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Direitos autorais © 2023 Nicole Oliveira

Todos os direitos reservados. É proibido a reprodução, distribuição,


comercialização ou impressão de qualquer parte desta obra [física ou
eletrônica] sem o consentimento escrito da autora, exceto pelo uso de
citações breves e resenhas. A violação dos direitos autorais é crime
estabelecido pela Lei nº 9.610 de fevereiro de 1988 e punido pelo artigo 184
do Código Penal. Este livro é exclusivo para o formato Kindle.
Os personagens e eventos retratados neste livro são fictícios.

Autora: Nicole Oliveira


Capa: Vee @c.vitoriaart
Betagem: Amanda Casagrande, Camila Pedrosa, Gabriela Rodrigues,
Gabriela Ferreira, Sophia Gomes
Revisão: Amanda Abdias, Thais Eduarda
Diagramação: Nicole Oliveira

Esta é uma publicação independente.


Oie, tudo bem? Eu sou a Nicole, é um prazer saber que você teve
interesse em ler um pouco do que saiu de dentro dessa cabecinha. 365 -
Novos Caminhos é muito importante para mim, já que é o responsável por
me fazer voltar a escrever em 2021. Dar essa nova cara ao enredo e aos
personagens é algo que enche meu coração de amor. Muito obrigada por dar
uma chance às minhas palavras e ao que criei, espero que você goste e que
saia da realidade um pouquinho.

Seria incrível se você avaliasse a leitura quando terminar, as


estrelinhas ajudam a plataforma a recomendar o livro para novos leitores,
então me ajuda muito! Se quiser comentar suas impressões comigo nas redes
sociais, eu vou AMAR saber o que você está achando.

Dito isso, esse livro contém alguns gatilhos como: xenofobia e


agressão. Os temas foram tratados de forma leve, e também tem linguagem
imprópria e conteúdo sexual explícito. Então esse livro é indicado para
pessoas maiores de 18 anos.

​Divirta-se!
Niverso

Meus livros compartilham um mesmo universo, mas você não


precisa ler nenhum dos meus outros livros para entender a história de 365.
Entretanto, vários easter eggs estão sendo colocados nas minhas obras. Em
365 você encontrará referências a Roadie, e pequenos spoilers de alguns
livros que serão lançados no Niverso entre hoje e algum dia na eternidade.

Em determinado momento, alguns personagens vão se esbarrar e eu


acho isso muito legal!

What if I told you I'm a mastermind?


Playlist

Não foi nada fácil montar a playlist de 365, mas estou muito
orgulhosa da seleção que entrou nesse livro. Cada música foi escolhida
pensando no que os personagens estão sentindo ou vivendo no capítulo em
questão, espero que você goste tanto quanto eu.

Spotify
Para quem pediu por um final alternativo em
que não existisse a parede no caminho.
Aqui está, mas talvez não seja como você imaginou!
Prólogo

“Por que não fazer uma loucura e se arriscar?


Por que não dançar feito maluco?
Se você perder o momento, pode perder muito
Então: por que não?”
Why Not - Hilary Duff

“Quando uma mulher muda de cabelo, ela está prestes a mudar


completamente sua vida!”
​Foi o que a Coco Chanel falou e, sinceramente, se esse não é o melhor
momento, quando será?
​Estou concentrada, vendo meu reflexo no espelho enquanto termino de
passar a tinta roxa nas pontas dos meus fios. Coloquei minha playlist no
aleatório e em um momento estou pulando ao som de The Killers, e em
outro estou sofrendo com Olívia Rodrigo e Anavitória. Eclética, eu diria.
​Capitu está sentada em cima da privada, observando cada movimento
que faço com muita atenção. Como se o fato de me ver pintar o cabelo fosse
a coisa mais incrível e interessante que já me viu fazer.
​— But it's just the price I pay, destiny is calling me… Open up my eager
eyes, ‘Cause I'm Mr. Brightside! — Canto baixo enquanto pego mais um
pouco de tinta e espalho devagar nos fios, para que fique o mais uniforme
possível.
​— Nina, cheguei!
​A voz da Camila ecoa no apartamento e escuto quando coloca as sacolas
em cima da mesa da sala. Ela foi mais rápida do que eu imaginei, ou eu
demorei muito para arrumar a mala, já que o plano era estar, pelo menos,
com o cabelo pronto quando ela chegasse em casa.
​ Estou no meu banheiro! — Grito de volta e escuto os passos em

direção ao meu quarto, que em alguns dias será de outra pessoa.
​— Que furacão passou por aqui?
​Camila está indignada e olhando para tudo, sem acreditar na bagunça que
eu fiz. Não preciso ver a expressão em seu rosto para saber disso, uma vida
inteira sendo melhores amigas e alguns anos morando juntas fez dela a
pessoa que mais conheço no mundo. Provavelmente, mais do que me
conheço.
​— O furacão Londres! — Vou até a porta do banheiro e olho para ela
pela fresta. — Mi, eu vou arrumar, relaxa!
​— Você vai embora amanhã, Marina! E este quarto não está do jeito que
deveria estar. Você vai deixar essa bagunça para eu lidar, não vai? — Camila
abre a porta do meu armário e fica ainda mais em choque.
​— Vou ter tempo o suficiente para dormir no avião, pode deixar que eu
não vou deixar este país antes de arrumar o quarto. — Coloco a mão no
peito, em forma de juramento.
​É bem provável que eu não consiga arrumar tudo, o que quer dizer que
ela tem razão, mas não vou deixá-la saber disso agora. Não costumo deixar
tudo para a última hora, mas a ansiedade de tudo dar errado e alguma
tragédia acontecer me fez segurar os preparativos o máximo que pude. Ou
quase, já que tenho algumas boas horas até ir para o aeroporto.
​— Eu te ajudo… — Camila suspira e anda pelo quarto, indo até a porta
do banheiro e abrindo-a, finalmente presta atenção em mim, e não na
bagunça ao redor. Ela abre a boca surpresa e sorri quando me viro toda suja.
— Essa é a nova cor?
​— Gostou?
​— Eu adorei — apoia o ombro no batente da porta e fica me olhando. —
Qual é o significado?
​— Por que você acha que tem algum?
​— Porque eu te conheço e sei que não escolheria uma cor aleatória
justamente hoje. — Camila revira os olhos e se aproxima da pia para pegar o
tubo de tinta e ler a embalagem.
​— Ah, você sabe… — Dou de ombros como se minhas superstições não
fossem nada demais. — Roxo é a cor da criatividade, da intuição… E
também ajuda na liberação dos medos e inquietações. Parece adequado, não?
​— Você está com medo?
​ Ansiosa, seria a palavra ideal. — Termino de espalhar a tinta nos fios

e jogo o cabelo nas costas. Minha camiseta já está toda manchada mesmo,
então não me importo com o estrago. — Fico pensando em como será fazer
tudo sozinha, sabe? Se vou fazer amigos com facilidade e se a língua não vai
ser um empecilho muito grande. Uma coisa é falar com brasileiros no
cursinho de inglês, outra é falar com os gringos no dia a dia.
​— Bom, o máximo que vai acontecer é você virar a brasileira doida que
não entende o que as pessoas falam.
​— Acho que vou acabar ganhando esse título de um jeito ou de outro. —
Dou risada e volto para o quarto, seguida por Capitu, que nos deixa sozinhas
e some pelo corredor do apartamento.
​— Conferiu se pegou tudo o que eu coloquei na lista?
​— Que lista?
​— A que deveria estar em cima da sua mesa com tudo o que você não
pode esquecer de jeito nenhum. — Camila anda até minha mesa e começa a
mexer na bagunça que está ali.
​Além de documentos, têm acessórios de cabelo, toucas, algumas roupas,
cadernos, lápis, meu e-reader e alguns fios de aparelhos eletrônicos que não
faço a menor ideia do que são.
​— Eu não encontrei — respondo um pouco culpada e Camila se vira
para mim sem paciência. Em seguida, começa a procurar a tal lista.
​Eu a ajudo, mas não consigo encontrar em lugar nenhum. Alguns
segundos depois, ela joga uma pilha de roupas no chão e levanta o papel que
estava na cadeira da minha escrivaninha, a sobrancelha levantada
desacreditada.
​— Como você consegue ser tão organizada para algumas coisas e tão
bagunceira para outras?
​— Não sei, mas fiz um teste no Buzzfeed ontem. Falou que isso tem
super a ver com minhas inspirações dos filmes que cresci vendo. Faz
sentido, não faz?
​— Não faz nem um pouco de sentido, sua cara de pau! — Camila me
olha desacreditada e, antes de começar a rir, joga algumas roupas em cima
de mim.
​Começo a rir com ela, me defendendo do seu ataque e protegendo meu
cabelo, para não deixar tudo manchado de roxo, como já faço normalmente.
E assim as horas seguintes se passam sem que eu consiga notar. Com a ajuda
da Mila, terminamos de arrumar minhas malas, organizamos o quarto e
colocamos tudo dentro das caixas que minha mãe buscará durante a semana,
para o quarto finalmente ficar livre para o próximo inquilino.
​Mila coloca o último álbum da Taylor Swift para tocar enquanto tomo
banho e tiro a tinta do cabelo. Depois, fazemos uma pizza de pão de forma e
nos sentamos na sala para comer, escutando música e aproveitando o que
será nossa última noite morando juntas em alguns meses. Meses para ela,
porque ainda não contei que meu plano é não voltar para o Brasil. Não tive
coragem de dar essa notícia e toda vez que o momento ideal chega, eu travo.
​Não é fácil decidir as coisas sozinha, não quando se tem uma relação
como a nossa. Não somos só amigas, somos como almas antigas que se
reencontraram nesta vida. É por isso que é tão difícil contar a verdade.
​— Você vai fazer isso com sua nova melhor amiga? — Pergunto depois
de um tempo em silêncio.
​— Você é minha melhor amiga. — Mila levanta a sobrancelha ao notar a
insegurança que carrego na voz, já que sabe que isso não é nem um pouco
comum entre nós, e apoia o braço na almofada do sofá. — E tecnicamente,
quem está indo embora e me abandonando é você, não eu. Eu vou continuar
exatamente aqui.
​— Não estou te abandonando, não fala assim… — Abro um sorriso triste
e ela segura minha mão.
​— Eu sei, e eu não vou te trocar, sua ciumenta.
​— Será estranho morar sem você — aperto os lábios e olho para a taça
com Coca-Cola, porque não temos o costume de beber vinho, mas achamos
chique quem bebe, então a gente finge que sim. — Mas vai ser bom, não
vai?
​— Vai, é claro que vai! Você vai terminar a faculdade, vai arranjar um
estágio legal, ganhar experiência, conhecer gatos ingleses e, quando eu for te
visitar, vai me apresentar alguns. Quando voltar para o Brasil, nossa vida
voltará ao normal, eu terei terminado a faculdade e começado a pós, então
vamos colocar nossos planos em ação. A colega de quarto parece ser bem
tranquila, então não acho que vamos ter problemas, e é só por um ano.
​É isso, esse é o momento que eu evito e fujo há meses. Não mais.
​— E se eu não voltar? — Reúno toda a força do meu corpo e solto de
uma só vez.
​— O que? Tipo, se você morrer? — Camila arregala os olhos em choque.
​— Não, é só… E se tudo der certo e eu ficar lá para sempre? — Sinto a
palma da mão suar. Não costumo ter medo de contar qualquer coisa da
minha vida para ela, mas isso é grande. Muito grande. É alterar todos os
planos que fizemos de envelhecer juntas e criar nossas famílias morando
perto uma da outra.
​Camila fica me olhando por mais tempo do que eu esperava, processando
o que acabei de revelar repentinamente. Então, abaixa o olhar, pega mais
uma pizza e suspira baixo.
​— Então, a gente vai ter que mudar os planos e adicionar algumas
viagens pelo Atlântico no caminho… — Ela dá de ombros enquanto mastiga
e engole rapidamente. — A passagem não é tão cara assim se comprarmos
com antecedência, podemos fazer um planejamento a longo prazo. Pode
funcionar.
​Sorrio aliviada. No fundo, eu sabia que ela apoiaria qualquer decisão que
eu tomasse, mesmo que meu coração fique apertado por saber que as minhas
escolhas vão nos manter tão longe. Ela nunca deixou de me apoiar, e eu
nunca deixei de apoiá-la, é como a gente funciona.
​— Sem arranjar um boy aqui antes de conhecer os gringos que eu vou te
apresentar, ouviu?
​— Sim, senhora.
​Ela responde batendo continência e volta a comer, deixando as portas
sempre abertas para mim e nossa amizade.
Capítulo 1

“Se molhe nas palavras não ditas


Viva sua vida com braços abertos
Hoje é o dia em que seu livro começa
O resto ainda não foi escrito”
Unwritten - Natasha Bedingfield

​ s primeiros dias na Inglaterra foram mais tranquilos do que eu esperava.


O
Desembarquei em Londres sem problemas, passei dois dias no hotel
enquanto acertava os últimos detalhes do meu apartamento, me instalei, fui
no escritório da Universidade, dei entrada na minha documentação e conheci
meu bairro.
​Sem crises de ansiedade, sem me desesperar com as coisas que não
aconteceram da forma que eu esperava.
​Só consigo ver isso como um sinal de que a Deusa está planejando algo
incrível para mim, ou algo descomunalmente desastroso vai bater na minha
porta em breve. O que posso fazer, enquanto não descubro qual opção vem
aí, é organizar o que precisa ser organizado e seguir os prazos estipulados
pela vida.
​Pego o eucalipto na cozinha e o levo até o varal de ervas improvisado
que montei perto da janela, torcendo para conseguir secá-las da mesma
forma que fazia em casa. Olho para os ramos e faço uma careta, sei que não
vai funcionar. O problema é que aqui, na Inglaterra, chove demais e ainda
estou me acostumando com as estações no hemisfério norte.
​ som de alguém me ligando pelo computador chama a minha atenção e
O
eu corro para ver quem é. Apesar de já suspeitar que seja minha melhor
amiga, abro um sorriso quando a foto da Mila aparece na tela.
​— São 4 da manhã no Brasil, sua louca! — É a primeira coisa que falo
ao aceitar a ligação.
​— Eu sei, mas é seu primeiro dia oficial e eu queria… — Mila boceja e
suspira de preguiça, saindo um pouco debaixo das cobertas. — Queria saber
como você está.
​— Ansiosa, nervosa e acho que vou vomitar a qualquer momento.
​Pego o laptop e o levo até o balcão que separa a cozinha e a sala. O
apartamento é pequeno, bem menor do que o que dividimos no Brasil, mas é
o suficiente para mim.
​— Já fez alguma das suas mágicas para ficar melhor? — Seu rosto está
iluminado só pela tela do celular e ela fecha os olhos, praticamente lutando
contra o sono para falar comigo tão cedo.
​Poderia ficar com dó dela, mas acho sua atitude fofa. Ela me ligar nesse
horário, principalmente sabendo o quanto é dorminhoca, aquece meu
coração e recarrega minhas forças.
​— É claro — viro a câmera para a sala e mostro meu altar com o incenso
aceso. — Tudo em ordem por aqui.
​— Tem mais plantas hoje do que tinha na ligação de ontem! — Camila
boceja de novo.
​— Ah, eu achei uma floricultura incrível em uma viela pequena e
escondida aqui perto. Juro que achei que fosse morrer de tão estranho que
era, mas depois que passei pelo início esquisito, vi o quanto era lindo. A
dona parece com uma bruxa e vende vários temperos e ervas. Comprei tanta
coisa: hortelã, pimenta, eucalipto, sândalo… — Volto a câmera para mim e
pego os saquinhos com as ervas, cheirando cada um com um pequeno
sorriso satisfeito. — Não dava para ficar sem, mas estou com dificuldade em
secar as ervas, acho que vou passar lá de novo mais tarde para perguntar se
ela tem alguma dica.
​— Já tentou secar no forno?
​— Não queria fazer assim, já que algumas podem ficar murchas e eu
queria fazer incensos naturais… — Suspiro cansada e seguro minha caneca
com chá. — É, eu definitivamente vou lá mais tarde. Não vou deixar essa
chuva me vencer.
​— Mais dez dias e esse kitnet parecerá com uma selva.
​ É o plano — sorrio e apoio o queixo na mão, vendo ela voltar a

adormecer devagar. — Volta a dormir, você já foi guerreira demais por me
ligar agora.
​— Eu preciso mesmo — Mila boceja mais uma vez e fecha os olhos. —
Tenho que acordar em duas horas para trabalhar e a faculdade mal voltou e
já está tentando me matar.
​— Bons sonhos, te mando uma mensagem mais tarde contando todos os
detalhes do primeiro dia.
​— E não esquece que eu tenho que te contar uma mega fofoca sobre a
Ju.
​Antes que eu consiga retrucar, pedindo para saber da fofoca neste exato
instante, ela me manda um beijo e encerra a ligação, me deixando
novamente no silêncio.
​Nunca me importei em ficar sozinha. Na verdade, gosto bastante de ficar
somente com os meus pensamentos, lendo e estudando. Mas eu
desacostumei a me ver sozinha dentro de casa. Então, a cada ligação que
recebo da Mila ou da minha família, sinto meu coração se aquecer e ficar um
pouco mais calmo.
​Escuto as patinhas da Capitu pisando no chão de madeira de forma
preguiçosa. Ela sai do quarto e senta no meio da sala, se estica toda sem dar
a mínima atenção para mim.
​— Bom dia, Capitu! — Levanto-me, vou até seu potinho de comida e
coloco um pouco de ração. A gata com pelagem branca mia e anda devagar
até a cozinha, para se alimentar.
​Minha única companheira brasileira nesta aventura.
​Fico olhando-a por alguns momentos, até reparar no horário no
microondas: tenho que sair agora, ou vou me atrasar. Corro até meu quarto,
coloco meu coturno e pego meu cardigan de crochê para colocar por cima do
vestido. Não está muito frio ainda, então isso deve bastar. Pego minha
mochila com os livros e a ecobag que minha mãe bordou a mão para mim.
​Confie na Deusa e em você!
​Está escrito na costura interna, um lembrete dela para mim. E, na frente,
várias flores e ervas bordadas nas extremidades. Uma verdadeira obra de
arte.
​— Volto mais tarde, se comporte e não destrua minha hortelã, mocinha!
— Repreendo Capitu e seu olhar me diz que entendeu o recado.
​ epois de sair do apartamento e trancar a porta, sinto um calor em volta
D
dos meus braços que me faz sorrir.
​Vai dar tudo certo.
Capítulo 2

“Como você escolhe se expressar depende só de você, e consigo notar


Você segue o que sente por dentro, é intuitivo, você não precisa tentar
Acontece naturalmente”
Naturally - Selena Gomez

​ ecorei o caminho que preciso fazer e, quanto mais perto fico da


D
Universidade, mais ansiosa me sinto. Já fui ali uma vez na semana passada,
mas hoje é o dia em que a aventura oficialmente se inicia. O que significa
conhecer pessoas, professores, estudar… Por isso, preciso de um momento
quando chego em frente à construção histórica.
​O local é enorme, tão grande que sinto a pressão do que estou fazendo
finalmente me atingir. Eu realmente larguei minha vida no Brasil para
terminar a faculdade na Inglaterra e, quem sabe, construir uma vida aqui.
​Sorrio e entro no lugar que parece um castelo. O gramado cheio de
alunos, com alguns grupos reunidos fazendo o que parece ser uma espécie de
apresentação pessoal, enquanto outros estão somente comendo e rindo. Tem
tanta gente que, em poucos passos, sei que estou perdida e não faço ideia de
para onde preciso ir. Observo tudo ao meu redor vagarosamente e, assim que
decido pedir informação para um pequeno grupo próximo, vejo um corredor
de mesas mais adiante com o que parecem ser diferentes equipes estudantis
e, por último, a barraca de apoio ao aluno.
​É lá que tenho que ir para pegar meu kit de boas-vindas e descobrir para
onde ir a seguir.
​Meu estômago está revirando de nervosismo, mas respiro fundo e, antes
de começar a andar, cheiro disfarçadamente o meu pulso. Quando ainda
estava no metrô, passei um pouco do mix de óleos com ervas que fiz para me
acalmar e não deixar a ansiedade me vencer. Imediatamente, como magia,
meu estômago se acalma, assim como meu coração.
​Ando devagar pelo caminho de pedras e vejo o que tem nas barracas ao
longo do caminho. São grupos e organizações com inscrições abertas para
novos membros. Uma garota está se inscrevendo de forma muito animada no
grupo de Acapella feminino. Mais para frente, vejo um grupo de estudos, um
comitê de lazer e um clube de leitura contemporânea. Meus olhos brilham
quando leio o banner da última.
​— Encontros semanais para discutir a leitura conjunta do livro do mês,
definido por votação no início de cada trimestre… — Murmuro baixo, em
português, e penso se devo me inscrever.
​Amo ler e preciso de amigos. Esse grupo pode ser um bom lugar para
unir as duas coisas. A garota que está do outro lado da pequena mesa me
olha e abre um sorriso tímido. Diferente dos outros, que estão chamando as
pessoas para conhecerem seus grupos, ela está quieta, lendo e deixando que
se aproximem por vontade própria.
​— Dá muito trabalho? — Ela pergunta com um sorriso no rosto e
demoro para entender sobre o que está falando, por causa do seu sotaque
carregado. — O seu cabelo, no caso.
​— Ah, um pouco — dou um passo à frente e não consigo evitar colocar
uma mecha atrás da orelha. — Mas já estou acostumada, uso ele colorido há
alguns anos.
​Faz tanto tempo que não uso meu cabelo completamente natural, que
nem me lembro mais de como sou sem um pouquinho de cor. A escolha do
roxo foi ótima, porque desde que cheguei aqui, todas as vezes que me olhei
no espelho, senti que podia ser quem eu quisesse.
​— O seu é lindo, queria que o meu fosse mais volumoso. — Elogio e ela
dá de ombros, fazendo uma careta como se não gostasse.
​O cabelo dela é brilhante e cheio de personalidade, com cachos definidos
e castanhos. Combina com ela que tem o nariz empinado - mas não de uma
maneira esnobe -, a sobrancelha definida e os olhos doces.
​— Gosta de ler? — Pergunta e eu confirmo, dando um passo à frente. —
Nosso grupo é bem eclético, então para não termos que brigar e mantermos a
diversidade, geralmente lemos vários gêneros diferentes. Você tem um
favorito?
​— Terror e romance. — Aproximo-me mais e vejo a prancheta na mesa,
tem alguns nomes inscritos na folha. — Eu leio de tudo, menos autoajuda.
Não consigo de jeito nenhum. — Ela ri e concorda.
​— Lemos Stephen King no último período, e eu obriguei todo mundo a
ler Colleen Hoover depois. — Abre uma careta culpada e sorri. — Não gosto
de terror, mas foi uma boa experiência.
​— Deve ter sido legal. — Respondo e olho mais uma vez para a
prancheta.
​— Nossos encontros geralmente acontecem às quintas, em uma livraria
que tem aqui perto. Bom, na verdade é um bar, mas nos fundos tem uma
livraria. Então, o pessoal aproveita e já bebe uma cerveja depois da reunião.
— Ela estende uma caneta para mim. — Temos algumas vagas ainda… Se
você tiver interesse em participar.
​Hesito por um momento, então dou de ombros e aceito. Será bom fazer
parte de algo, poder compartilhar experiências com alguém. E se eu não
conseguir dar conta ou não gostar, posso sair a qualquer momento.
​— Você não é daqui, não é?
​— Bom, agora sou — sorrio e deixo a caneta em cima da prancheta, que
ela puxa para ler meu nome. — Vim transferida do Brasil.
​— Seja bem-vinda… Marina Dias. — Ela fala com dificuldade, o que
me faz sorrir. — Falei certo?
​— Quase, mas está ótimo. Pode me chamar de Nina.
​— Nina, então. — A garota estende a mão para apertar a minha. — Sou
Olive Brown.
​— É um prazer — aceito sua mão e o aperto que recebo é firme,
animado. — Você sabe me dizer se é ali mesmo que eu tenho que ir? —
Aponto para o final do caminho de barraquinhas e ela se estica em cima da
mesa para ver melhor.
​— Não pegou seus horários ainda? — Nego com a cabeça assim que ela
pergunta. — Então é exatamente ali. Posso colocar o número que você
deixou no formulário no nosso grupo? O primeiro encontro para definir as
leituras do trimestre deve acontecer esta semana.
​— Claro, mal posso esperar.
​Dou um passo para trás com um pequeno sorriso no rosto e,
silenciosamente, nos despedimos. Aceno um tchau e, no instante em que me
viro para poder continuar meu caminho, dou de cara no que parece ser um
poste, de tão alto. O impacto é forte o suficiente para que eu caia no chão,
desnorteada e sem entender o que aconteceu.
​— Charlie!
​ scuto a voz de Olive repreendendo alguém e ao levantar a cabeça, vejo
E
que não bati em um poste e sim em um cara - lindo, por sinal.
​— Puta que pariu, foi mal! Não te vi! — Ele estende a mão em minha
direção, com a intenção de me ajudar a levantar.
​Seu cabelo é de um ruivo tão vivo que parece estar em chamas, seu rosto
é cheio de sardinhas e carrega uma barba por fazer, igualmente ruiva. Os
olhos castanhos parecem brilhar e o sorriso de lado faz meu coração bater
mais forte.
​— Tudo bem, a culpa foi minha. — Aceito sua mão e sinto seu calor
quando nossos dedos se tocam. — Eu não olhei para onde estava indo.
​— Por favor, me deixe ser cavalheiro e assumir a culpa por esse encontro
desastroso. — Ele coloca a mão livre no peito de maneira galante, com os
olhos fixos nos meus, nem parece que acabou de falar um palavrão alto.
​— Você se machucou, Nina? — Olive aparece do nosso lado, sem deixar
que eu responda o ruivo.
​— Está tudo bem!
​— Você é um monstro, presta mais atenção! — Olive dá um tapa no
braço do cara e ele tenta se esquivar, carregando um sorriso travesso no
rosto.
​— Não foi culpa minha, o Theo me empurrou. — Ele aponta para um
cara, igualmente ruivo, que acena para nós na barraquinha da frente.
​— Achei que tínhamos chegado em um acordo de que a culpa era sua. —
Levanto uma sobrancelha e ele me olha rindo.
​— Certo, você tem toda a razão. — Seu olhar percorre meu corpo de
cima a baixo, enquanto coloca as mãos no bolso. Está realmente me
analisando e não faz questão nenhuma de esconder. — Inscreveu-se no
grupo chato da senhorita Brown?
​— Você pode fazer o grande favor de não me irritar hoje? Obrigada. —
Olive revira os olhos sem paciência e volta para trás de sua mesa, sem
esperar ele responder, nos deixando sozinhos entre as pessoas que passam ao
nosso redor.
​— Não gosta de ler? — Pergunto cruzando os braços no peito e
estudando suas feições.
​Não tem nada de incrível na sua aparência, mas o simples é lindo. O
sorriso torto presente no rosto, a postura convencida nas melhores intenções
e o olhar divertido. É como se tivesse a certeza de tudo o que causa nas
pessoas e usasse isso a seu favor.
​ Por que ler se posso ver o filme? É mais rápido e com mais ação. —

Ele dá de ombros e eu abro um pequeno sorriso incrédulo.
​— Claro, então você é desse tipo… — Assinto e olho para a barraca que
seu amigo está, somente para encontrar o cara ainda nos observando.
​— Que tipo? — Inclina um pouco o tronco em minha direção e cerra os
olhos.
​— O tipo que gosta do mais fácil. — Dou de ombros também, sem
parecer me importar para o jeito que ele se aproximou, e ele ri, desacreditado
da minha resposta. — Ele é seu irmão? — Aponto com a cabeça para o outro
ruivo.
​— Não, é meu primo.
​— Ele não para de olhar para a gente, sem nem disfarçar.
​— Só está esperando que eu te convença a participar do melhor grupo do
campus.
​— Então, tudo isso foi parte de um plano? — Cerro os olhos e abro um
pequeno sorriso, instigando o cara. — Você praticamente me jogou do outro
lado do gramado só para me recrutar para o seu grupo. Olha, a Olive não
precisou desse esforço todo, se você quer saber.
​— Sim, exatamente. Foi tudo parte do meu plano, no instante em que te
vi parar na barraca de frente para a minha. Não podia deixar você ir embora
sem saber seu nome. — O ruivo sorri e sinto minhas bochechas corarem.
​Estou no campus há dez minutos e já tem um cara dando em cima de
mim abertamente? Não que eu esteja reclamando, mas é algo que eu
definitivamente vou precisar contar para a Mila mais tarde.
​— Marina Dias.
​— Charlie Cooper.
​Apertamos as mãos pela segunda vez em poucos minutos e Charlie sorri
depois de umedecer os lábios. Então, com um aceno de cabeça, me convida
para acompanhá-lo até a tal barraca. O banner ao lado da mesa
imediatamente chama minha atenção, porque o grupo se chama A Ordem, e
o logo é incrivelmente parecido com algo saído diretamente de um livro que
eu conheço muito bem.
​— Você está tirando sarro do clube do livro da Olive, mas tem um grupo
de Harry Potter com o nome mais clichê que existe? Achei que fosse piada
de que vocês são obrigados a lerem os livros na escola enquanto crescem. —
Abro a boca rindo e ele revira os olhos.
​ Eu falei para mudarmos o nome, mas foi escolhido por votação e esse

grupo é democrático. — O ruivo atrás da mesa estende a mão para mim. Eles
são muito parecidos, mas Charlie é mais alto e tem o rosto mais travesso. —
Theodore Cooper, prazer.
​— Em nossa defesa… — Charlie levanta um pouco a voz, chamando
minha atenção para ele. — Não somos um bando de nerd que gosta de Harry
Potter e conseguimos, pelo menos, convencer todos a encurtar o nome para
ficar menos ridículo.
​— Ah, então realmente era Ordem da Fênix?
​— Somos ativistas. — Charlie continua, ignorando minha provocação.
​Ele consegue minha atenção de forma imediata. O que eu mais fazia no
Brasil era participar de grupos ativistas feministas, antibullying, antirracistas
e era integrante ativa do Verde Sim!, que tem diversos projetos de proteção
ambiental.
​As pessoas sempre nos acharam loucas por participarmos desses grupos
e cultuarmos uma Deusa pagã, principalmente em um país como o nosso,
que carrega tanta intolerância religiosa. Mas foi a forma que eu, minha mãe
e minhas tias encontramos de fazer nossa parte e proteger a Deusa na Terra.
E se isso significava ficar se revezando e abraçar uma árvore por dias para
não destruírem os espaços verdes da cidade, era o que a gente faria. Parece
pouco, mas é realmente eficiente, na maioria das vezes, principalmente em
projetos menores.
​Salvamos muitos espaços que estavam ao nosso alcance, mas sempre que
havia dinheiro envolvido, como o desmatamento para poder construir novos
prédios ou empresas, a luta se tornava uma causa perdida.
​O homem só quer saber de dinheiro e se esquece do real motivo para
estarmos aqui.
​— De qual vertente?
​— Bom, somos voluntários em um Centro Educacional afastado e
estamos onde precisarem da gente. Atualmente, estamos tentando impedir
alguns projetos de construtoras. — Theo me entrega um panfleto de novos
empreendimentos na cidade. Comércios independentes e prédios luxuosos
com salas comerciais. Parece ser incrível se você olha superficialmente, mas,
dependendo da região, poderia trazer mais malefícios do que benefícios.
​— Eles estão querendo comprar e destruir prédios antigos e “irregulares”
nas áreas mais pobres há um tempo. É uma merda, porque muita gente
sustenta suas famílias nos empreendimentos já existentes em LittleWin, e se
fizerem isso, não vão ter para onde ir. — Charlie completa fazendo uma
careta.
​— Por que querem fazer isso?
​— Dinheiro. Os imóveis não estão valendo muito e, apesar do nosso
grupo e outros ajudarem as famílias na reforma, a maioria não tem os alvarás
necessários para ficar de pé. A prefeitura interdita e as empresas conseguem
comprar os terrenos em leilão, desalojam dezenas de famílias e constroem
fábricas pequenas, ou comércios mais caros…
​— Assim eles monopolizam o mercado regional, os preços aumentam, as
famílias passam mais necessidade e é uma grande merda… — Murmuro
sentindo meu coração se irritar.
​— Exatamente! — Charlie assente e coloca as mãos nos bolsos. — Está
familiarizada?
​— Eu saí do Brasil achando que aqui era um lugar melhor, e encontro os
mesmos problemas de lá. — Suspiro cansada. — Estão precisando de mãos
extras?
​Charlie sorri e Theodore imediatamente estende a prancheta e a caneta
para mim. Não existe a possibilidade de ficar de fora desse grupo, não agora
que sei o que fazem e o quanto posso ajudar.
​— Brasil? Ah, então está explicado.
​Charlie apoia o corpo na mesa, cruza os braços e ri, enquanto presta
atenção em mim.
​— O que está explicado? — Pergunto sem levantar o olhar, concentrada
em preencher o formulário.
​— Porque você fala engraçado.
​Imediatamente paro de escrever e levanto o olhar.
​— Engraçado? Quantas línguas você fala, senhor Cooper? — Provoco de
forma séria.
​— Hum, só inglês. — Ele engole um pouco assustado e eu assinto.
​— Só inglês… Bom, eu falo português, inglês e espanhol. Você acha
engraçado o fato de eu ser mais inteligente do que você?
​Nós ficamos em silêncio e o que poderia ter virado um momento de
tensão, com ele começando a me odiar naquele instante, se torna algo
descontraído. Charlie abre um sorriso de lado, como se estivesse satisfeito
com a resposta que lhe dei, então mexe a cabeça, se dando por vencido.
​— Touché.
​ perto um sorriso, voltando a preencher o formulário e o entrego na mão
A
de Theodore, que também carrega um pequeno sorriso no rosto.
​Charlie é claramente um jogador, dá para ver na forma que me olha, sorri
de lado, cruza os braços e fala com a voz baixa e calma. Ele é o tipo de cara
que tem a garota que quiser na palma da mão sem muito esforço. Mas ele
não sabe que esse também é meu jogo favorito, e eu sou muito boa nele.
​— Tenho que ir, vejo vocês por aí? — Alterno o olhar entre os dois, que
concordam, mas é inevitável não parar o olhar por mais tempo em Charlie,
deixando claro que gostei dele.
​— Bem-vinda à Ordem.
Capítulo 3

“Tem esse lugar que eu vou que ninguém conhece


Onde os rios fluem e eu o chamo de lar”
Pocketful of Sunshine - Natasha Bendingfield

​ conselheira pediu para que eu aguardasse um pouco, pois um aluno


A
havia sido designado para me ajudar na primeira semana de aula e estava
atrasado. Ele irá me mostrar como tudo funciona, me apresentar o campus e
me “enturmar” um pouco. Isso será incrível se ele for um cara legal, mas um
verdadeiro problema se não nos dermos bem, porque não vou ter como fugir
dele nesse primeiro mês de aulas.
​Sento em um pequeno banco na lateral da barraca oficial da
universidade, o clima está gostoso, apesar do vento batendo no meu rosto.
Algumas mesas estão cheias de alunos se inscrevendo nas atividades,
principalmente a responsável pelas festas, porque quem está na organização
não paga para participar. A maioria dos universitários não tem dinheiro o
suficiente para arcar com todos os custos de moradia, alimentação e
material, então faz sentido participar de um grupo assim. Dá para curtir sem
gastar.
​Vejo um grupo ao redor da mesa de Charlie, conversando e rindo com
Olive, que está na mesa em frente. Todos parecem ser legais e
cumprimentam outros alunos que passam, sem parar com as brincadeiras.
Vejo Theo cutucar Charlie e apontar para mim e, imediatamente, o ruivo me
olha.
​Desvio o olhar porque fui pega admirando-o e não quero deixá-lo
metido, mas como não admirar aquele rosto, aquela altura, aqueles ombros?
Olho mais uma vez e ele ainda está me fitando. Charlie abre um pequeno
sorriso de lado e dá uma piscadela para mim, antes de voltar a prestar
atenção no que uma garota à sua frente falou, empurrando-a longe e
recebendo alguns tapas ferozes no braço.
​É impossível não sorrir vendo a cena, principalmente quando ele segura
os braços da garota que agora está rindo e tentando pular nas suas costas,
mesmo com ele fugindo dela.
​— Você deve ser a Marina Dias!
​Um garoto coreano, usando um pullover verde escuro, aparece na minha
frente com um sorriso gentil no rosto e a mão estendida. Estava tão distraída
que não o vi se aproximar. Aceito sua mão e ele abre um sorriso maior,
fazendo com que seus olhos fiquem mais apertados. Fofo. A Mila se
apaixonaria no instante em que colocasse os olhos nele.
​— Você é minha babá pelo próximo mês? — Pergunto e me levanto com
um sorriso divertido.
​— Benjamin Turner, é um prazer te conhecer. — Ele concorda e coloca
as mãos na alça da mochila. — Prometo que sou uma babá legal e não vou
ficar te enchendo o saco.
​— Combinado — dou risada e vejo-o tirar o que parece ser um mapa do
bolso de fora da sua mochila.
​— Vamos nos ver com frequência, já que estamos matriculados
praticamente nas mesmas aulas, por isso a Reitora falou para eu te
acompanhar… Este é o mapa do Campus, eu tomei liberdade de fazer
algumas anotações pessoais, por exemplo… — se aproxima e aponta para
um pequeno X vermelho perto do prédio principal. — Essa barraquinha de
café vive lotada e o café nem é tão bom, já essa — ele aponta para um
círculo em azul do outro lado — tem o melhor café desta universidade.
​— Eu mal te conheço e você já está salvando a minha vida, Benjamin. —
Olho admirada para suas anotações.
​— Benji, todo mundo me chama assim. — Ele vira o mapa e me mostra
seu sistema de cores. — Fiz uma legenda também, para ser mais fácil de
você entender os meus rabiscos.
​— Você é muito organizado.
​— É isso ou ficar completamente perdido nesta minha cabeça cheia de
afazeres. — Benji coloca a mão na cabeça e suspira. — Então, brasileira,
está gostando de Londres?
​— Não tive muito tempo para explorar ainda, mas o que eu conheci, já
gostei. — Confirmo e guardo seu mapa na ecobag. — Já que você é minha
babá, quais grupos acha que seria legal eu me inscrever?
​— Isso vai depender de você, o único que eu acho prudente se manter
longe é aquele ali. — Benji aponta para uma barraca cheia de skatistas. —
Eles são legais, de verdade, mas o grupo praticamente se resume a andar de
skate, fumar e levar enquadro da polícia.
​— Eles levam a sério o estereótipo?
​— Basicamente. Já se inscreveu em algum?
​— Hum… No clube do livro da Olive Brown e na Ordem. — Falo o
nome do grupo de forma teatral e o vejo revirar os olhos. Talvez essa não
tenha sido uma boa escolha no final das contas. Eu não os conheço e não
pesquisei sobre seus trabalhos a fundo antes de me inscrever, só me deixei
levar por uma causa aparentemente legal e uma boca linda que me deu
vontade de beijar.
​— Eu falei para eles não colocarem esse nome, é ridículo. Ninguém nos
levava a sério antes de abreviarmos, mas sabe como é… — Benji suspira.
​— Democracia! — Respondo e ele confirma. — O Theodore me falou o
mesmo. Você está na Ordem, então?
​— Estou, desde o início — Benji confirma e sorri.
​— Fiz uma boa escolha de grupo ou ainda dá tempo de fugir e fingir que
nada aconteceu? — Cruzo os braços na frente do corpo, tentando soar
descontraída o suficiente para ele não estranhar a curiosidade.
​— Se estiver disposta a trabalhar muito e receber nada por isso, além do
agradecimento das pessoas, fez uma boa escolha! Tudo o que fazemos é de
graça, principalmente quem está no curso de direito. Acho que somos os que
mais trabalham dando consultoria para quem precisa. — Benji aperta os
lábios e dá de ombros, então nota que estou olhando para o grupo, ainda
reunido mais adiante. Olive acena para nós e retribuímos. — Já fez amigos,
vocês brasileiros são rápidos.
​A percepção que as pessoas têm de nós, na maioria das vezes é diferente
da nossa própria. Pela maneira que Benji está conversando comigo tão
tranquilamente, sei que não deve imaginar o quanto estou com medo de não
entender algo que ele diz ou passar vergonha falando algo errado.
​— Eu não diria que fiz amigos ainda só porque me inscrevi no clube do
livro e fui atropelada por um ruivo de 1,90m.
​Benji concorda e não entra mais a fundo no assunto, então aponta para os
prédios mais distantes e começa a andar devagar, para que eu o acompanhe.
​— Nossas aulas são por ali, quer fazer um tour?
​ onfirmo e começo a acompanhá-lo, escutando com atenção tudo o que
C
ele me explica sobre o campus: onde ficam os laboratórios, auditórios, salas
de aula, quais são os prédios de determinadas matérias… É muita
informação, mas tento decorar os pontos mais importantes para conseguir
me virar sozinha. Não quero depender da ajuda dele para me achar nesse
lugar enorme.
​Quando chegamos no prédio em que acontecem a maior parte das aulas
de Direito, me sinto deslocada. A maioria das pessoas andando por ali estão
muito bem vestidas. Nível saia lápis e maquiagem super bem feita. Olho
para a minha roupa disfarçadamente e, por um momento, me arrependo da
minha escolha. Então, me recordo que quando escolhi essa profissão, deixei
claro para mim mesma que não iria me adequar aos padrões impostos,
principalmente se fosse para me deixar desconfortável.
​Minha competência não tem nada a ver com o meu guarda-roupa.
​Estamos caminhando pelo corredor bem iluminado, quando vejo um
quadro de avisos bem grande ao lado da entrada de uma sala e me aproximo.
​— O que é isso?
​— Vagas de estágio, e no outro quadro estão os avisos, mas as
informações realmente importantes você recebe direto no seu e-mail. —
Responde enquanto passo o olho nas vagas disponíveis.
​— Nós podemos nos candidatar?
​— Se você der conta de estudar e trabalhar… — Benji dá de ombros e
apoia as costas na parede, enquanto me espera ler cada anúncio. — Alguns
desses vivem com vagas abertas porque não conseguem manter um
estagiário por tempo suficiente ou porque gostam de fazer uma rotação
frequente de estudantes. Você precisa trabalhar?
​— É o plano, adquirir experiência por aqui… aliviar as contas da minha
mãe no Brasil… A conversão de moedas é triste para os brasileiros. Estar
aqui é muito caro.
​Pego meu celular e tiro fotos dos anúncios que tem um horário de
trabalho que pode ser facilmente encaixado na minha rotina. Os estudos vêm
em primeiro lugar, sempre.
​— Não custa nada tentar, certo?
​— Claro — Benji confirma e cumprimenta um pequeno grupo que passa
por nós. — Quer conhecer a biblioteca?
​Um calor se apossa do meu corpo com o convite, resultado da euforia do
momento que eu tanto aguardei depois de ver muitas imagens das bibliotecas
da cidade. Confirmo sem pensar duas vezes e não preciso de mais nenhuma
palavra para continuar seguindo-o pelos corredores.
Capítulo 4

“Quantas chances desperdicei


Quando o que eu mais queria
Era provar pra todo o mundo
Que eu não precisava provar nada pra ninguém”
Quase Sem Querer - Legião Urbana

​ e eu achei que as aulas fossem começar com calma, me enganei. Logo


S
na primeira semana, o professor Herman nos deu tanto material de leitura e
trabalhos para fazer, que um leve pânico se instalou em meu corpo. Minha
sorte é que, apesar da demanda ser grande, os prazos são para o fim do
semestre. Uma pequena organização de horários bastará para que eu não
fique sobrecarregada com o passar das semanas.
​Já a aula da professora Green foi mais tranquila em relação às leituras
para fazer em casa, mas ela é uma metralhadora durante as aulas. O sotaque
carregado continua me atrapalhando um pouco, apesar de eu conseguir
entender quase toda a aula rápida e dinâmica que ela dá, com perguntas e
testes orais que me obriga a estar sempre preparada. O ritmo é mais intenso
do que estava acostumada no Brasil, e essa adaptação com a língua torna
tudo mais difícil.
​Saio da aula da senhora Green carregando mais livros do que esperava.
Meu plano é passar na biblioteca para devolvê-los, comprar um café e ir para
casa começar todos os trabalhos desta semana. Quanto antes começar,
melhor.
​Estou chegando no enorme prédio em que a biblioteca fica quando vejo
Benji andando ao lado de uma garota alta com um sorriso gentil no rosto. No
instante em que ele me vê, aponta em minha direção e os dois param de
andar para me esperar.
​— Achei que fosse te ver na aula! — Falo para Benji quando estamos
próximos o suficiente.
​— Não consegui estudar os textos que a professora pediu, então preferi
levar uma falta do que errar a resposta de uma pergunta dela. — O sorriso
que ele abre é culpado, enquanto pega alguns dos livros da minha mão, me
ajudando com o peso sem eu precisar pedir.
​— Ainda bem que eu não tenho mais aulas com ela, eu posso até saber a
matéria de cor, mas é só ela me olhar com aquela sobrancelha levantada que
esqueço do meu próprio nome. — A garota fala e passa a mão no cabelo,
arrumando os cachos definidos que estavam caídos em seu rosto. A forma
que Benji olha seus movimentos me faz levantar uma sobrancelha.
​Com certeza tem algo rolando entre os dois, já que ele parece mais bobo
do que o costume.
​— Hoje, ela estava mais boazinha, ninguém saiu da sala com terror nos
olhos. — Arrumo a ecobag no ombro, fingindo não ter notado o olhar de
Benji para ela.
​— Ah, está explicado porque não está chovendo e o sol saiu. Com
certeza um bom dia para todos. Benji me falou sobre você, sou Ava Davies.
​Ela estende a mão e sinto firmeza em seu aperto quando a cumprimento.
Ava é uma jovem mulher linda, alta, com a pele escura e olhos castanhos
hipnotizantes. É impossível não admirá-la.
​— Falou que estou dando trabalho porque vivo me perdendo, mesmo
com o mapa?
​— E que não aguenta mais ter que ser sua babá. — Ava completa
fazendo uma careta que deixa claro que está brincando.
​— Eu não falo isso de você, e você não me dá trabalho nenhum. — Benji
se defende e eu dou um pequeno aperto em seu braço, mostrando que estou
apenas brincando. — Ava também está na Ordem.
​— Tem mais pessoas no grupo do que eu imaginei — respondo quando
voltamos a andar em direção à biblioteca.
​— É, eu tento colocar juízo naquele bando de desmiolados. Se depender
deles, sempre vão fazer a primeira coisa que surgir na cabeça, mesmo que
seja um plano burro.
​— Um grupo de impulsivos, então. — Olho para ela que confirma e,
assim que começamos a subir as escadas, um assobio alto chama nossa
atenção.
​Nos viramos para ver e, alguns metros distante de nós, vejo uma garota
andando em nossa direção.
​— Finalmente! O que vocês brasileiros têm com horários? A Manu vive
atrasada… — Ava sorri revirando os olhos e se vira para nós dois. — Tenho
que ir, não podemos demorar e ainda tenho reunião com a minha conselheira
mais tarde… Te ligo amanhã para falar sobre aquele problema, tá bom?
​Ava finaliza para Benji e, antes mesmo que ele consiga responder, desce
as escadas pulando alguns degraus e indo em direção a garota que lhe dá um
abraço apertado. Benji não tira os olhos dela, claramente queria falar mais
alguma coisa, mas consigo sentir o nervosismo que ele emana e mesmo se
ela tivesse se demorado mais, ele não falaria.
​— Brasileira? — Pergunto para tirar Benji do pequeno transe que ele
entrou.
​— É, a Manu chegou aqui tem um ano, faz pós-graduação com a Ava.
Elas vivem estudando e fazendo trabalhos juntas, mesmo as entregas sendo
individuais. — Benji suspira e volta a subir as escadas comigo o
acompanhando. — Enquanto alguns de nós mal podem esperar para se
verem livres desse lugar, outros não conseguem parar de estudar.
​— Em qual grupo você está?
​— No momento, o que mal pode esperar para terminar e ficar um bom
tempo longe das salas de aula. — Ele abre um pequeno sorriso culpado. — E
você?
​— Sinceramente? Não faço a menor ideia. Por enquanto, só quero saber
de sobreviver o semestre e conseguir uma boa vaga de estágio.
​— Você realmente se inscreveu?
​— Ah, mandei alguns currículos, preenchi formulários… Todos que
estavam naquele mural, mas por enquanto continuo na mesma. — Suspiro
cansada, pela incerteza que me cerca. — Só faz alguns dias, acho que logo
devo receber alguma proposta, certo?
​— Claro. E, caso não receba, sempre tem outras vagas para tentar. —
Benji para na frente da porta da biblioteca e eu pego meus livros de volta.
​— É, vamos ver. — Sorrio e respiro fundo, tentando criar coragem para
começar a busca pelos livros que preciso para os primeiros trabalhos do
professor Herman. Benji está me olhando de uma forma que parece saber
exatamente o que estou pensando, principalmente porque ele também fará o
mesmo em breve. — Me deseje sorte.
​ Boa sorte! Se precisar de qualquer coisa, você sabe como me

encontrar.
​Confirmo e entro na biblioteca, indo direto até o totem para devolução
dos livros. Ali dentro é quente, confortável e, além de enorme, silencioso.
Tem muitas mesas espalhadas por todo o local e alunos com seus fones de
ouvido, cadernos e computadores, todos estudando em silêncio.
​Depois que entrego os livros, gasto alguns bons minutos procurando
pelos outros que preciso. Quando finalmente encontro o último livro, ele está
no alto de uma prateleira. É claro, as coisas comigo não podem ser fáceis e
simples. Sempre precisam ter complicações, mesmo algo bobo como um
livro alto demais para mim.
​Suspiro e olho ao redor, mas estou sozinha no corredor. Estico-me,
ficando na ponta dos pés para tentar pegá-lo, e até tento me pendurar na
prateleira, mas sinto a estante balançar um pouco e fico com medo de causar
um estrago gigante. Dou um pulo, mas na hora que meu pé toca o chão
novamente, a madeira faz um barulho alto, o que me obriga a fazer uma
careta e fechar os olhos como uma criança brincando de estátua. Espero a
bibliotecária aparecer para reclamar comigo, mas alguns bons segundos se
passam sem que qualquer pessoa apareça do meu lado.
​É claro que eu tento novamente, dessa vez, tentando fazer o mínimo de
barulho possível quando volto para o chão. O livro está alto demais, não vou
conseguir, não importa o quanto eu tente.
​— Mas que merda… — Reclamo frustrada, tenho uma altura mediana e
mesmo assim não adiantou de nada.
​Sinto olhos em mim e me viro esperando encontrar algum funcionário
encarando, mas dou de cara com um rapaz sentado à mesa que está no fim
do corredor. Sua sobrancelha está franzida, o cabelo loiro com os fios
compridos está bagunçado por causa do fone grande e sem fio que está
usando. Ele está bem vestido com um suéter escuro, calça jeans preta e um
tênis que parece custar uma fortuna. A jaqueta pendurada no encosto de sua
cadeira deve deixá-lo ainda mais atraente.
​Sua expressão deixa claro o quanto está incomodado comigo,
principalmente quando me julga de cima a baixo, sem disfarçar e sem se
importar com o que vou achar. Coloco as mãos na cintura e o enfrento de
volta, perguntando silenciosamente se ele tem algum problema comigo.
​Sei que estou errada, mas a forma que ele me olha acende um alerta em
minha mente de não deixar barato. Nem que seja com uma simples encarada
de volta. Eu hein, é fácil reclamar, mas se ele está tão incomodado assim,
por que não oferece ajuda? Seria melhor do que me olhar com essa cara de
nojo como se fosse superior.
​Ele levanta a sobrancelha, uma batalha não dita sendo travada entre nós,
e quando cruzo os braços e o imito, recebo uma grande revirada de olhos,
antes de vê-lo voltar a mexer em seu computador.
​— Idiota arrogante — falo em português sem me importar em ser
ouvida e, em seguida, saio do corredor procurando por alguma escada ou
banquinhos que ficam disponíveis para os alunos, mas não encontro nenhum.
​A sorte não está a meu favor, principalmente porque a maioria das
estantes tem escadas embutidas, e logo a que eu preciso não tem. Olho para
o balcão de atendimento, mas está vazio. Procuro por alguma cadeira que eu
possa usar, só que todas as cadeiras por perto estão ocupadas. Quando
encontro uma vazia, carrego-a até o local do livro.
​Paro de andar bruscamente quando volto para o corredor e vejo uma
pilha de livros no chão. O local onde o livro estava na prateleira, agora está
vazio. Coloco a cadeira no chão e vou até a pilha, me agacho para ver os
títulos que estão ali e encontro o que preciso entre os outros.
​Levanto a cabeça e o cara de antes não está mais em sua mesa.
​Reviro os olhos e vou até a cadeira, trazendo-a para perto para poder
devolver os exemplares que não preciso para seus determinados lugares.
​ E então, como está a busca? Já recebeu alguma resposta? — Minha

mãe, Fernanda, pergunta. A câmera está minimizada no canto superior da
minha tela, enquanto faço algumas pesquisas para a aula de Ciência
Políticas.
​Estou exausta depois dessa semana e apesar do apartamento ser pequeno,
eu consegui a proeza de deixar tudo de pernas pro ar nos últimos dias, então
passei o dia faxinando tudo.
​— Ninguém me respondeu, acho que amanhã vou dar uma olhada no
quadro de novo, para ver se tem algumas vagas diferentes. — Respondo sem
dar muita importância, só para tentar mostrar a ela que estou tranquila,
mesmo que por dentro esteja ansiosa para encontrar um emprego logo.
​— Colocou no seu currículo que você é brasileira? Talvez esse seja o
problema, ser estrangeira. — Ela suspira e escuto o som da polícia ao fundo,
o que me deixa imediatamente em alerta e preocupada. — É só o Miguel
jogando videogame. Miguel, abaixa o som!
​— Desculpa, mãe! — Ele grita de volta e o som de sirenes desaparece.
​— É claro que coloquei que sou brasileira, não é algo que posso
esconder.
​— Mas escondendo você, pelo menos, pode garantir uma entrevista. E se
a empresa não gostar de estrangeiros? — Sua pergunta é genuína.
​— Então, eu só vou perder meu tempo indo em uma entrevista, para na
hora descobrirem que sou gringa. Não é como se eu conseguisse esconder
meu sotaque, sabe? — Respondo com obviedade e me arrependo da
grosseria em seguida. Ela só está tentando ajudar. — Prometo que vou
procurar por mais vagas, tá bom? Vai dar tudo certo, pode ficar tranquila.
​— Eu estou tranquila, não sei porque você fica repetindo isso.
​— Talvez seja porque você está tão preocupada com o fato de eu não
encontrar um emprego. Por isso, estou achando que você não está tão
tranquila quanto diz estar.
​Levanto a sobrancelha em desafio, fazendo minha melhor atuação de
alguém despreocupado.
​— Está tudo bem. Para de se preocupar e de ficar se cobrando, está
escutando? Tudo vai se ajeitar e vai acontecer da forma que tem que ser. Até
lá, estamos segurando as pontas para você.
​— Tá bom… — Murmuro menos satisfeita do que deveria aparentar, já
que esse peso no ombro da minha família me incomoda. Eu decidi ir embora
e recomeçar, e eles estão arcando com a maior parte disso. Não é justo. —
Mãe, eu tenho que ir. Tenho que prestar atenção em um trabalho importante,
a gente se fala amanhã?
​— Amanhã tem manifestação de tarde. O prefeito quer mesmo levar
adiante o projeto de aterrar o riozinho para fazer uma estrada. Vou mais cedo
para ajudar a pintar os cartazes e não sei que horas volto, você sabe como
essas coisas funcionam.
​— Não acredito que ele realmente vai comprar essa briga com vocês…
— Dou uma risada desacreditada. Faz tempo que essa discussão acontece na
cidade, já que as chances de alagamento na região vão aumentar se ele seguir
com os planos, sem contar no quanto as famílias que moram ao redor vão
sofrer com isso. — Tente não ser presa dessa vez, eu não estou aí para te
salvar.
​— Pode deixar. Te amo, minha menina.
​— Te amo, boa noite.
​Desligo e respiro fundo quando a Capitu deita na cama ao meu lado,
encostando o corpinho quente no meu. Tenho orgulho de ter sido criada por
minha mãe, mas às vezes ela me irrita. Ela acredita que para tudo tem um
jeito e que não precisamos nos preocupar com nada, hippie demais para
mim. Já eu acho impossível não me preocupar.
​Sei que está tudo nas mãos da Deusa e que apenas seguimos o curso que
ela quer, mas isso não quer dizer que eu não possa ficar preocupada com o
andar da minha vida.
​Ligo a televisão do quarto e coloco Friends para me fazer companhia
enquanto começo o trabalho, que não estou com vontade nenhuma de fazer.
No instante em que abro o documento para escrever, a aba de notificação de
um novo e-mail aparece no canto inferior da tela.

​ ann Empreendimentos
V
Assunto: Você foi selecionada!

​ rregalo os olhos e me sento rápido na cama, assustando Capitu. Clico


A
na notificação antes que a aba suma da tela.
— Desculpa, gatinha. — Falo rápido e Capitu resmunga, deitando
um pouco mais distante de mim.
Quando o e-mail abre, o sorriso que aparece no meu rosto é
inevitável.

“Você foi selecionada para a vaga disponível de assistente pessoal


na Vann Empreendimentos.
Os detalhes da vaga são privados e serão passados pessoalmente em
nossa empresa, caso você tenha interesse em fazer uma entrevista.”

O resto do texto são detalhes de horário, endereço e um link para eu


preencher e confirmar meu interesse na vaga, o que eu faço sem pensar duas
vezes. Assistente pessoal de algum empresário não é bem o que eu estou
procurando, principalmente querendo trabalhar na área de direito, mas não
posso me dar o luxo de escolher. Eu vou, faço a entrevista e se mais para
frente outra vaga melhor aparecer, eu me candidato e mudo de emprego.
Sim, esse é o plano perfeito.

Enviar.
Capítulo 5

“Eu nunca tive medo de qualquer divergência


E eu realmente não me importo se você acha que sou estranha
Eu não vou mudar!”
Bad Reputation - Joan Jett

​ Desculpa, estou atrasada!



​É o que falo para todas as pessoas que passam por mim, enquanto corro
em direção à minha primeira aula do dia.
​Ontem foi lua cheia e eu aproveitei a energia para produzir alguns
sabonetes, pomadas e blends de óleos para usar durante o mês, já que deixei
a maioria das minhas coisas no Brasil e estava com o estoque zerado. Fiquei
até, praticamente, 4 horas da manhã tão imersa no trabalho que, antes, eu
fazia com minha mãe e tias. Elas têm uma pequena loja de produtos naturais,
então me ensinaram a mexer com ervas e suas propriedades quando eu ainda
era criança, e eu me apaixonei.
​Minha mãe não queria que eu fizesse Direito, sempre achou que eu me
daria melhor trabalhando na loja da família. — “É a mesma receita, e mesmo
assim suas pomadas são melhores do que as da sua tia!” — É o que ela
sempre fala antes de entrar numa discussão com a tia Carla sobre ela não
colocar intenções boas o suficiente na produção dela e, por isso, ter um
resultado tão diferente das minhas.
​Mal sabem elas que produzir sempre foi muito intuitivo para mim, então
é dali que vem minha facilidade em aprender e criar.
​Eu realmente amo trabalhar com elas. Seria uma honra seguir com o
negócio que as mulheres da família começaram anos atrás, mas sinto que
poderia ajudar mais se eu usasse minha força para mudar o mundo ao nosso
redor. A melhor opção para isso acontecer é me tornar advogada e lutar
ativamente por dentro do problema.
​O resultado da madrugada acordada é o atraso de hoje, e eu realmente
tenho tentado não fazer isso neste meu novo ciclo. Isso não é bom, mostra
falta de comprometimento e ajuda a reforçar o estereótipo de brasileira sem
responsabilidades que já escutei mais de uma vez só na última semana. Não
vou caber em nenhuma caixinha que me colocarem, esta é minha chance de
melhorar cada versão de mim.
​Minha bolsa praticamente escorrega pelo meu ombro, piso meu coturno
em algumas poças de água que não consigo desviar durante a corrida pelo
campus e minha saia se enrola nas minhas pernas. Desde que eu não caia,
está tudo bem.
​— Presta atenção! — Uma garota loira reclama quando eu, sem querer,
esbarro em seu ombro.
​— Desculpa!
​Respondo sem me virar e sigo focada no prédio em que acontecem as
aulas do professor Herman. Ele é impaciente, sério, exigente e odeia atrasos.
​Entro no prédio ainda correndo e meu coração está tão disparado que não
faço ideia de como estou de pé. Meus passos ecoam no chão de mármore do
prédio e faço mais barulho do que o resto das pessoas ali, que andam
tranquilamente e falam baixo uns com os outros. Diminuo a velocidade um
pouco, mas continuo andando depressa. Ao puxar o ar devagar para os meus
pulmões, sinto que minha bochecha está quente e eu devo estar uma
bagunça.
​Passo a mão no cabelo, tentando arrumar os fios, e ajeito minha camiseta
e a saia, para ficar um pouco mais alinhada. Meu celular começa a tocar,
aumentando o volume do toque gradativamente, enquanto estou desesperada
procurando pelo aparelho perdido dentro da minha bolsa.
​Paro de andar por um momento para encontrá-lo, tentando não me
importar com os olhares que sei que estou recebendo por causa do barulho.
​Merda, merda, merda.
​— Você sabe que não precisa ficar acordando de madrugada para falar
comigo, não sabe? — Atendo em português, praticamente sussurrando,
depois de ver o nome da Mila piscando na tela.
​— Dessa vez não acordei para falar com você, na verdade, eu não fui
dormir ainda. — Ela suspira e eu volto a andar, ficando preocupada. — Tá
ocupada?
​ uero responder que não, quero ficar no corredor e escutar tudo o que
Q
aconteceu para que ela tivesse uma noite de insônia dessas. Paro de andar.
​— Estava quase entrando na aula do professor mais filho da puta de
toda a universidade, mas me dá alguns minutos que eu vou para fora do
prédio para a gente conversar…
​— Não! — Mila fala com a voz chorosa. — Não precisa, só… Quando
você pode conversar?
​— Agora, vamos conversar agora. Não tem problema, vou pedir para
alguém me passar a matéria depois.
​— Não, Nina! Pode ir pra aula, estou falando sério. Acho que uma das
coisas que a gente tem que aprender com essa distância é lidar com nossos
problemas sozinhas.
​A forma que ela fala me fez soltar os ombros e fechar os olhos.
​— Não concordo, a gente não precisa enfrentar o mundo sozinha
quando temos uma a outra. — Ela fica em silêncio e sei que, apesar de ter
me ligado, não vai mais me contar o que está acontecendo. Pelo menos não
agora. Volto a andar pelo corredor, já não tão preocupada com a hora. —
Escuta, eu vou para a aula e você vai tentar cochilar um pouco. Assim que
eu sair da sala vou te ligar e a gente resolve o que quer que esteja
acontecendo, pode ser?
​Antes que ela consiga me responder, um grupo de alunos que estava
encostado na parede anda em direção ao meio do corredor, me fazendo dar
um encontrão neles e parando exatamente no meio do grupo.
​— Desculpa… — falo sem fazer contato visual com qualquer um deles,
mas minha atenção é puxada como um imã para cima.
​O cara da biblioteca.
​Ele está com o cabelo penteado para trás e bem alinhado - não
bagunçado como no outro dia. Usa uma roupa inteira casual, mas arrumada.
Nossos olhos se encontram, muito mais próximos do que no outro dia, e eu
me sinto hipnotizada pelo tom extremamente azul. Lindo.
​Me mede de cima a baixo com a sobrancelha franzida, novamente
irritado, a mesmíssima reação que teve na biblioteca.
​Isso me tira do transe e, sem dar abertura para nenhum deles, passo pelo
grupo, continuando minha caminhada até a sala de aula. A única pessoa que
reconheci com ele era Lauren McGee, uma insuportável que está em
algumas das minhas aulas e vive com o nariz empinado, combinando com a
cara fechada. Ela usa o cabelo preto em um long bob liso e está sempre
usando saltos e roupas perfeitas, exatamente como as mulheres de sucesso da
Forbes usam. Moderna, estilosa e linda. Realmente linda, daquelas de dar
inveja.
​Talvez eu tenha passado a última semana desejando, secretamente,
conseguir me vestir como ela, mas só de me imaginar impecável daquele
jeito todos os dias, já desisto da ideia. Não duraria um dia sequer precisando
me montar inteira para ficar como ela, apesar de uma parte de mim falar:
“Aposenta essas camisetas e o coturno, compra pelo menos um mocassim
pretinho e tratorado. Já é uma boa mudança.”
​É, um mocassim é uma boa ideia. Vou colocar na minha lista de
comprinhas, mas só quando eu tiver um emprego.
​— Ei, tá aí? O que aconteceu? — A voz da Camila me tira do pequeno
devaneio que entrei nos poucos segundos que se passaram.
​— Desculpa, me distraí. Acabei esbarrando em uma galera que acha
que manda no mundo.
​— Lindos como aqueles personagens de série que deveriam ser
adolescentes, mas todos os atores são adultos?
​— Exatamente assim, você se sentiria mal se os visse passando do seu
lado, juro!
​— Só de escutar já estou mal — ela ri triste.
​— Eu te ligo, tá? Te amo.
​— Também te amo.
​E assim que ela responde, desligo e jogo o celular de volta na bolsa. Mila
é um tanto dramática e já passou muitas noites com insônia por problemas
que eram pequenos demais para tanta preocupação, mas essa é a primeira
vez que uma noite dessas acontece comigo longe. Então é claro que eu vou
ficar preocupada até o fim da aula.
​A sala está quase cheia, mas o lugar que tenho sentado desde a primeira
aula está vago, e é exatamente pra ele que eu me dirijo. Terceira cadeira da
última fileira. O lugar perfeito porque é na frente, mas não tão perto do
professor a ponto dele achar que estou puxando seu saco, consigo encostar
na parede e tem uma tomada bem perto de mim.
​Jogo-me na cadeira com um suspiro e olho para o relógio em cima da
porta: ainda faltam 2 minutos.
​Comemoro em silêncio e abro a mochila para pegar meu laptop e me
preparar para a chegada do professor.
​ into que vai demorar um pouco para a adrenalina da correria deixar
S
meu corpo, então não consigo ficar quieta na cadeira. Puxo minha bolsa para
frente e procuro pela minha sinergia de foco, uma combinação de óleos que
fiz com óleo vegetal, alecrim, limão siciliano e cravo. Perfeito para me
acalmar e ter um bom proveito na aula.
​Quando a encontro, passo o roll on no meu pulso e inalo devagar. Eu
amo minha bruxaria. No mesmo instante que o aroma invade meus sentidos,
sinto meu corpo se acalmar e minha mente se abrir. Fecho os olhos e respiro
fundo mais uma vez, a euforia indo embora.
​— Você está no meu lugar.
​Uma voz grossa e impaciente se faz presente perto de mim. Perto até
demais.
​Abro os olhos e vejo um par de tênis parado do meu lado. Ao levantar a
cabeça, encontro o mesmo cara loiro com quem, agora, já esbarrei duas
vezes. Ele carrega uma seriedade tão grande no olhar, evidenciando o quanto
não está aberto para as pessoas e parece extremamente entediado por falar
comigo. Não entendo o porquê, mas a sua indiferença faz com que eu não
consiga desviar dos seus olhos.
​De novo.
​É como se existisse um universo inteiro perdido por baixo da carcaça
dura que veste. Afinal, mesmo me olhando com essa mesma cara de nojo,
ele pegou o livro que eu queria naquele dia. Ele não parece ser alguém que
ajudaria um desconhecido assim, certo? Ou só fez isso para eu ficar quieta e
ir embora logo.
​É, isso é o mais provável de ter acontecido.
​Seu nariz é comprido, mas perfeito para seu rosto anguloso e forte. Sua
sobrancelha é marcada, grossa, e está levantada, me esperando ter alguma
reação ao que foi falado.
​— Você não fala inglês? — Repete, me tirando do devaneio que entrei ao
admirá-lo como uma boba. — Esse. É. O. Meu. Lugar.
​Fala pausadamente, como se eu estivesse com dificuldade de entendê-lo.
​Ok, ele é um belo babaca.
​Pisco algumas vezes, lembrando que tem uma coisa que eu não aceito:
ser diminuída por ser estrangeira. É óbvio que eu o entendo, o que eu estaria
fazendo na sala de aula de graduação em Direito, na Inglaterra, se não
soubesse falar inglês? Tenho dificuldade com o sotaque, mas entendo muito
bem.
​ Estou sentando aqui há um tempo e não te vi na aula em nenhum

outro dia. — Levanto o queixo em desafio, assim como ele está me olhando.
Me esforço para meu inglês sair em bom tom, sem me preocupar com o
sotaque brasileiro que existe na minha fala.
​Seu peito sobe e desce de maneira pesada, como se estivesse
processando o que falei. O que ele espera que eu faça? Simplesmente me
levante para ele sentar?
​— E agora eu estou aqui, e esse é o meu lugar. — Insiste e eu cerro os
olhos.
​É sério? Somos adultos e ele está brigando comigo por um lugar para
sentar? Achei que esse tipo de coisa só acontecesse no Ensino Médio, e
mesmo lá, eu não cedia para um cara qualquer, independentemente da
situação. Principalmente para um me olhando como ele.
​Ele está sendo desrespeitoso só pelo barulho que fiz na biblioteca? Com
certeza tem gente que faz muito pior que eu, foram só alguns pulos! Não é
como se eu tivesse feito um show de rock de 2 horas para atrapalhar a paz
dos outros. Que ridículo.
​— Não vi seu nome aqui, senhor…
​— MacMillan — responde com obviedade, tentando exercer algum tipo
de poder sobre mim.
​— MacMillan. — Abro um pequeno sorriso gentil, sentindo todo o
incômodo que ele causou se apossar do meu corpo. — Sinta-se à vontade
para chegar mais cedo na próxima aula e pegar o “seu” lugar antes de mim.
— Faço aspas no ar e mantenho o contato visual, sem vacilar.
​Ele continua parado ao meu lado, como se não estivesse acreditando que
não me levantei para ele. Como se todo mundo fizesse o que ele manda e,
portanto, eu devesse fazer também.
​Ah, não mesmo.
​Por que todo cara bonito é tão idiota assim? Parece até um pré-requisito:
ser odiável simplesmente porque tem um rosto lindo e olhos claros.
​— Idiota arrogante — resmungo em português quando desvio o olhar e
abro um documento em branco no computador.
​Ignoro sua presença, ainda ao meu lado. Sim, estou fazendo birra e não
me importo.
​— Anthony. — Lauren o chama sem paciência e, de canto de olho, vejo-
o se afastar de mim para sentar com o grupo que estava com ele no corredor.
​ claro que ela seria amiga dele, não sei nem porque fiquei tão surpresa
É
assim, mas a interação foi estranha. Muito estranha. E minha reação…
Respiro fundo, estava decidida a ser mais calma e menos estressada aqui,
então não vou deixá-lo tirar minha paz por algo tão pequeno.
​Sinto olhos em cima de mim e é impossível não me virar para trás.
Anthony está abrindo o laptop, escutando algo que Lauren está lhe falando,
mas me olhando com o que parece ser… Raiva? Frustração? Indignação?
Não consigo decifrar muito bem sua expressão.
​Ótimo, já vi toda a história bem na minha frente: o papai deve ter uma
empresa, ele vai assumir de alguma forma. Então, deve ser um riquinho que
tem tudo o que quer e na hora que quer. Uma Chiara da vida real.
​Isso explica a cara feia por um mísero lugar em uma sala de aula, porque
isso não é realmente sobre a mesa, e sim sobre o poder que ele tem sobre as
pessoas. Algo que não tem e que nunca terá sobre mim.
​Que nenhum homem terá.
​— Espero que tenham lido o material que deixei para o fim de semana.
— A voz tediosa do professor Herman ecoa na sala e eu me viro para a
frente. — Vamos começar.
Capítulo 6

“Eu peguei você olhando para mim e eu estava pensando claramente


Agora eu sou como uma abelha e eu estou procurando pelo mel”
Ready or Not - Bridgit Mendler

​ uando a aula finalmente chega ao fim, estou com a mente esgotada e a


Q
barriga roncando de fome. Só consigo pensar na lanchonete que Benji
marcou em meu mapa com “Ótimos lanches vegetarianos”. Minha boca
chega a salivar só de imaginar, e meu bolso fica feliz já que a comida no
campus é mais barata do que na cidade.
​Guardo meu material sem prestar atenção nos outros alunos, só quero
sair dessa sala logo e respirar ar puro, ver claridade e não pensar em matéria
por algumas horas. Inconscientemente, olho para trás, mas o tal do
MacMillan não está mais ali, nem a Lauren.
​Pego meu celular e vejo duas notificações, a primeira de Mila, falando
que estava melhor e que eu não precisava ligar para ela durante o dia, que
quando chegasse em casa iria me chamar. Eu suspeitava que essa distância
seria difícil, mas na prática é ainda pior. Se eu estivesse no Brasil, ela teria
dormido na minha cama para não ficar sozinha, conversaríamos durante o
café da manhã e eu enviaria algum doce para o seu trabalho, só para ela ficar
bem.
​É isso, daqui algumas horas vou fazer exatamente isso.
​A outra notificação é da Olive, provavelmente algo sobre o clube de
leitura.

Olive Brown (11:40) diz:


Bom dia, está ocupada no almoço?
A Ordem vai se encontrar na B&B, aparece lá para conhecer o resto do
pessoal!

Marina Dias (11:52) diz:


Topo, estou a caminho.

​ igito andando e, assim que envio, guardo o celular, coloco a mão livre
D
na alça da minha bolsa e saio da sala com um novo destino em mente. Passo
por MacMillan e seu pequeno grupo quando estou no corredor, eles estão
conversando baixo, perto do quadro de avisos, e ignoram minha presença.
​Ou eu acho que ignoram, porque é impossível não virar o rosto para ele
e, quando nosso olhar se encontra, vejo sua cabeça virar levemente de lado,
como se estivesse me estudando.
​Por que parece que ele está constipado o tempo inteiro?
​Antes que eu possa processar o que está acontecendo, ou imitar seus
movimentos, já estou longe o suficiente e olho para onde estou indo. Faço
um lembrete mental para me manter o mais longe possível dele,
principalmente depois da forma como falou comigo na sala.
​Assim que saio do prédio, o frescor do dia encontra meu rosto e o vento
bagunça meu cabelo. Minha saia voa para trás e preciso puxar meu casaco
no corpo para me proteger. Nem está frio de verdade e eu já estou tendo
problemas com a temperatura. O céu está sem nuvens e as poças de chuva da
manhã estão praticamente secas, ótimo.
​Preciso descobrir onde fica o bar em que todos estão se reunindo e tento
me encontrar sem o mapa que Benji me deu, porque eu o esqueci no balcão
da cozinha essa manhã e o único restaurante que decorei é o vegetariano. O
campus é grande demais, os prédios parecem todos iguais e as saídas
também. Semana passada, saí pelo lado errado e tive que andar muito até
chegar no metrô, o que foi péssimo e exaustivo, principalmente carregando a
quantidade de livros que tinha na minha bolsa.
​Olho ao redor, decidindo se peço ajuda para alguém, mas vejo Theodore
andando sozinho, indo para o lado oposto ao que eu estava pensando em ir.
Sorrio e corro até ele, porque sei que vai me ajudar.
​— Me diz que também está indo para a Beer&Books!? — Apareço do
seu lado um pouco esbaforida pela corridinha e puxo a bolsa, que está
escorregando pelo meu ombro.
​— Estou indo para a B&B! — Theodore sorri e levanta uma
sobrancelha, desacelerando o passo. Ele estende a mão para a minha ecobag
e a tira do meu ombro, aliviando o peso que estou segurando. — Por que
você está carregando isso tudo?
​— Não sei se você sabe, mas aqui é uma universidade… Achei que faria
sentido estudar um pouco. — Brinco.
​— Ah, é mesmo? — Ele finge estar surpreso e olha ao nosso redor, como
se estivesse finalmente se situando de onde está. — Achei que fosse um
lugar para irmos em festas, beijar pessoas e nos divertir… Tá explicado
porque nunca consigo sair daqui.
​— É, acho que, em algum momento, você vai precisar carregar alguns
livros. — Finjo decepção e ele aponta para minha ecobag.
​— Que bom que já estou fazendo isso, então.
​Reviro os olhos e vejo seu sorriso se alargar. Ele é simpático e amigável.
Nos encontramos apenas algumas vezes na última semana, de forma muito
rápida, mas em todas ele foi exatamente assim: gentil e engraçado. Gosto de
gente como ele.
​— Me conte, gringa, como está sendo seu primeiro mês de aula?
​— Além do fato de me perder se não estiver com o mapa que o Benji
fez, ótima. E a sua?
​— Péssima. — Faz uma careta divertida e revira os olhos. — O último
ano é o pior de todos. O mais difícil, cheio de trabalhos, leituras, projetos…
Mal começamos e já estou pensando seriamente em desistir.
​— Achei que você só fosse para festas. — Provoco e ele me repreende
com o olhar por um momento, o que me faz apertar os lábios para esconder o
sorriso. — Brincadeira. Sinto muito?
​— Tudo bem, vendo pelo lado bom: é o último ano. Logo, eu nunca mais
precisarei pisar aqui.
​— Ao mesmo tempo que quero esse momento logo, tenho medo de
quando for minha vez. Nunca mais terei a experiência de começar uma vida
nova aqui, de novo. Mas estou animada para terminar o curso e arranjar um
emprego bom. Em Londres, de preferência.
​— Não gosta do Brasil?
​— Amo, mas já sentiu que seu lugar não era aquele e que precisava
mudar as coisas um pouco?
​— Na verdade, não. — Theo sorri divertido, o que me faz rir por sua
sinceridade.
​— É, bem… Eu sinto. É como se existisse uma voz falando que tem algo
me esperando longe de casa, e desde que pisei aqui, senti que estava certa.
​ Não me diga que você fala com fantasmas! — Theo para de andar de

repente. — Devo chamar os Ghostbusters?
​— Eu não falo com fantasmas! — Dou risada e puxo seu braço para
continuar andando. — É só uma sensação, meu sexto sentido. Estou falando
sério!
​— Estou apenas tirando uma com você. — Theo volta a andar e
cumprimenta algumas pessoas que passam por nós.
​Olho para os lados e tento entender onde estamos. Vejo a estação de
metro à nossa esquerda e começamos a andar para a direita. Ao redor da
universidade tem muitos estudantes, tantos que é difícil olhar para alguém
que não esteja carregando um monte de livros debaixo do braço, ou uma
mochila grande nas costas.
​— Você está saindo com alguém? — Theo pergunta de repente, me
tirando do devaneio geográfico que entrei.
​— Eu mal cheguei na cidade, como estaria saindo com alguém? —
Pergunto desconfiada. Ele não vai me chamar para sair, certo? Porque ele é
lindo, um fofo e me faz rir, mas se tem um Cooper que me chamou atenção,
esse cara é o Charlie. Não posso sair com o primo dele se quiser, pelo
menos, tentar dar uns beijos nele.
​Ah, pronto. A Marina safada que habita em mim está dando as caras e eu
sempre faço a mesma coisa: falo que vou fazer algo focada, mas é só
conhecer alguém bonitinho que sorri para mim e já fico derretida. Para a
minha sorte, da mesma forma que eu me “apaixono” rápido, eu
“desapaixono”.
​— Não sei, e se você já conhece alguém daqui e veio ficar perto dele?
Ou conheceu nos primeiros dias? — Theo levanta a sobrancelha.
​— Não tem ninguém. Sou uma mulher livre e focada nos estudos.
​— Focada, sei.
​— É sério, para de rir. — Sorrio e mordo os lábios, sou curiosa demais,
vou ter que perguntar e cortar o mal pela raiz de uma vez. — Por que quer
saber?
​— É só uma curiosidade inocente.
​— Não tem nada de inocente no seu olhar. — Sei que ele está
escondendo algo, porém não fala, nem ao menos ensaia falar, simplesmente
dá de ombros e continua andando.
​— Chegamos! — Theo aponta com a cabeça para o bar do outro lado da
rua e atravessamos juntos.
​ fachada é rústica, para não dizer largada às traças. É escura e com a
A
aparência quebrada e velha. Já o interior é arrumado e aconchegante, com
mesas altas e baixas, sofás ovais e tem rock antigo tocando baixo em uma
jukebox. Atravesso o salão seguindo Theodore, até chegarmos na mesa do
fundo em que Benji, Olive e Charlie estão sentados ao lado de um cara
moreno de cabelo bagunçado.
​— Vocês não vão acreditar em quem eu encontrei perdida, faminta e
desesperada, vagando pelo campus sem rumo. — Theodore dramatiza
teatralmente, então faz um aceno exagerado, me revelando atrás dele.
​— Que exagero! Eu não estou faminta e não estava perdida. — Retruco
sorrindo e ele levanta uma sobrancelha em desafio. — Tá, só um pouco.
Tenho certeza que eu ia conseguir me virar e chegar aqui sozinha em algum
momento.
​— Você estava indo para o outro lado! — Theo nega e revira os olhos.
​— Cadê o mapa que eu te dei? — Benji pergunta e me dá oi com o olhar,
mas Charlie, me encarando ao seu lado, chama minha atenção.
​— Esqueci em casa, acordei atrasada. — Tiro o casaco e o coloco na
cadeira vazia em que Theo colocou minha ecobag.
​— Só faltava vocês — Olive sorri gentilmente e dá um gole em sua
bebida, que parece ser refrigerante. Então, arregala os olhos, se lembrando
de algo. — Ah, Marina! Você ainda não conhece o Thomas, ele é o fundador
do grupo.
​— Bem-vinda! — O cara estende a mão por cima da mesa para apertar a
minha e eu sorrio. Todos parecem ter a mesma idade, vagando em algum
lugar entre os 21 e 25 anos, e Thomas parece ser tão novo quanto eu.
​— Obrigada! Espero conseguir ajudar de alguma forma — sorrio e me
sento. — Oi, Charlie.
​— Dias — o ruivo responde junto com uma piscadela. Sua voz é
convencida, mas não de um jeito arrogante e sim seguro de si.
​Sentado de forma despojada, Charlie beberica uma cerveja que está
quase no fim, completamente confortável no ambiente. O moletom rosa
claro que está usando combina com ele e noto que está trocando olhares com
Theodore.
​— Cadê o resto do pessoal? — Theo pergunta olhando para os lugares
vazios da mesa e sentando ao meu lado. Tento manter meu olhar em Olive,
mas não consigo evitar olhar para Charlie mais uma vez.
​ Foram pegar mais bebidas, o Sebastian falou que não vai ficar

servindo a gente hoje, porque está passando um jogo na televisão. — Olive
responde como se aquilo fosse normal, enquanto procura algo em sua
mochila.
​— Isso quer dizer que, se eu quiser pedir algo, tenho que ir no balcão?
— Pergunto curiosa.
​— Se não quiser passar fome e sede, sim. — Olive responde sem
levantar o olhar da bolsa.
​— Então, se vocês me dão licença, já volto — começo a me levantar e
Charlie vira o resto de sua cerveja em um só gole.
​— Eu te acompanho, Dias.
​Ele abre um sorriso lindo. O mesmo do primeiro dia. Merda, não sorria
para mim assim, porque não vou conseguir me controlar e vou flertar com
você. Para!
​Não respondo, mas me viro em direção ao balcão e vou até o homem de
meia idade que está ali, prestando atenção na televisão presa no alto da
parede. Um cara e a mesma garota que vi brincando com Charlie, no
primeiro dia, passam por nós, indo em direção a nossa mesa. Mais gente para
conhecer hoje. Ok, eu dou conta.
​— Será que tem algum cardápio? — Procuro nas mesas ao redor.
​— Tem em algum lugar por… — ele se estica por cima do balcão e
começa a procurar do lado de dentro do bar, com intimidade o suficiente
para fazer isso, o que só pode significar que eles vão ali com frequência. —
Aqui!
​Charlie estende o cardápio e eu o aceito com um pequeno sorriso,
olhando diretamente para os pratos disponíveis. Se eu evitar olhar para ele,
talvez consiga fugir da vontade de flertar. Infelizmente, minha visão
periférica é muito boa e consigo ver quando ele apoia as costas no balcão e
vira de frente para mim. Suas pernas e braços cruzados.
​— O que você está fazendo? — Dou uma pequena olhada em sua
direção e logo volto a atenção para o cardápio.
​— Esperando você decidir o que quer para chamar o Sebastian e fazer
nosso pedido, por quê? O que achou que eu estava fazendo? — Apesar de
sua voz ser tão inocente quanto a de um anjo, quando encontro seu olhar,
vejo que não tem inocência nenhuma ali. Charlie parece um menino
travesso, que tem plena noção do que está aprontando e não tem vergonha
nenhuma disso.
​ erro meus olhos em desafio e ele sorri ainda mais. Merda, para de ser
C
lindo, por favor!
​— Achei que estava tentando flertar comigo — as palavras saem da
minha boca sem pensar e ele levanta a sobrancelha, surpreso com minha
franqueza.
​— Ah, temos uma senhora convencida aqui.
​— Não sou convencida, mas você não é nem um pouco sutil. Encara
demais e esse olhar… tá na cara que está querendo alguma coisa. —
Aproximo-me do balcão, colocando o cardápio do seu lado, e volto a ler os
pratos.
​— Bom, eu estou aqui porque quero uma cerveja, só isso. Bem gelada,
de preferência. — Charlie vira o corpo de lado, apoiando o cotovelo no
balcão para me olhar. — E estou sendo gentil por te esperar.
​Levanto a cabeça para olhá-lo porque, mesmo com o corpo da forma que
está, ele é alguns bons centímetros mais alto do que eu. Abro a boca
pensando em falar algo, mas a fecho em seguida. Ele estuda minhas
expressões e abre um pequeno sorriso de lado quando me vê revirar os olhos
e sorrir também.
​Consigo reconhecer todos os sinais que ele está me mandando, porque eu
faço igual quando estou jogando. Maldito.
​A forma como seu corpo está virado em minha direção, o olhar atrevido,
o jeito que umedece os lábios e sorri, me obrigando a olhar para ele e segurar
a vontade que estou de beijá-lo. Porque sim, ele não fez praticamente nada e
eu estou imaginando como seria beijar sua boca. Eu e meu fraco por ruivos
cheios de sardinhas. Isso é culpa da minha prima mais velha, que era
apaixonada pelo Príncipe Harry e fazia lavagem cerebral em mim para eu
gostar dele também.
​Não estou reclamando.
​Nunca saio por baixo em um joguinho desses, então aproveito para
deixar meu olhar em seus lábios por alguns segundos antes de encontrar o
castanho de seus olhos, inclinando um pouco o tronco na sua direção.
Charlie se aproxima também, só um pouco, o olhar na minha boca. Ele até
pode carregar toda essa marra, mas é fácil de lidar, exatamente como eu
gosto.
​— Já sei o que vou pedir.
​Me afasto, deixando-o só com a sombra da expectativa do momento em
que surgiu entre nós e Charlie solta uma pequena risada nasalada, quando
levanta o braço e chama a atenção do homem do outro lado do balcão.
​— Charlie, o que manda? — O homem se aproxima alternando o olhar
entre nós dois e a televisão.
​— Mais uma cerveja para mim e um hambúrguer. Para a senhorita
Dias… — Charlie me dá a deixa para falar o que quero.
​— Um hambúrguer com cogumelos, mas sem a carne, por favor. Sou
vegetariana. — Dou ênfase que não como carne e o homem concorda,
finalmente prestando atenção e anotando o pedido. — E uma cerveja
também.
​— É para já, pode deixar que levo na mesa para vocês. — O homem dá
um tapinha no balcão e começa a se afastar em direção à cozinha, não sem
antes parar na porta e retrucar de algum passe errado que viu acontecer na
televisão.
​— Vegetariana? — Charlie pergunta curioso.
​— É, não gosto muito de comer bicho morto — falo com simplicidade.
​— Justo, mas agora vou ficar com peso na consciência de comer um boi
na sua frente.
​— Estou acostumada a ver pessoas sem coração comendo bichos
indefesos, não se preocupe. É só mais um dia comum na minha vida. —
Brinco, arrancando-lhe um sorriso.
​— Coloca o dela na minha conta, Sebastian! — Charlie fala para a
pequena janela que dá visão à cozinha e Sebastian concorda, revirando os
olhos antes de sumir de novo. Como se conhecesse todos os truques do
ruivo.
​— O que? — Franzo a sobrancelha.
​— O que? — Charlie me imita, se fazendo de desentendido e
umedecendo os lábios, antes de voltar a andar para a mesa.
​— Você não pode pagar meu almoço. — Tento olhar para seu rosto.
​— Por que não? — Charlie dá de ombros e vira um pouco o corpo para
mim, me olhando de canto de olho. — Nunca reclamaram antes.
​— Ah, então quer dizer que você paga o almoço de todo mundo? —
Levanto a sobrancelha e ele para de andar, me fazendo quase esbarrar em
suas costas.
​— Só de quem estou interessado.
​E assim, Charlie Cooper consegue me deixar sem palavras, o que é muito
difícil de se fazer. Ele volta a andar e eu preciso de alguns segundos para
voltar a segui-lo de volta para a mesa.
​ Só sete moradores confirmaram que vão à reunião. — Thomas,

desacreditado, encara seu copo.
​— Talvez se a gente chegar mais cedo, podemos nos separar pelo bairro
e convencer mais pessoas a participarem — a garota morena, que ainda não
conheço fala, olhando atentamente para Thomas, que concorda.
​— Podemos tentar, mas eles estão relutantes… — Thomas aperta os
lábios e respira fundo, enquanto me sento.
​— Se o trabalho fosse conquistar as crianças seria fácil. Agora,
conquistar aqueles velhos… — Charlie dá a volta na mesa e senta em seu
lugar. — Já conheceram a Dias?
​— A única inscrita oficial no grupo esse ano. Sou Emma Cooper, prazer.
​— Outro Cooper? Vocês são quantos? — Dou risada.
​— Nem me fale, nossos pais queriam ter uma casa cheia de crianças,
agora tem uma casa cheia de adultos. — Emma aponta para o garoto ao seu
lado. — Esse é Reginald Cooper.
​— Reggie! — O garoto corrige incomodado e passa o braço pelo ombro
de Olive. Ok, eles parecem estar juntos. — Você tem que parar de me
chamar assim.
​— É o seu nome, deixa a Emma em paz! — Theo completa e dá um
tapinha na cabeça de Reggie.
​— Tá, me expliquem a árvore genealógica, porque eu me perdi. —
Sorrio, prestando atenção nos Cooper.
​— Emma é minha irmã, já Theodore e Reginald são irmãos, nossos
primos. — Charlie explica antes dos outros e dá ênfase no nome de Reggie,
que bufa alto.
​— Certo, agora tudo faz sentido. — Passo o olhar pelo grupo. — Fui a
única inscrita este ano?
​— Tivemos outros interessados, mas desistiram por conta de alguns
rumores… — Thomas fala cautelosamente, como se estivesse com medo da
minha reação. — Não somos só nós, é claro. Temos outros membros, mas
geralmente só nos reunimos todos de uma vez quando o evento é importante.
​— Somos 13? — Benji pergunta.
​— 14, se contarmos com a Ava. — Olive o corrige. — Ela não participa
ativamente dos atos, mas salva nossa pele sempre que precisamos.
​— Que rumores são esses? — Pergunto para Thomas, curiosa para
entender sobre o que ele estava falando.
​ Ah, nada demais. Na verdade, não são bem rumores, são fatos de

coisas que aconteceram no último ano. — Olive fala por Thomas com
aqueles olhos doces e carinhosos. Encaro-a, esperando por respostas, e ela
suspira, se preparando para falar. — A gente tem uma pequena tendência de
acabar, hum… Fazendo algumas breves visitas à polícia quando fazemos
nosso trabalho. Então, fica em nosso registro, e… Enfim, você sabe o
problema disso, você faz Direito, não faz?
​— Você está me falando que são presos às vezes? — Levanto a
sobrancelha e o grupo confirma, todos cautelosos, o que me faz rir. Eles
ficam confusos e alternam seus olhares. — Nada novo para mim, então.
Minha mãe é mestre em ser presa por seus protestos. Com certeza ser preso
aqui deve ser melhor do que no Brasil, mas se vocês puderem me ajudar a
evitar essa aventura por causa do meu visto, eu agradeço.
​Charlie umedece os lábios e concorda, no instante em que nossas bebidas
e hambúrgueres chegam na mesa. Sebastian os coloca na nossa frente e se
afasta assim que agradecemos.
​— Não tem medo? — Benji franze a sobrancelha.
​— É claro que tenho, mas tem algumas coisas pelas quais valem a pena
se arriscar. Dou de ombros e pego alguns guardanapos à minha frente.
​— Ótimo, agora que estamos esclarecidos, vamos começar oficialmente
esta reunião! — Thomas volta a falar. — Nos encontramos aqui na sexta-
feira que vem depois do almoço, combinado?
​Olho confusa para eles e Theo se aproxima, falando com a voz baixa
enquanto os outros engatam em uma conversa que eu não consegui entender
o contexto muito bem.
​— Vamos nos reunir com os moradores de LittleWin, porque uma
empresa grande está sondando o bairro e comprando tudo ao redor. Lembra
que te contamos sobre, quando você se inscreveu no grupo? — Ele me olha
e rouba uma batata frita do meu prato. — Os terrenos vão ser um pouco mais
difíceis de serem comprados, porque a maioria está regularizada, mas o
Centro Educacional não, e estamos recebendo poucas doações já que
estamos com poucos benfeitores…
​— Esse Centro é importante?
​— Muito, nós temos professores de reforço para os adolescentes, creche
para as crianças com mães que precisam de ajuda extra para trabalhar,
atividades físicas para todas as idades… Fazemos muita coisa boa para a
comunidade, mas o problema é que o prédio precisa de muitas reformas…
Tem empresas comprando vários estabelecimentos ao redor e já os vi
rondando o Centro. Devem estar de olho no casarão, já que a prefeitura não
quer fazer as reformas necessárias e está difícil fazermos sozinhos. Então, se
perdermos o centro, as famílias vão perder uma ajuda gigantesca. E eles não
conseguem lutar por isso sozinhos.
​Concordo e sinto meu coração se esquentar. É uma situação horrível,
mas exatamente o tipo de trabalho que eu amo fazer, que faz meu corpo
vibrar por estar ajudando pessoas que realmente precisam de ajuda.
​— Que bom que estamos aqui, então.
Capítulo 7

“E se você está cansada de ser conhecida por quem você conhece


Você sabe, você sempre me conhecerá”
Dorothea - Taylor Swift

Sexta-feira, aula do professor Herman. A última semana passou


rápido demais, principalmente porque meus últimos dias foram com a cara
enfiada nos livros, e não na primeira leitura do clube da Olive, como eu
gostaria. Começamos a ler Me Chame Pelo Seu Nome e, apesar de eu estar
gostando do início, preciso adiantar o máximo de trabalhos que eu conseguir
no momento, já que estou esperançosa em conseguir a vaga de assistente na
Vann Empreendimentos. E a entrevista acontecerá amanhã.
Se eu for contratada, vou ter menos tempo disponível para estudar,
então me manter completamente focada nas aulas e adiantar o que posso é
uma boa estratégia no momento, sendo contratada ou não.
Faço o caminho diário, que já virou automático para mim: pego o
metrô, caminho pelas ruas perto do campus, tento acertar qual é o prédio que
minhas aulas acontecem naquele dia e paro nos carrinhos de café, que já
viraram meus favoritos. O mapa de Benji continua em minha bolsa, mas não
preciso mais usá-lo com tanta frequência.
Depois de uma semana inteira sem encontrar com o MacMillan, fico
surpresa ao entrar na sala de aula e me deparar com ele sentado no meu
lugar. No instante em que me vê, abre um sorriso convencido e vitorioso,
dizendo silenciosamente “Eu ganhei”. Minha vontade é tirá-lo daquela
cadeira por sua atitude, mas eu não faria o mesmo que ele fez, então só
reviro os olhos e me sento o mais longe possível.
É claro que, durante toda a aula, consigo sentir sua atitude debochada
emanando em minha direção, principalmente quando nossos olhos se
encontram de tempos em tempos. Ou só estou muito incomodada porque ele
se sentou ali de propósito. É claro que foi para me irritar.
Passo o resto da aula tentando focar. Meu computador está com o
arquivo do livro e o programa que uso para fazer as anotações trava de tão
rápido que estou digitando o que o professor fala. Minha cabeça até lateja de
tanta informação e, quando noto que ele está diminuindo o ritmo da aula,
uma leve onda de alívio envolve meu corpo.
Só consigo torcer para que ele não passe mais trabalhos, porque não
vou poder fazer nada hoje de tarde, já que estarei em LittleWin com a
Ordem. Mas, como a vida geralmente não acontece do jeito que a gente quer,
é claro que o professor Herman passa três relatórios para entregarmos na
segunda-feira. Sádico, talvez. É preciso ser uma máquina para conseguir
acompanhar tudo o que ele nos pede para fazer.
— Por hoje é só, espero que estejam preparados para a aula de
segunda — o professor fala e todos começam a guardar seus materiais e sair
da sala, inclusive eu.
—Ei, você me espera um pouquinho? Preciso falar com o ditador. —
Benji, que sentou atrás de mim, pergunta cansado.
— Te espero no corredor, pode ser? Tenho que ligar para uma pessoa.
Andamos juntos até o local em que ele vira para a direita, em direção
a mesa do professor, e eu viro para a esquerda, indo até a porta da sala. Pego
meu celular e busco o número da Mila, combinamos de adiantar nossa
ligação de hoje, já que não conseguiremos conversar mais tarde.
O telefone chama algumas vezes e, quando ela finalmente atende, um
barulho alto me faz afastar o celular do ouvido um pouco.
— Oi, estou aqui! — Atende.
— É vídeo, Mila! Tira essa câmera da cara! — Brigo com ela e a
vejo colocar o celular na frente do rosto.
Mila está no quarto, que está uma grande zona. Pior ainda do que
quando eu comecei a bagunçar, ou melhor, arrumar o meu para poder me
mudar. Isso não pode significar algo bom.
— O que aconteceu?
— Nada aconteceu, está tudo incrivelmente ótimo. — Responde sem
me olhar, jogando várias peças de roupa do armário em cima da cama. —
Minha vida é ótima, eu tenho tudo sob controle e não preciso de ninguém.
— Ei, ei, ei! — Chamo sua atenção de forma preocupada, porque sei
que ela está chorando. Paro de andar e vou para o canto do corredor, não me
preocupo em diminuir o tom de voz já que ninguém ali fala português. — O
que ele fez agora?
Toda vez que ela faz uma faxina no quarto dessa forma é por causa
do Gabriel. Nunca é só uma vontade repentina de arrumar tudo. Ele é o ex
que mexe com ela até hoje e, como se não bastasse todo o relacionamento
conturbado que eles tiveram na adolescência, ele insiste em aparecer de
tempos em tempos para lembrá-la de que existe. Seja com uma mensagem,
dando like em um story, ou até mesmo aparecendo casualmente no café que
ela trabalha… Acompanhado de alguma garota, é claro.
Camila para de jogar as roupas na cama e fica estática por um
segundo, então se vira e aproxima de mim - ou do celular - e se agacha para
ficar com o rosto na altura da câmera, que está apoiada na escrivaninha.
— Eu vi um post dele no Instagram… — Seu nariz está vermelho,
mas não está em prantos, como achei que estaria.
— Ele não estava bloqueado, Camila? — Suspiro cansada por esse
ciclo que nunca termina.
— Estava, mas eu sonhei com ele essa noite e fiquei curiosa… —
Camila dá de ombros e abaixa o olhar. Vejo uma lágrima solitária escorrer
por sua bochecha.
— Você e esses benditos sonhos… Você sabe que eles são gatilhos
para você ir atrás e se decepcionar. O que eu faço com você? Tá, e o que
tinha nesse post? Ele estava bonito do lado da namorada nova?
— Não, quer dizer, sim, mas… Ela não é mais namorada. — Camila
me olha e vejo seu lábio tremer. — Eles vão se casar.
Fico chocada, sim. Não imaginava, nem em um milhão de anos. Uma
das coisas que ele sempre falou para a Mila, quando ficavam no vai e volta,
é que nunca iria se casar, que essa vida não era para ele e que ela tinha que
entender. Gabriel colocava todas as expectativas dela no céu, para então
jogar um balde de água fria em sua cabeça e se afastar de novo.
— Acho que no final das contas o grande problema era que ele não
gostava tanto assim de mim.
— Mila, eu sinto muito… — Aperto os lábios, realmente triste por ela
estar se sentindo assim. — Que merda, eu queria estar aí…
— A gente sabia que, em algum momento, isso aconteceria. É tipo o
que aconteceu com o Teddy e a Jo, não é? Ela sempre falou que nunca se
apaixonaria e ele fala que vai sim, mas que não será por ele. Ela se casa
com o Friedrich no final.
— Ou com a Summer e o Tom… Que otário, sério! — Encosto na
parede, ao lado do painel de avisos, negando com a cabeça. — Escuta, eu já
te falei isso um milhão de vezes, e vou falar outras milhões: você não
precisa dele. Nunca precisou. Ele é um folgado, que não tem nenhuma
responsabilidade emocional com os outros. Eu sei que você está triste, mas
eu sinto pena dessa garota. Ela não sabe da enorme bagunça que está se
metendo.
No mesmo instante que termino de falar, MacMillan passa por mim e
para na frente do quadro de avisos, lendo o que está ali e me ignorando. Eu
olho para ele de canto de olho e me viro de costas, irritada e querendo evitar
ficar qualquer momento ao seu lado.
— Você é uma das mulheres mais incríveis que eu já conheci na vida,
se for para chorar por homem, que seja por algum fictício perfeito e que
nunca vai te magoar! Está me escutando?
— Eu não sou incrível, eu sou… Medíocre. — Mila murmura, me
olhando com timidez.
— O que é isso? Virou carro de funkeiro para ficar se rebaixando
assim? Não tem nada de medíocre em você, nem ao menos um fio de cabelo.
— Respondo imediatamente e sinto alguém se aproximando das minhas
costas, o que me faz olhar para trás e encontrar MacMillan próximo demais.
— Ah, claro, ele tem que ficar perto de mim.
— Do que você está falando? — Mila enxuga a lágrima e franze a
sobrancelha, ignorando minha tentativa de levantar sua autoestima um
pouco.
— Lembra que eu te contei do cara idiota e arrogante que brigou
comigo por causa de um lugar na sala? — Sei o que ela está fazendo ao
mudar de assunto, então só aceito. Ela não quer mais falar sobre o Gabriel, e
está tudo bem.
— O gostoso?
— Ele mesmo! Você acredita que ele realmente chegou mais cedo
hoje e ainda ficou me olhando com cara de deboche?
— Sem querer defender, mas não foi exatamente isso que você
mandou ele fazer? — Mila pergunta com um pouco de medo na voz e eu
fico séria imediatamente.
— É um lugar na sala de aula, eu não achei que ele realmente fosse
fazer isso. Nós somos o que? Crianças?
— Talvez ele tenha feito exatamente para te irritar, já que, te
conhecendo, tenho certeza que levantou o nariz e foi tão arrogante quanto
ele.
— Eu não fui arrogante. — Tento me defender e ela me desafia com
o olhar. — Tá, só um pouquinho, mas ele mereceu. E agora ele está atrás de
mim, olhando o mural de avisos, ou próximo o suficiente só para me irritar.
— Vira a câmera um pouco para eu dar uma olhadinha nele, vai. —
Camila pede interessada e dá uma fungada. Pelo menos estou distraindo-a.
Viro levemente o corpo e tento encaixar MacMillan na imagem do
fundo da ligação, de uma forma que não pareça que estou filmando ele.
— Caramba, ele é gato mesmo!
— Eu sei, e não dá para ver direito, mas tem os olhos mais azuis que
eu já vi. Lindo e um poço de arrogância.
— Todos os gostosos são assim. — Mila concorda e eu volto a ficar
de costas, parando de filmar ele disfarçadamente.
​Olho para ele quando encosto na parede de novo e, como se minha
movimentação tivesse chamado sua atenção, nossos olhares se encontram e,
junto com um mínimo sorriso no rosto, ele se despede silenciosamente.
​O que foi isso?
​— Ele acabou de se despedir de mim. Acho que já entendeu que só sua
presença já me irrita e agora quer se divertir assim. — Reviro os olhos e
suspiro. — Escuta, eu estou falando sério, tá bom? Você não precisa de
ninguém e o Gabriel nunca trouxe nada de bom para você além de choro,
ansiedade…
​— Nós vivemos muitas coisas boas!
— Sim, mas não sei o que acontece com essa sua cabecinha que
parece se esquecer que a quantidade de coisas ruins é muito maior do que a
de coisas boas. A matemática não fecha, tinha que ser o mínimo ruim, não o
contrário. — Dou-lhe um último puxão de orelha no instante em que Benji
aparece na minha frente.
— Está pronta?
— Claro, só estava falando com minha melhor amiga. — Respondo e
o chamo com a cabeça, virando a câmera para nós dois. — Mila, conheça o
Benji. Benji, essa é a Mila.
Falo em português com ela, e em inglês com ele. Benji abre um
sorriso fofo e seus olhos ficam apertados, no mesmo instante, vejo a
bochecha de Camila corar.
— Oi, tudo bem? — Benji fala em português a única coisa que eu lhe
ensinei a falar.
— Tudo… — Camila responde baixo. — Ele fala português?
— Só o que você acabou de escutar. — Abro um sorriso, porque sei
exatamente o que vem a seguir.
— Certo, a depressão passou. Ele namora?
— Não que eu saiba, quer que eu pergunte? — Dou risada e Benji se
afasta um pouco da câmera, mas continua no quadro.
— Não, está maluca? Descobre depois. Falta muito tempo para eu ir
para Londres?
— Você nem comprou sua passagem ainda — olho para Benji, que
espera pacientemente.
— Tá, se ele estiver solteiro, você precisa manter ele assim até eu
chegar. Faz isso por mim.
— Achei que você estivesse sofrendo… — Provoco e ela se finge de
ofendida.
— Eu? Sofrendo? Eu acho que encontrei o amor novamente. — Mila
abre um sorriso animado, mas seus olhos ainda brilham pelas lágrimas, e o
nariz continua vermelho. Sei que ela vai voltar a chorar quando desligarmos,
mas fico feliz em saber que Benji foi uma pequena distração divertida.
— Tenho que ir, temos uma reunião importante agora. Me manda
mensagem, viu? Nada de sofrer sozinha.
— Tá bom… — Ela confirma, se dando por vencida.
— Dá tchau para a Mila! — Falo com Benji que se aproxima, sorri e
acena para ela.
— Tchau, Mila! Foi um prazer te conhecer!
Mila acena de volta com vergonha e eu dou risada. Ela não resiste a
um coreano, nem mesmo quando está sofrendo… Inacreditável.
Capítulo 8

“Você era muita areia para o meu caminhão


Faz as batidas do meu coração se acelerarem”
Out Of My League - Fitz & The Tantrums

​ stamos esperando todos os membros do grupo chegarem antes de irmos


E
para LittleWin, já que algumas aulas demoram mais para terminar do que
outras. Me apresento para os que ainda não tinha encontrado e todos são
gentis, parecem ser amigos há muito tempo, vivendo em sua própria bolha.
Não que isso seja algo ruim.
​Thomas está com os braços ao redor dos ombros de Emma, enquanto ela
abraça sua cintura. Já Olive parece impaciente, escutando o que Reggie lhe
conta de forma animada. Não sei o que esperar desse dia, então vou me
manter perto daqueles que já conheço e prestar atenção em tudo o que for
dito na reunião, para entender a dinâmica deles.
​— Quem mais falta? — Pergunto para Thomas, porque já passou do
horário combinado e ninguém mais se juntou ao grupo nos últimos minutos.
​— Charlie e Theo. — Thomas responde gentilmente e deposita um beijo
suave no rosto de Emma, antes de tirar os braços dela e se afastarem.
​— Eles fazem isso todas as vezes. — Olive se vira irritada e cruza os
braços na frente do corpo, ignorando Reggie.
— Sim, mas dessa vez é por uma boa causa. — Thomas responde e
levanta a sobrancelha.
— Eles vêm mesmo, certo? — Emma pergunta curiosa e Thomas
confirma.
— Eu aposto que essa boa causa tem nome, sobrenome e está com a
língua enfiada na garganta de um deles. — Olive revira os olhos e sai de
perto de Reggie para poder olhar melhor a calçada. Ela se vira na direção da
universidade e todos nós a acompanhamos, olhando para o portão e tentando
ver se eles estão vindo.
— Eu tenho nome e sobrenome, mas garanto que minha língua
estava dentro da minha boca o tempo inteiro. — Ava aparece atrás de nós e,
quando me viro, vejo que está acompanhada de Charlie e Theo.
​— Finalmente! — Olive suspira e nega com a cabeça. — Sabe, quando a
gente combina um horário, o mínimo que eu espero é que vocês cumpram
esse horário.
​— Se vocês demorassem mais um pouco, provavelmente levariam uma
surra da senhorita Brown. — Reggie olha para o trio e para Olive, que está
fuzilando-o com o olhar. — É só uma brincadeira…
​— Cuidado, Olive… Eu posso acabar gostando de apanhar de você. —
Charlie sorri indecentemente para ela, que fica com as bochechas vermelhas
e desvia o olhar.
​É impossível evitar o sorriso que aparece em meu rosto, mesmo a
cantada não sendo para mim. Charlie é atrevido e eu gosto disso.
​— E uma surra de mim, você vai gostar? — Reggie pergunta para o
primo de forma irritada e recebe uma risada alta em troca, seguida de um
pequeno empurrão em sua cabeça.
​— Isso é ciúmes ou medo da concorrência? — Charlie provoca e Reggie
ameaça empurrá-lo.
​Eles parecem dois adolescentes brigando, e dá para ver que Charlie não
está falando essas coisas por real interesse na Olive, e sim para provocar o
primo mais novo.
​— Por que vocês demoraram? — Pergunto com a voz baixa para Theo.
​— Todos do grupo são ótimos, mas não existe pessoa melhor para
convencer os mais velhos e os cabeças dura de LittleWin do que a Ava. —
Theodore responde apontando para a mulher com a cabeça. — E só nós dois
conseguimos convencê-la a fazer algo.
​— E por que isso?
​— Eles me vencem pelo cansaço. — Ava abre um sorriso forçado e olha
para mim. — Se eu posso te dar uma dica, gringa… Se mantenha longe
desses dois, eles são problema na certa e conseguem ser insuportáveis
quando querem.
​Alterno meu olhar entre Ava, Theodore e Charlie, parando um tempo
maior no último, que está se divertindo com a conversa e a situação que
paira entre todos.
​— Pode deixar que não vou nem ousar me aproximar deles. —
Respondo com o olhar atrevido e Charlie cerra os olhos, ainda carregando
um pequeno sorriso no rosto. — Quero distância de problemas.
​— Tá, todos estão aqui, vamos logo? — E, dessa forma, Olive faz com
que os que estavam sentados peguem suas coisas e se levantem, enquanto os
outros começam a caminhada em direção ao metrô.
​Parecemos uma pequena excursão de escola com todos conversando e
sendo barulhentos, o que me faz sorrir. É um pouco caótico, mas nada
absurdo. Não faço ideia do que me aguarda, mas estou ansiosa para
descobrir. Sigo andando com Benji ao meu lado, ele está mais quieto do que
de costume, mas não parece incomodado, apenas recluso e distante.
​— Não vai se aproximar de mim, então?
​A voz de Charlie chega em meus ouvidos pelas minhas costas, consigo
sentir sua presença próxima até demais. Continuo olhando para frente, como
se tê-lo perto assim fosse normal, mas sinto um sorriso inconsciente surgir
em meu rosto.
​— Dizem por aí que, além de encrenqueiro, você é um mulherengo. —
Provoco-o sem me virar, e olho para o túnel onde o metrô aparecerá a
qualquer segundo.
​— É mesmo? — Ele dá dois passos até ficar do meu lado, exatamente na
direção que estou olhando. — Então, quer dizer que você andou perguntando
sobre mim?
​— E não se esqueça de convencido e engraçadinho. — Completo, nossos
olhares finalmente se encontrando. Charlie levanta a sobrancelha e concorda.
Fico só um pouco sem graça e aperto os lábios para disfarçar o sorriso. —
Palavras da Ava, não minhas. Quer dizer, o convencido fui eu que
acrescentei.
​— Ela também falou que, mesmo eu sendo tudo isso, não consegue viver
sem mim? Principalmente quando precisa consertar alguma coisa na casa
dela? — Charlie cruza os braços e cerra os olhos, o sorriso presente no rosto.
​— Não, ela não falou. — Dou de ombros surpresa, querendo prolongar
nossa conversa.
​— Eu sabia! — Ele a procura na multidão, a chama e, quando se olham,
lhe mostra a língua como uma criança brava, antes de voltar a atenção para
mim. — Ela só fala a parte ruim, porque se falar a boa, vai perder o faz-tudo
gratuito.
​ Faz-tudo? — Levanto uma sobrancelha e umedeço os lábios. Eu sei

que ele está falando sobre ajudá-la em sua casa, dá para sentir no seu tom de
voz que é uma ajuda inocente, mas é impossível não levar malícia para a
situação. Principalmente quando ele está inventando assunto para conversar
comigo e mantendo o sorriso charmoso no rosto.
​— Bom… — Charlie também umedece os lábios e dá de ombros, se
divertindo com minha insinuação. — Quase tudo. Ela não tem interesse nas
coisas que eu sou realmente bom fazendo.
​Merda. O formigamento familiar no meio das minhas pernas decidiu dar
as caras, me obrigando a apertar as coxas disfarçadamente para prender a
sensação em mim. Faz algumas boas semanas que eu não transo, já que não
tive oportunidade por aqui e estava ocupada demais nos últimos momentos
no Brasil.
​Ótimo, eu ainda nem o beijei e já estou pensando em transar. É isso que
acontece quando fico mais tempo do que o normal na seca, mas ele também
não me ajuda nem um pouco.
​O metrô finalmente chega, trazendo um vento forte que faz meu cabelo
voar para todos os lados. Vejo os fios castanhos e roxos ficando bagunçados
e sinto meu ar sumir dos pulmões quando Charlie levanta a mão em direção
ao meu rosto. Seus dedos tocam suavemente minha bochecha e ele afasta
alguns fios que grudaram em meus lábios, mas não falo nada.
​Lindos olhos castanhos. Lindas sardinhas nas bochechas. Lindo
maxilar… perfeito para beijar.
​Seu toque fica mais tempo que o necessário em meu rosto, mas nenhum
de nós dois parece se importar, até que as portas se abrem, nos obrigando a
quebrar o contato visual. Charlie estende o braço, fazendo uma reverência
exagerada para que eu entre no vagão antes dele.
​— Vem comigo! — Theo passa por nós e fala para o primo, apontando a
cabeça até Thomas e Ava.
​Charlie toca no meu braço, como se estivesse me avisando que vai se
afastar um pouco e eu assinto, observando-o seguir para o lado oposto ao
que me sento. Olive e Emma estavam com o grupo, mas assim que veem os
ruivos se aproximando, andam até mim, sentando nos assentos vazios ao
meu lado.
​— Você vai se arrepender. — Emma tenta soar gentil, mas sinto a
preocupação e o leve julgamento em sua voz. — Não me entenda mal, mas
você vai se arrepender amargamente disso que está fazendo, gringa.
​ Do que está falando? — Viro o rosto para ela, apesar de saber do que

está tentando me alertar. Ela não é a primeira e, pelo visto, não será a última.
​— Você sabe exatamente do que estou falando. — Insiste e eu olho para
longe, encontrando Charlie, Thomas, Ava e Theo conversando muito sérios,
como se estivessem combinando algo. — Ou melhor, de quem eu estou
falando.
​— Isso é realmente necessário? — Olive aperta a mão e olha para
Emma. — Nós estamos indo para uma reunião importante agora, não
podemos ficar nos distraindo e…
​— É claro que é necessário, ela merece saber onde está se metendo com
o Charlie. — Emma diminui o tom de voz quando fala o nome do irmão.
​— Certo, isso é tipo uma intervenção? — Estou interessada, já que elas
estão genuinamente preocupadas.
​— Não, você pode fazer o que quiser, é só que… — Olive tenta falar,
morde a boca e olha para Emma. — Ah, fala você!
​— Você só precisa entender que certas coisas acontecem com quem se
relaciona com o Charlie, e você parece ser uma mulher esperta, achei que
devia te deixar ciente de tudo. — Emma responde de forma firme.
​— Certo, sororidade — concordo. — Sou toda ouvidos, me alerte de
todos os problemas desse cara.
​— Tá, em primeiro lugar: meu irmão tem um grande problema em fazer
todas ficarem caidinhas por ele. Não sei o que acontece, mas as meninas se
apaixonam, querem algo mais sério e ele nunca fica mais de duas vezes com
alguém.
​— Ele ficou com a Susana algumas semanas atrás, lembra? — Olive
adiciona, fazendo com que nós duas a olhemos. — Parece que ela foi duas
vezes na casa dele e, quando ela o convidou para ir na casa dela, ele deu uma
desculpa esfarrapada e começou a evitá-la pelo campus.
​— Ele me falou que prefere ver o filme do que ler o livro, então suspeitei
que não gostasse de compromissos longos mesmo. — Concordo, refletindo
sobre o que ele falou na primeira vez que nos encontramos.
​— É, isso está totalmente fora de questão. — Emma assente. —
Segundo, ele tem uma legião de garotas que ficam atrás dele, e você já se
mostrou um tanto sem paciência para lidar com as pessoas.
​— Eu me mostrei sem paciência? — Pisco algumas vezes, digerindo a
informação, que deixa uma sensação desconfortável em meu peito. —
Quando?
​ Ah, no geral. Qualquer um que se aproxima, você fecha a cara e

revira os olhos.
​— Eu não faço isso! — Defendo-me e Olive repreende Emma com o
olhar.
​— Faz sim, mas tá tudo bem, não temos que dar abertura para qualquer
um mesmo não. Você é um amor com a gente, se isso te tranquiliza.
​— Me tranquiliza muito — respondo fechando a cara e cruzando os
braços.
​— Viu? Sem paciência. — Emma ri, apontando para a minha postura.
​— Eu uso aromaterapia para isso todos os dias, e para ansiedade
também! — Suspiro porque isso é algo que tento trabalhar em mim com
frequência. Vivi situações na minha adolescência que fizeram com que eu
me fechasse para as pessoas. Então, é um desafio deixar qualquer um entrar
na minha vida.
​— Talvez a aromaterapia não esteja funcionando muito bem. — Olive
aperta os lábios e eu abro um sorriso forçado para elas.
​— Tá, continue os motivos para eu ficar longe do Charlie. — Descruzo
os braços e coloco as mãos em cima da minha coxa, tentando conter a
vontade de sacudir a perna sem parar. Respiro devagar algumas vezes e olho
para ela.
​— Acho que é basicamente isso — Emma pensa, olhando para o alto e
concorda. — É, é isso.
​— Resumindo, vocês estão me falando que ele não se apega? — Franzo
a sobrancelha e, quando elas concordam, um pequeno alívio se apossa do
meu corpo.
​Achei que elas fossem me contar algo mais sério como ele ser um cara
péssimo, abusivo ou qualquer outra coisa assim. Olho na direção que ele
está. Admiro seu cabelo ruivo e as costas largas por um breve momento,
então me viro para elas com um sorriso gentil no rosto.
​— Vocês já pensaram que eu, talvez, também não esteja procurando nada
sério com alguém?
​— Todas falam isso, mas não é bem o que acontece na prática. — Emma
me alerta, negando com a cabeça.
​— Bom, é comigo. Ele é bonito, parece interessado, tem esse sorriso
charmoso de lado … Eu só estou me divertindo, assim como ele. Posso fazer
isso, não posso?
​ É claro, o problema é que ele pode quebrar seu coração. — Olive

aperta os lábios e dá de ombros.
​— Você está preocupada demais comigo, mas, nessa situação, deveriam
estar preocupadas com o coração dele. — Brinco para descontrair um pouco
e deixá-las mais tranquilas. — De qualquer jeito, obrigada por me alertarem.
Isso foi muito legal.
​— De nada, mas não diga que eu não te avisei quando você me ligar
chateada porque criou expectativas demais.
Olive segura minha mão e aperta os lábios quando abro um sorriso
divertido. Seu celular começa a tocar e ela me solta, procurando-o na bolsa
para ver o que está acontecendo.
Eu me esqueço que, em alguns lugares, ficar com alguém não é como
no Brasil. As pessoas levam a sério beijar, sendo que, para nós, não passa de
um simples beijo. Pelo jeito que o Charlie tem conversado comigo, acho que
não tenho que me preocupar com ele, que claramente só quer se divertir um
pouco. Assim como eu, seria ótimo sair dessa seca.
​Sei como me sinto e sei que não consigo me permitir viver um romance,
por mais que eu queira. Já me acostumei com isso e acho ótimo ele não ficar
mais sério com as pessoas, é algo a menos para me preocupar.
​Enquanto a Mila tem o costume de namorar, eu me afasto de todos o
mais rápido que consigo, principalmente depois que terminei com o meu ex,
Pedro. Eu vivi com ele os piores três anos da minha vida, e senti que um
peso saiu dos meus ombros quando finalmente consegui me ver longe dele.
​O peso de precisar medir minhas palavras, de usar somente as roupas que
ele dizia serem apropriadas, de precisar conter minha risada e meus jeitos…
O peso de não precisar me afastar dos amigos ou da minha família, porque
estar com o Pedro era como estar o tempo inteiro presa em uma gaiola.
​Eu achava que estava tudo bem e que um relacionamento deveria ser
assim. Ele me “amava”, no final das contas. Desde que eu me mantivesse ao
seu lado, que não saísse sozinha e que avisasse cada passo que fosse dar.
​Com o passar dos meses, virei mestre em mentir. Tanto para mim,
falando que estava tudo bem e que aquele era seu jeito, quanto para os outros
quando eu recusava algum convite ou ia embora dos lugares, porque um
homem se aproximava do grupo. Mesmo eu não querendo fazer nenhuma
das coisas que ele me obrigava a fazer. Mesmo sabendo que ele estava
errado. No fundo, aquela vozinha continuava me enganando, dizendo que se
ele ficasse bravo comigo, porque encontrei com algum amigo da faculdade,
a culpa seria minha.
​Terminar não foi nem um pouco fácil, mas foi libertador. Lembro até
hoje do quanto eu tremia e de como precisei levar a Mila e minha mãe
comigo, porque tive medo dele ficar irritado e acabar fazendo algo. Pedro
nunca levantou um dedo para mim antes, mas eu nunca havia tentado
terminar nosso relacionamento e eu sempre soube o quanto ele era
imprevisível. Tinha medo dessa instabilidade que ele carregava.
​O pior de tudo é que eu me perdi nesses anos e me sentia culpada por ter
minha própria vontade. Eu, que sempre fui tão bem resolvida, que sempre
tive a liberdade e a confiança da minha mãe. Que tenho uma melhor amiga
que me apoia em qualquer loucura que eu queira fazer… Estar com ele era
como se eu estivesse, diariamente, traindo a mim mesma.
​Hoje em dia, não consigo ter nada sério com alguém. No Brasil, tenho
muitos amigos. Alguns para beijar, outros para transar, mas nenhum para me
relacionar… Tenho medo demais e me fechei tanto que não acho possível
me ver em um relacionamento romântico novamente.
​Por isso, o Charlie parece ser perfeito, e se ele realmente tem essa fama
de não se apegar… Ponto positivo para ele! Espero que se mantenha assim,
porque sei que me apaixonar está fora de questão.
​Não vou abrir mão de quem eu sou novamente, muito menos da minha
luta, dos meus sonhos e das minhas vontades. Não vou me encaixar em
padrões que não me pertencem, porque alguém falou que “daquele jeito” é o
certo.
​Eu vou ser, sempre, eu mesma.
​Livre.
​— Próxima estação: LittleWin. — A voz ecoa pelo alto falante do vagão
e eu pisco forte algumas vezes, voltando à realidade.
​— Você não vem? — Emma pergunta, ela está de pé na minha frente,
segurando a bolsa e com um sorriso gentil no olhar.
​— Claro.
Capítulo 9

“Mas eu fui feita para quebrar o molde


O único sonho que tenho perseguido, é o meu”
Underdog - Alicia Keys

A diferença de bairro é nítida no instante em que pisamos na rua


novamente. Mais simples do que na cidade, com mais jeitinho de interior,
mesmo estando em Londres. Os comércios estão abertos, pessoas entram e
saem do mercadinho que tem uma banca de legumes na calçada. Vejo um
senhor sentado na frente da banca de jornal e uma mulher mais velha saindo
da lavanderia com algumas roupas embaladas com capricho.
Sigo os outros pelas ruas, prestando atenção em tudo e entendendo a
preocupação deles. No meio das construções antigas e do comércio local,
existem empreendimentos novos. A lavanderia, com uma grande placa na
fachada, anuncia um valor extremamente menor por lavagem do que o que
estava na lavanderia local da rua anterior. Dentro, vejo máquinas novas,
brilhantes e muitas opções de diferentes produtos para os clientes. É injusto,
claramente injusto.
— Esse é novo — Emma retruca e para na frente da fachada de
vidro. — Quem vai na lavanderia da senhora Thompson quando tem algo
mais barato e moderno praticamente do lado? Quem vendeu o ponto?
— Os Harris… — Olive suspira. — Eles estavam com muitas
dívidas por causa do filho que conseguiu uma bolsa para fazer universidade
nos Estados Unidos. Os compradores pagaram acima do valor de mercado.
— Isso não é justo… Não os Harris estarem com dívidas, é claro!
Estou falando sobre essa forma de mandar as pessoas irem embora. É claro
que eles venderiam se o valor fosse maior do que o esperado. Assim, eles
vão deixar os valores baixos nos primeiros meses e, depois que os outros
locais precisarem fechar as portas, vão aumentar os preços, e monopolizar o
comércio simplesmente porque não vão ter mais concorrência.
— Ei, vocês! — Reggie nos chama, todo o grupo já está virando no
final da rua. — Venham!
Voltamos a andar e tudo parece muito estranho. Praticamente metade
dos estabelecimentos são de grandes empresas, e não de comerciantes locais.
Estranho para uma área tão afastada e simples como LittleWin.
Depois de alguns minutos observando e absorvendo tudo o que está
ao meu redor, nosso grupo entra em um grande casarão tradicional. Várias
crianças com mochilas nas costas passam por nós gritando e apostando
corrida de forma muito competitiva.
— Ei, ei, ei! — Charlie aparece na porta da varanda com o olhar duro
para as crianças. — Vocês sabem das regras, sem correr.
— É só uma corrida, Charlie… — Uma garotinha loira revira os
olhos e o abraça. — O John falou que o último a chegar teria que comer a
gororoba que a tia dele fez ontem, e eu não quero comer… Parece nojento e
está com um cheiro engraçado.
— Você não precisa comer gororoba nenhuma se não quiser. Com
aposta ou sem aposta. — Charlie responde gentilmente e passa a mão no
cabelo dela, ajeitando onde estava bagunçado. A menina assente, entrando
com as amigas no casarão. — E você, pare de importunar as meninas, cara.
Me procura depois da reunião que eu te ensino o jeito certo de chamar a
atenção delas.
Charlie finaliza dando uma piscadela para o garoto que fica com as
bochechas vermelhas, mas confirma timidamente. Sorrio ao ver a interação,
um grande ponto fraco para o meu coração é ver um homem sendo bom com
crianças.
Emma e Olive esperam as crianças entrarem e as seguem. Assim que
piso dentro do casarão, me surpreendo, porque é tão grande por dentro
quanto é por fora. No pequeno hall tem um armário para guarda-chuvas e um
quadro de avisos com horários, notícias e comunicados gerais. Em seguida,
entramos em uma sala espaçosa com um pequeno palco e retroprojetor em
uma parede no fundo, muitos sofás e almofadas espalhados. Parece um
auditório improvisado, como uma sala de cinema caseira.
Escuto passos no segundo andar, além do som de alguns violões.
Risadas chamam minha atenção para o fundo da casa, e quando estico o
corpo para o corredor, que está com a porta dos fundos aberta, noto que uma
aula de educação física está acontecendo no gramado.
— Legal, não é? — Charlie coloca as mãos no bolso.
— Eu não esperava por algo assim quando o Theo me contou sobre o
Centro. — Começo a andar em direção aos fundos e Charlie me acompanha.
Passando pelo corredor vejo outras portas, algumas estão abertas, deixando
visível materiais de estudo diversos.
— Até que fazemos um trabalho legal aqui — Charlie para do meu
lado, quando chegamos na porta, e eu me deparo com um enorme jardim,
com horta, locais de descanso e áreas de estudo ao ar livre.
— Eu achei esse lugar incrível…
Murmuro olhando para as trepadeiras nos muros. O sol ilumina uma
parte do jardim em que algumas garotas, que parecem estar no Ensino
Médio, estão sentadas estudando. As crianças que antes estavam correndo,
agora obedecem ao professor e se sentam em roda, prestando atenção no que
ele tem a dizer e se preparando para participar do próximo jogo.
— Professor! — Uma das meninas levanta o braço no alto, acenando
em nossa direção, e se levanta com um papel na mão.
Não consigo evitar franzir minha sobrancelha e olhar para Charlie,
que sorri para a menina e presta atenção nela se aproximando de nós.
— Como foi a prova de ontem? — Charlie estende a mão, pedindo
para ver o papel que ela carrega.
— Não foi um 10, mas acho que um 7,5 está bom! — Ela se estica
para ver a prova nas mãos dele e aperta os lábios, tentando conter a
animação.
— Para quem estava praticamente de recuperação, um 7,5 é incrível!
Você mandou muito bem, Liz. — Charlie a elogia gentilmente e eles dão um
hi-five antes dele lhe devolver a prova. — Semana que vem a gente repassa
o que você errou e começa a estudar para a próxima, pode ser?
— Combinado! — Ela responde e se despede de nós, voltando para
perto das amigas, que observavam a interação com sorrisos contidos no
rosto.
— Não sabia que você era professor… — Viro-me para ele, que
concorda e encosta o ombro no batente da porta, me olhando.
— Eu fazia bacharel em Química, mas, uns dois anos atrás, tivemos
uma época difícil aqui no Centro e os mais velhos ficaram sem professor
para o período da tarde… Eu estava sem emprego na época e me ofereci para
ocupar a vaga até encontrarem alguém, mas acabei gostando de ensinar.
Mudei meu curso para licenciatura e a vaga virou minha.
— Sabe, nunca pensei que você pudesse ser professor, mas agora que
falou… Faz total sentido, combina com você.
— Também nunca tinha passado pela minha cabeça até começar a
dar aulas, mas trabalhar com eles é bom. — Charlie levanta o olhar para o
céu, pensativo. — Muitos deles não têm apoio em casa. Então, eu tento
mostrar que podem confiar em mim para mais do que assuntos da escola.
Eles se sentem muito sozinhos e perdidos.
— Acho que todos nos sentimos assim na adolescência… —
Murmuro e abraço meu corpo. Olho para as crianças, que agora estão
brincando de algo parecido com “Corre Cotia”. — Que bom que eles podem
contar com você.
— Posso te levar para um tour pelo Centro, antes da reunião
começar?
Charlie oferece, apontando para dentro da casa, e nosso olhar se
encontra. Ele tem olhos gentis quando não está flertando, dá para notar o
quanto se importa com o projeto e como está realmente interessado em me
mostrar tudo. Concordo e começo a segui-lo pelo corredor, parando na frente
de cada uma das portas para que ele me mostre a sala dos adolescentes, a
cozinha, biblioteca, brinquedoteca e a sala de artes do primeiro andar.
Quando começamos a subir as escadas, paro nos degraus para ver de
perto as fotos que estão espalhadas por toda a parede. São famílias,
professores e crianças naquele mesmo casarão, tendo aulas e se divertindo
juntos. Quanto mais subimos, mais próximo fica o som do violão que escutei
minutos atrás. Tem cerca de cinco quartos ali, um para as aulas de música,
duas salas infantis de estudo, mais uma para os mais velhos e o que parece
ser um berçário.
— Quantos jovens vocês ensinam? — Pergunto olhando para os
berços e as camas das crianças pequenas no espaço.
— A capacidade máxima do Centro é de 60 crianças e adolescentes,
e 10 bebês… — Charlie responde apreensivo.
— E tem quantos inscritos no projeto?
— 65 jovens e 14 bebês — faz uma careta e dá de ombros. — Não
tem como recusar quando os pais aparecem pedindo por uma vaga, então a
gente vai dando um jeitinho. Alguns voluntários vêm durante a semana para
nos ajudar a aliviar as salas, fazer atividades diferentes, trazer oficinas…
— Oficinas? — Me ilumino com uma ideia se formando na minha
mente, sinto as palavras começando a atropelar meus pensamentos. — Sabe,
minha família tem uma loja de produtos naturais e eu sei fazer velas, cremes
com ervas, chás… Posso ensinar os que tiverem interesse em aprender um
pouco sobre isso, talvez fazer uma turma para os mais velhos e outra para os
mais novos… Vai ser uma bagunça, mas pelo menos vão desenvolver um
pouco de paciência.
Da mesma forma que estou animada, vejo o rosto de Charlie também
se iluminar, concordando e sorrindo com satisfação.
— É uma ótima ideia, Dias.
Nos olhamos por alguns segundos e meu coração quase sai pela boca.
Charlie é aquele calor gostoso que sentimos no final de um dia conturbado,
quando estamos voltando para casa e vendo o sol se pôr no horizonte.
Calmo, confortável e estável. Um lembrete de que tudo ficará bem,
independentemente do que estiver acontecendo no mundo a nossa volta.
— Vamos descer? — Pisco algumas vezes, saindo do devaneio e me
assustando por pensar nele dessa forma.
— Depois de você. — Charlie faz um pequeno gesto em direção a
escada e me deixa passar na sua frente.
Desço as escadas devagar, tentando me situar e me lembrar para qual
lado devo ir para chegarmos na sala de reunião. Paro no último degrau e,
antes que eu possa perguntar a direção, sinto sua mão tocar minha cintura,
me levando devagar para frente.
— Por aqui… — A leve pressão que faz em minha cintura me
desnorteia um pouco e ele me faz virar para a esquerda.
Estou estática, não deveria, mas estou.
Assim que chegamos na sala ele tira as mãos de mim e as cruza no
peito, parando ao meu lado e olhando para Thomas, Olive e Ava, que estão
liderando a reunião. É impossível não manter meu olhar nele, principalmente
porque sinto minhas bochechas quentes e o calor de seu toque se mantém em
minha pele, mesmo com camadas de tecido nos separando.
— Desistir do Centro não é uma opção! — Thomas fala sério, me
fazendo olhar pra frente.
— Perdemos muita coisa? — Sussurro para Charlie e ele dá de
ombros, como se falasse para eu não me preocupar.
— Só o início, provavelmente.
— E o que a gente deveria fazer? As doações estão cada vez mais
escassas, não estamos conseguindo auxílio o suficiente para manter os
salários dos professores, que já é baixo. Imagine conseguir o suficiente para
fazer as reformas que a prefeitura está pedindo! — Uma senhora, que está
sentada no meio da sala, fala.
— Nós podemos diminuir os salários por um tempo, todos vão
entender. — Ava fala, dando um passo à frente. — Estamos pensando em
diferentes campanhas para arrecadarmos dinheiro e material para as
reformas, só que vocês não podem desistir do projeto. Nós não conseguimos
fazer tudo sozinhos, precisamos do apoio da comunidade.
— Escutem… — Um senhor se levanta, virando o corpo para olhar
todos ali e voltando-se para Thomas. — Nós sabemos o quanto o Centro é
importante para vocês e para todos, mas estamos fechando no negativo há
muito tempo. As empresas estão se recusando a aceitar nossos pedidos até
pagarmos as dívidas e as crianças extras que vocês aceitaram são um gasto a
mais.
— E o senhor queria que a gente tivesse recusado o pedido dos pais
que apareceram pedindo por uma vaga? — Thomas parece irritado. — Que a
gente fechasse a porta na cara deles? Meu tio nunca faria isso.
— Não, tem razão… Se ele estivesse vivo, o projeto já teria
terminado há muito tempo, porque ele não tinha responsabilidade o
suficiente para manter um lugar desses aberto! Recebíamos muitas doações
até ele começar a pensar mais em si mesmo e em mulher, do que no projeto.
— Agora, eles vão começar a brigar… — Charlie suspira, se virando
para mim.
— Me dê um pouco de contexto, por favor — sussurro e me
aproximo do ruivo. Não que a gente vá conseguir atrapalhar a discussão que
começa na nossa frente com uma conversa baixa.
— O casarão era do tio do Thomas, Gregory Edward. Foi ele que
iniciou o projeto quando o Thomas era só uma criança.
— O cara que aparece várias vezes nas fotos? — Pergunto, me
lembrando do que vi na escada.
— Ele mesmo! O pai do Thomas nunca foi presente e sua mãe
trabalhava demais, então ele praticamente cresceu aqui com o tio. Gregory
morreu há alguns anos, sofreu um acidente, mas não sei muitos detalhes. Ele
deixou o casarão para a comunidade, desde que o projeto continuasse vivo.
Thomas é um dos proprietários no papel e pôde assumir controle de tudo
quando virou maior de idade, mas a maioria das decisões têm que ser
tomadas em conjunto. Então, sempre acontecem discussões nas reuniões. —
Charlie me explica, observando a conversa acalorada que está acontecendo
no centro da sala, outras pessoas estão expondo suas opiniões também. —
Com as empresas chegando, as famílias estão precisando de mais apoio com
as crianças, nós aceitamos mais do que podemos e não estamos
financeiramente bem.
— E os problemas com a prefeitura? — Pergunto curiosa, porque sei
apenas por cima sobre o assunto.
— A casa é muito velha, precisa de muitas adequações para
funcionar como um Centro. Os bombeiros estão pegando no nosso pé e
existem algumas empresas interessadas em comprar o terreno. Nós não
queremos vender, mas se não fizermos as reformas… — ele solta um suspiro
cansado.
— Os bombeiros vão interditar o local, vocês correm o risco de
perder a propriedade e depois de um tempo ele vai a leilão. — Tudo está
fazendo sentido na minha cabeça agora, e é triste ver um projeto tão bonito
sofrendo por causa de dinheiro.
Ou pela falta dele.
— Já passamos por muitas crises antes, mas esta é a pior. Na última
reeleição, o prefeito nos ajudou, tudo pelo voto… Conseguiu liberar uma
verba para o funcionamento da casa por um ano, mas depois começaram a
vir os avisos de local impróprio, recebemos mais visitas dos bombeiros…
— Ele ajudou para depois atrapalhar a vida de vocês?
— Basicamente, acho que o plano era conseguir votos na área, mas
não funcionou.
— Odeio políticos. Eles não pensam em ninguém de verdade, só
querem saber de lucrar em cima da população. — Resmungo e nego com a
cabeça. — Sabe, é por isso que eu faço Direito e decidi vir para a Inglaterra
terminar a universidade… Quero ter os recursos necessários para lutar contra
o sistema e parar com essas injustiças. Aprender mais.
Charlie abre um pequeno sorriso de lado, mínimo, mas o suficiente
para que eu consiga ver a curva de seu lábio formando uma pequena covinha
no canto da boca. Ele parece satisfeito, até mesmo… orgulhoso!?
— Tenho certeza que sim.
— Não iremos desistir! — Thomas fala um pouco mais alto que
todos, fazendo-os olharem para ele. — Não vamos nos vender, não vamos
mandar as crianças embora e não vamos parar de aceitar novos alunos. Nós
vamos dar um jeito.
Capítulo 10

“Eu conheço o seu tipo, garoto, você é perigoso


Sim, você é aquele cara em que eu seria burra de confiar
Mas somente uma noite não pode ser tão errado
Você me faz querer perder o controle”
Good Girl Gone Bad - Cobra Starship e Leighton Meester

Como se para acompanhar o cair da noite, a temperatura começa a


esfriar e me vejo abraçando meu corpo enquanto nos despedimos das
pessoas na calçada, na frente do Centro. A reunião demorou para terminar e
nada foi concluído. A única coisa que Thomas conseguiu entrar em acordo
com os outros foi em estender o prazo final para tomarem uma decisão sobre
o destino do Centro.
Não é o plano ideal, mas é o suficiente para que a gente consiga
arrecadar dinheiro e pensar em alternativas para tentar mudar a realidade que
os assombra tanto. Existem formas de conseguir dinheiro, mas todas são
temporárias, como fazer vendas de doces, rifas com a ajuda de parceiros e,
talvez, algumas ações pela universidade, mas precisamos de um plano mais
concreto.
E logo.
— Eu preciso encher a cara! — Thomas se aproxima de mim e
Emma, olhando para a namorada com olhos suplicantes. Ela assente,
apertando os lábios e fazendo um afago em seu braço.
— Eu sei, amor — responde com carinho.
— O que vão fazer agora? — Ava pergunta, se aproximando com
Olive e Theo.
— Beber até esquecer de quem eu sou — Thomas conta seu plano
para os outros que dão risada e se viram para mim.
— Tenho que adiantar os trabalhos do professor Herman e, então,
cama. — Assim que termino de falar, Ava fica indignada e coloca as mãos
na cintura. — O que foi? Tenho um longo dia amanhã!
— Cama? Para dormir, você diz? — Theo pergunta, apoiando o
cotovelo no ombro da amiga.
— Para o que mais seria? — Faço-me de inocente e ele levanta uma
sobrancelha maliciosa que me faz ficar vermelha sem querer. Maldita língua
inglesa que às vezes me faz passar vergonha falando coisas que não são
exatamente o que eu quero dizer. — Você está muito engraçadinho
ultimamente.
— Eu só fiz uma pergunta inocente. — Theo ri e Ava revira os olhos.
— Tenho uma entrevista de emprego amanhã de manhã, então…
— Você não vai passar uma sexta à noite sozinha. Não enquanto nós
vamos beber e fingir que não temos um problema gigantesco para resolver.
— Emma praticamente briga comigo e se vira para Ava. — Qual é o plano?
— O amigo de uma amiga abriu um PUB há algumas semanas e
parece ser bem legal, vive lotado e com fila, mas posso mandar uma
mensagem para ela e pedir para nos colocar para dentro. — Ava puxa o
celular da bolsa e começa a digitar rapidamente.
— Perfeito, vou avisar os outros. — Thomas concorda, se animando
como se o peso da tarde não estivesse mais sob os seus ombros, enquanto
voltava para o casarão.
— Sem chances de fugir mesmo? — Faço uma careta para Emma
que segura meus ombros e me sacode devagar.
— Sem chances, gringa.
— A não ser que você realmente não queira ir, é claro. — Olive
repreende Emma, me tranquilizando. — Ninguém vai te obrigar a fazer algo
que você não quer.
O cabelo ruivo de Charlie chama minha atenção, ele sorri e espera
todos saírem para Thomas trancar a porta da frente. Eu realmente deveria ir
para casa, focar nos trabalhos e ter uma boa noite de sono para amanhã…
Mas, ao mesmo tempo, seria tão bom sair com os amigos para beber, rir e
não me preocupar com minhas obrigações.
— Deixa que a Marina Dias do futuro se preocupa com o professor
Herman — Concordo e Emma dá alguns pulinhos animados. — A Marina
do presente topa uma diversão.

​ va não mentiu quando falou que o lugar estava lotando todos os dias
A
desde a inauguração, já que tem, literalmente, uma fila chegando na esquina
só para entrar no bar. Nosso pequeno grupo caminha até a entrada e
esperamos por alguns instantes ao lado do segurança, até o homem receber
ordens para liberar nossa entrada sem precisarmos ficar na fila.
​Assim que entramos, o calor do ambiente me obriga a tirar o casaco.
Tem um músico tocando rock acústico no palco, que está no fundo do
espaço, muitas mesas espalhadas e pessoas circulando pelo salão. As paredes
são de madeira e enquanto algumas estão cheias de pôsteres de bandas do
chão ao teto, outras são mais limpas, com apenas alguns discos de vinil em
exibição.
​— Esse lugar é legal! — Seguro a mão de Emma e a puxo para perto.
— Não me surpreende estar tão lotado assim — Emma confirma e
começa a procurar por uma mesa, esticando o corpo e olhando ao redor.
— Está cheio até demais… — Olive aperta os lábios parecendo
incomodada.
— Não comece, Olive, por favor! — Emma fala sem se virar. —
Você sabe que não pode deixar de viver sua vida por causa do Reg.
— Eu sei…
— Vocês são o que, afinal? Namorados? — Pergunto e a puxo para
perto quando vejo um garçom, carregando muitas canecas de cerveja, quase
esbarrando nela.
— Amigos, oras! — Olive responde como se eu tivesse ofendido-a.
— Somos apenas amigos.
— Olive gosta dele desde que somos crianças, já ficaram várias
vezes, mas nunca vai adiante. Dois tontos, se quer saber minha opinião. —
Emma se vira para nós duas e desafia Olive com o olhar.
— Eu já sei qual é a sua opinião, obrigada por me lembrar. — Olive
devolve o desafio e se vira para mim. — É complicado, temos muitas
obrigações e acabamos deixando o que quer que exista entre nós dois de
lado. Eu tenho as aulas, o grupo, o Centro, as manifestações, sem contar o
estágio, meus pais, meu gato… Já ele tem o time de futebol, as aulas, o
trabalho…
— E não conseguem encaixar um tempo para os dois no meio da
correria? — Pergunto curiosa e ela nega. — Sinto muito.
— Uma hora as coisas dão certo — aperta os lábios, dando de
ombros, e eu concordo.
Quem sou eu para me intrometer na vida dos outros, mas me
surpreende eles se conhecerem a tanto tempo e viverem nesse limbo. Talvez
não deva ser, ou só não esteja na hora certa.
— Ei, o que vocês estão fazendo aqui? Achei que tivessem nos
seguido! — Thomas aparece do nosso lado, confuso. — Vamos, a amiga da
Ava reservou uma mesa para a gente.
Ele começa a nos guiar pelo salão e, no meio do mundo de pessoas,
seguro na mão de Olive para não nos perdemos. Todo o grupo já está
sentado e Charlie está fazendo o pedido para o garçom quando nos
aproximamos.
— Qualquer coisa é só mandar me chamar que eu te ajudo. — Escuto
a amiga da Ava falar com a voz doce e, em seguida, Ava, Theo e Charlie
batem palmas para ela, fazendo festa e agradecendo pela mesa.
Ela faz uma reverência exagerada, aceitando os aplausos. No instante
que eu passo do seu lado, ela se vira para ir embora e nos esbarramos,
fazendo com que nossos ombros batam com força.
— Ai, porra… — Retruco em português, não por causa dela, mas
porque doeu.
— Por favor, não comece a me xingar, porque vai ser difícil fingir
que não estou te entendendo! — A garota responde, também em português, e
abre um sorriso travesso. — Eu sou mestre em ficar reclamando em
português e ter algum brasileiro atrás de mim, escutando tudo.
— Eu não ia te xingar! — Sorrio, sentindo um alívio por estar
escutando minha língua materna pessoalmente, e não pelo celular. — Você é
a amiga da Ava que eu vi na frente da biblioteca no outro dia!
— Manuela, prazer! — Ela se aproxima para beijar minha bochecha
e é impossível não me sentir feliz com o gesto. Faz tempo que não sinto esse
calor brasileiro.
— Marina, e o prazer é todo meu. — Damos um pequeno abraço e,
antes que eu consiga dizer qualquer coisa para puxar assunto, um garçom se
aproxima para falar com ela.
Quero conhecê-la desde que Benji me contou que ela está no seu
segundo ano na Inglaterra, pelos estudos. Seria bom ter alguém por perto que
entenda o que eu estou passando, com os mesmos medos e anseios de estar
longe de casa.
— Fala para ele que eu já estou indo, por favor. — Responde ao
garçom e suspira, me olhando com um pequeno sorriso cansado. — Eu devia
começar a cobrar por cada noite que passo aqui… Meu namorado me
chama para nos divertirmos e acabamos os dois trabalhando para ajudar!
— Eu te entendo, não consigo recusar quando um amigo pede ajuda
— faço careta e ela confirma, rindo.
— É, escuta… Ava me contou um pouco sobre você — Manu começa
a se afastar devagar —, então não vá embora antes de falar comigo!
— Brasileiras se unindo na terra da Rainha? — Pergunto com a voz
mais alta e ela levanta o polegar no ar sorrindo, antes de realmente sumir
pela multidão.
Sento no lugar que deixaram vazio para mim e uma conversa
acalorada está acontecendo, praticamente uma briga. Preciso de alguns
momentos para entender as palavras confusas e altas que estão se mesclando
com a música e as outras vozes do salão.
— Eu achei que vocês estavam brigando de verdade! — Bato a mão
na mesa, chamando a atenção de todos quando, finalmente, compreendo
sobre o que estão discutindo.
— Ainda não estamos, mas iremos se o Thomas e sua namoradinha
continuarem falando esse absurdo! — Charlie levanta a sobrancelha com um
sorriso no rosto, desafiando a prima e o amigo.
— Ei, me respeita! — Emma faz uma bolinha com o guardanapo e
joga na cara do irmão, que lhe mostra o dedo do meio em retorno.
— Ele é novo, fala com a nossa geração! — Thomas retruca e Theo
bate a mão na mesa da mesma forma que eu fiz, o rosto com um misto de
indignação com diversão.
— Tom Holland não é o melhor Homem-Aranha, nunca! — Theo
provoca. — Ele pode ficar com o segundo lugar.
— Mas o melhor sempre será o Tobey. — Charlie completa e os dois
dão um soquinho de mãos.
— Vocês todos estão completamente loucos, já que o Andrew é o
melhor! — Interrompo e uma rodada de bolinhas de papel voa em minha
direção, me obrigando a tentar me proteger com o braço.
— Cancela a cerveja dela, por favor! — Charlie levanta a mão e
finge estar falando com o garçom, me fazendo rir.
— Estou falando sério! Ele literalmente produz o próprio fluído de
teia, sozinho! Ele é um gênio, e é sensível, engraçado…
— O Tobey também produz seu próprio fluído de teia! — Charlie me
interrompe, seus olhos fixos nos meus com aquela feição que é uma mistura
de malícia com travessura. Diabolicamente angelical.
Como ele consegue falar de fluído de teia e continuar sexy, eu não
sei, mas é impossível não abrir um sorriso carregado com a mesma malícia.
— O Tom também! — Emma completa o pensamento, nos fazendo
quebrar o contato visual e olhar para ela com o cenho franzido.
— Não! — Eu, Charlie e Theo falamos ao mesmo tempo e
começamos a rir.
— É o traje dele que produz — Theo revira os olhos.
— E nem foi ele quem construiu! — Viro-me para Theo indignada e
ele concorda. — Ele ganhou do Tony Stark.
— Vocês são injustos! — Emma se joga no encosto do assento no
instante em que as cervejas chegam.
— O Tom é ótimo, não me leve a mal. — Olho para Emma fazendo
carinho em seu braço e apertando os lábios para segurar o sorriso pela forma
que ela finge estar irritada. — Mas vamos lá, Peter e Gwen… Muito melhor
do que Peter e Mary Jane, ou Peter e MK!
— O que? — Theodore praticamente gritou de indignação com
minha frase.
— O seu Peter nem conseguiu salvar a Gwen! — Charlie joga na
minha cara, me fazendo abrir a boca sem acreditar no seu golpe sujo. — Pelo
menos nossas MJ estão vivas.
— Eu não acredito que você colocou a maior dor do meu Peter em
discussão! — Está difícil esconder o sorriso, principalmente quando ele
apoia o braço em sua cadeira e levanta a sobrancelha ao beber de sua caneca.
Uma pose de quem diz “eu venci”. — Você não tem coração, Cooper.
— Ai! — Ele sorri e coloca a mão no peito, fingindo dor e me
fazendo rir abertamente.
— Acho melhor a gente parar com esse assunto por aqui, antes que
alguém nessa mesa acabe ferido! — Thomas gargalha, mas é claro que os
outros não concordam e a discussão continua.
— Você estava falando em português antes? — Charlie pergunta no
meio do barulho dos outros e eu concordo. Seu sorriso malicioso aumenta,
assim como seu olhar, que cai em minha boca por um rápido segundo. —
Sexy.
Dou de ombros, mostrando não ser nada demais, é inconsciente
umedecer meus lábios antes de dar um gole em minha cerveja e desviar o
olhar, para não deixá-lo convencido demais.
Passo meu olhar pela mesa, Olive não falou nada durante toda a
conversa e está séria, mexendo no celular de forma incomodada.
Completamente alheia ao que está acontecendo ao seu redor. Ela parece
sempre manter todos em paz e unidos, mas está preocupada com alguém e
ninguém parece se importar, desde que chegamos ali.
Estico minha perna por baixo da mesa, até que meu pé toque sua
perna e seus olhos castanhos e doces encontrem o meu. Gesticulo, em
silêncio, perguntando se está tudo bem e ela força um sorriso, concordando.
Em seguida, deixa o celular na mesa e parece se esforçar para participar da
conversa.
Capítulo 11

“Não há muito que possamos fazer sobre envelhecer


Mas muito que possamos fazer sobre crescer”
Growing Up - McFly

Eu precisava exatamente disso: rir sem me preocupar com mais nada.


Sair e me lembrar de que eu não estou aqui somente para estudar e sim para
viver e me divertir. As horas que seguem passam rápido, as canecas de
cerveja não param de chegar na mesa, assim como as porções de batata frita
com queijo que a Emma não para de pedir.
Já são quase onze da noite, quando me levanto para ir ao banheiro. A
nova discussão na mesa é sobre o ranking dos professores mais carrascos do
campus. É claro que o professor Herman está no topo da lista, mesmo não
sendo professor de todos, sua reputação o acompanha por todos os cursos.
No caminho de volta para a mesa, vejo Manuela sentada sozinha em
uma banqueta das pequenas mesas redondas espalhadas pelo meio do salão.
Ela está mexendo no celular e parece cansada, mas abre um sorriso sincero
no instante em que me aproximo.
— Estou atrapalhando? Você falou para eu vir falar com você.
​— Nem um pouco! — Ela puxa uma banqueta e a coloca na sua frente. —
Senta um pouco comigo! E aí, muita saudade de casa?
​— Da minha mãe, principalmente. — Assinto e apoio o cotovelo na
mesa, o queixo na mão. — Você sente?
​— Pra caramba! Mas não me arrependo de estar aqui, nem um pouco.
Você não faz ideia da briga que comprei para conseguir colocar o pé para
fora do país… Ou melhor, de casa!
​— Seus pais são protetores?
​ Acho que “protetores” é uma palavra muito gentil para o que eles

são. — Manu faz uma careta e pensa por um instante. — Eles estão mais
para a mãe Gothel, da Rapunzel, mas só na parte de me prender. Eles
melhoraram bastante com o tempo.
​— Que horror! — Sorrio, porque vejo que ela está falando sobre o
assunto com leveza. — Ainda bem que está aqui então.
​— Também acho. — Manu apoia o corpo para frente, aproximando um
pouco de mim. — Você faz Direito, também, certo?
​— Ah, a Ava realmente falou de mim para você.
​— Me sinto na obrigação de defender a minha parceira de estudos, que
não é fofoqueira. Saiba que eu que perguntei! Fiquei muito sozinha quando
cheguei aqui, não era uma pessoa com facilidade de fazer amizade e meu
círculo social se resumia ao meu namorado e aos amigos dele…
Principalmente porque, a todo momento, acho que alguém vai me sequestrar
e roubar meu rim. — Ela fala com um sorriso culpado, e coloca a mão no
peito, me arrancando uma risada alta pelo drama. — Então, achei que seria
legal saber mais de você.
​— Para ter certeza de que seria seguro ser minha amiga, porque eu não
vou roubar seu rim, certo?
​— Exatamente! — Manu sorriu surpresa. — Acho que seremos ótimas
amigas, Mari!
​— Nina — a corrijo —, no Brasil meus amigos me chamam de Nina.
​— E como o pessoal te chama aqui? Eles tem uma mania horrível de nos
chamar pelo sobrenome, eu odeio.
​— Por incrível que pareça, eu até gosto quando me chamam de Dias, ou
de “gringa”. — Aperto os lábios e dou de ombros. — É como se eu estivesse
tendo uma nova vida aqui, faz sentido? Uma nova oportunidade.
​— Faz completo sentido, sério! Nunca vou me esquecer do dia que eu
desci do avião. Parece que até respirar ficou mais fácil, sem pressão.
​Manu confessa e, antes que possa falar qualquer coisa, um cara com
cabelo escuro e braços e mãos cheias de tatuagens se aproxima de nós, indo
até ela com uma lata de Coca-Cola na mão.
​— Eu prometo que no próximo final de semana a gente foge para a casa
dos meus pais, em Nottingham, o que acha, darling? — Ele fala em
português, os olhos gentis fixos nela.
​— Acho um ótimo plano e também acho que ele vai fazer chantagem
emocional para ficarmos. — Manu sorri e lhe dá um beijo suave e rápido. —
Já foi para Nottingham, Nina?
​— O mais longe que fui, por enquanto, foi LittleWin.
​— Você entrou para a Ordem? — Manu pergunta surpresa e eu confirmo
com a cabeça, ela se vira para o cara. — Lembra que te contei sobre a
brasileira, do grupo da Ava?
​— Ah, é você! Sou Matthew — ele estende a mão para apertar a minha e
olha para Manu. — Já se certificou de que ela não é uma psicopata?
​Não consigo evitar rir. No final das contas, ela não estava brincando
sobre não confiar nas pessoas.
​— Tudo certo. — Manu ri e dá um gole em seu refrigerante.
​— Por enquanto! — Levanto a sobrancelha em desafio e os dois riem. —
Vocês não fazem parte do grupo?
​— Não… Nosso tempo é escasso, infelizmente. — Matthew responde e
joga o cabelo para trás. Que cara gato a Manu arranjou, uau.
​— É, com a pós, o estágio, meu trabalho de home office no escritório do
meu pai… — Manu aperta os lábios, com pesar.
​— Sem contar todos os finais de semana quando preciso trabalhar fora e
você me acompanha. — Matthew completa.
​— Mas ajudamos como podemos.
​Manu se ajeita na banqueta e Matthew passa o braço ao redor de seu
ombro, dando um beijo em sua cabeça. Eles parecem ser um casal legal e
tranquilo. Daqueles que dá vontade de manter por perto, porque sabe que
não irá presenciar dramas desnecessários.
​Desvio o olhar quando ele começa a falar algo no ouvido dela, que presta
atenção de forma séria e assente com a cabeça. Aproveito o momento para
olhar ao nosso redor e, no meio das pessoas, vejo Olive saindo do banheiro e
andando apressada em direção à saída. Ela passa perto de mim, mas não me
vê.
​Eu a chamo, fazendo-a levantar o olhar para encontrar com o meu e
mudar seu trajeto, vindo em minha direção.
​— Você não parece muito feliz hoje… — Comento em voz baixa e ela
dá de ombros.
— Eu odeio quando isso acontece, sabe? Reginald não sabe o que
quer na maior parte do tempo, mas é só eu sair sozinha que ele fica em cima
de mim… — Ela mexe a cabeça para os lados e suspira. — Deixa quieto,
não é nada.
— Isso não parece nada, sei que você não costuma beber, mas pelo
menos você se diverte com todo mundo.
— Bom, não hoje, aparentemente. — Olive coloca as mãos na
cintura, com uma careta no rosto. — Eu só estou cansada desse joguinho que
existe entre a gente.
— Achei vocês!
Um cara loiro, com o nariz empinado e algumas tatuagens nos braços
fala muito alto, chamando nossa atenção e apontando para Manuela e
Matthew. Não continuo falando por causa da nova presença na mesa e
observo o cara… Parece que eu o conheço de algum lugar.
— Eu já falei que amo vocês? — Ele abre um sorriso charmoso, os
braços abertos como se estivesse indo abraçar o casal.
— Não! — Matthew aponta para ele em advertência, fazendo-o
desistir do abraço. — Não vamos fazer mais nada do que você pedir, já
chega por hoje!
— O que? Mas eu nem pedi nada demais! — O loiro revira os olhos
e levanta a mão, falsamente ofendido.
Sinto a mão de Olive segurar meu braço com força e pressionar
repetidas vezes, como se quisesse me alertar de algo. Olho para ela e tento
uma conversa com o olhar, mas ela está estática e pálida, como se tivesse
visto um fantasma. Não consigo evitar ficar preocupada quando vejo seus
olhos, sempre doces, arregalados e a forma como segura a respiração.
— Manu… Darling… — O loiro enfatiza o apelido que Matthew
usou, o que faz o moreno cerrar os olhos. — Você não vai dizer não para
mim, vai?
— Vou, Johnny, eu com certeza vou! — Manu também cerra os
olhos, mas diferente do namorado, mantém um sorriso no rosto. — Eu tenho
dois trabalhos para terminar e um mundo de documentos acumulados e,
mesmo assim, te ajudei a abrir hoje!
— Não acredito que você vai fazer isso com o meu coração! —
Johnny faz uma voz manhosa e Matthew começa a sorrir.
Ok, ele deve ser o dono do PUB.
— Você conhece eles? — Olive sussurra, virando o rosto para longe
do grupo, a mão ainda segurando meu braço com firmeza.
— Acabei de conhecer, a Manu é a amiga da Ava…
— Que mal educada, Manu! Quem são suas amigas? — O tal Johnny
chama nossa atenção, fazendo com que viremos para ele. O aperto de Olive
fica mais suave, mas não me solta.
— Essa é a Marina, e… — Manu fica esperando Olive falar seu
nome, mas o que ela faz é olhar para Johnny e não se mover, como se tivesse
desaprendido a falar.
— Olive. — Respondo por ela. — Esta é a Olive.
— É um prazer, Olive. — Johnny fala com simplicidade, me
ignorando completamente e medindo Olive de cima a baixo, com um sorriso
de lado no rosto. — Te conheço de algum lugar?
Vejo o rosto de minha amiga ficar vermelho imediatamente, enquanto
ela enrijece seu corpo e levanta o nariz. Não estava com vergonha, como
achei que ficaria, e sim irritada. Seus olhos parecem capazes de fuzilar
alguém, ou no caso, o Johnny.
— Eu tenho que ir, tá bom? O pessoal falou que ia ficar mais um
pouco e depois ia embora, toma cuidado.
Olive me dá um pequeno abraço, um pequeno sorriso para Manu, e
ignora completamente o Johnny quando se afasta. Eu a acompanho com o
olhar, sem entender o que acabou de acontecer, ou suas motivações e o que a
irritou.
— Eu fiz alguma coisa? — Johnny pergunta, tão confuso quanto eu.
— Não duvido nada que você já tenha ficado com ela e se apresentou
de novo. — Manu responde e se vira para mim. Não percebi em qual
momento da conversa começamos a conversar em inglês, mas a esse ponto,
nossa língua materna já havia sido deixada de lado. — Mas sobre o grupo, o
que está achando?
— Hum… — Penso um pouco e olho para trás, procurando por
Olive, mas não consigo ver seu cabelo volumoso em lugar nenhum. Ela
realmente se foi. — Conheci o Centro hoje e participei de uma reunião. As
coisas estão complicadas.
— Estão falando sobre o Centro em LittleWin? — Johnny pergunta,
mudando completamente sua postura brincalhona e ficando mais sério.
Eu o olho novamente e concordo, mas a sensação de que já o vi em
algum lugar acerta meu peito mais uma vez. Até a voz é parecida com a de
alguém que eu conheço, só não consigo identificar de quem.
— Você pode falar com a Ava para marcarmos mais uma aula de
música com os jovens, darling. — Matthew fala para Manu. — Faz tempo
desde a última e eu gostei bastante da galera.
— Acho que eles vão adorar, estamos precisando de voluntários
agora que vão reduzir a quantidade de professores. — Respondo para ela e
olho para Johnny de novo. Não vou conseguir ficar quieta com essa sensação
em minha mente, é como quando a gente esquece o nome de algum ator e
fica com aquilo na cabeça até se lembrar. — Você é muito familiar, já nos
vimos alguma vez?
— Ah, é? Eu sou familiar? — Johnny abre um sorriso travesso e olha
para Matthew, como se estivesse compartilhando alguma piada. — Onde
você acha que já me viu?
— Eu não faço a menor ideia… — Franzo a sobrancelha, pensativa.
— Da universidade, talvez?
— Eu não estudo. — Johnny cruza os braços.
— Então, eu não sei. — Dou de ombros e a Manu suspira, se
divertindo, como se soubesse o que vinha pela frente.
— Você é um idiota. — Matthew empurra o ombro de Johnny de
leve e se vira para mim. — Você gosta de música, Marina?
— Sou movida por música.
— Rock, provavelmente? — Matthew continua e confirmo.
— Do que você gosta? My Chemical Romance, Blink 182,
DownUnder… — Johnny pergunta e Manuela finalmente ri.
— DownUnder? — Faço uma careta. Eu gostava do som dos caras,
mas soube que tiveram muitas polêmicas envolvendo o ex-vocalista da
banda alguns anos atrás, algo com assédio sexual, abuso de drogas e álcool,
então parei de escutar. — Não.
— Por que essa careta? — Johnny se aproxima, preocupado.
— Ah, não me leve a mal, eles até eram bons, mas tiveram aquelas
polêmicas e, sinceramente, nem chegam aos pés do The Killers, por
exemplo. — Minha resposta arranca uma risada alta de Matthew e de
Manuela, que parecem não acreditar no que estão escutando. — O que foi?
Falei alguma coisa errada?
— Prazer, Johnny… Baixista da DownUnder. — Johnny faz um
pequeno biquinho e estende a mão para segurar a minha.
— Ah… — Abro minha boca e olho assustada para Manu, que está
se divertindo absurdamente com a minha desgraça. Sinto meu rosto ficar
vermelho, sem acreditar no fora que dei. — Me desculpa, eu não sabia…
— Tudo bem, todo mundo tem direito de ter sua opinião, certo? —
Johnny coloca a língua na bochecha e as mãos no bolso. — E pelo menos
você foi sincera e não puxou meu saco.
— Coisa que acontece com muita frequência — completa Matthew.
— Se vale de alguma coisa, eu gosto de Flowers to Rosie, acho que é
uma das melhores de vocês. — Tento consertar minha vergonha.
— Não se preocupe, Nina. — Manu passa a mão nos olhos, secando
as lágrimas no canto dos olhos. — Esse aí precisa colocar o pézinho no chão
às vezes, não é mesmo, bebezinho?
Ela se estica na mesa e aperta as bochechas do Johnny, que força um
sorriso para ela e empurra sua testa para longe dele.
— Sai fora! Matthew, controla sua darling.
— O dia que eu controlar qualquer coisa que essa mulher faz, você
me interna no hospício. — Matthew bate na mão do amigo, que está
tentando bagunçar o cabelo da Manuela e volta sua atenção para mim. —
Você consegue ver se a gente pode marcar algumas aulas no Centro?
— É, podemos aproveitar o tempo que estamos sem shows. —
Johnny desiste de tentar alcançar a Manu e os três me olham, como se
soubessem exatamente em qual momento brincar e em qual levar as coisas a
sério.
— Vocês podem fazer uma semana inteira de aulas, o que acham?
Um dia para cada. — Manu completa. — Archie e Parker topam, com
certeza.
— Vocês estão falando sério? — Pergunto sem acreditar no que estão
oferecendo. Posso não ser a maior fã da DownUnder, mas sei o quanto eles
são conhecidos na Inglaterra e o quanto isso seria incrível.
— Seríssimo! — Matthew coloca a mão no bolso e puxa sua carteira,
procurando por algo dentro. — Aqui, este é meu cartão, me liga que a gente
combina tudo, pode ser?
Concordo e pego o cartão, lendo com atenção as informações ali e
me surpreendendo quando vejo “Empresário da DownUnder” impresso
debaixo de seu nome.
Uau. Eu realmente sou uma idiota que fala mais do que a boca.
— Me avisem sobre os planos. — Johnny dá dois tapinhas na mesa e
dá um passo para trás, começando a se afastar. — Sabe qual é a pior parte de
abrir um PUB?
— Ter que trabalhar em vez de só beber? — Pergunto, sem pensar
duas vezes.
— Gosto de como pensa! — Johnny confirma, apontando para mim.
— Boa noite, darlings.
— Boa noite! — Manu e Matt acenam um tchau para o amigo. —
Vamos também? Você ainda tem que me dar carona até em casa…
— Se você morasse comigo, eu não precisava te dar carona… —
Matthew pisca os olhos algumas vezes para Manuela, que solta os ombros e
suspira, arrancando-lhe um pequeno sorriso. — Não custa nada tentar.
— Dois anos, Nina… Já são dois anos que esse homem me pede para
morar com ele. — Manu brinca e se levanta, se aproximando de mim com o
celular esticado. — Me passa seu número, vamos manter contato.
— Por favor! — Pego o celular e digito meu número, feliz por ter
gostado dela.
— Você vai ficar bem sozinha?
— Eu já vou também, tenho um dia cheio amanhã. Professor
Herman, sabe como é… — Resmungo e me levanto.
— Puts, boa sorte, vai precisar. Felizmente, me livrei dele ano
passado.
— Mal comecei e não posso esperar para terminar a matéria dele
logo. — Assumo e sei que ela compartilha do mesmo sentimento pelo seu
olhar de compaixão.
— Se cuida. — Matthew se despede à distância e coloca a mão nas
costas de Manu, guiando-a para a saída.
Eu os observo um pouco e olho ao redor. Ao longe, vejo Theo e Ava
conversando em nossa mesa, enquanto Thomas e Emma se beijam. Não vejo
o cabelo ruivo de Charlie e decido ir embora também. Levanto-me da
mesinha e, no mesmo instante, um pequeno grupo a ocupa, porque não tem
mais nenhuma outra mesa disponível.
Agora eu entendi porque esse PUB é tão lotado: um roqueiro famoso
é dono dele e, para minha surpresa, realmente trabalha no local.
​Pego meu celular para mandar uma mensagem à Emma, avisando que eu
vou embora e, inconscientemente, abro o contato de Charlie. Olho para a
conversa vazia e deixo meus dedos parados no teclado. O que eu mandaria
para ele?
​“Oi, achei que a gente fosse se pegar hoje, mas acho que você foi
embora.”
​Não. Eu não vou passar por essa humilhação. Já deixei claro o meu
interesse e se ele não deu nenhum passo, além dos flertes descarados, talvez
seja melhor deixar para lá.
Capítulo 12

“Estou pensando que deveríamos cruzar a linha


Vamos arruinar a amizade
Fazer todas as coisas em nossas mentes”
Ruin the Friendship - Demi Lovato

​ vento bagunça meu cabelo assim que piso na calçada. Desvio de


O
algumas pessoas que estão esperando para entrar no PUB e pego o celular na
bolsa. Estamos em um bairro consideravelmente perto do meu apartamento,
então quero tentar me localizar antes de sair andando pelas ruas, sem rumo.
​— Já vai embora?
​É impossível esconder o sorriso que surge em meu rosto quando escuto a
voz de Charlie atrás de mim. Parece que o universo está jogando ao meu
favor, no final das contas.
​— Eu nem deveria ter vindo, para começo de conversa. — Brinco me
virando para ver seu rosto e o vejo jogar uma bituca de cigarro no chão,
antes de soltar a fumaça pelo nariz.
​— Eu sou tão chato assim? — Charlie coloca uma mão no bolso e
levanta a sobrancelha.
​— É… — confirmo com uma careta que o faz rir.
​— Bom, eu me esforço.
​Nos olhamos em silêncio por alguns segundos, o clima das cervejas que
bebemos, acompanhado dos flertes das últimas semanas pairando entre nós.
Eu preciso beijar esse homem. Hoje, de preferência.
​— Você podia me ajudar, já que é um nativo e conhece bem a cidade —
ofereço meu celular para ele com o aplicativo de mapa aberto. — Arrisco ir
a pé, ou vou de Uber?
​ le passa o dedo na tela, olhando o caminho que tenho que fazer até
E
chegar na minha casa e, então, bloqueia o celular antes de me devolver.
​— Se você for sozinha, Uber. Se quiser caminhar, posso te acompanhar,
essas ruas não são perigosas. — Responde sem tirar os olhos de mim.
​— Não vou te fazer ir embora só para me levar até minha casa.
​É claro que estou fazendo charme e quero sim que ele me leve embora,
mas vou deixá-lo pensar que está no controle. Sua expressão é exatamente a
que eu estava esperando. Charlie liga para alguém do próprio celular e,
depois de alguns segundos, olha para a entrada do PUB.
​— Emma, vou acompanhar a Dias até a casa dela, paga minha conta? Tá
bom, não exagerem, viu? E peça um Uber para ir pra casa. Boa noite. — Ele
desliga e estende o braço para o lado direito. — Pronta, senhorita Dias?
​— Pronta, senhor Cooper.
​Achei fofo ele avisar a irmã que estava indo embora, os últimos caras
com quem sai não se importavam com nada além de seus próprios umbigos.
​— Comentei com o Thomas sobre sua ideia de workshop para o Centro e
ele topou, falou que é só você marcar a data com a Olive. — Imediatamente
percebo o que ele está fazendo, não tem como errar falando sobre o Centro,
já que o assunto está em uma zona neutra e segura no momento.
​— Acabei de conseguir um mês de aula de música para aliviar os
horários sem atividade. — Sorrio e faço um leve suspense antes de continuar
falando, o que deixa Charlie esperando curioso. — Com a DownUnder, o
que acha?
​— Você está brincando… — Charlie cerra os olhos e, quando nego, para
de andar, aparentemente surpreso. — Como você conseguiu isso?
​— Esse é um segredo que não vou revelar, Cooper.
​Olho para ele por cima do ombro, ainda sem parar de andar. Ele apressa
o passo para ficar ao meu lado e prestamos atenção no movimento da rua. A
lua está alta no céu, aparecendo entre as construções antigas, e o clima está
frio, mas não o suficiente para afastar as pessoas que vemos entrando e
saindo de bares, dando risada e cantando… Uma típica sexta-feira a noite
agitada.
​A cidade é tão linda de noite, quanto é de dia.
​— Você está escutando isso? — Pergunto tentando prestar atenção em
uma música distante que chama minha atenção. Acho que conheço a
melodia.
​ Não consigo escutar nada… — Charlie me imita com ouvidos

atentos, enquanto franze a sobrancelha.
​Apresso um pouco meus passos e a música fica cada vez mais clara, me
fazendo abrir um sorriso grande quando me viro para Charlie e noto que ele
também conseguiu escutar. Quanto mais andamos, mais próximos chegamos
da voz da Alanis Morissette, até que finalmente estamos do outro lado da rua
de onde está vindo o som.
​— Eu amo essa música! — Sorrio parada na calçada. — And life has a
funny way of helping you out when you think everything's gone wrong and
everything blows up in your face.
​— Então, vem — Charlie segura na minha mão e me puxa para
atravessar a rua.
​Seu toque é quente, independente do frio que está ao nosso redor. Sinto
minha mão menor do que a dele e seu aperto firme me traz segurança, o que
é estúpido, mas faz sentido. Estar do seu lado faz eu me sentir amparada,
mesmo fazendo a coisa mais banal de todas. Dou risada e o acompanho com
alguns pulinhos. Porém, antes de chegarmos do outro lado, vejo que o sinal
para os carros está fechado.
​— Aqui está ótimo! — Paro de andar e solto nossas mãos, ficando na sua
frente para começar a dançar devagar.
​— Estamos no meio da rua…
​Charlie olha ao redor, se certificando que, além do sinal estar fechado,
também não tem nenhum carro à vista. A luz vermelha do semáforo nos
ilumina e seu cabelo fica ainda mais ruivo.
​— And isn't it ironic, don't you think? — Levanto uma sobrancelha em
desafio, fazendo a pergunta para ele enquanto acompanho a letra. Ele sorri, o
que me faz apoiar as mãos na cintura e interpretar como se estivesse
realmente vivendo a música. — A little too ironic, and yeah, I really do
think!
​O ruivo se dá por vencido e começa a cantar o último refrão da música a
todo pulmão, nós dois em completa sincronia. Sinto uma carga de adrenalina
invadir meu corpo enquanto pulo com ele na minha frente. Seu sorriso
ilumina o rosto e as marquinhas suaves na lateral de seus olhos o tornam
ainda mais especial.
​Charlie Cooper se deixa levar pela vida e faz tudo parecer fácil. Como se
cantar no meio da rua, sem se importar com alguém vendo ou ouvindo, fosse
tão normal quanto abrir os olhos todos os dias ao acordar.
​ u gosto muito disso.
E
​— Life has a funny, funny way of helping you out… Helping you out — a
música termina e nós dois ficamos nos olhando.
Tenho certeza que carrego um sorriso idiota no rosto.
É impossível não carregar.
O som de um carro se aproximando faz com que Charlie segure em
minha mão novamente e nos guie em segurança até a calçada. Dessa vez,
não o solto, e andamos pela rua em silêncio, como se nada tivesse
acontecido, e com o sorriso ainda no rosto. Nossos dedos se tocando são um
lembrete confortável do momento que passou, mas que ainda paira entre nós.
Chega de esperar.
— Eu estou com um problema que só você pode resolver. — Seu
cabelo está bagunçado e ele o joga para trás, virando o rosto para mim
também.
— O que você quiser — fica sério, realmente esperando para me
escutar.
Não sei se ele vai tentar algo quando estivermos chegando na minha
casa, mas sei que estou com muita vontade de beijá-lo, aqui e agora. Não
quero perder minha chance, nem continuar fazendo esse joguinho que está
rolando desde que nos conhecemos.
— Você é muito alto e isso é um grande empecilho para que eu
consiga te roubar um beijo, então achei que devia deixar clara a minha
vontade. Sabe, para você poder fazer alguma coisa sobre isso. — Digo
divertida, como se não fosse nada demais, e vejo seu olhar se suavizar,
acompanhado de um sorriso de lado.
Charlie para de andar e olha ao nosso redor, procurando por algo.
Andamos lado a lado até a frente de um prédio, então ele me levanta no ar
pela cintura, e me coloca no primeiro degrau da escadaria que separa o
condomínio da rua.
Dou um pequeno gritinho com seu movimento inesperado e sinto
meu coração disparar, não deveria estar nervosa, mas estou mesmo assim.
— Resolvi seu problema?
Sua voz baixa, acompanhada dos olhos castanhos e intensos, me
fazem prender a respiração, enquanto confirmo em silêncio. Ele continua
mais alto que eu, mas agora os centímetros de diferença não me atrapalham.
A mão em minha cintura pressiona suavemente minha pele, puxando
nossos corpos para ficarem mais perto. Charlie se inclina devagar e sua mão
livre levanta meu queixo em direção à sua boca, enquanto aproxima o rosto
do meu com cuidado.
E ele me beija, me colocando em um estado inicial de tranquilidade.
Todos os pensamentos fogem da minha mente e o tempo para ao nosso redor.
Ninguém mais existe além de nós dois, de pé na calçada da casa de alguém.
Sua língua pede permissão para entrar em minha boca e eu cedo sem
pensar duas vezes, ansiosa para sentir seu beijo por completo. Nosso gosto é
um misto de cerveja e cigarro, mas ainda doce e intenso.
Fico na ponta dos pés e seguro sua nuca, entrelaçando os dedos em
seus fios macios. É inevitável esconder o pequeno gemido quando o sinto
morder meu lábio, antes de aprofundar o beijo com vontade. Também é
necessário puxá-lo para ainda mais perto, em uma tentativa de sentir seu
corpo no meu.
Passo o braço por suas costas, abraçando-o, e ele faz o mesmo, mas
descendo a mão até minha bunda e me puxando em direção ao seu quadril.
Ok. Isso é bom, muito bom.
Continuamos nos beijando e a urgência dos toques apenas aumenta.
Charlie segura minha nuca, sem deixar que eu termine o beijo, e eu acabo
colocando a mão por baixo de sua roupa, sentindo suas costas quentes nos
meus dedos. A falta de ar é um mero detalhe, não quero me afastar. Não
agora.
Estou tão imersa na troca de toques que está acontecendo entre nós,
que só noto um pequeno grupo passando ao nosso lado, quando Charlie se
afasta sorrindo, olhando para o pessoal que está aplaudindo nosso beijo.
Mordo minha boca para segurar o sorriso tímido, que insiste em surgir
involuntariamente, e aceno para o grupo, que ri até estar longe o bastante de
nós dois.
— É melhor a gente ir, está ficando tarde. — Charlie solta minha
cintura e faz carinho em meu braço, antes de segurar minha mão novamente.
O resto do caminho passa extremamente rápido. Talvez seja porque
estou sorrindo como uma idiota, ou porque não quero que ele vá embora e,
por isso, o relógio insiste em andar mais depressa como uma forma de me
torturar. Quando menos espero, estamos na rua do meu prédio. Sinto um frio
se apossar do meu corpo na hora que vejo a entrada, entendendo que ele vai
embora.
— Esse é o meu — aponto para o prédio e ele me acompanha escada
acima, nós dois parando na porta de acesso ao hall.
Despedidas assim são um pouco constrangedoras, a gente nunca sabe
se está no momento de ir embora, ou se devemos ficar juntos mais um
pouco. Ele vai me beijar na bochecha, na boca ou só vai me dar um selinho
sem graça? Vamos nos abraçar ou nos despedir à distância?
Com certeza, uma das coisas que eu mais odeio em ficar a primeira
vez com alguém, é não saber como a nossa dinâmica vai funcionar.
Geralmente eu não quero nada sério com a pessoa, e às vezes os sinais ficam
perdidos no meio do flerte.
— Agora é você que vai ter que me ajudar com um problema. —
Charlie passa a mão em meu cabelo, afastando-o de meu rosto para colocá-lo
atrás da orelha. Eu amo quando fazem isso comigo.
Merda, mais um ponto positivo para a lista de acertos dele, que está
cada vez maior.
— E qual seria esse problema? — Nosso olhar se encontra de novo e
consigo sentir todo o desejo que ele está carregando.
— Eu não sei como vou embora com essa vontade de te beijar de
novo. — Abre um pequeno sorriso de lado.
O mesmo sorriso que não sei se um dia vou me acostumar. Sem se
emocionar, Nina. É óbvio que vou, até cansar. É o ciclo que sempre se
repete, mas isso não quer dizer que vou afastá-lo de uma forma ruim. Só
quer dizer que eu me conheço o suficiente para saber que eu nunca vou
conseguir levar isso adiante, por mais incrível que ele seja.
— Você não precisa ir embora.
Sim, estou convidando-o para subir. Poderia só dar mais um beijo e
mandá-lo embora, mas eu sei que vou querer mais do que só isso. Emma
falou que ele não quer nada sério com ninguém, e isso é perfeito, eu também
não quero. Eu quero um cara gato, gostoso, gentil, que beije bem e que seja
uma ótima distração para minha rotina sobrecarregada. E se tiver um pau
grande, melhor ainda.
— Isso é um convite? — Charlie levanta a sobrancelha e dou de
ombros.
— Só se você quiser ficar. — Olho disfarçadamente para baixo,
porque a teoria de “homens com pés grandes, tem paus grandes” nunca me
decepcionou antes, e Charlie parece que não vai me decepcionar também.
— Eu quero.
E sem responder ou quebrar nosso contato visual, pego a chave em
minha bolsa, sentindo a tensão crescente entre nós. Tensão e tesão, porque o
calor no meio das minhas pernas está mais forte.
Entramos no prédio e eu o guio até as escadas, onde subimos três
andares até chegarmos ao meu. Capitu nos recebe na porta, resmungando
porque a deixei sem comida já que cheguei mais tarde do que esperava.
— Fica à vontade, eu só preciso cuidar dessa mocinha… — Deixo
Charlie explorar meu pequeno apartamento e ele olha tudo com atenção,
enquanto deixo a bolsa no balcão e vou na cozinha pegar a ração dela.
Capitu está me julgando com o olhar, é como se dissesse: Eu sei
exatamente o que você vai fazer com esse ruivo, sua vagabunda.
Bom, sinto muito Capitu, mas eu não tenho culpa de querer dar para
um gostoso que, claramente, está na minha. A carne é fraca e eu estou na
seca.
— Você gosta de plantas… — Charlie comenta da sala.
— Foi uma das primeiras coisas que comprei quando cheguei aqui.
— Termino de colocar a comida em seu potinho e guardo o saco de ração. —
Sabia que cada uma tem uma finalidade diferente?
Ando até a sala, me aproximando dele e do varal, onde estão algumas
ervas para eu fazer incensos naturais daqui alguns dias.
— Muito interessante, acho que vou me inscrever no seu workshop,
no final das contas… — Charlie corta o assunto e, sem falar mais nada, nos
beijamos.
Fico na ponta dos pés e tento alcançar sua boca. Ele se abaixa um
pouco, me levantando com os braços ao redor da minha cintura, para me
ajudar a ficar mais alta. Porra, que beijo bom.
O beijo agora está preguiçoso, como se tivéssemos todo o tempo do
mundo para aproveitar um ao outro, mas logo sinto a pressão de seu pau
ficando rígido em meu estômago. Ótimo, era só o que eu precisava para a
pulsação no meio das minhas pernas voltar, implorando para que tirássemos
nossas roupas.
Capitu mia mais alto do que o costume, e a gente se separa para olhá-
la. Eu juro que se essa gata falasse, passaríamos a maior parte do tempo
brigando. O olhar que ela nos dá tem tanto julgamento que acabo ficando
constrangida.
— Vamos para o quarto — me afasto dele e seguro sua mão,
indicando o caminho.
— Ela não gosta quando você tem companhia? — Charlie brinca,
entrando no quarto.
— Ela não gosta de nada, acho que nem de mim.
Dou uma risada baixa quando fecho a porta e sinto seu olhar em
minhas costas. Uma onda de calor percorre meu peito, como se meu corpo
estivesse reconhecendo que, com ele, as coisas são diferentes. Posso até não
querer nada sério, mas cada pedaço do meu corpo grita que será uma noite
de sexo casual, como estou acostumada.
Como se isso já tivesse acontecido antes, o que, claro, é impossível.
Ele se aproxima e levanta meus braços para o alto, tira minha blusa e
camiseta, tocando suavemente cada pedaço de pele nua que surge. Seus
dedos passeiam pelo meu braço, sobem até o ombro e descem
preguiçosamente pelo meu busto, tornando impossível não me arrepiar. Ele
sabe exatamente o que está fazendo comigo, porque seu dedo passa devagar
por minha barriga até chegar no cós da minha calça.
Minha respiração está descompassada e minha calcinha molhada.
Charlie se ajoelha com calma, sem tirar os olhos dos meus e, me torturando
de tão lento, começa a puxar minha calça para baixo. Eu o ajudo a tirar as
pernas e, assim que estou apenas de calcinha e sutiã, ele deposita alguns
beijos suaves em meu ventre, descendo até a coxa.
É impossível não gemer sentindo os lábios quentes tocando minha
pele daquela forma. Charlie se levanta, a mão segurando com firmeza minha
bunda, quando eu o beijo com desejo. Preciso sentir aquela boca na minha
de novo. Então, enquanto o beijo, abro seu cinto e ele me ajuda a tirar a
roupa dele. A intensidade do nosso toque aumenta no instante em que nossas
roupas estão no chão e Charlie começa a dar alguns passos para trás, me
levando em direção à cama.
Tento me afastar, mas ele não deixa e me puxa para seu colo, me
fazendo entrelaçar as pernas ao redor de sua cintura, enquanto segura minhas
coxas com firmeza. Ele senta na cama e, antes que eu possa entender o que
acontece, nos deitamos, eu em cima dele e meu clitóris pressionado à rigidez
em sua cueca.
— Seu beijo é bom pra caralho… — Charlie sussurra, descendo sua
boca pelo meu maxilar e indo para meu pescoço.
— O seu também não é de se reclamar — provoco me esfregando em
seu colo e mordendo seu lóbulo. Tão perto, consigo observar melhor a
infinidade de sardas que ele tem espalhada no ombro, assim como em seu
rosto.
Sua mão alcança o fecho do meu sutiã e ele o abre com uma mão,
deixando-o cair em cima de seu peito. Tiro os braços e jogo a peça no chão,
sentando em cima de Charlie e afastando nossas bocas desesperadas. Seu
olhar desce direto para meus seios, subindo uma mão por minha costela até
me segurar com firmeza. Ele massageia meu mamilo e pressiona o volume
em sua mão.
Porra, não consigo identificar se tudo isso que estou sentindo é tesão
acumulado, ou se a culpa é inteiramente dele, mas fecho os olhos e
movimento o quadril mais uma vez, pressionando no dele. Minha atitude o
faz sentar, levando a boca até meu outro seio, chupando meu mamilo sem
parar de massagear o que ainda está em sua mão.
Tá, ele definitivamente é o culpado. Reviro os olhos, porque seu
toque é bom demais, muito melhor do que imaginei. Ou, talvez, eu tenha
passado tanto tempo me relacionando com homens medíocres que esqueci
que posso me sentir bem transando com alguém, e não só com meu vibrador.
Levo meus dedos até seu cabelo e Charlie me deita na cama, ficando
em cima de mim. Seus lábios fazem o caminho para minhas costelas e
barriga, até chegar em minha calcinha. Não consigo tirar os olhos dele e, se
não fosse parecer tão patética, imploraria para ele me chupar. Sua feição, no
entanto, diz que não preciso pedir, já que é exatamente o que ele vai fazer.
Fecho a perna involuntariamente, quando sinto seus beijos em minha
virilha, antes de tirar minha calcinha, me deixando nua. E, sem esperar,
Charlie me abre e sinto sua língua devagar em minha pele, antes de começar
a me chupar com mais intensidade.
— Ah, porra… — Gemo em português, porque minha mente está tão
embaralhada que não consigo pensar no que está acontecendo. — Não para!
— Espero que não esteja me xingando… — Charlie brinca, se
afastando rapidamente de mim, para então voltar a língua até meu clitóris.
— Eu mandei você não parar — fecho os olhos e solto um gemido
alto quando ele introduz um dedo em mim.
Meu coração está acelerado, meus olhos reviram e minha mão segura
o cabelo de Charlie com mais força, mostrando o quanto estou gostando do
que está fazendo comigo. Apesar de estar muito bom, eu quero sentir seu
pau dentro de mim, me preenchendo, enquanto beijo-o e saboreio o meu
gosto em sua boca.
Puxo-o para cima pelo ombro e ele sobe sem pestanejar, me
obedecendo cegamente, enquanto coloco a mão em sua cueca, puxando-a
para baixo para que fique pelado. Não consigo evitar sorrir quando vejo que,
mais uma vez, minha teoria está certa. Pau grande, obrigada universo.
— Por que está sorrindo? — Charlie pergunta com a voz baixa,
convencido já que sabe o motivo.
— Nada… — Mordo minha boca. — Tem camisinha na mesinha de
cabeceira.
Charlie assente e se estica para alcançar a mesinha, abrindo a
primeira gaveta e tateando até encontrar o pacote de preservativo. Ele fica
ajoelhado e o observo desenrolar a camisinha, como se fosse a cena mais
sexy que já vi. Só quero que ele acabe com minha tortura de uma vez, mas
não é isso que ele faz, pelo menos não inicialmente.
Sua boca alcança a minha e ele se coloca em minha entrada,
deslizando para dentro devagar. Nossa línguas estão dançando em sincronia,
acompanhando suas investidas suaves, que só servem para me deixar com
ainda mais vontade. Passo minha unha por suas costas e Charlie geme, e é só
quando eu peço para ele ir mais rápido, que finalmente sinto a sensação
gostosa que vem antes de um orgasmo.
Meu coração disparado, nossas bocas se encontrando uma na outra,
os corpos quentes se movimentando em sincronia… É o que eu preciso para
cravar as unhas nele e sentir todo o meu corpo tremer, a tensão se esvaindo
com uma onda de prazer, que me deixa mole.
Charlie sorri e continua no mesmo ritmo, até que também goza,
apertando meu ombro e se enterrando em mim com força.
Isso foi bom. Melhor do que meus últimos. Melhor do que eu
esperava.
Quando Charlie termina, sai de cima de mim devagar e me beija com
carinho. Sua língua, antes tão voraz, agora está suave e ele me dá selinhos
carinhosos, que fazem eu me sentir satisfeita e desejada.
— Isso foi bom — fala baixo entre beijos.
— Foi muito bom — completo, mordendo sua boca e puxando o
lábio inferior. Charlie ri e se levanta da cama para poder se limpar.
— Banheiro? — Pergunta apontando para a porta do quarto.
— É a porta da frente.
Aninho-me no travesseiro de barriga para baixo e o vejo sair do
cômodo, me deixando sozinha por um momento. Eu posso ser uma idiota,
mas eu gostei. Realmente gostei. Não foi só sexo, quer dizer, foi, mas teve…
Companheirismo, talvez? Como se a gente já tivesse feito isso antes e não
aquele momento estranho de uma primeira vez, em que a gente nunca sabe o
que fazer e como agradar o outro. Não precisei me preocupar com isso.
Geralmente, preciso de algumas vezes para me acostumar e ficar mais íntima
do cara, mas com Charlie…
Algo me diz que essa amizade pode dar muito certo.
— Você quer que eu vá embora agora, Dias? — Charlie pergunta sem
rodeios, voltando para o quarto e procurando sua cueca no chão.
— Não vou te expulsar da minha casa de madrugada, Cooper — faço
uma pequena careta e bato a mão do meu lado da cama. — Pode dormir aqui
se quiser.
— Certo — Charlie mantém o sorriso safado no rosto até deitar ao
meu lado e ficar sério. — Não quero ser chato, mas prefiro deixar claro logo
para não acontecer nenhuma confusão de sentimentos… Eu não quero nada
sério, Dias.
— Ótimo, porque eu também não. — Aperto os lábios escondendo o
sorriso e cerro o olhar, estudando suas expressões. Charlie fica surpreso, eu
diria até um pouco desconfiado. — Mas sou uma ótima amiga.
— Você faz isso com todos os seus amigos? — O ruivo brinca e sua
mão toca minha cintura, fazendo um carinho suave.
— Só com os que eu gosto — dou de ombros e ele ri, concordando
com a cabeça e me puxando para seu peito. — Achei que não namorasse!?
— Não sabia que dormir abraçado com uma mulher gostosa
significava namorar. — Vejo seus olhos fechados e o escuto suspirar,
cansado. — Se preferir, posso dormir no sofá, ou tentar ficar longe de você,
mas estou muito afim de dormir junto.
Ele me olha com sinceridade e eu nego com a cabeça, me
aconchegando em seus braços. Não vou recusar uma conchinha dessas.
Ficamos em silêncio por alguns segundos e ele é confortável demais, o que
me faz colocar a perna por cima da sua e sua mão segura minha coxa,
encaixando nossos corpos.
— Quanto você calça?
— 43, por quê? — Sua voz já está sonolenta e eu sorrio, fechando os
olhos para dormir.
— Curiosidade.
Capítulo 13

“Querida, você pode pensar que é cedo demais


Mas eu não consigo tirar você da minha cabeça agora”
Share Your Address - Ben Platt

​ barulho da Capitu arranhando a porta do meu quarto me acorda, mas


O
demoro alguns segundos para entender o que está acontecendo. Viro meu
corpo na cama e encontro Charlie ainda adormecido, o peitoral à mostra, o
semblante suave e aquele mundo de sardinhas espalhadas por sua pele.
Procuro pelo meu celular e não o encontro na mesinha de cabeceira, e sim
caído no chão ao lado da cama.
​— PUTA QUE PARIU! — Me levanto em um pulo, estou atrasadíssima
para a entrevista. — Burra, burra, burra, burra…
​Saio andando desnorteada pelo quarto, pego a camiseta de Charlie, que
está jogada no chão, e a visto correndo, apenas para abrir meu armário e
organizar minhas coisas sem estar pelada.
​— Bom dia… — Charlie murmura e eu nem me viro para olhá-lo.
— Eu não posso perder minha entrevista, Charlie! — Falo com
urgência, pegando uma calça de alfaiataria preta e uma camisa branca, e
procuro meu colete de tricot para usar como sobreposição, mas não o
encontro.
— Que horas são? — Charlie senta na cama e me olha andar de um
lado para o outro.
— 8:40, a entrevista é às 9:30! — Me agacho na frente dele e ele
levanta as pernas enquanto procuro debaixo da cama. — ACHEI!
Comemoro com o colete em mãos e Charlie franze a sobrancelha,
sorrindo confuso com o caos que virou esta manhã.
— Quer ajuda com algo?
— Não, só… Eu preciso tomar um banho e me arrumar, você fecha a
porta quando sair, por favor?
— Dias…
Charlie me chama e eu o ignoro, porque, ao abrir a porta do quarto,
dou de cara com Capitu me encarando brava. É a segunda vez, em poucas
horas, que vacilo com ela. Ando apressada até a cozinha para alimentar
minha gata.
— Merda, esqueci de você… Já vou colocar sua comida, vem! —
Resmungo em português e me agacho para pegar a ração no armário, mas
me desequilibro e deixo um pouco cair do saco, sujando o chão. — MAS
QUE MERDA!
— DIAS! — Charlie fala com mais firmeza.
— O quê? — Levanto o rosto depressa e o encontro se aproximando
de mim.
— Eu preciso da minha camiseta para ir embora — ele olha para
baixo, admirando minhas coxas desnudas pela posição que estou. Então, se
abaixa e pega o saco de ração da minha mão devagar. — E pode deixar que
eu coloco a comida dela e limpo o chão antes de sair. Vai tomar seu banho.
— Não precisa fazer isso… — Respondo entregando o saco para ele,
meus olhos fixos nos seus castanhos gentis.
— Vai logo! — Charlie aponta para o banheiro e concordo em
silêncio, me esticando para dar um beijo em sua bochecha antes de me
levantar.
— Desculpa por isso — tiro a camiseta e entrego para ele, cobrindo
meus seios com o braço, mesmo sabendo que ele está tendo uma bela visão
da minha bunda até eu virar no balcão, sumindo de sua vista.
Volto apressada pelo corredor e fecho a porta do banheiro.
Geralmente, a água demora para esquentar, mas estou torcendo para hoje ser
um daqueles dias em que o gás está de bom humor. Felizmente, a água
esquenta logo. Acho que nunca tomei um banho tão rápido na vida e,
enquanto lavo o cabelo, vejo a água roxa escorrendo pelo ralo, me
lembrando que preciso retocar a cor logo, de preferência, nesse fim de
semana.
Saio do chuveiro e me enrolo na toalha. Penteio o cabelo e ligo o
secador. Não vou conseguir escová-lo, mas vou secar os suficiente para fazer
algum penteado que disfarce minha correria. Assim que o cabelo está
minimamente seco, confirmo a hora e pego minha maquiagem, cobrindo as
olheiras, delineando os olhos e colocando um pouco de cor em minhas
bochechas.
Meu coração está disparado pelo desespero e pela pressa para ficar
pronta. Apesar do caos, e sem saber como não tive uma crise de ansiedade
na correria, estou apresentável.
Ao abrir a porta do banheiro, sinto o cheiro de café inundando todo o
apartamento e ando até a sala só para ver Charlie atrás do balcão, a jarra de
café na sua frente e uma caneca na mão.
— Achei que já tinha ido embora… — Chamo sua atenção e ele dá
de ombros.
— Não te deixaria sair sem pelo menos tomar um café — fala com
obviedade e me dá uma olhada demorada. — Essa é a sua roupa?
Estou com a toalha enrolada no corpo e sua fala me tira do transe que
entrei por ter encontrado-o ainda na minha casa, fazendo café para que eu
não chegue na entrevista atrasada e faminta.
— Já volto!
Corro para meu quarto e visto a roupa que joguei em cima da cama,
coloco um mocassim tratorado lindo que encontrei em um brechó perto da
universidade e, quando estou pronta, me olho no espelho. Estou ok e decido
ir com o cabelo solto mesmo, ele ainda está úmido, mas a correria o deixou
volumoso e as ondas não estão bagunçadas demais, está bem bonito.
Jogo todas as coisas da minha ecobag dentro da bolsa que grita
“estudante de Direito” e “mulher séria que merece uma vaga”. Quando
chego na sala novamente, Charlie está pronto para ir embora. Ele segura uma
garrafa térmica que comprei para levar para a aula e que estava em cima da
bancada.
— Pronta?
— Você não precisava fazer isso — respondo e dou uma olhada em
Capitu, que está deitada no sofá, alheia a nós dois. Seu potinho de comida
cheio.
— Você me paga o favor outro dia — brinca dando uma piscadela,
esperando eu abrir a porta para sairmos.
— Ah, mas é claro que você fez esperando algo em troca. — Brinco
de volta e tranco a porta do lado de fora.
— Tenho que garantir o próximo encontro de alguma forma.
— Achei que não namorasse — falo por cima do ombro, nos guiando
pelo corredor até a escada, que começamos a descer em pulinhos.
— Não namoro, mas quero repetir a noite.
— Uau, para quem me enrolou por tanto tempo, agora está indo
direto ao ponto. — Provoco fingindo surpresa.
— Acho que depois de onde minha boca esteve na noite passada, não
preciso mais de sutilezas. — Ele provoca de volta e sinto meu centro pulsar,
lembrando da cena excitante do seu rosto no meio das minhas pernas.
— Tem razão, quem sabe a gente não repete então!? — respondo
chegando no primeiro andar e correndo para abrir a porta que dá acesso à
rua. — Eu realmente tenho que ir.
— Sem problemas, boa sorte — Charlie segura meu braço e dá um
beijo em minha bochecha.
Dou alguns passos de costas, observando-o se afastar do mesmo jeito
que eu e é impossível não sorrir. Engraçadinho, fode bem, é um bom
travesseiro para dormir, faz meu café para facilitar minha vida e ainda tem
um sorriso lindo.
Maldito seja você, Charlie Cooper.
​ impossível não ficar nervosa dentro daquele prédio que, além de
É
enorme, é extremamente luxuoso. Sinto-me um peixe fora d'água com o
cabelo roxo e o sapato tratorado, enquanto as mulheres ao meu redor usam
saias lápis, cabelo preso em coque e camisa perfeitamente alinhada ao corpo.
Só espero que eu seja levada a sério. Pensando pelo lado bom, poderia ser
pior, como eu estar usando camiseta e coturno.
​Espero ansiosamente pelo dia que não vou precisar me sentir diminuída
pelo o que visto em determinados lugares.
​ evanto meu queixo e uso o mantra “Fake it until you make it” para
L
encarar a entrevista. “Não estou nervosa e não estou com medo”, é o que
falo em minha mente repetidas vezes, até que se torne verdade - ou quase.
Faço meu cadastro na recepção e a moça libera minha entrada até o 13º
andar, o departamento da Vann Empreendimentos que irei trabalhar.
​Quer dizer, que eu espero trabalhar.
​O elevador panorâmico tem vista para o jardim do prédio e, enquanto
subo, vejo pessoas andando de um lado para o outro, entrando e saindo de
salas diferentes. Passo pelo que parece ser o departamento de Marketing,
porque é o único com as portas coloridas e as pessoas vestidas
informalmente. Sinto uma leve inveja, não vou negar, mas não me arrependo
das minhas escolhas.
​O elevador se abre e me deparo com mais uma recepção. O andar é
diferente dos demais, que parecem ser abertos e informais. Respiro fundo e
vou até a nova recepcionista que, diferente da simpatia da outra, nem levanta
a cabeça para mim.
​— Bom dia, eu vim para a entrevista de assistente pessoal — minha voz
sai firme, mas meu coração está disparado por dentro.
​— Marina Dias? — A mulher pergunta ainda sem me olhar e com
dificuldade de pronunciar meu nome. Então, aponta para o sofá atrás de mim
quando o telefone começa a tocar. — Sente-se e espere. Elizabeth, do 13º, no
que posso ajudar?
​Fico levemente desnorteada com a rapidez que ela começa a falar com a
pessoa do outro lado da linha e vou até o local indicado, como ela orientou.
Agora que finalmente estou parada, e não correndo desesperada para chegar
no horário certo, abro a bolsa e procuro pelo meu blend para tentar me
acalmar um pouco. Passo o roll-on no pulso e respiro devagar, sentindo a
lavanda invadindo meus sentidos e me deixando mais tranquila.
​Alguns minutos mais tarde, uma garota que claramente também veio
fazer a entrevista, passa por ali, dá tchau para a recepcionista e espera o
elevador. Certo, concorrência, é claro que teria concorrência. É uma empresa
grande, uma vaga de assistente pessoal deve ser para alguém importante,
como um gerente, por exemplo.
​— Senhorita Dias, o senhor MacMillan está pronto para recebê-la.
​MacMillan.
​O sobrenome ecoa na minha mente e um sinal de alerta me faz arregalar
os olhos. Não, não pode ser, esse é um sobrenome comum, com certeza. Até
um aluno da Lufa-Lufa tem esse sobrenome nos livros de Harry Potter,
Ernesto MacMillan.
​É, não pira.
​— Você vai atravessar o escritório e seguir pelo corredor até chegar na
última sala. — A recepcionista fala e atende o telefone em seguida,
ignorando minha presença novamente.
​Não é ele, não tem como ser. Ele ainda estuda, pelo amor da Deusa! Com
certeza não é aquele insuportável.
​Não consigo prestar atenção em nada ao meu redor, apenas sigo o
caminho indicado, ignorando as salas amplas de paredes de vidro ao meu
redor, cheias de advogados e administradores em suas mesas, enquanto
mantenho os olhos fixos na porta mais distante de todo o local.

​Gerente Executivo

​ o que está escrito na placa da porta e sinto uma onda de alívio


É
instantâneo. Ótimo, não é ele. MacMillan parece ser só um pouco mais velho
do que eu, mas mesmo assim, é novo demais para ser Gerente Executivo de
uma empresa tão grande.
​Bato na porta duas vezes e, quando a voz masculina me autoriza a entrar,
respiro fundo e giro a maçaneta, ficando completamente em choque quando
vejo quem está sentado do outro lado da sala.
​É óbvio que seria ele, mesmo eu torcendo para não ser.
​Merda, merda, merda.
​Fico estática por tempo o suficiente para que Anthony levante a
sobrancelha, arrogante e sem entender o que estou fazendo.
​— Vai ficar parada no corredor ou vai entrar?
​— Você! — Continuo parada na porta, sem me importar com quem ele é,
além do insuportável que faz questão de me irritar, como uma criança do
Ensino Fundamental.
​— Eu — Anthony mexe em um papel e se encosta na cadeira, cruzando
os braços de maneira convencida. O exato olhar que me dá, toda semana, nas
poucas aulas que temos juntos.
​— O que está fazendo aqui? — Pergunta burra e idiota, mas como eu
poderia não fazer?
​— Eu trabalho aqui.
​— Trabalha aqui… Isso é uma piada? Você está me perseguindo? —
Franzo a sobrancelha e o vejo ficar surpreso.
​— É você que está na minha empresa, Dias. Não o contrário. E pelo o
que vejo aqui — estica o braço para pegar o papel que mexia antes —, se
candidatou para a vaga que eu tenho disponível.
​— Me candidatei antes de saber que trabalharia para você —
praticamente cuspo as palavras com arrogância e ele revira os olhos.
​— Você não sabe ainda se vai trabalhar ou não — devolve a arrogância e
ficamos em silêncio.
​Olho para ele tempo o suficiente para aquela imagem ficar gravada em
minha mente. Anthony de camisa social, mangas dobradas e um resquício de
tatuagem preta aparecendo perto do seu cotovelo. O cabelo loiro com os fios
perfeitamente penteados e os olhos azuis frios.
​Me viro para o corredor, posso desistir da vaga, principalmente, se eu
tiver que passar mais tempo olhando para a cara desse insuportável todos os
dias. Por outro lado, eu realmente preciso do dinheiro e nenhuma outra
empresa respondeu ao meu currículo. Ser assistente pessoal não é, nem de
perto, meu plano, mas é a única opção real que tenho agora, principalmente
pelo horário, que não me atrapalha.
​Suspiro me dando por vencida e entro no escritório, fechando a porta
atrás de mim. Levanto o queixo e tenho certeza que estou com a cara
amarrada, porque Anthony esconde o mini sorriso debochado no canto da
boca. O mesmo sorriso que sempre dá quando consegue me irritar. Ele indica
a cadeira à sua frente e eu me aproximo.
​— Acredite, você não é a primeira opção que tenho para trabalhar
comigo, mas a equipe do RH gostou do seu currículo. — Anthony fala com
tanta indiferença que minha vontade, neste momento, é dar um tapa naquela
cara bonita dele.
​— Que bom que não sou a única com esse sentimento, então — abro um
sorriso forçado e apoio as mãos no colo.
​— Por que quer trabalhar na Vann? — Pergunta-me com tédio, com
certeza já fez o mesmo questionamento para várias outras pessoas.
​— Preciso de dinheiro. — Não ligo para a minha sinceridade, eu não vou
puxar o saco dele, nunca. Sendo contratada ou não.
​— Não é uma resposta muito esperta para dar — me rebate
imediatamente.
​— Só estou falando a verdade. Preciso trabalhar, a vaga tem um bom
horário para eu conciliar com a universidade e não é muito longe da minha
casa. — Dou de ombros, com simplicidade, fingindo estar entediada. — A
vaga é para trabalhar diretamente com você?
​— Para a sua alegria, sim. Terá que fazer tudo o que eu mandar. —
Anthony inclina o corpo para frente e apoia os cotovelos na mesa. O sorriso
arrogante, se divertindo com a situação.
​— Talvez esta seja a única forma que você encontre para me fazer
obedecer, não é mesmo? — Imito seu sorriso e encosto na cadeira.
​É a primeira vez que conversamos por tanto tempo, já que nossos
diálogos não passam de “Você está no meu lugar” e “Chegue mais cedo da
próxima vez”. É como um ritual existente entre nós, desde a primeira aula.
Eu poderia escolher outro lugar para sentar, mas ele parece um adolescente
batendo de frente comigo e isso me irrita. Não consigo deixar quieto e não
responder às suas afrontas, então madrugo para chegar cedo nas aulas do
professor Herman — e não existe satisfação maior do que quando consigo
chegar antes dele.
​— Desde que assumi este cargo, não estou dando conta de todas as
demandas sozinho. — Volta o corpo à cadeira e fica sério, deixando a
provocação de lado e focando na entrevista. — Preciso de alguém para
cuidar da minha agenda, meus compromissos, me acompanhar nas
reuniões…
​— Você sabe que deixou o anúncio da vaga no prédio de Direito, certo?
Não deveria ter deixado no prédio de Administração ou de Recursos
Humanos? — Interrompo-o e minha pergunta é genuína, realmente não
entendi porque não pegar algum estagiário das outras áreas.
​— Acontece, senhorita Dias, que eu não preciso só de uma assistente
pessoal. Isso seria fácil demais de arranjar, consigo com uma simples
ligação. Preciso de alguém com conhecimento em Direito, que saiba lidar
com documentações e que me ajude com os contratos. Que não vá fazer
merda por ser inexperiente nesta área, além de cuidar dos meus afazeres.
​— Ou seja, você quer uma advogada, que faça além do que faria
normalmente e pelo salário de uma assistente. — Cruzo os braços à frente do
corpo. — Não me parece muito justo, se bem que… Você não parece ligar
muito para fazer o que é certo, não é? Só se importa em fazer o que quer, na
hora que quer.
​— Alguém já te falou o quanto você é insuportável?
​— Alguém já te falou o quanto você é arrogante? — Rebato no mesmo
instante, séria. Anthony cerra os olhos, sem paciência.
Como é possível ele me irritar tanto sem se esforçar?
Arrogante de nariz em pé, é isso que ele é.
E bonito.
Não!
Arrogante.
​— Obrigado por ter vindo, feche a porta quando sair. — Anthony abaixa
o olhar e me ignora, então aperta o telefone ao seu lado. — Elizabeth, pode
mandar a próxima entrar.
​— Espera! — Falo em alerta.
​Estou sendo burra e inconsequente. Luto para fazer as coisas de forma
correta e sem me deixar afetar. Estou acostumada a lidar com pessoas muito
piores do que ele e que realmente são ruins, desrespeitam leis, destroem
comunidades e vidas… Não posso perder o controle assim.
​Pelo menos uma das qualidades que me orgulho em ter é saber
reconhecer quando passei dos limites e me desculpar, principalmente
sabendo que ele pode ser meu chefe. Eu preciso do emprego.
​— Anthony, sinto muito. Eu… — Abaixo o olhar e respiro fundo,
engolindo o orgulho. Preciso parar de atacá-lo o tempo inteiro, ou pelo
menos de agora em diante. — Sei que a gente não se dá muito bem e
tivemos algumas divergências nas aulas, mas eu aprendo rápido, sou muito
ativa, dou meu jeito para resolver qualquer problema e sou muito boa com
documentação. Além de ser pontual e determinada, sei dar ordens e receber
também.
​Anthony me olha de cima a baixo, então mantém o olhar em meu rosto,
absorvendo o que eu disse, sem ceder.
​— Nunca mais me sento no seu lugar! — Apelo e ele cerra os olhos, sem
acreditar. — Realmente preciso do emprego.
​Batidas na porta chamam nossa atenção, mas nos mantemos em silêncio
por um breve momento, até que a batida se repete.
​— Obrigado pelo interesse, o RH entrará em contato por e-mail, caso
tenha conseguido a vaga. — Anthony finaliza, sem me dar nenhuma
abertura, e eu assinto, pegando minha bolsa e me levantando.
​— Desculpa por fazer você perder seu tempo. — Vou até a saída,
sentindo o gosto amargo daquela frase em minha boca. — Te vejo na aula.
​Abro a porta e uma garota está do outro lado, com olhos ansiosos e
claramente nervosa. Ela me dá espaço para sair e aperta um sorriso.
​ Senhorita James, feche a porta, por favor — Anthony a chama de

dentro da sala e eu me viro inconscientemente.
​Nosso olhar se encontra uma última vez antes da garota fechar a porta e
eu me ver sozinha no corredor.
​Ótimo, sua burra, parabéns! Vou ter que continuar procurando por um
emprego, no final das contas, e ainda me humilhei pelo idiota arrogante.
Capítulo 14

“Você está estressado ultimamente, é, eu também


Algo te deu a coragem de tocar na minha mão”
It's Nice To Have a Friend - Taylor Swift

​ assei o resto do fim de semana remoendo o quanto fui burra e como agi
P
igual a uma criança mimada com Anthony. E, para piorar a minha sessão
depressão, Mila foi acampar na praia com as amigas da faculdade por uma
semana inteira, então não conseguimos nos falar em nenhum dia, já que ela
ficou sem internet no fim do mundo do litoral paulista.
​Na primeira aula do professor Herman da semana, por costume, acabei
chegando cedo demais na sala, mas não entrei quando percebi o que estava
fazendo. Não ia continuar com a briga idiota por um mísero lugar, então
fiquei 40 minutos esperando do lado de fora do prédio, sentada em um banco
afastado e lendo Me Chame Pelo o Seu Nome.
​Entrei na sala somente quando faltavam 5 minutos para a aula começar,
mas diferente do que imaginei, Anthony não estava ali. Mesmo assim, sentei
afastada da cadeira da discórdia, obrigando Benji a mudar de lugar e sentar
comigo.
​Obviamente, nenhum e-mail da Vann Empreendimentos chegou na
minha caixa de entrada nos dias seguintes. Então, na quarta-feira, eu já tinha
aceitado minha derrota e me vi procurando por outras vagas no mural de
avisos. Não sei porque achei que teria uma chance depois daquele desastre.
​Encontrei uma vaga que parecia muito boa, para digitar processos no
sistema de um escritório. Pagava pouco, mas o horário era flexível desde que
a demanda semanal fosse entregue no prazo.
​ iz a entrevista na quinta-feira, o escritório era simples e os chefes, dois
F
senhores de idade que queriam se modernizar, mas não sabiam como. Não
precisei me esforçar muito para que gostassem de mim e, inclusive, me
pediram para ajudá-los a descobrir como funcionava o programa que tinham
acabado de contratar para a empresa.
​Falaram que me dariam um retorno no dia seguinte, mas eu tinha certeza
de que a vaga era minha. Não tinha como não ser. Meu coração conseguiu se
acalmar um pouco, sabendo que nem tudo estava perdido e que eu
conseguiria aliviar as contas da minha mãe, que estava se esforçando tanto
para eu realizar este sonho. Entretanto, não parei de olhar o mural e me
candidatar para outras vagas que fossem condizentes com a minha
disponibilidade.
​Ocupei meus dias com os estudos, dando uma pausa somente para ver
meus amigos e mergulhar na Itália dos anos 80 com o Elio e seus
sentimentos. Quando me dei conta, todos os trabalhos estavam em dia,
terminei o livro com dor de cabeça de tanto chorar e já estava na última aula
da semana, a aula do professor Herman.
​A primeira coisa que faço ao chegar em sua sala, é olhar para o lugar da
discórdia, mas Anthony, novamente, não está lá. Ele está sentado no fundo,
com os amigos, o que me surpreende.
​Nossos olhares se encontram e, em vez de ir até a cadeira vazia, procuro
um lugar bem longe. Uma leve curiosidade me invade, queria saber porque
não o vi nos outros dias, seja na aula ou andando pelo Campus, mas reprimo
a curiosidade.
Sinto-o acompanhando meus passos, até eu sentar, pegar meu laptop
e abri-lo na mesa. Tento prestar atenção na aula, mas a sensação de alguém
me observando me acompanha a cada segundo, junto com a falta de coragem
de me virar para olhar Anthony, que com certeza vai sorrir debochado,
fazendo eu me arrepender de não ter continuado minha birra de sentar no
nosso lugar.
​Meu lugar.
​— Espero que já estejam trabalhando nos estudos de caso de final de
semestre. A maior burrice que vocês podem cometer, é deixar para a última
hora. Não vou atender os atrasados para consultoria. — O professor Herman
fala no final do horário e sem hesitar, guardo minhas coisas.
Despeço-me de Benji e, enquanto estou saindo, vejo Anthony
andando em direção ao professor. Passo rapidamente pelos alunos para
chegar logo no corredor e evitar esbarrar no loiro sem querer, só quero sair
dali o quanto antes.
— Ei, Dias!
​Alguém me chama e estou tão distraída, que só quando procuro ao redor
vejo Charlie apoiado na parede, uma mão segurando a alça da mochila no
ombro e a outra no bolso. Ele está usando uma blusa xadrez vermelha com
jaqueta jeans.
​— Não te vi… — Dou alguns passos em sua direção e ele se aproxima,
depositando um beijo na minha bochecha, enquanto apoia a mão em minha
cintura. — Estava me esperando?
​— Estava. Senti falta desse rostinho nos últimos dias e quis te avisar
pessoalmente sobre sua oficina. Está livre no sábado que vem, de tarde?
​Cerro os olhos com o elogio, mas o ignoro.
— Deu certo, então?
​— Deu, o Thomas falou com os alunos e vários ficaram animados,
principalmente as meninas. Os meninos se inscreveram só para impressioná-
las. — Charlie dá de ombros de forma culpada.
​— Você tem um dedinho nisso, não? — Sorrio divertida e Charlie segura
meu braço, me puxando para o canto do corredor, já que tem muitas pessoas
passando por nós.
​— Só mostrei para eles que é legal se interessarem por coisas que elas
gostam. — Ele se defende, me fazendo rir e aproximando nossos corpos.
Vejo-o umedecer os lábios e morder o canto da boca. — E a entrevista, como
foi?
​— Ah, foi um enorme desastre… — Meu celular começa a tocar alto e
paro de falar para desligar a chamada, mas vejo a foto da Mila na tela. Meu
coração dispara e eu atendo no mesmo instante. — Você está viva!!
​— Eu estou viva!! — Mila responde sorrindo. Seu rosto está vermelho,
queimado de sol, e o cabelo molhado como se tivesse acabado de tomar
banho. — Viemos para a cidade comprar algumas coisas e consegui sinal,
não sei como vou dar conta de ficar mais três dias no meio do mato sem um
creme decente de cabelo.
​— Como está aí? — Pergunto e olho para Charlie, pedindo desculpa em
silêncio e ele assente, encostando o ombro na parede para me esperar. Ele
presta atenção, mesmo sem entender nós duas.
​— Não achei que fosse gostar tanto, mas está legal. O único problema é
ter energia por poucas horas do dia. A barraca está cheia de areia e minhas
costas estão arregaçadas por causa do colchão. — Ela faz uma careta e
conversa com a amiga, que está mostrando alguma coisa na prateleira do
mercado para ela. — Como foi a entrevista?
​— Que bom que você perguntou, Charlie está aqui e me perguntou o
mesmo. Ah, transei com ele sexta passada e, sim, foi muito bom. — Falo
rápido e viro a câmera, enquadrando Charlie ao meu lado, porque sei que ela
vai querer ver o rosto dele, e começo a falar em inglês. — Vou contar para os
dois ao mesmo tempo.
​Mila abre a boca em choque e, assim que coloco Charlie na câmera,
aperta os lábios tentando disfarçar. Ele dá um oi para ela, que retribui e se
vira para mim, ignorando a câmera na nossa frente.
​— Eu cheguei na empresa, que deve ser o lugar mais chique que conheci
na vida! Fiquei morrendo de vergonha pela forma que estava vestida…
​— Você estava linda — Charlie me interrompe e me deixa sem palavras
por um momento. Não estava esperando por esse elogio repentino.
​— Chegando lá, adivinha quem era meu empregador? — Finjo que não
escutei Charlie e sigo a história, os dois balançam a cabeça para que eu
continue a falar. — Anthony MacMillan.
​— O insuportável arrogante da sua sala? — Mila fica chocada e eu
confirmo.
​— Calma, a entrevista que você fez foi na Vann Empreendimentos? —
Charlie pergunta sem acreditar e, quando confirmo, fica animado. — E como
foi, você passou?
​— Provavelmente, não — faço careta e dou de ombros. — A gente não
se dá bem e digamos que eu não tenha sido a pessoa mais gentil do mundo
com ele. No dia a dia e na entrevista. Não que ele fosse muito gentil comigo
também, porque ele não é.
​— Achei que quisesse a vaga — Mila aponta e confirmo cansada.
​— Queria, mas ele me tira do sério. Sempre que temos aulas juntos eu
tenho vontade de voar no pescoço dele com toda aquela arrogância, e a
forma que anda, fala, revira os olhos… Não dá para ficar perto dele.
​— Dias, a Vann Empreendimentos é a principal empresa que está
trabalhando com a prefeitura e comprando os terrenos e comércios de
LittleWin! — Charlie está em alerta. — Você precisa conseguir esse
emprego!
​— É sério? — Fico assustada e ele diz que sim.
​ Nunca falei tão sério! Imagina o que poderíamos fazer se tivermos

informações de dentro da empresa!?
​— Seria incrível, mas… não vai acontecer. Ele me detesta e eu não gosto
dele. Acho que nos mataríamos no primeiro dia. Ou eu seria demitida. —
Aperto os lábios e Charlie faz uma careta. Então, olho para Mila, que está
prestando atenção.
​— Quanto ele calça? — Ela pergunta em português, me fazendo rir.
​— 43. — Respondo também em português e ela segura o sorriso, então
aponta a câmera para o teto e tenho certeza que está fazendo caras e bocas,
porque quer saber os detalhes.
​— Tenho que ir, volto domingo de noite. — Mila aparece novamente,
um sorriso safado estampado no rosto. — Você vai arranjar outro emprego e
eu nem sei como foi, mas por favor: dê para ele de novo.
​— Tá bom, pode deixar.
​— Tchau, Charlie! — Mila finaliza em inglês e desliga assim que ele
responde.
​— Mila é sua irmã?
​— Melhor amiga! Morávamos juntas, no Brasil, e é estranho não nos
falarmos todos os dias. — Encosto o ombro na parede, pensando no que ele
me contou, e vejo o ruivo me imitar. — Eu não sabia que ia fazer entrevista
na mesma empresa que está complicando a vida do Centro e de LittleWin, é
muita coincidência.
​— É uma merda que você não tenha conseguido a vaga, seria um passo à
frente para todo o grupo.
​— Sinto muito… — Agora me sinto culpada pela forma que lidei com
Anthony. Se não fosse tão impulsiva, talvez pudesse ajudar de alguma forma
mais efetiva.
​— Você não sabia. — Charlie coloca a mão no meu braço e faz um
carinho no local. Noto que seu olhar passeia por meu rosto até parar em
minha boca, então sobe para meus olhos. — Escuta, quer fazer alguma coisa
hoje?
​— Hoje? — Levanto uma sobrancelha de forma surpresa.
​— É, a gente pode, sei lá. Ver uma série?
​— Ver uma série? — Começo a rir e reviro os olhos, abaixando um
pouco a voz e voltando a andar para sair do prédio. — Achei que tinha
deixado a sutileza de lado depois de onde colocou a língua semana passada.
​ Acho que já me esqueci de como foi, preciso que você me relembre,

Dias. — Ele brinca e é impossível não olhar para a sua boca também.
​Obrigada universo por ter colocado este homem no meu caminho.
​— Aparece em casa umas oito da noite, a gente pode colocar alguma
coisa na televisão e fingir que estamos assistindo. — Respondo baixo e ele
sorri de lado, mostrando os dentes bonitos e a feição safada, enquanto me
afasto, deixando-o para trás.
Capítulo 15

“E estou tão cansada deles vindo atrás de mim de novo


Porque se eu fosse um homem, então eu seria O cara”
The Man - Taylor Swift

​ Então, eu meio que tenho algo para te contar. — Pego a bolsa que

deixei na cadeira ao meu lado e começo a me levantar.
​Emma acompanha meus movimentos e se levanta também. Andamos até
o lado de fora do restaurante depois de agradecer aos garçons, que nos
atenderam durante nosso almoço juntas.
​— Charlie perguntou se eu queria fazer algo hoje, mais especificamente,
se eu queria “assistir” uma série com ele.
​— Quê? — Emma para de andar na calçada e faz uma expressão
estranha, como se estivesse confusa com o que acabei de contar. — Ele
mandou mensagem durante a semana ou algo do tipo?
​— Não, nada! Na verdade, a gente nem se falou depois que ele saiu do
meu apartamento, no sábado de manhã, mas hoje ele apareceu na minha sala,
conversamos um pouco e ele sugeriu isso.
​— E você topou?
​— É claro que sim, sei que ele é seu irmão, mas você já olhou para ele?
— Dou risada e ela concorda, se dando por vencida.
​— Já te falei o que penso disso. Só tome cuidado para não acabar
criando sentimentos, porque ele sempre faz isso: some a semana inteira e
aparece no final de semana com todo aquele jeitão dele.
​— Sim, senhorita Cooper. — Bato continência sorrindo e ela revira os
olhos.
​ restaurante que escolhemos é perto do Campus, então a caminhada de
O
volta é curta, repleta de conversas, enquanto vemos alunos andando de um
lado para o outro durante o horário de almoço. Alguns estão sentados em
bancos, outros nas escadarias dos prédios, estudando ou rindo.
​Estamos indo em direção ao centro de convenções, porque precisamos de
horas complementares e, durante toda aquela tarde, terá um seminário
chamado “O Feminismo no Mundo Corporativo”, ministrado por uma
escritora política da região. Geralmente esses seminários são chatos e só
servem para ganharmos as horas que precisamos, mas estou animada para
escutar o que a palestrante tem a dizer.
​Assim que entramos no grande prédio do auditório, o calor do local me
atinge, então tiro o casaco e desenrolo o cachecol, deixando-o jogado em
volta do pescoço. Aparentemente, poucas pessoas tiveram interesse no
painel desta semana.
​Presto atenção em todos que estão no ambiente, algumas esperando e
outras já entrando para pegar um lugar, até que escuto Emma bufar, virando
de frente para mim.
​— Não acredito que ele está aqui — retruca cruzando os braços. —
Vamos entrar logo para sentar bem na frente, o mais longe possível dele.
​— De quem você está falando? — Levanto o olhar para trás dela e
imediatamente descubro.
​Com uma calça de alfaiataria preta, tênis caros, uma camiseta básica e
jaqueta, Anthony está mexendo no celular com o cabelo caindo sobre o
rosto, distraído do mundo ao seu redor.
​— Anthony MacMillan, conhece?
​— Temos aula juntos — é o que murmuro antes de virar o rosto para
longe dele. — Um pouco arrogante, não?
​— Arrogante é elogio. Ele é um otário, filhinho do papai, que só pensa
no próprio umbigo e foda-se o resto do mundo. — Ela olha para ele mais
uma vez e se aproxima de mim, me puxando para perto para falar baixo. —
Já te contei da manifestação que fizemos contra a empresa do pai dele, no
ano passado? Três dos nossos foram presos, eles abriram um processo contra
a Ordem. Ava entrou com outro contra eles para proteger os meninos, mas,
no dia da primeira audiência, o processo tinha sido revogado.
​— Revogado? Eles deram alguma explicação? — Levanto o olhar para
onde Anthony estava, mas ele tinha ido embora.
​ Nenhuma, só cancelaram e ficou por isso mesmo. Nunca fomos atrás

para saber o que aconteceu, porque foi bom para nós. Um processo e várias
dores de cabeça a menos. — Completa revirando os olhos e começo a
procurar por ele, perto de onde estava segundos atrás.
​— Dias. — A voz surge do lado oposto ao que estou olhando e levo um
susto.
​Emma olha para o lado completamente séria e eu a acompanho devagar.
Ele está muito perto, o mais perto que já estivemos antes e, não sei o porquê,
mas sinto meu coração pular uma batida. Ele é… cheiroso.
​— Posso falar com você um minuto?
​Troco um olhar silencioso com Emma, que cerra os olhos, nem um
pouco feliz por ele estar ali. Basta ele se aproximar para o ar ao nosso redor
mudar, ficando mais pesado e tenso.
​— Temos que pegar um lugar no auditório — a resposta de Emma me
faz perceber que eu estava muda, como uma idiota.
​— Vai na frente — respondo para ela, que vira a cabeça de lado, sem
entender. — Eu já vou, é só um minuto.
​Emma concorda com má vontade, se afastando de nós, desconfiada.
Ficamos em silêncio até ela estar longe o suficiente e vejo outras pessoas
entrando no auditório, o que deixa o salão praticamente vazio.
​— Por que não estava sentada na minha cadeira hoje? — Anthony
pergunta curioso.
​— Eu falei que não brigaria mais pela minha cadeira — enfatizo e ele
revira os olhos. Era exatamente o que eu precisava para ir embora. — Se era
sobre isso que você queria falar, acho que já vou indo…
​— Você por acaso olhou seu e-mail esta semana?
​— É claro que eu olhei meu e-mail esta semana! — Paro de andar para
longe e me viro confusa. Eu não só olhei meu e-mail hoje, como ontem,
anteontem e durante todos os outros dias, desde a bendita entrevista, mesmo
sabendo que não seria aprovada.
​Anthony dá de ombros, como se soubesse de algo, o que me faz procurar
o celular na bolsa para abrir o aplicativo do e-mail.
​— Isso é uma nova forma de tirar sarro de mim, Anthony? — Pergunto
irritada, passando o dedo pela tela e me certificando de que não tem nada ali
que eu já não tenha visto um milhão de vezes.
​— O que? Me dê isso aqui! — Anthony se aproxima por trás e puxa o
celular da minha mão.
​ Com qual direito você acha que pode pegar meu celular assim? —

Sinto meu rosto esquentar de raiva e ele me ignora, mexendo sem deixar que
eu veja.
​— Shh, tente não ser insuportável uma vez na vida, por favor — nem ao
menos levanta o olhar para mim.
​— Você já ouviu falar em privacidade? — Retruco indignada e me
estico, tentando puxar o celular de volta, mas ele se vira, sem deixar que eu
consiga.
​— E você já ouviu falar em caixa de spam? — Vira novamente,
mostrando o celular para mim.
​E ali está o e-mail que não achei que fosse receber: a vaga na Vann
Empreendimentos é minha. Ou era, porque o e-mail havia sido enviado na
segunda-feira, hoje já é sexta e eu não respondi ainda.
​Sei que estou com a sobrancelha franzida, enquanto encaro a tela, mas é
impossível estar de outro jeito, já que eu não achei que fosse conseguir.
​— Você nem gosta de mim, Anthony — ele revira os olhos na mesma
hora.
​— Não é sobre gostar ou não, Dias. É sobre eu precisar de uma pessoa
que dará conta da pressão e que não vai abaixar a cabeça quando os idiotas
da empresa caírem matando em cima do meu trabalho. — Anthony não tira
os olhos azuis de mim, então dá de ombros e coloca as mãos nos bolsos. —
As outras candidatas chorariam no instante em que a primeira merda
acontecesse, já você…
​— Complete a frase se tiver coragem! — Cruzo meus braços desafiando-
o, porque ele está dando a entender que eu faria os outros chorarem.
​— Não preciso completar, você sabe exatamente do que estou falando —
Anthony me desafia de volta. — Vai aceitar ou devo procurar outra
insuportável?
​— Se você continuar me chamando assim, vai ser difícil não brigar com
você — retruco e ele dá um pequeno sorriso de lado, que me faz sorrir
também. Por dentro, é claro. — Tem certeza disso?
​— Não, Dias… Eu vim falar com você pessoalmente porque tenho uma
fila de outras opções, tão insuportáveis quanto, só esperando por mim. —
Finaliza ironicamente. O sorriso virando puro deboche, o que me faz fechar
a cara imediatamente.
​— Eu quero um aumento. — Falo séria, sem dar abertura nenhuma e
deixando-o surpreso. — Acho que é justo, já que, além de assistente e
advogada, você quer que eu seja seu cão de guarda particular contra seus
superiores e funcionários.
​— Não vou te dar um aumento.
​— Então, espero que você tenha bastante lencinho para enxugar as
lágrimas de quem ocupar meu lugar, vai precisar.
​Começo a me afastar, porque sei que estou no controle. Ele me procurou,
ele veio atrás de mim para saber se eu ia ou não aceitar a vaga. E se Anthony
MacMillan quer tanto assim que eu trabalhe para ele… Ele vai aumentar
meu salário.
​— 10% a mais — fala, me fazendo parar de andar sabendo que estou
conseguindo o que quero.
​— 50%!
​— Você está ficando completamente louca — dá uma risada
desacreditada e, então, fica sério novamente, vendo que não estou brincando.
— 20%.
​— 40%! — Dou um passo para frente com o nariz empinado, os olhos
sem vacilar.
​— 25% — Anthony também se aproxima e posso ver o quanto está se
esforçando para que eu desista. O maxilar está apertado, deixando o rosto
anguloso e marcado. Sua sobrancelha está franzida e os olhos poderiam ser
assustadores, se não fossem tão bonitos.
​— 30% é minha última oferta — falo devagar, a voz firme, o rosto com
as expressões suaves, diferente das dele. Entretanto, Anthony é imprevisível,
difícil de ler. Ao mesmo tempo que parece não ceder, e vai simplesmente se
virar e ir embora, é como se estivesse lutando contra a vontade de aceitar.
​Anthony suspira, leva a mão até o bolso da calça, puxa o celular e digita
algo sem tirar os olhos de mim. Não faço a menor ideia do que está fazendo,
quando o vejo colocar o aparelho na orelha.
​— Elizabeth, mande o RH revisar o contrato da senhorita Dias e coloque
um adicional de 30% sobre o valor do salário dela, não precisa especificar.
— Fica em silêncio por alguns segundos, até me dar um sorriso vitorioso. —
Na verdade, especifique sim. Coloque que o adicional é por ela ser uma
grande insuportável. Obrigado.
​— Você não está falando sério — aperto os lábios tentando conter o
sorriso e ficar séria, como ele.
​— Acho que você só vai descobrir quando receber o contrato —
Anthony passa a mão no cabelo, jogando-o para trás. — Então, temos um
acordo?
​Estendo minha mão para ele, que a olha por alguns segundos como se
estivesse pensando se iria segurá-la ou não, mas segura. Seu aperto é firme e
os dedos gelados envolvem o dorso da minha mão como uma pedra de gelo.
​— Por um acaso você é um vampiro? — A pergunta escapa antes que eu
consiga pensar direito. Tenho certeza que já está arrependido de sua decisão,
porque revira os olhos e se vira.
​— Te vejo segunda, no escritório.
​Anthony apressa o passo em direção ao auditório, me deixando sozinha
no hall. É impossível não sorrir, porque eu acabei conseguindo um combo
completo com aquele emprego.
​E vamos para a lista de prós e contras dessa decisão:

Pontos positivos
- Ótima empresa para pôr no currículo;
- Salário bom e com benefícios;
- Poderei trabalhar como infiltrada para a Ordem.

Pontos negativos
- Olhar para a cara de Anthony MacMillan todos os dias;
- Obedecer suas ordens.

Eu sempre falei que sou boa em autocontrole… Acho que finalmente


vou passar pela minha maior provação durante os próximos meses.
Capítulo 16

“De acordo com você eu sou: difícil de satisfazer,


sempre mudando minha cabeça.
Mas de acordo com ele eu sou: linda, incrível e
ele não consegue me tirar da cabeça!”
According To You - Orianthi

A noite de “séries” com o Charlie se transformou em um final de


semana, já que ele chegou na sexta e só foi embora no domingo à noite.
Depois de muito delivery, sexo, risadas e uma ida à loja de produtos naturais
para comprar tudo o que preciso para minha aula no Centro, sinto que é fácil
passar o tempo com ele.
Apesar da leveza entre nós, nota-se que o superficial é mais fácil de
lidar do que o profundo. Sempre que nossas conversas começam a ir para um
caminho que não quero entrar, eu o corto. Ou ele me corta. Pelo menos o
clima não fica estranho, principalmente por Charlie ser o clássico cara
engraçado que te faz rir tanto que, quando você percebe, já está pelada no
colo dele.
Nosso acordo de “sem namoro” continua de pé, então o clima entre
nós está leve, sem aquela pressão de sempre estarmos prontos para
impressionar o outro. Posso ser eu mesma, ou quase, assim como ele pode
me mostrar todas as suas facetas.
Capitu não se rendeu a ele, mesmo com as tentativas de aproximação
que incluíam petiscos e um brinquedo novo. Ela ficou o final de semana todo
em cômodos opostos ao que estávamos. Eu entendo o desconforto dela, que
só está acostumada a ficar perto da Mila, já que ela não é muito fã de
homens. Toda vez que um homem se aproxima, ela o julga com uma força
que é impossível não constranger.
É segunda à tarde, estou parada na frente do edifício da Vann
Empreendimentos e sinto um frio na barriga tão grande, que meu corpo
treme. Sei que no instante em que passar pelas portas automáticas e fazer
meu cadastro de funcionária, vou precisar vestir uma máscara calma,
tranquila e que, ao mesmo tempo, não esteja aberta a ser passada a perna.
Afinal, foi por isso que Anthony me contratou, e ele deixou isso bem
claro.
Posso ser nova e estar aprendendo, mas sou esperta, sei me virar e
detesto que me subestimem. Sobre o Anthony, Mila falou para eu continuar
usando nosso mantra “Fake it until you make it” para suportá-lo e
convivermos em paz.
Tudo em nome do emprego e da Ordem.
Só estou torcendo para que ele não seja irritante como é
normalmente. Ou metido, mandão e arrogante. Não sou a pessoa mais doce
de todas, mas ele consegue trazer à superfície minha pior máscara, a mesma
que ficou presa na quinta série e me faz brigar por algo idiota, como um
lugar na sala.
Ele não foi para a aula hoje, pela segunda segunda-feira seguida, e
estaria mentindo se falasse que não fiquei curiosa do porquê. Acho que uma
das vantagens de ser sua assistente e ter acesso a sua agenda, será descobrir
essas coisas sem precisar perguntar diretamente para ele. Sem ele pensar que
estou interessada em sua vida.
Porque não estou.
É só uma curiosidade saudável.
Com meu cadastro feito, subo até o 13º andar, passo o blend de óleos
no pulso — mais como força de hábito e não porque preciso — e respiro
com força. A aromaterapia é tão presente no meu dia a dia que não sei se ela
realmente continua funcionando, ou se é somente minha mente ansiosa, se
agarrando em algo para ficar bem.
A mesma secretária emburrada do dia da minha entrevista está
trabalhando na recepção do escritório luxuoso e, assim que escuta meus
passos se aproximando, levanta o olhar com desdém. Ela julga minha roupa
e masca seu chiclete como se eu fosse a criatura mais desprezível que já
conheceu.
— Boa tarde — sorrio, me dirigindo a ela, que abre um sorriso falso,
e me preparo para me apresentar formalmente. — Sou a Marina Dias, nova
assist…
— Seu nome não me importa, nenhuma de vocês dura mais de um
mês mesmo… — Volta a olhar a tela de seu computador, digitando
rapidamente e com força. — Sua sala fica na porta à direita, antes da sala do
senhor MacMillan. Se precisar de qualquer coisa, não me procure.
— Obrigada pelas boas-vindas, Elizabeth — me inclino um pouco
sobre a mesa para olhar seu crachá e confirmar o nome que ouvi Anthony
falando pelo telefone, alguns dias atrás. Então, dou um passo para longe,
ainda carregando o meu sorriso gentil, porque não tem nada mais frustrante
para alguém que está te atacando, do que ser recebido com gentileza. —
Você pode avisar ao Anthony que eu cheguei, por favor?
— O senhor MacMillan ainda não está no escritório. — Enfatiza a
forma que eu deveria falar o nome dele, me desafiando com o olhar.
Poucas palavras, mas uma infinidade de significados. Tento descobrir
o que sua linguagem corporal está me dizendo. Está sobrecarregada com a
rotina? Queria a minha vaga e está com inveja que eu consegui? Ou talvez…
“Nenhuma de vocês dura mais de um mês mesmo…”
Ciúmes do Anthony?
Será que ele tem um histórico de dormir com as assistentes e, por
isso, tem dificuldade de manter alguém no cargo?
Minha mente viajou longe, principalmente depois da Emma me
contar os boatos que circulam em seu nome, além da forma ignorante que
trata os outros. Para resumir, Anthony é um vagabundo, mas só aparece
publicamente ao lado de Lauren e das amigas famosas dela.
Bom, Elizabeth não vai precisar se preocupar comigo já que eu acho
Anthony gostoso na mesma proporção que ele me tira do sério, portanto:
minhas pernas estão fechadas.
A grande merda é que eu sou curiosa e a Mila, fofoqueira. Se eu
comentar sobre o acontecido — o que eu provavelmente vou fazer —, a
primeira coisa que ela me mandará fazer será: descobrir todos os detalhes
para que ela possa criar suas teorias e fanfics. O brasileiro é movido por
fofoca, e pelo bem da saúde mental da minha melhor amiga e da minha
curiosidade, serei obrigada a descobrir o que está acontecendo.
— Avise-o quando chegar, estou indo para a minha sala. — Finalizo
a conversa sem dar abertura para ela me responder e começo a andar em
direção ao interior do andar, como se soubesse exatamente para onde estou
indo.
Não posso abaixar a cabeça. É por isso que ele me contratou, certo?
Tento disfarçar o quanto estou perdida com a segurança do olhar e da
minha postura, mas percebo alguns olhares para mim enquanto caminho
pelos corredores, indo em direção à sala que eu nem sabia que iria ter.
Apesar dos olhares, ninguém se dirige a mim e já estou vendo que terei
problemas com os outros funcionários.
O comum é receber bem os novos funcionários de uma empresa,
certo? Não é possível que essa recepção seja feita somente no Brasil, não
quando os ingleses são tão gentis. Frios, mas educados.
Quando finalmente reconheço onde estou, noto que, no dia da
entrevista, não tinha reparado na porta ao lado da sala de Anthony e fico
surpresa quando vejo meu nome gravado em uma placa prateada na porta. A
parede frontal da sala é de vidro e a cortina está aberta, então já espio antes
de entrar.
É simples, com uma mesa grande no fundo da sala, um computador
no canto e estantes de documentos e livros nas paredes. Feio e sem vida. Não
tem uma única planta para absorver a energia ruim e ajudar a dar uma nova
cara para o espaço.
Na mesa, duas pilhas de documentos ocupam o espaço com post-its
em cima, sinalizando o que eles são: meu contrato de trabalho e
documentações para serem atualizadas no sistema, que eu não faço ideia de
como funciona, mas que irei aprender na marra.
Atrás de mim tem um armário e, quando abro as portas, encontro
muitos itens de papelaria e um espaço perfeito para guardar minhas coisas
sem deixar tudo espalhado pelo escritório. Tudo muito sério, muito chato…
Vou precisar fazer algumas mudanças se não quiser perder o pouco de saúde
mental que me resta. Afinal, a sala é minha.
Ando até a mesa e noto que a tela do computador está aberta na
página de configuração de um perfil com meu nome, um claro sinal para que
eu coloque senha para proteger meu trabalho. Sento na cadeira de couro
preta e desconfortável, e rapidamente termino a configuração do perfil,
aproveitando para enviar uma foto do meu último aniversário para meu e-
mail e colocá-la no plano de fundo do desktop.
Sorrio quando vejo minha mãe, pai, irmão, tias e a Mila no jardim da
casa que passei minha infância. Tudo o que faço é por eles, me sinto muito
sortuda por ser feliz em minhas escolhas e ter o apoio dessa família doida e
desajeitada.
​Ignoro a pequena pilha de documentos para digitalizar perto de mim e
puxo meu contrato de trabalho para ler. Pulo as primeiras páginas e vou
direto para o meu salário que, para minha surpresa, consta o valor acordado
mais 30%, por eu ser uma grande insuportável. Reviro os olhos e jogo o
contrato na mesa, pego os outros documentos de novo para ler, mas sinto um
aperto no peito.
​A sensação é de que algo está errado e parece que tem um peso nas
minhas costas, chega a ser sufocante. Certifico-me de que a janela está
aberta e que não estou tendo uma crise de ansiedade repentina. Só quando
garanto que estou bem é que entendo que o que estou sentindo é a energia da
sala. A energia do escritório.
​Os documentos podem esperar um pouco.
​Vou até minha bolsa e procuro o incenso que separei exatamente para
hoje. Trouxe-o porque quero começar a nova rotina com o pé direito e como
vou passar muito tempo em um ambiente desconhecido, nada mais justo do
que fazer uma pequena limpeza astral da última pessoa que trabalhou aqui.
​Não vou deixar que o que tenha acontecido com a pessoa atrapalhe
minha oportunidade.
​Mentalizo tudo o que quero mandar embora e o que quero receber, e
começo a passar o incenso em cada cantinho do pequeno cômodo.
​— Deveria ter trazido meus cristais… — Murmuro quando percebo que
a sensação não está passando.
​Por sorte, meus defumadores naturais estão prontos, então amanhã vou
fazer uma operação limpeza neste lugar. Foda-se.
​A fumaça do incenso fica turva quando chego na porta da sala e isso
chama minha atenção. É como se uma força estivesse me mandando sair dali
e continuar do lado de fora, e quem sou eu para contrariar as forças ao meu
redor?
​Vou para o corredor e passo o incenso do lado de fora da madeira, mas
ao virar a cabeça para a sala ao lado da minha, a placa prateada de Gerente
Executivo brilha para mim. Olho ao redor para me certificar de que estou
sozinha e, rapidamente, passo a fumaça ali, mas a vejo tremular novamente.
​Droga.
​Bato duas vezes na porta e espero uma resposta, mesmo sabendo que a
Elizabeth falou que ele ainda não estava no prédio. Quando ninguém
responde meu chamado, coloco a mão na maçaneta.
​Estou fazendo merda. Sei disso porque uma vozinha no fundo da minha
mente está falando que estou louca e que não deveria entrar ali, mas outra
está me mandando entrar de uma vez e tirar essa energia podre que está
exalando dali.
​— Eu entro, limpo tudo e saio — abro a porta e entro no cômodo, sem
fechá-la atrás de mim. — Rápido e sem problemas.
​Fecho os olhos, porque não quero bisbilhotar nada que não seja da minha
conta, muito menos ser pega ali e até ser acusada de algo que não fiz, e
repito o mesmo processo que fiz na minha sala. Murmuro o mantra de olhos
fechados e passo o incenso em cada canto que sinto que precisa de atenção.
​Foco somente no que estou fazendo, sem parar.
​Aos poucos, sinto a aura pesada começar a se dissipar e meu coração fica
mais leve e tranquilo. Não totalmente, mas o suficiente para que diminua,
consideravelmente, o incômodo que estava sentindo antes.
​— Que porra que você está fazendo?
​Paro de movimentar o incenso no ar e mordo os lábios, sabendo que fui
pega no flagra.
​— Merda…
Posso inventar alguma mentira ou contar a verdade e ver sua reação,
apesar de ter certeza de que ele vai me condenar e me achar uma maluca.
Viro-me devagar e abro apenas um olho, encontrando Anthony
encostado no batente da porta com os braços cruzados no peito, as
sobrancelhas levantadas. Que idiota gostoso.
Anthony repete a pergunta, mas somente com o olhar. Decido ser
sincera, porque não existe forma melhor de conhecer alguém do que vendo
sua reação a coisas que são fora do seu cotidiano.
— É incenso de arruda, não sei o nome em inglês, mas serve para
purificar o ambiente e afastar as energias ruins. Não mexi nas suas coisas,
caso você esteja se perguntando, eu mantive os olhos fechados o tempo todo.
Ou quase todo, precisei abrir um pouco de vez em quando para não bater em
nenhum móvel, e…
— Ainda bem que acabei de tomar um café, porque você fala pra
caralho — Anthony desencosta e nega com a cabeça, se aproximando de
mim e olhando desconfiado para o incenso, ainda aceso em minha mão.
— Eu não falo pra caralho! — Defendo-me e assopro o incenso para
apagá-lo. — Você nunca sentiu o quanto a energia deste lugar está pesada?
Eu estava até com falta de ar, precisei fazer isso antes de começar qualquer
coisa ou não daria conta de vencer o dia.
— Vai me dizer que você é uma dessas loucas que acredita nessas
coisas? — Acompanho-o com o olhar dando a volta na mesa, até que ele
senta em sua cadeira, franzindo o nariz. — Você deixou meu escritório
fedendo a esse negócio.
— É só abrir a janela que o cheiro some! — Reviro os olhos e ando
até a cortina, abrindo-a e, em seguida, a janela. Claridade e vento. É disso
que a sala precisa. — E não é negócio, as ervas têm propriedades curativas
muito fortes. Inclusive, este lugar está precisando de plantas urgentemente!
Olha como é tudo frio, morto, cheio de estresse e pessoas te olhando feio.
— Bem-vinda ao mundo corporativo — Anthony suspira e puxa uma
pilha de documentos para perto, me olhando de canto de olho.
— Não precisa ser assim.
Cruzo os braços, mas esbarro nas cinzas do incenso, deixando-o cair
no chão e fazendo uma pequena bagunça que Anthony finge não reparar.
Olho em sua mesa e encontro um pacotinho de papel, ao lado do seu porta
caneta. Me aproximo para pegar um e sinto seus olhos acompanhando meus
movimentos. Só quando estou com o lenço na mão, que percebo que talvez
não devesse ter me aproximado tanto assim de sua mesa.
— Aquela sala é minha mesmo? — Coço a garganta e pergunto só
para quebrar o silêncio.
— Tem seu nome na porta, não tem?
— Então, posso fazer o que eu quiser nela? — Levanto-me e dou a
volta na mesa, novamente ignorando seu espaço para poder jogar o papel no
lixo ao seu lado.
— Com “o que eu quiser”, você quer dizer…
— Posso ou não? — Insisto na pergunta e ele solta os ombros
enquanto revira os olhos.
— Desde que não seja uma maluquice, a sala é sua — Anthony
levanta o olhar para mim e tensiona o maxilar por um breve momento. —
Pode fazer o que quiser nela.
Devagar, ele analisa toda a minha roupa, estudando minha escolha,
que não é nem de perto tão elegante quanto o das outras mulheres que vi
andando por ali. Não estou usando uma saia lápis colada, muito menos uma
camisa de botões e um terninho com salto fino.
Estou com o mesmo mocassim da entrevista, uma saia midi bordô e
uma blusa de tricot larguinha que coloquei por dentro da saia. Arrumada e
confortável, só não no mesmo padrão das outras. Espero ele começar a
reclamar sobre o que estou usando, e apesar de sua boca não verbalizar, sinto
que ele gostou, porque consigo ver o mini sorriso de canto de boca que ele
dá raramente.
— Quando você tiver terminado seus rituais hippies, pode vir aqui
para conversarmos sobre o trabalho?
Seus olhos estão fixos nos meus e assinto em silêncio, apertando os
lábios para esconder o meu pequeno sorriso pelo alívio de poder ser quem eu
sou.
Capítulo 17

“Sinto muito interromper, é que estou constantemente à beira de tentar


te beijar
Não sei se você sente o mesmo que eu sinto, mas poderíamos ficar juntos
se você quisesse”
Do I Wanna Know - Arctic Monkeys

​ inha cabeça lateja de tanta informação que tive que escutar, escrever e
M
decorar nas últimas horas. Talvez eu tenha subestimado um pouco o
emprego na Vann. Ou melhor, o emprego com Anthony, já que ele é exigente
de uma forma que assusta até mesmo a mim.
​São muitos documentos, compromissos e reuniões, dia após dia. Não me
surpreende ele estar sempre emburrado e de cara fechada. Se ele cometer um
erro sequer, os outros departamentos caem matando em cima dele e dos seus.
Tenho que fazer tantas coisas amanhã, incluindo comparecer em quatro
reuniões e, no meio tempo, garantir que os documentos estejam certos para
que ele dê uma última olhada antes de passar adiante. São autorizações
orçamentárias, contratos de prestação de serviços e compras de materiais de
projetos que acontecem nos outros departamentos.
​Não faço ideia de como cheguei em casa depois de ter meu cérebro
derretido pela voz rouca de Anthony ecoando em meu ouvido, só sei que
estou jogada no sofá há tanto tempo, que não faço ideia de que horas são.
​Meu celular toca, mas ele está em cima do rack, do outro lado da sala —
que, apesar de pequena, parece ter quilômetros de distância de onde estou.
Deixo tocar, provavelmente é a Mila e ela vai superar ser ignorada uma vez
na vida.
I​ nclusive, se estivesse aqui, estaria fazendo alguma coisa para eu comer
e falando que tá tudo bem ser ociosa às vezes. Que mesmo com minha
cabeça borbulhando, eu não posso voltar pro escritório e começar a trabalhar
para adiantar o dia seguinte.
​Ou posso?
​Se eu arranjar forças para me levantar, talvez eu possa me arrastar de
volta até lá, ou pedir um Uber…
Agora que já superei o dia, faz sentido toda a tensão ali. Imagina uma
menina assustada, tendo que lidar com o Anthony falando mil coisas
seguidas, uma caixa de e-mail lotada e ligações que não param. Sem contar o
humor da Elizabeth, os olhares dos outros funcionários e todos cochichando
sobre você.
​Será que o escritório dos senhorzinhos ainda está precisando de alguém?
Aquele emprego me parece muito promissor agora, sabendo que vou ter paz
e, principalmente, porque não senti energia pesada lá.
​Eles têm plantas e um gato no escritório, esse provavelmente é o motivo.
​Alguém bate à porta e eu viro a cabeça para olhá-la, me mantendo em
silêncio, porque só pode ser o zelador. De manhã, encontrei com ele e falei
sobre a goteira no chuveiro, pedi uma ajuda para arrumar e ele falou que
passaria aqui depois. Tola inocente.
​A batida se repete e só penso em continuar ignorando, mas não consigo,
coitado. O trabalho mental cansa tanto quanto o físico, e é como se eu
tivesse participado de uma maratona de triatlo.
​Me levanto com um suspiro alto e, antes de abrir a porta, tento sorrir de
forma gentil.
​— Estava começando a ficar preocupado, quase liguei para a polícia.
​Preciso levantar a cabeça para ver o rosto de Charlie, que carrega aquele
sorriso travesso que só ele tem.
​— O que você está fazendo aqui?
​— Sabe aquele restaurante japonês que passamos em frente, no final de
semana? Estava aqui por perto e pensei que você fosse querer comer alguma
coisa para comemorar o primeiro dia de trabalho.
​Abaixo o olhar para as sacolas que ele está carregando e sinto o cheiro
delicioso de yakissoba e rolinho primavera saindo das embalagens.
​— Eu nem tomei banho ainda, devia ter me avisado que vinha.
​— Eu te liguei e mandei mensagens, foi você quem escolheu me ignorar
— Charlie faz um biquinho, fingindo estar triste e me pergunta
silenciosamente se vou deixá-lo entrar ou não.
​Dou um passo para o lado e abro mais a porta, é claro que vou deixar.
Ele dá um beijo em minha bochecha e anda direto até minha cozinha.
​— Para sua informação, não escolhi te ignorar, só estava deitada no sofá,
esperando minha alma voltar para o corpo. — Acompanho-o e apoio o corpo
em cima do balcão, observando enquanto ele abre os armários e paga pratos,
talheres e copos para nós dois. — Você não precisava ter feito isso…
​— Ah, por favor, Dias! — Charlie revira os olhos e apoia as duas mãos
na bancada, fitando meus olhos. — Não posso inventar uma desculpa para te
ver?
​Levanto uma sobrancelha e, silenciosamente, lhe dou um olhar de
advertência. Sem namoro. Esse é o nosso combinado e já passamos o final
de semana inteiro juntos.
​— Por que vocês, brasileiros, acham que tudo é mais sério do que
realmente é?
​— São vocês, ingleses, que tem mania de dar um beijo e já estar
namorando a pessoa — devolvo a provocação.
​— Não, gringa… Esses são os americanos.
​— Tem razão.
​— Eu sempre tenho. Já falei que seu sotaque é lindo? — Charlie dá uma
piscadela e abre as caixinhas quadradas, que estão com um cheiro
maravilhoso. — Comprei vegetariano para você, não faço ideia do que tem,
mas sei que não tem carne.
​— Certo — suspiro e olho para o corredor. A preguiça tomando meu
corpo novamente. — A comida vai esfriar, mas eu preciso tomar um banho.
​— Vamos fazer o seguinte: se você demorar demais, eu mesmo vou te
resgatar do chuveiro.
​— Isso deveria me apressar? — Provoco cruzando os braços no peito e
Charlie morde a boca. A visão dele pelado na minha cama é muito boa,
agora, molhado no meu chuveiro… Sacudo a cabeça e afasto a imagem da
mente, quando dou um pulo do banco. — Volto já.
​Mesmo com a tentação de ver Charlie abrindo a porta do banheiro, tomo
um banho rápido, porque minha barriga está roncando. Se não fosse por ele,
eu comeria qualquer biscoito que estivesse no armário e isso teria que bastar
até o dia seguinte, para quando eu passasse por alguma cafeteria a caminho
da faculdade.
​ uando volto para a sala, encontro Charlie à vontade na frente do fogão,
Q
esquentando nossas comidas na panela, já que não tenho microondas. Sento
na bancada e cheiro o ar, sentindo o aroma delicioso tomar conta de meus
sentidos.
​Não consigo tirar os olhos dele, que está com a manga dobrada, os
braços cheios de sardas à mostra, enquanto coloca o que parece ser o meu
yakissoba em um prato. Sei que não foi ele quem cozinhou o jantar, mas é
impossível ignorar o formigamento no meio das minhas pernas por ter um
homem desses na minha cozinha.
​Nós comemos ali mesmo, um de frente para o outro, e Charlie me conta
que as aulas de música com os caras da DownUnder vão acontecer em breve.
Thomas conseguiu combinar tudo com eles e as crianças ficaram muito
animadas. Até quem não toca música, se inscreveram só para assistir.
​— Depois me fala quanto que eu te devo — falo pegando os pratos e
dando a volta no balcão para levá-los até a pia.
​— Nada — ele me acompanha com o olhar e apoia o corpo na bancada.
​— Você tem que parar de ficar comprando comida para mim nos lugares
— o repreendo. — Caso você não se lembre, eu sei muito bem onde você
trabalha e o quanto ganha.
​— Está me chamando de pobre na cara dura? — Charlie coloca a mão no
peito, fingindo estar ofendido.
​— Não! — Defendo-me e começo a rir. — Tá, talvez…
​— Nunca mais trago comida para você — ele nega com a cabeça e eu
volto minha atenção para os pratos que estou lavando.
​— Inclusive, você não me contou como entrou no prédio.
​— Sua vizinha estava saindo e me deixou subir — vejo seu sorriso
extremamente convencido por cima do ombro. No final de semana, ele
passou mais de uma hora conversando com a senhora que mora no
apartamento ao lado. Conquistou a velha.
​— E se você fosse um assassino ou um louco que me persegue? Isso é
um absurdo, vou ter que levantar essa pauta na próxima reunião de
condomínio. — Termino de lavar a louça e faço meu drama olhando para
ele, que está se divertindo com a situação.
​— Quer que eu compareça para ressaltar os perigos dela ter me deixado
entrar?
​Charlie levanta a sobrancelha e coloca as mãos na minha cintura, me
puxando para perto dele devagar.
​ Bom… E quais seriam os perigos? — Mordo meus lábios e aproximo

nossos corpos, quase encostando nele.
​— Ah, são vários… — Charlie levanta meu queixo devagar e sua
respiração se choca contra a minha. — Mas acho que o principal são os sons
altos que você faz quando estou aqui.
​— Sons altos? — Passo os lábios nos dele e ele sorri.
​— Você tem uma mente muito poluída, eu estava falando de quando te
faço rir.
​Mordo seu lábio e ele envolve a mão ao redor da minha cintura, me
levantando um pouco antes de começar a me beijar lentamente. Beijo bom
pra caralho, é só nisso que consigo pensar quando sua mão entrelaça no
cabelo da minha nuca. Colo nossos corpos e o escuto soltar um pequeno
suspiro quando coloco a língua na sua boca.
​— Você não me contou como foi hoje — Charlie se afasta um pouco e
tira o cabelo do meu rosto.
​— Cansativo — abraço sua cintura e me mantenho olhando seu rosto. —
A última funcionária deixou uma bagunça para eu arrumar, acho que eles
tinham um caso… — Sussurro a última parte e Charlie arregala os olhos, ele
adora uma fofoca.
​— Existem rumores de que ele fica com todo mundo, mas está
prometido a alguém. — Charlie conta alegre, mas fecha a cara. — A família
dele é um lixo, todos esses ricos são. Ele pelo menos te tratou bem?
​— Tratou. Ele é complexo, sabe? — Penso nas horas que passamos
juntos trabalhando e em como ele estava focado, sem ironias. — Quando
chegou, agiu com o nariz em pé e me deu algumas patadas, mas foi
diferente. Ele estava mais… aberto, talvez? Seu tom de voz era o mesmo,
mas a expressão, a postura do corpo…
​Lembro de como ele foi atencioso me explicando as coisas que precisava
e como sua voz aveludada se manteve tranquila e paciente, mesmo quando
eu não parava de fazer perguntas.
​— Bom, ele te contratou e você vai ficar responsável por muitas
coisas… Ele precisa manter um bom relacionamento entre vocês.
​— É, mas não sei… Enfim, Anthony MacMillan é um mistério muito
complicado para desvendar. O ponto positivo do dia foi: não brigamos, pelo
menos não de verdade.
— E você descobriu alguma coisa interessante para nós?
— Não tive tempo — solto a cintura de Charlie e suspiro, pensando
no que tenho que fazer amanhã pela primeira vez, desde que ele apareceu na
minha porta. — Passei praticamente o dia inteiro com ele, estudando seus
compromissos e como ele gosta de trabalhar.
​— Mas você vai procurar, né?
​— Quando eu tiver oportunidade.
​— Porque esse trabalho, essa chance que você está tendo, pode mudar o
destino do Centro e até mesmo de LittleWin. — Charlie insiste.
— Eu sei, mas não é como se eu tivesse acesso a tudo no primeiro
dia. Eu mal sei entrar no sistema. — Começo a andar em direção a sala, do
outro lado do balcão.
​— Você precisa prestar atenção nos documentos que chegam, procurar
por qualquer vírgula que esteja estranha. Sem contar nas provas que precisa
dar um jeito de guardar…
​— O que é isso? Esse jantar foi só uma desculpa para descobrir se eu
encontrei alguma coisa para a Ordem? — Pergunto irritada, parando de
andar para olhar para ele, que está atrás de mim.
​— É claro que não! — Charlie franze a sobrancelha, negando com a
cabeça.
​Sei que não estou com minha melhor expressão agora, porque ele está
surpreso com a minha reação. Não quero ser usada, e é por isso que esse
“relacionamento” está tão legal, tem sinceridade envolvida.
Ou eu pensava que tinha.
— Bom, eu prefiro que você venha aqui e pergunte exatamente o que
quer saber, do que fazer todo esse teatro de “querer me ver” e trazer janta
para nós dois. — Sento no sofá, cruzando os braços e ele fica parado ao meu
lado, me olhando como se não soubesse o que fazer.
​— Não, Dias, não foi teatro. Só estava curioso, desculpa se fiz parecer
que tinha outro motivo.
Ele parece estar falando sério, mas me lembro que não o conheço por
inteiro e, sinceramente, não estou nem um pouco afim de brigar e bancar a
durona agora.
— Tá bom, é que… — Dou de ombros tentando arranjar alguma
desculpa que eu possa dar. A verdade é que odeio ser cobrada dessa maneira,
principalmente por alguém com quem eu não tenho nenhuma obrigação. —
Acho que estou muito cansada, só isso.
Sei bem que não são as desculpas exatas que eu deveria dar por ter
desconfiado de sua atitude, mas, neste momento, não quero dar o braço a
torcer.
​Sim, às vezes eu sou egoísta, e tá tudo bem, acontece.
​— Você vai ficar de pé me encarando ou vai sentar para assistir algo
comigo? — Pergunto, puxando a coberta e dando espaço para ele sentar, só
para quebrar o clima ruim que ficou de repente.
​— Eu tenho que ir embora daqui a pouco… — Charlie senta do meu
lado e coloco as pernas em cima das dele. Sinto o calor de sua mão na minha
panturrilha e arrumo as almofadas nas costas. — O que vamos ver?
​— Tem aquele filme de comédia romântica que a gente começou a
assistir umas quatro vezes no final de semana. — Sugiro, procurando o filme
na televisão.
​— Tá bom, mas pula os primeiros 10 minutos, porque eu já decorei as
falas. — Charlie sobe a mão para perto do meu joelho e sinto um arrepio
subir pelo meu corpo.
​— Algo me diz que a gente não vai assistir o filme mais uma vez…
​Charlie vira o rosto para mim com os olhos safados, a mão subindo ainda
mais pela minha perna, até chegar na parte de dentro da minha coxa, os
dedos próximos da minha virilha.
​— Engraçado… Eu estava pensando a mesma coisa.
Capítulo 18

“Deus me ajude da sua raiva


Deus me imunize do seu veneno
Deus me poupe do seu fim
Deus me livre e guarde de você”
Reza - Rita Lee

​ aguei 15 libras para o neto da dona da floricultura e o amigo me


P
ajudarem a levar todas as coisas que comprei para o escritório. Ou melhor,
que o Anthony comprou, porque a nota de pagamento estará bem linda em
cima da mesa dele. Os meninos precisaram carregar dois carrinhos pelas
ruas, enquanto eu segurava as sacolas, um ajudando o outro a não derrubar
nada.
​Elizabeth me olhou horrorizada quando a porta do elevador abriu e nós
saímos de lá com tantas coisas. Parecia até que eu estava com alguma
doença altamente contagiosa. Além de não mexer um dedo para nos ajudar,
ela deixou bem claro que, se os meninos roubassem alguma coisa, a culpa
seria minha. Sim, foi o que ela insinuou. Apenas revirei os olhos e indiquei o
caminho para os dois que são muito gentis e me ajudaram a organizar o
escritório antes de irem embora.
​E, de um dia pro outro, meu escritório frio, cinza e sem graça, ficou
verde, alegre e com vida. Agora sim, um ambiente minimamente saudável
para trabalhar.
​— Dias, por que tem vasos de plantas espalhados por todo o meu
escritório e uma conta não muito barata dessas mesmas plantas em cima da
minha mesa?
​ nthony está parado na porta da minha sala, usando um tênis que
A
reconheço como lançamento, e os dedos com anéis prateados segurando a
mochila em um ombro. Pelo o que percebi dos outros funcionários, ele é o
único que consegue se vestir socialmente, mas com detalhes que tiram o ar
de empresário chato que os outros passam.
​— Eu falei que a energia daqui estava horrível. Não ia adiantar nada
colocar só no meu e deixar o seu aquela podridão.
​— E eu falei que você podia fazer o que quisesse no seu escritório, não
no meu. — Anthony cruza o braço em frente ao corpo e levanta uma
sobrancelha, mas seu tom de voz é leve, não irritado como eu esperava.
​Sinto que ele é o tipo de homem que, se não estiver satisfeito com algo,
eu saberia imediatamente, porque Anthony não manteria essa postura. Não
me olharia de cima a baixo, como se realmente estivesse ansioso pela minha
resposta. A diferença da maneira como falou comigo pela primeira vez, na
sala de aula, para a forma que fala agora é muito grande.
​— Se vamos trabalhar juntos, precisamos que nossa energia flua bem,
Anthony. Como essa mudança é para a melhora do nosso ambiente de
trabalho, nada mais justo do que o chefe pagar. — Levanto-me da mesa,
deixando um documento de lado, e ando até ele. — E, por favor, não é como
se eu tivesse feito grandes maluquices, são só algumas plantas.
​— Algumas?
​Anthony levanta a sobrancelha e aquele mesmo mini sorriso, que vi
ontem, surge em seu rosto.
​Definitivamente, não está bravo.
​— Parece que o Tarzan vomitou na minha sala. — Dá um passo para o
lado para eu passar e me segue até seu escritório.
​— Você reclama demais. Se acha que tem muita planta aqui, nunca
entrará no meu apartamento — reviro os olhos e me aproximo da planta que
coloquei na estante atrás dele. — Essa aqui se chama… Comigo-Ninguém-
Pode, eu não sei o nome em inglês, então vai ter que se contentar com o
nome em português. Ela é uma planta mística, as folhas ficam amareladas
quando tem muita energia ruim por perto, afasta o mau-olhado e a inveja,
além de equilibrar a energia dos ambientes, o que é perfeito, já que você está
precisando. Coloquei uma na minha sala também.
​— Você só pode estar de brincadeira… — Anthony murmura, me
encarando. — Você é uma daquelas mães de planta?
​ Não existe isso de “mãe de planta” — faço as aspas no ar. — Eu

cresci cercada por mulheres que gostam de coisas naturais, então acabei
aprendendo um pouco.
​— Hippies ou bruxas? — Anthony pergunta e parece interessado, o que
me surpreende bastante. Não é o tipo de pergunta que estou acostumada a
receber, principalmente de um homem.
​— Bruxas Artesãs. — Respondo, mesmo sabendo que não falaria isso
para a maioria das pessoas, já que o preconceito é grande. Mas seu tom de
voz me dá liberdade o suficiente para eu ser sincera. — Elas tem uma loja de
produtos naturais artesanais, são elas que fazem tudo.
​— Você parece gostar bastante disso. Por que escolheu estudar Direito
em vez de, sei lá, essas terapias alternativas?
​Pisco algumas vezes, sua curiosidade é uma surpresa para mim, que
realmente não esperava esse interesse repentino. Faz… muito tempo que não
falo sobre isso com alguém.
​— Hum… — Penso um pouco, abaixando o olhar para os pés, e
encontro seu rosto atento. A vontade de falar “para destruir as empresas que
só pensam em si mesmas e não na população e no meio ambiente” fala alto,
mas não tanto quanto o senso de não estragar o que estou fazendo para a
Ordem logo no meu segundo dia. — Paga bem.
​Uma resposta mesquinha e que ele claramente não engole, porque franze
a sobrancelha desconfiado. Seus olhos parecem ver minha alma, de tão
intensos que estão me fitando.
​Sinto ele dizer, silenciosamente: “Você está mentindo, e tudo bem.”
​— Que cheiro é esse? — Anthony muda o assunto e cheira o ar,
procurando de onde o aroma vem.
​— Ontem, você reclamou do cheiro da Arruda. Então, coloquei um
difusor com um blend de óleo essencial que fiz com laranja, magnólia,
lavanda… Para te ajudar a se concentrar, ficar mais positivo, menos
irritadinho e ranzinza para lidar comigo, e a gente não se matar até o fim do
dia.
​Brinco e Anthony nega com a cabeça, a expressão tranquila enquanto
coloca a mochila no chão e senta na cadeira. Ele olha ao redor, como se
estivesse reconhecendo o seu novo espaço, com vasos de plantas pequenos e
grandes espalhados pelas estantes e cantos.
​— Só para deixar claro, não estava nos meus planos te matar. —
Anthony liga o computador, nossos olhos se encontram de novo, como imãs.
​ Espero que não mesmo, mas me avise se, por acaso, algo mudar.

Tenho um blend de óleos perfeito para prevenir um assassinato.
​Ele solta uma pequena risada nasalada que me deixa em alerta, porque
um estranho calor se apossa do meu corpo, me deixando… Nervosa?!
Anthony deveria estar bravo por eu invadir seu espaço e não ser gentil.
​Fico séria e olho ao redor, refletindo sobre o limite que ultrapassei ao
fazer algo somente pensando no que eu acredito — e na pequena vontade
inconsciente, que vive em meu corpo, de irritá-lo.
​— Se você achar que exagerei, posso levar tudo de volta para a minha
sala — ofereço com a voz baixa e espero que ele entenda meu pedido de
desculpas silencioso.
​Anthony respira fundo mais uma vez e passa o olho pela sala, antes de
voltar a atenção para mim. Ele parece sentir a mesma dificuldade que eu ao
falar o que realmente se passa em sua cabeça.
​— O cheiro é melhor do que o de ontem. — Afirma como se uma
bandeira branca fosse levantada entre nós.
— Eu sei — levanto uma sobrancelha com seu elogio disfarçado de
reclamação. Será o meu blend fazendo efeito para diluir toda a irritação que
vive naquele corpo?
— E as plantas não são tão ruins assim — completa, se dando por
vencido.
— Eu sei — aperto um pequeno sorriso vitorioso, que lhe faz desviar
o olhar do meu e voltar a atenção para o computador. — Posso deixar tudo
onde está, então?
— Você está perguntando isso de propósito, não está?
— É claro que sim — meu sorriso se alarga, vendo o quão
incomodado ele está por ceder para mim.
Sinceramente, gosto disso.
Mal sabe ele que também fiquei incomodada por fazer tudo isso,
melhorando não só o meu ambiente de trabalho, como o dele também. Se
vamos trabalhar juntos, os dois vão precisar ceder um para o outro, e parece
que ambos entendemos muito bem isso.
— Meu pai me deixou encarregado de alguns documentos de gastos
que eu preciso dar uma olhada, vou subir tudo para o sistema e preciso que
você passe a limpo. Se certifique que está tudo certo e encaminhe de volta
para mim. — Ele muda de assunto e eu confirmo, sabendo que ele não vai
dar o braço a torcer verbalmente, de forma tão explícita assim.
Entretanto, não consigo deixar de me sentir bem com essa interação,
que foi tão natural e… certa.
— Você tem uma reunião com ele em duas horas, precisa estar
pronto até lá? — Ele confirma e eu aceito a deixa para voltar à minha sala e
deixá-lo sozinho. Paro na porta antes de fechá-la. — Anthony, talvez eu
tenha exagerado nos óleos, então, se começar a ficar com dor de cabeça, é só
tirar o difusor da tomada.
Ele assente em silêncio e eu fecho a porta atrás de mim, indo até
minha sala. Não fecho as cortinas das paredes de vidro, porque sei que estão
comentando sobre mim pelo escritório e não quero dar o gostinho de mostrar
para eles que estou incomodada com isso.
Assim que desbloqueio minha tela novamente, a notificação dos
documentos de Anthony chega na tela do meu computador. Olho o horário
no relógio e calculo o tempo que tenho para fazer tudo, que é pouco para que
Anthony possa revisar antes da reunião. Respiro fundo e abro o primeiro
arquivo, preparada para focar integralmente ali.
Em geral, a documentação é chata. Protocolos de compras de
materiais para reformas nos diversos empreendimentos que a Vann possui.
Eles são donos de construtoras, hotéis e pequenos negócios com nomes
diferentes, como uma marca dentro de outra. Com isso, a compra dos
materiais e os gastos das empresas seriam reduzidos, porque, em vez de
fazer para apenas um, eles conseguem fazer para vários ao mesmo tempo.
​Inteligentes, em vez de contratarem terceiros, eles mesmos fazem quase
tudo dentro daquele império.
​Começo pelos contratos, me certificando se tudo está escrito da forma
correta e dentro dos parâmetros dos outros exemplos que tenho comigo.
Depois de quase 40 minutos, passo para os valores, que é mais fácil e rápido
de analisar, já que preciso apenas conferir se estão corretos.
​É um trabalho chato e mecânico, coloco DownUnder para tocar baixo no
alto falante do computador, apenas porque estou tentando dar uma nova
chance e escutar as músicas dos caras, depois que o vocalista assediador saiu
da banda. Vou conseguir devolver os documentos para Anthony com uma
folga boa de tempo para ele conferir.
Quando finalmente chego nos documentos da prefeitura, noto algo
estranho.
​Os números são altos por serem pedidos grandes, mas me chama a
atenção o valor base de alguns materiais estarem três vezes mais caros do
que o normal, quando deveria estar mais barato pela quantidade pedida.
​Volto para o início do documento para ver sobre o que se trata e vejo que
é para a reforma de um prédio no centro da cidade. Faço uma busca rápida
na internet e vejo que tenho razão sobre o valor estar maior, então coloco o
valor que estava no próprio documento, com uma nota ao lado para o
Anthony dar uma olhada naquele erro.
​No mesmo orçamento, outros produtos estão com o mesmo erro e,
quando percebo, meu computador está cheio de abas de pesquisa abertas,
comparando preços com diferentes lojas de construção com os valores
orçados para a prefeitura.
​Estranho.
​Quando percebo, já estou batendo na porta de Anthony, que me manda
entrar na mesma hora.
​— Já coloquei os documentos da reunião de agora na pasta
compartilhada — aviso na porta e ele assente, procurando em seu
computador, e confirma para mim.
​— Não precisa vir aqui para me avisar, Dias, é só mandar uma
mensagem quando terminar que aparece a notificação. — Anthony me fala
como se fosse óbvio e eu entro.
​— Eu sei, é que… Anthony, tinha alguns erros nos valores. — Fecho a
porta atrás de mim e não sei porque, mas diminuo a voz. — Orçamentos com
os valores duplicados e até triplicados, eu deixei sinalizado quais são para
você ver, mas… Bom, achei que deveria te falar pessoalmente.
— Tem certeza? — Anthony levanta o olhar para mim e eu confirmo.
— Vou dar uma olhada, obrigado.
​Posso estar sendo muito implicante com a empresa, por causa de toda a
situação com LittleWin, mas meu sexto sentido apita em minha mente e só
sinto um leve alívio quando vejo Anthony franzir a sobrancelha, claramente
confuso enquanto procura pelas minhas anotações e percebe que, realmente,
tem algum erro ali.
Capítulo 19

“Cabeça embaixo d'água


E você me diz para respirar levemente por um tempo
A respiração fica difícil, até eu sei disso!”
Love Song - Sara Bareilles

​ m debate caloroso sobre o livro Me Chame Pelo Seu Nome está


U
acontecendo nos fundos da Beer&Books. Apesar de todos estarem falando
sobre a Itália dos anos 80, a forma que o autor escreveu o livro e as
problemáticas do romance entre Elio e Oliver… Minha mente está um tanto
quanto distraída por causa dos meus primeiros dias trabalhando na Vann.
​Anthony não comentou sobre o erro que encontrei e o assunto não foi
abordado nas reuniões sobre essa reforma, nas quais precisei acompanhá-lo.
Quando perguntei em particular, ele disse que foi erro de digitação de
quantidade de material e que seu pai tinha resolvido em uma reunião direto
com o gabinete do prefeito.
​Algo em mim continuava apitando e dizendo que tinha alguma coisa
errada. Ao mesmo tempo, sentia que não devia contar para as pessoas da
Ordem, porque poderia ser, realmente, um erro.
​— Não gostou do livro? — Olive pergunta com a voz baixa, chamando
minha atenção.
​— Eu adorei! — Pisco algumas vezes, tentando esconder as
preocupações.
​— Como não falou nada até agora, achei que tinha detestado e estava nos
achando loucos por termos gostado — aperta um sorriso dando de ombros.
​— Só estou distraída, desculpe. — Tranquilizo-a e ela volta a prestar
atenção na discussão, que chegou na famosa cena do pêssego.
​ Me inscrevi na sua aula, no Centro.

​— Achei que só alunos podiam se inscrever!
​— Na verdade, me inscrevi como voluntária, para você não precisar lidar
com aqueles pestinhas sozinha. — Olive explica. — Está animada?
​— Um pouco ansiosa, com medo de acharem chato demais — assumo e
dou de ombros.
​— As meninas estão bem animadas, tenho certeza que vão gostar e que
vai ser divertido.
​Concordo e volto minha atenção para a cerveja na minha frente, dando
um gole.
​— E o trabalho? Tudo bem?
​Eu estava esperando por isso. Charlie fez a mesma pergunta nas outras
duas vezes que esbarrei nele durante a semana, fingiu desinteresse, mas
estava claro que queria saber se eu tinha descoberto algo.
— Tudo do mesmo jeito — respondo sem contar dos valores errados,
já que não tenho certeza se o erro foi proposital ou acidental. Não vou fazer
alarde à toa. — Estava lidando com a documentação da reforma de um
prédio aqui na cidade.
​— Alguma coisa de LittleWin? — Não sinto ansiedade em seu tom de
voz, igual sinto quando Charlie me questiona.
​Parece que Olive está realmente curiosa, mas sem colocar expectativas
em cima de mim. Como se soubesse que eu não teria a solução para todos os
problemas do grupo.
​— Por enquanto, não. Passamos a semana cuidando desse projeto que é
prioridade. A prefeitura está fazendo reformas para ter um novo escritório
deles, vão se mudar do antigo, se não me engano.
​— É claro que projetos assim eles valorizam mais do que projetos
sociais. E aí, quem realmente precisa de ajuda é deixado de escanteio —
Olive retruca baixo e suspira.
​— Sei que eles têm alguns projetos para fazer em LittleWin, porque vi
uma das pastas do sistema com esse nome, mas está com senha, já que não é
o projeto atual, então não consigo acessar — assumo minha pequena
descoberta insignificante, o que chama a atenção de Olive.
​— Seria ótimo se a gente soubesse o que tanto eles querem fazer lá…
​— Não estou sendo muito útil, não é mesmo? — Faço uma careta
culpada.
​ Está fazendo mais do que muitos, não se preocupe. Essas coisas não

acontecem do dia pra noite. Só o Charlie achou que logo no primeiro dia
você estaria com o ouro nas mãos, pronta para destruir o império dos
MacMillan e salvar o Centro.
— Destruir os MacMillan? — Franzo a sobrancelha preocupada.
​— Foi só uma forma de falar, não se preocupe. — Olive joga os cabelos
volumosos para trás e se vira para mim. — Eu estava pensando em coisas
que você pode fazer para nos ajudar e que não comprometa seu trabalho lá
dentro…
​— Tipo o que?
​— Tipo atrasar compras, reformas e demolições. É bem fácil, para ser
sincera, tudo o que você precisa fazer é sumir com um ou dois documentos
de cada projeto, ou inserir erros nos contratos, que vão precisar de dias para
arrumar.
​— Assim a gente consegue um prazo maior para tentar dar um jeito no
problema… — Penso no que ela falou e assinto. — Faz sentido.
​— E o risco que você corre é pequeno, mínimo para falar a verdade.
Erros acontecem e documentos se perdem, é só saber qual escolher.
​Penso sobre o assunto e Olive tem razão, é uma boa alternativa, que não
vai me colocar em apuros com o Anthony. Apenas tenho que saber quando e
como fazer, para não gastar minhas chances nos projetos errados, enquanto
tento procurar por qualquer outra informação que ajude a Ordem.
​— Acho que posso fazer isso, quando tiver oportunidade, é claro.
​Enfatizo a última parte para que Olive não crie expectativas, como as de
Charlie, que são mais altas do que o esperado. Como se todo o destino do
Centro estivesse somente nas minhas mãos e não houvesse mais nada a se
fazer, além de eu descobrir qualquer coisa de dentro da empresa.
​— Quando tiver a oportunidade. — Olive concorda e se levanta,
voltando para o lado caloroso da discussão.
Capítulo 20

“Porque ele era um raio de sol, eu era a chuva da meia-noite


Ele queria o conforto, eu queria aquela dor”
Midnight Rain - Taylor Swift

​ Isso é fácil demais!



​Um garoto de 15 anos, chamado John, reclama após me escutar dando o
resumo do passo a passo de como fazer uma vela.
​— Você tem razão, é fácil, mas se não nos atentarmos aos detalhes, tudo
pode dar errado. Também precisamos estudar para montar as melhores
combinações de aromas, porque se você misturar duas fragrâncias opostas,
mas que são cheirosas individualmente, elas podem finalizar com um cheiro
desagradável e que só vai nos atrapalhar.
​— Fica quieto! — Hannah, a garota responsável por ele ter se inscrito na
aula em primeiro lugar, fala sem paciência.
​Aperto um sorriso para eles e me viro para Olive, que está prestando
atenção ao meu lado.
​— Então, vamos começar. No fundo da sala, preparei um kit para cada
um fazer sua própria vela. Depois que arrumarem suas bancadas, quero que
venham um por um aqui, para escolhermos as fragrâncias juntos. Vamos
montar velas especiais hoje.
​Todos concordam e se levantam, indo até as sacolinhas que preparei e
organizando suas bancadas de trabalho. Apesar de não ser a praia de todos,
dá para ver que estão interessados no que eu tenho a dizer, ou estão fingindo
bem.
​Organizo meus óleos essenciais em cima da mesa, um ao lado do outro,
para conversar rapidamente com cada um e fazer um blend perfeito, seja
para eles mesmos ou para presentearem alguém especial.
​— Toda vez que colocamos nossas mãos para criar, estamos fazendo
magia. É o que minha mãe sempre falou para mim, por isso nossas intenções
devem ser boas. Devemos produzir com calma, sem pressão e sem irritação,
para não transmitirmos esse tipo de energia para algo que deveria nos fazer
bem.
​Coloco uma música baixa para tocar na caixinha de som. No dia anterior,
encontrei uma playlist com músicas de um aplicativo de vídeo, que tenho
vergonha em falar que não sou muito boa e pareço uma tia mexendo, mas
que pareceu agradar os mais novos. Acendi um incenso no canto da sala e
aqui estamos todos.
​Aos poucos, vou conversando com cada um deles. John quer dar sua vela
para a Hannah, então montamos um cheiro adocicado para que ela se sinta
amada e mais calma na presença dele. Já Melanie está muito nervosa com as
provas e precisa de algo que a deixe mais concentrada e menos ansiosa.
​A aula está mais divertida do que eu imaginei que seria. Quando
passamos para a fase de colocar as misturas nos moldes, as meninas sugerem
pegar flores do jardim para enfeitar, colocando-as ao redor do silicone. Acho
a ideia ótima e concordo, descendo para o primeiro andar com as
interessadas, enquanto Olive continua na sala com os outros.
​O dia está lindo e, apesar do ar gelado, o sol brilha forte, não tem
nenhum sinal de chuva no céu.
​Ando até a metade do jardim e as deixo livres para escolherem.
Enquanto algumas vão em busca de flores pequenas e bonitas, outras vão
para a horta pegar folhas que combinem com os aromas escolhidos por elas.
Meu cabelo voa quando um vento mais forte passa por mim e é inevitável
não abraçar meu corpo, já que não desci com o casaco e sinto minha pele
arrepiar.
​— Eles estão dando muito trabalho?
​Ao virar o corpo, vejo Charlie andando até mim, o cabelo bagunçado
também voa com o vento, mas ele não parece estar com frio. Suas mangas
estão dobradas e os braços, cheios de sardinhas, sujos de tinta, assim como
seu macacão jeans.
​— São todos ótimos — respondo me aproximando para lhe abraçar, sem
me importar com sua roupa toda suja de branco e amarelo. Seu calor me
envolve de uma maneira gostosa e, quando nos afastamos, ele me dá um
beijo gentil na bochecha. — O que está fazendo?
​ Consegui doação de duas latas de tinta com um vizinho, então

aproveitei que não estava fazendo nada em casa e vim adiantar o trabalho de
pintura das salas… Ou o que der para pintar com a tinta que tenho.
​Seus olhos brilham ao contar sobre seu trabalho e acho fofo esse amor
que sente pelo Centro. Em pleno sábado, depois de estudar e trabalhar a
semana inteira, ele está passando seu tempo livre trabalhando nas melhorias
para as crianças.
​Encolho-me um pouco com o vento e me envolvo com mais força, o que
faz Charlie sorrir e me puxar para perto, me abraçando de novo. Dessa vez,
ele tenta aquecer meus braços com suas mãos mornas.
​— Não está tão frio assim.
​— Eu sou brasileira, senhor Cooper — respondo me deixando ser
aquecida por ele e dou risada. — E muito friorenta.
​— Então, se prepare para o inverno, senhorita Dias, porque só vai esfriar
nos próximos meses. — Charlie se afasta um pouco e olha para meu rosto
com carinho.
​A risada das meninas chama minha atenção, fazendo com que a gente se
afaste, os dois sem graça. Elas se assustam quando as pego no flagra nos
observando.
​— Você podia subir para fazer a aula com a gente — aperto os lábios,
segurando a vergonha e me virando para Charlie.
​— Não quero ficar em cima de você — Dá para sentir a tensão em sua
voz, como se estivesse nervoso em falar aquilo.
​— Poxa, mas eu gosto tanto quando você faz o trabalho pesado — minha
voz travessa e claramente sexual faz Charlie revirar os olhos, sorrindo com
minha tentativa de brincar.
​— Você entendeu o que eu quis dizer — umedece os lábios e coloca as
mãos no bolso, o sorriso se apagando e voltando a ficar sério.
​— Eu entendi — concordo e coloco a mão em seu braço. — Não precisa
se preocupar com isso, somos amigos, não somos? E amigos passam um
tempo juntos.
​— Claro — Charlie concorda e olha para as meninas que estão nos
encarando de novo. — Vou entrar antes que essas espertinhas comecem a
nos encher de perguntas.
​— Elas vão perguntar de qualquer jeito — faço uma pequena careta e ele
me acompanha, sabendo que tenho razão.
​ Escuta, a Emma está pensando em fazer uma festa de Halloween no

final do mês, decidiu de última hora e Thomas aprovou… Disse que estamos
precisando de uma festa por aqui, principalmente com o medo do Centro
fechar.
​— Vai ser meu primeiro Halloween fora do Brasil! — Fico animada com
a possibilidade de uma festa. — A gente até pega doces lá, mas nem se
compara.
​— Vou me sentir honrado em fazer parte da sua experiência — Charlie
faz um gracejo com a mão. — Só não conte para as crianças ainda, a Emma
quer contar com uma surpresa.
​— Minha boca é um túmulo — finjo passar o zíper na boca e jogo fora a
chave imaginária, mas Charlie a pega no ar e guarda no bolso, sorrindo.
​— Então, no dia, te pego às três da tarde? Para podermos arrumar tudo
com o pessoal…
​Os olhos castanhos, fixos nos meus, são gentis, cheios de carinho,
ansiosos e nem um pouco amigáveis. Odeio ter que lembrá-lo do nosso
acordo cada vez que ele faz algo parecido, mas do mesmo jeito que eu
pareço um disco arranhado sobre não termos nada sério, ele também parece
um, toda vez que me chama para sair, ou quando manda mensagens durante
a semana.
​— Não precisa me pegar, eu te encontro aqui. — Falo com firmeza,
deixando claro o que quero dizer nas entrelinhas.
— Certo — Charlie fica com a coluna reta e olha para dentro do
casarão. — Vou voltar ao trabalho, quero terminar logo para sair com uns
amigos.
Sinto que ele falou como se estivesse tentando me fazer ciúmes, mas
também pode ser apenas uma sensação boba da minha cabeça.
— Divirta-se — sorrio com sinceridade.
Ficamos nos olhando por um breve momento, um clima estranho
pairando entre nós, até ele se virar e voltar para dentro do casarão, me
deixando sozinha no jardim.
Estou me sentindo mal, não vou mentir. Gosto muito dele, mas
Charlie parece querer ficar mais próximo do que o que combinamos e me
obriga a precisar cortá-lo. Entretanto, não precisamos ficar estranhos um
com o outro, por isso, decido convidá-lo para tomar um café essa semana,
entre uma aula e outra no período da manhã. Não é um encontro e mesmo
assim mostra que eu não estou me afastando completamente.
Gosto quando conversamos e da amizade que estamos construindo,
sem contar os beijos e o sexo que são ótimos. Minhas barreiras são fortes e,
mesmo assim, ele consegue abrir pequenas rachaduras para olhar lá dentro,
sem me deixar incomodada. Depois do Pedro, isso é muito mais do que
qualquer um já conseguiu comigo.
— Vocês estão namorando? — Lizzie, amiga de Hannah, pergunta
com aqueles olhos grandes e ansiosos piscando para mim.
— De onde vocês tiraram isso? — Cruzo os braços escondendo meu
sorriso das meninas de 15 anos à minha frente, é engraçado pensar que nossa
diferença de idade não é tão grande assim e, ao mesmo tempo, elas parecem
tão mais novas do que eu.
— Ele estava bem animado sobre a sua aula e praticamente fez todo
mundo se inscrever. — Hannah responde jogando o cabelo para trás e vejo
que tem algumas margaridas na mão.
— E vocês são tão bonitos juntos… — Lizzie completa.
— É verdade, seu cabelo com essas pontas roxas, o cabelo dele ruivo
com toda aquela altura… Vocês já se beijaram?
— Vocês são muito emocionadas — dou risada e suspiro. — Somos
amigos, só isso.
— Amigos não se olham como ele te olha — Hannah observa
levantando uma sobrancelha e sinto meu coração ficar em alerta.
— Chega de criar fantasias nessas cabecinhas férteis! Vamos, de
volta pra sala que a gente tem que colocar essas flores nos moldes logo.
Aponto para a porta e as meninas começam a dar risada, andando
para dentro do casarão. Chamo o resto dos alunos que estão espalhados pelo
jardim e, assim que todos entram, fecho a porta atrás de mim, indo em
direção às escadas.
A sala que Charlie está pintando está com a porta aberta agora, acho
que por isso não notei ele ali antes. Ele está com fones de ouvido,
concentrado enquanto desliza o rolo de tinta por toda a parede sem
dificuldade.
Observo suas costas largas por um momento e o quanto acho seu
nariz bonito quando está de perfil. Os cílios ruivos quase transparentes
enquanto se vira para colocar mais tinta no rolo, sua atenção na parede,
enquanto murmura uma música do Queen.
Entendo porque é tão fácil para qualquer uma se apaixonar por ele,
mas só torço para que Charlie não se apaixone por mim. Sei que não sou
capaz de corresponder qualquer um da mesma forma.
Não mais.
Capítulo 21

“Não sou fã de marionetistas, mas tenho um medo persistente:


Alguém está puxando os cordões,
algo terrível está acontecendo em toda a cidade”
Discord - The Living Tombstone

​ vida tem dessas, só porque você tem certeza absoluta que algo não vai
A
acontecer, acontece. É como se você fosse uma grande piada para o
universo.
​Depois de duas semanas trabalhando nos documentos da reforma do
prédio no centro da cidade, Anthony liberou o meu acesso à pasta chamada
LittleWin.
​Estou olhando para a tela do computador já faz alguns minutos, sem
coragem de apertar o botão de login após adicionar a senha. Faz menos de
um mês que estou trabalhando na Vann, e é muita coincidência começarmos
a mexer no exato projeto que a Ordem precisa que eu olhe.
Coincidência ou teste.
​— Teste? — Pergunto-me com a voz baixa, eu só posso estar louca.
Anthony não sabe que estou na Ordem — ou, pelo menos, acho que não
sabe.
​Não é como se estivesse estampado, em todos os lugares, que participo
do grupo que luta contra a empresa onde trabalho. Ele nunca perguntou
sobre o que eu faço quando não estou na faculdade ou no escritório.
É, para de paranóia, Marina.
E ainda não consegui participar de nenhuma manifestação feita pela
Ordem por causa dos meus horários, é uma droga estar tão focada na
faculdade. Caso fosse no Brasil, provavelmente já teria participado de, no
mínimo, duas ações, como a da última semana, contra o aumento do valor
dos transportes públicos. É difícil ser adulta que precisa manter uma bolsa de
estudos.
​Respiro fundo algumas vezes e dou enter no teclado, só para ver a pasta
carregar com subpastas, que parecem estar cheias de documentos. Meu
coração dispara no peito e preciso me forçar a ter calma.
​Isso sempre acontece quando sinto que estou fazendo algo que não
deveria. Eu e essa merda de senso de justiça que não entende que está tudo
certo, já que estou ajudando quem merece. Foda-se meu emprego e os
MacMillan, eles estão fodendo com muitas pessoas e tenho a oportunidade
de ajudar LittleWin.
​Mas se eu sei de tudo isso, porque estou sentindo esse aperto tão grande
no peito? É quase como se eu estivesse errada, traindo meu chefe. Talvez
realmente esteja um pouco...
​Não!
​Não estou.
​Balanço minha cabeça e respiro fundo para afastar o pensamento da
minha mente. Faço um coque em meu cabelo, que estava solto e me
incomodando.
Tudo está me incomodando agora.
Olho para o celular ao meu lado e, em seguida, me certifico que as
cortinas da sala estão realmente fechadas, não estou nem um pouco a fim de
ter que lidar com os olhares de julgamento hoje. Não depois do que
aconteceu no começo da semana, quando fui buscar café na copa e escutei
duas funcionárias da administração falando sobre mim e minhas roupas.
​Aparentemente, eu deveria receber uma notificação do RH para que eu
me vista menos como uma “estudante de artes” e mais como uma advogada
digna de trabalhar para o filho do chefe. O mais ridículo delas pensarem
assim é que Anthony nunca reclamou sobre minhas roupas, nem mesmo deu
indício de não gostar do que visto.
​Claro, elas falaram como se eu vestisse algo completamente inapropriado
para o ambiente de trabalho e não os suéteres, calças e saias compridas o
suficiente. O problema delas é que eu não uso salto fino? Pois gostaria de
saber o que elas achariam depois de passar o dia inteiro acompanhando
Anthony em diversas reuniões, não só no prédio, usando um salto que mais
atrapalha do que ajuda.
​— Deve estar fodendo o senhor MacMillan, isso explicaria.
Foi o que as escutei falarem por último e o que me fez abrir a porta
da copa sem hesitar.
— Boa tarde meninas, tudo bem? Uma boa hora para tomar café,
não acham? — Fui direto até a máquina de café e comecei a preparar o meu,
o silêncio dizia muito mais do que elas imaginavam. — Ainda não recebi a
devolutiva dos documentos que te enviei ontem, senhorita Jones. Espero que
meu código de vestimenta não esteja te atrapalhando tanto a ponto de
atrasar o seu trabalho.
​— Não, de jeito nenhum. — Ela gaguejou, negando com a cabeça.
— Ótimo, precisava deles prontos na parte da manhã, já que são
prioridade, e não recebi seu e-mail ainda. Sugiro que a senhorita dê uma
boa olhada para si mesma antes de apontar o dedo para os outros. —
Peguei meu café e sorri para elas, como se fosse somente mais um dia
normal, e fui para o corredor. — Se não gostar da maneira que trabalho,
pode reclamar direto com o senhor MacMillan, que é a única pessoa para
quem eu devo satisfação neste escritório. Tenham um bom dia.
Sei que elas ficaram alguns segundos sem respirar quando saí da sala,
da mesma forma que sei que a fofoca correu pelo escritório, já que todos os
cochichos sobre mim pararam de ser tão descarados como antes, apesar dos
olhos estarem mais atentos. Eu sou a pessoa mais boazinha e carinhosa que
conheço, mas em hipótese alguma mexa comigo.
Existe um limite até onde minha empatia alcança.
Na tela na minha frente, noto que as pastas estão separadas pelos
nomes das ruas de LittleWin e não faço ideia de qual é a rua do Centro, só
sei como chegar até lá. No automático, pego o celular e mando mensagem
para a única pessoa que me responde praticamente na mesma hora.

Marina Dias (14:35) diz:


Está aí?

Charlie Cooper (14:36) diz:


Para você, sempre.

Marina Dias (14:36) diz:


Me passa o endereço do Centro?

​ harlie envia a localização com o endereço completo e eu abro


C
imediatamente. Em seguida, começo a procurar pela pasta certa no meio das
dezenas de pastas amarelas na minha tela, ignorando a notificação de nova
mensagem que apitou em meu celular.
Chega a assustar a quantidade de ruas arquivadas que encontro, abro
algumas só para ver se possuem documentos ou se estão vazias, mas a
maioria das pastas tem algum projeto para o futuro. É como se eles
realmente quisessem tomar conta de toda a região, sem deixar nada para
quem vive ali há décadas.

Charlie Cooper (14:36) diz:


Alguma novidade?

Marina Dias (14:39) diz:


Nada demais, não se empolgue.
Você está bem?

Charlie Cooper (14:40) diz:


Querendo que a semana termine o quanto antes.
Quer tomar um café amanhã?

Marina Dias (14:40) diz:


Tenho alguns minutos entre a segunda e a terceira aula, pode ser?

Charlie Cooper (14:41) diz:


Te espero lá.

​ espondo com um emoji sorrindo e olho novamente as mensagens de


R
Charlie. Acabamos ficando mais duas vezes depois da minha aula no Centro,
porque é impossível resistir a ele quando está determinado a algo. Charlie
Cooper consegue transformar um momento descontraído de tal forma que,
quando me dou conta, já estou com a boca grudada na dele, sentindo sua
mão me segurando com firmeza perto do seu corpo.
​Tranquiliza-me saber que ele ficou com outra garota na semana passada,
uma estudante de artes cênicas do último ano. Senti um peso saindo do meu
coração quando Emma me contou, porque aquilo só podia significar que eu
estava me preocupando demais com o que existia entre nós.
​Continuamos sendo amigos com benefícios, e isso é ótimo.
​Deixo o celular de lado, quando finalmente encontro a pasta que preciso:
os planos para o Centro Educacional que auxilia tantas crianças e famílias
diariamente.
​Abro os documentos um a um, tentando encontrar algo que seja
interessante e importante, mas todos estão bloqueados com uma senha que
não é a mesma que usei para acessar a pasta principal. Testo algumas
combinações aleatórias de outros projetos que Anthony usou nos últimos
dias, mas nenhuma abre, o que me deixa novamente na estaca zero.
​Sem ter para onde seguir, volto para o início e entro no projeto que
deveria estar trabalhando. Mais um projeto da prefeitura com a Vann
Empreendimentos, a compra de um dos maiores mercadinhos da região.
Diferente do Centro, nesse projeto eu tenho acesso a todos os
documentos e, apesar de saber da importância desse estabelecimento para
LitteWin, também sei que a Ordem não achava que era uma das prioridades,
já que era uma das últimas pautas nas últimas reuniões.
​Mas poderia ser.
​Lembro do que a Olive falou sobre atrasar a documentação para que a
Ordem consiga agir de alguma maneira. Acho que, nessa situação, posso
tentar a tática pela primeira vez. É a única coisa que tenho acesso e, mesmo
não sendo prioridade da Ordem, é prioridade da Vann, a hora de fazermos
qualquer coisa é agora. Isso é estar um passo à frente deles.
​Procuro rapidamente por mais informações sobre o que está acontecendo
para a possível venda de propriedade e descubro que o mercadinho está sem
as licenças e com um alvará vencido. Praticamente o mesmo que acontece
com vários outros locais, incluindo o Centro. O dono do estabelecimento não
consegue ganhar o suficiente para arcar com todos os custos da
documentação que, mesmo tendo a mão de obra gratuita oferecida pelos
membros do grupo, precisa de pagamento para os órgãos encarregados.
Depois de semanas trabalhando na Ordem, percebi que quanto mais
velhos os proprietários, mais cabeça dura eles são e maior é a dificuldade de
pedir ajuda.
​Nós podemos tentar fazer alguma coisa, subir o mercadinho na lista de
prioridade, arrecadar um pouco de dinheiro para as licenças e pedir ajuda
para os bombeiros liberarem o alvará sem pagamento. Ava é ótima em
persuadir as pessoas, assim como a Emma.
​E é assim que eu tomo minha decisão.
​Faço as alterações necessárias no documento, atrasando o prazo de
compra em alguns dias por problemas na documentação do financeiro da
Vann, além da licença de compra vinda da prefeitura. Estou fodida se for
pega, por isso faço tudo com cuidado, prestando atenção para não deixar
nenhum rastro e apagando qualquer sinal de alterações realizadas por mim.
Fico muitos minutos imersa nesse trabalho e, somente quando tenho
certeza de que fiz a primeira fase de maneira correta, envio a documentação
para Anthony, já falando que encontrei algumas irregularidades e que vou
precisar de alguns dias para resolver. Em minutos, recebo sua resposta com
um simples “Ok” e, finalmente, sinto o quanto meu coração está disparado
com essa loucura.

Marina Dias (15:56) diz:


Temos nosso primeiro caso.
Podemos nos encontrar hoje de noite?

Olive Brown (16:15) diz:


Na B&B, às 20h?
Vou avisar o Thomas.

​ isso. Será fácil.


É
​Agora, é deixá-los a par do que está acontecendo e ajudá-los a correr
atrás de tudo para evitar a compra de mais um empreendimento de LittleWin
pela Vann.
​— Dias? — Anthony bate na porta, já abrindo-a devagar, e eu dou um
pequeno gritinho ridículo por causa do susto que levo.
É isso que dá fazer merda, você fica com culpa no cartório e não tem
o que fazer contra isso.
— Você falou que não tinha planos de me matar — coloco a mão no
coração enquanto ele entra. — Mentiroso.
— É assim que você fala com seu chefe? — Pergunta com a feição
do rosto suave e cerro meus olhos.
— Ah, o senhor MacMillan está aqui? — Finjo procurar seu pai atrás
dele e Anthony revira os olhos.
— Engraçadinha… — Murmura e senta à minha frente.
Ainda não conheço o senhor Archibald MacMillan, mas não escutei
nada de bom sobre ele pelo escritório, e o próprio Anthony parece viver com
uma pressão absurda de fazer tudo o mais perfeito possível. Seu escritório
fica nos andares de cima e eu nunca fui até lá, mas também sei que não tem
nada para mim naquele lugar. Na verdade, fico até um pouco amedrontada só
de pensar em precisar pegar o elevador para lá e ter que fingir ser séria e
firme, mesmo que eu esteja tremendo por dentro. Então, agradeço por
Anthony nunca me pedir para subir.
Anthony pega o celular do bolso e cruza a perna, ficando confortável
até demais em meu escritório. É impossível não admirá-lo e parece que não
importa quantas vezes eu o olhe, ele sempre está lindo.
Seu cabelo está irritavelmente arrumado para trás, em um tom de
loiro tão claro, que me pergunto se é natural. Aperto os lábios tentando
esconder o sorriso que surge em meu rosto ao pensar na possibilidade de vê-
lo no banheiro do seu apartamento com pó descolorante na cabeça.
— Acho que nossas agendas não estão sincronizadas, então vim
conferir.
— Não estão? — Paro de pensar bobeira e abro a agenda no
computador, procurando os compromissos desta semana e olhando para ele
de canto de olho. — Hoje, temos só a reunião com o departamento de
compras que vou adiar, já que encontrei problemas nos documentos…
​— A reunião com meu pai sumiu — Anthony fala sem rodeios,
levantando o olhar.
— Ah, foi cancelada, a secretária dele ligou há algumas horas
pedindo para cancelar a de hoje e a da semana que vem.
— Ela ao menos falou o motivo?
Seu maxilar aperta imediatamente, incomodado com o que acabei de
lhe contar, o que me faz remexer na cadeira.
— Não, só pediu para cancelar e comentou que avisaria quando ele
quisesse remarcar.
Anthony solta uma risada nasalada e nega com a cabeça,
desacreditado no que escuta, mas, ao mesmo tempo, é como se estivesse
esperando por algo assim.
— Não sei porque ainda fico surpreso. — Ele revira os olhos,
indignado.
— Quer que eu peça para ela remarcar o quanto antes? — Ofereço, já
colocando a mão no telefone ao lado do computador, mas ele me impede
com o olhar.
— Não precisa se dar o trabalho, é ele quem dita as regras aqui, não
nós. — Abaixa o olhar por um momento e fica em silêncio.
Não sei o que fazer, então apenas o observo e tento entender o que se
passa na sua cabeça. Podemos nos dar bem no trabalho, mas isso não quer
dizer que a gente se dê bem fora destas paredes, ou que tenhamos papos
profundos sobre nossas vidas.
Na faculdade, nosso lugar segue vago, já que nenhum dos dois
brigam mais por isso. Ele fica com o seu grupinho de amigos metidos e nariz
em pé, e eu fico com Benji durante as aulas. Nossas únicas conversas, que
não são sobre documentos chatos, são pura implicância pelos cheiros que
coloco em seu escritório.
— Você está livre sexta à noite? — Anthony pergunta de repente e é
impossível não franzir minha sobrancelha, tentando processar a pergunta.
— O que? — A confusão deve ser clara no meu olhar, porque
Anthony fica sem paciência.
— Preciso que seja minha acompanhante no evento beneficente de
sexta.
Ele fala com uma simplicidade tão bizarra que eu chego a engasgar
com minha saliva. Uma coisa é me levar nas reuniões, na empresa, outra é
me levar em um evento chique da alta sociedade como se fosse algo que
fazemos toda semana.
— Ah, pronto! Agora ele pirou de vez… — Murmuro em português e
estico minha coluna, dando um sorriso nervoso e voltando a falar em inglês.
— Não acho que isso faz parte do meu trabalho, pelo menos não vi nada
sobre isso no contrato.
— É um sacrifício tão grande assim passar mais tempo perto de
mim?
— Você me odeia.
— Achei que havia deixado claro que eu não te odeio, dá para você
parar de falar isso? — Anthony revira os olhos e suspira cansado. — Lauren
viajou hoje e só me avisou agora, ela seria minha acompanhante.
— Eu posso ver se tem outra pessoa disponível de última hora, me dê
a lista que eu faço as ligações. — Ofereço prontamente, tentando contornar
aquele pedido inusitado e que eu quero muito recusar.
— Se eu chamar qualquer outra mulher que não seja a Lauren, a
mídia vai achar que estou em um encontro, e não estou com cabeça nenhuma
para lidar com fofocas sobre mim, de novo.
— Ah, e se me chamar não vão achar? — Levanto a sobrancelha e
vejo que está perdendo a paciência. — Chame outra pessoa, você tem uma
fila de opções.
— Você é minha assistente, Dias. Vão achar que está me
acompanhando a trabalho.
— Você não pode ir sozinho?
— Você realmente acha que se eu pudesse, estaria te convidando para
ir comigo?
​— Sabe, fazia alguns bons dias que você não me atacava verbalmente
dessa forma, e da última vez que você pediu algo para mim, com certeza não
foi com esse tom de voz. — Cruzo os braços, me recostando na cadeira e
cerrando os olhos.
​Só porque pensei que as últimas semanas haviam sido relativamente
boas, agora ele vem com esse papinho e essa voz arrogante para cima de
mim. Se eu não abaixava a cabeça para ele quando era apenas o insuportável
que tinha meu professor como conselheiro do mestrado, não seria agora, que
convivo com ele todos os dias, que abaixaria.
​— O que você quer para me acompanhar? — Entrelaça os dedos me
encarando de forma presunçosa.
​— Eu não quero te acompanhar, a gente começa por aí. — Devolvo a
presunção e me levanto da cadeira, andando até a estante atrás de mim e
fingindo procurar algum documento ali.
​— Dá para você voltar a não ser insuportável? — Escuto ele se
levantando também. — É só um evento, você só precisará ficar ao meu lado,
sorrir e ser bonita.
​— Nossa, ser um troféu… Exatamente o que eu precisava para topar te
acompanhar.
​Quando me viro, Anthony está bem atrás de mim. Perto demais, para ser
sincera. Provavelmente, o mais perto que já ficamos, não que isso seja
muito, porque ainda tem uns bons centímetros de distância entre nós.
​— Não foi isso que eu quis dizer. — Sua voz está mais baixa agora, os
olhos fixos nos meus.
​Puta que pariu.
​— Mas foi o que disse. — Respondo também baixo e um estranho frio
invade minha barriga. Cruzo os braços rapidamente, tentando prender aquela
sensação esquisita dentro de mim e levanto o rosto em desafio. — E você vai
sorrir, ficar quieto e ser bonito do meu lado? Ou vai voltar a ser o arrogante
que deixou de ser nas últimas semanas na frente de todo mundo?
​Ficamos em silêncio por alguns segundos, ele com os olhos cerrados me
encarando, enquanto eu repetia a pergunta silenciosamente, aguardando sua
resposta.
​Arrogante. Idiota. Implicante.
​Não deveria sentir tanto… Eu nem sei nomear o que é isso que eu sinto
por ele, mas sei que não deveria me incomodar tanto assim. Anthony dá um
passo para trás e suspira, deixando a pose de mimado de lado.
​— Eu não espero que você me entenda, mas a pessoa que me faz
aguentar essas merdas não está aqui, porque brigou com a família e foi para
a porra de um spa na puta que pariu. Eu preciso ir nesse evento e não posso
ir desacompanhado, é um evento para mulheres e não tenho exatamente
alguém de confiança para levar. — Ele para por alguns momentos, e dá de
ombros, como se não fosse nada, mas só consigo me retrair. Realmente,
nunca o vi com qualquer mulher que não fosse a Lauren, ou as ricas nas
páginas de fofoca que vão nos mesmos eventos que ele. Nenhuma como
acompanhante. — Me diga seu valor, eu pago.
​— Eu não quero seu dinheiro, Anthony! — Defendo-me, ofendida com a
forma que ele oferece.
​Posso ter pedido um aumento para trabalhar com ele, mas foi somente o
justo pelas funções que ele queria que eu desempenhasse. Mas o que
significa receber para sair com ele? Por acaso virei uma acompanhante de
luxo e não sei?
​— O que quer, então?
​Seus olhos azuis estão desesperados, eu consigo ver o quanto precisa que
eu não o deixe sozinho. É como se tivesse derrubado a máscara que carrega
a todo momento por alguns breves segundos. Como se fosse sincero, sem se
esconder e sem provocar simplesmente porque quer.
E meu coração idiota assente, por causa da mania que tenho de não
conseguir falar não para as pessoas que eu sinto o mínimo de empatia —
principalmente quando vejo o quanto estão se esforçando para fazer algo.
Não que o esforço dele seja muito delicado e sensível, mas ainda é uma
tentativa.
​— Se eu for com você, tenho algumas exigências.
​— Tenho certeza que sim — Anthony dá um pequeno sorriso vitorioso,
quase como se estivesse me dando o troco pela vez que sorri da mesma
forma ao conseguir o aumento de salário.
​— Eu vou usar o que eu quiser.
​— Não imaginei que fosse usar qualquer outra coisa, só preciso que seja
formal.
​ Quero carona.

​— É o mínimo que um homem deve fazer ao sair com uma mulher —
fala como se fosse óbvio. — Principalmente, porque estou te obrigando a ir.
​— Certo… — Olho para ele desconfiada e, então, me viro para a agenda
no computador. — Quero folga na terça-feira.
​— E eu posso saber por qual motivo?
​— Não sabia que tinha interesse na minha vida pessoal — levanto minha
sobrancelha e vejo ele recuar com a pergunta.
​Será o dia da aula de baixo do Johnny no Centro, e eu estava triste que
não conseguiria ir em nenhum dia. Agora, pelo menos, vou vê-lo e pedir
desculpa pelo acontecido no bar. Além de ver a Manuela mais uma vez,
porque ela avisou os dias que acompanharia os meninos e contou que queria
me ver.
​— E não tenho.
​— Ótimo — sorrio e entrelaço as mãos à frente do corpo.
​— Mais alguma coisa?
​— Não, só isso mesmo — nego com a cabeça e estico a mão para
selarmos nosso acordo. Não estou 100% satisfeita com o arranjo, mas fico
feliz que pelo menos consegui a folga.
​— Alguém já te falou que você é muito dramática? — Anthony segura
minha mão, os dedos compridos, firmes e frios entrando em contato com
minha pele. Ele me puxa para perto quando me vê confusa e abaixa a voz. —
Eu te daria a folga sem precisar trocar por outra coisa, Dias.
​Pisco algumas vezes e solto sua mão rapidamente, ficando um pouco
irritada com o joguinho que faz comigo. O sorriso de lado que ele abre é
convencido e já estou arrependida de ter topado acompanhá-lo nesse jantar,
que com certeza será insuportável.
​— Você é inacreditável.
​— Sei valorizar quem está comigo, e desde que você chegou aqui, nunca
mais recebi nada fora do prazo e os documentos nunca foram tão bem
revisados. Também sei tudo sobre os boatos que está precisando lidar. — Ele
fala sério e sinto minha bochecha esquentar, não fazia ideia que tivesse
conhecimento do que acontecia fora de sua sala, principalmente das fofocas.
— E saiba que já tomei providências, mesmo sabendo que você se virou bem
sozinha. Não te contratei à toa, insuportável.
​Vejo-o sair da minha sala e fechar a porta atrás de si, enquanto fico sem
reação, apenas tentando absorver o elogio mascarado que recebi.
Capítulo 22

“Melhor acreditar que eu ainda brilho,


Quando entro no cômodo, ainda consigo fazer o lugar inteiro cintilar”
Bejeweled - Taylor Swift

​ Ele vai te matar!



​É o que a Camila fala quando dou alguns passos para trás, fazendo poses
para mostrar meu look.
​— Uma das minhas regras era usar o que eu quisesse e a única coisa que
ele falou foi: “desde que seja social”. Isso é social!
​— Acho que ele esperava que você fosse de vestido longo e não de
terno.
​— Ele vai usar terno, então eu vou também — arrumo meu cabelo e abro
o botão frontal, mostrando o body rendado preto que estou usando por baixo,
o que faz Mila abrir a boca desacreditada.
​— Ok, você está linda. Esse evento é o que, afinal?
​— É de um projeto que ajuda na pesquisa e tratamento de Câncer de
mama aqui, na Inglaterra. Pelo o que eu entendi, hoje é um jantar só com os
ricaços para arrecadar dinheiro para novas instalações, aparelhos, estudos e
tratamento.
​— Ele deve ter sido obrigado a ir pela família.
​— Eu também acho, vi que foi em alguns eventos na última semana, mas
nenhum assim. Todos eram lançamento de música de algum cantor, ou
inauguração do restaurante de um amigo rico… Essas coisas. — Aproximo-
me dela novamente, fecho o terno, deixando apenas um pouco do busto à
mostra e uso a câmera do notebook como espelho para ter certeza que o
batom vermelho não está borrado. — Fala que vai dar tudo certo e que não
será tão ruim quanto imagino.
​— Vai dar tudo certo e não será tão ruim quanto você imagina. — Ela
repete minha frase e se joga na cama. — Pensa pelo lado bom, você vai
comer bem e fingir estar em Gossip Girl por uma noite.
​— Eu prefiro o Chuck Bass como acompanhante do que o Anthony
MacMillan. — Enfatizo o nome do Anthony e suspiro cansada.
— Os dois são lindos, emburrados, donos de hotel… — Mila fala de
forma travessa e morde a boca, levantando a sobrancelha. Escuto meu
celular tremer na bancada, mas ignoro.
— É, só que pessoas assim só são incríveis nos livros e Anthony
existe na vida real. Te garanto que no dia a dia não é nem um pouco fácil
lidar com sua personalidade.
— E o Charlie?
— O que tem ele? — Percebo meu celular vibrar mais uma vez, mas
foco em Mila.
— Ele não é assim, ele é o amor tranquilo de The Way I Loved You da
Taylor Swift, não é?
— Não, ele é o amigo com benefícios que não vai virar amor
tranquilo, porque não estou em busca de amor.
— E é assim que ele nos encontra, quando não estamos procurando.
— Mila dá de ombros e fico séria.
— Você sabe porque eu não me relaciono com ninguém. Podemos
não falar dos caras que fico como se fosse algo mais importante do que
realmente é? — Reviro os olhos e mexo a cabeça em negação.
— Do cara. Você não ficou com mais ninguém desde que chegou aí,
só com ele. E já faz quase dois meses, acho que é seu novo recorde.
— Eu vou desligar a chamada na sua cara — encaro-a sem paciência
e ela me dá uma careta. — Estou ocupada demais para isso.
O celular treme mais algumas vezes e finalmente me estico para
pegá-lo, vendo as várias notificações na tela.

Arrogante MacMillan (18:48) diz:


Estou aqui embaixo.
Vem logo, tem uns caras olhando meu carro.
Se eu for assaltado a culpa será sua.
Que bairro é esse e por que nunca vim aqui antes?
Já pensou em se mudar?
​ eviro os olhos e abro minha bolsa, me certificando que peguei meus
R
documentos antes de jogar o batom no espaço escasso que sobrou.
​— Ele chegou e já está reclamando, acha que será assaltado.
​— Você mora em um lugar tão ruim assim? — Mila levanta uma
sobrancelha e eu nego.
​— Ele é um mimado exagerado, que só sai da área nobre da cidade para
ir até a faculdade, que é bem localizada. Fique com o celular a postos, se eu
não mandar nenhuma mensagem em uma hora é porque eu morri de tédio.
​— Será que eles vão tirar uma fotinha de vocês dois juntos? Igual
aqueles tapetes vermelhos que a gente assiste?
​Mila tira sarro de mim piscando os olhos e fazendo cara de apaixonada, o
que me faz lhe mostrar o dedo do meio. Jogo um beijinho no ar e desligo a
chamada no mesmo instante em que uma nova notificação aparece.

Arrogante MacMillan (18:55) diz:


Você está demorando de propósito?

Marina Dias (18:55) diz:


Se você me apressar mais uma vez, eu juro que não desço.

​ ou uma última olhada no espelho e não recebo mais nenhuma


D
mensagem de Anthony. Ele sabe que não estou blefando. Certifico-me que
Capitu tem comida o suficiente para a noite, me despeço dela e tiro o salto
para poder descer os lances de escada do prédio sem elevador.
​Assim que abro a porta que dá acesso à rua, vejo Anthony encostado em
um Aston Martin preto absurdamente bonito, que parece ser feito
exatamente para ele, já que combina com o carro. Anthony está com as mãos
nos bolsos, vestindo uma camisa branca por baixo do terno escuro, com
alguns detalhes sutis em rosa, e no pé um par de tênis quedeve fazer parte da
sua coleção.
​— Achei que fosse para se vestir socialmente e você vem de tênis?
​Falo só para implicar porque sei que esse tênis deve custar mais do que o
salário do meu semestre inteiro. Sem contar que já entendi que Anthony é
muito bom em combinar uma peça esportiva com uma roupa social e ficar
bem vestido.
​— Pelo menos estou usando um sapato — devolve a implicância
olhando para meus pés descalços enquanto paro no último degrau antes de
chegar na calçada.
​ evanto os saltos na mão e os coloco no chão, em seguida os calço.
L
Anthony me olha de cima a baixo, como se estivesse analisando cada
centímetro do que estou vestindo para aprovar ou não.
​Não que vá fazer muita diferença já que o acordo era eu usar o que eu
quiser e, se ele não gostar… Bem, o problema é dele.
​Defini as ondas do meu cabelo e fiz algumas pequenas tranças perdidas
em seu volume. Não exagerei nos olhos por causa do batom vermelho, então
fiz um esfumado claro com um delineado afiado o bastante para matar um
homem.
​— O que foi? — Pergunto revirando os olhos, pois seu exame minucioso
demora mais do que o esperado.
​Anthony desencosta do carro e atravessa a calçada, se aproximando com
os olhos fixos em meu busto. Tento dar um passo para trás, mas estou com o
tornozelo encostado no degrau, então não tenho para onde ir.
​— Não faz sentido colocar uma peça dessas e esconder. — Seu olhar
sobe para o meu e com os dedos cheios de anéis prateados, abre o botão do
meu terno, deixando todo o body à mostra. — Bem melhor.
​Sem esperar que eu responda, Anthony se vira e abre a porta do carona,
para que eu entre. Demoro alguns segundos para voltar ao meu corpo e me
questiono se desaprendi a andar, porque estou parada como uma idiota.
​Que porra aconteceu?
​Aquele mesmo frio na barriga estúpido me deixa ansiosa e é impossível
não sentir o calor que sobe para o meu rosto. O que parece durar uma
eternidade, não passa de alguns segundos e logo estou andando em direção
ao carro, evitando olhar para seu rosto, que sinto voltado na minha direção.
​Sento em silêncio no banco de couro e, assim que ele fecha a minha
porta, respiro fundo para não parecer nervosa ao seu lado. Não é assim que
eu funciono, muito menos do lado dele. O acompanho dar a volta no carro
para ir até o banco do motorista com o olhar, e coloco meu cinto quando
escuto sua porta abrir.
​— Achei que você fosse tão mimado que teria um motorista particular.
— Alfineto-o porque é a única maneira de disfarçar o rubor das minhas
bochechas.
​— E perder a chance de chamar a atenção daqueles idiotas ao fazer algo
diferente de todos eles? — Anthony me olha de lado e nega, dando um
pequeno sorriso. — Não!
​ iga o rádio que, para a maior das minhas surpresas, está tocando Alicia
L
Keys e, em seguida, estamos a caminho do evento. Fico olhando para o
aparelho só para entender se estamos escutando uma programação ao vivo
ou se ele escolheu a música conectada em seu celular.
Fico ainda mais surpresa quando vejo que o som foi escolhido por
ele.
​— Você escuta Alicia Keys quando está sozinho?
​— Eu não estou sozinho — olha para mim com apenas uma mão no
volante, uma sobrancelha levantada me desafiando.
​— Mas estava escutando antes de me pegar! — Sorrio grande. — Eu não
acredito nisso!
​— Alicia Keys é muito boa!
​— Eu concordo, ela é incrível! Mas você? Escutando ela? — Começo a
rir porque nunca imaginei isso. — Quando penso em você escutando música,
só imagino algo bem chato, tipo música clássica.
​— Me sinto honrado em fazer parte dos seus pensamentos — fala
convencido o que me faz fechar a cara e fuzilá-lo com o olhar. — E música
clássica não é chata — rebate, revirando os olhos.
​— Estava certa no final das contas.
A música é trocada por um rap do top 10 da BillBoard.
​— Satisfeita?
​— Você é tão sensível, não é mesmo? — Estico a mão para o aparelho e
volto para Alicia. — Pare de agir como uma criança mimada, eu só estava
brincando com você.
​Nosso olhar se encontra quando ele para no semáforo e ficamos em
silêncio por poucos segundos, até Anthony levantar a mão para aumentar o
som e começar a cantar baixo a letra de No One. É impossível não dar um
pequeno sorriso, que disfarço, olhando para o lado de fora da janela quando
o sinal abre e ele volta a dirigir.
​Seguimos o resto do trajeto em silêncio, apenas cantando baixo quando
toca alguma música que conhecemos, mas sem fazer nenhum alarde. Estou
tranquila porque sua presença não é mais algo estranho ao meu lado, mas
basta eu ver no GPS que estamos nos aproximando do evento, que minha
mão fica gelada.
​— Essa não foi uma boa ideia — falo baixo, apertando uma mão na
outra, o coração de repente batendo mais rápido. — Me trazer como
acompanhante.
​ Não foi a ideia mais brilhante que eu já tive, mas temos que trabalhar

com o que temos, não é? — Consigo notar no seu tom de voz que não está
falando sério e sim implicando comigo.
​— Eu estou falando sério, Anthony. — Viro-me para ele assustada. —
Eu nunca fui em um evento com mídia e pessoas ricas, chiques e que sabem
como comer com trinta talheres na mesa. Eu nunca fui em um evento assim
nem como garçonete!
​— Não é um bicho de sete cabeças, Dias. Na verdade, você vai tirar de
letra. — Anthony tem os olhos tranquilos, reconhecendo que estou
preocupada de verdade. — Eu falei sério sobre ficar ao meu lado e apenas
sorrir. Se você não quiser falar com os repórteres, eu respondo por você. Não
precisa lidar com isso.
​— Não vou te prejudicar se ficar apenas quieta?
​— Você está preocupada comigo? — Anthony levanta uma sobrancelha
e diminui a velocidade, mas sem parar.
​— Não com você, mas com a sua reputação e meu trabalho…
​Respondo sem dar importância e abro a bolsa, procurando pelo blend de
óleos para passar um pouco no pulso e na nuca, mas não o encontro. Escolhi
trazer aquele estúpido batom e agora me lasquei.
​Levanto a cabeça somente para ver a quantidade absurda de flashes
apontados para os carros que param na entrada da enorme casa de festas –
que mais parece uma mansão —, e respiro fundo.
​Devo estar parecendo com uma menininha assustada, e não me
reconheço. Não costumo me mostrar vulnerável e com medo na frente dos
outros, pelo menos não na frente de quem não confio.
​— Não precisa entrar se não quiser — Anthony fala com a voz baixa, me
fazendo encará-lo.
​Seu olhar está diferente. Não é debochado ou arrogante, e não é o olhar
que usa para me irritar. Está sendo sincero, eu diria até que parece realmente
preocupado.
​Que vergonha, Marina… Deixou seu chefe, que te contratou por não
abaixar a cabeça para ninguém, te ver insegura com algo estúpido como uma
festa. Anthony levanta a sobrancelha, perguntando silenciosamente se eu
tenho certeza e eu fecho minha bolsa.
​— Estou bem, vamos acabar logo com isso. — Ajeito o corpo no banco
de couro e respiro fundo, ajustando a alça do meu body e o meu cabelo.
​Se tem uma coisa que eu sou boa fazendo, essa coisa é vestir a máscara
que diz “nada me afeta” e fingir ser a pessoa mais centrada e segura que
existe.
Mesmo que por dentro eu não me sinta assim.
​Não dou abertura para Anthony falar qualquer outra coisa, então ele
assente e segue com o carro até o tapete vermelho.
​Antes que eu possa colocar a mão na maçaneta da porta, ela se abre por
fora e um homem me oferece sua mão, me ajudando a sair do carro. A
quantidade de flashes praticamente me cega e preciso de um momento para
encontrar Anthony, que se aproxima colocando a mão nas minhas costas, me
guiando em direção à festa.
​Ele está com um sorriso largo no rosto, cumprimentando as pessoas que
não param de tirar fotos de nós, perguntando quem sou eu e pedindo para
que ele olhe para as câmeras.
— Tem só uma pessoa para quem eu dou entrevista nesses eventos.
Vem. — Anthony me guia até a escadaria frontal que está com repórteres por
toda a sua extensão e me oferece o braço, para me ajudar a subir sem
tropeçar.
Tudo está acontecendo tão rápido que é difícil raciocinar,
provavelmente culpa desses flashes que estão me deixando desnorteada.
Subimos até um ponto em que Anthony me faz parar, nos aproximando de
uma mulher jovem e lindíssima, com o cabelo preso em um coque bem feito
e um vestido rosa decotado.
— Maggie! — Anthony sorri e se afasta de mim para poder dar um
beijo na bochecha da mulher.
— Anthony MacMillan, está lindo como sempre — ela responde,
claramente flertando com ele, enquanto espera o cinegrafista posicionar a
lente para os dois. — Faz tempo que não fala comigo.
— Nos vimos essa semana…
— Não foi o suficiente! — Ela ri, empinando o busto para ele.
Dou um passo para trás, torcendo para não estar em quadro e
mantenho o semblante tranquilo, com um pequeno sorriso, enquanto aceno
para as pessoas que sobem a escada atrás de nós, para ignorar a interação
que acabei de presenciar. Quero evitar participar da entrevista que, de
repente, já começou. Estou com os ouvidos atentos à conversa deles, mas
finjo estar distraída, para não ser chamada para perto sem querer.
— Quais são as suas expectativas para o evento desta noite?
​ Acho que todo mundo sabe o quanto o projeto foi importante para a

minha avó, que doou não só dinheiro, como seu tempo e amor para cada uma
das mulheres que tiveram a vida mudadas por ele. Então, espero que a gente
consiga bater a meta de arrecadação do ano passado e vou, em nome dela,
fazer uma doação significativa para que a nova ala para pacientes de câncer
de mama carregue seu nome.
​— Temos um dedinho da Vann como patrocinadora deste evento? — Ela
levanta a sobrancelha, provocando para uma resposta.
​— Não, hoje estou aqui como Anthony MacMillan, honrando a memória
da mulher mais extraordinária que tive o prazer de conhecer.
​Nessa altura, é impossível não prestar atenção na conversa, porque eu
não fazia ideia de que sua avó havia morrido de câncer de mama no último
ano. Agora, faz sentido porque ele queria tanto vir a esse evento. E Lauren o
deixou na mão.
​Só é estranho ele ter escolhido a mim para substituí-la.
É bonito ver a forma segura e desenrolada como fala sobre a avó e
sobre os planos futuros para a Instituição que ela ajudava e que participou
mais ativamente quando começou seu tratamento, anos atrás.
​Outras pessoas passam por nós, dando entrevistas ou apenas se dirigindo
até o local do jantar. Estou respirando devagar, tentando manter o pequeno
sorriso no rosto e torcendo para não parecer uma maluca assustada no fundo
das fotos dos outros. Quando o assunto entre os dois finalmente muda,
infelizmente, tem a ver comigo.
​— E você vai me contar com exclusividade sobre sua acompanhante de
hoje, não vai? Não conhecemos esse rostinho… — A repórter fala com pura
curiosidade e aponta o microfone em minha direção, fazendo o cinegrafista
virar a câmera para mim, me pegando de surpresa.
​— Sem grandes notícias para você hoje, Maggie — Anthony dá risada e
tenta voltar a atenção para ele. — A senhorita Dias é minha assistente, seu
trabalho hoje é garantir que eu não vá fazer nenhuma besteira com as
doações.
A mulher dá risada, mas vejo que está decepcionada porque achou
que seria a portadora de uma nova fofoca entre os ricos. Dou de ombros
apertando um pequeno sorriso divertido, dizendo “sinto muito”
silenciosamente.
— Então, conte a todos nós como é trabalhar com o Anthony,
senhorita Dias. — Ela continua tentando fazer a conversa render para usar
depois. — Ele é sempre charmoso desse jeito?
Olho para Anthony, que está me dando abertura para eu falar se
quiser, ou finalizar a entrevista para irmos embora, mas uma onda de
coragem passa pelo meu corpo e sorrio para Maggie.
— Anthony é um ótimo chefe, principalmente porque me dá
liberdade o suficiente para fazer as coisas do meu jeito. — Olho para ele
tentando captar se respondi algo bom, ou ruim.
— Só Deus sabe que se eu tentar interferir na maneira dessa mulher
trabalhar, ela pode acabar me demitindo. — Anthony brinca e coloca a mão
nas minhas costas. — E mesmo sendo seu chefe, não perdi o juízo a ponto
de não aceitar suas ordens.
— Ele está exagerando — nego para Maggie, tentando me defender e
o vejo desmentir em silêncio, gesticulando de forma engraçada para, em
seguida, fingir que não fez nada, mesmo pego no flagra.
Sua mão em minhas costas faz pressão, como se indicando para
irmos embora, mas Maggie é mais rápida.
​— Um dos requisitos para trabalhar na Vann é se vestir bem? Qual grife
está usando hoje? — Ela aponta o microfone para mim, ansiosa pela resposta
e eu olho para Anthony, sentindo sua mão nas minhas costas ficar mais leve,
como se me encorajando a responder, já que não é nenhuma pegunta que
possa comprometer um de nós dois.
— Para falar a verdade, eu comprei tudo em um brechó que descobri
quando estava à caminho do trabalho — faço uma careta culpada e em vez
de me julgar, ela se anima, abrindo um sorriso grande.
— Não existe nada mais chique do que consumo consciente —
responde e abre a boca para falar mais alguma coisa.
— Precisamos entrar agora. Foi um prazer, Maggie, espero te ver na
próxima semana! — Anthony a interrompe com uma sutileza que nem
parece que a cortou.
— Com certeza irá, Anthony! Tenham uma boa noite. — Maggie
responde e se vira para a câmera, falando algo para terminar a entrevista.
Anthony indica o topo da escada, me despeço da repórter com um
aceno e me viro para segurar o braço dele e me apoiar ao subir os últimos
degraus.
O que acabou de acontecer foi, no mínimo, surreal de se imaginar.
Nunca o vi tão gentil, simpático e aberto para uma conversa antes, parecia
até mesmo que estava ao lado de uma pessoa completamente diferente.
Anthony foi tão charmoso que eu estava zonza com ele sorrindo,
brincando e implicando comigo, mas na frente de uma câmera e de uma
forma que… Me fez sorrir? De verdade.
Quando chegamos no final da escada, solto seu braço, e entro no
salão em que o evento acontece. A decoração é rosa claro e branco, com
muitos arranjos de flores por todo o local. Lindo e claramente pensado em
cada mínimo detalhe.
Um garçom se aproxima com vinho e me serve, antes de oferecer,
também, uma taça a Anthony. Dou um gole grande, disfarçando o
nervosismo que faz meu corpo tremer e olho para meu acompanhante, que
está estudando o ambiente com calma.
— Sinto muito pela sua avó — falo baixo, para ninguém mais
escutar. — Eu não sabia que o evento era tão importante.
— Não precisa fazer isso, Dias. — Acena para um casal de senhoras
mais à frente e se vira para mim. — O que podíamos fazer por ela, nós
fizemos. Agora, temos que melhorar as chances das outras.
Concordo com ele e começamos a andar pelo local, mas antes que ele
cumprimente um senhor, claramente entediado em estar ali, coloco a mão em
seu braço, fazendo-o parar e olhar para mim.
— Lá embaixo, eu falei merda? Estraguei tudo? — Pergunto com a
voz baixa, com medo da resposta.
— Você foi ótima.
Capítulo 23

“Você realmente curte viver uma vida tão cheia de ódio?


Porque há um buraco onde sua alma deveria estar”
Fuck You - Lily Allen

​ noite com certeza está muito mais tranquila do que eu e minha


A
ansiedade imaginamos. Anthony me apresentou várias pessoas — que eu já
esqueci o nome —, consegui conversar com alguns membros do Instituto e
ainda bebi drinks que foram, provavelmente, o ponto alto da noite.
​— Como pode um evento tão caro assim, só ter comida ruim? —
Pergunto baixo antes de colocar um canapé na boca e disfarçar a careta que
surge em meu rosto. O tempero está exagerado demais, sem contar a massa,
que fica muito farofenta na boca. — Isto é horrível! Podemos passar no
McDonalds antes de você me deixar em casa?
​— McDonalds não é muito melhor do que isso — Anthony levanta a
sobrancelha e bebe seu vinho, também tentando conter a careta. — Até o
vinho é ruim.
​— Pelo menos o drive thru é 24 horas e eles tem hambúrguer
vegetariano — dou de ombros, concordando com ele, porque o lanche não é
muito gostoso, mas dá para o gasto, principalmente em situações assim.
​— Que também deve ser horrível.
​— Bom, eu não vou chegar em casa e cozinhar algo, então tenho que
ficar satisfeita com o que tiver disponível.
​Olho para um grupo mais adiante que começou a rir alto, e tento
entender o que estão falando, mas não consigo. O ambiente, com certeza, é
diferente de tudo o que já vi antes, e as conversas são, em sua maioria,
supérfluas. Não sei se aguentaria ir a eventos assim com frequência, só pela
energia mental que estou fazendo em uma noite.
​Em todos os lugares tem uma câmera que pode, ou não, estar apontada
para você, o que te obriga a manter, constantemente, um pequeno sorriso no
rosto e fingir interesse, mesmo que esteja envolvida na conversa mais
insuportável de sua vida. Anthony, que passa a maior parte do tempo no
escritório e na faculdade com a cara fechada, está sorrindo como se fosse a
pessoa mais contente que existe aqui. Entretanto, no instante em que se vira,
vejo que fica sério antes de voltar a suavizar a expressão.
​A máscara da mídia.
​— Admita, você me arrastou com você porque não queria passar por
essa tortura sozinho.
​— Não sabia que torturas te divertiam, porque você parece estar
gostando bastante. — Anthony sorri para algumas senhoras que o
cumprimentam à distância.
​— Isso se chama atuação, Anthony.
Reviro os olhos, mas sorrio, e olho ao redor, mais uma vez. Observo
um pequeno grupo, que parece vir em nossa direção e me preparo para mais
uma rodada de “Como é trabalhar com o senhor MacMillan?”, seguida da
minha resposta elogiando-o e alfinetando, disfarçadamente, comentando
alguma coisa que ele fez no escritório durante a semana.
Sei que ele não se incomoda, porque devolve as alfinetadas, me
fazendo rir. Ele é inteligente e, além de não se colocar acima de mim,
também não abaixa a cabeça para minhas provocações.
Gosto disso.
​— Deveria estar estudando Teatro então, não Direito.
​— E você deveria fazer qualquer outra coisa que lide com o público.
Como apresentar um programa de talk show, talvez, já que você nem parece
com o emburrado com quem eu lido todos os dias. — Devolvo a provocação
com um sorriso forçado e ele cerra os olhos.
​— Isso se chama atuação, Marina. — Levanta sua taça para brindar e
sorri quando me junto a ele.
​Acho que é a primeira vez que o escuto me chamar pelo primeiro nome,
já que eu sou a “insuportável” ou a Dias. Sua forma de falar é tão leve, que
me faz sorrir. Anthony levanta o rosto e vejo-o focar em alguém atrás de
mim. Fica em alerta no mesmo instante, como se toda a leveza que o
envolvia, se dissipasse no ar.
— Que porra ele faz aqui? — Pergunta com a voz baixa.
​— Quem? — Ameaço virar para ver, mas Anthony segura meu braço e
não deixa.
​— Vem, não vou lidar com isso agora.
Anthony segura a minha mão e começa a andar para longe, me
levando mais rápido do que consigo andar e costurando entre as pessoas.
​— Caso você não se lembre, eu estou de salto — resmungo entredentes
com a voz baixa. Tropeço nos meus pés e aperto a mão dele com força para
manter o equilíbrio.
​Minha atitude parece fazê-lo voltar a si, porque Anthony para de andar,
encara meus pés e coloca a mão em minha cintura, me aproximando dele.
​— Desculpa, eu me esqueci.
​Anthony diminui a velocidade de seus passos e retoma o trajeto em
direção à lateral do salão, olhando para trás ocasionalmente, como se
precisasse se certificar de que não é seguido. Abre a enorme porta branca,
que está escondida por uma cortina transparente, e faz sinal para eu sair à
sua frente.
A porta dá acesso para uma varanda enorme. Assim que a fecha, o
som da festa fica mais baixo. Certifico-me que não tem mais alguém no
local, estamos sozinhos. Enquanto estou confusa com a fuga repentina,
Anthony respira fundo, como se precisasse se manter firme.
— Estamos fugindo de quem? — Abraço meu corpo, porque está frio
e aquele terno não me protege o suficiente.
— De ninguém, só achei que poderíamos pegar um ar — Anthony
arruma a própria roupa e, com um sorriso falso, caminha até o parapeito da
varanda.
Eu o observo passar por mim, sem acreditar que ele nem se esforçou
para inventar uma mentira, achou que eu aceitaria uma resposta mal feita
como aquela.
​— Anthony, você me arrastou da festa como se todo o lugar estivesse
pegando fogo e acha que vou acreditar nessa desculpa? — Noto que metade
do vinho que estava na minha taça desapareceu, provavelmente ficou pelo
chão no percurso nada sutil que acabamos de fazer.
​Caminho até ele, que me olha de canto de olho, mas se vira, apoiando
um braço no parapeito, para ficar de frente para mim.
​— Você não pode simplesmente fingir que acredita e admirar a vista?
​ enho o impulso de abrir a boca para retrucar, mas fico quieta. Quanto
T
mais tempo passamos juntos, mais consigo perceber quando ele só quer
implicar e quando fala a verdade. Agora, ele claramente precisa de espaço e
está preso aqui comigo.
​Dou um gole no que resta do meu vinho e me aproximo, apoiando a taça
e os braços no parapeito, sem falar mais nada.
​A energia que ele exala é ansiosa, amedrontada e até um pouco irritada.
Consigo escutar sua respiração pesada e só posso imaginar o que se passa
em sua cabeça no momento.
​O jardim está pouco iluminado, deixando claro que aquela parte da festa
não ficaria aberta para os convidados. Tem uma fonte mais adiante e
imagino o quanto o espaço seria mais bonito se ela estivesse ligada, com os
bancos e os arbustos perfeitamente dispostos ao redor. Nem mesmo o vento
frio me faria desistir de passear por ali.
​— Não sabia que a festa estava acontecendo do lado de fora — uma voz
masculina e forte retumba ao mesmo tempo que a porta da varanda abre, o
som das vozes do salão ficam mais altas, até que é fechada novamente.
​— Resolvemos tomar um ar — Anthony se vira e responde com um
sorriso debochado, arrumando a roupa sem fazer questão de se aproximar. —
Estava muito abafado lá dentro, muitas pessoas desagradáveis.
​Não precisa ser nenhum gênio para saber que aquele é Archibald
MacMillan, pai de Anthony e atual dono do império da Vann. Os dois têm
olhos azuis marcantes, cabelos loiros e uma postura reconhecível em
qualquer lugar. Porém, apesar de parecidos, são completamente diferentes.
​A arrogância de Anthony parece brincadeira de criança perto da
prepotência natural e maldosa que Archibald carrega no olhar. Ele parece ser
um homem desagradável até o último fio de cabelo.
Não sei se devo me afastar ou me aproximar, então apenas fico ali,
observando-o estender a mão para o filho, que — depois de alguns segundos
encarando a mão do pai — cede e a aperta, eles permanecem com os olhos
fixos um no outro.
Ok, muitas brigas invisíveis acontecendo.
— E você? Quem é? — O olhar do mais velho encontra o meu,
depois de me medir de cima a baixo, com uma sobrancelha levantada.
Anthony, que está com a cara fechada, me olha como se eu tivesse
feito algo errado. Todo esse território é novo demais para mim.
— Marina Dias, senhor — me aproximo e aperto sua mão, sem
deixar aquele momento ainda mais constrangedor.
— Minha nova assistente — Anthony completa de forma metida.
— Ah, então precisou de uma… latina, para o trabalho começar a
andar naquele departamento. — Archibald alfineta o filho, ainda sorrindo.
— Seu povo gosta de trabalhar, o que por um lado é bom. Não era viável
manter uma equipe inteira para fazer um trabalho que meus homens refariam
depois.
— Não entendi o que o fato de eu ser latina influencia no meu
trabalho, mas obrigada. — Sorrio sem soltar da sua mão e sem controlar o
tom das palavras que saem da minha boca, por viver, pela primeira vez, um
caso de xenofobia. — Anthony só precisava de alguém tão competente
quanto ele para fazer toda a equipe andar. Para seguir sua lógica, talvez ele
também tenha um pouco do sangue latino.
Um pouco soberba? Com certeza, mas ele não só tentou me
desrespeitar por não ser inglesa, como diminuiu o próprio filho na frente de
uma pessoa que não conhece. Ele não faz ideia de como funciona nosso
trabalho, já que nunca participou de nenhuma reunião e desmarca todas que
deveria ter com o Anthony e a equipe.
Eu já odeio esse homem e não estou nem dois minutos em sua
presença.
— Competente… Estou vendo — devolve o tom e julga minha
aparência, mais uma vez, com nojo no olhar.
Além de xenofóbico, ricos sentem o cheiro de roupa comprada em
brechó?
— Veio prestigiar o projeto da vovó? — Anthony muda o rumo da
conversa como quem não quer nada, e Archibald finalmente tira a atenção de
mim e volta para o filho.
— O gerente do banco ligou. Disse que você solicitou uma
transferência grande sem me consultar, uma doação para o Instituto? —
Archibald pergunta, mas nós dois sabemos que ele tem conhecimento do que
está falando.
Anthony continua com o sorriso soberbo no rosto e arruma o botão
do terno, sem dar muita importância.
— Uma ala em nome da minha avó, sua mãe, com o meu dinheiro. É
o mínimo que nós podemos fazer. — Enfatiza, levantando o queixo em
desafio. — Por ela.
— Com o dinheiro dos MacMillan, sem meu conhecimento ou minha
autorização — Archibald o corrige, ainda com calma. — E se você vai doar
o meu dinheiro, o ideal é eu estar presente, fazendo a doação em nome da
Vann Empreendimentos.
— Você saberia dos meus planos se não tivesse desmarcado todas as
reuniões que tínhamos agendado no último mês, já que é a única forma que
tenho de falar com você.
— Você sempre foi muito dramático, fala como se não soubesse onde
eu moro.
Vejo Anthony apertar o maxilar com raiva, os olhos fuzilam o pai,
como se pudesse matá-lo aqui, agora. Espero uma explosão, uma grande
briga com discussões e verdades sendo jogadas na cara, mas o que recebo é
um braço sendo oferecido em minha direção.
— Vamos entrar, Dias? — Anthony olha para mim com o rosto
tensionado e eu confirmo, aceitando o convite.
— Senhor MacMillan — me despeço com um aceno, quando
começamos a nos afastar, até Anthony abrir a porta e voltarmos para a festa,
deixando Archibald sozinho na varanda.
Capítulo 24

“Eu realmente não gosto do seu ponto de vista


Eu sei que você nunca vai mudar, me irritando com a sua atitude
Eu já pensei em ir embora”
Skinny Genes - Eliza Doolittle

Uma coisa que eu não esperava que acontecesse nesta noite: assistir
de camarote um confronto entre Anthony e seu pai. Estamos no meio das
pessoas, que seguem conversando e se dirigindo às suas mesas, quando
Anthony me solta e apressa o passo. Acompanho-o com o olhar por alguns
segundos e o sigo até o bar.
— Um Whisky duplo, sem gelo — escuto-o pedir e paro ao seu lado.
— Anthony, tá tudo bem? — Pergunto preocupada e ele vira todo o
conteúdo do copo de uma vez. Vejo seu pomo de adão se movimentar com o
gole exagerado antes de me encarar.
— Está tudo incrível, Dias. Ou você não estava do meu lado nos
últimos minutos? — Seu tom debochado e maldoso me surpreende. Não
esperava que fosse falar comigo dessa forma.
Como se a culpa da briga entre ele e seu pai fosse minha. Ele deve ter
se esquecido que eu não permito que alguém fale comigo assim,
independentemente de quem seja.
— E o que foi que eu fiz para ter sua frustração descontada em mim?
— Meus olhos estão fixos nos dele, que carregam puro ódio.
— Mais um — estende o copo para o bartender, sem quebrar o
contato visual comigo, e vira outra dose.
Parece me desafiar, me culpando pelo o que aconteceu.
Uma mulher sobe no palco com um microfone na mão e dá boa noite
para todos os convidados. Anthony passa a mão no cabelo e começa a se
afastar sem falar mais nada, me deixando sozinha no bar. Observo-o
caminhar em direção à nossa mesa, e preciso respirar fundo para não ir atrás
dele tirar satisfação.
Eu deveria estar irritada pela forma que o pai dele falou comigo, sem
respeito algum por mim e por minha cultura. Me senti como se eu fosse
descartável. A indignação começa a tomar conta, afinal, é difícil ser uma
pessoa que, apesar de tentar entender o lado de todo mundo, não leva
desaforo para casa e, às vezes, só queria falar todos os palavrões existentes
na língua portuguesa.
Apesar da vontade de tirar satisfação com Anthony, resolvo não criar
caso. Aprendi há muito tempo que precisamos escolher nossas batalhas, e
discutir com o meu chefe por ter sido um idiota não é uma batalha
inteligente para enfrentar agora.
Não quando tenho contas para pagar e um trabalho importante com a
Ordem em andamento. É nisso que me mantenho focada.
Olho ao redor, só para me certificar de que ninguém viu o que
acabou de acontecer e, felizmente, não há ninguém prestando atenção.
Apesar de escolher não brigar, não sou saco de pancadas para receber
socos só por estar presente quando uma merda acontece. Eu que deveria agir
dessa forma. Em uma atitude impulsiva, pego meu celular e abro o aplicativo
do Uber, adiciono meu endereço e espero a internet escassa do local carregar
o valor da corrida.
Eu me recuso a ficar aqui mais um segundo.
Assim que o aplicativo carrega, arregalo meus olhos em choque,
porque o valor da corrida está muito mais alto do que eu imaginei.
Principalmente, quando o que ganho em libra não me permite viver sem
depender da minha mãe, pela carga horária pequena.
Em um mundo ideal, eu mandaria tudo pelos ares, levantaria a
cabeça e iria embora da festa agora, neste instante. Mas esta é a vida real e,
nesse universo, eu preciso de um trabalho e as boas conexões que a Vann
Empreendimentos me oferece. Sem contar que eu posso ajudar muito a
Ordem com esse emprego.
Recuso-me a ir embora com ele, então vou precisar estar bêbada
quando der o ok na corrida, no final da noite.
Respiro fundo, bloqueio o celular, peço uma mimosa e, assim que o
bartender entrega a bebida em minha mão, ando até a nossa mesa, ocupando
o lugar vago ao lado de Anthony.
Ele nem ao menos se move, então mantenho minha atenção no palco
à nossa frente, no exato momento em que a mulher anuncia o senhor
MacMillan. O homem levanta de sua mesa, cumprimentando todos com um
sorriso grande e caloroso no rosto, como se não tivesse acabado de brigar
com o filho e ser preconceituoso comigo. Como se não tivesse roubado um
momento importante que era para ser da própria mãe.
Não consigo processar todas as palavras do discurso que faz sobre o
Instituto, dando ênfase a todo momento nas empresas Vann e no quanto é de
interesse deles ajudar na pesquisa do tratamento de câncer de mama.
Se eu não soubesse o que acabou de acontecer, até diria que o
Anthony está feliz e satisfeito com o que estamos presenciando. Isso só me
mostra o quão bem ele sabe jogar esse jogo de aparências e poder.
Um garoto aparece no palco segurando um cheque grande e
simbólico, e o entrega nas mãos dos responsáveis pela Instituição. Enquanto
todos batem palmas para o Prédio de Pesquisas e Estudos Vann, tudo o que
consigo sentir é meu estômago revirar.
Em seguida, a sobremesa é servida e a próxima hora passa devagar,
com conversas superficiais com desconhecidos. Anthony recebe
agradecimentos dos convidados, sempre mantendo o sorriso no rosto como
se o que aconteceu fosse exatamente como esperava, não o oposto.
— Você também está morrendo de tédio? — Um homem, um pouco
mais velho do que eu, se aproxima, ficando ombro a ombro comigo.
— De jeito nenhum, a noite está incrível — tento manter o sorriso e
ele me olha desacreditado, levantando uma sobrancelha e esperando pela
verdade. — Talvez um pouquinho.
Dou risada e ele concorda com a cabeça. Ele é moreno, com olhos
castanhos, cabelo raspado e uma cicatriz na sobrancelha. Bonito, e não sei
como não o notei durante toda a noite.
— Vicenzo Rossi — estende a mão para mim e eu a aceito.
— Marina Dias.
— Gringa? — Pergunta e eu dou de ombros, respondendo
silenciosamente. Ele assente e solta um suspiro cansado. — É bom não ser o
único. Sou da Itália, e você?
— Brasil…
— Ah, eu devia ter apostado com os meus amigos. — Fica
decepcionado, o que me faz rir. Agora que falou da onde é, consigo apreciar
melhor seu sotaque sexy. — Sabe, a pior parte do meu trabalho é vir nesses
eventos e precisar puxar o saco dos endinheirados para conseguir
financiamento.
— Você trabalha para o Instituto? — Pergunto curiosa e ele
confirma.
— Sou pesquisador, estou tentando descobrir formas mais eficazes e
rápidas de impedir o desenvolvimento das células cancerígenas.
— Uau, isso parece importante — agora é sua vez de dar de ombros,
acompanhado de um sorriso nada convencido. — Mas como você tem tanta
certeza que eu não sou uma endinheirada? Pode estar perdendo uma boa
bolada para sua pesquisa agorinha.
— Acredite, esse é um dom que adquiri depois de tantos eventos.
— O dom de reconhecer um pobre no meio dos ricaços? — Finjo
estar ofendida e ele nega.
— O dom de reconhecer iguais.
Tá, essa foi uma jogada boa, porque não consigo controlar o pequeno
sorriso sincero que surge em meu rosto.
— E você? O que está fazendo aqui? — Ele parece interessado no
que tenho a dizer.
— Estou acompanhando meu chefe. Então, estou aqui tanto a
trabalho quanto você.
— E quem é seu chefe?
— Anthony MacMillan — mordo a bochecha, com medo de estragar
a conversa, que está divertida. Mas se estava de olho em mim e apostando
com os amigos minha nacionalidade, talvez já soubesse a resposta dessa
pergunta e se aproximou exatamente pelo endinheirado que passou a noite
ao meu lado.
— Então, depois de hoje, isso faz de nós empregados da mesma
empresa — Vicenzo concorda e pensa em algo por alguns segundos. —
Existe alguma regra que impeça colegas de trabalho de saírem em um
encontro?
Levanto as sobrancelhas de forma surpresa. Não esperava por isso,
mas o sorriso que insiste em aparecer no meu rosto me entrega. Gostei da
sua ousadia.
— Acho que não, principalmente se trabalharem em áreas
completamente diferentes.
— Nesse caso, o que acha de sairmos daqui para comer alguma coisa
decente?
— E quem disse que eu quero sair com você? — Brinco, assustada
com o quão direto ele é.
— Você está sorrindo, acho isso um bom indicativo.
— Dias — Anthony se aproxima, parando a conversa e deixando o
olhar em Vicenzo por alguns segundos. — Interrompi alguma coisa?
Sim, é o que quero responder, sendo tão grossa quanto ele foi
comigo.
— Já conheceu o senhor Rossi? Ele é um dos pesquisadores que
trabalhará no novo espaço de pesquisa. — Tento manter o nível de educação
que tive desde o acontecido e Vicenzo sorri.
— É um prazer, senhor. — Vicenzo fala gentilmente e Anthony
apenas aperta um sorriso, ainda olhando o homem de cima a baixo.
— Espero que façam bom uso das instalações. — Sem dar muita
abertura, se vira para mim. — Já podemos ir embora.
Finalmente esta noite interminável chegou ao fim. Se ele está indo
embora, então não preciso continuar ao seu lado, fazendo companhia e
aturando as conversas.
— Certo, então… — olho para o italiano sem saber o que fazer.
— O convite ainda está de pé. — Vicenzo carrega simplicidade na
voz, mas o olhar de Anthony em cima de mim está me causando um
desconforto tão grande, que tenho certeza que não serei a melhor das
companhias.
— Quem sabe outro dia? — Aperto os lábios e ele confirma. — Foi
um prazer te conhecer, boa sorte na caçada.
— O prazer foi meu, Marina Dias. Senhor MacMillan.
Anthony se despede com um aceno e, quando o italiano se afasta,
vejo-o empinar o nariz e começar a atravessar o salão, indo em direção à
saída. Pelo menos, consegui me superar e ficar até o final, ainda que minha
vontade fosse de ir embora assim que Anthony foi um idiota comigo. Ainda
flertei com um cara gato e inteligente.
O frio me atinge com força no instante em que chegamos ao lado de
fora e alguns poucos fotógrafos nos observam curiosos, enquanto descemos
as escadas. Diminuo a velocidade, deixando Anthony à minha frente e abro o
aplicativo do Uber. Sim, a corrida está ainda mais cara agora, mas não posso
ir embora com ele.
Hoje a linha de limite foi estabelecida, uma que não havia sido
cruzada em nenhuma de nossas briguinhas e discussões anteriores. Ele pode
não ter gritado ou falado coisas estúpidas, mas a frieza de suas ações
significou mais do que todo o resto.
A grande merda disso tudo é que eu me conheço. Será difícil
conseguir trabalhar ao seu lado, fingindo que nada aconteceu. Antes que eu
me dê conta, vou ignorar, alfinetar e respondê-lo da mesma maneira que me
tratou horas atrás.
Esse é um dos defeitos que mais odeio em mim, eu realmente sei ser
difícil de lidar às vezes.
O mais inteligente é manter nosso contato estritamente profissional
desse dia em diante. Dou ok na corrida — e ainda bem que adoro comer pão
com ovo, porque essa será minha comida por alguns dias para repor esse
gasto extra — e o aplicativo começa a procurar um motorista que possa me
buscar.
— O que está fazendo? — Anthony pergunta com a sobrancelha
franzida no instante em que chego ao seu lado na calçada.
— Chamando o meu Uber — respondo com obviedade e, no instante
seguinte, o celular vibra, sinalizando que minha corrida foi aceita.
— Achei que o acordo fosse eu te dar carona — Anthony continua
com a mesma expressão, mas suaviza o rosto quando escuta alguns flashes
sendo disparados.
Olho para trás e mantenho a expressão tranquila. A urgência de falar
tudo o que penso e quero dizer a ele aumenta bruscamente. Segure-se,
Marina!
— É melhor eu ir sozinha, senhor MacMillan.
Chamo-o como todos os outros funcionários e vejo sua surpresa no
instante em que as palavras saem pela minha boca.
— Sem fazer drama, Dias. Vamos, cancele a corrida. — Anthony fala
com a voz baixa e faz sinal para o valet trazer seu carro.
Finjo que não escutei e levanto o queixo para o lado em que os carros
chegam. Quando vejo que a rua está deserta, abro meu aplicativo novamente
para me certificar do número da placa e ver quanto tempo o motorista ainda
vai demorar.
Dez minutos.
— Por favor, não me faça brigar com você aqui. — Falo e olho
disfarçadamente para os fotógrafos atrás da gente. Sei que, apesar da minha
voz leve, meus olhos transmitem toda a raiva que estou sentindo.
— Então, pare de ser orgulhosa, cancele a corrida e me deixe te levar
embora. Como combinamos.
— Você acha que pode ter tudo na hora que quer, não é? — Minha
voz está calma e Anthony cerra os olhos. — Eu só vou falar porque me
conheço e sei que não vou descansar se não fizer isso, mas eu não sou idiota.
Concordei em vir porque você praticamente implorou por companhia e eu
teria a folga. Só que a forma que me tratou depois que… você sabe, não foi
nem um pouco aceitável. Fiquei porque preciso do trabalho e do dinheiro.
Você é um ótimo chefe e um ótimo líder, e eu gosto de trabalhar com você
na maior parte do tempo, mas hoje você realmente agiu como um idiota
arrogante.
Anthony pisca os olhos algumas vezes e morde os lábios,
concordando antes de virar para a frente, como se absorvesse o que falei.
Legal, acho que posso esperar pelo meu aviso de demissão na
segunda-feira.
— Você tem razão. — Fala depois de alguns bons segundos em
silêncio, o que me faz franzir a sobrancelha assustada. O que? — Agi
exatamente como um filho do meu pai, e esse não é um fardo que quero
carregar na minha vida profissional. Já tenho que suportar muito por
compartilhar o sangue dele.
Não sei o que responder, então apenas concordo e fico em silêncio.
Seu carro chega em seguida e o garoto o deixa ligado.
— Nós combinamos que eu te daria carona, é o mínimo que posso
fazer. — Ele anda até o carro e abre a porta do passageiro, indicando para eu
entrar com um olhar firme, mas gentil.
Miro meu celular, e faltam 6 minutos para o carro chegar. Foco no
valor da corrida e volto-me para Anthony, que ainda espera, pedindo
silenciosamente para eu entrar.
Merda.
— Só vou aceitar porque a corrida está cara — deixo claro no
instante em que me aproximo e ele abre um sorriso convencido, enquanto
entro em seu carro.
Quando fecha a porta, mando uma mensagem para o motorista do
aplicativo pedindo desculpas e em seguida cancelo a corrida. Coloco meu
cinto e Anthony entra, nos levando para longe da festa, em silêncio.
Meu pé lateja, então tiro o salto e solto um suspiro de alívio com a
sensação boa de liberdade. Eu nunca conseguiria trabalhar o dia inteiro com
um sapato desses. Nunca.
Vejo Anthony pelo canto de olho e sinto que me traí. Estava tão
irritada e decidida a colocar um limite entre nós, mas aqui estou eu, dentro
do carro do idiota do meu chefe só porque ele pediu.
— Eu não sei o que falar — Anthony quebra o silêncio depois de
alguns minutos.
— Não precisa falar nada — dou de ombros e sigo olhando para a
frente, vestindo os resquícios do que restou da minha feição tranquila.
— Então, por que eu sinto que preciso?
— Talvez, porque saiba que foi um idiota — a frase escapa da minha
boca, o que me faz apertar os lábios, me reprimindo.
— É, talvez seja isso mesmo — Anthony concorda de novo e volta a
ficar em silêncio. Reflexivo, eu diria.
— Ok, isso tudo está muito estranho — viro o corpo em sua direção.
— Em vez de retrucar e brigar comigo, você está concordando?
— Sei reconhecer quando faço merda, Dias — Anthony vira a cabeça
para mim quando para no sinal. — E não sou mais um adolescente. Se essa
noite tivesse acontecido na minha época de escola… Acho que nós dois
realmente entraríamos em uma briga feia.
— Ah, eu tenho certeza disso. Eu não tinha muito filtro quando era
mais nova. — Concordo e olho para fora da janela. — Demorei um tempo
para aprender quando falar e quando ficar quieta. Ainda tenho dificuldade
hoje em dia, mas acho que percorri um bom caminho.
— Te irritei muito hoje?
— Eu quis te largar sozinho pelo resto da noite e pedir demissão —
assumo.
— E o que te impediu?
Não sou louca em comentar sobre meu trabalho secreto para a
Ordem, então tenho que responder com a segunda alternativa.
— No dia da entrevista, falei que precisava do dinheiro, lembra? Eu
estava falando sério. Não dá para ficar aceitando ajuda da minha mãe para
sempre, e é muito difícil arranjar alguma vaga com horário bom para eu
continuar estudando. A libra custa seis vezes mais que o real e realizar esse
sonho não é barato.
— Eu deveria te pagar mais, não deveria? — Anthony franze a
sobrancelha.
— É o valor justo para o cargo e o horário — dou de ombros —, pelo
menos agora é, depois que tive o aumento por ser insuportável.
Olho para ele em desafio e o vejo apertar os lábios, escondendo um
pequeno sorriso antes de voltar a ficar sério.
É confuso tentar entender o que estou sentindo agora, mas parece que
ele consegue me irritar com a mesma facilidade que dilui minha raiva, se é
que isso faz sentido. É como quando estamos andando na rua, nos
encolhendo de frio, e entramos em algum lugar aquecido. Nosso corpo
relaxa e as partes geladas começam a esquentar lentamente, deixando os
músculos confortáveis novamente.
O silêncio entre nós dura mais alguns minutos, até Anthony fazer
uma curva e entrar na fila do drive thru de um McDonald's 24 horas.
— O que você está fazendo?
— Você disse que queria McDonald's — responde, enquanto avança
o carro.
— Anthony, não precisa fazer isso. Eu estava… Sei lá, achei que
estávamos nos dando bem, por isso sugeri...
— Ah, voltou a me chamar de Anthony? — Sorri de lado, o que me
faz fechar a cara.
— Senhor MacMillan — corrijo e ele nega.
— Tarde demais — ignora minha tentativa de consertar o que falei e
para em frente ao primeiro totem, enquanto tento fazê-lo mudar de ideia. —
Dois combos vegetarianos com Coca-Cola, por favor.
— Mais alguma coisa? — A atendente pergunta e ele repete a
pergunta para mim com olhos pidões.
— Você é impossível, parece aquelas crianças que não desistem até
ter o que querem! — Falo em português para ele não entender e me dou por
vencida. — Milkshake de chocolate?
— Um milkshake de chocolate e outro de morango.
— É só fazer o pagamento na próxima cabine, senhor — a atendente
finaliza e Anthony segue a fila com apenas uma mão no volante e o sorriso
convencido no rosto.
Abro minha bolsa para pegar meu cartão, mas no instante em que
seguro minha carteira, Anthony a tira de mim.
— Você tem que parar com essa mania de tirar as coisas da minha
mão.
— E você tem que parar com essa mania de sempre querer ser
independente e brava o tempo inteiro. — Para o carro e olha para mim, ainda
segurando a carteira na mão. — Você é uma estagiária que já reclamou do
salário que recebe e eu sou, segundo suas próprias palavras, um mimado.
Certo?
Lembro-me do que falei mais cedo, quando ele chegou para me
buscar, e sinto minhas bochechas esquentarem.
— Então me deixe gastar o dinheiro que herdei do meu amado pai —
debocha revirando os olhos —, pagando um lanche ruim para você.
— Devolve minha carteira — estico o braço para tirá-la de sua mão e
ele a entrega para mim, então pega o próprio cartão e paga os nossos
lanches.
Não demora para ficarem prontos e, enquanto Anthony estaciona, eu
equilibro os sacos e as bebidas no meio das pernas. Ele para ao lado de
outros carros com pessoas que também estão comendo seus lanches e
entrego os dele. Em seguida, abro o meu.
— Não sabia que você gostava do lanche vegetariano… — falo
baixo e dou uma mordida no sanduíche.
— Não gosto, mas não vou comer carne do seu lado — fala com
simplicidade e também morde o seu.
Um estranho formigamento toma conta do meu peito, sentindo toda a
região esquentar com o que acabei de escutar. Geralmente, as pessoas
seguem sua rotina normalmente ao meu lado, o máximo que fazem é
escolher um restaurante ou um cardápio que tenha opção para mim, mas
nunca evitam comer qualquer tipo de carne por minha causa.
Sua atitude até que é… legal.
— Meu carro vai feder a lanche ruim — retruca, fazendo meu
pequeno sorriso sumir. O momento acabou mais rápido do que imaginei.
— Você supera, é só mandar lavar — dou mais uma mordida e,
depois de engolir, continuo falando. — Pede para a Elizabeth agendar, já
percebeu que ela faz qualquer coisa que você pede em um piscar de olhos?
— Não começa, insuportável — Anthony resmunga com a voz
divertida. O mesmo tom que eu tanto escuto durante nossos dias trabalhando
juntos. — Até que demorou para você falar alguma coisa sobre ela, estava
esperando uma piadinha desde que ela comprou meu almoço e foi levar na
minha sala. Lembra?
— Se eu lembro? Ela quase me mata com os olhos todos os dias por
simplesmente existir e ter que ficar perto de você. Como se ela não soubesse
do sacrifício que é obedecer suas ordens. — Provoco de forma dramática.
— Você não obedece nada do que eu falo e sabe muito bem disso. —
Anthony rebate no mesmo instante.
— Você sabia que brasileiro é movido por fofoca? — Ele finge estar
sem paciência, fecha o resto do lanche e o joga no saco de pão. — Posso não
estar muito satisfeita com você, mas não recuso uma boa história.
— Estou deixando você comer esse lanche nojento e fedido no meu
carro e você tem a audácia de falar que não está satisfeita comigo? — Dá um
longo gole em sua Coca-Cola com os olhos azuis fixos nos meus.
— Estamos comendo no seu carro porque você quis, e eu preciso de
mais do que um simples lanche para esquecer que você foi estúpido e
descontou em mim algo que não tinha nada a ver comigo. — Falo a verdade
do que sinto, mas sem estar muito séria como mais cedo.
— A fofoca vai ajudar? — Anthony solta os ombros.
— Um pouquinho — confirmo e coloco o canudo na boca.
Vejo-o pensar se dará o braço a torcer e é impossível não admirá-lo
assim, leve e à vontade. Anthony tira o terno e dobra a camisa que está
usando, mostrando só um pouco da tatuagem no braço. Não quero encarar
muito tempo, então não consigo descobrir o que é.
— Nós saímos juntos uma semana antes dela começar a trabalhar na
Vann, não fui eu quem a contratou. Então, quando cheguei no escritório,
levei um susto por vê-la ali.
— Ela foi atrás do emprego de propósito? Por sua causa? —
Pergunto assustada e Anthony nega com a cabeça imediatamente.
— Não, foi coincidência e ela se assustou também. Saímos mais
umas duas vezes, mas ela queria mais do que eu estava disposto a entregar,
então a cortei antes de perder o controle da situação. Elizabeth não quis sair
do emprego e trabalha bem, então não iremos mandá-la embora, e é isso.
— Eu esperava algo mais emocionante — como uma batatinha com
tédio, decepcionada pela história. — Achei que, para ela me tratar tão mal,
vocês tivessem vivido uma grande história de amor.
— Minha vida é mais monótona do que você imagina.
— Você, literalmente, vive em eventos de música e lançamentos com
celebridades, produtores e um povo que eu só vejo pela televisão, e tem a
cara de pau de falar que sua vida é monótona? Por favor, se não estou na
faculdade, estou no escritório ou em casa. Nem viajar e conhecer os pontos
turísticos da região eu consegui ainda, só os mais fáceis de chegar.
— E o que você tanto faz que não consegue sair?
— Estudo e resolvo seus infinitos problemas. — Alfineto-o e ele
revira os olhos mais uma vez. Talvez eu deva começar a contar quantas
vezes ele faz o movimento com os olhos. Ele deve ter a chance de bater
algum recorde e entrar no Guinness.
— Ei… — Ele abaixa o tom de voz e finge arrumar algo no volante.
— Eu te falei que estou ciente dos boatos que estão correndo no escritório?
— Aqueles sobre você dormir com todas as suas assistentes,
inclusive comigo?
— É tudo mentira.
— Ah, que bom. Por um instante, achei que estava ficando louca,
porque esqueci que dormi com meu chefe. — Viro a cabeça para a janela,
tentando esconder a cara de indignação que faço, porque não acredito que
falei uma merda dessas para ele. Fecha a boca, Marina.
— Se você tivesse dormido comigo, não se esqueceria.
​Sua voz me indica que ele está brincando, mas ao mesmo tempo… É
séria, talvez? Ou…
Não, estou ficando louca.
​— Você terminou? Podemos ir? — Mudo de assunto de repente, sei que
estou corando e agradeço por estar escuro, assim ele não conseguirá ver
minhas bochechas vermelhas. Jogo o lixo dentro do saco de pão e fecho.
​Anthony não liga o rádio quando volta a dirigir e seguimos em silêncio
por todo o trajeto, com minha mente repassando a conversa que tivemos e a
forma leve na qual ficamos um ao lado do outro. Era quase como se a raiva
que senti por ele não tivesse existido.
Anthony é bonito quando está assim, o braço esticado segurando o
volante, a camisa com o primeiro botão aberto e as mangas dobradas, o
cabelo jogado para trás e o semblante anguloso e sério, prestando atenção
apenas no caminho que está fazendo em direção à minha casa.
Encaro a rua para não parecer como uma idiota observando-o por
tempo demais e, no momento seguinte, vejo a placa de um mercadinho 24
horas mais adiante.
— Pare o carro! — Falo com urgência, mas não o suficiente para que
ele se assuste.
— Quer vomitar? — Pergunta arregalando os olhos e diminuindo a
velocidade, sem parar. Tenho certeza que está pensando que farei alguma
sujeira em seu carro.
— O que? Não, você é nojento! Estaciona ali! — Aponto para o local
e, mesmo desconfiado, Anthony vira o volante e estaciona perto da entrada
do estabelecimento.
— Já volto — deixo o salto no carro e saio descalça com a bolsa
debaixo do braço. Não dou tempo para Anthony responder e caminho até o
mercadinho, que está vazio, com apenas um homem adormecido no balcão.
— Você está descalça, sua pirada — Anthony aparece ao meu lado,
praticamente correndo para me acompanhar.
— Me recuso a colocar aquele salto de novo. Inclusive, na próxima
festa, quero usar outra coisa. — Olho para ele sem parar de andar. — Tudo
menos salto fino. Um mais grosso, talvez? Meia pata, ou tratorado…
— Você colocou salto fino porque quis, Dias — Anthony abre a
porta para eu entrar. — Minha única exigência foi que a roupa fosse social.
— Hum… — Cerro os olhos para ele e tento me lembrar das exatas
palavras que ele usou quando combinamos sobre a festa. — Tem razão, a
burra fui eu dessa vez.
Olho ao redor, procurando a sessão de doces e caminho sem rumo,
passando pelos corredores.
— O que estamos procurando?
— Doces de Halloween — respondo ainda olhando para os lados. —
Esqueci de comprar e preciso levar amanhã para o Halloween do projeto
social que participo.
— Não sabia que você fazia algo além da faculdade — Anthony
comenta e segura meu braço, me fazendo parar de andar e voltar um
corredor, o que tinha os doces.
— Você não sabe nada de mim, Anthony — respondo sendo mais
misteriosa do que o esperado.
— Que projeto é esse?
— Um Centro para crianças que não ficam integralmente na escola e
os pais precisam trabalhar. Funciona como um reforço e creche, sou
voluntária. — Resumo o trabalho, mas ele não fala mais nada. Não pede
nome, nem local ou detalhes, o que é definitivamente diferente do que eu
esperava.
— Quantos doces você precisa comprar?
— Bom, são umas 80 crianças, e provavelmente as crianças do bairro
devem aparecer também, então… Não sei, doces para 120? — Faço uma
careta enquanto faço as contas e começo a olhar os preços.
— É doce pra caralho — Anthony passa ao meu lado e mexe nos
sacos de balas diferentes.
— Puta que pariu, tá caro pra porra — Resmungo em português,
em completo choque pelos valores e me arrependendo de falar que doaria os
doces. — Acho que o jantar do resto do mês será miojo mesmo…
Nem acredito que fiz todo aquele drama mais cedo por causa de um
Uber… Inocente, mal sabia o que me esperava.
— Você fala muito português quando está incomodada com algo.
— É mais fácil para xingar — sorrio culpada e ele cruza os braços,
voltando a mirar os doces.
— Escolha quais você quer, que eu compro. Esse aqui é bom. —
Pega um saco de balas roxas e laranjas e me mostra.
— Uau, você realmente está se sentindo culpado — falo surpresa e
ele pega mais um saco, agora de pirulitos. — Acho que vou começar a fingir
estar magoada toda vez que você me chamar de insuportável, só para ganhar
as coisas.
— Não vai se acostumando — puxa o celular do bolso e começa a
fazer alguns cálculos, em seguida, faz a contagem da quantidade de produtos
que tem nas prateleiras.
Apenas observo, principalmente quando Anthony vai até perto do
caixa, pega um carrinho e volta para onde eu estou.
— Você vai precisar de todos — ele diz, apoiando os braços no
carrinho.
— Todos? — Pergunto surpresa e ele confirma, começando a pegar
alguns pacotes e jogar dentro do carrinho.
Sorrio e acompanho-o, parando somente quando o carrinho já está
cheio e a prateleira vazia. Em seguida, vamos até o homem no caixa, que
fica surpreso com nossas compras e começa a passar um por um, colocando
tudo em várias e várias sacolas pequenas, já que não tem nada grande o
suficiente para facilitar nossa vida.
Anthony paga antes mesmo que eu possa perguntar uma última vez
se ele tem certeza e levamos tudo para o carro.
— Eu não ia comprar tudo isso. Então, por sua causa, as crianças vão
comer doce até passar mal… Obrigada, você não precisava fazer isso. —
Falo quando já estamos perto da minha casa.
— E você não precisava ter me defendido para o meu pai e fez
mesmo assim — devolve, me pegando de surpresa. — Ele é um otário,
espero que não tenha ficado magoada com a forma que falou com você.
— Magoada? — Forço uma risada. — Achei que tinha me contratado
exatamente pelo jeito que ajo. Então, não, não fiquei magoada.
Nosso olhar se encontra e observo aquele azul que, apesar da pouca
luz, parece extremamente vivo. Meu mecanismo de defesa para os
momentos de constrangimento é acionado e começo a tagarelar para
disfarçar minha timidez.
— Vou precisar fazer algumas viagens até o apartamento já que não
tem elevador no prédio, mas se você puder me ajudar a colocar pelo menos
ali perto das escadas, já facilita minha vida e você se livrará de mim mais
rápido.
— E como você vai para a festa amanhã?
— De metrô — respondo com obviedade e Anthony recusa a
resposta.
— Eu levo pra você, só me manda a localização.
— É sério, eu vou começar a ficar magoada com você com mais
frequência — brinco abrindo um sorriso.
— Nenhum ser humano é capaz de carregar tudo isso sozinho, como
você pretende fazer no metrô?
— Não sei, dou um jeito — dou de ombros e ele nega.
— Me manda o endereço e o horário, eu levo. — Fala mais uma vez,
com mais firmeza na voz e eu concordo, principalmente porque foi ele quem
comprou os doces, então… Não há problema nele aparecer por lá, certo?
Fico confusa com o que eu deveria fazer, mas minha intuição fala
para eu confiar, e eu aceito a voz da minha cabeça, mesmo correndo o risco
de fazer algo errado.
— Certo, então… Boa noite, obrigada pelo lanche e pelos doces —
falo com a mão na maçaneta da porta.
— Boa noite, Dias.
Anthony não faz menção de se aproximar, o que é o mais óbvio de se
fazer, é claro. Mas por que eu esperava por, não sei, um abraço? Algo mais
brasileiro para uma despedida.
Não estamos no Brasil, Marina!
Abro a porta e saio com o salto em uma mão e a bolsa na outra.
Corro as escadas para o hall e sinto que ele me observa enquanto
abro a porta da frente.
Ele só vai embora quando estou em segurança, ao lado de dentro do
prédio.
Capítulo 25

“Estou assustada com o que você faz,


meu estômago grita só de olhar para você
Corra para longe para que eu possa respirar,
mesmo que você esteja longe de me sufocar”
Catch Me - Demi Lovato

​ alvez não tenha sido uma boa ideia vir completamente pronta para o
T
Centro tão cedo, porque eu era a única maluca fantasiada no metrô. Ninguém
me julgou, o que é ótimo e algo, com certeza, aconteceria no Brasil,
principalmente porque eu estava vestida de Wednesday Addams dos anos 90
depois de tomar um banho de sangue no baile, como em Carrie, a Estranha.
​Ou seja, estava chamando a atenção.
​Fingi não ligar para os poucos olhares que recebi, levantei o queixo e
segui andando todo o caminho até o Centro com o mesmo lema que sempre
surgia na minha mente quando eu ficava insegura: “Fake it until you make
it”.
Assim que viro a esquina do casarão, avisto uma cabeça ruiva em
cima de uma escada, pregando o que parecem ser morcegos e teias de aranha
no alto da varanda frontal. Continuo andando pela rua e, como se sentisse
que estou ali, Charlie me olha assim que chego perto o suficiente e abre um
sorriso lindo, cobrindo os olhos por causa do sol.
​— Você veio! — Sua voz é animada e ele ameaça descer da escada.
​— Não ouse sair daí! — Emma sai pela porta da frente fuzilando-o com
o olhar e com uma cesta lotada de itens de decoração nos braços. — Você
veio!
​ Por que vocês estão surpresos por eu vir? Eu não sou a responsável

pelos doces? — Franzo a sobrancelha confusa e coloco a mão na cintura,
quando os dois observam minha roupa.
​— É que você está um pouco atrasada e depois de ontem, achamos que
não viria. — Charlie dá de ombros e finalmente desce, desviando do braço
de Emma quando ela tenta empurrá-lo.
​— Depois de ontem? O que aconteceu ontem? — Fico confusa e sorrio
com a interação dos dois tentando se bater.
​— Em primeiro lugar, você veio de metrô vestida assim? — Charlie anda
ao meu redor, observando toda a minha fantasia. — Esse sangue falso é
muito real.
​— Por que tem tanta certeza assim que é falso? — Levanto a
sobrancelha com um sorriso malicioso no rosto e ele ri.
​— Não brinca com isso, credo — Emma faz uma careta e sacode a
cabeça, me fazendo rir também.
​— Eu não duvido nada que seja de verdade — Charlie me provoca e
morde a boca.
​— É uma receita que aprendi com uma amiga do Ensino Médio,
Maristela. — Pego minha bolsa e a coloco para frente, procurando pelo vidro
cheio de sangue falso que trouxe para o caso de mais alguém querer usar. —
É mel, achocolatado e um pouquinho de corante vermelho. Eu não sei as
medidas porque faço tudo no olho, mas dá certo e o gosto é bom se precisar
colocar na boca.
​— Eu amei, isso é muito criativo! — Emma puxa o vidro para sua mão e
sente o cheiro doce da mistura.
​— É, ela tem as melhores ideias para festas assim… — Concordo e pego
o vidro de volta. — E em segundo lugar?
​— Não achamos que você fosse vir depois da festa — Charlie dá de
ombros e eu franzo a sobrancelha, confusa.
​— Como você sabe que eu fui em uma festa?
​— Está em todo lugar — Emma entrega a cesta cheia de morcegos para
Charlie e tira o celular do bolso, mostrando a tela para mim, enquanto
procura por algo. — Você saiu em várias páginas de fofoca, não sabia?
​— Eu o que? — Arregalo os olhos e puxo seu braço para perto, enquanto
ela ainda procura pela publicação. — Não me fale que eu passei vergonha ou
que estava feia…
— Você estava linda — Charlie apoia o braço em um degrau da
escada e olha para nós duas.
— É, e toda sorridente ao lado do Anthony MacMillan. — Emma
não fala o nome do Anthony de uma forma feliz, na verdade, bufa e revira os
olhos.
— Deixa eu ver isso.
Pego o celular e sinto meu coração disparar no peito quando vejo a
imagem. Anthony está com a mão nas minhas costas, me olhando com um
sorriso, enquanto falo com a Maggie, a única repórter com quem
conversamos ontem. Fico com medo da reportagem porque, com o passar do
tempo, aprendi que a mídia geralmente aumenta as notícias só para ganhar
like. Não as mídias tradicionais, em sua maioria, mas páginas de fofocas
sim.
​Já precisei abrir processo com a ajuda de uma amiga, que é advogada,
porque publicaram que eu e minhas tias batemos em um policial durante
uma manifestação, quando tínhamos vídeos provando que só gritamos a
música tema da passeata. Ganhamos um bom dinheiro, que doamos para o
movimento das mulheres, mas foi uma grande dor de cabeça e ficamos com
registro em nosso nome por um tempo, até tudo se resolver.
​— Vocês quase me mataram de susto — suspiro aliviada, porque achei
que fosse algo ruim e que pudesse me prejudicar, ou o Anthony. Algo sobre
nossa briga ou, pior ainda, sobre a briga com o pai dele. — Eu só bebi um
pouco de vinho e uma mimosa, estava a trabalho e não me divertindo, e
nunca me esqueceria do Centro!
​— Ah, essa reportagem é a mais tranquila, tem uma com fotos de vocês
indo embora da festa juntos. — Emma faz uma pequena careta.
​— Me mostra — entrego o celular na sua mão e ela rapidamente abre a
postagem.
​Nessa imagem, Anthony está me observando entrar em seu carro e,
quando arrasto para o lado, vejo nós dois conversando lado a lado. Estou
com o celular na mão e ele com as mãos nos bolsos.
​— Já viu os comentários? — Charlie se aproxima e clica na aba,
deslizando o dedo para me mostrar.
​O lado bom dessas fotos é que nossa expressão está tão neutra que nunca
saberiam que estávamos brigando, o lado ruim é que foi o combustível que a
internet precisava para inventar histórias sobre nós dois. Foco na postagem e
vejo várias mensagens falando o quanto Anthony é lindo e como eu sou
sortuda por trabalhar todos os dias ao seu lado, mas algumas estão falando
que ele está apaixonado pela forma como me olha.
​— As pessoas são completamente loucas — dou risada, lendo cada
comentário rapidamente. — Apaixonado? A gente briga o tempo inteiro,
inclusive brigamos ontem na festa! E estávamos discutindo quando essa foto
foi tirada.
​— Brigaram? Por quê? — Emma coloca as mãos na cintura, curiosa.
​— Nada demais, nós brigamos sempre, é como nossa dinâmica funciona.
Ele me irrita e eu o irrito. — Não entro em detalhes, porque, apesar da minha
lealdade à Ordem, não tenho direito nenhum de contar sobre os detalhes da
vida privada dele para outras pessoas. E o que aconteceu entre ele e seu pai
não diz respeito a mais ninguém. — Estou aqui agora, me deem algo para
fazer.
​— Você veio! — Olive aparece na porta e eu levanto os braços pro ar. —
Achei que estaria de ressaca!
​— O que acontece com vocês gringos que acham que eu não viria só
porque saí ontem? — Dou risada e nego com a cabeça.
​— Eu não sei, vai entender vocês, brasileiros. Cadê os doces? — Olive
olha ao redor e fica preocupada, então arregala os olhos para minha mochila.
— Não me diga que estão na sua bolsa… Ah meu Deus, vamos ter que sair
para comprar mais, e…
​— Não, não estão comigo — seguro os braços dela para ela se acalmar e
me olhar. — Logo estarão aqui, tá bom? E te garanto que tem mais doce do
que a gente precisa.
​— Tá, certo. Você está ótima, eu amei a fantasia. Cadê os morcegos,
Charlie? Vamos, de volta ao trabalho. — Olive fala rápido, se virando para
ele, e pega na mão de Emma. — Você vem comigo, a gente precisa se
arrumar logo.
​Charlie abre a boca para retrucar, mas as duas desaparecem tão rápido
quanto chegaram, nos deixando sozinhos ali.
​— Oi — falo um pouco sem graça, finalmente prestando real atenção
nele, que usa uma calça jeans com remendos e uma camisa xadrez.
​— Juro que ficará melhor depois que eu terminar de me arrumar — ele
olha para as próprias roupas e, depois, para mim. — Fui obrigado a pendurar
esses enfeites.
​— Quem mandou ser o mais alto daqui? — Brinco e ele coloca a cesta
de morcegos no degrau mais alto da escada. — O que você será, então?
​ Um espantalho assassino — sorri e se apoia na escada, ficando quase

na minha altura. — E você é a Wednesday Addams depois de assassinar
alguém?
​— Quase isso — dou um pequeno sorriso forçado, porque ele não
entendeu a referência, e tudo bem, já sabia que poucas pessoas fariam a
ligação da minha fantasia já que são duas personagens de universos
diferentes.
​— Combina com você… — Sua voz fica baixa de repente, ao tempo que
o olhar fica mais suave.
​— Uma Wednesday assassina? — Levanto a sobrancelha surpresa e ele
dá risada, tocando minha cintura e me puxando para mais perto. — Charlie,
eu estou cheia de sangue e tem as crianças…
​— Não tem nenhuma criança aqui ainda — ele fala enquanto olho ao
redor, me certificando de que não há criança perto de nós e me deixando ser
levada por ele.
​— E o resto da Ordem? — Mordo a boca admirando seus olhos.
​— Todos sabem que a gente se beija, não seria nenhuma surpresa.
Por que quando estou do seu lado essa aura sexual fica tão forte? É
impossível não querer colar nossos corpos.
​— Eu realmente queria te beijar agora — seu olhar está na minha boca,
mas sobe para todo o meu rosto, observando o sangue falso, já seco,
espalhado por ele.
​— A vontade é só por que você não pode?! — Provoco e,
inconscientemente, aproximo o rosto do dele, passando o nariz devagar em
seu lábio.
​Charlie sorri e seu cheiro doce me faz fechar os olhos, principalmente
quando roça os lábios devagar nos meus, tomando cuidado para não estragar
minha maquiagem e nem se sujar.
​— A vontade está presente toda vez que eu te vejo, mas agora, como não
posso, é ainda maior. — Assume e, em seguida, sinto sua língua passar
devagar em minha boca, fazendo eu me arrepiar. — O sangue é mesmo doce.
​— Eu queria não estar toda suja agora — assumo com a voz baixa e ele
sorri.
​— Se quiser, te ajudo a tirar essa maquiagem depois da festa.
​Charlie abre um sorriso safado e eu concordo, sentindo sua mão apertar
minha cintura e, com cuidado, depositar um selinho suave na minha boca.
Quando nos afastamos, vejo que sua boca ficou suja de sangue falso e passo
o polegar em seu lábio inferior, limpando com cuidado a pequena bagunça.
​— Levo você embora então, pode ser?
​Antes que eu possa responder, uma buzina alta me assusta, me fazendo
dar um pulo para longe de Charlie e encarar a rua, procurando de onde vinha
aquele som. Tem um carro parado à frente do Centro e, apesar dos vidros
escuros, sei que é Anthony, porque ninguém no bairro tem um veículo tão
ridiculamente caro assim.
​— Quem é esse? — Charlie franze o cenho, olhando para a rua.
​— São os doces! — Afasto-me, jogo a mochila no chão e vou até o carro
a passos apressados.
​— Cheguei em um horário ruim? — Anthony pergunta ao sair do carro,
olhando para Charlie primeiro e só então para mim.
​Ele está usando uma camiseta preta, calça de alfaiataria, tênis e um
óculos escuro quadrado. É a primeira vez que consigo ver um pouco mais
das tatuagens que tem no braço e, apesar de não a ver por inteiro, sei que são
cobras enroladas até perto do seu cotovelo.
​Sabe aquela cena de filme de romance em que assistimos um cara gato
fazer algo em câmera lenta, deixando as mulheres ao redor sem palavras?
Foi o que eu senti ao vê-lo sair do carro e tirar os óculos. O que é ridículo,
porque ontem ele estava mais bem vestido do que hoje e não fiquei boba
desse jeito.
Pelo menos, não tão boba quanto agora.
​— Acabei de chegar, então foi o timing perfeito — respondo com um
pequeno sorriso e vou até seu lado, apontando para o carro. — Está tudo
aqui?
​Anthony ainda está olhando para Charlie, que caminha até nós sem
esconder o incômodo pela presença do herdeiro da Vann Empreendimentos
ali.
​— Do mesmo jeito que você deixou no meu carro ontem — Anthony se
vira devagar e então presta atenção em cada detalhe da minha fantasia,
enquanto encosta o corpo no automóvel e cruza os braços e as pernas.
Puta que pariu.
Eu vou ter um colapso. Quando foi que ele ficou tão bonito? Não que
ele não fosse antes, porque desde a primeira vez que o olhei, achei que era
extremamente gato, mas agora…
Devem ser as tatuagens, é a única explicação.
— Por acaso a Wednesday foi ao baile da escola de Chamberlain e
virou alvo do sangue de porco no lugar da Carrie?
​Meu rosto se ilumina no mesmo instante por ele ter entendido a
referência, então confirmo antes de jogar as tranças para frente.
​— Gosta de Stephen King?
​— Um pouco — Anthony responde e se vira para Charlie, que está com
o semblante fechado, esperando que o ruivo fale alguma coisa já que está à
nossa frente, apenas observando a interação.
​— Charlie Cooper — estende a mão para Anthony, sem nem dar oi.
​— Anthony MacMillan — o loiro responde e juro que daria para sentir a
tensão entre eles mesmo se eu estivesse do outro lado do bairro.
​— Charlie, vamos precisar de ajuda. — Falo para fazê-los soltarem as
mãos e então Anthony se aproxima de mim, abrindo o porta-malas. Seu
perfume invade meus sentidos, principalmente quando sinto o cheiro gostoso
de menta, característico demais para ser só um perfume.
Charlie me acompanha, surpreso com a quantidade de doces ali.
​— Você comprou tudo isso? — Coloca a mão em uma sacola e a abre
para ver seu conteúdo.
​Antes que eu possa abrir a boca para responder, Anthony coça a
garganta, chamando minha atenção e então negando com a cabeça
disfarçadamente. Apenas obedeço sem questionar, porque Anthony nunca
fez isso antes. Ele sempre assume o que faz de cabeça erguida.
​— Comprei — respondo para Charlie, acobertando meu chefe.
​— As crianças vão amar — Charlie sorri para mim e deposita um beijo
na minha cabeça. — Você é incrível. Vou chamar os outros para ajudarem.
​— Tá bom — aperto os lábios concordando e o observo pegar algumas
sacolas e se afastar, mas não antes de dar um último olhar desconfiado para
Anthony. Quando estamos sozinhos, me viro para o loiro e cruzo os braços.
— Por que não quis que eu falasse que foi você?
​— Não preciso que outras pessoas saibam do que eu faço ou deixo de
fazer — Anthony pega uma sacola e passa por mim, colocando-a na calçada.
​— Parece que você sente prazer em fazer as pessoas não gostarem de
você — observo-o e também pego uma sacola, imitando-o.
​— É mais como um hobby — responde debochado e sorri, passando por
mim mais uma vez, com outra sacola. — Esse é o Centro?
​— Sim, Charlie é professor aqui e eu sou voluntária — respondo
olhando para o casarão.
​ ão sei se Anthony percebeu que esse é o Centro que está na mira da
N
prefeitura para ser fechado, ou que Charlie faz parte da Ordem, que sempre
se manifesta contra a Vann. Se percebeu, não demonstrou.
Ainda.
​— É grande. — Observa o casarão.
​— Não o bastante — sorrio e pego uma sacola muito pesada,
encostando-a em minha roupa e sujando de sangue com uma parte que não
estava completamente seca ainda.
​Anthony repara meu esforço e tira o peso da minha mão, mantendo longe
de seu corpo para não se sujar, antes de colocar a sacola na calçada ao lado
das outras.
​— Tem certeza que compramos tudo isso ontem?
​— Talvez eu tenha exagerado um pouco nas contas — dá de ombros.
— Um pouco? Dá para fazermos uma festa para as crianças de três
bairros e não só as do Centro — dou risada e ele concorda quando a porta do
casarão se abre novamente.
​Charlie está à frente do grupo, seguido de Benji e Thomas, que passa na
frente dos outros para cumprimentar Anthony primeiro. Vejo Benji
completamente confuso, alternando o olhar entre nós dois, mas ignoro.
​— Anthony.
​— Thomas.
​— Não esperava sua visita — Thomas força um sorriso e olha para mim,
como se me repreendesse por levá-lo ali.
​Ok, agora ele sabe onde está e que grupo é esse.
​— Só trouxe os doces para a Dias, ela não ia conseguir trazer tudo
sozinha no metrô — Anthony abre o sorriso charmoso que usou ontem no
evento, e aponta para as muitas sacolas no chão.
​— Obrigado pela ajuda — Thomas responde e Benji pega algumas
sacolas, entrando em seguida, claramente fugindo do que quer que esteja
acontecendo ali.
​— É só uma entrega, Thomas. — Anthony coloca a mão no bolso e nega
com a cabeça.
​— Bom, obrigado mesmo assim — Thomas evidencia e se vira para
mim. — Será que você pode comprar cola quente pra gente, Dias? A nossa
acabou.
​O tom de voz de Thomas é duro, apesar de gentil. Exatamente como
quando um professor te repreende, mas não briga de fato. Sinto o quanto ele
desaprova o que fiz só pelo olhar. Me mandar comprar algo fora do Centro
pode ser uma desculpa para respirar fundo antes de conversar comigo.
Porque eu sei que a conversa virá em algum momento.
​— Claro, já vou — confirmo e aperto forte as mãos.
​— Eu vou com você — Charlie se oferece e eu recuso.
​— Olive vai te matar se não terminar de arrumar as coisas logo, pode
deixar que eu vou. — Tranquilizo-o e ele franze a sobrancelha, confirma e
pega várias sacolas de uma só vez, entrando atrás de Thomas.
​— Volta logo — Charlie fala de longe e eu concordo, mesmo que ele não
esteja me olhando.
​Que burrice foi essa de pedir para o Anthony ir até ali? Não faz sentido
nenhum. Ele é um dos responsáveis pelo Centro correr o risco de fechar,
assim como a maioria dos estabelecimentos ao nosso redor.
​Burra, burra, burra.
​Quer dizer, a empresa dele é a responsável, não ele.
​Ficamos em um silêncio estranho até Benji voltar, enchendo as mãos
com as últimas sacolas e apertando os lábios para mim, antes de entrar no
casarão uma última vez.
​— Então, acho que é isso. — Falo sem graça e em tom de despedida. —
Tenho que ir ao mercadinho comprar cola quente.
​— É, eu escutei — Anthony levanta uma sobrancelha e posso sentir que
está sorrindo com o olhar. — Eu te acompanho.
​Ele desencosta do carro e espera eu lhe mostrar qual caminho iremos
seguir. Sinto que estou fazendo algo errado, não só em relação aos
problemas óbvios presentes ali, como pela maneira que Charlie nos olha
furtivamente de cima da escada.
​Apesar disso, aponto para a direita, caminhando devagar na companhia
de Anthony. Nos primeiros passos que damos, sinto seus dedos tocarem meu
braço e ele, gentilmente, me coloca para dentro da calçada, ficando mais
perto do meio fio.
​Sim, é impossível não reparar nisso porque é uma das coisas que eu acho
mais lindas nos livros que leio e filmes que assisto.
​Encaro-o de soslaio, mas ele segue olhando firme para frente, prestando
atenção no caminho, e observando o comércio na rua. É claro que ele só faz
isso porque é um MacMillan e foi criado com a melhor educação que
alguém poderia ter, mas mesmo assim meu coração bate forte.
​Eu ordeno que você pare, agora!
​ Está muito quieta, o que foi? — Anthony corta minha onda de

pensamentos.
​— Só estava pensando — aperto a boca e passo a mão em meu vestido,
evitando olhar para ele. — Então, você conhece o Thomas?
​— O responsável pela maioria das manifestações contra a Vann? Sim,
conheço. — Seu tom de voz é acusador, mas não muito. Não é como se
estivesse bravo, mas me olha desacreditado mesmo assim. — É isso que
você faz no seu tempo livre?
​Confirmo com a cabeça em silêncio, porque não pretendo dar detalhes da
Ordem, mas posso falar sobre o Centro, e nesse momento eu preciso falar.
Para abafar o coração batendo forte no peito.
​— Você conhece o projeto? — Ele nega e eu reflito como falar sem me
comprometer. — Começou quando Thomas era pequeno, o tio cuidava dele
para sua mãe trabalhar. Depois, outras famílias começaram a pedir ajuda e,
quando ele percebeu, estava cuidando de várias crianças para que suas
famílias pudessem trabalhar e sustentar a casa. Aos poucos começou a
receber voluntários que davam aulas, doações para melhorar o espaço e,
assim, as crianças terem o que comer…
​— E ele fazia isso só para ajudar?
​— Só para ajudar — confirmo. — Quando ele morreu, deixou o Centro
para a comunidade, sob os cuidados do Thomas. Ele contratou professores
com o dinheiro que recebe das doações, sempre procura outros voluntários
para as atividades e, enfim… É um projeto legal.
​— Parece ser — Anthony tenta ver o casarão que já ficou para trás.
​— Dei uma aula de como fazer velas, foi bem legal — tento descontrair
e vejo-o sorrir, o que dá uma acalmada no coração, que parece tropeçar.
​— Por que não me surpreende você tentar passar suas habilidades de
hippie adiante? — Alfineta-me com humor no tom de voz.
​— Foi muito legal, tá? — Devolvo a provocação e empino o nariz. — As
meninas mais velhas adoraram e deu super certo.
​— Tenho certeza que sim — Anthony tira os óculos de sol e, antes de
colocar no bolso, eu os peço emprestado. Só depois percebo o movimento
que fiz, como se fosse comum e não completamente esquisito.
​Ele me entrega sem contestar e, para disfarçar o que fiz, os coloco no
rosto, agradecendo por estar com o olhar um pouco escondido.
​— O Cooper é seu namorado? — Anthony pergunta sem rodeios.
​ Eu não namoro — respondo ainda olhando para a frente. — Somos

amigos.
​— Vocês pareciam bem íntimos quando cheguei — me provoca.
​— Saímos juntos, às vezes, mas Charlie não é meu namorado. —
Assumo com simplicidade. — Atrapalhei seu sábado?
​Mudo de assunto, porque não quero falar sobre meu não-relacionamento
com Charlie Cooper, principalmente com Anthony, meu chefe.
​— Meu sábado se resumia em fazer um trabalho para o Herman, então,
não. Foi bom sair de casa, para falar a verdade.
​— Eu estou cheia de trabalho dele para fazer, não faço ideia se darei
conta.
​— Por isso pediu a terça de folga?
​— Você está muito curioso sobre minha vida, Anthony — levanto as
sobrancelhas fingindo surpresa.
​— Não é mais fácil você simplesmente responder às minhas perguntas,
em vez de se fazer de difícil?
​— Não! — Sorrio e me viro para ele.
​— Insuportável.
— Uma pergunta por outra, o que acha? — Anthony finge pensar se
aceitará a proposta, mas sei muito bem que ele topará só pelo sorriso discreto
que carrega no rosto. Ele se dá por vencido, o que me dá direito a uma
pergunta. — Por que você não está indo às aulas de segunda?
​— Está sentindo minha falta, amor?
​Anthony me pega de surpresa e sinto meu estômago se contorcer, como
se uma infinidade de borboletas morassem dentro de mim, voando
enlouquecidas para todos os lados.
​Mas que porra?
​— Eu não diria falta — faço uma careta e abraço o estômago, impedindo
a sensação que sobe para meu peito. — Alívio, talvez, já que é um dia a
menos te vendo na faculdade.
​Alfineto-o simplesmente para afastar o sentimento estranho que não para
de crescer em mim.
​— A mãe da minha mãe está doente e todo domingo tomo chá da tarde
com ela. — Anthony olha para o alto e repara nos prédios. — Ela mora há
algumas horas daqui e o chá sempre vira jantar, o que acaba me fazendo
dormir na casa dela e chegar em Londres tarde demais para a aula.
​ Quem diria que você realmente tem um coração. — Apesar de

parecer provocação, não é, e ele sabe, porque me olha com carinho.
​— Não consigo dizer não, principalmente depois de ter perdido uma avó.
Se ela tiver que partir também, quero ter vivido bons momentos ao seu lado
e saber que ela tinha orgulho de mim. — Anthony confessa, o que é
claramente muito difícil para ele, mas sai naturalmente de sua boca.
​— Tenho certeza que ela tem. Você é inteligente, educado e tem um
coração gentil, mesmo que finja não ter nenhum — nosso olhar se encontra
por um momento. Agradeço por estar escondida pelos óculos escuros. — E
eu pedi a terça de folga para assistir uma aula de música no Centro.
​Já respondo a pergunta que ele havia feito antes, assim estamos quites.
Atravessamos a rua vazia em seguida.
​— Os projetos que estamos começando a trabalhar são todos aqui.
​Seu comentário sai inocente, como se apenas contestasse um fato para
mim, mas sabe que eu também sei disso e que não estou surpresa com a
informação.
​— Eu sei — olho para o chão e chuto uma pedrinha para longe.
​— Nosso advogado avisou que, com o atraso em nossos documentos, o
mercadinho conseguiu entrar com o adiantamento do processo de
regulamentação. — Anthony levanta uma sobrancelha no instante em que
viramos uma esquina e consigo ver o local adiante.
​Fico em silêncio, me fazendo de desentendida enquanto chuto mais uma
pedra para longe.
​— Você disse que tinham documentos faltando, não é? — Anthony
insiste no assunto.
​— Sim, três. Estavam com os dados errados, e tinha um sem assinatura.
Não devolveram ainda. — Levanto os óculos, deixando-o na cabeça. Ele
sabe que eu fui a responsável pelo atraso e não está me repreendendo por
isso. — Você vai querer entrar ou vai me esperar aqui fora?
​Abro a porta e espero por sua resposta, mas Anthony simplesmente entra
e espera eu lhe indicar a direção. Ele observa tudo e me segue até o balcão.
​— Nina! — o senhor Ward abre um grande sorriso por baixo do bigode
comprido, que cuida com tanto afinco. — Tudo bem, menina?
​— Tudo ótimo e com o senhor? — Sorrio e apoio os braços no balcão.
​— Você sabe que sim — ele dá uma piscadela —, vai dar tudo certo.
​Aperto os lábios e, apesar de querer saber de todo o processo para salvar
a fonte de renda de sua família, mudo de assunto por causa de Anthony.
— Por acaso o senhor tem cola quente para vender?
​— Acho que tenho lá atrás — dá a volta no balcão e começa a caminhar
até um corredor comigo. Anthony fica parado no balcão enquanto andamos
sozinhos. — Minha filha não para de falar sobre a festa, está em casa se
arrumando com as amigas.
​— Vai ser legal, o pessoal está empenhado na decoração.
​— E você na fantasia — encara-me por cima do ombro, aprovando
minha produção. — Acabou, mas eu tenho o meu pessoal, quer?
​— Ah, mas assim eu vou deixar o senhor sem nenhuma? — Volto a
segui-lo até o balcão e ele nega exageradamente, mexendo as mãos no ar.
​— Depois eu compro mais, leve para vocês. — Ele se abaixa procurando
a pistola e a encontra em uma gaveta, entrega-a para mim com um bastão
extra. — É o mínimo que posso fazer.
— Obrigada — aceito com um sorriso e ele agradece com o olhar.
— Não precisa agradecer, querida. Como está você e o Charlie?
Joanna falou que estão namorando, ele é um bom homem e as crianças
gostam muito dele.
— Só somos amigos, senhor Ward! As meninas exageram bastante.
— Arregalo os olhos surpresa com a naturalidade com a qual ele fala e,
principalmente, por ter tanta certeza. Corto o assunto e olho furtivamente
para Anthony. — Vejo o senhor mais tarde, tá bom? Fala para as meninas
não atrasarem!
Antes que ele possa continuar falando, apresso o passo para fora do
estabelecimento e sinto Anthony me seguindo de novo.
— Acho que você é a única que não quer aceitar o que está na sua
frente. — Anthony fala assim que fica ao meu lado.
— Eu não estou namorando! — Viro-me brava.
— Se você está dizendo…
— Eu estou! — Sinto meu coração disparar de indignação. — Não
tenho motivos para mentir para qualquer um, nem para você.
— Não precisa ficar irritada, se você falou, eu acredito. — Anthony
franze a sobrancelha e levanta as mãos.
— Sim, eu falei! Eu não sirvo para isso, não sou uma boa namorada.
— Olho para a pistola de cola quente na minha mão e nego. — Merda…
​Vou precisar conversar com Charlie e esclarecer tudo mais uma vez. Ou
me afastar, não temos nada para terminar, afinal de contas. O silêncio não
dura muito tempo.
— Uma pergunta por outra — Anthony chama minha atenção e eu o
olho, indicando para continuar. — Por que ser voluntária no Centro?
— Porque é menos frustrante que os outros projetos — respondo
francamente e paro de andar. — Nos outros a luta é muito intensa, e apesar
de no Centro também ser, todos se esforçam muito e é um projeto difícil,
mas a gente tem uma recompensa instantânea, que são as crianças. Não estou
há muito tempo lá, mas dá para ver o quanto eles evoluem todos os dias. Ser
um apoio para eles, além da família… É o que faz valer a pena.
Anthony concorda e se aproxima, levantando as mãos e tirando os
óculos do meu rosto. A ponta de seus dedos encosta em minha pele e me faz
arrepiar. Existe alguma forma de arrancar essas borboletas inconvenientes
que insistem em ficar voando sem parar por todo o meu estômago?
— Sua vez. — Anthony coloca os óculos no próprio rosto e dá um
passo para o lado.
— Acho que você viu as fofocas de ontem, então… O que você vai
fazer em relação a isso?
— É o que você tem para me perguntar? — Parece decepcionado
quando gasto minha pergunta em um assunto que não é pessoal. — Posso
compartilhar um dos posts, dizer que você estava me acompanhando a
trabalho e esclarecer que não temos nenhum envolvimento além do
profissional, pode ser?
— Certo, pode ser.
Terminamos o caminho em um silêncio relativamente confortável,
cada um perdido em seus próprios pensamentos, até estarmos praticamente à
frente do Centro novamente. É fácil não falar com ele, o que é algo grande
para mim. Sempre que estou nervosa, sinto que devo falar para fazer a
situação ficar menos constrangedora.
Não com ele. Com ele, posso ser chata, insuportável — como ele
gosta de me chamar — e sincera. Posso ser algumas das minhas outras
facetas, e não só a Marina Dias extrovertida e “legal”.
Vejo seu carro na calçada e diminuo o passo, porque sei que ele vai
embora e não quero que isso aconteça.
— Sobre o que o cara falou lá dentro… — Anthony diminui o passo
também. — Você atrasou os documentos de propósito, não atrasou?
— Anthony…
— Uma pergunta por outra.
Solto os ombros, pensando em como lhe responder e ele fica em
silêncio, me dando a oportunidade de explicar.
— É a única fonte de renda de uma família de seis pessoas.
— Era só não ter deixado todas as licenças vencerem a ponto de ser
interditado pela prefeitura — Anthony fala como se fosse a coisa mais
simples de todas.
— Não quando você precisa gastar seu dinheiro com a medicação da
filha que tem depressão, ou prover o mínimo para a família. O telhado estava
com infiltração, os alvarás precisavam de atualizações… São décadas no
mesmo local, se mantendo com o mínimo, porque o mercado não dá o
suficiente para todas as obras. Eles precisam escolher entre um ou outro…
— Suspiro cansada, não estou brava, só triste com a situação. — E os filhos
sempre são prioridade, a família é.
— Você podia ter me falado — se aproxima e fala baixo.
— Para você me demitir? — Fico na defensiva e ele nega.
— Para te ajudar. — Admite, o que me surpreende. — Posso não ser
tão corajoso quanto você, mas…
​— Mas? — cruzo os braços, interessada no que está falando, quando
risadas altas fazem a gente olhar para o casarão.
​Ficamos em silêncio e ele volta a andar até seu carro. Não falo mais
nada, não vou forçá-lo e sua atitude com a situação me surpreendeu, porque
eu realmente não esperava por isso.
​A cada dia, parece que uma nova camada dele se revela para mim.
​— Só não esconda mais essas coisas de mim, tá? Podemos dar um jeito.
​— Atrasando documentos das empresas que seu pai está tentando
comprar?
​— Essa é só a ponta do iceberg, Dias.
​Anthony finaliza e se aproxima mais uma vez, sua mão toca meu braço e
ele vem em direção ao meu rosto, depositando um beijo suave em minha
bochecha, sem se importar com a sujeira de sangue falso presente ali. Seu
toque faz com que eu prenda minha respiração por um segundo.
​— Te vejo segunda.
​— Na aula ou no escritório? — Pergunto baixo, me lembrando do que
contou sobre sua avó.
​— No escritório, e nada de cheiro de flores — faz uma careta com o
nariz e vai em direção ao seu carro.
​ Ah, para quem não gostava dos meus cheiros, agora você acha que

pode escolher? — Levanto a sobrancelha e ele concorda, abrindo um sorriso
pequeno. — E qual você quer?
​— Aquele que você coloca na sua sala, cítrico.
​— Você que manda, senhor MacMillan.
​Ele me repreende com o olhar de brincadeira e entra no carro, me
deixando sozinha, pronta para encarar a festa, que começará em poucas
horas, e pensando na interação que acabamos de ter.
Capítulo 26

“Nunca derramei uma gota de suor por outros caras


Quando você surge, eu fico paralisada
E toda vez que eu tento ser eu mesma, sai tudo errado”
Heart Attack - Demi Lovato

​ festa foi incrível. Quando chegavam, os alunos passavam pelo


A
labirinto do terror que fizemos dentro da casa para chegar até os fundos,
onde estava acontecendo a comemoração e a sessão de cinema, com um
telão no jardim. Por causa dos mais novos, o filme escolhido foi
Abracadabra, mas assim que as crianças foram embora, assistimos Jogos
Mortais e liberamos o álcool para os voluntários e professores.
​Foi difícil me manter afastada de Charlie e sei que ele não ficou muito
feliz quando falei que iria embora sozinha, com a desculpa de que estava
cansada. Quando voltei do mercadinho, o ruivo ficou tentando descobrir
mais sobre o Anthony e, mesmo tentando disfarçar, falando sobre meu
trabalho, me senti acuada. Como se fosse obrigada a lhe dar satisfações da
minha vida só porque estamos saindo e porque faço parte da Ordem, quando
eu não tinha nada para lhe contar.
​Benji, por outro lado, não tentou descobrir nada sobre o Anthony quando
nos encontramos na aula na segunda de manhã. Na verdade, ele nem trouxe
o assunto da presença rápida do loiro à tona. Confiando no que eu estou
fazendo.
​Anthony acabou não indo ao escritório na segunda, o que me fez
remarcar todas as reuniões dele para os próximos dias e trabalhar com o que
eu tinha disponível. Deixei um pequeno vidrinho com o blend de óleos, que
ele me pediu no final de semana, em cima de sua mesa para ele usar na
terça-feira em que não nos veríamos.
​Como não me mandou nenhuma mensagem ou e-mail, também não me
senti confortável para mandar.
​A aula de baixo do Johnny foi incrível, nunca vi tantos alunos juntos e
animados daquela forma. Todo o clima estava alegre, porque não era todo
dia que um astro do rock de verdade, ganhador de prêmios e dono de
músicas que estavam no topo da Billboard, aparecia para ensinar jovens a
fazer música.
​Olive estava irritadíssima com a presença do baixista, mas não falou
nada, apenas seguiu fazendo seu trabalho e se certificando de que tudo
estava ocorrendo da maneira planejada. Já Charlie se manteve próximo,
sempre participando das conversas que eu estava envolvida, o que,
novamente, me fez sufocar um pouco. O quão idiota eu vou parecer quando
conversar com ele sobre nosso relacionamento, e ele falar que eu estou
viajando e imaginando coisas que não estão acontecendo entre a gente?
Depois de tantos anos com o meu ex virando o jogo para que ele sempre
saísse por cima, não consigo ter uma conversa séria com alguém sem pensar
nessa possibilidade.
​Pelo menos, me reencontrar com a Manu foi um alívio no meio de tudo.
Ela é divertida e me contou que está começando a transição de trabalhos
porque, depois de anos, finalmente aceitou trabalhar direto para a
DownUnder. Não havia aceitado o cargo antes porque namora o empresário
da banda e achou que seria conflito de interesses, mas, com o passar dos
meses, fazia o trabalho sem realmente assumir a função. Já que está nos
últimos períodos da pós e eles não vão sair em turnê antes dela terminar, era
um bom momento para fazer a transição.
​Anthony não foi trabalhar na quarta e, quando cheguei no escritório na
quinta-feira, não o encontrei em sua sala. Não consigo evitar a sensação de
me sentir decepcionada, já que uma pequena parte de mim estava ansiosa
para vê-lo. O que é completamente ridículo, é claro.
​Acendo um incenso na minha sala, rego todas as minhas plantas e faço o
mesmo no escritório dele. Vejo sua mochila ao lado da mesa e é impossível
não sorrir. Ele veio.
​Rego suas plantas também, mudo algumas de lugar para o rodízio que
faço toda semana, por causa da luz solar. Passo meu incenso em todo o local
para limpeza e ligo o difusor com Laranja Doce na tomada para diminuir sua
ansiedade e melhorar o humor.
​Fecho a porta atrás de mim e volto para o meu escritório, pronta para
trabalhar. Começo respondendo os e-mails e montando minha planilha diária
de afazeres por ordem de prioridade. Então, coloco todo o meu foco nas
documentações atrasadas. É um trabalho chato e mecânico, mas que eu gosto
de fazer.
​Deixo um podcast tocando no meu fone, ativo o modo Não Perturbe e
me concentro na tela. Horas depois, quando já está no final da tarde, me
levanto para pegar café e acabo conversando um pouco com os rapazes do
financeiro, que também estavam se dando uma pequena folga na copa.
Quando volto para o escritório, paro à frente da porta de Anthony, mas não
escuto nenhum barulho vindo de dentro, o que só pode significar que ele saiu
no almoço e não voltou até agora.
​Volto para meu computador e, ao abrir as pastas de documentos, vejo o
local em que estão armazenados os processos de LittleWin. Estou
tecnicamente sozinha, já que Anthony não está aqui e mais ninguém do
escritório tem o costume de vir até minha sala… Não fará mal nenhum dar
uma olhada naqueles documentos e ver qual é o próximo foco da Vann no
bairro.
Talvez eu consiga ajudar mais alguma empresa, mais uma família.
Meu coração começa a bater mais rápido e, automaticamente, pego o
blend de óleos que deixo na minha mesa, passo no pulso e respiro fundo
enquanto olho para as cortinas abertas da minha sala. Vejo alguns
funcionários indo embora e outros ainda sentados em suas mesas. Perfeito.
​A primeira pasta que abro é a do mercadinho, e é impossível não sorrir
quando vejo que realmente consegui atrasar o processo de interdição da
prefeitura e, consequentemente, o de compra do local pela Vann
Empreendimentos. Eles estavam fazendo todo o processo por baixo dos
panos, sem deixar que ninguém soubesse da compra, principalmente os
donos.
​Abro outras pastas, anotando em um papel o nome dos locais que estão
na mira para as próximas compras e desenho uma bandeirinha vermelha nos
que deveriam ser prioridade para a Ordem. Não consigo olhar todos os
projetos, porque minha atenção toda hora para na pasta do Centro. Mas
como se uma força estivesse segurando meu braço, mexo o mouse até o
desenho em amarelo na tela. Sei que ela tem senha e clico mesmo assim.
​ u não esperava que ela abrisse.
E
​Meus olhos se arregalam imediatamente e meu corpo se aproxima da
tela, sem acreditar que realmente consegui acesso e que tem documentos e
mais documentos na minha frente. Sinto minha mão tremer enquanto passo o
olho pelos nomes de cada arquivo, mas do mesmo jeito que fiquei eufórica,
fico frustrada ao clicar um por um e ver que eles não estão abrindo sem
senha.
​— Merda! — Reclamo alto, sem parar de tentar e começando a testar as
senhas dos outros arquivos, sem sucesso, é claro. — Mas que porra que está
acontecendo aqui?
​Por que liberariam o acesso à pasta, mas não aos documentos? Não dá
para pegar muitas informações apenas com os nomes dos arquivos, já que
estão todos em códigos e por numeração. A forma de decifrar é ter acesso ao
arquivo base do processo, que também está bloqueado.
​— Do que adianta ter um celular se não atende? — Anthony aparece na
porta da minha sala, me fazendo gritar e pular na cadeira, antes de fechar
correndo a aba aberta no computador.
​— Que porra, Anthony! — Coloco a mão no coração e, sem pensar duas
vezes, pego um rascunho na minha mesa, amasso e jogo a bolinha em seu
peito. — Você tem que parar de ficar me assustando.
​— Se você se assustou é porque estava fazendo merda — Anthony pega
a bolinha caída no chão e se aproxima, jogando-a em cima da mesa. — Ah,
que bom saber que seu celular está do seu lado e que você escolheu me
ignorar.
​— Você não me ligou nenhuma vez! — Retruco e fico irritada com seu
tom de voz. Mais cedo, eu estava sentindo falta dele, agora já me arrependo
do sentimento.
​— Eu mandei várias mensagens e te liguei três vezes! — Anthony pega
o próprio celular, abre as mensagens e mostra que todas haviam sido
enviadas.
​— Mentiroso! — Retruco pegando meu celular. — Eu teria visto se você
tivesse me…

Arrogante MacMillan (14:20) diz:


Tive um imprevisto, vou atrasar para voltar para o escritório.
Consegue deixar a documentação 1989 pronta para mim, por favor?

Arrogante MacMillan (15:07) diz:


Vi na nossa agenda que você tinha se programado para sair mais cedo
para a palestra do professor Herman amanhã, mas ele acabou de mudar a
data para hoje.
Se você quiser ir, pode sair mais cedo.

Arrogante MacMillan (15:45) diz:


A grande merda do professor Herman ser um antigo amigo da minha
família é que ele acabou de me ligar para falar que você não foi em
nenhuma palestra dele ainda e que a culpa é minha, já que está sempre
trabalhando.
Para ele ter me ligado para falar isso, é por que gosta de você, não sei
como.
Vou passar no escritório para buscar minhas coisas, se você quiser eu te
dou carona.
Também fui ameaçado a ir, já que fujo de todas.

Arrogante MacMillan (16:19) diz:


Existe algum motivo específico para você estar me ignorando?

Arrogante MacMillan (16:47) diz:


Te pego às 17 horas na frente do prédio.

​ Como assim não sabe como o Herman gosta de mim? — É a única



coisa que sai da minha boca quando vejo que ele estava sim mandando
mensagens e que ainda me ofereceu carona. — É óbvio que ele gosta, eu sou
uma das melhores alunas da sala e entrego tudo antes do prazo.
​Quando levanto a cabeça para ele, Anthony já está andando para fora da
minha sala.
​— Acelera, já estamos atrasados! — Fala antes de sumir e, em um
movimento automático, jogo minhas coisas dentro da bolsa, fecho a porta e
corro atrás dele pelo corredor. — Você deveria ver quando eu quero falar
com você — retruca revirando os olhos.
​— Não sou obrigada a te responder no celular que é para minha vida
pessoal, se fosse algo de trabalho, eu veria, já que estou com o e-mail aberto
o dia inteiro. — Defendo-me e tiro o celular do modo Não Perturbe, vendo
as várias notificações surgindo na tela, inclusive mensagens da Mila.
​— Ele odeia atrasos — Anthony retruca e passamos rapidamente por
Elizabeth, que sorri quando vê o loiro, mas fecha a cara ao me ver ao seu
lado.
​— Era só ir sem mim, já que era tão importante assim. E eu me
enquadraria nos alunos que não viram o e-mail e perderam a palestra — falo
com obviedade e aperto o botão para chamar o elevador com força.
​— Eu estava tentando ser legal com você, já que ele fez questão de que
eu te liberasse para assistir — retruca me olhando com raiva.
​— Parece que tentou ser insuportável, isso sim! — Cruzo os braços em
frente ao corpo e, então, me dou conta do que estou fazendo. — Por que eu
estou indo com você?
​— Porque você quer ir na palestra — Anthony fala sem paciência,
olhando para a frente quando a porta se abre.
​— Eu não queria ir estressada e sendo arrastada por você! — Entro no
espaço pequeno e, quando aperto o botão do Térreo, nossas mãos se chocam,
já que ele faz o mesmo.
​— Para de ser insuportável e agradece a carona.
​— O rapto, você quis dizer.
​— Você me seguiu por vontade própria.
​— Você não precisa de cordas para obrigar alguém a fazer o que você
quer, só esse jeitinho suave e delicado já faz todo o serviço. — Resmungo e
bufo, mordendo a bochecha.
​— Eu não estou te raptando, se eu fosse fazer isso, com certeza não seria
para te levar em uma palestra! — Anthony está com o nariz franzido e o
maxilar marcado. — Caralho, como você consegue me irritar assim por
nada? Meu dia estava ótimo.
​— Como você consegue me irritar assim por nada! — Retruco de volta e
a porta do elevador se abre. — Eu estava em paz, trabalhando sem me
preocupar com mais nada até você aparecer na minha porta.
​Ficamos os dois parados, esperando alguém sair do local pequeno e
Anthony segura a porta do elevador, me dando espaço para ir à sua frente.
Respiro fundo, pensando se saio ou não, então me aproximo e aperto o botão
do subsolo, onde fica o estacionamento.
​— Você sempre faz isso — Anthony se afasta e nega. — Reclama e
briga comigo, mas cede no final.
​— Eu não estou cedendo, só que eu preciso mesmo ir nessa merda de
palestra e não vou chegar a tempo se eu for de metrô. — Estou arrependida
de ter aceitado sua carona. — E você faz isso quando não tem o que quer,
está falando comigo com a mesma voz que usou quando sentei na sua
cadeira na segunda semana de aula.
​— Ah, então você admite que é a minha cadeira?
​— Ah, puta que pariu… Quantos anos você tem? Dez? Em alguns dias
você é perfeito, em outros você é extremamente difícil de lidar e eu só quero
te esganar. — Retruco em português com a voz rápida.
​Anthony fica me encarando com os olhos cerrados. Quando o elevador
abre novamente, sai do espaço sem me esperar. Sou obrigada a apressar o
passo para alcançá-lo, mas não demora muito para entrarmos em seu carro e
ele dirigir para a faculdade.
​Essa é nossa primeira interação ao vivo desde que ele levou os doces no
Centro, e deu um beijo em minha bochecha. Agora, aquele Anthony parece
que foi um delírio da minha mente.
​Passamos o trajeto inteiro em silêncio. Mesmo no caminho para o
auditório, permanecemos quietos. Encontramos a porta fechada, indicando
que a palestra já está acontecendo há algum tempo, para nosso azar.
​— Se você tivesse visto minhas mensagens… — Anthony murmura.
​— Se você cuidasse da sua vida! — Devolvo e ando a passos firmes até
o segurança. — Não podemos mais entrar na palestra, senhor?
​— Podem no intervalo, vai acontecer daqui quinze minutos. — O
segurança avisa e eu confirmo.
​— Obrigada! — Sorrio para ele e me viro sem paciência para Anthony.
— Quinze minutos, seu mimadinho.
​Passo por ele com o nariz empinado e ando até o lado de fora do prédio,
procurando por um banco para me sentar enquanto espero. Anthony, por sua
vez, me segue, como se não pudesse ficar longe de mim. Miro-o pelo canto
do olho e logo começo a mexer no celular, procurando qualquer mínima
coisa para fazer nos quinze minutos e não precisar falar com ele.
​Algo tão pequeno mexeu muito com a minha paz.
​— Se incomoda se eu fizer uma ligação? — Pergunto e ele dá de
ombros, virando o corpo para frente e pegando o próprio aparelho enquanto
eu me afasto um pouco, procurando o celular na bolsa.
​Por que eu perguntei? Não estamos no escritório e sim na faculdade,
então ele não é meu chefe, aqui ele é meu colega de aula. Não devo
satisfações do que faço ou deixo de fazer.
​É claro que disco o número da Mila. Para quem mais eu poderia ligar e
conversar em particular agora? Essa é a vantagem de falar uma língua
diferente do idioma do lugar que você mora.
​— Eita, combinamos alguma ligação e eu me esqueci? — Camila atende
e eu sinto um alívio instantâneo só de ouvir sua voz.
​— Não, eu só preciso que você me salve de uma possível prisão por
matar o meu chefe. — Suspiro e olho para Anthony de canto de olho, então
viro a cabeça para o lado oposto.
​— Não consigo te imaginar sendo presa por assassinato, mas por
invasão de propriedade talvez… — Ela pondera, levando minha frustração
na brincadeira. — O que ele fez?
— Ele consegue me irritar em um nível que você não faz ideia.
Surtou porque eu não vi as mensagens que me mandou oferecendo carona
para uma palestra que temos na faculdade agora.
​— Eita, levanta a bandeira vermelha! E você está aonde?
​— Na faculdade, esperando o horário do intervalo da palestra.
​— Ah, então você está reclamando do que ele fez, mas foi com ele
mesmo assim? Nina! — Me repreende.
​— O grande problema é que eu não consigo falar não para esse idiota
arrogante, mesmo que minha vontade seja de socar a cara dele. E eu
realmente preciso ver essa bosta de palestra. O próprio professor ligou para
ele pedindo para ele me liberar. Aquele professor que é insuportável, sabe?
— Suspiro e fico em silêncio por um momento. — O que você está fazendo?
Me distraia, por favor.
​— Assistindo um filme.
​— Você não deveria estar na faculdade também?
​— Matei aula para ver um filme, porque eu mereço. Estou exausta e no
meio da semana de provas. Ou eu paro por algumas horas para me distrair,
ou eu vou surtar igualzinho você!
​— Ah, merda… Você está aí, cansada, e eu te enchendo o saco com os
dramas do meu chefe gostoso.
​— Não, eu gosto de ouvir sobre seus dramas, pelo menos me faz sentir
como se estivéssemos juntas ainda. — Escuto-a dando pause no filme. —
Onde ele está?
​— Sentado do meu lado. Por acaso você conseguiu ver as fotos do
evento?
​— Esqueci por causa das provas, vou ver agora… — Escuto o barulho
dela teclando algo no computador. — Awn, meu Deus! Vocês estavam tão
lindos, sério, nem parece que você tem vontade de matá-lo cinco vezes por
dia!
​— Eu sei! E o pior é que nesse dia eu quis matá-lo várias vezes. Qual
foto você achou?
​— Uma em que vocês estão em uma escadaria. Os dois estão sorrindo,
mas parece que você está segurando um peido e tentando sorrir ao mesmo
tempo.
​— Ah, muito obrigada pela parte que me toca! — Respondo indignada e
sinto olhos em cima de mim, mas não me viro para olhá-lo. — Pelo menos
eu estava bonita, não é?
​— Uma graça, e ele: um gostoso.
​— Não fala uma coisa dessas, ele está literalmente do meu lado. — Dou
uma pequena risada e nego com a cabeça.
​— Você passou os últimos minutos falando o quanto queria bater nele, e
agora está assim porque chamei ele de gostoso? Me poupa! Ele é gostoso,
sim!
​— Tá, tá. Você tem razão. Ele é um gostoso e não fica feio nem quando
está com a cara amarrada, como quem cheirou algo podre. — Olho para ele
disfarçadamente e o encontro ainda mexendo no celular. — Sabe, você pode
até me achar louca, mas ele não é tão arrogante assim. Eu sei que reclamo
pra caralho, e que fico brava o tempo inteiro, mas, depois da merda do
evento, ele foi… Ah, ele foi decente comigo. E no sábado ele foi no Centro
levar umas coisas para mim e foi bem agradável também.
​— Agradável? É isso que você tem para falar? Fala sério.
​— O que você quer que eu diga? Que fiquei molhada só de vê-lo saindo
do carro de óculos escuros com aquele cabelo perfeitamente bagunçado, e
um pedaço da tatuagem aparecendo no braço? Arg, sério… Foi
extremamente difícil não encarar. E ele usa anéis, Mila… Anéis! Seu eu me
sentasse nele, nem guindaste me tiraria de cima.
​— Eu duvido que não tenha nada que faça você desistir, deve ter algo!
— Camila começa a rir muito alto do outro lado da linha, o que me fez
começar a gargalhar também.
​— Tá, se ele começasse a falar. Não aguentaria escutar ele ser teimoso
comigo, porque aí eu ficaria tão irritada que desistiria.
​— Pois eu acho que você continuaria sentada nele e seria ainda melhor,
porque você ficaria com raiva.
​ Talvez eu possa sentar na cara dele. Daria uma função melhor para

sua língua do que ficar me irritando.
​— Você é ridícula!
Mila gargalha ainda mais e vejo algumas pessoas saindo do
auditório, o que só pode significar que já deve ter dado o horário do
intervalo da palestra.
— Dias — Anthony se levanta, carregando o sorriso mais
convencido que eu já vi na vida e eu o acompanho com o olhar, suprimindo
o sorriso no rosto e prestando atenção no que tem a dizer. — Vou entrar,
você quer que eu guarde um lugar para você? Não dá para sentar na minha
cara, mas se quiser sentar no meu colo, eu prometo ficar quieto.
​O sorriso dele se alarga quando fico em choque, observando-o dar as
costas para mim e começar a andar em direção ao auditório. Eu o
acompanho com o olhar, o coração disparado no peito sem saber o que fazer.
Meu mundo parou de girar, meu coração está praticamente na minha
boca e acho que minha pressão caiu. Que porra foi essa?
​— Nina! — Camila me chama, a voz em alerta. — Tá aí?
​— Você escutou? — Pergunto assustada e acho que vou desmaiar de
tanto que meu mundo está girando.
​— Eu escutei, o que foi isso? — Ela pergunta sem brincar e eu continuo
sem saber o que fazer.
​— Ele falou em inglês, certo? Ele falou em inglês, sobre o que estávamos
falando em português, foi isso que aconteceu, não foi?
​— Foi…
​— Puta que pariu, puta que pariu! Eu sempre falo em português do lado
dele, sempre! Ele nunca disse que me entendia. Eu já briguei com ele,
chamei ele de criança, já… — Coloco a mão na testa e lembranças de
quantas vezes retruquei alguma coisa em português ao seu lado voltam à
minha mente. Meus comentários já foram desde reclamações, até elogios da
sua aparência. Deixo o corpo escorregar no banco, mas quero derreter para
cair na terra e sumir. — Eu vou embora, vou pedir demissão e nunca mais
vou olhar pra cara dele de novo.
​— Tá maluca?
​— Tô com vergonha! Eu falei que sentaria nele, e ele entendeu!
​— Com certeza ele se sentiu lisonjeado, é só ver como ele respondeu.
Falou que fica quieto e tudo.
​ Para de tentar fazer as coisas ficarem melhores do que realmente

estão.
​— Eu vou desligar o telefone! — Mila ameaça para que eu pare de fazer
drama.
​— Desculpa, desculpa. — Suspiro e olho para o auditório mais uma vez.
— Não vou fugir, eu nunca fujo. Vou só fingir que nada aconteceu, é o
melhor a fazer. Ou posso me enterrar em um buraco e nunca mais sair de lá.
​— Ah, claro… Porque isso não é fugir. Você não precisa falar nada,
agora já foi e ele claramente não ficou irritado, então…
​— Eu vou morrer.
​— Para de ser dramática. Uma hora você vai ter que encará-lo, seja na
aula ou no trabalho. Pede desculpas, fala que estava brincando e segue a
vida.
​— Tá, eu… Eu vou ver o que fazer.
​— Aguardo as cenas do próximo capítulo. — Ela volta a rir baixo, como
se estivesse se segurando durante esse choque e eu desligo em seguida.
Caralho, está muito difícil entender que isso realmente aconteceu. Eu
falei algo completamente constrangedor do lado dele, e ele entendeu. Não só
constrangedor, mas desrespeitoso, eu… Respiro mais uma vez e olho para o
céu.
​— Isso é algum tipo de brincadeira comigo? — Pergunto para a Deusa e
espero algum tipo de sinal, mas só recebo uma brisa passando pelo meu
cabelo. — Merda, você tinha que ter me feito aquela que não foge das
coisas, não é? Eu não podia simplesmente sumir?
​Levanto-me de má vontade e caminho até o auditório, o melhor a fazer é
pedir desculpa, falar que estava brincando e agir como se não tivesse sido
nada demais. Exatamente como a Mila me instruiu. Como se eu não
estivesse vermelha, tremendo e passando mal de vergonha. Assim que entro
no auditório, minha barriga contrai e aperto as mãos para afastar o
nervosismo, mas levanto o nariz e relaxo os ombros.
​Está tudo bem.
​Vejo que ele está sentado perto do corredor e que tem um lugar vazio ao
seu lado. Posso sentar em qualquer outro lugar, ou posso acabar com essa
tortura logo, em vez de fugir e passar as próximas horas sofrendo e
imaginando as piores situações no mundo. Escolho não ficar me
martirizando, então ando até ele. Quando me vê, Anthony se levanta, dando
espaço para eu passar e sentar, antes de voltar ao lugar que estava.
​ ão consigo olhar para ele, mas sei que não tira os olhos de mim, sei
N
também que aperta um sorriso quando cruza a perna de maneira convencida.
​— Não sabia que você falava português. — Falo na minha língua
materna, só para testá-lo.
​— Desde os doze anos — responde também em português, mas com o
sotaque inglês presente.
​— Eu já falei em português do seu lado muitas vezes — o encaro, ainda
estou passando mal.
​— Eu sei. — Sua simplicidade me deixa ainda pior.
​— Então, você entendeu o que eu falei em todas as vezes?
​— Cada vez que me chamou de idiota, arrogante ou que falou dos meus
olhos bonitos.
​Sobressalto-me mais uma vez. Como eu pude ser tão burra assim?
Anthony arruma a manga do casaco, se divertindo com a minha reação. A
luz do auditório se apaga novamente e o professor Herman aparece no palco,
liga o projetor no ponto que tinha parado a palestra, e volta a falar com
todos.
​— E por que você nunca falou nada?
— E estragar minha diversão?
Fico em silêncio, mentalizando todos os palavrões possíveis.
— Sobre o que você escutou lá fora… — Sussurro e ajeito o corpo na
cadeira, me sentindo ainda mais desconfortável com a situação, e engulo o
orgulho. — Desculpa pela maneira que falei, foi uma brincadeira que eu
não deveria ter feito. Será que podemos esquecer de tudo?
​— Não precisa pedir desculpas, Dias. — Ele não está mais sorrindo, e
sim sério, prestando atenção em mim. — Você pode até esquecer o que
aconteceu, mas eu não irei me esquecer do que você pensa.
​Ele se volta para o professor, pega um caderno e uma caneta da mochila,
e começa a fazer anotações.
​Não consigo escutar uma só palavra que é dita, é como se meu corpo
tivesse sido amortecido e tudo não passasse de um sonho. Apesar da
vergonha de ter sido pega no flagra, o que mais me assusta é saber que, no
fundo, eu não estava mentindo.
Capítulo 27

“Esperando você me puxar para perto


Posso ver que você está solitária aí embaixo
Você não sabe que eu estou bem aqui?”
Satellite - Harry Styles

​As duas semanas seguintes são estranhas, para dizer o mínimo. Anthony
não tocou no assunto da ligação e continuou agindo como se nada tivesse
acontecido. Entretanto, sentia seus olhos em mim constantemente, inclusive
quando estávamos juntos em reuniões.
Ele prestava atenção em mim, interessado no que eu tinha a dizer e
nas ordens e sugestões que eu apresentava para os outros setores. Era
possível até mesmo ver o pequeno sorriso que dava quando me impunha e
não aceitava o que era sugerido em determinadas pautas. E não me contestou
nenhuma vez sequer.
Porra, depois daquela revelação, tanto para ele quanto para mim, é
difícil olhá-lo como antes.
Anthony não é só bonito, ele tem presença. Sua voz é firme, sua
postura mostra exatamente como é seguro de si, sem contar no quanto é
inteligente. Todos os planos e cronogramas que faz passam por mim e as
sugestões que eu faço apenas complementam as dele.
Quase como um time, eu diria.
E seu cheiro… Cada vez que ele se aproxima, consigo sentir seu
perfume marcante. O cheiro mentolado e robusto é melhor do que eu
gostaria de admitir.
Passei tantas semanas focada em como ele me irrita, que não notei a
possibilidade de eu ter aprendido muito mais sobre ele do que percebi. Por
exemplo, se ao entrar em seu escritório, o encontrar sério admirando o
computador e com apenas um fone de ouvido, quer dizer que está
otimizando seu tempo escutando algum audiolivro da sua enorme lista de
leitura, porque ele adora ler. Mas se está com os dois fones e a testa
tensionada, é porque está sem paciência e irritado com algo, provavelmente
escutando algum podcast de True Crime bizarro.
Independentemente de como seu dia está, ele sempre come uma
maçã verde no meio da tarde, antes de tomar seu café, que é amargo e forte.
A sequência é um pedaço de chocolate, quando volta para sua sala.
Aprendi que essa é a hora perfeita para ir até seu escritório e contar
sobre algum problema nos projetos, porque seu humor está um pouco melhor
e eu ainda ganho um chocolate. Ele revira os olhos e reclama? Claro, mas dá
o doce mesmo assim.
Sei qual será seu humor do dia pela forma que seu cabelo está
arrumado. Se está propositalmente bagunçado, está tendo um dia bom, mas
se está perfeitamente penteado para trás, seu pai está envolvido. Seja por
causa de uma reunião, que será desmarcada, ou algum anúncio de que ele
deve ir até o escritório, mas nunca vai.
A pior parte de perceber tudo o que sei sobre ele é que só aconteceu
depois daquela bendita ligação. Agora, preciso me esforçar para ser neutra e
agir como se nada tivesse mudado. É complicado ficar perto dele sem corar
ou encarar sua boca.
Muito complicado.
Agradeço mentalmente quando chegamos ao fim do dia, na sexta-
feira, porque terei o final de semana inteiro longe dele para pensar em outras
coisas, como o fato de Charlie estar cada vez mais próximo. As mensagens
que antes aconteciam apenas algumas vezes por semana, estão acontecendo
todos os dias e eu me sinto péssima em ignorá-lo, principalmente porque não
são mensagens sexuais ou flertes.
Ele conversa sobre tudo, me conta sobre seu dia, ou fala sobre algo
que viu na rua e lembrou de mim. Me mandou até mesmo fotos de uma
floricultura que encontrou quando foi fazer a entrega de um restaurante que
tem trabalhado alguns dias na semana para conseguir uma grana extra.
Atencioso e fofo é o que melhor o descreve, e me frustra saber que eu não
estou conseguindo mantê-lo longe de mim o quanto deveria.
Eu respondo tudo o que ele manda, mas não no mesmo instante.
Seria falta de educação ignorá-lo quando conta sobre o que uma criança fez
no Centro ou alguma novidade no caso do mercadinho do senhor Ward, mas
eu também sei que, a cada nova mensagem, respiro fundo desejando que as
coisas não estivessem assim.
Avisei, desde o começo, que não queria nada sério, inclusive não
dormimos juntos desde antes do Halloween. Nem ao menos beijo Charlie
mais, apesar da inegável química que existe entre nós dois, não posso
alimentar um sentimento maior do que posso oferecer.
Ninguém merece um relacionamento pela metade.
Responsabilidade afetiva é algo que aprendi durante os anos vivendo
o relacionamento tóxico com Pedro, e não quero ser alguém ruim para outra
pessoa. Preciso finalizar o que existe entre nós, logo.
Antes de sair do escritório, olho em direção à sala de Anthony,
somente para me certificar que a porta está fechada ou que ele não está ali.
Não quero precisar me despedir e olhar aquela cara linda mais uma vez hoje,
já deu por essa semana. Felizmente, sua porta está fechada, o que me trás
uma onda de alívio no instante em que piso no corredor, colocando a
mochila nas costas, e atravesso nosso andar.
Sou inocente por achar que estaria me livrando dele tão fácil. No
instante em que passo pela sala do Walter, do financeiro, Anthony me
chama. Finjo que não escutei e continuo andando.
— Dias! — Chama-me novamente, agora na porta.
Não tenho como fugir.
— Não te escutei — dou meia volta e forço um sorriso.
— Já está indo? — Pergunta levantando uma sobrancelha e meu
olhar para na pequena linha de expressão que se forma em sua testa toda vez
que ele faz esse movimento.
— Já deu meu horário — confirmo mirando além de sua orelha,
assim não corro o risco de admirar seus olhos e ficar vermelha.
Tão lindos, intensos, frios e… confortáveis ao mesmo tempo, se é
que isso é possível.
Não! Burra! Você está olhando para o local proibido!
— Pode ser? — Anthony está esperando minha resposta. Ótimo, fiz
papel de idiota.
— Eu não escutei, desculpa. — Balanço a cabeça e passo a mão por
minha calça, tentando inventar algo para fazer com a mão.
— Prometi levar minha avó em uma exposição que ela quer ver na
segunda de tarde, então não virei ao escritório, consegue reagendar nossas
reuniões? — Ele repete.
Eu devo estar completamente louca, mas tenho certeza que mira
minha boca quando dá um passo mais perto, esperando minha resposta.
— Claro, remarco tudo hoje mesmo. Mais alguma coisa? — Dou um
passo para trás, querendo fugir dele.
— Não, só isso — coloca a mão no bolso e abre um pequeno sorriso
de lado. — Bom final de semana.
Fico parada por segundos demais naquele corredor, tentando me
recuperar do que aconteceu. Ele não fez nada demais e estou desnorteada,
merda.
Posso falar quantos palavrões eu quiser? Não! Porque Anthony fala
português e vai entender.
Bufo e volto a fazer meu caminho para fora do prédio da Vann
Empreendimentos sem olhar para trás. Essas reações com certeza são uma
mistura de hormônios e uma grande dose das fanfics que eu lia na
adolescência, que fizeram meu cérebro derreter.
Tem uma única coisa que faz meu final de semana valer a pena, algo
que eu não faço há meses e que sinto muita falta: uma manifestação. Vou me
reunir com a Ordem para protestar contra a prefeitura que está cortando a
verba de vários dos poucos projetos sociais que eram financiados por eles,
diminuindo ainda mais o orçamento para cultura.
Não existe democratização de cultura se as únicas opções disponíveis
são as ações privadas. Todos merecem ir ao museu e ao teatro de formas
acessíveis, não somente a elite, que pode pagar 200 libras por um ingresso.
Preciso dessa emoção de ter minha voz ouvida e, apesar das condições ruins,
estou satisfeita que meu domingo será cheio de luta, para reanimar minha
alma, que está muito desperta para o que não deveria.
Uma pena que, para ter meu domingo livre, precisei estudar o sábado
inteiro, para adiantar a montanha de trabalhos que estão começando a se
acumular. Sem contar nas horas que gastei retocando o cabelo e fazendo a
ligação de vídeo de todo sábado com minha família. Pelo menos, consigo
fazer as duas coisas ao mesmo tempo. Meu dia passou com a cabeça enfiada
no laptop, comendo omelete e me entupindo de bobeiras, como salgadinho e
refrigerante, porque só assim para eu não dormir no meio do dia e finalizar
tudo o que precisava.
No domingo, acordo cedo para me preparar para a manifestação, vou
me encontrar com a Ordem perto de um parque. Como não estou
acostumada com o frio de novembro, me agasalho muito bem. Além da
segunda pele, visto uma calça grossa com meu coturno pesado e tratorado,
coloco um suéter de manga comprida, casaco, sobretudo, touca e cachecol.
Provavelmente, pareço uma maluca, já que nem entramos no inverno ainda,
mas é isso que acontece quando se é uma brasileira friorenta.
Já são três meses morando em Londres e acho que nunca vou me
acostumar com as ruas, o transporte público e os locais históricos que eu
tinha tanta vontade de conhecer. Perdi a conta de quantas vezes fui até a
estátua do Peter Pan em Kensington Garden, ou quantas vezes parei na
plataforma 9 ¾ na King Cross, simplesmente para olhar e sentir a magia e a
sensação de pertencimento daqueles locais.
​Só tem uma coisa que eu abriria mão: a chuva. Como se não bastasse o
frio, ainda ter que lidar com a chuva não é nem um pouco fácil.
Apresso o passo quando vejo meu grupo reunido no local que
combinamos e a primeira pessoa a notar minha presença é Benji, que levanta
os braços para o ar e enrola um cartaz na mão, caminhando em minha
direção em seguida.
— Só faltava você! — Fala quando eu o abraço.
— Fez um cartaz para mim?
— Não sabia que queria, mas acho que a Olive tem alguns extras…
— Aponta para Olive que está com um megafone na mão, organizando todo
mundo.
— Qualquer coisa, eu roubo o seu — dou um sorriso malandro e
Benji finge estar bravo.
— Olha só quem decidiu aparecer! — Theo fala alto, se aproximando
com Emma do seu lado. — Está sumida.
— Muito trabalho, tanto na empresa quanto na faculdade — abraço-o
e, em seguida, envolvo Emma em um novo abraço.
Sinto um quentinho no coração ao saber que eles, de alguma forma,
sentem minha falta. É claro que eu também sinto a deles.
— Charlie te contou sobre o senhor Ward? — Emma pergunta
animada e eu nego. — Só falta terminar a reforma do telhado e estará fora de
risco de perder o mercado. Faremos uma força-tarefa essa semana para tentar
terminar logo. Várias pessoas se voluntariaram, se você quiser também…
— Isso é ótimo! — Confirmo com um sorriso sincero. — Vou tentar,
mas não prometo. Não posso faltar ao trabalho essa semana, muito menos na
faculdade. Se vocês fizerem algo à noite, me avisa que consigo ir.
— Tudo bem, você já fez muito só de atrasar tudo e nos avisar. —
Emma passa a mão em meu braço e levanta a cabeça quando Thomas segura
o megafone.
Vejo ela se embrenhando entre as pessoas para se aproximar do
namorado e abraço meu próprio corpo, prestando atenção no que ele falará.
Duas mãos cobrem meus olhos.
— Adivinha quem é?
— Eu espero que seja o Harry Styles, mas da última vez que chequei,
ele estava nos Estados Unidos. — Brinco e no instante seguinte, as mãos
saem de meu rosto e recebo um beijo suave na bochecha, quase na minha
boca.
— O que o Harry Styles faria em uma manifestação? — Charlie
pergunta de forma divertida.
— Lutaria contra o governo, como nós!
— Pena que se ele estivesse aqui, o foco seria outro — faz uma
careta, colocando as mãos no bolso.
— Estaremos com outros grupos, mas quero que todos se mantenham
juntos, não fiquem sozinhos em hipótese alguma! Não provoquem as
autoridades, não briguem, nem discutam com quem quer que seja. Não
vamos conseguir progresso com selvageria e não podemos sujar o nome da
Ordem.
Thomas brada no megafone e todos concordam. É uma organização
bonita de ver, principalmente sabendo que todos ali o respeitam e que
seguirão suas ordens.
Todos começam a andar em direção ao metrô, para ficarmos mais
próximos da prefeitura. Meu celular está guardado no bolso interno do
sobretudo, assim como meus documentos, porque nunca mais cometerei o
risco de perder um dos dois, como já aconteceu no Brasil.
Quando chegamos perto o suficiente, posso ver a Tower Bridge e é
impossível não ficar encantada com a visão. Charlie caminha ao meu lado o
tempo inteiro, às vezes mais distante, em outros bem perto.
Quanto mais alto fica o som da manifestação, mais nossa atenção se
dispersa ao redor. O que é ótimo para fugir das possíveis conversas que
quero evitar no momento.
Assim, as próximas horas se passam, gritamos a música que criaram
para a ocasião, levantamos cartazes e protestamos pelos direitos que
deveriam ser de todos.
A mídia está presente no ato, filmando e fazendo a cobertura de tudo
com cuidado e empatia, já que conversa com alguns manifestantes de
maneira tranquila. O grande problema começa quando vejo um grupo de
garotos cobrindo os rostos.
Todo mundo sabe que se você precisa cobrir seu rosto, é porque está
planejando fazer algo ruim. Observo eles atentamente e cutuco Charlie,
mostrando a movimentação ao nosso lado. Ele fica preocupado e se coloca
na minha frente, para me proteger.
— O que você está fazendo? — Pergunto saindo de trás dele e indo
para seu lado.
— Fique atrás de mim, por favor — Charlie estende o braço, me
levando para trás dele novamente.
A atitude me irrita, parece que sou fraca e que não sei me defender.
Já estive em manifestações que acabaram muito feias, com pessoas
vandalizando as ruas, policiais usando gás de pimenta e batendo nas pessoas
com o cassetete. É preciso de muito mais do que algumas máscaras para me
assustar.
— Fiquem aqui.
Desvio do ruivo e me afasto do grupo, andando apressada em direção
à calçada e passando pelas pessoas até chegar nos policiais que estão ali. Vou
avisar as autoridades antes que as coisas saiam de controle e aquele grupo
atrapalhe a manifestação, que é pacífica. Os oficiais ficam desconfiados com
o que falo, mas insisto e eles levantam as cabeças e começam a andar
devagar entre a multidão, procurando as pessoas que falei, mas sem fazer
alarde.
Parecem não acreditar em mim e procuram na multidão somente para
eu ficar quieta. Idiotas.
— Que porra que você está fazendo? — Charlie aparece ao meu
lado, claramente preocupado. — Não sai de perto de mim assim, eu fiquei te
procurando.
— Vim avisar os policiais, a gente não faz ideia do que aqueles
garotos vão fazer, e…
No instante seguinte, o barulho de garrafas sendo quebradas me faz
abaixar. O cheiro de queimado sobe no ar, enquanto pessoas saem correndo
do caos que se forma adiante. Estico-me um pouco para tentar ver e entender
o que está acontecendo, mas Charlie me segura e começa a me levar para o
lado oposto da confusão.
— Vamos sair daqui!
— Charlie, mas e os outros? — Pergunto e me solto dele. Algumas
pessoas passam correndo por mim, esbarrando em meu ombro com força e
me fazendo dar alguns passos para o lado. — E o Benji?
— Eles se viram, estamos todos em dupla, lembra? Ele deve estar
com a Ava, vamos! — Charlie insiste e estende a mão em minha direção.
Não tenho tempo para pensar, já que algo explode e os gritos se
intensificam. Seguro sua mão e começamos a correr entre as pessoas, sendo
empurrados e jogados para todos os lados. Charlie me mantém próxima a
ele, para ter certeza de que não iremos nos perder na confusão.
A essa altura, eu não faço a menor ideia da onde os outros estão.
Antes, eu conseguia, pelo menos, identificar um ou outro por ali. Agora,
tudo o que vejo são pessoas fugindo.
Olho para trás e vejo que tem algo pegando fogo onde os
organizadores estavam. As chamas estão altas, assim como a fumaça escura
indo em direção ao céu.
— Devem estar queimando pneus! — Aviso Charlie que para de
correr para olhar, arregalando os olhos quando confirma.
— É o que parece, temos que ir para longe daqui. Você não pode
perder a bolsa, muito menos ser deportada por estar envolvida em uma
confusão dessas.
Concordo em silêncio, porque queria ficar e ver se alguém precisa de
ajuda, mas ele tem razão. Infelizmente, existem coisas que eu preciso evitar
para manter minha estadia aqui.
Continuamos andando pelas ruas até estarmos longe o suficiente da
concentração, e diminuímos o passo. A rua está com o movimento normal, já
que os manifestantes se dispersaram um pouco antes.
— Vamos entrar aqui — puxo Charlie para um café. Meu coração
está tão disparado e a garganta tão seca, que preciso de um momento. —
Quero beber uma água.
— Certo — Charlie concorda e percebo que ainda estou segurando
sua mão.
Nos soltamos e ele abre a porta, me deixando entrar na frente. O
local está quente o suficiente para que eu possa tirar o sobretudo, então é o
que faço. A adrenalina corre pelo meu corpo de uma forma que eu nunca
conseguiria perceber durante a agitação. O cheiro de álcool queimando está
preso no meu nariz, assim como o olhar assustado das pessoas que não
estavam na passeata para causar baderna.
Peço uma água e um café grande no balcão, e Charlie pede chá.
Esperamos as bebidas ficarem prontas em silêncio. Quando nos
sentamos, os músculos da minha perna e dos meus ombros relaxam um
pouco. Dou um pequeno gole na água, porque aprendi com minha terapeuta
que, quando estamos nervosos, o melhor é dar pequenos goles respirando
fundo em vez de engolir tudo, na afobação do momento.
— Você está bem? — Charlie está preocupado e segura minha mão
por cima da mesa.
Ah, merda. Ainda tem isso.
Olho para nossas mãos juntas e concordo, e solto para segurar meu
copo de café.
— Só estou me acalmando, tudo aconteceu muito rápido. — Olho ao
nosso redor e encaro a grande janela para a rua. — Eu nem sei onde estamos.
— Pra falar a verdade, nem eu — Charlie ri e beberica seu chá. —
Vou mandar mensagem para os outros, só para ter certeza de que estão todos
bem.
Ele pega o celular e escorrego o corpo para o lado, quando vejo-o se
levantar para sentar no espaço vago perto de mim. Ele abre o grupo da
Ordem e me mostra as mensagens, ninguém se machucou, mas Emma
tropeçou e acabou ralando o joelho enquanto fugia, já que estava bem lá na
frente com Thomas. Tirando isso, todos estão bem e a maioria está voltando
para suas casas, não tinha mais clima para ficar juntos.
— Tudo certo, então — falo apertando os lábios.
— Tudo certo — ele coloca o celular em cima da mesa e dá mais um
gole em seu chá. — Por onde você tem andado? Quase não te vejo mais pelo
campus. Quando vejo, está cheia de livros ou correndo de uma sala para
outra.
— Ah, estou fazendo coisas demais, sabe como é — dou de ombros
com um pequeno sorriso sem graça e ele concorda. — Tentando manter a
bolsa e o emprego.
— É, eu imaginei… Mas não está se sobrecarregando, certo? Tem
que tirar um tempo para você também, para se divertir, descansar…
— O tempo para mim está escasso, para ser sincera, mas vai
melhorar logo.
— Posso resolver esse problema, a gente pode tomar café mais
vezes, talvez? Entre as aulas, igual fazíamos. Ou assistir um filme, de
verdade dessa vez, no cinema.
— No cinema? — Levanto a sobrancelha e quase engasgo com meu
café.
— É, você sabe, onde a gente geralmente vai para assistir um filme
inteiro — completa com a voz baixa e o sorriso travesso no rosto. —
Podemos comprar chocolates e levar escondido para a sessão, só para trazer
uma emoção.
— Como amigos, certo?
— Claro, ou como… — Ele pensa por um momento, franzindo a
sobrancelha. — Como se fala namorado em português?
Ah, Charlie… O que você está fazendo? Meu coração está disparado
no peito e a única coisa que consigo pensar nesse momento é em tentar
mudar de assunto e fazer ele rir. Para tirar o foco da conversa. Ele não pode
fazer isso, eu imploro… Tudo menos isso.
— Cachorrinho — respondo de brincadeira, apertando os lábios em
um sorriso.
— Eu poderia ser seu cachorrinho — ele fala com sinceridade e isso
quebra meu coração.
Merda, merda, merda.
— Eu estava brincando, namorado não é cachorrinho. Não fala isso
por aí, tá? — O corrijo séria e dou um suspiro cansado. — Charlie, nós não
podemos fazer isso. Eu te falei que eu não namorava.
— Eu também te falei que não namorava, mas você não pode negar
que somos ótimos juntos.
— Sim, nós somos e você é incrível, mas… — Nego com a cabeça e
abaixo o olhar.
— Se eu sou incrível e nós somos incríveis juntos, diga sim, Nina.
Não é como se a gente já não tivesse intimidade o suficiente para isso e não
vejo qual seria o problema em passarmos mais tempo juntos.
— Não seria justo com você, porque eu não seria capaz de
corresponder da forma que você quer. E se eu não puder falar sim, com todo
o meu coração, eu prefiro não falar de forma alguma.
Ele está estudando minha expressão, vejo seus olhos percorrendo
cada centímetro do meu rosto confuso. E eu o admiro, como se soubesse que
aquela seria a última vez em que olharia para seu rosto tão perto do meu.
​ Eu faço você mudar de ideia, só me dê uma chance — Charlie insiste

e eu nego mais uma vez. — Eu não sei muito bem o que te fez ser tão
fechada assim, mas você me conhece. Sabe que eu não te magoaria. A gente
pode sair mais vezes, te levo para conhecer os lugares que você quer tanto ir,
ou podemos estudar juntos. Qualquer coisa que você queira.
​— Ah, se fosse fácil assim… — Abro um sorriso triste. — Se eu tivesse
controle do meu coração, você com certeza seria minha primeira opção. Mas
eu não consigo mandar nele.
Charlie está claramente decepcionado, sem acreditar no que estou
falando, como se eu fosse completamente louca por recusá-lo. Ficamos em
silêncio pelo o que parece ser uma eternidade, os dois absorvendo as
palavras que acabaram de serem ditas. Ele ensaia falar mais alguma coisa,
mas desiste várias vezes enquanto termina seu chá.
— Por favor, não fique chateado comigo. — Sou a primeira a
quebrar o silêncio.
— Não estou chateado, só… Não era isso que eu esperava. Achei que
estivéssemos na mesma página.— Charlie aperta os lábios e suspira.
— Desculpa se eu fiz você pensar isso, achei que tinha sido clara
sobre o que eu estava procurando.
— Você foi, acho que eu que não quis ouvir. Você está com bateria o
suficiente no celular? Tem problema se eu te deixar sozinha agora?
Consegue voltar para casa ou precisa de ajuda?
— Eu consigo me virar… — Respondo com a voz baixa e ele
concorda. Não vou obrigá-lo a ficar perto de mim se ele quiser ir embora.
— Tá, então… A gente se vê, nas reuniões. — Charlie se levanta e
eu seguro sua mão.
— Ei, nós ainda podemos ser amigos, não precisa ser tudo ou nada.
Você mesmo falou que somos ótimos juntos, podemos continuar sendo
ótimos só… Sem ter algo sério.
— Acho que vai ser um pouco difícil para eu entender isso. A gente
conversa depois, pode ser? — Charlie dá um pequeno aperto na minha mão e
abre um sorriso triste, se abaixa para me dar um beijo na bochecha e sai do
café.
Ok, foi tão ruim quanto eu esperava.
Suspiro cansada e sei que seria ótimo se ficássemos juntos, mas
também tenho certeza de que tomei a decisão certa. É impossível fingir que
não estou sentindo essa sensação estranha no peito de que se eu não fosse tão
quebrada pelos meus relacionamentos passados, ou se vivêssemos em outra
realidade, a gente poderia dar certo.
Capítulo 28

“Ficar caidinha por ele foi como cair em desobediência


Teria feito qualquer coisa por ele
E se você me perguntar, eu faria de novo”
Heaven - Julia Michaels

Não havia nenhuma mensagem do Charlie no meu celular quando


acordei, o que já era de se esperar. Emma me mandou algumas mensagens
para saber se estava tudo bem depois do fim desastroso da manifestação,
mas não comentou nada sobre o irmão, o que significa que ele não contou
sobre nossa conversa para os outros.
Bom, talvez tenha contado para o Theo.
Benji também agiu normalmente na aula da manhã. Estava animado
com tudo o que viu e até falou que quase se deixou levar pelos baderneiros e
pegou um vidro cheio de álcool na mão. Mas que o entregou para Theo e
fugiu em seguida. Foi como uma aventura para ele, algo divertido que nunca
havia feito antes.
Tudo está normal demais, tirando o fato de eu ter visto Charlie
andando pelo campus com algumas amigas. Enquanto estávamos “juntos”,
eu nunca o via sem querer, mas foi a gente “terminar” que ele magicamente
começou a aparecer facilmente no meu campo de visão. E acompanhado.
Almoço um bowl de salada na Beer&Books com a Olive, como
temos feito às segundas. Conversamos sobre o domingo e sobre as opções
que ela pensa em sugerir para o próximo título do grupo de leitura coletiva.
Quando terminamos, ela volta para as aulas do período da tarde e eu vou
direto para o trabalho.
Assim que piso no 13º andar, Elizabeth me olha com um sorriso
maldoso no rosto, como se soubesse de algo que eu deveria saber e seu boa
tarde é um tanto quanto assustador. Primeiro pelo fato dela nunca me
cumprimentar, e segundo pela satisfação que carrega em sua voz.
Caminho pelo corredor desconfiada e noto que as cortinas da minha
sala estão fechadas, quando tenho certeza que as deixei abertas antes de ir
embora, na sexta. Meus colegas de escritório apertam um sorriso quando me
veem passando, como se estivessem com pesar. Tem algo muito estranho
acontecendo.
Assim que abro a porta do escritório, dou de cara com Anthony
sentado em minha cadeira, os dedos entrelaçados enquanto olha atento para
um jornal em cima da mesa. Seu olhar lentamente se levanta até encontrar o
meu e não preciso de nenhum dom ou sexto sentido para saber que nada de
bom me aguarda a partir desse momento.
Ah, e seu cabelo está penteado para trás. Dia importante com o pai?
Ou reunião com o conselho?
Sinto-me como uma criança que foi chamada para a diretoria. Fiz
alguma merda, mas não faço ideia do que.
​— Achei que tinha um compromisso com sua avó hoje — tento falar
descontraída, como se fosse normal encontrá-lo assim na minha sala.
​Eu que não vou demonstrar como aquilo é esquisito. Começo a repassar
a semana passada na cabeça e falho em tentar lembrar algo que poderia me
colocar em apuros. Ele me pediu para remarcar seus compromissos, e eu
remarquei. Sem contar que ele estava ciente das pendências que ficaram para
serem resolvidas essa semana.
​— É, infelizmente o passeio teve que ser adiado. — Ele mexe no jornal
preguiçosamente, o papel balança na mesa para os lados.
​— Uau, as pessoas ainda leem jornais? — Brinco ao atravessar a sala.
​— Minha avó sim, ela estava lendo esse hoje de manhã. Eu, por outro
lado, não tenho costume de ler, mas é difícil ignorar quando vejo a foto da
minha assistente estampada em uma reportagem. — Anthony vira a cabeça
de lado, me estudando, enquanto coloco minha bolsa na cadeira em frente à
mesa.
​Tá, que porra que aconteceu?
​Estico-me um pouco, franzindo a sobrancelha, e tiro o sobretudo.
Reconheço minha imagem no jornal. Fodeu, e muito.
​ Eu te ajudo a ler: “No último domingo, uma manifestação contra o

corte de verbas e a privatização de diversos projetos culturais de Londres
aconteceu em frente à Prefeitura”. Imagino que deva saber de qual
manifestação eles estão falando… — Anthony mantém a voz cínica, o que
faz que um frio atravesse meu corpo. Meu coração dispara e não consigo me
mover. — Se você não se importa, vou pular alguns parágrafos que não são
tão interessantes assim, deixe-me ver… Ah, aqui: “Marina Dias, assistente
pessoal de Anthony MacMillan, herdeiro do império Vann, foi avistada com
um grupo de delinquentes durante a manifestação, distraindo os policiais que
estavam garantindo a pacificidade e o direito dos cidadãos de protestar.
Além do ataque de garrafas de vidros nos civis, o grupo de homens
encapuzados queimou pneus em frente à Prefeitura e lutaram contra os
policiais, que precisaram usar balas de borracha para contê-los.”
​— Isso é mentira! — Defendo-me imediatamente, os olhos arregalados
enquanto puxo a reportagem para ler os absurdos.
​Uma foto grande mostra os homens encapuzados, mas junto, tem uma
foto menor que mostra meu rosto, claramente conversando com o policial.
Não consigo acreditar no que vejo, é como se fosse outra pessoa impressa
naquela página, e não eu. Anthony me encara com um misto de decepção e
raiva.
— Eu não estava com grupo de delinquentes nenhum, estava com
meus amigos, protestando pacificamente!
​— Então, essa sua foto falando com os policiais é montagem? —
Anthony levanta-se com raiva, dando a volta na mesa.
​— É claro que não, a foto é verdadeira, mas eu não estava distraindo-os,
eu estava avisando que algo ia acontecer! — Aponto para o jornal, e imploro
que acredite em mim.
​— Você tem noção da merda que isso causou para mim? Alguns
membros minoritários do conselho ficaram sabendo e deixaram claro que é
um absurdo eu permitir que a imagem da Vann, a minha imagem, seja
atrelada a alguém como você. É questão de tempo até que chegue no ouvido
dos outros, se é que já não sabem.
​— Alguém como eu? Anthony, eu não fiz isso. Eu assumiria se tivesse
feito, mas não fiz. — Aproximo-me dele, o coração disparado no peito. —
Eu vi algumas pessoas colocando máscaras, achei estranho e fui avisar os
policiais.
​ Seus amigos estavam envolvidos também, ou você vai me dizer que

não sabia que o Thomas estava junto com esses caras? — Anthony também
se aproxima, seu rosto carrega pura raiva. Vejo seu peito subindo e descendo
rapidamente.
​— Thomas não estava envolvido, será que você pode parar de achar que
sabe de algo e escutar o que eu estou dizendo? — Minha voz fica mais
firme, mas sei que ele pode ver o tremor em minha mão. — Não fizemos
nada de errado e não vou ser acusada de algo que não fiz. Pode ter certeza
que se eu tivesse participado disso, eu não teria sido pega.
​— Ah, então você faz essas coisas com frequência? — Anthony passa o
olhar no meu rosto.
​— Você está distorcendo o que eu estou falando! — Sei que estou
irritada, e mesmo assim, meu olhar cai em seus lábios antes de voltar para os
olhos azuis.
​— Não estou distorcendo. Você acabou de tornar incrivelmente difícil
continuar com você aqui na empresa.
​— O quê? — Franzo a sobrancelha sem entender.
​— O conselho quer que eu te demita por ter sido vista perto de pessoas
que nos causam problemas. Você pode não ter notado, mas desde o evento
beneficente você está sendo observada, Marina. Cada vez que uma foto
minha é tirada, mesmo que indo em uma reunião fora do escritório, você
aparece no fundo. Então, sabem quem você é, e foi vista na porra de uma
manifestação! Você não faz ideia do que significa sair em um tablóide
britânico, tem gente prestando atenção em tudo o que você faz, por minha
causa.
​Congelo porque sei o quanto isso pode estragar tudo para mim, para
minha vida nesse país.
​— Tem maneiras de resolver isso — tento pensar rápido e acalmar a
respiração no peito. Desesperar-me não trará nada de bom agora. — Eles
sabem que faço parte da Ordem? Talvez eu possa escrever uma nota e pedir
para a equipe de marketing publicar na próxima edição do jornal, podemos
fazer isso, certo? Dou a minha versão da história e marco uma reunião de
emergência com o conselho, para fazê-los me ouvir. Se eles não quiserem,
escrevo uma carta, ou gravo um vídeo explicando tudo o que aconteceu. Eu
não tenho problema nenhum em esclarecer tudo. Não podem falar por mim.
Se eu tenho uma voz, ela será ouvida.
​ Você realmente não faz ideia de como tudo funciona aqui. —

Anthony nega com a cabeça. — Nada se resolve fácil assim e agora a merda
já está feita.
​— Não está não! Eu não posso correr o risco de perder meu emprego,
minha vaga na faculdade e até mesmo meu direito de estar aqui por causa de
uma mentira, Anthony! — Aproximo-me com desespero claro no rosto. —
Você já me conhece há tempo o suficiente para saber que eu não minto. Se
eu estou falando que não fiz parte disso é porque eu realmente não fiz. O
mínimo que eu esperava de você era que acreditasse em mim.
​Anthony passa a mão no cabelo, a raiva parece ter diminuído e ele está
tão nervoso quanto eu. É como se ele não tivesse controle sobre essa decisão
agora e precisasse seguir ordens, mas está procurando alguma alternativa. O
que eu sei sobre a mídia britânica é o que vejo acontecer com a família real,
e mesmo que essa reportagem nunca chegue aos pés do que os monarcas
precisam lidar diariamente, sei que mentiras são inventadas e informações
são vendidas sem se preocuparem com a pessoa que atingem.
​Só se importam com o dinheiro e com a polêmica que podem criar.
​Nunca imaginei que ir em uma manifestação pudesse me comprometer
dessa maneira, principalmente por eu ser uma total desconhecida. Parece que
me enganei, já que, no dia em que dei aquela bendita entrevista no evento
beneficente do Instituto, meu nome ficou minimamente conhecido. O
suficiente para que essa reportagem mentirosa nascesse para atingir
Anthony.
​O loiro segue em silêncio.
Dou um último passo à frente, reduzindo a distância entre nós a algo
quase inexistente, e puxo com força o ar em meu peito. A indignação me
atinge por ele não acreditar em mim. Levanto meu queixo para ver seu rosto
e sua respiração se choca contra mim. Sinto seu hálito mentolado inebriar
meus sentidos.
— Então, é isso? Vou perder tudo por uma mentira? Você vai me
demitir por uma mentira?
​— Não… — Anthony fala com a voz rouca e vejo sua respiração ficar
pesada.
​Meu olhar desce para seus lábios, vendo o exato momento em que ele
umedece o lábio inferior com a língua.
​— O que a gente vai fazer? — Sussurro de volta, os olhos voltando para
os seus.
​ ma tensão sobe por todo o meu corpo quando Anthony coloca uma de
U
suas mãos em minha nuca e a outra em minha cintura, puxando-me com
força para seus lábios, que estavam com fome dos meus.
​O calor de nossos corpos me deixa sem ar. Quando sua língua pede
entrada em minha boca, não hesito em permitir. Anthony MacMillan é
refrescante como uma brisa no final de tarde, e o beijo é intenso, como se
nossas línguas dançassem uma música já conhecida há tempo. Solto o jornal
no chão e minha mão agarra suas costas, puxando-o forte para mim,
enquanto sinto seus dedos entrelaçarem no cabelo de minha nuca. Ele é
bruto, sabe exatamente o que quer, mas também é delicado e não me
machuca.
​Anthony dá alguns passos para frente, até que eu esteja com as costas no
armário e um gemido involuntário escapa da minha boca. Seus dedos
compridos continuam segurando minha cintura com força, até que sua mão
desce para minha bunda, puxando meu quadril de encontro ao seu.
​Puta que pariu, porra, caralho… Quero falar todos os palavrões que
surgem na minha mente agora, porque sinto em meu estômago o quanto está
de pau duro, assim como sinto meu coração batendo forte no meio das
minhas pernas.
​A maneira que aperta minha bunda e desce a outra mão até meus seios só
me excita ainda mais. Quando percebo, estou levantando sua camisa e
segurando com força seu quadril. Anthony não é malhado, mas consigo
sentir cada um dos seus músculos, principalmente quando passo a mão em
seu abdome, soltando outro gemido em sua boca.
​Não consigo pensar em mais nada agora.
​Anthony levanta uma de minhas pernas, me fazendo ficar na ponta dos
pés e se encaixando em mim. Jogo a cabeça para trás quando sinto o volume
finalmente onde eu quero e sei que estou molhada, não preciso conferir. Seus
beijos descem pelo meu maxilar e vão até meu pescoço, deixando leves
mordiscadas e chupões pela minha pele.
​— Anthony… — Reviro os olhos quando segura minha coxa com mais
força e sinto seus dedos irem em direção à minha virilha.
​— Shhh — Anthony me cala com sua boca e é impossível não me deixar
levar.
​A ponta de seus dedos passeiam pelo meu centro por cima do tecido e eu
preciso de mais. Agora.
​Que beijo bom é esse? Por que eu não quero parar?
​ inha mão alcança o cós de sua calça e eu coloco a ponta dos dedos por
M
dentro, tocando sua pele e sentindo-o se arrepiar. Solta outro gemido em
minha boca. Puta que pariu.
​Eu morri e fui para o paraíso, e ele nem me tocou direito ainda. Que
péssimo dia para vir ao trabalho de calça, porque só quero que ele arranque-a
fora, e… O que eu estou fazendo?
​Coloco a mão em seu peito e Anthony me olha confuso, os lábios
vermelhos e inchados enquanto segura meu rosto com uma mão, a outra
ainda mantendo minha perna firme enganchada na lateral do seu corpo.
Onde estou com a minha cabeça para beijá-lo dessa forma?
​— Isso é errado, não devíamos fazer isso…
​— Você estava louca pra me beijar, Dias! — Anthony responde
convencido e aproxima o rosto novamente.
​— Você é meu chefe, isso não deveria acontecer e você falou que não
transa com suas assistentes… Você quer me demitir, porra! — Falo com
mais firmeza e Anthony solta minha perna devagar, se afastando.
​— Eu não quero te demitir, não entendeu ainda? Por que com você tudo
tem que ser tão difícil? Você quer isso tanto quanto eu.
​— Eu me deixei levar pelo calor do momento, foi um erro. É isso que
esse beijo foi. Um erro que nunca mais se repetirá. — Não sei se estou
tentando convencer a ele ou a mim, mas arrumo minha roupa e vou em
direção à minha mesa.
​Não posso olhar em seu rosto agora, algo dentro de mim sabe que é
verdade. Eu queria isso. Quero, mas não devo. Não posso!
​Devo pegar minha bolsa e ir embora ou fico para trabalhar? Estou
desnorteada, não sei o que fazer, só sei que preciso que ele saia daqui antes
que eu faça uma merda ainda maior.
​Se não tivesse voltado a mim, teria transado com ele. Com meu chefe.
No meu escritório. Eu estragaria minha oportunidade e a oportunidade da
Ordem. Ou não, já que já estou fodida com essa reportagem.
​Escuto os passos de Anthony se aproximando devagar. Ele para atrás de
mim e é impossível não sentir seu calor, sua respiração pesada quando se
aproxima de meu ouvido.
​— Você pode se enganar o quanto quiser, mas eu e você sabemos que
isso vai acontecer de novo. — Sussurra arrancando um arrepio que me faz
fechar os olhos. — Só que eu não gosto de brincadeiras, Dias, e da próxima
vez, só vou te beijar se você pedir.
​ do mesmo jeito que sua presença preenche meu corpo, de repente sinto
E
um vazio atrás de mim. Olho por cima do ombro somente para vê-lo abrir a
porta da minha sala.
​— Escreva a carta para o conselho que eu vou escrever a nota para a
assessoria de imprensa publicar nos veículos que importam. Você não vai
embora. — Anthony sai do cômodo, deixando-me sozinha ali.
​Meu coração está completamente louco dentro do peito e a única coisa
que consigo fazer é apoiar as mãos em minha mesa, me forçando a soltar
fundo a respiração, que parece presa em meus pulmões. Meus lábios estão
latejando, provavelmente inchados por causa dos beijos e é impossível não
tocá-los, me perguntando se isso realmente aconteceu.
​— Que porra que eu acabei de fazer? Por que foi tão bom?
Capítulo 29

“Lá vou eu, afastando tudo só para ficar sozinho”


Certified Depressant - Taylor Acorn

​ ão sei como consegui escrever minha carta para o conselho se não parei
N
de pensar no beijo do Anthony, nem por um segundo. Passei o resto da
segunda-feira trancada no escritório e até segurar o xixi, segurei, para não
encontrá-lo de novo.
​Nunca me vi como uma covarde, porque, apesar de assustada, sempre
enfrentei tudo o que aparecia na minha frente. Não dessa vez.
​Não sei onde vou enfiar minha cara depois de ter me agarrado com meu
chefe desse jeito. Com o cara que eu implico desde a primeira semana de
aula. Tudo bem que ele mostrou não ser tão insuportável com o passar das
semanas, até fez eu gostar um pouco da sua personalidade e o achar
absolutamente lindo, mas realmente beijar?
​Não só beijar, porque eu senti o pau dele em mim. Duro. Senti a pressão
de seus dedos em minha pele até depois de ter me soltado. Eu passei a mão
em sua barriga e desejei colocar a mão dentro de sua calça.
​Passei de todos os limites minimamente aceitáveis do nosso
relacionamento.
​Não sozinha, obviamente, já que ele quis tanto quanto eu. As memórias
já se embaralham de tal forma, que não consigo me lembrar quem beijou
quem. Ou talvez a gente tenha se beijado ao mesmo tempo.
​Só vou embora para casa quando tenho certeza de que o escritório está
seguro, já que eu aceitei minha nova posição de covarde. A Marina que
geralmente levanta o nariz e dá de louca, fingindo que nada aconteceu e
saindo por cima das situações, não está presente no meu corpo neste
momento. Ela também não existe quando chego em casa e fico encarando a
tela do celular, que vibra com a chamada de vídeo da Mila.
​Eu sei exatamente o que ela vai falar se eu atender: você é louca, você
vai estragar sua oportunidade, como você teve coragem, e agora?
​Posso fingir que nada aconteceu, é claro, mas Mila consegue descobrir
tudo de mim e sabe exatamente quando estou escondendo algo só pelo meu
olhar, então a minha única alternativa é ignorá-la.
​E é o que eu faço, até o celular parar de tocar e uma mensagem aparecer
na tela.

Mila (21:40) diz:


Tá viva?

Nina (21:43) diz:


Desculpa, não vi!
Podemos conversar amanhã? Estou muito cansada hoje.

Mila (21:44) diz:


Tá bom, me lembra de te contar a fofoca da Laura e do Gabriel, você vai
cair dura para trás.
Te amo.

Nina (21:44) diz:


Pode deixar, não vou esquecer
Te amo.

​ ronto, a conversa que eu não quero ter no momento foi evitada com
P
sucesso. Só não sei até quando, já que ela logo começará a desconfiar. Não
quero evitá-la, mas também não quero enfrentar os sentimentos que ela
despertará em mim.
​Ao deitar na minha cama, repasso toda a cena em minha mente pela
milésima vez. Fecho os olhos e toco meus lábios, porque seu beijo está vivo
em minha pele, mesmo com a memória de como tudo aconteceu ser confusa.
Consigo sentir seu cheiro, seu toque e seu sabor de maneira muito real.
Sinto, inclusive, minha calcinha molhar quando foco tempo demais em sua
pegada firme em minha bunda e em meu peito.
​Merda.
​ uando consigo parar de pensar em Anthony, a preocupação com a
Q
matéria e com a nota que ele escreveria me invade. É horrível não estar no
controle de algo e saber que não há nada que possa fazer para mudar as
coisas. Pego meu celular, mas desisto antes de abrir as redes sociais. Não
quero ver se tiver algo ruim, pelo menos não agora. Não sei como adormeci,
mas sei que acordo cansada no dia seguinte, como se minha mente não
tivesse descansado em momento algum. O que é compreensível, com a
quantidade de sonhos estranhos que tive. Era como se eu estivesse estudando
em outro lugar, e tivesse voltado a ser adolescente em um castelo…
​Meus óleos essenciais não conseguiram dar conta de ajudar a me
concentrar nas aulas da manhã, e agradeci por Anthony não ter aula comigo
durante a semana, porque seria um lugar a menos para encontrá-lo. Evitá-lo
parece algo ridículo, mas toda a segurança que eu tenho em relação a
homens aparentemente evaporou do meu corpo no instante em que nossas
bocas se tocaram.
​Sinto que me traí.
​Ao pisar no escritório, percebo todos me olhando como se soubessem
exatamente o que aconteceu no dia anterior, mas também sei que é tudo fruto
da minha mente, já que não tem como eles terem descoberto. As semanas me
impondo e não deixando fofocas com o meu nome correrem, me ajudaram
até mesmo com a reportagem no jornal. Se desconfiavam de mim, ninguém
teve coragem de falar na minha cara. Parece que estava me preparando para
esse momento.
​Pena que agora as fofocas sobre eu me relacionar com Anthony não são
mais fofocas. Ou são, porque foi só um beijo e nada mais do que isso. Que
droga, eu não acredito que minha mente está me enganando dessa forma. Eu
não me relaciono, nem confio em homens. Eu só me divirto com eles de
forma completamente casual e sigo minha vida. Sozinha. É isso que preciso
obrigar minha mente a entender. Não deixarei que esses pensamentos me
tornem paranóica com apenas um beijo, por mais incrível que ele tenha sido.
​Rose, do marketing, me chama quando vê que estou indo para minha sala
e fala que a nota de esclarecimento já havia sido enviada, e que seria
impressa no jornal do dia seguinte, já que não deu tempo para sair no jornal
de hoje. Entretanto, o esclarecimento do que aconteceu já está correndo na
internet, principalmente nas páginas que postaram as notícias sobre o evento
beneficente. Ela sugeriu que eu não olhasse as redes sociais durante o dia,
pelo menos até fazer uma análise de como o público está reagindo à nota,
para eu não me afetar com os possíveis comentários negativos. Que bom que
não olhei ontem.
A situação foi remediada e, em breve, a cagada feita pelo jornalista
aproveitador será esclarecida. Enviei minha carta para Anthony assim que
terminei de escrevê-la, mas ele não respondeu. Sei que visualizou o e-mail,
já que coloquei confirmação de abertura. Agora, tudo o que me resta é
esperar que ele convença o conselho de que eu sou inocente para que eu
continue com meu emprego.
​Sinto medo ao abrir a porta da minha sala, porque não sei se estou
preparada para encontrá-lo de novo. Esse é o nível de desnorteamento que
ele causou em mim. Uma onda de alívio involuntária percorre meu corpo
quando vejo que ele não está e solto o ar, que não percebi que segurava.
Acendo meu incenso de todos os dias e coloco um blend poderoso de
óleos no difusor, vou precisar de toda a ajuda possível. Porém, diferente dos
outros dias, não vou até a sala dele fazer o mesmo.
​Continuarei sendo covarde por mais alguns minutos e não me importo, é
um pequeno direito que tenho e aproveitarei até a reunião presencial que
temos marcada para a hora seguinte. Sinto meu coração disparar no peito
quando vejo o compromisso na agenda e acho que estou tendo uma crise de
ansiedade.
Sou completamente patética.
Não pela ansiedade, mas por estar tão afetada assim por um cara que
eu nunca pensei que causaria qualquer reação desse tipo em mim.
​Só porque não quero que a reunião chegue, a hora passa voando e,
quando preciso ir até a sala reservada, minhas pernas não me obedecem. Não
adianta eu forçar, elas simplesmente não se movem.
​— Chega de ser covarde — murmuro para mim mesma e respiro fundo
algumas vezes. — Você não é boba e não fica afetada por homem nenhum.
Nunca.
​Encorajo-me mais um pouco, pego dois cadernos, os documentos que
preciso e me levanto, vestindo a expressão mais segura que tenho e erguendo
o queixo. Posso tremer por dentro, mas ninguém precisa saber disso.
​Passo na copa e pego uma xícara grande de café para manter minha mão
e boca ocupadas durante a reunião, depois vou direto até a sala com a mesa
grande e oval no centro. Não tem ninguém ainda, então conecto a televisão,
ligo o computador e faço o login no sistema, deixando tudo arrumado para o
resto da tarde.
​ m pouco tempo, os outros funcionários começam a chegar. Teremos
E
uma maratona de reuniões com pequenos grupos junto com a equipe do RH,
durante toda a semana , só para sabermos como todos estão e estabelecermos
as metas e planos dos próximos meses. Uma ideia de Anthony que, a cada
dia que passa, faz ainda mais mudanças no sistema de gestão de seu pai, mas
somente com a sua equipe. É como se precisasse mostrar que faz muito mais
do que é esperado dele. Felizmente, nessas reuniões não preciso fazer muito
além de escutar e tomar notas, para o caso de algo passar batido pelas
meninas.
​Acho que vou infartar a cada pessoa que entra na sala, até que Anthony é
o último a abrir a porta. Com uma camisa verde, calça jeans escura, o cabelo
bagunçado e a barba rala emoldurando o rosto, ele está mais bonito do que
nunca e é impossível não observá-lo. Impossível não fitar sua boca
avermelhada.
​A boca que eu beijei.
​Diferente de mim, que não consigo tirar os olhos dele, Anthony dá uma
rápida encarada em minha direção e dá início à reunião. Geralmente se senta
ao meu lado, mas hoje ele escolhe a cadeira do lado oposto.
​Ao longo da reunião, percebo que ele está sendo gentil e atencioso.
Valida os sentimentos dos funcionários, fala o que pensa e presta atenção no
que todos têm a dizer.
​Menos no que eu tenho a dizer, porque parece que sou completamente
invisível para esse homem.
​No instante em que eu abro a boca para falar qualquer coisa, Anthony
começa a fazer anotações no notebook. Nos últimos meses, aprendi a
reconhecer quando ele está me olhando e, durante toda a tarde, tenho certeza
que não dirigiu um olhar sequer para mim, não de verdade. Sua atitude é
completamente incômoda. Eu esperava o Anthony de todos os dias. Na
verdade, esperava por provocações e olhares que me fizessem lembrar do
beijo a todo instante. Achei que precisaria afastá-lo, não que seria ignorada.
​Anthony só se dirigiu a mim no final do dia, depois da última reunião, e
mesmo assim nem olhou no meu rosto. Apenas pediu para eu enviar meu
relatório para ele por e-mail antes de ir embora e me deixar sozinha na sala
de reuniões.
​Fiquei sem reação, tentando absorver todos os acontecimentos do último
dia e me achando completamente maluca. E se eu tivesse fantasiado tudo e,
na verdade, o beijo não aconteceu, somente nossa discussão sobre a
manifestação? É uma justificativa melhor para ele me ignorar, do que um
beijo que ele claramente havia gostado.
​Porque ele gostou, certo!? Não estou ficando louca.
​Ou estou!? Porque o mesmo tratamento se repete durante toda a semana.
​Enquanto eu finjo que estou bem — e nem um pouco afetada por sua
presença e seu cheiro —, Anthony fala o mínimo possível comigo. Não
reclama da falta de cheiros em sua sala, como fazia quando eu não passava
lá antes de começar a trabalhar. Não para na porta do meu escritório para dar
oi ou me chamar para tomar um café com ele no meio da tarde.
​Cada dia está mais estranho, mais distante. Eu não fazia ideia do quanto
sentiria falta dos pequenos detalhes da nossa rotina até receber esse
tratamento de silêncio. Enquanto estou pensando no seu beijo o tempo
inteiro como uma adolescente obcecada, começo a imaginar que o problema
esteja em mim, não nele.
​Desgraçado, o que fez comigo?
​Como se não bastasse, sigo ignorando Mila, que continua tentando
contato e já desconfia que algo aconteceu. Ela não está me forçando a falar,
mas as mensagens que manda durante o dia me fazem ter certeza que são
tentativas de me fazer lhe contar tudo. Não é possível ter tanta fofoca assim
no Brasil justo na semana que estou tentando evitá-la. Isso me deixa
péssima, porque estou fugindo da minha melhor amiga, ou melhor, estou
fugindo dos meus próprios sentimentos já que, no instante em que eu os falar
em voz alta, se tornarão… reais.
​Como se já não fossem.
​Mila me faz enfrentar meus medos e pensar com mais clareza, o que é
ótimo devido minha mania de pensar em todo mundo antes de pensar em
mim, assim como tenho uma pequena tendência a exagerar. Tenho certeza de
que ela não me diminuirá e, caso brigue comigo, será da sua forma doce e
preocupada, e não grosseira. Mesmo assim, é difícil. Não sei se estou
preparada para entender o que estou sentindo.
​Assim, o fim de semana chega, o que me dá mais de 60 horas
completamente sozinha. Recusei o convite de Theo de sairmos para beber
uma cerveja na sexta de noite, com medo do assunto “Charlie” ser trazido à
tona, e só verei qualquer ser vivo, que não seja a Capitu, na segunda de
manhã. É tempo o suficiente para entender o que está acontecendo e colocar
um ponto final nessa situação interna.
​ empo suficiente para arrancar a vontade de beijar Anthony todos os
T
dias, principalmente quando entra naquela maldita sala de reunião.
​Os enormes trabalhos da faculdade são a distração perfeita para
preencher minhas horas. No resto do tempo que minha cabeça está ociosa,
tento cuidar da minha casa, passar um tempo com a Capitu e maratonar De
Férias com o Ex Brasil, só porque as brigas são tantas e tão absurdas, que é
perfeito para o momento.
​Já é domingo de tarde, quando escuto meu celular vibrando em algum
lugar perdido no sofá e, antes mesmo de achá-lo, sei quem está do outro lado
da ligação. Capitu está no meu colo, me olhando como quem diz “atende
logo, vagabunda”, porque sim, ela com certeza me chama de vagabunda o
dia inteiro.
​Ao mesmo tempo que essa gata me ama, ela me odeia. Basta olhá-la para
saber exatamente o que está pensando. E eu a amo de volta, sem a parte de
odiá-la, porque é linda demais. Fofa, educadinha e perfeita.
​Capitu mia, me tirando do transe que entrei pensando nela. Mila está
insistente, já passou quase uma semana sem conversarmos de verdade, mas
sei que ainda consigo fugir com jeitinho. Pego o celular de baixo de uma
almofada, respiro fundo e atendo, colocando-o no ouvido.
​— Ei, não escutei tocando, estava colocando comida para a Capitu! Tudo
bem? — Falo de uma só vez tentando sorrir com a voz.
​— Eu tô ótima, mas e você? Porque, assim, eu estou há dias esperando
você me contar o que está acontecendo, mas até eu tenho limite. — Mila
com toda certeza não está me engolindo mais e, se estivesse do meu lado,
estaria cruzando os braço em desafio. — Vamos, desembucha de uma vez o
que está rolando.
​— De onde você tirou que tem algo rolando? — Sim, estou dando de
louca mesmo assim. Sim, eu sou uma péssima amiga de vez em quando. —
Está tudo normal por aqui, estou estudando e trabalhando. Essa semana
consegui dar uma passada naquela floricultura que eu gosto e comprei
algumas mudinhas novas, mas acho que uma delas não vai vingar… Lembra
dos netos da dona, os meninos que me ajudaram alguns meses atrás? Estão
trabalhando com ela agora, são bons meninos. Ah, e estou assistindo De
Férias Com o Ex, você nunca vai adivinhar quem brigou com quem dessa
vez…
​— Eu não estou ligando para saber de reality show, Marina. — Mila me
interrompe e só o fato de me chamar pelo nome, e não pelo apelido, já me
faz estremecer. — Sei que tem alguma coisa acontecendo, é a única
explicação para você me evitar há dias. Sem contar que não tem postado
nada no Instagram e até sua mãe me mandou mensagem querendo saber se
aconteceu algo, porque te achou um pouco distante.
​Fico em silêncio, ouvindo-a, e mordo a ponta dos dedos. Ela tem razão,
eu me afastei de todo mundo tentando entender o meu caos interno.
​— Eu não estou ligando só pela fofoca, estou realmente preocupada com
você…
​— Tá, eu sumi do Instagram porque não estou entrando nas redes sociais
essa semana… — Falo devagar e me jogo no sofá, puxando Capitu para
perto de mim novamente. Preciso de um apoio emocional agora e ela me
olha como se me desse forças para falar. — Tive alguns problemas porque
fui em uma manifestação, um jornalista inventou uma mentira sobre mim e
isso me afetou no escritório. Eu achei que fosse perder o trabalho, o meu
visto, a vaga na faculdade, ser deportada… Mas já deu tudo certo, emitimos
uma nota de esclarecimento que foi publicada e a assessora de imprensa
falou para eu me manter afastada das redes sociais por alguns dias só para
evitar as mensagens que pudessem me deixar triste. Acabou que nem senti
falta, então não voltei completamente a mexer.
​— E por que você não me falou sobre isso? Sério! Eu podia ter ajudado,
ou passado horas respondendo qualquer mensagem te ofendendo! Dava para
chamar os meus calouros e obrigá-los a responder também, eles estão
devendo alguns favores para mim de qualquer jeito…
​— Não precisa, sério, está tudo sob controle. Só que com essa situação
meio que perdi o eixo porque eu e o Anthony brigamos quando ele me
contou… — fecho os olhos pensando nas palavras que vão sair da minha
boca e inconscientemente falo mais baixo: — e nos beijamos.
​— Você fez o quê?
​Seu choque é nítido, tenho certeza que se estivesse comigo, estaria com a
boca aberta e encarando o nada, tentando processar o que falei.
​— Beijei o Anthony. Agora, ele está me ignorando e fingindo que não
existo, só fala o mínimo. Só o extremamente necessário para o trabalho
andar.
​— Você beijou o seu chefe? — Pergunta querendo uma confirmação. —
O gostoso de olhos claros que te irrita todos os dias e que escutou você
falando que sentaria nele?
​ erto, eu sou uma idiota por ter me segurado de falar com a Mila porque
C
agora um peso absurdo parece ter saído dos meus ombros. Eu preciso dela e
não sei como, depois de tantos anos, não entendi isso ainda.
​— Ele mesmo, que agora ficou ainda mais gostoso, que pegou na minha
bunda com força, me empurrou na parede e ainda fez “Shhh” para mim. —
Desabafo e coloco a mão na testa, bagunçando meu próprio cabelo ao sentar
no sofá com o corpo para frente. — “Shhh” Mila, ele fez “Shhh”! Para eu
calar a boca e ele continuar me beijando. Agora, ele está me ignorando e
estou igual uma idiota pensando nisso por mais tempo do que gostaria de
admitir. Porque eu não fico pensando em homens depois de um beijo, pelo
menos não do jeito que eu estou agora. Eu sou patética.
​— Você não é patética, para de se diminuir! — Esbraveja. — Bom, não
dava para esperar muito daquela carinha bonita de quem vai ferrar com a
vida de qualquer uma que aparecer.
​— Nem me fale… E fodi com tudo. — Passo a mão no rosto e sinto
algumas lágrimas se formarem em meus olhos involuntariamente. — Eu o
beijei, ele me beijou, e foi… Bom pra caralho, Mila! Provavelmente o
melhor beijo que eu já dei na minha vida e não foi pela briga, foi…
Realmente bom.
​— Nina, que fic é essa? Como assim foi “realmente bom”? Você está
chorando? — Ela está preocupada.
​— Foi… Como um respiro sabe. Eu estava quente, agitada, ansiosa, com
medo de ter fodido com toda a minha vida e, de repente, não estava mais.
Foi como se todo o peso em mim desaparecesse. Então, lembrei quem eu
estava beijando e o afastei, é claro. — Falar o que estou sentindo é estranho,
mas me traz clareza. — Agora, tenho certeza que ele está me ignorando, até
eu não aguentar mais e pedir demissão. Ele já me falou uma vez que não fica
com assistentes.
​— Tá, calma… Você não conversou com ele depois disso?
​— É claro que não, ele está me ignorando de verdade! Nem levanta o
olhar para falar comigo, parece que não existo a maior parte do tempo.
​— Vocês estão fingindo que nada aconteceu? — Meu silêncio é a
resposta que ela precisa. — Vocês precisam conversar, ou então essa
situação vai consumir a sua cabeça. O melhor é colocar tudo na mesa e se
resolverem.
​— Eu não posso chegar nele perguntando sobre o beijo! Ele nem olha
para mim, você tem noção? Quando precisa me pedir algo, fica de cabeça
baixa e tem sentado do outro lado da mesa de reuniões, sendo que, semana
passada, sentava do meu lado e até roubava minhas anotações, porque
costuma esquecer um caderno. Porra, eu levo um caderno extra para ele,
quando me tornei essa idiota?
​— Você só faz o seu trabalho, Nina, e não importa o que seja, você
sempre faz tudo o que se propõe da melhor maneira possível. Então, você só
vai aguentar? Marina, eu te conheço como a palma da minha mão e sei que
não vai conseguir trabalhar com ele todos os dias nessa Guerra Fria. Uma
hora o seu surto chegará e sabe tão bem quanto eu que não será nada bonito.
Você é um doce, até não aguentar mais.
​— Você é a única que me acha um doce. — Solto uma risada nasalada e
fungo, limpando o nariz choroso. — Passei os últimos dias refletindo sobre
tudo e não sei, agora que falei em voz alta… Talvez seja melhor eu me
demitir. — Solto um suspiro cansado e deito a cabeça no braço do sofá,
quando uma lágrima solitária escorre. — Não dá para ser assistente de
alguém com quem você nem conversa e que, bom… Você sentiu o pau roçar
na sua barriga.
​— Você está fungando e falando do pau do seu chefe?
​— Parece ser um bom pau — tento brincar no meio da minha desgraça e
nós duas damos risadas.
​— Deve ser difícil assinar papéis e conversar sobre documentações
lembrando do membro enrijecido dele. — Dá ênfase no final, tirando sarro
com os livros que leio e falam dessa forma sobre homens excitados.
— No primeiro dia, depois do beijo, foi tão difícil, eu estava com
vergonha, o que é completamente estranho para mim, mas engoli e fingi que
estava tudo ótimo e nem um pouco afetada, mas… Só eu estou surtando,
tenho certeza disso.
​— Você queria que ele estivesse surtando? — Mila pergunta
desconfiada.
​— Ah, que tivesse alguma reação pelo menos. Poxa, ele realmente me
beijou e a gente estava se aproximando… Enfim, eu claramente estava tendo
algumas fantasias inconscientes que só deram as caras depois do beijo.
​— Olha, se você acha que pedir demissão será o melhor, te apoio. Tenho
certeza que consegue outro lugar rapidinho e posso te ajudar a enviar
currículo. De qualquer forma, fala com ele. Coragem, você é a Nina, poxa!
Nunca te vi abaixar a cabeça para ninguém, muito menos para um homem
que te beijou. Você já passou dessa fase.
​ Sim, acho que por isso que estou tão assustada assim. Estou insegura,

sem entender o que estou sentindo. — Solto um suspiro e seco as lágrimas
no rosto.
​— E o Charlie? Não se falaram mais?
​— Não desde que dei um fora nele, o que é uma merda, porque ele é um
amor e um bom amigo, mas… Eu sou louca por ter terminado? Porque ele
era certeza, calmaria e eu definitivamente não senti esse peso no coração em
nenhum dia que estive com ele.
​— Ele realmente é um amorzinho, mas achei estranho o dia que ele
apareceu na porta do seu apartamento do nada. Sei lá, quando você me
contou foi como se um cartão amarelo tivesse sido levantado para mim,
sabe?
​— Você está falando da primeira vez?
​— Então, tiveram outras vezes?
​— Ah, algumas, mas nada demais. Ele fez amizade com minha vizinha e
ela o deixava entrar, aquela velha sempre fica na rua. — Fico um pouco
inquieta com o que ela falou, porque nunca havia pensado assim.
​— Bom, eu achei estranho, principalmente por vocês não namorarem.
Não acho que você errou em terminar com ele, já que não estava sendo
recíproco. Em um relacionamento, os dois lados precisam estar na mesma
página para funcionar, independentemente de ser romântico ou não.
— Toda filosófica, uau! — Brinco e fico em silêncio por alguns
poucos segundos. — Verei como serão os próximos dias no escritório. Se for
igual aos outros, comunico minha demissão. É melhor.
​— Pensa direitinho antes de tomar uma decisão definitiva, tá bom?
​— Pode deixar, e desculpa por ter te ignorado a semana toda, eu só
estava com medo de te falar e acabar sentindo.
​— Tudo bem, eu sei que você não recusaria fofoca brasileira sem um
bom motivo! — Sinto que está sorrindo. — Sou sua consciência, lembra? A
única pessoa que te impede de fazer grandes burradas. Eu estou aqui sempre
que precisar, no seu tempo… Só não demora muito na próxima vez!
​Sorrio com sua risada e nos despedimos. Decido parar de fugir da vida.
Seja quem for essa pessoa que assumiu meu corpo e colocou minhas
inseguranças em primeiro plano, está na hora de guardá-la no fundo da
minha mente e trazer a velha Nina de volta.
A Nina que não ficaria travada por um homem e muito menos
aceitaria ser ignorada por ele a semana inteira.
Capítulo 30

“Eu não quero que o mundo me veja, porque eu não acho que eles
entenderiam
Quando tudo é feito para ser quebrado, eu só quero que você saiba
quem eu sou”
Iris - Goo Goo Dolls

Insuportável, exigente, intrometida, estressada, sabe-tudo,


convencida, sarcástica, atenciosa, confiante, inteligente, divertida, corajosa,
cheirosa, gostosa e linda.
Livre.
Eu já estava fodido antes mesmo de beijar aquela boca.
Ainda não entendi como essa transição aconteceu, porque em um dia
estava irritado na biblioteca pela garota de cabelo roxo que fazia barulho
com seus pulos, e no outro estava irritado porque sua mania de ajudar todo
mundo fez o conselho convocar uma reunião mandando eu demiti-la.
E eu não a queria longe de mim.
Mesmo em um lugar completamente diferente, era como se nada
pudesse impedi-la de falar o que pensa e agir da forma que acha ser certa,
sem se importar com qualquer problema. Foi o que me chamou atenção. E
sua segurança, dia após dia, em bater o pé e não ceder para mim por um
simples lugar na sala de aula.
A cara que fez quando a desafiei na primeira vez que cheguei mais
cedo, só para pegar o bendito lugar, foi o combustível que me fez querer
ficar cada vez mais próximo, mesmo que pelos motivos errados. Era
divertido vê-la irritada e só Deus sabe o quanto eu precisava me distrair. Mas
escutá-la dizer para a amiga brasileira que eu sou lindo e arrogante inflou
meu ego. Bastante. Nunca agradeci tanto a minha avó por me obrigar a
aprender outras línguas quando era criança, porque cada vez que ela me
elogia e em seguida me xinga, me satisfaz mais do que eu gostaria de
admitir.
E é claro que, além de insuportável, ela tinha que ser inteligente,
sempre levantando a mão durante as aulas e recebendo as melhores notas na
matéria, que era o terror de praticamente todos os alunos matriculados nos
cursos de Direito e Administração. Foi exatamente isso que a fez ser
chamada para a entrevista da vaga de assistente que abri na Vann e isso,
combinado com sua atitude firme, a tornava perfeita para meus planos
futuros na empresa.
Isso é, se ela não tivesse estragado toda a entrevista em poucos
minutos com sua prepotência e mania de achar que sabe tudo. Porém, me
surpreendeu ao abaixar seu muro, me deixando ver sua vulnerabilidade por
alguns segundos.
Ela se mostrou sensível quando eu menos esperava e quando falou
que precisava do emprego, foi impossível não sentir verdade em seu olhar.
Até mesmo abriu mão do lugar ridículo pelo qual brigávamos.
Marina Dias chegou na minha empresa com um aumento, dezenas de
plantas, um incenso fedido e um cheiro delicioso de laranja doce que só ela
tem. Pronta para foder com a minha vida, com aqueles olhos castanhos que
reviram quando eu sou arrogante, a covinha que aparece ao sorrir e a boca
que faz um pequeno beicinho sempre que eu a contradigo.
Meus dias mudaram por causa de uma brasileira de 1 metro e 65
centímetros, que consegue tudo o que quer com seu jeito persuasivo, que
carrega pedras esquisitas no bolso e passa um óleo no pulso toda vez que
começa a ficar ansiosa.
Estou adorando isso, por mais que não queira admitir.
E quanto mais tempo passamos juntos, mais seu muro é derrubado e
acho que nem percebe. Suas provocações sempre vêm acompanhadas de um
sorriso escondido, que me puxa para perto, seguido de uma pergunta que se
qualquer outra pessoa me fizesse, seria pessoal demais. O que ela quiser
saber, eu respondo.
Ela é como um arco-íris depois de uma tempestade. Um raio de sol
perdido no meio de um dia nublado. Mesmo em meio ao caos, consegue
trazer vida ao meu redor.
​Eu estava irritado por causa da reportagem, que poderia chamar atenção
desnecessária para mim neste momento, principalmente do meu pai. Fiquei
ainda mais irritado quando ela começou a buscar soluções para consertar o
que foi feito. Se eu tivesse lhe contado o que estou fazendo e como descobri
o que ela está fazendo para o Centro, teria tomado mais cuidado e me
ajudaria a esconder as evidências… Mas não está na hora ainda, é muito
arriscado que qualquer um saiba.
Minha mente estava uma bagunça quando ela se aproximou e fitou
minha boca. Não me arrependo de não ter me segurado, porque quando meus
lábios tocaram os seus, e minha mão apertou seu corpo, sabia que era o certo
a se fazer. Fiquei surpreso que ela permitiu que eu a tocasse, não porque
achava que ela não queria — depois da conversa que escutei ela ter com sua
amiga brasileira, eu sabia que estava em conflito, querendo me odiar e não
conseguindo — e sim por querer mais. Segurou-me da mesma forma que eu
a segurei, me puxou para perto e implorou com todo o seu corpo.
Queria tomá-la para mim, ali mesmo. Calar aquela boca com meus
beijos e substituir suas provocações por gemidos em meu ouvido. A culpa
era inteira dela por me fazer sentir, mesmo que eu não tivesse pretensão
nenhuma disso.
Porém, da mesma forma que derrubou seus muros e se entregou por
alguns momentos, ela os levantou rápido até demais. Afastou-me, repetindo
que aquilo era um erro, mesmo sabendo que não conseguiria esconder a
respiração presa quando falei que aquele beijo se repetiria, mas não sem a
certeza de que o queria.
Porque não gosto de metades e, apesar de brincar, tenho certeza do
que quero e de quem quero ao meu lado em qualquer área da minha vida. E,
desde o evento beneficente, quero conhecê-la melhor.
Deixei-a sozinha depois do beijo para que pudesse colocar a cabeça
no lugar, mas ela não saiu da minha mente em momento algum. Nem
enquanto escrevia as notas para a imprensa ou enquanto tentava descobrir
uma forma de contornar os velhos do conselho sem chamar a atenção do
meu pai. A única coisa que eu tinha certeza, era de que ela não iria embora,
não agora.
Porque eu até posso ser tudo o que ela sempre fala de mim: metido,
arrogante, convencido, mal-humorado… Mas também sou determinado, e
quero ir até o fim para entender que porra ela está fazendo comigo, que faz
eu me sentir tão leve.
Dormi e acordei pensando naquele beijo, imaginando como seria sua
reação no dia seguinte, já que ela fez questão de se esconder em sua sala até
que eu fosse embora. Entretanto, ao chegar no escritório depois do almoço
de terça-feira, sabia que tinha algo muito errado.
Não havia óleo nenhum no difusor perto da minha mesa. Não havia
nenhuma mistura de cheiros circulando. Só havia um e-mail na minha caixa
de entrada, enviado por ela há poucos minutos, indicando que já estava ali e
escolheu se manter longe.
Se ela queria distância, eu lhe daria todo o espaço de que precisava.
Um péssimo momento para tudo acontecer, já que estaria preso em
uma sala de reuniões com ela durante toda a semana, realizando meus planos
de montar uma equipe forte e que esteja ao meu lado para mudar a gestão do
meu pai na empresa de nossa família. Ele não faz ideia que sei o que está
fazendo com os valores exorbitantes, que são passados para a Prefeitura, em
imóveis que custam um terço do que está nos orçamentos.
O conselho se preocupa com uma assistente saindo em uma
manchete no jornal, mas fecha os olhos para a corrupção que acontece
debaixo do nariz de todo mundo. Preciso ser inteligente para agir, antes que
o nome de minha família seja manchado por ganância. É por isso que estou
há meses guardando provas e documentos para usar contra meu pai e seu
atual conselho, mas no momento certo. É por isso que estou montando
minha própria equipe.
Foquei minha atenção e energia na reunião, mas é nela que meus
olhos caíram quando entrei na sala. Marina estava com o cabelo preso em
um rabo de cavalo alto, as pontas roxas caindo nos ombros, o pescoço à
mostra, implorando para ser tocado, e uma camiseta de banda preta com uma
calça de alfaiataria alta. Perfeita e sem tentar se encaixar como todos os
outros. Pergunto-me quem foi o responsável por quebrar seu coração e
deixá-la assim, essa marra toda não parece ter surgido do nada. Parece ser
algo que foi criado depois de muito ceder às vontades alheias.
Seu olhar encontrou o meu por menos de um segundo e logo desviou.
A conheço o suficiente para saber quando me manter distante e quando me
aproximar. Não podia fazê-la me odiar agora.
Sentei longe e percebi que, novamente, havia esquecido um caderno
para anotações, mas não ousei pegar o dela. Não invadiria seu espaço, por
mais que quisesse vê-la revirar os olhos fingindo estar irritada antes de me
entregar o caderno com uma caneta.
A reunião se passou em uma dificuldade absurda e tentei manter
minha concentração no trabalho, sem invadir seu espaço. Quando dava
ideias, ou se mostrava interessada no que os funcionários tinham a dizer, eu
a deixava livre e não interrompia. Ela conquistou minha confiança no dia a
dia, com suas planilhas bem feitas, as anotações bagunçadas e a vontade de
sempre fazer o certo pelos outros.
Por isso não interferi quando notei que a culpa dos atrasos no
mercado em LittleWin foram dela. Por isso acobertei e demorei para assinar
os documentos finais antes de enviar para o andar de cima. Para lhe dar mais
tempo.
E ela nem pediu por isso.
Minha esperança era que, no dia seguinte, tudo voltasse ao normal,
ou pelo menos que estivesse um pouco mais aberta a mim. Me enganei!
Novamente, quando cheguei do almoço, não havia nenhum óleo na porra do
difusor do meu escritório.
Durante o resto da semana, isso se repetiu. Seus e-mails não vinham
mais acompanhados com um emoji idiota no final, seu balde de café
extremamente forte não ficava na bancada da copa sinalizado com um post-it
para que eu não o bebesse por engano, e toda vez que eu passava por seu
escritório, não conseguia escutá-la cantarolando músicas pop.
Para piorar, cada vez que seus olhos encontravam com os meus,
mesmo que rapidamente, meu coração batia forte. Sempre que falava, era
impossível não admirar aquela boca delineada e não querer sentir seu gosto
de novo. Maldita.
Desmarquei os compromissos com meus amigos assim que cheguei
em casa na sexta-feira e, sábado de manhã já estava com as malas arrumadas
e dirigindo até minha avó. Precisava fugir do meu apartamento, grande e
vazio. Talvez até minha casa esteja precisando de algumas plantas.
Apesar do dinheiro que envio todo mês, a dona Delfine mora em uma
casa simples, com um jardim grande e florido, onde passa a maior parte dos
seus dias cuidando, mesmo que possa contratar funcionários para fazer o
trabalho. E é claro que ela está com seu avental de jardinagem, ajoelhada e
com as mãos na terra quando entro de surpresa na garagem.
— Eu estou tão velha que estou confundindo os dias? — Pergunta
confusa enquanto me vê saindo do carro e sorrindo para ela.
— Não, hoje é sábado. Eu só precisava fugir um pouco da cidade —
coloco a chave do carro no bolso e dou a volta na cerca baixa, entrando pela
frente do jardim e indo até ela, que se levanta batendo uma mão na outra. —
Espero que não esteja atrapalhando.
— Você nunca me atrapalha, querido. Pode vir para cá quando quiser.
— Dou-lhe um beijo na bochecha e ela sorri. — Está tudo bem com seu pai?
— O mesmo de sempre — faço uma careta e olho para a casa, um
presente de aniversário que lhe dei quando descobri que essa construção era
seu sonho de infância, na cidade em que cresceu e longe de toda a confusão
que sua vida se tornou quando minha mãe se casou com um MacMillan.
— Então, tudo ruim, certo?
Ela sorri atrevida e confirmo, tirando o óculos do rosto.
— Você me conhece tão bem — brinco, fazendo-a rir.
— Sei que me ama, mas se precisa vir para cá sem avisar, é porque
precisa de uma folga. Quer tomar uma xícara de chá comigo?
— Sempre.
E o peso do mundo desaparece dos meus ombros pelo final de
semana em companhia um do outro. Minha avó é provavelmente a pessoa
mais carinhosa que já conheci. Parece uma sina, ter as mulheres que amo
morrendo ao meu redor, me deixando com os homens que me lembram da
pressão que carrego para ser exemplo, já que sou o único herdeiro das
empresas Vann.
Fui criado para ser o melhor aluno da escola e aprendi a usar as
vantagens do meu sobrenome para me livrar das enrascadas nas quais me
metia com Ethan, Malcom e Lauren, ainda pequeno. Eles eram os únicos
com quem eu podia me abrir.
Nós tivemos uma infância com as mesmas pressões e
responsabilidades já que Malcom vem de uma família de políticos, Lauren e
Ethan são herdeiros de uma empresa farmacêutica, e meu pai expandiu nossa
rede hoteleira para a área de construção. No meio de tanta gente, nós quatro
nos encontramos e seguimos a vida juntos. Já são mais de 20 anos de festas,
aniversários, inaugurações e posses em que nos apoiamos uns aos outros
para suportar. Mais de 20 anos de brigas, traições e abusos psicológicos que
precisamos vivenciar em nossas próprias casas.
​ pesar de sermos um grupo, ninguém me entende como Lauren. A cada
A
problema, é ela quem me atende, independentemente do horário que eu ligo.
Ela me acompanha nos eventos que não posso suportar sozinho e coloca
juízo em minha cabeça com frequência. E a filha da puta está na porra de um
retiro de spa há semanas, depois de uma briga com sua família. Ela não tem
o costume de fugir e sumir assim, mas já é a segunda vez que faz isso
quando as coisas apertam, em vez de correr para o meu apartamento para
que eu possa aliviar um pouco o peso que carrega.
​Envio uma mensagem para ela, mesmo sabendo que a mensagem não
será entregue, e estou certo.
​— Quem é ela? — Delfine aparece na varanda, senta ao meu lado e pega
o livro que eu estava tentando ler. — A garota que está fazendo você olhar o
celular o tempo inteiro?
​— É só a Lauren, não nos falamos há algumas semanas. Ela deu um
tempo de todo mundo, logo deve estar de volta. — Forço um sorriso e
bloqueio o celular, deixando-o de lado.
​— Ela parece muito com a mãe, mas não diga que falei isso! — Aponta
o dedo para mim me repreendendo e eu levanto as mãos, fingindo não saber
de nada. — Toda vez que Kelly não estava bem, ia para algum lugar bem
longe e voltava como se nada tivesse acontecido.
​— É isso que ela tem feito. A pressão em sua casa está grande —
concordo e volto a ficar em silêncio, porque nem eu sei o que está
acontecendo com ela.
​O sol está baixo e o céu em vários tons diferentes de laranja e roxo. A
porra do roxo na exata cor do cabelo da Marina. Fico frustrado no mesmo
instante, não importa o quanto me esforce para não pensar nela, de uma
forma ou outra, ela aparece na minha cabeça. Solto o ar junto com meus
ombros, e procuro o livro pelo banco, mas encontro-o no colo de Delfine.
​— Menininho… — Ela olha para mim com aqueles olhos carinhosos. —
Eu te conheço mais do que qualquer pessoa em todo o mundo, e eu sei que
tem alguma coisa acontecendo. Você está desde ontem agitado, olhando para
o celular, se distraindo quando falo com você e bufa sozinho depois de
pensar muito tempo em algo. Pode me contar, o que seu pai fez dessa vez?
​Fico olhando para ela por alguns momentos, pensando se conto ou não,
porque, apesar de ir até ela nos momentos de aperto, não tenho costume de
falar o que estou sentindo. É difícil me abrir, seja sobre meu pai ou sobre
qualquer outro assunto.
​ Dessa vez não é meu pai, mas acho que, daqui alguns meses, vou

precisar fugir dele.
​— Minhas portas estarão abertas quando chegar a hora — sua mão toca
meu joelho e ela admira o pôr do sol também. — Me sinto culpada por te
deixar sozinho com ele na cidade.
​— Nós quase não nos vemos sem hora marcada, não precisa ficar
preocupada. Não quero que você volte para aquele inferno.
​— Venha você para cá então, fique comigo para sempre, até eu morrer
— Delfine abraça meu braço.
​— Você é infinita, nunca vai me deixar. Quando eu estiver velho, ainda
me chamará de menininho.
​— Sempre será meu menininho doce que chorava quando encontrava
insetos mortos no parque.
​Sorrio ao lembrar de quando ela dispensava minha babá e me buscava na
escola para passearmos pelo Kensington Garden. Eram tardes incríveis de
conversa, brincadeiras e música que, constantemente, se transformavam em
brigas dentro de casa porque ela me tirava das minhas obrigações. Mas meu
pai podia gritar o quanto quisesse, ela continuava aparecendo no portão, toda
semana.
“A alma precisa de arte e liberdade para não adoecer.”
​É por causa dela que me interesso por cultura, por ela e minha mãe que
gosto tanto de ler. Se não fosse por sua insistência, eu seria um robô, criado
para assumir a empresa e ser uma cópia detestável de meu pai.
​Ficamos em silêncio, mas sinto as palavras se embolarem em meu peito,
querendo sair contra minha vontade e sem saber como expor o que quero,
sem parecer um idiota. Sinto que ela me olha e é impossível não virar o rosto
em sua direção, encontrando os olhos azuis como os meus, me encorajando.
— Não tenho muito o que falar.
​— Mas tem muito o que pensar? Aprisionar sentimentos não é bom, eles
precisam ser livres para nos permitir sentir, mesmo se for raiva, frustração,
felicidade, amor… — Levanta uma sobrancelha em desafio e espera.
Paciente como eu nunca consegui ser.
— Ela é insuportável — solto do nada, porque é mais fácil falar do
quanto ela me incomoda. — Briga comigo o tempo inteiro, está sempre me
provocando e levantando o nariz antes de sair andando para longe. E eu
odeio isso.
​— O fato dela ser difícil?
​ Não, ela estar longe de mim. — Assumo e aperto o maxilar.

​— Menininho, tenho certeza que quando a Lauren voltar, vocês se
resolverão e tudo ficará bem. Não precisa se martirizar pelo o que quer que
tenha acontecido entre vocês.
​— Não estou falando da Lauren, dona Delfine. — Apoio os cotovelos no
joelho. — Conheci alguém e se ela não fosse tão difícil de entender, eu não
teria estragado tudo antes mesmo de começarmos qualquer coisa.
​— Conheceu alguém? — Está surpresa, nunca falei sobre nenhuma
mulher para ela.
​Tenho poucas amigas, a maioria da época da escola e garotas que já me
relacionei brevemente, mas a única que conheceu minha família foi a
Lauren, que claramente é um caso à parte já que ela foi minha primeira em
tudo. Primeira amiga, confidente e namorada, o primeiro beijo, a primeira
vez… Há muito tempo, antes de entendermos que funcionamos melhor
como amigos do que como um casal.
​— Você gostaria dela — cerro os olhos enquanto vejo os últimos raios de
sol pintarem o céu. — Ela praticamente transformou meu escritório em uma
selva de tanta planta que levou para lá. Falou que precisava de vida.
​— E você deixou?
​— Não tem como dizer não para aquela mulher — dou uma pequena
risada nasalada.
​— Então, parece que você está mesmo perdido — Delfine não força o
assunto agora, só me deixa falar o que penso da forma que quero. — Vocês
brigaram, então?
​— Brigamos e nos beijamos, mas ela me afastou. Não durante o beijo,
depois. E agora estou lhe dando espaço para que coloque a cabeça no lugar,
mas a cada dia que passa, mais distante ela fica, então acho que fiz merda.
​— Com a experiência que ganhei ao longo dos anos, aprendi duas coisas:
tudo se resolve com paciência e diálogo. Você faz bem em lhe dar espaço, o
problema está em quanto, já que pouco é tão ruim quanto muito. Um sufoca,
e o outro mostra desinteresse. — Delfine vira o corpo para mim e me olha
fundo. — Querido, se você quer algo, não deixe o tempo e a distância
estragar. Dar espaço não é se mostrar indiferente.
​Concordo e volto a olhar para frente, sabendo que ela tem razão. Por
isso, decido dar mais alguns dias para a Marina colocar a cabeça no lugar, e
então ela pode até brigar e gritar o quanto quiser comigo, mas não me
afastará mais sem conversarmos.
Capítulo 31

“Ele é charmoso e cativante, e eu estou confortável


Mas eu sinto falta de gritar e brigar e beijar na chuva”
The Way I Loved You - Taylor Swift

​ cordo me sentindo Marina Dias de novo: determinada, dona de mim,


A
inteligente e capaz. E isso reflete inclusive em minha roupa: escolhi um
vestido preto com pequenas flores bordô por todo o seu comprimento, um
espartilho por cima que marca minha cintura, além de um sobretudo e meu
coturno pesado. O delineado está ainda mais perfeito, assim como meu
cabelo, que acordou cheio de ondas e gritando por liberdade.
Estou determinada em fazer as coisas diferentes. Na semana passada,
agi de acordo com as regras do Anthony, que fingiu que eu não existia. Hoje,
ele seguirá as minhas regras. Talvez seja um tiro no pé, mas já passei muitos
dias insegura por causa dele, e provavelmente serei demitida de qualquer
forma.
​Por algum milagre, o professor Herman não foi dar aula, o que me
garante uma manhã livre na biblioteca com Benji, um revisando o trabalho
do outro e apontando possíveis erros e pontos a melhorar. No meio da
manhã, meu celular vibra e quando vejo a notificação, sinto um pequeno
aperto no coração ao ler o nome de Charlie na tela.

Charlie Cooper (10:21) diz:


Ei, tudo bem?

Marina Dias (10:22) diz:


Eii, tudo e com você?
Você sumiu
Charlie Cooper (10:22) diz:
Estou no mesmo lugar de sempre, Dias

​ ncaro a mensagem, tentando entender se ele foi grosso e me deu um


E
chega para lá, ou se foi gentil e se, caso estivesse na minha frente, teria me
enviado uma piscadela que faz qualquer uma derreter. Não respondo, porque
vejo que está digitando algo.

Charlie Cooper (10:24) diz:


As meninas do Centro ficaram a semana passada me enchendo o saco
para eu te convencer a dar mais uma aula para elas, então vim cumprir
minha promessa…
Será que rola de você ir lá algum dia esse mês ainda?

Marina Dias (10:24) diz:


É claro que sim, preciso resolver meu horário, antes.
Falo com você ou com a Olive?

Charlie Cooper (10:25) diz:


Comigo, se não tiver problema para você.

Marina Dias (10:25) diz:


Nenhum problema!

Charlie Cooper (10:26) diz:


Espero que você esteja bem.

Marina Dias (10:26) diz:


Também espero que você esteja bem.

​ ssa é a primeira vez que conversamos depois da manifestação e é


E
melhor do que eu esperava. Talvez ele só precisasse de alguns dias para
parar de me odiar, ou então as meninas realmente encheram seu saco até ele
criar coragem de falar comigo. De qualquer jeito, estou feliz que pudemos
conversar sem constrangimentos, como se nada tivesse acontecido. Ou
quase.
​— Ei, Charlie falou alguma coisa? — Pergunto para Benji assim que
deixo o celular em cima da mesa, olhando-o por cima da tela do meu
notebook.
​ É a segunda vez que você me pergunta isso, aconteceu alguma coisa

que ele deveria falar? — Benji também me olha por cima do notebook dele,
e dou de ombros.
​— Nada de importante — o tranquilizo e volto minha atenção para seu
trabalho.
​Não sei o porquê, mas não estou à vontade para falar que terminei com
ele. Sinto que é algo estranho de se contar, já que não tínhamos nada, então
vou apenas deixar quieto. Se ele não falou, eu também não irei e, com o
passar do tempo, o grupo perceberá que não estamos mais tão próximos
quanto antes.
​As horas passam rápido e, quando chego no escritório, vou direto
adiantar todo o trabalho que eu tenho para fazer, já que mais tarde será o
último encontro do ciclo de reuniões com as equipes e o RH. Com uma
possível demissão à vista, aproveito para entrar na pasta de projetos de
LittleWin para confirmar quais serão os próximos na mira da empresa, e
analisar se há algo que eu possa fazer para ajudar a Ordem.
​Anoto alguns estabelecimentos que são visionados pela Vann, mas não
há nada como o mercadinho do senhor Ward, o que me tranquiliza. Mas só
um pouco, já que, novamente, algumas planilhas estão com valores
exorbitantes não só nos materiais do orçamento de possíveis reformas, como
também nos imóveis. Quero descobrir mais e é frustrante não ter acesso ao
que eu gostaria. A pasta do Centro continua trancada e seus documentos com
nomes que eu não consigo identificar pelas siglas, o que me mantém no
escuro.
​Faltando dez minutos para a última reunião com as meninas do RH, que
será no fim da tarde, vou para a sala de reuniões, como sempre faço. Levo
meu caderno e um extra para o Anthony por puro costume, para mostrar que
nada mudou do meu lado, apesar dele não pegar mais e tudo estar
completamente diferente. Organizo a mesa, ligo o computador e a televisão,
me certificando que está tudo preparado. Somente quando não há mais o que
fazer, percebo que esqueci o meu café, então vou até a copa para preparar
minha caneca.
​Não consigo gostar do café que eles fazem, é fraco demais, então
costumo passar o meu próprio, mais forte e em uma jarra separada já que
ninguém mais bebe além de mim. Apenas Anthony, que para me irritar,
sempre fala que é impossível beber, mas toma mesmo assim.
​Para de pensar nele!
​ ejo no relógio da copa que já deu o horário da reunião, todos devem
V
estar chegando. Meu coração bate um pouco mais forte, porque pensei que o
veria somente mais tarde, mas o “mais tarde” chegou.
​E com ele, a decisão que vou tomar do meu futuro.
​— Eu realmente sou dramática… — Murmuro quando coloco o café
pronto na caneca. Organizo a pequena bagunça que fiz, levanto a cabeça e
vou em direção a sala.
​Posso escutar as vozes das meninas do RH, elas são gentis e doces.
Falam sobre o final de semana uma da outra de uma maneira tão leve que
devem estar sozinhas. E é claro que, ao abrir a porta, vejo que estou errada.
​A atenção de todos se vira para mim no instante em que entro, inclusive
a de Anthony, esse é o maior tempo que ele me olhou desde que nos
beijamos, exatamente uma semana atrás. Ele encara toda a minha roupa, dos
pés à cabeça e para por um momento em meu rosto, antes de desviar a
atenção para o celular, que toca em sua mão.
​Claro que ele está lindo, como de costume. E é claro que minha barriga
revira, malditas borboletas.
​— Boa tarde — fecho a porta atrás de mim.
​— Boa tarde, Dias — Mel responde e as outras duas apenas sorriem para
mim.
​Como somos só nós cinco hoje, posso sentar em qualquer lugar da mesa
oval de doze lugares. As meninas estão sentadas do lado esquerdo,
exatamente no mesmo lugar da semana passada, e geralmente sento na frente
delas, com Anthony na ponta da mesa, longe o suficiente de mim.
​Não hoje.
​Ando até as minhas coisas, pegando-as com a mão livre, e vou direto até
ele. Seu olhar me acompanha até que eu esteja sentada a seu lado, da mesma
forma que fizemos tantas vezes antes. Anthony ajeita a postura na cadeira e
coça a garganta, prestando atenção no que estou fazendo.
​Faço questão de mostrar para ele que não estou incomodada com seu
tratamento seco.
​— Podemos começar? — Anthony vira para elas, que confirmam e nos
entregam a pauta da reunião.
​A próxima hora se passa com nós cinco focados no trabalho, ou quatro,
porque me peguei tentando captar quaisquer sinais vindo de Anthony, mas
sem sucesso. Como na última semana, toda vez que eu falo, ele me dá total
liberdade. Nunca me diminui, nem corta minha fala ou invalida minhas
ideias, mas se mantém quieto, como se não quisesse falar comigo de
verdade. Está retraído em sua cadeira, incomodado com minha presença.
​Mila tem razão, eu não vou aguentar essa Guerra Fria para sempre, e eu
também não vou ter a iniciativa de conversar sobre o beijo. Pode ser
imaturo, mas acredito que, de vez em quando, todos nós somos, e eu me dou
o direito de ser assim nesse instante. Precisamos fazer escolhas e, em nome
da minha saúde mental, escolho deixar esse emprego e ficar longe de
Anthony MacMillan.
​— Em relação ao marketing, vocês tem minha autorização para aumentar
o orçamento de equipamentos deles… Me resolvo com o senhor MacMillan
depois, ele pode gastar milhares em propagandas tradicionais, mas também
precisamos das redes sociais. Essa empresa está precisando se modernizar há
muito tempo.
​— Tenho um modelo de documentação, posso fazer as alterações
necessárias para você assinar e depois envio para elas. — Completo o que
ele está falando, já anotando em meu caderno junto com a lista de afazeres.
​— Vai ser ótimo, eles ficarão felizes, porque a maior reclamação foi
sobre não terem apoio financeiro o suficiente para serem criativos. — Mel
fala com um sorriso gentil.
​— Eles terão liberdade total agora. — Anthony completa e passa o olhar
de novo em todos os papéis e tópicos. — Acho que é isso. Terminamos?
​— Sim, senhor MacMillan — Rose confirma sorrindo.
​— Então, qualquer coisa que vocês precisarem, é só comunicarem a
senhorita Dias ou me mandarem por e-mail. — Anthony começa a guardar
suas canetas e esse é o momento que eu estava esperando.
​— Na verdade, tem mais um assunto. — Mel e Anthony já estão se
levantando quando falo. Os dois param e me olham confusos, então voltam a
se sentar. Mel está prestando atenção e Anthony mantém a sobrancelha
franzida, esperando que eu continue. — Queria aproveitar que todos estão
aqui para comunicar minha demissão.
​— Ah, eu não sabia que estava planejando sair da empresa — Rose fica
surpresa com a notícia.
​Miro Anthony e posso ver o quanto está com o rosto tensionado, o
maxilar marcado de tanta força que faz ao apertar a boca. Ele cruza os
braços à frente do corpo e encosta na cadeira de maneira presunçosa. Eu
diria que está… bravo?
​ Foi uma decisão recente — confirmo para elas e levanto o queixo,

dando um pequeno olhar de esguelha para Anthony.
​— Certo… — Mel olha para Anthony também, como se estivesse
pensando o que fazer em seguida, esperando pela aprovação dele. — Você
pretende ficar o tempo do aviso?
​— Não — falo prontamente. Não vou aguentar um mês inteiro sendo
tratada com tanta indiferença assim, isso me consumiria de uma forma que
não seria saudável. — Se estiver tudo bem, ficarei só esta semana. Posso
adiantar todo o trabalho e toda a documentação para facilitar a vida de quem
ficar no meu lugar.
​— Tudo bem, então. — Rose concorda e anota algo rapidamente no
papel na sua frente. — Vou comunicar o financeiro e começar a sua rescisão
no máximo até amanhã.
​— Obrigada — sorrio para as três mulheres e olho para Anthony, que
finalmente me olha de verdade.
​— Tem mais algum assunto que queiram discutir comigo? — Anthony
pergunta diretamente para mim e nego, no mesmo momento que as outras
falam que não. — Então, estão dispensadas.
​Nós quatro nos levantamos para sair da sala, meu coração bate forte no
peito, sem acreditar que realmente fiz isso. Achei que fosse sentir alívio
depois de tomar essa decisão e a dizer em voz alta, mas meu peito continua
tão pesado quanto antes.
​— Você fica.
​Anthony não precisa falar meu nome para eu saber que é comigo e paro
no mesmo instante, mas não me sento, continuo de pé, trocando olhares
furtivos com as mulheres, que saem rapidamente da sala.
​Assim que elas fecham a porta, me viro para ele, que apenas gira a
cadeira em minha direção, os olhos cerrados fitando os meus, me estudando.
Por que esse filho da puta tem que ser tão lindo assim? Que porra.
​E por que tem que ser tão idiota? Por que teve que me beijar e me fazer
tremer só de estar ao seu lado? É como se meu corpo não pertencesse mais a
mim, e sim a ele. Eu odeio isso.
​— Quer me explicar o que aconteceu? — Sua voz é baixa e ele respira
fundo. Está tão calmo que chega a ser ridículo. — Porque lembro que deixei
claro, na última vez que conversamos, que você não iria embora.
​— Sim, e obrigada por ter dado um jeito com toda a situação da
manifestação. Se algo pior tivesse acontecido, eu perderia minha bolsa e
teria que voltar para o Brasil. — O tom da minha resposta é completamente
profissional, firme, mas mordo minha bochecha para ele não notar meu
nervosismo.
​— Então, de onde veio essa decisão? Quer um aumento para ficar?
​Anthony se levanta, vai até a porta e a tranca. Suas mãos estão dentro do
bolso da calça com uma prepotência que me irrita. Dou um passo para o
lado, deixando minhas coisas em cima da mesa novamente e evito olhá-lo.
​— Você sabe muito bem que não é por causa do meu salário que eu
tomei essa decisão.
— E qual é o real motivo?
​— Não se faça de desentendido, Anthony.
Reviro os olhos e meu coração dispara. Merda, eu não quero ter essa
conversa, só quero ir embora. E eu posso simplesmente me virar e ir, mas ao
mesmo tempo não quero. Quero conversar, porque gosto de sempre deixar
tudo o mais claro possível e expor meus sentimentos, independentemente de
quais sejam. Não é comum eu me esconder como na última semana.
Ele faz com que eu me contradiga o tempo inteiro.
— Você me ignorou a semana inteira, e acredite, eu não estava
esperando por muita coisa, mas ser tratada normalmente era o mínimo. —
Tento entender onde ele quer chegar com essa conversa.
— Foi você quem começou a agir como se eu não existisse, faz
alguns bons dias que nem ao menos pisa no meu escritório. Está com medo
que eu vá te atacar?
— Eu não estou com medo! Eu só estou… estou… — Começo a
gaguejar porque sei que tem razão, eu que fugi em primeiro lugar. Anthony
suaviza a expressão e está claramente se divertindo com a minha falta de
palavras. Logo eu, que sempre tenho uma resposta para tudo na ponta da
língua. Vejo-o fitar minha boca por tempo demais, se mantendo em silêncio.
— Para de me olhar como se tivéssemos nos beijado.
​— Mas a gente se beijou, não? — Ele levanta uma sobrancelha arrogante
em claro desafio e, imediatamente, aquela mesma irritação toma conta do
meu corpo. — É esse o problema?
​— Eu estava brava e não pensei direito. Aquilo foi um erro. — Estou
fugindo do assunto, de novo.
​— Uhum, quem você está tentando convencer? — Dá um passo em
minha direção e eu, imediatamente, dou um passo para trás, para não deixá-
lo se aproximar demais. Sua prepotência serve de combustível para as
palavras que finalmente decidem sair da minha boca.
​— Você me beijou e nem ao menos olhou na minha cara depois. Eu não
vou conseguir trabalhar ao lado de alguém nessa situação, sinto muito. Você
falou que não ia esquecer do que aconteceu e do que eu falei, mas eu prefiro
que você esqueça. — Falo mais rápido do que esperava, como se as palavras
estivessem acompanhando as batidas do meu coração, enquanto Anthony
alterna entre meus olhos e minha boca. — Que aja normalmente nas raras
ocasiões que me ver na faculdade e só.
​— Você quer saber por que eu me mantive distante, Dias? — Anthony
fala baixo, e dá mais um passo em minha direção, fazendo meu estômago
revirar novamente.
​Não respondo, mas dou um último passo para trás, sendo impedida de
continuar por causa da mesa. Anthony dá dois passos, ficando perto demais.
Minha respiração está pesada e é impossível respondê-lo. Sei que estou com
o maxilar cerrado, porque sinto a força com que o aperto, enquanto levanto a
cabeça para encarar seus olhos, ao passo que sinto meu corpo tensionar.
​Ele aproxima nossos corpos e coloca as mãos na mesa, me deixando
praticamente presa entre seus braços. Consigo sentir o seu cheiro refrescante
de menta e fecho os olhos involuntariamente quando sua respiração se choca
contra minha pele. Todo o escritório parece muito pequeno, de repente. Não
me movo quando o vejo abaixar a cabeça devagar, colocando a boca
próxima do meu ouvido.
​— Desde que te beijei, tenho vontade de acabar com essa sua pose de
irritadinha, te deitar nessa mesa e te chupar até você gritar meu nome.
​Merda.
​Prendo a respiração e sinto a pulsação no meio das minhas pernas
aumentar e minha calcinha molhar. Sua voz é convidativa, sedutora e
inebriante, ele consegue escutar meu coração de tão forte que está batendo
no peito. Ficamos em silêncio por um momento e Anthony se afasta,
mantendo as mãos na mesa e o rosto inclinado em minha direção.
​— Não tenho pose nenhuma, só estou brava com você. — Engulo em
seco, mentindo para mim, e ele nega, abrindo um pequeno sorriso
convencido, como se lesse minha mente.
​— Se estivesse realmente brava, eu saberia. — Ele umedece os lábios,
me fazendo morder os meus involuntariamente. — Você está com medo do
que está sentindo e não quer assumir.
​ Você não faz ideia do que estou sentindo.

​— Eu acho que você está louca por mim e lutando contra isso, em vez de
ser minha do jeito que tanto deseja. Então, por que em vez de fugir, você
simplesmente não fala? — Anthony me desafia e abaixa a cabeça, se
aproximando do meu rosto com a voz ainda calma.
​— Por que, em vez de me ignorar, você não faz o que quer fazer de uma
só vez? — Não controlo as palavras que saem, não depois da imagem que
ele colocou em minha cabeça. Não com a vontade crescente e inconsciente
em meu corpo.
​— Porque eu falei que só te beijaria de novo quando pedisse.
Isso é um claro pedido de autorização e, pela forma que seu corpo
está retraído, sei que é a única coisa impedindo-o de me beijar.
​E, nesse momento, não me sinto capaz de recusar.
​— Me beija logo.
​Como se fosse tudo o que ele estivesse esperando, Anthony segura
minha nuca com força, puxando-me para ele e colando nossas bocas.
Derreto-me em seus lábios e, completamente contra todos os meus planos,
estou em seus braços sem hesitar. Nossas línguas não precisam de permissão
para se tocarem e começarem a dança que parece tão familiar, como se
fizessem isso todos os dias.
​Sua mão sobe até meu pescoço, segurando meu maxilar com uma
pressão deliciosa que me arranca um pequeno gemido. Seguro sua cintura
com força, puxando-o de encontro ao meu quadril, enquanto a outra mão
entrelaça os dedos em seu cabelo.
A única coisa que consigo pensar agora é no quanto eu quero este
homem.
​Anthony me pressiona na mesa e, sem cuidado nenhum, afasta nossas
coisas que estavam ali. Assusto-me com o barulho da minha caneca caindo
no chão e, quando tento olhar a bagunça, sua mão segura meu rosto, me
puxando para mais um beijo caloroso.
​Perco-me na boca dele. Se pudesse, falaria foda-se para todo o mundo.
No momento, nada mais me interessa além dele. Sua mão toca minha coxa,
subindo meu vestido até segurar minha pele, e os dedos cravados na minha
bunda. Tiro sua camisa de dentro da calça e toco seu abdome definido,
sentindo-o encolher a barriga pelo contato inesperado, o que me faz sorrir
em sua boca.
Não sou a única me derretendo aqui.
Abro seu cinto, mas, antes que possa fazer qualquer coisa, Anthony
me inclina na mesa, puxando meu quadril até a beirada e me fazendo apoiar
o corpo no cotovelo. Sua boca desce para meu pescoço, depositando
pequenos chupões em minha pele, me arrepiando inteira.
​— Anthony, a porta… — Murmuro com os olhos fechados e jogo a
cabeça para trás, não quero impedi-lo, e sim lembrá-lo de onde estamos.
​— Está trancada, e se alguém tentar entrar aqui, será demitido. — a
firmeza de sua voz é a mesma das suas mãos, que apertam minhas coxas.
​Não reclamo do vestido tão alto, me deixando com a cintura quase nua,
principalmente quando ele se afasta e sinto seus dedos segurarem minha
calcinha. Ele a puxa por minhas pernas e as joga no chão.
​— Vou te dar um motivo para ficar.
Ele passa a mão por minha panturrilha e, devagar, começa a beijar e
morder minha perna por todo o caminho até chegar em minha virilha. Não
consigo tirar os olhos dele, nossos olhares se encontram e vejo sua pupila
dilatada, escorrendo desejo. Anthony sorri de lado antes de passar a língua
devagar em meu clítoris, e começa a lamber o local com uma velocidade
torturante, me arrancando um gemido alto.
​— Shhh, fica quietinha, amor. — Anthony sobe uma mão para minha
boca, no intuito de me fazer ficar quieta, e eu o mordo devagar quando
finalmente começa a me chupar, me obrigando a fechar os olhos para tentar
conter o gemido que quero soltar.
​Sua língua circula meu clítoris entre mordidas e sugadas, me fazendo
rebolar o quadril, implorando por mais. Anthony tira a mão de minha boca e
a espalma por meu corpo, descendo-a devagar até minha bunda, tentando me
manter parada. Com a outra mão, introduz um dedo em mim.
​— Caralho — escapa da minha boca quando levanto o corpo e o olho,
me fodendo com a língua e o dedo daquela forma. — Anthony!
​Eu estou completamente perdida.
​Sua língua sabe o que fazer e perco o controle do meu corpo a cada
movimento. Não consigo pensar em mais nada e não me importo mais com
os gemidos, muito menos Anthony, que adiciona um dedo e aumenta a
velocidade das estocadas.
​Não demora muito para eu sentir que estou alcançando o orgasmo, meu
clítoris lateja e pulsa, enquanto minha visão se anuvia. Anthony também
percebe, e continua, apertando minha bunda com força. Era o que eu
precisava para sentir meu corpo tremer, enquanto gozo em sua língua.
​ loiro diminui a velocidade aos poucos, mas não para de me chupar até
O
eu terminar, prolongando o orgasmo o máximo que ele pode. Quando se
afasta, chupa o dedo que estava dentro de mim há alguns segundos, beija
minha virilha devagar, leva os beijos até minha coxa, e levanta para vir até
minha boca.
​Sentir-me em seus lábios me excita de novo, então prendo-o em mim
com as pernas, beijando-o devagar e intensamente enquanto sua mão sobe
por meu vestido, até alcançar meu seio, apertando-o por cima do tecido.
​— Você não tem noção do quanto queria sentir seu gosto… — fala baixo
entre os beijos e morde meu lábio.
​— Eu quero mais, agora — imploro, sem importar em como devo soar, e
coloco a mão em sua calça, pegando no volume do seu jeans.
​— Eu não tenho camisinha comigo… — Fala de um jeito nada
decepcionado. Parece se divertir com a situação. — Teremos que deixar pra
outro dia.
​— Você não está falando sério — estou frustrada e franzo a sobrancelha,
sem acreditar. — Como você faz isso comigo e não tem camisinha?
​— Você não é muito fácil de ler e, apesar de querer, não achei que
realmente fosse te foder nessa mesa, Dias. Pelo menos, não hoje.
​Anthony tenta me dar mais um beijo e, agora que meu corpo está se
acalmando do orgasmo, penso mais racionalmente. O que ele fala me atinge
com força. A conversa iniciada voltando à minha mente. Ele diz que eu não
sou fácil de ler, mas foi ele quem nem me olhou por dias. Não acredito que
fiz exatamente o oposto do que falei que faria.
​Não acredito que cedi a um rostinho bonito tão fácil assim. É isso que ele
é, não? Um rostinho bonito, só isso.
​Para de se enganar, Marina. Você sabe muito bem que ele é muito mais
do que isso. Também sabe que cedeu ao pedido dele porque é o que você
queria há tempo, mesmo que inconscientemente.
​— Já falei que você é um idiota arrogante? — Alfineto-o por ser mais
fácil do que lidar com meus sentimentos, enquanto ele admira meu rosto,
sem se afastar, e abre um pequeno sorriso de lado.
​— Hoje, ainda não.
​— Pois você é — fico com raiva de mim. — Qual é a sua, Anthony?
​Ele vira a cabeça de lado, estudando minha expressão e se afasta, tirando
a mão da mesa para me deixar livre. Desço a saia do meu vestido e fico de
pé à sua frente para arrumar minha roupa. Vejo que ele tenta falar algo, mas
interrompo-o antes de ter a oportunidade.
​— Você nunca deu sinal nenhum de que me queria, até aquela
brincadeirinha no dia da palestra. Então, simplesmente me beijou e agora
isso. Você que não é uma pessoa fácil de ler. Em um momento é de um jeito
e em seguida, como num passe de mágica, vira o completo oposto.
​— E você deu algum sinal de que me queria, além de ficar me xingando
em português toda vez que está estressada? — Rebate cruzando o braço e
levantando uma sobrancelha.
​— Você sempre faz isso — aponto o dedo para ele e cruzo os braços
também. — Sempre retruca o que eu falo fazendo outra pergunta, já
percebeu?
​— Pelo visto não te fiz gozar o suficiente para continuar estressada desse
jeito — revira os olhos e se abaixa para pegar os papéis que jogou no chão.
​Percebo que minha respiração está agitada, então me forço a respirar
fundo, para me acalmar.
— Eu só quero entender o que está acontecendo.
​— O que está acontecendo é que você é uma insuportável, estressadinha,
que acha que sabe de tudo quando não sabe, e na maior parte do tempo está
só empinando esse nariz e fingindo ser dona de si.
​Arregalo os olhos com as ofensas que acabei de receber enquanto o vejo
levantar com vários papéis.
​— Pelo menos eu sei o que eu quero. — Puxo os papéis de sua mão.
​— Sabe mesmo? Tem certeza? — Anthony os puxa de volta e os coloca
em cima da mesa de qualquer jeito. — Porque, há uma hora atrás, você
pediu demissão e minutos depois estava gemendo meu nome.
​— E você sabe o que quer, Anthony? Porque ficou a semana passada
inteira me ignorando e hoje falou que queria me chupar em cima da mesa. —
Devolvo a alfinetada e estufo o peito.
— Eu preciso de um motivo para te querer? — Pergunta com
obviedade e revira os olhos, bufando e andando até o outro lado da sala para
pegar minha caneca caída no chão. — Não sei se te beijo porque é gostosa
ou se para calar sua boca.
— Isso deveria ser um elogio?
— Dá para você simplesmente aceitar que, por algum motivo que eu
não faço a menor ideia de qual é, eu gosto de você?
Pisco os olhos algumas vezes, encarando-o sem saber o que falar,
sem saber como reagir. Ele realmente falou que gosta de mim?
Coloca a caneca em cima da mesa, pega meu caderno e a caneta que
foi jogada longe, enquanto sigo em silêncio, apenas observando-o se
movimentar pela sala. Anthony parece pensar no que fazer e, em seguida,
vai até o computador e a enorme televisão, desligando os aparelhos.
— Por que você quer pedir demissão?
— Porque eu fodi nossa relação e não vou conseguir trabalhar ao seu
lado com você fingindo que eu não existo. — Olho para o teto com o gosto
amargo da sinceridade na boca. Minha voz está baixa, calma. — E porque
não parei de pensar em você desde semana passada.
Ele assente e sua expressão se suaviza, como se estivesse satisfeito.
Como se fosse muito mais do que ele esperava.
— Não quis te pressionar e falei sério quando disse que estava te
evitando para não te beijar na frente de todo mundo. — Anthony se
aproxima e passa a mão em meu cabelo devagar, ajeitando-o. — Cada vez
que chego no meu escritório e sinto o cheiro que você colocou para mim,
meu corpo relaxa, senti falta disso na última semana. Cada vez que você
aparece na minha porta mostrando essa maldita covinha antes de roubar um
pedaço do meu chocolate, ou tagarelando sobre as plantas que estão tomando
conta do lugar, eu sorrio. E você pode me tirar do sério quantas vezes for
possível em um único dia, eu ainda sinto vontade de escutar seu sotaque
brasileiro e discutir com você mais uma vez. Não sei que porra que está
acontecendo, Dias, mas quero você.
Escuto-o sem acreditar e tento processar cada uma de suas palavras.
Meu coração bate forte no peito, feliz, mas com medo ao mesmo tempo.
Independentemente do que isso signifique, eu não me relaciono com
ninguém.
— Você disse que não dorme com suas assistentes…
— Eu abro uma exceção — seu sorriso é convencido e, com o
indicador, levanta meu queixo em sua direção. — Se depender de mim, você
tem duas opções, insuportável. A primeira, se você realmente quiser isso e
pedir demissão, te ajudo a arranjar outro emprego e no final da semana, você
vai sair comigo. Na segunda opção, você continua trabalhando comigo,
porque quer continuar fazendo suas… Atividades extracurriculares. Eu terei
que continuar aturando suas maluquices hippies todos os dias, e na sexta-
feira você sai comigo.
​ Atividades extracurriculares? Aquela atividade? — Penso na Ordem e

Anthony confirma.
— Já disse que posso te ajudar, e talvez você me ajude também. Tem
muita coisa que acontece por aqui que eu não concordo e tenho certeza que
você também não. Os valores exorbitantes nos orçamentos, a compra de
imóveis movida por acordos com a prefeitura… Você sabe tão bem quanto
eu que isso está errado e eu não quero destruir a vida de pessoas como o
senhor Ward, Dias. Não é assim que quero comandar essa empresa um dia.
— Então, não tenho como fugir de você? — Franzo a sobrancelha
pensativa. — Um tanto autoritário, não acha?
— Essas são as minhas opções, não as suas. Você pode fazer o que
quiser. — Anthony abaixa o rosto e roça os lábios nos meus, me fazendo
fechar os olhos e prender a respiração com o toque suave. — Mas eu
realmente gostaria que você escolhesse a segunda opção.
— Eu não namoro. — Deixo claro, mais como mecanismo de defesa
do que como verdade.
— Eu não estou te pedindo em namoro, estou pedindo para ser um
pouco menos difícil e sair comigo. Se você não quiser, não toco mais no
assunto e te deixo em paz, porque não sou tão idiota quanto você pensa.
— Não te acho tão idiota assim — assumo e umedeço meu lábio,
mas a proximidade é tanta que minha língua encosta de leve em sua boca.
Anthony abre a boca devagar, encaixando na minha e me dando um
beijo calmo. O desgraçado me tem na mão, e isso é assustador pra caralho.
— Não acho que deva sair, de qualquer jeito. Você ainda nem se
formou e essa é uma boa oportunidade para se ter no currículo…
— Você está tentando me convencer a ficar? — Levanto uma
sobrancelha, me afastando um pouco dele, sem acreditar no que escuto, e
tento esconder o sorriso que quer surgir.
— Estou conseguindo? — Pelo olhar, claramente quer que eu fique,
mas dá de ombros. — Você meio que é boa no que faz, apesar de ser
convencida.
​— O que eu vou ganhar se eu ficar? — Cruzo os braços.
​— Sairá em um encontro comigo.
​— Isso eu já ganharia de qualquer jeito, indo ou não.
​— Você sempre tem que negociar?
​— É como nossa dinâmica funciona — brinco e Anthony concorda.
​— Certo, se você ficar… Prometo ter camisinha da próxima vez.
​ bre um sorriso convencido e eu o acompanho, mas sinto meu sangue
A
subir pela bochecha, deixando meu rosto quente e, com certeza, vermelho.
​— Trato feito.
Capítulo 32

“Os arrepios começam a aumentar no momento


em que minhas mãos encontram sua cintura
Então eu vejo seu rosto e coloco meu dedo em sua língua,
Porque você ama provar, sim”
Sweater Weather - The Neighbourhood

Se no mês passado alguém me dissesse que eu estaria agindo como


uma menininha apaixonada por causa do meu chefe, eu riria na cara da
pessoa. Essa não era uma alternativa na minha cabeça, mas, hoje, não
consigo parar de sorrir como uma boba pensando nele.
Anthony e eu combinamos de sair sexta à noite. Ele vai me buscar
em casa e não me disse onde iremos, mas o encontro marcado não nos
impede de nos provocarmos dia após dia com o que parece uma sessão diária
de tortura. É a única forma que encontro para descrever o que estamos
fazendo um com o outro.
​Na terça-feira, me forcei a trabalhar, tentando manter a concentração no
que precisava fazer, quando escutei a porta do meu escritório abrir. Encontrei
o idiota lindo, que não sai da minha cabeça, encostando o corpo no batente e
cruzando os braços.
​— Sabe, é ridículo eu saber que você está no escritório por receber um e-
mail, sendo que eu deveria saber porque voltou a colocar suas bruxarias na
tomada e está sem roupa na minha mesa.
​Anthony é direto, não faz jogos e fala o que quer sem medo. O que eu
adoro, porque também sou assim.
​— Fala baixo, vão te escutar! — Respondo entredentes, e ele sorri,
fechando a porta atrás de si. Seria um terror se qualquer um do escritório
escutasse. — Você pode pingar algumas gotinhas de óleo no difusor sozinho,
não precisa de mim para isso — cruzo os braços.
Acompanho-o com o olhar quando dá a volta em minha mesa, parece
gostar da minha escolha de roupa para o dia. E eu fiz o mesmo com ele, mas
finjo não dar a mínima para o homem perto de mim. Anthony segura o braço
da minha cadeira, virando-a para si, e abaixa o corpo para aproximar o rosto
do meu.
​— Você me acostumou com essa maluquice hippie. Não pode
simplesmente parar agora — faz drama e fita meus lábios, a voz doce e
baixa, praticamente suplicando. — Já faz uma semana que você não coloca
nada para mim…
​— Você veio até aqui para isso? — Levanto uma sobrancelha em
desafio.
​— Não, eu vim aqui para isso — Anthony levanta meu queixo e me beija
devagar, me fazendo derreter.
​Mordo seu lábio com calma e agradeço mentalmente por ele não ser tão
cabeça dura quanto eu, porque eu perderia isso: seu toque, sua boca, seu
frescor… Quando tento segurar sua nuca para puxá-lo para mais perto e
aprofundar o beijo, Anthony se afasta, me dá um selinho e abre um sorriso
safado, antes de ir em direção à saída.
​— Se precisar de mim, sabe onde me encontrar — para, me olhando de
cima a baixo, e fecha a porta atrás de si.
​Reviro os olhos com um pequeno sorriso no rosto, afastando o calor que
seu beijo deixa no meu corpo. Forço-me a voltar a atenção para a tela do
computador, tenho muito trabalho pendente esperando por mim, apesar de
querer ir até seu escritório no mesmo instante.
​Na quarta-feira, coloco um blend especial de óleos em seu difusor, um
para deixá-lo alerta e para que o lembre de mim. Perfeito para quando
apareço em sua sala, poucos minutos depois do seu horário de almoço, já
que ele não foi até mim. Não tenho problema em correr atrás um pouquinho.
​— Boa tarde, senhor MacMillan — falo entrando em sua sala com duas
pastas de documentos nos braços. — Preciso que você assine alguns
documentos…
Dou a volta na mesa com seu olhar acompanhando meus passos.
Assim que chego ao seu lado, empurro sua cadeira e sento em sua perna.
Anthony ri da minha atitude e, enquanto eu abro a primeira pasta, colocando
os documentos em cima de sua mesa, segura minha cintura e me ajeita em
seu colo, pressionando o quadril em minha bunda.
— Quais documentos? — Ele pergunta, pegando uma caneta. Sua
mão desce devagar até meu quadril e sinto seus dedos na minha coxa, me
fazendo fechar os olhos e respirar fundo.
Fui ali para provocá-lo, mas é ele quem está conseguindo me afetar.
— Assine aqui e rubrique aqui…
Aponto nos documentos e o escuto suspirar baixo, antes de começar
a assinar tudo. Novamente, se mostra tão afetado quanto eu. O plano era sair
dali sem beijá-lo, mas assim que consigo as assinaturas, não evito o toque de
nossas bocas, principalmente com sua mão segurando meu quadril desse
jeito e o cheiro de seu perfume.
— Eu estou louco para tirar sua roupa. — Anthony fala baixo entre
beijos e aperta minha coxa.
— É a terceira vez que você fala que quer transar comigo essa
semana — passo a mão ao redor de seu pescoço e mordo os lábios. — São
muitas vezes para alguém que, até semana passada, nem olhava na minha
cara…
— Se quiser que eu pare, é só pedir — é a vez dele morder minha
boca e me fazer prender a respiração.
— Você me ouviu reclamando?
Levanto-me do seu colo e vou embora. Anthony me come com o
olhar, o que me faz sorrir antes de fechar a porta atrás de mim.
Não faço ideia de como estamos nos segurando dessa forma. Na
quinta-feira nos beijamos muito e, apesar das provocações e mensagens que
temos trocado, não transformamos o beijo em algo sexual. É tão bom que a
parte mais difícil do meu dia é ficar em meu escritório sem ir ao dele, ou não
ficar ansiosa a cada som que vem do corredor, com a possibilidade de ser
ele.
Apesar do clima gostoso e tranquilo que paira entre nós, a
preocupação toma conta do meu corpo a cada momento que consigo ficar
sozinha com meus pensamentos. Posso negar o quanto quiser, mas, mais
rápido do que eu jamais pensei ser possível, estou me apegando a ele. Na
verdade, já estava apegada há muito tempo e só agora percebi. Tudo culpa
do tempo que fomos obrigados a passar juntos nos últimos meses, porque só
assim pude conhecer um outro lado de Anthony, um que eu gosto cada vez
mais.
Isso é assustador pra caramba.
Eu só queria um manual de instruções com uma forma concreta de
saber quando estou passando dos meus limites para poder dar um passo para
trás e proteger meu coração. Porque sei que vou me magoar.
E sei que, em algum momento, ele vai me magoar.
Por isso, não posso me permitir ficar vulnerável dessa forma, não tão
fácil.
Depois de contar tudo nos mais indecentes detalhes para Mila, ela
tenta me tranquilizar e me aconselha a deixar as coisas fluírem, sem me
preocupar com o que pode dar errado.
​— Você não é uma pessoa de metades, Nina. Se não for para mergulhar
de vez, você nem molha o pé. Eu sei que dá medo e talvez a gente esteja
levando isso mais a sério do que realmente é, mas nunca se esqueça que: se
você se magoar, é porque pelo menos se permitiu sentir, e não existe nada de
errado nisso!
Suas palavras martelam em minha mente e é claro que ela tem razão.
Camila Barros sempre tem. Mas me entregar, mesmo que somente um
pouco, é extremamente difícil.
Já estou na sala de aula, na sexta-feira de manhã, quando ele
finalmente chega, acompanhado dos dois caras que parecem segui-lo como
cachorrinhos perdidos toda vez que está na faculdade, Malcom Watts e
Ethan McGee, irmão mais velho de Lauren. Os dois fazem mestrado com
Anthony, enquanto Lauren faz graduação como eu, apesar de ter a mesma
idade que eles. Não a vejo nas aulas desde que Anthony me pediu para
acompanhá-lo no evento beneficente do Instituto. Entretanto, ninguém
parece sentir sua falta, já que anda sempre sozinha, com exceção das aulas
que o trio faz conosco.
Anthony procura por mim no lugar que tenho sentado com Benji
desde que decidimos parar de brigar pela mesma mesa, o que me faz sorrir
quando o vejo me procurar pela sala, até ficar surpreso por me ver sentada
no lugar proibido.
— Ele viu, não devíamos estar aqui… — Benji fala baixo e passa a
mão no cabelo, claramente nervoso. — Nina, eu não estou nem um pouco a
fim de brigar com ele agora. O jeito que ele olhou para mim no Halloween…
— Ele não te olhou de jeito nenhum, e não fará nada. Relaxa! —
Tranquilizo o coreano e abro um sorriso convencido quando pego meu
laptop e o conecto na tomada. Estava com tanta saudade dessa mesa que
sinto até um pouco de satisfação, maior ainda pela sensação de irritar
Anthony.
Observo-o andar em minha direção, deixando os amigos para trás.
Ele está usando um coturno, provavelmente pela chuva forte lá fora, e um
sobretudo preto, combinando com sua roupa. As únicas cores destoantes são
o loiro de seus cabelos e o azul de seus olhos.
— Acho que você está sentada no lugar errado, Dias — Anthony
para ao nosso lado, olhando somente para mim, enquanto coloca uma mão
no bolso e Benji se vira para frente, fugindo do confronto que acha que
acontecerá.
Nenhum dos meus amigos de Londres faz ideia do que está
acontecendo entre nós dois. Não sei se ele contou para alguém, e pela
maneira que seus amigos simplesmente nos ignoram e continuam andando,
acho que não sabem também.
— Estou no lugar certo, MacMillan — ele sabe que só o chamo pelo
sobrenome quando quero provocá-lo, e começo a falar rápido, por pura
diversão. — Sabia que aqui é o único lugar com uma tomada exatamente do
lado da mesa? Perfeito, não acha? É um saco ficar dependendo de extensão
igual todo mundo… Era de se esperar que a sala de um dos melhores
professores da Universidade fosse melhor equipada. Podemos tentar criar
algum projeto para mais tomadas nas salas, assim você também poderá ter
uma.
— A guerra voltou? — Pergunta sério, mas posso ver a diversão em
seu olhar.
— Não vejo como uma guerra, já que eu obviamente venci. — Faço-
me de desentendida e dou de ombros.
Se alguém estivesse prestando atenção na nossa interação, acharia
que estamos apenas nos alfinetando, como de costume. Entretanto, sei que
ele está segurando o sorriso e gosta da provocação. Anthony se afasta de
forma presunçosa e é impossível não acompanhá-lo com o olhar até se sentar
algumas fileiras atrás de mim, me fitando sem se importar com qualquer um
ao nosso redor.
​Viro-me para frente quando o professor Herman entra na sala com o
nariz empinado e a cara fechada, sua expressão normal de todos os dias. Ele
senta em umas das primeiras cadeiras e fala em voz alta o nome de dois
alunos, pedindo para começarem a apresentação do seminário agendado
semanas atrás. Estou preparada caso ele chame meu nome, mas também não
quero ser uma das sorteadas, não hoje. Afinal, sei que será difícil ignorar a
presença de Anthony prestando atenção em tudo o que digo, como nas
reuniões que temos.
Alguns minutos após o início do seminário, meu celular vibra na
mesa e é impossível não sorrir quando vejo o nome que aparece na minha
tela.

Arrogante MacMillan (08:20) diz:


Não sei o que é mais insuportável: assistir esse cara falando merda ou
ficar te olhando e não poder chegar perto.

Marina Dias (08:21) diz:


Você é forte, tenho certeza que aguenta.

Arrogante MacMillan (08:21) diz:


Assistir ou não chegar perto de você?

Marina Dias (08:21) diz:


Os dois, é claro.

Arrogante MacMillan (08:21) diz:


Eu não teria tanta certeza assim.

Marina Dias (08:21) diz:


Vai me agarrar no meio da aula?
O professor Herman não vai gostar nem um pouco disso…

Arrogante MacMillan (08:22) diz:


E você, vai?

​ iro um pouco o rosto para trás e nosso olhar se encontra. Penso por
V
alguns momentos no que dizer e apago a resposta algumas vezes, até
finalmente apertar o botão de enviar.

Marina Dias (08:24) diz:


Você já sabe a resposta.

Arrogante MacMillan (08:25) diz:


Está preparada para hoje?
Marina Dias (08:25) diz:
Hoje? O que tem de importante hoje?

​ ou uma risada baixa e me viro para olhá-lo novamente, apertando os


D
lábios quando vejo o dedo do meio discreto que mostrou para mim. Não
respondo sua pergunta, mas estou mais do que pronta para o encontro,
principalmente por saber exatamente como quero que a noite termine e isso
inclui nossas roupas no chão, e eu sentada no meu chefe não tão arrogante
assim.
​Fetiche estranho depois de ler um romance duvidoso de CEO? Talvez,
mas se tenho a oportunidade de realizar essa vontade…
Passamos o resto da aula trocando mensagens, em sua maioria sobre
as apresentações e descobrindo fofocas dos alunos. Anthony é quieto e
reservado na sala de aula, então acho estranho ele saber de tanta coisa.
Quando pergunto qual é a sua fonte de informação, sinto um pequeno aperto
no peito quando leio “Lauren” como resposta.
O professor não chamou meu nome ou o de Benji e, no final da aula,
eu e meu parceiro de trabalho nos levantamos juntos para ir embora. Sinto o
toque suave de Anthony em minha cintura quando estou pegando minha
bolsa, como se pedindo licença para passar, mesmo tendo espaço o suficiente
para nós dois no corredor da sala. Ele faz de propósito e dá um aceno suave
de tchau, antes de desaparecer entre os alunos, e correr para uma reunião que
marcou no horário do almoço.
Bem longe da empresa de seu pai.
​Não fiz perguntas quando vi o compromisso agendado, porque não tenho
direito nenhum de invadir sua privacidade, mas é claro que fiquei curiosa, já
que ele não tem costume de fazer reuniões fora do escritório. Dei um Google
no nome do cara e descobri que é um investidor financeiro, mas não havia
muitas outras informações além de que ele é sócio de várias empresas
pequenas por toda a Inglaterra. Um empresário.
Benji não nota nossa interação. Depois de tagarelar por alguns
minutos sobre a nova garota com quem Ava está saindo, nos despedimos e
tomamos caminhos diferentes. Vou direto ao mercado que tem nas
proximidades para comprar uma salada grande e coca-cola para o meu
almoço e começar minha caminhada diária até o trabalho.
A cidade está cada vez mais bonita e fria, então é claro que sinto um
alívio grande quando finalmente chego no prédio da Vann
Empreendimentos. Acho que nunca vou me acostumar com o quanto todo o
local é majestoso e amedrontador. É como se fossemos ovelhinhas entrando
na cova dos lobos.
Cumprimento as meninas da recepção e os seguranças. Tudo está
silencioso, como é o costume de estar nesse horário. O elevador não demora
muito para chegar, mas me surpreende assim que a porta se abre no térreo,
revelando a presença de Archibald MacMillan na minha frente. Hesito por
um momento, já que essa é a primeira vez que nos vemos desde o dia do
evento do Instituto. Não sei se ele é parecido com a Miranda Priestly, de O
Diabo Veste Prada, que expulsa os funcionários do elevador para ele subir
sozinho até seu escritório.
— A senhorita vai entrar, ou não? — A voz grossa e seca me tira do
meu devaneio e levo um pequeno susto. Tiro o fone do ouvido e entro no
elevador, como se fosse minha obrigação.
— Boa tarde, senhor MacMillan — aperto um sorriso e pressiono o
13º, evitando olhar para o homem ao meu lado.
O pai de Anthony é alto e parece ainda maior com o nariz empinado
e o terno perfeitamente ajustado. O rosto é forte como o do filho, mas seus
olhos não carregam nem um pouco do cuidado que os de Anthony tem. É
frio, de verdade. Como se não houvesse espaço para nenhuma grama de
afeto em seu corpo.
— Meu filho está te fazendo trabalhar muito? — Pergunta com a voz
entediada, olhando para o celular.
— Não mais do que o esperado — não deixo transparecer a leve
insegurança em minha voz. Tenho certeza de que a maioria das pessoas deve
me achar forte o tempo todo, quando na verdade estou em completo surto.
— Por pouco tempo. Avise-o que vocês vão receber a documentação
de entrada de um projeto importante hoje — a porta do 13º se abre e eu saio
do elevador —, e que espero não ter problemas de qualquer tipo.
Seus olhos não desviam dos meus até a porta do elevador se fechar e
eu finalmente respirar. Legal, uma ameaça passiva-agressiva feita
indiretamente para mim, afinal, até onde sei, Anthony é perfeito em tudo o
que faz e o único problema que tivemos nas últimas semanas foi minha
participação na manifestação. Seus contratos são ótimos, graças a minha
ajuda, e não deixamos nada de última hora, para termos tempo de fazer as
alterações necessárias sem chamar atenção do andar de cima.
O 13º andar fica silencioso neste horário, até mesmo a recepção está
vazia, porque todos saíram para almoçar. Vou até minha sala, fecho as
cortinas e almoço ali mesmo, enquanto assisto mais um episódio de De
Férias com o Ex Brasil. Ao terminar, vou ao banheiro escovar os dentes e
retocar minha maquiagem antes de reorganizar as plantas em minha sala.
Sempre faço um rodízio para que todas aproveitem a luz do sol durante a
tarde, e as rego também. Repito todo o processo no escritório de Anthony e,
quando estou agachada do lado da tomada colocando meu blend no difusor,
a porta se abre, chamando minha atenção.
— Qual é o de hoje? — Anthony fecha a porta atrás de si e me
levanto.
— Tangerina — respondo em português. — Gosta?
— Parece com seu cheiro — Anthony se aproxima e coloca a mão
em meu rosto, levantando meu queixo e cheirando meu pescoço devagar. —
E seu cheiro é delicioso.
Sinto a pulsação do meu coração descer para o meio de minhas
pernas e aperto um pouco a coxa, tentando conter a sensação em mim.
Anthony faz carinho em meu rosto com o polegar e levanta a cabeça
devagar, passando os lábios no meu antes de me beijar, intercalando a língua
com a sensação de seus dentes mordiscando minha pele.
Meu celular me assusta quando começa a tocar alto e eu o ignoro por
alguns segundos, até o puxar do bolso para atender e ver o nome de Thomas
na tela.
​— Não para de me beijar, não… — Ele consegue ser extremamente
convincente quando quer e a voz baixa, ecoando na minha boca, não ajuda.
Concordo e colo nossos corpos, devolvendo o celular ao bolso da calça, até
começar a tocar novamente.
​— Vou ter que atender… — Beijo-o mais uma vez e Anthony começa a
descer os lábios por meu queixo e maxilar, me deixando fazer o que preciso,
mas sem se afastar de mim. — Alô?
​— Dias, tudo bem? — Thomas fala esbaforido, parece estar andando
muito depressa e o barulho de carros ao seu redor é alto. — Preciso de você
hoje à noite, tá livre?
​— Hoje, à noite? — Franzo a sobrancelha, confusa.
​— Diga que está ocupada… — Anthony sussurra baixo o suficiente para
Thomas não escutar, e levanta devagar minha blusa, tocando a pele de minha
cintura.
​— Estou ocupada — obedeço Anthony e recebo um sorriso de satisfação
por isso, seguido de uma mordiscada forte na base do meu pescoço.
​ Bom, sinto-lhe dizer, mas sua presença é obrigatória. O Centro corre

risco de fechar.
Capítulo 33

“Parece que finalmente posso descansar minha cabeça em algo real


É como se você me conhecesse melhor do que jamais me conheci
Amo como você consegue desvendar todos os pedaços de mim”
Pieces of Me - Ashley Simpson

​ O que ele quer dizer com “a Vann entrou com um processo junto à

Prefeitura para fechar o Centro”?
​Questiono Anthony, depois de confirmar minha presença na reunião de
emergência. Meu coração está apertado, e tento processar as poucas frases de
Thomas, antes de precisar desligar.
​— Explique melhor. — O loiro fica confuso, apoiando a mão em minha
cintura enquanto me encara com uma curiosidade.
​— Thomas acabou de falar que receberam uma notificação da prefeitura
com uma lista absurda de obras que precisamos fazer para manter o Centro
aberto, ou ele será derrubado em breve, em parceria com a Vann
Empreendimentos. Você sabia disso?
​— É óbvio que não, você não acha que eu te contaria se soubesse de
alguma coisa?
​— Eu espero que sim, porque, até onde me lembro, você falou que me
ajudaria. — Cruzo os braços em frustração, incrédula. — Que merda! O que
está acontecendo?
​— Eu não sei, Dias. Eu realmente não sei de nada, mas podemos
descobrir.
​Anthony está sério agora, sem brincadeiras, sem charme. É como se
desligasse algum botão em si e ativasse o modo de trabalho e foco.
Acompanho-o até sua mesa e paro ao lado de sua cadeira, esperando o
computador ligar. O único som que consigo escutar é o de nossas
respirações, até o computador estar pronto e Anthony abrir a pasta de
LittleWin. Nós dois passamos os olhos pela tela, procurando a subpasta do
Centro que continua com senha, até mesmo para ele.
​— Por que seu pai está fazendo isso? São vidas e famílias que serão
prejudicadas, bem que ele me falou que teríamos muito trabalho… — Bufo
em frustração. Essa reunião de emergência vai ter um grande foco em mim e
não sei o que dizer aos outros, já que nem o herdeiro da empresa tem acesso
ao projeto. É óbvio que estão escondendo algo.
​— Meu pai te falou o que? — Anthony levanta a cabeça para me olhar,
surpreso ao saber que falei com Archibald.
​— Ele está no prédio hoje, nos encontramos no elevador e ele falou que
chegaria um projeto importante de tarde. — Me afasto da mesa de Anthony
e, inconscientemente, ando até a janela, abrindo-a para respirar um pouco de
ar puro. — Merda, eu estou fodida! Provavelmente eles vão me pedir para
fazer muitas coisas que eu não faço ideia de como fazer, e eu não posso
fazer qualquer coisa que vá ferrar com você. Também tem toda a pressão
que eu, claramente, não sou boa para lidar. Sem contar o…
​— Ei, ei, ei! — Anthony se levanta e vai até onde estou, segura meu
rosto com as duas mãos e me faz olhar para ele. — Respira fundo, comigo.
​Não havia percebido que estava começando a ter uma crise de ansiedade,
só quando Anthony me força a respirar com ele que sinto o formigamento
familiar na minha mão, além do coração disparado. É sempre assim, de
repente, perco todo o controle que tenho de mim.
Foco minha atenção em sua respiração.
Nossa respiração.
— Que planta é aquela? — Anthony tem a voz baixa, olhando para
trás de mim e me fazendo olhar também.
— Espada-de-São-Jorge — respondo no mesmo tom e vejo-o
respirar fundo, me fazendo repetir o processo com ele.
— E ela tem algum poder mágico?
Entendo que está tentando me fazer falar de algo que gosto para me
acalmar. Seguro seu antebraço enquanto ele acaricia meu rosto devagar,
ainda me fazendo manter a respiração ritmada com a dele.
— Tem, ela… — Respiro fundo mais uma vez e fecho os olhos,
soltando o ar devagar. — Afasta mal olhado e é purificadora, já que absorve
qualquer substância tóxica do ar, depois devolve o oxigênio mais limpo. Mas
deveria estar perto da porta, tem mais efeito lá.
— Eu não sabia, por isso coloquei na estante. Vou colocar lá de
novo depois, tudo bem? — Anthony mantém o olhar no meu, me passando
uma calma e tranquilidade que faz a sensação sufocante lentamente
desaparecer.
Não sei quantos minutos ficamos assim, apenas nos olhando e
respirando juntos, enquanto respondo às perguntas de Anthony sobre
plantas, mesmo sabendo que ele não tem real interesse no que estou lhe
dizendo. Uma lágrima solitária escorre pelo meu rosto quando me sinto bem
e Anthony seca minha bochecha com cuidado.
— Obrigada… — murmuro e tento me afastar, mas ele não deixa e
segura minha mão, entrelaçando nossos dedos com firmeza.
​— Eu falei que te ajudaria, não falei? — Anthony coloca meu cabelo
atrás da orelha e só agora percebo que ele passou esse tempo todo falando
em português.
​— Eu também falei que ajudaria e agora um grupo inteiro de pessoas
vai me colocar contra a parede hoje à noite. Mas não tem nada que eu possa
fazer para reverter a situação…
​— Não ponha toda a culpa em cima de você, isso não é justo. — Sinto
seu braço me envolver em um abraço quente e, quando deito a cabeça em
seu peito, escuto seu coração batendo forte. — Marina, me escuta… O que
você está fazendo com a Ordem, de atrasar documentação para as pessoas
terem chances de continuar com seus negócios, é muito arriscado, você sabe
disso. Sei que tentava fazer tudo escondido de mim, mas eu percebi logo no
início, e se fosse qualquer outra pessoa no meu lugar, você poderia estar
com um grande processo de fraude nas costas.
— Eu sei disso, Anthony. Só que não existe alternativa para mim, e
não só por causa da Ordem, ou por sua causa. Simplesmente não consigo
ver uma injustiça e ficar calada. Você sabe que não pedi esse emprego por
isso, as coisas só aconteceram, e eu tento ajudar, sei lá, a driblar as merdas
que acontecem aqui. Você acha justo a forma que a Vann consegue essas
empresas? — Nego e me afasto de seu abraço, assustada com o rumo dessa
conversa.
— É claro que não acho justo e é por isso que quero que continue
fazendo. Meu pai está roubando a empresa há anos e eu só descobri quando
ele finalmente me deixou trabalhar perto dele. Antes, eu era apenas um
qualquer, sem função certa e que recebia um salário grande por ser quem
sou. Então, estudei até me mostrar capaz. Quando ele começou a confiar em
mim, descobri que o crescimento rápido da Vann acontece por causa de
acordos corruptos e sigilosos que ele faz com o governo. O que você tem
visto não é nada perto do que estou descobrindo, e nós dois estamos
ajudando tudo a continuar.
​— Ajudando? — Dou um pequeno passo para trás, confusa.
​— Não fizemos nada quando vimos a diferença de valores na maioria
dos orçamentos aprovados das últimas semanas, ou fizemos? — Anthony
levanta a sobrancelha quando entendo o que ele quis dizer. — Estou
reunindo provas, Marina. Provas de tudo o que ele tem feito, porque não vou
assumir um lugar sujo como esse, quero minha empresa limpa. Quero que o
dinheiro que a gente usa para os projetos sociais não seja manchado por
corrupção. É um dos motivos de eu ter ficado tão bravo com ele ter
aparecido no evento do Instituto, fazendo todo aquele teatro de benfeitor…
Você está entendendo onde quero chegar?
​— Você precisa de tempo. — Falo de forma segura e Anthony confirma.
— Por que você não tem acesso ao projeto? Quer dizer, você deveria poder
ver o que está acontecendo, não?
​— Sinceramente… Não tinha percebido isso antes. — Anthony olha para
o computador e volta para mim. — Qual é o seu plano?
​— Bom, você precisa de tempo e eu preciso descobrir o que está
acontecendo no Centro, então acho que podemos trabalhar juntos.
​— Estamos fazendo muitas coisas juntos ultimamente… — Anthony abre
um pequeno sorriso convencido que me faz sorrir também.
​— Deve ser alguma brincadeira do universo nos obrigando a ficar no
caminho um do outro.
​— Por mim, tudo bem.
​— Certo, o que eu faço, então? — Respiro fundo e levanto o queixo,
como se estivesse me preparando para o que vem a seguir.
​— Vá na reunião, descubra o que está acontecendo e, assim que
soubermos mais, tentaremos ajudar o Centro.
— E depois?
​— Darei um jeito de colocar meu pai na cadeia, pelo que está fazendo
com a memória de nossa família e por tudo o que fez com minha mãe.
Capítulo 34

“Você tem que fazer uma escolha


Se a música te abafar: aumente a sua voz,
Toda vez que eles tentarem calar a sua boca”
Sing - My Chemical Romance

​ vento frio passa por mim, me fazendo encolher e apertar o casaco ao


O
corpo. A lua já está alta no céu quando paro na calçada, criando coragem
para entrar na Beer&Books. Talvez coragem não seja a palavra certa, já que
não estou com medo do que acontecerá lá dentro, mas sim preocupada.
Então, uma pequena dose de valentia seria muito bem-vinda.
​Tudo o que tenho que fazer é escutar o que Thomas têm a dizer, pensar
em que posso ajudar e responder com clareza as perguntas que fizerem sobre
a Vann, de uma forma que não comprometa o Anthony, já que ainda não é o
momento de falar qualquer coisa que eu saiba sobre o que está realmente
acontecendo por lá.
​Não consegui trabalhar pelo resto do dia depois da crise de ansiedade, e
Anthony me deixou em casa para eu ficar sozinha, como pedi. Suas palavras
martelavam em minha mente, sobre o que tem acontecido na empresa e seu
posicionamento contra. Assumo que fiquei surpresa com suas palavras e, a
cada dia que passa, fico mais curiosa sobre essa pessoa que estou
conhecendo. Anthony precisará ser muito forte para enfrentar o pai e
inteligente para conseguir justiça.
​Combinamos de nos encontrar amanhã, depois do almoço, e não
deixamos claro se seria nosso encontro ou só uma pequena reunião sobre o
que vou escutar daqui alguns minutos. Queria ter perguntado, mas achei que
talvez fosse uma pergunta fútil para se fazer no momento, quando temos
coisas mais importantes acontecendo do que um simples encontro.
​Um pequeno grupo de estudantes abre a porta do PUB, me obrigando a
dar um passo para o lado para não ser atingida. Aproveito para deixar de
enrolar, e entro de uma vez, até porque não posso continuar plantada ali fora
por mais tempo, seria estranho. O choque de temperatura percorre meu
corpo no instante em que piso no salão, e é involuntário tirar minha toca
enquanto vou ao bar.
​— Sebastian, tudo bem? — Paro à frente do dono do local e ele joga um
pano sobre o ombro, apoiando as mãos no balcão.
​— Nina, não sabia que você vinha também — fala com aquela gentileza
rústica que só quem o conhece consegue notar, já que sua voz é grossa e
todo o seu jeito também.
​— Ah, os outros já chegaram?
​— Estão nos fundos, fechei a livraria para vocês… — Aponta para o
pequeno portal que leva à parte aconchegante dos fundos, onde me encontro
com o clube do livro toda semana. — Vai querer alguma bebida?
​— Hoje não, obrigada — tiro meu cachecol, me despeço timidamente e
recebo um pequeno aceno antes dele começar a limpar o balcão.
​A porta dupla, que geralmente fica aberta, está fechada e não é possível
escutar o que está acontecendo ali dentro por conta do som alto no bar. Bato
na madeira duas vezes e espero alguém abrir para mim, mas ninguém
aparece, me fazendo repetir o gesto.
​— Ah, é você! — Emma aparece aliviada, então segura meu braço, me
puxa para dentro e fecha a porta.
​— Oi, gente — aceno para todos que estão sentados com as cadeiras
formando um círculo. Vários lugares estão vazios, mas o time de sempre está
presente.
​Olive, Reggie, Benji, Ava, Emma, Thomas, Theo e, claro… Charlie.
​— Que bom que você veio, Nina — Thomas está preocupado, muito
preocupado. Dá para ver no seu olhar e em sua postura nervosa.
​— Vocês já começaram? Estou atrasada? — Pego uma cadeira e a puxo
até o lado de Theo.
​— Estávamos esperando os outros chegarem, mas acho que seremos só
nós… Tá todo mundo meio que desistindo.
​— Tudo culpa do que aconteceu na manifestação — Olive dá um sorriso
triste e suspira.
​Isso é realmente uma merda, saber que a lealdade e o comprometimento
das pessoas vai até certo ponto e, depois disso, é cada um por si. Não
consigo ser assim, me dou demais pelos outros, mais do que eu deveria,
provavelmente.
​Sinto olhos em mim, não dos outros, mas os de Charlie. Sento-me dando
um oi silencioso e sua resposta é a piscadela que já me deu diversas vezes,
desde o dia em que nos conhecemos. Sorrio, colocando minha bolsa no chão
e ele cruza os braços, ficando confortável na cadeira.
​— Nós ainda estamos aqui, e é isso que importa. Quem fica. — Thomas
bagunça o cabelo e respira fundo, se preparando para começar. — Tá, acho
que ninguém mais virá e não quero enrolar… Dá última vez que os
bombeiros foram no Centro, eu não tinha dinheiro o suficiente para pagar o
novo alvará. Com isso, eles enrolaram por um tempo e aceitaram ficarmos
sem. Só para nos ajudar. Até que hoje cedo recebi uma notificação: ou
fazemos as alterações no casarão, ou eles vão nos interditar.
​— Deve ser só protocolo, Thomas. — Reggie tenta tranquiliza-lo, mas
Thomas nega.
​— Eu também achei que fosse, por isso fui até eles e tive uma reunião
com o chefe… É verdade, e não tem nada que a gente possa fazer a não ser
começar as obras.
​— Eles falaram alguma coisa antes de tomarem essa decisão, ou
simplesmente a tomaram? — Olive pergunta.
​— Não falaram nada e o pessoal do escritório deles foi extremamente
mal educado e arrogante comigo. Eles não estavam abertos a negociar e se
não estivesse tentando tanto convencê-los a nos dar mais tempo, eu
provavelmente teria mandado tomarem no cu. Foi ridículo.
​— Não descarto minha teoria, Thomas. — Charlie nega, irritado,
fazendo todos se virarem para ele.
​— Eu realmente não queria concordar com você, mas é a única coisa que
consigo pensar agora… — Thomas apoia o braço no joelho, suspirando. —
Dias, a gente vai precisar de você.
​— Você falou que minha presença hoje era obrigatória, então posso
imaginar o que você quer de mim. — Aperto os lábios e seguro meu
cachecol com mais firmeza. — Fale o que tem em mente e posso ver se
consigo ser útil de alguma forma.
​— Nós precisamos saber o que a Vann está planejando para o Centro.
Charlie acha que eles estão lavando a mão das pessoas para que consigam
nos fechar e seguirem com o plano inicial de comprar o terreno. Isso é algo
que parece mais claro para mim a cada dia que passa.
​— Certo… Olha, gente, sei que vocês esperam que eu consiga todas as
respostas, mas eu não sei dos planos. Eu realmente não sei. Já achei a pasta
do projeto do Centro, mas está bloqueada, não consigo acessar.
​— Com certeza o MacMillan deve ter a senha, você não consegue
acessar pelo computador dele? — Theo sugere e eu nego.
​— A senha não está salva automaticamente no computador dele, e de
qualquer maneira, Anthony também não tem acesso à pasta. — Falo somente
porque sei que isso não o comprometerá em nada. — É provável que outro
setor esteja cuidando disso. Porém, é muito difícil eu conseguir acessar
qualquer coisa de outro setor por causa das senhas que eu realmente não
tenho, e não acho possível conseguir. O sistema que usamos tem uma
segurança bem rigorosa e você só acessa o que é seu trabalho direto. Às
vezes, quando preciso de algo do RH ou do financeiro, preciso solicitar e
eles me enviam exatamente o que preciso. Não sei se consigo dar um jeito de
entrar em outro andar, muita gente me conhece por causa do Anthony e…
Não sei.
​— Entra no escritório do pai dele. Ele deve ter acesso.
​— Com que senha? — Pergunto desacreditada no que Thomas está me
sugerindo.
​— Nós precisamos de você. O Centro foi a vida do meu tio e é a minha
vida, não vou deixar que fechem. Você é a única pessoa que pode nos ajudar
a descobrir o que está acontecendo por trás dessa perseguição. É a única que
pode fazer alguma coisa e nos apoiar agora. Se descobrirmos o que está
acontecendo, podemos dar um jeito de conseguir mais tempo. Nós
precisamos de mais tempo.
​— Eu sei e eu concordo com você. — Estou completamente aberta e
empática com a angústia que escuto em sua voz. — Só estou tentando dizer,
Thomas, que você não pode jogar toda a responsabilidade em cima de mim.
Eu posso e vou tentar, mas não é fácil.
​— Se você continuar fazendo o mínimo de esforço, será difícil mesmo.
Agora, se você se esforçar de verdade, você consegue. — Sua voz agora é
julgadora, como se eu não quisesse ajudar o Centro de propósito.
​Sinto como se tudo o que fiz nos últimos meses, todas as vezes que me
arrisquei pelo grupo e pela comunidade que eu aprendi a gostar mais a cada
visita, fosse em vão. Isso me fragiliza, mas não me diminui perante ele.
​ O mínimo de esforço? — Cerro os olhos quando o fito, desafiando-o

pelo o que falou para mim.
​— Sim, ou vai me dizer que fez tudo o que podia? — Thomas devolve o
desafio e abro a boca sem acreditar no que estou escutando.
​— Eu faço tudo o que posso todos os dias, Thomas. Caso você não se
lembre, é por minha causa que cinco famílias ainda estão com seus
comércios abertos em LittleWin. Ou você acha que é fácil inventar
empecilhos para atrasar a documentação certa, alterar assinaturas e até
mesmo sumir com orçamentos, só para conseguirmos mais tempo? A todo
momento, me coloco em risco, principalmente a minha bolsa de estudos e
meu visto, e mesmo assim eu continuo aqui. Quantos membros ingleses
abandonaram o grupo depois da manifestação?
Sinto meu corpo pegar fogo, meus olhos cheios de lágrimas de
indignação e minha mão treme quando continuo:
— Eu tenho muito o que perder e continuo aqui. Saí na porra de um
jornal, o conselho da Vann mandou o Anthony me demitir por estar
envolvida em uma ação que eu não tenho nada a ver e tudo culpa dos
tablóides sensacionalistas. E. Ainda. Estou. Aqui.
​Todos estão sem palavras, enquanto alguns alternam o olhar entre nós
dois em completo choque. Outros, como Reggie, desviam o olhar. Nunca
mais vou deixar que pisem em mim ou que ajam como se eu não fosse o
suficiente, essa foi uma das maiores regras que coloquei em minha vida nos
últimos anos. Não vou aceitar ingratidão com o que eu sei que fiz para
ajudar.
​— Nós não podemos brigar, gente… — Olive fala antes que eu abra a
boca para continuar meu discurso, porque tenho muito mais para deixar
claro. — Só temos uns aos outros, então brigar não é o mais inteligente a se
fazer agora.
— A Nina está fazendo o suficiente sim. Se ela está falando que é
difícil entrar no sistema, eu acredito. — Ava olha para Thomas irritada. —
Não seja ingrato com quem se sacrifica tanto por esse projeto, garoto.
A maneira que se refere a ele como “garoto” é sutil, mas coloca
nosso líder em seu lugar. Parece até que ninguém nunca havia discutido com
ele dessa forma, pois ele está desnorteado com o que falei.
— Não estou sendo ingrato — Thomas diminui a voz e suspira,
olhando para mim com o que parece ser vergonha.
— Está sim, cara. — Charlie me defende. — Ela está tentando.
Mais um silêncio paira pelo ar e eu agradeço o ruivo em silêncio,
ganhando um pequeno sorriso apertado de volta.
​— Tá, precisamos de uma solução mais concreta — Emma chama a
atenção para si depois de enviar um olhar reprovador ao namorado. — A
Nina vai procurar o que precisamos e, enquanto isso, temos coisas a fazer.
Querendo ou não, temos que fazer as reformas, ninguém vai nos dar mais
tempo e não podemos contar com a ajuda dos bombeiros. Mesmo que a Nina
consiga acessar os documentos e atrasar tudo, nós ainda vamos precisar de
dinheiro para pôr tudo em prática.
​— E dinheiro é algo que não temos. — Reggie olha para o próprio pé,
cruzando os braços.
​— Exato. Não temos as duas coisas que mais precisamos, tempo e
dinheiro… — Emma concorda e se vira para Thomas mais uma vez. — A
intimação vale até quando?
​— Final de fevereiro. — Thomas responde com o olhar baixo, assim
como sua voz.
​Quase sinto pena por ele, mas não sou trouxa.
​— Certo, isso nos dá algumas semanas para arrecadar a grana, arranjar
voluntários, começar as obras e correr com tudo o que precisamos fazer. —
Emma parece confiante, sua postura reta e os olhos brilhantes apontam isso.
​— É pouco tempo, talvez a gente consiga fazer campanhas de
arrecadamento na faculdade. — Benji sugere dando de ombros e
imediatamente, Ava nega.
​— Precisaremos de muito mais do que isso para conseguir. — Ava fala
diretamente para ele.
— Podemos fazer venda de doces todos os dias, mais a campanha de
arrecadamento. — Theodore sugere e Ava nega mais uma vez.
​— Podemos fazer um brechó. — Olive sugere.
​— Ou um dia com cachorro quente em vez de vender doces. — Benji
completa.
​— Ou podemos fazer os dois, seria legal também, não? — Agora, é a vez
de Emma falar.
​A conversa vira uma bagunça com cada um dando uma ideia, vozes
passando uma por cima da outra. É tanta informação, que sinto minha cabeça
começar a girar. É difícil escutar outra língua o dia inteiro e, na maior parte
do tempo, não tenho dificuldades em entender o que é falado para mim, mas
neste momento é impossível compreender qualquer coisa além de palavras
desconexas.
​Pego minha bolsa no chão e procuro pelo meu blend, sei que ninguém
está prestando atenção em mim quando passo o óleo nos pulsos e respiro o
aroma devagar. Preciso de clareza. Fecho os olhos e tento me concentrar nas
vozes do grupo, entendendo algumas palavras soltas no meio das frases. E
como se essas palavras começassem a fazer sentido, vejo tudo se formar com
clareza.
​— Eu tive uma ideia! — Tento chamar a atenção deles, mas ninguém me
dá bola. Tento mais uma vez e novamente sou ignorada, então começo a
bater palmas, o que faz com que todos fiquem quietos e me olhem confusos.
— Eu falei que tive uma ideia.
​— Ah, claro… Somos todos ouvidos. — Emma me dá a palavra e
espera.
​— Que tal um festival? — Passo a mão em meu cabelo, colocando-o
atrás da orelha e deixando que o aroma passe perto do meu nariz novamente.
​— Um festival? — Olive vira a cabeça de lado, tentando entender o que
estou sugerindo.
​— Sim, todo o lucro será revertido para a reforma do Centro.
— E como faríamos algo assim? — É a vez de Thomas perguntar e
se eu pudesse ver o que está acontecendo dentro da sua cabeça, com certeza
veria as engrenagens começando a funcionar.
​— Podemos juntar todas as ideias que vocês tiveram e chamar vários
setores da faculdade para ajudar, a galera da gastronomia, o pessoal de
música… Principalmente os alunos que estão no último ano, assim podemos
fazer um grande trabalho de conclusão de curso coletivo para eles com
aplicação prática. Eles não serão só voluntários, vão trabalhar para tudo sair
perfeito e tirarem nota máxima. — Sugiro enquanto todo o plano vai se
formando em minha cabeça. — A bancada só se apresenta no final de
janeiro, não é? É perfeito, podemos fazer o festival no meio do mês.
​— Isso nos dá só um mês para organizar tudo. — Theo aponta, sem
colocar muita fé em mim.
​— Se conseguirmos as pessoas certas, tenho certeza que a gente dará
conta.
​— E o que teria neste festival? — Charlie apoia os braços no joelho e se
inclina em minha direção, o semblante tranquilo esperando pelo que tenho a
dizer.
​ Música boa de graça e muita comida gostosa, com certeza.

Receberemos pela comida e pelas bebidas, sem contar que podemos fazer
entrada solidária, as pessoas pagam o que acham justo ou o que acham que o
show vale, para ajudar. Todos trabalharão de graça, só gastaremos com as
mercadorias. Barraquinhas de jogos também são uma boa, e outras coisas
como… Leitura de mão e tarot, eu sei fazer e só preciso de um espaço
tranquilo para atender as pessoas. Podemos ter as comidas que vocês
sugeriram também.
​Falo rápido e animada. Consigo visualizar o festival na minha frente. As
barracas, o espaço aberto, as pessoas se divertindo e o dinheiro que
arrecadaremos.
​— Tem várias bandas no curso de música, posso montar uma lineup. —
Olive pensa em voz alta e os outros logo confirmam, todos se animando
também.
​— Podíamos ter alguém bem legal como artista principal, alguém que
traga público e que chame a atenção para o que estamos fazendo. — Emma
morde a ponta do dedo, pensando.
​— Alguém tipo a DownUnder? — Ava sugere como se não fosse nada
demais.
​— Não podemos pedir para eles, já ajudaram demais dando as aulas para
as crianças. — Thomas nega. — Não tenho coragem para isso.
​— Não tem coragem? — Pergunto desacreditada e no instante seguinte
puxo o celular e começo a procurar o número da Manu. — A advogada da
banda é brasileira, amiga da Ava e minha conhecida… Sem contar que é um
amor e os caras já se mostraram super solícitos para essas coisas.
​— Sim, dar aulas para algumas crianças e não fazer um show inteiro de
graça. — Thomas dá de ombros e eu reviro os olhos.
​— Se você não quer que a DownUnder toque no festival para salvar o
Centro, fala de uma vez, porque o número dela já está chamando. — Tiro o
celular da orelha e mostro para ele.
​Não existe universo em que eu não tente conseguir o que quero. Como
minha mãe sempre me falou: o não nós já temos, agora precisamos correr
atrás do sim. E até escutar um sonoro e claro “não” da Manuela, eu vou
tentar o sim.
​— Tem certeza? — Thomas faz uma careta e o telefone continua
chamando.
​— Claro! Eu não tenho vergonha, Thomas. Se precisam de uma cara de
pau para conseguir isso, eu sou essa pessoa. Porque eu não faço só o
mínimo.
​Uma alfinetada desnecessária, mas não seria eu se não falasse o que sinto
que deveria, neste momento. Charlie e Theo dão uma risada nasalada e Benji
aperta os lábios, escondendo o sorriso que insiste em surgir em seu rosto.
Olive passa a mão pelo cabelo como se estivesse cansada. Depois que
Thomas recebe um empurrão de ombro de Emma, ele finalmente cede, se
dando por vencido.
​— Vá em frente, Dias. — Thomas abre seu computador. — Precisamos
fazer uma lista inicial das ideias e como faremos funcionar.
​Sorrio satisfeita e, quando meu olhar se encontra com o de Charlie, ele
está sorrindo para mim, como se estivesse orgulhoso. O celular da Manu
continua chamando, enquanto o resto do grupo se junta e começa a trabalhar,
até que escuto sua voz do outro lado da linha.
​— Para você me ligar, só consigo pensar em duas opções: ou você está
morrendo ou foi sequestrada. — É a primeira coisa que a Manu fala.
​— Nenhuma das duas, mas tenho uma oportunidade única e incrível
para a DownUnder, podemos nos encontrar?
Capítulo 35

“Está tudo bem eu ter dito tudo isso?


Será que ainda é muito cedo para fazer isto?
Porque eu sei que é delicado”
Delicate - Taylor Swift

​ trasei para sair de casa, só para variar.


A
​Fiquei até tarde com o grupo para decidir os primeiros detalhes do
festival que, se tudo der certo nas reuniões que Ava terá hoje, acontecerá em
breve. Então, não dormi muito bem, estava ansiosa, tendo ideias e
escrevendo-as no computador, o que estragou meus planos de acordar cedo
para estudar para as últimas provas do semestre, antes do recesso de Natal.
​Não faço ideia de onde vou com Anthony, mas ele pediu para nos
encontrarmos no início da tarde na faculdade. Depois de colocar a roupa
mais quentinha que tenho no armário, arrumar meu cabelo com várias ondas
e tranças finas espalhadas pelo comprimento, e colocar uma touca e o
coturno Dr. Martens que garimpei no brechó perto do escritório, corro
escada do prédio abaixo para ir o mais rápido que consigo até o metrô.
​Me enrolo com as chaves do hall e ao abrir a porta principal, no meio da
euforia da pressa, meus olhos pousam em Anthony, que está apoiado em
uma moto estacionada na calçada. É impossível não sorrir com essa visão e
admirá-la.
​Anthony está com o cabelo bagunçado, veste um moletom verde escuro,
jaqueta de couro preta, coturnos parecidos demais com os meus —
provavelmente os dele são novos, e não usados — e o mesmo óculos de sol
quadrado que já o vi usando antes e que o deixa um gostoso.
Idiota bonitão.
​ Achei que fôssemos nos encontrar no campus — dou pulinhos para

descer os degraus e ele dá alguns passos em minha direção.
​— Eu te enganei, mas você estaria atrasada. — Anthony olha para o
relógio no pulso e depois puxa-me para perto para um beijo.
​Simples assim, no meio da rua e sem se preocupar com qualquer um ao
nosso redor. O beijo me faz perder o ar, já que eu não esperava qualquer
contato físico em algum lugar aberto. Tudo o que temos vivido é sempre
muito particular e nossas interações nunca foram vistas por outra pessoa.
​Meu coração bate forte e fico na ponta dos pés, passando os braços ao
redor de seu pescoço e beijando-o mais uma vez, porque é bom e eu quero
senti-lo perto de novo.
​— Está frio pra caralho — falo quando desencosto de seus lábios e
estremeço de leve.
​— Nem subiu na moto ainda e já está reclamando? — Anthony levanta
uma sobrancelha e olha para a moto na calçada.
​Ela é grande e preta. Se sou ruim para distinguir modelos de carros,
imagine de motos. A única coisa que sei é que ela é maneira e, novamente,
combina com ele. Muito.
​— Não estou reclamando, só estou constatando um fato. — Dou um
passo para o lado e coloco as mãos nos bolsos do sobretudo. — E eu nunca
andei de moto antes.
​— Sempre tem uma primeira vez. — Anthony pega o capacete e o
estende para mim. — Prometo ser bonzinho com você.
​— Você nunca é bonzinho comigo — brinco, fingindo estar desconfiada
e Anthony dá de ombros, sorrindo torto.
​— O que vou precisar negociar para você subir na garupa? — Anthony
se aproxima e eu puxo o capacete da sua mão.
​— Bom, você provavelmente pagará o jantar de hoje… Já está me dando
carona… — Começo a andar ao seu redor, olhando para o alto. Anthony me
acompanha com o olhar, esperando pacientemente com um sorriso divertido
no rosto.
​— Vamos, deve ter alguma coisa que você queira.
​— Hoje, eu quero que você me surpreenda. — Paro de andar na sua
frente e pisco os olhos algumas vezes. — Acha que consegue dar conta? Não
sou uma pessoa muito fácil de impressionar.
​— Eu sei muito bem que não, mas, para minha sorte, tenho certeza que
vou conseguir.
​ nthony toca minha bochecha com carinho e me dá um selinho suave,
A
antes de colocar o próprio capacete e subir na moto. Enquanto se arruma,
prendo meu cabelo, arrumo minha touca e coloco o capacete, tudo para não
estragar o cabelo com o vento. Assim que termino, subo na garupa e abraço
sua cintura.
​Seu perfume invade meus sentidos e xingo os capacetes silenciosamente.
Daria tudo para encostar a cabeça nas suas costas e abraçá-lo de verdade.
​— Pronta?
​— Não — falo com uma risada nervosa.
​— Você confia em mim? — Anthony segura uma das minhas mãos,
acariciando-a.
​— Confio.
​A resposta sai de forma tão natural da minha boca, que me assusta, e a
sensação que tenho é de que falei a coisa mais louca de toda a minha vida.
Eu confio nele.
Realmente confio.
​Anthony dá partida e, no segundo seguinte, estamos deslizando pelas
ruas de Londres. Seguro-o com mais firmeza por causa do medo, e a cada
curva, fecho os olhos achando que vamos cair. Quando simplesmente me
deixo levar e acompanho seus movimentos suaves, tudo fica menos
assustador.
​Em poucos minutos, a paisagem da cidade começa a mudar e entramos
na estrada. Solto um pouco o aperto em Anthony e, apesar do frio, aproveito
o trajeto, observando tudo e me sentindo em paz, sem nenhuma
preocupação. Ficamos assim por mais de uma hora, dividindo um silêncio
confortável enquanto recebo carinhos ocasionais de Anthony em minha mão.
​— Onde estamos? — Pergunto quando entramos em uma cidade e o
cenário urbano volta ao nosso redor.
​— Você pediu para eu te surpreender, não pediu? — Anthony não fala
mais nada, ignorando meus protestos para que conte.
​Desisto de descobrir quando começamos a passar por prédios antigos,
parecidos com os de nossa faculdade e é impossível não admirar a grande
construção que ele escolhe para estacionar. Desço primeiro, com os olhos
fixos no prédio e em sua linda arquitetura, que já vi tantas vezes em filmes.
No instante em que vejo uma placa, Anthony abaixa o visor do meu
capacete, me fazendo virar para ele.
​— Ei? — Reclamo e abro o visor, em seguida tiro o capacete.
​ Sem estragar a surpresa, ou vou vendar seus olhos. — Anthony

também tira seu capacete e arruma o cabelo.
​Concordo e depois que estou pronta, ele entrelaça os dedos nos meus,
segura minha mão com firmeza e me guia pelo caminho de pedrinhas até a
frente do que parece ser um pátio de pedra, com entradas em todas as laterais
do espaço. Anthony sabe exatamente para onde ir e, me segurando para não
ler as placas ao nosso redor, meu coração bate forte quando entramos na
frente de uma biblioteca enorme. O cheiro familiar de livros me anima,
enquanto vejo a quantidade de prateleiras lotadas que nos cercam.
​É lindo e parece que já estive aqui antes, todo o cenário é familiar
demais.
​— Por aqui, vem…
​Anthony continua andando até que a área mais modernizada da
biblioteca fica para trás e milhares de livros com capas lindas se estendem
por estantes que vão até o teto, com espaços para estudos e um teto todo
adornado com pinturas detalhadas e madeira esculpida. Parece que sou
transportada para outro mundo.
​— Essa é… — entro em um corredor, admirando tudo como uma
criança, o sorriso se alargando no rosto.
​— A biblioteca Bodleiana. — Anthony responde antes que eu complete a
frase. — Sei que você gosta de ler e vi que seu protetor de tela é uma foto de
Hogwarts, então achei que fosse gostar.
​— Você prestou atenção no protetor de tela do meu celular e me trouxe
para uma locação do filme?
​Levanto uma sobrancelha divertida e Anthony dá de ombros, sem dar
muita importância para a informação. É sobre os pequenos detalhes. Sobre
ele não comer carne porque sou vegetariana, sempre ter um chocolate extra
para mim e me deixar livre para ser eu mesma.
​— Obrigada — sussurro e dou um beijo em sua bochecha. — Eu amei!
​— Consegui te surpreender?
​— Com certeza! — Dou um passo para trás e volto a olhar ao nosso
redor, sem acreditar que estou aqui. — Sabia que um dos motivos para eu ter
vindo para cá foram os lugares em que eu iria estudar? É como se eu
estivesse vivendo um dos meus muitos sonhos, todos os dias.
​Escuto os passos dele me acompanhando pelo corredor, me deixando à
vontade para explorar o espaço, enquanto passo a mão pela madeira das
estantes e os olhos pelas lombadas dos livros. Uma infinidade de
conhecimento em cada uma daquelas páginas, o cheiro acolhedor e o
ambiente silencioso… É perfeito.
​— Acho que, quando a gente cresce vendo isso todos os dias, não damos
tanta importância assim. — Anthony aperta os lábios e para em um corredor,
então começa a procurar por algum livro na estante.
​— Vai me dizer que não é lindo? — Chego ao seu lado, olhando-o pegar
um livro e o abrir na mesa à nossa frente.
​É um livro de ervas, com ilustrações belíssimas que não parecem
impressão antiga, é como se o artista a tivesse ilustrado exatamente naquela
página. Passo o dedo pela folha e a viro, admirando cada erva explicada ali.
Depois dos livros de ficção, os livros de botânica são os mais especiais para
mim. Tanto conhecimento medicinal foi passado adiante por causa desses
registros, feitos há séculos.
​Levanto a cabeça para Anthony e o encontro me admirando. Seu olhar
intenso, carregado de carinho, fazem as borboletas em meu estômago
voarem enlouquecidas por todos os lados.
​— Você é linda.
​É impossível não lhe dar um beijo agora e é por isso que encosto os
lábios nos dele no instante seguinte. Se antes estava com medo de assumir,
agora não tem como negar: estou me apaixonando por ele.
​— Quantos livros tem aqui? — Fecho o livro e entrego para Anthony,
que o coloca de volta no lugar.
​— Não sei ao certo, mais de 12 milhões, acho.
​— É muita coisa… E é triste saber que não vamos conseguir ler tudo isso
em vida. — Sussurro e voltamos ao corredor principal, passeando pelo local.
— Sabia que quando eu era adolescente, sonhava constantemente que
estudava em Hogwarts? Sonhos muito reais, era assustador e mágico ao
mesmo tempo…
​— Por que eu sinto que você só sonhava com isso por causa de algum
personagem?
​Seu tom de voz me faz rir e dar de ombros, porque sim, ele está certo.
Não me recordo mais de tudo, mas sei que tive alguns namorados em meus
sonhos e que vivi algumas aventuras legais sempre que deitava a cabeça no
travesseiro.
​— Talvez eu tenha dado alguns beijos em alguns bruxos… — Respondo
fingindo não dar muita importância, e escondo o rubor das minhas
bochechas.
​ Certo, quem? — Anthony me empurra de leve com o ombro quando

nego, apertando a boca para não contar. — Uma pergunta por outra.
​— Você vai usar a mesma tática do Halloween? — Lembro-o.
​— Vamos, Dias, acho que mereço saber depois de te trazer aqui.
​Paro de andar e penso se responderei ou não, até que cedo e dou de
ombros, como se não fosse nada demais.
​— Fred Weasley e Draco Malfoy. — Volto a andar para não ver seu rosto
e escuto-o rir baixo atrás de mim, apressando o passo para me alcançar.
​— Espera aí, o ruivo e o loiro — Anthony continua rindo e não para de
andar. — Não pode ser verdade… Você é muito previsível!
​— Tá, e daí? Talvez eu seja mais previsível do que eu esperava, qual o
problema? — Finjo estar brava, mas seguro o sorriso que insiste em surgir,
principalmente vendo-o se divertir também.
​— Você é inacreditável. E com quem você ficou no final, o ruivo ou o
loiro?
​— Com nenhum dos dois — viro o corpo de lado, parando de andar e
mordendo o lábio, quando Anthony levanta uma sobrancelha desconfiada.
— Eu estou falando sério, eu não lembro de muita coisa. Só sei que estava
no castelo, lutando contra alguns bruxos na batalha, vi uma explosão se
aproximando e acordei.
​— E acordou? Isso é muito sem graça.
​— Eu não controlo meus sonhos, seu convencido. — Empurro seu
ombro e voltamos a andar um ao lado do outro. — Mas foram sonhos legais,
eu torcia para conseguir continuar a história que vivi a cada noite e ficava
bem frustrada quando não acontecia.
​— Nunca tive sonhos assim — ele pega meu capacete, para eu ficar com
as mãos livres para explorar. — Na verdade, é muito raro que eu consiga
sonhar com qualquer coisa.
​— Isso é triste… Sonhar é um dos meus escapes da realidade, além de
ler e assistir reality show ruim.
​— Acho que ainda estou descobrindo quais são os meus escapes.
​Nosso olhar se encontra mais uma vez e eu sei que ele está falando de
mim.
​ stamos jantando em um pequeno restaurante, em Oxford, depois de
E
passarmos o resto do dia passeando pela cidade, curtindo as ruas e o
comércio local. Não paramos de conversar nem por um segundo, tudo flui
tão facilmente, que mesmo o silêncio é confortável, como se estar ao seu
lado fosse simples e certo.
​Pego-me admirando-o mais vezes do que gostaria de admitir, assim
como sinto vontade de beijá-lo diversas vezes durante o dia. Não passei
vontade, já que todas as vezes em que me aproximei, ele retribuiu o contato
com a mesma intensidade.
​ Você não perguntou nada sobre a reunião de ontem… — Aponto o

fato já ao final do jantar, quando estamos comendo a sobremesa, um pedaço
de torta com sorvete.
​— Não achei que você fosse querer falar sobre isso hoje.
​— Não quero.
​— Tudo bem, então.
​Anthony coloca mais uma colherada de torta na boca e eu o imito,
tentando afastar minha mente do assunto que insiste em surgir.
​— Mas você quer saber, não quer?
​— É claro que quero, quando você quiser me contar.
​É assim que é estar com um homem que não te força a falar e a fazer
coisas no momento dele? Estranho. Sinto como se tivesse uma pressão
invisível sobre o assunto que surgiu em minha mente algumas vezes durante
o dia, mas afastei para não estragar o momento.
​— Fala logo, Dias.
​— Não, em outro momento falo.
​— Eu não consigo escutar seus pensamentos, mas estou vendo essa
cabecinha ansiosa funcionando. Fale de uma vez, se você quer tanto
conversar sobre.
​— Tá, o Centro recebeu uma intimação para fazer as reformas
necessárias para manter o funcionamento e eles acham que talvez esteja
acontecendo um acordo entre a Vann e os órgãos públicos para que fiquem
mais rigorosos com o pedido dessas alterações. Você sabe de algo? — Falo
em português para que as pessoas ao nosso redor não nos entendam,
torcendo para não ter nenhum brasileiro por ali agora.
​— Não especificamente do Centro, mas meu pai, com certeza, tem
acordos assim para outros projetos. Já vi e é uma das provas que estou
tentando pegar no sistema. Acho que a maioria desses acertos são feitos
verbalmente e colocados em prática, afinal ele é próximo do prefeito. Ele
costumava ir em nossa casa quando eu era mais novo. Hoje em dia, não sei
mais, não moro com ele há alguns anos.
​— Certo, então precisamos de provas.
​— Preciso das senhas, o que está muito difícil de conseguir.
​— Tem alguma maneira de acessar o setor de arquivos do prédio?
​— Até tem, mas o problema está nos acessos secundários, os que apenas
ele consegue ver e mexer. Acho que ele usa um gerador de senhas únicas, já
o vi carregando uma espécie de pager com ele, e duvido que seja algo para
se comunicar com alguém.
​— E se entrarmos na sala dele? Não seria mais fácil?
​— É mais fácil, mas perigoso. Tem senha para entrar lá e duvido que os
arquivos fiquem abertos. Ele até tem um arquivo de papel atrás da mesa,
mas nunca fiquei sozinho para ver, nem quando era criança.
​Tento pensar em algum plano, mas nada surge no momento. Então,
ficamos os dois quietos enquanto terminamos de comer os doces. Não tenho
mais o que adicionar no assunto, então não insisto, mas outras curiosidades
surgem.
​— Ontem você falou que o colocaria na cadeia pelo o que fez com a sua
mãe… Eu estaria invadindo muito sua privacidade se perguntasse o que
aconteceu?
​— Estaria — Anthony diz, me fazendo encolher um pouco os ombros
—, mas não seria você se não perguntasse. Ela sofreu um acidente de carro
alguns anos atrás. A ambulância não conseguiu chegar até o hospital a
tempo.
​— Sinto muito…
​— Meu pai sempre foi a maior doença da nossa família e eu nunca a vi
sorrir ao lado dele, pelo menos não de verdade. Em eventos da sociedade,
eles eram o casal perfeito, mas dentro de casa cada um dormia em um
quarto e todas as vezes que ficavam perto, ele drenava toda a energia dela.
No dia que ela morreu, eu estava na minha avó, mas lembro que eles
brigaram e eu a escutei falar que não aguentava mais ser infeliz, que iria
para onde a amavam como ela era.
​Meu coração está completamente apertado e sinto uma lágrima escorrer
por minha bochecha. Eu a limpo discretamente e Anthony me tranquiliza
com o olhar.
​— Foi por isso que você saiu de casa?
​— Foi, passei muito tempo com raiva e abri mão de tudo. Quando atingi
a maioridade, passei dois anos viajando o mundo, me embebedando e
gastando o dinheiro dele. Até que, um dia, eu vi uma mulher tão parecida
com minha mãe em Madrid que algo se acendeu em mim, eu estava
desperdiçando minha vida e meu pai estava livre de nós dois, em Londres,
gerenciando o negócio da família, como se nada tivesse acontecido. Voltei a
estudar e falei que queria entrar na empresa oficialmente, ele achou que eu
tinha caído em mim e me trouxe para perto, mas não tanto.
​ Não consigo imaginar como deve ser não confiar na própria

família…
​— Com o tempo, a gente descobre quem é a nossa família de verdade.
​Terminamos de comer, deixando o silêncio confortável pairar entre nós
enquanto absorvo tudo o que escutei. Percebi em seu olhar que estava bem
em contar a história, mesmo que doesse. E como se precisasse mudar um
pouco o clima da conversa, sorrio dando um último gole em meu vinho.
​— Geralmente, eu bebo Coca-Cola na taça de vinho com minha melhor
amiga — giro a taça devagar na minha frente e Anthony também sorri,
confuso.
​— A amiga com quem você fala coisas absurdas sobre mim?
​— Ela mesma — concordo dando uma risada baixa. — Você devia ter
falado que me entendia, eu acho que nunca passei tanta vergonha na minha
vida.
​— E qual seria a graça se eu tivesse contado antes? Nunca teria visto a
cara que você fez quando descobriu, que inclusive, entrou na lista dos meus
momentos favoritos com você.
​— Ah, então eu estou em uma lista? — Apoio o braço na mesa e me
aproximo dele. — Eu quero saber mais sobre.
​— Não vou te contar — responde convencido e faz um sinal para o
garçom se aproximar da mesa.
​— Tenho uma pergunta de crédito, já que te contei sobre meus sonhos, e
quero usá-las descobrindo dois itens da lista.
​Anthony respira fundo e pede nossa conta com uma educação impecável.
A voz gentil, o sorriso charmoso e o olhar de quem se importa. Assim que o
garçom se afasta, seu olhar volta ao meu e ele cede, soltando um suspiro e
pensando no que falar. Espero, pacientemente, enquanto ele demora de
propósito, só para me torturar.
​— Quando cheguei antes de você na aula, pela primeira vez. Você ficou
tão irritada, que senti seu ódio atravessando toda a sala enquanto me
encarava. Estava tão satisfeito por saber que, naquele dia, eu havia vencido,
e você não tirava os olhos de mim.
​— Você acordou uma Marina muito competitiva naquele dia, fiz questão
de pegar o trem o mais cedo que eu consegui nas aulas seguintes.
​— Para alguém que vive atrasada, você quis muito se provar para mim.
​— Eu nunca cheguei atrasada no trabalho! — Levanto o dedo para ele e
damos risada juntos. — O que mais?
​ nthony umedece os lábios e seus olhos alcançam minha alma.
A
​— Depois da festa do Instituto, você estava sentada no meu carro,
irritada e com as luzes da rua iluminando seu biquinho de brava enquanto
tentava me ignorar. Estava de batom vermelho… Tudo o que eu conseguia
pensar era em como eu queria te beijar.
​Fala a última frase em português, o que faz minha respiração pesar.
Merda. Não vou conseguir me afastar.
​Não quero me afastar.
​— A conta, senhor.
O garçom aparece do nosso lado, e como se estivesse satisfeito pela
minha reação, Anthony paga nosso jantar, se levanta e, com a mão nas
minhas costas, me guia até o lado de fora do restaurante. As ruas estão
movimentadas e andamos de mãos dadas até a moto. Anthony vai direto até
ela e eu fico parada na calçada, assustada.
— Anthony, eu não sei se sou boa nisso. Na verdade, eu tenho
certeza que não sou. — Ele franze a sobrancelha e fica me olhando,
esperando que eu continue a falar. Abraço meu corpo e dou de ombros,
negando com a cabeça enquanto solto o ar dos meus pulmões com pesar.
— Dias, não precisa fazer isso…
— Preciso sim. Eu tenho uma tendência em afastar as pessoas, e eu
sinceramente, não quero afastar você, mas eu sei que vou acabar fazendo
isso. É inconsciente, como se eu não conseguisse manter ninguém perto
tempo o suficiente e machucasse todos que tentassem.
— Você não vai me afastar — Anthony dá um passo para perto.
— Eu vou, eu sei disso, mesmo que eu não queira. E acredite, eu não
quero. Merda, meu coração está disparado. — Solto uma risada nasalada e
mordo a boca.
— Não precisa ficar nervosa, só me escuta. Você pode até tentar, mas
enquanto me olhar desse jeito e me beijar da forma que você me beijou hoje
o dia inteiro, eu não vou a lugar algum. E você sabe que eu sou tão
competitivo e teimoso quanto você.
Concordo em silêncio, lutando com minha própria mente para que,
dessa vez, eu consiga fazer as coisas da forma correta, e não me sabote como
costumo fazer.
Capítulo 36

“Quem te chamou aqui? Quem te convidou pra entrar?


Quem deixou me invadir, inverter tudo de lugar?
Já tinha trancado a porta, mas a chave reserva estava na tua mão.
Não tem mais volta, prevejo destruição.”
Destruição - Sandy e OutroEu

Estamos chegando em Londres, quando Anthony pergunta onde


deveria me deixar, o que com certeza é uma deixa para saber se eu quero
terminar nosso dia por ali, ou se quero estender o encontro para outro lugar.
Tento aquecer meu corpo no dele e me inclino para frente, tomando cuidado
para não bater nossos capacetes, quando sussurro que vou para onde ele
quiser ir.
​Sua mão dá um pequeno aperto na minha e, minutos depois, estamos
estacionando no subsolo de um dos hóteis Vann Inn da cidade, um dos
negócios da empresa, em que não trabalhamos diretamente. O hotel é lindo,
com um lobby aberto e um grande candelabro que reluz nas paredes e no
chão de mármore. Estou observando tudo atentamente, enquanto Anthony
me leva direto ao elevador.
​— Você não precisa avisar na recepção que vai pegar um quarto? —
Pergunto preocupada com os funcionários e pensando na confusão que seria
simplesmente entrarmos em um quarto sem avisar alguém. Ou melhor, não
haveria confusão, porque o Anthony é o dono do hotel, mas ainda seria falta
de respeito com o trabalho dos outros.
​— Não é um quarto qualquer, amor… É meu apartamento. — A porta se
abre e Anthony aperta o botão da cobertura.
​ Espera, você está me falando que mora em um hotel? — Pergunto

sem acreditar e ele revira os olhos. — É sério? Tipo o Chuck Bass?
​— Quem é esse? — Anthony cerra os olhos, virando o corpo para mim.
​— Você sabe, herdeiro de uma rede hoteleira, marido da Blair… —
Continuo, mas ele não faz ideia do que estou falando. — Estou falando de
Gossip Girl, Anthony.
​— Você realmente acha que eu assistia Gossip Girl quando era
adolescente, Dias? — Anthony me desafia com obviedade e eu nego.
​— Você bem que se parece com o Chuck, em partes. — Sorrio e vejo
Anthony curioso com o que tenho a dizer. — Ele é arrogante, teimoso,
convencido, tem tudo o que quer…
​— Tudo o que quer? — Vejo os olhos de Anthony fixos em minha boca,
antes de passar por todo o meu rosto.
​— Quase tudo. — Mordo os lábios e coloco as mãos para trás, com uma
falsa timidez. — O que você quer?
​Anthony dá um passo em minha direção e, com uma velocidade
torturante, aproxima o rosto do meu. O som de sua respiração em meu
ouvido me faz arrepiar e fechar os olhos, sentindo a antecipação da sua voz.
​— Eu quero você, Dias. Na minha cama. Eu posso ter você?
​Sinto a pulsação forte no meio de minhas pernas, quando engulo em
seco, encontrando novamente seu olhar.
​Não consigo responder e tenho certeza que, se eu tentar, minha voz
falhará miseravelmente. Apenas concordo no instante em que a porta do
elevador se abre, apesar de eu querer sua boca agora. Anthony segura minha
mão e me guia até o hall, digita uma senha na fechadura eletrônica do
apartamento e finaliza com sua digital para abrir a porta e revelar onde mora.
​O espaço não se parece com um hotel, os móveis com certeza foram
escolhidos especialmente para ele e deixam o conceito aberto elegante. Meu
apartamento inteiro não deve ter metade do tamanho da sua sala, e logo vejo
a enorme estante de livros que divide a sala do quarto.
​Na mesinha, ao lado do sofá, tem um livro de capa dura com um marca
páginas dentro e me aproximo, curiosa para saber o que ele está lendo e
esperando por um livro chato de trabalho. Surpreendo-me quando vejo
Mistborn, do Brandon Sanderson.
​— Não sabia que você lia fantasia…
​— Você tem muito o que aprender sobre mim ainda, amor…
​ nthony coloca a mão suavemente em meus ombros e me ajuda a tirar
A
meus casacos para, então, pendurá-los no armário perto da porta. Aproveito
o tempo longe dele para olhar ao redor, e chego perto da estante,
encontrando mais fantasia do que o esperado, além de terror, clássicos e
alguns livros de romance.
​— Seu apartamento é incrível — me viro para ele e dou uma volta pela
sala, sentindo-o me acompanhar.
​Anthony me puxa para perto suavemente, me virando de costas e
espalmando a mão em minha barriga. É involuntário fechar os olhos,
principalmente quando ele coloca meu cabelo de lado e deixa minha nuca
livre, depositando um beijo suave que faz meu corpo inteiro se arrepiar.
​— Uma das poucas vantagens de ser um MacMillan.
​— E quais são as vantagens de estar com um MacMillan? — Provoco
com delicadeza, olhando-o por cima do ombro.
​— Se quiser, posso te mostrar.
​— Estou contando com isso.
​Ficamos frente a frente e o beijo que se segue é desesperado, como se
nunca mais fossemos nos beijar. Anthony segura minha cintura de encontro
com seu quadril com firmeza e eu o abraço, apertando suas costas e
puxando-o para mim, porque não quero deixá-lo se afastar, não agora.
​Nossas roupas vão sendo tiradas a caminho do quarto e Anthony ri com a
quantidade de camadas que estou usando, tudo por causa do frio que sinto
nesta cidade. Com ele é fácil e rapidamente vejo seu peitoral, assim como
seu abdômen que só havia sentido com a ponta dos dedos, dias atrás. Admiro
seu corpo e passo o dedo devagar por sua pele, desde a entrada de seu
quadril, até sua clavícula. A tatuagem no braço está completamente visível e
é lindíssima, uma cobra enrolada que desce de seu ombro até a região do
cotovelo.
​Quando nossos olhares se encontram, Anthony segura a barra da minha
última blusa e a tira do meu corpo devagar. Sorrio quando desço o dedo por
sua barriga e abro sua calça, a respiração rápida, ansiosa pelo o que vai
acontecer nos próximos minutos, ou nas próximas horas. Quando me beija
novamente, sua mão alcança o fecho de meu sutiã e o abre com facilidade,
deixando meus seios à mostra.
​Anthony os admira e deposita um beijo em meu ombro, os lábios descem
devagar até alcançar meu mamilo. Fecho os olhos e jogo a cabeça para trás,
entrelaçando os dedos em seu cabelo e soltando um gemido quando sinto sua
língua em minha pele. Porra, eu vou derreter. Todo o frio que senti é
substituído por puro fogo que sobe do meu centro e se espalha por todo o
corpo.
​Seguro sua cintura com força e Anthony me faz dar passos para trás, até
que me deita em sua cama. Ele não precisa falar nada, só a forma que me
olha, me toca e me beija, já diz muito mais do que eu jamais pensei ser
possível escutar. Mordo os lábios quando vejo-o tirar seu coturno e deslizar a
calça pelas pernas, ficando somente com a cueca box preta na minha frente.
​Anthony passa a mão devagar por minha perna e a levanta, apoiando
meu coturno em sua própria perna e desamarrando meu cadarço de uma
forma tão simples e sensual. Se eu pudesse ter uma visão perfeita, para o
resto da minha vida, seria essa.
​Assim que meus coturnos estão no chão, Anthony segura o cós da minha
calça e a tira, depositando beijos por meu ventre, minha coxa e minha perna,
até me deixar somente de calcinha em sua cama. Todos esses beijos, toques e
olhares me deixam com ainda mais tesão por ele. A pulsação no meio das
minhas pernas implora para senti-lo dentro de mim, com força ou devagar.
Não me importo, desde que a gente esteja próximo.
​— Tira minha calcinha, Anthony… — Peço, um pouco mais autoritária
do que esperava, e com um sorriso malicioso no rosto.
​— Você vai me matar…
​Anthony me obedece e seus dedos, sempre frios, dão um contraste
delicioso em minha pele quente. Não consigo evitar olhá-lo enquanto desliza
o tecido pelas minhas pernas. Eu estou completamente nua na sua frente e,
antes de se aproximar novamente, suas pupilas dilatam enquanto a boca
para na altura do meu ventre e sua mão abre minhas pernas. Mordo minha
boca com um sorriso indecente antes de senti-lo passar a língua devagar
onde estou mais sensível, latejando de desejo por ele.
​Não tento reprimir o gemido que sai, principalmente quando vejo que
sou combustível para Anthony. Ele levanta a mão para acariciar meu corpo,
sem parar de me chupar e de me fazer arfar com seus movimentos. Imaginei
essa cena tantas vezes durante a semana, que é difícil acreditar que esse
toque finalmente está acontecendo. Meu quadril se mexe em sua boca e
arqueio as costas quando sinto-o colocar um dedo em mim, aumentando a
intensidade de seus movimentos.
​Anthony me fode com os dedos e com a língua, sinto-me pulsar com
tanta força que, quando o orgasmo me atinge, não consigo disfarçar o tremor
que se espalha por todo o meu corpo, me fazendo estremecer e gozar em sua
boca.
​— Caralho, é você quem vai me matar… — Sorrio boba quando ele
diminui a estimulação e me observa satisfeito, dando beijos gentis por minha
coxa e subindo pelo meu corpo enquanto tento acalmar minha respiração.
​— Estava sentindo falta do seu gosto — Anthony fala baixo e eu o puxo
para cima, quero beijá-lo e me sentir em sua língua.
​Passo as unhas por suas costas e sinto-o se afastar só o suficiente para
tirar a cueca, aproveito para descer minha mão até sua bunda, apertando com
firmeza e sentindo todo o seu corpo, da mesma forma que faz comigo.
Nossas mãos percorrem cada centímetro de pele, com um envolvendo o
outro.
​Estamos tão perto, que sinto seu pau encostando em minha perna.
​— Você prometeu que teria camisinha, mas caso não tenha, tem na
minha bolsa… — Sussurro travessa entre beijos e Anthony me olha com
obviedade.
​— Com você, eu nunca mais vou cometer o mesmo erro. Estou sonhando
em te foder naquela mesa desde aquele dia, e me sentindo um idiota por não
ter estado preparado para isso. — Anthony me beija mais uma vez e se estica
até a mesinha de cabeceira, abrindo a gaveta e tirando uma camisinha de
dentro.
​— Podemos corrigir esse erro depois — brinco e tiro a camisinha de sua
mão.
​Anthony deita ao meu lado, me olhando enquanto abro o pacote com a
boca e, antes de continuar, envolvo meus dedos ao redor do seu pau,
movimentando com uma velocidade torturante para cima e para baixo, até
descer a boca por sua ponta molhada e o lamber devagar.
​— Caralho, amor…
​Anthony geme me olhando e eu sorrio, lambendo-o mais uma vez e
chupando-o devagar, colocando apenas um pouco em minha boca e me
afastando. Cada vez que ele me chama de amor, é como se algo dentro de
mim explodisse e, porra, me dá muito tesão.
​Coloco o máximo que consigo em minha boca e, quando segura meu
cabelo com firmeza, tirando os fios do caminho, começo a chupá-lo,
sugando e lambendo cada pedaço de seu pau. Deixo a camisinha de lado e
seguro sua coxa com uma mão, enquanto a outra massageia onde não
consigo alcançar. Seus gemidos são meu combustível, e não paro até senti-lo
inchar em minha boca, indicando que é hora de parar.
​— Ainda não — fito seus olhos quando tiro-o de minha boca e pego a
camisinha novamente, finalmente deslizando-a devagar em seu pau. —
Quero você dentro de mim quando gozar.
​— Você quem manda, amor.
​Sorrio quando ele arruma o corpo na cama e eu passo por ele,
posicionando-o em minha entrada e colocando apenas sua ponta em mim.
Reviro os olhos com a sensação, mas não sento, não ainda. Continuo
provocando não só ele, mas a mim, desço o quadril um pouco e logo me
levanto. Anthony carrega um sorriso presunçoso a cada vez que faço menção
de colocá-lo inteiro dentro de mim, e aperta meu quadril com força quando
me levanto e o deixo na expectativa.
​— Para de me provocar, Dias.
​Nego sorrindo e passo o dedo devagar em seu abdômen.
​— Você quer me foder, Anthony? — Pergunto inocentemente e sua mão
sobe para meu seio, massageando-o e apertando meu mamilo.
​— Você já sabe a resposta — Anthony passa a língua no lábio.
​Abaixo-me e sinto sua ponta esfregando em meu clitóris quando rebolo
devagar ao lhe beijar.
​Sinto seu pau sendo colocado em minha entrada, passando devagar por
toda a minha extensão para me provocar. Nossos peitos encostando um no
outro, assim como nossos lábios.
​— Quero te ouvir pedindo — sussurro em seu ouvido e mordo seu
lóbulo.
​— Eu estou louco para te foder, Marina. Quero escutar você gemendo e
sentir sua boceta se apertando no meu pau enquanto goza. Eu te quero tanto
que sinto raiva de você, por ser tão insuportavelmente gostosa, que não
consigo ficar longe, e eu sei que você me quer tanto quanto eu te quero. —
Anthony passa a língua em meu lábio inferior e entra somente um pouco, me
fazendo perder o ar pela sensação. — É isso que você quer ouvir? Quer que
eu implore? Porque eu não me importo em fazer o que você quiser, é só
pedir. Eu sou seu.
​Sem pensar duas vezes, desço meu quadril e sinto Anthony me
preenchendo por completo. Suas palavras estimulam meu centro e meu
coração. Ele está disparado e sinto que estou transbordando de amor de uma
forma incontrolável.
​ ento-me nele e apoio a mão em seu peito, arranhando sua pele enquanto
S
rebolo, deixando-o que entre e saia sem parar. Anthony não desvia o olhar,
sua boca semi aberta solta gemidos roucos enquanto aperta minha bunda, o
que ajuda meus movimentos e levanta o próprio quadril, para entrar ainda
mais em mim.
​Não faço ideia de quanto tempo ficamos assim, mas sinto o suor
escorrendo pela minha pele, sem ter controle nenhum de meus movimentos e
me sentindo apertar no instante que Anthony dá um tapa em minha bunda.
Basta seu polegar alcançar meu clítoris inchado que minha visão começa a
embaçar no mesmo instante. Estremeço, sentindo seu pau inchando dentro
de mim enquanto gozo, aliviando toda a tensão presente em meu corpo.
​Anthony levanta o corpo e cola nossos peitos, beijando meu ombro
enquanto me segura perto, ainda ajudando a movimentação do meu quadril
enquanto ele mesmo busca por seu prazer. Largo a cabeça em seu ombro
quando termina, completamente sem energia e, se ele não estivesse me
segurando, provavelmente teria me jogado em cima dele.
​Escuto o som de seu sorriso, quando volta a beijar meu ombro devagar,
me fazendo arrepiar muito, já que estou inteira sensível ao seu toque. Meu
corpo está mole e dou um sorriso frouxo, me esforçando para levantar a
cabeça e encontrar seu infinito azul me olhando.
​Sua mão afasta o cabelo que está caído em meu rosto e, como se nunca
tivesse visto algo tão bonito na vida, Anthony me beija, devagar, com
carinho e… amor?
​Com o coração disparado no peito, olho para o travesseiro ao seu lado,
Anthony passa a mão por minhas costas e, entendendo o que quero, sai de
dentro de mim e me deita no colchão devagar. Quando deito, solto um
suspiro cansado, o riso frouxo ainda no rosto.
​— Você está bem? — Anthony pergunta com um misto de diversão e
leve preocupação, e seu dedo pousa em minha barriga, me fazendo um
carinho tranquilo.
​— Estou ótima — mordo os lábios e suspiro. — Não sinto meu corpo.
​A risada gostosa que ele dá, só faz com que eu me sinta ainda mais
confortável.
​— Assim eu vou ficar convencido.
​— Mais? — Provoco-o e ele me dá mais um beijo, antes de se levantar
para se limpar.
​ bservo-o sentar na beirada da cama de costas para mim. Então, ele dá a
O
volta no quarto, indo em direção ao banheiro, para voltar pouco tempo
depois.
​— Me empresta uma camiseta? — Pergunto antes dele vir para a cama e
ele assente, indo até o armário e me deixando admirar a bunda linda e
redonda que tem. Puta que pariu.
​Quando se vira, a visão de todo o seu corpo, definido na medida certa,
com uma fina camada de suor cobrindo sua pele é tão linda, que chega a ser
ridículo. Ele me entrega uma camiseta cinza e eu sento para vesti-la, então
abraço o travesseiro e me ajeito na cama, dando espaço para que ele deite
comigo. Nossas pernas se entrelaçam e ele puxa meu quadril para perto dele,
encaixando nossos corpos como se fossemos um.
​O misto de sentimentos em meu peito é estranho, estou feliz, querendo
abraçá-lo e mantê-lo comigo pra sempre. Estou com medo, porque estou
feliz demais, mais do que deveria. Estou satisfeita, porque o sexo foi bom,
mas parece que foi mais do que isso… Como se estivéssemos nos
reconectando, como se aquela sensação que tive no Brasil, de que eu estava
me mudando e indo em busca do meu verdadeiro lar, tivesse finalmente me
encontrado.
​O que é mais do que assustador.
​Encosto a cabeça em seu peito e fecho os olhos, sentindo seu cheiro
delicioso e escutando o som do seu peito.
​— Seu coração está batendo forte — sussurro.
​— É culpa sua — sua mão acaricia meu cabelo, e eu suspiro ao sentir seu
carinho. — Ele sempre fica assim quando você está perto.
​— Mentiroso. — Levanto um pouco o queixo e olho para ele, que coloca
a mão em meu peito, sentindo o meu também.
​— E o seu, por que está disparado assim?
​Fico em silêncio, tentando controlar o próprio coração idiota, que está
gritando desesperado para que eu seja sincera pela primeira vez em muito
tempo, enquanto minha mente implora para que eu me proteja.
​— Eu não sei… Também estou tentando entender.
​Anthony faz um carinho delicado em meu rosto e respira fundo, se
aconchegando em mim. Ele não precisa falar nada, seu silêncio é sua forma
de me dar o espaço que preciso e mostrar que não vai me pressionar. Isso
basta.
Capítulo 37

“Porque todas as pequenas coisas que você faz


são o que me lembram por que me apaixonei por você
E quando estamos separados e eu sinto sua falta
Fecho meus olhos e tudo que vejo é você”
Those Eyes - New West

​ cordo abraçada ao Anthony, não sei em que momento da noite


A
decidimos que eu seria a conchinha maior e ele a menor, mas eu gosto
bastante dessa dinâmica.
​Observo o movimento tranquilo de suas costas enquanto respira, assim
como a tatuagem na parte de trás do seu ombro e passo o dedo devagar pelo
desenho, acompanhando o traço marcante e escuro da cobra que contrasta
com sua pele. Passo o nariz em sua coluna e sinto-o arrepiar e se mexer
quando lhe dou um beijo suave.
​Sorrio como uma boba, porque até sua nuca é linda, e o abraço mais uma
vez, tocando sua coxa enquanto encaixo seu corpo no meu. É estranho
conseguir me encaixar tão bem nele, mas é gostoso, e parece certo.
​— Está acordada? — Sua voz é rouca e sinto sua mão envolver a minha,
entrelaçando nossos dedos antes de dar um beijo suave em minha palma.
​— Estou… — Sussurro e ele vira o corpo em minha direção. Ao puxar
minha cintura para perto, enterra o rosto em meu pescoço, me dando alguns
beijos suaves, enquanto suspira.
​— Você é gostosa de dormir junto — praticamente ronrona.
​— Isso quer dizer que você dormiu bem?
​— Como não dormia há muito tempo — dá mais um beijo em meu
pescoço e geme baixo. — Bom dia, amor.
​ Bom dia.

​Ah, eu ficaria assim para sempre.
​Faço carinho em seu cabelo e sinto sua respiração quente se chocando
com minha pele. As palavras que foram faladas ontem não param de voltar à
minha mente.
“Não me importo em fazer o que você quiser, é só pedir. Eu sou seu.”
O medo é tanto, que estou surpresa por não ter paralisado, fugido e o
afastado. Penso que talvez não tenha feito porque, apesar de uma parte de
mim estar de fato paralisada, não me sinto sufocada. O ar continua chegando
aos meus pulmões com facilidade e o frio na barriga não me intimida.
Tento entender o que está acontecendo e a única explicação que
encontro é: criei um local seguro e me mantive trancada dentro dele por
muito tempo. Agora, é como se ele estivesse segurando a chave para a única
porta que existe ali. Ele poderia tentar forçar para entrar, mas ele nem ao
menos coloca a chave na fechadura. Anthony simplesmente bate e espera
que eu abra, se essa for a minha vontade. E depois de abrir somente uma
brecha, quero abri-la cada vez mais, torcendo para que a chave se mantenha
somente em seu bolso, porque, sempre que ele bater, eu vou abrir. Mas torço
também para que, se em algum momento eu trancar aquela porta novamente,
ele use a chave por mim.
Minha barriga ronca e Anthony levanta a cabeça para me olhar com
um sorriso divertido. Faço uma careta por causa do som alto e passo a mão
pelo rosto, tentando esconder a vergonha.
​— Sabia que você fica uma graça vermelha? — Ele se afasta e estica o
corpo até o telefone, que está na mesa de cabeceira. Quando me solta, o
calor que nossos corpos dividiam desaparece e sinto sua falta no mesmo
instante. Disca um número e me observa abraçar o travesseiro. — Café da
manhã ou almoço?
​— Brunch! — Respondo animada e ele confirma, passando a mão por
minha coxa.
​— Jonathan, bom dia. Pode mandar o brunch vegetariano para dois, por
favor? Certo, obrigado.
​— Você é tão mimado que tem serviço de quarto? — Provoco-o e aponto
em direção à cozinha. — E a cozinha inteira equipada que tem ali?
​— Se você abrir os armários, achará uma grande quantidade de biscoitos,
chocolates e chá. Só isso.
​ E álcool! — Aponto para o bar do lado da sala e ele ri, dando de

ombros.
​— Prioridades — seu sorriso convencido me faz revirar os olhos, antes
de me levantar e ir até o banheiro.
​Preciso de um momento sozinha, e nada melhor do que alguns minutos
debaixo do jato quente do chuveiro. A água faz com que cada músculo do
meu corpo relaxe e sorrio quando noto que ele não usa aqueles shampoos
genéricos masculinos, e sim um shampoo realmente bom que deixa meu
cabelo macio e cheiroso.
​Quando termino, me enrolo na toalha e procuro por ele no quarto,
escutando um barulho vindo da sala. Caminho até lá só para encontrá-lo
usando apenas uma calça de moletom cinza, enquanto arruma a mesa com
tanta comida, que chega a ser exagero. Tem torradas, cremes diferentes
como guacamole e pasta de azeitonas, ovos, cogumelos, tortinhas doces e
salgadas, bolos, suco e café.
​— Tudo isso é pra gente? — Pergunto chamando sua atenção e seu olhar
imediatamente para em minha toalha, abrindo um sorriso safado.
​— Se acostume, amor.
​— Tem dias que eu como miojo por esquecer de ir no mercado e é só o
que tem em casa. Ou pipoca.
​— Enquanto eu estiver por perto, pode esquecer do miojo, a não ser que
você queira, e não porque precisa.
​— Até que eu gosto de miojo. — Brinco. — Me empresta uma roupa?
​— Pegue o que quiser.
​Volto em direção ao seu quarto e abro a porta do que acho ser seu
armário, dando de cara com um closet, grande e cheio de roupas. Anthony
tem uma parede inteira de tênis, um armário só para os ternos caros que usa
nos eventos e dois armários grandes com suas roupas casuais. Vou até esse
armário, abro as gavetas, procurando por algo mais simples, e escolho uma
samba canção e uma camiseta branca.Troco-me ali mesmo e volto para a
mesa, encontrando-o sentado tomando uma xícara de chá, o óculos de grau
no rosto enquanto mexe no celular.
​— Não sabia que usava óculos… — Falo puxando a cadeira e ele
bloqueia o celular, deixando-o de lado para me dar atenção. Se eu já o
achava bonito antes, agora ele se superou completamente.
​— É, não sou tão perfeito assim — o tom convencido me faz sorrir e lhe
dou um beijo, sentindo o gosto doce do chá.
— Devia usar mais vezes, ficou bonito. — Volto a olhar para a mesa,
sem saber por onde começar.
— Quem sabe eu não use mais, então. Café?
​Confirmo com um sorriso atrevido e o vejo despejar o líquido quente em
minha caneca. Agora, na luz do dia, seu apartamento parece ainda mais
incrível. As cortinas estão abertas e a luz deixa todo o espaço claro.
​— Você sabe o que está faltando aqui, não sabe? — Olho ao nosso redor,
procurando por plantas e encontrando apenas um cacto, perto da entrada.
​— Se tiver qualquer planta aqui, elas vão morrer, porque eu não vou
cuidar delas. — Anthony me alerta sem hesitar.
​— Você não é riquíssimo? Contrate um jardineiro. — Dou risada quando
ele cerra os olhos pela provocação.
​— Não preciso de um jardineiro, porque não terão plantas aqui.
​— É o que veremos. — Dou um gole em meu café, mantendo os olhos
nos dele, e coloco uma torrada em meu prato, me esticando na mesa para
pegar um pouco do antepasto de azeitona.
​Nossas pernas se entrelaçam debaixo da mesa e a conversa flui
facilmente, nos deixando sentados mais tempo do que o esperado, curtindo a
companhia um do outro e falando sobre tudo e nada ao mesmo tempo.
​Quando finalmente terminamos de comer, me levanto, aproveitando a luz
do dia e os ânimos mais calmos, para olhar com atenção sua estante de
livros. Pego um exemplar antigo de Romeo e Julieta e admiro a capa de
couro, com o nome em dourado na frente e na lombada.
​— Essa edição é linda demais! — Viro-me para ele, que se aproxima
com as mãos nos bolsos, antes de pegar devagar o livro da minha mão.
​— Era da minha mãe. Guardei vários livros dela, principalmente os que
têm anotações, olha… — Anthony o abre devagar e mostra a letra de sua
mãe pelas páginas do clássico. — Ela dizia que escrever nos livros os
tornava únicos.
​— Deve ser especial ler algo e ver o que ela estava pensando naquele
momento. Minha mãe faz o mesmo, mas em suas receitas. Os livros são
cheios de rabiscos que só ela consegue entender, eu acho isso muito legal.
​— Sua família parece ser unida.
​— Ah, até demais. Somos seis: eu, meus pais, meu irmão mais novo,
Miguel, e minhas duas tias. As mulheres são barulhentas, tem muitas
vontades e vivíamos juntas. Já meu pai e o Miguel são mais quietinhos,
gostam de escutar. Então, funcionamos bem, até quando brigamos. — Falo
pegando o livro de volta e passo o olho pelas palavras impressas. — Você já
leu?
​— Algumas vezes, esse foi o primeiro que eu descobri que tinha as
anotações dela.
​— Conheço a história, como todo mundo, mas acredita que eu nunca li?
​— O que é um absurdo para alguém que lê tanto e participa de um clube
do livro. — Anthony levanta a sobrancelha e me leva até o sofá, mas sem me
deixar sentar. — Fique aqui.
​Observo quando ele vai até seu quarto e pega alguns travesseiros e uma
coberta nos braços. Ele as coloca no sofá, arrumando de forma confortável e
senta, esticando as pernas e esperando por algo.
​— O que está fazendo? — Deixa a cabeça cair de lado enquanto me olha
parada na sua frente.
​— Você mandou eu ficar aqui — respondo como se fosse óbvio.
​— E desde quando você faz o que eu mando? — Anthony me desafia e
me chama com a cabeça, abrindo a perna para eu sentar entre elas e ajeita os
travesseiros nas costas.
​— Eu só faço o que você manda quando eu quero, MacMillan! —
Provoco e sento no espaço que ele deixou para mim, me aconchegando em
seu peito e colocando a coberta em nossas pernas.
​— Sei… — Sua voz está divertida, ele se estica para pegar o livro e o
coloca na minha frente. — Em voz alta ou em silêncio?
​Sua voz em meu ouvido me arrepia. Deposito um beijo em seu braço e
deito a cabeça em seu ombro.
​— Em voz alta — respondo fechando os olhos e Anthony dá um beijo
em minha cabeça.
​— “Vocês são inimigos da paz! Gritou o jovem príncipe de Verona, um
rapaz assaz respeitável…”
​Como se eu estivesse vivendo em um sonho, escuto atentamente cada
palavra que sai de sua boca, acariciando seu braço e sua perna. Depois de um
tempo, pego o livro de sua mão e continuo a leitura em voz alta. Nem vi as
horas passarem, muito menos a mudança de posição com o passar das
páginas. Uma hora estava deitada com a barriga encostada na dele, depois
estávamos sentados um de frente para o outro, até que acabamos o dia
adormecidos em sua cama com o livro aberto em cima de nós.
​O som do meu celular tocando me acorda, me fazendo sentar na cama e
olhar ao redor desnorteada. O dia ainda está claro o suficiente e me arrasto
pelo colchão espaçoso, até estar com os pés descalços no chão, procurando
minha bolsa jogada quase debaixo da cama.
​— Mila… — Passo a mão no rosto quando vejo seu nome na tela e antes
de atender, ando até a sala e me certifico que Anthony não acordou com a
minha movimentação. Ele segue adormecido. — Ei, tudo bem?
​— Sou eu quem tem que te perguntar isso, Marina! Você desapareceu,
nem ao menos me avisou quando chegou em casa. — Ela briga, mas não de
verdade, escuto a diversão presente em sua voz.
​— Desculpa, eu falei que te avisaria, mas o problema é que não cheguei
em casa ainda. — Sento apoiada nos pés no sofá e sorrio como uma idiota.
​— Calma… Se não está em casa… MARINA! VOCÊ ESTÁ NA CASA DO
ANTHONY? — Ela dá gritinhos animada que me faz rir.
​— Estou, tivemos um dia incrível ontem, ele me levou de moto até
Oxford, passeamos, jantamos e de noite eu… não quis ir embora.
​— E por que diabos você me atendeu?
​— Alguma vez eu não te atendi? Eu, hein! Ele está dormindo e eu escutei
o telefone tocar, estou na sala agora.
​— Sim, você já me abandonou várias vezes e não me atendeu. Mas deixa
pra lá, liga a câmera!
​Escuto o barulho da solicitação da câmera e aceito, mostrando minha
cara e percebendo que meu cabelo está uma bagunça em roxo e castanho.
Mila está com o sorriso ainda mais idiota do que o meu e mexe o pescoço
como se pudesse ver ao meu redor sem que eu mova o celular.
​— Bora, me mostre o apartamento dele!
​— Não é bem um apartamento… — Levanto e vou mostrando
discretamente ao redor. — Ele mora na cobertura do hotel da família.
​— Igual o Chuck Bass? Puta que pariu! — Mila coloca a mão na boca e
eu confirmo.
​— Foi exatamente o que eu falei, mas ele nunca assistiu Gossip Girl.
​— Ei, tá tudo bem? — A voz de Anthony chama minha atenção e ele
aparece na divisa da sala com o quarto, a mão bagunçando o cabelo
enquanto boceja.
​— Tá, minha amiga me ligou para saber se eu estou bem, já que eu sumi
depois de ontem. — Respondo abaixando o celular timidamente.
​— A Mila? — Chega perto e acena para a câmera como se fosse a coisa
mais natural do mundo, me fazendo levantar um pouco o braço em direção
ao nosso rosto. — É um prazer te conhecer, Mila.
​ O prazer é meu, senhor MacMillan… — Ela fala para provocar,

apertando os lábios tímida, mas sem sair do enquadramento da câmera. —
Sabe, foi uma sacanagem ter escondido que falava português.
​— Eu achei divertidíssimo. Já parou para fazer as contas de quantas
vezes te escutei falando o quanto sou um gato sem saber?
​— Com certeza pouquíssimas, você nem é tudo isso. — Mila o alfineta
de volta e Anthony dá risada.
​— Certo, vamos os dois fingir que acreditamos nisso. — Anthony revira
os olhos sorrindo e dá um beijo na minha bochecha, antes de dar um tchau
silencioso para Mila e se afastar até a cozinha, para pegar um copo de água.
​— Posso te ligar depois? — Pergunto para ela que concorda.
​— Só se eu receber detalhes. — Ela sussurra e eu concordo, antes de
mandar um beijo.
​Anthony está apoiado na pia e, quando desligo, pergunta se eu também
quero um pouco de água, aceito e fico parada do outro lado do balcão,
esperando enquanto ele serve para mim.
​— Eu tenho que ir embora… — falo depois de umedecer um pouco os
lábios e hidratar a garganta.
​— Não tem não.
​— Tenho sim — faço uma careta e coloco o copo na bancada. — Você
tem que dar uma atenção para a sua avó, porque é domingo e ela
provavelmente está te esperando, e eu tenho que estudar para as provas e dar
atenção pra Capitu, enquanto conto para a Mila, nos mínimos detalhes, tudo
o que você fez comigo ontem.
​Anthony morde os lábios e solta uma risada baixa, cruzando os braços e
deixando as cobras tatuadas ainda maiores com a tensão dos seus bíceps.
Admiro-o sorrindo também e ele concorda.
​— E quem é Capitu?
​— Minha gata, ela é ótima. Odeia o mundo e me julga o tempo inteiro,
mas deita no meu colo toda vez que estou triste e fica ronronando quando
dou carinho.
​— Então, se você deixá-la sozinha, ela fica brava.
​— Exatamente, ela é muito temperamental. — Dou a volta no balcão
para me aproximar dele.
​— Igual a dona. — Sorri e, então, suspira. — É uma merda ser adulto às
vezes.
​ escruzo seus braços e coloco suas mãos em minha cintura, enquanto
D
envolvo seu pescoço, colando nossos corpos.
​— Eu sei e eu não queria ir embora, mas eu tenho tanta coisa para fazer
que não posso simplesmente deixar tudo de lado por muito tempo. Mas eu
gostei de hoje…
​— Do que, especificamente?
​— Não fazer nada com você.
​Anthony concorda mais uma vez e me beija, devagar e intensamente.
Sua língua toca a minha com carinho e eu queria ser mais inconsequente
para mandar tudo pelos ares, ligar o foda-se para a faculdade, não deixar ele
viajar e simplesmente ficar mais tempo do seu lado. Beijando, lendo, rindo,
conversando, comendo e simplesmente vendo-o ser doce e sensível, ao
mesmo tempo que é sexy e me deixa louca.
​O beijo carinhoso fica mais denso, sua mão desce para minha bunda,
colando nossos quadris enquanto sinto seu volume crescer na calça. Minha
mão acaricia suas costas, passando a unha devagar pela sua pele quando ele
morde minha boca, fazendo um pequeno gemido sair de mim.
​— Nós ainda temos um tempinho, não temos?
​Anthony pergunta baixo e a malícia em seus olhos toma conta de todo o
meu corpo quando confirmo, deixando-o fazer o que quiser comigo mais
uma vez.
Capítulo 38

“Eu não quero ficar a fim de você se você não me tratar do jeito certo
Veja, eu só posso começar a te ver, se você puder fazer meu coração se
sentir seguro”
Say Ok - Vanessa Hudgens

​ hego na faculdade cansada por causa das poucas horas de sono que
C
tive, já que fiquei até tarde tentando resolver todas as pendências. Não as
zerei e sei que vou perder mais algumas horas de sono, nos próximos dias,
para colocar tudo em ordem, mas valeu a pena porque, mesmo com o
cansaço físico, sinto minha alma renovada. Não troco essa sensação por
nada.
​Benji está animado e não para de falar desde que nos encontramos em
nosso carrinho de café favorito. Não consigo processar nem um terço do que
ele diz enquanto a cafeína entra no meu organismo e começa a fazer efeito,
me deixando mais ligada.
​— Você está me escutando?
​— Estou? — Faço uma careta culpada. — Não estou, desculpa. Repete
por favor, prometo te dar toda a atenção que você merece.
​— Vou no escritório da reitoria depois da aula, para agendar uma reunião
de emergência sobre o festival, vamos tentar usar o campo.
​— É uma boa ideia, mais fácil de arranjar público já que estaremos por
aqui. Por que o Thomas não fará isso, já que ele é o líder do grupo?
​— Ah, ele tem que cuidar de outras coisas — Benji dá de ombros e
morde os lábios nervoso. — Passou o final de semana correndo atrás de
empresas para fazer o orçamento das reformas do Centro, então…
​ Então, você não deveria ir sozinho. Não me leve a mal, você é um

amor, mas não é muito persuasivo.
​— Ouch! — Benji coloca a mão no peito como se tivesse levado um
soco, me fazendo rir.
— Desculpa! — Dou risada e o abraço sem parar de andar. — Leva
alguém com você, alguém tipo o Theo ou o Charlie.
​— Na verdade, eu pedi para a Ava ir comigo.
​— Benjamin… — Levanto uma sobrancelha em advertência e o solto
devagar, vendo seu rosto ficar levemente vermelho. — Você sabe muito bem
que ela não está interessada, e não é nem por sua causa, ela gosta de mulher!
Isso não vai mudar.
​— Eu sei disso, e eu não espero que ela mude ou qualquer coisa do tipo,
já aceitei que ela gosta de mulheres e que nunca ficaria comigo, mas gosto
da companhia dela. Somos bons amigos. — Benji esbarra o ombro em mim,
me fazendo virar em direção ao nosso prédio.
​— Vocês são ótimos amigos, o problema é que você fica se iludindo
sozinho já que eu sei que ela não te dá falsas esperanças. Você devia deixar
esse sentimento ir, não dá para ser apaixonado por alguém que nunca vai
gostar de você de volta desse jeito, é tortura. Você parece a Mila, os dois
ficam se apaixonando por pessoas erradas e só se magoando, talvez sejam
almas gêmeas e nem sabem.
​— Já te falaram que você é impossível? — Benji dá um gole no seu café
e eu paro de andar antes da escadaria, olhando para ele confusa. — Está tão
preocupada comigo, mas e você, hein? O Charlie gosta bastante de você e
vocês não estão mais juntos? Não faz sentido e ele ficou bem magoado, você
nem ao menos me contou.
​— Ah, Benji… Não queria ser eu a pessoa a contar, já que vocês são
amigos há mais tempo e sempre deixei claro que não queria compromisso.
Tudo aconteceu muito rápido e, quando me toquei, todos estavam levando a
gente muito a sério, até as crianças do Centro achavam que estávamos
juntos. Não era isso que eu queria, sabe. — Subo as escadas sem olhar para
ele, é a primeira vez que falamos sobre o “término”, o que quer dizer que
Charlie contou para os outros, ou para alguém, e a fofoca se espalhou. — Ele
é muito legal, gentil, educado e engraçado… Sério, eu gosto muito dele,
muito mesmo, mas não desse jeito. Não o suficiente para aceitar o rumo que,
o que quer que estava acontecendo entre nós dois, estava tomando, sabe?
​ Vocês eram incríveis juntos, se davam bem, eram engraçados, todos

gostavam de ficar perto de vocês… — Benji nega e eu solto uma risada
nasalada. — Você só está enganando a si mesma.
​— Acredite, eu não estou. Sei exatamente o que sinto e não tenho como
controlar meu coração. Talvez, em outra vida, Charlie fosse a pessoa perfeita
para mim e eu tenho certeza que meus pais iam amá-lo, e eu seria muito feliz
do lado de alguém como ele, mas nessa realidade… Não é por ele que o meu
coração bate mais forte. — Paro de andar à frente da enorme porta, sem me
importar com os outros alunos desviando de nós para entrar no prédio.
​— Isso quer dizer que tem alguém que faz seu coração bater mais forte?
É por isso que você terminou com ele?
​Fico quieta. Charlie é uma pessoa que todos sabiam quando estávamos
saindo, já que entrei no seu círculo de amizade e todos gostavam de nós dois,
mas Anthony… Não é como se eu pudesse contar a eles que estou me
apaixonando por um dos “culpados” indiretos de todos os problemas que
estamos enfrentando no grupo nos últimos meses. Eu sei qual é a índole e a
intenção de Anthony, mas os outros não e não cabe a mim mostrar isso a
eles, não quando ele não está nem um pouco disposto a fazer isso agora.
​— Podemos não falar sobre isso? — Volto a andar pelo corredor,
puxando minha bolsa pelo ombro e dando um grande gole em meu café.
​Talvez ele fosse o mais compreensivo de todos se eu contasse, mas o que
vou falar? Que beijei o Anthony algumas vezes e passei o final de semana
em seu apartamento? Não é o momento de saberem, primeiro pelo Charlie e
segundo por mim. Já está difícil o suficiente que eu consiga abrir meu
coração, quem dirá deixar que os outros saibam o que está acontecendo.
​Benji não fala mais nada, vejo-o ajustar a mochila no ombro e seguimos
em silêncio até a sala de aula. Isso é algo que gosto bastante da nossa
amizade, ele não me pressiona e respeita meus limites, seja em assuntos mais
sérios ou não. Nós nos entendemos, talvez mais do que qualquer outra
amizade que eu tenha feito aqui nos últimos meses.
Estou perdida em pensamentos quando passamos pela porta da sala e,
inconscientemente, meus olhos percorrem todo o local até a minha mesa,
fazendo meu coração disparar ao ver quem está ali.
​Anthony.
​— Volto já — levanto o nariz e escondo o sorriso involuntário.
​— Sem brigas — é o que Benji responde e sei que nem me segue quando
vou até o metido arrogante pelo qual estou, cada vez mais, nutrindo
sentimentos.
​Quanto mais perto chego, mais convencida a postura de Anthony fica.
Ele cruza as pernas e as coloca no corredor, para impedir minha passagem de
propósito e me obrigar a parar do seu lado. Ah, merda, como eu senti falta
dele nessas horas longe… O que é ridículo, mas impossível de não me sentir
assim quando vejo seu olhar carregado de diversão e satisfação.
​— Hoje é segunda — cerro os olhos e cruzo os braços à frente do corpo,
mantendo minha pose de durona do dia a dia. — Você não deveria estar aqui.
​— Não? — Anthony coloca a mão no peito e olha ao redor, fingindo
procurar algo. — Achei que o professor Herman fosse meu conselheiro, por
isso tenho direito de assistir às aulas dele.
​— Você é impossível — reviro os olhos com um pequeno sorriso no
rosto —, e está sentado no meu lugar!
​— Achei que já tivéssemos superado essa discussão… — Seu rosto
carrega uma malícia deliciosa e, porra, minha vontade é de colar sua boca na
minha. Será que ele está com o gosto doce de chá ou das balas de menta que
carrega no bolso? — Como sei o quanto adorou sentar em mim ontem, fique
à vontade… Assim, resolvemos o problema com a mesa.
​— Vai ficar falando putaria em português só porque ninguém mais
consegue entender? — Levanto a sobrancelha e ele dá de ombros, se
divertindo.
​— Antes a graça era escutar você me xingando, agora é ver você
vermelha porque estou falando, na frente de todo mundo, que estou louco
pra te foder de novo.
​— Eu te odeio. — Respondo ainda escondendo o sorriso e sentindo
minha bochecha ficar imediatamente vermelha.
​— Não odeia, não. — Anthony sorri convencido por ter acertado em
cheio a minha reação.
​— Você é um idiota, nem parece que estava todo romântico e caidinho
por mim, ontem.
​— Posso ser romântico e ainda querer te foder, Dias. — Anthony
aproxima um pouco o corpo na minha direção e solto uma pequena risada
sem graça.
​Olho ao redor e noto seus amigos prestando atenção em nós dois, o que
me faz enrijecer a postura e tirar o sorriso do rosto, como um mecanismo de
defesa inconsciente. Viro-me para Benji do outro lado da sala e ele também
está prestando atenção com curiosidade, realmente interessado no que quer
que estejamos conversando.
​Merda.
​Será que o motivo dos seus amigos estarem olhando para nós é porque
ele contou sobre o que está acontecendo entre a gente? Ou eles realmente
estão achando estranha essa interação que está longa demais aos olhos
públicos? É raro passarmos tanto tempo juntos na frente dos outros e só me
toco disso agora, porque quando estamos só nós dois, nossas interações são
completamente naturais.
​— Na verdade, eu só queria te irritar, estava guardando o lugar pra
você. Trouxe meu computador com a carga completa, então a tomada no
lugar perfeito pode ser sua.
​Esse homem ainda vai me fazer derreter de amor, ou pior… Vai acabar
comigo de uma maneira que será impossível que eu me recomponha depois
dele partir. Estou tão lascada, que parece até brincadeira e, por um milagre,
estou feliz com isso.
​A realidade me atinge quando uma garota no meio da sala deixa o
caderno cair no chão, fazendo um barulho grande. Certo, isso não pode
acontecer agora e eu preciso deixar tudo claro, já que não conversamos sobre
antes. Com certeza, é um péssimo momento para isso, mas não vou
conversar com ele por mensagem e nem ignorá-lo o resto da manhã para só
conversarmos de tarde. Já estamos tempo o suficiente conversando, mais
alguns minutos não vão fazer diferença e sempre podemos usar o trabalho
como desculpa.
​— Na verdade, acho melhor eu sentar com o Benji, como todos os dias,
porque ninguém sabe de você. E de mim. De nós, na verdade. Não que eu
devesse contar para alguém sobre qualquer coisa que aconteceu, até porque
a vida é minha. E sua, é claro. Sua vida. Ou nossa, enfim. Eu acho que
talvez, agora, não seja um bom momento para ficar perto de você aqui na
faculdade. A gente está começando a fazer os planos para arrecadar
dinheiro para salvar o Centro, como eu te falei, e eles não ficarão nem um
pouco felizes quando souberem que estou saindo com você. Se é que a gente
está saindo. Acho que depois de ontem podemos dizer que estamos saindo,
mas…
​— Eu me esqueço que você fala pra caralho quando está nervosa. —
Anthony me interrompe e eu pisco algumas vezes.
​ Desculpa... — Murmuro e abaixo o olhar para o chão. A segurança

foi ralo abaixo no instante em que abri a boca.
​— Isso que você está me falando é ridículo, ninguém tem nada a ver com
a sua vida. E daí que você está saindo comigo?
​— Anthony… — Suspiro soltando os ombros e olho rapidamente para
Benji, que ainda está nos encarando. — Eles esperam que eu descubra o
plano da empresa com o Centro, como vão agir se descobrirem que saí com
você? E você está com todos os seus planos, se te associarem ainda mais a
mim, sendo da Ordem e com a exposição no jornal por isso… Não sei se é
um bom plano por enquanto.
​— Não concordo com nada do que está falando. — Anthony fica sério e
não tira os olhos de mim. — E estou surpreso por, logo você, se preocupar
com isso.
​— Só por um tempo?! Até eu pensar em uma maneira de, sei lá,
preparar o terreno e ninguém achar que estou traindo o grupo por dormir
com o inimigo. Isso não quer dizer que quero ficar longe de você, de
maneira alguma. Depois desse final de semana, você meio que tornou isso
impossível para mim e está extremamente difícil não te beijar agora. —
Anthony abre um mini sorriso, quando olho para sua boca, o que acalma um
pouco meu coração. — Mas eu acho que deveríamos manter isso só entre a
gente. Só por algumas semanas, até eu entender o que está acontecendo
comigo e como equilibrar tudo.
​— Certo, Dias. Se é isso que você quer, então não tenho muita opção
além de aceitar, já que me afastar está fora de cogitação. Você pode, ao
menos, almoçar comigo hoje antes de irmos para o escritório?
​— Eu meio que tenho um compromisso no almoço. — Faço uma careta
culpada e sinto raiva de mim mesma. — Vou almoçar com uma amiga para
ver se a banda que ela trabalha consegue ser a atração principal do festival.
Para chamar mais gente na arrecadação de dinheiro.
​— Certo… Então, acho que te vejo no escritório?! — Anthony está
claramente decepcionado e isso aperta meu coração.
​— Claro. — Dou um sorriso e vejo o professor entrando na sala, em
seguida sendo parado por uma aluna segurando alguns papéis nas mãos, o
que me dá mais alguns segundos livres. — Tá tudo bem mesmo? Não vai
ficar bravo comigo?
​— Está tudo bem, Dias. Você tem a sua vida e eu respeito isso. Mas, se
não estiver no meu escritório hoje, serei obrigado a ir atrás de você, porque
não sei se vou aguentar mais muito tempo longe.
​Aperto o sorriso, tentando fingir que não fiquei afetada com ele,
enquanto concordo e começo a me afastar, indo até onde Benji está, mas
troco pequenos olhares com Anthony durante toda a aula.
Capítulo 39

“Temos tido todas essas conversas tarde da noite


Sobre qualquer coisa que você queira até a manhã
Agora você é parte da minha vida
Não consigo te tirar da minha cabeça”
Late Night Talking - Harry Styles

O almoço foi absolutamente perfeito. Como a Manu já sabia mais ou


menos dos planos, que contei por telefone na sexta-feira, eles estavam com
propostas prontas para serem negociadas. O plano da Ordem era pagar o
valor mínimo de funcionamento do show e conseguir que os meninos
tocassem sem o cachê, então me surpreendi muito quando o Matt ofereceu o
show completamente de graça. Fiquei com medo de perguntar como eles
fariam isso funcionar, mas ele me explicou toda a logística que é necessária
para um show acontecer e o quanto estavam dispostos a arcar com isso.
Além dos dois, o almoço foi acompanhado pela Emily, a responsável
pelo marketing da banda e, segundo ela, os caras estão precisando de um
evento social exatamente assim para ajudá-los a se reerguer na indústria,
depois da saída do antigo vocalista, PJ, que estava envolvido em escândalos.
Apesar do prestígio que eles tinham, recomeçar está devagar já que todos
decidiram dar uma pausa na música por um tempo, e faz poucos meses que
estão na ativa.
Fiquei com o pé atrás quando ela falou sobre o festival como se fosse
algo completamente comercial, porque parece que eles topariam somente
pela boa publicidade que conseguiriam, mas não precisei de muito para
entender que eles fariam de qualquer jeito, com publicidade ou não. A
presença da Emily ali era só para aproveitar a oportunidade da reunião, e
pensar no plano de marketing deles que, sinceramente, acho que nos ajudará
bastante.
​Estou quase atrasada, quando finalmente entro no prédio da Vann e
apresso o passo até o elevador. Vários colegas estão voltando do horário de
almoço, inclusive pessoas do 11º andar, onde fica a administração e os
acessos à documentação da empresa. Cumprimento-os, mantendo apenas
aquela conversinha comum do dia a dia, algo que faço sempre que vejo
qualquer outro colega de trabalho. Entretanto, seria ótimo se eu pudesse
arranjar alguma forma despretensiosa de puxar assunto sobre como funciona
o acesso ao sistema deles. Talvez, parecer um pouco mais interessada pelo o
que eles fazem e não só com o que tem a ver com o meu próprio trabalho.
Demoro demais pensando em como abordar o tema e, antes que eu consiga
falar, eles saem, me deixando sozinha no ar gelado do elevador.
​Certo, consigo pensar em algo depois.
​A porta se abre e Elizabeth nem levanta o olhar para mim, é como se
tivesse um sexto sentido para saber quando sou eu e quando é o resto da
equipe subindo. E, toda vez que sou eu, seu esforço para falar comigo é
mínimo.
​— Boa tarde — cumprimento-a como faço todos os dias, mesmo sendo
ignorada, e paro em sua bancada. Estendo a mão para pegar o relatório do
último dia de trabalho, que sempre fica com ela para me entregar assim que
chego. — O Anthony já chegou?
​— Ele está na sala dele — me surpreendo quando ela levanta o olhar e
entrega a pasta preta em minha mão, em vez de apenas a colocar no balcão.
— Até que você está durando, Dias.
​— Vindo de você, aceito isso como um elogio — seguro a pasta, que ela
não solta.
​— É apenas uma observação, já faz alguns meses que está aqui. Curioso.
​— Não acho nada curioso, se a gente pensar que estou fazendo bem meu
trabalho. — Puxo um pouco a pasta para mim e ela finalmente solta o
plástico.
​— E que trabalho é esse, exatamente? — Elizabeth me desafia e sinto
meu corpo enrijecer.
​Respiro fundo e tento agir normalmente. Se tem uma coisa que eu não
quero, é que se sinta ameaçada por mim, já que desde que cheguei na
empresa, ela não foi nem um pouco gentil. Não sei o quanto Anthony está
em sua mente, mas sei que ela não está na dele e que pode frustrá-la,
principalmente se souber de nós.
​Merda, odeio pensar nas pessoas, mesmo quando elas não estão nem aí
para mim, como a Elizabeth. Estou, pela primeira vez em anos, me
apaixonando por um cara incrível e pensando que não posso magoar um
antigo lance que ele teve, porque ela não merece sofrer e me odiar por ele
estar comigo.
​Não posso simplesmente ligar o botão do foda-se e não me importar nem
um pouco com ela?
​— Você vai me odiar para sempre, sendo que nunca fiz nada para você?
— Tento soar com compaixão e Elizabeth suspira, voltando a olhar para seu
computador.
​— Eu não te odeio.
— Pois não é o que parece.
— Mas também não serei sua amiguinha e fazer tranças no seu
cabelo, que inclusive está precisando de uma hidratação.
​— Não está não, e eu não falei em momento algum que quero ser sua
amiga. Só não acho saudável chegar para trabalhar e encontrar logo essa cara
de cu me encarando, como se pudesse me matar na primeira oportunidade.
Estou disposta a levantar a bandeira branca entre nós, mas se você não
quiser…
​Dou de ombros e viro em direção às portas de vidro que separam a
recepção do escritório, sentindo seus olhos em mim.
​— O senhor MacMillan mandou você ir direto para o escritório dele.
Talvez não esteja trabalhando tão bem assim.
​Fala com grosseria antes que eu vire no corredor, ficando longe de seus
olhos para poder puxar uma mecha do meu cabelo para frente e me certificar
de que, apesar da descoloração e da tinta roxa, meu cabelo está sim
hidratado e saudável.
​Ela é ridícula e eu, uma tonta por deixá-la entrar na minha mente.
​Jogo o cabelo para trás e dou uma bagunçada nas ondas quando confiro
como estou no reflexo dos vidros que separam as salas. Hoje, estou usando
coturno, e por baixo do sobretudo bordô, um suéter com gola branca estilo
Peter Pan, bem fofo. Vou cumprimentando o pessoal do andar, mas sigo
focada no meu destino: uma boca avermelhada que estou louca para beijar.
​Assim que entro no corredor de nossos escritórios, vejo que a porta de
Anthony está aberta. Como não é seu costume deixá-la assim, entendo como
um convite, e nem ao menos vou até minha sala para deixar minhas coisas,
antes de parar na frente de sua sala. Ele está concentrado, olhando para o
computador e digitando rapidamente, os olhos atentos ao que está
escrevendo e o fone de ouvido grande, preto e sem fio na cabeça. Quanto
tempo posso ficar admirando-o assim, sem parecer uma psicopata?
​Juro que poderia ficar aqui por horas.
​Antes mesmo de concluir o pensamento, Anthony levanta a cabeça. O
sorriso que abre ao tirar o fone e me pedir para entrar, silenciosamente, me
faz sorrir também. Fecho a porta atrás de mim, enquanto ele dá a volta à
mesa e me encontra no meio do caminho, envolve o braço ao redor de minha
cintura e segura minha nuca para me beijar.
​Ah, caralho! É difícil não agir como uma idiota, realmente difícil.
Porém, como não me deixar levar por essa boca e esse toque? Envolvo-o em
meus braços da mesma forma que ele faz comigo e o beijo se torna cada vez
mais necessário. É como se estivéssemos semanas sem nos beijar. Meses.
​— Oi… — Sorrio admirando seu rosto e ele me beija mais uma vez.
​Anthony coloca sua mão por dentro do meu sobretudo e a sobe por
minha cintura, até chegar perto de meus seios, me fazendo ficar na ponta dos
pés enquanto empurro meu quadril em direção ao seu.
​— Achei que nunca fosse chegar… — Passo os braços ao redor de seu
pescoço e reviro os olhos.
​— Que dramático — dou risada e me afasto, recebendo um beijo na
bochecha antes de nos soltarmos. — Isso tudo é saudade?
​— Como foi a reunião? — Anthony ignora minha provocação e volta até
sua cadeira.
​— Ótima, temos uma atração principal. — Coloco minha bolsa na
cadeira e tiro meu sobretudo, apoiando-o ali também. Seguro o encosto da
cadeira, inclinando meu corpo para frente e mordo a boca. — O empresário
e a advogada da banda são brasileiros, então a negociação ficou mais fácil, e
a gente se entende bem.
​— Que banda é essa?
​— A DownUnder, sabe?
​— Claro, a Sparkle Records tem contrato com a Vann, todos seus artistas
ficam em nossos hotéis espalhados pelo mundo.
​— Pelo o que eu entendi, eles romperam com a Sparkle, depois da
polêmica com o vocalista da banda alguns anos atrás… Estão sozinhos
agora, trabalhando com uma equipe menor e fazendo mais o que tem
vontade do que o que precisam para agradar a indústria.
​— Espertos, eles não precisam mais se submeter a ninguém, já são
grandes o suficiente para cuidarem da própria carreira. — Anthony fala com
o que parece ser pesar, já que não pode fazer o mesmo. — Você se cerca de
pessoas interessantes, não é mesmo?
​— O que você quer dizer com isso? — Sorrio, achando engraçada sua
insinuação. Vou até a primeira gaveta da estante lateral, abro-a e pego uma
pequena caixinha com óleos que deixei para ele.
​— Você está aqui há menos de um semestre, participa de um grupo que
tem um militante conhecido como líder, conhece o empresário da
DownUnder e o herdeiro de uma das maiores empresas hoteleiras e de
construção do mundo… Como?
​— Parece que está me chamando de interesseira — olho para ele por
cima do ombro, em advertência.
​— Nunca, é uma pergunta genuína. — Anthony coloca a mão no peito,
me observando ainda agachada, enquanto apoio a caixinha no joelho e penso
em como lhe responder.
​— Conheci a Olive no meu primeiro dia, me inscrevi no seu clube de
leitura… inclusive, estou atrasada para a leitura do livro desse mês! Em
seguida, conheci o Charlie, e ele me apresentou o grupo, eu me apaixonei
pelo trabalho deles e pelo Centro… Fácil assim. A banda também foi sem
querer, a Manu faz pós com a Ava, e o namorado dela é empresário da
DownUnder. Sem mistérios por aqui, MacMillan.
​— E eu?
​— O que tem você?
​— Se lembra como foi a primeira vez que me viu? — Anthony senta
mais confortavelmente na cadeira, esticando o corpo para trás, e morde a
ponta do dedo.
​Parece que está me testando, de uma forma boa.
​— Você… — Finjo pensar, como se não me lembrasse exatamente da
primeira vez que o vi, me levanto e vou até onde deixo o difusor que
comprei para ele.
​— Eu…?
​Anthony me olha curioso quando escolho o óleo de laranja doce e pingo
no aparelho, colocando-o na tomada em seguida. Sei o quanto ele gosta de
aromas cítricos e fico feliz com isso, porque sei que é pelo cheiro do meu
perfume.
​— Não consigo me lembrar. — Sorrio atrevida e ele cerra os olhos.
​— Mentirosa. — Fala imediatamente, ainda me provocando.
​— Eu estava na biblioteca, tentando pegar um livro, e tinha um cara
sentado no final do corredor, me olhando da forma mais insuportável e
arrogante que já vi na vida. — Levanto-me e guardo os óleos na gaveta mais
uma vez. Depois de um pequeno momento em silêncio, em vez de ir até a
cadeira em que coloquei minhas coisas, vou até ele. — E, mesmo me
olhando como se tivesse sentido o cheiro de algo podre, quando fui atrás de
algo para subir e pegar o livro sozinha, ele o pegou para mim e foi embora.
​— Só queria que você ficasse quieta. — Anthony afasta um pouco a
cadeira para que eu possa me sentar no seu colo. — Você é muito barulhenta.
​— Ah, eu sou? — Provoco, sentando nele e fecho o olho quando sinto
sua mão espalmada em minha coxa.
​— É, muito…
​Anthony afasta meu cabelo de lado e dá um beijo em minha nuca livre.
Sinto o arrepio gostoso do seu toque em minha pele e suspiro, me
aconchegando o quanto posso em seu peito. Sua mão sobe pelo meu corpo
até chegar em meu queixo, virando minha cabeça devagar em direção a sua
para me dar um beijo quente e molhado.
​— Vai ser difícil trabalhar agora, você sabe disso, não sabe? — Sussurro
e sinto sua respiração se aproximar de minha orelha, antes de morder meu
lóbulo.
​— Já era difícil antes, amor… Agora, não vou mais me segurar cada vez
que quiser ficar perto de você.
​Não sei se um dia vou me acostumar com a forma segura que ele fala o
quanto me quer. Por isso, mordo os lábios constrangida, como uma garota de
quatorze anos falando com seu crush pela primeira vez. Seus olhos se
encontram com os meus e é tão fácil estar com ele, que a sensação de
pertencimento me invade de novo, a mesma que tenho sentido sempre que
estou na presença dele. Anthony olha para o computador por cima do meu
ombro e eu me viro também, vendo a notificação de um novo e-mail na tela.
​— Esse é o orçamento do projeto 542?
​Faço menção de me levantar, mas a mão de Anthony me segura em seu
colo e se estica para alcançar o mouse, abrindo o e-mail.
​ É o contrato, na verdade. O orçamento já foi aprovado pelo financeiro

mais cedo, agora é só mandar lá pra baixo e autorizar a equipe a começar as
obras.
​Estico-me um pouco para ver melhor e passo os olhos no contrato,
sabendo que em alguns minutos esse mesmo documento estará na minha
Caixa de Entrada para uma última revisão. Não sei como viramos essa
chavinha tão depressa, mas começamos a conversar sobre o trabalho. Como
se o fato de eu estar sentada no colo do meu chefe, enquanto corrijo um erro
no documento que ele está mexendo, fosse completamente normal.
​Olhamos o checklist que fiz do projeto inteiro e, em seguida, aprovamos
o orçamento que o marketing de Anthony fez para a divulgação da empresa,
adicionando algumas observações que ele acha interessante pontuar para a
equipe. Roubo o mouse dele quando acho que está fazendo algo errado,
assim como ele o puxa de mim quando monopolizo seu computador, uma
disputa saudável e que me arranca sorrisos a cada provocação.
Quando terminamos, Anthony fecha a aba que estávamos, revelando
a pasta de LittleWin e fazendo com que eu me remexa em seu colo, uma leve
ansiedade tomando conta do meu corpo.
​Seria bom se eu conseguisse acessar o projeto do Centro, descobrir o que
está acontecendo e se existe alguma coisa ali que prove que os bombeiros e a
prefeitura estão recebendo propina para acabar com o projeto. Ou até mesmo
se a Vann quer comprar o casarão por outros motivos, como a localização,
que é ótima, complementando com os outros projetos que eles têm em
andamento.
​E sem precisar falar uma palavra sobre o assunto, Anthony me arruma
em seu colo mais uma vez, puxando-me mais para cima de sua coxa, e abre a
pasta que já tentei acessar várias vezes.
​— Não quero te colocar em problemas… — Olho para ele com
sinceridade, a voz baixa.
​— Por que tentar sozinha se estou aqui? — Anthony responde com
obviedade e seleciona a pasta do Centro.
​Eu concordo com ele e meu olhar ansioso se fixa na tela, que mostra
todos os documentos com siglas no lugar dos títulos. Aponto para o maior
arquivo, que tem uma miniatura mostrando uma planilha com gráficos e
Anthony a aperta, respirando fundo quando o campo da senha se abre.
​— Já tentei todas as senhas de acesso que usamos nos outros projetos,
mas só podemos tentar cinco vezes antes do sistema bloquear. Nunca
cheguei a cinco por medo do criador da pasta receber alguma notificação,
não sei.
​— Não acho que conseguiremos entrar sozinhos, mas… Já tentou o
número do contrato principal com a prefeitura?
​— Uhum, e algumas combinações que achei fazer sentido, mas nenhuma
adiantou. — Mordo os lábios e Anthony confirma pensativo.
​Em seguida, vejo-o tentar algumas combinações numéricas, mas todas
estão erradas. Na quinta tentativa, ele para, exatamente para não acontecer
do seu pai ou alguém do escritório dele descobrir suas tentativas de acesso.
​— Tenho pensado em ir até o 11º, não sei… Tem algo que eu possa fazer
para justificar aparecer lá de repente?
​— Amor, você trabalha diretamente para mim e todo mundo neste prédio
sabe disso, você consegue ir aonde quiser e pedir o que quiser.
​— Ah, se eu soubesse que eu tinha essa liberdade toda, resolveria vários
problemas mais rápido do que faço atualmente. — Reviro os olhos e passo
um braço ao redor de seu pescoço.
​— Você já foi até lá?
​— Nunca, peço tudo por e-mail, eles são ótimos e enviam rápido. —
Faço uma careta decepcionada e Anthony concorda.
​— A área de documentação ocupa mais da metade do andar, mas tem
câmeras nas entradas e saídas dos arquivos, é com isso que precisamos nos
preocupar, para não ser suspeito de ter um de nós andando por lá.
​— Você acha que existe um motivo para os documentos estarem todos
bloqueados?
Antes que possa responder, uma batida na porta nos assusta, me
fazendo levantar de seu colo imediatamente. Anthony fecha a aba das
tentativas e olha para mim com tranquilidade, como se dissesse para eu não
me preocupar quando a batida se repete. Olho para o relógio e me xingo
mentalmente.
​— Perdemos a noção do horário. É o John do financeiro, vocês têm uma
reunião agora, me esqueci disso, desculpa.
​— Não tem problema. Eu vou na sua sala quando terminar aqui, tá bom?
— Anthony se levanta e me dá um beijo rápido na boca. — Se quiser, vá até
o 11º para ver como é o lugar, mas fica tranquila, darei um jeito de descobrir
essa senha.
​— Isso não vai atrapalhar seus planos de alguma forma? — Pego minhas
coisas na cadeira e caminho até a porta.
​ De jeito nenhum, talvez até me ajude. Só não podemos meter os pés

pelas mãos, ok?
​Concordo e me ajeito antes de me despedir dele em silêncio e abrir a
porta, encontrando o homem de meia idade arrumando o próprio óculos e
apertando um sorriso para nós dois.
​— Ah, espero não ter atrapalhado! Temos uma reunião marcada para
agora, senhor MacMillan.
​— De jeito nenhum, John. Eu e a senhorita Dias estávamos apenas
alinhando minha semana. — Anthony coloca uma mão no bolso e eu me
adianto para sair pela porta.
​— Se precisarem de alguma coisa, é só me chamar.
​— Obrigado, Dias. — Anthony deixa o John entrar e me dá um olhar
gentil, antes de fechar a porta.
​Vou até minha sala, acendo um incenso antes de sentar na minha mesa,
fecho os olhos e respiro fundo. Preciso pensar em um plano para conseguir
aquele acesso, já que nem Anthony conseguiu adivinhar a senha para abrir
os arquivos com nomes tão estranhos e que não dão pista alguma sobre o que
são.
​Não sei como, mas vou descobrir o que tem de tão importante ali.
Capítulo 40

“Eu estou passando por mudanças, mas eu juro que sou o mesmo
Você poderia me mostrar um pouco de paciência pelo caminho?”
Changes - Hayd

​ eu pai está escondendo alguma coisa, e não somente em relação às


M
propinas que oferece constantemente para a prefeitura com intenção de ter
preferência nos muitos projetos que a Vann tem trabalhado nos últimos
meses, mas algo além. Nenhuma senha foi tão difícil de conseguir até agora
como a do Centro. Tenho ido em casa para jantar com ele algumas vezes na
semana, sempre mantendo as aparências e agindo como se não suspeitasse
de nada. Como se não estivesse planejando sua queda no trono da empresa.
Toda vez que piso naquela casa, meu estômago embrulha. Cada
cômodo que entro, uma antiga memória da minha mãe volta a minha mente
de forma muito clara. Empurro os sentimentos para o fundo da minha alma e
mantenho a expressão fria, assim como sei que ele também faz. Ele precisa
me ter por perto, precisa me suportar, já que a empresa de sua família estará
em minhas mãos no futuro.
Inicialmente, olhei para o Centro somente por causa da Marina, mas
agora estou realmente intrigado com toda aquela segurança. Não faz sentido
ser mais difícil acessar o que tem na pasta de um casarão velho em LittleWin
do que seu esquema de corrupção. Vou descobrir o que ele está escondendo,
de uma forma ou de outra.
​Marina…
​ hego no escritório pela manhã e olho para sua sala, contando as horas
C
para que ela saia da faculdade e venha para perto de mim. É uma merda não
poder, simplesmente, estar com ela em qualquer lugar, mas entendo seus
motivos para se manter longe. Não concordo, mas entendo.
​Ela desperta meu lado mais paciente, como se uma voz dentro de mim
gritasse: não a pressione. Deixe-a livre para ser sua. Não faça merda, de
novo.
​Então, mesmo que eu queira estar ao seu lado, sem me importar com
qualquer outro empecilho que esteja colocando para não estarmos juntos
publicamente, eu a respeito — e olho para o relógio mais vezes do que
gostaria de admitir.
​Passo em sua sala, antes de ir para a minha, para pegar alguns
documentos que ela deixou em cima de sua mesa e aproveito para deixar um
bilhete com um chocolate na sua gaveta, algo para ela encontrar mais tarde e
sorrir ao pensar em mim. Puta que pariu, eu sou um idiota.
​Sorrio comigo mesmo antes de fechar sua porta, ir para a minha sala e
começar o dia de trabalho depois de tentar, inútilmente, mais algumas
combinações de senhas no sistema. Coloco um podcast de true crime no
fone e começo a mesma rotina que faço todos os dias. São contratos para ler,
planilhas para revisar, pedidos para autorizar e estratégias para alterar. Por
mais insuportável que seja seguir sempre a mesma ordem de tarefas, o que
me motiva é saber que, em breve, essa empresa será minha e as coisas serão
diferentes, o trabalho terá real valor.
​— Sentiu minha falta?
​Levanto a cabeça em direção a voz e me surpreendo por ver Lauren na
minha frente depois de tanto tempo de completo silêncio de sua parte.
​— O que está fazendo aqui? — Tiro os fones surpreso e fico olhando
para ela, tentando entender se é, realmente, minha melhor amiga parada na
porta do meu escritório.
​— Meses longe e é assim que você me recebe? — Lauren sorri atrevida e
fecha a porta atrás dela.
​— Por que não avisou que estava voltando? — Levanto-me e nos
abraçamos com força. — Porra, você nunca sumiu por tanto tempo assim.
​— Eu sei, desculpa… — Responde baixo, ainda me abraçando, e escuto
sua respiração pesada, cansada. — Eu precisava desse tempo longe.
​Ao mesmo tempo que sinto um alívio muito grande por ela estar de
volta, é impossível não ficar preocupado com o real motivo de ter partido.
​ O que eles fizeram dessa vez? O Ethan não me contou nada, falou que

era melhor esperar você voltar. — Afasto-me para ver seu rosto e ela dá de
ombros, subindo a máscara impenetrável que sempre usa quando não quer
falar dos problemas.
​— Só o mesmo de sempre. — Ela senta na cadeira, soltando os braços de
forma despojada e olhando para o bar no fundo da sala.
​Lauren não precisa pedir verbalmente, porque sei exatamente o que quer,
e é por isso que vou até o móvel no mesmo instante.
​— O de sempre nunca te fez ficar meses na puta que pariu sem falar
comigo. — Pego dois copos e sirvo Whisky para nós, entrego para ela e
sento à mesa, olhando fundo em seus olhos escuros.
​— Não estava na puta que pariu, estava em um spa em Bali.
​— Você acha que consegue me enganar com esse papinho? — Desafio-a
e dou um pequeno chute em sua perna, para fazê-la falar. — Nem mesmo
você aguenta ficar meses em um spa.
​— Tá, eu fiquei uma semana em um spa em Bali, conheci um cara e
depois fomos para a Grécia juntos.
​— Agora sim parece mais com algo que você faria….
​— E me casei.
​Me interrompe com uma simplicidade que me faz engasgar. Preciso
tossir algumas vezes e colocar o copo na mesa para recuperar o fôlego.
Olho-a em completo choque, principalmente quando vejo sua expressão
tranquila.
​ — Que porra que você fez? — Bato em meu peito e respiro fundo.
Lauren abaixa o olhar para seu copo, pensa por um momento e levanta o
queixo, segura de si.
​— Foi a única forma que encontrei de enfrentá-lo, Anthony… Não
aguento mais as mesmas cobranças de sempre, como se fosse me convencer
em algum momento. Não vou casar com o Malcom e é uma merda que ele
queira seguir com essa porra. Como se não me conhecesse, como se não
soubesse que eu não quero. É uma vida inteira de cobranças e eu já cansei de
falar que não faria isso.
​— Ele não me contou nada. Nem ele, nem o Ethan. — Nego com raiva,
aqueles idiotas me vêem praticamente toda semana e não falaram nada
sobre, sempre fugindo do assunto “Lauren” e agindo como se tudo estivesse
bem. Dois filhos da puta.
​ É claro que eles não te contariam, eles sabem que você ficaria do meu

lado. O que aconteceu de diferente dessa vez foi que até o Malcom ficou do
lado do meu pai. Eles armaram um jantar idiota de noivado, com nossas
famílias e tudo, como manda o figurino. Foi quando eu fugi! — Lauren está
irritada e bebe todo o conteúdo do seu copo em um só gole.
​— Os pais dele devem estar chantageando-o de novo.
​— É claro que estão, Anthony! Já que ele é um idiota que vive as custas
do pai. Você acha que ele quer perder o nosso padrão de vida?
​— E você simplesmente foi embora em vez de vir até mim? Achei que a
gente tinha um acordo: eu por você. Não foi isso que combinamos quando
éramos pirralhos? — Mantenho minha voz tranquila, apesar de querer
desesperadamente colocar senso nessa mulher.
​— E o que você poderia fazer?
​— Te escutar? Te apoiar? Porra, Lauren, você casou com alguém que
você nem conhece! — Brigo baixo e ela dá de ombros, revirando os olhos.
Às vezes, eu a odeio, e não tenho problema nenhum em admitir isso.
​— Sim, agora não preciso me casar com quem não quero.
​— Você não pode estar falando sério… Ao menos fez um pré nupcial
antes de casar com o cara? — Solto os ombros, ainda desacreditado do que
ela fez.
​— Não sou burra, Anthony, é claro que fiz. Minha herança está
protegida. — Lauren solta as costas na cadeira e bufa, sinto a raiva dela
emanando para mim. — Me livrei de um casamento que eu não queria.
​— E se meteu em outro que pode dar merda. Por que você e o Malcom
simplesmente não fizeram um acordo já que você ia casar com alguém por
contrato?
​— Porque eu não vou dar essa satisfação para ele, Anthony! Nem se eu
amasse o Malcom, eu faria algo que o meu pai quer. Eu prefiro ser infeliz
minha vida inteira do que agradar aquele desgraçado. — Lauren está com a
testa franzida, fúria explodindo dos seus olhos. — Não esperava que você
fosse brigar comigo, e sim me apoiar.
— Eu apoio qualquer merda que você faz, mas isso não quer dizer
que eu vou passar a mão na sua cabeça. Caralho… — É minha vez de virar o
conteúdo restante em meu copo e respirar fundo. — Você está fodida,
completamente fodida.
​— Eu sei, mas eu dou um jeito. Eu sempre dou. — Fala com um pouco
mais de certeza e respira fundo, então abre um pequeno sorriso triste e aperta
as mãos em volta do copo. — Eu dou um jeito, não dou?
​Em um momento, ela é uma mulher forte e determinada, e no outro
parece com a menininha que eu conheci quando éramos crianças. Seu olhar
quebra meu coração e faz com que eu acolha minha melhor amiga.
​— É óbvio que você dá, e eu estou aqui. — Seguro seu rosto, seco uma
lágrima solitária que escorre de seus olhos, e dou um beijo em sua testa. —
A gente dá um jeito e vou acabar com o idiota do seu irmão e do Malcom
por não terem me contado o que estava acontecendo.
​— Não, deixa quieto… Foi melhor assim, se você se metesse era capaz
de casar comigo só para me livrar dessa.
​— Seria melhor a gente casar do que vocês dois, pelo menos você gosta
de mim e sabe que eu fodo bem.
​— Só gosto de você às vezes! E não acho que transar uma vez, há 10
anos, seja parâmetro para confirmar essa informação. — Lauren faz uma
careta e eu a solto, empurrando seu ombro e sorrindo com a provocação. —
Senti sua falta.
​— Eu também senti a sua. Mande-me esse contrato depois para me
certificar de que está tudo certo e que você está segura, pode ser? — Nos
olhamos por um momento depois que ela concorda, e deixo o silêncio pairar
entre nós. Não vou mais forçar o assunto, não agora.
​— Desculpa não estar aqui para ir ao evento do Instituto com você.
Deixei você na mão em um péssimo momento, não é? — Lauren segura
minha mão e aperta os lábios mais uma vez. — Como foi?
​— Apesar do meu pai obviamente aparecer e roubar os holofotes para
ele, foi bom, no final das contas. Só mais um do mesmo.
​— Não era mais um do mesmo, era um evento importante. Sua avó
ficaria orgulhosa de você.
​— Não se ela soubesse que deixei seu prédio de pesquisa ter o dedo do
meu pai no projeto. — Forço um sorriso e ela aperta os lábios.
​— Ela sabe que você fez o que estava ao seu alcance, se dependesse de
Archibald MacMillan, nem investimento o Instituto teria, então não é nada
fora do normal. — Lauren me tranquiliza e eu sei que ela tem razão.
​— Nada fora do normal. — Repito e ela se inclina, olhando fundo em
meus olhos.
​— Estou orgulhosa de você por ter enfrentado isso sozinho. Prometo te
compensar e vou em quantos eventos insuportáveis você quiser que eu vá, e
não só nos legais.
Abre um sorriso sincero e solto sua mão. Esse é o momento perfeito
para lhe contar sobre a Marina, principalmente porque se Lauren descobrir
por outras pessoas, ela vai me matar. Sei que sua reação não será boa, mas
não é nada que eu não consiga contornar. Solto sua mão e finjo arrumar os
anéis prateados em meus dedos.
— Eu não fui sozinho, acabei levando a Dias comigo.
— A Dias — revira os olhos sem paciência e sua postura me deixa
em alerta. — A insuportável ainda está trabalhando aqui? Não sei onde você
estava com a cabeça para contratá-la. Aquela garota não tem perfil para
trabalhar com você, Anthony.
​Pisco algumas vezes, absorvendo seu tom de voz cheio de maldade e
julgamento, então sinto meu maxilar apertar, incomodado com sua atitude.
​— Eu gostaria que não falasse dela dessa maneira, Lauren. — Mantenho
a voz tranquila, o que faz minha amiga franzir a sobrancelha, confusa.
​— Você a chamava de insuportável o tempo inteiro — me acusa com um
sorriso debochado.
Levanto uma sobrancelha, tentando lhe contar que estou com a
Marina apenas com o olhar, e não demora nem três segundos para que sua
expressão mude drasticamente, entendendo exatamente o porquê de defendê-
la.
— Ah, não… Não me diga que você… Anthony! Pelo visto eu não
sou a única que faz merda quando estamos longe. Onde você estava com a
cabeça? — Sua mão apoia nos joelhos enquanto nega, a boca aberta em
indignação.
​— Quer realmente saber? — Aproveito o momento para brincar e abro
um sorriso safado, só para quebrar a tensão que está surgindo entre nós, mas
Lauren não entra no meu jogo.
​— Você é impossível, porra! — Sua postura fica rígida, completamente
contra a situação, sem saber o que está acontecendo de fato. — Ela não é pra
você, Anthony! A garota não tem um pingo de classe, tenho certeza que não
sabe nem se portar nos lugares que frequentamos. E as roupas que ela usa?
Puta que pariu…
​— Não fale assim dela, Lauren. — Fico sério e ela vê que, além de não
estar mais brincando, não vou admitir esse ataque gratuito à Marina. — Fale
o que quiser de mim, mas você não a conhece, não tem direito de falar o que
for dela.
​— Era só que me faltava, você está realmente defendendo aquela garota?
​ Estou. — Falo com simplicidade e puxo as mangas da minha camisa

para cima, fingindo não me importar com sua reação. — A gente se
aproximou nos últimos meses e aconteceu.
​— O que aconteceu exatamente, além de você foder com ela?
​— Esqueci que você consegue ser uma grande pau no cu quando quer. —
Provoco-a, mas ela não se abala e continua com o olhar implacável para que
eu fale o que aconteceu. — Estou apaixonado, Lauren. É isso que você quer
saber?
​— Você o que? — Lauren fala com a voz um pouco mais alta,
arregalando os olhos, e coloca a mão na testa. — Ai, Anthony…
​— Não sei porque estou tão surpreso com a sua reação — levanto da
mesa e vou até o bar para encher meu copo de novo. Só com muito álcool
para lidar com uma Lauren enchendo meu saco.
— Anthony, você só sabia reclamar e falar o quanto ela é
insuportável a cada aula que tínhamos juntos, e agora você diz que está
apaixonado? O que ela tem? Uma boceta de ouro? — Escuto-a arrastar a
cadeira e seu salto bate no chão com força, enquanto se aproxima de mim.
​— Estou falando sério, Lauren. Não vou aceitar você que fale dela
assim. E estar apaixonado não a faz menos insuportável, porque, acredite,
ela é. Mas também é inteligente pra caralho e nunca vi alguém tão
compreensiva e tão determinada. O que ela coloca na cabeça, ela faz. E é
autêntica, não liga se encaixa ou não no padrão dos outros, aquela marra
toda fez com que todos a respeitassem por aqui. Você não a conhece, Lauren.
​Viro-me para ela com o coração batendo rápido, só para encontrá-la me
desafiando enquanto me olha de cima a baixo. É comum brigarmos e nos
desentender, mas não é comum sentir esse julgamento todo que ela está
emanando agora. É como se eu estivesse fazendo a coisa mais absurda da
minha vida, e não apenas me permitindo sentir algo por alguém.
​— Eu acho que não conheço você, isso sim. Você é inacreditável…
​— Não fui eu quem fugiu por meses e me casei com o primeiro cara que
apareceu na minha frente.
​— Eu não me apaixonei por ele! — Ela aponta para si, a voz mais alta.
— Eu fiz um movimento completamente estratégico para livrar minha bunda
da porra dos planos ridículos e absurdos dos meus pais. É você quem está
falando que está apaixonado por uma vira-lata!
​Ficamos nos olhando por um momento, seu olhar de indignação tentando
me atingir enquanto a raiva parece deixar meu corpo, dando lugar para a
decepção por ela agir exatamente como seus pais agiriam. Como o meu pai
agiria.
​— Não esperava que você concordasse, mas que pelo menos aceitasse e
me entendesse. Já que isso não é possível, acho que não temos mais nada o
que conversar por hoje. — Solto um suspiro e bagunço meu cabelo, sem
paciência para lidar com isso agora.
​— Você não está falando sério — Lauren faz uma careta e não se move.
— O Anthony de meses atrás estaria te achando completamente patético
agora, o que está acontecendo?
​— Do que vai adiantar eu falar sobre isso com você? Você não ficou
assim quando contei que estava fodendo com qualquer uma das suas
amiguinhas sem cérebro, mas agora está agindo como se eu tivesse perdido a
cabeça?
​— Porque não faz sentido, Anthony! Você nunca ficou com alguém
como ela antes! E ela é sua assistente, você não tinha uma regra de nunca
transar com quem trabalha pra você?
​— Eu realmente não estou mais com vontade alguma de falar sobre isso
com você agora, Lauren. — Desvio dela e ando devagar em direção a porta
da sala. — Se não pode me escutar falar sobre o que estou sentindo, sem me
julgar, acho que você deve ir. Se eu quisesse ter dedos apontados na minha
cara, eu teria contado para o meu pai.
​— Anthony…
​Seguro a maçaneta, mas não abro a porta, fazia tempo que não
brigávamos desse jeito, já que geralmente nos escutamos e nos acolhemos. É
assim que funcionamos a vida inteira e é por isso que ela é minha melhor
amiga, mas o olhar que carrega não é algo que quero lidar agora. Não
quando ela fez algo muito mais fodido e louco do que eu e me julga dessa
forma.
​Lauren abre a boca para falar algo, mas a fecha e suspira, pegando suas
coisas na cadeira e indo até mim.
​— Não é assim que eu pensei que seria o meu retorno. — Sua voz está
baixa, magoada com o final desse reencontro.
​— Muito menos eu. — Giro a maçaneta, e abro somente um pouco da
porta. Ela sabe que não estou expulsando-a para sempre e que essa não é
uma briga definitiva. É um desentendimento que não chegará a lugar
nenhum agora, com os dois de cabeça cheia. — Escuta, vamos jantar, tá
bom? Para conversarmos e entendermos tudo direito, depois que os ânimos
se acalmarem um pouco.
​Ela concorda e aperta os lábios, forçando um sorriso e me dando um
pequeno abraço. Eu lhe dou um beijo na bochecha e abro a porta
completamente, somente para encontrarmos a Marina parada na sala mais
distante da minha, do outro lado do longo corredor, conversando com
alguém pela porta enquanto gargalha de algo.
​— Ela tem o estilo igual ao daquela influenciadora americana, Luanna?
O cabelo colorido, as roupas, os sapatos tratorados, a orelha cheia de
piercings… — Lauren sussurra em desaprovação e me olha desacreditada,
mas a raiva parece ter diminuído, dando lugar à confusão.
​— Você está parecendo uma velha conservadora, igualzinha à sua mãe.
— Sussurro de volta e ela arregala os olhos.
​ — Retire o que disse. — Aperta a boca, me fuzilando com o olhar
quando eu nego, e empurra meu ombro. — Eu te odeio.
​— Não odeia nada. — E da mesma forma que o clima entre nós
esquentou, já sinto-o ficar leve novamente. É assim que funcionamos. — E
você adora a Luanna.
​— Não sei mais se gosto tanto assim. — Faz uma careta e cruza os
braços.
​— Isso tudo é ciúmes? — Alterno o olhar entre Lauren e Marina, que
nos viu e está andando devagar em nossa direção. Ou na direção da sala dela.
​Seus olhos estão curiosos, e vejo os nós brancos de seus dedos por estar
segurando com força a alça de sua bolsa, está ansiosa, apesar do nariz
levantado. Ela usa uma saia comprida, coturno e um pullover largo,
absolutamente linda com metade do cabelo preso em um nó e o resto caindo
pelos ombros.
​— Já pensou que você está encantado por ela exatamente por ser
“diferente” do que você está acostumado? Só para irritar seu pai?
​— Ninguém sabe de nós, Lauren. — Olho para ela, ainda falando baixo,
aproveitando os momentos em que Marina ainda está relativamente longe de
nós. — Só você e minha avó.
​— Você contou para a Delfine? — Seu olhar parece relaxar um pouco,
como se a ideia começasse a assentar um pouco em sua mente.
​— Contei…
​— Você realmente gosta dela? — Sua voz sai quase inaudível, confirmo
e nós dois olhamos para a mulher que estou apaixonado.
— Boa tarde… — Marina diz com a voz firme e coloca a mão na sua
maçaneta, sem desviar o olhar de nós.
— Boa tarde, Dias. — Lauren responde e se vira para mim, se dando
por vencida e revirando os olhos uma última vez, enquanto solta os braços
do corpo. — Amanhã à noite? Hoje, vou fugir de todo mundo, dar um jeito
no meu apartamento e procurar algumas clínicas psiquiátricas para você.
Dou-lhe um olhar de advertência e ela levanta as mãos, como se
dissesse que estava brincando. Então, levanta o nariz e começa a se afastar,
dando um pequeno aceno acompanhado de um sorriso, mas não vira a
cabeça ao passar pelas paredes de vidro da sala da Marina, mantendo o olhar
fixo à sua frente.
Estaria mentindo se dissesse que senti falta desse lado da minha
melhor amiga, porque não senti e não queria lidar com ela agora, mas são
momentos assim que me mostram que fizemos a escolha certa em não levar
nosso relacionamento adiante. Nunca daríamos certo e, apesar de me sentir
confortável em ser eu mesmo ao seu lado, ela nunca me trouxe a brisa fresca
que me faz respirar com mais facilidade assim como a Dias faz.
São os pequenos detalhes da brasileira que me deixam ainda mais
apaixonado, e eu luto com quem for para que eu não pare de sentir tudo o
que ela causa em mim.
Capítulo 41

“Eu sei dos seus motivos e você sabe dos meus


Os que me amam, eu costumo deixar para trás
Se você souber sobre mim e escolher ficar:
Então fique com o prazer e com a dor”
Love Me Harder - Ariana Grande

​ ó pela expressão do Anthony, consigo ver que ele e a Lauren brigaram.


S
Não é nenhuma surpresa que ela não vai com a minha cara, já que sempre
manteve o olhar de uma megera sem coração estampado no rosto quando
passava por mim na faculdade. Completamente transparente para qualquer
emoção ruim relacionada aos outros, é claro que não seria diferente comigo.
​Ela estava impecável. O cabelo liso e escuro, que combina perfeitamente
com seu rosto delicado e a roupa justa, delineando o corpo mesmo com o
sobretudo comprido. Lauren McGee é uma variação da Barbie e só um louco
diria o contrário.
​Fecho minha porta, porque parece que eles estão se despedindo, e não
vou interromper o que quer que tenha acontecido entre os dois. Sinto uma
pontada de ciúmes quando os vejo tão perto, conversando baixo e olhando
fundo nos olhos um do outro… Nunca o vi com outra mulher fora do
ambiente de trabalho, até porque, no escritório, ele age de forma
completamente profissional com todos, e em outros lugares… Não temos
muita experiência saindo e convivendo com outras pessoas. Não sei se ele já
teve ou se ainda tem algo com ela… A única coisa que sei é que não gostei
de vê-lo tão íntimo de outra mulher.
​Uau, eu sou ciumenta. E tóxica. Porque, se eu deixar apenas a Marina da
superfície lidar com minhas emoções agora, ela estaria pronta para uma
briga sobre a proximidade dele com a Lauren. Felizmente, essa Marina está
sob controle e consigo pensar racionalmente, o que me faz ver com clareza
que não posso agir com os outros da mesma forma que não quero que ajam
comigo. Pedro era ciumento e controlador, mesmo quando não existia nada
para deixá-lo assim, e eu me recuso a ser como ele.
​Anthony terminou com a Elizabeth porque não conseguia corresponder
aos sentimentos dela, ele não me magoaria também. Ele é sincero e se
estiver acontecendo algo com a Lauren, vai me contar sem que eu fique
insegura. Isso, Marina.
​Tenho orgulho de mim, às vezes.
Não se passam nem alguns segundos depois que Lauren passa por
minha sala com o nariz empinado, quando escuto batidas suaves na porta.
Anthony a abre com um pequeno sorriso sem graça no rosto. Seu cabelo está
desalinhado, mas não do jeito proposital de sempre, e sim como se alguém
tivesse bagunçado-o.
Para! Eu estava orgulhosa há menos de um minuto e agora já estou
criando paranóias na cabeça. Que vergonha.
— Não vai me dar oi? — Anthony suaviza o olhar e fecha a porta
atrás dele.
— As cortinas estão abertas — aperto os lábios em um sorriso e
aponto para a parede de vidro.
Levanto-me, vou na cortina do lado oposto ao dele e começo a fechá-
la até a gente se encontrar no meio do caminho. Seu cheiro delicioso me
invade e tudo o que consigo pensar é “não termine comigo para ficar com a
Lauren”.
— Oi… — Anthony morde a boca e eu levanto a cabeça em sua
direção.
— Oi… — Umedeço os lábios e sinto seu toque em meu queixo,
puxando-me devagar para me dar um beijo.
Ah, acho que nunca me acostumarei com esse toque.
​— Você está bem? — Me dá um selinho e segura meu rosto com as duas
mãos, olhando fundo em meus olhos, interessado no que tenho a dizer.
​— Acho que sim — concordo e forço mais um sorriso apertado, que o
faz franzir a sobrancelha, estudando minhas expressões.
​— Já te falaram que você é uma péssima mentirosa?
​— Eu sou uma ótima mentirosa. — Rebato imediatamente e ele me
desafia com o olhar mais uma vez, então decido que não serei uma dessas
mulheres que vive insegura, escondendo o que sente em vez de falar e
resolver de uma vez. Não sou assim nos meus relacionamentos familiares e
nem com amigos, então não serei com ele. — Não sabia que a Lauren tinha
voltado.
— Ela quis me fazer uma surpresa.
— Boa ou ruim?
— De início, boa, mas depois… — Anthony faz uma pequena careta
e solta meu rosto, jogando meu cabelo para trás do ombro e se afastando um
pouco.
— É, deu para perceber. Vocês pareciam tensos, tá tudo bem?
— Vai ficar, notícias grandes às vezes precisam de tempo para serem
digeridas.
— Que enigmático. — Brinco e ele entrelaça nossos dedos. — Vocês
têm algum lance que eu deva me preocupar?
Anthony sorri convencido, como se estivesse satisfeito em escutar
exatamente o que falei, então começa a cheirar o ar ao meu redor.
— Está sentindo esse cheiro?
— Cheiro? — Imito seu movimento, mas sinto somente o cheiro
cítrico normal da minha sala. — Que cheiro?
— De ciúmes! — Anthony completa com um sorriso de criança,
satisfeito por ter me feito cair como um patinho na sua brincadeira.
Abro a boca e empurro seu peito para longe de mim, o que somente o
faz sorrir ainda mais, me puxando para perto de novo.
— Como você é convencido! — Bato de leve em seu ombro e ele
envolve os braços ao redor da minha cintura, me prendendo perto dele. —
Foi só uma pergunta, acho justo eu saber se você tem ou teve algo com
alguém, para eu decidir se vou ler e aceitar os termos de uso, ou se vou
embora.
— Você é uma moça muito brava…
— Não estou nem um pouco brava. — Sua cara de idiota me faz
sorrir. — Meu último relacionamento não foi bom, Anthony… Só quero ter
certeza de que não vou me machucar de novo. Preciso me preocupar?
— Lauren é minha melhor amiga. Nós namoramos quando éramos
adolescentes, mas não deu certo e não existe drama nenhum em volta disso.
Somos amigos, faz anos que nós ficamos juntos a última vez e não tenho
pretensão nenhuma de machucar você. Certo?
— Certo, obrigada.
Fico na ponta dos pés para lhe dar um selinho e nos soltamos. Sou
seguida por ele quando vou até minha cadeira e ele senta de frente para mim.
— O que esse idiota fez com você?
— Ah, é tanta coisa que nem sei por onde começar. — Finjo não me
importar com o assunto, mas sinto o estômago apertar. — Essa é uma das
perguntas do nosso jogo?
— Não precisa falar, se não quiser.
— Isso é uma coisa que ele nunca fez, me respeitar… — Olho para
ele tranquilamente e penso por um momento. — Talvez seja estranho para
você me imaginar assim, mas eu nem sempre fui como sou hoje. Alguns
anos atrás, me diminuí por um homem, aceitei abusos psicológicos, traições
e fui minada com minhas roupas, meu cabelo, meu gosto… Não foi um
relacionamento bom. Quando finalmente encontrei forças para terminar
aquele ciclo, prometi nunca mais aceitar menos do que o mínimo do que eu
mereço.
— É por isso que você não namora?
— Exatamente. — Apoio o cotovelo na mesa e a mão no queixo.
— E eu já te fiz sentir assim alguma vez? — Anthony está
incomodado, com medo da resposta que vem a seguir.
Lembro do meu primeiro dia trabalhando aqui, quando ele me pegou
no flagra defumando todo o seu escritório e, em vez de me diminuir, me
deixou livre para fazer o que eu tinha vontade, respeitando meu jeito e
minhas roupas. Um quentinho se apossa do meu peito e eu me inclino na
mesa, esticando o rosto em direção ao seu.
— Se um dia você me fizer sentir assim, prometo te contar.
Ele concorda e me beija, então volto para minha cadeira e sinto-o me
observando satisfeito.
— Jantei com meu pai ontem, achei uns documentos que poderiam
nos dar alguma pista sobre a senha, mas elas não funcionaram. Se você
quiser tentar essas aqui…
Anthony me entrega um papel com 4 combinações, que eu
imediatamente tento, mas nenhuma dá certo. O que é muito frustrante.
— Sabe, nos últimos dias eu tenho pensado em realmente fazer algo.
Chega de jogar de forma segura e com medo. Se eu quiser ajudar o Centro e
descobrir o que seu pai tanto esconde, preciso dar um passo maior e ir atrás
dessa senha. Eu não consigo dormir direito pensando nisso, você não?
— É claro que sim, por que acha que eu tenho ido jantar com ele?
Pode ter certeza que não é saudade. Entrei no escritório da nossa casa duas
vezes, fingindo procurar uma documentação que eu precisava para a
faculdade, e ele não me deixou ficar tempo o suficiente sozinho lá dentro.
Concordo e me levanto, pegando duas pastas de documentos que
deixei no canto da mesa.
— Então, senhor MacMillan, se você me der licença, vou ao 11º
buscar os inventários desses projetos, que ninguém me mandou ainda. —
Sorrio travessa, porque no dia anterior separei a documentação errada para
que eu pudesse ter um motivo para aparecer no andar de baixo.
Anthony se levanta com o mesmo sorriso travesso no rosto,
entendendo meu plano. Conversamos alguns dias atrás sobre ir até lá para
que eu possa fazer um reconhecimento do espaço pela primeira vez. Ajusto
minha saia e ele abaixa a manga de sua camisa, em seguida passa a mão no
cabelo.
— Eu te acompanho, senhorita Dias.
É gostoso esse clima de companheirismo entre nós. Quando andamos
lado a lado pelo escritório, sinto como se ninguém pudesse entrar em nosso
caminho. Anthony mantém a postura reta, tocando em meu braço de vez em
quando, enquanto cumprimento os outros funcionários.
Elizabeth nos encara ao entrarmos no elevador juntos. Quando aperto
o botão do 11º, meu coração bate forte, igual uma criança ansiosa brincando
de esconde-esconde. Anthony não fala nada quando a porta se abre, mas me
dá força com o olhar e segura a porta do elevador para eu sair primeiro.
Até mesmo o cheiro aqui é diferente, como se fosse uma biblioteca
com o aroma forte de papel por todo o ar. Eles não tem uma secretária na
porta da frente como nós, e metade do andar é composto por mesas simples,
divididas por biombos pequenos e individuais. Já a outra metade, são
estantes e mais estantes de documentos, pastas e caixas de arquivos.
Vamos até a mesa em que um homem na casa dos trinta anos está
apoiado, mexendo no computador. Ao seu lado, tem uma impressora, um
scanner e uma máquina de picotar papel, todos de fácil acesso a ele.
Anthony coça a garganta, chamando a atenção do homem, que o reconhece e
ajeita a postura imediatamente, arregalando os olhos em completo choque.
— Se-senhor MacMillan, senhorita Dias. — Puxa a camisa para
baixo e passa a mão no tecido. Não sei como ele sabe quem eu sou, mas
sorrio de forma tranquila, deixando Anthony conduzir a conversa. — Não
estava esperando o senhor hoje.
— É, vim dar uma passada, ver como estão as coisas por aqui. —
Anthony abre o sorriso que usa somente em eventos e na frente dos
funcionários, completamente encantador. — Quero também que você dê
uma olhada nesses documentos, a senhorita Dias acredita que foram
enviados desatualizados.
— Ah, o senhor não precisava ter vindo até aqui para isso. — O
homem fala nervoso e olha para mim. — Sempre que a senhorita Dias pede
uma alteração, eu trato de enviar o mais rápido possível.
— Tenho certeza que sim. — Anthony estende as pastas para o
homem, que as pega e abre. Ele fica confuso e não consigo evitar sentir dó,
porque parece que ele está se questionando se realmente cometeu aquele
erro, mas não verbaliza a confusão. Nos avisa que volta em alguns minutos e
some entre as estantes, nos deixando sozinhos.
— Pelo o que eu procuro? — Pergunto dando a volta no balcão.
— Deixe que eu vou — Anthony dá um passo para a frente e eu
sorrio, notando a câmera na sua frente.
— Eu sou apenas uma funcionária curiosa. Você fica. — Sorrio e
aponto para as estantes, fingindo estar animada com o espaço. — Pelo o que
procuro?
— Pela caixa de LittleWin.
— Mesmo número dos arquivos? 787?
Anthony confirma e eu desapareço pelas estantes, olhando
rapidamente ao redor e procurando pelos números que preciso. Não tem
câmeras nos corredores de documentos, o que é muito estranho. As
prateleiras são separadas por letras e números, e demoro alguns segundos
para me situar, mas assim que entendo onde estou, o número 787 aparece
como mágica na minha frente.
A caixa é marrom clara e, quando a abro, encontro vários
documentos. Puxo um envelope, reconhecendo o número do mercadinho do
senhor Ward e todos os documentos que envolviam a compra do seu
estabelecimento, assim como os alvarás que ele precisava.
— É isso! — Meu coração dispara no peito, sem acreditar que eu
consegui.
Eu achei.
Puxo as outras pastas, procurando a que deve ter os documentos do
Centro. Meu olhar está frenético, acompanhando minhas mãos enquanto
apoio metade da caixa na estante e metade em minha perna. Nem acredito
quando finalmente seguro o envelope que preciso. Minha respiração está
rápida no peito e vejo minha mão tremer um pouco.
O envelope parece mais leve do que os outros e assim que o abro,
encontro apenas cinco papéis dentro dele. Listas dos bombeiros com o aviso
de interditar o casarão e uma proposta de compra do imóvel.
Nada de diferente do que já sabemos que está acontecendo. Nada que
possa nos ajudar ou mudar alguma coisa.
Fico alerta quando escuto passos e imediatamente devolvo tudo onde
encontrei, apressando o passo para o final das estantes e voltando para onde
eu estava antes.
​Anthony está exatamente no mesmo local, a mão apoiada no balcão e
sem esboçar nenhuma reação quando eu apareço perto dele. Faço o mesmo
que ele e ajo normalmente, o homem volta para perto de nós. Anthony
tamborila os dedos na mesa e observa o funcionário se aproximando do
computador, depois de avisar que achou o documento certo e que só tiraria
uma cópia para nos entregar.
​— Conseguiu? — Pergunta em português como um sussurro e eu nego,
ficando em silêncio.
​— Pronto, senhor. — O funcionário bate os papéis na mesa para arrumá-
los e os coloca dentro da pasta. — Desculpe pelo erro, senhorita Dias, não
vai se repetir.
​— Imagina, não tem problema nenhum. — Confirmo gentilmente e
Anthony segura a pasta com seu sorriso galante no rosto.
​— Bom trabalho, Hugo.
​Acena um pequeno tchau para o homem e saio na frente de Anthony, nós
dois fingindo que nada aconteceu.
Capítulo 42

“Estávamos limpando o incenso da sua estante de vinis


Porque perdemos a noção do tempo outra vez
Rindo com os meus pés no seu colo
Como se você fosse meu amigo mais próximo”
Maroon - Taylor Swift

​ s semanas que seguem passam muito rápido devido aos preparativos


A
para o festival, aos últimos trabalhos da faculdade e à jornada pesada de
trabalho em que adianto o possível, antes do recesso. Só sinto o Natal chegar
quando me vejo sozinha em casa, dia 24 de dezembro, sem saber o que fazer
após enviar o último e-mail do ano.
​As ruas já estavam enfeitadas há semanas, mas a correria foi tanta que
não consegui aproveitar a cidade da maneira que sempre sonhei. Tenho duas
semanas de folga no total e não faço ideia por onde começar a curtir esses
dias até o novo ano chegar. Talvez aproveite essas horas livres para voltar a
fazer minhas velas, cuidar da minha casa com mais carinho, me reconectar
com a Deusa, já que estou em falta com Ela pela correria da vida, e por em
dia a lista de reality shows e livros que quero ler.
Depois que fui pela primeira vez no 11º andar, fiz algumas outras
visitas ao Hugo, o homem que sempre cuida da documentação, e consegui
um pouco de sua confiança, mas a pasta de LittleWin continua do mesmo
jeito a cada nova visita. Já entendi que não vai ser ali que encontraremos
alguma coisa, e Anthony aproveitou a viagem anual com o pai e os amigos
para tentar descobrir algo, dessa vez na casa de férias dos MacMillan, na
Itália.
Nosso relacionamento parece estável, até o momento. Na frente dos
outros, continuamos com a mesma dinâmica de sempre: chefe e funcionária
que se tratam com respeito, mas adoram discutir. A diferença é que, agora,
sinto sua mão tocar minha perna por baixo da mesa de reunião enquanto
prestamos atenção no trabalho. Às vezes, seguramos as mãos, sem ninguém
ver, e o toque dos seus dedos, sempre gelados na minha pele, me conforta.
Ele gosta de brincar com a palma da minha mão, fazendo desenhos com a
ponta do seu dedo e sempre se mantendo próximo. Sua expressão pode ser
séria, mas seu toque é o completo oposto.
É carinho e afeto puro.
Por isso que, nos momentos em que ficamos juntos e sozinhos, sou
levada ao paraíso e, então, trazida de volta à Terra tantas vezes, que tenho
medo de tudo não passar de um sonho. Durante o horário de trabalho,
trocamos apenas alguns beijos e recadinhos que ele sempre deixa em minha
mesa. Mas quando me convida para jantar em sua casa… Nunca pensei que
gostaria tanto de ficar deitada na cama de um homem e vê-lo de óculos,
moletom e pés descalços andando tranquilamente em minha direção.
Anthony é um homem sexy, não importa o que ele faça ou como está.
Ele me encanta, e nossos encontros têm me mostrado ainda mais o homem
incrível que é. Passamos horas sentados no sofá conversando, beijando,
amando… É difícil ter que ir embora no dia seguinte.
No instante em que nos afastamos, sinto medo de tudo mudar em um
estalar de dedos. Depois do meu último relacionamento, conheci homens que
me tratavam bem, mas não me permiti abrir o coração para nenhum deles.
Saber que, dessa vez, além de estar me sentindo querida por alguém,
também estou me permitindo compartilhar o que eu sinto é aterrorizante.
É claro que a culpa desse sentimento é inteiramente minha, que
continuo com o mesmo papo de “manter entre nós” e “não sei como falar
para os outros” para fugir de algo mais sério. Estou me sabotando e
sabotando o relacionamento bom que estou construindo, ao mesmo tempo
que sei que posso me assustar e me fechar novamente se não me der esse
tempo. Não é como se eu estivesse mentindo, eu realmente acho melhor
curtir o que temos entre nós dois, sem interferências de terceiros — já é
difícil demais lidar com os olhares de julgamento da Lauren sem poder voar
no seu pescoço —, e sem fazer com que meus amigos percam a confiança
em mim.
É noite de Natal. No Brasil, eu estaria sentada na sala de casa,
vestindo uma roupa nova e brincando de amigo secreto com minha família
antes de jantarmos à meia noite. Mas aqui, na Inglaterra, estou de pijama no
meu sofá, abraçada a um prato de brigadeiro, com a Capitu deitada ao meu
lado, enquanto assistimos a maior quantidade de filmes de comédia
romântica que se passam no Natal antes de desmaiar de sono. Já estamos no
4º filme.
Achei que ficaria deprimida por estar sozinha, mas estou lidando
melhor do que eu esperava. É como se essa fosse mais uma etapa que eu
preciso passar depois de decidir mudar tão drasticamente meu estilo de vida
e o que quero para o meu futuro.
Dou um sorriso bobo ao ver o Jack Black se despedir várias vezes da
Kate Winslet com beijos na bochecha, enquanto a ajuda a superar um antigo
relacionamento tóxico, quando meu celular vibra do lado oposto do sofá.
Estico-me para pegar o aparelho, sabendo que é mais uma mensagem da
minha mãe tentando me incluir em cada processo dos preparativos para a
ceia, e me surpreendo quando vejo o contato — que eu, com certeza, não
salvei daquela forma — brilhar na tela.

Gostoso MacMillan (22:54) diz:


Não consigo dormir.

Marina Dias (22:55) diz:


Você mudou seu nome no meu celular?

Gostoso MacMillan (22:55) diz:


Acho que assim combina mais comigo
‘Arrogante MacMillan’ não representa meu verdadeiro eu.

Marina Dias (22:56) diz:


Pois eu acho que ‘arrogante’ combina perfeitamente.
E posso saber como meu nome está salvo no seu celular?

Coloco o brigadeiro de lado e, no momento em que me mexo, Capitu


se espreguiça, deixando o espaço com cobertores para dar uma volta pela
casa. Observo-a se afastar e, quando vejo que entrou no meu quarto, volto a
atenção para o celular.
Gostoso MacMillan (22:56) diz:
‘Insuportável’, gosta?

Marina Dias (22:58) diz:


Você é gostoso e eu sou insuportável?
Não achei muito justo.

Gostoso MacMillan (22:59) diz:


A vida não é justa!
Como está sendo sua véspera de Natal?

Marina Dias (22:59) diz:


Solitária, e por aí?
Estão cantando músicas festivas e se abraçando de tanto amor?

Gostoso MacMillan (23:00) diz:


É por isso que seu nome é insuportável ;)
Os amigos da família chegaram hoje e tivemos um jantar maravilhoso.
Já experimentou carne de cordeiro com molho de gritos e insultos?

Marina Dias (23:01) diz:


Eita, quem foi a vítima?

Gostoso MacMillan (23:01) diz:


Lauren, que chegou com o “marido”. Os pais dela nem tentaram manter
as aparências, como sempre fazem.
Fazia alguns anos que não brigávamos tanto, o jantar só terminou
porque nem a louça conseguiu escapar, mas agora estão todos em seus
quartos.

Marina Dias (23:03) diz:


Mas ela está bem?

Gostoso MacMillan (23:03) diz:


Precisa de muito mais do que alguns gritos para parar a Lauren, amor.

Amor.
Sorrio quando leio o apelido, é a forma que mais gosto de ser
chamada por ele. Vindo da boca de outras pessoas, eu ficaria pensando no
significado e de como era inapropriado ele me chamar assim sem nem ser
algo meu. Entretanto, sinto aquela marra gostosa quando ele fala com a voz
debochada de quem não quer magoar, e sim provocar. Por isso que eu me
derreto toda vez que me chama assim.

​ arina Dias (23:05) diz:


M
E o que você fez, ó defensor número um da senhorita McGee? Quer
dizer… senhora…
Qual é o sobrenome novo dela?

Gostoso MacMillan (23:07) diz:


Continua sendo McGee, ela não abre mão do sobrenome apesar de odiar
o que vem atrelado a ele.
Eu ajudei, não ia deixar que tudo saísse ainda mais do controle, apesar
de querer me juntar a ela pra matar nossas famílias. Quase a tranquei em
seu quarto, mas ela concordou em deixar a briga para amanhã.
Você me tiraria da prisão se eu precisasse?

Marina Dias (23:09) diz:


É claro!
Levaria uma câmera, para deixar registrado seus tênis de 15 mil euros
pisando em uma cadeia, e o meu melhor pano para passar no chão para
você.

Gostoso MacMillan (23:10) diz:


Pano?

Marina Dias (23:10) diz:


Coisa de brasileiro, você não entenderia hehe

Gostoso MacMillan (23:10) diz:


Pelo visto, sua ajuda vem com um preço a ser pago.

Marina Dias (23:10) diz:


Nunca! Apenas um souvenir da situação para rirmos no futuro.
Se você errou, foi tentando acertar!

Gostoso MacMillan (23:11) diz:


Engraçadinha.
Marina Dias (23:12) diz:
Acho linda a forma que você cuida de quem ama.

Gostoso MacMillan (23:12) diz:


Assim meu ego vai ficar inflado.

Marina Dias (23:13) diz:


Mais? Impossível!
É por isso que você não está conseguindo dormir?
Por causa da briga?

Gostoso MacMillan (23:14) diz:


Não, eu posso lidar com a briga.
A culpa da minha insônia é inteiramente sua que me mostrou que durmo
muito melhor quando você está na mesma cama que eu.

Fico tímida assim que leio a mensagem. É esse o efeito que ele tem
sobre mim. Anthony MacMillan flerta e eu, imediatamente, fico com as
bochechas quentes e dando sorrisinhos como uma adolescente.

Marina Dias (23:16) diz:


Awn, tá apaixonado pela insuportável?

Gostoso MacMillan (23:17) diz:


Talvez, eu esteja.
Vem me ajudar a passar por essa tortura.

Marina Dias (23:18) diz:


Se você implorar, posso pensar no seu caso. ;)

Gostoso MacMillan (23:18) diz:


Faço o que você quiser, desde que você venha com aquela camiseta que
eu gosto.

Dou risada com sua última mensagem, porque ele não faz ideia de
que a camiseta que ele gosta é exatamente a que estou usando. Uma camiseta
cinza oversized da faculdade que eu acabei roubando do seu guarda-roupa
depois de sair atrasada do seu apartamento alguns dias atrás.
Marina Dias (23:19) diz:
Já estou com ela.

Segundos depois da mensagem ser lida, meu telefone toca com uma
chamada de Anthony. Estou sorrindo desde o começo da conversa e sei que
isso ficará claro em minha voz, mas não me importo.
— Alô? — Faço-me de desentendida e ele ignora completamente.
— Você roubou minha camiseta? — Sua voz rouca e baixa me faz
morder os lábios.
— Ela não deve ser tão importante assim, já que você demorou quase
uma semana para perceber o desaparecimento. Se quiser de volta, vou pedir
um valor de resgate, mas já deixo claro que ela fica melhor em mim. —
Olho para a camiseta e puxo a gola até meu nariz, sentindo o cheiro dele no
tecido.
— Fica mesmo, e é por esse único motivo que não vou pedi-la de
volta.
— Obrigada. — Dou uma risada baixa e escuto sua respiração calma
do outro lado da chamada. Passo o dedo pela costura da coberta e mordo os
lábios travessa. — E se, por um acaso, eu aparecesse aí… Você usaria o que?
— Só os óculos, o que acha?
Merda… Imaginar o Anthony na minha frente, deitado no sofá, lendo
um livro e não usando nada além dos óculos faz com que eu sinta o pulsar
gostoso que ele causa no meio das minhas pernas.
— Acho que você vai ter que dar um jeito de adiantar o relógio e
voltar logo.
Agora, é sua vez de rir, a risada sincera e prazerosa que solta cada
vez mais.
— O que você está fazendo agora?
— Assistindo um filme… E você?
— Pensando em você, querendo te ver com minha camiseta… — Sua
voz ficou baixa de repente, preguiçosa e carregada de um ronronar gostoso.
Tenho certeza que, se estivéssemos juntos, seus olhos estariam fitando minha
boca.
— Isso é uma alternativa do hétero de “manda foto de agora”? —
Provoco da mesma forma.
— Não, mas se você quiser mandar, não vou reclamar.
Reviro os olhos, mas abro a câmera do celular, tiro uma foto e a
envio.
— Sinto-lhe dizer que essa é toda a sensualidade que estou
esbanjando agora. Cabelo preso, camiseta larga e meia por cima da calça.
Anthony nunca me viu realmente confortável, já que em todas as
vezes que dormi em sua casa eu estava bonitinha, com o cabelo bagunçado
pós sexo, sorriso no rosto e vestindo suas roupas. O que, provavelmente, é o
que ele mais gosta de me ver usando.
— Sexy, principalmente sabendo o que tem por baixo de tanto pano.
— Eu não mereço uma foto também?
O silêncio que segue é sinal de que Anthony está tirando a foto.
Quando o celular vibra no meu rosto, abro a imagem depressa.
— Eu te odeio — murmuro vendo-o com uma camiseta simples,
cabelo bagunçado e óculos na ponta do nariz.
— Só porque eu sou tão gostoso, que te excito com uma foto do meu
rosto? — Ri e escuto o barulho dele se mexendo na cama.
— É, exatamente por isso.
Ficamos em silêncio, sua respiração e o bater forte do meu coração
sendo os únicos sons preenchendo o ambiente. Estou com saudade dele e faz
dois dias que nos vimos pela última vez. Estou perdida, e querendo escutar
meu coração, não minha mente.
— Queria te beijar. — Não consigo controlar as palavras que saem
da minha boca.
— Eu estou louco para te beijar, pra te sentir. Você me invadiu de um
jeito que não consigo te tirar da cabeça, Marina.
— Não fala assim… — Suplico baixo e fecho os olhos. — Eu vou
acabar acreditando.
— Então, acredite, porque eu só queria estar ao seu lado agora,
sentindo o cheiro do seu cabelo e te beijando inteira.
Minha pele se arrepia e meu clítoris pulsa, imaginando seus dedos
segurando meu cabelo e puxando minha cabeça para trás, deixando meu
pescoço livre para sua boca me invadir. Minha respiração fica pesada e um
pequeno gemido escapa dos meus lábios. Tento transformar aquela sensação
em realidade passando a ponta dos meus dedos em minha pele, servindo de
combustível para a respiração pesar ainda mais.
— Nina… — Anthony sussurra meu apelido pela primeira vez, o que
me faz enterrar no sofá em deleite. — O que você está fazendo?
— Imaginando você aqui beijando meu pescoço e me segurando
perto.
— E o que mais eu faria se estivesse aí?
Merda, a pulsação aumenta de uma forma deliciosa e é preciso
umedecer os lábios secos pela respiração pesada.
— Não sei, me diz você… — Provoco.
— Eu ia começar tirando essa sua calça, quero você vestindo só a
minha camiseta. — Anthony ronrona.
— E se eu ficar com frio?
— Então, eu não estaria fazendo meu trabalho direito. — A voz de
Anthony vem grossa, carregada de malícia como se estivesse saindo do
fundo do seu peito. — Eu pretendo te fazer suar toda vez que estiver comigo,
amor. Principalmente quando eu estiver passando minha língua pelo seu
corpo inteiro, até chegar no meio das suas pernas para chupar cada gota que
você derrama por mim.
— Você realmente faz isso muito bem. — Desço minha mão devagar
pela minha barriga, colocando-a dentro da calça, até alcançar minha
calcinha, acariciando-me por cima do tecido.
Agradeço a imaginação fértil, porque meu toque, combinado com o
Anthony me falando tudo o que quer fazer comigo, me excita muito.
— Eu sei, e eu adoro sentir você gozar na minha língua e depois me
beijar com a mesma vontade que te chupei.
Certo, meus dedos agora estão tocando meu clítoris, fazendo
movimentos circulares que, em vez de me aliviarem, apenas me fazem
querer mais. Estou pulsando, louca para sentir meu corpo vibrar de prazer
até se aliviar por culpa dele. Espalho meu líquido, lubrificando toda a região
e aumentando levemente a pressão, só o suficiente para que um gemido
escape dos meus lábios.
— Fala mais — peço levemente ofegante.
— O que você está fazendo, amor? — Anthony pergunta com
diversão e luxúria presente na voz. Ah, o que eu não faria para estar na
frente dele agora? — Está se tocando pensando em mim?
— E se eu estiver? — Mordo os lábios aumentando a velocidade dos
meus movimentos, quero provocá-lo para que sinta o mesmo que estou
sentindo agora.
— Então, você vai me deixar louco, porque estou fazendo o mesmo.
— Se eu estivesse aí, você estaria na minha boca, amor.
O gemido de Anthony é o combustível que eu precisava para
introduzir um dedo dentro de mim, arqueando as costas e sorrindo, os olhos
fechados enquanto me masturbo sem parar.
— Caralho, Nina… Quero tanto te foder agora, sentir seu corpo
quente debaixo do meu, calar essa sua boca com minha língua…
Imagino as mãos de Anthony em mim, assim como o calor de sua
respiração e o gosto do seu beijo. Sou tão fácil para ele, que chega a ser
ridículo. Estou completamente em suas mãos e ele pode fazer o que quiser
comigo, que vou aceitar e pedir por mais. Aumento a velocidade dos meus
movimentos até que meu corpo fica tenso e, em seguida, estremeço, sem
segurar o orgasmo que alcanço, escutando-o falar como quer transar comigo.
— Já falei que te odeio? — Sorrio tentando recuperar a respiração e
largando o corpo no sofá.
— Fala mais, eu adoro te escutar mentindo. — Anthony suspira alto
e ri. — Você acaba comigo, espera um pouco.
Ajeito o corpo no sofá e abraço a almofada que estava debaixo da
minha cabeça, escutando a movimentação de Anthony do outro lado da
linha, o que me faz perceber que ele também gozou, porque está se
limpando. Assim que sua respiração fica mais alta, sinalizando que voltou
para perto de mim, a ficha do que acabou de acontecer começa a cair e fico
vermelha novamente, mas não por tesão.
— A gente transou por telefone… — Passo a mão no rosto com
vergonha. — Eu nunca fiz isso antes.
— Me sinto lisonjeado por ser o seu primeiro — Anthony está com a
voz preguiçosa e imagino-o colocando o braço atrás da cabeça, satisfeito. —
Foi bom para você?
— Foi ótimo, você deveria trabalhar com isso e cobrar por minuto.
Posso deixar uma avaliação para você conseguir mais clientes.
— Você consegue estragar o clima — ele ri alto e suspira mais uma
vez.
— É minha vocação — brinco. — Vai tentar dormir de novo?
Pergunto com medo da resposta, não estou pronta para dizer boa
noite ainda.
— Não, mas eu tive uma ideia… Qual filme você está vendo e em
qual minuto está?
Estico-me para pegar o controle da televisão e poder lhe responder.
Enquanto ele pede para eu esperar, arrumo minha roupa e puxo a coberta
para cima de mim de novo. Poucos minutos depois, uma solicitação de
chamada de vídeo aparece na minha tela e, quando aceito, vejo que está com
o computador no colo, deitado confortavelmente em sua cama com o filme
em posição. Sua bochecha também está corada, contrastando com sua pele e
cabelos claros.
— O que você está fazendo?
— Assistindo um filme com você.
Sorrio, e coloco o celular apoiado estrategicamente na minha frente.
Ele faz o mesmo e assim que diz que está pronto, damos play ao mesmo
tempo, assistindo e conversando sobre o filme. Não sei ao certo em que
momento acabei adormecendo, mas sei que estava sorrindo quando
aconteceu.
Capítulo 43

“Como se apaga uma história assim? Com começo, sem meio, fadado ao
fim
Eu não soube dar o teu lugar e você não teve força pra se apropriar
Do que já era seu, era pra ser seu”
Amor Não Testado - Sandy e Amaro Freitas

— Cuidado para não babar. — Emma senta ao meu lado, apoiando os


braços nos joelhos e encostando em meu ombro. — Você está parecendo um
idiota!
Está frio, por isso ela pega a coberta jogada ao nosso lado e a coloca
em cima das nossas pernas, ficando bem próxima e cuidando de mim do
mesmo jeitinho que faz desde que somos crianças. O vento gelado bagunça
nossos cabelos e o cheiro de mar invade meus sentidos, enquanto as risadas
preenchem o som da praia que está vazia, exceto por nós.
— Por não querer jogar com vocês? — Franzo a sobrancelha com os
olhos fixos nos nossos amigos que estão jogando futebol na nossa frente.
Eles estão todos correndo e rindo, quebrando as regras e implicando
uns com os outros, em vez de realmente jogar. Os times mudam toda hora e
é difícil entender quem está ganhando e quem está perdendo.
— Porque não consegue tirar os olhos da Nina. — Ela rebate e me
empurra com o ombro, fitando-me com os olhos que conseguem arrancar
tudo o que quer de todo mundo, desde que era só uma pirralha.
— Está tão na cara assim?
— Não, você consegue enganar bem. Sou eu que te conheço melhor
do que qualquer um aqui. Por isso, sei que está usando óculos escuros só
para olhá-la em paz.
Faço uma pequena careta, porque ela tem razão.
Meus olhos estão na gringa de cabelo roxo usando mais camadas de
roupa do que todos os outros, enquanto corre atrás da bola e gargalha alto.
Marina carrega alegria ao seu redor, o que torna difícil se passar
despercebida aonde quer que vá. Ela sorri com o olhar e faz qualquer um se
sentir especial. Presta atenção, olha nos olhos e aquece almas com seus
toques gentis e brincadeiras inteligentes. Mesmo brava, consegue ser mais
leve do que muita gente.
E é por isso que dói tanto saber que eu já a tive nos meus braços e
que agora ela me trata como um simples amigo.
— Já que gosta tanto assim dela, deveria estar lá, fazendo-a rir e se
divertindo juntos. — Emma insiste, ainda me olhando. — É uma boa
oportunidade de se aproximarem de novo.
— Você acha que eu deveria? — Tiro os óculos, colocando-os na
toalha ao meu lado.
— Se realmente gosta dela, por que não? — Ela dá de ombros com
simplicidade. — Só não dá para ficar longe e evitá-la dessa maneira. Ou
você tenta de novo, ou vai ter que aprender a realmente tratá-la só como uma
amiga.
Não quero só amizade. Não quero ficar do seu lado e não poder
segurar sua mão ou beijar sua boca. Quero que ela tenha olhos só para mim,
da mesma forma que eu só tenho olhos para ela. Posso sair com qualquer
outra mulher, mas sempre que eu olhar nos olhos dela, verei a Dias. Vou
pensar no seu toque e no que a gente foi.
Não respondo a Emma, e continuo olhando o jogo acontecendo.
Reggie tenta impressionar a Olive, como sempre, e faz embaixadinhas
desajeitadas, até Theo roubar a bola dele e tocar para Nina, que corre
gritando e tentando fugir da marcação de Thomas. A cena é caótica e nos faz
rir, principalmente quando Reggie alcança a Nina e a abraça, impedindo-a de
continuar correndo e deixando que Thomas consiga a posse da bola
novamente.
— Isso não vale! — Ela se debate com os pés fora do chão, ficando
sem ar de tanto gargalhar.
— Achei que não tivessem regras — Reggie a solta quando Thomas
faz um gol e ela quase cai, apoiando a mão nas pedras, sem conseguir parar
de rir.
— Trapaceiros! — Levanta e bate as mãos para limpá-las. — Deu
pra mim, preciso de uma pausa.
— Ah, não! — Theo reclama jogando os braços para o alto e corre
atrás dela. — Volta aqui!
Marina tenta fugir, e Olive a ajuda, fazendo uma barreira entre a
gringa e os meninos. Gosto de participar das bagunças entre eles, mas
também gosto de assistir meus amigos se divertindo juntos. O meu propósito
de vida e o que me move é, além de ensinar crianças, ver a família, que
escolhi para ser minha, unida dessa forma.
— A Emma pode me substituir! — Nina começa a andar de costas
em minha direção.
Ou melhor, na direção em que montamos nosso picnic.
Emma sorri concordando e imediatamente se levanta com audácia.
— Vou acabar com vocês — fala alto e se vira para mim. — Não
acho que ela está saindo com outra pessoa, pelo menos não contou nada para
mim, nem para Olive. Então, pare de ser um bunda mole e volte a ser o
Charlie Cooper vagabundo que não descansa até conseguir de volta a garota
que gosta.
Antes mesmo que eu possa abrir a boca para responder, Emma já está
correndo em direção ao jogo. Nina se aproxima cada vez mais, brincando
com os outros que voltaram a jogar, e para perto de mim com as mãos na
cintura enquanto recupera o fôlego, admirando nosso grupo se divertindo.
— Precisamos voltar aqui em um dia quente, para irmos nos
brinquedos do píer! — Ela fala com os olhos brilhando em minha direção,
então se ajeita para ocupar o espaço que antes era de Emma, mas mantendo
uma distância segura de mim. — Vir à Brighton era um dos meus sonhos
com a mudança.
— Você não passeou muito por aqui nesses meses? — Tento puxar
assunto e ela nega, triste.
— Em que horário? A faculdade consome tanto o meu tempo, é
impossível, principalmente com o trabalho e o Centro. Acho que passei mais
finais de semana em LittleWin do que na minha casa. — Ela sorri cansada.
— Conheci apenas alguns lugares de Londres e Oxford, mas a lista continua
grande.
— Por que não compartilha com a gente? Podemos fazer um
itinerário para você conhecer o máximo de lugares antes de ir embora.
— Não pretendo ir embora, acho que esse é um dos motivos para não
me importar tanto assim em adiar alguns planos… — Sinto a esperança em
sua voz e meu coração esquenta um pouco, estava com medo dela falar que
em breve partiria. Se está difícil com ela ao meu lado, não consigo imaginar
como será se voltar pro Brasil e se afastar de mim.
Pelo menos agora tenho uma desculpa para encontrá-la toda semana.
— Você acha que os outros vão querer? Imagino que deva ser chato
para vocês que cresceram vendo, sei lá, a Catedral de Durham. — Faz uma
pequena careta fofa que deixa seu nariz enrugado.
— Eu te levo, será um prazer.
Seu olhar fixa no meu e ela concorda, então abraça as pernas e solta
um suspiro. Ela parece tão pequena do meu lado, que tudo o que tenho
vontade de fazer é puxar seu corpo para perto e afastar todo o frio que está
sentindo. Se ela não tivesse me afastado no dia da manifestação, agora eu
poderia deitá-la na toalha vermelha que estamos sentados, segurar sua
cintura e me deixar levar pelo sabor doce dos seus lábios.
Já faz tempo desde que senti a sua boca na minha.
— Você não precisa fazer isso, Charlie — sua voz sai baixa, e ela
olha para as pernas. Não sei se ficou com vergonha ou se está fugindo do
assunto. — Vocês vieram preparados, trouxeram comida, bebidas,
cobertas… Já fizeram outras vezes?
— Acho que essa é nossa 7º vez passando o último dia do ano aqui,
virou uma tradição. A Emma inventou esse picnic quando éramos
adolescentes, mas era só uma forma de fugirmos da nossa família nessa
época. Depois que entramos na faculdade, o grupo cresceu. — Conto para
que sua atenção seja somente minha.
— Você fala pouco da sua família…
— Não tem muito o que falar, somos todos simples. Meu pai é
funcionário público, minha mãe é enfermeira. Somos todos muito unidos,
nós e os pais do Reggie e Theo. Uma grande família.
Seu celular toca, e ela o tira do bolso na mesma hora. Não tento ver o
que é, mas é impossível ignorar o quanto ficou feliz com a mensagem que
recebeu. Ela digita algo rapidamente e o guarda novamente no bolso,
abraçando o próprio corpo com força.
— É uma boa tradição, mas está frio pra caralho! Sério, nunca vou
entender como vocês aguentam. Eu estava correndo e mesmo assim sinto
que vou congelar.
— Você vai se acostumar um dia, gringa.
Volto o olhar para a coberta em meu colo e, mesmo sem saber quem
lhe mandou mensagem, fico com ciúmes. Essa pessoa conseguiu a atenção
dela de forma muito fácil e com uma simples mensagem, a fez sorrir. Não
vou deixá-la escapar pelos meus dedos de novo, ainda dá tempo de trazê-la
para perto.
— Vem aqui — levanto a coberta em um convite para ela se
aconchegar debaixo da coberta comigo.
Vejo-a ficar receosa, pensando se deveria ou não, e levanto a
sobrancelha, repetindo o pedido de forma silenciosa, mostrando que está
tudo bem. Ela respira fundo, claramente pensando em recusar, mas não o faz
e, quando seu corpo fica próximo do meu, sinto falta do que passou.
— Obrigada — ela arruma a coberta no colo e se encolhe, abraçando
as pernas de novo e apoiando a cabeça nos joelhos. — Você está bem? Faz
tempo que não conversamos…
Seu olhar parece carregar um universo de possibilidades e é
exatamente esse universo particular que me faz querer tê-la comigo. A
pergunta me faz sorrir, porque ela ainda se importa e está aguardando por
minha resposta com atenção.
— Estressado com o fim da faculdade e com o festival, mas estou
bem… E você, senhorita Dias?
— Estou bem, essas mini férias vieram em ótima hora, senhor
Cooper. — Sorri e fica pensativa, olhando para os outros, quando Olive dá
um grito e cai rolando nas pedrinhas que substituem a areia da praia. Estica o
corpo preocupada, mas quando nossa amiga se levanta rindo, volta a relaxar.
— Estava precisando de um tempo para diminuir o ritmo e conseguir pensar
na minha vida com mais clareza. Não estou conseguindo nada sobre o
Centro, na Vann, e isso é frustrante pra caralho, pelo menos está tudo certo
com a faculdade…
— Mas você conseguiu tanto sobre os outros comércios… —
Mantenho meu tom tranquilo, para que ela não ache que estou julgando e
pressionando-a como já fiz outras vezes pela ansiedade de que sua posição
na empresa ajude no trabalho da Ordem.
— É por isso que é frustrante. — Marina solta um suspiro cansado e
abre um sorriso triste, então vira levemente o corpo em minha direção,
confiando em mim para contar o que quer que esteja passando em sua
cabeça. — Tudo o que consigo acesso, são documentos que nós já sabemos
que existem, assim como os planos óbvios de compra do casarão. Agora,
algo que ajude de verdade, que eu possa fazer para atrasar as obras ou até
mesmo impedir tudo… Não!
Ela nega e deita a cabeça no braço de novo, exausta. Sua bochecha
fica apertada e, consequentemente, sua boca mais carnuda, convidativa.
Observo cada sardinha daquele rosto quando um vento forte passa por nós
dois. Ela aperta os olhos com força, tentando fugir do vento em vão. Quando
levanta o rosto, seu cabelo está todo bagunçado, o que me faz rir do seu
estado, lhe arrancando outra risada baixa enquanto tenta ajeitar os fios
selvagens.
— Deixa eu te ajudar — levanto a mão devagar e afasto o cabelo do
seu rosto.
Nossos olhos se encontram, e o mundo para de girar. Ninguém mais
existe além de nós dois, por isso é involuntário afastar mais uma mecha de
cabelo que está presa em sua boca, e em seguida, tocar seu rosto com
carinho. Marina não se retrai, nem reclama do meu toque, apenas continua
quieta e com os olhos castanhos fixos nos meus.
Queria saber o que tanto passa por sua cabeça, parece que ela nunca
está tranquila, mesmo que sua expressão mostre que sim.
— Você não precisa carregar o peso do mundo nos ombros. Se não
descobrir nada, pelo menos faremos o festival e conseguiremos salvar o
Centro. — Falo baixo e desço o carinho para seu queixo. Meu polegar sobe
até seu lábio, mas antes que eu a toque, Marina se desvencilha do meu toque
e me faz sentir como um idiota.
— Vai dar tudo certo — fala baixo e estremece com o vento frio. —
A Emma não para de olhar em nossa direção… — Seu tom de voz é de
alerta, e quando levanto a cabeça, encontro minha irmã realmente nos
olhando.
Levanto o dedo do meio com um sorriso forçado que ela devolve,
ficando emburrada. Ela podia, ao menos, disfarçar que está prestando
atenção em nós.
— Ela é muito protetora, não é mesmo? — Dias faz um coração com
as mãos e sorri quando Emma faz o mesmo gesto para ela.
— Ela não quer que a gente se magoe, só isso. — Falo sem rodeios,
ou eu sou sincero, ou vamos continuar nessa situação por mais tempo do que
eu gostaria.
— Mas não tem com o que se magoar, certo? Combinamos que
seríamos amigos. — Dias nem ao menos olha para mim e sinto meu
estômago apertar.
Seu celular apita de novo e, como da primeira vez, ela o pega, lê a
mensagem e responde imediatamente. Observo seus dedos se movimentando
rapidamente pela tela e tenho certeza de que não é sua melhor amiga, por
causa da maneira que seu corpo ficou tenso e como tentou esconder a tela do
celular, virando-o um pouco para o lado para que eu não consiga ver.
Sinto ciúmes de quem quer que esteja recebendo sua atenção, porque
parece que ela está o tempo todo ansiosa, esperando por mais uma
mensagem.
— Você decidiu isso, não eu.
Ela levanta a cabeça de imediato, os olhos passam por todo o meu
rosto de forma confusa com a maneira que falo, então guarda o celular no
bolso e tomba a cabeça de lado.
— Charlie, não faz assim, nós já conversamos…
— Não, você falou o que quis e se você quer ser só minha amiga,
tudo bem. Mas essa decisão não foi minha, então não aja como se fosse algo
que nós dois decidimos juntos.
— Você está sendo injusto comigo. Acho que devíamos conversar. —
Vejo que está ficando irritada, porque sua voz fica mais firme e sua postura
ereta.
— E sobre o que a gente falaria? — Levanto a sobrancelha e ela dá
de ombros.
— Não sei, talvez sobre como há dois minutos você estava me
tratando bem e agora está irritado porque falei sobre sermos amigos. — Ela
apoia as mãos ao lado do corpo e me desafia com o olhar. — Acho que
estamos bem e, então, me assusto, porque você me olha daquele jeito, com
aqueles olhos, e eu sei que não somos só amigos.
— Ainda estou te tratando bem, se tem uma coisa que eu faço desde
que você chegou aqui, essa coisa é te tratar bem! Ou eu não te ajudei sempre
que precisou? Com a Capitu, a carregar as compras de mercado e até mesmo
na faculdade. Eu te acompanhava nos lugares, me preocupava se chegaria
segura em casa e torcia por uma mensagem sua.
— Meu Deus, essa conversa está indo para um lado completamente
diferente do que eu esperava. — Passa a mão no cabelo, olhando para longe.
— Ah, e o que você esperava? Falar o que quer igual na
manifestação, e eu aceitar e ficar quieto?
— Não, esperava que nós realmente fossemos amigos. Não que você
fosse jogar na minha cara tudo o que achei ter feito por boa vontade. — Sua
voz cresce um pouco, a feição irritada. Fiz merda. — O que mais você tem
escondido, Charlie? Guardou a notinha de cada vez que comemos juntos
para me cobrar depois?
— Não, eu não fiz isso… — Falo calmo e levanto as mãos em
defensiva. — Eu me expressei mal, não quis dizer isso. Desculpa.
— E o que você quis dizer?
— Só queria te mostrar que tudo o que fiz com você, foi para te ver
bem, e não para cobrar alguma coisa, como você está imaginando. — Seus
ombros relaxam um pouco, mas os olhos ainda estão me fitando
desconfiada. — É difícil ter você por perto, porque quero te agradar e te
fazer rir, mas não como amigo. Não quero ter que ficar me controlando
quando na verdade eu quero você.
Ela me escuta com o maxilar apertado, as sobrancelhas levantadas,
tentando assimilar o que falei. Pela maneira que a vi se defender outras
vezes, sei que está respirando fundo e colocando a cabeça no lugar antes de
responder, para não transformar essa discussão em uma briga ainda maior.
Como ela consegue se controlar assim, eu não sei, porque minha vontade é
de falar mais e mais e mais. E então a beijar, mostrar que estou com ela, não
importa o que aconteça.
— Se você não está confortável comigo por perto, posso me afastar,
Charlie. Eu acabei de chegar, mas eles são seus amigos, sua família… O que
for melhor para você.
Às vezes, eu tenho vontade de lhe dar um chacoalhão. Ela não
escutou nada do que falei?
— Não quero que você se afaste, Marina! Eles são seus amigos
também. Como você acha que a Emma ficará se você parar de andar com a
gente? Ou a Olive e o Benji? Não, Dias, essa não é uma opção. — Respiro
fundo.
— Então, o que você quer que eu faça?
Seu olhar cansado me faz esticar a mão até a dela, tocando seus
dedos e então entrelaçando-os nos meus. Ela abaixa o olhar para ver nossas
mãos juntas e em seu silêncio, vejo a oportunidade de seguir.
— Fica comigo. Para com esse lance de “não me relaciono com
ninguém” e namore comigo. Parece que você está com medo o tempo
inteiro. Você se blinda atrás desse muro que construiu e afasta quem quer se
aproximar. Eu também não me relaciono, mas com você estou disposto a
tentar, porque já é algo que eu estava fazendo antes mesmo de sugerir que a
gente tivesse algo mais sério. A gente se diverte, Marina, você sabe disso!
Nossas conversas são boas, o beijo é bom e eu sei que o sexo também. Nós
somos o pacote completo, ninguém ficaria entre a gente, mas você insiste em
se afastar.
Marina solta minha mão e umedece os lábios. Meu coração está
disparado no peito, quase saindo pela boca com a antecipação do momento.
Se ela estivesse com qualquer outra expressão no rosto, eu a beijaria, mas ela
parece decepcionada. Triste. E, porra, isso quebra o meu coração. Ela parece
demorar uma eternidade para me responder, mas temo não ter passado nem
alguns segundos.
— Estou apaixonada por outra pessoa.
Fala sem rodeios, de uma só vez e não achei que fosse possível sentir
uma dor física apenas por conta de palavras, mas é como se ela tivesse
enfiado uma faca em meu coração. Com os olhos marejados e os lábios
apertados, como se estivesse se sentindo culpada, ela gira a faca na ferida.
O silêncio que nos cerca é diferente do que tínhamos nos últimos
meses. Antes, era confortável, familiar… Agora, é como se existissem
mundos nos separando pelas palavras ditas.
Não desvia o olhar do meu e sua respiração está pesada no peito, seus
olhos carregando uma dor genuína. Ótimo. Que ela sinta remorso pelo o que
está fazendo com meu coração.
— Espero que você seja feliz.
É a única coisa que consigo falar antes de me levantar para dar uma
volta e respirar, sem ela do meu lado.
Capítulo 44

“Você apareceu sem aviso, e logo me tirou do chão


Mas me chame de mentirosa se eu falar que
não estou com medo de você me deixar”
I think I'm In Love - Taylor Acorn

​ m novo ano começou e, com ele, minha organização anual da vida. É


U
um costume que criei por causa da minha mãe. Dona Fernanda diz que
temos que deixar a energia fluir em nossa casa em todo começo de ciclo,
então, desde que me entendo por gente, a primeira semana do ano serve para
fazer essa energia circular. É hora de organizar papéis, gavetas, deixar ir o
que não nos serve mais e abrir espaço para o novo. Quando era pequena, não
gostava muito dessa época, porque ficava cansada facilmente e perdia o foco
mexendo em meus brinquedos e livros, mas, com o passar dos anos e com o
amadurecimento da vida, fico ansiosa por essa semana. É libertador e,
mesmo que eu não tenha muito o que jogar fora — já que comecei uma casa
do zero há apenas seis meses — me sinto melhor quando organizo tudo o
que tenho.
​Meu altar recebe novas flores e velas, e as plantas espalhadas pelo
apartamento nunca estiveram tão vivas, pelo carinho e cuidado que tenho
dado para elas neste período de recesso. Até mesmo Capitu parece mais
feliz. Ela ronrona mais e fica perto de mim com mais frequência do que o
normal, e eu devo isso aos novos ciclos.
​Por outro lado, toda essa troca de energia me lembra do ciclo que fechei
com Charlie, o que parte meu coração. A forma que ele agiu por não me
entender, e tentando me convencer a ficar com ele, me quebrou. Não vi outra
saída, e não fui sincera somente com ele, mas comigo também. Estou
apaixonada pelo Anthony e não seria justo deixar o Charlie vivendo aquela
fantasia de que um dia poderíamos ficar juntos da forma que ele quer,
quando eu sei, em todo o meu ser, que isso não acontecerá. Mesmo se
Anthony não tivesse entrado em minha vida. Desde o início, deixei minhas
intenções claras e, apesar de ter ficado magoada por ele, sei que estou certa.
Estou evitando meus próprios sentimentos com o rock brasileiro que
está tocando alto no meu computador, é uma playlist que meu pai sempre
escuta quando está cozinhando ou arrumando algo pela casa. São as músicas
que eu cresci ouvindo e minha tentativa de matar um pouco da saudade e
absorver o gosto dele por cozinhar. Esse empenho em comer algo caseiro é
um milagre enorme, já que minha especialidade é miojo, indo contra tudo o
que aprendi sobre alimentação na minha casa. Não é que eu não saiba
cozinhar, mas não gosto de ficar atrás de um fogão. Prefiro limpar a casa
inteira, só para não ter que cozinhar. Inclusive, geralmente sou a que lava a
louça depois que outra pessoa faz esse trabalho insuportável.
Escuto o interfone tocar entre as palavras melódicas da Rita Lee, mas
demoro um tempo para entender o que está acontecendo. Paro de mexer o
molho na panela e encaro o telefone na parede, até que o toque soa mais uma
vez. Não estou esperando ninguém e nem fiz compras on-line, o que é mais
um milagre acontecendo ultimamente.
​Deixo a colher de silicone em um pratinho na bancada, limpo as mãos
em um pano de prato e diminuo o volume antes de atender, desconfiada.
​— Você vai me matar por eu ter vindo sem avisar?
​É impossível não reconhecer a voz de Anthony, e uma euforia misturada
com nervosismo se apossa do meu corpo, me fazendo sorrir largo ao tentar
compreender que ele está mesmo aqui.
​— Não sei, acho que você terá que subir para descobrir!
Aperto o botão para abrir o portão e desligo depois que me confirma
sua entrada no prédio. Meu coração está disparado no peito e vou até a porta,
mas travo quando passo à frente do pequeno espelho da sala e deslumbro
meu estado.
— Ah, não! — Arregalo os olhos ao ver que estou extremamente
desleixada, em um nível acima do normal. Só não estou pior, porque tomei
um banho depois da arrumação da casa, mas meu cabelo está uma bagunça
presa em um coque mal feito, a camiseta que estou usando tem um furo
grande debaixo do braço e a calça está toda manchada, porque é minha calça
de mexer com tinta, argila e velas.
E eu acabei de experimentar meu molho. Merda!
Ele já me viu de pijama, sem maquiagem e com o cabelo bagunçado,
mas dessa vez eu consegui me superar. Corro para o banheiro, torcendo para
dar tempo de escovar os dentes e me trocar antes de Anthony bater à minha
porta, mas não dá. A campainha toca pouco tempo depois de sair do
banheiro, enquanto estou com a porta do armário aberta, procurando uma
calça jeans simples para vestir no lugar da manchada.
— Espera! — Vou até o corredor e grito, torcendo para ele ter
escutado. Sinto o cheiro do molho do meu macarrão queimar na cozinha. —
MERDA!
Enfio as pernas na calça e corro em direção à cozinha, dando
pulinhos pelo trajeto para a calça subir por minhas coxas, vestindo apenas a
calça e o sutiã. Desligo o fogo e abano um pouco da fumaça que começou a
sair da panela. Minha sorte é que queimou só um pouco, então acho que
consigo salvar uma parte do molho que, felizmente, não havia colocado os
cogumelos ainda.
— Está tudo bem aí? — Dessa vez, Anthony bate de leve na porta.
Devolvo a panela para o fogão e vou até a entrada do apartamento.
— Espero que goste de molho defumado e macarrão. — Faço uma
careta quando abro a porta e seu sorriso confuso me aquece.
— Molho defumado? — Levanta uma sobrancelha, desconfiado.
Meu coração se acalma ao vê-lo, como se eu tivesse voltado pra casa,
mesmo já estando nela. Se é que isso faz sentido.
— Queimado, talvez? — Brinco. Sua mão toca minha cintura de
leve, me puxando para perto, e me dá um beijo suave.
— Se você tem costume de cozinhar sem roupa, acho que vou
começar a comer aqui todos os dias. — Seu olhar desce do meu rosto para
meu peito, acompanhado de um sorriso safado.
— Ah, não é assim que os restaurantes chiques fazem? — Finjo-me
de boba e tento esconder o sorriso, mas não cubro o busto seminu.
— Vai me deixar entrar ou vamos ficar no corredor?
Dou um passo para o lado, abrindo mais a porta e Anthony entra. Ele
olha meu apartamento de forma curiosa, o que me deixa insegura, já que não
chega aos pés do apartamento maravilhoso que tem. Não, insegura não é a
palavra correta, me deixa aflita. Quando estamos no trabalho, estamos em
um mundo repleto de intrigas, dinheiro e sorrisos falsos. Quando estamos na
sua casa, apesar de agirmos verdadeiramente um com o outro e eu me sentir
confortável ao seu lado, o ambiente me lembra constantemente que não me
encaixo ali.
Ter Anthony em minha casa é permitir que ele veja meu próprio
mundo. Não tenho muito dinheiro, nem móveis chiques, estantes cheias de
livros, serviço de quarto e alguém para limpar meu apartamento todos os
dias. Só tenho um armário com pouca comida, móveis improvisados e meu
universo particular, com plantas, alguns livros, filmes, velas e recortes das
minhas coisas favoritas nas paredes.
É um pequeno caos, mas é meu.
Anthony é um homem muito consciente de tudo o que faz e com
quem convive, mas não sei o quanto dessa consciência ele está disposto a
realmente enfrentar na prática. Por isso, tê-lo aqui me deixa feliz, mas
também assustada.
— Retiro o que disse… — Anthony diz, tirando o casaco pesado e o
cachecol. Olho para ele confusa, sem entender do que está falando, fecho a
porta e pego as peças, pendurando-as nos ganchos que coloquei na entrada
do apartamento. — Minha sala nem se compara com o seu apartamento. Se
tem um lugar que o Tarzan vomitou, foi aqui!
Dou risada, lembrando da sua reação ao ver as primeiras plantas que
levei ao escritório, assim que começamos a trabalhar juntos. Mal sabíamos
que novas plantas surgiriam a cada semana e que, para a minha surpresa, ele
não reclamaria.
— Você sabe que eu gosto um pouquinho de plantas… — Mordo os
lábios e ele levanta a sobrancelha, me desafiando. — Tá bom, bastante! Vou
colocar uma roupa, fica à vontade que já venho.
​Eu o deixo sozinho, com medo da sua reação ao estar no meu espaço, no
meu mundinho particular. Porém, ao mesmo tempo, prefiro que ele tenha
essa primeira impressão longe de mim, assim ele pode fingir que está tudo
bem se acabar odiando e se perguntar que porra que está fazendo saindo com
uma mulher tão diferente dele, economicamente e socialmente.
Ando depressa até o quarto para terminar de me vestir. Pela sua
reação, não devo estar tão péssima quanto imaginei, então procuro por uma
blusinha fofa, solto meu cabelo e fico frustrada por não ter finalizado-o
depois do banho, porque o coque apenas o deixou rebelde demais, sem
definição. Passo desodorante e um pouco de perfume, sei que Anthony já me
viu assim que acordei, mas não custa nada estar minimamente arrumada na
primeira vez que ele me vê depois de tantos dias, principalmente depois dele
ter me feito gozar por ligação.
Passo um pouco de óleo essencial de lavanda no pulso e na nuca, em
uma tentativa de me acalmar um pouco e solto uma pequena risada nasalada
quando sinto o aroma, porque Anthony me deixa nervosa só por estar do
outro lado da parede. Apesar de me sentir boba pela correria, saio do quarto
e vou em direção à sala, mas paro de andar bruscamente no instante em que
chego no cômodo, sem acreditar na cena que está diante dos meus olhos.
Anthony está sentado no meu sofá, e Capitu está em seu colo.
Ele sorri para mim, a mão fazendo um carinho suave no pescoço da
gata que odeia tudo e todos. A gata que aceita se aproximar apenas da minha
família e da Mila, depois de muitos meses de tentativas.
— Você pegou ela?
— Não, eu sentei aqui e ela veio atrás, deitou no meu colo e está
ronronando.
— Ela está ronronando? — Repito a pergunta em completo choque.
— Tem certeza que ela está ronronando?
— Ou isso ou então ela está quebrada. — Anthony vira a cabeça de
lado. — Você está parecendo com uma doida, Dias. O que está acontecendo?
— Ela sentou no seu colo, por livre e espontânea vontade, e agora
está ronronando com seu carinho? — Repito a pergunta devagar, tentando
entender a situação mais inusitada que vivi com a Capitu nesses cinco anos
em que ela é minha gata.
Ela não chegava perto nem do meu ex, que a conheceu quando ainda
era só uma filhotinha resgatada de um córrego. Isso não é nem um pouco
comum.
— Se você quiser que eu pare, eu paro. — Anthony tira a mão dela e
franze a sobrancelha, mas nego e me aproximo.
— Não… — Sorrio desacreditada. — Pode continuar, é que… Ela
não gosta de homens e, bom, ela nunca deitou no colo de alguém assim
antes, ainda mais de um desconhecido.
— O que isso quer dizer?
— Que, talvez, você não seja tão insuportável assim.
Anthony umedece os lábios e eu me aproximo dele. Ele se mexe
devagar no sofá, com cuidado para não deixar Capitu desconfortável,
enquanto se estica para beijar minha boca.
Se existia alguma dúvida, agora elas haviam evaporado, porque
Anthony MacMillan havia conquistado Capitu sem se esforçar. Confio
cegamente no julgamento dela e, depois desse feito inacreditável, não vejo
motivos para reprimir o que estou sentindo por esse homem.
Os lábios macios e o gosto de menta me fazem derreter, por isso
seguro seu rosto com as duas mãos e aprofundo o beijo vagarosamente,
aproveitando a sensação de tê-lo assim, perfeito e só para mim. Capitu sai de
seu colo e pula no chão, o que me dá liberdade para sentar onde ela estava.
Anthony segura minha bunda e nos beijamos por tanto tempo que
precisamos dar algumas pausas para respirar antes de voltarmos para os
lábios um do outro.
Sinto seu pau endurecer sob a calça e meu centro pulsar no meio das
minhas pernas, mas não evoluímos o beijo. Apesar de sentir vontade, parece
que, naquele momento, beijar basta. É dessa forma que ficamos até que
meus lábios estejam formigando e inchados. Toco seu cabelo, fazendo
carinho enquanto admiro seu rosto e passo o polegar em sua boca, enquanto
seu olhar carinhoso percorre meu rosto como se estivesse decorando cada
pequeno detalhe.
— Senti sua falta pra caralho.
— Eu sei que sentiu — falo baixo e convencida. — Se não tivesse
sentido, não estaria aqui.
Anthony cerra os olhos e morde meu lábio inferior, puxando-o para
si, e dá um tapa suave em minha bunda.
— Você está andando demais comigo, está ficando arrogante
também. — Fala brincando.
— Então, você assume que é arrogante? Ótimo, posso mudar seu
contato de novo e assim o mundo voltará ao seu equilíbrio natural.
Anthony revira os olhos e passa a mão em meu cabelo, jogando-o
para minhas costas, depois desce a mão devagar por meu ombro, passando
pela lateral do meu peito, até parar em minha cintura, me segurando com
firmeza. Gosto da forma como o faz, sempre delicado e gentil, mas com
certeza presente no toque.
— O que você achou? — Pergunto ansiosa e olho ao redor.
— Do apartamento? Não parece que você mora aqui só há alguns
meses. — Anthony levanta a sobrancelha. — É como se eu estivesse vendo
como é dentro da sua cabeça.
— Uma verdadeira bagunça?
— A bagunça mais autêntica que eu já vi.
Sorrio quando meu coração bate mais forte e fico constrangida com
suas palavras.
— Adoro te ver vermelha — Anthony aperta os lábios e toca minha
bochecha.
— Adora me deixar sem graça, isso sim! — Reviro os olhos tentando
esconder o rosto e saio de seu colo, me levantando e indo até a cozinha.
Fecho os olhos e respiro fundo, tentando fazer a bochecha voltar à cor
normal. — Eu estou morrendo de fome, quer comer comigo?
— Molho defumado? — Anthony se levanta com um tom brincalhão.
— Eu prometo que está bom!
— Certo, confio no seu julgamento para molhos. Onde está a louça?
​Aponto para o armário acima da minha cabeça e ele se estica por cima de
mim para pegar pratos, copos e talheres para colocar na bancada, arrumando
o espaço para comermos. Tento salvar o molho, que não está tão ruim assim,
adiciono os cogumelos, o macarrão e, quando tudo está pronto, nos servimos
e sentamos lado a lado.
​— Você está proibido de falar que minha comida é ruim! — Aviso antes
que ele experimente, mas observo atentamente quando coloca o macarrão no
garfo e o leva à boca. Quando não faz careta ao sentir o sabor, sorrio
aliviada.
​— Eu nunca falaria que sua comida é ruim, amor. Não quando a minha é
um completo desastre. — Anthony brinca e começo a comer também.
​— Se eu pudesse, nunca cozinharia. — Admito depois de sentir o sabor,
que não está ruim. — Não me dou bem com o fogão.
​— E essas ervas penduradas? — Aponta para os varais de plantas pelas
paredes, secando ervas e flores.
​— Não são para comer, são para minhas velas, meus cremes,
sabonetes… E algumas acabaram virando decoração. É muito difícil secar
plantas aqui. Tive que inventar algumas formas diferentes, usar o aquecedor
e colocar estrategicamente no sol quando não estou em casa. Acho que
consegui uma boa técnica e a dona da floricultura me ajudou também. Ela
me deu algumas dicas, principalmente com a Capitu, que é inimiga das
minhas plantas e fica tentando destruir todas que coloco para secar. Aquela
ali é eucalipto, tem um cheiro ótimo e, às vezes, coloco no chuveiro, o vapor
da água quente com eucalipto ajuda no sistema respiratório, isso que está me
salvando aqui. No Brasil, eu não ficava tão doente quanto aqui… Aquela ali
é lavanda, gosto de usar seca para decorar minhas velas, já as frescas…
​Paro abruptamente quando percebo que estou falando demais e Anthony
ri baixo, claramente pedindo para eu continuar. Em pouco tempo, nosso
assunto muda e ficamos ali, sentados na minha pequena cozinha, tomando
uma taça de vinho e falando sobre tudo e nada. Ele se interessa pelas coisas
que eu gosto e faz perguntas para me conhecer melhor.
Não sei como o tempo passa tão depressa quando estamos juntos,
mas é gostoso. Nossa risada é sincera, ele presta atenção em mim e eu nele,
porque também quero escutar e entender cada pequena nuance sobre quem
ele é.
​— Você não me falou como foram suas férias depois daquele dia… —
Dou o último gole em minha taça, me frustrando quando vejo que a garrafa
está vazia.
​— Nada fácil — Anthony passa o dedo na borda da taça, observando o
movimento, e eu apoio o queixo na mão, esperando ele me contar o que
aconteceu. — Mais brigas, discussões, Lauren sendo difícil, seus pais
ameaçando tirá-la do testamento…
​— E seu pai?
​— Exatamente do mesmo jeito de sempre. — Anthony solta uma risada
nasalada. — Sabe o homem que você conheceu no dia do evento do
Instituto? Aquela é a versão boa dele, quando estamos em particular ele é
muito pior. Cobrança atrás de cobrança. Aparentemente, ele está estudando a
possibilidade de passar a empresa para o conselho, e não para mim.
​— Ele não pode fazer isso, pode? Você é um MacMillan, o único que
pode continuar com a empresa. Tenho certeza de que se ele tentar qualquer
coisa, a gente consegue entrar com uma ação impedindo.
​— Só consegue se provar que não sou apto para o cargo, para assumir.
— O que ele não vai conseguir fazer, porque você é incrível. Sua
equipe é ótima, seu trabalho também e você dá o corpo e a alma pela
empresa.
​— Você é linda, Dias. Queria que fosse simples assim. — Anthony sorri
triste e parece não querer mais falar do assunto. — Mas eu tenho uma notícia
para você.
​— Ah, e você decidiu me contar só agora? — Brinco e espero seu tempo.
É como se estivesse arranjando as palavras certas para falar.
​ Consegui entrar no escritório do meu pai e achei um documento sobre

o plano para o Centro, se a Vann conseguir a compra da propriedade.
​— Você conseguiu? Mesmo? — Meus olhos se arregalam e Anthony
respira fundo. — É muito ruim?
​— Amor, encontrei o pedido de demolição, para uma semana depois que
conseguirem fechar e comprar o local. Ele não pretende construir nada no
lugar, só deixar vazio e destruir tudo.
​— Destruir tudo? Deixar vazio? — Fico indignada, tentando processar o
que acabei de escutar. — Mas isso vai contra todos os outros projetos de
LittleWin! Ele fecha, compra, reforma e aluga ou abre uma empresa no
lugar. É isso que ele faz. Não derruba tudo e não faz nada.
​— Também estranhei, tentei achar mais alguma coisa, mas
aparentemente é só isso mesmo.
​— Ele quer destruir um casarão histórico, com o projeto lindo que
carregamos, simplesmente porque sim?
​— Sinto muito.
​— E não tem nada que você possa fazer?
​— Não está nas minhas mãos, você sabe disso. Pensei em ir à Prefeitura,
mas não sei quem está com meu pai e quem não, se eu falar com a pessoa
errada, ele pode descobrir e dar um jeito de adiantar os planos. E vocês
precisam de tempo, não precisam? O festival está chegando, vocês vão
arrecadar dinheiro o suficiente.
​— E se não conseguirmos? — A possibilidade dos planos darem errado
me atinge com força.
​— Eu posso ajudar com o que faltar.
— Anthony… Como eu vou falar para os outros que a empresa que
eu trabalho vai acabar com o projeto da vida da maioria deles? Como vou
contar ao Thomas, Olive… Para o Charlie?
​— Por que você contaria para ele? — Anthony franze a sobrancelha, se
importando mais com o nome dele do que dos outros.
​— Foi só um exemplo, MacMillan. Por favor, não venha com ciúmes
para cima de mim, não preciso lidar com isso também.
​— Não estou com ciúmes, foi só uma pergunta. — Anthony fica na
defensiva, e vejo que não vai mais falar do assunto.
​Ficamos em silêncio por um tempo, tentando absorver a conversa que
acabamos de ter. Tem uma possibilidade grande de o Centro fechar, e eu
realmente não tenho ideia de como contar isso para os outros. Não com o
festival tão próximo. Não com todos tão esperançosos de conseguir manter o
projeto vivo.
​— Puta que pariu! — Xingo alto quando o relógio vintage da sala, que
garimpei em um brechó, faz barulho sinalizando que já é meia noite. Coloco
minha mão no coração e a Capitu, que estava adormecida na sala, levanta a
cabeça, também assustada. — Relógio idiota…
​— Está tarde — Anthony estica os braços para o ar e estala o pescoço.
​— Você precisa ir?
​— Só se você quiser que eu vá.
​Sua fala é um pedido para que eu o deixe ficar. Como se não quisesse ir
embora depois do clima pesado em que nossa noite atingiu.
​— Quero que você fique.
​— Então, eu fico.
Capítulo 45

“Eu nunca amei ninguém completamente


Sempre foi com um pé no chão
E por proteger de verdade meu coração
Eu me perdi”
Fidelity - Regina Spektor

Não sei como consegui sobreviver aos últimos dias, precisando


equilibrar tantas funções. A faculdade voltou do recesso metendo os dois pés
no meu peito de tanta coisa que os professores passam para estudarmos. As
reuniões com a Ordem acontecem em todos os momentos livres e, se não
estamos juntos, estou com pelo menos algum deles resolvendo detalhes do
festival. Muitos alunos do último ano toparam mudar seus trabalhos de
conclusão de última hora para nos ajudar, então temos pessoas de sobra para
trabalhar no evento, mas o grupo ainda está à frente de todo o projeto, o que
nos deixa com muitas funções para desempenharmos.
São dias em que só consigo ver Anthony rapidamente quando chego
no escritório e nas noites em que ele me convida para dormir em sua casa. E
é só isso que fazemos: dormimos, porque eu estou tão cansada que não é
possível ter forças para qualquer outra coisa.
Assim que entramos em seu apartamento, Anthony pede o jantar em
um restaurante, vou tomar banho e vestir algum dos seus pijamas, para
depois comermos juntos, e terminar a noite assistindo um filme até pegarmos
no sono.
Em um dos dias, acordei assustada no meio da noite, depois de mais
um sonho estranho em que estudava em um castelo, e assim que abri os
olhos, a realidade me lembrou de uma pendência do festival que eu havia me
esquecido completamente. Anthony despertou quando, sem querer, meu
laptop tocou uma música alta ao abrir o perfil de um DJ, que a equipe de
som pediu para eu dar uma olhada. Pedi desculpas várias vezes e achei que
fosse ficar irritado comigo por tê-lo acordado, mas Anthony apenas se
levantou e foi preparar um chá para nós dois.
Ele ficou acordado até eu terminar de resolver e me impediu de
continuar trabalhando quando minha mente ansiosa falou que eu estava
perdendo tempo dormindo. Fechou meu laptop, o colocou na mesinha de
cabeceira do seu lado e me puxou para perto do seu corpo, fazendo carinho
em meu cabelo até eu conseguir pegar no sono de novo.
É difícil não me perguntar se realmente mereço a forma que ele me
trata e o que o fez mostrar esse seu lado para mim.
Estou há mais ou menos 18 horas sem dormir, acompanhando a
montagem do evento com o pessoal e os problemas não param de aparecer.
Emma arranjou rádios para nós e estamos parecidos com produtores de
eventos, nos comunicando pelo fone de ouvido.
A parte boa da correria é que tenho me mantido longe de Charlie, não
de propósito, mas sei que não é o momento para ficarmos próximos um do
outro. Sei que o magoei, mas percebi que com ele não existe possibilidade
de manter uma amizade e eu errei por ter acreditado que isso seria fácil de
equilibrar. Hoje mesmo, apenas nos cumprimentamos e nenhuma outra
palavra foi trocada, apesar de sentir seus olhos me acompanhando sempre
que estou perto. Não gosto de saber que talvez ele me odeie, mas fiz o que
tinha que fazer e continuo firme na minha decisão.
Eu estava mais disposta a ir atrás e resolver tudo para os outros no
início do dia, mas agora o inglês embaralha na minha mente. Parece que não
consigo entender direito o que me é falado, sem que eu precise tentar
traduzir para o português diversas vezes. É por isso que Emma praticamente
me expulsa da área de montagem, alegando que eu cheguei antes de todo
mundo, então deveria ir para casa dormir e voltar só no horário de início do
evento, depois do almoço.
Mas como seria possível eu deixar tudo da forma que está agora para
ir dormir? Faltando só 8 horas para começar o evento que estamos
organizando com tanto afinco há semanas? Quando adormeço de pé, por
cinco minutos, encostada na barraca do cachorro quente, decido obedecer
Emma e ir para casa. Eu preciso descansar.
​ ndo no automático até o metrô e não faço ideia de como chego em
A
casa, mas sei que me jogo na cama de qualquer jeito depois de colocar o
celular para despertar em 5 horas, o suficiente para eu poder acordar, me
arrumar e voltar para o festival antes de abrirem os portões. Quero tanto
ajudar todo mundo que esqueço de mim, e de forma alguma aguentarei até a
desmontagem sem um cochilo e muito energético.
​Num piscar de olhos, meu celular desperta e é ridículo como o tempo
passou rápido, mais ridículo ainda como parece que meu sono só aumentou.
Tomo um banho, coloco uma roupa quente, mas que eu consiga me
movimentar sem dificuldade e confiro se coloquei tudo o que preciso na
minha mochila. Passo o caminho de volta para a faculdade conferindo as
mensagens no grupo, para ficar a par do que aconteceu enquanto eu estava
longe, e a falta de mensagem do Anthony me deixa um pouco cabisbaixa.
Esperava pelo menos um “boa sorte”, mas essas são apenas as minhas
expectativas sendo projetadas nele, que é incrível todo o tempo em que está
comigo.
Assim que saio do metrô, fico assustada com a quantidade de pessoas
que está no Campus em um sábado. São tantas que parece impossível não
conseguirmos arrecadar o suficiente. Impossível.
​Ligo meu rádio antes mesmo de passar pela entrada do festival e vejo
Thomas em cima do palco, com o grupo e os alunos que estão trabalhando
no evento reunidos. Consigo escutar o final do seu discurso, que é
basicamente um agradecimento a todos e um desejo de boa sorte para que
tudo ocorra da melhor forma possível. Todos batem palmas e começam a se
dispersar, indo para seus respectivos postos.
​— O que eu faço? — Seguro o braço de Ava quando passa por mim e ela
arregala os olhos, como se tivesse levado um susto.
​— Já voltou, gringa? Você não tinha ido dormir?
​— Horas atrás, eu não ia perder a abertura dos portões. Está cheio lá
fora.
​— Está muito cheio, estou com medo de não conseguirmos dar conta e
precisarmos de mais comida! — Benji aparece do meu lado, realmente
aflito. — E se precisarmos de mais, não temos nenhum plano B, então vai
dar tudo errado!
​— É claro que vamos dar conta, e se acabar, acabou. Para de vir com
essa negatividade pra cima de mim. — Ava repreende Benji de uma forma
que nunca a vi fazer antes.
​ Você está bem desagradável hoje. — Benji retruca e eu me assusto,

porque não é nem um pouco comum vê-lo falar dessa forma com alguém,
principalmente com a Ava.
​— E você está exaustivamente irritante. — Ava abre um sorriso forçado
para Benji, sem parar de andar.
​Mas Benji para, revira os olhos e se afasta, indo para a direção oposta à
nossa. Olho para os lados, tentando processar o que diabos acabei de
presenciar e apresso o passo para alcançar Ava.
​— Que porra foi essa? — Pergunto confusa e Ava suspira cansada.
​— Ele não me deixa em paz, gringa. Onde eu vou, ele vai atrás. O que eu
preciso, ele resolve. Já tentei afastá-lo de todas as formas gentis possíveis,
mas só tratando-o assim está funcionando.
​— E por acaso você já conversou com ele? — Franzo a sobrancelha,
perguntando com obviedade.
​— Sobre o que?
​— Você sabe porque ele faz tudo para você, Ava.
​— E ele sabe que não tem chance nenhuma comigo, então por que
continua insistindo?
​— Vocês são adultos, podem se resolver de forma madura. — Fico um
pouco irritada, porque nunca imaginei Ava tratando Benji assim. O cara mais
doce que já conheci e a mulher mais justa. Para chegarem nesse ponto, algo
a mais deve ter acontecido e ela não quer me falar. — Só não acho legal
ficarem se alfinetando, os dois vão sair magoados ou vão realmente brigar
uma hora.
​— Benjamin não vai brigar comigo, ele não tem coragem. — Ava
responde dando de ombros e eu respiro fundo. — Posso mandá-lo se fuder
que o máximo que fará é me chamar de desagradável ou chata, ou então
ficará em silêncio e sairá andando para, cinco minutos depois, aparecer do
meu lado de novo. Eu não aguento mais.
​— Estou muito surpresa em ver você falar do Benji dessa forma.
​— Estou cansada, só isso. Vou falar com ele. — Ava passa a mão no
cabelo.
​— Outro dia, pode ser? Vamos tentar sobreviver ao dia de hoje sem
brigas desnecessárias. Já é um dia estressante demais.
​— Então, fique bem longe do Charlie, porque ele está puto com você. —
Ava aponta a cabeça em direção ao ruivo andando ao de Theo.
​ harlie está puxando um carrinho com equipamentos e levando para trás
C
do palco, provavelmente as coisas da DownUnder, já que o equipamento do
DJ já está montado e o garoto começará seu set em alguns minutos, para
termos música quando os portões abrirem.
— Eu que deveria estar puta com ele. — Defendo-me sentindo a
irritação tomar conta do meu corpo. — O que ele te contou?
— Que você mentiu para ele sobre não namorar e agora falou que
está apaixonada por outra pessoa. Inclusive, posso saber quem é essa pessoa
misteriosa já que nunca te vejo com alguém além da gente?
— Ele falou o que? — Paro de andar e seguro no braço de Ava, que
morde os lábios sabendo que falou mais do que devia. — Tá, em primeiro
lugar, eu nunca menti para ele. Eu sempre deixei extremamente claro que
nós dois teríamos apenas uma amizade colorida. Era pra gente transar e se
divertir, e não ter um relacionamento. Eu não posso fazer nada se ele não
cumpriu com o combinado. Expliquei meus motivos do porquê não ficarmos
juntos e mesmo assim ele continuou tentando se aproximar, falando que nós
somos ótimos juntos e blá-blá-blá. — Falo rápido, me defendendo para Ava
que cruza os braços, prestando atenção. — Eu fui sincera o tempo inteiro,
Ava! Você não faz ideia do quão sincera eu fui. E gentil, deixei claro que
queria continuar sendo amiga dele, mas ele não aceita. Eu não posso
controlar meu coração, acabei sentindo algo por outra pessoa, e daí? Não
estava nos meus planos, mas aconteceu e eu não quero que ele saia contando
isso para os outros, é algo particular, merda!
— Então, é verdade? Você está mesmo saindo com alguém?
— De tudo o que eu falei, é só nisso que você prestou atenção? —
Cruzo meus braços também e ela dá de ombros. — Estou, já tem um tempo,
mas não é nada sério.
— Você falou que está apaixonada, parece bem sério para mim.
— Não é porque estou sentindo algo mais forte do que deveria que é
sério. É complicado.
— Complicado? — Ava levanta a sobrancelha. — Quem é ele?
Alguém que eu conheço?
— Não vou contar, nós combinamos que manteríamos as coisas entre
a gente até… — Penso por quanto tempo combinamos que nosso lance fosse
algo privado, mas não consigo me lembrar. — Até nos sentirmos
confortáveis para expor, o que eu, sinceramente, acho que não vai acontecer.
Então, não adianta insistir e eu agradeço se você só deixar pra lá.
​ Para você esconder assim, deve ser alguém que vai dar uma merda

grande quando descobrirmos… É o Theo?
— Que? — Praticamente grito de indignação. — Você está maluca?
Acha mesmo que eu ficaria com o primo e melhor amigo do Charlie?
— Você falou que é complicado… Isso seria complicado.
— Ah, faça me o favor, Ava! Você está completamente maluca hoje.
Nego e ela levanta as mãos no ar, mas começa a rir. Voltamos a
caminhar por alguns momentos e eu penso em tudo o que escutei nos
últimos minutos. Entre tantos dias para eu saber o que Charlie está pensando,
precisava descobrir justo hoje, no dia mais importante e estressante para
todos nós.
— Não acredito que o Charlie está falando isso de mim, sendo que
fiz o máximo para preservar os sentimentos dele. Eu fui delicada, tentei ser
respeitosa e compreensiva…
— É, bom… Homens. Ele é meu amigo, mas sabemos como eles
podem ser escrotos quando estão machucados.
— Tenho certeza que se fosse eu a escrota, vocês cairiam matando
em cima de mim. Não é verdade? — Desafio-a com o olhar e ela aperta os
lábios. — Isso não é justo. Só por que eu não quis levar nosso
relacionamento adiante?
— Você tem completa razão, vou conversar com ele. Não sei onde
estava com a cabeça, não costumo passar pano pra homem assim.
— Uma vez ele falou que te convence a fazer qualquer coisa. Ele é
muito persuasivo, e não de um jeito ruim, ele só… Bom, sabe como fazer
você ficar do lado dele.
— Merda, ele sabe…. Mas se te tranquiliza, ele não está falando mal
de você para os outros, ele só falou para mim. Acho que nem o Theo sabe o
que aconteceu porque, bom, ele realmente gosta de você e está bem
machucado.
— Eu queria me sentir mal por ele, mas não consigo. Não depois do
que você me falou, e da forma como ele agiu na praia, me deixando sem
saída e me pressionando para ficarmos de novo. E isso é uma merda, porque
eu gostei dele, mas é por esse tipo de atitude que eu tenho tanto medo de me
abrir para qualquer um e… — Solto uma risada nasalada quando nego com a
cabeça, abaixando o tom de voz. — Já vivi relacionamentos muito ruins, e
tenho medo de viver outro. Se Charlie, que é um cara ótimo, me deixou
desconfortável dessa forma, fico me perguntando se o cara que eu estou
saindo também fará o mesmo.
— Você gosta mesmo dele?
— Pra caralho e isso é assustador. Eu odeio homens.
— Eu também. — Ava aperta os lábios e a voz de Olive ecoando no
rádio chama nossa atenção.
— Dias, pode ir até a área do camarim, por favor? Emma, preciso de
você na entrada, vamos iniciar a abertura dos portões. Reggie, tira aquele
cachorro do meio do caminho, agora! — Olive termina irritada,
praticamente gritando em nossos ouvidos.
— Cachorro? — Viro-me confusa para Ava, que está pressionando os
dedos nas têmporas.
— Não é um cachorro de verdade, ele achou um lixo em formato de
cachorro em um brechó e trouxe hoje de manhã. Não fazemos a menor ideia
do porquê, mas aquele negócio é bizarro, ele está insistindo em colocar nos
piores lugares e a Olive vai matá-lo a qualquer momento.
— Por um momento, achei que fosse um cachorro de verdade e que
precisaria chamar a Luisa Mel para intervir.
— Quem? — Ava pergunta confusa e eu me lembro que ela não
entenderia a referência brasileira.
​— É uma protetora dos animais. — Mexo a cabeça tranquilizando-a e
começo a me afastar, andando de costas. — Obrigada por me contar e me
ouvir. Por favor, converse com o Benji, não é justo vocês ficarem assim, não
percam uma amizade por bobeira.
​— Sim, senhora gringa. — Ava bate continência e solta os ombros,
cansada. — Desculpa pelo papo, o dia está estressante.
​— Qualquer coisa, é só me chamar! — Aponto para o fone em meu
ouvido e ela concorda, antes de corrermos para nossas funções.
Capítulo 46

“Prefiro nem molhar os pés, se não for pra mergulhar de vez


Prefiro estar sozinha e ao revés
Ao invés de morar pra sempre em um talvez”
Tudo Teu - Sandy e Vitor Kley

​ Troca de lugar comigo! Não posso mais pisar naquele camarim hoje,

por favor. — Olive segura meus braços no instante em que apareço atrás do
palco, os olhos suplicando para que eu aceite seu pedido.
​— Você sabe muito bem que eu não posso, tenho que ficar na minha
barraca, pelo menos até pouco tempo antes do show da DownUnder…
​— Marina, eu não posso lidar com aquele cara, eu juro que não sou
capaz disso.
​— De quem você está falando?
​— O baixista idiota, Johnny.
​— O baixista lindo que deu em cima de você aquele dia que fomos no
PUB dele, meses atrás? — Levanto uma sobrancelha abrindo um pequeno
sorriso de lado e Olive fica séria imediatamente.
​— Ele não é lindo, é um convencido que acha que o universo gira em
volta daquele umbigo que, com certeza, é fedido. E eu não estou nem um
pouco afim de conviver com ele. Era para a Emma fazer isso, mas ela está
resolvendo problemas no bar, e eu achei que podia, mas não posso.
​— Eu realmente não posso, desculpa. Mas posso ficar aqui só um
pouquinho, até você arranjar outra pessoa?
​— Eu te odeio — Olive solta os ombros cansada e sai andando para
longe.
​ ei que ela não me odeia de verdade, e só está frustrada com a situação,
S
porque sabe que eu tenho razão. Preciso ficar na minha barraquinha para
arrecadar dinheiro, principalmente porque a minha é uma das únicas que não
tem nenhum gasto para funcionar, irei tirar cartas de tarot para as pessoas.
Arrumei todo o meu pequeno espaço com o que já tinha em casa e meu gasto
total foi apenas o valor de montagem da barraca.
​Caminho pela área lateral do palco, passo pelos seguranças contratados e
pelos engenheiros de som, que são alunos do último ano, e vou até a tenda
reservada para os artistas que vão se apresentar no festival. O que me
surpreendeu, quando estávamos negociando com todos os músicos, foi que a
DownUnder, diferente do que eu imaginava, não solicitou nada especial para
colocarmos em seu camarim. Eles estavam interessados só em tocar.
Assim que paro em frente ao camarim, escuto risadas vindo de dentro
do espaço e bato à porta, que se abre segundos depois.
​— Você! — Manu arregala os olhos e abre um sorriso grande quando me
vê, me puxando para um abraço em seguida. — Eu ia te mandar uma
mensagem avisando que chegamos.
​— Eu! — Dou risada e olho para dentro do camarim por cima do ombro,
sinto minha bochecha ficar levemente corada ao ver todos me encarando.
Além de Matt e a garota do marketing deles, vejo Johnny, Archie e Parker,
músicos da DownUnder. — Vocês vieram muito cedo, não precisavam
chegar até o final do dia!
​— Nós sabemos, mas o Johnny insistiu que a gente estivesse aqui desde
o começo. — Matt se aproxima de braços cruzados e assim que Manu me
solta, ele me cumprimenta do jeito brasileiro, com um abraço e um beijo no
rosto.
​— É fofo vocês fazerem isso, eu só não sei se vou conseguir entreter
vocês até o horário do show. — Faço uma careta e Manu fecha a porta atrás
de mim. — Só vim checar se está tudo certo e dar um oi, tenho que ficar na
minha barraquinha e trabalhar.
​— Não se preocupe, a gente se vira, temos tudo aqui e se precisarmos de
algo, peço para a Olive.
​— Perfeito!
​— Vocês sabem que é uma merda quando começam a falar em português
perto da gente, porque a gente não entende nada, não sabem? — Archie coça
a cabeça, sem graça.
​ Eles fazem isso exatamente para não sabermos do que estão falando.

— Johnny dá um tapa na cabeça de Archie e se aproxima de mim, pedindo
para segurar minha mão. — É um prazer revê-la, senhorita Dias que não
gosta da DownUnder.
​— Em minha defesa, eu não sabia quem você era e depois daquele dia,
eu decidi dar uma chance e escutar a música de vocês sem o PJ. — Observo-
o dar um beijo em minha mão e levantar a sobrancelha curioso com o que
tenho a dizer. — Vocês são bons.
​— É claro que somos bons, a quantidade de streams deixa isso claro. —
Johnny dá uma piscadela e eu reviro os olhos sorrindo.
​— Ele é sempre assim? — Pergunto, me virando para Manu.
​— É pior. — Ela cruza os braços e confirma.
​— Escuta, Dias. Sua amiga, Olive. Por que ela me odeia? — Johnny
passa o braço ao redor do meu ombro e me leva para o canto do camarim,
falando baixo. Troco olhares com Manu, mas ela claramente não quer se
envolver, então só se afasta, se jogando no sofá. — Ela me evitou quando fui
dar aula no Centro e não precisa falar nada para eu perceber o quanto quer
me jogar debaixo de um ônibus.
​— Eu não faço a menor ideia, talvez porque você seja um pouco
convencido e ela não goste de pessoas assim?
​— Não pode ser só isso.
​— Eu realmente não sei. — Dou de ombros e ele fica me encarando,
como se tentando descobrir minha mentira, mas como eu realmente não sei,
logo desiste.
​— Então, vou descobrir. Volto logo. — Johnny se vira para todos, e bate
continência antes de abrir a porta do camarim e desaparecer para fora do
ambiente.
​— Ele vai fazer merda, Matthew. — Parker solta um suspiro cansado e
passa a mão no rosto.
​— Eu não vou ficar atrás dele igual uma babá, felizmente essa época já
acabou. — Matt retruca para o guitarrista da banda e eles têm uma conversa
silenciosa. — Merda! Já volto.
​Matt se dá por vencido e sai.
​— Me diz que essa merda que o Johnny vai fazer não vai comprometer o
show!? — Falo para Manu.
​— Pode ficar tranquila, tá tudo sob controle. — Responde com tanta
calma, que é impossível não sentir verdade em sua voz, o que me tranquiliza
um pouco.
​— Certo, se precisarem de qualquer coisa, é só chamar alguém da
equipe ou me ligar, estou com o celular no bolso o tempo inteiro. Tá bom?
​— Fechado.
​Aceno um pequeno tchau para os outros e vou embora. Não vou
conseguir dar atenção total, mas consigo fazer algumas pausas de vez em
quando e ficar de olho neles para a Olive.
​Atravesso o espaço do festival e, assim que chego na minha barraquinha,
os portões se abrem e as pessoas começam a entrar. O DJ está tocando uma
música agitada e meu coração bate depressa quando vejo o gramado enorme
encher aos poucos. Se tudo der certo, o Centro será salvo por esse dia, e não
existe nada mais importante no momento do que isso.
​Não sinto as horas passarem entre os atendimentos, que faço de maneira
rápida porque, se fizesse uma tiragem completa de tarot para as pessoas, não
conseguiria atender gente o suficiente. Faço apenas uma tiragem simples,
com uma carta que serve de conselho para o que a pessoa está passando no
momento. Pelo valor de 5 libras, em quatro horas de trabalho, tenho a jarra
de dinheiro quase cheia.
​É claro que todos os meus amigos vieram me visitar e pediram para eu
ver sobre seus futuros amorosos, sobre algum problema no trabalho ou até
mesmo se vão conseguir terminar a faculdade, que parece infinita. Charlie é
o único que não vem até mim, como já era de se esperar, mas Theo aparece
com seu jeito divertido de sempre e, depois da tiragem, vai encher minha
garrafa de água que já está vazia.
​Minha fila parece não terminar nunca, porque uma pessoa atrás da outra
se senta à minha frente, e Theo não volta com a minha água. Deve ter
aparecido algum problema no meio do caminho para ele resolver, inclusive,
não faço ideia de como estou conseguindo passar tantas horas seguidas sem
sair daqui e sem precisar ajudar o pessoal com alguma coisa.
​— Meu namorado vai terminar comigo?
​Não aguento mais escutar essa pergunta, mas abro um pequeno sorriso e
embaralho meu deck. Em seguida, tiro uma carta e preciso segurar a careta
com a notícia que vou dar.
​— Olha, esse é o três de espadas… — A menina abre um sorriso confuso
e preciso morder a bochecha.
​— E o que isso significa? — Ela parece ficar preocupada com a minha
reação.
​ Que você provavelmente vai passar por alguma desilusão, e

geralmente a causa é por mentiras, ou términos… Não precisa ser
necessariamente do seu namorado, pode ser algum outro relacionamento que
você mantém com familiares, ou amigos… Mas ela está bem ligada a
traição.
​— Eu descobri que ele me traiu na semana passada… — A menina
sussurra se aproximando de mim. — Mas fingi que nada aconteceu, porque
não quero perdê-lo, eu o amo demais.
​Meu coração se aperta com a confissão e sinto dó por ela aceitar ficar
nessa posição.
​— Você não merece estar ao lado de alguém que não dá valor a
companheira que tem. Você não deveria ter medo de terminar, é ele quem
deveria ter medo de te perder. Não deixe que ele faça maldades com seu
coração, ninguém merece viver com medo e em um relacionamento
inconstante.
​— Mas eu não sou nada sem ele.
​— É sim, você é muito mais sem ele. Tenho certeza disso.
​Falo com tanta firmeza que é difícil não deixar os olhos se encherem de
lágrimas junto com os dela, que apenas concorda e aperta um sorriso triste,
antes de deixar uma nota de 10 libras no pote e se levantar, sumindo pela
multidão.
​É uma grande merda quando situações assim acontecem, mas espero que
eu consiga dar um pouquinho de força para mulheres que precisam, que ela
não aceite estar em um relacionamento como o que tem atualmente e que
pare de fechar os olhos para o que aconteceu. Respiro fundo e pego a carta
de volta, colocando-a na pilha com as outras.
​— Próximo! — Falo alto e espero alguém aparecer pela barreira de
tecido que coloquei para dar um pouco de privacidade entre a fila e o local
em que estou sentada.
​— Você deve ser muito boa, porque essa fila está enorme.
​A voz de Anthony chama minha atenção e levanto a cabeça só para
encontrá-lo com as mãos nos bolsos, parado à minha frente. Ele usa a mesma
jaqueta de couro que já vi outras vezes, além de uma calça jeans escura e o
coturno, o que indica que está de moto.
​— Ah, é? E por quanto tempo você ficou esperando? — É impossível
não sorrir, principalmente quando ele dá de ombros de forma culpada.
​— Não fiquei, paguei o próximo cara para furar fila.
​ Você pagou? — Levanto uma sobrancelha e cruzo os braços

indignada. — Isso é ridículo, você podia ter dado esse dinheiro para mim e
eu ia colocar nesse enorme jarro de doações.
​Passo a mão pelo jarro como se fosse a coisa mais preciosa do mundo e
ele revira os olhos sorrindo, então se senta à minha frente.
​Homem lindo do caramba.
​— Não sabia que você vinha. — Mordo meus lábios, os olhos fixos nos
dele, porque eu simplesmente não consigo não olhá-lo. Estou perdida.
Deveria tirar uma carta para mim, aproveitar o embalo para ver o que o
futuro reserva desse… relacionamento que surgiu entre nós dois. No entanto,
não vou fazer, tenho medo demais da resposta.
​— Queria te fazer uma surpresa, e sabia que você estava muito ocupada,
então não quis atrapalhar. — Anthony umedece os lábios, os olhos fixos
nos meus antes de olhar a mesa entre nós. — O que são essas coisas?
​— Cristais, para me ajudar a clarear a mente e fazer uma leitura legal.
Aqui tinha um incenso, mas ele acabou de queimar faz um tempo e eu não
quis acender outro porque estou com dor de cabeça pelo cheiro. — Dou uma
pequena risada e continuo explicando, porque sei que ele gosta quando falo
das minhas coisas. — Minha toalha é especial, foi minha tia quem fez e me
presenteou junto com esse deck. Ela escolheu para mim e tenho um valor
sentimental nele.
​Mostro as cartas com desenhos lindos de bruxas e deusas em cada carta,
e a toalha preta com a roda do ano sendo pano de fundo para a admiração.
​— E como funciona? — Anthony pergunta, ainda observando as
ilustrações.
​— Você quer que eu tire uma carta para você? — Levanto a sobrancelha
surpresa e ele dá de ombros.
​— Por que não? Assim fico mais tempo aqui.
​— Sendo assim e como sei que o senhor MacMillan será muito generoso
com a doação… — Olho para a jarra, a deixa para ele abrir a carteira e
colocar algumas notas lá dentro, o que ele faz. — Vou fazer uma tiragem
mais completa para você. Sobre o que você quer saber?
​— Que tal se terei a companhia de uma brasileira para dormir hoje? —
Faz graça com a voz baixa em português, e um arrepio percorre meu corpo.
​— Não preciso tirar as cartas para te responder que mal posso esperar
para deitar e dormir feito um bebê assim que tudo isso acabar. Então, a não
ser que você esteja falando de outra brasileira, ou que o seu dormir não
signifique realmente dormir… Dormirá sozinho. — Provoco-o e ele assente.
​— Certo, se é só dormir que eu tenho, isso basta. — Anthony se dá por
vencido. — Pergunte então sobre o meu futuro.
​— Nada específico?
​— Não, só… O que eu posso esperar do meu futuro.
​— Certo, senhor MacMillan…
​Embaralho bastante as cartas e, diferente das outras tiragens, tiro três
cartas do monte, deixando todas viradas para baixo, para fazer um suspense
do que quer que esteja acontecendo.
​— Vou fazer uma tiragem do passado, presente e futuro. Está preparado?
​— Sempre.
​Sorrio e viro a primeira carta, então respiro fundo me preparando para
fazer a interpretação para Anthony.
​— Você teve uma infância difícil, e se sentiu abandonado em muitos
momentos.
​— Isso não é uma novidade. — Anthony levanta uma sobrancelha e eu
abro um sorriso amarelo.
​— São as cartas que estão dizendo, não eu! — Desviro outra carta e ele a
olha atentamente. — Já no seu presente, estou vendo que você está lidando
com muitas frustrações, vendo vários caminhos à sua frente e, apesar de
saber qual quer seguir, sua lealdade às vezes te impede de continuar adiante.
​Anthony não fala nada, apenas continua prestando atenção em mim,
então aceito a deixa para virar a última carta, a do futuro.
​— Tá… — Olho bem para a carta e para as outras duas.
​— O que foi, o que esse homem significa?
​— Esse é o Enforcado, sei que parece ser algo ruim, mas não é, só é
complexo… Ele simboliza que você terá que lidar com um grande sacrifício
por causa de um ideal que você está em busca. Está vendo o pé amarrado?
Quer dizer que a situação tem um jeito de resolver, e ele está com o rosto
tranquilo, porque temos que olhar para o que aparece à nossa frente com
outros olhos, com mais calma para entender tudo da forma correta.
​— Então, o que isso tudo quer dizer? — Anthony mantém a sobrancelha
franzida, absorvendo o que lhe falei.
​— Não acho que a carta da sua infância tenha saído por coincidência,
muito menos sobre o presente incerto que você está lidando. Acredito que as
cartas estão querendo te falar que, apesar do caminho que você percorreu até
agora e de estar confuso sobre o que fazer daqui em diante… Você
conseguirá chegar em uma decisão satisfatória, porque verá o problema sob
outra perspectiva. Essa carta também significa transição, livre arbítrio,
melhoria, sacrifícios… Acho que foi uma boa tiragem.
​— Achei que isso aqui fosse uma bobagem que você inventava para falar
para as pessoas.
​— Ah, é mesmo? — Finjo-me de ofendida com sua insinuação. —
Então, você realmente não me conhece nem um pouco.
​— Eu te conheço como a palma da minha mão. — Anthony me desafia e
passa a mão no cabelo.
​— Me dê ela aqui — estendo a mão pedindo a dele e ele me entrega
desconfiado.
​— O que está fazendo?
​— Você disse que me conhece com a palma da sua mão, então quero
conhecê-lo também…
​Levanto o olhar flertando e depois volto a atenção para sua palma,
passando o dedo devagar por cada linha. Não deveria estar com ele há tanto
tempo na barraca, assim como não deveria tocar sua mão tão delicadamente
em um lugar onde qualquer um pode nos ver, mas sinceramente? Foda-se.
​— Olha só, tem um temperamento forte e não se abre para as pessoas
com facilidade. — Levanto o olhar para encontrar com o dele. Seus olhos
azuis estão fixos nos meus e posso não conseguir ver, mas tenho certeza que
ele está arrepiado com o meu toque suave. — Já sua linha da cabeça diz que
você é prático e ligado às regras.
​— Você está me descrevendo — fala com a voz baixa. — Isso não é
justo.
​— Eu falaria o mesmo, independentemente de te conhecer ou não,
Anthony. — Levanto as sobrancelha e volto a atenção para sua mão, indo
para a terceira linha. — Essa é a linha do coração… Você tem tendência a
amar só uma pessoa, ou um grupo específico, tem equilíbrio emocional, não
age por impulso. Só permanece com alguém quando realmente quer.
​— Isso tudo está escrito na minha mão? — Confirmo e vejo um pequeno
sorriso convencido surgir em seu rosto enquanto concorda, nossas mãos
ainda se tocando. — E o que diz a sua?
​— Quem sabe um dia eu te conto.
Provoco e, antes que possamos falar qualquer outra coisa, um pigarro
alto chama minha atenção para o lado oposto ao da fila, lado esse que nos dá
visão do resto do festival.
​— Theodore pediu para eu te entregar. — Charlie está com o semblante
fechado e minha garrafa de água estendida.
​— Ah, obrigada. — Pego a garrafa e vejo que ele olha rapidamente para
Anthony, antes de se virar e se afastar, sem responder.
​A presença rápida de Charlie me faz perceber que já estou tempo demais
com Anthony e a fila de pessoas esperando, para terem sua sorte lida, deve
estar grande.
​— Preciso voltar ao trabalho…
​— Você vai ficar aqui até o fim do dia?
​— Não, vou fechar antes do show da DownUnder.
​— Ótimo, posso ficar então para assistirmos o show juntos?
​Preciso de alguns momentos para pensar na proposta. Anthony estar
aqui, onde todos os meus outros amigos estão, é pedir para que eles
descubram que estou me relacionando com ele. Por outro lado, por que não
posso simplesmente ser feliz com quem eu quiser, se eu sempre deixei tão
claro para todo mundo que não devo nada a ninguém?
— Me encontra na lateral do palco em quarenta minutos.
É tudo o que respondo antes de Anthony sorrir, se levantar e outra
pessoa ocupar o seu lugar.
Capítulo 47

“Então beije-me como se ninguém estivesse olhando


É as pessoas estão comentando, não importa o que eles dizem
Apenas beije-me no meio da rua, para o mundo todo ver
Que não há mais ninguém para mim”
Kiss Me Like Nobody’s Watching - Simple Plan

​ onsigo uma pulseira de staff com a Olive, que só me entrega quando


C
lhe dou a jarra com o dinheiro que arrecadei para a contagem final. Depois,
vou direto ao palco procurar por Anthony, que deve estar me esperando. E
ele está. Com as mãos nos bolsos e o rosto impassível, observando todos que
passam ao seu redor com a mesma feição que eu costumava odiar no começo
do ano letivo.
​É como se não desse a mínima para ninguém, mas entender que essa
expressão não passa de uma máscara para esconder suas dores e medos,
passou a ter um novo significado para mim. É sua forma de proteger seu
coração, que já foi tão magoado e que tenta, diariamente, curar feridas
invisíveis.
​— Coloque isso — estendo a pulseira para ele que estica o braço, para
que eu a coloque. — Vamos ver o show dos bastidores.
​— Uau, geralmente sou eu que faço esse tipo de favor para as mulheres
que saio.
​— Ah, que ótimo que estou mudando as coisas para você um pouquinho.
— Reviro os olhos e sinto uma pontada de ciúmes por ele falar de outras
garotas.
​Desde que comecei a trabalhar com ele, antes mesmo de nos beijarmos
pela primeira vez, nunca vi Anthony sair com alguém. A possibilidade disso
acontecer sem que eu saiba me assusta um pouco. Ele até pode não saber
como me sinto agora, mas não quero ficar com qualquer outra pessoa e
espero que ele também esteja sendo sincero em tudo o que já me disse.
​— Eu diria que bem mais do que um pouquinho. — Anthony levanta as
sobrancelhas e faz um sinal com a cabeça para que eu vá na frente.
​— Por que não trouxe seus amigos? — Pergunto quando passamos pelo
segurança e vejo o clima de correria do local.
​Matthew dá ordens para uma equipe de roadies que o escuta atentamente
e sobem no palco para terminar de arrumar os instrumentos da banda. Nossa
equipe está trabalhando para que tudo funcione como deveria.
​— Digamos que não seja muito o tipo de lugar que eles frequentam.
​— Nem mesmo a Lauren?
​— Especialmente a Lauren — Anthony sorri desacreditado e coloca a
mão nas minhas costas, me afastando de algumas pessoas que carregam
caixas pesadas. Seu toque me deixa em estado de alerta, com medo de
alguém ter visto, o que me faz brigar mentalmente comigo.
​Qual seria o problema se vissem? Por que eu preciso me esconder se sou
dona de mim, pago minhas próprias contas e vivo minha vida sem depender
de qualquer um deles? Amigos não deveriam fazer com que a gente se
esconda. Anthony não é o pai dele. Anthony nunca fez parte de qualquer
coisa que o pai tenha feito com LittleWin e eu sei o quanto ele tem se
esforçado para mudar tudo o que há de errado na empresa.
Para quem ficou tanto tempo pensando somente em si e sem abaixar
a cabeça para os outros, tenho me preocupado demais com o que vão falar e
pensar de mim.
​— Ela me odeia, não é? — Faço uma careta sorrindo e Anthony me
imita.
​— Odiar é muito forte, ela só… Não entende muito bem.
​Concordo e para não continuar o assunto, olho ao nosso redor,
procurando um lugar para que possamos ver o show. No mesmo instante, a
porta do camarim da DownUnder se abre e os meninos começam a andar em
direção ao palco, acompanhados da Emily e da Manu. As duas parecem
sérias, porque estão trabalhando, mas assim que a brasileira me vê, sorri e
me chama com um aceno.
​— Vem — falo baixo para Anthony e vou até minha amiga.
​— Vai assistir o show? — Manu pergunta como se estivesse lendo minha
mente e concordo. — Legal, vem pro palco comigo.
​ O que? — Arregalo os olhos e nego. — A gente não pode, foi um

acordo que fizemos com o Thomas, porque somos muitos e não seria justo
que só alguns assistissem de lá, e…
​— Eu estou te convidando e se alguém perguntar, Matthew te liberou.
Ninguém vai contra o empresário da banda. — Ela levanta uma sobrancelha
travessa e olha para Anthony. — Gato pra caramba, tá pegando?
​— Estou e ele fala português. — Dou risada e vejo Anthony morder os
lábios rindo também. Para ela é fácil contar, talvez porque eu sinta que, de
todas as pessoas aqui, Manu é a que mais me entende. Ela arregala os olhos
e empurra meu ombro constrangida.
​— Você se cerca de amigas que falam mais do que a boca, não é
mesmo? — Anthony brinca.
​— O brasileiro é movido por fofoca, MacMillan. Está no nosso sangue!
— Rebato sem olhar para ele e escuto sua risada baixa.
​— Foi mal. — Manu está com o rosto mais vermelho do que um
pimentão. — Bom, se vocês quiserem, podem subir comigo.
​Anthony está aqui, agora. Sem que eu precisasse pedir. Seus amigos não
pisam em um evento como o que organizamos, e aqui está ele. Apoiando-
me, apoiando o projeto e tentando encontrar maneiras para que o Centro seja
salvo. Esse é um dos maiores sinais que eu precisava para saber que não
estou cometendo nenhuma loucura.
Eu confio nele, realmente confio.
​— O que acha? — Viro-me para Anthony, que olha para mim.
​— O que você quiser.
​Então, nós dois seguimos a Manu até a escada do palco. O sol já se pôs e
o início da noite é lindo, principalmente dali de cima, onde conseguimos ver
a multidão esperando ansiosamente o início do show. As luzes estão
apagadas, mas Manu está com a lanterna ligada, nos guiando até a lateral
frontal, onde ninguém mais, além da staff da banda, está.
​Uma batida forte da bateria chama nossa atenção para o palco e consigo
ver a silhueta de Archie atrás do instrumento no instante em que uma luz
vermelha pisca. O público grita e o baterista repete o movimento, fazendo o
chão sob nossos pés tremer e as luzes piscarem novamente, acompanhadas
de uma fumaça densa que invade o palco.
​Os gritos, misturados com o som, são ensurdecedores, e meu coração
dispara quando os dedos de Anthony me tocam, entrelaçando nos meus sem
falar nada. Uma brisa gelada passa pelo meu cabelo, bagunçando-o e me
fazendo olhar para o homem ao meu lado.
​Permito-me tocá-lo, porque é o que eu quero fazer.
​O show começa quando os outros membros da banda entram no palco
animados e começam a tocar o setlist com muita energia. É especial estar ali,
vendo toda a química existente entre eles quando fazem o que amam,
enquanto interagem com o público enlouquecido.
​Aperto a mão de Anthony para chamar sua atenção e noto a intensidade
que carrega no olhar, suavizando a expressão assim que começa a admirar
todo o meu rosto. Puxo-o devagar para perto, encontrando seu oceano azul
antes de fitar seus lábios e decido deixar meu coração agir por mim. Sem
pensar nos prós e contras, sem medo e sem imaginar o que os outros vão
falar.
​Eu só beijo Anthony MacMillan.
​E ele, é claro, me beija de volta.
​É como uma dança que foi muito bem ensaiada, mesmo com toda a
surpresa do momento, e sinto como se a música fosse abafada para que só eu
e Anthony pudéssemos existir no mundo. Suas mãos envolvem minha
cintura enquanto aprofunda o beijo que já estou tão familiarizada. Porém,
agora, é como na primeira vez que sinto seus lábios nos meus.
Provavelmente, porque é a primeira vez fora de nossa zona de conforto que
me permito beijá-lo.
​— Você tem certeza do que está fazendo? — Anthony pergunta entre
beijos.
​Chega de fugir.
​— A única certeza que eu tenho é que eu quero você.
​Sou sincera, porque a honestidade é tudo o que consigo entregar para ele
agora. Estou sem barreiras, sem medos e sem dúvidas. Sou inteira amor,
certeza e vontade. A chave do meu coração já é dele há muito tempo, está na
hora de deixá-lo livre para usá-la como preferir.
​— Eu quero fazer isso mais vezes, Marina, e não só escondido. —
Anthony sussurra, os lábios roçando suavemente nos meus enquanto as
palavras saem como música de sua boca. Sua mão segura meu pescoço, o
polegar apoia meu maxilar quando nossas testas encostam. — Quero poder
te beijar em qualquer lugar, e andar com orgulho do seu lado, porque você
está comigo. Quero te levar nos eventos ridículos que eu tenho que ir, e…
​ Eu já vou nesses eventos com você — interrompo-o antes que termine

de falar e ele revira os olhos, fingindo impaciência, o que me faz selar os
lábios com um sorriso no rosto.
​— Quero te ter ao meu lado e reproduzir cada cena brega dos filmes que
a gente vê, porque eu tenho vontade de te dar o mundo, mesmo que você não
aceite que façam nada por você e fique satisfeita só com um bombom
escondido na sua mesa.
​— Quer colocar a mão no bolso do meu jeans e me buscar na porta da
sala de aula? — Brinco e ele morde os lábios.
​— Vou fingir que você não está fazendo piadinha porque no fundo está
com medo, e dizer que eu sou completamente apaixonado por cada mínimo
detalhe seu.
​Fico em silêncio, absorvendo suas palavras que são exatamente como
ele: práticas e significativas.
​— Anthony, eu…
​— Não namora, eu sei. Você já falou várias vezes, e eu continuo com o
mesmo posicionamento: eu não ligo. Se precisar de mais segurança, eu te
dou. Se precisar de tempo longe, só não me deixe morrer de saudade. Eu
quero você, e se você me quer, isso é o suficiente para mim. O resto a gente
resolve depois.
​Meu coração parece querer sair pela boca de tão forte que está batendo.
Sinto meus olhos ardendo e só quando percebo uma lágrima escorrer pela
minha bochecha, entendo que estou chorando. Sei que suas palavras são
verdadeiras e não sinto medo ao escutá-las. Anthony encosta os lábios
devagar em minha bochecha, e o beijo carinhoso que dá, em seguida, me
transborda. Ele segura meu rosto, como se eu fosse seu mundo inteiro.
​— Eu também estou apaixonada.
​— Você o quê? — Anthony franze as sobrancelhas, realmente surpreso e
sem esperar pelas palavras que soltei tão tranquilamente. Elas saíram com
tanta facilidade que agora entendo que eu era meu próprio obstáculo. —
Repete, por favor.
​— Eu não queria me aproximar, porque você é teimoso, convencido e
provavelmente a pessoa que mais me tira do sério nesse mundo. Você me
enlouquece com seus prazos apertados, suas reviradas de olho e a forma que
retruca praticamente tudo o que falo. — Respiro fundo, sentindo a leveza no
corpo por colocar o que eu sinto para fora. — E quanto mais tempo eu passo
ao seu lado, mais me apaixono e quero ficar perto. Também estou
apaixonada por você, Anthony.
​— Finalmente.
​Eu o quero. Estou apaixonada por ele há tanto tempo que não é justo
viver reprimindo meus sentimentos por causa de terceiros.
​A música, as luzes, os gritos… Tudo é combustível para intensificar o
frio que estou sentindo na minha barriga quando ele me beija mais uma vez,
e eu me entrego com tanta paixão que, ao nos afastarmos, parecemos dois
idiotas sorrindo um para o outro.
​Perdi completamente a cabeça, mas de um jeito bom.
​Como se um imã estivesse me puxando, olho para trás e encontro Manu
me encarando animada, enquanto faz um jóia com o polegar e dá alguns
pulinhos no lugar, passando o braço ao redor do pescoço de Matthew, que
está prestando atenção no show e a abraça inconscientemente. Sinto minha
bochecha ficar mais quente e abraço Anthony também.
​— Quer descer? — Pergunto, apontando com a cabeça para a área entre
o palco e o público, montada especialmente para a equipe.
​— Tem certeza?
​Olho para baixo com mais atenção e vejo os fotógrafos, alguns membros
da equipe do festival e praticamente todos os meus amigos, curtindo o show
e se divertindo juntos. Eles não prestam atenção em nós e sei que esse é o
momento que eu precisava para não nos esconder mais.
​— Tenho. — Tento me desligar do mundo ao nosso redor e focar
somente nas minhas vontades, pelo menos uma vez.
​Nós passamos por Manu e Matt, damos a volta no palco, indo para a área
que, apesar de cheia, está espaçosa e tem uma visão incrível do palco. Ava
me vê e acena, segundos depois olha para Anthony ao meu lado e faz uma
expressão confusa que eu, sinceramente, entendo completamente.
​Bato palmas no ritmo da bateria, acompanhando Parker que está na
frente do palco com as mãos no ar, fazendo todos baterem com ele. Porém,
por mais que eu tente, não consigo evitar virar a cabeça para o local que
estou sendo atraída tão fortemente. Encontro um Charlie completamente
irritado com os braços cruzados, alternando o olhar entre mim e Anthony.
Sua reação parece até mesmo pior do que a do dia em que Anthony foi até o
Centro levar os doces do Halloween para mim.
​Naquela época, eu ainda não fazia ideia do que sentiria pelo meu chefe.
​ Não queria admitir isso, mas gosto bastante deles, já fui em vários

shows. — Anthony segura minha mão e se aproxima do meu ouvido.
​Seria o momento perfeito para provocar Anthony, mas não consigo
afastar o olhar de Charlie que, agora sim, ficou furioso. Seu corpo todo fica
tenso e seu maxilar está travado. Tá, acho que essa é a reação previsível para
ele, principalmente depois do ano novo. Ele parecia um cara tão incrível no
início de tudo, que foi uma grande surpresa conhecer, aos poucos, um outro
lado de sua personalidade quando não teve o que queria.
​Comportamento típico de homens que se mostram muito legais e
desconstruídos, porém às vezes não passam de esquerdo-machos. O que é
uma pena. Enfim, o ego ferido.
​Aproveito o momento para olhar meus amigos, e apesar de Charlie ter a
reação mais exagerada, os outros estão… Não sei, confusos. Peguei todos de
surpresa, e não sei o que me espera quando estivermos a sós. Eles podem
agir como se nada tivesse acontecido, ou podem cair matando em cima de
mim. Provavelmente, a segunda opção, já que a indignação no olhar deles
passa de um para o outro.
​— Quer dançar? — Anthony pergunta em meu ouvido quando a banda
começa a tocar uma música lenta e acho o convite uma ótima forma de me
distrair dos meus pensamentos.
​— Não sabia que você dançava! — Respondo em seu ouvido para que
ele possa me escutar e o olho de cima a baixo, franzindo a sobrancelha.
​— Por favor, eu sou um MacMillan! — Segura minha mão e puxa meu
corpo para perto do dele com menos delicadeza.
​Sorrio quando ele começa a dançar devagar, até eu pegar o ritmo dos
seus movimentos e, assim, dançarmos juntos com a música. A lua está alta
no céu e a luz avermelhada do palco deixa toda a atmosfera sensual,
combinando com as músicas que os meninos estão tocando.
Mesmo sentindo que todos nos encaram, agora não consigo prestar
atenção em mais ninguém além do loiro, e sei que ele também se sente
assim, porque seus olhos brilham para mim.
​Sua mão envolve minha cintura e ele se encaixa entre minhas pernas, me
arrancando um suspiro com o movimento inesperado.
​— O que você está fazendo?
​— Só me acompanha, tá bom? Confia em mim uma vez.
​— Eu sempre confio em você!
​ injo estar ofendida e mordo os lábios, o calor dele sobe pelo meu corpo
F
e sua mão livre passa pelo meu pescoço, jogando meu cabelo para trás. Sem
se importar com qualquer um olhando, Anthony deposita um beijo rápido em
minha pele que fica arrepiada antes de nossos lábios se encontrarem
novamente.
​Sua mão livre segura minha nuca e a gente se beija, sem parar de dançar,
como se o mundo não existisse fora da nossa bolha. Coloco a mão dentro de
sua jaqueta e passo as unhas em suas costas, arrancando-lhe um sorriso antes
de me beijar com mais intensidade.
​Sei muito bem o quanto ele é bom em provocações, mas hoje ele se
supera com a mão sempre aberta na base das minhas costas, sem descer para
a minha bunda e sem parecer aqueles homens de balada brasileira, que ficam
abraçados na mulher como se elas fossem a propriedade deles. Anthony é
sútil, mas sensual. Ele se faz presente, sem precisar gritar isso para os quatro
cantos.
​— Você está tão gostosa que se eu pudesse e você não estivesse tão
cansada, arrancava sua roupa e te fodia aqui mesmo. — Anthony sussurra
em minha orelha, a voz rouca vindo do fundo da sua garganta, fazendo com
que eu aperte as coxas.
​Que merda, Anthony.
​— Acho que não estou tão cansada assim. — Tento consertar o que falei
mais cedo.
​— Ah, não está, é? — Anthony ri gostoso e desce a mão minimamente
por minha coluna, me fazendo ansiar por seu toque em minha bunda, mas a
sobe de novo.
​O sorriso indecente consegue afastar meu cansaço, que estava quase em
seu auge.
​Ele consegue me deixar louca com tanta facilidade, é ridículo. Nem me
tocou e sinto minha calcinha molhar, como se eu não estivesse com medo de
me abrir há pouco tempo.
​Olhá-lo assim do meu lado é como uma vitória. É saber que eu segui
meu coração, mesmo com medo, e que estou pronta para enfrentar quaisquer
consequências que apareçam, porque sei que não estou sozinha.
​O resto do show passa rápido, nós dois dançamos e pulamos em
praticamente todas as músicas. De vez em quando, vejo Ava e Emma nos
olhando e cochichando algo, mas tento bloquear quaisquer comentários que
possam me afetar agora. Deixa para o meu eu do futuro se preocupar com
isso.
​— Boa noite, Londres!
​Thomas entra no palco segurando um microfone, no instante em que a
banda termina de tocar. Os meninos se juntam a ele, enquanto Thomas fala
algo com os roadies e se vira para o público novamente.
​— Gostaram do show? — Thomas aponta o microfone para o público e
todos gritam alto. — A DownUnder não decepciona! Obrigado pelo apoio e
por cederem um tempo na agenda de vocês para estarem aqui essa noite!
Queria falar rapidamente com todos vocês, se vocês me permitirem…
​— Você quer ir embora? — Anthony pergunta alto, me fazendo ignorar o
que quer que Thomas esteja falando.
​— Eles vão me matar se eu for embora antes da desmontagem. —
Aperto os lábios frustrada.
​— Você não estava aqui desde o início?
​— Sim, mas… — Olho para meus amigos, que agora prestam atenção no
palco e não em mim. — Não vou conseguir ir embora sem entregar tudo
com todo mundo.
​— Você não consegue pensar só em você, não é, amor? — Anthony
coloca uma mecha do meu cabelo atrás da orelha e eu dou de ombros. — Me
avisa quando terminar que eu venho te buscar.
​— Acho que vai demorar.
​— Não ligo, eu espero.
​— E não podemos deixar de agradecer a presença de cada um de vocês,
nesse evento que tem como prioridade arrecadar dinheiro o suficiente para
salvar o Centro de LittleWin, e ajudar nossos voluntários a continuarem com
o trabalho incrível que eles fazem com tantas crianças e adolescentes.
​Bato palmas, olhando ansiosa para o palco e esperando o resto do
anúncio. Charlie e Theo passam por nós, indo em direção aos bastidores. O
primeiro nem arrisca me olhar, mas faz questão que sua presença seja notada
por nós, porque passa na nossa frente mesmo tendo espaço o suficiente atrás.
Já Theo aperta os lábios e arregala os olhos, sem dizer nada, mas carrega um
mundo de palavras não ditas.
​— Infelizmente, até o momento, não conseguimos arrecadar todo o valor
que precisávamos, então, quem puder ajudar, estaremos recebendo as
doações na bilheteria. Obrigado pela presença e por apoiarem a nossa causa.
Boa noite!
​ homas sai do palco e eu fico olhando para o espaço que fica vazio por
T
pouco tempo, até que os roadies da DownUnder entrem, desmontando os
equipamentos.
​— Como assim não conseguimos o valor necessário? — Viro-me para
Anthony confusa e ele dá de ombros, colocando as mãos nos bolsos. — Que
merda.
​— Dias, você vem? — Ava para à minha frente. Vejo os outros indo em
direção aos bastidores.
​Ela não parece me julgar, só está curiosa com o que quer que esteja
acontecendo.
​— Vou, é claro que vou! — Confirmo para ela, que volta a andar
devagar, esperando eu me despedir e ir atrás dela. — Eu não faço a menor
ideia de quando vou terminar…
​— A hora que for, me liga que eu venho.
​Confirmo e lhe dou um beijo rápido na boca.
​— Tá, desculpa. Eu te ligo, prometo.
​— Vou ficar esperando.
​Apresso o passo até Ava, que está quase sumindo atrás do palco.
Capítulo 48

“Um coração partido é tudo o que resta


Eu ainda estou consertando todas as rachaduras”
Arcade - Fletcher

​ Todos aqui?

​Thomas olha para o nosso grupo, apenas os membros da Ordem reunidos
na parte de trás do palco, enquanto o resto dos voluntários estão trabalhando
nos últimos momentos do evento. As pessoas estão começando a ir embora e
os técnicos desmontam o que dá.
​— Falta a Olive, ela está com a banda. — Emma coloca as mãos na
cintura e, ao lado do namorado, olha para todo o grupo. — Vou chamá-la
pelo rádio.
​— Certo, vamos esperar. — Thomas confirma e abaixa o olhar para
alguns papéis em sua mão.
​Estou ansiosa, sei disso porque estou apertando as mãos e tenho certeza
que meus dedos estão brancos. Péssimo momento para não estar com minha
bolsa, eu precisava do meu blend de lavanda agora. Qualquer coisa para
afastar essa sensação sufocante que sinto apertar no peito.
​Ava dá alguns passos em minha direção e para ao meu lado. Ela cruza os
braços e me olha algumas vezes. É a primeira vez que a vejo sem jeito.
​— Então…
​— Então… — repito baixo.
— Entendi porque seria complicado.
​— É, eu falei. — Sorrio e aperto os lábios. Quero dizer mais alguma
coisa, mas sinto que não preciso tomar a iniciativa agora. Vou responder o
que ela quiser e ver a direção dessa conversa.
​ Sabe, faz muito sentido. Não sei porque não pensei nele antes.

​— Provavelmente, porque ele é meu chefe e eu não o suportava? —
Levanto uma sobrancelha e Ava concorda.
​— Provavelmente.
​Ficamos em silêncio, uma ao lado da outra.
​— Ele ao menos é decente? — Sua voz calma e tranquila chega em meu
ouvido como um carinho, o que afasta um pouco do medo que eu estava
sentindo.
​— Mais do que decente. Ele é bem incrível, para falar a verdade.
​— Então, tá bom.
​Ava finalmente me olha. O sorriso que ela aperta não é de pesar e sei que
não carrega nenhum tipo de raiva no corpo. Na verdade, parece que
realmente entende e aceita, desse jeito simples e bruto dela. Minha palavra é
o que basta e, por isso, não insiste.
​— Obrigada — falo baixo.
​— Está agradecendo por quê?
​— Por você não ter me julgado. — Sinto um pouco de vergonha quando
falo em voz alta e ela passa o braço pelo meu ombro, me puxando para perto
em um abraço desajeitado.
​— Cada um sabe o que faz da vida, gringa. Se você está feliz, então está
tudo certo. Não cabe a mim apontar o dedo para você, independentemente de
quem ele seja. Só tenha certeza do que está fazendo, porque eu realmente
não quero precisar falar “eu te avisei”, ou qualquer coisa do tipo. Pode ser?
​— Eu espero muito que você não precise falar algo assim — faço uma
careta e ela ri.
​Benji se aproxima, o que faz com que a gente se solte do abraço, mas
mantenha as mãos dadas. Ele abre a boca algumas vezes, alterna o olhar
entre nós duas, tenta balbuciar algumas palavras, mas logo desiste.
​— Não precisa falar nada, eu já sei exatamente o que você vai dizer. —
Dou o primeiro passo da conversa.
​— Tá bom.
​E me surpreendendo, Benji segura minha mão.
​Solto o ar dos meus pulmões devagar, com uma onda de alívio invadindo
meu corpo e relaxando meus ombros. Tenho Benji de um lado e Ava do
outro. Como mágica, a ansiedade me deixa aos poucos. Não estou sozinha e
não sei porque tive tanto medo de ficar. Aperto a mão deles, agradecendo
silenciosamente pelo apoio que estão me dando, e eles me apertam de volta.
​ sensação se mantém até o olhar de Charlie se encontrar com o meu. É
A
claro que agora ele vai me odiar, não espero nada diferente disso.
​— Certo, cheguei! — Olive aparece andando apressada e tira o fone do
ouvido enroscado em seu cabelo, o qual está com uma aparência mais
rebelde do que o normal, provavelmente por causa da correria. Ela passa a
mão pelos fios e o arruma um pouco. — Pode começar.
​— Tá, então…
​— Fala logo o quanto arrecadamos, Thomas! — Reggie fala mais alto e
Thomas prende o ar. — Para de enrolar!
​— Faltou muito? — Theo cruza os braços, já cansado e se preparando
para as más notícias que estão por vir.
​— Só um pouco. — Thomas responde e mostra o dedo do meio para
Reggie, que continua apressando nosso líder e mexendo o corpo de um lado
para o outro como uma criança ansiosa.
​— Ótimo, se faltou só um pouco a gente consegue arrecadar de outras
formas. — Olive assente confiante.
​— Não gente, vocês não estão entendendo. — Emma chama a atenção
com a voz em alerta.
​— Temos um outro problema. — Thomas parece procurar as palavras
certas para falar, e isso é preocupante. Ele mantém um sorriso fraco no rosto
e todos começam a falar uns com os outros, já inventando ideias para
arrecadar o que falta. Ava fala sobre pontos de doação na cidade e Benji
balbucia algo sobre uma ONG, mas não consigo capturar exatamente suas
palavras.
​— Calem a boca! Vocês não estão vendo que ele tem mais uma coisa
para falar? — Emma engrossa a voz e todos ficam quietos no mesmo
instante, ela não tem costume de falar alto irritada, então esse é o sinal de
que um limite foi passado.
​Thomas suspira e levanta um documento, então aperta os lábios e nega
com a cabeça, sem conseguir olhar para cada um de nós.
​— O senhor Ward veio aqui no início da tarde e me entregou essa
correspondência, falou que era importante e que não havia aberto.
Entregaram no Centro hoje, no início do dia, e como não tinha ninguém lá, a
vizinha recebeu e enfim, pediu para ele me entregar. Não consegui ver o que
era mais cedo por causa de todo o trabalho e a correria, e…
​— O que é Thomas? Fala de uma só vez! — Ava corta o monólogo e
todos os olhares se viram para nós.
​ homas abre o papel e o segura com força.
T
​— “Devido ao perigo iminente da construção, os órgãos responsáveis
decidiram prosseguir com a interdição imediata do imóvel, proibindo assim,
a entrada de terceiros no local que, agora, está sob responsabilidade das
autoridades locais.”
​— O que? — Charlie tem a voz mais alta no meio de todas as outras
exclamações.
​— Mas que porra é essa? — Ava solta minha mão, anda até Thomas,
pega o papel de sua mão e começa a ler todas as palavras dispostas ali.
​— Não temos mais o que fazer, pessoal. — Thomas nega e meus olhos
se enchem de lágrimas.
​— Não, deve ter algo, tenho certeza… — Olive está com as mãos na
boca e Reggie afaga suas costas devagar.
​— Não tem, Ol… Realmente não tem. Acabou. — Thomas está sem
reação.
​É o sonho de uma vida inteira sendo destruído. Tínhamos a esperança de
tudo dar certo. Na verdade, tínhamos certeza que tudo daria certo. Fracassar
não era uma opção, então ninguém consegue realmente acreditar que deu
errado. Perdemos.
​A notícia é um balde de água fria, não só no trabalho feito no festival,
que foi jogado no lixo, como também todo o esforço que o grupo tem com o
Centro há anos, muito tempo antes de Thomas herdá-lo. Muitos voluntários
passaram pelo local, muitas famílias, muitos jovens… Se aquele lugar é
importante para mim, que sou voluntária há alguns meses, imagine para o
Thomas, que convive com o projeto, as famílias e as crianças há anos?
​— Isso tudo é culpa sua — Charlie está de braços cruzados com o olhar
em cima de mim.
​— Minha? — Arregalo os olhos e ele confirma com a cabeça.
​— Agora, eu consigo entender o porquê de você demorar tanto para
encontrar qualquer informação. — Charlie atravessa a roda devagar, com
passos preguiçosos em minha direção.
— Do que vocês estão falando? — Thomas franze a sobrancelha
preocupado e se aproxima de nós. Todos se viram para prestar atenção.
— Pelo visto, a lealdade da Dias tem um limite, e um terno muito do
engomadinho. — Charlie praticamente cospe as palavras e olha para
Thomas.
— Você não faz a menor ideia do que está falando, Cooper. —
Também dou um passo para frente, não vou permitir que fale assim comigo.
Ele me olha de cima a baixo com nojo.
O fato de Charlie não conseguir esconder os sentimentos era algo que
eu admirava quando estávamos saindo, porque eu sempre sabia o que ele
estava pensando. Agora, não é nem um pouco legal. Consigo sentir o ódio
escorrendo do seu olhar.
​— Todo mundo aqui já sabe que você está fodendo com o responsável de
toda essa merda, Dias!
​— Uou! — Pisco algumas vezes, desacreditada na sua reação e levanto o
queixo irritada. — Uma coisa não tem nada a ver com a outra, e seria ótimo
se você pudesse manter o respeito comigo, já que eu sempre fui mais do que
educada com você. Mesmo quando soube das merdas que você tem falado
sobre mim só porque não sabe aceitar um não! Anthony não tem nada a ver
com o que o pai dele faz, estamos trabalhando juntos para…
​— Trabalhando ou fodendo?
​— Com quem eu fodo não diz respeito a você há muito tempo. Na
verdade, nunca disse respeito, já que nunca fomos nada.
Sinto como se meu corpo estivesse entrando em combustão de uma
forma que há muito tempo eu não sentia. É como acessar uma parte da raiva
que eu demorei tantos anos para controlar no fundo da minha alma. Não ligo
de ser maldosa e deixar claro o status do nosso relacionamento na frente dos
outros. Se ele acha que vou deixá-lo falar a merda que quiser e escutar de
cabeça baixa, ele está errado.
​— É? E exatamente desde quando isso está acontecendo? — Charlie
insiste, me desafiando.
​— Gente, vamos… Depois vocês conversam em particular — Olive se
aproxima, tentando se colocar entre nós com os olhos assustados.
​— Não, eu não tenho nada para esconder. — Falo para Olive e me viro
novamente para Charlie. — Se você está insinuando que eu te traí, não, eu
nunca te “traí”. Nunca tivemos nada sério. Agora, eu não devo satisfações
sobre estar com alguém ou não, isso não diz respeito a ninguém além de
mim e Anthony. Ninguém aqui faz a menor ideia de tudo o que estamos
fazendo para tentar descobrir algo, mas não está ao alcance nem mesmo
dele! Os documentos estão fechados com senha, não tem nada no
departamento dos arquivos e…
​ Ou ele está enganando a brasileira bobinha para foder não só ela, mas

também o projeto e ajudar o pai. Já pensou nisso? Que ele está claramente te
usando e você está deixando? A custo do que?
​Não consigo segurar o tapa forte que estalo em seu rosto.
— Você não pode me atacar só porque eu não gostei de você de
volta, Charlie! — Sinto minha mão formigar e Charlie toca sua bochecha,
bem onde lhe bati.
— Chega! — Thomas fala alto, irritado.
Dou um pequeno pulo com o susto e meus olhos se fixam nos de
Charlie que está com a boca levemente aberta, em choque com o que acabou
de acontecer, mas permanece em silêncio.
​Todos os olhos estão em nós, e se alguém pensa da mesma forma que
Charlie, não fala. Ele passou de todos os limites de respeito que tínhamos
estabelecido entre nós nos últimos meses, e isso é triste.
​— De todos os adjetivos que já usei para te descrever, nunca imaginei
que nojento fosse ser um deles.
​Tento falar com a voz calma, porque passei dos meus limites e sei que,
de todas as formas que existem de magoar alguém, a que mais dói é a
indiferença.
​— Brigar não adianta nada, nós não podemos nos dar ao luxo disso
agora. — Thomas olha não só para nós, mas para todos os outros, ignorando
o tapa que dei em seu amigo. — Dias, você confia nele?
​— É claro que sim, Thomas! Você acha que eu estaria com alguém se
não confiasse na pessoa? Porra, olha tudo o que eu tenho feito pela Ordem e
pelo Centro desde que eu cheguei aqui!
​— Não, Dias… Não é isso que ele quis dizer — Emma dá um passo à
frente, preocupada.
​— Não! — Levanto a mão para ela, que para de andar. — Sabe, é
realmente muito ridículo ver que vocês desconfiam tanto assim de mim, eu
achava que existisse, sei lá, uma ligação entre nós. Pelo visto me enganei.
​Me afasto deles sem olhar para trás, mesmo escutando a voz de Benji me
chamando. Meus olhos estão cheios de lágrimas. Odeio brigar e, sempre que
preciso me posicionar dessa maneira, sinto meu corpo inteiro tremer de
nervoso, principalmente quando sou atacada. Quando é algo menos pessoal,
consigo lidar facilmente, mas quando Charlie falou de Anthony, quando
falou de mim…
​ ão, eu nunca poderia deixá-lo falar o que quisesse de mim e deixar
N
passar batido.
​Vou até a minha barraca, pego minha bolsa que estava escondida debaixo
da mesa e puxo o celular do bolso. Disco o número de Anthony em seguida.
​— Você já foi embora? — Pergunto assim que ele atende, o som do
trânsito no fundo.
​— Já, achei que você fosse demorar…
​— Você não está falando comigo enquanto pilota, não é? — Pergunto
preocupada porque escuto o som de sua moto ligada.
​— Estou parado na calçada. Quer que eu te busque?
​— Não, você já foi embora, então não tem problema.
​— Não estou longe. — Sua voz quase sai abafada com o barulho do
motor da sua moto.
​— Não precisa, eu…
​— Eles brigaram com você, não é?
​Fico em silêncio e volto a chorar. É a segunda vez que choro hoje, mas a
lágrima que escorre de meus olhos agora é de frustração, deslocamento. Não
me arrependo da decisão que tomei ao expor meu relacionamento com
Anthony, só não queria ter que lidar com tudo que aconteceu.
​— Me espera aí na frente, já estou chegando.
​Anthony desliga e, sem olhar para os lados, caminho rapidamente até o
lado de fora do festival.
Capítulo 49

“Sempre me acharam louco por querer ser mais um pouco


Sei que eu tenho os meus monstros, mas continuo a caminhar”
Monstro - Jão

​ inha mente não consegue ficar em silêncio, enquanto desvio das


M
pessoas que também estão saindo do festival. As palavras de Charlie
martelam na minha cabeça, lembrando-me de que a culpa é minha. Eu não
fiz tudo o que eu poderia ter feito. Eu não me arrisquei o suficiente. Eu não
me esforcei ao máximo para evitar que o Centro tivesse o destino que o
persegue.
​Não me arrependo de ter ficado com o Anthony, nem um pouco, ele é a
melhor coisa que me aconteceu nos últimos meses, mas me arrependo de ter
relaxado depois que me aproximei dele. Foi como se, sabendo que ele
também está nessa comigo, não precisava mais me preocupar o tempo inteiro
e sozinha, porque eu o tinha. Tenho-o.
​A adrenalina da briga faz minha mente enlouquecer. Uma parte de mim
fala que a culpa é minha, a outra voz grita em meu ser. Por que a culpa seria
minha se fiz tudo na melhor das intenções? Quantos estabelecimentos ajudei
a salvar?
​A culpa não é minha, é do Archibald MacMillan. Ele é o responsável, o
homem, asqueroso, ganancioso, ambicioso e egocêntrico…
​Como num clique, meus olhos se abrem e eu paro de andar.
​— Ele é egocêntrico, é claro! — Olho para os lados, procurando nada
específico, mas deixando as ideias se assentarem na minha mente. — Burra,
como que nunca pensei nisso antes?
​ ma onda de coragem toma conta do meu corpo e, em vez de esperar
U
por Anthony, alcanço a calçada e viro em direção ao metrô. Estava na frente
do meu nariz esse tempo todo e não consigo acreditar que deixei esse detalhe
passar.
Segundo Charlie, eu não me esforcei o suficiente e não fiz o que
podia para salvar o Centro, agora, eu vou resolver isso. Estou há meses
sendo cuidadosa demais, calma demais, e isso não adiantou nada. Está na
hora da Dias destemida do Brasil assumir um pouco as rédeas da situação e
arriscar.
​Durante todo o trajeto até o prédio da Vann, minha cabeça está tomada
de planos e ideias de como posso executar essa maluquice sem estragar tudo
para todo mundo. Os riscos são muitos e, talvez, a melhor opção seja tomar
cuidado e descobrir o caminho enquanto vou avançando. Nunca tentei entrar
no escritório do senhor Archibald, e sei que Anthony também não, porque a
sala tem uma fechadura eletrônica que só o pai do meu… dele, sabe a senha.
Sem contar que o andar vive movimentado, o que seria extremamente
suspeito para qualquer um que nos visse tentar entrar na sala.
​Mas, dessa vez, sei que estou certa. Eu tenho que estar certa.
​Sinto meu celular vibrar no bolso e o coloco no modo Não Perturbe,
ignorando a ligação de Anthony. Não posso e não vou envolvê-lo nessa
tentativa. Se algo der errado, preciso que esteja o mais longe possível para
que nada respingue nele.
​Apesar do frio que está na rua, sinto calor e ando depressa, rumo ao local
que vou cinco vezes na semana para trabalhar. São poucos os andares que
funcionam nos finais de semana, a maioria do setor de telemarketing e de
informática, mas não os do financeiro e operacionais. Então, não terei
nenhum problema em entrar no escritório de Archibald MacMillan.
​Espero.
​Diminuo a velocidade dos meus passos quando chego na mesma calçada
do prédio. Respiro fundo e coloco um sorriso no rosto para encontrar com o
funcionário que já estou acostumada a ver diariamente.
​— Senhorita Dias! — Harry, o segurança, exclama surpreso. Seu turno
geralmente começa quando estou indo embora, então nossas interações
sempre foram muito breves. — Não esperava ver a senhorita por aqui esse
final de semana.
​— Esqueci de enviar um projeto importantíssimo para o senhor
MacMillan — tento entregar minha melhor atuação, mesmo que ela seja
ruim. — Se não estiver no computador dele segunda de manhã, vai cortar
minha cabeça fora!
​— Que horror! — Harry sorri desconfiado.
​— Quebra essa para mim e me deixa entrar?
​Preciso que ele me autorize. Preciso que ele me autorize. Preciso que ele
me autorize.
​Ele pensa por um momento, olha ao redor e parece estar tomando uma
decisão, então dá um passo para o lado e abre a enorme porta de vidro para
que eu passe.
​— Vá rápido, ou nós dois vamos nos meter em problemas. E passe por
baixo da catraca, os meninos da segurança nem vão notar.
​— Você é o melhor de todos! — Seguro a vontade de dar um beijo em
sua bochecha, porque sei o quanto uma interação física não é comum para os
ingleses, e me contento em só abrir um grande sorriso para o homem. —
Será nosso segredo!
​Entro no prédio, que tem apenas algumas luzes acesas. Se alguma coisa
der errada, preciso garantir que Harry não seja punido.
Sinto uma pontada de culpa por isso, a maioria dos funcionários do
prédio, que me conhecem, confiam em mim. Principalmente, por todos os
eventos, reuniões e trabalhos em que acompanho Anthony, sendo sua porta-
voz diversas vezes e lidando diretamente com a sua agenda. Não é justo que
Harry, ou qualquer outra pessoa, seja responsabilizado por algo que fiz,
traindo a confiança que depositaram em mim.
Balanço a cabeça, afastando todos os pensamentos conflitantes para
longe. Agora, preciso focar no que vim fazer e procurar qualquer mínima
pista para entender o que Archibald MacMillan quer com o Centro.
Passo por baixo da catraca, para não deixar registrado que entrei,
como Harry me instruiu, mesmo sabendo que as imagens das câmeras
podem me entregar. Torço para que ele tenha razão, que os seguranças não
percebam o que estou fazendo e simplesmente me ignorem. Vou em direção
às escadas, onde não há câmeras, e subo.
Agradeço pelo prédio não ser tão alto, porque, quando chego no
andar do conselho, estou cansadíssima. Preciso de um momento para
recuperar o fôlego e, devagar, abro a porta das escadas.
O andar está quase todo no escuro, salvo por alguns abajures ligados
nas extremidades do local, deixando uma pequena iluminação amarelada
pelos cantos. Caminho por todo o espaço com muito cuidado e me certifico
de que não há ninguém.
Se isso tudo der certo, vou precisar avisar ao Anthony que o sistema
de segurança deles é horrível.
Meu coração bate forte no peito, consigo escutá-lo, destoando do
som suave dos meus passos.
No escuro, tudo parece um labirinto, então vou me guiando pelas
placas nas portas das salas. Passo por salas de reunião, pela copa, secretaria,
gerentes executivos, arquivo…

CEO Archibald MacMillan

Paro no instante em que vejo a placa prateada pendurada na porta de


madeira. É isso.
Posso ser completamente maluca por estar aqui, mas preciso tentar e
não ficarei em paz se eu desistir e for embora agora. Olho para a fechadura
eletrônica e tento procurar por digitais nos números, não encontro, parece
que foi limpo depois da última vez que foi usado.
— Tá bom… Você acha que o mundo gira ao seu redor e nada mais
importa…
Murmuro e respiro fundo, então digito a data de nascimento do pai
de Anthony no teclado. Sim, eu sei quando ele nasceu, mas não por vontade
própria, e sim porque a essa altura, já vi contratos demais com seus dados.
Uma luz vermelha acende no visor e um pequeno alarme toca.
— Merda… — Olho ao redor sem tempo o suficiente para pensar no
que fazer quando passos chamam minha atenção, ao mesmo tempo que o
alarme para de tocar.
Tento abrir as portas do corredor e só na terceira tentativa, consigo
entrar em uma sala e me esconder debaixo da mesa. Não consigo ver muitos
detalhes de onde estou, mas tampo minha boca e controlo a respiração. Os
passos ficam mais altos e vejo um vulto passando pela porta que deixei
entreaberta.
— Não, não tem nada aqui… Deve ter sido algum erro no sistema…
— O homem fala pelo rádio.
— Vou pedir para alguém da manutenção verificar na segunda de
manhã. — A resposta chega junto com um chiado.
— Tanto faz, não é minha função mesmo. — Os passos do segurança
começam a desaparecer, ficando longe, e eu me mantenho quieta até ter
certeza de que estou sozinha de novo.
É óbvio que algo assim aconteceria, mas não aceito o erro, então
pego meu celular do bolso e abro o buscador. Faço uma pesquisa rápida do
nome de Archibald só para descobrir que, no nervosismo, acabei colocando
o ano errado.
— Que idiota…
Levanto devagar, me certifico que não tem ninguém no corredor e
ando mais uma vez até a porta, que está do mesmo jeito de antes do pequeno
alarme soar, como se nada tivesse acontecido. Digito a data certa e, como
mágica, a porta se abre.
Para qualquer outra pessoa do universo, essa seria uma das primeiras
senhas que alguém tentaria, mas para o dono de uma multinacional? Não faz
sentido nenhum a senha para entrar em seu escritório ser a data do seu
nascimento, porque é uma senha absurdamente óbvia, e é por isso que ela é
tão genial.
Ninguém pensaria nela. Nós não pensamos.
Ou, pelo menos, eu não pensei. Não tenho certeza se Anthony não
tentou antes, mas ele teria me contado se tivesse, não teria? De repente, a
voz de Charlie ecoa em minha mente.
“Ele está claramente te usando e você está deixando.”
Sacudo a cabeça e afasto esse pensamento. Não existe a possibilidade
de Anthony me usar, porque ele nunca faria isso, nem comigo, nem com
ninguém. Ele é bom demais para ter uma atitude tão baixa, já que prefere se
afastar do que errar e ferir os sentimentos de outra pessoa. É só ver como ele
lidou com toda a situação da Elizabeth, ou com todo o trabalho que ele está
tendo ao reunir provas contra o pai, e montando uma equipe para assumir
toda a empresa quando for o momento ideal.
Confio nele.
Abro a porta da sala e olho ao redor, ela é uma versão mais majestosa
da sala de Anthony antes de me contratar. Móveis parecidos, mas maiores.
Muitos prêmios e diplomas nas paredes. Alguns objetos de valor na mesa,
como o peso de papel ridículo com formato de leão que deve ser caríssimo.
Uma coisa que noto é que não tem nenhuma foto de família. Triste e
sem vida.
​Ligo a lanterna do meu celular e reprimo a vontade de ver se recebi
alguma ligação ou mensagem, porque não é hora disso. Procuro por câmeras
ao redor e não encontro nenhuma, então vou ao computador. Ligo-o e o
campo para inserir uma senha aparece na minha frente, tento novamente a
data de seu nascimento, mas o acesso é negado.
​— Certo…
​Não insisto, não vou correr o risco de bloquear o sistema e chamar
atenção agora, então abro a primeira gaveta da mesa e encontro alguns itens
de papelaria do dia a dia, papéis e documentos que não fazem parte do meu
trabalho, e sim de outras áreas da Vann, nada muito sério, pelo o que vejo
rápidamente. Diferente da primeira gaveta, a segunda está trancada e não
tem sinal nenhum de chave pela mesa. Na última gaveta, a maior de todas,
encontro pastas e mais pastas de arquivos. Abro as primeiras e encontro
fichas de funcionários da empresa repletas de dados pessoais, projetos em
que estão envolvidos, contratos e detalhes que não são significantes para
mim.
​Merda.
​Não sei onde estava com a cabeça para estar aqui, não devia ter vindo,
não devia estar invadindo…
​Mordo a bochecha com força, agora já era, não vou voltar atrás.
Levanto-me até as estantes e armários atrás de mim. Tem que ter algo por
ali. Abro a porta e passo por tudo o que encontro, principalmente no que
parecem ser arquivos pessoais do senhor Archibald. São gavetas, caixas e
pastas que eu vasculho rapidamente, e nada chama a minha atenção.
​Meu olhar passa por todos os documentos, e volto em uma pasta para
reler o nome escrito ali, e ter certeza de que minha visão não está me
enganando.
​Gregory Edwards
​— Mas que porra é essa?
​Abro a pasta, ignorando todas as outras e concentrando a minha atenção
nessa em minhas mãos.
​Prendo a respiração quando vejo uma ficha completa do tio de Thomas,
o fundador do Centro. E nas folhas, encontro informações de toda a sua vida,
com fotos, dados pessoais e até itinerários com horário e local que ele foi em
determinados dias. Detalhes de sua família, inclusive com duas páginas de
adendo sobre Thomas e seu trabalho no Centro nos últimos anos.
Por qual motivo ele investiga o Centro há tanto tempo? Passo o olho
por uma página que contém o modelo de carro que Gregory usava na época.
Não consigo entender o que significa isso, mas logo pego o celular e tiro
foto da maioria das páginas que posso, para analisá-las depois.
Entre tantos relatórios, encontro um envelope lotado de fotos.
​Reconheço o fundador do Centro pelas inúmeras fotos que temos dele no
casarão, com turmas, colaboradores e voluntários que passaram pelo projeto
ao longo dos anos. Entretanto, as fotos dessa pasta são diferentes das
posadas que eu vejo por lá… Essas foram tiradas sem que qualquer um
soubesse.
​São fotos no mercado, na rua, em lojas de roupas, entrando e saindo do
Centro. Em algumas, ele está sozinho, em outras está acompanhado. Vejo-o
com o Thomas ainda criança, com familiares, alguns vizinhos e sua
companheira.
​Mas uma foto chama minha atenção, essa tem um Thomas adulto,
entrando no Centro com uma sacola grande na mão. A data é do início do
ano passado, o que significa que Archibald tinha detetives observando o
Centro até pouco tempo atrás.
​Esses documentos não são exatamente a resposta que eu procurava, mas
é o suficiente para me dar um caminho, então tiro mais algumas fotos e,
enquanto guardo todos os documentos de volta para a pasta, só consigo
pensar no fato de que Archibald MacMillan tem algum problema direto com
Gregory Edwards.
​Olho para a mesa novamente e a segunda gaveta parece me encarar. É ali
que preciso mexer.
​Vou até ela e, quando me sento na grande cadeira de couro, a fechadura
eletrônica tranca, me deixando em alerta imediatamente. Fico em silêncio e
escuto passos do lado de fora do corredor, tem alguém se aproximando.
​— Merda, merda, merda… — Olho ao redor assustada, sem saber o que
fazer. Não posso levar todos os documentos embora, ele vai notar.
​Devolvo a pasta de volta para seu lugar de origem, fecho a porta do
armário e abro minha mochila. Respiro fundo e começo a pegar tudo de
valor que vejo, ele não pode desconfiar do motivo de eu estar aqui, apesar de
ser óbvio, principalmente se ele está espionando o Centro. Esse homem já se
encontrou tantas vezes comigo e em nenhuma vez deu qualquer sinal de que
se importava com o que eu fazia da minha vida, nem mesmo quando saiu
aquela reportagem no jornal.
​No instante em que a porta é aberta, estou com o relógio da primeira
gaveta na mão. O senhor MacMillan está acompanhado de dois policiais
com armas apontadas para mim.
​ eu coração praticamente sai pela boca e eu solto a mochila e o relógio
M
de repente, levantando as mãos para o alto, para mostrar que não tenho nada
que possa feri-los.
Porra, armas. E eu aqui sozinha.
​— Não se mexa! — Um dos policiais fala e o outro se aproxima de mim,
a arma ainda apontada.
​Acho que nunca fiquei tão assustada em toda a minha vida. Meu corpo
vibra de nervosismo, todos os meus sentidos estão em alerta, mas ainda me
sinto desconectada do meu corpo e é como se assistisse a cena em terceira
pessoa.
​— Você? — Archibald arregala os olhos por um mínimo segundo, e em
seguida parece ser consumido por uma grande satisfação. — Por que não
estou surpreso?
​Não posso demonstrar que estou com medo, então levanto o queixo, para
tentar bloquear qualquer emoção do meu rosto e mantenho os olhos fixos
nos dele. Não adianta falar qualquer coisa agora, preciso me manter quieta e
pensar nos próximos passos.
​O policial que está próximo a mim abaixa minhas mãos, as prende em
minhas costas e coloca uma algema. Ah, merda… Minha mãe vai me matar,
nosso acordo sempre foi que ela seria a pessoa algemada, e eu a que iria tirá-
la da cadeia. Estou fodida.
​— O senhor a conhece? — O policial ao lado de Archibald pergunta,
guardando a arma depois de confirmar que estou sozinha.
​— Conheço todos os meus funcionários, capitão. — Archibald levanta a
cabeça e anda até mim, pega o relógio que caiu no chão na hora que eles
entraram e ri debochado. — Era só questão de tempo para algo assim
acontecer, por isso não costumo contratar estrangeiros.
​Nossa troca de olhares não vacila e sinto um arrepio percorrer meu
corpo. Sem vida, com uma pitada de alegria por me pegar, como se
esperasse por isso. Tudo começa a girar.
​— A senhorita foi pega em flagrante por furto e invasão de propriedade
privada. Vamos te levar à delegacia, você tem o direito de permanecer
calada, tudo o que disser poderá e será usado contra você.
​— Só invasão, capitão. Não podemos culpá-la pela realidade de quem
vem de um país de terceiro mundo, não é mesmo?
​Filho da puta, preconceituoso e xenofóbico.
​ como se tudo acontecesse em câmera lenta enquanto o policial me
É
direciona à porta e Archibald me observa sair da sua empresa. Nem se eu
quisesse conseguiria falar alguma coisa que não me colocasse em um
problema ainda maior.
​— Ah, senhorita Dias — Archibald me chama, o que faz com que o
policial pare e eu olhe o homem uma última vez. Estou fervendo de ódio,
mas mantenho a expressão impassível, a boca se esforçando para não cuspir
na cara dele. — Caso você ainda tenha alguma dúvida, está demitida. Nunca
mais quero vê-la em minha empresa.
​E a próxima coisa que consigo processar é o caminho que faço até o
elevador.
Capítulo 50

“É agridoce pensar sobre os danos que causamos


Porque eu estava me afundando, mas eu estava fazendo isso com você”
Favorite Crime - Olivia Rodrigo

​ Marina?

​A voz de Ava do outro lado da linha me acalma um pouco. Meu maior
medo, no momento, era ela não conseguir me atender, já que, pelo horário,
todos ainda estão na função de desmontar o festival. E eu não estou em
posição de pedir ajuda para qualquer outra pessoa.
​— Ei… Será que você pode me ajudar?
​— Agora? Tá uma correria absurda aqui e…
​— Eu fui presa e preciso de uma advogada.
​O silêncio que paira entre nós é alto, se é que isso é possível. Olho ao
meu redor, sem acreditar onde estou. Minhas mãos não estão mais
algemadas, mas percebo os olhos atentos de um policial em mim. Archibald
não deu queixa de roubo, mas foi adiante com a de invasão. Não consigo
deixar de pensar no pobre Harry que me deixou entrar, tenho que fazer algo
para protegê-lo, mas primeiro preciso resolver a enrascada em que me meti.
​— Onde você está?
​Não sei se é uma coisa boa ou ruim ela simplesmente aceitar minha
resposta. Ela confia no que eu falo e está aqui por mim, e isso é bom, mas
pelo visto é algo que ela já esperava que fosse acontecer em algum
momento, o que é ruim. Tenho me comportado muito bem nos últimos
meses. Tudo para manter meu visto, certo?
​— Na New Scotland Yard, eles me deixaram em uma salinha sozinha
enquanto davam entrada nos meus documentos, até que minha advogada
chegasse.
​— Estou a caminho, se te interrogarem: você é muda.
​— Certo… Não conta pro pessoal, por favor?
​— Tá.
​Ela desliga e eu preciso de alguns segundos antes de colocar o telefone
de volta no gancho. Que grande merda.
​Liguei para Ava porque confio nela e sei que lutará por mim. Quando o
policial vê que terminei, me leva de volta para a sala de antes. Tem uma
mesa, uma cadeira e uma garrafa de água, um tratamento que eu,
sinceramente, não esperava receber, mas não reclamo. Jamais reclamarei.
Por enquanto, aqui o tratamento é muito melhor do que já vi no Brasil.
​País de terceiro mundo.
​Sabe aquele negócio de: “só brasileiro pode falar mal do Brasil”? Estou
com raiva pelo preconceito com minha nacionalidade, mas o que esperar de
alguém como ele?
​Um policial diferente entra no local e senta à minha frente, faz algumas
perguntas, mas eu prefiro me manter em silêncio até que Ava chegue. Depois
de ver que não conseguirá me fazer falar, ele simplesmente desiste e
continua sentado em silêncio.
​Olho para o relógio na parede e observo o ponteiro dos segundos dar
voltas e mais voltas. Começo a contar, acompanhando cada tique alto que ele
faz, mas ainda é como se eu estivesse presa em um novo espaço-tempo, mais
devagar do que o normal.
​Se passam dez minutos. Trinta. Quarenta. Continuo olhando para o
relógio até que se passam duas horas completas.
​Nunca estive tão ansiosa antes e acho que meu corpo entrou em algum
modo de sobrevivência e alerta, porque não tenho nenhuma crise de
ansiedade. No Brasil, só de imaginar ser presa eu já ficava nervosa, e sempre
precisava engolir meus sentimentos, levantar a cabeça e ajudar minha mãe
que já tinha virado amiga dos policiais de nossa cidade. Eles a prendiam só
por protocolo e a soltavam assim que eu aparecia pela porta.
​A diferença é que eles a consideram só uma hippie doida que quer
proteger a natureza. Aqui, sou uma imigrante que invadiu uma empresa
gigante.
​Levo um susto quando a porta se abre e, atrás de um policial, vejo Ava.
O cabelo trançado preso em um coque alto, a expressão impassível, como se
ninguém pudesse argumentar contra ela. Ninguém pode mesmo.
​ Você falou alguma coisa?

​— Não, senhora. — Endireito minha postura e ela confirma.
​— A fiança foi paga, minha cliente irá esperar pelo andamento do
julgamento em liberdade. — Ava comunica o policial e, antes que ele possa
falar algo, aponta com a cabeça para a porta, me olhando. — Vamos.
​— Minhas coisas estão…
​— Vamos!
​Não retruco, por mais irritada e cheia de energia que eu esteja. A forma
com que essa mulher consegue amedrontar pessoas é ainda pior do que
quando somos crianças e ficamos com medo, depois de fazermos alguma
merda e sermos pegos.
​— Nos vemos em breve, senhorita Dias. — O policial se levanta ao
mesmo tempo que eu e me acompanha.
​Não respondo-o e, quando me aproximo de Ava, sinto sua mão tocar meu
braço durante todo o caminho que fazemos até o lado de fora.
​— Eles estão com o meu celular, você conseguiu pegar de volta? —
Sussurro e ela confirma, então levanta um saco com minha mochila e minhas
coisas, todas do lado de fora, já que foram reviradas.
​Meu celular tem senha, mas sei que eles podem acessar facilmente. Só
consigo torcer para que não tenham vasculhado-o e que todas as fotos ainda
estejam lá.
​— Você tem muito o que me explicar. — Sua voz não está mais tão
irritada, mas preocupada.
​— Eu vou, eu prometo! Só preciso fazer uma coisa antes…
​Ava abre a última porta, em direção à recepção e meus pés param de
andar quando vejo os dois homens conversando no fundo da recepção. Ou
discutindo.
​— Você não entendeu ainda que isso tudo é culpa sua? — Charlie
mantém aquele olhar e tom de raiva que usou comigo, mas agora
direcionado ao Anthony.
​— Diferente do que você pensa, eu não a controlo, Cooper! — Anthony
rebate, mas não está exaltado, o que parece irritar o ruivo ainda mais. —
Marina faz suas próprias escolhas e se você diz conhecê-la tão bem assim,
saberia disso. Ela faz o que quer e ninguém pode impedir quando coloca
algo na cabeça.
​— Eu a conheço muito bem, MacMillan.
​ O que você está fazendo aqui? — Interrompo o que quer que esteja

acontecendo entre eles, e é só quando escutam minha voz que os dois notam
nossa presença.
​Charlie arregala os olhos e fica claramente desconfortável. Enquanto
Anthony parece soltar a respiração aliviado em me ver.
​— Eu estava com a Ava quando você ligou, achei que…
​— Eu quis dizer você, Anthony. O que você está fazendo aqui? — Passo
por Charlie, ignorando o ruivo, e toco no braço de Anthony.
Que merda, ele não deveria ter vindo. E se Archibald estiver de olho
em mim? Eu daria um jeito de falar com ele mais tarde, sem deixar explícito
que ele está envolvido nisso.
— Harry me ligou.
— O segurança do prédio? — Pergunto desacreditada.
— O meu segurança de confiança que viu você sendo escoltada por
policiais e que ficou confuso com o que estava acontecendo. — Anthony me
dá uma bronca suave, mas mesmo assim dói meu coração. É claro que ele
ficou magoado por eu ter feito algo sem avisá-lo. — Ele demorou um pouco
para me ligar, mas pelo visto você já tinha resolvido tudo sozinha.
​— Eu ia te ligar, depois…
Sei que ele vê que estou sendo sincera e é por isso que me abraça
forte. Ele está claramente preocupado, sinto seu coração bater forte contra o
meu peito quando seu calor se funde com o meu.
​— Que porra que está acontecendo, Nina? — Anthony sussurra em meu
ouvido, para ninguém mais escutar.
​— Aqui não, tá? — Respondo ainda nos seus braços e Anthony se afasta
para me olhar, então concorda e pega as coisas da minha mão.
​— Vamos sair daqui. — Ava nos interrompe e caminha até a porta.
Charlie a acompanha.
​Este é um grupo estranho de pessoas que nunca imaginei caminharem
lado a lado, e nós quatro saímos juntos do prédio. Mesmo que Charlie
estivesse com a Ava quando liguei, não faz sentido nenhum sua presença
com algo relacionado a mim depois da briga que tivemos no festival, e ele
parece estar… Preocupado?!
​— Meu apartamento é aqui perto, a gente pode ir para lá. — Ava sugere,
procurando algo em sua bolsa.
​— Na verdade, podemos conversar depois? — Sugiro, fazendo com que
ela pare o que está fazendo e me olhe indignada.
​ Se o problema sou eu, posso ir embora. — Charlie se adianta, com

uma insegurança completamente incomum carregada em sua voz. — Ou
então, podemos ir para o apartamento da Ava e conversar. Eu só vim porque
fiquei preocupado com você.
​Estou tão confusa com essa mudança de comportamento, que não
consigo processar qualquer coisa para respondê-lo. Pisco algumas vezes,
fitando seus olhos castanhos, que encaram os meus, e posso jurar que ele
pede desculpas em silêncio.
​— Nina? — Anthony me chama.
​— Eu te ligo amanhã, pode ser? — Viro-me para a Ava, ignorando o que
quer que Charlie esteja tentando fazer.
​— Amanhã? Existe algo mais importante agora do que você me explicar
que porra estava fazendo invadindo a Vann? — Ava abaixa a voz no final da
frase e vejo Charlie abrir a boca para acrescentar algo, mas desiste em
seguida.
​— Existe, na verdade. Eles me liberaram, não é?
​— Eu paguei para você ser liberada. — Anthony fala suavemente. Eu
gosto do fato dele entender quando se posicionar e quando ficar mais na
retaguarda. Ele não vai me forçar a falar algo na frente dos outros, ele não
tentará ter uma conversa particular ali, agora, igual Charlie tem a mania de
fazer.
​E eu preciso devolver esse dinheiro para ele. Não vou deixar meu…
Anthony, carregar o peso de ter me tirado da cadeia. Não, isso é demais para
mim.
​— Prometo te explicar tudo depois, tá bom? — Seguro na mão de
Anthony e aperto-o.
Nós dois precisamos sair dali, eu preciso pegar meu celular.
​Preciso contar tudo para Anthony.
E para o Thomas.
​Anthony entende meus sinais e dá alguns passos para trás, indo em
direção onde estacionou.
​— Eu não acredito nisso. — Ava solta os ombros cansada.
​— Por favor, confie em mim. É a última coisa que eu te peço.
​Ava concorda, mesmo demonstrando que não está nem um pouco
satisfeita com isso.
​— Obrigada por ter vindo, mesmo. — Volto para lhe dar um abraço
apertado e apresso o passo pela rua, para acompanhar Anthony.
​ icamos em silêncio durante o trajeto, até que avisto a moto de Anthony
F
no final da rua. Só noto as lágrimas que caem pelo meu rosto quando o sinto
molhado. Permito-me chorar por um momento e, assim que chegamos perto
o suficiente da moto, seco as lágrimas e levanto a cabeça, tentando fingir que
nada aconteceu.
​— Para onde vamos? — Anthony para na frente de sua moto e pega o
capacete extra no bagageiro. Quando se vira para me entregar, tomba a
cabeça de lado, me estudando. — Você estava chorando?
​— Não… Talvez.
​— Nina, estou tentando não te pressionar e te dar espaço, mas… Que
porra está acontecendo? — Anthony pergunta de uma só vez, em português,
para evitar que outra pessoa nos entenda. — Por que você invadiu a Vann
desse jeito, sem me contar?
​— Eu precisava fazer alguma coisa e não pensei direito… Errei, mas
não me arrependo. — Dou de ombros, sem me importar com o que
aconteceu. Quero sair daqui logo e tentar encaixar as peças desse quebra-
cabeça. Anthony levanta a sobrancelha, surpreso com minha resposta.
​— Não se arrepende? Achei que não agiríamos imprudentemente e que
estávamos contando tudo um para o outro. — Pela primeira vez, desde que
saímos do prédio da polícia, Anthony demonstra uma reação que não é
paciência e compreensão. Na verdade, pela primeira vez em semanas. —
Você tem noção de que foi presa e que vai enfrentar um processo contra o
meu pai? Eu nem sei o que vou fazer para conseguir te livrar dessa.
​— Eu sei disso, Anthony! As algemas estavam nos meus pulsos! — Falo
com obviedade e me sinto mal pelo tom de voz que estamos usando um com
o outro. Depois que nos aproximamos, nunca mais brigamos dessa forma.
Pelo menos não de verdade. — Você não precisa fazer nada para mim!
Posso lidar com minha própria merda, é por isso que não te liguei.
​— Eu preciso sim, ou você acha que vou conseguir ver a mulher que
amo numa situação dessas e simplesmente deixar pra lá? Deixar que ela
lide “com a própria merda”? — Anthony revira os olhos indignado e dá uns
passos para longe de mim. Por favor, mente perturbada, me diz que eu estou
ficando louca e que ele não acabou de se referir a mim como a mulher que
ama. Eu não sei se estou pronta para lidar com isso agora. — Você consegue
ser insuportável quando quer, Marina. Pensa e planeja demais para, de
repente, fazer o que dá na telha sem pensar em mais ninguém. Foi assim que
você parou na porra do jornal e eu tive que livrar seu nome.
​ Não é justo você me atacar assim. — Nego, olhando fundo nos seus

olhos e me deixando ser tomada pela raiva. — Não depois da porra de dia
que eu tive. Não depois de descobrir que o Centro foi interditado e que
aparentemente a culpa é minha, que estava ocupada demais fodendo você,
em vez de procurar maneiras de ajudar.
​— Da onde você tirou isso?
​— Foi o que Charlie falou, na frente de todo mundo, depois que Thomas
nos deu a notícia.
​— Aquele filho da puta fez o quê? — Anthony fecha os olhos e respira
fundo, vejo-o colocar a língua por dentro da bochecha, tentando controlar
suas emoções, sem muito sucesso. — E teve a cara de pau de aparecer aqui
e tentar me deixar com medo só porque parece um poste laranja idiota.
​— É, bom… Talvez ele tenha razão no final das contas. Eu realmente
parei de me arriscar depois que a gente começou a “foder”. Não consigo
agir, porque o tempo inteiro fico pensando que não posso te ferrar por
minha causa e não posso arriscar estragar seus planos… Se você não
tivesse sido esse perfeito idiota que é e se aproximado, eu teria continuado
fazendo tudo, sem me importar com você, mas não… Eu tinha que começar
a me importar com o arrogante metido.
​— Então, você não se arrepende de ter sido presa, mas se arrepende de
ter ficado comigo? Legal.
​Anthony coloca a mão no bolso e olha para cima. Nós dois ficamos em
silêncio, mas ele não vai embora, assim como eu não vou. É como se
precisássemos desse tempo, para nos acalmar e tentar compreender tudo o
que está acontecendo. Algumas pessoas passam por nós na rua e eu os
observo, até que estejam longe o suficiente.
​Respiro fundo e me aproximo dele, que agora está apoiado na moto com
os braços cruzados.
​— Não me arrependo de você. Nem um pouco. — Abaixo a voz,
mostrando que não quero mais brigar. Entendo sua frustração, espero que ele
entenda a minha.
​— Achei que estávamos juntos nessa, eu podia ter te ajudado. Você me
preocupou pra caralho, Nina. Primeiro, você me liga pedindo para te
buscar, claramente abalada, depois some e, em seguida, recebo uma ligação
falando que você foi presa porque invadiu a Vann? — Anthony segura meu
rosto e respira fundo, voltando ao tom de voz normal. Sem brigas.
— Eu só não queria te envolver na maluquice que decidi fazer sem
pensar direito. Não é justo te ferrar por minha causa.
​— Você tem que parar de ficar tentando me proteger assim.
​— Eu entrei na sala do seu pai.
​Assumo e Anthony arregala os olhos, assustado com a informação que
jogo no seu colo sem preparação nenhuma. A essa altura, ele estava mais
preocupado com a minha prisão, do que no motivo que me fez ser presa em
primeiro lugar.
​— Como descobriu a senha?
​— Era o aniversário dele. — Assim que conto, o loiro paralisa por um
momento, processando a informação absurda e tenho certeza que está se
achando tão idiota quanto me achei quando juntei os pontos. — Harry me
ajudou a entrar, eu o enganei, falei que tinha que enviar um documento para
você e ele confiou em mim… Não podemos deixá-lo pagar por minha
mentira.
— Vou cuidar disso. — Anthony me tranquiliza e espera
pacientemente pelo resto da história.
— Eu errei a senha uma vez, não sei se Archibald recebeu um alerta,
porque um segurança apareceu por lá, mas consegui me esconder… Achei
os documentos que procurávamos. E eles não eram nada do que a gente
esperava.
​— O que você quer dizer com isso? O que você descobriu?
​— Precisamos ir até Thomas Edwards.
Capítulo 51

“Eu acho que ele fez isso, mas eu simplesmente não posso provar.”
No Body, No Crime - Taylor Swift

​ primeira coisa que faço quando paramos a moto na casa de Thomas, é


A
pegar meu celular e me certificar de que todos os registros que fiz ainda
estão lá. Para nossa sorte, estão. Eles precisavam de um mandato para
realmente mexer nas minhas coisas mais a fundo, e estou feliz que não
desobedeceram isso e nem tocaram no aparelho.
​Sei que Thomas já está em casa porque vejo a luz do abajur do quarto
acesa, devem ter expulsado ele da desmontagem do evento para descansar.
Ele está trabalhando sem parar há dias. Olho a rua e tenho a sensação de ser
observada, mas não vejo nenhum carro e nenhuma pessoa.
​Talvez, descobrir que o pai de Anthony tem um detetive particular tenha
me deixado um pouco paranóica, mas como não ficar?
​— Tem certeza do que está fazendo? — Anthony pergunta quando nós
dois paramos na porta.
​Fizemos o trajeto em silêncio, exceto por minhas instruções de como
chegar até aqui. Deixamos a discussão de lado, com foco em nos preocupar
somente com a conversa que estamos prestes a ter.
​— Não, mas não temos outra opção.
​Toco a campainha, sem me preocupar com o horário e, pouco tempo
depois, escutamos passos dentro da casa, até Thomas, descabelado e usando
uma calça de flanela e camiseta larga, atender a porta um tanto confuso com
o que está acontecendo.
​— Ei, Nina e… MacMillan? O que estão fazendo aqui?
​ Será que a gente pode conversar? É importante. — Seguro o celular

com força em minhas mãos, como se eu pudesse perdê-lo a qualquer
instante. — Muito importante, Thomas.
​— É… Claro, entrem. — Thomas dá espaço para que a gente passe e
olha para a calçada antes de fechar a porta. Ele não a tranca, mas minha nova
paranoia faz com que eu mesma faça isso, atraindo olhares curiosos dos dois.
Anthony está extremamente desconfortável em estar ali e se mantém
em silêncio, da mesma forma que fez quando estávamos com Ava e Charlie.
Ele não consegue se abrir perto do meu círculo de amigos, e eu consigo
entendê-lo. Foram anos com a Ordem brigando com sua família, e eu
concordo com a postura do grupo, mas, sabendo como Anthony realmente é,
fico triste em saber que eles não puderam se unir em algum momento. Eles
se dariam bem juntos.
​— Eu ia te ligar amanhã, por causa do que aconteceu mais cedo… —
Thomas bagunça o cabelo um pouco sem graça e olha para Anthony, sem
saber se continua falando ou não. Ele deve achar que estamos ali por causa
da briga. — As coisas que o Charlie falou, não foram justas. A gente não
pensa assim, mesmo.
​— Não que fosse fazer qualquer diferença. — Anthony rebate colocando
as mãos nos bolsos.
​— Anthony… — Chamo sua atenção, sei que não vai deixar para lá as
coisas que Charlie me falou, ele está irritado, mas não é o momento de
discutirmos sobre esse assunto. — Não é por isso que estamos aqui, é sobre
o Centro.
​— Não tem mais o que a gente possa fazer, já era.
​Thomas cerra os olhos, caminha até a sala e aponta para o sofá para que
a gente se sente. Eu o faço e vejo minha perna sacudir sem parar.
​Certo, esse é o momento. Não sei nem como começar, então vou pelo
caminho mais direto, sem enrolar e entrar em detalhes.
​— Ainda temos esperança! Hoje, eu invadi o escritório do pai do
Anthony e descobri umas coisas sobre o Centro.
​— Você fez o quê? — Thomas arregala os olhos.
​— Isso não vem ao caso agora! — Abro o celular e vou até a galeria.
Anthony chama minha atenção quando se estica no sofá e coloca a
mão em cima do meu joelho, como uma forma de me fazer parar de sacudir.
Eu odeio a forma que ele me faz sentir raiva e o amar ao mesmo tempo. Ele
é difícil de lidar, mas segue me apoiando e mostrando que está do meu lado,
mesmo que não concorde com o que faço.
— Você sabia que Archibald MacMillan colocou um detetive
particular atrás do seu tio?
​— O que? — Thomas e Anthony falam ao mesmo tempo, os dois se
esticando para tentar ver o que eu tenho ali.
Eu mostro o primeiro documento, que é a ficha pessoal de Gregory
Edwards, e os dois ficam confusos.
​— Tem fotos também, olha… — Passo para o lado até chegar nas fotos
que tirei e vou mostrando para os dois tudo o que descobri.
​— Esse sou eu! — Thomas continua em choque. A foto em questão é de
Thomas e Gregory em um parquinho, brincando. — Eu devia ter, sei lá, seis
anos?
​— E piora… — Passo mais algumas fotos até mostrar uma foto recente
do meu amigo no Centro. — Ele ainda tem te observado.
​— Que porra é essa, MacMillan? — Thomas pergunta diretamente para
Anthony, que franze a sobrancelha.
​— Como assim que porra é essa? Você acha que se eu soubesse alguma
coisa, estaria surpreso desse jeito, Edwards? — Anthony devolve com
rispidez.
​— Então, dá para me explicar o que significa isso? — Thomas insiste,
apontando para a foto no celular.
​— Sem brigas, por favor! — Interrompo o que quer que esteja
começando entre os dois. Não posso deixar que as coisas saiam do controle.
— Eu não sei o que significa, só sei que ele perseguiu seu tio por muitos
anos. Tinha de tudo lá, itinerários, projetos que ele participava, ficha dos
amigos e familiares…
​— E fotos de todos os lugares, porra… Olha isso! Ele realmente
observava cada passo que meu tio dava. — Thomas murmura, abaixa os
óculos e aproxima o rosto do celular para ver melhor.
​— Por quê? — Foi a vez do Anthony perguntar. Ele estende a mão para
Thomas, pedindo silenciosamente pelo celular e Thomas entrega,
desconfiado.
​— É isso que precisamos tentar descobrir. — Coloco a mão na perna do
loiro que não está prestando atenção em mim, agora só consegue olhar para
os documentos fotografados na sua mão. Viro-me para Thomas. — Por
acaso, você sabe de alguma coisa? Se Gregory já trabalhou para a Vann, ou
se sabia que era seguido?
​— Não, eu… Quando ele morreu, eu era muito pequeno. Então, não
sabia de tudo o que acontecia com a minha família e o Centro. Ele nunca
pareceu se preocupar com qualquer coisa, estava sempre sorrindo, brincando
e se divertindo. Se não estava com a gente, estava com a namorada. Ele era
um cara muito simples, só queria ajudar os outros e é isso.
​Vejo Anthony passando os arquivos, acessando as fotos citadas para
olhar com mais atenção.
​— A gente precisa descobrir o que motivou Archibald a investigar a vida
dele, Thomas. Não faz sentido ele se importar tanto à toa. Não sei, mas algo
me diz que isso pode ser a chave de tudo. — Tento pensar em algo e Thomas
concorda comigo. — Será que podemos ir até o Centro para olhar alguns
documentos?
​— Com certeza, vamos agora! Eles interditaram, mas acredito que não
tenham trocado a chave, qualquer coisa a gente entra pelos fundos… Só
acho difícil ter algo lá, porque eu conheço aquele lugar como a palma da
minha mão e nunca vi qualquer coisa que possa ajudar… A não ser…
​Thomas franze a sobrancelha e se vira em direção às escadas, pensando
muito em alguma coisa. Quase consigo ver as engrenagens funcionando em
sua cabeça.
​— O que? — Pergunto ansiosa.
​— Acho que tenho uma caixa dele no sótão, com cartas, alguns
documentos, fotos… A última vez que olhei faz muitos anos, então, sei lá…
Posso estar viajando, mas talvez valha a pena darmos uma olhada, né?
​— Claro, tudo é válido. Precisamos de qualquer coisa que possa nos dar
uma luz do que está acontecendo. Algo que possa nos ajudar.
​Fico animada e me levanto do sofá, sendo acompanhada por Thomas,
que também parece esperançoso por respostas.
​— Você conhece essa mulher? — Anthony fala de repente e nós dois nos
viramos para olhar o loiro, que estava quieto demais nos últimos minutos.
Sua pele parece mais pálida do que o normal, seus olhos claramente
assustados. Ele estende o celular para Thomas, que segura o aparelho e
observa a imagem rapidamente.
​Eu me aproximo para saber de quem eles estão falando e vejo Gregory
do lado de uma mulher loira. Eles não estão muito próximos, mas estão
conversando enquanto caminham na rua com sacolas de papel nos braços.
Gregory mantém o semblante sério, enquanto a mulher parece muito
cansada.
​— A namorada dele. — Thomas responde, Anthony se levanta e pega o
celular de volta.
​— Namorada? — Anthony passa alguns arquivos, até chegar em mais
uma foto da mulher que acompanhava Gregory. Ela está entrando em um
carro e parece olhar diretamente para a câmera. Eu não prestei muita atenção
quando fotografei essa imagem no escritório de Archibald, só estava
preocupada em pegar o máximo de provas possível. — É essa mulher?
​— Sim, ela vivia por aqui, brincava comigo sempre. Eles terminaram
uma época e ela sumiu por um tempo, mas logo voltou… Não lembro de
muitos detalhes.
​— Essa mulher era namorada do seu tio? Você tem certeza? — Vejo o
peito de Anthony subir e descer rapidamente, ele está ficando ansioso.
​— Se minha memória não está me pregando uma peça, sim… Loira, alta,
bonita… Tudo bem que eu achava todo mundo lindo quando era mais novo,
mas se tem uma coisa que eu nunca me esqueci, era do sorriso dela. Grande.
​Anthony começa a negar e abaixa a cabeça, claramente desconcertado,
sem acreditar no que quer que esteja passando pela sua cabeça. Ele encara
novamente o celular, os olhos fixos na foto, sem se mover. Parece que viu
um fantasma.
​— Amor? — Sinto a urgência de chamá-lo carinhosamente crescer no
meu peito, independentemente de quem está conosco. Coloco a mão em seu
braço e Anthony não me afasta, mas aperta o maxilar com muita força. Ele
fecha os olhos e eu sei que está tentando segurar algumas lágrimas que
marejam seu olhar. — Ei, o que foi? Fala comigo.
​Seguro seu rosto com carinho. Estou preocupada e quero entender o que
está acontecendo.
​Anthony se mantém em silêncio por mais alguns segundos e ninguém
fala nada.
​— Essa é minha mãe.
Capítulo 52

“Algumas pessoas são tão pobres, que tudo que elas têm é dinheiro.”
Not Even The King - Alicia Keys

​ ue porra é essa?
Q
​De tudo o que imaginei que pudesse acontecer, a última era descobrir
que minha mãe tinha um amante. E que ele era o dono do Centro
Educacional de LittleWin.
​Nada faz sentido, mas, ao mesmo tempo, algumas peças parecem se
encaixar.
​É por isso que meu pai odeia tanto o Centro. Por isso que está há anos
tentando fechar o local e que não temos acesso aos arquivos desse projeto.
​Por que Thomas tem memórias do sorriso de minha mãe, quando eu só
consigo me lembrar dela chorando pela nossa casa e tendo momentos raros
de sorrisos para mim?
​— Anthony… — A voz da Marina me traz de volta à realidade. Preciso
piscar algumas vezes para que meus olhos voltem a focar e eu consiga olhar
direito para ela. — Você tem certeza?
​— Eu reconheço minha mãe, Dias! — Soo mais ríspido do que esperava,
mas é claro que eu tenho certeza, não existe uma realidade em que eu não
reconheça a mulher que me trouxe ao mundo. — Tem mais fotos?
​— Tem — ela passa para o lado algumas vezes e dá zoom em uma que
dá para ver claramente seu rosto.
​ la estava lindíssima. Com o cabelo loiro escuro comprido, o nariz
E
grande arrebitado e a maçã do rosto muito definida, principalmente quando
sorria. Elegante, com a cabeça sempre levantada e segura de tudo o que está
fazendo, como se ninguém pudesse entrar em seu caminho… Uma postura
diferente da que eu via na mansão dos MacMillan.
​Meu coração está partido, completamente partido. O que ela tinha na
cabeça?
​— Como eles se conheceram? — Pergunto para Thomas.
​— Eu realmente não sei, cara. Eu… Eu não fazia a menor ideia de quem
ela era. — Sua voz parece sincera, assim como seu olhar.
​Devolvo o celular para a Marina, que mantém os olhos em cima de mim,
e passo a mão no cabelo de forma desajeitada. Não sei o que fazer. Meu
coração está disparado e a sala parece girar. É difícil até mesmo puxar o ar
para meus pulmões.
​— Thomas, será que você pode pegar um copo de água? — Escuto a voz
de Nina muito distante, nem parece que ela está ao meu lado.
​Eu, que sempre fui mestre em levantar minha máscara e fingir que não
me importo com nada, não sei o que fazer. Não sei o que falar ou como agir.
​Nina toca minha mão e me entrega o copo. Praticamente me obriga a
beber, e eu a obedeço. Ou meu corpo obedece, porque não existem forças em
mim para fazer qualquer coisa por conta própria agora.
​— Olha para mim — Nina toca meu queixo, e assim que nosso olhar se
encontra, ela respira fundo para que eu a imite.
​É claro que eu faço o mesmo movimento que ela, enquanto vejo-a tentar
acalmar meu coração descontrolado.
​— Faremos tudo ter sentido, tá bom?
​— Ela nunca estava em casa… — Murmuro e ela assente com
compreensão. — E, quando estava, era como… se estivesse presa ali, como
um fantasma.
​— Eu sinto muito... Se você quiser ir embora e continuar outro dia, tudo
bem. É muita coisa para assimilar, e… vou respeitar o que você quiser fazer.
​— Gente… — Thomas aparece na sala novamente, nos interrompendo
com uma caixa grande nos braços. — Vocês ainda querem dar uma olhada
nas coisas dele?
​Não tinha reparado que ele não estava perto da gente, nem que ficamos
alguns minutos respirando em silêncio. O tempo parece andar diferente.
​ arina olha para mim, esperando para saber qual será minha reação à
M
pergunta. Os dois esperam, não vão passar dos meus limites e estão deixando
isso mais do que claro, o que me surpreende, não achei que Thomas pudesse
ter empatia com os meus sentimentos. Não vou deixar essa oportunidade
passar.
​— Já estamos aqui, então não faz sentido parar agora. — Assinto e
Thomas se aproxima, colocando a caixa na mesa de centro à nossa frente.
​Conforto Nina quando seus olhos pedem permissão para se afastar e
observo os dois se ajoelhando em frente à caixa.
​Parece que meu corpo está aqui, mas meu espírito não. Sinto como se
estivesse vendo a cena de fora, os dois se movendo em câmera lenta
enquanto pegam um álbum de fotos e vários envelopes de diferentes cores. É
muito comum casos de traição entre a alta sociedade, mas nunca, em toda a
minha vida, pensei que minha mãe tinha um amante. Que ela era feliz em
algum lugar, longe de mim.
​Não a culpo, só não imaginava.
​— São coisas pessoais… — Nina abre um envelope e começa a passar o
olhar pelos documentos. — Recibos de compras, documentos de vacinação,
passaporte, pedidos de comida…
​— Eu sabia que não tinha nada importante… — Thomas mexe na caixa
e pega um caderninho. — Aqui, ele documentava todos os livros e filmes
que assistia e escrevia resenhas, olha.
​Nina passa o olho rapidamente, mas não demora a pegar mais coisas da
caixa. Vejo um álbum de fotos pequeno e estendo a mão para o objeto. Nina
me entrega sem falar nada.
​Ali, consigo ver com mais detalhes o tal homem. Ele não tem nada de
extraordinário, parece só com um cara qualquer, que a gente vê na rua. Usa
óculos redondos, o cabelo escuro precisando de um corte e roupas simples,
jaqueta jeans e tênis. Passo por outras fotos do Centro, algumas em viagens
de pesca. O que estava nebuloso, agora, fica ainda mais real.
​Gregory e Evelyn lado a lado.
​O braço dele está ao redor do ombro da minha mãe, enquanto ela sorri
largo. Está realmente feliz, dá para ver em seu olhar. E ele também, olhando
para o lado e apontando para frente. Que merda.
​A foto seguinte faz meu estômago embrulhar, os dois estão se beijando
no que parece ser um campo aberto.
​— Anthony… — Nina me chama mais uma vez e a forma doce com que
fala quase me faz perder a cabeça. Sei que ela está tentando ser
compreensiva e me dar espaço, mas eu só quero…
​Eu nem sei o que eu quero.
​— São cartas da sua mãe. — Tem vários envelopes com a letra
característica da minha mãe em sua mão. A mesma letra que faz morada na
margem dos livros com anotações que tenho em minha casa. As cartas não
são tão velhas assim, mas noto que estão amareladas pelo tempo. — Se
estiver tudo bem com você, posso abrir?
​Não. É o que quero responder. Não quero descobrir nem entender nada.
Não quero me magoar ainda mais e tenho medo do que vou encontrar ali.
​— Pode… — Respondo em vez de falar o que realmente quero, porque é
importante. Mereço saber o motivo dela ser uma mulher dentro de casa e
outra nessas fotos.
​Não preciso olhar muito dentro de mim para saber que a culpa é do meu
pai e de sua maneira filha da puta de lidar com a vida… Mas é estranho
encarar a verdade dessa forma tão de repente.
​— Ela só assinou com o primeiro nome. — Nina aponta, me mostrando
o envelope antes de abri-lo.
​— Eu também tenho nojo do meu sobrenome. — Murmuro e mantenho
meus olhos na mulher nervosa à minha frente, consigo ver suas mãos
tremendo suavemente.
​Ela está com medo e tentando se manter firme por minha causa.
​— Você já leu alguma vez? — Ela pergunta para Thomas, que nega.
​— Nunca, achei que fossem… pessoais demais para me meter.
​Agradeço internamente por Thomas ter respeitado as palavras íntimas da
minha falecida mãe, mesmo sem saber quem ela era.
​— Posso…
​— Leia em voz alta, Dias. — Ordeno, não irritado ou de forma bruta. Só
acho que será mais fácil assimilar tudo pela voz dela e não somente em
minha cabeça.
​— Certo, bem… — Nina coça a garganta e ajeita o corpo, então respira
fundo, se preparando para começar. — “Greg, cheguei na Itália não tem nem
1 hora e estou louca para voltar para perto de você”. Tem certeza que quer
que eu leia?
​Nina pergunta com desconforto e eu confirmo, então se prepara para
continuar.
​ “Archibald não me olhou durante todo o trajeto, o que é ótimo, mas,

nas poucas vezes que nosso olhar se encontrou, senti o peso que sou para ele.
O quanto se arrepende de me ter por perto. Não sei se vou ter forças para
deixar meu filho crescer ao lado de alguém tão deturpado como ele. Quero ir
embora, vem me buscar, por favor. Ou prometa que ainda estará nos
esperando quando eu voltar e estiver longe dessa vida que preciso encenar.”
​Ela levanta o olhar para mim, Thomas mantém a cabeça baixa, apenas
escutando em silêncio e sem interromper.
​— Tem outra aqui… — Ela abre outro envelope e recomeça. —
“Comecei a ler os livros que você indicou e talvez você tenha razão,
Fitzgerald não é tão ruim assim e estou me encantando por Benjamin Button.
Espero que esteja satisfeito. Suas anotações tornam tudo melhor, e mal posso
esperar para conversarmos sobre isso pessoalmente. Acredite, tenho muito o
que falar.”
​E ela continua. São cartas e mais cartas de conversas banais e íntimas,
que não fazem diferença nenhuma para o caso do Centro, mas que me
apresentam mais da mulher que eu tanto amo e que, aparentemente, eu não
conhecia muito bem. Marina não recua, Thomas não interrompe, e assim nós
ficamos até que o silêncio entre uma carta e outra dure tempo demais.
​— Algum problema? — Thomas pergunta e eu gostaria de conseguir
olhar o rosto de Nina agora, mas ela está de costas para mim.
​— Acho que… encontrei uma coisa. — Responde baixo e vira a carta do
outro lado, passando o olho rapidamente pelas palavras.
​Marina coloca o papel no chão e pega a próxima carta, repetindo o
processo freneticamente.
​— O que você encontrou? — Movo o corpo para frente, a preocupação
crescente depois do momento de calmaria.
​— Eles sabiam! Essa é de alguns anos depois das últimas que li. — Nina
nega e pega uma das cartas de volta. — “Brigamos novamente, ele não quer
que eu saia de casa, porque sabe para onde estou indo. Tenho certeza de que
colocou alguém atrás de mim. Vou dar um jeito de lhe entregar essa carta,
mas peço para que não a responda, não agora. Eu vou até você quando as
coisas se acalmarem por aqui. Só queria ir embora e não voltar mais, deixar
tudo para trás e esquecer que já tive essa vida. Eu não mereço isso, nem
Anthony… Minha conta está bloqueada, não consigo ir ao mercado sem
pedir autorização… Me diz que vamos dar um jeito? Me diz que não vai nos
deixar?”
​ rocamos olhares, absorvendo as palavras, e Nina passa para a próxima
T
carta, vejo que ela pula algumas linhas, como se não fosse importante para
ler.
​— A cronologia não está certa ou estamos com algumas cartas faltando,
ou eles passaram um tempo se falando de outra forma, escutem isso: “Falei
que sabia sobre o que ele estava fazendo e ele me bateu mais uma vez.
Precisei chorar em silêncio para Anthony não ouvir, a babá não estava aqui
para tirá-lo da casa. Archibald falou que eu não vou destruir o nome da
família dele e que, se for preciso, me manterá prisioneira em minha própria
casa. Disse também que vai atrás de nós dois se nos vermos novamente. Se
ele descobrir essa carta… Eu não faço ideia do que ele é capaz, estou com
medo, Greg. Com muito medo. Nunca o vi dessa forma, e é exatamente por
isso que não posso fazer isso com você, com a sua vida. Você não merece
tudo de ruim que me acompanha, e não é justo que eu te coloque nessa
situação. Então, te imploro, não me procure mais. Não tente entrar em
contato. Esqueça que um dia eu existi, mas saiba que toda vez que eu sentir
o cheiro de ovos mexidos de manhã, vou me lembrar de você.”
​— Caralho… — Thomas murmura e Nina vai para a próxima, seu
sotaque brasileiro aparecendo mais a cada palavra por causa do nervosismo.
​— Essa é de dois meses depois, no início de junho. “Archibald falou que
não se importa comigo, mas sei que vai me matar, tenho certeza disso.
Nunca o vi tão agressivo, tão possesso e com tanto ódio. Gritou e quebrou
coisas, falando que eu não posso tirar Anthony de casa, que não posso
afastar seu único herdeiro dos negócios da família. Que nenhum de nós
estamos livres para partir. Nós não podemos mais ficar aqui e sei que ele vai
atrás de você se eu sumir sozinha, não vou deixar que isso aconteça. Ele quer
ter o controle de tudo. Controle da minha vida, da de Anthony e, agora, da
sua. Nós não temos escolha. As malas estão prontas, vou deixar o Anthony
na minha mãe depois que ele dormir, e amanhã nos encontraremos e o
buscaremos. Vamos recomeçar em algum lugar bem longe daqui, ele nunca
mais poderá nos aterrorizar.”
​Dias alterna o olhar entre nós dois, vejo sua respiração pesada e meu
corpo começa a entrar em combustão, memórias voltando à tona em minha
mente. Thomas pega a carta de sua mão e os dois começam a discutir sobre
algo, não consigo entender sobre o que, já que minha mente só consegue
apontar para uma coisa: eu conheço o pai que tenho, o homem horrível que
ele é. Fui ingênuo em não pensar nisso antes, mas agora tudo faz sentido.
​ la sabia o que estava vindo pela frente e tentou evitar que acontecesse.
E
Ela tentou me tirar dali.
​É claro que a culpa era dele. A culpa sempre é dele.
​— Fique aqui! — Levanto-me e vou em direção à porta, não posso ficar
nem mais um segundo nesta casa.
​— Opa, espera aí! — Nina joga tudo no chão e corre atrás de mim,
segurando meu braço para que fiquemos frente a frente. — Está indo aonde?
​— Acabar com tudo isso.
​— Eu vou junto.
​— Fique. Aqui! — Repito e passo por ela, não quero que se envolva em
confusões pela segunda vez no mesmo dia, ainda mais com ele.
Principalmente com o que acabei de descobrir. Destranco a porta, mas Nina
empurra a madeira para que se feche novamente.
​— Não! — Ela se coloca à minha frente, me impedindo de sair, e dá uma
rápida olhada por cima do meu ombro. Olho para trás e Thomas aparece no
corredor, tentando decidir se nos interrompe ou não. — O que é isso? Vai
simplesmente ir embora e me deixar aqui? As coisas não funcionam assim,
não comigo, Anthony.
​— Você fez o mesmo mais cedo e agora está brigando comigo porque
não quero que se envolva?
​Sigo em português, porque se ela mudou de língua, é para que Thomas
não nos entenda e a gente tenha um pouco de privacidade.
​— Fiz porque estava sozinha na hora, você não está sozinho. Você tem a
mim! Não precisa fazer nada sozinho, não era esse nosso combinado? Que
íamos resolver juntos? — Seus olhos castanhos estão grandes e arregalados,
a sobrancelha levantada, tentando me convencer com todas as suas forças. A
franja está bagunçada na testa, tão comprida que quase alcança seus olhos e
é por isso que ela as afasta.
​— Eu me lembro desse dia, Nina. Ela me acordou logo no início da noite
e me levou para a casa da minha avó, falou que me buscava no dia seguinte.
Eu só tinha uma mochila comigo. Não entendi o que estava acontecendo,
mas lembro que ela falou que tudo ficaria bem, e então dormi. Minha babá
me acordou pela manhã, falando que eu precisava voltar para casa, que
minha mãe tinha sofrido um acidente.
Sinto meus olhos ardendo com as lágrimas que insistem em se
formar em meus olhos. Eu não quero derramá-las, mas elas caem
inconscientemente, em um misto de indignação e puro ódio.
— Você sabia que ele não chorou nenhum dia, desde que ela
morreu? Que no velório estava agindo como se fosse só mais um de seus
eventos sociais? Que cumprimentou as pessoas, sorriu e nem segurou minha
mão? Que minha babá cuidou de mim e me deixou chorar em seu colo? —
Despejo as lembranças voltando à tona e sei que estou ficando descontrolado
com a verdade aparecendo. — Ele nunca aceitaria que ela tivesse um caso,
ele nunca aceitaria que algo nesse nível vazasse na mídia e afetasse sua
reputação.
​— Gente, o que está acontecendo? — Thomas pergunta, mas nós o
ignoramos.
​— Até hoje ele finge que ela não existe, e olha a forma que ele trata
minhas avós, as mulheres que sempre estiveram do lado da minha mãe.
Como ele me trata, deixando claro que sou apenas uma obrigação. Você não
entendeu ainda o que aconteceu, Marina?
​Tento respirar fundo, mas não consigo. Ela pisca algumas vezes e sei que
entendeu exatamente o que eu quero dizer, apesar de não ter coragem de
falar em voz alta e tornar isso real. Nina nega, indignada com o que estou
insinuando.
​— Não, Anthony… Acho que você foi longe demais…
​— Como seu tio morreu, Thomas? — Interrompo-a e me viro para o
moreno, depois de ver Marina abraçando o próprio corpo.
​— Acidente de carro… — Thomas responde baixo, extremamente
confuso e assustado.
​— Minha mãe também.
​Meu coração está disparado no peito, sinto que posso matar alguém com
minhas próprias mãos neste momento.
Não qualquer um, mas sim Archibald MacMillan.
​— Eu vou com você, isso não é negociável. — Marina abre a porta e sai
para a rua, sem se importar se estou seguindo-a ou não.
​Mas eu a sigo, e não faço ideia do que vou fazer, só tenho certeza de
onde estou indo.
Capítulo 53

“Isso se tornou algo muito maior


Em algum lugar em meio à névoa, eu senti que havia sido traído.”
The Great War - Taylor Swift

​ unca vi Anthony assim.


N
​Sinto seu coração disparado enquanto seguro seu corpo na garupa da
moto. Preciso fechar os olhos em diversos momentos, porque, hoje, Anthony
não se importa com a velocidade ou com sinais vermelhos, ele simplesmente
pilota. Atravessa a cidade de uma forma que chega a ser perigosa, até que
paramos na frente de um enorme portão de ferro, que esconde uma mansão
nos fundos.
​O portão se abre devagar, mas ele acelera novamente assim que tem
espaço o suficiente para passarmos. Ele para a moto à frente da escadaria da
construção, praticamente derrapando ao frear bruscamente, e o fato de não
conversar comigo, me assusta.
​— Qual é o plano? — Pergunto baixo, descendo da moto rápido, porque
sinto que ele está me apressando e está focado demais no que fazer, perdido
em sua própria mente.
​— Ele matou minha mãe, Marina. Você entendeu isso, não? — Sua
rispidez me incomoda, mas tento ser compreensiva.
​Se estou nervosa, só consigo imaginar tudo o que ele está sentindo.
​— Não temos certeza! Ele pode ser um filho da puta que merece perder
tudo o que tem por causa de todos os abusos que sua mãe disse que sofria
naquelas cartas, mas assassino?
​Começo a segui-lo pela entrada, porque me deu as costas e foi em
direção às escadas.
​ Eu não estou nem um pouco surpreso e duvido que ele não tenha feito

o mesmo outras vezes.
​— Acho que estamos indo muito além, e você precisa se acalmar um
pouco…
​— Acalmar? — Anthony se vira com os olhos pegando fogo. — Ele
colocou detetives para investigar Gregory e minha mãe, que inclusive
preferiu fugir comigo e com aquele homem, do que continuar casada com
meu pai. E horas antes da fuga, os dois morreram em um acidente de carro.
Não é possível que você não esteja vendo o que está debaixo do seu nariz,
você é mais inteligente do que isso!
​— Não seja um babaca comigo! — Interrompo-o, também irritada. —
Eu concordo com tudo o que você falou, e porra, faz sentido… Mas matar?
​— Você já causou problemas demais por hoje, fique aqui.
​Anthony me ignora e volta a subir a escadaria, mas é claro que eu o sigo.
Nem que eu estivesse louca, o deixaria entrar naquela casa e enfrentar, o que
quer que vá acontecer, sozinho. Foda-se que seu pai vá ligar os pontos em
relação a mim e não faço ideia do que acontecerá entre os dois, mas se
Anthony quer encarar isso de frente, o mínimo que posso fazer é
acompanhá-lo e servir de testemunha.
​— Qual é a sua dificuldade em obedecer ordens? Eu mandei você ficar!
— Retruca por cima do ombro, sem me olhar.
​— Eu já falei que só obedeço quando quero, MacMillan! Que caralho,
não vou te deixar entrar nessa casa sozinho, então não desconte essa merda
toda em mim. Eu estou aqui por você. — Tento segurar um pouco da
irritação e me manter equilibrada por ele, que claramente não está
conseguindo controlar suas emoções, e com razão.
​Anthony para no topo da escada e respira fundo quando me olha, sabe
que não tem como me impedir e não tem forças para lutar contra. Sua mente
está agitada, consigo ver em toda a sua postura e a forma que mantém a mão
fechada, os dedos praticamente brancos de força.
​— Deixe que eu lide com ele, só faça o que eu mandar.
​Assinto e Anthony finalmente entra na casa.
​Estou tão nervosa que sinto minhas mãos tremendo e praticamente corro
para acompanhar o loiro quando adentramos o local. Anthony está com a
postura rígida, os passos firmes, assim como sua expressão, de quem pode
matar alguém a qualquer momento. Eu queria ajudá-lo de forma mais eficaz,
estou me sentindo inútil ao seu lado, mas não vou sair daqui até ter certeza
de que está tudo bem.
​Uma morte encomendada… É surreal imaginar algo assim e, por mais
que eu queira que tudo não passe de uma mentira, não preciso ir tão a fundo
para acreditar nessa teoria. É o que faz sentido.
​Isso é o que mais me assusta.
​Não consigo prestar atenção nas escadas e corredores que passamos
enquanto ando atrás do homem que amo, até que ele para na frente de uma
sala fechada e respira fundo. Consigo escutar o som das teclas de um
computador do outro lado da porta. É aqui.
​— Promete.
​— O que? — Pergunto confusa com o seu sussurro.
​— Que não fará nada estúpido.
​— Não farei nada estúpido. — Confirmo sussurrando.
Anthony coloca a mão na maçaneta e me olha uma última vez.
— Ligue para a polícia.
Antes mesmo que eu consiga olhar para o meu celular, Anthony abre
a porta com raiva, escancarando-a e fazendo com que a madeira bata na
parede com força. O estrondo é tão alto, que faz com que eu me retraia.
Ele atravessa a sala a passos largos e seu pai parece tão surpreso
quanto eu, principalmente quando Anthony lhe dá um soco que o faz cair da
cadeira.
— Anthony! — Minha voz sai sem que eu controle, assustada com a
cena que estou presenciando.
O mundo parece ter deixado de existir quando vejo o homem que
amo bater mais uma vez em seu pai, puxando-o pelo colarinho para que se
levante do chão.
— Que porra é essa, Anthony? — Archibald pergunta assustado.
Vejo um pouco de sangue escorrer pela sua boca. Antes que possa entender o
que está acontecendo, Anthony lhe soca mais uma vez.
O som da sua mão batendo no rosto daquele homem faz com que eu
ligue imediatamente para a polícia, quase deixo o celular cair no chão de
tanto que estou tremendo quando tento falar com a atendente, que aceita a
ligação no segundo chamado.
— Você é um filho da puta! — Anthony empurra o pai para trás,
jogando-o no chão, e o homem finalmente nota minha presença no cômodo
quando consigo falar o endereço para a atendente.
Ele abre um sorriso horrível, os dentes manchados do sangue que
escorre para o seu queixo, enquanto não tira os olhos de mim. Anthony não
parece notar o olhar do pai em um primeiro momento, mas percebe e vira a
cabeça por cima do ombro em minha direção.
— Para você me atacar dentro da minha própria casa, a ladra vira-
lata deve foder muito bem. — Archibald tosse e cospe um pouco de sangue,
trazendo Anthony de volta ao que está fazendo, indignado com o que escuta.
— Você matou minha mãe, seu desgraçado! — Anthony vocifera e
só consigo temer por ele.
Não achei que ele fosse falar o que descobriu tão de repente e, como
Anthony suspeitava, não precisamos de muito para ter certeza de que ele está
certo. A expressão de Archibald muda drasticamente, o que antes era um
sorriso demoníaco, agora é um choque genuíno.
— Como você…
E mais um soco atinge o rosto de Archibald. Não posso deixar que
ele continue batendo no homem assim, por isso, me aproximo de Anthony e
tento afastá-lo, puxando-o para trás.
— Anthony, por favor… — Uma parte de mim fala para que eu não
me meta e deixe Anthony acabar com o pai, que o deixe bater até que o
assassino desmaie e pague por todas as merdas que faz com tantas pessoas,
mas o outro lado grita desesperadamente para que eu o impeça.
Anthony não merece se tornar um assassino como o pai.
— Não! — Anthony solta o braço do meu aperto e se aproxima do
homem jogado no chão. — Por que não me conta como contratou detetives
para investigá-la? Ou como ela estava apaixonada pelo dono do Centro que
você quer tão desesperadamente destruir? Hein? — Anthony o chuta.
Tento puxá-lo para trás novamente, mas Anthony me afasta de novo,
agora com um pouco mais de força, o que faz com que eu tropece em meus
pés. Isso não vai acabar bem. Não importa o que eu fale, ele não vai me
escutar agora.
— Sua mãe era uma vagabunda que não se importava com ninguém
além dela mesma. — Archibald cospe mais um pouco de sangue no chão e
levanta a cabeça para Anthony, que cerra o punho com força. — Deu pro
primeiro otário que apareceu na frente dela com promessas vazias e não foi
mulher o suficiente nem para te levar com ela. Largou você aqui para que eu
criasse, porque sabia o quanto você não valia a pena.
Acho que Anthony baterá nele mais uma vez e me preparo para o
som do soco que viria a seguir, mas em vez disso, ele levanta o queixo e olha
com desprezo para o pai, que sangra no chão. Seu peito sobe e desce
rapidamente, mas ele parece um pouco mais controlado, como se a raiva
física estivesse se tornando algo apenas mental.
— Você não merece morrer. Você merece passar o resto da sua vida
preso, pensando em cada família que destruiu, inclusive a sua.
— Você está louco. — Archibald está tonto demais no momento,
mesmo tentando se manter são.
— A Marina não entrou no seu escritório para te roubar, apesar do
seu ego achar que sim. Ela entrou para descobrir quais eram seus planos com
o Centro, mas o que ela encontrou foi muito maior do que isso. — Anthony
olha o pai de cima a baixo. — Tenho provas do que você fez com Gregory
Edwards, além de cartas da minha mãe relatando todos os abusos e agressões
que sofreu por você.
Archibald está genuinamente assustado, ele se apoia na mesa,
tentando se levantar.
— Você está mentindo.
— Também tenho provas de tudo o que você tem feito na empresa do
meu avô. Na minha empresa.
— Sua empresa? — Archibald franze a sobrancelha e solta o ar pelo
nariz. — Você não sabe do que fala, garoto. Se não fosse por mim, a Vann
teria falido há muitos anos e você não viveria essa vidinha de garoto
mimado.
— Já estou imaginando as manchetes. “Archibald MacMillan, como
o empresário milionário se transformou em um assassino corrupto.” —
Anthony debocha, ignorando o homem. — Você acha que vão enfatizar o
quão patético você é? Como nunca foi bom o suficiente para sua esposa?
Talvez eu seja citado como o herdeiro bastardo, afinal, não temos como
saber se eu realmente sou seu filho, não acha?
— Cale a sua boca. — Archibald está de pé, uma mão apoiada na
mesa.
— Infelizmente, essa será uma longa investigação, mas o lado bom é
que já estou cuidando de tudo isso há meses, não é tão difícil assim provar
na justiça tudo o que você tem feito.
Archibald escuta em silêncio, a realização do que Anthony está
falando o atingindo com força, e em um movimento rápido, o homem abre a
primeira gaveta da sua mesa e aponta uma arma para Anthony.
— Eu mandei você calar a boca!
Meu corpo treme tanto, que não sei como tenho forças para ficar em
pé. Imaginei que eles fossem discutir e brigar… Que provavelmente
haveriam gritos e até uma luta, mas não esperava uma arma apontada para
Anthony. Meu olhar se fixa no objeto mortal e não consigo falar ou me
mover, é como se meus pés tivessem criado raízes no chão, com medo
demais do quão rápido essa briga escalou. Anthony, por outro lado, não
parece nem um pouco surpreso, e está tão confiante que parece ter certeza de
que o pai não fará nada que possa feri-lo. Mesmo com uma arma apontada
para seu peito.
— Ou o que? Vai me matar, como fez com minha mãe? — Anthony
o provoca e dá um passo à frente. — Não sabia que você fazia isso com as
próprias mãos, pensei que fosse um covarde, que mandasse outros fazerem
no seu lugar.
A cada palavra que sai da boca de Anthony, com mais raiva seu pai
fica. O medo se transforma em ódio, e a falta de controle finalmente o
enlouquece.
— Você não sabe de porra nenhuma! Sua mãe queria jogar tudo pelo
ar por um marginal qualquer, como se todo o esforço que fiz para crescer
não fosse nada. Ela era uma vadia ingrata, que só queria dar para qualquer
um que passasse na frente dela. Ela te largava para ficar com os pobres,
porque não se importava com você. Nunca se importou.
— Marina, ligue para a Margareth. Mande-a publicar tudo. —
Anthony tem a voz firme e preciso de alguns segundos para entender que ele
está falando comigo.
— Quem é Margareth? — Minha voz sai trêmula, completamente o
oposto da dele.
— A jornalista, Maggie Smith. — Anthony esclarece e levanta a
sobrancelha, o maxilar tão apertado que posso ver ver o osso mexendo.
Aperto o celular com toda a força que tenho, Maggie é a única
jornalista que confia para publicar qualquer notícia sobre ele e seus
trabalhos. Me surpreendo por ela estar a par do que está acontecendo na
Vann e por não ter soltado nenhuma informação exclusiva ainda…
Claramente subestimei a relação profissional deles, achando que ela era
apenas mais uma jornalista de fofoca. Antes que eu possa desbloquear a tela,
Archibald muda a direção da arma, apontando-a para mim.
— Você não vai ligar para ninguém. — O homem ameaça.
​— Ela deveria colocar que você é corno, esse tipo de notícia tem um
grande potencial viral nas redes sociais hoje em dia. Assassino e corno. —
Anthony o provoca, o que faz com que a arma volte em sua direção. — É…
eu quero ver você preso lendo cada uma das manchetes manchando o seu,
tão precioso, nome. É só o que importa para você, não é? Status.
​— Nada disso vai acontecer, Anthony. Você não vai destruir o que
demorei tanto para construir.
​— Construir em cima de corrupção? Em cima de mortes? Você tirou
minha mãe de mim!
​Não sei o que faço. Não sei o que falo. Sou completamente inútil no
momento. Sinto um medo absurdo pela cena que está se desenrolando,
apavorada por imaginar a arma disparando e algo horrível acontecendo
antes da polícia chegar aqui.
​— Não me teste, Anthony! Eu já fiz uma vez, não tenho problema
nenhum em fazer de novo. — Archibald grita, mexendo a arma com mais
firmeza na direção do filho.
​Anthony estica a mão para mim, pedindo pelo celular sem tirar os olhos
do pai, que alterna o olhar entre nós dois depressa. A cena, de repente, fica
em câmera lenta e os olhos azuis de Anthony, me incentivando a entregar o
aparelho para ele, me dá segurança para que eu me mova. Por isso, devagar,
estendo o braço para ele de volta.
​— A única forma disso não acontecer, é se eu estiver morto.
Ao pegar o celular da minha mão, a mudança de direção da arma,
que Anthony não notou, chama minha atenção e sei o que acontecerá em
seguida.
​Uma força toma conta do meu corpo, substituindo o medo pela mais pura
e idiota coragem. Vejo o movimento do dedo de Archibald apertando o
gatilho e não consigo controlar meus pés, que se jogam na frente de Anthony
em uma extraordinária tentativa de protegê-lo do possível ferimento.
Escuto sua voz, gritando para que eu não me mexa, e nada mais
existe.
​Meu corpo queima e Anthony se lança em direção ao braço do pai,
jogando-o para o alto quando mais um tiro é disparado. Os dois caem no
chão e minha perna vacila quando tento correr ao ver Anthony apoiar o
joelho no braço do homem, forçando-o a soltar a arma. A coronhada que dá
na cabeça do pai é certeira e os olhos de Archibald se fecham, sangue
começa a escorrer da ferida aberta.
​A dor que sinto é tão forte que caio no chão, pressionando a região que
sinto estar molhada. Grito, como uma forma de lidar com a dor. Ao abaixar a
cabeça para entender o que aconteceu, vejo a mancha vermelha em minha
calça, banhando a mão que antes tentava conter a dor, e agora pressiona a
ferida por puro instinto.
​— O que você fez? — Anthony murmura, ainda ajoelhado do lado do
pai, mas com os olhos assustados em mim.
​As pontadas seguem fortes no local em que a bala me atingiu, mas meu
corpo fica tão mole que minha visão escurece. Abro a boca para falar algo,
mas não consigo. O ar foge dos meus pulmões e a dor se intensifica a cada
nova batida do meu coração.
​Quero pedir ajuda, mas as palavras não conseguem encontrar uma
maneira de deixar minha boca. Como se a força que eu tenho se esvaísse do
meu corpo, o aperto em minha perna fica suave e Anthony se aproxima
rapidamente. Ele me deita no chão e tira o suéter, amarrando as mangas com
força em minha coxa e me fazendo gritar de dor.
​— Desculpa, desculpa… — Ele murmura sem me olhar, enquanto aperta
mais o tecido e pressiona a ferida com a mão. Pisco algumas vezes, e o sono
me invade. — Abre o olho, Marina! Fica comigo, não dorme! Não dorme!
​Anthony dá alguns tapinhas em meu rosto, o que me força a abrir os
olhos, tentando ver qualquer coisa ao nosso redor, mas tudo o que consigo
enxergar são seus olhos azuis assustados.
​— Fica acordada por mim, tá? Por mim! — Sua mão afasta os fios do
meu cabelo e ele volta para perto da minha perna.
​— Tá bom…
Murmuro, procurando forças para falar com ele e me esforçando para
manter os olhos abertos, mas tudo escurece de vez.
Capítulo 54

“Eu já tinha desistido de mim


Minha vida é sempre assim
Eu tenho a minha fama de sofredor
Então, não conta pra ninguém”
Essa Eu Fiz Pro Nosso Amor - Jão

​ ão consigo parar de andar de um lado para o outro no corredor do


N
hospital.
​Demorei para perceber o que tinha acontecido, porque não achei que
meu pai fosse realmente atirar. Também não imaginei que a Marina fosse
entrar na frente de uma bala por minha causa. Tudo aconteceu rápido demais
e minha cabeça não parou de girar ainda, não parece que estou ciente do que
está acontecendo ao meu redor.
​Eu só a segurei com força até a polícia chegar com a ambulância, e não
saí do seu lado até chegarmos no pronto-socorro, ignorando completamente
a presença do meu pai desacordado na maca ao lado da dela. A polícia nos
acompanhou até o hospital, mas não falo muito sobre o que aconteceu, já
que a prioridade agora é salvar a vida da mulher que eu amo.
​O cheiro do hospital embrulha meu estômago, assim como as poucas
pessoas sentadas na sala de espera. Consigo vê-las no final do corredor e,
pelo horário, são apenas emergências não tão graves quanto as da Marina, já
que uma equipe grande correu com ela para a sala de cirurgia no instante em
que chegamos.
​ la entrou no centro cirúrgico há horas… O dia já amanheceu e até agora
E
ninguém apareceu para me dar notícias.
​Meu pai está bem, internado para ficar em observação por causa dos
cortes e com policiais de guarda na porta do seu quarto. Recuso-me a vê-lo
em qualquer lugar que não seja em uma cela ou em um julgamento. A
qualquer instante, Maggie soltará as reportagens e meu advogado de
confiança começará a protocolar o processo. Deixei tudo preparado para o
momento certo, que chegou.
​Escuto a voz da Lauren à distância, perguntando sobre mim para as
enfermeiras. Levanto a cabeça para o final do corredor e quando a vejo, uma
onda de alívio invade meu corpo. Não preciso passar por isso sozinho.
​— Eu vim assim que vi sua mensagem, desculpa a demora! — Ela me
abraça com força e eu demoro alguns segundos para entender o ato de
carinho e abraçá-la de volta. — O que aconteceu? Você está bem?
​Lauren se afasta e, com as mãos em meus braços, me examina com
preocupação. Parando o olhar no curativo em minha mão, que ficou
machucada pelos socos que dei.
​— Estou bem. — Afasto minha mão da dela. — A Marina levou um tiro,
está em cirurgia há horas, eu não sei… parece muito sério.
​— Um tiro? Que porra de lugar vocês estavam?
​Eu conto tudo o que aconteceu, tentando resumir os meses de
investigação com o que descobri nas últimas horas, até o momento em que
meu pai atirou na mulher que eu amo. Ou melhor, atirou em mim.
​Eu era o seu alvo, não ela.
​Lauren está em choque, seus olhos escuros arregalados mostram que não
esperava por isso e, para ser sincero, eu também não.
​— Eu não… acredito nisso! — Lauren tenta assimilar as informações e
balança a cabeça preocupada. — Você tem certeza absoluta que ele fez tudo
isso? Eu digo, em relação à sua mãe?
​— Ele assumiu, Lauren… — Sento novamente e apoio os cotovelos no
joelho. — Ele assumiu e não parece ter remorso nenhum. Eu senti tanta raiva
que achei que fosse matá-lo. Tentei não perder o controle, mas a forma que
ele falava… Ele cuspia sangue e tinha aquele sorriso arrogante no rosto,
como se estivesse satisfeito pelo o que fez e por eu ter descoberto.
​— O que você vai fazer agora?
​— Minha equipe já está cuidando dos primeiros passos, ele está
internado lá em cima e… Agora, eu só quero saber se a Marina está bem.
Não tem o que fazer além disso.
​Lauren confirma e aperta os lábios.
​— Você comeu alguma coisa?
​— Não estou com fome.
​— Quer uma água? Um café? — Lauren tenta se fazer útil, mesmo que
eu só precise dela ao meu lado. Seus olhos grandes piscam, tentando me ler.
​— Só fica comigo. Já estou há muito tempo sozinho.
​— Senhor MacMillan? — Uma médica se aproxima, chamando minha
atenção.
​É como se o mundo estivesse andando rápido ao meu redor, enquanto eu
estou parado no meio, apenas tentando entender os últimos acontecimentos
do dia, que parece interminável. Levanto-me quando o mundo volta a girar
na velocidade normal e encontro o olhar empático da mulher na minha
frente.
​— Ela está bem?
​— A cirurgia foi mais difícil do que o esperado, a senhorita Dias perdeu
muito sangue. — Meu coração dispara, sinto que ele sairá pela minha boca a
qualquer instante, de tanto medo que do que vem a seguir. — Ela foi
transferida para a UTI há alguns minutos, está estável no momento, mas só
vamos saber seu quadro completo quando acordar. Deve levar um tempo por
causa da anestesia e da extensão do ferimento.
​— Mas ela vai acordar, não vai?
​— Se continuar estável, sim. No momento, dormir é bom. Quando a
anestesia começar a passar, ela sentirá muita dor. — Ela é franca e levanta a
prancheta que está na sua mão. — Existe algum contato de emergência da
família para ligarmos?
​— Eles são do Brasil, não podem fazer muito de longe, a não ser ficarem
preocupados…
​— Certo, você é o namorado?
​— Sou.
​— Não podemos te deixar como contato de emergência, precisa ser
algum parente…
​— Ela não tem família aqui e eu vou pagar por toda a conta médica,
então deixe o meu contato. Não pretendo sair daqui.
​A médica confirma, pede licença e se afasta. Solto um suspiro cansado e
me sento novamente, um pouco mais aliviado do que antes. Lauren coloca a
mão em minhas costas, fazendo um carinho para me tranquilizar.
​ Você quer um pouco de café agora?

​Olho para ela e confirmo, sem conseguir conter as lágrimas que surgem.
Capítulo 55

“Paraíso: quando eu te abracei novamente


Como poderíamos algum dia ser apenas amigos?
Eu preferiria morrer a deixar você partir
Eu estava perdido na escuridão, mas então eu o encontrei”
Until I Found You - Stephen Sanchez e Em Beihold

Um bipe agudo faz minha cabeça latejar.


Tento abrir os olhos, mas demoro alguns segundos para me
acostumar com a claridade do local. Sinto fios em meus braços e algo
bastante incômodo apertando minha perna. Estou em uma cama, o cobertor
azul em meu colo é a primeira coisa que vejo com clareza. Ao fazer força
para levantar o corpo, tudo dói. É como se eu tivesse sido atropelada por um
carro. Meus músculos estão rígidos, minha cabeça pulsa a cada segundo e
minha boca está seca.
— Ah, é claro que você acordaria quando eu estivesse aqui… —
Alguém murmura ao meu lado e, quando viro, me surpreendo por encontrar
Lauren com a perna cruzada, lábios vermelhos e celular na mão. Ela digita
algo rapidamente, suspira e levanta o olhar para mim. — Quer que eu chame
a enfermeira?
— O que aconteceu?— Pergunto baixo, porque suas palavras altas
batem como sinos dentro de minha cabeça, e finalmente entendo onde
estamos.
— Você não lembra? — Faz uma careta desacreditada quando nego.
— Merda…
— Você pode falar mais baixo e me explicar porque estou aqui, por
favor? — Fecho os olhos e coço a garganta, que parece um deserto.
— Não acho que eu deveria ser a pessoa a falar com você, Dias. —
Lauren fita a porta de forma ansiosa.
— Então, eu devo ficar acordada em um quarto de hospital, com você
e sem saber o que aconteceu comigo? — Olho para o acesso em meu braço e
para o medidor de batimento cardíaco no meu dedo. Tiro-o e levanto a
coberta para descobrir o que é aquilo incomodando minha perna.
Minha coxa está enfaixada, a gaze usada está um pouco suja de
sangue e, quando toco devagar na região, sinto dor em toda a área. Reclamo
e meu coração acelera.
— Qual é a última coisa da qual você se lembra?
Fecho os olhos e as memórias começam a voltar devagar, desde o
festival, até o olhar de Anthony quando descobrimos a verdade, sentados na
sala de estar da casa de Thomas. Anthony ficou tão irritado que eu não soube
o que fazer quando vi o sangue respingar no chão, depois que bateu no pai.
Lembro da sensação do meu corpo retraindo quando o homem apontou uma
arma para o próprio filho.
— Anthony queria falar com o pai, eu não podia deixá-lo sozinho,
então fui junto… — Franzo a sobrancelha, ainda fitando o curativo.
— Só isso? — Lauren insiste, parece que não quer passar do limite.
— Eles brigaram, só que tudo começou a sair do controle muito
rápido e Archibald pegou uma arma. Eu tremia de medo, principalmente
quando ele apontou a arma para o Anthony, foi horrível e eu…
— Entrou na frente para protegê-lo. — Lauren finaliza por mim, os
lábios apertados.
Nosso olhar se encontra por alguns segundos, as duas absorvendo o
que aconteceu. Em um momento vi a arma apontada para o Anthony e,
depois de escutar o disparo, senti uma dor muito forte na perna. Naquele
momento, só consegui agir seguindo meu coração, e eu sei que nunca viveria
tranquila se ele tivesse se machucado.
— Eu entrei na frente para protegê-lo. — Repito e fico preocupada,
desmaiei de dor e não sei o que aconteceu depois do tiro. — Cadê Anthony?
Ele está bem? Está ferido?
— Foi atender uma ligação do advogado e tomar um ar. Teve alguns
cortes na mão, mas nada sério… Ele não saiu do seu lado desde que vocês
chegaram, parece até um cão de guarda, sem deixar que qualquer um se
aproxime… Só concordou em dar uma volta quando prometi que não sairia
do quarto nem por um segundo, enquanto ele estivesse fora.
Respiro fundo, um pouco mais tranquila com as novas informações.
Anthony está aqui e bem. É isso que importa.
— Você não precisava ter protegido ele… — Lauren fala quase que
com vergonha, mirando o teto, evitando me olhar. Fico em silêncio,
esperando que ela continue falando. — Obrigada.
Não sei se é a medicação que está me deixando desnorteada, ou se
realmente Lauren acabou de me agradecer, mas vejo o quanto está
desconfortável pelo o que falou. Apenas concordo e mudo de assunto, para
que não fique ainda mais constrangida.
— Eu tive que fazer uma cirurgia?
— Eu vou chamar a enfermeira, ela vai te explicar melhor. — Lauren
se levanta prontamente e meus olhos marejam, a compreensão do que
aconteceu, finalmente, me atinge.
Quero pedir para que não me deixe sozinha, mas não tenho coragem
para isso, não com a pouca intimidade que temos. Ela está ali pelo Anthony
e não por mim.
Ao abrir a porta, bate o corpo em alguém que segura seu braço.
— Ei, está indo aonde? — Anthony pergunta preocupado e Lauren
fica em silêncio.
Meu coração dispara e ela dá um passo para o lado, dando espaço
para Anthony poder me ver. Nosso olhar se encontra e é impossível segurar
as lágrimas que descem pelo meu rosto. Ele está claramente cansado, com
olheiras nos olhos tristes e preocupados.
— Você acordou! — Anthony anda rapidamente em minha direção.
Suas mãos seguram meu rosto quando sua testa encosta na minha e consigo
sentir o alívio em seu toque. — Você acordou…
Seguro seus pulsos e, ainda chorando, o puxo para um abraço,
ignorando completamente a dor que sinto com o movimento. O medo do
incerto e de tudo o que presenciei parece não importar mais, agora só quero
me certificar de que ele está aqui. Quero sentir seu calor, sua respiração e
seu coração batendo próximo do meu.
Ele está vivo. Eu estou viva.
— Tive tanto medo de te perder… — ele murmura e cola nossos
lábios em um selinho demorado.
— Você me assustou. — Murmuro de volta, e estudo cada detalhe de
seu rosto.
— Não mais do quanto você me assustou! — Anthony solta uma
pequena risada nasalada e suspira aliviado mais uma vez.
— Quando eu vi aquela arma apontada para você, eu tive tanto medo,
me senti tão impotente…
— Você não cumpriu sua promessa, teimosa insuportável...
— Que promessa? — Pergunto baixo e aperto um pouco a mão em
seu braço, para ter certeza de que está à minha frente.
— De que não iria fazer nada estúpido! — Anthony desce o olhar
para a minha perna e eu nego, até que nossos olhares se encontram
novamente.
— Proteger o homem que eu amo não é algo estúpido. Não sei mais
se sou capaz de viver em um mundo em que você não existe!
Anthony sorri de lado, a satisfação estampada no rosto pelas palavras
que eu disse.
— E eu posso viver em um mundo em que você não existe? —
Provoca-me. — Nunca mais faça isso, amor… Não posso te ver machucada
de novo e não poder fazer nada, além de esperar.
— Com licença. — Uma voz feminina surge no quarto e nós dois
olhamos para a médica que entra no ambiente, seguida da Lauren que deve
tê-la chamado. — Que bom que a senhorita acordou. Sou a doutora Evans, a
plantonista de hoje. Está sentindo muita dor?
Sim, estou. Tudo dói. Olho para Anthony e, para não preocupá-lo
mais, mascaro minha dor.
— Só um pouco…
— Certo, já está quase na hora da sua medicação, então o
desconforto diminuirá em breve.
Ela sorri e começa a olhar as telas que estão ligadas a mim, repõe o
marcador dos meus batimentos e anota todas as informações em uma
prancheta. Precisa pedir licença para Anthony para medir minha pressão e
temperatura e, mesmo assim, ele só se afasta o suficiente, mantendo a mão
em meu cabelo enquanto a mulher faz seu trabalho.
— A senhorita se lembra do que aconteceu?
— Apenas dos detalhes mais importantes… Não lembro de muita
coisa depois que fui atingida.
— Você passou por uma cirurgia muito delicada. A bala atingiu a
artéria femoral e você perdeu muito sangue.
— Tivemos sorte que a ambulância chegou no instante em que você
desmaiou! — Anthony completa e dá um beijo em minha cabeça.
— O cirurgião plantonista conseguiu fazer um trabalho excelente, foi
demorado, e você precisou de transfusão de sangue, mas tudo correu bem e
está estável desde então. Ficará internada por mais alguns dias para
acompanhamento e, se não tivermos problemas, poderá terminar sua
recuperação em casa.
— Por quanto tempo eu dormi?
— Desde que saiu da cirurgia… — Ela olha para o relógio, fazendo
as contas. — Pouco mais de um dia, o que é normal devido à extensão do
ferimento. Mais alguma dúvida?
Nego e olho para Anthony, que parece tranquilo com as informações
que escutou, como se já soubesse de cada etapa do que os médicos fizeram
comigo.
— Perfeito, vou pedir para trazerem algo para você comer. Se
precisarem de alguma coisa é só apertar o botão da enfermagem.
— Obrigado. — Anthony responde e Lauren abre a porta para a
mulher, que nos deixa sozinhos no quarto.
— Acho que minha presença aqui não é mais necessária. — Lauren
fala para Anthony e pega a bolsa na cadeira. Se aproxima para dar um beijo
na bochecha do amigo, que lhe puxa para um breve abraço. — Você sabe
onde me encontrar.
— Eu sei, obrigado! — Anthony concorda e se levanta,
acompanhando a amiga até a porta.
— Lauren! — Chamo-a antes que saia e a morena se vira para mim,
curiosa. — Obrigada por ficar comigo.
— Não tem de quê.
Ela aperta um sorriso antes de ir embora e minha cabeça borbulha
assim que me vejo sozinha com Anthony.
— O que aconteceu?
— Agora não, amor… Você precisa descansar para se recuperar. —
Anthony caminha para perto de mim e faz carinho em meu rosto de novo.
— Eu quero saber o que aconteceu com você, com o seu pai…
— Depois.
— Uma pergunta por outra, vamos.
— Não vou jogar agora.
— Entrei na frente de uma bala por você, o mínimo que eu mereço
são respostas.
Anthony cerra os olhos, suspira e se dá por vencido.
— O que você quer saber?
— Tudo, desde que eu desmaiei. Sem poupar detalhes. — Ajeito-me
na cama e Anthony se senta ao meu lado, tomando cuidado para não chegar
perto da minha perna. Parece pensar em como me contar.
— Depois que foi atingida, eu te segurei, e todo o seu corpo tremia.
Tentei estancar o sangue, mas foi muito difícil. Não sabia o que fazer e,
graças a sua ligação quando a briga começou, a polícia e uma ambulância
chegaram assim que você fechou os olhos. Como seu caso era urgente,
viemos direto para o hospital e, enquanto você foi levada para a cirurgia,
meu pai recebeu alguns cuidados, por causa dos ferimentos no rosto.
— Eu fiquei tão preocupada… Você estava com tanto ódio que tive
medo de você matá-lo.
— Eu queria, acredite. O olhar dele para mim quando assumiu o que
fez… Quando ficou mais preocupado com a informação vazar na mídia do
que com o fato de ter matado minha mãe… — Os olhos de Anthony se
enchem de lágrimas e eu toco seu rosto para acalmá-lo. — Mas, mesmo com
toda a raiva que estava sentindo e a vontade de socá-lo até que parasse de
respirar, eu sabia que não podia fazer isso. Não sou como ele, nunca fui e
não vai ser agora que seremos iguais. Quero ele vivo e pagando por tudo o
que fez. Quero que ele veja sua empresa nas minhas mãos e minha mãe
tendo o destaque que ela merece.
Agora que começou a falar, sei que não parará, então fico em silêncio
para que desabafe o quanto quiser. Seus lábios tremem de leve e dói em meu
coração vê-lo vulnerável dessa maneira.
— Eu tive medo de não conseguir parar.
— Mas você parou. — Dou um beijo em sua bochecha e Anthony
concorda.
— Enquanto você estava na cirurgia, Lauren veio ficar comigo,
Margareth preparou a primeira reportagem e meu advogado protocolou a
ação contra meu pai. Ele foi preso, por enquanto, por ter atirado em você,
mas sei que será solto logo, então estamos correndo com a ação e as provas
sobre a morte da minha mãe. Quer dizer, minha equipe e Thomas. Depois
que saímos da casa dele, ele encontrou mais cartas, acredito ser prova o
suficiente para ter um bom caso, mas essas coisas demoram…
— Meus amigos sabem que estou aqui? Você contou para eles?
— Claro, todos sabem e vieram te ver mais cedo, mas você estava
dormindo e o horário de visita é curto… Entreguei sua chave para Emma e
ela vai cuidar da Capitu enquanto fico com você. Ah, a Mila também sabe.
— Você contou para a Mila? — Arregalo os olhos assustada,
pensando no desespero da minha mãe.
— Achei melhor ligar para ela em vez dos seus pais, já que nunca me
falou se eles sabem da minha existência e… Bom, ela saberia, melhor do que
eu, o que fazer. — Anthony está inseguro, com medo de ter feito algo errado.
— Peguei seu celular, espero que não fique brava.
— Não, nunca. — Aperto um pequeno sorriso. — O que ela disse?
— Me xingou tanto que aprendi alguns palavrões novos em
português. — Anthony faz uma careta. — Mas achou melhor não contar para
seus pais até você acordar, para não preocupá-los ainda mais, sem saber se
você estava bem.
— Obrigada por isso… Mesmo. — Suspiro e deito o corpo na cama,
tentando aliviar um pouco da dor que sobe pela minha perna para minhas
costas.
Anthony levanta da cama, mas seguro sua mão, entrelaçando seus
dedos nos meus e impedindo-o de ir para longe.
— Fica aqui.
— Eu não vou a lugar nenhum. — Ele se estica, puxa a poltrona para
mais perto da cama e senta, acariciando as costas da minha mão com o
polegar. — Já te falei isso.
— Acho melhor ligar para a Mila, para dar notícias…
— Claro! — Tira o meu celular do seu bolso e me entrega. — Eu vou
perguntar sobre sua comida e te dar um pouco de privacidade, tá bom?
Concordo, sentindo gratidão por ter Anthony ao meu lado e me
preparo para iniciar a conversa difícil que virá a seguir.
Capítulo 56

“Algumas pessoas precisam de três dúzias de rosas


E este é o único jeito de provar seu amor por elas
Me entregue o mundo em uma bandeja de prata
E de que adiantaria se eu não tiver você, amor?”
If I Ain’t Got You - Alicia Keys

​ s dias passam devagar. As dores diminuem mais a cada nova rodada de


O
medicação. Estar em um hospital é cansativo, com barulhos o tempo inteiro
e enfermeiras entrando no quarto de hora em hora. Depois que converso com
a Mila, ligo para os meus pais que, como eu esperava, surtam e insistem em
vir para Londres ficar comigo. Felizmente, eu os convenço de que não
precisa, já que Anthony parece não poupar dinheiro em meu tratamento.
​Assim que todas as informações começam a assentar em minha cabeça,
pergunto para ele porque eu tinha um quarto tão grande e porque minha
comida se parece com um banquete. Depois de pressioná-lo para me falar a
verdade, Anthony assume que está pagando por tudo. É claro que não existe
maneira de ir contra sua decisão, então aceito as vantagens que seu dinheiro
pode pagar para a minha recuperação.
​Anthony está cumprindo sua promessa de não sair do meu lado, mas
quando Emma, Olive e Ava me visitam, ele aproveita para ir em casa buscar
uma mala de roupas e seu computador, para trabalhar e resolver todas as
burocracias que o confronto gerou. A reportagem de Margareth viralizou,
não só no Reino Unido, como no resto do mundo, principalmente onde a
rede Vann tem hotéis. Anthony foi tão inteligente na forma que arquitetou
tudo que, mesmo expondo antes do esperado, o povo aparentemente está do
seu lado, assim como a justiça. As provas foram muito bem organizadas e
são claras demais para que Archibald consiga recorrer de tudo no momento,
então o homem foi imediatamente destituído da Vann Empreendimentos e
segue preso em cela especial até o primeiro julgamento.
​Nenhum dinheiro do mundo o fez responder em liberdade com toda a
denúncia de corrupção da Vann, uma tentativa de homicídio e dois
assassinatos o perseguindo.
​Minha mãe surtou quando falou comigo, principalmente quando
reportagens sobre o acontecido estamparam os jornais, no Brasil, com a
chamada: “Brasileira, assistente pessoal do herdeiro da Vann
Empreendimentos é baleada em confronto com CEO no Reino Unido”.
Pessoas que eu não conversava há anos me mandaram mensagens e os
boatos de que eu e Anthony estamos juntos cresceram, principalmente
quando o viram chegando no hospital com uma mala.
​É um amontoado de coisas acontecendo ao mesmo tempo, o que torna
difícil respirar. Porém, dentro desse quarto, mesmo com todo o cansaço da
recuperação, consigo ficar em paz. Os repórteres não podem entrar no
hospital, Anthony contratou seguranças para o acompanhar por um tempo,
enquanto tem certeza que seu pai não fará nenhuma merda, e eu só espero ir
embora logo, mesmo com medo do que vamos enfrentar ao sairmos daqui.
​— Chegamos para comemorar! — Emma abre a porta do meu quarto,
fazendo com que eu leve um susto e pare de ler um lançamento de fantasia
que Anthony comprou para me distrair. O livro tem mais de mil páginas e
tanta informação, que frita meu cérebro. — Cadê o MacMillan?
​— Teve que correr no escritório para assinar uns documentos, assumir a
empresa e tirar aqueles velhos nojentos provisoriamente do conselho. —
Estico-me para abraçar Olive, que veio junto com a Emma. — Comemorar o
que?
​— Primeiramente, você está bem? — Olive pergunta preocupada. —
Está sem dor?
​— Estou do mesmo jeito que estava quando você me perguntou por
mensagem 3 horas atrás, senhorita Brown! — Brinco e fecho o livro,
tomando cuidado para não apoiá-lo no colo porque, da última vez que fiz
isso, o bati no local da cirurgia e doeu muito. — Melhorando e louca para ir
embora.
​— Certo, ótimo. — Emma senta na ponta da cama e coloca a mão nos
meus pés por cima da coberta, ansiosa para falar. — MacMillan não te
contou?
​ Dá para vocês pararem com esse mistério e falar logo?

​— Se ele não falou nada, a gente não deveria falar, Emma. — Olive
repreende a amiga e eu jogo a cabeça para trás.
​— Vocês sempre fazem isso, sabia? Ficam conversando na minha frente
e agindo como se eu não estivesse aqui. Agora, não importa se ele me falou
ou não, vocês terão que contar. O que aconteceu?
​— Tá, eu digo. — Emma se arruma no colchão, como se esse não fosse
seu plano desde o início. — Anthony doou todo o dinheiro que precisávamos
para a reforma do Centro e já tem homens no casarão começando a
trabalhar..
​— Ele fez o quê? — Arregalo os olhos em choque, tentando absorver o
que acabei de escutar e as duas confirmam com a cabeça de forma animada.
​— É, ficamos sabendo pela manhã. Ele deu um cheque para o Thomas
alugar um lugar para ficarmos no próximo mês e, em seguida, alguns
homens chegaram para ver tudo o que precisavam fazer. — Olive tem um
sorriso lindo no rosto.
​— Tinha até alguns em cima do telhado, vão trocar tudinho! — Emma
completa e meu coração parece que explodirá no peito.
​— Eu tinha certeza que ele faria algo assim, só não sabia que seria tão
cedo… — Sorrio para elas.
​— Ele só fez uma pequena exigência para fazer a doação de tudo… —
Espero ansiosamente pelo suspense que Olive faz. — Colocar o nome da
mãe dele e do Gregory no Centro.
​— Então, seremos o Centro Educacional Evelyn e Gregory Edwards.
— Isso é lindo… — Aperto os lábios, com uma felicidade genuína
tomando conta de todo o meu corpo.
— É, todo mundo gostou. Foi uma atitude linda. — Emma concorda
e respira fundo. — Ele realmente não é nada mal.
— Eu sei disso… — Sinto minhas bochechas ficando vermelhas e
elas dão risadinhas ao repararem em meu rosto. — Vocês vão me achar
brega se eu falar que ele é especial?
— Sim.
— Não.
Emma e Olive respondem, respectivamente, e uma repreende a outra
com o olhar, me arrancando uma risada alta.
— Então, serei brega. Nunca conheci um homem com um coração
tão lindo quanto o dele.
— Para entrar na frente de uma bala por ele, tem que ser o homem
mais extraordinário que existe mesmo, se não você se lascou toda à toa. —
Emma provoca, me fazendo revirar os olhos.
As duas começam a conversar sobre a reforma, mas minha mente já
está muito longe. Procuro meu celular, perdido no meio da coberta, e ignoro
a mensagem de Ava que aparece na tela.

Marina Dias (16:52) diz:


Obrigada.

Gostoso MacMillan (16:53) diz:


Pelo o que?

Marina Dias (16:53) diz:


Emma e Olive estão aqui.

Gostoso MacMillan (16:54) diz:


Suas amigas são fofoqueiras.

Marina Dias (16:54) diz:


Eu diria que são bem informadas kkk
Foi lindo o que você fez, obrigada mesmo.

Gostoso MacMillan (16:55) diz:


Eu já faria isso antes mesmo de toda a confusão acontecer, amor.
Agora, só tive uma motivação extra para resolver tudo.

​ eu coração bate forte com a confissão. Enquanto estávamos com medo


M
de perder o Centro, Anthony daria um jeito de qualquer forma. É a cara dele
fazer isso, em silêncio, sem que saibam o quanto ele gosta de ajudar e sem
levar os créditos.

Gostoso MacMillan (16:57) diz:


Logo estou de volta, tá bom?
Tem muita coisa para resolver por aqui.
Você está bem?

Marina Dias (16:58) diz:


Fique o tempo que precisar, estou bem na medida do possível.
Emma e Olive estão tagarelando e me fazendo companhia.
Não se preocupe comigo.

Gostoso MacMillan (16:58) diz:


Impossível.
Te vejo mais tarde.

J​ ogo o celular no colo e sinto muito por Anthony não estar aqui agora.
Se ele estivesse, as três palavrinhas que quero tanto falar desde que vi uma
arma apontada para ele sairiam da minha boca com muita naturalidade.
Capítulo 57

“Não tenho muito dinheiro, mas, cara, se eu tivesse


Eu compraria uma casa bem grande pra gente morar”
Your Song - Elton John

​ Viu, só? Eu consigo!



​Dou o meu melhor caminhando com as muletas pelo quarto, tudo para a
fisioterapeuta ver minha melhora e me liberar logo. Não aguento mais ficar
no hospital, quero ir para casa.
​— Estou vendo que consegue… — A doutora sorri, porque sabe o que
estou tentando fazer.
​— Podemos até andar mais, o que acha? Dar a volta no posto de
enfermagem e voltar. — Tento convencê-la. — Estou pronta.
​— Você quer dar um passo maior do que a perna. — Anthony retruca do
outro lado do quarto. Ele está com o computador no colo e focado em alguns
documentos que seu advogado enviou sobre o caso do pai.
​— Tenho certeza que posso fazer mais do que isso. Estou ótima, pronta
para ir embora. — Alterno o olhar entre os dois e ajeito as muletas debaixo
do meu braço.
​— Ignore-a, doutora! — Anthony levanta a cabeça para nos olhar. — Ela
é persuasiva quando quer, fará o necessário para ir embora antes da hora. Se
você acha que ela deve ficar mais, ela ficará. Ou, então, eu a amarro na cama
do meu apartamento e contrato enfermeiras para cuidarem dessa rebelde.
​— Não! Chega de médicos e enfermeiras, estou ótima! — Defendo-me e
o loiro revira os olhos, me desafiando. — É sério, Anthony! A perna ainda
está dolorida, mas já não é tão difícil com a muleta, é só eu não ficar muito
tempo de pé. Faz dias que eu não tenho febre, estou me alimentando muito
bem e meus exames só melhoram a cada dia. Não tem porque me manterem
aqui.
​— Concordo com você, Nina. — A doutora faz meu coração saltar. Não
acredito que, depois de quase duas semanas, ela finalmente está concordando
comigo.
​— Ótimo, então é só assinar minha alta e eu te vejo daqui alguns dias na
fisioterapia. Eu agendo direto com sua secretária ou na recepção do hospital?
— Giro o corpo em direção à minha cama, animada em ir embora deste
lugar.
​— Você não vai embora hoje. — Ela interrompe minha felicidade. Paro
de andar bruscamente e abro a boca indignada.
​— Você falou que concorda comigo!
​— Sim, sua melhora foi ótima, mas minha liberação não quer dizer que
você está livre do hospital. Posso até autorizar sua alta da fisioterapia aqui e
marcar as sessões particulares, mas você ainda precisa ganhar alta do seu
cirurgião, e ele só estará de plantão amanhã de manhã. Então, terá que
esperar mais um dia, de qualquer forma.
​— O que? Anthony dá um jeitinho, ele sempre consegue resolver tudo,
não é?
​— Não dessa vez. — Em algum momento da conversa, ele voltou a
atenção para o computador e nem desvia os olhos. — Estou do lado dos
médicos nessa decisão, teimosa. Se eles falarem que você precisa ficar mais
tempo, você vai ficar mais tempo.
​Olho cansada para a doutora e ela ri, pegando suas coisas em cima da
cama para ir embora.
​— Não fique assim, Nina. Logo, você irá embora. Deixarei os papéis da
minha alta prontos, tá? Desse jeito, quando seu cirurgião te liberar, você
poderá ir embora.
​— Mesmo? — Pergunto esperançosa e ela confirma.
​— Sim, então podemos fazer o cronograma que conversamos, com
sessões três vezes na semana até a perna fortalecer novamente.
​— É… Acho que isso terá que bastar.
​— Se precisarem de alguma coisa, é só chamar. — Ela anda em direção à
porta e nós dois nos despedimos dela.
​— Você é impossível, já te falei isso? — Anthony desvia a atenção do
computador de novo.
​— Tantas vezes, que já perdi as contas.
Apoio as muletas na parede e dou alguns pulinhos para me deitar na
cama. Ainda não estou confiante o suficiente para tentar pisar no chão sem o
apoio. Apesar de estar louca para ir embora, não quero atropelar as etapas e
machucar o que está sendo curado.
Observo Anthony e mordo os lábios. Nos primeiros dias, não pensei
nele sexualmente, mas agora que estou melhor… Tê-lo ao meu lado o tempo
todo e não fazer nada é difícil. Ele está levando minha recuperação tão a
sério que, quando tento me aproximar e fazer um carinho mais íntimo, ele dá
um jeito de se esquivar. Sei que não é por maldade, mas ele só consegue
aumentar minha vontade.
— Que história é essa de eu ser amarrada no seu apartamento? —
Pergunto travessa.
​— Ah, só algo que estava pensando. — Anthony cerra os olhos e abre
um pequeno sorriso de lado.
​— Em me amarrar? — Provoco de novo e ele fecha a tela do
computador.
​Vem até a cama, apoiando as mãos no colchão e ficando próximo de
mim. Seu hálito se choca com minha pele e eu fecho os olhos, esperando
pelo toque de seus lábios nos meus.
​— Não me leve a mal, amor… — Anthony sussurra e me dá um beijo
suave e demorado. — Seu apartamento não é muito prático.
​— Não é prático? — Afasto-me com falsa ofensa. — E eu posso saber o
porquê? Ele atende a todas as minhas necessidades muito bem.
​— Amor, seu apartamento é minúsculo e não tem elevador. Você não
poderá andar sem apoio por um bom tempo, fará fisioterapia, terá consultas
com os médicos… — Ele afasta o cabelo do meu rosto e desce a mão para
minha nuca. — Se você for para o meu apartamento, terá todo o conforto que
precisa, serviço de quarto o tempo inteiro, camareira. Posso arrumar um
espaço para a fisioterapeuta te atender lá mesmo e não precisarmos sair do
hotel. Se você quiser, busco a Capitu para ficar com a gente, assim não
preciso mais ir ao seu apartamento todo dia para cuidar dela, já que ela não
aceita qualquer outra pessoa por perto. Emma tentou esses dias e falou que
nunca mais pisa no seu apartamento sozinha.
​Tento esconder meu sorriso, ele pensou mesmo em tudo. Vejo pela forma
que aperta os lábios suavemente, inseguro com o pequeno discurso, mas
tentando esconder esse sentimento. Qualquer outra pessoa não repararia, mas
eu vejo com clareza.
​ Com certeza, é mais prático ficar com você, mas você quer isso? Já

está fazendo tanto por mim e lá é seu espaço pessoal, um lugar para ficar em
paz e longe de todos.
​— Eu quero que você fique comigo, Nina. — Anthony não hesita. —
Principalmente agora.
​Ficamos em silêncio, um estudando as expressões do outro. Sinto medo
de tomar alguma decisão precipitada, mas também quero muito ficar com
ele. Não pela facilidade, mas, depois de tudo o que passamos e de todos os
dias nos apoiando neste hospital, não estou pronta para me afastar.
​— Só até eu melhorar? — Preciso deixar claro, para nós dois, que não é
para sempre. Que não estou me mudando.
​— O tempo que você quiser.
​— Então, que tal até eu conseguir subir as escadas do meu apartamento
sem dificuldade?
​— Fechado.
​ nthony está deitado na cama comigo, tomando cuidado com o acesso
A
do soro em meu braço, e estamos maratonando Modern Family. Aconchego-
me em seu peito enquanto ele acaricia meu cabelo, dando alguns beijos em
minha cabeça de vez em quando. Seu cheiro, toque e calor me fazem tão
bem que, quando ficamos assim, consigo me esquecer de onde estamos ou o
que nos aguarda toda vez que abrimos nossa caixa de entrada do e-mail.
​A maioria dos repórteres foram embora, mas ainda tem alguns de plantão
do lado de fora do hospital e do meu apartamento, só esperando para pegar
Anthony desprevenido e tentar lhe arrancar alguma informação. Ele tem
agido com tanta força e é muito sincero comigo, que tenho medo de vê-lo
desmoronar a qualquer momento, por isso lhe ofereço carinho e aconchego.
Comigo ele não precisa se preocupar nunca.
​O celular de Anthony vibra várias vezes em cima da poltrona, e ele se
estica para ver o que é. Tem alguém ligando, então se afasta devagar para
pegar o aparelho. Deve ser a Lauren, ou seu advogado… Ele já ligou três
vezes só hoje. Parece que a polícia conseguiu acessar a câmera de segurança
dentro do escritório na casa de Archibald, uma precaução que ele tinha para
controlar o acesso às merdas que estava fazendo. As filmagens serão de
muita ajuda para o caso de Anthony e sua mãe, já que Archibald assume o
que fez com a esposa e o dono do Centro.
​Se esse homem se safar na justiça, será pelo dinheiro que tem. Por isso, é
importante o posicionamento de Anthony nas redes sociais. Ele tem deixado
seus seguidores a par do que está acontecendo, dentro do possível, e dando
notícias até mesmo de mim. Se a população fizer barulho, o caso não cairá
em esquecimento e nem todo o dinheiro do mundo conseguirá inocentar
aquele homem desprezível.
​— Alô? — Anthony atende e umedece os lábios avermelhados, lindo. —
Já? Perfeito, pode ser. Obrigado.
​— Alguma notícia boa?
​— Ótima, na verdade. — Ele sorri e começa a dar uma pequena
organizada na bagunça do quarto.
​Franzo a sobrancelha, porque ele faz isso de forma ágil, o que é estranho.
Pega os carregadores jogados e guarda junto com os aparelhos eletrônicos
dentro de uma gaveta. Meu chinelo vai para a pequena sapateira no armário
embutido; e a coberta, que antes estava bagunçada e sem uso nos meus pés, é
dobrada perfeitamente.
​— O que você está fazendo?
​— Só arrumando nossas coisas para ficarmos mais confortáveis. —
Responde procurando por mais coisas bagunçadas.
​— Meu sapato jogado no chão não estava me atrapalhando… Nem a
coberta que acabei de tirar por não estar com frio.
​Anthony apoia as mãos na parte da frente da cama e abre um sorriso
travesso, que atiça minhas borboletas no estômago.
​— Eu fiz uma coisa que você falou para eu não fazer. — Fala sem
rodeios.
​— Anthony…
​ E, apesar de ter certeza que você não ficará brava comigo, quero

deixar claro, antes de você descobrir, que eu te amo e fiz isso por você.
​A naturalidade em dizer que me ama me pega tão desprevenida, que
prendo a respiração. Como ele pode dizer algo tão importante sem me
preparar para não ter um infarto antes?
​Anthony dá a volta na cama e deposita um beijo molhado em minha
boca. A mão segura minha nuca, levantando minha cabeça em sua direção,
quando batidas na porta fazem com que ele olhe para trás.
​— O que você está aprontando? — Franzo a sobrancelha assustada e, em
vez de me responder, ele já está perto da porta com a mão na maçaneta.
​A resposta é visual. Quando abre a porta, meus pais estão parados no
corredor.
​— Minha menina! — Dona Fernanda está com o sorriso mais lindo que
eu já vi e meu coração dispara. Sento na cama no mesmo instante e não
consigo conter a animação, ignorando completamente a dor do movimento
repentino.
​— Ah, meu Deus! — Falo alto até demais e ela entra no quarto, vindo em
direção aos meus braços abertos. — O que vocês estão fazendo aqui?
​— Você realmente achou que sua mãe conseguiria ficar longe? —
Escuto meu pai enquanto abraço minha mãe e em seguida sinto os braços
dele envolverem nós duas.
​— Eu achei!
​Estou chorando de felicidade. Escutar a voz deles, sentir o abraço e
receber os beijos era algo que eu precisava e não sabia. Eles sempre foram
meu porto-seguro e eram quem me mantinha em pé. Apesar de morar
sozinha há um tempo, nunca deixei de sentir pertencimento quando estou
perto deles.
​— Vocês são doidos! — Dou risada quando me soltam e vejo que eles
também estão chorando. — Cadê o Miguel?
​— Não conseguimos tirar o passaporte dele em tempo, então ficou com
suas tias.
​— Vai ajudar na loja por uma semana e, quando voltarmos, estará
implorando para ficar sozinho, sem mulheres falando no seu ouvido o dia
inteiro. — Meu pai brinca e passa a mão no meu cabelo, admirando meu
rosto. — Você está bem, meu amor?
​— Estou! O cuidado que estou recebendo é muito bom. — Respondo-o e
fecho os olhos quando ele me dá um beijo demorado na bochecha.
​ Cheguei! — Um grito familiar chama minha atenção para a porta e se

eu achei que nada poderia melhorar, me enganei.
​Mila está carregando balões e uma bolsa enorme, quando pula no lugar e
me faz gritar junto com ela.
​— Você está aqui! — Grito e me mexo mais do que deveria; ela dá
pulinhos no lugar antes de entrar no quarto.
​— Eu estou aqui! — Joga as coisas no chão e, se eu pudesse, teria
corrido para abraçá-la.
​— Shh, vocês estão gritando! — Anthony ri e coloca o dedo na frente
dos lábios, pedindo para nós duas ficarmos mais quietas, enquanto fecha a
porta do quarto.
​— Que “shh” o que, garoto? — Mila o olha de cima a baixo e empurra
seu braço. — Você não falou que cuidaria dela, seu idiota arrogante?
​Ela o chama da mesma forma que fiz durante meses e começo a rir.
Anthony se encolhe quando ela vai para cima dele, tentando esconder o
sorriso.
​— Nunca vi alguém que está sendo “cuidada” levar um tiro! — Mila dá
um tapa em seu braço e minha mãe nega com a cabeça.
​Meu pai cruza os braços e tenta fazer cara de mau para apoiar minha
melhor amiga em sua bronca, mas não consegue esconder a covinha em sua
bochecha, a mesma que herdei e que aparece toda vez que estamos gostando
de algo.
​— Ai! Achei que não estava mais brava comigo! — Anthony se defende
e ela tenta lhe dar mais um tapa, mas ele desvia. — Eu cuidei, você não
conhece a amiga que tem? Não adianta cuidar se ela não obedece e faz o
oposto do que eu falo o tempo inteiro.
​— Ele tem um ponto. — Minha mãe defende o loiro e Mila cerra os olhos
por um momento, então sorri, dando um pequeno abraço nele.
​— Não estou brava, só queria te punir um pouco pessoalmente.
​— Agora que já o puniu, pode me abraçar por favor? — Chamo a
atenção dela, que faz uma dancinha boba antes de me envolver em um
abraço apertado. — Nossa, como eu senti sua falta!
​— Eu também senti, muito! — Ela murmura e sei que está chorando. Eu
também estou.
​— Vocês não precisavam vir, meu Deus… Mãe, pai… — Olho para eles e
seguro suas mãos. — Eu falei que estava tudo bem!
​ Sua mãe estava surtada todos os dias desde que nos contou o que

aconteceu, meu amor. — Thiago fala e recebe um olhar de repreensão da
esposa.
​— É claro, minha filha foi presa e levou um tiro. Eu nunca levei um. Ela
conseguiu passar até mesmo dos meus limites! — Fernanda se defende e
olha para Anthony. — E não podíamos recusar o presente de Anthony.
​— Não foi nada. — Anthony coloca as mãos nos bolsos, com vergonha.
Meu coração se enche de amor.
​Eu nunca serei capaz de retribuir 1% do que esse homem faz por mim.
​— Foi sim, foi tudo! — Fernanda o envolve em um abraço muito
apertado.
​Mila pula na cama e acaba encostando no meu machucado, o que me faz
gemer de dor e lhe olhar feio.
​— Desculpa… — Ela faz uma careta, mas logo levanta a coberta para
deitar comigo, tomando cuidado com o curativo. — Oi.
​— Oi. — Dou risada, não acredito que ela realmente está aqui. Ao meu
lado.
​— Bom, darei um pouco de privacidade para vocês. — Anthony fala e
minha mãe engancha o braço no dele, como se eles se conhecessem há muito
tempo.
​— O que? — Pergunto confusa.
​— Você não precisa sair, Anthony! — Minha mãe insiste. — Fique com a
gente.
​— Eu adoraria, mas preciso resolver algumas coisas na empresa. —
Anthony fala com sua gentileza linda e que já conheço. Ele tem aproveitado
os momentos em que meus amigos ficam comigo para resolver os outros
infinitos problemas, mas não durante muito tempo, já que não quer me
deixar sozinha.
— Estamos acompanhando as notícias, está tudo muito bagunçado
por lá? — Meu pai pergunta interessado e Anthony concorda.
— Mais do que eu imaginava, mas tudo dentro do esperado. Levarei
um tempo para colocar a casa em ordem, principalmente agora que meu
braço direito está de licença. — Anthony dá uma piscadela para mim e eu
sinto minha bochecha ficar vermelha.
— Se você precisa ir, então tudo bem… — Fernanda fala de uma
forma tão triste, é como se realmente fosse sentir muito a falta dele.
Ela mal o conhece e já está acolhendo-o assim, isso só pode
significar algo muito bom.
— Pelo visto, perdi meu cargo de acompanhante oficial. — Anthony
olha para Mila deitada na cama comigo e levanta a sobrancelha.
— Sim, você perdeu. — Ela abraça meu braço e faz um “xô” com a
mão para ele, que ri.
​— Isso quer dizer que eu e sua mãe também seremos expulsos? —
Thiago pergunta para Mila e nós duas concordamos rindo. Parecemos
crianças animadas para uma festa do pijama.
— Então, no início da noite, posso buscar a senhora e o senhor Dias
e levá-los para o hotel, pode ser? — Anthony a ignora e se vira para meus
pais.
— Tem certeza? Podemos pegar um Uber. — Thiago alterna o olhar
entre nós.
— Eu insisto, assim me certifico pessoalmente que o quarto está do
agrado de vocês. — Anthony se aproxima da cama para pegar sua mochila.
— Ah, querido, não precisa se preocupar. Somos simples, o que tiver
disponível está ótimo. — Fernanda insiste e Mila aperta meu braço, só
observando a interação.
— Anthony é mandão, mãe. Não adianta falar, ele sempre acabará
fazendo o melhor que puder. — Acompanho-o com a cabeça e ele sorri, se
aproximando para se despedir de mim.
— Volto amanhã, tá bom? — Sussurra, como se ninguém mais fosse
escutar o que ele está falando.
Concordo e lhe dou um beijo rápido, tão amoroso quanto posso.
Nunca serei grata o suficiente por essa surpresa tão incrível. Sua mão toca
meu braço suavemente e olho fundo nos seus olhos quando afastamos nossos
lábios.
— Eu te amo. Obrigada pela surpresa.
Anthony sorri, e me dá mais um selinho, antes de se despedir da
minha família e nos deixar sozinhos no hospital.
Capítulo 58

“Lá vem o Sol e eu digo:


Está tudo bem”
Here Comes The Sun - The Beatles

​ O que mais eu preciso pegar?



​Mila está andando de um lado para o outro no meu quarto do hospital,
guardando todas as minhas coisas, sem permitir que eu a ajude.
​— Pegou os chocolates escondidos? — Aponto para um armário no
canto e ela arregala os olhos.
​— Você escondeu chocolate?
​— Tecnicamente, não posso comer por conta da cicatrização, mas como
eu sobreviveria sem?
​— O Anthony sabe disso? — Ela abre o armário e puxa duas barras de
chocolate meio amargo de dentro. — Porque esse cara está gastando uma
grana pra você ficar nesse quarto, hein? Nunca vi hospital que mais parece
com um hotel, gente.
​— Ele não faz ideia e nem saberá. — Aponto o dedo para ela em
repreensão.
​— Se ele não sabe, então quem trouxe isso pra você? — Levanta as
barras no ar.
​— A Emma! Em minha defesa, ela trouxe três barras e eu comi uma, foi
realmente só para matar a vontade. Fica você sem chocolate por semanas,
duvido conseguir.
​— Sei… — Ela coloca as mãos na cintura e olha ao redor. — Certo,
acho que foi. Agora, só falta o médico vir te liberar pra gente vazar daqui.
​— Graças a Deusa! Eu não aguento mais.
​ Eu imagino, porque eu já estou destruída com uma noite só. Por que

diabos essas enfermeiras ficam entrando aqui a cada duas horas a madrugada
inteira?
​— Para se certificarem que estou bem e me darem os remédios na hora
certa. — Abro um sorriso cansado e suspiro. — Mal posso esperar para ir
embora, não quero ver um hospital de novo tão cedo.
​— O que você fez com a Capitu nesses dias internada? — Mila senta na
cadeira e começa a colocar seus tênis.
​— Emma e Anthony cuidaram dela, mas hoje ele foi em casa buscá-la,
olha… — Pego o celular e abro na conversa com Anthony, mostro o vídeo
que ele me enviou abrindo a caixa de transporte e ela explorando seu
apartamento.
​— Buscou? Pra quê? — Mila está muito surpresa, ainda não comentei
sobre morar com ele por algumas semanas.
​Passamos horas e mais horas conversando depois que meus pais foram
embora. Contei com detalhes sobre tudo o que aconteceu comigo e escutei
com atenção tudo o que ela tinha para falar sobre sua vida no Brasil. A
sensação foi de que nós nunca nos afastamos, mesmo sabendo que tudo está
diferente.
​— Ah, conversamos e achamos que seria melhor para a minha
recuperação se eu morasse com ele nas próximas semanas. — Assim que
termino de falar, Mila coloca a mão na boca. — Por favor, isso não significa
nada.
​— Vocês vão morar juntos?
​— Só até eu melhorar, você está surda? — Jogo meu travesseiro nela,
que ameaça jogar de volta, mas desiste quando lembra do curativo na minha
perna.
​— A Capitu gosta dele?
​— Bastante.
​— Você está fodida! — Ela ri, ainda desacreditada. — Você nunca mais
voltará pra sua casa, você sabe, não é? Só se vocês terminarem!
​— Não, de jeito nenhum. Acabei de criar coragem para assumir um
relacionamento, quem dirá morar junto. A primeira vez que ficamos em
público, na frente de pessoas conhecidas, foi quando tudo aconteceu, ou
seja… Não pira!
​— Ah, claro… Para você é super difícil assumir um relacionamento, mas
entrar na frente de uma bala para salvar a vida dele é tranquilo!
​ Eu vou mandar você embora.

​— Não vai, não. — Ela senta na ponta da cadeira e fica séria. — Você
realmente está apaixonada por ele? Tipo, com todo o seu coração? Porque eu
escutei você falando “eu te amo” para ele ontem.
​— Estou apaixonadíssima. Acho que nunca gostei tanto de um homem
como gosto dele. Ou melhor, eu tenho certeza. Poxa, você viu ele ontem… É
gentil, carinhoso, cuidadoso, inteligente, tem um senso de justiça lindo e
nossos valores estão muito alinhados… Sem contar na química, que é
incrível.
​— Eu acredito em você, desde que você o “odiava”, não precisa ficar se
provando para mim. Só estou surpresa porque essa é uma nova fase, um
novo sentimento, sabe? Precisará de muita paciência e diálogo, mesmo que
seja só por algumas semanas, para ninguém se frustrar querendo estender o
prazo quando, na verdade, era só pelo tempo combinado.
​— Eu sei… mas decidi escutar tudo o que você sempre me falou e que
eu ignorava. Comecei a agir em vez de apenas pensar sobre. Estou
apaixonada e quero viver esse romance, mesmo que, no final, eu termine
com o coração completamente quebrado e querendo matá-lo. Por ele, sinto
que vale a pena tentar.
​— Fico feliz que finalmente tenha decidido me escutar. É bom quando
isso acontece, sabe… Pra variar um pouquinho.
​— Engraçadinha. — Faço uma careta e ligo a televisão.
​As horas passam, enfermeiras entram e saem do quarto, todas falando
que em breve o médico virá para a minha consulta, mas é como se um
pedacinho de mim derretesse de ansiedade a cada minuto que ele demora
para chegar. Meu blend de óleos já está no fim, de tanto que eu o usei nas
últimas duas semanas, e mal posso esperar para fazer minhas bruxarias de
novo.
​— Senhorita Dias! — O meu cirurgião abre a porta depois de uma leve
batida. — Como estamos hoje?
​— Melhor agora, que estou vendo meu passe para a liberdade na sua
mão, doutor Mitchell! — Abro meu melhor sorriso.
​— Odeia tanto a gente que está doida para ir embora? — Ele brinca e se
aproxima. — Pelo o que estou vendo, as enfermeiras já tiraram seu acesso,
sua fisioterapeuta já te liberou…
​— Eu nunca odiaria vocês, só estou viva por sua causa, doutor! —
Defendo-me colocando a mão no coração. — Mas, sim, estou louca para ir
embora.
​— Sei… — O homem de meia idade cerra os olhos e se aproxima antes
de pedir licença para verificar seu trabalho.
​O meu eterno lembrete da cirurgia é grande, mas a cicatrização foi
melhor do que eu esperava e sei que, daqui alguns meses, terei apenas uma
linha fina na coxa. A dor também melhora a cada dia, apesar de ainda estar
bem dolorido. Não me importo com nada disso, agora, só quero viver e
seguir em frente.
​— Então? — Pergunto ansiosa e ele olha para Mila antes de se virar para
mim novamente.
​— Bom, não vejo mais nenhum motivo para te manter internada por
mais alguns dias, mas quero marcar um retorno no meu consultório para a
semana que vem, pode ser?
​— Com certeza. — Meu coração salta no peito, aliviada por finalmente
ir embora. — Vou quando você quiser.
— Certo, então… — Ele assina um papel e estende a mão para eu
apertar. — Você tem a lista de medicações para continuar tomando. Vejo
você na próxima semana, e se precisar de qualquer coisa, é só me ligar.
— Sim, senhor! Muito obrigada, por tudo!
— Só fiz o meu trabalho.
Ficamos em silêncio enquanto ele sai do quarto, mas quando ficamos
sozinhas, é impossível não gritar de alegria.
— Liberdade!
— Finalmente! Qual será a primeira coisa que faremos? Talvez ir ao
Buckingham Palace para você conhecer?
— Não, senhora! Você está indo embora, mas ainda tem alguns dias
de descanso. Ficaremos quietinhas nos próximos dias.
— Isso não é nem um pouco justo com você, que atravessou o
oceano para me ver.
— Eu supero. — Mila vai até o corredor e uma enfermeira traz uma
cadeira de rodas para mim, protocolo do hospital.
​Enquanto minha amiga arruma nossas coisas para irmos embora, mando
uma mensagem para Anthony e meus pais, avisando que já estou indo para o
hotel. Anthony responde no mesmo instante e não fala para eu esperá-lo nos
buscar, o que é estranho comparado ao seu comportamento atual. Despeço-
me das enfermeiras do plantão da manhã, agradeço por todo o cuidado que
tiveram comigo e atravessamos o hospital em direção à saída.
​ Vou pedir um Uber para a gente…

​— Espera um pouco! — Mila me interrompe quando pego o celular e
tento olhá-la empurrando minha cadeira. Ela está aprontando algo, porque
está mordendo os lábios e tentando, inutilmente, disfarçar.
​— Então, tá…
​Quando passamos pela grande porta do hospital, entendo o motivo de
pedir para eu esperar.
​Do outro lado da calçada, vejo meus amigos. Eles demoram um pouco
para notar minha presença, já que estão naquele caos típico de quando estão
juntos, mas assim que Ava me vê e avisa os outros, todos batem palmas,
comemorando minha alta. Eu sorrio surpresa. Eles não carregam faixas, nem
balões ou esses acessórios que a gente vê em filmes, mas estão todos
sorrindo e felizes em ver bem.
​— O que vocês estão fazendo aqui?
​Grito para me escutarem e vejo meus pais abrindo a porta de um carro na
mesma calçada do hospital. Em seguida, Anthony sai do lado do motorista e
vem em nossa direção. Mila entrega minhas muletas, já que agora, fora do
hospital, não preciso mais da cadeira de rodas, e eu me levanto com menos
cuidado do que eu deveria. A culpa é toda da animação que estou sentindo.
​O pessoal da Ordem atravessa a rua para falar comigo e uma rodada de
abraços apertados e palavras de alegria me cerca.
​— Finalmente! — Theo levanta os braços quando Emma me abraça.
​— Parece que ficou internada por uma eternidade! — Ava retruca e
afasta a amiga para me abraçar, tomando cuidado com as muletas.
​— Eu sei! — Dou risada e sigo abraçando todos ali.
​Olive com sua doçura, Reggie sem jeito, Theo sempre brincalhão com
seu abraço apertado, Thomas com palavras de acolhimento e agradecendo
pelo o que está acontecendo com o Centro agora — como se eu fosse a
responsável pelas reformas, e não Anthony, que se aproxima com os meus
pais. Pelo canto do olho, vejo alguns paparazzis fotografando o loiro, mas
nada comparado com os que estavam atrás dele algumas semanas atrás.
​— Vocês não precisavam ter vindo — Estendo o braço para Benji que
me aperta com carinho.
​— É claro que precisávamos. — Ele responde e olha rapidamente para
Mila, que deu um pouco de espaço para que eu pudesse cumprimentar meus
amigos.
​ nthony se aproxima de nós, dá um beijo em minha bochecha e fala que
A
guardará nossas coisas no carro, então vejo-o se afastar enquanto a conversa
acontece freneticamente à minha frente, como se estivéssemos em uma
grande festa.
​— Ei… — Charlie, que estava com o grupo esse tempo todo, me
cumprimenta quando Benji se afasta.
​Suas mãos estão dentro dos bolsos e ele está constrangido. Não nos
falamos nesse período, nem mesmo por mensagem.
​— Oi… — É estranho. Fiquei realmente irritada com as coisas que ele
falou no festival e por encontrá-lo na delegacia com Ava, querendo
conversar e resolver as coisas entre nós na pior hora.
​A forma que ele agiu, desde que “terminamos”, me incomodou muito,
mas agora não quero manter inimizades, principalmente quando sei o quanto
ele é um cara legal e por termos o Centro em comum.
​— Me desculpa por não ter falado com você antes, achei que você
precisava de um espaço depois de tudo o que aconteceu e por conta das
coisas que eu falei… — Ele morde a boca, nervoso em falar comigo.
​Noto Anthony observando a interação, mas não está nem um pouco
incomodado, anda até meus pais e começa a traduzir o que quer que a Emma
esteja falando com eles, já que os três não estão conseguindo entender a
língua um do outro.
​— Eu realmente queria te pedir desculpa por…
​— Você não precisa fazer isso! — Interrompo-o.
​— Eu preciso, sei que preciso. Falei coisas que não deveria, agi como
um babaca.
​— É, você foi bem babaca mesmo. — Aperto um sorriso e ele concorda.
— Bom, desculpa pelo tapa.
​— Foi merecido. Você acha que a gente pode recomeçar? Dessa vez
como amigos?
​Concordo quando olho fundo nos seus olhos castanhos, deixando claro
que não tenho ressentimento e que não há problema entre nós. O que passou,
passou.
— Eu te vejo no Centro, Cooper.
​Charlie dá um pequeno sorriso de lado e concorda, antes de se afastar e
andar até Theo, que observa a cena curioso. Não é o desfecho perfeito, mas é
o suficiente para mim.
​ Benji! — Puxo meu amigo pelo braço e ele se aproxima quando o

grupo migra para perto dos meus pais. Todos se apresentando com
animação.
​— O que foi?
​— Agora que eu saí do hospital, eu preciso muito da sua ajuda. —
Vamos andando devagar para perto dos outros e Mila dá uma pequena
olhada para nós.
​— Claro, o que você quiser.
​— Certo, eu preciso que você cuide de uma cachorrinha abandonada que
eu encontrei na rua, enquanto passo um tempo com os meus pais. — Falo
com pesar e Benji fica claramente confuso.
​— Como você arranjou um cachorro abandon…
​Interrompo-o quando puxo minha melhor amiga para perto.
​— Ei! — Ela me fuzila com o olhar, quando quase tropeça nos próprios
pés pela maneira brusca que a puxo.
​— Aqui, o nome dela é Mila. Você precisa alimentá-la algumas vezes no
dia para mantê-la de bom humor e talvez dar uma de guia turístico? Um
passeio legal seria levá-la para dar uma volta naqueles pontos turísticos
clássicos da família real.
​A bochecha de Benji fica em um tom de vermelho tão forte que me
surpreende.
​— A gente já se conheceu antes, não é? — Ele pergunta coçando a
garganta sem jeito.
​— Acho que sim, em alguma ligação de vídeo que fiz com a Nina… —
Mila responde se esforçando para ficar tranquila. Ela está conseguindo, mas
sei que por dentro está surtando.
​Seguro a risada com ela fingindo que não sabe exatamente quem ele é,
como se não tivesse alugado minha orelha para falar dele quando o conheceu
por chamada de vídeo, meses atrás.
​— Vocês se viram sozinhos, não é? Incrível, então vejo vocês mais tarde!
— Afasto-me o mais rápido que consigo com as muletas, e meu grupo abre
espaço para mim ao redor dos meus pais. Minha parte já está feita, agora é
com eles.
​— Nina, já que você teve alta… Quais são os planos? — Emma pergunta
quando paro ao seu lado e ela engancha o braço no meu.
​Vejo minha melhor amiga conversando com Benji, meus amigos
reunidos para comemorar minha alta e meus pais do lado do homem que
amo. É como se cada passo da minha vida estivesse me encaminhando para
esse exato momento.
​Eles esperam pela minha resposta e eu sorrio, agradecendo em meu
coração por cada um deles.
​— Pelo o que fiquei sabendo, temos um Centro para reformar.
Epílogo

“Você conhece a porta para minha alma


Você é a luz em minhas horas mais escuras e profundas
Você é minha salvação quando eu caio”
How Deep Is Your Love - Bee Gees

​ rianças brincam no jardim, pais conversam pelo casarão e voluntários


C
se divertem com mais uma conquista alcançada. A festa de reinauguração do
Centro foi melhor do que imaginamos e o presente que todos nós
precisávamos depois das semanas intensas de reforma.
​Apesar de Anthony ter arcado com todos os custos da obra, nenhum de
nós conseguiu ficar parado. Quando não estávamos com as crianças no
espaço provisório alugado, nos revezamos no casarão para ajudar.
​Nas primeiras semanas, todos me proibiram de fazer o que eu gostaria,
então eu ficava sentada no jardim com o computador, resolvendo a parte
burocrática do projeto, junto com Thomas e Anthony. Os dois não se
tornaram melhores amigos, mas o relacionamento deles melhorou muito e
eles se aproximaram consideravelmente. Querer o melhor para o lugar que
abrigou uma das histórias de amor mais lindas que eu já vi tem esse efeito
nas pessoas. Principalmente, quando você é parente delas.
​Anthony encontrou as respostas das cartas de sua mãe na mansão dos
MacMillan, escondida em um livro falso que ela deixou para trás, e tais
palavras só os uniu ainda mais. Agora, entre eles existe uma relação de
respeito e vontade de fazer as coisas certas, por isso não poupam esforços
para consertar tudo o que foi destruído nos últimos anos, não só no Centro,
como em toda LittleWin.
​São muitas coisas para resolver ao mesmo tempo, porque a mudança de
direção da Vann está bem complicada e Anthony têm a grande sorte de ter
começado a montar sua equipe antes da confusão acontecer. Assim, por mais
difícil que tudo seja, a mudança interna está em boas mãos e caminhando
para um novo momento.
​— Ei, Nina! — Manu coloca a mão nas minhas costas, chamando minha
atenção, e me dá um beijo na bochecha. — Tudo bem?
​— Você veio!
​— Não podíamos perder.
​— O Matt veio também? — Pergunto olhando ao nosso redor e ela
confirma.
​— Está em algum lugar com os meninos, provavelmente recebendo um
tour do Johnny.
​— É, eu não esperava que ele fosse ajudar tanto assim, sendo bem
sincera.
​— Nem eu, o que é muito estranho. — Manu franze a sobrancelha por
um instante e dá de ombros. — Enfim, como está a perna?
​— Melhor a cada dia!
​— Se precisar de algo, é só me ligar, você sabe disso, não é?
​— Sim, senhora.
​Ela dá uma piscadinha e começa a se afastar quando Ava a chama de
longe. Aproveito o momento para olhar o relógio e me certificar de que já
está na hora.
​Atravesso todo o jardim devagar, me despeço de algumas pessoas, e
entro no casarão para procurar Anthony. Temos planos para hoje e, mesmo
com ele insistindo para ficar até o final da festa, Thomas praticamente o
obrigou a cumprir o que tinha combinado.
​Encontro-o perto da porta principal e, quando me vê, seu sorriso se
alarga antes de se despedir da senhora com quem conversa Diferente das
conversas dos eventos sociais que vamos pela Vann, esta não parece nem
um pouco tediosa.
​— Já deu a hora? — Ele pergunta olhando para mim e eu confirmo.
​— Estou trabalhando minha pontualidade, senhor MacMillan. — Brinco
e ele olha para o relógio.
​ pesar de feliz, sei que está ansioso. Ele tem estado assim nas últimas
A
duas semanas.
​— Então, acho que temos que ir.
​— Quer desistir? — Dou mais uma chance para ele, mas sei que
Anthony é determinado e não deixará de fazer algo que se propôs. Por mais
doloroso que seja.
​— Você já me viu desistir de algo, senhorita Dias? — O loiro se
aproxima e me dá um selinho suave.
​Caminhamos devagar até o carro, minhas muletas seguem sendo minhas
grandes companheiras e não posso esperar pelo momento em que precisarei
delas para me locomover. Minha coxa ainda dói, como se eu tivesse malhado
muito pesado. Não é insuportável, mas com certeza incomoda.
​Ele abre a porta para mim e, depois de acomodar minhas companheiras
de locomoção no banco de trás, vejo-o dar a volta no carro para começarmos
a curta viagem até a cidade da sua avó.
​É estranho passar menos tempo com ele, porque é claro que eu insisti
para cumprirmos o combinado e, semana passada, quando consegui subir as
escadas do meu apartamento sozinha, voltei para casa. Capitu não ficou feliz
com a mudança, já que adorava o quarto grande e espaçoso de Anthony,
principalmente sua cama. Minha gata é uma cara de pau.
​Anthony também não ficou muito feliz, mas não contestou. Acho que
passar tanto tempo juntos nos acostumou mal, mas me mudar para sua casa
oficialmente não é algo que eu me vejo fazendo agora. Tudo no seu tempo.
​Passamos a viagem toda escutando música e conversando, até nos
aproximarmos do cemitério e ele ficar quieto novamente. Pego o blend
calmante na minha bolsa e passo o óleo no pulso, só para Anthony sentir o
cheiro e eu tentar acalmar o coração dele. Sei que ele não dará o braço a
torcer agora e falará que também quer um pouco. Ele segue sendo um
teimoso.
​O cemitério é bonito, simples, com um grande gramado e muitas árvores
por todo o local. Ele não desenvolveu muito o assunto quando falou que
queria visitar a mãe no dia da reinauguração do Centro, mas sei o quão
importante seria prestar essa homenagem para ela hoje, então apoiei sua
decisão e ofereci minha companhia.
​Depois de estacionar, caminhamos em silêncio até chegarmos no local
em que ela foi enterrada. Sua lápide é simples, o completo oposto do que eu
esperava, já que Archibald prezava tanto por status. Na verdade, me
surpreendeu saber que ela está enterrada na cidadezinha em que a avó de
Anthony, Delfine, mora em vez de em um grande cemitério chique.
— Faz alguns meses que eu não venho aqui. — Anthony quebra o
silêncio olhando ao redor. Ele segura um buquê de narcisos branco em uma
mão, enquanto a outra permanece no bolso.
— É um lugar muito bonito… — Uma brisa suave passa pelo nosso
cabelo, balançando o topo das árvores próximas. — O que você costuma
fazer quando vem?
— Nada, eu só… Deixo o buquê e vou embora. — Gesticula em
direção à lápide vazia e me olha.
— Não fala nada?
— E com quem eu falaria?
— Ué, com sua mãe! — Anthony cerra os olhos, tentando me
entender.
— Ela está morta, Dias. Por que eu falaria com ela? — Seu tom não
é irritado, parece genuinamente curioso com o motivo de falar com alguém
que, ao seu ver, não está mais aqui.
— Pelo mesmo motivo que você traz flores.
Ficamos em silêncio por alguns minutos, como se Anthony estivesse
absorvendo minhas palavras. Eu o acompanho, porque não vou forçá-lo a
falar algo nesse momento.
— Não vou parecer patético por conversar com ela?
— Nem um pouco. — Tranquilizo-o e afago suas costas com
carinho. — Mas você não precisa falar nada se te deixar desconfortável, foi
só uma sugestão…
— Eu quero, só… Não sei por onde começar.
Anthony morde os lábios e me olha, sem graça pela confissão. Ele
fica lindo quando sai da zona de conforto e, apesar de não saber como fazer
isso, tenta mesmo assim. É uma das suas qualidades que eu mais amo.
— Quer que eu comece?
— Você?
— É, ela não me conhece ainda, então talvez seja uma boa
oportunidade para isso. — Viro-me para a lápide e, mais uma vez, afasto o
cabelo do rosto. — Oi, Evelyn, sou a Marina, namorada do Anthony. Quer
dizer, ainda não teve nenhum pedido de namoro, mas entrei na frente de uma
bala por ele e ele não saiu do meu lado durante toda a minha recuperação,
além de sempre dizer que me ama, então acho que somos namorados. Eu
gostaria de ter te conhecido, porque sinto que muito dele veio de você,
principalmente o coração grande. Anthony sempre ajuda os outros sem
pensar duas vezes, e faz o máximo que pode, por mais difícil e demorado
que seja. Por muito tempo, não me senti merecedora do amor e acabei me
fechando de uma forma tão dura que foi difícil deixar o Anthony entrar no
meu coração. Mas ele entrou mesmo assim, e quando me permiti sentir, eu já
estava completamente apaixonada. Nem sei ao certo como aconteceu, mas
estou me esforçando muito para ser uma pessoa merecedora dele. Estar ao
seu lado é como se o sol inteiro brilhasse só para nós, mesmo em um dia
nublado e chuvoso. Eu amo o seu filho, e continuarei amando pelo tempo em
que ele me permitir ficar por perto. Acho que você gostaria de saber que ele
é amado.
Mantenho os olhos na lápide e fico em silêncio alguns breves
segundos, até me lembrar de mais uma coisa.
— Ah, e ele está fazendo um trabalho lindo com o Centro, tenho
certeza que você ficaria orgulhosa. Pronto.
Me viro para olhar o loiro e o encontro sorrindo de lado, os olhos
cheios de lágrimas.
— Ela teria gostado de você. — Anthony passa o braço ao redor do
meu ombro e beija minha cabeça.
— Você acha? — Observo seu rosto e ele concorda.
— Eu tenho certeza.
Como é possível gostar mais de uma pessoa a cada dia que passa?
Sentir o coração sendo tomado de amor de uma forma que pode explodir a
qualquer momento.
— Quer tentar agora? — Sugiro, me afastando do seu abraço.
Anthony coça a garganta, ensaia falar algo algumas vezes, mas
desiste. Nesse momento, eu apenas espero, respeitando sua intimidade.
— Eu te amo. — Se aproxima e coloca o buquê de narcisos apoiado
na lápide, seca uma lágrima e, quando levanta novamente, entrelaça os dedos
nos meus. — Vamos?
Direto e sincero. Exatamente como ele é. Anthony não precisa de
mais do que isso para expor o que sente. Assinto e caminhamos em direção
ao estacionamento de novo. A brisa fica mais forte ao nosso redor à medida
que nos afastamos.
Quando voltamos para o carro, ligo o rádio em um movimento
inconsciente e sorrio assim que reconheço How Deep Is Your Love dos Bee
Gees tocando. O motor liga e Anthony apoia a mão em minha coxa. O resto
do trajeto é feito em um silêncio confortável, aproveitamos a estrada e a
companhia um do outro, sabendo que isso basta. A paisagem vai mudando
aos poucos e fico nervosa quando noto que estamos nos aproximando do
próximo destino. As casas que passamos parecem saídas de um livro de
conto de fadas, e Anthony estaciona em uma com um jardim de dar inveja
para qualquer amante de plantas, como eu.
— Preparada para conhecer a dona Delfine? — Me olha com o
sorriso travesso no rosto.
— Nem um pouco — sorrio nervosa. — Não com a possibilidade
dela não gostar de mim.
— Posso te contar um segredo? — Anthony vira o corpo no banco
em minha direção.
— Me perguntar isso é o mesmo que perguntar se macaco quer
banana! — Imito seu movimento. — Conte.
— Depois que nós nos beijamos a primeira vez e você passou aquela
semana me ignorando, vim ficar um pouco com ela, pra espairecer e tentar
pensar em qualquer coisa que não fosse você, o que obviamente foi um
fiasco, porque você não saiu da minha mente. E eu contei o quanto eu estava
perdido por sua causa.
— Você falou de mim para a sua avó? Depois de um beijo? —
Levanto uma sobrancelha e a bochecha esquenta. — E o que ela disse?
— Para eu tomar cuidado com o espaço que estava te dando para não
passar a impressão errada sobre meus sentimentos. O que acontece, meu
amor, é que desde esse dia, ela está louca para conhecer a mulher que me tira
do sério na mesma proporção que me deixa completamente apaixonado.
— Hoje é um dia de declarações? — Brinco para fugir da vergonha
que invade meu corpo inteiro.
— Você falou para a minha mãe que é minha namorada, então acho
que sim.
— Eu falei só para ser educada, se você quiser namorar comigo de
verdade, terá que pedir, MacMillan. — Levanto o nariz, brincando com a
provocação, e Anthony ri.
— E quem disse que eu não farei um pedido formal? — Anthony
abre a porta do carro e sai antes que eu possa responder.
Observo-o dar a volta e ir em direção à senhora que está nos
esperando no jardim. Ela abre os braços ao vê-lo se aproximar e eles dão um
abraço apertado. Abro a minha porta e Anthony estende a mão para mim, me
chamando para perto deles e falando algo para a senhora de cabelo cinza.
De repente, o nervosismo abandona meu corpo, e a sensação familiar
de pertencimento me invade.

Tudo vai ficar bem.


Agradecimentos

​ m 2021, uma paixão antiga reacendeu em meu coração: escrever. Sabe


E
quando você é criança e tem aqueles sonhos que achava que nunca
aconteceriam e, depois de adulto, se vê diante da possibilidade? Foi o que
senti quando a história da Dias nasceu em meu coração, como uma fanfic do
universo de um bruxo que me acompanha desde os meus seis anos de idade.
Falei para minha melhor amiga que queria escrever, que não parava de
pensar nessa personagem e no que eu poderia fazer com ela, e fui
incentivada. Escrevi o primeiro capítulo, o segundo, o terceiro e a cada novo
capítulo que finalizava, a Cams lia e me apoiava a continuar. Inclusive, foi
por causa dela que eu criei coragem para publicar a história em uma
plataforma de fanfics.
​Pedi para o Cailan me ajudar com uma capa e, com medo e vergonha,
publiquei.
​Em pouco tempo, uma quantidade de leitores maior do que eu esperava
aguardava pelas publicações, que aconteciam duas vezes na semana. E,
assim, batemos dez mil visualizações, vinte mil, trinta mil, cem mil…
​310.000 visualizações.
​Um fandom de imundos (como eu, carinhosamente, os chamo) me
incentivando e esperando semanalmente por algo que eu criei. Fazendo
fanarts, mandando mensagens e criando grupos para surtarmos com os
capítulos juntos. Foram vocês que me fizeram acreditar que eu poderia
publicar um livro autoral algum dia, cada um que me incentivou a escrever.
Minha melhor amiga, meus amigos, minhas imundas, meu marido…
​Não foi só a Dias que nasceu naquela fanfic, mas também uma escritora
que viu do que era capaz.
​ ssim que terminei de escrever o último capítulo, eu sabia que precisava
A
tirar os personagens daquele universo e dar uma vida alternativa para eles. A
Dias merecia outro final, assim como todos os outros, e desde aquela parede
(que deixou vocês desidratados de tanto chorar), eu decidi que daria vida a
eles de novo. Muita gente me apoiou e o livro que você acabou de ler nasceu
dessa vontade de não deixar a Dias presa naquele universo.
​Muita coisa mudou desde a primeira vez que abri um documento novo e
comecei a escrever a história dela, tanto na minha forma de escrita (que para
o bem de vocês, melhorou muito), quanto na minha vida; e esse
amadurecimento foi importante para 365 - Novos Caminhos finalmente
chegar na mão de vocês. Não foi fácil me reconectar com esses personagens,
mas depois de quase 9 meses de escrita, eu sinto que coloquei o meu melhor
nessas páginas.
​Esse agradecimento é para vocês, imundos que tanto me apoiaram na
rede laranja. Para as frederiquentas que já tiveram seus momentos de
brilhar, desculpa pelo desfecho que vocês tiveram aqui, e para as draquetes
que finalmente tiveram seus dias de glórias – e que glória, hein?
​Quero agradecer também a cada pessoa que me ajudou ativamente no
processo de escrita: minha leitora alfa e melhor amiga Cams, que é
responsável por todos os meus livros existirem e que me ajuda a arrumar
cada pequeno detalhe. Nada disso existiria se não fosse por ela. Amanda
Abdias, por sempre me apoiar e revisar tudo o que escrevo, apontando meus
vícios de escrita e me ajudando a melhorar sempre: você não faz ideia da
importância que tem em todo o meu sonho. Sua parceria nessa jornada faz
toda a diferença e sou muito grata pela sua amizade. Mal posso esperar para
ter meu nome em uma dedicatória SUA. Duda por simplesmente acreditar
em mim de uma forma que eu nunca conseguiria acreditar. Por falar “bora,
vamos fazer que vai dar certo” e me mostrar que realmente, tudo vai dar
certo. Obrigada por ler minhas histórias e por ter virado uma boa amiga.
Amanda Casagrande, Gabriela Ferreira e Gabriela Rodrigues por serem
mais do que as betas que surtam e me ajudam a pensar fora da casinha.
Vocês são amigas incríveis, obrigada por todo o apoio. Maristela Oliveira, a
responsável pela receita de sangue falso da Dias e a dona das melhores
fantasias de Halloween desde 2012. Cailan, por criar aquela primeira capa,
no início de tudo. Você não tem noção do quanto aquela arte foi importante
para mim.
​ uigi Bianchi, meu companheiro de vida, que aguenta todos os meus
L
surtos e fala para eu dar tempo ao tempo toda vez que sinto que não vou
conseguir. Se eu escrevo homens cadelinhos, românticos e que fazem tudo
pela mocinha, a culpa é inteiramente sua por ser assim comigo. Eu te amo.
Alice e Lorenzzo, meus filhos, que a essa altura já entenderam que eu
sempre estarei escrevendo uma história nova e que falam para os amigos que
sou escritora.
​Não vou me alongar demais, então fica aqui um agradecimento geral
para todos os meus amigos pessoais que me escutam falar com a maior
naturalidade sobre personagens que inventei na minha cabeça, como se eles
existissem de verdade (na minha cabeça, eles existem); meus leitores, que
leem tudo o que escrevo e me incentivam a continuar escrevendo livros que
eu gostaria de ler; amigos da rede literária por me divulgarem sempre que
têm oportunidade, vocês sabem o quanto esse apoio é importante; para a
minha família que, mesmo a maioria não sendo leitor, compra e se esforça
para apoiar o que eu crio; e para o time de parceiros que topou fazer a
palavra de 365 a alcançar novos leitores: Ana Clara (@anaclarabarreto9),
Andressa (@andressa.triz), Bianca (@biancafreaklivros), Camille
(@blogdacamiis), Cathe (@literaccio), Dayane (@lendocomday), Emily
(@readsbylya), Giovanna (@giforcato), Laís (@livreresumo), Letícia
(@raamp_), Lucas (@luccaspiangentini), Maiara (@maiarareads),
Mariana (@tfeministp), Maria Clara (@_ldeleitora).

​ e esse foi seu primeiro livro do Niverso, espero que tenha gostado o
S
suficiente desse para ler os outros já publicados. Se você já é um imundo: te
vejo no próximo livro!

​ eijos,
B
​Nicole Oliveira
About The Author

Nicole Oliveira

Nicole Oliveira é uma virginiana nascida nos anos 90 que está eternamente
presa nos clássicos de comédia romântica dos anos 2000. O amor pela
literatura começou aos 6 anos quando leu Pippi Meialonga e se estendeu
com a descoberta de Harry Potter. Desde então, ler tornou- se parte de sua
rotina, assim como criar histórias e cenários em sua cabeça. Anos depois, a
vida adulta a afastou do universo literário, mas foi na pandemia que
reencontrou seu aconchego nas páginas.
Mora em São José dos Campos, no interior de São Paulo, já foi
apresentadora de TV, colunista do jornal O Vale e influenciadora digital. Seu
gosto musical está dividido entre o pop punk da sua adolescência, Taylor
Swift e Broadway. Ama tatuagens old school, Tim Burton, Harry Potter e
filmes slasher de procedência duvidosa.
Tem dois gatos antipáticos, dois filhos que sabem que não sai de casa sem o
Kindle na bolsa e um marido que é obrigado a ler tudo o que escreve.
Ah, e é lufana.

@eagoragemeos e @colovariagirl
Books By This Author

Roadie
Para se enquadrar no padrão superprotetor de seu pai, Manuela sempre foi a
filha perfeita e a aluna modelo. Agora, com 23 anos e depois de tanto ver
seus amigos vivendo suas vidas enquanto ela não pode nem ao menos sair de
casa, cansou de sustentar essa imagem tão exaustiva que esperam dela.

A oportunidade perfeita para traçar seu próprio caminho surgiu quando sua
banda favorita, DownUnder, anunciou o retorno aos palcos depois de 10
anos de pausa, com direito a uma pequena turnê no Brasil. Mesmo com
medo, Manu decide que é o momento certo para realizar o sonho de
adolescência e fazer sua primeira loucura, afinal, não deve ser tão difícil
assim perseguir famosos pelo Brasil por algumas semanas. Certo?

No caminho para sua independência, Manu tenta equilibrar sua insegurança


com a grande vontade de se permitir viver. A aventura fica ainda mais
intensa quando uma dessas inseguranças tem nome, sobrenome, sotaque
inglês e um sorriso que tira seu ar.

Um romance que foge do clichê fã x integrante de banda, inspirado em


acontecimentos reais e que fala sobre se encontrar, não ter medo de ser quem
você realmente é, e se abrir a novas experiências.

+18

Todas as Palavras Que Sinto Por Você


Gabi sempre foi uma romântica incurável, com o dom de colocar
sentimentos em palavras. Quando sua mãe perde o emprego, Gabi precisa
dar um jeito de continuar alimentando sua mente com as histórias que ama, e
abre seu próprio negócio em que transforma as histórias das pessoas que a
procuram, em cartas de amor.

Mas quando um envelope da ‘Filha de Romeu’, aparece misteriosamente em


sua porta, com uma carta que ela não escreveu, e uma história que nunca
ouviu, sua vida vira de cabeça para baixo. Gabi começa a viver a própria
história de amor, em que, pela primeira vez, palavras parecem ser
insuficientes para o sentimento que cresce em seu coração.

Com ambientação em São Paulo, o livro mistura nossas comédias


românticas favoritas dos anos 2000 com uma pitada da realidade agitada do
paulistano e muitas histórias de amor que passam pela Filha de Romeu.

+14

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