Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Tem, pelo menos, trinta minutos que Lewis está sentado em nossa mesa de
um dos restaurantes do Campus, tagarelando acerca de uma festa que terá
sábado, em uma das fraternidades. A oficial recepção de calouros, que
segundo ele, nós precisamos comparecer. Como uma boa apreciadora de
festas, não hesito em confirmar minha presença e a de Nevaeh, que está
pouco animada com a ideia.
— Não gosto de festas. — Ela repete pelo que parece ser a milésima vez,
desde que Lewis iniciou o assunto.
O quarterback, depois que nos conhecemos na segunda, quase não anda mais
com seus parceiros de time. Ele gosta de alegar que somos muito mais legais,
o que nos faz apertar os olhos em sua direção, desacreditando de sua
“desculpa esfarrapada”. Nevaeh tem algum tipo de certeza de quem tem algo
por trás dessa amizade suspeita, e que talvez essa aproximação seja vontade
de me levar para a cama. Contudo, não gosto de pensar nisso, e correr o risco
de ser egocêntrica.
Por muito tempo, dei importância demais a coisas que não valiam nada. Eu
gostava da imagem de fútil e egocêntrica que pregava na escola, apenas para
passar por cima de algumas regras que não se aplicavam para mim, porque
todos sabiam da influência dos meus pais. Não que eu fosse de fato, uma
Regina George como Thomas gosta de me chamar, contudo eu não era
alguém muito agradável. E, foi só durante meu intercâmbio voluntário para a
Guatemala que pude perceber o quanto era tóxica. Sem a mínima consciência
de classe.
— Vamos apenas nessa, por favor. — Lewis me arranca dos devaneios, e o
vejo juntar as mãos na frente do corpo, projetando um bico pidão que
desarma Nevaeh.
— Tudo bem, mas só nessa. — Troco um olhar com ele, tendo a plena
certeza de que ainda iremos a muitas outras festas.
Antes que o assunto mude, o clima do ambiente passa de ameno para tenso.
Perscruto o local com os olhos, a fim de achar o que está errado, até chocar as
vistas com as safiras de Thomas. Ele caminha em nossa direção a passos
decididos. Junto da sua habitual pose arrogante e despreocupada. Chacoalho
a cabeça em negação, antes mesmo que ele chegue.
— Olá, Regina. — Enrugo o nariz pelo apelido, ao passo que ele se joga no
assento ao meu lado.
— O que faz aqui? — interrompo-o, dispensando qualquer gesto de
educação.
Percebo o olhar inquisitivo de Lewis, quase como se estivesse indagando o
mesmo que eu silenciosamente.
— Vim falar sobre a organização de eventos.
Inspiro e expiro, reunindo paciência para lidar com esse olhar zombeteiro de
Eckhoff.
— Começaremos semana que vem — atesto sem dar espaço para
argumentação.
— Acha que será assim? — Arqueia as sobrancelhas, fazendo com que um
sulco surja por entre as minhas. — Que vai comandar esse trabalho como
uma ditadora?
Eu nem havia pensado nisso, mas até que é uma boa ideia.
— Na verdade, já pensei até mesmo em organizar esses eventos sozinha, só
para não ter que te aturar. — Ergo os ombros. — Mas, eu estaria sendo boa
demais. Você merece essa responsabilidade.
Thomas finge estar resmungando algo, como uma criança fazendo pirraça.
— Trabalharemos juntos, compartilhando as ideias e dividindo tarefas —
afirmo com a cabeça enquanto ele fala, em um gesto que tenho certeza que é
infantil. — Iniciaremos amanhã na minha casa.
Sinto vontade de rir.
— Começaremos semana que vem, porque eu mereço uns dias de descanso
antes de ter que olhar para a sua cara quase todos os dias.
Dessa vez, ele quem solta uma risada contida.
— Pode ter certeza que esse rostinho aqui. — Ele aponta para a própria face.
— Você ainda vai ver muito.
— Oh, Deus. — Ponho a mão no peito, fingindo estar afetada. — Que pecado
cometi para aguentar tamanho castigo?!
Thomas enruga os lábios, tentando frear o sorriso ou risada que ameaça
escapar. Me pego reparando em alguns detalhes de seu rosto, e antes que eu
me repreenda pelo ato, outra pessoa faz-se presente.
A mesma mulher que estava em seu colo outro dia. Ela tem os cabelos
ondulados, e a pele branca me permite enxergar algumas veias espalhadas
pelo rosto e barriga. Seu uniforme azul escuro de líder de torcida contrasta
com os tênis extremamente brancos.
— Ei, meu bem. — Ela proclama em alto e bom som, pondo as mãos nos
ombros dele e dando um beijo em sua bochecha.
Pergunto-me se ela está tentando marcar território, mas prefiro acreditar que
não, é um tanto ridículo pensar que Thomas valha tal preocupação. A mulher
me olha com um ar de riso, inspecionando minha roupa de cima a baixo.
— Onde você comprou não tinha para gente jovem? — O tom de voz escorre
escárnio, e Thomas a acompanha em uma risada baixa.
Reservo alguns instantes para escrutinar meu corpo, encarando a blusa de lã
branca de gola alta, e o conjunto xadrez preto e branco de blazer e saia de
pregas. A brincadeira por parte dela não me abala, porque me sinto bonita, e é
isso que importa.
— A estilista que criou para mim não pensou muito em idade. — Dou de
ombros, e sei que minha fala soa meio fútil pelo clima tenso que se embrenha
pela mesa.
Porém, as faces risonhas de Nevaeh e Lewis contrastam com os semblantes
de escárnio presentes no rosto do casal.
— Me chamo Mackenzie. — Tento amenizar o clima, estendendo a mão para
a mulher apertar, em um cumprimento educado.
Ela encara minha mão estendida por poucos segundos, parecendo ponderar se
responde ao cumprimento ou não. Por fim, abre um sorriso singelo e encaixa
a palma na minha.
— Hannah Reed.
— É um prazer te conhecer. — Ela responde um “igualmente” baixo, e chego
à constatação de que sua falta de simpatia comigo talvez não tenha nada a ver
com Thomas.
A Bolfok College não é uma universidade estadunidense elitizada como as
outras. Pelo contrário, há um programa de bolsas muito amplo, assim como a
mensalidade é quase popular se comparada às outras. Ou seja, a diferente
aqui sou eu. Já que não tem como disfarçar de onde vim, pela maneira que
me visto ou até por ser acostumada demais com luxo.
Olho para o lado, e me dou conta de que Thomas ainda está aqui, me
encarando com um sorrisinho cínico estampado nos lábios rosados. Me
pergunto se ele não tem nada melhor para fazer.
— O que você ainda faz aqui, Eckhoff? — maneio a cabeça para o lado. —
Circulando. — Balanço a mão, em um gesto elegante e me viro para sua
acompanhante. — Você pode ficar se quiser, Hannah.
Ele se levanta, e ela ri baixo da minha displicência com Thomas. Porém,
decide acompanhá-lo seja lá para onde. Antes que o loiro esteja longe o
suficiente, escuto sua voz novamente.
— Segunda-feira, Regina. Sem falta.
Suspiro exausta. Esse será um longo período.
A sexta-feira chega tão rápido que mal percebo o tempo passando. No
fim das contas, resolver iniciar os preparativos dos eventos com Mackenzie
apenas na segunda foi uma boa decisão. Já que posso ter tempo o bastante
para me preparar para uma vitória hoje.
Estou trabalhando em um Ford Gran Torino 1972 há horas. Para completar, a
oficina ainda está lotada, o que é um tanto comum em dias de racha. A
Bolfok College, infelizmente, não conta com a minha ilustre presença na
aula, porque estou totalmente focado na corrida de hoje. E espero mesmo que
Nevaeh me passe os conteúdos e artigos depois.
— O que falta no motor? — Luke, um dos meus melhores mecânicos e
funcionário, indaga conferindo a parte elétrica do carro.
Não consigo evitar que o sorriso largo rasgue por entre os lábios.
— Não falta nada. Troquei por um motor V10, e posso te dizer que esse
carro, com mais de 600cv. — Faço um suspense desnecessário. — Acelera de
zero a cem km/h em 2,5 segundos.
— Uau. — Luke arregala os olhos acinzentados, ao passo que arrasta a mão
pelo cabelo crespo cor-de-cobre. — Você vai levar a vitória hoje, chefe.
Realmente espero que Luke esteja certo, porque preciso do dinheiro. Ser
dono da única oficina de Bolfok Town traz algumas vantagens. Como a de
saber os carros que irão correr nos rachas, que são direcionados aos cuidados
de outros mecânicos, obviamente. Até porque, um automóvel de outro
corredor sob a minha responsabilidade pode configurar uma espécie de
trapaça. Se algo acontece com um desses veículos sob os meus cuidados, eu
seria acusado de milhões de coisas diferentes. Então, é melhor evitar esse tipo
de estresse.
A história da Thunderstorm não tem nada de extraordinário, mas talvez essa
oficina seja uma das minhas poucas alegrias na vida. A minha atração por
automóveis me impulsionou a abrir um espaço pequeno para consertar alguns
carros em Bolfok Town, já que os moradores da cidade precisavam ir até a
urbe vizinha caso algo acontecesse com seus veículos. Então, com uma
pequena ajuda financeira, consegui realizar um sonho de garoto.
Tio Mason foi o maior responsável pelo meu amor por carros, já que
consertávamos os motores juntos, cuidávamos da pintura, e deixávamos os
automóveis repaginados. E aos meus dezessete anos, decidi experimentar
uma sensação diferente do que a apreensão de ler algum HQ ou jogar um
vídeo game. Assim, fui ao meu primeiro racha. Não sei se foi sorte de
principiante ou algo do tipo, porém naquele dia, eu ganhei. Experimentar a
sensação de vencer com os veículos que eu preparo contribuiu para que eu
mergulhasse nesse novo mundo.
É quando decido que comprar carros e transformá-los em máquinas de correr
é o que amo fazer.
Ainda não é inverno em Bolfok Town, pelo contrário, está um pouco distante
da época. No entanto, parece que há um frigorífico ligado em cima dos
moradores dessa cidade. O vento gélido batendo na face, congelando a ponta
do nariz e ressecando os lábios. O sol até que dá o ar da graça, camuflado por
entre as nuvens, contudo nada que espante esse frio cortante que nos abriga
em casacos pesados.
Depois de terminar o expediente na oficina, passo por uma boutique de
roupas. Meus olhos são instantaneamente atraídos por um sobretudo felpudo
rosa-chá, igual ao que Regina usava no dia em que a molhei. Parte de mim se
afoga na culpa de ter encharcado a menina em um tempo tão frio. Além de
que as notícias correm no Campus, e eu já sei que minha brincadeira imatura
desencadeou uma crise de dor de garganta na patricinha.
Percebo, então, que estou encarando a vitrine da loja por tempo demais. Por
isso, sigo meu caminho. A pergunta que assola minha mente é se ainda devo
um pedido de desculpas a ela, ou se a situação já caiu no esquecimento. Mal
podendo conter meus instintos, interrompo os passos, ficando estático na
calçada. Retrocedo a caminhada até estar em frente à boutique de novo,
olhando para o casaco consigo me decidir. Posso odiar tudo o que Mackenzie
representa, mas não sou tão otário assim.
Ao voltar para a faculdade sigo até o prédio de Direito, a fim de conferir se
ainda pegarei Regina a tempo. Confiro a grade de horários presa no quadro
de cortiça e vejo que ela ainda está em aula. Soco a sacola de qualquer jeito
no fundo da mochila e estagno os passos em frente a sua sala.
Enxergo Dominic sentado ao lado dela, ao passo que os dois cochicham com
avidez. Ignorando seja lá o que o professor explica diante dos alunos pouco
interessados na aula entediante.
Tenho vontade de rir da Senhora Hayes e sua garantia de que Regina é uma
excelente aluna. Conversas paralelas não geram uma aprovação com honra ao
mérito. Desisto de entregar o casaco pessoalmente, e me limito a deixar um
bilhete grudado na sacola. Pouso-a no chão, e saio dali a passos apressados.
Sentindo o peso da culpa abandonando meus ombros aos poucos.
Depois de saciar meu apetite resolvo voltar ao alojamento para revisar todos
os conteúdos dados na semana, e finalizar um trabalho enorme de Economia
Política. Sou neurótica ao ponto de estudar todos os dias, sem exceções, mas
nada como um sábado para mergulhar ainda mais nos estudos.
O sumiço de Nevaeh é, no mínimo, muito suspeito.
O que será que ela tem para fazer em um sábado antes das nove da manhã e
não voltar até agora? Até penso em mandar uma mensagem, mas nossa
relação está progredindo aos poucos e eu não quero ser invasiva. Talvez ela
goste de um tempo sozinha para aproveitar da própria companhia. Ou pode
estar apenas fugindo da festa.
Confesso que até eu fugiria. Já que o meu maior prazer é me animar para algo
dias antes, e perto do horário ficar desmotivada por completo.
Próximo ao horário do nosso compromisso recebo uma mensagem dela,
alegando que já está quase chegando. E Lewis avisa, em nosso grupo, que
passará para nos buscar às nove.
— Até que enfim! — sobressalto assim que a porta abre. — Quero muito
saber onde você estava, mas não quero ser invasiva. Só que se quiser me
contar estou de ouvidos abertos.
Ela ri da minha curiosidade, e eu acabo acompanhando-a na risada.
— Gosto de ir à biblioteca da cidade aos sábados. — Ela sobe e desce os
ombros. — Acordo bem cedo, fico por lá o dia todo, e volto quando fecha.
Isso é totalmente algo que eu esperaria vindo de Nevaeh.
— Ah — pondero por uns instantes, e abro um sorriso sugestivo. — Pensei
que estava com Dominic.
Ele vem se aproximando de nós, e está sendo bonitinho vê-lo tentar.
— Mackenzie, eu já tenho problemas o bastante, e não preciso de mais um.
— Cerro os olhos, e balanço a cabeça, fingindo acreditar nela. — Dominic é
uma dor de cabeça que quero evitar, e você devia fazer o mesmo.
— Eu tento, né. — Tombo a cabeça para trás, sentindo o encosto da cama
apoiar a nuca. — Mas parece que o universo não colabora, fala sério, dupla
no grêmio estudantil?
Nevaeh usa a mão para cobrir a boca, abafando a risada que lhe escapa.
— Desculpa rir, mas é que parece que o universo quer vocês dois convivendo
juntinhos por um mês. — Suas sobrancelhas bem desenhadas se movem em
um gesto malicioso.
— Eu odeio o universo. — Giro os olhos.
— Ah, para. — Ela ergue a mão, as palmas estendidas. — Qual seu grande
motivo para evitá-lo? É claro, se estiver confortável para dizer.
Pondero, por uns instantes, mas decido que confio em Nevaeh o suficiente
para contar uma parte significativa da minha vida.
— Eu tive essa pessoa, Rafe, nos conhecemos no colegial. Eu tinha dezesseis
anos, e ele me apresentou lugares novos, prometeu muitas coisas, me induziu
a sair um pouco da bolha em que cresci, e isso até que foi bom. — Deixo de
fora o fato de que ele me levou em meu primeiro racha. — Eu o considerava
um grande amigo, o melhor de todos. Confiava nele como nunca confiei em
ninguém, já que eu tinha muitas pessoas ao meu redor, mas nenhuma delas
estava lá para todas as horas. Ele era como Thomas, juro. Mesmo cabelo
louro, olhos azuis, jaquetas de couro, mais velho, as tatuagens, e dirigia um
carro antigo muito bonito. Rafe me fez acreditar que era importante até me
descartar por completo, depois que tirou minha virgindade. Qual a fixação
dos caras por garotas que nunca transaram? Depois que dormimos juntos três
vezes, uma em meu quarto, a outra em um dos laboratórios da escola, e a
última no banco de trás de seu Dodge, ele passou a me ignorar.
“Eu vestia um uniforme de líder de torcida, usando uma máscara para me
encaixar em um lugar que não era para mim. Sentava agarrada a ele no
refeitório da escola, me sentindo incrível por breves momentos, até que não
servi mais. Eu o questionei na época, e ouvi que sou o tipo de garota para
diversão, que foi ótimo, mas que havia acabado.”
Trazer as lembranças ainda dói porque, na época, eu passei a me questionar
acerca do que eu não tinha. O que faltava em mim, o que me fazia tão
desinteressante. Eu me olhava no espelho e não gostava de uma estria aqui,
uma celulite ali, achava os seios caídos demais, procurando defeitos onde não
tinha. Apenas para justificar o fato de ter sido descartada por alguém que eu
achava ser meu amigo. Ademais, demorou um tempo considerável para eu
entender que o problema nunca esteve em mim.
— Sinto muito. — Nev acaricia meu ombro, me confortando mesmo que eu
não aparente estar vulnerável.
— Acho que minha repulsa por Thomas — prossigo engolindo o choro que
ameaça vir. — É totalmente inconsciente. Enxergo tantas semelhanças que
me recuso a me aproximar o suficiente para cair em sua lábia, e talvez for
feita de tola de novo.
— Longe de mim querer defender homem. — Nevaeh abana a mão. — Mas,
conheço Thomas há uns três anos, e bom, eles não são a mesma pessoa.
Não posso ler os pensamentos dela, mas reconheço em seu tom de voz que
ela tem um tipo de carinho especial por Thomas.
— Eu sei que não. — Dou de ombros. — Só que Eckhoff continua sendo
muito irritante e eu prefiro prevenir a remediar.
Antes que o assunto renda mais, incentivo que nos arrumemos logo. Visto um
vestido branco de alças finas e separo um sobretudo creme, para aguentar o
frio cortante da cidade. Nevaeh veste uma calça preta com alguns rasgos, e
um moletom curto. Fico embasbacada com sua beleza. Os cachos armados, a
pele preta, os olhos escuros, as sobrancelhas delineadas, e o sorriso de dentes
alinhados. É como se seu rosto tivesse sido cuidadosamente desenhado pelo
artista mais talentoso.
A casa da fraternidade nomeada por algum nome grego que não faço questão
de saber está beirando a uma lata de sardinha. Já tem alguém vomitando no
gramado do jardim frontal, e alguns copos vermelhos espalhados pelo chão.
Dentro da residência ampla, jovens dançam livremente, entornam bebida no
copo um do outro, fazem body shot, e tomam cerveja direto do barril. Os
móveis da sala estão em algum lugar desconhecido, deixando espaço o
bastante para que a festa aconteça. No espaço de lazer nos fundos, pessoas já
se aventuram na piscina enorme, e alguns universitários extravasam os
hormônios se agarrando nas espreguiçadeiras do quintal.
O cheiro é de bebida alcoólica e suor, e meus tímpanos já reclamam do som
alto. Porém, me livro dos resmungos para aproveitar a recepção de calouros.
— Dança comigo? — A voz de Lewis soa alta, tentando sobrepor o volume
da música.
O puxo pela mão até o meio da pista, ele me roda e para meu corpo em frente
ao seu. Algum pop animado explode nas caixas de som, tremendo meu corpo
de leve. Balançamos no ritmo da música, pulando com as mãos remexendo
no ar. As bebidas que ingeri desde o início da festa tornam-se aparentes no
organismo, deixando meus olhos menores e as bochechas coradas. Continuo
dançando com Lewis, me sentindo imersa na atmosfera animada do local,
esquecendo qualquer problema que me ronda. Já não penso em trabalhos
acadêmicos, no grêmio e nem Eckhoff pode me abater nesse momento.
Porque uma Mackenzie bêbada e feliz é imbatível.
Quando sinto o cansaço me dominar, e uma gota de suor escorrer da nuca até
a base da coluna, resolvo dar um tempo da dança. Encosto no balcão que
divide a ampla sala da cozinha, passando a prestar atenção no body shot que
acontece próximo a mim. Nunca havia feito em ninguém, por isso uma
apreensão toma meu corpo, inundando-me de vontade de participar.
— Faz em mim? — Ouço uma voz grave soar perto do meu ouvido, me
causando um sobressalto.
O homem desconhecido me encara com os olhos cinzentos vibrando em
expectativa. Os ombros largos compõem o porte atlético do corpo, e a blusa
preta adorna seus músculos que realça a íris clara. O sorriso de dentes
alinhados e brancos realça as covinhas que aumentam seu charme. Baixo o
olhar para sua mão que segura o copo de shot com um líquido que creio ser
tequila. Sem respondê-lo com palavras, me aproximo com calma, sem
desconectar nossas órbitas, e percebo sua pupila dilatar, escurecendo as
vistas. Pego o corpo de sua mão, derramando bem pouco em seu pescoço, e
não perco tempo ao lamber todo o conteúdo. Finalizo com uma leve sugada
em sua pele, escutando-o soltar um gruído baixo.
Antes que eu me afaste, suas mãos grandes agarram minha cintura, e a boca
se choca a minha. Os lábios estão gelados, assim como a língua tem uma
aspereza agradável, e consigo sentir o gosto do álcool, tequila e cerveja. Ele
beija bem, aliás, muito bem. Um dos melhores que já provei, superando até
mesmo Rafe, o que me deixa repentinamente animada. Finalizamos o contato
com um selinho, e nossas respirações aceleradas se misturam, criando uma
harmonia envolvente.
— Sou Joshua Collins. — Ele abre um de seus sorrisos brilhantes.
— Mackenzie Lennon. — Ergo a mão para cumprimentá-lo, e ele devolve o
aperto. — É um prazer te conhecer.
— O prazer é todo meu. — Assisto um sorriso malicioso se estender em seu
rosto, me provocando uma risada.
Sinto uma sensação estranha, como se estivesse sendo observada, e perlustro
o local, procurando algo de estranho. Até que descubro. Choco meus olhos
nas safiras de Thomas, que me encara com um sorrisinho sugestivo. Ele
ergue o copo em minha direção, como em um brinde, balançando a cabeça
negativamente. Desço as vistas pela camisa preta de mangas compridas, o
jeans surrado, as botas de combate, e o cigarro atrás da orelha. Um completo
sem graça, como sempre.
Solto uma bufada, dando-o a língua. Ele sobe os lábios em surpresa, e me
lança uma piscadela. Sinto vontade de rir, mas me recuso a deixá-lo ver que
me divirto com uma de suas caretas.
Josh engancha o braço ao redor dos meus ombros, porém não quero ficar de
casal na festa. Por isso, sou sincera e vou para o lado de fora atrás de mais
diversão. Acho uma mesa de Beer Pong um pouco mais distante da piscina e
caminho até lá.
Na faculdade, você enfrenta novas experiências e descobre mais coisas sobre
si. No meu caso, entendo que sou péssima de mira. Faço dupla com Andrew,
um dos amigos de Thomas, e estou errando todas. Pelo que parece, meu
parceiro já está arrependido de ter aceitado me acompanhar nessa. A cada
copo de cerveja virado por nós, recebo um olhar feio dele.
— Vou fazer dupla com Nevaeh. — Andrew anuncia, assim que avista minha
amiga se aproximar com Dominic, arrastando a mão pelo cabelo crespo.
Acho que ela quase agradece ao universo por não ter que fazer dupla com
Dominic.
— Ah, é? — Arqueio as sobrancelhas para Andrew. — Está desdenhando de
mim. — Dou de ombros. — Sem problemas, seu Karma vai vir.
— Não é por nada não, Mackenzie. Mas sou um pouco competitivo e não
aguento mais perder.
Desconheço o motivo pelo qual gargalho disso, deve ser a bebida.
Sinto-me leve e feliz, esquecendo as inseguranças que sempre surgem, e as
preocupações com a faculdade e o curso difícil que escolhi. Tento não
lembrar que o aniversário de Lidia, minha mãe, está chegando e não recebi o
convite da comemoração. As frustrações estão sendo descontadas na bebida
no momento, apesar de eu ainda não estar tão chapada quanto quero.
O jogo inicia e é óbvio que, em todas às vezes, erro o maldito copo. Dominic
tem a íris escura derramando ira, porque Andrew não alivia, zombando das
nossas derrotas. Está a ponto de virar um copo de cerveja em sua amiga, e
aposto que só não fez isso ainda, porque quer causar uma boa impressão em
minha amiga. O que é engraçado, já que Dominic exala a energia de valentão,
sendo tão desenhado pelas tatuagens que parece um gibi.
Quando ouço “No Doubt- Just a Girl”, um hino de 1995, reverberar
imponente pelos alto falantes, sinto a adrenalina se apossar do corpo. Encaro
Nevaeh, e com apenas um olhar, ela entende. Nós precisamos dançar essa.
Largamos o Beer Pong e corremos até o interior da casa.
Canto à plenos pulmões, como se a Gwen Stefani pudesse escutar minha
devoção onde quer que esteja. Algumas meninas se compadecem com nosso
estado de letargia e se juntam a nós. A pista de dança está tomada por
universitárias tendo seu momento de glória. Nós gritamos a letra, mandando
uma espécie de recado para a sociedade.
Em algum momento no meio de gritos, pulos e risadas, perscruto o local, me
sentindo extasiada, até que pouso os olhos na figura de Thomas beijando
outra garota— e ela não é Hannah. Rapidamente fico em alerta assim como
Nevaeh, seja lá a relação que eles têm é inegável que ela é apaixonada por
ele. Procuro a mulher de cabelo ondulado, achando-a encarando a cena com o
semblante retorcido, parecendo estar muito triste. Ela se move com rapidez, e
eu vou atrás dela. Pronta para dar qualquer suporte que seja, ou sequer
segurar sua mão. Não sei o quanto de cerveja já bebi, mas ainda posso
ajudar.
Empurro a porta do banheiro apenas a tempo de segurar o cabelo de Hannah
enquanto ela despeja quase seu estômago no vaso. Estou exagerando um
pouco, é claro. Fico ali, pelo tempo que ela precisa, acariciando suas costas
com uma mão e segurando seus fios em um rabo de cavalo com a outra.
Assim que termina, a ajudo a levantar, limpo sua boca com o papel, e ela
bochecha com a água algumas vezes.
— Porque está me ajudando? — Sua voz escapa rouca, imagino que pelo
desgaste de vomitar.
— Porque você precisava de ajuda. — Subo e desço os ombros. — Onde
estão suas amigas?
— Acho que bêbadas demais para perceber que estou mal.
Pondero por uns instantes, não sei o que dizer, quero falar sobre Thomas, mas
temo ser invasiva demais.
— Gosto dele mais do que pensei. — Ela se adianta, suspirando. — Juro que
quando começamos a ficar, eu não sentia nada além de tesão. Até era
apaixonada por outro cara. Mas em algum momento, não sei qual, percebi
que me incomoda vê-lo com outras. Sinto ciúme e meu coração bate mais
forte na presença dele. Você sabe os sintomas, certo?
Sim, conheço bem os sintomas.
— Já conversaram sobre isso?
Hannah balança a cabeça com fervor, negando.
— Thomas sempre fez questão de ser muito sincero comigo quanto aos seus
sentimentos. Diz o tempo todo que quando não estiver melhor para mim,
pararemos na hora. Mas, fico me perguntando se não tem nada de errado
comigo. Afinal, por que ele não pode gostar de mim?
Sinto muita vontade de chorar. O relato de Hannah faz eu me recordar da
Mackenzie de dezesseis anos, apaixonada pela primeira vez. Fazendo
questionamentos nocivos. À semelhança entre o que ela passa agora e o que
já passei só me faz reafirmar que talvez Thomas e Rafe sejam mais parecidos
do que penso. Abraço Hannah, querendo protegê-la de qualquer homem que
possa quebrar nossos corações, e mal percebo as lágrimas caindo. Em um
segundo, estamos chorando e rindo.
— Quando te vi pela primeira vez. — Ela começa, enxugando as lágrimas. —
Pensei que fosse mais uma rica mimada que tem problemas com os pais e por
isso decidiu vir até uma faculdade mais barata. Mas, até que você é legal.
— Obrigada, eu acho. — Meu sorriso é contido, porque não consigo alargá-
lo. Suas palavras me atingem em cheio.
Problemas com os pais. Check
Rica. Check.
Mimada. Meio check.
Talvez Hannah não tenha errado em nada do que disse de forma inocente.
— E cuidado, Mack. — Seu tom me faz ficar em estado de alerta. — Com
esse negócio de conviver quase o tempo todo por causa do grêmio, você pode
cair nas graças dele.
Desmancho o semblante cuidadoso, mudando-o para um desgostoso. Um
rosto e corpo bonito não me farão perder as estribeiras.
— Não teremos nada — digo com firmeza.
Hannah ri alto, como se meu tom firme não seja o bastante para fazê-la
acreditar nas minhas palavras.
— Eu não me importarei se tiverem. — Ela aperta meu ombro levemente. —
Não vou odiá-la ou qualquer coisa do tipo.
Gosto de Hannah, e gosto ainda mais porque percebo que ela entende tudo. O
quanto a sociedade tenta nos colocar uma contra a outra, e que essa união nos
faz mais fortes. Porque nenhum homem vale a nossa sanidade mental,
ninguém vale, na verdade.
— Não vai rolar nada — reafirmo mais uma vez.
— Talvez seja bom que não aconteça. — Hannah profere com um semblante
pensativo. — Porque você ainda não o conhece direito, mas Thomas é como
uma praga. Se deixá-lo chegar perto demais, ele te toma por inteiro. E depois
disso, só basta rezar para não ter o coração quebrado.
Talvez seja efeito da bebida, mas Hannah promove diálogos muito poéticos.
Ela não precisa gastar saliva discursando sobre isso, não cairei nas graças
desse cara. Não mesmo.
A segunda-feira me entristece apenas pelo fato de chegar tão rápido.
Ainda sinto que tenho sono acumulado e já estou com saudades do fim de
semana. O início do planejamento do luau é hoje, o que significa que passarei
boa parte do meu tempo convivendo com ela. Falando em Regina, avisto o
prédio de Direito, e caminho pelo Campus até lá. Com o objetivo de definir
um horário para começarmos.
O frio não dá descanso em Bolfok. Esfrego as mãos uma na outra, formando
um vácuo entre elas para esbaforir o hálito quente, tentando amenizar o
aspecto morto delas. De nada adianta, maldita a hora que me esqueci de
colocar luvas. Há grandes chances de o meu pênis ter encolhido uns
centímetros, se escondendo por entre o pano da cueca, de tão gelado que está
o tempo. O pensamento me faz rir sozinho pelo Campus.
Avisto Regina de longe, no meio de uma pequena roda de alunos, sendo
questionada acerca de algum assunto que os faz sorrir às oito da manhã. O
modo como as pessoas a olham, ou melhor, admiram, chegaria a ser cômico
se não fosse trágico. Embora não tenha intenção, ela consegue ser a abelha
rainha de qualquer lugar. Talvez seja a postura ereta, o nariz empinado e as
sobrancelhas arqueadas, que exalam confiança. Sua expressão facial, para
muitos ali, pode ser de pura simpatia. Contudo, sei reconhecer o ar de
superioridade.
Quando entro em seu campo de visão percebo a mudança de postura. Os
ombros enrijecem, a expressão se fecha e as sobrancelhas arqueiam mais
ainda. Estando próximo o suficiente consigo identificar melhor a
superioridade estampada em seu rosto, porém seu perfume também invade
meu espaço pessoal. E nem posso fazer alguma piada acerca dele, porque a
porra do cheiro é muito bom.
— Rainha de Bolfok. — O apelido que acaba de surgir na mente condiz
exatamente com a bajulação que ela recebe.
— Apelido novo? — Assisto seu semblante contorcer em uma careta
desgostosa.
— Sim. — Abano as mãos. — Combina com a babação de ovo que fazem
contigo.
Regina não se abala muito, apenas bufa baixinho.
Lembro que minha oponente nos rachas se autodenomina uma rainha, mas
nem a conheço o bastante para atestar se seu pseudônimo condiz com ela ou
se a mulher é apenas convencida.
— Ok, Thomas. — Regina suspira, parecendo reunir paciência para lidar
comigo. — Agora me diga por que já está me importunando logo de manhã.
— Quero marcar um horário para começarmos a organizar o tal luau. —
Aponto para o relógio imaginário em meu pulso. — Sabe como é, sou um
cara atarefado, então preciso anotar na minha agenda.
— Como você é ridículo — ignoro a alfinetada, mantendo o sorrisinho que
sei que a incomoda. — Enfim, minha última aula é antes do almoço. Porém,
gosto de dar uma estudada à tarde. Então só estou livre ao final do dia.
Ela finaliza retirando de seu rosto uma mecha do cabelo, me dando visão
ampla das pintinhas que decoram suas bochechas. A consciência me lembra
que estou prestando atenção demais no inimigo, por isso balanço a cabeça,
espantando os pensamentos perigosos.
— Então, você estuda mesmo, achei que estivesse na faculdade por
obrigação. — Exponho a realidade de muitos jovens da classe dela.
— Você nem me conhece.
Bom, ela tem um ponto. Não que eu queira realmente conhecê-la. A
implicância é até um pouco cansativa, e me impressiona que eu tenha que ser
maduro para lidar com tantos aspectos da vida, mas volte tão rápido a ser
criança em prol de uma provocação com Mackenzie.
— Você também não me conhece — discorro, tentando parecer inabalável.
— E mesmo assim supõe várias coisas sobre mim.
— Não suponho nada, Thomas. — Regina parece um pouco cansada. —
Você foi um ridículo desde a primeira vez que nos vimos, tudo que sei sobre
você é o que me mostra.
Relembro da nossa trégua, e entendo que não conseguiríamos deixar as
implicâncias de lado por nada. Nem por um instante.
— Também tenho meus motivos.
Não quero falar sobre. Muito menos sequer pensar no nome de Jessie. Odeio
os fios castanhos alongados, as sobrancelhas delineadas, os olhos felinos e
tudo que me leva em uma viagem no tempo a uma época péssima.
— Imagino que sim. — Regina engancha a alça da bolsa no ombro, pronta
para ir embora. — Tenho que ir para a aula, nos vemos às cinco.
Percebo que Lennon tem uma facilidade gritante em conduzir a situação do
jeito que quer. Eu que vim até aqui a fim de marcar a hora do nosso encontro,
para no fim das contas, tudo sair da maneira que ela deseja. Estou dormindo
no ponto, pois preciso assumir o controle.
A constatação já me provoca uma vontade de rir instantânea.
Quem eu quero enganar?
Nunca estou no controle quando se trata de Mackenzie Lennon.
O local onde ocorre o Luau não parece mais com a floresta abandonada e
perigosa de antes. Há balões de papel coloridos pendurados no alto, algumas
lâmpadas meio amareladas que dão um clima aconchegante ao local. Tochas
acesas, uma fogueira, um pequeno palco com violão e aparelhagem para DJ,
a bancada do bar coberta por uma cabana de palha seca, que me lembra de
Cancun ou qualquer cidade praiana. Consigo até sentir o cheiro de maresia se
eu me esforçar muito, mas o aroma de canapés me leva a uma realidade ainda
mais bonita, é claro que convencer Thomas a colocar pelo menos um
alimento mais elaborado foi fácil demais para alguém como eu.
Sinto meu vestido se elevar pela brisa amena que abraça meu corpo, exibindo
minha perna pela fenda da peça de roupa. A sandália baixa briga com os
cascalhos do caminho que percorro para o interior da festa, e sem me esforçar
muito, avisto Eckhoff segurando um copo vermelho, que combina com sua
blusa de botões decorada por listras finas azuis, a calça está dobrada nos
tornozelos e até mesmo os óculos de grau enfeita seu rosto. Tento não o achar
muito bonito, mas a missão torna-se quase impossível quando ele abre um
sorriso grande em direção à mulher loira que conversa.
Assim que aceleroos passos, seus olhos se voltam a mim, só agora
percebendo minha presença. Analisa-me de cima a baixo, desde meus pés até
o cabelo. Sinto uma quentura semelhante à de hoje mais cedo se apossar de
mim e logo dissipo nossa conexão.
Cumprimento algumas pessoas que já conheço da faculdade. Avisto Nev,
Dom e Andrew em uma conversa animada, exceto a primeira que revira os
olhos a cada segundo, e me aproximo deles a passos contidos, vendo-os notar
minha presença. Minha amiga veste um vestido sem alças amarelo que realça
ainda mais o escuro de sua pele, já Dom e Andrew usam camisas de botões
parecidas com a de Thomas.
— Uau, você está linda. — Andrew pega minha mão e me faz dar uma volta,
me analisando com um sorriso largo. Os outros concordam com ele e me
limito a agradecer e devolver o elogio.
A festa se passa incrivelmente calma, pessoas conversam animadas entre si,
alguns arriscam passos de dança pela pista improvisada, assim como Thomas
que performa "Like a Virgin" como um grande fã da cultura pop. Tento não
rir do grande papelão que ele passa, mas é inevitável assim que o vejo forçar
um rebolado grotesco.
Quando o momento acústico começa tento não bufar de tédio, porém
compreendo que esse é o protocolo praxe para um Luau. Alguns estudantes
se arriscam a dedilhar algumas cordas, uns produzem sons horrendos,
entretanto outros até conseguem promover um som agradável aos nossos
ouvidos. Gargalho de Andrew que tem um comentário satírico para cada
pessoa presente, principalmente aos candidatos ao The Voice de plantão.
Surpreendo-me assim que vejo Dominic tomar posse de um dos violões,
alegando nos fornecer uma apresentação digna do melhor reality musical que
existe. Surpreendentemente, seu amigo não o lança nenhum tipo de palavra
sarcástica, pelo contrário, diz para mim que Dom é realmente bom. Isso me
faz ficar mais apreensiva e animada.
Quando os primeiros acordes começam, penso já conhecer a música, meu
cérebro fervilha tentando adivinhar o que a melodia tem de tão familiar. Mas,
assim que Dom começa a proferir as estrofes em seu tom levemente rouco,
reconheço ser "I kissed a Girl" da Katy Perry. Thomas como um grande fã da
cultura pop, quase dá pulinhos em seu próprio lugar, e vejo os olhos de Dom
pousar em Nevaeh e não saírem da direção dela.
— Eu beijei uma garota e eu gostei. — Entendo, por fim, que a canção está
sendo dedicada a ela. Troco um olhar cheio de significados com Thomas, em
uma conexão que eu nem sabia que tínhamos. Como se estivéssemos muito
animados por ter fofocado acerca de nossos amigos durante muito tempo e
agora descobrimos que nossas suposições estão corretas. — Do gosto de seu
brilho labial de cereja.
Nevaeh não esboça nenhuma reação ao final da canção, apenas gira os pés e
cai fora dali. Em contraste aos aplausos e assobios animados de todos que
aprovam o show, Dom percebe a reação negativa de Nev e vai atrás dela.
Faço uma anotação mental para perguntá-la acerca desse assunto, ela tem
estado bastante misteriosa nas últimas semanas.
Dou mais um gole no líquido de sabor indefinido em meu copo, deixando o
álcool cada vez mais presente em meu paladar, tornando-se rapidamente
desagradável. Frustro-me um pouco com o andamento da festa, algumas
horas já se passaram, entretanto, os jovens prosseguem em uma animação que
não me contagia, pulando e dançando, gargalhando entre velhos amigos,
jogando algo em uma roda que eu não soube identificar. Talvez fosse "eu
nunca", ou quem sabe, um "verdade e consequência".
Perlustro o local, buscando algo de interessante, e recebo notícias
desagradáveis. Isto é, o tempo alugado para que o policiamento fique ali
acaba. Permitindo assim, que os policiais tomem seus caminhos em suas
viaturas barulhentas. Um mau pressentimento percorre por todo o meu
sangue, como se algo de bom não fosse sair dali em algum momento.
Sinto-me uma mera espectadora de mais uma festa universitária, não consigo
entrar no clima animado, muito menos aproveitar os drinks servidos com
guarda sóis decorativos, e a angústia em meu peito arranca qualquer
animação que possa aparecer.
A primeira hora de festa após o policiamento terminar prossegue tranquila,
algumas pessoas desrespeitando os limites definidos pela fita amarela, casais
ansiando por um pouco de privacidade indo se pegar na floresta, mas no
momento em que pouso meu olhar na figura de uma Hannah levemente
alterada tentando desgrudar um cara de sua cola, percebo que é ali que as
coisas vão desandar. O homem está visivelmente bêbado e parece tentar
forçar algo com ela. Procuro Thomas com as vistas e o vejo de costas para a
cena, fazendo alguma palhaçada para Drew e Dom como o bobo que é.
Aproximo-me de Hannah a passos largos com o objetivo de ajudá-la com
qualquer que seja a situação.
— Tudo bem por aqui? — questiono, passando meu braço ao redor dos
ombros dela. Seus olhos tentam passar para mim o quanto ela está com medo.
Consigo notar o pavor em suas íris e aperto mais meu braço ao seu redor.
— Olha só, você não devia agarrar a garota do Thomas assim. — Sinto
vontade de vomitar. — Mas é bom que você tenha chegado, assim posso
chamar mais um amigo para completar nossa festa.
Ele ergue a mão na direção de um homem de estatura alta e o chama com o
dedo, o cara rapidamente caminha em nossa direção e o medo de Hannah se
transfere para mim.
— Não precisa chamar ninguém, minha amiga e eu estamos indo. — Tento
puxá-la comigo, mas ele a agarra pelo pulso.
— Você não precisa defendê-la, gata. Todo mundo da faculdade sabe o quão
libertina sua amiguinha é, sendo o chaveirinho de Thomas e dando para
qualquer homem que dê um pouco mais de atenção que o Eckhoff. — Ele
cospe as palavras dotadas de um escárnio que me enoja ainda mais.
— Solte-a agora — murmuro entredentes e me mexo com brutalidade,
tentando atrair a atenção de alguém com um pouco mais de força que eu para
lutar com homens tão altos e másculos quanto esse.
Parece-me que palavras não vão resolver, e a única solução que se passa no
mundinho cor de rosa dentro de minha mente é desferir um soco na cara dele.
Por isso, sinto meu punho estalar assim que há o impacto entre meu membro
e sua face dura, que se contrai ao sentir o impacto da minha mão. Uso ali
tudo que sei sobre defesa pessoal, mas também entendo que não é uma das
melhores escolhas assim que o vejo erguer a mão aberta pronto para revidar
minha agressão. Só fecho os olhos com força, pronta para senti-lo desferir um
tapa em minha face. É provável que eu voe para dentro do lago devido à
tamanha força que ele usará ao me bater. Contudo, não sinto nada em meu
rosto, só escuto o impacto de corpos caindo ao chão.
Ergo as pálpebras com rapidez suficiente para ver Dominic pular em meu
possível agressor, assim como vejo os óculos de Thomas voar ao chão
quando ele desfere o primeiro soco no amigo do abusador. A briga torna-se
generalizada assim que Andrew também enfrenta o homem que tentou ir para
cima de Dom em defesa do ridículo. Um grupo defende os caras de porte
atlético que iam me bater e o outro, os enfrenta com louvor. Joshua e Lewis
também estão no chão brigando com outros homens, provavelmente do time
oposto, e meus olhos se encontram com os de Nevaeh assim que percebemos
a gravidade da situação. A pancadaria não pararia do nada, precisamos fazer
alguma coisa. Vejo quando Thomas parece perceber que se excede na
violência. Sóbrio demais para o horário, ele olha para seu oponente como se
ele fosse portador de alguma doença contagiosa, encara seus punhos feridos e
se analisa com o que parece ser repulsa. Antes de correr até ele, vou até o
som, desligo a música e pego o microfone.
— Parem agora mesmo ou então chamarei a polícia.
Percebo que minha alternativa para acabar com a briga funciona, já que a
maioria interrompe os socos e pontapés e parece finalmente se dar conta de
que já bateram demais. Dominic ainda está preso na tarefa de espancar o
homem, seu tronco esguio ainda consegue dominar com maestria o corpo
atlético que tenta a todo curso sair da imobilização feita por Dom.
— Dominic Hopkins. — A voz imponente de Nev reverbera alta pelo local
silencioso, até porque nenhum jovem trata de proferir nada, prestando
atenção demais na briga que ainda rola. A mão de Dom para no ar assim que
ele ouve a voz de Nev. Talvez ele saiba que dormirá no jardim hoje, ou que
receberá uma punição severa. Mas sei que minha amiga pegará leve, afinal,
essa briga só aconteceu por culpa minha.
As pessoas se dispersam naturalmente, a partir do momento que nada
interessante acontece mais no meio da pista. Os garotos que estavam em
defesa do meu possível agressor saem da festa no momento que a briga
acaba, como se soubessem que não há nada mais para eles ali. Ao contrário
dos que entraram na pancadaria em minha defesa, os homens levemente
machucados com os punhos feridos estão jogados nas almofadas bem
dispostas para o descanso dos jovens. Nevaeh surge com algumas caixas de
primeiros-socorros pegos na enfermaria da faculdade por mim, que julguei
ser necessária em qualquer festa de universidades. Sempre acontece alguma
briga, por menor que seja.
Sinto-me extremamente culpada por tudo o que aconteceu, porque é claro que
medir forças com um homem tão alto e forte quanto aquele causaria algo
muito maior. Apenas na bolha em que vivo daria certo bater em um cara que
tem o triplo da minha força. Ter envolvido tantas pessoas em algo que apenas
se diz respeito a mim e a minha falta de responsabilidade me irrita
profundamente. Estrago a festa que Thomas e eu organizamos com tanto
esforço, e a culpa me assola, gritando ao meu cérebro o quão ingênua sou.
Minha amiga se encarrega de cuidar de Dom, e logo surgem algumas pessoas
para tratar dos ferimentos dos valentões. Um cara da defesa do time, que não
lembro o nome, limpa com um pano úmido o rosto de Lewis, uma loira está
colocando um esparadrapo em Andrew e antes que eu chegue a Joshua,
Hannah vai até ele para tratar de seus machucados. Encaro um Thomas que
apoia a mão em um dos machucados do supercílio, e me aproximo.
Encaro-o calmamente e passo os dedos em um movimento leve por cada um
de seus ferimentos. O sinto estremecer em minha frente, tendo conhecimento
de meu semblante murcho, como se nada pudesse me fazer sorrir considerada
a tamanha culpa que me assola.
— Você não tem culpa do que houve. — Odeio que ele adivinhe tão fácil
minhas expressões faciais.
— Tenho, sim — pigarreio. — Eu deveria ter ajudado Hannah de outra
forma, ter batido naquele homem foi irresponsável. Eu poderia ter tomado um
tapa que destruiria meu rosto e ainda envolvi inúmeras pessoas na minha
briga. Além de ter estragado a festa que trabalhamos tanto para organizar.
Atravesso o olhar até a figura de Hannah, que ajuda Josh com os poucos
machucados em seu rosto, e logo depois recebe um abraço caloroso dele.
Imagino que o Collins esteja tentando ajudá-la de algum jeito também.
— Para de falar merda. — Ele segura minhas mãos pousadas em seu rosto.
— Aquele foi um dos melhores socos que eu já vi na vida. Você foi muito
corajosa e não havia nada que pudesse ser feito. O único culpado ali foi o
homem que iniciou isso tudo, xingando Hannah e erguendo a mão para te
bater. Andrew, Dom e eu sabíamos que você poderia resolver aquilo sozinha,
só intervimos no momento que um cara enorme daquele quis medir força
com você. E todos nós estamos bem, Mack.
— Obrigada por isso. — Talvez aquela seja a primeira vez que o agradeço
por algo, mas suas palavras realmente me tranquilizam. — Até que você não
está tão machucado. — Escrutino seu rosto com atenção. Há apenas um
hematoma no olho, corte no supercílio e lábio cortado.
— É porque eu brigo muito bem. — diz, piscando um dos olhos. Ignoro seu
momento de egocentrismo e prossigo.
— Não, é porque você parou primeiro. Eu percebi quando pareceu se odiar
por ter entrado em uma briga e rapidamente se afastou — rebato, assistindo
ele gemer de dor quando passo água oxigenada em sua sobrancelha. — Quer
falar sobre isso?
Thomas dá de ombros.
— Só não gosto de violência — responde, dando de ombros. — E estou
sóbrio o suficiente para saber meus limites.
Me parece mais que isso, contudo me contento a acenar em concordância.
Sinto vários questionamentos serem aprisionados dentro de mim, tenho
vontade de saber sobre sua família e o boato que a ronda, tenho curiosidade
acerca de seu ódio por Lewis e tantas outras coisas que não me sinto íntima o
suficiente para perguntar.
— Resolveu não beber hoje?
— Eu não bebo nunca. — responde. Franzo o cenho e tento repassar em
minha mente todas as vezes que o vi beber algo alcoólico, não tendo êxito na
tarefa.
— Já te vi em festas bebendo. — Ainda assim, não me contenho em refutá-lo.
— Você já me viu com um copo na mão, mas não sabia o conteúdo. — Seu
argumento é bom, portanto sou incapaz de rebater, até porque, de fato, não
posso comprovar meu ponto. — E antes que você crie uma história na sua
mente envolvendo traumas com álcool, eu só nunca gostei muito do gosto de
nenhuma bebida.
— Poucos bebem para apreciar o gosto da bebida, Eckhoff. — Deixo de
limpar seu rosto para tratar de seu punho esfolado pela quantidade de socos
que ele desferiu em seu adversário.
Tento ignorar os pequenos choques elétricos que percorrem todo o meu corpo
no momento que junto minha mão na dele para limpar seu ferimento com a
outra.
— Sim. — Ele acena com a cabeça. — Bebem para descontar suas
frustrações em um prazer momentâneo. Só que pra isso, eu fumo um baseado.
— Está explicada a origem dos seus neurônios queimados— alfineto, um
sorrisinho esperto se esgueirando pelo meu rosto.
Sua mão corre ágil para o meu pulso, me fazendo estremecer pelo carinho
que seu dedão desfere em círculos. Ele leva meu braço até seu ombro,
pousando minha mão ali, e esse é o contato mais direto que temos desde
nosso primeiro dia juntos.
— Vou colocar a culpa nos meus neurônios queimados por não ter dito nada
sobre você nesse vestido. — Quase me despe com os olhos e sinto como se a
peça de roupa estivesse saindo de meu corpo à medida que suas íris me
devoram. — Mackenzie Lennon, mesmo que eu não me simpatize com você,
não posso deixar de fazê-la tomar conhecimento do quão
extraordinariamente linda está hoje.
Não sei exatamente o que me desarma naquele momento, a intensidade de
seu olhar conectado ao meu, meu nome completo sendo proferido com gosto
por ele, ou se é, cruamente o elogio que sai por entre seus lábios. Acho que
na verdade, me sinto um tanto desestruturada pelas pequenas coisas, ou seja,
o fato de Thomas não se referir a mim como motivo de seu ódio, e sim de sua
"falta de simpatia" me impacta de um jeito muito mais significativo.
O filósofo natural e físico, Isaac Newton, diz que o que sabemos é
uma gota, e o que ignoramos é um oceano, e nada poderia ser melhor do que
essa frase para explicar tudo que nos rodeia. Nevaeh e Dominic têm uma
espécie de relacionamento complicado em que nenhum dos dois compartilha
com ninguém. Andrew está sempre misterioso, indo e voltando de lugares
desconhecidos por nós. Lewis tem essa relação complexa com Thomas e se
recusa a me explicar. Não que eu esteja reclamando, é perfeitamente normal
não querer compartilhar alguns segredos da sua vida com alguém de fora.
Thomas já havia me visto dirigindo diversas vezes, e para me associar a
Rainha dos Rachas seria um pulo, entretanto, ele parece ignorar qualquer
perspectiva diferente do que ele quer enxergar.
A moral disso tudo? Bom, eu não sei. Mas finalmente entendo o critério de
ser amigo de alguém, e ainda assim compreender que todos têm seus
segredos seja eles obscuros ou não. Nós nunca iremos conhecer uma pessoa
cem por cento. E está tudo bem. Contudo, sempre há os fatos que estão nas
nossas caras e preferimos ignorar.
Por exemplo, eu estou atraída por Thomas Eckhoff.
Esse é um fato que estou totalmente disposta a ignorar, afinal, não é como se
eu fosse um animal irracional. Posso contar fielmente com o meu
autocontrole para ignorar todos os efeitos que ele causa em mim, e ainda
tenho ótimos motivos para isso.
1- Ele está envolvido com Hannah.
2- Ele é um imaturo, arrogante, inconveniente e sem noção.
3- Ele pode ser como Rafe.
Abro um sorriso assim que percebo que tenho pretextos o suficiente para não
ceder aos encantos de Eckhoff.
Mais tarde começaremos o planejamento do jantar entre professores,
orientadores e reitores. O que me deixa um pouco mais animada, já que
organizar um evento em um salão de luxo, com comidas e bebidas refinadas
faz parte do meu convívio há anos. Conheço as melhores músicas clássicas
para tornar o ambiente ainda mais culto, sei o melhor Buffet que atenderá o
paladar do tipo de pessoas que frequentam esses jantares de elite e tenho
gravado na memória o suficiente de decoração que aprendi com minha mãe.
Falando nela, a comemoração de seu aniversário já aconteceu. Eu vi no
Instagram de uma das suas modelos a festança que ocorreu. Um dos
melhores salões de Oroland County, cidade litorânea, vizinha a Dilshad.
Pensar nessa localidade praiana me lembra de Lewis e Thomas, que nasceram
e cresceram lá, e em mim, que vivi o luxo que um pai dono de uma empresa
de tecnologia e uma mãe estilista pode promover. De Dilshad até Oroland é
apenas uma hora de viagem indo de carro, lá há um resort que promove festas
de elite em sua cobertura, sendo a vista para o mar o mais atrativo do local.
É inevitável não ficar chateada por ter sido deixada de fora. De Bolfok Town
até Oroland County é apenas duas horas de viagem e eu, com certeza,
percorreria esse caminho feliz se isso significasse prestigiar minha mãe. Vejo
os stories de todos que estiveram lá, os empregados das grifes de mamãe,
suas modelos favoritas, os sócios e acionistas da empresa de papai e seus
amigos. Menos sua filha. Ao parabenizá-la, a confrontei acerca de sua festa, e
a resposta que recebi foi: "Desculpe, meu amor. Pensei que você estivesse
ocupada demais com essa perda de tempo que é a faculdade."
Já estou acostumada com esse discurso desmotivador diário, e não é como se
me atingisse tanto, só me traz números variados de inseguranças. Ademais,
fazem os pensamentos de autossabotagem flutuarem pela mente. Eu me
pergunto se tenho o bastante para estar aqui, para finalizar meu curso com
honra ao mérito e se tenho capacidade de lidar com tudo isso sozinha. Mas
então me dou conta de que estive sem ninguém por quase a vida toda,
rodeada de pessoas o tempo todo, mas solitária por dentro. Então tudo bem,
acho que consigo lidar com tudo sozinha sem causar grandes estragos.
Sinto um tapa ardido em minha testa que me acorda dos meus devaneios,
focando minha visão em Lewis sentado ao meu lado e em Nevaeh em pé a
minha frente com a mão pronta para me desferir outro tapa se fosse
necessário. É domingo e combinamos de nos sentar um pouco, beber umas
cervejas e conversar em nosso alojamento.
— Desculpa, viajei. — Balanço a cabeça para espantar os pensamentos. —
Do que vocês estavam falando?
— Lewis estava contando sobre como está sendo aprender e perceber coisas
novas sobre um quesito que ele renegou por tanto tempo. — Meu amigo
maneia a cabeça concordando com Nev.
— Pode falar de novo? — Junto as mãos em um semblante pidão. — Eu não
estava prestando atenção.
Eles suspiram em conjunto, como se estivessem se controlando para não me
lançar um xingamento por fazê-lo falar tudo de novo e obrigá-la ouvir a
história mais uma vez.
— Eu disse que estou em processo de aceitação. Nunca quis me assumir por
medo do que isso me tiraria. Os caras do time não me olhariam da mesma
forma, não iriam querer dividir o vestiário comigo, e minha mãe me olharia
com desgosto, como se já tivesse problemas demais em sua vida, e não
merece mais um. O meu pai... Ah... Esse sim seria o pior! Às vezes, eu penso
que seria muito melhor guardar tudo para mim e não obrigar ninguém a
passar por essa merda.
Ele diz brevemente, sem nos inteirar muito do assunto, que poucas pessoas
possuem conhecimento de sua sexualidade. Apenas Josh dentre os caras do
time, e Thomas. Tenho vontade de perguntar como o loiro ficou sabendo,
mas sei que ainda não é confortável para meu amigo conversar sobre o irmão.
— Lewis — pigarreio. — Eu não posso falar com propriedade. Entendo sua
situação, mas nunca compreenderei, porque para isso, eu teria que viver o que
você vive, na sua pele. Mas se me permite lhe dar um conselho, quem está
passando pela merda toda é você, acho que se quem está ao seu redor não
aceita quem você é de verdade, então não merecem estar contigo.
— Estou com a Mackie. — Nev ergue a palma da mão para mim de sua
cama, como se pudéssemos bater um hi-5 à distância.
— Não é fácil assim. — Ele suspira. — Se meu pai souber e se recusar a
pagar o resto da minha faculdade, o que eu faço? Sou totalmente sustentado
por ele, e mesmo que eu arrume um emprego, vocês duas sabem que não
seria suficiente para custear gastos universitários.
— Mas você é o quarterback, e sabe que é o melhor de todos — rebato. —
Pode ver se consegue uma bolsa de esportes. Ou esperar mais seis meses até
se formar e ser draftado por um time da liga profissional. O que eu não acho
confortável é que você fique se escondendo, vivendo sempre com medo por
causa da sua opção sexual.
— O certo é orientação. — Lewis me conserta e eu franzo o cenho.
— Qual a diferença? — indago, exprimindo meu tom mais humilde possível,
porque realmente nunca ouvi sobre isso e gostaria de entender melhor.
— Eu não sabia também. — Ele dá um gole em sua cerveja e prossegue. —
Tomei conhecimento do termo certo há pouco tempo. Pelo que entendi,
opção está errado porque não se trata de escolhas conscientes e nem podem
ser aprendidas. Por isso, o correto torna-se orientação.
Minha expressão se ilumina assim que as palavras de Lewis começam a fazer
sentido em minha mente. Penso que passei anos me referindo erradamente ao
conceito, contudo, agora que sei o termo correto, não errarei novamente.
— Entendi. Obrigada por explicar, Lew. — Meu amigo murmura um "de
nada" e Nevaeh permanece com a mesma expressão impassível no rosto,
tenho certeza de que ela já sabia o termo correto. Entretanto, achou que seria
bom dar palco para Lewis explicar, assim ele ficaria mais confiante por saber
alguns pontos do que o envolve.
— Como estão você e Dominic? — Ele se vira para Nev e percebo sua
tentativa de fugir de um assunto que ainda não é confortável para ele.
— Complicado. — Ela suspira. — Sei que Dominic gosta de mim, e é uma
boa pessoa, mas continua sendo branco. Isso me deixa muito insegura,
porque já vivi muitas coisas nessa vida e seria difícil para vocês entenderem
meu ponto.
— Você pode tentar nos explicar. — Lewis sugere e eu concordo.
— Também quero saber. — Pouso minha mão em meu queixo, concentrando
máxima atenção ao que Nev irá falar.
— Vocês já ouviram falar em solidão da mulher negra? — Nevaeh pergunta
com cautela.
Lewis e eu balançamos a cabeça, negando ao mesmo tempo.
— Preparem os ouvidos, será longo. — Ela parece suspirar para tomar fôlego
e prossegue. — Desde o período da escravidão, mulheres negras são vistas
como "detentoras de bons corpos, porém com mente vazia". O que eu quero
dizer é que elas eram usadas como incubadoras para a geração de outros
escravos, foram até mesmo estupradas. E para justificar essa exploração
masculina branca, a branquitude teve que produzir uma iconografia de corpos
de negras que insistia em uma representação de mulheres dotadas de sexo, a
exímia encarnação de um erotismo primitivo e desenfreado. Óbvio que há
maiores relações para as mulheres escravas, como amamentadora, empregada
doméstica, babá e afins. Mas estou focando em um ponto aqui, tudo bem?
— Sim, continue — digo rapidamente sedenta para ouvir mais.
— Então, o que eu quero dizer é: as mulheres negras estão associadas ao
"mercado do sexo", da erotização, do trabalho doméstico e escravista. Em
contrapartida, as mulheres brancas estariam relacionadas ao "mercado
afetivo", da cultura do casamento, união estável. Agora vamos lá, de que
maneira isso refletiria na nossa vida atualmente? Na sexualização dos corpos
de mulheres negras, sempre vistas como "gostosas" e até mesmo como
objeto, mas nunca como bonitas ou suficientes para assumir namoro e
relacionamentos. Não estou dizendo que mulheres brancas não são tratadas
como objeto, porque são, infelizmente. Entretanto, há um abismo de
diferença quando levamos em consideração o cabelo crespo, a aparência e o
tom de pele. Quanto mais escura, menos aceita.
— O que isso tem a ver com Dominic? — Lewis parece não ter chegado ao
ponto foco da questão.
— Quando eu era pequena, não recebia bilhetinhos dos meninos querendo me
namorar, ou gostando de mim e isso perdurou por toda a minha infância e
adolescência. Quando um garoto chegava a mim, era para transar ou para
perguntar de alguma amiga, coincidentemente branca. E demorou um tempo,
mas eu finalmente entendi que todo o sofrimento não era pela minha
aparência em si, e sim pelo meu tom de pele, cabelo e afins. Isso me deixa
aflita porque gosto de Dom, mas não sei até que ponto ele escolheria ficar ao
meu lado para enfrentar toda a bagagem e a insegurança.
— Vocês já falaram sobre isso? — questiono, tentando arrumar em meus
pensamentos todas as recentes informações.
— Ainda não, tenho medo de que ele pense ser um drama desnecessário.
— Se ele achar isso, então não é bom o suficiente para você — finalizo
incisiva e Nev tomba a cabeça para o lado parecendo ponderar sobre o que
acabei de dizer, mas acaba concordando. — Muito obrigada por ter dividido
isso tudo conosco, é sempre bom lembrar o quanto ainda somos ignorantes
em muitos aspectos.
— Faço das palavras de Mackie, as minhas. — Lewis concorda abrindo mais
uma cerveja. — E sempre que quiser converse conosco, independentemente
do assunto.
Mantenho-me em minha única garrafa da bebida, já que preciso estar sóbria
para lidar com Thomas mais tarde.
— Eu não seria amiga de vocês se não reconhecessem pelo menos o
privilégio que têm.
Recordo-me de nosso primeiro dia juntos, nesse mesmo alojamento, e não
consigo conter o sorriso largo que me surge. Fico imensamente feliz de saber
que tenho amigos como Lewis e Nevaeh. E pela primeira vez, não me sinto
mais tão sozinha.
Estou com dor de barriga e tenho certeza que é o nervosismo dando as caras.
Chego a essa conclusão assim que sinto as mãos suarem levemente, o coração
acelerar um pouco, as batidas e os dedos se contorcerem em apreensão.
Sinto-me assim porque tenho medo. Não quero cair na tentação de me lançar
em cima de Thomas em uma tentativa desesperada de acabar com essa tensão
sufocante que nos rodeia. Ergo a mão, ponderando se realmente devo seguir
em frente. Assim, respiro fundo e toco a campainha. Nem dois minutos se
passam para que a porta da frente se escancare e revele um Eckhoff trajando
um avental rosa e uma samba canção de estampa do Mickey.
— Desculpa te receber assim, eu estava cozinhando. — Ele escancara mais a
porta. — Pode entrar.
Assim que adentro sua casa, a primeira coisa que sinto é o cheiro delicioso
que infesta o lugar. Tento identificar se é algo frito ou assado, mas devido ao
leve odor de óleo frio, percebo que com certeza Thomas cozinhou alguma
fritura.
— O que estava cozinhando?
— Fattigman. — O sotaque que ele usa para pronunciar consegue o deixar
ainda mais sexy, que inferno. — São biscoitos típicos noruegueses, a família
da minha mãe é de lá e ela gosta de preservar a cultura do país.
Consigo entender muitas coisas a partir disso. O nome incomum de sua mãe,
o sobrenome dele que, sem dúvidas, não é de origem estadunidense, e até
mesmo as comidas diferentes. Nem me arrisco a tentar imitar a pronúncia,
então apenas me limito a acenar com a cabeça.
Estar na casa que Eckhoff divide com Drew e Dom me traz o desconforto de
um animal preso fora de seu habitat natural. O assoalho de madeira rangendo
a cada passo meu, a parede envidraçada do chão ao teto me permite ter um
vislumbre daquele bairro mais residencial de Bolfok Town, os móveis são de
um bom gosto surpreendente, seguindo a palheta de cores branca, preta e
cinza que dão um ar mais clean a residência. Há até mesmo pôsteres de
filmes clássicos e bandas desde as alternativas até Beatles. Eu jamais
admitiria em voz alta, mas essa é uma casa muito legal.
A amplitude do local, somado a organização, ao cheiro de lavanda, a
prateleira de livros acima da televisão e aos quadros excêntricos deixam a
decoração ainda mais bonita. Uma mistura entre o moderno e o rústico, além
disso, tudo aqui é tão... Limpo, contrariando todas as minhas expectativas de
como seria a casa de três homens de quase vinte e dois anos.
Perscruto o cômodo em um misto de surpresa e admiração. Inspeciono tudo
como um detetive em cena de crime, tentando achar algo fora do lugar, o
mínimo para ser usado contra Thomas em nossas habituais provocações.
— Está tentando achar um defeito em minha casa? — questiona, com um
sorrisinho esperto pairando sobre os lábios finos.
Volto os olhos ao homem agora sem o avental, me dando um vislumbre do
tronco desnudo e fico desconcertada. Eu não sei se o odeio por seus habituais
defeitos, por me desvendar tão bem me conhecendo há pouco tempo, ou por
ser absurdamente atraente.
Atravesso as vistas desde seus pés descalços, passo por sua peça de roupa que
em outras circunstâncias eu implicaria, analiso o caminho definido que leva
diretamente a suas partes baixas marcadas pelo tecido leve da samba canção.
Conto do primeiro gominho ao sexto, e vejo o traçado de um pássaro
desenhado em seu peitoral bem definido, seus ombros largos até que,
finalmente, chego ao seu rosto. Seus olhos brilham no que parece diversão,
tremelicando em ar de riso, provavelmente percebendo que além de
inspecionar sua casa, faço o mesmo com seu corpo.
— Não estou tentando achar nada. — Arrebito o nariz, tentando passar
confiança.
— Nem mesmo o "caminho da felicidade"? — Ele pergunta, as sobrancelhas
subindo e descendo em um gesto sugestivo.
Franzo o cenho, tentando entender seu comentário e logo minha expressão se
ilumina ao captar a mensagem junto ao seu sorriso maldito.
— Você se comporta como um adolescente no colegial.
— E você como uma dondoca rica dona de trinta e sete gatos.
Tento não cair na pilha dele, mas é impossível. Odeio esse homem desde suas
sobrancelhas naturalmente arqueadas que exalam sua arrogância até o canto
dos lábios erguidos em um sorriso petulante.
Maldito.
— Vamos logo planejar esse jantar — discorro, caminhando até as escadas
em direção a algum lugar mais reservado em que possamos trabalhar. —
Mais um minuto em sua presença e eu vomito tudo que comi no almoço.
— Você me adora, Lennon.
Prefiro ignorá-lo e continuo a segui-lo escada acima. Thomas aponta a porta
de seu quarto e diz que irá buscar os biscoitos para nós. Adentro o cômodo e
quase sinto sua presença ali. Há uma grande cama de casal no meio do local,
uma enorme prateleira abarrotada de bonecos de filmes e acho que de
videogames também, além de muitas HQs e livros. No lado esquerdo, tem
uma espécie de escritório com uma cadeira de gamer, pôsteres de filmes e
desenhos na parede, bem como uma guitarra embaixo da televisão de plasma.
Quando chego à constatação de que Thomas é um nerd, tenho vontade de rir.
Assim que ele volta segurando uma cadeira e uma vasilha cheia de biscoitos,
não perco a oportunidade de provocá-lo.
— Então, quer dizer que você gosta de bonecos e desenhos. — Aponto para a
estante e logo mudo apontando para a parede.
— Primeiro. — Ele ergue o indicador. — Não são bonecos, e sim action
figures. Segundo. — Ergue o dedo médio. — Não são desenhos, são animes.
Terceiro. — Sobe o anelar. — Não tem terceiro, era só isso mesmo.
Caio na risada mais uma vez, entretanto, no fundo acho extremamente
interessante que Thomas tenha essas duas versões e as explore.
— Tudo bem, desculpa ofender seus bonecos e desenhos. — Subo o canto
dos lábios.
Ele sabe que meu intuito é apenas provocá-lo, então bufa e se senta na
cadeira.
— Olha. — Ele ergue um livro de capa bonita, ilustrada com uma moça
vestindo um lenço vermelho esvoaçante ao redor do pescoço, ao mesmo
tempo em que no fundo de sua roupa preta, há o que parece ser um campo de
batalha com um soldado no meio. Vejo que o nome é "O silêncio das
estrelas". — Está aqui algo que você irá gostar.
— Resuma a história — peço assim que ocupo a cadeira ao seu lado.
— É um romance entre um soldado e uma jornalista, Jack e Charlie, se
encontrando em um avião pela primeira vez. Ele está nervoso com a
possibilidade de estar nas alturas e ela o ajuda com isso, mas vai além de um
simples romance. Na história, a autora retrata absurdamente bem todos os
sentimentos de Jack, suas angústias, medos, inseguranças e até mesmo seus
demônios, aqueles que o autossabotam. É uma trajetória bonita, a forma
como Charlie quer ajudar Jack, estar ali por ele e dar suporte, mesmo sabendo
que ele precisa de ajuda profissional. Enfim, não vou me prolongar. Se quiser
descobrir mais, leia. — Ele respira fundo e prossegue. — Posso te emprestar
esse, mas não estrague meu livro favorito, e te darei um marcador de páginas,
pois você tem cara de que usa as orelhas.
— As orelhas estão aí para serem usadas — brinco, porém recebo uma
olhadela dotada de pavor. — Usarei os marcadores. — Ele suspira aliviado.
— Me pareceu muito interessante o enredo.
— E é. — O olhar tomado de admiração que Thomas lança à obra me faz
erguer o canto dos lábios em um sorriso pequeno. Ele parece realmente ser
apaixonado pela história e isso me faz querer lê-la o mais rápido possível.
Antes que entrássemos em mais um assunto banal, começamos o
planejamento do jantar. Quase duas horas havia se passado e Thomas ainda
não tinha colocado uma camisa, trocando apenas a samba canção por um
short decente, me fazendo perder o foco sempre que seu bíceps tatuado
flexionava quando ele escrevia, ou quando seu peitoral se movimentava a
cada mísera respiração.
Inacreditável. Só podem ser os hormônios, devo estar perto de ovular, é isto.
O tempo perdido me faz querer gritar, já que estamos há cerca de cento e
vinte minutos ali e nenhum esboço do jantar havia sido feito. Thomas
discorda de mim em absolutamente tudo, e é impossível manter um diálogo
sadio com esse insuportável.
— Chega. — Ele se ergue da cadeira, me assustando. — Não aguento mais
perder tempo com alguém que discorda de mim pelo simples prazer de me
ver irritado. — Semicerro os olhos em sua direção, desaprovando o chilique.
— Eu que não aguento mais fazer nada com alguém dotado de tão mau gosto.
— Começo a arrumar minhas canetas de qualquer jeito em meu estojo,
fechando o caderno.— Francamente, péssima ideia sequer achar que
poderíamos concordar em algo ou chegar em um acordo apenas pelo fato de
ter dado tudo certo no Luau.
É óbvio que quando se tratasse de um tema como esse, em que precisássemos
lidar com luxo, Thomas teria um péssimo gosto. A verdade é que ele deveria
deixar que eu resolvesse tudo, porque sei lidar com coisas refinadas, ele não.
Sua mão rodeia meu pulso, pressionando de leve os dedos calejados em
minha pele lisa. Fico estática por um momento, aguardando seu próximo
passo.
— Não vou desistir. — Ele afirma ao passo que ergo o olhar até seu rosto,
tendo um vislumbre de sua expressão compenetrada. — Hoje não vamos
chegar a lugar algum já que estamos irritados e exaustos, mas amanhã é um
novo dia.
— Jura? — interrompo sua fala para zombar de sua última frase, recebendo
um olhar feio.
Tenho plena noção que minha antiga professora de práticas de etiqueta
repreenderia o modo como ajo perto de Thomas. Esquecendo um pouco a
educação e prudência, mas é impossível impedir as provocações— mesmo
infantis— de escaparem pela boca. Torno-me alguém impulsiva perto dele,
deixando de pensar em algumas consequências.
— Essa responsabilidade foi dada a nós. — Ele prossegue. — E não sei você,
mas eu não fujo das minhas.
Patético. Essa hora da tarde, e Thomas Eckhoff tentando me dar lição de
moral. Como se eu fosse entregar os pontos e desistir de um trabalho, como
se eu não fosse perfeccionista o suficiente para lidar com minhas
responsabilidades e querer que minha tarefa saia, no mínimo, perfeita.
Antes de responder, sinto que sua mão ainda segura meu pulso e abaixo o
olhar. Percebo marcas vermelhas, como cicatrizes, se ramificando para fora
da barra de sua cueca, que se sobressai ao short. Franzo o cenho, mudando
totalmente meu foco.
— Que marcas são essas? — Antes que eu possa segurar minha língua
grande, a pergunta já é expelida por meus lábios. Porém, percebo meu erro a
tempo de me consertar. — Desculpa, não quis parecer invasiva.
Um riso baixo reverbera entre seus lábios e suas íris brilham em diversão.
— Do que está rindo?
— Eu ainda não tinha conhecido essa Mackenzie. — Inicia, me fazendo
franzir o cenho mais ainda e ele trata de sanar minha confusão. — A
envergonhada e desconcertada, com as bochechas coradas.
Bufo irritada por perceber que Eckhoff nunca fala sério, e, pior, por ter
descoberto um ponto fraco meu. Eu odeio a possibilidade de estar invadindo
o espaço pessoal de alguém, então quando minha tagarelice supera meu
senso, fico realmente desconcertada e envergonhada.
— Só não quis parecer intrometida — murmuro, implorando mentalmente
que o rubor de minhas bochechas já tenha passado. — Ridículo.
— São estrias — rebate. A princípio eu não havia entendido a resposta, até
me lembrar de meu questionamento anterior. — Fui um adolescente muito
magro e baixo até os dezesseis ou dezessete. Em um ano e meio, cresci
consideravelmente e ganhei massa muscular. O crescimento rápido em curto
espaço de tempo me trouxe essas marcas, tem nas costas tamb...
Thomas prende o ar em seus pulmões, interrompendo sua fala ao sentir meus
dedos passarem levemente por suas marcas, quase como, uma carícia?
Percebo quando seus pelos se arrepiam e ele estremece. Estou ultrapassando
todos os limites, nesse exato momento. A tensão se torna palpável, mudando
o clima do ambiente completamente. Os ombros de Thomas estão enrijecidos
e eu nem mesmo consigo mandar o comando ao meu cérebro para parar de
acariciar seu corpo. Meus dedos percorrem seus traços desde o cós do short
até o início de seus quadris.
No momento em que as unhas se arrastam despretensiosamente pelos quadris,
Thomas fecha a palma em punho, apoiando-se na escrivaninha, ao passo que
engole em seco. O quarto parece diminuir de tamanho, comprimindo-nos
dentro dessa bolha que o faz grudar os ombros na nuca, e provoca o aperto
das minhas coxas uma na outra.
— Dizem que estrias só ficam vermelhas quando são novas— sussurro
baixinho, dando atenção máxima as suas marcas. — As minhas são
esbranquiçadas.
Thomas pigarreia.
— Essas estão aí há mais de quatro anos, e nunca deixam de ser
avermelhadas. — Ele observa em um tom baixo. — É desconcertante às
vezes porque sempre tem alguém que confunde a das costas com arranhões.
Rio baixo.
— Posso ver? — Conecto a íris, mergulhando no seu azul intenso. Thomas
franze o cenho, parecendo não entender meu pedido. — A das costas.
Sem proferir nenhuma palavra, ele gira sobre os calcanhares, me permitindo
observar pequenas protuberâncias, que realmente se assemelham a arranhões.
Mas, na verdade, são cicatrizes de um corpo real.
Escrutino as ramificações avermelhas meio protuberantes, espalhadas pelo
espaço das costas definidas. Os ombros largos estão rígidos e os músculos
tensionados. Cubro as omoplatas, transferindo o calor das palmas para ele,
sentindo sua rigidez abaixo do toque. Desço a ponta dos dedos pelas estrias,
experimentando a sensação da carne firme e um tanto contraída. Thomas
suspira, movimentando o tronco com calma, me fazendo prender o fôlego.
Engulo as sensações junto com a saliva, tentando abrir espaço para a fala.
— Incomoda você? — Passo a língua pelos lábios, tentando umedecer a boca
seca. — Que eu as toque?
Nem faz muito sentido perguntar algo assim depois de estar, praticamente,
desbravando um mapa por um caminho desconhecido.
— Não. — A voz grave meio arranhada pela rouquidão envia arrepios até
meu corpo. — Eu gostei.
Subitamente retiro os dedos de suas costas, temendo que ele sinta o quanto
minha palma da mão fica suada, ou perceba a respiração acelerada e veja os
lábios secos. Pareço me dar conta, afinal, da pessoa que eu estava tocando.
Aquele é Thomas Eckhoff.
O que tinha acabado de acontecer?
Pigarreio desconcertada, sentindo que minhas bochechas estão queimando.
— Desculpa— sibilo, vendo-o se virar para mim. — Por ter — pigarreio de
novo, coçando o céu da boca. — Tocado em você.
— Sempre que você quiser, Lennon. — Recebo uma piscadela, e outro
sorriso zombeteiro desponta em seus lábios me lembrando da mentalidade
infantil de Eckhoff.
Reviro os olhos.
Incomoda-me o fato de nunca saber se ele está levando algo a sério ou não,
porque logo depois de um momento intenso, ele solta uma brincadeira, ou
provocação.
Thomas dá um ou dois passos em minha direção. Estamos próximos demais e
meu nariz quase resvalava em seu peitoral. Ergo o olhar até conectá-los aos
dele, em uma tensão que parece apertar meu pescoço, me sufocando,
roubando meu ar. Sinto seu hálito fresco acariciar meu rosto, espremendo as
sensações que se ramificam dentro de mim. Nós nos beijaríamos ali mesmo
se meu autocontrole não fosse tão bom. Lembro-me de Hannah, e do quanto
ela gosta de Eckhoff. Eu jamais ficaria com ele sabendo que poderia magoar
outra pessoa, e é exatamente por isso que desfaço nossa conexão e pigarreio
me afastando de seu corpo.
— Bom, eu vou indo. — Apresso para pegar minhas coisas, a fim de encurtar
meu momento de vergonha alheia. — Depois marcamos outro dia para
resolver essa festa.
— Estou sempre disponível, Rainha de Bolfok. — Outra piscadela. — Se for
para você.
Maldito.
— Estou apaixonada por você.
O corpo fica estático e minha língua parece criar uma aspereza maior, ou
talvez ela tenha aumentado de tamanho. Deixando-me com dificuldade de
engolir em seco. Meus olhos estão tão arregalados que temo que eles pulem
para fora. Eu deveria ter previsto que isso poderia vir a acontecer, mas a ideia
de que ela sempre fora apaixonada por Josh me fez seguir nesse
relacionamento casual com tranquilidade.
Estou sentado de um jeito desleixado no sofá de minha casa após Hannah ter
dito que precisava conversar seriamente comigo. Cogitei muitas
possibilidades que poderiam ser tema de nossa conversa, mas receber uma
declaração não estava em meus planos. Ademais, nós aprendemos tantas
coisas nessa vida, menos a reagir a uma situação dessas.
O que eu diria?
— Seria bom se você falasse alguma coisa. — Vejo aflição no olhar de
Hannah, o silêncio sepulcral que domina o ambiente não é nem um pouco
confortável. Entretanto, não sei o que fazer, ou o que responder.
— É... Caramba... — pigarreio. — Que situação.
Penso e repenso em como conduzir essa situação, em como dizer que não
posso retribuir o sentimento dela sem magoá-la.
— Eu sei que você não corresponde aos meus sentimentos, e está tudo bem,
não vim me declarar. Estou apenas te fazendo tomar conhecimento do que eu
sinto, e dizer que não dá mais para ficarmos nessa coisa casual que temos. —
Hannah tem o semblante fechado, tentando exalar confiança, mas eu consigo
perceber seu tom de voz trêmulo e embargado.
— Eu... É... Desculpe-me?— Não tenho ideia do que eu poderia dizer, seria,
de fato, muito mais fácil se eu pudesse retribuir seus sentimentos. Hannah é
linda, gostosa, legal e compartilha de muitos gostos parecidos com os meus,
mas não faz meu coração acelerar do jeito que as pessoas dizem que o amor
faz.
— Você não precisa pedir perdão, afinal, não temos controle das coisas que
sentimos. — Ela inspira e expira. — E eu também vim pedir um tempo. Não
quero perder sua amizade e sei que você é perfeitamente capaz de não mudar
o tratamento comigo. Mas, não posso continuar por perto, pelo menos não
por enquanto. Eu tenho que superar e se continuarmos próximos, qualquer
carinho seu, mesmo que inocente, me daria esperanças. Enfim, está tudo bem
para você?
— É claro. — Vejo seu semblante murchar e rapidamente me conserto. —
Vou sentir sua falta. Você sempre foi uma ótima amiga, mas se o melhor para
você é se afastar é o que faremos.
Sua expressão continua tristonha e percebo que, talvez, eu não tenha
melhorado muito as coisas. Mas o que eu poderia dizer? O coração se
contorce no peito ao saber que estou magoando uma pessoa importante, que
estou sendo o causador das lágrimas que se acumulam no canto de seus
olhos.
Hannah se levanta subitamente e diz que precisa ir, acompanho-a até a porta,
mas não deixo de me sentir estranho pela mudança do clima entre nós. Antes
alegre, e agora melancólico.
— Thomas. — Ergo meu rosto em sua direção aguardando suas próximas
palavras. — Não precisa se martirizar pelo que está acontecendo entre nós.
Eu vou superar, eventualmente, e sei que você ainda vai passar por muitas
coisas no quesito relacionamento. Então, fique tranquilo, seu karma vai vir e
eu me sentirei vingada.
Sei que Hannah está brincando porque há um sorriso em seus lábios, mas me
sinto em um enigma. Por que ela acha que vou passar por muitas coisas no
quesito relacionamento? Por que meu karma vai vir? Será que Hannah fez
meu tarô?
— Não entendi nada do que você disse — rebato. A confusão se
embrenhando pelas feições do meu rosto.
Ela sorri como se já esperasse.
— Isso é porque além de lerdo, você não é perceptivo. — Hannah pondera
um pouco. — Você e Mackenzie. Tenho a sensação de que muitas coisas
ainda acontecerão. E eu tive pena dela, como se ela pudesse ter o coração tão
quebrado quanto o meu. Mas agora eu tenho uma opinião diferente, porque
acho que você quem será destruído.
Bato na madeira três vezes, para afastar qualquer tipo de maldição
envolvendo Regina. Já aceitei que estou atraído por ela, e que talvez ela
esteja por mim. E talvez, Mackenzie Lennon ainda me enlouqueça. Afinal, o
que foi aquilo domingo passado?
Hoje é quinta, e desde o final de semana Regina tem me ignorado. Ela muda
o rumo de seus passos no momento em que me vê, assim como não
respondeu minha mensagem tentando marcar nosso próximo encontro para
organizar o jantar. Imagino que ela deva estar desconcertada, assim como eu
fiquei, afinal, nós nunca havíamos tido um contato tão íntimo. Nunca pensei
que os vergões vermelhos marcados em minha pele pudessem ser bonitos aos
olhos de alguém, ainda mais dela, que é fissurada em perfeição. Quando
Regina percebeu as marcas, o primeiro pensamento que me veio à mente foi
que ela provavelmente acharia feio, ou que fosse usar como objeto de
provocação. Contudo, ela não fez nada disso, apenas às contemplou e as
acariciou. Isso mesmo, Mackenzie Lennon estava me acariciando. E eu
gostei.
— Hannah, alguém já te disse que é feio desejar o mal para o outro?
— Não estou te desejando o mal, apenas prevendo o futuro. — Ela ri com
mais vontade, me fazendo bufar.
Fico livre das sessões de clarividência de Hannah assim que ela comunica
estar atrasada para algo que não prestei muita atenção. Volto para a sala a
tempo de ver Dominic e Andrew descer as escadas com sorrisos travessos,
como se estivessem ouvindo minha conversa o tempo todo.
— Fofoqueiros. — É a única coisa que murmuro, voltando ao meu lugar no
sofá.
— Não acredito que Hannah terminou com você. — Dominic não consegue
parar de rir, como se houvesse algo de muito engraçado em toda essa
situação.
— Eu queria explodir em gargalhadas quando me deparei com sua cara de
quem acabou de comer algo nada gostoso. Tipo assim. — Andrew retorce as
feições em uma careta, provavelmente tentando imitar minha reação ao ouvir
a declaração de Hannah.
— Vocês podiam pelo menos fingir que tem educação. O pai de vocês não
ensinou que bisbilhotar é feio? — questiono, uma carranca se formando em
meu rosto.
Andrew arqueia as sobrancelhas e Dominic dá de ombros.
— Eu não tenho pai. — A tensão paira no ar assim que ouvimos o
comentário de Dom. Ele sempre faz isso quando quer nos ver desconcertados.
Troco olhares pesarosos com Drew sem saber lidar com a situação, quase que
calculando meticulosamente cada passo em um campo minado. Até ouvirmos
a gargalhada estrondosa de nosso amigo.
— Eu amo fazer isso com vocês. — Ele continua rindo, pondo a mão em sua
barriga e curvando-se para frente. — A cara de merda de vocês é impagável.
— Você não deveria brincar com isso, Dom. — Nosso amigo passa a mão
pelos cabelos que caem em seus olhos e fica sério repentinamente.
— Estou aqui pelo entretenimento. — rebate, com o típico sorrisinho sagaz
se estendendo pelo rosto. Drew e eu lançamos uma almofada em direção a
Dom ao mesmo tempo, o fazendo se esquivar das duas.
Passamos o resto da tarde aproveitando da atmosfera animada que circula em
nossa casa. Atualizávamos-nos das fofocas do Campus, já que Drew mais
parece um condutor de reality show, vigiando a vida da maioria dos
universitários de Bolfok College. Ele sabe de tudo, e nunca está satisfeito
guardando apenas para ele, fazendo questão de compartilhar tudo conosco.
Ele alega perpetuar uma fofoca "do bem", eu e Dom não nos convencemos
muito, entretanto, confesso que a melhor parte de nossos dias consiste em nos
reunirmos em nossa sala, aproveitando do calor gerado pelo crepitar da
lareira, e falando sobre as vidas alheias. Contudo, o clima rapidamente se
transforma para um mais tenso assim que começo com as reclamações.
Dominic sempre se esquece de fumar na varanda e acaba deixando a casa
com cheiro de tabaco, além disso, sempre que é a vez dele de lavar as roupas,
elas ficam com cheiro de cu sujo. Andrew não sabe cozinhar e lavar a porra
da louça que sujou, não é muito difícil, é só colocar no caralho da lava-
louças. Ele também tem um puta problema com toalhas pela casa, sai seminu
do banheiro, se veste no quarto e deixa a toalha jogada. É inacreditável como
eu tenho que ser o pai desses dois adultos, e ainda ficam emburrados quando
reclamo. Chamam-me de "papai neurótico", mas eu não precisaria ser chato
com limpeza se pudesse viver em um lugar decente, ao invés de um lixão.
O tempo passa rápido em meio a nossas desavenças, e quando Andrew soca
levemente o ombro de Dom, a briga se instala no cômodo. Hopkins devolve a
agressão e eles acabam em uma brincadeira de lutinha, me envolvendo assim
que tenho meu pé puxado em direção a eles. E em um piscar de olhos,
estávamos embolados no tapete da sala gargalhando ao encenarmos uma luta
livre. Seria ridículo para qualquer um que visse de fora, mas até que gosto um
pouco deles.
Assim que Dominic sai de casa, no início da noite, com a justificativa de que
verá Nevaeh, Andrew também segue seu caminho indo até a algum lugar
misterioso. A desorganização que deixamos começa a me incomodar, por
isso varro a sala com os olhos torcendo o semblante para cada ponto da
mobília fora do lugar e, no mesmo instante, me ponho a arrumar tudo. O bip
de notificação me assusta em meio ao silêncio cultuado pelo cômodo.
Regina: Estou encrencada.
Leio e releio a mensagem de Regina por umas três vezes, e então, sinto os
efeitos me arrebatarem. Um sentimento de aflição me toma e o medo se
apossa de mim, me sufocando. Sei que ela poderia recorrer a Nevaeh, ou a
Dominic e até mesmo a Andrew antes de vir até mim. Então, se Mackenzie
chegou ao ponto de me contatar, é porque provavelmente
está mesmo encrencada.
Ela manda sua localização e antes mesmo que qualquer pensamento passeie
por minha mente, eu já estou dentro de Stormi acelerando até a saída de
Bolfok Town. Aproximo a imagem do mapa o máximo que consigo e
percebo que Regina está no último posto de gasolina da saída da cidade.
Pergunto-me por um instante, o que diabos ela está fazendo tão longe. Não
que Bolfok seja grande, na verdade, é bem pequena. Entretanto, o centro, a
área comercial, residencial e estudantil fica bem próximas uma à outra,
deixando que a fronteira para a cidade vizinha fique mais afastada. Piso
fundo no acelerador o máximo que consigo, corto os poucos carros que ainda
estão na estrada e me sinto em mais um racha, mesmo que hoje seja quinta.
Tento não pensar muito no que pode estar acontecendo com Regina, no que
exatamente ela precisa de ajuda. Cogitar a possibilidade de vê-la machucada
faz com que meu coração retorça dentro da caixa torácica.
Assim que estaciono de qualquer jeito no posto, entendo do que se trata a
encrenca. Regina está dentro de um moletom rosa, cercada por quatro
homens da gangue dos Lions. Eles a encurralam em passos contidos, abrindo
sorrisos perversos na direção dela e a encarando de cima a baixo. Fecho as
mãos em punho e travo a mandíbula, andando até eles a passos largos. Posso
ouvir o baque agressivo de minhas botas de combate atritando com o
concreto, e quando suas vistas pousam em mim, eles rapidamente se afastam.
— Algum problema por aqui? — Me ponho ao lado de Regina e analiso
homem por homem, chegando à constatação de que John, o líder deles, não
está por aqui.
— Nenhum. — Um dos caras se pronuncia. — Mas a sua gata está nos
devendo uma coisinha.
Pouso meu olhar nas mãos de Regina, que estão ocupadas segurando uma
grande sacola infestada de guloseimas. Consigo associar rapidamente as
coisas. Os Lions usam esse posto para lavar dinheiro, então, explicando de
forma rasa, eles depositam o dinheiro sujo em pequenas quantias, variando as
transações para que fique difícil de rastrear e integram essa grana no sistema
bancário de forma legítima para parecer que houve uma transação legal. Eles
investem em uma empresa local e participam dos lucros, e todos que correm
nos rachas sabem que esse posto de gasolina é o ponto de lavagem da gangue.
Então, talvez, Mackenzie tenha roubado algo da loja e agora está sendo
cobrada.
— Você roubou comida? — Aperto os olhos na direção dela, que logo franze
o cenho e nega fervorosamente.
— Sempre encho o tanque do carro aqui e recebi um cartão de "próxima
compra grátis". Então, aqui está. — Ela levanta a sacola. — Não estou
devendo ninguém.
— Gata. — Ele se aproxima de Regina e eu passo meu braço ao redor da
cintura dela. — Aqui você não faz "combinado" com ninguém que não seja
dos Lions, a nossa palavra é a que vale. Portanto, se você comprou de graça,
está nos devendo cem dólares.
Cem dólares em guloseimas? Inacreditável.
Essa confusão por causa de cem dólares. É claro que sei que essa é apenas
uma oportunidade desses homens nojentos conseguirem algo de Regina.
— Nós estávamos fazendo uma negociação, Eckhoff. — Ele me encara com
os olhos faiscando divertimento. — Sua garota não precisa nos pagar em
dinheiro vivo, podemos nos contentar com algumas brincadeiras no motel
mais próximo.
O homem tira uma mecha do cabelo de Regina da frente de seu rosto e eu
posso ver o medo em seu olhar, rapidamente a ponho atrás de mim e encaro o
membro da gangue em minha frente.
— Não encosta nela. — Dou um passo na direção dele. — Vamos fazer
assim, corre comigo amanhã e nós quitamos essa dívida.
Nem todo mundo tem cem dólares na carteira aleatoriamente, ainda mais um
cara afogado em dívidas, e tenho certeza que eles não são tolerantes o
suficiente para me ouvir perguntar se aceitam cartão de crédito.
— Você se acha esperto, não é? — Sim. Ele solta uma gargalhada
escandalosa. — Sabemos que você conhece o percurso de Bolfok Town
como a palma de sua mão, corre aqui há três anos. Não vou me arriscar
no seu território para ganhar a minha grana.
Respiro fundo e tento reunir paciência para lidar com essa situação
inconveniente que Regina se enfiou. Afinal, é só a porra de cem dólares.
Tenho certeza de que eles têm muito mais do que isso, e que essa quantia não
faria a mínima falta, mas eles são criminosos. Qualquer grana é grana.
— Qual o seu nome, cara?
— Jeff.
— Então, faremos um acordo, Jeff. Eu corro em Bolfok Valley,
no seu território. Iremos agora, e você define o percurso. Se eu ganhar,
quitamos a dívida. Se eu perder, você fica com o meu carro.
Só processo o que acabo de oferecer depois que, de fato, a merda já está feita.
Se eu perder, darei meu Stormi a uma gangue. Regina só me mete em
furadas, puta merda. Os olhos dela pousam em mim arregalados, mal
contendo a surpresa de saber que eu arriscaria meu carro nesta situação. Já o
tal Jeff, parece muito satisfeito com o combinado. Ele faz um sinal com a
cabeça para seus parceiros e definem a rota. Nós começaremos a correr na
avenida principal de Bolfok Town, passaremos pela ponte que demarca o
limite da cidade, e seguiremos por Bolfok Valley dando a volta completa no
lugar, até definirmos como linha de chegada esse mesmo local que estamos.
Já estive na civilização vizinha algumas vezes, talvez o percurso não fosse
tão difícil assim, e espero que Regina seja, pelo menos, uma boa copilota.
Caminhamos até meu carro lado a lado preservando um silêncio confortável,
mesmo que eu tenha inúmeras perguntas. Enxergo seu Cadillac rosa
imponente na saída do estacionamento e me questiono o porquê ela precisa ir
tão longe para abastecer. Entretanto, guardo minhas indagações para mim, até
porque esse não é o melhor momento para um interrogatório.
— Desculpa ter te enfiado nessa situação. — Ouço sua voz soar baixa ao meu
lado quando entramos no carro. — Eu encaminhei a mesma mensagem para
Dom e Nev, mas nenhum dos dois respondeu.
— Como conseguiu nos mandar mensagem?
— Eu ainda estava na loja de conveniência, soube que estaria encrencada
assim que vi os caras da gangue. — Ela segura a sacola firmemente em seu
colo e mantém a cabeça baixa.
— Você não é rica? Por que não pagou os cem dólares? — pergunto em um
tom um tanto acusatório.
Regina inspira, inflando as bochechas com ar, expelindo-os pelas narinas.
— Meus pais são ricos, eu não — responde, me fazendo ponderar por um
momento, e realmente faz sentido. — Me mantenho aqui com a herança que
minha avó deixou para mim quando morreu, mas não é o suficiente para sair
esbanjando por aí. Eu até tenho o dinheiro, só que no banco.
Pensando em todas as vezes que Mackenzie já reclamou de sua relação com a
família, é no mínimo compreensível que ela não queira a ajuda financeira
deles. Talvez seja empenhada em mostrá-los que consegue dar conta de tudo
sozinha.
— Entendo — pigarreio antes de me pronunciar novamente. — Eu poderia
não ter chego a tempo. — A mera possibilidade me causa calafrios.
— Mas chegou. — Ela me lança um sorriso pequeno e coloca a sacola no
chão. — Obrigada por isso.— Balanço a cabeça, mostrando que não foi nada
vir até aqui e ela se pronuncia novamente. — Achei que não se simpatizasse
comigo.
Relembro do nosso pequeno momento de tensão no Luau, em que Mackenzie
passou, pela primeira vez, a ponta de seus dedos macios em meu rosto.
— E não me simpatizo mesmo. — Soltamos uma risada ao mesmo tempo,
sabendo que essa é a maior inverdade que flutua entre nós. — Mas não
deixaria ninguém lhe fazer mal.
O clima tenso parece não se dissipar nunca, pelo contrário, a cada contato
nosso, a tensão aumenta gradativamente. Vejo Jeff alinhar seu carro ao meu e
seguro o volante com força. Um dos caras da gangue se posiciona entre
nossos automóveis, com um lenço improvisado, pronto para dar a largada.
— Pronta para correr? — A lanço um sorriso de canto e ela devolve
levemente entusiasmada.
— Espero que não perca para ele assim como perde para a Rainha nas sextas.
— Deixo uma risada escapar por entre meus lábios com a certeza de que esse
tipo de comentário me incomodaria há um pouco mais de um mês, mas agora,
nem tanto.
— Só ela tem permissão para ganhar de mim, Lennon. — Regina se remexe
desconfortável no banco do carona e eu fico um tanto confuso por sua rápida
mudança de comportamento. — Vamos enfrentar altas velocidades agora,
Regina. Tem certeza de que está tudo bem?
— Confio em você, Eckhoff. — As vistas correm até ela em uma rapidez
exorbitante, procuro qualquer vestígio de ironia ou sarcasmo em sua voz, mas
não encontro.
— Achei que não se simpatizasse comigo. — Uso suas palavras contra ela e
Regina contorce as feições, parecendo estar impaciente.
— E não me simpatizo. — Ela inspira e expira em uma lufada de ar
agressiva. — Mas ainda assim, confio em você.
As últimas palavras de Mackenzie me dão o gás que eu preciso para embarcar
nessa loucura de correr contra um membro de uma gangue por causa de cem
dólares. Comparar o valor de nossa dívida com o prêmio que ele ganhará se
perdermos é desproporcional. Contudo, não seria Mackenzie nem eu a
discutir com homens que carregam pistolas em suas cinturas.
Antes que o lenço suba e desça iniciando a corrida, Regina afunda o dedo
indicador no rádio do meu carro e conecta ao Bluetooth. Ela murmura algo
como ser falta de respeito dirigir sem alguma trilha sonora, e escuto um rock
pesado reverberar pelo rádio do carro assim que Axl Rose começa a
gritar "Welcome to the Jungle".
O pedaço de tecido cai com tudo no chão e não hesito em afundar o pé no
acelerador assim que tiro o carro do ponto morto. Agradeço mentalmente ao
universo pelo momento em que resolvi colocar um aerofólio em meu
automóvel de uso diário, esse acessório é responsável por deixar o veículo no
chão, pois em alta velocidade, ele poderia levantar voo. Sua estrutura é
semelhante à da asa de um avião, só que virada para baixo, canalizando a
força do ar e pressionando o automóvel contra o solo.
Já estamos atravessando a ponte que divide Bolfok Town e Bolfok Valley, e
a única visão que Jeff tem durante uns bons vinte minutos enquanto
percorremos a cidade vizinha é a dos meus faróis traseiros. Mackenzie está
no banco do carona atenta a nossa rota, ela não parece nada afetada pela alta
velocidade que estamos, pelo contrário, a mulher tem os olhos vidrados no
GPS e canta mais um rock dos anos oitenta à plenos pulmões. Prossigo
compenetrado ao caminho que fazemos, enfrento uma curva fechada na
entrada de um beco que corta a cidade em Norte e Sul fazendo com que
nossos corpos tombem para o lado, sofrendo um tranco graças ao cinto de
segurança.
Nós parecemos compartilhar da mesma adrenalina, já que me sinto
repentinamente eufórico assim como Regina. Minha frequência cardíaca
aumenta, sinto o estômago retorcer, e o suor nas mãos faz com que eu aperte
o volante com mais força. Ao meu lado, minha copilota atesta que ainda
teremos uma avenida de dez quilômetros pela frente, sem curvas acentuadas,
e uma rotatória até voltarmos ao ponto inicial.
Minha vantagem contra Jeff se esvai no momento em que ele alinha seu carro
ao meu, e sei que sua próxima manobra, com certeza será jogar o automóvel
contra o meu. Uma estratégia que se assemelha muito a trapaça, mas estamos
em uma corrida informal aqui, vale tudo.
— Quando ele jogar o carro pisa fundo no acelerador e passa para o sexto
câmbio. — Mackenzie sugere, também prevendo a próxima manobra dele.
Lembro-me de quando a questionei acerca de seu conhecimento sobre
corridas e carros antigos, e ela alegou ser uma grande fã de Fórmula 1 e
Stock car.
— O quê? — indago em um tom de voz um oitavo mais alto. — É muito
arriscado.
— Se você acionar a frenagem vai ficar em desvantagem. Quer perder assim
de novo?
— Como você sabe que já perdi assim? — Mantenho a atenção na estrada,
tentando a todo custo evitar que Jeff se alinhe totalmente a mim.
— Porque eu assisto aos rachas, porra. — Regina está nervosa, ela mantém o
olhar em nosso oponente, parecendo tentar criar alguma estratégia baseada
em seu fanatismo. — Agora pisa na porra do acelerador e passa para a sexta
marcha.
Assim que Jeff consegue diminuir completamente sua desvantagem e se
alinha a mim, vejo seu carro vir com tudo em nossa direção. Sem pensar
muito, afundo o pé no acelerador e mudo o câmbio. Regina sofre um tranco
para trás grudando seu corpo esguio ainda mais no banco, assim como eu, é
como se pudéssemos levantar voo a qualquer momento devido à alta
velocidade. Avisto a rotatória, o que significa que estamos muito próximos à
linha de chegada. É tudo ou nada, estar afundado em dívidas e ainda perder
meu carro não seria o melhor dos cenários. Então ziguezagueio na pista, para
criar maior aderência entre os pneus e o solo, aumentando assim, a
velocidade. Regina mal consegue segurar o pescoço no lugar, entretanto, isso
pouco importa, porque estamos a duzentos quilômetros por hora, em uma
curva fechada, com o meu corpo sendo jogado para a porta, o de Mackenzie
tombado para o meu lado e Thunderstruck do AC/DC reverbera alta no alto
falante de Stormi. Sei que terei que trocar minhas pastilhas de freio amanhã
mesmo, mas quando cruzo a linha de chegada, em um cavalo de pau, que faz
nossos pescoços ser jogados para trás e para frente, vendo um Jeff furioso
atrás de mim, tenho a certeza de que vinguei essa porra de dinheiro.
Assim que tiramos o cinto, sinto o corpo quente de Regina sobre o meu. Não
sei exatamente se estamos abraçados, pois nossa posição é desajeitada e não
tem forma concreta. Tudo nessa cena é disfuncional e abstrato, porém, sinto
meu peito aquecer ao ter o peso dela contra o meu. Nossas respirações estão
aceleradas, resultado da euforia que ainda percorre nosso interior, e tenho a
noção de que essa interação rara entre nós, o toque íntimo de sua mão
acariciando meu ombro e meu braço enlaçando suas costas, não acontecerá
novamente tão cedo. Nós dois sabemos bem disso, e é por esse motivo, que
aproveitamos o máximo possível.
Jeff apenas bate uma continência para mim, o que significa que temos um
trato, que ele também cumprirá com sua palavra, e que nossa dívida está
sanada. Quando faço menção de me mover, Regina prensa ainda mais seu
corpo ao meu.
— É falta de respeito sair do carro e interromper a música que está tocando.
— Sua voz moderadamente baixa em meu ouvido me provoca um arrepio, e
nem tento esconder.
— Então, nós só podemos sair depois que essa acabar? — pergunto e Regina
não responde, mas acena levemente em concordância, e me permito sorrir um
pouco.
A canção que ressoa baixa no alto falante pode ser considerada como uma
trilha sonora ao momento que está acontecendo entre mim e Mackenzie. Olho
para o letreiro do rádio e vejo que o nome dos acordes que ressoam em meu
rádio é "Mad World". Não conheço a música, mas fico sabendo que se trata
de uma versão mais lenta do que a original, isso é o que Regina diz antes de
começar a sibilar os versos.
— Lugares desgastados, faces desgastadas. — Não associo a letra a nós,
entretanto, a melodia serve como um alento ao aconchego que nos remete. —
Bem cedo para suas corridas diárias.
Permito-me fechar os olhos e aproveitar o laço que se instaura entre nós nesse
exato momento. Ainda sinto o corpo dela apoiado sobre o meu
desajeitadamente, sua cabeça encostada em meu ombro, minha mão pousada
em suas costas, sentindo o calor emanado de suas entranhas, e seu cabelo faz
leves cócegas em meu braço. Sei que nenhum de nós fará muita questão de
conversar sobre o que está acontecendo, apenas dividimos uma boa dose de
adrenalina e estamos nos recuperando.
Nossas respirações vão encontrando o ritmo contido enquanto ouvimos o
último verso ressoar no som, indicando que, seja lá o que há entre nós nesse
exato momento, acabará junto com nossa trilha sonora. Antes que outra
música se inicie, Regina volta para seu lugar, endireitando-se no banco do
carona, enquanto eu aproveito para me recompor também.
Não iremos admitir, mas sabemos que essa madrugada está sendo uma das
melhores de nossas vidas, mesmo que estejamos ao lado da personificação do
que mais odiamos em alguém. Eu nunca diria que Regina é a melhor co-
pilota que existe, muito menos que nosso encaixe desajeitado e disfuncional
tenha parecido tão certo para mim.
No entanto, meu Eagle Speedster saberia, porque Stormi toma conhecimento
de meus maiores segredos, e ele acaba de presenciar mais um: eu e
Mackenzie, abraçados, no lado mais afastado de Bolfok Town, na madrugada
de uma quinta-feira e aquecidos pela estrutura do carro. Para não dizer, que o
maior conforto ali, foi ter acalmado nossos medos e inseguranças que gritam
dentro de nós na penumbra da cidade. Não precisávamos de palavras naquele
momento, porque apenas o som de nossas respirações e o calor de seu corpo
sobre o meu, foi o suficiente para que a letargia nos engolisse, e uma paz se
apossasse de nós.
Tão eficaz como uma boa dose de heroína, o caos que nos ronda, neste
momento, melhor se assemelha a um anestésico. E meu único medo, é que o
efeito seja viciante.
Esconder um segredo não é nada fácil.
Há uma problematização em cima desse aspecto como se fosse um crime
esconder algo de alguém, pois eu defendo a ideia de que há coisas que são
recomendáveis que não sejam descobertas. Partindo do princípio de que o
que você esconde não prejudica ninguém, está tudo bem guardar só para
você. Entretanto, isso não quer dizer que seja fácil.
Por exemplo, geralmente quando você guarda algum tipo de segredo, ele vem
junto com uma mentira. Já que para escondê-lo é necessário usar estratégias.
Trazendo para a realidade, posso dizer que todas as vezes que preciso correr
em um racha, acabo mentindo para alguém. Como na vez em que eu disse ter
passado a noite de sexta com o rosto enfiado em algum livro de Direito,
apenas para não ter que aparecer em Bolfok Ride e dificultar ainda mais meus
planos de disputar sem que ninguém saiba. E não é preciso ser muito
inteligente para saber que eu não fiquei no alojamento naquela noite, na
verdade, eu executei meu ritual de sempre, que consistia em fazer as tranças
embutidas, amarrar a bandana no rosto, chegar pelos fundos da fazenda e
pegar o carro que eu deixava estacionado lá com antecedência. Às vezes,
algum mecânico da oficina de Bolfok Valley leva meu veículo até a fazenda.
Eu jamais seria modesta ao ponto de negar a genialidade de minhas
artimanhas. Quando vim para Bolfok Town, vi como uma oportunidade de
refazer alguns pontos da minha vida. Rafe me levou em meu primeiro racha e
foi como paixão à primeira vista. Eu gosto da sensação que se apossa de mim
no momento em que enfrento grandes velocidades, o suor nas palmas, o
coração acelerado e as borboletas no estômago. Ouso dizer que é como estar
apaixonado, que o instante em que o carro acelera e olhar para a pessoa que
ama são as mesmas sensações, mesmo que eu nunca tenha amado ninguém
para saber. Bom, eu comparo com o que eu sentia quando via Rafe. Mas, em
Dilshad, onde nasci eu sempre estive no cargo de co-pilota, assumindo o
volante pela primeira vez quando a estrela dos rachas, Rafe, não pôde
comparecer. Aquela primeira corrida, eu ganhei, e não parei mais. Então eu
soube que havia acabado de descobrir algo em que eu era realmente boa sem
ter que me esforçar muito, quase como um dom.
Correr em outro lugar me trouxe a percepção de que, pela primeira vez, eu
estava me desvinculando de uma figura masculina. Já que, em Dilshad, eu era
a garota de Rafe. E aqui, em Bolfok, eu sou apenas a Rainha.
Quando ocupei novamente a posição de pilota, me senti grande, e ainda me
sinto. Há uma imensidão que me cobre assim que tiro o carro do ponto morto.
E essa sensação, mesmo que perigosa, não é algo que eu esteja disposta a
largar. Então é por isso que continuo indo até Bolfok Valley, fazendo a
manutenção de meu automóvel em alguma oficina que não seja a de Thomas
e também prossigo mentindo para meus amigos. Quer dizer, para os meninos
sim, já que Nevaeh e sua perspicácia me desmascararam.
Ela já ficou desconfiada quando fomos pela primeira vez em Bolfok Ride, e
um pouco antes de chegar minha vez de correr, inventei que estava passando
mal. A partir desse dia, soube que seria questão de tempo até ser descoberta
por ela. Então, em um sábado de manhã, há semanas, ela me questionou o
motivo de uma patricinha como eu ter uma bandana de rock escondida no
meio de tantos artefatos rosa. Foi um descuido, cheguei tão cansada da
corrida que larguei o pedaço de pano em qualquer lugar. Ademais, eu poderia
ter inventado alguma desculpa, mas eu estava cansada de guardar tantas
coisas apenas para mim. Logo, contei para minha amiga o que eu faço nas
sextas à noite, minhas motivações, e como ela poderia me ajudar.
Ajuda essa que seria muito bem-vinda hoje.
O Encontro Regional de Automóveis acontece uma vez por ano alternando
entre as cidades do Leste dos Estados Unidos. Ano passado, foi em Oroland
County, e neste, em Bolfok Town. Como um bom grande evento, a presença
de todos os moradores é quase que obrigatória, então é meio óbvio que esse
será o entretenimento desta sexta-feira. Estar na presença de meus amigos e
ter que fugir para participar das inúmeras corridas que teriam hoje seria
absurdamente difícil se eu não pudesse contar com a ajuda de Nevaeh.
Assim que minhas botas afundam na lama espessa da fazenda que sedia os
rachas, percebo que essa noite não será exatamente fácil. Não entendo de
mecânica como Thomas, mas tenho experiência o suficiente para saber que
pistas molhadas são sinônimas de caos para os corredores. Tento não me
antecipar aos fatos e pratico a respiração pelo diafragma, técnica ensinada por
minha antiga terapeuta para controlar a ansiedade. Como Nev e Dom estão no
início de relacionamento – aquele mesmo em que ficamos grudados no
companheiro até que as coisas esfriem parcialmente – vieram juntos, assim
como Andrew e Thomas, que até me ofereceram uma carona, mas decidi não
aceitar. Para mim, é importante estar aqui sozinha, pois tenho como conferir
se está tudo certo com meu Dodge Charger R/T, estacionado na rua de trás de
Bolfok Ride, tão deserta que a lâmpada imponente em cima do poste de
iluminação sofre alguns espasmos, nos fazendo pensar que poderia queimar a
qualquer momento.
Estou nitidamente impressionada, porque é difícil imaginar que a fazenda
comporte a quantidade de gente que está aqui hoje. Há carros dos mais
diversos tipos e modelos, estacionados e arrumados como em uma gravação
de Velozes e Furiosos, lustrosos e imponentes. A primeira corrida já está
acontecendo. Um corredor de alguma cidade ao sul de Bolfok disputa contra
um de Oroland. O burburinho das pessoas que interagem entre si consegue se
sobrepor ao rap que reverbera agressivo nos alto falantes, 50cent
canta Candy Shop enquanto mulheres rodeiam a caixa de som dançando
qualquer coisa, menos Street Dance. Sei que Chad está lucrando hoje como
nunca antes, porque ele caminha despreocupado pelo local esboçando um
sorriso que se assemelha ao do Coringa, e quando pousa o olhar em mim, me
lança uma piscadela, como se tivesse a necessidade de reafirmar toda semana
que meu segredo está bem guardado com ele.
A tarefa de achar rostos conhecidos no meio de tanta gente torna-se cada vez
mais difícil à medida que o tempo passa. Tento contatar Nev ou Dom, mas a
mensagem não chega para nenhum dos dois. Alguém roça o braço suado em
mim me fazendo exprimir uma careta de desgosto assim que sinto a umidade
do suor lambuzar meu braço. Sim, está cheio a esse nível. E aposto que a
única vez em que enfrentei um ambiente tão tumultuado assim foi em meu
intercâmbio para a Guatemala, já que até mesmo em shows eu optava pelo
conforto da área vip.
— Kenz? — A voz tão conhecida por mim me faz estremecer, mas não de
um jeito bom. Eu só me sinto entrando em uma cápsula da memória com
destino a um tempo em que eu jamais gostaria de reviver, e o apelido usado
por ele revira meu estômago, acordando minha bile.
Rafe me encara com os mesmos olhos azuis que já me contemplaram e
desdenharam. O sorriso aberto em seu rosto me deixa confusa, porque é
como se ele não tivesse sido um otário comigo há dois anos. Seu cabelo loiro,
muito parecido com o de Thomas inclusive, agora está rente a cabeça como
em um corte militar, porém a habitual jaqueta de couro e botas de combate
ainda fazem parte de seu estilo.
— Oi, Rafe. — Tenho noção de que o tom da minha voz sai beirando ao
tédio sem que eu possa me controlar.
— Meu Deus. — Ele me encara de cima a baixo, sem o menor pudor. —
Você está ainda mais linda do que eu me lembro.
Não faço questão de responder, muito menos de sorrir. Na verdade, se eu
pudesse, sumiria dali em um estalar de dedos, contudo, meus pés estão
estagnados no chão, pregados ao solo com uma aderência desgostosa. Não
consigo me mover porque há uma força maior me empurrando ao chão, então
eu não me mexo quando Rafe passa o braço ao redor de minha cintura me
tomando em um abraço de urso. Sinto o mesmo perfume de sempre, nicotina
e canela, mas o meu coração não acelera, as mãos não suam nas palmas e o
estômago não parece estar infestado de borboletas. Isso me anima, porque
tenho Rafe tão perto como antigamente, porém ele não me afeta mais.
Não sinto nada.
Quando me solta, Rafe desembesta a falar sobre sua vida, e é impossível não
compará-lo com Thomas naquele momento. Eckhoff sempre me insere nos
assuntos, quer saber minhas opiniões mesmo que seja apenas para refutá-las.
Ele geralmente está disposto a ouvir o que eu tenho para falar e sempre presta
atenção em tudo. O cabelo de Thomas é um pouco mais comprido, na maioria
dos dias desgrenhados. Ele tem uma covinha apenas na bochecha direita e
gosta de dizer que esse é o charme dele. Só há tatuagens em seu braço
esquerdo e em seu peitoral direito, e seus dentes não são muito bem
alinhados, mas não de um jeito feio. É até bonitinho a forma como seu canino
esquerdo se apoia no dente ao lado. Dizer que Thomas pode ser como Rafe
me parece tolice agora que os dois estão no mesmo ambiente, porque eles são
diferentes em tantas formas que me deixa até confusa.
Pouso as vistas na figura que eu tanto conheço e que tanto me irrita, e abro
um sorriso contido. Enquanto Rafe me conta coisas que eu não quero saber,
Thomas conecta seu olhar com o meu e me lança uma careta divertida. Ele
ergue a língua, como se tentasse encostá-la no nariz e fica vesgo, de modo
que eu franzo o nariz rebatendo a brincadeira e ele ergue as sobrancelhas,
como se dissesse: "é só isso que pode fazer Lennon?". Sinto-me desafiada
naquele instante, então tombo minha cabeça para o lado e jogo a língua para
o canto da boca, é quase como se eu tivesse acabado de sofrer um derrame.
Ele parece desistir de nossa batalha de caretas quando tomba a cabeça para
trás em uma gargalhada, me contagiando em uma risada também.
— Mackenzie, você prestou atenção em algo do que eu disse? — Não.
— É claro que sim. — Desvio meus olhos de Thomas e o pouso em Rafe.
— Então, me diga sobre o que eu estava falando. — Rafe insiste, me fazendo
perder a paciência assim que ouço sua última frase, já que não tenho a
mínima obrigação de aturá-lo.
— Agora eu tenho obrigação de repetir o que todo mundo já sabe?! — Cruzo
os braços na altura dos seios e fecho o semblante. — Você só fala de si
mesmo, Rafe. Sobre o que sente, o que está fazendo no momento, o que
almeja. É sempre tudo sobre você.
— Uau, você está mesmo mudada. — Sim, agora não sou mais idiota. — Em
outros tempos estaria com os olhos vidrados em mim captando tudo o que eu
tenho para falar.
— É verdade, mas você deixou de merecer a minha atenção a partir do
momento em que me descartou como se eu fosse um objeto, um nada. —
Inspiro e expiro reunindo meu estoque de paciência para lidar com ele. — Eu
não sou mais boba por você.
— Pode até não ser, mas vai se tornar boba por outra pessoa. — Rafe ergue o
canto dos lábios em um sorriso e prossegue. — Porque você é do tipo fácil,
daquelas que não fazemos esforços para conseguire perdem a graça em uma
rapidez desconcertante. Não deseje o que nunca vai ter, Kenz. Nenhum
homem vai te olhar como se você fosse única, porque você não é, e eu vou te
dizer o motivo: porque você sempre será uma qualquer. Foi bom te ver
novamente.
Automaticamente, minha expressão murcha. Odeio que as palavras dele ainda
me cortem como adagas bem afiadas. Percebo que quero arrancar algo de
mim, não sei exatamente o que, mas estou cansada de deixar que as outras
pessoas me afetem com tanta facilidade. Meus dutos lacrimais anunciam que
irão liberar lágrimas que gritam para escapulir de meus olhos. Rafe não está
mais em minha frente, mas ainda assim, não quero chorar aqui, com tanta
gente em volta. Varro o local com os olhos atrás de uma figura conhecida,
sabendo que esse é o momento em que desejamos o colo de nossos pais, mas
os meus não estão aqui, e mesmo se estivessem, a certeza de que eu não teria
o suporte deles me dói mais do que as palavras duras de Rafe.
Eu queria que ele pudesse me explicar o conceito de ser "uma qualquer". O
que me faria ser única sob os olhos de alguém? Também quero entender o
conceito de ser uma mulher fácil. Simplesmente não faz sentido em minha
cabeça me esforçar para transparecer que não quero algo, que na verdade
quero só para "me fazer de difícil". Inúmeros questionamentos rondam minha
mente, mas nenhum deles consegue se sobrepor à sensação de ser descartável
novamente. Sinto-me pequena, de novo. E odeio isso.
Duas mãos pousam uma em cada ombro meu e vejo Nevaeh em minha frente.
Ela está dizendo algo que não consigo decifrar, tanto pela música alta, quanto
pelo estado anestesiado em que me encontro. Só percebo que libero as
lágrimas que eu segurava, quando Nev passa a mão em meu rosto as secando.
— Por que está chorando? — pergunta.
Não me permito chorar compulsivamente, então logo contenho minhas
lágrimas.
— Rafe me falou coisas ruins, e eu como sempre, caí na pilha dele.
Posso ver as transformações no semblante de Nevaeh. Seus olhos faíscam em
um ódio que eu jamais havia presenciado e tenho certeza de que, se ela
pudesse, mataria Rafe neste exato momento.
— Cadê ele? Eu vou dar um soco nele, e quando menos esperar, Dominic vai
socá-lo também. — Minha amiga perscruta o local em busca de Rafe, e eu
rapidamente me coloco em sua frente.
— Violência não adianta com ele. Esquece, Nev.
Eu sei que enfrentar Rafe não mudaria seu modo de pensar, não faria com
que as coisas melhorassem, e eu nem mesmo me sentiria vingada.
— Nevaeh. — Ela vira a face em minha direção, e com um balançar de
cabeça, me incentiva a prosseguir. — Você me acha "uma qualquer"?
— Isso não existe, Mack. Não deixe que Rafe ponha essas merdas na sua
cabeça, você não é "uma qualquer" porque não existe nenhuma outra
Mackenzie Lennon. Assim como não há outra Nevaeh Williams, todos nós
somos e temos algo que nos torne únicos.
Antes que eu possa respondê-la, recebo uma mensagem de Chad avisando
que só correrei contra Thomas hoje, e mais tarde. Questiono o porquê não
posso participar da corrida regional e disputar contra Dilshad, tendo assim, a
oportunidade de enfrentar Rafe. Contudo, ele me diz que não houve apostas o
suficiente em meu nome, o que significa que, mesmo eu tendo ganhado de
Eckhoff diversas vezes e provado que sou boa, ainda assim preferiram o
homem. Tal constatação me deixa duplamente indignada, já que meu maior
prazer no dia de hoje seria ter a oportunidade de correr contra Rafe, e, se
possível, ganhar.
Meus devaneios são interrompidos pela presença imponente de Thomas à
minha frente. Conecto meus olhos aos seus e fico, mais uma vez, perdida na
imensidão de suas íris azul piscina. Odeio que seus orbes me atraiam tanto,
odeio que tudo nele me puxe agressivamente em sua direção. Seu dedo
indicador paira em frente ao espaço relativamente amplo entre minhas
sobrancelhas, que está tensionado e eu aguardo seu próximo movimento. É
como se ele estivesse ponderando se me toca ou não, se faz o que tem
vontade ou se deixa para lá.
Eu não o culpo. A sensação de estar pisando em ovos é assídua dentro de
mim a partir do momento em que resolvi tocá-lo. Naquele domingo, eu soube
exatamente o instante em que ultrapassava alguns limites entre mim e
Thomas. Acariciar suas estrias talvez não tivesse sido a minha decisão mais
sensata, para falar a verdade, provavelmente foi uma das mais tolas. Afinal,
não é surpresa que destruir uma barreira faria com que outra se erguesse no
lugar. A solução mais plausível que pairou sob minha mente foi de manter-
me afastada, já que eu não fazia ideia de como agiria pelos próximos dias na
presença dele. Isso, claro, até que eu estivesse extremamente encrencada e só
pudesse contar com a ajuda de Eckhoff.
Ir ao meu encontro, arriscar seu carro e correr por mim é apenas umas das
péssimas decisões que tomamos quando estamos na presença um do outro.
Como se nosso cérebro gostasse de se perder na tensão palpável que nos
rodeia e parasse de funcionar. Não é novidade que a madrugada de ontem
ficaria guardada a sete chaves em nossa memória, já que, para mim, apenas a
ameaça de trazê-la à tona me deixa apreensiva. Thomas nunca ficaria sabendo
que o toque quente de sua mão em minhas costas está ardendo em brasa até
agora, assim como meu corpo protestou arduamente para que não nos
separássemos ontem.
Interrompendo, mais uma vez, meus devaneios, Thomas parece finalmente
decidir me tocar. A ponta de seu dedo indicador roça no espaço entre minhas
pestanas, massageando o vinco que se abriga ali. Não satisfeito, ele acaricia
as rugas de tensão que decoram minha testa e a tensão que nunca nos
abandona se faz presente ali, mais uma vez. Sinto-me quente, novamente,
como se Bolfok Ride estivesse crepitando em chamas neste exato momento, e
minhas bochechas queimam como o inferno.
— O que te deixou assim? — Seu questionamento me acorda e arranca o
estado letárgico que tentava me alcançar.
— Rafe. — A palavra sai em um fio de voz entre um pigarro e um enrugar de
testa. — Aquele cara que estava conversando comigo.
— Sei. — Ele engole em seco. Seu dedo vai para longe de meu rosto e
estremeço em protesto.
A pior decisão que minha mente poderia ter tomado seria analisar Thomas
naquele momento. Sua blusa preta de manga comprida abraça gloriosamente
seus músculos, realçando os movimentos de seus bíceps e fazendo um
contraste com seu cabelo loiro. Até mesmo seus olhos azulados estão
realçados pela escuridão da blusa. Minha análise sobre seu corpo é
interrompida por Chad anunciando a próxima corrida, será Thomas contra
Rafe. Isso ainda me deixa indignada, já que nada seria mais gratificante do
que ganhar de Rafe em algo que ele se julga tão incrível, entretanto, penso
que talvez nem tudo esteja perdido.
— Pode me fazer um pequeno favor? — peço, tendo noção de que estreito os
olhos levemente. Thomas ergue o olhar até mim em uma rapidez invejável.
— O que você quiser.
— Ganhe dele. — Minha fala sai tão rápido que temo não ter sido entendida,
mas ao ver o sorriso que brota no canto da boca dele, tenho a certeza de que
fui compreendida.
— Ele não te tratou como você merece, não é? É por isso que há mágoa entre
vocês. — questiona, me fazendo ponderar por uns instantes.
Eu poderia dizer que meu rancor com Rafe vai muito além disso, e que, na
verdade, ele é e sempre foi um grande merda.
— Como você acha que eu mereço ser tratada, Eckhoff? — É quase
impossível evitar que a sobrancelha se erga em um semblante desafiador.
— Como uma rainha, oras. Não é à toa que seu apelido é Regina. — Thomas
está sorrindo grande, não consigo desprender meu olhar do seu e não
acompanhá-lo no sorriso.
— Não, Eckhoff. Ele não me tratou como uma rainha. — Enfio minhas mãos
no bolso do casaco assim que o incômodo de não saber onde colocá-las me
abate.
— Então, será um prazer vencê-lo. — Não tenho tempo de respondê-lo, nem
de devolver o sorriso direcionado a mim, na verdade, inexplicavelmente, o
clima entre mim e Thomas tem estado ameno até demais.
Quando Chad anuncia o início da corrida, Thomas dá uma batidinha em meu
ombro e se encaminha até seu carro, já estacionado ali. Antes que Indiana
desça o lenço para dar a largada, Eckhoff me lança uma piscadela que poderia
ter um milhão de significados, mas o único efeito que tem sobre mim é
afundar meu estômago mais um pouco. Como se a tensão que nos persegue
não fosse o suficiente, ele ainda faz gestos como aquele. Espero apenas até
que os dois carros rujam e levantem poeira para sair dali. Trocando um olhar
com Nevaeh, chamo-a com um gesto de cabeça.
Eu participaria da próxima corrida, contra Thomas, e pela primeira vez,
nenhuma sensação de ânimo se apossa de mim antes de enfrentar altas
velocidades. O bichinho competitivo que mora dentro de mim não acordou
animado o suficiente para vencer hoje, porque eu não estou correndo contra
quem realmente quero.
Ajeito o sobretudo caramelo que cobre minha calça preta rasgada e minha
blusa surrada do Nirvana. Geralmente, quando venho assistir algum racha e
também vou disputar, opto por usar um casaco grande que cubra as roupas
que uso nas noites de sexta. Facilitando assim, minha transformação. Já que
eu só preciso dar conta das tranças embutidas, que só decoram minha cabeça
porque seria muito fácil associar meus cabelos soltos ou presos em um rabo
de cavalo com a Mackenzie do dia a dia.
Caminho com Nev ao meu encalço até a parte de trás da fazenda. Mesmo
com Akon gritando nos alto falantes do lugar, consigo ouvir o barulho das
folhas batendo uma na outra devido ao vento gélido que ricocheteia em meu
rosto. Não há ninguém nessa parte, tão deserta que às vezes me sinto em um
cenário de terror, como se Jason pudesse surgir a qualquer momento, com sua
máscara de Hockey sussurrando ki-ki...ma-ma antes de perfurar o crânio de
mais uma jovem que só queria se divertir. Certo, eu preciso parar de ver
filmes de terror já.
— No que está pensando? — Nevaeh interrompe meus devaneios um tanto
pessimistas enquanto ajeita o cachecol que decora seu pescoço.
— Em Jason, de Sexta-feira 13. — Solto uma risada junto à resposta, mas
Nev não me acompanha, pelo contrário, ela parece acabar de recordar-se de
algum ponto e arregala os olhos.
— Mackenzie, hoje é sexta-feira 13. — Sua resposta cautelosa me faz
ponderar por um momento se há algum tipo de veracidade em sua fala, mas
me recordo de que estamos na véspera do final de semana em um treze de
outubro. Tal constatação faz com que uma fagulha de medo irrompa pelo
meu corpo.
Veja bem, eu não fico aterrorizada com os filmes que sou acostumada a ver.
Jason não é nada perto do que assisto nas madrugadas, aniquilando todo o
estoque de filmes de terror presentes na internet. Contudo, a luz amarelada do
poste piscando, a melodia longe de algum rap dos anos dois mil e a rua
totalmente deserta em meio à penumbra faz com que eu sinta um pouco de
medo. E a coincidência de estarmos na "data do horror" torna tudo ainda pior.
Nevaeh parece compartilhar dos mesmos pensamentos já que troca um olhar
assustado comigo e começa a andar a passos apressados até meu Dodge
estacionado ali. Não hesito em acompanhá-la, embolando um pouco minhas
passadas apressadas e abrindo com agressividade a porta de meu carro.
Assim que me sinto segura o suficiente para pensar na vergonha que
acabamos de passar, deixo que a risada reverbere alta no aconchego do carro.
— Ainda bem que a rua está deserta, ninguém merecia presenciar essa nossa
corrida até o carro. — Nev comenta e eu não posso deixar de concordar,
ainda com vestígios de riso no ambiente, começo a me ajeitar para correr.
A esse ponto, a disputa entre Rafe e Thomas já deve estar perto de terminar,
dando tempo suficiente para o ganhador pegar a grana das apostas e se
aprontar para uma nova corrida. O meu interior só precisaria de
uma vuvuzela para completar a torcida a favor de Eckhoff, mas não que um
dia eu vá dizer isso para ele. Seria motivo suficiente para deixá-lo com o ego
maior do que minha mansão em Dilshad. Sendo assim, termino a trança no
mesmo instante que recebo o bip de notificação de um Chad animado
anunciando que Thomas havia ganhado e já está pronto para correr contra
mim. Estando com o rosto escondido atrás da tela do celular, permito que um
sorriso grande rasgue em meu rosto em uma comemoração silenciosa. Eu
posso até imaginar o semblante desgostoso no rosto de Rafe, contrariando seu
ego inflado e sua certeza de que é o melhor corredor de rua de todo os
Estados Unidos.
— Thomas ganhou! — Nevaeh dá um salto no banco do carona mal podendo
conter sua alegria. — Rafe tomou no cu.
— Nevaeh! — A repreensão escapa por meus lábios, entretanto, logo estou
junto a ela zombando do perdedor. — Ele deve estar muito puto.
— Então, o objetivo foi atingido com sucesso. — Solto mais uma risada e
recebo outra mensagem.
Thomas: Agora você está me devendo um favor ;)
Não me esforço para conter o canto dos lábios que se ergue em um sorriso
pequeno enquanto Nev tomba para o meu lado querendo descobrir por que
estou sorrindo para a tela do celular, mas fecho a aba de mensagens
rapidamente.
— Não precisa esconder, eu sei que é o Thomas. — Nevaeh diz com uma
normalidade impressionante. Arregalo os olhos e sei que minha reação é o
bastante para confirmar suas suspeitas, então ela prossegue. — Você não
consegue mentir para mim.
— Eu tinha pedido para ele vencer Rafe, agora me disse que estou o devendo
um favor — suspiro resignada e jogo meu sobretudo para o banco de trás. —
Nada demais.
— Espero que a cobrança desse favor valha a pena. — Ignoro o sorriso
sugestivo em seus lábios e relembro que preciso ir até o ponto de largada. —
Vou dizer aos meninos que você teve um problema sujando sua roupa.
— Obrigada, Nev. — Sinto-me verdadeiramente grata por ser acobertada por
minha amiga, se bem que acho que ela me ajudaria até mesmo a esconder um
corpo. — Vou vencer para valer a mentira.
— É o melhor que você faz. Gosto de ver homens perdendo para mulheres —
dou uma risada por seu comentário e tiro meu lenço do porta-luvas.
Checo o vidro fumê do carro, como se a qualquer momento o insulfilme
pudesse desaparecer e me deixar visível ao olhar alheio. Nevaeh desce do
carro, e eu não espero muito tempo para acelerar até o ponto da largada. E
talvez, a única alegria de hoje seria vencer de quem ganhou de Rafe.
Assim que chego ao alojamento com pressa para me arrumar, já tenho uma
visão privilegiada de Nevaeh gesticulando nervosamente no telefone. Como
meus ouvidos parecem apurar-se sozinhos quando o assunto é fofoca, é
inevitável não escutar. Apenas pego palavras entrecortadas, algo sobre
ateísmo, protestantismo e intolerância. O assunto me deixa curiosa porque sei
que Nevaeh é religiosa, percebo durante a nossa convivência, porque ela ora
todas as noites e também usa um crucifixo pequeno ao redor do pescoço. Mas
não é como se ela falasse muito sobre, acho que é algo muito particular que
só envolve ela e Deus.
Eu perderia muito mais tempo se continuasse ali ouvindo, então recolho meus
pertences e me ponho a tomar uma ducha e me aprontar.
Pensei que, ao me maquiar, eu teria o momento necessário para entender
sobre o telefonema de Nev, porém quando me sentei na cama e abri o
espelho, ela passou como um furacão por mim murmurando algo como
"estarei no Dominic, não me espere para dormir". Mando que o bichinho
curioso que vive dentro de mim se aquiete até que eu possa, em outro
momento, abordá-la acerca desse assunto e, finalmente, sanar minha
curiosidade em um futuro próximo.
Nevaeh é bem mais reservada que eu, e não tem o costume de compartilhar
suas intimidades com as pessoas. Quando quis saber sobre o seu
relacionamento com Dominic, a única coisa que ouvi foi que eles se beijaram
pela primeira vez na biblioteca em que ela gostava de passar o sábado. No
mesmo dia da nossa primeira festa de fraternidade juntas, no início do
período. E que depois disso, os dois começaram a passar madrugadas a fio
juntos, passeando de moto por Bolfok. Gosto deles juntos, principalmente
pela maneira com a qual se tratam e se olham, instaurando uma conexão só
deles. Que ninguém é capaz de entender.
Durante o tempo em que uso para me arrumar, Thomas já mandou cerca de
dez mensagens e oito são provocações quanto ao atraso da organizadora do
jantar. Não que eu me importe muito com as alfinetadas dele.
Na primeira mensagem que respondi, eu estava o alertando que chegaria em
dez minutos. Mas não era difícil concluir que isso jamais aconteceria. Ainda
estou passando o corretivo, tranquilamente, ouvindo Madonna como trilha
sonora. Conto mentalmente a quantidade de alertas de notificações que já
ouvi nos últimos dois minutos, e sei que é Thomas enchendo o saco, por isso
nem me movo, continuando a executar meu trabalho imersa em uma
paciência digna de um mestre da Ioga.
Depois de muito mais do que dez minutos fico realmente pronta e dispenso a
carona de Eckhoff, já que o salão da faculdade fica bem perto dos
alojamentos. Ele me oferece carona quase que em uma garantia de não me
deixar atrasar mais, no entanto, ajeito a alça fina do meu vestido antes de me
encasacar e saio pronta para enfrentar uma caminhada curta em cima de
saltos Louboutin.
Tenho um sorriso largo no rosto porque me sinto bonita. O vestido preto é um
Valentino que abraça meu corpo perfeitamente, como se tivesse, de fato, sido
feito para mim. O pano é justo no busto e se desprende em uma saia mais
solta a partir da minha cintura, me dando conforto para me mexer de um lado
para o outro como eu sei que farei sendo uma das organizadoras. Uma
maquiagem simples decora meu rosto, já que nem mesmo sei fazer nada
muito elaborado, mas o delineado que repuxa o canto de meus olhos está
simétrico pela primeira vez, pois geralmente ficam tortos.
O fato de que tudo está dando certo até o presente momento é o que mais me
deixa feliz. Sei que estou bonita e sei que fiz um bom trabalho para que tudo
esteja perfeito no jantar de confraternização do corpo docente, apesar de, na
verdade, não poder tirar o mérito de Eckhoff, que contribuiu bastante na
arrumação.
Assim que piso no salão principal abro um largo sorriso. O evento está tão
elegante e luxuoso que me sinto em mais um jantar da elite de Dilshad, e um
sentimento leve de nostalgia se apossa de mim. Há um lustre brilhoso que
pende imponente no teto, um piano de calda no canto direito, uma grande
mesa com cadeiras que comportam a quantidade exata de professores,
orientadores e coordenadores. A decoração varia entre tons de dourado e
branco, assim como as orquídeas. Uma música clássica serve para
harmonizar o ambiente, baixa o suficiente para que as pessoas possam
conversar em um tom educado e os garçons caminham pelo salão servindo os
convidados. Ou seja, tudo sob controle.
Varro o local com os olhos a tempo de receber um aceno positivo da reitora
Hayes, aprovando silenciosamente o nosso trabalho. Continuo buscando
rostos conhecidos e sei que, no fundo, estou atrás de certos pares de olhos
azulados e um sorriso zombeteiro, porém, antes que eu siga caminhando pelo
local, sinto uma presença ao meu lado.
— Fizemos um bom trabalho, não acha?— Thomas encosta o braço no meu,
com as sobrancelhas levemente arqueadas enquanto analisa o salão.
Permito-me tomar um tempo para analisá-lo. Eckhoff está, pela primeira vez,
vestido a rigor. A camisa social tem, pelo menos, três botões abertos, está por
dentro da calça social que tem o tamanho compatível ao dele, e o blazer cobre
seus ombros largos. Não é uma surpresa que Thomas esteja de preto da
cabeça aos pés, isso, inclusive, o deixa ainda mais charmoso. O cabelo loiro
não está nada alinhado, já que os fios estão desgrenhados e caem sobre sua
testa, mas até isso parece complementar sua pose despreocupada.
— Fizemos, sim. — Me recordo de respondê-lo e pigarreio para disfarçar que
estava o secando antes. — Até que você não está tão feio hoje, Eckhoff.
Meu tom é satírico, e Thomas percebe isso, pois me acompanha na risada.
Ele sabe que o comentário foi, na verdade, um elogio, já que eu jamais diria o
que realmente acho: Thomas está terrivelmente gostoso.
— Essa é sua maneira de dizer que estou lindo? — Ele pergunta e eu nego
veemente enquanto franzo o nariz em uma expressão de desdém. — Posso?
Quando ele aponta com a cabeça em minha direção, me recordo de que ainda
estou com o sobretudo grosso e ao lado da chapelaria. Lanço-o um aceno
positivo, aceitando a ajuda com o casaco. A ponta de seus dedos roça em meu
colo quando ele alcança a gola de minha vestimenta, e tento acelerar o
processo de retirada para disfarçar meu arrepio. Após entregar a peça para a
funcionária responsável por guardá-las, Thomas se permite me analisar da
cabeça aos pés, e sinto como se ele estivesse, literalmente, tirando meu
vestido com os olhos. Odeio que essa tensão palpável empurre o ar do
ambiente, pressionando-o em cima de nós. Sempre que estou em sua
companhia, sinto como se um tijolo estivesse em cima de minha garganta e
brasas queimassem minha pele em vários pontos escondidos.
— Vamos socializar, Eckhoff — chamo-o com a mão e começo a caminhar
pelo salão. — É hora de você fingir que tem educação.
— Jura? — Ele ergue a sobrancelha junto com o canto dos lábios. — Pensei
que esse seria o momento certo para comer de boca aberta seus petiscos
cheios de frescuras.
A "meus petiscos", ele está se referindo a série de aperitivos franceses de
luxo que mandei o buffet preparar. Todos os convidados parecem estar
aprovando, menos Thomas, acostumado a comer cheeseburger com Dr
Pepper— um refrigerante americano de baixa qualidade que pobres adoram.
— Os petiscos estão uma delícia. — Enquanto sibilo entredentes com o
ridículo ao meu lado, ele toma um gole de Mimosa e rapidamente põe a
língua para fora em uma careta de desgosto.
— Que coisa horrorosa! Quem foi o otário que achou genial juntar suco de
laranja e espumante?
— Não xingue um Louis Rodeerer. Ele custa duzentos e oitenta dólares.
Thomas está boquiaberto agora.
— Um champanhe desse preço para misturar com suco de laranja, que coisa
mais ridícula — ignoro seus comentários ranzinzas e continuo acenando
educadamente para alguns professores. — Sabe quanto é uma caixa de Dr
Pepper no mercado?
— Suponho que barato.
— Trinta e seis latas por dez dólares, cada uma sai a vinte e oito centavos. —
Reviro os olhos e ignoro seu argumento.
— Ah, quanta classe beber um Dr Pepper em um jantar como esse.
Tento segurar a risada ao ver Thomas mastigar um petisco e cuspir
discretamente no guardanapo.
— Acabei de comer um defunto. — Me engasgo com a saliva levemente
assim que o riso escapole pela minha garganta.
— Você comeu um Tapenade. São azeitonas pretas, alcaparras e azeite —
Thomas me encara com os olhos dotados de horror. — Est Française! (é
francês).
Forço um sotaque errôneo apenas para fazer graça, o que não funciona muito,
já que Thomas continua com o semblante horrorizado.
— Apesar de ter achado esse sotaque bem sexy em você, essa coisa é
horrível, parece que estou comendo bolinho de esgoto. — Ignoro sua
tentativa de flerte e franzo o nariz.
— Eu acho uma delícia. — Subo e desço os ombros.
— É porque você já morreu por dentro.
Durante a próxima hora, Thomas e eu passamos abarrotados de coisas para
fazer. Chamando atenção de alguns garçons desatentos, socializando com o
corpo docente presente, fingindo prestar atenção aos discursos da reitora e
dos coordenadores e tomando conta do pianista preguiçoso. Thomas diz que
sou uma megera e que os dedos do músico cairão de tanto tocar, mas bom,
ele foi contratado para fazer o seu trabalho. Essa pauta rende uma longa
discussão entre mim e Eckhoff. Ele diz que me pareço com uma patroa
esnobe e arrogante, o que me faz rebatê-lo em outro xingamento, gerando
uma briga acalorada em que precisamos usar da nossa palavra de segurança.
Já não tenho certeza se ainda sinto meus pés em cima desses sapatos. Está tão
abafado dentro dos saltos que sinto o suor entre meus dedos – já esmagados
pelo bico fino do scarpin – que clamam por descanso.
A reitora Hayes e o senhor Leighton fizeram questão de nos parabenizar
pessoalmente pelo trabalho bem feito. Eles disseram que sempre tiveram a
certeza de que Thomas e eu trabalharíamos bem juntos. Isso é porque ela não
teve que aturá-lo por quase dois meses. O senhor Collins também interage
comigo, diz que está orgulhoso do nosso trabalho e que ficou muito feliz com
meu último artigo de Constitucional. Ele também me conta que é pai de Josh,
seu garoto membro do time de futebol americano. Eckhoff respondeu que
Joshua e eu nos conhecemos muito bem, e a única reação que teve de minha
parte foi uma boa cotovelada na lateral da barriga e um sorriso amarelo em
direção ao meu professor, que pareceu não entender o verdadeiro conteúdo da
provocação do loiro.
Uma mulher – que depois descobri se chamar Lourdes Harris – pega as mãos
de Thomas e o agradece pelo jantar, diz que ele é bom em tudo que faz e que
é como um filho para ela. Isso me surpreende um pouco, já que nem mesmo
sabia que Thomas faz questão de manter algum tipo de laço com os
professores de seu curso. O diálogo deles é curto, ela diz o necessário e
depois se junta com um grupo de outras professoras. No geral, está tudo sob
controle.
Estamos em um canto afastado do salão ouvindo a música clássica aumentar
o volume fazendo com que algumas pessoas se sintam inclinadas a reproduzir
um ou outro passo de dança, enquanto contemplo o divertimento alheio, sinto
um cutucar leve em meu braço.
— Dança comigo. — Embora seja um convite, seu tom não se assemelha em
nada a um questionamento, independentemente disso, aceito o pedido.
Pego sua mão estendida em minha direção e sinto breves choques irrompendo
rápido pela minha corrente sanguínea. Odeio sentir esse misto de sensações
sempre que estou muito próxima de Thomas, mas é inevitável e
incontrolável. Uma de suas mãos vai parar em minha cintura enquanto a outra
sustenta a minha rente aos nossos ombros. Eckhoff é consideravelmente mais
alto que eu, mas devido ao salto, consigo equiparar um pouco a diferença.
A dança é um desastre. Nossos corpos trombam um no outro
desajeitadamente, e eu piso no pé de Thomas incontáveis vezes, além de ser
obrigada a ouvi-lo dizer que sou horrível nisso, e que perto de mim, ele é um
pé de valsa. Piso de novo no pé dele, mas dessa vez de propósito e sinto um
leve beliscão em minha cintura. Estamos a ponto de brigar naquele exato
momento, no entanto, decido mudar o rumo da discussão.
— Onde aprendeu a dançar, senhor pé de valsa? — percebo seus pelinhos
eriçados assim que sopro a pergunta em seu ouvido.
— Minha mãe. — Ele abre um sorriso grande e o vislumbre de uma memória
parece passar em seus olhos. — Desde pequeno, eu a ouvia dizer que homens
que dançam ficam automaticamente mais bonitos. Sempre achei uma grande
bobagem, mas acredite, há mulheres que gostam. Então, quando eu era bem
pequeno, Noora Eckhoff colocava uma balada romântica no rádio velho de
nossa sala, me colocava sobre seus pés e rodopiava comigo de um lado para o
outro. Esse ritual era repetido quase todos os dias, mesmo que ela tivesse
acabado de chegar em casa depois de um dia extremamente cansativo.
"Gosto de pensar que aquele momento era a melhor parte de nossas noites
calorentas em Oroland County. Acho que se eu me esforçar um pouco,
consigo ouvir o barulho do piso de madeira já bastante gasto ranger sob os
meus pés. Eu cresci nessa rotina, quase todos os dias eu tinha compromisso
marcado: dançar com a mamãe. Quando atingi o tamanho e peso
incompatível com o que minha mãe aguentaria, invertemos as posições.
Então, ela quem passou a subir nos meus pés para dançar."
Thomas respira fundo e conecta seus orbes brilhantes com os meus.
— Sinto falta disso. — Uma ideia passa rápido em minha cabeça e, antes que
eu possa pensar melhor acerca dela, já estou retirando os saltos que tanto me
incomodam. — O que está fazendo, Lennon?
Largo os sapatos perto de nós e volto a ficar em frente a ele. Tomo a
liberdade de subir em seus pés e quase escorrego pelo atrito de meus pés
suados em seus sapatos lustrosos. Thomas enlaça minha cintura para que eu
não caia e meu estômago afunda mais um pouco.
— Já que você tanto se gaba de saber dançar, essa é uma boa oportunidade
para tentar me ensinar alguma coisa.
Há uma espécie de atmosfera acolhedora entre nós, como se no instante em
que nossos olhares se encontram, uma conexão se estabelece. Thomas sorri
grande para mim, e o gesto é tão puro que me faz ficar perdida na beleza do
momento por alguns segundos. E só pareço finalmente acordar quando
Eckhoff começa a se mexer cautelosamente.
Apoio-me em seu ombro e aperto sua mão com força descontando meu medo
do desequilíbrio. Contudo, por mais incrível que pareça, estamos
funcionando muito melhor desse jeito do que antes, quando eu pisava em seu
pé desastradamente. O aperto ao redor de minha cintura torna-se mais forte
para não me deixar cair, e não consigo evitar estremecer. Thomas toma a
liberdade de rodopiar um pouco mais, com habilidade, me mostrando que
realmente sabe dançar, mas seus passos ainda são contidos, já que não
queremos chamar tanta atenção. Ninguém parece se importar, de fato, com os
dois jovens dançando no canto do salão. Suponho que há assuntos mais
importantes para serem tratados pelos mais velhos.
Nossa dança acaba junto com a música e sou obrigada a elogiá-lo e dizer que,
realmente, ele dança bem. Isso parece inflar o ego de Thomas de uma
maneira que começa a ficar sufocante para alguns convidados, que começam
a ir embora. Decidindo aproveitar a deixa, concluímos que já está na nossa
hora também.
Thomas e eu perdemos por volta de dez minutos discutindo, porque ele
insiste em me levar até meu alojamento e eu resisto apenas pelo prazer de vê-
lo irritado. Por fim, decido aceitar a companhia, já que está quase um breu lá
fora. Enquanto Eckhoff vai ao banheiro, dou uma última conferida na equipe
de limpeza que ficará depois do evento organizando tudo.
Depois de ajeitar os últimos detalhes, sigo até a chapelaria, encontrando um
Thomas impaciente na porta.
— Moça, o dela é o mais caro do cabideiro e o meu o mais barato. — A
funcionária parece se divertir com a impaciência do loiro que bufa de cinco
em cinco segundos, enquanto ela confere calmamente cada casaco disposto
ali.
O pé esquerdo de Thomas atrita no piso em uma frequência irritante,
provocando um ruído insuportável. Dou um chute de leve na parte de trás de
sua coxa e ele tromba seu quadril no meu. Quando a mulher finalmente acha
nossos casacos, prevejo o momento que o homem ao meu lado ajoelharia e
agradeceria aos céus.
— Por que está tão impaciente? — questiono assim que piso no concreto
gelado da calçada do Campus.
Meus pés descalços até reclamam pelo contato gélido ao chão, mas decido
que enfiá-los em um salto fino novamente seria ainda pior. Thomas faz o
favor de levar meus sapatos pelo caminho.
— Quando eu estava saindo do banheiro, uma moça quase idosa me
interceptou e me fez um convite um tanto indecente. — Apuro minha audição
assim que reconheço o tom de voz de Thomas. Esse ele usa quando vai fazer
uma fofoca. — Ela se ofereceu para pagar meus custos com a universidade e
com a vida em troca de...você sabe...favores.
As pausas dramáticas e constrangidas de Thomas me fazem rir baixo, mas
ainda assim, eu não entendo o conteúdo da conversa.
— Como assim?
— Ela queria ser minha sugar mommy, Lennon.
Assim que processo suas palavras, caio na risada. A gargalhada explode em
minha garganta assustando qualquer pássaro que se aproveita da penumbra e
do silêncio da rua. Em certo momento, até mesmo Thomas está rindo comigo.
Pergunto se ele pediu que ela explicasse a proposta direito, mas o olhar de
horror que recebi me provou que ele provavelmente murmurou um "não
tenho interesse, obrigado" e saiu correndo.
O curto caminho até o prédio de meu alojamento é preenchido pelo assunto
Sugar Mommy e Daddy. Eu disse que até mesmo já cogitei tentar quando me
vi abarrotada de trabalhos de Direito, de modo que Thomas semicerra os
olhos em minha direção e isso é suficiente para cairmos na risada novamente.
Ao me deparar com a porta principal do edifício, Eckhoff decide me levar até
lá porque diz ser um cavalheiro, e eu apenas ignoro sua gracinha.
Quando chegamos em meu andar, estou pronta para me despedir e agradecer
por sua companhia. Contudo, assim que prego meu olhar ao seu, a atmosfera
ao nosso redor muda novamente. Agora sinto aquela mesma pressão do ar
sobre nós, roubando meu fôlego, fazendo com que eu sinta um arrepio passar
desde a base da minha coluna até a nuca.
A cada passo dele em minha direção, é um meu para trás, como se eu fosse
uma presa e estivesse fugindo do meu predador, e o pânico se instala fazendo
meu sangue borbulhar.
— Lembra do nosso primeiro dia trabalhando juntos? — Ele indaga cada vez
mais próximo, e me limito a acenar em concordância. — Eu disse que se
tivesse um parafuso a menos, te prensaria em uma parede e te beijaria.
Continuo aguardando que ele continue, mas em meu interior, sei exatamente
o que ele quer dizer com isso.
— Acho que estou com um parafuso a menos.
— Por quê? — Tento sair pela tangente.
Os braços de Thomas estão postos um em cada lado meu, na porta, me
encurralando. A expressão "estar contra a parede" nunca foi tão literal para
mim quanto agora, mesmo estando contra a porta na realidade. Sua respiração
bate em meu rosto, arrepiando a região do meu colo. Um incômodo
desconhecido se dá no meu estômago, e eu me pergunto se não comi algo
estragado no jantar. É a única explicação.
— Porque eu vou te beijar agora. — Ele sussurra em meu ouvido. Não soa
como uma pergunta, e sim como uma afirmação. — Se você tiver algo contra
o que vai acontecer nesse exato momento, diga nossa palavra de segurança.
Penso em exclamar “Rosa”, a nossa palavra, em alto e bom som. Reflito até
mesmo acerca da ideia de deixá-lo aqui e sair correndo. No entanto, seu
hálito fresco chocando ao meu rosto, arrepiando o colo, os olhos intensos me
escrutinando com a íris brilhando em desejo, só contribuem para que eu
finque ainda mais os pés no piso bem encerado do corredor escuro do prédio.
O motivo da minha mudez nesse instante é desconhecido por mim. Trabalhar
sob pressão sempre foi complicado, mas ali, eu não sei bem se me calo diante
da situação pela pressão. Acho que no fundo, bem no interior do meu âmago,
eu quero ser beijada por Thomas Eckhoff de novo, só que direito dessa vez.
Não desvio meu olhar dos seus, sentindo sua mão acariciar meu pulso, correr
livre pelo meu antebraço e parar em meu cotovelo. Sem jamais desconectar
os olhos dos meus, passo a língua por meus lábios e o vejo acompanhar meu
movimento. Depois, ele segue com a carícia até meu ombro, contorna minha
clavícula com a ponta áspera dos dedos, sobe pelo meu pescoço e vai até
minha nuca. Nesse ponto, não há um lugar do meu corpo que não esteja em
chamas. Thomas enrola as mechas de minha nuca em sua mão, enquanto a
outra aperta minha cintura e dá um puxão em meu cabelo, me fazendo
encará-lo. E é nesse exato momento que eu paro de pensar.
Então, eu não espero que ele prossiga com seus atos, na verdade, eu os
adianto. Esquecendo qualquer desavença, ódio ou disfunção, eu o beijo.
Seus lábios quentes pressionam os meus e me sinto queimar. Abro passagem
para que sua língua encontre a minha e sinto seu tronco pressionar o meu
com ainda mais força. Sua língua desliza para o interior da minha boca, e nós
tentamos encontrar um ritmo. Não sei se algum dia na minha vida já fui
beijada assim, com tamanha brutalidade e agressividade, mas ao
experimentar, temo nunca mais querer parar.
Uma de minhas mãos está por dentro de seu blazer, em seu ombro, e a outra
se ocupa de puxar os fios displicentes de sua nuca. Há uma fome anormal
entre nós. Sinto que posso ser engolida a qualquer momento e temo até
mesmo que nossos dentes batam um no outro, mas isso não acontece, porque
é assim que funciona entre a gente. Thomas me beija com raiva, sua língua
tem uma aspereza tão confortável que eu poderia passar a noite apenas o
beijando, mas quando sua mão desce de minha cintura para a minha bunda,
por baixo do vestido, ergo minhas pernas para enlaçá-lo com elas.
Agora Thomas tem uma mão em cada lado da minha bunda, e o aperto é tão
forte que talvez fique vermelho amanhã. Sinto um incômodo abaixo de meu
ventre assim que suas unhas curtas arranham minha carne. Parto o beijo
puxando seu lábio inferior entre os dentes e desço a maçaneta do alojamento
desajeitadamente. Eckhoff decide me ajudar e no instante que adentramos
meu quarto, ele volta a me prensar na porta, em um movimento tão rápido
que quase fico tonta.
Tudo beira ao exagero ali, mas a única coisa que sinto é a minha boceta
pulsar quando Thomas envolve a lateral do meu pescoço com a mão e
pressiona levemente, roubando parte do meu ar. Ele chupa o lóbulo da minha
orelha, deixa um beijo cálido atrás dela, e volta a puxar as mechas da nuca.
Em seguida, percorre o meu pescoço, mordendo e logo depois assoprando e
chega até minha clavícula. Reviro os olhos pela carícia e tomo sua boca na
minha novamente. Minha língua desliza sobre a dele e voltamos ao ritmo
agressivo de antes. A mão de Thomas desce da minha bunda até atrás de meu
joelho e deixa uma carícia ali. Estou tão sensível a toques que aquilo me
excita ainda mais.
Ele sobe a mão por toda a extensão da minha coxa e deixa um tapa ardido na
parte de fora dela. Isso é suficiente para me fazer partir o beijo, passar a
língua no canto de seus lábios, fazendo-o arfar. Distribuo beijos por sua
mandíbula até chegar em seu pescoço, prossigo com o afago e não deixo de
morder levemente, assoprar e lamber. Um ruído grave irrompe em sua
garganta assim que cubro meus dentes com os lábios e sugo com força
moderada a pele sensível próxima a sua clavícula. Mantenho-me ali por um
momento, sentindo meu peito arder pela falta de fôlego. Quando solto sua
epiderme, Thomas deixa outro tapa ardido em minha bunda e minha
intimidade pulsa novamente, ao passo que volto a ocupar minha boca com
seu pescoço e puxo seus fios da nuca.
— Filha da puta. — Escuto o xingamento sussurrado em meu ouvido e
Thomas me prensa ainda mais na parede quando sua outra mão aperta meu
seio com força. — Gostosa do caralho.
Solto uma risadinha baixa que logo se esvai assim que seu dedo indicador e o
médio tentam puxar meu mamilo rijo, impedido pelo tecido do vestido. Ele
volta a pressionar seus lábios nos meus e temo que isso seja viciante. Thomas
me coloca no chão e se encaixa em meu corpo, pressionando sua ereção
acima de meu ventre devido à diferença de alturae não consigo evitar que o
gemido saia por entre meus lábios.
É quase impossível raciocinar algo coerente tendo minha boca explorada pela
língua de Thomas. Tombo a cabeça para o lado com o objetivo de aumentar o
contato entre nós, e faz efeito, já que um ruído escapole de nossas bocas. Meu
peito clama por um descanso, implora que eu volte a respirar, e quando
quebro o beijo novamente, nossos corpos atritam pelo nosso torso que sobe e
desce em um ritmo acelerado. E quando consigo uma distância adequada ao
bem da minha sanidade mental sou capaz de processar o que está
acontecendo, o medo toma conta de cada mazela do corpo.
Que merda eu acabei de fazer?
— Tira as mãos de mim. — A voz imponente de Mackenzie reverbera
por todo o cômodo, me afastando bruscamente de seu corpo.
Respiro fundo e decido nem pensar sobre o que acabamos de fazer. A
mudança de ideia repentina vinda de Regina não me assusta, já que eu
imaginei, no momento em que a beijei que as coisas não seriam tão fáceis
para nós. Há algo em Lennon muito maior que qualquer insegurança ou
medo, e se chama orgulho. Ceder a mim significaria pisar em cima de tudo
que ela jurou não fazer durante esse mês. E mesmo com todas essas
perspectivas, não me sinto mais tranquilo.
Mackenzie Lennon vai me enlouquecer.
Isso é um fato. Seus olhos intensos dotados de uma fúria sem precedentes,
essa que antes servia para sugar a pele de meu pescoço com força ou para
arrancar meu fôlego, agora serve para fazê-la abrir a porta de seu alojamento
bruscamente.
— Vai querer fingir que isso nunca aconteceu? — indago em um fio de voz
mesmo já sabendo a resposta.
— Isso o quê? — Aperto meus olhos em sua direção. — Tá vendo? Já
esqueci.
— Pensei que fosse mais madura, Lennon.
Vejo suas vistas faiscarem em minha direção como raios laser.
— Mais madura? — Ela dá um passo até mim. — Eu não preciso de
maturidade para lidar com algo tão simples. Tínhamos uma tensão sexual
reconhecível e acabamos com o problema. Foi só um beijo, desencana.
— Não foi só um beijo para mim. — Antes que eu segure minha língua
grande, dou o prato de bandeja para ela.
Mackenzie sobe e desce os ombros com um sorriso de desdém decorando
seus lábios.
— Que pena — rebate, a soberba irradiando entre sua expressão.
Bufo, descontando minha irritação.
Por que Mackenzie não pode ser menos complicada? Nós dois sabemos que a
porra desse beijo foi muito mais que intenso. O corpo dela estava tão quente
em minhas mãos que temi o momento em que nós começaríamos a queimar.
Fui deixado, literalmente, na mão. Com o pau pulsando e as bolas doendo.
— Você está agindo como a verdadeira escrota arrogante que é! — Meu tom
de voz sobe alguns oitavos.
Nossos olhares estão rente um ao outro, ardendo em fúria, e as bochechas
dela ganham uma coloração avermelhada.
— E você não sabe receber um não como qualquer homem. — Os olhos de
Regina reviram, e reconheço neles a mesma superioridade de sempre.
— Caralho. — Meu tom de voz sai uns quintos mais altos sem que eu possa
me conter. — Você sabe muito bem que a questão aqui não é essa.
Antes que eu termine minha frase, Mackenzie me interrompe: — E qual é a
questão?
Nossos peitos sobem e descem tão rápido que temo ter uma crise de asma
agora mesmo.
— A gente está há dias assim. Faz a porra de um mês que eu te olho e quero
te foder. Mas não só isso, não sei se você percebeu, mas temos convivido
mais do que esperávamos. E eu gosto do caralho da sua companhia. —
Despejo tudo em Mackenzie com uma rapidez invejável. — Eu esperava que
depois desse beijo pudéssemos levar as coisas de outro jeito.
E mais uma vez, percebo que falei demais.
— Esse é o problema de criar expectativas: você se frustra. — Ela responde,
as sobrancelhas desenhadas arqueadas como sempre.
Analiso minuciosamente o semblante duro de Mackenzie.
Seus lábios estão crispados, os olhos bem abertos exalando confiança e as
sobrancelhas levemente arqueadas entregando sua superioridade. Não há
nada em seu rosto que me faça duvidar de suas palavras, e estranho a frieza
exagerada de Lennon, que geralmente prefere cair na pilha e demonstrar seus
sentimentos, sejam eles de fúria ou calmaria. Contudo, suas orbes parecem
estar decoradas com uma crosta de gelo, esfriando com rapidez o ambiente
antes tão quente.
— Se o que você quer é esquecer, faremos isso. — Inflo meus pulmões de ar
e solto com rapidez. Dou um ou dois passos em sua direção e seu nariz quase
resvala em meu tronco devido à proximidade. — Mas quando você quiser de
novo, eu não vou ceder.
— Veremos! — O grito agudo de Mackenzie é a última coisa que ouço após
pular para fora de seu quarto e ter a porta batida em minha cara.
Sei que, no fundo, é guerra que Mackenzie quer, porque ela se alimenta de
conflitos. Essa mulher ama uma disputa, e eu sei que ela vai provocar, em um
jogo irritante para que o primeiro que ceder possa se vangloriar. E nós dois
sabemos que sou o mais fraco, o mais suscetível a cair em suas garras
afiadas. Sento-me no último degrau do lance de escadas, escutando o ruído
desses sapatos desconfortáveis contra o piso bem encerado. Sopro o ar com
força, necessitando mais do que nunca de um cigarro. É impressionante como
acabamos de nos beijar e eu poderia voltar lá de novo para repetir a dose até o
amanhecer. Tiro o paletó e fico aliviado ao perceber que ali fora finalmente
posso mexer na cueca e ajeitar as coisas por lá.
Antes que eu decida me levantar e seguir meu caminho até o salão novamente
para pegar o carro e ir para casa, escuto o bip que anuncia uma notificação.
Jules: Minha colega de quarto foi dormir em outro lugar. Quer vir para cá?
Esse, definitivamente, não é um bom momento.
Repuxo os fios da nuca com força, frustrado pela batalha que travo neste
exato instante. Jules é incrível, e uma das mulheres mais bonitas que já tive o
prazer de transar. Além de ter tatuado quase o corpo todo de Andrew e
Dominic, ao passo que desenhou meu pássaro do peitoral e as ilustrações do
braço. Ela compartilha dos mesmos gostos que eu, anda por aí com botas de
combate e jaquetas de couro com o símbolo de seu grupo de motociclistas
bordado atrás e sua companhia é extremamente agradável. Bom, Mackenzie
acabou de pedir para que eu esqueça tudo o que houve entre nós. Além disso,
não tenho compromisso com ninguém. E a mulher que reside no fim do
corredor não está interessada em nada que envolva sentimentos e me aguarda
para uma noite agitada. Portanto, acho que não é necessário ser muito
inteligente para chegar à conclusão certa. Quando me levanto, guardando o
blazer de baixo do braço, reflito que talvez eu esteja apenas pensando com a
cabeça errada, mas não me arrependo nem um pouco.
Antes que eu dê uma batida leve na madeira maciça do quarto 500, Jules já
abre a porta, me lançando um sorriso amistoso que eu não hesito em
devolver.
— Noite divertida? — Ela aponta para algo em meu pescoço e eu franzo
cenho em confusão. Pego o celular para conferir o que há e bufo ao perceber
que Mackenzie deixou uma marca ali.
— Você nem imagina o quanto. — Meu tom escorre tédio e ela percebe, já
que solta uma risada.
Adentro seu alojamento sem pedir permissão e percebo que nada mudou
muito. A parede cheia de pôsteres continua abarrotada de coisas e talvez ela
tenha acrescentado um ou outro desde a última vez que estive aqui. Jogo-me
em sua cama sem hesitar e termino de abrir o resto dos botões da blusa.
Odeio essa roupa que pinica e tudo que vem junto com trajes sociais. Em
seguida, sinto a cama afundar perto de mim, e Jules se senta ao meu lado,
cruzando as pernas.
— Quer me contar o que aconteceu? — Seus olhos grandes e estreitos
diminuem quando ela ri, em claro deboche a mim.
Não hesito em contextualizar a situação para que ela entenda o motivo das
roupas sociais, do sapato que já está longe de meus pés e da marca arroxeada
que decora meu pescoço.
— Eu sabia que havia um motivo para você ter saído de casa cheirando bem.
— Estreito os olhos, sentindo a respiração falhar levemente por tê-la próxima
a mim, dando uma conferida no aroma em meu pescoço, e ouço sua
gargalhada aumentar o volume.
— Você é tão engraçada. — Franzo o nariz em uma careta, mas acabo rindo
junto.
A noite, na verdade, não foi de toda ruim, já que, como eu disse antes, a
companhia de Mackenzie – mesmo que cheia de brigas e alfinetadas – é
muito boa. Ter seus pés sobre os meus em uma dança lenta me trouxe
sentimentos bons como nostalgia e tranquilidade. Uma paz se apossou de
mim e eu senti como se nada pudesse me tirar do sério, e o beijo... Puta que
pariu. Eu não deveria ter cedido, não mesmo, porque eu duvido muito que a
sensação de seus lábios pressionados aos meus e de nossas peles quentes
atritando saia de minha cabeça.
— Você está tão ferrado quanto eu. — Cerro minhas vistas, descontando
minha confusão. E ela percebe, porque continua a falar. — Eu chamo de
amor de pica, quando o sexo e o encaixe são tão bons que fica gravado na sua
memória por muito tempo. E tenha certeza, essas memórias sexuais virão nos
momentos mais inoportunos.
— Isso foi para me ajudar? — questiono, vendo Jules gargalhar como a diaba
que é. — E eu não transei com ela.
— Então, imagina se tivesse. — Ela ri de novo, sozinha.
Essa é uma característica de Jules. Ela costuma ver graça onde não tem, está
sempre gargalhando de vídeos em que ninguém acha legal. E Jules ama rir
das desgraças alheia, sendo quase um traço de sua personalidade. Nós nos
conhecemos desde que entrei na faculdade. Ela faz medicina, mas negligencia
seu curso com prazer. Diz que passou para provar a todos que pode, no
entanto, está no caminho para ser uma tatuadora. Nos demos bem de
primeira, porém não somos muito grudados, andamos com pessoas diferentes
e Jules tem sua tribo. Em algum momento, nós transamos completamente
chapados, e foi bom. Mas funcionamos melhor como amigos, então só
aconteceu uma vez.
Jules Batbayar tem uma história interessante. Sua mãe nasceu na Mongólia e
veio para os Estados Unidos com a irmã, em busca de oportunidades. E, ao
chegar pelo porto de Eastland Coast, cidade litorânea do Condado de
Eastlake, conheceu o pai de Jules. O homem estava lá em um encontro do seu
motoclube, o mesmo que a mulher em minha frente faz parte. O grupo é
como uma família, e é admirável a forma como acolheram a senhora
Batbayar. Gosto de escutar essa história todas as vezes que a morena está
disposta a contar.
— Todavia, eu sou uma boa amiga e tenho algo que pode te ajudar
momentaneamente. — Ela sorri como se tivesse a solução para todos os meus
problemas.
Tombo a cabeça para trás, desanuviando os pensamentos, sentindo o impacto
da parede dura, e bufo.
— Me diz que é um baseado.
— Você me conhece tão bem. — Solto uma risada leve e a vejo voltar à
cama com uma lata onde guarda a erva já dichavada e as sedas na outra mão.
Os próximos minutos são utilizados para bolar o baseado. Os movimentos
são repetitivos e já o fiz tantas vezes que é quase automático, mas há algo de
quase especial no momento que nos faz cultuá-lo em um silêncio confortável.
Com cautela, uso a saliva para fechá-lo, passando a língua pela extremidade
da seda. Esse é o pior instante para os iniciantes, se você babar demais,
rasgará a seda e ferrará todo o processo. Ainda em silêncio, Jules me entrega
uma chave para me auxiliar a pilar e acomodar melhor a erva no beque. Na
parte final, aperto a pontinha com cuidado e quase sorrio com a familiaridade
do processo. Ergo-o em direção a Jules para que ela acenda, porém antes, me
pronuncio.
— Sua colega de quarto não ficará puta se chegar aqui e sentir cheiro de
maconha? — Jules nega veemente com a cabeça e diz que nem todo mundo é
tão neurótico com limpeza quanto eu. Ignoro a alfinetada e dou a primeira
tragada.
O efeito não demora muito a chegar. O estado de letargia se apossa de mim, e
há algum tipo de pressão no meu cérebro que rapidamente é aliviada. Sinto
meus batimentos cardíacos acelerarem. Existe uma determinada perda da
discriminação de espaço e tempo, e eu sinto que poderia viajar para qualquer
lugar neste exato momento.
A euforia me arrebata e a sensação de prazer poderia ser comparada com a de
um orgasmo. Demoro a enviar o comando para que meus olhos pousem em
Jules, porém quando eles viajam até ela, a vejo encostada na cabeceira da
cama tragando seu beque com um sorriso leve no rosto. Ela conecta sua íris
castanha com a minha e isso nos causa um riso espontâneo. Não sei
exatamente o que tem graça, mas os olhos dela estão mais estreitos do que já
são e seus lábios cheios estão extremamente atrativos. Isso é suficiente para
nos fazer gargalhar. Passo a língua pelos lábios o sentindo seco demais e
percebo quando Jules acompanha meus movimentos.
— Sabe. — Ela inicia com a voz arrastada. — Eu não te chamei aqui para
transar.
— Legal. — Estou aéreo o suficiente para não ter certeza se processei com
maestria o que ela acabou de dizer. — É bom saber que você gosta da minha
companhia assim como gosta do meu pau.
Jules demora a compreender meu tom lento, mas quando toma conhecimento
do teor de minhas palavras, começa a rir.
— Se você falasse um pouco mais alto, Mackenzie conseguiria pescar a
indireta lá do 505. — Estamos com extrema preguiça de formar frases
grandes e coerentes, no entanto a vontade de socializar nos faz ceder ao
esforço.
— Lennon é muito linda. — Tenho dificuldade de segurar minha língua
quando estou sóbrio, imagina chapado.
— Eu concordo. — Jules afirma veemente sem tirar o sorriso dos lábios. —
Mas ela não me parece ser o tipo de garota que gostaria de ter o nome
associado com o seu.
— Obrigado, Batbayar. — Reviro os olhos e os sinto arder um pouco, mas
nenhum incômodo se compara com a paz que sinto agora. — Quem é seu
amor de pica?
Lembro-me de nosso diálogo anterior e, focado em tirar Mackenzie de meus
pensamentos, tento mudar de assunto.
— Você o conhece, então não posso contar. — Sua resposta me faz ponderar
por um momento, tentando organizar meus pensamentos antes de responder.
— É o Andrew, não é? — Arqueio a sobrancelha e esboço um sorriso
travesso. — Ele sabe o que fazer com a língua. Essa é uma boa explicação
para você estar tão encantada.
Jules arregala os olhos, e seus lábios bem preenchidos estão crispados como
se ela estivesse em um grande dilema.
— Como você sabe o que ele faz com a língua? — questiona, e só percebo
agora a ambiguidade de minha frase anterior, e de repente, sinto vontade de
rir.
— Jogo de verdade ou consequência na minha primeira calourada. Não tô
com ânimo para explicar direito, só nos desafiaram a nos beijarmos. — Subo
e desço os ombros.
— Bom, se eu fosse lésbica e me desafiassem a beijar um homem, eu ficaria
meio puta. — Ela responde e eu balanço a cabeça em concordância.
— Sim, mas Andrew é pansexual, e eu não saberia se gosto sem antes
experimentar. — Meu nariz coça e os movimentos parecem estar um pouco
mais lentos, porém consigo me aliviar.
— E você gostou?
— Não. Quer dizer, Andrew beija muito bem, mas a ponta de seus dedos é
áspera demais — inicio, franzindo o nariz. — Me senti, sei lá, beijando um
homem.
— É porque era exatamente isso que você tava fazendo, seu ridículo.
— Ah... Verdade. — Uma gargalhada escapole para fora da garganta de Jules
e eu a acompanho. Nada parece fazer muito sentido para nós, mas assim que
damos nossa última tragada no baseado, me dou conta de que os efeitos ainda
estão aqui. E não chegou à parte ruim ainda.
Os olhos escuros de Jules estão repuxados em um jeito quase felino, e é
atrativo pra caralho. Seus lábios cheios erguem-se em um sorriso tentador.
Sinto meus sentidos um tanto mais aguçados, como se eu pudesse desfrutar
das sensações em dobro. A atmosfera entre nós muda e é perceptível até
demais quando um silêncio sepulcral toma o ambiente. Sinto um calor
anormal se apossar de mim, e meus movimentos estão sincronizados com os
dela porque quando decido chegar mais perto, ela parece compartilhar das
mesmas expectativas.
Estamos tão próximos que sua respiração bate descompensada em meu rosto.
Seu nariz fino resvala no meu e a excitação se apodera de mim. Pego uma
mecha caída em seu rosto e ponho atrás de sua orelha, aproveitando para
acariciar sua têmpora. Ela apoia o rosto em minha palma e meu dedão toca
seus lábios.
— Me diga se é Andrew ou não. — Eu jamais beijaria uma mulher que esteja
envolvida com um dos meus amigos, então receber aquela resposta é o
necessário para guiar meus próximos passos.
— Não é o Andrew.
Aquilo é o suficiente para nós dois, porque não hesito em colar minha boca
na sua. Sinto familiaridade quando seus lábios cheios se afundam nos meus.
São macios e isso é muito bom. Em uma sincronia desregulada, sua língua
encontra a minha, tentando achar um ritmo decente puxo-a para o meu colo,
dispondo uma perna de cada lado, e sua intimidade coberta pelo short e meia
arrastão entra em contato com minha ereção. Sinto-me eufórico, a letargia
entranhada e seu toque em cada parte da minha pele é atenuado pelo efeito da
droga. Parto o contato raspando o dente por seu lábio e sigo com os beijos
por sua mandíbula, lóbulo da orelha e pescoço. Jules tem tatuagens por todo o
seu corpo, mas a que eu mais gosto é a que estou prestes a lamber. Mordo de
leve e a sinto arquejar e se remexer em cima de mim, me estimulando a
continuar até senti-la rebolando em cima do meu pau. Suas mãos tiram a
camisa social de mim, e eu a ajudo no movimento, me ocupando em puxar as
mechas de sua nuca e firmar minha mão em sua bunda. Em resposta ao meu
movimento, Jules arranha meus ombros.
Quando sua boca se encosta a meu pescoço, sofro um arquejo e um lapso de
memória inoportuna invade minha mente. Isso é suficiente para eu me
afastar.
— Estamos fazendo merda, não é? — Jules toma uma distância considerável
de mim ao perguntar, e eu me limito a acenar positivamente com a cabeça.
— Parece que estou te usando. — A aflição toma conta das minhas entranhas
e estremeço levemente.
Jules concorda comigo e pula do meu colo rapidamente. Seus movimentos
parecem estar meio desconectados ainda e ela tropeça de leve.
— Você pode dormir aqui, se quiser.
Agradeço mentalmente pelo clima não ter ficado uma merda. Estou tão
sonolento que se pegasse o carro agora poderia causar um acidente.
— Obrigado. — Ajeito minha cueca discretamente. Hoje provavelmente é o
dia que meu pau mais me odiou.
— Pode usar essa blusa, e essa calça de moletom que você esqueceu aqui. —
Ela ergue as peças de roupa e joga em mim. Analiso a camisa com cuidado.
— Essa é a minha blusa. — Lembro-me de quando dormi aqui e esqueci
essas peças há um tempo.
Jules balança o dedo negativamente em minha frente.
— Nossa blusa — rebate. Caímos na risada juntos e ela se deita comigo.
Estamos lado a lado, encarando o teto branco de seu alojamento,
experimentandoos efeitos ruins da droga. Olhos ardendo levemente, boca
seca, sonolência e uma fome absurda. Sinto meu pulmão falhar levemente e
sei que é por causa da combinação da fumaça com a asma. Tento controlar
minha respiração enquanto relembro de alguns flashes de meus momentos
com Regina.
— Posso confessar algo? — pergunto e Jules ergue a palma, pousando o
olhar no relógio de seu celular.
— São quatro da manhã, então pode. — A resposta me faz franzir o cenho
em confusão, mas decido não questionar suas superstições.
— Eu queria ir a um encontro com Mackenzie.
Solto antes que eu me arrependa. O amargor desliza pela língua e o alívio
chega rápido ao me dar conta de que guardar apenas para mim estava me
sufocando.
— Não é só um amor de pica. — Jules confessa. — Acho que estou
apaixonada.
Respiro fundo e tombo minha cabeça para olhá-la. Vejo o medo estampado
em suas orbes castanhas e seu semblante expõe o quanto está amedrontada.
Ela me diz que o cara com quem se envolveu é dono de um caráter
extremamente duvidoso, e eu passo, pelo menos, os próximos trinta minutos
tentando aconselhá-la.
— Eu sei que nós convivemos muito pouco, mas te considero um amigo do
caralho. — O canto de meus lábios se ergue em um sorriso contido.
— Gosto tanto de você que eu poderia ir agora mesmo sacudir esse cara para
declarar amor eterno por você. — Jules cai na risada e seus olhos diminuem à
medida que as bochechas sobem.
— E eu gosto tanto de você que iria agora mesmo até o 505 e gritaria na cara
de Mackenzie que ela precisa te dar uma chance.
Nossas risadas saem em uníssono e bato minha palma na dela, como em um
hi-5. É a última coisa que lembro antes de imergir na escuridão profunda de
um sono pesado.
Hoje é um daqueles dias, que só costumam acontecer no exterior ou
no litoral, dos que despertam os moradores da cidade universitária com um
raio solar irrompendo imponente pelas janelas. Bolfok Town não está
acostumada com esse calor, especialmente quando chega de forma tão
repentina. Ademais, estamos no Outono, o que praticamente significa inverno
em outras cidades que contam com temperaturas mais amenas do que aqui.
Do ponto de vista técnico, não sei exatamente o que há com o clima hoje,
porque as explicações me fogem da mente assim que acordo suada. Isso
nunca aconteceu desde que cheguei, pelo contrário, geralmente o frio é tão
cortante que me enrolo em mais de uma coberta. Forço-me a levantar cedo
para pegar o banheiro habitável, já que com a quentura de hoje, imagino que
muitos estudantes queiram se refrescar mesmo de manhã.
Os olhos captam alguns resquícios da noite passada como o vestido usado no
jantar, os sapatos de salto largados perto da porta, o notebook jogado na mesa
– que fica ao lado da cama – e o fone embolado embaixo do travesseiro. A
comédia romântica assistida ontem é como cutucar uma ferida aberta, e eu
penso e repenso nos motivos de não ter terminado a noite na cama com uma
companhia um tanto desagradável.
Não me arrependo de ter interrompido o beijo, porque pisar em cima de todos
os meus princípios em prol de sexo nunca fez parte da minha vida, e eu estou
bem com isso. Contudo, não havia a menor necessidade de ter tratado
Thomas mal. E isso eu reconheço.
Dou uma rápida conferida nas notificações de mensagem que chegam para
mim e há muitas caixas de conversa em aberto. Decido não responder
ninguém por enquanto e apenas curto a resposta de Nevaeh ao meu story
passado. Vejo que Lewis me convidou para uma festa na Kappa Alpha hoje e
instantaneamente me animo, até porque nada como uma festa para superar a
sexta regada de comédia romântica adolescente.
O banheiro do meu andar, geralmente, é muito limpo e nunca está cheio. Ou
os jovens de Bolfok Town odeiam banho ou apenas escolhem horários
diferentes dos meus para cuidarem de sua higiene. Assim que me deparo com
o corredor dos chuveiros vazio, caminho rapidamente até minha cabine
predileta. Não me preocupo em fazer cerimônia ao abrir a porta, pois sei que
finalmente terei um momento de paz depois de uma noite repleta de
pensamentos inoportunos acerca do pênis de Thomas roçando em mim.
No entanto, não foi exatamente paz que eu encontrei quando abri a porta da
cabine.
A primeira coisa que vejo são pés, masculinos com toda certeza. Subo
minhas vistas pelas panturrilhas até pousá-las em uma bunda branca. Antes
que o desconhecido se vire, marcas avermelhadas em suas costas me
entregam quem ele é. Puta que pariu.
Agora ele está de frente e eu vejo um pau e bolas. Céus.
O grito esganiçado escapa pela garganta depois que eu processo a visão de
um Thomas completamente nu em minha frente. Ele leva as mãos para
tampar suas partes íntimas, mas é tarde demais. E, por uns segundos,
agradeço mentalmente por não ter ido longe demais com ele ontem. Até
porque, essa coisa dele, definitivamente, teria dificuldades para estar dentro
de mim. Não que ele tenha um pau monstruosamente gigante assim como os
caras das fanfics que eu lia na adolescência, no entanto, ouso dizer que talvez
eu não tenha espaço para essa... Grossura.
Seus olhos desbravam cada canto de meu corpo livre da toalha que aperto
firmemente com a mão, odeio isso. Odeio que meu corpo reaja a ele tão
instantaneamente que meu estômago retorce um pouco dentro de mim.
Thomas grita também. Na verdade, o som que rompe por suas cordas vocais
mais parece um gargarejo, daqueles que damos quando escovamos os dentes.
Levo a mão até meus olhos em um gesto rápido, mesmo que eu já tenha
analisado coisas demais por ali.
— Você sabe que não adianta nada tampar os olhos se seus dedos estão
afastados, não é?
Reparo tarde demais que meu dedo indicador está levemente afastado do
médio, me dando, ainda, uma boa visão do corpo de Thomas.
Pega no flagra.
— O que está fazendo aqui? — Atropelo as palavras em uma tentativa falha
de mudar de assunto.
— Tomando banho. — Ele sobe e desce os ombros, e há um sorriso, que
beira ao deboche, estampado em seu rosto. Solto o ar com força, descontando
minha falta de paciência em meus pulmões.
— Eu sei. — Aprisiono o escroto que eu diria tendo em vista que minha cota
de grosseria com ele esgotou ontem. — Digo, é que você não mora aqui.
Balanço a mão em uma tentativa de induzi-lo a entender meu
questionamento, e parece funcionar já que ele arqueia as sobrancelhas e
balança a cabeça positivamente.
— Dormi na casa de uma amiga. — As palavras parecem sair com gosto de
sua boca, porque ele articula bem e gesticula com vontade.
Não demoro a entender. Thomas quer deixar claro que minha rejeição não o
abalou muito, e que ele terminou a noite de um jeito bem melhor. Bom, tanto
faz.
— Ah.
O ambiente parece pequeno demais para duas pessoas que exalam hormônios
para todos os lados. O teto até parece abaixar um pouco de tanto que sinto o
ar nos pressionar e me engolir em uma tensão palpável. Que inferno.
Inspiro e expiro calmamente, tentando reunir consciência e sensatez para
lidar com a cena de nós dois usando roupa de menos. Thomas acompanha o
movimento de meus seios com avidez, e eu sinto a pele de meu colo se
arrepiar. Na tentativa de me livrar dessa situação horrenda, me pronuncio.
— Já que você terminou me deixe tomar banho. — Aponto com a cabeça
para o chuveiro desligado e me esforço para não reparar nas gotas que
escorrem por todo o seu corpo.
Thomas assente sem desviar a íris azulada da minha. Ele dá um ou dois
passos até mim e o ar torna-se ainda mais rarefeito. Seu perfume pós-banho,
que consiste unicamente em cheiro de sabonete de amêndoas, invade meu
espaço pessoal e isso me deixa mais irritada, se é possível. Entendo que estou
sendo um obstáculo em seu caminho, tampando a saída da cabine como uma
estátua e não demoro a me mover. Dou um passo para o lado, me espremendo
entre o batente da porta e seu corpo molhado que roça no meu quando ele
passa por mim. Meu olhar recai direto sobre a marca roxa deixado por mim e
me pergunto se sua companhia de ontem não se incomodou com isso. Assim
que ele pula para fora, me apresso em bater a porta da cabine e trancá-la com
rapidez. Contudo, ainda posso sentir a presença de Thomas perto demais.
Quando ligo o registro, ouço seu costumeiro barulho rangente, como se ele
implorasse por um óleo que evitasse esse ruído. Sinto a água quente me
atingir e quase sorrio. Talvez essa seja a paz que eu tanto procuro. Porém,
ainda tenho noção de que Thomas está do outro lado, fazendo sei lá o que, e
mal posso segurar minha língua antes que eu fale algo impulsionado pelo
peso da minha consciência.
— Acho que te devo desculpas. — A voz sai tão baixa que temo que ele não
ouça, mas um suspiro resignado me dá a certeza de que fui ouvida. — Não
por ter te rejeitado, mas sim por ter sido tão grosseira.
Geralmente, eu deixo que meus sentimentos me guiem com muita facilidade
e acabo sendo impulsiva. Todas as sensações de ontem enviaram um alerta
vermelho para o meu cérebro, daqueles que sabemos quando há uma merda
prestes a acontecer. Sim, eu tive vontade de beijá-lo muitas vezes. Mais do
que o recomendado. No entanto, consumar o ato me trouxe uma percepção de
que eu poderia estar caminhando em direção a um abismo perigoso. E as
palavras de Hannah me atingiram com força: Você ainda não o conhece, ele é
como uma praga. Estou te avisando. Se deixá-lo chegar perto demais, ele vai
te tomar por inteira, e quando isso acontece, reze para que ele não destrua
seu coração.
A única coisa que fiz naquele momento foi cortar o mal pela raiz. Entretanto,
não controlei muito bem o peso de minhas palavras e o quanto elas poderiam
machucá-lo. E a culpa me acompanhou por toda a noite.
— Uau. — Sua voz está tão próxima que posso sentir exatamente onde ele
está, encostado do outro lado da porta. — Mackenzie Lennon pedindo
desculpas, essa é nova.
— Não se acostume — murmuro apenas para constar e ouço sua risada
reverberar na acústica do ambiente.
— Eu vou pensar se perdoarei essa pobre camponesa.
Reviro os olhos ao ouvir o trocadilho e xingo um "ridículo" apenas para mim,
mas sua boa audição capta meu murmúrio o fazendo aumentar o volume da
risada. Thomas não parece um tipo de pessoa rancorosa, então quando escuto
suas três batidas na porta da cabine, entendo que está tudo bem e que as
coisas já podem voltar ao normal entre nós: com muitas brigas e alfinetadas.
Isso me faz sorrir um pouco, mas logo murcho o semblante quando relembro
as cenas anteriores.
Não estou surpresa, na verdade, estou, porém apenas pela visão do corpo nu
de Thomas Eckhoff. Mas, no geral, acredito que situações como essa
aconteçam com mais frequência do que imagino. Quer dizer, são banheiros
comunitários, sem divisão por gênero como se nenhuma mulher fizesse
questão de verificar bem as trancas da cabine para evitar qualquer tipo de
invasão inoportuna. Ponderando um pouco acerca de nossa situação, constato
algo ainda mais irônico.
Isto é um clichê.
Sim, um clichê. Uma daquelas cenas que acontecem com frequência em
livros. Sei do que estou falando porque já li romances água com açúcar o
suficiente para atestar esse fato. Duas pessoas que se odeiam – que nem
sabem exatamente os seus motivos – são obrigadas a conviverem, descobrem
coisas um sobre o outro, até que percebem uma tensão sexual e cedem a ela.
Um dia depois acontece um encontro traumático em um banheiro
comunitário. Definitivamente, um clichê, daquelas fórmulas prontas para
fazer muito sucesso. A diferença é que essa é tão desconhecida que chega a
dar pena.
Afinal, quem gostaria de ouvir uma história sobre um cara com neurônios
queimados que não sabe que sua colega de grêmio é a mesma que o vence
nos rachas em todas as sextas-feiras?! Quer dizer, menos ontem, porque
estávamos ocupados o bastante sendo comprimidos por sensações perigosas
demais para serem medidas.
Aproveito o sábado como um grande dia do faz-nada. Hidrato o cabelo, passo
inúmeras máscaras faciais caseiras de caráter extremamente duvidoso, uso
alguns dos produtos caros de skin care que ganhei de meus pais e vejo, mais
uma vez, Velozes e Furiosos. Lewis enche nosso grupo de mensagens
prometendo compensar seu sumiço na festa hoje. Ele está abarrotado de
treinos por causa de um jogo importante que acontecerá daqui a umas
semanas. Alguns olheiros estarão lá e o Johnson alega precisar urgentemente
de uma chance em um time profissional — talvez seja uma tentativa de se
livrar das garras de seu pai e da Escola de Negócios.
Nevaeh está quase namorando com Dominic. Bom, ela diz que isso está
muito longe de acontecer, e eu duvido muito, mas Nev insiste que demorará
meses para entrar em algum tipo de relacionamento. Eles brigam como um
casal, falam como um casal, algumas roupas de minha amiga já estão na casa
de Dom assim como sua escova de dente, mas quem sou eu para dizer algo?
Eles não são um casal, afinal.
Reparo, ao pousar meus olhos no horário, que fiz a sobre-enrolação.
Basicamente, é quando você está adiantado demais, então resolve enrolar um
pouco e acaba se atrasando. Isso sempre acontece comigo, e é aí que começo
a correr. Faço tudo baseado na pressa. Escolho uma saia preta e blusa curta
meio cigana de mangas bufantes. Parece uma roupa de verão, e isso me
anima consideravelmente. Erro, pelo menos, umas três vezes até, de fato,
acertar o delineado. Pondero se decorarei meus lábios com um batom
vermelho, mas rapidamente desisto assim que considero o quanto quero beber
hoje. É provável que ao amanhecer eu estaria toda borrada, então opto por um
protetor labial de cor.
Nevaeh me avisa que me encontrará na fraternidade – que já esqueci o nome
– e suspiro irritada. Odeio chegar aos lugares sozinha, como se eu tivesse que
encarar um habitat completamente desconhecido sem um apoio seguro.
Contudo, Dominic promete me encontrar antes de adentrar a festa. Nev diz
que ele me mima, e eu me limito a mandar um emoji revirando os olhos.
O som que reverbera pelas caixas da fraternidade faz com que as janelas
trepidem. Mesmo não estando tão próxima da festa ainda, posso ouvir com
clareza algum Pop atual gritar nos alto falantes. Não sei exatamente que
cantora é, porque para uma leiga como eu, todas elas têm vozes muito
parecidas. O vento ameno que ricocheteia meus cabelos agressivamente não
me faz encolher de frio, e isso me deixa ainda mais animada.
Logo vejo Dominic abraçando Nevaeh por trás, enquanto minha amiga ri de
algo que ele murmura em seu ouvido. Meu peito fica preenchido pela
felicidade notável quando constato o quão perfeito eles ficam juntos. No
momento em que os dois reparam na minha presença, Dom alarga o sorriso e
acena, contagiando Nev a fazer o mesmo.
— Seus tempos de modelo impregnaram em você essa coisa de desfilar, né?
— Essa é a primeira coisa que escuto de Nev quando chego até eles e tento
ignorar o calafrio que se apossa de mim no instante em que me lembro desses
tempos sombrios.
— Hoje é dia de diversão! Nem me lembre disso. — Dom se limita a
balançar a cabeça de um lado para o outro e abre a porta para nós.
É difícil mensurar o quão cheio está a festa, mas os corpos suados roçando
em mim, neste dia, não me incomodam nem um pouco. Na verdade, eu
particularmente amo festas em dias de festa. Deixe-me explicar,
universitários adoram festejar em dias errados. Ou seja, no meio da semana,
porém, hoje é sábado, o que quer dizer que estamos no dia certo para
celebrar, porque não temos responsabilidades amanhã além de cuidar de uma
ressaca terrível.
Na sala, não há espaço para estripulias. As pessoas trombam umas nas outras
quando dançam e tem dificuldades para se mover. O primeiro cheiro que
identifico é o de suor. E depois consigo farejar a mistura de alguns perfumes
variando entre caros e baratos. Algo no ambiente faz meus olhos arderem e
talvez seja o gelo seco que o aparelho de fazer fumaça sopra nos convidados.
Tem um jovem de cabeça para baixo tomando cerveja direto do barril. Pela
vidraça longa, vejo a competição de beerpong rolar acirrada do lado de fora e
o DJ – algum aluno que decidiu dividir sua playlist – está imerso na música
que toca, balançando a cabeça veemente de cima a baixo.
O calor consegue estar ainda mais insuportável, já que o ar-condicionado não
consegue dar vazão pela proporção de pessoas no local. Meus olhos buscam –
inconscientemente – por Thomas. E eu o encontro rindo alto de algo que
Andrew e uma mulher infestada de tatuagens dizem. Sua íris parece buscar a
minha como um efeito reativo a mim, e no momento em que a conexão é
formada, nos perdemos em nossos próprios pensamentos. Ele ergue o copo
em minha direção e eu me limito a esboçar um sorriso simpático. Um
homem, desconhecido, tromba em mim e faz com que eu trombe na pessoa
ao meu lado, como em um efeito dominó. Busco quem foi o afetado pelo meu
esbarrão e encontro Hannah me lançando uma falsa carranca.
— Chegou a megera. — Ela profere, se arrastando nas sílabas. Aperto meus
olhos em sua direção, mas deixo que a risada saia livre pela minha garganta.
As bochechas de Hannah se elevam quando ela sorri e seus olhos diminuem
um pouco. Ela usa um vestido florido praiano que balança quando ela se
move.
— Uau. — Faço com que ela dê uma voltinha. — Você resolveu roubar toda
a beleza do mundo para você?
Hannah alarga o sorriso.
— Deixei um pouco para você, Nevaeh e minhas amigas. — Ela contabiliza
nos dedos em uma falsa concentração e isso me faz rir um pouco.
Depois de uma breve graça, Hannah engancha seu braço no meu e me puxa
como se estivesse me apresentando o lugar. Ela me empurra um drink
nomeado carinhosamente por "Primavera do Diabo", que é uma mistura de
suco de morango, vodka importada e rum. O gosto é doce o suficiente para
tornar-se viciante, mas a bebida rasga e o percurso para dentro é ardente, para
não dizer corrosivo. É muito forte e Hannah me avisa que pega muito rápido,
mas engulo o líquido em um gole só.
Agarro com firmeza o plástico da embalagem que abriga a água com corante
de cor azul, enquanto me remexo ao som de alguma diva pop. Não sou muito
fã dessas garrafinhas de água colorida, porque penso com frequência na
bomba que esse corante deve ser em meu organismo. No entanto, opto por
manter em meu âmago apenas um copo de Primavera do Diabo, já que não
quero ficar bêbada tão cedo.
Assim que avisto o time de futebol chegar, meus olhos pousam em Lewis.
Ele usa uma blusa vinho que abraça seus músculos com louvor e contrastam
muito bem com suas mechas aloiradas e seus orbes castanhos. Assim que me
avista, Lewis caminha rápido até onde estou e eu apresso meus passos ao seu
encontro. Enlaço sua cintura com minhas pernas quando envolvo seu pescoço
com minhas mãos.
— Que saudade! — Grito em seu ouvido e nem me importo se estourei seus
tímpanos. Há apenas um copo de Primavera do Diabo em meu sangue,
porém já sinto parte da animação proveniente do álcool me tomar.
— O quanto você já bebeu? — Ele indaga risonho, me soltando no chão com
delicadeza.
— Assim ó. — Aproximo meu dedão ao indicador para que não sobre
espaço quase nenhum, entregando que a noite nem começou ainda.— Juro
que só bebi um copo. Não quero perder a consciência dos atos tão cedo.
Lewis ri e não acredita em minhas palavras. Penso tê-lo visto trocar um olhar
com Andrew em um ponto atrás de mim, mas decido não tirar conclusões
precipitadas. Alguma líder de torcida, amiga de Hannah, grita que
brincaremos de passa carta – um dos jogos mais famosos do colegial –,
aquele em que usamos do ar para sugar a carta e passar para a boca do colega
ao lado e se deixarmos cair, teremos que nos beijar. Dominic rapidamente
puxa Nevaeh para fora da brincadeira, pouco querendo se arriscar a deixar
alguém tocar os lábios de sua amada, no entanto, Thomas caminha até o
centro da sala com Andrew em seu encalço.
A roda se forma rapidamente, e em um piscar de olhos, Andrew, que antes
estava ao meu lado, arranca Thomas de seu lugar e troca com ele. Reviro os
olhos, porém finjo não ter reparado nos dois agindo como pré-adolescentes,
até porque não estou com muita moral no quesito maturidade. Decido parar,
por hora, com a bebida alcoólica, porque preciso estar sóbria o suficiente para
não deixar a carta cair. Entorno na boca mais água colorida para deixar como
uma mera lembrança o gosto do drink que bebi.
Do meu outro lado, está a amiga de Thomas, que estava gargalhando junto
com ele no início da festa. Provavelmente, também é a mulher dona do
alojamento em que o loiro passou a noite, e ela é absurdamente linda. O
desgraçado tem sorte.
O jogo começa tranquilo, e até agora, apenas duas pessoas se beijaram. Em
algum momento, ela deixa a carta cair e temos que nos beijar. Fica a critério
da dupla se será apenas uma bitoca ou se rolará algo mais profundo. No nosso
caso, demos apenas um selinho. Já estou beirando ao tédio quando algo
inusitado acontece. Não sei exatamente se o erro foi meu ou de Thomas, mas
a carta cai.
Ah... Mas é claro que ela cai.
Reparo nas reações de cada um na roda. Alguns parecem não se importar
nem um pouco, mas Dominic dá um pulo contido junto com Nevaeh assim
que percebem o que aconteceu. Andrew também não fica para trás, tentando
conter a alegria dentro de si e até mesmo a amiga da noite passada ao meu
lado parece feliz. Estão todos em um complô contra nós?
No entanto, antes que eu possa me pronunciar, ouço a voz de Thomas, um
tanto esganiçada, soar ao meu lado.
— Se ela quiser me beijar, vai ter que ralar. — Alguns comentam que até
rimou, outros soltam uma risada junto a ele e eu me limito a revirar os olhos.
— Passo — dou de ombros e alguns bufam irritados. — Podemos trocar a
brincadeira? Essa já ficou entediante.
Por incrível que pareça, a maioria das pessoas presentes na roda concorda
comigo que já deu. Então, alguém grita que devemos jogar Verdade ou
Consequência e eu penso que isso nunca dava certo no colegial.
Bom, como sempre, não estou errada.
Alguém que eu não conheço tenta dissuadir que a mulher ao meu lado – a
amiga de Thomas – responda se ela está envolvida com um tal de Maxon.
Está óbvio que a moça não quer responder. Ela me olha, claramente
constrangida, e alterna as vistas entre mim e Thomas.
As engrenagens do meu cérebro tentam trabalhar com a maior rapidez
possível. Lewis sibila para mim em que direção o tal Maxon está, e assim que
eu o vejo, percebo que ele é do time de futebol, então não hesito em tentar
contornar a situação.
— Por que estão perguntando isso para ela? — indago arqueando uma das
sobrancelhas.
Algumas pessoas estão apreensivas, aguardando com avidez a resposta da
mulher, e eu me sinto ainda mais perdida.
— Ontem ele foi visto com uma morena e algumas pessoas desconfiam que é
a Jules. — Uma loira aponta para a mulher ao meu lado e finalmente
descubro o nome dela.
A tal Jules, tem medo em seus olhos, está extremamente desconfortável, e
isso já me entrega que ela realmente esteve com Maxon. O homem está
pouco se importando com a brincadeira que acontece desse lado do cômodo,
concentrado demais no videogame para isso. No entanto, Jules busca meu
olhar como se estivesse pedindo ajuda para reverter uma situação, e movida
pelo impulso, solto.
— Era eu a morena — respondo e Thomas se engasga ao meu lado, porque
sabe o suficiente para ter certeza de que eu estive, na verdade, com ele no
jantar.
O resto da roda está estarrecido com a minha confissão e Jules aperta minha
mão discretamente em agradecimento. Thomas também parece me agradecer
silenciosamente com o olhar, e eu apenas me limito a acenar com a cabeça.
Nevaeh, que agora participa da brincadeira, muda o foco do assunto girando a
garrafa novamente. O tempo passa mais rápido dessa vez em meio a risadas
de pessoas que beijam desconhecidos e respondem perguntas
constrangedoras. Até que, finalmente ou não, decidem que sete minutos no
paraíso é uma ideia melhor para brincarmos. Não me movo do lugar e isso é
uma estratégia, já que as probabilidades da garrafa apontar para Thomas e eu
são bem menores. Contudo, a sorte não parece estar ao meu lado dessa vez, já
que nossa roleta improvisada aponta para mim, e quase para no homem ao
lado de Eckhoff, mas o escroto faz questão de se mexer e agora o bico do
recipiente de vodka deixa claro que meus sete minutos no paraíso serão no
inferno.
— Eu não vou a lugar algum com ele — decido cruzando os braços, pouco
me importando em parecer uma criança mimada. — Foi trapaça.
Está muito claro que a garrafa ia parar no homem ao lado de Thomas, mas o
ridículo, espertamente, se mexeu no exato momento em que ela pararia,
fazendo um pequeno relevo no tapete que alterou o resultado da nossa roleta
improvisada.
— Você aceitou trocar o jogo, Mack. — Nevaeh me encara com
compadecimento no olhar, como se quisesse estar ao meu lado nesta hora,
porém isso iria contra os princípios dela. — A garrafa está apontando para o
Thomas.
— Porque ele se mexeu na hora. Eu posso provar. — Me ergo ficando apenas
com os joelhos no chão, para ficar mais alta e imponente que os outros. —
Quando a garrafa estava quase parando, ele, coincidentemente, se mexeu, e
até mesmo formou uma dobra no tapete interferindo no resultado da garrafa.
No exato momento em que aponto para o lugar onde deveria ter o relevo
provocado pela movimentação de Thomas, ela não está mais ali. Fico
encarando o tapete extremamente liso, como se tivesse sido esticado de
qualquer jeito em uma trapaça discreta. Não é possível que ninguém tenha
visto o instante em que o traidor trapaceou.
— Olha, Mackenzie, seja lá o que você está usando, não está fazendo bem à
sua saúde. — Ele responde, mantendo o sorrisinho malicioso nos lábios.
O olhar que direciono a ele é dotado de escárnio. Conheço Thomas e sei que
o sorriso que desponta no canto de seus lábios é de puro deboche, pois nós
dois sabemos que ele trapaceou sim.
— Deixa de ser mimada, garota. — Uma loira sentada na roda se altera. —
Você aceitou a brincadeira sabendo que haveria chances de cair com ele.
— É porque, no fundo, ela está morrendo de vontade de ficar sete minutos no
paraíso comigo. — Sua voz me faz torcer o nariz em puro desgosto.
— Está mais para sete minutos no inferno.
Algumas pessoas dão uma risadinha de minhas últimas palavras, entretanto
todos parecem irredutíveis quanto a acreditarem em mim.
— Tudo bem, eu vou. — Fico de pé em um pulo. — Mas saibam que nada
acontecerá lá dentro.
Ninguém se importa muito. Alguns se limitam a acenarem com a cabeça
como se fingissem acreditar em mim e outros mantêm suas atenções a
qualquer assunto que seja melhor do que dois jovens adultos fazendo birra.
Olho para Thomas e o vejo ainda sentado na roda, com as pernas dobradas
me encarando, como se esperasse algum comando. Reviro os olhos mais uma
vez antes de me pronunciar.
— Venha, Eckhoff. — Não preciso olhar para me certificar se ele atendeu ao
meu chamado, prossigo andando em direção à dispensa sabendo que ele me
segue.
Assim que passo pela porta sinto o corpo de Thomas roçar ao meu quando ele
entra. O cômodo pequeno e lotado de prateleiras está beirando ao breu, e a
única claridade do ambiente provém da fresta de luz que rompe pela abertura
embaixo da madeira maciça. É iluminação suficiente para que eu repare em
Thomas pela primeira vez desde que cheguei. Ele usa a habitual calça preta
pouco surrada e uma blusa meia manga também preta, mas hoje calça tênis
vans com uma listra branca. Não há nada de muito extraordinário no seu
visual, mas a combinação com as tatuagens e o cabelo desgrenhado o deixa
ainda mais bonito. Que inferno.
Nenhum de nós se esforça para quebrar o silêncio que cultuamos ali dentro.
Com alguns passos de distância, Thomas está encostado em uma das
prateleiras e eu estou na outra ponta. Sua íris não desprega da minha e eu
sinto – novamente – a tensão nos engolir. É como se eu estivesse me
afogando nessa maldita areia movediça que me impede de lutar contra os
efeitos que ele tem sobre mim. Os formigamentos dão seus primeiros sinais,
desde a ponta de meus dedos até as coxas.
Eckhoff dá dois ou três passos. Estou fora de órbita demais pela tensão que
me atinge para contabilizar, mas sei que ele está perigosamente próximo. Sua
respiração bate em meu rosto com mais força e percebo meu peito subir e
descer com uma frequência maior. Odeio que meu corpo reaja a ele com tanta
facilidade, como se estivesse apenas esperando uma aproximação para
impedir todos os comandos que envio ao meu cérebro com o objetivo de ser
mais consciente. Sinto-me sozinha nessa batalha perdida, enquanto a mão
dele captura uma mecha do meu cabelo e eu, automaticamente, prendo a
respiração.
— Você já começou a contar? — Franzo o cenho descontando minha
confusão. — Os sete minutos que ficaremos aqui assim, apenas olhando um
para a cara do outro.
Temo gaguejar ao formar uma frase, então me limito a negar levemente com
a cabeça. Thomas solta um riso nasalado com a certeza de que estou nervosa,
porque as primeiras gotículas de suor já se fazem presente na palma da minha
mão que, em um gesto rápido, as limpo avidamente na saia. Não gosto de ser
uma refém nos braços de um predador, mas é como eu me sinto quando os
olhos intensos dele me devoram.
Estamos em um embate que só um tolo não perceberia. A batalha está sendo
travada entre nossos princípios, como se estivéssemos considerando as
possibilidades de nos agarrarmos aqui e agora. Thomas prometeu ontem que
não cederia a mim facilmente, e eu o rejeitei como se estivesse chutando um
cachorro sarnento. Assisto de camarote, a execução do meu orgulho. Porque
percebo, neste exato momento, que estamos em um jogo sem vencedor.
Porque independentemente de quem ceda primeiro, o outro estará
correspondendo o suficiente para tornar-se um perdedor.
— Se a gente ceder, aqui e agora, ninguém precisará saber. — Lanço a
possibilidade em um sussurro, como aquele diabinho que fica em um dos
nossos ombros.
— Você é uma diaba, Lennon. — Seus dedos se afundam em minha cintura
enquanto a outra mão enrola as mechas de minha nuca. — Uma tentação
maldita.
O canto de meus lábios se ergue em um sorriso diabólico, e Thomas parece
querer me punir por isso, porque a mão que estava em minha cintura corre
para a minha bunda e a esmaga em um apertão forte. O incômodo abaixo de
meu ventre não demora a vir. Estou pegando fogo. A sobriedade se
embrenhando pelo cérebro, me fazendo ter plena consciência dos meus atos.
Assim, agarro seus fios teimosos da nuca e aperto seu bíceps. Ainda estamos
lutando, tentando induzir que o outro ceda primeiro, mas nesse jogo, não me
importo de ser a perdedora. Não neste momento. E que se foda a minha
razão.
Minha boca pressiona a dele com força, assim como é tudo entre nós –
agressivo e forte. Sua língua toma a minha e solto um suspiro de alívio, como
se eu já estivesse sentindo falta de sentir a aspereza de suas papilas. Já não é
tão difícil encontrar um ritmo entre nós, na verdade, a tarefa parece mais
simples do que nunca agora. Sua mão arrasta desde o meu joelho até a minha
virilha por baixo da saia, e a minha intimidade pulsa como em uma resposta
instantânea.
— Não vou te perdoar tão fácil. — Recebo um tapa na lateral da coxa e freio
um gemido. — Você foi uma cachorra ontem.
Gosto do que ouço, e de como a depravação soa bem em meus ouvidos neste
momento. Sinto meus lábios intumescidos, e quase latejando. Nossos corpos
estão tão grudados que eu aposto que acabamos de desafiar alguma lei da
física. Meu peito sobe e desce no mesmo compasso que o dele. A adrenalina
– aquela mesma que sentimos quando disputamos em um racha – corrói cada
ponto do meu corpo, acelerando as batidas do meu coração em uma fusão
enlouquecedora de sensações.
— Me arrependo um pouquinho de ter te tratado mal ontem. — Acaricio seu
abdômen por baixo da camisa. — Mas eu sei como posso te recompensar.
Quando meus dedos ágeis se ocupam de desabotoar sua calça, Thomas
entende o que vai acontecer e reage no mesmo instante com um arfar ansioso.
Minha boca quase saliva me lembrando da visão que tive mais cedo. Ele me
ajuda a descer a calça enquanto eu não desgrudo minha boca de seu pescoço,
beijando, lambendo, mordendo e assoprando de leve. Subo sua camisa e,
durante o percurso, minhas unhas o arranham de leve. Desço meus beijos por
sua clavícula, seu peito por cima da blusa, até chegar à parte nua. Sugo com
avidez seu primeiro gominho, e por Deus, como eu queria fazer isso. Arrasto
meus dentes por seu abdômen e um gruído escapa por sua garganta. Thomas
agarra meu cabelo em um rabo de cavalo e eu não me canso de arranhar e
beijar cada canto de sua barriga, até chegar em suas entradas. Pressiono sua
ereção com a firmeza necessária para uma reação de puro prazer e ele não
aguenta segurar o gemido.
Brinco um pouco com o elástico de sua Calvin Klein e penso que, talvez, essa
seja uma das visões mais bonitas que já tive o prazer de presenciar. Procuro
seus olhos com os meus e grudo minha íris na sua. É difícil ter uma boa
visibilidade, mas consigo saber que suas pupilas estão dilatadas. Desço sua
cueca dando liberdade ao seu pau, e quase sorrio ao ver Thomas tão entregue
a mim, encostado na parede, com a cabeça tombada para trás e o pomo-de-
adão subindo e descendo conforme ele engole em seco. De fato, a visão do
paraíso.
Com a ajuda da saliva em minha mão, bombeio sua ereção, o masturbando de
cima a baixo, começando lentamente até que ganhe ritmo. Meus olhos não
querem desgrudar de seu rosto corado, arfante e completamente entregue.
Passo, delicadamente, o dedão em seu frênulo, fazendo com que Thomas
libere um gemido mais alto.
— Só temos sete minutos. — Sua voz sai em suspiro sôfrego e minha risada
escapole baixa.
Pisco um dos olhos.
— Tomara que seja o suficiente.
Como se eu não precisasse enrolar mais, ajoelho em sua frente, sendo
acompanhada por sua mão enroscada nos fios da minha nuca. E não demoro a
dar uma lambida generosa desde entre seus testículos até sua glande. Deixo
um beijo casto em sua glande enquanto acaricio suas bolas, vendo-o quase
enlouquecer pela provocação. Seu aperto em meus cabelos torna-se mais
forte, me incentivando a apressar as coisas.
— Chupa agora, Lennon.
Arqueio a sobrancelha assim que recebo a ordem e conecto meu olhar ao seu.
— Eu só vou ser obediente hoje porque estou em dívida com você — digo,
vendo-o soltar uma risada que mais parece um gargarejo, e posso sentir o
quanto ele está desesperado para ser finalmente chupado.
Perdendo completamente o controle que eu preservo para provocá-lo, começo
a sugar com vontade. Meus pensamentos tornam-se nebulosos assim que uma
névoa espessa toma minha mente, me impedindo de pensar com clareza.
Ocupo-me em masturbar sua base e sugar até onde consigo, enquanto minha
outra mão arranha sua coxa. Assim que consigo acomodar o máximo possível
de seu pau dentro de minha boca, apalpo suas bolas observando-o revirar os
olhos enquanto geme o meu nome. Seu membro pulsa enquanto eu pressiono
minha língua no freio de sua glande.
Deslizo a palma da mão pelo relevo quase imperceptível das estrias dos
quadris, experimentando a sensação de tocá-las de um jeito mais libertino.
Continuo chupando seu pau, ao passo que o sinto aumentar a pressão do
aperto em meu cabelo. Algo se contrai em minha virilha, me fazendo apertar
as coxas desajeitadamente por estar de joelhos, e contorcer os dedos dos pés.
— Eu vou gozar. — Ele me avisa, como em um alerta caso eu não queira
continuar ali e terminar o trabalho com a mão. No entanto, me limito em
arquear a sobrancelha em sua direção, como se o desafiasse a liberar o jato
para mim.
Ele não consegue se segurar por muito tempo. Logo sinto o líquido quente
tomar cada ponto de minha boca, e luto para não me engasgar. Termino de
limpar o canto de meus lábios e finalizo passando a língua por toda a sua
extensão, sem deixar qualquer resquício nele. Minha boca está dolorida de
tanto chupá-lo e tento controlar minha respiração que faz com que minha
garganta arda. Espero que Thomas tenha recebido, pelo menos, um dos
melhores boquetes de sua vida, porque minhas bochechas estão reclamando
assim como minha língua.
Sua mão, que agarra meu cabelo, me puxa com brutalidade para cima até
tomar meus lábios com fúria. Ouço o eco de minhas costas batendo na
prateleira quando ele inverte as posições e alguns alimentos sendo
derrubados. Ele sobe minha saia até a cintura e deixa um tapa forte na minha
bunda — sinto minha calcinha mais molhada do que o recomendado. Sua
mão é ágil ao afastar a parte da minha blusa que cobre meu seio e ele belisca
meu mamilo. A dispensa está definitivamente pegando fogo, e estamos pouco
nos fodendo porque queremos queimar.
Ele parte o beijo com uma mordida leve no meu lábio inferior, e deixa
selinhos castos pela minha bochecha, mandíbula, orelha e pescoço. Quando
sua boca está no meu colo, quase no destino ansiado por mim, sinto batidas
agressivas na porta.
— Já tem treze minutos que vocês estão aí. — Uma voz desconhecida grita,
cobrindo o barulho da música. — Agora é a vez de outra dupla.
Thomas e eu soltamos uma lufada de ar agressiva ao mesmo tempo, com a
raiva tomando as mazelas de nossos corpos.
— Puta que pariu — reclama, tirando os fios teimosos da testa. — Mas que
caralho.
Thomas parece receoso quanto a me soltar, como se esse momento pudesse
nunca mais voltar a acontecer. Por fim, pulamos para longe tentando nos
ajeitar o mais rápido possível para que ninguém perceba o que acabou de
acontecer. Quando abrimos a porta, um homem alto está a nossa espera com
ambas as sobrancelhas arqueadas. Ele tem plena noção de que passamos dez
minutos nos atracando, contudo, o ignoro puxando Eckhoff pela mão. A
cozinha tem menos pessoas do que antes, embora tenha passado pouco
tempo, entretanto a música continua reverberando alta nas caixas de som.
Pego um copo vermelho, encho de água na pia e entrego para Thomas.
— Beba. — Ergo na direção do seu rosto e ele franze o cenho em confusão.
— São duas coisas que você nunca deve negar: um boquete e um copo de
água.
Thomas ri, as bochechas subindo ao passo que diminui os olhos, e a covinha
aparece apenas em um lado.
— Você está me mimando muito hoje. — Ele cheira a água e eu me pergunto
se está conferindo a possibilidade de conter veneno. — Isso tudo é culpa por
ontem?
Balanço a cabeça positivamente.
— Mas agora já quitei minha dívida, me desculpei, te chupei e te dei água. —
Thomas acena e beberica o líquido do copo.
— Se você quiser pode me tratar mal sempre se vai pedir desculpas me
chupando. — Há um sorriso nada puro estampando seu rosto e o semblante
travesso me atrai ainda mais, como se estivéssemos em um campo magnético
e eu fosse seu polo oposto.
— Você não vale nada — afirmo.
Seu dedo indicador se arrasta pelo vale entre meus seios e eu estreito os olhos
em sua direção.
— E você adora.
Não digo nada. Espero que ele termine de beber água, analisando o
movimento de seu pomo-de-adão enquanto ele engole o líquido. Thomas joga
o copo no lixo, e logo depois aproxima seus dedos longos e calejados do meu
rosto. Ele pressiona de modo quase imperceptível a primeira pintinha em
minha face, e acaricia gentilmente cada uma delas. Algo dentro de mim se
contorce, aguardando com expectativa seus próximos passos. Eckhoff
esmaga meus lábios com os seus— ainda úmidos pelo líquido que acabou de
beber— e acaricio seu ombro largo. Afasto-me, assistindo-o escovar os fios
que caem na testa para trás, e tento disfarçar o suspiro de admiração que me
escapa.
Thomas desfaz o contato e vai primeiro para a sala, na tentativa de despistar
quem quer que fosse, e eu, aproveitando que estou na cozinha pego um
Primavera do Diabo para afastar o fogo que ainda persiste em se apoderar do
meu corpo. Na sala, o clima da festa ainda está agitado. Ninguém brinca mais
e a pista improvisada está lotada. Revejo Eckhoff que também está com o
olhar grudado em mim. Ele me lança uma piscadela e eu tento— arduamente
— não sorrir. Temos mais um segredinho sujo agora.
Tento achar algum rosto conhecido no meio dessa multidão de universitários,
no entanto, só encontro uma Hannah mais sóbria do que o previsto. Ela
balança seu corpo totalmente fora do ritmo, em uma lentidão desconfiável,
até que entendo que ela está chapada. Lewis está coordenando os que amam
um body shot e tem até um grupo jogando strip pôquer em outro canto do
cômodo. Nevaeh e Dominic jogam baralho como um casal de velhos, e eles
não têm vergonha admitindo gostar de disputar nas cartas e transar. E quem
sou eu para julgá-los?
Uma música desconhecida por mim começa e a batida envolvente toma a
sala. Já é o terceiro Primavera do Diabo que tomo e não tenho mais controle
sobre minhas faculdades mentais. Thomas me chama com o indicador e nem
se eu quisesse deixaria de atender ao seu chamado. Estou no meio da pista, de
braços cruzados, enquanto um Eckhoff animado até demais dança ao meu
redor. Não sei o que exatamente ele está fazendo, mas induz que pessoas ao
nosso redor caiam na gargalhada. Ele rebola com vontade e mexe os braços
como um boneco do posto.
— Você está me fazendo passar vergonha. — Ele me ignora e ainda tromba
seu quadril no meu, me jogando para o lado.
— Anda Mackie, se solta. — Ele insiste, porém ainda não estou convencida,
então continuo parada, irredutível. — Faça como se estivesse paralisada e
então se liberte, seus membros estão funcionando agora, anda.
Ele me vence pelo cansaço, portanto imito uma estátua e logo volto a me
mexer. Sentindo todas as partes do meu corpo balançar, estamos beirando ao
ridículo, mas os bêbados ao nosso redor parecem achar interessante e
rapidamente começam a nos imitar. Em algum momento, deixo que a
gargalhada irrompa alta pela minha garganta contagiando Thomas, que
também tomba a cabeça para trás. Não me importo com reputação, nem com
o calor insuportável e muito menos com o cheiro de suor e bebida alcoólica
que envolve o ambiente. Engulo muitos drinks e muitas cervejas.
Jules engancha o braço ao redor do meu ombro e reclama que Thomas veio a
uma festa de universitários para beber chá gelado, por isso, durante uns vinte
minutos, nos dedicamos a falar mal dele. Rihanna começa a cantar, ou talvez
seja Beyoncé, não que as vozes sejam parecidas, mas já estou alienada o
suficiente para não conseguir distinguir rosa de amarelo. O ar pesa sobre mim
e sinto um calor descomunal me tomar, até que avisto a porta de vidro da
varanda escancarada e quase corro para lá.
Quando o ar fresco se choca na minha figura um tanto bêbada, suspiro de
alívio. Sinto o vento ricochetear meus cabelos e minha pele descoberta pela
blusa curta se arrepia. É como se uma pressão em meu cérebro seja retirada
bruscamente, me deixando mais leve. Assim que me aproximo da mesa de
beerpong, escuto diferentes tipos de reclamações. Acho que a maioria já sabe
o quanto sou ruim de mira. Contudo, ignoro todos os protestos e me junto a
um loiro de ombros largos que me lança um sorriso malicioso. Como em uma
visão difusa, penso ter visto Thomas, mas os olhos cor de gelo dele são bem
diferentes da quentura proveniente dos azuis de Eckhoff.
— Eu sou o Brian. — Seu sorriso está largo demais, exageradamente
animado para quem está vendo uma desconhecida. — Sou do time.
Eu já ouvi esse nome em algum lugar. Tenho certeza, mas como eu disse
antes, não estou lúcida o suficiente para pensar com clareza.
— Eu sou Mackenzie Lennon. — Tombo meu corpo para o lado mal
conseguindo me segurar em pé. — Filha do ator, John.
O tal Brian me olha com estranheza e tento repensar minhas últimas palavras
até que caio na risada.
— Opa. John Lennon foi cantor. — Ele acha engraçado também, portanto me
acompanha na gargalhada. E antes que o assunto se prolongue, começamos a
jogar.
Inesperadamente, eu acertei algumas bolas, mas também erramos muito.
Brian me faz beber sempre que a bola não atinge ao alvo e a cevada deixa um
amargor irritante na língua. Depois que canso desse jogo, me apoio no balcão
da cozinha externa, na área da piscina, tentando controlar – sem sucesso –
minha respiração ofegante. Quero a companhia de Lewis, Nevaeh, Andrew
ou até mesmo de Thomas. Entretanto, não consigo encontrar nenhum desses
rostos no meio desses universitários extasiados.
Muita gente pula na piscina, mas penso na blusa branca que ficaria
transparente com a falta do sutiã. Brian se aproxima com um sorriso grande e
devolvo o gesto, sendo unicamente simpática. Ele sussurra algumas coisas
desconexas no meu ouvido e passa a mão na minha cintura nua. A ponta de
seus dedos é áspera demais e isso me incomoda, por isso eu digo para ele me
soltar, mas acho que ele não escuta. Antes que eu tente me afastar, sou
bruscamente puxada para longe do homem invasivo. Mal consigo me
equilibrar sobre os pés, então cambaleio sem controle. A minha salvadora é a
mesma mulher de olhos estreitos que dormiu com Thomas na noite passada.
Agradeço mentalmente e dou um beijo molhado em sua bochecha.
— Vai por mim, se beijá-lo vai querer lavar sua boca com soda cáustica. —
Acho engraçado seu tom de voz e caio na risada. Ela não parece estar
achando graça de nada, pois seu semblante está duro como uma rocha.
Antes que eu segure minha língua, já estou expelindo elogios e
agradecimentos na direção dela. O resto da frase escapole impulsivamente da
minha boca.
— ... E mesmo que você tenha transado com o ridículo do Eckhoff, digo com
certeza absoluta que você é muito legal e linda, e merece coisa melhor. —
Minhas palavras saem emboladas e Jules prende o riso. — Sabe, não sei por
que não consigo ficar longe. Mas vou te falar, nenhuma de nós o merece, ok?
Ela acha tão engraçado que cai na gargalhada, mas isso faz com que eu franza
o cenho.
— Não transamos ontem, e não se preocupe caso seja difícil ficar longe. Vai
valer a pena estar perto dele. Dê uma chance, Barbie. — Torço o nariz ao
ouvir o novo apelido. — Você não irá se arrepender. Conselho de amiga.
Eu até tento processar parcialmente suas palavras, no entanto, a única coisa
que, de fato, entra no meu cérebro é o novo laço que acabei de criar.
— Ai meu Deus! Ganhei uma nova amiga. — Invado seu espaço pessoal com
meus braços que buscam por um abraço de urso. Ela devolve com batidinhas
em minhas costas, como se não tivesse o costume de receber esse tipo de
carinho. Ou de lidar com pessoas bêbadas.
— Como você é animada, Lennon. — O tédio escorre como um veneno em
sua língua, mas não me importo muito porque estou aérea demais para isso.
O incidente com Brian é rapidamente encoberto pelo resto do tempo que
consigo me divertir com meus amigos, dançando com Lewis e virando shots
de tequila com Andrew. Acabo de cair por cima de uma cadeira quando tento
fazer uma curva na sala, arriscada demais para meu baixo equilíbrio. No
momento em que vejo algumas meninas subindo no balcão da cozinha para
dançar rapidamente me junto a elas. Fico ainda mais animada quando percebo
que está tocando Footlose nas caixas de som, um grande sucesso antigo.
Tento reproduzir a coreografia do filme e reconheço que estou longe de
performar algo minimamente aceitável.
Ademais, quando o calor no cômodo se torna ainda mais insuportável, levo a
mão ao laço que junta os lados da minha blusa. Ficarei pelada agora, preciso
disso, essa quentura está insuportável. Antes que eu retire totalmente minha
peça de roupa, sinto um solavanco e meu corpo é puxado para o chão. Não
identifiquei ainda quem está na minha frente, mas sei que é um homem
porque tem os ombros largos e másculos demais. Ele puxa o tecido da blusa e
amarra bem o laço para que não solte novamente. A delicadeza da pessoa me
acalma e eu tombo minha cabeça no peito dele.
— Vem, Mackie — reconheço a voz rouca de Thomas em meu ouvido,
enquanto ele põe uma mão emcada lado do meu rosto e beija minha testa. —
Vou te levar para a casa.
Sabe a sensação de ver alguém errado na hora errada em um lugar
errado?
Nada ali se encaixa. Eu aperto os olhos, crispo os lábios e penso. Repito esses
movimentos por, pelo menos, uns cinco minutos. Tento entender o que
exatamente não está certo e não consigo, no entanto, sei que há algo que não
deveria estar aqui. Porque John Lion acabou de sair da minha oficina, e todos
os elementos dessa simples frase são como um quebra-cabeça cheio de peças
erradas.
Luke tem os olhos tão arregalados que temo o momento em que eles pularão
para fora. Antes que eu sequer questione os motivos do membro de uma
gangue – que é meu rival declarado e reside na cidade vizinha – estar aqui,
ele já começa a se lamentar. Não contabilizo a quantidade de "me desculpe" e
"não me demita" que ouço nos últimos segundos, apenas ergo a mão em um
pedido mudo para que ele cale a porra da boca.
— Não quero um pedido de desculpa. — Coço a nuca em um claro sinal de
nervosismo. — Quero saber o que aconteceu.
Luke respira fundo e parece ponderar o tamanho do estrago que fará.
— A oficina está lotada hoje. As pessoas ficaram confusas com a mudança
repentina no dia do racha. Então, todos os mecânicos estão muito ocupados e
a demanda está grande. — Luke continua falando por um tempo, ao passo
que minha expressão beira ao tédio e estou prestes a calá-lo de novo. — Daí,
enquanto eu estava mexendo em um carro, percebi uma movimentação
estranha e vi John xeretando o automóvel que você correrá hoje.
Demoro a processar um pouco todas as informações que são dadas. Penso
primeiro na transferência de dia do racha, que sofreu um adiantamento de 48
horas, e no quanto isso quase me fez ficar de fora do evento. Contudo, a
minha necessidade de ganhar dinheiro impulsionou meus esforços de
preparar um carro a tempo. Já a parte em que Luke deixa claro ter visto um
John bisbilhotando minha BMW M1 cria um looping na minha mente.
— Luke. — Inspiro e expiro tentando reunir toda a minha paciência para
lidar com isso. — Por que diabos não tinha um filho da puta fazendo vigília
nessa porra de carro?
Meu gerente e também chefe da pequena equipe de mecânicos arregala os
olhos e levanta as sobrancelhas em um claro semblante amedrontado.
— Irmão, por favor. — Luke junta as palmas das mãos. — Eu ordenei que
alguém ficasse de olho, mas hoje o movimento está do caralho.
— Você já virou aquele carro do avesso para conferir se John não conseguiu
sabotar?
Ele acena veemente, confirmando.
— Eu cheguei a tempo, fica tranquilo.
Eu não sou um chefe ruim. Para falar a verdade, eu nem acredito muito nessa
ideia de que para ser respeitado preciso ser temido, porque tenho uma relação
ótima com todos os funcionários e às vezes até os acompanho em alguma ida
ao bar no final do expediente. A partir de bons diálogos e acordos,
conseguimos levar a oficina muito bem. Ademais, Luke é meu melhor
mecânico. Aprendeu tudo o que sabe sobre carros nas ruas de Bolfok Valley,
inclusive fazia parte da gangue dos Lions. No entanto, as coisas mudaram
quando Luke veio para a Bolfok College estudar Engenharia Automotiva
com bolsa de quase cem por cento. O cara é foda, e somos amigos desde que
éramos apenas calouros perdidos. Por isso, eu jamais o demitiria, porém
acredito que tais erros não podem ser suavizados apenas porque somos
amigos.
— Luke Jones— sibilo entre dentes. — Garanta que isso nunca mais
acontecerá.
— Sim, chefe.
Mesmo confiando totalmente na palavra dele, decido dar mais uma olhada no
carro para ter a absoluta certeza de que – seja lá o que John tramou quando
veio até aqui – não deu certo. O fato de ter tido apenas uma aula hoje adianta
metade dos meus compromissos, já que assim consigo responder as
mensagens dos fornecedores e ajudar na vasta demanda de carros para
conserto. Depois de atender as pendências administrativas, troco de roupa,
colocando um macacão de cor diferente dos meus funcionários para colocar a
mão na massa. O azul marinho, que difere do azul-claro dos demais e do
azul-caneta de Luke, serve exclusivamente para indicar que sou o chefe.
Assim, quando algum cliente vem até aqui, consegue constatar visualmente a
hierarquia da empresa.
Estou, nesse exato momento, embaixo de um modelo atual da KIA que só
serve para dar problema. A dona é uma loira rabugenta que atende pelo nome
de Kelly, e seu carro apresenta tantos problemas em um curto espaço de
tempo que já cogitei criar um cartão fidelidade exclusivo para ela. Enquanto
verifico uma das turbinas que aparentemente está exalando muito monóxido
de carbono, escuto passos contidos próximos a mim. Pouso meu olhar em
botas de salto extremamente brancas e franzo o cenho. Impulsiono com o pé
para mover a esteira abaixo de meu corpo e me arrasto para fora. Assim que
subo meu olhar para a meia calça preta e o sobretudo rosa, identifico
Mackenzie. Apenas ela usaria um casaco de um rosa choque tão vibrante.
Seus cabelos estão presos de forma alinhada no topo de sua cabeça em um
coque bem feito, e suas unhas afiadas seguram com afinco uma sacola grande
de papelão.
Não há um dia sequer que, pelo menos, um vulto de sua presença chamativa
não passe pela minha mente. A frequência em que penso nas diferentes
formas que seu corpo poderia estar sobre ou embaixo de mim aumenta em
uma quantidade desesperadora. É como se a cada dia ela retirasse com
cuidado um dos parafusos que me mantém parcialmente racional. Depois da
festa, nossa relação ficou inacreditavelmente melhor, já que conseguimos
trocar mais de quatro palavras sem entrar em uma discussão sem fim.
Desfrutar de sua presença foi difícil porque tivemos dias abarrotados de
provas e trabalhos, no entanto, não deixamos de nos comunicar
razoavelmente por mensagens.
— O que está fazendo aqui, Regina? — questiono, balançando minha cabeça
com o objetivo de fugir dos devaneios.
— Boa tarde, Mackenzie. Como você está? — Ela engrossa a voz em uma
tentativa debochada de me imitar. — Estou bem, Eckhoff. E você?
A risada escapole pela minha boca antes que eu possa responder, e ela me
bate no ombro com a sacola que segura. Lembrando que tenho educação,
pergunto como ela está e como foi seu dia. A resposta vem em forma de
discurso. É como girar uma chave que libera cerca de cem palavras por
segundo: ela me conta que teve aulas extremamente proveitosas e que está
mais do que ótima. Quando resolve que já falou o suficiente, decide
responder minha pergunta inicial.
— Você disse que teria um dia muito cheio hoje e há dez minutos respondeu
minha mensagem sobre o café da manhã da faculdade. — Me recordo
rapidamente de nosso último diálogo em que eu elogio as panquecas do
restaurante da universidade. — Presumi que você não tinha almoçado ainda,
então...
Mackenzie ergue a grande sacola em suas mãos e me mostra o símbolo de
uma ótima lanchonete situada perto da Bolfok College. A pizza de palmito é,
com toda certeza, um dos melhores pratos do local. Consigo identificar
perfeitamente bem a diferença entre os sabores da gordura, molho de tomate
e palmito no alimento. Finjo que não, mas o ato de trazer meu almoço faz
com que o coração erre uma batida. Talvez esse seja o gesto mais próximo de
carinho que eu receberia de Mackenzie por um tempo, sabendo que ela é
frequentemente ácida e odeia grude. Contudo, com pequenas atitudes, é
possível reconhecer o quanto ela se importa.
É bem provável que esse seja apenas um agradecimento por eu ter cuidado
dela no sábado, mas minha mente fantasiosa se recusa a se contentar apenas
com isso. Antes que eu possa me controlar, uso minha mão limpa para puxá-
la em minha direção e cobrir sua boca com a minha em um selinho.
— Obrigado — surpresa pelo ato inesperado vindo de mim, ela se limita a
acenar levemente com a cabeça.
— Bom, agora que já me certifiquei de que você não morrerá de fome, vou
indo. — Mack diz e antes que ela possa dar alguns passos para longe, seguro
sua mão.
— Não tão fácil, Lennon. — Ergo o canto dos lábios ao vê-la franzir o nariz
em desdém. — Almoça comigo.
— São quatro da tarde, eu já comi. — Ela parece irredutível e, por isso, a
lanço meu melhor semblante pidão.
— Então, me faça companhia e eu te recompenso com alguma das suas
comidas chiques. — Minha conta bancária deve estar me xingando de todos
os nomes possíveis agora.
— Não precisa, apenas divida comigo essas cebolas fritas que comprei junto
com a pizza de palmito horripilante.— Mackenzie bufa só para fingir que não
cedeu com tanta facilidade, mas isso não impede que o sorriso largo brote em
meu rosto.
Ela me acompanha na caminhada até meu escritório e cumprimenta
cordialmente todos os funcionários, esboçando um sorriso simpático que
dificilmente é direcionado a mim. Quando Mackenzie alinha seu corpo ao
meu, andando no mesmo ritmo, um novo adjetivo para ela surge em minha
mente.
Elegante.
Definitivamente, uma mulher absurdamente elegante. Acho que nunca vi
ninguém andar dessa forma fora das passarelas. Sua postura de quem nunca
terá problemas na coluna está ereta, a cabeça erguida de uma forma que o
nariz quase fica empinado e os passos perfeitamente sincronizados como se
estivesse em um tapete vermelho. É quase artístico observá-la caminhar, e
apenas alguns passos dela podem encantar qualquer um.
— O que está olhando? — Ergo os calcanhares em um sobressalto.
— Por quanto tempo você foi modelo? — Mackenzie me olha e pondera por
uns instantes até responder.
— Acho que desde que eu nasci. — Abro a porta do meu escritório e indico
com a cabeça para que ela entre. — Minha mãe sempre me colocou para
representar sua marca desde roupas infantis até quando alcancei a
maioridade. Eu estava sempre em desfiles e sessões fotográficas. — Ela
mantém a postura ao sentar no sofá posicionado no canto da sala. — Por que
a pergunta?
— Eu estava apenas reparando no quanto você parece estar sempre
desfilando. — Subo e desço os ombros.
— Você não é o primeiro a me dizer algo do tipo. Acho que é involuntário.
Ao entrar no meu escritório, ela se livra de seu sobretudo pesado, deixando-o
pendurado no suporte ao lado da porta. Tenho acesso livre a visão de sua saia
preta de botões e sua blusa rosa clara de decote cavado. Mackenzie comeu
todas as minhas cebolas, e se eu tive o prazer de degustar de duas foi muito.
O almoço decorre a partir de conversas amenas nada características de nós, já
que a guerra sempre estampa nossos diálogos. No entanto, estamos um tanto
cansados demais para sequer argumentar contra o outro. Lennon está
encostada no apoio do sofá, de frente para mim, com as pernas cruzadas na
altura do peito. É impossível não me perder em cada detalhe de seu rosto,
desde o espaço amplo entre suas sobrancelhas até as pintinhas espalhadas por
suas bochechas e seu pescoço, como uma verdadeira constelação. Não houve
um momento sequer em que eu deixei de desviar rapidamente o olhar para o
vale entre seus seios, e a cada movimento devido a sua respiração, eu me
perdia um pouco mais.
Mackenzie me chama atenção estalando os dedos na frente do meu rosto. Ela
não deixa de me alfinetar sobre o quanto sua beleza me distrai, mas me limito
a erguer meu dedo médio para ela. Quando entramos no assunto infância,
percebo o instante que Regina fica desconfortável. Porém, ao ouvir sobre
minhas artimanhas dignas de uma criança levada, ela se atém a ouvir com
zelo. Ouço alguns comentários ácidos sobre minha mentalidade não ter
amadurecido muito e isso nos rende uma boa discussão misturada com
risadas.
Não deixo de questioná-la sobre suas brincadeiras favoritas da infância,
contudo, não recebo nenhuma resposta. Ela somente atesta que se acostumou
a brincar sozinha, montando uma enorme cidade de bonecas com direito aos
brinquedos mais caros do mundo, imersa em uma enorme solidão. Isso faz
com que meu coração diminua um pouco mais no peito. A angústia me toma
em um solavanco desgostoso e eu tenho vontade de comprar uma máquina do
tempo e disponibilizar a ela uma infância cheia de felicidade e plenitude. A
única vontade que tenho, neste momento, é de tomá-la em meus braços em
um abraço que poderia protegê-la do mundo, mesmo que eu tenha noção do
quanto ela pode se defender sozinha. No entanto, não me movo. Continuo no
mesmo lugar sem ter a ideia se temos intimidade o suficiente para demonstrar
gestos mais carinhosos do que uma chupada fenomenal.
Nada tiraria da minha cabeça o semblante libertino que estampava o rosto de
Mackenzie quando ela me encarava enquanto sua boca deliciosa rodeava o
meu pau. Uma diaba, isso que ela é. Uma mistura perfeita entre coragem,
pureza e promiscuidade. Há algo de tentador nela – que aparentemente me
atinge em um nível perigoso – quando seus olhos transmitem inocência e seu
sorriso expõe luxúria. Talvez eu esteja enlouquecendo, de pouco a pouco, e a
presença dela só acelera o processo.
Sou retirado de meus devaneios em um solavanco assim que Mack pula do
sofá avisando que precisa enfiar a cara nos livros, pois tem uma prova na
véspera do jogo de futebol — que seria o mais importante para o time da
faculdade. Em um ímpeto, totalmente encorajado pela falta de parafusos em
meu cérebro, tenho uma ideia da qual não demoro a compartilhar.
— Regina. — chamo-a, e ela ergue a íris marrom, suas sobrancelhas se
levantando em pura curiosidade. — Venha a minha casa hoje à noite.
— Por quê? — Mackenzie parece totalmente inclinada a recusar o convite,
contudo não há muito o que argumentar. Eu estou contando apenas com a
sorte.
— É surpresa. — Lennon franze o nariz e nega veemente com a cabeça. —
Vai ter que confiar em mim.
A palavra confiança é um tanto interessante para nós dois, porque apesar das
implicâncias e provocações que parece nos consumir quando estamos na
presença um do outro, sinto-me extremamente confortável para fazer o que
quiser perto dela. E acho que isso diz muito sobre nossa relação conturbada e
disfuncional, já que ela jamais se sentaria no meu banco do carona em um
racha contra o membro de uma gangue se não confiasse em mim. Assim
como deixou que eu cuidasse dela em um momento de vulnerabilidade
quando estava bêbada.
Ela parece se convencer afinal, porque diz que tentará aparecer. Eu a convido
para me ver correr hoje, entretanto ouço a resposta que já esperava: "tenho
que estudar". Calculo mentalmente o horário de minha corrida para dar tempo
o suficiente de preparar o que eu acabei de planejar para ela. Com apenas
uma pequena mensagem para Chad, consigo adiantar minha competição e
encaixo todas as peças que faltavam para completar esse quebra-cabeça.
Declaro como finalizado meu expediente na oficina e peço que Luke leve
meu carro até a Bolfok Ride mais tarde, porque agora darei máxima atenção
ao meu plano de surpreender Mackenzie. E para deixar claro, eu faria isso por
qualquer pessoa.
Bolfok Ride está inacreditavelmente vazia. Não é comum observar o vasto
espaço sendo ocupado por poucas pessoas. A característica caixa de som
ainda está ali reverberando um Trap agressivo, contudo não há pessoas
dançando ou sequer se balançando para acompanhar o ritmo grave das
batidas. Chad está com o semblante murcho porque sabe que provavelmente
não ganhará uma boa grana hoje. Talvez a transferência de datas, de sexta-
feira para quarta, não tenha atraído a população jovem imersa em uma
semana de provas cansativa. A fazenda parece ainda mais deserta com a
diminuição dos clientes e da luz amarelada dos postes que iluminam o lugar.
Recebo uma mensagem de Dominic dizendo que ficará no alojamento de
Nevaeh porque Mackenzie disse algo sobre dormir na casa de Hannah. Não
sei exatamente em que momento as duas tornaram-se amigas o suficiente
para se acobertarem em mentiras deslavadas, no entanto hoje ela será
utilizada de bom grado. Andrew também alega que não poderá comparecer ao
racha e que não dormirá em casa, mas ele não é do tipo que nos alimenta com
justificativa, então não me esforço em perguntar aonde ele vai.
Avisto Indiana sentada ao lado de Chad, compartilhando da expressão
desanimada de quem terá uma noite particularmente devagar. Sem fortes
emoções. Lanço-os um aceno amigável e recebo caretas que oscilam entre o
tédio e o desdém. Tenho a curiosidade de saber com quem correrei, mas ela é
rapidamente sanada quando vejo John estacionar seu carro ao lado do meu na
pista principal. Quase suspiro de alívio quando vejo que terei uma corrida que
me trará uma grana fácil, e isso é tudo que um cara parcialmente quebrado
precisa no momento.
Bolfok Ride está com, pelo menos, dois terços da sua capacidade máxima,
por isso, quando os nomes dos corredores são anunciados, o barulho dos
gritos que nos ovaciona é muito mais baixo. Sinto um pouco de falta da
mulher que geralmente corre contra mim, no entanto, não vejo menor sinal de
sua presença aqui, e até questiono Indiana acerca disso.
— Não. — Ela balança veemente a cabeça. — A Rainha não tem nenhuma
corrida marcada para hoje.
Isso é no mínimo estranho. Não que a mulher misteriosa corra em todas as
sextas, contudo, Indiana já havia comentado comigo mais de uma vez que
coincidentemente quando estou aqui, ela também está. Não sou tão arrogante
de pensar que a moça venha apenas por minha causa, porque seria estrelismo
em excesso até para alguém com o ego tão inflado quanto eu. Entretanto,
ainda assim, desconfio de sua falta em um racha cotidiano.
Assim que Chad autoriza nossa entrada no carro, coloco o cinto, ajeito o
retrovisor e executo o mesmo ritual de sempre, que consiste em bater três
vezes com o dedo indicador no painel. John tem seus olhares característicos e
o que ele me lança agora é o de desafio. Como se não acreditasse que eu
pudesse vencê-lo mesmo que eu já o faça há três anos. Indiana se posiciona
entre os automóveis e movimenta o lenço, permitindo que eu pise no
acelerador.
Foi dada a largada.
O meu carro pula quando sofro o tranco da partida. Atinjo a quarta marcha
em uma velocidade imprescindível e enxergo pelo retrovisor um John que já
fica para trás. Não é que ele é um mau corredor, mas conhecendo-o bem o
suficiente, sei o exato instante em que ele executará alguma manobra, porém
simplesmente prevejo suas artimanhas e consigo desviar de todas elas.
Conhecer seu oponente é a melhor vantagem que você poderia ter.
A Avenida que estamos agora é reta e tem um asfalto tão bem feito que sinto
como se estivesse sobre um tapete, contudo, assim que atingimos a marca das
ruas sinuosas de uma cidade pequena como Bolfok Town, a adrenalina já
toma cada mazela do meu corpo. Uma curva fechada faz com que minha roda
traseira invada a calçada e eu só acelero mais. Desvio de cada buraco,
levando meu pescoço em uma dança desconfortável de um lado para o outro.
Corto a urbanização inteira com John atrás de mim, até atingir a rotatória que
me leva de volta à Avenida onde a fazenda está situada. Falta muito pouco
para essa corrida ser minha e, por causa de uma falta de atenção, o carro de
John raspa no meu, me jogando para escanteio.
O volante tremula em minhas mãos e eu o aperto ainda mais forte, com os
nós dos dedos quase brancos para não perder o controle. Se o alinhamento
dos meus pneus não fosse tão bem feito, eu estaria capotando no matagal que
cerca a pista. Essa trapaça mal feita por parte dele me deixa temporariamente
em desvantagem, no entanto, sei que John não conta com minha sexta
marcha. Esse câmbio adicional não faz milagre, mas talvez seja o momento
perfeito para acionar o turbo e alcançá-lo. Há uma estrada de terra perto o
suficiente para que seja minha última tentativa de vitória, arriscando o
suficiente para um cara como eu, contudo, ao analisar as possibilidades,
decido que essa é minha única alternativa para ganhar.
Mackenzie ficaria orgulhosa de me ver arriscando pela primeira vez em uma
corrida. Giro o volante com tudo e entro na estreita estrada de terra que me
levará em um caminho perigoso até a linha de chegada. Agradeço
mentalmente por ter escolhido uma BMW M1 forte o suficiente para
enfrentar os pedregulhos e buracos da pista não asfaltada.
Quando volto para o asfalto consigo, pelo menos, alinhar meu carro ao de
John. Ele parece ter cantado vitória antes da hora porque agora me lança um
olhar de pura indignação, mas isso não me abala porque acabo de cruzar a
linha de chegada com milissegundos de vantagem sobre ele. Consigo
desgrudar, com dificuldade, os dedos do volante. Meus pés formigam,
clamando por um descanso enquanto uma câimbra leve irrompe impetuosa
por minhas panturrilhas. Saio do carro rapidamente para esticar minhas
pernas e reservo uns segundos para alongar meu joelho enquanto, em pé,
tento alcançar meu tornozelo com as mãos. Ergo os braços e estralo os ossos
da coluna, tomando uma nota mental de pedir que Mackenzie me ensine um
pouco sobre postura ereta. Senão, eu teria problemas na escápula antes dos
trinta. Indiana vem até mim e massageia minhas omoplatas levemente como
uma parabenização pela vitória.
O dia, marcado por acontecimentos estranhos, piora ainda mais quando avisto
a mulher mascarada – que se autointitula rainha – conversando com um
homem na penumbra. Despisto Indiana e os fanáticos por mim para caminhar
silenciosamente até eles. De onde estou, não consigo ouvir nada do que
falam, mas pela linguagem corporal, entendo rapidamente que se trata de uma
discussão. Ela aponta o dedo na cara do grandalhão e ele empurra um
envelope gordo contra os seios dela. A moça misteriosa não perde tempo ao
segurar o pacote contra o peito e se exalta um pouco. Embora eles estejam
claramente falando alto, é impossível ouvir, de onde estou algo que não
sejam ruídos desconexos totalmente embaralhados. Eu até poderia tentar
decifrar o movimento dos lábios deles, mas estão devidamente tampados com
bandanas que eu costumo usar ao correr. Ela cospe mais meia dúzia de
palavras contra o homem, que se limita a acenar e virar as costas. Assim que
percebo que não haverá mais discussão, tomo meu caminho de volta à
fazenda para pegar a pouca, porém significativa grana que ganhei.
Depois de centenas de mensagens enviadas a Mackenzie com o objetivo de
confirmar sua vinda até minha casa, recebo dezenas de xingamentos em
resposta. Porém, consigo o que eu queria, uma confirmação.
Demoro, em torno de uma hora, para arrumar tudo o que quero. Fico
extremamente satisfeito quando me dou conta de que minha produção está
melhor do que o esperado. Talvez Lennon odeie e não pegue a essência da
minha ideia, mas não custa nada tentar. Tomo um banho renovador e a água
quente vai de encontro a todos os pontos doloridos em meu corpo. Seco meu
cabelo de mau jeito com a toalha e não sinto a necessidade de uma produção
exacerbada. Por isso, me atenho a usar uma calça de moletom cinza e uma
blusa de meia manga branca. Aviso a Mackenzie que não precisa vir pronta
para a New York Fashion Week porque faremos uma atividade confortável e
ela me responde que irá me agredir se eu colocá-la para fazer algum tipo de
esporte. Eu jamais faria isso com uma pessoa tão sedentária, na realidade,
eu com certeza faria isso com ela. Seria no mínimo cômico vê-la tentar me
alcançar embaralhando as pernas para correr. No entanto, me limito a
responder que não faremos nada que exija muito esforço porque sei que esse
não é exatamente seu ponto forte. No instante em que estou borrifando meu
perfume, escuto a campainha soar alta pelos cômodos.
Me parece que Mackenzie Lennon acaba de chegar.
A ansiedade percorre pelo meu corpo como uma dose cavalar de
alucinógeno. É como se meu sangue pudesse borbulhar dentro de mim e meu
coração tentasse escapulir da minha caixa torácica. A excitação me corrói
tanto que erro um degrau ao descer as escadas correndo, mas rapidamente me
recomponho, chegando ao térreo em um pulo. Paro em frente à porta e me
dou uma pausa afim de me recompor. Não paro para ponderar o motivo de
sensações tão poderosas se apossarem de mim quando Mackenzie está por
perto, apenas abstenho momentaneamente. Por fim, confiro se há vestígios de
suor em minhas axilas antes de abrir a porta.
A madeira maciça range levemente quando eu abro, e Mackenzie parece ter
acatado meu conselho, já que veste um casaco e uma calça de moletom liso e
chinelos de uma tira escrita Givenchy em letras garrafais. Seu cabelo está
solto em cascatas pelos seus ombros e um semblante desafiador estampa seu
rosto.
— Boa noite, Regina. — Seus olhos correm do topo da minha cabeça até
meus pés e eu sinto o típico arrepio que só uma encarada dela poderia causar.
— Mi casa, su casa.
Ela franze o nariz, mas seus pés fincam no chão assim que sua visão pousa no
que eu preparei. Mackenzie está estatelada, como uma estátua, os braços
estáticos ao lado do corpo e o queixo caído em conjunto com os olhos
arregalados. É difícil decifrar se sua expressão demonstra apreciação ou se
beira ao pavor.
— Que porra é essa, Thomas Eckhoff?
Ok... Definitivamente pavor.
Quando adentro a casa de Thomas, a primeira coisa que me atinge é o
ar quente promovido por seu aquecedor. A lufada de ar de alívio que escapa
por meus lábios tem como impulso o aconchego que me abraça ao conforto
do local. No entanto, meus olhos são atraídos diretamente a um amontoado
de lençóis e cobertores no chão de sua sala. E é aí que eu entendo a surpresa.
A constatação da grandiosidade do gesto faz com que o pavor se choque
contra mim em uma velocidade cruel.
— Que porra é essa, Eckhoff?
Logo depois que as palavras escapam da minha boca, me arrependo. Porque a
intenção não é ser tão ácida quanto pareceu. Estou assustada, apavorada,
honrada e admirada.
— Você disse hoje que nunca havia experimentado brincadeiras comuns da
infância. — Ele pigarreia antes de prosseguir. — E eu amava juntar os
edredons sobre a televisão e montar uma espécie de cabana com a minha
mãe. Pensei que você gostaria de vivenciar algo do tipo.
Reconheço o nervosismo de Thomas e vejo que em seu olhar tremelicante a
expectativa. Antes de respondê-lo, analiso o cômodo com atenção. Há dois
edredons se encontrando acima da televisão, formando uma cabana. No chão,
alguns cobertores e lençóis estão espalhados junto com almofadas e
travesseiros. A intenção é que a gente se acomode na maciez do enxoval e se
recoste no sofá. A organização foi feita com capricho já que até umas
luzinhas estão servindo de decoração. Também consigo distinguir pacotes de
bala de ursinho, pipoca e latas de Dr Pepper enfiadas em um balde de gelo.
Sinto-me verdadeiramente honrada por ser merecedora de tal gesto, mesmo
não tratando Thomas tão bem em muitas vezes. Não consigo evitar pensar
que jamais alguém fez algo parecido para mim.
— Não se preocupe. — Thomas se adianta. — Eu comprei refrigerante de
cereja para você.
Ele sabe que não gosto muito de Dr Pepper e fez questão de tentar me
agradar. A vontade que irrompe inóspita por mim é de me jogar nele em um
abraço, e eu não hesito, enlaçando seu tronco com meus braços esguios e
sentindo os seus passarem por minhas costas. Ele beija o topo da minha
cabeça e apoia o queixo ali. Inesperadamente, tenho vontade de chorar. É
uma sensação estranha, como se eu estivesse me dando conta neste exato
momento que ninguém ao meu redor nunca se importou muito em tentar me
agradar, ou sequer quis me ouvir. Contenho-me com avidez e guardo as
lágrimas para mim.
— Obrigada por isso. — Encosto a cabeça no lado esquerdo de seu peito, e a
retumbada acelerada de seu coração me arranca de meu estado letárgico. —
Que filme veremos?
— O Exorcista. — Ele bufa, descontando sua insatisfação. — É o seu
preferido de terror, huh?!
Afirmo em um balançar de cabeça animado.
Thomas ocupa um lado de nossa cabana e eu me sento próxima a ele,
podendo até mesmo sentir seu braço roçando levemente no meu. Não
demoramos em atacar todas as guloseimas presentes ali enquanto concedo a
atenção de uma verdadeira devota ao filme.
Longos minutos haviam passado, e eu acabo de constatar mais uma certeza
em minha vida. É impossível assistir qualquer obra de terror com Thomas
Eckhoff. Nós já tínhamos discutido centenas de vezes porque ele se apossou
do controle, e sempre que acha que tomará um susto resolve pausar o filme.
Além de afundar o dedo no botão de mudo quando uma música que indica
suspense começa. Eu já estou no auge de minha irritação, socando inúmeras
pipocas em minha boca só para não surtar com ele.
Realmente temo o momento em que ele borrará as calças de tanto medo. Um
ridículo, isso que ele é. Os sobressaltos que dá quando está apavorado me
contagiam mesmo que eu já tenha visto esse filme milhares de vezes.
Em algum momento, lá para o meio do filme, Thomas me parece muito mais
interessante a meu ver. Tento disfarçar, encarando-o pelo canto dos olhos,
desde seus pés até a camisa branca que abraça seus músculos com louvor,
exibindo sua tatuagem no peito devido à transparência do tecido. Quando a
criança de doze anos desce a escada, em uma ponte, completamente possuída,
Eckhoff se encarrega de tampar as vistas com uma almofada. Como o
verdadeiro cagão que é.
Uma de suas mãos se encarrega de segurar a almofada sobre seus olhos
enquanto a outra pousa suavemente em seu abdômen. Já vi O Exorcista tantas
vezes que, nesse momento, encarar a mão grande de Thomas me parece
muito mais proveitoso. Ele tem dedos longos que aguçam a imaginação de
qualquer pessoa, com os nós calejados pelo trabalho manual e as unhas são
tão limpas que ninguém poderia prever o tempo que passa mexendo com
graxa e sujeira. Eu já havia notado uma aspereza além do normal na ponta de
seus dedos, indicando que ele passa tempo demais mexendo em peças de
carro. É irônico pensar que Thomas adora me alfinetar no que diz respeito a
minha aparência "perfeita", no entanto ele se assemelha a mim mais do que
imagina, porque tudo nele é absolutamente lindo e beira a uma perfeição
desleixada.
Antes que eu possa controlar meus impulsos, capturo sua mão e trago até
meus lábios. Ele arfa como em uma reação instantânea ao meu toque, e
deposito o primeiro beijo em seu indicador, até pousar meu lábio em cada um
de seus dedos. Prego minha íris na sua e lanço-o um sorriso malicioso. Em
seguida, pego a almofada de sua outra mão e jogo no sofá, afinal, não
precisaremos mais dela. Meu corpo está pairando sobre o dele e nossas
respirações, que aceleram gradativamente, já se misturam como em uma
mistura enlouquecedora de sensações conflituosas. Não sei exatamente o que
há com nossos hormônios quando nos aproximamos, mas a quentura que se
apossa de mim é quase insuportável. Enlaço Thomas com uma das pernas,
afundando os joelhos nas cobertas que cobrem o chão, chocando meu tronco
no dele ao mesmo tempo em que cubro seus lábios com os meus.
A língua dele deslizando sobre a minha é como água em uma seca
inigualável. Há essa sensação, como se meu coração estivesse inflando e se
expandindo por toda a minha caixa torácica. O formigamento sobe desde os
meus pés até o topo da cabeça e cada parte do meu corpo sendo tocada por
ele queima. Encaixo as mãos uma em cada lado do seu rosto, me remexendo
em seu colo. Thomas pressiona meus quadris de tal forma que adquiro a
certeza da marca avermelhada de seus dedos. Embrenho seus fios da nuca e
aperto seu ombro enquanto inevitavelmente rebolo em seu pau. A virilha se
contrai, fazendo com que eu impulsione ainda mais de encontro a ele.
Thomas desce o aperto para minha bunda e parece estar gostando da fricção
entre nós, até me parar erguendo meu corpo.
— Hoje,— ele segura meu queixo, erguendo minha face. — é você quem
goza, Lennon.
É impossível frear o sorriso que se estende no rosto. Thomas me põe sentada
de volta sobre os cobertores do chão e me apoia no sofá. Passa o indicador
entre minhas sobrancelhas, desce pelo meu nariz e estatela os movimentos.
Ele arrasta suas mãos pela lateral do meu corpo até chegar à barra da calça, e
me ergo em uma resposta reativa aos seus comandos silenciosos. Eckhoff tira
tudo de uma vez, calça e calcinha. Seus dedos voltam roçando desde meus
pés, passando pela minha canela, coxa até a virilha. Há uma espécie de anseio
desesperado da minha parte, como se a todo o momento ele chegasse tão
perto e tivesse o prazer de parar. Contudo, ele sobe meu casaco que se
embola levemente em minha cabeça até que me conceda a liberdade.
Estou completamente nua agora, com a íris azulada de Thomas pregada em
cada canto do meu corpo. Ele tem prazer em me olhar, como um devoto fiel,
um amante de arte me contemplando como uma obra estimada. Nunca, em
toda a minha vida, recebi um olhar como esse. De admiração pura e genuína.
É um tanto engraçado o quanto gostamos de beijos agressivos e agora
estamos imersos em uma paciência incomum.
Sinto seus lábios em uma bochecha, depois na outra, na minha testa, na ponta
de meu nariz, no queixo, na mandíbula, no pescoço e no lóbulo da minha
orelha. A sugada um pouco acima da minha clavícula desperta algo embaixo
de meu ventre, um incômodo que umedece cada vez mais minha intimidade.
Thomas desce os beijos pela minha garganta e colo, agarrando um dos lados
do meu pescoço e pressionando, roubando um pouco do meu ar enquanto
chega cada vez mais perto dos meus seios. Sua palma arrasta com
agressividade em meu mamilo rijo, me impulsionando a soltar um gemido
sôfrego. Ele belisca e enche sua mão com meu seio, apertando-o fortemente.
Estou revirando os olhos e já cheguei a um ponto que eu deixaria que ele
fizesse o que quisesse comigo. Enforcando-me com uma intensidade gostosa,
ele captura meu mamilo em uma sugada que me faz arfar. Neste ponto, ele
parece gostar de me ver enlouquecer com sua mão ao redor do meu pescoço e
a boca em meu mamilo, chupando, mordendo e beijando.
Thomas me solta de uma vez, fazendo com que eu inspire o máximo de ar
que posso. Meu peito sobe em uma rapidez invejável e seu dedo indicador e
médio volta ao meu campo de visão. Ele os pressiona sobre minha boca e eu
instantaneamente atendo seu pedido mudo assim que cubro seus dedos e sugo
toda a extensão deles. O homem não demora a levá-los até minha intimidade,
passando-os sofregamente por toda a vulva. Ele me olha com um semblante
inocente, como se não tivesse ideia de que está me fazendo delirar, no entanto
o canto de seus lábios erguidos em um gesto imperceptível entrega que ele
sabe exatamente o que está fazendo comigo.
— Thomas,— ele tomba a cabeça para o lado. — Agora.
Eckhoff sabe do que estou falando porque, sem hesitar, me penetra firme e
repentinamente. Ele para os dedos dentro de mim esperando que eu cubra sua
mão com a minha o guiando do jeito que eu gosto. O gesto me excita ainda
mais quando tomo a noção de que ele quer que eu o guie, expondo como
gosto de ser tocada. Depois que ele pega o ritmo deixo que faça o trabalho
sozinho. E ele parece gostar da confiança porque não demora em pressionar
meu clitóris com o polegar. Desisto de fingir qualquer controle e apenas
tombo minha cabeça no estofado do sofá enquanto ele me fode com os dedos.
Mas, nunca seria tão fácil entre a gente. Thomas agarra os fios da minha nuca
e obriga que o contato visual seja mantido. Começo um movimentar de
quadris, ansiando por mais contato entre nós, querendo-o dentro de mim o
mais rápido possível. Contudo, nossos planos não são os mesmos porque, do
nada, ele para. Tira os dedos de dentro de mim e se afasta completamente. Já
estou pronta para xingá-lo até que ouço sua voz novamente.
— Senta no sofá.
Bufo audivelmente como demonstração de desobediência, entretanto faço o
que ele pede. Thomas agarra minhas coxas e me leva agressivamente de
encontro a ele. Obrigo-me a sustentar meu corpo com as mãos posicionadas
um pouco atrás e sinto sua língua executar um movimento circular em meu
clitóris. Porra.
Ele lambe toda a extensão da minha vulva, sugando um dos lábios em uma
provocação diabólica. Mas ele desiste, porque sem desgrudar os olhos de
mim, finalmente me chupa.
— Ah... Mackie. — Ele arfa com a cabeça enfiada entre minhas pernas. —
Você é tão deliciosa.
Sinto minha entrada acomodar sua língua enquanto ele arranha minhas coxas
com as unhas curtas e sua mão trabalha junto estimulando meu clitóris
intumescido. Pressiono as coxas ao redor de sua cabeça, ao passo que a
sensação de letargia vai ganhando espaço no corpo. Thomas massageia a
lateral da coxa com atenção, passando a língua pela extensão da vulva, até
que o sinto, o ardor do maldito tapa que ele desfere em minha carne, me
fazendo exclamar seu nome em um gemido que poderia ser audível do lado
de fora.
Quando ele volta a sugar meu ponto de prazer ao mesmo tempo em que me
penetra com dois dedos, os primeiros sinais do orgasmo fazem-se presentes.
As pernas começam a tremer e o formigamento corre por todo o meu corpo.
Sinto-me em brasa, queimando no meio de uma labareda. Thomas não para,
parece focado demais em me fazer gozar, e quando entende que estou quase
lá, suga meu clitóris com força. Então, me desfaço no auge do meu prazer
prendendo involuntariamente a cabeça dele entre minhas pernas.
Puta que pariu.
Desfaleço o corpo um tanto cansado no sofá, despencando ao perder a força
nos braços que me sustentavam. O acolchoado ampara o tronco, ao passo que
as pernas ainda tremelicam de leve, junto com a sensibilidade pelo recém-
orgasmo. Thomas aguarda o tempo necessário até que eu me recupere
totalmente, o que não demora muito.
Meus olhos pousam diretamente em sua ereção marcada na calça de
moletom, e aquilo me induz a prosseguir com meus atos. Eu mando para o
inferno qualquer grito do meu orgulho me avisando que continuar seria um
caminho sem volta. Perscruto o cômodo até encontrar a carteira de Eckhoff.
Levanto em um pulo, implorando mentalmente que tenha camisinha ali, e
quando a embalagem metálica escapa da divisória é como achar pote de ouro
no fim do arco-íris. Volto minha atenção a Thomas, que encarava, sem pudor,
a minha bunda. Sabendo que foi pego no flagra, abre um sorriso canalha para
mim. Ando até ele em passos contidos, estreitandoas vistas e balançando o
pacote de preservativo.
— Me parece que chegou a sua hora de fazer o que eu mandar.
Ele não demonstra resistência, pelo contrário, parece absolutamente pronto
para atender qualquer ordem.
— E o que você quer que eu faça, Rainha de Bolfok? — O apelido faz com
que meu estômago contorça bruscamente.
— Primeiro. — Ergo o indicador. — Tira essa blusa.
Thomas puxa a gola traseira da blusa com uma mão só, retirando-a de seu
corpo. Admiro seu braço parcialmente fechado de desenhos em preto e
branco, e a adaga se movimentando à medida que seu bíceps flexiona. Sem
hesitar, monto em cima dele, largando a camisinha ao nosso lado. Balanço o
quadril, roçando a intimidade no volume mais que evidente no meio de suas
pernas e colo nossos lábios em um beijo agressivo. Ele puxa meus fios da
nuca com força e o gruído que sai de minha garganta entrega o quanto gosto
dessa brutalidade. Minha boca arde com seu beijo. A fricção de meus
mamilos em seu peitoral, dos nossos corpos quentes atritando nos enlouquece
gradativamente. Em um espaço curto de tempo, temo delirar por completo.
Ainda sob o controle da situação, ajudo Thomas a se livrar de sua calça.
Quando seu moletom passa a ocupar qualquer lugar no chão, volto minha
atenção ao volume visível entre as pernas do loiro. Passeio com minhas mãos
pelos seus quadris, sentindo o quase imperceptível relevo de suas estrias,
arranho seu abdômen e o vejo contrair os músculos ao mesmo tempo que
uma arfada generosa escapa por entre seus lábios. Parece-me quase ofensivo
não aproveitar para beijar seu peitoral e pescoço. Sua pele macia sob meu
toque faz com que uma sensação ocupe cada mazela do meu corpo, como se
eu pudesse tocá-lo para sempre. O aroma de sabonete de amêndoas e loção
pós-barba que exala dele, me induz a enterrar o nariz na curva de seu
pescoço, inspirando com vigor ao mesmo tempo em que sugo sua pele.
Pressiono sua ereção com a mão e Eckhoff aperta minha cintura com força,
como se não pudéssemos perder nem mais um minuto sem tê-lo dentro de
mim e livre de sua cueca. Abro a embalagem metálica sem nunca desgrudar
minha íris da dele, o visto com calma para não me enrolar e perder o clima
devido a uma vergonha alheia. Assim que roço seu pau na minha entrada, ele
arqueja levantando o quadril como se implorasse para me invadir. No
entanto, eu estou no controle agora e as coisas serão do meu jeito.
Quando suas mãos agarram minha cintura e me forçam para baixo, reluto e
puxo seus fios da nuca com força.
— O que eu disse antes? — sussurro em seu ouvido e assisto sua pele
arrepiar. — Eu estou no comando.
Mordo o lóbulo de sua orelha e assopro levemente. Arrasto mais uma vez seu
pau por toda a extensão da minha vulva.
— Você me desobedeceu e foi um menino mau. — Abro um sorriso
diabólico, e suas pupilas dilatadas expõem a luxúria que nos apossa. — E
sabe o que meninos maus recebem?
— O... O que? — É até engraçado vê-lo tão entregue a mim, de modo que
mal consegue pronunciar algumas palavras.
— Punição. — Puxo seus fios com ainda mais força e Thomas geme em meu
ouvido.
Há algum tipo de alucinógeno que envia uma névoa espessa a nossa mente,
espantando qualquer tipo de pensamento coerente. Seus olhos me encaram
cheios de expectativa, como se mal pudessem esperar pelo que viria a seguir,
pela mistura do prazer com a dor. Começo arranhando seus ombros com
força, me controlando para não acabar com isso de uma vez. No entanto,
mudo meus planos repentinamente. Porque, nesse exato momento, sento no
seu pau sem avisar. Um grito esganiçado rompe pela minha garganta bem
próxima ao seu ouvido, de dor, de excitação, de prazer.
O membro dele ocupa todo o espaço que eu tenho sem que eu possa me
acostumar: grosso, volumoso, espaçoso, invasivo pra caralho. Não esqueço
que ele me desobedeceu, então seguro sua nuca com uma das mãos e a outra
se abre, levando minha palma a se chocar com a lateral de seu rosto. A
cabeça de Thomas tomba para o lado devido ao tapa. Espero qualquer reação
sua e recebo um sorriso extremamente cafajeste. Isso me impulsiona a
continuar, rebolando nele e experimentando sua grossura em movimento. A
movimentação mais extraordinária que eu já experimentei. Essa posição
torna-se, rapidamente, a minha favorita. Não existe nada muito melhor do
que assistir Thomas Eckhoff totalmente vulnerável e entregue a mim, se
debulhando nos efeitos que eu causo nele.
— Tão gostosa... — ele suspira no meu ouvido, com a voz falha, uma mão
apalpando um lado da minha bunda e a outra me apoiando pela cintura.
Ele beija e lambe meu pescoço enquanto eu intensifico os movimentos,
sentindo seu pau esfregar em meu clitóris, prestes a explodir, e eu desejo
memorizar cada som que sai de sua boca. Thomas murmura coisas
embaralhadas em meu ouvido e a cada palavra mergulho ainda mais no
estado letárgico, como se isso fosse possível, me fazendo querer ir mais
rápido e então, começo a rebolar sutilmente deixando que seu pau conheça
cada textura da parede de minha boceta.
— Rebola pra mim. — Seu pedido sai como uma lamúria, e eu não resisto a
acatá-lo.
Intensifico os movimentos, sem me deixar parar por mais cansada que eu
esteja, sentindo minha respiração ofegar e meu coração acelerar ainda mais.
Thomas investe buscando por mais contato e a sensação que me causa é
deliciosa, viciante. Deixo que ele coloque uma das mãos em meu pescoço e
me puxe para perto, juntando nossas línguas em perfeita harmonia num beijo
cúmplice. Continuo empinando minha bunda no pau dele, aproveitando a
queimação que abrange meu corpo, e ele volta a investir seus beijos em meu
pescoço. Ele suga a minha pele enquanto mete com força e apalpa meus seios
que balançam ao passo que eu quico.
— Mackie... — sorrio maliciosamente ao vê-lo fechar os olhos com força,
contraindo os lábios, ao passo que eu ergo os quadris e volto a sentar.
Esfrego minhas paredes lambuzadas e contraídas no pau dele até a glande, e
ao chegar, sua mão dá um tapa estalado em minha bunda, que me faz soltar
um grito esganiçado. Eu continuo a cavalgar mais uma vez, e rapidamente,
sentindo as pernas enfraquecerem aos poucos e os dedos dos pés se
contorcem em excitação. Meus olhos reviram e minhas pernas tremem.
Thomas sabe que estou quase gozando, então, enlaça minha cintura com
firmeza, afundando seu pau em mim, e assim que atinge um ponto mais
fundo, me desfaço em mais um orgasmo. Ele estoca e, poucas vezes depois,
goza também.
Encosto minha testa na dele e nossas respirações se misturam enquanto suas
mãos continuam apoiando minha bunda. Arrasto as palmas por suas costas,
sentindo o relevo das estrias e a rigidez do músculo. As pernas estão bambas,
assim como escuto um zumbido leve em meu ouvido enquanto o torpor toma
meu corpo. Minha cabeça pesa um pouco e eu aumento a pressão do contato
de nossas testas. Thomas recosta a cabeça no sofá, exausto, e eu aproveito o
momento de calmaria para ficar com ele dentro de mim um pouco mais.
— Caralho. — É a única palavra que sai da boca dele fazendo meu peito
tremer pela minha risada baixa. — Isso foi absurdo.
Thomas parece mais extasiado do que o normal e meu peito infla, não sei
exatamente o motivo. Levanto a perna, saindo de cima dele, e me sento ao
seu lado. Meu coração bate descompassado e temo que Thomas seja capaz de
ouvir. No entanto, ele retira o preservativo e preservamos de um tempo para
nos recuperarmos. Assim, Eckhoff se levanta em silêncio e vai ao banheiro.
A vontade repentina de fazer xixi me faz segui-lo. Assim que estamos
devidamente higienizados, jogo um pouco de água em meu rosto e passo na
nuca, na tentativa de apaziguar a labareda que ainda crepita imponente em
meu âmago.
Sou pressionada na borda da pia quando Eckhoff me pega por trás. Ele
captura as mechas de minha nuca e puxa com força. Resvala o dedo indicador
desde a base da minha coluna até o pescoço, me provocando um arrepio
imediato. Ele beija uma, duas e incontáveis vezes, deixando uma sugada forte
na curva do meu pescoço. Empino minha bunda na direção dele em uma
reação instantânea à provocação.
— Sabe, Mack. — Ele inicia, raspando os dentes em meu ombro. — Não
fique tão tranquila, nós não acabamos ainda.
Thomas me pega pelas coxas e enlaça minhas pernas ao redor dele, porém
aviso que devemos pegar nossas roupas para que Dominic e Andrew não
deem de cara com a minha calcinha jogada no chão da sala. O caminho até o
quarto foi trabalhoso e atrapalhado, porque enquanto eu agarro nossas roupas
contra meu corpo, ele dificulta seu próprio percurso deixando alguns beijos
lânguidos por meu pescoço.
Quando, finalmente adentramos o quarto, largo as roupas no chão e Thomas
me larga em sua cama sem fazer questão de ser delicado. Ele paira sobre
mim, sugando meu lábio inferior e me lança um olhar terno. É como se
nossos corpos estremecessem em um martírio apenas por estarmos separados.
Thomas se afasta, deixando suas mãos longe de mim e um gruído de protesto
escapa por entre meus lábios.
— O que foi agora, Eckhoff? — Reviro os olhos e uma carranca estampa
minha face.
— Sabe, Lennon. — Ele inicia e eu bufo em irritação. Thomas enrola uma
mecha de meu cabelo em seus dedos e prossegue. — Eu tenho uma
imaginação bem fértil, e eu quero, há muito tempo, te foder aqui do meu
jeito.
— Tá esperando o quê? — pergunto, arqueando as sobrancelhas em
impaciência.
— Fica de quatro. — A ordem me faz negar ferozmente com a cabeça.
Sei bem o que Thomas quer. Ver Mackenzie Lennon, uma mulher que preza
pelo seu orgulho, empinando a bunda para ele, pronta para receber alguns
tapas e arranhões. Entregue e vulnerável. Ele quer o troco, ansiando pelo
instante em que estará quite comigo.
Thomas se aproxima como um predador espreitando sua presa. Enrola a mão
nas mechas de minha nuca só para puxar tão forte que temo que alguns fios
sejam arrancados. Ele assopra, vagarosamente, atrás da minha orelha
enquanto raspa os dentes no lóbulo.
— Anda, Mackie... — sussurra, com o polegar acariciando a minha bochecha
e dando beijos castos na curva de meu pescoço. — Fica de quatro para mim.
Só para mim.
O reforço no tom possessivo só faz com que meus olhos diminuam enquanto
eu crispo meus lábios. As maçãs rosadas de seu rosto, a covinha apenas em
um lado estampada quando o canto de seus lábios se ergue e o cabelo
inteiramente desgrenhado me impulsiona a atender seu pedido. A posição
desfavorável jamais seria provada se não estivéssemos sendo iluminados
apenas pelo poste de luz amarelada do lado de fora. Acho que cheguei a um
ponto em que se torna muito difícil negar alguns dos seus pedidos.
Viro de bruços, apoio os antebraços no colchão, empino a bunda e imploro
que o sedentarismo não me passe a perna. Thomas, ainda segurando meu
cabelo em um rabo de cavalo, me ergue até que eu fique de joelhos. O ardor
na nuca só contribui para que a excitação aumente. Sinto seu peitoral grudado
em minhas costas e sua ereção batendo em minha bunda. Ele parece estar
vidrado em meu pescoço porque não tira os lábios dali, sugando, beijando,
lambendo e mordendo. Eckhoff desce os beijos até meu ombro, dedilha
minhas costas e aperta minha bunda com força. Ele vira minha cabeça até que
fique possível enfiar a língua em minha boca em um beijo levemente
desajeitado, porém dotado de luxúria e promiscuidade.
Ele comanda que eu volte a ficar de quatro, e parece feliz em revidar minhas
provocações roçando seu pênis em minha entrada. O movimento simples já
faz com que eu me empine totalmente entregue a ele. Seguindo seus
comandos, alcanço a gaveta do móvel ao lado da cama e pego o preservativo
com o objetivo de acelerar as coisas. Thomas parece entender, porque não
demora a me invadir – devidamente protegido – sem aviso prévio. E, assim, a
ardência se mistura ao prazer em uma mistura surreal de sensações.
— Me avise se eu estiver te machucando. — O sussurro sai sôfrego e baixo.
Thomas aguarda, até que eu me acostume com o leve ardor para continuar.
Agarra ambos os lados do meu quadril e começa a se movimentar, firme,
forte e lentamente. Parece uma dolorosa tortura, ainda mais quando ele
resolve estimular meu clitóris junto com as estocadas. Os movimentos se
agravam até que sinto o primeiro tapa forte em minha bunda, fazendo com
que eu me erga mais ainda em direção a ele. Secretamente, estou ansiando
pelo próximo.
— Porra, Lennon. — O canto de meus lábios se ergue assim que ouço o
xingamento. — Você é gostosa pra caralho.
Thomas me segura com firmeza e mete com ainda mais força. O quarto
cheira a sexo e nossos corpos suados se chocam. O teto parece ter diminuído
de tanta que é a pressão nos empurrando em uma tensão sexual palpável. É
como se o cômodo estivesse em chamas, e a única parte a salvo seja a cama
que bate na parede por causa dos nossos movimentos. O segundo tapa vem na
outra nádega fazendo com que meus braços vacilem. Eckhoff aperta meu
quadril com mais força e eu tenho a absoluta certeza de que estaremos
inteiramente marcados amanhã.
Por um tempo, os únicos sons que se sobressaem à brisa gélida do lado de
fora são os barulhos dos tapas, os gemidos altos que não conseguimos frear e
nossos corpos se chocando.
Sinto suas unhas curtas arranharem minha bunda enquanto a outra mão puxa
meu cabelo para dar a ele acesso livre aos meus lábios. Thomas me beija
enquanto me fode e eu agarro o lençol com tanta força que os nós dos dedos
estão esbranquiçados. Ele entende que não aguentarei por muito tempo e
parece estar feliz com isso, já que nós dois estamos próximos do ápice.
Quando tira seu pau de dentro de mim, e me invade de novo com brutalidade
ao mesmo instante em que belisca meu mamilo, meu corpo desiste de
aguentar e eu deixo apenas minha bunda para o alto sentindo minha boceta
contrair em volta de seu pau latejante. Ele mantém as estocadas brutas até que
nossos corpos cheguem ao limite.
Aguardo Thomas sair de mim e me ajeito na cama. Lágrimas se acumulam no
canto de meus olhos, os joelhos tremem e meu coração soca dentro do peito
com tamanha força que chega a doer. O pulmão arde assim como a vagina e o
suor que me cobre entregam a melhor transa da minha vida. Eckhoff se joga
ao meu lado, ambos encarando o teto e nenhum de nós tem forças o suficiente
para ir ao banheiro. O encaro de esguelha, admirando seu peito subir e descer
rapidamente. O cabelo desgrenhado, com uma mecha teimosa caindo sobre a
testa, as bochechas coradas e o meio sorriso de satisfação estampado em seu
rosto.
Durante os minutos que se seguem, apuro os ouvidos apenas para escutar sua
respiração calma e o farfalhar baixinho das folhas das árvores se chocando lá
fora. Enquanto engulo em seco, tentando não pensar em todas as
consequências, sinto os dedos dele se embolarem nos meus.
E é aí que eu acordo.
Não faz sentido embarcamos nessa ideia de romantismo pós-sexo, e ambos
sabemos disso. Por isso, antes que eu seja educadamente convidada a me
retirar de sua casa, me levanto, vou até o banheiro me limpar e visto a
calcinha.
— Aonde você vai? — Thomas está de lado na cama, de cueca box preta,
apoiando a cabeça na mão e flexionando seu bíceps tatuado.
Permito-me analisar por uns segundos seu corpo grande ocupar a cama de
casal que parece feita sob medida para ele, uma de suas pernas esticadas
enquanto a outra segue flexionada, o abdômen definido, o pássaro estampado
em seu peito e seus ombros largos.
Definitivamente, essa imagem – do homem com o rosto corado e cabelo
desgrenhado – poderia facilmente estampar a capa de uma revista masculina,
qualquer apreciador de arte ansiaria ter uma visão como essa. Portanto, sinto-
me privilegiada por um dia.
— Para casa. — Ando pelo quarto a procura da minha calça de moletom.
— Mackie. — Ergo a cabeça e prendo meu olhar ao dele. Thomas estende a
mão, que pairava ao lado de seu corpo, em minha direção. — Fica. Por favor.
O semblante pidão quase me convence. O bico que ele projeta me dá vontade
de cobri-lo com um selinho, contudo me limito a acenar negativamente.
— Acho melhor não.
— Ah. — Ele suspira. — Então, você vê um filme de terror absurdamente
assustador comigo e agora quer se mandar?
— Tenho certeza de que você consegue se virar sozinho. — Agarro minha
calça, assim que encontro embaixo da cama e volto minha atenção a Thomas,
estranhando não obter uma resposta.
Diferentemente do que eu pensei, Eckhoff está com os olhos arregalados
encarando algum ponto além de meu ombro e aquilo faz com que uma onda
de medo me atinja. No entanto, quando ele percebe que sua atuação me
pegou de jeito, a gargalhada estrondosa escapole de sua garganta.
Aproximo-me, fazendo com que meus joelhos resvalem na beirada da cama,
e assim sinto o perfume amadeirado dele invadir meu espaço pessoal sem
qualquer aviso prévio. Inspiro e expiro ponderando o que eu realmente quero.
E decido, por um milagre, fazer algo por mim sem pensar nas consequências.
— Tudo bem. — Balanço a cabeça. — Eu fico.
Thomas sorri largo.
— Deixa a calça aí. — Ele aponta para o chão. — Te garanto que você não
precisará dela.
Franzo o nariz, mas acato seu conselho e me jogo sobre ele.
— Eu falo enquanto durmo – aviso.
— Sem problemas.
— E também me mexo muito. — Thomas dá de ombros, concedendo zero
atenção às minhas tentativas de convencê-lo. — Acordo com remelas e
bafinho matinal.
Nossas pernas estão entrelaçadas e eu descanso minha cabeça em seu peito,
acima do pássaro estampado ali. Thomas solta uma risada que reverbera pelo
meu peito, enlaçando os dois braços ao meu redor, protetoramente. É tão
aconchegante como estar em casa.
— Mackenzie Lennon. — Eckhoff me aperta contra ele. — Eu realmente
posso lidar com tudo isso.
Ergo meu rosto pairando sobre o dele, sentindo sua respiração bater em
minha face, enviando arrepios pelo meu corpo. A íris oceano faz um convite
tentador para que eu me afogue naquelas profundezas. Estou completamente
atada à imensidão de seus olhos que é quase impossível despregar os meus
dos seus. Analiso seu nariz pontudo, as sobrancelhas claras, as bochechas
coradas, os lábios finos e a covinha que surge à medida que seu sorriso se
alarga e seus olhos diminuem.
Não hesito em cobrir sua boca com a minha em um selinho demorado, e
depois deixo um beijo casto na ponta de seu nariz.
— Prometa que não vai se apaixonar.
Para me manter erguida, apoio minha palma em seu peito e sinto seu coração
bater acelerado. No momento, sou metade coragem para ficar aqui sem medir
como agiremos posteriormente, e a outra metade está tomada pelo medo. O
característico pavor das sensações perigosas que me invadem quando estou
com ele.
— Lennon, — Thomas põe uma mecha de meu cabelo atrás da orelha e me
encara com ternura. — Eu não prometo nada.
— Rose Lennon, — acaricio o volante de meu carro. — Pelo amor
que você sente pela mamãe, funcione!
Não há muita coisa nessa vida que me deixa mais irritada do que ser deixada
na mão pelo meu carro. Estou a caminho do jogo de futebol mais importante
da vida de Lewis e temo não chegar a tempo. E há grandes chances de isso
ser a porra do meu karma me avisando que eu deveria sim ter aceitado a
carona de um dos meus amigos. Andrew foi antes, sendo o motorista da vez e
levando Dom e Nev. Mas, para aproveitar a oportunidade de estudar mais um
pouco, resolvi recusar o convite de ocupar o quarto lugar do automóvel.
Thomas também ficou para trás com o objetivo de resolver algumas
pendências na oficina e ofereceu me levar, no entanto, meu orgulho impediu
que eu aceitasse.
Faz exatos três dias que transamos, e nenhum de nós sabe exatamente como
agir um com o outro. É claro que as alfinetadas e provocações continuam,
mas como devemos nos cumprimentar? Selinho? Abraços? Beijos na
bochecha? Aperto de mãos?
O que somos agora?
Amigos com benefícios? Em algum momento, já fomos sequer amigos?
São questionamentos demais para alguém com a cabeça lotada de paranoias e
preocupações. Quando acordei na quinta-feira, sentindo o habitual aroma de
amêndoas que Thomas exala, surtei internamente, sem saber como tratá-lo.
Contudo, ele pareceu levar a situação de um jeito muito melhor que eu.
Levantei-me absolutamente atrasada para minha primeira aula, e quando
desci até a cozinha, meu café da manhã já estava preparado dentro de uma
sacola de papelão com o seguinte bilhete:
Tive que ir abrir a oficina, mas tem escova de dente extra no banheiro,
toalha limpa e deixei seu lanche pronto para você comer no caminho. Mi
casa, su casa. Tenha um bom dia.
-T.
Fiquei três vezes mais tranquila ao saber que não teria que lidar com
nenhuma dessas complicações logo de manhã. Então, mandei uma mensagem
agradecendo a hospitalidade e, desde quarta, temos conversado por
mensagens. Creio que nossas conversas sejam mais entupidas de discussões
rasas do que de diálogos civilizados. Mas nenhum de nós se importa muito
com isso.
Interrompo meus devaneios assim que a porta do meu carro range ao abrir.
Só por desencargo de consciência, giro novamente a chave na ignição e
recebo a mesma resposta: um engasgo e nada.
Quando levanto o capô do carro, me deparo com uma série de ferragens e
turbinas, que são informações demais para o meu pobre cérebro. Sei que não
há fumaça saindo de lugar nenhum, por isso tento encontrar alguma peça que
pareça estar fora do lugar ou qualquer diferença no motor, mas tudo parece
estar dentro dos conformes. Focada demais em dar uma de mecânica, escuto
tardiamente o ronco imponente de um motor soar próximo a mim. Minhas
vistas pousam no conversível preto e reviro os olhos.
É claro que Eckhoff passaria nessa estrada, próximo a esse horário e notaria o
Cadillac rosa extravagante enguiçado. Ele engata a ré e para perto do meu
carro. Tento não viajar na sensualidade que seu Ray Ban Classic preto traz
em conjunto com seu cabelo desgrenhado pela brisa gélida de Bolfok Town.
Thomas veste uma blusa preta de gola alta, e de mangas longas que se tornam
perceptíveis assim que ele ergue os braços e a barra surge por baixo da
jaqueta de couro. O pano de sua gola, cobrindo seu pescoço, realça a
mandíbula bem demarcada, assim como a escuridão do tecido faz seu cabelo
parecer ainda mais loiro e seus olhos mais azuis. Não sei exatamente que tipo
de veneno foi colocado em minha alimentação para que eu tenha tanta
dificuldade de desgrudar as vistas de sua figura imponente.
— Precisando de um mecânico, gatinha? — pergunta e eu franzo o nariz pelo
apelido, mas aceno positivamente com a cabeça.
O sorriso que estampa o rosto dele é provocativo e quase obsceno. Contudo,
tento manter minha atenção em seus óculos de sol para que meus olhos não
passeiem por sua calça e coturno igualmente pretos.
— Eu estava dirigindo sem nenhum problema quando ele começou a
engasgar do nada e enguiçou — explico, apoiando uma mão no capô.
— O que você está vestindo? — Ele ignora toda a explicação sobre o meu
problema para fazer uma pergunta fútil.
Corro os olhos por todo o meu corpo tentando achar o que há de errado. Visto
uma segunda pele preta para aguentar o frio de Bolfok e, por cima, a blusa de
Josh – enfiada dentro do jeans rasgado de lavagem clara – decora meu tronco.
Analiso meu tênis e chego à conclusão de que está tudo certo por aqui.
— Oras — subo e desço os ombros. — A blusa do time, calça, tênis e boné.
Dou uma batida leve na aba do boné dos Bolfok Eagles e pouso as mãos nos
quadris.
— Nunca te vi tão casual. — Thomas me inspeciona dos pés à cabeça.
— É porque não estou vestida para a edição limitada de uma revista de moda.
— Giro sob os calcanhares. — Esse é meu look esportista.
A risada escapole baixa por entre seus lábios e analiso seus olhos diminuírem
à medida que suas bochechas sobem, expondo sua covinha.
— Está bonita — murmuro um agradecimento pelo elogio. — Como sempre.
Thomas acaba com minhas dúvidas sobre como cumprimentá-lo porque
enlaça meu tronco e cobre minha boca em um selinho. Sinto minhas
bochechas queimarem pelo desconcerto, mas finjo plenitude.
Ele enrola as mangas da blusa nos cotovelos e apoia as mãos no capô do
carro, inspecionando se há algo de errado. Thomas mexe em alguns cabos e
analisa o armazenador de água e óleo. Está tão compenetrado que minha
única opção é observar seu cenho e sobrancelhas franzidas, lábios crispados e
olhos cerrados entregando sua concentração. Ele ergue as vistas depositando
sua atenção em mim e eu pigarreio tentando disfarçar que estava o secando
antes.
— Por aqui está tudo certo, vou conferir lá dentro.
Maneio a cabeça em confirmação enquanto ele adentra meu carro. Thomas
analisa o painel e em menos de cinco segundos seu semblante ilumina,
indicando que ele já sabe o que há de errado.
— É a bateria. — Ele bate uma palma. — Está descarregada.
Franzo o cenho, descontando minha estranheza quanto à informação.
— Mas essa bateria não é velha.
— Pode só ter dado um problema. Leve na oficina amanhã para eu dar uma
olhada melhor. — Ele me chama com a mão e eu ocupo o banco do
motorista.
Thomas abaixa, deixando seu rosto na altura do meu, e percebo que apenas
sua respiração batendo em meu pescoço consegue me provocar um arrepio.
— Quando esse ícone aqui acender. — Ele profere baixo em meu ouvido,
apontando para o painel. — É porque a bateria descarregou.
Eu sei disso, mas na hora do nervosismo nem me dei conta de que o ícone da
bateria estava lá, aceso, praticamente implorando por atenção. Apenas a
possibilidade de ter algo errado no motor me apavorou por completo.
Agradeço a informação e Thomas avisa que fará uma chupeta, conectando
seu carro ao meu para, em dez ou quinze minutos, recarregar minha bateria.
Após conectar corretamente os cabos de ligação, Thomas liga seu Eagle
Speedster com a bateria saudável e se senta no meu banco do carona para
aguardar que a minha seja recarregada.
— Será que perderemos o jogo? — A possibilidade me aflige até o último fio
de cabelo.
— Fica tranquila, não vai demorar.
Um silêncio confortável se acomoda no interior do veículo, enquanto
contemplo a estrada um tanto deserta. O jogo será em Saint Brunnet, uma
cidade a trinta minutos de Bolfok Town, que sedia a universidade dos nossos
oponentes. Será Aves contra Lobos, e mesmo longe de casa, nosso time
espera ganhar. Lewis vem se preparando para essa partida há muito tempo,
pois diz que inúmeros olheiros da NFL irão estar nas arquibancadas da New
Brunnet College. E eu já havia prometido que estaria lá como torcedora fiel,
prestigiando-o em um momento tão importante.
— Posso te fazer uma pergunta? — Thomas quebra o silêncio. Balanço a
cabeça positivamente e ele prossegue. — Por que está usando a camisa do
Josh?
Seu tom de voz é calmo e não há rispidez em suas palavras, mas é perceptível
que ele esteve remoendo isso desde que visualizou o nome e o número de
Collins em minhas costas.
— Eu queria ir ao jogo com o uniforme, mas Lewis não conseguiu me
encontrar para entregar a dele. — Subo e desço os ombros. — Por isso pedi a
do Josh.
— Ah.
Thomas tem o olhar fixo no horizonte, como se não tivesse uma boa resposta.
Não entendo o motivo do questionamento, muito menos do silêncio sepulcral
que invade o carro nesse momento. O conforto se transforma em segundos,
trazendo um desconcerto enorme para o interior do automóvel. Eckhoff se
remexe no carona como se o banco estivesse pinicando-o. Um suspiro
resignado escapole da boca, enquanto reúno coragem para me infiltrar no
assunto.
— Por que a pergunta? — Tombo a cabeça no estofado para ter uma visão
parcial do rosto dele.
Thomas leva a mão à boca, roendo o canto de suas unhas, enquanto pondera
sobre algo. A tensão que parece comprimir o ar contra nós não é habitual ao
ponto de arrancar nossa fala. E esse é o efeito de uma transa, mesmo já tendo
visto o outro pelado, não sabemos como agir quando assuntos
desconfortáveis são iniciados. A demora na resposta me traz questionamentos
que podem ser apenas uma loucura de minha mente. No entanto, minha
impulsividade em conjunto com a boca grande dá o impulso para eu soltar a
voz.
— Isso é ciúme, Eckhoff? — Um sorrisinho estampa meu semblante
brincalhão, mas Thomas continua sério.
— Sim. — A resposta vem rápida, curta e objetiva, me assustando por
completo.
Eu não imaginava que ao perguntar, ele responderia com tanta facilidade,
sem nem ao menos hesitar. Deixo que a risada presa em minha garganta saia,
tomando conta do interior do automóvel. É um tanto engraçado vê-lo com
ciúmes, principalmente porque ao mesmo tempo em que está remoendo o
sentimento por dentro, por fora Thomas mantém sua tranquilidade usual.
Seria totalmente inútil dizer que não há motivos para isso ou que não temos
nada sério porque ambos sabemos que ciúme difere totalmente de
racionalidade, é inexplicável.
Minha relação com Joshua Collins é muito boa. Nós ficamos uma vez e
flertamos em várias outras ocasiões, até mesmo por mensagens. Ele é uma
ótima pessoa, engraçado, bonito, gostoso e interessante. Do tipo que tem um
bom papo, já havíamos nos perdido no tempo, trocando mensagens por horas,
porque o assunto flui facilmente entre nós. Mas, quando essa coisa
disfuncional começou a acontecer entre mim e Thomas, a atenção
direcionada a Josh, amorosamente falando, foi deixada, aos poucos, de lado.
Como se em um determinado momento, Eckhoff tenha tomado conta dos
meus pensamentos, expulsando, inconscientemente, qualquer concorrente.
Que ele nunca saiba disso.
— Estou aguardando. — Ele tomba a cabeça em seu banco, me encarando de
lado e eu aproveito para conectar nossos olhares. Quando compreende que
não entendi nada, ouço sua voz novamente. — Tô esperando um comentário
ácido, você me zoando ou qualquer coisa do gênero.
— Não foi dessa vez, bonitão. — Balanço o indicador negativamente.
Minhas mãos ocupam cada lado do rosto dele e meu polegar deixa uma
carícia em sua bochecha, antes que nossos lábios estejam próximos o
suficiente para se encontrarem, o alarme toca indicando que já se passaram
quinze minutos. Solto uma risada baixa e me limito a deixar um beijo casto
em sua boca. Thomas não diz nada, embora o sorriso largo estampado em sua
face já explique muito. Ele desconecta o cabo de ligação e assegura que, pelo
menos por hoje, meu Cadillac não causará mais problemas. Contudo, durante
todo o caminho o Eagle Speedster dele corre próximo a mim, como se
estivesse servindo de escolta.
A New Brunnet College está lotada, desde o estacionamento cheio até as
arquibancadas. Há uma alegria anormal rondando toda a atmosfera
universitária, daquelas que só temos o prazer de presenciar em jogos de finais
de temporadas. Consigo enxergar um amontoado de alunos rindo, bebendo e
brincando entre si. A primeira coisa que faço ao chegar é comprar aquela
espécie de fantoche de mão enorme, que tem o indicador apontando para
algum lugar. Thomas me alfineta dizendo que me perdi no personagem, mas
levanto o dedo médio para ele em resposta. Acredito que nada pode tirar
minha animação ao presenciar líderes de torcida empenhadas, música alta,
grandes copos de cerveja e jogadores gostosos.
O campo verde está especialmente iluminado pela luz alaranjada do final de
tarde em conjunto com os refletores. A arquibancada que circunda o gramado
está dividida entre o vermelho do time adversário e o nosso azul marinho.
Nosso mascote de águia já corre pelo campo, tentando animar a torcida junto
com as líderes. Hannah está no topo de uma pirâmide balançando seus
pompons e gritando comandos para suas colegas de equipe. O barulho
ensurdecedor que os estudantes fazem ao berrar gritos de guerra impede que
eu complete a ligação que faço a Nevaeh. Thomas e eu tentamos inúmeras
vezes contatar nossos amigos, e quando finalmente desistimos, nos
preocupamos apenas em achar um bom lugar na arquibancada.
— Thomas Julian Eckhoff. — Uma voz feminina reverbera imponente, nos
fazendo dispersar nossa atenção até ela.
Há uma mulher, que aparenta ter a nossa idade, encarando o homem a minha
frente com os olhos brilhando em diversão. Ela, inexplicavelmente, tem uma
aparência muito parecida com a minha. O que nos difere são as sobrancelhas
bem mais perfeitas que a minha e sua pele livre de qualquer erupção ou
mancha. Os olhos castanhos são repuxados dando-a um ar felino, e o cabelo
castanho escorrido está perfeitamente alinhado. A blusa branca de gola alta
decorada com o sobretudo creme por cima deixa-a ainda mais elegante. Eu
poderia dizer que a moça é uma Kardashian perdida, e duvido que alguém
negaria se dissessem que ela é o clone da Kendall Jenner, porque as duas
realmente se parecem. Percebo com facilidade que Thomas e ela têm uma
proximidade grande, já que os dois se olham como se muitas memórias
estivessem sendo postas ali. Até mesmo o nome do meio dele – que nem eu
sabia – é de conhecimento dela.
— Jessie. — Ele murmura, desacreditado, como se estivesse vendo uma
assombração.
Analiso a cena de longe, como uma mera espectadora. Se ela prestasse bem
atenção, perceberia que estou junto com ele. Contudo, seu interesse em
Eckhoff parece grande demais para que perceba mais alguém além deles.
— Uau. — A mulher o encara da cabeça aos pés. — Você está muito
diferente.
Entre a coragem e a inconveniência, não consigo identificar muito bem, a
moça toma a liberdade de pôr as duas mãos nos ombros dele e acariciar
brevemente suas omoplatas cobertas pelo tecido da jaqueta. Há esse
incômodo, uma sensação de enjoo na boca do estômago, que não consigo
entender bem. Estou profundamente desconfortável com a situação e Thomas
parece não estar aproveitando muito também.
— Mal posso acreditar que estamos nos encontrando depois de tanto tempo.
— A moça alarga o sorriso que rasga suas maçãs do rosto. — Quase não te
reconheci, só confirmei que era você quando me deparei com seu habitual
cabelo bagunçado. Você continua sem pentear, huh?
Seu tom de voz vacila entre a admiração e o desdém, como se ela pudesse te
ofender e elogiar ao mesmo tempo. E Thomas parece ter sofrido algum tipo
de feitiço de imobilização, já que não consegue proferir nenhuma palavra
sequer. Talvez esteja tão afetado com a presença estonteante da moça que
mal consegue pensar com coerência. O incômodo aumenta e faz com que
meu coração diminua um pouquinho dentro de meu tórax.
— É... — Thomas pigarreia. — Continuo sem pentear. Ah, mas eu te
reconheci com extrema facilidade, você não mudou nadinha.
É difícil decifrar se ele está flertando ou apenas lançando uma alfinetada.
Fico mais confusa ainda quando ela simplesmente ri, tombando a cabeça para
trás em uma gargalhada contida.
— Mas me conta. — Ela pousa a mão no bíceps dele. — Continua sendo o
nerd do laboratório de química?
— Sim. — Thomas ri e a encara com fervor. — E você, continua
infernizando seus coleguinhas de classe?
Agora o desdém é ainda mais perceptível e a moça parece não gostar nada do
que ouve. Com a decisão de que esse clima tenso precisa de uma
interferência, decido dar um passo à frente para que ela perceba a minha
presença.
— Sou uma pessoa diferente agora, Tom. — Quanta intimidade. Me seguro
para não revirar os olhos com a cena que os dois protagonizam.
— Ah. — Thomas me encara. — Deixe-me apresentá-las.
A mulher finalmente percebe a minha presença. Seus olhos inquisidores me
analisam de cima a baixo, e eu quase posso ver o asco escorrendo por entre
sua íris. No entanto, quando seus orbes escuros focam em meu rosto, sua
expressão ilumina.
— Oh. — Jessie põe a mão no peito. — Eu conheço você.
Franzo o cenho em total estranheza. A certeza de que nunca a vi na vida toma
cada mazela do meu corpo e confirmo, cada vez mais, que é impossível que
ela me conheça.
— Mackenzie Lennon — reafirma. Arqueio as sobrancelhas e arregalo os
olhos em surpresa. — Estampou a capa da Vogue ano passado.
A compreensão vem como um tapa na cara quando os tempos de modelo são
relembrados. A L.L Fashion, grife de mamãe, é conhecida quase que no
mundo todo. Já esteve em inúmeras listas de marcas de roupa mais famosas
do planeta e é claro que as edições limitadas de suas coleções, representadas
pelo meu rosto, também seriam conhecidas. Não sou famosa o suficiente para
que qualquer pessoa me reconheça e peça um autógrafo, mas já estive em
estúdios e passarelas o suficiente para que um amante do mundo da moda
saiba quem eu sou: a herdeira que renegou o dinheiro da família para estudar
em uma faculdade situada em uma cidade mais que pacata.
— Sim. — Aceno com a cabeça, em confirmação. — Eu mesma.
— Jessica Smith. — Ela ergue a mão para me cumprimentar. — É um prazer
enorme te conhecer. Eu era sua fã.
Duvido muito.
Ninguém gostava muito de mim no ambiente artístico, diziam que a minha
resistência a procedimentos estéticos era sinal de rebeldia. Na verdade, já fui
recomendada a inúmeras cirurgias plásticas. Como se eu não fosse suficiente,
porque você nunca verdadeiramente é. Existe essa normatização de padrões
que acaba exigindo uma série de mudanças, inviabilizando qualquer traço de
naturalidade. Mesmo tendo um corpo e aparência aceita pela sociedade,
consigo reconhecer a pressão exercida em cima de todas as mulheres.
Quando me recusei a passar por essa tortura física e psicológica, ninguém
gostou muito. E eu saí do estúdio com o alívio irradiando pelo corpo. Para,
logo depois, embarcar em um trabalho voluntário na Guatemala.
Definitivamente, ninguém no mundo da moda vai com a minha cara.
— Ah, o prazer é meu. — Abro um sorriso simpático. — Você é uma
querida.
Escolho o primeiro adjetivo que me vem à mente sem saber muito bem o que
responder. Ela parece bem concentrada em manter um diálogo saudável entre
nós, mesmo usando de suas artimanhas para disparar algumas ofensas veladas
em nossa direção.
— Você deve me conhecer também, huh? — A pergunta me faz franzir a
testa em confusão. — Já fui capa de algumas revistas, assim como você, além
de ter sido a Miss Oroland County.
— Não conheço, desculpa.
— Ah — arqueja baixinho, parecendo ponderar acerca de algo.
Nunca o nome de nenhuma Jessie Smith havia sido citado entre nós. Sobre
sua infância, Thomas já comentou que teve apenas dois amigos porque era
um tanto excluído dentro da escola, e eu sei o quanto o colégio pode ser cruel
por aqui. Um silêncio sepulcral dança entre nós, fazendo-se audível apenas os
gritos ensurdecedores da torcida. O clima parece ainda mais constrangedor,
porque Eckhoff parece querer fugir daqui e eu ainda estou perdida dentre a
intimidade dos dois.
— Entendi. — Jessie parece desistir de tentar manter um diálogo conosco. —
Vou procurar um lugar no meu lado da torcida, foi bom ver você, Tom.
O local parece ainda mais cheio depois de termos perdido alguns minutos na
presença dela. As pessoas esbarram em nós ao passar porque não há muito
espaço para a livre circulação de universitários. O jogo está prestes a começar
e eu só quero achar um bom lugar para assistir. Quando penso que ela
finalmente sairá, ouço sua voz novamente.
— Aliás. — Ela volta a apoiar a mão no braço de Thomas. — O que você
fará após o jogo?
Se eu pudesse, cavaria um buraco nessas escadas de concreto e apareceria no
subsolo para fugir para bem longe de seus olhos inquisidores. Qualquer um
ficaria intimidado com sua postura imponente e invasiva, e Thomas parece
ainda mais desconfortável, querendo sair daqui. Ele me encara, com os olhos
gritando em socorro, como se implorasse que eu o tirasse dessa enrascada. E
sou péssima lidando com pressão, então solto a única coisa plausível que
passa pela minha mente.
— Ele vai para a minha casa. — Escondo as mãos nos bolsos do jeans e sinto
a palma dele pousar na minha lombar.
Jessie parece finalmente apagar seu ânimo aparente e sibila uma palavra de
compreensão. Entretanto, mesmo com o passa-fora delicado, ela ainda se põe
na ponta dos pés para plantar um beijo demorado no rosto de Thomas. Me
seguro para não revirar os olhos e retiro qualquer expressão de desgosto do
meu rosto, substituindo pela mais pura e genuína falsidade. Eckhoff pousa as
duas mãos nos ombros dela e a afasta sutilmente. Entendo que ele não quer
ser rígido e muito menos ríspido com a mulher, mas sua raiva é perceptível se
considerarmos os lábios crispados, a mandíbula trincada e as sobrancelhas
franzidas. Ela se despede de mim com um aceno educado e some de nossas
vistas. Talvez o que falte para Jessie seja apenas um pouco de noção. Antes
que eu comente qualquer coisa, o hino da faculdade soa e sabemos que o jogo
está prestes a começar.
Embora a cacofonia irritante incomode os ouvidos, me permito aproximar os
lábios da orelha de Thomas, pedindo que ele, pelo menos, me atualize acerca
da identidade da mulher que encontramos.
— É uma história longa. — Ele infla as bochechas com ar, expelindo-o pela
narina. — Depois conversamos.
Não insisto, reservando minha atenção unicamente no gramado bem cuidado
da faculdade.
O lugar que conseguimos não é muito ruim, apesar de que estamos em uma
multidão que vibra em qualquer jogada perigosa que as águias fazem. Não
entendo muito de futebol americano, mas pelo que me parece, Lewis e Josh
estão indo muito bem. O moreno de olhos cinzentos já tem até mesmo um
touchdown na conta, graças a um bom passe do Johnson. Thomas e eu
estamos tão perdidos na partida que nos limitamos a seguir as comemorações
da torcida, mesmo sem saber o que exatamente estamos celebrando. Tento
mandar o máximo de energias positivas para que o time adversário não
consiga a vantagem que tanto busca contra nós. A brutalidade do esporte às
vezes me assusta, quando um jogador tromba muito forte nos Bolfok, eu
desfiro uma série de xingamentos aos Brunnet. Eckhoff ri e assiste à partida
com a mão pousada despretensiosamente em minha coxa.
O fim do jogo chega com a vitória dos Bolfok Eagles, me fazendo pular no
colo de Thomas em uma comemoração exagerada. Grito uma série de
palavrões, exaltando o quanto somos bons, como se eu fosse uma verdadeira
torcedora. As pessoas à minha volta acham graça e entram na celebração, e
até sinto uns respingos de cerveja nos atingir, mas estou pouco me
importando com isso. Eu jamais saberia o quanto ir a um jogo universitário
pode ser proveitoso. Desço as escadas pé ante pé, na maior rapidez que
consigo, com o objetivo de chegar ao campo. Lewis vem até mim sorrindo
orgulhoso e agarrando o capacete com uma das mãos.
— Vocês ganharam! — Enlaço os braços ao seu redor por cima da grade em
um abraço desajeitado. — Estou extremamente orgulhosa de você, de
verdade.
— Obrigado, Mack. — Lewis me aperta contra ele. — É muito importante
que você esteja aqui.
Sinto a presença de Thomas atrás de mim assim que seu perfume
característico chega ao meu olfato. Ele ergue a mão para Lewis e o
parabeniza educadamente, o que é tão impessoal que ninguém diria que os
dois compartilham o mesmo sangue. Josh também vem até nós e recebe um
abraço desajeitado meu, e Thomas se limita a acenar com a cabeça. A
vontade de rir me apossa e eu faço de tudo para não soltar a gargalhada presa
em minha garganta, antes que o clima fique mais tenso, Hannah chega para
falar conosco amigavelmente.
Busco Andrew, Dom e Nev com os olhos e encontro-os em uma discussão
acalorada na base da arquibancada. Descubro que estão tentando decidir se
irão ao bar em Bolfok, que sediará a chegada dos vencedores. O Wild Eagles
leva a sério o time da cidade e é exatamente por esse motivo que o bar foi
nomeado de Águias Selvagens. No fim, fica decidido que Nev e Dom levarão
o carro de Thomas, já que o meu pode dar problema a qualquer instante,
enquanto Andrew dará carona para Lewis, Josh e Hannah que tinham vindo
no ônibus da faculdade. Então não me oponho à ideia de festejar no ambiente
rústico dotado de cerveja.
Sigo até o Cadillac espremido entre dois carros atuais e Thomas se mantém
ao meu lado, parecendo um tanto desconcertado. Há esse costume que
criamos em que podemos nos tocar sem se importar com os outros a nossa
volta. No entanto, o acordo silencioso de que ninguém saberá do nosso
envolvimento impede que a gente tente uma aproximação suspeita. A
maçaneta do Cadillac range enquanto a porta abre para me acomodar no lado
do motorista, Thomas não demora a ocupar o carona e eu afundo o dedo no
rádio com o objetivo de evitar ouvi-lo implicar comigo por causa de qualquer
coisa.
Não funciona muito, porque mesmo com Axl Rose transbordando pelo alto
falante imerso na melodia de Paradise City, Thomas continua me
atormentando. A mão esquerda apoiada no estofado do meu banco, bem
próxima a minha cabeça mexe de relance na mecha do meu cabelo, e vez ou
outra, cutuca minhas costelas de leve. Solto o ar em uma lufada ávida, e piora
quando o sinto cutucar meu sovaco.
— Quer parar? — A indagação é ignorada por ele, que agora resolve me
irritar mudando as músicas com rapidez. — Meu Deus! Você é impossível.
Não satisfeito, ele se aproxima, sinto sua respiração bater ritmada na minha
bochecha e não consigo frear o suspiro. Thomas deixa um beijo casto em
meu rosto, outro na mandíbula, mais um na têmpora e por fim, no pescoço. A
eletricidade corre como em uma maratona por toda a minha corrente
sanguínea, me fazendo afundar os dentes no lábio inferior para impedir que a
arfada generosa escape pela minha garganta. Ele quer provocar e está
extasiado com a possibilidadede me ver cair na pilha.
— Como você é insuportável, Eckhoff. — Tento me recompor o atacando. —
Quem te aguenta?!
Assisto o sorriso sacana esgueirar-se por seu semblante travesso e presumo
que virá merda por aí.
— A Jessie. — O nome sai com tanto gosto por entre seus lábios que sei que
seu único objetivo é me provocar.
Thomas quer me levar ao limite, ansiando pelo momento que será espectador
de um surto. Se não for por tesão, será por irritação. Giro o volante em
direção ao acostamento e reduzo o câmbio até frear completamente e colocar
a marcha no ponto morto.
— Por que parou? — Inclino meu corpo sobre o seu até alcançar a maçaneta
do carona.
Capturo a alavanca e empurro a porta até que esteja aberta o suficiente para
que ele saia. Sua respiração parece acariciar meu pescoço me causando um
arrepio notável. Finjo não sentir que o aperto de sua mão na minha cintura
está me afetando mais do que o recomendado. Afinal, não era para acontecer
assim. Porque eu presumi que essa tensão palpável que tenta nos engolir
sumiria no instante em que estivéssemos transando. Quanta inocência a
minha, não é? Essa porra de pressão que faz o teto do carro parecer ter
diminuído consideravelmente a ponto de eu ter a sensação de que serei
engolida por essa batalha que travo com ele não some nunca.
— Pode ir ficar com a Jessie. — Aponto para a porta aberta. — É um favor
que você faz a minha sanidade mental.
Thomas parece buscar qualquer sinal de brincadeira em minhas feições
contraídas, mas o vinco entre as sobrancelhas e a testa enrugada entrega que
estou falando sério. Algo passa por sua mente que o faz se debulhar em uma
gargalhada estrondosa.
— Está com ciúmes de mim?
Subo o canto dos lábios em desdém, mal podendo acreditar que acabei de
escutar tamanha calúnia.
— Óbvio que não, porra. — Inspiro e expiro, tentando reunir toda a minha
paciência para lidar com ele. — Mas você não acabou de dizer que ela te
aguenta? Então por favor, desgrude de mim e deixe que ela também possa
lidar com esse seu temperamento insuportável. Quem sabe não podemos
fazer um rodízio? A gente passa uns dois dias transando e o resto da semana
você faz o favor de sumir.
Os seus lábios estão crispados e ele tenta fervorosamente segurar a risada. No
entanto, ouço sua gargalhada escandalosa se embrenhar por cada canto do
carro. É como se a melodia de seu riso pudesse invadir minhas entranhas e
reverberar para dentro de mim, fazendo meu peito tremer. A tarefa mais
difícil, neste momento, é não me contagiar por seu riso.
— Mackzinha, sinto lhe informar, mas você arrumou um problemão. — Ele
fecha a porta do carro e cobre minha mão, que segura o volante, com a sua.
— Agora que esteve na minha cama, vai ter que me aturar.
— Que o universo me dê forças para não te matar até o Halloween —
murmuro enquanto engato a primeira marcha para voltar à estrada.
— Até o Halloween?
— Sim. — Balanço a cabeça com a atenção voltada à estrada. — É o nosso
prazo, teremos que trabalhar juntos até 31 de outubro e eu finalmente estarei
livre de você.
Thomas se afeta com a minha resposta, até mesmo minhas papilas sentem o
amargor que perdura dentro de mim ao proferir tamanho absurdo. É claro que
já estamos envolvidos até o pescoço nessa relação completamente
disfuncional, e não há Halloween que nos livre dessa sensação invasiva e
poderosa que apossa nossos corpos sempre que estamos perigosamente
próximos. Ele nunca saberá, no entanto, meu coração bate tão acelerado nesse
instante que temo consumir em um ataque cardíaco. As palmas das mãos já
aparentam as primeiras gotículas de suor e há esse formigamento que corre
desde o pé até o topo da cabeça. O ódio cresce assim que percebo que estou
mais envolvida do que o recomendado. Eckhoff põe a mão no meu ombro e
arrasta sua palma por toda a extensão do meu braço.
— Mack. — Sua voz sai em um sussurro no pé do meu ouvido e eu prendo a
respiração. — Sei que você não é de exatas, mas me acompanhe nas contas.
Hoje é sábado, dia 23 de outubro, ou seja, faltam exatamente oito dias até o
famoso feriado de Halloween. Você tem certeza absoluta de que quer se
livrar de mim em uma semana e um dia?
Solto o ar preso agressivamente. O peito sobe e desce em um ritmo frenético,
e a conhecida névoa espessa toma minha mente, tornando nebuloso qualquer
pensamento coerente que antes eu tentava construir.
— Não. — Solto de uma vez só, como arrancar um esparadrapo de um
machucado.
Aproveitando o semáforo fechado, Thomas segura meu queixo, com o
polegar raspando de leve nos meus lábios. Puxa meu rosto em sua direção e
cobre minha boca com a sua em um gesto rápido.
— Foi o que pensei — encerra o assunto. Volto o olhar compenetrado para a
estrada assim que o trânsito é liberado e tento não demonstrar que fico tão
afetada com seus toques.
Maldita foi a hora que eu sequer pensei que poderia ter algum tipo de
controle sobre essa situação. Errôneo foi o momento em que cogitei a
possibilidade de entrar nesse jogo com Eckhoff, em que jamais haveria um
vencedor ou perdedor. É impossível mensurar o tamanho do estrago que
aquele primeiro beijo causou, porque foi após aquele dia que Thomas se
embrenhou em minha mente, fixando suas raízes em meu corpo. Depois de o
maldito jantar, passei a fingir que meu orgulho não existe, cedendo aos seus
pedidos e embarcando no oceano de seus olhos, enfrentando a tempestade
munida de um barquinho de remo. Sem o menor preparo para lidar com as
sensações revoltas que um simples toque seu gera. O desconhecido é
medonho e o que eu lutei tanto para evitar acontece exatamente agora: a
ruína de todos os meus princípios e convicções.
Eu disse que não o beijaria, e beijei.
Disse que não cederia, e cedi.
Afirmei com veemência que não transaria com ele, e transei.
Mackenzie Lennon se afogou em seu próprio poço de gestos contraditórios,
em sua própria bolha de hipocrisia e é impossível saber quando será a
próxima contrariedade.
Suspiro cansada de todo esse jogo de gato e rato, e me pronuncio com a
exaustão se apossando do meu corpo.
— O que você quer de mim, Eckhoff?
Thomas parece ponderar um pouco. Pelo canto dos olhos, consigo ter um
vislumbre de seu semblante pensativo. Contudo, o lábio erguido em um
sorriso travesso entrega que ele sabe muito bem o que dirá.
— Lennon, — inspira, capturando a maior quantidade de ar que consegue
antes de voltar a falar. — Eu quero um encontro.
Gatilho: transtorno de ansiedade. Se não se sente confortável com tal
temática, não leia o capítulo, interrompendo assim a leitura, ou chamando a
autora no privado das redes sociais para que ela resuma.
Depois que Thomas expõe sua ideia mais que insensata de irmos a um
encontro, finalmente adentramos os limites de Bolfok Town. Não houve uma
resposta clara e objetiva para o convite, e tudo o que ele recebeu foi um
amontoado de palavras que tem como sentido uma promessa de que irei
pensar sobre. Há uma diferença gritante entre transar com alguém
ocasionalmente e, de repente, estar em um encontro com essa pessoa. É como
se, em um estalar de dedos, a relação ganhasse um pouco mais de seriedade.
Nenhum de nós está muito interessado em lidar com problemas, e desde que
transamos, não dialogamos acerca do que seríamos um para o outro a partir
de agora. Assim que avisto o letreiro extravagante do bar, meus devaneios
são interrompidos. Avisto o conversível de Eckhoff estacionado entre uma
picape e uma Harley-Davidson, a conhecida moto de Jules. Paro meu
Cadillac ao lado da máquina de duas rodas e destravo as trancas do carro.
O local está mais cheio do que imaginei. Thomas observa tudo ao meu lado,
com as mãos enfiadas nos bolsos do jeans enquanto mantém a distância
recomendável de mim. A decoração do bar é rústica e beira ao medieval,
como um grande pub Viking. Há vigas de madeira servindo como pilar para
sustentar as telhas gastas, canecas de cerveja temáticas, um jukebox próximo
a uma pista de dança improvisada, e o mármore marrom serve de apoio para
as tábuas que compõe o balcão que abriga o barman. O ambiente é escuro e
faz parecer que estamos em uma masmorra da Era Medieval, os garçons têm
barbas e cabelos longos, e são grandes exatamente como os nórdicos.
Pergunto-me mentalmente por que nunca estive aqui, enquanto analiso
algumas estacas e machados de decoração expostos na parede, lustres e
lâmpadas simulando velas artificiais e a pilastra, que acabo de desviar, é
composta por pedras grandes. É visível o quanto tentaram tornar o lugar o
mais temático possível, e conseguiram. Um telão está pendurado na parede
principal, indicando que horas antes, o jogo estava sendo transmitido aqui
para todos os moradores de Bolfok Town que torcem pelos Eagles.
É difícil caminhar pelo bar sem esbarrar em alguém, já que a maioria dos
universitários da Bolfok College se espreme entre um canto e outro para
festejar a vitória do time. Um pop atual reverbera pelas caixas de som e,
dessa vez, consigo identificar como Good in Bed da Dua Lipa. Perscruto o
local atrás de algum rosto conhecido e acho Jules sentada entre as pernas de
Maxon em um banco alto. Thomas me cutuca e aponta para uma Nevaeh
exaltada acenando para nós, próxima do restante dos nossos amigos que estão
sentados em assentos acolchoados que formam a letra U. Andrew está na
ponta da mesa, enquanto Eckhoff e eu ocupamos o banco, ficando de frente
para Nev e Dom. Eles parecem travar uma discussão acalorada com as vozes
tentando se sobrepor à música alta, assim que minhas vistas se conectam com
a de minha amiga, e percebo um sinal de alerta em sua íris escura.
— Do que estão falando? — É a primeira coisa que sai da boca de Thomas
assim que ele se senta ao meu lado.
O estofado afunda com meu peso e sinto a mão dele rente a minha, pousada
no banco despretensiosamente. Ergo-me por cima da mesa e deixo um beijo
na bochecha de Andrew para cumprimentá-lo, em seguida, faço o mesmo
com Nev e Dom respectivamente. Meu boné está na cabeça de Thomas com a
aba virada para trás desde o instante em que ele decidiu me levar ao limite do
estresse no carro.
— Estamos falando sobre a mulher misteriosa que corre contra você. —
Dominic profere após dar uma golada generosa em sua cerveja.
Instantaneamente, entendo o sinal de alerta que vi nos olhos de Nev. Não
tenho ideia de onde o assunto possa ter surgido, mas meu estômago retorce
levemente com a possibilidade remota de ser descoberta. O tema da conversa
continua o mesmo por uns minutos. Andrew diz que eles entraram na
temática porque estavam se recordando do primeiro racha que foram. Thomas
fica surpreendentemente calado, se limitando a dizer que tem assuntos
inacabados para tratar com John Lion sobre a possível tentativa de sabotagem
do líder da gangue. Subitamente, uma tristeza se apossa de mim ao me dar
conta de que inúmeras vezes brinquei com a dignidade de Eckhoff,
alfinetando-o em relação à rainha. Já até mesmo o consolei quando ele perdeu
para mim. Talvez, eu deva abrir o jogo com ele. Mas não hoje.
— Eu acho sexy todo esse mistério envolvido e o quanto ela é boa pilotando.
— Andrew quem se pronuncia, capturando uma das batatas frita que servem
de aperitivo.
Largo minha atenção em cada uma das reações das pessoas presentes na
mesa. Nevaeh arqueia a sobrancelha para mim em um gesto discreto,
enquanto Dominic se mantém impassível diante da observação de Andrew e
Thomas concorda em um aceno contido.
— Ela é sexy. — Eckhoff afirma enquanto pede ao garçom uma cerveja para
mim e um refrigerante para ele.
Tento, arduamente, não demonstrar que as impressões de Thomas sobre a
mulher que corre contra ele – no caso eu – me incomodam. Essa porra de
pontada na parte superior das costelas me deixa irritada. Eu diria que são
gases, mas infelizmente eu sei muito bem o que é. As bochechas pinicam, as
palmas transpiram e meu estômago retorce, sinto-me insuportável neste
momento, tanto que, se eu pudesse sair de dentro de mim agora mesmo, seria
perfeito. Nunca admitirei em voz alta o quanto essa pequena frase me
incomodou.
O que está acontecendo comigo?
Estou com ciúmes de mim?
As grandes canecas de chope e refrigerante batem em um baque surdo na
mesa. Nevaeh muda o assunto repentinamente para uma brincadeira que
consiste em dizer o que cada um faria se fosse tão rico quanto eu, ou quanto
meus pais. Cubro meus dedos na alça do recipiente e o levo a boca e a cevada
raspa em minhas papilas pinicando levemente.
— Eu viajaria o mundo. — Dominic é o primeiro a dizer.
— Eu iria a uma loja do tipo Gucci, e quando as atendentes me ignorassem
pensando que eu não compraria nada, eu diria algo como: tome meu cartão
platinum, quero a peça mais cara.— Nevaeh profere cada palavra com gosto
nos fazendo cair na risada.
— Eu compraria uma Harley Davidson CVO Limited, é um dos modelos
mais caros do mundo. — Andrew aponta com a batata entre os dedos.
— Acho que eu abriria outra oficina. — Thomas diz. Um muxoxo escapa
pelos lábios de todos na mesa, como se os planos dele fossem o mais sem
graça.
— E você, Mack? — Franzo o cenho ao ouvir a indagação de Dom. — Se
pudesse ter o dinheiro dos seus pais agora mesmo, o que faria?
Um suspiro sonhador escapole pela minha boca.
— Com toda certeza, eu teria um apartamento enorme e confortável só para
mim, sem dividir o banheiro com ninguém e com um closet que caiba minhas
grifes favoritas. — Eles me encaram e dão de ombros, aceitando a resposta.
A verdade é que morar em um alojamento só é confortável quando você está
acostumado com pouco luxo. Uma pessoa que ganhou seu primeiro diamante
com quatro anos e morava em uma mansão em um terreno de sete hectares,
gastava entorno de vinte e quatro mil dólares por dia e tinha um chefe de
cozinha exclusivo jamais se sentiria bem morando em um cubículo e
dividindo o banheiro com outros jovens. Eu fiz essa escolha com o objetivo
de persistir nos meus sonhos, porque seria muito mais fácil acatar a vontade
de meus pais e estar – hoje – entupida de champanhe em Paris sendo modelo.
Mas, talvez, o destino não tenha sido de todo ruim comigo, já que estou em
um bar temático, tomando cerveja e confraternizando com meus amigos.
No meio de uma conversa importante sobre política, em um embate sério
entre Republicanos e Democratas, sinto a mão de Thomas pousar
despretensiosamente sobre minha perna, um palmo acima do joelho. Ele se
embrenha pelo rasgo da calça, que dá um acesso estratégico a minha coxa.
Sinto a aspereza de sua palma correr para a parte interna, bem próxima a
virilha, enquanto seus dedos se afundam na minha carne. Crispo os lábios na
tentativa de frear o gemido baixo que quer escapar pela garganta, focando o
olhar em Nev, que gesticula bastante ao justificar o quanto odeia o método de
votação estadunidense. Era para ser um diálogo acalorado e eu estava pronta
para embasar minhas opiniões com tudo que aprendi nas aulas maçantes, no
entanto só consigo me concentrar na aspereza do indicador de Thomas que
desfere uma carícia em círculos em minha pele.
Cubro seu pulso com a mão, pensando em tirá-lo dali. Em um primeiro
momento, o suspiro de alívio corre livre pelas minhas entranhas, até eu sentir
os dedos dele brincando com o único botão da minha calça. Entrelaço minhas
mãos sobre a mesa e aperto com tanta força que os nós dos dedos ficam
esbranquiçados. Thomas desabotoa meu jeans e eu confiro seu semblante
pelo canto do olho. Ele parece fingir muito bem estar imerso no debate
político que acontece na mesa, os orbes azulados brilham entre inocência e
luxúria. Acompanho o movimento do zíper descendo vagarosamente, e eu
gostaria de dizer que não estou curtindo, mas o diabinho que vive no meu
ombro já profere inúmeros argumentos positivos que me induzem a
prosseguir com essa brincadeira embaixo da mesa nesse ambiente pouco
iluminado.
A mão de Eckhoff invade o tecido da minha peça de roupa e encontra o
algodão da minha calcinha. Não estou com a peça intima mais sexy do
mundo, afinal, ninguém me preparou para uma masturbação em público.
Sinto uma contração abaixo de meu ventre e o habitual formigamento já corre
desde os dedos dos meus pés até a nuca. Sua palma acaricia toda a extensão
da minha vulva em atrito com o pano da minha calcinha, e eu prendo um
suspiro.
— Acredito que há essa ilusão de que os cidadãos americanos estão,
diretamente, elegendo quem governará seu país — inicio, tentando retirar
minha concentração do dedo indicador de Thomas pressionando meu clitóris.
— Em 2000, por exemplo, o candidato democrata Al Gore teve mais votos
populares do que o republicano Bush. Porém, o último ganhou porque teve
mais votos no...
Afundo osdentes no lábio inferior quando a palma de Thomas desbrava
minha calcinha e faz um trabalho de subir e descer por toda a extensão úmida
da vulva.
— Teve mais votos onde? — Dominic questiona.
Cubro a borda da caneca com os lábios e sorvo um gole generoso de cerveja.
O alívio imediato me apossa para que eu prossiga com minha fala.
— Está tudo bem, Mack? — Nevaeh indaga pondo a mão sobre a minha.
— Está, sim — pigarreio. — Eu ia dizer que ele teve mais votos no Colégio
Eleitoral, e por isso foi eleito.
O sentimento de injustiça, principalmente por parte dos que se dizem
democratas, impulsiona que o resto dos meus amigos, completamente alheios
ao que acontece embaixo da mesa, continue o diálogo. Sinto meu clitóris
intumescido e a umidade entre minhas pernas aumentar gradativamente.
Decidida a não perder o jogo que travamos entre nós, levo minha mão ao
volume um pouco notável em sua calça. Pressiono sua ereção com calma e os
movimentos em mim param por alguns instantes, até que ele possa se
recompor. O sorriso diabólico implora para ser libertado, mas só permito que
o canto dos meus lábios erga discretamente. Thomas sabe que não vou aceitar
ficar para trás na batalha, então retira calmamente seus dedos de dentro de
mim. Meu corpo protesta pelo afastamento, mas fico feliz de retomar o
controle da situação.
Ele pega um petisco com a mão limpa, levando-o aos lábios como pretexto de
apanhar um guardanapo e limpar as duas mãos. Subo o zíper e fecho o botão,
logo pedindo licença educadamente e caminho a passos rápidos até o
banheiro. Imploro mentalmente que ninguém interrompa meu caminho até
meu destino e desvio com afinco de cada corpo que aparece como um
obstáculo.
O toalete está surpreendentemente vazio, e eu não demoro a girar a torneira e
alcançar o máximo de água possível com as mãos, jogando em meu rosto e
passando na nuca. A sensação de alívio vem rápida, mas não perdura por
muito tempo porque o corpo grande de Thomas já invade o cubículo, nos
trancando. O espaço entre nós vai diminuindo à medida que seu perfume
adentra minhas narinas, fazendo com que eu infle os pulmões em busca do
aroma amadeirado que ele exala. Meu corpo é prensado na parede enquanto
seus lábios cobrem os meus com urgência. Ambos queremos terminar o
serviço iniciado em público, o mais rápido possível. As mãos ágeis dele me
livram da calça e da peça íntima branca estampada com vários pequenos
emblemas da Louis Vuitton. Uma risada escapa pela boca do homem,
enquanto eu o livro de suas roupas de baixo.
Sua língua desliza sobre a minha em um beijo agressivo. Tombo a cabeça
para o lado a fim de aumentar o contato entre nós, e parece funcionar, porque
exploramos a boca um do outro enquanto nossas mãos passeiam por nossos
corpos. Envolvo seu pau com meus dedos esguios e aproveito da lubrificação
natural para movimentar minha mão de cima a baixo. Thomas interrompe o
beijo para enterrar a cabeça na curva de meu pescoço, e a lufada de ar que
escapa de seus lábios provoca um arrepio instantâneo em minha pele.
Estou com um dos pés apoiado na privada dando acesso livre aos dedos ágeis
de Eckhoff que correm pela extensão da minha vulva, deixando que seu
polegar pressione meu clitóris. Afundo os dentes em seu ombro para abafar o
gemido alto que ameaça escapar, sentindo dois dos dedos dele me invadirem
de uma vez e um grito esganiçado treme as cordas vocais fazendo com que
ele pressione sua boca na minha. Os movimentos de vai e vem continuam
tanto no seu pau quanto na minha vagina. Nossas respirações se misturam
aceleradas e seu tronco recai sobre o meu, me espremendo ainda mais contra
o mármore frio da parede.
Desço a mão, acaricio suas bolas e volto para a glande, passando o dedo
levemente por seu frênulo, fazendo com que Thomas gema e murmure
xingamentos desconexos em meu ouvido. Tenho uma visão privilegiada dos
músculos de seu abdômen tensionado quando ele chega próximo do orgasmo,
e eu não estou muito diferente. Lágrimas se acumulam no canto de meus
olhos e eu sinto o gosto metálico do sangue jorrar quando meus incisivos
afundam no lábio inferior com mais força do que o previsto. Passo a língua
no ferimento e reviro os olhos pela última vez quando sinto o beliscão leve
no meu clitóris e o tapa ardido em minha bunda. Chego ao ápice logo depois
que seu gozo escorre pela minha mão. Sua testa está apoiada em meu ombro
e eu deixo um beijo em seu pescoço. Os pulmões ardem no momento em que
inspiro a maior quantidade de ar possível para me recuperar, aproveitando a
pia acoplada na cabine maior para higienizar minhas mãos, e Thomas faz o
mesmo. Conecto minha íris a sua e o azul forma apenas um aro ao redor da
escuridão de suas pupilas dilatadas. As bochechas estão coradas e me perco
totalmente imersa na troca de olhares que acontece no banheiro do bar.
— Você vai me deixar perdido — profere em uma arfada no meu ouvido.
— Acho que você já se perdeu há muito tempo — respondo devolvendo com
um sorriso de canto. — Eu vou na frente e você chega depois para não gerar
desconfiança.
Arrumo minhas roupas assim como Thomas, dou uma rápida conferida no
espelho e decido jogar mais um pouco de água no rosto. Massageio as
bochechas na tentativa de amenizar o rubor que toma as maçãs do rosto, mas
não parece funcionar muito. Tiro um elástico preto do bolso e agarro as
mechas no topo da cabeça, dando duas voltas e prendendo em um rabo de
cavalo. Quando decido que estou apresentável o suficiente para não gerar
suspeitas do que acaba de acontecer, caminho de volta à mesa. A primeira
coisa que faço ao me sentar no banco acolchoado é perguntar sobre Thomas,
tentando disfarçar. Andrew diz que ele foi atrás de uma garota e que
provavelmente vai se esgueirar para dentro da casa dela, o que não é de todo
mentira, já que Eckhoff provavelmente se embrenhará em minhas cobertas do
alojamento, aproveitando que Nev dormirá com Dom.
Depois de algumas canecas de cerveja, danças embaraçosas na pista e
diálogos rasos dignos de uma mesa de bar, decido que está na minha hora.
Despeço-me apenas de Andrew, porque Nev e Dom já foram aproveitar o
tempo sozinho, e procuro meu acompanhante com o olhar, encontrando-o
recostado no balcão das bebidas aguardando pelo meu chamado. Lewis acena
em minha direção, se aproximando para pedir desculpas por não ter nos dado
tanta atenção. O que é compreensível já que ele comemora com Josh, Maxon
e Hannah que estão diretamente ligados ao time, e Jules acaba ficando junto
por causa do seu acompanhante. Ademais, o clima não ficaria o melhor de
todos na presença dele perto de Eckhoff, Hopkins e Bennet, que exprimem o
desagrado pelo Johnson.
Despeço de algumas pessoas que aparecem no caminho, e aceno com a
cabeça discretamente para Thomas. Não preciso olhar para saber que ele
caminha atrás de mim, em uma distância segura o suficiente para não levantar
suspeitas. Antes de entrar no carro, confiro se não há ninguém nos
observando, e ao constatar que está tudo limpo, entro junto com Eckhoff.
— Você vai mesmo para o meu alojamento? — Desvio o olhar da estrada
para conferir Thomas, que franze o cenho ao ouvir a indagação.
— Claro. — Ele acena veemente com a cabeça. — Foi você quem me
chamou.
— Eu convidei por educação quando estávamos te livrando da Kardashian
perdida — respondo e Thomas solta uma gargalhada, pousando a mão em
minha coxa.
— E eu sou inconveniente o bastante para aceitar, gatinha — rebate. Recebo
uma piscadela e não consigo frear a risada que escapole de minha garganta.
O percurso até o complexo de alojamentos foi calmo e preenchido por um
silêncio confortável. As ruas sinuosas de Bolfok Town estão desertas e
iluminadas apenas pelos postes de luz amarelada que vez ou outra ameaçam
apagar. Meu som está sintonizado na rádio da cidade, cuidada por uns
estudantes de jornalismo e música, e quando um acorde começa a soar baixo,
Thomas leva a mão para aumentar o volume consideravelmente. Ele
reconhece rapidamente e passa a acompanhar a letra em um sussurro, ao
passo que eu apuro minha audição para captar a rouquidão que Eckhoff
carrega em seu tom de voz grave. Jamais imaginaria que há talento para o
canto no meio de tantas habilidades, e me parece até mesmo um tanto injusto
existir alguém que saiba fazer tantas coisas. Porque ele sabe cantar, mexer
com carros, além de ser inteligente, diz que quebra recorde no vídeo game e
também dança. Volto minha atenção ao seu canto, agora um pouco mais alto,
e é impossível frear o sorriso que surge em minha face. É uma boa voz,
daquelas que você anseia que seja murmurada no pé do seu ouvido, e você
poderia escutá-la por um bom tempo, talvez pelo resto da vida.
Não há troca de palavras entre nós até mesmo durante a subida dos lances de
escada que nos levam em direção ao quinto andar. O 505 brilha em fontes
garrafais, sendo o contraste no meio da penumbra que agarra o vasto corredor
do meu andar. Antes de qualquer coisa, busco meus pertences para tomar um
banho e retirar o suor impregnado em mim durante o dia inteiro, e Thomas
faz o mesmo, me acompanhando em meio a risadas baixas até o banheiro
comunitário. São duas da madrugada e as cabines estão inexplicavelmente
cheias, como se todos os jovens estivessem voltando do mesmo lugar que
nós. Aguardo minha vez batendo o pé em um gesto ritmado contra os
ladrilhos do chão.
Os músculos de Thomas estão agarrados nas roupas perdidas de Dominic que
encontramos nas gavetas de Nev. O Hopkins tem um corpo mais esguio e
magrelo, ombros mais estreitos e pernas mais finas. Enquanto Eckhoff é mais
largo e encorpado. Não que ele seja uma parede de músculos como os atletas
do time, mas sua estrutura corpórea é, com certeza, maior que a de Dom. Por
isso, a impressão é de que ele está usando, pelo menos, dois números
menores que o seu normal. A parede serve de apoio para as minhas costas
enquanto me esparramo na minha cama, colocando as pernas no colo de
Thomas. Ele leva as mãos ao meu pé e começa a fazer uma massagem
realmente boa, parecendo pressionar os lugares certos.
— E então... — inicio, entrelaçando os dedos das mãos sobre a barriga.
— E então o quê?
— Não vai me contar qual é a da Miss Oroland County?
Thomas crispa os lábios até libertá-los em uma gargalhada escandalosa.
— Você é boa com apelidos, Lennon. — Aceno em confirmação e ele
continua. — A história é longa.
Um suspiro escapa por entre seus lábios e seus olhos perdem o brilho
gradativamente.
— Temos a noite toda — acalento-o e Thomas sobe as mãos para minha
panturrilha, continuando a massagem.
— O meu pai é separado da minha mãe e eles nunca tiveram nada sério. Para
falar a verdade, minha mãe era empregada da casa, os dois se envolveram e
eu nasci. Só que nesse mesmo tempo, a esposa dele também estava grávida, e
gerou o Lewis. Sim, nós somos irmãos. Esse não é um bom momento para eu
explicar o motivo de não termos uma boa relação, então vou pular para a
Jessie. — Thomas inspira e expira calmamente. — Nos conhecemos quando
meu pai ganhou minha guarda e eu entrei em um colégio particular cheio de
gente rica. Lembro que, quando eu tinha oito anos, e era o primeiro dia de
aula, Jessie foi um amor comigo. Para uma semana depois mostrar que talvez
o ser humano nasça mau sim. Aquela garota infernizou a minha vida durante
toda a escola elementar. Começou quando ela me viu lendo um livro qualquer
que não lembro mais do que se tratavae o rasgou, dizendo que se eu
continuasse lendo, viraria um maricas.
“Ela falava certas coisas tão ruins que analisando hoje em dia, só podia
escutar tamanha atrocidade dentro de casa. O que acontece é que essa
perseguição me ocasionou alguns problemas. Eu comecei a ter crises de
ansiedade e em qualquer ocasião que eu tivesse que falar em público, eu
gaguejava, tremia e suava como um porco. A Jessica cresceu como a rainha
do colégio, mandando em todos, diminuindo os desajustados e perseguindo
quem não se encaixava em seu padrão pré-determinado de adolescente. E é
muito inacreditável que hoje, vendo de perto como estou, ela tenha dado em
cima de mim tão descaradamente, e agiu como se fôssemos grandes amigos
no passado."
As sensações que viajam em meu âmago, neste momento, variam entre o
ódio e a compaixão. Há esse instinto protetor que se apossa de mim ao ouvir,
mesmo que por alto, o quanto Thomas pode ter sofrido durante sua infância e
adolescência. Eu, com certeza, fui uma versão de adolescente rica mil vezes
menos pior que Jessie. Atacar colegas de classe, direcionar discursos dotados
de ódios a eles ou qualquer coisa do tipo era muita perda de tempo para
alguém que estava tão interessada no próprio umbigo. Mesmo assim, é
inevitável pensar que algumas palavras suas podem ocasionar diversos
reflexos ruins em outras pessoas. Meu coração se comprime dentro do peito
ao imaginá-lo sendo humilhado.
— Eu fiz terapia durante um tempo. — Thomas volta a falar, aproveitando
meu estado de torpor. — Não só pelo bullying, e por um tempo me ajudou.
Fiz fonoaudióloga para tratar a gagueira também, mesmo que eu só me
embaralhasse com as palavras ao falar em público. Saí apenas quando vim
para a faculdade.
— Por que decidiu sair?
— Eu me sinto bem aqui, com a minha aparência, meus amigos, oficina e
tudo mais. Não me preocupo em ter sido o nerd do laboratório de química
nem nada do tipo, porque eu tenho umas das melhores notas do meu curso,
com certeza vou me formar com honra ao mérito e administro uma oficina.
Tenho orgulho de quem eu sou. — Eckhoff suspira e pausa a massagem,
deixando suas mãos pousadas na minha perna. — Eu até quero voltar para a
terapia, mas sempre que estou perto do Departamento de Psicologia da
faculdade perco a coragem.
"Quando eu tive que apresentar meu primeiro trabalho em público aqui na
faculdade foi um verdadeiro inferno. Montei o seminário perfeitamente bem,
sempre com atenção minuciosa aos detalhes, e quando pisei no pequeno
palanque, a voz sumiu. As palmas das mãos estavam molhadas de suor, eu
tremia, escutava um zumbido forte no ouvido e minha cabeça pesava uns
quilos a mais. Puta que pariu, como foi horrível. As horas na fono até
adiantaram porque não gaguejei muito, mas quando comecei a me embaralhar
em uma palavra ou outra, me desesperei e ferrei com tudo. Eu só pedi
desculpas e saí da sala, foi horrível. Acho que naquele dia tive minha pior
crise durante a faculdade."
É difícil mensurar o quanto estou triste, como se eu pudesse sentir o mesmo
que ele, como se a dor dele fosse minha também. O olhar de Thomas está
perdido na parede atrás de mim, e sua mão desfere uma carícia quase
imperceptível na minha panturrilha. Meu coração parece ter diminuído de
tamanho, assim como o estômago. Essas sensações são horríveis e eu nunca
me senti assim na vida ao ouvir a história de alguém. Tenho vontade de
guardá-lo em uma redoma de vidro para que ninguém nunca mais lhe faça
mal. Arrasto-me até apoiar as costas na cabeceira da cama e trago Eckhoff
para mim, enlaçando o braço ao redor do seu tronco, até que ele se deite com
a cabeça no meu peito. Pouso a mão em seu cabelo e inicio um cafuné,
tentando confortá-lo.
— Eu sinto muito. — Minha voz sai mais como um muxoxo e eu deixo um
beijo no topo de sua cabeça.
— Não sinta, está tudo bem agora. — Seu tom é tranquilo, ainda assim apoio
o queixo em seu cabelo e sinto alguns fios fazerem cócegas no meu queixo.
— Quando eu te vi pela primeira vez, pensei que fosse tão patricinha quanto
Jessie. Vocês têm umas semelhanças e jurei que você seria tão arrogante,
mimada, mesquinha, egocêntrica e republicana quanto ela.
Solto uma risada pela crítica política disfarçada no meio de tantos
xingamentos.
— Eu me enganei. — Thomas volta a falar. — Mesmo que você seja muito
mimada às vezes e até um pouco arrogante, sei que é bem mais que isso.
Tombo a cabeça para trás e encaro o teto branco do alojamento, pensando em
como não adentrar um assunto que poderia render diálogos com mais
sentimentalismo do que quero pensar agora.
— Como você tem lidado com os trabalhos que precisa apresentar em
público?
Sua mão adentra a barra da minha camisa e acaricia minha cintura.
— Nevaeh Williams começou a me ajudar, quando o trabalho era em grupo,
sempre fazíamos juntos. Ou nos momentos que precisava enfrentar sozinho,
eu buscava o olhar dela e recebia um apoio moral silencioso. As crises são
muito esporádicas agora, eu até fazia acompanhamento com ansiolíticos, mas
infelizmente, passei a recorrer ao cigarro.
— Você precisa de ajuda, Thomas Julian Eckhoff.
Ele ergue o rosto para conectar sua íris a minha e sorri.
— Julian? — Subo e desço os ombros. — Só minha mãe me chama assim.
— E a Miss. — Me refiro a Jessie com o amargor escorrendo pelas papilas. A
raiva de saber que ela foi horrível com Thomas em determinada época ainda
corre por minhas veias.
— Ela só sabe por causa da lista de chamada. — Um gruído sai de minha
boca acompanhada de uma risada baixa. — Minha mãe queria muito Julian, e
Robert ansiava por ter um filho batizado como Thomas. Já que eles nunca
estiveram juntos, a palavra dela seria a última. Contudo, ela considerou que
não me fez sozinha e resolveu que eu poderia ter os dois. Meu tio Mason deu
o ultimato dizendo que Thomas é mais bonito, ficando como primeiro nome.
Na certidão, Noora nem Robert quiseram abrir mão de terem seu legado nas
linhas do documento. — Ele pausa para suspirar e logo continua. — Por isso
me encheram de nomes, ficando Thomas Julian Eckhoff Johnson. Uma
grande bagunça.
— Não ficou tão ruim.
Solto uma risada baixa e tento não pensar em como eu poderia ficar nessa
posição para sempre. Nossas pernas estão entrelaçadas e sua cabeça recosta
em meu peito, subindo e descendo junto com a minha respiração. Uma de
minhas mãos está embrenhada em seu cabelo enquanto a outra enlaça seu
tronco, e ele acaricia minha cintura por dentro da blusa.
— E você? — Thomas rompe com o silêncio cultuado no quarto.
— Eu o quê?
— É óbvio que alguém já te machucou no passado. — Paro os movimentos
em uma reação instantânea ao comentário.— Lembro daquele cara loiro que
vi na Bolfok Ride.
Não seria o melhor momento para embarcar em uma viagem até meus
momentos com Rafe, e me abrir sobre isso com Thomas. Não é por causa de
confiança, porque inexplicavelmente, confio muito em Eckhoff. No entanto,
eu não quero que ele tenha acesso a uma parte de mim que ainda sinto um
pouco de vergonha de expor.
— Sim — respondo em um murmuro tão baixo que se o quarto não estivesse
em completo silêncio, ele também não escutaria.
— E isso te traumatizou quanto a entrar em relacionamentos?
— Não é bem isso. — Tento umedecer os lábios passando a língua por eles.
— Eu só tenho medo de entrar de cabeça em algo que eu possa sair
machucada no final. De entregar meu coração a alguém que vá pisar nele na
primeira oportunidade — suspiro, apertando as pálpebras com força. — Eu
não amei o Rafe, só que nós tínhamos uma puta amizade. Foram três meses
sendo apenas amigos, embarcando em algo um pouco mais sério do que um
simples sexo casual. Eu era virgem e ele me falava coisas que me induziam a
acreditar que gostava verdadeiramente de mim. Então, eu me abri, confiei
minha virgindade e depois de umas três transas fui jogada fora. Tipo,
descartada.
"O cenário está vivo na minha mente como se fosse ontem. Nós ficamos por
um mês, tirando os três que fomos amigos. Então, andávamos como um casal
às vezes, ele me buscava no treino de líderes de torcida e nós fazíamos muitas
coisas juntos. Foi em um desses dias ensolarados que são comuns em Dilshad
Town, que cheguei ao refeitório da escola e me sentei em seu colo como
sempre fazia. Ele me olhou, como se não me conhecesse, como se eu fosse
uma completa estranha. Ouvi algo como o tempo que tivemos juntos ter sido
legal, mas que eu era o tipo de garota que servia só para aquilo, algumas
transas ocasionais e depois nada. Que eu era cansativa, tão insuportável que
meus pais nem faziam questão de conviver comigo, substituindo a ausência
por inúmeros presentes. Eu lembro dos vergões vermelhos que estamparam
minha pele quando cheguei em casa e me esfreguei com a bucha, tentando a
todo custo tirar Rafe de mim. Eu me sentia suja e só um bom banho poderia
me lavar de tudo aquilo. Foi uma das únicas vezes em tempos que meu pai
realmente parou e perguntou o que eram aquelas marcas. Howard Lennon
pareceu estar verdadeiramente preocupado comigo depois de séculos, e foi
um dos únicos momentos bons entre pai e filha que tivemos em anos. Porque
ele me fez chocolate quente e parou todo o seu trabalho para me dar atenção,
o que nunca acontecia. Então, sim, eu tenho medo de que outro cara faça
comigo o que Rafe fez."
Só percebo que estou chorando quando sinto o dedo de Thomas secar a
lágrima solitária que cai de meu olho. Ao afastar a gota, ele deixa uma carícia
terna em meu rosto. Beija uma bochecha, depois a outra, a ponta do nariz e
por último, a testa. Seu braço, que me rodeia, tenciona os músculos até que
ele me aperte ainda mais contra si. Firmo meus braços ao seu redor com mais
força, como em um abraço desajeitado.
— Gosto de você — ouço Thomas proferir em um fio de voz.
Posso jurar que meu coração para por uns instantes até que eu recobre a
consciência. Quase peço que ele repita para eu ter certeza se foi isso mesmo
que ouvi, mas desisto, dedicando alguns minutos para processar suas
palavras.
— Eu não fiz aquilo na quarta só porque queria transar depois. — Ele inspira
e expira com calma para voltar a falar. — Rafe foi um filho da puta e eu juro
que se eu pudesse, iria com Dominic e Andrew e nós jantaríamos ele na
porrada, sem me importar de estar sendo covarde por lutar em três contra um.
Entretanto, eu gosto de você e da sua companhia, e para ser sincero, odeio
esse lance de fazer as coisas em segredo. Eu posso ter a mentalidade de um
garoto do colegial, mas não sou mais adolescente. É cansativo demais
arrumar justificativas plausíveis aos nossos amigos para te encontrar, fico
puto de não ter passe livre para te tocar em público, e porra, como eu odeio
esconder isso. Não to te pressionando a tomar nenhuma decisão, mas eu
quero que me responda o que eu sou para você.
Posso sentir o peso das palavras caindo sobre mim à medida que elas são
proferidas pelos lábios finos e rosados dele. A gravidade empurrando
impetuosamente os significados contra o meu corpo. Por uns instantes, até
mesmo prendo a respiração, como se o movimentar inútil do meu peito
contribuísse para a retumbada do relógio. Se eu ficasse paralisada, o tempo
pararia junto comigo? A resposta é não. Porque mesmo com o ar encarcerado
dentro de minha caixa torácica, ainda posso ouvir o tictac quase
imperceptível do ponteiro do meu relógio de cômoda.
O que Thomas Eckhoff é para mim?
Eu não sei.
Nós estamos convivendo a mais ou menos dois meses, frequentando lugares
juntos, como cafeterias, bares, lanchonetes, a casa dele e o meu alojamento.
A cada dia, eu sei mais um pouco sobre a sua vida, conheço profundamente
cada uma de suas manias. A maneira como coça a nuca quando está
desconcertado, as palmas sendo limpas no tecido do jeans quando está
nervoso, os dentes afundando no lábio inferior quando está pensativo e o
canto da boca erguido em malícia ou perversidade. Conheço suas expressões,
a ponto de ter uma vasta noção até mesmo do que está prestes a sair de seus
lábios: uma palavra amiga, uma frase cheia de luxúria, uma alfinetada, uma
piada ou algo profundo e triste. Conquanto a isso, ficamos perdidos na
presença um do outro. Sem ter muita ideia de como agir ao ouvir algo
inesperado, um abraço, tapinhas nas costas, aperto de mãos?
No dicionário, tudo significa as coisas e seres em sua totalidade, aquilo que é
essencial e importante. Já o nada significa coisa nenhuma, de grau e modo
inexistente. Então, talvez, Thomas seja, para mim, tudo e nada ao mesmo
tempo.
— Eu não tenho certeza do que você é para mim — inicio, umedecendo os
lábios com a língua. — Mas eu sei que não é só sexo.
— Me parece que estamos na mesma página então, Lennon. — O canto da
boca se ergue, demorando um pouco mais ao pronunciar meu sobrenome.
— Estamos. — Dou uma batida leve em seu ombro. — Ou seja, eu continuo
te odiando.
— É recíproco. — Rimos em uníssono, e eu volto a apoiar meu queixo em
sua cabeça. — Mackenzie Lennon?
— Hum— murmuro, afundando meus dedos em seu couro cabeludo.
— Acho que eu tenho o direito de saber seu nome do meio.
Bufo resignada.
— Rose. — Thomas ergue o rosto para me encarar, a respiração batendo
contra o meu rosto. — Meu nome completo é Mackenzie Rose Lennon.
— Não acredito que você deu o próprio nome para o seu carro. — Sua cabeça
gira em sinal de negação. — Isso é tão egocêntrico.
— O que eu posso fazer? — Arqueio as sobrancelhas. — Combina comigo.
Thomas ri e volta a recostar a cabeça em meu peito. Sei que ele pode ouvir
meu coração bater acelerado, mas também tenho a certeza de que ele não dirá
nada sobre. Quero falar algo apenas para abafar o som que provém do lado
esquerdo dos meus seios.
— Me diga algo sobre você que ninguém saiba. — Ele parece não estar
esperando pela pergunta porque arregala um pouco os olhos.
Há uma pausa, como daquelas que acontecem em filmes quando o
personagem está surpreso e pondera sobre algo.
— Eu faço tricô. — Franzo o cenho e crispo os lábios com força.
Ao mesmo tempo em que quero rir, estou muito surpresa. Não é o tipo de
coisa que eu esperava ouvir quando fiz a pergunta, no entanto, a imagem de
um Thomas sentado e tricotando aumenta, ainda mais, a minha curiosidade.
— De onde surgiu isso? — Acabo não aguentando segurar e solto a risada, e
Thomas me acompanha.
— Minha mãe gostava muito de bordar, fazer crochê e ela acabou me
ensinando. — Seu dedo desfere carícias em círculo em minha pele. — Era
um bom momento que tínhamos juntos, e quando vim morar aqui, resolvi dar
continuidade ao hobby. Além do mais, tricotar me lembra dela e faz com que
a saudade diminua um pouco.
— Eu quero uma meia rosa personalizada. — Empurro seu corpo para o lado
assim que me ergo na cama, ficando sentada em cima das pernas. — Na
barra, você borda meu nome.
A animação que percorre meu corpo faz com que eu alargue o sorriso e
dispare a tagarelar sobre as diversas coisas de tricô que ele poderia fazer para
mim: meias, mantas, cachecóis e suéteres.
— Pode deixar. — Ele afirma com a cabeça. — Vou tricotar uma meia e
bordar seu nome: Regina.
Pego o travesseiro que sobra na cama, afundo meus dedos segurando-o com
força e bato com ele em seu peito.
— Eu faço você engolir a meia, seu ridículo. — Thomas agarra meus
antebraços e me puxa contra ele.
Meu peito se choca ao dele, com o peso do meu tronco sobre o seu e nossas
respirações se misturando. Há essa paz que toma cada mazela do meu corpo,
como um contraste ao seu toque que me faz queimar. As sensações são
intensas, como os arrepios, formigamentos, estômago retorcido e coração
acelerado. No entanto, a calmaria vem sempre que estamos próximos demais,
como se qualquer outro problema pudesse ser facilmente resolvido se
estivéssemos juntos.
— Agora que outras pessoas saberão sobre nós, porque acho que você
concorda em não mantermos mais isso em segredo. — Balanço a cabeça por
ter sido arrancada bruscamente de meus devaneios. — O que seremos?
Aperto os lábios para que um sorriso não se esgueire entre minhas maçãs do
rosto. A forma que Thomas usa para conseguir as coisas de mim é realmente
funcional, porque quando percebo, já estou acatando seus pedidos sem nem
ao menos pensar muito sobre. Parece-me como uma lei da física, de ação e
reação: ele cede um pouco, conta sobre sua vida e espera, pacientemente, que
eu faça o mesmo.
— Acho que podemos só deixar fluir, estou satisfeita com o que temos. Essa
coisa estranha de diálogos amenos, alfinetadas, provocações, e todo o resto.
Sei lá... — subo e desço os ombros. — É disfuncional, mas funciona para a
gente e acredito que seja isso que importa.
Há um acordo silencioso sendo formado neste exato momento, o de que
continuaremos convivendo, transando, beijando, conversando e até mesmo
brigando. Entretanto, nenhum de nós enxerga a necessidade de rotular
alguma coisa.
— Existem coisas não ditas que precisam ficar claras. — Arqueio as
sobrancelhas e maneio a cabeça para que ele termine o raciocínio. — Tipo,
seremos exclusivos, certo?
Esgueiro-me pela cabeceira da cama até estar deitada sobre o colchão macio,
sendo agarrada pelos cobertores necessários para aguentar as noites frias de
Bolfok Town. Thomas me acompanha, enlaçando meu tronco com seus
braços até que eu fique deitada sobre seu peito.
— Não me importo de sermos exclusivos — dou de ombros e abrigo minha
mão em cima de suas costelas.
— Toma essa, Josh. — O peito dele vibra embaixo do meu quando solta uma
risada alta.
Mal posso acreditar no que acabo de ouvir, e meus lábios abrem para que a
gargalhada estrondosa escape por entre eles.
— Você é definitivamente um ridículo.
Um dos braços antes ao meu redor, sorrateiramente escorre pelo meu
antebraço até chegar a minha mão, entrelaçando nossos dedos. Observo as
palmas encaixadas, o dedão deixando carícias até perto do meu pulso. Ele
leva até a altura dos lábios, deixa um beijo casto nas costas de minha mão e
migra para seu peito, pousando-as nele. O outro braço ainda me segura,
firmando o contato de nossos corpos, assim como as pernas que ainda estão
entrelaçadas. Thomas chega com a boca perto do meu ouvido e sussurra.
— Eu também te adoro, Lennon.
A dor que começa em meu maxilar e abrange todo o meu rosto é
aguda, como se a pontada forte em minha têmpora pudesse enviar o
incômodo para o meu cérebro e toda a minha corrente sanguínea. Escuto
gritos, a cacofonia azucrinando a minha mente, amortecendo todos os meus
sentidos. Um vaso se choca contra a parede e estilhaça em vários pedacinhos,
e sou segurado pelos dois ombros, sendo sacudido como se pudessem
balançar todos os órgãos em meu interior. Um zumbido alto e irritante
perpassa de um ouvido ao outro, me fazendo cobri-los com as mãos, sem
vontade de escutar e processar a porção de xingamentos que recebo. Um livro
é balançado em minha frente, as folhas arranhando meu rosto. Quero gritar,
as cordas vocais estão ressecadas e ardem, os olhos estão cheios de lágrimas
e o coração bate acelerado dentro do peito. O pavor tem o poder sobre mim,
estagnando qualquer movimento do meu corpo. Eu até envio os comandos ao
meu cérebro, de que preciso me mover ou gritar, fazer alguma coisa, acabar
com o terror que acontece nesse ambiente tão claro que faz meus olhos
doerem. No entanto, não faço nada. Continuo como um mero espectador das
cenas horripilantes até bater minhas vistas na figura escondida atrás da
pilastra, apenas ali, perscrutando o local com os olhos, incapaz de sequer
tentar fazer algo que impeça os atos dele.
Sou arrancado daquele cenário em um solavanco brusco, sentindo meu corpo
suado e braços esguios me envolvendo. Demoro a raciocinar onde estou, mas
assim que noto o teto branco e o espaço pequeno com duas camas do
alojamento, inflo as bochechas em um suspiro aliviado. O aroma doce e
cítrico ao mesmo tempo invade minhas narinas, trazendo calmaria junto ao
perfume.
— Calma, Tom. — Mackenzie murmura em meu ouvido. — Foi um
pesadelo, você está comigo, em segurança.
Sou embalado pelos seus braços finos e sua palma acaricia minhas costas
desde a nuca até meus quadris. Ela faz um cafuné sutil em meu cabelo e a
tranquilidade volta ao meu corpo aos poucos. O relógio barulhento em cima
da bancada ao lado da cama indica que são quatro da manhã, e a única
iluminação que adentra o cômodo é a luz amarelada do poste de rua. Deixo
que Mack murmure baixinho em meu ouvido alguma canção de ninar
desconhecida enquanto o aconchego de seu toque envia calmaria para todas
as mazelas, antes agitadas, de meu corpo. Até que caio, novamente, na
penumbra de um sono mais tranquilo.
As lembranças da madrugada de sábado abarrotam a mente enquanto ouço
minha professora listar elementos como hidrogênio, oxigênio, nitrogênio,
fósforos e halogênios. Minha palma serve para apoiar o rosto e o cotovelo já
demonstra os primeiros sinais de cansaço pelo contato do osso contra a tábua
fria e dura da mesa. Afasto os fios que caem sobre os olhos, tomando uma
nota mental de que devo apará-los em prol de vistas saudáveis. Rodo o anel
no indicador enquanto a Senhora Harris reflete sobre Compostos Orgânicos,
recordando-me que tenho um encontro marcado com Lennon mais tarde para
finalizar os últimos acertos do Halloween, que será na Kappa Thau, a maior
casa de fraternidade da Bolfok College. A equipe de decoração já
providenciou todos os artefatos assustadores que estamparão a mansão
recheada de jovens buscando um pouco mais de diversão. Independentemente
do assunto que esteja sendo dito em sala, só consigo manter minha atenção na
manhã agradável de domingo que tive após chegarmos do bar.
A conversa com Mackenzie na noite de sábado foi um tanto esclarecedora, já
que me permitiu entender seus medos e inseguranças quanto a ceder à tensão
que nos pressiona quando estamos juntos. Suponho que tomar conhecimento
dos meus problemas com Jessie também a fez ter acesso a um lugar mais
profundo dentro de mim. Não foi nenhum sacrifício me abrir e contar dos
problemas e traumas que mais me afligem, como se eu soubesse que seus
ouvidos estariam bem abertos e os julgamentos estariam longe de seus lábios.
Encontrar a garota que tanto me infernizou durante a infância me abalou mais
do que eu gostaria, porque pensei que, ao deixar Oroland County para trás,
também deixaria as marcas e cicatrizes. O sol irrompendo luminoso pelas
vidraças perto do teto da sala me lembra da cidade litorânea que nasci, como
se ao ver o céu azul limpo, eu pudesse ser transportado diretamente ao píer
frente à única praia do lugar pacato. É incrível como algo pode te fazer mal e
bem ao mesmo tempo, porque aquela cidade faz isso comigo. A nostalgia se
apodera de mim quando recordo o bom momento enfiado na garagem de meu
tio, aprendendo tudo sobre carros, comendo os biscoitos noruegueses da
minha mãe, ou simplesmente sentindo a areia abraçando meus pés e o cheiro
de maresia. O clima mais ameno também me deixa com saudades. Contudo,
as coisas ruins são tantas que acabam pesando mais do que as boas.
Odiei cada minuto de ser disputado, como a porra de uma bola de ping-pong,
pelos meus pais. Robert Johnson conseguiu ganhar de minha mãe tantas
vezes que a única coisa que sobrou dela foram os caquinhos, sendo juntados
de pouco a pouco a cada dia. Noora Eckhoff definitivamente é a mulher mais
forte que conheço. Lutou por mim até o último fio de esperança, mesmo
sabendo que as probabilidades do homem milionário ganhar eram
exorbitantes. Ela fez o que pôde, e eu jamais esquecerei tamanho gesto.
Assim como todas as merdas que meu progenitor fez ficarão sempre
marcadas em minha memória, impossíveis de serem lavadas ou apagadas.
Um tremor no meu bolso frontal me acorda de meus devaneios, olho para
frente e a professora continua recitando inúmeras ligações químicas,
enquanto eu confiro discretamente o teor da notificação que chega a meu
celular.
Mack Regina: Esse é você?
Encaro o novo nome que dei ao seu contato e é inevitável que o sorriso não
surja. A pergunta vem acompanhada de uma foto minha só de cueca, em uma
fileira de homens, no que parece ser um lugar com uma montanha coberta de
neve. Reconheço como a foto do trote de calouros do meu ano, no qual
tivemos que tirar as roupas em um frio do caralho só para tirar essa foto.
Thomas: Sou eu, gostou?
Os três pontinhos tremelicando indicam que ela já visualizou e está
respondendo, me fazendo pôr o celular na cadeira, entre as minhas pernas e
usar a mão como apoio para a cabeça.
Mack Regina: Já vi melhores.
Comprimo os lábios para abafar a risada que ameaça escapar por eles, a
resposta é tão previsível que chega a ser engraçado. Analiso a foto
novamente, os braços masculinos ao meu lado deixam em evidência que
havia alguns homens enfileirados, pousando para a foto, contudo parece que
só existe meu corpo dentro da imagem, justamente porque ela foi
aproximada.
Thomas: Deu zoom em mim por qual motivo, então?
Mack Regina: Para conferir o produto.
Agora me parece ainda mais difícil segurar o riso, por isso ponho a mão na
boca para abafar o gruído que escapa de dentro da minha garganta e volto ao
celular apenas para digitar uma resposta.
Thomas: Vamos fingir que você não acordou a minha nobre vizinhança
quando sentou no produto ;)
Guardo o celular de volta no bolso antes de conferir a mensagem mal criada
que Mackenzie manda. Provavelmente, se trata de uma série de xingamentos
ou um "ridículo" em caixa alta. Quando o sinal bate, indicando o final de
mais um tempo de aula, permito que a risada escape por entre meus lábios.
Conversar com Mackenzie tornou-se mais fácil do que já era. Os diálogos
simplesmente fluíam sem que precisássemos iniciá-los com papo furado ou
um "oi, tudo bem?". Virou um costume mandarmos coisas um ao outro, ou
nos marcarmos em memes e publicações que me lembravam dela e vice
versa. A partir daí, a conversa perdura por horas e se esvai até a madrugada.
Tenho uma vaga ideia de que meus batimentos acelerando e meu estômago
afundando quando suas mensagens chegam são sinais perigosos de alguém
que já está se afundando em toda a magia fúnebre que Lennon traz. O feitiço
foi lançado no momento em que suas mãos estiveram em mim pela primeira
vez, e fui capturado, sendo jogado dentro dessa bolha de provocações e
tensão sexual.
Sempre ouvi dizer que todo mundo tem medo de alguma coisa, e que
é praticamente impossível existir uma pessoa sequer que não tema nada.
Existe uma série de reflexões acerca desse tema, mas ninguém nunca chegou
perto de retratar o que eu sinto quando estou apavorado.
Eu poderia começar com uma comparação: o medo é como o poder do
Homem-Formiga. A situação em que você está enfrentando geralmente é do
tamanho da versão pequena do super-herói, contudo, o pavor faz o homem
encontrar a forma de gigante. É assim com um problema. Talvez, ele seja
pequeno como uma formiga, e o fato de você temê-lo, engrandece essa
formiga, transformando-a em um bicho enorme. E é nesse ponto que o medo
te paralisa.
Quando você sente que ele está percorrendo suas entranhas gradativamente,
afastando o poder da sua mobilidade, interrompendo o envio que seu cérebro
sinaliza de que você precisa se mexer, fazer algo. No entanto, eu fico inerte.
Como um peso morto, inútil.
O meu medo se chama Transtorno Explosivo Intermitente, carinhosamente
nomeado de TEI ou Síndrome do Hulk. Explicando por alto, a condição gera
a incapacidade do indivíduo de gerenciar seus impulsos agressivos, levando-
os a protagonizar ataques de fúrias completamente desproporcionais,
podendo ser severos ou não. Após a explosão, é comum que o paciente sinta
arrependimento, culpa ou tristeza. A psiquiatra disse ao meu pai que essa é a
condição dele. E também o motivo de seus ataques de raiva.
A profissional ainda salientou que não há um motivo concreto para o
desenvolvimento desse transtorno, mas afirmou com exatidão de que esse
comportamento furioso não parte de uma ação premeditada. Tudo acontece
de repente em sua mente e corpo, como uma explosão de sentimentos
raivosos que surgem sem dar sinal, sem avisar.
Robert Johnson foi diagnosticado anos depois de ter espancado um de seus
filhos. Nós acreditávamos, na época, que ter descoberto Thomas fumando
atrás da escola era motivo o suficiente para fazê-lo enlouquecer de raiva.
Mas, a psiquiatra reafirmou: "seu pai não planeja o ataque por ter ficado
possesso pela rebeldia do filho, o fato pode apenas ter incentivado que o
ataque viesse".
No entanto, a Senhora Belmont, do Departamento de Psicologia, reafirma que
a Síndrome do Hulk não faz do meu pai menos abusivo, e que o transtorno
não justifica o fato de ele ser tóxico com os filhos e com a esposa. Além
disso, a síndrome não o impede de fazer escolhas. A dele foi não prosseguir
com o tratamento. O meu cérebro sempre parece um pouco desorganizado
quando penso nisso, como se eu jamais pudesse encaixar todas as
informações jogadas em mim para uma tomada de decisão.
Meu irmão não sabe de duas coisas: a primeira é o diagnóstico do papai,
porque Robert não deixou que contássemos a ele, e a segunda é que, na
segunda-feira, enfrentei meu medo pela primeira vez.
Dentro dos dois ataques do meu progenitor direcionados a Thomas, eu nunca
havia reagido. O pavor sempre se jogava em cima de mim como um maldito
gigante, me impedindo de fazer algo. Porém, o terceiro foi o estopim. Com a
ajuda das consultas semanais com uma das psicólogas da Bolfok College, o
medo está diminuindo de tamanho, e anteontem eu pude enfrentá-lo. Eckhoff
já havia se mandado da mansão quando tomei o impulso de confrontar o
velho. O resultado? Essa marca arroxeada ao redor dos meus olhos.
Robert precisa de tratamento. É inútil confrontá-lo no meio de um ataque de
fúria, porque é como se ele não estivesse no poder de sua consciência. Então,
o pequeno embate de dois dias atrás ocasionou nele machucados assim como
em mim.
— Você não precisa me olhar com essa cara de coitado. — Ouço a voz
cortante e pisco os olhos rapidamente, acordando de meus devaneios. — Não
estou aqui para ouvir suas explicações.
Esquadrinho o rosto do meu irmão com calma, analisando sua postura
agressiva. Olhos faiscando raiva, cenho franzido e lábios crispados. Estamos
por volta de trinta minutos tentando adotar um comportamento aceitável para
que role uma conversa pacífica. Não que eu ache que sua presença no meu
quarto de fraternidade tenha como objetivo sairmos daqui abraçados e
cantarolando alguma música feliz de família. A quem queremos enganar?
Nosso pai estragou qualquer resquício de boa convivência entre nós através
de seu jeito diferente de resolver conflitos.
Tenho uma noção breve, conhecendo meus avós como conheço, que a criação
de Robert foi tradicional e rígida. E, segundo a antiga médica dele, é comum
que reproduza — mesmo sem intenção — alguns comportamentos de seus
pais. Então, a gente supõe que o Johnson ache normal ser distante dos filhos
de forma emocional, além de adotar um comportamento punitivo quando
enfrenta casos de mal comportamento ou rebeldia por parte do filho. No
entanto, ele acaba exagerando nas punições e isso culmina no seu
comportamento compensatório. Comprando inúmeros presentes para
Thomas, embora meu irmão não aceite.
— Está aqui para que, afinal? — Giro na cadeira da pequena mesa de estudos
do meu quarto. — Já que está pouco interessado em ouvir meu lado da
história, devia ir embora, Thomas.
— Pois eu não vou — murmura, cruzando os braços como uma criança
birrenta. — Precisamos falar sobre o passado.
Inflo as bochechas com ar, pensando se vale a pena lavar toneladas de roupas
sujas. Relembrando momentos dolorosos demais para nós. É quando penso
em Andrew e no quanto expor meu lado da história pode contribuir para uma
evolução na atual conjuntura da amizade deles. Se Thomas souber que nosso
envolvimento é mais do que casual, talvez considere acelerar uma conversa
entre eles, para que se resolvam logo. Encaro o rosto ainda cheio de
hematomas do meu irmão e uma pontada dor não tão forte, porém igualmente
incômoda, irrompe pelo meu corpo, se alojando no coração. É óbvio que
nossa relação de irmandade está cheia de buracos e embates mal resolvidos,
contudo, convivemos por anos juntos, crescemos compartilhando brinquedos
e conversas embaixo da cabana que Thomas cismava dizer ser uma das
melhores brincadeiras de infância ensinadas por sua mãe.
Com pais tão atarefados, por inúmeras vezes, eu só tinha o meu irmão. Para
me derrubar no pega-pega, arrastar meleca na manga do meu casaco, me
incentivar a comer seu bolo de massinha e atestar com veemência de que é
comestível, e bom, não era. Fazíamos tudo juntos, inventávamos as melhores
brincadeiras, e tudo que ele aprendia na casa da mãe, corria para me ensinar
quando acabava seu final de semana com ela e o loiro estava de volta a sua
rotina maçante naquela mansão. Quando Thomas atingiu a adolescência,
percebeu que eu não era tão corajoso quanto ele. No instante em que foi
descoberto fumando e sofreu com o ataque de fúria de nosso pai, soube que
eu não o defenderia. E tenho certeza de que ele faria qualquer coisa para que
ninguém me machucasse. É aquele caso de esperarmos algo de alguém e nos
decepcionarmos duramente.
Fui uma decepção para uma das pessoas que mais me amava.
— Sinto muito — começo, sentindo o gosto amargo da culpa escorrer por
minha boca. — Eu fui um otário com você, ou muito pior. Éramos
inseparáveis, nós dois contra o mundo. E, então, ferrei com tudo. Fim da
história.
— Negativo. — Balança o dedo ferozmente. — Não pense que é só isso.
Quero um motivo, uma explicação. Porque não é possível que você vá deixar
nosso pai foder com mais isso na nossa vida. Eu to cansado de perder tudo
para ele, Johnson. Exausto, para falar a verdade. Não suporto mais sentir
medo.
Apenas a menção da palavra medo acorda todos os meus sentidos, e entendo,
pouco a pouco, que ele não está apenas limitado a mim. Talvez todos que
tenham uma relação próxima ao meu pai sintam medo, porque é o que Robert
causa nas pessoas.
— Nós somos lados totalmente diferentes de uma mesma história — afundo
mais meu corpo na cadeira. — Enquanto você acha que ele tirou tudo de
você, eu acredito que Robert tenha me dado tudo. Afinal, o que eu seria sem
ele? — Não espero que ele responda, prosseguindo. — Eu não teria uma
faculdade, sequer uma escola, não seria o atleta que sou e acho que até minha
personalidade foi moldada pela minha criação.
— O quê? — Thomas ergue o corpo, empertigando a postura. — Se eu
soubesse que você viraria um tolo completo, jamais teria saído da sua vida.
Prego os lábios para evitar que a risada escape da minha boca.
— Se não tivesse Robert, ainda continuaria sendo Lewis Johnson. —
Prossegue, apoiando as mãos atrás do corpo na cama. — Por Deus, não dê
tanto crédito assim ao nosso pai. Tudo bem que a grana dos nossos estudos e
luxos veio dele, mas não podemos abdicar da nossa saúde mental, ou isentá-
lo da culpa porque ele enfiou um bolo de dinheiro em nossos bolsos. O cara
ferrou a vida da sua mãe, da minha, e tudo ao redor dele. Nosso pai
conseguiu destruir tudo de bom que tinha.
— Não destruiu — suspiro. — Ainda estamos aqui, suportando essa vida de
merda. Porque eu não posso tirar minha mãe dali à força. Sou um inútil,
Thomas. Não posso fazer absolutamente nada. Vejo minha mãe abdicar de
todo o seu esforço e estudo para a carreira de cirurgiã por causa de um
homem que a manipula e segura o braço dela até causar marcas. O amor não
pode machucar tanto assim, não é normal. Porém, ainda assim, não posso
fazer nada.
— Mas você pode tentar,— tombo meu corpo em sua direção, subitamente
mais interessado no assunto — ao menos tente fazer diferente, dessa vez. Eu
não sou expert em nada do tipo, mas minha mãe já me ensinou algumas
coisas e algo que ela sempre me disse é que, quem está em um
relacionamento tóxico, muitas vezes, não tem noção disso, quase sempre.
Então elas precisam que você, que está do lado de fora. Cutuque essa bolha e
diga "pode me dar a mão, estou aqui para te ajudar". Sua mãe precisa ter a
certeza de que tem alguém fora daquela realidade, disposto o suficiente para
ajudá-la. Esteja sempre disponível, e a deixe saber disso. Tem que ter
paciência, Lewis. O imediatismo é seu inimigo nessas horas.
— E se ele descobrir? — sussurro, totalmente receoso. — Se o pai perceber
que estou ajudando mais do que o habitual?
— Eu não pensei nessa parte ainda, mas vou pesquisar cada dia mais, e nós
vamos dar um jeito nisso. — Thomas diz com tanta certeza, que acabo me
contagiando com sua esperança. — Quer dizer, você vai. Corra atrás do seu
prejuízo.
— Estou visitando uma terapeuta semanalmente — murmuro, temendo que
ele não escute de tão baixo que é o meu tom. — Andrew me incentivou, e eu
sei que provavelmente estou piorando a situação citando o seu amigo, porém
você precisa saber que gosto dele de verdade. Que eu nem estava procurando
por um relacionamento, nem nada. E esbarrei com Drew por coincidência.
Conversamos pela madrugada inteira, nos conhecendo aos poucos, e o
sentimento foi aumentando gradativamente. Nenhum de nós planejou nada
disso, mas agora é tarde demais para terminar algo porque você quer.
— Isso não é sobre mim. — Ele retifica, aumentando o tom de voz. — É
sobre eu não querer meu amigo em um relacionamento com um cara covarde.
Quando o cerco apertar, e alguma merda acontecer, você estará lá ou será o
primeiro a correr? Ou melhor, ainda ficará assistindo tudo? Apenas lá,
encarando o inferno sob seus olhos sem coragem de mover um músculo para
ajudá-lo. Foi o que fez comigo, não foi?
Thomas adota uma postura mais assertiva. Consigo reconhecer só de
perscrutar seus ombros rígidos e a mandíbula trancada. Nós somos muito
diferentes, completamente, para falar a verdade. Enquanto o loiro aposta na
linha de frente, no ataque, eu prefiro me esconder atrás da defesa, como um
maldito medroso. O que é até irônico já que sou o Quarterback, dotado de
coragem no campo e um filhote imerso em pavor na vida real. Eckhoff é
exatamente o tipo de cara que expôs há dois dias, mesmo brigado comigo, me
defendeu perante nossos pais. E ele faz isso por todos que nutre um mero
apreço.
— Foi — assumo, abaixando o olhar. — Só que não porque eu quis. Droga,
eu queria ter ajudado. Precisa entender que as pessoas não são tão corajosas
quanto você, e que nem todos reagem a essas situações da mesma forma.
Cada um tem seus traumas, medos e cicatrizes. Assistir enquanto você
apanhava foi doloroso. Óbvio que a minha dor jamais se igualará a sua, mas
isso não suaviza nada. Eu tinha medo, caramba. Eu tenho medo. Muito. De
perder tudo. Eu não tenho uma mãe completamente independente do meu pai,
nem o suporte familiar de um tio. A possibilidade de levar outra vida é
inexistente enquanto eu não for draftado para um time profissional. Se eu
perder essa realidade, não tenho mais nenhuma. Eu não tenho nada.
Não contabilizo os minutos que ficamos ali, sentados um de frente para o
outro, calados. Depois que regularizo minha respiração, não ouso furar a
bolha de silêncio que abrange o quarto. Thomas parece pensar, e muito, tanto
que quase posso ouvir as engrenagens de seu cérebro trabalhando avidamente
enquanto pensa em tudo que digo. E eu jamais arriscaria interromper seu
raciocínio.
— Mackenzie estava certa. — Arqueio as sobrancelhas e aperto os olhos,
confuso pelo nome da minha amiga ser citado na conversa. — Contei a ela
sobre nós, sobre tudo. E ela disse que toda história tem dois lados, e que eu
deveria ouvir o seu. Jamais pensei dessa forma, nunca me dei ao luxo de me
esforçar para enxergar a sua realidade, porque, na minha concepção, você tem
tudo. Só que não é bem assim.
— Você tem uma oficina, que em breve estará gerando lucro o suficiente para
te sustentar por completo. — Me permito interrompê-lo. — E se Robert se
recusar a pagar os custos da universidade, será um favor a você, que nunca
quis isso. Tudo o que é seu, ninguém pode te tirar. Ele não conseguiria
comprar sua parte na oficina e aposto que isso tira o sono dele: o fato de não
ter controle total sobre você. As dívidas com advogados sumirão com o
tempo, talvez alguma corrida importante pra caralho surja e em um dia você
poderá quitá-la. Mas veja bem, e eu? Se ele me arrancar o que tenho, com o
que eu fico?
— Sei que parece não valer de nada agora — responde, mordendo o canto
das unhas. — Mas você tem o Andrew, Joshua, Mackenzie, Nevaeh e...eu.
Tenho essa fusão surreal de sentimentos ruins por você, só que sei que eles
não durarão por muito tempo. E independentemente de estarmos péssimos
um com o outro, diferente de certas pessoas, eu sempre te defenderei. Você é
três meses mais velho, e está a um semestre adiantado em relação a mim.
Lewis, falta muito pouco para um time profissional te notar e você estará
livre de Robert Johnson. É angustiante, entretanto, dá para esperar mais um
pouquinho. Só seis meses.
O rancor está ali, entranhando nas palavras de Thomas, e sei que ele
demorará a abandoná-lo. Contudo, após essa conversa, me sinto um pouco
mais esperançoso quanto a nossa relação. Porque mesmo sabendo que ainda
haverá muito diálogo quanto as nossas feridas, agora ele sabe o meu lado, e
tem a certeza de que eu jamais cruzaria os braços por vontade própria. Fico
um pouco mais animado para esperar.
— Só seis meses — repito, sussurrando como um mantra que me
acompanharia daqui para frente.
A conversa ainda rende por algumas horas, porque há muito que relembrar e
consequentemente a resolver. Ou pelo menos tentar. No entanto, o nosso
aperto de mãos que sinaliza o fim do diálogo é suficiente para mim, por ora.
Afinal, não é como se as coisas se resolvessem na rapidez de um filme
qualquer. São cinco anos tentando negar a irmandade que construímos na
infância. Cinco anos ignorando a vontade de saber como meu irmão está
desde sua alimentação até seus pesadelos – iniciados quando ainda
pulávamos para o quarto um do outro em dias de tempestade. No entanto,
apenas esse acordo silencioso de que iríamos tentar, por nós, é o bastante para
me acalentar. Fico feliz de saber que Thomas aderiu a ideia de ir à terapia,
acompanhando Mack. E até que gosto desse casal meio impulsivo e um tanto
disfuncional. Em uma equiparação justa, diria que os dois são como pólvora:
bastaria riscar o fósforo para que tudo explodisse no ar.
Eu só espero que, agora, com o peito inflado de esperança, esse segredo de
Mack venha à tona de forma branda. Apenas um tolo desatento não
perceberia a grande coincidência de Mack e a mulher mascarada chegarem à
cidade ao mesmo tempo. Ou o encaixe perfeito entre os horários que ela não
aparece na Bolfok Ride, porque está muito ocupada correndo. O caso de
Thomas é diferente, ele não é alienado para não perceber. Só esteve focado
demais na Mackenzie que ele idealizou na própria mente, como a droga de
um estereótipo impregnado na sua concepção. A Regina que ele convive
todos os dias jamais poderia ter qualquer semelhança com a mulher perversa
e misteriosa que corre em corridas de rua. Não o culpo, já que costumamos
fazer muito isso com quem amamos: idealizar. E descobrir a verdadeira face,
o lado um pouco mais sombrio, pode ser doloroso.
E cabe a mim apenas torcer para que esse segredo não seja a sua ruína.
É difícil suportar a inquietude quando ela se apossa do seu corpo.
Minha perna direita sobe e desce em uma frequência irritante, demonstrando
um dos sinais da ansiedade que mora no meu interior, a bota de combate
provoca um ruído irritante no piso de tábua corrida da recepção dos
consultórios. O barulho maçante faz com que uma jovem de pele pálida
transfira seu olhar entre meus pés e meu rosto, como se dissesse: "ei seu
otário, pare de balançar a perna". Acontece que eu até gostaria de atender seu
pedido, contudo mal tenho controle dos impulsos do meu corpo. Mesmo que
eu tente imobilizar minha perna, o movimento irritante continua lá.
Assemelha-se muito a quando o nervosismo te entorpece, fazendo sua
pálpebra sofrer alguns espasmos.
Estou há alguns minutos na recepção dos consultórios do Departamento de
Psicologia da faculdade, aguardando que Mackenzie saia de sua consulta com
a analista. Quando marcamos, não havia horários semelhantes, então tive que
me contentar a ser atendido trinta minutos antes que ela. E agora terei que
aguardá-la por meia hora. É como combinamos, estamos aqui um pelo o
outro.
Analiso a chuva torrencial que cai sem dó em cima de Bolfok Town. As
gotículas escorrem arredias pelas janelas de vidro da recepção e o barulho
delas se chocando no concreto é um tanto ensurdecedor, mesmo sendo
abafado pelas paredes da construção. É sempre assim nessa cidade, não há
um Outono sequer em que uma semana tomada de chuvas não ocorra. Tão
comum que foi apelidada carinhosamente de semana da tempestade. No
fundo, todos já esperávamos, contudo eu jamais saberia que o tempo mórbido
e úmido traria tantas questões inacabadas do passado. A mulher de cabelo
verde e preto, e pele pálida ainda me encara, tenho certeza que se seus olhos
tivessem raios laser eu já estaria destruído agora. Ela não aguenta mais ouvir
o batuque da minha ansiedade no piso de tábua corrida.
Fecho os olhos, totalmente imerso em pensamentos. Flashes da conversa com
Lewis invadem minha cabeça, assim como a descoberta do transtorno do meu
pai. Síndrome do Hulk, a primeira coisa que fiz ao adentrar o consultório foi
arrancar todos os conhecimentos da futura psicóloga acerca da doença. E ela
foi muito sábia ao dizer que eu não devo caçar justificativas para todo o
abuso do meu pai. Isso me deixou um tanto mais tranquilo. No entanto, foi
inevitável que o medo não me atingisse. E se eu tiver a mesma doença? A
psicóloga afirmou com veemência que só diagnosticaria alguma coisa depois
de uma série de consultas, mas que ela ousa dizer que não me assemelho com
as características e comportamentos de um paciente que tem ataques de fúria.
Sinto o agudo do incômodo de um peteleco na têmpora, e arregalo os olhos
com rapidez. A iluminação apática da recepção dos consultórios deixa minha
visão um tanto turva, até que me acostumo com a claridade. As botas de sola
vermelha em conjunto com roupas que certamente valem mais que meus rins
entregam a autora da agressão. Mack me encara com a íris meio opaca e forja
um sorriso.
— Como foi lá? — O questionamento é suficiente para embarcarmos em uma
conversa que durariam horas.
Ambos sabemos que uma primeira consulta com um psicólogo não diz muita
coisa, na verdade quase nada. Serve mais para que eles anotem diversas
coisas em uma ficha e te analisem atentamente, como um estudo laboratorial.
Eles perguntam uma série de informações pessoais e fazem questionamentos
que nem sempre temos uma resposta pronta. O rosto gorducho da minha
terapeuta faz com que suas bochechas amassem um pouco seus olhos
esverdeados, não sei se há algum pré-requisito para a profissão, mas a minha
tem um olhar muito acolhedor. É como se de repente eu tivesse vontade de
compartilhar muitas coisas com ela, e o tempo da consulta passou voando.
Mackenzie disse basicamente o mesmo. Que falou sobre seus pais e a relação
complicada com sua mãe. Dissertou acerca da falta imensa que sentia de sua
tia Lindsay e inúmeras situações de sua infância. Ela parou um pouco para
refletir e se perguntou em um sussurro se não havia deixado nada de fora,
creio que seja normal ter essa sensação.
— Relaxa. — Afago seu braço enquanto adentramos minha casa. — Ainda
terão várias consultas para contarmos o que deixamos de fora.
Encaro a mulher vestida de um grande suéter estampado de algumas listras
desconexas com um coque no topo da cabeça que mais se assemelha a um
ninho de rato. Depois de uma discussão acalorada acerca do quanto é útil
levar uma muda de roupa confortável para a casa de alguém ao invés de usar
as roupas do namorado da colega de alojamento. Compreendo o teor da
indireta, porém dou de ombros como quem não quer nada e me abrigo dentro
de uma blusa verde de algodão simples. Decido fazer biscoitos e a morena
me acompanha até a cozinha desferindo um monte de alfinetadas com o
resultado dos meus cookies.
— Posso colocar música? — Enfio a cabeça dentro do armário atrás do
açúcar normal e do mascavo, juntando os itens da receita. Aceno
positivamente para respondê-la e logo escuto os primeiros acordes de uma
música que não conheço.
Paro meus movimentos com o único objetivo de observar Mackenzie Rose
Lennon. Os fios do cabelo escapando do coque bagunçado, as pintinhas
decorando as maçãs do rosto levemente rosadas, o nariz fino sutilmente torto
para um lado, a gola do suéter meio esgaçada, nada combinando com suas
roupas milimetricamente arrumadas e por fim, os dentes alinhados exibindo
um sorriso que poderia iluminar toda a minha cozinha. Apoio a tijela com a
mistura do cookie sobre a ilha e apoio os cotovelos no mármore. É como uma
visita guiada ao Louvre, entupido das melhores e mais ricas obras de arte do
mundo. Cada ponto na aparência dela se assemelha a uma viagem aos mais
belos museus. E eu poderia observá-la por toda a eternidade.
Eu jamais saberei dizer quando me apaixonei por Regina. Mesmo com
apenas um pouco mais de dois meses de convivência o apelido já me parece
um ponto minúsculo na imensidão de sentimentos que me tomam a cada dia.
Talvez tenha sido quando seus olhos escuros e intensos derrubaram o
primeiro muro que nos separava. Quando ela me encarou com admiração e
subiu sobre os meus pés, me levando em uma viagem nostálgica até minha
sala abafada em Oroland County. Ninguém acredita muito que duas pessoas
possam se apaixonar antes de sequer se beijarem, e talvez eu nem estivesse
mesmo, de fato, sentindo paixão. No entanto, ali eu soube que algo novo
estava surgindo, como uma fagulha que se torna uma labareda imensa,
tomando cada mazela do meu corpo.
Puta que pariu, eu to muito apaixonado.
Torno a observar Mackenzie, ao som de Celine Dion, se balançando
levemente pela minha cozinha. Arrastando um sorriso convidativo no rosto,
daqueles que eu abaixaria a guarda totalmente e daria tudo que ela quisesse.
Meu coração acelera e bate forte, muito forte, meio que gritando algo tipo "ei,
seu otario eu to aqui". Os lábios erguidos me contagiam a elevar os meus,
acompanhando-a na felicidade gritante que infla meu peito. Será que
Mackenzie também gosta de mim? É óbvio que sim, mas será que ela
também é apaixonada por mim? As perguntas se embaralham no meu cérebro
e eu decido interromper seu momento.
— Vou te mostrar o que é música de verdade, Lennon. — Monto minha
melhor expressão de crítico da música e capturo o celular para entrar na
minha playlist.
Elephant Gun começa a tocar, a música rapidamente se entranha por todos os
meus poros e é impossível segurar o sorriso. Gosto de como a canção me traz
a tranquilidade de um chalé no meio do nada em que só se escuta a voz de
Beirut, as folhas das árvores se chocando e os passarinhos cantando. A chuva
ainda não abandonou Bolfok Town e acompanho as gotas escorrerem pela
vidraça da porta de correr que dá acesso ao quintal. Mackenzie vem até mim
se balançando de um lado para o outro enquanto mexe os ombros em
sincronia, tentando seguir o ritmo da música. Ela estende a mão e alarga o
sorriso.
— Dança comigo. — Transporto meus olhos dos seus cheios de expectativa,
passo pelo sorriso aberto e paro nos dedos esguios.
Encaixo minha mão na sua, entrelaçando nossos dedos e deixo que ela me
afaste da ilha e me puxe até um ponto da cozinha, em frente à geladeira. Meu
outro braço se encarrega de circundar seu corpo e embrulhá-lo com o meu.
Ela não demora a subir nos meus pés e isso me faz sorrir e esconder o rosto
na curva de seu pescoço. Permito que o aroma de frutas vermelhas, adocicado
e cítrico ao mesmo tempo, invada minhas narinas aos poucos. Franzo o nariz
e beijo sua clavícula exposta pela gola esgarçada do suéter.
Pouco me importo com o peso dela em cima dos meus pés, estou mais
interessado em gravar cada detalhe dessa cena. O barulho da chuva se
misturando a melodia, o aquecedor fazendo o trabalho de tornar minha
cozinha um pouco mais aconchegante, as gotas escorrendo pelas portas de
vidro, embaçando a vista do quintal arborizado. O calor do corpo de Mack
parece correr livremente até o meu, nos embalando em algum tipo de
conexão magnética. Como uma mistura homogênea com polaridade que
enfraquece as ligações iônicas dessa mistura, promovendo a dissolução até
que seja atingido um equilíbrio entre as cargas polares do solvente e as cargas
iônicas do soluto. Talvez ser embalado pelo corpo esguio de Mackenzie pela
minha cozinha seja o nosso equilíbrio perfeito. E eu poderia morar nesse
momento.
Antes que eu possa sequer maturar a ideia em minha mente, solto a pergunta
em um tom esganiçado.
— Passe o Ação de Graças comigo. — Arrasto o nariz pela pele de seu
pescoço.
— Isso não foi uma pergunta. — O peito dela treme com a risada,
reverberando pelo meu.
— Não sei se vai fazer algo com seu pai, agora que vocês voltaram a
construir algo. — Inicio tendo conhecimento da reconciliação dos dois. —
Mas se não for, Oroland County quer muito te receber.
— Só Oroland County? — Não preciso vê-la para ter a certeza que as
sobrancelhas estão arqueadas em desafio.
— Eu também, claro. — Faço uma pausa e enrolo o dedo em um de seus fios
desarrumados. — Confesso que desde quando contei a minha mãe sobre
você, ela também quer muito te conhecer.
Mackenzie desce dos meus pés e desfaz nosso contato. Ao passo que me
deparo com seus olhos estreitando de leve.
— Falou mal de mim para ela quando nos odiávamos, não é?! — É difícil
saber se estou lidando com uma pergunta ou uma certeza, mas relaxo o
semblante rapidamente.
— Ah se falei, e muito. — Encho a boca, proferindo cada palavra com gosto.
— Ela me ouviu te criticar de várias maneiras diferentes, e até advogou para
você se quer saber. Embora tenha gargalhado quando soube que começamos
a nos envolver.
— Então você é esse tipo de cara? — Um vinco se forma entre minhas
sobrancelhas pela confusão e ela prossegue. — Que conta tudo para a mãe.
Não me incomodo com a frase, simplesmente porque sei que não há um
pingo de desdém ali. Para falar a verdade, os olhos escuros e absolutamente
intensos se destacam pelo brilho anormal que se apossa deles. Parecendo me
dar à certeza de que gosta muito do fato de eu ser um confidente a minha
mãe. Um cara de família. Prendo a risada.
— Nem tudo. — A lanço um sorriso enviesado. — A parte que seu boquete é
uma delícia eu deixo de fora.
Ela não demora a torcer o pano de cozinha e bater com ele em meu quadril
com vontade, fazendo com que eu revide a brincadeira enchendo a mão com
um punhado de açúcar mascavo, lançando-o em sua direção. Mackenzie abre
a boca e arregala os olhos, mal podendo acreditar no quanto jogo baixo,
afetada demais pelos vestígios de açúcar que decoram seu colo e pescoço. A
troca de ingredientes para assim que enlaço sua cintura e encaixo seu corpo
no meu. Resvalo minha boca pelo seu queixo, mandíbula até o canto dos
lábios. Agarro seu maxilar e arrasto a mão até seu queixo, e meu dedo
indicador pousa em cima de seus lábios. Acaricio sua boca, sentindo a maciez
da carne de seus lábios em formato de coração. Até que os cubro com os
meus. Quando sua língua desliza sobre a minha, empurrando nós dois em
direção a um abismo que ambos ansiamos cair, aquela maldita explosão
como a dos filmes acontece no meu peito. Tombo a cabeça para o lado a fim
de aumentar o contato e funciona porque meu pau acorda na calça, e um
gruído escapa da garganta dela.
Agarro suas coxas e a elevo, até que esteja acomodada na bancada. Me
encaixo entre suas pernas e volto a grudar nossos lábios. O beijo é tão lento
que nada combina com o nosso habitual fervor e ânsia. Arrasto as mãos desde
seus joelhos, passando pela carne de sua coxa até que eu finalize o contato
com um aperto, resultando em um gemido esganiçado da mulher. Ela me
puxa pela camiseta como se pudéssemos ficar mais colados do que já
estamos, agarro os fios teimosos de sua nuca enquanto conheço, de novo e de
novo, cada centímetro de sua boca. Sinto suas palmas esquentarem a
bochecha assim que ela as pousa em minha pele, e finaliza o beijo com um
selinho.
— Eu vou ao Ação de Graças com você. — Retorna ao assunto e meus
ombros murcham em puro alívio. — Embora eu tenha a vaga ideia de que iria
para qualquer lugar contigo.
O sorriso que rasga por entre meus lábios é gigante, mal consigo mensurar o
quanto minhas bochechas estão doloridas de tanto que já sorri hoje. O que é
bem comum quando estou com meus amigos e minha família, ou seja, com
quem amo. Espera, o que? Não. Com certeza não estou amando. É difícil
saber por que não tenho um comparativo. Nunca amei romanticamente
falando, e acho que dois meses é muito pouco para isso. No entanto, a
sensação de estar apaixonado por completo me arrebate de um jeito muito
mais avassalador do que qualquer outro dia. Parece-me que o sentimento se
entranha por cada parte do meu corpo como um copo topado de água, prestes
a transbordar. Então, com as mãos apertando a carne das coxas de Mack,
deixo as palavras fluírem.
— Estou absolutamente a...— antes que eu possa finalizar, ouço um tapa
ardido no batente da porta.
É Dominic quem adentra a cozinha sem fazer questão de ser sutil ou sequer
silencioso. Seus passos são mais leves que os meus, mas o tapa no batente
anuncia qualquer chegada triunfal. Porém não há nada de triunfo no modo
como sua calça de moletom está desleixada em seu corpo, muito menos nas
olheiras fundas que cobrem seu rosto. Os cabelos estão bagunçados assim
como tudo em sua aparência. Ele agarra uma longneck como se sua vida
dependesse disso e sei, com total certeza, que está chapado. Mais uma vez.
— Acho que vou morrer de diabetes vendo vocês. — Sua voz sai arrastada,
como se ele estivesse sem vontade de nada.
— Então esse é você com um coração partido? — Mackenzie sibila e acho
até que posso enxergar veneno escorrer por seus lábios. — Do tipo
amargurado que mal consegue ver um casal feliz sem pensar no que poderia
ter tido.
As palavras são tão pesadas que posso senti-las, mesmo que não tenham sido
direcionadas a mim. É como uma adaga sendo cravada no meu peito. Até
aprumo a postura com o objetivo de repreender a mulher, porém ela se
antecede.
— Você ainda pode ter. — Mack toma impulso com as mãos e desce da
bancada. — Sei que está mal, e tem todo o direito de curtir esse período
sofrido. Mas sabe que ainda pode consertar essa situação. Por que ainda não
fez?
Decido não me meter. Há esse elo entre Mack e Dom, tão forte que enlaça
essa amizade em um nó de marinheiro, impossível de ser desatado. Deixo que
eles conversem em uma linguagem que só os dois entendem, dotada de
olhares cheio de entendimento e diálogos silenciosos.
— Porque não sei como resolver. — Dominic bufa. — Ontem ela me ligou
para dizer que a melhor solução é justamente a ausência de uma. Ou seja,
estamos terminados.
A informação é como um baque, daqueles que te atingem em uma rajada tão
forte que você tem a leve sensação de errar um passo. Mudo o peso dos pés
sendo, de fato, atingido pela coça que é saber sobre a separação de um dos
casais que mais gosto nessa vida. Meu estado atônito se assemelha muito ao
de Mack, que gira os olhos, meio fora de órbita e tenta se recompor usando a
bancada de apoio. Ela pisca com rapidez, como se o ato pudesse levá-la de
volta a uma realidade um pouco mais branda. No entanto, infelizmente sei
que a Semana de Tempestades em Bolfok Town apenas acabou de começar.
Mackenzie implora que Dominic explique melhor, talvez em uma tentativa
falha de fazer com que ele admita, de uma vez por todas, que tudo não passou
de uma brincadeira. Mas ele não diz. Na realidade, acredito que não tenha o
que explicar. Nevaeh terminou tudo e ponto. Por telefone ainda. O cara está
arrasado, e não podemos culpá-la. Porque é realmente uma situação
complicada. Nenhum dos dois deve ceder por suas crenças, ou pela falta
delas. E parando para pensar, imaginando um futuro entre os dois, como isso
seria feito? É fácil solucionar quando seu pai não é um pastor, ou em uma
conjuntura em que sua família não seja tão envolvida com a comunidade
protestante. No caso deles, está mais para uma condição escondida nos
encantos de um relacionamento que logo desabrocha com o tempo.
— Mackenzie. — Dom inspira, pousando a longneck na pia. — Estamos
acabados. Não tem o que fazer, tentar, corrigir ou sequer mudar. A nossa
realidade não combina.
— Não pode ser só isso. — A mulher custa a aceitar, negando
fervorosamente com a cabeça. — Vocês se amam e vão acabar com tudo por
causa de religião?
— Não faça isso. — Dom levanta o indicador em riste. — Não desdenhe
dessa forma, a fé é tudo para algumas pessoas. De uma grandeza que impede
qualquer descrente de sequer imaginar o bem-estar no interior da igreja. Nev
sempre me explicou, o quanto é importante para ela. O quão leve fica seu
coração naquele ambiente, não diminua isso, morena.
A reação de Mack é instantânea, geralmente acontece quando ela reconhece
que erra. Então seu semblante murcha assim como seus ombros caem. E ela
esmorece aos poucos.
— Me desculpa. — Crispa os lábios e aperta o ombro de Dom, em um gesto
de conforto. — Eu só queria que tudo fosse diferente com vocês.
Dominic captura a mão dela, e leva o dorso aos lábios, deixando um beijo
casto.
— Eu também, Mack. — Ele aperta a palma dela contra a sua. — Eu
também.
A última parte sai em um sussurro. Posso enxergar dor em seus olhos,
tamanha é que perpassa para o meu, mudando completamente o ambiente da
cozinha. Tornando-o um tanto mórbido se considerarmos a chuva lá fora e a
playlist aleatória que nos brinda com "Falling" do Harry Styles. Meus dutos
lacrimais até doem um pouco, clamando para que algumas lágrimas possam
transbordar. É o efeito de algumas músicas desse novo álbum, como Fine
Line e Falling. Dominic deixa que uma gota solitária escape de seu olho, e
não se preocupa em secá-la, deixando-a vagar livremente por sua mandíbula e
cair em seu dorso.
A tristeza que acompanha um coração partido faz com que eu me pergunte se
um dia experimentarei tamanha dor.
Hoje é o meu aniversário.
Cinco de novembro de dois mil e vinte.
Sinto um peso anormal sobre as costas e me pergunto se são os vinte anos
dando um olá, mas sei que, na verdade, é só o resultado da continuidade dos
treinos de kickboxing. Meu pai costumava dizer que em todos os cinco de
novembro comemoramos o dia internacional da Mackenzie Lennon, mas não
em Bolfok Town. Porque ninguém se lembrou.
Tento a todo custo não ser egoísta e pensar que as pessoas têm o que fazer
além de se preocuparem com o meu aniversário. Thomas ainda está imerso
nessa história com o pai dele e Lewis, Nevaeh e Dominic ainda curtem seus
corações partidos e Andrew, sinceramente, não sei dele. Jules e Hannah
fizeram questão de postar um story aleatório comigo me parabenizando junto
a uma mensagem no privado.
Jules Batbayar: Parabéns, Barbie! Te desejo muitas Prada's e Channels e
pouco estresse. Pode contar comigo para te enfiar a porrada, mas nunca
para um abraço. ;)
É impossível frear a risada com o jeito despreocupado e agressivo de Jules,
afinal, já me acostumei com ele e até que gosto. As felicitações na internet
sempre vêm em peso, de pessoas que eu já nem me lembro da existência, que
estudaram comigo na Dilshad School e me tratavam como amiga até que a
situação ficasse ruim o suficiente para caírem fora. Meu pai desejou o melhor
para mim durante duas horas de ligação, assim como tia Lindsay. Já minha
mãe optou por um seco "Parabéns, Mackenzie! Que você seja feliz."
Sinceramente? Achei até demais para alguém fria como ela.
Sinto um pouco de falta dos que considero de verdade. Até dou uma olhada
em quem visualizou meus stories e teve acesso a todas as felicitações. Ao
longo do dia, recebo um textinho carinhoso de Nevaeh, Lewis e até Dominic.
Mas nada de Thomas. Tento não ficar chateada, realmente tento. Porém
quero, com todo o meu ser, ser lembrada por ele.
As aulas passam incrivelmente lentas nessa quinta-feira e já não aguento mais
ouvir sobre economia política. Depois de passar em uma loja de guloseimas a
poucos metros da Bolfok College, me enclausuro no alojamento. De banho
tomado, uma blusa enorme de algodão abraça meu corpo assim como a calça
de flanela. Enrolo-me entre as cobertas e cubro minha cabeça com o
edredom, pesco meu celular e o encaro, esperando que alguma mensagem de
Thomas chegue. No entanto, nada acontece. Quando finalmente aceito que
passarei meu dia comendo guloseimas no quarto, batidas fortes ecoam pela
porta de madeira maciça.
— Ei Lennon! — Ouço a voz de Hannah soar do outro lado. — Sabemos que
está aí dentro, abra essa porta!
Bufo audivelmente e arranco o cobertor com brutalidade.
— O que você quer? — Minha voz sai escorrendo tédio, mas me assusto ao
ver que ela não está sozinha. Jules me encara com cara de poucos amigos.
— Quero te lembrar de que hoje é o seu aniversário e apesar de você ser uma
chata metida, não deixaremos que passe esse dia sozinha. — Hannah se apoia
no batente e gesticula com avidez.
— Portanto, — Jules inicia, completando a fala da amiga — comece a se
livrar desse pijama ridículo e dessa cara de quem morreu e esqueceu-se de
enterrar.
Elas adentram meu alojamento sem aviso prévio, como se fossem donas do
lugar. Jules arreganha meu armário e começa a retirar peças e mais peças,
gostando de nenhuma.
— Rosa, rosa e mais rosa. — A tatuada encara uma blusa com tanto desgosto
que cogito pedir perdão à peça de roupa.
— Para onde vamos? — Empurro o corpo da mulher para que eu retome o
controle sobre meu armário.
— Em um bar aqui em Bolfok mesmo, hoje é noite de karaokê! — Hannah
profere muito animada, e isso faz com que Jules revire os olhos, me gerando
uma breve risada.
— Eu não sei cantar. — Remexo em algumas roupas e por fim decido colocar
um body branco rendado com mangas meio bufantes e uma saia florida.
— Por isso mesmo que iremos a um karaokê e não ao The Voice. — Jules
está sem paciência, mas isso não é novidade alguma.
Relevo o passa-fora e me preocupo mais em fazer uma maquiagem simples e
decente para uma noite normal em um bar com duas pessoas um tanto
improváveis. Quer dizer, Nevaeh estar comigo seria muito mais comum.
Envio uma mensagem para ela, convidando-a para aparecer no bar e festejar
com a gente.
— Já mandou mensagem chamando os meninos? — Hannah indaga e eu
mantenho a atenção no delineado fino que se prolonga em minha pálpebra.
— Acho que essa noite poderia ser apenas das meninas — murmuro, mas sei
que o tom da minha voz beira a um resmungo. — Além do mais, Thomas
nem ao menos me deu parabéns. Acho que ele esqueceu.
Jules e Hannah trocam um olhar pesaroso, visivelmente transbordando pena.
Contudo, afasto qualquer pensamento que possa me desviar do verdadeiro
foco da noite: comemorar.
— O dia é todo seu. — Jules responde, repuxando os laços do coturno. —
Faça como quiser.
Assim que finalizo a maquiagem, as duas se retiram do quarto para que eu me
troque com privacidade. Calço sandálias de salto douradas e borrifo um dos
meus perfumes favoritos. O percurso inteiro até o bar, no carro meio capenga
de Hannah, é preenchido com as tentativas da mulher de preencher o silêncio,
seja com uma piada tola ou as gargalhadas que escapolem de sua boca. Está
escrito no semblante desgostoso de Jules que ela poderia se jogar do carro a
qualquer momento devido à animação excessiva de Hannah. Recebo um
retorno de Nev, dizendo que nos encontrará direto no bar.
Tenho vontade de rir assim que ouço alguns xingamentos que Jules dispara a
Maxon pelo telefone. Apesar de sermos diferentes em inúmeros aspectos, a
dinâmica de relacionamento deles acaba me fazendo recordar um pouco a
minha com Thomas. Enquanto somos mais sérias e centradas, Eckhoff e
Stewart são carrancudos com pessoas desconhecidas e guardam seus
melhores sorrisos e brincadeiras a quem possui verdadeiramente seus afetos.
Interrompo meus devaneios assim que Hannah estaciona seu automóvel
popular em uma das vagas do bar.
— Chegamos! — A animação dela não chega a mim, muito menos a Jules,
que se limita a massagear as têmporas e sair do carro.
Esquadrinho a fachada escandalosa do bar e permito que um pequeno sorriso
se entranhe por entre meus lábios. Em um letreiro de LED o nome "Purple"
pisca gritante, assim como outra placa abaixo, indicando que hoje é noite de
karaokê. Tudo parece extremamente normal, desde a taciturnidade de uma
Bolfok Town noturna até o som baixo que escapa pelas paredes do
estabelecimento. Ando pela pequena estrada de pedregulhos que dificultam
minha caminhada em saltos finos, mas não deixo de observar Jules mexendo
no celular e pouco tempo depois a melodia animada dar lugar ao silêncio.
Estranho um pouco, porém, por fim, decido dar de ombros e empurrar a porta
pesada, invadindo o local.
Inexplicavelmente, a primeira coisa que vejo é a figura um tanto alta do meu
pai encarar com expectativa a minha entrada nada triunfal. Então, perscruto o
lugar com os olhos e finalmente entendo. Eles preparam uma surpresa.
Enxergo tia Lindsay com um sorriso gigante decorando sua face delicada,
Nevaeh está ao lado dela igualmente sorridente, assim como Dominic,
Andrew, Josh, Lewis e Maxon. Todos estão aqui e até mesmo muitas pessoas
que eu sequer conheço.
Dois balões metálicos formam o número vinte rosado, junto com algumas
flores que finalizam a decoração simples de uma mesa de bar. Há um naked
cake de dois andares com a massa vermelha e no topo um Cadillac rosa em
miniatura, exatamente como o meu. Cada detalhe é mais que significativo
para mim.
— A ideia foi do Thomas. — Jules murmura no meu ouvido.
— Do bolo?
Jules sorri meio contido e chega mais perto para sussurrar no meu ouvido.
— De tudo.
Transporto o olhar diretamente ao loiro que me encara sorridente.
Caminho em sua direção, porém antes que eu complete o percurso sou
interceptada. Tia Lind circunda meu corpo com seus braços esguios e me
embrulha em um abraço maternal, e o gesto simples infla meu peito em
felicidade. Como senti saudades.
— Meu Deus! — Minha tia agarra ambos os lados do meu rosto. — Você
conseguiu crescer tanto em apenas um ano.
Relembrar que faz um ano que não nos vemos me causa estranheza, além de
tudo. Porque nossas ligações e mensagens conseguem suprir bem a distância,
entretanto nada como a presença imponente da loura extremamente alta.
Algumas pessoas dizem que me pareço mais com titia do que com Lidia,
minha mãe. Lindsay tem o nariz fino e arrebitado, rosto alongado e
sobrancelhas tão afastadas quanto as minhas. Fora os lábios cheios em
formato de coração. O que nos difere é a cor do cabelo, já que o meu é
castanho escuro, ao passo que minha mãe possui lábios bem mais finos e
sobrancelhas absurdamente desenhadas.
— Senti saudades, tia Lind. — Devolvo o abraço, apertando-a contra mim.
— Eu também, meu amor.
Titia me aluga por alguns minutos, me inteirando de todas as suas aventuras
pela cidade da moda. A Itália nunca foi tão linda quanto é sob os olhos de
alguém apaixonada pelos vinhedos e pelo ar que o país exala. Conto algumas
novidades que deixei de fora das ligações, e isso inclui minha recente relação
com Thomas.
— Ele é uma gracinha! — Abafo o grito de titia com a mão, enquanto ela
tenta se soltar, gargalhando alto. — Lindo, e muito gostoso.
— Titia! — repreendo, lançando-a meu melhor olhar repressivo.
— O quê? — pergunta com as sobrancelhas arqueadas. Nego levemente com
a cabeça, apertando os lábios a fim de estancar a risada. — Você é jovem,
oras. Tem que aproveitar mesmo.
Vejo papai vindo até nós e abano a mão, dando o assunto como encerrado.
Aprumo a postura e recebo com louvor o abraço caloroso e as palavras
carinhosas me parabenizando pelos vinte anos de vida. Em nossa breve
conversa, não citamos o nome de Lidia Lennon, pois é como um assunto
pesado para um dia tão leve. Sei que ela não pôde vir, porque provavelmente
tem algo melhor para fazer, e no fim, estou parcialmente acostumada à sua
frieza e indelicadeza. Não é como se fôssemos virar, de repente, as mães e
filhas que nunca fomos.
— O seu namorado organizou tudo. — Papai murmura em meu ouvido, e
prende um sorriso entre os dentes. — Gostei dele, pequena Maze.
Reviro brevemente os olhos, porque sei o quanto todos farão questão de
aprovar Thomas. Não é como se eu não esperasse, já que Eckhoff é
exatamente o tipo de cara gostável. Daqueles que distribui sorrisos calorosos
a quem deseja conquistar e lança seu charme na medida certa, sem exageros.
— Imagino que tenha gostado. — Afago o bíceps coberto pela grossa camisa
de lã de papai.
Afasto-me apenas para cumprimentar o resto dos convidados. Nev me recebe
com um abraço caloroso, assim como Dom, que complementa com um beijo
no topo da minha cabeça. Lewis me agradece pelos meses de amizade e por
eu ser quem sou. Ademais, as poucas palavras são o suficiente para me deixar
emocionada. Fico um tanto sensível em meus aniversários. Recebo saudações
de Josh, Andrew e outras pessoas conhecidas do meu curso ou do alojamento.
Finalmente, tenho o caminho livre até Thomas, que veste uma camisa social
azul-marinho quase preto por baixo da habitual jaqueta de couro. Além de
uma calça chino preta que combina bem com os All-Stars igualmente pretos.
As peças escuras parecem fazer um bom trabalho em evidenciar sua cabeleira
loira e os olhos azuis. Apresso os passos e quase derrubo nós dois ao me
jogar em seus braços. Agarro suas costas enquanto seu corpo se encaixa ao
meu. Ele se apossa da minha cintura e afunda o rosto na curva do meu
pescoço, deixando um beijo em minha pele que me provoca um arrepio.
— Feliz aniversário! — O murmuro em minha orelha me faz estremecer.
Thomas deseja milhares de coisas boas, entre elas que eu seja uma exímia
advogada e que alcance todo o sucesso do mundo. Uma baboseira de
aniversário sem fim que, sob os olhos de garota apaixonada, tornam-se as
coisas mais belas já ditas.
Ignorando todo o clima descontraído entre nós, acerto seu ombro com um
tapa leve e ardido, fazendo-o reclamar baixinho.
— Você me fez pensar que tinha esquecido. — Ele gargalha alto em resposta
e aperta ainda mais meu corpo contra o seu.
— Eu jamais esqueceria o dia internacional da Mackenzie Lennon. —
Thomas profere cheio de pompa. Tombo a cabeça para o lado, analisando-o
melhor e afundo meu dedo em sua covinha. — Também conhecida, por mim,
como a mulher mais linda de Bolfok Town.
Encosto nossos lábios, roçando-os com ternura e murmuro um "bobo" antes
de beijá-lo.
— Sei que já deve estar cansado de me ouvir agradecer. — Me afasto,
acariciando seu rosto. — Mas não posso deixar de expor o quanto amei tudo
isso. Nunca tive uma festa surpresa, e devo confessar que amei a novidade.
— Seja bem-vinda a sua primeira festa surpresa, Regina. — Thomas abre os
braços, apresentando o local com um grande sorriso. — Espero que aproveite
a comemoração dos seus vinte outonos.
Devolvo o sorriso em agradecimento, principalmente pela citação da minha
estação do ano favorita. Amo o fato de o Outono ser tão imponente a ponto
de fazer as folhas caírem e trazer um aspecto mais cinzento aos dias antes tão
claros. Deixo que Thomas me arraste pelo local me contando como foi
organizar a festa, e é claro que ele não afasta a ideia de que já está formado
com honras na arte de planejar eventos.
— Vocês fecharam o bar apenas para o meu aniversário? — questiono após
notar que toda a decoração está meio Mackenzie Lennon demais, ofuscando a
presença de qualquer outro cliente de fora da festa.
— Essa parte não foi ideia minha. — Ele entrelaça nossos dedos, encaixando
as palmas. — Nevaeh conseguiu falar com o empresário da sua tia pelo
Instagram e ela rapidamente a reconheceu como sua amiga. Lindsay ficou
com a tarefa de convidar seus pais e eles logo decidiram que a comemoração
ficaria mais confortável se todo o lugar fosse só nosso.
— Quão extravagante isso é afinal? — Thomas se senta em uma das cadeiras
na mesa grande que abriga nossos amigos e me puxa para ocupar o assento ao
seu lado.
— Aposto que mais do que qualquer grande gesto meu. — Empurro seu
ombro levemente e giro os olhos nas órbitas.
O clima leve se dissipa um pouco dando lugar a tensão palpável que nos
acompanha habitualmente. Nossos olhos se conectam e eu consigo enxergar
cada filete em um tom de azul diferente em sua íris. Analiso a – quase
imperceptível – pinta castanha no canto de sua bochecha esquerda, assim
como a covinha única que nos saúda quando ele sorri, e os lábios finos que
podem me levar do inferno ao paraíso em segundos. Thomas acaricia desde a
minha têmpora até a mandíbula, e se aproxima o suficiente para que eu sinta
seus lábios na minha orelha.
— Depois tenho que entregar o seu presente.
O sussurro em meu ouvido é suficiente para que eu aperte as coxas uma
contra a outra.
— Não gastou nada comigo, certo? — Mal posso evitar a bronca.
Após uma conversa longa acerca das dívidas e como poderíamos contorná-
las, aceitar que ele compre qualquer coisa para mim é quase uma ofensa.
Todo dinheiro do lucro da oficina será sabiamente utilizado por meio de um
planejamento de gastos. Thomas acertaria os aluguéis atrasados, teria grana
para sobreviver bem e suspenderia, por hora, a mesada que manda para sua
mãe mensalmente. Em prol de um objetivo maior: pagar as dívidas com os
advogados e juntar o necessário para quitar a oficina.
— Prometo que o capitalismo não meteu sequer o dedo mindinho nesse
presente. — Aperto meus olhos devido à gracinha e aceno em concordância.
Consigo dividir a atenção entre uma Nevaeh parcialmente animada e um
Dominic mais cabisbaixo. Embora a situação me deixe um pouco
desconfortável, os dois fazem questão de reafirmar que hoje a noite é apenas
minha, sem términos e passados trazidos à tona. Lewis e Andrew se
comportam como dois amigos da faculdade, e a falta de afeto resultam em um
pequeno incômodo em meu coração, pela falta de liberdade que eles têm.
Alguém anuncia ao fundo que o karaokê está liberado, e a primeira pessoa a
nos brindar com sua boa voz é a minha tia. Não que ninguém tenha muito
conhecimento de seu talento, contudo além de modelo, Lindsay poderia ser
uma incrível cantora. Ela escolhe "Man, I feel like a Woman" da Shania
Twain, e o gesto me faz sorrir, já que essa música marcou boa parte da minha
adolescência nas nossas noites do pijama.
Papai está em um papo muito animado com Dominic, enquanto o mais novo
o ensina a fazer minúsculas bolinhas de guardanapo para enfiar no canudo,
assoprando-o a fim de importunar um dos convidados. A primeira vítima dos
dois arteiros, infelizmente ou não, é Jules. O protótipo de guardanapo
assoprado pelo meu pai acerta a têmpora da tatuada e suas vistas se arregalam
de uma só vez.
— Quem foi? — Os olhos estreitos de Jules diminuem à medida que a
vermelhidão em seu rosto aumenta. Ela está com raiva.
Acho que Dominic e papai tem um tipo de combinado que consiste em não
dedurar um ao outro porque os dois se calam e forjam o melhor semblante
inocente. Thomas infla as bochechas, tentando prender a risada que ameaça
explodir em sua boca. Nego furiosamente com a cabeça, desacreditada com
um homem de cinquenta e um e outro de vinte e um anos brincando como
adolescentes. No entanto, é impossível negar o quão engraçado foi.
— Foi você, né, Daddy Lennon? — Jules aponta com o dedo indicador em
riste. — Eu só vou perdoar porque o senhor é o pai da aniversariante.
Maxon afunda o rosto no pescoço da companheira enquanto ri, embora todos
na mesa tenham escutado o sussurro de Jules chamando meu pai de ordinário.
Howard se limita a cobrir a boca com a mão, gargalhando silenciosamente do
jeito agressivo de Jules. Permito-me demorar um pouco observando meu pai,
tão desenvolto perto de pessoas que já ocupam um lugar significativo no meu
coração. Pelo que parece, ele e Dominic parecem amigos de longa data.
Quando o pequeno show de tia Lind termina, papai demanda sua atenção à
mulher, relembrando alguns momentos meus na infância. E Dom acaba
mergulhando mais uma vez no aspecto triste com os ombros caídos e
semblante murcho.
Sinto Thomas enterrar o rosto na curva do meu pescoço e avisar que o
próximo show será dele, e confesso que, no fundo, tenho um pouco de medo.
Realmente, não sei o que esperar dele, uma vez que Eckhoff pode ser bem
extravagante quando quer. Observo-o subir no pequeno palco designado ao
karaokê e escuto os primeiros acordes de uma canção começar.
Quando identifico "Marry You" do Bruno Mars, fico com um pouco de receio
de ele dedicá-la a mim, e sei que de Thomas posso esperar qualquer coisa.
Ele inicia a letra, se balançando de um lado ao outro do pequeno tablado. Se
estivéssemos em uma premiação, sua presença de palco mereceria um grande
dez.
— Ei, querido! — Thomas canta, apontando para Dominic. — Eu acho que
quero me casar com você.
O bar inteiro explode em risadas assim que percebem que Thomas está
cantando para Dominic. Sei o que ele está fazendo: tentando animar seu
amigo para receber ao menos um pequeno sorriso. E o Hopkins não deixa a
desejar quando acompanha a plateia na gargalhada. Analiso, sem pressa, as
reações dos mais próximos. Jules nega levemente com a cabeça, contudo
mantém os lábios erguidos em um riso pequeno. Andrew sorri grande,
presumo que admirando a cumplicidade entre seus dois melhores amigos.
Nevaeh também está feliz, apesar de tudo. Ela sabe que Dom merece um
momento como esse. Tia Lindsay está encantada, encarando o show de
Thomas com os olhos brilhando e um riso intenso por entre os lábios cheios.
Volto meu olhar a performance e sorrio ao vê-lo remexer os quadris no ritmo
da melodia, imerso no objetivo de agradar a todos os convidados. Procuro a
figura imponente de papai e o encontro próximo ao bar, encarando Thomas
com o canto dos lábios erguidos. Como uma conexão só nossa, seus olhos
encontram os meus e ele parece sorrir ainda mais com eles. Sei que sou feliz,
porque, nesse instante, eu sinto a mais pura e genuína alegria. Talvez amanhã
eu acorde triste, mas hoje, esse momento aqui, ao lado de todos que amo, já
está valendo a pena.
O resto da celebração corre tranquila, entre cantorias exageradas com Nev,
Hannah, uma Jules contrariada e eu cantando "Wannabe". O show se
aproxima bastante a um de horrores, misturando nossas vozes agudas e
desafinadas, inclusive, quase fiz xixi nas calças de tanto rir. Canto uma série
de músicas com Lewis, Dominic e até Andrew. E óbvio que nossos amigos
me fariam estrelar um dueto com Thomas. A escolhida da vez foi uma do
High School Musical, originalmente cantada por Troy e Gabriela, apesar de
eu preferir a versão com a Sharpay.
O tradicional canto dos parabéns passa de forma harmônica e meu bolo com
recheio de chocolate está uma delícia. Thomas faz algum tipo de brincadeira
acerca de ter tentado encomendar a torta com o Gordon Dale, mas que o
famoso confeiteiro não tinha vaga para pedidos.
— Ei, — Thomas ergue a mão para mim. — vem cá.
Encaixo nossas palmas e entrelaço os dedos, deixando que ele me puxe pelo
bar. Adentramos um banheiro unissex até amplo para um estabelecimento
como esse. O braço dele circunda minha cintura e seu corpo grande me
prensa contra a pia em um gesto ágil. Eckhoff acomoda o rosto na curva do
meu pescoço e seu cabelo faz leves cócegas na minha pele. Ele inspira meu
cheiro e deixa um beijo casto, causando-me um arrepio quase imediato.
— Senti saudades. — Thomas diz baixinho. Solto uma risada baixa por saber
que quase não nos desgrudamos, e ainda assim, sentimos falta de entrarmos
nessa bolha só nossa. — Quero entregar seu presente. Não pude comprar
nada e demorei a pensar em algo para alguém que já tem tudo.
Thomas não está errado, porque é difícil pensar em algo que eu esteja
precisando. Com sorte, eu realmente tenho tudo. Entretanto, enxergo um
pequeno envelope saindo do bolso interno de sua jaqueta e a apreensão vai se
apossando de cada poro. Pesco o pedaço de papel e abro com rapidez. Me
dou conta de que são vários pequenos cartões, com coisas diferentes escritas
na letra meio desengonçada do louro.
— Vale um abraço. — Leio em voz alta o primeiro e franzo o cenho para ele.
— O que é isso?
— São espécies de Vale Coisas. — Thomas parece nervoso porque abusa de
seu tique, afastando os fios da testa e coçando a nuca. — Cada cartão desses
tem algo que você pode usar comigo a qualquer momento.
O próximo é Vale Silêncio.
— Esse é para quando eu estiver falando demais e você queira um pouco de
paz, ou no momento em que estivermos tendo nossas discussões bobas. —
Continua com um pouco de receio.— Os Vales podem ser usados a qualquer
minuto, de verdade.
Vale um abraço.
Vale silêncio.
Vale uma chupada.
Vale um almoço no Sunbeach Resort.
Um sorriso largo rasga em meu rosto, elevando as bochechas. O último
cartão me faz cerrar os olhos, como uma bronca por ele querer gastar dinheiro
me levando no restaurante do hotel mais chique e caro de Oroland County, o
mesmo que minha mãe comemorou o aniversário.
— Antes que você brigue, não gastarei um tostão com as reservas do almoço.
— Cruzo os braços e levanto uma sobrancelha, instigando-o a explicar
melhor. — Ganhei da minha madrasta que é sócia do Resort e tem esse tipo
de fidelidade com eles.
Volto meu olhar ao cartão e a risada se expande pelo ambiente, reverberando
alta e fazendo meu peito tremer.
— Por que não tem sexo aqui?
— Porque esses cartões são única e exclusivamente para o prazer da Vossa
Majestade. — Ele discorre como um lorde, fazendo uma pequena reverência.
— Apesar de que ter meus dedos ou língua dentro de você também é
prazeroso pra caralho para mim.
As sacanagens que saem da boca dele são o suficiente para mudar o clima do
banheiro, transformando qualquer respingo no ar em tensão sexual. Agarro
seus ombros, afundando meus dedos nos músculos rijos e roço nossos lábios.
Encaixo nossas bocas e aprofundo o beijo. Sua língua desliza sob a minha,
deixando um rastro de excitação por todo o meu corpo enquanto sinto um
calor anormal se apossar de mim. As mãos grandes apertam os quadris,
bunda e peitos. Minha saia já está embolada na cintura e eu gemo ao
contemplar a dor leve da mordida no meu lábio inferior assim como sua
língua amenizando o machucado. A intensidade do toque torna-se cada vez
mais profunda e sei que se eu não parar agora transaremos aqui mesmo.
— Obrigada por tudo — ofego, tentando controlar o ritmo acelerado da
respiração. — Eu amei a surpresa do início ao fim, assim como a ideia do
presente. Você foi a melhor coisa que me aconteceu na faculdade.
— O quê? — Thomas brinca, posicionando a mão perto do ouvido. — Pode
repetir, por favor?
— Você foi a melhor coisa que me aconteceu na faculdade — repito em um
sussurro, encostando os lábios na orelha dele. — Você é a melhor parte.
— Deveria namorar comigo, Lennon.
A frase não se aproxima em nada a uma pergunta. Thomas quer que eu
namore com ele e está apresentando a sugestão nesse banheiro amplo demais
para um pequeno bar. Meu peito infla na porra de felicidade que as
protagonistas dos romances tanto exaltam. Nunca acreditei que a paixão
pudesse acontecer comigo desse jeito: leve, pura, sem amarras. Totalmente
diferente do que tive com Rafe.
— Deveria, é? — Faço um pouco de charme, jogando os cabelos para trás
dos ombros.
— Sim. — Ele deixa um selinho em meus lábios. — Você não acha?
— Me diga você, Thomas Eckhoff. — Cubro sua mão com as minhas e levo
até meu peito, no lado do coração. — Quer namorar comigo?
Sempre quis fazer isso. Tomar as rédeas da situação e externar alguma
vontade que grite em meu peito para ser liberta. Quero namorar com Thomas
e quero mais ainda ser a autora da pergunta. A realização me abate como um
raio quando percebo que finalmente estou me sentindo segura o suficiente
para expor minhas vontades e desejos, sem medo.
— Se eu fosse poliglota te responderia sim em todas as línguas que eu
soubesse. — O riso me escapa pelo jeito exagerado de Thomas.
Envolvo-o em um abraço apertado e encosto minha cabeça no peito, ouvindo
as batidas aceleradas de seu coração.
— Finalmente posso te chamar de amor sem uma reação exagerada. —
Relembro o episódio do início da semana e rimos em uníssono.
— Que mulher de pouca fé. — Thomas acaricia meu rosto, a almofada de seu
dedão raspando em meu lábio. — Eu sempre terei uma reação exagerada ao
te ouvir me chamar de amor.
— Te arrancar as coisas nunca me pareceu tão fácil, amor. — Eckhoff leva a
mão ao peito com um semblante afetado e gargalho alto, tombando minha
cabeça para trás, batendo-a de leve no espelho pregado na parede.
O gesto desastrado nos faz rir ainda mais.
— Creio que você não possa arrancar mais nada quando já me tem por
inteiro. — O ar foge dos pulmões quando o peso das palavras me atinge.
No entanto, percebo tardiamente que estamos no mesmo barco, porque
Thomas também me tem por inteiro.
— Às vezes me esqueço do quanto sua lábia é boa.
— Foi por ela que você se apaixonou? — O tom de voz exala diversão e
molecagem, sei que Thomas está apenas brincando, mas resolvo falar sério.
— Não. — Seguro o rosto com ambas as mãos e beijo a ponta do seu nariz.
— Me apaixonei por você.
O sorriso se expande pelo rosto dele vagarosamente, exatamente do jeito que
eu gosto: elevando as maçãs do rosto, diminuindo a íris oceano e exibindo a
covinha única.
— Fico feliz de estarmos na mesma página. — Ele aperta minha cintura com
um pouco mais de força. — Também estou fodidamente apaixonado por
você.
Entre Vale abraço e Vale chupada, o meu maior presente é esse. Saber que a
grandiosidade dos meus sentimentos é recíproca. Entender que essa sensação
na boca do estômago que irradia por todo o meu corpo, como as benditas
borboletas clichês, também voa na barriga de Thomas. Que essa conexão
fodida que nos cerca é contemplada por ambos os lados. Eu o adoro e ele me
adora de volta. E sei não no fundo e sim bem no raso, que estamos
caminhando para algo muito mais forte e poderoso que qualquer paixão.
— Minha Regina. — Thomas sussurra no meu ouvido, deixando um beijo no
lóbulo da minha orelha. — Minha Mack, meu amor.
Aí está a maldita palavrinha.
Amor.
Namorar é uma experiência, no mínimo, peculiar, e poderia servir de
amostras de estudos para profissionais da área de relações interpessoais. Por
mais que Thomas e eu já estivéssemos em uma espécie de relacionamento
exclusivo, definir um rótulo tende a elevar as coisas a outro nível. De modo
que agora adquirimos algumas responsabilidades diferentes. Por exemplo,
torna-se quase um hábito aumentar a convivência com a pessoa. Mesmo que
tenhamos definido alguns dias destinados a nós individualmente e aos nossos
amigos, sabemos que determinados finais de semanas ficam especificamente
separados a nossa vivência como casal. Outro ponto é que adicionamos o
gesto de geralmente nos avisarmos onde estamos e fazendo o que, não de
forma forçada, e sim natural.
No entanto, a maior diferença, em minha opinião, é o conjunto família.
Geralmente, quando temos um relacionamento sem rótulos ou ao definirmos
como apenas "uma ficada" é normal conhecermos os amigos e até primos,
contudo o combo pai e mãe ou parentes mais próximos costumam ficar de
fora. Porém, com um namoro exposto ao público e dentro da normalidade, é
normal levar em conta os familiares e conhecê-los.
O que, inclusive, eu vou fazer hoje.
Amanhã é feriado de Ação de Graças e com papai envolto em um jantar da
alta sociedade com minha progenitora, eu reafirmei o combinado de passar a
festividade na casa de Thomas em Oroland County. Se estou nervosa? Para
um caralho.
Sinto algumas gotículas de suor se acumular nas palmas das mãos e torço os
dedos dos pés em uma mania que costuma me visitar quando estou nervosa.
Olho de relance para a figura dona da cabeleira loira, compenetrado na
estrada que nos leva até o litoral do Condado. Mesmo com o silêncio
cultuado pela atenção redobrada do homem na estrada – molhada pela chuva
e com pouca visibilidade porque está de noite –, consigo ouvir um pop de
batida grave soar baixinho nos alto-falantes do carro.
— Como ela é em relação às garotas que você sai?
Solto em um rompante, deixando claro com um olhar de esguelha que o ela
se refere diretamente a mulher esbelta que o gerou.
— Tranquila. — Thomas dá de ombros. — Não que eu já tenha apresentado
alguma para ela.
— Nunca apresentou nenhuma garota? — Arregalo os olhos levemente e
sinto o peso das palavras se acomodar em meus ombros.
— Não. — Aprumo a postura no banco e o espero dar continuidade ao
diálogo. — No colegial, eu não beijava ninguém e a faculdade fica longe de
Oroland. Ela sabe pelo que conversamos por mensagem e ligação, mas
pessoalmente nunca conheceu nenhuma delas.
Arrependo-me instantaneamente pela indagação inicial. Saber que a mãe dele
nunca conheceu nenhuma de suas ficantes ou amigas mais íntimas aumenta
meu nervosismo exponencialmente. Quer dizer, existe algum tipo de
responsabilidade ligada a isso, certo? A mãe dele pode ter idealizado ou
criado expectativas em relação ao meu comportamento e até ao que eu falo. E
se eu decepcionar? E se ela me odiar?
Para falar a verdade, é bem fácil não gostar de mim ou criar uma opinião
baseado no que eu visto, na minha postura e até mesmo em como eu ando.
Certamente, a mãe de Thomas preferiria alguém mais... Simples para estar ao
lado do filho. E não uma mulher que contorce as feições para banheiros
compartilhados e transportes públicos. Será que só de me olhar ela saberá que
nunca sequer andei de ônibus? A minha inexperiência com as adversidades
da vida começa a me incomodar.
— Posso ouvir seu cérebro trabalhando daqui. — Ouço sua voz soar com
resquícios de divertimento. — Relaxa, Lennon. Mesmo que a opinião da
minha mãe seja de suma importância, no fim das contas, quem tem que gostar
de você é eu.
— Eu esperava ouvir algo como: relaxa, Lennon. Ela vai gostar de você —
rebato erguendo os lábios em um sorriso.
— Não tenho como falar por ela ou afirmar algo sem ter certeza. — Sua voz
sai em um tom meio esganiçado. Abano a mão, como se dissesse "você tem
um ponto" e o assunto morre, por hora.
Alguns minutos se passam até que eu veja a grande placa verde anunciando
nossa chegada à cidade natal do meu namorado. Ainda é estranho, de certa
forma, pensar nele como meu namorado. Não faz nem um mês que
oficializamos as coisas, mas se contarmos todo o nosso tempo de convivência
esse período é como uma continuidade de tudo que construímos em apenas
doze semanas.
Peço que Thomas desligue o aquecedor um pouco para abrirmos os vidros
das janelas a fim de sentirmos um pouco da maresia que abraça toda a cidade
litorânea. O clima mais abafado e caloroso, mesmo que no Outono, dispensa
o uso do casaco de lã que coloquei em Bolfok. Já estive em Oroland County
algumas vezes, porém admirar o local sob os olhos de um habitante muda um
pouco minhas perspectivas. Até porque não estou a caminho do bairro mais
rico localizado na ponta da orla da praia, onde costumo me hospedar. Estou,
na verdade, cortando a urbanização pelo meio na direção do ponto médio da
orla, nem no início e nem no fim. Thomas diz que a especulação imobiliária
aqui é um pouco diferente quanto aos lugares no mapa, por exemplo, estar
perto do oceano não quer dizer que o metro quadrado do seu imóvel será
mais caro. Na verdade, a divisão é feita por bairros e pela sua distância do
início do mar. Quanto mais próximo do fim da orla mais carente é a sua
condição de vida.
Saber que a casa de Thomas está localizada a uma quadra da praia no meio da
orla me deixa um tanto mais tranquila, de forma que consigo entender
facilmente que sua moradia não é tão espalhafatosa quanto à dos ricos e nem
tão simples quanto as dos mais carentes. Sinto a velocidade de o carro
diminuir enquanto o loiro gira o volante, fazendo uma baliza para estacionar
na calçada.
— Seja bem-vinda a residência dos Eckhoff! — Sua voz me desperta ainda
mais do transe e eu encaro a fachada de sua casa.
É cedo para dizer que eu me enganei?
O minúsculo quintal separa a construção da rua por grades pretas um tanto
enferrujadas e o pequeno jardim que antecede a soleira está bem cuidado com
uma variedade colorida de flores e plantas. A casa amarela pastel é pequena e
bem simples, com apenas um andar e uma janela um pouco mais ampla. A
pintura com detalhes brancos está preservada de um jeito que compensa as
telhas gastas pela maresia. Apesar de humilde, a moradia parece calorosa e
aconchegante.
O portão range um pouco assim que Thomas abre e o farfalhar dos cascalhos
e pedregulhos do pequeno caminho que nos leva até a soleira contrasta com a
taciturnidade e tranquilidade de uma noite em uma cidade pequena. Subo os
três degraus que antecede a entrada com a mão de Eckhoff pousada
despretensiosamente na minha lombar. Seu dedo mindinho acariciando
levemente minha pele na fresta entre a blusa e a barra da calça acalma um
pouco do meu nervosismo ao escutar a campainha soar.
Reconheço com facilidade a figura esbelta da mulher de cabelos negros que
atende a porta. Noora Eckhoff estende o sorriso que marca algumas de suas
linhas de expressão e as ruguinhas quase imperceptíveis no canto dos olhos
de um azul tão intenso quanto o de Thomas. Eu sempre soube que ela seria
uma mulher jovem, por ter engravidado aos vinte, no entanto, sua aparência é
tão jovem que mal posso acreditar nos seus quarenta e um.
— Filho! — Noora ergue os braços, querendo aconchegá-lo em um abraço.
— Amor da minha vida! — Há divertimento no modo como sua voz soa, mas
a pitada de verdade ainda está ali.
Thomas flexiona os joelhos consideravelmente a fim de circundar os braços
pelo corpo robusto de sua mãe, agarrando-a em um abraço de urso. Ele beija
o topo da cabeça dela, murmura o quanto sentiu saudades e tenta mensurar o
tamanho de seu amor, falhando miseravelmente. A cena é capaz de preencher
o peito de qualquer um com o melhor dos sentimentos. Noora afaga as costas
do filho e o encara com um olhar terno de quem está vendo nesse exato
momento a melhor pessoa do mundo.
— Como está o meu bebê? — A pergunta faz as bochechas corarem
violentamente. — Comendo direito? Não está fumando tanto, certo? Dominic
já aprendeu a lavar as roupas de vocês? Está mantendo aquela casa limpinha?
Andrew conseguiu reconhecer a importância de guardar a toalha no lugar
certo ou continua largando pela casa?
A série de questionamentos é disparada contra Thomas em uma velocidade
impressionante. Pensei que só eu conseguia pronunciar tantas palavras em um
curto espaço de tempo, mas parece que alguém acaba de me ultrapassar. O
filho rebate as indagações com calma, dando devida atenção a cada uma e é
só quando ele dá um passo para o lado que me insiro no campo de visão da
mulher.
— Oh! — Ela põe a mão no peito com uma expressão afetada e esboço um
sorriso simpático. — Você deve ser a Regina.
Aperto os olhos para Thomas e contraio minhas feições em nítido desagrado.
É óbvio que nas vezes em que fui pauta das conversas dos dois, ele fez
questão de mencionar seu carinhoso apelido. Belisco sua cintura
discretamente e ele franze o nariz, incomodado.
— Mackenzie Lennon. — Ergo a mão para cumprimentá-la e ela ignora a
palma estendida para me envolver em um abraço maternal.
— Noora Eckhoff. — Ela murmura baixo no meu ouvido e se afasta, ainda
segurando meus ombros. — Como você é linda!
Alargo o sorriso.
— Muito obrigada, a senhorita também é. — respondo, sendo o mais educada
que consigo. A mãe de Thomas franze o cenho e rapidamente abre outro
sorriso.
— Uau. — Acompanho os dois para dentro de casa enquanto Noora continua
falando. — Acho que você é a primeira pessoa desconhecida que usa o
pronome de tratamento certo comigo. Senhorita faz eu me sentir mais nova.
Apesar de aprendermos esses pronomes na escola, foram nas aulas de
etiqueta que aprendi a valorizar o uso deles. Sabendo que a mãe de Thomas
não é casada, relembro da Senhora Boomer pedindo que eu tenha atenção aos
detalhes e que mulheres da alta sociedade podem se sentir verdadeiramente
ofendidas caso o pronome de tratamento seja usado de forma errônea. Porém,
antes que eu responda, Noora volta a falar.
— Mas dispenso o “senhorita”, porque você pode usar o você — agradeço
com um balançar de cabeça.
Dentro da residência dos Eckhoff, consigo dar atenção à decoração interna do
lugar. A sala é pequena, com um rack que abriga a televisão e alguns porta-
retratos, um sofá de três lugares vermelho-sangue e uma poltrona creme. A
mesa de centro de vidro comporta alguns livros e um pequeno vaso de plantas
com suculentas dentro. A decoração é minimalista, mas de um bom gosto
extremo. As cores parecem combinar perfeitamente, assim como a beleza dos
móveis. O corredor de entrada que nos leva até a bancada que divide a
cozinha americana do hall tem alguns papéis de foto colados na parede,
estampando momentos importantes desde a gravidez dela, passando por uma
criança loira com a boca suja de bolo de aniversário, e terminando em uma
foto de Eckhoff de beca provavelmente se formando no colegial. Também
tenho o vislumbre de outras duas portas que acredito serem a dos dois quartos
e de um banheiro.
Como eu disse: uma casa pequena e simples, mas que parece ter sido
decorada com base nas dicas do Pinterest. Quando mencionei o bom gosto foi
como puxar um gatilho para que a mãe de Thomas começasse a tagarelar
sobre decorações e de como comprou todos os seus móveis em um bazar de
mobílias usadas. Além disso, segundo ela, seus eletrodomésticos vieram de
um outlet que vende produtos com defeitos quase imperceptíveis e os preços
diminuem consideravelmente. Admiro muito o esforço de ajeitar uma casa
bonita com o menor custo possível. Tanto Thomas quanto eu, deixamos sua
mãe livre para discursar sobre o que quiser, já que ela não está acostumada
com companhia.
Noora nos informa que o jantar de Ação de Graças de amanhã está bem
encaminhado, e que o tio de Thomas, Mason, também virá comer conosco
junto de sua namorada e o pequeno filho dela. Pela primeira vez, a casa
contará com a presença de mais de três pessoas e isso parece animá-la cada
vez mais. Ela me apresenta o resto do domicílio, como a cozinha igualmente
bem decorada, o banheiro com box de blindex e o quarto de Eckhoff, onde
dormiremos.
O cômodo é pequeno como o resto da casa, contando com uma cama de
solteiro tão estreito quanto à do meu alojamento, uma mesa de estudos
simples e uma estante parcialmente vazia com HQs e livros que Thomas não
quis levar para Bolfok. As paredes são de um azul claro meio fosco com
algumas nuvens pintadas à mão, como se a pintura do quarto não tivesse
acompanhado o crescimento da criança que um dia dormiu ali. A versão
parece até uma miniatura do lugar onde ele dorme atualmente.
Com o objetivo de nos instalarmos por completo, Noora ordena que
busquemos logo as bagagens no carro. Malas essas que já foram pautas em
discussões minhas com Thomas, já que partiríamos de Bolfok na quarta à
noite, passaríamos o feriado e voltaríamos na sexta para não desviarmos o
foco de economizar dinheiro com a tentação que é a Black Friday. E, segundo
Eckhoff, eu não preciso de uma mala gigante para passar duas noites fora.
Engano seu, querido. Mesmo tendo certeza de que não darei conta de usar
todas as peças de roupa que trouxe, sei o quanto é importante ter mudas
extras caso algum imprevisto aconteça.
Já a senhorita Eckhoff promete que usará a oportunidade de descontos para
fazer as compras de Natal. Sendo muito sincera, nunca me importei muito
com a Black Friday. E isso se dá porque não houve um momento sequer em
minha vida que precisei me importar com preços mais baixos e descontos.
Sabendo que na atual conjuntura, minha condição de vida é outra, a ideia de
comprar novas roupas por preços mais baixos acaba sendo muito atrativa.
O baque da minha mala pesada atingindo o chão, após ser tirada do
bagageiro, me acorda dos devaneios.
— Ei! — Acaricio o tecido da bolsa de viagem com apreço. — Tenha
cuidado com ela. É uma Hermes!
Thomas agarra a alça de sua única mochila e me encara com um sorriso
zombeteiro.
— Oh! — Põe a mão no peito, fingindo estar afetado. — Minhas sinceras
desculpas, Hermes.
Ele fala diretamente com a mala, dando-a um novo nome. Pelo resto do
caminho até o quarto, agarrando minha bagagem pesada, Thomas se refere a
ela como Hermes o tempo todo. Deixo os lábios lacrados, tentando não ceder
e acompanhá-lo na risada.
Durante o jantar, a mãe dele nos fez algumas perguntas sobre a faculdade,
incluindo os relatos sobre como foi organizar eventos por dois meses e como
fomos do ódio ao namoro. Aos poucos, consegui me livrar do nervosismo e
da insegurança e me senti livre para tagarelar acerca dos diversos assuntos
que rondaram a mesa. Descobri também que Noora trabalha como
recepcionista em uma clínica odontológica e que esse é um dos empregos que
mais paga bem, sem exigir muitas especializações ou ensino superior. A mãe
de Thomas é alto-astral, extrovertida, e realmente ama falar e contar histórias.
Levando assim o jantar de forma leve, sem precisar forçar qualquer tipo de
assunto.
— De onde você é, Mackenzie? — A pergunta atropela um pouco o assunto
anterior e me faz tomar um gole do suco natural de frutas vermelhas.
Outro fato sobre a mãe de Thomas é que ela é vegetariana. Não que seja
muito comum na América, já que a população não é de todo consciente sobre
os males do consumo derivado de animais. Independentemente disso, Noora
disse que nunca gostou muito de carne vermelha e ao visitar uma palestra de
culinária não agressiva, acabou pegando o costume de tirar todos os tipos de
carne de seu cardápio. Eu não sou muito adepta de refeições sem proteína
animal, porém o hambúrguer de grão-de-bico com purê de batata e vegetais
está verdadeiramente delicioso.
— De Dilshad Town — respondo de forma evasiva, aguardando que ela faça
outra pergunta.
— Ah. — Sua expressão se enche de compreensão. — É aqui do lado.
Afirmo com um aceno de cabeça e dou outra garfada na porção de vegetais
coloridos em meu prato. Finalizo a mastigação antes de voltar a falar e apoio
os antebraços na mesa com elegância.
— É sim — dou outro gole no suco. — Eu costumava vir bastante para
Oroland.
— E o que gostava de fazer aqui?
— Ir à praia principalmente — inicio, cruzando as mãos sobre a mesa. —
Ficávamos hospedados no Sunbeach Resort e eu amava o pequeno parque
aquático que tem lá.
— Lá é realmente lindo. — Noora parece lembrar-se de algo e seus olhos
parecem se tornar um tanto melancólicos. — O pai de Thomas é um dos
donos.
Ao citar o nome do dito cujo, o clima na mesa muda drasticamente, ganhando
um ar muito mais pesado. Assisto os ombros de o loiro ficar rígidos assim
como os nós de seus dedos tornam-se esbranquiçados à medida que ele aperta
o talher com força. A mandíbula tenciona e ele apruma a postura com
rapidez. Ela parece se dar conta tarde demais de que tocou em um assunto
proibido porque arregala os olhos e sibila um pedido de desculpas. Antes que
ele possa dizer qualquer coisa impensada, me pronuncio tentando amenizar a
tensão.
— Sua comida está deliciosa, Noora.
Meu comentário é o bastante para que ela atropele qualquer palavra ranzinza
que vá sair da boca dele e comece a externar sua paixão por culinária. Depois
de organizar os talheres e pratos sujos e lavar a louça, a mãe de Thomas me
convida a xeretar os álbuns antigos de quando ele era criança, como todo o
clichê que envolve conhecer a família do namorado. A minha fotografia
favorita é aquela que estampa um mini Eckhoff pelado, fazendo xixi na
privada de adulto pela primeira vez, segurando seu pintinho enquanto lança
um sorriso sapeca para câmera fotográfica.
Assisto meu namorado bocejar de modo que seus olhos adquirem um brilho
especial, quase lacrimejando. E o gesto é suficiente para nos recolhermos na
estreita cama de solteiro após desejar boa noite a Noora.
O espaço no colchão é pequeno, fazendo com que nossos corpos se
entrelacem de um jeito que é difícil identificar quem é quem. Nossas pernas
estão emboladas, assim como minha cabeça repousa em seu peito e seu braço
envolve meu tronco. Apesar do clima mais abafado, a noite em Oroland pode
contar com uma brisa gélida gostosa que irrompe pela fresta da janela e
refresca todo o quarto. É o que impede de suarmos mesmo com o calor.
— Você acha que sua mãe gostou de mim? — Faço a pergunta que eu queria
fazer desde o término do jantar.
Thomas ri baixo e sinto seu peito tremer colado ao meu.
— Tenho certeza que sim, amor — ignoro o comichão que a pequena palavra
provoca em mim. — Ela disse que temos uma boa sintonia.
— Eu concordo com ela — digo acariciando seu abdômen nu e o sentindo
contrair abaixo de mim. — Quem diria que depois de três meses, mesmo com
toda aquela implicância, estaríamos juntos na sua cidade natal conhecendo
sua mãe?
— Nevaeh diria, ou Dominic e Andrew. Só nós dois não enxergamos os
sinais.
Concordo com um balançar de cabeça.
— Acha que foi rápido demais? — pergunto com insegurança transbordando
na voz. — Sabe, nós dois. Tem pessoas que demoram um ano para namorar e
se apaixonar. Quando penso que eu queria te bater e agora estou agarrada em
você, fico me perguntando se não atropelamos as coisas.
— Algumas coisas não mudam. Você ainda quer me bater às vezes. —
Acompanho-o na risada. — Não acredito nisso de tempo. Acho que o tempo
não age conforme nossas vontades. Nós convivíamos quase todos os dias da
semana por causa dos eventos, o que é totalmente diferente dos casais
normais que no início não se veem com tanta frequência. A gente aprendeu
coisas um sobre o outro com rapidez porque precisávamos conversar entre
decorações e organizações. Aprendemos a gostar um do outro, das manias
chatas até as adoráveis.
"Lembro quando te vi envergonhada pela primeira vez, com as bochechas
coradas e olhar baixo. Naquele dia, além de me perguntar se você ruborizava
daquela maneira no sexo, eu também percebi que gostava dessa versão sua. E
não percebi quando chegou a um ponto que eu gostava de todas as suas
versões. A gente nunca respeitou muito as normas de relacionamento,
driblamos alguns estereótipos que nos lembravam de pessoas ruins que
passaram por nossas vidas... Acha mesmo que temos que respeitar o tempo?
Ele que se molde a nós dois. Que se foda."
— É, que se foda — repito me afastando de seu peito para encará-lo. — Eu
me apaixonei por você em três meses e o tempo que lute.
Thomas cobre meus lábios com um selinho e se afasta para me encarar com
seus olhos azuis oceano, brilhando mais do que o normal.
— Mackenzie Lennon, — Thomas inicia — eu acho que te a...
Pouso meu dedo indicador sobre seus lábios antes que ele prossiga,
impedindo que qualquer palavra saia de sua boca.
— A cada dia, através das suas atitudes tenho mais certeza disso. — Arrasto
minha palma até sua bochecha, acariciando-o. — Eu também te odeio com
todas as forças, Thomas Eckhoff.
— Aposto que não. — Ele revida, portando um sorriso sacana. — Porque eu
te odeio muito mais.
Apesar das palavras impetuosas, o olhar terno somado ao sorriso largo nos
lábios mostra o contrário. Não há uma fagulha de ódio sequer ali, menos
quando ele cutuca meu sovaco, é claro. O que sentimos muito me custa dizer
em voz alta, até mesmo em meus pensamentos, é amor. Do mais puro e
genuíno. Nada de palavras vazias, e sim atitudes que demonstram carinho,
parceria, afeto, respeito, leveza e tudo que precisa ser considerado. Porque só
o amor não basta. E como me sinto ao lado dele, apenas reafirma isso. A
leveza, liberdade, além de que não sinto que minhas energias estão sendo
sugadas, pelo contrário, é como estar renovada. Com mais vontade de viver.
Eu gostaria de fazer uma reflexão bonita e poética sobre pessoas e cores.
Uma analogia que me lembra da música True Colors. Contudo, eu não sou
essa garota. Existem pessoas que podem imergir até as profundezas e trazer à
superfície as palavras e reflexões mais bonitas, como escrever um poema,
adicionar um nome respeitoso e defini-lo como um clássico. Do tipo, é claro
que sou culto porque consumo coisas eruditas. Não eu, uma Mackenzie que
ama imergir nas diferenças entre Gucci e Prada, nos mais diversos tons de
rosa, nos romances água com açúcar que, mesmo sabendo o final e
adivinhando todo o enredo, ainda pode me aliviar do estresse do dia a dia.
Voltando a analogia das cores, sei que vermelho é a do amor, e dizem que
roxo é a da luxúria. Ouvi também que azul traz a ideia de afeto e respeito,
embora traga frieza. O que eu quero dizer é que esse amor que descubro
sentir por Thomas, não é sobre alguém que deu cor a minha vida, e sim sobre
uma pessoa que adicionou um bocado de glitter extravagante no que já era
colorido.
Mesmo com todo esse rosa e cores claras que visto, ainda há muito cinza e
preto dentro de mim. Como se houvesse algo de perverso dentro de
Mackenzie Lennon, aguardando junto à seriedade e paranoias, o momento de
transbordar. Talvez eu seja um prisma, dos que – aprendi em meio a cochilos
nas aulas de física – refletem todas as cores. Tenho todas elas, porque sou um
ser humano completo. Mas, agora esse arco-íris brilha mais, talvez na mesma
intensidade que meus olhos quando me deparo com as pessoas que amo.
Finalmente, encontrei alguém que verdadeiramente me enxerga.
Mas, como qualquer outro ser humano, tenho camadas. De cores secundárias
que jamais alguém teve acesso. Há essa perversidade dentro de mim, algo de
podre cravado no meu âmago. Como se aquela Mackenzie do colegial tenha
se enroscado tão bem nas mazelas do meu corpo, que agora é impossível
tirar. Quando penso no que fiz, e que nem mesmo Nevaeh sabe, sinto medo.
Quando Thomas Eckhoff descobrirá que Mackenzie Lennon é uma farsa?
Minhas costas estão fodidas.
Isso também acontece às vezes: meu sono é tão pesado que nem uma pequena
queda pode me acordar. Na verdade, é mais comum quando estou muito
cansado. O que foi o caso desta noite. Estava tão morto por ter assistido as
aulas na faculdade, ido à oficina e dirigido por duas horas sem interrupções
que bati na cama no sono dos justos. Só percebi que estava, de fato, no chão
ao acordar com o raio de sol que invadia o cômodo pela fresta da janela, e ao
invés de sentir o conforto de um colchão, desfrutei da dureza e do gelado do
chão.
— Mais uma vez, — Mackenzie me olha com o que parece ser pena, apesar
do pequeno sorriso que ameaça transbordar em seus lábios — peço
desculpas.
— Qual é, acha que estou puto por ter passado o resto da noite dormindo no
chão enquanto a Vossa Majestade reinava na cama? — É uma pergunta
retórica, e tanto minha mãe quanto Mack sabem disso, porque se limitam a rir
outra vez.
Mas, sendo sincero, cuspir para o alto nunca foi tão bom.
Namorar não chega perto de ser uma tortura ou algo ruim, e existem algumas
coisas que precisamos desmistificar em relação a esse assunto. Uma delas é
que namoro não é sinônimo de prisão. Apesar de parecer óbvio para os mais
evoluídos, nunca é tarde para reafirmar. A sintonia que tenho com Mack é tão
boa que nada nunca parece forçado ou que fuja do natural. Temos nossos dias
particulares, desfrutando de nossa independência e individualidade assim
como gostamos de aproveitar os momentos mais inocentes juntos. Um
exemplo é quando nos juntamos com o único objetivo de estudar. Ela, na
minha cama, envolta por livros grossos de Direito e teclando furiosamente no
notebook. E eu, na mesa de estudos, resolvendo fórmulas químicas. Nesses
dias, a gente pouco interage, focando exclusivamente em moldar e solidificar
nosso bom desempenho acadêmico. É um daqueles momentos em que
sabemos que estamos construindo algo, crescendo juntos. Trabalhando em
algo muito maior, de olho no futuro.
A primeira coisa que noto ao ver minha namorada é que ela está vestida de
marinheira. Eu acho, pelo menos. Ela usa uma blusa listrada vermelha e
branca, e uma alça que perpassa em seu pescoço. Combinando com um short
branco de um pano chique e seis botões dourados cravejado no tecido. Desço
os olhos até os saltos médios de tiras igualmente brancas e chego a uma
conclusão: definitivamente marinheira.
Se fosse uma mera mortal vestida dessa forma, tenho a absoluta certeza de
que ela receberia milhares de olhares atravessados e até zombeteiros. No
entanto, a postura imponente e nariz empinado de Mack impedem que
alguém sequer conteste sua escolha de visual. A mulher de longos fios
castanhos anda – ou melhor, desfila – de um jeito que ninguém ousaria
satirizar. Tipo uma daquelas modelos que lançam uma tendência e todos
seguem sem opinar ou criticar.
Sinto a brisa de o mar bagunçar meus cabelos à medida que meu Eagle
Speedster desbrava a extensão da Orla Jout Leo, que homenageia uma atriz
famosa amante da pequena cidade litorânea. É engraçado como em Oroland
só parece ter duas estações: verão e inverno. Porque mesmo no Outono,
posso experimentar a sensação abafada do sol castigando minha pele em
conjunto com o vento quase gélido da estação atual. A caminho do resort,
poupamos o assunto só para escutar as ondas se chocando e Red Hot Chilli
Peppers gritando Scar Tissue nos alto-falantes do carro. E mesmo que a
canção não seja como uma batida eletrônica comum em hits de verão, os
acordes me remetem instantaneamente a locais de praia. Basta que Anthony
Kiedis comece a cantá-la que rapidamente relaciono-a com a familiaridade da
maresia e o relaxamento que só um período de férias no mar pode trazer.
— Você tá tão bonitinho com essa roupa que nem parece o Thomas que
conheço. — Ergo os lábios e reviro os olhos em completo desdém.
A blusa de botões salmão junto com a bermuda caqui acima dos joelhos e
tênis branco nada combina com meu estilo habitual. Sinto falta da jaqueta de
couro e das botas de combate. No entanto, o clima de Oroland County
dispensa qualquer jaqueta de couro ou calça jeans.
— Parece que roubei um short seu — resmungo, passando as mãos nos meus
joelhos descobertos.
— Não seja tão exagerado! Essa bermuda não é tão curta e está na moda. —
Ela se exalta, mas o sorriso que paira sobre seus lábios é descontraído.
Perscruto minhas roupas com os olhos e franzo o nariz.
Assim que chegamos ao último andar, conduzo Mackenzie até a nossa mesa,
reservada na sacada do restaurante para termos uma visão privilegiada do
mar. A brisa morna da maresia acaricia meu rosto e um sorriso ameaça
escapulir por entre meus lábios. E Lennon parece igualmente encantada, já
que não tira o enorme sorriso da face. Que dê tudo certo nesse almoço, afinal,
já basta de situações inconvenientes.
O cheiro de protetor solar que ainda resta em minha pele me faz franzir o
nariz. Depois de desfrutar de um almoço calmo, cheio de comidas entupidas
das frescuras que Mack ama, conseguimos aproveitar um pouco da praia.
Quando o sol afundou no oceano e espalhou milhares de tons alaranjados
pelo céu, a calmaria se apossou do meu corpo e me fez ignorar, pelo menos
um pouco, a brisa gélida que vinha do mar. É fácil reconhecer o Outono,
porque apesar do abafamento, o vento frio da noite impede o uso de qualquer
roupa de banho. Então, a praia fica infestada de hippies com roupas cobertas
de estampas estranhas, de surfistas com trajes de borracha que cobrem todo o
corpo e de pessoas comuns, vestindo roupas mais comuns ainda.
— Quem limpa aquela casa sou eu, Mack. Pode ter certeza que ela esqueceu
algumas coisas lá, que nem fez questão de ter de volta, mas nenhuma delas
foram os tênis.
Escuto o grito agudo da minha mãe, pedindo ajuda para colocar a mesa, e me
despeço de Mack com um beijo no topo da cabeça e um elogio que ressalta o
quão absurdamente linda ela é. Caminho a passos largos até a cozinha e não
demoro a levar a primeira travessa de vegetais para a sala, já que não temos
um lugar específico para jantar.
— Não, de forma alguma. — Aguardo, porque sei que ela quer dizer mais. —
Só estou tentando me acostumar a ideia de que você namora alguém vindo de
uma realidade tão diferente.
Sei que ela se lembra de Jessie, até porque é inevitável não ser remetido à
lembrança dos dias difíceis que vivi por causa de uma colega de classe que
me infernizava. No entanto, resolvo não adentrar esse assunto.
Minha mãe ri, e apesar do divertimento, sei que vai ser um pouquinho difícil
de acostumar. Principalmente ao grito agudo de hoje cedo quando o chuveiro
elétrico parou de funcionar e o jato gelado chocou no corpo dela, ou as
feições contorcidas que ela não soube disfarçar no instante em que encarou o
hambúrguer de grão-de-bico, assim como suas manias estranhas de nunca
apoiar os cotovelos na mesa e utilizar os talheres como se eles fossem
quebrar. Mackenzie fez, por anos, aulas de etiqueta que ainda refletem em
sua maneira de andar, se sentar, se portar e até falar. E apesar da mulher não
ter reclamado de absolutamente nada acerca dos perrengues que passou na
minha casa, sabemos que ela não está acostumada a viver de forma simples.
— Sei que ela é uma boa garota, de verdade. — Noora põe a travessa de peru
falso ao lado da vasilha de purê. — Mas, não sei. Desculpe-me por ainda ter
um pé atrás. É só que vejo no olhar dela algo de errado, como se Mack
estivesse gostando o bastante de estar aqui, mas não se sentisse merecedora
de tanto afeto. Um comportamento comum em pessoas que escondem algo.
— Acha que a mulher que conviveu comigo por três meses inteiros, dividiu
segredos e confissões, ainda esconde algo? — Penso rapidamente em
qualquer comportamento atípico que eu possa ter deixado de fora. — Acho
muito difícil.
— Fala, Thomas. A cada vez que te vejo, parece estar maior, rapaz. —
Acompanho meu tio na risada. — Esse é o Elvis.
A menção do sobrenome que nunca uso me irrita até o último fio de cabelo.
Giro os olhos e ponho a língua para fora de pirraça.
Tanto Sarah e Mason – que riem baixo – quanto Mack e Noora sabem que a
seriedade do jantar acaba de terminar. Porque a partir daquele instante, uma
miniguerra de guardanapos e ervilhas se inicia.
Sinalizo com a cabeça para Elvis, que em um acordo mudo, me ajuda a juntar
as ervilhas da mesa e jogar de volta ao prato vazio. Abaixo para pegar umas
que caíram no chão e termino de ajeitar o forro meio revirado.
Encaro os rostos surpresos dos integrantes da mesa, e sei o que eles estão
pensando. Provavelmente que não conseguem associar a mulher a nossa
frente com alguém que iria parar em uma Aldeia, ou que ricos adoram a ideia
de fazer trabalho voluntário, sem de fato terem noção da responsabilidade que
isso implica.
O relato não me assusta nem causa nenhum tipo de reação, justamente porque
já escutei muitas vezes. No entanto, o resto dos integrantes da mesa parecem
assustados e um tanto inclinados a dar risada ao imaginar Mackenzie,
acostumada demais com regalias, em um local totalmente diferente.
— Era para eu ter ficado um mês, mas só aguentei duas semanas e meia. —
Há um tanto de vergonha mesclado com suas feições. — Por isso reafirmo
que fui irresponsável ao fazer a escolha de ir sem estar preparada. É
revoltante a forma com a qual aquelas pessoas vivem, e isso não deve ser
sobre você, o voluntário, e sim sobre eles.
A pele branca de Luke brilha pela camada fina de suor que cobre sua pele
visto que o subsolo da oficina é um tanto quente. Ele arrasta a mão pelos
cabelos crespos e solta um suspiro quase fúnebre.
— Acha mesmo que foi John quem sabotou Mackenzie? — Empurro uma
pele no canto das unhas para o lado e pondero sobre o assunto.
— Não faz muito sentido. — Pesco o cigarro guardado atrás da minha orelha
e o acendo com o isqueiro de Luke. — Embora Mackenzie tenha feito a tolice
de confiar seu carro à oficina daqueles crápulas, não vejo motivos que
levariam John a sabotá-la.
— Ainda mais que ela estava correndo contra você, e sabemos que o ego dele
prefere torcer por qualquer um que te vença — concordo com Luke com um
aceno de cabeça. — Se não foi o John, quem odiaria Mackenzie ao ponto de
querê-la morta?
O dia invade minha mente com todas as cenas organizadas, de modo que
parece que foi ontem. Tento não pensar que aquela foi a primeira vez que
transamos, e que Mackenzie havia negado meu convite de me ver correr em
prol de um estudo que sabemos que não ocorreu porque, no fim das contas,
ela estava mesmo na Bolfok Ride. No mesmo lugar que eu, tão perto. Ainda
me sinto tolo por não ter captado todos os sinais antes.
— Acha que sabotaram o carro de Lennon dentro da oficina do John e ele não
sabe de nada? — Luke solta uma risada desdenhosa, porque ambos
conhecemos a índole do líder dos Lion.
Arrasto a mão pelos fios displicentes que caem sobre minha testa e coço a
nuca. A aflição de avançar algumas casas imaginárias, construindo um
raciocínio, me deixa nervoso quando há algum retrocesso. É como estar,
literalmente, dando voltas em um caminho sem saída.
— Thomas. — Luke chama minha atenção. — Dirija até Dilshad Town ainda
hoje e converse com Lennon. Peça que ela te conte tudo, desde sua primeira
corrida até o dia do acidente.
— Cara, — Andrew aperta meu ombro — sei que não está sendo nada fácil.
Você provavelmente está revivendo cada momento juntos e se perguntando
se não foi um otário. Talvez tenha sido, ou não. É impossível saber sem uma
conversa sincera com ela. Portanto, vá até Dilshad Town e pergunte tudo o
que deseja à Mackenzie.
— Que porra é essa? — Andrew sobe e desce os ombros, e Luke nega com a
cabeça.
Pondero, por um momento, conferindo se quero mesmo ouvir o que John tem
a dizer. Não que eu confie nele, ou algo assim, mas o Lion não tem muitos
motivos para vir até o meu estabelecimento fazer baderna. Chamo-o com um
balançar de cabeça, conduzindo-o até o porão em que estávamos.
— Você tem algo a ver com o acidente dela, não é? — Aproximo-me dele a
passos largos.
— Sabe que pode dizer o nome dela em voz alta, certo? Não é como se
proclamar Mackenzie Lennon três vezes em voz alta fosse invocá-la. — John
ri de sua própria piada enquanto ajeita a gola da jaqueta de couro, deixando
sua tatuagem no pescoço à mostra.
O líder dos Lion tem entorno de vinte e cinco anos. Não sei muito de sua
história, mas conheço a aparência imponente e um tanto assustadora do osso
da mandíbula bem demarcado e os olhos esverdeados — tão intensos que
poderiam me derrubar se tivesse lasers. John mantém o corte militar rente ao
couro cabeludo desde que o conheço e a mesma barba por fazer. Ignoro a
pose com a arrogância encrustada e os traços de sarcasmo em suas feições.
— Eu não tenho o seu tempo, John. Diga logo o que veio fazer aqui além de
me encher a paciência.
— Ganhar de você, porra. Aquele homem sabia muito bem o quanto você é
vulnerável na pista às vezes. Acho que estava lá para te vigiar, algo assim.
Então, a Rainha só teria que estar em todas as suas corridas e te vencer
sempre que possível. O que ela ganharia além da grana das apostas? Mais
dinheiro. Todos sairiam vitoriosos com aquele acordo. Por isso, eu não
demorei a aceitar e fui atrás da corredora para plantar a semente em sua
cabeça. E deu certo, porque ela levou apenas dias para pensar e acabou
aceitando.
“Depois, foi questão de tempo até que ela sentisse confiança o suficiente para
revelar sua verdadeira identidade. E vou confessar que achei muito engraçado
vocês dois estarem convivendo juntos por obrigação do Grêmio Estudantil.
As chances de tudo dar errado eram altas. Mackenzie assinou um contrato
com o ricaço, mediado por mim, e ela ganharia o triplo do valor das apostas
em cada corrida que te vencesse. Tem noção de quanta grana estava
envolvida? Óbvio que eu recebia uma porcentagem gorda em cima disso, por
ser o mediador entre o homem e Mackenzie, além de tê-la como cliente na
oficina”.
— Sim. Mas você ainda não entendeu pra valer, não é? — Franzo o cenho e
nego com a cabeça. — O cara é o seu pai, Robert Johnson.
A saliva torna-se espessa, como engolir estilhaços dos caquinhos que ainda
restam do meu coração. Enquanto a informação se acomoda no meu cérebro,
a dor vai surgindo aos poucos, uma pontada aguda no peito. Tenho a
impressão de que o incômodo é físico, embora eu saiba que não me
machuquei fisicamente.
— Você sabia das diretrizes do contrato? Por exemplo, qual seria a punição
por uma quebra?
— Eu diria pena.
— Não sinto pena de você, já basta a que você sente por si mesmo. Vim
porque além de ter perdido a grana que eu ganhava pelo contrato, com o
acidente, fiquei sem uma cliente poderosa, que me pagava uma quantia gorda
para consertar, fazer a manutenção do carro e ainda levá-lo até a Bolfok Ride.
Mackenzie me pagava mais pelo segredo do que pelo Dodge. Não é
interessante para mim vê-la morta, e esse seu pai é um grande emaranhado de
merda. Sinceramente, eu não queria estar na sua pele nesse momento.
Quando parei para pensar nos possíveis motivos que nos levaria a um
término, jamais passou pela minha cabeça um cenário de traição. Nunca tive
medo que Mackenzie estivesse com outro homem, romântica e sexualmente
falando, enquanto namorasse comigo. Porque a confiança sempre esteve aqui.
Me senti sortudo, em inúmeras vezes, ao relembrar o quanto éramos fortes. E
realmente acreditei que nosso relacionamento seria forte o suficiente para
aguentar qualquer obstáculo.
Contudo, disso eu não sou capaz de passar por cima ou sequer tentar perdoá-
la. Mackenzie ouviu tudo o que meu pai fez, não só a mim, como também a
Lewis, a mãe dele e a minha. Ela esteve ao meu lado e conheceu a pior face
de Robert Johnson, e do quanto ele pode ser controlador. Um homem que, a
cada dia, destrói o que resta dos nossos corações e saúde mental. E agora,
saber que Lennon se juntou a ele para me destruir é demais até para mim.
— Sei que dói, irmão. — Ele murmura, com a voz abafada. — Mas, com o
tempo, vai passando e doendo menos.
Não sei, sinceramente, tenho minhas dúvidas, porque, puta merda, nunca me
senti tão mal na vida quanto estou agora. O amor trouxe o sol para logo
depois me empurrar na escuridão.
Não dei ouvidos a Hannah, mas no fim das contas, ela estava certa.
Mackenzie Lennon realmente me destruiu.
Estou com a mão pousada na altura do coração, monitorando a
movimentação do tórax. Procuro ar, o máximo que consigo, mas parece que
há pouco oxigênio no quarto. Meu peito dói devido ao esforço de inspirar
com intensidade nos últimos minutos. Honestamente, nem preciso pensar
muito para chegar na raiz do problema. É uma crise de ansiedade. Eu já sofria
com a falta de ar há um tempo, mas nunca nenhuma psicóloga havia me dito
tão francamente que sou ansiosa, até eu começar as sessões de terapia no
Departamento de Psicologia da faculdade. A sensação é horrível, e eu tento,
com avidez, seguir todos os protocolos passados para sair da crise. E, então, a
falta de ar vai ficando mais leve até que eu possa suportá-la.
Estando satisfeita, volto ao meu quarto para finalizar os últimos trabalhos que
antecedem ao pequeno recesso entre o Natal e o Ano Novo. Teclo
avidamente no notebook, esperando escrever as últimas palavras do teste de
Direito Constitucional. Estudar sem parar é como uma fuga dos pensamentos
que causam a angústia. Minha cabeça ainda dá umas pontadas aleatórias, e
sinto um pouco de náusea, porém, no geral, a recuperação vai bem. Assim
que formato o texto acadêmico, escuto leves toques no batente da porta. Ergo
os olhos para a figura imponente de Lidia e balanço a cabeça, induzindo-a a
falar.
— Sei que sim — começo, limpando as gotículas de suor das palmas no short
de moletom. — Eu prometo te contar tudo, absolutamente tudo. Sobre como
comecei a correr, o que me motiva, meus objetivos e no que me envolvi.
— O que você veio fazer aqui senão escutar o que tenho a dizer? — Arqueio
a sobrancelha, sem saber muito bem se essa é a melhor maneira de abordá-lo.
— Vim terminar de uma vez por todas esse relacionamento que já estava
fadado ao fracasso.
— É sério que vai terminar comigo sem ao menos escutar meu lado? —
Elevo, um pouco, o tom de voz, totalmente desesperada.
— E você me usou para sair daquela situação. Como fez durante todo nosso
tempo juntos. Usou do nosso envolvimento em prol dos seus interesses. Pediu
que eu ganhasse de Rafe, e naquele mesmo dia perdeu para mim. Foi o quê?
O sentimento de culpa te fez me deixar ganhar?
— Ao contrário do que você pensa, não sou invencível. O meu jeito de correr
pode abrir vantagem em relação a muitas pessoas, porque não meço riscos e
os enfrento com louvor, já que a zona de conforto não é o meu lugar. E
apesar de conhecer o jeito que você corre, eu não estava bem aquele dia. Rafe
já tinha me desestabilizado e você correu bem, foi uma vitória digna e eu não
te deixei ganhar. Venceu por mérito próprio, porque é bom.
Pela primeira vez, vejo-o aumentar o tom de voz comigo. Conheço essas
feições duras e o quanto Thomas pode ser impiedoso, contudo, estou mais do
que mal acostumada por nunca ser o seu alvo.
— Eu não vim aqui para ser agressivo ou violento, por Deus, eu não sou o
meu pai. — Ele parece um tanto perturbado, e coça a nuca em uma clara
demonstração de nervosismo. — Nós não precisamos gritar um com o outro,
isso só vai nos torturar mais. Preciso terminar logo com isso, Lennon. Você
está acabando comigo.
Meus dutos lacrimais doem e sei que eles querem liberar as lágrimas o mais
cedo possível, porém as seguro o máximo que consigo. Não quero
desmoronar em sua frente. Mas, cada uma de suas palavras doem como o
inferno. Porque sei que fiz uma merda absurda, e tenho a noção de que talvez
nunca serei perdoada.
— Thomas, você tem que acreditar em mim — digo dando alguns passos
cautelosos em sua direção, e ele instantaneamente se afasta. Como se eu fosse
portadora de uma doença contagiosa. — Eu nunca sequer cogitei estar
fazendo qualquer tipo de acordo com o seu pai. Eu juro. Assim que cheguei a
Bolfok, John me abordou com a proposta de eu me inscrever em todas as
corridas possíveis contra você e vencer. Então, eu ganharia o triplo do valor
das apostas. Demorei um dia ou dois para pensar no assunto e confesso que o
fato de te odiar contribuiu para que eu concordasse, mas não tem nada do seu
pai nesse acordo.
— Eu não ia trazer isso, mas também não tinha certeza se ficaria aqui por
apenas um mês ou mais. Então, achei prudente carregar comigo. — Tento
controlar a respiração e ignoro o desconforto na boca do estômago. — Pode
ver que em nenhuma parte do contrato tem o nome do seu pai, e é como se eu
estivesse negociando com John o tempo todo. E você sabe que faz sentido,
até porque, agora, não tem nada que o incrimine pelo acidente. Seu pai jamais
seria bobo de colocar o nome dele diretamente em algo assim.
“Nem tudo entre nós foi armado, Thomas. Eu era paga para te vencer na
pista, e não para me envolver contigo. Nada daquilo foi planejado. Foi
verdadeiro quando nos chamaram para organizar aqueles eventos, as nossas
brigas, as alfinetadas, as provocações, as conversas. Quando compartilhamos
segredos, os beijos, a paixão intensa. Tudo isso foi sincero! Quando eu
percebi o quão envolvida estava contigo, desfiz qualquer tipo de acordo com
John. Então, em uma noite que ele correu contra você e antes de sequer
transarmos, recebi o que faltava do meu pagamento e quebrei o contrato. Só
mantive o papel comigo porque não seria tola de rasgá-lo e explodir no ar
qualquer prova que eu pudesse ter.”
Pensando com clareza até que faz muito sentido. Com a quebra do contrato
eu já sabia que teria de me virar para devolver setenta porcento de tudo que
ganhei pelo acordo, e por isso quis correr mais uma vez, para garantir um
pouco mais de dinheiro caso ficasse sem. No entanto, embora seja muita
grana, não é como se fosse fazer grande diferença no bolso de Robert
Johnson. Portanto ele, com certeza, está envolvido no meu acidente.
— Se interrompeu o acordo entre vocês, por que não me contou tudo? Por
que esteve omitindo isso de mim até o acidente?
— Esse amor que você tem para me dar eu não quero. — As palavras
estilhaçam pelo cômodo. O ar foge dos pulmões e o incômodo no estômago
engrandece. — Um amor embrenhado em omissões e mentiras é um amor
obscuro e sombrio, que não quero para mim, não quero para nós. Desejo que
se lembre de mim como o cara que te fez sentir borboletas no estômago e
essas coisas toscas de romance, como se estivesse em queda livre e quisesse
mesmo cair. Prefiro que se lembre de nós antes de tudo isso, de quando eu te
emprestava meu carro de olhos vendados de tanto que confiava em você, de
quando subia em meus pés para dançarmos na minha cozinha, de quando foi
comigo até Altoona para dançar músicas dos anos 80 e comer lanches com
nomes de famosos. Eu preciso que você seja uma memória boa, Mackenzie.
Porque agora não sei se você foi a melhor ou pior coisa que já me aconteceu.
“Além disso, não existe momento certo. No dia em que te pedi em namoro
você poderia simplesmente ter dito: ‘Ei, Thomas, antes de namorarmos
preciso te contar uma coisinha’. Talvez assim, as coisas tivessem sido
diferentes. Quando brigamos por ligação no dia do acidente, você poderia ter
sido sincera e nós resolveríamos tudo. Esse é o problema da mentira,
aguardar para contá-la só a faz ficar maior.”
Jamais saberia que ver Thomas rejeitando meu amor seria uma das coisas
mais dolorosas que já passei na vida. Embora eu saiba que é compreensível.
Foi meses escondendo uma parte de mim, um lado mais cinzento e sombrio.
É realmente difícil pensar que eu tenha criado e consolidado um sentimento
tão forte por alguém que esteve em minha vida por pouco tempo. Fazemos
um mês de namoro amanhã e estaremos terminados. Sinto as mãos tremerem
levemente, e a pontada de dor se espalha por todo o corpo.
Um soluço rasga por entre minha garganta, liberando o choro que eu tanto
segurava. Sem nenhum tipo de segredo rondando entre nós, me sinto até mais
leve. É duro entender que a comunicação teria levado nosso relacionamento
até as alturas, e que provavelmente não estaríamos terminando nesse exato
momento. Contudo, não quero ficar pensando nas possibilidades ou nos “e
se”. O que me resta agora é arcar com as minhas escolhas e fazer Thomas
entender, pelo menos um pouquinho, as minhas motivações por trás da figura
de “Rainha”.
Relembro-o de todas às vezes durante minha vida que me senti pequena, e do
quanto eu almejava ser admirada por algo que eu fazia. Conto a Thomas,
desde o início, como foi correr pela primeira vez e as sensações que se
apoderaram de mim. Não deixo uma mísera parte de fora, mesmo que eu
tenha que lidar com a vergonha de dizer que só aceitei o acordo de John
porque queria continuar tendo alguns luxos e por não me simpatizar com
Thomas. A futilidade percorre minha mente como bicho peçonhento, me
recordando do quanto me envolvi em merdas apenas por ambição e orgulho.
Ele não me julga, pelo contrário, se senta no pequeno sofá em meu quarto e
ouve atentamente tudo que tenho a dizer. Isso me traz um resquício de
esperança, como se ao me escutar, o loiro pudesse mudar de ideia
repentinamente quanto ao nosso futuro. No entanto, assim que termino, a
expressão em seu rosto continua a mesma, irredutível.
— Mackenzie, eu respeito a sua história e tudo que já viveu. Mas isso não
muda a minha decisão. Precisamos terminar tudo, porque ainda não consigo
acreditar que algo do que vivemos foi, de fato, real. Talvez, eu demore para
processar tudo. — Thomas suspira, parecendo cansado. — Porém, de uma
coisa tenho certeza: nós somos a ruína um do outro e tudo que provocamos
foi catástrofe. Merecemos um amor mais bonito que esse, que não vai existir
sem confiança.
O incômodo no estômago, que cresce no meu interior, parece cada vez mais
difícil de ignorar. Estou, definitivamente, prestes a vomitar. Pouso a mão
sobre a barriga e contorço as feições. Sinto-me gelada, com as pernas bambas
e a náusea aumenta no meu estômago. A tontura me faz cambalear levemente
e as mãos firmes de Eckhoff me amparam.
Tiro as mãos dele de mim bruscamente e não perco tempo antes de correr até
o banheiro. Só dá tempo de levantar a privada antes que o líquido viscoso
seja despejado com tudo. Enquanto coloco meu almoço para fora, sinto uma
das mãos de Thomas segurando meus cabelos em um rabo de cavalo, e a
outra acariciando minhas costas em um gesto reconfortante. Inspiro com
força, inflando as bochechas e expandindo a caixa torácica. Preciso de ar, a
náusea ainda se embrenha pelo meu corpo, e eu volto a expelir vômito. Cuspo
o último resquício, um tanto enojada e saio do vaso, encostando o corpo nos
azulejos da parede. Uso desse tempo para controlar a respiração, tombar a
cabeça na parede e fechar os olhos, tentando recuperar algum resquício de
sanidade. Por fim, me levanto para escovar os dentes e higienizar minha boca
o melhor possível.
Solto uma risada baixa porque, ao que parece, qualquer sinal de uma mulher
com a vida sexual ativa enjoada é motivo o suficiente para cogitar uma
gravidez.
— Droga, eu deveria ter esperado antes de vir conversar. Te fiz passar por
estresse e agora você tá doente. — Thomas caminha de um lado para o outro,
afundando o solado das botas no piso do quarto. — Quer que eu pegue água?
Precisa de remédio?
— Não vou deixar meu pai sair impune disso. Ele tentou te matar e merece
pagar. — A voz de Thomas sai cortante, me provocando um arrepio.
— Deixe-o pagar do jeito certo, afinal, a justiça e as leis existem para isso —
aconselho-o, e ele acena em resposta.
Fungo, sabendo que as lágrimas lavam o meu rosto livremente. Posso senti-
las molhando minhas bochechas enquanto soluço. Nada pode arrancar essa
sensação de que estraguei tudo entre nós e que se nesse momento estou com
o coração partido em inúmeros pedacinhos, a maior culpada sou eu. Deixo
que os pensamentos invadam minha mente, inescrupulosos, com o único
objetivo de me machucar ainda mais. Me dando o privilégio de cogitar como
seria nosso futuro. Onde estaríamos amanhã, comemorando nosso dia, um
mês de namoro, ou como nos dividiríamos no Natal e Ano Novo, no inverno
que poderíamos passar entre os afazeres da faculdade e filmes debaixo da
coberta, e no resto do último ano letivo de Thomas. Talvez assistíssemos a
formatura de Lewis e esperássemos mais um tempo até a dele.
Contudo, tudo que tenho agora é a chance de fazê-lo ouvir, mais uma vez,
que é correspondido.
Assisto algumas lágrimas escaparem dos olhos azuis intensos, agora um tanto
opacos. Thomas se vira, levando o meu coração consigo. Ele vai embora, e eu
o deixo ir.
— Assim que o vi sair daqui chorando, soube que as notícias não seriam
boas. — Howard se senta na cama, e me convida a fazer o mesmo. — O que
eu te disse, pequena Maze? Você sempre terá o colo do papai.
— Eu quero o meu namorado — lamurio como uma criança birrenta que quer
seu doce de volta.
— Ex-namorado, só para te lembrar — encaro-a com um olhar cortante, e ela
prossegue. — Além do mais, o que houve com aquele papo feminista de que
já existia antes dele e continuará existindo muito bem?
— Olha, sei que tudo isso é péssimo, e por mais que você esteja liderando,
nesse momento, o clube dos corações partidos, sua vida não vai parar. —
Ergo a mão, impedindo que Nev continue com seu papo motivacional.
— Nevaeh, eu não mereço nada disso. Menti para todos os meus amigos, que
se importavam verdadeiramente comigo, durante meses. E para piorar tudo,
aceitei ser paga para vencer do cara que hoje é meu ex-namorado — inicio, já
sentindo as primeiras lágrimas se acumularem no canto dos olhos. — Fui
uma péssima amiga e namorada. Não sou merecedora de te ter aqui me
consolando e vendo toda a franquia de Velozes e Furiosos comigo.
— A parte de ver todos esses filmes é realmente uma tortura, mas veja pelo
lado bom, acabamos de ver o oito. O que quer dizer que enfim poderei me
livrar da cara do Vin Diesel. É sério, Mack. Se eu encarar aquela careca de
novo, sou capaz de quebrar sua televisão super ultra mega tecnológica. —
Encaro a TV que não tem nada demais e solto uma risada baixa. — Odeio ter
que dizer isso, porém, nesse momento, você não tem mais ninguém. Andrew
vai demorar a confiar de novo, Dom e Jules estão super putos, Hannah está
tendo que passar a semana com a família e Josh está em um acampamento
estranho com os pais. Além de que Lewis está aguardando como um
moribundo ser convocado para a seleção de draft. Você, mais do que
qualquer um, conhece a proporção dos seus erros e já está se culpando o
suficiente. O meu único papel durante esses dias é dar um pequeno sermão, e
além de tudo, te acolher. Sabe? Te tirar um pouquinho dessa realidade
péssima em que se enfiou.
Honestamente, Nevaeh tem feito isso muito bem desde que chegou. Ela veio
no dia em que eu e Thomas estaríamos completando um mês de namoro, e
meu estado era deplorável. Eu parecia estar contemplando um mês da morte
do nosso relacionamento. Minha amiga trouxe sorvete e meu refrigerante
favorito, mesmo sabendo que encontraria diversos potes e engradados na
minha dispensa. Durante essas semanas, tento aproveitar o máximo que
consigo com minha amiga, contudo, no início, tudo que eu conseguia fazer
era chorar. Exatamente como ela havia dito, uma hora estava rindo e num
piscar de olhos chorando. Nem eu aguentava mais minhas oscilações de
humor.
Nevaeh, então, pareceu se dar conta de que sua abordagem não era das
melhores e mudou totalmente. Começou a me contar diversas fofocas da
faculdade, a falar da vida dos outros e, principalmente, da sua. Falou do dia
em que decidiu parar de sentir pena de si e ignorou o orgulho, a fim de ir
atrás de Dominic. Então, eles combinaram que tentariam novamente. Até
porque, no fundo, a falta de uma crença religiosa a incomodava muito pouco.
Contudo, a pressão da família, e acima de tudo dos pais, embaralhou a mente
dela o bastante para que a confundisse em relação ao que era realmente
importante. Os dois resolveram tentar de novo, resolvendo por ora, os
problemas de seu futuro.
— Decidimos que um juiz de paz seria a melhor saída para nós, caso
desejemos nos casar, já que possuímos crenças diferentes. E em relação a um
possível filho no futuro, não preciso criá-lo no protestantismo e Dominic
também não irá forçá-lo a ser ateu. Deixaremos que nossa prole escolha no
que quiser acreditar, porque, no fim das contas, ele poderá ser quem quiser.
Foi bonito assistir seus olhos brilharem na esperança de que os dois passaram
por um problema real, mas que não poderiam desistir tão fácil de algo que os
faz tão bem. Ainda há uma chance para eles, afinal.
— Vamos, você está certa. Estou mesmo precisando ver o mundo e respirar
ar puro, sair desse casulo de culpa e martírio que criei. Sei que preciso fazer
algo sobre os últimos acontecimentos, mas não hoje. Apenas quero aproveitar
um tempo com a minha melhor amiga.
Deixo que a água quente escorra por toda a minha pele, acalmando os últimos
resquícios de agitação. Os poros parecem aquietar à medida que arrasto o
sabonete pelo corpo. O cabelo escorrido e encharcado é lavado pelo xampu
de morango. Não me obrigo a ser rápida nessa tarefa porque quero me sentir
verdadeiramente limpa. É impossível evitar que as lágrimas se misturem ao
jato morno no momento em que sinto meu coração doer novamente. Permito
que a água lave as lágrimas e alguns fragmentos de sofrimento. Ao terminar o
banho, totalmente limpa e com os cabelos molhados, tenho a sensação de
estar revigorada.
— Termina logo esse banho ou desisto de sair nesse frio dos infernos.
E é assim que Nevaeh interrompe meu drama durante o banho. Solto uma
risadinha baixa e ligo o secador de cabelo, espantando qualquer barulho que
ela faça ao esmurrar a porta do banheiro.
O céu tomado pela escuridão nos relembra a minha demora para arrumar.
Estamos devidamente agasalhadas, com segunda pele e casacos pesados.
Nevaeh veste um gorro vermelho com um pompom no topo, ao passo que
escolho uma touca branca discreta. A cidade pacata em que nasci não conta
muito com a presença da neve. Dizem que só aconteceu em dois invernos até
hoje. Nesse inverno, eu consigo ter um vislumbre das gotículas que se
acomodam na minha janela, provindas do sereno. Cobrimos as mãos com
luvas grossas, dando passadas largas pela mansão até a garagem.
— Fico feliz que finalmente tenha saído da toca. — Ele beija a minha testa e
o topo da cabeça de Nevaeh com cuidado. — Divirtam-se com juízo.
— Você pode dirigir hoje? — estendo o objeto a Nev, que não titubeia em
pegar.
Dou algumas coordenadas a ela porque, embora tenha vindo a Dilshad uma
vez, já não lembra de muita coisa. Então, nos direciono até minha lanchonete
favorita e afundo o dedo no rádio, sintonizando na estação local. A música
que invade o carro é Falling do Harry Styles, e volto a mexer no som com
rapidez, mudando para o canal de notícias ou de canções country. Quando
conheci Thomas, ele passou pelo menos umas duas horas tentando me
convencer que canções atuais são tão incríveis quanto as antigas, e ele
poderia provar me colocando para ouvir o último álbum inteiro do ex-
integrante da One Direction. Harry Styles está estritamente proibido porque
sua voz rouca e aveludada me leva instantaneamente ao louro que provoca
inúmeras sensações intensas em mim.
Nevaeh não contesta minha decisão, mas volta a mexer no rádio, conectando
ao celular. Assim, um jazz extremamente confortável e delicioso de ouvir
irrompe pelos alto falantes. Torno minhas vistas para a cidade pequena e
aconchegante que passa através do vidro dianteiro. Percorremos as
construções antigas e bem conservadas, as ruas organizadas e os ladrilhos de
alguns becos lotados de pequenos bares. Dilshad Town é completamente
turística, lotada de coisas que os visitantes amam. Parques arborizados, com
tirolesas e atividades de escalada, lanchonetes, danceterias e chalés isolados
para quem gosta de mato. Embora seja pequena, a cidade atrai cidadãos de
outras localidades ou urbanizações vizinhas. Como, por exemplo, a
população de Oroland County, que adora vir para cá aproveitar estações do
ano como o inverno e outono.
— Essa cidade até que é bem legal. Bolfok Valley não tem nada. — Nevaeh
resmunga enquanto inspeciona o cardápio. Solto uma risada baixa, porém
concordo silenciosamente. — Tem algo para indicar daqui?
Assim que a Mary sai, levando nossos pedidos, Nevaeh recebe uma
mensagem no celular que a faz franzir o cenho. Ela encara a pequena tela,
contorcendo levemente as feições.
— Vocês precisam me manter por dentro de tudo, isso é injusto— solto com
o tom de voz transbordando indignação. — E o papo de que estou em
recuperação não cola mais, já estou totalmente recuperada.
— Não achamos que seja bom você ficar passando por esse tipo de estresse.
— Arqueio as sobrancelhas e uma risada irônica escapa da boca.
— Quer mais estresse do que tenho passado nos últimos tempos? Fala sério,
Nevaeh. Nós duas sabemos que não tem como a minha situação piorar muito.
Nem estou fazendo questão de estar ao lado de Thomas, tentando descobrir
algo. Só quero ficar por dentro das coisas.
Sei que Thomas e eu não estamos prontos para manter um diálogo saudável
em prol dessa investigação. Ambos ainda estamos sofrendo os efeitos de um
término, e talvez, uma convivência só serviria para nos machucarmos mais.
Não tenho nenhum tipo de problema em deixá-lo cuidar disso como quer,
afinal, acredito que fui apenas uma peça nesse maldito jogo entre ele e o pai.
Além disso, confio em Eckhoff o bastante para crer que ele é a melhor pessoa
para resolver essa situação.
— Bom, a única coisa que ele descobriu até agora junto de John é que Jeff
quem sabotou seu carro em algum tipo de acordo com o Robert — assinto,
por um momento, e Nev volta a falar. — Agora Thomas precisa de algo que
ligue o pai dele a tudo isso para enfiar os envolvidos na cadeia.
— Sabe que com um bom advogado ambos se safam fácil dessa, certo? —
Nevaeh concorda com um aceno.
— Dominic, Andrew e Jules vão te perdoar. Eu tenho certeza que sim, só tem
que deixá-los processar tudo e esperar que a raiva dissipe um pouco. Além do
mais, você só conversou com eles enquanto estava no hospital, e mesmo que
tenha contado tudo, ainda há o que correr atrás. Acho que você ainda pode
consertar as coisas.
Uma pontada incômoda atinge meu coração, enviando comandos aos meus
dutos lacrimais. Droga, quero chorar de novo. Odeio pensar que na primeira
vez que me cerco de pessoas verdadeiramente boas, as afasto porque não
soube abrir minha boca para contar as merdas que fiz. Arrasto a mão pelo
rosto, empurrando um pouco a touca para trás e cruzo os dedos das mãos.
— Acho que tive uma ideia. — Nevaeh ergue uma das sobrancelhas bem
desenhadas, induzindo que eu fale.
Logo, conto tudo a ela. Parte da aceitação quanto ao final de um ciclo vem de
algo simbólico. Independentemente da quantidade de perdão que eu peça a
Thomas ou do quanto eu me force a aceitar nosso término, apenas uma coisa
acalmaria o meu coração. Executar o plano que acabo de criar me daria a
sensação de dever cumprido, o vislumbre de que talvez eu possa consertar
pelo menos parte do estrago que fiz.
— Mas, eu nunca vou ter certeza se não tentar. — Dou o último gole no
refrigerante e prossigo. — Cansei de pensar em inúmeras coisas e não
executar nada. Preciso agir de algum jeito para aliviar pelo menos um pouco
desse peso na minha consciência. Se Thomas não aceitar, fica a critério dele.
Eu só darei o que é dele por direito. Apesar de ter ficado muito claro após
nossa última conversa, ainda preciso de uma despedida, de algo que
simbolize o final desse ciclo. Jamais conseguirei ficar em paz se não fizer
isso.
— Bom, acho que é uma boa ideia. Estou com você, Lennon.
Sorrio um pouco mais confiante, sabendo que o maior apoio que preciso já
tenho. Nevaeh Williams é, de fato, uma das melhores pessoas que já conheci
na vida.
O inverno é a estação do ano mais melancólica. Combina com tudo de
ruim que se possa pensar: mortes, enterros, crianças perdidas na neve e
términos de relacionamentos. Eu poderia listar inúmeras situações ruins que
ganham uma intensidade maior com os flocos de gelo caindo do céu e a
temperatura perto dos zero graus. Se Bolfok Town já é fria normalmente,
nesse período do ano torna-se quase insuportável.
— E por que você e Andrew não podem resolver isso? — solto um suspiro
cansado.
Cerro os olhos em sua direção e afasto o cobertor. Dominic não vale nada. É
tão confortável para eles ter alguém que resolva tudo em relação à casa, pois
sou como o administrador desse lugar. Caminho até a gaveta da escrivaninha
e capturo um pequeno caderno com os números de telefone mais úteis,
entregando a Dom.
— Como o quê? Enfiar seu pai atrás das grades? Desencana um pouco disso,
cara. Você está colocando o comando da oficina nas mãos do Luke,
sobrecarregando o cara. E está cagando para a faculdade, anulando outras
partes da sua vida por causa disso. — Dominic pousa a mão em um dos meus
ombros, impedindo que eu continue a andar. — Hoje você tem aula, não se
esqueça. E lembre-se que falta só um pouco mais de seis meses para a
formatura.
— Não, você não tem! — me assusto um pouco com seu tom de voz elevado.
— Caralho, você está há semanas obcecado em descobrir alguma prova que
incrimine seu pai e está fingindo que o resto da sua vida não existe. Andrew e
eu não vamos te assistir fugir da terapia e dos sentimentos que querem
transbordar. Está até mesmo ignorando o fato de que terminou com
Mackenzie.
Dominic tem um pouco de razão. Quando descobri que meu pai teve
envolvimento no acidente, tornou-se questão de honra achar algo que o
incrimine. Fiquei tão absorto nessa procura que faltei as últimas sessões da
terapia e não tive muito tempo de pensar no meu coração partido. O que meu
amigo não sabe é que não ignorei meu término com Lennon, pelo contrário,
tive tempo o bastante para chorar e me martirizar no período que fiquei em
casa.
Eu me pergunto, até hoje, se fiz a escolha certa. Então, assim que penso no
quanto tenho dificuldade de acreditar em algo que ela diga e nos pensamentos
de autossabotagem, me recordo de que é melhor assim. Não há
relacionamento sem confiança, e para reconstruir qualquer coisa entre nós,
precisamos de tempo. Porque há coisas que só o tempo pode curar.
Principalmente, a mágoa que ainda cisma em se esgueirar para o coração.
Logo, os pensamentos ruins invadem a mente, relembrando o quanto fui
alienado, os momentos em que ignorei os sinais, e todas as outras situações
onde Mackenzie poderia ter contado a verdade, mas preferiu omitir. O
término é nossa melhor opção, porque antes de cogitar a possibilidade de
reatarmos, eu preciso perdoá-la, e ela tem que perdoar a si própria.
— Eu vou voltar à terapia nessa semana e vou para a aula hoje, e logo depois
para a oficina. — Dominic não parece nada satisfeito, visto que se limita a
acenar em concordância, portando uma carranca.
Ele gira sob os calcanhares e parece reprimir algo, porque abre a boca para
falar e logo depois desiste, fechando-a. Dom inspeciona o lugar com um
olhar repreendedor e deixa o cômodo. Perscruto o local, entendendo sua
estranheza. Sou cismado com limpeza, e neste momento, meu quarto cheira a
suor, e vejo bagunça para todo o lado. Resultado das semanas em que passei
forae da minha falta de vontade de fazer qualquer coisa que não fosse caçar
provas contra meu pai. Preciso mudar isso o mais cedo possível.
Conecto meu celular nas caixas de som, mudando de playlist assim que vejo
a que fiz com Mackenzie. Quero esquecê-la pelo menos por alguns minutos.
Uma música qualquer da Dua Lipa irrompe alta pelos alto falantes e dou
início à arrumação do quarto. Coloco as roupas sujas no cesto, aspiro o chão,
tiro a poeira dos móveis, passando pano úmido nas dobradiças e organizo
tudo o que está fora do lugar. Ao terminar, me dou conta de que me atrasarei
um pouco para as aulas, contudo, a satisfação ainda ronda meu âmago pelo
alívio de dormir em um lugar organizado, que cheira a limpeza.
Embora meu último período ainda não tenha começado, é comum que a
diretoria lance os temas e grupos com antecedência para começarmos os
preparativos. Faltam poucas semanas até queeu comece, de fato, os últimos
seis meses de curso. E essa porra sempre me causa um frio na barriga.
Transporto o olhar até a letra N, tentando achar o grupo que Nevaeh fará
parte, e a encontro ao ladotambém de dois desconhecidos, porém seu tema
sobre metanfetamina me parece muito mais interessante. Sinto uma batida
reconfortante no ombro e vejo a figura imponente da mulher, que hoje tem
trancinhas box braids adornando sua cabeça.
— Faça esse trabalho pensando que será o último e tudo dará certo. —
Nevaeh abre um sorriso grande, os dentes brancos contrastando com a pele
escura. — Seu tema é uma merda.
— Desculpa, é que seu azar chega a ser engraçado. Seu grupo realmente
ficou com o pior tema.
— Já parou para pensar que talvez o azarado não seja eu, e sim um dos outros
integrantes?! — Nev abana a mão em um gesto casual, antes de prosseguir.
— Dado os últimos acontecimentos na sua vida, aposto uma boa grana que o
azarado é você.
— Tem razão. Aliás, amei o cabelo. — Nevaeh agradece e diz que sempre
tem razão, mas logo se despede, enfatizando ter algo importante marcado
com Dominic.
Tomar conhecimento de que os dois estão tentando de novo, organizando
suas diferenças de modo que elas não atrapalhem tanto o relacionamento, tem
sido as únicas faíscas de alegria ultimamente. Gosto de observá-los tendo a
certeza de que mais um casal sobreviverá ao período de tempestades. O que
me leva a reafirmar a ideia de que sou, realmente, azarado. Porque além de
Dom e Nev, Lewis e Andrew parecem estar muito bem juntos assim como
Jules e Maxon. Apenas Hannah e Josh que são vistos se beijando pelos
cantos, porém não assumem nada. Ou seja, as coisas só dão errado para mim.
Que ótimo dia para ser eu.
— Está frio demais para perder tempo anunciando minha entrada dando leves
toques na sua janela. — Seu tom de voz escorre ironia como habitualmente.
— Qual a ruim?
Uma pontada forte atinge meu coração e se espalha pelo corpo, como se
estivesse impregnado na corrente sanguínea. Odeio essa sensação de que
nunca mais irei sentir seu perfume doce e cítrico, ao mesmo tempo em que
jamais voltarei a deslizar os dedos sobre sua pele macia ou encostar meus
lábios nos seus. Essa porra de sentimento que não vai embora nunca. Mesmo
com todas as omissões e mentiras, o amorpor ela ainda está aqui, vivo como
nunca, tão aceso quanto uma fogueira com labaredas crepitantes. A saudade
comprime meu peito com uma força absurda. Porque quero rir com ela mais
uma vez, ouvir suas provocações e alfinetadas, descansar o rosto na curva do
seu pescoço e apertar seu corpo contra o meu. Sinto tanta falta de seu olhar
derramando luxúria e do sorriso malicioso. E, diante de tudo isso, me
pergunto se algum dia essa porra vai passar.
— Você falou algo de importante, Lion? — Escovo os fios que caem sobre a
testa, e faço uma anotação mental de que preciso cortar o cabelo.
— Eu disse que não vou cair fora, ao contrário do que está pensando. —
Abro um pouco a boca, com a surpresa pairando em cada canto do meu
semblante.
— Quero achar algo que incrimine seu pai sem ter ligações com Jeff. Deixe
que com ele eu me resolvo.
— Está me pedindo para livrar Jeff? — Uma risada de escárnio escapa por
entre meus lábios e o observo com desdém. — Sem chances.
— Não vou deixá-lo sair impune. Farei comque pague pelo que fez — nego
avidamente com a cabeça.
— Não é seu papel, John. Você não é da polícia ou justiça, muito menos o
Deadpool. Deixe de ser tolo, não vou permitir que faça papel de justiceiro.
— Então, não seja hipócrita, porra. Se você resolve as coisas do seu jeito, por
qual motivo não meteu uma bala na cabeça do meu pai e acabou com isso?
Quer envolver a polícia por quê? — Aumento consideravelmente o tom de
voz, e John empertiga a postura.
— Porque não é a morte que seu pai merece, Eckhoff. Sinto lhe dizer, mas o
que ele precisa é estar em uma penitenciária estadual sem luxo ou regalias,
encarando todos os dias o uniforme horroroso e se alimentando só com o que
é necessário. Deixando que os outros decidam que horas ele pode tomar sol,
executando trabalho braçal. Acredite, eu já estive lá, e não desejo aquilo para
ninguém. — John inspira, inflando as bochechas de ar e expira. — Mas é o
que seu pai merece por tudo o que já aprontou.
— É sério que de tudo o que eu falei essa foi a única informação que
captou?! — John nega com a cabeça enquanto ri baixo. — Por isso que
Lennon te enganou por tanto tempo, você só escuta o que quer.
— Eu só quero que você faça a sua parte achando alguma ligação do seu pai
com o acidente, e, por favor, deixe o resto comigo. — Ouço sua sugestão,
tombando a cabeça no encosto do banco e pensando por uns minutos.
— O que vai fazer com Jeff? — Afasto uma pele do canto das unhas,
soltando o ar em um gruído de dor.
— Não precisa fazer essa cara de garotinho assustado, Eckhoff. Não é como
se eu fosse empunhar a arma e acertar seu olho esquerdo com um tiro do dia
para a noite. Eu já teria feito, se quisesse.
O homem parece achar que uma pessoa com medo se assemelha a um show
de comédia. Não vejo motivos para risada, por isso mantenho a postura ereta
e a carranca em meu rosto.
— O alvo nisso aqui é Robert. Quero ver meu pai atrás das grades, não só
pelo que fez com Mackenzie, e sim pelas pessoas que livrarei de suas garras,
prendendo-o. Faça o que quiser com Jeff, ele é problema seu agora.
Sei que é justamente isso que John queria desde o início. Estou, nesse exato
momento, satisfazendo seu maior desejo. Deixando sua gangue e o seu
pessoal impune. Mas, contanto que meu pai receba o fim que merece, eu não
poderia me importar menos com o resto. Só quero que esse inferno acabe
logo.
— Bom garoto. — John dá três batidas leves no meu ombro, e eu me afasto
consideravelmente. — Tá esperando o quê? Dirija, ora.
— Não acha que é muita exposição ir até a delegacia? — Olho para John,
esperando uma resposta, ao passo que tiro o carro do ponto morto.
— Vamos até lá, mas falaremos com ele na cafeteria que tem perto. Estou
vigiando-o há alguns dias, e o cara sempre está lá perto desse horário. —
Admiro a competência de John, que parece muito à frente de mim.
— Quem são vocês? — O policial pousa a mão, não tão discretamente, sobre
o volume da arma que está guardada na cintura.
— Sou John e esse é o meu amigo Thomas. — Faço uma careta para a
palavra amigo, que definitivamente não define nossa relação de comum
interesse. — Ficamos sabendo que é novo na cidade e no Departamento, e
viemos dar as boas-vindas.
— Acha que sabotaram ela? — Contraio os dedos dos pés em excitação, por
estar cada vez mais perto de onde queremos chegar.
— Sem nem ao menos mandar a uma perícia?! — O detetive Blake solta uma
risada amarga. — O Departamento Policial daqui é mesmo uma piada.
O policial aceita de bom grado porque anota meu número em seu celular e
promete ligar no fim de seu expediente hoje. Ele ainda completa dizendo que,
por mais que a pessoa não tenha deixado muitos rastros, fará de tudo para
esmiuçar esse novelo de lã que se formou em volta das corridas. Isso me
deixa com uma pequena sensação de nostalgia, por saber, no fundo, que há
uma possibilidade grande desse detetive acabar com o esquema dos rachas e
torná-lo proibido. No entanto, um peso já abandona meus ombros.
A figura de Dominic vai tomando forma à medida que a porta abre, e respiro
aliviada por não dar de cara com Thomas. Sua pele parece mais pálida que o
normal e ele veste calça de moletom e blusa simples de algodão, ambas
pretas. Os cabelos caem despretensiosamente na testa, quase tampando os
olhos arregalados, provavelmente surpreso com a minha presença.
— Sei que está chateado comigo e, de verdade, não posso culpá-lo. Errei
tendo escondido tudo de vocês e ainda mais o fato de ter recebido para
ganhar de Thomas — cruzo os dedos das mãos em um gesto de nervosismo.
— Então, o que faz aqui? — Respiro fundo, nenhum pouco surpresa com a
pergunta.
No último mês tenho vivido assim, com altas oscilações de humor, embora
esteja completamente recuperada das sequelas do Traumatismo. Uma hora
posso estar rindo, mas é só uma lembrança de tudo que perdi vir à mente que
os dutos lacrimais começam a doer. Inspiro e expiro profundamente, tentando
regular a respiração e não cair no choro.
Estou empenhada nessa ideia de pedir perdão a todos que machuquei, e por
mais que minhas palavras não valham muita coisa para eles, ainda são
sinceras. Consegui me resolver com Josh e Hannah com facilidade, e o
sermão até que não foi muito grande. Já Lewis passou algumas horas
defendendo as escolhas de seu irmão quanto a escolher não me perdoar. No
entanto, o Johnson já estava me abraçando no final da conversa. Com Jules as
coisas foram um pouco piores, e ela fez questão de relembrar que sou
mentirosa e traidora. O que não deixa de ser verdade. Contudo, após ouvir
toda a minha história e as minhas motivações, disse que poderíamos tentar
reconstruir o que acabou ruindo com a desconfiança.
— Não precisa ficar nervosa para falar comigo, ou com medo, ok? —
Balanço a cabeça, concordando. — Thomas me contou que você fez um
acordo com o pai dele, sem saber, porque o tempo todo lidou apenas com
John. A cada corrida que ganhasse receberia o triplo do valor das apostas. Ele
também enfatizou que você quebrou o acordo antes que se envolvessem de
forma mais intensa.
— E ainda assim você estragou tudo com essas pessoas. Te conhecendo aos
poucos, foi ficando fácil entender os momentos em que você nos repelia no
início de tudo. Era porque tinha medo de deixar a gente entrar no seu coração
e se decepcionar, mas não entendo. Você teve tantas chances de dizer a
verdade.
— Esse é o problema do mentiroso, ele sempre acha que tem tudo sob
controle. Mas, veja só, você derrapou na curva mais fácil da corrida e
capotou. Foi desesperador ver seu carro girar no ar três vezes e cair de ponta
cabeça. Na hora, Nevaeh quase desmaiou pensando que tinha morrido. A
expressão no rosto de Thomas era angustiante. Achamos que tínhamos
perdido você. — Dominic faz uma pausa, inflando as bochechas com ar. — E
foi um caos. Me dói muito pensar que tudo poderia ser diferente se você
tivesse contado a verdade. Poderia até mesmo transferir seu carro para a
oficina de Thomas e talvez ele nem fosse sabotado.
— Dominic, eu fiquei semanas, quase meses, remoendo tudo isso. Acredite,
cada palavra que está me dizendo, eu ouvi da boca de Nevaeh e dos nossos
outros amigos. E acho que através de palavras, nunca vou conseguir mensurar
o quanto me culpo por isso, e o quanto isso me faz mal. Sei que errei e
estraguei tudo, com todos vocês. — Minhas têmporas doem um pouco, e sei
que estou liberando gradativamente as lágrimas. — Eu sinto muito, de
verdade. Vim fazer isso mesmo, te pedir perdão, e perguntar se tem alguma
chance de tentarmos reconstruir nossa amizade.
A vida é mesmo uma safada, penso. Toda vez que relembro do buraco
gigante que causei com essas mentiras e omissões, sinto vontade de bater
com a cabeça na parede algumas vezes. Só para ver se chacoalho meu cérebro
e o coloco no lugar.
— Eu vim com essa promessa — pontuo, decidida. — Sei que só o tempo vai
ser capaz de levar embora o resto da mágoa que sente por mim, e só ele
poderá restaurar os cacos da desconfiança. Mas, eu prometo não mentir e
mostrar através das minhas atitudes que estou disposta a reparar esse erro, e
não o cometer nunca mais.
Dominic abre os braços e me convida para um abraço. Ele diz que, com o
tempo, voltaremos ao normal. Ficamos mais alguns minutos nos atualizando
das coisas que acontecem em nossas vidas e peço que ele me leve até
Andrew. Apesar de que eu saiba o caminho, não me sinto mais digna de
caminhar por esse lugar com a propriedade de antes.
— Ele não está em casa. — Parecendo adivinhar meus receios, Dom sana
parte das minhas dúvidas. — E ele está bem, na medida do possível.
Suspiro aliviada, me sentindo um pouco melhor por ele estar bem. O que
mais traz as angústias à noite é pensar que eu possa ter destruído o coração de
uma pessoa tão boa, tão incrível. Thomas não é perfeito, assim como
qualquer pessoa. Mas, era perfeito para mim.
Ele não demora a abrir, revelando seu corpo alto e musculoso na proporção
certa. Andrew veste uma camisa branca de algodão e calça de moletom cinza,
realçando sua pele escura coberta de tatuagens. Os cabelos parecem estar
ainda meio molhados pelo banho, e os olhos pretos estão arregalados. Por
surpresa, já que não espera minha presença tão repentina.
— Se você estava enfiada até o pescoço em todas essas merdas, por que não
evitou se envolver com o meu amigo? — Ele não me deixa responder,
voltando a falar. — Eu entendo que no início ambos foram tolos o bastante
para pensar que não passariam de sexo casual, mas você quem estava com a
corda no pescoço. Podia ter dado o fora nele. Tenho certeza de que ele
sentiria menos dor do que está sentindo agora.
Concordo com Andrew, e sei que preciso ouvir todas essas coisas. Contudo, a
agonia se apossa do meu corpo, aguçando minha vontade de respondê-lo.
— Eu aceito seu perdão, e não devo demorar para desculpá-la. Só que isso
não me impede de te querer longe de todos nós. Afinal, será que você não vai
voltar a mentir e nos fazer de otários na primeira oportunidade?
Sei que não vai adiantar ficar dando murro em ponta de faca. A mágoa ainda
é muito grande no coração de Andrew, ainda mais por ele ser um dos mais
protetores no trio de garotos. Então, só me resta dar a ele o tempo que precisa
para deixar a raiva ir embora.
— Apesar do semestre estar quase no fim, ainda acredito que teremos mais
um período convivendo juntos. E eu não quero que fique um clima péssimo
em nossas saídas, ainda mais sabendo que Lewis te ama. — Andrew desliza a
mão pelo cabelo, puxando os cachos para trás sem desfazê-los. — Mas, eu
preciso de mais tempo.
— Nunca o vi sentir algo tão forte por alguém como foi por você. Jamais o
enxerguei tão bem, tão feliz, tão vivo. — Um sorriso contido se esgueira
pelos lábios. — Espero que as coisas deem certo para vocês algum dia.
Sinto o coração retumbar com mais força no peito, incendiando meu corpo
com apenas a menção desse sentimento tão forte que sinto por ele, dessa
conexão tão grande que temos.
Para Thomas.
A letra cursiva meio tombada para o lado, em tintura preta. Analiso o pedaço
de papel por alguns instantes, e respiro fundo. Revejo algumas de nossas
lembranças, como nosso primeiro encontro, o dia do meu aniversário e
quando vimos o primeiro filme de terror juntos. Também me recordo de estar
sentada no colo de Thomas, naquela mesma poltrona da sala, assistindo um
anime que não gravei o nome. Deixo que as recordações escorram junto das
lágrimas, como uma espécie de pequena despedida.
Essa é a minha última jogada, a tacada final, o drift que damos ao puxar o
freio de mão quando cruzamos a linha de chegada.
São contas para pagar. Ignoro a pontada de culpa que se alastra pelo peito, e
escondo o envelope entre os papéis. Para que num futuro bem próximo ele
encontre, e possa aceitar meu último gesto de amor.
Sou um tolo.
Lembro de ter soltado uma breve risada pela ironia de estar investigando um
acidente junto com um funcionário representante da lei e um criminoso.
Tenho atualizado Nevaeh com o caso, tentando evitar um contato direto com
Lennon, já que ambos não estamos prontos para isso ainda. Honestamente,
tem dado certo. Contei as últimas notícias para Mackenzie, colocando-a por
dentro dos últimos acontecimentos. O detetive Blake foi até minha oficina e
chegou à mesma conclusão que John e eu: o carro foi sabotado. E por alguém
bem leigo na arte de cortar uma mangueira de direção sem deixar rastros.
Depois disso, o policial levou alguns dias para convencer seu superior de que
é necessário manter o caso aberto.
Tento evitar que a sensação de nostalgia se aposse de mim assim que leio a
mensagem dela. Porque a maneira como se refere a mim, no tom que
absorvo, é como se nunca tivéssemos terminado. Inspiro e expiro, sentindo o
ar quente aquecer parte do meu rosto. E, assim que Jeff se aproxima o
suficiente para que eu o veja com clareza, envio minha localização para
Mackenzie com a seguinte resposta: “Acho que estou encrencado.”
Quando fui procurá-lo, com o gravador do celular ligado, não consegui tirar
nada de Jeff. Na verdade, mal pudemos conversar direito, porque ele fez o
favor de combinar outro lugar mais reservado para isso, o que me traz até
uma parte da cidade, em que de dia fica topado de food trucks, e à noite o
lugar se limita a um vasto campo deserto. Agarro as bordas da jaqueta,
sentindo o gravador ligado no bolso interno.
— Está vendo alguma outra pessoa aqui? — Abro os braços e giro sob os
calcanhares, expondo a área aberta e deserta.
Preferi não expor a Dominic e Andrew o que eu faria, vindo até o território
dos Lion, sem ao menos avisar John, que com certeza me impediria de
conversar com um membro da sua gangue sem autorização do líder. Só quero
conseguir algo de valioso que acelere essa investigação e ponha meu pai atrás
das grades.
— Fico feliz de saber que não foi tolo ao ponto de desobedecer aonosso
acordo. — Me seguro para não revirar os olhos devido à soberba de Jeff. —
Mas fiquei curioso para saber o que quer comigo.
— Está ótima — digo, decidindo não mencionar nada sobre nosso término,
porque não seria nada relevante para a conversa. — Quem não deve estar
bem é a pessoa que sabotou o carro dela, sabendo que a polícia voltou a
investigar o acidente.
Percebo que Jeff está mais por dentro do assunto do que imagino, pois ele se
limita a sorrir levemente e balançar a cabeça.
— E o que te leva a pensar que fui eu? — Ele pergunta e mordo o lábio
inferior com força para frear o sorriso. Jeff morde as iscas com muita
facilidade.
— Vou ser sincero dizendo que no início ninguém vinha a minha cabeça.
Quem iria querer Mackenzie morta?
— Suponho que a intenção não era matá-la, apenas dar um susto. — Arqueio
a sobrancelha e me aproximo dele.
— Acho que você tem muitas suposições para quem não tem nada a ver com
o acidente.
Jeff é um pouco mais baixo que eu, mas a diferença não é tão grande, visto
que seu tronco largo e avantajado é proporcional ao meu. Em uma luta
corporal, talvez eu tenha algumas chances de ganhar. Contudo, sei que
pessoas como ele e John não andam desarmadas, ainda mais na atual
conjuntura.
— Acredite no que quiser, Eckhoff. Não sei o que te leva a pensar que eu
gostaria de vê-la morta. — Jeff ri baixo e prossegue. — Sua namorada pode
ser divina na sua concepção, mas, para mim, a única coisa que ela tem de
valioso é um corpo delicioso. É indiferente tê-la viva ou morta.
Estou usando de uma jogada arriscada, que pode dar muito errada caso Jeff
nunca tenha conversado com Robert nesse lugar. Contudo, se conheço bem
meu pai, ele jamais iria querer ser visto com Jeffrey seja em Oroland, seja em
Bolfok Town. Então, esse seria o lugar perfeito para os dois conversarem,
deserto o bastante para que ninguém os visse. E quase sorrio ao perceber que
peguei Jeff.
Minto um pouco, para que ele não saiba do meu contato com John.
Honestamente, eu gostaria de ter ficado sabendo pela boca de Mackenzie. O
que eu conto para Jeff acaba sendo a minha realidade preferida, que
estivéssemos juntos nessa. Acabando com eles como a dupla boa que somos.
— É mesmo, Jeff? A polícia declarou isso? Conte-me mais, por favor. Já que
está sabendo tanto. — Enfio as mãos nos bolsos da frente da calça e sorrio.
Solto uma risada alta. De todas as coisas que meu pai já fez para mim, essa
não é uma das que mais dói.
— Eu não estou dando a mínima para essa merda, Jeff. Um homem que é
capaz de sabotar a namorada do filho faz coisas muito piores, pode acreditar.
Não estou satisfeito. Quero que Jeffrey diga, com todas as letras, que foi pago
por Robert para sabotar Mackenzie.
A provocação atinge Jeff, pois ele coça a nuca e parece desconfortável. A sua
soberba provavelmente o fez acreditar que era importante para o plano de
Roberte, nesse momento, deve estar tendo a percepção de que não vai passar
de um bode expiatório.
— Está fazendo pouco de mim porque acha que recebi menos que sua
namorada, mas estou pouco preocupado com isso. Robert me deu o
suficiente. — Arqueio as sobrancelhas, estarrecido.
Consegui. Puta merda. Jeff é tão otário que sem ao menos perceber, deixa
que sua arrogância tome conta, tentando provar que é importante de algum
jeito. E, assim, ele me entrega exatamente o que eu quero. Sei que é provável
que essa gravação enfie Jeff atrás das grades também, sendo contra ao que
combinei com John. Mas, sinceramente, nesse instante, estou pensando em
mim acima de tudo.
É óbvio que sou grato pela ajuda de John, e talvez o policial Blake até leve
isso em conta. Contudo, se o líder da gangue for preso, será mais uma
consequência de suas escolhas. Infelizmente, essa gravação é o caminho mais
rápido para a prisão de Robert, que livrará Lewis de seu controle e minha
madrasta de suas manipulações. Com meu pai na cadeia, por todos os crimes
que ele já cometeu além desse, todos estaremos livres. Porque assim que ele
for investigado, muitos outros delitos virão à tona. Além de que essa prisão
viria como uma espécie de retaliação por ele ter tentado matar Mackenzie.
Ele pouco se importa de estar no meio da rua, já que nesta hora da madrugada
ninguém vem para essas bandas.
— Não estou gravando nada, Jeff. Enlouqueceu? — tento, a todo custo, não
parecer vacilante ou temeroso.
Sofro alguns espasmos leves, ao passo que o suor começa a acumular nas
palmas das mãos. Aperto os dedos em punho, torcendo para que ele não
perceba meu nervosismo. Porém, Jeffrey saca a arma e aponta diretamente na
minha direção. A espinha gela, e eu ergo os braços, me rendendo.
À medida que o carro vai parando, a porta do carona abre com brutalidade e
tenho um vislumbre da motorista.
Puta merda.
Não sei se Mackenzie sabe, mas ela ainda tem os mesmos efeitos sobre mim.
A tensão faz o interior carro parecer menor, como se o teto tivesse descido
uns centímetros, comprimindo o oxigênio que se esvai aos poucos. Meu
coração acelera, e se houvesse um velocímetro nele, com certeza estaria mais
rápido que a Ferrari nesse momento.
— Mackenzie abaixa essa velocidade, por favor. — Lewis implora,
contorcendo as feições. — Tô com vontade de vomitar.
Cubro o rosto com as mãos e balanço negativamente. É claro que estou muito
mais acostumado em enfrentar altas velocidades, já consigo segurar um
pouco o corpo e o pescoço no lugar para não me chacoalhar muito. No
entanto, Lewis mal anda a mais de cem por hora.
— Essa é a bolsa que guardo meu protetor bucal e coisas de higiene para o
futebol. — Encaro o ponteiro de velocidade reduzindo à medida que
adentramos a urbanização.
Mackenzie não se preocupa em frear a risada baixa, apenas faz mais uma
curva repentina, adentrando as ruas estreitas de Bolfok Valley. Lewis apoia
as mãos uma no encosto do meu banco e a outra no de Mackenzie, sentado no
meio. A Ferrari é visivelmente modelada para acomodar apenas duas pessoas,
com um espaço interno precário na parte de trás, espremendo as pernas
longas dele.
Lennon gira o volante mais algumas vezes, garantindo solavancos que quase
arrancam nossos pescoços. Não consigo tirar os olhos dela, embora o carro
seja de Lewis, seu perfume toma conta de todo o ambiente fechado,
condensando o aroma doce aos meus sentidos. Encaro as sobrancelhas
afastadas e arqueadas, e a íris castanha vibrante, compenetrada no trânsito.
Ela manuseia o volante com total controle da direção, sabendo exatamente o
que fazer. E, então, sinto um forte tapa na nuca.
— Ai! — Massageio o local ardido e lanço um olhar cortante para Lewis. —
Qual é o seu problema?
Entendo o recado. Ele quer dizer que está ficando na cara o quanto estou
quase babando. Nego levemente com a cabeça e presto atenção no retrovisor,
observando que tomamos distância de Jeff. Lewis dá a ideia de seguirmos
pelo centro da pequena cidade até cruzar a fronteira com Bolfok Town.
Mackenzie acata sua sugestão, e eu assisto o ponteiro de velocidade aumentar
cada vez mais.
Jeff até tenta seguir na nossa cola, porém as duas últimas curvas
provavelmente o despistaram. Suspiramos aliviados assim que percebemos
que o homem não nos segue a um tempo considerável. Assim, consigo
relaxar, desmanchando a postura empertigada.
— Oh, existe um lado muito mais agradável em você, que eu prefiro muito
mais.— Prendo a respiração por uns instantes, ouvindo-o cantar sobre uma
mulher rabugenta e emburrada. — É aquele que dá risadas e conta piadas
por aí. Lembra dos carinhos na cozinha.
Assim que os carinhos na cozinha são mencionados, Mackenzie afunda o
dedo no botão do rádio e muda a canção, e quase saio do carro para ajoelhar e
agradecer. No entanto, Lewis parece não entender e reclama pela mudança.
Lennon não se afeta, pelo contrário, revira os olhos e se pronuncia.
Mackenzie me olha por uns instantes, e a breve conexão é suficiente para nos
desestabilizar. Ela suspira, e deixa os ombros caírem. Esfrego as têmporas,
implorando que o caminho até o alojamento diminua milagrosamente para
acabarmos com esse clima. E, no momento em que o carro estaciona na
frente do prédio, seguro seu pulso em um toque leve.
— Obrigado por hoje. — Retiro minha mão de seu pulso, protestando pela
falta da quentura de sua pele. — Se você não tivesse ido atrás de mim, eu
provavelmente estaria morto agora.
— Fui tentar arrancar algo de Jeff que fosse bom o bastante para entregar ao
Detetive Blake, que o induza a investigar coisas sobre meu pai, agilizando o
processo. — Mackenzie assente com a cabeça.
— Deu sim. — Lennon também não freia o sorriso que se esgueira pelo
rosto. — Amanhã mesmo entregarei anonimamente para o Detetive e
aguardarei por mais notícias.
Apesar de estar ajudando Blake com o caso, não quero que uma prova tão
importante como essa esteja associada a mim, porque não quero me envolver
legalmente.
— Thomas. — Volto a conectar meus olhos aos seus, e fico imerso no tom
vibrante da íris. — Sei que se esforçou bastante para fazer seu pai pagar, mas
deixe que a polícia cuide do resto a partir de agora. Você já fez o suficiente.
Seu tom de voz é baixo, fazendo com que eu incline o corpo na direção dela,
diminuindo a distância entre nós. Posso sentir a tensão quase palpável,
contribuindo para que o interior do carro fique ainda mais quente, misturando
o aroma de nossos perfumes. Tenho vontade de erguer a mão e pousar em sua
bochecha, acariciando sua pele e sentindo a maciez de seus lábios. Acho que
Mackenzie não percebe, mas ela também se aproxima, nos embrenhando em
um emaranhado de tensão e saudade. Meu coração está prestes a pular do
peito, batendo tão forte que temo que ela escute.
— Mas não quer voltar comigo. — Meu peito dói como o inferno, e talvez
esse momento esteja sendo pior do que nosso confronto há semanas.
Ela está certa. Embora entenda que Mackenzie nunca teve conhecimento
sobre estar fazendo um acordo com meu pai, e mesmo com a quebra de
contrato, a confiança é inexistente entre nós. Sei que se voltássemos só nos
machucaríamos mais pela falta de parceria, e pelas dúvidas que eu sempre
teria a cada coisa que Lennon me contasse. A fim de me livrar das paranoias
que invadiriam minha mente, tentando sabotar todas as minhas certezas,
balanço a cabeça, achando a melhor saída para nós dois.
— Não quero. — Evito olhá-la nos olhos, porque caso eu esteja lhe causando
dor, sou covarde o bastante para desviar as vistas.
— É... Acho que essa noite terei que fazer companhia para o meu parceiro de
tempestades. — Solto uma risada baixa e choco meu punho em seu ombro,
dando um soquinho leve.
Nevaeh queria muito estar aqui, e dirigir até Altoona teria sido muito mais
agradável com ela no banco do motorista. No entanto, ela tem um
compromisso com a equipe do Decatlo Acadêmico. Assim como Josh,
Maxon e Lewis estão em um jogo importante, que poderia atrair olheiros que
estarão na etapa de Draft. Meu amigo não ficou exatamente feliz por não
estar presente no julgamento do pai, porém faltar ao campeonato não é uma
possibilidade. Já Jules tinha uma aula de anatomia que não poderia faltar de
jeito nenhum, enquanto que Hannah ficou presa em um treino das líderes de
torcida para a temporada de jogos do Draft.
— Deixe que eu explico, Mack. — Permito que Dom, conhecendo mais sobre
leis e termos corretos, ensine a Thomas algo.— Seu pai tentou matar uma
pessoa, ou seja, cometeu uma tentativa de homicídio doloso. Doloso, porque
houve a intenção de matar, mesmo que o crime não tenha sido consumado. A
promotoria entende com isso que Robert apresenta risco a sociedade,
sobretudo, à Mack, já que foi a vítima da agressão. Por isso eles usam do
Tribunal de Júri, que vai julgar e condenar ou absolver em um processo mais
rápido que uma tramitação processual penal ordinária.
Dominic está prestes a se formar, assim como o resto dos meus amigos. Com
a formatura de Lewis daqui a umas semanas, faltará apenas seis meses até
que os outros se formem também. Apenas Jules ficará por mais três anos,
porque o curso de medicina é maior. Isso é claro, se ela não desistir da
faculdade para focar no que realmente quer.
— Então, o acusador vai apresentar provas contra meu pai, irá interrogá-lo e
depois o quê? — Dominic respira fundo, parecendo perder a paciência cada
vez mais.
— A única prova que o promotor teria é a gravação que você fez de Jeff, no
entanto essa é uma prova ilícita, que pode ser descartada pelo juiz, porém o
acusador espertamente conseguiu que Jeffrey testemunhasse hoje. Então, a
nossa melhor jogada nesse momento é torcer que ele se entregue e leve
Robert junto. Haverá a apresentação do resultado da perícia,e eles vão
debater entre si e mais um monte de coisas que você não precisa saber. —
Cubro os lábios com a mão, abafando a risada que anseia em escapar. — A
gente vai te avisar quando for importante.
— Quanta paciência você tem, Dominic. — Thomas ironiza, me fazendo
apertar os lábios. — Deveria ser o tema do seu trabalho de conclusão de
curso.
Dessa vez, não consigo evitar que a risada escape. Já que ouvi, durante um
dia inteiro, Nevaeh zombando da sorte de Thomas pela escolha de um tema
tão ruim para se falar em um seminário de conclusão de curso. Somos
interrompidos por um dos policiais, que avisa o início do julgamento.
Eckhoff se levanta e arrasta as mãos na coxa, limpando o provável suor na
calça. Ele parece afoito e arredio, empurrando uma pele do canto da unha
com os dentes.
Adentramos a sala junto com algumas outras pessoas. O lugar amplo contém
inúmeras cadeiras que acomodam quem irá assistir ao julgamento, e há um
corredor que leva até o plenário. Contendo a bancada do juiz, o assento do
escrivão, o gradil que acomoda o júrieas mesas do advogado de defesa, com o
réu e o promotor. Ao lado da balaustrada, uma cadeira mais alta com um
microfone exibe o ponto de interrogatório.
— Como será que ela está com tudo isso? — profiro baixo, próximo ao
ouvido dele.
— Lewis disse que ela não parece muito bem, mas também não quis falar
sobre. — Aceno com a cabeça em concordância. — Acho que, de certa
forma, será um alívio para ela se ele for condenado.
A partir daí, conto tudo o que sei e lembro acerca do acidente. Em que lugar
faço a manutenção e o conserto dele, quem leva o Dodge até a Bolfok Ride, e
todos os momentos que precederam ao capotamento. O promotor questiona
possíveis motivos para que alguém me sabotasse, se tenho algum tipo de
rivalidade com determinado indivíduo. O advogado de defesa também me faz
algumas perguntas, contudo não é como se eu fosse de grande ajuda para a
resolução do caso. Acredito que tenha sido apenas um peão em meio a um
jogo muito mais amplo.
Depois que volto ao meu lugar, Jeffrey é convidado a se sentar como a outra
testemunha. Honestamente, eu me impressiono com a facilidade em que ele
conta tudo. Jeff explica todo o trâmite entre ele e Robert, adicionando
informações extras, como a parte da oficina de Thomas sobre a qual o pai
possui os direitos, e o fato de o Johnson não querer perder o controle sobre o
filho. O membro da gangue sabe muito mais do que achamos que saberia, e
isso é de muita ajuda. Dada a sua tranquilidade em excesso e o modo como
não deixa nenhum ponto de fora, me leva a pensar que Jeff fez algum tipo de
acordo com a promotoria. Isso costuma acontecer bastante, inclusive.
Fico surpresa ao perceber que o juiz aceita a gravação como prova. Por ser
ilícita, geralmente não costumam levar em conta esse tipo de material. No
entanto, acredita-se que como o gravador apareceu— misteriosamente— na
porta do Detetive Blake, então é algo válido. Troco um olhar hesitante com
Dominic, pensando na mesma coisa: demos sorte. A defesa de Robert terá
que trabalhar muito para garantir sua absolvição.
Sinto meu celular tremer na bolsa e varro o local com os olhos, conferindo se
posso verificar a notificação sem ser pega, e evitar constrangimento. É meu
pai dizendo que pediu ao motorista que o trouxesse até Altoona para
conversarmos no caminho de volta a Bolfok Town. Depois de perder
completamente o dinheiro que recebi por correr contra Thomas, tive a
percepção de que precisaria de outra fonte de renda agora. E Howard Lennon
tem uma proposta.
Encontro meu pai através das portas de vidro do fórum, encostado no meu
Cadillac parado no estacionamento. O policial orienta que eu não saia do
local, então me limito a acenar de longe para Howard. Volto ao corredor,
pegando água em um copo descartável e levando para Thomas.
Aceno com a mão, em um gesto contido, alegando que não foi nada.
— Vinte dólares — rebato, tendo uma certeza inconfundível que Robert será
punido como deve.
— Uau. — Dominic solta uma risada baixa. — Está com dinheiro, Mack.
Antes que eu possa respondê-lo, Andrew solta uma risadinha com uma
sombra de sarcasmo e se pronuncia.
— Será por que, não é mesmo? — Todos se calam.
Porque sabemos o teor da ironia, e que essa é uma alfinetada óbvia ao fato de
eu ter tido um acordo com o cara que está sendo julgado agora mesmo.
Independentemente do quanto eu já tenha me justificado, sei que certas
mágoas permanecerão vivas neles por um tempo.
Antes que possamos entrar em uma discussão mais séria acerca de como
funciona esse tipo de aposta, um dos policiais indica que o julgamento voltará
do intervalo com o resultado da sentença.
Dez anos. Parece loucura. Não sei como Lewis vai reagir, mas de certo,
estará um tanto aliviado. Todos eles estarão. Encaro Joanne, a madrasta de
Thomas, e fico um pouco aliviada, sabendo que ela terá esse tempo para se
libertar, receber ajuda, e talvez retomar as rédeas da sua vida. Lewis sempre
disse que sua mãe amava a profissão com todas as forças. Então, essa acaba
sendo uma oportunidade para todos eles.
O ar parece ficar denso pela maneira com que meu pai trata Thomas,
chamando-o de filho em um gesto carinhoso e paternal. Como se soubesse
que o louro precisaria exatamente disso neste momento. Ele afaga o ombro de
Eckhoff, parecendo saber o resultado, e logo acena para o resto das pessoas.
Ele beija a minha testa, e de repente, quero chorar. É uma vontade dilacerante
que parece rasgar tudo por dentro, embaçando meus olhos rapidamente. Sinto
tanta falta dele. A pressão de seus lábios macios em contato com a minha
testa em um gesto tão cuidadoso me traz memórias dos melhores momentos
da minha vida. E cada vez mais entendo a proporção do que perdi, porque
Thomas deixou bem claro quando disse que não quer voltar comigo.
Ele pode encontrar alguém muito melhor, que se entregue por inteiro, que
conquiste sua confiança e não a quebre. Lanço um sorriso amarelo para o
resto das pessoas e apresso os passos, ouvindo o contato do solado dos
sapatos sociais de papai batucando no piso com afobação. Afundo o dedo no
botão do alarme e destranco o Cadillac, me enfiando no banco do carona e
entregando a chave para meu pai.
Queria estar brigada com Thomas, ou com algo mal resolvido, porém com a
certeza de que tudo ficaria bem, afinal. No entanto, o que sinto agora é a
percepção clara de que estamos bem, e que ele provavelmente já até me
perdoou pela mentira. Mas, não me quer de volta. Estamos definitivamente
terminados. E a parte da ficha que não havia caído, desmorona nesse exato
momento.
— Calma. A Jennifer fará uma entrevista com você, e o fato de ser minha
filha não vai pesar muito, a menos que se saia bem. — Aceno fervorosamente
com a cabeça. — Ela vai te avaliar, e se tiver o que é preciso para o cargo,
estará contratada. Nada de corridas clandestinas mais.
Embora a dor do término ainda se esgueire pelo meu corpo, a grandeza que
sempre almejei sentir vai me invadindo. Começo a ter noção do quanto sou
imensa, e nem estou sentada em um Dodge Charger.
Odeio estar atrasado.
No entanto, enfrento algumas noites mal dormidas, pensando nas coisas que
eu ainda gostaria de ouvir da boca do meu pai, ou simplesmente a vontade de
vê-lo atrás das grades. E, finalmente, deixando sua família livre.
Nevaeh prega os lábios, tentando não rir, bem como Lewis muda o semblante
pensativo para um ofendido.
Aviso-os que estarei fora pelo resto do dia para visitar meu pai na prisão.
Nenhum deles concorda muito com essa ideia, porque acham que Robert
pode me machucar ainda mais com suas palavras brutas. Bom, não sei se ele
ainda tem capacidade de causar mais estragos do que já causou.
Não sei muito bem como tudo funciona, porém Dominic comentou
brevemente que ela passou na entrevista e foi contratada, agora só falta
finalizar as documentações. Sempre soube que Lennon seria incrivelmente
boa no que decidisse fazer da vida.
Sou encaminhado até uma pequena sala, contornada por vidros escurecidos,
em que posso enxergar meu pai sentado de um lado da mesa lá dentro, porém
ele não pode me ver aqui fora. Escuto o tilintar da algema sendo presa em um
suporte abaixo da mesa, e adentro o lugar pequeno e bem iluminado.
Sou tão acostumado a usar o sobrenome de minha mãe que é estranho ouvi-lo
me chamar assim.
— E você vai passar, pelo menos, dez anos aí dentro. — Relembro-o, a voz
escapando arranhada da garganta.
— Quando mandei Jeffrey sabotar sua garota, eu não queria matá-la, apenas
dar um susto.
— Você tem seus motivos para não confiar em mim.— Respiro fundo,
reunindo paciência para lidar com ele. — Mas eu não tenho motivos para
querê-la morta. Só quis puni-la por ter quebrado nosso contrato como se ele
não fosse nada.
— Por que está me dizendo isso, Robert? Não querer matá-la pouco ameniza
os fatos.
— Não quero que ache que seu pai é um monstro. Entenda uma coisa, filho.
Você só tem a mim, e é por isso que eu me empenho tanto pelo seu bem.
Paguei essa mulher para correr contra você e ganhar porque não quero que
essa sua sede de independência te jogue fora tudo que pode ter ao lado do seu
pai. Se unindo a mim, o mundo estaria aos seus pés.
Tenho vontade de rir. Muita. Tombo a cabeça para trás, batendo contra o
ferro do encosto da cadeira, explodindo em gargalhadas. Robert só pode ter
algum problema além do transtorno diagnosticado. É como se a quantidade
de vezes que ele me bateu ou falou coisas horríveis não tivessem valor, como
se não houvesse nada demais em acabar com a saúde mental do próprio filho.
Conheço seus pais, e sei que sua criação foi arcaica e tradicional, em que o
homem era o provedor majoritário, fornecedor de sustento e segurança. No
entanto, entendo que suas atitudes vão além de sua condição psicológica.
Robert sempre surpreende em suas reações aos atos de qualquer um, e acho
que é assim que seus negócios deslancham. Se você espera um semblante
triste, ele te traz um feliz. Se alguém diz algo para magoá-lo, o homem
estende o sorriso para mostrar que nada pode afetar seu ego construído por
muralhas indestrutíveis. Essa quebra de expectativa culmina na
desestabilização da outra pessoa.
— Thomas, eu sei que você incrustou na mente que eu comprei a oficina com
o único objetivo de te manter sob meu controle. Porém, pense um pouco. Eu
não tenho poder em absolutamente nada do que diz respeito a sua empresa, já
que você é o acionista majoritário. Naquela época, em que assisti meu filho
cabisbaixo por não ter crédito bancário o bastante para abrir o negócio dos
sonhos sozinho, quis te ajudar. — Suas palavras vão se embolando em minha
mente como um novelo de lã. — Queria compensar de algum jeito o mal que
te fiz. Nunca foi minha intenção exagerar nas punições, como pai, eu só
queria o seu bem. Gostaria profundamente que você entrasse em uma boa
faculdade, completasse o curso e tivesse tudo o que sempre sonhou. Mas,
você era um filho rebelde, e eu precisei te colocar nos eixos de algum jeito.
É um jogo que eu já esperava antes mesmo de vir até aqui. Robert se acha
imbatível, poderoso o bastante para conseguir tudo o que quer. Ao mesmo
tempo em que acredita fielmente no bem que suas atitudes farão aos seus
filhos. Ele acha que assumir uma postura punitiva corrigirá nossos erros, e o
fato de exagerar nas suas agressões para comigo, somado ao agravante do
transtorno explosivo, culminou na sua necessidade de compensar seu exagero
através de presentes e pequenas ajudas financeiras.
O único motivo pelo qual as pessoas ainda aturam um cara como Robert é a
dependência, emocional e financeira. Ele quem quis assim. Escolheu,
conscientemente, ignorar ajuda profissional. E nenhum de nós tem a
obrigação de aguentar ser maltratado, ter as energias sugadas e a saúde
mental roubada. Joanne, Lewis e eu merecemos essa liberdade, o poder de
escolher estar perto de quem nos faz bem.
Não espero pela resposta de Robert, dou as costas e caminho para o lado de
fora. Sou conduzido pelo policial até a recepção, para recolher meus
documentos e receber a liberação para ir embora.
Assim que o vento fresco se choca ao meu rosto sinto os fios displicentes do
cabelo arrastarem pela testa. Encaro a construção de concreto e um sorriso de
alívio ameaça escapar. É realmentecomo estar livre. A sensação se embrenha
pelo corpo, acelerando o coração e causando um frio na barriga. Com sorte,
conseguirei o dinheiro que falta para quitar a oficina e, assim, comprarei em
definitivo a minha liberdade.
Sinto um peso sair dos meus ombros ao lembrar que, com Robert preso, os
direitos sobre os bens deles são transferidos diretamente a sua esposa, Joanne,
porque os dois se casaram com comunhão total de bens. Assim, quando eu
tiver o dinheiro por inteiro, pagarei a ela e terei minha oficina só para mim.
Respiro fundo, pensando em todas as pendências que tenho que finalizar para
partir de Bolfok Town logo após a formatura. A ideia é deixar a oficina daqui
sob o comando de Luke e sair à procura do meu lar, da cidade que pretendo
viver pelo resto da vida, e desse modo, abrir outra oficina lá, a fim de ter uma
rede de franquias. Encaro o horizonte diante de mim e uma sensação de
nostalgia se alastra em meu âmago. Estou cada vez mais perto de ser o
Thomas que sempre almejei ser.
A semana de Spring Break sempre é muito agitada. Como um sopro
de alívio após um semestre exaustivo e um inverno rigoroso. Costuma ser
marcada pelos raios solares um pouco mais fortes e pela quantidade
exorbitante de festas e festivais. Eu aproveitei o recesso para descansar,
porque sabia que logo no início do próximo período já começaria a trabalhar
como assistente em um escritóriode advocacia. A ideia era passar todos
juntos se divertindo, contudo, Lewis, Thomas, Andrew e Dominic foram para
Oroland County, levando Nevaeh. E eu também fui convidada, porém não
causei surpresas ou frustrações no instante em que neguei, apenas para não
passar sete dias convivendo com Thomas.
Logo após o Spring Break, Lewis se formou, e óbvio que algumas lágrimas
de emoção escaparam dos olhos ao vê-lo tão lindo dentro da beca azul
celeste. Cerimônias de colação de grau sempre trazem um sentimento de
orgulho e uma sensação de nostalgia. Porque você sabe que um ciclo está
sendo finalizado para alguém que ama, e que daqui para a frente, ele
conquistará o mundo.
Por sorte, estamos no último dia e Lewis foi recrutado pelos Tigerstoon, o
time da cidade de Altoona, um dos melhores da temporada. O uniforme de
blusa dourada e capacete branco combina perfeitamente com seus fios
aloirados, e o número onze preto estampado logo acima do “Johnson” é
bonito e extravagante. Consigo vê-lo abrir um sorriso largo mesmo daqui da
arquibancada, e meus lábios erguem instantaneamente.
Nem todo jogador tem tanta sorte nos dias de draft. Por exemplo, Joshua foi
recrutado no primeiro dia por um time que teve uma temporada péssima. Já
Maxon ficou no meio termo, em uma equipe que oscila bastante no número
de vitórias. Sinto algo emborrachado bater contra minha bochecha e arregalo
os olhos para Nevaeh.
— O que foi isso? — Capturo sua luva com a temática do time, que tem o
dedo indicador erguido.
Assim que Lewis se afasta de Andrew, não perco tempo ao envolver seus
ombros com os braços, parabenizando-o e demonstrando pelo menos um
pouco de todo o orgulho que sinto. O resto dos nossos amigos falam com ele,
e o loiro pede alguns minutos para tomar uma ducha e se trocar no vestiário,
a fim de irmos comemorar. Após três meses que meu relacionamento com
Thomas ruiu completamente, e que todos descobriram os segredos que me
rondava, já não me sinto tão deslocada em meio a eles.
Jules já me trata como antes, assim como todos os outros. Andrew teve uma
conversa especial comigo, em que pôde admitir que foi um tanto cruel no dia
em que conversamos em sua casa. Ele reconheceu que também já machucou
o próprio amigo e que errar nos faz humanos, mas, acima de tudo, buscar
pelo reparo desse erro exprime o quão sólido o caráter de alguém pode ser.
Ter esse diálogo foi, de fato, uma das minhas maiores alegrias durante esse
período, porque eu soube que, embora o atrito tenha sido grande,
principalmente pelo instinto protetor dele, no fim das contas, nossa relação
voltaria ao normal naturalmente.
É claro que com Thomas as coisas são um pouco diferentes. Faz algumas
semanas que deixei o envelope em sua casa e, segundo as fofocas que faço
com Dominic, parece que ele nem leu. Bom, talvez nunca leia, no fim das
contas. Não tenho que ficar esperando por isso. Para falar a verdade, preciso
trabalhar para esquecer tudo.
— Às vezes, penso que chegou a hora de você começar a fingir que Thomas
não te afeta mais. — Giro o botão para abaixar o volume e franzo o cenho.
Não consigo identificar muito bem onde cada mesa começa e termina, por
causa da embolação entre as pessoas. O lugar está tão cheio que há
universitários se espremendo na bancada das bebidas, e os bancos
acolchoados abrigam mais gente do que o comum. Embora estejamos na
primavera, o tempo está frio do lado de fora, e no interior, a gola do meu
casaco pesado acumula umidade, por causa do suor. Flexiono os dedos,
ficando na ponta dos pés, tentando encontrar nosso grupo de amigos. E, para
a minha infelicidade, a primeira pessoa que acho é Thomas, junto da sua
acompanhante.
Até sinto a mão de Nevaeh cobrir meu ombro, tentando me confortar, mas
não consigo tirar os olhos da cena. Há uma mulher loira, com os cabelos lisos
quase brancos, totalmente platinados. Um sorriso largo expõe seus dentes
alinhados e os olhos castanhos diminuem por causa das bochechas elevadas.
A pele marrom combina com a luz baixa do bar e parece dar um efeito
especial em sua presença. Algumas tatuagens adornam seus braços, na parte
visível pelas mangas 3/4 da blusa preta de linha que usa.
— Uau. — Tiro alguns fios do rosto, arrastando a mão pelo cabelo. — Ela é
muito linda.
— Vamos dançar. — Lewis aponta com a cabeça para o outro canto do bar,
longe de todos e eu quase agradeço de joelhos.
Sei que ele está tentando me afastar do clima pesado que se instaura na mesa
assim que chego, porque é perceptível o modo como os petiscos interrompem
os caminhos até as bocas, os olhares entre as pessoas são trocados e o ar
parece se tornar mais espesso. E, mesmo que ninguém admita, a maioria dos
presentes ficam desconfortáveis pela presença da ex no mesmo ambiente que
a atual. Que piada. Não é como se eu fosse fazer um escândalo ou criar uma
cena, pelo amor de Deus.
— Estou puta — profiro no pé do ouvido dele, tentando falar mais alto que a
música. — Não por Thomas ter trazido alguém ou algo do tipo, porque
mesmo que doa, ele não está fazendo nada de errado. Agora, nossos amigos
agirem como se eu fosse fazer uma cena a qualquer momento beira ao
ridículo.
— Por que vocês estão agindo como se Eckhoff estivesse com uma namorada
nova? — Nos encaramos com o cenho franzido. — A Rebecca tá meio triste
por ter terminado recentemente com o Brandt e ainda ser companheira de
seminário do cara. O clima do trabalho está péssimo, então Thomas a
convidou para vir também.
— Por que não avisou antes? — Jules levanta a voz, estreitando ainda mais
os olhos. — Criamos um constrangimento à toa.
— Vocês só agiram como idiotas mais uma vez, e por falta de comunicação.
Não aprendem nunca. — Andrew nega com a cabeça e enrosca o braço no de
Lewis.
— E você está feliz com isso? — Lewis ergue ainda mais o canto dos lábios.
— Tire já esse sorriso do rosto, Lewis Johnson!
— Vou fingir que não vai vir só por Andrew. — Sorrio logo após a fala, para
que ele saiba que o drama é só encenação. — Ainda bem que é só uma hora
de distância.
— Você tem todo o direito. É importante voar sozinho antes de alçar voo
com alguém. Sentir como é ter seu cantinho, e depois, se quiser, dividi-lo
com Andrew. Converse com ele sobre isso, tenho certezade que o Bennet vai
entender.
— Vou fazer isso. Podemos combinar de dividir um lugar depois que ele se
formar, enquanto isso vou ter seis meses desfrutando de um espaço só meu.
— Concordo com a cabeça. — Obrigado por tudo, Mack. Você pode achar
que não, mas sua chegada mudou um pouquinho a vida de todos nós,
principalmente na minha. Eu te amo muito, e vou sentir uma puta saudade.
— Eu vou te mandar um postal de cada lugar que for com o time. — Envolvo
meu braço em seu tronco largo, dando um abraço desajeitado.
Maxon chega um pouco mais tarde com Josh, envolvendo todos em uma
conversa sobre ataques e defesas de um jogo de futebol. Encaro a grande
janela do bar com temática Viking e estreito os olhos, pensando enxergar
alguns flocos de neve caindo do céu escuro. Neve na primavera? Me levanto
da cadeira discretamente, sem que ninguém perceba minha ausência, e
caminho até o lado de fora.
— Neve na primavera. — Uma voz tão conhecida por mim desanuvia meus
pensamentos, provocando um calafrio. — Isso com certeza é coisa do
aquecimento global.
Thomas tomba a cabeça para o lado, escrutinando meu rosto com atenção,
enquanto o canto de um dos seus lábios repuxa em um sorriso ladino. Ele se
aproxima um pouco, parecendo espantar qualquer resquício de oxigênio que
me alimenta.
— Que poético. — Uma leveza típica nos envolve assim que um sorriso largo
se estende por seu rosto anguloso.
— Vem. — Thomas estende a mão. — Essa neve já deixou de ser bonita para
se tornar agonizante.
Deixo que seus dedos longos envolvam minha mão, e nossas palmas se
encaixem. Ele me puxa para a parte coberta da varanda do bar e mantém o
toque quente. A situação em um contexto geral me cobre de nostalgia, a
quentura do corpo tão próximo, os arrepios, o coração acelerado, o estômago
revirando e a sensação de leveza. É como a euforia de ver o time do coração
levando a vitória, o alívio de sair de uma multidão e a calmaria de uma tarde
no campo.
Esse sempre foi o sonho dele. Comprar carros ferrados em leilões por um
baixo custo, trabalhar nos automóveis, desde a parte interna até a pintura,
turbinando o veículo para vendê-lo mais caro. Esse é um tipo de negócio que
rende muita grana, e é sua paixão. Desejo que Thomas conquiste muito mais
do que o Condado de Eastlake.
Thomas solta uma gargalhada alta, fazendo um eco por toda a extensão da
rua silenciosa. Assisto seu tronco curvar para trás junto da cabeça, realçando
seu pescoço e o pomo de adão. Os fios displicentes do cabelo, que já cobrem
parte das orelhas, chacoalham devido os movimentos.
Odeio isso. Esse poder que Thomas tem de me excitar fazendo eu me sentir
inteligente. Ele não diz que quer ver a minha bunda em uma calça social, o
meu quadril em uma saia lápis ou o coque no topo da minha cabeça. Eckhoff
apenas junta algumas palavras que têm a capacidade me levar ao topo. Uma
vontade repentina me encoraja a fazer um pedido.
— Mackenzie, acho que não seria muito prudente te chupar aqui do lado de
fora. — Arregalo os olhos em completa descrença e ele prossegue. — Mas,
você sabe, meu Eagle Speedster adora guardar segredos.
Thomas parece ser pego de surpresa, porque desfaz o sorriso sacana e expira
com força, ao passo que troca o peso dos pés. Ele envolve meus ombros, e
posso sentir seu músculo rígido junto ao tronco duro encaixando
perfeitamente meu corpo esguio. Envolvo sua cintura com os braços, por
baixo da jaqueta, e me acomodo dentro do casulo que ele cria para nós.
Aprecio o modo como sua quentura me envolve, aquecendo-nos em meio ao
tempo gélido. Encosto minha cabeça em seu peito, com a orelha na altura do
coração, e o escuto bater de um jeito acelerado. E isso me acalenta de algum
jeito, porque entendo que não sou a única desestabilizada com o toque
intenso.
— Você também, Thomas Eckhoff. — Ele sorri uma última vez, antes de
girar sobre os calcanhares e adentrar o bar.
E, se um dia já fui a rainha dessa cidade, Thomas Eckhoff foi o rei de Bolfok
junto comigo. Construímos um legado nada importante para os outros, mas
que significa tudo para nós dois.
Sou oficialmente o dono da Thunderstorm. Dela inteira. Assim que os
bens do meu pai foram liberados e passados para a responsabilidade legal de
Joanne, consegui quitar o valor que devia a ele. Única e exclusivamente por
causa de Mackenzie. Há seis meses, tivemos um momento incrível no bar, e
aquele foi o nosso último abraço. Ao chegar em casa, me recordei do
envelope guardado dentro da gaveta, e não hesitei em abri-lo. De início, fui
resistente ao aceitar o valor gordo daquele cheque preso ao papel de carta.
Contudo, assim que a letra cursiva dela brilhou a minha frente, embarquei nas
palavras escritas com caneta rosa.
“Ei, Thomas.
Sei que você está totalmente inclinado a rasgar o cheque em suas mãos.
Porque não me parece muito do seu feitio aceitar dez mil dólares do nada.
Bom, esse é o dinheiro que seu pai me deu por ganhar de você nas corridas,
claro, a parte que não precisei devolver. E, no meu coração, o sentimento de
que essa grana é sua por direito não me abandona. Você deve estar
pensando que eu venci de forma justa, então não tenho que te dar nada, no
entanto, o que é meu por direito é a quantia ganhada devido às apostas. Não
é um presente ou algo do tipo, é a única coisa que poderia acalmar meu
coração e me fazer ter a certeza de que não fiz um estrago tão grande na sua
vida.
Eu quero fazer parte disso, das suas conquistas, mesmo que indiretamente.
Posso não estar ao seu lado pelo resto da vida, mas quero ser lembrada de
um jeito bom. Quero que sinta o mesmo que eu quando me lembro de você.
Amor.
Da forma mais pura e genuína que existe. Algum dia, você provavelmente
não sentirá mais paixão por mim ou qualquer coisa romântica, porém desejo
com toda a minha alma, que nunca deixe de me amar. E, que depois de toda
a mágoa, só reste coisas boas, os melhores sentimentos e sensações.
De todas as coisas que eu mais tenho certeza nessa vida, uma delas é:
eu nunca deveria ter beijado Dominic Hopkins.
Minha mãe gosta de dizer que sou uma das pessoas mais íntegras e sensatas
que ela conhece, e talvez eu seja mesmo. Mas isso não quer dizer que estou
livre de fazer escolhas erradas, ou que eu não tenha defeitos ou inseguranças.
Por exemplo, dizem que quando você toma muitas pancadas na vida, isso te
blinda e te torna mais forte. Então eu deveria agradecer todas as vezes que me
senti pequena?
Não quero me repreender por ficar revoltada com tudo o que vivi. Às vezes,
eu só quero não ser forte, quero poder desabar um pouco e descontar minha
tristeza em um banho de lágrimas. Em alguns momentos, eu até desejava ser
mais como Mackenzie, sem vergonha de demonstrar o quanto determinadas
coisas a afetam, ou até mesmo cair na pilha de Thomas sem medo. É fácil
dizer que usar uma armadura invisível pode ser bom para te proteger,
entretanto, se esquecem o quanto elas podem ser pesadas.
Ter cedido aos encantos de Dominic foi uma série de escolhas erradas no
momento em que eu soube que não teria mais volta. Quando eu me fechei
para relacionamentos, internalizei que nunca mais daria poder a alguém sobre
mim. Contudo, eu deixei que Dom chegasse de fininho, com sua fala mansa,
gentileza extrema, seu sorriso de canto e seu arsenal de elogios direcionados
a mim. Eu estive tão preocupada em me manter afastada, em revirar os olhos
o máximo de vezes que eu conseguia para qualquer coisa dita por ele, que eu
nem percebi quando abaixei a guarda. Só fui me dar conta no momento em
que já tinha seus lábios sobre os meus.
Os sábados que amanhecem banhados por uma garoa fina e um clima gélido
são os meus favoritos. Eu tenho passe livre para afastar as cortinas e me
deparar com uma Bolfok tomada pela neblina. Então, a primeira coisa que eu
faço é ocupar o banheiro comunitário vazio, fazer minha higiene, me enfiar
nos casacos mais quentes e felpudos possíveis, e ir até a Biblioteca da cidade.
Ocupada apenas pela senhora de sessenta anos que está sempre lendo um
romance erótico às oito da manhã de um sábado, a mesma que sabe
exatamente o momento em que o sininho da porta vai bater anunciando
minha chegada. Em segundos, como sempre, ela vai abrir um sorriso grande
para mim e dizer que sou a salvação da juventude universitária, pois estou em
uma biblioteca em um final de semana.
Eu não me sinto tão salvadora assim, na verdade, apenas me apoio nos
mecanismos de defesa que me manterão afastadas de socialização. A lógica é
simples: meus livros nunca poderão ferir os meus sentimentos. Quando criei
minha armadura, a parede em volta do meu coração que impede qualquer
idiota de chegar até mim, eu realmente pensei que seria fácil internalizar que
apenas estudaria para ser melhor do que todos que eu odeio.
Eu não queria amigos, nem vida social e muito menos um namorado. Eu só
queria estudar o máximo que eu conseguia, além de acrescentar experiências
em meu currículo, me encher de cursos extracurriculares e tudo que pudesse
me fazer uma profissional honrosa. Porque se tem algo que aprendi desde
cedo, é que o mundo não é exatamente afetuoso com as mulheres, e tudo
piora se elas forem negras. Por exemplo, pense em uma empresa famosa, uma
multinacional qualquer, depois pesquise quantas pessoas do gênero feminino
estão ocupando cargos na diretoria. Após essa procura, tente achar no meio
dessas mulheres alguma negra. Então eu soube que, se um homem fosse bom,
eu teria que ser ótima apenas para tentar me igualar a ele no mercado de
trabalho, e ainda assim, eu não conseguiria.
Ao longo dos meus três anos sendo universitária, me preocupar com a minha
vida profissional foi a única coisa que eu fiz. Quando entrei na faculdade,
internalizei que eu teria as notas mais altas do meu curso. Entretanto, eu tinha
um grande obstáculo, e ele se chama Thomas Eckhoff.
Esse mesmo que falta as aulas, às vezes pegava as matérias comigo e dormia
durante as classes. Contudo, suas notas estavam sempre lá em cima. Cheguei
a cogitar que ele dormia com alguém da coordenação do curso, ou que
hackeava o sistema da universidade. Mas não, o sortudo apenas aprende tudo
muito rápido, com uma facilidade exorbitante, e não precisa ficar horas
estudando, porque o tempo que separa para isso consegue ser de qualidade.
No primeiro dia de aula, ele me disse: A faculdade não pode ser tudo na sua
vida, Nevaeh.
Mas eu não quis acreditar, sempre preferindo ouvir as vozes da minha cabeça
que gritava que estudo é a quantidade de tempo em que eu me dedicava. E
então, eu passei esses anos estudando como uma condenada, às vezes nem
tendo um aproveitamento tão bom. Me enchia de trabalhos, ia a poucas festas
e mal sorria. E inexplicavelmente, os motivos das minhas maiores risadas
eram as idiotices de Eckhoff e as piscadelas de Dom.
Isso até Mackenzie entrar em meu alojamento com seus olhos brilhantes e
distribuindo sorrisos amigáveis a quem quer que fosse. Naquele dia, eu
jamais imaginaria a intensidade do laço que eu criaria com ela. Na verdade,
assim que bati meus olhos na garota de sobretudo rosa, em cima de botas de
grife, pensei que o resto do meu ano seria maçante, tendo que aguentar uma
patricinha mimada. Contudo, Mackie quebrou todos os meus pré-julgamentos
gradativamente, me mostrando que ela sempre estaria lá por mim, assim
como eu por ela.
Sentada em meu habitual lugar na biblioteca, tento esquecer meus devaneios
e focar no livro de época, da Fatima Hamze, que estou lendo. Sinto-me
completamente imersa na vida de Claire, que tem o desejo de cursar medicina
em uma época onde poucas mulheres conseguem chegar até a universidade,
precisando assim, entrar em um relacionamento falso com seu arqui-inimigo.
Fico tão distraída com a escrita impecável da autora, que demoro a notar a
figura um tanto quanto peculiar, sentada em uma mesa mais afastada e com o
rosto enfiado em um livro de capa dura. Vejo os anéis cobrindo os dedos, se
misturando as tatuagens que adornam todo o espaço de pele dele. Ele parece
perceber meu olhar sobre ele e caminha em minha direção assim que desvio a
atenção.
— Nevaeh Williams. — Dominic se pronuncia ao passo que se joga ao meu
lado.
As mesas da biblioteca contam com um assento estofado em formato de L, ao
redor da mesa. Dominic puxa meus pés antes esticados no sofá, para seu colo.
— O que faz aqui, Hopkins?
— Ué. — Ele sobe e desce os ombros. — Eu vim estudar.
Estreito os olhos e ele ergue o livro de espessura grossa, algo sobre Direito
Penal.
— Estudar em um sábado, às oito da manhã.
— E existe horário correto para ir à busca de um futuro promissor?! — O
canto de seus lábios erguido entrega totalmente sua falta de seriedade para
tratar do assunto.
Nego levemente em um balançar de cabeça e solto uma risada baixa. Tento
focar minha atenção em seu rosto, e não na carícia que ele desfere em minha
panturrilha. Subo o livro que eu estava lendo para a altura de meu rosto,
evitando assim, qualquer tipo de distração.
Quando sua mão sobe para meu joelho, quase no início da minha coxa, em
um movimentar despretensioso, tiro minhas pernas de seu colo em um
movimento brusco. Ignoro o arrepio que se dá desde a base de minha coluna,
até minha nuca. Também finjo que não estou sentindo um calor anormal,
independentemente da temperatura amena do interior da biblioteca.
— O que foi? — Um vinco se forma entre as sobrancelhas dele, descontando
sua confusão pela minha mudança de comportamento repentina.
— Acho melhor você não chegar muito perto de mim, Dominic. — Eu colo
ainda mais meu corpo no assento, enquanto Dom chega mais perto
gradativamente.
— E o que acontece se eu chegar, Nev? — Eu poderia sair correndo dali a
qualquer instante, em um pulo, e eu estaria do outro lado da biblioteca.
Contudo, alguma força superior estanca meus movimentos, me deixando
estática em meu lugar.
Dominic estava muito perto, perigosamente próximo, eu podia sentir sua
respiração bater na lateral do meu rosto, enquanto seu braço roça levemente
no meu. Seu questionamento anterior fica no ar, e eu estou impossibilitada de
respondê-lo sem gaguejar. Sinto sua mão pousar em meu queixo, erguendo
meu rosto na direção do seu.
— Olha para mim. — Meus olhos antes pousados em um lugar atrás de Dom,
se transportaram diretamente aos seus castanhos brilhantes. Assim que nossas
vistas se conectam, a tensão se torna ainda mais palpável. — Do que você
tem medo, Nevaeh?
Do que eu tenho medo? De muitas coisas.
Tenho medo de me entregar a uma pessoa que terá poder de me magoar.
Temo ardentemente ceder aos encantos de alguém que pode vir a me fazer de
otária. Minha lista de receios poderia ser mais extensa do que o imaginável,
entretanto, meus sentidos pareceram mais aguçados sobrepondo-se aos meus
pensamentos. Já que nesse momento, eu só consigo prestar atenção em nossas
respirações aceleradas, misturadas uma na outra, na carícia que ele deixa em
meu queixo, e no seu olhar sobre mim, transbordando em admiração.
E, talvez, tenha sido por isso que deixo que ele se aproxime ainda mais. Não
me importo em ter seus lábios roçando-se aos meus, muito menos ligo para
sua mão que foi parar em minha cintura, enquanto a outra escorrega de meu
queixo para minha bochecha. O espaço entre nós é dizimado logo que a boca
de Dominic toma a minha.
Abro espaço por entre meus lábios para que sua língua deslize sob a minha,
sinto o aperto em minha cintura tornar-se ainda mais forte e Dom tombar seu
corpo sobre o meu. Nossas bocas trabalham para encontrar o ritmo e o
encaixe perfeito. Estamos concentrados em desbravar cada mazela da boca
um do outro. Ele beija muito bem, melhor do que o recomendado para a
minha sanidade mental. Sua língua tem uma aspereza confortável, seu hálito
me remete a menta e nicotina, e ele sabe controlar bem o quanto de saliva
compartilhará. Ouço seu arfar assim que minhas unhas ocupam-se de
arranhar sua nuca, e ele prensa ainda mais seu corpo contra o meu.
Tento arduamente me concentrar no que estamos fazendo, entretanto, meu
fôlego pede arrego a considerar o tempo estendido que nossas línguas se
embrenham. Descubro sensações que nunca provei com ninguém. Percebo
que amo o quanto seus cabelos parecem sedosos em minha mão e constato
que seus lábios quentes cobrindo os meus fazem com que meu estômago dê
piruetas dentro de mim.
Quando Dom finaliza o beijo roçando os dentes levemente pelo meu lábio
inferior, enrola sua mão em meu cabelo dando um puxão, me fazendo erguer
o rosto para deixar o pescoço livre. Sinto os efeitos de seu toque enviar
impulsos até abaixo de meu ventre.
Eu já não me importava em esconder os arrepios provocados pelo toque de
seus lábios depositando beijos castos em meu pescoço. Sua outra mão, a que
não se ocupa em segurar minhas mechas da nuca, correm para as minhas
costas por baixo da roupa, me fazendo estremecer com o atrito de seus anéis
gelados em minha pele quente. Eu poderia transar com Dominic ali mesmo,
mas então, me recordo do lugar em que estamos. Abro os olhos em um
rompante, direcionando-os até a recepcionista ainda enfiada em seus livros
eróticos.
— Dominic... — Tenho noção de que seu nome sai por entre meus lábios em
uma lamúria que mais parece um gemido. — Acho melhor pararmos.
Assim que me ouve, ele se afasta consideravelmente de mim e meu corpo
parece protestar pela distância.
— Por quê?
— Estamos em uma biblioteca, Hopkins. — Ele olha em volta, parecendo
inspecionar o lugar e pousa as vistas na única mulher, a da recepção, de
costas para nós, completamente imersa em sua leitura.
— Só há nós dois aqui, Nev. — Seu nariz roçando em meu pescoço, tira
completamente meu foco. — Pode ficar tranquila, não seremos presos por
atentado ao pudor.
— Ridículo.
— Nevaeh? — Seu rosto está enterrado em meu pescoço e a lufada de ar que
sai de sua boca me faz estremecer.
— Hum — murmuro aguardando o que ele tem a dizer.
Dominic se afasta de mim, nivelando seu rosto na altura do meu. Ele captura
uma mecha de meu cabelo crespo por entre seus dedos e se pronuncia.
— Eu não sei se já te disse isso antes, mas eu sou completamente apaixonado
pelo seu cabelo. — Um sorriso se estende em meu rosto antes que eu possa
contê-lo.
Dominic tem esse poder. O de tecer elogios que são extremamente
importantes para mim. Isso só faz com que eu abaixe ainda mais a guarda, e
seja dominada pelo medo.
— Obrigada, Dom. Mas ainda assim, não faremos nada aqui. — Ele solta
uma risada baixa me contagiando também.
Ao contrário do que pensei, as intenções dele não são compatíveis com nada
indecente dentro de uma biblioteca, o que até me frustra um pouco. Dominic
apenas se enrosca ao meu lado, passando seu braço ao redor de mim e
apoiando sua cabeça em meus seios.
— Eu só vou ficar aqui, agarrado em você, quietinho. — Sinto o aperto de
seu braço ao meu redor tornar-se mais forte. — Pode continuar sua leitura.
Talvez, o meu maior erro naquele dia, foi ter ignorado todos os sinais. Não
dei importância ao meu coração batendo forte, aos arrepios, à sensação de
borboletas no estômago. Pelo contrário, eu deixei que Dominic entrasse na
minha vida, deixei que ele ficasse em meu colo durante uma tarde inteira
enquanto eu lia meu livro.
E, eu sei que a partir do momento que deixei Dominic Hopkins entrar no
meu coração, de fininho, como uma faísca que se torna uma labareda
rapidamente, não teria mais volta.
BOLFOK TOWN, OUTUBRO 2020