreender que todos têm seus
segredos seja eles obscuros ou não. Nós nunca iremos conhecer uma pessoa
cem por cento. E está tudo bem. Contudo, sempre há os fatos que estão nas
nossas caras e preferimos ignorar.
Por exemplo, eu estou atraída por Thomas Eckhoff.
Esse é um fato que estou totalmente disposta a ignorar, afinal, não é como se
eu fosse um animal irracional. Posso contar fielmente com o meu
autocontrole para ignorar todos os efeitos que ele causa em mim, e ainda
tenho ótimos motivos para isso.
1- Ele está envolvido com Hannah.
2- Ele é um imaturo, arrogante, inconveniente e sem noção.
3- Ele pode ser como Rafe.
Abro um sorriso assim que percebo que tenho pretextos o suficiente para não
ceder aos encantos de Eckhoff.
Mais tarde começaremos o planejamento do jantar entre professores,
orientadores e reitores. O que me deixa um pouco mais animada, já que
organizar um evento em um salão de luxo, com comidas e bebidas refinadas
faz parte do meu convívio há anos. Conheço as melhores músicas clássicas
para tornar o ambiente ainda mais culto, sei o melhor Buffet que atenderá o
paladar do tipo de pessoas que frequentam esses jantares de elite e tenho
gravado na memória o suficiente de decoração que aprendi com minha mãe.
Falando nela, a comemoração de seu aniversário já aconteceu. Eu vi no
Instagram de uma das suas modelos a festança que ocorreu. Um dos
melhores salões de Oroland County, cidade litorânea, vizinha a Dilshad.
Pensar nessa localidade praiana me lembra de Lewis e Thomas, que nasceram
e cresceram lá, e em mim, que vivi o luxo que um pai dono de uma empresa
de tecnologia e uma mãe estilista pode promover. De Dilshad até Oroland é
apenas uma hora de viagem indo de carro, lá há um resort que promove festas
de elite em sua cobertura, sendo a vista para o mar o mais atrativo do local.
É inevitável não ficar chateada por ter sido deixada de fora. De Bolfok Town
até Oroland County é apenas duas horas de viagem e eu, com certeza,
percorreria esse caminho feliz se isso significasse prestigiar minha mãe. Vejo
os stories de todos que estiveram lá, os empregados das grifes de mamãe,
suas modelos favoritas, os sócios e acionistas da empresa de papai e seus
amigos. Menos sua filha. Ao parabenizá-la, a confrontei acerca de sua festa, e
a resposta que recebi foi: "Desculpe, meu amor. Pensei que você estivesse
ocupada demais com essa perda de tempo que é a faculdade."
Já estou acostumada com esse discurso desmotivador diário, e não é como se
me atingisse tanto, só me traz números variados de inseguranças. Ademais,
fazem os pensamentos de autossabotagem flutuarem pela mente. Eu me
pergunto se tenho o bastante para estar aqui, para finalizar meu curso com
honra ao mérito e se tenho capacidade de lidar com tudo isso sozinha. Mas
então me dou conta de que estive sem ninguém por quase a vida toda,
rodeada de pessoas o tempo todo, mas solitária por dentro. Então tudo bem,
acho que consigo lidar com tudo sozinha sem causar grandes estragos.
Sinto um tapa ardido em minha testa que me acorda dos meus devaneios,
focando minha visão em Lewis sentado ao meu lado e em Nevaeh em pé a
minha frente com a mão pronta para me desferir outro tapa se fosse
necessário. É domingo e combinamos de nos sentar um pouco, beber umas
cervejas e conversar em nosso alojamento.
— Desculpa, viajei. — Balanço a cabeça para espantar os pensamentos. —
Do que vocês estavam falando?
— Lewis estava contando sobre como está sendo aprender e perceber coisas
novas sobre um quesito que ele renegou por tanto tempo. — Meu amigo
maneia a cabeça concordando com Nev.
— Pode falar de novo? — Junto as mãos em um semblante pidão. — Eu não
estava prestando atenção.
Eles suspiram em conjunto, como se estivessem se controlando para não me
lançar um xingamento por fazê-lo falar tudo de novo e obrigá-la ouvir a
história mais uma vez.
— Eu disse que estou em processo de aceitação. Nunca quis me assumir por
medo do que isso me tiraria. Os caras do time não me olhariam da mesma
forma, não iriam querer dividir o vestiário comigo, e minha mãe me olharia
com desgosto, como se já tivesse problemas demais em sua vida, e não
merece mais um. O meu pai... Ah... Esse sim seria o pior! Às vezes, eu penso
que seria muito melhor guardar tudo para mim e não obrigar ninguém a
passar por essa merda.
Ele diz brevemente, sem nos inteirar muito do assunto, que poucas pessoas
possuem conhecimento de sua sexualidade. Apenas Josh dentre os caras do
time, e Thomas. Tenho vontade de perguntar como o loiro ficou sabendo,
mas sei que ainda não é confortável para meu amigo conversar sobre o irmão.
— Lewis — pigarreio. — Eu não posso falar com propriedade. Entendo sua
situação, mas nunca compreenderei, porque para isso, eu teria que viver o que
você vive, na sua pele. Mas se me permite lhe dar um conselho, quem está
passando pela merda toda é você, acho que se quem está ao seu redor não
aceita quem você é de verdade, então não merecem estar contigo.
— Estou com a Mackie. — Nev ergue a palma da mão para mim de sua
cama, como se pudéssemos bater um hi-5 à distância.
— Não é fácil assim. — Ele suspira. — Se meu pai souber e se recusar a
pagar o resto da minha faculdade, o que eu faço? Sou totalmente sustentado
por ele, e mesmo que eu arrume um emprego, vocês duas sabem que não
seria suficiente para custear gastos universitários.
— Mas você é o quarterback, e sabe que é o melhor de todos — rebato. —
Pode ver se consegue uma bolsa de esportes. Ou esperar mais seis meses até
se formar e ser draftado por um time da liga profissional. O que eu não acho
confortável é que você fique se escondendo, vivendo sempre com medo por
causa da sua opção sexual.
— O certo é orientação. — Lewis me conserta e eu franzo o cenho.
— Qual a diferença? — indago, exprimindo meu tom mais humilde possível,
porque realmente nunca ouvi sobre isso e gostaria de entender melhor.
— Eu não sabia também. — Ele dá um gole em sua cerveja e prossegue. —
Tomei conhecimento do termo certo há pouco tempo. Pelo que entendi,
opção está errado porque não se trata de escolhas conscientes e nem podem
ser aprendidas. Por isso, o correto torna-se orientação.
Minha expressão se ilumina assim que as palavras de Lewis começam a fazer
sentido em minha mente. Penso que passei anos me referindo erradamente ao
conceito, contudo, agora que sei o termo correto, não errarei novamente.
— Entendi. Obrigada por explicar, Lew. — Meu amigo murmura um "de
nada" e Nevaeh permanece com a mesma expressão impassível no rosto,
tenho certeza de que ela já sabia o termo correto. Entretanto, achou que seria
bom dar palco para Lewis explicar, assim ele ficaria mais confiante por saber
alguns pontos do que o envolve.
— Como estão você e Dominic? — Ele se vira para Nev e percebo sua
tentativa de fugir de um assunto que ainda não é confortável para ele.
— Complicado. — Ela suspira. — Sei que Dominic gosta de mim, e é uma
boa pessoa, mas continua sendo branco. Isso me deixa muito insegura,
porque já vivi muitas coisas nessa vida e seria difícil para vocês entenderem
meu ponto.
— Você pode tentar nos explicar. — Lewis sugere e eu concordo.
— Também quero saber. — Pouso minha mão em meu queixo, concentrando
máxima atenção ao que Nev irá falar.
— Vocês já ouviram falar em solidão da mulher negra? — Nevaeh pergunta
com cautela.
Lewis e eu balançamos a cabeça, negando ao mesmo tempo.
— Preparem os ouvidos, será longo. — Ela parece suspirar para tomar fôlego
e prossegue. — Desde o período da escravidão, mulheres negras são vistas
como "detentoras de bons corpos, porém com mente vazia". O que eu quero
dizer é que elas eram usadas como incubadoras para a geração de outros
escravos, foram até mesmo estupradas. E para justificar essa exploração
masculina branca, a branquitude teve que produzir uma iconografia de corpos
de negras que insistia em uma representação de mulheres dotadas de sexo, a
exímia encarnação de um erotismo primitivo e desenfreado. Óbvio que há
maiores relações para as mulheres escravas, como amamentadora, empregada
doméstica, babá e afins. Mas estou focando em um ponto aqui, tudo bem?
— Sim, continue — digo rapidamente sedenta para ouvir mais.
— Então, o que eu quero dizer é: as mulheres negras estão associadas ao
"mercado do sexo", da erotização, do trabalho doméstico e escravista. Em
contrapartida, as mulheres brancas estariam relacionadas ao "mercado
afetivo", da cultura do casamento, união estável. Agora vamos lá, de que
maneira isso refletiria na nossa vida atualmente? Na sexualização dos corpos
de mulheres negras, sempre vistas como "gostosas" e até mesmo como
objeto, mas nunca como bonitas ou suficientes para assumir namoro e
relacionamentos. Não estou dizendo que mulheres brancas não são tratadas
como objeto, porque são, infelizmente. Entretanto, há um abismo de
diferença quando levamos em consideração o cabelo crespo, a aparência e o
tom de pele. Quanto mais escura, menos aceita.
— O que isso tem a ver com Dominic? — Lewis parece não ter chegado ao
ponto foco da questão.
— Quando eu era pequena, não recebia bilhetinhos dos meninos querendo me
namorar, ou gostando de mim e isso perdurou por toda a minha infância e
adolescência. Quando um garoto chegava a mim, era para transar ou para
perguntar de alguma amiga, coincidentemente branca. E demorou um tempo,
mas eu finalmente entendi que todo o sofrimento não era pela minha
aparência em si, e sim pelo meu tom de pele, cabelo e afins. Isso me deixa
aflita porque gosto de Dom, mas não sei até que ponto ele escolheria ficar ao
meu lado para enfrentar toda a bagagem e a insegurança.
— Vocês já falaram sobre isso? — questiono, tentando arrumar em meus
pensamentos todas as recentes informações.
— Ainda não, tenho medo de que ele pense ser um drama desnecessário.
— Se ele achar isso, então não é bom o suficiente para você — finalizo
incisiva e Nev tomba a cabeça para o lado parecendo ponderar sobre o que
acabei de dizer, mas acaba concordando. — Muito obrigada por ter dividido
isso tudo conosco, é sempre bom lembrar o quanto ainda somos ignorantes
em muitos aspectos.
— Faço das palavras de Mackie, as minhas. — Lewis concorda abrindo mais
uma cerveja. — E sempre que quiser converse conosco, independentemente
do assunto.
Mantenho-me em minha única garrafa da bebida, já que preciso estar sóbria
para lidar com Thomas mais tarde.
— Eu não seria amiga de vocês se não reconhecessem pelo menos o
privilégio que têm.
Recordo-me de nosso primeiro dia juntos, nesse mesmo alojamento, e não
consigo conter o sorriso largo que me surge. Fico imensamente feliz de saber
que tenho amigos como Lewis e Nevaeh. E pela primeira vez, não me sinto
mais tão sozinha.

Estou com dor de barriga e tenho certeza que é o nervosismo dando as caras.
Chego a essa conclusão assim que sinto as mãos suarem levemente, o coração
acelerar um pouco, as batidas e os dedos se contorcerem em apreensão.
Sinto-me assim porque tenho medo. Não quero cair na tentação de me lançar
em cima de Thomas em uma tentativa desesperada de acabar com essa tensão
sufocante que nos rodeia. Ergo a mão, ponderando se realmente devo seguir
em frente. Assim, respiro fundo e toco a campainha. Nem dois minutos se
passam para que a porta da frente se escancare e revele um Eckhoff trajando
um avental rosa e uma samba canção de estampa do Mickey.
— Desculpa te receber assim, eu estava cozinhando. — Ele escancara mais a
porta. — Pode entrar.
Assim que adentro sua casa, a primeira coisa que sinto é o cheiro delicioso
que infesta o lugar. Tento identificar se é algo frito ou assado, mas devido ao
leve odor de óleo frio, percebo que com certeza Thomas cozinhou alguma
fritura.
— O que estava cozinhando?
— Fattigman. — O sotaque que ele usa para pronunciar consegue o deixar
ainda mais sexy, que inferno. — São biscoitos típicos noruegueses, a família
da minha mãe é de lá e ela gosta de preservar a cultura do país.
Consigo entender muitas coisas a partir disso. O nome incomum de sua mãe,
o sobrenome dele que, sem dúvidas, não é de origem estadunidense, e até
mesmo as comidas diferentes. Nem me arrisco a tentar imitar a pronúncia,
então apenas me limito a acenar com a cabeça.
Estar na casa que Eckhoff divide com Drew e Dom me traz o desconforto de
um animal preso fora de seu habitat natural. O assoalho de madeira rangendo
a cada passo meu, a parede envidraçada do chão ao teto me permite ter um
vislumbre daquele bairro mais residencial de Bolfok Town, os móveis são de
um bom gosto surpreendente, seguindo a palheta de cores branca, preta e
cinza que dão um ar mais clean a residência. Há até mesmo pôsteres de
filmes clássicos e bandas desde as alternativas até Beatles. Eu jamais
admitiria em voz alta, mas essa é uma casa muito legal.
A amplitude do local, somado a organização, ao cheiro de lavanda, a
prateleira de livros acima da televisão e aos quadros excêntricos deixam a
decoração ainda mais bonita. Uma mistura entre o moderno e o rústico, além
disso, tudo aqui é tão... Limpo, contrariando todas as minhas expectativas de
como seria a casa de três homens de quase vinte e dois anos.
Perscruto o cômodo em um misto de surpresa e admiração. Inspeciono tudo
como um detetive em cena de crime, tentando achar algo fora do lugar, o
mínimo para ser usado contra Thomas em nossas habituais provocações.
— Está tentando achar um defeito em minha casa? — questiona, com um
sorrisinho esperto pairando sobre os lábios finos.
Volto os olhos ao homem agora sem o avental, me dando um vislumbre do
tronco desnudo e fico desconcertada. Eu não sei se o odeio por seus habituais
defeitos, por me desvendar tão bem me conhecendo há pouco tempo, ou por
ser absurdamente atraente.
Atravesso as vistas desde seus pés descalços, passo por sua peça de roupa que
em outras circunstâncias eu implicaria, analiso o caminho definido que leva
diretamente a suas partes baixas marcadas pelo tecido leve da samba canção.
Conto do primeiro gominho ao sexto, e vejo o traçado de um pássaro
desenhado em seu peitoral bem definido, seus ombros largos até que,
finalmente, chego ao seu rosto. Seus olhos brilham no que parece diversão,
tremelicando em ar de riso, provavelmente percebendo que além de
inspecionar sua casa, faço o mesmo com seu corpo.
— Não estou tentando achar nada. — Arrebito o nariz, tentando passar
confiança.
— Nem mesmo o "caminho da felicidade"? — Ele pergunta, as sobrancelhas
subindo e descendo em um gesto sugestivo.
Franzo o cenho, tentando entender seu comentário e logo minha expressão se
ilumina ao captar a mensagem junto ao seu sorriso maldito.
— Você se comporta como um adolescente no colegial.
— E você como uma dondoca rica dona de trinta e sete gatos.
Tento não cair na pilha dele, mas é impossível. Odeio esse homem desde suas
sobrancelhas naturalmente arqueadas que exalam sua arrogância até o canto
dos lábios erguidos em um sorriso petulante.
Maldito.
— Vamos logo planejar esse jantar — discorro, caminhando até as escadas
em direção a algum lugar mais reservado em que possamos trabalhar. —
Mais um minuto em sua presença e eu vomito tudo que comi no almoço.
— Você me adora, Lennon.
Prefiro ignorá-lo e continuo a segui-lo escada acima. Thomas aponta a porta
de seu quarto e diz que irá buscar os biscoitos para nós. Adentro o cômodo e
quase sinto sua presença ali. Há uma grande cama de casal no meio do local,
uma enorme prateleira abarrotada de bonecos de filmes e acho que de
videogames também, além de muitas HQs e livros. No lado esquerdo, tem
uma espécie de escritório com uma cadeira de gamer, pôsteres de filmes e
desenhos na parede, bem como uma guitarra embaixo da televisão de plasma.
Quando chego à constatação de que Thomas é um nerd, tenho vontade de rir.
Assim que ele volta segurando uma cadeira e uma vasilha cheia de biscoitos,
não perco a oportunidade de provocá-lo.
— Então, quer dizer que você gosta de bonecos e desenhos. — Aponto para a
estante e logo mudo apontando para a parede.
— Primeiro. — Ele ergue o indicador. — Não são bonecos, e sim action
figures. Segundo. — Ergue o dedo médio. — Não são desenhos, são animes.
Terceiro. — Sobe o anelar. — Não tem terceiro, era só isso mesmo.
Caio na risada mais uma vez, entretanto, no fundo acho extremamente
interessante que Thomas tenha essas duas versões e as explore.
— Tudo bem, desculpa ofender seus bonecos e desenhos. — Subo o canto
dos lábios.
Ele sabe que meu intuito é apenas provocá-lo, então bufa e se senta na
cadeira.
— Olha. — Ele ergue um livro de capa bonita, ilustrada com uma moça
vestindo um lenço vermelho esvoaçante ao redor do pescoço, ao mesmo
tempo em que no fundo de sua roupa preta, há o que parece ser um campo de
batalha com um soldado no meio. Vejo que o nome é "O silêncio das
estrelas". — Está aqui algo que você irá gostar.
— Resuma a história — peço assim que ocupo a cadeira ao seu lado.
— É um romance entre um soldado e uma jornalista, Jack e Charlie, se
encontrando em um avião pela primeira vez. Ele está nervoso com a
possibilidade de estar nas alturas e ela o ajuda com isso, mas vai além de um
simples romance. Na história, a autora retrata absurdamente bem todos os
sentimentos de Jack, suas angústias, medos, inseguranças e até mesmo seus
demônios, aqueles que o autossabotam. É uma trajetória bonita, a forma
como Charlie quer ajudar Jack, estar ali por ele e dar suporte, mesmo sabendo
que ele precisa de ajuda profissional. Enfim, não vou me prolongar. Se quiser
descobrir mais, leia. — Ele respira fundo e prossegue. — Posso te emprestar
esse, mas não estrague meu livro favorito, e te darei um marcador de páginas,
pois você tem cara de que usa as orelhas.
— As orelhas estão aí para serem usadas — brinco, porém recebo uma
olhadela dotada de pavor. — Usarei os marcadores. — Ele suspira aliviado.
— Me pareceu muito interessante o enredo.
— E é. — O olhar tomado de admiração que Thomas lança à obra me faz
erguer o canto dos lábios em um sorriso pequeno. Ele parece realmente ser
apaixonado pela história e isso me faz querer lê-la o mais rápido possível.
Antes que entrássemos em mais um assunto banal, começamos o
planejamento do jantar. Quase duas horas havia se passado e Thomas ainda
não tinha colocado uma camisa, trocando apenas a samba canção por um
short decente, me fazendo perder o foco sempre que seu bíceps tatuado
flexionava quando ele escrevia, ou quando seu peitoral se movimentava a
cada mísera respiração.
Inacreditável. Só podem ser os hormônios, devo estar perto de ovular, é isto.
O tempo perdido me faz querer gritar, já que estamos há cerca de cento e
vinte minutos ali e nenhum esboço do jantar havia sido feito. Thomas
discorda de mim em absolutamente tudo, e é impossível manter um diálogo
sadio com esse insuportável.
— Chega. — Ele se ergue da cadeira, me assustando. — Não aguento mais
perder tempo com alguém que discorda de mim pelo simples prazer de me
ver irritado. — Semicerro os olhos em sua direção, desaprovando o chilique.
— Eu que não aguento mais fazer nada com alguém dotado de tão mau gosto.
— Começo a arrumar minhas canetas de qualquer jeito em meu estojo,
fechando o caderno.— Francamente, péssima ideia sequer achar que
poderíamos concordar em algo ou chegar em um acordo apenas pelo fato de
ter dado tudo certo no Luau.
É óbvio que quando se tratasse de um tema como esse, em que precisássemos
lidar com luxo, Thomas teria um péssimo gosto. A verdade é que ele deveria
deixar que eu resolvesse tudo, porque sei lidar com coisas refinadas, ele não.
Sua mão rodeia meu pulso, pressionando de leve os dedos calejados em
minha pele lisa. Fico estática por um momento, aguardando seu próximo
passo.
— Não vou desistir. — Ele afirma ao passo que ergo o olhar até seu rosto,
tendo um vislumbre de sua expressão compenetrada. — Hoje não vamos
chegar a lugar algum já que estamos irritados e exaustos, mas amanhã é um
novo dia.
— Jura? — interrompo sua fala para zombar de sua última frase, recebendo
um olhar feio.
Tenho plena noção que minha antiga professora de práticas de etiqueta
repreenderia o modo como ajo perto de Thomas. Esquecendo um pouco a
educação e prudência, mas é impossível impedir as provocações— mesmo
infantis— de escaparem pela boca. Torno-me alguém impulsiva perto dele,
deixando de pensar em algumas consequências.
— Essa responsabilidade foi dada a nós. — Ele prossegue. — E não sei você,
mas eu não fujo das minhas.
Patético. Essa hora da tarde, e Thomas Eckhoff tentando me dar lição de
moral. Como se eu fosse entregar os pontos e desistir de um trabalho, como
se eu não fosse perfeccionista o suficiente para lidar com minhas
responsabilidades e querer que minha tarefa saia, no mínimo, perfeita.
Antes de responder, sinto que sua mão ainda segura meu pulso e abaixo o
olhar. Percebo marcas vermelhas, como cicatrizes, se ramificando para fora
da barra de sua cueca, que se sobressai ao short. Franzo o cenho, mudando
totalmente meu foco.
— Que marcas são essas? — Antes que eu possa segurar minha língua
grande, a pergunta já é expelida por meus lábios. Porém, percebo meu erro a
tempo de me consertar. — Desculpa, não quis parecer invasiva.
Um riso baixo reverbera entre seus lábios e suas íris brilham em diversão.
— Do que está rindo?
— Eu ainda não tinha conhecido essa Mackenzie. — Inicia, me fazendo
franzir o cenho mais ainda e ele trata de sanar minha confusão. — A
envergonhada e desconcertada, com as bochechas coradas.
Bufo irritada por perceber que Eckhoff nunca fala sério, e, pior, por ter
descoberto um ponto fraco meu. Eu odeio a possibilidade de estar invadindo
o espaço pessoal de alguém, então quando minha tagarelice supera meu
senso, fico realmente desconcertada e envergonhada.
— Só não quis parecer intrometida — murmuro, implorando mentalmente
que o rubor de minhas bochechas já tenha passado. — Ridículo.
— São estrias — rebate. A princípio eu não havia entendido a resposta, até
me lembrar de meu questionamento anterior. — Fui um adolescente muito
magro e baixo até os dezesseis ou dezessete. Em um ano e meio, cresci
consideravelmente e ganhei massa muscular. O crescimento rápido em curto
espaço de tempo me trouxe essas marcas, tem nas costas tamb...
Thomas prende o ar em seus pulmões, interrompendo sua fala ao sentir meus
dedos passarem levemente por suas marcas, quase como, uma carícia?
Percebo quando seus pelos se arrepiam e ele estremece. Estou ultrapassando
todos os limites, nesse exato momento. A tensão se torna palpável, mudando
o clima do ambiente completamente. Os ombros de Thomas estão enrijecidos
e eu nem mesmo consigo mandar o comando ao meu cérebro para parar de
acariciar seu corpo. Meus dedos percorrem seus traços desde o cós do short
até o início de seus quadris.
No momento em que as unhas se arrastam despretensiosamente pelos quadris,
Thomas fecha a palma em punho, apoiando-se na escrivaninha, ao passo que
engole em seco. O quarto parece diminuir de tamanho, comprimindo-nos
dentro dessa bolha que o faz grudar os ombros na nuca, e provoca o aperto
das minhas coxas uma na outra.
— Dizem que estrias só ficam vermelhas quando são novas— sussurro
baixinho, dando atenção máxima as suas marcas. — As minhas são
esbranquiçadas.
Thomas pigarreia.
— Essas estão aí há mais de quatro anos, e nunca deixam de ser
avermelhadas. — Ele observa em um tom baixo. — É desconcertante às
vezes porque sempre tem alguém que confunde a das costas com arranhões.
Rio baixo.
— Posso ver? — Conecto a íris, mergulhando no seu azul intenso. Thomas
franze o cenho, parecendo não entender meu pedido. — A das costas.
Sem proferir nenhuma palavra, ele gira sobre os calcanhares, me permitindo
observar pequenas protuberâncias, que realmente se assemelham a arranhões.
Mas, na verdade, são cicatrizes de um corpo real.
Escrutino as ramificações avermelhas meio protuberantes, espalhadas pelo
espaço das costas definidas. Os ombros largos estão rígidos e os músculos
tensionados. Cubro as omoplatas, transferindo o calor das palmas para ele,
sentindo sua rigidez abaixo do toque. Desço a ponta dos dedos pelas estrias,
experimentando a sensação da carne firme e um tanto contraída. Thomas
suspira, movimentando o tronco com calma, me fazendo prender o fôlego.
Engulo as sensações junto com a saliva, tentando abrir espaço para a fala.
— Incomoda você? — Passo a língua pelos lábios, tentando umedecer a boca
seca. — Que eu as toque?
Nem faz muito sentido perguntar algo assim depois de estar, praticamente,
desbravando um mapa por um caminho desconhecido.
— Não. — A voz grave meio arranhada pela rouquidão envia arrepios até
meu corpo. — Eu gostei.
Subitamente retiro os dedos de suas costas, temendo que ele sinta o quanto
minha palma da mão fica suada, ou perceba a respiração acelerada e veja os
lábios secos. Pareço me dar conta, afinal, da pessoa que eu estava tocando.
Aquele é Thomas Eckhoff.
O que tinha acabado de acontecer?
Pigarreio desconcertada, sentindo que minhas bochechas estão queimando.
— Desculpa— sibilo, vendo-o se virar para mim. — Por ter — pigarreio de
novo, coçando o céu da boca. — Tocado em você.
— Sempre que você quiser, Lennon. — Recebo uma piscadela, e outro
sorriso zombeteiro desponta em seus lábios me lembrando da mentalidade
infantil de Eckhoff.
Reviro os olhos.
Incomoda-me o fato de nunca saber se ele está levando algo a sério ou não,
porque logo depois de um momento intenso, ele solta uma brincadeira, ou
provocação.
Thomas dá um ou dois passos em minha direção. Estamos próximos demais e
meu nariz quase resvalava em seu peitoral. Ergo o olhar até conectá-los aos
dele, em uma tensão que parece apertar meu pescoço, me sufocando,
roubando meu ar. Sinto seu hálito fresco acariciar meu rosto, espremendo as
sensações que se ramificam dentro de mim. Nós nos beijaríamos ali mesmo
se meu autocontrole não fosse tão bom. Lembro-me de Hannah, e do quanto
ela gosta de Eckhoff. Eu jamais ficaria com ele sabendo que poderia magoar
outra pessoa, e é exatamente por isso que desfaço nossa conexão e pigarreio
me afastando de seu corpo.
— Bom, eu vou indo. — Apresso para pegar minhas coisas, a fim de encurtar
meu momento de vergonha alheia. — Depois marcamos outro dia para
resolver essa festa.
— Estou sempre disponível, Rainha de Bolfok. — Outra piscadela. — Se for
para você.
Maldito.
— Estou apaixonada por você.
O corpo fica estático e minha língua parece criar uma aspereza maior, ou
talvez ela tenha aumentado de tamanho. Deixando-me com dificuldade de
engolir em seco. Meus olhos estão tão arregalados que temo que eles pulem
para fora. Eu deveria ter previsto que isso poderia vir a acontecer, mas a ideia
de que ela sempre fora apaixonada por Josh me fez seguir nesse
relacionamento casual com tranquilidade.
Estou sentado de um jeito desleixado no sofá de minha casa após Hannah ter
dito que precisava conversar seriamente comigo. Cogitei muitas
possibilidades que poderiam ser tema de nossa conversa, mas receber uma
declaração não estava em meus planos. Ademais, nós aprendemos tantas
coisas nessa vida, menos a reagir a uma situação dessas.
O que eu diria?
— Seria bom se você falasse alguma coisa. — Vejo aflição no olhar de
Hannah, o silêncio sepulcral que domina o ambiente não é nem um pouco
confortável. Entretanto, não sei o que fazer, ou o que responder.
— É... Caramba... — pigarreio. — Que situação.
Penso e repenso em como conduzir essa situação, em como dizer que não
posso retribuir o sentimento dela sem magoá-la.
— Eu sei que você não corresponde aos meus sentimentos, e está tudo bem,
não vim me declarar. Estou apenas te fazendo tomar conhecimento do que eu
sinto, e dizer que não dá mais para ficarmos nessa coisa casual que temos. —
Hannah tem o semblante fechado, tentando exalar confiança, mas eu consigo
perceber seu tom de voz trêmulo e embargado.
— Eu... É... Desculpe-me?— Não tenho ideia do que eu poderia dizer, seria,
de fato, muito mais fácil se eu pudesse retribuir seus sentimentos. Hannah é
linda, gostosa, legal e compartilha de muitos gostos parecidos com os meus,
mas não faz meu coração acelerar do jeito que as pessoas dizem que o amor
faz.
— Você não precisa pedir perdão, afinal, não temos controle das coisas que
sentimos. — Ela inspira e expira. — E eu também vim pedir um tempo. Não
quero perder sua amizade e sei que você é perfeitamente capaz de não mudar
o tratamento comigo. Mas, não posso continuar por perto, pelo menos não
por enquanto. Eu tenho que superar e se continuarmos próximos, qualquer
carinho seu, mesmo que inocente, me daria esperanças. Enfim, está tudo bem
para você?
— É claro. — Vejo seu semblante murchar e rapidamente me conserto. —
Vou sentir sua falta. Você sempre foi uma ótima amiga, mas se o melhor para
você é se afastar é o que faremos.
Sua expressão continua tristonha e percebo que, talvez, eu não tenha
melhorado muito as coisas. Mas o que eu poderia dizer? O coração se
contorce no peito ao saber que estou magoando uma pessoa importante, que
estou sendo o causador das lágrimas que se acumulam no canto de seus
olhos.
Hannah se levanta subitamente e diz que precisa ir, acompanho-a até a porta,
mas não deixo de me sentir estranho pela mudança do clima entre nós. Antes
alegre, e agora melancólico.
— Thomas. — Ergo meu rosto em sua direção aguardando suas próximas
palavras. — Não precisa se martirizar pelo que está acontecendo entre nós.
Eu vou superar, eventualmente, e sei que você ainda vai passar por muitas
coisas no quesito relacionamento. Então, fique tranquilo, seu karma vai vir e
eu me sentirei vingada.
Sei que Hannah está brincando porque há um sorriso em seus lábios, mas me
sinto em um enigma. Por que ela acha que vou passar por muitas coisas no
quesito relacionamento? Por que meu karma vai vir? Será que Hannah fez
meu tarô?
— Não entendi nada do que você disse — rebato. A confusão se
embrenhando pelas feições do meu rosto.
Ela sorri como se já esperasse.
— Isso é porque além de lerdo, você não é perceptivo. — Hannah pondera
um pouco. — Você e Mackenzie. Tenho a sensação de que muitas coisas
ainda acontecerão. E eu tive pena dela, como se ela pudesse ter o coração tão
quebrado quanto o meu. Mas agora eu tenho uma opinião diferente, porque
acho que você quem será destruído.
Bato na madeira três vezes, para afastar qualquer tipo de maldição
envolvendo Regina. Já aceitei que estou atraído por ela, e que talvez ela
esteja por mim. E talvez, Mackenzie Lennon ainda me enlouqueça. Afinal, o
que foi aquilo domingo passado?
Hoje é quinta, e desde o final de semana Regina tem me ignorado. Ela muda
o rumo de seus passos no momento em que me vê, assim como não
respondeu minha mensagem tentando marcar nosso próximo encontro para
organizar o jantar. Imagino que ela deva estar desconcertada, assim como eu
fiquei, afinal, nós nunca havíamos tido um contato tão íntimo. Nunca pensei
que os vergões vermelhos marcados em minha pele pudessem ser bonitos aos
olhos de alguém, ainda mais dela, que é fissurada em perfeição. Quando
Regina percebeu as marcas, o primeiro pensamento que me veio à mente foi
que ela provavelmente acharia feio, ou que fosse usar como objeto de
provocação. Contudo, ela não fez nada disso, apenas às contemplou e as
acariciou. Isso mesmo, Mackenzie Lennon estava me acariciando. E eu
gostei.
— Hannah, alguém já te disse que é feio desejar o mal para o outro?
— Não estou te desejando o mal, apenas prevendo o futuro. — Ela ri com
mais vontade, me fazendo bufar.
Fico livre das sessões de clarividência de Hannah assim que ela comunica
estar atrasada para algo que não prestei muita atenção. Volto para a sala a
tempo de ver Dominic e Andrew descer as escadas com sorrisos travessos,
como se estivessem ouvindo minha conversa o tempo todo.
— Fofoqueiros. — É a única coisa que murmuro, voltando ao meu lugar no
sofá.
— Não acredito que Hannah terminou com você. — Dominic não consegue
parar de rir, como se houvesse algo de muito engraçado em toda essa
situação.
— Eu queria explodir em gargalhadas quando me deparei com sua cara de
quem acabou de comer algo nada gostoso. Tipo assim. — Andrew retorce as
feições em uma careta, provavelmente tentando imitar minha reação ao ouvir
a declaração de Hannah.
— Vocês podiam pelo menos fingir que tem educação. O pai de vocês não
ensinou que bisbilhotar é feio? — questiono, uma carranca se formando em
meu rosto.
Andrew arqueia as sobrancelhas e Dominic dá de ombros.
— Eu não tenho pai. — A tensão paira no ar assim que ouvimos o
comentário de Dom. Ele sempre faz isso quando quer nos ver desconcertados.
Troco olhares pesarosos com Drew sem saber lidar com a situação, quase que
calculando meticulosamente cada passo em um campo minado. Até ouvirmos
a gargalhada estrondosa de nosso amigo.
— Eu amo fazer isso com vocês. — Ele continua rindo, pondo a mão em sua
barriga e curvando-se para frente. — A cara de merda de vocês é impagável.
— Você não deveria brincar com isso, Dom. — Nosso amigo passa a mão
pelos cabelos que caem em seus olhos e fica sério repentinamente.
— Estou aqui pelo entretenimento. — rebate, com o típico sorrisinho sagaz
se estendendo pelo rosto. Drew e eu lançamos uma almofada em direção a
Dom ao mesmo tempo, o fazendo se esquivar das duas.
Passamos o resto da tarde aproveitando da atmosfera animada que circula em
nossa casa. Atualizávamos-nos das fofocas do Campus, já que Drew mais
parece um condutor de reality show, vigiando a vida da maioria dos
universitários de Bolfok College. Ele sabe de tudo, e nunca está satisfeito
guardando apenas para ele, fazendo questão de compartilhar tudo conosco.
Ele alega perpetuar uma fofoca "do bem", eu e Dom não nos convencemos
muito, entretanto, confesso que a melhor parte de nossos dias consiste em nos
reunirmos em nossa sala, aproveitando do calor gerado pelo crepitar da
lareira, e falando sobre as vidas alheias. Contudo, o clima rapidamente se
transforma para um mais tenso assim que começo com as reclamações.
Dominic sempre se esquece de fumar na varanda e acaba deixando a casa
com cheiro de tabaco, além disso, sempre que é a vez dele de lavar as roupas,
elas ficam com cheiro de cu sujo. Andrew não sabe cozinhar e lavar a porra
da louça que sujou, não é muito difícil, é só colocar no caralho da lava-
louças. Ele também tem um puta problema com toalhas pela casa, sai seminu
do banheiro, se veste no quarto e deixa a toalha jogada. É inacreditável como
eu tenho que ser o pai desses dois adultos, e ainda ficam emburrados quando
reclamo. Chamam-me de "papai neurótico", mas eu não precisaria ser chato
com limpeza se pudesse viver em um lugar decente, ao invés de um lixão.
O tempo passa rápido em meio a nossas desavenças, e quando Andrew soca
levemente o ombro de Dom, a briga se instala no cômodo. Hopkins devolve a
agressão e eles acabam em uma brincadeira de lutinha, me envolvendo assim
que tenho meu pé puxado em direção a eles. E em um piscar de olhos,
estávamos embolados no tapete da sala gargalhando ao encenarmos uma luta
livre. Seria ridículo para qualquer um que visse de fora, mas até que gosto um
pouco deles.
Assim que Dominic sai de casa, no início da noite, com a justificativa de que
verá Nevaeh, Andrew também segue seu caminho indo até a algum lugar
misterioso. A desorganização que deixamos começa a me incomodar, por
isso varro a sala com os olhos torcendo o semblante para cada ponto da
mobília fora do lugar e, no mesmo instante, me ponho a arrumar tudo. O bip
de notificação me assusta em meio ao silêncio cultuado pelo cômodo.
Regina: Estou encrencada.
Leio e releio a mensagem de Regina por umas três vezes, e então, sinto os
efeitos me arrebatarem. Um sentimento de aflição me toma e o medo se
apossa de mim, me sufocando. Sei que ela poderia recorrer a Nevaeh, ou a
Dominic e até mesmo a Andrew antes de vir até mim. Então, se Mackenzie
chegou ao ponto de me contatar, é porque provavelmente
está mesmo encrencada.
Ela manda sua localização e antes mesmo que qualquer pensamento passeie
por minha mente, eu já estou dentro de Stormi acelerando até a saída de
Bolfok Town. Aproximo a imagem do mapa o máximo que consigo e
percebo que Regina está no último posto de gasolina da saída da cidade.
Pergunto-me por um instante, o que diabos ela está fazendo tão longe. Não
que Bolfok seja grande, na verdade, é bem pequena. Entretanto, o centro, a
área comercial, residencial e estudantil fica bem próximas uma à outra,
deixando que a fronteira para a cidade vizinha fique mais afastada. Piso
fundo no acelerador o máximo que consigo, corto os poucos carros que ainda
estão na estrada e me sinto em mais um racha, mesmo que hoje seja quinta.
Tento não pensar muito no que pode estar acontecendo com Regina, no que
exatamente ela precisa de ajuda. Cogitar a possibilidade de vê-la machucada
faz com que meu coração retorça dentro da caixa torácica.
Assim que estaciono de qualquer jeito no posto, entendo do que se trata a
encrenca. Regina está dentro de um moletom rosa, cercada por quatro
homens da gangue dos Lions. Eles a encurralam em passos contidos, abrindo
sorrisos perversos na direção dela e a encarando de cima a baixo. Fecho as
mãos em punho e travo a mandíbula, andando até eles a passos largos. Posso
ouvir o baque agressivo de minhas botas de combate atritando com o
concreto, e quando suas vistas pousam em mim, eles rapidamente se afastam.
— Algum problema por aqui? — Me ponho ao lado de Regina e analiso
homem por homem, chegando à constatação de que John, o líder deles, não
está por aqui.
— Nenhum. — Um dos caras se pronuncia. — Mas a sua gata está nos
devendo uma coisinha.
Pouso meu olhar nas mãos de Regina, que estão ocupadas segurando uma
grande sacola infestada de guloseimas. Consigo associar rapidamente as
coisas. Os Lions usam esse posto para lavar dinheiro, então, explicando de
forma rasa, eles depositam o dinheiro sujo em pequenas quantias, variando as
transações para que fique difícil de rastrear e integram essa grana no sistema
bancário de forma legítima para parecer que houve uma transação legal. Eles
investem em uma empresa local e participam dos lucros, e todos que correm
nos rachas sabem que esse posto de gasolina é o ponto de lavagem da gangue.
Então, talvez, Mackenzie tenha roubado algo da loja e agora está sendo
cobrada.
— Você roubou comida? — Aperto os olhos na direção dela, que logo franze
o cenho e nega fervorosamente.
— Sempre encho o tanque do carro aqui e recebi um cartão de "próxima
compra grátis". Então, aqui está. — Ela levanta a sacola. — Não estou
devendo ninguém.
— Gata. — Ele se aproxima de Regina e eu passo meu braço ao redor da
cintura dela. — Aqui você não faz "combinado" com ninguém que não seja
dos Lions, a nossa palavra é a que vale. Portanto, se você comprou de graça,
está nos devendo cem dólares.
Cem dólares em guloseimas? Inacreditável.
Essa confusão por causa de cem dólares. É claro que sei que essa é apenas
uma oportunidade desses homens nojentos conseguirem algo de Regina.
— Nós estávamos fazendo uma negociação, Eckhoff. — Ele me encara com
os olhos faiscando divertimento. — Sua garota não precisa nos pagar em
dinheiro vivo, podemos nos contentar com algumas brincadeiras no motel
mais próximo.
O homem tira uma mecha do cabelo de Regina da frente de seu rosto e eu
posso ver o medo em seu olhar, rapidamente a ponho atrás de mim e encaro o
membro da gangue em minha frente.
— Não encosta nela. — Dou um passo na direção dele. — Vamos fazer
assim, corre comigo amanhã e nós quitamos essa dívida.
Nem todo mundo tem cem dólares na carteira aleatoriamente, ainda mais um
cara afogado em dívidas, e tenho certeza que eles não são tolerantes o
suficiente para me ouvir perguntar se aceitam cartão de crédito.
— Você se acha esperto, não é? — Sim. Ele solta uma gargalhada
escandalosa. — Sabemos que você conhece o percurso de Bolfok Town
como a palma de sua mão, corre aqui há três anos. Não vou me arriscar
no seu território para ganhar a minha grana.
Respiro fundo e tento reunir paciência para lidar com essa situação
inconveniente que Regina se enfiou. Afinal, é só a porra de cem dólares.
Tenho certeza de que eles têm muito mais do que isso, e que essa quantia não
faria a mínima falta, mas eles são criminosos. Qualquer grana é grana.
— Qual o seu nome, cara?
— Jeff.
— Então, faremos um acordo, Jeff. Eu corro em Bolfok Valley,
no seu território. Iremos agora, e você define o percurso. Se eu ganhar,
quitamos a dívida. Se eu perder, você fica com o meu carro.
Só processo o que acabo de oferecer depois que, de fato, a merda já está feita.
Se eu perder, darei meu Stormi a uma gangue. Regina só me mete em
furadas, puta merda. Os olhos dela pousam em mim arregalados, mal
contendo a surpresa de saber que eu arriscaria meu carro nesta situação. Já o
tal Jeff, parece muito satisfeito com o combinado. Ele faz um sinal com a
cabeça para seus parceiros e definem a rota. Nós começaremos a correr na
avenida principal de Bolfok Town, passaremos pela ponte que demarca o
limite da cidade, e seguiremos por Bolfok Valley dando a volta completa no
lugar, até definirmos como linha de chegada esse mesmo local que estamos.
Já estive na civilização vizinha algumas vezes, talvez o percurso não fosse
tão difícil assim, e espero que Regina seja, pelo menos, uma boa copilota.
Caminhamos até meu carro lado a lado preservando um silêncio confortável,
mesmo que eu tenha inúmeras perguntas. Enxergo seu Cadillac rosa
imponente na saída do estacionamento e me questiono o porquê ela precisa ir
tão longe para abastecer. Entretanto, guardo minhas indagações para mim, até
porque esse não é o melhor momento para um interrogatório.
— Desculpa ter te enfiado nessa situação. — Ouço sua voz soar baixa ao meu
lado quando entramos no carro. — Eu encaminhei a mesma mensagem para
Dom e Nev, mas nenhum dos dois respondeu.
— Como conseguiu nos mandar mensagem?
— Eu ainda estava na loja de conveniência, soube que estaria encrencada
assim que vi os caras da gangue. — Ela segura a sacola firmemente em seu
colo e mantém a cabeça baixa.
— Você não é rica? Por que não pagou os cem dólares? — pergunto em um
tom um tanto acusatório.
Regina inspira, inflando as bochechas com ar, expelindo-os pelas narinas.
— Meus pais são ricos, eu não — responde, me fazendo ponderar por um
momento, e realmente faz sentido. — Me mantenho aqui com a herança que
minha avó deixou para mim quando morreu, mas não é o suficiente para sair
esbanjando por aí. Eu até tenho o dinheiro, só que no banco.
Pensando em todas as vezes que Mackenzie já reclamou de sua relação com a
família, é no mínimo compreensível que ela não queira a ajuda financeira
deles. Talvez seja empenhada em mostrá-los que consegue dar conta de tudo
sozinha.
— Entendo — pigarreio antes de me pronunciar novamente. — Eu poderia
não ter chego a tempo. — A mera possibilidade me causa calafrios.
— Mas chegou. — Ela me lança um sorriso pequeno e coloca a sacola no
chão. — Obrigada por isso.— Balanço a cabeça, mostrando que não foi nada
vir até aqui e ela se pronuncia novamente. — Achei que não se simpatizasse
comigo.
Relembro do nosso pequeno momento de tensão no Luau, em que Mackenzie
passou, pela primeira vez, a ponta de seus dedos macios em meu rosto.
— E não me simpatizo mesmo. — Soltamos uma risada ao mesmo tempo,
sabendo que essa é a maior inverdade que flutua entre nós. — Mas não
deixaria ninguém lhe fazer mal.
O clima tenso parece não se dissipar nunca, pelo contrário, a cada contato
nosso, a tensão aumenta gradativamente. Vejo Jeff alinhar seu carro ao meu e
seguro o volante com força. Um dos caras da gangue se posiciona entre
nossos automóveis, com um lenço improvisado, pronto para dar a largada.
— Pronta para correr? — A lanço um sorriso de canto e ela devolve
levemente entusiasmada.
— Espero que não perca para ele assim como perde para a Rainha nas sextas.
— Deixo uma risada escapar por entre meus lábios com a certeza de que esse
tipo de comentário me incomodaria há um pouco mais de um mês, mas agora,
nem tanto.
— Só ela tem permissão para ganhar de mim, Lennon. — Regina se remexe
desconfortável no banco do carona e eu fico um tanto confuso por sua rápida
mudança de comportamento. — Vamos enfrentar altas velocidades agora,
Regina. Tem certeza de que está tudo bem?
— Confio em você, Eckhoff. — As vistas correm até ela em uma rapidez
exorbitante, procuro qualquer vestígio de ironia ou sarcasmo em sua voz, mas
não encontro.
— Achei que não se simpatizasse comigo. — Uso suas palavras contra ela e
Regina contorce as feições, parecendo estar impaciente.
— E não me simpatizo. — Ela inspira e expira em uma lufada de ar
agressiva. — Mas ainda assim, confio em você.
As últimas palavras de Mackenzie me dão o gás que eu preciso para embarcar
nessa loucura de correr contra um membro de uma gangue por causa de cem
dólares. Comparar o valor de nossa dívida com o prêmio que ele ganhará se
perdermos é desproporcional. Contudo, não seria Mackenzie nem eu a
discutir com homens que carregam pistolas em suas cinturas.
Antes que o lenço suba e desça iniciando a corrida, Regina afunda o dedo
indicador no rádio do meu carro e conecta ao Bluetooth. Ela murmura algo
como ser falta de respeito dirigir sem alguma trilha sonora, e escuto um rock
pesado reverberar pelo rádio do carro assim que Axl Rose começa a
gritar "Welcome to the Jungle".
O pedaço de tecido cai com tudo no chão e não hesito em afundar o pé no
acelerador assim que tiro o carro do ponto morto. Agradeço mentalmente ao
universo pelo momento em que resolvi colocar um aerofólio em meu
automóvel de uso diário, esse acessório é responsável por deixar o veículo no
chão, pois em alta velocidade, ele poderia levantar voo. Sua estrutura é
semelhante à da asa de um avião, só que virada para baixo, canalizando a
força do ar e pressionando o automóvel contra o solo.
Já estamos atravessando a ponte que divide Bolfok Town e Bolfok Valley, e
a única visão que Jeff tem durante uns bons vinte minutos enquanto
percorremos a cidade vizinha é a dos meus faróis traseiros. Mackenzie está
no banco do carona atenta a nossa rota, ela não parece nada afetada pela alta
velocidade que estamos, pelo contrário, a mulher tem os olhos vidrados no
GPS e canta mais um rock dos anos oitenta à plenos pulmões. Prossigo
compenetrado ao caminho que fazemos, enfrento uma curva fechada na
entrada de um beco que corta a cidade em Norte e Sul fazendo com que
nossos corpos tombem para o lado, sofrendo um tranco graças ao cinto de
segurança.
Nós parecemos compartilhar da mesma adrenalina, já que me sinto
repentinamente eufórico assim como Regina. Minha frequência cardíaca
aumenta, sinto o estômago retorcer, e o suor nas mãos faz com que eu aperte
o volante com mais força. Ao meu lado, minha copilota atesta que ainda
teremos uma avenida de dez quilômetros pela frente, sem curvas acentuadas,
e uma rotatória até voltarmos ao ponto inicial.
Minha vantagem contra Jeff se esvai no momento em que ele alinha seu carro
ao meu, e sei que sua próxima manobra, com certeza será jogar o automóvel
contra o meu. Uma estratégia que se assemelha muito a trapaça, mas estamos
em uma corrida informal aqui, vale tudo.
— Quando ele jogar o carro pisa fundo no acelerador e passa para o sexto
câmbio. — Mackenzie sugere, também prevendo a próxima manobra dele.
Lembro-me de quando a questionei acerca de seu conhecimento sobre
corridas e carros antigos, e ela alegou ser uma grande fã de Fórmula 1 e
Stock car.
— O quê? — indago em um tom de voz um oitavo mais alto. — É muito
arriscado.
— Se você acionar a frenagem vai ficar em desvantagem. Quer perder assim
de novo?
— Como você sabe que já perdi assim? — Mantenho a atenção na estrada,
tentando a todo custo evitar que Jeff se alinhe totalmente a mim.
— Porque eu assisto aos rachas, porra. — Regina está nervosa, ela mantém o
olhar em nosso oponente, parecendo tentar criar alguma estratégia baseada
em seu fanatismo. — Agora pisa na porra do acelerador e passa para a sexta
marcha.
Assim que Jeff consegue diminuir completamente sua desvantagem e se
alinha a mim, vejo seu carro vir com tudo em nossa direção. Sem pensar
muito, afundo o pé no acelerador e mudo o câmbio. Regina sofre um tranco
para trás grudando seu corpo esguio ainda mais no banco, assim como eu, é
como se pudéssemos levantar voo a qualquer momento devido à alta
velocidade. Avisto a rotatória, o que significa que estamos muito próximos à
linha de chegada. É tudo ou nada, estar afundado em dívidas e ainda perder
meu carro não seria o melhor dos cenários. Então ziguezagueio na pista, para
criar maior aderência entre os pneus e o solo, aumentando assim, a
velocidade. Regina mal consegue segurar o pescoço no lugar, entretanto, isso
pouco importa, porque estamos a duzentos quilômetros por hora, em uma
curva fechada, com o meu corpo sendo jogado para a porta, o de Mackenzie
tombado para o meu lado e Thunderstruck do AC/DC reverbera alta no alto
falante de Stormi. Sei que terei que trocar minhas pastilhas de freio amanhã
mesmo, mas quando cruzo a linha de chegada, em um cavalo de pau, que faz
nossos pescoços ser jogados para trás e para frente, vendo um Jeff furioso
atrás de mim, tenho a certeza de que vinguei essa porra de dinheiro.
Assim que tiramos o cinto, sinto o corpo quente de Regina sobre o meu. Não
sei exatamente se estamos abraçados, pois nossa posição é desajeitada e não
tem forma concreta. Tudo nessa cena é disfuncional e abstrato, porém, sinto
meu peito aquecer ao ter o peso dela contra o meu. Nossas respirações estão
aceleradas, resultado da euforia que ainda percorre nosso interior, e tenho a
noção de que essa interação rara entre nós, o toque íntimo de sua mão
acariciando meu ombro e meu braço enlaçando suas costas, não acontecerá
novamente tão cedo. Nós dois sabemos bem disso, e é por esse motivo, que
aproveitamos o máximo possível.
Jeff apenas bate uma continência para mim, o que significa que temos um
trato, que ele também cumprirá com sua palavra, e que nossa dívida está
sanada. Quando faço menção de me mover, Regina prensa ainda mais seu
corpo ao meu.
— É falta de respeito sair do carro e interromper a música que está tocando.
— Sua voz moderadamente baixa em meu ouvido me provoca um arrepio, e
nem tento esconder.
— Então, nós só podemos sair depois que essa acabar? — pergunto e Regina
não responde, mas acena levemente em concordância, e me permito sorrir um
pouco.
A canção que ressoa baixa no alto falante pode ser considerada como uma
trilha sonora ao momento que está acontecendo entre mim e Mackenzie. Olho
para o letreiro do rádio e vejo que o nome dos acordes que ressoam em meu
rádio é "Mad World". Não conheço a música, mas fico sabendo que se trata
de uma versão mais lenta do que a original, isso é o que Regina diz antes de
começar a sibilar os versos.
— Lugares desgastados, faces desgastadas. — Não associo a letra a nós,
entretanto, a melodia serve como um alento ao aconchego que nos remete. —
Bem cedo para suas corridas diárias.
Permito-me fechar os olhos e aproveitar o laço que se instaura entre nós nesse
exato momento. Ainda sinto o corpo dela apoiado sobre o meu
desajeitadamente, sua cabeça encostada em meu ombro, minha mão pousada
em suas costas, sentindo o calor emanado de suas entranhas, e seu cabelo faz
leves cócegas em meu braço. Sei que nenhum de nós fará muita questão de
conversar sobre o que está acontecendo, apenas dividimos uma boa dose de
adrenalina e estamos nos recuperando.
Nossas respirações vão encontrando o ritmo contido enquanto ouvimos o
último verso ressoar no som, indicando que, seja lá o que há entre nós nesse
exato momento, acabará junto com nossa trilha sonora. Antes que outra
música se inicie, Regina volta para seu lugar, endireitando-se no banco do
carona, enquanto eu aproveito para me recompor também.
Não iremos admitir, mas sabemos que essa madrugada está sendo uma das
melhores de nossas vidas, mesmo que estejamos ao lado da personificação do
que mais odiamos em alguém. Eu nunca diria que Regina é a melhor co-
pilota que existe, muito menos que nosso encaixe desajeitado e disfuncional
tenha parecido tão certo para mim.
No entanto, meu Eagle Speedster saberia, porque Stormi toma conhecimento
de meus maiores segredos, e ele acaba de presenciar mais um: eu e
Mackenzie, abraçados, no lado mais afastado de Bolfok Town, na madrugada
de uma quinta-feira e aquecidos pela estrutura do carro. Para não dizer, que o
maior conforto ali, foi ter acalmado nossos medos e inseguranças que gritam
dentro de nós na penumbra da cidade. Não precisávamos de palavras naquele
momento, porque apenas o som de nossas respirações e o calor de seu corpo
sobre o meu, foi o suficiente para que a letargia nos engolisse, e uma paz se
apossasse de nós.
Tão eficaz como uma boa dose de heroína, o caos que nos ronda, neste
momento, melhor se assemelha a um anestésico. E meu único medo, é que o
efeito seja viciante.
Esconder um segredo não é nada fácil.
Há uma problematização em cima desse aspecto como se fosse um crime
esconder algo de alguém, pois eu defendo a ideia de que há coisas que são
recomendáveis que não sejam descobertas. Partindo do princípio de que o
que você esconde não prejudica ninguém, está tudo bem guardar só para
você. Entretanto, isso não quer dizer que seja fácil.
Por exemplo, geralmente quando você guarda algum tipo de segredo, ele vem
junto com uma mentira. Já que para escondê-lo é necessário usar estratégias.
Trazendo para a realidade, posso dizer que todas as vezes que preciso correr
em um racha, acabo mentindo para alguém. Como na vez em que eu disse ter
passado a noite de sexta com o rosto enfiado em algum livro de Direito,
apenas para não ter que aparecer em Bolfok Ride e dificultar ainda mais meus
planos de disputar sem que ninguém saiba. E não é preciso ser muito
inteligente para saber que eu não fiquei no alojamento naquela noite, na
verdade, eu executei meu ritual de sempre, que consistia em fazer as tranças
embutidas, amarrar a bandana no rosto, chegar pelos fundos da fazenda e
pegar o carro que eu deixava estacionado lá com antecedência. Às vezes,
algum mecânico da oficina de Bolfok Valley leva meu veículo até a fazenda.
Eu jamais seria modesta ao ponto de negar a genialidade de minhas
artimanhas. Quando vim para Bolfok Town, vi como uma oportunidade de
refazer alguns pontos da minha vida. Rafe me levou em meu primeiro racha e
foi como paixão à primeira vista. Eu gosto da sensação que se apossa de mim
no momento em que enfrento grandes velocidades, o suor nas palmas, o
coração acelerado e as borboletas no estômago. Ouso dizer que é como estar
apaixonado, que o instante em que o carro acelera e olhar para a pessoa que
ama são as mesmas sensações, mesmo que eu nunca tenha amado ninguém
para saber. Bom, eu comparo com o que eu sentia quando via Rafe. Mas, em
Dilshad, onde nasci eu sempre estive no cargo de co-pilota, assumindo o
volante pela primeira vez quando a estrela dos rachas, Rafe, não pôde
comparecer. Aquela primeira corrida, eu ganhei, e não parei mais. Então eu
soube que havia acabado de descobrir algo em que eu era realmente boa sem
ter que me esforçar muito, quase como um dom.
Correr em outro lugar me trouxe a percepção de que, pela primeira vez, eu
estava me desvinculando de uma figura masculina. Já que, em Dilshad, eu era
a garota de Rafe. E aqui, em Bolfok, eu sou apenas a Rainha.
Quando ocupei novamente a posição de pilota, me senti grande, e ainda me
sinto. Há uma imensidão que me cobre assim que tiro o carro do ponto morto.
E essa sensação, mesmo que perigosa, não é algo que eu esteja disposta a
largar. Então é por isso que continuo indo até Bolfok Valley, fazendo a
manutenção de meu automóvel em alguma oficina que não seja a de Thomas
e também prossigo mentindo para meus amigos. Quer dizer, para os meninos
sim, já que Nevaeh e sua perspicácia me desmascararam.
Ela já ficou desconfiada quando fomos pela primeira vez em Bolfok Ride, e
um pouco antes de chegar minha vez de correr, inventei que estava passando
mal. A partir desse dia, soube que seria questão de tempo até ser descoberta
por ela. Então, em um sábado de manhã, há semanas, ela me questionou o
motivo de uma patricinha como eu ter uma bandana de rock escondida no
meio de tantos artefatos rosa. Foi um descuido, cheguei tão cansada da
corrida que larguei o pedaço de pano em qualquer lugar. Ademais, eu poderia
ter inventado alguma desculpa, mas eu estava cansada de guardar tantas
coisas apenas para mim. Logo, contei para minha amiga o que eu faço nas
sextas à noite, minhas motivações, e como ela poderia me ajudar.
Ajuda essa que seria muito bem-vinda hoje.
O Encontro Regional de Automóveis acontece uma vez por ano alternando
entre as cidades do Leste dos Estados Unidos. Ano passado, foi em Oroland
County, e neste, em Bolfok Town. Como um bom grande evento, a presença
de todos os moradores é quase que obrigatória, então é meio óbvio que esse
será o entretenimento desta sexta-feira. Estar na presença de meus amigos e
ter que fugir para participar das inúmeras corridas que teriam hoje seria
absurdamente difícil se eu não pudesse contar com a ajuda de Nevaeh.
Assim que minhas botas afundam na lama espessa da fazenda que sedia os
rachas, percebo que essa noite não será exatamente fácil. Não entendo de
mecânica como Thomas, mas tenho experiência o suficiente para saber que
pistas molhadas são sinônimas de caos para os corredores. Tento não me
antecipar aos fatos e pratico a respiração pelo diafragma, técnica ensinada por
minha antiga terapeuta para controlar a ansiedade. Como Nev e Dom estão no
início de relacionamento – aquele mesmo em que ficamos grudados no
companheiro até que as coisas esfriem parcialmente – vieram juntos, assim
como Andrew e Thomas, que até me ofereceram uma carona, mas decidi não
aceitar. Para mim, é importante estar aqui sozinha, pois tenho como conferir
se está tudo certo com meu Dodge Charger R/T, estacionado na rua de trás de
Bolfok Ride, tão deserta que a lâmpada imponente em cima do poste de
iluminação sofre alguns espasmos, nos fazendo pensar que poderia queimar a
qualquer momento.
Estou nitidamente impressionada, porque é difícil imaginar que a fazenda
comporte a quantidade de gente que está aqui hoje. Há carros dos mais
diversos tipos e modelos, estacionados e arrumados como em uma gravação
de Velozes e Furiosos, lustrosos e imponentes. A primeira corrida já está
acontecendo. Um corredor de alguma cidade ao sul de Bolfok disputa contra
um de Oroland. O burburinho das pessoas que interagem entre si consegue se
sobrepor ao rap que reverbera agressivo nos alto falantes, 50cent
canta Candy Shop enquanto mulheres rodeiam a caixa de som dançando
qualquer coisa, menos Street Dance. Sei que Chad está lucrando hoje como
nunca antes, porque ele caminha despreocupado pelo local esboçando um
sorriso que se assemelha ao do Coringa, e quando pousa o olhar em mim, me
lança uma piscadela, como se tivesse a necessidade de reafirmar toda semana
que meu segredo está bem guardado com ele.
A tarefa de achar rostos conhecidos no meio de tanta gente torna-se cada vez
mais difícil à medida que o tempo passa. Tento contatar Nev ou Dom, mas a
mensagem não chega para nenhum dos dois. Alguém roça o braço suado em
mim me fazendo exprimir uma careta de desgosto assim que sinto a umidade
do suor lambuzar meu braço. Sim, está cheio a esse nível. E aposto que a
única vez em que enfrentei um ambiente tão tumultuado assim foi em meu
intercâmbio para a Guatemala, já que até mesmo em shows eu optava pelo
conforto da área vip.
— Kenz? — A voz tão conhecida por mim me faz estremecer, mas não de
um jeito bom. Eu só me sinto entrando em uma cápsula da memória com
destino a um tempo em que eu jamais gostaria de reviver, e o apelido usado
por ele revira meu estômago, acordando minha bile.
Rafe me encara com os mesmos olhos azuis que já me contemplaram e
desdenharam. O sorriso aberto em seu rosto me deixa confusa, porque é
como se ele não tivesse sido um otário comigo há dois anos. Seu cabelo loiro,
muito parecido com o de Thomas inclusive, agora está rente a cabeça como
em um corte militar, porém a habitual jaqueta de couro e botas de combate
ainda fazem parte de seu estilo.
— Oi, Rafe. — Tenho noção de que o tom da minha voz sai beirando ao
tédio sem que eu possa me controlar.
— Meu Deus. — Ele me encara de cima a baixo, sem o menor pudor. —
Você está ainda mais linda do que eu me lembro.
Não faço questão de responder, muito menos de sorrir. Na verdade, se eu
pudesse, sumiria dali em um estalar de dedos, contudo, meus pés estão
estagnados no chão, pregados ao solo com uma aderência desgostosa. Não
consigo me mover porque há uma força maior me empurrando ao chão, então
eu não me mexo quando Rafe passa o braço ao redor de minha cintura me
tomando em um abraço de urso. Sinto o mesmo perfume de sempre, nicotina
e canela, mas o meu coração não acelera, as mãos não suam nas palmas e o
estômago não parece estar infestado de borboletas. Isso me anima, porque
tenho Rafe tão perto como antigamente, porém ele não me afeta mais.
Não sinto nada.
Quando me solta, Rafe desembesta a falar sobre sua vida, e é impossível não
compará-lo com Thomas naquele momento. Eckhoff sempre me insere nos
assuntos, quer saber minhas opiniões mesmo que seja apenas para refutá-las.
Ele geralmente está disposto a ouvir o que eu tenho para falar e sempre presta
atenção em tudo. O cabelo de Thomas é um pouco mais comprido, na maioria
dos dias desgrenhados. Ele tem uma covinha apenas na bochecha direita e
gosta de dizer que esse é o charme dele. Só há tatuagens em seu braço
esquerdo e em seu peitoral direito, e seus dentes não são muito bem
alinhados, mas não de um jeito feio. É até bonitinho a forma como seu canino
esquerdo se apoia no dente ao lado. Dizer que Thomas pode ser como Rafe
me parece tolice agora que os dois estão no mesmo ambiente, porque eles são
diferentes em tantas formas que me deixa até confusa.
Pouso as vistas na figura que eu tanto conheço e que tanto me irrita, e abro
um sorriso contido. Enquanto Rafe me conta coisas que eu não quero saber,
Thomas conecta seu olhar com o meu e me lança uma careta divertida. Ele
ergue a língua, como se tentasse encostá-la no nariz e fica vesgo, de modo
que eu franzo o nariz rebatendo a brincadeira e ele ergue as sobrancelhas,
como se dissesse: "é só isso que pode fazer Lennon?". Sinto-me desafiada
naquele instante, então tombo minha cabeça para o lado e jogo a língua para
o canto da boca, é quase como se eu tivesse acabado de sofrer um derrame.
Ele parece desistir de nossa batalha de caretas quando tomba a cabeça para
trás em uma gargalhada, me contagiando em uma risada também.
— Mackenzie, você prestou atenção em algo do que eu disse? — Não.
— É claro que sim. — Desvio meus olhos de Thomas e o pouso em Rafe.
— Então, me diga sobre o que eu estava falando. — Rafe insiste, me fazendo
perder a paciência assim que ouço sua última frase, já que não tenho a
mínima obrigação de aturá-lo.
— Agora eu tenho obrigação de repetir o que todo mundo já sabe?! — Cruzo
os braços na altura dos seios e fecho o semblante. — Você só fala de si
mesmo, Rafe. Sobre o que sente, o que está fazendo no momento, o que
almeja. É sempre tudo sobre você.
— Uau, você está mesmo mudada. — Sim, agora não sou mais idiota. — Em
outros tempos estaria com os olhos vidrados em mim captando tudo o que eu
tenho para falar.
— É verdade, mas você deixou de merecer a minha atenção a partir do
momento em que me descartou como se eu fosse um objeto, um nada. —
Inspiro e expiro reunindo meu estoque de paciência para lidar com ele. — Eu
não sou mais boba por você.
— Pode até não ser, mas vai se tornar boba por outra pessoa. — Rafe ergue o
canto dos lábios em um sorriso e prossegue. — Porque você é do tipo fácil,
daquelas que não fazemos esforços para conseguire perdem a graça em uma
rapidez desconcertante. Não deseje o que nunca vai ter, Kenz. Nenhum
homem vai te olhar como se você fosse única, porque você não é, e eu vou te
dizer o motivo: porque você sempre será uma qualquer. Foi bom te ver
novamente.
Automaticamente, minha expressão murcha. Odeio que as palavras dele ainda
me cortem como adagas bem afiadas. Percebo que quero arrancar algo de
mim, não sei exatamente o que, mas estou cansada de deixar que as outras
pessoas me afetem com tanta facilidade. Meus dutos lacrimais anunciam que
irão liberar lágrimas que gritam para escapulir de meus olhos. Rafe não está
mais em minha frente, mas ainda assim, não quero chorar aqui, com tanta
gente em volta. Varro o local com os olhos atrás de uma figura conhecida,
sabendo que esse é o momento em que desejamos o colo de nossos pais, mas
os meus não estão aqui, e mesmo se estivessem, a certeza de que eu não teria
o suporte deles me dói mais do que as palavras duras de Rafe.
Eu queria que ele pudesse me explicar o conceito de ser "uma qualquer". O
que me faria ser única sob os olhos de alguém? Também quero entender o
conceito de ser uma mulher fácil. Simplesmente não faz sentido em minha
cabeça me esforçar para transparecer que não quero algo, que na verdade
quero só para "me fazer de difícil". Inúmeros questionamentos rondam minha
mente, mas nenhum deles consegue se sobrepor à sensação de ser descartável
novamente. Sinto-me pequena, de novo. E odeio isso.
Duas mãos pousam uma em cada ombro meu e vejo Nevaeh em minha frente.
Ela está dizendo algo que não consigo decifrar, tanto pela música alta, quanto
pelo estado anestesiado em que me encontro. Só percebo que libero as
lágrimas que eu segurava, quando Nev passa a mão em meu rosto as secando.
— Por que está chorando? — pergunta.
Não me permito chorar compulsivamente, então logo contenho minhas
lágrimas.
— Rafe me falou coisas ruins, e eu como sempre, caí na pilha dele.
Posso ver as transformações no semblante de Nevaeh. Seus olhos faíscam em
um ódio que eu jamais havia presenciado e tenho certeza de que, se ela
pudesse, mataria Rafe neste exato momento.
— Cadê ele? Eu vou dar um soco nele, e quando menos esperar, Dominic vai
socá-lo também. — Minha amiga perscruta o local em busca de Rafe, e eu
rapidamente me coloco em sua frente.
— Violência não adianta com ele. Esquece, Nev.
Eu sei que enfrentar Rafe não mudaria seu modo de pensar, não faria com
que as coisas melhorassem, e eu nem mesmo me sentiria vingada.
— Nevaeh. — Ela vira a face em minha direção, e com um balançar de
cabeça, me incentiva a prosseguir. — Você me acha "uma qualquer"?
— Isso não existe, Mack. Não deixe que Rafe ponha essas merdas na sua
cabeça, você não é "uma qualquer" porque não existe nenhuma outra
Mackenzie Lennon. Assim como não há outra Nevaeh Williams, todos nós
somos e temos algo que nos torne únicos.
Antes que eu possa respondê-la, recebo uma mensagem de Chad avisando
que só correrei contra Thomas hoje, e mais tarde. Questiono o porquê não
posso participar da corrida regional e disputar contra Dilshad, tendo assim, a
oportunidade de enfrentar Rafe. Contudo, ele me diz que não houve apostas o
suficiente em meu nome, o que significa que, mesmo eu tendo ganhado de
Eckhoff diversas vezes e provado que sou boa, ainda assim preferiram o
homem. Tal constatação me deixa duplamente indignada, já que meu maior
prazer no dia de hoje seria ter a oportunidade de correr contra Rafe, e, se
possível, ganhar.
Meus devaneios são interrompidos pela presença imponente de Thomas à
minha frente. Conecto meus olhos aos seus e fico, mais uma vez, perdida na
imensidão de suas íris azul piscina. Odeio que seus orbes me atraiam tanto,
odeio que tudo nele me puxe agressivamente em sua direção. Seu dedo
indicador paira em frente ao espaço relativamente amplo entre minhas
sobrancelhas, que está tensionado e eu aguardo seu próximo movimento. É
como se ele estivesse ponderando se me toca ou não, se faz o que tem
vontade ou se deixa para lá.
Eu não o culpo. A sensação de estar pisando em ovos é assídua dentro de
mim a partir do momento em que resolvi tocá-lo. Naquele domingo, eu soube
exatamente o instante em que ultrapassava alguns limites entre mim e
Thomas. Acariciar suas estrias talvez não tivesse sido a minha decisão mais
sensata, para falar a verdade, provavelmente foi uma das mais tolas. Afinal,
não é surpresa que destruir uma barreira faria com que outra se erguesse no
lugar. A solução mais plausível que pairou sob minha mente foi de manter-
me afastada, já que eu não fazia ideia de como agiria pelos próximos dias na
presença dele. Isso, claro, até que eu estivesse extremamente encrencada e só
pudesse contar com a ajuda de Eckhoff.
Ir ao meu encontro, arriscar seu carro e correr por mim é apenas umas das
péssimas decisões que tomamos quando estamos na presença um do outro.
Como se nosso cérebro gostasse de se perder na tensão palpável que nos
rodeia e parasse de funcionar. Não é novidade que a madrugada de ontem
ficaria guardada a sete chaves em nossa memória, já que, para mim, apenas a
ameaça de trazê-la à tona me deixa apreensiva. Thomas nunca ficaria sabendo
que o toque quente de sua mão em minhas costas está ardendo em brasa até
agora, assim como meu corpo protestou arduamente para que não nos
separássemos ontem.
Interrompendo, mais uma vez, meus devaneios, Thomas parece finalmente
decidir me tocar. A ponta de seu dedo indicador roça no espaço entre minhas
pestanas, massageando o vinco que se abriga ali. Não satisfeito, ele acaricia
as rugas de tensão que decoram minha testa e a tensão que nunca nos
abandona se faz presente ali, mais uma vez. Sinto-me quente, novamente,
como se Bolfok Ride estivesse crepitando em chamas neste exato momento, e
minhas bochechas queimam como o inferno.
— O que te deixou assim? — Seu questionamento me acorda e arranca o
estado letárgico que tentava me alcançar.
— Rafe. — A palavra sai em um fio de voz entre um pigarro e um enrugar de
testa. — Aquele cara que estava conversando comigo.
— Sei. — Ele engole em seco. Seu dedo vai para longe de meu rosto e
estremeço em protesto.
A pior decisão que minha mente poderia ter tomado seria analisar Thomas
naquele momento. Sua blusa preta de manga comprida abraça gloriosamente
seus músculos, realçando os movimentos de seus bíceps e fazendo um
contraste com seu cabelo loiro. Até mesmo seus olhos azulados estão
realçados pela escuridão da blusa. Minha análise sobre seu corpo é
interrompida por Chad anunciando a próxima corrida, será Thomas contra
Rafe. Isso ainda me deixa indignada, já que nada seria mais gratificante do
que ganhar de Rafe em algo que ele se julga tão incrível, entretanto, penso
que talvez nem tudo esteja perdido.
— Pode me fazer um pequeno favor? — peço, tendo noção de que estreito os
olhos levemente. Thomas ergue o olhar até mim em uma rapidez invejável.
— O que você quiser.
— Ganhe dele. — Minha fala sai tão rápido que temo não ter sido entendida,
mas ao ver o sorriso que brota no canto da boca dele, tenho a certeza de que
fui compreendida.
— Ele não te tratou como você merece, não é? É por isso que há mágoa entre
vocês. — questiona, me fazendo ponderar por uns instantes.
Eu poderia dizer que meu rancor com Rafe vai muito além disso, e que, na
verdade, ele é e sempre foi um grande merda.
— Como você acha que eu mereço ser tratada, Eckhoff? — É quase
impossível evitar que a sobrancelha se erga em um semblante desafiador.
— Como uma rainha, oras. Não é à toa que seu apelido é Regina. — Thomas
está sorrindo grande, não consigo desprender meu olhar do seu e não
acompanhá-lo no sorriso.
— Não, Eckhoff. Ele não me tratou como uma rainha. — Enfio minhas mãos
no bolso do casaco assim que o incômodo de não saber onde colocá-las me
abate.
— Então, será um prazer vencê-lo. — Não tenho tempo de respondê-lo, nem
de devolver o sorriso direcionado a mim, na verdade, inexplicavelmente, o
clima entre mim e Thomas tem estado ameno até demais.
Quando Chad anuncia o início da corrida, Thomas dá uma batidinha em meu
ombro e se encaminha até seu carro, já estacionado ali. Antes que Indiana
desça o lenço para dar a largada, Eckhoff me lança uma piscadela que poderia
ter um milhão de significados, mas o único efeito que tem sobre mim é
afundar meu estômago mais um pouco. Como se a tensão que nos persegue
não fosse o suficiente, ele ainda faz gestos como aquele. Espero apenas até
que os dois carros rujam e levantem poeira para sair dali. Trocando um olhar
com Nevaeh, chamo-a com um gesto de cabeça.
Eu participaria da próxima corrida, contra Thomas, e pela primeira vez,
nenhuma sensação de ânimo se apossa de mim antes de enfrentar altas
velocidades. O bichinho competitivo que mora dentro de mim não acordou
animado o suficiente para vencer hoje, porque eu não estou correndo contra
quem realmente quero.
Ajeito o sobretudo caramelo que cobre minha calça preta rasgada e minha
blusa surrada do Nirvana. Geralmente, quando venho assistir algum racha e
também vou disputar, opto por usar um casaco grande que cubra as roupas
que uso nas noites de sexta. Facilitando assim, minha transformação. Já que
eu só preciso dar conta das tranças embutidas, que só decoram minha cabeça
porque seria muito fácil associar meus cabelos soltos ou presos em um rabo
de cavalo com a Mackenzie do dia a dia.
Caminho com Nev ao meu encalço até a parte de trás da fazenda. Mesmo
com Akon gritando nos alto falantes do lugar, consigo ouvir o barulho das
folhas batendo uma na outra devido ao vento gélido que ricocheteia em meu
rosto. Não há ninguém nessa parte, tão deserta que às vezes me sinto em um
cenário de terror, como se Jason pudesse surgir a qualquer momento, com sua
máscara de Hockey sussurrando ki-ki...ma-ma antes de perfurar o crânio de
mais uma jovem que só queria se divertir. Certo, eu preciso parar de ver
filmes de terror já.
— No que está pensando? — Nevaeh interrompe meus devaneios um tanto
pessimistas enquanto ajeita o cachecol que decora seu pescoço.
— Em Jason, de Sexta-feira 13. — Solto uma risada junto à resposta, mas
Nev não me acompanha, pelo contrário, ela parece acabar de recordar-se de
algum ponto e arregala os olhos.
— Mackenzie, hoje é sexta-feira 13. — Sua resposta cautelosa me faz
ponderar por um momento se há algum tipo de veracidade em sua fala, mas
me recordo de que estamos na véspera do final de semana em um treze de
outubro. Tal constatação faz com que uma fagulha de medo irrompa pelo
meu corpo.
Veja bem, eu não fico aterrorizada com os filmes que sou acostumada a ver.
Jason não é nada perto do que assisto nas madrugadas, aniquilando todo o
estoque de filmes de terror presentes na internet. Contudo, a luz amarelada do
poste piscando, a melodia longe de algum rap dos anos dois mil e a rua
totalmente deserta em meio à penumbra faz com que eu sinta um pouco de
medo. E a coincidência de estarmos na "data do horror" torna tudo ainda pior.
Nevaeh parece compartilhar dos mesmos pensamentos já que troca um olhar
assustado comigo e começa a andar a passos apressados até meu Dodge
estacionado ali. Não hesito em acompanhá-la, embolando um pouco minhas
passadas apressadas e abrindo com agressividade a porta de meu carro.
Assim que me sinto segura o suficiente para pensar na vergonha que
acabamos de passar, deixo que a risada reverbere alta no aconchego do carro.
— Ainda bem que a rua está deserta, ninguém merecia presenciar essa nossa
corrida até o carro. — Nev comenta e eu não posso deixar de concordar,
ainda com vestígios de riso no ambiente, começo a me ajeitar para correr.
A esse ponto, a disputa entre Rafe e Thomas já deve estar perto de terminar,
dando tempo suficiente para o ganhador pegar a grana das apostas e se
aprontar para uma nova corrida. O meu interior só precisaria de
uma vuvuzela para completar a torcida a favor de Eckhoff, mas não que um
dia eu vá dizer isso para ele. Seria motivo suficiente para deixá-lo com o ego
maior do que minha mansão em Dilshad. Sendo assim, termino a trança no
mesmo instante que recebo o bip de notificação de um Chad animado
anunciando que Thomas havia ganhado e já está pronto para correr contra
mim. Estando com o rosto escondido atrás da tela do celular, permito que um
sorriso grande rasgue em meu rosto em uma comemoração silenciosa. Eu
posso até imaginar o semblante desgostoso no rosto de Rafe, contrariando seu
ego inflado e sua certeza de que é o melhor corredor de rua de todo os
Estados Unidos.
— Thomas ganhou! — Nevaeh dá um salto no banco do carona mal podendo
conter sua alegria. — Rafe tomou no cu.
— Nevaeh! — A repreensão escapa por meus lábios, entretanto, logo estou
junto a ela zombando do perdedor. — Ele deve estar muito puto.
— Então, o objetivo foi atingido com sucesso. — Solto mais uma risada e
recebo outra mensagem.
Thomas: Agora você está me devendo um favor ;)
Não me esforço para conter o canto dos lábios que se ergue em um sorriso
pequeno enquanto Nev tomba para o meu lado querendo descobrir por que
estou sorrindo para a tela do celular, mas fecho a aba de mensagens
rapidamente.
— Não precisa esconder, eu sei que é o Thomas. — Nevaeh diz com uma
normalidade impressionante. Arregalo os olhos e sei que minha reação é o
bastante para confirmar suas suspeitas, então ela prossegue. — Você não
consegue mentir para mim.
— Eu tinha pedido para ele vencer Rafe, agora me disse que estou o devendo
um favor — suspiro resignada e jogo meu sobretudo para o banco de trás. —
Nada demais.
— Espero que a cobrança desse favor valha a pena. — Ignoro o sorriso
sugestivo em seus lábios e relembro que preciso ir até o ponto de largada. —
Vou dizer aos meninos que você teve um problema sujando sua roupa.
— Obrigada, Nev. — Sinto-me verdadeiramente grata por ser acobertada por
minha amiga, se bem que acho que ela me ajudaria até mesmo a esconder um
corpo. — Vou vencer para valer a mentira.
— É o melhor que você faz. Gosto de ver homens perdendo para mulheres —
dou uma risada por seu comentário e tiro meu lenço do porta-luvas.
Checo o vidro fumê do carro, como se a qualquer momento o insulfilme
pudesse desaparecer e me deixar visível ao olhar alheio. Nevaeh desce do
carro, e eu não espero muito tempo para acelerar até o ponto da largada. E
talvez, a única alegria de hoje seria vencer de quem ganhou de Rafe.

Bom, eu não venci.


Pela primeira vez desde que cheguei a Bolfok Town, perdi uma corrida. Não
que isso seja um grande motivo para estar triste, mas o combo Rafe, não
poder correr contra ele e perder para Thomas me abate. Nem tudo é sobre
ganhar, quer dizer, qualquer time tem suas boas e péssimas temporadas e está
tudo bem, faz parte de competir. Uma coisa que aprendi com minha tia é que
precisamos ser conscientes de nossas próprias virtudes e saber que a derrota,
na maioria das vezes, vem junto com a competição. E eu jamais tiraria o
mérito de Thomas. Ele é muito bom. Eventualmente, isso aconteceria, até
porque, seria um pouco fora da realidade ganhá-lo sempre.
Apenas uma girada errada do volante quase na linha de chegada, me fez
derrapar um pouco pela pista molhada e entregar de bandeja a vantagem para
Thomas. Nem preciso dizer que Bolfok Ride inteira está boquiaberta. Eles
não podem me ver por causa do insulfilme, mas eu tenho ampla visão de seus
rostos cobertos pelo choque. Bom, a única coisa que faço é respirar fundo,
retirar a mão para fora da janela e mandar um “joia” para meu vencedor. Eu
sei que perder hoje me trará mais consequências do que posso imaginar que
vão além do dinheiro das apostas que me ajudam nas contas bancárias, no
entanto, nem todos os segredos precisam ser descobertos.
Dirijo com cuidado até a mesma rua deserta, estaciono o carro, ponho o
sobretudo e procuro voltar até meus amigos antes que Thomas volte do
escritório da fazenda onde pega a grana. Passo por Chad e o entrego a chave
de meu Dodge discretamente, para que ele dê para a pessoa certa que levará
meu carro até a oficina em Bolfok Valley, onde fica estacionado até o
próximo racha. Enfio as mãos no bolso do sobretudo e procuro algum rosto
conhecido com o olhar. Finalmente, acho Lewis, que acena para mim, e
percebo Josh ao seu lado, porém, antes que eu dê mais de cinco passos na
direção dos dois, trombo em algo grande e duro, que até mesmo machuca
meu nariz. Apoio-me na pilastra próxima a mim na tentativa de me recuperar
do susto.
— Ai. — Levo a outra mão diretamente à parte machucada e sinto os olhos
lacrimejarem levemente. — Você não olha para onde anda, porra?
— Olá, Regina. — cumprimenta, me fazendo enrugar o nariz assim que
reconheço a voz e murmuro um "tinha que ser". — Não vai me parabenizar
pela vitória?
— Até que enfim ganhou alguma coisa — murmuro em um tom desgostoso,
posso sentir até mesmo a amargura em minha língua por ter que parabenizar
meu oponente. Talvez eu não seja tão madura assim.
Thomas solta uma risada e pega em meu queixo, erguendo o rosto em sua
direção. O toque de sua mão gelada em meu queixo me faz estremecer, e ele
inspeciona meu nariz atrás do estrago que fez com seu peitoral que mais
parecia uma armadura de mármore. Ele anda malhando?
— Até que não machucou muito. — Suas palavras me levam até o dia do
Luau, em que vivenciamos uma cena parecida, só que quem estava ferido era
ele.
Junto com a memória, a tensão retorna, porque não sei se ele percebe, mas a
ponta de seu mindinho quase encosta-se a meus lábios, e estamos tão
próximos que posso sentir sua respiração batendo em meu rosto, fazendo com
que um arrepio percorra desde a base de minha coluna até a nuca. Quando
nosso olhar se conecta, tudo ao redor parece ficar insignificante, já que o
Trap que estoura nos alto falantes agora parece um murmuro imperceptível
em meus ouvidos. A outra mão dele está na lateral de meu pescoço, servindo
de apoio para segurar minha cabeça e analisar meu machucado, que já nem
dói mais.
— Thomas. — Minha voz sai em um sussurro tão inaudível que temo não ter
sido escutada, mas ao ouvi-lo murmurar um "pode falar" me ponho a
prosseguir. — Você disse que eu te devo um favor, já que ganhou de Rafe
para mim.
Fico até mesmo surpresa por ter conseguido elaborar uma frase sem gaguejar,
estando em um momento como esse, sentindo o toque de Thomas em mim,
me deixando quente como o inferno. Ele ergue o canto dos lábios em um
sorriso deixando sua única covinha em evidência, e seus olhos azulados
ficam meio apertados quando ele sorri, o deixando ainda mais bonito, se isso
ainda for possível.
— Eu estava pensando em você fazer tudo que eu quero durante uma semana.
— responde com um semblante pidão.
Cerro os olhos em sua direção claramente indignada por ele sequer cogitar
que eu aceitaria isso.
— Não mesmo. — Nego veemente com a cabeça e isso faz com que Thomas
entenda o perigo de nossa proximidade repentina e afaste suas mãos de mim,
o que, para deixar claro, não me deixa nada feliz.
Eu quero as mãos dele em mim.
— Então, o que você sugere, Vossa Alteza?
Ignoro o deboche que escorre por entre seus lábios como um veneno.
Minha atenção volta-se ao seu corpo, e esse talvez seja meu maior erro nesse
momento. Uma de suas mãos está apoiada na pilastra ao nosso lado,
flexionando seu bíceps bem guardado pela camisa de algodão que abriga tão
bem seus músculos. Seus cabelos estão desgrenhados como sempre, de um
jeito muito sexy, e isso me irrita profundamente. Odeio que Thomas seja
terrivelmente gostoso, e quando ele ergue a outra mão, tirando os fios
teimosos que caem sobre seus olhos e ergue a sobrancelha para mim, eu paro
de pensar.
Que se fodam as regras da Mack.
— Eu tenho uma ótima ideia. — Antes que eu termine minha fala em um
sussurro e que volte a tomar posse de minhas faculdades mentais, resolvo
tomar uma atitude.
Thomas não tem tempo de responder, porque eu engancho os dedos em seu
passador de cinto na calça e o puxo em minha direção. Nossos corpos se
encontram em um baque e eu não hesito em aproveitar a pilastra ao nosso
lado, encostando-o ali. Ele está devidamente encurralado por mim, e eu posso
sentir o aroma amadeirado misturado com a nicotina impregnada em seu
corpo. A sensação abaixo de meu ventre, só me incentiva a ir mais longe.
Thomas não me impede, pelo contrário, ele enlaça minha cintura com um
braço colando ainda mais nossos corpos e enrola sua outra mão nas mechas
de minha nuca deixando um puxão ali. E aquilo é o suficiente para me fazer
colar meus lábios aos seus.
Sinto meu estômago afundar dentro de mim assim que sua boca quente entra
em contato com a minha gelada. Temo que nossos corpos estejam ocupando
um mesmo lugar de tanto que estamos colados. Passo, vagarosamente, minha
mão pelo contorno de seus bíceps até chegar aos seus ombros, e antes que eu
possa finalmente descobrir como seria ter sua língua deslizando sob a minha,
ouço um esbravejo.
— Mas que porra é essa? — Me afasto de Thomas tão rápido que até
cambaleio levemente para trás, o fazendo me tomar pela cintura, garantindo
meu equilíbrio.
Recomponho-me na mesma velocidade que reconheço o dono da voz que
interrompe o único momento em que eu tomaria uma das piores decisões
impensadas da minha vida. É Rafe quem está a nossa frente com os braços
abertos e um semblante que beira a indignação. Pois quem deveria estar puta
da vida sou eu, que fui interrompida antes de consumar toda a tensão sexual
que rodeia Thomas e eu.
Se eu pudesse pedir algo ao universo nesse exato momento seria que ele
transformasse Rafe em pó, ou que faça com que ele suma da minha frente
rapidamente. Nem me dou ao trabalho de respondê-lo. Olho para Thomas,
que mantém as vistas fixas em cada movimento meu, e passo a língua por
meus lábios ainda sentindo a queimação de sua boca esmagando a minha,
vendo-o acompanhar meu gesto. Inspiro e expiro tentando reunir toda a
minha paciência para lidar com Rafe, sentindo que Murphy está me
acompanhando pelo dia inteiro apenas para conferir se seus planos para que
tudo dê errado hoje estão de pé.
— Rafe, pode fazer uma coisa por mim? — Ele maneia a cabeça ainda com o
semblante fechado e prossigo. — Vai para a casa do caralho.
Ele não parece esperar tamanha agressividade vinda de mim, que sempre fui
passiva perante a ele, mas sinto minha paciência chegar ao limite e temo o
momento em que eu pularei em cima dele com o único objetivo de enfiar
minha mão em sua cara. Thomas parece ter achado o máximo e ainda me
completa.
— Seu merda.
Não aguardo para verificar a reação de nenhum dos dois. Que se foda. Ainda
estou beirando ao surto pelo quase beijo em Eckhoff. Enquanto caminho a
passos largos para fora de Bolfok Ride, penso em tudo que aconteceu hoje.
Um diálogo infeliz com Rafe, lágrimas sendo derramadas por causa dele, a
notícia de que haviam escolhido Thomas para correr ao invés de mim, minha
primeira derrota em um racha e para completar o pacote de azar, o beijo que
só não aconteceu por interrupção de Rafe. Saber lidar com uma frustração é
mole, agora com quatro é intensamente desgastante.
É... Hoje é um péssimo dia para ser Mackenzie Lennon.
— Você poderia procurar o departamento de psicologia da faculdade.
Lá tem estagiários que te atenderão em uma consulta, e pode ser bom. O que
acha? — A reitora e psicopedagoga, senhora Hayes estava há, pelo menos,
uma hora ouvindo minhas divagações sobre a vida.
Quando minhas inseguranças acerca do curso que escolhi gritaram alto dentro
mim, me obriguei a procurar alguém que me direcionasse palavras sábias. Eu
sabia que, em algum momento, precisaria voltar para a terapia, mas enquanto
a coragem não vem, posso conversar com a Senhora Hayes, que gostou de
mim desde a primeira vez que conversamos. No entanto, me empolguei mais
que o recomendado e, nesse ponto, eu já estou expondo meus devaneios
sobre Rafe e até mesmo Thomas. Tenho certeza de que, por dentro, a reitora
Hayes está tentando se controlar para não dizer que não é paga para me ouvir.
— Mackenzie, vou te emprestar um livro. — Ela inicia, e eu franzo o cenho
para a mudança repentina de assunto. — Está na minha prateleira. Ele é bom,
na verdade, eu já li melhores e depois que terminei esse, o deixei jogado na
minha estante. Está lá, largado, sem uso e às vezes até me esqueço dele. Mas
sabe por que não me desfaço desse exemplar? — Nego receosamente com a
cabeça, e ela prossegue. — Porque quando nada mais puder me entreter,
ainda tenho esse na minha estante.
— Não entendi.
— Você é o livro, senhorita Lennon. — Sua afirmação me deixa estarrecida,
como se um grande nó feito em minha mente estivesse, aos poucos, sendo
desfeito. — Quero dizer, na concepção de Rafe, você é o livro.
Depois de conversar sobre o quanto me sinto insegura acerca de dar conta ou
não do curso, acabei contando a Senhora Hayes o quanto Rafe me deixou
confusa depois do último racha. Nós nos envolvemos há três anos, quando eu
estava no penúltimo ano do High School. Depois que fui feita de otária, nós
terminamos o lance que tínhamos, e ele me descartou. Em seguida, nada mais
rolou entre nós. Então, eu não entendo o porquê Rafe agiu como se tivesse
algum direito sobre mim na sexta passada. Agora, depois dessa analogia,
começo a entender um pouco melhor as coisas.
— Ele tem algum tipo de autoestima elevada e acha que devido à intensidade
do que rolou entre vocês, você continuaria tendo interesse nele. E ele te
cultivou, te chamou de linda, teceu um elogio, te abraçou, fez um carinho, e
quando percebeu que você estava prestando mais atenção em uma interação
com outro homem, ficou ofendido. Você feriu o ego masculino dele, então
ele revidou e te ofendeu, tentando te machucar a todo custo. Por isso a
analogia do livro, entende? Só que você não é um objeto, Senhorita Lennon.
Não se deixe ser tratada como um.
Minha cabeça dói nesse instante. Massageio as têmporas levemente e tento
raciocinar o mais rápido possível para não demorar tanto a respondê-la. Tento
ser coerente e percebo que sim, o que a Senhora Hayes diz faz bastante
sentido. Contudo, tal constatação me deixa com ainda mais ódio de Rafe.
Quer dizer, quem ele acha que é? Como se não bastasse encher minha cabeça
de merda, ainda atrapalha meu momento com Thomas. A certeza de que eu
nunca mais teria a mesma coragem de puxá-lo para um beijo me frustra, e
essa tensão que nos rodeia me incomoda ao ponto de parecer me sufocar cada
dia mais, como uma mão em volta do meu pescoço roubando meu ar
gradativamente.
Desde a sexta passada, fizemos um acordo silencioso de organizar o jantar
por mensagens e vídeo conferências, já que estou abarrotada de trabalhos
para fazer e Thomas também. Está tudo certo para hoje. O evento será em um
salão da faculdade, decorado unicamente para a ocasião. O buffet já havia
confirmado, assim como os garçons, o pianista e os profissionais de limpeza.
Sinto-me orgulhosa de mim e de Thomas por termos conseguido organizar
um evento de luxo em pouco tempo, porque apesar dos momentos de
palhaçada em nossas reuniões, Eckhoff se saiu relativamente bem. Pelo
menos, já havíamos passado da fase de discordar um do outro apenas pelo
prazer de nos vermos espumando de ódio.
— Senhorita Lennon? — A reitora Hayes atrai minha atenção, fazendo-me
perceber que perdi tempo demais divagando sobre meus dias até aqui.
— Olha, senhora Hayes. Admito que tudo que a senhora disse faz total
sentido. Rafe é um tremendo ridículo, e prometo que, da próxima vez que nos
encontrarmos, não deixarei que ele pise em minha cabeça. — Olho no relógio
de ponteiro que decora a parede atrás da mesa do escritório e percebo que já
estou atrasada para minha próxima aula. — Agora tenho que ir. Muito
obrigada pelos conselhos, pela conversa, e juro que pensarei sobre o
departamento de psicologia.
— Estou aqui para ser suporte para meus alunos, mesmo quando eles querem
me contar suas vidas inteiras. — Sinto a alfinetada, mas ignoro, como uma
boa abusada. — Senhorita Lennon?
— Sim.
— Tente estabelecer uma trégua com o Senhor Eckhoff, porque vocês ainda
trabalharão juntos até o Halloween. — Pondero acerca de seu conselho,
porém não por muito tempo, já que ela volta a falar. — Seja jovem, o tempo
passa rápido demais e quando você piscar, terá a minha idade. E sabe do que
você não terá se arrependido?
Nego veemente com a cabeça, já em pé com a porta entre aberta, pronta para
sair.
— De ter aproveitado cada fase da sua vida. Às vezes é bom pensar menos e
agir mais. A jovem que nunca tomou uma atitude insensata por causa de
homem que atire a primeira pedra. — Ela me lança um sorriso contido e eu
retribuo, agradeço mais uma vez e dou o fora dali.
No fundo, sei que a Senhora Hayes praticamente me empurrou para cima de
Thomas, como se dissesse "Pode beijá-lo, Mackenzie. Nós duas bem sabemos
que você quer, e aquele rostinho bonito vale a pena".
Meu orgulho grita comigo, me alertando de que não posso passar por cima
dele e terminar o beijo que comecei na sexta. Mas o que exatamente eu
estaria perdendo?
Bom, agora não importa. Porque algo muito mais importante precisa da
minha atenção: minha aula de Direito Constitucional.

Assim que chego ao alojamento com pressa para me arrumar, já tenho uma
visão privilegiada de Nevaeh gesticulando nervosamente no telefone. Como
meus ouvidos parecem apurar-se sozinhos quando o assunto é fofoca, é
inevitável não escutar. Apenas pego palavras entrecortadas, algo sobre
ateísmo, protestantismo e intolerância. O assunto me deixa curiosa porque sei
que Nevaeh é religiosa, percebo durante a nossa convivência, porque ela ora
todas as noites e também usa um crucifixo pequeno ao redor do pescoço. Mas
não é como se ela falasse muito sobre, acho que é algo muito particular que
só envolve ela e Deus.
Eu perderia muito mais tempo se continuasse ali ouvindo, então recolho meus
pertences e me ponho a tomar uma ducha e me aprontar.
Pensei que, ao me maquiar, eu teria o momento necessário para entender
sobre o telefonema de Nev, porém quando me sentei na cama e abri o
espelho, ela passou como um furacão por mim murmurando algo como
"estarei no Dominic, não me espere para dormir". Mando que o bichinho
curioso que vive dentro de mim se aquiete até que eu possa, em outro
momento, abordá-la acerca desse assunto e, finalmente, sanar minha
curiosidade em um futuro próximo.
Nevaeh é bem mais reservada que eu, e não tem o costume de compartilhar
suas intimidades com as pessoas. Quando quis saber sobre o seu
relacionamento com Dominic, a única coisa que ouvi foi que eles se beijaram
pela primeira vez na biblioteca em que ela gostava de passar o sábado. No
mesmo dia da nossa primeira festa de fraternidade juntas, no início do
período. E que depois disso, os dois começaram a passar madrugadas a fio
juntos, passeando de moto por Bolfok. Gosto deles juntos, principalmente
pela maneira com a qual se tratam e se olham, instaurando uma conexão só
deles. Que ninguém é capaz de entender.
Durante o tempo em que uso para me arrumar, Thomas já mandou cerca de
dez mensagens e oito são provocações quanto ao atraso da organizadora do
jantar. Não que eu me importe muito com as alfinetadas dele.
Na primeira mensagem que respondi, eu estava o alertando que chegaria em
dez minutos. Mas não era difícil concluir que isso jamais aconteceria. Ainda
estou passando o corretivo, tranquilamente, ouvindo Madonna como trilha
sonora. Conto mentalmente a quantidade de alertas de notificações que já
ouvi nos últimos dois minutos, e sei que é Thomas enchendo o saco, por isso
nem me movo, continuando a executar meu trabalho imersa em uma
paciência digna de um mestre da Ioga.
Depois de muito mais do que dez minutos fico realmente pronta e dispenso a
carona de Eckhoff, já que o salão da faculdade fica bem perto dos
alojamentos. Ele me oferece carona quase que em uma garantia de não me
deixar atrasar mais, no entanto, ajeito a alça fina do meu vestido antes de me
encasacar e saio pronta para enfrentar uma caminhada curta em cima de
saltos Louboutin.
Tenho um sorriso largo no rosto porque me sinto bonita. O vestido preto é um
Valentino que abraça meu corpo perfeitamente, como se tivesse, de fato, sido
feito para mim. O pano é justo no busto e se desprende em uma saia mais
solta a partir da minha cintura, me dando conforto para me mexer de um lado
para o outro como eu sei que farei sendo uma das organizadoras. Uma
maquiagem simples decora meu rosto, já que nem mesmo sei fazer nada
muito elaborado, mas o delineado que repuxa o canto de meus olhos está
simétrico pela primeira vez, pois geralmente ficam tortos.
O fato de que tudo está dando certo até o presente momento é o que mais me
deixa feliz. Sei que estou bonita e sei que fiz um bom trabalho para que tudo
esteja perfeito no jantar de confraternização do corpo docente, apesar de, na
verdade, não poder tirar o mérito de Eckhoff, que contribuiu bastante na
arrumação.
Assim que piso no salão principal abro um largo sorriso. O evento está tão
elegante e luxuoso que me sinto em mais um jantar da elite de Dilshad, e um
sentimento leve de nostalgia se apossa de mim. Há um lustre brilhoso que
pende imponente no teto, um piano de calda no canto direito, uma grande
mesa com cadeiras que comportam a quantidade exata de professores,
orientadores e coordenadores. A decoração varia entre tons de dourado e
branco, assim como as orquídeas. Uma música clássica serve para
harmonizar o ambiente, baixa o suficiente para que as pessoas possam
conversar em um tom educado e os garçons caminham pelo salão servindo os
convidados. Ou seja, tudo sob controle.
Varro o local com os olhos a tempo de receber um aceno positivo da reitora
Hayes, aprovando silenciosamente o nosso trabalho. Continuo buscando
rostos conhecidos e sei que, no fundo, estou atrás de certos pares de olhos
azulados e um sorriso zombeteiro, porém, antes que eu siga caminhando pelo
local, sinto uma presença ao meu lado.
— Fizemos um bom trabalho, não acha?— Thomas encosta o braço no meu,
com as sobrancelhas levemente arqueadas enquanto analisa o salão.
Permito-me tomar um tempo para analisá-lo. Eckhoff está, pela primeira vez,
vestido a rigor. A camisa social tem, pelo menos, três botões abertos, está por
dentro da calça social que tem o tamanho compatível ao dele, e o blazer cobre
seus ombros largos. Não é uma surpresa que Thomas esteja de preto da
cabeça aos pés, isso, inclusive, o deixa ainda mais charmoso. O cabelo loiro
não está nada alinhado, já que os fios estão desgrenhados e caem sobre sua
testa, mas até isso parece complementar sua pose despreocupada.
— Fizemos, sim. — Me recordo de respondê-lo e pigarreio para disfarçar que
estava o secando antes. — Até que você não está tão feio hoje, Eckhoff.
Meu tom é satírico, e Thomas percebe isso, pois me acompanha na risada.
Ele sabe que o comentário foi, na verdade, um elogio, já que eu jamais diria o
que realmente acho: Thomas está terrivelmente gostoso.
— Essa é sua maneira de dizer que estou lindo? — Ele pergunta e eu nego
veemente enquanto franzo o nariz em uma expressão de desdém. — Posso?
Quando ele aponta com a cabeça em minha direção, me recordo de que ainda
estou com o sobretudo grosso e ao lado da chapelaria. Lanço-o um aceno
positivo, aceitando a ajuda com o casaco. A ponta de seus dedos roça em meu
colo quando ele alcança a gola de minha vestimenta, e tento acelerar o
processo de retirada para disfarçar meu arrepio. Após entregar a peça para a
funcionária responsável por guardá-las, Thomas se permite me analisar da
cabeça aos pés, e sinto como se ele estivesse, literalmente, tirando meu
vestido com os olhos. Odeio que essa tensão palpável empurre o ar do
ambiente, pressionando-o em cima de nós. Sempre que estou em sua
companhia, sinto como se um tijolo estivesse em cima de minha garganta e
brasas queimassem minha pele em vários pontos escondidos.
— Vamos socializar, Eckhoff — chamo-o com a mão e começo a caminhar
pelo salão. — É hora de você fingir que tem educação.
— Jura? — Ele ergue a sobrancelha junto com o canto dos lábios. — Pensei
que esse seria o momento certo para comer de boca aberta seus petiscos
cheios de frescuras.
A "meus petiscos", ele está se referindo a série de aperitivos franceses de
luxo que mandei o buffet preparar. Todos os convidados parecem estar
aprovando, menos Thomas, acostumado a comer cheeseburger com Dr
Pepper— um refrigerante americano de baixa qualidade que pobres adoram.
— Os petiscos estão uma delícia. — Enquanto sibilo entredentes com o
ridículo ao meu lado, ele toma um gole de Mimosa e rapidamente põe a
língua para fora em uma careta de desgosto.
— Que coisa horrorosa! Quem foi o otário que achou genial juntar suco de
laranja e espumante?
— Não xingue um Louis Rodeerer. Ele custa duzentos e oitenta dólares.
Thomas está boquiaberto agora.
— Um champanhe desse preço para misturar com suco de laranja, que coisa
mais ridícula — ignoro seus comentários ranzinzas e continuo acenando
educadamente para alguns professores. — Sabe quanto é uma caixa de Dr
Pepper no mercado?
— Suponho que barato.
— Trinta e seis latas por dez dólares, cada uma sai a vinte e oito centavos. —
Reviro os olhos e ignoro seu argumento.
— Ah, quanta classe beber um Dr Pepper em um jantar como esse.
Tento segurar a risada ao ver Thomas mastigar um petisco e cuspir
discretamente no guardanapo.
— Acabei de comer um defunto. — Me engasgo com a saliva levemente
assim que o riso escapole pela minha garganta.
— Você comeu um Tapenade. São azeitonas pretas, alcaparras e azeite —
Thomas me encara com os olhos dotados de horror. — Est Française! (é
francês).
Forço um sotaque errôneo apenas para fazer graça, o que não funciona muito,
já que Thomas continua com o semblante horrorizado.
— Apesar de ter achado esse sotaque bem sexy em você, essa coisa é
horrível, parece que estou comendo bolinho de esgoto. — Ignoro sua
tentativa de flerte e franzo o nariz.
— Eu acho uma delícia. — Subo e desço os ombros.
— É porque você já morreu por dentro.
Durante a próxima hora, Thomas e eu passamos abarrotados de coisas para
fazer. Chamando atenção de alguns garçons desatentos, socializando com o
corpo docente presente, fingindo prestar atenção aos discursos da reitora e
dos coordenadores e tomando conta do pianista preguiçoso. Thomas diz que
sou uma megera e que os dedos do músico cairão de tanto tocar, mas bom,
ele foi contratado para fazer o seu trabalho. Essa pauta rende uma longa
discussão entre mim e Eckhoff. Ele diz que me pareço com uma patroa
esnobe e arrogante, o que me faz rebatê-lo em outro xingamento, gerando
uma briga acalorada em que precisamos usar da nossa palavra de segurança.
Já não tenho certeza se ainda sinto meus pés em cima desses sapatos. Está tão
abafado dentro dos saltos que sinto o suor entre meus dedos – já esmagados
pelo bico fino do scarpin – que clamam por descanso.
A reitora Hayes e o senhor Leighton fizeram questão de nos parabenizar
pessoalmente pelo trabalho bem feito. Eles disseram que sempre tiveram a
certeza de que Thomas e eu trabalharíamos bem juntos. Isso é porque ela não
teve que aturá-lo por quase dois meses. O senhor Collins também interage
comigo, diz que está orgulhoso do nosso trabalho e que ficou muito feliz com
meu último artigo de Constitucional. Ele também me conta que é pai de Josh,
seu garoto membro do time de futebol americano. Eckhoff respondeu que
Joshua e eu nos conhecemos muito bem, e a única reação que teve de minha
parte foi uma boa cotovelada na lateral da barriga e um sorriso amarelo em
direção ao meu professor, que pareceu não entender o verdadeiro conteúdo da
provocação do loiro.
Uma mulher – que depois descobri se chamar Lourdes Harris – pega as mãos
de Thomas e o agradece pelo jantar, diz que ele é bom em tudo que faz e que
é como um filho para ela. Isso me surpreende um pouco, já que nem mesmo
sabia que Thomas faz questão de manter algum tipo de laço com os
professores de seu curso. O diálogo deles é curto, ela diz o necessário e
depois se junta com um grupo de outras professoras. No geral, está tudo sob
controle.
Estamos em um canto afastado do salão ouvindo a música clássica aumentar
o volume fazendo com que algumas pessoas se sintam inclinadas a reproduzir
um ou outro passo de dança, enquanto contemplo o divertimento alheio, sinto
um cutucar leve em meu braço.
— Dança comigo. — Embora seja um convite, seu tom não se assemelha em
nada a um questionamento, independentemente disso, aceito o pedido.
Pego sua mão estendida em minha direção e sinto breves choques irrompendo
rápido pela minha corrente sanguínea. Odeio sentir esse misto de sensações
sempre que estou muito próxima de Thomas, mas é inevitável e
incontrolável. Uma de suas mãos vai parar em minha cintura enquanto a outra
sustenta a minha rente aos nossos ombros. Eckhoff é consideravelmente mais
alto que eu, mas devido ao salto, consigo equiparar um pouco a diferença.
A dança é um desastre. Nossos corpos trombam um no outro
desajeitadamente, e eu piso no pé de Thomas incontáveis vezes, além de ser
obrigada a ouvi-lo dizer que sou horrível nisso, e que perto de mim, ele é um
pé de valsa. Piso de novo no pé dele, mas dessa vez de propósito e sinto um
leve beliscão em minha cintura. Estamos a ponto de brigar naquele exato
momento, no entanto, decido mudar o rumo da discussão.
— Onde aprendeu a dançar, senhor pé de valsa? — percebo seus pelinhos
eriçados assim que sopro a pergunta em seu ouvido.
— Minha mãe. — Ele abre um sorriso grande e o vislumbre de uma memória
parece passar em seus olhos. — Desde pequeno, eu a ouvia dizer que homens
que dançam ficam automaticamente mais bonitos. Sempre achei uma grande
bobagem, mas acredite, há mulheres que gostam. Então, quando eu era bem
pequeno, Noora Eckhoff colocava uma balada romântica no rádio velho de
nossa sala, me colocava sobre seus pés e rodopiava comigo de um lado para o
outro. Esse ritual era repetido quase todos os dias, mesmo que ela tivesse
acabado de chegar em casa depois de um dia extremamente cansativo.
"Gosto de pensar que aquele momento era a melhor parte de nossas noites
calorentas em Oroland County. Acho que se eu me esforçar um pouco,
consigo ouvir o barulho do piso de madeira já bastante gasto ranger sob os
meus pés. Eu cresci nessa rotina, quase todos os dias eu tinha compromisso
marcado: dançar com a mamãe. Quando atingi o tamanho e peso
incompatível com o que minha mãe aguentaria, invertemos as posições.
Então, ela quem passou a subir nos meus pés para dançar."
Thomas respira fundo e conecta seus orbes brilhantes com os meus.
— Sinto falta disso. — Uma ideia passa rápido em minha cabeça e, antes que
eu possa pensar melhor acerca dela, já estou retirando os saltos que tanto me
incomodam. — O que está fazendo, Lennon?
Largo os sapatos perto de nós e volto a ficar em frente a ele. Tomo a
liberdade de subir em seus pés e quase escorrego pelo atrito de meus pés
suados em seus sapatos lustrosos. Thomas enlaça minha cintura para que eu
não caia e meu estômago afunda mais um pouco.
— Já que você tanto se gaba de saber dançar, essa é uma boa oportunidade
para tentar me ensinar alguma coisa.
Há uma espécie de atmosfera acolhedora entre nós, como se no instante em
que nossos olhares se encontram, uma conexão se estabelece. Thomas sorri
grande para mim, e o gesto é tão puro que me faz ficar perdida na beleza do
momento por alguns segundos. E só pareço finalmente acordar quando
Eckhoff começa a se mexer cautelosamente.
Apoio-me em seu ombro e aperto sua mão com força descontando meu medo
do desequilíbrio. Contudo, por mais incrível que pareça, estamos
funcionando muito melhor desse jeito do que antes, quando eu pisava em seu
pé desastradamente. O aperto ao redor de minha cintura torna-se mais forte
para não me deixar cair, e não consigo evitar estremecer. Thomas toma a
liberdade de rodopiar um pouco mais, com habilidade, me mostrando que
realmente sabe dançar, mas seus passos ainda são contidos, já que não
queremos chamar tanta atenção. Ninguém parece se importar, de fato, com os
dois jovens dançando no canto do salão. Suponho que há assuntos mais
importantes para serem tratados pelos mais velhos.
Nossa dança acaba junto com a música e sou obrigada a elogiá-lo e dizer que,
realmente, ele dança bem. Isso parece inflar o ego de Thomas de uma
maneira que começa a ficar sufocante para alguns convidados, que começam
a ir embora. Decidindo aproveitar a deixa, concluímos que já está na nossa
hora também.
Thomas e eu perdemos por volta de dez minutos discutindo, porque ele
insiste em me levar até meu alojamento e eu resisto apenas pelo prazer de vê-
lo irritado. Por fim, decido aceitar a companhia, já que está quase um breu lá
fora. Enquanto Eckhoff vai ao banheiro, dou uma última conferida na equipe
de limpeza que ficará depois do evento organizando tudo.
Depois de ajeitar os últimos detalhes, sigo até a chapelaria, encontrando um
Thomas impaciente na porta.
— Moça, o dela é o mais caro do cabideiro e o meu o mais barato. — A
funcionária parece se divertir com a impaciência do loiro que bufa de cinco
em cinco segundos, enquanto ela confere calmamente cada casaco disposto
ali.
O pé esquerdo de Thomas atrita no piso em uma frequência irritante,
provocando um ruído insuportável. Dou um chute de leve na parte de trás de
sua coxa e ele tromba seu quadril no meu. Quando a mulher finalmente acha
nossos casacos, prevejo o momento que o homem ao meu lado ajoelharia e
agradeceria aos céus.
— Por que está tão impaciente? — questiono assim que piso no concreto
gelado da calçada do Campus.
Meus pés descalços até reclamam pelo contato gélido ao chão, mas decido
que enfiá-los em um salto fino novamente seria ainda pior. Thomas faz o
favor de levar meus sapatos pelo caminho.
— Quando eu estava saindo do banheiro, uma moça quase idosa me
interceptou e me fez um convite um tanto indecente. — Apuro minha audição
assim que reconheço o tom de voz de Thomas. Esse ele usa quando vai fazer
uma fofoca. — Ela se ofereceu para pagar meus custos com a universidade e
com a vida em troca de...você sabe...favores.
As pausas dramáticas e constrangidas de Thomas me fazem rir baixo, mas
ainda assim, eu não entendo o conteúdo da conversa.
— Como assim?
— Ela queria ser minha sugar mommy, Lennon.
Assim que processo suas palavras, caio na risada. A gargalhada explode em
minha garganta assustando qualquer pássaro que se aproveita da penumbra e
do silêncio da rua. Em certo momento, até mesmo Thomas está rindo comigo.
Pergunto se ele pediu que ela explicasse a proposta direito, mas o olhar de
horror que recebi me provou que ele provavelmente murmurou um "não
tenho interesse, obrigado" e saiu correndo.
O curto caminho até o prédio de meu alojamento é preenchido pelo assunto
Sugar Mommy e Daddy. Eu disse que até mesmo já cogitei tentar quando me
vi abarrotada de trabalhos de Direito, de modo que Thomas semicerra os
olhos em minha direção e isso é suficiente para cairmos na risada novamente.
Ao me deparar com a porta principal do edifício, Eckhoff decide me levar até
lá porque diz ser um cavalheiro, e eu apenas ignoro sua gracinha.
Quando chegamos em meu andar, estou pronta para me despedir e agradecer
por sua companhia. Contudo, assim que prego meu olhar ao seu, a atmosfera
ao nosso redor muda novamente. Agora sinto aquela mesma pressão do ar
sobre nós, roubando meu fôlego, fazendo com que eu sinta um arrepio passar
desde a base da minha coluna até a nuca.
A cada passo dele em minha direção, é um meu para trás, como se eu fosse
uma presa e estivesse fugindo do meu predador, e o pânico se instala fazendo
meu sangue borbulhar.
— Lembra do nosso primeiro dia trabalhando juntos? — Ele indaga cada vez
mais próximo, e me limito a acenar em concordância. — Eu disse que se
tivesse um parafuso a menos, te prensaria em uma parede e te beijaria.
Continuo aguardando que ele continue, mas em meu interior, sei exatamente
o que ele quer dizer com isso.
— Acho que estou com um parafuso a menos.
— Por quê? — Tento sair pela tangente.
Os braços de Thomas estão postos um em cada lado meu, na porta, me
encurralando. A expressão "estar contra a parede" nunca foi tão literal para
mim quanto agora, mesmo estando contra a porta na realidade. Sua respiração
bate em meu rosto, arrepiando a região do meu colo. Um incômodo
desconhecido se dá no meu estômago, e eu me pergunto se não comi algo
estragado no jantar. É a única explicação.
— Porque eu vou te beijar agora. — Ele sussurra em meu ouvido. Não soa
como uma pergunta, e sim como uma afirmação. — Se você tiver algo contra
o que vai acontecer nesse exato momento, diga nossa palavra de segurança.
Penso em exclamar “Rosa”, a nossa palavra, em alto e bom som. Reflito até
mesmo acerca da ideia de deixá-lo aqui e sair correndo. No entanto, seu
hálito fresco chocando ao meu rosto, arrepiando o colo, os olhos intensos me
escrutinando com a íris brilhando em desejo, só contribuem para que eu
finque ainda mais os pés no piso bem encerado do corredor escuro do prédio.
O motivo da minha mudez nesse instante é desconhecido por mim. Trabalhar
sob pressão sempre foi complicado, mas ali, eu não sei bem se me calo diante
da situação pela pressão. Acho que no fundo, bem no interior do meu âmago,
eu quero ser beijada por Thomas Eckhoff de novo, só que direito dessa vez.
Não desvio meu olhar dos seus, sentindo sua mão acariciar meu pulso, correr
livre pelo meu antebraço e parar em meu cotovelo. Sem jamais desconectar
os olhos dos meus, passo a língua por meus lábios e o vejo acompanhar meu
movimento. Depois, ele segue com a carícia até meu ombro, contorna minha
clavícula com a ponta áspera dos dedos, sobe pelo meu pescoço e vai até
minha nuca. Nesse ponto, não há um lugar do meu corpo que não esteja em
chamas. Thomas enrola as mechas de minha nuca em sua mão, enquanto a
outra aperta minha cintura e dá um puxão em meu cabelo, me fazendo
encará-lo. E é nesse exato momento que eu paro de pensar.
Então, eu não espero que ele prossiga com seus atos, na verdade, eu os
adianto. Esquecendo qualquer desavença, ódio ou disfunção, eu o beijo.
Seus lábios quentes pressionam os meus e me sinto queimar. Abro passagem
para que sua língua encontre a minha e sinto seu tronco pressionar o meu
com ainda mais força. Sua língua desliza para o interior da minha boca, e nós
tentamos encontrar um ritmo. Não sei se algum dia na minha vida já fui
beijada assim, com tamanha brutalidade e agressividade, mas ao
experimentar, temo nunca mais querer parar.
Uma de minhas mãos está por dentro de seu blazer, em seu ombro, e a outra
se ocupa de puxar os fios displicentes de sua nuca. Há uma fome anormal
entre nós. Sinto que posso ser engolida a qualquer momento e temo até
mesmo que nossos dentes batam um no outro, mas isso não acontece, porque
é assim que funciona entre a gente. Thomas me beija com raiva, sua língua
tem uma aspereza tão confortável que eu poderia passar a noite apenas o
beijando, mas quando sua mão desce de minha cintura para a minha bunda,
por baixo do vestido, ergo minhas pernas para enlaçá-lo com elas.
Agora Thomas tem uma mão em cada lado da minha bunda, e o aperto é tão
forte que talvez fique vermelho amanhã. Sinto um incômodo abaixo de meu
ventre assim que suas unhas curtas arranham minha carne. Parto o beijo
puxando seu lábio inferior entre os dentes e desço a maçaneta do alojamento
desajeitadamente. Eckhoff decide me ajudar e no instante que adentramos
meu quarto, ele volta a me prensar na porta, em um movimento tão rápido
que quase fico tonta.
Tudo beira ao exagero ali, mas a única coisa que sinto é a minha boceta
pulsar quando Thomas envolve a lateral do meu pescoço com a mão e
pressiona levemente, roubando parte do meu ar. Ele chupa o lóbulo da minha
orelha, deixa um beijo cálido atrás dela, e volta a puxar as mechas da nuca.
Em seguida, percorre o meu pescoço, mordendo e logo depois assoprando e
chega até minha clavícula. Reviro os olhos pela carícia e tomo sua boca na
minha novamente. Minha língua desliza sobre a dele e voltamos ao ritmo
agressivo de antes. A mão de Thomas desce da minha bunda até atrás de meu
joelho e deixa uma carícia ali. Estou tão sensível a toques que aquilo me
excita ainda mais.
Ele sobe a mão por toda a extensão da minha coxa e deixa um tapa ardido na
parte de fora dela. Isso é suficiente para me fazer partir o beijo, passar a
língua no canto de seus lábios, fazendo-o arfar. Distribuo beijos por sua
mandíbula até chegar em seu pescoço, prossigo com o afago e não deixo de
morder levemente, assoprar e lamber. Um ruído grave irrompe em sua
garganta assim que cubro meus dentes com os lábios e sugo com força
moderada a pele sensível próxima a sua clavícula. Mantenho-me ali por um
momento, sentindo meu peito arder pela falta de fôlego. Quando solto sua
epiderme, Thomas deixa outro tapa ardido em minha bunda e minha
intimidade pulsa novamente, ao passo que volto a ocupar minha boca com
seu pescoço e puxo seus fios da nuca.
— Filha da puta. — Escuto o xingamento sussurrado em meu ouvido e
Thomas me prensa ainda mais na parede quando sua outra mão aperta meu
seio com força. — Gostosa do caralho.
Solto uma risadinha baixa que logo se esvai assim que seu dedo indicador e o
médio tentam puxar meu mamilo rijo, impedido pelo tecido do vestido. Ele
volta a pressionar seus lábios nos meus e temo que isso seja viciante. Thomas
me coloca no chão e se encaixa em meu corpo, pressionando sua ereção
acima de meu ventre devido à diferença de alturae não consigo evitar que o
gemido saia por entre meus lábios.
É quase impossível raciocinar algo coerente tendo minha boca explorada pela
língua de Thomas. Tombo a cabeça para o lado com o objetivo de aumentar o
contato entre nós, e faz efeito, já que um ruído escapole de nossas bocas. Meu
peito clama por um descanso, implora que eu volte a respirar, e quando
quebro o beijo novamente, nossos corpos atritam pelo nosso torso que sobe e
desce em um ritmo acelerado. E quando consigo uma distância adequada ao
bem da minha sanidade mental sou capaz de processar o que está
acontecendo, o medo toma conta de cada mazela do corpo.
Que merda eu acabei de fazer?
— Tira as mãos de mim. — A voz imponente de Mackenzie reverbera
por todo o cômodo, me afastando bruscamente de seu corpo.
Respiro fundo e decido nem pensar sobre o que acabamos de fazer. A
mudança de ideia repentina vinda de Regina não me assusta, já que eu
imaginei, no momento em que a beijei que as coisas não seriam tão fáceis
para nós. Há algo em Lennon muito maior que qualquer insegurança ou
medo, e se chama orgulho. Ceder a mim significaria pisar em cima de tudo
que ela jurou não fazer durante esse mês. E mesmo com todas essas
perspectivas, não me sinto mais tranquilo.
Mackenzie Lennon vai me enlouquecer.
Isso é um fato. Seus olhos intensos dotados de uma fúria sem precedentes,
essa que antes servia para sugar a pele de meu pescoço com força ou para
arrancar meu fôlego, agora serve para fazê-la abrir a porta de seu alojamento
bruscamente.
— Vai querer fingir que isso nunca aconteceu? — indago em um fio de voz
mesmo já sabendo a resposta.
— Isso o quê? — Aperto meus olhos em sua direção. — Tá vendo? Já
esqueci.
— Pensei que fosse mais madura, Lennon.
Vejo suas vistas faiscarem em minha direção como raios laser.
— Mais madura? — Ela dá um passo até mim. — Eu não preciso de
maturidade para lidar com algo tão simples. Tínhamos uma tensão sexual
reconhecível e acabamos com o problema. Foi só um beijo, desencana.
— Não foi só um beijo para mim. — Antes que eu segure minha língua
grande, dou o prato de bandeja para ela.
Mackenzie sobe e desce os ombros com um sorriso de desdém decorando
seus lábios.
— Que pena — rebate, a soberba irradiando entre sua expressão.
Bufo, descontando minha irritação.
Por que Mackenzie não pode ser menos complicada? Nós dois sabemos que a
porra desse beijo foi muito mais que intenso. O corpo dela estava tão quente
em minhas mãos que temi o momento em que nós começaríamos a queimar.
Fui deixado, literalmente, na mão. Com o pau pulsando e as bolas doendo.
— Você está agindo como a verdadeira escrota arrogante que é! — Meu tom
de voz sobe alguns oitavos.
Nossos olhares estão rente um ao outro, ardendo em fúria, e as bochechas
dela ganham uma coloração avermelhada.
— E você não sabe receber um não como qualquer homem. — Os olhos de
Regina reviram, e reconheço neles a mesma superioridade de sempre.
— Caralho. — Meu tom de voz sai uns quintos mais altos sem que eu possa
me conter. — Você sabe muito bem que a questão aqui não é essa.
Antes que eu termine minha frase, Mackenzie me interrompe: — E qual é a
questão?
Nossos peitos sobem e descem tão rápido que temo ter uma crise de asma
agora mesmo.
— A gente está há dias assim. Faz a porra de um mês que eu te olho e quero
te foder. Mas não só isso, não sei se você percebeu, mas temos convivido
mais do que esperávamos. E eu gosto do caralho da sua companhia. —
Despejo tudo em Mackenzie com uma rapidez invejável. — Eu esperava que
depois desse beijo pudéssemos levar as coisas de outro jeito.
E mais uma vez, percebo que falei demais.
— Esse é o problema de criar expectativas: você se frustra. — Ela responde,
as sobrancelhas desenhadas arqueadas como sempre.
Analiso minuciosamente o semblante duro de Mackenzie.
Seus lábios estão crispados, os olhos bem abertos exalando confiança e as
sobrancelhas levemente arqueadas entregando sua superioridade. Não há
nada em seu rosto que me faça duvidar de suas palavras, e estranho a frieza
exagerada de Lennon, que geralmente prefere cair na pilha e demonstrar seus
sentimentos, sejam eles de fúria ou calmaria. Contudo, suas orbes parecem
estar decoradas com uma crosta de gelo, esfriando com rapidez o ambiente
antes tão quente.
— Se o que você quer é esquecer, faremos isso. — Inflo meus pulmões de ar
e solto com rapidez. Dou um ou dois passos em sua direção e seu nariz quase
resvala em meu tronco devido à proximidade. — Mas quando você quiser de
novo, eu não vou ceder.
— Veremos! — O grito agudo de Mackenzie é a última coisa que ouço após
pular para fora de seu quarto e ter a porta batida em minha cara.
Sei que, no fundo, é guerra que Mackenzie quer, porque ela se alimenta de
conflitos. Essa mulher ama uma disputa, e eu sei que ela vai provocar, em um
jogo irritante para que o primeiro que ceder possa se vangloriar. E nós dois
sabemos que sou o mais fraco, o mais suscetível a cair em suas garras
afiadas. Sento-me no último degrau do lance de escadas, escutando o ruído
desses sapatos desconfortáveis contra o piso bem encerado. Sopro o ar com
força, necessitando mais do que nunca de um cigarro. É impressionante como
acabamos de nos beijar e eu poderia voltar lá de novo para repetir a dose até o
amanhecer. Tiro o paletó e fico aliviado ao perceber que ali fora finalmente
posso mexer na cueca e ajeitar as coisas por lá.
Antes que eu decida me levantar e seguir meu caminho até o salão novamente
para pegar o carro e ir para casa, escuto o bip que anuncia uma notificação.
Jules: Minha colega de quarto foi dormir em outro lugar. Quer vir para cá?
Esse, definitivamente, não é um bom momento.
Repuxo os fios da nuca com força, frustrado pela batalha que travo neste
exato instante. Jules é incrível, e uma das mulheres mais bonitas que já tive o
prazer de transar. Além de ter tatuado quase o corpo todo de Andrew e
Dominic, ao passo que desenhou meu pássaro do peitoral e as ilustrações do
braço. Ela compartilha dos mesmos gostos que eu, anda por aí com botas de
combate e jaquetas de couro com o símbolo de seu grupo de motociclistas
bordado atrás e sua companhia é extremamente agradável. Bom, Mackenzie
acabou de pedir para que eu esqueça tudo o que houve entre nós. Além disso,
não tenho compromisso com ninguém. E a mulher que reside no fim do
corredor não está interessada em nada que envolva sentimentos e me aguarda
para uma noite agitada. Portanto, acho que não é necessário ser muito
inteligente para chegar à conclusão certa. Quando me levanto, guardando o
blazer de baixo do braço, reflito que talvez eu esteja apenas pensando com a
cabeça errada, mas não me arrependo nem um pouco.
Antes que eu dê uma batida leve na madeira maciça do quarto 500, Jules já
abre a porta, me lançando um sorriso amistoso que eu não hesito em
devolver.
— Noite divertida? — Ela aponta para algo em meu pescoço e eu franzo
cenho em confusão. Pego o celular para conferir o que há e bufo ao perceber
que Mackenzie deixou uma marca ali.
— Você nem imagina o quanto. — Meu tom escorre tédio e ela percebe, já
que solta uma risada.
Adentro seu alojamento sem pedir permissão e percebo que nada mudou
muito. A parede cheia de pôsteres continua abarrotada de coisas e talvez ela
tenha acrescentado um ou outro desde a última vez que estive aqui. Jogo-me
em sua cama sem hesitar e termino de abrir o resto dos botões da blusa.
Odeio essa roupa que pinica e tudo que vem junto com trajes sociais. Em
seguida, sinto a cama afundar perto de mim, e Jules se senta ao meu lado,
cruzando as pernas.
— Quer me contar o que aconteceu? — Seus olhos grandes e estreitos
diminuem quando ela ri, em claro deboche a mim.
Não hesito em contextualizar a situação para que ela entenda o motivo das
roupas sociais, do sapato que já está longe de meus pés e da marca arroxeada
que decora meu pescoço.
— Eu sabia que havia um motivo para você ter saído de casa cheirando bem.
— Estreito os olhos, sentindo a respiração falhar levemente por tê-la próxima
a mim, dando uma conferida no aroma em meu pescoço, e ouço sua
gargalhada aumentar o volume.
— Você é tão engraçada. — Franzo o nariz em uma careta, mas acabo rindo
junto.
A noite, na verdade, não foi de toda ruim, já que, como eu disse antes, a
companhia de Mackenzie – mesmo que cheia de brigas e alfinetadas – é
muito boa. Ter seus pés sobre os meus em uma dança lenta me trouxe
sentimentos bons como nostalgia e tranquilidade. Uma paz se apossou de
mim e eu senti como se nada pudesse me tirar do sério, e o beijo... Puta que
pariu. Eu não deveria ter cedido, não mesmo, porque eu duvido muito que a
sensação de seus lábios pressionados aos meus e de nossas peles quentes
atritando saia de minha cabeça.
— Você está tão ferrado quanto eu. — Cerro minhas vistas, descontando
minha confusão. E ela percebe, porque continua a falar. — Eu chamo de
amor de pica, quando o sexo e o encaixe são tão bons que fica gravado na sua
memória por muito tempo. E tenha certeza, essas memórias sexuais virão nos
momentos mais inoportunos.
— Isso foi para me ajudar? — questiono, vendo Jules gargalhar como a diaba
que é. — E eu não transei com ela.
— Então, imagina se tivesse. — Ela ri de novo, sozinha.
Essa é uma característica de Jules. Ela costuma ver graça onde não tem, está
sempre gargalhando de vídeos em que ninguém acha legal. E Jules ama rir
das desgraças alheia, sendo quase um traço de sua personalidade. Nós nos
conhecemos desde que entrei na faculdade. Ela faz medicina, mas negligencia
seu curso com prazer. Diz que passou para provar a todos que pode, no
entanto, está no caminho para ser uma tatuadora. Nos demos bem de
primeira, porém não somos muito grudados, andamos com pessoas diferentes
e Jules tem sua tribo. Em algum momento, nós transamos completamente
chapados, e foi bom. Mas funcionamos melhor como amigos, então só
aconteceu uma vez.
Jules Batbayar tem uma história interessante. Sua mãe nasceu na Mongólia e
veio para os Estados Unidos com a irmã, em busca de oportunidades. E, ao
chegar pelo porto de Eastland Coast, cidade litorânea do Condado de
Eastlake, conheceu o pai de Jules. O homem estava lá em um encontro do seu
motoclube, o mesmo que a mulher em minha frente faz parte. O grupo é
como uma família, e é admirável a forma como acolheram a senhora
Batbayar. Gosto de escutar essa história todas as vezes que a morena está
disposta a contar.
— Todavia, eu sou uma boa amiga e tenho algo que pode te ajudar
momentaneamente. — Ela sorri como se tivesse a solução para todos os meus
problemas.
Tombo a cabeça para trás, desanuviando os pensamentos, sentindo o impacto
da parede dura, e bufo.
— Me diz que é um baseado.
— Você me conhece tão bem. — Solto uma risada leve e a vejo voltar à
cama com uma lata onde guarda a erva já dichavada e as sedas na outra mão.
Os próximos minutos são utilizados para bolar o baseado. Os movimentos
são repetitivos e já o fiz tantas vezes que é quase automático, mas há algo de
quase especial no momento que nos faz cultuá-lo em um silêncio confortável.
Com cautela, uso a saliva para fechá-lo, passando a língua pela extremidade
da seda. Esse é o pior instante para os iniciantes, se você babar demais,
rasgará a seda e ferrará todo o processo. Ainda em silêncio, Jules me entrega
uma chave para me auxiliar a pilar e acomodar melhor a erva no beque. Na
parte final, aperto a pontinha com cuidado e quase sorrio com a familiaridade
do processo. Ergo-o em direção a Jules para que ela acenda, porém antes, me
pronuncio.
— Sua colega de quarto não ficará puta se chegar aqui e sentir cheiro de
maconha? — Jules nega veemente com a cabeça e diz que nem todo mundo é
tão neurótico com limpeza quanto eu. Ignoro a alfinetada e dou a primeira
tragada.
O efeito não demora muito a chegar. O estado de letargia se apossa de mim, e
há algum tipo de pressão no meu cérebro que rapidamente é aliviada. Sinto
meus batimentos cardíacos acelerarem. Existe uma determinada perda da
discriminação de espaço e tempo, e eu sinto que poderia viajar para qualquer
lugar neste exato momento.
A euforia me arrebata e a sensação de prazer poderia ser comparada com a de
um orgasmo. Demoro a enviar o comando para que meus olhos pousem em
Jules, porém quando eles viajam até ela, a vejo encostada na cabeceira da
cama tragando seu beque com um sorriso leve no rosto. Ela conecta sua íris
castanha com a minha e isso nos causa um riso espontâneo. Não sei
exatamente o que tem graça, mas os olhos dela estão mais estreitos do que já
são e seus lábios cheios estão extremamente atrativos. Isso é suficiente para
nos fazer gargalhar. Passo a língua pelos lábios o sentindo seco demais e
percebo quando Jules acompanha meus movimentos.
— Sabe. — Ela inicia com a voz arrastada. — Eu não te chamei aqui para
transar.
— Legal. — Estou aéreo o suficiente para não ter certeza se processei com
maestria o que ela acabou de dizer. — É bom saber que você gosta da minha
companhia assim como gosta do meu pau.
Jules demora a compreender meu tom lento, mas quando toma conhecimento
do teor de minhas palavras, começa a rir.
— Se você falasse um pouco mais alto, Mackenzie conseguiria pescar a
indireta lá do 505. — Estamos com extrema preguiça de formar frases
grandes e coerentes, no entanto a vontade de socializar nos faz ceder ao
esforço.
— Lennon é muito linda. — Tenho dificuldade de segurar minha língua
quando estou sóbrio, imagina chapado.
— Eu concordo. — Jules afirma veemente sem tirar o sorriso dos lábios. —
Mas ela não me parece ser o tipo de garota que gostaria de ter o nome
associado com o seu.
— Obrigado, Batbayar. — Reviro os olhos e os sinto arder um pouco, mas
nenhum incômodo se compara com a paz que sinto agora. — Quem é seu
amor de pica?
Lembro-me de nosso diálogo anterior e, focado em tirar Mackenzie de meus
pensamentos, tento mudar de assunto.
— Você o conhece, então não posso contar. — Sua resposta me faz ponderar
por um momento, tentando organizar meus pensamentos antes de responder.
— É o Andrew, não é? — Arqueio a sobrancelha e esboço um sorriso
travesso. — Ele sabe o que fazer com a língua. Essa é uma boa explicação
para você estar tão encantada.
Jules arregala os olhos, e seus lábios bem preenchidos estão crispados como
se ela estivesse em um grande dilema.
— Como você sabe o que ele faz com a língua? — questiona, e só percebo
agora a ambiguidade de minha frase anterior, e de repente, sinto vontade de
rir.
— Jogo de verdade ou consequência na minha primeira calourada. Não tô
com ânimo para explicar direito, só nos desafiaram a nos beijarmos. — Subo
e desço os ombros.
— Bom, se eu fosse lésbica e me desafiassem a beijar um homem, eu ficaria
meio puta. — Ela responde e eu balanço a cabeça em concordância.
— Sim, mas Andrew é pansexual, e eu não saberia se gosto sem antes
experimentar. — Meu nariz coça e os movimentos parecem estar um pouco
mais lentos, porém consigo me aliviar.
— E você gostou?
— Não. Quer dizer, Andrew beija muito bem, mas a ponta de seus dedos é
áspera demais — inicio, franzindo o nariz. — Me senti, sei lá, beijando um
homem.
— É porque era exatamente isso que você tava fazendo, seu ridículo.
— Ah... Verdade. — Uma gargalhada escapole para fora da garganta de Jules
e eu a acompanho. Nada parece fazer muito sentido para nós, mas assim que
damos nossa última tragada no baseado, me dou conta de que os efeitos ainda
estão aqui. E não chegou à parte ruim ainda.
Os olhos escuros de Jules estão repuxados em um jeito quase felino, e é
atrativo pra caralho. Seus lábios cheios erguem-se em um sorriso tentador.
Sinto meus sentidos um tanto mais aguçados, como se eu pudesse desfrutar
das sensações em dobro. A atmosfera entre nós muda e é perceptível até
demais quando um silêncio sepulcral toma o ambiente. Sinto um calor
anormal se apossar de mim, e meus movimentos estão sincronizados com os
dela porque quando decido chegar mais perto, ela parece compartilhar das
mesmas expectativas.
Estamos tão próximos que sua respiração bate descompensada em meu rosto.
Seu nariz fino resvala no meu e a excitação se apodera de mim. Pego uma
mecha caída em seu rosto e ponho atrás de sua orelha, aproveitando para
acariciar sua têmpora. Ela apoia o rosto em minha palma e meu dedão toca
seus lábios.
— Me diga se é Andrew ou não. — Eu jamais beijaria uma mulher que esteja
envolvida com um dos meus amigos, então receber aquela resposta é o
necessário para guiar meus próximos passos.
— Não é o Andrew.
Aquilo é o suficiente para nós dois, porque não hesito em colar minha boca
na sua. Sinto familiaridade quando seus lábios cheios se afundam nos meus.
São macios e isso é muito bom. Em uma sincronia desregulada, sua língua
encontra a minha, tentando achar um ritmo decente puxo-a para o meu colo,
dispondo uma perna de cada lado, e sua intimidade coberta pelo short e meia
arrastão entra em contato com minha ereção. Sinto-me eufórico, a letargia
entranhada e seu toque em cada parte da minha pele é atenuado pelo efeito da
droga. Parto o contato raspando o dente por seu lábio e sigo com os beijos
por sua mandíbula, lóbulo da orelha e pescoço. Jules tem tatuagens por todo o
seu corpo, mas a que eu mais gosto é a que estou prestes a lamber. Mordo de
leve e a sinto arquejar e se remexer em cima de mim, me estimulando a
continuar até senti-la rebolando em cima do meu pau. Suas mãos tiram a
camisa social de mim, e eu a ajudo no movimento, me ocupando em puxar as
mechas de sua nuca e firmar minha mão em sua bunda. Em resposta ao meu
movimento, Jules arranha meus ombros.
Quando sua boca se encosta a meu pescoço, sofro um arquejo e um lapso de
memória inoportuna invade minha mente. Isso é suficiente para eu me
afastar.
— Estamos fazendo merda, não é? — Jules toma uma distância considerável
de mim ao perguntar, e eu me limito a acenar positivamente com a cabeça.
— Parece que estou te usando. — A aflição toma conta das minhas entranhas
e estremeço levemente.
Jules concorda comigo e pula do meu colo rapidamente. Seus movimentos
parecem estar meio desconectados ainda e ela tropeça de leve.
— Você pode dormir aqui, se quiser.
Agradeço mentalmente pelo clima não ter ficado uma merda. Estou tão
sonolento que se pegasse o carro agora poderia causar um acidente.
— Obrigado. — Ajeito minha cueca discretamente. Hoje provavelmente é o
dia que meu pau mais me odiou.
— Pode usar essa blusa, e essa calça de moletom que você esqueceu aqui. —
Ela ergue as peças de roupa e joga em mim. Analiso a camisa com cuidado.
— Essa é a minha blusa. — Lembro-me de quando dormi aqui e esqueci
essas peças há um tempo.
Jules balança o dedo negativamente em minha frente.
— Nossa blusa — rebate. Caímos na risada juntos e ela se deita comigo.
Estamos lado a lado, encarando o teto branco de seu alojamento,
experimentandoos efeitos ruins da droga. Olhos ardendo levemente, boca
seca, sonolência e uma fome absurda. Sinto meu pulmão falhar levemente e
sei que é por causa da combinação da fumaça com a asma. Tento controlar
minha respiração enquanto relembro de alguns flashes de meus momentos
com Regina.
— Posso confessar algo? — pergunto e Jules ergue a palma, pousando o
olhar no relógio de seu celular.
— São quatro da manhã, então pode. — A resposta me faz franzir o cenho
em confusão, mas decido não questionar suas superstições.
— Eu queria ir a um encontro com Mackenzie.
Solto antes que eu me arrependa. O amargor desliza pela língua e o alívio
chega rápido ao me dar conta de que guardar apenas para mim estava me
sufocando.
— Não é só um amor de pica. — Jules confessa. — Acho que estou
apaixonada.
Respiro fundo e tombo minha cabeça para olhá-la. Vejo o medo estampado
em suas orbes castanhas e seu semblante expõe o quanto está amedrontada.
Ela me diz que o cara com quem se envolveu é dono de um caráter
extremamente duvidoso, e eu passo, pelo menos, os próximos trinta minutos
tentando aconselhá-la.
— Eu sei que nós convivemos muito pouco, mas te considero um amigo do
caralho. — O canto de meus lábios se ergue em um sorriso contido.
— Gosto tanto de você que eu poderia ir agora mesmo sacudir esse cara para
declarar amor eterno por você. — Jules cai na risada e seus olhos diminuem à
medida que as bochechas sobem.
— E eu gosto tanto de você que iria agora mesmo até o 505 e gritaria na cara
de Mackenzie que ela precisa te dar uma chance.
Nossas risadas saem em uníssono e bato minha palma na dela, como em um
hi-5. É a última coisa que lembro antes de imergir na escuridão profunda de
um sono pesado.
Hoje é um daqueles dias, que só costumam acontecer no exterior ou
no litoral, dos que despertam os moradores da cidade universitária com um
raio solar irrompendo imponente pelas janelas. Bolfok Town não está
acostumada com esse calor, especialmente quando chega de forma tão
repentina. Ademais, estamos no Outono, o que praticamente significa inverno
em outras cidades que contam com temperaturas mais amenas do que aqui.
Do ponto de vista técnico, não sei exatamente o que há com o clima hoje,
porque as explicações me fogem da mente assim que acordo suada. Isso
nunca aconteceu desde que cheguei, pelo contrário, geralmente o frio é tão
cortante que me enrolo em mais de uma coberta. Forço-me a levantar cedo
para pegar o banheiro habitável, já que com a quentura de hoje, imagino que
muitos estudantes queiram se refrescar mesmo de manhã.
Os olhos captam alguns resquícios da noite passada como o vestido usado no
jantar, os sapatos de salto largados perto da porta, o notebook jogado na mesa
– que fica ao lado da cama – e o fone embolado embaixo do travesseiro. A
comédia romântica assistida ontem é como cutucar uma ferida aberta, e eu
penso e repenso nos motivos de não ter terminado a noite na cama com uma
companhia um tanto desagradável.
Não me arrependo de ter interrompido o beijo, porque pisar em cima de todos
os meus princípios em prol de sexo nunca fez parte da minha vida, e eu estou
bem com isso. Contudo, não havia a menor necessidade de ter tratado
Thomas mal. E isso eu reconheço.
Dou uma rápida conferida nas notificações de mensagem que chegam para
mim e há muitas caixas de conversa em aberto. Decido não responder
ninguém por enquanto e apenas curto a resposta de Nevaeh ao meu story
passado. Vejo que Lewis me convidou para uma festa na Kappa Alpha hoje e
instantaneamente me animo, até porque nada como uma festa para superar a
sexta regada de comédia romântica adolescente.
O banheiro do meu andar, geralmente, é muito limpo e nunca está cheio. Ou
os jovens de Bolfok Town odeiam banho ou apenas escolhem horários
diferentes dos meus para cuidarem de sua higiene. Assim que me deparo com
o corredor dos chuveiros vazio, caminho rapidamente até minha cabine
predileta. Não me preocupo em fazer cerimônia ao abrir a porta, pois sei que
finalmente terei um momento de paz depois de uma noite repleta de
pensamentos inoportunos acerca do pênis de Thomas roçando em mim.
No entanto, não foi exatamente paz que eu encontrei quando abri a porta da
cabine.
A primeira coisa que vejo são pés, masculinos com toda certeza. Subo
minhas vistas pelas panturrilhas até pousá-las em uma bunda branca. Antes
que o desconhecido se vire, marcas avermelhadas em suas costas me
entregam quem ele é. Puta que pariu.
Agora ele está de frente e eu vejo um pau e bolas. Céus.
O grito esganiçado escapa pela garganta depois que eu processo a visão de
um Thomas completamente nu em minha frente. Ele leva as mãos para
tampar suas partes íntimas, mas é tarde demais. E, por uns segundos,
agradeço mentalmente por não ter ido longe demais com ele ontem. Até
porque, essa coisa dele, definitivamente, teria dificuldades para estar dentro
de mim. Não que ele tenha um pau monstruosamente gigante assim como os
caras das fanfics que eu lia na adolescência, no entanto, ouso dizer que talvez
eu não tenha espaço para essa... Grossura.
Seus olhos desbravam cada canto de meu corpo livre da toalha que aperto
firmemente com a mão, odeio isso. Odeio que meu corpo reaja a ele tão
instantaneamente que meu estômago retorce um pouco dentro de mim.
Thomas grita também. Na verdade, o som que rompe por suas cordas vocais
mais parece um gargarejo, daqueles que damos quando escovamos os dentes.
Levo a mão até meus olhos em um gesto rápido, mesmo que eu já tenha
analisado coisas demais por ali.
— Você sabe que não adianta nada tampar os olhos se seus dedos estão
afastados, não é?
Reparo tarde demais que meu dedo indicador está levemente afastado do
médio, me dando, ainda, uma boa visão do corpo de Thomas.
Pega no flagra.
— O que está fazendo aqui? — Atropelo as palavras em uma tentativa falha
de mudar de assunto.
— Tomando banho. — Ele sobe e desce os ombros, e há um sorriso, que
beira ao deboche, estampado em seu rosto. Solto o ar com força, descontando
minha falta de paciência em meus pulmões.
— Eu sei. — Aprisiono o escroto que eu diria tendo em vista que minha cota
de grosseria com ele esgotou ontem. — Digo, é que você não mora aqui.
Balanço a mão em uma tentativa de induzi-lo a entender meu
questionamento, e parece funcionar já que ele arqueia as sobrancelhas e
balança a cabeça positivamente.
— Dormi na casa de uma amiga. — As palavras parecem sair com gosto de
sua boca, porque ele articula bem e gesticula com vontade.
Não demoro a entender. Thomas quer deixar claro que minha rejeição não o
abalou muito, e que ele terminou a noite de um jeito bem melhor. Bom, tanto
faz.
— Ah.
O ambiente parece pequeno demais para duas pessoas que exalam hormônios
para todos os lados. O teto até parece abaixar um pouco de tanto que sinto o
ar nos pressionar e me engolir em uma tensão palpável. Que inferno.
Inspiro e expiro calmamente, tentando reunir consciência e sensatez para
lidar com a cena de nós dois usando roupa de menos. Thomas acompanha o
movimento de meus seios com avidez, e eu sinto a pele de meu colo se
arrepiar. Na tentativa de me livrar dessa situação horrenda, me pronuncio.
— Já que você terminou me deixe tomar banho. — Aponto com a cabeça
para o chuveiro desligado e me esforço para não reparar nas gotas que
escorrem por todo o seu corpo.
Thomas assente sem desviar a íris azulada da minha. Ele dá um ou dois
passos até mim e o ar torna-se ainda mais rarefeito. Seu perfume pós-banho,
que consiste unicamente em cheiro de sabonete de amêndoas, invade meu
espaço pessoal e isso me deixa mais irritada, se é possível. Entendo que estou
sendo um obstáculo em seu caminho, tampando a saída da cabine como uma
estátua e não demoro a me mover. Dou um passo para o lado, me espremendo
entre o batente da porta e seu corpo molhado que roça no meu quando ele
passa por mim. Meu olhar recai direto sobre a marca roxa deixado por mim e
me pergunto se sua companhia de ontem não se incomodou com isso. Assim
que ele pula para fora, me apresso em bater a porta da cabine e trancá-la com
rapidez. Contudo, ainda posso sentir a presença de Thomas perto demais.
Quando ligo o registro, ouço seu costumeiro barulho rangente, como se ele
implorasse por um óleo que evitasse esse ruído. Sinto a água quente me
atingir e quase sorrio. Talvez essa seja a paz que eu tanto procuro. Porém,
ainda tenho noção de que Thomas está do outro lado, fazendo sei lá o que, e
mal posso segurar minha língua antes que eu fale algo impulsionado pelo
peso da minha consciência.
— Acho que te devo desculpas. — A voz sai tão baixa que temo que ele não
ouça, mas um suspiro resignado me dá a certeza de que fui ouvida. — Não
por ter te rejeitado, mas sim por ter sido tão grosseira.
Geralmente, eu deixo que meus sentimentos me guiem com muita facilidade
e acabo sendo impulsiva. Todas as sensações de ontem enviaram um alerta
vermelho para o meu cérebro, daqueles que sabemos quando há uma merda
prestes a acontecer. Sim, eu tive vontade de beijá-lo muitas vezes. Mais do
que o recomendado. No entanto, consumar o ato me trouxe uma percepção de
que eu poderia estar caminhando em direção a um abismo perigoso. E as
palavras de Hannah me atingiram com força: Você ainda não o conhece, ele é
como uma praga. Estou te avisando. Se deixá-lo chegar perto demais, ele vai
te tomar por inteira, e quando isso acontece, reze para que ele não destrua
seu coração.
A única coisa que fiz naquele momento foi cortar o mal pela raiz. Entretanto,
não controlei muito bem o peso de minhas palavras e o quanto elas poderiam
machucá-lo. E a culpa me acompanhou por toda a noite.
— Uau. — Sua voz está tão próxima que posso sentir exatamente onde ele
está, encostado do outro lado da porta. — Mackenzie Lennon pedindo
desculpas, essa é nova.
— Não se acostume — murmuro apenas para constar e ouço sua risada
reverberar na acústica do ambiente.
— Eu vou pensar se perdoarei essa pobre camponesa.
Reviro os olhos ao ouvir o trocadilho e xingo um "ridículo" apenas para mim,
mas sua boa audição capta meu murmúrio o fazendo aumentar o volume da
risada. Thomas não parece um tipo de pessoa rancorosa, então quando escuto
suas três batidas na porta da cabine, entendo que está tudo bem e que as
coisas já podem voltar ao normal entre nós: com muitas brigas e alfinetadas.
Isso me faz sorrir um pouco, mas logo murcho o semblante quando relembro
as cenas anteriores.
Não estou surpresa, na verdade, estou, porém apenas pela visão do corpo nu
de Thomas Eckhoff. Mas, no geral, acredito que situações como essa
aconteçam com mais frequência do que imagino. Quer dizer, são banheiros
comunitários, sem divisão por gênero como se nenhuma mulher fizesse
questão de verificar bem as trancas da cabine para evitar qualquer tipo de
invasão inoportuna. Ponderando um pouco acerca de nossa situação, constato
algo ainda mais irônico.
Isto é um clichê.
Sim, um clichê. Uma daquelas cenas que acontecem com frequência em
livros. Sei do que estou falando porque já li romances água com açúcar o
suficiente para atestar esse fato. Duas pessoas que se odeiam – que nem
sabem exatamente os seus motivos – são obrigadas a conviverem, descobrem
coisas um sobre o outro, até que percebem uma tensão sexual e cedem a ela.
Um dia depois acontece um encontro traumático em um banheiro
comunitário. Definitivamente, um clichê, daquelas fórmulas prontas para
fazer muito sucesso. A diferença é que essa é tão desconhecida que chega a
dar pena.
Afinal, quem gostaria de ouvir uma história sobre um cara com neurônios
queimados que não sabe que sua colega de grêmio é a mesma que o vence
nos rachas em todas as sextas-feiras?! Quer dizer, menos ontem, porque
estávamos ocupados o bastante sendo comprimidos por sensações perigosas
demais para serem medidas.
Aproveito o sábado como um grande dia do faz-nada. Hidrato o cabelo, passo
inúmeras máscaras faciais caseiras de caráter extremamente duvidoso, uso
alguns dos produtos caros de skin care que ganhei de meus pais e vejo, mais
uma vez, Velozes e Furiosos. Lewis enche nosso grupo de mensagens
prometendo compensar seu sumiço na festa hoje. Ele está abarrotado de
treinos por causa de um jogo importante que acontecerá daqui a umas
semanas. Alguns olheiros estarão lá e o Johnson alega precisar urgentemente
de uma chance em um time profissional — talvez seja uma tentativa de se
livrar das garras de seu pai e da Escola de Negócios.
Nevaeh está quase namorando com Dominic. Bom, ela diz que isso está
muito longe de acontecer, e eu duvido muito, mas Nev insiste que demorará
meses para entrar em algum tipo de relacionamento. Eles brigam como um
casal, falam como um casal, algumas roupas de minha amiga já estão na casa
de Dom assim como sua escova de dente, mas quem sou eu para dizer algo?
Eles não são um casal, afinal.
Reparo, ao pousar meus olhos no horário, que fiz a sobre-enrolação.
Basicamente, é quando você está adiantado demais, então resolve enrolar um
pouco e acaba se atrasando. Isso sempre acontece comigo, e é aí que começo
a correr. Faço tudo baseado na pressa. Escolho uma saia preta e blusa curta
meio cigana de mangas bufantes. Parece uma roupa de verão, e isso me
anima consideravelmente. Erro, pelo menos, umas três vezes até, de fato,
acertar o delineado. Pondero se decorarei meus lábios com um batom
vermelho, mas rapidamente desisto assim que considero o quanto quero beber
hoje. É provável que ao amanhecer eu estaria toda borrada, então opto por um
protetor labial de cor.
Nevaeh me avisa que me encontrará na fraternidade – que já esqueci o nome
– e suspiro irritada. Odeio chegar aos lugares sozinha, como se eu tivesse que
encarar um habitat completamente desconhecido sem um apoio seguro.
Contudo, Dominic promete me encontrar antes de adentrar a festa. Nev diz
que ele me mima, e eu me limito a mandar um emoji revirando os olhos.
O som que reverbera pelas caixas da fraternidade faz com que as janelas
trepidem. Mesmo não estando tão próxima da festa ainda, posso ouvir com
clareza algum Pop atual gritar nos alto falantes. Não sei exatamente que
cantora é, porque para uma leiga como eu, todas elas têm vozes muito
parecidas. O vento ameno que ricocheteia meus cabelos agressivamente não
me faz encolher de frio, e isso me deixa ainda mais animada.
Logo vejo Dominic abraçando Nevaeh por trás, enquanto minha amiga ri de
algo que ele murmura em seu ouvido. Meu peito fica preenchido pela
felicidade notável quando constato o quão perfeito eles ficam juntos. No
momento em que os dois reparam na minha presença, Dom alarga o sorriso e
acena, contagiando Nev a fazer o mesmo.
— Seus tempos de modelo impregnaram em você essa coisa de desfilar, né?
— Essa é a primeira coisa que escuto de Nev quando chego até eles e tento
ignorar o calafrio que se apossa de mim no instante em que me lembro desses
tempos sombrios.
— Hoje é dia de diversão! Nem me lembre disso. — Dom se limita a
balançar a cabeça de um lado para o outro e abre a porta para nós.
É difícil mensurar o quão cheio está a festa, mas os corpos suados roçando
em mim, neste dia, não me incomodam nem um pouco. Na verdade, eu
particularmente amo festas em dias de festa. Deixe-me explicar,
universitários adoram festejar em dias errados. Ou seja, no meio da semana,
porém, hoje é sábado, o que quer dizer que estamos no dia certo para
celebrar, porque não temos responsabilidades amanhã além de cuidar de uma
ressaca terrível.
Na sala, não há espaço para estripulias. As pessoas trombam umas nas outras
quando dançam e tem dificuldades para se mover. O primeiro cheiro que
identifico é o de suor. E depois consigo farejar a mistura de alguns perfumes
variando entre caros e baratos. Algo no ambiente faz meus olhos arderem e
talvez seja o gelo seco que o aparelho de fazer fumaça sopra nos convidados.
Tem um jovem de cabeça para baixo tomando cerveja direto do barril. Pela
vidraça longa, vejo a competição de beerpong rolar acirrada do lado de fora e
o DJ – algum aluno que decidiu dividir sua playlist – está imerso na música
que toca, balançando a cabeça veemente de cima a baixo.
O calor consegue estar ainda mais insuportável, já que o ar-condicionado não
consegue dar vazão pela proporção de pessoas no local. Meus olhos buscam –
inconscientemente – por Thomas. E eu o encontro rindo alto de algo que
Andrew e uma mulher infestada de tatuagens dizem. Sua íris parece buscar a
minha como um efeito reativo a mim, e no momento em que a conexão é
formada, nos perdemos em nossos próprios pensamentos. Ele ergue o copo
em minha direção e eu me limito a esboçar um sorriso simpático. Um
homem, desconhecido, tromba em mim e faz com que eu trombe na pessoa
ao meu lado, como em um efeito dominó. Busco quem foi o afetado pelo meu
esbarrão e encontro Hannah me lançando uma falsa carranca.
— Chegou a megera. — Ela profere, se arrastando nas sílabas. Aperto meus
olhos em sua direção, mas deixo que a risada saia livre pela minha garganta.
As bochechas de Hannah se elevam quando ela sorri e seus olhos diminuem
um pouco. Ela usa um vestido florido praiano que balança quando ela se
move.
— Uau. — Faço com que ela dê uma voltinha. — Você resolveu roubar toda
a beleza do mundo para você?
Hannah alarga o sorriso.
— Deixei um pouco para você, Nevaeh e minhas amigas. — Ela contabiliza
nos dedos em uma falsa concentração e isso me faz rir um pouco.
Depois de uma breve graça, Hannah engancha seu braço no meu e me puxa
como se estivesse me apresentando o lugar. Ela me empurra um drink
nomeado carinhosamente por "Primavera do Diabo", que é uma mistura de
suco de morango, vodka importada e rum. O gosto é doce o suficiente para
tornar-se viciante, mas a bebida rasga e o percurso para dentro é ardente, para
não dizer corrosivo. É muito forte e Hannah me avisa que pega muito rápido,
mas engulo o líquido em um gole só.
Agarro com firmeza o plástico da embalagem que abriga a água com corante
de cor azul, enquanto me remexo ao som de alguma diva pop. Não sou muito
fã dessas garrafinhas de água colorida, porque penso com frequência na
bomba que esse corante deve ser em meu organismo. No entanto, opto por
manter em meu âmago apenas um copo de Primavera do Diabo, já que não
quero ficar bêbada tão cedo.
Assim que avisto o time de futebol chegar, meus olhos pousam em Lewis.
Ele usa uma blusa vinho que abraça seus músculos com louvor e contrastam
muito bem com suas mechas aloiradas e seus orbes castanhos. Assim que me
avista, Lewis caminha rápido até onde estou e eu apresso meus passos ao seu
encontro. Enlaço sua cintura com minhas pernas quando envolvo seu pescoço
com minhas mãos.
— Que saudade! — Grito em seu ouvido e nem me importo se estourei seus
tímpanos. Há apenas um copo de Primavera do Diabo em meu sangue,
porém já sinto parte da animação proveniente do álcool me tomar.
— O quanto você já bebeu? — Ele indaga risonho, me soltando no chão com
delicadeza.
— Assim ó. — Aproximo meu dedão ao indicador para que não sobre
espaço quase nenhum, entregando que a noite nem começou ainda.— Juro
que só bebi um copo. Não quero perder a consciência dos atos tão cedo.
Lewis ri e não acredita em minhas palavras. Penso tê-lo visto trocar um olhar
com Andrew em um ponto atrás de mim, mas decido não tirar conclusões
precipitadas. Alguma líder de torcida, amiga de Hannah, grita que
brincaremos de passa carta – um dos jogos mais famosos do colegial –,
aquele em que usamos do ar para sugar a carta e passar para a boca do colega
ao lado e se deixarmos cair, teremos que nos beijar. Dominic rapidamente
puxa Nevaeh para fora da brincadeira, pouco querendo se arriscar a deixar
alguém tocar os lábios de sua amada, no entanto, Thomas caminha até o
centro da sala com Andrew em seu encalço.
A roda se forma rapidamente, e em um piscar de olhos, Andrew, que antes
estava ao meu lado, arranca Thomas de seu lugar e troca com ele. Reviro os
olhos, porém finjo não ter reparado nos dois agindo como pré-adolescentes,
até porque não estou com muita moral no quesito maturidade. Decido parar,
por hora, com a bebida alcoólica, porque preciso estar sóbria o suficiente para
não deixar a carta cair. Entorno na boca mais água colorida para deixar como
uma mera lembrança o gosto do drink que bebi.
Do meu outro lado, está a amiga de Thomas, que estava gargalhando junto
com ele no início da festa. Provavelmente, também é a mulher dona do
alojamento em que o loiro passou a noite, e ela é absurdamente linda. O
desgraçado tem sorte.
O jogo começa tranquilo, e até agora, apenas duas pessoas se beijaram. Em
algum momento, ela deixa a carta cair e temos que nos beijar. Fica a critério
da dupla se será apenas uma bitoca ou se rolará algo mais profundo. No nosso
caso, demos apenas um selinho. Já estou beirando ao tédio quando algo
inusitado acontece. Não sei exatamente se o erro foi meu ou de Thomas, mas
a carta cai.
Ah... Mas é claro que ela cai.
Reparo nas reações de cada um na roda. Alguns parecem não se importar
nem um pouco, mas Dominic dá um pulo contido junto com Nevaeh assim
que percebem o que aconteceu. Andrew também não fica para trás, tentando
conter a alegria dentro de si e até mesmo a amiga da noite passada ao meu
lado parece feliz. Estão todos em um complô contra nós?
No entanto, antes que eu possa me pronunciar, ouço a voz de Thomas, um
tanto esganiçada, soar ao meu lado.
— Se ela quiser me beijar, vai ter que ralar. — Alguns comentam que até
rimou, outros soltam uma risada junto a ele e eu me limito a revirar os olhos.
— Passo — dou de ombros e alguns bufam irritados. — Podemos trocar a
brincadeira? Essa já ficou entediante.
Por incrível que pareça, a maioria das pessoas presentes na roda concorda
comigo que já deu. Então, alguém grita que devemos jogar Verdade ou
Consequência e eu penso que isso nunca dava certo no colegial.
Bom, como sempre, não estou errada.
Alguém que eu não conheço tenta dissuadir que a mulher ao meu lado – a
amiga de Thomas – responda se ela está envolvida com um tal de Maxon.
Está óbvio que a moça não quer responder. Ela me olha, claramente
constrangida, e alterna as vistas entre mim e Thomas.
As engrenagens do meu cérebro tentam trabalhar com a maior rapidez
possível. Lewis sibila para mim em que direção o tal Maxon está, e assim que
eu o vejo, percebo que ele é do time de futebol, então não hesito em tentar
contornar a situação.
— Por que estão perguntando isso para ela? — indago arqueando uma das
sobrancelhas.
Algumas pessoas estão apreensivas, aguardando com avidez a resposta da
mulher, e eu me sinto ainda mais perdida.
— Ontem ele foi visto com uma morena e algumas pessoas desconfiam que é
a Jules. — Uma loira aponta para a mulher ao meu lado e finalmente
descubro o nome dela.
A tal Jules, tem medo em seus olhos, está extremamente desconfortável, e
isso já me entrega que ela realmente esteve com Maxon. O homem está
pouco se importando com a brincadeira que acontece desse lado do cômodo,
concentrado demais no videogame para isso. No entanto, Jules busca meu
olhar como se estivesse pedindo ajuda para reverter uma situação, e movida
pelo impulso, solto.
— Era eu a morena — respondo e Thomas se engasga ao meu lado, porque
sabe o suficiente para ter certeza de que eu estive, na verdade, com ele no
jantar.
O resto da roda está estarrecido com a minha confissão e Jules aperta minha
mão discretamente em agradecimento. Thomas também parece me agradecer
silenciosamente com o olhar, e eu apenas me limito a acenar com a cabeça.
Nevaeh, que agora participa da brincadeira, muda o foco do assunto girando a
garrafa novamente. O tempo passa mais rápido dessa vez em meio a risadas
de pessoas que beijam desconhecidos e respondem perguntas
constrangedoras. Até que, finalmente ou não, decidem que sete minutos no
paraíso é uma ideia melhor para brincarmos. Não me movo do lugar e isso é
uma estratégia, já que as probabilidades da garrafa apontar para Thomas e eu
são bem menores. Contudo, a sorte não parece estar ao meu lado dessa vez, já
que nossa roleta improvisada aponta para mim, e quase para no homem ao
lado de Eckhoff, mas o escroto faz questão de se mexer e agora o bico do
recipiente de vodka deixa claro que meus sete minutos no paraíso serão no
inferno.
— Eu não vou a lugar algum com ele — decido cruzando os braços, pouco
me importando em parecer uma criança mimada. — Foi trapaça.
Está muito claro que a garrafa ia parar no homem ao lado de Thomas, mas o
ridículo, espertamente, se mexeu no exato momento em que ela pararia,
fazendo um pequeno relevo no tapete que alterou o resultado da nossa roleta
improvisada.
— Você aceitou trocar o jogo, Mack. — Nevaeh me encara com
compadecimento no olhar, como se quisesse estar ao meu lado nesta hora,
porém isso iria contra os princípios dela. — A garrafa está apontando para o
Thomas.
— Porque ele se mexeu na hora. Eu posso provar. — Me ergo ficando apenas
com os joelhos no chão, para ficar mais alta e imponente que os outros. —
Quando a garrafa estava quase parando, ele, coincidentemente, se mexeu, e
até mesmo formou uma dobra no tapete interferindo no resultado da garrafa.
No exato momento em que aponto para o lugar onde deveria ter o relevo
provocado pela movimentação de Thomas, ela não está mais ali. Fico
encarando o tapete extremamente liso, como se tivesse sido esticado de
qualquer jeito em uma trapaça discreta. Não é possível que ninguém tenha
visto o instante em que o traidor trapaceou.
— Olha, Mackenzie, seja lá o que você está usando, não está fazendo bem à
sua saúde. — Ele responde, mantendo o sorrisinho malicioso nos lábios.
O olhar que direciono a ele é dotado de escárnio. Conheço Thomas e sei que
o sorriso que desponta no canto de seus lábios é de puro deboche, pois nós
dois sabemos que ele trapaceou sim.
— Deixa de ser mimada, garota. — Uma loira sentada na roda se altera. —
Você aceitou a brincadeira sabendo que haveria chances de cair com ele.
— É porque, no fundo, ela está morrendo de vontade de ficar sete minutos no
paraíso comigo. — Sua voz me faz torcer o nariz em puro desgosto.
— Está mais para sete minutos no inferno.
Algumas pessoas dão uma risadinha de minhas últimas palavras, entretanto
todos parecem irredutíveis quanto a acreditarem em mim.
— Tudo bem, eu vou. — Fico de pé em um pulo. — Mas saibam que nada
acontecerá lá dentro.
Ninguém se importa muito. Alguns se limitam a acenarem com a cabeça
como se fingissem acreditar em mim e outros mantêm suas atenções a
qualquer assunto que seja melhor do que dois jovens adultos fazendo birra.
Olho para Thomas e o vejo ainda sentado na roda, com as pernas dobradas
me encarando, como se esperasse algum comando. Reviro os olhos mais uma
vez antes de me pronunciar.
— Venha, Eckhoff. — Não preciso olhar para me certificar se ele atendeu ao
meu chamado, prossigo andando em direção à dispensa sabendo que ele me
segue.
Assim que passo pela porta sinto o corpo de Thomas roçar ao meu quando ele
entra. O cômodo pequeno e lotado de prateleiras está beirando ao breu, e a
única claridade do ambiente provém da fresta de luz que rompe pela abertura
embaixo da madeira maciça. É iluminação suficiente para que eu repare em
Thomas pela primeira vez desde que cheguei. Ele usa a habitual calça preta
pouco surrada e uma blusa meia manga também preta, mas hoje calça tênis
vans com uma listra branca. Não há nada de muito extraordinário no seu
visual, mas a combinação com as tatuagens e o cabelo desgrenhado o deixa
ainda mais bonito. Que inferno.
Nenhum de nós se esforça para quebrar o silêncio que cultuamos ali dentro.
Com alguns passos de distância, Thomas está encostado em uma das
prateleiras e eu estou na outra ponta. Sua íris não desprega da minha e eu
sinto – novamente – a tensão nos engolir. É como se eu estivesse me
afogando nessa maldita areia movediça que me impede de lutar contra os
efeitos que ele tem sobre mim. Os formigamentos dão seus primeiros sinais,
desde a ponta de meus dedos até as coxas.
Eckhoff dá dois ou três passos. Estou fora de órbita demais pela tensão que
me atinge para contabilizar, mas sei que ele está perigosamente próximo. Sua
respiração bate em meu rosto com mais força e percebo meu peito subir e
descer com uma frequência maior. Odeio que meu corpo reaja a ele com tanta
facilidade, como se estivesse apenas esperando uma aproximação para
impedir todos os comandos que envio ao meu cérebro com o objetivo de ser
mais consciente. Sinto-me sozinha nessa batalha perdida, enquanto a mão
dele captura uma mecha do meu cabelo e eu, automaticamente, prendo a
respiração.
— Você já começou a contar? — Franzo o cenho descontando minha
confusão. — Os sete minutos que ficaremos aqui assim, apenas olhando um
para a cara do outro.
Temo gaguejar ao formar uma frase, então me limito a negar levemente com
a cabeça. Thomas solta um riso nasalado com a certeza de que estou nervosa,
porque as primeiras gotículas de suor já se fazem presente na palma da minha
mão que, em um gesto rápido, as limpo avidamente na saia. Não gosto de ser
uma refém nos braços de um predador, mas é como eu me sinto quando os
olhos intensos dele me devoram.
Estamos em um embate que só um tolo não perceberia. A batalha está sendo
travada entre nossos princípios, como se estivéssemos considerando as
possibilidades de nos agarrarmos aqui e agora. Thomas prometeu ontem que
não cederia a mim facilmente, e eu o rejeitei como se estivesse chutando um
cachorro sarnento. Assisto de camarote, a execução do meu orgulho. Porque
percebo, neste exato momento, que estamos em um jogo sem vencedor.
Porque independentemente de quem ceda primeiro, o outro estará
correspondendo o suficiente para tornar-se um perdedor.
— Se a gente ceder, aqui e agora, ninguém precisará saber. — Lanço a
possibilidade em um sussurro, como aquele diabinho que fica em um dos
nossos ombros.
— Você é uma diaba, Lennon. — Seus dedos se afundam em minha cintura
enquanto a outra mão enrola as mechas de minha nuca. — Uma tentação
maldita.
O canto de meus lábios se ergue em um sorriso diabólico, e Thomas parece
querer me punir por isso, porque a mão que estava em minha cintura corre
para a minha bunda e a esmaga em um apertão forte. O incômodo abaixo de
meu ventre não demora a vir. Estou pegando fogo. A sobriedade se
embrenhando pelo cérebro, me fazendo ter plena consciência dos meus atos.
Assim, agarro seus fios teimosos da nuca e aperto seu bíceps. Ainda estamos
lutando, tentando induzir que o outro ceda primeiro, mas nesse jogo, não me
importo de ser a perdedora. Não neste momento. E que se foda a minha
razão.
Minha boca pressiona a dele com força, assim como é tudo entre nós –
agressivo e forte. Sua língua toma a minha e solto um suspiro de alívio, como
se eu já estivesse sentindo falta de sentir a aspereza de suas papilas. Já não é
tão difícil encontrar um ritmo entre nós, na verdade, a tarefa parece mais
simples do que nunca agora. Sua mão arrasta desde o meu joelho até a minha
virilha por baixo da saia, e a minha intimidade pulsa como em uma resposta
instantânea.
— Não vou te perdoar tão fácil. — Recebo um tapa na lateral da coxa e freio
um gemido. — Você foi uma cachorra ontem.
Gosto do que ouço, e de como a depravação soa bem em meus ouvidos neste
momento. Sinto meus lábios intumescidos, e quase latejando. Nossos corpos
estão tão grudados que eu aposto que acabamos de desafiar alguma lei da
física. Meu peito sobe e desce no mesmo compasso que o dele. A adrenalina
– aquela mesma que sentimos quando disputamos em um racha – corrói cada
ponto do meu corpo, acelerando as batidas do meu coração em uma fusão
enlouquecedora de sensações.
— Me arrependo um pouquinho de ter te tratado mal ontem. — Acaricio seu
abdômen por baixo da camisa. — Mas eu sei como posso te recompensar.
Quando meus dedos ágeis se ocupam de desabotoar sua calça, Thomas
entende o que vai acontecer e reage no mesmo instante com um arfar ansioso.
Minha boca quase saliva me lembrando da visão que tive mais cedo. Ele me
ajuda a descer a calça enquanto eu não desgrudo minha boca de seu pescoço,
beijando, lambendo, mordendo e assoprando de leve. Subo sua camisa e,
durante o percurso, minhas unhas o arranham de leve. Desço meus beijos por
sua clavícula, seu peito por cima da blusa, até chegar à parte nua. Sugo com
avidez seu primeiro gominho, e por Deus, como eu queria fazer isso. Arrasto
meus dentes por seu abdômen e um gruído escapa por sua garganta. Thomas
agarra meu cabelo em um rabo de cavalo e eu não me canso de arranhar e
beijar cada canto de sua barriga, até chegar em suas entradas. Pressiono sua
ereção com a firmeza necessária para uma reação de puro prazer e ele não
aguenta segurar o gemido.
Brinco um pouco com o elástico de sua Calvin Klein e penso que, talvez, essa
seja uma das visões mais bonitas que já tive o prazer de presenciar. Procuro
seus olhos com os meus e grudo minha íris na sua. É difícil ter uma boa
visibilidade, mas consigo saber que suas pupilas estão dilatadas. Desço sua
cueca dando liberdade ao seu pau, e quase sorrio ao ver Thomas tão entregue
a mim, encostado na parede, com a cabeça tombada para trás e o pomo-de-
adão subindo e descendo conforme ele engole em seco. De fato, a visão do
paraíso.
Com a ajuda da saliva em minha mão, bombeio sua ereção, o masturbando de
cima a baixo, começando lentamente até que ganhe ritmo. Meus olhos não
querem desgrudar de seu rosto corado, arfante e completamente entregue.
Passo, delicadamente, o dedão em seu frênulo, fazendo com que Thomas
libere um gemido mais alto.
— Só temos sete minutos. — Sua voz sai em suspiro sôfrego e minha risada
escapole baixa.
Pisco um dos olhos.
— Tomara que seja o suficiente.
Como se eu não precisasse enrolar mais, ajoelho em sua frente, sendo
acompanhada por sua mão enroscada nos fios da minha nuca. E não demoro a
dar uma lambida generosa desde entre seus testículos até sua glande. Deixo
um beijo casto em sua glande enquanto acaricio suas bolas, vendo-o quase
enlouquecer pela provocação. Seu aperto em meus cabelos torna-se mais
forte, me incentivando a apressar as coisas.
— Chupa agora, Lennon.
Arqueio a sobrancelha assim que recebo a ordem e conecto meu olhar ao seu.
— Eu só vou ser obediente hoje porque estou em dívida com você — digo,
vendo-o soltar uma risada que mais parece um gargarejo, e posso sentir o
quanto ele está desesperado para ser finalmente chupado.
Perdendo completamente o controle que eu preservo para provocá-lo, começo
a sugar com vontade. Meus pensamentos tornam-se nebulosos assim que uma
névoa espessa toma minha mente, me impedindo de pensar com clareza.
Ocupo-me em masturbar sua base e sugar até onde consigo, enquanto minha
outra mão arranha sua coxa. Assim que consigo acomodar o máximo possível
de seu pau dentro de minha boca, apalpo suas bolas observando-o revirar os
olhos enquanto geme o meu nome. Seu membro pulsa enquanto eu pressiono
minha língua no freio de sua glande.
Deslizo a palma da mão pelo relevo quase imperceptível das estrias dos
quadris, experimentando a sensação de tocá-las de um jeito mais libertino.
Continuo chupando seu pau, ao passo que o sinto aumentar a pressão do
aperto em meu cabelo. Algo se contrai em minha virilha, me fazendo apertar
as coxas desajeitadamente por estar de joelhos, e contorcer os dedos dos pés.
— Eu vou gozar. — Ele me avisa, como em um alerta caso eu não queira
continuar ali e terminar o trabalho com a mão. No entanto, me limito em
arquear a sobrancelha em sua direção, como se o desafiasse a liberar o jato
para mim.
Ele não consegue se segurar por muito tempo. Logo sinto o líquido quente
tomar cada ponto de minha boca, e luto para não me engasgar. Termino de
limpar o canto de meus lábios e finalizo passando a língua por toda a sua
extensão, sem deixar qualquer resquício nele. Minha boca está dolorida de
tanto chupá-lo e tento controlar minha respiração que faz com que minha
garganta arda. Espero que Thomas tenha recebido, pelo menos, um dos
melhores boquetes de sua vida, porque minhas bochechas estão reclamando
assim como minha língua.
Sua mão, que agarra meu cabelo, me puxa com brutalidade para cima até
tomar meus lábios com fúria. Ouço o eco de minhas costas batendo na
prateleira quando ele inverte as posições e alguns alimentos sendo
derrubados. Ele sobe minha saia até a cintura e deixa um tapa forte na minha
bunda — sinto minha calcinha mais molhada do que o recomendado. Sua
mão é ágil ao afastar a parte da minha blusa que cobre meu seio e ele belisca
meu mamilo. A dispensa está definitivamente pegando fogo, e estamos pouco
nos fodendo porque queremos queimar.
Ele parte o beijo com uma mordida leve no meu lábio inferior, e deixa
selinhos castos pela minha bochecha, mandíbula, orelha e pescoço. Quando
sua boca está no meu colo, quase no destino ansiado por mim, sinto batidas
agressivas na porta.
— Já tem treze minutos que vocês estão aí. — Uma voz desconhecida grita,
cobrindo o barulho da música. — Agora é a vez de outra dupla.
Thomas e eu soltamos uma lufada de ar agressiva ao mesmo tempo, com a
raiva tomando as mazelas de nossos corpos.
— Puta que pariu — reclama, tirando os fios teimosos da testa. — Mas que
caralho.
Thomas parece receoso quanto a me soltar, como se esse momento pudesse
nunca mais voltar a acontecer. Por fim, pulamos para longe tentando nos
ajeitar o mais rápido possível para que ninguém perceba o que acabou de
acontecer. Quando abrimos a porta, um homem alto está a nossa espera com
ambas as sobrancelhas arqueadas. Ele tem plena noção de que passamos dez
minutos nos atracando, contudo, o ignoro puxando Eckhoff pela mão. A
cozinha tem menos pessoas do que antes, embora tenha passado pouco
tempo, entretanto a música continua reverberando alta nas caixas de som.
Pego um copo vermelho, encho de água na pia e entrego para Thomas.
— Beba. — Ergo na direção do seu rosto e ele franze o cenho em confusão.
— São duas coisas que você nunca deve negar: um boquete e um copo de
água.
Thomas ri, as bochechas subindo ao passo que diminui os olhos, e a covinha
aparece apenas em um lado.
— Você está me mimando muito hoje. — Ele cheira a água e eu me pergunto
se está conferindo a possibilidade de conter veneno. — Isso tudo é culpa por
ontem?
Balanço a cabeça positivamente.
— Mas agora já quitei minha dívida, me desculpei, te chupei e te dei água. —
Thomas acena e beberica o líquido do copo.
— Se você quiser pode me tratar mal sempre se vai pedir desculpas me
chupando. — Há um sorriso nada puro estampando seu rosto e o semblante
travesso me atrai ainda mais, como se estivéssemos em um campo magnético
e eu fosse seu polo oposto.
— Você não vale nada — afirmo.
Seu dedo indicador se arrasta pelo vale entre meus seios e eu estreito os olhos
em sua direção.
— E você adora.
Não digo nada. Espero que ele termine de beber água, analisando o
movimento de seu pomo-de-adão enquanto ele engole o líquido. Thomas joga
o copo no lixo, e logo depois aproxima seus dedos longos e calejados do meu
rosto. Ele pressiona de modo quase imperceptível a primeira pintinha em
minha face, e acaricia gentilmente cada uma delas. Algo dentro de mim se
contorce, aguardando com expectativa seus próximos passos. Eckhoff
esmaga meus lábios com os seus— ainda úmidos pelo líquido que acabou de
beber— e acaricio seu ombro largo. Afasto-me, assistindo-o escovar os fios
que caem na testa para trás, e tento disfarçar o suspiro de admiração que me
escapa.
Thomas desfaz o contato e vai primeiro para a sala, na tentativa de despistar
quem quer que fosse, e eu, aproveitando que estou na cozinha pego um
Primavera do Diabo para afastar o fogo que ainda persiste em se apoderar do
meu corpo. Na sala, o clima da festa ainda está agitado. Ninguém brinca mais
e a pista improvisada está lotada. Revejo Eckhoff que também está com o
olhar grudado em mim. Ele me lança uma piscadela e eu tento— arduamente
— não sorrir. Temos mais um segredinho sujo agora.
Tento achar algum rosto conhecido no meio dessa multidão de universitários,
no entanto, só encontro uma Hannah mais sóbria do que o previsto. Ela
balança seu corpo totalmente fora do ritmo, em uma lentidão desconfiável,
até que entendo que ela está chapada. Lewis está coordenando os que amam
um body shot e tem até um grupo jogando strip pôquer em outro canto do
cômodo. Nevaeh e Dominic jogam baralho como um casal de velhos, e eles
não têm vergonha admitindo gostar de disputar nas cartas e transar. E quem
sou eu para julgá-los?
Uma música desconhecida por mim começa e a batida envolvente toma a
sala. Já é o terceiro Primavera do Diabo que tomo e não tenho mais controle
sobre minhas faculdades mentais. Thomas me chama com o indicador e nem
se eu quisesse deixaria de atender ao seu chamado. Estou no meio da pista, de
braços cruzados, enquanto um Eckhoff animado até demais dança ao meu
redor. Não sei o que exatamente ele está fazendo, mas induz que pessoas ao
nosso redor caiam na gargalhada. Ele rebola com vontade e mexe os braços
como um boneco do posto.
— Você está me fazendo passar vergonha. — Ele me ignora e ainda tromba
seu quadril no meu, me jogando para o lado.
— Anda Mackie, se solta. — Ele insiste, porém ainda não estou convencida,
então continuo parada, irredutível. — Faça como se estivesse paralisada e
então se liberte, seus membros estão funcionando agora, anda.
Ele me vence pelo cansaço, portanto imito uma estátua e logo volto a me
mexer. Sentindo todas as partes do meu corpo balançar, estamos beirando ao
ridículo, mas os bêbados ao nosso redor parecem achar interessante e
rapidamente começam a nos imitar. Em algum momento, deixo que a
gargalhada irrompa alta pela minha garganta contagiando Thomas, que
também tomba a cabeça para trás. Não me importo com reputação, nem com
o calor insuportável e muito menos com o cheiro de suor e bebida alcoólica
que envolve o ambiente. Engulo muitos drinks e muitas cervejas.
Jules engancha o braço ao redor do meu ombro e reclama que Thomas veio a
uma festa de universitários para beber chá gelado, por isso, durante uns vinte
minutos, nos dedicamos a falar mal dele. Rihanna começa a cantar, ou talvez
seja Beyoncé, não que as vozes sejam parecidas, mas já estou alienada o
suficiente para não conseguir distinguir rosa de amarelo. O ar pesa sobre mim
e sinto um calor descomunal me tomar, até que avisto a porta de vidro da
varanda escancarada e quase corro para lá.
Quando o ar fresco se choca na minha figura um tanto bêbada, suspiro de
alívio. Sinto o vento ricochetear meus cabelos e minha pele descoberta pela
blusa curta se arrepia. É como se uma pressão em meu cérebro seja retirada
bruscamente, me deixando mais leve. Assim que me aproximo da mesa de
beerpong, escuto diferentes tipos de reclamações. Acho que a maioria já sabe
o quanto sou ruim de mira. Contudo, ignoro todos os protestos e me junto a
um loiro de ombros largos que me lança um sorriso malicioso. Como em uma
visão difusa, penso ter visto Thomas, mas os olhos cor de gelo dele são bem
diferentes da quentura proveniente dos azuis de Eckhoff.
— Eu sou o Brian. — Seu sorriso está largo demais, exageradamente
animado para quem está vendo uma desconhecida. — Sou do time.
Eu já ouvi esse nome em algum lugar. Tenho certeza, mas como eu disse
antes, não estou lúcida o suficiente para pensar com clareza.
— Eu sou Mackenzie Lennon. — Tombo meu corpo para o lado mal
conseguindo me segurar em pé. — Filha do ator, John.
O tal Brian me olha com estranheza e tento repensar minhas últimas palavras
até que caio na risada.
— Opa. John Lennon foi cantor. — Ele acha engraçado também, portanto me
acompanha na gargalhada. E antes que o assunto se prolongue, começamos a
jogar.
Inesperadamente, eu acertei algumas bolas, mas também erramos muito.
Brian me faz beber sempre que a bola não atinge ao alvo e a cevada deixa um
amargor irritante na língua. Depois que canso desse jogo, me apoio no balcão
da cozinha externa, na área da piscina, tentando controlar – sem sucesso –
minha respiração ofegante. Quero a companhia de Lewis, Nevaeh, Andrew
ou até mesmo de Thomas. Entretanto, não consigo encontrar nenhum desses
rostos no meio desses universitários extasiados.
Muita gente pula na piscina, mas penso na blusa branca que ficaria
transparente com a falta do sutiã. Brian se aproxima com um sorriso grande e
devolvo o gesto, sendo unicamente simpática. Ele sussurra algumas coisas
desconexas no meu ouvido e passa a mão na minha cintura nua. A ponta de
seus dedos é áspera demais e isso me incomoda, por isso eu digo para ele me
soltar, mas acho que ele não escuta. Antes que eu tente me afastar, sou
bruscamente puxada para longe do homem invasivo. Mal consigo me
equilibrar sobre os pés, então cambaleio sem controle. A minha salvadora é a
mesma mulher de olhos estreitos que dormiu com Thomas na noite passada.
Agradeço mentalmente e dou um beijo molhado em sua bochecha.
— Vai por mim, se beijá-lo vai querer lavar sua boca com soda cáustica. —
Acho engraçado seu tom de voz e caio na risada. Ela não parece estar
achando graça de nada, pois seu semblante está duro como uma rocha.
Antes que eu segure minha língua, já estou expelindo elogios e
agradecimentos na direção dela. O resto da frase escapole impulsivamente da
minha boca.
— ... E mesmo que você tenha transado com o ridículo do Eckhoff, digo com
certeza absoluta que você é muito legal e linda, e merece coisa melhor. —
Minhas palavras saem emboladas e Jules prende o riso. — Sabe, não sei por
que não consigo ficar longe. Mas vou te falar, nenhuma de nós o merece, ok?
Ela acha tão engraçado que cai na gargalhada, mas isso faz com que eu franza
o cenho.
— Não transamos ontem, e não se preocupe caso seja difícil ficar longe. Vai
valer a pena estar perto dele. Dê uma chance, Barbie. — Torço o nariz ao
ouvir o novo apelido. — Você não irá se arrepender. Conselho de amiga.
Eu até tento processar parcialmente suas palavras, no entanto, a única coisa
que, de fato, entra no meu cérebro é o novo laço que acabei de criar.
— Ai meu Deus! Ganhei uma nova amiga. — Invado seu espaço pessoal com
meus braços que buscam por um abraço de urso. Ela devolve com batidinhas
em minhas costas, como se não tivesse o costume de receber esse tipo de
carinho. Ou de lidar com pessoas bêbadas.
— Como você é animada, Lennon. — O tédio escorre como um veneno em
sua língua, mas não me importo muito porque estou aérea demais para isso.
O incidente com Brian é rapidamente encoberto pelo resto do tempo que
consigo me divertir com meus amigos, dançando com Lewis e virando shots
de tequila com Andrew. Acabo de cair por cima de uma cadeira quando tento
fazer uma curva na sala, arriscada demais para meu baixo equilíbrio. No
momento em que vejo algumas meninas subindo no balcão da cozinha para
dançar rapidamente me junto a elas. Fico ainda mais animada quando percebo
que está tocando Footlose nas caixas de som, um grande sucesso antigo.
Tento reproduzir a coreografia do filme e reconheço que estou longe de
performar algo minimamente aceitável.
Ademais, quando o calor no cômodo se torna ainda mais insuportável, levo a
mão ao laço que junta os lados da minha blusa. Ficarei pelada agora, preciso
disso, essa quentura está insuportável. Antes que eu retire totalmente minha
peça de roupa, sinto um solavanco e meu corpo é puxado para o chão. Não
identifiquei ainda quem está na minha frente, mas sei que é um homem
porque tem os ombros largos e másculos demais. Ele puxa o tecido da blusa e
amarra bem o laço para que não solte novamente. A delicadeza da pessoa me
acalma e eu tombo minha cabeça no peito dele.
— Vem, Mackie — reconheço a voz rouca de Thomas em meu ouvido,
enquanto ele põe uma mão emcada lado do meu rosto e beija minha testa. —
Vou te levar para a casa.
Sabe a sensação de ver alguém errado na hora errada em um lugar
errado?
Nada ali se encaixa. Eu aperto os olhos, crispo os lábios e penso. Repito esses
movimentos por, pelo menos, uns cinco minutos. Tento entender o que
exatamente não está certo e não consigo, no entanto, sei que há algo que não
deveria estar aqui. Porque John Lion acabou de sair da minha oficina, e todos
os elementos dessa simples frase são como um quebra-cabeça cheio de peças
erradas.
Luke tem os olhos tão arregalados que temo o momento em que eles pularão
para fora. Antes que eu sequer questione os motivos do membro de uma
gangue – que é meu rival declarado e reside na cidade vizinha – estar aqui,
ele já começa a se lamentar. Não contabilizo a quantidade de "me desculpe" e
"não me demita" que ouço nos últimos segundos, apenas ergo a mão em um
pedido mudo para que ele cale a porra da boca.
— Não quero um pedido de desculpa. — Coço a nuca em um claro sinal de
nervosismo. — Quero saber o que aconteceu.
Luke respira fundo e parece ponderar o tamanho do estrago que fará.
— A oficina está lotada hoje. As pessoas ficaram confusas com a mudança
repentina no dia do racha. Então, todos os mecânicos estão muito ocupados e
a demanda está grande. — Luke continua falando por um tempo, ao passo
que minha expressão beira ao tédio e estou prestes a calá-lo de novo. — Daí,
enquanto eu estava mexendo em um carro, percebi uma movimentação
estranha e vi John xeretando o automóvel que você correrá hoje.
Demoro a processar um pouco todas as informações que são dadas. Penso
primeiro na transferência de dia do racha, que sofreu um adiantamento de 48
horas, e no quanto isso quase me fez ficar de fora do evento. Contudo, a
minha necessidade de ganhar dinheiro impulsionou meus esforços de
preparar um carro a tempo. Já a parte em que Luke deixa claro ter visto um
John bisbilhotando minha BMW M1 cria um looping na minha mente.
— Luke. — Inspiro e expiro tentando reunir toda a minha paciência para
lidar com isso. — Por que diabos não tinha um filho da puta fazendo vigília
nessa porra de carro?
Meu gerente e também chefe da pequena equipe de mecânicos arregala os
olhos e levanta as sobrancelhas em um claro semblante amedrontado.
— Irmão, por favor. — Luke junta as palmas das mãos. — Eu ordenei que
alguém ficasse de olho, mas hoje o movimento está do caralho.
— Você já virou aquele carro do avesso para conferir se John não conseguiu
sabotar?
Ele acena veemente, confirmando.
— Eu cheguei a tempo, fica tranquilo.
Eu não sou um chefe ruim. Para falar a verdade, eu nem acredito muito nessa
ideia de que para ser respeitado preciso ser temido, porque tenho uma relação
ótima com todos os funcionários e às vezes até os acompanho em alguma ida
ao bar no final do expediente. A partir de bons diálogos e acordos,
conseguimos levar a oficina muito bem. Ademais, Luke é meu melhor
mecânico. Aprendeu tudo o que sabe sobre carros nas ruas de Bolfok Valley,
inclusive fazia parte da gangue dos Lions. No entanto, as coisas mudaram
quando Luke veio para a Bolfok College estudar Engenharia Automotiva
com bolsa de quase cem por cento. O cara é foda, e somos amigos desde que
éramos apenas calouros perdidos. Por isso, eu jamais o demitiria, porém
acredito que tais erros não podem ser suavizados apenas porque somos
amigos.
— Luke Jones— sibilo entre dentes. — Garanta que isso nunca mais
acontecerá.
— Sim, chefe.
Mesmo confiando totalmente na palavra dele, decido dar mais uma olhada no
carro para ter a absoluta certeza de que – seja lá o que John tramou quando
veio até aqui – não deu certo. O fato de ter tido apenas uma aula hoje adianta
metade dos meus compromissos, já que assim consigo responder as
mensagens dos fornecedores e ajudar na vasta demanda de carros para
conserto. Depois de atender as pendências administrativas, troco de roupa,
colocando um macacão de cor diferente dos meus funcionários para colocar a
mão na massa. O azul marinho, que difere do azul-claro dos demais e do
azul-caneta de Luke, serve exclusivamente para indicar que sou o chefe.
Assim, quando algum cliente vem até aqui, consegue constatar visualmente a
hierarquia da empresa.
Estou, nesse exato momento, embaixo de um modelo atual da KIA que só
serve para dar problema. A dona é uma loira rabugenta que atende pelo nome
de Kelly, e seu carro apresenta tantos problemas em um curto espaço de
tempo que já cogitei criar um cartão fidelidade exclusivo para ela. Enquanto
verifico uma das turbinas que aparentemente está exalando muito monóxido
de carbono, escuto passos contidos próximos a mim. Pouso meu olhar em
botas de salto extremamente brancas e franzo o cenho. Impulsiono com o pé
para mover a esteira abaixo de meu corpo e me arrasto para fora. Assim que
subo meu olhar para a meia calça preta e o sobretudo rosa, identifico
Mackenzie. Apenas ela usaria um casaco de um rosa choque tão vibrante.
Seus cabelos estão presos de forma alinhada no topo de sua cabeça em um
coque bem feito, e suas unhas afiadas seguram com afinco uma sacola grande
de papelão.
Não há um dia sequer que, pelo menos, um vulto de sua presença chamativa
não passe pela minha mente. A frequência em que penso nas diferentes
formas que seu corpo poderia estar sobre ou embaixo de mim aumenta em
uma quantidade desesperadora. É como se a cada dia ela retirasse com
cuidado um dos parafusos que me mantém parcialmente racional. Depois da
festa, nossa relação ficou inacreditavelmente melhor, já que conseguimos
trocar mais de quatro palavras sem entrar em uma discussão sem fim.
Desfrutar de sua presença foi difícil porque tivemos dias abarrotados de
provas e trabalhos, no entanto, não deixamos de nos comunicar
razoavelmente por mensagens.
— O que está fazendo aqui, Regina? — questiono, balançando minha cabeça
com o objetivo de fugir dos devaneios.
— Boa tarde, Mackenzie. Como você está? — Ela engrossa a voz em uma
tentativa debochada de me imitar. — Estou bem, Eckhoff. E você?
A risada escapole pela minha boca antes que eu possa responder, e ela me
bate no ombro com a sacola que segura. Lembrando que tenho educação,
pergunto como ela está e como foi seu dia. A resposta vem em forma de
discurso. É como girar uma chave que libera cerca de cem palavras por
segundo: ela me conta que teve aulas extremamente proveitosas e que está
mais do que ótima. Quando resolve que já falou o suficiente, decide
responder minha pergunta inicial.
— Você disse que teria um dia muito cheio hoje e há dez minutos respondeu
minha mensagem sobre o café da manhã da faculdade. — Me recordo
rapidamente de nosso último diálogo em que eu elogio as panquecas do
restaurante da universidade. — Presumi que você não tinha almoçado ainda,
então...
Mackenzie ergue a grande sacola em suas mãos e me mostra o símbolo de
uma ótima lanchonete situada perto da Bolfok College. A pizza de palmito é,
com toda certeza, um dos melhores pratos do local. Consigo identificar
perfeitamente bem a diferença entre os sabores da gordura, molho de tomate
e palmito no alimento. Finjo que não, mas o ato de trazer meu almoço faz
com que o coração erre uma batida. Talvez esse seja o gesto mais próximo de
carinho que eu receberia de Mackenzie por um tempo, sabendo que ela é
frequentemente ácida e odeia grude. Contudo, com pequenas atitudes, é
possível reconhecer o quanto ela se importa.
É bem provável que esse seja apenas um agradecimento por eu ter cuidado
dela no sábado, mas minha mente fantasiosa se recusa a se contentar apenas
com isso. Antes que eu possa me controlar, uso minha mão limpa para puxá-
la em minha direção e cobrir sua boca com a minha em um selinho.
— Obrigado — surpresa pelo ato inesperado vindo de mim, ela se limita a
acenar levemente com a cabeça.
— Bom, agora que já me certifiquei de que você não morrerá de fome, vou
indo. — Mack diz e antes que ela possa dar alguns passos para longe, seguro
sua mão.
— Não tão fácil, Lennon. — Ergo o canto dos lábios ao vê-la franzir o nariz
em desdém. — Almoça comigo.
— São quatro da tarde, eu já comi. — Ela parece irredutível e, por isso, a
lanço meu melhor semblante pidão.
— Então, me faça companhia e eu te recompenso com alguma das suas
comidas chiques. — Minha conta bancária deve estar me xingando de todos
os nomes possíveis agora.
— Não precisa, apenas divida comigo essas cebolas fritas que comprei junto
com a pizza de palmito horripilante.— Mackenzie bufa só para fingir que não
cedeu com tanta facilidade, mas isso não impede que o sorriso largo brote em
meu rosto.
Ela me acompanha na caminhada até meu escritório e cumprimenta
cordialmente todos os funcionários, esboçando um sorriso simpático que
dificilmente é direcionado a mim. Quando Mackenzie alinha seu corpo ao
meu, andando no mesmo ritmo, um novo adjetivo para ela surge em minha
mente.
Elegante.
Definitivamente, uma mulher absurdamente elegante. Acho que nunca vi
ninguém andar dessa forma fora das passarelas. Sua postura de quem nunca
terá problemas na coluna está ereta, a cabeça erguida de uma forma que o
nariz quase fica empinado e os passos perfeitamente sincronizados como se
estivesse em um tapete vermelho. É quase artístico observá-la caminhar, e
apenas alguns passos dela podem encantar qualquer um.
— O que está olhando? — Ergo os calcanhares em um sobressalto.
— Por quanto tempo você foi modelo? — Mackenzie me olha e pondera por
uns instantes até responder.
— Acho que desde que eu nasci. — Abro a porta do meu escritório e indico
com a cabeça para que ela entre. — Minha mãe sempre me colocou para
representar sua marca desde roupas infantis até quando alcancei a
maioridade. Eu estava sempre em desfiles e sessões fotográficas. — Ela
mantém a postura ao sentar no sofá posicionado no canto da sala. — Por que
a pergunta?
— Eu estava apenas reparando no quanto você parece estar sempre
desfilando. — Subo e desço os ombros.
— Você não é o primeiro a me dizer algo do tipo. Acho que é involuntário.
Ao entrar no meu escritório, ela se livra de seu sobretudo pesado, deixando-o
pendurado no suporte ao lado da porta. Tenho acesso livre a visão de sua saia
preta de botões e sua blusa rosa clara de decote cavado. Mackenzie comeu
todas as minhas cebolas, e se eu tive o prazer de degustar de duas foi muito.
O almoço decorre a partir de conversas amenas nada características de nós, já
que a guerra sempre estampa nossos diálogos. No entanto, estamos um tanto
cansados demais para sequer argumentar contra o outro. Lennon está
encostada no apoio do sofá, de frente para mim, com as pernas cruzadas na
altura do peito. É impossível não me perder em cada detalhe de seu rosto,
desde o espaço amplo entre suas sobrancelhas até as pintinhas espalhadas por
suas bochechas e seu pescoço, como uma verdadeira constelação. Não houve
um momento sequer em que eu deixei de desviar rapidamente o olhar para o
vale entre seus seios, e a cada movimento devido a sua respiração, eu me
perdia um pouco mais.
Mackenzie me chama atenção estalando os dedos na frente do meu rosto. Ela
não deixa de me alfinetar sobre o quanto sua beleza me distrai, mas me limito
a erguer meu dedo médio para ela. Quando entramos no assunto infância,
percebo o instante que Regina fica desconfortável. Porém, ao ouvir sobre
minhas artimanhas dignas de uma criança levada, ela se atém a ouvir com
zelo. Ouço alguns comentários ácidos sobre minha mentalidade não ter
amadurecido muito e isso nos rende uma boa discussão misturada com
risadas.
Não deixo de questioná-la sobre suas brincadeiras favoritas da infância,
contudo, não recebo nenhuma resposta. Ela somente atesta que se acostumou
a brincar sozinha, montando uma enorme cidade de bonecas com direito aos
brinquedos mais caros do mundo, imersa em uma enorme solidão. Isso faz
com que meu coração diminua um pouco mais no peito. A angústia me toma
em um solavanco desgostoso e eu tenho vontade de comprar uma máquina do
tempo e disponibilizar a ela uma infância cheia de felicidade e plenitude. A
única vontade que tenho, neste momento, é de tomá-la em meus braços em
um abraço que poderia protegê-la do mundo, mesmo que eu tenha noção do
quanto ela pode se defender sozinha. No entanto, não me movo. Continuo no
mesmo lugar sem ter a ideia se temos intimidade o suficiente para demonstrar
gestos mais carinhosos do que uma chupada fenomenal.
Nada tiraria da minha cabeça o semblante libertino que estampava o rosto de
Mackenzie quando ela me encarava enquanto sua boca deliciosa rodeava o
meu pau. Uma diaba, isso que ela é. Uma mistura perfeita entre coragem,
pureza e promiscuidade. Há algo de tentador nela – que aparentemente me
atinge em um nível perigoso – quando seus olhos transmitem inocência e seu
sorriso expõe luxúria. Talvez eu esteja enlouquecendo, de pouco a pouco, e a
presença dela só acelera o processo.
Sou retirado de meus devaneios em um solavanco assim que Mack pula do
sofá avisando que precisa enfiar a cara nos livros, pois tem uma prova na
véspera do jogo de futebol — que seria o mais importante para o time da
faculdade. Em um ímpeto, totalmente encorajado pela falta de parafusos em
meu cérebro, tenho uma ideia da qual não demoro a compartilhar.
— Regina. — chamo-a, e ela ergue a íris marrom, suas sobrancelhas se
levantando em pura curiosidade. — Venha a minha casa hoje à noite.
— Por quê? — Mackenzie parece totalmente inclinada a recusar o convite,
contudo não há muito o que argumentar. Eu estou contando apenas com a
sorte.
— É surpresa. — Lennon franze o nariz e nega veemente com a cabeça. —
Vai ter que confiar em mim.
A palavra confiança é um tanto interessante para nós dois, porque apesar das
implicâncias e provocações que parece nos consumir quando estamos na
presença um do outro, sinto-me extremamente confortável para fazer o que
quiser perto dela. E acho que isso diz muito sobre nossa relação conturbada e
disfuncional, já que ela jamais se sentaria no meu banco do carona em um
racha contra o membro de uma gangue se não confiasse em mim. Assim
como deixou que eu cuidasse dela em um momento de vulnerabilidade
quando estava bêbada.
Ela parece se convencer afinal, porque diz que tentará aparecer. Eu a convido
para me ver correr hoje, entretanto ouço a resposta que já esperava: "tenho
que estudar". Calculo mentalmente o horário de minha corrida para dar tempo
o suficiente de preparar o que eu acabei de planejar para ela. Com apenas
uma pequena mensagem para Chad, consigo adiantar minha competição e
encaixo todas as peças que faltavam para completar esse quebra-cabeça.
Declaro como finalizado meu expediente na oficina e peço que Luke leve
meu carro até a Bolfok Ride mais tarde, porque agora darei máxima atenção
ao meu plano de surpreender Mackenzie. E para deixar claro, eu faria isso por
qualquer pessoa.
Bolfok Ride está inacreditavelmente vazia. Não é comum observar o vasto
espaço sendo ocupado por poucas pessoas. A característica caixa de som
ainda está ali reverberando um Trap agressivo, contudo não há pessoas
dançando ou sequer se balançando para acompanhar o ritmo grave das
batidas. Chad está com o semblante murcho porque sabe que provavelmente
não ganhará uma boa grana hoje. Talvez a transferência de datas, de sexta-
feira para quarta, não tenha atraído a população jovem imersa em uma
semana de provas cansativa. A fazenda parece ainda mais deserta com a
diminuição dos clientes e da luz amarelada dos postes que iluminam o lugar.
Recebo uma mensagem de Dominic dizendo que ficará no alojamento de
Nevaeh porque Mackenzie disse algo sobre dormir na casa de Hannah. Não
sei exatamente em que momento as duas tornaram-se amigas o suficiente
para se acobertarem em mentiras deslavadas, no entanto hoje ela será
utilizada de bom grado. Andrew também alega que não poderá comparecer ao
racha e que não dormirá em casa, mas ele não é do tipo que nos alimenta com
justificativa, então não me esforço em perguntar aonde ele vai.
Avisto Indiana sentada ao lado de Chad, compartilhando da expressão
desanimada de quem terá uma noite particularmente devagar. Sem fortes
emoções. Lanço-os um aceno amigável e recebo caretas que oscilam entre o
tédio e o desdém. Tenho a curiosidade de saber com quem correrei, mas ela é
rapidamente sanada quando vejo John estacionar seu carro ao lado do meu na
pista principal. Quase suspiro de alívio quando vejo que terei uma corrida que
me trará uma grana fácil, e isso é tudo que um cara parcialmente quebrado
precisa no momento.
Bolfok Ride está com, pelo menos, dois terços da sua capacidade máxima,
por isso, quando os nomes dos corredores são anunciados, o barulho dos
gritos que nos ovaciona é muito mais baixo. Sinto um pouco de falta da
mulher que geralmente corre contra mim, no entanto, não vejo menor sinal de
sua presença aqui, e até questiono Indiana acerca disso.
— Não. — Ela balança veemente a cabeça. — A Rainha não tem nenhuma
corrida marcada para hoje.
Isso é no mínimo estranho. Não que a mulher misteriosa corra em todas as
sextas, contudo, Indiana já havia comentado comigo mais de uma vez que
coincidentemente quando estou aqui, ela também está. Não sou tão arrogante
de pensar que a moça venha apenas por minha causa, porque seria estrelismo
em excesso até para alguém com o ego tão inflado quanto eu. Entretanto,
ainda assim, desconfio de sua falta em um racha cotidiano.
Assim que Chad autoriza nossa entrada no carro, coloco o cinto, ajeito o
retrovisor e executo o mesmo ritual de sempre, que consiste em bater três
vezes com o dedo indicador no painel. John tem seus olhares característicos e
o que ele me lança agora é o de desafio. Como se não acreditasse que eu
pudesse vencê-lo mesmo que eu já o faça há três anos. Indiana se posiciona
entre os automóveis e movimenta o lenço, permitindo que eu pise no
acelerador.
Foi dada a largada.
O meu carro pula quando sofro o tranco da partida. Atinjo a quarta marcha
em uma velocidade imprescindível e enxergo pelo retrovisor um John que já
fica para trás. Não é que ele é um mau corredor, mas conhecendo-o bem o
suficiente, sei o exato instante em que ele executará alguma manobra, porém
simplesmente prevejo suas artimanhas e consigo desviar de todas elas.
Conhecer seu oponente é a melhor vantagem que você poderia ter.
A Avenida que estamos agora é reta e tem um asfalto tão bem feito que sinto
como se estivesse sobre um tapete, contudo, assim que atingimos a marca das
ruas sinuosas de uma cidade pequena como Bolfok Town, a adrenalina já
toma cada mazela do meu corpo. Uma curva fechada faz com que minha roda
traseira invada a calçada e eu só acelero mais. Desvio de cada buraco,
levando meu pescoço em uma dança desconfortável de um lado para o outro.
Corto a urbanização inteira com John atrás de mim, até atingir a rotatória que
me leva de volta à Avenida onde a fazenda está situada. Falta muito pouco
para essa corrida ser minha e, por causa de uma falta de atenção, o carro de
John raspa no meu, me jogando para escanteio.
O volante tremula em minhas mãos e eu o aperto ainda mais forte, com os
nós dos dedos quase brancos para não perder o controle. Se o alinhamento
dos meus pneus não fosse tão bem feito, eu estaria capotando no matagal que
cerca a pista. Essa trapaça mal feita por parte dele me deixa temporariamente
em desvantagem, no entanto, sei que John não conta com minha sexta
marcha. Esse câmbio adicional não faz milagre, mas talvez seja o momento
perfeito para acionar o turbo e alcançá-lo. Há uma estrada de terra perto o
suficiente para que seja minha última tentativa de vitória, arriscando o
suficiente para um cara como eu, contudo, ao analisar as possibilidades,
decido que essa é minha única alternativa para ganhar.
Mackenzie ficaria orgulhosa de me ver arriscando pela primeira vez em uma
corrida. Giro o volante com tudo e entro na estreita estrada de terra que me
levará em um caminho perigoso até a linha de chegada. Agradeço
mentalmente por ter escolhido uma BMW M1 forte o suficiente para
enfrentar os pedregulhos e buracos da pista não asfaltada.
Quando volto para o asfalto consigo, pelo menos, alinhar meu carro ao de
John. Ele parece ter cantado vitória antes da hora porque agora me lança um
olhar de pura indignação, mas isso não me abala porque acabo de cruzar a
linha de chegada com milissegundos de vantagem sobre ele. Consigo
desgrudar, com dificuldade, os dedos do volante. Meus pés formigam,
clamando por um descanso enquanto uma câimbra leve irrompe impetuosa
por minhas panturrilhas. Saio do carro rapidamente para esticar minhas
pernas e reservo uns segundos para alongar meu joelho enquanto, em pé,
tento alcançar meu tornozelo com as mãos. Ergo os braços e estralo os ossos
da coluna, tomando uma nota mental de pedir que Mackenzie me ensine um
pouco sobre postura ereta. Senão, eu teria problemas na escápula antes dos
trinta. Indiana vem até mim e massageia minhas omoplatas levemente como
uma parabenização pela vitória.
O dia, marcado por acontecimentos estranhos, piora ainda mais quando avisto
a mulher mascarada – que se autointitula rainha – conversando com um
homem na penumbra. Despisto Indiana e os fanáticos por mim para caminhar
silenciosamente até eles. De onde estou, não consigo ouvir nada do que
falam, mas pela linguagem corporal, entendo rapidamente que se trata de uma
discussão. Ela aponta o dedo na cara do grandalhão e ele empurra um
envelope gordo contra os seios dela. A moça misteriosa não perde tempo ao
segurar o pacote contra o peito e se exalta um pouco. Embora eles estejam
claramente falando alto, é impossível ouvir, de onde estou algo que não
sejam ruídos desconexos totalmente embaralhados. Eu até poderia tentar
decifrar o movimento dos lábios deles, mas estão devidamente tampados com
bandanas que eu costumo usar ao correr. Ela cospe mais meia dúzia de
palavras contra o homem, que se limita a acenar e virar as costas. Assim que
percebo que não haverá mais discussão, tomo meu caminho de volta à
fazenda para pegar a pouca, porém significativa grana que ganhei.
Depois de centenas de mensagens enviadas a Mackenzie com o objetivo de
confirmar sua vinda até minha casa, recebo dezenas de xingamentos em
resposta. Porém, consigo o que eu queria, uma confirmação.
Demoro, em torno de uma hora, para arrumar tudo o que quero. Fico
extremamente satisfeito quando me dou conta de que minha produção está
melhor do que o esperado. Talvez Lennon odeie e não pegue a essência da
minha ideia, mas não custa nada tentar. Tomo um banho renovador e a água
quente vai de encontro a todos os pontos doloridos em meu corpo. Seco meu
cabelo de mau jeito com a toalha e não sinto a necessidade de uma produção
exacerbada. Por isso, me atenho a usar uma calça de moletom cinza e uma
blusa de meia manga branca. Aviso a Mackenzie que não precisa vir pronta
para a New York Fashion Week porque faremos uma atividade confortável e
ela me responde que irá me agredir se eu colocá-la para fazer algum tipo de
esporte. Eu jamais faria isso com uma pessoa tão sedentária, na realidade,
eu com certeza faria isso com ela. Seria no mínimo cômico vê-la tentar me
alcançar embaralhando as pernas para correr. No entanto, me limito a
responder que não faremos nada que exija muito esforço porque sei que esse
não é exatamente seu ponto forte. No instante em que estou borrifando meu
perfume, escuto a campainha soar alta pelos cômodos.
Me parece que Mackenzie Lennon acaba de chegar.
A ansiedade percorre pelo meu corpo como uma dose cavalar de
alucinógeno. É como se meu sangue pudesse borbulhar dentro de mim e meu
coração tentasse escapulir da minha caixa torácica. A excitação me corrói
tanto que erro um degrau ao descer as escadas correndo, mas rapidamente me
recomponho, chegando ao térreo em um pulo. Paro em frente à porta e me
dou uma pausa afim de me recompor. Não paro para ponderar o motivo de
sensações tão poderosas se apossarem de mim quando Mackenzie está por
perto, apenas abstenho momentaneamente. Por fim, confiro se há vestígios de
suor em minhas axilas antes de abrir a porta.
A madeira maciça range levemente quando eu abro, e Mackenzie parece ter
acatado meu conselho, já que veste um casaco e uma calça de moletom liso e
chinelos de uma tira escrita Givenchy em letras garrafais. Seu cabelo está
solto em cascatas pelos seus ombros e um semblante desafiador estampa seu
rosto.
— Boa noite, Regina. — Seus olhos correm do topo da minha cabeça até
meus pés e eu sinto o típico arrepio que só uma encarada dela poderia causar.
— Mi casa, su casa.
Ela franze o nariz, mas seus pés fincam no chão assim que sua visão pousa no
que eu preparei. Mackenzie está estatelada, como uma estátua, os braços
estáticos ao lado do corpo e o queixo caído em conjunto com os olhos
arregalados. É difícil decifrar se sua expressão demonstra apreciação ou se
beira ao pavor.
— Que porra é essa, Thomas Eckhoff?
Ok... Definitivamente pavor.
Quando adentro a casa de Thomas, a primeira coisa que me atinge é o
ar quente promovido por seu aquecedor. A lufada de ar de alívio que escapa
por meus lábios tem como impulso o aconchego que me abraça ao conforto
do local. No entanto, meus olhos são atraídos diretamente a um amontoado
de lençóis e cobertores no chão de sua sala. E é aí que eu entendo a surpresa.
A constatação da grandiosidade do gesto faz com que o pavor se choque
contra mim em uma velocidade cruel.
— Que porra é essa, Eckhoff?
Logo depois que as palavras escapam da minha boca, me arrependo. Porque a
intenção não é ser tão ácida quanto pareceu. Estou assustada, apavorada,
honrada e admirada.
— Você disse hoje que nunca havia experimentado brincadeiras comuns da
infância. — Ele pigarreia antes de prosseguir. — E eu amava juntar os
edredons sobre a televisão e montar uma espécie de cabana com a minha
mãe. Pensei que você gostaria de vivenciar algo do tipo.
Reconheço o nervosismo de Thomas e vejo que em seu olhar tremelicante a
expectativa. Antes de respondê-lo, analiso o cômodo com atenção. Há dois
edredons se encontrando acima da televisão, formando uma cabana. No chão,
alguns cobertores e lençóis estão espalhados junto com almofadas e
travesseiros. A intenção é que a gente se acomode na maciez do enxoval e se
recoste no sofá. A organização foi feita com capricho já que até umas
luzinhas estão servindo de decoração. Também consigo distinguir pacotes de
bala de ursinho, pipoca e latas de Dr Pepper enfiadas em um balde de gelo.
Sinto-me verdadeiramente honrada por ser merecedora de tal gesto, mesmo
não tratando Thomas tão bem em muitas vezes. Não consigo evitar pensar
que jamais alguém fez algo parecido para mim.
— Não se preocupe. — Thomas se adianta. — Eu comprei refrigerante de
cereja para você.
Ele sabe que não gosto muito de Dr Pepper e fez questão de tentar me
agradar. A vontade que irrompe inóspita por mim é de me jogar nele em um
abraço, e eu não hesito, enlaçando seu tronco com meus braços esguios e
sentindo os seus passarem por minhas costas. Ele beija o topo da minha
cabeça e apoia o queixo ali. Inesperadamente, tenho vontade de chorar. É
uma sensação estranha, como se eu estivesse me dando conta neste exato
momento que ninguém ao meu redor nunca se importou muito em tentar me
agradar, ou sequer quis me ouvir. Contenho-me com avidez e guardo as
lágrimas para mim.
— Obrigada por isso. — Encosto a cabeça no lado esquerdo de seu peito, e a
retumbada acelerada de seu coração me arranca de meu estado letárgico. —
Que filme veremos?
— O Exorcista. — Ele bufa, descontando sua insatisfação. — É o seu
preferido de terror, huh?!
Afirmo em um balançar de cabeça animado.
Thomas ocupa um lado de nossa cabana e eu me sento próxima a ele,
podendo até mesmo sentir seu braço roçando levemente no meu. Não
demoramos em atacar todas as guloseimas presentes ali enquanto concedo a
atenção de uma verdadeira devota ao filme.
Longos minutos haviam passado, e eu acabo de constatar mais uma certeza
em minha vida. É impossível assistir qualquer obra de terror com Thomas
Eckhoff. Nós já tínhamos discutido centenas de vezes porque ele se apossou
do controle, e sempre que acha que tomará um susto resolve pausar o filme.
Além de afundar o dedo no botão de mudo quando uma música que indica
suspense começa. Eu já estou no auge de minha irritação, socando inúmeras
pipocas em minha boca só para não surtar com ele.
Realmente temo o momento em que ele borrará as calças de tanto medo. Um
ridículo, isso que ele é. Os sobressaltos que dá quando está apavorado me
contagiam mesmo que eu já tenha visto esse filme milhares de vezes.
Em algum momento, lá para o meio do filme, Thomas me parece muito mais
interessante a meu ver. Tento disfarçar, encarando-o pelo canto dos olhos,
desde seus pés até a camisa branca que abraça seus músculos com louvor,
exibindo sua tatuagem no peito devido à transparência do tecido. Quando a
criança de doze anos desce a escada, em uma ponte, completamente possuída,
Eckhoff se encarrega de tampar as vistas com uma almofada. Como o
verdadeiro cagão que é.
Uma de suas mãos se encarrega de segurar a almofada sobre seus olhos
enquanto a outra pousa suavemente em seu abdômen. Já vi O Exorcista tantas
vezes que, nesse momento, encarar a mão grande de Thomas me parece
muito mais proveitoso. Ele tem dedos longos que aguçam a imaginação de
qualquer pessoa, com os nós calejados pelo trabalho manual e as unhas são
tão limpas que ninguém poderia prever o tempo que passa mexendo com
graxa e sujeira. Eu já havia notado uma aspereza além do normal na ponta de
seus dedos, indicando que ele passa tempo demais mexendo em peças de
carro. É irônico pensar que Thomas adora me alfinetar no que diz respeito a
minha aparência "perfeita", no entanto ele se assemelha a mim mais do que
imagina, porque tudo nele é absolutamente lindo e beira a uma perfeição
desleixada.
Antes que eu possa controlar meus impulsos, capturo sua mão e trago até
meus lábios. Ele arfa como em uma reação instantânea ao meu toque, e
deposito o primeiro beijo em seu indicador, até pousar meu lábio em cada um
de seus dedos. Prego minha íris na sua e lanço-o um sorriso malicioso. Em
seguida, pego a almofada de sua outra mão e jogo no sofá, afinal, não
precisaremos mais dela. Meu corpo está pairando sobre o dele e nossas
respirações, que aceleram gradativamente, já se misturam como em uma
mistura enlouquecedora de sensações conflituosas. Não sei exatamente o que
há com nossos hormônios quando nos aproximamos, mas a quentura que se
apossa de mim é quase insuportável. Enlaço Thomas com uma das pernas,
afundando os joelhos nas cobertas que cobrem o chão, chocando meu tronco
no dele ao mesmo tempo em que cubro seus lábios com os meus.
A língua dele deslizando sobre a minha é como água em uma seca
inigualável. Há essa sensação, como se meu coração estivesse inflando e se
expandindo por toda a minha caixa torácica. O formigamento sobe desde os
meus pés até o topo da cabeça e cada parte do meu corpo sendo tocada por
ele queima. Encaixo as mãos uma em cada lado do seu rosto, me remexendo
em seu colo. Thomas pressiona meus quadris de tal forma que adquiro a
certeza da marca avermelhada de seus dedos. Embrenho seus fios da nuca e
aperto seu ombro enquanto inevitavelmente rebolo em seu pau. A virilha se
contrai, fazendo com que eu impulsione ainda mais de encontro a ele.
Thomas desce o aperto para minha bunda e parece estar gostando da fricção
entre nós, até me parar erguendo meu corpo.
— Hoje,— ele segura meu queixo, erguendo minha face. — é você quem
goza, Lennon.
É impossível frear o sorriso que se estende no rosto. Thomas me põe sentada
de volta sobre os cobertores do chão e me apoia no sofá. Passa o indicador
entre minhas sobrancelhas, desce pelo meu nariz e estatela os movimentos.
Ele arrasta suas mãos pela lateral do meu corpo até chegar à barra da calça, e
me ergo em uma resposta reativa aos seus comandos silenciosos. Eckhoff tira
tudo de uma vez, calça e calcinha. Seus dedos voltam roçando desde meus
pés, passando pela minha canela, coxa até a virilha. Há uma espécie de anseio
desesperado da minha parte, como se a todo o momento ele chegasse tão
perto e tivesse o prazer de parar. Contudo, ele sobe meu casaco que se
embola levemente em minha cabeça até que me conceda a liberdade.
Estou completamente nua agora, com a íris azulada de Thomas pregada em
cada canto do meu corpo. Ele tem prazer em me olhar, como um devoto fiel,
um amante de arte me contemplando como uma obra estimada. Nunca, em
toda a minha vida, recebi um olhar como esse. De admiração pura e genuína.
É um tanto engraçado o quanto gostamos de beijos agressivos e agora
estamos imersos em uma paciência incomum.
Sinto seus lábios em uma bochecha, depois na outra, na minha testa, na ponta
de meu nariz, no queixo, na mandíbula, no pescoço e no lóbulo da minha
orelha. A sugada um pouco acima da minha clavícula desperta algo embaixo
de meu ventre, um incômodo que umedece cada vez mais minha intimidade.
Thomas desce os beijos pela minha garganta e colo, agarrando um dos lados
do meu pescoço e pressionando, roubando um pouco do meu ar enquanto
chega cada vez mais perto dos meus seios. Sua palma arrasta com
agressividade em meu mamilo rijo, me impulsionando a soltar um gemido
sôfrego. Ele belisca e enche sua mão com meu seio, apertando-o fortemente.
Estou revirando os olhos e já cheguei a um ponto que eu deixaria que ele
fizesse o que quisesse comigo. Enforcando-me com uma intensidade gostosa,
ele captura meu mamilo em uma sugada que me faz arfar. Neste ponto, ele
parece gostar de me ver enlouquecer com sua mão ao redor do meu pescoço e
a boca em meu mamilo, chupando, mordendo e beijando.
Thomas me solta de uma vez, fazendo com que eu inspire o máximo de ar
que posso. Meu peito sobe em uma rapidez invejável e seu dedo indicador e
médio volta ao meu campo de visão. Ele os pressiona sobre minha boca e eu
instantaneamente atendo seu pedido mudo assim que cubro seus dedos e sugo
toda a extensão deles. O homem não demora a levá-los até minha intimidade,
passando-os sofregamente por toda a vulva. Ele me olha com um semblante
inocente, como se não tivesse ideia de que está me fazendo delirar, no entanto
o canto de seus lábios erguidos em um gesto imperceptível entrega que ele
sabe exatamente o que está fazendo comigo.
— Thomas,— ele tomba a cabeça para o lado. — Agora.
Eckhoff sabe do que estou falando porque, sem hesitar, me penetra firme e
repentinamente. Ele para os dedos dentro de mim esperando que eu cubra sua
mão com a minha o guiando do jeito que eu gosto. O gesto me excita ainda
mais quando tomo a noção de que ele quer que eu o guie, expondo como
gosto de ser tocada. Depois que ele pega o ritmo deixo que faça o trabalho
sozinho. E ele parece gostar da confiança porque não demora em pressionar
meu clitóris com o polegar. Desisto de fingir qualquer controle e apenas
tombo minha cabeça no estofado do sofá enquanto ele me fode com os dedos.
Mas, nunca seria tão fácil entre a gente. Thomas agarra os fios da minha nuca
e obriga que o contato visual seja mantido. Começo um movimentar de
quadris, ansiando por mais contato entre nós, querendo-o dentro de mim o
mais rápido possível. Contudo, nossos planos não são os mesmos porque, do
nada, ele para. Tira os dedos de dentro de mim e se afasta completamente. Já
estou pronta para xingá-lo até que ouço sua voz novamente.
— Senta no sofá.
Bufo audivelmente como demonstração de desobediência, entretanto faço o
que ele pede. Thomas agarra minhas coxas e me leva agressivamente de
encontro a ele. Obrigo-me a sustentar meu corpo com as mãos posicionadas
um pouco atrás e sinto sua língua executar um movimento circular em meu
clitóris. Porra.
Ele lambe toda a extensão da minha vulva, sugando um dos lábios em uma
provocação diabólica. Mas ele desiste, porque sem desgrudar os olhos de
mim, finalmente me chupa.
— Ah... Mackie. — Ele arfa com a cabeça enfiada entre minhas pernas. —
Você é tão deliciosa.
Sinto minha entrada acomodar sua língua enquanto ele arranha minhas coxas
com as unhas curtas e sua mão trabalha junto estimulando meu clitóris
intumescido. Pressiono as coxas ao redor de sua cabeça, ao passo que a
sensação de letargia vai ganhando espaço no corpo. Thomas massageia a
lateral da coxa com atenção, passando a língua pela extensão da vulva, até
que o sinto, o ardor do maldito tapa que ele desfere em minha carne, me
fazendo exclamar seu nome em um gemido que poderia ser audível do lado
de fora.
Quando ele volta a sugar meu ponto de prazer ao mesmo tempo em que me
penetra com dois dedos, os primeiros sinais do orgasmo fazem-se presentes.
As pernas começam a tremer e o formigamento corre por todo o meu corpo.
Sinto-me em brasa, queimando no meio de uma labareda. Thomas não para,
parece focado demais em me fazer gozar, e quando entende que estou quase
lá, suga meu clitóris com força. Então, me desfaço no auge do meu prazer
prendendo involuntariamente a cabeça dele entre minhas pernas.
Puta que pariu.
Desfaleço o corpo um tanto cansado no sofá, despencando ao perder a força
nos braços que me sustentavam. O acolchoado ampara o tronco, ao passo que
as pernas ainda tremelicam de leve, junto com a sensibilidade pelo recém-
orgasmo. Thomas aguarda o tempo necessário até que eu me recupere
totalmente, o que não demora muito.
Meus olhos pousam diretamente em sua ereção marcada na calça de
moletom, e aquilo me induz a prosseguir com meus atos. Eu mando para o
inferno qualquer grito do meu orgulho me avisando que continuar seria um
caminho sem volta. Perscruto o cômodo até encontrar a carteira de Eckhoff.
Levanto em um pulo, implorando mentalmente que tenha camisinha ali, e
quando a embalagem metálica escapa da divisória é como achar pote de ouro
no fim do arco-íris. Volto minha atenção a Thomas, que encarava, sem pudor,
a minha bunda. Sabendo que foi pego no flagra, abre um sorriso canalha para
mim. Ando até ele em passos contidos, estreitandoas vistas e balançando o
pacote de preservativo.
— Me parece que chegou a sua hora de fazer o que eu mandar.
Ele não demonstra resistência, pelo contrário, parece absolutamente pronto
para atender qualquer ordem.
— E o que você quer que eu faça, Rainha de Bolfok? — O apelido faz com
que meu estômago contorça bruscamente.
— Primeiro. — Ergo o indicador. — Tira essa blusa.
Thomas puxa a gola traseira da blusa com uma mão só, retirando-a de seu
corpo. Admiro seu braço parcialmente fechado de desenhos em preto e
branco, e a adaga se movimentando à medida que seu bíceps flexiona. Sem
hesitar, monto em cima dele, largando a camisinha ao nosso lado. Balanço o
quadril, roçando a intimidade no volume mais que evidente no meio de suas
pernas e colo nossos lábios em um beijo agressivo. Ele puxa meus fios da
nuca com força e o gruído que sai de minha garganta entrega o quanto gosto
dessa brutalidade. Minha boca arde com seu beijo. A fricção de meus
mamilos em seu peitoral, dos nossos corpos quentes atritando nos enlouquece
gradativamente. Em um espaço curto de tempo, temo delirar por completo.
Ainda sob o controle da situação, ajudo Thomas a se livrar de sua calça.
Quando seu moletom passa a ocupar qualquer lugar no chão, volto minha
atenção ao volume visível entre as pernas do loiro. Passeio com minhas mãos
pelos seus quadris, sentindo o quase imperceptível relevo de suas estrias,
arranho seu abdômen e o vejo contrair os músculos ao mesmo tempo que
uma arfada generosa escapa por entre seus lábios. Parece-me quase ofensivo
não aproveitar para beijar seu peitoral e pescoço. Sua pele macia sob meu
toque faz com que uma sensação ocupe cada mazela do meu corpo, como se
eu pudesse tocá-lo para sempre. O aroma de sabonete de amêndoas e loção
pós-barba que exala dele, me induz a enterrar o nariz na curva de seu
pescoço, inspirando com vigor ao mesmo tempo em que sugo sua pele.
Pressiono sua ereção com a mão e Eckhoff aperta minha cintura com força,
como se não pudéssemos perder nem mais um minuto sem tê-lo dentro de
mim e livre de sua cueca. Abro a embalagem metálica sem nunca desgrudar
minha íris da dele, o visto com calma para não me enrolar e perder o clima
devido a uma vergonha alheia. Assim que roço seu pau na minha entrada, ele
arqueja levantando o quadril como se implorasse para me invadir. No
entanto, eu estou no controle agora e as coisas serão do meu jeito.
Quando suas mãos agarram minha cintura e me forçam para baixo, reluto e
puxo seus fios da nuca com força.
— O que eu disse antes? — sussurro em seu ouvido e assisto sua pele
arrepiar. — Eu estou no comando.
Mordo o lóbulo de sua orelha e assopro levemente. Arrasto mais uma vez seu
pau por toda a extensão da minha vulva.
— Você me desobedeceu e foi um menino mau. — Abro um sorriso
diabólico, e suas pupilas dilatadas expõem a luxúria que nos apossa. — E
sabe o que meninos maus recebem?
— O... O que? — É até engraçado vê-lo tão entregue a mim, de modo que
mal consegue pronunciar algumas palavras.
— Punição. — Puxo seus fios com ainda mais força e Thomas geme em meu
ouvido.
Há algum tipo de alucinógeno que envia uma névoa espessa a nossa mente,
espantando qualquer tipo de pensamento coerente. Seus olhos me encaram
cheios de expectativa, como se mal pudessem esperar pelo que viria a seguir,
pela mistura do prazer com a dor. Começo arranhando seus ombros com
força, me controlando para não acabar com isso de uma vez. No entanto,
mudo meus planos repentinamente. Porque, nesse exato momento, sento no
seu pau sem avisar. Um grito esganiçado rompe pela minha garganta bem
próxima ao seu ouvido, de dor, de excitação, de prazer.
O membro dele ocupa todo o espaço que eu tenho sem que eu possa me
acostumar: grosso, volumoso, espaçoso, invasivo pra caralho. Não esqueço
que ele me desobedeceu, então seguro sua nuca com uma das mãos e a outra
se abre, levando minha palma a se chocar com a lateral de seu rosto. A
cabeça de Thomas tomba para o lado devido ao tapa. Espero qualquer reação
sua e recebo um sorriso extremamente cafajeste. Isso me impulsiona a
continuar, rebolando nele e experimentando sua grossura em movimento. A
movimentação mais extraordinária que eu já experimentei. Essa posição
torna-se, rapidamente, a minha favorita. Não existe nada muito melhor do
que assistir Thomas Eckhoff totalmente vulnerável e entregue a mim, se
debulhando nos efeitos que eu causo nele.
— Tão gostosa... — ele suspira no meu ouvido, com a voz falha, uma mão
apalpando um lado da minha bunda e a outra me apoiando pela cintura.
Ele beija e lambe meu pescoço enquanto eu intensifico os movimentos,
sentindo seu pau esfregar em meu clitóris, prestes a explodir, e eu desejo
memorizar cada som que sai de sua boca. Thomas murmura coisas
embaralhadas em meu ouvido e a cada palavra mergulho ainda mais no
estado letárgico, como se isso fosse possível, me fazendo querer ir mais
rápido e então, começo a rebolar sutilmente deixando que seu pau conheça
cada textura da parede de minha boceta.
— Rebola pra mim. — Seu pedido sai como uma lamúria, e eu não resisto a
acatá-lo.
Intensifico os movimentos, sem me deixar parar por mais cansada que eu
esteja, sentindo minha respiração ofegar e meu coração acelerar ainda mais.
Thomas investe buscando por mais contato e a sensação que me causa é
deliciosa, viciante. Deixo que ele coloque uma das mãos em meu pescoço e
me puxe para perto, juntando nossas línguas em perfeita harmonia num beijo
cúmplice. Continuo empinando minha bunda no pau dele, aproveitando a
queimação que abrange meu corpo, e ele volta a investir seus beijos em meu
pescoço. Ele suga a minha pele enquanto mete com força e apalpa meus seios
que balançam ao passo que eu quico.
— Mackie... — sorrio maliciosamente ao vê-lo fechar os olhos com força,
contraindo os lábios, ao passo que eu ergo os quadris e volto a sentar.
Esfrego minhas paredes lambuzadas e contraídas no pau dele até a glande, e
ao chegar, sua mão dá um tapa estalado em minha bunda, que me faz soltar
um grito esganiçado. Eu continuo a cavalgar mais uma vez, e rapidamente,
sentindo as pernas enfraquecerem aos poucos e os dedos dos pés se
contorcem em excitação. Meus olhos reviram e minhas pernas tremem.
Thomas sabe que estou quase gozando, então, enlaça minha cintura com
firmeza, afundando seu pau em mim, e assim que atinge um ponto mais
fundo, me desfaço em mais um orgasmo. Ele estoca e, poucas vezes depois,
goza também.
Encosto minha testa na dele e nossas respirações se misturam enquanto suas
mãos continuam apoiando minha bunda. Arrasto as palmas por suas costas,
sentindo o relevo das estrias e a rigidez do músculo. As pernas estão bambas,
assim como escuto um zumbido leve em meu ouvido enquanto o torpor toma
meu corpo. Minha cabeça pesa um pouco e eu aumento a pressão do contato
de nossas testas. Thomas recosta a cabeça no sofá, exausto, e eu aproveito o
momento de calmaria para ficar com ele dentro de mim um pouco mais.
— Caralho. — É a única palavra que sai da boca dele fazendo meu peito
tremer pela minha risada baixa. — Isso foi absurdo.
Thomas parece mais extasiado do que o normal e meu peito infla, não sei
exatamente o motivo. Levanto a perna, saindo de cima dele, e me sento ao
seu lado. Meu coração bate descompassado e temo que Thomas seja capaz de
ouvir. No entanto, ele retira o preservativo e preservamos de um tempo para
nos recuperarmos. Assim, Eckhoff se levanta em silêncio e vai ao banheiro.
A vontade repentina de fazer xixi me faz segui-lo. Assim que estamos
devidamente higienizados, jogo um pouco de água em meu rosto e passo na
nuca, na tentativa de apaziguar a labareda que ainda crepita imponente em
meu âmago.
Sou pressionada na borda da pia quando Eckhoff me pega por trás. Ele
captura as mechas de minha nuca e puxa com força. Resvala o dedo indicador
desde a base da minha coluna até o pescoço, me provocando um arrepio
imediato. Ele beija uma, duas e incontáveis vezes, deixando uma sugada forte
na curva do meu pescoço. Empino minha bunda na direção dele em uma
reação instantânea à provocação.
— Sabe, Mack. — Ele inicia, raspando os dentes em meu ombro. — Não
fique tão tranquila, nós não acabamos ainda.
Thomas me pega pelas coxas e enlaça minhas pernas ao redor dele, porém
aviso que devemos pegar nossas roupas para que Dominic e Andrew não
deem de cara com a minha calcinha jogada no chão da sala. O caminho até o
quarto foi trabalhoso e atrapalhado, porque enquanto eu agarro nossas roupas
contra meu corpo, ele dificulta seu próprio percurso deixando alguns beijos
lânguidos por meu pescoço.
Quando, finalmente adentramos o quarto, largo as roupas no chão e Thomas
me larga em sua cama sem fazer questão de ser delicado. Ele paira sobre
mim, sugando meu lábio inferior e me lança um olhar terno. É como se
nossos corpos estremecessem em um martírio apenas por estarmos separados.
Thomas se afasta, deixando suas mãos longe de mim e um gruído de protesto
escapa por entre meus lábios.
— O que foi agora, Eckhoff? — Reviro os olhos e uma carranca estampa
minha face.
— Sabe, Lennon. — Ele inicia e eu bufo em irritação. Thomas enrola uma
mecha de meu cabelo em seus dedos e prossegue. — Eu tenho uma
imaginação bem fértil, e eu quero, há muito tempo, te foder aqui do meu
jeito.
— Tá esperando o quê? — pergunto, arqueando as sobrancelhas em
impaciência.
— Fica de quatro. — A ordem me faz negar ferozmente com a cabeça.
Sei bem o que Thomas quer. Ver Mackenzie Lennon, uma mulher que preza
pelo seu orgulho, empinando a bunda para ele, pronta para receber alguns
tapas e arranhões. Entregue e vulnerável. Ele quer o troco, ansiando pelo
instante em que estará quite comigo.
Thomas se aproxima como um predador espreitando sua presa. Enrola a mão
nas mechas de minha nuca só para puxar tão forte que temo que alguns fios
sejam arrancados. Ele assopra, vagarosamente, atrás da minha orelha
enquanto raspa os dentes no lóbulo.
— Anda, Mackie... — sussurra, com o polegar acariciando a minha bochecha
e dando beijos castos na curva de meu pescoço. — Fica de quatro para mim.
Só para mim.
O reforço no tom possessivo só faz com que meus olhos diminuam enquanto
eu crispo meus lábios. As maçãs rosadas de seu rosto, a covinha apenas em
um lado estampada quando o canto de seus lábios se ergue e o cabelo
inteiramente desgrenhado me impulsiona a atender seu pedido. A posição
desfavorável jamais seria provada se não estivéssemos sendo iluminados
apenas pelo poste de luz amarelada do lado de fora. Acho que cheguei a um
ponto em que se torna muito difícil negar alguns dos seus pedidos.
Viro de bruços, apoio os antebraços no colchão, empino a bunda e imploro
que o sedentarismo não me passe a perna. Thomas, ainda segurando meu
cabelo em um rabo de cavalo, me ergue até que eu fique de joelhos. O ardor
na nuca só contribui para que a excitação aumente. Sinto seu peitoral grudado
em minhas costas e sua ereção batendo em minha bunda. Ele parece estar
vidrado em meu pescoço porque não tira os lábios dali, sugando, beijando,
lambendo e mordendo. Eckhoff desce os beijos até meu ombro, dedilha
minhas costas e aperta minha bunda com força. Ele vira minha cabeça até que
fique possível enfiar a língua em minha boca em um beijo levemente
desajeitado, porém dotado de luxúria e promiscuidade.
Ele comanda que eu volte a ficar de quatro, e parece feliz em revidar minhas
provocações roçando seu pênis em minha entrada. O movimento simples já
faz com que eu me empine totalmente entregue a ele. Seguindo seus
comandos, alcanço a gaveta do móvel ao lado da cama e pego o preservativo
com o objetivo de acelerar as coisas. Thomas parece entender, porque não
demora a me invadir – devidamente protegido – sem aviso prévio. E, assim, a
ardência se mistura ao prazer em uma mistura surreal de sensações.
— Me avise se eu estiver te machucando. — O sussurro sai sôfrego e baixo.
Thomas aguarda, até que eu me acostume com o leve ardor para continuar.
Agarra ambos os lados do meu quadril e começa a se movimentar, firme,
forte e lentamente. Parece uma dolorosa tortura, ainda mais quando ele
resolve estimular meu clitóris junto com as estocadas. Os movimentos se
agravam até que sinto o primeiro tapa forte em minha bunda, fazendo com
que eu me erga mais ainda em direção a ele. Secretamente, estou ansiando
pelo próximo.
— Porra, Lennon. — O canto de meus lábios se ergue assim que ouço o
xingamento. — Você é gostosa pra caralho.
Thomas me segura com firmeza e mete com ainda mais força. O quarto
cheira a sexo e nossos corpos suados se chocam. O teto parece ter diminuído
de tanta que é a pressão nos empurrando em uma tensão sexual palpável. É
como se o cômodo estivesse em chamas, e a única parte a salvo seja a cama
que bate na parede por causa dos nossos movimentos. O segundo tapa vem na
outra nádega fazendo com que meus braços vacilem. Eckhoff aperta meu
quadril com mais força e eu tenho a absoluta certeza de que estaremos
inteiramente marcados amanhã.
Por um tempo, os únicos sons que se sobressaem à brisa gélida do lado de
fora são os barulhos dos tapas, os gemidos altos que não conseguimos frear e
nossos corpos se chocando.
Sinto suas unhas curtas arranharem minha bunda enquanto a outra mão puxa
meu cabelo para dar a ele acesso livre aos meus lábios. Thomas me beija
enquanto me fode e eu agarro o lençol com tanta força que os nós dos dedos
estão esbranquiçados. Ele entende que não aguentarei por muito tempo e
parece estar feliz com isso, já que nós dois estamos próximos do ápice.
Quando tira seu pau de dentro de mim, e me invade de novo com brutalidade
ao mesmo instante em que belisca meu mamilo, meu corpo desiste de
aguentar e eu deixo apenas minha bunda para o alto sentindo minha boceta
contrair em volta de seu pau latejante. Ele mantém as estocadas brutas até que
nossos corpos cheguem ao limite.
Aguardo Thomas sair de mim e me ajeito na cama. Lágrimas se acumulam no
canto de meus olhos, os joelhos tremem e meu coração soca dentro do peito
com tamanha força que chega a doer. O pulmão arde assim como a vagina e o
suor que me cobre entregam a melhor transa da minha vida. Eckhoff se joga
ao meu lado, ambos encarando o teto e nenhum de nós tem forças o suficiente
para ir ao banheiro. O encaro de esguelha, admirando seu peito subir e descer
rapidamente. O cabelo desgrenhado, com uma mecha teimosa caindo sobre a
testa, as bochechas coradas e o meio sorriso de satisfação estampado em seu
rosto.
Durante os minutos que se seguem, apuro os ouvidos apenas para escutar sua
respiração calma e o farfalhar baixinho das folhas das árvores se chocando lá
fora. Enquanto engulo em seco, tentando não pensar em todas as
consequências, sinto os dedos dele se embolarem nos meus.
E é aí que eu acordo.
Não faz sentido embarcamos nessa ideia de romantismo pós-sexo, e ambos
sabemos disso. Por isso, antes que eu seja educadamente convidada a me
retirar de sua casa, me levanto, vou até o banheiro me limpar e visto a
calcinha.
— Aonde você vai? — Thomas está de lado na cama, de cueca box preta,
apoiando a cabeça na mão e flexionando seu bíceps tatuado.
Permito-me analisar por uns segundos seu corpo grande ocupar a cama de
casal que parece feita sob medida para ele, uma de suas pernas esticadas
enquanto a outra segue flexionada, o abdômen definido, o pássaro estampado
em seu peito e seus ombros largos.
Definitivamente, essa imagem – do homem com o rosto corado e cabelo
desgrenhado – poderia facilmente estampar a capa de uma revista masculina,
qualquer apreciador de arte ansiaria ter uma visão como essa. Portanto, sinto-
me privilegiada por um dia.
— Para casa. — Ando pelo quarto a procura da minha calça de moletom.
— Mackie. — Ergo a cabeça e prendo meu olhar ao dele. Thomas estende a
mão, que pairava ao lado de seu corpo, em minha direção. — Fica. Por favor.
O semblante pidão quase me convence. O bico que ele projeta me dá vontade
de cobri-lo com um selinho, contudo me limito a acenar negativamente.
— Acho melhor não.
— Ah. — Ele suspira. — Então, você vê um filme de terror absurdamente
assustador comigo e agora quer se mandar?
— Tenho certeza de que você consegue se virar sozinho. — Agarro minha
calça, assim que encontro embaixo da cama e volto minha atenção a Thomas,
estranhando não obter uma resposta.
Diferentemente do que eu pensei, Eckhoff está com os olhos arregalados
encarando algum ponto além de meu ombro e aquilo faz com que uma onda
de medo me atinja. No entanto, quando ele percebe que sua atuação me
pegou de jeito, a gargalhada estrondosa escapole de sua garganta.
Aproximo-me, fazendo com que meus joelhos resvalem na beirada da cama,
e assim sinto o perfume amadeirado dele invadir meu espaço pessoal sem
qualquer aviso prévio. Inspiro e expiro ponderando o que eu realmente quero.
E decido, por um milagre, fazer algo por mim sem pensar nas consequências.
— Tudo bem. — Balanço a cabeça. — Eu fico.
Thomas sorri largo.
— Deixa a calça aí. — Ele aponta para o chão. — Te garanto que você não
precisará dela.
Franzo o nariz, mas acato seu conselho e me jogo sobre ele.
— Eu falo enquanto durmo – aviso.
— Sem problemas.
— E também me mexo muito. — Thomas dá de ombros, concedendo zero
atenção às minhas tentativas de convencê-lo. — Acordo com remelas e
bafinho matinal.
Nossas pernas estão entrelaçadas e eu descanso minha cabeça em seu peito,
acima do pássaro estampado ali. Thomas solta uma risada que reverbera pelo
meu peito, enlaçando os dois braços ao meu redor, protetoramente. É tão
aconchegante como estar em casa.
— Mackenzie Lennon. — Eckhoff me aperta contra ele. — Eu realmente
posso lidar com tudo isso.
Ergo meu rosto pairando sobre o dele, sentindo sua respiração bater em
minha face, enviando arrepios pelo meu corpo. A íris oceano faz um convite
tentador para que eu me afogue naquelas profundezas. Estou completamente
atada à imensidão de seus olhos que é quase impossível despregar os meus
dos seus. Analiso seu nariz pontudo, as sobrancelhas claras, as bochechas
coradas, os lábios finos e a covinha que surge à medida que seu sorriso se
alarga e seus olhos diminuem.
Não hesito em cobrir sua boca com a minha em um selinho demorado, e
depois deixo um beijo casto na ponta de seu nariz.
— Prometa que não vai se apaixonar.
Para me manter erguida, apoio minha palma em seu peito e sinto seu coração
bater acelerado. No momento, sou metade coragem para ficar aqui sem medir
como agiremos posteriormente, e a outra metade está tomada pelo medo. O
característico pavor das sensações perigosas que me invadem quando estou
com ele.
— Lennon, — Thomas põe uma mecha de meu cabelo atrás da orelha e me
encara com ternura. — Eu não prometo nada.
— Rose Lennon, — acaricio o volante de meu carro. — Pelo amor
que você sente pela mamãe, funcione!
Não há muita coisa nessa vida que me deixa mais irritada do que ser deixada
na mão pelo meu carro. Estou a caminho do jogo de futebol mais importante
da vida de Lewis e temo não chegar a tempo. E há grandes chances de isso
ser a porra do meu karma me avisando que eu deveria sim ter aceitado a
carona de um dos meus amigos. Andrew foi antes, sendo o motorista da vez e
levando Dom e Nev. Mas, para aproveitar a oportunidade de estudar mais um
pouco, resolvi recusar o convite de ocupar o quarto lugar do automóvel.
Thomas também ficou para trás com o objetivo de resolver algumas
pendências na oficina e ofereceu me levar, no entanto, meu orgulho impediu
que eu aceitasse.
Faz exatos três dias que transamos, e nenhum de nós sabe exatamente como
agir um com o outro. É claro que as alfinetadas e provocações continuam,
mas como devemos nos cumprimentar? Selinho? Abraços? Beijos na
bochecha? Aperto de mãos?
O que somos agora?
Amigos com benefícios? Em algum momento, já fomos sequer amigos?
São questionamentos demais para alguém com a cabeça lotada de paranoias e
preocupações. Quando acordei na quinta-feira, sentindo o habitual aroma de
amêndoas que Thomas exala, surtei internamente, sem saber como tratá-lo.
Contudo, ele pareceu levar a situação de um jeito muito melhor que eu.
Levantei-me absolutamente atrasada para minha primeira aula, e quando
desci até a cozinha, meu café da manhã já estava preparado dentro de uma
sacola de papelão com o seguinte bilhete:
Tive que ir abrir a oficina, mas tem escova de dente extra no banheiro,
toalha limpa e deixei seu lanche pronto para você comer no caminho. Mi
casa, su casa. Tenha um bom dia.
-T.
Fiquei três vezes mais tranquila ao saber que não teria que lidar com
nenhuma dessas complicações logo de manhã. Então, mandei uma mensagem
agradecendo a hospitalidade e, desde quarta, temos conversado por
mensagens. Creio que nossas conversas sejam mais entupidas de discussões
rasas do que de diálogos civilizados. Mas nenhum de nós se importa muito
com isso.
Interrompo meus devaneios assim que a porta do meu carro range ao abrir.
Só por desencargo de consciência, giro novamente a chave na ignição e
recebo a mesma resposta: um engasgo e nada.
Quando levanto o capô do carro, me deparo com uma série de ferragens e
turbinas, que são informações demais para o meu pobre cérebro. Sei que não
há fumaça saindo de lugar nenhum, por isso tento encontrar alguma peça que
pareça estar fora do lugar ou qualquer diferença no motor, mas tudo parece
estar dentro dos conformes. Focada demais em dar uma de mecânica, escuto
tardiamente o ronco imponente de um motor soar próximo a mim. Minhas
vistas pousam no conversível preto e reviro os olhos.
É claro que Eckhoff passaria nessa estrada, próximo a esse horário e notaria o
Cadillac rosa extravagante enguiçado. Ele engata a ré e para perto do meu
carro. Tento não viajar na sensualidade que seu Ray Ban Classic preto traz
em conjunto com seu cabelo desgrenhado pela brisa gélida de Bolfok Town.
Thomas veste uma blusa preta de gola alta, e de mangas longas que se tornam
perceptíveis assim que ele ergue os braços e a barra surge por baixo da
jaqueta de couro. O pano de sua gola, cobrindo seu pescoço, realça a
mandíbula bem demarcada, assim como a escuridão do tecido faz seu cabelo
parecer ainda mais loiro e seus olhos mais azuis. Não sei exatamente que tipo
de veneno foi colocado em minha alimentação para que eu tenha tanta
dificuldade de desgrudar as vistas de sua figura imponente.
— Precisando de um mecânico, gatinha? — pergunta e eu franzo o nariz pelo
apelido, mas aceno positivamente com a cabeça.
O sorriso que estampa o rosto dele é provocativo e quase obsceno. Contudo,
tento manter minha atenção em seus óculos de sol para que meus olhos não
passeiem por sua calça e coturno igualmente pretos.
— Eu estava dirigindo sem nenhum problema quando ele começou a
engasgar do nada e enguiçou — explico, apoiando uma mão no capô.
— O que você está vestindo? — Ele ignora toda a explicação sobre o meu
problema para fazer uma pergunta fútil.
Corro os olhos por todo o meu corpo tentando achar o que há de errado. Visto
uma segunda pele preta para aguentar o frio de Bolfok e, por cima, a blusa de
Josh – enfiada dentro do jeans rasgado de lavagem clara – decora meu tronco.
Analiso meu tênis e chego à conclusão de que está tudo certo por aqui.
— Oras — subo e desço os ombros. — A blusa do time, calça, tênis e boné.
Dou uma batida leve na aba do boné dos Bolfok Eagles e pouso as mãos nos
quadris.
— Nunca te vi tão casual. — Thomas me inspeciona dos pés à cabeça.
— É porque não estou vestida para a edição limitada de uma revista de moda.
— Giro sob os calcanhares. — Esse é meu look esportista.
A risada escapole baixa por entre seus lábios e analiso seus olhos diminuírem
à medida que suas bochechas sobem, expondo sua covinha.
— Está bonita — murmuro um agradecimento pelo elogio. — Como sempre.
Thomas acaba com minhas dúvidas sobre como cumprimentá-lo porque
enlaça meu tronco e cobre minha boca em um selinho. Sinto minhas
bochechas queimarem pelo desconcerto, mas finjo plenitude.
Ele enrola as mangas da blusa nos cotovelos e apoia as mãos no capô do
carro, inspecionando se há algo de errado. Thomas mexe em alguns cabos e
analisa o armazenador de água e óleo. Está tão compenetrado que minha
única opção é observar seu cenho e sobrancelhas franzidas, lábios crispados e
olhos cerrados entregando sua concentração. Ele ergue as vistas depositando
sua atenção em mim e eu pigarreio tentando disfarçar que estava o secando
antes.
— Por aqui está tudo certo, vou conferir lá dentro.
Maneio a cabeça em confirmação enquanto ele adentra meu carro. Thomas
analisa o painel e em menos de cinco segundos seu semblante ilumina,
indicando que ele já sabe o que há de errado.
— É a bateria. — Ele bate uma palma. — Está descarregada.
Franzo o cenho, descontando minha estranheza quanto à informação.
— Mas essa bateria não é velha.
— Pode só ter dado um problema. Leve na oficina amanhã para eu dar uma
olhada melhor. — Ele me chama com a mão e eu ocupo o banco do
motorista.
Thomas abaixa, deixando seu rosto na altura do meu, e percebo que apenas
sua respiração batendo em meu pescoço consegue me provocar um arrepio.
— Quando esse ícone aqui acender. — Ele profere baixo em meu ouvido,
apontando para o painel. — É porque a bateria descarregou.
Eu sei disso, mas na hora do nervosismo nem me dei conta de que o ícone da
bateria estava lá, aceso, praticamente implorando por atenção. Apenas a
possibilidade de ter algo errado no motor me apavorou por completo.
Agradeço a informação e Thomas avisa que fará uma chupeta, conectando
seu carro ao meu para, em dez ou quinze minutos, recarregar minha bateria.
Após conectar corretamente os cabos de ligação, Thomas liga seu Eagle
Speedster com a bateria saudável e se senta no meu banco do carona para
aguardar que a minha seja recarregada.
— Será que perderemos o jogo? — A possibilidade me aflige até o último fio
de cabelo.
— Fica tranquila, não vai demorar.
Um silêncio confortável se acomoda no interior do veículo, enquanto
contemplo a estrada um tanto deserta. O jogo será em Saint Brunnet, uma
cidade a trinta minutos de Bolfok Town, que sedia a universidade dos nossos
oponentes. Será Aves contra Lobos, e mesmo longe de casa, nosso time
espera ganhar. Lewis vem se preparando para essa partida há muito tempo,
pois diz que inúmeros olheiros da NFL irão estar nas arquibancadas da New
Brunnet College. E eu já havia prometido que estaria lá como torcedora fiel,
prestigiando-o em um momento tão importante.
— Posso te fazer uma pergunta? — Thomas quebra o silêncio. Balanço a
cabeça positivamente e ele prossegue. — Por que está usando a camisa do
Josh?
Seu tom de voz é calmo e não há rispidez em suas palavras, mas é perceptível
que ele esteve remoendo isso desde que visualizou o nome e o número de
Collins em minhas costas.
— Eu queria ir ao jogo com o uniforme, mas Lewis não conseguiu me
encontrar para entregar a dele. — Subo e desço os ombros. — Por isso pedi a
do Josh.
— Ah.
Thomas tem o olhar fixo no horizonte, como se não tivesse uma boa resposta.
Não entendo o motivo do questionamento, muito menos do silêncio sepulcral
que invade o carro nesse momento. O conforto se transforma em segundos,
trazendo um desconcerto enorme para o interior do automóvel. Eckhoff se
remexe no carona como se o banco estivesse pinicando-o. Um suspiro
resignado escapole da boca, enquanto reúno coragem para me infiltrar no
assunto.
— Por que a pergunta? — Tombo a cabeça no estofado para ter uma visão
parcial do rosto dele.
Thomas leva a mão à boca, roendo o canto de suas unhas, enquanto pondera
sobre algo. A tensão que parece comprimir o ar contra nós não é habitual ao
ponto de arrancar nossa fala. E esse é o efeito de uma transa, mesmo já tendo
visto o outro pelado, não sabemos como agir quando assuntos
desconfortáveis são iniciados. A demora na resposta me traz questionamentos
que podem ser apenas uma loucura de minha mente. No entanto, minha
impulsividade em conjunto com a boca grande dá o impulso para eu soltar a
voz.
— Isso é ciúme, Eckhoff? — Um sorrisinho estampa meu semblante
brincalhão, mas Thomas continua sério.
— Sim. — A resposta vem rápida, curta e objetiva, me assustando por
completo.
Eu não imaginava que ao perguntar, ele responderia com tanta facilidade,
sem nem ao menos hesitar. Deixo que a risada presa em minha garganta saia,
tomando conta do interior do automóvel. É um tanto engraçado vê-lo com
ciúmes, principalmente porque ao mesmo tempo em que está remoendo o
sentimento por dentro, por fora Thomas mantém sua tranquilidade usual.
Seria totalmente inútil dizer que não há motivos para isso ou que não temos
nada sério porque ambos sabemos que ciúme difere totalmente de
racionalidade, é inexplicável.
Minha relação com Joshua Collins é muito boa. Nós ficamos uma vez e
flertamos em várias outras ocasiões, até mesmo por mensagens. Ele é uma
ótima pessoa, engraçado, bonito, gostoso e interessante. Do tipo que tem um
bom papo, já havíamos nos perdido no tempo, trocando mensagens por horas,
porque o assunto flui facilmente entre nós. Mas, quando essa coisa
disfuncional começou a acontecer entre mim e Thomas, a atenção
direcionada a Josh, amorosamente falando, foi deixada, aos poucos, de lado.
Como se em um determinado momento, Eckhoff tenha tomado conta dos
meus pensamentos, expulsando, inconscientemente, qualquer concorrente.
Que ele nunca saiba disso.
— Estou aguardando. — Ele tomba a cabeça em seu banco, me encarando de
lado e eu aproveito para conectar nossos olhares. Quando compreende que
não entendi nada, ouço sua voz novamente. — Tô esperando um comentário
ácido, você me zoando ou qualquer coisa do gênero.
— Não foi dessa vez, bonitão. — Balanço o indicador negativamente.
Minhas mãos ocupam cada lado do rosto dele e meu polegar deixa uma
carícia em sua bochecha, antes que nossos lábios estejam próximos o
suficiente para se encontrarem, o alarme toca indicando que já se passaram
quinze minutos. Solto uma risada baixa e me limito a deixar um beijo casto
em sua boca. Thomas não diz nada, embora o sorriso largo estampado em sua
face já explique muito. Ele desconecta o cabo de ligação e assegura que, pelo
menos por hoje, meu Cadillac não causará mais problemas. Contudo, durante
todo o caminho o Eagle Speedster dele corre próximo a mim, como se
estivesse servindo de escolta.
A New Brunnet College está lotada, desde o estacionamento cheio até as
arquibancadas. Há uma alegria anormal rondando toda a atmosfera
universitária, daquelas que só temos o prazer de presenciar em jogos de finais
de temporadas. Consigo enxergar um amontoado de alunos rindo, bebendo e
brincando entre si. A primeira coisa que faço ao chegar é comprar aquela
espécie de fantoche de mão enorme, que tem o indicador apontando para
algum lugar. Thomas me alfineta dizendo que me perdi no personagem, mas
levanto o dedo médio para ele em resposta. Acredito que nada pode tirar
minha animação ao presenciar líderes de torcida empenhadas, música alta,
grandes copos de cerveja e jogadores gostosos.
O campo verde está especialmente iluminado pela luz alaranjada do final de
tarde em conjunto com os refletores. A arquibancada que circunda o gramado
está dividida entre o vermelho do time adversário e o nosso azul marinho.
Nosso mascote de águia já corre pelo campo, tentando animar a torcida junto
com as líderes. Hannah está no topo de uma pirâmide balançando seus
pompons e gritando comandos para suas colegas de equipe. O barulho
ensurdecedor que os estudantes fazem ao berrar gritos de guerra impede que
eu complete a ligação que faço a Nevaeh. Thomas e eu tentamos inúmeras
vezes contatar nossos amigos, e quando finalmente desistimos, nos
preocupamos apenas em achar um bom lugar na arquibancada.
— Thomas Julian Eckhoff. — Uma voz feminina reverbera imponente, nos
fazendo dispersar nossa atenção até ela.
Há uma mulher, que aparenta ter a nossa idade, encarando o homem a minha
frente com os olhos brilhando em diversão. Ela, inexplicavelmente, tem uma
aparência muito parecida com a minha. O que nos difere são as sobrancelhas
bem mais perfeitas que a minha e sua pele livre de qualquer erupção ou
mancha. Os olhos castanhos são repuxados dando-a um ar felino, e o cabelo
castanho escorrido está perfeitamente alinhado. A blusa branca de gola alta
decorada com o sobretudo creme por cima deixa-a ainda mais elegante. Eu
poderia dizer que a moça é uma Kardashian perdida, e duvido que alguém
negaria se dissessem que ela é o clone da Kendall Jenner, porque as duas
realmente se parecem. Percebo com facilidade que Thomas e ela têm uma
proximidade grande, já que os dois se olham como se muitas memórias
estivessem sendo postas ali. Até mesmo o nome do meio dele – que nem eu
sabia – é de conhecimento dela.
— Jessie. — Ele murmura, desacreditado, como se estivesse vendo uma
assombração.
Analiso a cena de longe, como uma mera espectadora. Se ela prestasse bem
atenção, perceberia que estou junto com ele. Contudo, seu interesse em
Eckhoff parece grande demais para que perceba mais alguém além deles.
— Uau. — A mulher o encara da cabeça aos pés. — Você está muito
diferente.
Entre a coragem e a inconveniência, não consigo identificar muito bem, a
moça toma a liberdade de pôr as duas mãos nos ombros dele e acariciar
brevemente suas omoplatas cobertas pelo tecido da jaqueta. Há esse
incômodo, uma sensação de enjoo na boca do estômago, que não consigo
entender bem. Estou profundamente desconfortável com a situação e Thomas
parece não estar aproveitando muito também.
— Mal posso acreditar que estamos nos encontrando depois de tanto tempo.
— A moça alarga o sorriso que rasga suas maçãs do rosto. — Quase não te
reconheci, só confirmei que era você quando me deparei com seu habitual
cabelo bagunçado. Você continua sem pentear, huh?
Seu tom de voz vacila entre a admiração e o desdém, como se ela pudesse te
ofender e elogiar ao mesmo tempo. E Thomas parece ter sofrido algum tipo
de feitiço de imobilização, já que não consegue proferir nenhuma palavra
sequer. Talvez esteja tão afetado com a presença estonteante da moça que
mal consegue pensar com coerência. O incômodo aumenta e faz com que
meu coração diminua um pouquinho dentro de meu tórax.
— É... — Thomas pigarreia. — Continuo sem pentear. Ah, mas eu te
reconheci com extrema facilidade, você não mudou nadinha.
É difícil decifrar se ele está flertando ou apenas lançando uma alfinetada.
Fico mais confusa ainda quando ela simplesmente ri, tombando a cabeça para
trás em uma gargalhada contida.
— Mas me conta. — Ela pousa a mão no bíceps dele. — Continua sendo o
nerd do laboratório de química?
— Sim. — Thomas ri e a encara com fervor. — E você, continua
infernizando seus coleguinhas de classe?
Agora o desdém é ainda mais perceptível e a moça parece não gostar nada do
que ouve. Com a decisão de que esse clima tenso precisa de uma
interferência, decido dar um passo à frente para que ela perceba a minha
presença.
— Sou uma pessoa diferente agora, Tom. — Quanta intimidade. Me seguro
para não revirar os olhos com a cena que os dois protagonizam.
— Ah. — Thomas me encara. — Deixe-me apresentá-las.
A mulher finalmente percebe a minha presença. Seus olhos inquisidores me
analisam de cima a baixo, e eu quase posso ver o asco escorrendo por entre
sua íris. No entanto, quando seus orbes escuros focam em meu rosto, sua
expressão ilumina.
— Oh. — Jessie põe a mão no peito. — Eu conheço você.
Franzo o cenho em total estranheza. A certeza de que nunca a vi na vida toma
cada mazela do meu corpo e confirmo, cada vez mais, que é impossível que
ela me conheça.
— Mackenzie Lennon — reafirma. Arqueio as sobrancelhas e arregalo os
olhos em surpresa. — Estampou a capa da Vogue ano passado.
A compreensão vem como um tapa na cara quando os tempos de modelo são
relembrados. A L.L Fashion, grife de mamãe, é conhecida quase que no
mundo todo. Já esteve em inúmeras listas de marcas de roupa mais famosas
do planeta e é claro que as edições limitadas de suas coleções, representadas
pelo meu rosto, também seriam conhecidas. Não sou famosa o suficiente para
que qualquer pessoa me reconheça e peça um autógrafo, mas já estive em
estúdios e passarelas o suficiente para que um amante do mundo da moda
saiba quem eu sou: a herdeira que renegou o dinheiro da família para estudar
em uma faculdade situada em uma cidade mais que pacata.
— Sim. — Aceno com a cabeça, em confirmação. — Eu mesma.
— Jessica Smith. — Ela ergue a mão para me cumprimentar. — É um prazer
enorme te conhecer. Eu era sua fã.
Duvido muito.
Ninguém gostava muito de mim no ambiente artístico, diziam que a minha
resistência a procedimentos estéticos era sinal de rebeldia. Na verdade, já fui
recomendada a inúmeras cirurgias plásticas. Como se eu não fosse suficiente,
porque você nunca verdadeiramente é. Existe essa normatização de padrões
que acaba exigindo uma série de mudanças, inviabilizando qualquer traço de
naturalidade. Mesmo tendo um corpo e aparência aceita pela sociedade,
consigo reconhecer a pressão exercida em cima de todas as mulheres.
Quando me recusei a passar por essa tortura física e psicológica, ninguém
gostou muito. E eu saí do estúdio com o alívio irradiando pelo corpo. Para,
logo depois, embarcar em um trabalho voluntário na Guatemala.
Definitivamente, ninguém no mundo da moda vai com a minha cara.
— Ah, o prazer é meu. — Abro um sorriso simpático. — Você é uma
querida.
Escolho o primeiro adjetivo que me vem à mente sem saber muito bem o que
responder. Ela parece bem concentrada em manter um diálogo saudável entre
nós, mesmo usando de suas artimanhas para disparar algumas ofensas veladas
em nossa direção.
— Você deve me conhecer também, huh? — A pergunta me faz franzir a
testa em confusão. — Já fui capa de algumas revistas, assim como você, além
de ter sido a Miss Oroland County.
— Não conheço, desculpa.
— Ah — arqueja baixinho, parecendo ponderar acerca de algo.
Nunca o nome de nenhuma Jessie Smith havia sido citado entre nós. Sobre
sua infância, Thomas já comentou que teve apenas dois amigos porque era
um tanto excluído dentro da escola, e eu sei o quanto o colégio pode ser cruel
por aqui. Um silêncio sepulcral dança entre nós, fazendo-se audível apenas os
gritos ensurdecedores da torcida. O clima parece ainda mais constrangedor,
porque Eckhoff parece querer fugir daqui e eu ainda estou perdida dentre a
intimidade dos dois.
— Entendi. — Jessie parece desistir de tentar manter um diálogo conosco. —
Vou procurar um lugar no meu lado da torcida, foi bom ver você, Tom.
O local parece ainda mais cheio depois de termos perdido alguns minutos na
presença dela. As pessoas esbarram em nós ao passar porque não há muito
espaço para a livre circulação de universitários. O jogo está prestes a começar
e eu só quero achar um bom lugar para assistir. Quando penso que ela
finalmente sairá, ouço sua voz novamente.
— Aliás. — Ela volta a apoiar a mão no braço de Thomas. — O que você
fará após o jogo?
Se eu pudesse, cavaria um buraco nessas escadas de concreto e apareceria no
subsolo para fugir para bem longe de seus olhos inquisidores. Qualquer um
ficaria intimidado com sua postura imponente e invasiva, e Thomas parece
ainda mais desconfortável, querendo sair daqui. Ele me encara, com os olhos
gritando em socorro, como se implorasse que eu o tirasse dessa enrascada. E
sou péssima lidando com pressão, então solto a única coisa plausível que
passa pela minha mente.
— Ele vai para a minha casa. — Escondo as mãos nos bolsos do jeans e sinto
a palma dele pousar na minha lombar.
Jessie parece finalmente apagar seu ânimo aparente e sibila uma palavra de
compreensão. Entretanto, mesmo com o passa-fora delicado, ela ainda se põe
na ponta dos pés para plantar um beijo demorado no rosto de Thomas. Me
seguro para não revirar os olhos e retiro qualquer expressão de desgosto do
meu rosto, substituindo pela mais pura e genuína falsidade. Eckhoff pousa as
duas mãos nos ombros dela e a afasta sutilmente. Entendo que ele não quer
ser rígido e muito menos ríspido com a mulher, mas sua raiva é perceptível se
considerarmos os lábios crispados, a mandíbula trincada e as sobrancelhas
franzidas. Ela se despede de mim com um aceno educado e some de nossas
vistas. Talvez o que falte para Jessie seja apenas um pouco de noção. Antes
que eu comente qualquer coisa, o hino da faculdade soa e sabemos que o jogo
está prestes a começar.
Embora a cacofonia irritante incomode os ouvidos, me permito aproximar os
lábios da orelha de Thomas, pedindo que ele, pelo menos, me atualize acerca
da identidade da mulher que encontramos.
— É uma história longa. — Ele infla as bochechas com ar, expelindo-o pela
narina. — Depois conversamos.
Não insisto, reservando minha atenção unicamente no gramado bem cuidado
da faculdade.
O lugar que conseguimos não é muito ruim, apesar de que estamos em uma
multidão que vibra em qualquer jogada perigosa que as águias fazem. Não
entendo muito de futebol americano, mas pelo que me parece, Lewis e Josh
estão indo muito bem. O moreno de olhos cinzentos já tem até mesmo um
touchdown na conta, graças a um bom passe do Johnson. Thomas e eu
estamos tão perdidos na partida que nos limitamos a seguir as comemorações
da torcida, mesmo sem saber o que exatamente estamos celebrando. Tento
mandar o máximo de energias positivas para que o time adversário não
consiga a vantagem que tanto busca contra nós. A brutalidade do esporte às
vezes me assusta, quando um jogador tromba muito forte nos Bolfok, eu
desfiro uma série de xingamentos aos Brunnet. Eckhoff ri e assiste à partida
com a mão pousada despretensiosamente em minha coxa.
O fim do jogo chega com a vitória dos Bolfok Eagles, me fazendo pular no
colo de Thomas em uma comemoração exagerada. Grito uma série de
palavrões, exaltando o quanto somos bons, como se eu fosse uma verdadeira
torcedora. As pessoas à minha volta acham graça e entram na celebração, e
até sinto uns respingos de cerveja nos atingir, mas estou pouco me
importando com isso. Eu jamais saberia o quanto ir a um jogo universitário
pode ser proveitoso. Desço as escadas pé ante pé, na maior rapidez que
consigo, com o objetivo de chegar ao campo. Lewis vem até mim sorrindo
orgulhoso e agarrando o capacete com uma das mãos.
— Vocês ganharam! — Enlaço os braços ao seu redor por cima da grade em
um abraço desajeitado. — Estou extremamente orgulhosa de você, de
verdade.
— Obrigado, Mack. — Lewis me aperta contra ele. — É muito importante
que você esteja aqui.
Sinto a presença de Thomas atrás de mim assim que seu perfume
característico chega ao meu olfato. Ele ergue a mão para Lewis e o
parabeniza educadamente, o que é tão impessoal que ninguém diria que os
dois compartilham o mesmo sangue. Josh também vem até nós e recebe um
abraço desajeitado meu, e Thomas se limita a acenar com a cabeça. A
vontade de rir me apossa e eu faço de tudo para não soltar a gargalhada presa
em minha garganta, antes que o clima fique mais tenso, Hannah chega para
falar conosco amigavelmente.
Busco Andrew, Dom e Nev com os olhos e encontro-os em uma discussão
acalorada na base da arquibancada. Descubro que estão tentando decidir se
irão ao bar em Bolfok, que sediará a chegada dos vencedores. O Wild Eagles
leva a sério o time da cidade e é exatamente por esse motivo que o bar foi
nomeado de Águias Selvagens. No fim, fica decidido que Nev e Dom levarão
o carro de Thomas, já que o meu pode dar problema a qualquer instante,
enquanto Andrew dará carona para Lewis, Josh e Hannah que tinham vindo
no ônibus da faculdade. Então não me oponho à ideia de festejar no ambiente
rústico dotado de cerveja.
Sigo até o Cadillac espremido entre dois carros atuais e Thomas se mantém
ao meu lado, parecendo um tanto desconcertado. Há esse costume que
criamos em que podemos nos tocar sem se importar com os outros a nossa
volta. No entanto, o acordo silencioso de que ninguém saberá do nosso
envolvimento impede que a gente tente uma aproximação suspeita. A
maçaneta do Cadillac range enquanto a porta abre para me acomodar no lado
do motorista, Thomas não demora a ocupar o carona e eu afundo o dedo no
rádio com o objetivo de evitar ouvi-lo implicar comigo por causa de qualquer
coisa.
Não funciona muito, porque mesmo com Axl Rose transbordando pelo alto
falante imerso na melodia de Paradise City, Thomas continua me
atormentando. A mão esquerda apoiada no estofado do meu banco, bem
próxima a minha cabeça mexe de relance na mecha do meu cabelo, e vez ou
outra, cutuca minhas costelas de leve. Solto o ar em uma lufada ávida, e piora
quando o sinto cutucar meu sovaco.
— Quer parar? — A indagação é ignorada por ele, que agora resolve me
irritar mudando as músicas com rapidez. — Meu Deus! Você é impossível.
Não satisfeito, ele se aproxima, sinto sua respiração bater ritmada na minha
bochecha e não consigo frear o suspiro. Thomas deixa um beijo casto em
meu rosto, outro na mandíbula, mais um na têmpora e por fim, no pescoço. A
eletricidade corre como em uma maratona por toda a minha corrente
sanguínea, me fazendo afundar os dentes no lábio inferior para impedir que a
arfada generosa escape pela minha garganta. Ele quer provocar e está
extasiado com a possibilidadede me ver cair na pilha.
— Como você é insuportável, Eckhoff. — Tento me recompor o atacando. —
Quem te aguenta?!
Assisto o sorriso sacana esgueirar-se por seu semblante travesso e presumo
que virá merda por aí.
— A Jessie. — O nome sai com tanto gosto por entre seus lábios que sei que
seu único objetivo é me provocar.
Thomas quer me levar ao limite, ansiando pelo momento que será espectador
de um surto. Se não for por tesão, será por irritação. Giro o volante em
direção ao acostamento e reduzo o câmbio até frear completamente e colocar
a marcha no ponto morto.
— Por que parou? — Inclino meu corpo sobre o seu até alcançar a maçaneta
do carona.
Capturo a alavanca e empurro a porta até que esteja aberta o suficiente para
que ele saia. Sua respiração parece acariciar meu pescoço me causando um
arrepio notável. Finjo não sentir que o aperto de sua mão na minha cintura
está me afetando mais do que o recomendado. Afinal, não era para acontecer
assim. Porque eu presumi que essa tensão palpável que tenta nos engolir
sumiria no instante em que estivéssemos transando. Quanta inocência a
minha, não é? Essa porra de pressão que faz o teto do carro parecer ter
diminuído consideravelmente a ponto de eu ter a sensação de que serei
engolida por essa batalha que travo com ele não some nunca.
— Pode ir ficar com a Jessie. — Aponto para a porta aberta. — É um favor
que você faz a minha sanidade mental.
Thomas parece buscar qualquer sinal de brincadeira em minhas feições
contraídas, mas o vinco entre as sobrancelhas e a testa enrugada entrega que
estou falando sério. Algo passa por sua mente que o faz se debulhar em uma
gargalhada estrondosa.
— Está com ciúmes de mim?
Subo o canto dos lábios em desdém, mal podendo acreditar que acabei de
escutar tamanha calúnia.
— Óbvio que não, porra. — Inspiro e expiro, tentando reunir toda a minha
paciência para lidar com ele. — Mas você não acabou de dizer que ela te
aguenta? Então por favor, desgrude de mim e deixe que ela também possa
lidar com esse seu temperamento insuportável. Quem sabe não podemos
fazer um rodízio? A gente passa uns dois dias transando e o resto da semana
você faz o favor de sumir.
Os seus lábios estão crispados e ele tenta fervorosamente segurar a risada. No
entanto, ouço sua gargalhada escandalosa se embrenhar por cada canto do
carro. É como se a melodia de seu riso pudesse invadir minhas entranhas e
reverberar para dentro de mim, fazendo meu peito tremer. A tarefa mais
difícil, neste momento, é não me contagiar por seu riso.
— Mackzinha, sinto lhe informar, mas você arrumou um problemão. — Ele
fecha a porta do carro e cobre minha mão, que segura o volante, com a sua.
— Agora que esteve na minha cama, vai ter que me aturar.
— Que o universo me dê forças para não te matar até o Halloween —
murmuro enquanto engato a primeira marcha para voltar à estrada.
— Até o Halloween?
— Sim. — Balanço a cabeça com a atenção voltada à estrada. — É o nosso
prazo, teremos que trabalhar juntos até 31 de outubro e eu finalmente estarei
livre de você.
Thomas se afeta com a minha resposta, até mesmo minhas papilas sentem o
amargor que perdura dentro de mim ao proferir tamanho absurdo. É claro que
já estamos envolvidos até o pescoço nessa relação completamente
disfuncional, e não há Halloween que nos livre dessa sensação invasiva e
poderosa que apossa nossos corpos sempre que estamos perigosamente
próximos. Ele nunca saberá, no entanto, meu coração bate tão acelerado nesse
instante que temo consumir em um ataque cardíaco. As palmas das mãos já
aparentam as primeiras gotículas de suor e há esse formigamento que corre
desde o pé até o topo da cabeça. O ódio cresce assim que percebo que estou
mais envolvida do que o recomendado. Eckhoff põe a mão no meu ombro e
arrasta sua palma por toda a extensão do meu braço.
— Mack. — Sua voz sai em um sussurro no pé do meu ouvido e eu prendo a
respiração. — Sei que você não é de exatas, mas me acompanhe nas contas.
Hoje é sábado, dia 23 de outubro, ou seja, faltam exatamente oito dias até o
famoso feriado de Halloween. Você tem certeza absoluta de que quer se
livrar de mim em uma semana e um dia?
Solto o ar preso agressivamente. O peito sobe e desce em um ritmo frenético,
e a conhecida névoa espessa toma minha mente, tornando nebuloso qualquer
pensamento coerente que antes eu tentava construir.
— Não. — Solto de uma vez só, como arrancar um esparadrapo de um
machucado.
Aproveitando o semáforo fechado, Thomas segura meu queixo, com o
polegar raspando de leve nos meus lábios. Puxa meu rosto em sua direção e
cobre minha boca com a sua em um gesto rápido.
— Foi o que pensei — encerra o assunto. Volto o olhar compenetrado para a
estrada assim que o trânsito é liberado e tento não demonstrar que fico tão
afetada com seus toques.
Maldita foi a hora que eu sequer pensei que poderia ter algum tipo de
controle sobre essa situação. Errôneo foi o momento em que cogitei a
possibilidade de entrar nesse jogo com Eckhoff, em que jamais haveria um
vencedor ou perdedor. É impossível mensurar o tamanho do estrago que
aquele primeiro beijo causou, porque foi após aquele dia que Thomas se
embrenhou em minha mente, fixando suas raízes em meu corpo. Depois de o
maldito jantar, passei a fingir que meu orgulho não existe, cedendo aos seus
pedidos e embarcando no oceano de seus olhos, enfrentando a tempestade
munida de um barquinho de remo. Sem o menor preparo para lidar com as
sensações revoltas que um simples toque seu gera. O desconhecido é
medonho e o que eu lutei tanto para evitar acontece exatamente agora: a
ruína de todos os meus princípios e convicções.
Eu disse que não o beijaria, e beijei.
Disse que não cederia, e cedi.
Afirmei com veemência que não transaria com ele, e transei.
Mackenzie Lennon se afogou em seu próprio poço de gestos contraditórios,
em sua própria bolha de hipocrisia e é impossível saber quando será a
próxima contrariedade.
Suspiro cansada de todo esse jogo de gato e rato, e me pronuncio com a
exaustão se apossando do meu corpo.
— O que você quer de mim, Eckhoff?
Thomas parece ponderar um pouco. Pelo canto dos olhos, consigo ter um
vislumbre de seu semblante pensativo. Contudo, o lábio erguido em um
sorriso travesso entrega que ele sabe muito bem o que dirá.
— Lennon, — inspira, capturando a maior quantidade de ar que consegue
antes de voltar a falar. — Eu quero um encontro.
Gatilho: transtorno de ansiedade. Se não se sente confortável com tal
temática, não leia o capítulo, interrompendo assim a leitura, ou chamando a
autora no privado das redes sociais para que ela resuma.

Depois que Thomas expõe sua ideia mais que insensata de irmos a um
encontro, finalmente adentramos os limites de Bolfok Town. Não houve uma
resposta clara e objetiva para o convite, e tudo o que ele recebeu foi um
amontoado de palavras que tem como sentido uma promessa de que irei
pensar sobre. Há uma diferença gritante entre transar com alguém
ocasionalmente e, de repente, estar em um encontro com essa pessoa. É como
se, em um estalar de dedos, a relação ganhasse um pouco mais de seriedade.
Nenhum de nós está muito interessado em lidar com problemas, e desde que
transamos, não dialogamos acerca do que seríamos um para o outro a partir
de agora. Assim que avisto o letreiro extravagante do bar, meus devaneios
são interrompidos. Avisto o conversível de Eckhoff estacionado entre uma
picape e uma Harley-Davidson, a conhecida moto de Jules. Paro meu
Cadillac ao lado da máquina de duas rodas e destravo as trancas do carro.
O local está mais cheio do que imaginei. Thomas observa tudo ao meu lado,
com as mãos enfiadas nos bolsos do jeans enquanto mantém a distância
recomendável de mim. A decoração do bar é rústica e beira ao medieval,
como um grande pub Viking. Há vigas de madeira servindo como pilar para
sustentar as telhas gastas, canecas de cerveja temáticas, um jukebox próximo
a uma pista de dança improvisada, e o mármore marrom serve de apoio para
as tábuas que compõe o balcão que abriga o barman. O ambiente é escuro e
faz parecer que estamos em uma masmorra da Era Medieval, os garçons têm
barbas e cabelos longos, e são grandes exatamente como os nórdicos.
Pergunto-me mentalmente por que nunca estive aqui, enquanto analiso
algumas estacas e machados de decoração expostos na parede, lustres e
lâmpadas simulando velas artificiais e a pilastra, que acabo de desviar, é
composta por pedras grandes. É visível o quanto tentaram tornar o lugar o
mais temático possível, e conseguiram. Um telão está pendurado na parede
principal, indicando que horas antes, o jogo estava sendo transmitido aqui
para todos os moradores de Bolfok Town que torcem pelos Eagles.
É difícil caminhar pelo bar sem esbarrar em alguém, já que a maioria dos
universitários da Bolfok College se espreme entre um canto e outro para
festejar a vitória do time. Um pop atual reverbera pelas caixas de som e,
dessa vez, consigo identificar como Good in Bed da Dua Lipa. Perscruto o
local atrás de algum rosto conhecido e acho Jules sentada entre as pernas de
Maxon em um banco alto. Thomas me cutuca e aponta para uma Nevaeh
exaltada acenando para nós, próxima do restante dos nossos amigos que estão
sentados em assentos acolchoados que formam a letra U. Andrew está na
ponta da mesa, enquanto Eckhoff e eu ocupamos o banco, ficando de frente
para Nev e Dom. Eles parecem travar uma discussão acalorada com as vozes
tentando se sobrepor à música alta, assim que minhas vistas se conectam com
a de minha amiga, e percebo um sinal de alerta em sua íris escura.
— Do que estão falando? — É a primeira coisa que sai da boca de Thomas
assim que ele se senta ao meu lado.
O estofado afunda com meu peso e sinto a mão dele rente a minha, pousada
no banco despretensiosamente. Ergo-me por cima da mesa e deixo um beijo
na bochecha de Andrew para cumprimentá-lo, em seguida, faço o mesmo
com Nev e Dom respectivamente. Meu boné está na cabeça de Thomas com a
aba virada para trás desde o instante em que ele decidiu me levar ao limite do
estresse no carro.
— Estamos falando sobre a mulher misteriosa que corre contra você. —
Dominic profere após dar uma golada generosa em sua cerveja.
Instantaneamente, entendo o sinal de alerta que vi nos olhos de Nev. Não
tenho ideia de onde o assunto possa ter surgido, mas meu estômago retorce
levemente com a possibilidade remota de ser descoberta. O tema da conversa
continua o mesmo por uns minutos. Andrew diz que eles entraram na
temática porque estavam se recordando do primeiro racha que foram. Thomas
fica surpreendentemente calado, se limitando a dizer que tem assuntos
inacabados para tratar com John Lion sobre a possível tentativa de sabotagem
do líder da gangue. Subitamente, uma tristeza se apossa de mim ao me dar
conta de que inúmeras vezes brinquei com a dignidade de Eckhoff,
alfinetando-o em relação à rainha. Já até mesmo o consolei quando ele perdeu
para mim. Talvez, eu deva abrir o jogo com ele. Mas não hoje.
— Eu acho sexy todo esse mistério envolvido e o quanto ela é boa pilotando.
— Andrew quem se pronuncia, capturando uma das batatas frita que servem
de aperitivo.
Largo minha atenção em cada uma das reações das pessoas presentes na
mesa. Nevaeh arqueia a sobrancelha para mim em um gesto discreto,
enquanto Dominic se mantém impassível diante da observação de Andrew e
Thomas concorda em um aceno contido.
— Ela é sexy. — Eckhoff afirma enquanto pede ao garçom uma cerveja para
mim e um refrigerante para ele.
Tento, arduamente, não demonstrar que as impressões de Thomas sobre a
mulher que corre contra ele – no caso eu – me incomodam. Essa porra de
pontada na parte superior das costelas me deixa irritada. Eu diria que são
gases, mas infelizmente eu sei muito bem o que é. As bochechas pinicam, as
palmas transpiram e meu estômago retorce, sinto-me insuportável neste
momento, tanto que, se eu pudesse sair de dentro de mim agora mesmo, seria
perfeito. Nunca admitirei em voz alta o quanto essa pequena frase me
incomodou.
O que está acontecendo comigo?
Estou com ciúmes de mim?
As grandes canecas de chope e refrigerante batem em um baque surdo na
mesa. Nevaeh muda o assunto repentinamente para uma brincadeira que
consiste em dizer o que cada um faria se fosse tão rico quanto eu, ou quanto
meus pais. Cubro meus dedos na alça do recipiente e o levo a boca e a cevada
raspa em minhas papilas pinicando levemente.
— Eu viajaria o mundo. — Dominic é o primeiro a dizer.
— Eu iria a uma loja do tipo Gucci, e quando as atendentes me ignorassem
pensando que eu não compraria nada, eu diria algo como: tome meu cartão
platinum, quero a peça mais cara.— Nevaeh profere cada palavra com gosto
nos fazendo cair na risada.
— Eu compraria uma Harley Davidson CVO Limited, é um dos modelos
mais caros do mundo. — Andrew aponta com a batata entre os dedos.
— Acho que eu abriria outra oficina. — Thomas diz. Um muxoxo escapa
pelos lábios de todos na mesa, como se os planos dele fossem o mais sem
graça.
— E você, Mack? — Franzo o cenho ao ouvir a indagação de Dom. — Se
pudesse ter o dinheiro dos seus pais agora mesmo, o que faria?
Um suspiro sonhador escapole pela minha boca.
— Com toda certeza, eu teria um apartamento enorme e confortável só para
mim, sem dividir o banheiro com ninguém e com um closet que caiba minhas
grifes favoritas. — Eles me encaram e dão de ombros, aceitando a resposta.
A verdade é que morar em um alojamento só é confortável quando você está
acostumado com pouco luxo. Uma pessoa que ganhou seu primeiro diamante
com quatro anos e morava em uma mansão em um terreno de sete hectares,
gastava entorno de vinte e quatro mil dólares por dia e tinha um chefe de
cozinha exclusivo jamais se sentiria bem morando em um cubículo e
dividindo o banheiro com outros jovens. Eu fiz essa escolha com o objetivo
de persistir nos meus sonhos, porque seria muito mais fácil acatar a vontade
de meus pais e estar – hoje – entupida de champanhe em Paris sendo modelo.
Mas, talvez, o destino não tenha sido de todo ruim comigo, já que estou em
um bar temático, tomando cerveja e confraternizando com meus amigos.
No meio de uma conversa importante sobre política, em um embate sério
entre Republicanos e Democratas, sinto a mão de Thomas pousar
despretensiosamente sobre minha perna, um palmo acima do joelho. Ele se
embrenha pelo rasgo da calça, que dá um acesso estratégico a minha coxa.
Sinto a aspereza de sua palma correr para a parte interna, bem próxima a
virilha, enquanto seus dedos se afundam na minha carne. Crispo os lábios na
tentativa de frear o gemido baixo que quer escapar pela garganta, focando o
olhar em Nev, que gesticula bastante ao justificar o quanto odeia o método de
votação estadunidense. Era para ser um diálogo acalorado e eu estava pronta
para embasar minhas opiniões com tudo que aprendi nas aulas maçantes, no
entanto só consigo me concentrar na aspereza do indicador de Thomas que
desfere uma carícia em círculos em minha pele.
Cubro seu pulso com a mão, pensando em tirá-lo dali. Em um primeiro
momento, o suspiro de alívio corre livre pelas minhas entranhas, até eu sentir
os dedos dele brincando com o único botão da minha calça. Entrelaço minhas
mãos sobre a mesa e aperto com tanta força que os nós dos dedos ficam
esbranquiçados. Thomas desabotoa meu jeans e eu confiro seu semblante
pelo canto do olho. Ele parece fingir muito bem estar imerso no debate
político que acontece na mesa, os orbes azulados brilham entre inocência e
luxúria. Acompanho o movimento do zíper descendo vagarosamente, e eu
gostaria de dizer que não estou curtindo, mas o diabinho que vive no meu
ombro já profere inúmeros argumentos positivos que me induzem a
prosseguir com essa brincadeira embaixo da mesa nesse ambiente pouco
iluminado.
A mão de Eckhoff invade o tecido da minha peça de roupa e encontra o
algodão da minha calcinha. Não estou com a peça intima mais sexy do
mundo, afinal, ninguém me preparou para uma masturbação em público.
Sinto uma contração abaixo de meu ventre e o habitual formigamento já corre
desde os dedos dos meus pés até a nuca. Sua palma acaricia toda a extensão
da minha vulva em atrito com o pano da minha calcinha, e eu prendo um
suspiro.
— Acredito que há essa ilusão de que os cidadãos americanos estão,
diretamente, elegendo quem governará seu país — inicio, tentando retirar
minha concentração do dedo indicador de Thomas pressionando meu clitóris.
— Em 2000, por exemplo, o candidato democrata Al Gore teve mais votos
populares do que o republicano Bush. Porém, o último ganhou porque teve
mais votos no...
Afundo osdentes no lábio inferior quando a palma de Thomas desbrava
minha calcinha e faz um trabalho de subir e descer por toda a extensão úmida
da vulva.
— Teve mais votos onde? — Dominic questiona.
Cubro a borda da caneca com os lábios e sorvo um gole generoso de cerveja.
O alívio imediato me apossa para que eu prossiga com minha fala.
— Está tudo bem, Mack? — Nevaeh indaga pondo a mão sobre a minha.
— Está, sim — pigarreio. — Eu ia dizer que ele teve mais votos no Colégio
Eleitoral, e por isso foi eleito.
O sentimento de injustiça, principalmente por parte dos que se dizem
democratas, impulsiona que o resto dos meus amigos, completamente alheios
ao que acontece embaixo da mesa, continue o diálogo. Sinto meu clitóris
intumescido e a umidade entre minhas pernas aumentar gradativamente.
Decidida a não perder o jogo que travamos entre nós, levo minha mão ao
volume um pouco notável em sua calça. Pressiono sua ereção com calma e os
movimentos em mim param por alguns instantes, até que ele possa se
recompor. O sorriso diabólico implora para ser libertado, mas só permito que
o canto dos meus lábios erga discretamente. Thomas sabe que não vou aceitar
ficar para trás na batalha, então retira calmamente seus dedos de dentro de
mim. Meu corpo protesta pelo afastamento, mas fico feliz de retomar o
controle da situação.
Ele pega um petisco com a mão limpa, levando-o aos lábios como pretexto de
apanhar um guardanapo e limpar as duas mãos. Subo o zíper e fecho o botão,
logo pedindo licença educadamente e caminho a passos rápidos até o
banheiro. Imploro mentalmente que ninguém interrompa meu caminho até
meu destino e desvio com afinco de cada corpo que aparece como um
obstáculo.
O toalete está surpreendentemente vazio, e eu não demoro a girar a torneira e
alcançar o máximo de água possível com as mãos, jogando em meu rosto e
passando na nuca. A sensação de alívio vem rápida, mas não perdura por
muito tempo porque o corpo grande de Thomas já invade o cubículo, nos
trancando. O espaço entre nós vai diminuindo à medida que seu perfume
adentra minhas narinas, fazendo com que eu infle os pulmões em busca do
aroma amadeirado que ele exala. Meu corpo é prensado na parede enquanto
seus lábios cobrem os meus com urgência. Ambos queremos terminar o
serviço iniciado em público, o mais rápido possível. As mãos ágeis dele me
livram da calça e da peça íntima branca estampada com vários pequenos
emblemas da Louis Vuitton. Uma risada escapa pela boca do homem,
enquanto eu o livro de suas roupas de baixo.
Sua língua desliza sobre a minha em um beijo agressivo. Tombo a cabeça
para o lado a fim de aumentar o contato entre nós, e parece funcionar, porque
exploramos a boca um do outro enquanto nossas mãos passeiam por nossos
corpos. Envolvo seu pau com meus dedos esguios e aproveito da lubrificação
natural para movimentar minha mão de cima a baixo. Thomas interrompe o
beijo para enterrar a cabeça na curva de meu pescoço, e a lufada de ar que
escapa de seus lábios provoca um arrepio instantâneo em minha pele.
Estou com um dos pés apoiado na privada dando acesso livre aos dedos ágeis
de Eckhoff que correm pela extensão da minha vulva, deixando que seu
polegar pressione meu clitóris. Afundo os dentes em seu ombro para abafar o
gemido alto que ameaça escapar, sentindo dois dos dedos dele me invadirem
de uma vez e um grito esganiçado treme as cordas vocais fazendo com que
ele pressione sua boca na minha. Os movimentos de vai e vem continuam
tanto no seu pau quanto na minha vagina. Nossas respirações se misturam
aceleradas e seu tronco recai sobre o meu, me espremendo ainda mais contra
o mármore frio da parede.
Desço a mão, acaricio suas bolas e volto para a glande, passando o dedo
levemente por seu frênulo, fazendo com que Thomas gema e murmure
xingamentos desconexos em meu ouvido. Tenho uma visão privilegiada dos
músculos de seu abdômen tensionado quando ele chega próximo do orgasmo,
e eu não estou muito diferente. Lágrimas se acumulam no canto de meus
olhos e eu sinto o gosto metálico do sangue jorrar quando meus incisivos
afundam no lábio inferior com mais força do que o previsto. Passo a língua
no ferimento e reviro os olhos pela última vez quando sinto o beliscão leve
no meu clitóris e o tapa ardido em minha bunda. Chego ao ápice logo depois
que seu gozo escorre pela minha mão. Sua testa está apoiada em meu ombro
e eu deixo um beijo em seu pescoço. Os pulmões ardem no momento em que
inspiro a maior quantidade de ar possível para me recuperar, aproveitando a
pia acoplada na cabine maior para higienizar minhas mãos, e Thomas faz o
mesmo. Conecto minha íris a sua e o azul forma apenas um aro ao redor da
escuridão de suas pupilas dilatadas. As bochechas estão coradas e me perco
totalmente imersa na troca de olhares que acontece no banheiro do bar.
— Você vai me deixar perdido — profere em uma arfada no meu ouvido.
— Acho que você já se perdeu há muito tempo — respondo devolvendo com
um sorriso de canto. — Eu vou na frente e você chega depois para não gerar
desconfiança.
Arrumo minhas roupas assim como Thomas, dou uma rápida conferida no
espelho e decido jogar mais um pouco de água no rosto. Massageio as
bochechas na tentativa de amenizar o rubor que toma as maçãs do rosto, mas
não parece funcionar muito. Tiro um elástico preto do bolso e agarro as
mechas no topo da cabeça, dando duas voltas e prendendo em um rabo de
cavalo. Quando decido que estou apresentável o suficiente para não gerar
suspeitas do que acaba de acontecer, caminho de volta à mesa. A primeira
coisa que faço ao me sentar no banco acolchoado é perguntar sobre Thomas,
tentando disfarçar. Andrew diz que ele foi atrás de uma garota e que
provavelmente vai se esgueirar para dentro da casa dela, o que não é de todo
mentira, já que Eckhoff provavelmente se embrenhará em minhas cobertas do
alojamento, aproveitando que Nev dormirá com Dom.
Depois de algumas canecas de cerveja, danças embaraçosas na pista e
diálogos rasos dignos de uma mesa de bar, decido que está na minha hora.
Despeço-me apenas de Andrew, porque Nev e Dom já foram aproveitar o
tempo sozinho, e procuro meu acompanhante com o olhar, encontrando-o
recostado no balcão das bebidas aguardando pelo meu chamado. Lewis acena
em minha direção, se aproximando para pedir desculpas por não ter nos dado
tanta atenção. O que é compreensível já que ele comemora com Josh, Maxon
e Hannah que estão diretamente ligados ao time, e Jules acaba ficando junto
por causa do seu acompanhante. Ademais, o clima não ficaria o melhor de
todos na presença dele perto de Eckhoff, Hopkins e Bennet, que exprimem o
desagrado pelo Johnson.
Despeço de algumas pessoas que aparecem no caminho, e aceno com a
cabeça discretamente para Thomas. Não preciso olhar para saber que ele
caminha atrás de mim, em uma distância segura o suficiente para não levantar
suspeitas. Antes de entrar no carro, confiro se não há ninguém nos
observando, e ao constatar que está tudo limpo, entro junto com Eckhoff.
— Você vai mesmo para o meu alojamento? — Desvio o olhar da estrada
para conferir Thomas, que franze o cenho ao ouvir a indagação.
— Claro. — Ele acena veemente com a cabeça. — Foi você quem me
chamou.
— Eu convidei por educação quando estávamos te livrando da Kardashian
perdida — respondo e Thomas solta uma gargalhada, pousando a mão em
minha coxa.
— E eu sou inconveniente o bastante para aceitar, gatinha — rebate. Recebo
uma piscadela e não consigo frear a risada que escapole de minha garganta.
O percurso até o complexo de alojamentos foi calmo e preenchido por um
silêncio confortável. As ruas sinuosas de Bolfok Town estão desertas e
iluminadas apenas pelos postes de luz amarelada que vez ou outra ameaçam
apagar. Meu som está sintonizado na rádio da cidade, cuidada por uns
estudantes de jornalismo e música, e quando um acorde começa a soar baixo,
Thomas leva a mão para aumentar o volume consideravelmente. Ele
reconhece rapidamente e passa a acompanhar a letra em um sussurro, ao
passo que eu apuro minha audição para captar a rouquidão que Eckhoff
carrega em seu tom de voz grave. Jamais imaginaria que há talento para o
canto no meio de tantas habilidades, e me parece até mesmo um tanto injusto
existir alguém que saiba fazer tantas coisas. Porque ele sabe cantar, mexer
com carros, além de ser inteligente, diz que quebra recorde no vídeo game e
também dança. Volto minha atenção ao seu canto, agora um pouco mais alto,
e é impossível frear o sorriso que surge em minha face. É uma boa voz,
daquelas que você anseia que seja murmurada no pé do seu ouvido, e você
poderia escutá-la por um bom tempo, talvez pelo resto da vida.
Não há troca de palavras entre nós até mesmo durante a subida dos lances de
escada que nos levam em direção ao quinto andar. O 505 brilha em fontes
garrafais, sendo o contraste no meio da penumbra que agarra o vasto corredor
do meu andar. Antes de qualquer coisa, busco meus pertences para tomar um
banho e retirar o suor impregnado em mim durante o dia inteiro, e Thomas
faz o mesmo, me acompanhando em meio a risadas baixas até o banheiro
comunitário. São duas da madrugada e as cabines estão inexplicavelmente
cheias, como se todos os jovens estivessem voltando do mesmo lugar que
nós. Aguardo minha vez batendo o pé em um gesto ritmado contra os
ladrilhos do chão.
Os músculos de Thomas estão agarrados nas roupas perdidas de Dominic que
encontramos nas gavetas de Nev. O Hopkins tem um corpo mais esguio e
magrelo, ombros mais estreitos e pernas mais finas. Enquanto Eckhoff é mais
largo e encorpado. Não que ele seja uma parede de músculos como os atletas
do time, mas sua estrutura corpórea é, com certeza, maior que a de Dom. Por
isso, a impressão é de que ele está usando, pelo menos, dois números
menores que o seu normal. A parede serve de apoio para as minhas costas
enquanto me esparramo na minha cama, colocando as pernas no colo de
Thomas. Ele leva as mãos ao meu pé e começa a fazer uma massagem
realmente boa, parecendo pressionar os lugares certos.
— E então... — inicio, entrelaçando os dedos das mãos sobre a barriga.
— E então o quê?
— Não vai me contar qual é a da Miss Oroland County?
Thomas crispa os lábios até libertá-los em uma gargalhada escandalosa.
— Você é boa com apelidos, Lennon. — Aceno em confirmação e ele
continua. — A história é longa.
Um suspiro escapa por entre seus lábios e seus olhos perdem o brilho
gradativamente.
— Temos a noite toda — acalento-o e Thomas sobe as mãos para minha
panturrilha, continuando a massagem.
— O meu pai é separado da minha mãe e eles nunca tiveram nada sério. Para
falar a verdade, minha mãe era empregada da casa, os dois se envolveram e
eu nasci. Só que nesse mesmo tempo, a esposa dele também estava grávida, e
gerou o Lewis. Sim, nós somos irmãos. Esse não é um bom momento para eu
explicar o motivo de não termos uma boa relação, então vou pular para a
Jessie. — Thomas inspira e expira calmamente. — Nos conhecemos quando
meu pai ganhou minha guarda e eu entrei em um colégio particular cheio de
gente rica. Lembro que, quando eu tinha oito anos, e era o primeiro dia de
aula, Jessie foi um amor comigo. Para uma semana depois mostrar que talvez
o ser humano nasça mau sim. Aquela garota infernizou a minha vida durante
toda a escola elementar. Começou quando ela me viu lendo um livro qualquer
que não lembro mais do que se tratavae o rasgou, dizendo que se eu
continuasse lendo, viraria um maricas.
“Ela falava certas coisas tão ruins que analisando hoje em dia, só podia
escutar tamanha atrocidade dentro de casa. O que acontece é que essa
perseguição me ocasionou alguns problemas. Eu comecei a ter crises de
ansiedade e em qualquer ocasião que eu tivesse que falar em público, eu
gaguejava, tremia e suava como um porco. A Jessica cresceu como a rainha
do colégio, mandando em todos, diminuindo os desajustados e perseguindo
quem não se encaixava em seu padrão pré-determinado de adolescente. E é
muito inacreditável que hoje, vendo de perto como estou, ela tenha dado em
cima de mim tão descaradamente, e agiu como se fôssemos grandes amigos
no passado."
As sensações que viajam em meu âmago, neste momento, variam entre o
ódio e a compaixão. Há esse instinto protetor que se apossa de mim ao ouvir,
mesmo que por alto, o quanto Thomas pode ter sofrido durante sua infância e
adolescência. Eu, com certeza, fui uma versão de adolescente rica mil vezes
menos pior que Jessie. Atacar colegas de classe, direcionar discursos dotados
de ódios a eles ou qualquer coisa do tipo era muita perda de tempo para
alguém que estava tão interessada no próprio umbigo. Mesmo assim, é
inevitável pensar que algumas palavras suas podem ocasionar diversos
reflexos ruins em outras pessoas. Meu coração se comprime dentro do peito
ao imaginá-lo sendo humilhado.
— Eu fiz terapia durante um tempo. — Thomas volta a falar, aproveitando
meu estado de torpor. — Não só pelo bullying, e por um tempo me ajudou.
Fiz fonoaudióloga para tratar a gagueira também, mesmo que eu só me
embaralhasse com as palavras ao falar em público. Saí apenas quando vim
para a faculdade.
— Por que decidiu sair?
— Eu me sinto bem aqui, com a minha aparência, meus amigos, oficina e
tudo mais. Não me preocupo em ter sido o nerd do laboratório de química
nem nada do tipo, porque eu tenho umas das melhores notas do meu curso,
com certeza vou me formar com honra ao mérito e administro uma oficina.
Tenho orgulho de quem eu sou. — Eckhoff suspira e pausa a massagem,
deixando suas mãos pousadas na minha perna. — Eu até quero voltar para a
terapia, mas sempre que estou perto do Departamento de Psicologia da
faculdade perco a coragem.
"Quando eu tive que apresentar meu primeiro trabalho em público aqui na
faculdade foi um verdadeiro inferno. Montei o seminário perfeitamente bem,
sempre com atenção minuciosa aos detalhes, e quando pisei no pequeno
palanque, a voz sumiu. As palmas das mãos estavam molhadas de suor, eu
tremia, escutava um zumbido forte no ouvido e minha cabeça pesava uns
quilos a mais. Puta que pariu, como foi horrível. As horas na fono até
adiantaram porque não gaguejei muito, mas quando comecei a me embaralhar
em uma palavra ou outra, me desesperei e ferrei com tudo. Eu só pedi
desculpas e saí da sala, foi horrível. Acho que naquele dia tive minha pior
crise durante a faculdade."
É difícil mensurar o quanto estou triste, como se eu pudesse sentir o mesmo
que ele, como se a dor dele fosse minha também. O olhar de Thomas está
perdido na parede atrás de mim, e sua mão desfere uma carícia quase
imperceptível na minha panturrilha. Meu coração parece ter diminuído de
tamanho, assim como o estômago. Essas sensações são horríveis e eu nunca
me senti assim na vida ao ouvir a história de alguém. Tenho vontade de
guardá-lo em uma redoma de vidro para que ninguém nunca mais lhe faça
mal. Arrasto-me até apoiar as costas na cabeceira da cama e trago Eckhoff
para mim, enlaçando o braço ao redor do seu tronco, até que ele se deite com
a cabeça no meu peito. Pouso a mão em seu cabelo e inicio um cafuné,
tentando confortá-lo.
— Eu sinto muito. — Minha voz sai mais como um muxoxo e eu deixo um
beijo no topo de sua cabeça.
— Não sinta, está tudo bem agora. — Seu tom é tranquilo, ainda assim apoio
o queixo em seu cabelo e sinto alguns fios fazerem cócegas no meu queixo.
— Quando eu te vi pela primeira vez, pensei que fosse tão patricinha quanto
Jessie. Vocês têm umas semelhanças e jurei que você seria tão arrogante,
mimada, mesquinha, egocêntrica e republicana quanto ela.
Solto uma risada pela crítica política disfarçada no meio de tantos
xingamentos.
— Eu me enganei. — Thomas volta a falar. — Mesmo que você seja muito
mimada às vezes e até um pouco arrogante, sei que é bem mais que isso.
Tombo a cabeça para trás e encaro o teto branco do alojamento, pensando em
como não adentrar um assunto que poderia render diálogos com mais
sentimentalismo do que quero pensar agora.
— Como você tem lidado com os trabalhos que precisa apresentar em
público?
Sua mão adentra a barra da minha camisa e acaricia minha cintura.
— Nevaeh Williams começou a me ajudar, quando o trabalho era em grupo,
sempre fazíamos juntos. Ou nos momentos que precisava enfrentar sozinho,
eu buscava o olhar dela e recebia um apoio moral silencioso. As crises são
muito esporádicas agora, eu até fazia acompanhamento com ansiolíticos, mas
infelizmente, passei a recorrer ao cigarro.
— Você precisa de ajuda, Thomas Julian Eckhoff.
Ele ergue o rosto para conectar sua íris a minha e sorri.
— Julian? — Subo e desço os ombros. — Só minha mãe me chama assim.
— E a Miss. — Me refiro a Jessie com o amargor escorrendo pelas papilas. A
raiva de saber que ela foi horrível com Thomas em determinada época ainda
corre por minhas veias.
— Ela só sabe por causa da lista de chamada. — Um gruído sai de minha
boca acompanhada de uma risada baixa. — Minha mãe queria muito Julian, e
Robert ansiava por ter um filho batizado como Thomas. Já que eles nunca
estiveram juntos, a palavra dela seria a última. Contudo, ela considerou que
não me fez sozinha e resolveu que eu poderia ter os dois. Meu tio Mason deu
o ultimato dizendo que Thomas é mais bonito, ficando como primeiro nome.
Na certidão, Noora nem Robert quiseram abrir mão de terem seu legado nas
linhas do documento. — Ele pausa para suspirar e logo continua. — Por isso
me encheram de nomes, ficando Thomas Julian Eckhoff Johnson. Uma
grande bagunça.
— Não ficou tão ruim.
Solto uma risada baixa e tento não pensar em como eu poderia ficar nessa
posição para sempre. Nossas pernas estão entrelaçadas e sua cabeça recosta
em meu peito, subindo e descendo junto com a minha respiração. Uma de
minhas mãos está embrenhada em seu cabelo enquanto a outra enlaça seu
tronco, e ele acaricia minha cintura por dentro da blusa.
— E você? — Thomas rompe com o silêncio cultuado no quarto.
— Eu o quê?
— É óbvio que alguém já te machucou no passado. — Paro os movimentos
em uma reação instantânea ao comentário.— Lembro daquele cara loiro que
vi na Bolfok Ride.
Não seria o melhor momento para embarcar em uma viagem até meus
momentos com Rafe, e me abrir sobre isso com Thomas. Não é por causa de
confiança, porque inexplicavelmente, confio muito em Eckhoff. No entanto,
eu não quero que ele tenha acesso a uma parte de mim que ainda sinto um
pouco de vergonha de expor.
— Sim — respondo em um murmuro tão baixo que se o quarto não estivesse
em completo silêncio, ele também não escutaria.
— E isso te traumatizou quanto a entrar em relacionamentos?
— Não é bem isso. — Tento umedecer os lábios passando a língua por eles.
— Eu só tenho medo de entrar de cabeça em algo que eu possa sair
machucada no final. De entregar meu coração a alguém que vá pisar nele na
primeira oportunidade — suspiro, apertando as pálpebras com força. — Eu
não amei o Rafe, só que nós tínhamos uma puta amizade. Foram três meses
sendo apenas amigos, embarcando em algo um pouco mais sério do que um
simples sexo casual. Eu era virgem e ele me falava coisas que me induziam a
acreditar que gostava verdadeiramente de mim. Então, eu me abri, confiei
minha virgindade e depois de umas três transas fui jogada fora. Tipo,
descartada.
"O cenário está vivo na minha mente como se fosse ontem. Nós ficamos por
um mês, tirando os três que fomos amigos. Então, andávamos como um casal
às vezes, ele me buscava no treino de líderes de torcida e nós fazíamos muitas
coisas juntos. Foi em um desses dias ensolarados que são comuns em Dilshad
Town, que cheguei ao refeitório da escola e me sentei em seu colo como
sempre fazia. Ele me olhou, como se não me conhecesse, como se eu fosse
uma completa estranha. Ouvi algo como o tempo que tivemos juntos ter sido
legal, mas que eu era o tipo de garota que servia só para aquilo, algumas
transas ocasionais e depois nada. Que eu era cansativa, tão insuportável que
meus pais nem faziam questão de conviver comigo, substituindo a ausência
por inúmeros presentes. Eu lembro dos vergões vermelhos que estamparam
minha pele quando cheguei em casa e me esfreguei com a bucha, tentando a
todo custo tirar Rafe de mim. Eu me sentia suja e só um bom banho poderia
me lavar de tudo aquilo. Foi uma das únicas vezes em tempos que meu pai
realmente parou e perguntou o que eram aquelas marcas. Howard Lennon
pareceu estar verdadeiramente preocupado comigo depois de séculos, e foi
um dos únicos momentos bons entre pai e filha que tivemos em anos. Porque
ele me fez chocolate quente e parou todo o seu trabalho para me dar atenção,
o que nunca acontecia. Então, sim, eu tenho medo de que outro cara faça
comigo o que Rafe fez."
Só percebo que estou chorando quando sinto o dedo de Thomas secar a
lágrima solitária que cai de meu olho. Ao afastar a gota, ele deixa uma carícia
terna em meu rosto. Beija uma bochecha, depois a outra, a ponta do nariz e
por último, a testa. Seu braço, que me rodeia, tenciona os músculos até que
ele me aperte ainda mais contra si. Firmo meus braços ao seu redor com mais
força, como em um abraço desajeitado.
— Gosto de você — ouço Thomas proferir em um fio de voz.
Posso jurar que meu coração para por uns instantes até que eu recobre a
consciência. Quase peço que ele repita para eu ter certeza se foi isso mesmo
que ouvi, mas desisto, dedicando alguns minutos para processar suas
palavras.
— Eu não fiz aquilo na quarta só porque queria transar depois. — Ele inspira
e expira com calma para voltar a falar. — Rafe foi um filho da puta e eu juro
que se eu pudesse, iria com Dominic e Andrew e nós jantaríamos ele na
porrada, sem me importar de estar sendo covarde por lutar em três contra um.
Entretanto, eu gosto de você e da sua companhia, e para ser sincero, odeio
esse lance de fazer as coisas em segredo. Eu posso ter a mentalidade de um
garoto do colegial, mas não sou mais adolescente. É cansativo demais
arrumar justificativas plausíveis aos nossos amigos para te encontrar, fico
puto de não ter passe livre para te tocar em público, e porra, como eu odeio
esconder isso. Não to te pressionando a tomar nenhuma decisão, mas eu
quero que me responda o que eu sou para você.
Posso sentir o peso das palavras caindo sobre mim à medida que elas são
proferidas pelos lábios finos e rosados dele. A gravidade empurrando
impetuosamente os significados contra o meu corpo. Por uns instantes, até
mesmo prendo a respiração, como se o movimentar inútil do meu peito
contribuísse para a retumbada do relógio. Se eu ficasse paralisada, o tempo
pararia junto comigo? A resposta é não. Porque mesmo com o ar encarcerado
dentro de minha caixa torácica, ainda posso ouvir o tictac quase
imperceptível do ponteiro do meu relógio de cômoda.
O que Thomas Eckhoff é para mim?
Eu não sei.
Nós estamos convivendo a mais ou menos dois meses, frequentando lugares
juntos, como cafeterias, bares, lanchonetes, a casa dele e o meu alojamento.
A cada dia, eu sei mais um pouco sobre a sua vida, conheço profundamente
cada uma de suas manias. A maneira como coça a nuca quando está
desconcertado, as palmas sendo limpas no tecido do jeans quando está
nervoso, os dentes afundando no lábio inferior quando está pensativo e o
canto da boca erguido em malícia ou perversidade. Conheço suas expressões,
a ponto de ter uma vasta noção até mesmo do que está prestes a sair de seus
lábios: uma palavra amiga, uma frase cheia de luxúria, uma alfinetada, uma
piada ou algo profundo e triste. Conquanto a isso, ficamos perdidos na
presença um do outro. Sem ter muita ideia de como agir ao ouvir algo
inesperado, um abraço, tapinhas nas costas, aperto de mãos?
No dicionário, tudo significa as coisas e seres em sua totalidade, aquilo que é
essencial e importante. Já o nada significa coisa nenhuma, de grau e modo
inexistente. Então, talvez, Thomas seja, para mim, tudo e nada ao mesmo
tempo.
— Eu não tenho certeza do que você é para mim — inicio, umedecendo os
lábios com a língua. — Mas eu sei que não é só sexo.
— Me parece que estamos na mesma página então, Lennon. — O canto da
boca se ergue, demorando um pouco mais ao pronunciar meu sobrenome.
— Estamos. — Dou uma batida leve em seu ombro. — Ou seja, eu continuo
te odiando.
— É recíproco. — Rimos em uníssono, e eu volto a apoiar meu queixo em
sua cabeça. — Mackenzie Lennon?
— Hum— murmuro, afundando meus dedos em seu couro cabeludo.
— Acho que eu tenho o direito de saber seu nome do meio.
Bufo resignada.
— Rose. — Thomas ergue o rosto para me encarar, a respiração batendo
contra o meu rosto. — Meu nome completo é Mackenzie Rose Lennon.
— Não acredito que você deu o próprio nome para o seu carro. — Sua cabeça
gira em sinal de negação. — Isso é tão egocêntrico.
— O que eu posso fazer? — Arqueio as sobrancelhas. — Combina comigo.
Thomas ri e volta a recostar a cabeça em meu peito. Sei que ele pode ouvir
meu coração bater acelerado, mas também tenho a certeza de que ele não dirá
nada sobre. Quero falar algo apenas para abafar o som que provém do lado
esquerdo dos meus seios.
— Me diga algo sobre você que ninguém saiba. — Ele parece não estar
esperando pela pergunta porque arregala um pouco os olhos.
Há uma pausa, como daquelas que acontecem em filmes quando o
personagem está surpreso e pondera sobre algo.
— Eu faço tricô. — Franzo o cenho e crispo os lábios com força.
Ao mesmo tempo em que quero rir, estou muito surpresa. Não é o tipo de
coisa que eu esperava ouvir quando fiz a pergunta, no entanto, a imagem de
um Thomas sentado e tricotando aumenta, ainda mais, a minha curiosidade.
— De onde surgiu isso? — Acabo não aguentando segurar e solto a risada, e
Thomas me acompanha.
— Minha mãe gostava muito de bordar, fazer crochê e ela acabou me
ensinando. — Seu dedo desfere carícias em círculo em minha pele. — Era
um bom momento que tínhamos juntos, e quando vim morar aqui, resolvi dar
continuidade ao hobby. Além do mais, tricotar me lembra dela e faz com que
a saudade diminua um pouco.
— Eu quero uma meia rosa personalizada. — Empurro seu corpo para o lado
assim que me ergo na cama, ficando sentada em cima das pernas. — Na
barra, você borda meu nome.
A animação que percorre meu corpo faz com que eu alargue o sorriso e
dispare a tagarelar sobre as diversas coisas de tricô que ele poderia fazer para
mim: meias, mantas, cachecóis e suéteres.
— Pode deixar. — Ele afirma com a cabeça. — Vou tricotar uma meia e
bordar seu nome: Regina.
Pego o travesseiro que sobra na cama, afundo meus dedos segurando-o com
força e bato com ele em seu peito.
— Eu faço você engolir a meia, seu ridículo. — Thomas agarra meus
antebraços e me puxa contra ele.
Meu peito se choca ao dele, com o peso do meu tronco sobre o seu e nossas
respirações se misturando. Há essa paz que toma cada mazela do meu corpo,
como um contraste ao seu toque que me faz queimar. As sensações são
intensas, como os arrepios, formigamentos, estômago retorcido e coração
acelerado. No entanto, a calmaria vem sempre que estamos próximos demais,
como se qualquer outro problema pudesse ser facilmente resolvido se
estivéssemos juntos.
— Agora que outras pessoas saberão sobre nós, porque acho que você
concorda em não mantermos mais isso em segredo. — Balanço a cabeça por
ter sido arrancada bruscamente de meus devaneios. — O que seremos?
Aperto os lábios para que um sorriso não se esgueire entre minhas maçãs do
rosto. A forma que Thomas usa para conseguir as coisas de mim é realmente
funcional, porque quando percebo, já estou acatando seus pedidos sem nem
ao menos pensar muito sobre. Parece-me como uma lei da física, de ação e
reação: ele cede um pouco, conta sobre sua vida e espera, pacientemente, que
eu faça o mesmo.
— Acho que podemos só deixar fluir, estou satisfeita com o que temos. Essa
coisa estranha de diálogos amenos, alfinetadas, provocações, e todo o resto.
Sei lá... — subo e desço os ombros. — É disfuncional, mas funciona para a
gente e acredito que seja isso que importa.
Há um acordo silencioso sendo formado neste exato momento, o de que
continuaremos convivendo, transando, beijando, conversando e até mesmo
brigando. Entretanto, nenhum de nós enxerga a necessidade de rotular
alguma coisa.
— Existem coisas não ditas que precisam ficar claras. — Arqueio as
sobrancelhas e maneio a cabeça para que ele termine o raciocínio. — Tipo,
seremos exclusivos, certo?
Esgueiro-me pela cabeceira da cama até estar deitada sobre o colchão macio,
sendo agarrada pelos cobertores necessários para aguentar as noites frias de
Bolfok Town. Thomas me acompanha, enlaçando meu tronco com seus
braços até que eu fique deitada sobre seu peito.
— Não me importo de sermos exclusivos — dou de ombros e abrigo minha
mão em cima de suas costelas.
— Toma essa, Josh. — O peito dele vibra embaixo do meu quando solta uma
risada alta.
Mal posso acreditar no que acabo de ouvir, e meus lábios abrem para que a
gargalhada estrondosa escape por entre eles.
— Você é definitivamente um ridículo.
Um dos braços antes ao meu redor, sorrateiramente escorre pelo meu
antebraço até chegar a minha mão, entrelaçando nossos dedos. Observo as
palmas encaixadas, o dedão deixando carícias até perto do meu pulso. Ele
leva até a altura dos lábios, deixa um beijo casto nas costas de minha mão e
migra para seu peito, pousando-as nele. O outro braço ainda me segura,
firmando o contato de nossos corpos, assim como as pernas que ainda estão
entrelaçadas. Thomas chega com a boca perto do meu ouvido e sussurra.
— Eu também te adoro, Lennon.
A dor que começa em meu maxilar e abrange todo o meu rosto é
aguda, como se a pontada forte em minha têmpora pudesse enviar o
incômodo para o meu cérebro e toda a minha corrente sanguínea. Escuto
gritos, a cacofonia azucrinando a minha mente, amortecendo todos os meus
sentidos. Um vaso se choca contra a parede e estilhaça em vários pedacinhos,
e sou segurado pelos dois ombros, sendo sacudido como se pudessem
balançar todos os órgãos em meu interior. Um zumbido alto e irritante
perpassa de um ouvido ao outro, me fazendo cobri-los com as mãos, sem
vontade de escutar e processar a porção de xingamentos que recebo. Um livro
é balançado em minha frente, as folhas arranhando meu rosto. Quero gritar,
as cordas vocais estão ressecadas e ardem, os olhos estão cheios de lágrimas
e o coração bate acelerado dentro do peito. O pavor tem o poder sobre mim,
estagnando qualquer movimento do meu corpo. Eu até envio os comandos ao
meu cérebro, de que preciso me mover ou gritar, fazer alguma coisa, acabar
com o terror que acontece nesse ambiente tão claro que faz meus olhos
doerem. No entanto, não faço nada. Continuo como um mero espectador das
cenas horripilantes até bater minhas vistas na figura escondida atrás da
pilastra, apenas ali, perscrutando o local com os olhos, incapaz de sequer
tentar fazer algo que impeça os atos dele.
Sou arrancado daquele cenário em um solavanco brusco, sentindo meu corpo
suado e braços esguios me envolvendo. Demoro a raciocinar onde estou, mas
assim que noto o teto branco e o espaço pequeno com duas camas do
alojamento, inflo as bochechas em um suspiro aliviado. O aroma doce e
cítrico ao mesmo tempo invade minhas narinas, trazendo calmaria junto ao
perfume.
— Calma, Tom. — Mackenzie murmura em meu ouvido. — Foi um
pesadelo, você está comigo, em segurança.
Sou embalado pelos seus braços finos e sua palma acaricia minhas costas
desde a nuca até meus quadris. Ela faz um cafuné sutil em meu cabelo e a
tranquilidade volta ao meu corpo aos poucos. O relógio barulhento em cima
da bancada ao lado da cama indica que são quatro da manhã, e a única
iluminação que adentra o cômodo é a luz amarelada do poste de rua. Deixo
que Mack murmure baixinho em meu ouvido alguma canção de ninar
desconhecida enquanto o aconchego de seu toque envia calmaria para todas
as mazelas, antes agitadas, de meu corpo. Até que caio, novamente, na
penumbra de um sono mais tranquilo.
As lembranças da madrugada de sábado abarrotam a mente enquanto ouço
minha professora listar elementos como hidrogênio, oxigênio, nitrogênio,
fósforos e halogênios. Minha palma serve para apoiar o rosto e o cotovelo já
demonstra os primeiros sinais de cansaço pelo contato do osso contra a tábua
fria e dura da mesa. Afasto os fios que caem sobre os olhos, tomando uma
nota mental de que devo apará-los em prol de vistas saudáveis. Rodo o anel
no indicador enquanto a Senhora Harris reflete sobre Compostos Orgânicos,
recordando-me que tenho um encontro marcado com Lennon mais tarde para
finalizar os últimos acertos do Halloween, que será na Kappa Thau, a maior
casa de fraternidade da Bolfok College. A equipe de decoração já
providenciou todos os artefatos assustadores que estamparão a mansão
recheada de jovens buscando um pouco mais de diversão. Independentemente
do assunto que esteja sendo dito em sala, só consigo manter minha atenção na
manhã agradável de domingo que tive após chegarmos do bar.
A conversa com Mackenzie na noite de sábado foi um tanto esclarecedora, já
que me permitiu entender seus medos e inseguranças quanto a ceder à tensão
que nos pressiona quando estamos juntos. Suponho que tomar conhecimento
dos meus problemas com Jessie também a fez ter acesso a um lugar mais
profundo dentro de mim. Não foi nenhum sacrifício me abrir e contar dos
problemas e traumas que mais me afligem, como se eu soubesse que seus
ouvidos estariam bem abertos e os julgamentos estariam longe de seus lábios.
Encontrar a garota que tanto me infernizou durante a infância me abalou mais
do que eu gostaria, porque pensei que, ao deixar Oroland County para trás,
também deixaria as marcas e cicatrizes. O sol irrompendo luminoso pelas
vidraças perto do teto da sala me lembra da cidade litorânea que nasci, como
se ao ver o céu azul limpo, eu pudesse ser transportado diretamente ao píer
frente à única praia do lugar pacato. É incrível como algo pode te fazer mal e
bem ao mesmo tempo, porque aquela cidade faz isso comigo. A nostalgia se
apodera de mim quando recordo o bom momento enfiado na garagem de meu
tio, aprendendo tudo sobre carros, comendo os biscoitos noruegueses da
minha mãe, ou simplesmente sentindo a areia abraçando meus pés e o cheiro
de maresia. O clima mais ameno também me deixa com saudades. Contudo,
as coisas ruins são tantas que acabam pesando mais do que as boas.
Odiei cada minuto de ser disputado, como a porra de uma bola de ping-pong,
pelos meus pais. Robert Johnson conseguiu ganhar de minha mãe tantas
vezes que a única coisa que sobrou dela foram os caquinhos, sendo juntados
de pouco a pouco a cada dia. Noora Eckhoff definitivamente é a mulher mais
forte que conheço. Lutou por mim até o último fio de esperança, mesmo
sabendo que as probabilidades do homem milionário ganhar eram
exorbitantes. Ela fez o que pôde, e eu jamais esquecerei tamanho gesto.
Assim como todas as merdas que meu progenitor fez ficarão sempre
marcadas em minha memória, impossíveis de serem lavadas ou apagadas.
Um tremor no meu bolso frontal me acorda de meus devaneios, olho para
frente e a professora continua recitando inúmeras ligações químicas,
enquanto eu confiro discretamente o teor da notificação que chega a meu
celular.
Mack Regina: Esse é você?
Encaro o novo nome que dei ao seu contato e é inevitável que o sorriso não
surja. A pergunta vem acompanhada de uma foto minha só de cueca, em uma
fileira de homens, no que parece ser um lugar com uma montanha coberta de
neve. Reconheço como a foto do trote de calouros do meu ano, no qual
tivemos que tirar as roupas em um frio do caralho só para tirar essa foto.
Thomas: Sou eu, gostou?
Os três pontinhos tremelicando indicam que ela já visualizou e está
respondendo, me fazendo pôr o celular na cadeira, entre as minhas pernas e
usar a mão como apoio para a cabeça.
Mack Regina: Já vi melhores.
Comprimo os lábios para abafar a risada que ameaça escapar por eles, a
resposta é tão previsível que chega a ser engraçado. Analiso a foto
novamente, os braços masculinos ao meu lado deixam em evidência que
havia alguns homens enfileirados, pousando para a foto, contudo parece que
só existe meu corpo dentro da imagem, justamente porque ela foi
aproximada.
Thomas: Deu zoom em mim por qual motivo, então?
Mack Regina: Para conferir o produto.
Agora me parece ainda mais difícil segurar o riso, por isso ponho a mão na
boca para abafar o gruído que escapa de dentro da minha garganta e volto ao
celular apenas para digitar uma resposta.
Thomas: Vamos fingir que você não acordou a minha nobre vizinhança
quando sentou no produto ;)
Guardo o celular de volta no bolso antes de conferir a mensagem mal criada
que Mackenzie manda. Provavelmente, se trata de uma série de xingamentos
ou um "ridículo" em caixa alta. Quando o sinal bate, indicando o final de
mais um tempo de aula, permito que a risada escape por entre meus lábios.
Conversar com Mackenzie tornou-se mais fácil do que já era. Os diálogos
simplesmente fluíam sem que precisássemos iniciá-los com papo furado ou
um "oi, tudo bem?". Virou um costume mandarmos coisas um ao outro, ou
nos marcarmos em memes e publicações que me lembravam dela e vice
versa. A partir daí, a conversa perdura por horas e se esvai até a madrugada.
Tenho uma vaga ideia de que meus batimentos acelerando e meu estômago
afundando quando suas mensagens chegam são sinais perigosos de alguém
que já está se afundando em toda a magia fúnebre que Lennon traz. O feitiço
foi lançado no momento em que suas mãos estiveram em mim pela primeira
vez, e fui capturado, sendo jogado dentro dessa bolha de provocações e
tensão sexual.

A fricção do tecido do short de Mackenzie no meu pau está me deixando


perdido gradativamente. Minhas mãos capturam seus quadris forçando-a
ainda mais em meu volume, ao passo que o beijo que trocamos é, no mínimo,
faminto. Sua língua desliza sob a minha enquanto suas unhas afiadas
ocupam-se de deixar marcas avermelhadas em minha nuca. Ela ainda está de
sutiã e meu abdômen nu implora que eu arranque aquela maldita peça logo.
Inverto nossas posições jogando-a contra o colchão e me posiciono em cima
dela. Suas pernas enlaçam meu tronco aumentando o contato entre nós,
gruídos e murmúrios desconexos escapolem de nossas bocas em arfadas
generosas. Levo minha mão até sua barriga, espalmando em uma carícia até
chegar ao fecho da renda preta, contudo um ranger relativamente alto faz com
que a palma de Mackenzie vá contra o meu peitoral me empurrando para
longe. Rolo sobre a cama e até tento agarrar o edredom antes que o baque
surdo soe no silêncio do alojamento. Estou no chão, sei disso porque sinto
uma dor aguda iniciar em meu cóccix e se alastrar por toda a minha
espinha. Puta que pariu, ferrei com a minha coluna de vez.
Tento absorver o que está acontecendo, porém quando percebo é tarde
demais. Vejo um All-Sstar amarelo mostarda ao lado de coturnos gastos, e a
realidade avança contra mim como Os Vingadores sedentos para acabar com
Thanos no último filme da franquia. Sento-me no chão rapidamente e meus
olhos voam até a figura de Lennon segurando firmemente o cobertor para
tampar seu tronco desnudo. Os castanhos vibrantes estão arregalados e
transbordando em pavor. Bom, ninguém gosta muito de ser pego no flagra.
Eu devia, aliás, ter pensado em trancar a porta antes de prensar o corpo de
Mack contra a parede como um maldito animal faminto. Cheguei após a aula
com tanta vontade de senti-la que nem ao menos pensei em algo tão trivial
quanto girar a porra da fechadura. Agora Nevaeh e Dominic nos encaram
com a surpresa esgueirando-se para dentro de seus semblantes, o último, na
verdade, detém um sorrisinho convencido demais para o meu gosto.
— Ora, ora, ora... — Dominic começa. É claro que ele faria graça. — Veja só
o que temos aqui.
Jogo minha blusa para Lennon, que captura em um reflexo notável. A peça
passa por sua cabeça e cobre seu corpo em uma rapidez surpreendente.
Arrasto as mãos pelo jeans, tentando discretamente acabar com o problema
do volume bem visível em minha calça. Ergo-me em um solavanco e apoio as
duas mãos na mesa de estudo atrás de mim. Encosto meu traseiro na tábua de
madeira e quase posso ver os olhos felinos de Nevaeh me repreendendo
silenciosamente, logo não demoro a me afastar do móvel.
— Por Deus... — Dominic simula um semblante enojado e desvia os olhos de
mim. — Que eu nunca mais veja Thomas de pau duro.
— Você tem certeza de que quer reclamar? — pergunto, estreitando as vistas,
e Dominic provavelmente recorda de quando eu o peguei quase transando no
sofá da nossa sala.
— Vamos deixar o passado no passado. — Ele rebate, me fazendo abrir um
sorriso fechado.
Após uns segundos em completo silêncio, ouço outra voz reverberar pelo
quarto.
— Você está me devendo 10 dólares. — Nev acusa com o indicador
levantado.
Espera aí, o quê?
— Droga. — Dominic tateia os bolsos atrás da carteira e tira uma nota. —
Estou te pagando na frente deles para termos testemunhas.
— Vocês apostaram sobre nós? — Mackenzie parece desacreditada,
segurando a barra da minha blusa enquanto se senta sobre as coxas.
— Eu disse que você cederia antes do Halloween e Dominic apostou que
seria depois. — Ela mexe nos óculos de grau de armação transparente que
decora seu rosto.
— Poxa, morena... — Dom lamenta, estalando a língua no céu da boca. —
Eu confiei em você.
O semblante de Lennon é tão confuso que quase posso enxergar um grande
ponto de interrogação pairando sobre sua cabeça.
— Eu confiei que você seguraria um pouco mais e não cederia tão rápido ao
charme desse bostinha. — Dominic dá um soco leve em meu ombro, me
fazendo revidar com um pescotapa.
— Eu sou irresistível. — Abro os braços e Lennon me lança um olhar
fulminante. Desmonto a pose em um segundo.
— Espera aí. — Mackenzie põe-se de pé. — Vocês já desconfiavam durante
esse tempo todo?
— Está falando sério? — Dominic questiona com um semblante que parece
descrente. — Estamos surpresos apenas pela horripilante visão de Thomas
sem camisa quase te engolindo na sua cama. Mas, de resto, já imaginávamos.
— Como? — Permaneço calado deixando que Mackenzie saneie todas as
suas dúvidas.
— "Vou dormir na casa da Hannah". — Nevaeh afina voz, imitando Lennon.
— Essa foi a pior mentira que você já contou. Muito fácil arrumar essa
desculpinha com Eckhoff sozinho em casa.
— Eu estava doente — murmura Lennon, relembrando parte da desculpa que
deu naquele dia, dizendo que Hannah ficaria com ela, pois estava se sentindo
um pouco mal.
— Jura? — Nev sibila com asco. — E Thomas foi te curar com o pau mágico
dele?
— Pau medicinal — corrijo e recebo um olhar mortal de Mackenzie, que me
faz encolher ainda mais os ombros.
— "Iremos para a dispensa, mas nada rolará entre nós". — Agora Dom é
quem afina o tom. — O paraíso estava tão bom que vocês extrapolaram os
sete minutos.
Nenhum de nós tem argumentos para sustentar qualquer explicação plausível.
Nossos amigos querem saber como e quando isso começou a acontecer,
contudo Nev encara o relógio com desgosto e alega estar atrasada para o
Decatlo Acadêmico. Os dois saem do alojamento com a promessa de que
ainda conversaremos sobre, além de aconselharem que deixemos os
hormônios de lado um pouco para, de fato, finalizar a organização do
Halloween.
Pelas próximas duas horas, é exatamente isso que fazemos. Mackenzie tem o
notebook entre as pernas enquanto eu seguro uma lista de bebidas que já
foram compradas. Estamos aproveitando do aconchego de seus edredons, e
dessa vez, consigo perceber a diferença entre um enxoval de boa qualidade e
os meus, que enchem de bolinha quando são postos na máquina. A ponta da
caneta empurra meu lábio inferior para baixo e eu reflito sobre a quantidade
de tequila que terá na festa, até que ouço uma vinheta alta iniciando.
— O que está vendo? — Me arrasto até estar ao seu lado, encostando-se à
cabeceira da cama.
— Ellen. — A resposta monossilábica entrega que Lennon está dedicando
toda a sua atenção ao programa, e não quer ser interrompida.
— Isso é meio óbvio. — Atesto ao me deparar com a apresentadora de cabelo
curto e tão loiro que beira ao branco. — Mas por que está vendo isso agora?
Os olhos de Mackenzie estão pregados na tela do notebook, como se odiasse
a ideia de perder algum segundo do programa para me dar qualquer
explicação. Quando o nome Katherine Lartfolk é anunciado, a morena ao
meu lado dá um pequeno pulo animado. Uma mulher de estatura média
desfila pelo cenário do programa com um sorriso amistoso decorando a face.
Ela veste uma blusa rosa por dentro da calça social branca solta no corpo e
um blazer igualmente branco por cima. Eu adiantaria que é algum tipo de
business woman, mas Lennon nem se interessa muito por esse tipo de gente.
— Essa é Katherine Lartfolk. — Mackenzie aponta para a moça agora
sentada no sofá de Ellen. — Foi chamada ao programa por fazer parte da lista
de "Uma das mulheres americanas mais bem sucedidas antes dos trinta e
cinco anos". Ela reside em Nova Iorque e é dona de uma editora, que
inclusive publicou o livro que estou lendo, indicado por você. Sobre o
soldado problemático.
— Não fale assim do Jack! — Aponto meu indicador e Mackenzie abre a
boca, capturando-o em uma mordida leve.
— Enfim, — ela volta a falar — Katherine estudou em Yale, trabalhou por
um tempo na editora da família, mas alguns problemas aconteceram e agora
ela é a CEO. Antes dos trinta e cinco, tem noção?
Volto meu olhar à tela, analisando a mulher que parece nova demais para a
idade que tem, com seus olhos grandes esverdeados e seu cabelo castanho
caindo como cascatas sobre seus ombros.
— Ela é gostosa. — Subo e desço os ombros, erguendo o canto dos lábios.
O sorriso animado, que antes estampava o rosto de Lennon, some assim que
me ouve. Mas, então, o canto de sua boca ergue em um gesto diabólico.
— O marido dela também — responde sorridente.
Semicerro os olhos em sua direção e empurro seu ombro de leve.
— Não tanto quanto eu. — Subo os ombros e alargo o sorriso.
— Ah, pode apostar que não. — Ela começa e eu levanto o braço para
acomodar seu corpo, mas paro assim que ouço o resto. — Ele é mais, muito
mais.
— Lennon, — afasto a mecha que cisma em cair sobre meus olhos — nem
fala mais comigo hoje.
A cabeça dela tomba para trás em uma gargalhada que reverbera para dentro
de mim e faz meu peito tremer. Perco-me, por uns instantes, em cada detalhe
de seu rosto. As sobrancelhas afastadas e nem tão definidas, as pintas na
bochecha, o nariz pequeno e os lábios em formato de coração. O cabelo está
preso no topo da cabeça em um coque mal feito e os brincos ao longo de sua
orelha estão em evidência. Sua atenção continua na tela, onde a tal Katherine
conta calmamente como construiu sua carreira, mesmo sendo uma herdeira.
— Me identifico com ela. — Mackenzie assume. — Ninguém acredita muito
que uma mulher alcançaria tanto êxito em sua carreira sem estar escorada em
um homem, e ela ocupa um cargo máximo da diretoria agora. Acho isso
importante.
— Ah, — arqueio as sobrancelhas. — Já entendi tudo. — Retiro uma mecha
de seu cabelo caída sobre seus olhos e prossigo. — Ser uma Katherine é tipo
uma meta de vida.
Mackenzie não precisa responder, porque sua cabeça balançando e seu
sorriso iluminado me traz a certeza de que é realmente importante para ela
ver uma mulher no topo.
O resto do dia passa, inacreditavelmente, tranquilo. Conseguimos imergir
nessa ideia de finalização da decoração de Halloween. Analiso o papel ofício
em minha mão, contendo a checklist de coisas que ainda faltavam para
finalizarmos a organização da festa, e agora, observando os símbolos em
forma de V ao lado de tudo o que faltava, a sensação de dever cumprido me
toma. Não que tenha sido exatamente ruim cuidar de diversos eventos da
faculdade, porque isso me permitiu conviver com Mackenzie, no entanto esse
trabalho ocupa partes muito grandes do tempo que preciso dedicar a outras
coisas. É incrivelmente cansativo todo esse lance de organizar uma festa, e eu
realmente valorizo quem gosta do ramo ou ao menos acha meramente
proveitoso dedicar horas checando bebidas, artefatos decorativos, comidas,
músicas e afins. Quando finalmente conclui que terminamos tudo, Mack se
dá por vencida e joga seu corpo contra o colchão macio. Deito-me ao seu
lado, ambos encarando o teto e suspirando de alívio. O tipo de suspiro que a
sensação de dever cumprido, a finalização de uma pendência, traz.
Depois de uma rodada de sexo, inclinado à agressividade que sempre nos
ronda, Mackenzie está com os olhos estatelados em algum ponto do
alojamento e os lábios grudados em linha reta. Tento regular minha
respiração e evitar o início de uma crise de asma, o que, sim, já aconteceu
uma vez, e é, na verdade, um tanto comum aos que sofrem de ataques
respiratórios devido a muito esforço e situações que causam nervosismo.
Contudo, a mulher ofegante ao meu lado parece estar sentindo algo muito
maior do que um simples torpor após chegar ao orgasmo. Seria muita
prepotência minha achar que após uma transa, tal reação exagerada viria do
poder de Thomas Jr.
— O que houve, Mack? — Empurro uma mecha caída sobre seus olhos para
trás de sua orelha. — Te machuquei?
Ela ergue a palma, pedindo que eu aguarde até que seja capaz de sanar meus
questionamentos.
— Estou sedentária demais, sério. — Mackenzie estende os braços e faz
movimentos rotatórios, tentando estimular as articulações. — Qualquer
mínimo esforço que faço parece que um caminhão passa por cima de mim.
— Talvez seja bom ir ao médico. — Lennon estremece ao meu lado, como se
repudiasse a ideia.
— Não é necessário. — Ela gruda os ombros na cabeça, diminuindo o espaço
do pescoço. — Antes de entrar para a faculdade, fiz um checkup, e só minha
vitamina D estava baixa. Minha endócrina passou suplemento vitamínico e
tomei por dois meses. As pílulas acabaram esses dias.
— Então, iremos começar uma temporada de atividades. — Determino com
fervor, tirando qualquer possibilidade de ser contrariado.
— Não mesmo. — Mackenzie se ergue na cama, apoiando os braços atrás do
corpo. — Me recuso a fazer algo que me deixe suada e nojenta.
— Essa é a sua preocupação, jura? — Arqueio as sobrancelhas e crispo os
lábios. — Te ensinarei a dar bons jabs e ganchos de esquerda.
— Kickboxing? — Sua expressão se ilumina um pouco, como se um agrado,
mesmo que mínimo, tenha passado por sua mente. — Acho que gosto dessa
ideia.
Passamos os próximos minutos discutindo os últimos detalhes do nosso
encontro, que seria na próxima sexta-feira, ao passo que na parte da manhã
gastaríamos nossas energias aprendendo alguns socos e chutes. O corpo dela
paira sobre o meu enquanto ela tenta, a todo custo, descobrir onde a levarei
em nossa saída romântica. Tento não prestar atenção em seus seios próximos
demais do meu rosto, e ignoro a vontade de abocanhá-los em um momento
tão inoportuno.
— Aliás, — Mackenzie volta a falar — esses exercícios pesados não
atrapalham sua asma?
Nego com a cabeça.
— Exercícios físicos são bons para a saúde por diversos motivos, é claro que
quem não tem a asma controlada pode ter uma crise no meio da prática. Mas
não é o meu caso, eu trato desde pequeno e tenho um pouco de controle dos
meus sintomas e do que tenho alergia. — Inspiro e expiro. — Qualquer
prática que exija esforço pode me desencadear um ataque, inclusive eu tive
um quando perdi a virgindade. Contudo, pratico atividades há três anos e isso
me trouxe resistência física para aguentar outros esforços.
— Não acredito que você teve uma crise no meio do sexo. — Mackenzie
parece tentar decidir se sente pena ou graça.
— É mais comum do que você pensa — dou de ombros. — Enfim, esse
corpo gostoso foi consequência da minha boa saúde. Então, se prepare para
suar muito.
Mackenzie murmura algo sobre o espaço estar apertado para nós e o meu
ego, e solta um muxoxo finalmente concordando com a ideia de começar a
praticar exercícios. Sei que não será fácil, ela provavelmente implorará por
descanso de cinco em cinco minutos, e é por isso que designo Dominic para
essa tarefa. Foi ele quem me arrastou para as aulas de luta e, como um bom
aluno disciplinado, me ajudou em diversos treinos. A mensagem que chega a
meu celular é animada, como se ele mal pudesse esperar para fazer
Mackenzie trabalhar muito. Rapidamente, Lennon sugere que Nevaeh
participe dessas aulas também. A notificação de uma nova mensagem chega
ao celular dela e eu tombo a cabeça para espiar.
Nevaeh Williams: Dominic está bem animado para sexta. Às vezes, eu odeio
muito ser sua amiga, Lennon.
Um emoji alaranjado com o semblante tomado pela raiva completa a
mensagem carinhosa de Nevaeh, que sabe que já é tarde demais para fugir
dessa nova Era Fitness. Dominic leva a tarefa tão a sério que recomenda que
troquemos nossos pares, para que ele ensine Mack e eu Nevaeh. Evitando,
assim, uma confusão de sensações, porque ele afirma fervorosamente, no
nosso novo grupo no App de mensagens, que se eu treinar com Mackenzie,
rapidamente o ringue virará um local apropriado para amassos quentes. A
mulher nua ao meu lado se ofende instantaneamente pelo comentário
zombeteiro de Dom, mas nenhum de nós tem propriedade para desmoralizá-
lo.
Porque eu mal posso esperar para ver a bunda deliciosa de Mackenzie
Lennon sendo agarrada pelo pano justo das roupas de academia.
Faltam exatos seis dias para o meu aniversário.
Eu não sou muito de comemorações, para falar a verdade. Porque a vida
inteira tive festas das mais chiques, com porcelanas que valem mais que o
salário da maioria da população. Vestiam-me como uma princesa, cheia de
presilhas, saltos curtos e maquiagem infantil. Era como se eu estivesse
montada, e a única parte que arrancavam de mim era a diversão, pois as festas
eram feitas exclusivamente para que minha mãe posasse ao meu lado
sorridente, vestindo as roupas mais caras, como se fosse uma progenitora
incrível por criar uma festa de criança extremamente chata e entediante. Isso
faz com que eu odeie comemorações extravagantes, logo, tudo que eu mais
queria era passar meus vinte anos ao lado daqueles que realmente importam
sem muito alarde.
O único que ainda tentava fazer meu dia um pouco melhor era meu pai,
sempre foi ele. Mesmo um tanto ausente, faz questão até hoje de mandar
mensagens entre uma reunião e outra para saber como estou. Howard Lennon
é caloroso, completamente diferente da pose de frio e insensível que prega na
empresa. Depois das festas, que beiravam a um show de horrores, ele vinha
até meu quarto, me dava banho, trocava minhas roupas por um pijama
confortável, fazia chocolate quente e trazia todas as sobras de guloseimas
para nós. Era simples, mas uma atenção dedicada apenas para mim no meu
dia, nos quais nós sentávamos e assistíamos a todos os meus desenhos
favoritos. Meu pai não tinha muito tempo para isso, eram conferências atrás
de conferências, reuniões em cima de reuniões, contudo sempre foi
perceptível o quanto todo o seu tempo livre era única e exclusivamente meu.
Ele e minha mãe, Lidia Lennon, são dois polos completamente opostos.
Enquanto um é quente, o outro é frio.
Sensível e insensível.
Gentil e Rude.
E assim vai. Minha progenitora nunca tentou ser uma mãe. Ao longo dos
anos, eu fui entendendo que nem toda mulher tem vocação para isso e que
Lidia não aceitou muito bem a maternidade, e isso refletiu em mim. Bom,
posso dizer que fui me acostumando aos poucos e entendendo que jamais
haveria uma reaproximação, que não seria como os filmes em que, de
repente, ela descobriria seu amor a mim. Na verdade, ouso até dizer que Lidia
Lennon me ama, mas ela não gosta de mim. Isso é suficiente para que ambas
só queiram saber se a outra está viva e bem.
Hoje é sexta-feira, e eu não irei correr no racha. Porque tenho um encontro!
Jamais pensei que estaria, de fato, separando uma roupa para sair
romanticamente mais tarde, ainda mais com alguém como Thomas. E para a
situação ficar ainda pior, a calça de ginástica abraça minhas pernas grudando
em meu corpo. Caminho ao lado de Nevaeh, contando toda a história de
como nos envolvemos, desde o primeiro beijo até os dias atuais, só deixando
de fora alguns detalhes mais sórdidos que minha amiga não é obrigada a
ouvir. Ela reflete sobre como a vida acontece de maneira inesperada, já que
no meu primeiro dia na Bolfok College, eu estava recebendo recomendações
para não me envolver com Thomas. No entanto, tanto Nev quanto eu
estamos, agora, a caminho de uma manhã repleta de exercícios físicos
justamente com os caras que juramos não nos envolvermos há meses.
A primeira visão que temos ao chegar à academia da faculdade são os
músculos das costas de Joshua Collins contraindo enquanto ele se movimenta
verticalmente, fazendo flexões na barra. Caminho pelo corredor e perscruto o
local através da vidraça da parte de musculação, me deparando com vários
caras do time, até mesmo Lewis está ali, com um peso envolta dos
tornozelos, que faz com que o músculo de sua panturrilha flexione quando ele
levanta a perna. Sua íris marrom choca com a minha e recebo um aceno
animado. Há muitos caras malhando, e o cheiro de suor é forte, mas não ao
ponto de incomodar. Eu poderia classificar o que se entranha pelas minhas
narinas como cheiro de homem.
Continuo andando pelo largo corredor, analisando a parede cheia de quadros
com medalhas e fotos de inúmeras vitórias do time. A luz forte do lugar
preenche meus olhos, fazendo com que eu os murche um pouco. Há salas de
pilates, de spinning, outros cômodos com tapetes de ioga, de dança, com
barras de ballet e espelhos por toda a parte. Desde que entrei na Bolfok
College, jamais tinha visitado esse lugar, agora tenho a percepção de que a
academia da universidade é bem equipada e grande, com espaço para todos
os tipos de atividades e pessoas.
Assim que chego à última sala, vejo um pequeno ringue de luta, um grande
tatame cobrindo todo o local, aparelhos amontoados no canto, que usam para
lutar como aparadores, balões, luvas e caneleiras. Em dois dos sacos de
pancada, Dominic e Thomas atiram golpes e mais golpes contra o cilindro
pendurado. O primeiro está de calça de moletom e livre de qualquer camisa,
exibindo seu tronco completamente desenhado, tanto que ouso dizer que não
há mais espaço para nenhuma outra tatuagem – mas ele sempre arruma uma
fresta. O segundo tem um elástico prendendo seus fios teimosos para trás,
ampliando a visão de seu rosto, veste um short de academia preto e uma
regata branca, que com certeza foi uma camisa de meia manga e Eckhoff
cortou. Consigo ter um vislumbre de seu tronco pela movimentação de seu
corpo coberto por uma camada fina e brilhante de suor, uma vez que seus
bíceps flexionam à medida que ele desfere socos no saco. Antes que eu babe
em sua expressão compenetrada composta pelas sobrancelhas franzidas e
lábios crispados, pigarreio, anunciando nossa presença.
— Estão atrasadas. — Thomas é quem fala nos fazendo lembrar-se de sua
alma um tanto ranzinza.
Ele agarra minha cintura enquanto pousa os lábios no topo da minha cabeça,
em um beijo terno. Não deixo de reparar o olhar que Dom e Nev trocam, —
antes de se cumprimentarem com um selinho— daqueles que poderiam nos
guardar em um potinho.
— Vocês que estão adiantados. — Ergo os ombros.
Ninguém se importa muito em conferir o relógio e reafirmar que, na verdade,
nós que estamos atrasadas. O ponteiro indica claramente que nove e meia é
muito diferente do horário marcado, havendo trinta minutos de atraso em que
posso dividir a culpa com Nevaeh. As duas tiveram dificuldade para sair da
cama tão cedo enquanto lá fora está um gelo. O sopro gélido e
desconfortável, como agulhas perfurando sua pele, dá o verdadeiro indício
que em breve o Outono dará lugar a um Inverno cortante. Os meninos não se
importam muito com a provocação e passam a atirar inúmeras
recomendações pré-luta. Thomas enfaixa minhas mãos com um tecido, que
descubro atender pelo nome de bandagem, e Dominic faz o mesmo com Nev.
Logo depois, eles discorrem uma gama de exercícios como aquecimento.
Correr durante oito minutos, vinte flexões e abdominais, uma coisa estranha
de correr, pular, fazer uma flexão e voltar a ficar de pé, além de outras
atividades ordinárias. Eu quis morrer antes mesmo de sequer começar a
correr.
Estou suando como uma porca. Inclusive, essa é uma expressão que eu nem
entendo muito bem, quer dizer, porcos suam? Enfim, não importa. O ponto é
que talvez essa ideia de exercícios tenha sido uma desculpa de Thomas para
me matar. Porque essa é a sensação que eu tenho, como se alguém estivesse
apertando meu pescoço, roubando todo o meu ar enquanto eu imploro por
misericórdia. Meu peito sobe e desce tão rápido que sinto um ardor em meu
pulmão, como se ele estivesse gritando para que eu pare de me exercitar.
Sinto essa dor, na altura das costelas, como um incômodo na boca do
estômago, e Dominic grita – como um verdadeiro mestre de artes marciais –
que isso acontece, pois não estou respirando direito. É óbvio que não, oras.
Quando penso que esse é só o aquecimento, meu corpo vai de encontro ao
tatame em um baque só. Não que eu esteja desmaiando ou, de fato, morrendo.
Só estou dando um migué, ou seja, dramatizando minha condição física na
esperança de me livrar do treino. Thomas sabe que estou atuando porque dá
um tapa no tatame e grita uma frase motivacional que só me dá mais vontade
de sumir.
O corpo que não vibra é o esqueleto que se arrasta.
Tenho certeza de que mando Thomas enfiar a frase em seu orifício anal, mas
ninguém liga muito porque Dominic continua espancando o saco, esperando
Nevaeh terminar suas abdominais. Cubro o bico da garrafa com meus lábios e
sinto o alívio me tomar assim que a água desce pela minha garganta,
arrancando o incômodo que se embrenhava nas minhas amígdalas. O moreno
joga um par de luvas em minha direção e eu as capto no ar, enfiando-as em
minhas mãos, assim como Nev.
— Fecha a guarda. — Dominic empurra meus cotovelos para grudar no corpo
e sobe minhas mãos em punho na altura do meu rosto. — Assim evita que
você tome porrada.
Sigo todas as instruções do meu amigo, que mesmo com os ombros mais
estreitos e corpo esguio, consegue se sair muito bem em uma briga. Ele me
ensina a dar o melhor jab, direto, cruzado, upper, gancho de esquerda e afim.
Aprendo alguns outros golpes que podem me ajudar na defesa pessoal e
meu treinador prossegue:
— Ao colocar as mãos em punho, mantenha sempre o dedão para fora. — Ele
segura meus pulsos. — Assim ao impacto do soco, você não quebra o dedão.
Porque se ele estiver para dentro, o machucado é garantido.
Afirmo em um menear de cabeça, enquanto tento manter minha base, com a
perna direita um pouco para trás e a esquerda apoiando meu corpo à frente,
garantindo meu equilíbrio. Dominic lança ordens com uma expressão
compenetrada, sobrancelhas franzidas e nariz levemente enrugado. Desvio
um pouco a atenção do que ele me fala assim que vejo Nev tomar um safanão
de Thomas por ter se distraído, babando em Dom. Engasgo com a risada e
prossigo seguindo seus conselhos.
— Agora é sua vez de atacar. — Dominic se posiciona. — Vamos Mack,
finja que eu sou o Tommy.
Solto um riso baixo pelo apelido que escorre em um tom de deboche pela
boca dele.
— Põe suas mãos para eu socar. — Agarro seus pulsos e os posiciono na
altura do rosto, para que eu possa atacá-lo. Lembro que meu antigo professor
de defesa pessoal fazia isso.
— Na rua, quando você precisar se defender, — ele começa rondando ao meu
redor, adotando um tom deveras sombrio — acha que seu oponente vai
levantar as mãos para que a Majestade soque?
Empertigo meu corpo em uma postura ereta assim que ouço a provocação.
— Estou aqui te ensinando como se defender na rua, e posso te garantir que
ninguém vai te dar moleza lá fora. — Dom aponta para a saída da sala com
rigidez, as mãos cobertas por uma luva que não cobre seus dedos.
Não hesito em começar a desferir socos em sua armação de defesa,
respeitando todas as regras impostas para que meus movimentos sejam os
mais corretos possíveis. Dominic não se esquiva, pelo contrário, deixa que eu
o atinja com meus golpes leigos, porém bem dados. Encaro Nev e Thomas de
esguelha e a vejo fazendo o mesmo que eu, atacando-o de acordo com tudo
que nos foi ensinado em nossa primeira aula. Quando a saliva desce por
minha garganta como vidro, decido parar. O cansaço toma conta de cada
parte do meu corpo e todos concordam que seja melhor continuar depois, na
próxima semana se possível.
Tomo banho no vestiário da academia enquanto tento a convencer, de
brincadeira, que sua relação com Dominic está bem séria. O diálogo é
marcado por amenidades e gargalhadas que ecoam pela acústica do banheiro.
Thomas precisa resolver pendências na oficina, enquanto Dom vai montar
alguns Demos para a rádio da cidade e Nev vai correr para fazer a parte dela
em um trabalho do curso. Todos têm seus afazeres, então não poderemos
almoçar juntos, por isso me contento em estudar mais um pouco no
alojamento e comer sozinha. Enquanto caminho até meu quarto, analiso
algumas mensagens de meu pai e minha tia, contando sobre sua temporada
como modelo na Itália, e marcações aleatórias no Instagram.
Assim que piso no último degrau que me deixa no quinto andar do edifício,
tenho a percepção de que ficarei dolorida amanhã por toda atividade física de
hoje. Respiro fundo, capturando a maior quantidade de ar que consigo depois
de cinco lances de escadas e avisto uma figura um tanto peculiar para o
cenário que se encontra. Howard Lennon está encostado na porta do 505
brilhante, aguardando a minha chegada enquanto perscruta a tela brilhante de
seu celular de última geração. O brilho de seu telefone está sempre no
máximo, incomodando minhas vistas o suficiente para que eu reclamasse
com frequência quando estávamos convivendo sob o mesmo teto. Ele veste
um conjunto social monocromático preto, e segura sua maleta de trabalho
cravejada com nosso sobrenome. É verdadeiramente surpreendente que o
homem de negócios tenha arrumado um tempo para me ver pessoalmente.
Será que cairá um temporal em Bolfok Town dado esse evento raro?
— Pai? — Dou um ou dois passos vacilantes até ele, segurando firmemente a
alça da bolsa de academia em meu ombro.
— Maze! — Sua expressão se ilumina a me ver, e ele parece conferir cada
canto do meu corpo, como se estivesse certificando de que estou bem. — Que
saudade, minha pequena.
A voz aveludada faz com que um sorriso rasgue em meu rosto, em uma
resposta instantânea ao conforto de ter meu pai tão perto. Seus braços se
abrem para que eu me encaixe no aperto de urso que me envolve, e inspiro o
aroma conhecido de menta e perfume da Burberry, enquanto meu pai me
pressiona mais ainda contra seu corpo e permito-me fechar os olhos,
aproveitando o aconchego do carinho paterno. Senti tanta saudade.
Ao me afastar, apoio as mãos em seus bíceps e confiro de perto as linhas de
expressão que apenas a vasta experiência de um homem de meia idade pode
trazer. Os olhos quase transparentes, facilmente confundíveis com orbes de
vidro de tão cinzas que são. As maçãs do rosto meio coradas pelo frio em
conjunto com as sardas, não herdadas por mim. Poucas pessoas diriam que
somos parentes, porém há uma única semelhança que dispensa especulações
e ela é uma pinta de nascença no canto do meu pescoço, exatamente igual a
dele.
— Gostei do cabelo. — Aponto para o corte militar em sua cabeça que só
expõe os curtos fios brancos que escapam de seu couro cabeludo.
Meu pai ficou grisalho rápido demais, sendo um homem que ao chegar aos
cinquenta anos já tinha seu cabelo completamente branco. Diferentemente de
minha mãe que, quatro anos mais nova que ele, ainda tem as mechas
castanhas perfeitas, sem sinal de fios brancos, dispensando qualquer tintura
que esconda a velhice inevitável.
— Mesmo? — Ele arrasta a palma pela careca que o deixa incrivelmente
mais jovem e abre um sorriso charmoso. — Sua mãe odiou.
— Então, o objetivo foi concluído com sucesso.
Ambos caímos na risada, tendo a lembrança que nosso complô de
implicância contra Lidia Lennon sempre foi divertido demais para nós dois.
— O que veio fazer aqui, afinal? — Giro a maçaneta e o convido para
conhecer meu quarto, um pouco mais tarde do que eu queria.
— Pensei em te levar para almoçar, como nos velhos tempos. — Meu pai
esgueira seu olhar por cada canto do alojamento, desde a arrumação
meticulosa de Nev até a manga do meu casaco que escapa da fresta do
armário, entregando minha falta de organização.
Penso em dizer que é muito tarde para pensar no passado, ou sequer tentar
resgatar algo de uma época boa. Houve um tempo, na família Lennon, em
que éramos eu e papai contra o mundo. Ele me levava para almoçar, em todas
as minhas atividades extracurriculares, nas consultas médicas padrão da
infância, nas festas de criança e até mesmo para a escola. Enquanto mamãe
estava ocupada demais com sua grife, que sempre exigiu muito dela. Lidia
Lennon me teve com vinte e seis anos, e apesar de não ser uma idade
precoce, muitos desejos foram retirados dela, como um furto que a
maternidade trouxe. Eu fui um roubo de sonhos, o marco do término de sua
carreira como modelo e o início da L.L fashion. Foi difícil por muito tempo,
mas eu sempre tive meu pai e isso era suficiente para mim. Até que a empresa
tomasse o tempo dele, sugando-o como uma areia movediça e arrancando
todo o tempo que tínhamos juntos. No entanto, ali, vendo-o admirar o lugar
que moro, não tenho vontade de ser amarga e recusar seu convite. Na
verdade, quero aceitar e é isso que faço.
— Pode ser. — Me limito a dar de ombros e pedir licença para trocar de
roupa.
Já pronta, caminhando até o seu carro, escutando uma leva de elogios quanto
ao lugar simples que vivo. Ele se lamenta, porque sabe que eu poderia estar
em um grande apartamento no bairro mais legal de Bolfok Town, ou em um
alojamento individual. Mas eu não permito que ele continue se desculpando,
pois no final de tudo, não morar aqui me impediria de conviver com a ilustre
Nevaeh Williams.
Papai está acompanhado de sua Maserati MC20 branca e o suspiro de
saudade me escapa involuntariamente. Amo aquele carro, totalmente
esportivo, o teto estilo flutuante, o controle de funções pelo celular, Wi-Fi
integrado e disponibilidade da assistente pessoal Alexa. O novo V6 biturbo
tem 630cv de potência e 74,4 kgfm de torque, prometendo chegar aos
100km/h em menos de 2,9 segundos. Eu poderia correr com essa máquina.
Adentro o carro e inspiro o aroma de menta que infesta o ambiente,
analisando o painel chique e toda a decoração de alguém que senti tanta
saudade. Howard está tagarelando sobre uma nova tecnologia criada por sua
empresa que poderia ser acoplada no automóvel, mas confesso que meus
pensamentos estão bem longe. Esse é o momento em que as paranoias
começam. Eu me pergunto os motivos de ter meu pai aqui, depois de quase
dois meses morando longe. Poderia ser apenas um almoço inocente?
Depois de cruzar o limite entre Bolfok Town e Valley, avisto um restaurante
requintado ao lado da prefeitura. Meu pai prefere uma das mesas que ocupa a
metade da calçada, sendo separada por uma cerca de madeira branca
infestada de pequenas flores. O que é irônico porque estamos no outono.
Sentamo-nos embaixo de um dos guarda-sóis que tampa o lugar
graciosamente, ainda que Bolfok Valley não receba a visita do sol tantas
vezes durante o ano. O guardanapo de pano enrolado e envolto por uma joia
dourada reforça a ideia de que estamos em um restaurante especialmente
chique. Howard compartilha que pesquisou o lugar e que as vigas de madeira
clara, em conjunto com as flores tropicais, entregam que seremos servidos de
uma culinária marítima. Tudo aqui grita frutos do mar, e ao analisar o
logotipo cravejado por um tritão e estrela do mar, recebo a confirmação que
preciso.
— Sei que você acha que tenho algum motivo especial para ter vindo almoçar
contigo. — Meu pai inicia, após ter pedido uma tigela de polvo de entrada e
um vinho branco. — E eu me culpo todos os dias por você pensar que preciso
de um motivo para vir ver minha filha.
— Pai... — começo, e em um gesto elegante, ele ergue a palma para que eu o
deixe falar.
— Eu preciso dizer isso, filha. — Ele aproveita a taça com água que acabou
de pousar sobre nossa mesa e degusta alguns bons goles. — Deitar a cabeça
no travesseiro à noite é muito difícil sabendo que deixei minha maior parceira
de vida sozinha em uma cidade a muitas milhas de Dilshad Town. Eu não
pude nem te trazer no seu primeiro dia, te acompanhar como a maioria dos
pais e deixar milhares de recomendações sobre vivência, festas e garotos.
Além disso, perdi até mesmo suas ligações, só entrando em contato com você
um dia depois. Maze, jamais me perdoarei por isso. Por ter demorado dois
meses até vir vê-la, pelas nossas conversas terem sido limitadas há algumas
horas na linha telefônica e por todo o resto. Eu errei muito contigo durante as
últimas oito semanas, e preciso do seu perdão. Sei que levará tempo, que a
minha ausência sempre ficará cravada na sua mente como um buraco depois
que nossa dupla dinâmica se separou. Quero dizer que a culpa é do meu
trabalho, mas não só dele, e estou aqui assumindo parte dela também.
Espero alguns segundos até ter certeza de que ele realmente terminou e de
que poderei processar tudo que ouvi. Quando a empresa de papai começou a
alavancar seus negócios, a presença dele ou de alguém de confiança passou a
ser exigida mais que o normal. Ele tem essa mania de assumir o trabalho dos
outros e fazer mais do que um cargo de CEO exige, porque Howard tem o
perfeccionismo dos Lennon e acredita fielmente que ninguém fará um
trabalho tão bom quanto o dele e sempre revisará tudo feito pelos outros. Não
é fácil ser assim, e eu entendo, porque parte desses genes veio para mim, uma
parcela da minha personalidade refletida até demais no meu dia a dia. Está
certo de que sempre me lembrarei dos seus tempos ausentes, mas também é
óbvio demais que esse momento, o pedido de perdão, pesa muito mais no
meu coração. Papai é um ser humano e errou, como qualquer outro, e está em
busca de consertar esse erro. E isso é o suficiente para que um pequeno
sorriso se esgueire em meu rosto.
— Eu te perdôo — respondo, capturando com um garfo parte do polvo que
veio de entrada. — Mas espero que você saiba que esse perdão precisa vir do
seu interior antes de tudo. Howard Lennon, você precisa se perdoar.
Transforme toda essa culpa de alguns anos de ausência em força de vontade
para recuperar o tempo perdido. Não morreremos amanhã ou daqui poucos
dias, espero eu, então acredito que teremos momentos perfeitos
ressignificando nossa dupla dinâmica. Longe ou perto, sempre seremos eu e
você contra o mundo.
Meu pai passa longe de qualquer CEO frio ou calculista, na verdade, ele é
bem sensível, quase tanto quanto Thomas. O que me faz rir levemente ao ver
as lágrimas transbordando pelos seus olhos quando finalmente entende que
aceito suas desculpas, e que não deixei de amá-lo porque fui deixada de lado
algumas vezes em prol de seu trabalho. Não retiro sua culpa, muito menos
justifico qualquer erro, apenas retiro o peso que estava sobre meus ombros. O
perdão pode ser um alívio na maior parte das ocasiões. Estico os braços e
seco algumas de suas lágrimas, depois passo a mão na aspereza de seus fios
curtos devido ao corte militar. Meu pai fecha os olhos com o carinho, e ergo
o corpo para deixar um beijo em sua careca.
— Você é e sempre vai ser o maior amor da minha vida, pequena Maze. —
Sorrio com a nostalgia da frase, com a familiaridade de ter escutado isso por
muitas vezes na vida.
— E você sempre será o meu amor infinito, daqueles que eu sei onde
começa, mas que levarei comigo até a minha morte. — Papai sorri de volta e
torce meu nariz em uma brincadeira velha entre nós.
Gosto disso, de como estamos restaurando a melhor relação que já tive em
minha vida. Papai soube do meu primeiro beijo, da minha primeira
menstruação, do meu interesse inicial por garotos, e me acompanhava nos
passeios ao shopping depois de nosso almoço habitual, além de apoiar meu
aprendizado de carros. O primeiro a saber quando perdi a virgindade e o que
me deu colo por causa de um coração partido. Não sei bem se amei Rafe, mas
é certo que me senti um lixo depois de tudo. E era Howard Lennon quem
estava lá, ao meu lado, preparando chocolates quentes e dizendo que Rafe
nunca seria merecedor da melhor garota que papai já conheceu. Só depois de
atingir os dezenove anos que percebi que, a vida inteira, meu pai sempre
tentou compensar de alguma forma a rejeição cristalina de mamãe, ainda que
morando sob o mesmo teto, ele tentou ser pai e mãe ao mesmo tempo. E isso
levou para o buraco o casamento dele, tornando o matrimônio cada vez mais
frio e distante. Talvez a culpada fosse eu, por mais que minha antiga
terapeuta dissesse com todas as letras que isso só diz respeito a eles dois.
— Me conte as novidades. — Papai solta assim que nossa salada de lagostas
chega, o que me motiva a começar a tagarelar.
Conto sobre a faculdade, o tanto que gosto do curso e que faço questão de
estudar muito. Atualizo-o sobre minhas amizades, deixando bem claro de que
não me sinto sozinha mais. Digo que Nevaeh Williams é a mulher mais
incrível que já conheci, assim como Dominic e Andrew, que seguram uma
carranca feia que logo derrete ao lidar comigo e com Nev. Falo sobre as
festas de fraternidade, os jogos universitários, o trabalho do grêmio
estudantil, e cito Thomas por alto. Deixo de fora que estamos nos envolvendo
e ignoro as batidas aceleradas em meu coração apenas pela menção dele em
pensamento. Também digo que tive o desprazer de rever Rafe, mas adiciono
que consegui sair por cima com um xingamento nada elegante. Conto que o
grande evento da cidade pacata são os rachas de sexta, contudo mantenho em
segredo minhas participações nas corridas.
— E os garotos? — Ao ver que franzo o cenho, meu pai reformula. — Sei
que vivem te rondando como abutres, o maior preço que pago por ter feito
uma filha tão incrível. Não se envolveu com ninguém?
Inspiro e expiro com pesar.
— Thomas. — Pronuncio rapidamente e engulo mais uma porção de salada.
— Estamos em uma relação aí.
Abano com a mão, como quem diz que nosso envolvimento não é nada
demais.
— Mas você não acabou de dizer que vocês dois se odeiam? — Murcho meu
semblante, pensando em como explicar isso sem que pareça complicado.
— Pois é. — Rodo o indicador na borda da taça. — Acho que o que mais
odeio é justamente o fato de não conseguir odiá-lo.
Meu pai ri e aguarda. A paciência é outra virtude que não herdei dele.
— Resumidamente, tivemos que trabalhar juntos organizando as festas e juro
que, de primeira, eu o odiei, como se eu pudesse enxergar Rafe nele o tempo
todo. Nossa primeira interação foi ele me jogando água em um frio do cão.
Além disso, Thomas é arrogante, prepotente, egocêntrico e cabeça dura.
Implica tanto comigo que às vezes realmente cogito matá-lo. — Howard ri e
mantém sua atenção totalmente em mim. — Mas papai, quando estou com
ele, me sinto extremamente leve, como um sopro de ânimo depois de um dia
cansativo. E sinto medo, por que como um envolvimento tão disfuncional
pode ser tão fácil e parecer tão certo?
— Um dia você vai entender. Acho que não cabe a mim te explicar agora
porque se eu falar de amor você sairá correndo. — Devolvo um pouco do
vinho que bebo em uma cuspida discreta assim que ouço a palavra. — O que
eu acho é que você teve algo muito difícil com Rafe, e pesado, que sugava
suas energias e te feriu de várias formas possíveis. Só se lembre de que esses
machucados trazem cicatrizes que irão refletir em outros aspectos da sua vida
amorosa. Agora, tendo algo tão diferente com Thomas, minha pequena está
com medo. É normal, filha.
Balanço a cabeça, de cima para baixo, confirmando que entendi o que ele
quis dizer. Mas antes que eu diga algo, ele se pronuncia novamente.
— Saiba que independentemente de tudo, você sempre terá o colo do seu pai.
— Ergo o canto de meus lábios e meu peito infla de felicidade, com a
sensação de que finalmente tenho papai de volta. — E será que vou poder
conhecer esse Thomas?
Nego ferozmente.
— De jeito nenhum, tipo, não agora. — Me embolo com as palavras como
uma criança que recém aprendeu a falar. — Iremos ao nosso primeiro
encontro hoje, é tudo muito recente.
— Filha, a quem você quer enganar? — Torço o nariz em desgosto pelo
deboche. — Hoje é o primeiro encontro romântico, mas vocês conviveram
muito durante dois meses. Estão envolvidos nessa até o pescoço, vocês até
mesmo... — papai hesita, crispa os lábios e diminui os olhos como se
estivesse com dor de barriga — ... transam.
Ignoro todas as aulas de etiqueta ao deixar que uma gargalhada estrondosa
escape por minha garganta, notando que papai quase morreu apenas para
dizer que a pequena Maze faz sexo.
— A gente deveria mudar de assunto nesse instante. — Papai ofega. — O
mais rápido possível, depois falamos sobre conhecer esse meliante.
Engasgo com outra risada e me ajeito na cadeira.
— Me conte sobre as fofocas da Alta Sociedade.
Isso parece satisfazê-lo, já que ele se dispõe a contar descobertas de traições,
crimes de desvio de dinheiro, brigas aleatórias entre as moças que almoçam –
mulheres que não trabalham, e suas maiores ocupações são os almoços
constantes com as amigas. E me sinto verdadeiramente inserida em um
episódio de The Real Housewives. Chego ao meu alojamento com o peito
preenchido de felicidade pelo momento com meu pai, e é claro, com o
estômago estufado pelo tanto de comida que ingeri. O assunto Lidia Lennon
foi evitado com êxito durante o tempo no restaurante, porque nenhum de nós
queria estragar o momento bom com um tema tão complicado. Ambos
sabemos que minha mãe é uma mulher fria e um tanto durona, e que nossa
relação sempre será distante. Eu tenho a minha vida e ela a dela. Só espero
que essa mágoa um dia passe.
Desvio meus pensamentos assim que bato os olhos no horário. Se não quero
me atrasar para o encontro, melhor começar a escolher a roupa desde já – há
quem diga que demoro muito apenas decidindo se usarei Gucci, Prada ou
Valentino. Recebo outra mensagem de papai. É uma foto dele fazendo o
símbolo de paz e amor no hall da mansão, dizendo que chegou bem e pedindo
que eu use proteção mais tarde. Outra risada escapa por entre meus lábios e
minhas bochechas doem. Sei que isso é um sinal de que estou plenamente
feliz porque tenho tudo que preciso, e inesperadamente, isso inclui Thomas.
Estou definitivamente pronta. Sem pensar muito nas possibilidades de
a noite ser um desastre ou de qualquer queda em um precipício. É um
daqueles momentos em que não queremos pensar em nada e minha mente
grita exclusivamente por férias nesse exato momento. Ela quer um feriado de
todas as paranoias e do bicho papão gigante que traz todos os pensamentos
ruins que fazem com que eu me autossabote. Para hoje, uso um vestido rosa
de alças finas que se cruzam nas minhas costas, com um pano meio
esvoaçante, mais longo atrás do que na frente, em que o tecido acaba a um
palmo do meu joelho e o decote vai até o término dos meus seios. É um
Valentino, gosto dele. Nos pés, sandálias douradas agarram meus dedos com
tiras entrelaçadas. Não fiz nada no cabelo, deixo que algumas ondas caiam
livres pelos meus ombros, completando o ar natural que a maquiagem leve
me dá. Sinto-me bonita, verdadeiramente maravilhosa. Em um daqueles dias
em que não cansamos de admirarmo-nos no espelho, fazendo milhares de
poses e caretas que não interferem na autoestima nas alturas.
Analiso-me, pela última vez, e sorrio. Gosto do que vejo, honestamente.
Empurro para o fundo do estômago qualquer receio de me jogar em uma
noite romântica e açucarada, e coloco os últimos acessórios. Uma corrente
fina com um pingente brilhante que ganhei de papai aos dezesseis anos e
brincos que combinam com o colar. Ocupo os dedos esguios com anéis em
uma combinação que vi no Pinterest e, por fim, ouço batidas leves na porta.
Pelo toque na madeira maciça, sei que é Thomas – acabei reconhecendo das
milhares de vezes que ele já veio até aqui dentro desses dois meses. Os
respingos da espirrada do meu perfume favorito atingem minha pele e me
vejo pronta para enfrentar um restaurante requintado escolhido a dedo por
ele. Mal posso esperar para me deliciar com algum prato digno do que estou
acostumada.
— Boa noite. — Thomas pronuncia assim que escancaro a porta. — É aqui
que mora a mulher mais linda do Campus?
Prendo o riso, e permito que meus olhos perscrutem desde suas botas de
combate, passando pela calça preta, até a blusa social por baixo da habitual
jaqueta de couro igualmente preta, com dois dos botões abertos, me dando o
vislumbre de seu peitoral. Os cabelos continuam desgrenhados, e os olhos
ainda portam um azul intenso, mas é visível que Thomas está um tanto mais
arrumado hoje. E está insanamente delicioso.
— Do Campus? — Desço o canto dos lábios, em um semblante desgostoso.
— Acho que do mundo inteiro — responde, e dou as costas para que ele não
veja o sorriso que estampa meu rosto.
— Aí você exagerou. — Pego uma pequena bolsa, que Thomas diz não servir
para guardar nada de significativo, e enlaço no ombro. — Chute um arbusto e
surgirão pelo menos umas quatro Mackenzie.
— Só quatro? — Ele entra na brincadeira. — Está sendo boazinha. Eu diria
que surgem umas dez.
Levo a mão ao peito, como se estivesse afetada, arregalando os olhos e
despencando um pouco o queixo.
— Cada pessoa tem um tipo de beleza — inicia, ao passo que me acompanha
pelos degraus que nos levam ao térreo. — A sua é a minha segunda favorita.
— De quem é a primeira? — indago por pura curiosidade.
— Andrew.
Analiso o semblante sério e abro um sorriso contido.
— Mas e Dominic? Achei que tivessem algo especial. — Jogo parte do
cabelo para trás dos ombros.
— A pessoa com quem tem algo será a mais linda do mundo para você, mas
isso não inviabiliza o resto das belezas que existem no planeta. — Thomas
proclama em uma pose de quem sabe muito.
— Concordo. — Ponho a mão no queixo, pensativa. — Andrew é mesmo um
dos homens mais lindos que já vi em toda a minha vida.
Ambos entramos em um silêncio confortável, Andrew é, de fato,
incrivelmente lindo, e não há quem discorde. O cabelo com um corte
moderno, rente nas laterais e os cachos sendo exibidos no topo, em um
pequeno topete. A pele preta contrasta com os dentes brancos e alinhados, as
bochechas magras e lábios cheios, as covinhas que afundam em seu rosto
quando ele sorri, ou pelos olhos cor de jabuticaba. A luz de Andrew vem pelo
comportamento medicinal que ele tem, animando qualquer ambiente,
incentivando e ajudando qualquer pessoa com um sorriso amistoso no rosto.
As tatuagens, anéis, jaquetas de couro e sua moto só são acessórios que o
deixam ainda mais charmoso.
— Vocês formam um bom trio — digo, quando já estou acomodada em seu
Eagle Speedster, com o teto abaixado dessa vez.
— Três homens lindos, você quer dizer? — pergunta, o sorriso ladino me
contagiando a erguer o canto dos lábios.
Giro os olhos e jogo o cabelo para trás.
— Três homens incríveis, eu quero dizer.
Assisto o sorriso se esgueirar pelo rosto de Thomas, afundando a covinha em
uma das bochechas. Os olhos pequeninos pelas maçãs do rosto que se
elevam, no momento em que seus lábios se curvam para cima. Depois, um
silêncio confortável ocupa cada canto do carro, porque não há muito que
dizer depois de uma clara demonstração de afeto àqueles três ridículos, que
ocupam um lugar maior do que o esperado no meu coração. Thomas é quem
rompe a quietude do interior do automóvel, iniciando uma discussão sobre o
lugar ao qual estamos indo. Ele, obviamente, quer fazer surpresa. Só atesta
que enfrentaremos entorno de uma hora de viagem, até uma cidade vizinha,
maior que Bolfok Town, Saint Brunnet, Dilshad e Oroland. Então, ponho
meus neurônios para funcionar, tentando me localizar em um mapa
imaginário para saber aonde iremos.
— Espera. — Ergo a palma da mão. — Vamos enfrentar uma hora de viagem
apenas para jantar?
— Sério, Mack? — Thomas arqueia as sobrancelhas finas, ao passo que
franzo o cenho em confusão. — Acha mesmo que no nosso primeiro encontro
te levarei para jantar em qualquer restaurante refinado e sem graça?
Não é assim que encontros funcionam?
Existe um casal que decide passar um tempo juntos romanticamente, então,
eles escolhem jantar juntos em um restaurante legal. Simples assim.
— Não é o que iremos fazer? — indago novamente, só para ter certeza de
que, talvez, mas só talvez, eu tenha me arrumado demais para a ocasião.
— Que mulher de pouca fé. — É a única coisa que Thomas responde e, no
fundo, sei que ele não me contará mais nada a partir daqui.
Acabamos de cruzar o limite de Bolfok Town, e não estamos indo ao Sul, em
direção a Bolfok Valley. Muito menos ao Norte, para Dilshad ou Nordeste,
para Oroland. Segundo a placa verde e gasta, o carro acelera direto ao
Noroeste, e rapidamente, faço uma lista mental de cidades que poderíamos ir.
Mas, infelizmente, geografia não é meu forte e nada me vem à mente.
Com o objetivo de fugir das implicâncias habituais dele, decido criar uma
playlist, a Playlist para não ter que ouvir a voz de Thomas. Ela foi
carinhosamente batizada dessa forma. Ouço Crazy Train, de Ozzy Osbourne
iniciar nos alto falantes do carro, e aumento o tom de voz ao acompanhar o
vocalista nos acordes lentos da canção.
— Do jeito que você canta, o Osbourne vai puxar seu pé à noite. — Thomas
acha graça da própria piada, porque se desmancha em uma gargalhada.
— Sabe que Ozzy Osbourne não morreu, né?
A tolice de Thomas me assusta e às vezese fico me perguntando como essa
esperteza pode ser tão fragmentada. De um jeito que ele consegue ser sagaz
em tantos aspectos, e muito ignorante em outros. Mas, acabo relevando,
porque talvez, se fosse algo sobre uma diva pop, eu também não saberia. E é
aí que um estalo me toma: estou começando a defender Eckhoff em minha
própria mente. As coisas definitivamente estão indo por um caminho muito
perigoso.
— Jura? — Seu semblante marcado pelas sobrancelhas franzidas demonstra
que ele está falando sério. — Ele é o que? O Highlander?
A menção ao guerreiro imortal me dá vontade de rir.
— Thomas — murmuro, estrangulando a risada que anseia escapulir de
minha boca. — Ele não é tão velho assim.
O assunto morre assim que a voz limpa de Cindy Lauper soa no som,
cantando Girls Just Wanna Have Fun. Nessa, Thomas me acompanha na
cantoria e dança desengonçada. Seu olhar continua firme na estrada, mas seu
corpo remexe de um lado para o outro, como se houvesse formigas em sua
bunda. Abafo outra risada, e me empertigo ao notar que estamos adentrando
Altoona, uma cidade grande marcada por construções verticais e arranha-
céus. A urbe faz parte do Estado de New Hisinfield e está dentro do condado
de Eastlake, o mesmo que abriga Bolfok Town e várias outras cidades.
Explicando de forma rasa, os Estados Unidos possuem 50 estados, três mil e
alguma coisa de condados, contando com Louisiana e Alasca, cujas divisões
não são nomeadas de condados, mas a ideia é a mesma, e uma extensa
quantidade de cidades, passando o número de trinta mil. Eu já tinha vindo
aqui, porém a imensidão desse lugar me deixa longe de saber aonde
exatamente iremos.
— Estamos quase chegando. — É a sua primeira fala depois de muitos
minutos de viagem.
Não demora muito até que Thomas suba pelo acostamento, em uma calçada
um tanto agitada pelo vai e vem de pessoas. Parece uma rua especialmente
boêmia, com vários bares, restaurantes e lanchonetes, e consigo avistar até
mesmo a presença de uma boate. Assim que o carro é estacionado, abaixo o
espelho embutido no quebra-sol e dou uma última conferida na minha
aparência. A maquiagem permanece intocável, assim como meu cabelo.
Antes de sair do carro, ajeito as alças do vestido e agradeço mentalmente pelo
clima de Altoona ser um pouco mais agradável.
A brisa acolhedora da cidade me brinda, chicoteando levemente meus
cabelos. A saia meio esvoaçante do vestido dança, como se estivesse me
puxando para trás, expondo ainda mais minha perna e atraindo o olhar nada
puritano de Thomas. Ele ergue a mão para mim, convidando que eu entrelace
meus dedos nos seus, encaixando nossas palmas. O contato me faz suspirar,
porque sinto quase que instantaneamente uma eletricidade percorrer meu
corpo.
— Lhe apresento, senhorita Lennon. — Ele me vira para um estabelecimento.
— O Flashback-on.
Não sei definir muito bem se estou diante de um pub, lanchonete ou boate.
As cores vibrantes me confundem. Uma mistura de roxo, azul metálico e rosa
choque. Há luzes de LED decorando a entrada exclusiva demarcada por tiras
vermelho sangue. O letreiro é quase um inimigo para aqueles sensíveis a
luzes fortes, porque as lâmpadas ofuscam qualquer sombra perto do local.
Thomas diz que estamos em uma espécie de bar restaurante, que serve batatas
fritas e hambúrgueres famosos, nomeados por celebridades das décadas
passadas. Eckhoff explica que, a cada semana, o estabelecimento escolhe
uma década para nos brindar com os maiores sucessos musicais da época, e
informa que hoje é a noite dos anos 80. Nem preciso dizer que quase pulo
sobre os pés de tanta animação. A euforia me toma assim que me dou conta
de que nunca, em vida, estive em um bar parecido.
— Tinha que ter me avisado para virmos a caráter — brado, demonstrando
irritação por não ter preparado um look digno das passarelas de quarenta anos
atrás.
— Quis fazer surpresa, desculpa. — Thomas encolhe os ombros.
— Como descobriu esse lugar? — Apoio as palmas em cada lado do seu
ombro, e pouso os lábios nos seus em um beijo casto.
— Pesquisei um pouco. — É o suficiente para um sorriso rasgar em meu
rosto.
A ideia de um Thomas Eckhoff pesquisando lugares que eu possivelmente
gostaria enche meu peito de felicidade. Porque é de se admirar que ele tenha
tomado um tempo considerável em sua rotina abarrotada para achar esse
lugar, a uma hora de distância de Bolfok Town. O jantar, pré-fixado na minha
mente como a ideia tradicional de um encontro, cai por terra, como se nada
pudesse ser páreo a isso. Impulsiono meus braços até que eles estejam
circulando o pescoço de Thomas, enquanto chocoo corpo ao dele em um
abraço desengonçado, de agradecimento genuíno. Há muito mais aqui do que
um simples sentimento de gratidão, já que o que sinto é mais forte, poderoso,
e vibra em meu coração, fazendo-o acelerar as batidas ao passo que o sangue
correndo em minhas veias parece ferver.
— Obrigada por isso — agradeço, e Thomas abana a mão, como se dissesse
que não foi nada.
Adentrar o Flashback-on me deixa ainda mais encantada. O espaço é amplo,
com um chão quadriculado em branco e preto que demarca a pista de dança,
assim como há um globo brilhante pendurado no teto, reafirmando o ar de
discoteca. No canto direito, tenho o vislumbre de uma chapelaria, infestada
de casacos e cachecóis, mesmo que hoje não esteja tão frio. Thomas pousa a
mão na minha lombar, me guiando para o interior do local. Há mesas e
bancos altos que simulam um cubo mágico e uma grande bancada que abriga
alguns baristas, fazendo inúmeros drinks coloridos. Apesar de não ter vivido
na década de 80, o jogo de luzes coloridas, os cartazes de filmes como Dirty
Dancing e De volta para o futuro, e os discos de vinil pendurados de astros
da época me fazem ter a impressão de que verdadeiramente voltei no tempo.
Para o descanso daqueles que já dançaram demais, há almofadas e puffs do
Pac Man no chão. Mais à frente, percebo a existência de um palco modesto já
infestado de instrumentos. Algumas garçonetes serpenteiam pelo local em
cima de patins de quatro rodas, vestindo roupas de ginástica composta por
meia calça rosa neon e body metálico por cima.
Fico boquiaberta com o capricho de seguir as músicas, roupas e decorações
da época, principalmente pela a mistura de cores fortes que é um marco da
década. Uma das garçonetes envolve meu pulso e o de Thomas com pulseiras
neon, que brilham no escuro, e suja nossas bochechas com uma listra de tinta
neon rosa.
— Sejam muito bem-vindos a década de oitenta! — Ela saúda animada, e
levanta um cardápio colorido. — Meu nome é Ginny e atenderei ao casal essa
noite. Saibam que temos as melhores combinações de lanche. Vocês também
podem pedir músicas ao DJ e gravarem esse momento na nossa cabine de
fotos. Aproveitem sua viagem no tempo, e qualquer coisa é só me chamar.
Sua fala é muito bem ensaiada e é discorrida o tempo todo com um grande
sorriso no rosto. É como se todos os funcionários amassem trabalhar aqui.
Agradecemos a garçonete e ocupamos uma mesa perto do palco. Perscruto o
local com os olhos e percebo que a maioria dos clientes leva a sério essa ideia
de imergir na década e vestir-se a caráter. Thomas até passa um pouco
despercebido, por causa da jaqueta de couro e as bochechas em neon, mas
garanto que meu vestido esvoaçante e chique não combina nada com a moda
antiga.
— Ah. — A garçonete ruiva, com um penteado antigo, parece se recordar. —
Teremos um show daqui a pouco, tributo aos astros do Rock dos anos 80.
Meus olhos voam até Thomas, e um sorriso de pura empolgação ocupa meu
rosto. Quero dizer que esse já é o melhor encontro da minha vida, mesmo que
minha expectativa de jantar em um bom lugar tenha caído por terra. Quando
os primeiros acordes de Dancing Queen iniciam, pulo do banco alto colorido
e puxo meu acompanhante pela mão. Só interrompo as passadas largas
quando nos posiciono no meio da pista. Ergo os braços e balanço os quadris e
Eckhoff me acompanha, e ouso dizer que ele se sai melhor que eu nessa
dança. A empolgação impulsiona que eu flexione os joelhos e dê pequenos
pulos no lugar.
Thomas troca o "Jovem e doce" por "Jovem e azeda", assim como o
dezessete por "only nineteen", a minha idade. Ele entrelaça nossos dedos,
ergue meu braço para me girar no lugar e puxa meu corpo pela cintura, ao
encontro do seu. Balançamos-nos meio fora do ritmo, tentando acompanhar
ABBA a todo custo. Acho que nunca sorri tanto em toda a minha vida,
sentindo a quentura do tronco dele pressionando o meu, grudando sua íris
intensa na minha e me fazendo viajar, por uns instantes, na imensidão delas.
O próximo sucesso dos anos oitenta que irrompe pelos alto falantes é La
Bamba, que faz os quadris de Thomas remexer, rebolando como um
verdadeiro dançarino. O ritmo é animado e o fato de estarmos longe de casa
faz com que um sentimento de liberdade nos tome, como se pudéssemos
ousar qualquer passo desengonçado agora mesmo.
Assim que a primeira gota de suor escorre da minha nuca até a base da
coluna, decido voltar a mesa. Acomodo-me no banco alto com Thomas na
frente, e optamos por fazer os pedidos. Ele pede por um milk-shake sugerido
pelo restaurante, que atende por 80s vibes. E eu me contento com um de
baunilha. Peço à garçonete um combo David Bowie, que consiste em
hambúrguer com uma mistura de três queijos e batatas fritas com bacon.
Thomas decide por um nomeado de Madona, um hambúrguer enorme com
inúmeros condimentos e cebolas fritas, além de batatas iguais as minhas.
Antes que a gente entre em outra discussão sobre qual lanche é melhor, One
Way or Another começa a tocar.
— Uh. — Dou um sobressalto. — Amo essa música.
Já estou batucando os pés no chão, tentando acompanhar o ritmo enquanto
sibilo a letra da canção. Thomas me acompanha, o que é incomum, já que ele
não é muito adepto de músicas antigas.
— Conhece essa? — questiono, arqueando as sobrancelhas.
— Claro. — Thomas captura um dos amendoins da mesa e mastiga
calmamente. — É da One Direction.
— O quê? — Franzo o cenho em total confusão. — Não, essa música é da
Blondie.
É o suficiente para entrarmos em uma discussão acalorada sobre quem é o
dono da música. Quando lembro que não estamos, de fato, nos anos 80, e que
existe algo muito informativo e gratuito chamado Google, pesco o celular da
bolsa para pesquisar.
— Viu! — Aponto, com um semblante acusatório. — A música é da Blondie
e a One Direction só regravou.
A versão da bandaantiga toca no filme Meninas Malvadas, o que só prova
que Thomas nem deve ter assistido o filme direito, embora tenha amado me
apelidar de Regina.
— Prefiro a versão deles.
Ignoro a provocação e mantenho o olhar na garçonete que chega sobre seus
patins com nossos pedidos. A bebida de Thomas é colorida e infestada de
granulados, enquanto a minha é só uma taça com conteúdo branco, chantilly
e uma cereja vermelha no topo. O lanche é verdadeiramente gostoso, uma
explosão de sabores dentro da boca, embora a gordura do bacon cause uma
leve aspereza no céu da boca. Após alguns minutos, a banda que tocará
invade o palco, causando uma leve histeria nos clientes presentes. São dois
homens, um moreno ocupando o baixo, e o outro ruivo a guitarra. Além
deles, há duas mulheres, uma na bateria com seus dreads e sua pele negra, e
uma loira no teclado.
Eles se apresentam como os The Old Vibes, e iniciam os acordes de Under
Pressure do Queen. Acompanho o ritmo da música com o pé, como se eu, de
fato, pudesse fazer isso, mas a realidade é que tenho zero coordenação
motora. A banda é muito boa, não que alguém algum dia se equipare ao Fred
Mercury, contudo as vozes são harmônicas e só dos meus ouvidos não
doerem já é suficiente.
Thomas e eu estamos encantados pela moça da bateria, uma vez que seus
dreads balançam ao passo que ela gira as baquetas no dedo e domina o
instrumento. Talvez seja uma das mulheres mais lindas que já tenhamos
visto. Os seus olhos castanhos esverdeados são tão reluzentes que posso ter
um vislumbre daqui. Assim que a canção finaliza, Patience do Guns inicia e
Eckhoff estende a mão para me puxar até a pista. Ao nos posicionarmos bem
embaixo do globo brilhante, o braço dele enlaça meu corpo e choca nossos
troncos. Posso sentir seu calor, mesmo com o pano da camisa social escura.
Cruzo minhas mãos na nuca dele e encosto a cabeça em seu peito, na altura
do coração. Se eu me concentrar um pouco, posso escutar as batidas rítmicas
e fortes de seu órgão, enquanto Thomas apoia a bochecha em mim,
amassando meu cabelo. Embalamos-nos de um lado para o outro, prestando
atenção suficiente para não pisarmos em nossos pés.
Sinto seu calor perpassando pelo meu corpo, e a sensação é como flutuar, e
uma leveza anormal toma cada parte do meu corpo. É como se não houvesse
peso nenhum sobre os meus ombros, mesmo que eu esteja envolvida até o
pescoço com tantas merdas, provas e trabalhos da faculdade e uma relação
complicada com a minha mãe. Eu já ouvi falar antes, em filmes, que quando
estamos apaixonados, sentimos algo parecido com isso. Que no instante em
que compartilhamos momentos com a pessoa, é quase como se pudéssemos
enfrentar tudo. Mas, acho que não estou apaixonada por Thomas. Gostando
talvez, contudo tenho, pela primeira vez, a percepção de que estou me
afundando mais e mais nesse sentimento inocente que pode tornar-se
perigoso. Com o término da canção, me desprendo do corpo forte de Eckhoff
e aponto animadamente para a cabine de fotos.
A atendente nos explica, minuciosamente, como funciona a cabine. Temos
um total de quatro fotos impressas no que parece ser um papel imitando um
rolo de filme das câmeras analógicas antigas. A cabine é apertada, de maneira
que me sento no pequeno banco de veludo vermelho, tendo meu corpo
espremido pelo de Thomas. Por fim, a mesma funcionária nos entrega alguns
acessórios para compor nossas fotos: uma coroa de plástico, cravejada de
cristais falsos, como de uma princesa, uma pluma rosa choque e outra roxa
metálica para envolver meu pescoço e o de Eckhoff. Ele também ganha uma
coroa, uma prata que cobre sua cabeça, de plástico, como a de um rei. Há
uma pequena tela embaixo da pequena câmera, que nos dará um vislumbre de
nossas poses.
Primeiro click: Thomas e eu com largos sorrisos rasgando em nossos rostos
colados.
Segundo click: Estou virada para Eckhoff, tendo suas mãos pressionando
minhas bochechas enquanto ponho a língua para fora, assim como ele.
Terceiro click: Faço uma pose imponente, como uma verdadeira rainha em
seu trono e levanto a pluma envolta do meu pescoço, e Thomas me imita,
com um pequeno sorriso brotando em seus lábios.
Tomo uma decisão segundos antes da quarta pose. Estamos em um encontro,
não é? Pois que tenha um beijo então.
Quarto click: enlaço seu pescoço com meus braços e Thomas se apossa da
minha cintura assim que entende que minha boca cobrirá a dele. Apenas em
um selinho.
Antes que eu pudesse sentir a aspereza de sua língua sobre a minha, a
funcionária sorridente nos interrompe. Ela faz uma brincadeira sobre
estarmos em uma cabine de fotos e não em um motel, piada essa que não
combina nada com a postura alegre e inocente dos trabalhadores do local.
Seguro o papel fotográfico fino entre os dedos, sentindo ainda a quentura
provinda da recente impressão. Permito-me tirar um tempo apenas para
analisar a imitação do rolo de câmera que guarda nossas quatro poses. Os
sorrisos grandes, caretas e o beijo roubado. Só reparo que estou sorrindo por
tempo demais quando minhas bochechas começam a doer, então, guardo o
fino papel na minha pequena bolsa.
— Existe essa superstição. — Pulo levemente no lugar pelo susto ao ouvir a
voz de Thomas soar perto de mim, abafando a música alta. — De levar
sempre na carteira a foto de alguém importante para você. Significa que
independentemente do que aconteça contigo ou com a pessoa da foto, ela
estará ao seu lado.
— Só fazem isso com gente morta — murmuro, elevando o queixo, em um
claro sinal de desdém.
— Negativo. — Thomas levanta o dedo em riste. — Olha só.
Ele ergue a aba de sua carteira e retira uma pequena foto de um
compartimento, reconheço a cabeleireira loira e os olhos azuis oceanos da
criança pelada, dentro de uma banheira de plástico, portando um sorriso
travesso enquanto uma mulher de longos cabelos negros o dá banho. Não é
difícil entender que se trata de Thomas e sua mãe. Mesmo com a baixa
qualidade da câmera antiga, é possível ter um vislumbre da semelhança entre
eles: a íris azul intensa, as covinhas e o sorriso expansivo.
— Essa é a minha mãe. — Balanço levemente a cabeça, já sabendo disso. —
Mesmo com a distância, a senhorita Noora Eckhoff está comigo.
Depois de uma breve pausa, Thomas retira outra foto do compartimento.
Uma que eu nunca havia visto e que se trata dele ao lado de Andrew,
Dominic e Hannah. É fácil reconhecer que a foto é antiga porque o cabelo de
Drew está raspado, em um belo corte militar.
— Essa foi tirada no fim do nosso primeiro ano. Hannah morava com a gente
lá em casa, sabia? — sua pergunta me causa surpresa, e arregalo um pouco os
olhos. — A gente encontrou aquela casa logo que entramos, mas não
tínhamos recursos para arcar com todas as despesas de um duplex com quatro
quartos em um bairro tão bom. Então, Hannah veio conosco, ocupando o
quarto de hóspedes que você conhece hoje. Dominic ainda não trabalhava na
rádio da cidade, e Andrew não ganhava tão bem com seu negócio de
marketing. E minha oficina estava em processo de abertura.
— Por que ela decidiu pelos alojamentos?
Rapidamente, o semblante de Thomas murcha, me parece que uma memória
nem tão boa ocupa sua mente agora mesmo.
— Os pais dela são um pouco... Difíceis. — Ele engole em seco antes de
prosseguir. — São muito conservadores e não gostaram nada da ideia de ver
sua menina dividindo uma casa com três marmanjos.
As engrenagens de meu cérebro trabalham a todo o vapor para que eu chegue
à conclusão mais clichê possível.
— Oh, não. — Cubro os lábios com a mão, prevendo o resto da história.
— Hannah conseguiu convencê-los de que seria apenas por um tempo, até ela
conseguir um alojamento individual. E prometeu que não se envolveria com
nenhum de nós. Na época, não foi difícil fazer tal promessa, até porque
Joshua Collins roubou toda a sua atenção durante o primeiro ano. Ela era
realmente apaixonada por ele, juro. — Caminho em direção as almofadas
dispostas no chão enquanto Thomas me segue, ainda contando a história. —
Mas, aconteceu de nos envolvermos, foi natural. Então, em uma dessas
visitas inesperadas que pais fazem, eles nos encontraram juntos.
Aperto meus olhos e contraio as feições, porque imaginar a cena acaba
doendo em mim. Ninguém merece ser flagrado pelos pais, ainda mais se eles
forem conservadores.
— Como isso aconteceu? Vocês não sabem trancar portas? Você é ignorante
desde quando era calouro, né? — disparo alguns questionamentos, e é claro,
alfinetadas.
— Estávamos na cozinha. — Thomas sussurra como se contasse um segredo.
— A porta de entrada estava trancada, a dos fundos não.
A planta imaginária da casa dele rapidamente me vem à mente. A entrada dos
fundos dá justamente na cozinha, e me encolho só de pensar no escândalo
que deve ter sido.
— Foi horrível. — Ele murmura, e acho que cuspir aquelas palavras traz um
gosto amargo a sua boca. — O pai dela desferiu palavras horríveis a própria
filha, a mãe parecia horrorizada com tudo, estatelada no lugar. E eu tomei um
belo gancho de esquerda que deixou meu rosto marcado por alguns dias, mas
isso com certeza não foi o pior.
— Então, ela foi para o alojamento — antecipo sua fala e ele concorda
brevemente. — E vocês continuaram juntos.
Thomas inspira e expira calmamente.
— Sabe, Mack. — Ele inicia, me puxando contra seu corpo, enlaçando minha
cintura para que eu apoie minha cabeça em seu ombro. — Não sei se existe
um motivo concreto para as pessoas se apaixonarem, mas se houver, ouso
dizer que aquele segundo ano de faculdade pode ter sido crucial para o
sentimento de Hannah brotar. Ficamos ainda mais grudados, até porque tomei
a responsabilidade da vida dela ter se tornado um pequeno inferno. Acho que,
sei lá, é uma boa razão para começar a gostar de alguém, não?
— Não sei — pigarreio. — Acho que as pessoas se apaixonam pela forma
que são tratadas, ou pelo que elas montam da pessoa em suas cabeças. Nossas
mentes podem ser bem traiçoeiras às vezes. Vocês ficaram juntos por três
anos, e até que você não é tão ruim. Então, talvez, ela só tenha gostado muito
de você.
— Está dizendo que sou apaixonante, Lennon? — O canto de seus lábios está
erguido em um sorriso travesso.
— Eu não disse nada disso. — Ergo a cabeça de seu ombro e encaro seu
sorriso se alargando. — E é exatamente esse sorrisinho aí que me dá vontade
de enfiar um soco na sua cara.
Enfio o dedo indicador no buraco de sua covinha e deixo um beijo estalado
em seu queixo. É algo nada comum que acontece entre nós, essa necessidade
de toque. Quer dizer, Thomas é de muito tato, ele precisa sempre estar em
algum tipo de contato com alguma parte do meu corpo. Seja a coxa, as costas
na altura da lombar ou cintura. Porque ambos sabemos que mãos dadas não
funcionam conosco, minhas palmas suam com facilidade e eu me sinto presa.
Entretanto, em um determinado momento, a necessidade de estar sempre se
tocando ou beijando entranhou entre nós e cravou em nosso âmago. Estamos
agindo como um casal e só um tolo não seria capaz de perceber.
Percebo, tardiamente, o motivo de seu papo sobre guardar fotos na carteira.
Porque vejo Thomas rasgar uma de nossas poses, a que estamos nos beijando,
e ele enfia no mesmo compartimento das outras. Perdi-me tão facilmente no
papo de Hannah, que nem ao menos captei a verdadeira razão de tudo aquilo.
Ele queria guardar nossa foto na carteira, sem que parecesse muito
significativo. Mas, para mim, foi. De suma importância.
— Eu vi isso. — Aponto para o bolso interno da jaqueta de couro, onde ele
acabou de guardar a carteira.
— Eu não comentarei nada sobre o fato de eu ser um
cara extremamente apaixonante. — Ele inicia com um sorriso esperto
pairando sobre os lábios e ignoro sua adição de palavra. — E você não
comenta sobre o que acabou de ver.
Ele ajeita as lapelas da jaqueta com uma expressão de inteligência e estendo
minha mão.
— Negócio fechado. — Mexo a cabeça, concordando com ele.
Thomas cobre minha mão com seus dedos longos e balança, simulando o
fechamento de um acordo.
São duas da manhã quando a primeira cadeira é posta em cima da mesa,
demonstrando que o estabelecimento quer fechar. Como um pedido
silencioso e uma indireta agressiva para que os clientes tomem seu rumo. Isso
nos impulsiona a dividir a conta e pegar a estrada até Bolfok Town. O
percurso é, em sua maioria, silencioso, se não fosse pela brisa gélida que
invade o interior do carro pela fresta da janela, e pela voz baixa dos Beatles,
cantando Day Tripper.
— Tenho uma confissão. — Decido romper com a quietude do carro.
— Estou ouvindo. — Thomas mantém o olhar compenetrado na estrada, e
isso me motiva a continuar.
— Eu me arrumei para um encontro em um restaurante chique qualquer,
analisando sob uma única perspectiva de encontro. Jantar em um lugar legal.
— Ajeito a alça do vestido e encaro Thomas de relance. — Só que hoje foi
muito mais pessoal, e íntimo. Eu não esperava viajar uma hora até Altoona,
me enfiando em um bairro boêmio atrás de um bar meio boate que faz
viagens no tempo até décadas que eu sempre deixei claro que amo. Significou
muito para mim passar uma noite ouvindo músicas dos anos oitenta,
comendo besteiras e tirando fotos exóticas. Mas, percebi agora que
independentemente do lugar que a gente fosse, eu ia gostar do mesmo jeito.
Única e exclusivamente por estar acompanhada por você.
Thomas põe a mão na minha testa, e logo depois escorrega até minha
bochecha.
— O que está fazendo?
— Verificando se não está com febre. — Semicerro os olhos para sua
resposta e desfiro um tapa leve em seu braço. — Só pode ter algo muito
errado que explique tamanha declaração vinda de você.
— Não foi uma declaração. — Cruzo os braços como uma criança birrenta e
assisto uma gargalhada escapulir da garganta dele.
— Para mim, foi. — Ele se limita a subir e descer os ombros, me fazendo
revirar os olhos.
Os grandes portões da Bolfok College se abrem assim que o vigia noturno
reconhece a identificação de Thomas pela carteirinha da faculdade. O carro
segue para os alojamentos e um suspiro resignado escapa de mim. Eu não
contaria isso a ele porque nossa cota de palavras bonitas está esgotada, mas
estou realmente triste pela nossa noite estar acabando. Thomas Eckhoff é
exatamente esse tipo de pessoa, daquelas que influenciam muito rápido na
animação do ambiente, das que iluminam qualquer lugar com suas bobeiras,
provocando risos em todos. Eu não menti quando disse que gosto da
companhia dele, pois é fácil estar com o loiro.
— A Vossa Majestade está entregue. — Thomas profere assim que estaciona
em frente ao prédio do meu alojamento.
Não tenho muito que dizer, mas sei que hoje foi especial e diferente, porque
não houve nada de sexual envolvido, nenhum amasso ou sexo. Não que a
atração ou tensão não tivesse entranhada em nós, pois estava. E acredito que
nunca deixe de estar. Contudo, as nossas interações essa noite tiveram muito
mais intimidade e afeto.
— Obrigada por hoje. — Destravo o cinto e desenrolo o aperto que a fita faz
em meu corpo.
Inclino o tronco na direção de Thomas e ele sabe o que vem depois, porque
enlaça minhas costas e apoia a palma em minha bochecha. Seu toque ainda
queima, enviando eletricidade por todo o meu corpo. Cubro seus lábios com
os meus e deixo que sua língua deslize na minha. A sensação é tão boa que eu
ficaria aqui pela madrugada a fundo, até o dia amanhecer. Estou sensível
demais, essa é a única explicação por estar me deixando envolver tão fácil
pela aura leve e sensual dele. Eckhoff desfaz nosso toque quando mordisca
meu lábio inferior, e eu quase subo em seu colo. Porém, decido interromper
nosso fogo, só porque quero manter nossa noite assim, com carinho e afeição,
o que me dá a sensação de que tenho muito mais a oferecer do que apenas um
corpo.
— Eu que agradeço por ter aceitado o encontro, mesmo que ao invés de te
levar para comer lagostas, eu tenha te dado hambúrguer e milk-shake —
discorre, fazendo uma breve reverência.
Acompanho-o na risada. Quando faço menção de sair do carro, Thomas me
para. Ele retira a jaqueta com um pouco de dificuldade pelo espaço precário
do carro, retira as chaves e a carteira do bolso interno e cobre meus ombros
com o tecido quente.
— Você vai sentir frio com esse vestido. — É a única coisa que ele diz, e isso
basta para que eu revide.
— É só do carro até o prédio, não são nem cinco metros. — Agarro as lapelas
da jaqueta para devolver e Thomas cobre minha mão com a sua, leva até seus
lábios e deixa um beijo no dorso.
— Será que pode deixar sua teimosia de lado apenas por esse momento?
Bufo audivelmente e ajeito o tecido sobre meu vestido fino, aceitando o
agrado. Ao sair do carro, percebo que a brisa gélida de Bolfok muito se
assemelha a adagas cravando em minha pele. Está um frio da porra, e mesmo
por um curto caminho, eu certamente sofreria com o vento que me chicoteia,
se não fosse pela jaqueta. Volto ao carro e peço com um gesto de mão, para
que ele abaixe o vidro da janela. Apoio meu antebraço e inclino o corpo para
dentro do veículo.
— Eu já fui a alguns encontros durante minha curta vida — inicio, com um
sorriso ladino. — Uns cinco talvez. O nosso está no topo, foi o melhor que eu
já fui, e se contar isso a alguém, eu nego até a morte.
Não espero por uma resposta, só tenho um vislumbre do sorriso largo que
rasga no rosto de Thomas. Caminho em passos apressados até o interior do
edifício, pouco inclinada a continuar nesse frio. E só olho para trás uma vez,
quando estou prestes a passar pelo hall, apenas para ter a certeza de algo que
eu já sabia: que ele ainda estaria ali, esperando calmamente até que eu entre
em segurança. Aceno em sua direção pela última vez e recebo um beijo no ar,
junto com um semblante afetado, uma clara palhaçada com o único objetivo
de arrancar uma última risada minha. No entanto, antes que eu passe, de fato,
para dentro do prédio, ouço seu grito estridente em meio ao silêncio sepulcral
da Bolfok College.
— Mackenzie Lennon! — Viro em sua direção e apresso alguns passos para
me aproximar. — Eu não sei se ficou muito claro, mas é sempre bom
reafirmar que vestida a caráter anos 80 ou não, você
está esplendidamente linda.
Agradeço em um sussurro, mas sei que pela leitura de lábios ele entende, e só
deixo o sorriso largo e altamente bobo escapar quando estou fora das vistas
de Thomas. Eu não preciso me olhar no espelho para saber como estou. As
bochechas queimando, olhos brilhantes, coração acelerado e as malditas
borboletas no estômago.
E tento não prestar muita atenção na única certeza que me invade:
Estou absurdamente fodida.
Domingos costumam ser mórbidos e silenciosos em Bolfok Town.
São aqueles dias em que a taciturnidade nos aborda com uma sensação de que
amanhã tudo volta ao normal e mais um dia de faculdade começará. Os
universitários se enfiam em festas particulares, nos fundos das fraternidades,
com mulheres demais e roupas de menos. Mas, na rua, o único barulho
audível é o das folhas nas árvores chocando-se uma nas outras.
Só que não nesse domingo, porque hoje é Halloween. E mesmo que em
Bolfok não tenha crianças andando por aí pedindo por doces ou travessuras,
os jovens criam brincadeiras suficientes para fugir da realidade macabra de
alguns professores que amam sugar nossas almas como verdadeiros
adoradores do Dia das Bruxas. Existem duas atividades muito famosas em
feriados como esse: a busca pelo corpo de Ted While e o Polícia e Ladrão.
A primeira consiste em um cara que, em todos os anos, morre de um jeito
diferente. Então, os alunos formam duplas para buscar pistas que os levarão à
resolução do caso. Basicamente, é como jogar Detetive, só que fora do
tabuleiro. E a segunda são estudantes que se separam em polícia e ladrões, se
dividindo em grupos pequenos, duplas ou trios para fugir ou caçar bandidos.
Geralmente, muitas merdas acontecem nesses dias, porque é como no filme
Uma Noite de Crime, em que todas as autoridades parecem fechar os olhos
para o que acontece na cidade. As viaturas de polícia somem nos dias de
Halloween, ficando muito bem estacionadas na garagem da delegacia, mais
vazia do que em qualquer outro dia.
Nevaeh me contou que, ano passado, um aluno foi atropelado no Polícia e
Ladrão, e uma garota se machucou na Busca pelo Corpo de Ted
While. Ninguém sabe muito bem como aconteceu, mas é fato de que durante
essas atividades, as pessoas estão preocupadas demais em ganhar os prêmios
da brincadeira, e deixam de lado alguns cuidados.
Thomas e eu ficamos encarregados de organizar apenas a festa de Halloween
na maior fraternidade da Universidade. As brincadeiras não são de nossa
responsabilidade, até porque, por mim, elas poderiam acabar. E fui chamada
de estraga-prazeres pelo comitê de eventos mais vezes do que posso
contabilizar. Estou, neste momento, ajeitando minha fantasia de Cher, o
blazer xadrez amarelo em conjunto com a saia plissada da mesma cor. Dessa
vez, uso a chapinha para alisar alguns fios que antes formavam ondas em
meu cabelo castanho. Ajeito as meias 3/4 e os saltos pretos. Eu poderia ter
arranjado alguma fantasia um pouco menos óbvia e mais criativa, mas a
exaustão de ter ficado imersa demais organizando a festa e fazendo trabalhos
e testes da faculdade me impulsionaram a vestir qualquer coisa fácil.
Dominic comentou comigo que é algum tipo de tradição entre ele, Thomas e
Drew irem ao Halloween com fantasias combinando. E quando Nev se juntou
com a sua curiosidade e questionou sobre a de hoje, recebeu um sonoro "é
surpresa". Não que eu estivesse esperando muito, no final das contas. De todo
modo, é exatamente oito em ponto, a hora que eu prometi estar em frente à
fraternidade, conferindo se está tudo nos conformes.
— Mackenzie Lennon. — Atendo a chamada de um número desconhecido no
terceiro toque. — Cadê você? — Identifico a voz dura de Thomas e franzo o
nariz em desgosto.
— De que número está ligando? — Ele sabe que eu não atenderia se me
ligasse de seu próprio telefone, exatamente porque sei o quanto estou
atrasada. Muito esperto, Eckhoff.
— Responder a minha pergunta com outra não vai te isentar do seu atraso.
Inflo as bochechas com ar e solto em uma lufada agressiva.
— Já estou pronta, sem estresse. — Finalizo a ligação antes de receber um
sermão.
Ignoro meu atraso e caminho para fora do alojamento. Só depois de recuperar
a respiração por ter descido cinco lances de escada é que percebo um SUV
preto estacionado em frente ao meu prédio. Sem reconhecer o automóvel,
direciono meus passos até o estacionamento do edifício atrás do meu
Cadillac. A máquina estilo banheira, 4x4, acompanha meus passos enquanto
buzina, fazendo com que eu apresse a caminhada com medo de algum
bêbado.
— Está atrasada, Mack. — Escuto a voz de Joshua me gritar. — Entre no
carro.
Direciono meu olhar até o estacionamento a alguns muitos metros de
distância, e logo depois os pouso no carro de Josh parado bem ao meu lado.
Não demoro a tomar a decisão mais inteligente e adentro seu SUV.
— Está fazendo o que aqui por essas bandas?
Sei que Josh é um dos líderes da fraternidade que receberá a festa de hoje,
então os prédios dos alojamentos é o último lugar que eu esperaria encontrá-
lo.
— Seu namorado está inconcebível lá na AQA, distribuindo ordens de um
lado para o outro com sua habitual carranca. Eu era um dos desocupados
inúteis que estava na fraternidade e que poderia vir te buscar. — Meus lábios
entreabrem assim que ouço suas palavras.
— Ele te chamou de desocupado inútil?
Estou puta da vida.
Quem tem o prazer do afeto de Thomas jamais poderia imaginar o quanto ele
pode ser arrogante com quem não gosta, ou com um desconhecido qualquer.
Na verdade, isso me faz recordar do nosso primeiro encontro e do quanto ele
pode ser arrogante, sarcástico e egocêntrico. Não é à toa que sua fama de bad
boy se embrenhou em todo o canto da Bolfok College.
— É difícil imaginá-lo xingando alguém quando ele desmancha aquela pose
te olhando, né? — Josh ri um pouco e me olha de relance.
— Posso imaginar perfeitamente. — Entrelaço os dedos das mãos sobre o
colo. — Não tenho memória seletiva.
Josh franze o cenho um pouco, como se não entendesse bulhufas do que
estou falando. Então, me prontifico a prosseguir com a fala.
— Eu o odiava, principalmente esse lado.
— Vou defendê-lo dessa vez, porque o cara tá nervoso tendo que dar conta da
finalização da organização de uma festa, sozinho. — O que ele quer dizer é
que estou atrasada o suficiente para deixar a responsabilidade toda nas mãos
de Thomas.
— Até você tomou o lado dele? — Arqueio as sobrancelhas em descrença,
mas a sombra do meu sorriso o faz identificar que estou brincando.
— Jamais. — Rimos em uníssono até que tenho um vislumbre da rua
infestada de mansões, uma maior que a outra.
À medida que o carro se aproxima, o som torna-se cada vez mais alto. Avisto
pessoas fantasiadas perambulando com seus copos cheios e alguns com
cigarros nos lábios. Isso me lembra de algo que leva o meu olhar até o queixo
quadrado de Josh.
— Não está fantasiado? — Ele gira o volante para o lado, manobrando para
estacionar o carro.
— Estou zero animação hoje. — Josh sobe e desce os ombros. — Sem
ofensas à sua festa, Mack.
Abano a mão como quem não se importa e, silenciosamente, concordo com
Collins. Festas de fraternidade são sempre repetitivas, as mesmas bebidas,
músicas, jogos, body shot e gente chapada. Hoje só há a adição de fantasias e
maquiagens macabras. Está certo que Thomas e eu, como organizadores,
poderíamos ter trazido algo diferente e inovador, contudo, estávamos
exaustos e entupidos de trabalhos e coisas para fazer.
Pulo do carro analisando o início da decoração na soleira da mansão,
composta por alguns morcegos e abóboras espalhadas pela entrada. Há
fantasias batidas como vampiro, marinheira, diabinha e roupas do tipo. Não
demoro a avistar Thomas, jogando seu charme para uma loira, que
rapidamente identifico ser Indiana. Não é como se ele quisesse levá-la para a
cama, e sim seu jeito natural de conquistar qualquer um. Ali, pouco parece
que ele é um jovem ranzinza e carrancudo com o resto das pessoas. Tento
adivinhar o teor da fantasia e, mesmo me esforçando, não consigo.
Thomas veste uma camisa azul vibrante de manga comprida com uma listra
única preta que envolve sua cintura. Por cima, sua habitual jaqueta de couro
preto acompanha a calça e o All-Star igualmente pretos. O cabelo louro
continua desgrenhado, mas com um penteado diferente. Estreito os olhos,
tentando reconhecer o taco de basebol com alguns relâmpagos desenhados
em azul. Dou uns passos até ele, mas não quero atrapalhar seu papo com
Indy. No entanto, como se tivesse um sensor, seus olhos se atraem até os
meus. Eckhoff me analisa da cabeça aos pés, reconhecendo a fantasia a julgar
pelo sorriso sacana que toma seu rosto. Ele diz algo para a loira, mexe nos
cachos dela como um irmão implicante faria e vem até mim.
— Oi, Cher. — Thomas arrasta a mão pela extensão da minha mecha
escorrida. — Gostei da fantasia. Está incrivelmente gostosa.
Giro os olhos e aperto os lábios, tentando arduamente esconder o sorriso.
— Você está vestido do que exatamente? — Pergunto antes que ele se lembre
do meu atraso.
— Meninos Desordeiros, sabe? Das Superpoderosas. — Thomas gesticula.
— Eu sou o Explosão.
Rapidamente, a cena do desenho me vem à mente. Recordo da criação do
Macaco Louco em uma tentativa de combater As Meninas Superpoderosas.
Imagino que Andrew e Dominic estejam fantasiados como os outros
companheiros e acho a ideia genial.
— Combinou com você. — Repito a conferida em seus trajes.
— Eu também achei. — Thomas abre um sorriso convencido. — Explosão é
meio bobo, mas até que se sai bem em uma luta. Só que, no combate contra
as Superpoderosas, foi destruído pelo beijo da Lindinha.
Balanço a cabeça negativamente, nenhum pouco surpresa pelo tipo de flerte
que sai da boca de Thomas.
— Mas, — ele volta a falar, agarrando minha cintura — não esqueci que a
minha parceira de organização de eventos está atrasadíssima.
— Sinto muito por ter te deixado dar o toque final sozinho. — Forço um
bico, no meu melhor semblante arrependido. Thomas parece verdadeiramente
surpreso por ter arrancado um pedido de perdão com tanta facilidade. —
Porém, eu fiquei sabendo que esteve dando ordens um tanto brutas por aqui.
— Que eu me lembre...— ele enterra a cabeça na curva do meu pescoço e
inspira o perfume, me causando um arrepio. — Você até gosta quando sou
bruto.
— Engraçadinho. — Ergo o canto dos lábios cinicamente. — Peça desculpas
ao Josh.
— Quê? — Sua cabeça se levanta, em um gesto rápido, e encontro seu
semblante descrente.
— Você me ouviu. — Arqueio as sobrancelhas em uma posição imponente.
— Qual é, Lennon? — Tombo a cabeça para o lado, ainda insistindo na
ordem. — O cara nem se ofendeu.
Envolvo seus ombros com meus braços, e escorrego meus lábios por toda a
sua mandíbula até chegar a seu ouvido. Arrasto meus dentes pelo lóbulo e o
sinto estremecer.
— O problema não é meu — sussurro em seu ouvido. — Garanta isso com
um pedido de desculpas.
Thomas parece resistir um pouco, encarando meu rosto com o mesmo
semblante imponente.
— O que quer que eu diga, huh? — Ele cede, abrindo os braços em
desistência.
— Pode ser algo como: foi mal por ter te chamado de desocupado inútil, cara.
— Pouso as mãos em cada lado de seu rosto. — Tem que parar com essa
implicância com Josh.
Thomas murmura algo incompreensível, mas deixa um selinho em meus
lábios antes de caminhar em passos pesados até Joshua. Perambulo um pouco
pela festa, avistando Lewis vestido com o casaco do time e alguns arranhões
maquiados em seu rosto. Aceno para ele, mas não sou vista assim que a
muralha de músculos de um cara do time tampa sua visão.
Estou verdadeiramente orgulhosa pela organização da festa, com decorações
de Halloween por toda a parte, música boa animando a galera e muita bebida
paga. Arrecadamos uma boa grana com as festas, que será convertida em
algumas manutenções nos programas de bolsa da faculdade. Avisto Dominic
e Andrew, ambos vestidos como Thomas, o primeiro usando a blusa que se
refere à Florzinha e o segundo a cor da Docinho. Dom é o Durão enquanto
Drew é o Fortão.
— De quem foi a ideia de fantasia dos Meninos Desordeiros? — pergunto
assim que me posiciono próxima o suficiente para ser ouvida.
— Pergunte-se quem é a mente brilhante desse trio e obterá sua resposta. —
Andrew responde, portando um sorriso convencido. Seus cabelos crespos
estão arrepiados em um penteado que lembra o personagem. — E você está
de Cher.
Aceno positivamente e dou um abraço desajeitado em cada um.
— Cadê minha amiga? — Direciono a pergunta a Dom, que dá de ombros.
— Por aí. — A resposta evasiva não me agrada e cerro os olhos em sua
direção.
— Por aí onde? — Cruzo os braços e arqueio uma das sobrancelhas.
— Não sei, tá legal? — Dominic bufa. — Estamos brigados.
— Hum. — Andrew estala a língua. — O clima pesou, então eu to caindo
fora.
— Você fica — aponto em resposta, fazendo-o murchar o semblante
divertido.
— Desembuchem os dois.
Alterno o olhar entre Dom e Drew, que parecem ter culpa no cartório em
relação ao pequeno chá de sumiço de Nev.
— Dominic mentiu para ela e eu o acobertei. — Andrew solta, descendo os
ombros. — Ela descobriu e sumiu.
— O que você fez? — Sibilo entre dentes, fazendo-o dar um passo para trás.
Olhando para o lado ainda posso enxergar Thomas gesticulando enquanto
conversa com Josh. Jules beija o canto da boca de Maxon e ri de algo que ele
murmura em seu ouvido, isso me faz sorrir um pouco. Porque mesmo um
tanto disfuncionais, os dois ficam bem juntos. A festa continua animada, com
gente bêbada fazendo merda e alguns passando vergonha, a música reverbera
tão alta que mal consigo manter um diálogo com meus amigos. Então
Dominic nos puxa até o lado de fora, onde podemos conversar sem os olhos
inquisitivos dos fofoqueiros da faculdade.
— A gente tem brigado um pouco por causa dessa pressão dos pais dela com
o fato de eu ser ateu. — Dom inicia. — Então, ela pediu que eu
reconsiderasse um pouco e desse uma chance ao que a religião dela tem a
dizer. Me pareceu importante, por isso, eu contei uma pequena mentira,
dizendo que iria sim a um culto deles. Só que eu não fui.
A última parte sai em um sussurro culpado. A família de Nev é
completamente imersa na igreja, e eles não gostaram nada de saber que seu
novo namorado não acredita em nada do que eles pregam. Questionamentos
relacionados a como eles se casariam e criariam os filhos, ou qualquer coisa
do tipo surgiram. E o silêncio por parte de Dom o fizeram premeditar que ele
não se vê em um futuro com Nevaeh. Logo, o pastor Williams não gostou
nadinha disso.
— Pensou que fingir seria muito mais fácil do que assumir suas convicções e
crenças. — Adianto sua fala. — Se mentiu dizendo que iria ao culto, por que
simplesmente não foi? Mesmo que tampasse os ouvidos para a pregação.
— Não entro em igrejas. — Dominic cospe, totalmente irredutível.
Transfiro meu olhar até Drew, que suspira, parecendo frustrado.
— A gente armou uma mentirinha, dizendo que Dom precisava de um
momento a sós com o cara lá de cima, para se redimir, ou seja, lá o que fazem
em igrejas. — Andrew inicia. — Então, Dom falou que iria até a capela de
Bolfok no dia que Nev iria até a pregação de seu pai, em Bolfok Valley.
Quando ela voltou, conversamos um pouco sobre Dom e eu acabei
confirmando a ida dele até o culto.
— Como ela descobriu que ele não foi?
— O pastor é amigo do pai dela e deu a certeza de que não havia nenhum
cara branco de cabelo escorrido e tatuagens espalhadas pelo corpo lá. — Dom
escova a franja para trás, com as falanges cobertas por letras.
— Que merda — brado, irritada.
A igreja acolheu a família de Nevaeh e os membros da congregação
abraçaram os Williams com louvor. A religião foi um motivo para que eles
tivessem no que acreditar, em meio a tantas coisas ruins. Uma luz de fé
perpassando entre a escuridão. Aquela é a vida de Nev, e agora ela divide
com Dom. Duas pessoas com crenças diferentes que estão ruindo por causa
delas.
— A minha vida inteira foi uma merda, morena. — Dominic solta baixo,
sentando-se na grama bem aparada do jardim nos fundos da mansão.
Andrew e eu nos sentamos, formando um círculo entre nós enquanto me
apoio com as mãos atrás de meu corpo.
— Vivi praticamente largado, tendo que lidar sozinho com meus problemas
fodidos. Quando a gente convive com alguém, conhece só a superfície. Essa é
a minha, as roupas, acessórios, tatuagens, tudo isso é só a casca — prossegue.
— O resto é mais feio, até mesmo sangrento. Ninguém fica sabendo por aí
que minha mãe me largou com um pai abusivo, e nem ao menos posso culpá-
la porque sei que ela sofria com ele, e que fugir foi a melhor das opções.
"Não sei o que houve no dia, mas tento me convencer dia após dia que ela me
amou, só não pôde me levar junto. Acho que depois que Dina Hopkins se foi,
meu pai desistiu de qualquer coisa, até mesmo de me atormentar. Então,
fiquei largado, como aquelas crianças que podem ficar na rua até altas
madrugadas, porém não porque tem pais liberais, e sim por não ter quem se
importe. E eu ouvia minha mãe rezar baixinho, implorando a Deus que ele
nos tirasse daquela situação. Se humilhando a quem quer que ela ache que
estivesse lá em cima, para que me impedisse de vê-la sofrer e não poder fazer
porra nenhuma. Em todos esses momentos, dias, meses, Deus nunca escutou.
Ele nunca se compadeceu com a nossa situação, O Todo Poderoso nunca a
ouviu. Então, eu simplesmente cheguei a conclusão de que ele não existe, e
que as pessoas têm fé no invisível. Por um tempo, eu senti raiva de quem
acreditava, mas, como qualquer outra pessoa, aprendi a respeitar os que tem
fé. Só que Nev não pode me forçar a isso."
Recebo tudo em um baque só, como se todas as informações estivessem
embaralhadas na minha cabeça e eu jamais pudesse organizá-las de um modo
que algo fizesse sentido. Dominic tem a casca grossa, impedindo que
qualquer pessoa mergulhe em suas profundezas e descubra algo feio. Sei
disso porque sou assim, e entendo que todo ser humano é.
Todo mundo tem uma história para contar, um passado que os moldou até ser
quem são hoje. Penso que há muito mais de onde veio, mas apenas o que
Dom me mostra agora é suficiente para que eu entenda os dois lados. Tanto
para Nev e a importância de estar imersa na religião, quanto para Dom, que
tem seus traumas e cicatrizes, e que ironicamente, envolvem Deus.
— Ela não tentou me forçar — assume. — Só pediu que eu tentasse, e
bastava que eu dissesse que não dava. Cheguei a pisar na soleira da capela,
mas não consegui entrar. Eu apenas deveria ter sido sincero, esse foi o meu
erro. E agora corro o risco de perder a mulher da minha vida. Sério, Mack. Eu
nunca amei alguém como amo Nevaeh. Me ajuda.
Os olhos de Dom brilham, implorando silenciosamente que eu considere seu
pedido. Seu grito no vácuo, como se não soubesse mais o que fazer.
— Nevaeh provavelmente está com raiva. Ninguém gosta de ser alvo de
mentiras, principalmente de quem ama. — Afago seu braço. — Vou tentar
achá-la e ouvir o lado dela, mas dê um tempo a ela para processar tudo.
Andrew está com um cigarro na boca, tragando calmamente enquanto parece
imerso em sua própria maré de pensamentos. Contudo, quando os braços de
Dom me rodeiam em um abraço, os de Drew fazem o mesmo, nos
incorporando em um desajeitado abraço em grupo. Me levanto com calma e
passo a perambular novamente pela festa, percebendo que ela parece estar um
pouco mais vazia. Provavelmente, as brincadeiras já haviam começado.
— Onde você se enfiou? — Escuto a voz de Hannah tornar-se mais aguda
para tentar sobressair ao som alto.
— Eu estava conversando com Dom e Drew, e você? — Analiso sua fantasia
e solto uma risada baixa ao identificá-la como Louisa Clark, a protagonista
de Como eu era antes de você. As meias de abelha não enganam a ninguém.
— Eu estava ganhando trezentos dólares. — Ela balança as notas na altura do
meu rosto e sorri grande. — Ganhei A Busca pelo Corpo de Ted While.
— Está brincando? — Balanço-a pelos ombros e abro um sorriso meio
descrente.
— É sério! — Hannah guarda as notas dentro do sutiã. — Fiz dupla com Josh
e achamos o corpo na mala do carro de um estudante que ajudou a organizar
a brincadeira. Dessa vez, ele morreu a facadas na piscina da faculdade por um
estudante. Acho que essa é a melhor noite da minha vida em tempos!
— Com Josh, é? — Ergo o canto dos lábios sugestivamente e empurrão sutil.
— Pare já com isso, somos só amigos. — Sibilo um "ainda" e tomo um
beliscão leve dessa vez.
— Aliás, você viu Nev por aí? — Transfiro meus olhos de seu rosto para o
ambiente lotado da sala. — Estou procurando faz um tempo.
— Ah. — O semblante de Hannah se ilumina. — Ela vai participar do Polícia
e Ladrão.
— O quê? — Minha voz sai um tanto mais alta.
— Eu estava saindo da brincadeira quando a vi chegar meio alterada, pronta
para ser uma ladra. — Aperto os olhos com força, sabendo que Nevaeh tende
a fazer coisas que ela jamais faria quando está sobre o efeito do ódio ou
desilusão.
— Sabe se já começou? — Hannah pesca o celular da cintura e confere o que
parece ser o horário.
— Daqui a vinte minutos no estacionamento do alojamento individual. —
Nem me despeço dela quando começo a correr pela festa em busca de
Thomas.
Acho sua cabeleira loira no meio de um pessoal de seu curso e cutuco seu
ombro com força.
— Olha só quem finalmente encontrei. — Thomas profere exasperado,
enlaçando minha cintura. — A minha garota.
Ele cobre meus lábios com os seus e finalizo o selinho, afastando-o
minimamente.
— Agora não é hora. — Resvalo meus dedos pelos seus fios teimosos,
afastando-os de sua testa. — Vou participar do Polícia e Ladrão.
— O quê?! — Ele parece acordar, se afastando totalmente. — Sabe que essas
brincadeiras sempre dão merda, Mack. É perigoso.
— Eu sei, mas Nev e Dom estão brigados e tudo parece estar meio fora dos
eixos porque minha amiga, sempre reservada, que odeia festas e socialização,
decidiu participar hoje. — Cuspo tudo em Thomas, atropelando as palavras
pelo desespero. — E preciso ir com ela.
— Você nunca brincou disso aqui, eles levam mesmo essa porra a sério.
Como a droga de um episódio de The Society, alguns com carros, outros não.
— Ele infla as bochechas com ar, e escorre os dedos nos pelos claros da
barba. — Seu Cadillac não corre tanto assim.
Nem relembro o fato de ter vindo com Josh, e que não daria tempo de buscar
meu o automóvel no alojamento feminino.
— E é por isso que você vai me emprestar seu Eagle Speedster. — Pouso as
mãos na cintura e tombo o corpo para o lado, com um sorriso pidão.
Ele arrasta a palma pela testa, afastando alguns fios que cobrem seu rosto
enquanto pondera sobre meu pedido.
— Tentar te negar isso só vai nos fazer perder mais tempo. — Thomas joga a
chave para mim. — Destrua o meu carro, mas não destrua a si mesma.
Capturo seus lábios em um beijo intenso, e agarro seu rosto com minhas
mãos.
— Prometo voltar viva. — Torço mentalmente para que Thomas não insista
em ir comigo, porque não quero que ele sequer tenha a chance de me ver
dirigindo em altas velocidades, sabendo que conheço a maioria das manobras
e me associe com a mulher dos rachas.
Sei que preciso contar a verdade, mas na hora certa. Agora que preciso ficar
longe das corridas para preservar minha dignidade, depois da quantidade de
merda que me envolvi, as probabilidades de ele descobrir antes da hora
são quase nulas.
— Não vai se oferecer para ir comigo? — Levanto as sobrancelhas, um
pouco descrente.
— Sei que não precisa de proteção e que pode lidar com isso sozinha. —
Thomas suspira e acaricia minha bochecha. — Estou
confiando cegamente em você. — Beijo a ponta de seu nariz e me afasto
dando passos para trás, sem despregar meus olhos dos dele.
— Prometo não decepcionar! — Começo a correr em direção ao carro, que
Thomas orientou estar estacionado quase em frente à mansão.
Afundo o dedo no alarme e logo Stormi responde, acendendo as lanternas e
gritando um barulho ensurdecedor. Acomodo meu corpo no banco do
motorista e sorrio. Um misto de felicidade por voltar a dirigir como uma
irresponsável e por sentir o perfume amadeirado de Thomas no interior do
veículo. Achar Nevaeh nem foi tão difícil, a pele negra brilhando sob a luz da
lua, envolta por um vestido branco antigo e um penteado de coque em cada
lado da cabeça entregam que ela é a Princesa Leia Organa, de Star Wars.
Estaciono de qualquer jeito e saio do carro, ouvindo as últimas considerações
do mesmo Brian que provavelmente esbarrei em uma festa passada. Ele está
em cima de uma picape gritando as últimas ordens do jogo. O grupo da
esquerda seria ladrão e o da direita polícia. A prisão é o estacionamento do
alojamento feminino e a brincadeira só acabaria quando o último ladrão fosse
preso, ou se ele corresse para a Zona Segura, essa que estamos, para vencer o
jogo. A brincadeira valerá por toda a Bolfok Town, e que Deus nos ajude.
— Sua dupla chegou. — Pulo em seu campo de visão, fazendo-a dar um
sobressalto de susto.
— Quê? — Nev leva a mão ao peito, parecendo estar afetada. — Como me
achou?
— Ouvi dizer que você e Dom não estão bem, e Hannah comentou que te viu
aqui. — Controlo minha respiração acelerada. — Por que está prestes a se
submeter a algo que com certeza não faria em dias normais?
— Porque estou cansada de ser normal! — Nev profere em um tom mais alto.
— Estou cansada de pensar tanto nos outros antes de fazer o que eu quero,
cansada de ouvir meus pais me enchendo em relação a Dominic, cansada de
pensar que um relacionamento é muito mais do que amor. Eu quero viver! Só
isso, um pouco de férias da minha zona de conforto de sempre. Quero poder
dizer aos meus filhos que, pela primeira vez, tomei uma decisão impensada
ou que fui uma jovem tola fazendo merda.
Nevaeh vive sob muita pressão, tanto dos pais quanto dela própria. Tentando
a todo custo ser perfeita, filha maravilhosa, namorada incrível, ter notas
impecáveis e estar totalmente fora de uma remota possibilidade de errar.
Nenhum ser humano vive assim, e o momento da explosão sempre chega.
— Por que o fato de Dom ser ateu nunca te incomodou antes, e agora sim?
— Antes eu pensava em nós com um prazo de validade, mas quando somos
adultos e estamos em um relacionamento, pensamos em um futuro juntos. Só
que as crenças de Dom, ou a falta delas, nunca me incomodou ao ponto de
cogitar um término. Poderíamos tentar conciliar, aos poucos, um se moldando
ao outro. — Nev engole em seco e prossegue. — Mas meu pai, o incrível
pastor Williams, me enche o saco todos os dias, interferindo na minha vida
como a droga de um pai protetor. Ele tem medo de que Dominic me
machuque como os outros caras, de que ele pule fora assim que perceber a
bagagem de uma família um tanto conservadora e muito religiosa. E ele
mentiu, droga, mentiu! Era só ter me dito, eu não ia condená-lo por nada.
— Amiga, se acalme. — Pouso as mãos nos ombros dela e massageio
levemente. — Mentir foi errado, e muito. Mas quando essa raiva, de tudo e
todos, passar, tente ouvi-lo. Vai ser bom entender o lado dele.
— Não sei, Mack. — Nev parece exausta. — Alguns casais estão destinados
a não darem certo. Existem coisas que simplesmente não podemos ceder um
pelo outro, e uma dessas são nossas crenças e convicções. Se para mim é
imprescindível me casar em uma igreja e viver imersa na comunidade, como
farei namorando um cara que sequer entra em uma?
"Ele também jamais poderia passar por cima do que ele acredita só por causa
de mim. Não se faz isso por absolutamente ninguém. Então, talvez, esse seja
um dos casos que não tem solução, daqueles que presenciamos e entendemos
que só o amor não basta. Estou começando a aceitar isso, Mack. De que nós
não temos futuro."
Eu sei, no fundo, que dizer isso doeu mil vezes mais nela do que em mim. No
entanto, ouvir que o casal que você mais torce na vida pode não dar certo, por
causa de algo simples e comum da vida, dói para um caralho. Qualquer um
que assista Dominic e Nevaeh implora ao universo que os mantenham juntos
para a vida, porque eles são daqueles casais que surgem na juventude e
permanecem até serem idosos, jogando damas em uma praça. A sintonia, o
respeito, a troca de olhares, a conexão, tudo. Eu amo ter a solução para um
problema, porém não tenho para o deles. É uma daquelas situações que
tememos não haver resposta, porque são valores, crenças e convicções que
não podem ser abandonadas. A religião é uma parte da sua vida que estará
embrenhada no seu relacionamento se você for praticante, e pode ser uma
pedra no seu sapato caso os dois não compartilhem de opiniões parecidas.
Não sei o que dizer, e de certa forma, o apito de Brian até me livra de uma
resposta quando ele pede que escolhessem um lado. Nevaeh rapidamente pula
para o esquerdo.
— Quero ser uma ladra hoje. — Aperto as chaves de Stormi entre meus
dedos. — Pronta para ganhar, Lennon?
— Não há outra opção — determino, caminhando até o carro.
Brian profere que os ladrões terão três minutos para fugir e então começariam
a ser perseguidos. O vencedor receberá o mesmo prêmio que no outro jogo,
os mesmos trezentos dólares. Uma adrenalina se apossa, calmamente, de todo
o meu corpo. Como se eu estivesse em mais um racha. A buzina alta soa,
incomodando meus ouvidos e Nev agarra meu braço.
— A buzina soou, já podemos fugir. — Ela grita em meio ao desespero,
vendo que não me movi. — O que está fazendo? Quer perder?
Encaro o aerofólio do carro de Thomas, e logo depois o painel de última
geração. Inclusive, o botão do modo turbo e as marchas adicionais para
ajudar na alta velocidade. Um sorriso perverso se esgueira pelo meu rosto
antes que eu possa freá-lo.
— Com três minutos de vantagem fica muito fácil. — Acaricio o volante e
tombo meu rosto na direção dela, ainda portando o mesmo sorriso. —
Sempre quis participar de uma perseguição policial, mesmo que de
brincadeira.
— O Thomas precisa tomar muito cuidado com quem se envolve, porque
você é completamente insensata. — Nev profere, exasperada. — Mais do que
imaginei!
Aguardo até que faltem dez segundos para que os três minutos acabe. Retiro
os saltos, jogando-os no banco de trás, piso na embreagem e mudo a marcha
enquanto afundo o pé no acelerador. Ainda posso ouvir a buzina de longe e é
como se a largada tivesse sido dada. Um carro, dos que estavam no grupo de
polícia, segue a gente de perto. Ele cola os faróis na minha traseira e começo
a ziguezaguear na pista, apenas por diversão. Nevaeh catou um capacete de
moto que estava no banco traseiro e colocou na cabeça.
— Essa merda é do Dominic. — Ela balança a proteção no crânio. — Sinto o
cheiro do desgraçado!
Deixo que a risada escape da garganta enquanto tombo a cabeça para trás,
olhando de relance para o capacete com uma caveira estampada que cobre a
cabeça de Nevaeh. Dois carros estão embicados próximos demais de nós,
então viro na primeira viela que encontro à esquerda, cortando as faixas de
trânsito sem um mísero respeito. Galhos e folhas estalam impetuosamente
nos vidros do automóvel. Stormi deve estar odiando isso tudo e temo o estado
que esse Eagle Speedster chegará ao final. Atingimos uma velocidade
perigosa o bastante para derraparmos em uma curva, e os barulhos de outros
automóveis cessam levemente, porque talvez ninguém queira arriscar muito
em um simples Polícia e Ladrão.
— A gente vai morrer! — Nevaeh grita em meu ouvido e puxa o blazer da
minha fantasia. — Diminua a velocidade, pelo amor de Deus.
Temos uma vantagem agora que não posso ousar diminuir, portanto pisar no
freio não é uma opção. Cubro o câmbio com minha mão e mudo a marcha,
acelerando ainda mais. Corto as ruas escuras e taciturnas de Bolfok Town.
Não há um mísero carro na rua que não esteja participando da brincadeira,
como se todos os moradores soubessem que seria perigoso demais sair em
um Halloween como esse. Ouço um ruído baixo e olho de relance para Nev,
que tem as palmas juntas na altura do peito e os orbes pregados. Consigo
entender que está rezando baixinho ao passo que avisto uma cancela de
longe, onde teremos que nos desfazer do carro para abri-la e liberar nossa
passagem.
— Escuta bem. — Grito para chamar sua atenção. — Teremos que sair do
carro brevemente, para liberar a passagem por esse rancho. Com certeza tem
polícia apenas aguardando para nos pegar, então você vai abrir e nós
correremos juntas até que possamos nos esconder por tempo o suficiente e
voltar ao carro. Entendeu?
Nevaeh balança a cabeça, parecendo nervosa demais para lidar com a
adrenalina que só me faz queimar, mais e mais. A sensação é como tomar um
alucinógeno, que faz meu sangue ferver e as batidas do coração acelerarem.
Minha amiga pula do carro e abre a cancela, de modo que passo voando pela
passagem e arranco a chave da ignição ao passo que fecho o carro. Um
garoto, provavelmente do grupo polícia, agarra minha amiga por trás, pronto
para levá-la a prisão. Agarro o braço dele e a puxo para mim em um
movimento brusco. Engancho a mão dela na minha e a arrasto pela estrada de
terra para longe deles. O matagal rente ao meu tornozelo provoca uma
coceira irritante, enquanto minha meia afunda na lama. Sim, esqueci-me de
colocar os saltos de volta depois de puxar o freio de mão do carro.
Os músculos da perna doem, como se estivessem gritando para que eu pare,
mas o espírito do jogo já havia se embrenhado em mim o suficiente para que
eu não desista. Abaixo meu corpo e agarro o de Nev para que ela faça o
mesmo. Assistimos juntas alguns ladrões sendo pegos e levados para a prisão
nos carros de quem é polícia. Quando a movimentação cessa, balanço a
cabeça em um comando silencioso para que voltemos ao Eagle de Thomas.
Retiro minhas meias 3/4 repletas de lama assim que ocupo o banco do
motorista e continuo a dirigir. Aprecio o silêncio da cidade e as luzes
amareladas que iluminam parcialmente a quietude do local.
— Será que todos os ladrões foram presos?
— Não importa mais. — Saco o celular do compartimento do carro. — Já se
passaram 50 minutos de brincadeira, vamos voltar para a Zona Segura.
Abro um meio sorriso ao constatar que Thomas estava certo: os estudantes
levam o Polícia e Ladrão bem a sério, como em um dos episódios de The
Society. Porém, torço mentalmente para que ninguém tenha se machucado
dessa vez. Ao avistar o estacionamento do alojamento infestado dos carros de
quem é polícia, me fazendo identificar Brian ali também, soube que o jogo
não havia acabado ainda. Dois automóveis esperam por nós, provavelmente
as últimas ladras. Eles se emparelham um em cada lado meu, querendo fazer
um sanduíche de Mackenzie. Trapaça batida demais para quem tem
experiência com rachas. Freio bruscamente e giro o volante para o lado,
subindo no meio fio pouco me importando com as pessoas desesperadas que
correm para trás, com medo de serem atropeladas.
— Você vai matá-los. — Nev tenta puxar meu pulso que cobre o câmbio do
carro e eu me afasto em um movimento brusco. — Temos que sair daqui, sua
irresponsável.
Volto para a pista, girando o volante para o lado esquerdo, e ultrapasso os
dois carros que quase colidiram. Invado o estacionamento em uma arrancada
só e faço uma lata de lixo, parada em meu caminho, voar. Mentalmente, sei
que pagarei pelo conserto da lataria do carro de Thomas. No entanto, com um
cavalo de pau, que quase faz nossos pescoços deslocarem, afundo o pé no
freio, sabendo que adentrei a Zona Segura. Ganhamos, e não estou surpresa.
Nevaeh parece não estar bem, porque pousa a mão na barriga e sua cabeça
balança levemente de um lado para o outro, como se estivesse desorientada.
Ela puxa a alavanca para abrir a porta no mesmo momento que tomba o
corpo para fora e vomita uma quantidade considerável de líquido. Franzo o
nariz em desgosto e corro para o lado dela, dando a volta no carro, para
ajudá-la. Minha amiga limpa a boca com o dorso da mão e ergue seus olhos
pretos.
— Aquele papo de que quero viver, fazer merda como uma jovem tola.
Esqueça tudo. — Ela abana a mão. — Nunca mais quero passar por isso.
Pensei que eu fosse morrer!
Acaricio suas costas levemente porque conheço os sintomas. Esse é o efeito
que altas velocidades e manobras bruscas causam em quem não tem costume.
Alguns jogadores nos parabenizam, sinto até mesmo beijos na minha
bochecha e sou balançada pelos ombros. Recebo os trezentos dólares e
entrego a metade para Nev.
— Temos que voltar à festa — murmuro, passando o braço pelos seus
ombros. — Preciso estacionar esse carro no mesmo lugar que estava.
Nevaeh não me responde, ainda afetada demais, se limitando apenas a acenar
com a cabeça e ocupar o banco do carona novamente.
— Só dirija como alguém normal dessa vez.
Volto à festa, e não demoro a perceber que há algo de muito errado no clima.
O som está consideravelmente mais baixo, e não tem uma alma viva
perambulando pela parte da frente da mansão. Estaciono o carro, mais rápido
do que o recomendado, e pulo para fora, assim como Nev. Sinto seus passos
me acompanharem com um pouco de receio, de maneira que prossigo a
caminhada até a soleira da porta e escuto gritos vindos dos fundos. Ao chegar
ao quintal de trás, um círculo de pessoas está formado em volta de algo.
— É briga! — Um cara desconhecido exclama, participando do coro de
apoiadores para que a confusão continue.
— Não vamos conseguir ver daqui. — Nev me alerta. — O segundo andar é
melhor, tem uma sacada em um dos quartos.
Subo, tendo a consciência que pulamos alguns degraus até o topo. Nev nos
conduz até o tal quarto que possui a varanda virada para os fundos, e faço a
porta de vidro correr. Mal posso acreditar na cena que passa como um vulto
pelos meus olhos. É como se eu fosse uma mera espectadora do pânico sendo
instaurado no Halloween. Thomas Eckhoff está segurando Andrew Bennet
pela gola da fantasia, enquanto desfere um único soco no rosto do próprio
amigo. O semblante do louro é de fúria, pura e genuína, das que franze seu
cenho, diminui seus olhos em chamas e torna sua face rubra. As pessoas no
entorno parecem gostar do que veem, gritando inúmeros incentivos, e os dois
amigos pouco parecem se importar por estarem protagonizando uma cena
dessas. Dominic é quem enlaça o tronco de Thomas e o tira de cima de Drew.
— Por que fez isso comigo? — Thomas grita para Drew. — Por que me traiu
dessa forma?
Dominic não deixa que o loiro espere uma resposta e simplesmente o tira
dali. Andrew parece meio desorientado, porque se enfia na multidão,
esbarrando em uma ou outra pessoa enquanto pousa a mão em um dos olhos,
que com certeza ficará roxo pelo soco. Ninguém parece saber exatamente
como a briga começou e por qual motivo, mas de fato, nenhum desses
estudantes esperaria ver dois amigos de longa data se atracando no quintal de
uma fraternidade no meio de uma festa.
— Andrew sequer revidou. — Nev murmura ao meu lado. — Acho que a
culpa o impediu.
— Está sabendo de algo? — Me apoio na sacada e viro meu corpo na direção
dela.
— Peguei Andrew e Lewis no flagra na casa deles, em um dos dias que eu
estava com Dom. — Nev suspira, e a afirmação não me surpreende muito. —
Mas eles me fizeram prometer não contar nada a Thomas, e eu concordei
porque não cabe a mim dizer nada.
Sei de muitas coisas sobre Eckhoff. Seus motivos para as mágoas com Jessie,
o quanto seu pai infernizou sua vida e a da mãe e a dor dos processos de
guarda. No entanto, o porquê de Thomas odiar Lewis não faz parte do meu
conhecimento. E seja lá o que for, me parece sério o suficiente, já que
ocasionou em uma briga com Andrew.
Ao encarar as nuvens pesadas que tomam o céu da cidade, um frio na barriga
se apossa de mim. Porque, inconscientemente, já tenho a noção de que o caos
acaba de se instaurar.
E que um período de tempestades acaba de começar.
É... Sejam bem-vindos a uma Bolfok Town um pouco mais sombria.
Gatilho: violência doméstica, relacionamento abusivo e transtornos
psicológicos. Se tais problemáticas te afetam, não force. Pule o capítulo e me
chame no privado das redes sociais para que eu resuma os acontecimentos.

Ninguém teve notícias de Thomas ou Andrew depois da festa de


domingo. Alguns querem acreditar que os dois se trancaram em seus próprios
casulos, repassando fielmente cada momento do Halloween. Quando o loiro
foi puxado por Dominic, tive tempo de descer as escadas com rapidez e
correr atrás deles. Mas, não tive acesso a muitas informações, infelizmente.
Tirando algo que o Hopkins me disse que ficou gravado na minha mente.
— Às vezes, quando temos um amigo que odeia alguém, é quase moral
compartilhar do mesmo sentimento. — Dom iniciou, escovando os fios da
franja para trás. — Não por um simples apoio moral ou compaixão, e sim
porque essa pessoa odiada fez algo ruim o suficiente para que fiquemos ao
lado de nosso amigo.
Lembro-me de torcer os dedos das mãos suavemente e questionar o que
Lewis havia feito de tão ruim.
— Não é o que ele fez. — Dominic respondeu. — Na verdade, é exatamente
sobre isso. O que ele poderia ter feito e escolheu não fazer.
Estou tentando interpretar esse pequeno diálogo há dois dias. Já que Thomas
não responde nenhuma de minhas mensagens ou ligações desde o domingo, e
hoje é terça. Me parece que o loiro recebeu uma ligação importante e partiu
para Oroland County ontem, o que ocasionou nesse sumiço. E mesmo que eu
esteja abarrotada de trabalhos para fazer, não consegui, nem por um instante,
tirá-lo da minha mente. Quero saber se ele está bem, se comeu direito porque,
quando fica nervoso, tende a perder a fome. As preocupações abarrotam
meus pensamentos, e os tornam enevoados. Com uma névoa espessa que me
impede de focar em minha prioridade: a faculdade.
— Desencana. — Jules murmura ao meu lado. — Ele vai voltar daqui a
pouco.
A mulher coberta de tatuagens divide a mesa do Campus comigo, enquanto
finge não reparar demais em Maxon conversando com uma líder de torcida.
— Se continuar olhando assim, eles vão derreter ou sei lá. — Lanço-a um
olhar enviesado e ela empurra minha cabeça de leve.
— Sabe, — Jules inicia — jamais pensei que eu fosse ciumenta, porque
nunca gostei de alguém ao ponto de sentir esse incômodo maldito na boca do
estômago. Que inferno, logo o Maxon.
Maxon Stewart se enquadra, em partes, no famoso estereótipo de atleta
Hollywoodiano. Com seus 1,87 de puro músculo, um dos braços fechado de
tatuagens e um desenho incompreensível que sobe pela gola de sua camiseta,
no pescoço. A cabeleira é de um branco, do tipo platinado, e algumas
mulheres amam chamá-lo de Jack Frost. No entanto, o mais atraente nele são
os olhos violetas. Uma cor extremamente rara, que acreditam ser uma
variação de azul, presente nas vistas da atriz Elizabeth Taylor. O cara é
realmente um gato, porém, segundo as más línguas, um completo babaca.
— Como isso foi acontecer, inclusive? — Remexo em alguns dos meus
livros.
— Participo de um grupo de motociclistas, os CrazySkulls (Caveiras loucas).
Estou imersa nesse mundo desde pequena, porque meu pai é um dos
fundadores, e nós somos de Altoona. — Jules suspira, parecendo divagar
entre inúmeras memórias. — Então, em um dos dias de rock antigo no bar da
nossa sede, ele estava lá, com os amigos do time. Eu não sei o que deu em
mim, Mack. Mas, naquela noite, depois de vê-lo tecer uma variedade de
elogios para meu talento nas tatuagens, fui para a cama dele. Como em uma
das noites de sexo casual que estou acostumada, só que nós não paramos, e
algo nele fez com que eu me apaixonasse.
— E o que você acha que ele sente por você? — Apoio uma das mãos no
queixo, com a curiosidade transbordando em minhas entranhas.
— Não sei. — Jules gira os olhos. — Ainda não tive coragem de contar o que
sinto.
No mesmo instante, Maxon capta nossa mesa com o olhar e abre um grande
sorriso. O homem dos olhos violetas caminha em passos tranquilos até nós e
deixa um selinho demorado na boca de Jules. Ele acena brevemente para mim
e se senta conosco.
— Ei, querida. — Stewart segura uma das mechas do cabelo de Jules e
arrasta para trás da orelha da mulher. — Oi, Mack.
Cumprimento-o de volta e entramos em um assunto banal sobre o dia de
Ação de Graças, que seria daqui a duas semanas. Ele está convidando-a,
sutilmente, para ir até a casa de sua família. Contudo, Jules parece não ter
captado a mensagem ainda.
A fala de Maxon é interrompida assim que meus olhos se chocam na figura
de um Thomas cabisbaixo, adentrando os portões principais da Bolfok
College.
Há um corte em seu supercílio, sua pálpebra está inchada, com resquícios de
sangue seco e, ao redor de seu olho esquerdo, a coloração púrpura completa o
cenário de horror em seu rosto. Até mesmo seu lábio inferior está inchado e
entendo, rapidamente, que ele entrou em uma briga feia. Nem me preocupo
em controlar os impulsos quando corro até ele. Suas vistas, de um azul
intenso e brilhante, estão mais opacas e ele ergue um pouco as sobrancelhas
quando entro em seu campo de visão.
— Thomas. — Pouso uma mão em cada lado de sua bochecha. — O que
houve com você, amor?
Ele está tão imerso em sua própria dor, que imagino que a palavrinha passa
despercebida. Contudo, pelo modo como seus olhos adquirem um brilho
diferente, quebro minhas expectativas.
— Me chamou do quê? — Monto meu melhor semblante de confusão, como
se eu não fizesse ideia do que disse.
— Do que o quê? — Balanço os ombros. — Te chamei de Thomas, oras.
— Não sei não, hein. — Suas mãos cobrem meu pulso e eu levo os orbes até
os nós de seus dedos completamente intactos. — Acho que ouvi outra coisa.
Seja lá com quem Thomas lutou, não houve resistência. Ele não revidou.
— Me conte o que houve com você — ordeno, levantando meu dedo em riste
e ignorando qualquer questionamento anterior.
— Agora não, Mack. — Seu suspiro faz com que uma lufada de ar bata em
meu rosto. — Tenho um trabalho para apresentar e depois te procuro para
conversarmos.
E assim, sem mais nem menos, ele segue seu caminho até o interior do prédio
de química.

Estou teclando furiosamente no notebook quando ouço as costumeiras três


batidas na madeira maciça do meu alojamento. É fácil reconhecer o toque
como exclusivo de Thomas, e a ansiedade por saber o que houve com seu
rosto me faz pular da cama em um movimento rápido. Assim que arreganho a
porta, tenho um vislumbre da figura corpulenta do homem que se apoia no
batente. Os hematomas no rosto me fazem contrair as feições, como se a dor
estivesse em mim. Aperto os lábios, até que eles formem uma linha reta, para
que nenhuma pergunta invasiva escape pela minha boca.
— Preciso de você. — O pedido sai como uma súplica, através de um
sussurro doloroso.
Abro os braços, dando espaço para que ele se acomode no meu peito.
Envolvo seu tronco e acaricio seus cabelos calmamente. O aroma de
amêndoas e perfume amadeirado invade minhas narinas, fazendo com que eu
franza o nariz. Afago suas costas enquanto trago seu corpo cada vez mais
para dentro do quarto.
— Quer me contar quem fez isso com você?
De primeira, a imagem de Andrew irrompe pelos meus pensamentos.
Contudo, não há muita lógica no fato de que, no Halloween, ele preferiu não
revidar a agressão de Thomas, e depois destruir o rosto do melhor amigo não
me parece algo que Drew faria. Arrasto o loiro para a minha cama, e ajeito os
travesseiros para que seu corpo se acomode bem no pequeno espaço de um
colchão solteiro.
— Foi o meu pai. — Eckhoff estreita os olhos ao proferir a confissão, como
se as palavras lhe causassem dor.
Minha saliva, de repente, se torna espessa. E é como engolir pedaços de
vidro. As palavras somem da minha boca, e acho que isso motiva Thomas a
continuar.
— Ele não faz muito isso, quer dizer, é até raro. — Ele põe a mão no queixo,
em uma expressão pensativa. — Se eu tentar contabilizar, diria que foram três
ou quatro vezes. Meu pai tem algo, Mack. Algo que ninguém sabe o que é,
mas ele reage muito mal a situações de frustrações ou que provoquem sua
raiva. Na primeira vez, eu tinha por volta dos nove anos, e foi quando a Jessie
o contou que eu estava lendo um livro para meninas. O velho sempre foi
conservador e arredio, e quando soube disso, ficou com uma raiva absurda. E
o negócio ficou sério. É como se ele estivesse tendo um ataque de fúria. No
momento em que começa a me bater, parece incapaz de se controlar e parar.
"A segunda vez, eu tinha uns dezessete anos, e fui pego fumando maconha
atrás da escola. Eu estava errado, é claro. Mas nada justifica o quanto apanhei
naquela noite. Eu viro um saco de pancadas nas mãos dele, meu corpo fica
inerte, como se eu não pudesse reagir, e eu poderia até ousar dizer que me
acostumei com a dor. O que é mentira, porque ninguém nunca se acostuma.
Dói pra caralho, Mack. Você não imagina o quanto. Ainda mais por ser o seu
pai, aquele que deveria cuidar, amar, dar afeto. E o meu só sabe bater. É
assim que ele resolve as coisas. Para depois de um tempo me encher de
presentes, é confuso e caótico, mas é como se ele agisse de maneira
compensatória. Como se sentisse algum tipo de culpa pelas agressões."
A primeira lágrima transborda dos olhos oceanos, agora um tanto opacos.
Sinto pingar em minha blusa, e isso me impulsiona a aumentar a frequência
do cafuné em suas costas. É como compartilhar a dor, porque a sensação é de
que alguém está cravando as unhas no meu coração, fazendo-o sangrar.
Quero protegê-lo de tudo e todos. Colocá-lo em uma bolha de amor de
carinho, por isso volto minha atenção ao seu relato assim que sua voz
embargada preenche o ambiente de novo.
"A terceira vez foi por causa da oficina. Robert Johnson é controlador e
nunca foi a favor da independência dos filhos. Parece loucura dizendo assim,
mas é a verdade. Ele nos controla através do dinheiro, participando
integralmente dos custos da faculdade de Lewis e garantindo assim que o
cara demore a sair da aba de suas asas. Robert tentou fazer o mesmo comigo,
me obrigando a ser um universitário, algo que eu nunca quis. E, quando
decidi abrir meu próprio negócio, a Thunderstorm, a mansão dos Johnson
relembrou como é o fogo do inferno. Como você sabe, consegui abrir a
oficina, mas, na época, eu não tinha crédito bancário o suficiente para abrir
uma empresa sozinho, e ele conseguiu me manipular para que eu achasse
uma boa ideia tê-lo como investidor. Meu pai tem vinte por cento da loja e
corro nos rachas há três anos para tentar juntar grana o bastante para comprar
a parte dele. Só que é claro que a dívida com os advogados da minha mãe
impede que esse dinheiro saia mais rápido."
— Ah... Tom — murmuro, beijando sua têmpora. — Por que nunca me disse
isso? Eu poderia tentar ajudá-lo.
— São muitas dívidas, Mack — responde, acariciando os nós dos meus
dedos. — Eu jamais deixaria que você gastasse um tostão sequer com isso.
Sinto-me, instantaneamente, culpada. Tive inúmeras oportunidades de deixar
que Thomas ganhasse, e nunca me importei o suficiente para isso. Há tempos
que sei o quanto ele está enrolado com dívidas, e é óbvio que a grana dos
rachas ajudaria muito. Fui egoísta, como se o fato de eu ter mudado ao longo
dos anos, tentado evoluir, não tivesse valido de nada.
— Sua mãe nunca percebeu os machucados? — Capturo uma mecha loira e
enrolo entre meus dedos.
— Na primeira vez, eu ainda morava com ele, então ela nem viu. E eu só
contei uma vez, na época da maconha. — Sinto seu corpo se mover, à medida
que ele suspira. — Oroland County é uma cidade litorânea pequena, onde
quem tem o poder são os que molham a mão das autoridades com muito
dinheiro. Minha mãe ficou fora dos eixos ao saber que meu pai me agrediu
uma vez, imagina três ou quatro vezes. Ela tentou ganhar a minha guarda,
Mack. Como tentou. Porém, a única coisa que ganhou foi um emaranhado de
processos perdidos e uma dívida exorbitante. Só me livrei daquela casa
quando adquiri idade o suficiente para escolher meu guardião. E foi o dia
mais feliz da minha vida.
— Tom — chamo e Eckhoff tomba a cabeça na minha direção, incentivando
que eu prossiga. — Ninguém nunca tentou impedir?
Ele sabe do que estou falando. Imagino que em uma casa com empregados,
uma esposa, e o próprio Lewis, ninguém nunca tenha tentado pará-lo, ou
sequer tentado defender uma criança.
— Impedir? — Thomas solta uma risada dotada de escárnio. — Sabe, é até
compreensível que Joanne não erga a voz para aquele homem. A mãe de
Lewis vive por ele; a mulher era uma cirurgiã famosa e largou tudo pelo
marido. Ele faz e fala coisas, com tanta sinceridade no olhar, que a faz
acreditar que é realmente amada. Mas esse é um amor feio, egoísta, dos que
amarram correntes a sua volta e pesa, pesa demais. Aquela íris, geralmente
tão intensa, está sempre apagada e opaca. É como se ele sugasse todas as
energias dela. E eu sempre fiquei de olho, sei que Robert nunca bateu nela,
contudo, a manipulação e as palavras cortantes já são um tipo de agressão.
Sempre me perguntei quem era o problema, e por que ela não saía disso.
Porém, mamãe fazia questão de me dizer que ninguém tem a completa
dimensão de um relacionamento abusivo até estar nele.
"Até que eu atingi idade e maturidade o bastante para entender que ele é uma
pessoa tóxica: Robert é o abusivo da história. Porque mamãe não se isenta da
culpa de ter se envolvido com um homem casado, mas, nas histórias que ela
me contava, era perceptível o quanto ele dizia e fazias coisas que a
impulsionava a acreditar no amor dele, às vezes ela até duvidava do quão
errado era estar com alguém comprometido. É muito pesado, Mack. Sinto-me
sem energias só de relembrar isso tudo, só de ouvir, imagina viver. Temos
que ter empatia, e realmente compreender que a culpa nunca é da vítima."
Meu corpo parece estar em estado de letargia, como se minhas capacidades
motoras estivessem perdendo a mobilidade. Tenho receio até mesmo de me
mover. A complexidade e profundidade da história familiar de Thomas
tomam até o último fio do meu cabelo. E, mais uma vez, reconheço o quanto
conhecemos as pessoas tão superficialmente. Saber dos seus gostos, cor
preferida e preferências em geral, em nada se comparam com o lado sombrio
de uma infância marcada por agressões e abusos.
— E Lewis? — questiono, secando o restante de suas lágrimas. — Ele
apanhava também?
Thomas repete a risada de escárnio e ergue o corpo, até ficar sentado de
frente para mim.
— Que nada. — Ele abana a mão, em um gesto descontente. — Lewis
Johnson é perfeito, obediente o bastante para não incitar o ódio de nosso
progenitor. Ele nunca seria encontrado fumando atrás da escola, nem se
envolveria em nenhuma briga. As coisas na mansão Johnson são exatamente
do jeito que tem que ser, o único problemático é justamente o filho bastardo.
O de fora do casamento, o que não deveria ter nascido. Seu amiguinho é um
covarde de merda! Ele poderia ter dito algo, usado a adoração do meu pai
para uma boa causa. Mas, não, Lewis sempre preferiu ficar lá, só assistindo
enquanto eu apanhava. Que tipo de pessoa sádica vê o meio-irmão apanhando
e não levanta um dedo para defendê-lo?
A pergunta fica no ar, e tenho a noção de que, na verdade, ela foi retórica.
Não cabe uma resposta, e mesmo que coubesse, não faço ideia do que dizer.
Então, fico ali, calada, até que a respiração ofegante de Thomas regularize e
ele volte a falar.
— Lewis não me defende porque é conveniente para ele. — O loiro afirma
com veemência. — Colocando a porra de um alvo na minha testa, fica mais
difícil para o meu pai direcionar atenção a Lewis. E ontem, quando o mundo
estava desabando na mansão Johnson porque um dos filhos de Robert foi
visto com outro cara, eu deixei que a culpa caísse na minha cabeça. Foi uma
escolha minha, tomar a frente e dizer que era eu, mais uma vez, tentando
manchar a imagem da família perfeita.
Thomas completa dizendo que a grande influência de seu pai o permite ter
acesso a informações sobre seus filhos, mesmo que eles morem em outra
cidade. Nós não sabemos como exatamente essa informação sobre Lewis
chegou aos ouvidos de Robert, contudo é difícil ficar surpreso sabendo a
quantidade de contatos que o homem tem na Bolfok College.
— Por que fez isso? — Empertigo minha postura.
— Porque eu sei o quanto Lewis estaria fodido se houvessem provas de que
era ele. — Thomas diz, a mágoa presente em suas palavras. Fico tão aflita,
que começo a descascar o esmalte da unha. — Imagina o agressivo do meu
pai descobrindo isso. Lewis depende totalmente dele, Mack. Desde os custos
com a faculdade até a alimentação. Ele não tem fonte de renda e se o pai
descobrisse, não ficaria apenas com uns hematomas no rosto, como sem casa
e estudo também.
— Se ele tiraria tudo de Lewis, por que não tirou de você?
— Porque ele acha que isso foi mais uma tentativa de irritá-lo. — Thomas
infla as bochechas com ar e solta em uma lufada agressiva. — O ego daquele
homem é tão enorme que ele consegue supor que tudo é sobre o grande
Robert Johnson.
— É por isso que odeia Lewis? — Engulo em seco. — Por ele nunca ter te
defendido?
— Ódio é muito forte, acredito que seja apenas uma maneira de me
expressar. O sentimento é de decepção e tristeza. — Sinto o coração afundar
um pouco por escutá-lo falar assim de alguém que amo tanto. — Ele não
precisa necessariamente me defender, não cobro isso de ninguém, até porque
nem acho que preciso. Porém, Lewis podia ter feito algo. Me direcionar uma
palavra amiga, confortar o irmão, ajudar de algum jeito ou sequer fugir
enquanto via meu pai me bater. E não, ele ficava lá, escondido atrás de uma
pilastra da mansão, só assistindo tudo. Como se toda a cena fosse um filme
de terror campeão de bilheteria.
"É o que sempre vejo nos meus pesadelos. O cenário da mansão onde vivi,
sinto a dor absurda no meu maxilar, subindo pela mandíbula até o olho, como
um maldito veneno. Então, escuto um vaso se estilhaçar no chão, e meu pai
balança meu corpo com brutalidade. A lembrança é tão vivida na minha
mente que consigo ter um vislumbre até dos olhos cheios de lágrima da mãe
de Lewis. E o maldito ficava lá, escondido atrás da pilastra, vendo tudo. Isso
fica se repetindo na minha mente noite após noite, e não existe nada que faça
parar. Essa coisa de filmes românticos, do cara dormir ao lado da mulher que
gosta e não ter pesadelos é uma completa balela para mim."
As palavras estão enterradas no fundo da minha garganta, de modo que não
consigo ao menos organizá-las de forma coerente. É como uma nuvem
espessa tomando cada canto do meu cérebro, me impedindo de pensar com
clareza em algo que possa confortá-lo ou pelo menos abrandar um pouco da
dor que ele está sentindo. Eu quero ter esse poder de arrancar todo o
sofrimento que as feições contorcidas dele exibem.
— No Halloween, — Thomas pigarreia — flagrei Andrew e Lewis se
beijando em um dos quartos. Eu simplesmente surtei, Mack. Com o meu
melhor amigo! Porque na minha mente, não fazia sentido que ele estivesse se
envolvendo com alguém como Lewis. Depositei tanta confiança em Drew e
Dom ao contá-los minha história e os motivos da minha aversão pelo
Quarterback, que fiquei insensato ao saber que meu amigo ignorou tudo isso.
— Eu nunca vou compreender de fato tudo o que você passou, porque não
estive no seu lugar — inicio meio receosa quanto à reação de Thomas. — Só
que toda história tem outro lado. Existe sempre aquele que está no polo
oposto vendo e vivendo as situações de formas e perspectivas diferentes.
Lewis nunca me contou nada disso, mas quando conversamos sobre a
infância dele, sabe o que eu vi?
Thomas nega em um manear de cabeça.
— Medo — disparo de uma vez só. — Muito medo. O efeito da fúria do seu
pai pode não ter só te afetado, mesmo que você tenha sido o mais atingido.
Acredito que conviver com alguém tóxico causa cicatrizes em todos, no
geral. Como uma doença infecciosa ou um efeito dominó. De formas
diferentes, cada um fica marcado de um jeito.
Um silêncio sepulcral invade o ambiente, e quase posso ouvir as engrenagens
do cérebro de Thomas trabalhando avidamente. Acompanho a mudança em
seu semblante, desde o confuso até a defensiva.
— Está defendo-o só porque ele é seu amigo.
Inspiro e expiro calmamente, sabendo que preciso de paciência para lidar
com ele.
— Estou apenas te mostrando que existe outro lado, e que todo mundo
merece um direito de resposta.
Na minha concepção, todo ser humano tem o direito de se defender e
justificar seus atos. É o que chamo de justiça: o resultado de um acordo entre
os homens e o encontro de um meio termo. Na filosofia, segundo alguns
sofistas, o homem que se torna verdadeiramente justo parece injusto diante
dos outros homens, podendo ser até crucificado. E a pessoa que de fato é
injusta, mas sem parecer injusta, acaba tornando-se justa no meio de outros
indivíduos. O ponto é que os lados da moeda são sempre diferentes, cada um
com a sua perspectiva e sua história. Tendo seu caráter posto em prova, esse
lado merece a oportunidade de se explicar ou se defender. É claro que pensar
em Lewis como uma pessoa ruim, ou que não ajudaria seu próprio irmão, não
é fácil, porque eu amo meu amigo, e nós sempre idealizamos, até
inconscientemente, as atitudes de quem amamos.
— Eu vou conversar com ele. — Thomas decreta em um rompante. — Vai
ser doloroso reviver o passado, mas nós precisamos disso. Ouvir o outro lado
da história. E, talvez, esse diálogo diminua um pouquinho da dor aqui dentro.
— Meu bem, — pouso a mão em seu queixo e o viro para mim — você
precisa de ajuda de um profissional.
— Está me empurrando para a terapia, não é? — A pergunta é sincera, sem
deboche ou sarcasmo.
— Esses pesadelos aguçam sua ansiedade e te arrancam até uma boa noite de
sono. — Engulo a saliva, sentindo minha boca seca. — Você ainda tem
dificuldade para apresentar os trabalhos, falar em público, e tudo isso é
resultado das cicatrizes deixadas pelos traumas que você viveu. A questão
dos insultos na escola, a violência doméstica e o relacionamento abusivo com
o próprio pai somado podem acarretar inúmeros transtornos. Ninguém é fraco
por sofrer com essas marcas, pelo contrário, você é muito forte por aguentar
isso e ainda defender Lewis, tratar maravilhosamente bem sua madrasta e ser
um porto seguro para sua mãe. Não vai ser o amor ou uma grande paixão que
vai curar a sua mente, muito menos uma mulher. O alívio de estar sendo
tratado corretamente só vem de um profissional especializado. Você já
pensou demais nos outros e esqueceu-se de cuidar do seu psicológico. Seja
gentil com ele dessa vez.
Aguardo, com paciência, a reação dele. Não sei o que esperar de alguém que
sofreu tantas pancadas da vida, mesmo sendo tão jovem. É comum que
algumas pessoas tenham certo tipo de resistência quanto a terapia, digo isso
porque eu tenho. Remexer no passado é como afundar o dedo em uma ferida
aberta e retorcer até que doa mais e mais. No entanto, a melhora gradativa
pode ser inimaginável. Já houve um tempo em que eu me tratava e conseguia
sentir uma paz de espírito exorbitante. Nada como estar bem consigo mesmo,
no auge de sua plenitude.
— Eu sei que preciso ir e até tenho vontade. — Solto o ar, que nem sabia que
estava prendendo, totalmente aliviada. — Mas sempre que estou perto de dar
o primeiro passo, parece que algo ou alguém me empurra, me fazendo voltar
uma casa. Acho que é o medo.
Um lampejo invade minha mente e rapidamente meu semblante ilumina. É
como chegar ao bendito pote de ouro no arco íris ou gritar Eureca ao achar
algo importante.
— Eu tenho uma ideia — começo, um tanto receosa. — E se fôssemos
juntos?
— Como assim? — Perscruto seu cenho franzido em confusão e prossigo.
— Às vezes, eu converso com a Reitora Hayes sobre algumas inseguranças e
problemas que me afetam diariamente. E ela me disse, em um desses dias,
que talvez fosse bom que eu frequente o Departamento de Psicologia. —
Solto tudo de uma vez, tentando não me embolar com as palavras. — Lá tem
algumas salas com atendimento diário por parte dos estagiários na supervisão
de um psicólogo formado, e não tem custo. Podemos marcar nossas sessões
no mesmo dia ou em horários parecidos, com profissionais diferentes, é claro.
Talvez esse seja o impulso ou apoio moral que precisamos. É só uma ideia,
não quero ser invasiva e...
Thomas interrompe minha fala, cobrindo meus lábios com os seus. Sua
língua desliza sobre a minha, trazendo a habitual fusão de sensações que
apenas um beijo dele pode causar. A quentura proveniente das mãos que
seguram cada lado do meu rosto faz meu peito inflar. Ele finaliza o beijo
mordendo meu lábio inferior.
— Eu amei a ideia — sussurra próximo ao meu ouvido, colando sua
bochecha na minha. — Vou gostar de saber que você estará lá por mim e eu
por você.
Deixo que um pequeno sorriso eleve minhas maçãs do rosto.
— Vamos marcar uma consulta amanhã mesmo então — determino,
acariciando os fios de sua nuca.
— Como você quiser, minha rainha.
Thomas se deita, aconchegando-se no meu colchão e me puxa consigo. Ali,
sendo abraçada por seu corpo grande, sentindo o calor que provém do
conforto de seus braços ao meu redor e entrelaçando nossas pernas, uma
percepção me atinge como um raio em uma tempestade.
Estou absoluta e irremediavelmente apaixonada por Thomas Eckhoff.
Tenho essa sensação de leveza, mesmo após conversar sobre assuntos que
portam uma carga muito pesada. É como estar solta e livre: um sopro de
alívio após um dia cansativo. Eu já deveria ter percebido antes, mas fui lenta
demais. Porque os batimentos cardíacos acelerados na presença dele, a
felicidade genuína, as risadas que fazem minhas bochechas doerem, o
sentimento de plenitude, o frio na barriga e o suor nas palmas das mãos só
poderiam indicar paixão.
Sinto-me tão bem, mas tão bem, que eu poderia fazer desse abraço a nossa
eternidade.
Gatilho: Transtornos psicológicos, problemas familiares e
relacionamento abusivo.

Sempre ouvi dizer que todo mundo tem medo de alguma coisa, e que
é praticamente impossível existir uma pessoa sequer que não tema nada.
Existe uma série de reflexões acerca desse tema, mas ninguém nunca chegou
perto de retratar o que eu sinto quando estou apavorado.
Eu poderia começar com uma comparação: o medo é como o poder do
Homem-Formiga. A situação em que você está enfrentando geralmente é do
tamanho da versão pequena do super-herói, contudo, o pavor faz o homem
encontrar a forma de gigante. É assim com um problema. Talvez, ele seja
pequeno como uma formiga, e o fato de você temê-lo, engrandece essa
formiga, transformando-a em um bicho enorme. E é nesse ponto que o medo
te paralisa.
Quando você sente que ele está percorrendo suas entranhas gradativamente,
afastando o poder da sua mobilidade, interrompendo o envio que seu cérebro
sinaliza de que você precisa se mexer, fazer algo. No entanto, eu fico inerte.
Como um peso morto, inútil.
O meu medo se chama Transtorno Explosivo Intermitente, carinhosamente
nomeado de TEI ou Síndrome do Hulk. Explicando por alto, a condição gera
a incapacidade do indivíduo de gerenciar seus impulsos agressivos, levando-
os a protagonizar ataques de fúrias completamente desproporcionais,
podendo ser severos ou não. Após a explosão, é comum que o paciente sinta
arrependimento, culpa ou tristeza. A psiquiatra disse ao meu pai que essa é a
condição dele. E também o motivo de seus ataques de raiva.
A profissional ainda salientou que não há um motivo concreto para o
desenvolvimento desse transtorno, mas afirmou com exatidão de que esse
comportamento furioso não parte de uma ação premeditada. Tudo acontece
de repente em sua mente e corpo, como uma explosão de sentimentos
raivosos que surgem sem dar sinal, sem avisar.
Robert Johnson foi diagnosticado anos depois de ter espancado um de seus
filhos. Nós acreditávamos, na época, que ter descoberto Thomas fumando
atrás da escola era motivo o suficiente para fazê-lo enlouquecer de raiva.
Mas, a psiquiatra reafirmou: "seu pai não planeja o ataque por ter ficado
possesso pela rebeldia do filho, o fato pode apenas ter incentivado que o
ataque viesse".
No entanto, a Senhora Belmont, do Departamento de Psicologia, reafirma que
a Síndrome do Hulk não faz do meu pai menos abusivo, e que o transtorno
não justifica o fato de ele ser tóxico com os filhos e com a esposa. Além
disso, a síndrome não o impede de fazer escolhas. A dele foi não prosseguir
com o tratamento. O meu cérebro sempre parece um pouco desorganizado
quando penso nisso, como se eu jamais pudesse encaixar todas as
informações jogadas em mim para uma tomada de decisão.
Meu irmão não sabe de duas coisas: a primeira é o diagnóstico do papai,
porque Robert não deixou que contássemos a ele, e a segunda é que, na
segunda-feira, enfrentei meu medo pela primeira vez.
Dentro dos dois ataques do meu progenitor direcionados a Thomas, eu nunca
havia reagido. O pavor sempre se jogava em cima de mim como um maldito
gigante, me impedindo de fazer algo. Porém, o terceiro foi o estopim. Com a
ajuda das consultas semanais com uma das psicólogas da Bolfok College, o
medo está diminuindo de tamanho, e anteontem eu pude enfrentá-lo. Eckhoff
já havia se mandado da mansão quando tomei o impulso de confrontar o
velho. O resultado? Essa marca arroxeada ao redor dos meus olhos.
Robert precisa de tratamento. É inútil confrontá-lo no meio de um ataque de
fúria, porque é como se ele não estivesse no poder de sua consciência. Então,
o pequeno embate de dois dias atrás ocasionou nele machucados assim como
em mim.
— Você não precisa me olhar com essa cara de coitado. — Ouço a voz
cortante e pisco os olhos rapidamente, acordando de meus devaneios. — Não
estou aqui para ouvir suas explicações.
Esquadrinho o rosto do meu irmão com calma, analisando sua postura
agressiva. Olhos faiscando raiva, cenho franzido e lábios crispados. Estamos
por volta de trinta minutos tentando adotar um comportamento aceitável para
que role uma conversa pacífica. Não que eu ache que sua presença no meu
quarto de fraternidade tenha como objetivo sairmos daqui abraçados e
cantarolando alguma música feliz de família. A quem queremos enganar?
Nosso pai estragou qualquer resquício de boa convivência entre nós através
de seu jeito diferente de resolver conflitos.
Tenho uma noção breve, conhecendo meus avós como conheço, que a criação
de Robert foi tradicional e rígida. E, segundo a antiga médica dele, é comum
que reproduza — mesmo sem intenção — alguns comportamentos de seus
pais. Então, a gente supõe que o Johnson ache normal ser distante dos filhos
de forma emocional, além de adotar um comportamento punitivo quando
enfrenta casos de mal comportamento ou rebeldia por parte do filho. No
entanto, ele acaba exagerando nas punições e isso culmina no seu
comportamento compensatório. Comprando inúmeros presentes para
Thomas, embora meu irmão não aceite.
— Está aqui para que, afinal? — Giro na cadeira da pequena mesa de estudos
do meu quarto. — Já que está pouco interessado em ouvir meu lado da
história, devia ir embora, Thomas.
— Pois eu não vou — murmura, cruzando os braços como uma criança
birrenta. — Precisamos falar sobre o passado.
Inflo as bochechas com ar, pensando se vale a pena lavar toneladas de roupas
sujas. Relembrando momentos dolorosos demais para nós. É quando penso
em Andrew e no quanto expor meu lado da história pode contribuir para uma
evolução na atual conjuntura da amizade deles. Se Thomas souber que nosso
envolvimento é mais do que casual, talvez considere acelerar uma conversa
entre eles, para que se resolvam logo. Encaro o rosto ainda cheio de
hematomas do meu irmão e uma pontada dor não tão forte, porém igualmente
incômoda, irrompe pelo meu corpo, se alojando no coração. É óbvio que
nossa relação de irmandade está cheia de buracos e embates mal resolvidos,
contudo, convivemos por anos juntos, crescemos compartilhando brinquedos
e conversas embaixo da cabana que Thomas cismava dizer ser uma das
melhores brincadeiras de infância ensinadas por sua mãe.
Com pais tão atarefados, por inúmeras vezes, eu só tinha o meu irmão. Para
me derrubar no pega-pega, arrastar meleca na manga do meu casaco, me
incentivar a comer seu bolo de massinha e atestar com veemência de que é
comestível, e bom, não era. Fazíamos tudo juntos, inventávamos as melhores
brincadeiras, e tudo que ele aprendia na casa da mãe, corria para me ensinar
quando acabava seu final de semana com ela e o loiro estava de volta a sua
rotina maçante naquela mansão. Quando Thomas atingiu a adolescência,
percebeu que eu não era tão corajoso quanto ele. No instante em que foi
descoberto fumando e sofreu com o ataque de fúria de nosso pai, soube que
eu não o defenderia. E tenho certeza de que ele faria qualquer coisa para que
ninguém me machucasse. É aquele caso de esperarmos algo de alguém e nos
decepcionarmos duramente.
Fui uma decepção para uma das pessoas que mais me amava.
— Sinto muito — começo, sentindo o gosto amargo da culpa escorrer por
minha boca. — Eu fui um otário com você, ou muito pior. Éramos
inseparáveis, nós dois contra o mundo. E, então, ferrei com tudo. Fim da
história.
— Negativo. — Balança o dedo ferozmente. — Não pense que é só isso.
Quero um motivo, uma explicação. Porque não é possível que você vá deixar
nosso pai foder com mais isso na nossa vida. Eu to cansado de perder tudo
para ele, Johnson. Exausto, para falar a verdade. Não suporto mais sentir
medo.
Apenas a menção da palavra medo acorda todos os meus sentidos, e entendo,
pouco a pouco, que ele não está apenas limitado a mim. Talvez todos que
tenham uma relação próxima ao meu pai sintam medo, porque é o que Robert
causa nas pessoas.
— Nós somos lados totalmente diferentes de uma mesma história — afundo
mais meu corpo na cadeira. — Enquanto você acha que ele tirou tudo de
você, eu acredito que Robert tenha me dado tudo. Afinal, o que eu seria sem
ele? — Não espero que ele responda, prosseguindo. — Eu não teria uma
faculdade, sequer uma escola, não seria o atleta que sou e acho que até minha
personalidade foi moldada pela minha criação.
— O quê? — Thomas ergue o corpo, empertigando a postura. — Se eu
soubesse que você viraria um tolo completo, jamais teria saído da sua vida.
Prego os lábios para evitar que a risada escape da minha boca.
— Se não tivesse Robert, ainda continuaria sendo Lewis Johnson. —
Prossegue, apoiando as mãos atrás do corpo na cama. — Por Deus, não dê
tanto crédito assim ao nosso pai. Tudo bem que a grana dos nossos estudos e
luxos veio dele, mas não podemos abdicar da nossa saúde mental, ou isentá-
lo da culpa porque ele enfiou um bolo de dinheiro em nossos bolsos. O cara
ferrou a vida da sua mãe, da minha, e tudo ao redor dele. Nosso pai
conseguiu destruir tudo de bom que tinha.
— Não destruiu — suspiro. — Ainda estamos aqui, suportando essa vida de
merda. Porque eu não posso tirar minha mãe dali à força. Sou um inútil,
Thomas. Não posso fazer absolutamente nada. Vejo minha mãe abdicar de
todo o seu esforço e estudo para a carreira de cirurgiã por causa de um
homem que a manipula e segura o braço dela até causar marcas. O amor não
pode machucar tanto assim, não é normal. Porém, ainda assim, não posso
fazer nada.
— Mas você pode tentar,— tombo meu corpo em sua direção, subitamente
mais interessado no assunto — ao menos tente fazer diferente, dessa vez. Eu
não sou expert em nada do tipo, mas minha mãe já me ensinou algumas
coisas e algo que ela sempre me disse é que, quem está em um
relacionamento tóxico, muitas vezes, não tem noção disso, quase sempre.
Então elas precisam que você, que está do lado de fora. Cutuque essa bolha e
diga "pode me dar a mão, estou aqui para te ajudar". Sua mãe precisa ter a
certeza de que tem alguém fora daquela realidade, disposto o suficiente para
ajudá-la. Esteja sempre disponível, e a deixe saber disso. Tem que ter
paciência, Lewis. O imediatismo é seu inimigo nessas horas.
— E se ele descobrir? — sussurro, totalmente receoso. — Se o pai perceber
que estou ajudando mais do que o habitual?
— Eu não pensei nessa parte ainda, mas vou pesquisar cada dia mais, e nós
vamos dar um jeito nisso. — Thomas diz com tanta certeza, que acabo me
contagiando com sua esperança. — Quer dizer, você vai. Corra atrás do seu
prejuízo.
— Estou visitando uma terapeuta semanalmente — murmuro, temendo que
ele não escute de tão baixo que é o meu tom. — Andrew me incentivou, e eu
sei que provavelmente estou piorando a situação citando o seu amigo, porém
você precisa saber que gosto dele de verdade. Que eu nem estava procurando
por um relacionamento, nem nada. E esbarrei com Drew por coincidência.
Conversamos pela madrugada inteira, nos conhecendo aos poucos, e o
sentimento foi aumentando gradativamente. Nenhum de nós planejou nada
disso, mas agora é tarde demais para terminar algo porque você quer.
— Isso não é sobre mim. — Ele retifica, aumentando o tom de voz. — É
sobre eu não querer meu amigo em um relacionamento com um cara covarde.
Quando o cerco apertar, e alguma merda acontecer, você estará lá ou será o
primeiro a correr? Ou melhor, ainda ficará assistindo tudo? Apenas lá,
encarando o inferno sob seus olhos sem coragem de mover um músculo para
ajudá-lo. Foi o que fez comigo, não foi?
Thomas adota uma postura mais assertiva. Consigo reconhecer só de
perscrutar seus ombros rígidos e a mandíbula trancada. Nós somos muito
diferentes, completamente, para falar a verdade. Enquanto o loiro aposta na
linha de frente, no ataque, eu prefiro me esconder atrás da defesa, como um
maldito medroso. O que é até irônico já que sou o Quarterback, dotado de
coragem no campo e um filhote imerso em pavor na vida real. Eckhoff é
exatamente o tipo de cara que expôs há dois dias, mesmo brigado comigo, me
defendeu perante nossos pais. E ele faz isso por todos que nutre um mero
apreço.
— Foi — assumo, abaixando o olhar. — Só que não porque eu quis. Droga,
eu queria ter ajudado. Precisa entender que as pessoas não são tão corajosas
quanto você, e que nem todos reagem a essas situações da mesma forma.
Cada um tem seus traumas, medos e cicatrizes. Assistir enquanto você
apanhava foi doloroso. Óbvio que a minha dor jamais se igualará a sua, mas
isso não suaviza nada. Eu tinha medo, caramba. Eu tenho medo. Muito. De
perder tudo. Eu não tenho uma mãe completamente independente do meu pai,
nem o suporte familiar de um tio. A possibilidade de levar outra vida é
inexistente enquanto eu não for draftado para um time profissional. Se eu
perder essa realidade, não tenho mais nenhuma. Eu não tenho nada.
Não contabilizo os minutos que ficamos ali, sentados um de frente para o
outro, calados. Depois que regularizo minha respiração, não ouso furar a
bolha de silêncio que abrange o quarto. Thomas parece pensar, e muito, tanto
que quase posso ouvir as engrenagens de seu cérebro trabalhando avidamente
enquanto pensa em tudo que digo. E eu jamais arriscaria interromper seu
raciocínio.
— Mackenzie estava certa. — Arqueio as sobrancelhas e aperto os olhos,
confuso pelo nome da minha amiga ser citado na conversa. — Contei a ela
sobre nós, sobre tudo. E ela disse que toda história tem dois lados, e que eu
deveria ouvir o seu. Jamais pensei dessa forma, nunca me dei ao luxo de me
esforçar para enxergar a sua realidade, porque, na minha concepção, você tem
tudo. Só que não é bem assim.
— Você tem uma oficina, que em breve estará gerando lucro o suficiente para
te sustentar por completo. — Me permito interrompê-lo. — E se Robert se
recusar a pagar os custos da universidade, será um favor a você, que nunca
quis isso. Tudo o que é seu, ninguém pode te tirar. Ele não conseguiria
comprar sua parte na oficina e aposto que isso tira o sono dele: o fato de não
ter controle total sobre você. As dívidas com advogados sumirão com o
tempo, talvez alguma corrida importante pra caralho surja e em um dia você
poderá quitá-la. Mas veja bem, e eu? Se ele me arrancar o que tenho, com o
que eu fico?
— Sei que parece não valer de nada agora — responde, mordendo o canto
das unhas. — Mas você tem o Andrew, Joshua, Mackenzie, Nevaeh e...eu.
Tenho essa fusão surreal de sentimentos ruins por você, só que sei que eles
não durarão por muito tempo. E independentemente de estarmos péssimos
um com o outro, diferente de certas pessoas, eu sempre te defenderei. Você é
três meses mais velho, e está a um semestre adiantado em relação a mim.
Lewis, falta muito pouco para um time profissional te notar e você estará
livre de Robert Johnson. É angustiante, entretanto, dá para esperar mais um
pouquinho. Só seis meses.
O rancor está ali, entranhando nas palavras de Thomas, e sei que ele
demorará a abandoná-lo. Contudo, após essa conversa, me sinto um pouco
mais esperançoso quanto a nossa relação. Porque mesmo sabendo que ainda
haverá muito diálogo quanto as nossas feridas, agora ele sabe o meu lado, e
tem a certeza de que eu jamais cruzaria os braços por vontade própria. Fico
um pouco mais animado para esperar.
— Só seis meses — repito, sussurrando como um mantra que me
acompanharia daqui para frente.
A conversa ainda rende por algumas horas, porque há muito que relembrar e
consequentemente a resolver. Ou pelo menos tentar. No entanto, o nosso
aperto de mãos que sinaliza o fim do diálogo é suficiente para mim, por ora.
Afinal, não é como se as coisas se resolvessem na rapidez de um filme
qualquer. São cinco anos tentando negar a irmandade que construímos na
infância. Cinco anos ignorando a vontade de saber como meu irmão está
desde sua alimentação até seus pesadelos – iniciados quando ainda
pulávamos para o quarto um do outro em dias de tempestade. No entanto,
apenas esse acordo silencioso de que iríamos tentar, por nós, é o bastante para
me acalentar. Fico feliz de saber que Thomas aderiu a ideia de ir à terapia,
acompanhando Mack. E até que gosto desse casal meio impulsivo e um tanto
disfuncional. Em uma equiparação justa, diria que os dois são como pólvora:
bastaria riscar o fósforo para que tudo explodisse no ar.
Eu só espero que, agora, com o peito inflado de esperança, esse segredo de
Mack venha à tona de forma branda. Apenas um tolo desatento não
perceberia a grande coincidência de Mack e a mulher mascarada chegarem à
cidade ao mesmo tempo. Ou o encaixe perfeito entre os horários que ela não
aparece na Bolfok Ride, porque está muito ocupada correndo. O caso de
Thomas é diferente, ele não é alienado para não perceber. Só esteve focado
demais na Mackenzie que ele idealizou na própria mente, como a droga de
um estereótipo impregnado na sua concepção. A Regina que ele convive
todos os dias jamais poderia ter qualquer semelhança com a mulher perversa
e misteriosa que corre em corridas de rua. Não o culpo, já que costumamos
fazer muito isso com quem amamos: idealizar. E descobrir a verdadeira face,
o lado um pouco mais sombrio, pode ser doloroso.
E cabe a mim apenas torcer para que esse segredo não seja a sua ruína.
É difícil suportar a inquietude quando ela se apossa do seu corpo.
Minha perna direita sobe e desce em uma frequência irritante, demonstrando
um dos sinais da ansiedade que mora no meu interior, a bota de combate
provoca um ruído irritante no piso de tábua corrida da recepção dos
consultórios. O barulho maçante faz com que uma jovem de pele pálida
transfira seu olhar entre meus pés e meu rosto, como se dissesse: "ei seu
otário, pare de balançar a perna". Acontece que eu até gostaria de atender seu
pedido, contudo mal tenho controle dos impulsos do meu corpo. Mesmo que
eu tente imobilizar minha perna, o movimento irritante continua lá.
Assemelha-se muito a quando o nervosismo te entorpece, fazendo sua
pálpebra sofrer alguns espasmos.
Estou há alguns minutos na recepção dos consultórios do Departamento de
Psicologia da faculdade, aguardando que Mackenzie saia de sua consulta com
a analista. Quando marcamos, não havia horários semelhantes, então tive que
me contentar a ser atendido trinta minutos antes que ela. E agora terei que
aguardá-la por meia hora. É como combinamos, estamos aqui um pelo o
outro.
Analiso a chuva torrencial que cai sem dó em cima de Bolfok Town. As
gotículas escorrem arredias pelas janelas de vidro da recepção e o barulho
delas se chocando no concreto é um tanto ensurdecedor, mesmo sendo
abafado pelas paredes da construção. É sempre assim nessa cidade, não há
um Outono sequer em que uma semana tomada de chuvas não ocorra. Tão
comum que foi apelidada carinhosamente de semana da tempestade. No
fundo, todos já esperávamos, contudo eu jamais saberia que o tempo mórbido
e úmido traria tantas questões inacabadas do passado. A mulher de cabelo
verde e preto, e pele pálida ainda me encara, tenho certeza que se seus olhos
tivessem raios laser eu já estaria destruído agora. Ela não aguenta mais ouvir
o batuque da minha ansiedade no piso de tábua corrida.
Fecho os olhos, totalmente imerso em pensamentos. Flashes da conversa com
Lewis invadem minha cabeça, assim como a descoberta do transtorno do meu
pai. Síndrome do Hulk, a primeira coisa que fiz ao adentrar o consultório foi
arrancar todos os conhecimentos da futura psicóloga acerca da doença. E ela
foi muito sábia ao dizer que eu não devo caçar justificativas para todo o
abuso do meu pai. Isso me deixou um tanto mais tranquilo. No entanto, foi
inevitável que o medo não me atingisse. E se eu tiver a mesma doença? A
psicóloga afirmou com veemência que só diagnosticaria alguma coisa depois
de uma série de consultas, mas que ela ousa dizer que não me assemelho com
as características e comportamentos de um paciente que tem ataques de fúria.
Sinto o agudo do incômodo de um peteleco na têmpora, e arregalo os olhos
com rapidez. A iluminação apática da recepção dos consultórios deixa minha
visão um tanto turva, até que me acostumo com a claridade. As botas de sola
vermelha em conjunto com roupas que certamente valem mais que meus rins
entregam a autora da agressão. Mack me encara com a íris meio opaca e forja
um sorriso.
— Como foi lá? — O questionamento é suficiente para embarcarmos em uma
conversa que durariam horas.
Ambos sabemos que uma primeira consulta com um psicólogo não diz muita
coisa, na verdade quase nada. Serve mais para que eles anotem diversas
coisas em uma ficha e te analisem atentamente, como um estudo laboratorial.
Eles perguntam uma série de informações pessoais e fazem questionamentos
que nem sempre temos uma resposta pronta. O rosto gorducho da minha
terapeuta faz com que suas bochechas amassem um pouco seus olhos
esverdeados, não sei se há algum pré-requisito para a profissão, mas a minha
tem um olhar muito acolhedor. É como se de repente eu tivesse vontade de
compartilhar muitas coisas com ela, e o tempo da consulta passou voando.
Mackenzie disse basicamente o mesmo. Que falou sobre seus pais e a relação
complicada com sua mãe. Dissertou acerca da falta imensa que sentia de sua
tia Lindsay e inúmeras situações de sua infância. Ela parou um pouco para
refletir e se perguntou em um sussurro se não havia deixado nada de fora,
creio que seja normal ter essa sensação.
— Relaxa. — Afago seu braço enquanto adentramos minha casa. — Ainda
terão várias consultas para contarmos o que deixamos de fora.
Encaro a mulher vestida de um grande suéter estampado de algumas listras
desconexas com um coque no topo da cabeça que mais se assemelha a um
ninho de rato. Depois de uma discussão acalorada acerca do quanto é útil
levar uma muda de roupa confortável para a casa de alguém ao invés de usar
as roupas do namorado da colega de alojamento. Compreendo o teor da
indireta, porém dou de ombros como quem não quer nada e me abrigo dentro
de uma blusa verde de algodão simples. Decido fazer biscoitos e a morena
me acompanha até a cozinha desferindo um monte de alfinetadas com o
resultado dos meus cookies.
— Posso colocar música? — Enfio a cabeça dentro do armário atrás do
açúcar normal e do mascavo, juntando os itens da receita. Aceno
positivamente para respondê-la e logo escuto os primeiros acordes de uma
música que não conheço.
Paro meus movimentos com o único objetivo de observar Mackenzie Rose
Lennon. Os fios do cabelo escapando do coque bagunçado, as pintinhas
decorando as maçãs do rosto levemente rosadas, o nariz fino sutilmente torto
para um lado, a gola do suéter meio esgaçada, nada combinando com suas
roupas milimetricamente arrumadas e por fim, os dentes alinhados exibindo
um sorriso que poderia iluminar toda a minha cozinha. Apoio a tijela com a
mistura do cookie sobre a ilha e apoio os cotovelos no mármore. É como uma
visita guiada ao Louvre, entupido das melhores e mais ricas obras de arte do
mundo. Cada ponto na aparência dela se assemelha a uma viagem aos mais
belos museus. E eu poderia observá-la por toda a eternidade.
Eu jamais saberei dizer quando me apaixonei por Regina. Mesmo com
apenas um pouco mais de dois meses de convivência o apelido já me parece
um ponto minúsculo na imensidão de sentimentos que me tomam a cada dia.
Talvez tenha sido quando seus olhos escuros e intensos derrubaram o
primeiro muro que nos separava. Quando ela me encarou com admiração e
subiu sobre os meus pés, me levando em uma viagem nostálgica até minha
sala abafada em Oroland County. Ninguém acredita muito que duas pessoas
possam se apaixonar antes de sequer se beijarem, e talvez eu nem estivesse
mesmo, de fato, sentindo paixão. No entanto, ali eu soube que algo novo
estava surgindo, como uma fagulha que se torna uma labareda imensa,
tomando cada mazela do meu corpo.
Puta que pariu, eu to muito apaixonado.
Torno a observar Mackenzie, ao som de Celine Dion, se balançando
levemente pela minha cozinha. Arrastando um sorriso convidativo no rosto,
daqueles que eu abaixaria a guarda totalmente e daria tudo que ela quisesse.
Meu coração acelera e bate forte, muito forte, meio que gritando algo tipo "ei,
seu otario eu to aqui". Os lábios erguidos me contagiam a elevar os meus,
acompanhando-a na felicidade gritante que infla meu peito. Será que
Mackenzie também gosta de mim? É óbvio que sim, mas será que ela
também é apaixonada por mim? As perguntas se embaralham no meu cérebro
e eu decido interromper seu momento.
— Vou te mostrar o que é música de verdade, Lennon. — Monto minha
melhor expressão de crítico da música e capturo o celular para entrar na
minha playlist.
Elephant Gun começa a tocar, a música rapidamente se entranha por todos os
meus poros e é impossível segurar o sorriso. Gosto de como a canção me traz
a tranquilidade de um chalé no meio do nada em que só se escuta a voz de
Beirut, as folhas das árvores se chocando e os passarinhos cantando. A chuva
ainda não abandonou Bolfok Town e acompanho as gotas escorrerem pela
vidraça da porta de correr que dá acesso ao quintal. Mackenzie vem até mim
se balançando de um lado para o outro enquanto mexe os ombros em
sincronia, tentando seguir o ritmo da música. Ela estende a mão e alarga o
sorriso.
— Dança comigo. — Transporto meus olhos dos seus cheios de expectativa,
passo pelo sorriso aberto e paro nos dedos esguios.
Encaixo minha mão na sua, entrelaçando nossos dedos e deixo que ela me
afaste da ilha e me puxe até um ponto da cozinha, em frente à geladeira. Meu
outro braço se encarrega de circundar seu corpo e embrulhá-lo com o meu.
Ela não demora a subir nos meus pés e isso me faz sorrir e esconder o rosto
na curva de seu pescoço. Permito que o aroma de frutas vermelhas, adocicado
e cítrico ao mesmo tempo, invada minhas narinas aos poucos. Franzo o nariz
e beijo sua clavícula exposta pela gola esgarçada do suéter.
Pouco me importo com o peso dela em cima dos meus pés, estou mais
interessado em gravar cada detalhe dessa cena. O barulho da chuva se
misturando a melodia, o aquecedor fazendo o trabalho de tornar minha
cozinha um pouco mais aconchegante, as gotas escorrendo pelas portas de
vidro, embaçando a vista do quintal arborizado. O calor do corpo de Mack
parece correr livremente até o meu, nos embalando em algum tipo de
conexão magnética. Como uma mistura homogênea com polaridade que
enfraquece as ligações iônicas dessa mistura, promovendo a dissolução até
que seja atingido um equilíbrio entre as cargas polares do solvente e as cargas
iônicas do soluto. Talvez ser embalado pelo corpo esguio de Mackenzie pela
minha cozinha seja o nosso equilíbrio perfeito. E eu poderia morar nesse
momento.
Antes que eu possa sequer maturar a ideia em minha mente, solto a pergunta
em um tom esganiçado.
— Passe o Ação de Graças comigo. — Arrasto o nariz pela pele de seu
pescoço.
— Isso não foi uma pergunta. — O peito dela treme com a risada,
reverberando pelo meu.
— Não sei se vai fazer algo com seu pai, agora que vocês voltaram a
construir algo. — Inicio tendo conhecimento da reconciliação dos dois. —
Mas se não for, Oroland County quer muito te receber.
— Só Oroland County? — Não preciso vê-la para ter a certeza que as
sobrancelhas estão arqueadas em desafio.
— Eu também, claro. — Faço uma pausa e enrolo o dedo em um de seus fios
desarrumados. — Confesso que desde quando contei a minha mãe sobre
você, ela também quer muito te conhecer.
Mackenzie desce dos meus pés e desfaz nosso contato. Ao passo que me
deparo com seus olhos estreitando de leve.
— Falou mal de mim para ela quando nos odiávamos, não é?! — É difícil
saber se estou lidando com uma pergunta ou uma certeza, mas relaxo o
semblante rapidamente.
— Ah se falei, e muito. — Encho a boca, proferindo cada palavra com gosto.
— Ela me ouviu te criticar de várias maneiras diferentes, e até advogou para
você se quer saber. Embora tenha gargalhado quando soube que começamos
a nos envolver.
— Então você é esse tipo de cara? — Um vinco se forma entre minhas
sobrancelhas pela confusão e ela prossegue. — Que conta tudo para a mãe.
Não me incomodo com a frase, simplesmente porque sei que não há um
pingo de desdém ali. Para falar a verdade, os olhos escuros e absolutamente
intensos se destacam pelo brilho anormal que se apossa deles. Parecendo me
dar à certeza de que gosta muito do fato de eu ser um confidente a minha
mãe. Um cara de família. Prendo a risada.
— Nem tudo. — A lanço um sorriso enviesado. — A parte que seu boquete é
uma delícia eu deixo de fora.
Ela não demora a torcer o pano de cozinha e bater com ele em meu quadril
com vontade, fazendo com que eu revide a brincadeira enchendo a mão com
um punhado de açúcar mascavo, lançando-o em sua direção. Mackenzie abre
a boca e arregala os olhos, mal podendo acreditar no quanto jogo baixo,
afetada demais pelos vestígios de açúcar que decoram seu colo e pescoço. A
troca de ingredientes para assim que enlaço sua cintura e encaixo seu corpo
no meu. Resvalo minha boca pelo seu queixo, mandíbula até o canto dos
lábios. Agarro seu maxilar e arrasto a mão até seu queixo, e meu dedo
indicador pousa em cima de seus lábios. Acaricio sua boca, sentindo a maciez
da carne de seus lábios em formato de coração. Até que os cubro com os
meus. Quando sua língua desliza sobre a minha, empurrando nós dois em
direção a um abismo que ambos ansiamos cair, aquela maldita explosão
como a dos filmes acontece no meu peito. Tombo a cabeça para o lado a fim
de aumentar o contato e funciona porque meu pau acorda na calça, e um
gruído escapa da garganta dela.
Agarro suas coxas e a elevo, até que esteja acomodada na bancada. Me
encaixo entre suas pernas e volto a grudar nossos lábios. O beijo é tão lento
que nada combina com o nosso habitual fervor e ânsia. Arrasto as mãos desde
seus joelhos, passando pela carne de sua coxa até que eu finalize o contato
com um aperto, resultando em um gemido esganiçado da mulher. Ela me
puxa pela camiseta como se pudéssemos ficar mais colados do que já
estamos, agarro os fios teimosos de sua nuca enquanto conheço, de novo e de
novo, cada centímetro de sua boca. Sinto suas palmas esquentarem a
bochecha assim que ela as pousa em minha pele, e finaliza o beijo com um
selinho.
— Eu vou ao Ação de Graças com você. — Retorna ao assunto e meus
ombros murcham em puro alívio. — Embora eu tenha a vaga ideia de que iria
para qualquer lugar contigo.
O sorriso que rasga por entre meus lábios é gigante, mal consigo mensurar o
quanto minhas bochechas estão doloridas de tanto que já sorri hoje. O que é
bem comum quando estou com meus amigos e minha família, ou seja, com
quem amo. Espera, o que? Não. Com certeza não estou amando. É difícil
saber por que não tenho um comparativo. Nunca amei romanticamente
falando, e acho que dois meses é muito pouco para isso. No entanto, a
sensação de estar apaixonado por completo me arrebate de um jeito muito
mais avassalador do que qualquer outro dia. Parece-me que o sentimento se
entranha por cada parte do meu corpo como um copo topado de água, prestes
a transbordar. Então, com as mãos apertando a carne das coxas de Mack,
deixo as palavras fluírem.
— Estou absolutamente a...— antes que eu possa finalizar, ouço um tapa
ardido no batente da porta.
É Dominic quem adentra a cozinha sem fazer questão de ser sutil ou sequer
silencioso. Seus passos são mais leves que os meus, mas o tapa no batente
anuncia qualquer chegada triunfal. Porém não há nada de triunfo no modo
como sua calça de moletom está desleixada em seu corpo, muito menos nas
olheiras fundas que cobrem seu rosto. Os cabelos estão bagunçados assim
como tudo em sua aparência. Ele agarra uma longneck como se sua vida
dependesse disso e sei, com total certeza, que está chapado. Mais uma vez.
— Acho que vou morrer de diabetes vendo vocês. — Sua voz sai arrastada,
como se ele estivesse sem vontade de nada.
— Então esse é você com um coração partido? — Mackenzie sibila e acho
até que posso enxergar veneno escorrer por seus lábios. — Do tipo
amargurado que mal consegue ver um casal feliz sem pensar no que poderia
ter tido.
As palavras são tão pesadas que posso senti-las, mesmo que não tenham sido
direcionadas a mim. É como uma adaga sendo cravada no meu peito. Até
aprumo a postura com o objetivo de repreender a mulher, porém ela se
antecede.
— Você ainda pode ter. — Mack toma impulso com as mãos e desce da
bancada. — Sei que está mal, e tem todo o direito de curtir esse período
sofrido. Mas sabe que ainda pode consertar essa situação. Por que ainda não
fez?
Decido não me meter. Há esse elo entre Mack e Dom, tão forte que enlaça
essa amizade em um nó de marinheiro, impossível de ser desatado. Deixo que
eles conversem em uma linguagem que só os dois entendem, dotada de
olhares cheio de entendimento e diálogos silenciosos.
— Porque não sei como resolver. — Dominic bufa. — Ontem ela me ligou
para dizer que a melhor solução é justamente a ausência de uma. Ou seja,
estamos terminados.
A informação é como um baque, daqueles que te atingem em uma rajada tão
forte que você tem a leve sensação de errar um passo. Mudo o peso dos pés
sendo, de fato, atingido pela coça que é saber sobre a separação de um dos
casais que mais gosto nessa vida. Meu estado atônito se assemelha muito ao
de Mack, que gira os olhos, meio fora de órbita e tenta se recompor usando a
bancada de apoio. Ela pisca com rapidez, como se o ato pudesse levá-la de
volta a uma realidade um pouco mais branda. No entanto, infelizmente sei
que a Semana de Tempestades em Bolfok Town apenas acabou de começar.
Mackenzie implora que Dominic explique melhor, talvez em uma tentativa
falha de fazer com que ele admita, de uma vez por todas, que tudo não passou
de uma brincadeira. Mas ele não diz. Na realidade, acredito que não tenha o
que explicar. Nevaeh terminou tudo e ponto. Por telefone ainda. O cara está
arrasado, e não podemos culpá-la. Porque é realmente uma situação
complicada. Nenhum dos dois deve ceder por suas crenças, ou pela falta
delas. E parando para pensar, imaginando um futuro entre os dois, como isso
seria feito? É fácil solucionar quando seu pai não é um pastor, ou em uma
conjuntura em que sua família não seja tão envolvida com a comunidade
protestante. No caso deles, está mais para uma condição escondida nos
encantos de um relacionamento que logo desabrocha com o tempo.
— Mackenzie. — Dom inspira, pousando a longneck na pia. — Estamos
acabados. Não tem o que fazer, tentar, corrigir ou sequer mudar. A nossa
realidade não combina.
— Não pode ser só isso. — A mulher custa a aceitar, negando
fervorosamente com a cabeça. — Vocês se amam e vão acabar com tudo por
causa de religião?
— Não faça isso. — Dom levanta o indicador em riste. — Não desdenhe
dessa forma, a fé é tudo para algumas pessoas. De uma grandeza que impede
qualquer descrente de sequer imaginar o bem-estar no interior da igreja. Nev
sempre me explicou, o quanto é importante para ela. O quão leve fica seu
coração naquele ambiente, não diminua isso, morena.
A reação de Mack é instantânea, geralmente acontece quando ela reconhece
que erra. Então seu semblante murcha assim como seus ombros caem. E ela
esmorece aos poucos.
— Me desculpa. — Crispa os lábios e aperta o ombro de Dom, em um gesto
de conforto. — Eu só queria que tudo fosse diferente com vocês.
Dominic captura a mão dela, e leva o dorso aos lábios, deixando um beijo
casto.
— Eu também, Mack. — Ele aperta a palma dela contra a sua. — Eu
também.
A última parte sai em um sussurro. Posso enxergar dor em seus olhos,
tamanha é que perpassa para o meu, mudando completamente o ambiente da
cozinha. Tornando-o um tanto mórbido se considerarmos a chuva lá fora e a
playlist aleatória que nos brinda com "Falling" do Harry Styles. Meus dutos
lacrimais até doem um pouco, clamando para que algumas lágrimas possam
transbordar. É o efeito de algumas músicas desse novo álbum, como Fine
Line e Falling. Dominic deixa que uma gota solitária escape de seu olho, e
não se preocupa em secá-la, deixando-a vagar livremente por sua mandíbula e
cair em seu dorso.
A tristeza que acompanha um coração partido faz com que eu me pergunte se
um dia experimentarei tamanha dor.
Hoje é o meu aniversário.
Cinco de novembro de dois mil e vinte.
Sinto um peso anormal sobre as costas e me pergunto se são os vinte anos
dando um olá, mas sei que, na verdade, é só o resultado da continuidade dos
treinos de kickboxing. Meu pai costumava dizer que em todos os cinco de
novembro comemoramos o dia internacional da Mackenzie Lennon, mas não
em Bolfok Town. Porque ninguém se lembrou.
Tento a todo custo não ser egoísta e pensar que as pessoas têm o que fazer
além de se preocuparem com o meu aniversário. Thomas ainda está imerso
nessa história com o pai dele e Lewis, Nevaeh e Dominic ainda curtem seus
corações partidos e Andrew, sinceramente, não sei dele. Jules e Hannah
fizeram questão de postar um story aleatório comigo me parabenizando junto
a uma mensagem no privado.
Jules Batbayar: Parabéns, Barbie! Te desejo muitas Prada's e Channels e
pouco estresse. Pode contar comigo para te enfiar a porrada, mas nunca
para um abraço. ;)
É impossível frear a risada com o jeito despreocupado e agressivo de Jules,
afinal, já me acostumei com ele e até que gosto. As felicitações na internet
sempre vêm em peso, de pessoas que eu já nem me lembro da existência, que
estudaram comigo na Dilshad School e me tratavam como amiga até que a
situação ficasse ruim o suficiente para caírem fora. Meu pai desejou o melhor
para mim durante duas horas de ligação, assim como tia Lindsay. Já minha
mãe optou por um seco "Parabéns, Mackenzie! Que você seja feliz."
Sinceramente? Achei até demais para alguém fria como ela.
Sinto um pouco de falta dos que considero de verdade. Até dou uma olhada
em quem visualizou meus stories e teve acesso a todas as felicitações. Ao
longo do dia, recebo um textinho carinhoso de Nevaeh, Lewis e até Dominic.
Mas nada de Thomas. Tento não ficar chateada, realmente tento. Porém
quero, com todo o meu ser, ser lembrada por ele.
As aulas passam incrivelmente lentas nessa quinta-feira e já não aguento mais
ouvir sobre economia política. Depois de passar em uma loja de guloseimas a
poucos metros da Bolfok College, me enclausuro no alojamento. De banho
tomado, uma blusa enorme de algodão abraça meu corpo assim como a calça
de flanela. Enrolo-me entre as cobertas e cubro minha cabeça com o
edredom, pesco meu celular e o encaro, esperando que alguma mensagem de
Thomas chegue. No entanto, nada acontece. Quando finalmente aceito que
passarei meu dia comendo guloseimas no quarto, batidas fortes ecoam pela
porta de madeira maciça.
— Ei Lennon! — Ouço a voz de Hannah soar do outro lado. — Sabemos que
está aí dentro, abra essa porta!
Bufo audivelmente e arranco o cobertor com brutalidade.
— O que você quer? — Minha voz sai escorrendo tédio, mas me assusto ao
ver que ela não está sozinha. Jules me encara com cara de poucos amigos.
— Quero te lembrar de que hoje é o seu aniversário e apesar de você ser uma
chata metida, não deixaremos que passe esse dia sozinha. — Hannah se apoia
no batente e gesticula com avidez.
— Portanto, — Jules inicia, completando a fala da amiga — comece a se
livrar desse pijama ridículo e dessa cara de quem morreu e esqueceu-se de
enterrar.
Elas adentram meu alojamento sem aviso prévio, como se fossem donas do
lugar. Jules arreganha meu armário e começa a retirar peças e mais peças,
gostando de nenhuma.
— Rosa, rosa e mais rosa. — A tatuada encara uma blusa com tanto desgosto
que cogito pedir perdão à peça de roupa.
— Para onde vamos? — Empurro o corpo da mulher para que eu retome o
controle sobre meu armário.
— Em um bar aqui em Bolfok mesmo, hoje é noite de karaokê! — Hannah
profere muito animada, e isso faz com que Jules revire os olhos, me gerando
uma breve risada.
— Eu não sei cantar. — Remexo em algumas roupas e por fim decido colocar
um body branco rendado com mangas meio bufantes e uma saia florida.
— Por isso mesmo que iremos a um karaokê e não ao The Voice. — Jules
está sem paciência, mas isso não é novidade alguma.
Relevo o passa-fora e me preocupo mais em fazer uma maquiagem simples e
decente para uma noite normal em um bar com duas pessoas um tanto
improváveis. Quer dizer, Nevaeh estar comigo seria muito mais comum.
Envio uma mensagem para ela, convidando-a para aparecer no bar e festejar
com a gente.
— Já mandou mensagem chamando os meninos? — Hannah indaga e eu
mantenho a atenção no delineado fino que se prolonga em minha pálpebra.
— Acho que essa noite poderia ser apenas das meninas — murmuro, mas sei
que o tom da minha voz beira a um resmungo. — Além do mais, Thomas
nem ao menos me deu parabéns. Acho que ele esqueceu.
Jules e Hannah trocam um olhar pesaroso, visivelmente transbordando pena.
Contudo, afasto qualquer pensamento que possa me desviar do verdadeiro
foco da noite: comemorar.
— O dia é todo seu. — Jules responde, repuxando os laços do coturno. —
Faça como quiser.
Assim que finalizo a maquiagem, as duas se retiram do quarto para que eu me
troque com privacidade. Calço sandálias de salto douradas e borrifo um dos
meus perfumes favoritos. O percurso inteiro até o bar, no carro meio capenga
de Hannah, é preenchido com as tentativas da mulher de preencher o silêncio,
seja com uma piada tola ou as gargalhadas que escapolem de sua boca. Está
escrito no semblante desgostoso de Jules que ela poderia se jogar do carro a
qualquer momento devido à animação excessiva de Hannah. Recebo um
retorno de Nev, dizendo que nos encontrará direto no bar.
Tenho vontade de rir assim que ouço alguns xingamentos que Jules dispara a
Maxon pelo telefone. Apesar de sermos diferentes em inúmeros aspectos, a
dinâmica de relacionamento deles acaba me fazendo recordar um pouco a
minha com Thomas. Enquanto somos mais sérias e centradas, Eckhoff e
Stewart são carrancudos com pessoas desconhecidas e guardam seus
melhores sorrisos e brincadeiras a quem possui verdadeiramente seus afetos.
Interrompo meus devaneios assim que Hannah estaciona seu automóvel
popular em uma das vagas do bar.
— Chegamos! — A animação dela não chega a mim, muito menos a Jules,
que se limita a massagear as têmporas e sair do carro.
Esquadrinho a fachada escandalosa do bar e permito que um pequeno sorriso
se entranhe por entre meus lábios. Em um letreiro de LED o nome "Purple"
pisca gritante, assim como outra placa abaixo, indicando que hoje é noite de
karaokê. Tudo parece extremamente normal, desde a taciturnidade de uma
Bolfok Town noturna até o som baixo que escapa pelas paredes do
estabelecimento. Ando pela pequena estrada de pedregulhos que dificultam
minha caminhada em saltos finos, mas não deixo de observar Jules mexendo
no celular e pouco tempo depois a melodia animada dar lugar ao silêncio.
Estranho um pouco, porém, por fim, decido dar de ombros e empurrar a porta
pesada, invadindo o local.
Inexplicavelmente, a primeira coisa que vejo é a figura um tanto alta do meu
pai encarar com expectativa a minha entrada nada triunfal. Então, perscruto o
lugar com os olhos e finalmente entendo. Eles preparam uma surpresa.
Enxergo tia Lindsay com um sorriso gigante decorando sua face delicada,
Nevaeh está ao lado dela igualmente sorridente, assim como Dominic,
Andrew, Josh, Lewis e Maxon. Todos estão aqui e até mesmo muitas pessoas
que eu sequer conheço.
Dois balões metálicos formam o número vinte rosado, junto com algumas
flores que finalizam a decoração simples de uma mesa de bar. Há um naked
cake de dois andares com a massa vermelha e no topo um Cadillac rosa em
miniatura, exatamente como o meu. Cada detalhe é mais que significativo
para mim.
— A ideia foi do Thomas. — Jules murmura no meu ouvido.
— Do bolo?
Jules sorri meio contido e chega mais perto para sussurrar no meu ouvido.
— De tudo.
Transporto o olhar diretamente ao loiro que me encara sorridente.
Caminho em sua direção, porém antes que eu complete o percurso sou
interceptada. Tia Lind circunda meu corpo com seus braços esguios e me
embrulha em um abraço maternal, e o gesto simples infla meu peito em
felicidade. Como senti saudades.
— Meu Deus! — Minha tia agarra ambos os lados do meu rosto. — Você
conseguiu crescer tanto em apenas um ano.
Relembrar que faz um ano que não nos vemos me causa estranheza, além de
tudo. Porque nossas ligações e mensagens conseguem suprir bem a distância,
entretanto nada como a presença imponente da loura extremamente alta.
Algumas pessoas dizem que me pareço mais com titia do que com Lidia,
minha mãe. Lindsay tem o nariz fino e arrebitado, rosto alongado e
sobrancelhas tão afastadas quanto as minhas. Fora os lábios cheios em
formato de coração. O que nos difere é a cor do cabelo, já que o meu é
castanho escuro, ao passo que minha mãe possui lábios bem mais finos e
sobrancelhas absurdamente desenhadas.
— Senti saudades, tia Lind. — Devolvo o abraço, apertando-a contra mim.
— Eu também, meu amor.
Titia me aluga por alguns minutos, me inteirando de todas as suas aventuras
pela cidade da moda. A Itália nunca foi tão linda quanto é sob os olhos de
alguém apaixonada pelos vinhedos e pelo ar que o país exala. Conto algumas
novidades que deixei de fora das ligações, e isso inclui minha recente relação
com Thomas.
— Ele é uma gracinha! — Abafo o grito de titia com a mão, enquanto ela
tenta se soltar, gargalhando alto. — Lindo, e muito gostoso.
— Titia! — repreendo, lançando-a meu melhor olhar repressivo.
— O quê? — pergunta com as sobrancelhas arqueadas. Nego levemente com
a cabeça, apertando os lábios a fim de estancar a risada. — Você é jovem,
oras. Tem que aproveitar mesmo.
Vejo papai vindo até nós e abano a mão, dando o assunto como encerrado.
Aprumo a postura e recebo com louvor o abraço caloroso e as palavras
carinhosas me parabenizando pelos vinte anos de vida. Em nossa breve
conversa, não citamos o nome de Lidia Lennon, pois é como um assunto
pesado para um dia tão leve. Sei que ela não pôde vir, porque provavelmente
tem algo melhor para fazer, e no fim, estou parcialmente acostumada à sua
frieza e indelicadeza. Não é como se fôssemos virar, de repente, as mães e
filhas que nunca fomos.
— O seu namorado organizou tudo. — Papai murmura em meu ouvido, e
prende um sorriso entre os dentes. — Gostei dele, pequena Maze.
Reviro brevemente os olhos, porque sei o quanto todos farão questão de
aprovar Thomas. Não é como se eu não esperasse, já que Eckhoff é
exatamente o tipo de cara gostável. Daqueles que distribui sorrisos calorosos
a quem deseja conquistar e lança seu charme na medida certa, sem exageros.
— Imagino que tenha gostado. — Afago o bíceps coberto pela grossa camisa
de lã de papai.
Afasto-me apenas para cumprimentar o resto dos convidados. Nev me recebe
com um abraço caloroso, assim como Dom, que complementa com um beijo
no topo da minha cabeça. Lewis me agradece pelos meses de amizade e por
eu ser quem sou. Ademais, as poucas palavras são o suficiente para me deixar
emocionada. Fico um tanto sensível em meus aniversários. Recebo saudações
de Josh, Andrew e outras pessoas conhecidas do meu curso ou do alojamento.
Finalmente, tenho o caminho livre até Thomas, que veste uma camisa social
azul-marinho quase preto por baixo da habitual jaqueta de couro. Além de
uma calça chino preta que combina bem com os All-Stars igualmente pretos.
As peças escuras parecem fazer um bom trabalho em evidenciar sua cabeleira
loira e os olhos azuis. Apresso os passos e quase derrubo nós dois ao me
jogar em seus braços. Agarro suas costas enquanto seu corpo se encaixa ao
meu. Ele se apossa da minha cintura e afunda o rosto na curva do meu
pescoço, deixando um beijo em minha pele que me provoca um arrepio.
— Feliz aniversário! — O murmuro em minha orelha me faz estremecer.
Thomas deseja milhares de coisas boas, entre elas que eu seja uma exímia
advogada e que alcance todo o sucesso do mundo. Uma baboseira de
aniversário sem fim que, sob os olhos de garota apaixonada, tornam-se as
coisas mais belas já ditas.
Ignorando todo o clima descontraído entre nós, acerto seu ombro com um
tapa leve e ardido, fazendo-o reclamar baixinho.
— Você me fez pensar que tinha esquecido. — Ele gargalha alto em resposta
e aperta ainda mais meu corpo contra o seu.
— Eu jamais esqueceria o dia internacional da Mackenzie Lennon. —
Thomas profere cheio de pompa. Tombo a cabeça para o lado, analisando-o
melhor e afundo meu dedo em sua covinha. — Também conhecida, por mim,
como a mulher mais linda de Bolfok Town.
Encosto nossos lábios, roçando-os com ternura e murmuro um "bobo" antes
de beijá-lo.
— Sei que já deve estar cansado de me ouvir agradecer. — Me afasto,
acariciando seu rosto. — Mas não posso deixar de expor o quanto amei tudo
isso. Nunca tive uma festa surpresa, e devo confessar que amei a novidade.
— Seja bem-vinda a sua primeira festa surpresa, Regina. — Thomas abre os
braços, apresentando o local com um grande sorriso. — Espero que aproveite
a comemoração dos seus vinte outonos.
Devolvo o sorriso em agradecimento, principalmente pela citação da minha
estação do ano favorita. Amo o fato de o Outono ser tão imponente a ponto
de fazer as folhas caírem e trazer um aspecto mais cinzento aos dias antes tão
claros. Deixo que Thomas me arraste pelo local me contando como foi
organizar a festa, e é claro que ele não afasta a ideia de que já está formado
com honras na arte de planejar eventos.
— Vocês fecharam o bar apenas para o meu aniversário? — questiono após
notar que toda a decoração está meio Mackenzie Lennon demais, ofuscando a
presença de qualquer outro cliente de fora da festa.
— Essa parte não foi ideia minha. — Ele entrelaça nossos dedos, encaixando
as palmas. — Nevaeh conseguiu falar com o empresário da sua tia pelo
Instagram e ela rapidamente a reconheceu como sua amiga. Lindsay ficou
com a tarefa de convidar seus pais e eles logo decidiram que a comemoração
ficaria mais confortável se todo o lugar fosse só nosso.
— Quão extravagante isso é afinal? — Thomas se senta em uma das cadeiras
na mesa grande que abriga nossos amigos e me puxa para ocupar o assento ao
seu lado.
— Aposto que mais do que qualquer grande gesto meu. — Empurro seu
ombro levemente e giro os olhos nas órbitas.
O clima leve se dissipa um pouco dando lugar a tensão palpável que nos
acompanha habitualmente. Nossos olhos se conectam e eu consigo enxergar
cada filete em um tom de azul diferente em sua íris. Analiso a – quase
imperceptível – pinta castanha no canto de sua bochecha esquerda, assim
como a covinha única que nos saúda quando ele sorri, e os lábios finos que
podem me levar do inferno ao paraíso em segundos. Thomas acaricia desde a
minha têmpora até a mandíbula, e se aproxima o suficiente para que eu sinta
seus lábios na minha orelha.
— Depois tenho que entregar o seu presente.
O sussurro em meu ouvido é suficiente para que eu aperte as coxas uma
contra a outra.
— Não gastou nada comigo, certo? — Mal posso evitar a bronca.
Após uma conversa longa acerca das dívidas e como poderíamos contorná-
las, aceitar que ele compre qualquer coisa para mim é quase uma ofensa.
Todo dinheiro do lucro da oficina será sabiamente utilizado por meio de um
planejamento de gastos. Thomas acertaria os aluguéis atrasados, teria grana
para sobreviver bem e suspenderia, por hora, a mesada que manda para sua
mãe mensalmente. Em prol de um objetivo maior: pagar as dívidas com os
advogados e juntar o necessário para quitar a oficina.
— Prometo que o capitalismo não meteu sequer o dedo mindinho nesse
presente. — Aperto meus olhos devido à gracinha e aceno em concordância.
Consigo dividir a atenção entre uma Nevaeh parcialmente animada e um
Dominic mais cabisbaixo. Embora a situação me deixe um pouco
desconfortável, os dois fazem questão de reafirmar que hoje a noite é apenas
minha, sem términos e passados trazidos à tona. Lewis e Andrew se
comportam como dois amigos da faculdade, e a falta de afeto resultam em um
pequeno incômodo em meu coração, pela falta de liberdade que eles têm.
Alguém anuncia ao fundo que o karaokê está liberado, e a primeira pessoa a
nos brindar com sua boa voz é a minha tia. Não que ninguém tenha muito
conhecimento de seu talento, contudo além de modelo, Lindsay poderia ser
uma incrível cantora. Ela escolhe "Man, I feel like a Woman" da Shania
Twain, e o gesto me faz sorrir, já que essa música marcou boa parte da minha
adolescência nas nossas noites do pijama.
Papai está em um papo muito animado com Dominic, enquanto o mais novo
o ensina a fazer minúsculas bolinhas de guardanapo para enfiar no canudo,
assoprando-o a fim de importunar um dos convidados. A primeira vítima dos
dois arteiros, infelizmente ou não, é Jules. O protótipo de guardanapo
assoprado pelo meu pai acerta a têmpora da tatuada e suas vistas se arregalam
de uma só vez.
— Quem foi? — Os olhos estreitos de Jules diminuem à medida que a
vermelhidão em seu rosto aumenta. Ela está com raiva.
Acho que Dominic e papai tem um tipo de combinado que consiste em não
dedurar um ao outro porque os dois se calam e forjam o melhor semblante
inocente. Thomas infla as bochechas, tentando prender a risada que ameaça
explodir em sua boca. Nego furiosamente com a cabeça, desacreditada com
um homem de cinquenta e um e outro de vinte e um anos brincando como
adolescentes. No entanto, é impossível negar o quão engraçado foi.
— Foi você, né, Daddy Lennon? — Jules aponta com o dedo indicador em
riste. — Eu só vou perdoar porque o senhor é o pai da aniversariante.
Maxon afunda o rosto no pescoço da companheira enquanto ri, embora todos
na mesa tenham escutado o sussurro de Jules chamando meu pai de ordinário.
Howard se limita a cobrir a boca com a mão, gargalhando silenciosamente do
jeito agressivo de Jules. Permito-me demorar um pouco observando meu pai,
tão desenvolto perto de pessoas que já ocupam um lugar significativo no meu
coração. Pelo que parece, ele e Dominic parecem amigos de longa data.
Quando o pequeno show de tia Lind termina, papai demanda sua atenção à
mulher, relembrando alguns momentos meus na infância. E Dom acaba
mergulhando mais uma vez no aspecto triste com os ombros caídos e
semblante murcho.
Sinto Thomas enterrar o rosto na curva do meu pescoço e avisar que o
próximo show será dele, e confesso que, no fundo, tenho um pouco de medo.
Realmente, não sei o que esperar dele, uma vez que Eckhoff pode ser bem
extravagante quando quer. Observo-o subir no pequeno palco designado ao
karaokê e escuto os primeiros acordes de uma canção começar.
Quando identifico "Marry You" do Bruno Mars, fico com um pouco de receio
de ele dedicá-la a mim, e sei que de Thomas posso esperar qualquer coisa.
Ele inicia a letra, se balançando de um lado ao outro do pequeno tablado. Se
estivéssemos em uma premiação, sua presença de palco mereceria um grande
dez.
— Ei, querido! — Thomas canta, apontando para Dominic. — Eu acho que
quero me casar com você.
O bar inteiro explode em risadas assim que percebem que Thomas está
cantando para Dominic. Sei o que ele está fazendo: tentando animar seu
amigo para receber ao menos um pequeno sorriso. E o Hopkins não deixa a
desejar quando acompanha a plateia na gargalhada. Analiso, sem pressa, as
reações dos mais próximos. Jules nega levemente com a cabeça, contudo
mantém os lábios erguidos em um riso pequeno. Andrew sorri grande,
presumo que admirando a cumplicidade entre seus dois melhores amigos.
Nevaeh também está feliz, apesar de tudo. Ela sabe que Dom merece um
momento como esse. Tia Lindsay está encantada, encarando o show de
Thomas com os olhos brilhando e um riso intenso por entre os lábios cheios.
Volto meu olhar a performance e sorrio ao vê-lo remexer os quadris no ritmo
da melodia, imerso no objetivo de agradar a todos os convidados. Procuro a
figura imponente de papai e o encontro próximo ao bar, encarando Thomas
com o canto dos lábios erguidos. Como uma conexão só nossa, seus olhos
encontram os meus e ele parece sorrir ainda mais com eles. Sei que sou feliz,
porque, nesse instante, eu sinto a mais pura e genuína alegria. Talvez amanhã
eu acorde triste, mas hoje, esse momento aqui, ao lado de todos que amo, já
está valendo a pena.
O resto da celebração corre tranquila, entre cantorias exageradas com Nev,
Hannah, uma Jules contrariada e eu cantando "Wannabe". O show se
aproxima bastante a um de horrores, misturando nossas vozes agudas e
desafinadas, inclusive, quase fiz xixi nas calças de tanto rir. Canto uma série
de músicas com Lewis, Dominic e até Andrew. E óbvio que nossos amigos
me fariam estrelar um dueto com Thomas. A escolhida da vez foi uma do
High School Musical, originalmente cantada por Troy e Gabriela, apesar de
eu preferir a versão com a Sharpay.
O tradicional canto dos parabéns passa de forma harmônica e meu bolo com
recheio de chocolate está uma delícia. Thomas faz algum tipo de brincadeira
acerca de ter tentado encomendar a torta com o Gordon Dale, mas que o
famoso confeiteiro não tinha vaga para pedidos.
— Ei, — Thomas ergue a mão para mim. — vem cá.
Encaixo nossas palmas e entrelaço os dedos, deixando que ele me puxe pelo
bar. Adentramos um banheiro unissex até amplo para um estabelecimento
como esse. O braço dele circunda minha cintura e seu corpo grande me
prensa contra a pia em um gesto ágil. Eckhoff acomoda o rosto na curva do
meu pescoço e seu cabelo faz leves cócegas na minha pele. Ele inspira meu
cheiro e deixa um beijo casto, causando-me um arrepio quase imediato.
— Senti saudades. — Thomas diz baixinho. Solto uma risada baixa por saber
que quase não nos desgrudamos, e ainda assim, sentimos falta de entrarmos
nessa bolha só nossa. — Quero entregar seu presente. Não pude comprar
nada e demorei a pensar em algo para alguém que já tem tudo.
Thomas não está errado, porque é difícil pensar em algo que eu esteja
precisando. Com sorte, eu realmente tenho tudo. Entretanto, enxergo um
pequeno envelope saindo do bolso interno de sua jaqueta e a apreensão vai se
apossando de cada poro. Pesco o pedaço de papel e abro com rapidez. Me
dou conta de que são vários pequenos cartões, com coisas diferentes escritas
na letra meio desengonçada do louro.
— Vale um abraço. — Leio em voz alta o primeiro e franzo o cenho para ele.
— O que é isso?
— São espécies de Vale Coisas. — Thomas parece nervoso porque abusa de
seu tique, afastando os fios da testa e coçando a nuca. — Cada cartão desses
tem algo que você pode usar comigo a qualquer momento.
O próximo é Vale Silêncio.
— Esse é para quando eu estiver falando demais e você queira um pouco de
paz, ou no momento em que estivermos tendo nossas discussões bobas. —
Continua com um pouco de receio.— Os Vales podem ser usados a qualquer
minuto, de verdade.
Vale um abraço.
Vale silêncio.
Vale uma chupada.
Vale um almoço no Sunbeach Resort.
Um sorriso largo rasga em meu rosto, elevando as bochechas. O último
cartão me faz cerrar os olhos, como uma bronca por ele querer gastar dinheiro
me levando no restaurante do hotel mais chique e caro de Oroland County, o
mesmo que minha mãe comemorou o aniversário.
— Antes que você brigue, não gastarei um tostão com as reservas do almoço.
— Cruzo os braços e levanto uma sobrancelha, instigando-o a explicar
melhor. — Ganhei da minha madrasta que é sócia do Resort e tem esse tipo
de fidelidade com eles.
Volto meu olhar ao cartão e a risada se expande pelo ambiente, reverberando
alta e fazendo meu peito tremer.
— Por que não tem sexo aqui?
— Porque esses cartões são única e exclusivamente para o prazer da Vossa
Majestade. — Ele discorre como um lorde, fazendo uma pequena reverência.
— Apesar de que ter meus dedos ou língua dentro de você também é
prazeroso pra caralho para mim.
As sacanagens que saem da boca dele são o suficiente para mudar o clima do
banheiro, transformando qualquer respingo no ar em tensão sexual. Agarro
seus ombros, afundando meus dedos nos músculos rijos e roço nossos lábios.
Encaixo nossas bocas e aprofundo o beijo. Sua língua desliza sob a minha,
deixando um rastro de excitação por todo o meu corpo enquanto sinto um
calor anormal se apossar de mim. As mãos grandes apertam os quadris,
bunda e peitos. Minha saia já está embolada na cintura e eu gemo ao
contemplar a dor leve da mordida no meu lábio inferior assim como sua
língua amenizando o machucado. A intensidade do toque torna-se cada vez
mais profunda e sei que se eu não parar agora transaremos aqui mesmo.
— Obrigada por tudo — ofego, tentando controlar o ritmo acelerado da
respiração. — Eu amei a surpresa do início ao fim, assim como a ideia do
presente. Você foi a melhor coisa que me aconteceu na faculdade.
— O quê? — Thomas brinca, posicionando a mão perto do ouvido. — Pode
repetir, por favor?
— Você foi a melhor coisa que me aconteceu na faculdade — repito em um
sussurro, encostando os lábios na orelha dele. — Você é a melhor parte.
— Deveria namorar comigo, Lennon.
A frase não se aproxima em nada a uma pergunta. Thomas quer que eu
namore com ele e está apresentando a sugestão nesse banheiro amplo demais
para um pequeno bar. Meu peito infla na porra de felicidade que as
protagonistas dos romances tanto exaltam. Nunca acreditei que a paixão
pudesse acontecer comigo desse jeito: leve, pura, sem amarras. Totalmente
diferente do que tive com Rafe.
— Deveria, é? — Faço um pouco de charme, jogando os cabelos para trás
dos ombros.
— Sim. — Ele deixa um selinho em meus lábios. — Você não acha?
— Me diga você, Thomas Eckhoff. — Cubro sua mão com as minhas e levo
até meu peito, no lado do coração. — Quer namorar comigo?
Sempre quis fazer isso. Tomar as rédeas da situação e externar alguma
vontade que grite em meu peito para ser liberta. Quero namorar com Thomas
e quero mais ainda ser a autora da pergunta. A realização me abate como um
raio quando percebo que finalmente estou me sentindo segura o suficiente
para expor minhas vontades e desejos, sem medo.
— Se eu fosse poliglota te responderia sim em todas as línguas que eu
soubesse. — O riso me escapa pelo jeito exagerado de Thomas.
Envolvo-o em um abraço apertado e encosto minha cabeça no peito, ouvindo
as batidas aceleradas de seu coração.
— Finalmente posso te chamar de amor sem uma reação exagerada. —
Relembro o episódio do início da semana e rimos em uníssono.
— Que mulher de pouca fé. — Thomas acaricia meu rosto, a almofada de seu
dedão raspando em meu lábio. — Eu sempre terei uma reação exagerada ao
te ouvir me chamar de amor.
— Te arrancar as coisas nunca me pareceu tão fácil, amor. — Eckhoff leva a
mão ao peito com um semblante afetado e gargalho alto, tombando minha
cabeça para trás, batendo-a de leve no espelho pregado na parede.
O gesto desastrado nos faz rir ainda mais.
— Creio que você não possa arrancar mais nada quando já me tem por
inteiro. — O ar foge dos pulmões quando o peso das palavras me atinge.
No entanto, percebo tardiamente que estamos no mesmo barco, porque
Thomas também me tem por inteiro.
— Às vezes me esqueço do quanto sua lábia é boa.
— Foi por ela que você se apaixonou? — O tom de voz exala diversão e
molecagem, sei que Thomas está apenas brincando, mas resolvo falar sério.
— Não. — Seguro o rosto com ambas as mãos e beijo a ponta do seu nariz.
— Me apaixonei por você.
O sorriso se expande pelo rosto dele vagarosamente, exatamente do jeito que
eu gosto: elevando as maçãs do rosto, diminuindo a íris oceano e exibindo a
covinha única.
— Fico feliz de estarmos na mesma página. — Ele aperta minha cintura com
um pouco mais de força. — Também estou fodidamente apaixonado por
você.
Entre Vale abraço e Vale chupada, o meu maior presente é esse. Saber que a
grandiosidade dos meus sentimentos é recíproca. Entender que essa sensação
na boca do estômago que irradia por todo o meu corpo, como as benditas
borboletas clichês, também voa na barriga de Thomas. Que essa conexão
fodida que nos cerca é contemplada por ambos os lados. Eu o adoro e ele me
adora de volta. E sei não no fundo e sim bem no raso, que estamos
caminhando para algo muito mais forte e poderoso que qualquer paixão.
— Minha Regina. — Thomas sussurra no meu ouvido, deixando um beijo no
lóbulo da minha orelha. — Minha Mack, meu amor.
Aí está a maldita palavrinha.
Amor.
Namorar é uma experiência, no mínimo, peculiar, e poderia servir de
amostras de estudos para profissionais da área de relações interpessoais. Por
mais que Thomas e eu já estivéssemos em uma espécie de relacionamento
exclusivo, definir um rótulo tende a elevar as coisas a outro nível. De modo
que agora adquirimos algumas responsabilidades diferentes. Por exemplo,
torna-se quase um hábito aumentar a convivência com a pessoa. Mesmo que
tenhamos definido alguns dias destinados a nós individualmente e aos nossos
amigos, sabemos que determinados finais de semanas ficam especificamente
separados a nossa vivência como casal. Outro ponto é que adicionamos o
gesto de geralmente nos avisarmos onde estamos e fazendo o que, não de
forma forçada, e sim natural.
No entanto, a maior diferença, em minha opinião, é o conjunto família.
Geralmente, quando temos um relacionamento sem rótulos ou ao definirmos
como apenas "uma ficada" é normal conhecermos os amigos e até primos,
contudo o combo pai e mãe ou parentes mais próximos costumam ficar de
fora. Porém, com um namoro exposto ao público e dentro da normalidade, é
normal levar em conta os familiares e conhecê-los.
O que, inclusive, eu vou fazer hoje.
Amanhã é feriado de Ação de Graças e com papai envolto em um jantar da
alta sociedade com minha progenitora, eu reafirmei o combinado de passar a
festividade na casa de Thomas em Oroland County. Se estou nervosa? Para
um caralho.
Sinto algumas gotículas de suor se acumular nas palmas das mãos e torço os
dedos dos pés em uma mania que costuma me visitar quando estou nervosa.
Olho de relance para a figura dona da cabeleira loira, compenetrado na
estrada que nos leva até o litoral do Condado. Mesmo com o silêncio
cultuado pela atenção redobrada do homem na estrada – molhada pela chuva
e com pouca visibilidade porque está de noite –, consigo ouvir um pop de
batida grave soar baixinho nos alto-falantes do carro.
— Como ela é em relação às garotas que você sai?
Solto em um rompante, deixando claro com um olhar de esguelha que o ela
se refere diretamente a mulher esbelta que o gerou.
— Tranquila. — Thomas dá de ombros. — Não que eu já tenha apresentado
alguma para ela.
— Nunca apresentou nenhuma garota? — Arregalo os olhos levemente e
sinto o peso das palavras se acomodar em meus ombros.
— Não. — Aprumo a postura no banco e o espero dar continuidade ao
diálogo. — No colegial, eu não beijava ninguém e a faculdade fica longe de
Oroland. Ela sabe pelo que conversamos por mensagem e ligação, mas
pessoalmente nunca conheceu nenhuma delas.
Arrependo-me instantaneamente pela indagação inicial. Saber que a mãe dele
nunca conheceu nenhuma de suas ficantes ou amigas mais íntimas aumenta
meu nervosismo exponencialmente. Quer dizer, existe algum tipo de
responsabilidade ligada a isso, certo? A mãe dele pode ter idealizado ou
criado expectativas em relação ao meu comportamento e até ao que eu falo. E
se eu decepcionar? E se ela me odiar?
Para falar a verdade, é bem fácil não gostar de mim ou criar uma opinião
baseado no que eu visto, na minha postura e até mesmo em como eu ando.
Certamente, a mãe de Thomas preferiria alguém mais... Simples para estar ao
lado do filho. E não uma mulher que contorce as feições para banheiros
compartilhados e transportes públicos. Será que só de me olhar ela saberá que
nunca sequer andei de ônibus? A minha inexperiência com as adversidades
da vida começa a me incomodar.
— Posso ouvir seu cérebro trabalhando daqui. — Ouço sua voz soar com
resquícios de divertimento. — Relaxa, Lennon. Mesmo que a opinião da
minha mãe seja de suma importância, no fim das contas, quem tem que gostar
de você é eu.
— Eu esperava ouvir algo como: relaxa, Lennon. Ela vai gostar de você —
rebato erguendo os lábios em um sorriso.
— Não tenho como falar por ela ou afirmar algo sem ter certeza. — Sua voz
sai em um tom meio esganiçado. Abano a mão, como se dissesse "você tem
um ponto" e o assunto morre, por hora.
Alguns minutos se passam até que eu veja a grande placa verde anunciando
nossa chegada à cidade natal do meu namorado. Ainda é estranho, de certa
forma, pensar nele como meu namorado. Não faz nem um mês que
oficializamos as coisas, mas se contarmos todo o nosso tempo de convivência
esse período é como uma continuidade de tudo que construímos em apenas
doze semanas.
Peço que Thomas desligue o aquecedor um pouco para abrirmos os vidros
das janelas a fim de sentirmos um pouco da maresia que abraça toda a cidade
litorânea. O clima mais abafado e caloroso, mesmo que no Outono, dispensa
o uso do casaco de lã que coloquei em Bolfok. Já estive em Oroland County
algumas vezes, porém admirar o local sob os olhos de um habitante muda um
pouco minhas perspectivas. Até porque não estou a caminho do bairro mais
rico localizado na ponta da orla da praia, onde costumo me hospedar. Estou,
na verdade, cortando a urbanização pelo meio na direção do ponto médio da
orla, nem no início e nem no fim. Thomas diz que a especulação imobiliária
aqui é um pouco diferente quanto aos lugares no mapa, por exemplo, estar
perto do oceano não quer dizer que o metro quadrado do seu imóvel será
mais caro. Na verdade, a divisão é feita por bairros e pela sua distância do
início do mar. Quanto mais próximo do fim da orla mais carente é a sua
condição de vida.
Saber que a casa de Thomas está localizada a uma quadra da praia no meio da
orla me deixa um tanto mais tranquila, de forma que consigo entender
facilmente que sua moradia não é tão espalhafatosa quanto à dos ricos e nem
tão simples quanto as dos mais carentes. Sinto a velocidade de o carro
diminuir enquanto o loiro gira o volante, fazendo uma baliza para estacionar
na calçada.
— Seja bem-vinda a residência dos Eckhoff! — Sua voz me desperta ainda
mais do transe e eu encaro a fachada de sua casa.
É cedo para dizer que eu me enganei?
O minúsculo quintal separa a construção da rua por grades pretas um tanto
enferrujadas e o pequeno jardim que antecede a soleira está bem cuidado com
uma variedade colorida de flores e plantas. A casa amarela pastel é pequena e
bem simples, com apenas um andar e uma janela um pouco mais ampla. A
pintura com detalhes brancos está preservada de um jeito que compensa as
telhas gastas pela maresia. Apesar de humilde, a moradia parece calorosa e
aconchegante.
O portão range um pouco assim que Thomas abre e o farfalhar dos cascalhos
e pedregulhos do pequeno caminho que nos leva até a soleira contrasta com a
taciturnidade e tranquilidade de uma noite em uma cidade pequena. Subo os
três degraus que antecede a entrada com a mão de Eckhoff pousada
despretensiosamente na minha lombar. Seu dedo mindinho acariciando
levemente minha pele na fresta entre a blusa e a barra da calça acalma um
pouco do meu nervosismo ao escutar a campainha soar.
Reconheço com facilidade a figura esbelta da mulher de cabelos negros que
atende a porta. Noora Eckhoff estende o sorriso que marca algumas de suas
linhas de expressão e as ruguinhas quase imperceptíveis no canto dos olhos
de um azul tão intenso quanto o de Thomas. Eu sempre soube que ela seria
uma mulher jovem, por ter engravidado aos vinte, no entanto, sua aparência é
tão jovem que mal posso acreditar nos seus quarenta e um.
— Filho! — Noora ergue os braços, querendo aconchegá-lo em um abraço.
— Amor da minha vida! — Há divertimento no modo como sua voz soa, mas
a pitada de verdade ainda está ali.
Thomas flexiona os joelhos consideravelmente a fim de circundar os braços
pelo corpo robusto de sua mãe, agarrando-a em um abraço de urso. Ele beija
o topo da cabeça dela, murmura o quanto sentiu saudades e tenta mensurar o
tamanho de seu amor, falhando miseravelmente. A cena é capaz de preencher
o peito de qualquer um com o melhor dos sentimentos. Noora afaga as costas
do filho e o encara com um olhar terno de quem está vendo nesse exato
momento a melhor pessoa do mundo.
— Como está o meu bebê? — A pergunta faz as bochechas corarem
violentamente. — Comendo direito? Não está fumando tanto, certo? Dominic
já aprendeu a lavar as roupas de vocês? Está mantendo aquela casa limpinha?
Andrew conseguiu reconhecer a importância de guardar a toalha no lugar
certo ou continua largando pela casa?
A série de questionamentos é disparada contra Thomas em uma velocidade
impressionante. Pensei que só eu conseguia pronunciar tantas palavras em um
curto espaço de tempo, mas parece que alguém acaba de me ultrapassar. O
filho rebate as indagações com calma, dando devida atenção a cada uma e é
só quando ele dá um passo para o lado que me insiro no campo de visão da
mulher.
— Oh! — Ela põe a mão no peito com uma expressão afetada e esboço um
sorriso simpático. — Você deve ser a Regina.
Aperto os olhos para Thomas e contraio minhas feições em nítido desagrado.
É óbvio que nas vezes em que fui pauta das conversas dos dois, ele fez
questão de mencionar seu carinhoso apelido. Belisco sua cintura
discretamente e ele franze o nariz, incomodado.
— Mackenzie Lennon. — Ergo a mão para cumprimentá-la e ela ignora a
palma estendida para me envolver em um abraço maternal.
— Noora Eckhoff. — Ela murmura baixo no meu ouvido e se afasta, ainda
segurando meus ombros. — Como você é linda!
Alargo o sorriso.
— Muito obrigada, a senhorita também é. — respondo, sendo o mais educada
que consigo. A mãe de Thomas franze o cenho e rapidamente abre outro
sorriso.
— Uau. — Acompanho os dois para dentro de casa enquanto Noora continua
falando. — Acho que você é a primeira pessoa desconhecida que usa o
pronome de tratamento certo comigo. Senhorita faz eu me sentir mais nova.
Apesar de aprendermos esses pronomes na escola, foram nas aulas de
etiqueta que aprendi a valorizar o uso deles. Sabendo que a mãe de Thomas
não é casada, relembro da Senhora Boomer pedindo que eu tenha atenção aos
detalhes e que mulheres da alta sociedade podem se sentir verdadeiramente
ofendidas caso o pronome de tratamento seja usado de forma errônea. Porém,
antes que eu responda, Noora volta a falar.
— Mas dispenso o “senhorita”, porque você pode usar o você — agradeço
com um balançar de cabeça.
Dentro da residência dos Eckhoff, consigo dar atenção à decoração interna do
lugar. A sala é pequena, com um rack que abriga a televisão e alguns porta-
retratos, um sofá de três lugares vermelho-sangue e uma poltrona creme. A
mesa de centro de vidro comporta alguns livros e um pequeno vaso de plantas
com suculentas dentro. A decoração é minimalista, mas de um bom gosto
extremo. As cores parecem combinar perfeitamente, assim como a beleza dos
móveis. O corredor de entrada que nos leva até a bancada que divide a
cozinha americana do hall tem alguns papéis de foto colados na parede,
estampando momentos importantes desde a gravidez dela, passando por uma
criança loira com a boca suja de bolo de aniversário, e terminando em uma
foto de Eckhoff de beca provavelmente se formando no colegial. Também
tenho o vislumbre de outras duas portas que acredito serem a dos dois quartos
e de um banheiro.
Como eu disse: uma casa pequena e simples, mas que parece ter sido
decorada com base nas dicas do Pinterest. Quando mencionei o bom gosto foi
como puxar um gatilho para que a mãe de Thomas começasse a tagarelar
sobre decorações e de como comprou todos os seus móveis em um bazar de
mobílias usadas. Além disso, segundo ela, seus eletrodomésticos vieram de
um outlet que vende produtos com defeitos quase imperceptíveis e os preços
diminuem consideravelmente. Admiro muito o esforço de ajeitar uma casa
bonita com o menor custo possível. Tanto Thomas quanto eu, deixamos sua
mãe livre para discursar sobre o que quiser, já que ela não está acostumada
com companhia.
Noora nos informa que o jantar de Ação de Graças de amanhã está bem
encaminhado, e que o tio de Thomas, Mason, também virá comer conosco
junto de sua namorada e o pequeno filho dela. Pela primeira vez, a casa
contará com a presença de mais de três pessoas e isso parece animá-la cada
vez mais. Ela me apresenta o resto do domicílio, como a cozinha igualmente
bem decorada, o banheiro com box de blindex e o quarto de Eckhoff, onde
dormiremos.
O cômodo é pequeno como o resto da casa, contando com uma cama de
solteiro tão estreito quanto à do meu alojamento, uma mesa de estudos
simples e uma estante parcialmente vazia com HQs e livros que Thomas não
quis levar para Bolfok. As paredes são de um azul claro meio fosco com
algumas nuvens pintadas à mão, como se a pintura do quarto não tivesse
acompanhado o crescimento da criança que um dia dormiu ali. A versão
parece até uma miniatura do lugar onde ele dorme atualmente.
Com o objetivo de nos instalarmos por completo, Noora ordena que
busquemos logo as bagagens no carro. Malas essas que já foram pautas em
discussões minhas com Thomas, já que partiríamos de Bolfok na quarta à
noite, passaríamos o feriado e voltaríamos na sexta para não desviarmos o
foco de economizar dinheiro com a tentação que é a Black Friday. E, segundo
Eckhoff, eu não preciso de uma mala gigante para passar duas noites fora.
Engano seu, querido. Mesmo tendo certeza de que não darei conta de usar
todas as peças de roupa que trouxe, sei o quanto é importante ter mudas
extras caso algum imprevisto aconteça.
Já a senhorita Eckhoff promete que usará a oportunidade de descontos para
fazer as compras de Natal. Sendo muito sincera, nunca me importei muito
com a Black Friday. E isso se dá porque não houve um momento sequer em
minha vida que precisei me importar com preços mais baixos e descontos.
Sabendo que na atual conjuntura, minha condição de vida é outra, a ideia de
comprar novas roupas por preços mais baixos acaba sendo muito atrativa.
O baque da minha mala pesada atingindo o chão, após ser tirada do
bagageiro, me acorda dos devaneios.
— Ei! — Acaricio o tecido da bolsa de viagem com apreço. — Tenha
cuidado com ela. É uma Hermes!
Thomas agarra a alça de sua única mochila e me encara com um sorriso
zombeteiro.
— Oh! — Põe a mão no peito, fingindo estar afetado. — Minhas sinceras
desculpas, Hermes.
Ele fala diretamente com a mala, dando-a um novo nome. Pelo resto do
caminho até o quarto, agarrando minha bagagem pesada, Thomas se refere a
ela como Hermes o tempo todo. Deixo os lábios lacrados, tentando não ceder
e acompanhá-lo na risada.
Durante o jantar, a mãe dele nos fez algumas perguntas sobre a faculdade,
incluindo os relatos sobre como foi organizar eventos por dois meses e como
fomos do ódio ao namoro. Aos poucos, consegui me livrar do nervosismo e
da insegurança e me senti livre para tagarelar acerca dos diversos assuntos
que rondaram a mesa. Descobri também que Noora trabalha como
recepcionista em uma clínica odontológica e que esse é um dos empregos que
mais paga bem, sem exigir muitas especializações ou ensino superior. A mãe
de Thomas é alto-astral, extrovertida, e realmente ama falar e contar histórias.
Levando assim o jantar de forma leve, sem precisar forçar qualquer tipo de
assunto.
— De onde você é, Mackenzie? — A pergunta atropela um pouco o assunto
anterior e me faz tomar um gole do suco natural de frutas vermelhas.
Outro fato sobre a mãe de Thomas é que ela é vegetariana. Não que seja
muito comum na América, já que a população não é de todo consciente sobre
os males do consumo derivado de animais. Independentemente disso, Noora
disse que nunca gostou muito de carne vermelha e ao visitar uma palestra de
culinária não agressiva, acabou pegando o costume de tirar todos os tipos de
carne de seu cardápio. Eu não sou muito adepta de refeições sem proteína
animal, porém o hambúrguer de grão-de-bico com purê de batata e vegetais
está verdadeiramente delicioso.
— De Dilshad Town — respondo de forma evasiva, aguardando que ela faça
outra pergunta.
— Ah. — Sua expressão se enche de compreensão. — É aqui do lado.
Afirmo com um aceno de cabeça e dou outra garfada na porção de vegetais
coloridos em meu prato. Finalizo a mastigação antes de voltar a falar e apoio
os antebraços na mesa com elegância.
— É sim — dou outro gole no suco. — Eu costumava vir bastante para
Oroland.
— E o que gostava de fazer aqui?
— Ir à praia principalmente — inicio, cruzando as mãos sobre a mesa. —
Ficávamos hospedados no Sunbeach Resort e eu amava o pequeno parque
aquático que tem lá.
— Lá é realmente lindo. — Noora parece lembrar-se de algo e seus olhos
parecem se tornar um tanto melancólicos. — O pai de Thomas é um dos
donos.
Ao citar o nome do dito cujo, o clima na mesa muda drasticamente, ganhando
um ar muito mais pesado. Assisto os ombros de o loiro ficar rígidos assim
como os nós de seus dedos tornam-se esbranquiçados à medida que ele aperta
o talher com força. A mandíbula tenciona e ele apruma a postura com
rapidez. Ela parece se dar conta tarde demais de que tocou em um assunto
proibido porque arregala os olhos e sibila um pedido de desculpas. Antes que
ele possa dizer qualquer coisa impensada, me pronuncio tentando amenizar a
tensão.
— Sua comida está deliciosa, Noora.
Meu comentário é o bastante para que ela atropele qualquer palavra ranzinza
que vá sair da boca dele e comece a externar sua paixão por culinária. Depois
de organizar os talheres e pratos sujos e lavar a louça, a mãe de Thomas me
convida a xeretar os álbuns antigos de quando ele era criança, como todo o
clichê que envolve conhecer a família do namorado. A minha fotografia
favorita é aquela que estampa um mini Eckhoff pelado, fazendo xixi na
privada de adulto pela primeira vez, segurando seu pintinho enquanto lança
um sorriso sapeca para câmera fotográfica.
Assisto meu namorado bocejar de modo que seus olhos adquirem um brilho
especial, quase lacrimejando. E o gesto é suficiente para nos recolhermos na
estreita cama de solteiro após desejar boa noite a Noora.
O espaço no colchão é pequeno, fazendo com que nossos corpos se
entrelacem de um jeito que é difícil identificar quem é quem. Nossas pernas
estão emboladas, assim como minha cabeça repousa em seu peito e seu braço
envolve meu tronco. Apesar do clima mais abafado, a noite em Oroland pode
contar com uma brisa gélida gostosa que irrompe pela fresta da janela e
refresca todo o quarto. É o que impede de suarmos mesmo com o calor.
— Você acha que sua mãe gostou de mim? — Faço a pergunta que eu queria
fazer desde o término do jantar.
Thomas ri baixo e sinto seu peito tremer colado ao meu.
— Tenho certeza que sim, amor — ignoro o comichão que a pequena palavra
provoca em mim. — Ela disse que temos uma boa sintonia.
— Eu concordo com ela — digo acariciando seu abdômen nu e o sentindo
contrair abaixo de mim. — Quem diria que depois de três meses, mesmo com
toda aquela implicância, estaríamos juntos na sua cidade natal conhecendo
sua mãe?
— Nevaeh diria, ou Dominic e Andrew. Só nós dois não enxergamos os
sinais.
Concordo com um balançar de cabeça.
— Acha que foi rápido demais? — pergunto com insegurança transbordando
na voz. — Sabe, nós dois. Tem pessoas que demoram um ano para namorar e
se apaixonar. Quando penso que eu queria te bater e agora estou agarrada em
você, fico me perguntando se não atropelamos as coisas.
— Algumas coisas não mudam. Você ainda quer me bater às vezes. —
Acompanho-o na risada. — Não acredito nisso de tempo. Acho que o tempo
não age conforme nossas vontades. Nós convivíamos quase todos os dias da
semana por causa dos eventos, o que é totalmente diferente dos casais
normais que no início não se veem com tanta frequência. A gente aprendeu
coisas um sobre o outro com rapidez porque precisávamos conversar entre
decorações e organizações. Aprendemos a gostar um do outro, das manias
chatas até as adoráveis.
"Lembro quando te vi envergonhada pela primeira vez, com as bochechas
coradas e olhar baixo. Naquele dia, além de me perguntar se você ruborizava
daquela maneira no sexo, eu também percebi que gostava dessa versão sua. E
não percebi quando chegou a um ponto que eu gostava de todas as suas
versões. A gente nunca respeitou muito as normas de relacionamento,
driblamos alguns estereótipos que nos lembravam de pessoas ruins que
passaram por nossas vidas... Acha mesmo que temos que respeitar o tempo?
Ele que se molde a nós dois. Que se foda."
— É, que se foda — repito me afastando de seu peito para encará-lo. — Eu
me apaixonei por você em três meses e o tempo que lute.
Thomas cobre meus lábios com um selinho e se afasta para me encarar com
seus olhos azuis oceano, brilhando mais do que o normal.
— Mackenzie Lennon, — Thomas inicia — eu acho que te a...
Pouso meu dedo indicador sobre seus lábios antes que ele prossiga,
impedindo que qualquer palavra saia de sua boca.
— A cada dia, através das suas atitudes tenho mais certeza disso. — Arrasto
minha palma até sua bochecha, acariciando-o. — Eu também te odeio com
todas as forças, Thomas Eckhoff.
— Aposto que não. — Ele revida, portando um sorriso sacana. — Porque eu
te odeio muito mais.
Apesar das palavras impetuosas, o olhar terno somado ao sorriso largo nos
lábios mostra o contrário. Não há uma fagulha de ódio sequer ali, menos
quando ele cutuca meu sovaco, é claro. O que sentimos muito me custa dizer
em voz alta, até mesmo em meus pensamentos, é amor. Do mais puro e
genuíno. Nada de palavras vazias, e sim atitudes que demonstram carinho,
parceria, afeto, respeito, leveza e tudo que precisa ser considerado. Porque só
o amor não basta. E como me sinto ao lado dele, apenas reafirma isso. A
leveza, liberdade, além de que não sinto que minhas energias estão sendo
sugadas, pelo contrário, é como estar renovada. Com mais vontade de viver.
Eu gostaria de fazer uma reflexão bonita e poética sobre pessoas e cores.
Uma analogia que me lembra da música True Colors. Contudo, eu não sou
essa garota. Existem pessoas que podem imergir até as profundezas e trazer à
superfície as palavras e reflexões mais bonitas, como escrever um poema,
adicionar um nome respeitoso e defini-lo como um clássico. Do tipo, é claro
que sou culto porque consumo coisas eruditas. Não eu, uma Mackenzie que
ama imergir nas diferenças entre Gucci e Prada, nos mais diversos tons de
rosa, nos romances água com açúcar que, mesmo sabendo o final e
adivinhando todo o enredo, ainda pode me aliviar do estresse do dia a dia.
Voltando a analogia das cores, sei que vermelho é a do amor, e dizem que
roxo é a da luxúria. Ouvi também que azul traz a ideia de afeto e respeito,
embora traga frieza. O que eu quero dizer é que esse amor que descubro
sentir por Thomas, não é sobre alguém que deu cor a minha vida, e sim sobre
uma pessoa que adicionou um bocado de glitter extravagante no que já era
colorido.
Mesmo com todo esse rosa e cores claras que visto, ainda há muito cinza e
preto dentro de mim. Como se houvesse algo de perverso dentro de
Mackenzie Lennon, aguardando junto à seriedade e paranoias, o momento de
transbordar. Talvez eu seja um prisma, dos que – aprendi em meio a cochilos
nas aulas de física – refletem todas as cores. Tenho todas elas, porque sou um
ser humano completo. Mas, agora esse arco-íris brilha mais, talvez na mesma
intensidade que meus olhos quando me deparo com as pessoas que amo.
Finalmente, encontrei alguém que verdadeiramente me enxerga.
Mas, como qualquer outro ser humano, tenho camadas. De cores secundárias
que jamais alguém teve acesso. Há essa perversidade dentro de mim, algo de
podre cravado no meu âmago. Como se aquela Mackenzie do colegial tenha
se enroscado tão bem nas mazelas do meu corpo, que agora é impossível
tirar. Quando penso no que fiz, e que nem mesmo Nevaeh sabe, sinto medo.
Quando Thomas Eckhoff descobrirá que Mackenzie Lennon é uma farsa?
Minhas costas estão fodidas.

Levo a bolsa de gelo na altura do cóccix e arrasto até o início da bunda,


tentando aliviar a dor que abrange meu corpo. Eu caí da cama. Ou melhor,
Mackenzie me derrubou do estreito colchão de solteiro. Quando pensei que
me abrigar em um minúsculo espaço, com o corpo quase vazando para o
chão, seria o bastante, senti um pé se chocar na minha lombar e me levar até
o piso duro do meu quarto. Minha namorada faz isso às vezes, machuca os
outros enquanto dorme. Acho que no fim das contas, ser acostumada com
camas enormes ou que abriguem seu corpo perfeitamente a fez criar o
costume de exigir espaço considerável para dormir. É inconsciente, para falar
a verdade.

— Mirei em dormir agarradinho e acertei no chão duro — comento com a


voz imersa em um tom desgostoso.

Minha mãe ri. Simples assim, ela ri.

— Foi engraçado. — Mamãe continua rindo. — Você caiu da cama e


continuou dormindo.

Isso também acontece às vezes: meu sono é tão pesado que nem uma pequena
queda pode me acordar. Na verdade, é mais comum quando estou muito
cansado. O que foi o caso desta noite. Estava tão morto por ter assistido as
aulas na faculdade, ido à oficina e dirigido por duas horas sem interrupções
que bati na cama no sono dos justos. Só percebi que estava, de fato, no chão
ao acordar com o raio de sol que invadia o cômodo pela fresta da janela, e ao
invés de sentir o conforto de um colchão, desfrutei da dureza e do gelado do
chão.

— Mais uma vez, — Mackenzie me olha com o que parece ser pena, apesar
do pequeno sorriso que ameaça transbordar em seus lábios — peço
desculpas.

— Qual é, acha que estou puto por ter passado o resto da noite dormindo no
chão enquanto a Vossa Majestade reinava na cama? — É uma pergunta
retórica, e tanto minha mãe quanto Mack sabem disso, porque se limitam a rir
outra vez.

Balanço a cabeça negativamente e continuo a desfrutar da bolsa de gelo e do


café da manhã reforçado de Noora Eckhoff. Comemos panquecas veganas
com mel e frutas cítricas enquanto bebemos leite de amêndoas. Aqui em casa,
não ingerimos quase nada de origem animal.

— Namorar é assim mesmo. — Essa é a resposta de Noora para quase tudo


desde que chegamos.

Funciona como um mecanismo para me relembrar a todo instante que agora


sou um cara comprometido. Ela gosta de bater nessa tecla porque em algum
dia aí eu comentei que demoraria bastante para entrar em um relacionamento.
E minha mãe adora dizer que cuspir para o alto te faz receber o cuspe na
testa.

Mas, sendo sincero, cuspir para o alto nunca foi tão bom.

Namorar não chega perto de ser uma tortura ou algo ruim, e existem algumas
coisas que precisamos desmistificar em relação a esse assunto. Uma delas é
que namoro não é sinônimo de prisão. Apesar de parecer óbvio para os mais
evoluídos, nunca é tarde para reafirmar. A sintonia que tenho com Mack é tão
boa que nada nunca parece forçado ou que fuja do natural. Temos nossos dias
particulares, desfrutando de nossa independência e individualidade assim
como gostamos de aproveitar os momentos mais inocentes juntos. Um
exemplo é quando nos juntamos com o único objetivo de estudar. Ela, na
minha cama, envolta por livros grossos de Direito e teclando furiosamente no
notebook. E eu, na mesa de estudos, resolvendo fórmulas químicas. Nesses
dias, a gente pouco interage, focando exclusivamente em moldar e solidificar
nosso bom desempenho acadêmico. É um daqueles momentos em que
sabemos que estamos construindo algo, crescendo juntos. Trabalhando em
algo muito maior, de olho no futuro.

Sabendo que demoraríamos a voltar em Oroland County, marquei nosso


almoço no Resort para hoje, e depois de ter acatado as ordens de Mackenzie
para vestir uma das roupas de verão que ela comprou para mim, estou
sentado no sofá aguardando pacientemente que ela termine de se arrumar.

A primeira coisa que noto ao ver minha namorada é que ela está vestida de
marinheira. Eu acho, pelo menos. Ela usa uma blusa listrada vermelha e
branca, e uma alça que perpassa em seu pescoço. Combinando com um short
branco de um pano chique e seis botões dourados cravejado no tecido. Desço
os olhos até os saltos médios de tiras igualmente brancas e chego a uma
conclusão: definitivamente marinheira.

Se fosse uma mera mortal vestida dessa forma, tenho a absoluta certeza de
que ela receberia milhares de olhares atravessados e até zombeteiros. No
entanto, a postura imponente e nariz empinado de Mack impedem que
alguém sequer conteste sua escolha de visual. A mulher de longos fios
castanhos anda – ou melhor, desfila – de um jeito que ninguém ousaria
satirizar. Tipo uma daquelas modelos que lançam uma tendência e todos
seguem sem opinar ou criticar.

Sinto a brisa de o mar bagunçar meus cabelos à medida que meu Eagle
Speedster desbrava a extensão da Orla Jout Leo, que homenageia uma atriz
famosa amante da pequena cidade litorânea. É engraçado como em Oroland
só parece ter duas estações: verão e inverno. Porque mesmo no Outono,
posso experimentar a sensação abafada do sol castigando minha pele em
conjunto com o vento quase gélido da estação atual. A caminho do resort,
poupamos o assunto só para escutar as ondas se chocando e Red Hot Chilli
Peppers gritando Scar Tissue nos alto-falantes do carro. E mesmo que a
canção não seja como uma batida eletrônica comum em hits de verão, os
acordes me remetem instantaneamente a locais de praia. Basta que Anthony
Kiedis comece a cantá-la que rapidamente relaciono-a com a familiaridade da
maresia e o relaxamento que só um período de férias no mar pode trazer.

— Você tá tão bonitinho com essa roupa que nem parece o Thomas que
conheço. — Ergo os lábios e reviro os olhos em completo desdém.

A blusa de botões salmão junto com a bermuda caqui acima dos joelhos e
tênis branco nada combina com meu estilo habitual. Sinto falta da jaqueta de
couro e das botas de combate. No entanto, o clima de Oroland County
dispensa qualquer jaqueta de couro ou calça jeans.

— Parece que roubei um short seu — resmungo, passando as mãos nos meus
joelhos descobertos.

— Não seja tão exagerado! Essa bermuda não é tão curta e está na moda. —
Ela se exalta, mas o sorriso que paira sobre seus lábios é descontraído.
Perscruto minhas roupas com os olhos e franzo o nariz.

Por que eu deixei Mackenzie me vestir mesmo?

Adentro o Resort, admirando as cabanas de palha, as piscinas com tobogãs e


os drinks coloridos sendo servidos com guarda-sóis. O Sunbeach consegue
ser uma amostra grátis de um lugar como Cancun, em que só temos acesso
nas fotos da internet. Entrelaço minha mão com a de Mack, encaixando
nossas palmas enquanto meu dedão desfere uma carícia no seu dorso. Torço
mentalmente para não esbarrar na figura dissimulada de Robert Johnson
enquanto desfrutamos do cardápio do melhor restaurante da cidade.

Assim que chegamos ao último andar, conduzo Mackenzie até a nossa mesa,
reservada na sacada do restaurante para termos uma visão privilegiada do
mar. A brisa morna da maresia acaricia meu rosto e um sorriso ameaça
escapulir por entre meus lábios. E Lennon parece igualmente encantada, já
que não tira o enorme sorriso da face. Que dê tudo certo nesse almoço, afinal,
já basta de situações inconvenientes.

O cheiro de protetor solar que ainda resta em minha pele me faz franzir o
nariz. Depois de desfrutar de um almoço calmo, cheio de comidas entupidas
das frescuras que Mack ama, conseguimos aproveitar um pouco da praia.
Quando o sol afundou no oceano e espalhou milhares de tons alaranjados
pelo céu, a calmaria se apossou do meu corpo e me fez ignorar, pelo menos
um pouco, a brisa gélida que vinha do mar. É fácil reconhecer o Outono,
porque apesar do abafamento, o vento frio da noite impede o uso de qualquer
roupa de banho. Então, a praia fica infestada de hippies com roupas cobertas
de estampas estranhas, de surfistas com trajes de borracha que cobrem todo o
corpo e de pessoas comuns, vestindo roupas mais comuns ainda.

Enquanto a vista bonita do pôr-do-sol nos encantava, Mackenzie me chamou


atenção para um dos stories de Dominic. Apertei os olhos na direção da tela
do celular, e não demorei a encontrar a parte peculiar da imagem. O rapaz
tinha os braços tatuados envolta de uma guitarra, as pernas cruzadas na nossa
mesa de centro e bitucas de cigarro estavam espalhadas no cinzeiro. Contudo,
o mais estranho era os famosos All Stars amarelo mostarda de Nevaeh. O que
nos levou a crer que os dois estavam juntos nessa tarde.

— Ela pode simplesmente ter esquecido os tênis lá. — Mackenzie rebate, e


eu nego rapidamente com a cabeça.

— Quem limpa aquela casa sou eu, Mack. Pode ter certeza que ela esqueceu
algumas coisas lá, que nem fez questão de ter de volta, mas nenhuma delas
foram os tênis.

— Podiam estar no quarto dele — murmura, tentando não se afundar em um


mar de esperanças.
— E ele os levou para a sala? Sabe que é muito mais provável que ela esteja
lá com Dom. — Mack apoia a cabeça no meu ombro e suspira.

— Espero que eles estejam se acertando.

Enquanto me arrumo para o jantar de Ação de Graças, posso sentir o aroma


delicioso da comida vegana de Noora. O Tofurky, um Peru falso, muito
usado pelos vegetarianos em feriados como esse, é a receita especial da
minha mãe. O cheiro se mistura com as minhas lembranças da praia e no
quanto torço para que Nevaeh e Dominic se acertem. Ela adiciona molho
cranberry, purê de batata e salada de vegetais com um tempero que te faz ir e
voltar do paraíso. Realmente, não sou muito adepto desse tipo de comida,
mas é como se qualquer prato na mão da senhora Eckhoff ficasse bom o
suficiente para qualquer paladar.

Mesmo dispensando o uso da jaqueta, mantenho uma blusa simples cinza-


escura, calça preta e tênis all star da mesma cor. Em compensação,
Mackenzie ajeita no corpo um vestido de tecido que parece caro e diferente
de cor vermelho sangue, de modo que ela poderia se camuflar no sofá da sala
se quisesse. O costumeiro perfume de frutas meio doces e cítricas ao mesmo
tempo irrompe pelas narinas e provoca um sorriso instantâneo de
reconhecimento. Essa mulher é terrivelmente linda.

Assisto as curvas acentuadas pelo pano meio colado ao corpo e desço os


olhos até a fenda que exibe sua perna esquerda. Apesar do vestido longo um
tanto chique, o uso das sandálias baixas a deixa com um ar mais casual.
Acredito que se ela se enchesse de joias e colocasse um sapato alto poderia ir
até mesmo a um evento de gala com essa peça de roupa.

Escuto o grito agudo da minha mãe, pedindo ajuda para colocar a mesa, e me
despeço de Mack com um beijo no topo da cabeça e um elogio que ressalta o
quão absurdamente linda ela é. Caminho a passos largos até a cozinha e não
demoro a levar a primeira travessa de vegetais para a sala, já que não temos
um lugar específico para jantar.

— Mackenzie ainda está se arrumando? — Minha mãe vem atrás, arrumando


pequenos vasos de flores na mesa com cuidado.
Me limito a acenar positivamente com a cabeça.

— Ela é vaidosa, huh? — Procuro algo de errado no tom de voz de Noora


Eckhoff, e não sei exatamente o que é, mas está ali.

— Isso é um problema? — Não fico na defensiva, pelo contrário, permito-me


estar aberto a ouvir seja lá o que minha mãe tem a dizer.

— Não, de forma alguma. — Aguardo, porque sei que ela quer dizer mais. —
Só estou tentando me acostumar a ideia de que você namora alguém vindo de
uma realidade tão diferente.

Sei que ela se lembra de Jessie, até porque é inevitável não ser remetido à
lembrança dos dias difíceis que vivi por causa de uma colega de classe que
me infernizava. No entanto, resolvo não adentrar esse assunto.

— Mãe. — Inspiro e expiro com calma. — Mackenzie cresceu em uma


mansão e provavelmente nunca comeu comida dormida até morar por um
tempo na Guatemala. Mas, ela não é tão diferente assim de nós. Lennon tem
defeitos, qualidades, faz cocô, chora, ri e solta pum fedorento como qualquer
ser humano.

Minha mãe ri, e apesar do divertimento, sei que vai ser um pouquinho difícil
de acostumar. Principalmente ao grito agudo de hoje cedo quando o chuveiro
elétrico parou de funcionar e o jato gelado chocou no corpo dela, ou as
feições contorcidas que ela não soube disfarçar no instante em que encarou o
hambúrguer de grão-de-bico, assim como suas manias estranhas de nunca
apoiar os cotovelos na mesa e utilizar os talheres como se eles fossem
quebrar. Mackenzie fez, por anos, aulas de etiqueta que ainda refletem em
sua maneira de andar, se sentar, se portar e até falar. E apesar da mulher não
ter reclamado de absolutamente nada acerca dos perrengues que passou na
minha casa, sabemos que ela não está acostumada a viver de forma simples.

Em Bolfok Town, esses comportamentos são mais raros porque o conforto


costuma ser maior, tanto na minha casa quanto no alojamento. Tirando o
banheiro comunitário que Mackenzie odeia, é claro. No fim das contas, nada
dessas pequenas frescuras fazem da minha namorada uma pessoa ruim. Até
porque é visível que ela tenta, a todo custo, se adaptar as adversidades.

— Sei que ela é uma boa garota, de verdade. — Noora põe a travessa de peru
falso ao lado da vasilha de purê. — Mas, não sei. Desculpe-me por ainda ter
um pé atrás. É só que vejo no olhar dela algo de errado, como se Mack
estivesse gostando o bastante de estar aqui, mas não se sentisse merecedora
de tanto afeto. Um comportamento comum em pessoas que escondem algo.

— Acha que a mulher que conviveu comigo por três meses inteiros, dividiu
segredos e confissões, ainda esconde algo? — Penso rapidamente em
qualquer comportamento atípico que eu possa ter deixado de fora. — Acho
muito difícil.

— Está apaixonado, e é normal idealizarmos as pessoas em nossas mentes.


Estou dizendo, sua namorada não parece ser uma pessoa ruim com algum
tipo de desvio de caráter. Mas, pense no que estou te dizendo. Talvez, ela
esconda algo. — Mordisco o canto da unha enquanto penso no que ela acaba
de dizer. — É conselho de mãe.

O toque estridente da campainha interrompe nosso assunto, e eu me permito


esquecer, pelo menos pelo restante da noite, de que há a possibilidade remota
de Mackenzie estar escondendo algo de mim. Tio Mason adentra a residência
carregando seu enteado nos braços enquanto sua atual namorada ajeita o tênis
nos pés do garoto. Apresso a morena com um grito abafado e a escuto me
xingar lá do meu quarto.

— E aí, tio Mason. — Dou um abraço desajeitado no cara que me ensinou a


maioria das coisas que sei sobre carros e bagunço os cachos do garoto em seu
colo. — E quem é esse bonitão?

— Fala, Thomas. A cada vez que te vejo, parece estar maior, rapaz. —
Acompanho meu tio na risada. — Esse é o Elvis.

Encaro a criança de pele marrom claro, com os olhos cor de mel e as


bochechas gorduchas. Ele sorri meio banguela e eu abafo a vontade de rir. A
mãe dele deve ser muito fã do Elvis Presley, e talvez ela se dê bem com a
dona do Cadillac rosa que imita o que o Rei deu a progenitora.

— Prazer te conhecer, Elvis. — cumprimento, e o moleque estende a mão


pequena e eu faço um toque de soquinho com ele.

— E essa é a minha mulher, Sarah — cumprimento a moça com um aperto de


mãos e uma batida leve nas costas.

A pele negra se assemelha a do filho, porém um pouco mais escura. Os


cachos moldam o rosto oval e completam as bochechas elevadas, os olhos
também cor de mel e os lábios cheios.

— É um prazer conhecê-la. — Dou um passo para o lado, para que eles


adentrem a casa. — Sejam bem-vindos.

O arrastar da sandália baixa de Mackenzie anuncia a chegada da mulher à


sala, e eu apresento-a como minha namorada. Rapidamente, com uma
familiaridade que eu jamais pensei ela teria, Mack é puxada por Elvis até o
sofá. O menino retira de sua pequena mochila bonecos da atualidade e um
Dodge Charger R/T em miniatura. O reconhecimento do carro me faz perder,
por instantes, a reação de Lennon ao ter o brinquedo empurrado ao seu rosto.
No entanto, a cena é como puxar um gatilho. É o mesmo automóvel que a tal
rainha usa quando corre comigo. Que coincidência.

Pensar nisso me faz relembrar o verdadeiro motivo de eu voltar mais cedo de


Oroland County. Haverá um racha no sábado e, dessa vez, não posso faltar.
Principalmente, por causa das minhas finanças embaralhadas. Com o plano
meticuloso de recuperar o controle do meu dinheiro, deixar de ir a alguma
corrida está fora de cogitação. E, com a esperteza de Chad, sei que no final de
semana, Bolfok Ride estará lotada. Já que ele transferiu o dia da corrida
justamente para que todos possam aproveitar o feriado, comprar na Black
Friday e estar de volta para queimar pneus no asfalto.

As risadas altas de Mackenzie e do pequeno garoto me acordam do devaneio


e assisto os dois brincarem como verdadeiros amigos. Jamais imaginaria que
Regina tem jeito com crianças.
Impulsiono o corpo para frente e arrasto uma das cadeiras para acomodar
meu corpo à mesa. Durante o jantar, meu tio faz as mesmas piadinhas sobre
nosso cardápio vegano e o peru falso, conquistando a maioria das risadas de
Mackenzie. É algum tipo de efeito do Mason, colecionar risadas alheias.
Mesmo que ela tentasse, jamais conseguiria prender a gargalhada para
qualquer gracinha vinda dele.

O pequeno Elvis acompanha Mack em basicamente tudo. Se ela ri, ele


também. Se ela dá uma garfada no peru falso, ele faz o mesmo. E por assim
vai. Em poucas horas, Mack tornou-se um daqueles exemplos que crianças
gostam de se apegar para imitar todos os atos.

Em algum momento, quando o tédio consegue se apossar de todo o meu ser,


eu pego uma bolota de ervilha e jogo na criança, atingindo sua bochecha.
Recebo uma reação instantânea de minha mãe, um olhar transbordando
repreensão.

— Deixe de ser criança, Johnson. — Noora me chuta por baixo da mesa. —


Poderia ter acertado o olho dele.

A menção do sobrenome que nunca uso me irrita até o último fio de cabelo.
Giro os olhos e ponho a língua para fora de pirraça.

— Mas não acertou, relaxa mãe.

Devolvendo minha implicância, Elvis amassa um guardanapo nas mãos e


tenta me acertar. Desvio em um gesto rápido e gargalho, apontando para seu
rosto de forma zombeteira.

Tanto Sarah e Mason – que riem baixo – quanto Mack e Noora sabem que a
seriedade do jantar acaba de terminar. Porque a partir daquele instante, uma
miniguerra de guardanapos e ervilhas se inicia.

— Parem de brincar com a comida. — Sarah é quem diz com a voz


imponente. — É pecado.

Sinalizo com a cabeça para Elvis, que em um acordo mudo, me ajuda a juntar
as ervilhas da mesa e jogar de volta ao prato vazio. Abaixo para pegar umas
que caíram no chão e termino de ajeitar o forro meio revirado.

— O que fez depois de terminar o colegial, Mack? — Minha mãe retoma o


controle do jantar, trazendo mais um assunto à mesa.

— Logo depois do meu baile de formatura, viajei para a França, para


trabalhar como modelo da grife da minha mãe e estampar alguns catálogos de
mudanças de estações do ano. Fiquei lá por alguns meses até desistir da
minha carreira de modelo e voltei para Dilshad a fim de mandar as cartas de
recomendação dos meus professores e fazer a redação do processo seletivo da
Bolfok College. Todas as outras universidades já tinham encerrado o período
de admissão de alunos. — Mackenzie leva uma porção de vegetais à boca e
mastiga calmamente antes de voltar a falar. — Então, no tempo que eu ficaria
na cidade sem fazer nada, resolvi embarcar para uma aldeia na Guatemala em
um intercâmbio de trabalho voluntário.

Encaro os rostos surpresos dos integrantes da mesa, e sei o que eles estão
pensando. Provavelmente que não conseguem associar a mulher a nossa
frente com alguém que iria parar em uma Aldeia, ou que ricos adoram a ideia
de fazer trabalho voluntário, sem de fato terem noção da responsabilidade que
isso implica.

— De onde surgiu essa ideia?

— Como foi lá?

Noora e Sarah perguntam ao mesmo tempo.

— Eu gostava de um documentário que se passava lá, em que estudantes de


uma universidade foram para a Guatemala viver com dois dólares ao dia com
objetivo de sinalizar que mais de um bilhão da população sobrevivem da
mesma forma. Então, quando surgiu a oportunidade, escolhi ir até Pena
Blanca, uma aldeia na Guatemala. — Ela beberica um gole do vinho. — Foi
uma experiência única, mas hoje vejo que também foi irresponsável. Percebi
depois de um tempo que a decisão de ir foi muito mais por mim, para eu me
sentir uma pessoa melhor. E não é assim que deve ser. Eu ajudava como
voluntária de uma pequena escola da aldeia e foi como ser arrancada
bruscamente da própria bolha ao ouvir os relatos dos habitantes.

— Passou algum perrengue lá? — Tio Mason apoia o rosto na mão.

— Sim. — Mackenzie ajeita os fios do cabelo. — Na nossa tenda, as


condições de vida eram completamente diferentes do que eu estava
acostumada. Eu chorava quase todos os dias, por causa do que eu tava
vivendo, mas principalmente quando o baque de que eu tinha tudo me
atingiu. Em Pena Blanca, só existe uma única fonte de água e os moradores
muitas vezes tomam água contaminada. Eles vivem em condições muito
precárias. Eu peguei verme pela primeira vez, fui picada por insetos e daí por
diante.

O relato não me assusta nem causa nenhum tipo de reação, justamente porque
já escutei muitas vezes. No entanto, o resto dos integrantes da mesa parecem
assustados e um tanto inclinados a dar risada ao imaginar Mackenzie,
acostumada demais com regalias, em um local totalmente diferente.

— Quanto tempo você ficou? — Elvis se pronuncia depois de um longo


tempo em silêncio.

— Era para eu ter ficado um mês, mas só aguentei duas semanas e meia. —
Há um tanto de vergonha mesclado com suas feições. — Por isso reafirmo
que fui irresponsável ao fazer a escolha de ir sem estar preparada. É
revoltante a forma com a qual aquelas pessoas vivem, e isso não deve ser
sobre você, o voluntário, e sim sobre eles.

Minha mãe abana a mão em um gesto elegante, tentando tranquilizar Mack e


atestar que não há motivos para vergonha visto que jogar uma menina rica
que cresceu em uma bolha no meio de uma aldeia na Guatemala não é uma
das decisões mais inteligentes. É importante que Mackenzie reconheça que
não estava pronta, e que estamos falando da vida daquelas pessoas.
Intercâmbio voluntário é uma prática que envolve seriedade, e precisa de uma
evolução gradativa. No entanto, é interessante que essa ideia se espalhe.
Porque não há como ajudar um grupo de pessoas sem saber do que elas, de
fato, precisam.
Para desviar do assunto e aliviar as feições envergonhadas da minha
namorada, tio Mason inicia a roda de agradecimentos habitual de qualquer
Ação de Graças.

Geralmente, nesse feriado, cada um da família agradece pelas oportunidades,


saúde e momentos bons. O principal agradecimento de Lennon é estar
conosco hoje, e para falar a verdade, há um tanto de melancolia no seu tom
de voz. Reafirmando, assim, a teoria de Noora Eckhoff acerca de a mulher
amar estar aqui, mas não se achar merecedora de tal fato.

Isso faz com que eu troque um olhar pesado com mamãe.

Qual é o segredo de Mackenzie Lennon?


Me pergunto quantas coisas passam em frente aos nossos olhos e não
vemos?
Penso um pouco, mas só um pouco, na possibilidade de existir algo, até
mesmo perto o suficiente para que você veja, mas você não vê. É aquele caso
do cara que estudou contigo por tempos e você nunca o enxergou, e então,
por obra do acaso ou destino, acontece algo que escancare a presença de
determinada pessoa.
A semente minúscula que minha mãe plantou em minha mente no feriado foi
suficiente para florescer, criando raízes nos meus neurônios, me fazendo crer
que há algo de desconhecido em meio a tantas verdades em Mackenzie.
Ando pelo piso de tábua corrida da minha sala, pulando as bolsas de compras
que estão largadas pelo chão. A bagunça já começa a me incomodar, como
insetos de muitas patas andando sobre a minha pele, me dando uma agonia da
porra. Tropeço em uma sacola não vista e isso é suficiente para que eu
pragueje.
— Mas que porra! — Volto o olhar para a embalagem da Target e
instantaneamente fico puto com a Black Friday.
Um passo mais leve que o meu e mais pesado que o de Dom coloca pressão
nos degraus da escada. Sei que é Andrew, sem nem precisar conferir.
Depois da minha conversa com Lewis, as coisas entre mim e meu amigo
ficaram um tanto melhores. Já que pude entender que os dois se gostam o
bastante para enfrentar o que quer que seja. Então, pude ter uma conversa
esclarecedora com Drew e finalmente me desculpar por tê-lo agredido.
Bennet também pediu perdão, por ter escondido e me deixado como último, a
saber. As coisas ficaram bem, no final das contas.
— Qual o problema? — Não preciso responder. Só abaixo o olhar
repreendedor para as sacolas.
Vejo Adidas, Nike, Zara, Target, Calvin Klein e umas bolsas de boutiques
desconhecidas. Não há algum tipo de polêmica com trabalho escravo
envolvendo uma dessas marcas?
— Eu sei, eu sei. — Andrew ergue as mãos em redenção. — Eu e Dom
exageramos nesta Black Friday.
— Não estou incomodado com isso, porra. O dinheiro é de vocês mesmo. Só
quero que essa bagunça seja arrumada o quanto antes.— Meu tom sai um
tanto agressivo e eu passo os dedos nas têmporas, massageando-as.
— Está achando que manda nessa casa? — Dom aparece na beirada da
sacada do segundo andar, com visão para a sala.
Estendo o pescoço para encará-lo e faço um gesto obsceno envolvendo as
mãos.
— Se eu não colocar ordem nessa casa, viveremos no lixão. — Chuto de leve
uma das sacolas. — Olha a porra dessa sala, toda cheia de bolsa de compras!
Não tem como ir e vir aqui. Está inóspito, inabitável.
Dominic e Andrew se limitam a apertar os olhos para mim, e pouco se
importam com a condição deplorável do ambiente em que vivemos. O
estresse corrói meus neurônios de maneira que eu poderia, facilmente, enfiar
um soco na cara dos dois.
— Arrumem essa merda. — Chuto, agora com mais força, outra sacola e
subo a escada com pisadas duras.
Sei que essa mistura de dúvidas acerca do comportamento meio estranho de
Mackenzie está me deixando estressado, o que contribui para que eu desconte
nos meus colegas de casa. Mas posso pedir desculpas depois, quando eu já
estiver no racha, porque estou atrasado para pegar o carro e assinar meu
nome na corrida de hoje.

A Bolfok Ride está lotada, mais do que habitualmente. As arquibancadas


estremecem de leve pela quantidade de pessoas que comporta, as mesmas
caixas de som grandes gritam um rap dos anos 90, e há algumas mulheres
dançando por perto, qualquer estilo que não seja dança de rua. Está até um
tanto engraçado para falar a verdade. Algumas pessoas trombam no meu
corpo, ou chocam o ombro no meu, e isso só torna mais claro o quanto a
fazenda está cheia. Dois garotos calouros estão disputando a primeira corrida
e é difícil comparar qual dos dois é pior. Chad espreme as feições,
contorcendo as linhas de expressão em uma careta desgostosa. O cara é
apaixonado por corridas e deve ser difícil assistir uma patifaria dessas.
Encontro meu grupo de amigos em uma mini roda, dando goles
nas longnecks em suas mãos. Só Nevaeh que beberica uma garrafa de água
natural.
— Ei, — ponho a mão no ombro de Dominic para chamar sua atenção — viu
Mackenzie por aí?
Troco o peso dos pés e sinto meu coturno colar um pouco mais no chão, por
causa da lama que cobre o gramado em uma camada fina. A chuva deixou
uma herança molhada na pista de corrida e no concreto escorregadio de
Bolfok Town. Agarro as lapelas da jaqueta de couro e me acomodo na
quentura do tecido grosso, juntando as duas mãos na altura da boca para
soprar ar quente nelas.
— Ela disse que é provável que não consiga vir. — Nevaeh é quem responde,
e não deixo de notar um desconforto em sua voz. — Surgiu algo da
faculdade, acho que um tolo fez a parte dele errado e a Mack vai consertar.
Nev prossegue explicando que minha namorada precisa entregar o trabalho
até domingo antes de meia-noite, e por isso a mulher acha que ficará em casa
para terminar.
Algo simplesmente parece difícil de processar, e há uma coisa, como uma
peça que não quer se encaixar, me incomodando. Aperto os dedos das mãos
em punho e sinto a unha perfurar levemente a carne da palma. A raiva cresce
gradativamente, porque não consigo entender o porquê Mackenzie evita de
dizer algumas coisas diretamente para mim. Se o combinado era vir até a
corrida, por qual motivo ela não me ligou ou mandou mensagem
desmarcando?
Pesco o celular no bolso interno da jaqueta e penso em uma mensagem para
mandá-la. No entanto, desisto antes de digitar as primeiras palavras. Resolvo,
então, discar seu número e resolver por ligação. Enquanto escuto o barulho
de discagem, procuro um lugar mais silencioso para conseguir ouvi-la. Lá
para o quarto ou quinto toque, Mack atende.
— Oi, amor — saúda carinhosa.
Finjo que a palavra não me afeta nenhum pouco, e endireito a postura.
— Oi, Mack. Onde você está? — Aperto mais o telefone contra a orelha, na
tentativa de escutá-la melhor.
Descubro, após alguns segundos, que os ruídos na nossa ligação não vêm só
do meu lado, como do seu também. Tal constatação me faz franzir o cenho.
Não é o tipo de barulho que reproduzimos quando estamos em casa, fazendo
um trabalho da faculdade.
— Em casa, Thomas. — Mackenzie suspira, e recebo a confirmação de que é
muito provável que esteja mentindo. — Nevaeh não te passou o recado? Um
tolo do meu grupo fez a parte dele toda errada e agora estou consertando.
— Sim, Lennon. Ela me passou o recado perfeitamente bem. — O tom de
voz sai meio rasgado da garganta enquanto tento não explodir ao telefone,
confrontando-a sobre a possível mentira.
— Então, qual é o problema? — Mackenzie soa evasiva e parece estar
ansiando para que a conversa termine logo.
— O problema é que nós tínhamos um combinado e você agora usa a Nevaeh
de mediadora? Está fazendo sua amiga de pombo-correio para evitar dialogar
com seu namorado? — Dou mais ênfase na última palavra, querendo fazê-la
entender que há um grave problema de comunicação entre nós.
Um gruído escapa por entre meus lábios. Estou muito puto. Principalmente
porque conheço minha namorada bem o suficiente para saber que acabo de
comprar uma briga.
— Mal posso acreditar que está interrompendo meu trabalho para dar esse
tipo de chilique! Dei o recado para a minha amiga porque moramos na
porra do mesmo alojamento, e quando ela saiu para ir até a Bolfok Ride, me
viu abarrotada de coisas para fazer. O que deu em você hoje? — As palavras
são disparadas pela linha telefônica, e meu maior desejo agora, é gritar.
Até esse exato momento não havíamos tido nenhuma grande DR no nosso
recente relacionamento. Porém, acumular essa desconfiança com a falta de
comunicação espalhou a raiva rapidamente na minha corrente sanguínea. E,
então, a voz marcante de Akon cantando Beautiful me dá a certeza que
faltava. Retiro, por breves segundos, o telefone do ouvido e confirmo minhas
suposições. Pela ligação, consigo ouvir a mesma música soar do outro lado, o
que só pode significar uma coisa: Mackenzie também está na Bolfok Ride.
E aí... Tudo começa a ruir.
— Deu em mim que eu sei que você não está fazendo a porra de trabalho
nenhum! — O tom de voz aumenta uns oitavos, porque estou inteiramente
exaltado.
— Vai pro inferno com essa sua desconfiança!
Repuxo os fios da nuca com força, enquanto escuto o toque repetitivo que
indica que Mackenzie desligou na minha cara.
Aperto o celular contra a mão e resmungo algumas palavras desconexas,
banhadas de ódio. Quero confrontá-la. Anseio, mais do que nunca, entender o
motivo da mentira e por que não posso saber que ela está no mesmo lugar que
eu. Dou algumas voltas pela Bolfok Ride, desejando mais do que nunca
encontrar casualmente com ela. Procuro Lennon com os olhos, sentindo meu
coração pular cada vez que uma mulher minimamente parecida passa diante
das minhas vistas.
No entanto, antes que eu possa procurar mais, Chad sobe ao pequeno palco e
anuncia a próxima corrida. Um dos manobristas estaciona meu carro na linha
de partida, e observo o Dodge Charger rugir, parando ao lado do meu.
Estranho um pouco, porque não imaginava que correríamos juntos hoje,
principalmente com tantos inscritos. O insulfilme que cobre as janelas é forte
o bastante para que eu não consiga ter nem ao menos o vislumbre da
motorista. Ainda assim, as informações se embaralham no meu cérebro com
uma facilidade surpreendente. E de repente, inúmeros momentos em que eu
pensei ter tido um déjà vu, no qual Mackenzie ou resolveu comprar algo ou ir
ao banheiro perto demais das corridas, começam a surgir nos meus
pensamentos.
É como ter acesso a uma verdade que meu cérebro tentou esconder
inconscientemente. Os sinais estavam ali o tempo todo, tão gritante que até
minha mãe percebeu. Mas eu não. Porque fui tolo, um ignorante do caralho.
Idealizei uma Mackenzie na minha mente que jamais esconderia ou sequer
teria qualquer relação com os rachas.
Tudo vai se encaixando como um quebra-cabeça desordenado. Contudo, aos
poucos, a percepção de que ignorei tantos sinais me atinge. Como aquele
ditado: o pior cego é aquele que não quer ver.
Ela me consolou quando perdi para a Rainha e consequentemente deixei de
ganhar uma grana que ajudaria a quitar minhas dívidas. Fez tantas piadas, que
é como se alguém estivesse brincando com a minha mente durante todo esse
tempo. Ao se deparar com questionamentos meus, mesmo depois de termos
criado uma relação e confiança, ela quis mentir. Foi a escolha dela.
A voz imponente de Chad soa no microfone, me acordando dos meus
devaneios.
— E aí, Bolfok Ride! Prontos para ver fumaça no ar e pneus cantando?
Pela primeira vez, não.
O grito ensurdecedor da plateia parece uma cacofonia estressante, me
lembrado um trânsito caótico. A visão embaça um pouco e as vozes
misturadas causam um zumbido no ouvido. As mãos soam um pouco e eu
não demoro a arrastá-las pela calça, a fim de secar.
Vou até meu carro no piloto automático, porque minha vontade mesmo é de
abrir a porta do Dodge e conferir se minhas suposições têm algo de
verdadeiro. A Rainha que corre contra mim é a minha namorada?
Puta merda.
Há uma chance minúscula de eu estar completamente errado, contudo, a
vontade de Mackenzie de finalizar logo nossa ligação e suas mentiras
reafirmam, cada vez mais, as incertezas.
Indiana anda a passos vacilantes até o meio da pista molhada com a bandeira
vermelha em mãos. Ela a levanta e se prepara. Há esse momento de espera e
ansiedade.
Não quero correr.
Olho através do vidro para a multidão que aguarda ansiosamente por mais
uma dose de adrenalina e entretenimento. Enxergo meu grupo de amigos e o
fato de Mackenzie não estar com eles só confirma mais ainda as peças
encaixadas do meu quebra cabeça.
Indiana abaixa a bandeira com força e eu arranco com o carro, já colocando
na segunda marcha.
Foi dada a largada.
Não estou pensando na corrida, nem por um momento. Mesmo que a
adrenalina se aposse do meu corpo, acelerando as batidas do meu coração, só
há Mackenzie em meus pensamentos. A minha namorada que nem sequer
cogitou me contar que corre contra mim desde o início do semestre. O
momento do pedido de namoro seria a oportunidade perfeita para que a
verdade viesse à tona. No entanto, ela escolheu mentir ou omitir. Ou então,
que fosse sincera quando a pus contra a parede em nossa ligação minutos
mais cedo.
Foda-se.
Troco o câmbio do carro e acelero mais e mais. Observo o Dodge me
acompanhar, embicado na minha traseira, aguardando o próximo passo.
Odeio pensar que estive perto dela de inúmeras maneiras e nunca percebi
nada de diferente nem por um instante. Até minha mãe, que bastou passar um
dia com Mack, identificou algo de estranho na mulher.
Quando a primeira curva sinuosa da avenida se aproxima, piso de leve no
freio para garantir o controle da direção. E a partir daí, tudo acontece muito
rápido.
Mackenzie consegue frear a tempo, contudo algo de errado acontece porque,
no momento em que ela precisa girar o volante para fazer a curva, seu carro
bambeia e não demora a descolar as rodas do chão. Percebo que algo de
muito ruim vai acontecer de modo que afundo o pé na embreagem e no freio,
acionando o freio de mão. O automóvel gira um pouco na pista e consigo
fazer um drift a tempo de observar o Dodge Charger preto rodar no ar.
Uma
Duas
Três vezes.
O carro está capotando.
E não tem nada que eu possa fazer.
Irrompo porta a fora, e assisto, como um mero espectador, o Dodge atingir o
chão de ponta cabeça e os vidros da janela estilhaçarem e me atingirem
levemente pela força do impacto. A dor dos arranhões pelos cacos não me
incomoda na mesma proporção que assistir– através das janelas quebradas– a
cabeça de Mackenzie tombada para trás.
No fundo, sei que a minha namorada é a tal Rainha dos rachas. No entanto, a
ficha só cairá no instante em que eu me deparar com o rosto que tanto
conheço por trás da bandana vermelha.
Ao correr até o carro, percebo a multidão de gente que antes assistiam a
corrida vir até o local do acidente, com Chad e Indiana liderando a manada de
pessoas. Vejo Dominic e Andrew contê-los enquanto falam avidamente no
telefone. Não sei se estão chamando a polícia ou ambulância, espero que os
dois.
Sem a presença do insulfilme, consigo enxergar perfeitamente o corpo da
minha namorada e reconhecê-la mesmo com a bandana tampando o rosto. Os
braços esguios com alguns cortes expelindo sangue são os mesmos que me
confortam nas madrugadas após um pesadelo. Os dedos esguios tocando o
teto são os mesmos que se entrelaçam aos meus. E as sobrancelhas afastadas
são as mesmas que se arqueiam quando ela quer me desafiar ou ter uma
reação instantânea às merdas que costumo falar.
No momento em que toco a lataria do Dodge percebo que estou tremendo. Há
esse zumbido incômodo nos ouvidos e os pensamentos estão enevoados,
impedindo-me de pensar com clareza. O suor abrange as axilas, nuca e
palmas das mãos.
Não estou bem.
Definitivamente não.
— Saia já daí. — Jules agarra meu ombro e vira meu corpo para invadir meu
campo de visão. — Não se deve mexer em um indivíduo acidentado, a menos
que haja riscos de explosão. Deixe que eu cuido disso, ela estará em boas
mãos.
A estudante de medicina parece lidar bem com a situação, mesmo que seu
sonho seja seguir carreira como tatuadora. Jules observa atentamente o corpo
inconsciente de Mackenzie, ela paira a mão na altura do tórax da mulher e
confere se há respiração. É provável que a resposta seja não, dado o suspiro
resignado que Jules solta.
É difícil enviar algum tipo de comando ao meu cérebro que me impulsione a
fazer algo. Consigo observar Dominic ainda falando ao celular, Chad e
Indiana contendo a multidão que anseia por chegar mais perto.
Não penso em quem sabe ou não a identidade da mulher, até então,
misteriosa que pende a cabeça para o lado. Como se estivesse morta.
A simples menção na palavra faz meu corpo estremecer.
— Tem um líquido que parece muito gasolina vazando do carro, acho que é
melhor tirá-la daí. — Andrew adverte Jules, parecendo calmo demais para
uma situação como essa.
Consigo me repreender mentalmente por não estar ajudando em nada. Eu
conseguiria identificar se o automóvel corre risco de explosão com uma
facilidade extrema. No entanto, minhas pernas bambeiam tanto que é possível
que eu desmorone caso tente me mover.
Apoio o corpo na lataria do carro e tento, arduamente, controlar a respiração
descompensada que escapa pela boca. Uma crise de asma definitivamente
não é bem-vinda nesse momento.
Há essa porra de bolo na garganta que causa um amargor na boca. Jules se
movimenta até ter metade do corpo para dentro do carro. Ela se coloca por
trás da morena, passando as palmas sob as axilas. Com uma das mãos, fixa o
braço de Mack junto ao tórax e com a outra imobiliza o pescoço dela.
Batbayar retira a mulher do carro arrastando o corpo dela de encontro ao seu,
fixando as costas da acidentada nas suas coxas.
Durante a movimentação, a bandana se arrasta e embola no pescoço da
mulher, revelando assim a identidade dela a todos os fofoqueiros de plantão.
E se antes restava alguma dúvida, agora elas são sanadas. A Rainha dos
rachas é Mackenzie Lennon.
O que se torna irônico junto à constatação de que eu costumo chamá-la de
rainha desde que a conheci. E, então, as peças sem encaixe passam a
combinar perfeitamente. Porque finalmente entendo tudo.
Todos os momentos que ela parecia conhecer demais de carros.
A primeira vez que a vi gargalhar. E como confundi o momento com uma
memória.
A visão de Mackenzie dirigindo, que sempre pareceu me remeter a algo.
Seu nervosismo aparente quando eu a chamava de Rainha de Bolfok.
O tempo todo eu idealizei a patricinha que vi espernear ao tomar um banho
de água gelada no trote do início do semestre. Montei uma imagem na minha
mente e só vi o que eu quis ver. Ignorei todos os sinais. Todos.
Me permiti amar alguém que talvez nem seja quem sempre pensei conhecer.
Construí um relacionamento que não sei se foi verdadeiro ou tão mentiroso
quanto tudo o que saiu da boca dela. Se Mackenzie escolheu mentir sobre ser
a mulher dos rachas, mentir onde estava durante as corridas e brincar com a
minha mente, por que algo do que ela disse durante esse tempo todo poderia
ser verdade?
Tudo o que vivemos é tão falso quanto sua identidade real?
Os gritos e arquejos de surpresa invadem meus ouvidos ao mesmo tempo em
que ouço a cacofonia da sirene do que parece ser uma ambulância.
Os paramédicos se encaram alarmados e tentam fazer o que parece ser uma
reanimação.
E é nesse momento que entendo.
Finalmente, entendo o significado dos olhos vermelhos de Lewis, da íris
borrada de lágrima de Nevaeh, da expressão estarrecida de Andrew e do olhar
de choque de Dominic. Não quero acreditar, mas a verdade está mais do que
escancarada em frente ao meu rosto.
Os socorristas parecem desacreditados porque negam avidamente com a
cabeça, e trocam olhares transbordando incredulidade.
O zumbido no ouvido dá lugar a um grito fino de socorro, parecido com um
barulho incômodo de microfonia, como se meu inconsciente estivesse
clamando por misericórdia, porque independentemente das mentiras e
omissões, eu ainda quero respostas. Ainda quero que Mackenzie me faça
acreditar que algo do que vivemos foi real.
É, então, que o desespero chega e passo a implorar a Deus ou ao Universo,
seja lá quem é poderoso o suficiente para fazer a mulher de a minha vida
voltar.
Eu preciso encarar sua íris castanha intensa novamente. Preciso observar suas
sobrancelhas arquearem, a testa franzir e os lábios em formato de coração
mexer mais uma vez. Preciso de Mackenzie viva.
Estou implorando.
Nevaeh cai de joelhos no chão quando o saco preto começa a cobrir o corpo
sem vida da mulher que eu amo.
Morta
Mackenzie Lennon está morta.
E mesmo que eu fique repetindo mil vezes, ainda não consigo acreditar.
Não tem nem um mês que ela completou vinte anos, ainda falta sete dias para
que isso aconteça. No que será a missa de sétimo dia da minha mulher, nós
estaríamos comemorando um mês de namoro e consequentemente ela estaria
aproveitando as quatro semanas dos seus vinte anos.
Balanço a cabeça negativamente, sentindo as lágrimas transbordando de
meus olhos, e puxo os cabelos da nuca enquanto um gruído escapa por entre
meus lábios. Não quero acreditar. Encaro as cenas passando pelos meus
olhos, bem como sussurro repetidamente a mesma coisa.
Não, não, não e não.
Simplesmente me recuso a viver em uma realidade que Mackenzie não exista.

Enquanto dirijo calmamente pela interestadual, consigo processar alguns


pontos do que aconteceu ultimamente. Observo a paisagem aberta e
arbustiva, repleta de árvores secas prontas para encarar a vinda do inverno. A
estação solitária e melancólica está prestes a chegar, daqui uns dias, e não
consigo deixar de pensar que ela combina perfeitamente com a morte.
A cada milha ultrapassada na estrada até o enterro, eu já posso ouvir as
habituais lamentações: "ela era tão nova", "uma menina cheia de sonhos",
"desejos roubados pela morte".
Só consigo pensar que levarei pelo resto da vida a dúvida se fui amado tanto
quanto amei. Se as carícias foram verdadeiras, se os aconchegos da
madrugada foram reais, se foi mais do que um sexo incrível, se fomos mais
do que atração carnal vinda do ódio.
Dizem que no momento em que estamos fazendo a passagem para o outro
lado, alguns dos nossos melhores momentos invadem nossa mente como um
raio. Então, me lembro de quando ela dirigiu meu Eagle Speedster, de como
corri contra um membro de uma gangue por ela, oferecendo meu Stormi
como prêmio. De como finalizamos aquela noite, abraçados no meu carro, na
penumbra da madrugada de Bolfok Town. Seu corpo embalado por um
vestido preto surge nítido em minha mente no dia do jantar, em que ela subiu
nos meus pés para dançar. E do jeito natural que esse ato se tornou um hábito
para nós.
Lembro-me das nossas brigas e de como nos reconciliávamos, lembro-me do
calor do seu corpo contra o meu e do suor escorrendo pelo tronco durante as
melhores transas, lembro do primeiro encontro, do segundo, das nossas
saídas, do pedido de namoro, do feriado de Ação de Graças, de tudo. Não me
esqueço de um só detalhe.
E a percepção de que não terei nada disso nunca mais me machuca como
adagas afiadas sendo afundadas na minha carne.
A sensação do peito ardendo em chamas ainda está aqui, mas agora me sinto
oco. Como se Mackenzie tivesse levado meu coração para o outro lado junto
com ela.
Assisto o ponteiro de velocidade subir gradativamente, e assim que observo a
placa indicando minha chegada a Dilshad Town, faço uma reflexão ilógica
sobre a morte.
Na ciência, a morte é entendida como o fim de um processo físico-biológico.
Quando todos seus átomos e partículas trabalham apenas para uma
decomposição. Não há mais vida naquele corpo.
No entanto, para nós, seres humanos, a morte é a verdadeira face do
desconhecido. Agarrando-se a um tipo de fé ou não, absolutamente ninguém
tem certeza absoluta do que um falecido encontrará após o fim de seu
processo físico-biológico. A morte causa estranheza porque não passamos as
horas do dia nos relembrando que em algum momento da vida não estaremos
mais aqui.
E para onde vamos?
Existe vida após a morte?
Mackenzie reencarnará em outro corpo?
Sua alma complexa teve um fim assim que a vida foi tirada dela?
Para onde irá Mackenzie Lennon?
É aí que a estranheza surge porque várias pessoas podem ter uma suposição
baseada em sua fé, contudo ninguém tem a melhor resposta. Nenhum ser
pode acalentar seus familiares dando a certeza de que ela encontrará um lugar
melhor, que seu corpo obterá o descanso desejado e de que agora ela estará
perto do Todo Poderoso.
Será?
Ninguém sabe.
A morte nos remete a perda, a perda escreve os versos e as estrofes da dor e a
dor assusta. De modo que começamos a entender o porquê as pessoas têm
necessidade de dar sentido à vida. As pessoas, ao encararem a morte, ficam
desesperadas por significar a existência de quem morreu. Por isso, o homem
precisa ter um sentido do qual ele necessita para viver e morrer.
Nós somos apenas seres desesperados por respostas. E quando entendemos
verdadeiramente que não temos poder sobre nada, conseguimos ter uma
breve noção do controle que temos de nossas vidas: nenhum.
Alguém pode te tirar desse mundo em um piscar de olhos, assim como foi
com Mackenzie há minutos. E, pelo resto da vida, ela será lembrada apenas
por aqueles que a amaram.
Como eu me lembrarei de Mackenzie? É difícil dizer agora.
Mas é sempre bom lembrar que após o luto, um raio de sol costuma irromper
pela janela. E eu vou entender que aquela fresta de luz extremamente
luminosa é um cumprimento sarcástico de Mackenzie Lennon.
Tão brilhosa quanto o sol, Mackenzie invade nossas vidas como um raio
ultravioleta. Em vida ou morte, ela estará sempre viva em nossas memórias,
sobretudo em nossos corações, como a mulher corajosa que enfrentou altas
velocidades em prol de uma provação que só diz respeito a ela. Como um
indivíduo completo e cheio de cores que podia iluminar a vida de qualquer
um. Como aquela que não titubeava ao defender os que amava, que tinha uma
palavra amiga em meio ao sofrimento, que era acolhedora, forte,
determinada, e acima de tudo, abarrotada de sonhos.
Mackenzie Lennon almejava ser grande sem ao menos imaginar que já era
imensa.
E tendo imensa como base, fica um pouco mais fácil compreender o espaço
que ela ocupará no meu coração para sempre.
A mulher que me fez amar intensamente por cada segundo do meu dia, a
pessoa que me apresentou o sentimento mais bonito e forte que um dia sequer
imaginei sentir.
Morta ou viva, Mackenzie sempre será a mulher da minha vida.
O meu primeiro amor.
Um estralo ecoa pelo ambiente ao mesmo tempo em que sinto a
palma de alguém chocar em minha testa em um tapa ardido. Desprego as
pálpebras com rapidez e a luz incandescente faz com que eu feche os olhos de
novo e abra devagar, para me acostumar com a ausência de escuridão. É tudo
muito claro, desde os pisos bem encerados até as paredes extremamente
brancas. As lâmpadas LED fazem minhas vistas doerem. E, simples assim,
sei que estou em um hospital.
A figura de Dominic vai clareando, aos poucos, frente aos meus olhos e
esfrego as têmporas, tentando me acostumar com a luminosidade. Minha
cabeça parece pesar umas toneladas e até as pálpebras almejam se fechar
novamente, contudo, me esforço para organizar os pensamentos.
Assim, as memórias vão se atropelando em minha mente. O carro da Rainha
capotando, seu corpo inerte na poltrona do motorista, a bandana revelando
sua verdadeira identidade, os socorristas a imobilizando, pondo-a em uma
maca, com um colar cervical envolvendo o pescoço e a embolação que um
pesadelo me causou.
— Caralho... — murmuro, aconchegando meu corpo no acolchoado da
poltrona da sala de espera. — Sonhei que Mackenzie tinha morrido.
Desde que a ambulância chegou ao local, meu corpo parecia funcionar no
piloto automático. Eu seguia os socorristas, tentando captar todas as
informações que eram jogadas em mim enquanto processava os momentos do
acidente.
A polícia interditou o lugar com a costumeira fita amarela envolvendo todo o
espaço do carro. Os policiais fizeram seu trabalho habitual de entender,
detalhadamente, através dos relatos das testemunhas como o acidente havia
acontecido de forma concreta. Tenho absoluta certeza de que meu
depoimento ficou uma merda, pois eu não estava com cabeça para organizar
os pensamentos e falas com coerência. Entretanto, pareceu o suficiente para o
Departamento, que disse ser normal esse tipo de capotamento em rachas, por
causa da alta velocidade e curvas perigosas.
Para mim, ainda falta a última peça do quebra-cabeça. Fazemos esse percurso
tantas vezes que é difícil de aceitar um capotamento sem nenhuma causa
aparente. Segundo um dos policiais, o carro de Mackenzie seria revistado
rapidamente e logo despachado ao ferro velho mais próximo. Até que Chad,
com jeitinho de quem tem muitos contatos com gente importante na pequena
cidade, convenceu ao comandante da operação que Luke pudesse dar uma
olhada no Dodge Charger antes que ele seja jogado fora.
— Vira essa boca para lá, seu porra. — Jules é quem responde, ajeitando o
penteado que mais parece um ninho de rato no topo de sua cabeça.
— Foi tão real que, por um momento, cogitei que ela não estivesse mais entre
nós — murmuro em um tom quase inaudível.
Relembro algumas partes do sonho, inclusive da que eu dirigia até Dilshad
Town, onde seus pais haviam resolvido que ela seria enterrada. Admiro a
construção da minha imaginação e do quanto minha mente pode me sabotar
quando quer.
Nevaeh agarra meu pulso e acaricia o dorso da minha mão.
— Fica tranquilo, Tom. — Ela aperta meus dedos. — Mackenzie não corre
risco de vida.
A informação me acalenta, mesmo que eu já tenha ouvido tantas vezes
durante essa madrugada. Ainda dentro da ambulância, uma das socorristas
me pediu tranquilidade, já que os sinais vitais de Lennon estavam bons.
Encaro Bolfok Town taciturna e vazia através das grandes janelas do hospital
e tento espantar os calafrios causados pela simples possibilidade de
Mackenzie estar morta. Dominic me cutuca o ombro e faz minha atenção se
voltar até as duas figuras de jaleco branco, um homem e uma mulher,
segurando pranchetas.
— Vocês estão com a paciente Mackenzie Rose Lennon? — A mulher, que
descubro atender por Doutora Calyn, remexe no coque de boxbraids no topo
de sua cabeça.
Acenamos positivamente com a cabeça e os dois caminham até nós em
passos calmos. Esfrego as palmas das mãos na calça, a fim de espantar as
gotículas de suor que se acumulam.
— Fiquem tranquilos, — o Doutor Becker se adianta — a paciente tem
escoriações pelo corpo devido a pancada e os estilhaços dos vidros.
Distendeu os tecidos do pescoço e machucou a coluna cervical por causa da
diferença brusca de freio e aceleração.
— É claro que estar com o cinto de segurança suavizou boa parte dos
machucados e evitou sequelas maiores. — A médica continua. — Assim
como a lataria interna do veículo, estruturada para um carro de corrida, que
enfrentará altas velocidades e possibilidade de acidente, ajudou que o quadro
dela não fosse grave. A senhorita Lennon teve um Traumatismo
Cranioencefálico de grau moderado, o que significa que ela ficou
inconsciente por minutos significativos, mas fizemos a Escala de Coma de
Glasgow para avaliação do nível de consciência da paciente.
— Para que vocês entendam, — o Doutor prossegue — a senhorita Lennon
sofreu uma pancada na cabeça que a deixou inconsciente e ocasionou no
TCE. Avaliamos a partir do ECG e da Tomografia Computadorizada que a
paciente sofrerá algumas sequelas do trauma moderado durante alguns dias.
— Que tipo de sequelas? — Nevaeh toma a frente do diálogo.
— No caso da senhorita Lennon, percebemos um grau leve de confusão e
dificuldade na fala, que pode melhorar em algumas horas, marca arroxeada
ao redor dos olhos, e uma diferenciação na dilatação das pupilas, que também
suaviza em algum tempo. — A Doutora Calyn esclarece, agarrando sua
prancheta.
— E há algum tipo de sequela futura? Que ainda pode aparecer. — Dessa vez
Andrew é quem indaga, contorcendo os dedos das mãos em um claro sinal de
nervosismo.
— Ela ainda pode apresentar tontura, náusea, vômito, sangramento nasal,
esquecimento, distúrbio do sono e irritabilidade. — A Doutora responde
calmamente, como se estivesse pedindo um copo de água. — Por isso
decidimos mantê-la em observação por uma semana, em que ela tomará
injeções anticoagulantes para evitar a formação de coágulos no cérebro. E
depois prosseguirá o tratamento com medicação via oral que evitará a
inflamação cerebral.
— Quando poderemos vê-la? — Minha voz sai em um tom esganiçado que
só reforça o tamanho do meu nervosismo.
Estou a tanto tempo calado, apenas processando tudo a minha volta, que ao
falar, sinto a aspereza da língua e a mandíbula contrair.
— Mackenzie tem direito a um acompanhante, e o restante poderá vê-la
dentro do horário de visitas. — O Doutor troca o peso dos pés enquanto raspa
a mão pelo cabelo crespo rente a cabeça. — A paciente dormiu de novo e é
provável que demore um pouco mais para acordar dessa vez, então sugiro que
vão para a casa, ainda é madrugada, descansem e voltem na parte da tarde.
Todos, sem exceções, querem ficar como acompanhantes de Mack. Vejo no
olhar de Nevaeh que ela está um tanto resistente à ideia de voltar para a casa.
É a porra da sensação de impotência que explora nossa mente. Lewis é o
primeiro a ceder e conduzir os mais desobedientes a acatar a orientação dos
médicos. Jules o segue, puxando Andrew, Dominic e Nevaeh, já que Hannah
e Josh estão contatando a família Lennon.
Coloco-me como acompanhante e sou conduzido a finalizar a ficha de
cadastro da mulher e conversar sobre os gastos com ambulância, internação,
exames médicos e todos os procedimentos de saúde realizados nela. Cada
etapa do processo, desde a diária do quarto com direito às refeições até os
medicamentos ministrados são pagos. Com o dinheiro que os Lennon tem,
suponho que Mackenzie tenha algum tipo de seguro saúde que cubra os mais
variados gastos hospitalares com direito a tratamento vip.
Termino de preencher tudo o que sei sobre Mackenzie ao mesmo tempo em
que a Doutora Calyn para ao meu lado, me estendendo um líquido fumegante
em um copo de isopor.
— É café com canela, você gosta? — Aceno positivamente e agradeço o
gesto.
Os dedos envolvem o pequeno copo e a quentura do recipiente parece abraçar
meu corpo gelado. O café se espalha pela minha língua trazendo conforto,
como se estivesse me esquentando.
— Ela passou por um trauma, a sua namorada. Então, é bem provável que
durma por bastante tempo, talvez até mesmo acorde só por uns instantes e
volte a dormir. — Sou incapaz de proferir qualquer palavra, por isso me
limito a acenar novamente. — A poltrona é meio desconfortável, mas com o
tempo você se acostuma.
Não sei se a iniciativa de puxar assunto tem como objetivo me confortar de
alguma maneira, e mesmo que o gesto seja admirável, não funciona muito
bem.
— Não sei se eu conseguiria me sentir confortável ainda que estivesse na
melhor poltrona do mundo.
— Sei que é uma situação difícil. — A Doutora engole um pouco de seu café.
— Mas a sua namorada vai ficar bem.
Abaixo os olhos para o bordado de seu jaleco e enxergo neurologista escrito
embaixo da identificação. É verdadeiramente admirável que a Doutora Calyn
tenha sensibilidade com a situação e tente me confortar de algum jeito, e isso
me tranquiliza um pouco porque sei que Mackenzie está em boas mãos.
— Muito obrigado, doutora. — Antes de se afastar, ela se limita a acenar e
bater levemente no meu ombro, como um encorajamento.
Caminho a passos contidos e receosos até o quarto trezentos e um, onde
Mackenzie está. É um tanto difícil olhá-la agora e enxergar uma mulher mais
pálida do que o normal, com os lábios ressecados, uma mancha arroxeada ao
redor dos olhos, cortes e hematomas espalhados pelos braços e pernas, e os
cabelos desgrenhados. Ela exala fraqueza e vulnerabilidade, duas coisas que
odiava expor.
O gosto amargo permanece em minha boca, e minha cabeça parece ainda
mais pesada. São tantos conflitos internos que começo a perceber as reflexões
desconexas que quero fazer. Estou tão exausto que mal consigo organizar um
pensamento coerente.
Me acomodo na poltrona acolchoada, de um jeito que não acabe com a minha
coluna de vez, e apoio a cabeça no encosto. Porém, antes que eu pudesse cair
no sono outra vez, o celular quase sem bateria, apita.
Luke: o policial comandante da operação vai examinar tudo durante a
madrugada e é provável que o carro já esteja comigo amanhã se não rolar
nenhum imprevisto. Acho mesmo que sabotaram a sua namorada.
Olho as nuvens pesadas através da janela do quarto e me pergunto quando
essa tempestade vai acabar. Todo dia parece surgir uma merda nova para
lidar e me sinto cada vez mais sobrecarregado. Como se tudo estivesse
desmoronando em mim. Na porra da minha cabeça.
Encaro, mais uma vez, a menção na palavra namorada. Eu já nem sei se
quero manter esse relacionamento, e fico puto de pensar que estamos
enfrentando uma crise do caralho antes de completar um mês de namoro.
A confiança que construímos em meses de convivência sofre um trinco
quando me dou conta de que fui duramente enganado. Ter Mackenzie como
uma adversária na corrida nunca seria um problema entre nós, até porque
nosso relacionamento não é baseado em um racha ou competição rasa. Eu
amo aquela mulher e ela poderia ser qualquer coisa que esse sentimento não
mudaria. No entanto, dói como o inferno saber que ela mentiu na minha cara
em tantos momentos, que brincou com a minha mente como se não soubesse
quem era a Rainha, que escolheu enrolar para me contar algo tão importante.
Lennon preferiu deixar que nosso sentimento criasse raízes, florescesse e
solidificasse, mesmo estando escondendo uma parte da sua vida de mim.
Não há confiança onde existe escuridão.
Ademais, não é comum acontecer um acidente logo na primeira curva do
percurso da corrida. O Dodge Charger de Mackenzie tem boa frenagem e
direção incrível. A mulher não tinha atingido nem a maior velocidade que
costumamos pegar em um racha e numa simples curva capotou. Faz muito
pouco sentido, e talvez Luke esteja certo.
É bem possível que Mackenzie tenha sido sabotada.
Há essa espécie de sensação que flutua sobre o meu corpo, em que me
sinto numa outra realidade. Sei que estou consciente porque tenho controle
dos meus pensamentos, porém, ao mesmo tempo, não consigo abrir os olhos.
É como se minhas pálpebras estivessem pesando demais. A dor se alastra
desde os dedos dos pés até o último fio de cabelo da cabeça. Um caminhão
definitivamente passou por cima de mim.
No fundo, sei o que aconteceu. Um acidente de carro. Pude ouvir da boca de
Thomas enquanto ele dizia algumas coisas ao passo que segurava minha mão.
Eu estava acordada, juro que sim, conseguia ouvir perfeitamente cada palavra
murmurada por ele em um tom que exalava mágoa, embora meu corpo não
quisesse acordar. Exigia muito esforço, um que eu não tinha, porque ainda
estava esgotada.
Para falar a verdade, ainda estou esgotada. Uma pontada forte parece perfurar
meu crânio, de modo que toda a minha cabeça dói. Sinto-me fraca, de um
jeito que nunca senti em toda a minha vida. Todo o meu corpo está dolorido.
Consigo ter noção de que há agulhas perfurando a curva do meu braço, algo
também envolve meu pescoço e impossibilita a mobilidade dele. Tento mexer
os dedos dos pés, e suspiro aliviada quando tenho êxito.
As pálpebras tremem, e faço um esforço descomunal para abri-las. E no
momento que uma fresta se ergue, a luz forte invade as vistas, piorando a dor
de cabeça.
No instante em que o ambiente se revela diante dos olhos, enxergo branco em
todos os lados. A opacidade das paredes foscas, o piso meio brilhoso e as
lâmpadas de LED que iluminam o cômodo tão bem que me fazem querer
fechar os olhos novamente. Há esse bip uniforme e contínuo, que indica os
batimentos frequentes e calmos. Os tubos que ligam meu corpo à bolsa de
soro se enrolam até o suporte, e há um telefone e um pequeno vaso com
flores em cima da mesinha ao lado da cama.
Analiso a camisola hospitalar que envolve o corpo, e reparo na figura
corpulenta que ocupa uma poltrona nada proporcional ao seu tamanho.
Thomas está encolhido no assento acolchoado de modo que seu corpo parece
um tanto contorcido. E pela respiração pesada e os olhos pregados, sei que
está em um sono pesado.
Não interrompo o sono dele, e mesmo que quisesse, jamais conseguiria. Não
há forças em mim suficientes para que eu o acorde. Tento, no tempo de sobra,
reformular os acontecimentos da noite passada. Contudo, o mero esforço para
relembrar faz a dor aguda na cabeça retornar. Estou com a boca seca e posso
sentir os pedaços de pele que se sobressai em meus lábios. Uso os dentes para
me livrar delas e um gosto metálico quase imperceptível interrompe minha
agressão.
Estou com sede.
Respiro fundo e sinto as costelas doerem pelo movimento, por isso, bufo.
Bufo porque estou extremamente irritada com a condição em que me
encontro. Tudo, absolutamente tudo dói. É um inferno.
Odeio sentir dor, odeio estar fraca, vulnerável e enferma. Sinto-me pequena,
e é outra coisa que odeio. Retorço os dedos das mãos com raiva e me remexo
na cama, de modo que meu corpo não proteste novamente.
A movimentação, mesmo que pequena, faz Thomas se mexer na cadeira e um
dos seus braços — antes encolhido — cai do acolchoado. Isso parece
incomodá-lo. Bastante, inclusive. Porque ele se revira outra vez, aperta os
olhos, lutando para voltar a dormir. No entanto, não consegue achar outra
posição confortável, o que o acorda.
Observo cada um dos seus movimentos. Thomas esfrega as têmporas, aperta
os olhos uma, duas, três vezes e se ergue da poltrona. Ele apoia a mão na
coluna e massageia brevemente, reclamando silenciosamente da posição
desconfortável em que provavelmente passou a noite, ou o dia, não sei
exatamente.
A única janela do quarto, mesmo com a cortina blackout, deixa que um raio
de sol imponente invada o cômodo. Então, sei que está de dia, porém não sei
se é manhã ou final de tarde. Nem mesmo sei por quanto tempo dormi. Só
Thomas me daria essas informações, então, choco o aparelho que aperta meu
dedo indicador como um clipe contra a grade da cama, fazendo um barulho
agudo ecoar pelo local. O loiro parece acordar de vez com o ruído e volta sua
íris azulada diretamente a mim.
Eckhoff tem os olhos mais azuis que já vi em vida. Embora já tenha lidado
com inúmeros modelos incrivelmente bonitos e já tenha observado muitos
atores, nenhum teria beleza proporcional ao homem que me encara com
fervor. Suas vistas parecem debulhar-se em alívio.
Analiso, como se fosse a primeira vez, o osso da mandíbula bem demarcado,
o maxilar ressaltado, as feições imponentes, o nariz pontudo, a linha rosada e
fina da boca, o vislumbre da covinha de um lado só, e as sobrancelhas loiras e
estreitas. Até os cabelos alourados deliberadamente bagunçados o deixam
obscenamente mais bonito.
— Mackenzie! — Ele interrompe minha análise. — Como está se sentindo?
Thomas se permite dar alguns passos a mais e se aproximar. Verifica meu
corpo por inteiro, parecendo procurar algo que não esteja no lugar. Quer se
certificar de que estou bem, dentro do possível. Inflo as bochechas e
movimento a língua na boca, ensaiando uma fala.
— Com sede. — A voz sai como se estivesse aprisionada por mim durante
um tempo significativo.
— Ok. — Ele acena com a cabeça avidamente. — Posso providenciar um
copo de água. — Thomas está nervoso, percebo pela maneira que afasta os
fios da testa e coça a nuca. — Mas, espera. Não sei se posso fazer isso. Será
que você pode beber água?
Antes que eu possa respondê-lo e evidenciar minha irritação, Thomas enfia o
dedo no botão que chama a enfermeira e aguarda pacientemente, já que não é
ele quem está com sede.
Uma mulher de meia idade invade o quarto com um sorriso aberto no rosto.
Qual é, estamos em um hospital. As pessoas não deveriam estar exalando
felicidade. Sei que provavelmente a tal ruiva, enfermeira, só está tentando
amenizar esse clima mórbido hospitalar. Mas, me permito por uns instantes,
ser ranzinza ao ponto de não me afetar com seu esforço.
— Olha só quem acordou! — A enfermeira, que descubro atender pelo nome
de Gianna, se aproxima a passos rápidos. — Finalmente, querida. Como está
se sentindo?
Reviro os olhos antes de repetir as mesmas palavras direcionadas a Thomas.
— Com sede.
Gianna ignora minha súplica. Simplesmente lê o que parece ser meu
prontuário, checa os aparelhos que me envolvem e verifica minha pressão
arterial. Depois de uma eternidade, sou agraciada com alguns goles da melhor
água que já tomei. Acho que nunca senti tanta sede.
Agradeço o gesto e afasto o copo dos lábios apenas para questionar o que
exatamente aconteceu e por qual motivo estou estirada em uma maca.
— Você sofreu um acidente, meu bem. — Gianna acaricia meu pulso por
instantes. — Seu carro capotou na pista três vezes. Sofreu um traumatismo
cranioencefálico, distensão dos tecidos do pescoço e machucou de forma
branda a coluna cervical, devido aos movimentos do carro durante o
capotamento. Por causa do trauma, é normal algumas reações do seu corpo,
principalmente a de ficar inconsciente por uns minutos, a irritabilidade, dor
aguda na cabeça e essa marca arroxeada ao redor do olho.
Tento organizar a maior parte das informações no meu cérebro, porém mais
dúvidas surgem em minha mente.
— Por quanto tempo dormi?
— Trinta e seis horas. Você chegou duas da manhã ao hospital, acordou
minutos depois, então, fizemos exames de praxe e as três dormiu de novo. —
Encaro o relógio pendurado na parede, aperto as vistas levemente e enxergo o
ponteiro afirmando que são três da tarde. Provavelmente da segunda-feira. —
Seu namorado ficou com você desde a internação, contudo seus pais estão
ansiosos para te ver. Não só eles há uma penca de pessoas inquietas na sala
de espera, aguardando o horário de visitas, que já começou.
Enrosco as mãos na altura do colo e pressiono os lábios. Não sei se quero um
monte de gente me azucrinando depois de tanto tempo dormindo. Estou
cansada e dolorida, sem paciência para aturar ninguém.
— Você quer recebê-los? — Gianna relembra que ainda está aqui.
Nego fracamente com a cabeça.
— Por enquanto, só quero conversar com Thomas. — Torço os dedos
levemente. — Depois ele sai e chama meus pais, tudo bem?
Evito pensar que provavelmente terei de encarar Lidia Lennon imersa nas
sequelas de um Traumatismo Craniano: completamente irritada e impaciente.
Com dor, ainda por cima.
A enfermeira diz mais algumas porções de palavras e sai pela porta. Volto
meu olhar a Thomas e ambos sabemos o que tem de ser discutido. Ele sabe
quem eu sou. Dessa vez, literalmente.
— Eu já desconfiava antes da largada, no sábado. — Ele se adianta, cruzando
os braços acima do peito. — Durante nossa briga pelo telefone, escutei ruídos
que me afirmaram que você não estava em casa, fazendo um simples trabalho
da faculdade. Escutei a mesma música que tocava na Bolfok Ride, e soube
que também estava lá. Maturei a ideia na mente, enquanto todos os sinais que
ignorei apareciam, me lembrando de que fui um tolo. Contudo, não arreguei à
corrida e decidi te confrontar só no final de tudo. Qual a minha surpresa ao
saber que esse final nunca chegou? Todos foram espectadores do seu carro
capotando na primeira curva, três malditas vezes, e a multidão observou seu
corpo sendo retirado do automóvel com maestria pela Jules. Também viram o
exato momento que a bandana escorregou para fora do seu rosto. A esta
altura, Bolfok Town inteira já sabe quem é a Rainha.
Cada palavra me atinge como adagas afiadas, e não sei se essa é a sua
intenção. No entanto, percebo que seu tom de voz é duro e que há mágoa
escondida nas nuances do discurso. Afinal, não é para menos. Eu menti tantas
vezes que sou incapaz de contabilizar. Mesmo que as mentiras tivessem
como única finalidade esconder minha identidade real. E cometi o erro de
aguardar o melhor momento para contá-lo, sabendo que a verdade sempre
vem à tona no pior instante.
Agora, me parece meio impossível não pensar nos "e se" e de como tudo
seria diferente se eu tivesse contado antes. Provavelmente eu nem estaria
estirada nessa cama de hospital. Mas, não posso ignorar o fato de que estou
aqui por escolha minha.
Optei por aguardar um bom momento de contá-lo. Escolhi me enfiar em
todas as merdas desde o início do semestre, e paguei por cada uma das
minhas escolhas erradas. Embora eu soubesse dos valores das dívidas de
Thomas e do quanto seria importante pagá-las logo, precisei correr por uma
última vez. E não imaginava que seria contra ele, dado a quantidade de
inscritos nas corridas de sábado. Me enfiei em uma merda tão grande, que vai
além de simplesmente correr nos rachas, e não sei por quanto tempo
conseguirei garantir meu sustento. Ainda que eu saiba que a grana que
preciso não faria cócegas no bolso de Howard Lennon, por isso preciso pedir
ajuda ao meu pai agora que reconstruímos nossa relação.
— Quero te explicar, contar tudo. Deixar você conhecer esse lado da minha
vida. Estou disposta a isso.
Thomas solta uma risada baixa.
— Não acha que é tarde demais? — A indagação me provoca um arrepio e eu
estremeço. Cogitar essa possibilidade, a de ser tarde demais, me dá ânsia.
— Não quero que seja tarde demais.
Thomas pondera, por uns instantes, com a cabeça tombada para o lado, e logo
depois se pronuncia.
— E talvez não seja. — Respiro aliviada instantaneamente. — Mas também
não acho ideal conversarmos agora. Você acabou de acordar de um sono de
trinta e seis horas, saiu de um traumatismo craniano, e está toda machucada.
Honestamente, nem eu tive tempo suficiente para organizar os fatos na mente
e dissipar um pouquinho dessa raiva que estou sentindo. Dessa porra
corrosiva que me faz duvidar de tudo que vivemos por causa de uma
omissão, acompanhada de mentiras. Então, sugiro que conversemos depois.
— Concordo que nenhum de nós dois esteja pronto para uma conversa agora,
que exigirá tanto de nosso cérebro. Apenas o ato de organizar um pensamento
já faz minha cabeça doer. — Massageio a têmpora e prossigo. — Mas, gosto
do nosso combinado de não dormir mal resolvido um com o outro. Portanto,
só quero que você jamais duvide do que sinto por você, e do que vivemos.
Cada palavra, abraço, toque e momento foram verdadeiros. Eu estive ali por
inteiro, em cada instante.
— Não, não esteve. — Thomas discorda, balançando os ombros. — Você por
inteiro é uma Mackenzie que também corre em rachas, que também usa uma
bandana no rosto e algumas porções de roupas pretas que contrastam com as
usuais. Posso tentar acreditar nas suas palavras, e você sabe que eu quero que
tudo isso seja verdade. Mas não pode dizer que esteve comigo por inteiro,
porque seria outra mentira.
Discordo dele, contudo, permaneço calada. Não acho que seja prudente
iniciar outro combate quando nem ao menos tenho força para isso. Aceno
positivamente com a cabeça e o meu gesto o faz entender que nossa conversa
está finalizada. Ele beija minha testa fraternalmente e acaricia meu braço.
— Vou deixar que outra pessoa substitua meu posto de acompanhante porque
tenho outras coisas a fazer. Nenhuma delas é mais importante que você,
espero que isso esteja claro. Mas, Luke está estudando seu carro enquanto
pode e precisa da minha ajuda.
A informação me faz franzir o cenho e adotar uma postura questionadora.
— Acha que fui sabotada?
— Sinceramente? Acho. — Thomas é sutil como a patada de um elefante. —
Você executa aquela curva há meses e nunca nem derrapou, mesmo com a
pista molhada. É a parte mais suave da corrida e ambos sabemos disso. Um
capotamento logo no início é, no mínimo, incoerente.
Minha cabeça dói mais, outra pontada. E Thomas percebe isso, já que beija
minha testa outra vez e se pronuncia novamente.
— Tente não pensar nisso por enquanto. Prometo resolver tudo, e agora vou
permitir que seus pais entrem. Cuide da sua recuperação e assim poderemos
nos resolver logo, ao mesmo tempo em que solucionaremos essa incógnita do
acidente.
Não ouso refutá-lo. Simplesmente porque não tenho ideia melhor. Se não
posso sair dessa cama e agir, prefiro que uma das pessoas que mais confio na
vida faça por mim. Agradeço em um murmuro antes que ele saia pela porta,
observando-o acenar em resposta e ir embora. Deixo que Thomas vá com a
promessa de um retorno.
Após alguns minutos a porta abre novamente e, dessa vez, sei que as coisas
serão um pouco menos pacíficas. Lidia Lennon irrompe pelo quarto em toda
a sua glória. Não a vejo a tantos meses que pensei ter esquecido sua postura
ereta, ombros e cabeça erguidos, nariz empinado e feições apáticas. Minha
progenitora tem toda a geleira do Polo Norte aprisionado em seus olhos. O
cabelo escuro, com reflexos mais claros, está preso em um coque elegante no
topo da cabeça. Assim como ela veste uma blusa de algodão simples enfiada
em sua calça capri verde musgo de alfaiataria, acompanhada de saltos cor
nude com os bicos finos. Abaixo o olhar para a bolsa agarrada na curva do
seu antebraço com o pingente da Louis Vuitton pendendo no zíper.
— Graças a Deus! — Lidia profere, erguendo os braços e caminhando até a
maca, os saltos batucando contra o piso. — Pensei que estivesse morta!
Meu pai a lança um olhar repreendedor, e abano a mão em um gesto de quem
não se importa. Vivi vinte anos tendo esse espécime raro como mãe e suas
atitudes que fogem da sutileza não são nenhuma novidade.
Papai disse uma vez que foi isso que o fez se apaixonar. O quanto sua
personalidade era um contraste com a delicadeza de seus trajes e postura.
Lidia foi criada para sorrir e acenar, enquanto agrada meia dúzia de ricaços
com sua postura elegante e seus passos ritmados. No entanto, suas palavras
nada sutis e seu jeito um tanto frio e bruto fugiam da moça recatada que
tentaram criar. Fiquei sabendo que quando os dois se conheceram, Lidia
estampava catálogos de verão da Jeks, uma loja de roupas muito refinada. E
ele era um nerd da tecnologia. Howard assistiu mamãe cuspir discretamente
ova de peixe no prato em uma reunião de agências. A cena, no mínimo
peculiar, despertou a vontade de conhecê-la.
É triste ver que anos juntos só serviram para separá-los ainda mais. A série de
acontecimentos que procederam meu nascimento foi fundamental para
construir a personalidade que minha mãe tem hoje, que não combina mais
com a de papai. O divórcio será inevitável, no fim das contas.
E vejo que isso ainda o machuca. Saber que seu clichê de nerd e popular
terminam assim, com os dois distantes e frios de maneira que parecem jamais
terem dividido momentos no banco de trás do carro velho de papai. Howard
Lennon nem sempre foi rico, e adotar o sobrenome de peso de Lidia foi uma
escolha muito fácil para um jovem visivelmente apaixonado. Mas, de
qualquer forma, ele construiu seu império no ramo da tecnologia com todo o
seu talento para negociações e coisas de gente que ama robótica e equações
intermináveis, não com o sobrenome adquirido.
— Estou bem viva, por sinal — respondo a Lidia. — O que veio fazer aqui?
Mamãe sabe que a pergunta é direcionada única e exclusivamente a ela,
porque há todos os motivos do mundo para papai estar aqui.
— Eu sei que não sou uma boa mãe há anos, talvez nunca tenha sido. Mas,
cogitar que eu não te visitaria adoentada em uma cama de hospital chega a
extrapolar todos os limites.
— Lembre-se que se eu cogito algo do tipo é porque você me deu motivos —
rebato sem hesitar, e as palavras duras não surtem o efeito que quero, porque
Lidia se limita a respirar fundo e me abraçar.
Odeio a ausência de Lidia Lennon, com todas as forças. Embora a presença
de uma mãe tenha sido parcialmente suprida por titia, sinto raiva ao encarar a
loira que podia ter dado um rumo diferente a nossas vidas. Me negligenciar
ocasionou no fim de seu casamento e alimentou a mágoa e ressentimento que
tenho por ela.
— Eu errei muito com você, e não espero uma reviravolta no nosso
relacionamento que me fará uma boa mãe, corrigindo os erros de uma vida.
Foram vinte anos. Não quero eles de volta. Nós merecemos uma conversa?
Sim. Você merece um pedido de perdão digno? Sim também. — Ela inspira e
expira. — Contudo, hoje só quero que você saiba que não anseio pelo seu
mal. Pelo contrário, almejo que esteja viva e bem sempre.
A ideia de que eu e minha mãe nunca teremos uma relação incrível, daquelas
cheias de cumplicidade e afetividade, já é fixa na minha cabeça há um tempo.
E pela primeira vez, não sinto uma mágoa excruciante ao pensar nisso.
— Eu estou viva e bem, mãe. — O travesseiro afunda com o peso da minha
cabeça e me sinto temporariamente abraçada.
— Bem, e agora: por que estava correndo em um racha, Rose Lennon? — O
tom de Lidia consegue ser mil vezes mais duro do que o manso de papai.
O que eu responderia? Que amo a sensação da adrenalina percorrendo cada
parte do meu corpo como uma droga viciante? Que me sinto grande correndo
e ganhando? Há essa sensação de poder, de ter tudo sob os meus pés após a
largada ser dada que me prende nas curvas sinuosas das avenidas de Bolfok.
A verdade é que os rachas me ajudam a pagar as contas, mas nunca foi sobre
dinheiro. Os dólares que ganho após uma vitória não são o motivo essencial
que me leva até a Bolfok Ride toda sexta-feira. É sobre como eu me sinto
assumindo o volante e afundando o pé no acelerador. É sobre poder. Sempre
foi.
Quando estou no volante, não me sinto uma universitária que sabe de poucas
coisas, e nem uma jovem adulta que ainda tem muito a aprender com a vida.
Disputando nas avenidas, tenho a sensação de que sou imensa, experiente,
esperta e habilidosa. Tenho orgulho de quem sou como Rainha.
Mas, a questão é: tenho orgulho de quem sou sendo Mackenzie Lennon?
A maior lembrança que tenho da mansão dos Lennon é o aroma. Uma
mistura incrível de chocolate suíço e caramelo. A explicação para o cheiro
habitual é o amor de Molly pela culinária. Minha cozinheira e também quem
teve grande participação na minha criação junto de Jared, seu marido e meu
motorista, ama fazer doces franceses e suíços. Acho que essa mulher tem
conhecimento das sobremesas de todos os países. E o melhor disso tudo é que
o aroma desses doces consegue abafar o cheiro enjoativo do aromatizante que
minha mãe cisma de espirrar pela casa.
As paredes claras me fazem estreitar os olhos bem como a iluminação
extravagante provinda do lustre que pende no hall de entrada. Os pilares de
sustentação têm um estilo grego e há decoração âmbar por todos os cantos em
vários tons de dourado. Duas escadas começam em cada canto e se unem no
topo, cobertas por um carpete vermelho com o corrimão cor ouro. Quase me
esqueci da grandeza dessa mansão.
Voltar para cá depois de meses é quase como ser um desconhecido em seu
próprio habitat. Juro que não sei mais o que é ser moradora dessa mansão e
fazer parte desse lugar beira a estranheza. Encaro as poltronas imponentes e
bem-dispostas pela antessala, e os sofás que recepcionam por semana muitos
empresários e integrantes da socialite. Até Dilshad Town parece mudada
frente aos meus olhos.
Ainda dói para andar e passar por alguns esforços. Estou meio manca do pé
esquerdo e, devido a isso, despenco o peso sobre o lado direito. Meu pai puxa
minha mala pequena com o necessário para viver aqui pelo próximo mês.
Embora a decisão de me recuperar em casa não tenha sido totalmente minha,
cá estou eu.
Depois de explicar a cada um dos meus amigos e contar a verdade para todos
eles sobre ser a mulher dos rachas e os motivos que me levaram a omitir esse
lado meu, foi a vez de encarar meus pais. Nenhum dos dois foi maleável
comigo, e lidar com o peso das minhas escolhas ainda parece desagradável e
árduo.
Lewis já desconfiava e preferiu não se meter nos meus assuntos em um
confronto. Ele me explicou que se eu escondia era porque tinha motivos e
resolveu respeitar meu espaço. Andrew foi sincero ao dizer que nunca se
importou o bastante para quebrar a cabeça com isso, porque para ele era
indiferente saber a identidade da mulher dos rachas, assim como Josh,
Hannah e Jules. Não era difícil compreender, já que eles não tinham
nenhum tipo de ligação direta com a “Rainha”. Já Dom ficou um tanto
decepcionado por eu não ter compartilhado um lado importante da minha
vida com ele, como se faltasse confiança.
Honestamente, o único motivo que me impedia de ser aberta quanto minha
identidade era assumir que eu sou mais do que a minha imagem cultivada por
anos passa. Tornar de conhecimento público que eu também visto uma
bandana no rosto e enfrento altas velocidades em prol de uma bolada de
grana. Parece meio difícil associar a imagem que prego diariamente com uma
mulher que dirige como uma irresponsável. As pessoas tratariam daquilo
como meu mais novo traço de personalidade e não é assim que quero que as
coisas funcionem. A verdade é que seres humanos gostam de muitas coisas
que podem não se relacionar entre si. Quero dizer, um jogador de futebol não
necessita andar com uma bola debaixo do braço como isso definisse todo seu
arsenal de hobbies e características. Assim como eu posso gostar muito de
rosa, usar roupas chiques e bem trabalhadas, e ao mesmo tempo adorar
coturnos e meia arrastão.
Não acho que preciso fazer jus ao espectro de patricinha em que me
associam, tampouco devo me encaixar completamente ao estilo bad girl. Sou
Mackenzie Lennon e gosto de passar o dia no shopping fazendo compras do
mesmo jeito que amo correr em rachas e estudar legislações complexas. E
acredito que esse seja o problema em estereotipar e tentar enquadrar alguém
em um determinado padrão. Pessoas são grandes e cheias de nuances para
que isso dê certo.
Ao contrário do que as comédias românticas Hollywoodianas pregam, as
nerds que amam ler também podem aproveitar uma boa festa. Acontece. No
entanto, poucas pessoas estão preparadas para esse fato. Parece bobeira, mas
comprovo minha teoria quando exponho a quantidade de gente que sequer
desconfiou que eu pudesse ser alguém que corre em rachas. Ou que se
relaciona com uma gangue como a dos Lions.
Um estalo de dedos à minha frente me suga dos devaneios que poderiam
começar a ficar perigosos. Meu pai é o autor do disparo e me encara com o
semblante um tanto impaciente.
— O que foi? — questiono, franzindo o cenho.
Apoio a mão no quadril e troco o peso dos pés.
— Quero saber se consegue subir as escadas ou precisa que eu te carregue?
Desço os olhos para a mala em sua mão e dispenso o gesto com um aceno,
começando a subir as escadas. Meus ossos e músculos odeiam cada um
desses degraus, gritando para que eu chegue logo no topo. Agarro firmemente
o corrimão a fim de aguentar a tortura que é sentir a coluna reclamar e o
corpo doer.
Fiquei um total de cinco dias no hospital até que os médicos decidissem que
eu estava apta a terminar a recuperação em casa. Durante minha estadia no
quarto cheirando a látex, os doutores puderam observar a evolução do meu
quadro, de modo que não houvesse sequelas mais sérias. Então, após
determinarem que eu estava bem, recebi os papeis de alta assinados. Durante
esse tempo esperei visitas de Thomas que não vieram porque, segundo ele,
estava focado demais em encontrar algum problema com o carro que pudesse
ocasionar um capotamento.
Chad tinha conseguido, a princípio, uma autorização para que eles
inspecionassem o Dodge Charger — que definitivamente precisará de uma
repaginada se eu quiser voltar a usá-lo. No entanto, o coordenador da
operação policial teve um problema com seus superiores e manteve o carro
sob a inspeção da polícia por mais tempo. Sinceramente, não consigo
enxergar uma realidade em que as autoridades levassem meu caso como um
crime. Para eles, corridas na fazenda de Chad envolvem grana e poder o
bastante para que nada seja, de fato, investigado. Afinal, permitir que uma
atividade tão perigosa aconteça sob sua jurisdição requer muita propina. E o
Departamento Policial de Bolfok Town jamais gostaria de se envolver em um
acidente que possa ser criminal.
Fujo de meus pensamentos conflituosos assim que adentro o cômodo em que
dormi durante toda a vida. O quarto não mudou nada. As paredes continuam
no mesmo tom de rosa pastel com detalhes dourados. Assim como a cama
permanece com a cabeceira adornada por colunas que mantêm uma cortina,
tornando o cômodo similar ao de uma princesa de conto de fadas. Depois de
certa idade, meu quarto não sofreu grandes alterações, como se não tivesse
acompanhado meu crescimento e amadurecimento. Há uma grande prateleira
infestada de cadernos, ainda da escola, e livros que não levei para o
alojamento. A porta do meu banheiro está localizada à direta, ao lado da
cortina que tampa meu amplo closet. Encaro a grande mesa de estudos, com
painéis de fotos e avisos, infestada de diversas canetas e marca-textos
coloridos. A nostalgia vai me invadindo à medida que tomo o conhecimento
de que provavelmente meus pais fizeram questão de manter tudo igual, como
se eu ainda morasse aqui e usasse daquelas coisas.
— Preferimos deixar do jeitinho que era quando saiu porque parece que
ameniza sua ausência. — Ele diz, observando meu quarto com carinho.
Abro um sorriso de canto ao perceber que acertei no meu achismo.
— Verdade. — Giro sob os calcanhares, perlustrando toda a extensão do
quarto. — Parece que nunca fui embora. É como ter dezessete mais uma vez.
— Mas você não tem. — Papai me corta em uma velocidade surpreendente.
— E mesmo tentando entender seus motivos para se envolver com o tipo de
coisa e pessoas que se envolveu, ainda não consigo pesar a proporção do
perigo que se metia todas as sextas. Não é pouca coisa, filha. Corridas de rua
não ficam menos perigosas porque a polícia não se importa com a
organização de Chad. Você enfrentou velocidades fatais e não dá para lidar
com isso como se tivesse ido ao kart brincar.
Prendo o fôlego, por alguns instantes, soltando-o pelas narinas. O nervosismo
irrompendo pelo corpo, borbulhando meu sangue, ao passo que prevejo o
confronto que virá.
— Pai...— Howard ergue a mão, em um pedido que eu me cale.
— E as mentiras? — Reviro os olhos ao tomar conhecimento de que o
sermão no hospital não havia sido suficiente. — Você mentiu diversas vezes
para as pessoas com o objetivo de esconder sua real identidade e fez isso com
uma facilidade que me dá medo. Quando as pessoas começam a mentir dessa
maneira, as coisas não ficam bem. Todas as nossas ações têm consequências
e embora seus amigos tenham lidado com tudo muito bem, ainda há Thomas
e eu. Aquele irresponsável tem os motivos dele para enfrentar tanto perigo,
mas ele jamais arrastaria minha filha para isso. E nem precisou. Você sempre
esteve envolvida até o pescoço com essa merda.
“Mackenzie Rose Lennon você arrumou um Dodge Charger com o dinheiro
dos trabalhos como modelo, deixava ele sob os cuidados dos membros de
uma gangue, de gente que anda armado até o pescoço, e não com canivetes
ou facas, estamos falando de armas de fogo aqui. Mas será possível que você
nunca sentiu a dimensão disso? Se algo ocorresse fora da curva, eles
poderiam simplesmente tirar a sua vida em um piscar de olhos, com uma
puxada de gatilho. Honestamente, não sei que sede é essa de ser grande que
te arrisca nessa proporção.”
Engulo em seco, e logo depois pigarreio. Coço a língua, sentindo a aspereza
incomodar o céu da boca. Organizo os pensamentos, arrumando com
coerência minha explicação, da melhor forma que eu posso.
— Sério mesmo que ainda não compreendeu? — Desabo sentada no colchão
macio. — Vou te relembrar de alguns momentos: que tal as diversas vezes
em que eu era largada em casa para que você e minha mãe se enfiassem no
trabalho com a desculpa de que estavam garantindo o meu sustento? Ou,
então, quando essa ausência era compensada com milhares de presentes,
meros objetos? Uma garota que era cercada de pessoas que nunca pôde expor
os sentimentos porque só era interessante até um certo ponto. Eu sempre tive
muito a oferecer. Uma mansão incrível, roupas interessantes, objetos caros,
brinquedos dos mais atuais e carros dos mais luxuosos. Percebeu? Sempre
objetos!
As lembranças se amontoam na mente, descarrilhando qualquer trem que
organiza meu cérebro. Tirando-o dos trilhos e levando-o a se chocar
furiosamente com o muro das memórias.
“Objetos eram mais interessantes que eu, uma pessoa. Se eu chorasse na
escola, absolutamente ninguém verificaria como eu estava. E isso fazia eu me
sentir pequena. O tempo todo havia essa porra de sensação encrustada em
todo o meu ser que gritava o quanto eu era minúscula. Quando Rafe se
interessou por mim, ouviu meus desabafos, me olhou de um jeito diferente,
pareceu verdadeiramente entusiasmado em me conhecer como pessoa, eu me
entreguei como uma tola. Consegue ver? O quanto foi fácil para ele encontrar
uma vulnerabilidade e se aproveitar dela? Então, eu me tornei ‘a garota do
Rafe’ e foda-se se ela tem gostos, hobbies ou sentimentos! O que importa é o
corpo esbelto, o rosto perfeito e a maneira como ela cede para cada uma das
vontades dele, acreditando que o garoto a enxergava. Daí ele pisou em mim,
relembrou o quanto sou minúscula e trouxe de volta aquela sensação familiar:
de ser pequena.”
— Filha...— Dessa vez eu ergo a mão, pedindo que ele me escute até o final.
Percebo que em algum momento do meu discurso minha mãe se encostou no
batente da porta, e passou a ouvir. Porque ela tem os olhos avermelhados
agora e parece disposta a segurar as lágrimas que embaçam sua visão. Nunca
vi Lidia Lennon chorando.
Inspiro e expiro, reunindo equilíbrio mental para prosseguir.
— Rafe me arrancou dessa bolha que vocês criaram e fez com que eu
conhecesse o quanto o mundo lá fora é grande. A imensidão dos detalhes e
das pessoas diferentes que conheci me trouxe uma boa sensação. Então, fui
aos rachas e admirei a postura soberba de quem pode tudo daqueles homens
ao volante. Sentei-me no banco do carona e gostei da adrenalina que se
apossou das minhas veias ao enfrentar altas velocidades. Eu amei a sensação.
Mas, o melhor de tudo foi quando eu pude provocá-las sozinha. No momento
em que venci minha primeira corrida. A largada foi dada e eu soube que era
verdadeiramente boa em algo.
“Sabe como eu me senti? Grande. Como se eu pudesse tudo naquele
momento e que o mundo estava aos meus pés. Fui ovacionada pela plateia e
gostei. Ganhei de um homem e adorei. E, então, você fala dos riscos. Sabe o
que eu pensava? Que nenhum risco poderia se comparar ao prazer de me
sentir imensa.”
Quase suspiro aliviada quando percebo que acabou, que não há mais nada
para tirar daqui de dentro. E imploro silenciosamente que isso seja suficiente,
que o meu relato baste para eles.
— Ainda acredito fielmente que se você correu risco de vida, esteve em um
capotamento, parte da culpa é nossa. — Lidia inicia, adentrando o quarto de
vez. — Porque o jeito totalmente torto e negligente que te criamos
engrandeceu traumas que te ousaram a pensar desse jeito. Você almejava
tanto ser grande, poderosa, intimidadora, imensa, como gosta de reafirmar.
No entanto, quem é você sem um Dodge Charger? Está querendo me dizer
que é pequena sem um automóvel que corra a duzentos por hora?
O questionamento se assemelha muito aos que minha psicóloga gosta de
fazer, daqueles que demoro a encontrar uma resposta. Penso em como venho
agindo desde que entrei na Bolfok College e no quanto procurei reafirmar
coisas que nem sei se, de fato, significam algo. Gosto mesmo da minha
beleza ou me acho medianamente bonita? Acho mesmo que sou inteligente
ou acredito que sou medianamente ignorante? Inúmeras indagações invadem
a mente sem permissão, me afundando em uma maré de insegurança.
Porém, creio que achei uma das respostas.
Esse tempo todo venho buscando pela grandiosidade de ganhar uma corrida e
me sentir incrível que não percebi que em algum momento deixei de valorizar
quem eu sou sem a bandana e o Dodge Charger. Exagerei na dose. Quis ser
melhor do que Thomas sem ao menos estarmos em uma competição.
Transbordei o copo. Tirei da pista de corrida uma disputa e, sem perceber,
levei ao nosso relacionamento. Embaralhei peças que demorariam a organizar
e se encaixar novamente. Construí uma bola de neve de confusões e caos.
— Pode nos deixar a sós? — A voz de Lidia reverbera pelo quarto, me
acordando dos pensamentos inconclusivos.
Meu pai se limita a balançar a cabeça e sair do quarto.
— Eu cometi um erro gravíssimo quando descobri que estava grávida. —
Lidia inicia e só pela falta de sutileza percebo que o assunto não será leve. —
Eu não queria te ter. Me considerava nova e despreparada demais para ter
uma criança, nem ao menos achava que tinha jeito para a maternidade. A
escolha já estava encrustada na minha mente assim que descobri que
carregava uma criança no meu ventre. Sendo sincera, o corpo era meu e se eu
tivesse que fazer alguma escolha, no fim das contas, ela deveria ser só minha.
Porém, eu vi os olhos do seu pai brilharem com a descoberta. Assisti sua tia
pular de alegria e seus avós fazerem inúmeros planos. Eu era modelo e estava
iniciando os processos de criar a grife. Tinha o mundo a explorar sem a
preocupação de criar um ser humano. Tive medo, muito medo. Me
assombrava sequer cogitar minha barriga crescendo e o peso das minhas
escolhas. No entanto, seu pai parecia tão disposto a pagar pelas nossas
consequências. Nós não nos cuidamos e sabíamos o que poderia ser gerado
naquela noite, e optamos por continuar.
“Ele soube como agir em cada momento depois do teste. Esteve ao meu lado
em todos os instantes e disse com todas as letras que, apesar das vontades
dele, no fim das contas, o corpo era meu, e que a maternidade não deveria ser
forçada a mim goela abaixo. Howard me deu a certeza de que absolutamente
nada seria poderoso o suficiente para estremecer nosso relacionamento, que
nada mudaria entre nós independentemente da minha escolha. Eu poderia ter
acreditado nele, Mack. Juro que poderia. Mas, o medo se impregnou nas
minhas entranhas. Receio de perdê-lo, de passar por um procedimento
daqueles, de perder a credibilidade e respeito da minha família. De ser
julgada, mais do que já era. Então, eu pensei que poderia ouvir aos filmes e
ser otimista. Que um filho conseguiria unir famílias, consertar
relacionamentos e que a maternidade sempre seria luz. E cheguei à conclusão
de que eu ficaria bem.”
Lidia está chorando, e puta merda, nunca pensei que diria isso, mas estou
deixando as lágrimas me lavarem também. Seus olhos me encaram com tanta
sinceridade, e enxergo tanta dor através deles, que pouco consigo respirar.
— Por um tempo, eu fiquei bem. A gravidez não foi tão difícil, e nem o
parto. Mas, o peso que é ser mãe não demorou a vir. Eu te olhei e me dei
conta de que não seria nada do jeito que me disseram. Não senti a porra do
sentimento surreal que surge quando uma mulher dá à luz, nem enxerguei
naquele momento o que me diziam que eu veria. Isso foi me deixando cada
vez mais apavorada. Fui me ausentando do meu posto de mãe aos poucos,
sem perceber. E, num piscar de olhos, inúmeras pessoas já tentavam
compensar um pouco daquele enorme vazio. Comecei a me anular e me
apagar, cada vez mais. De repente, não havia nada de interessante mais no
mundo para mim. Ademais, ficar encolhida na cama em um quarto escuro
pareceu uma saída melhor e tornou-se mais frequente.
“Seu pai passou a fazer os dois, cuidar de você e tentar me salvar. Só que ele
jamais poderia, ninguém poderia, além de mim. Porém, cedi aos pedidos dele
e fui à terapia. Comecei um tratamento e melhorei gradativamente. Por um
tempo considerável, fomos uma família que beirava a felicidade plena. No
entanto, eu ainda me sentia de fora da sintonia de vocês. Como se eu nunca
pudesse me encaixar de verdade, uma intrusa, era como eu me sentia. E a
reação foi justamente o que culminou ao que somos hoje. Fui me afogando
em trabalho e me afastando de vocês. Nunca consegui sentir que era, de fato,
a sua mãe.”
Assim como eu nunca consegui me sentir verdadeiramente filha dela. Não há
sintonia. Não tem conexão. Sei que esse discurso de Lidia não é uma
redenção, e sim uma explicação. Ela está usufruindo de algo que merece, que
é expor o seu lado da história. E é o que eu sempre digo: todo mundo sempre
tem algo para contar. A perspectiva do outro não pode ser menor ou menos
valiosa que a sua. Finalmente, tenho a chance de conhecer e entender Lidia
Lennon.
Não me sinto magoada ou terrivelmente triste por saber que nunca teremos
um típico relacionamento de mãe e filha, que nunca haverá esse amor
incondicional entre nós. Contudo, sinto alívio. Por saber que há respeito
acima de tudo e que mesmo sem afetividade, não queremos o mal uma da
outra. A necessidade de ter contato ávido com a família é muito mais uma
construção social do que, de fato, algo fundamental. E depois dessa conversa,
posso me livrar aos poucos dessa mágoa e ressentimento por sua ausência, e
finalmente criar asas para voar longe de sua aba. Lidia poderá viver a vida
dela e eu a minha. Não manteremos um contato forçado, mas saberemos que
estamos vivas e bem.
Finalizamos o diálogo com um abraço, e me acomodo na cama enquanto
Lidia promete pedir a Molly que faça algum dos meus pratos favoritos. Antes
que eu possa sequer agradecer, escuto o bip do celular, indicando uma nova
mensagem.
Thomas: cortaram a direção do Dodge, você foi mesmo sabotada. Vou
terminar de resolver umas coisas e dirigir até Dilshad para conversarmos.
Fico encarando a tela do aparelho por, pelo menos, uns cinco minutos.
Durante esse tempo, as cenas do acidente invadem minha mente, se
embaralhando uma a uma, garantindo o impulso para que as engrenagens do
meu cérebro trabalhassem. Repito, mentalmente, os momentos da noite de
sábado desde que dei partida no carro até o instante em que pisei no freio
para executar a primeira curva. Lembro-me que os freios foram acionados
com sucesso, ao passo que reduzi a velocidade, diminuindo a marcha. E a
partir do segundo em que giro o volante, já não me recordo de mais nada.
Contudo, há viva dentro de mim uma única certeza: alguém definitivamente
queria que eu estivesse morta.
Não sei realmente o que motiva uma pessoa a sabotar a outra sabendo
de todos os riscos. Principalmente, tendo conhecimento da conjuntura geral
de uma corrida, a alta velocidade, a pista molhada e as curvas sinuosas.
Encaro a mangueira cortada da bomba de direção hidráulica, que culminou no
endurecimento do volante de Mackenzie e a levou para a beirada da pista,
propiciando o choque com o meio fio que fez o carro ir pelos ares. Luke está
à minha frente com os pés cruzados sobre o banco da oficina e um cigarro
entre os lábios. Depois da enrolação do Departamento Policial, e a resistência
quanto a seguir o acordo com Chad de nos mostrar o Dodge, o meu braço
direito quem descobriu a origem do capotamento.

A pele branca de Luke brilha pela camada fina de suor que cobre sua pele
visto que o subsolo da oficina é um tanto quente. Ele arrasta a mão pelos
cabelos crespos e solta um suspiro quase fúnebre.

— Acha mesmo que foi John quem sabotou Mackenzie? — Empurro uma
pele no canto das unhas para o lado e pondero sobre o assunto.
— Não faz muito sentido. — Pesco o cigarro guardado atrás da minha orelha
e o acendo com o isqueiro de Luke. — Embora Mackenzie tenha feito a tolice
de confiar seu carro à oficina daqueles crápulas, não vejo motivos que
levariam John a sabotá-la.

Dou uma tragada no cigarro, sugando a fumaça e expelindo-a pela boca. A


fumaça se dissipa no ambiente e o cheiro de nicotina impregna no ar. Perco
as contas da quantidade de maços que já traguei durante esse tempo. Tombo a
cabeça no encosto da cadeira e enxergo o teto meio descascado da oficina —
que precisa de uma manutenção o mais cedo possível.

— Ainda mais que ela estava correndo contra você, e sabemos que o ego dele
prefere torcer por qualquer um que te vença — concordo com Luke com um
aceno de cabeça. — Se não foi o John, quem odiaria Mackenzie ao ponto de
querê-la morta?

— Não sei. E sabe o que é estranho? — Luke arqueia as sobrancelhas, me


induzindo a prosseguir. — Antes de eu saber quem era a tal Rainha,
aconteceu uma corrida que Mack não competiu, no dia que eu preparei uma
surpresa para ela. Eu lembro de estar encucado com o lance do John estar
aqui na oficina e ter tentado me sabotar, só que eu a vi na penumbra
recebendo um pacote e acho que era grana.

O dia invade minha mente com todas as cenas organizadas, de modo que
parece que foi ontem. Tento não pensar que aquela foi a primeira vez que
transamos, e que Mackenzie havia negado meu convite de me ver correr em
prol de um estudo que sabemos que não ocorreu porque, no fim das contas,
ela estava mesmo na Bolfok Ride. No mesmo lugar que eu, tão perto. Ainda
me sinto tolo por não ter captado todos os sinais antes.

— Não pode ser o dinheiro da corrida? — Ergo o indicador e balanço


negativamente.

— A única pessoa que faz o pagamento pelas corridas é Chad, e naquele


momento ele não estava por perto. Até porque, depois de presenciar a cena
estranha, eu fui receber minha grana e o cara já estava no escritório me
esperando. Não daria tempo de ele se locomover tão rápido em um curto
período. No entanto, não vi John depois do fim da disputa, poderia ser ele.

— As peças não se encaixam, Thomas. Estamos andando em círculo. —


Antes que eu possa respondê-lo, a porta vai e vem da garagem abre em um
baque surdo.

Andrew adentra o cômodo do subsolo, ajeitando as lapelas da jaqueta, com


uma pose de quem sabe tudo.

— Sabem onde eu estava? — Troco um olhar com Luke e ambos negamos


em um aceno. — Em Bolfok Valley, e descobri coisas significativas.

Aprumo a postura na cadeira e afundo a binga do cigarro no cinzeiro. Luke


dá uma última tragada no seu e também o larga no recipiente pequeno. Então,
faço um gesto desesperado com a mão para que Andrew fale logo.

— Sabemos que Mackenzie deixava seu carro na oficina de Bolfok Valley,


que é administrada pelos membros da gangue dos Lions. Logo, se a
mangueira de direção hidráulica foi cortada, isso com certeza aconteceu
naquele lugar. No entanto, não seria muito interessante para John deixar
Thomas ganhar provocando um acidente na mulher que provavelmente paga
uma boa grana para eles cuidarem do Dodge dela. Isso me leva a pensar que,
seja lá o que houve com o automóvel, o líder da gangue estava por fora.

— Acha que sabotaram o carro de Lennon dentro da oficina do John e ele não
sabe de nada? — Luke solta uma risada desdenhosa, porque ambos
conhecemos a índole do líder dos Lion.

— Acho que não. — Andrew apoia o corpo em uma das prateleiras


abarrotada de ferramentas. — É interessante para John ter Mackenzie como
aliada. Quanto mais dinheiro ela faz ganhando uma corrida, mais ele recebe
também. Ou vocês acham que não existe nenhum tipo de acordo desse tipo
entre eles?

Arrasto a mão pelos fios displicentes que caem sobre minha testa e coço a
nuca. A aflição de avançar algumas casas imaginárias, construindo um
raciocínio, me deixa nervoso quando há algum retrocesso. É como estar,
literalmente, dando voltas em um caminho sem saída.

— Thomas. — Luke chama minha atenção. — Dirija até Dilshad Town ainda
hoje e converse com Lennon. Peça que ela te conte tudo, desde sua primeira
corrida até o dia do acidente.

Estou evitando Mackenzie. Essa é a verdade. Quero atrasar o momento em


que estaremos cara a cara para colocar tudo em pratos limpos, para descobrir
os motivos que a levou guardar esse segredo por tanto tempo, mesmo tendo
inúmeras oportunidades de contar. O que ela me disse no hospital, quando
acordou, ainda ronda pela minha mente em um looping cansativo. Lennon fez
questão de atestar que tudo o que vivemos não foi uma mentira e que estaria
disposta a me contar tudo. Contudo, não sei se já estou pronto para ouvi-la.

Só consigo mergulhar em inúmeras paranoias, pensando na facilidade que as


pessoas têm para me enganar, simplesmente porque deixo. As crises de
ansiedade só aumentam, e o cigarro torna-se cada vez mais um aliado
poderoso.

— Cara, — Andrew aperta meu ombro — sei que não está sendo nada fácil.
Você provavelmente está revivendo cada momento juntos e se perguntando
se não foi um otário. Talvez tenha sido, ou não. É impossível saber sem uma
conversa sincera com ela. Portanto, vá até Dilshad Town e pergunte tudo o
que deseja à Mackenzie.

Antes que eu possa respondê-lo, escuto uma cacofonia estranha no andar de


cima da oficina, como uma pequena algazarra. Encaro os caras com o cenho
franzido, e o silêncio irrompe pelo subsolo ao passo que apuramos a audição.
Chego mais perto da porta, ouvindo ainda melhor o que parece ser uma
discussão.

— Que porra é essa? — Andrew sobe e desce os ombros, e Luke nega com a
cabeça.

Faço menção de irromper pela porta e vejo os dois me seguindo. Subo as


escadas até o corredor que me leva à entrada, e uma cena um tanto peculiar se
desenrola à minha frente: John Lion em carne e osso, disparando ofensas aos
meus funcionários. Apresso os passos até ele, afastando um dos mecânicos
em um gesto gentil.

— John. — Ele nota minha presença, engolindo em seco e tornando a postura


ereta. — Que alvoroço é esse que está causando aqui?

— Preciso falar com você. — Ele gira o dedo indicador no ar. — Em um


lugar mais reservado.

Pondero, por um momento, conferindo se quero mesmo ouvir o que John tem
a dizer. Não que eu confie nele, ou algo assim, mas o Lion não tem muitos
motivos para vir até o meu estabelecimento fazer baderna. Chamo-o com um
balançar de cabeça, conduzindo-o até o porão em que estávamos.

O subsolo da oficina, usado apenas para armazenar ferramentas e peças,


parece ainda menor com a presença de John. É como se ele tomasse todo o
ambiente e sugasse as energias positivas do lugar.

Tanto Luke como Andrew transportam os olhares até mim em uma


velocidade surpreendente. Numa indagação silenciosa os dois querem saber
se dou conta sozinho, se ficará tudo bem comigo enfrentando seja lá o que
John tem a dizer. Aceno com a cabeça positivamente, induzindo que os dois
saiam do porão. Eles dão tapinhas reconfortantes nas minhas costas e deixam
o lugar.

— Você tem algo a ver com o acidente dela, não é? — Aproximo-me dele a
passos largos.

— Sabe que pode dizer o nome dela em voz alta, certo? Não é como se
proclamar Mackenzie Lennon três vezes em voz alta fosse invocá-la. — John
ri de sua própria piada enquanto ajeita a gola da jaqueta de couro, deixando
sua tatuagem no pescoço à mostra.

O líder dos Lion tem entorno de vinte e cinco anos. Não sei muito de sua
história, mas conheço a aparência imponente e um tanto assustadora do osso
da mandíbula bem demarcado e os olhos esverdeados — tão intensos que
poderiam me derrubar se tivesse lasers. John mantém o corte militar rente ao
couro cabeludo desde que o conheço e a mesma barba por fazer. Ignoro a
pose com a arrogância encrustada e os traços de sarcasmo em suas feições.

— Eu não tenho o seu tempo, John. Diga logo o que veio fazer aqui além de
me encher a paciência.

— Pode se sentar, Tommy. — John aponta para a cadeira com a cabeça. — A


história é longa.

À contragosto, faço o que ele aconselha. Sento-me na cadeira novamente e


pesco outro cigarro do bolso interno da jaqueta. Cubro-o com os lábios e
aceito o isqueiro que John me oferece para acendê-lo. O homem acompanha
meus movimentos e se acomoda no assento em frente ao meu. Dou a primeira
tragada e observo a fumaça se dissipar pelo ar.

— Eu estava na Bolfok Ride no final de agosto e assisti a primeira corrida da


Rainha. Eu soube, ali, que a mulher sabia o que estava fazendo. Que ela é
melhor do que nós dois juntos, porque entra na pista com o único objetivo de
vencer e pouco se importa com os riscos e as consequências. Eu a vi fazer
curvas perigosíssimas e executar manobras que jamais teríamos coragem de
imitar, porque nós dois não somos bons em nos arriscar. Pecamos na arte de
sair da zona de conforto. Assim como você, eu não sabia quem a mulher
corajosa e mascarada era. — John desiste do cigarro e o afunda no cinzeiro
enquanto engole em seco. — No entanto, aquela noite ficou ainda mais
surpreendente quando um homem todo vestido de preto, extremamente
elegante, me abordou. Ele tinha um bom papo, quase manipulador, que me
fez acreditar na quantidade de benefícios que eu teria se fosse conversar com
a tal Rainha e a convencesse a correr contra você sempre. Seria muito
simples: “em todas as corridas que Thomas estivesse, ela se inscreveria”.

— Com que finalidade? — Contorço as feições, com medo do que viria a


seguir.

— Ganhar de você, porra. Aquele homem sabia muito bem o quanto você é
vulnerável na pista às vezes. Acho que estava lá para te vigiar, algo assim.
Então, a Rainha só teria que estar em todas as suas corridas e te vencer
sempre que possível. O que ela ganharia além da grana das apostas? Mais
dinheiro. Todos sairiam vitoriosos com aquele acordo. Por isso, eu não
demorei a aceitar e fui atrás da corredora para plantar a semente em sua
cabeça. E deu certo, porque ela levou apenas dias para pensar e acabou
aceitando.

“Depois, foi questão de tempo até que ela sentisse confiança o suficiente para
revelar sua verdadeira identidade. E vou confessar que achei muito engraçado
vocês dois estarem convivendo juntos por obrigação do Grêmio Estudantil.
As chances de tudo dar errado eram altas. Mackenzie assinou um contrato
com o ricaço, mediado por mim, e ela ganharia o triplo do valor das apostas
em cada corrida que te vencesse. Tem noção de quanta grana estava
envolvida? Óbvio que eu recebia uma porcentagem gorda em cima disso, por
ser o mediador entre o homem e Mackenzie, além de tê-la como cliente na
oficina”.

— Me deixa ver se entendi — ergo a mão, pedindo que ele dê um tempo. —


Mackenzie assinou um contrato com esse cara para correr contra mim
sempre, e caso vencesse, receberia o triplo do valor das apostas?

— Sim. Mas você ainda não entendeu pra valer, não é? — Franzo o cenho e
nego com a cabeça. — O cara é o seu pai, Robert Johnson.

A saliva torna-se espessa, como engolir estilhaços dos caquinhos que ainda
restam do meu coração. Enquanto a informação se acomoda no meu cérebro,
a dor vai surgindo aos poucos, uma pontada aguda no peito. Tenho a
impressão de que o incômodo é físico, embora eu saiba que não me
machuquei fisicamente.

Eu não preciso perder tempo me perguntando o porquê Robert fez isso


comigo, pois a resposta é óbvia. Contribuindo para que minha derrota se
concretizasse em todas as corridas, ele me tiraria a oportunidade de ganhar o
dinheiro das apostas, e assim, me livrar dele de uma vez por todas. Até
porque, com as dívidas só aumentando seria humanamente impossível quitar
minha dívida com ele e ter a oficina só para mim. E, sendo sincero, não me
surpreende que meu progenitor tenha armado um plano como esse.

— Houve algum tipo de quebra de contrato entre ele e Mackenzie. — John


continua. — E isso me leva a acreditar que o seu pai esteve envolvido no
acidente dela.

Tenho a maldita impressão de que minha língua aumentou de tamanho, bem


como a saliva está mais espessa e há essa porra de bolo na minha garganta
que dificulta a fala. Pigarreio, sentindo minhas amígdalas tremerem.

— Você sabia das diretrizes do contrato? Por exemplo, qual seria a punição
por uma quebra?

— Eu li o contrato escondido. Ele duraria até que você se formasse e se


houvesse quebra, Lennon devolveria setenta porcento do que ganhou por fora
até àquele momento. — John adota uma postura mais relaxada, cruzando as
mãos sobre a barriga e as pernas no banco. — Mas, se me permite dizer, seu
pai é um puta de um canalha. Jamais aceitaria perder desse jeito. Ter de volta
essa grana não fará nem cócegas naquele bolso entupido de dinheiro. Então,
tenho quase certeza que ele contribuiu para que o acidente acontecesse.

— John, — endireito a postura — por que veio me contar tudo isso?

— O que você acha? — Ele arqueia uma das sobrancelhas.

— Eu diria pena.

— Não sinto pena de você, já basta a que você sente por si mesmo. Vim
porque além de ter perdido a grana que eu ganhava pelo contrato, com o
acidente, fiquei sem uma cliente poderosa, que me pagava uma quantia gorda
para consertar, fazer a manutenção do carro e ainda levá-lo até a Bolfok Ride.
Mackenzie me pagava mais pelo segredo do que pelo Dodge. Não é
interessante para mim vê-la morta, e esse seu pai é um grande emaranhado de
merda. Sinceramente, eu não queria estar na sua pele nesse momento.

Solto uma risada pesarosa, dotada de escárnio.

— Por que fui traído pelo meu pai?

— Não. — John se levanta e ajeita a gola da camisa. — Porque foi traído


pela mulher que ama, que de todas as pessoas do mundo, se aliou com o cara
que provavelmente já te fodeu de inúmeras maneiras possíveis.

— John. — Chamo-o novamente. — Se o carro ficava na sua oficina, quem


você acha que o ajudou a sabotá-lo?

John se limita a dar uma risada embrenhada no escárnio.

— Eu sei quem trabalha para mim, Eckhoff. — Arqueio as sobrancelhas. —


E embora tenha muitas ressalvas quanto ao jeito que você comanda isso aqui,
não posso ignorar o fato de que seus funcionários são fiéis. Eu já não diria o
mesmo dos meus. Tenho alguns nomes na cabeça, mas vou investigar a
fundo.

A minha rivalidade com John sempre esteve limitada às fronteiras da Bolfok


Ride. Nunca fui à Bolfok Valley enfrentá-lo ou qualquer coisa do tipo, assim
como ele só vem até a Bolfok Town para correr. Ficamos satisfeitos apenas
com a adrenalina que se apossa de nós em cada disputa e, de qualquer forma,
nunca quis criar algum tipo de rixa contra uma gangue.

— Como sabia que o cara era meu pai?

— No dia em que ele me abordou eu não sabia. — John se levanta. — Mas,


com o tempo, quis investigar com quem estava fechando negócio, e claro que
não foi difícil encontrá-lo.

Assinto de leve com a cabeça e posso sentir as lágrimas vindo, em uma


marcha fúnebre, se acumulando aos poucos por entre meus cílios. A dor se
alastra pelo meu corpo de maneira muito mais intensa. John prefere não ficar
para assistir o momento em que desmorono, ele simplesmente bate de leve no
meu ombro e vai embora. E todos os questionamentos ficam entalados na
minha garganta. Não posso organizar qualquer tipo de pensamento que me
leve a enfrentar meu pai e solucionar esse caso, estou impossibilitado de
sequer pensar em uma maneira de puni-lo pelo que fez, porque a pontada
incômoda, nesse instante, é muito maior do que qualquer coisa.

Quando parei para pensar nos possíveis motivos que nos levaria a um
término, jamais passou pela minha cabeça um cenário de traição. Nunca tive
medo que Mackenzie estivesse com outro homem, romântica e sexualmente
falando, enquanto namorasse comigo. Porque a confiança sempre esteve aqui.
Me senti sortudo, em inúmeras vezes, ao relembrar o quanto éramos fortes. E
realmente acreditei que nosso relacionamento seria forte o suficiente para
aguentar qualquer obstáculo.

Contudo, disso eu não sou capaz de passar por cima ou sequer tentar perdoá-
la. Mackenzie ouviu tudo o que meu pai fez, não só a mim, como também a
Lewis, a mãe dele e a minha. Ela esteve ao meu lado e conheceu a pior face
de Robert Johnson, e do quanto ele pode ser controlador. Um homem que, a
cada dia, destrói o que resta dos nossos corações e saúde mental. E agora,
saber que Lennon se juntou a ele para me destruir é demais até para mim.

As lágrimas pesadas escorrem livremente pelo rosto e pingam na gola da


camisa. Quando eu era pequeno, gostava de dizer que a dor de ouvido é a pior
de todas, principalmente aquelas que chegam de forma aguda. No entanto, a
dor de um coração partido ultrapassa qualquer tipo de problema físico. Meu
peito começa a tremer e sei que estou chorando ao ponto de soluçar. O ar
parece mais rarefeito e tento inspirar com mais força em busca de oxigênio.
Consigo pressentir a aproximação branda de alguém, que senta ao meu lado e
me abraça apertado. Pelo aroma do perfume e o roçar do cabelo crespo no
meu ombro sei que é Andrew.

— Sei que dói, irmão. — Ele murmura, com a voz abafada. — Mas, com o
tempo, vai passando e doendo menos.

Não sei, sinceramente, tenho minhas dúvidas, porque, puta merda, nunca me
senti tão mal na vida quanto estou agora. O amor trouxe o sol para logo
depois me empurrar na escuridão.

Não dei ouvidos a Hannah, mas no fim das contas, ela estava certa.
Mackenzie Lennon realmente me destruiu.
Estou com a mão pousada na altura do coração, monitorando a
movimentação do tórax. Procuro ar, o máximo que consigo, mas parece que
há pouco oxigênio no quarto. Meu peito dói devido ao esforço de inspirar
com intensidade nos últimos minutos. Honestamente, nem preciso pensar
muito para chegar na raiz do problema. É uma crise de ansiedade. Eu já sofria
com a falta de ar há um tempo, mas nunca nenhuma psicóloga havia me dito
tão francamente que sou ansiosa, até eu começar as sessões de terapia no
Departamento de Psicologia da faculdade. A sensação é horrível, e eu tento,
com avidez, seguir todos os protocolos passados para sair da crise. E, então, a
falta de ar vai ficando mais leve até que eu possa suportá-la.

Os últimos dias, desde que cheguei do hospital, foram tranquilos. Entre


videochamadas com meus amigos e algumas mensagens com Thomas, que
ainda ficaria em Bolfok Town para investigar mais a fundo a questão da
sabotagem do meu carro, eu me mantive distraída com alguns trabalhos para
finalizar antes do recesso de Natal. Hoje não trocamos nenhuma mensagem, o
que me deixa um tanto preocupada, já que mandei algumas mais cedo e vi
que ele visualizou. Portanto, algo aconteceu, sei disso.

Molly dá dois toques na madeira maciça da porta e empurra até se posicionar


na fresta aberta. Ela me lança um sorriso gentil e diz que o almoço está
servido. O menu da mansão dos Lennon hoje conta com uma plancha de
grelhados do mar e aspargos frescos, adicionando cogumelos e batatas na
manteiga de limão e alho crocante. Me animo consideravelmente de saber
que desfrutarei, mais um dia, da comida deliciosa de Molly.

Estando satisfeita, volto ao meu quarto para finalizar os últimos trabalhos que
antecedem ao pequeno recesso entre o Natal e o Ano Novo. Teclo
avidamente no notebook, esperando escrever as últimas palavras do teste de
Direito Constitucional. Estudar sem parar é como uma fuga dos pensamentos
que causam a angústia. Minha cabeça ainda dá umas pontadas aleatórias, e
sinto um pouco de náusea, porém, no geral, a recuperação vai bem. Assim
que formato o texto acadêmico, escuto leves toques no batente da porta. Ergo
os olhos para a figura imponente de Lidia e balanço a cabeça, induzindo-a a
falar.

— O rapaz incrivelmente bonito, que não sei se ainda te namora, está lá


embaixo vestido para um funeral e portando uma carranca invejável.

Ignoro o pequeno sorriso e o olhar sugestivo em seu rosto. Sei que a


alfinetada se diz respeito à sua vestimenta monocromática, toda preta, e
quanto à carranca, realmente não sei se quero descobrir.

— Pode deixá-lo subir. — Lidia atende ao pedido e escuto seus saltos


batucarem pelo corredor.

Afasto o computador para o lado, prendo o cabelo em um coque desajeitado e


confiro minha aparência no grande espelho no canto do quarto. A marca
arroxeada ao redor de um dos olhos, devido ao trauma, clareou
consideravelmente. Assim como meus cuidados com a pele durante os
últimos dias geraram um resultado significativo, de modo que não pareça que
girei no ar dentro de um carro.
Alguns instantes passam até que Thomas percorra a amplitude da mansão
com destino ao meu quarto. No entanto, não demora até que sua figura alta
irrompa pelo quarto cautelosamente. Meu peito comprime em uma saudade
excruciante, de modo que anseio para tocá-lo com a ponta dos dedos. Quero
delinear seu rosto anguloso, a curvatura de sua mandíbula, o maxilar
demarcado, os lábios finos naturalmente rosados, a covinha única e os
cabelos desgrenhados. Porque, embora Eckhoff não esteja em sua melhor
aparência, ainda continua absurdamente lindo.

As bolsas escuras embaixo dos olhos intensamente azuis demonstram o


quanto seu sono está desregulado, ao mesmo tempo em que suas feições
parecem agrupadas de um jeito que o deixa com o semblante cansado.
Cansado não, esgotado. A íris um tanto opaca emite um alerta de que as
coisas não estão em sua perfeita ordem, e a falta das mensagens só reafirma
ainda mais meus pressentimentos.

— Precisamos conversar. — Até de seu timbre grave e um tanto rouco sinto


falta.

Pigarreio, tentando encontrar firmeza no tom de voz.

— Sei que sim — começo, limpando as gotículas de suor das palmas no short
de moletom. — Eu prometo te contar tudo, absolutamente tudo. Sobre como
comecei a correr, o que me motiva, meus objetivos e no que me envolvi.

— É mesmo?! — Thomas solta uma risada que transborda asco. — Também


vai me contar que era paga para me vencer?

A simples menção no assunto faz minha espinha gelar. Endireito a postura,


realmente pronta para o que Thomas veio buscar: um confronto. Analiso suas
feições duras, a mandíbula travada, os olhos faiscando raiva e os lábios
pregados em linha reta. Conheço o combo de expressões, ousando dizer que
estou familiarizada com todos os seus semblantes e manias.

— Eu posso explicar. — É a única frase que consigo formular, e assim que


observo a reação de Thomas, percebo que não escolhi bem minhas palavras.
— Não, não pode. — Thomas retira, de um jeito bruto, os fios de cabelo que
caem em sua testa. — Nada do que você diga pode alterar os fatos. Ou a
incrível Rainha de Bolfok tem algum tipo de carta na manga que a livre dessa
bola de neve de merda que se enfiou?

— O que você veio fazer aqui senão escutar o que tenho a dizer? — Arqueio
a sobrancelha, sem saber muito bem se essa é a melhor maneira de abordá-lo.

— Vim terminar de uma vez por todas esse relacionamento que já estava
fadado ao fracasso.

As palavras duras são como uma espécie de agressão, cravando em meu


âmago uma série de adagas afiadas.

— É sério que vai terminar comigo sem ao menos escutar meu lado? —
Elevo, um pouco, o tom de voz, totalmente desesperada.

— Você acha que adiantaria? — Outra risada de desdém. — Preciso te


lembrar de que, o tempo todo, eu estive ao seu lado de corpo e alma? Como
um maldito otário. Deixei que pisasse nos meus pés para dançar e que me
encantasse aos poucos. Nos beijamos, transamos, vivemos intensamente e
nos envolvemos em algo que só uma das partes estava sendo verdadeira.
Caralho, quando me lembro de tudo, fico me perguntando como não percebi
ao menos um sinal. Você evitava estar no mesmo ambiente em dias de
corrida, inventava alguma desculpa para não ir e eu acreditava tão cegamente
em você que nunca desconfiei do seu caráter. Me enfiei em um racha com um
membro de uma gangue acreditando estar te ajudando, sendo que você era
ironicamente próxima dele. Consertava seu carro na oficina de John Lion,
porra. Não era só sobre cem dólares aquele dia, certo?

— Thomas, eu realmente não tinha o dinheiro naquele dia, apenas o vale-


compra grátis que havia ganhado quando abasteci lá. Só que Jeff nunca
gostou do fato de não ser incluído no meu acordo com John, isso o
impulsionou a querer retaliação.
Antes que eu sequer pudesse continuar me explicando, Thomas volta a falar.

— E você me usou para sair daquela situação. Como fez durante todo nosso
tempo juntos. Usou do nosso envolvimento em prol dos seus interesses. Pediu
que eu ganhasse de Rafe, e naquele mesmo dia perdeu para mim. Foi o quê?
O sentimento de culpa te fez me deixar ganhar?

Eckhoff cospe inúmeras informações em cima de mim, sem ao menos


organizá-las. Como se ele as proferisse do jeito que elas chegam ao seu
cérebro. Percebo o quanto suas mãos tremem levemente e a intensidade do
seu desequilíbrio.

— Ao contrário do que você pensa, não sou invencível. O meu jeito de correr
pode abrir vantagem em relação a muitas pessoas, porque não meço riscos e
os enfrento com louvor, já que a zona de conforto não é o meu lugar. E
apesar de conhecer o jeito que você corre, eu não estava bem aquele dia. Rafe
já tinha me desestabilizado e você correu bem, foi uma vitória digna e eu não
te deixei ganhar. Venceu por mérito próprio, porque é bom.

— Sem essa, Mack. — Thomas abana a mão em um gesto desdenhoso. —


Não vai mudar o rumo dessa discussão tentando inflar meu ego. Quando vai
entender que isso não é sobre uma competição? Pouco me importa sermos
competidores na pista e você me vencer. Foda-se isso. Pode ganhar de mim o
quanto quiser, mas quero que entenda que esticou essa disputa para além das
avenidas e trouxe ao nosso relacionamento. Você quis ser maior, mais
poderosa, aquela que dita as regras entre nós. Me rejeitou depois do nosso
primeiro beijo por causa de uma disputa de ego?

— Rejeitei você porque estava criando sentimentos e tive medo de ter o


coração quebrado! — Sei que minha voz transborda o cômodo e talvez todos
os presentes na casa escutem meu grito de desespero.

— Mas você me quebrou primeiro! — Devolve o grito, a mandíbula


contraída e o cenho franzido.

Pela primeira vez, vejo-o aumentar o tom de voz comigo. Conheço essas
feições duras e o quanto Thomas pode ser impiedoso, contudo, estou mais do
que mal acostumada por nunca ser o seu alvo.

— Eu não vim aqui para ser agressivo ou violento, por Deus, eu não sou o
meu pai. — Ele parece um tanto perturbado, e coça a nuca em uma clara
demonstração de nervosismo. — Nós não precisamos gritar um com o outro,
isso só vai nos torturar mais. Preciso terminar logo com isso, Lennon. Você
está acabando comigo.

Meus dutos lacrimais doem e sei que eles querem liberar as lágrimas o mais
cedo possível, porém as seguro o máximo que consigo. Não quero
desmoronar em sua frente. Mas, cada uma de suas palavras doem como o
inferno. Porque sei que fiz uma merda absurda, e tenho a noção de que talvez
nunca serei perdoada.

— Enquanto eu pensava que estávamos vivendo um amor improvável, você


estava recebendo dinheiro do meu pai para acabar comigo. Porque você sabe
o quanto o dinheiro das corridas me ajudava a não só pagar as dívidas dos
advogados como também a me livrar dele, tendo a oficina só para mim. —
Thomas soluça e deixa que algumas lágrimas caiam livremente em seu rosto.
— Você me ouviu contar tudo que esse homem já fez de mal, sabe o quanto
ele destruiu a mim, minha madrasta e Lewis. Mesmo que estivesse pouco se
fodendo para mim, não ousou pensar nem no seu amigo? Que tipo de pessoa
você é?

Minha boca escancara e o pavor se alastra pela corrente sanguínea. A falta de


ar volta, aos poucos, me avisando que as coisas ficarão muito pior. Thomas
me olha como se não me reconhecesse, com nojo, asco, desdém, e o pior de
tudo, indiferença. Sinto-me verdadeiramente como uma estranha. E mais do
que isso, como uma tola. É óbvio que esse acordo com John estaria além do
dinheiro. Realmente acreditei que sua rivalidade para com Thomas seria
motivo o suficiente para vê-lo perder para mim sempre. E fui tola. Demais.

— Thomas, você tem que acreditar em mim — digo dando alguns passos
cautelosos em sua direção, e ele instantaneamente se afasta. Como se eu fosse
portadora de uma doença contagiosa. — Eu nunca sequer cogitei estar
fazendo qualquer tipo de acordo com o seu pai. Eu juro. Assim que cheguei a
Bolfok, John me abordou com a proposta de eu me inscrever em todas as
corridas possíveis contra você e vencer. Então, eu ganharia o triplo do valor
das apostas. Demorei um dia ou dois para pensar no assunto e confesso que o
fato de te odiar contribuiu para que eu concordasse, mas não tem nada do seu
pai nesse acordo.

Ao contrário do que eu espero, Thomas gargalha. E é assim que sei o quanto


ele não acredita em nenhuma maldita palavra que sai da minha boca.

— Esse é o problema de quebrar a confiança, Lennon. Nunca mais vou


conseguir acreditar em nada que saia da sua boca.

A frase é forte, porque consigo mensurar as chances de voltarmos algum dia,


e elas são cem porcento negativas. A constatação faz meu corpo doer, cada
pedacinho até o meu coração. Mas, não desisto de fazê-lo acreditar em mim.
Corro até a mala em meu closet e pego a pasta guardada no fundo falso.
Retiro de lá a folha do contrato e empurro contra o tronco de Thomas.

— Eu não ia trazer isso, mas também não tinha certeza se ficaria aqui por
apenas um mês ou mais. Então, achei prudente carregar comigo. — Tento
controlar a respiração e ignoro o desconforto na boca do estômago. — Pode
ver que em nenhuma parte do contrato tem o nome do seu pai, e é como se eu
estivesse negociando com John o tempo todo. E você sabe que faz sentido,
até porque, agora, não tem nada que o incrimine pelo acidente. Seu pai jamais
seria bobo de colocar o nome dele diretamente em algo assim.

“Nem tudo entre nós foi armado, Thomas. Eu era paga para te vencer na
pista, e não para me envolver contigo. Nada daquilo foi planejado. Foi
verdadeiro quando nos chamaram para organizar aqueles eventos, as nossas
brigas, as alfinetadas, as provocações, as conversas. Quando compartilhamos
segredos, os beijos, a paixão intensa. Tudo isso foi sincero! Quando eu
percebi o quão envolvida estava contigo, desfiz qualquer tipo de acordo com
John. Então, em uma noite que ele correu contra você e antes de sequer
transarmos, recebi o que faltava do meu pagamento e quebrei o contrato. Só
mantive o papel comigo porque não seria tola de rasgá-lo e explodir no ar
qualquer prova que eu pudesse ter.”

Thomas parece estar em um impasse entre querer acreditar em mim e


repudiar a ideia de ser enganado de novo. Ele troca o peso dos pés e analisa o
contrato com atenção.

Pensando com clareza até que faz muito sentido. Com a quebra do contrato
eu já sabia que teria de me virar para devolver setenta porcento de tudo que
ganhei pelo acordo, e por isso quis correr mais uma vez, para garantir um
pouco mais de dinheiro caso ficasse sem. No entanto, embora seja muita
grana, não é como se fosse fazer grande diferença no bolso de Robert
Johnson. Portanto ele, com certeza, está envolvido no meu acidente.

— Se interrompeu o acordo entre vocês, por que não me contou tudo? Por
que esteve omitindo isso de mim até o acidente?

— Porque eu te amo! — explodo, com a fala marcada pela impulsividade. —


Eu te amo tanto que dói, e é incrivelmente difícil organizar esse sentimento
dentro de mim. Porque parece que esse amor transcende qualquer tipo de
sensação e, se houvesse uma palavra que descrevesse o tamanho do que sinto
por você, eu usaria agora. Tive muito medo de te perder, por isso ficava
procurando o momento certo de contar tudo e ele nunca veio.

— Esse amor que você tem para me dar eu não quero. — As palavras
estilhaçam pelo cômodo. O ar foge dos pulmões e o incômodo no estômago
engrandece. — Um amor embrenhado em omissões e mentiras é um amor
obscuro e sombrio, que não quero para mim, não quero para nós. Desejo que
se lembre de mim como o cara que te fez sentir borboletas no estômago e
essas coisas toscas de romance, como se estivesse em queda livre e quisesse
mesmo cair. Prefiro que se lembre de nós antes de tudo isso, de quando eu te
emprestava meu carro de olhos vendados de tanto que confiava em você, de
quando subia em meus pés para dançarmos na minha cozinha, de quando foi
comigo até Altoona para dançar músicas dos anos 80 e comer lanches com
nomes de famosos. Eu preciso que você seja uma memória boa, Mackenzie.
Porque agora não sei se você foi a melhor ou pior coisa que já me aconteceu.
“Além disso, não existe momento certo. No dia em que te pedi em namoro
você poderia simplesmente ter dito: ‘Ei, Thomas, antes de namorarmos
preciso te contar uma coisinha’. Talvez assim, as coisas tivessem sido
diferentes. Quando brigamos por ligação no dia do acidente, você poderia ter
sido sincera e nós resolveríamos tudo. Esse é o problema da mentira,
aguardar para contá-la só a faz ficar maior.”

Jamais saberia que ver Thomas rejeitando meu amor seria uma das coisas
mais dolorosas que já passei na vida. Embora eu saiba que é compreensível.
Foi meses escondendo uma parte de mim, um lado mais cinzento e sombrio.
É realmente difícil pensar que eu tenha criado e consolidado um sentimento
tão forte por alguém que esteve em minha vida por pouco tempo. Fazemos
um mês de namoro amanhã e estaremos terminados. Sinto as mãos tremerem
levemente, e a pontada de dor se espalha por todo o corpo.

— Sabe, — Thomas reinicia o diálogo — quando eu estava na sala de espera


do hospital, sonhei que estava morta. Foi tão real. Repassei os momentos
desde o acidente, só que em uma realidade diferente, na qual você estaria
morta. E, honestamente, odiei essa realidade com todas as forças. Porque
mesmo que não estejamos mais juntos, eu não quero viver em um mundo em
que você não exista. O medo se embrenhou em cada pedacinho, e embora eu
não lembre muitas coisas do pesadelo, uma frase fica repetindo em minha
mente: eu disse que você almejava ser grande sem ao menos perceber que já
era imensa. Espero que um dia entenda isso. Mackenzie não precisa de um
Dodge Charger para ser completa. Pelo menos, foi isso que me mostrou
durante o tempo que ficamos juntos.

Um soluço rasga por entre minha garganta, liberando o choro que eu tanto
segurava. Sem nenhum tipo de segredo rondando entre nós, me sinto até mais
leve. É duro entender que a comunicação teria levado nosso relacionamento
até as alturas, e que provavelmente não estaríamos terminando nesse exato
momento. Contudo, não quero ficar pensando nas possibilidades ou nos “e
se”. O que me resta agora é arcar com as minhas escolhas e fazer Thomas
entender, pelo menos um pouquinho, as minhas motivações por trás da figura
de “Rainha”.
Relembro-o de todas às vezes durante minha vida que me senti pequena, e do
quanto eu almejava ser admirada por algo que eu fazia. Conto a Thomas,
desde o início, como foi correr pela primeira vez e as sensações que se
apoderaram de mim. Não deixo uma mísera parte de fora, mesmo que eu
tenha que lidar com a vergonha de dizer que só aceitei o acordo de John
porque queria continuar tendo alguns luxos e por não me simpatizar com
Thomas. A futilidade percorre minha mente como bicho peçonhento, me
recordando do quanto me envolvi em merdas apenas por ambição e orgulho.
Ele não me julga, pelo contrário, se senta no pequeno sofá em meu quarto e
ouve atentamente tudo que tenho a dizer. Isso me traz um resquício de
esperança, como se ao me escutar, o loiro pudesse mudar de ideia
repentinamente quanto ao nosso futuro. No entanto, assim que termino, a
expressão em seu rosto continua a mesma, irredutível.

— Mackenzie, eu respeito a sua história e tudo que já viveu. Mas isso não
muda a minha decisão. Precisamos terminar tudo, porque ainda não consigo
acreditar que algo do que vivemos foi, de fato, real. Talvez, eu demore para
processar tudo. — Thomas suspira, parecendo cansado. — Porém, de uma
coisa tenho certeza: nós somos a ruína um do outro e tudo que provocamos
foi catástrofe. Merecemos um amor mais bonito que esse, que não vai existir
sem confiança.

— Você acha que ainda temos alguma chance? — pergunto, contorcendo os


dedos das mãos.

O incômodo no estômago, que cresce no meu interior, parece cada vez mais
difícil de ignorar. Estou, definitivamente, prestes a vomitar. Pouso a mão
sobre a barriga e contorço as feições. Sinto-me gelada, com as pernas bambas
e a náusea aumenta no meu estômago. A tontura me faz cambalear levemente
e as mãos firmes de Eckhoff me amparam.

— Espera...— Inspeciona meu rosto e corpo, procurando algo de errado. —


Você definitivamente não está bem, está suando frio.

Tiro as mãos dele de mim bruscamente e não perco tempo antes de correr até
o banheiro. Só dá tempo de levantar a privada antes que o líquido viscoso
seja despejado com tudo. Enquanto coloco meu almoço para fora, sinto uma
das mãos de Thomas segurando meus cabelos em um rabo de cavalo, e a
outra acariciando minhas costas em um gesto reconfortante. Inspiro com
força, inflando as bochechas e expandindo a caixa torácica. Preciso de ar, a
náusea ainda se embrenha pelo meu corpo, e eu volto a expelir vômito. Cuspo
o último resquício, um tanto enojada e saio do vaso, encostando o corpo nos
azulejos da parede. Uso desse tempo para controlar a respiração, tombar a
cabeça na parede e fechar os olhos, tentando recuperar algum resquício de
sanidade. Por fim, me levanto para escovar os dentes e higienizar minha boca
o melhor possível.

— Mackenzie...— Thomas parece hesitante. — Há alguma chance de você


estar grávida?

Solto uma risada baixa porque, ao que parece, qualquer sinal de uma mulher
com a vida sexual ativa enjoada é motivo o suficiente para cogitar uma
gravidez.

— Absolutamente nenhuma. — Ele ainda me encara, como se quisesse ter


certeza. — Acredite, a médica disse que náusea e vômito são possíveis
sequelas do Traumatismo Craniano.

— Droga, eu deveria ter esperado antes de vir conversar. Te fiz passar por
estresse e agora você tá doente. — Thomas caminha de um lado para o outro,
afundando o solado das botas no piso do quarto. — Quer que eu pegue água?
Precisa de remédio?

A partir desse ponto, ele começa a desferir inúmeras indagações, adotando


uma postura dotada de preocupação. Isso me faz sorrir um pouco, porque ao
contrário de Thomas, eu nunca duvidei da sinceridade de seus sentimentos.
Tenho hoje, mais do que nunca, a certeza do quanto esse homem me ama. E
isso me deixa ainda mais triste, por saber que se estamos terminando, a culpa
é inteiramente minha.

— Não preciso de nada. Vou continuar tomando os remédios receitados pela


médica e um para enjoo agora. Você pode ir, se quiser.
Odeio ter que dizer isso, mas não posso ser egoísta e pedir que ele fique,
porque sei que não pode, que não podemos. Preciso deixá-lo ir, mesmo que
meu coração esteja comprimido dentro do peito, e que cada parte do meu
corpo doa — não pelo acidente, mas por nós.

— Sim, eu vou. — Thomas ajeita as lapelas da jaqueta e se prontifica a ir. —


Respondendo a sua pergunta antes da avalanche de vômito, realmente não sei
se temos algum tipo de chance. Mas, minha mãe gostava de dizer que quando
duas almas são destinadas uma à outra, em algum momento da vida, no certo,
de preferência, elas voltam a se encontrar. Então, talvez, um dia o destino
diga o foda-se para o livre arbítrio e nos junte novamente. Você acredita?

— Em destino? — Thomas responde em um aceno positivo. — Não


acreditava, mas agora começo a torcer no poder dele de dizer o foda-se.

Minha voz sai duramente embargada, implorando que eu deixe as lágrimas


escaparem mais uma vez. Thomas solta uma risada sem humor e ergue os
olhos azuis, agora um tanto avermelhados.

— Não vou deixar meu pai sair impune disso. Ele tentou te matar e merece
pagar. — A voz de Thomas sai cortante, me provocando um arrepio.

— Deixe-o pagar do jeito certo, afinal, a justiça e as leis existem para isso —
aconselho-o, e ele acena em resposta.

— Farei isso, advogada. — Giro os olhos com a alfinetada, com a sombra de


um sorriso pairando em meu rosto. — Mackenzie?

Ergo os olhos em sua direção, e o induzo a prosseguir.

— Quero que saiba que independentemente do que o destino tem guardado


para nós, nunca amei ninguém da forma que te amo. — As palavras me
atingem como um raio. — Sei que nunca te disse isso, e foi uma das coisas
que mais pensei no meu sonho, quando achei que estava morta. Então, nunca
se esqueça: eu te amo com a mesma infinitude que abrange o universo e na
mesma intensidade de uma tempestade.

Fungo, sabendo que as lágrimas lavam o meu rosto livremente. Posso senti-
las molhando minhas bochechas enquanto soluço. Nada pode arrancar essa
sensação de que estraguei tudo entre nós e que se nesse momento estou com
o coração partido em inúmeros pedacinhos, a maior culpada sou eu. Deixo
que os pensamentos invadam minha mente, inescrupulosos, com o único
objetivo de me machucar ainda mais. Me dando o privilégio de cogitar como
seria nosso futuro. Onde estaríamos amanhã, comemorando nosso dia, um
mês de namoro, ou como nos dividiríamos no Natal e Ano Novo, no inverno
que poderíamos passar entre os afazeres da faculdade e filmes debaixo da
coberta, e no resto do último ano letivo de Thomas. Talvez assistíssemos a
formatura de Lewis e esperássemos mais um tempo até a dele.

Contudo, tudo que tenho agora é a chance de fazê-lo ouvir, mais uma vez,
que é correspondido.

— Eu também amo você. — O sussurro sai sôfrego, parecendo doer em nós


dois.

Assisto algumas lágrimas escaparem dos olhos azuis intensos, agora um tanto
opacos. Thomas se vira, levando o meu coração consigo. Ele vai embora, e eu
o deixo ir.

Eu te amo com a mesma infinitude que abrange o universo e na mesma


intensidade de uma tempestade.

Corro até minha escrivaninha e anoto, com as vistas embaçadas, a pequena


declaração em um post it. Levarei o pedaço de papel comigo até que um dia
eu possa entregá-lo de volta. Sei que Thomas não sairá por completo da
minha vida, já que dividimos o mesmo Campus, o grupo de amigos, e a
mesma cidade minúscula. No entanto, levarei o bilhete comigo até que eu
possa devolver com a promessa de um recomeço entre nós. No dia que o
destino atender as preces que farei todas as noites. Então, ao invés de uma
foto, enfio o pequeno papel na carteira.
Pouco tempo depois, meu pai adentra meu quarto com duas canecas
fumegantes. Ele me lança um sorriso paternal, que me conforta pelo menos
um pouquinho. As lágrimas que jorram dos olhos pingam na minha camisa de
algodão.

— Assim que o vi sair daqui chorando, soube que as notícias não seriam
boas. — Howard se senta na cama, e me convida a fazer o mesmo. — O que
eu te disse, pequena Maze? Você sempre terá o colo do papai.

Agarro a caneca de chocolate quente e deito a cabeça no ombro do meu pai,


mais do que aliviada por estar passando por isso no meu lugar. Em casa. Com
a minha família.

Mackenzie Lennon já existia antes de Thomas Eckhoff, e vai continuar


existindo.

Mesmo com um coração estilhaçado e um milhão de expectativas destruídas.


— Venha você também fazer parte do grupo: nós odiamos o amor! —
Nevaeh profere, com a sombra de um sorriso pairando no rosto enquanto me
observa.

Devo ser a personificação do que é estar no fundo do poço. O corpo enrolado


no cobertor, afugentado dentro de um pijama rosa choque de moletom,
cabelos embaraçados e olheiras gigantes. Há semanas, minha amiga tenta me
animar com o argumento de que fui seu pilar de apoio enquanto ela e
Dominic estavam mal. Agora é apenas uma questão de retribuição. Só que até
Nev está a ponto de se demitir do posto de amiga, porque me aguentar de
coração partido não é uma das tarefas mais interessantes do mundo. Na
verdade, sou um porre quando estou triste.

— Sem brincadeira, Mack. — Nevaeh arranca o cobertor de mim, ao passo


que protesto. — Você está insuportável. Uma hora consigo arrancar uma
risada sua e em três segundos já está chorando compulsivamente.

— Eu quero o meu namorado — lamurio como uma criança birrenta que quer
seu doce de volta.
— Ex-namorado, só para te lembrar — encaro-a com um olhar cortante, e ela
prossegue. — Além do mais, o que houve com aquele papo feminista de que
já existia antes dele e continuará existindo muito bem?

— Não quero mais ser feminista — resmungo de pirraça, mesmo sabendo


que não estou falando sério, e a prova disso é a risada escandalosa de
Nevaeh. — Só quero meu namorado de volta.

Afundo o rosto no travesseiro, sentindo uma saudade absurda dele. Nossa


última conversa, o término de tudo, foi há um tempo e ainda parece doer
igual. A faculdade já entrou no recesso para as festividades de fim de ano, e
eu mal posso esperar para passar o Natal e o Ano Novo debaixo das cobertas.
E a droga do inverno contribui ainda mais para isso.

— Olha, sei que tudo isso é péssimo, e por mais que você esteja liderando,
nesse momento, o clube dos corações partidos, sua vida não vai parar. —
Ergo a mão, impedindo que Nev continue com seu papo motivacional.

— Nevaeh, eu não mereço nada disso. Menti para todos os meus amigos, que
se importavam verdadeiramente comigo, durante meses. E para piorar tudo,
aceitei ser paga para vencer do cara que hoje é meu ex-namorado — inicio, já
sentindo as primeiras lágrimas se acumularem no canto dos olhos. — Fui
uma péssima amiga e namorada. Não sou merecedora de te ter aqui me
consolando e vendo toda a franquia de Velozes e Furiosos comigo.

— A parte de ver todos esses filmes é realmente uma tortura, mas veja pelo
lado bom, acabamos de ver o oito. O que quer dizer que enfim poderei me
livrar da cara do Vin Diesel. É sério, Mack. Se eu encarar aquela careca de
novo, sou capaz de quebrar sua televisão super ultra mega tecnológica. —
Encaro a TV que não tem nada demais e solto uma risada baixa. — Odeio ter
que dizer isso, porém, nesse momento, você não tem mais ninguém. Andrew
vai demorar a confiar de novo, Dom e Jules estão super putos, Hannah está
tendo que passar a semana com a família e Josh está em um acampamento
estranho com os pais. Além de que Lewis está aguardando como um
moribundo ser convocado para a seleção de draft. Você, mais do que
qualquer um, conhece a proporção dos seus erros e já está se culpando o
suficiente. O meu único papel durante esses dias é dar um pequeno sermão, e
além de tudo, te acolher. Sabe? Te tirar um pouquinho dessa realidade
péssima em que se enfiou.

Honestamente, Nevaeh tem feito isso muito bem desde que chegou. Ela veio
no dia em que eu e Thomas estaríamos completando um mês de namoro, e
meu estado era deplorável. Eu parecia estar contemplando um mês da morte
do nosso relacionamento. Minha amiga trouxe sorvete e meu refrigerante
favorito, mesmo sabendo que encontraria diversos potes e engradados na
minha dispensa. Durante essas semanas, tento aproveitar o máximo que
consigo com minha amiga, contudo, no início, tudo que eu conseguia fazer
era chorar. Exatamente como ela havia dito, uma hora estava rindo e num
piscar de olhos chorando. Nem eu aguentava mais minhas oscilações de
humor.

Nevaeh, então, pareceu se dar conta de que sua abordagem não era das
melhores e mudou totalmente. Começou a me contar diversas fofocas da
faculdade, a falar da vida dos outros e, principalmente, da sua. Falou do dia
em que decidiu parar de sentir pena de si e ignorou o orgulho, a fim de ir
atrás de Dominic. Então, eles combinaram que tentariam novamente. Até
porque, no fundo, a falta de uma crença religiosa a incomodava muito pouco.
Contudo, a pressão da família, e acima de tudo dos pais, embaralhou a mente
dela o bastante para que a confundisse em relação ao que era realmente
importante. Os dois resolveram tentar de novo, resolvendo por ora, os
problemas de seu futuro.

— Decidimos que um juiz de paz seria a melhor saída para nós, caso
desejemos nos casar, já que possuímos crenças diferentes. E em relação a um
possível filho no futuro, não preciso criá-lo no protestantismo e Dominic
também não irá forçá-lo a ser ateu. Deixaremos que nossa prole escolha no
que quiser acreditar, porque, no fim das contas, ele poderá ser quem quiser.

Foi bonito assistir seus olhos brilharem na esperança de que os dois passaram
por um problema real, mas que não poderiam desistir tão fácil de algo que os
faz tão bem. Ainda há uma chance para eles, afinal.

— Mackenzie. — Nevaeh volta a falar. — Tem que sair desse emaranhado de


martírio, autossabotagem e pena em que se enfiou. Sei que as consultas
online com a psicóloga estão ajudando, mas acho que precisa ter algo mais.
Nenhum perdão virá antes do seu. Assuma as consequências dos seus atos e
faça algo a respeito disso. Está há semanas definhando nesse quarto e eu não
aguento mais te ver assim. Portanto, faça algo!

Dou um sobressalto devido a assertividade de Nevaeh. Sei que aproveitei o


bastante do período de luto por um coração partido, mas a vida está passando
diante dos meus olhos e continuo aqui, parada. Perscruto o quarto com os
olhos, abrindo mais as vistas, me incomodando pela primeira vez com as
cortinas fechadas e a luz baixa. Minha amiga está certa como sempre, eu
preciso agir de algum jeito. Pesco o controle apenas para desligar a televisão
e dar adeus à minha franquia de filmes favorita. Enfim, desembolo meus pés
da coberta e ergo o corpo.

— Nevaeh Williams, vista uma roupa decente, iremos desbravar Dilshad


Town! — exclamo com animação, apenas para vê-la adotar uma expressão de
desdém.

— O que é isso? Um filme?

Giro os olhos enquanto solto uma risada, a mais alta em tempos.

— Vamos, você está certa. Estou mesmo precisando ver o mundo e respirar
ar puro, sair desse casulo de culpa e martírio que criei. Sei que preciso fazer
algo sobre os últimos acontecimentos, mas não hoje. Apenas quero aproveitar
um tempo com a minha melhor amiga.

Nevaeh parece se animar, porque abre um sorriso contido e balança a cabeça


positivamente. Ela logo corre até sua mala e busca algumas roupas e
agasalhos para sairmos um pouco. Encaro o céu através das portas de vidro
que dão para a varanda, constatando que as nuvenshoje parecem algodão, se
agrupando de um jeito delicado por entre os tons alaranjados e roxos,
indicando que está prestes a anoitecer. Não demoro, portanto, a caminhar até
o banheiro para tomar um banho.

Deixo que a água quente escorra por toda a minha pele, acalmando os últimos
resquícios de agitação. Os poros parecem aquietar à medida que arrasto o
sabonete pelo corpo. O cabelo escorrido e encharcado é lavado pelo xampu
de morango. Não me obrigo a ser rápida nessa tarefa porque quero me sentir
verdadeiramente limpa. É impossível evitar que as lágrimas se misturem ao
jato morno no momento em que sinto meu coração doer novamente. Permito
que a água lave as lágrimas e alguns fragmentos de sofrimento. Ao terminar o
banho, totalmente limpa e com os cabelos molhados, tenho a sensação de
estar revigorada.

— Termina logo esse banho ou desisto de sair nesse frio dos infernos.

E é assim que Nevaeh interrompe meu drama durante o banho. Solto uma
risadinha baixa e ligo o secador de cabelo, espantando qualquer barulho que
ela faça ao esmurrar a porta do banheiro.

O céu tomado pela escuridão nos relembra a minha demora para arrumar.
Estamos devidamente agasalhadas, com segunda pele e casacos pesados.
Nevaeh veste um gorro vermelho com um pompom no topo, ao passo que
escolho uma touca branca discreta. A cidade pacata em que nasci não conta
muito com a presença da neve. Dizem que só aconteceu em dois invernos até
hoje. Nesse inverno, eu consigo ter um vislumbre das gotículas que se
acomodam na minha janela, provindas do sereno. Cobrimos as mãos com
luvas grossas, dando passadas largas pela mansão até a garagem.

— Onde as senhoritas vão? — Somos interceptadas no percurso pelo meu


pai.

Howard veste pijamas de inverno casuais e mantém os braços cruzados,


arqueando a sobrancelha. Nas últimas semanas, ele prefere trazer o trabalho
para o escritório, suponho que com a finalidade de estar perto de mim em um
momento difícil. Ao contrário de Lidia, que segue a vida normalmente no
trabalho. E, sinceramente, isso me deixa até mais confortável, sabendo que
ela está seguindo o nosso combinado de não forçar nenhuma aproximação
que seja fora do natural.

— Sair um pouco, ver gente — respondo.


Enfio as mãos nos bolsos do sobretudo e assisto o sorriso do meu pai
aumentar.

— Fico feliz que finalmente tenha saído da toca. — Ele beija a minha testa e
o topo da cabeça de Nevaeh com cuidado. — Divirtam-se com juízo.

Agradecemos em uníssono e continuamos o caminho em sincronia até o


carro. Capturo a chave do Cadillac do suporte e hesito por um momento.
Agarro o metal contra os dedos e aperto os olhos, sentindo um calafrio se
apossar do meu corpo.

— Você pode dirigir hoje? — estendo o objeto a Nev, que não titubeia em
pegar.

Dou algumas coordenadas a ela porque, embora tenha vindo a Dilshad uma
vez, já não lembra de muita coisa. Então, nos direciono até minha lanchonete
favorita e afundo o dedo no rádio, sintonizando na estação local. A música
que invade o carro é Falling do Harry Styles, e volto a mexer no som com
rapidez, mudando para o canal de notícias ou de canções country. Quando
conheci Thomas, ele passou pelo menos umas duas horas tentando me
convencer que canções atuais são tão incríveis quanto as antigas, e ele
poderia provar me colocando para ouvir o último álbum inteiro do ex-
integrante da One Direction. Harry Styles está estritamente proibido porque
sua voz rouca e aveludada me leva instantaneamente ao louro que provoca
inúmeras sensações intensas em mim.

Nevaeh não contesta minha decisão, mas volta a mexer no rádio, conectando
ao celular. Assim, um jazz extremamente confortável e delicioso de ouvir
irrompe pelos alto falantes. Torno minhas vistas para a cidade pequena e
aconchegante que passa através do vidro dianteiro. Percorremos as
construções antigas e bem conservadas, as ruas organizadas e os ladrilhos de
alguns becos lotados de pequenos bares. Dilshad Town é completamente
turística, lotada de coisas que os visitantes amam. Parques arborizados, com
tirolesas e atividades de escalada, lanchonetes, danceterias e chalés isolados
para quem gosta de mato. Embora seja pequena, a cidade atrai cidadãos de
outras localidades ou urbanizações vizinhas. Como, por exemplo, a
população de Oroland County, que adora vir para cá aproveitar estações do
ano como o inverno e outono.

A minha lanchonete favorita parece que acaba de sair de um filme antigo,


porque há um letreiro neon extravagante, chão quadriculado, garçonetes
simpáticas com aventais rosas, poltronas acolchoadas e um jukebox que
abriga as melhores músicas das décadas passadas. Até a droga do
estabelecimento me lembra Thomas, que me levou em um primeiro encontro
num lugar parecido. Só que com a ampla pista de dança e o palco.

O ar quente da Oldest's rapidamente dispensa o uso do casaco pesado. Retiro


o sobretudo e o acomodo na curva do antebraço. Cumprimento algumas das
garçonetes mais velhas, e conhecidas, e chamo Nev para me acompanhar até
a minha mesa favorita. Nos sentamos nas poltronas acolchoadas, uma de
frente para a outra, e contemplamos a noite um tanto agitada através da
parede de vidro.

— Essa cidade até que é bem legal. Bolfok Valley não tem nada. — Nevaeh
resmunga enquanto inspeciona o cardápio. Solto uma risada baixa, porém
concordo silenciosamente. — Tem algo para indicar daqui?

Ela sinaliza o pedaço plastificado com a cabeça e eu aponto rapidamente para


o número 6. Ele conta com hambúrgueres banhados de cheddar e bacon,
batatas fritas médias e refrigerantes grandes. Mary, a garçonete mais antiga
do lugar, é quem nos atende com um sorriso no rosto e manifestações
calorosas de afeto. A morena, dona de um corte de cabelo meio ultrapassado,
gosta de reafirmar o quanto estou crescida e bonita. E também diz que a
faculdade está me fazendo bem. Eu já não posso dizer o mesmo.

Assim que a Mary sai, levando nossos pedidos, Nevaeh recebe uma
mensagem no celular que a faz franzir o cenho. Ela encara a pequena tela,
contorcendo levemente as feições.

— O que houve? — Endireito a postura, me preparando para o que vou ouvir.

— Nada. — Esquadrinho seu rosto com um semblante inquisitivo, e


mantenho meu olhar de quem não desistirá tão fácil. — Dominic fica me
atualizando sobre a investigação em relação ao seu acidente.
Volto a encostar no apoio acolchoado e respiro fundo. Há dias tento enviar
mensagens a Thomas, única e exclusivamente para saber do caso. Respeito
sua decisão de terminarmos com o relacionamento, embora esteja sofrendo
com tudo, no entanto acredito que tenho o direito de ficar por dentro. Afinal,
quem capotou três vezes no ar fui eu.

— Vocês precisam me manter por dentro de tudo, isso é injusto— solto com
o tom de voz transbordando indignação. — E o papo de que estou em
recuperação não cola mais, já estou totalmente recuperada.

— Não achamos que seja bom você ficar passando por esse tipo de estresse.
— Arqueio as sobrancelhas e uma risada irônica escapa da boca.

— Quer mais estresse do que tenho passado nos últimos tempos? Fala sério,
Nevaeh. Nós duas sabemos que não tem como a minha situação piorar muito.
Nem estou fazendo questão de estar ao lado de Thomas, tentando descobrir
algo. Só quero ficar por dentro das coisas.

Sei que Thomas e eu não estamos prontos para manter um diálogo saudável
em prol dessa investigação. Ambos ainda estamos sofrendo os efeitos de um
término, e talvez, uma convivência só serviria para nos machucarmos mais.
Não tenho nenhum tipo de problema em deixá-lo cuidar disso como quer,
afinal, acredito que fui apenas uma peça nesse maldito jogo entre ele e o pai.
Além disso, confio em Eckhoff o bastante para crer que ele é a melhor pessoa
para resolver essa situação.

— Bom, a única coisa que ele descobriu até agora junto de John é que Jeff
quem sabotou seu carro em algum tipo de acordo com o Robert — assinto,
por um momento, e Nev volta a falar. — Agora Thomas precisa de algo que
ligue o pai dele a tudo isso para enfiar os envolvidos na cadeia.

— Sabe que com um bom advogado ambos se safam fácil dessa, certo? —
Nevaeh concorda com um aceno.

Nossos lanches chegam e eu não demoro a abocanhar o hambúrguer, sentindo


a explosão de sabores gordurosos. A sensação de saudade e nostalgia me
invade, trazendo as melhores lembranças dentro dessa lanchonete. Nos
momentos em que eu me sentia mais solitáriaoume sentava na bancada
apenas para comer e bater um papo incrível com Mary e as outras garçonetes.

— Nós só precisamos chamar atenção da polícia e os fazer perceber que há


muito mais sujeira envolvida. — Pesco uma das batatas e balanço a cabeça.

— Entendi — murmuro. — Se os delitos de Jeff e Robert saírem da


jurisdição de Bolfok Town e Oroland County para serem cuidados pela sede
do Condado, então temos grandes chances de colocar os dois na cadeia.
Porque nem os melhores advogados conseguiriam ter algum tipo de
influência sobre o Departamento de Altoona.

Continuamos conversando sobre inúmeras possibilidades quanto à


incriminação de Jeff e Robert. Só precisaríamos de algum tipo de contrato ou
gravação que revele o suficiente da participação dos dois. Nevaeh diz que
Thomas não vai mexer no carro, irá guardar o Dodge na oficina até que
consiga o contato de um policial com vontade o bastante de investigar o
crime. O Departamento Policial de Bolfok atestou que a mangueira de
direção hidráulica havia sido rompida por acidente, e não cortada
propositalmente. Acredito até mesmo que Robert já tenha posto suas garras
naquela delegacia pacata.

Quandoo assunto faz minha cabeça pesar, procuramos trocar o tema da


conversa para algo mais leve. Nevaeh me conta que Josh e Hannah parecem
estar em algum tipo de relação que parece uma amizade colorida, e que a
mulher conseguirá fugir das datas comemorativas junto da família
conservadora e irá passar com uma de suas amigas da equipe de líderes de
torcida. Também fico sabendo, pelas mensagens que troco com Lewis, que
seu relacionamento com Andrew vai bem. Os dois tiveram alguns
estranhamentos pelo loiro se posicionar em minha defesa, mas que já foram
parcialmente resolvidos.

— E Jules com Maxon? — questiono, sabendo que só quero desviar o


assunto.

Mastigo o último pedaço do hambúrguer e sugo um gole do refrigerante.


— Eles estão bem, eu acho. Jules não é muito de dividir conosco e Maxon
não é tão próximo. Mas, no geral, acredito que estejam bem. — Balanço a
cabeça em concordância e suspiro.

— Às vezes, fico pensando no tamanho do estrago que fiz. Não só de


esconder minha identidade como também de aceitar ser paga para vencer
Thomas. Antes de me envolver com ele, eu já sabia que Eckhoff estava
envolvido com as dívidas dos advogados, e ainda assim, mantive o contrato.
Só fui acabar com tudo quando percebi o quão envolvida estava. — Encosto
a cabeça no apoio da poltrona. — Com uma escolha errada e uma assinatura,
consegui perder a maioria das coisas boas que tinha.

— Dominic, Andrew e Jules vão te perdoar. Eu tenho certeza que sim, só tem
que deixá-los processar tudo e esperar que a raiva dissipe um pouco. Além do
mais, você só conversou com eles enquanto estava no hospital, e mesmo que
tenha contado tudo, ainda há o que correr atrás. Acho que você ainda pode
consertar as coisas.

Uma pontada incômoda atinge meu coração, enviando comandos aos meus
dutos lacrimais. Droga, quero chorar de novo. Odeio pensar que na primeira
vez que me cerco de pessoas verdadeiramente boas, as afasto porque não
soube abrir minha boca para contar as merdas que fiz. Arrasto a mão pelo
rosto, empurrando um pouco a touca para trás e cruzo os dedos das mãos.

— Vou me desculpar individualmente com cada pessoa — pontuo, decidida.


— Vou passar por cima do meu orgulho dessa vez para tentar consertar as
coisas.

Organizo os pensamentos, de modo que decido voltar a Bolfok Town logo


depois do Ano Novo, a fim de me preparar para o reinício das aulas e
aproveitar a oportunidade de me desculpar com meus amigos. Aprendi,
durante o período da faculdade, que não quero viver sozinha. Gosto de estar
envolta de pessoas que gostam de mim e me fazem bem. É difícil aceitar o
término do relacionamento, mesmo depois de semanas, contudo ainda há
chances de ter meus amigos de volta.
— É bom que as pessoas vejam que está verdadeiramente arrependida e
pronta para assumir as consequências dos seus atos. Mentir raramente é a
melhor saída, Mack.

Inspiro e expiro calmamente, tentando abrandar o nervosismo que me assola


há semanas. E, então, uma ideia invade minha mente com rapidez. Meu
semblante ilumina, como se finalmente, eu estivesse no caminho certo.

— Acho que tive uma ideia. — Nevaeh ergue uma das sobrancelhas bem
desenhadas, induzindo que eu fale.

Logo, conto tudo a ela. Parte da aceitação quanto ao final de um ciclo vem de
algo simbólico. Independentemente da quantidade de perdão que eu peça a
Thomas ou do quanto eu me force a aceitar nosso término, apenas uma coisa
acalmaria o meu coração. Executar o plano que acabo de criar me daria a
sensação de dever cumprido, o vislumbre de que talvez eu possa consertar
pelo menos parte do estrago que fiz.

— Não sei, Mackenzie. — Minha amiga nega com a cabeça levemente. —


Acho que Thomas não aceitaria.

— Mas, eu nunca vou ter certeza se não tentar. — Dou o último gole no
refrigerante e prossigo. — Cansei de pensar em inúmeras coisas e não
executar nada. Preciso agir de algum jeito para aliviar pelo menos um pouco
desse peso na minha consciência. Se Thomas não aceitar, fica a critério dele.
Eu só darei o que é dele por direito. Apesar de ter ficado muito claro após
nossa última conversa, ainda preciso de uma despedida, de algo que
simbolize o final desse ciclo. Jamais conseguirei ficar em paz se não fizer
isso.

Nevaeh se cala, e acena para a garçonete, pedindo a conta, e eu pago nossos


lanches. Porém, antes de nos levantarmos ela chega a um veredito.

— Bom, acho que é uma boa ideia. Estou com você, Lennon.

Sorrio um pouco mais confiante, sabendo que o maior apoio que preciso já
tenho. Nevaeh Williams é, de fato, uma das melhores pessoas que já conheci
na vida.
O inverno é a estação do ano mais melancólica. Combina com tudo de
ruim que se possa pensar: mortes, enterros, crianças perdidas na neve e
términos de relacionamentos. Eu poderia listar inúmeras situações ruins que
ganham uma intensidade maior com os flocos de gelo caindo do céu e a
temperatura perto dos zero graus. Se Bolfok Town já é fria normalmente,
nesse período do ano torna-se quase insuportável.

O Natal e Ano Novo passaram exatamente como imaginei, com as minhas


lamentações no colo de Noora Eckhoff. Honestamente, ficar um tempo em
Oroland County era o que eu precisava. De certo modo, me fez bem estar um
pouco longe de tudo que traz Mackenzie à tona, as investigações do acidente,
o meu quarto com nossas fotos no mural, seu alojamento e o Campus. Todos
os meus amigos usaram as datas festivas para visitar suas respectivas
famílias, com exceção de Dominic, que foi enfrentar o irreverente pastor
Williams. E pelo que fiquei sabendo através de suas mensagens desesperadas,
até que deu tudo certo. Eles não estão de data de casório marcado e nem nada
do tipo, o que já é uma vitória.

— Thomas, o aquecedor não está funcionando direito. — Dominic profere


enquanto invade meu quarto, usando um casaco típico de um inverno no Polo
Norte.

Encaro as cortinas fechadas e me ajeito melhor embaixo do edredom. Não


tenho um minuto sequer de paz nessa casa.

— E por que você e Andrew não podem resolver isso? — solto um suspiro
cansado.

— Porque você é quem sabe o telefone do moço que conserta e, vamos


combinar, você cuida dessa casa muito melhor que eu ou Andrew.

Cerro os olhos em sua direção e afasto o cobertor. Dominic não vale nada. É
tão confortável para eles ter alguém que resolva tudo em relação à casa, pois
sou como o administrador desse lugar. Caminho até a gaveta da escrivaninha
e capturo um pequeno caderno com os números de telefone mais úteis,
entregando a Dom.

— Terceira página— Iindico a agenda com um aceno de cabeça. — O nome


da empresa que conserta é Billie' Service. Ligue você ou Andrew e resolvam
isso, tenho mais o que fazer.

— Como o quê? Enfiar seu pai atrás das grades? Desencana um pouco disso,
cara. Você está colocando o comando da oficina nas mãos do Luke,
sobrecarregando o cara. E está cagando para a faculdade, anulando outras
partes da sua vida por causa disso. — Dominic pousa a mão em um dos meus
ombros, impedindo que eu continue a andar. — Hoje você tem aula, não se
esqueça. E lembre-se que falta só um pouco mais de seis meses para a
formatura.

— Dominic — retiro sua mão de meu ombro calmamente. — Pode relaxar,


irmão. Eu tenho tudo sob controle.

— Não, você não tem! — me assusto um pouco com seu tom de voz elevado.
— Caralho, você está há semanas obcecado em descobrir alguma prova que
incrimine seu pai e está fingindo que o resto da sua vida não existe. Andrew e
eu não vamos te assistir fugir da terapia e dos sentimentos que querem
transbordar. Está até mesmo ignorando o fato de que terminou com
Mackenzie.

Dominic tem um pouco de razão. Quando descobri que meu pai teve
envolvimento no acidente, tornou-se questão de honra achar algo que o
incrimine. Fiquei tão absorto nessa procura que faltei as últimas sessões da
terapia e não tive muito tempo de pensar no meu coração partido. O que meu
amigo não sabe é que não ignorei meu término com Lennon, pelo contrário,
tive tempo o bastante para chorar e me martirizar no período que fiquei em
casa.

Eu me pergunto, até hoje, se fiz a escolha certa. Então, assim que penso no
quanto tenho dificuldade de acreditar em algo que ela diga e nos pensamentos
de autossabotagem, me recordo de que é melhor assim. Não há
relacionamento sem confiança, e para reconstruir qualquer coisa entre nós,
precisamos de tempo. Porque há coisas que só o tempo pode curar.
Principalmente, a mágoa que ainda cisma em se esgueirar para o coração.
Logo, os pensamentos ruins invadem a mente, relembrando o quanto fui
alienado, os momentos em que ignorei os sinais, e todas as outras situações
onde Mackenzie poderia ter contado a verdade, mas preferiu omitir. O
término é nossa melhor opção, porque antes de cogitar a possibilidade de
reatarmos, eu preciso perdoá-la, e ela tem que perdoar a si própria.

— Eu vou voltar à terapia nessa semana e vou para a aula hoje, e logo depois
para a oficina. — Dominic não parece nada satisfeito, visto que se limita a
acenar em concordância, portando uma carranca.

Ele gira sob os calcanhares e parece reprimir algo, porque abre a boca para
falar e logo depois desiste, fechando-a. Dom inspeciona o lugar com um
olhar repreendedor e deixa o cômodo. Perscruto o local, entendendo sua
estranheza. Sou cismado com limpeza, e neste momento, meu quarto cheira a
suor, e vejo bagunça para todo o lado. Resultado das semanas em que passei
forae da minha falta de vontade de fazer qualquer coisa que não fosse caçar
provas contra meu pai. Preciso mudar isso o mais cedo possível.

Conecto meu celular nas caixas de som, mudando de playlist assim que vejo
a que fiz com Mackenzie. Quero esquecê-la pelo menos por alguns minutos.
Uma música qualquer da Dua Lipa irrompe alta pelos alto falantes e dou
início à arrumação do quarto. Coloco as roupas sujas no cesto, aspiro o chão,
tiro a poeira dos móveis, passando pano úmido nas dobradiças e organizo
tudo o que está fora do lugar. Ao terminar, me dou conta de que me atrasarei
um pouco para as aulas, contudo, a satisfação ainda ronda meu âmago pelo
alívio de dormir em um lugar organizado, que cheira a limpeza.

Saio da aula da Senhora Harris com o cérebro entrando em combustão.


Sempre ouvi que o último período é um dos mais tranquilos porque sobram
poucas matérias para fazer, dependendo de como sua grade foi montada ao
longo do curso. No entanto, as aulas tornam-se ainda mais cansativas e
parecem exigir mais de mim a cada dia. A Bolfok College tem um programa
de conclusão de curso um pouco diferente, cobrando um seminário dividido
em grupos de três ou quatro integrantes. Cada grupo precisa se dividir na
organização da apresentação aprofundada sobre o tema escolhido, e todos,
sem exceções, devem participar integralmente. O que significa que não
conseguirei fugir da pauta falar em público.

A intenção de definir o Trabalho de Conclusão de Curso como um seminário


em grupo é analisar como interagimos, trabalhando em grupo e vivendo em
sociedade. Analisam nossa oratória, poder de comunicação, conhecimento
sobre o tema e aprofundamento do assunto. O tema de cada grupo sai hoje,
assim como as divisões. Os coordenadores de cada curso escolhem a dedo
cada grupo, para não haver riscos de amigos fazerem entre si, facilitando
assim, a conexão entre os integrantes.

Embora meu último período ainda não tenha começado, é comum que a
diretoria lance os temas e grupos com antecedência para começarmos os
preparativos. Faltam poucas semanas até queeu comece, de fato, os últimos
seis meses de curso. E essa porra sempre me causa um frio na barriga.

Arrasto os pés pelo piso bem encerado do corredor da faculdade, andando a


passos vacilantes até o mural com o painel que expõe cada grupo e seus
respectivos temas. Farei o trabalho com um tal de Brandt e Rebecca. O
objetivo de impedir que amigos fizessem entre si acaba dando certo, pois não
conheço nenhum dos dois. Ao checar o tema, uma vontade repentina de
chorar e desistir de tudo me invade. Abordaremos sobre “A avaliação
química e ambiental de compostos asfálticos rejuvenescidos”, e tema pior que
esse não há.

Transporto o olhar até a letra N, tentando achar o grupo que Nevaeh fará
parte, e a encontro ao ladotambém de dois desconhecidos, porém seu tema
sobre metanfetamina me parece muito mais interessante. Sinto uma batida
reconfortante no ombro e vejo a figura imponente da mulher, que hoje tem
trancinhas box braids adornando sua cabeça.

— Faça esse trabalho pensando que será o último e tudo dará certo. —
Nevaeh abre um sorriso grande, os dentes brancos contrastando com a pele
escura. — Seu tema é uma merda.

— Está gozando da minha desgraça? — Aponto para o sorriso aberto em seu


rosto, e ela solta uma risada alta.

— Desculpa, é que seu azar chega a ser engraçado. Seu grupo realmente
ficou com o pior tema.

Reviro os olhos com desgosto.

— Já parou para pensar que talvez o azarado não seja eu, e sim um dos outros
integrantes?! — Nev abana a mão em um gesto casual, antes de prosseguir.

— Dado os últimos acontecimentos na sua vida, aposto uma boa grana que o
azarado é você.

Contorço as feições ao mesmo tempo em que me pergunto que tipo de castigo


estou pagando a essa altura. Se analisarmos os últimos acontecimentos, fica
visível o quanto tenho tomado só porrada da vida.

— Tem razão. Aliás, amei o cabelo. — Nevaeh agradece e diz que sempre
tem razão, mas logo se despede, enfatizando ter algo importante marcado
com Dominic.
Tomar conhecimento de que os dois estão tentando de novo, organizando
suas diferenças de modo que elas não atrapalhem tanto o relacionamento, tem
sido as únicas faíscas de alegria ultimamente. Gosto de observá-los tendo a
certeza de que mais um casal sobreviverá ao período de tempestades. O que
me leva a reafirmar a ideia de que sou, realmente, azarado. Porque além de
Dom e Nev, Lewis e Andrew parecem estar muito bem juntos assim como
Jules e Maxon. Apenas Hannah e Josh que são vistos se beijando pelos
cantos, porém não assumem nada. Ou seja, as coisas só dão errado para mim.
Que ótimo dia para ser eu.

Interrompo os devaneios assim que minhas botas de combate afundam na


espessura da neve. Observo as árvores com pouca folhagem, infestadas de
orvalho nas folhas que restam. Há gelo para todo lado, acumulado nos vidros
dos carros, nas soleiras das portas, nos telhados e nos arbustos. A brancura
chega a doer as vistas um pouco. Avisto o Eagle Speedster com neve
acumulada no vidro dianteiro e suspiro, sabendo que terei trabalho em dobro
antes de sair.

Ajeito a touca sobre a cabeça e ergo o capuz do moletom para cobrir as


orelhas do vento gélido, por cima, ainda uso outro casaco mais grosso. Enfio
as mãos enluvadas nos bolsos da parca e caminho a passos rápidos até meu
carro. Adentro o veículo esfregando as palmas a fim de dissipar um pouco do
frio, me acomodo e ligo o aquecedor enquanto aciono os para-brisas — que
dispersam o acúmulo de neve do vidro dianteiro. Antes que eu possa sequer
reagir, uma figura alta e corpulenta invade o Eagle Speedster.

— Que porra é essa? — Me afasto o máximo que posso do estranho até


perceber que se trata de John. — Quer me matar de susto?

— Está frio demais para perder tempo anunciando minha entrada dando leves
toques na sua janela. — Seu tom de voz escorre ironia como habitualmente.

Me desfaço das luvas, guardando-as no porta-copos e pouso as mãos no


volante. Recosto no encosto do banco e suspiro, aguardando seja lá o que
John quer.
— Tenho duas notícias, uma boa e outra ruim. Qual você quer primeiro? —
Fito-o com o cenho franzido, sabendo que não é do feitio dele fazer algum
tipo de cerimônia para contar algo.

— Fala logo, Lion.

Assisto John arrastar o dedo indicador pela falha na sobrancelha em um gesto


calmo e contido.

— Tem um novo policial na área, acabou de ser transferido para o


Departamento daqui. A notícia boa está relacionada a isso, já que pode ser
nossa jogada de sorte. Um cara novo sedento para colocar alguém importante
atrás das grades em um de seus primeiros casos, e há alguma chance de ele
não ser tão corrupto quanto os policiais veteranos de Bolfok — penso um
pouco na nova informação que chega ao meu cérebro e mal posso evitar a
sombra de um sorriso.

Essa notícia é, de fato, um sopro de esperança em meio a escuridão. Estamos


andando em círculo há tanto tempo que saber dessa informação nos traz a
chance de resolver esse caso de uma vez por todas.

— Qual a ruim?

— Ah. — John esfrega a têmpora, parecendo um tanto desconcertado. —


Tive a percepção esses dias de que se fodermos Jeff, eu vou junto. O cara
trabalha comigo, e basta um pouco de atenção de um policial íntegro, que
todo o esquema da gangue cai por terra. Jeff seria preso, porém eu também.

Expiro todo o ar que estava acumulando, esvaziando a caixa torácica. É


cansativo porque ao mesmo tempo em que parecemos avançar uma casa,
acabamos regredindo umas três. John atrás das grades não seria má ideia, e
sim apenas uma consequência de suas escolhas, isto é, o fruto que ele
receberia por se envolver com tráfico de drogas para jovens adultos cansados
da faculdade, as lavagens de dinheiro e os esquemas que acontecem por trás
da oficina. Ele é tão criminoso quanto Jeff, embora eu não tenha certeza se já
tentou matar alguém.
— Eu construí um império, Eckhoff — John prossegue, alheio aos meus
pensamentos. — Não vou deixar tudo ruir por causa de Jeff. Ou da sua gata
traidora.

Um silêncio assenta o carro, dispensando o barulho do para-brisas que


espanta os últimos resquícios de neve. Continuo com o olhar firme no
horizonte, observando o asfalto úmido e escorregadio. Embora John esteja
me ajudando nas investigações por ter os mesmos objetivos que eu, agora há
um novo obstáculo: ambos sabemos que sua maior vontade no momento é
cair fora.

O pequeno momento é interrompido assim que eu avisto a figura conhecida


que acaba de sair do seu Cadillac rosa no outro lado do estacionamento.
Mackenzie tem um gorro branco cobrindo os cabelos castanhos com ondas na
ponta, veste um sobretudo caramelo com um cachecol de tecido parecido
com o que cobre sua cabeça, e por fim, suas botasmarrons afundam na neve.
E apesar de que esteja um tanto difícil caminhar de salto, ela ainda se mostra
incrivelmente elegante. É impossível despregar os olhos de seu corpo esguio
completamente encasacado. A mulher agarra a alça de sua grande bolsa
enquanto caminha a passos largos até a entrada do prédio de Direito.

Uma pontada forte atinge meu coração e se espalha pelo corpo, como se
estivesse impregnado na corrente sanguínea. Odeio essa sensação de que
nunca mais irei sentir seu perfume doce e cítrico, ao mesmo tempo em que
jamais voltarei a deslizar os dedos sobre sua pele macia ou encostar meus
lábios nos seus. Essa porra de sentimento que não vai embora nunca. Mesmo
com todas as omissões e mentiras, o amorpor ela ainda está aqui, vivo como
nunca, tão aceso quanto uma fogueira com labaredas crepitantes. A saudade
comprime meu peito com uma força absurda. Porque quero rir com ela mais
uma vez, ouvir suas provocações e alfinetadas, descansar o rosto na curva do
seu pescoço e apertar seu corpo contra o meu. Sinto tanta falta de seu olhar
derramando luxúria e do sorriso malicioso. E, diante de tudo isso, me
pergunto se algum dia essa porra vai passar.

— Acorda, otário. — John estala os dedos na minha frente, me acordando


dos devaneios.
Procuro Mackenzie com os olhos novamente, mas ela já sumiu para dentro do
prédio.

— Você falou algo de importante, Lion? — Escovo os fios que caem sobre a
testa, e faço uma anotação mental de que preciso cortar o cabelo.

— Eu disse que não vou cair fora, ao contrário do que está pensando. —
Abro um pouco a boca, com a surpresa pairando em cada canto do meu
semblante.

— E todo o papo sobre destruir o império que construiu? — Entorto um


pouco o corpo, encarando John nos olhos.

— Quero achar algo que incrimine seu pai sem ter ligações com Jeff. Deixe
que com ele eu me resolvo.

— Está me pedindo para livrar Jeff? — Uma risada de escárnio escapa por
entre meus lábios e o observo com desdém. — Sem chances.

— Não vou deixá-lo sair impune. Farei comque pague pelo que fez — nego
avidamente com a cabeça.

— Não é seu papel, John. Você não é da polícia ou justiça, muito menos o
Deadpool. Deixe de ser tolo, não vou permitir que faça papel de justiceiro.

Ouço sua risada alta, ocupando todo o veículo.

— Você é muito careta, Eckhoff. Não tente se meter em como as coisas


funcionam nos meus negócios só porque te dei algum tipo de abertura. Fica
na sua. — Ele ressalta, parecendo um tanto exaltado.

Aperto os olhos para ele, e a indignação cresce dentro de mim.

— Então, não seja hipócrita, porra. Se você resolve as coisas do seu jeito, por
qual motivo não meteu uma bala na cabeça do meu pai e acabou com isso?
Quer envolver a polícia por quê? — Aumento consideravelmente o tom de
voz, e John empertiga a postura.
— Porque não é a morte que seu pai merece, Eckhoff. Sinto lhe dizer, mas o
que ele precisa é estar em uma penitenciária estadual sem luxo ou regalias,
encarando todos os dias o uniforme horroroso e se alimentando só com o que
é necessário. Deixando que os outros decidam que horas ele pode tomar sol,
executando trabalho braçal. Acredite, eu já estive lá, e não desejo aquilo para
ninguém. — John inspira, inflando as bochechas de ar e expira. — Mas é o
que seu pai merece por tudo o que já aprontou.

— Já esteve preso? — Estudo-o sobressaltado pelo susto.

— É sério que de tudo o que eu falei essa foi a única informação que
captou?! — John nega com a cabeça enquanto ri baixo. — Por isso que
Lennon te enganou por tanto tempo, você só escuta o que quer.

Ignoro sua alfinetada e contorço as feições em desagrado. Expando as narinas


ao inspirar o ar quente proveniente do aquecedor, porém antes que eu possa
abrir a boca para falar, John se adianta.

— Eu só quero que você faça a sua parte achando alguma ligação do seu pai
com o acidente, e, por favor, deixe o resto comigo. — Ouço sua sugestão,
tombando a cabeça no encosto do banco e pensando por uns minutos.

Embora meu pai provavelmente tenha arquitetado todo o plano da sabotagem,


quem executou foi Jeff. Porque ele é o único que teria passe livre ao carro de
Mackenzie na oficina dos Lions, então, assim como Robert, o membro da
gangue não merece ficar impune.

— O que vai fazer com Jeff? — Afasto uma pele do canto das unhas,
soltando o ar em um gruído de dor.

— Não é da sua conta — John se prepara para sair do carro, desistindo da


conversa. Contudo, agarro seu bíceps, impedindo que saia.

Cruzo os braços na altura do peito, e mantenho as vistas em John, aguardando


pacientemente o momento em que ele decidirá falar. Pressiono o dedão com o
indicador, a fim de minimizar a dor da pele arrancada.
— Não vou matá-lo, se é isso que te aflige — bufo irritado com a sua
resistência em me contar o que pensa em fazer como retaliação. — Apenas
vou expulsá-lo dos Lions depois de uma surra bem dada, ou quem sabe, um
tiro inofensivo no abdômen.

Não posso evitar arregalar os olhos ao ouvi-lo. Independentemente do quanto


conheço John, ele prossegue não sendo muito confiável. Até porque não é
muito prudente da minha parte ser aliado de um cara que carrega uma glock
na cintura. É como fazer um acordo com o diabo. Abaixo a vista para sua
cintura, onde sua arma está guardada e sinto algumas gotículas de suor
acumularem nas palmas das mãos. Droga, realmente não estou acostumado a
lidar com criminosos de verdade.

— Não precisa fazer essa cara de garotinho assustado, Eckhoff. Não é como
se eu fosse empunhar a arma e acertar seu olho esquerdo com um tiro do dia
para a noite. Eu já teria feito, se quisesse.

— Muito tranquilizante, Lion. Mesmo. — John vê muita graça em minhas


palavras porque desata a rir.

O homem parece achar que uma pessoa com medo se assemelha a um show
de comédia. Não vejo motivos para risada, por isso mantenho a postura ereta
e a carranca em meu rosto.

Quer saber? Que se foda.

— O alvo nisso aqui é Robert. Quero ver meu pai atrás das grades, não só
pelo que fez com Mackenzie, e sim pelas pessoas que livrarei de suas garras,
prendendo-o. Faça o que quiser com Jeff, ele é problema seu agora.

Sei que é justamente isso que John queria desde o início. Estou, nesse exato
momento, satisfazendo seu maior desejo. Deixando sua gangue e o seu
pessoal impune. Mas, contanto que meu pai receba o fim que merece, eu não
poderia me importar menos com o resto. Só quero que esse inferno acabe
logo.
— Bom garoto. — John dá três batidas leves no meu ombro, e eu me afasto
consideravelmente. — Tá esperando o quê? Dirija, ora.

— Para onde? — Franzo o cenho e analiso o semblante de impaciência no


rosto do Lion.

— Para a delegacia, merda. Vamos plantar logo a sementinha na cabeça do


novo policial e esperar que ele visite sua oficina, como quem não quer nada,
atrás do Dodge sabotado.

Balanço a cabeça em concordância, e giro a chave na ignição.

— Não acha que é muita exposição ir até a delegacia? — Olho para John,
esperando uma resposta, ao passo que tiro o carro do ponto morto.

— Vamos até lá, mas falaremos com ele na cafeteria que tem perto. Estou
vigiando-o há alguns dias, e o cara sempre está lá perto desse horário. —
Admiro a competência de John, que parece muito à frente de mim.

— Está mesmo empenhado nisso.

— Quando você vem com os limões, já estou com a limonada pronta —


reviro os olhos e prego os lábios, para evitar rir de algo vindo de John Lion.

O ponto de encontro da maioria dos policiais não me parece muito digno de


receber nenhum cliente. A cafeteria tem o letreiro caído de um lado, com uma
das lâmpadas das letras piscando furiosamente, prestes a queimar. O
ambiente cheira a gordura reutilizada misturado com café, assim como as
garçonetes parecem cansadas demais para executar qualquer trabalho. Esse é
um lado de Bolfok Town que ninguém gosta muito, o bairro Viscount,
abandonado pela população que não frequenta muitos lugares como
delegacias e cartórios. Esse era para ser o centro da cidade, que foi ofuscado
com a ascensão do Campus da Bolfok College.
Analiso as mesas entre as poltronas acolchoadas e posso ver a camada
brilhosa e nojenta que as cobre, herança dos produtos de limpeza de má
qualidade que o dono provavelmente obriga que usem. Arrasto os coturnos
pelo chão, demorando a despregar os pés do piso devido a gordura.

— Esse lugar é o terror da vigilância sanitária — John murmura com as


feições contorcidas de nojo.

Franzo o nariz e concordo com a cabeça. O Lion avista a figura mediana do


policial, um homem caucasiano, com uma falha bastante perceptível nos
cabelos ruivos. À medida que chegamos mais perto, consigo enxergar as
sardas que cobrem seu nariz e as bochechas, bem como os olhos escuros e as
linhas de expressão — que ficam mais evidentes quando ele contorce o
semblante ao beber o café de caráter muito duvidoso.

— Eu não o aconselho a tomar esse café — inicio o diálogo, me sentando na


banqueta ao seu lado ao passo que John ocupa a do outro.

— Deve ser feito com água contaminada. — John completa, analisando o


conteúdo da caneca.

— Quem são vocês? — O policial pousa a mão, não tão discretamente, sobre
o volume da arma que está guardada na cintura.

— Sou John e esse é o meu amigo Thomas. — Faço uma careta para a
palavra amigo, que definitivamente não define nossa relação de comum
interesse. — Ficamos sabendo que é novo na cidade e no Departamento, e
viemos dar as boas-vindas.

Prego os lábios, tentando avidamente não rir pela péssima abordagem de


John. O policial nos encara, com um sulco notável entre as sobrancelhas,
possivelmente muito desconfiado de nós dois. Retiro o casaco grosso que me
cobre, ficando apenas com o moletom estampando o brasão da faculdade, em
uma tentativa de deixar o homem mais confortável com a nossa presença.
Assim que ele me analisa, e parece chegar à conclusão que sou meramente
inofensivo, relaxa a postura.
— Sou o Detetive Blake. — Meus olhos voam até John, com um brilho de
alegria pela posição alta no Departamento. — E realmente, esse café é
péssimo.

Soltamos uma risada em uníssono, e iniciamos um assunto ameno sobre


Bolfok Town antes de abordar o assunto mais importante.

— Soube que aqui tem rachas em todas as vésperas de final de semana —


encaro John, sabendo que essa é a deixa perfeita para chegarmos ao ponto
que queremos.

— Sim, as corridas são meio que legalizadas por aqui — explico,


gesticulando um pouco. — É um dos poucos entretenimentos da cidade.

— Você ficaria espantado se soubesse de tudo por trás dessa legalização. —


O detetive deixa no ar, me induzindo a prosseguir.

— Imagino que tenha muita propina envolvida.

— No mínimo. — John completa.

O policial beberica o café, e logo depois reproduz uma careta insatisfeita.

— É por isso que quis a transferência. — Ele começa, capturando nossa


atenção. — Há algumas coisas erradas em Bolfok Town.

— As corridas são o pior, eu imagino. — Deixo os ombros caírem para


parecer frustrado. — Eu competia para ganhar um dinheiro a mais, que
pagaria umas dívidas importantes da minha oficina, mas parei quando quase
perdi a minha mulher.

Isso parece acordar o bicho da curiosidade do detetive, porque ele arrasta a


caneca, afastando-a de si, e empertiga a postura.

— Como assim quase a perdeu? — disfarço a ameaça do sorriso e começo a


contá-lo parte da história.
Floreio um pouco algumas partes, explicando o quanto nos apaixonamos,
abusando das palavras bonitas. Dessa forma, passo para a parte um tanto mais
sombria da história: a que minha namorada, na verdade, é a mulher dos
rachas e do quanto me senti traído, até o acidente. Enfatizo o quão estranho
foi o carro dela capotar na primeira curva, em uma manobra que estamos
mais do que acostumados a executar.

— Acha que sabotaram ela? — Contraio os dedos dos pés em excitação, por
estar cada vez mais perto de onde queremos chegar.

— Sim. — John pigarreia. — A polícia estava prestes a arquivar o caso,


dando como acidente. Porém, deixaram que Thomas avaliasse o carro depois
e a mangueira de direção hidráulica estava cortada. E não parecia nada com
um defeito.

— O que disseram sobre a mangueira? — O policial adota uma postura mais


altiva, enquanto inclina o corpo para frente.

— Que estava rompida acidentalmente, e que não havia sinais de sabotagem


— profiro com o tom de voz escorrendo frustração.

— Sem nem ao menos mandar a uma perícia?! — O detetive Blake solta uma
risada amarga. — O Departamento Policial daqui é mesmo uma piada.

Concordo com um aceno de cabeça, adotando um semblante pesaroso.


Encaro John de esguelha, e o vejo virar o rosto para o outro lado a fim de
esconder os lábios erguidos em um sorriso.

— Sabe, o Dodge já foi descartado ou ainda está na sua oficina? — Contenho


a vontade que me invade de gritar em comemoração.

— Chad tem um amigo policial que convenceu o chefe da operação a deixar


o carro comigo por um tempo. Então, ainda estou com ele.

— Ótimo. — O detetive abre um sorriso contido. — Há algo de interessante


nesse caso, me diga quando poderei ver o carro.
— Estamos abertos todos os dias em horário comercial. — Pesco o celular do
bolso de trás da calça. — Mas você pode ficar com meu número e me ligar a
hora que quiser para vê-lo.

O policial aceita de bom grado porque anota meu número em seu celular e
promete ligar no fim de seu expediente hoje. Ele ainda completa dizendo que,
por mais que a pessoa não tenha deixado muitos rastros, fará de tudo para
esmiuçar esse novelo de lã que se formou em volta das corridas. Isso me
deixa com uma pequena sensação de nostalgia, por saber, no fundo, que há
uma possibilidade grande desse detetive acabar com o esquema dos rachas e
torná-lo proibido. No entanto, um peso já abandona meus ombros.

As corridas, clandestinas ou não, já deram o que tinham que dar.


O final de janeiro é sempre marcado pela presença maior do sol na
cidade, cortando a neblina espessa. Hoje, a grande bola brilhante molda os
contornos dos vales que cercam Bolfok Town. Os tons amarelados e
alaranjados se misturam, sombreando os galhos ainda secos pela estação
atual. É o meu primeiro inverno aqui, após presenciá-lo em tantos outros
lugares como Paris, Londres, Nova Iorque e a própria Dilshad. Porém, agora
tenho propriedade para dizer que esse lugar é o mais frio que já estive nesta
época do ano.

A temperatura decai alguns graus consideráveis, atingindo abaixo do zero. É


necessário utilizar roupas térmicas e muito protetor labial, para que os lábios
não ressequem ao ponto de craquelar. No entanto, com fevereiro quase
chegando, as pessoas já começam a mudar o lado da calçada para aproveitar
um pouco do sol mais forte que ilumina a cidade. Mesmo que o vento gélido
ainda nos castigue um pouco.

Respiro fundo atrás do volante do Cadillac, acariciando-o levemente. Minha


psicóloga diz que é um grande avanço eu já ter segurança o suficiente para
dirigir, ficando um tanto feliz ao saber que o acidente não fez mais estragos
em mim do que no Dodge Charger. Honestamente, jamais poderia deixar de
comandar a direção de um carro, pois é o momento em que sinto as
terminações nervosas acalmarem, me relaxando por completo. Gosto tanto da
adrenalina das corridas quanto da calmaria das baixas velocidades.

Saio do Cadillac, enfrentando o vento frio da tarde e enfiando as mãos nos


bolsos do casaco pesado. Analiso a casa grande, no bairro mais próximo do
que um subúrbio parece lotada de residências grandes o bastante para abrigar
famílias de classe média. Sapateio os pés no tapete da soleira, arrastando-os
para fazer atrito com o plástico do objeto, a fim de tirar os resquícios de neve
dos solados. Então, afundo o dedo no botão da campainha e aguardo.

A figura de Dominic vai tomando forma à medida que a porta abre, e respiro
aliviada por não dar de cara com Thomas. Sua pele parece mais pálida que o
normal e ele veste calça de moletom e blusa simples de algodão, ambas
pretas. Os cabelos caem despretensiosamente na testa, quase tampando os
olhos arregalados, provavelmente surpreso com a minha presença.

— Sei que está chateado comigo e, de verdade, não posso culpá-lo. Errei
tendo escondido tudo de vocês e ainda mais o fato de ter recebido para
ganhar de Thomas — cruzo os dedos das mãos em um gesto de nervosismo.

— Então, o que faz aqui? — Respiro fundo, nenhum pouco surpresa com a
pergunta.

— Eu posso entrar? Está bem frio aqui fora.

Dominic parece se dar conta de que estamos estáticos na soleira da casa, e dá


espaço para que eu entre. O ambiente é como uma avalanche de memórias,
que invade minha mente sem permissão, me recordando de como era passear
por entre esses cômodos vestindo uma blusa aleatória de Thomas, dançando
no meio dessa cozinha, o ajudando a arrumar as prateleiras de discos de Dom,
vendo um filme nesse sofá e descendo essas escadas com Eckhoff em meu
encalço, interrompendo meus passos apenas para selar minha boca com um
beijo. Eu estava bem e, em um instante, as memórias me deixam triste.

No último mês tenho vivido assim, com altas oscilações de humor, embora
esteja completamente recuperada das sequelas do Traumatismo. Uma hora
posso estar rindo, mas é só uma lembrança de tudo que perdi vir à mente que
os dutos lacrimais começam a doer. Inspiro e expiro profundamente, tentando
regular a respiração e não cair no choro.

Estou empenhada nessa ideia de pedir perdão a todos que machuquei, e por
mais que minhas palavras não valham muita coisa para eles, ainda são
sinceras. Consegui me resolver com Josh e Hannah com facilidade, e o
sermão até que não foi muito grande. Já Lewis passou algumas horas
defendendo as escolhas de seu irmão quanto a escolher não me perdoar. No
entanto, o Johnson já estava me abraçando no final da conversa. Com Jules as
coisas foram um pouco piores, e ela fez questão de relembrar que sou
mentirosa e traidora. O que não deixa de ser verdade. Contudo, após ouvir
toda a minha história e as minhas motivações, disse que poderíamos tentar
reconstruir o que acabou ruindo com a desconfiança.

A decisão de deixar Dominic e Andrew por último foi impulsionada pelo


medo, porque, de todo o modo, os dois estão totalmente do lado de Thomas.
O moreno interrompe meus devaneios, perguntando se desejo algo para
comer ou beber, e assim que nego, ele me conduz até o sofá para
conversarmos.

— Andrew está em casa hoje também? — Dom concorda em um aceno de


cabeça e aponta para o andar de cima. — Podemos chamá-lo?

— Podemos conversar a sós antes? — Assinto, entrelaçando os dedos das


mãos sobre o colo.

— Eu... Me desculpe — pigarreio. — Não sei se Thomas te contou a história


toda e...

Dominic ergue a mão, pedindo que eu pare de falar.

— Não precisa ficar nervosa para falar comigo, ou com medo, ok? —
Balanço a cabeça, concordando. — Thomas me contou que você fez um
acordo com o pai dele, sem saber, porque o tempo todo lidou apenas com
John. A cada corrida que ganhasse receberia o triplo do valor das apostas. Ele
também enfatizou que você quebrou o acordo antes que se envolvessem de
forma mais intensa.

A quietude invade a sala de estar, encrostando o silêncio no cômodo senão


fosse pelo barulho das folhas das árvores se chocando uma à outra pelo
vento.

— Eu sei dos motivos pelo qual você começou a correr, e sinceramente,


competir nunca foi o problema em pauta. Acredite, Nevaeh é uma boa
advogada ao seu favor. — Solto uma risada branda, pensando no quanto
minha amiga deve ter tomado meu partido. — Eu só quero saber por que
mentiu por tanto tempo.

— Eu achava que no momento em que contasse, estragaria tudo com todos


vocês, e nunca tive nenhuma amizade como essas. Na verdade, me senti
sozinha por tanto tempo que nunca pensei que um dia poderia encontrar
pessoas como vocês, que me acolheram tão bem.

— E ainda assim você estragou tudo com essas pessoas. Te conhecendo aos
poucos, foi ficando fácil entender os momentos em que você nos repelia no
início de tudo. Era porque tinha medo de deixar a gente entrar no seu coração
e se decepcionar, mas não entendo. Você teve tantas chances de dizer a
verdade.

— Eu sei — suspiro. — E posso te jurar, embora você não acredite, que


aquela era minha última corrida e depois eu contaria tudo a todos vocês.
Pensei que tinha tudo sob controle.

— Esse é o problema do mentiroso, ele sempre acha que tem tudo sob
controle. Mas, veja só, você derrapou na curva mais fácil da corrida e
capotou. Foi desesperador ver seu carro girar no ar três vezes e cair de ponta
cabeça. Na hora, Nevaeh quase desmaiou pensando que tinha morrido. A
expressão no rosto de Thomas era angustiante. Achamos que tínhamos
perdido você. — Dominic faz uma pausa, inflando as bochechas com ar. — E
foi um caos. Me dói muito pensar que tudo poderia ser diferente se você
tivesse contado a verdade. Poderia até mesmo transferir seu carro para a
oficina de Thomas e talvez ele nem fosse sabotado.
— Dominic, eu fiquei semanas, quase meses, remoendo tudo isso. Acredite,
cada palavra que está me dizendo, eu ouvi da boca de Nevaeh e dos nossos
outros amigos. E acho que através de palavras, nunca vou conseguir mensurar
o quanto me culpo por isso, e o quanto isso me faz mal. Sei que errei e
estraguei tudo, com todos vocês. — Minhas têmporas doem um pouco, e sei
que estou liberando gradativamente as lágrimas. — Eu sinto muito, de
verdade. Vim fazer isso mesmo, te pedir perdão, e perguntar se tem alguma
chance de tentarmos reconstruir nossa amizade.

Dominic bagunça meus cabelos de leve, com a sombra de um sorriso no


rosto.

— Eu menti para Nevaeh, lembra? — Dominic contrai as feições enquanto


relembra. Aceno em concordância, sentindo um calafrio se alastrar pelo corpo
ao pensar nesse assunto. — Aquilo quase acabou conosco por completo. Mas,
também me fez entender que precisava de ajuda. Foi o que me motivou a
procurar o Departamento de Psicologia. O que quero dizer é que esse é seu
primeiro erro grande com a gente, e apesar de ter feito um estrago imenso,
todos merecem o benefício da dúvida. E eu jamais viraria as costas para você
no seu primeiro erro, porque não foi o que fez comigo. Pelo contrário, me
acolheu e pediu que eu nunca mais mentisse. Embora você estivesse
mentindo naquele momento. Que ironia.

A vida é mesmo uma safada, penso. Toda vez que relembro do buraco
gigante que causei com essas mentiras e omissões, sinto vontade de bater
com a cabeça na parede algumas vezes. Só para ver se chacoalho meu cérebro
e o coloco no lugar.

— Eu vim com essa promessa — pontuo, decidida. — Sei que só o tempo vai
ser capaz de levar embora o resto da mágoa que sente por mim, e só ele
poderá restaurar os cacos da desconfiança. Mas, eu prometo não mentir e
mostrar através das minhas atitudes que estou disposta a reparar esse erro, e
não o cometer nunca mais.

Dominic abre os braços e me convida para um abraço. Ele diz que, com o
tempo, voltaremos ao normal. Ficamos mais alguns minutos nos atualizando
das coisas que acontecem em nossas vidas e peço que ele me leve até
Andrew. Apesar de que eu saiba o caminho, não me sinto mais digna de
caminhar por esse lugar com a propriedade de antes.

Subimos as escadas conversando amenidades, e eu o conto que minhas festas


de fim de ano não foram nada além do normal. Contudo, é inevitável afirmar
que o clima esteve muito melhor. Além do sermão que recebi de tia Lindsay
por videochamada, já que seu trabalho na Itália não a liberou para vir até nós,
a relação com meus pais melhorou consideravelmente. Passamos o Natal e o
Ano Novo tentando esquecer um pouco do caos que vivenciamos, e me
permiti até rir um pouco do jeito nada sutil de Lidia.

Assim que passamos pelo quarto de Thomas, estagno os passos, ficando


estática em frente à porta branca. Encaro a maçaneta dourada, e a nostalgia se
embrenha pelo meu corpo, trazendo mais e mais lembranças. Me pergunto se
ele está aqui, se está passando pelo pós-término de um jeito melhor que eu,
ou se está ainda pior. As indagações são interrompidas pela voz de Dominic
soando no corredor silencioso.

— Ele não está em casa. — Parecendo adivinhar meus receios, Dom sana
parte das minhas dúvidas. — E ele está bem, na medida do possível.

Suspiro aliviada, me sentindo um pouco melhor por ele estar bem. O que
mais traz as angústias à noite é pensar que eu possa ter destruído o coração de
uma pessoa tão boa, tão incrível. Thomas não é perfeito, assim como
qualquer pessoa. Mas, era perfeito para mim.

Balanço a cabeça, tentando desanuviar os pensamentos e continuo


caminhando até o quarto de Andrew. Bato levemente na porta, aguardando-o.

Ele não demora a abrir, revelando seu corpo alto e musculoso na proporção
certa. Andrew veste uma camisa branca de algodão e calça de moletom cinza,
realçando sua pele escura coberta de tatuagens. Os cabelos parecem estar
ainda meio molhados pelo banho, e os olhos pretos estão arregalados. Por
surpresa, já que não espera minha presença tão repentina.

Andrew logo se recupera do susto, e endireita a postura, cruzando os braços


na altura do peitoral.

— Oi — murmuro, esboçando um sorriso amarelo.

— O que faz aqui?

Esquadrinho seu rosto com atenção, e ao perceber a carranca estampada em


sua face, percebo que com ele as coisas serão um pouco mais difíceis.

Andrew não para de falar. Combinamos que eu teria um tempo para me


explicar, e ele se limitaria a me escutar com atenção, só que depois seria a
minha vez. E após ouvir meus argumentos e explicações bem articulados, já
que tenho repetido a mesma coisa para todos os nossos amigos, estou aqui,
sentada em sua cama, ouvindo-o praguejar.

— Se você estava enfiada até o pescoço em todas essas merdas, por que não
evitou se envolver com o meu amigo? — Ele não me deixa responder,
voltando a falar. — Eu entendo que no início ambos foram tolos o bastante
para pensar que não passariam de sexo casual, mas você quem estava com a
corda no pescoço. Podia ter dado o fora nele. Tenho certeza de que ele
sentiria menos dor do que está sentindo agora.

Concordo com Andrew, e sei que preciso ouvir todas essas coisas. Contudo, a
agonia se apossa do meu corpo, aguçando minha vontade de respondê-lo.

— Eu já estava envolvida demais! — Me exalto um pouco, levantando da


cama. — Quanto mais tempo passava, menos coragem eu tinha de contar
porque mais envolvida eu ficava. E tudo virou uma bola de neve, acredite
Andrew, eu sei disso.

— Você fodeu com o coração do meu irmão. — Ele se exaspera. — Aquele


cara, Mackenzie, é um dos melhores que já conheci na vida. Não tem noção
do quanto já fez por nós e continua fazendo. Eu simplesmente não suporto
vê-lo assim, sabendo que a culpa é toda sua!
— O que quer que eu faça? Hein? — Dou alguns passos em sua direção. —
Se eu pudesse, reconstruía e colava eu mesma todos os caquinhos do coração
dele. Mesmo que isso me levasse horas, dias ou meses. Eu amo o Thomas pra
caralho. Acha que também não estou sofrendo? Ainda mais por saber que só
estou sem ele por culpa única e exclusivamente minha. Não está sendo fácil,
Andrew. Não mesmo. Mas, eu vim aqui apenas para te pedir perdão.

— Eu aceito seu perdão, e não devo demorar para desculpá-la. Só que isso
não me impede de te querer longe de todos nós. Afinal, será que você não vai
voltar a mentir e nos fazer de otários na primeira oportunidade?

— O Thomas te perguntou isso depois de você esconder que estava se


envolvendo com o irmão dele? — Antes que eu possa segurar a língua, a
pergunta já paira no ar, transformando totalmente o clima. — Você também
escondeu por meses que estava com o irmão que até então ele tinha inúmeros
problemas, e você sabia de todos eles. Mas, ainda assim, recebeu uma
segunda chance.

— Não compare uma coisa com a outra!

Arrasto a mão pela franja e massageio as têmporas.

— Eu sei que errei, de fato. E levou um tempo até que Thomas e eu


ficássemos bem de novo. Só que somos amigos há três anos, Mackenzie.
Morando na mesma casa, dividindo uma vida. — Andrew suspira e
prossegue. — É compreensível que seja mais fácil voltar a confiar em alguém
que esteve junto contigo há três anos do que em uma pessoa que conhece há
poucos meses. Eu adoro você, de verdade. Só estou magoado por enquanto,
não por ter escondido que era a Rainha, e sim pelo que fez com meu amigo.

Sei que não vai adiantar ficar dando murro em ponta de faca. A mágoa ainda
é muito grande no coração de Andrew, ainda mais por ele ser um dos mais
protetores no trio de garotos. Então, só me resta dar a ele o tempo que precisa
para deixar a raiva ir embora.

— Apesar do semestre estar quase no fim, ainda acredito que teremos mais
um período convivendo juntos. E eu não quero que fique um clima péssimo
em nossas saídas, ainda mais sabendo que Lewis te ama. — Andrew desliza a
mão pelo cabelo, puxando os cachos para trás sem desfazê-los. — Mas, eu
preciso de mais tempo.

Concordo com um aceno de cabeça, e afago seu ombro de leve.

— Volte a me procurar quando estiver disposto a reconstruir a confiança. —


Andrew assente, parecendo ainda ter algo a falar.

Aguardo um instante, e quando percebo que ele desiste se pronunciar


caminho até a porta. Porém, antes que eu saia por completo ouço o chamado.

— Mackenzie. — Andrew chama. Giro sob os calcanhares e tombo a cabeça


para o lado, induzindo-o a falar. — Você o ama mesmo? Seja sincera, por
favor.

As palavras invadem minha mente e se organizam de modo natural.


Concordo com a cabeça avidamente, e prossigo:

— Com mesma infinitude que abrange o universo e na mesma intensidade de


uma tempestade.

Andrew franze o cenho com estranheza, porém parece satisfeito com a


resposta.

— Nunca o vi sentir algo tão forte por alguém como foi por você. Jamais o
enxerguei tão bem, tão feliz, tão vivo. — Um sorriso contido se esgueira
pelos lábios. — Espero que as coisas deem certo para vocês algum dia.

Sinto o coração retumbar com mais força no peito, incendiando meu corpo
com apenas a menção desse sentimento tão forte que sinto por ele, dessa
conexão tão grande que temos.

— Eu também, Andrew — sussurro, erguendo os olhos para o teto, como se


estivesse pedindo a Deus. — Eu também.
Assim que deixo o quarto, apoio às costas na porta que acabo de fechar.
Tento regular a respiração um tanto ofegante, e me lembro da existência do
envelope guardado no bolso interno do casaco. Agarro-o, sentindo a textura
do papel por entre meus dedos, e a droga da sensação de choro me invade
novamente.

Deixo que algumas lágrimas escorram pela bochecha, e caiam no colo,


pingando no casaco. Cubro os lábios com a mão, evitando que o barulho do
soluço seja audível no resto da casa. Não quero que ninguém ouça, e também
não desejo nenhum tipo de consolação. Esse é o meu momento. Retiro o
envelope e o encaro.

Para Thomas.

A letra cursiva meio tombada para o lado, em tintura preta. Analiso o pedaço
de papel por alguns instantes, e respiro fundo. Revejo algumas de nossas
lembranças, como nosso primeiro encontro, o dia do meu aniversário e
quando vimos o primeiro filme de terror juntos. Também me recordo de estar
sentada no colo de Thomas, naquela mesma poltrona da sala, assistindo um
anime que não gravei o nome. Deixo que as recordações escorram junto das
lágrimas, como uma espécie de pequena despedida.

Essa é a minha última jogada, a tacada final, o drift que damos ao puxar o
freio de mão quando cruzamos a linha de chegada.

Limpo os resquícios do choro, deixando que minha consciência se livre de


todo o peso que antes carregava. Testo a maçaneta do quarto de Thomas, e
agradeço mentalmente por estar destrancado. Adentro a passos largos, me
sentindo mal por invadir seu espaço e um tantoquanto culpada por estar aqui
sem que ninguém saiba. Varro o ambiente com os olhos, sorrindo um pouco
por encontrar a mesma organização de sempre. E também acho uma pilha de
papéis empoleirados em cima da mesa de estudos.

São contas para pagar. Ignoro a pontada de culpa que se alastra pelo peito, e
escondo o envelope entre os papéis. Para que num futuro bem próximo ele
encontre, e possa aceitar meu último gesto de amor.
Sou um tolo.

É definitivo. Porque só sendo muito tolo para se meter no tipo de enrascadas


que entro. Olho em volta, absorvendo a taciturnidade de uma Bolfok Valley
imersa nos tons azuis escuros quase pretos de um céu da madrugada. Só é
possível ouvir o farfalhar do choque entre as folhas das árvores. Enfio as
mãos no bolso do moletom e estreito as vistas, pregando os olhos na figura
imponente de Jeff se aproximando.

Ele veio sozinho, como combinamos. Ou pelo menos é no que prefiro


acreditar fielmente, porque a única pessoa que sabe onde estou é a minha ex-
namorada de caráter duvidoso. Ergo os cantos dos lábios de maneira
imperceptível ao me dar conta de que, pelo menos, já estou conseguindo
fazer piada com a minha desgraça.

Mackenzie me enviou uma mensagem enquanto eu estava a caminho de


Bolfok Valley, perguntando se eu tinha alguma novidade sobre o caso. Ainda
que não estejamos mais juntos, parece que ela sente quando estou prestes a
fazer merda.
Mackenzie Lennon: alguma notícia sobre a investigação? Nevaeh falou que
você está sendo ajudado por John e um policial. Que trio curioso...

Lembro de ter soltado uma breve risada pela ironia de estar investigando um
acidente junto com um funcionário representante da lei e um criminoso.
Tenho atualizado Nevaeh com o caso, tentando evitar um contato direto com
Lennon, já que ambos não estamos prontos para isso ainda. Honestamente,
tem dado certo. Contei as últimas notícias para Mackenzie, colocando-a por
dentro dos últimos acontecimentos. O detetive Blake foi até minha oficina e
chegou à mesma conclusão que John e eu: o carro foi sabotado. E por alguém
bem leigo na arte de cortar uma mangueira de direção sem deixar rastros.
Depois disso, o policial levou alguns dias para convencer seu superior de que
é necessário manter o caso aberto.

Sinceramente, não sei que tipo de chantagem esteve envolvido no


Departamento Policial para que eles mantivessem ocaso aberto. No entanto,
seja lá o que houve, deu certo. Agora há uma pequena equipe, liderada pelo
Blake, investigando o caso. E John tenta esconder, mas, no fundo, está se
cagando de medo, porque é bem provável que o nome de Jeff venha à tona,
junto com todo o resto da gangue. O líder dos Lions disfarça até bem, porém
é óbvio que está arrependido de ter metido o detetive nessa.

Mackenzie Lennon: e onde você está agora, Eckhoff?

Tento evitar que a sensação de nostalgia se aposse de mim assim que leio a
mensagem dela. Porque a maneira como se refere a mim, no tom que
absorvo, é como se nunca tivéssemos terminado. Inspiro e expiro, sentindo o
ar quente aquecer parte do meu rosto. E, assim que Jeff se aproxima o
suficiente para que eu o veja com clareza, envio minha localização para
Mackenzie com a seguinte resposta: “Acho que estou encrencado.”

No instante em que digito, sinto aquela famosa impressão de que isso já


aconteceu antes, e não demoro a relembrar de quando Mackenzie me mandou
uma mensagem parecida, meses atrás. Balanço a cabeça levemente, tentando
desanuviar os pensamentos e empurrar Mackenzie para o fundo da mente.
— Eckhoff. — Jeffrey saúda, olhando ao redor, provavelmente conferindo se
não tem ninguém comigo. — Veio sozinho como combinamos?

Quando fui procurá-lo, com o gravador do celular ligado, não consegui tirar
nada de Jeff. Na verdade, mal pudemos conversar direito, porque ele fez o
favor de combinar outro lugar mais reservado para isso, o que me traz até
uma parte da cidade, em que de dia fica topado de food trucks, e à noite o
lugar se limita a um vasto campo deserto. Agarro as bordas da jaqueta,
sentindo o gravador ligado no bolso interno.

— Está vendo alguma outra pessoa aqui? — Abro os braços e giro sob os
calcanhares, expondo a área aberta e deserta.

Preferi não expor a Dominic e Andrew o que eu faria, vindo até o território
dos Lion, sem ao menos avisar John, que com certeza me impediria de
conversar com um membro da sua gangue sem autorização do líder. Só quero
conseguir algo de valioso que acelere essa investigação e ponha meu pai atrás
das grades.

— Fico feliz de saber que não foi tolo ao ponto de desobedecer aonosso
acordo. — Me seguro para não revirar os olhos devido à soberba de Jeff. —
Mas fiquei curioso para saber o que quer comigo.

Relembro de alguns momentos que passei com John, revirando informações


atrás de algo importante. Ele mencionou que Jeff, apesar de toda a
arrogância, não é muito inteligente, e o que o atrapalha é justamente sua
soberba. Ele acredita tanto que ninguém está acima dele que peca nos
cuidados e atenção que precisa para esconder o que faz. Penso na melhor
maneira de abordá-lo, e suspiro. Terei que arriscar, e caso Jeffrey perceba,
estou fodido.

— Sabe, Jeff. Eu fiquei me perguntando que tipo de negócios acontece em


Bolfok Valley na penumbra da noite. — Inicio, vendo-o franzir o cenho. —
Acho que ficou sabendo do acidente que aconteceu na Bolfok Ride em
novembro.

— E quem não ficou? — Jeff solta uma risada, entupida de escárnio. —


Como está a sua namoradinha?

— Está ótima — digo, decidindo não mencionar nada sobre nosso término,
porque não seria nada relevante para a conversa. — Quem não deve estar
bem é a pessoa que sabotou o carro dela, sabendo que a polícia voltou a
investigar o acidente.

Percebo que Jeff está mais por dentro do assunto do que imagino, pois ele se
limita a sorrir levemente e balançar a cabeça.

— E o que te leva a pensar que fui eu? — Ele pergunta e mordo o lábio
inferior com força para frear o sorriso. Jeff morde as iscas com muita
facilidade.

— Vou ser sincero dizendo que no início ninguém vinha a minha cabeça.
Quem iria querer Mackenzie morta?

— Suponho que a intenção não era matá-la, apenas dar um susto. — Arqueio
a sobrancelha e me aproximo dele.

— Acho que você tem muitas suposições para quem não tem nada a ver com
o acidente.

Jeff é um pouco mais baixo que eu, mas a diferença não é tão grande, visto
que seu tronco largo e avantajado é proporcional ao meu. Em uma luta
corporal, talvez eu tenha algumas chances de ganhar. Contudo, sei que
pessoas como ele e John não andam desarmadas, ainda mais na atual
conjuntura.

— Acredite no que quiser, Eckhoff. Não sei o que te leva a pensar que eu
gostaria de vê-la morta. — Jeff ri baixo e prossegue. — Sua namorada pode
ser divina na sua concepção, mas, para mim, a única coisa que ela tem de
valioso é um corpo delicioso. É indiferente tê-la viva ou morta.

Fecho as mãos em punho, as unhas afundando na carne das palmas. A


mandíbula dói pela força que aperto os molares. Eu poderia voar em Jeff
agora mesmo por falar assim de Mackenzie, como se ela fosse a porra de um
pedaço de carne. As narinas estão infladas, e o peito sobe e desce, tentando
controlar o ritmo da respiração. Preciso voltar ao foco.

— Se é indiferente, por que te vi batendo um papo com Robert Johnson nesse


mesmo lugar? — Pronto, o blefe está feito.

Estou usando de uma jogada arriscada, que pode dar muito errada caso Jeff
nunca tenha conversado com Robert nesse lugar. Contudo, se conheço bem
meu pai, ele jamais iria querer ser visto com Jeffrey seja em Oroland, seja em
Bolfok Town. Então, esse seria o lugar perfeito para os dois conversarem,
deserto o bastante para que ninguém os visse. E quase sorrio ao perceber que
peguei Jeff.

— Sabe o que eu acho? — Inverto nossas posições, ficando mais perto do


meio fio. — Que você odiava o fato de não participar do acordo que
Mackenzie tinha com John. Pensou que ela não me contaria, certo? Pois bem,
Lennon me disse tudo. Inclusive o quanto você sempre quis meter a mão na
grana que estava envolvida no contrato. Imagino que Robert tenha molhado
bastante as suas mãos para cortar a mangueira de direção hidráulica. E seu
trabalho ficou bem porco, para ser sincero.

Minto um pouco, para que ele não saiba do meu contato com John.
Honestamente, eu gostaria de ter ficado sabendo pela boca de Mackenzie. O
que eu conto para Jeff acaba sendo a minha realidade preferida, que
estivéssemos juntos nessa. Acabando com eles como a dupla boa que somos.

Ademais, não deixo de alfinetar o trabalho mal feito de Jeff, tentando


desestabilizá-lo, mexendo com seu ego.

— Trabalho porco? A polícia declarou que a mangueira havia sido rompida


por acidente e não cortada. — Jeff nem parece perceber que se entrega, e
tenho vontade de rir. — Isso aconteceria se eu tivesse feito um trabalho ruim?

— É mesmo, Jeff? A polícia declarou isso? Conte-me mais, por favor. Já que
está sabendo tanto. — Enfio as mãos nos bolsos da frente da calça e sorrio.

— Vá se foder! — O homem fica exasperado, arrastando a mão pelos cabelos


pretos. — Você e aquele merda do seu pai. Não tente dar uma de sabichão
quando está afundado em merda até o pescoço. Como deve estar se sentindo
sabendo que Robert Johnson, o seu querido pai, pagou sua namorada para te
ferrar?

Solto uma risada alta. De todas as coisas que meu pai já fez para mim, essa
não é uma das que mais dói.

— Eu não estou dando a mínima para essa merda, Jeff. Um homem que é
capaz de sabotar a namorada do filho faz coisas muito piores, pode acreditar.

Não estou satisfeito. Quero que Jeffrey diga, com todas as letras, que foi pago
por Robert para sabotar Mackenzie.

— Eu duvido que esteja pouco se fodendo, no fundo está desolado pela


traição da namoradinha. Que, afinal, estava se aliando ao seu pai. — Sei que
ele quer me desestabilizar, e consegue em partes, porque dou um passo para
trás e cambaleio ao me dar conta de que saio da calçada, pisando no asfalto
da avenida.

— Acontece, Jeff. — Respiro fundo, tentando não demonstrar o quanto o


assunto ainda me afeta. — Mas, não se preocupe porque você também foi
usado por Robert. Ele se aproveitou da sua tolice, oferecendo migalhas para
colocar você na reta para fazer o trabalho sujo. Quanto ele te pagou, Jeff?
Quero saber por qual valor você vai se enfiar na prisão.

A provocação atinge Jeff, pois ele coça a nuca e parece desconfortável. A sua
soberba provavelmente o fez acreditar que era importante para o plano de
Roberte, nesse momento, deve estar tendo a percepção de que não vai passar
de um bode expiatório.

— Está fazendo pouco de mim porque acha que recebi menos que sua
namorada, mas estou pouco preocupado com isso. Robert me deu o
suficiente. — Arqueio as sobrancelhas, estarrecido.

Consegui. Puta merda. Jeff é tão otário que sem ao menos perceber, deixa
que sua arrogância tome conta, tentando provar que é importante de algum
jeito. E, assim, ele me entrega exatamente o que eu quero. Sei que é provável
que essa gravação enfie Jeff atrás das grades também, sendo contra ao que
combinei com John. Mas, sinceramente, nesse instante, estou pensando em
mim acima de tudo.

É óbvio que sou grato pela ajuda de John, e talvez o policial Blake até leve
isso em conta. Contudo, se o líder da gangue for preso, será mais uma
consequência de suas escolhas. Infelizmente, essa gravação é o caminho mais
rápido para a prisão de Robert, que livrará Lewis de seu controle e minha
madrasta de suas manipulações. Com meu pai na cadeia, por todos os crimes
que ele já cometeu além desse, todos estaremos livres. Porque assim que ele
for investigado, muitos outros delitos virão à tona. Além de que essa prisão
viria como uma espécie de retaliação por ele ter tentado matar Mackenzie.

Fico tão empolgado que remexo na borda da jaqueta, garantindo a presença


do gravador. Porém, a movimentação infelizmente chama a atenção de Jeff,
que franze o cenho e se aproxima. Atravesso a rua de costas, a passos
vacilantes, encarando-o o tempo inteiro. Caminho até sentir minhas costas se
chocando com a lateral de seu carro.

— Você está gravando essa porra? — Um barulho distante de motor é


abafado pelo grito de Jeff.

Ele pouco se importa de estar no meio da rua, já que nesta hora da madrugada
ninguém vem para essas bandas.

— Não estou gravando nada, Jeff. Enlouqueceu? — tento, a todo custo, não
parecer vacilante ou temeroso.

Sofro alguns espasmos leves, ao passo que o suor começa a acumular nas
palmas das mãos. Aperto os dedos em punho, torcendo para que ele não
perceba meu nervosismo. Porém, Jeffrey saca a arma e aponta diretamente na
minha direção. A espinha gela, e eu ergo os braços, me rendendo.

— Calma, Jeff... — inicio, ouvindo o barulho do motor com mais facilidade


agora.
Ambos contorcemos as feições em estranheza, porque é raro alguma
movimentação nessa estrada. Aos poucos, o som reverbera ainda mais alto e
Jeff dá um passo para trás, ainda com a arma em punho, apontando na minha
direção. Porra, realmente não quero morrer agora.

Um farol incrivelmente reluzente nos cega, bem como a cacofonia de um


motor potente faz Jeff dar outro passo para trás. Nem ao menos consigo
identificar o veículo que corre em alta velocidade até nós. Percebendo que
continuar no meio da rua culminaria no seu atropelamento, Jeff corre para o
meio fio, enquanto o automóvel freia. Posiciono a mão na altura dos olhos,
tentando descobrir qual o carro que canta pneus enquanto diminui a
velocidade. Enxergo a cor vermelha e o símbolo da Ferrari, pensando logo
em Lewis.

À medida que o carro vai parando, a porta do carona abre com brutalidade e
tenho um vislumbre da motorista.

— Entra no carro, porra! — Sequer penso em algo, apenas mergulho para


dentro com rapidez e fecho a porta em um baque surdo.

— Não tem geladeira em casa não, caralho? — Encaro Lewis sentado no


banco de trás, com o cinto transpassando seu corpo grande, e sofro um
solavanco assim que o carro arranca com tudo.

Jeffrey se recupera rápido, tentando acertar um tiro em nós, ao mesmo tempo


em que corre até seu carro. Abaixamos rapidamente, mas o disparo
ricocheteia na lataria traseira. A adrenalina preenche meu corpo, acelerando
as batidas do coração. Encaro, pela primeira vez, a figura concentrada de
Mackenzie no volante.

Analiso seu cabelo preso em um rabo de cavalo alto, o moletom rosa


cobrindo o corpo e as mãos firmes no comando da direção. Nunca estive no
banco do carona vendo-a correr. Ela afunda o pé no acelerador e troca a
marcha, ao passo que olha no retrovisor o carro de Jeff nos seguindo. Dou
graças pela potência da Ferrari modelo 812 superfast. Um automóvel motor
V12, com velocidade máxima de 340 km/h, alcançando em 2,9 segundos a
marca de cem por hora. Analiso a parte interna, admirando os estofados de
couro na cor bege e o painel tecnológico.

Do lado do passageiro há outra tela, como a do motorista, pelo qual o carona


pode ver o velocímetro, conta-giros, modo de condução selecionado e os
dispositivos de multimídia. Jamais havia entrado no carro de Lewis, porém
agora tenho a sensação de que nunca mais quero sair.

— Robert gastou um puta dinheiro nessa máquina, huh? — Levanto o canto


dos lábios e olho de esguelha para Lewis.

— Sim. Portanto, eu te imploro,— Lewis junta as palmas na frente do rosto


— não destrua o meu bebê.

Assisto o sorriso malicioso de Mackenzie se esgueirar pelo rosto, ela arqueia


as sobrancelhas e balança a cabeça, fazendo o rabo de cavalo remexer.

— Lewis, eu não posso te prometer isso.

Assim, ela gira o volante para a esquerda repentinamente. Nos fazendo


tombar para o lado, aproximando meu corpo do seu, me fazendo inflar as
narinas e inspirar seu perfume habitual. Antes que eu possa sequer me
recompor, ela gira para a direita, chocando meu corpo contra a porta.
Mackenzie está ziguezagueando na pista, criando aderência com o asfalto
para que a velocidade aumente ainda mais. Agarro a alça do cinto de
segurança e respiro fundo.

— Se não morrermos nas mãos de Jeff, com certeza morreremos nas de


Mackenzie! — Ela não se afeta com a minha provocação, só me olha de
relance e lança uma piscadela.

Puta merda.

Não sei se Mackenzie sabe, mas ela ainda tem os mesmos efeitos sobre mim.
A tensão faz o interior carro parecer menor, como se o teto tivesse descido
uns centímetros, comprimindo o oxigênio que se esvai aos poucos. Meu
coração acelera, e se houvesse um velocímetro nele, com certeza estaria mais
rápido que a Ferrari nesse momento.
— Mackenzie abaixa essa velocidade, por favor. — Lewis implora,
contorcendo as feições. — Tô com vontade de vomitar.

Cubro o rosto com as mãos e balanço negativamente. É claro que estou muito
mais acostumado em enfrentar altas velocidades, já consigo segurar um
pouco o corpo e o pescoço no lugar para não me chacoalhar muito. No
entanto, Lewis mal anda a mais de cem por hora.

— Ou você fica sujo de vômito ou toma um tiro na bunda. O que prefere? —


Não consigo frear a risada que me escapa, me esquecendo brevemente da
nossa situação atual.

Perscruto o interior do veículo, principalmente o porta-copo e o porta-luvas,


atrás de um saco que possa aparar o vômito de Lewis. Acho o que parece ser
uma mini sacola de náilon com elástico e entrego a ele.

— Essa é a bolsa que guardo meu protetor bucal e coisas de higiene para o
futebol. — Encaro o ponteiro de velocidade reduzindo à medida que
adentramos a urbanização.

— Agora é a bolsa que vai guardar seu vômito.

Mackenzie não se preocupa em frear a risada baixa, apenas faz mais uma
curva repentina, adentrando as ruas estreitas de Bolfok Valley. Lewis apoia
as mãos uma no encosto do meu banco e a outra no de Mackenzie, sentado no
meio. A Ferrari é visivelmente modelada para acomodar apenas duas pessoas,
com um espaço interno precário na parte de trás, espremendo as pernas
longas dele.

Lennon gira o volante mais algumas vezes, garantindo solavancos que quase
arrancam nossos pescoços. Não consigo tirar os olhos dela, embora o carro
seja de Lewis, seu perfume toma conta de todo o ambiente fechado,
condensando o aroma doce aos meus sentidos. Encaro as sobrancelhas
afastadas e arqueadas, e a íris castanha vibrante, compenetrada no trânsito.
Ela manuseia o volante com total controle da direção, sabendo exatamente o
que fazer. E, então, sinto um forte tapa na nuca.
— Ai! — Massageio o local ardido e lanço um olhar cortante para Lewis. —
Qual é o seu problema?

— Meu problema é o quanto você é patético. — Prego as vistas nele, e Lewis


aponta para Mackenzie com a cabeça, limpando algo invisível da boca.

Entendo o recado. Ele quer dizer que está ficando na cara o quanto estou
quase babando. Nego levemente com a cabeça e presto atenção no retrovisor,
observando que tomamos distância de Jeff. Lewis dá a ideia de seguirmos
pelo centro da pequena cidade até cruzar a fronteira com Bolfok Town.
Mackenzie acata sua sugestão, e eu assisto o ponteiro de velocidade aumentar
cada vez mais.

A adrenalina faz o sangue borbulhar, bem como acelera as batidas do


coração. Afundo os dedos no estofado do banco, me segurando firmemente.
Lewis pragueja baixo inúmeros palavrões, provocando uma risada alta em
nós.

Jeff até tenta seguir na nossa cola, porém as duas últimas curvas
provavelmente o despistaram. Suspiramos aliviados assim que percebemos
que o homem não nos segue a um tempo considerável. Assim, consigo
relaxar, desmanchando a postura empertigada.

Mackenzie vai diminuindo a velocidade aos poucos, de maneira quase


imperceptível. Enquanto encaro o painel tecnológico na minha frente,
procurando avidamente por uma saída para o silêncio sepulcral que adorna o
carro. Lewis lamenta por sua Ferrari não sintonizar com a rádio local,
contudo conecta com o bluetooth do celular. Uma melodia conhecida irrompe
pelos alto falantes, e reconheço a voz arrastada de Alex Turner. O vocalista
do Arctic Monkeys canta Mardy Bum, e eu passo a odiar a semelhança que a
música tem comigo e com Lennon.

— Oh, existe um lado muito mais agradável em você, que eu prefiro muito
mais.— Prendo a respiração por uns instantes, ouvindo-o cantar sobre uma
mulher rabugenta e emburrada. — É aquele que dá risadas e conta piadas
por aí. Lembra dos carinhos na cozinha.
Assim que os carinhos na cozinha são mencionados, Mackenzie afunda o
dedo no botão do rádio e muda a canção, e quase saio do carro para ajoelhar e
agradecer. No entanto, Lewis parece não entender e reclama pela mudança.
Lennon não se afeta, pelo contrário, revira os olhos e se pronuncia.

— Para onde devo ir agora? — Reparo na placa que deseja boas-vindas a


Bolfok Town.

— Pode dirigir até o alojamento e de lá sigo viagem até a casa de Thomas —


encaro Lewis com as sobrancelhas arqueadas. — Não por você. Vou ver
Andrew.

Mackenzie me olha por uns instantes, e a breve conexão é suficiente para nos
desestabilizar. Ela suspira, e deixa os ombros caírem. Esfrego as têmporas,
implorando que o caminho até o alojamento diminua milagrosamente para
acabarmos com esse clima. E, no momento em que o carro estaciona na
frente do prédio, seguro seu pulso em um toque leve.

Lewis percebe a movimentação e sai do carro silenciosamente, deixando que


conversemos em particular.

— Obrigado por hoje. — Retiro minha mão de seu pulso, protestando pela
falta da quentura de sua pele. — Se você não tivesse ido atrás de mim, eu
provavelmente estaria morto agora.

Mackenzie tomba o corpo levemente, o suficiente para ficar meio de frente


para mim.

— O que foi fazer lá? — pesco o pequeno gravador no bolso interno da


jaqueta.

— Fui tentar arrancar algo de Jeff que fosse bom o bastante para entregar ao
Detetive Blake, que o induza a investigar coisas sobre meu pai, agilizando o
processo. — Mackenzie assente com a cabeça.

— E deu certo? — Permito que a sombra de um sorriso se embrenhe pelo


canto dos lábios e balanço a cabeça.

— Deu sim. — Lennon também não freia o sorriso que se esgueira pelo
rosto. — Amanhã mesmo entregarei anonimamente para o Detetive e
aguardarei por mais notícias.

Apesar de estar ajudando Blake com o caso, não quero que uma prova tão
importante como essa esteja associada a mim, porque não quero me envolver
legalmente.

— Thomas. — Volto a conectar meus olhos aos seus, e fico imerso no tom
vibrante da íris. — Sei que se esforçou bastante para fazer seu pai pagar, mas
deixe que a polícia cuide do resto a partir de agora. Você já fez o suficiente.

Seu tom de voz é baixo, fazendo com que eu incline o corpo na direção dela,
diminuindo a distância entre nós. Posso sentir a tensão quase palpável,
contribuindo para que o interior do carro fique ainda mais quente, misturando
o aroma de nossos perfumes. Tenho vontade de erguer a mão e pousar em sua
bochecha, acariciando sua pele e sentindo a maciez de seus lábios. Acho que
Mackenzie não percebe, mas ela também se aproxima, nos embrenhando em
um emaranhado de tensão e saudade. Meu coração está prestes a pular do
peito, batendo tão forte que temo que ela escute.

— Obrigada por cuidar de tudo — Mackenzie sussurra, e sinto seu hálito


morno bater em meu rosto.

Não conseguimos despregar os olhosou sequer desfazer a conexão forte que


nos ronda. Permito-me ser um pouco irracional dessa vez e levo uma mão
para um lado de seu rosto e a outra para a curva do pescoço. Acaricio a
bochecha e roço o dedão por entre seus lábios, sentindo-os quente. Eu
poderia entrar em combustão a qualquer momento, ao passo que arrasto o
nariz por sua mandíbula, escondendo o rosto na curva de seu pescoço,
inspirando o cheiro que tanto amo sentir. Puta merda, como senti falta dessa
mulher. Deixo beijos um pouco acima de sua clavícula, subindo pela
garganta, queixo, até chegar aos lábios. Arrasto minha boca na sua, vendo-a
me agarrar pelos ombros e se aconchegar a mim.
Pressiono meus lábios nos seus. A sensação é como se inúmeras coisas
estivessem explodindo dentro de mim. No entanto, antes que eu possa sentir
sua língua deslizando sobre a minha, ela interrompe o contato e desliza para
longe do meu toque.

Recobro a consciência aos poucos, afastando o torpor que antes me tomava


por inteiro.

— Não pode fazer isso. — Mackenzie ressalta, parecendo exasperada. —


Não pode terminar comigo e ao mesmo tempo me envolver nessas sensações,
sabendo de tudo que sinto. Você não tem mais permissão para me tocar
assim. Pode até ter acabado com tudo, mas não vai brincar comigo.

Paraliso os movimentos, sentindo o corpo estático afundado no banco do


carona. Sou um ridículo. Porra.

— Eu... Me desculpa — pigarreio, tentando consertar parte das coisas. —


Jamais brincaria com você dessa forma, perdão se te fiz sentir algo parecido.

Mackenzie assente, ajeitando alguns fios displicentes que escapam do rabo de


cavalo.

— Certo. Eu sei que talvez nunca me perdoe, e que provavelmente não


teremos mais nada. Então, o melhor a fazer é se afastar, para que recaídas
como essa não aconteçam. — Engulo em seco, concordando com suas
palavras. — Precisamos nos deixar ir de verdade.

— Eu não sou exatamente o cara mais rancoroso que existe — inicio,


umedecendo os lábios com a língua. — Durante essas semanas, pude
perceber que eu te perdoo sim.

— Mas não quer voltar comigo. — Meu peito dói como o inferno, e talvez
esse momento esteja sendo pior do que nosso confronto há semanas.

Ela está certa. Embora entenda que Mackenzie nunca teve conhecimento
sobre estar fazendo um acordo com meu pai, e mesmo com a quebra de
contrato, a confiança é inexistente entre nós. Sei que se voltássemos só nos
machucaríamos mais pela falta de parceria, e pelas dúvidas que eu sempre
teria a cada coisa que Lennon me contasse. A fim de me livrar das paranoias
que invadiriam minha mente, tentando sabotar todas as minhas certezas,
balanço a cabeça, achando a melhor saída para nós dois.

— Não quero. — Evito olhá-la nos olhos, porque caso eu esteja lhe causando
dor, sou covarde o bastante para desviar as vistas.

— Então, me deixe em paz — pede e aceno em concordância, e Mackenzie


não espera, saindo do carro.

Apoio a cabeça no encosto do banco, respirando fundo, tentando controlar a


confusão em minha mente. Uma pontada aguda invade minha têmpora, e levo
as mãos até lá, massageando-as. Sinto os olhos encherem de água e permito
que duas lágrimas caiam, escorrendo pelas bochechas. É como se nosso
término definitivo estivesse sendo declarado nesse momento. Mal percebo
que Lewis se acomoda no lado do motorista e afaga meu ombro.

— É... Acho que essa noite terei que fazer companhia para o meu parceiro de
tempestades. — Solto uma risada baixa e choco meu punho em seu ombro,
dando um soquinho leve.

Porém, no fundo, estou agradecendo. Porque com Dominic enfiado no quarto


com Nevaeh, hoje vou preferir ficar de vela para Andrew e Lewis. Meus dois
irmãos.
— O Tribunal de Júri é como uma herança do Sistema de justiça da
Inglaterra medieval e foi adotado pelos colonos americanos do século XVIII.
Quando os Estados Unidos se separaram da Coroa Britânica, ficou
especificado nos primeiros anos da jovem república, na Declaração dos
Direitos, que nos processos criminais o acusado teria direito a um julgamento
público e rápido por um júri imparcial. Atualmente, o que acontece é a
possibilidade de, em caso de crimes dolosos contra a vida, haja a
possibilidade de usar do Tribunal de Júri para condenar ou abster o réu com
mais rapidez — explico calmamente, encarando o semblante meio afoito de
Thomas. — De modo que o promotor chefe, acusador, mantém contato direto
com as investigações e partilha com a defesa as provas que serão utilizadas
ou não para embasar o caso. Hoje, haverá um juiz responsável pela
condenação e configuração da pena, o advogado de defesa, o promotor e os
jurados, escolhidos através de sorteio, que terão participação significativa na
decisão.

Observo a expressão confusa de Thomas, e aguardo por algum tipo de reação.


Após o episódio constrangedor dentro da Ferrari de Lewis, procurei manter
distância de possíveis tentações que pudessem me levar a cair nos braços do
meu ex. No entanto, com o andamento das investigações e o recebimento da
gravação feita pelo loiro, não demorou até que chegassem à conclusão óbvia:
o carro foi sabotado e houve uma tentativa de homicídio. Então, em casos de
crimes como esse, é comum que aconteça um Tribunal de Júri para a decisão
mais prática e rápida quanto a sanção de um cidadão que representa risco
para a sociedade.

Perscruto o corredor amplo do fórum de Altoona, sentindo as costas doerem


pelo encosto de madeira desconfortável. O cheiro típico de filtro de ar
condicionado empoeirado me faz franzir as narinas. Estamos sentados frente
à escada que leva até o segundo andar, onde está a sala secreta onde os
jurados decidem a sentença e o gabinete do juiz. Alguns policiais se
localizam na porta da sala de audiência, onde ocorrerá o julgamento, e na
entrada do fórum, com o objetivo de manter tudo em ordem. Avisto também
o Detetive Blake com sua equipe, prontos para saberem o veredictodo
inquéritocontra Robert. Nem todos os nossos amigos puderam comparecer ao
julgamento do pai de Thomas, porém localizados um pouco mais distante,
vejo Andrew e Dominic.

Nevaeh queria muito estar aqui, e dirigir até Altoona teria sido muito mais
agradável com ela no banco do motorista. No entanto, ela tem um
compromisso com a equipe do Decatlo Acadêmico. Assim como Josh,
Maxon e Lewis estão em um jogo importante, que poderia atrair olheiros que
estarão na etapa de Draft. Meu amigo não ficou exatamente feliz por não
estar presente no julgamento do pai, porém faltar ao campeonato não é uma
possibilidade. Já Jules tinha uma aula de anatomia que não poderia faltar de
jeito nenhum, enquanto que Hannah ficou presa em um treino das líderes de
torcida para a temporada de jogos do Draft.

O Tribunal de Júri se localiza em Altoona porque o crime contra vida não se


enquadra na jurisdição municipal, sendo julgado na sede do Condado. Estalo
os dedos na frente do loiro, que ainda parece perdido em pensamentos, e ele
arqueia as sobrancelhas pelo susto.

— Thomas! — bufo irritada. — Não prestou atenção em nada do que eu


disse?

— Mackenzie, perdão. Mas essa baboseira jurídica não entra na minha


cabeça. — Ele reclama e eu sinto vontade de chacoalhar seu cérebro até que
ele entenda o que quero dizer.

Desisto, finalmente me contentando com a ideia de que ele assistirá um


julgamento em que não entenderá nada. Estou tentando, há horas, explicar
como funciona o procedimento de condenação, e recebo em troca a mesma
expressão perdida em seu rosto. Até que ouço a aproximação de Dominic
pelo barulho de suas botas de combatese chocando ao piso bem encerado.

— Deixe que eu explico, Mack. — Permito que Dom, conhecendo mais sobre
leis e termos corretos, ensine a Thomas algo.— Seu pai tentou matar uma
pessoa, ou seja, cometeu uma tentativa de homicídio doloso. Doloso, porque
houve a intenção de matar, mesmo que o crime não tenha sido consumado. A
promotoria entende com isso que Robert apresenta risco a sociedade,
sobretudo, à Mack, já que foi a vítima da agressão. Por isso eles usam do
Tribunal de Júri, que vai julgar e condenar ou absolver em um processo mais
rápido que uma tramitação processual penal ordinária.

Dominic está prestes a se formar, assim como o resto dos meus amigos. Com
a formatura de Lewis daqui a umas semanas, faltará apenas seis meses até
que os outros se formem também. Apenas Jules ficará por mais três anos,
porque o curso de medicina é maior. Isso é claro, se ela não desistir da
faculdade para focar no que realmente quer.

— Então, o acusador vai apresentar provas contra meu pai, irá interrogá-lo e
depois o quê? — Dominic respira fundo, parecendo perder a paciência cada
vez mais.

— A única prova que o promotor teria é a gravação que você fez de Jeff, no
entanto essa é uma prova ilícita, que pode ser descartada pelo juiz, porém o
acusador espertamente conseguiu que Jeffrey testemunhasse hoje. Então, a
nossa melhor jogada nesse momento é torcer que ele se entregue e leve
Robert junto. Haverá a apresentação do resultado da perícia,e eles vão
debater entre si e mais um monte de coisas que você não precisa saber. —
Cubro os lábios com a mão, abafando a risada que anseia em escapar. — A
gente vai te avisar quando for importante.
— Quanta paciência você tem, Dominic. — Thomas ironiza, me fazendo
apertar os lábios. — Deveria ser o tema do seu trabalho de conclusão de
curso.

A menção no seminário acorda meu bicho da curiosidade, e eu levo os olhos


até Dominic, perguntando sobre o que ele irá falar.

— Princípios Constitucionais do Direito Penal. — Aperto meus olhos em sua


direção. — Não é tão ruim.

— Com certeza não é pior que o meu.

Dessa vez, não consigo evitar que a risada escape. Já que ouvi, durante um
dia inteiro, Nevaeh zombando da sorte de Thomas pela escolha de um tema
tão ruim para se falar em um seminário de conclusão de curso. Somos
interrompidos por um dos policiais, que avisa o início do julgamento.
Eckhoff se levanta e arrasta as mãos na coxa, limpando o provável suor na
calça. Ele parece afoito e arredio, empurrando uma pele do canto da unha
com os dentes.

Adentramos a sala junto com algumas outras pessoas. O lugar amplo contém
inúmeras cadeiras que acomodam quem irá assistir ao julgamento, e há um
corredor que leva até o plenário. Contendo a bancada do juiz, o assento do
escrivão, o gradil que acomoda o júrieas mesas do advogado de defesa, com o
réu e o promotor. Ao lado da balaustrada, uma cadeira mais alta com um
microfone exibe o ponto de interrogatório.

Thomas pousa a mão na base da minha coluna, me conduzindo até um dos


lugares no lado esquerdo. Ele parece não ter muita noção dos efeitos que
continua tendo em mim, e de como o calor de seu toque provoca um arrepio
intenso. É difícil saber quem está mais nervoso. Tento tranquilizá-lo por estar
prestes a assistir o julgamento do pai, bem como ele afaga minhas costas,
sabendo que darei um parecer no interrogatório como vítima.

Me acomodo na terceira fileira com Dominic do meu outro lado, e logo em


seguida Andrew. Thomas sussurra no meu ouvido, apontando para uma
mulher na primeira fila, indicando como a mãe de Lewis. Encaro-a de costas
para nós, os cabelos castanhos arrumados bem curtinho, com o pezinho feito.
Ela usa uma blusa de cetim bonita, e pela postura ereta, parece ser bem
elegante.

— Como será que ela está com tudo isso? — profiro baixo, próximo ao
ouvido dele.

— Lewis disse que ela não parece muito bem, mas também não quis falar
sobre. — Aceno com a cabeça em concordância. — Acho que, de certa
forma, será um alívio para ela se ele for condenado.

— Estamos torcendo por isso.

O som irreverente da campainha invade o local, indicando o início da


cerimônia. O pai de Thomas se localiza em seu lugar, e eu o analiso por uns
instantes, tendo acesso aos ombros largos cobertos por um terno elegante e a
cabeleira grisalha alinhada pelo gel. Ele lança um olhar cortante para nós, e é
quase impossível não estremecer. O juiz dá abertura a julgamento, realiza-se
o sorteio do júri, e os que não são sorteados recebem a orientação de se
juntarem à plateia ou irem embora.

O advogado de defesa apresenta o caso ao júri, indicando o nome do acusado


e da vítima. Em um primeiro momento, analiso o semblante cansado de
Andrew, que já pisca lentamente com sono sem ao menos ter começado a
audiência direito. Thomas parece meio perdido, como se não fizesse ideia do
que está acontecendo. Enquanto Dominic e eu mantemos o olhar
compenetrado em tudo que acontece. Dado o início da oitiva das
testemunhas, meu nome completo é proferido pelo juiz, quem media a
audiência.

Caminho a passos calmos até o plenário, sentando-me na cadeira localizada


ao lado da bancada de juiz. Ele estende a Bíblia e inicia o procedimento de
praxe.

— Mackenzie Rose Lennon, a senhorita jura falar a verdade e só a verdade?


— Com a mão pousada sobre a Bíblia, me ajeito sobre o assento.
— Sim.

A partir daí, conto tudo o que sei e lembro acerca do acidente. Em que lugar
faço a manutenção e o conserto dele, quem leva o Dodge até a Bolfok Ride, e
todos os momentos que precederam ao capotamento. O promotor questiona
possíveis motivos para que alguém me sabotasse, se tenho algum tipo de
rivalidade com determinado indivíduo. O advogado de defesa também me faz
algumas perguntas, contudo não é como se eu fosse de grande ajuda para a
resolução do caso. Acredito que tenha sido apenas um peão em meio a um
jogo muito mais amplo.

Depois que volto ao meu lugar, Jeffrey é convidado a se sentar como a outra
testemunha. Honestamente, eu me impressiono com a facilidade em que ele
conta tudo. Jeff explica todo o trâmite entre ele e Robert, adicionando
informações extras, como a parte da oficina de Thomas sobre a qual o pai
possui os direitos, e o fato de o Johnson não querer perder o controle sobre o
filho. O membro da gangue sabe muito mais do que achamos que saberia, e
isso é de muita ajuda. Dada a sua tranquilidade em excesso e o modo como
não deixa nenhum ponto de fora, me leva a pensar que Jeff fez algum tipo de
acordo com a promotoria. Isso costuma acontecer bastante, inclusive.

A explicação usada para entender a emenda da constituição é a seguinte: o


mandante do crime, o autor da peça movida no xadrez, deve ser punido de
maneira mais severa do que o peão, quem propriamente executou as ordens.
Então, é comum que haja algum tipo de acordo entre o acusado e a
promotoria. No caso de Jeffrey, o alvo da justiça é Robert, e se ele pode
entregá-lo, é provável que sua pena seja diminuída. Ou existe algum tipo de
acordo que deixe a gangue dos Lion de fora, porque em nenhum momento o
nome de John é mencionado.

Fico surpresa ao perceber que o juiz aceita a gravação como prova. Por ser
ilícita, geralmente não costumam levar em conta esse tipo de material. No
entanto, acredita-se que como o gravador apareceu— misteriosamente— na
porta do Detetive Blake, então é algo válido. Troco um olhar hesitante com
Dominic, pensando na mesma coisa: demos sorte. A defesa de Robert terá
que trabalhar muito para garantir sua absolvição.
Sinto meu celular tremer na bolsa e varro o local com os olhos, conferindo se
posso verificar a notificação sem ser pega, e evitar constrangimento. É meu
pai dizendo que pediu ao motorista que o trouxesse até Altoona para
conversarmos no caminho de volta a Bolfok Town. Depois de perder
completamente o dinheiro que recebi por correr contra Thomas, tive a
percepção de que precisaria de outra fonte de renda agora. E Howard Lennon
tem uma proposta.

Dominic me cutuca de leve e aponta para o plenário com a cabeça. O


momento de apresentação da defesa se inicia e assisto Thomas se remexer na
cadeira, contorcendo os dedos. Arrasto minha mão pelo tecido do meu casaco
até chegar em sua calça, e encaixo nossas palmas, apertando em sinal de
conforto. Ele me encara de esguelha e suspira, parecendo um tanto mais
tranquilo.

Durante os momentos de réplica da acusação e a tréplica do advogado de


Robert, consigo entender o que ele tenta fazer, que é colocar Jeff como único
culpado. Como um bode expiatório. Além de usar o laudo do Transtorno
Explosivo Intermitente do réu. No entanto, pelo modo como as coisas são
conduzidas, o crime cometido por Robert foi extremamente calculado, o que
significa que o transtorno não interfere em seus atos. Dom põe a mão na
boca, abafando a risada que seus olhos denunciam. Eu o cutuco levemente
com o cotovelo, em sinal de repreensão. Mantenho o olhar pregado no
julgamento, deslumbrada com a competência do advogado e do promotor,
ambos fazem seu trabalho muito bem. Penso que quero ser assim após me
formar.

A audiência percorre de maneira até tranquila, e as provas contra Robert são


tão consistentes que seu advogado precisa se esforçar três vezes mais para o
livrar dessa encruzilhada. A gravação é cristalina, assim como o depoimento
coerente de Jeffrey. Apesar disso, a defesa não desiste, e exibe uma postura
de quem tem tudo sob controledurante as alegações finais. Minha mão ainda
está entrelaçada a de Thomas, enviando sensações que provocam frio na
barriga, suor nas palmas e coração acelerado. Ainda me surpreende que um
simples toque seja capaz de causar tanto rebuliço em meu âmago.

O juiz anuncia o intervalo, período em que haverá a deliberação dos jurados,


para que a contagem de votos aconteça e saia o resultado de absolvição ou
condenação. Ademais, há a dosimetria penal, em que o juiz fixa a pena base,
pesando as circunstâncias atenuantes e agravantes. Desentrelaço meus dedos
dos de Thomas e me levanto, caminhando até o lado de fora enquanto o júri
se encaminha para a sala secreta para a decisão.

Encontro meu pai através das portas de vidro do fórum, encostado no meu
Cadillac parado no estacionamento. O policial orienta que eu não saia do
local, então me limito a acenar de longe para Howard. Volto ao corredor,
pegando água em um copo descartável e levando para Thomas.

— Obrigado — ele murmura, bebericando alguns goles.

Aceno com a mão, em um gesto contido, alegando que não foi nada.

— Caramba, que julgamento tenso. — Andrew espreguiça, erguendo os


braçose nos fazendo rir.

— Você deu vários cochilos. — Dominic revira os olhos, e o empurra de


leve. — Seu pai tem um ótimo advogado, irmão.

— Isso realmente me tranquiliza muito. — Seu tom é banhado de ironia.

— Eu aposto na condenação — me pronuncio, tentando aliviar um pouco do


clima mórbido.

— Dez dólares na absolvição. — Andrew parece desacreditado, e eu o lanço


meu melhor olhar repreendedor.

— Vinte dólares — rebato, tendo uma certeza inconfundível que Robert será
punido como deve.

— Uau. — Dominic solta uma risada baixa. — Está com dinheiro, Mack.

Antes que eu possa respondê-lo, Andrew solta uma risadinha com uma
sombra de sarcasmo e se pronuncia.
— Será por que, não é mesmo? — Todos se calam.

Porque sabemos o teor da ironia, e que essa é uma alfinetada óbvia ao fato de
eu ter tido um acordo com o cara que está sendo julgado agora mesmo.
Independentemente do quanto eu já tenha me justificado, sei que certas
mágoas permanecerão vivas neles por um tempo.

— Aposto dez dólares na condenação também — Thomas retoma o diálogo,


e pisca um dos olhos para mim, me deixando aliviada por amenizar a tensão
que se embrenha entre nós.

— Andrew, parece que morrerá em vinte dólares para cada um de nós. —


Dominic ri baixo.

— Não é assim que funciona, cara.

Antes que possamos entrar em uma discussão mais séria acerca de como
funciona esse tipo de aposta, um dos policiais indica que o julgamento voltará
do intervalo com o resultado da sentença.

Voltamos aos nossos lugares, retorcendo os dedos em puro nervosismo.


Avisto a madrasta de Thomas massageando as têmporas, falando brevemente
com seu enteado, que foi para o seu lado dar apoio após o resultado da
audiência. Gosto disso nele, o modo como tenta se dividir para dar uma
atenção especial a todos que precisam, mesmo que o mais necessitado, por
vezes, seja ele.

O julgamento recomeça, e eu me sinto nervosa. Porque sei que a sentença


será dada, mastalvez o pai de Thomas não fique tanto tempo na prisão, além
de que o fato de o homicídio não ter sido consumado, já que estou viva, pode
ajudá-lo com a pena. Por fim, quando a palavra condenado é pronunciada,
meu cérebro passa a rebobinar em um loop infinito. Um arquejo perpassa
pela garganta, procurando alívio do nervosismo absurdo que me envolve.

Procuro Thomas com os olhos, e o vejo pregar as vistas arregaladas em mim.


Ele está visivelmente surpreso, assim como o resto da plateia. O detetive
Blake e Jeffrey tem uma sombra de sorriso pairando sobre os lábios,
enquanto o juiz pronuncia a sentença de dez anos em regime fechado, até que
Robert possa começar a recorrer por uma diminuição da pena.

Dez anos. Parece loucura. Não sei como Lewis vai reagir, mas de certo,
estará um tanto aliviado. Todos eles estarão. Encaro Joanne, a madrasta de
Thomas, e fico um pouco aliviada, sabendo que ela terá esse tempo para se
libertar, receber ajuda, e talvez retomar as rédeas da sua vida. Lewis sempre
disse que sua mãe amava a profissão com todas as forças. Então, essa acaba
sendo uma oportunidade para todos eles.

Dominic me abraça apertado, parecendo igualmente aliviado. Ao passo que


Andrew envolve seus braços fortes ao meu redor de um jeito mais distante e
genérico. Entendo o gesto, ele demora um pouco mais para processar certas
mágoas. Logo depois, os dois vão confortar Thomas, que não parece nada
triste, muito pelo contrário. Me junto a eles, acariciando o ombro de Eckhoff
em um gesto de conforto, sem saber se estamos com intimidade o suficiente
para um abraço.

Contudo, ele afasta todas as minhas dúvidas no instante em que envolve


minha cintura e meus ombros, juntando meu corpo ao seu. Posso sentir sua
quentura infiltrando em mim, e seu hálito soprando no meu pescoço, me
causando arrepios. As mesmas sensações de sempre, é claro. Como se
inúmeros explosivos estivessem estourando dentro de mim. Alguém
pigarreia, interrompendo nosso momento, e nos separamos, completamente
acanhados.

Arrasto as palmas nas coxas, sentindo o tecido afastar os resquícios de suor.


Coço a língua no céu da boca, ouvindo o barulho irritante e prego o olhar em
Dominic, assistindo um sorriso sugestivo se esgueirar por entre seus lábios.
Ignoro-o e me apresento à Joanne, entrando em uma conversa amena sobre o
clima enquanto saímos da sala de julgamento.

Avisto meu pai se aproximando, finalmente podendo adentrar o fórum.


Thomas empertiga a postura, ajeitando as vestes sociais no corpo, como se a
presença de Howard ainda o intimidasse, tal como era quando estávamos
juntos.
— Oi, Maze. — Meu pai beija o topo da minha cabeça e eu devolvo o
cumprimento. — Ei, filho, como está?

O ar parece ficar denso pela maneira com que meu pai trata Thomas,
chamando-o de filho em um gesto carinhoso e paternal. Como se soubesse
que o louro precisaria exatamente disso neste momento. Ele afaga o ombro de
Eckhoff, parecendo saber o resultado, e logo acena para o resto das pessoas.

— Essa é a minha madrasta, Joanne. — Howard pega a mão dela,


cumprimentando-a de maneira educada.

Ao passo que o público vai se dispersando, consigo ver uma movimentação a


mais dos policiais, e sei o que vem agora. Robert passa pelas portas
principais, algemado, imerso em uma carranca arrepiante. Devo confessar
que independentemente do meu semblante neutro, esse cara intimida, me dá
medo. Ele lança um olhar gélido para nós, mas o agente de segurança
oempurra até a saída antes que o homem dissesse algo.

O clima fica tenso e um silêncio sepulcral dissolve no ar, mantendo nosso


olhar preso na porta que ainda balança devido à passagem recente de Robert.
Meu pai pergunta se podemos ir e eu me despeço das outras pessoas.

— Obrigado pelo apoio. — O sussurro de Thomas em meu ouvido me


provoca um arrepio instantâneo. — Se cuida.

Ele beija a minha testa, e de repente, quero chorar. É uma vontade dilacerante
que parece rasgar tudo por dentro, embaçando meus olhos rapidamente. Sinto
tanta falta dele. A pressão de seus lábios macios em contato com a minha
testa em um gesto tão cuidadoso me traz memórias dos melhores momentos
da minha vida. E cada vez mais entendo a proporção do que perdi, porque
Thomas deixou bem claro quando disse que não quer voltar comigo.

E por que iria querer?

Ele pode encontrar alguém muito melhor, que se entregue por inteiro, que
conquiste sua confiança e não a quebre. Lanço um sorriso amarelo para o
resto das pessoas e apresso os passos, ouvindo o contato do solado dos
sapatos sociais de papai batucando no piso com afobação. Afundo o dedo no
botão do alarme e destranco o Cadillac, me enfiando no banco do carona e
entregando a chave para meu pai.

Assim que ele se acomoda atrás do volante, enxerga as lágrimas descendo


pelo meu rosto, então, sem dizer nada, me abraça forte, mesmo que a posição
seja desfavorável.

— Você foi mais forte do que precisava. — Ele me acalenta. — Aguentou o


bastante, acredite.

Odeio essa sensação.

Queria estar brigada com Thomas, ou com algo mal resolvido, porém com a
certeza de que tudo ficaria bem, afinal. No entanto, o que sinto agora é a
percepção clara de que estamos bem, e que ele provavelmente já até me
perdoou pela mentira. Mas, não me quer de volta. Estamos definitivamente
terminados. E a parte da ficha que não havia caído, desmorona nesse exato
momento.

— Tenho uma notícia que talvez te alegre.

Inflo as narinas, captando a maior quantidade de ar que consigo e expiro,


repentinamenteanimada com seja lá o que ele tem a dizer.

— Tenho uma amiga advogada montando um escritório apenas com


mulheres, e ela me disse que está precisando de uma estagiária.

Arregalo os olhos, e meu queixo despenca um pouco. Sinto um incômodo no


peito e só então reparo que estava prendendo o fôlego. Um estágio? Meu
Deus. Isso com certeza alegra meu dia cem porcento. Porque nada está acima
de mim, porém abaixo está a minha carreira. É uma das coisas mais
importantes do que qualquer homem no mundo.

— Porra... — Deixo o palavrão escapar e meu pai ri. — Quando começo?

— Calma. A Jennifer fará uma entrevista com você, e o fato de ser minha
filha não vai pesar muito, a menos que se saia bem. — Aceno fervorosamente
com a cabeça. — Ela vai te avaliar, e se tiver o que é preciso para o cargo,
estará contratada. Nada de corridas clandestinas mais.

Agarro o pescoço de Howard em um abraço caloroso, que esboça tudo que


sinto. A felicidade por não precisar pedir dinheiro para me manter, sabendo
que a pensão de vovó e o salário do estágio serão suficientes, me domina.
Isso é claro, se eu for contratada. O que tenho certeza que serei, porque sou
boa o bastante.

Embora a dor do término ainda se esgueire pelo meu corpo, a grandeza que
sempre almejei sentir vai me invadindo. Começo a ter noção do quanto sou
imensa, e nem estou sentada em um Dodge Charger.
Odeio estar atrasado.

Costumo deixar meu relógio de pulso adiantado em alguns minutos, porque


assim posso me arrumar com mais calma e ainda chegar na hora. Não hoje,
pelo que parece. Visto as roupas em uma velocidade surpreendente e bufo
com raiva ao perceber a blusa colocada do avesso. Essa é a merda de atrasos,
te faz apelar para a pressa, e ela sempre será fiel inimiga da perfeição.

O horário de visitas da penitenciária estadual de New Hisinfield, localizada


em Altoona, se inicia daqui a uma hora, e o percurso de Bolfok Town até lá
dura exatamente o mesmo tempo. Vai dar certo. Após o julgamento de
Robert, tive alguns dias para pensar a respeito de tudo que vem acontecendo
ao meu redor. Surpreendentemente, John não ficou tão puto por Jeff ter sido
pego, já que ele conseguiu algum tipo de acordo judicial que diminuiu sua
pena e deixou a gangue de fora das investigações. Os Lions são como
vampiros que estabelecem seus impérios por anos, de modo que um legado
foi criado e passado de geração para geração. E nenhuma autoridade deu
atenção o suficiente para acabar com o esquema deles.
Robert Johnson terá dez anos para sucumbir no regime fechado até poder
recorrer para responder em condicional. Honestamente, não sei bem como
nada disso funciona. Só consigo desfrutar do alívio de saber que Lewis está
convencendo sua mãe a começar consultas com um terapeuta e ir até grupos
de mulheres vítimas de relacionamentos abusivos. Acredito que, no fim das
contas, as coisas irão se acertar.

No entanto, enfrento algumas noites mal dormidas, pensando nas coisas que
eu ainda gostaria de ouvir da boca do meu pai, ou simplesmente a vontade de
vê-lo atrás das grades. E, finalmente, deixando sua família livre.

Remexo em alguns papéis em minha escrivaninha e percebo um envelope


escondido por entre as pilhas de conta para pagar. A letra cursiva e bem
desenhada de Mackenzie me saúda, e parece que meu coração bate mais
forte. Inspiro e expiro com calma, tentando não sucumbir ao nervosismo e
efeitos que essa mulher me causa. Enfio o envelope na primeira gaveta,
sabendo que se parasse para ver qualquer coisa agora, me atrasaria ainda
mais.

Termino de me arrumar e desço a escada a passadas largas, pulando alguns


degraus. Assim que a sala de estar entra em meu campo de visão, avisto
Nevaeh sentada na nossa poltrona, com Lewis, Dominic e Andrew a sua
volta, retirando suas tranças.

É um tanto engraçado observá-los, porque Andrewmove os dedos com


maestria, bem como Dominic, que asdesfaz com habilidade. Contudo, Lewis
encara as trancinhas como se elas fossem uma equação matemática
complexa, pensando em seu próximo movimento bem calculado.

— Sabe, Lewis. — Aceno para os outros em um cumprimento breve. — As


tranças não irão se desfazer com a força do pensamento.

Nevaeh prega os lábios, tentando não rir, bem como Lewis muda o semblante
pensativo para um ofendido.

— Estou pensando em uma maneira de desfazê-las mais rápido. — Dominic


se limita a revirar os olhos, mantendo concentração total no cabelo.
Deixo que uma risada alta escape enquanto caminho entre eles, analisando a
metade do cabelo crespo de Nevaeh que já está livre das tranças. Se depender
do ritmo de Lewis, eles não terminarão nunca.

— Confesse que você é péssimo com trabalhos manuais — acuso.

Encaro-o com um brilho nostálgico no olhar, relembrando dos momentos de


nossa infância que Lewis se mostrava péssimo em tudo que envolvia as mãos.

— Eu posso te refutar com propriedade. — Andrew diz e fico desacreditado


com o sorriso sugestivo que se esgueira pelo rosto dele.

Acerto seu pescoço com um tapa leve.

— É do meu irmão que está falando, idiota.

Aviso-os que estarei fora pelo resto do dia para visitar meu pai na prisão.
Nenhum deles concorda muito com essa ideia, porque acham que Robert
pode me machucar ainda mais com suas palavras brutas. Bom, não sei se ele
ainda tem capacidade de causar mais estragos do que já causou.

Deixo Dominic, Andrew e Lewis desfazendo as tranças do cabelo de Nevaeh.


E segundo eles, aproveitarão para usar máscaras faciais caseiras e hidratações
capilares. É isso que um final de semestre causa nos alunos da Bolfok
College: falta do que fazer. Nem me preocupo em perguntar por Mackenzie,
porque segundo sua melhor amiga, agora ela está ocupada com o processo de
admissão no estágio.

Não sei muito bem como tudo funciona, porém Dominic comentou
brevemente que ela passou na entrevista e foi contratada, agora só falta
finalizar as documentações. Sempre soube que Lennon seria incrivelmente
boa no que decidisse fazer da vida.

Mantenho a atenção no trânsito até enxergar a placa que expõe a fronteira de


Altoona. A penitenciária estadual fica logo após o limite da cidade, um
grande complexo de prédios e construções, bem afastado da metrópole. Ergo
meu documento de identificação para o guarda situado na guarita e estaciono
o carro no pátio central.

O complexo penitenciário é adornado por grades espessas e metálicas, com


cercas elétricas e um sistema de segurança de última geração, que contrasta
com a construção ampla de concreto meio antiga. O local é todo em tons
brancos e cinzentos, completamente mórbido. Faço os procedimentos
necessários para entrar na visitação e assisto algumas dúzias de pessoas se
encaminharem pelos largos corredores, seguindo até as alas que desejam.

Sou encaminhado até uma pequena sala, contornada por vidros escurecidos,
em que posso enxergar meu pai sentado de um lado da mesa lá dentro, porém
ele não pode me ver aqui fora. Escuto o tilintar da algema sendo presa em um
suporte abaixo da mesa, e adentro o lugar pequeno e bem iluminado.

Lewis o visitou em sua primeira semana na prisão, contudo, eu não consegui


me preparar psicologicamente tão rápido para enfrentá-lo. Meu irmão
assegurou que havia sido tranquilo, e que Robert não parece estar em sua fase
de negação. Pelo contrário, confessou de maneira fria, sem a presença de
qualquer remorso.

— Thomas Johnson. — Encaro os cantos dos seus lábios erguidos em um


sorriso cínico e giro os olhos.

Sou tão acostumado a usar o sobrenome de minha mãe que é estranho ouvi-lo
me chamar assim.

— Robert — aceno fracamente com a cabeça, me acomodando em sua frente.

A cadeira é de metal, e dói em contato com as minhas costas. O policial se


mantém ao lado da porta, tão estático que preciso conferir se ele sequer pisca
os olhos. Ignoro sua presença intimidadora e prego as vistas na figura de
Robert. Ele parece mais acabado do que o normal, vestindo o uniforme cinza
da penitenciária, com os cabelos grisalhos — que um dia já foram tão loiros
quanto os meus— desgrenhados e alguns bolsões arroxeados abaixo dos
olhos escuros.
Encará-lo é como ter acesso a uma versão mais velha de Lewis, apenas na
aparência, espero. Lembro de alguns flashes da minha infância em que
Joanne ouvia as famosas frases indicando que seu filho veio com a cara do
pai. Os olhos castanhos são como a janela para sua alma vazia, entupida de
questões não-resolvidas. Ao contrário dos de Lewis, que exalam sensibilidade
e vibram de um jeito intenso sempre que algo o deixa feliz. A textura dos
cabelos se assemelha muito ao meu e do outro Johnson, diferenciando
unicamente pelos meus fios um tanto mais grosso. Os meus conseguem ficar
espalhados em inúmeras direções diferentes, ao passo que os de Lewis caem
em sua testa, de um modo alisado.

Um dia, os cabelos grisalhos de Robert já foram tão loiros quanto os nossos,


me fazendo lembrar das diversas fotos arrumadas em um álbum de capa
velha e gasta. Escrutino seu nariz pontudo e reto, os lábios mais cheios que os
meus, e as linhas de expressões que somam às rugas da testa. Vendo-o por
esse ângulo, consigo diferenciar exatamente em que ponto terminam as suas
características espelhadas em meu rosto, e onde começam as da minha mãe.
Sou uma mistura desconexa entre os genes de Robert Johnson e Noora
Eckhoff, e isso é muito extraordinário. Porque analisando exclusivamente a
aparência, é possível até cogitar que Lewis é filho apenas do homem, sem
interferência genética de sua mãe.

No entanto, a personalidade de Joanne reflete tanto na de Lewis que qualquer


um agradeceria o rapaz ter ficado somente com os lados bons, porque
perceber que existem semelhanças com o caráter de Robert, pode causar
danos graves a uma pessoa. Honestamente, entro em uma pequena crise
sempre que identifico algumas características interiores do meu pai refletidas
em mim. Acontece quando sou grosseiro, ranzinza, reclamão e carrancudo.

— Sabia que é simplesmente impossível dormir naquela cama horrorosa? —


a voz dele interrompe os devaneios. Mantenho os lábios grudados, enquanto
o assisto agir como se não tivesse mandado matar minha ex-namorada. — E
aquele quarto pobre e sem cor? Você sabia que a privada é no mesmo lugar
onde dormimos? O cheiro é péssimo.

— E você vai passar, pelo menos, dez anos aí dentro. — Relembro-o, a voz
escapando arranhada da garganta.
— Quando mandei Jeffrey sabotar sua garota, eu não queria matá-la, apenas
dar um susto.

Não evito que a risada sarcástica ressoe pela sala.

— Não acredito em você.

Mackenzie só não ficou em estado mais grave ou morta, porque a


aparelhagem interna do veículo era reforçada. Após o acontecimento de
acidentes feios em pistas de Fórmula 1 e Stock Car, a mecânica dos carros foi
reforçada para que o número de tragédias diminuísse. Assim, com o aumento
de segurança no esporte, culminaria em mais concorrentes. Aos poucos, a
nova tecnologia foi se espalhando, chegando até os carros de corrida de rua.
No entanto, guardo essa informação para mim. Robert claramente não sabia
disso, e caso soubesse, eu temia que pudesse tentar usar em uma possível
reparação de pena.

— Você tem seus motivos para não confiar em mim.— Respiro fundo,
reunindo paciência para lidar com ele. — Mas eu não tenho motivos para
querê-la morta. Só quis puni-la por ter quebrado nosso contrato como se ele
não fosse nada.

— Por que está me dizendo isso, Robert? Não querer matá-la pouco ameniza
os fatos.

Robert empertiga a postura na cadeira, e sua expressão me assusta de certa


forma. É tão fácil perceber o quanto ele é dissimulado. O rosto meio
enrugado e os lábios grossos estão suaves, alinhados em uma pacificidade
extrema. Porque no fim das contas, nada e nem ninguém tem poder o bastante
para arrancá-lo desse estado de letargia eterno. É como se o Johnson fosse
um típico cidadão estadunidense, tomando café com sua família admirável, e
não um criminoso condenado.

— Não quero que ache que seu pai é um monstro. Entenda uma coisa, filho.
Você só tem a mim, e é por isso que eu me empenho tanto pelo seu bem.
Paguei essa mulher para correr contra você e ganhar porque não quero que
essa sua sede de independência te jogue fora tudo que pode ter ao lado do seu
pai. Se unindo a mim, o mundo estaria aos seus pés.

Tenho vontade de rir. Muita. Tombo a cabeça para trás, batendo contra o
ferro do encosto da cadeira, explodindo em gargalhadas. Robert só pode ter
algum problema além do transtorno diagnosticado. É como se a quantidade
de vezes que ele me bateu ou falou coisas horríveis não tivessem valor, como
se não houvesse nada demais em acabar com a saúde mental do próprio filho.
Conheço seus pais, e sei que sua criação foi arcaica e tradicional, em que o
homem era o provedor majoritário, fornecedor de sustento e segurança. No
entanto, entendo que suas atitudes vão além de sua condição psicológica.

Cruzo os dedos em cima da mesa.

— Eu não tenho só a você. Pelo contrário, estou cercado de gente que me


ama e me faz bem. Não preciso do seu dinheiro e de nada que venha de você.
Entenda uma coisa você, Robert. Todos sabem o quanto você é maníaco por
controle, e ama o fato de ainda ter algum tipo de poder sobre mim tendo uma
parte da oficina. Contudo, veja só agora pai, não tem mais controle de nada.
— Assisto seu sorriso aumentar um pouco.

Robert sempre surpreende em suas reações aos atos de qualquer um, e acho
que é assim que seus negócios deslancham. Se você espera um semblante
triste, ele te traz um feliz. Se alguém diz algo para magoá-lo, o homem
estende o sorriso para mostrar que nada pode afetar seu ego construído por
muralhas indestrutíveis. Essa quebra de expectativa culmina na
desestabilização da outra pessoa.

— Thomas, eu sei que você incrustou na mente que eu comprei a oficina com
o único objetivo de te manter sob meu controle. Porém, pense um pouco. Eu
não tenho poder em absolutamente nada do que diz respeito a sua empresa, já
que você é o acionista majoritário. Naquela época, em que assisti meu filho
cabisbaixo por não ter crédito bancário o bastante para abrir o negócio dos
sonhos sozinho, quis te ajudar. — Suas palavras vão se embolando em minha
mente como um novelo de lã. — Queria compensar de algum jeito o mal que
te fiz. Nunca foi minha intenção exagerar nas punições, como pai, eu só
queria o seu bem. Gostaria profundamente que você entrasse em uma boa
faculdade, completasse o curso e tivesse tudo o que sempre sonhou. Mas,
você era um filho rebelde, e eu precisei te colocar nos eixos de algum jeito.

Eu gostaria de dizer que não, mas o discurso dele me afeta. As palavras se


organizam de modo incoerente em minha mente, e eu me pergunto se Robert
está sendo verdadeiro ou apenas tentando me manipular mais uma vez. Então,
finalmente entendo. Eu nunca vou ter essa resposta porque para isso, eu teria
que confiar no que ele diz. E já estou tão calejado de seus maus tratos que é
impossível aceitar seu discurso.

— O seu jeito de me colocar nos eixos acabou comigo. E eu enfrento batalhas


diárias com os meus pensamentos conflituosos por sua causa. — Engulo em
seco, comprimindo a vontade de chorar. — Então, pouco me importa os seus
motivos, lamentações ou arrependimentos. Já é tarde para isso. Você me faz
mal, e sempre será um direito meu não te querer por perto.

Pouco me importa suas tentativas compensatórias de me encher de presentes


ou comprar parte da oficina para me ajudar. A carícia que você dá depois da
porrada torna-se inválida quando a ferida já foi aberta.

Coloco a cadeira no lugar, e lanço-o um último olhar de pena. Robert finge


que não, mas essa prisão está acabando com ele de diferentes formas. Dez
anos não é uma pena absurda, porém todos sabem o quanto ele perderá
credibilidade por tanto tempo preso. Ainda mais no ramo dos negócios.
Quem irá querer fazer um investimento ou acordo de tamanho risco? Com
um ex-presidiário. Infelizmente, as coisas são assim no mundo maquiado dos
investidores.

— Thomas. — Giro sobre os calcanhares ao ouvir o chamado. — Daqui a


dez anos, quando eu sair desse lugar, vou me reerguer e recuperar tudo que
perdi, mas não irei atrás de você. Já que lhe fiz tão mal, prefiro manter a
distância.

É um jogo que eu já esperava antes mesmo de vir até aqui. Robert se acha
imbatível, poderoso o bastante para conseguir tudo o que quer. Ao mesmo
tempo em que acredita fielmente no bem que suas atitudes farão aos seus
filhos. Ele acha que assumir uma postura punitiva corrigirá nossos erros, e o
fato de exagerar nas suas agressões para comigo, somado ao agravante do
transtorno explosivo, culminou na sua necessidade de compensar seu exagero
através de presentes e pequenas ajudas financeiras.

Independentemente disso, tenho o direto de não querê-lo perto de mim.

— É um favor que você me faz.

O único motivo pelo qual as pessoas ainda aturam um cara como Robert é a
dependência, emocional e financeira. Ele quem quis assim. Escolheu,
conscientemente, ignorar ajuda profissional. E nenhum de nós tem a
obrigação de aguentar ser maltratado, ter as energias sugadas e a saúde
mental roubada. Joanne, Lewis e eu merecemos essa liberdade, o poder de
escolher estar perto de quem nos faz bem.

Não espero pela resposta de Robert, dou as costas e caminho para o lado de
fora. Sou conduzido pelo policial até a recepção, para recolher meus
documentos e receber a liberação para ir embora.

Assim que o vento fresco se choca ao meu rosto sinto os fios displicentes do
cabelo arrastarem pela testa. Encaro a construção de concreto e um sorriso de
alívio ameaça escapar. É realmentecomo estar livre. A sensação se embrenha
pelo corpo, acelerando o coração e causando um frio na barriga. Com sorte,
conseguirei o dinheiro que falta para quitar a oficina e, assim, comprarei em
definitivo a minha liberdade.

Sinto um peso sair dos meus ombros ao lembrar que, com Robert preso, os
direitos sobre os bens deles são transferidos diretamente a sua esposa, Joanne,
porque os dois se casaram com comunhão total de bens. Assim, quando eu
tiver o dinheiro por inteiro, pagarei a ela e terei minha oficina só para mim.

Recebo algumas notificações do grupo do seminário de conclusão de curso, e


o brilho da tela do celular me faz apertar as vistas por um momento. Vejo que
Rebecca, uma das integrantes do grupo, dá a ideia de nos reunirmos no
apartamento dela para conhecermos um ao outro e conversar sobre o
trabalho. A ideia é começar e apresentar o mais cedo possível, para nos
livrarmos logo.
O período finalizando me faz lembrar que logo após a semana de Spring
Break, teremos a formatura de Lewis, acompanhada do período de draft para
os times da liga profissional. É meio absurdo pensar que ele já está se
formando, e que daqui a pouco mais de seis meses, serei eu.

Respiro fundo, pensando em todas as pendências que tenho que finalizar para
partir de Bolfok Town logo após a formatura. A ideia é deixar a oficina daqui
sob o comando de Luke e sair à procura do meu lar, da cidade que pretendo
viver pelo resto da vida, e desse modo, abrir outra oficina lá, a fim de ter uma
rede de franquias. Encaro o horizonte diante de mim e uma sensação de
nostalgia se alastra em meu âmago. Estou cada vez mais perto de ser o
Thomas que sempre almejei ser.
A semana de Spring Break sempre é muito agitada. Como um sopro
de alívio após um semestre exaustivo e um inverno rigoroso. Costuma ser
marcada pelos raios solares um pouco mais fortes e pela quantidade
exorbitante de festas e festivais. Eu aproveitei o recesso para descansar,
porque sabia que logo no início do próximo período já começaria a trabalhar
como assistente em um escritóriode advocacia. A ideia era passar todos
juntos se divertindo, contudo, Lewis, Thomas, Andrew e Dominic foram para
Oroland County, levando Nevaeh. E eu também fui convidada, porém não
causei surpresas ou frustrações no instante em que neguei, apenas para não
passar sete dias convivendo com Thomas.

No fim das contas, passei a semana em Dilshad Town, comprando roupas e


acessórios novos, vendo filmes e saindo para alguns lugares com meu pai.
Até Lidia nos acompanhou em algumas programações. Jules e Maxon foram
para Palm Springs, levando Hannah e Josh como convidados. Acompanhei a
viagem inteira através das redes sociais e quase me senti lá com eles. Até que
foi bom ter usado da semana para descansar, de fato.

Logo após o Spring Break, Lewis se formou, e óbvio que algumas lágrimas
de emoção escaparam dos olhos ao vê-lo tão lindo dentro da beca azul
celeste. Cerimônias de colação de grau sempre trazem um sentimento de
orgulho e uma sensação de nostalgia. Porque você sabe que um ciclo está
sendo finalizado para alguém que ama, e que daqui para a frente, ele
conquistará o mundo.

Encaro a confusão que está o campo de futebol americano, e o corpo de


Lewis sendo erguido por uma massa de jogadores absurdamente felizes. O
evento anual é o mais aguardado da intertemporada do esporte, e costuma ter
os ingressos muito disputados. Resumidamente, o Draft tem sete rodadas,
divididas em três dias. Os jogadores que tenham passado, pelo menos, três
anos na modalidade universitária do esporte estão aptos para o recrutamento,
em que times profissionais fazem as escolhas dos ídolos da faculdade. A ideia
é ter uma equipe profissional equilibrada, por isso, os times com as piores
campanhas da temporada escolhem primeiro.

Por sorte, estamos no último dia e Lewis foi recrutado pelos Tigerstoon, o
time da cidade de Altoona, um dos melhores da temporada. O uniforme de
blusa dourada e capacete branco combina perfeitamente com seus fios
aloirados, e o número onze preto estampado logo acima do “Johnson” é
bonito e extravagante. Consigo vê-lo abrir um sorriso largo mesmo daqui da
arquibancada, e meus lábios erguem instantaneamente.

Nem todo jogador tem tanta sorte nos dias de draft. Por exemplo, Joshua foi
recrutado no primeiro dia por um time que teve uma temporada péssima. Já
Maxon ficou no meio termo, em uma equipe que oscila bastante no número
de vitórias. Sinto algo emborrachado bater contra minha bochecha e arregalo
os olhos para Nevaeh.

— O que foi isso? — Capturo sua luva com a temática do time, que tem o
dedo indicador erguido.

— Desculpa, me animei demais. — Abraço Nev de lado, negando levemente


com a cabeça.

A Bolfok College está sediando os jogos de recrutamento deste ano, então


fica combinado que nossa vitória será comemorada no bar dos Eagles, com
temática Viking. Minha língua pinica só de pensar na cerveja artesanal deles.

Quando as comemorações em campo se dão por finalizadas, nós não


perdemos tempo ao descer os degraus da arquibancada para parabenizar
Lewis. O protagonismo hoje é todo dele. Assisto Andrew pressionar os lábios
nos dele em um selinho casto, e quase me derreto por eles. Só quem convive
com o Johnson consegue ter uma mínima dimensão do que ele precisou
passar e esconder para estar assim, nesse momento, expondo ao mundo o
quanto está em um relacionamento incrível, e na imensidão dos sentimentos
bonitos que envolvem seu coração. As pessoas ficam um tanto quanto
surpresas, mas exibem grandes sorrisos, celebrando o amor.

Assim que Lewis se afasta de Andrew, não perco tempo ao envolver seus
ombros com os braços, parabenizando-o e demonstrando pelo menos um
pouco de todo o orgulho que sinto. O resto dos nossos amigos falam com ele,
e o loiro pede alguns minutos para tomar uma ducha e se trocar no vestiário,
a fim de irmos comemorar. Após três meses que meu relacionamento com
Thomas ruiu completamente, e que todos descobriram os segredos que me
rondava, já não me sinto tão deslocada em meio a eles.

Jules já me trata como antes, assim como todos os outros. Andrew teve uma
conversa especial comigo, em que pôde admitir que foi um tanto cruel no dia
em que conversamos em sua casa. Ele reconheceu que também já machucou
o próprio amigo e que errar nos faz humanos, mas, acima de tudo, buscar
pelo reparo desse erro exprime o quão sólido o caráter de alguém pode ser.
Ter esse diálogo foi, de fato, uma das minhas maiores alegrias durante esse
período, porque eu soube que, embora o atrito tenha sido grande,
principalmente pelo instinto protetor dele, no fim das contas, nossa relação
voltaria ao normal naturalmente.

É claro que com Thomas as coisas são um pouco diferentes. Faz algumas
semanas que deixei o envelope em sua casa e, segundo as fofocas que faço
com Dominic, parece que ele nem leu. Bom, talvez nunca leia, no fim das
contas. Não tenho que ficar esperando por isso. Para falar a verdade, preciso
trabalhar para esquecer tudo.

Os pensamentos se perdem assim que uma música animada explode no alto-


falante do Cadillac. Nevaeh ocupa o banco do carona, descansando um pouco
do estofado da garupa desconfortável da moto de Dominic. Honestamente,
acho que minha amiga percebeu o quanto a presença de Thomas me deixa
ansiosa. Ainda não o vi, já que ele não assistiu ao jogo conosco, mas só a
possibilidade de o encarar no bar acumula gotículas de suor nas palmas das
mãos.

— Às vezes, penso que chegou a hora de você começar a fingir que Thomas
não te afeta mais. — Giro o botão para abaixar o volume e franzo o cenho.

— Do que você tá falando?

Nevaeh suspira, e se remexe no banco. Algo, definitivamente, está


incomodando-a.

— O que houve, Nevaeh? — Estaciono nas vagas restantes do


estacionamento lotado do bar, e tombo meu corpo para olhá-la.

— Eu acho que Thomas veio acompanhado.

Nevaeh pronunciaas palavras de maneira tão rápida e repentina, que quase


não escuto. Interrompo os movimentos, por uns instantes, conferindo se ouço
corretamente. É compreensível até, já que faz três meses que terminamos. No
entanto, dói como o inferno. Parece que meu coração está sendo amassado,
comprimindo-se na caixa torácica, ao passo que o corpo sofre um espasmo
leve. Existia uma esperança tola, esgueirada nos cantos do meu coração, em
que nós voltaríamos em um futuro próximo.

— É... — pigarreio — cada um tem seu tempo para superar. Infelizmente,


tudo que sinto por ele está na mesma proporção e intensidade, senão ainda
maior. Se ele superou, bom para Thomas.

— Amiga. — Nevaeh envolve minhas mãos nas suas, em um gesto de


conforto. — Todos nós estávamos alimentando essa ideia de que vocês
voltariam logo, e que esse seria um término breve. Mas, talvez seja
definitivo. Odeio ter que dizer isso.
Engasgo levemente, o choro estrangulado na garganta e os olhos embaçados
pelas lágrimas que ameaçam cair. Respiro fundo, engolindo em seco e
esfregando os olhos com força. Massageio as têmporas por alguns segundos,
e penteio as sobrancelhas com os dedos, afastando qualquer resquício de
choro.

— Você está certa.

É a única coisa que me limito a dizer antes de sair do carro e caminhar a


passos largos pelo estacionamento. Posso até escutar o batuque do solado do
all star de Nevaeh contra o asfalto, tentando me alcançar. Arrasto os pés no
tapete da soleira e empurro a porta pesada, adentrando o bar.

Não consigo identificar muito bem onde cada mesa começa e termina, por
causa da embolação entre as pessoas. O lugar está tão cheio que há
universitários se espremendo na bancada das bebidas, e os bancos
acolchoados abrigam mais gente do que o comum. Embora estejamos na
primavera, o tempo está frio do lado de fora, e no interior, a gola do meu
casaco pesado acumula umidade, por causa do suor. Flexiono os dedos,
ficando na ponta dos pés, tentando encontrar nosso grupo de amigos. E, para
a minha infelicidade, a primeira pessoa que acho é Thomas, junto da sua
acompanhante.

Até sinto a mão de Nevaeh cobrir meu ombro, tentando me confortar, mas
não consigo tirar os olhos da cena. Há uma mulher loira, com os cabelos lisos
quase brancos, totalmente platinados. Um sorriso largo expõe seus dentes
alinhados e os olhos castanhos diminuem por causa das bochechas elevadas.
A pele marrom combina com a luz baixa do bar e parece dar um efeito
especial em sua presença. Algumas tatuagens adornam seus braços, na parte
visível pelas mangas 3/4 da blusa preta de linha que usa.

— Uau. — Tiro alguns fios do rosto, arrastando a mão pelo cabelo. — Ela é
muito linda.

— Sem chances. — Nevaeh se irrita, capturando meus dois ombros e me


virando de frente para ela. — Você não vai fazer isso consigo mesma. Ela é
linda, você é linda, eu sou linda, assim como todas as mulheres são. Os
pensamentos que estão surgindo na sua mente agora mesmo cortem-os pela
raiz.

Respiro fundo, espantando qualquer indício de insegurança, e deixo que Nev


agarre meu pulso e me arraste até a nossa mesa. Aceno para todo mundo de
longe, e sinto alguém puxar minha mão levemente antes que eu possa
mesentar.

— Vamos dançar. — Lewis aponta com a cabeça para o outro canto do bar,
longe de todos e eu quase agradeço de joelhos.

Sei que ele está tentando me afastar do clima pesado que se instaura na mesa
assim que chego, porque é perceptível o modo como os petiscos interrompem
os caminhos até as bocas, os olhares entre as pessoas são trocados e o ar
parece se tornar mais espesso. E, mesmo que ninguém admita, a maioria dos
presentes ficam desconfortáveis pela presença da ex no mesmo ambiente que
a atual. Que piada. Não é como se eu fosse fazer um escândalo ou criar uma
cena, pelo amor de Deus.

— Estou puta — profiro no pé do ouvido dele, tentando falar mais alto que a
música. — Não por Thomas ter trazido alguém ou algo do tipo, porque
mesmo que doa, ele não está fazendo nada de errado. Agora, nossos amigos
agirem como se eu fosse fazer uma cena a qualquer momento beira ao
ridículo.

Me movimento de um lado para o outro, balançando os quadris levemente,


acompanhando o ritmo da música junto com Lewis. Após alguns minutos,
Nevaeh se junta a nós trazendo o resto do pessoal, exceto Thomas e a mulher
que está com ele.

— O nome dela é Rebecca — Hannah diz com a voz se sobressaindo a


música. — Eles estão fazendo o seminário juntos, com outro cara que o nome
começa com B. Não lembro muito bem.

— Deixe-me dizer algo a todos. — Arrasto-os para o canto do bar, onde a


música é um pouco mais baixa. — Sei que vocês estão tendo dificuldade para
agir com naturalidade, assim como eu. Mas, a minha desculpa é que ainda o
amo, e a de vocês? Parem de trocar olhares pesarosos e me encarar como se
eu fosse ter um ataque a qualquer momento.

— Também é estranho para nós — Dominic murmura. — Estamos


acostumados a vê-lo com você.

Nevaeh dá uma cotovelada nele, em um gesto discreto que acaba sendo


perceptível para todos.

— Só que não estamos mais juntos. Já basta a minha própria lamentação. —


Andrew estende o braço para frente, se enfiando entre a gente.

— Por que vocês estão agindo como se Eckhoff estivesse com uma namorada
nova? — Nos encaramos com o cenho franzido. — A Rebecca tá meio triste
por ter terminado recentemente com o Brandt e ainda ser companheira de
seminário do cara. O clima do trabalho está péssimo, então Thomas a
convidou para vir também.

Durante uns instantes, o silêncio sepulcral se estende pelo espaço pequeno


que dividimos no canto do local, para logo depois, todos começarem a
reclamar.

— Por que não avisou antes? — Jules levanta a voz, estreitando ainda mais
os olhos. — Criamos um constrangimento à toa.

— Vocês só agiram como idiotas mais uma vez, e por falta de comunicação.
Não aprendem nunca. — Andrew nega com a cabeça e enrosca o braço no de
Lewis.

Sou puxada de volta à mesa, e assim que todos se acomodam, Rebecca se


apresenta a nós como colega e companheira de seminário de Thomas. Ela se
enturma rápido com todos, apesar de ter seu próprio grupo de amigos, que
não é muito ligado em futebol americano, e por isso não está aqui. Resolvo
ignorar o arrepio que se apossa de mim quando Eckhoff me cumprimenta
educadamente. Sinto um dedo cutucar de leve minhas costelas e prego meu
olhar na figura sorridente de Lewis.
— Já parou para pensar que não vamos mais nos esbarrar pelo Campus e
pelos lugares de Bolfok? — Contorço as feições em desagrado.

— E você está feliz com isso? — Lewis ergue ainda mais o canto dos lábios.
— Tire já esse sorriso do rosto, Lewis Johnson!

Meu amigo comprime os lábios instantaneamente, em uma careta triste.


Empurro seu ombro de leve, e suspiro.

— Como vão ficar as coisas a partir de agora?

— Vou morar de vez em Altoona, no alojamento do time por enquanto, e


depois procuro um canto só meu. Mas, para a sua alegria, virei muito até
Bolfok Town.

— Vou fingir que não vai vir só por Andrew. — Sorrio logo após a fala, para
que ele saiba que o drama é só encenação. — Ainda bem que é só uma hora
de distância.

— Nós... — Lewis pigarreia — conversamos sobre morar juntos. Na verdade,


a ideia partiu de Andrew, e estou com medo, como sempre.

— Receio de ser rápido demais? — Ele afirma com um aceno de cabeça. —


Olha, vocês estão juntos há seis meses, já que começaram um pouco antes do
Halloween, e talvez realmente seja repentino dividir um lugar e uma vida.
Mas não fique muito preso ao tempo que as pessoas designam para o
relacionamento dos outros, porque só vocês sabem a intensidade do que
sentem.

— O argumento de Andrew é de que não teremos nenhum tipo de


dependência, dividiremos tudo, e caso não dê certo, voltamos a como era
antes. — Lewis suspira, e confere se alguém presta atenção em nós. — Eu só
estive muito preso ao meu pai e a todas as suas regras. Nunca tive um gosto
da liberdade, de saber que tudo que estou alcançando é unicamente meu e
devido ao meu suor. Acho que quero experimentar um pouco disso sozinho
antes.
Arrasto a mão pela sua franja, afastando-a de seu rosto. Beijo levemente sua
bochecha e encosto minha cabeça em seu ombro.

— Você tem todo o direito. É importante voar sozinho antes de alçar voo
com alguém. Sentir como é ter seu cantinho, e depois, se quiser, dividi-lo
com Andrew. Converse com ele sobre isso, tenho certezade que o Bennet vai
entender.

— Vou fazer isso. Podemos combinar de dividir um lugar depois que ele se
formar, enquanto isso vou ter seis meses desfrutando de um espaço só meu.
— Concordo com a cabeça. — Obrigado por tudo, Mack. Você pode achar
que não, mas sua chegada mudou um pouquinho a vida de todos nós,
principalmente na minha. Eu te amo muito, e vou sentir uma puta saudade.

Massageio as têmporas repetidamente, espantando a vontade de chorar. Não


quero derramar várias lágrimas no meio de um bar que grita felicidade por
todos os cantos.

— Eu também te amo muito — murmuro em seu ouvido. — E só vou te


deixar ir se prometer que me mandará um cartão postal de Altoona, mesmo
há uma hora de distância daqui. Lembre-se que agora você é jogador
profissional, viajará para campeonatos, e eu ficarei presa por mais quatro
anos aqui.

— Eu vou te mandar um postal de cada lugar que for com o time. — Envolvo
meu braço em seu tronco largo, dando um abraço desajeitado.

Maxon chega um pouco mais tarde com Josh, envolvendo todos em uma
conversa sobre ataques e defesas de um jogo de futebol. Encaro a grande
janela do bar com temática Viking e estreito os olhos, pensando enxergar
alguns flocos de neve caindo do céu escuro. Neve na primavera? Me levanto
da cadeira discretamente, sem que ninguém perceba minha ausência, e
caminho até o lado de fora.

Arregalo os olhos e entreabro a boca em surpresa, apertando e esfregando os


braços, aconchegando meu corpo por causa do tempo ainda mais gelado.
Bolfok Town é mesmo inacreditável. Dou três ou quatro passos até derrapar
meu solado no concreto úmido pela neve ainda leve, com flocos miúdos
pousando no meu cabelo e casaco. Giro sobre os calcanhares, encantada com
o cenário diante das vistas.

A cidade pequena, taciturna e bem-organizada contrasta com as luzes


provenientes do bar, e os flocos brancos caindo por toda a parte, decorando o
teto dos carros e as telhas marrons do estabelecimento. Há algo de belo em
todas as situações inesperadas, e elas estão totalmente relacionadas com a
expectativa. Porque neve na primavera te provoca uma sensação de surpresa,
e não há uma espera envolvendo o ocorrido.

A ausência de expectativa torna as coisas mais bonitas.

A neve fica mais atrativa, o beijo inesperado geralmente tem um gosto


melhor, e a surpresa infla seu coração de um jeito que nenhuma situação
esperada pode fazer. E é aí que o destino faz um trabalho bonito. Quando a
vida acontece onde você menos espera.

— Neve na primavera. — Uma voz tão conhecida por mim desanuvia meus
pensamentos, provocando um calafrio. — Isso com certeza é coisa do
aquecimento global.

Solto uma risada contida, balançando a cabeça negativamente enquanto giro


sobre os calcanhares para ver Thomas. Reparo na blusa de lã verde escura
gola alta, na jaqueta de couro preta por cima, e na calça e coturnos escuros
que se opõem ao azul piscina dos olhos e o loiro do cabelo.

— Do que está rindo? — Me aproximo dele a passos contidos.

— É que eu estava fazendo uma reflexão bonita na minha cabeça agora


mesmo, sobre neve na primavera e situações inesperadas — digo
interrompendo a caminhada assim que paro na frente dele. — E você
estragou tudo com esse papo de aquecimento global.

Thomas tomba a cabeça para o lado, escrutinando meu rosto com atenção,
enquanto o canto de um dos seus lábios repuxa em um sorriso ladino. Ele se
aproxima um pouco, parecendo espantar qualquer resquício de oxigênio que
me alimenta.

— Agora eu quem sou o cético e você acredita no universo? — Alterno o


olhar entre sua íris e seus lábios rosados, perdendo o foco do raciocínio.

— Chega um momento em que acreditar é a única motivação que resta para


se levantar de manhã. — A tensão dissipa um pouco porque o clima se torna
um tanto mórbido.

— Eu li em algum lugar que o sol irrompendo pela sua janela de manhã


significa vida, e talvez esse seja um bom motivo para se levantar. — Aperto
os lábios com força, e desvio o olhar da conexão intensa que interliga nós
dois. — E embora Bolfok Town não conte com a presença do sol em muitas
manhãs, você sabe que ele está nascendo em algum lugar.

— Que poético. — Uma leveza típica nos envolve assim que um sorriso largo
se estende por seu rosto anguloso.

É difícil dimensionar o quanto amo seu dentinho levemente entortado e


apoiado no outro, acompanhado da única covinha.

— Vem. — Thomas estende a mão. — Essa neve já deixou de ser bonita para
se tornar agonizante.

Deixo que seus dedos longos envolvam minha mão, e nossas palmas se
encaixem. Ele me puxa para a parte coberta da varanda do bar e mantém o
toque quente. A situação em um contexto geral me cobre de nostalgia, a
quentura do corpo tão próximo, os arrepios, o coração acelerado, o estômago
revirando e a sensação de leveza. É como a euforia de ver o time do coração
levando a vitória, o alívio de sair de uma multidão e a calmaria de uma tarde
no campo.

— Faltam apenas seis meses para a sua formatura — relembro, percebendo


depois que profiro em voz alta. — Já pensou no que vai fazer depois?

— Sim. — Desfaço nosso toque calmamente, afastando minha mão da sua.


— Eu vou usar esse tempo para juntar o que resta para quitar a oficina, tê-la
só para mim, e a deixarei sob o comando de Luke enquanto viajo por algumas
cidades dentro do condado à procura do meu lar. Quero abrir outra oficina no
lugar que escolher para morar e montar uma espécie de franquia. Expandir o
negócio, explorando ainda mais os leilões.

Esse sempre foi o sonho dele. Comprar carros ferrados em leilões por um
baixo custo, trabalhar nos automóveis, desde a parte interna até a pintura,
turbinando o veículo para vendê-lo mais caro. Esse é um tipo de negócio que
rende muita grana, e é sua paixão. Desejo que Thomas conquiste muito mais
do que o Condado de Eastlake.

— Você vai construir um império no ramo das oficinas, acredite. — Um


brilho perpassa por seu olhar, e o sorriso largo costumeiro volta a decorar seu
rosto. — Talvez o Discovery até adapte um programa de televisão mostrando
os carros ferrados e transformados em máquinas dignas das de Velozes e
Furiosos.

Thomas solta uma gargalhada alta, fazendo um eco por toda a extensão da
rua silenciosa. Assisto seu tronco curvar para trás junto da cabeça, realçando
seu pescoço e o pomo de adão. Os fios displicentes do cabelo, que já cobrem
parte das orelhas, chacoalham devido os movimentos.

— Você me dá credibilidade demais, Lennon.

Alterno o peso nos pés, enfiando as mãos nos bolsos do casaco.

— E não deveria? — Arqueio as sobrancelhas, e recebo um aceno positivo


seu.

— Acredita em mim tanto quanto acredito em você. — Perco o ar por uns


instantes, inflando as narinas para capturar mais. — Um dia ainda vou te ver
na televisão ganhando um caso de suma importância para todos os Estados
Unidos.

Abaixo os olhos, envergonhada, o que é ridículo, porque nem me lembro a


última vez que fiquei acanhada perto dele. Escovo os fios do cabelo,
acomodando-os atrás das orelhas. Thomas se aproxima um pouco e sussurra.
— Acho que a única coisa que poderá superar sua postura no volante será sua
elegância em um tribunal. — Meus ombros ficam rígidos e um arrepio
percorre desde a base da minha coluna até a nuca. — Eu assistiria a mil
julgamentos em que você estivesse defendendo um caso, porque é incrível o
modo como você é obscenamente inteligente.

Odeio isso. Esse poder que Thomas tem de me excitar fazendo eu me sentir
inteligente. Ele não diz que quer ver a minha bunda em uma calça social, o
meu quadril em uma saia lápis ou o coque no topo da minha cabeça. Eckhoff
apenas junta algumas palavras que têm a capacidade me levar ao topo. Uma
vontade repentina me encoraja a fazer um pedido.

— Thomas. — Ele ergue os olhos, conectando-os aos meus. — Eu sei que


gastei alguns daqueles vales de aniversário que você me deu, e nem estou
com eles aqui. Mas, quero saber se ainda posso usá-los.

Um brilho de malícia expande suas pupilas, e um sorriso ardiloso se esgueira


pelo rosto.

— Mackenzie, acho que não seria muito prudente te chupar aqui do lado de
fora. — Arregalo os olhos em completa descrença e ele prossegue. — Mas,
você sabe, meu Eagle Speedster adora guardar segredos.

Empurro seu ombro de leve, repreendendo-o com o olhar.

— Esse eu já usei, e nem diga que é uma espécie de ticket reutilizável,


porque não quero que me chupe. — Em partes, estou mentindo. Sinto
saudades de quando seus lábios sugavam meu clitóris com a firmeza
necessária. — Quero usar o vale abraço.

Thomas parece ser pego de surpresa, porque desfaz o sorriso sacana e expira
com força, ao passo que troca o peso dos pés. Ele envolve meus ombros, e
posso sentir seu músculo rígido junto ao tronco duro encaixando
perfeitamente meu corpo esguio. Envolvo sua cintura com os braços, por
baixo da jaqueta, e me acomodo dentro do casulo que ele cria para nós.
Aprecio o modo como sua quentura me envolve, aquecendo-nos em meio ao
tempo gélido. Encosto minha cabeça em seu peito, com a orelha na altura do
coração, e o escuto bater de um jeito acelerado. E isso me acalenta de algum
jeito, porque entendo que não sou a única desestabilizada com o toque
intenso.

Eckhoff apoia o queixo no topo da minha cabeça e dá um beijo casto nos


meus cabelos. Aperto ainda mais os braços ao redor dele, e o sinto reagir nos
comprimindo ainda mais, como se os dois pudessem ocupar um mesmo
espaço, se fundindo.

— Se cuida, Mackenzie Lennon. — Desfazemos o abraço, com meu corpo


protestando pelo afastamento, e ainda o vejo piscar um dos olhos para mim.

— Você também, Thomas Eckhoff. — Ele sorri uma última vez, antes de
girar sobre os calcanhares e adentrar o bar.

Finalmente, entendo. Não importa se ele leu a carta ou se rasgou o envelope e


nunca saberá do que se trata, porque o fechamento do nosso ciclo já ocorreu.
Na minha memória, Thomas sempre será o cara que me faz sentir as melhores
das sensações, um amor tão intenso como cair de um penhasco sem ter
conhecimento do que encontrar lá embaixo, e ainda assim, almejar despencar.
O homem que ama me ver no topo, adicionando muito glitter no que já é
colorido. Me faz entender que não tem como ser grande quando já sou, de
fato,imensa.

E, se um dia já fui a rainha dessa cidade, Thomas Eckhoff foi o rei de Bolfok
junto comigo. Construímos um legado nada importante para os outros, mas
que significa tudo para nós dois.
Sou oficialmente o dono da Thunderstorm. Dela inteira. Assim que os
bens do meu pai foram liberados e passados para a responsabilidade legal de
Joanne, consegui quitar o valor que devia a ele. Única e exclusivamente por
causa de Mackenzie. Há seis meses, tivemos um momento incrível no bar, e
aquele foi o nosso último abraço. Ao chegar em casa, me recordei do
envelope guardado dentro da gaveta, e não hesitei em abri-lo. De início, fui
resistente ao aceitar o valor gordo daquele cheque preso ao papel de carta.
Contudo, assim que a letra cursiva dela brilhou a minha frente, embarquei nas
palavras escritas com caneta rosa.
“Ei, Thomas.
Sei que você está totalmente inclinado a rasgar o cheque em suas mãos.
Porque não me parece muito do seu feitio aceitar dez mil dólares do nada.
Bom, esse é o dinheiro que seu pai me deu por ganhar de você nas corridas,
claro, a parte que não precisei devolver. E, no meu coração, o sentimento de
que essa grana é sua por direito não me abandona. Você deve estar
pensando que eu venci de forma justa, então não tenho que te dar nada, no
entanto, o que é meu por direito é a quantia ganhada devido às apostas. Não
é um presente ou algo do tipo, é a única coisa que poderia acalmar meu
coração e me fazer ter a certeza de que não fiz um estrago tão grande na sua
vida.
Eu quero fazer parte disso, das suas conquistas, mesmo que indiretamente.
Posso não estar ao seu lado pelo resto da vida, mas quero ser lembrada de
um jeito bom. Quero que sinta o mesmo que eu quando me lembro de você.
Amor.
Da forma mais pura e genuína que existe. Algum dia, você provavelmente
não sentirá mais paixão por mim ou qualquer coisa romântica, porém desejo
com toda a minha alma, que nunca deixe de me amar. E, que depois de toda
a mágoa, só reste coisas boas, os melhores sentimentos e sensações.

Seja o melhor mecânico, um dono de oficina incrível e faça o que sempre


sonhou. Por fim, me leve dentro de você, para todos os lugares mais bonitos
que conhecer.
Com amor, pela infinitude que abrange o universo e na intensidade de uma
tempestade.
Mackenzie Rose Lennon.”
Sempre que releio essa carta, tenho vontade de sorrir. Sorrir pelos momentos
que vivi com essa mulher. Por todas as piadas internas, os risos frouxos e de
como éramos leves um com o outro antes de tudo ruir. Ela ainda não sabe,
porém ficará guardada em meu coração junto das melhores memórias
possíveis. Esses seis meses que passaram serviram não só para eu finalizar a
faculdade, como também para comprar o resto da oficina, e organizá-la de
modo que Luke possa ficar no comando da loja de Bolfokenquanto expando
para outros lugares. Tenho total confiança nele, e o treinei o suficiente para
que tudo dê certo.
Também assisti as pessoas a minha volta se restabelecendo na vida após a
tempestade. Nevaeh e Dominic estão muito bem, assim como Lewis e
Andrew, que apesar de estarem levando um relacionamento à distância,
conseguem conciliar de maneira sutil e leve. Meu irmão iniciou a temporada
de jogos conectando passes para touchdowns o bastante, se tornando o ídolo
dos Tigerstoon. Bem como sua mãe continua se cuidando, indo a terapia, e
está voltando, aos poucos, a comandar as mesas de cirurgia. Finalmente
consigo enxergar um brilho em seus olhos. Joanne foi mais do que altruísta
quando decidiu usar o dinheiro do meu pai para quitar as dívidas da minha
mãe com os advogados que lutaram pela minha guarda. Sendo assim, o lucro
da oficina é mais do que suficiente para o meu sustento.
Hoje é a minha formatura, e a Bolfok College reuniu algumas turmas para a
mesma colação de grau. Então, além de mim, Nevaeh, Andrew e Dominic
vestirão beca daqui a pouco. A cerimônia de Hannah foi ontem junto com a
de Maxon, e a de Josh será amanhã. A sensação de nostalgia que me abate é
espantada assim que a voz meio rasgada de Dominic ecoa por toda a casa,
nos chamando para descer logo.
Guardo a carta de Mackenzie em uma das minhas malas, e desço os degraus
rapidamente para encontrá-los. Nevaeh usa um vestido vermelho curto e
esvoaçante, que combina com o verão que está mais do que próximo.
Enquanto Dominic e Andrew sacodem as blusas sociais nas axilas para não
ficarem com uma bolsa de suor acumulada nos braços. Isso com certeza vai
acontecer depois que nos enfiarmos em becas quentes em meio a esse tempo
escaldante. Bolfok Town está tão quente quanto uma cidade tropical, com o
sol forte iluminando a urbe e a quentura que faz a gola da blusa pinicar o
pescoço.
Não quero me atrasar, mas não posso deixar de encarar, por alguns minutos,
o meu lar por quatro anos. A fachada amistosa da residência que parece
abrigar uma característica família estadunidense voltará a pertencer ao
proprietário. É estranho pensar que deixarei de brigar com Andrew e Dominic
para manter a limpeza da casa, ou descer pelo corrimão quando estamos meio
chapados — o que nunca acaba muito bem. Todos nós já caímos muitas
vezes nesses degraus, que já ficaram abarrotados de pessoas nas raras vezes
em que resolvíamos dar uma festa. Escuto o assobio alto de Nevaeh,
indicando um relógio imaginário no pulso, me apressando.
Coloco o ar condicionado do Eagle Speedster no máximo, aproximando as
axilas do buraco que libera o vento gélido. Estou tão acostumado a usá-lo no
aquecedor que é até estranho vê-lo desempenhar outra função. Dou uma
olhadela pelo retrovisor, vendo algumas malas presas no banco de trás pelo
cinto de segurança, enquanto as outras estão no bagageiro. Meu próximo
destino é Altoona, onde ficarei por um tempo morando com Lewis, para
saber como é a agitação da cidade grande, e depois partirei para algum
destino desconhecido. Quero conhecer a maioria das cidades do Condado de
Eastlake para decidir onde irei criar raízes e escolher como moradia
definitiva.
Andrew também irá para Altoona, porém morará em um pequeno
apartamento com Dominic no centro da cidade, ao passo que Nevaeh viajará
até o outro lado do país para fazer uma espécie de complementação do curso
no MIT, no Estado da Califórnia. É uma oportunidade única e serão apenas
seis meses, por isso tenho certeza de que eles lidarão bem com isso. Josh e
Hannah ainda não são um casal, e nem sei se um dia vão ser. Contudo, por
alguma coincidência do destino, ambos vão para Nova Iorque, aqui na costa
leste, bem longe do lar conservador dela e próximo o bastante do time em que
ele jogará. Ao passo que Jules largou o curso de medicina porque foi
chamada para trabalhar em um estúdio de tatuagem renomado em Los
Angeles, um tanto quanto distante do Oregon, onde Maxon vai morar.
De certo, ninguém tem muita certeza do que nos espera após a formatura. O
futuro é embaçado e enevoado, porém a vontade de despencar nessa realidade
ainda bastante distorcida é enorme. Minha psicóloga diz que o medo é normal
nesta época, em que não temos noção do que encontraremos fora da realidade
da faculdade. E uma excitação corrói meu corpo pela vontade de descobrir
algo novo, desbravar o mundo.
O Campus da Bolfok College está abarrotado de gente, com uma estrutura
ampla construída para a cerimônia. É um palco grande, que abriga a reitora e
os coordenadores dos cursos que estarão colando grau, assim como as
cadeiras bem dispostas para o corpo discente, e as arquibancadas que
receberão nossas famílias. Noora está vindo direto de Oroland junto com tio
Mason. Ao passo que a família de Nev representará também Dominic, e os
pais de Andrew, empresários bem reservados, estarão igualmente presentes.
Sento em um dos assentos ao lado de Nevaeh, e assisto Dominic e Andrew
irem para o agrupado de cadeiras de seus respectivos cursos. Consigo
enxergar Lewis na arquibancada sentado ao lado de Mackenzie, perto de
minha mãe e meu tio. Abandono meu olhar da mulher de cabelos castanhos,
que ainda provoca inúmeras sensações intensas em mim, e aguardo o início
da cerimônia.
Quase não convivi com Mackenzie ao longo desses seis meses, desde o dia
do bar, nem mesmo para falar sobre a carta. Porque sei que a sua maior
intenção com aquelas palavras era se despedir, fechar um ciclo, e preservar
todas as melhores memórias que cultivamos juntos. Deixei que Lennon
seguisse sua vida estudando e trabalhando como assistente, e ficava sabendo
sobre como ela estava por intermédio de Dominic, que uma hora ou outra
contava alguma coisa. De certa forma, foi bom para nós, para que não
vivêssemos presos a ideia de voltar ao relacionamento. E, mesmo que eu
ainda a ame com todas as forças, o meu amor precisa deixá-la livre para
seguir com a vida.
Porque não devemos viver em função do destino, esperando que o universo
nos junte novamente. Precisamos nos reconstruir, principalmente no que diz
respeito à saúde mental, e ainda não sinto que é o momento certo para
voltarmos. Embora a terapia tenha me ajudando bastante com os pensamentos
conflituosos e com a ansiedade, sei que é um processo lento e gradativo até
alcançar uma qualidade de vida que me permita dividir um sentimento tão
grande como o amor com alguém, sem machucar essa pessoa.
A Reitora Hayes interrompe meus devaneios dando início a colação de grau.
Ela profere uma série de palavras motivadoras sobre futuro, e anuncia o nome
de cada membro importante do corpo docente. Logo depois, ela proclama o
nome do paraninfo convidado para fazer o discurso. E, surpreendentemente, é
o Senhor Leighton, o coordenador do grêmio estudantil.
— Boa tarde a todos. — Ele apruma a postura, tomando posse do microfone.
— Quando fui convidado para fazer um discurso para as turmas do curso de
Direito, Marketing e Química, não imaginei que seria para tanta gente. — O
senhor Leighton solta uma risada baixa. — Ao contrário do que todos
provavelmente estão pensando, não vim falar sobre futuro. Quero relembrar a
jornada de vocês até esse momento. Porque, mesmo de longe, vi festas de
fraternidade acontecer, jogos de futebol, disputas do Decatlo Acadêmico, e
assisti dois jovens organizarem sozinhos três eventos importantes da
faculdade. E quando me recordo desses acontecimentos, penso no quão
capazes vocês são para enfrentar o mundo real e o mercado de trabalho.
"Muitos aqui já conhecem uma parte, inclusive. É bom saber que ao mesmo
tempo em que tudo será muito diferente, há outras semelhanças que os
deixarão estarrecidos. Vocês ainda sentirão preguiça de acordar, chegarão
próximos da exaustão após um dia no batente, encontrarão colegas de
trabalho que os lembrará daquele aluno que só faz pergunta desnecessária e
do colega de curso que você revira os olhos apenas na presença dele. A vida
em diferentes perspectivas tem mais coisas em comum do que imaginamos, e
geralmente não estamos preparados para as mudanças. Contudo, quando a
competência existe, o trabalho se torna fácil. E vocês, todos os alunos das
turmas de 2021 aqui presentes, são capazes de conquistar o mundo. Serei
eternamente grato por terem me deixado assistir as conquistas de todos vocês.
Sinto-me honrado. Obrigado a todos!"
O discurso do senhor Leighton é bom, mas não me causa as sensações que
todo mundo diz sentir ou as lágrimas se acumulando nos olhos. Estou
apreensivo por saber que nunca mais adentrarei esses portões e ouvirei
algumas aulas incríveis e outros professores entediantes. A Bolfok College já
não faz mais parte de mim, e às vezes isso é aterrorizante. Porém, ainda tenho
a segurança de possuir a oficina, logo, imagino que deve estar sendo muito
pior para aqueles que não têm nada garantido. Dominic embarcará nos
arranha-céus de Altoona atrás dos melhores escritórios de advocacia, assim
como Andrew espera respostas aos currículos enviados para as empresas da
cidade grande. O medo provavelmente está muito mais embrenhado neles do
que em mim.
A cerimônia prossegue um tanto cansativa e entediante, até que os alunos do
curso de Direito são chamados, em ordem alfabética, para pegar o diploma.
Remexo na cordinha do capelo que retirei da cabeça, pelo suor se
acumulando por entre meu couro cabeludo. Vejo Dominic secar o rosto
enquanto se levanta para buscar o canudo, no instante em que seu nome é
chamado. E, enquanto sacudo minha beca pelo calor nada costumeiro que
toma a cidade, os alunos de Marketing passam a ser chamados.
O nome de Andrew é um dos primeiros a serem pronunciados, e ele posa ao
lado da reitora para uma foto. Sinto vontade de rir ao vê-lo fazer uma careta
para o fotógrafo e a senhora Hayes não consegue segurar a risada, aposto que
a imagem saiu ótima. Ele volta ao seu lugar, e percebo o momento em que
lança uma piscadela para a arquibancada, não preciso nem estar perto para
saber que Lewis, com certeza, está mais vermelho do que um tomate. É
engraçado assisti-lo corar com qualquer investida nada sutil e boba de
Andrew.
Interrompo meus devaneios em meio ao tédio assim que ouço o nome de
Nevaeh ser pronunciado, acompanho-a caminhar até o palco, se enrolar nos
poucos degraus e abrir um sorriso orgulhoso ao pegar seu diploma. Depois de
alguns nomes, finalmente chamam o meu. Ajeito o capelo sobre a cabeça,
colocando a costura do ombro da beca no lugar certo. Aceno graciosamente
para todos, com um sorriso zombeteiro no rosto, em um gracejo que faz a
plateia soltar algumas risadas. A senhora Hayes acaricia meu ombro
levemente, e se arrasta até o meu lado para uma foto, assim como a
professora Harris.
Acaricio o canudo por entre os dedos, e o analiso. Pensando nas noites mal
dormidas que passei, tentando conciliar o trabalho da faculdade com a
oficina, e nas vezes em que faltei aula, pegando o conteúdo com Nevaeh.
Esse diploma não é só meu, porque as inúmeras ocasiões em que fui ajudado
pelos meus amigos, principalmente, as situações que vivi com a Williams, me
auxiliando no medo de falar em público, acalentam meu coração. Queria
poder partir esse papel em pedacinhos para dividi-lo com os outros.
Antes de jogarmos o capelo, abraço Nevaeh apertado. Agradecendo por todos
os momentos em que ela foi crucial para que eu levasse a faculdade a frente.
Os trabalhos em grupo, as matérias que eu pegava depois, e a ajuda com meu
problema para falar em público. Sinto um de seus cachos se arrastarem pelo
meu pescoço e o perfume bom que emana de seus cabelos, sou tão grato a
essa mulher que é difícil expressar em palavras.
— Estamos dando adeus à Bolfok College e à cidade. — Desfaço nosso
contato e ergo a mão para bagunçar seu cabelo como um irmão mais velho
irritante. — Encoste essa sua mão fedida no meu cabelo e teremos problemas
no meio dessa cerimônia.
Analiso seus cachos bem anelados, brilhosos e hidratados, e ergo os braços
me rendendo, desistindo de estragar seu trabalho de quase uma hora. Depois
que Nevaeh passou a conviver conosco cada vez mais, ela costuma sentar-se
no sofá da sala, em frente à televisão, enquanto enfia a mão em um pote de
creme, separando o cabelo em mechas, e penteando-o. Quando a preguiça
está grande, Dominic ocupa o lugar dela, passando o produto e finalizando
por ela. É bonito ver a maneira como ele cuida de Nev.
— Prometo não o bagunçar. — Aponto para seu cabelo com a cabeça. — Sei
o que ia dizer. Que estamos indo embora e isso é loucura.
— Sim. Nunca mais entraremos por esses portões, ou nos reuniremos na sua
casa, no bar dos Eagles — concordo com um aceno positivo.
— Talvez estejamos aqui de novo no encontro de ex-alunos. — Nevaeh me
lança uma olhadela de desdém, porque ambos sabemos que, no fundo,
queremos ficar o mais longe possível daqui.
A Bolfok College é boa até certo ponto, após a finalização do seu ciclo, ou
seja, a formatura, o que mais queremos é cair fora daqui. Almejamos explorar
novos lugares, conhecer outras pessoas, e experimentar um pouco do mundo
fora dessa bolha de cidade pequena universitária.
Assim que "Best Day of my life" do American Authors explode pelas caixas
de som, sei que a hora chega. A reitora Hayes nos anuncia como
definitivamente formados, e ordena que joguemos os chapéus para o alto.
Enrosco os dedos pela aba do meu, e o assisto alçar pelo ar, misturando-se
aos inúmeros pontinhos azuis escuros em contraste com o tom claro do céu.
Ouvindo a música característica de uma formatura, e encarando todos os
sorrisos abobados dos estudantes, me permito sorrir também. Porque, mais
uma vez, sinto-a, a costumeira sensação de liberdade.
Capturo o chapéu do chão, retirando a beca pela cabeça e entregando ambos
para um dos funcionários localizados perto do palco. Andrew e Dominic me
encurralam em um abraço em grupo, e posso ouvir o Hopkins fungar, me
fazendo revirar os olhos e rir.
— Eu vou sentir tanta saudade de vocês. — Dom murmura baixo para nós.
— Nós vamos para o mesmo lugar, Dominic. Sem drama. — Andrew
responde, com as feições contorcidas em uma careta que exala tédio.
— Como você é insensível, Andrew. — Dominic o empurra levemente. —
Não merece o nosso amor, vem Thomas, vamos excluí-lo do nosso clube.
— É um favor que vocês me fariam. — Arqueio as sobrancelhas para eles, e
não demoramos a cair na risada.
Caminhamos em direção a nossa família, e antes que eu me aproxime o
bastante, Noora se joga nos meus braços, me agarrando com fervor. Ela está
chorando, posso sentir suas lágrimas molhando minha camisa social. Aperto
os braços ao redor do seu tronco robusto, escutando um pequeno discurso
acerca de como ela está orgulhosa de mim.
— Mackenzie também se emocionou — sussurra em meu ouvido, e eu a
encaro com o olhar exalando repreensão. — O quê? As pessoas merecem
uma segunda chance, filho. Vocês se amam, e guardar um segredo como
aquele foi péssimo, mas ela se arrependeu.
Embora minha mãe tenha sido crucial na descoberta do segredo de
Mackenzie, a partir de certo ponto, sua participação ficou um tanto anulada
pela maré de ruínas que nos atropelou. Noora odiou ver seu filho chorar
compulsivamente em seu colo por causa de uma decepção amorosa, e sei
também que, no fundo, minha mãe se arrepende amargamente de ter se
envolvido com Robert. Porque ela sempre fez questão de ressaltar que o
ditado "cada um tem o pai que merece" não poderia ser mais mentiroso. Nós
só podemos merecer aquilo que escolhemos ou ganhamos de forma
consciente. Existem pais que são, infelizmente, corrosivos a saúde mental dos
filhos, e sequer ousar dizer que essas crianças merecem esses traumas é de
uma falta de empatia tremenda.
— Ela se arrependeu e eu a perdoei, porém as coisas não funcionam assim. A
minha cabeça fica infestada de pensamentos de autossabotagem, e um
relacionamento não funcionaria para nós enquanto eu ainda duvido, mesmo
que pouco, das palavras dela. Eu preciso me cuidar, ambos precisamos.
Temos que deixar tudo isso ser lavado da nossa consciência. — Engulo em
seco, olhando para os lados, conferindo se ninguém nos ouve. — Não é um
bom momento para voltarmos.
— E quando será? — A pergunta, embora inocente, faz meu peito doer.
Penso no agora, na ideia de que deixarei esse lugar em poucos minutos, e
ficarei em Altoona por um tempo. Depois, não sei o que o futuro me aguarda,
o que encontrarei pelas outras cidades do Condado. O meu futuro é incerto, e
não tem espaço para um possível relacionamento, pelo menos não agora.
— Não sei. — Massageio a nuca. — Talvez nunca.
É como se a língua aumentasse de tamanho, e a saliva parece ficar mais
espessa. Odeio pensar nisso. Na ideia de que pode não haver um futuro para
mim e Mackenzie junto. Que talvez seu futuro seja ganhar inúmeros casos em
um tribunal e comemorar com outro homem, um cara diferente, talvez
advogado também, que orgulhe os pais dela por ser de uma classe social
parecida. Chacoalho a cabeça com força. Não gosto de imaginar essa
realidade. Não mesmo. Mas é praticamente inevitável. Quando me dou conta,
já estou imerso em vários pensamentos que me machucam.
Minha mãe se cala, e tio Mason me puxa pelo braço com leveza, me
cumprimentando e dando os parabéns pela formatura. Pergunto por Sarah e
Elvis, o filho dela, recebendo a resposta de que ambos estão bem. Abraço
Josh, Hannah, Jules e Maxon, que estão ali por nós, com o semblante
exalando orgulho e felicidade.
— Animado para sua nova vida? — Encaro os cabelos bem arrumados de
Lewis. — Porque eu estou morrendo de felicidade por te ter lá em casa.
— Deixe-me adivinhar. — Estendo um sorriso irônico pelo rosto. — Você
está louco para ter um auxiliar de limpeza.
— Sim! — Reviro os olhos com o gracejo. — Ainda mais um que limpa tão
bem como você.
— Como você é engraçado, Lewis. — Prego os lábios, mas não consigo
evitar que a risada escape.
— Também amo você, irmão. — Abraço-o de lado e dou leves batidas em
seu ombro.
— Espero que fique bastante tempo fora por causa dos jogos. — Subo e
desço os ombros, vendo Lewis franzir o nariz em desgosto.
— Faça festinhas na minha casa e eu te chuto para fora de lá.
Chacoalho as mãos como se estivesse tremendo de medo, e Lewis solta uma
risada baixa.
Percebo minha mãe e tio Mason nos encarando com felicidade ou orgulho de
nos ver interagindo bem, como na infância. Às vezes, o discurso de que o
tempo cura algumas feridas é verdadeiro, porque após muitos meses, aqui
estamos. Dialogando com leveza e prestes a dividir um apartamento por um
período.
Vejo, de longe, uma figura corpulenta vestindo uma jaqueta de couro,
encostado em uma árvore próxima a rua. Dou alguns passos em sua direção,
reconhecendo o corte militar e a calça rasgada nos joelhos.
— John Lion — anuncio minha presença, chegando perto o bastante para ver
seu corte na sobrancelha. — O que faz aqui?
— Queria olhar para essa sua cara de otário antes que fosse embora de vez.
— O tom zombeteiro dele me faz soltar uma risada alta. — Ia para longe sem
sequer se despedir do seu companheiro de investigação?! Somos como Pink e
o Cérebro, cara.
— Imagino que eu seja o cérebro. — John balança a cabeça em negação. —
Eu estava até pensando em dar uma passada em Bolfok Valley para dar
adeus.
— É... Jeffrey ficará preso por quatro anos até poder responder em liberdade,
e seu pai se manterá atrás das grades por uma década. — Assinto com a
cabeça levemente. — Parece que fizemos um bom trabalho.
— Com certeza fizemos. Você está até mesmo solto. — John ergue a mão em
punho, e a choca na minha. — Obrigado pela ajuda no caso.
É visível que nossa rivalidade acabou junto com os rachas. Chad se mudará
para Bolfok Valley com Indiana, e continuará sediando os rachas de lá.
Porém, isso não é mais para mim. Conviver com John me fez entender que as
escolhas que fazemos para nossa vida molda nosso caráter em partes, porque
até que dá para conviver com ele.
— Se precisar de alguma ajuda ilegal, já sabe para quem ligar
Nego com a cabeça, mas me permito rir baixo. Distraído, mal percebo a
presença de alguém atrás de mim, apenas identifico um perfume diferente e
os olhos de John faiscando em direção a pessoa. Giro sobre os calcanhares,
encontrando os grandes orbes de Jules grudados no líder da gangue com o
que parece ser asco. Arqueio as sobrancelhas, me sentindo perdido dentre a
tensão que flutua no ar.
— John Lion. — Ele se apresenta, erguendo a mão com a palma estendida.
Jules, com certeza, já ouviu falar bastante sobre John. Porque ao contrário
dele, que parece receptivo até demais ao encarar minha amiga, a mulher
pende a cabeça para um lado, contraindo as feições em desagrado. Todos os
moradores de Bolfok sabem sobre os esquemas ilegais do líder da gangue, e
foi assim que ele construiu sua imagem.
— Jules Batbayar.— Devolve o aperto, franzindo o nariz naturalmente
empinado.
John desce os olhos para as tatuagens visíveis no corpo de Jules, pelas alças
finas do vestido preto de verão que ela usa. A morena não está interessada
em qualquer que seja a investida dele, porque desfaz o contato das mãos e
limpa a palma discretamente no tecido do vestido. Sinto-me um mero
espectador dessa apresentação um tanto peculiar que ambos protagonizam. E
embora exista o namoro dela com Maxon, minha mente acaba criando um
cenário engraçado em que esses dois protagonizariam uma relação.
— Bom, Thomas. — John desfere uma batidinha amigável em meu ombro.
— Tenho que ir, compromisso importante em Bolfok Valley. Boa sorte com
a vida, Eckhoff.
Vejo Jules cruzar os braços frente ao colo, encarando John com o cenho
franzido. Porém, se ele percebe, ignora o semblante intimidador da morena.
— Digo o mesmo, Lion. — Balanço a cabeça em um cumprimento amigável.
Nós não somos amigos, e muito menos temos um grande contato, porém eu
jamais ignoraria sua ajuda no caso de Robert. Foi legal de sua parte vir se
despedir.
— Até mais, Jules. — Não deixo de reparar no modo como John profere o
nome dela, fazendo questão de pronunciar cada sílaba com entonação.
Ela nem responde, apenas acena com a cabeça. John não diz mais nada, pelo
contrário, ele se limita a encará-la mais uma vez, lançando sua íris gelada
para o queixo empinado dela. Ele solta o ar pelas narinas, rindo baixinho, e
caminha em direção a saída.
— O que foi isso? — Arqueio a sobrancelha, pousando a mão na cintura.
— Nada. — Balança a cabeça. — Só não confio nesse cara.
Assisto-a trocar o peso dos pés, arrastando o solado dos coturnos no concreto.
Jules veste meias-arrastão por baixo do vestido, que combina com a saia
esvoaçante da peça.
— Compreensível — suspiro, afastando um fio teimoso da testa. — Mas,
tenho que levar em consideração a ajuda dele com o caso de Robert.
Jules esfrega as palmas pelos braços cobertos de tatuagem, passando a ponta
dos dedos no desenho de uma princesa do império mongol em seu bíceps.
— Sabe que isso foi mais um contrato de interesse mútuo do que uma ajuda,
de fato, certo? — Aceno em confirmação, vendo-a suspirar. — É louco
pensar que você vai embora.
Agradeço pela a mudança de assunto, pouco interessado em falar sobre John
e suas intenções. O que importa já aconteceu, Jeff e Robert estão atrás das
grades.
— Estou indo para Altoona, que é há uma hora daqui. Não é como se eu
fosse para o outro lado do país como alguém aí.— Aponto para ela com a
cabeça.
— Estou me dando a desculpa de que você quem vai embora para não sentir
tanto a distância, mas na verdade, todos iremos.
Afasto os fios da testa, e brado silenciosamente pela minha negligência com
esse cabelo, que já deveria ter sido cortado.
— Já parou para pensar que Mackenzie vai ficar sozinha?
Estagno os movimentos, ficando temporariamente estático. A verdade parece
dar um tapa na minha cara nesse momento. Eu nem tinha refletido acerca
disso. Mackenzie fez amizade com pessoas que estavam prestes a se formar,
e agora que o dia chegou me choco com a ideia de que todos irão embora,
menos ela.
— Lennon é comunicativa, vai fazer amizade rápido. Ela não ficará sozinha,
Jules. — Quero muito acreditar nisso.
No entanto, o que mais me tranquiliza é o fato que independentemente do que
a vida reserve para nós, Mackenzie ainda manterá contato com a maioria do
nosso grupo. Até porque, sei que sua amizade com Nevaeh precisaria de
muito transtorno ou catástrofe para ser abalada. As duas criaram um laço tão
bonito que é admirável observar a troca de olhares cheia de significados que
apenas as duas entendem.
— Tomara que você esteja certo. — Tomara mesmo.
Voltamos até o pequeno grupo composto pelas nossas famílias, e assisto o pai
de Nevaeh rir de algo que Dominic diz. O semblante do pastor Williams é
neutro, porém vê-lo interagir de forma leve com meu amigo me provoca uma
sensação de tranquilidade, como se no fundo eu soubesse que tudo vai ficar
bem. Faço questão de olhar, pela última vez, o rosto de todos eles. Gravando
cada detalhe de seus semblantes e manias. Vejo Mackenzie gargalhando alto
de alguma gracinha de Lewis e me aproximo um pouco.
— Podemos conversar? — Ela se assusta com a minha presença repentina,
porém assente com a cabeça, e me segue para um ponto mais afastado. —
Deve saber que li sua carta.
— Lewis me contou que comprou o resto da oficina, mas ninguém tem
certeza da origem do dinheiro. — Mackenzie troca o peso dos pés,
prosseguindo. — Imaginei que tivesse usado o cheque.
— Eu usei, mas não tinha certeza para quem você contou sobre a carta e o
dinheiro. Então, só Andrew e Dominic sabem. — Ela solta uma risada baixa,
me fazendo franzir o cenho.
— Eu contei para Lewis e Nevaeh, basicamente a maioria sabe. —
Acompanho-a na risada.
— Eu não queria dizer nada sobre tudo aquilo, porque entendi suas intenções
de fechar nosso ciclo com o gesto. Mas, eu não poderia ir embora sem te
agradecer. Por tudo. — Quero dizer muitas coisas.
Quero falar que ainda a amo e que ela é a mulher da minha vida. Quero dizer
que sinto falta da sua pele macia, do perfume meio doce e meio cítrico, dos
lábios em formato de coração, das sobrancelhas afastadas, das pintinhas no
rosto e no pescoço, das piadas, alfinetadas e provocações. De tudo. Quero
dizer que nunca senti algo tão forte por alguém quanto sinto por ela. Que
nosso amor é o mais bonito que já presenciei. Que a nossa conexão é de outro
mundo.
— Não precisa agradecer, eu fiz de coração, e aquele dinheiro não era meu.
Eu sentia muito forte essa sensação de que mereci ganhar a grana das apostas,
mas o que vinha do seu pai não. É justo que a oficina seja totalmente sua.
Parabéns pela formatura, Thomas. — Engulo a saliva, que parece estar mais
espessa.
As palavras entalam na garganta, e me esforço muito para engoli-las. Não
posso dizer nada que confunda a cabeça dela para logo depois deixá-la. É
injusto.
— Obrigado, Mackenzie. — Ergo os lábios em um sorriso fechado. — Que
você tenha a melhor vida possível.
— Você também. — Ela acaricia meu cabelo, conectando seus olhos aos
meus. O arrepio perpassa meu corpo desde os pés até a cabeça.
Essa porra de sensação que não vai embora nunca. Mal percebo o exato
momento em que ela tira as mãos de mim, e se afasta. Assisto seu corpo
esguio e seu caminhar elegante, voltando aos nossos amigos e familiares. A
despedida começa a se abrigar no meu corpo, me obrigando a enfrentar o fato
de que estou prestes a dar um passo para cair em um precipício enevoado e
desconhecido.
Percebo só agora, que a vida vai acontecer, para todos nós. Uns de um lado
do país e os outros no outro. Talvez deixemos de ser amigos, talvez o
afastamento se abrigue entre nós, distanciando todos. Alguns poderão ir para
outros países, terão suas próprias obrigações, virarão pais e mães, tios e tias,
madrinhas e padrinhos. Quem sabe casamentos não aconteçam, e talvez a
distância afaste todos os convites. Os pensamentos ruins se embrenham pelo
meu cérebro, o medo pinicando as entranhas, e a sensação de que não me
despedi o suficiente causam um efeito em comum: lágrimas.
Deixo que elas caiam livremente, lavando minha alma. Me apoio no tronco
de árvore próximo a mim, e continuo chorando. Não daqueles choros de
soluçar, costumeiro nas crianças. Apenas lágrimas descendo silenciosamente
pelo rosto, ao passo que o coração acelera.
Com a vista embaçada, encaro todas as pessoas que gosto e as que amo. Eles
interagem entre si, alguns dando risadas e outros revirando os olhos por
alguma gracinha dita. Fico feliz por eles, por todos. Desejo, de coração, que
eles tenham uma vida incrível, livre de frustrações em excesso.
Até que minhas vistas se chocam com Mackenzie, e mesmo de longe, vejo
que ela está me encarando. Posso sentir seus olhos em mim. E assim acontece
nossa despedida, nós dois mergulhados em meio a todas as declarações de
amor não ditas.
FIM?
5 ANOS DEPOIS

Um advogado recém ingressado no mercado de trabalho pode ser


facilmente confundido com um dos tributos de “Jogos Vorazes”, pelo menos
no escritório em que exerço. Após a graduação, saí do lugar em que eu era
estagiária e decidi morar em Eastland Coast, cidade litorânea relativamente
grande do Condado, a poucas horas de Oroland County e Bolfok Town. Não
demorou muito até que meu currículo chamasse atenção de algum escritório
de advocacia, e então, fui contratada pela K&K Associação de Advogados.
Ser uma advogada assistente te põe à prova de inúmeras disputas, porque o
fator referente que pode te dar uma promoção é a quantidade de casos que
você pega e ganha. Em um ano que trabalho lá, só perdi um, o meu primeiro.
E depois de algumas semanas imersa em completa frustração, consegui me
reerguer.
A cidade de Eastland Coast me lembra alguma da Califórnia, contando com
prédios e arranha-céus em conjunto com a praia e a natureza. Não é difícil me
sentir em casa, embora eu more em um apartamento minúsculo no centro, a
muitas quadras do mar.
Enfrento o trânsito caótico da metrópole, afundando a mão na buzina, ao
passo que encaro o relógio do carro em apreensão. Estou atrasada.
Definitivamente. Costuro alguns carros pela avenida, ultrapassando-os em
prol do meu emprego. O prédio espelhado que abriga o escritório reflete os
raios solares, e escuto os saltos batucarem no chão brilhoso. Ergo meu crachá
para a recepcionista, caminhando quase flexionando os joelhos para correr.
— Está atrasada — ouço Billy resmungar, assim que adentro nossa sala.
Como sou advogada assistente, não tenho um escritório só para mim,
dividindo-o com Billy e Lauren. Pessoas que disputam casos e uma boa
promoção comigo, mas me acompanham em algumas cervejas no bar
próximo ao prédio.
— Eu sei — respondo ainda ofegante pela corrida até a sala. — O trânsito
estava absurdo.
Ajeito meus pertences na mesa, avistando uma pasta azul pousada em cima
do meu notebook. Ergo o objeto, colocando-o no campo de visão de Billy.
— Caso novo, e você já deveria estar lá. — Billy arrasta os dedos pelos
cachos, e ajeita a gola da blusa social branca que contrasta com sua pele
negra. — Delegacia, Departamento de Direção.
— O quê? — Devolvo os pertences para a bolsa, sabendo que devo trabalhar
fora do escritório.
— Não sei muito bem, mas um otário foi detido por dirigir em alta
velocidade nessa madrugada e está mofando na cela pequena da delegacia de
St. Mary, esperando por um advogado.
Solto uma risada baixa, negando levemente com a cabeça. Um em cada cinco
otáriosnessa cidade nos entrega de bandeja casos como esse: tirar playboys
irresponsáveis da prisão por causas simples que valem centenas de dólares.
— Designaram esse caso moleza para você, está com sorte hoje. Corra,
Lennon. — Nem respondo, apenas enrosco a alça da bolsa no ombro e
capturo a pasta.
Aceno para ele rapidamente, e corro até o elevador para chegar a St. Mary,
um dos bairros que abriga a classe alta de Eastland. Adentro o Cadillac, e
quando estou prestes a abrir a pasta para conferir, pelo menos, o nome do
meu cliente, o celular grita uma mensagem nada carinhosa do meu chefe,
questionando o motivo pelo qual ainda não cheguei à delegacia. Respondo
pedindo um perdão genérico, e acelero até meu destino.
Não tenho tempo para contemplar a vista do oceano, e da orla com algumas
pessoas tomando água de coco ou andando de bicicleta. Muito menos consigo
responder as mensagens de Nevaeh, Dominic e Andrew, que querem saber
quando nos juntaremos de novo para uma reunião entre amigos.
A vida acontece para cada um de nós, culminando em um afastamento
gradativo e mudanças características em nossas vidas. Nevaeh e Dominic se
mudaram para um apartamento em Nova Iorque, cidade em que ela trabalha
em uma empresa de cosméticos e ele sendo advogado de uma Gravadora,
curtindo alguns casos de músicos famosos ou frustrados. O relacionamento
deles enfrentou alguns altos e baixos durante esses cinco anos, mas o que
importa é que agora estão prestes a se casar. E Nev está quase enlouquecendo
com os preparativos.
Como madrinha, eu gostaria de estar ajudando mais, porém o trabalho não
deixa. Deixo algumas das responsabilidades para Hannah, que também mora
em Nova Iorque, conseguindo ser mais participativa do que eu, trabalhando
parauma empresa de fotografia. Lewis e Andrew moram juntos em Altoona,
enquanto um mantém seu posto de Quarterback, o outro comanda uma
Startup de tecnologia, na área de marketing.
Jules continua do outro lado do país, trabalhando como tatuadora, mas agora
não mais com Maxon, já que ela descobriu uma traição dele há três anos.
Aquele idiota conseguiu iludir a todos nós, que acreditávamos que o dono dos
olhos violeta não era tão babaca. Foram tempos difíceis, e como eu ainda
estava na faculdade, pude ajudar indo até Los Angeles no recesso de Spring
Break.
Interrompo os devaneios assim que estaciono de qualquer jeito em frente à
delegacia. Pesco a pasta com as mãos e ando a passos largos, entrando no
local bem refrigerado. Pouso o objeto na bancada da recepção, e encaro o
policial que possui o rosto inchado com o semblante sonolento.
— Finalmente vieram buscar o playboy que se acha o Vin Diesel? — Prego
os lábios, tentando não rir de sua comparação.
Aceno positivamente com a cabeça, erguendo minha credencial de advogada.
Ele analisa com calma, digitando algumas das minhas informações em seu
computador, e libera minha entrada.
— Primeira porta à direita, senhorita Lennon. — Agarro a alça da bolsa com
mais força, enquanto ele prossegue. — Ele já está esperando.
Desisto de sequer conferir o nome na pasta, e decido fazer isso enquanto
estiver na sala. Adentro o local pequeno e bem iluminado, sem prestar muita
atenção em nada a minha volta. No entanto, assim que avisto a figura um
tanto musculosa sentada de um lado da mesa de interrogatório, é como se
todo o meu sistema desse pane. Fico estática, as mãos sofrendo leves
espasmos e o coração batendo descompassado.
Os cabelos loiros, agora com um corte diferente, aparado nas laterais e
desgrenhado no topo. A blusa preta adorna perfeitamente bem seus ombros
largos e os músculos que, com certeza, aumentaram consideravelmente. É
perceptível o aumento das tatuagens, fechando por completo seu braço
esquerdo, e a presença dos anéis, que também continuam em seus dedos,
além de uma fina corrente dourada envolvendo seu pescoço e se escondendo
por baixo da camisa. Thomas consegue estar ainda melhor, incrivelmente
bonito e gostoso.
Ele ergue o rosto, e parece ficar tão surpreso quanto eu. Os olhos azuis
intensos estão bem acesos, as sobrancelhas finas arqueadas, o nariz reto e
pontudo meio franzido, e os lábios estreitos e rosados crispados. Agarro a
maçaneta com mais força, fechando a porta por completo e andando, a passos
vacilantes, para o meio da sala.
— Mackenzie Lennon. — A voz rouca proferindo meu nome traz uma
mistura extraordinária de sensações. — Ou devo te chamar de Doutora
Lennon agora?
O sorriso ladino e zombeteiro estampa a face, ao passo que ergo o rosto, e
aprumo a postura, para não mostrar que estou mais do que abalada.
Embora esse não tenha sido o conselho da minha terapeuta, decidi que o
melhor seria empurrar Thomas e o amor que sinto por ele para o fundo da
mente. Então, durante esses anos, me limitei a ficar com alguns caras
casualmente, e evitar qualquer sinal do loiro. Dominic ainda soltava alguma
coisa ou outra, como o fato de Thomas ter aberto mais duas oficinas além da
de Bolfok, porém nada que entregasse o lugar que estava morando em
definitivo.
Contudo, acabo de descobrir que empurrá-lo para o fundo da mente não é
eficaz para que o sentimento suma. Porque ele está aqui, tão forte quanto
antes, como se estivesse apenas esperando o momento de transbordar.
— Pode me chamar de Lennon. Estou como sua advogada aqui. — Me sento
a sua frente, abrindo a pasta com algumas das informações do caso. — Foi
pego dirigindo muito acima da velocidade. O que houve?
Thomas ri baixo, o som de sua risada reverberando para dentro demim,
acelerando as batidas do coração.
— Estava batendo um racha. — Arqueio as sobrancelhas, bufando pela
irritação que me toma. — A polícia passou por lá, e o cara com quem eu
estava correndo conseguiu cair fora.
— Está beirando os trinta anos, e fica "batendo rachas" de madrugada. —
Faço as aspas com os dedos. — Não tem vergonha?
— Achei que estivesse aqui como a minha advogada. — Odeio esse
sorrisinho sarcástico que desponta no canto de seus lábios. — Eu estava só
me divertindo com um amigo, a velocidade nem era tão absurda.
— Não mesmo, você só foi detido por estar a mais de cem quilômetros acima
do limite imposto. — Ironia escorre por entre meus lábios.
— Dei mole, eu sei. — Subo e desço os ombros, com um sorriso vitorioso
rasgando nos lábios. — Você vai conseguir me tirar daqui, certo?
Tenho vontade de rir, principalmente do semblante dotado de receio em seu
rosto.
— Entrarei com um pedido de habeas corpus para você sair sob pagamento
de fiança. — Inicio, escovando os fios da franja para trás.
Assisto-o cruzar os braços atrás da cabeça, e não consigo deixar de prestar
atenção nos seus bíceps flexionados. Estampado na pele branca, mais
bronzeada do que quando morava em Bolfok, no meio do músculo, vejo um
Cadillac rosa amistoso, exatamente como o meu que está estacionado lá fora.
O teto parece baixar, tornando o ar rarefeito, meu peito comprime, e a
grandiosidade do gesto me afeta. Muito. Engulo em seco, sentindo o coração
acelerar.
— Qual é a da tatuagem? — Aponto com a cabeça para o desenho em seu
braço.
Thomas encara o bíceps, achando a tatuagem em um piscar. Ele abre um
sorriso pequeno.
— Gosto do Cadillac. — Semicerro os olhos em sua direção, recebendo uma
piscadela marota. — E gosto da Mackenzie.
Tenho a impressão de que meu coração para por uns instantes, porque o peito
dói e uma sensação vai se embrenhando pelo corpo, me arrepiando da cabeça
aos pés.
Fico desconcertada com a revelação, por isso pigarreio e mudo de assunto,
discorrendo sobre seu caso e os próximos passos até que o alvará de soltura
saia. Thomas bufa, achando que seria mais simples do que parece. Contudo, o
processo é rápido.
Saio da pequena sala, a fim de preparar o documento para enviar à corte, que
ponderará acerca da liberação de Thomas através da fiança. Seu rosto
permanece em minha mente em um loop infinito. Não consigo deixar de
pensar em suas manias antigas e nas novas, em tudo que consigo perceber
ficando poucos minutos em sua presença. A maneira como arrasta a mão pela
parte de trás da cabeça, e repentinamente, sinto vontade de passar a palma ali
também, conhecendo a textura de seus fios cerrados.
A idade se revela através do aumento considerável nas linhas de expressão e
ruguinhas em seu rosto. Assim como a quase imperceptível sombra de pelos
que adorna a face, simulando uma espécie de barba rala. Na época da
faculdade, Thomas tinha a cara limpa e se empenhava em manter-se daquele
jeito. Contudo, agora, consigo admirar o modo como ele envelhece bem. De
uma maneira que só o faz ficar com o semblante mais maduro e bonito. Tento
não pensar em como seu abdômen deve estar por baixo daquela camisa preta
justa. Na quantidade de gominhos, na evidência das entradas perto da virilha,
e na firmeza do peitoral.
Chacoalho a cabeça, tentando afastar os pensamentos pecaminosos que
ameaçam surgir, e sigo caminho até o escritório. Passo quase o dia inteiro
cuidando disso, e acabo ficando presa no escritório com outro caso enquanto
recebo a informação de que a fiança foi paga e Thomas solto. Eu deveria
estar lá, mas a consequência de querer muito uma promoção é se envolver em
casos até o pescoço. Olho de relance para o relógio que marca seis da noite, e
solto um bocejo, alongando os braços.
— Pretende ficar até que horas? — Lauren arruma seus pertences na bolsa,
pronta para cair fora.
— Acho que no máximo às oito. — Ela concorda com a cabeça, e pendura a
bolsa no ombro. — Já vai?
— Meu horário é até as cinco, Lennon. Não vou deixar que me explorem. —
Sinto a alfinetada, porém ignoro.
Almejo, com todo meu ser, essa promoção. Desejo um apartamento maior, e
quero acompanhar meus amigos nos programas que eles fazem. Como todos
eles são um tanto mais avançados, tiveram anos para conseguir bons
empregos enquanto eu estava na faculdade. Então, agora que recuso qualquer
ajuda financeira dos meus pais, que só sabem ganhar mais e mais dinheiro,
acabo ficando de fora de alguns programas que exigem uma renda maior.
Tenho que economizar para dar conta de todas as contas do mês.
Perscruto a mesa de Billy vazia, porque ele sempre sai em seu horário ou no
máximo uma hora mais tarde. Depois, volto a me concentrar nas petições que
tenho de preparar e outros documentos que preciso digitar. Às sete, meu
cérebro chega ao limite. O bico fino dos saltos comprime os dedos, o cansaço
embaça as vistas, e meus neurônios parecem derreter um a um. Organizo
meus pertences na bolsa e apago a luz, deixando a sala aberta apenas para os
funcionários de limpeza.
Saio do elevador, e interrompo os passos apenas para retirar os saltos. Assim
que deixo os dedos livres o suficiente para respirar, um suspiro de alívio me
escapa. Os olhos quase lacrimejam de tanto cansaço, e remexo os pés sobre o
piso gelado do hall do prédio. Ando até a porta lateral, que me leva até o
estacionamento e fico estática quando reparo naquela cabeleira loira tão
conhecida.
Thomas está encostado na parede, segurando uma sacola de papelão, com um
dos joelhos flexionados e o pé coberto por um tênis vans apoiado na parede,
em uma postura relaxada. Seu estilo muda, consideravelmente, em
comparação ao da faculdade. Muito por causa do clima mais quente de
Eastland, ele veste bermuda preta simples acima dos joelhos e uma blusa
branca, que cai incrivelmente bem em seu corpo.
— Thomas. — Avanço alguns passos, segurando os saltos em uma das mãos.
— O que faz aqui?
Ele ergue a sacola, balançando-a levemente.
— Soube por Nevaeh que você tem saído bem tarde do trabalho, e resolvi
trazer a janta. — Arregalo os olhos, surpresa demais pelo gesto. — Também
em agradecimento por ter me livrado da cadeia.
Thomas ri baixo, mas não consigo acompanhá-lo. Estou tão exausta e com
fome que um gesto como esse é exatamente o que eu preciso no momento. É
tão simples e bonito ao mesmo tempo em que meus olhos quase lacrimejam.
E percebo que esse homem continua sendo meu sopro de alívio em meio a
uma rotina pesada.
— Você não tem noção do quanto eu precisava disso. — O aroma da sacola
se dissolve no ar, chegando até minhas narinas. — O que tem aí?
O estômago ronca, e sei que ele percebe, porque tenta abafar a risada com a
mão. Pouso a mão sobre o estômago e sorrio, tentando disfarçar.
— Aquela coisa chique que você ama: plancha de grelhados do mar e
aspargos frescos, com cogumelos e batatas na manteiga de limão e alho
crocante. — Enrugo os lábios, tentando não deixar que um sorriso largo
rasgue em meu rosto. — Por que está com esse ar de riso? Disse algo errado?
Nego com a cabeça.
— É um dos meus pratos favoritos, e você disse tudo certo.— Acompanho-
opelo prédio, sentindo a brisa amena bagunçar os fios do cabelo. — Muito
obrigada por isso.
Thomas abana a mão, dizendo que não foi nada, e me pergunta se quero levar
a comida até seu apartamento. Pondero por uns instantes, mas resolvo atender
minhas reais vontades, aceitando.
Sigo seu carro, o costumeiro Eagle Speedster, até o local situado em St.
Mary. Entendo sem esforços que ele é morador de um dos bairros elitizados
de Eastland, e penso que as oficinas devem estar mesmo prosperando.
Thomas desce uma rampa, adentrando uma espécie de garagem e indica com
a seta do automóvel uma vaga para mim.
Olho em volta, deslumbrada com a quantidade de carros lindos estacionados,
e me pergunto silenciosamente se são todos de Thomas.
— São meus. — Dou um sobressalto, fazendo-o rir baixo. — A pergunta está
estampada em seu rosto. Alguns eu comprei quebrados no ferro velho,
transformando-os. E outros em feiras de colecionadores.
Tenho até medo de tocá-los, pois parecem tão bonitos e frágeis. Encaro um
Impala conversível 1961 azul claro, e prendo a respiração, admirada demais
com a elegância do veículo. Não havia percebido o quanto senti falta de
carros até agora.
— Podemos comer aqui? — Thomas cerra os olhos, enganchando um braço
ao redor dos meus ombros.
O contato é suficiente para fazer meus ombros enrijecerem. O frio na barriga
retorna e contorço os dedos dos pés descalços. A quentura proveniente de seu
corro perpassa o meu, dissolvendo a tensão no ar.
— Você vai ter tempo o bastante para aproveitar cada um desses carros, eu
prometo. — O sussurro rouco em meu ouvido provoca um arrepio desde a
base da coluna até a nuca.
Porra.
Ele volta a andar, e eu me obrigo a acompanhá-lo, tentando arduamente não
demonstrar o quanto estou desestabilizada com o toque e a aproximação.
Reconheço a leveza de estar com ele, a calmaria por entre a tempestade, a
sensação de energia renovada, como se sua presença fosse capaz de me
revitalizar. Porém, não é só isso. Essa droga de tensão parece roubar meu ar,
expondo minha fragilidade e o lado vulnerável que luto para esconder.
Tenho certeza que Thomas já percebeu a proporção dos efeitos que me causa
com um simples toque, sorriso ladino ou provocação. As bochechas
ruborizam, os olhos atravessam o caminho de sua íris até a boca, e desvio o
contato das vistas, a fim de romper qualquer conexão que faça minhas coxas
apertarem e o estômago retorcer.
— Estou assustada. — Solto assim que chegamos ao andar do seu
apartamento.
Encaro o mármore claro que serve de piso, e as paredes pretas extremamente
brilhosas. Tudo é grandioso e elegante, de um jeito que eu costumava ver em
Dilshad Town. Eu não deveria estar tão surpresa, já que só hoje ele
provavelmente gastou setenta dólares em cada prato do nosso jantar, e o valor
de três mil dólares com a fiança. Porém, encarar a quantidade de carros na
garagem privativa e a luxuosidade do prédio torna tudo ainda mais real.
— Com o quê? — Thomas posiciona o dedo em cima do leitor de digital da
maçaneta e abre a porta.
Diante das vistas, surge uma sala ampla com piso claro, contrastando com o
sofá e móveis pretos. Tenho um vislumbre da cozinha acoplada em uma
grande bancada de mármore. Armários escuros combinam com todo o
ambiente moderno e sério. Ainda, uma janela que começa na altura da minha
cintura e termina apenas no teto expõe a orla e a praia amistosa do bairro de
St. Mary.
— Com a sua conta bancária. — Thomas solta uma gargalhada, que
reverbera por todo o ambiente.
Uma mesa de jantar grande, para oito pessoas, está delicadamente
posicionada abaixo de uma luminária exótica e bonita ao mesmo tempo.
Assim como tudo é muito limpo e cheiroso, uma mistura entre produtos de
limpeza e o perfume costumeiro de Thomas. Demoro a entender que o painel,
que combina com a parede, na verdade, é uma televisão. E embora eu esteja
acostumada com imóveis chiques e extravagantes, nada consegue chegar
perto disso. Porque todo o apartamento exala a essência de Thomas de um
jeito organizado e luxuoso, sem muito excesso.
— Não é tão chique assim, nem tem piscina. — Entreabro os lábios, chocada
com seu argumento.
— É em frente à praia, Thomas. — Ele se limita a subir e descer os ombros.
— Não precisa de piscina.
— Eu queria uma cobertura com piscina de borda infinita. — Assisto seus
olhos brilharem com a possibilidade e sorrio. — Será minha próxima
aquisição, o topo desse prédio.
É engraçado lidar com um Thomas rico, porque difere totalmente da nossa
realidade na faculdade, em que ele já esteve mergulhado em um mar de
dívidas.
— Tenho uma piscina de borda infinita lá no Croody. — Faço menção ao
bairro que moro. — Tão infinita que não tem começo e nem fim.
— Mackenzie, aceite que sua época das vacas gordas acabou. Agora que
você deixou de ser rainha para ser camponesa, como se sente? — Lanço-o
um olhar mortal, provocando-nos uma risada.
— Cansada, amargurada e irritada. — Sigo-o até a bancada da cozinha, e
assisto-o tirar a comida da vasilha do restaurante e colocar em pratos de
porcelana. — Acordo todos os dias às cinco, chegando ao escritório às sete,
para voltar para casa oito e às vezes onze da noite. Uso os finais de semana
para dormir e pagar contas.
Thomas nega com a cabeça e me olha com pena brilhando naíris.
— Resumindo: você só trabalha e trabalha. — Aceno positivamente. — Está
rolando alguma espécie de recompensa?
— Recebo meu salário de acordo com os honorários, porém sou uma
advogada assistente, então eles são baixos. Além disso, estou pegando o
máximo de casos que consigo para subir de cargo, e virar tipo uma advogada
de verdade. — Inspiro e expiro, espantando a vontade de chorar por exaustão.
Thomas me encara com ternura brilhando nos olhos azuis, escrutinando meu
rosto com atenção, enquantosobe o canto dos lábios finos, abrindo um sorriso
contido.
— Mackenzie, a partir do momento em que se graduou e conseguiu a
credencial, tornou-se uma advogada de verdade. Não é um cargo que vai
definir isso. — Balanço a cabeça, sem ter certeza se concordo ou discordo. —
Essa promoção vai vir em um momento inesperado.
A falta de expectativa faz com que as surpresas sejam mais belas. Relembrar
disso me faz pensar no pequeno papel que guardava na carteira, com a
promessa de reencontrar Thomas e entregá-lo. Contudo, ele ficou perdido em
algum lugar quando retirei algo do compartimento. Só sei que após um dia de
trabalho exaustivo, o pedaço rosa escrito com caneta preta já não estava mais
lá.
Lembro-me de tirar aquele dia para me enfiar no quarto, imersa em uma
completa tristeza. Porque, para mim, naquele momento em específico, eu
estava perdendo qualquer chance de reencontrar Thomas e reconstruir os
sentimentos que só ele já foi capaz de causar. Assim como tudo na vida,
algumas lembranças vão se apagando, e as coisas se perdem no ar. E, no
final, o que sobra é exatamente o que guardamos dentro de nós. Matéria se
decompõe, mas as almas são preservadas pela infinitude que abrange o
universo.
— Só quero que ela venha logo, porque preciso de mais espaço para morar.
— Capturo uma quantidade considerável de comida e trago a boca.
Mastigo com calma, sentindo a explosão de sabores na boca. Essa,
definitivamente, é uma das melhores comidas que existe. O gosto dos frutos
do mar misturado à acidez do limão e o alho crocante parecem acariciar o
paladar. Faz tanto tempo que não faço uma refeição tão prazerosaque já não
me lembro da última vez.
— Deixa disso, você morou por cinco anos em um alojamento estudantil. —
Sinto-me indignada por alguns instantes. É fácil dizer assim quando se mora
em um apartamento desses.
Como é mesmo o ditado? Pimenta no orifício alheio é refresco.
— E é exatamente por isso que mereço um lugar maior agora que trabalho
pra caralho. — Não freio o palavrão, e nem me preocupo em evitar que o tom
de voz saia rude.
— Então, venha morar comigo e o problema acaba. — Sei que é brincadeira,
porém não deixo de sobressaltar com a oferta.
— Eu aceito. — Tombo o corpo de leve em sua direção, e sussurro: — Estou
me vendendo por um preço tão baixo, que ainda assim, é maior que meus
honorários.
Escuto sua risada alta reverberar pelo apartamento, fazendo meu peito tremer
junto.
— Estou tentando pôr na balança do que foi mais sexy: sua pose provocativa
ou seu bafo de alho e frutos do mar. — Gargalho alto junto com ele, sentindo
a alegria revigorar cada mazela cansada do meu corpo.
— Faz cinco anos que não me vê e já está falando do meu bafo?
Inacreditável. — Nego com a cabeça, ainda com um sorriso por entre os
lábios.
Thomas apoia o cotovelo na bancada, pousando a mão na bochecha, ao passo
que escrutina minha face com atenção.
— Eu realmente não posso fazer nada se anos passam e nossa conexão
continua a mesma.
Não sou capaz de responder, portanto mantenho os lábios pregados. O
silêncio parece ser um incentivo para que Thomas erga a mão livre, pousando
o indicador em uma das pintas da minha bochecha. Prendo o fôlego, inflando
as bochechas de ar, sentindo o estômago retorcer e o coração acelerar. O
toque áspero da ponta de seu dedo calejado perpassa por todas as pintinhas do
rosto, arrastando-se até as do pescoço, me provocando um arrepio intenso.
Acho que ele consegue perceber o momento em que os pelinhos do braço se
levantam, e isso o faz sorrir de lado, expondo a covinha única que tanto amo.
Eckhoff chega cada vez mais perto, e aproveito da sua distração para inclinar
o rosto, colando a boca em seu ouvido, os lábios se arrastando pelo lóbulo da
orelha.
— Após tantos anos, não vamos querer um beijo com gosto de alho. —
Thomas ri baixo, e esconde o rosto na curva do meu pescoço. Inspirando meu
perfume, me fazendo contorcer os dedos dos pés em excitação.
— Merecemos um beijo com hálito de pasta de dente. — Tento, com todas as
forças, ignorar sua mão acariciando meu braço, bem como a outra achando
espaço entre a barra da minha calça social e a da minha camisa.
Desfaço o contato, dissolvendo a tensão palpável que nos abrange.
Terminamos o jantar imerso em assuntos amenos, nos atualizando da vida um
do outro. Thomas me conta sobre a oficina de Bolfok, de Oroland e a daqui.
Ele diz que o negócio dos leilões de carros rende ainda mais dinheiro, e que o
louro mal está acostumado a lidar com tanta grana, tendo que contratar um
profissional de contabilidade.
— Uma coisa importante que eu deveria ter perguntado antes de sequer
cogitar te beijar. — Pouso o garfo no prato já vazio, e o incentivo a falar. —
Você está com alguém?
— Não. — Engulo o último resquício de água no copo.
Não é como se eu tivesse tentado. Ao longo dos anos, me esforcei de maneira
inconsciente a manter todas as minhas relações com o sexo opostos limitadas
a amizade e transas casuais. Nem ao menos quis procurar em alguém motivos
o bastante para amar outra pessoa de novo. Até porque parecia tão difícil me
sentir tão bem quanto era com Thomas. Ninguém, em todos esses anos,
conseguiu sequer chegar perto de causar a sensação de plenitude que me
acostumei a sentir com Eckhoff.
— Ufa. — Seu alívio nos faz dar uma risada contida. — Você quer beber
algo que não seja água? Nem posso te oferecer qualquer bebida alcoólica
porque continuo não gostando de nenhuma, mas tem refrigerante e suco.
— Você não disse se está com alguém ou não. — Ignoro sua pergunta.
— Jamais tentaria te beijar se estivesse. — Aceno em concordância, um tanto
feliz por ele ser o mesmo Thomas de sempre, agora com uns dígitos a mais
na conta.
— Gosto de comer bebendo água, como você sabe. — Ele se levanta,
carregando nossos pratos e talheres, enfiando-os na máquina de lavar-louças.
— O refrigerante é Dr. Pepper?
— Tem também, mas comprei Coca-Cola de cereja para você. — Meu
coração parece dar um pulo no peito.
Odeio o fato de ainda ser tão fraca em relação a ele. Não que esse seja um
gesto enorme, mas gosto de pensar que depois de sair da delegacia, Thomas
realmente planejou isso aqui. Esfrego as têmporas de leve, e agradeço pelo
refrigerante. Voltamos a conversar sobre a vida, relembrando de algumas das
reuniões entre amigos que nunca conseguimos, de fato, juntar todo mundo. O
que inclusive culminou no meu desencontro com ele tantas vezes. Sempre
que um pode, o outro não, e assim, nosso grupo de amigos demora meses
para conseguir marcar algo. Por fim, todos desistem da ideia e acabamos nos
encontrando sem algum integrante.
Ele também diz que Noora agora estuda culinária, se especializando na
vegetariana, e está vivendo bem melhor dada as condições do filho. Descubro
que Sarah teve uma filha do tio dele, e a pequena Justine é mimada por todos.
Guardo para mim meu descontentamento com o nome. Thomas se lembra do
jantar de Ação de Graças em sua casa, e diz que aquele pequeno garoto que o
jogou ervilha, já é um pré-adolescente cheio de espinhas. Dou risada de
algumas das suas histórias com Lewis, enquanto eles moraram juntos, e o
atualizo de partes da minha vida.
Basicamente, nada mudou muito. Minha relação com Lidia melhorou, mas
continuamos distantes, bem como falo com papai quase todos os dias.
Howard segue adquirindo mais fios brancos no cabelo e linhas de expressão
no rosto. Lindsay se aposentou da vida de modelo, e agora apresenta um
reality show famoso na Itália. O lugar dela sempre será na Europa, porém a
tarefa de manter contato continua obtendo êxito.
Em meio à conversa, o cansaço se embrenha pelo meu corpo, e eu começo a
piscar com lentidão. Assim, Thomas me oferece um banho quente e seu
quarto de hóspedes, até porque já é tarde. Vamos fingir que só decido ficar
por esse motivo e por amanhã ser sábado, e não porque já odeio a ideia de me
desgrudar dele. Escovo os dentes com calma, e me analiso dentro da cueca
samba canção e da blusa branca de algodão que bate quase nos joelhos.
Puxo o elástico da samba canção, prendendo-a na cintura para evitar ficar só
de calcinha em algum momento inesperado. Desço os degraus com calma,
apoiando o corpo na parede devido à ausência de corrimão. Avisto Thomas
sentado no sofá, usando uma calça de moletom cinza, e blusa branca bem
similar à que visto. Finjo não prestar atenção nas tatuagens que sobram da
manga e se expandem por todo seu braço, nem na mão livre dos anéis
costumeiros, e na corrente fina dourada que se esconde no tecido da camisa.
— Ainda com muito sono? — Termino de descer os degraus e me aproximo
dele.
— Não. O banho me acordou um pouco. — Ele balança a cabeça em
concordância, me olhando de cima a baixo com algo que parece desejo
brilhando em sua íris.
— Quer dar um passeio? — Ele ergue uma chave no ar. — É a do Impala que
você gostou.
Balanço a cabeça fervorosamente, em um aceno positivo. Então, Thomas se
levanta e busca uma pantufa lilás, que uma mulher de idade mais avançada
usaria – ele completa dizendo ser de sua mãe, e as visto mesmo assim. Não
enfiaria meus pés naqueles saltos por nada. Ele estende a mão para mim,
entrelaçando seus dedos nos meus, e encaixando nossas palmas. O simples
toque envia uma eletricidade por toda a corrente sanguínea, fazendo o
estômago retorcer dentro de mim. Ignoro a comichão, sentindo o coração
errar uma batida.
Chegando ao Impala, Thomas desfaz o toque de nossas mãos, jogando a
chave no ar para mim, e eu a capturo em um gesto desajeitado. Franzo o
cenho, um sulco se formando entre as sobrancelhas afastadas.
— Pode dirigir. — Tenho vontade de beijá-lo aqui e agora, mas ignoro a
vontade, e ocupo o lado do motorista. — Só vamos tentar não ultrapassar os
limites de velocidade.
O pedido de Thomas é educadamente ignorado assim que desponto na
avenida da praia sem muitos carros, porque é impossível não afundar o pé no
acelerador apenas para escutar o ronco majestoso do motor. Sentimos a
pureza de a brisa marítima nos brindarcom a melhor das sensações, devido à
falta do teto do carro. Meu cabelo ricocheteia para trás, e eu inflo as narinas,
inspirando o cheiro gostoso de maresia. Assisto Eastland Coast brilhar diante
dos olhos, elegante e agitada como sempre, contrastando com a calmaria da
natureza. Os quiosques da orla estão cheios, alguns com música ao vivo, e
outros dando lugar às vozes altas dos clientes.
Gosto daqui porque às vezes a cidade nem parece estar situada nos Estados
Unidos, com tantos turistas de diferentes lugares e culturas estrangeiras se
unindo em um único lugar. Olho de relance para Thomas, e o vejo encarar a
paisagem com as íris cor oceano brilhando. O sorriso despretensioso não
abandona seu rosto sereno, e ele parece combinar com o clima praiano daqui.
— Vamos estacionar no Forte St. Mary. — Aceno em concordância, girando
o volante para entrar em um retorno que nos leva até uma parte mais alta da
cidade. — Sabe chegar lá?
— Não exatamente. — Diminuo a velocidade, sendo guiada por ele até a
grande estrutura antiga que nos dá uma vista panorâmica da cidade, e que
geralmente é vazia durante a madrugada.
Estaciono em um espaço designado para que os carros parem bem de frente
para a vista da cidade. Mesmo sentada no banco, consigo ver os pontilhados
de luz espalhados por toda a Eastland, e as ondas quebrando no mar pouco
iluminado.
— Durante o tempo que fiquei preso, após te encontrar, estive pensando em
algo que conversamos há muito tempo. — Tombo o corpo no banco, me
virando para ele. — Sobre o destino.
Sei que o assunto é uma espécie de impulso para uma conversa que queremos
ter desde o momento em que nos vimos. Por isso, quase tenho que pousar a
mão na barriga, tentando amparar a sensação de nervosismo que me toma.
— Sobre ele dizer o foda-se para o livre arbítrio e nos juntar novamente? —
Ele concorda com a cabeça. — No momento certo, eu me lembro.
As memórias vão invadindo a mente em uma avalanche de sentimentos bons
e ruins. Assisto como uma espectadora a nossa ruína há cinco anos, e penso
no tempo em que ficamos separados, enfrentando o futuro e cuidando da
saúde mental. Pessoas gostam de dizer que o tempo cura tudo, mas não é só
isso. Porque tem que haver perdão, de ambas as partes. É necessário deixar as
mágoas e sensações ruins irem embora para estar preparado para um
recomeço, e sinto que estamos assim agora.
Preparados.
— O que acha desse momento? — Thomas se aproxima, e parece que a brisa
do mar se dissolve como fumaça para longe de nós.
O ar foge dos pulmões, acelerando a respiração, bem como sinto seu hálito
fresco bater em meu rosto. Ele acaricia meus cabelos um pouco mais curtos
do que antes, e seu dedão resvala na pele da bochecha. Pouso as mãos em
seus ombros, sentindo-os rígidos sob meu toque. Envolvo sua nuca,
aproximando os corpos ainda mais.
— Acho que devemos esperar mais, sabe, para eu conferir se você não se
tornou um rico mesquinho e arrogante. — Brinco, abrindo um sorriso
zombeteiro.
— Sou um pouco menos arrogante do que antes, e nada mesquinho. — Ele
arrasta a ponta do nariz em meu pescoço, assistindo os arrepios e todos os
efeitos que provoca em mim. — Ainda acha que devemos esperar?
Agarro sua nuca, sentindo a textura dos fios cerrados pelo corte baixo, bem
como arrasto as unhas levemente, fazendo-o soltar um gruído baixo. Inclino
meu corpo em sua direção, pulando o câmbio e freio de mão, sentindo as
pantufas deixar os pés, e me ajeitando sobre seu colo. Afundo os joelhos no
acolchoado de couro do carro, sentindo a rigidez de suas coxas sob mim.
Puxo a correntinha para o lado de fora, avistando uma pequenina chave de
bico, ferramenta usada para consertar carros, banhada a ouro.
Deslizo o indicador pelo pingente, admirada com o quanto tudo em Thomas
consegue ser absolutamente significativo. Enrosco os dedos na corrente,
puxando-o para mim.
— Não acho, pelo contrário, sinto que se não te beijar agora, vou desregular
algum tipo de linha do tempo do destino. — Thomas solta uma risada que faz
seu hálito fresco bater em meu rosto. Inspiro o aroma de menta proveniente
da pasta de dente, e me remexo em seu colo, fazendo-o agarrar meus quadris
com força. — Seria quase um crime, e já basta de delitos por hoje.
Não hesito em esmagar seus lábios, experimentando a maciez que tanto senti
falta. Sua língua deslizando sobre a minha, com a aspereza ideal, fazendo um
monte de coisas imaginárias explodirem dentro de mim. Com isso, consigo
me dar conta de algo tão óbvio. Nenhum beijo nunca se igualaria a esse
porque eles não seriam dados por Thomas.
A textura dos lábios, a aspereza da língua, a saliva na medida certa, tudo
combina incrivelmente comigo porque é do homem que eu amo que estou
falando. Só quero as mãos dele desbravando cada parte do meu corpo, se
arrastando pela lateral dos seios, apertando os quadris com força e cobrindo a
bunda com firmeza. Os dedos longos que agarram a lateral do meu pescoço
provocam uma sensação única que ninguém no mundo poderia proporcionar,
senão ele.
Porque tudo em Thomas Eckhoff combina perfeitamente com Mackenzie
Lennon, com a grandeza da infinitude que abrange o universo e a intensidade
de uma tempestade.
Mackenzie ficou irritada quando teve conhecimento da rasteira que
tomou do destino, ou seria melhor dizer, de Dominic? Ainda no carro diante
da vista da cidade, eu contei a ela como contratei a firma de advocacia que,
por coincidência, Lennon trabalhava. Na verdade, o destino não fez nada. O
que aconteceu foi que, no momento em fui detido, liguei para meu amigo e
pedi que ele contatasse um advogado, e ele, espertamente e sem me contar,
ligou para o escritório que Lennon trabalha e pediu que eu fosse seu cliente.
Realmente pensamos que havia sido uma coincidência, e fizemos inúmeras
reflexões acerca do destino, à forma como ele agiu em nossas vidas. Bom, o
mérito é todo de Dominic Hopkins. Que bom que esse cara existe.
Encaro o corpo esguio de Mackenzie sendo refletido pelo espelho do meu
quarto, e me pergunto se essa mulher é mesmo real. Ela usa um vestido
vermelho justo no busto, com uma saia meio esvoaçante, e saltos dourados
nos pés. Há algum tipo de amarração estranha que cruza umas fitas em suas
costas, me dando um vislumbre de sua pele branca decorada por algumas
pintinhas.
Estamos nos reaproximando a algumas semanas, tentando esconder o amor
que é óbvio que ainda sentimos. Visitamos juntos alguns restaurantes e bares,
fomos à praia algumas vezes, tentando restabelecer entre nós a conexão que
nunca acabou. Porque quando estou em sua presença, ainda sinto a porra do
meu coração acelerar, o estômago doer e as mãos suarem um pouco.
— Ainda vai demorar muito tempo? — Olho o horário na tela do celular. —
Estamos atrasados, Mackenzie.
Hoje é a despedida de solteiro de Nevaeh e Dominic, que decidem
comemorar o último dia antes do casório... Juntos. Não sei se isso é comum
em algum lugar do mundo, porém os dois alegam que é uma boa
oportunidade para reunir os amigos, e não queremos nos dividir entre homens
e mulheres.
Morar por sete meses com Lewis serviu para nos aproximar ainda mais, de
algum jeito. Usei daquele tempo para ponderar as possibilidades de abrir uma
oficina em Altoona, no entanto decidi não ser um bom negócio na época.
Então, me mudei para Oroland County, e fiquei por dois anos durante a
abertura da oficina de lá, deixando-a sob a gerência de tio Mason, enquanto
Luke cuidava perfeitamente bem da loja de Bolfok. Meu próximo destino
depois da minha cidade natal foi Eastland Coast, e sinceramente, nem
precisei visitar outra cidade, porque encontrei o meu lar.
— Já estou terminando. — Sua voz espanta meus pensamentos, e a vejo
pendurar um colar fino ao redor do pescoço, bem como alguns anéis e uma
pulseira.
Decido adiantar as coisas, me levantando do colchão confortável para calçar
os tênis. Enrolo as mangas da camisa social preta, cobrindo-a com uma
jaqueta de couro. Borrifo o mesmo perfume de sempre, e encosto no batente
da porta com o meu melhor semblante impaciente. Mackenzie me olha com
as sobrancelhas arqueadas, bufando enquanto perscruta o quarto com os
olhos.
— Você fica me apressando, e eu me esqueço das coisas. — Ela reclama,
andando de um lado a outro do quarto, parecendo procurar algo.
Respiro fundo, mas sinto vontade de rir, porque estamos agindo como um
casal que está junto há anos. Mackenzie morre antes de admitir, mas tenho
certeza de que ela ama meu apartamento, já que em qualquer oportunidade e
convite a mulher está aqui. Então, quando a chamei para passar o dia comigo
para irmos até a despedida de solteiro juntos, em menos de quinze minutos
sua presença iluminou o bairro de St. Mary.
— O que falta, meu bem? — Mackenzie perde o fôlego por uns instantes, e
se recompõe rapidamente.
— Não sei onde enfiei a bolsa de mão que preparei para levar. — Escaneio o
quarto amplo, e acho o pequeno objeto dourado por entre as cobertas da
cama.
Capturo a corrente da bolsa que não cabe nem um celular direito e a entrego.
Mackenzie murmura um agradecimento, ao passo que se aproxima,com seu
perfume invadindo meu espaço pessoal e suas mãos pousadas em ambos os
ombros. O toque quente me faz resfolegar, e sua boca pressiona a minha, em
um selinho casto. A maciez de seus lábios contra os meus provoca uma
mistura de sensações, contorcendo meu âmago em expectativa. Agarro seus
quadris, chocando nossos troncos, aprofundando o beijo.
Minha mão se arrasta pelas costas delas, se enganchando na abertura do
vestido. Mackenzie arranha minha nuca na intensidade certa, exatamente
como eu gosto, e pressiona as costas. Afundo os dedos na carne de sua coxa,
por baixo da saia do vestido, e enlaço suas pernas ao meu redor. Deslizo até
sua bunda, e aperto com força. Lennon solta um gemido delicioso,
desgrudando nossos lábios, e traço uma linha de beijos desde a mandíbula,
passando pelo pescoço e parando na clavícula, onde encosto a língua para
sugar sua pele.
— Não estávamos atrasados? — Sua voz escapa ofegante, e sinto a ponta de
seu salto pressionar minhas costas. Meu pau pulsa, respondendo por mim que
não há atraso nenhum.
— Eles não vão se importar, meu bem. Eu juro. — Uso do apelido para
mascarar a vontade que sinto de chamá-la de amor.
Caminho até a parede mais próxima, pressionando o corpo dela, ao passo que
arrasto uma das alças de seu vestido para baixo. Trilho beijos, sugadas e
lambidas até chegar a seus mamilos, sendo parado repentinamente.
— Não vamos transar. Vocêreclamou que eu estava atrasada enquanto me
arrumava, agora aguente com o pau dentro da calça durante o caminho,
porque, meu bem, estamos atrasados.
Filha da puta.
Que mulher vingativa é essa. Mackenzie desce do meu colo, ajeitando a alça
sobre o ombro, e me lança uma piscadela marota. Bufo, mais indignado do
que deveria, xingando até a milésima geração dos noivinhos que acabam de
empatar minha foda.
Tento disfarçar a carranca, mas não consigo, e isso só contribui para que a
diversão aumente para a mulher endiabrada que ocupa o banco do carona de
Stormi. Preciso escolhê-lo como carro da vez com frequência, porque o Eagle
Speedster consegue ser bem ciumento.
Designo total atenção ao GPS acoplado na nova tela do carro, seguindo para
o local marcado. Começo a estranhar assim que embico na estrada que nos
leva até a saída de Eastland Coast.
— Nevaeh não disse que era em Eastland? — questiona e eu aceno em
concordância. — Puta merda, estamos perdidos.
Aperto os dedos com força ao redor do volante, sentindo o nervosismo
aumentar a cada milha que avanço para fora da cidade.
— Mackenzie, calma. — Inspiro e expiro, tentando manter a serenidade. —
Se você ficar nervosa, vai me deixar nervoso também.
— Você já tá nervoso, porra. — Ficamos em silêncio por uns instantes até
cair na risada.
Somos duas pessoas um tanto desequilibradas, isso é fato. Embora sejamos
diferentes em muitos aspectos, as características de nossas mentes ansiosas se
assemelham muito. Porque ambos enfrentam pensamentos ruins, assim como
as paranoias que chegam até nós com muita facilidade. Contudo, a grande
diferença para o Thomas e a Mackenzie do passado, é que estamos nos
cuidando mais. Seguimos o acompanhamento psicológico com afinco, bem
como restauramos aos poucos a confiança. E aquela tragédia envolvendo
segredos e sabotagens ficam cada vez mais para trás.
Robert continua preso, e embora seu advogado tente fervorosamente
conseguir alguma brecha na lei para liberá-lo mais cedo, o juiz está pouco
disposto a isso. Esses cinco anos já foram suficientes para que Joanne se
livrasse de alguns vestígios ruins que meu pai deixou, se mudando para um
apartamento em frente à praia em Oroland, e assumindo uma equipe de
neurocirurgia da cidade. Assim como minha mãe que se aventura por entre a
culinária, graças aos bons cursos que posso pagar.
Ao passo que Jeffrey saiu da prisão há um ano, e parece estar vivendo em
uma cidade no interior dos Estados Unidos com uma parte de sua família.
Soube disso em uma das ligações raras que John me fez durante todos esses
anos. Sei pouco sobre o líder da gangue, mas sou atualizado de tempo em
tempo pelas fofocas de Luke, e sei que o Lion continua vivendo em Bolfok
Valley do mesmo jeito.
Com o olhar focado na estrada, quase na fronteira de Eastland com Oroland,
avisto a tão conhecida Ferrari de Lewis— da qual ele só não se desfez após
cinco anos porque ainda não tem dinheiro para comprar outra— estacionada
próxima a uma área totalmente descampada. Logo parado na frente está o
SUV de Hannah, que provavelmente veio sozinha, já que ela e Josh estão
dando um tempo.
Os dois assumiram um relacionamento sério depois de um ano em uma
espécie de amizade colorida. O que não nos surpreendeu muito, porque a
coincidência de se mudarem para a mesma cidade ajudou a manter uma
aproximação íntima, já que todos os outros amigos estavam morando em
lugares diferentes. No entanto, há pouco tempo, Lewis informou que as
coisas não estavam bem no namoro deles. E nossas suposições foram
confirmadas quando percebemos as fotos apagadas do feed das redes sociais
deles.
Segundo Mackenzie, Hannah só quis expor que estavam dando um tempo.
Sem nenhuma outra informação.
— Mas que diabos estamos fazendo no meio do nada? — Ela pergunta,
contraindo as feições em confusão.
Giro o volante para o lado, estacionando atrás do carro de Dominic.
— Não faço a menor ideia — respondo.
Saímos do carro com o cenho franzido, caminhando até a pequena roda que
se forma com Lewis, Andrew, Dominic, Nevaeh e Hannah.
Avisto um celular empunhado na altura do rosto de Nev, e imagino que ela
esteja falando por vídeo com Jules, que só vai conseguir chegar de Los
Angeles perto da hora do casamento.
Mackenzie entrelaça nossos dedos, e sinto meu peito inflar pelo pequeno
gesto.
— Não me digam que mataram alguém e fizeram da despedida de solteiro um
enterro. — Me pronuncio, chegando perto o suficiente para que todos ouçam
o gracejo.
— Não, Thomas. — Mackenzie alarga o sorriso sem desgrudar os olhos de
mim. — Eles deram a desculpa da despedida de solteiro para nos forçar a
ajudar a esconder o corpo.
As vistas de todos, sem exceções, caem diretamente para nossas mãos unidas.
E até Nevaeh abaixa o celular para que Jules veja. Finjo ignorar os olhares
indiscretos, e Mack faz o mesmo. Até que Lewis decide quebrar o silêncio
que se instaura.
— Foi isso mesmo que aconteceu. Ainda bem que já temos a advogada. — O
clima desconcertante se dissolve no ar, e todos caem na risada.
Não anunciamos que estamos nos reaproximando para todos, porém
Mackenzie contou separadamente para Lewis, Nevaeh e Hannah, assim como
eu falei para Andrew e Dominic. Ou seja, pelo telefone sem fio, a notícia já
havia chegado até na Costa Oeste para Jules.
— Como vocês sabem, a ideia inicial era curtirmos uma noite juntos em
alguma boate de Eastland. — Acenamos em concordância com a cabeça para
a fala de Nev. — Mas, vocês também sabem que não curto festas com muita
gente em um espaço pequeno e música alta. Então, decidimos de última
horafazer algo mais legal.
Recebo um olhar alarmado de Mackenzie, que com certeza já está
preocupada com o fato de não ter vindo com uma roupa apropriada para seja
lá o que iremos fazer. Aperto sua mão, tentando confortá-la de algum jeito.
— Paintball! — Dominic grita, parecendo verdadeiramente animado com a
ideia de tomar tiros de tinta.
— O quê? — Lewis arregala os olhos, e põe a mão na altura do peito.
— Tá maluco, porra? — Meu tom de voz beira ao desespero.
— Ah, mas nem fodendo. — Andrew dispara, negando com a cabeça.
Escutamos a gargalhada alta de Jules devido nossas reações, e logo depois ela
se despede, nos desejando um bom paintball. Mackenzie nem consegue se
pronunciar, estando estática, com os lábios entreabertos e os olhos escuros
arregalados.
— Calma, gente. — Nevaeh ergue as mãos em rendição. — Não vamos usar
armas nem nada do tipo, será um paintball com bolinhas de tinta.
Alterno o olhar entre minha camisa social e as roupas confortáveis de Nevaeh
e Dominic. Os sujeitos já vieram preparados, colocando os amigos na cilada.
Transfiro a atenção para o vestido vermelho de Mackenzie, e sei que um
pequeno escândalo está a caminho.
— Você vai ver onde vou enfiar essa bolinha de tinta, Nevaeh Williams!—
Lennon se pronuncia, com as bochechas um pouco ruborizaras pela raiva. —
A despedida de solteiro é de vocês, então nada mais justo do que fazerem o
que quiserem, mas não poderiam ter nos avisado um pouquinho antes?
Ela aproxima o dedão do indicador, gesticulando com fervor. Todos
concordam com Mackenzie, e olham com um brilho do que parece ser pena
para os saltos finos que a mulher usa.
— Foi mal não ter avisado, podemos fazer outra coisa se quiserem. —
Dominic deixa os ombros caírem, e expõe um semblante desolado, que todos
sabem ser puro fingimento.
— É óbvio que não, porra. — Mackenzie retira os saltos, resmungando
baixinho. — Não estragaríamos a noite de vocês por causa de roupas.
Embora sua fala seja firme, ela ainda olha com tristeza para o vestido, que
com certeza não se salvará ao banho de tinta. Hannah acaricia os ombros de
Lennon, apoiando-a, imagino que por também estar com pena de estragar a
saia prateada e a blusa de cetim que usa. Nevaeh salta animada até o
bagageiro do carro, e retira uma grande caixa de lá. À medida que ela vai
esvaziando o recipiente, consigo ver as pequenas bolas de tintas nos sacos na
quantidade exata de integrantes que jogarão.
Há também óculos de proteção e galões com água para limparmos as mãos. O
amplo espaço descampado tem alguns entulhos de uma obra que nunca foi
realmente iniciada, assim como uns food trucks abandonados, que servirão
para nos esconder durante o jogo. Assim que Nevaeh começa a distribuir os
primeiros sacos com as munições de tinta, Mack é a primeira a avançar os
passos e pegar o dela.
— Vou acabar com vocês! — Mackenzie exclama em um ruído furioso.
Andrew abafa a risada com a mão, mas não tem muito êxito, já que Lennon
escuta, e o lança um olhar mortal.
— O jogo funcionará da seguinte forma: como estamos em sete, não nos
dividiremos em equipes. Acho melhor ser cada um por si, então, quando a
buzina soar, a brincadeira começa e poderemos nos divertir. — Dominic
explica, segurando o seu saquinho de bolas.
— Não tem regras? — Andrew arqueia as sobrancelhas, arrastando os dedos
pelo cabelo crespo em descrença.
— Não pensamos muito nisso, só vamos evitar agredir alguém, e tal. —
Inacreditável. Quais as chances de isso dar merda? Todas.
— Precisa ter um juiz nisso, quem vai definir o ganhador ou os perdedores?
— Mackenzie põe a mão na cintura, ao passo que gesticula com a outra. —
Tem que ter alguma regra, se não duvido muito que funcione.
— Posso ser a juíza! — Hannah se oferece, alisando o tecido da saia
prateada. Muito interessada em salvar suas roupas. — Vamos fazer assim, se
dividam em duplas e joguem juntos, a dupla que receber o máximo de três
tiros está fora do jogo, vamos fazendo assim até que sobre a última rodada,
com a dupla que disputará entre si.
— O quê? A dupla tem que ganhar junta — refuto. — Não faz sentido, nos
colocará para jogar em conjunto para depois nos matarmos? Está assistindo
muito Jogos Vorazes, Hannah.
— A diferença é que ninguém vai morrer, Thomas. — Cruzo os braços,
encarando-a com as sobrancelhas arqueadas. — São só bolas de tinta.
Ponderamos por uns instantes, até de fato balançarmos as cabeças, aceitando
o modo como foi sugerido.
— Qual vai ser o prêmio para quem ganhar? — Lewis faz uma pergunta
pertinente, e percebo que Dominic e Nevaeh não haviam pensado nisso.
— Se eu ganhar, quero um dia de spa para depois do casamento. — Nevaeh
sobe e desce os ombros, escovando os cachos para trás do ombro. — Quem
vencer escolhe seu prêmio e os perdedores dividirão entre si o valor.
— Lembrando que eu sou uma advogada assistente. — Mackenzie chama a
atenção, erguendo o dedo indicador. — Vamos ser humildes no prêmio,
porque eu não estou nadando na grana como vocês.
— Estipularemos um valor, então. — Hannah retoma o diálogo, tomando
posse da buzina que vai soar o início da brincadeira. — Um máximo de
trezentos dólares, porque dividido por cinco perdedores, fica sessenta para
cada.
Todos concordam com a sugestão, e nos agrupamos para dividir as duplas.
Decidimos, por fim, que ficaríamos entre casais. Já que é unânime a vontade
de se vingar pelo fato de Nev e Dom terem inventado o jogo sem ao menos
avisar. Mackenzie envolve meu braço, me arrastando para um ponto
estratégico, e murmura no meu ouvido que só há uma única opção: vencer ou
vencer. A buzina soa, e na primeira oportunidade, Lennon atinge as costas de
Dominic com uma bola de tinta.
Entrelaço nossas mãos, correndo para trás de um food truck velho, com a
tintura desgastada. Coloco a cabeça para fora, vendo Lewis e Andrew
atacarem Dominic e Nevaeh com bolas de tinta, e não consigo controlar a
risada. Eles estão sendo alvejados por tinta. Escuto a buzina soar alta,
indicando que o casal de noivos já está eliminado.
— Você mira em Lewis, e eu no Andrew. — Mackenzie ordena, seguindo
para a ponta do pequeno caminhão.
— Me dê cobertura. — Indico com a cabeça para um amontoado de entulhos
do outro lado do campo.
Sem pensar muito, saio correndo em disparada, vendo Andrew e Lewis enfiar
as mãos em suas bolsas com munição. Mackenzie vem correndo atrás de
mim, mal conseguindo segurar as gargalhadas, enquanto tenta acertá-los com
as bolinhas de tinta. Ela toma um tiro de tintura bem no meio das costas,
projetando seu tronco para frente e se escangalhando de rir.
— Você é péssima de mira, céus. — Grito alarmado, conseguindo acertar
Andrew no quadril.
— Eu sempre fui! — rebate. Agarro sua cintura, e a puxo para se esconder
atrás dos entulhos.
Nossos corpos se chocam, e eu preciso me apoiar em uma das ferragens para
não cairmos. As risadas ficam dispersas, ao passo que a respiração ofegante
se mistura com a minha, reconstruindo a tensão quase corpórea que nos
embala. No entanto, o clima é cortado assim que Mackenzie faz um
movimento brusco para jogar uma bola de tinta exatamente nos óculos que
protegem os olhos de Lewis. Me recomponho com rapidez, assistindo-o
arrastar a mão pelo objeto, afastando a sujeira de tinta que atrapalha a visão.
— Dupla Lewis e Andrew, — Hannah grita, acionando a buzina.—
Eliminados! Próxima disputa: Mackenzie e Thomas. Que vença o melhor!
Gargalho alto das caretas inconformadas de Lewis e Andrew, acenando com
a mão em despedida. Volto os olhos para Mackenzie, e encaro sua íris
intensa. Ela me escrutina com firmeza, exalando competitividade.
— Esses trezentos dólares já são meus. — Ela aponta o indicador em riste,
me fazendo soltar uma risada de escárnio.
— Veremos! — Me posiciono no meio do espaço descampado, escutando a
contagem para o início da partida.
Quem levar uma bola sequer perde. Assim que ouço a buzina, corro para o
mesmo food truck de antes, pensando na melhor estratégia de pegá-la. Pouco
me importo com o prêmio, porém sei que Mackenzie odiaria se eu a deixasse
ganhar. Então, me empenho de verdade para vencer. Contudo, antes que eu
possa sequer me mover, sinto uma bola de tinta estourar na parte de trás da
cabeça, escorrendo o líquido viscoso pela nuca, entrando por baixo da blusa.
Contorço o tronco em incômodo por sentir a tintura deslizando pelas minhas
costas.
— Ganhei! — Giro sobre os calcanhares, dando de cara com uma espécie de
dança da vitória que Mackenzie faz.
— Como você é traidora, me dando facada nas costas — lamento, estendendo
o sorriso zombeteiro.
Mackenzie tem as mãos sujas de tinta, assim como um dos ombros e as
costas. Minhas palmas também estão coloridas, bem como a blusa social está
manchada em algumas partes, e as costas estão pregando pelo líquido
escorrido. Reunimos-nos perto dos carros para usufruir da água dos galões.
Esfrego um pano úmido na parte de trás da cabeça, onde os fios do cabelo
estão cortados rente ao couro cabeludo e limpo a nuca.
A madrugada permite que apenas os sons das folhas das árvores se chocando
sejam audíveis, de modo que a escuridão abrange o local, tornando-o ainda
mais deserto. Nevaeh dá a ideia de transferirmos na hora o prêmio para
Mackenzie, pelo aplicativo do banco.
— Deixem disso, quero gastar com vocês. — Arqueamos as sobrancelhas em
espanto. — Vamos comer em algum lugar.

Estou com o braço ao redor dos ombros de Mackenzie, sentindo o encosto de


o banco acolchoado confortar minhas costas. Nem fiz um esforço muito
grande, mas só aquela brincadeira foi suficiente para me deixar um tanto
dolorido. Perscruto a lanchonete com os olhos, tendo uma visão do mar
através da sacada do segundo andar. A temática do local é meio antiga, o que
já é suficiente para que Lennon goste. Ela pesca uma das batatas-fritas e me
olha com atenção.
— O que foi? — Seu olhar se alterna entre meus olhos e lábios, provocando
uma descarga elétrica pelo meu corpo.
Observo nossos amigos, por uns instantes, imersos em uma discussão
aleatória acerca de algum livro famoso que eles não gostam. Sorrio um pouco
com isso, ao vê-los tão integrados e totalmente à vontade. Nevaeh e Dominic
têm uma conexão de outro mundo, em que numa troca de olhares é possível
perceber a intensidade, e de como aquilo é particular deles. Assim como
Andrew e Lewis possuem uma bolha exclusiva, em que apenas os dois
conseguem entender o teor do que querem passar um ao outro. Drew diz algo
engraçado que faz todos da mesa rir, e meu irmão ruboriza. Então, meu
amigo envolve os ombros dele com o braço e deixa um beijo casto em sua
bochecha, aumentando ainda mais a vermelhidão.
Hannah os encara com a mesma admiração que eu, parecendo igualmente
feliz por estar reunida na véspera de um dia tão importante para Nev e Dom.
Puta merda, eles vão mesmo se casar. Isso é muito louco. Pensar que
amizades despretensiosas da época da faculdade foram levadas para a vida, e
bem encaixadas entre os afazeres de cada um, sem cobranças forçadas.
Quando percebo que nenhum deles está prestando atenção o bastante em nós,
volto a olhar para Mack.
— Vem comigo. — Ela chama, estendendo a mão.
Pedimos licença ao restante da mesa, que apenas abana as mãos, pouco
interessados em interromper a discussão.
Mackenzie entrelaça nossos dedos, encaixando as palmas, provocando a
mesma sensação de algo se revirando em meu estômago. Sou arrastado até a
outra extremidade da cobertura da lanchonete, me apoiando na balaustrada.
As pequenas lâmpadas amareladas penduradas no terraço conseguem deixar o
cenário ainda mais bonito, combinando com os pontilhados de luz da orla lá
embaixo.
— Queria dizer algo. — Estranho a seriedade em seu tom de voz, e deslizo os
dedos pelos fios que escapam da franja, guardando-os atrás de sua orelha.
— Pode falar, meu bem.
Consigo ver os pontinhos de luz refletindo na íris castanha, brilhando como
várias estrelas em um céu escuro. Acaricio a bochecha com o dedão, sentindo
o quase imperceptível relevo das pintinhas do rosto. Olhando-a com ternura.
— Sei que errei com você no passado, e só depois de um tempo entendi que o
melhor para nós naquela época era terminar. Precisávamos do nosso tempo
para crescer, tanto na vida quanto no interior. Tínhamos que deixar a mágoa
ir embora para que sobrassem apenas sentimentos bons. — Ela se aproxima
mais, colando seu corpo no meu. — E, hoje, percebo que estamos diferentes
de vários jeitos. Estou conhecendo como é batalhar pelo que quero, cortei
alguns dedos do comprimento do cabelo e moro em um cubículo. Já você,
tem algumas tatuagens novas, um Cadillac rosa desenhado no braço, um corte
de cabelo diferente e uma conta bancária com vários dígitos. Mas, sabe o que
não mudou?
Tenho plena noção de que meus olhos estão brilhando pelas lágrimas que
ameaçam sair. Relembrar tudo o que vivemos me traz inúmeras sensações
boas, e uma vontade de elevar nosso relacionamento para algo mais sério,
porque sinto que já perdi tempo demais. Nenhuma semana, mês ou ano
conseguirá trazer de volta as horas que passei sentindo falta da sua pele
macia, das sobrancelhas afastadas, do característico gosto dos lábios, dos
beijos, da cumplicidade, das provocações, e tudo que envolve a gente.
— O quê? — Anseio pela resposta, temendo ser algo ruim, pouco preparado
para o que virá.
— O fato de que você continua sendo o amor da minha vida.
Perco o fôlego, por alguns segundos, e inflo as narinas procurando ar. A
revelação faz meu coração errar umas batidas, e acelerar pra caralho. Temo
até mesmo que ela possa ouvi-lo. Envolvo sua cintura com o braço, apertando
seu corpo ainda mais contra o meu. Ao passo quea outra mão se embrenha
nos fios da nuca. Mackenzie toca naminha bochecha, afundando o dedo na
única covinha aparente.
— Porra, Mack. — Escondo o rosto na curva de seu pescoço, inspirando o
costumeiro perfume um tanto cítrico e doce. — Não tem noção do quanto
quero ouvir isso desde que nos encontramos.
— Eu queria esperar, sério. — Ela sussurra, enquanto acaricio suas costas
pela abertura do vestido. — Mas estou em uma lanchonete em frente à praia,
toda suja de tinta, então pensei: se já estou fodida, por que não fodida e meia?
Solto uma risada baixa, ignorando as manchas de tinta em minha blusa, e o
olhar estranho que os clientes e funcionários nos lançam.
— É melhor que estejamos fodidos juntos então. — Beijo um pouco abaixo
de sua orelha, e raspo os dentes pelo lóbulo. — Eu amo você, Mackenzie.
Daquele mesmo jeito que me lembro de ter dito há anos, com a infinitude do
universo e a intensidade de uma tempestade
— Eu amo você também. — Continuo dedilhando suas costas, descendo a
mão por dentro de seu vestido, na lombar, sentindo-a se arrepiar sob meu
toque. — Não faz assim...
Solto uma risada baixa, e ergo a cabeça de seu pescoço, conectando nossas
vistas. Reproduzo meu melhor semblante inocente, encarando-a e
mantendoas carícias em sua lombar.
— Assim como? — O canto do meulábio se ergue em um sorriso malicioso, e
Mackenzie parece perder a paciência.
— Eu e você, no banheiro, agora. — Deslizo a mão por sua cintura, parando
na lateral dos seios.
— E aquele papo de ir devagar? — Meu tom de voz escapa dos lábios
transbordando malícia.
Lennon bufa, a impaciência escorrendo por todos os poros.
— Não quero ir devagar. — Ela pressiona sua boca na minha, e sussurra,
deslizando-a sobre meu lábio. — Eu quero você.
Meu estômago parece dar uma volta completa, bem como o coração acelera
algumas batidas. E me pergunto se essas sensações perduram para sempre. É
como estar em brasa e encontrar a gasolina que nos faz entrar em combustão.
Estamos queimando, crepitando como labaredas acesas, em um loop eterno.
Encosto os lábios em seu lóbulo da orelha, apenas para murmurar:
— Seu pedido é uma ordem, Rainha de Bolfok.
BOLFOK TOWN, SETEMBRO 2020

De todas as coisas que eu mais tenho certeza nessa vida, uma delas é:
eu nunca deveria ter beijado Dominic Hopkins.
Minha mãe gosta de dizer que sou uma das pessoas mais íntegras e sensatas
que ela conhece, e talvez eu seja mesmo. Mas isso não quer dizer que estou
livre de fazer escolhas erradas, ou que eu não tenha defeitos ou inseguranças.
Por exemplo, dizem que quando você toma muitas pancadas na vida, isso te
blinda e te torna mais forte. Então eu deveria agradecer todas as vezes que me
senti pequena?
Não quero me repreender por ficar revoltada com tudo o que vivi. Às vezes,
eu só quero não ser forte, quero poder desabar um pouco e descontar minha
tristeza em um banho de lágrimas. Em alguns momentos, eu até desejava ser
mais como Mackenzie, sem vergonha de demonstrar o quanto determinadas
coisas a afetam, ou até mesmo cair na pilha de Thomas sem medo. É fácil
dizer que usar uma armadura invisível pode ser bom para te proteger,
entretanto, se esquecem o quanto elas podem ser pesadas.
Ter cedido aos encantos de Dominic foi uma série de escolhas erradas no
momento em que eu soube que não teria mais volta. Quando eu me fechei
para relacionamentos, internalizei que nunca mais daria poder a alguém sobre
mim. Contudo, eu deixei que Dom chegasse de fininho, com sua fala mansa,
gentileza extrema, seu sorriso de canto e seu arsenal de elogios direcionados
a mim. Eu estive tão preocupada em me manter afastada, em revirar os olhos
o máximo de vezes que eu conseguia para qualquer coisa dita por ele, que eu
nem percebi quando abaixei a guarda. Só fui me dar conta no momento em
que já tinha seus lábios sobre os meus.
Os sábados que amanhecem banhados por uma garoa fina e um clima gélido
são os meus favoritos. Eu tenho passe livre para afastar as cortinas e me
deparar com uma Bolfok tomada pela neblina. Então, a primeira coisa que eu
faço é ocupar o banheiro comunitário vazio, fazer minha higiene, me enfiar
nos casacos mais quentes e felpudos possíveis, e ir até a Biblioteca da cidade.
Ocupada apenas pela senhora de sessenta anos que está sempre lendo um
romance erótico às oito da manhã de um sábado, a mesma que sabe
exatamente o momento em que o sininho da porta vai bater anunciando
minha chegada. Em segundos, como sempre, ela vai abrir um sorriso grande
para mim e dizer que sou a salvação da juventude universitária, pois estou em
uma biblioteca em um final de semana.
Eu não me sinto tão salvadora assim, na verdade, apenas me apoio nos
mecanismos de defesa que me manterão afastadas de socialização. A lógica é
simples: meus livros nunca poderão ferir os meus sentimentos. Quando criei
minha armadura, a parede em volta do meu coração que impede qualquer
idiota de chegar até mim, eu realmente pensei que seria fácil internalizar que
apenas estudaria para ser melhor do que todos que eu odeio.
Eu não queria amigos, nem vida social e muito menos um namorado. Eu só
queria estudar o máximo que eu conseguia, além de acrescentar experiências
em meu currículo, me encher de cursos extracurriculares e tudo que pudesse
me fazer uma profissional honrosa. Porque se tem algo que aprendi desde
cedo, é que o mundo não é exatamente afetuoso com as mulheres, e tudo
piora se elas forem negras. Por exemplo, pense em uma empresa famosa, uma
multinacional qualquer, depois pesquise quantas pessoas do gênero feminino
estão ocupando cargos na diretoria. Após essa procura, tente achar no meio
dessas mulheres alguma negra. Então eu soube que, se um homem fosse bom,
eu teria que ser ótima apenas para tentar me igualar a ele no mercado de
trabalho, e ainda assim, eu não conseguiria.
Ao longo dos meus três anos sendo universitária, me preocupar com a minha
vida profissional foi a única coisa que eu fiz. Quando entrei na faculdade,
internalizei que eu teria as notas mais altas do meu curso. Entretanto, eu tinha
um grande obstáculo, e ele se chama Thomas Eckhoff.
Esse mesmo que falta as aulas, às vezes pegava as matérias comigo e dormia
durante as classes. Contudo, suas notas estavam sempre lá em cima. Cheguei
a cogitar que ele dormia com alguém da coordenação do curso, ou que
hackeava o sistema da universidade. Mas não, o sortudo apenas aprende tudo
muito rápido, com uma facilidade exorbitante, e não precisa ficar horas
estudando, porque o tempo que separa para isso consegue ser de qualidade.
No primeiro dia de aula, ele me disse: A faculdade não pode ser tudo na sua
vida, Nevaeh.
Mas eu não quis acreditar, sempre preferindo ouvir as vozes da minha cabeça
que gritava que estudo é a quantidade de tempo em que eu me dedicava. E
então, eu passei esses anos estudando como uma condenada, às vezes nem
tendo um aproveitamento tão bom. Me enchia de trabalhos, ia a poucas festas
e mal sorria. E inexplicavelmente, os motivos das minhas maiores risadas
eram as idiotices de Eckhoff e as piscadelas de Dom.
Isso até Mackenzie entrar em meu alojamento com seus olhos brilhantes e
distribuindo sorrisos amigáveis a quem quer que fosse. Naquele dia, eu
jamais imaginaria a intensidade do laço que eu criaria com ela. Na verdade,
assim que bati meus olhos na garota de sobretudo rosa, em cima de botas de
grife, pensei que o resto do meu ano seria maçante, tendo que aguentar uma
patricinha mimada. Contudo, Mackie quebrou todos os meus pré-julgamentos
gradativamente, me mostrando que ela sempre estaria lá por mim, assim
como eu por ela.
Sentada em meu habitual lugar na biblioteca, tento esquecer meus devaneios
e focar no livro de época, da Fatima Hamze, que estou lendo. Sinto-me
completamente imersa na vida de Claire, que tem o desejo de cursar medicina
em uma época onde poucas mulheres conseguem chegar até a universidade,
precisando assim, entrar em um relacionamento falso com seu arqui-inimigo.
Fico tão distraída com a escrita impecável da autora, que demoro a notar a
figura um tanto quanto peculiar, sentada em uma mesa mais afastada e com o
rosto enfiado em um livro de capa dura. Vejo os anéis cobrindo os dedos, se
misturando as tatuagens que adornam todo o espaço de pele dele. Ele parece
perceber meu olhar sobre ele e caminha em minha direção assim que desvio a
atenção.
— Nevaeh Williams. — Dominic se pronuncia ao passo que se joga ao meu
lado.
As mesas da biblioteca contam com um assento estofado em formato de L, ao
redor da mesa. Dominic puxa meus pés antes esticados no sofá, para seu colo.
— O que faz aqui, Hopkins?
— Ué. — Ele sobe e desce os ombros. — Eu vim estudar.
Estreito os olhos e ele ergue o livro de espessura grossa, algo sobre Direito
Penal.
— Estudar em um sábado, às oito da manhã.
— E existe horário correto para ir à busca de um futuro promissor?! — O
canto de seus lábios erguido entrega totalmente sua falta de seriedade para
tratar do assunto.
Nego levemente em um balançar de cabeça e solto uma risada baixa. Tento
focar minha atenção em seu rosto, e não na carícia que ele desfere em minha
panturrilha. Subo o livro que eu estava lendo para a altura de meu rosto,
evitando assim, qualquer tipo de distração.
Quando sua mão sobe para meu joelho, quase no início da minha coxa, em
um movimentar despretensioso, tiro minhas pernas de seu colo em um
movimento brusco. Ignoro o arrepio que se dá desde a base de minha coluna,
até minha nuca. Também finjo que não estou sentindo um calor anormal,
independentemente da temperatura amena do interior da biblioteca.
— O que foi? — Um vinco se forma entre as sobrancelhas dele, descontando
sua confusão pela minha mudança de comportamento repentina.
— Acho melhor você não chegar muito perto de mim, Dominic. — Eu colo
ainda mais meu corpo no assento, enquanto Dom chega mais perto
gradativamente.
— E o que acontece se eu chegar, Nev? — Eu poderia sair correndo dali a
qualquer instante, em um pulo, e eu estaria do outro lado da biblioteca.
Contudo, alguma força superior estanca meus movimentos, me deixando
estática em meu lugar.
Dominic estava muito perto, perigosamente próximo, eu podia sentir sua
respiração bater na lateral do meu rosto, enquanto seu braço roça levemente
no meu. Seu questionamento anterior fica no ar, e eu estou impossibilitada de
respondê-lo sem gaguejar. Sinto sua mão pousar em meu queixo, erguendo
meu rosto na direção do seu.
— Olha para mim. — Meus olhos antes pousados em um lugar atrás de Dom,
se transportaram diretamente aos seus castanhos brilhantes. Assim que nossas
vistas se conectam, a tensão se torna ainda mais palpável. — Do que você
tem medo, Nevaeh?
Do que eu tenho medo? De muitas coisas.
Tenho medo de me entregar a uma pessoa que terá poder de me magoar.
Temo ardentemente ceder aos encantos de alguém que pode vir a me fazer de
otária. Minha lista de receios poderia ser mais extensa do que o imaginável,
entretanto, meus sentidos pareceram mais aguçados sobrepondo-se aos meus
pensamentos. Já que nesse momento, eu só consigo prestar atenção em nossas
respirações aceleradas, misturadas uma na outra, na carícia que ele deixa em
meu queixo, e no seu olhar sobre mim, transbordando em admiração.
E, talvez, tenha sido por isso que deixo que ele se aproxime ainda mais. Não
me importo em ter seus lábios roçando-se aos meus, muito menos ligo para
sua mão que foi parar em minha cintura, enquanto a outra escorrega de meu
queixo para minha bochecha. O espaço entre nós é dizimado logo que a boca
de Dominic toma a minha.
Abro espaço por entre meus lábios para que sua língua deslize sob a minha,
sinto o aperto em minha cintura tornar-se ainda mais forte e Dom tombar seu
corpo sobre o meu. Nossas bocas trabalham para encontrar o ritmo e o
encaixe perfeito. Estamos concentrados em desbravar cada mazela da boca
um do outro. Ele beija muito bem, melhor do que o recomendado para a
minha sanidade mental. Sua língua tem uma aspereza confortável, seu hálito
me remete a menta e nicotina, e ele sabe controlar bem o quanto de saliva
compartilhará. Ouço seu arfar assim que minhas unhas ocupam-se de
arranhar sua nuca, e ele prensa ainda mais seu corpo contra o meu.
Tento arduamente me concentrar no que estamos fazendo, entretanto, meu
fôlego pede arrego a considerar o tempo estendido que nossas línguas se
embrenham. Descubro sensações que nunca provei com ninguém. Percebo
que amo o quanto seus cabelos parecem sedosos em minha mão e constato
que seus lábios quentes cobrindo os meus fazem com que meu estômago dê
piruetas dentro de mim.
Quando Dom finaliza o beijo roçando os dentes levemente pelo meu lábio
inferior, enrola sua mão em meu cabelo dando um puxão, me fazendo erguer
o rosto para deixar o pescoço livre. Sinto os efeitos de seu toque enviar
impulsos até abaixo de meu ventre.
Eu já não me importava em esconder os arrepios provocados pelo toque de
seus lábios depositando beijos castos em meu pescoço. Sua outra mão, a que
não se ocupa em segurar minhas mechas da nuca, correm para as minhas
costas por baixo da roupa, me fazendo estremecer com o atrito de seus anéis
gelados em minha pele quente. Eu poderia transar com Dominic ali mesmo,
mas então, me recordo do lugar em que estamos. Abro os olhos em um
rompante, direcionando-os até a recepcionista ainda enfiada em seus livros
eróticos.
— Dominic... — Tenho noção de que seu nome sai por entre meus lábios em
uma lamúria que mais parece um gemido. — Acho melhor pararmos.
Assim que me ouve, ele se afasta consideravelmente de mim e meu corpo
parece protestar pela distância.
— Por quê?
— Estamos em uma biblioteca, Hopkins. — Ele olha em volta, parecendo
inspecionar o lugar e pousa as vistas na única mulher, a da recepção, de
costas para nós, completamente imersa em sua leitura.
— Só há nós dois aqui, Nev. — Seu nariz roçando em meu pescoço, tira
completamente meu foco. — Pode ficar tranquila, não seremos presos por
atentado ao pudor.
— Ridículo.
— Nevaeh? — Seu rosto está enterrado em meu pescoço e a lufada de ar que
sai de sua boca me faz estremecer.
— Hum — murmuro aguardando o que ele tem a dizer.
Dominic se afasta de mim, nivelando seu rosto na altura do meu. Ele captura
uma mecha de meu cabelo crespo por entre seus dedos e se pronuncia.
— Eu não sei se já te disse isso antes, mas eu sou completamente apaixonado
pelo seu cabelo. — Um sorriso se estende em meu rosto antes que eu possa
contê-lo.
Dominic tem esse poder. O de tecer elogios que são extremamente
importantes para mim. Isso só faz com que eu abaixe ainda mais a guarda, e
seja dominada pelo medo.
— Obrigada, Dom. Mas ainda assim, não faremos nada aqui. — Ele solta
uma risada baixa me contagiando também.
Ao contrário do que pensei, as intenções dele não são compatíveis com nada
indecente dentro de uma biblioteca, o que até me frustra um pouco. Dominic
apenas se enrosca ao meu lado, passando seu braço ao redor de mim e
apoiando sua cabeça em meus seios.
— Eu só vou ficar aqui, agarrado em você, quietinho. — Sinto o aperto de
seu braço ao meu redor tornar-se mais forte. — Pode continuar sua leitura.
Talvez, o meu maior erro naquele dia, foi ter ignorado todos os sinais. Não
dei importância ao meu coração batendo forte, aos arrepios, à sensação de
borboletas no estômago. Pelo contrário, eu deixei que Dominic entrasse na
minha vida, deixei que ele ficasse em meu colo durante uma tarde inteira
enquanto eu lia meu livro.
E, eu sei que a partir do momento que deixei Dominic Hopkins entrar no
meu coração, de fininho, como uma faísca que se torna uma labareda
rapidamente, não teria mais volta.
BOLFOK TOWN, OUTUBRO 2020

Lewis não é o astro do time de futebol da faculdade porque é o


quarterback. Embora dite o ritmo ofensivo da partida, faça leituras da jogada,
e ajustes necessários, o jogador precisa ser a alma do time. Dizem que estar
nessa posição exige força no braço, precisão, sangue frio e concentração. O
Johnson, de fato, preenche todos esses requisitos, e talvez seja por isso que o
treinador o ame. Contudo, quando tive a oportunidade de conhecê-lo melhor,
pude entender que não se trata somente do seu corpo atlético e suas
habilidades.
Lewis consegue ser extremamente espirituoso em campo, levando uma
segurança tão grande ao resto da equipe que a autoconfiança faz tudo por
eles. Ele está dentro da linha ofensiva, pronto para o ataque, o que contrasta
com sua calma e sensibilidade fora das jardas. Não misturar suas funções no
jogo com a vida real talvez seja o que mais contribui para que ele seja tão
amado.
Sinto-o acariciar minha mão levemente, ao passo que caminhamos até o
centro esportivo da faculdade para mais um jogo. O encaro de esguelha e
vejo a jaqueta azul dos Bolfok Eagles adornar seus músculos perfeitamente.
— Está nervoso? — Ajeito uma das lapelas da jaqueta de couro.
— Pra caralho. É um jogo decisivo para entrarmos nessa temporada com
tudo. — Agarro sua mão com firmeza, e o arrasto para um canto perto dos
vestiários.
Desde que percebi estar interessado pelo irmão do meu melhor amigo, que
ainda tem uma péssima relação com ele, entrei em um grande impasse entre
seguir meu coração que bate descompassado na presença dele, ou ignorar
essas sensações em prol da minha amizade. A minha decisão se encontra
nesse exato momento, em que pouso as mãos em seus ombros e os acaricio.
— Sei que ser a estrela do time deve trazer algum tipo de pressão em todos os
jogos. Mas, talvez, dessa vez eu ajude com algum tipo de incentivo. — Ergo
um canto dos lábios em um sorriso sugestivo e assisto Lewis ruborizar.
É adorável o modo como ele sempre, sem exceções, fica envergonhado com
meus flertes bobos e investidas maliciosas. Desço as mãos pelos seus bíceps
fortes até chegar aos quadris, e o puxo para mim, nos aproximando ainda
mais. E a mágica de sempre acontece.
A porra do ambiente a nossa volta para de importar, porque os olhos grandes
e amendoados de Lewis, junto com seus lábios cheios são as únicas coisas
que importam. O ar foge dos pulmões e eu engulo em seco, me perguntando
como posso sentir o peito arder só de me aproximar o suficiente para que seu
perfume invada meu espaço pessoal. Rastejo a boca pelo maxilar, sentindo os
pelos rasos da barba recém aparada e chegando aos lábios.
— Se fizer um passe importante, e um touchdown acontecer, você sai
comigo. — Lewis arregala os olhos. — Em um encontro. Num lugar público,
e poderemos nos abraçar, andar de mãos dadas e fazer todas essas baboseiras
românticas. E o engraçadinho que se incomodar, vai se ver comigo.
Silenciosamente, me incomodo com o fato de Lewis nunca ter tido um
encontro. Ele sempre sai com caras às escondidas e não desfruta dos prazeres
que um dia como esse pode causar. Mas eu quero ser diferente em sua vida.
Prefiro ser o cara que o faz sentir as melhores sensações do mundo,
principalmente a de liberdade.
— Não precisa fazer isso para me deixar feliz ou algo do tipo, sério. — Bufo
com indignação, e busco seu rosto com as mãos. Ele reclama baixinho pelo
gelado dos anéis em sua pele quente, e eu sorrio levemente.
— Estou fazendo a proposta porque quero ir a um encontro com você —
profiro cada uma das palavras, olhando com intensidade em sua íris com
inúmeros pontilhados castanhos.
— Sendo assim, — Lewis abre um sorriso sacana — um touchdown vale seis
pontos no jogo, acho injusto receber só um encontro em troca.
Afasto seu cabelo da testa, e estreito os olhos para ele em descrença.
— Esse é seu jeito de dizer que quer ir a seis encontros comigo? — Lewis
afunda o rosto no meu pescoço, abafando a risada que solta, me provocando
um arrepio instantâneo.
— Podemos negociar seis beijos e um encontro. — Ele ergue a cabeça, e
conecta o olhar ao meu. — Porque as vezes que quero sair com você não
podem ser contabilizadas, são infinitas.
Pressiono meus lábios nos seus, sentindo a maciez característica do contato.
Sua língua desliza sobre a minha, mergulhando meu corpo num mar revolto
de arrepios na espinha, suor nas mãos e coração acelerado. Acaricio suas
costas e colo seu corpo no meu, tentando nos fundir em um contato que, de
preferência, nunca acabe. Finalizo o beijo com uma sugada leve no lábio
inferior, ao passo que meu dedão se arrasta sobre sua mandíbula.
— Um dos beijos já foi — sussurro em seu ouvido. — A partir desse
momento, saiba que está em dívida comigo.
Lewis arrasta a mão pela minha nuca, sentindo a textura crespa do meu
cabelo, bem como me olha com ternura, como se eu fosse o homem mais
lindo que já viu. Uma obra estimada digna do museu mais aclamado do
mundo. Gosto de ser olhado assim.
— Eu espero enfrentar muitos juros. — Solto uma risada baixa, e firmo os
lábios sobre os seus uma última vez, antes de voltarmos ao jogo.
Um sentimento até então desconhecido preenche meu peito por completo
assim que o vejo me lançar um beijo no ar após o fim da partida. Os Bolfok
Eagles ganharam e Lewis é jogado no ar durante a comemoração, porém, as
amêndoas em seus olhos estão grudadas em mim. Como se essa vitória fosse
só nossa, e tivesse um significado único para nós. E tem.
Porque entre touchdowns e beijos roubados, esse é o início de um amor de
infinitas jardas e muito mais valioso que seis pontos.
Mackenzie Lennon, Thomas Eckhoff e o velocímetro.

Thomas e Mackenzie são um tanto disfuncionais como casal. Ajeitando as


malas no bagageiro, os dois se preparam para uma roadtrip. Eles decidem
não escolher um destino ou fazer qualquer planejamento de viagem, apenas
visitarão cidades diferentes do Condado de Eastlake. Talvez até parem em
Altoona para fazer uma visita a Lewis, Andrew e Hannah.
O casamento de Nevaeh e Dominic foi bonito, em uma praia secreta de
Eastland Coast. E Thomas foi o que mais derrubou lágrimas de emoção,
deslumbrado com o cenário incrível a sua frente e sensibilizado pelas
palavras bonitas do juiz de paz, que de maneira sutil conseguiu comandar a
cerimônia de modo que os noivos estivessem confortáveis com suas crenças
ou com a falta delas. A festa, na opinião de Mackenzie, foi a melhor parte,
porque eles dançaram até os pés pedirem arrego, e homenagearam os amigos
através de discursos cheios de palavras bonitas.
Enquanto Nev e Dom curtiam a lua de mel na ilha de Cabo Verde, na África,
o resto dos amigos seguia suas vidas abarrotadas de trabalho. Jules conseguiu
ficar duas semanas na Costa Leste, alternando sua estadia entre a casa de
Lewis e Andrew e o apartamento bonito de Thomas — que agora já é quase
de Lennon também.
Mackenzie só conseguiu sua promoção alguns meses depois do casamento. A
primeira coisa que ela fez como uma advogada — não mais assistente — foi
alugar um apartamento maior e um tanto mais próximo da praia. Seu salário
aumentou consideravelmente e isso já bastou para elevar seu humor até as
alturas.
Thomas mantém as oficinas sob controle, lucrando cada dia mais em cima do
setor de leilões de veículos. Quase toda a noite dorme pensando na ideia de
comprar seu apartamento na cobertura com piscina de borda infinita. No
entanto, ele gostaria que essa mudança fosse feita em conjunto com
Mackenzie, porque não há nada que o homem queira mais do que dividir essa
conquista com ela para poder acordar olhando suas pintinhas, e até as
remelas, em suas pálpebras.
Contudo, Mackenzie acha que é cedo demais. Já que os dois ainda não estão
oficialmente juntos. Quer dizer, eles são aquele tipo de pessoa que briga
como casal e interage como casal, e a escova de dente de Lennon já até tem
um espaço especial no banheiro de Thomas. Mas, segundo ela, os dois ainda
não são um casal. E quem sou eu para contrariá-los?
— Hoje eu dirijo. — Mackenzie estende a mão para Thomas, abrindo a porta
do lado do motorista do Impala.
Ela recebe a chave, que é jogada no ar, e a gira na ignição, dando partida no
veículo. Ambos seguirão pela interestadual até a cidade vizinha,
informalmente chamada de Trydes. Não há nada de muito especial lá, apenas
um lago que Mackenzie ouviu dizer ser milagroso. Após entrar nas águas
mágicas, coisas incríveis acontecerão em sua vida, segundo uma página de
turismo nada confiável. Thomas não acredita nem um pouco nessa lenda
urbana, mas ele não quer experimentar o risco de contrariar sua mulher.
— Estou de olho no velocímetro. — Thomas aponta com a cabeça para o
medidor de velocidade, lançando um olhar repreendedor para a mulher que
afunda o pé no acelerador.
— Para de ser careta, estamos em uma estrada vazia. — responde, e um
sorrisinho sugestivo paira sobre seus lábios. O ponteiro atinge mais de cem
por hora, e o loiro cuida de pressionar as mãos no estofado do banco,
deixando os nós dos dedos ainda mais brancos. — Relaxa.
Thomas ri, olhando de esguelha para Mackenzie, encantado com o modo
como ela crispa os lábios quando está atenta. Ele ama cada característica e
mania estranha da mulher, descobrindo coisas novas sobre ela a cada dia que
passa. Os cabelos estão mais curtos e desgrenhados, seguindo um corte em
camadas que fez há pouco tempo. E Eckhoff gosta da maneira com o qual
eles ficam espetados no rabo de cavalo.
— Não tem como ficar relaxado com você no volante.
Apenas para contrariá-lo, ela pisa ainda mais no acelerador, mudando o
câmbio do carro.
— Não sou mais aquela Mackenzie que corre em rachas, amor. — Thomas
perde o fôlego por uns instantes, mas se recupera com rapidez, fingindo que a
pequena palavra não o afeta tanto. — Estou enferrujada.
A gargalhada dele invade o carro, mal conseguindo acreditar no fato de a
mulher estar enferrujada. Até porque dirigir é quase como andar de bicicleta,
de modo que é raro desaprender. Só basta tomar posse dos pedais e das
marchas para que a mágica aconteça.
— Apenas saiba que se formos pegos pela polícia, a advogada aqui é você e
também estará indo para a cadeia. — Mackenzie ri, impressionada com o
quanto ele continua sendo careta.
— Qualquer coisa a gente chama o Dominic.
O carro cultua um silêncio confortável depois que o casal cai na risada, já que
eles acham que se fossem presos, Nevaeh pediria que Dom os deixasse mofar
um pouquinho na cadeia até que aprendessem a dirigir mais devagar. E
quando se cansam de ouvir o som do motor do Impala, Thomas conecta o
celular no som, na playlist que eles criaram há cinco anos. "You're still the
one" da Shania Twain irrompe pelos alto falantes, trazendo inúmeras
lembranças para Mackenzie.
No trecho em que a cantora diz ainda amar o mesmo homem, mesmo após
anos, Mackenzie leva a mão até a têmpora, massageando-a com calma. Ela
lembra as últimas descobertas de sua vida e das surpresas que o universo traz
em momentos inoportunos.
— Preciso te contar uma coisa. — Lennon se pronuncia, a voz tentando
abafar o canto de Shania Twain. Thomas balança a cabeça de leve,
induzindo-a a continuar. — Estou grávida.
Eckhoff desliga o som do carro no automático, perdendo o ar
temporariamente. Ele leva a mão até o peito, afetado com a notícia, ao passo
que encara a placa de Bolfok Town passar como um vulto. Porque para
chegar a Trydes, eles têm que atravessar a cidade universitária.
— O quê? — O grito sai um tanto esganiçado e Mackenzie faz uma careta
para a reação exagerada. Como se ela não tivesse passado dias resmungando
escondido. — O quão grávida está?
Lennon tomba a cabeça para trás, caindo na gargalhada. Desacreditada do
nível de tolice do homem que — infelizmente ou não — ama.
— Estou muito grávida, Thomas.
O semblante dele passa de surpreso para alarmado em instantes.
— Abaixa a velocidade! — Ele a cutuca de leve na axila, fazendo-a xingar
até a última geração do homem. — Você vai matar o bebê, sério.
— Ele ainda é um feto. — Mackenzie o lembra, fazendo uma pose de quem
sabe muito.
— Tá brincando? — Thomas põe a mão na cintura, arrastando o cotovelo no
banco. — Com essa idade ele já pode fazer literatura em Harvard.
Ambos caem na gargalhada, sob a vista bonita das copas das árvores de
Bolfok. Mackenzie mantém a velocidade alta, mesmo em perímetro urbano, e
isso faz com que Thomas reclame de novo.
— Agora é sério, Mackenzie. Abaixa a velocidade. — De olho no
velocímetro, ele assiste o ponteiro retroceder um pouco, mostrando que a
mulher atende seu pedido.
— Não se preocupe, amor. Nosso filho vai gostar de altas velocidades
também. — Ela o lança uma piscadela.
— Ei, bebê. — Thomas posiciona a mão sobre o ventre dela, fazendo o
estômago de Mack se contorcer pelo toque quente. — É melhor você fugir
com o papai assim que nascer, a sua mãe é perigosa.
Mackenzie responde o xingando com algum palavrão censurado em, pelo
menos, setenta países.
— Mas, sério, por que não me disse antes? — Ele retira a mão do ventre dela,
encarando-a com interesse.
— Descobri faz uma semana, e passei esse tempo surtando e pensando em
inúmeras possibilidades ruins. — Ela suspira, afastando alguns fios
displicentes que escapam do rabo de cavalo.
Thomas também pensa em inúmeras possibilidades ruins. São sempre os
primeiros pensamentos que surgem em sua mente. No entanto, agora que não
é mais jovem ele acredita no que sua terapeuta costumava perguntar. Quantos
dos seus pensamentos ruins já se tornaram, de fato, realidade? Com isso em
mente, o homem resolve ignorar as merdas que podem dar ou a probabilidade
de eles falharem como pais. Até porque, ambos são como uma equipe. E se
Lennon está surtando agora, ele se sente no dever moral de ser o cara que irá
acalmá-la.
— Ei, Mack. Estamos juntos nessa, dando bom ou dando muita merda. — Ele
a faz rir baixo, lembrando a mulher de como tem o poder de retirar qualquer
peso dos ombros dela, renovando suas energias. — E também não é como se
estivéssemos grávidos durante a faculdade. Você tem sua promoção no
escritório de advocacia, além disso, tenho as oficinas e quase trinta anos. Vai
ficar tudo bem.
— Será? — Mackenzie arqueia as sobrancelhas, e Thomas dá de ombros, em
uma pose de quem está muito seguro do que diz.
Quando um semáforo os faz parar, Thomas se aproxima, acariciando a
bochecha da mulher, e pressionando seus lábios nos dela. Mackenzie afunda
o dedo no buraco da covinha dele e ri baixo.
— Qual é, amor. Estamos falando de um bebê. — Ele a encara com o nariz
empinado, olhando-a com ternura. Amor do mais puro e genuíno brilha na
íris azulada. — Que merda poderia dar?
Eles ainda não sabem, mas sendo cria de Mackenzie Lennon e Thomas
Eckhoff, as merdas são exponencialmente prováveis.
Acho que ficou um tanto visível, mas ainda assim eu gostaria de reforçar que
Queen of Bolfok é uma história sobre ser grande. Resolvi começar a escrevê-
la não só porque sempre gostei muito de Velozes e Furiosos, e sim pela
vontade, aprisionada dentro de mim, de ser grande. Essa história reflete o
quanto nós mulheres queremos nos sentir respeitadas, buscando conquistas,
cursos e empregos que nos dêem um pouco da noção de como é estar no
topo. Contudo, mergulhadas na vontade de ser grande acabamos esquecendo
que já somos imensas.
As histórias O Silêncio das Estrelas, Give me Control e Uma canção à
Primavera que aparecem aqui estão disponíveis no Wattpad.
Eu nunca pensei que eu estivesse, hoje, em uma plataforma como a Amazon,
recebendo tanto carinho de pessoas que admiram o meu trabalho. Então, é
com esse sentimento de gratidão que dedico um pouco dessa obra a cada um
que contribuiu, de certa forma, para que ela estivesse aqui.
Para os meus pais, que sempre me encararam com um brilho nos olhos que
significa credibilidade. É justamente por acreditarem tanto e por me apoiarem
de forma grandiosa que tive coragem de lançar esse livro. Amo vocês com a
infinitude do universo.
Para Rebeca, Renata, Giovanna e Maria Clara, que são as melhores amigas
físicas que eu poderia ter. Mulheres incríveis que, nem por um instante,
deixaram de acreditar no meu potencial de fazer qualquer coisa que eu
quisesse.
Para A. Feppin, que acompanha esse livro como beta desde agosto de 2020,
aturando meus surtos, a vontade de desistir e me dando as melhores dicas em
relação à gramática e enredo. Nunca pensei que encontraria uma irmã de
alma em você, obrigada por tudo. Acho que parte de Queen of Bolfok
também é sua.
Para a Quinta Desarmonia: Elohin Guerra, Fátima Hamze, Rachel Wilde e A.
Feppin. Vocês me incentivaram, aturaram e deram suporte quando eu
precisei. Assim como me causaram as melhores gargalhadas. De fato, a
melhor parte de entrar no Wattpad foi ter conhecido vocês.
Para C. Oliveira, por ter se dedicado a essa diagramação como se meu livro
fosse o seu filho. Obrigada pela companhia no mundo literário, e por ser a
pessoa autêntica que é.
Para Lara Silva, que revisou meu livro com uma dedicação admirável. Ter
você como amiga vale mais do que qualquer revisão existente.
Para R. Barnes, que fez uma leitura sensível maravilhosa em relação aos
transtornos que aparecem na história.
Para Bruna Eloísa, que surgiu na minha vida de fininho e, rápido como um
raio, já criou raízes em cada parte do meu dia. Jamais pensei que encontraria
uma conexão tão grande em alguém que está tão longe de mim. Obrigada por
aturar meu lado ranzinza e insuportável. O dia nem fica completo sem nossos
áudios reclamando de tudo.
Para Thay, a melhor desenhista e artista que já tive o prazer de conhecer. Sem
você, Queen of Bolfok não seria tão bonita quanto é. O seu trabalho é incrível
e morrerei admirando-o.
Para Duda,Ísis, Julia Bells e Cami, leitoras que se tornaram amigas em um
piscar de olhos. Eu não estaria aqui sem o apoio frequente de vocês em tudo
que faço.
Para Lelê, Suzin, Kaline, Barb e Amanda que acreditaram e apoiaram essa
obra desde que decidi lançá-la na Amazon.
Para Anaju, Hayane, Aline, Beck, Isadora e Eduarda, que me aturam todos os
dias reclamando de algo. Me ajudam no que preciso, são um acalento no
meio da tempestade, divulgam a obra com tanta maestria que fico
emocionada. Obrigada por terem se fixado na minha vida em um dia tão
significativo para mim.
Para as meninas da Elite de Bolfok Town, grupo no Whatsapp que já serviu
para xingamentos e um suporte extremamente significativo. Vocês são
extraordinárias.
Por fim, dedico a obra a todos os leitores e leitores, que já acompanhavam a
obra pelo Wattpad, e os que estão chegando agora. Vocês são o maior motivo
para que eu esteja aqui, expondo a todos a beleza do mundo através dos meus
olhos, através desta história.
No fim das contas, Queen of Bolfok é de todas vocês que almejam ser
grandes sem ao menos imaginar que já são imensas.
Obrigada por cruzarem a linha de chegada comigo. Bolfok Town agradece
sua visita!
Beijo no
coração,
Mary
Wars.

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