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Divirta-se!
Niverso
Não foi nada fácil montar a playlist de 365, mas estou muito
orgulhosa da seleção que entrou nesse livro. Cada música foi escolhida
pensando no que os personagens estão sentindo ou vivendo no capítulo em
questão, espero que você goste tanto quanto eu.
Spotify
Para quem pediu por um final alternativo em
que não existisse a parede no caminho.
Aqui está, mas talvez não seja como você imaginou!
Prólogo
ann Empreendimentos
V
Assunto: Você foi selecionada!
Enviar.
Capítulo 5
igito andando e, assim que envio, guardo o celular, coloco a mão livre
D
na alça da minha bolsa e saio da sala com um novo destino em mente. Passo
por MacMillan e seu pequeno grupo quando estou no corredor, eles estão
conversando baixo, perto do quadro de avisos, e ignoram minha presença.
Ou eu acho que ignoram, porque é impossível não virar o rosto para ele
e, quando nosso olhar se encontra, vejo sua cabeça virar levemente de lado,
como se estivesse me estudando.
Por que parece que ele está constipado o tempo inteiro?
Antes que eu possa processar o que está acontecendo, ou imitar seus
movimentos, já estou longe o suficiente e olho para onde estou indo. Faço
um lembrete mental para me manter o mais longe possível dele,
principalmente depois da forma como falou comigo na sala.
Assim que saio do prédio, o frescor do dia encontra meu rosto e o vento
bagunça meu cabelo. Minha saia voa para trás e preciso puxar meu casaco
no corpo para me proteger. Nem está frio de verdade e eu já estou tendo
problemas com a temperatura. O céu está sem nuvens e as poças de chuva da
manhã estão praticamente secas, ótimo.
Preciso descobrir onde fica o bar em que todos estão se reunindo e tento
me encontrar sem o mapa que Benji me deu, porque eu o esqueci no balcão
da cozinha essa manhã e o único restaurante que decorei é o vegetariano. O
campus é grande demais, os prédios parecem todos iguais e as saídas
também. Semana passada, saí pelo lado errado e tive que andar muito até
chegar no metrô, o que foi péssimo e exaustivo, principalmente carregando a
quantidade de livros que tinha na minha bolsa.
Olho ao redor, decidindo se peço ajuda para alguém, mas vejo Theodore
andando sozinho, indo para o lado oposto ao que eu estava pensando em ir.
Sorrio e corro até ele, porque sei que vai me ajudar.
— Me diz que também está indo para a Beer&Books!? — Apareço do
seu lado um pouco esbaforida pela corridinha e puxo a bolsa, que está
escorregando pelo meu ombro.
— Estou indo para a B&B! — Theodore sorri e levanta uma
sobrancelha, desacelerando o passo. Ele estende a mão para a minha ecobag
e a tira do meu ombro, aliviando o peso que estou segurando. — Por que
você está carregando isso tudo?
— Não sei se você sabe, mas aqui é uma universidade… Achei que faria
sentido estudar um pouco. — Brinco.
— Ah, é mesmo? — Ele finge estar surpreso e olha ao nosso redor, como
se estivesse finalmente se situando de onde está. — Achei que fosse um
lugar para irmos em festas, beijar pessoas e nos divertir… Tá explicado
porque nunca consigo sair daqui.
— É, acho que, em algum momento, você vai precisar carregar alguns
livros. — Finjo decepção e ele aponta para minha ecobag.
— Que bom que já estou fazendo isso, então.
Reviro os olhos e vejo seu sorriso se alargar. Ele é simpático e amigável.
Nos encontramos apenas algumas vezes na última semana, de forma muito
rápida, mas em todas ele foi exatamente assim: gentil e engraçado. Gosto de
gente como ele.
— Me conte, gringa, como está sendo seu primeiro mês de aula?
— Além do fato de me perder se não estiver com o mapa que o Benji
fez, ótima. E a sua?
— Péssima. — Faz uma careta divertida e revira os olhos. — O último
ano é o pior de todos. O mais difícil, cheio de trabalhos, leituras, projetos…
Mal começamos e já estou pensando seriamente em desistir.
— Achei que você só fosse para festas. — Provoco e ele me repreende
com o olhar por um momento, o que me faz apertar os lábios para esconder o
sorriso. — Brincadeira. Sinto muito?
— Tudo bem, vendo pelo lado bom: é o último ano. Logo, eu nunca mais
precisarei pisar aqui.
— Ao mesmo tempo que quero esse momento logo, tenho medo de
quando for minha vez. Nunca mais terei a experiência de começar uma vida
nova aqui, de novo. Mas estou animada para terminar o curso e arranjar um
emprego bom. Em Londres, de preferência.
— Não gosta do Brasil?
— Amo, mas já sentiu que seu lugar não era aquele e que precisava
mudar as coisas um pouco?
— Na verdade, não. — Theo sorri divertido, o que me faz rir por sua
sinceridade.
— É, bem… Eu sinto. É como se existisse uma voz falando que tem algo
me esperando longe de casa, e desde que pisei aqui, senti que estava certa.
Não me diga que você fala com fantasmas! — Theo para de andar de
—
repente. — Devo chamar os Ghostbusters?
— Eu não falo com fantasmas! — Dou risada e puxo seu braço para
continuar andando. — É só uma sensação, meu sexto sentido. Estou falando
sério!
— Estou apenas tirando uma com você. — Theo volta a andar e
cumprimenta algumas pessoas que passam por nós.
Olho para os lados e tento entender onde estamos. Vejo a estação de
metro à nossa esquerda e começamos a andar para a direita. Ao redor da
universidade tem muitos estudantes, tantos que é difícil olhar para alguém
que não esteja carregando um monte de livros debaixo do braço, ou uma
mochila grande nas costas.
— Você está saindo com alguém? — Theo pergunta de repente, me
tirando do devaneio geográfico que entrei.
— Eu mal cheguei na cidade, como estaria saindo com alguém? —
Pergunto desconfiada. Ele não vai me chamar para sair, certo? Porque ele é
lindo, um fofo e me faz rir, mas se tem um Cooper que me chamou atenção,
esse cara é o Charlie. Não posso sair com o primo dele se quiser, pelo
menos, tentar dar uns beijos nele.
Ah, pronto. A Marina safada que habita em mim está dando as caras e eu
sempre faço a mesma coisa: falo que vou fazer algo focada, mas é só
conhecer alguém bonitinho que sorri para mim e já fico derretida. Para a
minha sorte, da mesma forma que eu me “apaixono” rápido, eu
“desapaixono”.
— Não sei, e se você já conhece alguém daqui e veio ficar perto dele?
Ou conheceu nos primeiros dias? — Theo levanta a sobrancelha.
— Não tem ninguém. Sou uma mulher livre e focada nos estudos.
— Focada, sei.
— É sério, para de rir. — Sorrio e mordo os lábios, sou curiosa demais,
vou ter que perguntar e cortar o mal pela raiz de uma vez. — Por que quer
saber?
— É só uma curiosidade inocente.
— Não tem nada de inocente no seu olhar. — Sei que ele está
escondendo algo, porém não fala, nem ao menos ensaia falar, simplesmente
dá de ombros e continua andando.
— Chegamos! — Theo aponta com a cabeça para o bar do outro lado da
rua e atravessamos juntos.
fachada é rústica, para não dizer largada às traças. É escura e com a
A
aparência quebrada e velha. Já o interior é arrumado e aconchegante, com
mesas altas e baixas, sofás ovais e tem rock antigo tocando baixo em uma
jukebox. Atravesso o salão seguindo Theodore, até chegarmos na mesa do
fundo em que Benji, Olive e Charlie estão sentados ao lado de um cara
moreno de cabelo bagunçado.
— Vocês não vão acreditar em quem eu encontrei perdida, faminta e
desesperada, vagando pelo campus sem rumo. — Theodore dramatiza
teatralmente, então faz um aceno exagerado, me revelando atrás dele.
— Que exagero! Eu não estou faminta e não estava perdida. — Retruco
sorrindo e ele levanta uma sobrancelha em desafio. — Tá, só um pouco.
Tenho certeza que eu ia conseguir me virar e chegar aqui sozinha em algum
momento.
— Você estava indo para o outro lado! — Theo nega e revira os olhos.
— Cadê o mapa que eu te dei? — Benji pergunta e me dá oi com o olhar,
mas Charlie, me encarando ao seu lado, chama minha atenção.
— Esqueci em casa, acordei atrasada. — Tiro o casaco e o coloco na
cadeira vazia em que Theo colocou minha ecobag.
— Só faltava vocês — Olive sorri gentilmente e dá um gole em sua
bebida, que parece ser refrigerante. Então, arregala os olhos, se lembrando
de algo. — Ah, Marina! Você ainda não conhece o Thomas, ele é o fundador
do grupo.
— Bem-vinda! — O cara estende a mão por cima da mesa para apertar a
minha e eu sorrio. Todos parecem ter a mesma idade, vagando em algum
lugar entre os 21 e 25 anos, e Thomas parece ser tão novo quanto eu.
— Obrigada! Espero conseguir ajudar de alguma forma — sorrio e me
sento. — Oi, Charlie.
— Dias — o ruivo responde junto com uma piscadela. Sua voz é
convencida, mas não de um jeito arrogante e sim seguro de si.
Sentado de forma despojada, Charlie beberica uma cerveja que está
quase no fim, completamente confortável no ambiente. O moletom rosa
claro que está usando combina com ele e noto que está trocando olhares com
Theodore.
— Cadê o resto do pessoal? — Theo pergunta olhando para os lugares
vazios da mesa e sentando ao meu lado. Tento manter meu olhar em Olive,
mas não consigo evitar olhar para Charlie mais uma vez.
Foram pegar mais bebidas, o Sebastian falou que não vai ficar
—
servindo a gente hoje, porque está passando um jogo na televisão. — Olive
responde como se aquilo fosse normal, enquanto procura algo em sua
mochila.
— Isso quer dizer que, se eu quiser pedir algo, tenho que ir no balcão?
— Pergunto curiosa.
— Se não quiser passar fome e sede, sim. — Olive responde sem
levantar o olhar da bolsa.
— Então, se vocês me dão licença, já volto — começo a me levantar e
Charlie vira o resto de sua cerveja em um só gole.
— Eu te acompanho, Dias.
Ele abre um sorriso lindo. O mesmo do primeiro dia. Merda, não sorria
para mim assim, porque não vou conseguir me controlar e vou flertar com
você. Para!
Não respondo, mas me viro em direção ao balcão e vou até o homem de
meia idade que está ali, prestando atenção na televisão presa no alto da
parede. Um cara e a mesma garota que vi brincando com Charlie, no
primeiro dia, passam por nós, indo em direção a nossa mesa. Mais gente para
conhecer hoje. Ok, eu dou conta.
— Será que tem algum cardápio? — Procuro nas mesas ao redor.
— Tem em algum lugar por… — ele se estica por cima do balcão e
começa a procurar do lado de dentro do bar, com intimidade o suficiente
para fazer isso, o que só pode significar que eles vão ali com frequência. —
Aqui!
Charlie estende o cardápio e eu o aceito com um pequeno sorriso,
olhando diretamente para os pratos disponíveis. Se eu evitar olhar para ele,
talvez consiga fugir da vontade de flertar. Infelizmente, minha visão
periférica é muito boa e consigo ver quando ele apoia as costas no balcão e
vira de frente para mim. Suas pernas e braços cruzados.
— O que você está fazendo? — Dou uma pequena olhada em sua
direção e logo volto a atenção para o cardápio.
— Esperando você decidir o que quer para chamar o Sebastian e fazer
nosso pedido, por quê? O que achou que eu estava fazendo? — Apesar de
sua voz ser tão inocente quanto a de um anjo, quando encontro seu olhar,
vejo que não tem inocência nenhuma ali. Charlie parece um menino
travesso, que tem plena noção do que está aprontando e não tem vergonha
nenhuma disso.
erro meus olhos em desafio e ele sorri ainda mais. Merda, para de ser
C
lindo, por favor!
— Achei que estava tentando flertar comigo — as palavras saem da
minha boca sem pensar e ele levanta a sobrancelha, surpreso com minha
franqueza.
— Ah, temos uma senhora convencida aqui.
— Não sou convencida, mas você não é nem um pouco sutil. Encara
demais e esse olhar… tá na cara que está querendo alguma coisa. —
Aproximo-me do balcão, colocando o cardápio do seu lado, e volto a ler os
pratos.
— Bom, eu estou aqui porque quero uma cerveja, só isso. Bem gelada,
de preferência. — Charlie vira o corpo de lado, apoiando o cotovelo no
balcão para me olhar. — E estou sendo gentil por te esperar.
Levanto a cabeça para olhá-lo porque, mesmo com o corpo da forma que
está, ele é alguns bons centímetros mais alto do que eu. Abro a boca
pensando em falar algo, mas a fecho em seguida. Ele estuda minhas
expressões e abre um pequeno sorriso de lado quando me vê revirar os olhos
e sorrir também.
Consigo reconhecer todos os sinais que ele está me mandando, porque eu
faço igual quando estou jogando. Maldito.
A forma como seu corpo está virado em minha direção, o olhar atrevido,
o jeito que umedece os lábios e sorri, me obrigando a olhar para ele e segurar
a vontade que estou de beijá-lo. Porque sim, ele não fez praticamente nada e
eu estou imaginando como seria beijar sua boca. Eu e meu fraco por ruivos
cheios de sardinhas. Isso é culpa da minha prima mais velha, que era
apaixonada pelo Príncipe Harry e fazia lavagem cerebral em mim para eu
gostar dele também.
Não estou reclamando.
Nunca saio por baixo em um joguinho desses, então aproveito para
deixar meu olhar em seus lábios por alguns segundos antes de encontrar o
castanho de seus olhos, inclinando um pouco o tronco na sua direção.
Charlie se aproxima também, só um pouco, o olhar na minha boca. Ele até
pode carregar toda essa marra, mas é fácil de lidar, exatamente como eu
gosto.
— Já sei o que vou pedir.
Me afasto, deixando-o só com a sombra da expectativa do momento em
que surgiu entre nós e Charlie solta uma pequena risada nasalada, quando
levanta o braço e chama a atenção do homem do outro lado do balcão.
— Charlie, o que manda? — O homem se aproxima alternando o olhar
entre nós dois e a televisão.
— Mais uma cerveja para mim e um hambúrguer. Para a senhorita
Dias… — Charlie me dá a deixa para falar o que quero.
— Um hambúrguer com cogumelos, mas sem a carne, por favor. Sou
vegetariana. — Dou ênfase que não como carne e o homem concorda,
finalmente prestando atenção e anotando o pedido. — E uma cerveja
também.
— É para já, pode deixar que levo na mesa para vocês. — O homem dá
um tapinha no balcão e começa a se afastar em direção à cozinha, não sem
antes parar na porta e retrucar de algum passe errado que viu acontecer na
televisão.
— Vegetariana? — Charlie pergunta curioso.
— É, não gosto muito de comer bicho morto — falo com simplicidade.
— Justo, mas agora vou ficar com peso na consciência de comer um boi
na sua frente.
— Estou acostumada a ver pessoas sem coração comendo bichos
indefesos, não se preocupe. É só mais um dia comum na minha vida. —
Brinco, arrancando-lhe um sorriso.
— Coloca o dela na minha conta, Sebastian! — Charlie fala para a
pequena janela que dá visão à cozinha e Sebastian concorda, revirando os
olhos antes de sumir de novo. Como se conhecesse todos os truques do
ruivo.
— O que? — Franzo a sobrancelha.
— O que? — Charlie me imita, se fazendo de desentendido e
umedecendo os lábios, antes de voltar a andar para a mesa.
— Você não pode pagar meu almoço. — Tento olhar para seu rosto.
— Por que não? — Charlie dá de ombros e vira um pouco o corpo para
mim, me olhando de canto de olho. — Nunca reclamaram antes.
— Ah, então quer dizer que você paga o almoço de todo mundo? —
Levanto a sobrancelha e ele para de andar, me fazendo quase esbarrar em
suas costas.
— Só de quem estou interessado.
E assim, Charlie Cooper consegue me deixar sem palavras, o que é muito
difícil de se fazer. Ele volta a andar e eu preciso de alguns segundos para
voltar a segui-lo de volta para a mesa.
Só sete moradores confirmaram que vão à reunião. — Thomas,
—
desacreditado, encara seu copo.
— Talvez se a gente chegar mais cedo, podemos nos separar pelo bairro
e convencer mais pessoas a participarem — a garota morena, que ainda não
conheço fala, olhando atentamente para Thomas, que concorda.
— Podemos tentar, mas eles estão relutantes… — Thomas aperta os
lábios e respira fundo, enquanto me sento.
— Se o trabalho fosse conquistar as crianças seria fácil. Agora,
conquistar aqueles velhos… — Charlie dá a volta na mesa e senta em seu
lugar. — Já conheceram a Dias?
— A única inscrita oficial no grupo esse ano. Sou Emma Cooper, prazer.
— Outro Cooper? Vocês são quantos? — Dou risada.
— Nem me fale, nossos pais queriam ter uma casa cheia de crianças,
agora tem uma casa cheia de adultos. — Emma aponta para o garoto ao seu
lado. — Esse é Reginald Cooper.
— Reggie! — O garoto corrige incomodado e passa o braço pelo ombro
de Olive. Ok, eles parecem estar juntos. — Você tem que parar de me
chamar assim.
— É o seu nome, deixa a Emma em paz! — Theo completa e dá um
tapinha na cabeça de Reggie.
— Tá, me expliquem a árvore genealógica, porque eu me perdi. —
Sorrio, prestando atenção nos Cooper.
— Emma é minha irmã, já Theodore e Reginald são irmãos, nossos
primos. — Charlie explica antes dos outros e dá ênfase no nome de Reggie,
que bufa alto.
— Certo, agora tudo faz sentido. — Passo o olhar pelo grupo. — Fui a
única inscrita este ano?
— Tivemos outros interessados, mas desistiram por conta de alguns
rumores… — Thomas fala cautelosamente, como se estivesse com medo da
minha reação. — Não somos só nós, é claro. Temos outros membros, mas
geralmente só nos reunimos todos de uma vez quando o evento é importante.
— Somos 13? — Benji pergunta.
— 14, se contarmos com a Ava. — Olive o corrige. — Ela não participa
ativamente dos atos, mas salva nossa pele sempre que precisamos.
— Que rumores são esses? — Pergunto para Thomas, curiosa para
entender sobre o que ele estava falando.
Ah, nada demais. Na verdade, não são bem rumores, são fatos de
—
coisas que aconteceram no último ano. — Olive fala por Thomas com
aqueles olhos doces e carinhosos. Encaro-a, esperando por respostas, e ela
suspira, se preparando para falar. — A gente tem uma pequena tendência de
acabar, hum… Fazendo algumas breves visitas à polícia quando fazemos
nosso trabalho. Então, fica em nosso registro, e… Enfim, você sabe o
problema disso, você faz Direito, não faz?
— Você está me falando que são presos às vezes? — Levanto a
sobrancelha e o grupo confirma, todos cautelosos, o que me faz rir. Eles
ficam confusos e alternam seus olhares. — Nada novo para mim, então.
Minha mãe é mestre em ser presa por seus protestos. Com certeza ser preso
aqui deve ser melhor do que no Brasil, mas se vocês puderem me ajudar a
evitar essa aventura por causa do meu visto, eu agradeço.
Charlie umedece os lábios e concorda, no instante em que nossas bebidas
e hambúrgueres chegam na mesa. Sebastian os coloca na nossa frente e se
afasta assim que agradecemos.
— Não tem medo? — Benji franze a sobrancelha.
— É claro que tenho, mas tem algumas coisas pelas quais valem a pena
se arriscar. Dou de ombros e pego alguns guardanapos à minha frente.
— Ótimo, agora que estamos esclarecidos, vamos começar oficialmente
esta reunião! — Thomas volta a falar. — Nos encontramos aqui na sexta-
feira que vem depois do almoço, combinado?
Olho confusa para eles e Theo se aproxima, falando com a voz baixa
enquanto os outros engatam em uma conversa que eu não consegui entender
o contexto muito bem.
— Vamos nos reunir com os moradores de LittleWin, porque uma
empresa grande está sondando o bairro e comprando tudo ao redor. Lembra
que te contamos sobre, quando você se inscreveu no grupo? — Ele me olha
e rouba uma batata frita do meu prato. — Os terrenos vão ser um pouco mais
difíceis de serem comprados, porque a maioria está regularizada, mas o
Centro Educacional não, e estamos recebendo poucas doações já que
estamos com poucos benfeitores…
— Esse Centro é importante?
— Muito, nós temos professores de reforço para os adolescentes, creche
para as crianças com mães que precisam de ajuda extra para trabalhar,
atividades físicas para todas as idades… Fazemos muita coisa boa para a
comunidade, mas o problema é que o prédio precisa de muitas reformas…
Tem empresas comprando vários estabelecimentos ao redor e já os vi
rondando o Centro. Devem estar de olho no casarão, já que a prefeitura não
quer fazer as reformas necessárias e está difícil fazermos sozinhos. Então, se
perdermos o centro, as famílias vão perder uma ajuda gigantesca. E eles não
conseguem lutar por isso sozinhos.
Concordo e sinto meu coração se esquentar. É uma situação horrível,
mas exatamente o tipo de trabalho que eu amo fazer, que faz meu corpo
vibrar por estar ajudando pessoas que realmente precisam de ajuda.
— Que bom que estamos aqui, então.
Capítulo 7
va não mentiu quando falou que o lugar estava lotando todos os dias
A
desde a inauguração, já que tem, literalmente, uma fila chegando na esquina
só para entrar no bar. Nosso pequeno grupo caminha até a entrada e
esperamos por alguns instantes ao lado do segurança, até o homem receber
ordens para liberar nossa entrada sem precisarmos ficar na fila.
Assim que entramos, o calor do ambiente me obriga a tirar o casaco.
Tem um músico tocando rock acústico no palco, que está no fundo do
espaço, muitas mesas espalhadas e pessoas circulando pelo salão. As paredes
são de madeira e enquanto algumas estão cheias de pôsteres de bandas do
chão ao teto, outras são mais limpas, com apenas alguns discos de vinil em
exibição.
— Esse lugar é legal! — Seguro a mão de Emma e a puxo para perto.
— Não me surpreende estar tão lotado assim — Emma confirma e
começa a procurar por uma mesa, esticando o corpo e olhando ao redor.
— Está cheio até demais… — Olive aperta os lábios parecendo
incomodada.
— Não comece, Olive, por favor! — Emma fala sem se virar. —
Você sabe que não pode deixar de viver sua vida por causa do Reg.
— Eu sei…
— Vocês são o que, afinal? Namorados? — Pergunto e a puxo para
perto quando vejo um garçom, carregando muitas canecas de cerveja, quase
esbarrando nela.
— Amigos, oras! — Olive responde como se eu tivesse ofendido-a.
— Somos apenas amigos.
— Olive gosta dele desde que somos crianças, já ficaram várias
vezes, mas nunca vai adiante. Dois tontos, se quer saber minha opinião. —
Emma se vira para nós duas e desafia Olive com o olhar.
— Eu já sei qual é a sua opinião, obrigada por me lembrar. — Olive
devolve o desafio e se vira para mim. — É complicado, temos muitas
obrigações e acabamos deixando o que quer que exista entre nós dois de
lado. Eu tenho as aulas, o grupo, o Centro, as manifestações, sem contar o
estágio, meus pais, meu gato… Já ele tem o time de futebol, as aulas, o
trabalho…
— E não conseguem encaixar um tempo para os dois no meio da
correria? — Pergunto curiosa e ela nega. — Sinto muito.
— Uma hora as coisas dão certo — aperta os lábios, dando de
ombros, e eu concordo.
Quem sou eu para me intrometer na vida dos outros, mas me
surpreende eles se conhecerem a tanto tempo e viverem nesse limbo. Talvez
não deva ser, ou só não esteja na hora certa.
— Ei, o que vocês estão fazendo aqui? Achei que tivessem nos
seguido! — Thomas aparece do nosso lado, confuso. — Vamos, a amiga da
Ava reservou uma mesa para a gente.
Ele começa a nos guiar pelo salão e, no meio do mundo de pessoas,
seguro na mão de Olive para não nos perdemos. Todo o grupo já está
sentado e Charlie está fazendo o pedido para o garçom quando nos
aproximamos.
— Qualquer coisa é só mandar me chamar que eu te ajudo. — Escuto
a amiga da Ava falar com a voz doce e, em seguida, Ava, Theo e Charlie
batem palmas para ela, fazendo festa e agradecendo pela mesa.
Ela faz uma reverência exagerada, aceitando os aplausos. No instante
que eu passo do seu lado, ela se vira para ir embora e nos esbarramos,
fazendo com que nossos ombros batam com força.
— Ai, porra… — Retruco em português, não por causa dela, mas
porque doeu.
— Por favor, não comece a me xingar, porque vai ser difícil fingir
que não estou te entendendo! — A garota responde, também em português, e
abre um sorriso travesso. — Eu sou mestre em ficar reclamando em
português e ter algum brasileiro atrás de mim, escutando tudo.
— Eu não ia te xingar! — Sorrio, sentindo um alívio por estar
escutando minha língua materna pessoalmente, e não pelo celular. — Você é
a amiga da Ava que eu vi na frente da biblioteca no outro dia!
— Manuela, prazer! — Ela se aproxima para beijar minha bochecha
e é impossível não me sentir feliz com o gesto. Faz tempo que não sinto esse
calor brasileiro.
— Marina, e o prazer é todo meu. — Damos um pequeno abraço e,
antes que eu consiga dizer qualquer coisa para puxar assunto, um garçom se
aproxima para falar com ela.
Quero conhecê-la desde que Benji me contou que ela está no seu
segundo ano na Inglaterra, pelos estudos. Seria bom ter alguém por perto que
entenda o que eu estou passando, com os mesmos medos e anseios de estar
longe de casa.
— Fala para ele que eu já estou indo, por favor. — Responde ao
garçom e suspira, me olhando com um pequeno sorriso cansado. — Eu devia
começar a cobrar por cada noite que passo aqui… Meu namorado me
chama para nos divertirmos e acabamos os dois trabalhando para ajudar!
— Eu te entendo, não consigo recusar quando um amigo pede ajuda
— faço careta e ela confirma, rindo.
— É, escuta… Ava me contou um pouco sobre você — Manu começa
a se afastar devagar —, então não vá embora antes de falar comigo!
— Brasileiras se unindo na terra da Rainha? — Pergunto com a voz
mais alta e ela levanta o polegar no ar sorrindo, antes de realmente sumir
pela multidão.
Sento no lugar que deixaram vazio para mim e uma conversa
acalorada está acontecendo, praticamente uma briga. Preciso de alguns
momentos para entender as palavras confusas e altas que estão se mesclando
com a música e as outras vozes do salão.
— Eu achei que vocês estavam brigando de verdade! — Bato a mão
na mesa, chamando a atenção de todos quando, finalmente, compreendo
sobre o que estão discutindo.
— Ainda não estamos, mas iremos se o Thomas e sua namoradinha
continuarem falando esse absurdo! — Charlie levanta a sobrancelha com um
sorriso no rosto, desafiando a prima e o amigo.
— Ei, me respeita! — Emma faz uma bolinha com o guardanapo e
joga na cara do irmão, que lhe mostra o dedo do meio em retorno.
— Ele é novo, fala com a nossa geração! — Thomas retruca e Theo
bate a mão na mesa da mesma forma que eu fiz, o rosto com um misto de
indignação com diversão.
— Tom Holland não é o melhor Homem-Aranha, nunca! — Theo
provoca. — Ele pode ficar com o segundo lugar.
— Mas o melhor sempre será o Tobey. — Charlie completa e os dois
dão um soquinho de mãos.
— Vocês todos estão completamente loucos, já que o Andrew é o
melhor! — Interrompo e uma rodada de bolinhas de papel voa em minha
direção, me obrigando a tentar me proteger com o braço.
— Cancela a cerveja dela, por favor! — Charlie levanta a mão e
finge estar falando com o garçom, me fazendo rir.
— Estou falando sério! Ele literalmente produz o próprio fluído de
teia, sozinho! Ele é um gênio, e é sensível, engraçado…
— O Tobey também produz seu próprio fluído de teia! — Charlie me
interrompe, seus olhos fixos nos meus com aquela feição que é uma mistura
de malícia com travessura. Diabolicamente angelical.
Como ele consegue falar de fluído de teia e continuar sexy, eu não
sei, mas é impossível não abrir um sorriso carregado com a mesma malícia.
— O Tom também! — Emma completa o pensamento, nos fazendo
quebrar o contato visual e olhar para ela com o cenho franzido.
— Não! — Eu, Charlie e Theo falamos ao mesmo tempo e
começamos a rir.
— É o traje dele que produz — Theo revira os olhos.
— E nem foi ele quem construiu! — Viro-me para Theo indignada e
ele concorda. — Ele ganhou do Tony Stark.
— Vocês são injustos! — Emma se joga no encosto do assento no
instante em que as cervejas chegam.
— O Tom é ótimo, não me leve a mal. — Olho para Emma fazendo
carinho em seu braço e apertando os lábios para segurar o sorriso pela forma
que ela finge estar irritada. — Mas vamos lá, Peter e Gwen… Muito melhor
do que Peter e Mary Jane, ou Peter e MK!
— O que? — Theodore praticamente gritou de indignação com
minha frase.
— O seu Peter nem conseguiu salvar a Gwen! — Charlie joga na
minha cara, me fazendo abrir a boca sem acreditar no seu golpe sujo. — Pelo
menos nossas MJ estão vivas.
— Eu não acredito que você colocou a maior dor do meu Peter em
discussão! — Está difícil esconder o sorriso, principalmente quando ele
apoia o braço em sua cadeira e levanta a sobrancelha ao beber de sua caneca.
Uma pose de quem diz “eu venci”. — Você não tem coração, Cooper.
— Ai! — Ele sorri e coloca a mão no peito, fingindo dor e me
fazendo rir abertamente.
— Acho melhor a gente parar com esse assunto por aqui, antes que
alguém nessa mesa acabe ferido! — Thomas gargalha, mas é claro que os
outros não concordam e a discussão continua.
— Você estava falando em português antes? — Charlie pergunta no
meio do barulho dos outros e eu concordo. Seu sorriso malicioso aumenta,
assim como seu olhar, que cai em minha boca por um rápido segundo. —
Sexy.
Dou de ombros, mostrando não ser nada demais, é inconsciente
umedecer meus lábios antes de dar um gole em minha cerveja e desviar o
olhar, para não deixá-lo convencido demais.
Passo meu olhar pela mesa, Olive não falou nada durante toda a
conversa e está séria, mexendo no celular de forma incomodada.
Completamente alheia ao que está acontecendo ao seu redor. Ela parece
sempre manter todos em paz e unidos, mas está preocupada com alguém e
ninguém parece se importar, desde que chegamos ali.
Estico minha perna por baixo da mesa, até que meu pé toque sua
perna e seus olhos castanhos e doces encontrem o meu. Gesticulo, em
silêncio, perguntando se está tudo bem e ela força um sorriso, concordando.
Em seguida, deixa o celular na mesa e parece se esforçar para participar da
conversa.
Capítulo 11
Gerente Executivo
assei o resto do fim de semana remoendo o quanto fui burra e como agi
P
igual a uma criança mimada com Anthony. E, para piorar a minha sessão
depressão, Mila foi acampar na praia com as amigas da faculdade por uma
semana inteira, então não conseguimos nos falar em nenhum dia, já que ela
ficou sem internet no fim do mundo do litoral paulista.
Na primeira aula do professor Herman da semana, por costume, acabei
chegando cedo demais na sala, mas não entrei quando percebi o que estava
fazendo. Não ia continuar com a briga idiota por um mísero lugar, então
fiquei 40 minutos esperando do lado de fora do prédio, sentada em um banco
afastado e lendo Me Chame Pelo o Seu Nome.
Entrei na sala somente quando faltavam 5 minutos para a aula começar,
mas diferente do que imaginei, Anthony não estava ali. Mesmo assim, sentei
afastada da cadeira da discórdia, obrigando Benji a mudar de lugar e sentar
comigo.
Obviamente, nenhum e-mail da Vann Empreendimentos chegou na
minha caixa de entrada nos dias seguintes. Então, na quarta-feira, eu já tinha
aceitado minha derrota e me vi procurando por outras vagas no mural de
avisos. Não sei porque achei que teria uma chance depois daquele desastre.
Encontrei uma vaga que parecia muito boa, para digitar processos no
sistema de um escritório. Pagava pouco, mas o horário era flexível desde que
a demanda semanal fosse entregue no prazo.
iz a entrevista na quinta-feira, o escritório era simples e os chefes, dois
F
senhores de idade que queriam se modernizar, mas não sabiam como. Não
precisei me esforçar muito para que gostassem de mim e, inclusive, me
pediram para ajudá-los a descobrir como funcionava o programa que tinham
acabado de contratar para a empresa.
Falaram que me dariam um retorno no dia seguinte, mas eu tinha certeza
de que a vaga era minha. Não tinha como não ser. Meu coração conseguiu se
acalmar um pouco, sabendo que nem tudo estava perdido e que eu
conseguiria aliviar as contas da minha mãe, que estava se esforçando tanto
para eu realizar este sonho. Entretanto, não parei de olhar o mural e me
candidatar para outras vagas que fossem condizentes com a minha
disponibilidade.
Ocupei meus dias com os estudos, dando uma pausa somente para ver
meus amigos e mergulhar na Itália dos anos 80 com o Elio e seus
sentimentos. Quando me dei conta, todos os trabalhos estavam em dia,
terminei o livro com dor de cabeça de tanto chorar e já estava na última aula
da semana, a aula do professor Herman.
A primeira coisa que faço ao chegar em sua sala, é olhar para o lugar da
discórdia, mas Anthony, novamente, não está lá. Ele está sentado no fundo,
com os amigos, o que me surpreende.
Nossos olhares se encontram e, em vez de ir até a cadeira vazia, procuro
um lugar bem longe. Uma leve curiosidade me invade, queria saber porque
não o vi nos outros dias, seja na aula ou andando pelo Campus, mas reprimo
a curiosidade.
Sinto-o acompanhando meus passos, até eu sentar, pegar meu laptop
e abri-lo na mesa. Tento prestar atenção na aula, mas a sensação de alguém
me observando me acompanha a cada segundo, junto com a falta de coragem
de me virar para olhar Anthony, que com certeza vai sorrir debochado,
fazendo eu me arrepender de não ter continuado minha birra de sentar no
nosso lugar.
Meu lugar.
— Espero que já estejam trabalhando nos estudos de caso de final de
semestre. A maior burrice que vocês podem cometer, é deixar para a última
hora. Não vou atender os atrasados para consultoria. — O professor Herman
fala no final do horário e sem hesitar, guardo minhas coisas.
Despeço-me de Benji e, enquanto estou saindo, vejo Anthony
andando em direção ao professor. Passo rapidamente pelos alunos para
chegar logo no corredor e evitar esbarrar no loiro sem querer, só quero sair
dali o quanto antes.
— Ei, Dias!
Alguém me chama e estou tão distraída, que só quando procuro ao redor
vejo Charlie apoiado na parede, uma mão segurando a alça da mochila no
ombro e a outra no bolso. Ele está usando uma blusa xadrez vermelha com
jaqueta jeans.
— Não te vi… — Dou alguns passos em sua direção e ele se aproxima,
depositando um beijo na minha bochecha, enquanto apoia a mão em minha
cintura. — Estava me esperando?
— Estava. Senti falta desse rostinho nos últimos dias e quis te avisar
pessoalmente sobre sua oficina. Está livre no sábado que vem, de tarde?
Cerro os olhos com o elogio, mas o ignoro.
— Deu certo, então?
— Deu, o Thomas falou com os alunos e vários ficaram animados,
principalmente as meninas. Os meninos se inscreveram só para impressioná-
las. — Charlie dá de ombros de forma culpada.
— Você tem um dedinho nisso, não? — Sorrio divertida e Charlie segura
meu braço, me puxando para o canto do corredor, já que tem muitas pessoas
passando por nós.
— Só mostrei para eles que é legal se interessarem por coisas que elas
gostam. — Ele se defende, me fazendo rir e aproximando nossos corpos.
Vejo-o umedecer os lábios e morder o canto da boca. — E a entrevista, como
foi?
— Ah, foi um enorme desastre… — Meu celular começa a tocar alto e
paro de falar para desligar a chamada, mas vejo a foto da Mila na tela. Meu
coração dispara e eu atendo no mesmo instante. — Você está viva!!
— Eu estou viva!! — Mila responde sorrindo. Seu rosto está vermelho,
queimado de sol, e o cabelo molhado como se tivesse acabado de tomar
banho. — Viemos para a cidade comprar algumas coisas e consegui sinal,
não sei como vou dar conta de ficar mais três dias no meio do mato sem um
creme decente de cabelo.
— Como está aí? — Pergunto e olho para Charlie, pedindo desculpa em
silêncio e ele assente, encostando o ombro na parede para me esperar. Ele
presta atenção, mesmo sem entender nós duas.
— Não achei que fosse gostar tanto, mas está legal. O único problema é
ter energia por poucas horas do dia. A barraca está cheia de areia e minhas
costas estão arregaçadas por causa do colchão. — Ela faz uma careta e
conversa com a amiga, que está mostrando alguma coisa na prateleira do
mercado para ela. — Como foi a entrevista?
— Que bom que você perguntou, Charlie está aqui e me perguntou o
mesmo. Ah, transei com ele sexta passada e, sim, foi muito bom. — Falo
rápido e viro a câmera, enquadrando Charlie ao meu lado, porque sei que ela
vai querer ver o rosto dele, e começo a falar em inglês. — Vou contar para os
dois ao mesmo tempo.
Mila abre a boca em choque e, assim que coloco Charlie na câmera,
aperta os lábios tentando disfarçar. Ele dá um oi para ela, que retribui e se
vira para mim, ignorando a câmera na nossa frente.
— Eu cheguei na empresa, que deve ser o lugar mais chique que conheci
na vida! Fiquei morrendo de vergonha pela forma que estava vestida…
— Você estava linda — Charlie me interrompe e me deixa sem palavras
por um momento. Não estava esperando por esse elogio repentino.
— Chegando lá, adivinha quem era meu empregador? — Finjo que não
escutei Charlie e sigo a história, os dois balançam a cabeça para que eu
continue a falar. — Anthony MacMillan.
— O insuportável arrogante da sua sala? — Mila fica chocada e eu
confirmo.
— Calma, a entrevista que você fez foi na Vann Empreendimentos? —
Charlie pergunta sem acreditar e, quando confirmo, fica animado. — E como
foi, você passou?
— Provavelmente, não — faço careta e dou de ombros. — A gente não
se dá bem e digamos que eu não tenha sido a pessoa mais gentil do mundo
com ele. No dia a dia e na entrevista. Não que ele fosse muito gentil comigo
também, porque ele não é.
— Achei que quisesse a vaga — Mila aponta e confirmo cansada.
— Queria, mas ele me tira do sério. Sempre que temos aulas juntos eu
tenho vontade de voar no pescoço dele com toda aquela arrogância, e a
forma que anda, fala, revira os olhos… Não dá para ficar perto dele.
— Dias, a Vann Empreendimentos é a principal empresa que está
trabalhando com a prefeitura e comprando os terrenos e comércios de
LittleWin! — Charlie está em alerta. — Você precisa conseguir esse
emprego!
— É sério? — Fico assustada e ele diz que sim.
Nunca falei tão sério! Imagina o que poderíamos fazer se tivermos
—
informações de dentro da empresa!?
— Seria incrível, mas… não vai acontecer. Ele me detesta e eu não gosto
dele. Acho que nos mataríamos no primeiro dia. Ou eu seria demitida. —
Aperto os lábios e Charlie faz uma careta. Então, olho para Mila, que está
prestando atenção.
— Quanto ele calça? — Ela pergunta em português, me fazendo rir.
— 43. — Respondo também em português e ela segura o sorriso, então
aponta a câmera para o teto e tenho certeza que está fazendo caras e bocas,
porque quer saber os detalhes.
— Tenho que ir, volto domingo de noite. — Mila aparece novamente,
um sorriso safado estampado no rosto. — Você vai arranjar outro emprego e
eu nem sei como foi, mas por favor: dê para ele de novo.
— Tá bom, pode deixar.
— Tchau, Charlie! — Mila finaliza em inglês e desliga assim que ele
responde.
— Mila é sua irmã?
— Melhor amiga! Morávamos juntas, no Brasil, e é estranho não nos
falarmos todos os dias. — Encosto o ombro na parede, pensando no que ele
me contou, e vejo o ruivo me imitar. — Eu não sabia que ia fazer entrevista
na mesma empresa que está complicando a vida do Centro e de LittleWin, é
muita coincidência.
— É uma merda que você não tenha conseguido a vaga, seria um passo à
frente para todo o grupo.
— Sinto muito… — Agora me sinto culpada pela forma que lidei com
Anthony. Se não fosse tão impulsiva, talvez pudesse ajudar de alguma forma
mais efetiva.
— Você não sabia. — Charlie coloca a mão no meu braço e faz um
carinho no local. Noto que seu olhar passeia por meu rosto até parar em
minha boca, então sobe para meus olhos. — Escuta, quer fazer alguma coisa
hoje?
— Hoje? — Levanto uma sobrancelha de forma surpresa.
— É, a gente pode, sei lá. Ver uma série?
— Ver uma série? — Começo a rir e reviro os olhos, abaixando um
pouco a voz e voltando a andar para sair do prédio. — Achei que tinha
deixado a sutileza de lado depois de onde colocou a língua semana passada.
Acho que já me esqueci de como foi, preciso que você me relembre,
—
Dias. — Ele brinca e é impossível não olhar para a sua boca também.
Obrigada universo por ter colocado este homem no meu caminho.
— Aparece em casa umas oito da noite, a gente pode colocar alguma
coisa na televisão e fingir que estamos assistindo. — Respondo baixo e ele
sorri de lado, mostrando os dentes bonitos e a feição safada, enquanto me
afasto, deixando-o para trás.
Capítulo 15
Então, eu meio que tenho algo para te contar. — Pego a bolsa que
—
deixei na cadeira ao meu lado e começo a me levantar.
Emma acompanha meus movimentos e se levanta também. Andamos até
o lado de fora do restaurante depois de agradecer aos garçons, que nos
atenderam durante nosso almoço juntas.
— Charlie perguntou se eu queria fazer algo hoje, mais especificamente,
se eu queria “assistir” uma série com ele.
— Quê? — Emma para de andar na calçada e faz uma expressão
estranha, como se estivesse confusa com o que acabei de contar. — Ele
mandou mensagem durante a semana ou algo do tipo?
— Não, nada! Na verdade, a gente nem se falou depois que ele saiu do
meu apartamento, no sábado de manhã, mas hoje ele apareceu na minha sala,
conversamos um pouco e ele sugeriu isso.
— E você topou?
— É claro que sim, sei que ele é seu irmão, mas você já olhou para ele?
— Dou risada e ela concorda, se dando por vencida.
— Já te falei o que penso disso. Só tome cuidado para não acabar
criando sentimentos, porque ele sempre faz isso: some a semana inteira e
aparece no final de semana com todo aquele jeitão dele.
— Sim, senhorita Cooper. — Bato continência sorrindo e ela revira os
olhos.
restaurante que escolhemos é perto do Campus, então a caminhada de
O
volta é curta, repleta de conversas, enquanto vemos alunos andando de um
lado para o outro durante o horário de almoço. Alguns estão sentados em
bancos, outros nas escadarias dos prédios, estudando ou rindo.
Estamos indo em direção ao centro de convenções, porque precisamos de
horas complementares e, durante toda aquela tarde, terá um seminário
chamado “O Feminismo no Mundo Corporativo”, ministrado por uma
escritora política da região. Geralmente esses seminários são chatos e só
servem para ganharmos as horas que precisamos, mas estou animada para
escutar o que a palestrante tem a dizer.
Assim que entramos no grande prédio do auditório, o calor do local me
atinge, então tiro o casaco e desenrolo o cachecol, deixando-o jogado em
volta do pescoço. Aparentemente, poucas pessoas tiveram interesse no
painel desta semana.
Presto atenção em todos que estão no ambiente, algumas esperando e
outras já entrando para pegar um lugar, até que escuto Emma bufar, virando
de frente para mim.
— Não acredito que ele está aqui — retruca cruzando os braços. —
Vamos entrar logo para sentar bem na frente, o mais longe possível dele.
— De quem você está falando? — Levanto o olhar para trás dela e
imediatamente descubro.
Com uma calça de alfaiataria preta, tênis caros, uma camiseta básica e
jaqueta, Anthony está mexendo no celular com o cabelo caindo sobre o
rosto, distraído do mundo ao seu redor.
— Anthony MacMillan, conhece?
— Temos aula juntos — é o que murmuro antes de virar o rosto para
longe dele. — Um pouco arrogante, não?
— Arrogante é elogio. Ele é um otário, filhinho do papai, que só pensa
no próprio umbigo e foda-se o resto do mundo. — Ela olha para ele mais
uma vez e se aproxima de mim, me puxando para perto para falar baixo. —
Já te contei da manifestação que fizemos contra a empresa do pai dele, no
ano passado? Três dos nossos foram presos, eles abriram um processo contra
a Ordem. Ava entrou com outro contra eles para proteger os meninos, mas,
no dia da primeira audiência, o processo tinha sido revogado.
— Revogado? Eles deram alguma explicação? — Levanto o olhar para
onde Anthony estava, mas ele tinha ido embora.
Nenhuma, só cancelaram e ficou por isso mesmo. Nunca fomos atrás
—
para saber o que aconteceu, porque foi bom para nós. Um processo e várias
dores de cabeça a menos. — Completa revirando os olhos e começo a
procurar por ele, perto de onde estava segundos atrás.
— Dias. — A voz surge do lado oposto ao que estou olhando e levo um
susto.
Emma olha para o lado completamente séria e eu a acompanho devagar.
Ele está muito perto, o mais perto que já estivemos antes e, não sei o porquê,
mas sinto meu coração pular uma batida. Ele é… cheiroso.
— Posso falar com você um minuto?
Troco um olhar silencioso com Emma, que cerra os olhos, nem um
pouco feliz por ele estar ali. Basta ele se aproximar para o ar ao nosso redor
mudar, ficando mais pesado e tenso.
— Temos que pegar um lugar no auditório — a resposta de Emma me
faz perceber que eu estava muda, como uma idiota.
— Vai na frente — respondo para ela, que vira a cabeça de lado, sem
entender. — Eu já vou, é só um minuto.
Emma concorda com má vontade, se afastando de nós, desconfiada.
Ficamos em silêncio até ela estar longe o suficiente e vejo outras pessoas
entrando no auditório, o que deixa o salão praticamente vazio.
— Por que não estava sentada na minha cadeira hoje? — Anthony
pergunta curioso.
— Eu falei que não brigaria mais pela minha cadeira — enfatizo e ele
revira os olhos. Era exatamente o que eu precisava para ir embora. — Se era
sobre isso que você queria falar, acho que já vou indo…
— Você por acaso olhou seu e-mail esta semana?
— É claro que eu olhei meu e-mail esta semana! — Paro de andar para
longe e me viro confusa. Eu não só olhei meu e-mail hoje, como ontem,
anteontem e durante todos os outros dias, desde a bendita entrevista, mesmo
sabendo que não seria aprovada.
Anthony dá de ombros, como se soubesse de algo, o que me faz procurar
o celular na bolsa para abrir o aplicativo do e-mail.
— Isso é uma nova forma de tirar sarro de mim, Anthony? — Pergunto
irritada, passando o dedo pela tela e me certificando de que não tem nada ali
que eu já não tenha visto um milhão de vezes.
— O que? Me dê isso aqui! — Anthony se aproxima por trás e puxa o
celular da minha mão.
Com qual direito você acha que pode pegar meu celular assim? —
—
Sinto meu rosto esquentar de raiva e ele me ignora, mexendo sem deixar que
eu veja.
— Shh, tente não ser insuportável uma vez na vida, por favor — nem ao
menos levanta o olhar para mim.
— Você já ouviu falar em privacidade? — Retruco indignada e me
estico, tentando puxar o celular de volta, mas ele se vira, sem deixar que eu
consiga.
— E você já ouviu falar em caixa de spam? — Vira novamente,
mostrando o celular para mim.
E ali está o e-mail que não achei que fosse receber: a vaga na Vann
Empreendimentos é minha. Ou era, porque o e-mail havia sido enviado na
segunda-feira, hoje já é sexta e eu não respondi ainda.
Sei que estou com a sobrancelha franzida, enquanto encaro a tela, mas é
impossível estar de outro jeito, já que eu não achei que fosse conseguir.
— Você nem gosta de mim, Anthony — ele revira os olhos na mesma
hora.
— Não é sobre gostar ou não, Dias. É sobre eu precisar de uma pessoa
que dará conta da pressão e que não vai abaixar a cabeça quando os idiotas
da empresa caírem matando em cima do meu trabalho. — Anthony não tira
os olhos azuis de mim, então dá de ombros e coloca as mãos nos bolsos. —
As outras candidatas chorariam no instante em que a primeira merda
acontecesse, já você…
— Complete a frase se tiver coragem! — Cruzo meus braços desafiando-
o, porque ele está dando a entender que eu faria os outros chorarem.
— Não preciso completar, você sabe exatamente do que estou falando —
Anthony me desafia de volta. — Vai aceitar ou devo procurar outra
insuportável?
— Se você continuar me chamando assim, vai ser difícil não brigar com
você — retruco e ele dá um pequeno sorriso de lado, que me faz sorrir
também. Por dentro, é claro. — Tem certeza disso?
— Não, Dias… Eu vim falar com você pessoalmente porque tenho uma
fila de outras opções, tão insuportáveis quanto, só esperando por mim. —
Finaliza ironicamente. O sorriso virando puro deboche, o que me faz fechar
a cara imediatamente.
— Eu quero um aumento. — Falo séria, sem dar abertura nenhuma e
deixando-o surpreso. — Acho que é justo, já que, além de assistente e
advogada, você quer que eu seja seu cão de guarda particular contra seus
superiores e funcionários.
— Não vou te dar um aumento.
— Então, espero que você tenha bastante lencinho para enxugar as
lágrimas de quem ocupar meu lugar, vai precisar.
Começo a me afastar, porque sei que estou no controle. Ele me procurou,
ele veio atrás de mim para saber se eu ia ou não aceitar a vaga. E se Anthony
MacMillan quer tanto assim que eu trabalhe para ele… Ele vai aumentar
meu salário.
— 10% a mais — fala, me fazendo parar de andar sabendo que estou
conseguindo o que quero.
— 50%!
— Você está ficando completamente louca — dá uma risada
desacreditada e, então, fica sério novamente, vendo que não estou brincando.
— 20%.
— 40%! — Dou um passo para frente com o nariz empinado, os olhos
sem vacilar.
— 25% — Anthony também se aproxima e posso ver o quanto está se
esforçando para que eu desista. O maxilar está apertado, deixando o rosto
anguloso e marcado. Sua sobrancelha está franzida e os olhos poderiam ser
assustadores, se não fossem tão bonitos.
— 30% é minha última oferta — falo devagar, a voz firme, o rosto com
as expressões suaves, diferente das dele. Entretanto, Anthony é imprevisível,
difícil de ler. Ao mesmo tempo que parece não ceder, e vai simplesmente se
virar e ir embora, é como se estivesse lutando contra a vontade de aceitar.
Anthony suspira, leva a mão até o bolso da calça, puxa o celular e digita
algo sem tirar os olhos de mim. Não faço a menor ideia do que está fazendo,
quando o vejo colocar o aparelho na orelha.
— Elizabeth, mande o RH revisar o contrato da senhorita Dias e coloque
um adicional de 30% sobre o valor do salário dela, não precisa especificar.
— Fica em silêncio por alguns segundos, até me dar um sorriso vitorioso. —
Na verdade, especifique sim. Coloque que o adicional é por ela ser uma
grande insuportável. Obrigado.
— Você não está falando sério — aperto os lábios tentando conter o
sorriso e ficar séria, como ele.
— Acho que você só vai descobrir quando receber o contrato —
Anthony passa a mão no cabelo, jogando-o para trás. — Então, temos um
acordo?
Estendo minha mão para ele, que a olha por alguns segundos como se
estivesse pensando se iria segurá-la ou não, mas segura. Seu aperto é firme e
os dedos gelados envolvem o dorso da minha mão como uma pedra de gelo.
— Por um acaso você é um vampiro? — A pergunta escapa antes que eu
consiga pensar direito. Tenho certeza que já está arrependido de sua decisão,
porque revira os olhos e se vira.
— Te vejo segunda, no escritório.
Anthony apressa o passo em direção ao auditório, me deixando sozinha
no hall. É impossível não sorrir, porque eu acabei conseguindo um combo
completo com aquele emprego.
E vamos para a lista de prós e contras dessa decisão:
Pontos positivos
- Ótima empresa para pôr no currículo;
- Salário bom e com benefícios;
- Poderei trabalhar como infiltrada para a Ordem.
Pontos negativos
- Olhar para a cara de Anthony MacMillan todos os dias;
- Obedecer suas ordens.
inha cabeça lateja de tanta informação que tive que escutar, escrever e
M
decorar nas últimas horas. Talvez eu tenha subestimado um pouco o
emprego na Vann. Ou melhor, o emprego com Anthony, já que ele é exigente
de uma forma que assusta até mesmo a mim.
São muitos documentos, compromissos e reuniões, dia após dia. Não me
surpreende ele estar sempre emburrado e de cara fechada. Se ele cometer um
erro sequer, os outros departamentos caem matando em cima dele e dos seus.
Tenho que fazer tantas coisas amanhã, incluindo comparecer em quatro
reuniões e, no meio tempo, garantir que os documentos estejam certos para
que ele dê uma última olhada antes de passar adiante. São autorizações
orçamentárias, contratos de prestação de serviços e compras de materiais de
projetos que acontecem nos outros departamentos.
Não faço ideia de como cheguei em casa depois de ter meu cérebro
derretido pela voz rouca de Anthony ecoando em meu ouvido, só sei que
estou jogada no sofá há tanto tempo, que não faço ideia de que horas são.
Meu celular toca, mas ele está em cima do rack, do outro lado da sala —
que, apesar de pequena, parece ter quilômetros de distância de onde estou.
Deixo tocar, provavelmente é a Mila e ela vai superar ser ignorada uma vez
na vida.
I nclusive, se estivesse aqui, estaria fazendo alguma coisa para eu comer
e falando que tá tudo bem ser ociosa às vezes. Que mesmo com minha
cabeça borbulhando, eu não posso voltar pro escritório e começar a trabalhar
para adiantar o dia seguinte.
Ou posso?
Se eu arranjar forças para me levantar, talvez eu possa me arrastar de
volta até lá, ou pedir um Uber…
Agora que já superei o dia, faz sentido toda a tensão ali. Imagina uma
menina assustada, tendo que lidar com o Anthony falando mil coisas
seguidas, uma caixa de e-mail lotada e ligações que não param. Sem contar o
humor da Elizabeth, os olhares dos outros funcionários e todos cochichando
sobre você.
Será que o escritório dos senhorzinhos ainda está precisando de alguém?
Aquele emprego me parece muito promissor agora, sabendo que vou ter paz
e, principalmente, porque não senti energia pesada lá.
Eles têm plantas e um gato no escritório, esse provavelmente é o motivo.
Alguém bate à porta e eu viro a cabeça para olhá-la, me mantendo em
silêncio, porque só pode ser o zelador. De manhã, encontrei com ele e falei
sobre a goteira no chuveiro, pedi uma ajuda para arrumar e ele falou que
passaria aqui depois. Tola inocente.
A batida se repete e só penso em continuar ignorando, mas não consigo,
coitado. O trabalho mental cansa tanto quanto o físico, e é como se eu
tivesse participado de uma maratona de triatlo.
Me levanto com um suspiro alto e, antes de abrir a porta, tento sorrir de
forma gentil.
— Estava começando a ficar preocupado, quase liguei para a polícia.
Preciso levantar a cabeça para ver o rosto de Charlie, que carrega aquele
sorriso travesso que só ele tem.
— O que você está fazendo aqui?
— Sabe aquele restaurante japonês que passamos em frente, no final de
semana? Estava aqui por perto e pensei que você fosse querer comer alguma
coisa para comemorar o primeiro dia de trabalho.
Abaixo o olhar para as sacolas que ele está carregando e sinto o cheiro
delicioso de yakissoba e rolinho primavera saindo das embalagens.
— Eu nem tomei banho ainda, devia ter me avisado que vinha.
— Eu te liguei e mandei mensagens, foi você quem escolheu me ignorar
— Charlie faz um biquinho, fingindo estar triste e me pergunta
silenciosamente se vou deixá-lo entrar ou não.
Dou um passo para o lado e abro mais a porta, é claro que vou deixar.
Ele dá um beijo em minha bochecha e anda direto até minha cozinha.
— Para sua informação, não escolhi te ignorar, só estava deitada no sofá,
esperando minha alma voltar para o corpo. — Acompanho-o e apoio o corpo
em cima do balcão, observando enquanto ele abre os armários e paga pratos,
talheres e copos para nós dois. — Você não precisava ter feito isso…
— Ah, por favor, Dias! — Charlie revira os olhos e apoia as duas mãos
na bancada, fitando meus olhos. — Não posso inventar uma desculpa para te
ver?
Levanto uma sobrancelha e, silenciosamente, lhe dou um olhar de
advertência. Sem namoro. Esse é o nosso combinado e já passamos o final
de semana inteiro juntos.
— Por que vocês, brasileiros, acham que tudo é mais sério do que
realmente é?
— São vocês, ingleses, que tem mania de dar um beijo e já estar
namorando a pessoa — devolvo a provocação.
— Não, gringa… Esses são os americanos.
— Tem razão.
— Eu sempre tenho. Já falei que seu sotaque é lindo? — Charlie dá uma
piscadela e abre as caixinhas quadradas, que estão com um cheiro
maravilhoso. — Comprei vegetariano para você, não faço ideia do que tem,
mas sei que não tem carne.
— Certo — suspiro e olho para o corredor. A preguiça tomando meu
corpo novamente. — A comida vai esfriar, mas eu preciso tomar um banho.
— Vamos fazer o seguinte: se você demorar demais, eu mesmo vou te
resgatar do chuveiro.
— Isso deveria me apressar? — Provoco cruzando os braços no peito e
Charlie morde a boca. A visão dele pelado na minha cama é muito boa,
agora, molhado no meu chuveiro… Sacudo a cabeça e afasto a imagem da
mente, quando dou um pulo do banco. — Volto já.
Mesmo com a tentação de ver Charlie abrindo a porta do banheiro, tomo
um banho rápido, porque minha barriga está roncando. Se não fosse por ele,
eu comeria qualquer biscoito que estivesse no armário e isso teria que bastar
até o dia seguinte, para quando eu passasse por alguma cafeteria a caminho
da faculdade.
uando volto para a sala, encontro Charlie à vontade na frente do fogão,
Q
esquentando nossas comidas na panela, já que não tenho microondas. Sento
na bancada e cheiro o ar, sentindo o aroma delicioso tomar conta de meus
sentidos.
Não consigo tirar os olhos dele, que está com a manga dobrada, os
braços cheios de sardas à mostra, enquanto coloca o que parece ser o meu
yakissoba em um prato. Sei que não foi ele quem cozinhou o jantar, mas é
impossível ignorar o formigamento no meio das minhas pernas por ter um
homem desses na minha cozinha.
Nós comemos ali mesmo, um de frente para o outro, e Charlie me conta
que as aulas de música com os caras da DownUnder vão acontecer em breve.
Thomas conseguiu combinar tudo com eles e as crianças ficaram muito
animadas. Até quem não toca música, se inscreveram só para assistir.
— Depois me fala quanto que eu te devo — falo pegando os pratos e
dando a volta no balcão para levá-los até a pia.
— Nada — ele me acompanha com o olhar e apoia o corpo na bancada.
— Você tem que parar de ficar comprando comida para mim nos lugares
— o repreendo. — Caso você não se lembre, eu sei muito bem onde você
trabalha e o quanto ganha.
— Está me chamando de pobre na cara dura? — Charlie coloca a mão no
peito, fingindo estar ofendido.
— Não! — Defendo-me e começo a rir. — Tá, talvez…
— Nunca mais trago comida para você — ele nega com a cabeça e eu
volto minha atenção para os pratos que estou lavando.
— Inclusive, você não me contou como entrou no prédio.
— Sua vizinha estava saindo e me deixou subir — vejo seu sorriso
extremamente convencido por cima do ombro. No final de semana, ele
passou mais de uma hora conversando com a senhora que mora no
apartamento ao lado. Conquistou a velha.
— E se você fosse um assassino ou um louco que me persegue? Isso é
um absurdo, vou ter que levantar essa pauta na próxima reunião de
condomínio. — Termino de lavar a louça e faço meu drama olhando para
ele, que está se divertindo com a situação.
— Quer que eu compareça para ressaltar os perigos dela ter me deixado
entrar?
Charlie levanta a sobrancelha e coloca as mãos na minha cintura, me
puxando para perto dele devagar.
Bom… E quais seriam os perigos? — Mordo meus lábios e aproximo
—
nossos corpos, quase encostando nele.
— Ah, são vários… — Charlie levanta meu queixo devagar e sua
respiração se choca contra a minha. — Mas acho que o principal são os sons
altos que você faz quando estou aqui.
— Sons altos? — Passo os lábios nos dele e ele sorri.
— Você tem uma mente muito poluída, eu estava falando de quando te
faço rir.
Mordo seu lábio e ele envolve a mão ao redor da minha cintura, me
levantando um pouco antes de começar a me beijar lentamente. Beijo bom
pra caralho, é só nisso que consigo pensar quando sua mão entrelaça no
cabelo da minha nuca. Colo nossos corpos e o escuto soltar um pequeno
suspiro quando coloco a língua na sua boca.
— Você não me contou como foi hoje — Charlie se afasta um pouco e
tira o cabelo do meu rosto.
— Cansativo — abraço sua cintura e me mantenho olhando seu rosto. —
A última funcionária deixou uma bagunça para eu arrumar, acho que eles
tinham um caso… — Sussurro a última parte e Charlie arregala os olhos, ele
adora uma fofoca.
— Existem rumores de que ele fica com todo mundo, mas está
prometido a alguém. — Charlie conta alegre, mas fecha a cara. — A família
dele é um lixo, todos esses ricos são. Ele pelo menos te tratou bem?
— Tratou. Ele é complexo, sabe? — Penso nas horas que passamos
juntos trabalhando e em como ele estava focado, sem ironias. — Quando
chegou, agiu com o nariz em pé e me deu algumas patadas, mas foi
diferente. Ele estava mais… aberto, talvez? Seu tom de voz era o mesmo,
mas a expressão, a postura do corpo…
Lembro de como ele foi atencioso me explicando as coisas que precisava
e como sua voz aveludada se manteve tranquila e paciente, mesmo quando
eu não parava de fazer perguntas.
— Bom, ele te contratou e você vai ficar responsável por muitas
coisas… Ele precisa manter um bom relacionamento entre vocês.
— É, mas não sei… Enfim, Anthony MacMillan é um mistério muito
complicado para desvendar. O ponto positivo do dia foi: não brigamos, pelo
menos não de verdade.
— E você descobriu alguma coisa interessante para nós?
— Não tive tempo — solto a cintura de Charlie e suspiro, pensando
no que tenho que fazer amanhã pela primeira vez, desde que ele apareceu na
minha porta. — Passei praticamente o dia inteiro com ele, estudando seus
compromissos e como ele gosta de trabalhar.
— Mas você vai procurar, né?
— Quando eu tiver oportunidade.
— Porque esse trabalho, essa chance que você está tendo, pode mudar o
destino do Centro e até mesmo de LittleWin. — Charlie insiste.
— Eu sei, mas não é como se eu tivesse acesso a tudo no primeiro
dia. Eu mal sei entrar no sistema. — Começo a andar em direção a sala, do
outro lado do balcão.
— Você precisa prestar atenção nos documentos que chegam, procurar
por qualquer vírgula que esteja estranha. Sem contar nas provas que precisa
dar um jeito de guardar…
— O que é isso? Esse jantar foi só uma desculpa para descobrir se eu
encontrei alguma coisa para a Ordem? — Pergunto irritada, parando de
andar para olhar para ele, que está atrás de mim.
— É claro que não! — Charlie franze a sobrancelha, negando com a
cabeça.
Sei que não estou com minha melhor expressão agora, porque ele está
surpreso com a minha reação. Não quero ser usada, e é por isso que esse
“relacionamento” está tão legal, tem sinceridade envolvida.
Ou eu pensava que tinha.
— Bom, eu prefiro que você venha aqui e pergunte exatamente o que
quer saber, do que fazer todo esse teatro de “querer me ver” e trazer janta
para nós dois. — Sento no sofá, cruzando os braços e ele fica parado ao meu
lado, me olhando como se não soubesse o que fazer.
— Não, Dias, não foi teatro. Só estava curioso, desculpa se fiz parecer
que tinha outro motivo.
Ele parece estar falando sério, mas me lembro que não o conheço por
inteiro e, sinceramente, não estou nem um pouco afim de brigar e bancar a
durona agora.
— Tá bom, é que… — Dou de ombros tentando arranjar alguma
desculpa que eu possa dar. A verdade é que odeio ser cobrada dessa maneira,
principalmente por alguém com quem eu não tenho nenhuma obrigação. —
Acho que estou muito cansada, só isso.
Sei bem que não são as desculpas exatas que eu deveria dar por ter
desconfiado de sua atitude, mas, neste momento, não quero dar o braço a
torcer.
Sim, às vezes eu sou egoísta, e tá tudo bem, acontece.
— Você vai ficar de pé me encarando ou vai sentar para assistir algo
comigo? — Pergunto, puxando a coberta e dando espaço para ele sentar, só
para quebrar o clima ruim que ficou de repente.
— Eu tenho que ir embora daqui a pouco… — Charlie senta do meu
lado e coloco as pernas em cima das dele. Sinto o calor de sua mão na minha
panturrilha e arrumo as almofadas nas costas. — O que vamos ver?
— Tem aquele filme de comédia romântica que a gente começou a
assistir umas quatro vezes no final de semana. — Sugiro, procurando o filme
na televisão.
— Tá bom, mas pula os primeiros 10 minutos, porque eu já decorei as
falas. — Charlie sobe a mão para perto do meu joelho e sinto um arrepio
subir pelo meu corpo.
— Algo me diz que a gente não vai assistir o filme mais uma vez…
Charlie vira o rosto para mim com os olhos safados, a mão subindo ainda
mais pela minha perna, até chegar na parte de dentro da minha coxa, os
dedos próximos da minha virilha.
— Engraçado… Eu estava pensando a mesma coisa.
Capítulo 18
vida tem dessas, só porque você tem certeza absoluta que algo não vai
A
acontecer, acontece. É como se você fosse uma grande piada para o
universo.
Depois de duas semanas trabalhando nos documentos da reforma do
prédio no centro da cidade, Anthony liberou o meu acesso à pasta chamada
LittleWin.
Estou olhando para a tela do computador já faz alguns minutos, sem
coragem de apertar o botão de login após adicionar a senha. Faz menos de
um mês que estou trabalhando na Vann, e é muita coincidência começarmos
a mexer no exato projeto que a Ordem precisa que eu olhe.
Coincidência ou teste.
— Teste? — Pergunto-me com a voz baixa, eu só posso estar louca.
Anthony não sabe que estou na Ordem — ou, pelo menos, acho que não
sabe.
Não é como se estivesse estampado, em todos os lugares, que participo
do grupo que luta contra a empresa onde trabalho. Ele nunca perguntou
sobre o que eu faço quando não estou na faculdade ou no escritório.
É, para de paranóia, Marina.
E ainda não consegui participar de nenhuma manifestação feita pela
Ordem por causa dos meus horários, é uma droga estar tão focada na
faculdade. Caso fosse no Brasil, provavelmente já teria participado de, no
mínimo, duas ações, como a da última semana, contra o aumento do valor
dos transportes públicos. É difícil ser adulta que precisa manter uma bolsa de
estudos.
Respiro fundo algumas vezes e dou enter no teclado, só para ver a pasta
carregar com subpastas, que parecem estar cheias de documentos. Meu
coração dispara no peito e preciso me forçar a ter calma.
Isso sempre acontece quando sinto que estou fazendo algo que não
deveria. Eu e essa merda de senso de justiça que não entende que está tudo
certo, já que estou ajudando quem merece. Foda-se meu emprego e os
MacMillan, eles estão fodendo com muitas pessoas e tenho a oportunidade
de ajudar LittleWin.
Mas se eu sei de tudo isso, porque estou sentindo esse aperto tão grande
no peito? É quase como se eu estivesse errada, traindo meu chefe. Talvez
realmente esteja um pouco...
Não!
Não estou.
Balanço minha cabeça e respiro fundo para afastar o pensamento da
minha mente. Faço um coque em meu cabelo, que estava solto e me
incomodando.
Tudo está me incomodando agora.
Olho para o celular ao meu lado e, em seguida, me certifico que as
cortinas da sala estão realmente fechadas, não estou nem um pouco a fim de
ter que lidar com os olhares de julgamento hoje. Não depois do que
aconteceu no começo da semana, quando fui buscar café na copa e escutei
duas funcionárias da administração falando sobre mim e minhas roupas.
Aparentemente, eu deveria receber uma notificação do RH para que eu
me vista menos como uma “estudante de artes” e mais como uma advogada
digna de trabalhar para o filho do chefe. O mais ridículo delas pensarem
assim é que Anthony nunca reclamou sobre minhas roupas, nem mesmo deu
indício de não gostar do que visto.
Claro, elas falaram como se eu vestisse algo completamente inapropriado
para o ambiente de trabalho e não os suéteres, calças e saias compridas o
suficiente. O problema delas é que eu não uso salto fino? Pois gostaria de
saber o que elas achariam depois de passar o dia inteiro acompanhando
Anthony em diversas reuniões, não só no prédio, usando um salto que mais
atrapalha do que ajuda.
— Deve estar fodendo o senhor MacMillan, isso explicaria.
Foi o que as escutei falarem por último e o que me fez abrir a porta
da copa sem hesitar.
— Boa tarde meninas, tudo bem? Uma boa hora para tomar café,
não acham? — Fui direto até a máquina de café e comecei a preparar o meu,
o silêncio dizia muito mais do que elas imaginavam. — Ainda não recebi a
devolutiva dos documentos que te enviei ontem, senhorita Jones. Espero que
meu código de vestimenta não esteja te atrapalhando tanto a ponto de
atrasar o seu trabalho.
— Não, de jeito nenhum. — Ela gaguejou, negando com a cabeça.
— Ótimo, precisava deles prontos na parte da manhã, já que são
prioridade, e não recebi seu e-mail ainda. Sugiro que a senhorita dê uma
boa olhada para si mesma antes de apontar o dedo para os outros. —
Peguei meu café e sorri para elas, como se fosse somente mais um dia
normal, e fui para o corredor. — Se não gostar da maneira que trabalho,
pode reclamar direto com o senhor MacMillan, que é a única pessoa para
quem eu devo satisfação neste escritório. Tenham um bom dia.
Sei que elas ficaram alguns segundos sem respirar quando saí da sala,
da mesma forma que sei que a fofoca correu pelo escritório, já que todos os
cochichos sobre mim pararam de ser tão descarados como antes, apesar dos
olhos estarem mais atentos. Eu sou a pessoa mais boazinha e carinhosa que
conheço, mas em hipótese alguma mexa comigo.
Existe um limite até onde minha empatia alcança.
Na tela na minha frente, noto que as pastas estão separadas pelos
nomes das ruas de LittleWin e não faço ideia de qual é a rua do Centro, só
sei como chegar até lá. No automático, pego o celular e mando mensagem
para a única pessoa que me responde praticamente na mesma hora.
Uma coisa que eu não esperava que acontecesse nesta noite: assistir
de camarote um confronto entre Anthony e seu pai. Estamos no meio das
pessoas, que seguem conversando e se dirigindo às suas mesas, quando
Anthony me solta e apressa o passo. Acompanho-o com o olhar por alguns
segundos e o sigo até o bar.
— Um Whisky duplo, sem gelo — escuto-o pedir e paro ao seu lado.
— Anthony, tá tudo bem? — Pergunto preocupada e ele vira todo o
conteúdo do copo de uma vez. Vejo seu pomo de adão se movimentar com o
gole exagerado antes de me encarar.
— Está tudo incrível, Dias. Ou você não estava do meu lado nos
últimos minutos? — Seu tom debochado e maldoso me surpreende. Não
esperava que fosse falar comigo dessa forma.
Como se a culpa da briga entre ele e seu pai fosse minha. Ele deve ter
se esquecido que eu não permito que alguém fale comigo assim,
independentemente de quem seja.
— E o que foi que eu fiz para ter sua frustração descontada em mim?
— Meus olhos estão fixos nos dele, que carregam puro ódio.
— Mais um — estende o copo para o bartender, sem quebrar o
contato visual comigo, e vira outra dose.
Parece me desafiar, me culpando pelo o que aconteceu.
Uma mulher sobe no palco com um microfone na mão e dá boa noite
para todos os convidados. Anthony passa a mão no cabelo e começa a se
afastar sem falar mais nada, me deixando sozinha no bar. Observo-o
caminhar em direção à nossa mesa, e preciso respirar fundo para não ir atrás
dele tirar satisfação.
Eu deveria estar irritada pela forma que o pai dele falou comigo, sem
respeito algum por mim e por minha cultura. Me senti como se eu fosse
descartável. A indignação começa a tomar conta, afinal, é difícil ser uma
pessoa que, apesar de tentar entender o lado de todo mundo, não leva
desaforo para casa e, às vezes, só queria falar todos os palavrões existentes
na língua portuguesa.
Apesar da vontade de tirar satisfação com Anthony, resolvo não criar
caso. Aprendi há muito tempo que precisamos escolher nossas batalhas, e
discutir com o meu chefe por ter sido um idiota não é uma batalha
inteligente para enfrentar agora.
Não quando tenho contas para pagar e um trabalho importante com a
Ordem em andamento. É nisso que me mantenho focada.
Olho ao redor, só para me certificar de que ninguém viu o que
acabou de acontecer e, felizmente, não há ninguém prestando atenção.
Apesar de escolher não brigar, não sou saco de pancadas para receber
socos só por estar presente quando uma merda acontece. Eu que deveria agir
dessa forma. Em uma atitude impulsiva, pego meu celular e abro o aplicativo
do Uber, adiciono meu endereço e espero a internet escassa do local carregar
o valor da corrida.
Eu me recuso a ficar aqui mais um segundo.
Assim que o aplicativo carrega, arregalo meus olhos em choque,
porque o valor da corrida está muito mais alto do que eu imaginei.
Principalmente, quando o que ganho em libra não me permite viver sem
depender da minha mãe, pela carga horária pequena.
Em um mundo ideal, eu mandaria tudo pelos ares, levantaria a
cabeça e iria embora da festa agora, neste instante. Mas esta é a vida real e,
nesse universo, eu preciso de um trabalho e as boas conexões que a Vann
Empreendimentos me oferece. Sem contar que eu posso ajudar muito a
Ordem com esse emprego.
Recuso-me a ir embora com ele, então vou precisar estar bêbada
quando der o ok na corrida, no final da noite.
Respiro fundo, bloqueio o celular, peço uma mimosa e, assim que o
bartender entrega a bebida em minha mão, ando até a nossa mesa, ocupando
o lugar vago ao lado de Anthony.
Ele nem ao menos se move, então mantenho minha atenção no palco
à nossa frente, no exato momento em que a mulher anuncia o senhor
MacMillan. O homem levanta de sua mesa, cumprimentando todos com um
sorriso grande e caloroso no rosto, como se não tivesse acabado de brigar
com o filho e ser preconceituoso comigo. Como se não tivesse roubado um
momento importante que era para ser da própria mãe.
Não consigo processar todas as palavras do discurso que faz sobre o
Instituto, dando ênfase a todo momento nas empresas Vann e no quanto é de
interesse deles ajudar na pesquisa do tratamento de câncer de mama.
Se eu não soubesse o que acabou de acontecer, até diria que o
Anthony está feliz e satisfeito com o que estamos presenciando. Isso só me
mostra o quão bem ele sabe jogar esse jogo de aparências e poder.
Um garoto aparece no palco segurando um cheque grande e
simbólico, e o entrega nas mãos dos responsáveis pela Instituição. Enquanto
todos batem palmas para o Prédio de Pesquisas e Estudos Vann, tudo o que
consigo sentir é meu estômago revirar.
Em seguida, a sobremesa é servida e a próxima hora passa devagar,
com conversas superficiais com desconhecidos. Anthony recebe
agradecimentos dos convidados, sempre mantendo o sorriso no rosto como
se o que aconteceu fosse exatamente como esperava, não o oposto.
— Você também está morrendo de tédio? — Um homem, um pouco
mais velho do que eu, se aproxima, ficando ombro a ombro comigo.
— De jeito nenhum, a noite está incrível — tento manter o sorriso e
ele me olha desacreditado, levantando uma sobrancelha e esperando pela
verdade. — Talvez um pouquinho.
Dou risada e ele concorda com a cabeça. Ele é moreno, com olhos
castanhos, cabelo raspado e uma cicatriz na sobrancelha. Bonito, e não sei
como não o notei durante toda a noite.
— Vicenzo Rossi — estende a mão para mim e eu a aceito.
— Marina Dias.
— Gringa? — Pergunta e eu dou de ombros, respondendo
silenciosamente. Ele assente e solta um suspiro cansado. — É bom não ser o
único. Sou da Itália, e você?
— Brasil…
— Ah, eu devia ter apostado com os meus amigos. — Fica
decepcionado, o que me faz rir. Agora que falou da onde é, consigo apreciar
melhor seu sotaque sexy. — Sabe, a pior parte do meu trabalho é vir nesses
eventos e precisar puxar o saco dos endinheirados para conseguir
financiamento.
— Você trabalha para o Instituto? — Pergunto curiosa e ele
confirma.
— Sou pesquisador, estou tentando descobrir formas mais eficazes e
rápidas de impedir o desenvolvimento das células cancerígenas.
— Uau, isso parece importante — agora é sua vez de dar de ombros,
acompanhado de um sorriso nada convencido. — Mas como você tem tanta
certeza que eu não sou uma endinheirada? Pode estar perdendo uma boa
bolada para sua pesquisa agorinha.
— Acredite, esse é um dom que adquiri depois de tantos eventos.
— O dom de reconhecer um pobre no meio dos ricaços? — Finjo
estar ofendida e ele nega.
— O dom de reconhecer iguais.
Tá, essa foi uma jogada boa, porque não consigo controlar o pequeno
sorriso sincero que surge em meu rosto.
— E você? O que está fazendo aqui? — Ele parece interessado no
que tenho a dizer.
— Estou acompanhando meu chefe. Então, estou aqui tanto a
trabalho quanto você.
— E quem é seu chefe?
— Anthony MacMillan — mordo a bochecha, com medo de estragar
a conversa, que está divertida. Mas se estava de olho em mim e apostando
com os amigos minha nacionalidade, talvez já soubesse a resposta dessa
pergunta e se aproximou exatamente pelo endinheirado que passou a noite
ao meu lado.
— Então, depois de hoje, isso faz de nós empregados da mesma
empresa — Vicenzo concorda e pensa em algo por alguns segundos. —
Existe alguma regra que impeça colegas de trabalho de saírem em um
encontro?
Levanto as sobrancelhas de forma surpresa. Não esperava por isso,
mas o sorriso que insiste em aparecer no meu rosto me entrega. Gostei da
sua ousadia.
— Acho que não, principalmente se trabalharem em áreas
completamente diferentes.
— Nesse caso, o que acha de sairmos daqui para comer alguma coisa
decente?
— E quem disse que eu quero sair com você? — Brinco, assustada
com o quão direto ele é.
— Você está sorrindo, acho isso um bom indicativo.
— Dias — Anthony se aproxima, parando a conversa e deixando o
olhar em Vicenzo por alguns segundos. — Interrompi alguma coisa?
Sim, é o que quero responder, sendo tão grossa quanto ele foi
comigo.
— Já conheceu o senhor Rossi? Ele é um dos pesquisadores que
trabalhará no novo espaço de pesquisa. — Tento manter o nível de educação
que tive desde o acontecido e Vicenzo sorri.
— É um prazer, senhor. — Vicenzo fala gentilmente e Anthony
apenas aperta um sorriso, ainda olhando o homem de cima a baixo.
— Espero que façam bom uso das instalações. — Sem dar muita
abertura, se vira para mim. — Já podemos ir embora.
Finalmente esta noite interminável chegou ao fim. Se ele está indo
embora, então não preciso continuar ao seu lado, fazendo companhia e
aturando as conversas.
— Certo, então… — olho para o italiano sem saber o que fazer.
— O convite ainda está de pé. — Vicenzo carrega simplicidade na
voz, mas o olhar de Anthony em cima de mim está me causando um
desconforto tão grande, que tenho certeza que não serei a melhor das
companhias.
— Quem sabe outro dia? — Aperto os lábios e ele confirma. — Foi
um prazer te conhecer, boa sorte na caçada.
— O prazer foi meu, Marina Dias. Senhor MacMillan.
Anthony se despede com um aceno e, quando o italiano se afasta,
vejo-o empinar o nariz e começar a atravessar o salão, indo em direção à
saída. Pelo menos, consegui me superar e ficar até o final, ainda que minha
vontade fosse de ir embora assim que Anthony foi um idiota comigo. Ainda
flertei com um cara gato e inteligente.
O frio me atinge com força no instante em que chegamos ao lado de
fora e alguns poucos fotógrafos nos observam curiosos, enquanto descemos
as escadas. Diminuo a velocidade, deixando Anthony à minha frente e abro o
aplicativo do Uber. Sim, a corrida está ainda mais cara agora, mas não posso
ir embora com ele.
Hoje a linha de limite foi estabelecida, uma que não havia sido
cruzada em nenhuma de nossas briguinhas e discussões anteriores. Ele pode
não ter gritado ou falado coisas estúpidas, mas a frieza de suas ações
significou mais do que todo o resto.
A grande merda disso tudo é que eu me conheço. Será difícil
conseguir trabalhar ao seu lado, fingindo que nada aconteceu. Antes que eu
me dê conta, vou ignorar, alfinetar e respondê-lo da mesma maneira que me
tratou horas atrás.
Esse é um dos defeitos que mais odeio em mim, eu realmente sei ser
difícil de lidar às vezes.
O mais inteligente é manter nosso contato estritamente profissional
desse dia em diante. Dou ok na corrida — e ainda bem que adoro comer pão
com ovo, porque essa será minha comida por alguns dias para repor esse
gasto extra — e o aplicativo começa a procurar um motorista que possa me
buscar.
— O que está fazendo? — Anthony pergunta com a sobrancelha
franzida no instante em que chego ao seu lado na calçada.
— Chamando o meu Uber — respondo com obviedade e, no instante
seguinte, o celular vibra, sinalizando que minha corrida foi aceita.
— Achei que o acordo fosse eu te dar carona — Anthony continua
com a mesma expressão, mas suaviza o rosto quando escuta alguns flashes
sendo disparados.
Olho para trás e mantenho a expressão tranquila. A urgência de falar
tudo o que penso e quero dizer a ele aumenta bruscamente. Segure-se,
Marina!
— É melhor eu ir sozinha, senhor MacMillan.
Chamo-o como todos os outros funcionários e vejo sua surpresa no
instante em que as palavras saem pela minha boca.
— Sem fazer drama, Dias. Vamos, cancele a corrida. — Anthony fala
com a voz baixa e faz sinal para o valet trazer seu carro.
Finjo que não escutei e levanto o queixo para o lado em que os carros
chegam. Quando vejo que a rua está deserta, abro meu aplicativo novamente
para me certificar do número da placa e ver quanto tempo o motorista ainda
vai demorar.
Dez minutos.
— Por favor, não me faça brigar com você aqui. — Falo e olho
disfarçadamente para os fotógrafos atrás da gente. Sei que, apesar da minha
voz leve, meus olhos transmitem toda a raiva que estou sentindo.
— Então, pare de ser orgulhosa, cancele a corrida e me deixe te levar
embora. Como combinamos.
— Você acha que pode ter tudo na hora que quer, não é? — Minha
voz está calma e Anthony cerra os olhos. — Eu só vou falar porque me
conheço e sei que não vou descansar se não fizer isso, mas eu não sou idiota.
Concordei em vir porque você praticamente implorou por companhia e eu
teria a folga. Só que a forma que me tratou depois que… você sabe, não foi
nem um pouco aceitável. Fiquei porque preciso do trabalho e do dinheiro.
Você é um ótimo chefe e um ótimo líder, e eu gosto de trabalhar com você
na maior parte do tempo, mas hoje você realmente agiu como um idiota
arrogante.
Anthony pisca os olhos algumas vezes e morde os lábios,
concordando antes de virar para a frente, como se absorvesse o que falei.
Legal, acho que posso esperar pelo meu aviso de demissão na
segunda-feira.
— Você tem razão. — Fala depois de alguns bons segundos em
silêncio, o que me faz franzir a sobrancelha assustada. O que? — Agi
exatamente como um filho do meu pai, e esse não é um fardo que quero
carregar na minha vida profissional. Já tenho que suportar muito por
compartilhar o sangue dele.
Não sei o que responder, então apenas concordo e fico em silêncio.
Seu carro chega em seguida e o garoto o deixa ligado.
— Nós combinamos que eu te daria carona, é o mínimo que posso
fazer. — Ele anda até o carro e abre a porta do passageiro, indicando para eu
entrar com um olhar firme, mas gentil.
Miro meu celular, e faltam 6 minutos para o carro chegar. Foco no
valor da corrida e volto-me para Anthony, que ainda espera, pedindo
silenciosamente para eu entrar.
Merda.
— Só vou aceitar porque a corrida está cara — deixo claro no
instante em que me aproximo e ele abre um sorriso convencido, enquanto
entro em seu carro.
Quando fecha a porta, mando uma mensagem para o motorista do
aplicativo pedindo desculpas e em seguida cancelo a corrida. Coloco meu
cinto e Anthony entra, nos levando para longe da festa, em silêncio.
Meu pé lateja, então tiro o salto e solto um suspiro de alívio com a
sensação boa de liberdade. Eu nunca conseguiria trabalhar o dia inteiro com
um sapato desses. Nunca.
Vejo Anthony pelo canto de olho e sinto que me traí. Estava tão
irritada e decidida a colocar um limite entre nós, mas aqui estou eu, dentro
do carro do idiota do meu chefe só porque ele pediu.
— Eu não sei o que falar — Anthony quebra o silêncio depois de
alguns minutos.
— Não precisa falar nada — dou de ombros e sigo olhando para a
frente, vestindo os resquícios do que restou da minha feição tranquila.
— Então, por que eu sinto que preciso?
— Talvez, porque saiba que foi um idiota — a frase escapa da minha
boca, o que me faz apertar os lábios, me reprimindo.
— É, talvez seja isso mesmo — Anthony concorda de novo e volta a
ficar em silêncio. Reflexivo, eu diria.
— Ok, isso tudo está muito estranho — viro o corpo em sua direção.
— Em vez de retrucar e brigar comigo, você está concordando?
— Sei reconhecer quando faço merda, Dias — Anthony vira a cabeça
para mim quando para no sinal. — E não sou mais um adolescente. Se essa
noite tivesse acontecido na minha época de escola… Acho que nós dois
realmente entraríamos em uma briga feia.
— Ah, eu tenho certeza disso. Eu não tinha muito filtro quando era
mais nova. — Concordo e olho para fora da janela. — Demorei um tempo
para aprender quando falar e quando ficar quieta. Ainda tenho dificuldade
hoje em dia, mas acho que percorri um bom caminho.
— Te irritei muito hoje?
— Eu quis te largar sozinho pelo resto da noite e pedir demissão —
assumo.
— E o que te impediu?
Não sou louca em comentar sobre meu trabalho secreto para a
Ordem, então tenho que responder com a segunda alternativa.
— No dia da entrevista, falei que precisava do dinheiro, lembra? Eu
estava falando sério. Não dá para ficar aceitando ajuda da minha mãe para
sempre, e é muito difícil arranjar alguma vaga com horário bom para eu
continuar estudando. A libra custa seis vezes mais que o real e realizar esse
sonho não é barato.
— Eu deveria te pagar mais, não deveria? — Anthony franze a
sobrancelha.
— É o valor justo para o cargo e o horário — dou de ombros —, pelo
menos agora é, depois que tive o aumento por ser insuportável.
Olho para ele em desafio e o vejo apertar os lábios, escondendo um
pequeno sorriso antes de voltar a ficar sério.
É confuso tentar entender o que estou sentindo agora, mas parece que
ele consegue me irritar com a mesma facilidade que dilui minha raiva, se é
que isso faz sentido. É como quando estamos andando na rua, nos
encolhendo de frio, e entramos em algum lugar aquecido. Nosso corpo
relaxa e as partes geladas começam a esquentar lentamente, deixando os
músculos confortáveis novamente.
O silêncio entre nós dura mais alguns minutos, até Anthony fazer
uma curva e entrar na fila do drive thru de um McDonald's 24 horas.
— O que você está fazendo?
— Você disse que queria McDonald's — responde, enquanto avança
o carro.
— Anthony, não precisa fazer isso. Eu estava… Sei lá, achei que
estávamos nos dando bem, por isso sugeri...
— Ah, voltou a me chamar de Anthony? — Sorri de lado, o que me
faz fechar a cara.
— Senhor MacMillan — corrijo e ele nega.
— Tarde demais — ignora minha tentativa de consertar o que falei e
para em frente ao primeiro totem, enquanto tento fazê-lo mudar de ideia. —
Dois combos vegetarianos com Coca-Cola, por favor.
— Mais alguma coisa? — A atendente pergunta e ele repete a
pergunta para mim com olhos pidões.
— Você é impossível, parece aquelas crianças que não desistem até
ter o que querem! — Falo em português para ele não entender e me dou por
vencida. — Milkshake de chocolate?
— Um milkshake de chocolate e outro de morango.
— É só fazer o pagamento na próxima cabine, senhor — a atendente
finaliza e Anthony segue a fila com apenas uma mão no volante e o sorriso
convencido no rosto.
Abro minha bolsa para pegar meu cartão, mas no instante em que
seguro minha carteira, Anthony a tira de mim.
— Você tem que parar com essa mania de tirar as coisas da minha
mão.
— E você tem que parar com essa mania de sempre querer ser
independente e brava o tempo inteiro. — Para o carro e olha para mim, ainda
segurando a carteira na mão. — Você é uma estagiária que já reclamou do
salário que recebe e eu sou, segundo suas próprias palavras, um mimado.
Certo?
Lembro-me do que falei mais cedo, quando ele chegou para me
buscar, e sinto minhas bochechas esquentarem.
— Então me deixe gastar o dinheiro que herdei do meu amado pai —
debocha revirando os olhos —, pagando um lanche ruim para você.
— Devolve minha carteira — estico o braço para tirá-la de sua mão e
ele a entrega para mim, então pega o próprio cartão e paga os nossos
lanches.
Não demora para ficarem prontos e, enquanto Anthony estaciona, eu
equilibro os sacos e as bebidas no meio das pernas. Ele para ao lado de
outros carros com pessoas que também estão comendo seus lanches e
entrego os dele. Em seguida, abro o meu.
— Não sabia que você gostava do lanche vegetariano… — falo
baixo e dou uma mordida no sanduíche.
— Não gosto, mas não vou comer carne do seu lado — fala com
simplicidade e também morde o seu.
Um estranho formigamento toma conta do meu peito, sentindo toda a
região esquentar com o que acabei de escutar. Geralmente, as pessoas
seguem sua rotina normalmente ao meu lado, o máximo que fazem é
escolher um restaurante ou um cardápio que tenha opção para mim, mas
nunca evitam comer qualquer tipo de carne por minha causa.
Sua atitude até que é… legal.
— Meu carro vai feder a lanche ruim — retruca, fazendo meu
pequeno sorriso sumir. O momento acabou mais rápido do que imaginei.
— Você supera, é só mandar lavar — dou mais uma mordida e,
depois de engolir, continuo falando. — Pede para a Elizabeth agendar, já
percebeu que ela faz qualquer coisa que você pede em um piscar de olhos?
— Não começa, insuportável — Anthony resmunga com a voz
divertida. O mesmo tom que eu tanto escuto durante nossos dias trabalhando
juntos. — Até que demorou para você falar alguma coisa sobre ela, estava
esperando uma piadinha desde que ela comprou meu almoço e foi levar na
minha sala. Lembra?
— Se eu lembro? Ela quase me mata com os olhos todos os dias por
simplesmente existir e ter que ficar perto de você. Como se ela não soubesse
do sacrifício que é obedecer suas ordens. — Provoco de forma dramática.
— Você não obedece nada do que eu falo e sabe muito bem disso. —
Anthony rebate no mesmo instante.
— Você sabia que brasileiro é movido por fofoca? — Ele finge estar
sem paciência, fecha o resto do lanche e o joga no saco de pão. — Posso não
estar muito satisfeita com você, mas não recuso uma boa história.
— Estou deixando você comer esse lanche nojento e fedido no meu
carro e você tem a audácia de falar que não está satisfeita comigo? — Dá um
longo gole em sua Coca-Cola com os olhos azuis fixos nos meus.
— Estamos comendo no seu carro porque você quis, e eu preciso de
mais do que um simples lanche para esquecer que você foi estúpido e
descontou em mim algo que não tinha nada a ver comigo. — Falo a verdade
do que sinto, mas sem estar muito séria como mais cedo.
— A fofoca vai ajudar? — Anthony solta os ombros.
— Um pouquinho — confirmo e coloco o canudo na boca.
Vejo-o pensar se dará o braço a torcer e é impossível não admirá-lo
assim, leve e à vontade. Anthony tira o terno e dobra a camisa que está
usando, mostrando só um pouco da tatuagem no braço. Não quero encarar
muito tempo, então não consigo descobrir o que é.
— Nós saímos juntos uma semana antes dela começar a trabalhar na
Vann, não fui eu quem a contratou. Então, quando cheguei no escritório,
levei um susto por vê-la ali.
— Ela foi atrás do emprego de propósito? Por sua causa? —
Pergunto assustada e Anthony nega com a cabeça imediatamente.
— Não, foi coincidência e ela se assustou também. Saímos mais
umas duas vezes, mas ela queria mais do que eu estava disposto a entregar,
então a cortei antes de perder o controle da situação. Elizabeth não quis sair
do emprego e trabalha bem, então não iremos mandá-la embora, e é isso.
— Eu esperava algo mais emocionante — como uma batatinha com
tédio, decepcionada pela história. — Achei que, para ela me tratar tão mal,
vocês tivessem vivido uma grande história de amor.
— Minha vida é mais monótona do que você imagina.
— Você, literalmente, vive em eventos de música e lançamentos com
celebridades, produtores e um povo que eu só vejo pela televisão, e tem a
cara de pau de falar que sua vida é monótona? Por favor, se não estou na
faculdade, estou no escritório ou em casa. Nem viajar e conhecer os pontos
turísticos da região eu consegui ainda, só os mais fáceis de chegar.
— E o que você tanto faz que não consegue sair?
— Estudo e resolvo seus infinitos problemas. — Alfineto-o e ele
revira os olhos mais uma vez. Talvez eu deva começar a contar quantas
vezes ele faz o movimento com os olhos. Ele deve ter a chance de bater
algum recorde e entrar no Guinness.
— Ei… — Ele abaixa o tom de voz e finge arrumar algo no volante.
— Eu te falei que estou ciente dos boatos que estão correndo no escritório?
— Aqueles sobre você dormir com todas as suas assistentes,
inclusive comigo?
— É tudo mentira.
— Ah, que bom. Por um instante, achei que estava ficando louca,
porque esqueci que dormi com meu chefe. — Viro a cabeça para a janela,
tentando esconder a cara de indignação que faço, porque não acredito que
falei uma merda dessas para ele. Fecha a boca, Marina.
— Se você tivesse dormido comigo, não se esqueceria.
Sua voz me indica que ele está brincando, mas ao mesmo tempo… É
séria, talvez? Ou…
Não, estou ficando louca.
— Você terminou? Podemos ir? — Mudo de assunto de repente, sei que
estou corando e agradeço por estar escuro, assim ele não conseguirá ver
minhas bochechas vermelhas. Jogo o lixo dentro do saco de pão e fecho.
Anthony não liga o rádio quando volta a dirigir e seguimos em silêncio
por todo o trajeto, com minha mente repassando a conversa que tivemos e a
forma leve na qual ficamos um ao lado do outro. Era quase como se a raiva
que senti por ele não tivesse existido.
Anthony é bonito quando está assim, o braço esticado segurando o
volante, a camisa com o primeiro botão aberto e as mangas dobradas, o
cabelo jogado para trás e o semblante anguloso e sério, prestando atenção
apenas no caminho que está fazendo em direção à minha casa.
Encaro a rua para não parecer como uma idiota observando-o por
tempo demais e, no momento seguinte, vejo a placa de um mercadinho 24
horas mais adiante.
— Pare o carro! — Falo com urgência, mas não o suficiente para que
ele se assuste.
— Quer vomitar? — Pergunta arregalando os olhos e diminuindo a
velocidade, sem parar. Tenho certeza que está pensando que farei alguma
sujeira em seu carro.
— O que? Não, você é nojento! Estaciona ali! — Aponto para o local
e, mesmo desconfiado, Anthony vira o volante e estaciona perto da entrada
do estabelecimento.
— Já volto — deixo o salto no carro e saio descalça com a bolsa
debaixo do braço. Não dou tempo para Anthony responder e caminho até o
mercadinho, que está vazio, com apenas um homem adormecido no balcão.
— Você está descalça, sua pirada — Anthony aparece ao meu lado,
praticamente correndo para me acompanhar.
— Me recuso a colocar aquele salto de novo. Inclusive, na próxima
festa, quero usar outra coisa. — Olho para ele sem parar de andar. — Tudo
menos salto fino. Um mais grosso, talvez? Meia pata, ou tratorado…
— Você colocou salto fino porque quis, Dias — Anthony abre a
porta para eu entrar. — Minha única exigência foi que a roupa fosse social.
— Hum… — Cerro os olhos para ele e tento me lembrar das exatas
palavras que ele usou quando combinamos sobre a festa. — Tem razão, a
burra fui eu dessa vez.
Olho ao redor, procurando a sessão de doces e caminho sem rumo,
passando pelos corredores.
— O que estamos procurando?
— Doces de Halloween — respondo ainda olhando para os lados. —
Esqueci de comprar e preciso levar amanhã para o Halloween do projeto
social que participo.
— Não sabia que você fazia algo além da faculdade — Anthony
comenta e segura meu braço, me fazendo parar de andar e voltar um
corredor, o que tinha os doces.
— Você não sabe nada de mim, Anthony — respondo sendo mais
misteriosa do que o esperado.
— Que projeto é esse?
— Um Centro para crianças que não ficam integralmente na escola e
os pais precisam trabalhar. Funciona como um reforço e creche, sou
voluntária. — Resumo o trabalho, mas ele não fala mais nada. Não pede
nome, nem local ou detalhes, o que é definitivamente diferente do que eu
esperava.
— Quantos doces você precisa comprar?
— Bom, são umas 80 crianças, e provavelmente as crianças do bairro
devem aparecer também, então… Não sei, doces para 120? — Faço uma
careta enquanto faço as contas e começo a olhar os preços.
— É doce pra caralho — Anthony passa ao meu lado e mexe nos
sacos de balas diferentes.
— Puta que pariu, tá caro pra porra — Resmungo em português,
em completo choque pelos valores e me arrependendo de falar que doaria os
doces. — Acho que o jantar do resto do mês será miojo mesmo…
Nem acredito que fiz todo aquele drama mais cedo por causa de um
Uber… Inocente, mal sabia o que me esperava.
— Você fala muito português quando está incomodada com algo.
— É mais fácil para xingar — sorrio culpada e ele cruza os braços,
voltando a mirar os doces.
— Escolha quais você quer, que eu compro. Esse aqui é bom. —
Pega um saco de balas roxas e laranjas e me mostra.
— Uau, você realmente está se sentindo culpado — falo surpresa e
ele pega mais um saco, agora de pirulitos. — Acho que vou começar a fingir
estar magoada toda vez que você me chamar de insuportável, só para ganhar
as coisas.
— Não vai se acostumando — puxa o celular do bolso e começa a
fazer alguns cálculos, em seguida, faz a contagem da quantidade de produtos
que tem nas prateleiras.
Apenas observo, principalmente quando Anthony vai até perto do
caixa, pega um carrinho e volta para onde eu estou.
— Você vai precisar de todos — ele diz, apoiando os braços no
carrinho.
— Todos? — Pergunto surpresa e ele confirma, começando a pegar
alguns pacotes e jogar dentro do carrinho.
Sorrio e acompanho-o, parando somente quando o carrinho já está
cheio e a prateleira vazia. Em seguida, vamos até o homem no caixa, que
fica surpreso com nossas compras e começa a passar um por um, colocando
tudo em várias e várias sacolas pequenas, já que não tem nada grande o
suficiente para facilitar nossa vida.
Anthony paga antes mesmo que eu possa perguntar uma última vez
se ele tem certeza e levamos tudo para o carro.
— Eu não ia comprar tudo isso. Então, por sua causa, as crianças vão
comer doce até passar mal… Obrigada, você não precisava fazer isso. —
Falo quando já estamos perto da minha casa.
— E você não precisava ter me defendido para o meu pai e fez
mesmo assim — devolve, me pegando de surpresa. — Ele é um otário,
espero que não tenha ficado magoada com a forma que falou com você.
— Magoada? — Forço uma risada. — Achei que tinha me contratado
exatamente pelo jeito que ajo. Então, não, não fiquei magoada.
Nosso olhar se encontra e observo aquele azul que, apesar da pouca
luz, parece extremamente vivo. Meu mecanismo de defesa para os
momentos de constrangimento é acionado e começo a tagarelar para
disfarçar minha timidez.
— Vou precisar fazer algumas viagens até o apartamento já que não
tem elevador no prédio, mas se você puder me ajudar a colocar pelo menos
ali perto das escadas, já facilita minha vida e você se livrará de mim mais
rápido.
— E como você vai para a festa amanhã?
— De metrô — respondo com obviedade e Anthony recusa a
resposta.
— Eu levo pra você, só me manda a localização.
— É sério, eu vou começar a ficar magoada com você com mais
frequência — brinco abrindo um sorriso.
— Nenhum ser humano é capaz de carregar tudo isso sozinho, como
você pretende fazer no metrô?
— Não sei, dou um jeito — dou de ombros e ele nega.
— Me manda o endereço e o horário, eu levo. — Fala mais uma vez,
com mais firmeza na voz e eu concordo, principalmente porque foi ele quem
comprou os doces, então… Não há problema nele aparecer por lá, certo?
Fico confusa com o que eu deveria fazer, mas minha intuição fala
para eu confiar, e eu aceito a voz da minha cabeça, mesmo correndo o risco
de fazer algo errado.
— Certo, então… Boa noite, obrigada pelo lanche e pelos doces —
falo com a mão na maçaneta da porta.
— Boa noite, Dias.
Anthony não faz menção de se aproximar, o que é o mais óbvio de se
fazer, é claro. Mas por que eu esperava por, não sei, um abraço? Algo mais
brasileiro para uma despedida.
Não estamos no Brasil, Marina!
Abro a porta e saio com o salto em uma mão e a bolsa na outra.
Corro as escadas para o hall e sinto que ele me observa enquanto
abro a porta da frente.
Ele só vai embora quando estou em segurança, ao lado de dentro do
prédio.
Capítulo 25
alvez não tenha sido uma boa ideia vir completamente pronta para o
T
Centro tão cedo, porque eu era a única maluca fantasiada no metrô. Ninguém
me julgou, o que é ótimo e algo, com certeza, aconteceria no Brasil,
principalmente porque eu estava vestida de Wednesday Addams dos anos 90
depois de tomar um banho de sangue no baile, como em Carrie, a Estranha.
Ou seja, estava chamando a atenção.
Fingi não ligar para os poucos olhares que recebi, levantei o queixo e
segui andando todo o caminho até o Centro com o mesmo lema que sempre
surgia na minha mente quando eu ficava insegura: “Fake it until you make
it”.
Assim que viro a esquina do casarão, avisto uma cabeça ruiva em
cima de uma escada, pregando o que parecem ser morcegos e teias de aranha
no alto da varanda frontal. Continuo andando pela rua e, como se sentisse
que estou ali, Charlie me olha assim que chego perto o suficiente e abre um
sorriso lindo, cobrindo os olhos por causa do sol.
— Você veio! — Sua voz é animada e ele ameaça descer da escada.
— Não ouse sair daí! — Emma sai pela porta da frente fuzilando-o com
o olhar e com uma cesta lotada de itens de decoração nos braços. — Você
veio!
Por que vocês estão surpresos por eu vir? Eu não sou a responsável
—
pelos doces? — Franzo a sobrancelha confusa e coloco a mão na cintura,
quando os dois observam minha roupa.
— É que você está um pouco atrasada e depois de ontem, achamos que
não viria. — Charlie dá de ombros e finalmente desce, desviando do braço
de Emma quando ela tenta empurrá-lo.
— Depois de ontem? O que aconteceu ontem? — Fico confusa e sorrio
com a interação dos dois tentando se bater.
— Em primeiro lugar, você veio de metrô vestida assim? — Charlie anda
ao meu redor, observando toda a minha fantasia. — Esse sangue falso é
muito real.
— Por que tem tanta certeza assim que é falso? — Levanto a
sobrancelha com um sorriso malicioso no rosto e ele ri.
— Não brinca com isso, credo — Emma faz uma careta e sacode a
cabeça, me fazendo rir também.
— Eu não duvido nada que seja de verdade — Charlie me provoca e
morde a boca.
— É uma receita que aprendi com uma amiga do Ensino Médio,
Maristela. — Pego minha bolsa e a coloco para frente, procurando pelo vidro
cheio de sangue falso que trouxe para o caso de mais alguém querer usar. —
É mel, achocolatado e um pouquinho de corante vermelho. Eu não sei as
medidas porque faço tudo no olho, mas dá certo e o gosto é bom se precisar
colocar na boca.
— Eu amei, isso é muito criativo! — Emma puxa o vidro para sua mão e
sente o cheiro doce da mistura.
— É, ela tem as melhores ideias para festas assim… — Concordo e pego
o vidro de volta. — E em segundo lugar?
— Não achamos que você fosse vir depois da festa — Charlie dá de
ombros e eu franzo a sobrancelha, confusa.
— Como você sabe que eu fui em uma festa?
— Está em todo lugar — Emma entrega a cesta cheia de morcegos para
Charlie e tira o celular do bolso, mostrando a tela para mim, enquanto
procura por algo. — Você saiu em várias páginas de fofoca, não sabia?
— Eu o que? — Arregalo os olhos e puxo seu braço para perto, enquanto
ela ainda procura pela publicação. — Não me fale que eu passei vergonha ou
que estava feia…
— Você estava linda — Charlie apoia o braço em um degrau da
escada e olha para nós duas.
— É, e toda sorridente ao lado do Anthony MacMillan. — Emma
não fala o nome do Anthony de uma forma feliz, na verdade, bufa e revira os
olhos.
— Deixa eu ver isso.
Pego o celular e sinto meu coração disparar no peito quando vejo a
imagem. Anthony está com a mão nas minhas costas, me olhando com um
sorriso, enquanto falo com a Maggie, a única repórter com quem
conversamos ontem. Fico com medo da reportagem porque, com o passar do
tempo, aprendi que a mídia geralmente aumenta as notícias só para ganhar
like. Não as mídias tradicionais, em sua maioria, mas páginas de fofocas
sim.
Já precisei abrir processo com a ajuda de uma amiga, que é advogada,
porque publicaram que eu e minhas tias batemos em um policial durante
uma manifestação, quando tínhamos vídeos provando que só gritamos a
música tema da passeata. Ganhamos um bom dinheiro, que doamos para o
movimento das mulheres, mas foi uma grande dor de cabeça e ficamos com
registro em nosso nome por um tempo, até tudo se resolver.
— Vocês quase me mataram de susto — suspiro aliviada, porque achei
que fosse algo ruim e que pudesse me prejudicar, ou o Anthony. Algo sobre
nossa briga ou, pior ainda, sobre a briga com o pai dele. — Eu só bebi um
pouco de vinho e uma mimosa, estava a trabalho e não me divertindo, e
nunca me esqueceria do Centro!
— Ah, essa reportagem é a mais tranquila, tem uma com fotos de vocês
indo embora da festa juntos. — Emma faz uma pequena careta.
— Me mostra — entrego o celular na sua mão e ela rapidamente abre a
postagem.
Nessa imagem, Anthony está me observando entrar em seu carro e,
quando arrasto para o lado, vejo nós dois conversando lado a lado. Estou
com o celular na mão e ele com as mãos nos bolsos.
— Já viu os comentários? — Charlie se aproxima e clica na aba,
deslizando o dedo para me mostrar.
O lado bom dessas fotos é que nossa expressão está tão neutra que nunca
saberiam que estávamos brigando, o lado ruim é que foi o combustível que a
internet precisava para inventar histórias sobre nós dois. Foco na postagem e
vejo várias mensagens falando o quanto Anthony é lindo e como eu sou
sortuda por trabalhar todos os dias ao seu lado, mas algumas estão falando
que ele está apaixonado pela forma como me olha.
— As pessoas são completamente loucas — dou risada, lendo cada
comentário rapidamente. — Apaixonado? A gente briga o tempo inteiro,
inclusive brigamos ontem na festa! E estávamos discutindo quando essa foto
foi tirada.
— Brigaram? Por quê? — Emma coloca as mãos na cintura, curiosa.
— Nada demais, nós brigamos sempre, é como nossa dinâmica funciona.
Ele me irrita e eu o irrito. — Não entro em detalhes, porque, apesar da minha
lealdade à Ordem, não tenho direito nenhum de contar sobre os detalhes da
vida privada dele para outras pessoas. E o que aconteceu entre ele e seu pai
não diz respeito a mais ninguém. — Estou aqui agora, me deem algo para
fazer.
— Você veio! — Olive aparece na porta e eu levanto os braços pro ar. —
Achei que estaria de ressaca!
— O que acontece com vocês gringos que acham que eu não viria só
porque saí ontem? — Dou risada e nego com a cabeça.
— Eu não sei, vai entender vocês, brasileiros. Cadê os doces? — Olive
olha ao redor e fica preocupada, então arregala os olhos para minha mochila.
— Não me diga que estão na sua bolsa… Ah meu Deus, vamos ter que sair
para comprar mais, e…
— Não, não estão comigo — seguro os braços dela para ela se acalmar e
me olhar. — Logo estarão aqui, tá bom? E te garanto que tem mais doce do
que a gente precisa.
— Tá, certo. Você está ótima, eu amei a fantasia. Cadê os morcegos,
Charlie? Vamos, de volta ao trabalho. — Olive fala rápido, se virando para
ele, e pega na mão de Emma. — Você vem comigo, a gente precisa se
arrumar logo.
Charlie abre a boca para retrucar, mas as duas desaparecem tão rápido
quanto chegaram, nos deixando sozinhos ali.
— Oi — falo um pouco sem graça, finalmente prestando real atenção
nele, que usa uma calça jeans com remendos e uma camisa xadrez.
— Juro que ficará melhor depois que eu terminar de me arrumar — ele
olha para as próprias roupas e, depois, para mim. — Fui obrigado a pendurar
esses enfeites.
— Quem mandou ser o mais alto daqui? — Brinco e ele coloca a cesta
de morcegos no degrau mais alto da escada. — O que você será, então?
Um espantalho assassino — sorri e se apoia na escada, ficando quase
—
na minha altura. — E você é a Wednesday Addams depois de assassinar
alguém?
— Quase isso — dou um pequeno sorriso forçado, porque ele não
entendeu a referência, e tudo bem, já sabia que poucas pessoas fariam a
ligação da minha fantasia já que são duas personagens de universos
diferentes.
— Combina com você… — Sua voz fica baixa de repente, ao tempo que
o olhar fica mais suave.
— Uma Wednesday assassina? — Levanto a sobrancelha surpresa e ele
dá risada, tocando minha cintura e me puxando para mais perto. — Charlie,
eu estou cheia de sangue e tem as crianças…
— Não tem nenhuma criança aqui ainda — ele fala enquanto olho ao
redor, me certificando de que não há criança perto de nós e me deixando ser
levada por ele.
— E o resto da Ordem? — Mordo a boca admirando seus olhos.
— Todos sabem que a gente se beija, não seria nenhuma surpresa.
Por que quando estou do seu lado essa aura sexual fica tão forte? É
impossível não querer colar nossos corpos.
— Eu realmente queria te beijar agora — seu olhar está na minha boca,
mas sobe para todo o meu rosto, observando o sangue falso, já seco,
espalhado por ele.
— A vontade é só por que você não pode?! — Provoco e,
inconscientemente, aproximo o rosto do dele, passando o nariz devagar em
seu lábio.
Charlie sorri e seu cheiro doce me faz fechar os olhos, principalmente
quando roça os lábios devagar nos meus, tomando cuidado para não estragar
minha maquiagem e nem se sujar.
— A vontade está presente toda vez que eu te vejo, mas agora, como não
posso, é ainda maior. — Assume e, em seguida, sinto sua língua passar
devagar em minha boca, fazendo eu me arrepiar. — O sangue é mesmo doce.
— Eu queria não estar toda suja agora — assumo com a voz baixa e ele
sorri.
— Se quiser, te ajudo a tirar essa maquiagem depois da festa.
Charlie abre um sorriso safado e eu concordo, sentindo sua mão apertar
minha cintura e, com cuidado, depositar um selinho suave na minha boca.
Quando nos afastamos, vejo que sua boca ficou suja de sangue falso e passo
o polegar em seu lábio inferior, limpando com cuidado a pequena bagunça.
— Levo você embora então, pode ser?
Antes que eu possa responder, uma buzina alta me assusta, me fazendo
dar um pulo para longe de Charlie e encarar a rua, procurando de onde vinha
aquele som. Tem um carro parado à frente do Centro e, apesar dos vidros
escuros, sei que é Anthony, porque ninguém no bairro tem um veículo tão
ridiculamente caro assim.
— Quem é esse? — Charlie franze o cenho, olhando para a rua.
— São os doces! — Afasto-me, jogo a mochila no chão e vou até o carro
a passos apressados.
— Cheguei em um horário ruim? — Anthony pergunta ao sair do carro,
olhando para Charlie primeiro e só então para mim.
Ele está usando uma camiseta preta, calça de alfaiataria, tênis e um
óculos escuro quadrado. É a primeira vez que consigo ver um pouco mais
das tatuagens que tem no braço e, apesar de não a ver por inteiro, sei que são
cobras enroladas até perto do seu cotovelo.
Sabe aquela cena de filme de romance em que assistimos um cara gato
fazer algo em câmera lenta, deixando as mulheres ao redor sem palavras?
Foi o que eu senti ao vê-lo sair do carro e tirar os óculos. O que é ridículo,
porque ontem ele estava mais bem vestido do que hoje e não fiquei boba
desse jeito.
Pelo menos, não tão boba quanto agora.
— Acabei de chegar, então foi o timing perfeito — respondo com um
pequeno sorriso e vou até seu lado, apontando para o carro. — Está tudo
aqui?
Anthony ainda está olhando para Charlie, que caminha até nós sem
esconder o incômodo pela presença do herdeiro da Vann Empreendimentos
ali.
— Do mesmo jeito que você deixou no meu carro ontem — Anthony se
vira devagar e então presta atenção em cada detalhe da minha fantasia,
enquanto encosta o corpo no automóvel e cruza os braços e as pernas.
Puta que pariu.
Eu vou ter um colapso. Quando foi que ele ficou tão bonito? Não que
ele não fosse antes, porque desde a primeira vez que o olhei, achei que era
extremamente gato, mas agora…
Devem ser as tatuagens, é a única explicação.
— Por acaso a Wednesday foi ao baile da escola de Chamberlain e
virou alvo do sangue de porco no lugar da Carrie?
Meu rosto se ilumina no mesmo instante por ele ter entendido a
referência, então confirmo antes de jogar as tranças para frente.
— Gosta de Stephen King?
— Um pouco — Anthony responde e se vira para Charlie, que está com
o semblante fechado, esperando que o ruivo fale alguma coisa já que está à
nossa frente, apenas observando a interação.
— Charlie Cooper — estende a mão para Anthony, sem nem dar oi.
— Anthony MacMillan — o loiro responde e juro que daria para sentir a
tensão entre eles mesmo se eu estivesse do outro lado do bairro.
— Charlie, vamos precisar de ajuda. — Falo para fazê-los soltarem as
mãos e então Anthony se aproxima de mim, abrindo o porta-malas. Seu
perfume invade meus sentidos, principalmente quando sinto o cheiro gostoso
de menta, característico demais para ser só um perfume.
Charlie me acompanha, surpreso com a quantidade de doces ali.
— Você comprou tudo isso? — Coloca a mão em uma sacola e a abre
para ver seu conteúdo.
Antes que eu possa abrir a boca para responder, Anthony coça a
garganta, chamando minha atenção e então negando com a cabeça
disfarçadamente. Apenas obedeço sem questionar, porque Anthony nunca
fez isso antes. Ele sempre assume o que faz de cabeça erguida.
— Comprei — respondo para Charlie, acobertando meu chefe.
— As crianças vão amar — Charlie sorri para mim e deposita um beijo
na minha cabeça. — Você é incrível. Vou chamar os outros para ajudarem.
— Tá bom — aperto os lábios concordando e o observo pegar algumas
sacolas e se afastar, mas não antes de dar um último olhar desconfiado para
Anthony. Quando estamos sozinhos, me viro para o loiro e cruzo os braços.
— Por que não quis que eu falasse que foi você?
— Não preciso que outras pessoas saibam do que eu faço ou deixo de
fazer — Anthony pega uma sacola e passa por mim, colocando-a na calçada.
— Parece que você sente prazer em fazer as pessoas não gostarem de
você — observo-o e também pego uma sacola, imitando-o.
— É mais como um hobby — responde debochado e sorri, passando por
mim mais uma vez, com outra sacola. — Esse é o Centro?
— Sim, Charlie é professor aqui e eu sou voluntária — respondo
olhando para o casarão.
ão sei se Anthony percebeu que esse é o Centro que está na mira da
N
prefeitura para ser fechado, ou que Charlie faz parte da Ordem, que sempre
se manifesta contra a Vann. Se percebeu, não demonstrou.
Ainda.
— É grande. — Observa o casarão.
— Não o bastante — sorrio e pego uma sacola muito pesada,
encostando-a em minha roupa e sujando de sangue com uma parte que não
estava completamente seca ainda.
Anthony repara meu esforço e tira o peso da minha mão, mantendo longe
de seu corpo para não se sujar, antes de colocar a sacola na calçada ao lado
das outras.
— Tem certeza que compramos tudo isso ontem?
— Talvez eu tenha exagerado um pouco nas contas — dá de ombros.
— Um pouco? Dá para fazermos uma festa para as crianças de três
bairros e não só as do Centro — dou risada e ele concorda quando a porta do
casarão se abre novamente.
Charlie está à frente do grupo, seguido de Benji e Thomas, que passa na
frente dos outros para cumprimentar Anthony primeiro. Vejo Benji
completamente confuso, alternando o olhar entre nós dois, mas ignoro.
— Anthony.
— Thomas.
— Não esperava sua visita — Thomas força um sorriso e olha para mim,
como se me repreendesse por levá-lo ali.
Ok, agora ele sabe onde está e que grupo é esse.
— Só trouxe os doces para a Dias, ela não ia conseguir trazer tudo
sozinha no metrô — Anthony abre o sorriso charmoso que usou ontem no
evento, e aponta para as muitas sacolas no chão.
— Obrigado pela ajuda — Thomas responde e Benji pega algumas
sacolas, entrando em seguida, claramente fugindo do que quer que esteja
acontecendo ali.
— É só uma entrega, Thomas. — Anthony coloca a mão no bolso e nega
com a cabeça.
— Bom, obrigado mesmo assim — Thomas evidencia e se vira para
mim. — Será que você pode comprar cola quente pra gente, Dias? A nossa
acabou.
O tom de voz de Thomas é duro, apesar de gentil. Exatamente como
quando um professor te repreende, mas não briga de fato. Sinto o quanto ele
desaprova o que fiz só pelo olhar. Me mandar comprar algo fora do Centro
pode ser uma desculpa para respirar fundo antes de conversar comigo.
Porque eu sei que a conversa virá em algum momento.
— Claro, já vou — confirmo e aperto forte as mãos.
— Eu vou com você — Charlie se oferece e eu recuso.
— Olive vai te matar se não terminar de arrumar as coisas logo, pode
deixar que eu vou. — Tranquilizo-o e ele franze a sobrancelha, confirma e
pega várias sacolas de uma só vez, entrando atrás de Thomas.
— Volta logo — Charlie fala de longe e eu concordo, mesmo que ele não
esteja me olhando.
Que burrice foi essa de pedir para o Anthony ir até ali? Não faz sentido
nenhum. Ele é um dos responsáveis pelo Centro correr o risco de fechar,
assim como a maioria dos estabelecimentos ao nosso redor.
Burra, burra, burra.
Quer dizer, a empresa dele é a responsável, não ele.
Ficamos em um silêncio estranho até Benji voltar, enchendo as mãos
com as últimas sacolas e apertando os lábios para mim, antes de entrar no
casarão uma última vez.
— Então, acho que é isso. — Falo sem graça e em tom de despedida. —
Tenho que ir ao mercadinho comprar cola quente.
— É, eu escutei — Anthony levanta uma sobrancelha e posso sentir que
está sorrindo com o olhar. — Eu te acompanho.
Ele desencosta do carro e espera eu lhe mostrar qual caminho iremos
seguir. Sinto que estou fazendo algo errado, não só em relação aos
problemas óbvios presentes ali, como pela maneira que Charlie nos olha
furtivamente de cima da escada.
Apesar disso, aponto para a direita, caminhando devagar na companhia
de Anthony. Nos primeiros passos que damos, sinto seus dedos tocarem meu
braço e ele, gentilmente, me coloca para dentro da calçada, ficando mais
perto do meio fio.
Sim, é impossível não reparar nisso porque é uma das coisas que eu acho
mais lindas nos livros que leio e filmes que assisto.
Encaro-o de soslaio, mas ele segue olhando firme para frente, prestando
atenção no caminho, e observando o comércio na rua. É claro que ele só faz
isso porque é um MacMillan e foi criado com a melhor educação que
alguém poderia ter, mas mesmo assim meu coração bate forte.
Eu ordeno que você pare, agora!
Está muito quieta, o que foi? — Anthony corta minha onda de
—
pensamentos.
— Só estava pensando — aperto a boca e passo a mão em meu vestido,
evitando olhar para ele. — Então, você conhece o Thomas?
— O responsável pela maioria das manifestações contra a Vann? Sim,
conheço. — Seu tom de voz é acusador, mas não muito. Não é como se
estivesse bravo, mas me olha desacreditado mesmo assim. — É isso que
você faz no seu tempo livre?
Confirmo com a cabeça em silêncio, porque não pretendo dar detalhes da
Ordem, mas posso falar sobre o Centro, e nesse momento eu preciso falar.
Para abafar o coração batendo forte no peito.
— Você conhece o projeto? — Ele nega e eu reflito como falar sem me
comprometer. — Começou quando Thomas era pequeno, o tio cuidava dele
para sua mãe trabalhar. Depois, outras famílias começaram a pedir ajuda e,
quando ele percebeu, estava cuidando de várias crianças para que suas
famílias pudessem trabalhar e sustentar a casa. Aos poucos começou a
receber voluntários que davam aulas, doações para melhorar o espaço e,
assim, as crianças terem o que comer…
— E ele fazia isso só para ajudar?
— Só para ajudar — confirmo. — Quando ele morreu, deixou o Centro
para a comunidade, sob os cuidados do Thomas. Ele contratou professores
com o dinheiro que recebe das doações, sempre procura outros voluntários
para as atividades e, enfim… É um projeto legal.
— Parece ser — Anthony tenta ver o casarão que já ficou para trás.
— Dei uma aula de como fazer velas, foi bem legal — tento descontrair
e vejo-o sorrir, o que dá uma acalmada no coração, que parece tropeçar.
— Por que não me surpreende você tentar passar suas habilidades de
hippie adiante? — Alfineta-me com humor no tom de voz.
— Foi muito legal, tá? — Devolvo a provocação e empino o nariz. — As
meninas mais velhas adoraram e deu super certo.
— Tenho certeza que sim — Anthony tira os óculos de sol e, antes de
colocar no bolso, eu os peço emprestado. Só depois percebo o movimento
que fiz, como se fosse comum e não completamente esquisito.
Ele me entrega sem contestar e, para disfarçar o que fiz, os coloco no
rosto, agradecendo por estar com o olhar um pouco escondido.
— O Cooper é seu namorado? — Anthony pergunta sem rodeios.
Eu não namoro — respondo ainda olhando para a frente. — Somos
—
amigos.
— Vocês pareciam bem íntimos quando cheguei — me provoca.
— Saímos juntos, às vezes, mas Charlie não é meu namorado. —
Assumo com simplicidade. — Atrapalhei seu sábado?
Mudo de assunto, porque não quero falar sobre meu não-relacionamento
com Charlie Cooper, principalmente com Anthony, meu chefe.
— Meu sábado se resumia em fazer um trabalho para o Herman, então,
não. Foi bom sair de casa, para falar a verdade.
— Eu estou cheia de trabalho dele para fazer, não faço ideia se darei
conta.
— Por isso pediu a terça de folga?
— Você está muito curioso sobre minha vida, Anthony — levanto as
sobrancelhas fingindo surpresa.
— Não é mais fácil você simplesmente responder às minhas perguntas,
em vez de se fazer de difícil?
— Não! — Sorrio e me viro para ele.
— Insuportável.
— Uma pergunta por outra, o que acha? — Anthony finge pensar se
aceitará a proposta, mas sei muito bem que ele topará só pelo sorriso discreto
que carrega no rosto. Ele se dá por vencido, o que me dá direito a uma
pergunta. — Por que você não está indo às aulas de segunda?
— Está sentindo minha falta, amor?
Anthony me pega de surpresa e sinto meu estômago se contorcer, como
se uma infinidade de borboletas morassem dentro de mim, voando
enlouquecidas para todos os lados.
Mas que porra?
— Eu não diria falta — faço uma careta e abraço o estômago, impedindo
a sensação que sobe para meu peito. — Alívio, talvez, já que é um dia a
menos te vendo na faculdade.
Alfineto-o simplesmente para afastar o sentimento estranho que não para
de crescer em mim.
— A mãe da minha mãe está doente e todo domingo tomo chá da tarde
com ela. — Anthony olha para o alto e repara nos prédios. — Ela mora há
algumas horas daqui e o chá sempre vira jantar, o que acaba me fazendo
dormir na casa dela e chegar em Londres tarde demais para a aula.
Quem diria que você realmente tem um coração. — Apesar de
—
parecer provocação, não é, e ele sabe, porque me olha com carinho.
— Não consigo dizer não, principalmente depois de ter perdido uma avó.
Se ela tiver que partir também, quero ter vivido bons momentos ao seu lado
e saber que ela tinha orgulho de mim. — Anthony confessa, o que é
claramente muito difícil para ele, mas sai naturalmente de sua boca.
— Tenho certeza que ela tem. Você é inteligente, educado e tem um
coração gentil, mesmo que finja não ter nenhum — nosso olhar se encontra
por um momento. Agradeço por estar escondida pelos óculos escuros. — E
eu pedi a terça de folga para assistir uma aula de música no Centro.
Já respondo a pergunta que ele havia feito antes, assim estamos quites.
Atravessamos a rua vazia em seguida.
— Os projetos que estamos começando a trabalhar são todos aqui.
Seu comentário sai inocente, como se apenas contestasse um fato para
mim, mas sabe que eu também sei disso e que não estou surpresa com a
informação.
— Eu sei — olho para o chão e chuto uma pedrinha para longe.
— Nosso advogado avisou que, com o atraso em nossos documentos, o
mercadinho conseguiu entrar com o adiantamento do processo de
regulamentação. — Anthony levanta uma sobrancelha no instante em que
viramos uma esquina e consigo ver o local adiante.
Fico em silêncio, me fazendo de desentendida enquanto chuto mais uma
pedra para longe.
— Você disse que tinham documentos faltando, não é? — Anthony
insiste no assunto.
— Sim, três. Estavam com os dados errados, e tinha um sem assinatura.
Não devolveram ainda. — Levanto os óculos, deixando-o na cabeça. Ele
sabe que eu fui a responsável pelo atraso e não está me repreendendo por
isso. — Você vai querer entrar ou vai me esperar aqui fora?
Abro a porta e espero por sua resposta, mas Anthony simplesmente entra
e espera eu lhe indicar a direção. Ele observa tudo e me segue até o balcão.
— Nina! — o senhor Ward abre um grande sorriso por baixo do bigode
comprido, que cuida com tanto afinco. — Tudo bem, menina?
— Tudo ótimo e com o senhor? — Sorrio e apoio os braços no balcão.
— Você sabe que sim — ele dá uma piscadela —, vai dar tudo certo.
Aperto os lábios e, apesar de querer saber de todo o processo para salvar
a fonte de renda de sua família, mudo de assunto por causa de Anthony.
— Por acaso o senhor tem cola quente para vender?
— Acho que tenho lá atrás — dá a volta no balcão e começa a caminhar
até um corredor comigo. Anthony fica parado no balcão enquanto andamos
sozinhos. — Minha filha não para de falar sobre a festa, está em casa se
arrumando com as amigas.
— Vai ser legal, o pessoal está empenhado na decoração.
— E você na fantasia — encara-me por cima do ombro, aprovando
minha produção. — Acabou, mas eu tenho o meu pessoal, quer?
— Ah, mas assim eu vou deixar o senhor sem nenhuma? — Volto a
segui-lo até o balcão e ele nega exageradamente, mexendo as mãos no ar.
— Depois eu compro mais, leve para vocês. — Ele se abaixa procurando
a pistola e a encontra em uma gaveta, entrega-a para mim com um bastão
extra. — É o mínimo que posso fazer.
— Obrigada — aceito com um sorriso e ele agradece com o olhar.
— Não precisa agradecer, querida. Como está você e o Charlie?
Joanna falou que estão namorando, ele é um bom homem e as crianças
gostam muito dele.
— Só somos amigos, senhor Ward! As meninas exageram bastante.
— Arregalo os olhos surpresa com a naturalidade com a qual ele fala e,
principalmente, por ter tanta certeza. Corto o assunto e olho furtivamente
para Anthony. — Vejo o senhor mais tarde, tá bom? Fala para as meninas
não atrasarem!
Antes que ele possa continuar falando, apresso o passo para fora do
estabelecimento e sinto Anthony me seguindo de novo.
— Acho que você é a única que não quer aceitar o que está na sua
frente. — Anthony fala assim que fica ao meu lado.
— Eu não estou namorando! — Viro-me brava.
— Se você está dizendo…
— Eu estou! — Sinto meu coração disparar de indignação. — Não
tenho motivos para mentir para qualquer um, nem para você.
— Não precisa ficar irritada, se você falou, eu acredito. — Anthony
franze a sobrancelha e levanta as mãos.
— Sim, eu falei! Eu não sirvo para isso, não sou uma boa namorada.
— Olho para a pistola de cola quente na minha mão e nego. — Merda…
Vou precisar conversar com Charlie e esclarecer tudo mais uma vez. Ou
me afastar, não temos nada para terminar, afinal de contas. O silêncio não
dura muito tempo.
— Uma pergunta por outra — Anthony chama minha atenção e eu o
olho, indicando para continuar. — Por que ser voluntária no Centro?
— Porque é menos frustrante que os outros projetos — respondo
francamente e paro de andar. — Nos outros a luta é muito intensa, e apesar
de no Centro também ser, todos se esforçam muito e é um projeto difícil,
mas a gente tem uma recompensa instantânea, que são as crianças. Não estou
há muito tempo lá, mas dá para ver o quanto eles evoluem todos os dias. Ser
um apoio para eles, além da família… É o que faz valer a pena.
Anthony concorda e se aproxima, levantando as mãos e tirando os
óculos do meu rosto. A ponta de seus dedos encosta em minha pele e me faz
arrepiar. Existe alguma forma de arrancar essas borboletas inconvenientes
que insistem em ficar voando sem parar por todo o meu estômago?
— Sua vez. — Anthony coloca os óculos no próprio rosto e dá um
passo para o lado.
— Acho que você viu as fofocas de ontem, então… O que você vai
fazer em relação a isso?
— É o que você tem para me perguntar? — Parece decepcionado
quando gasto minha pergunta em um assunto que não é pessoal. — Posso
compartilhar um dos posts, dizer que você estava me acompanhando a
trabalho e esclarecer que não temos nenhum envolvimento além do
profissional, pode ser?
— Certo, pode ser.
Terminamos o caminho em um silêncio relativamente confortável,
cada um perdido em seus próprios pensamentos, até estarmos praticamente à
frente do Centro novamente. É fácil não falar com ele, o que é algo grande
para mim. Sempre que estou nervosa, sinto que devo falar para fazer a
situação ficar menos constrangedora.
Não com ele. Com ele, posso ser chata, insuportável — como ele
gosta de me chamar — e sincera. Posso ser algumas das minhas outras
facetas, e não só a Marina Dias extrovertida e “legal”.
Vejo seu carro na calçada e diminuo o passo, porque sei que ele vai
embora e não quero que isso aconteça.
— Sobre o que o cara falou lá dentro… — Anthony diminui o passo
também. — Você atrasou os documentos de propósito, não atrasou?
— Anthony…
— Uma pergunta por outra.
Solto os ombros, pensando em como lhe responder e ele fica em
silêncio, me dando a oportunidade de explicar.
— É a única fonte de renda de uma família de seis pessoas.
— Era só não ter deixado todas as licenças vencerem a ponto de ser
interditado pela prefeitura — Anthony fala como se fosse a coisa mais
simples de todas.
— Não quando você precisa gastar seu dinheiro com a medicação da
filha que tem depressão, ou prover o mínimo para a família. O telhado estava
com infiltração, os alvarás precisavam de atualizações… São décadas no
mesmo local, se mantendo com o mínimo, porque o mercado não dá o
suficiente para todas as obras. Eles precisam escolher entre um ou outro…
— Suspiro cansada, não estou brava, só triste com a situação. — E os filhos
sempre são prioridade, a família é.
— Você podia ter me falado — se aproxima e fala baixo.
— Para você me demitir? — Fico na defensiva e ele nega.
— Para te ajudar. — Admite, o que me surpreende. — Posso não ser
tão corajoso quanto você, mas…
— Mas? — cruzo os braços, interessada no que está falando, quando
risadas altas fazem a gente olhar para o casarão.
Ficamos em silêncio e ele volta a andar até seu carro. Não falo mais
nada, não vou forçá-lo e sua atitude com a situação me surpreendeu, porque
eu realmente não esperava por isso.
A cada dia, parece que uma nova camada dele se revela para mim.
— Só não esconda mais essas coisas de mim, tá? Podemos dar um jeito.
— Atrasando documentos das empresas que seu pai está tentando
comprar?
— Essa é só a ponta do iceberg, Dias.
Anthony finaliza e se aproxima mais uma vez, sua mão toca meu braço e
ele vem em direção ao meu rosto, depositando um beijo suave em minha
bochecha, sem se importar com a sujeira de sangue falso presente ali. Seu
toque faz com que eu prenda minha respiração por um segundo.
— Te vejo segunda.
— Na aula ou no escritório? — Pergunto baixo, me lembrando do que
contou sobre sua avó.
— No escritório, e nada de cheiro de flores — faz uma careta com o
nariz e vai em direção ao seu carro.
Ah, para quem não gostava dos meus cheiros, agora você acha que
—
pode escolher? — Levanto a sobrancelha e ele concorda, abrindo um sorriso
pequeno. — E qual você quer?
— Aquele que você coloca na sua sala, cítrico.
— Você que manda, senhor MacMillan.
Ele me repreende com o olhar de brincadeira e entra no carro, me
deixando sozinha, pronta para encarar a festa, que começará em poucas
horas, e pensando na interação que acabamos de ter.
Capítulo 26
As duas semanas seguintes são estranhas, para dizer o mínimo. Anthony
não tocou no assunto da ligação e continuou agindo como se nada tivesse
acontecido. Entretanto, sentia seus olhos em mim constantemente, inclusive
quando estávamos juntos em reuniões.
Ele prestava atenção em mim, interessado no que eu tinha a dizer e
nas ordens e sugestões que eu apresentava para os outros setores. Era
possível até mesmo ver o pequeno sorriso que dava quando me impunha e
não aceitava o que era sugerido em determinadas pautas. E não me contestou
nenhuma vez sequer.
Porra, depois daquela revelação, tanto para ele quanto para mim, é
difícil olhá-lo como antes.
Anthony não é só bonito, ele tem presença. Sua voz é firme, sua
postura mostra exatamente como é seguro de si, sem contar no quanto é
inteligente. Todos os planos e cronogramas que faz passam por mim e as
sugestões que eu faço apenas complementam as dele.
Quase como um time, eu diria.
E seu cheiro… Cada vez que ele se aproxima, consigo sentir seu
perfume marcante. O cheiro mentolado e robusto é melhor do que eu
gostaria de admitir.
Passei tantas semanas focada em como ele me irrita, que não notei a
possibilidade de eu ter aprendido muito mais sobre ele do que percebi. Por
exemplo, se ao entrar em seu escritório, o encontrar sério admirando o
computador e com apenas um fone de ouvido, quer dizer que está
otimizando seu tempo escutando algum audiolivro da sua enorme lista de
leitura, porque ele adora ler. Mas se está com os dois fones e a testa
tensionada, é porque está sem paciência e irritado com algo, provavelmente
escutando algum podcast de True Crime bizarro.
Independentemente de como seu dia está, ele sempre come uma
maçã verde no meio da tarde, antes de tomar seu café, que é amargo e forte.
A sequência é um pedaço de chocolate, quando volta para sua sala.
Aprendi que essa é a hora perfeita para ir até seu escritório e contar
sobre algum problema nos projetos, porque seu humor está um pouco melhor
e eu ainda ganho um chocolate. Ele revira os olhos e reclama? Claro, mas dá
o doce mesmo assim.
Sei qual será seu humor do dia pela forma que seu cabelo está
arrumado. Se está propositalmente bagunçado, está tendo um dia bom, mas
se está perfeitamente penteado para trás, seu pai está envolvido. Seja por
causa de uma reunião, que será desmarcada, ou algum anúncio de que ele
deve ir até o escritório, mas nunca vai.
A pior parte de perceber tudo o que sei sobre ele é que só aconteceu
depois daquela bendita ligação. Agora, preciso me esforçar para ser neutra e
agir como se nada tivesse mudado. É complicado ficar perto dele sem corar
ou encarar sua boca.
Muito complicado.
Agradeço mentalmente quando chegamos ao fim do dia, na sexta-
feira, porque terei o final de semana inteiro longe dele para pensar em outras
coisas, como o fato de Charlie estar cada vez mais próximo. As mensagens
que antes aconteciam apenas algumas vezes por semana, estão acontecendo
todos os dias e eu me sinto péssima em ignorá-lo, principalmente porque não
são mensagens sexuais ou flertes.
Ele conversa sobre tudo, me conta sobre seu dia, ou fala sobre algo
que viu na rua e lembrou de mim. Me mandou até mesmo fotos de uma
floricultura que encontrou quando foi fazer a entrega de um restaurante que
tem trabalhado alguns dias na semana para conseguir uma grana extra.
Atencioso e fofo é o que melhor o descreve, e me frustra saber que eu não
estou conseguindo mantê-lo longe de mim o quanto deveria.
Eu respondo tudo o que ele manda, mas não no mesmo instante.
Seria falta de educação ignorá-lo quando conta sobre o que uma criança fez
no Centro ou alguma novidade no caso do mercadinho do senhor Ward, mas
eu também sei que, a cada nova mensagem, respiro fundo desejando que as
coisas não estivessem assim.
Avisei, desde o começo, que não queria nada sério, inclusive não
dormimos juntos desde antes do Halloween. Nem ao menos beijo Charlie
mais, apesar da inegável química que existe entre nós dois, não posso
alimentar um sentimento maior do que posso oferecer.
Ninguém merece um relacionamento pela metade.
Responsabilidade afetiva é algo que aprendi durante os anos vivendo
o relacionamento tóxico com Pedro, e não quero ser alguém ruim para outra
pessoa. Preciso finalizar o que existe entre nós, logo.
Antes de sair do escritório, olho em direção à sala de Anthony,
somente para me certificar que a porta está fechada ou que ele não está ali.
Não quero precisar me despedir e olhar aquela cara linda mais uma vez hoje,
já deu por essa semana. Felizmente, sua porta está fechada, o que me trás
uma onda de alívio no instante em que piso no corredor, colocando a
mochila nas costas, e atravesso nosso andar.
Sou inocente por achar que estaria me livrando dele tão fácil. No
instante em que passo pela sala do Walter, do financeiro, Anthony me
chama. Finjo que não escutei e continuo andando.
— Dias! — Chama-me novamente, agora na porta.
Não tenho como fugir.
— Não te escutei — dou meia volta e forço um sorriso.
— Já está indo? — Pergunta levantando uma sobrancelha e meu
olhar para na pequena linha de expressão que se forma em sua testa toda vez
que ele faz esse movimento.
— Já deu meu horário — confirmo mirando além de sua orelha,
assim não corro o risco de admirar seus olhos e ficar vermelha.
Tão lindos, intensos, frios e… confortáveis ao mesmo tempo, se é
que isso é possível.
Não! Burra! Você está olhando para o local proibido!
— Pode ser? — Anthony está esperando minha resposta. Ótimo, fiz
papel de idiota.
— Eu não escutei, desculpa. — Balanço a cabeça e passo a mão por
minha calça, tentando inventar algo para fazer com a mão.
— Prometi levar minha avó em uma exposição que ela quer ver na
segunda de tarde, então não virei ao escritório, consegue reagendar nossas
reuniões? — Ele repete.
Eu devo estar completamente louca, mas tenho certeza que mira
minha boca quando dá um passo mais perto, esperando minha resposta.
— Claro, remarco tudo hoje mesmo. Mais alguma coisa? — Dou um
passo para trás, querendo fugir dele.
— Não, só isso — coloca a mão no bolso e abre um pequeno sorriso
de lado. — Bom final de semana.
Fico parada por segundos demais naquele corredor, tentando me
recuperar do que aconteceu. Ele não fez nada demais e estou desnorteada,
merda.
Posso falar quantos palavrões eu quiser? Não! Porque Anthony fala
português e vai entender.
Bufo e volto a fazer meu caminho para fora do prédio da Vann
Empreendimentos sem olhar para trás. Essas reações com certeza são uma
mistura de hormônios e uma grande dose das fanfics que eu lia na
adolescência, que fizeram meu cérebro derreter.
Tem uma única coisa que faz meu final de semana valer a pena, algo
que eu não faço há meses e que sinto muita falta: uma manifestação. Vou me
reunir com a Ordem para protestar contra a prefeitura que está cortando a
verba de vários dos poucos projetos sociais que eram financiados por eles,
diminuindo ainda mais o orçamento para cultura.
Não existe democratização de cultura se as únicas opções disponíveis
são as ações privadas. Todos merecem ir ao museu e ao teatro de formas
acessíveis, não somente a elite, que pode pagar 200 libras por um ingresso.
Preciso dessa emoção de ter minha voz ouvida e, apesar das condições ruins,
estou satisfeita que meu domingo será cheio de luta, para reanimar minha
alma, que está muito desperta para o que não deveria.
Uma pena que, para ter meu domingo livre, precisei estudar o sábado
inteiro, para adiantar a montanha de trabalhos que estão começando a se
acumular. Sem contar nas horas que gastei retocando o cabelo e fazendo a
ligação de vídeo de todo sábado com minha família. Pelo menos, consigo
fazer as duas coisas ao mesmo tempo. Meu dia passou com a cabeça enfiada
no laptop, comendo omelete e me entupindo de bobeiras, como salgadinho e
refrigerante, porque só assim para eu não dormir no meio do dia e finalizar
tudo o que precisava.
No domingo, acordo cedo para me preparar para a manifestação, vou
me encontrar com a Ordem perto de um parque. Como não estou
acostumada com o frio de novembro, me agasalho muito bem. Além da
segunda pele, visto uma calça grossa com meu coturno pesado e tratorado,
coloco um suéter de manga comprida, casaco, sobretudo, touca e cachecol.
Provavelmente, pareço uma maluca, já que nem entramos no inverno ainda,
mas é isso que acontece quando se é uma brasileira friorenta.
Já são três meses morando em Londres e acho que nunca vou me
acostumar com as ruas, o transporte público e os locais históricos que eu
tinha tanta vontade de conhecer. Perdi a conta de quantas vezes fui até a
estátua do Peter Pan em Kensington Garden, ou quantas vezes parei na
plataforma 9 ¾ na King Cross, simplesmente para olhar e sentir a magia e a
sensação de pertencimento daqueles locais.
Só tem uma coisa que eu abriria mão: a chuva. Como se não bastasse o
frio, ainda ter que lidar com a chuva não é nem um pouco fácil.
Apresso o passo quando vejo meu grupo reunido no local que
combinamos e a primeira pessoa a notar minha presença é Benji, que levanta
os braços para o ar e enrola um cartaz na mão, caminhando em minha
direção em seguida.
— Só faltava você! — Fala quando eu o abraço.
— Fez um cartaz para mim?
— Não sabia que queria, mas acho que a Olive tem alguns extras…
— Aponta para Olive que está com um megafone na mão, organizando todo
mundo.
— Qualquer coisa, eu roubo o seu — dou um sorriso malandro e
Benji finge estar bravo.
— Olha só quem decidiu aparecer! — Theo fala alto, se aproximando
com Emma do seu lado. — Está sumida.
— Muito trabalho, tanto na empresa quanto na faculdade — abraço-o
e, em seguida, envolvo Emma em um novo abraço.
Sinto um quentinho no coração ao saber que eles, de alguma forma,
sentem minha falta. É claro que eu também sinto a deles.
— Charlie te contou sobre o senhor Ward? — Emma pergunta
animada e eu nego. — Só falta terminar a reforma do telhado e estará fora de
risco de perder o mercado. Faremos uma força-tarefa essa semana para tentar
terminar logo. Várias pessoas se voluntariaram, se você quiser também…
— Isso é ótimo! — Confirmo com um sorriso sincero. — Vou tentar,
mas não prometo. Não posso faltar ao trabalho essa semana, muito menos na
faculdade. Se vocês fizerem algo à noite, me avisa que consigo ir.
— Tudo bem, você já fez muito só de atrasar tudo e nos avisar. —
Emma passa a mão em meu braço e levanta a cabeça quando Thomas segura
o megafone.
Vejo ela se embrenhando entre as pessoas para se aproximar do
namorado e abraço meu próprio corpo, prestando atenção no que ele falará.
Duas mãos cobrem meus olhos.
— Adivinha quem é?
— Eu espero que seja o Harry Styles, mas da última vez que chequei,
ele estava nos Estados Unidos. — Brinco e no instante seguinte, as mãos
saem de meu rosto e recebo um beijo suave na bochecha, quase na minha
boca.
— O que o Harry Styles faria em uma manifestação? — Charlie
pergunta de forma divertida.
— Lutaria contra o governo, como nós!
— Pena que se ele estivesse aqui, o foco seria outro — faz uma
careta, colocando as mãos no bolso.
— Estaremos com outros grupos, mas quero que todos se mantenham
juntos, não fiquem sozinhos em hipótese alguma! Não provoquem as
autoridades, não briguem, nem discutam com quem quer que seja. Não
vamos conseguir progresso com selvageria e não podemos sujar o nome da
Ordem.
Thomas brada no megafone e todos concordam. É uma organização
bonita de ver, principalmente sabendo que todos ali o respeitam e que
seguirão suas ordens.
Todos começam a andar em direção ao metrô, para ficarmos mais
próximos da prefeitura. Meu celular está guardado no bolso interno do
sobretudo, assim como meus documentos, porque nunca mais cometerei o
risco de perder um dos dois, como já aconteceu no Brasil.
Quando chegamos perto o suficiente, posso ver a Tower Bridge e é
impossível não ficar encantada com a visão. Charlie caminha ao meu lado o
tempo inteiro, às vezes mais distante, em outros bem perto.
Quanto mais alto fica o som da manifestação, mais nossa atenção se
dispersa ao redor. O que é ótimo para fugir das possíveis conversas que
quero evitar no momento.
Assim, as próximas horas se passam, gritamos a música que criaram
para a ocasião, levantamos cartazes e protestamos pelos direitos que
deveriam ser de todos.
A mídia está presente no ato, filmando e fazendo a cobertura de tudo
com cuidado e empatia, já que conversa com alguns manifestantes de
maneira tranquila. O grande problema começa quando vejo um grupo de
garotos cobrindo os rostos.
Todo mundo sabe que se você precisa cobrir seu rosto, é porque está
planejando fazer algo ruim. Observo eles atentamente e cutuco Charlie,
mostrando a movimentação ao nosso lado. Ele fica preocupado e se coloca
na minha frente, para me proteger.
— O que você está fazendo? — Pergunto saindo de trás dele e indo
para seu lado.
— Fique atrás de mim, por favor — Charlie estende o braço, me
levando para trás dele novamente.
A atitude me irrita, parece que sou fraca e que não sei me defender.
Já estive em manifestações que acabaram muito feias, com pessoas
vandalizando as ruas, policiais usando gás de pimenta e batendo nas pessoas
com o cassetete. É preciso de muito mais do que algumas máscaras para me
assustar.
— Fiquem aqui.
Desvio do ruivo e me afasto do grupo, andando apressada em direção
à calçada e passando pelas pessoas até chegar nos policiais que estão ali. Vou
avisar as autoridades antes que as coisas saiam de controle e aquele grupo
atrapalhe a manifestação, que é pacífica. Os oficiais ficam desconfiados com
o que falo, mas insisto e eles levantam as cabeças e começam a andar
devagar entre a multidão, procurando as pessoas que falei, mas sem fazer
alarde.
Parecem não acreditar em mim e procuram na multidão somente para
eu ficar quieta. Idiotas.
— Que porra que você está fazendo? — Charlie aparece ao meu
lado, claramente preocupado. — Não sai de perto de mim assim, eu fiquei te
procurando.
— Vim avisar os policiais, a gente não faz ideia do que aqueles
garotos vão fazer, e…
No instante seguinte, o barulho de garrafas sendo quebradas me faz
abaixar. O cheiro de queimado sobe no ar, enquanto pessoas saem correndo
do caos que se forma adiante. Estico-me um pouco para tentar ver e entender
o que está acontecendo, mas Charlie me segura e começa a me levar para o
lado oposto da confusão.
— Vamos sair daqui!
— Charlie, mas e os outros? — Pergunto e me solto dele. Algumas
pessoas passam correndo por mim, esbarrando em meu ombro com força e
me fazendo dar alguns passos para o lado. — E o Benji?
— Eles se viram, estamos todos em dupla, lembra? Ele deve estar
com a Ava, vamos! — Charlie insiste e estende a mão em minha direção.
Não tenho tempo para pensar, já que algo explode e os gritos se
intensificam. Seguro sua mão e começamos a correr entre as pessoas, sendo
empurrados e jogados para todos os lados. Charlie me mantém próxima a
ele, para ter certeza de que não iremos nos perder na confusão.
A essa altura, eu não faço a menor ideia da onde os outros estão.
Antes, eu conseguia, pelo menos, identificar um ou outro por ali. Agora,
tudo o que vejo são pessoas fugindo.
Olho para trás e vejo que tem algo pegando fogo onde os
organizadores estavam. As chamas estão altas, assim como a fumaça escura
indo em direção ao céu.
— Devem estar queimando pneus! — Aviso Charlie que para de
correr para olhar, arregalando os olhos quando confirma.
— É o que parece, temos que ir para longe daqui. Você não pode
perder a bolsa, muito menos ser deportada por estar envolvida em uma
confusão dessas.
Concordo em silêncio, porque queria ficar e ver se alguém precisa de
ajuda, mas ele tem razão. Infelizmente, existem coisas que eu preciso evitar
para manter minha estadia aqui.
Continuamos andando pelas ruas até estarmos longe o suficiente da
concentração, e diminuímos o passo. A rua está com o movimento normal, já
que os manifestantes se dispersaram um pouco antes.
— Vamos entrar aqui — puxo Charlie para um café. Meu coração
está tão disparado e a garganta tão seca, que preciso de um momento. —
Quero beber uma água.
— Certo — Charlie concorda e percebo que ainda estou segurando
sua mão.
Nos soltamos e ele abre a porta, me deixando entrar na frente. O
local está quente o suficiente para que eu possa tirar o sobretudo, então é o
que faço. A adrenalina corre pelo meu corpo de uma forma que eu nunca
conseguiria perceber durante a agitação. O cheiro de álcool queimando está
preso no meu nariz, assim como o olhar assustado das pessoas que não
estavam na passeata para causar baderna.
Peço uma água e um café grande no balcão, e Charlie pede chá.
Esperamos as bebidas ficarem prontas em silêncio. Quando nos
sentamos, os músculos da minha perna e dos meus ombros relaxam um
pouco. Dou um pequeno gole na água, porque aprendi com minha terapeuta
que, quando estamos nervosos, o melhor é dar pequenos goles respirando
fundo em vez de engolir tudo, na afobação do momento.
— Você está bem? — Charlie está preocupado e segura minha mão
por cima da mesa.
Ah, merda. Ainda tem isso.
Olho para nossas mãos juntas e concordo, e solto para segurar meu
copo de café.
— Só estou me acalmando, tudo aconteceu muito rápido. — Olho ao
nosso redor e encaro a grande janela para a rua. — Eu nem sei onde estamos.
— Pra falar a verdade, nem eu — Charlie ri e beberica seu chá. —
Vou mandar mensagem para os outros, só para ter certeza de que estão todos
bem.
Ele pega o celular e escorrego o corpo para o lado, quando vejo-o se
levantar para sentar no espaço vago perto de mim. Ele abre o grupo da
Ordem e me mostra as mensagens, ninguém se machucou, mas Emma
tropeçou e acabou ralando o joelho enquanto fugia, já que estava bem lá na
frente com Thomas. Tirando isso, todos estão bem e a maioria está voltando
para suas casas, não tinha mais clima para ficar juntos.
— Tudo certo, então — falo apertando os lábios.
— Tudo certo — ele coloca o celular em cima da mesa e dá mais um
gole em seu chá. — Por onde você tem andado? Quase não te vejo mais pelo
campus. Quando vejo, está cheia de livros ou correndo de uma sala para
outra.
— Ah, estou fazendo coisas demais, sabe como é — dou de ombros
com um pequeno sorriso sem graça e ele concorda. — Tentando manter a
bolsa e o emprego.
— É, eu imaginei… Mas não está se sobrecarregando, certo? Tem
que tirar um tempo para você também, para se divertir, descansar…
— O tempo para mim está escasso, para ser sincera, mas vai
melhorar logo.
— Posso resolver esse problema, a gente pode tomar café mais
vezes, talvez? Entre as aulas, igual fazíamos. Ou assistir um filme, de
verdade dessa vez, no cinema.
— No cinema? — Levanto a sobrancelha e quase engasgo com meu
café.
— É, você sabe, onde a gente geralmente vai para assistir um filme
inteiro — completa com a voz baixa e o sorriso travesso no rosto. —
Podemos comprar chocolates e levar escondido para a sessão, só para trazer
uma emoção.
— Como amigos, certo?
— Claro, ou como… — Ele pensa por um momento, franzindo a
sobrancelha. — Como se fala namorado em português?
Ah, Charlie… O que você está fazendo? Meu coração está disparado
no peito e a única coisa que consigo pensar nesse momento é em tentar
mudar de assunto e fazer ele rir. Para tirar o foco da conversa. Ele não pode
fazer isso, eu imploro… Tudo menos isso.
— Cachorrinho — respondo de brincadeira, apertando os lábios em
um sorriso.
— Eu poderia ser seu cachorrinho — ele fala com sinceridade e isso
quebra meu coração.
Merda, merda, merda.
— Eu estava brincando, namorado não é cachorrinho. Não fala isso
por aí, tá? — O corrijo séria e dou um suspiro cansado. — Charlie, nós não
podemos fazer isso. Eu te falei que eu não namorava.
— Eu também te falei que não namorava, mas você não pode negar
que somos ótimos juntos.
— Sim, nós somos e você é incrível, mas… — Nego com a cabeça e
abaixo o olhar.
— Se eu sou incrível e nós somos incríveis juntos, diga sim, Nina.
Não é como se a gente já não tivesse intimidade o suficiente para isso e não
vejo qual seria o problema em passarmos mais tempo juntos.
— Não seria justo com você, porque eu não seria capaz de
corresponder da forma que você quer. E se eu não puder falar sim, com todo
o meu coração, eu prefiro não falar de forma alguma.
Ele está estudando minha expressão, vejo seus olhos percorrendo
cada centímetro do meu rosto confuso. E eu o admiro, como se soubesse que
aquela seria a última vez em que olharia para seu rosto tão perto do meu.
Eu faço você mudar de ideia, só me dê uma chance — Charlie insiste
—
e eu nego mais uma vez. — Eu não sei muito bem o que te fez ser tão
fechada assim, mas você me conhece. Sabe que eu não te magoaria. A gente
pode sair mais vezes, te levo para conhecer os lugares que você quer tanto ir,
ou podemos estudar juntos. Qualquer coisa que você queira.
— Ah, se fosse fácil assim… — Abro um sorriso triste. — Se eu tivesse
controle do meu coração, você com certeza seria minha primeira opção. Mas
eu não consigo mandar nele.
Charlie está claramente decepcionado, sem acreditar no que estou
falando, como se eu fosse completamente louca por recusá-lo. Ficamos em
silêncio pelo o que parece ser uma eternidade, os dois absorvendo as
palavras que acabaram de serem ditas. Ele ensaia falar mais alguma coisa,
mas desiste várias vezes enquanto termina seu chá.
— Por favor, não fique chateado comigo. — Sou a primeira a
quebrar o silêncio.
— Não estou chateado, só… Não era isso que eu esperava. Achei que
estivéssemos na mesma página.— Charlie aperta os lábios e suspira.
— Desculpa se eu fiz você pensar isso, achei que tinha sido clara
sobre o que eu estava procurando.
— Você foi, acho que eu que não quis ouvir. Você está com bateria o
suficiente no celular? Tem problema se eu te deixar sozinha agora?
Consegue voltar para casa ou precisa de ajuda?
— Eu consigo me virar… — Respondo com a voz baixa e ele
concorda. Não vou obrigá-lo a ficar perto de mim se ele quiser ir embora.
— Tá, então… A gente se vê, nas reuniões. — Charlie se levanta e
eu seguro sua mão.
— Ei, nós ainda podemos ser amigos, não precisa ser tudo ou nada.
Você mesmo falou que somos ótimos juntos, podemos continuar sendo
ótimos só… Sem ter algo sério.
— Acho que vai ser um pouco difícil para eu entender isso. A gente
conversa depois, pode ser? — Charlie dá um pequeno aperto na minha mão e
abre um sorriso triste, se abaixa para me dar um beijo na bochecha e sai do
café.
Ok, foi tão ruim quanto eu esperava.
Suspiro cansada e sei que seria ótimo se ficássemos juntos, mas
também tenho certeza de que tomei a decisão certa. É impossível fingir que
não estou sentindo essa sensação estranha no peito de que se eu não fosse tão
quebrada pelos meus relacionamentos passados, ou se vivêssemos em outra
realidade, a gente poderia dar certo.
Capítulo 28
ão sei como consegui escrever minha carta para o conselho se não parei
N
de pensar no beijo do Anthony, nem por um segundo. Passei o resto da
segunda-feira trancada no escritório e até segurar o xixi, segurei, para não
encontrá-lo de novo.
Nunca me vi como uma covarde, porque, apesar de assustada, sempre
enfrentei tudo o que aparecia na minha frente. Não dessa vez.
Não sei onde vou enfiar minha cara depois de ter me agarrado com meu
chefe desse jeito. Com o cara que eu implico desde a primeira semana de
aula. Tudo bem que ele mostrou não ser tão insuportável com o passar das
semanas, até fez eu gostar um pouco da sua personalidade e o achar
absolutamente lindo, mas realmente beijar?
Não só beijar, porque eu senti o pau dele em mim. Duro. Senti a pressão
de seus dedos em minha pele até depois de ter me soltado. Eu passei a mão
em sua barriga e desejei colocar a mão dentro de sua calça.
Passei de todos os limites minimamente aceitáveis do nosso
relacionamento.
Não sozinha, obviamente, já que ele quis tanto quanto eu. As memórias
já se embaralham de tal forma, que não consigo me lembrar quem beijou
quem. Ou talvez a gente tenha se beijado ao mesmo tempo.
Só vou embora para casa quando tenho certeza de que o escritório está
seguro, já que eu aceitei minha nova posição de covarde. A Marina que
geralmente levanta o nariz e dá de louca, fingindo que nada aconteceu e
saindo por cima das situações, não está presente no meu corpo neste
momento. Ela também não existe quando chego em casa e fico encarando a
tela do celular, que vibra com a chamada de vídeo da Mila.
Eu sei exatamente o que ela vai falar se eu atender: você é louca, você
vai estragar sua oportunidade, como você teve coragem, e agora?
Posso fingir que nada aconteceu, é claro, mas Mila consegue descobrir
tudo de mim e sabe exatamente quando estou escondendo algo só pelo meu
olhar, então a minha única alternativa é ignorá-la.
E é o que eu faço, até o celular parar de tocar e uma mensagem aparecer
na tela.
ronto, a conversa que eu não quero ter no momento foi evitada com
P
sucesso. Só não sei até quando, já que ela logo começará a desconfiar. Não
quero evitá-la, mas também não quero enfrentar os sentimentos que ela
despertará em mim.
Ao deitar na minha cama, repasso toda a cena em minha mente pela
milésima vez. Fecho os olhos e toco meus lábios, porque seu beijo está vivo
em minha pele, mesmo com a memória de como tudo aconteceu ser confusa.
Consigo sentir seu cheiro, seu toque e seu sabor de maneira muito real.
Sinto, inclusive, minha calcinha molhar quando foco tempo demais em sua
pegada firme em minha bunda e em meu peito.
Merda.
uando consigo parar de pensar em Anthony, a preocupação com a
Q
matéria e com a nota que ele escreveria me invade. É horrível não estar no
controle de algo e saber que não há nada que possa fazer para mudar as
coisas. Pego meu celular, mas desisto antes de abrir as redes sociais. Não
quero ver se tiver algo ruim, pelo menos não agora. Não sei como adormeci,
mas sei que acordo cansada no dia seguinte, como se minha mente não
tivesse descansado em momento algum. O que é compreensível, com a
quantidade de sonhos estranhos que tive. Era como se eu estivesse estudando
em outro lugar, e tivesse voltado a ser adolescente em um castelo…
Meus óleos essenciais não conseguiram dar conta de ajudar a me
concentrar nas aulas da manhã, e agradeci por Anthony não ter aula comigo
durante a semana, porque seria um lugar a menos para encontrá-lo. Evitá-lo
parece algo ridículo, mas toda a segurança que eu tenho em relação a
homens aparentemente evaporou do meu corpo no instante em que nossas
bocas se tocaram.
Sinto que me traí.
Ao pisar no escritório, percebo todos me olhando como se soubessem
exatamente o que aconteceu no dia anterior, mas também sei que é tudo fruto
da minha mente, já que não tem como eles terem descoberto. As semanas me
impondo e não deixando fofocas com o meu nome correrem, me ajudaram
até mesmo com a reportagem no jornal. Se desconfiavam de mim, ninguém
teve coragem de falar na minha cara. Parece que estava me preparando para
esse momento.
Pena que agora as fofocas sobre eu me relacionar com Anthony não são
mais fofocas. Ou são, porque foi só um beijo e nada mais do que isso. Que
droga, eu não acredito que minha mente está me enganando dessa forma. Eu
não me relaciono, nem confio em homens. Eu só me divirto com eles de
forma completamente casual e sigo minha vida. Sozinha. É isso que preciso
obrigar minha mente a entender. Não deixarei que esses pensamentos me
tornem paranóica com apenas um beijo, por mais incrível que ele tenha sido.
Rose, do marketing, me chama quando vê que estou indo para minha sala
e fala que a nota de esclarecimento já havia sido enviada, e que seria
impressa no jornal do dia seguinte, já que não deu tempo para sair no jornal
de hoje. Entretanto, o esclarecimento do que aconteceu já está correndo na
internet, principalmente nas páginas que postaram as notícias sobre o evento
beneficente. Ela sugeriu que eu não olhasse as redes sociais durante o dia,
pelo menos até fazer uma análise de como o público está reagindo à nota,
para eu não me afetar com os possíveis comentários negativos. Que bom que
não olhei ontem.
A situação foi remediada e, em breve, a cagada feita pelo jornalista
aproveitador será esclarecida. Enviei minha carta para Anthony assim que
terminei de escrevê-la, mas ele não respondeu. Sei que visualizou o e-mail,
já que coloquei confirmação de abertura. Agora, tudo o que me resta é
esperar que ele convença o conselho de que eu sou inocente para que eu
continue com meu emprego.
Sinto medo ao abrir a porta da minha sala, porque não sei se estou
preparada para encontrá-lo de novo. Esse é o nível de desnorteamento que
ele causou em mim. Uma onda de alívio involuntária percorre meu corpo
quando vejo que ele não está e solto o ar, que não percebi que segurava.
Acendo meu incenso de todos os dias e coloco um blend poderoso de
óleos no difusor, vou precisar de toda a ajuda possível. Porém, diferente dos
outros dias, não vou até a sala dele fazer o mesmo.
Continuarei sendo covarde por mais alguns minutos e não me importo, é
um pequeno direito que tenho e aproveitarei até a reunião presencial que
temos marcada para a hora seguinte. Sinto meu coração disparar no peito
quando vejo o compromisso na agenda e acho que estou tendo uma crise de
ansiedade.
Sou completamente patética.
Não pela ansiedade, mas por estar tão afetada assim por um cara que
eu nunca pensei que causaria qualquer reação desse tipo em mim.
Só porque não quero que a reunião chegue, a hora passa voando e,
quando preciso ir até a sala reservada, minhas pernas não me obedecem. Não
adianta eu forçar, elas simplesmente não se movem.
— Chega de ser covarde — murmuro para mim mesma e respiro fundo
algumas vezes. — Você não é boba e não fica afetada por homem nenhum.
Nunca.
Encorajo-me mais um pouco, pego dois cadernos, os documentos que
preciso e me levanto, vestindo a expressão mais segura que tenho e erguendo
o queixo. Posso tremer por dentro, mas ninguém precisa saber disso.
Passo na copa e pego uma xícara grande de café para manter minha mão
e boca ocupadas durante a reunião, depois vou direto até a sala com a mesa
grande e oval no centro. Não tem ninguém ainda, então conecto a televisão,
ligo o computador e faço o login no sistema, deixando tudo arrumado para o
resto da tarde.
m pouco tempo, os outros funcionários começam a chegar. Teremos
E
uma maratona de reuniões com pequenos grupos junto com a equipe do RH,
durante toda a semana , só para sabermos como todos estão e estabelecermos
as metas e planos dos próximos meses. Uma ideia de Anthony que, a cada
dia que passa, faz ainda mais mudanças no sistema de gestão de seu pai, mas
somente com a sua equipe. É como se precisasse mostrar que faz muito mais
do que é esperado dele. Felizmente, nessas reuniões não preciso fazer muito
além de escutar e tomar notas, para o caso de algo passar batido pelas
meninas.
Acho que vou infartar a cada pessoa que entra na sala, até que Anthony é
o último a abrir a porta. Com uma camisa verde, calça jeans escura, o cabelo
bagunçado e a barba rala emoldurando o rosto, ele está mais bonito do que
nunca e é impossível não observá-lo. Impossível não fitar sua boca
avermelhada.
A boca que eu beijei.
Diferente de mim, que não consigo tirar os olhos dele, Anthony dá uma
rápida encarada em minha direção e dá início à reunião. Geralmente se senta
ao meu lado, mas hoje ele escolhe a cadeira do lado oposto.
Ao longo da reunião, percebo que ele está sendo gentil e atencioso.
Valida os sentimentos dos funcionários, fala o que pensa e presta atenção no
que todos têm a dizer.
Menos no que eu tenho a dizer, porque parece que sou completamente
invisível para esse homem.
No instante em que eu abro a boca para falar qualquer coisa, Anthony
começa a fazer anotações no notebook. Nos últimos meses, aprendi a
reconhecer quando ele está me olhando e, durante toda a tarde, tenho certeza
que não dirigiu um olhar sequer para mim, não de verdade. Sua atitude é
completamente incômoda. Eu esperava o Anthony de todos os dias. Na
verdade, esperava por provocações e olhares que me fizessem lembrar do
beijo a todo instante. Achei que precisaria afastá-lo, não que seria ignorada.
Anthony só se dirigiu a mim no final do dia, depois da última reunião, e
mesmo assim nem olhou no meu rosto. Apenas pediu para eu enviar meu
relatório para ele por e-mail antes de ir embora e me deixar sozinha na sala
de reuniões.
Fiquei sem reação, tentando absorver todos os acontecimentos do último
dia e me achando completamente maluca. E se eu tivesse fantasiado tudo e,
na verdade, o beijo não aconteceu, somente nossa discussão sobre a
manifestação? É uma justificativa melhor para ele me ignorar, do que um
beijo que ele claramente havia gostado.
Porque ele gostou, certo!? Não estou ficando louca.
Ou estou!? Porque o mesmo tratamento se repete durante toda a semana.
Enquanto eu finjo que estou bem — e nem um pouco afetada por sua
presença e seu cheiro —, Anthony fala o mínimo possível comigo. Não
reclama da falta de cheiros em sua sala, como fazia quando eu não passava
lá antes de começar a trabalhar. Não para na porta do meu escritório para dar
oi ou me chamar para tomar um café com ele no meio da tarde.
Cada dia está mais estranho, mais distante. Eu não fazia ideia do quanto
sentiria falta dos pequenos detalhes da nossa rotina até receber esse
tratamento de silêncio. Enquanto estou pensando no seu beijo o tempo
inteiro como uma adolescente obcecada, começo a imaginar que o problema
esteja em mim, não nele.
Desgraçado, o que fez comigo?
Como se não bastasse, sigo ignorando Mila, que continua tentando
contato e já desconfia que algo aconteceu. Ela não está me forçando a falar,
mas as mensagens que manda durante o dia me fazem ter certeza que são
tentativas de me fazer lhe contar tudo. Não é possível ter tanta fofoca assim
no Brasil justo na semana que estou tentando evitá-la. Isso me deixa
péssima, porque estou fugindo da minha melhor amiga, ou melhor, estou
fugindo dos meus próprios sentimentos já que, no instante em que eu os falar
em voz alta, se tornarão… reais.
Como se já não fossem.
Mila me faz enfrentar meus medos e pensar com mais clareza, o que é
ótimo devido minha mania de pensar em todo mundo antes de pensar em
mim, assim como tenho uma pequena tendência a exagerar. Tenho certeza de
que ela não me diminuirá e, caso brigue comigo, será da sua forma doce e
preocupada, e não grosseira. Mesmo assim, é difícil. Não sei se estou
preparada para entender o que estou sentindo.
Assim, o fim de semana chega, o que me dá mais de 60 horas
completamente sozinha. Recusei o convite de Theo de sairmos para beber
uma cerveja na sexta de noite, com medo do assunto “Charlie” ser trazido à
tona, e só verei qualquer ser vivo, que não seja a Capitu, na segunda de
manhã. É tempo o suficiente para entender o que está acontecendo e colocar
um ponto final nessa situação interna.
empo suficiente para arrancar a vontade de beijar Anthony todos os
T
dias, principalmente quando entra naquela maldita sala de reunião.
Os enormes trabalhos da faculdade são a distração perfeita para
preencher minhas horas. No resto do tempo que minha cabeça está ociosa,
tento cuidar da minha casa, passar um tempo com a Capitu e maratonar De
Férias com o Ex Brasil, só porque as brigas são tantas e tão absurdas, que é
perfeito para o momento.
Já é domingo de tarde, quando escuto meu celular vibrando em algum
lugar perdido no sofá e, antes mesmo de achá-lo, sei quem está do outro lado
da ligação. Capitu está no meu colo, me olhando como quem diz “atende
logo, vagabunda”, porque sim, ela com certeza me chama de vagabunda o
dia inteiro.
Ao mesmo tempo que essa gata me ama, ela me odeia. Basta olhá-la para
saber exatamente o que está pensando. E eu a amo de volta, sem a parte de
odiá-la, porque é linda demais. Fofa, educadinha e perfeita.
Capitu mia, me tirando do transe que entrei pensando nela. Mila está
insistente, já passou quase uma semana sem conversarmos de verdade, mas
sei que ainda consigo fugir com jeitinho. Pego o celular de baixo de uma
almofada, respiro fundo e atendo, colocando-o no ouvido.
— Ei, não escutei tocando, estava colocando comida para a Capitu! Tudo
bem? — Falo de uma só vez tentando sorrir com a voz.
— Eu tô ótima, mas e você? Porque, assim, eu estou há dias esperando
você me contar o que está acontecendo, mas até eu tenho limite. — Mila
com toda certeza não está me engolindo mais e, se estivesse do meu lado,
estaria cruzando os braço em desafio. — Vamos, desembucha de uma vez o
que está rolando.
— De onde você tirou que tem algo rolando? — Sim, estou dando de
louca mesmo assim. Sim, eu sou uma péssima amiga de vez em quando. —
Está tudo normal por aqui, estou estudando e trabalhando. Essa semana
consegui dar uma passada naquela floricultura que eu gosto e comprei
algumas mudinhas novas, mas acho que uma delas não vai vingar… Lembra
dos netos da dona, os meninos que me ajudaram alguns meses atrás? Estão
trabalhando com ela agora, são bons meninos. Ah, e estou assistindo De
Férias Com o Ex, você nunca vai adivinhar quem brigou com quem dessa
vez…
— Eu não estou ligando para saber de reality show, Marina. — Mila me
interrompe e só o fato de me chamar pelo nome, e não pelo apelido, já me
faz estremecer. — Sei que tem alguma coisa acontecendo, é a única
explicação para você me evitar há dias. Sem contar que não tem postado
nada no Instagram e até sua mãe me mandou mensagem querendo saber se
aconteceu algo, porque te achou um pouco distante.
Fico em silêncio, ouvindo-a, e mordo a ponta dos dedos. Ela tem razão,
eu me afastei de todo mundo tentando entender o meu caos interno.
— Eu não estou ligando só pela fofoca, estou realmente preocupada com
você…
— Tá, eu sumi do Instagram porque não estou entrando nas redes sociais
essa semana… — Falo devagar e me jogo no sofá, puxando Capitu para
perto de mim novamente. Preciso de um apoio emocional agora e ela me
olha como se me desse forças para falar. — Tive alguns problemas porque
fui em uma manifestação, um jornalista inventou uma mentira sobre mim e
isso me afetou no escritório. Eu achei que fosse perder o trabalho, o meu
visto, a vaga na faculdade, ser deportada… Mas já deu tudo certo, emitimos
uma nota de esclarecimento que foi publicada e a assessora de imprensa
falou para eu me manter afastada das redes sociais por alguns dias só para
evitar as mensagens que pudessem me deixar triste. Acabou que nem senti
falta, então não voltei completamente a mexer.
— E por que você não me falou sobre isso? Sério! Eu podia ter ajudado,
ou passado horas respondendo qualquer mensagem te ofendendo! Dava para
chamar os meus calouros e obrigá-los a responder também, eles estão
devendo alguns favores para mim de qualquer jeito…
— Não precisa, sério, está tudo sob controle. Só que com essa situação
meio que perdi o eixo porque eu e o Anthony brigamos quando ele me
contou… — fecho os olhos pensando nas palavras que vão sair da minha
boca e inconscientemente falo mais baixo: — e nos beijamos.
— Você fez o quê?
Seu choque é nítido, tenho certeza que se estivesse comigo, estaria com a
boca aberta e encarando o nada, tentando processar o que falei.
— Beijei o Anthony. Agora, ele está me ignorando e fingindo que não
existo, só fala o mínimo. Só o extremamente necessário para o trabalho
andar.
— Você beijou o seu chefe? — Pergunta querendo uma confirmação. —
O gostoso de olhos claros que te irrita todos os dias e que escutou você
falando que sentaria nele?
erto, eu sou uma idiota por ter me segurado de falar com a Mila porque
C
agora um peso absurdo parece ter saído dos meus ombros. Eu preciso dela e
não sei como, depois de tantos anos, não entendi isso ainda.
— Ele mesmo, que agora ficou ainda mais gostoso, que pegou na minha
bunda com força, me empurrou na parede e ainda fez “Shhh” para mim. —
Desabafo e coloco a mão na testa, bagunçando meu próprio cabelo ao sentar
no sofá com o corpo para frente. — “Shhh” Mila, ele fez “Shhh”! Para eu
calar a boca e ele continuar me beijando. Agora, ele está me ignorando e
estou igual uma idiota pensando nisso por mais tempo do que gostaria de
admitir. Porque eu não fico pensando em homens depois de um beijo, pelo
menos não do jeito que eu estou agora. Eu sou patética.
— Você não é patética, para de se diminuir! — Esbraveja. — Bom, não
dava para esperar muito daquela carinha bonita de quem vai ferrar com a
vida de qualquer uma que aparecer.
— Nem me fale… E fodi com tudo. — Passo a mão no rosto e sinto
algumas lágrimas se formarem em meus olhos involuntariamente. — Eu o
beijei, ele me beijou, e foi… Bom pra caralho, Mila! Provavelmente o
melhor beijo que eu já dei na minha vida e não foi pela briga, foi…
Realmente bom.
— Nina, que fic é essa? Como assim foi “realmente bom”? Você está
chorando? — Ela está preocupada.
— Foi… Como um respiro sabe. Eu estava quente, agitada, ansiosa, com
medo de ter fodido com toda a minha vida e, de repente, não estava mais.
Foi como se todo o peso em mim desaparecesse. Então, lembrei quem eu
estava beijando e o afastei, é claro. — Falar o que estou sentindo é estranho,
mas me traz clareza. — Agora, tenho certeza que ele está me ignorando, até
eu não aguentar mais e pedir demissão. Ele já me falou uma vez que não fica
com assistentes.
— Tá, calma… Você não conversou com ele depois disso?
— É claro que não, ele está me ignorando de verdade! Nem levanta o
olhar para falar comigo, parece que não existo a maior parte do tempo.
— Vocês estão fingindo que nada aconteceu? — Meu silêncio é a
resposta que ela precisa. — Vocês precisam conversar, ou então essa
situação vai consumir a sua cabeça. O melhor é colocar tudo na mesa e se
resolverem.
— Eu não posso chegar nele perguntando sobre o beijo! Ele nem olha
para mim, você tem noção? Quando precisa me pedir algo, fica de cabeça
baixa e tem sentado do outro lado da mesa de reuniões, sendo que, semana
passada, sentava do meu lado e até roubava minhas anotações, porque
costuma esquecer um caderno. Porra, eu levo um caderno extra para ele,
quando me tornei essa idiota?
— Você só faz o seu trabalho, Nina, e não importa o que seja, você
sempre faz tudo o que se propõe da melhor maneira possível. Então, você só
vai aguentar? Marina, eu te conheço como a palma da minha mão e sei que
não vai conseguir trabalhar com ele todos os dias nessa Guerra Fria. Uma
hora o seu surto chegará e sabe tão bem quanto eu que não será nada bonito.
Você é um doce, até não aguentar mais.
— Você é a única que me acha um doce. — Solto uma risada nasalada e
fungo, limpando o nariz choroso. — Passei os últimos dias refletindo sobre
tudo e não sei, agora que falei em voz alta… Talvez seja melhor eu me
demitir. — Solto um suspiro cansado e deito a cabeça no braço do sofá,
quando uma lágrima solitária escorre. — Não dá para ser assistente de
alguém com quem você nem conversa e que, bom… Você sentiu o pau roçar
na sua barriga.
— Você está fungando e falando do pau do seu chefe?
— Parece ser um bom pau — tento brincar no meio da minha desgraça e
nós duas damos risadas.
— Deve ser difícil assinar papéis e conversar sobre documentações
lembrando do membro enrijecido dele. — Dá ênfase no final, tirando sarro
com os livros que leio e falam dessa forma sobre homens excitados.
— No primeiro dia, depois do beijo, foi tão difícil, eu estava com
vergonha, o que é completamente estranho para mim, mas engoli e fingi que
estava tudo ótimo e nem um pouco afetada, mas… Só eu estou surtando,
tenho certeza disso.
— Você queria que ele estivesse surtando? — Mila pergunta
desconfiada.
— Ah, que tivesse alguma reação pelo menos. Poxa, ele realmente me
beijou e a gente estava se aproximando… Enfim, eu claramente estava tendo
algumas fantasias inconscientes que só deram as caras depois do beijo.
— Olha, se você acha que pedir demissão será o melhor, te apoio. Tenho
certeza que consegue outro lugar rapidinho e posso te ajudar a enviar
currículo. De qualquer forma, fala com ele. Coragem, você é a Nina, poxa!
Nunca te vi abaixar a cabeça para ninguém, muito menos para um homem
que te beijou. Você já passou dessa fase.
Sim, acho que por isso que estou tão assustada assim. Estou insegura,
—
sem entender o que estou sentindo. — Solto um suspiro e seco as lágrimas
no rosto.
— E o Charlie? Não se falaram mais?
— Não desde que dei um fora nele, o que é uma merda, porque ele é um
amor e um bom amigo, mas… Eu sou louca por ter terminado? Porque ele
era certeza, calmaria e eu definitivamente não senti esse peso no coração em
nenhum dia que estive com ele.
— Ele realmente é um amorzinho, mas achei estranho o dia que ele
apareceu na porta do seu apartamento do nada. Sei lá, quando você me
contou foi como se um cartão amarelo tivesse sido levantado para mim,
sabe?
— Você está falando da primeira vez?
— Então, tiveram outras vezes?
— Ah, algumas, mas nada demais. Ele fez amizade com minha vizinha e
ela o deixava entrar, aquela velha sempre fica na rua. — Fico um pouco
inquieta com o que ela falou, porque nunca havia pensado assim.
— Bom, eu achei estranho, principalmente por vocês não namorarem.
Não acho que você errou em terminar com ele, já que não estava sendo
recíproco. Em um relacionamento, os dois lados precisam estar na mesma
página para funcionar, independentemente de ser romântico ou não.
— Toda filosófica, uau! — Brinco e fico em silêncio por alguns
poucos segundos. — Verei como serão os próximos dias no escritório. Se for
igual aos outros, comunico minha demissão. É melhor.
— Pensa direitinho antes de tomar uma decisão definitiva, tá bom?
— Pode deixar, e desculpa por ter te ignorado a semana toda, eu só
estava com medo de te falar e acabar sentindo.
— Tudo bem, eu sei que você não recusaria fofoca brasileira sem um
bom motivo! — Sinto que está sorrindo. — Sou sua consciência, lembra? A
única pessoa que te impede de fazer grandes burradas. Eu estou aqui sempre
que precisar, no seu tempo… Só não demora muito na próxima vez!
Sorrio com sua risada e nos despedimos. Decido parar de fugir da vida.
Seja quem for essa pessoa que assumiu meu corpo e colocou minhas
inseguranças em primeiro plano, está na hora de guardá-la no fundo da
minha mente e trazer a velha Nina de volta.
A Nina que não ficaria travada por um homem e muito menos
aceitaria ser ignorada por ele a semana inteira.
Capítulo 30
“Eu não quero que o mundo me veja, porque eu não acho que eles
entenderiam
Quando tudo é feito para ser quebrado, eu só quero que você saiba
quem eu sou”
Iris - Goo Goo Dolls
iro um pouco o rosto para trás e nosso olhar se encontra. Penso por
V
alguns momentos no que dizer e apago a resposta algumas vezes, até
finalmente apertar o botão de enviar.
O que ele quer dizer com “a Vann entrou com um processo junto à
—
Prefeitura para fechar o Centro”?
Questiono Anthony, depois de confirmar minha presença na reunião de
emergência. Meu coração está apertado, e tento processar as poucas frases de
Thomas, antes de precisar desligar.
— Explique melhor. — O loiro fica confuso, apoiando a mão em minha
cintura enquanto me encara com uma curiosidade.
— Thomas acabou de falar que receberam uma notificação da prefeitura
com uma lista absurda de obras que precisamos fazer para manter o Centro
aberto, ou ele será derrubado em breve, em parceria com a Vann
Empreendimentos. Você sabia disso?
— É óbvio que não, você não acha que eu te contaria se soubesse de
alguma coisa?
— Eu espero que sim, porque, até onde me lembro, você falou que me
ajudaria. — Cruzo os braços em frustração, incrédula. — Que merda! O que
está acontecendo?
— Eu não sei, Dias. Eu realmente não sei de nada, mas podemos
descobrir.
Anthony está sério agora, sem brincadeiras, sem charme. É como se
desligasse algum botão em si e ativasse o modo de trabalho e foco.
Acompanho-o até sua mesa e paro ao lado de sua cadeira, esperando o
computador ligar. O único som que consigo escutar é o de nossas
respirações, até o computador estar pronto e Anthony abrir a pasta de
LittleWin. Nós dois passamos os olhos pela tela, procurando a subpasta do
Centro que continua com senha, até mesmo para ele.
— Por que seu pai está fazendo isso? São vidas e famílias que serão
prejudicadas, bem que ele me falou que teríamos muito trabalho… — Bufo
em frustração. Essa reunião de emergência vai ter um grande foco em mim e
não sei o que dizer aos outros, já que nem o herdeiro da empresa tem acesso
ao projeto. É óbvio que estão escondendo algo.
— Meu pai te falou o que? — Anthony levanta a cabeça para me olhar,
surpreso ao saber que falei com Archibald.
— Ele está no prédio hoje, nos encontramos no elevador e ele falou que
chegaria um projeto importante de tarde. — Me afasto da mesa de Anthony
e, inconscientemente, ando até a janela, abrindo-a para respirar um pouco de
ar puro. — Merda, eu estou fodida! Provavelmente eles vão me pedir para
fazer muitas coisas que eu não faço ideia de como fazer, e eu não posso
fazer qualquer coisa que vá ferrar com você. Também tem toda a pressão
que eu, claramente, não sou boa para lidar. Sem contar o…
— Ei, ei, ei! — Anthony se levanta e vai até onde estou, segura meu
rosto com as duas mãos e me faz olhar para ele. — Respira fundo, comigo.
Não havia percebido que estava começando a ter uma crise de ansiedade,
só quando Anthony me força a respirar com ele que sinto o formigamento
familiar na minha mão, além do coração disparado. É sempre assim, de
repente, perco todo o controle que tenho de mim.
Foco minha atenção em sua respiração.
Nossa respiração.
— Que planta é aquela? — Anthony tem a voz baixa, olhando para
trás de mim e me fazendo olhar também.
— Espada-de-São-Jorge — respondo no mesmo tom e vejo-o
respirar fundo, me fazendo repetir o processo com ele.
— E ela tem algum poder mágico?
Entendo que está tentando me fazer falar de algo que gosto para me
acalmar. Seguro seu antebraço enquanto ele acaricia meu rosto devagar,
ainda me fazendo manter a respiração ritmada com a dele.
— Tem, ela… — Respiro fundo mais uma vez e fecho os olhos,
soltando o ar devagar. — Afasta mal olhado e é purificadora, já que absorve
qualquer substância tóxica do ar, depois devolve o oxigênio mais limpo. Mas
deveria estar perto da porta, tem mais efeito lá.
— Eu não sabia, por isso coloquei na estante. Vou colocar lá de
novo depois, tudo bem? — Anthony mantém o olhar no meu, me passando
uma calma e tranquilidade que faz a sensação sufocante lentamente
desaparecer.
Não sei quantos minutos ficamos assim, apenas nos olhando e
respirando juntos, enquanto respondo às perguntas de Anthony sobre
plantas, mesmo sabendo que ele não tem real interesse no que estou lhe
dizendo. Uma lágrima solitária escorre pelo meu rosto quando me sinto bem
e Anthony seca minha bochecha com cuidado.
— Obrigada… — murmuro e tento me afastar, mas ele não deixa e
segura minha mão, entrelaçando nossos dedos com firmeza.
— Eu falei que te ajudaria, não falei? — Anthony coloca meu cabelo
atrás da orelha e só agora percebo que ele passou esse tempo todo falando
em português.
— Eu também falei que ajudaria e agora um grupo inteiro de pessoas
vai me colocar contra a parede hoje à noite. Mas não tem nada que eu possa
fazer para reverter a situação…
— Não ponha toda a culpa em cima de você, isso não é justo. — Sinto
seu braço me envolver em um abraço quente e, quando deito a cabeça em
seu peito, escuto seu coração batendo forte. — Marina, me escuta… O que
você está fazendo com a Ordem, de atrasar documentação para as pessoas
terem chances de continuar com seus negócios, é muito arriscado, você sabe
disso. Sei que tentava fazer tudo escondido de mim, mas eu percebi logo no
início, e se fosse qualquer outra pessoa no meu lugar, você poderia estar
com um grande processo de fraude nas costas.
— Eu sei disso, Anthony. Só que não existe alternativa para mim, e
não só por causa da Ordem, ou por sua causa. Simplesmente não consigo
ver uma injustiça e ficar calada. Você sabe que não pedi esse emprego por
isso, as coisas só aconteceram, e eu tento ajudar, sei lá, a driblar as merdas
que acontecem aqui. Você acha justo a forma que a Vann consegue essas
empresas? — Nego e me afasto de seu abraço, assustada com o rumo dessa
conversa.
— É claro que não acho justo e é por isso que quero que continue
fazendo. Meu pai está roubando a empresa há anos e eu só descobri quando
ele finalmente me deixou trabalhar perto dele. Antes, eu era apenas um
qualquer, sem função certa e que recebia um salário grande por ser quem
sou. Então, estudei até me mostrar capaz. Quando ele começou a confiar em
mim, descobri que o crescimento rápido da Vann acontece por causa de
acordos corruptos e sigilosos que ele faz com o governo. O que você tem
visto não é nada perto do que estou descobrindo, e nós dois estamos
ajudando tudo a continuar.
— Ajudando? — Dou um pequeno passo para trás, confusa.
— Não fizemos nada quando vimos a diferença de valores na maioria
dos orçamentos aprovados das últimas semanas, ou fizemos? — Anthony
levanta a sobrancelha quando entendo o que ele quis dizer. — Estou
reunindo provas, Marina. Provas de tudo o que ele tem feito, porque não vou
assumir um lugar sujo como esse, quero minha empresa limpa. Quero que o
dinheiro que a gente usa para os projetos sociais não seja manchado por
corrupção. É um dos motivos de eu ter ficado tão bravo com ele ter
aparecido no evento do Instituto, fazendo todo aquele teatro de benfeitor…
Você está entendendo onde quero chegar?
— Você precisa de tempo. — Falo de forma segura e Anthony confirma.
— Por que você não tem acesso ao projeto? Quer dizer, você deveria poder
ver o que está acontecendo, não?
— Sinceramente… Não tinha percebido isso antes. — Anthony olha para
o computador e volta para mim. — Qual é o seu plano?
— Bom, você precisa de tempo e eu preciso descobrir o que está
acontecendo no Centro, então acho que podemos trabalhar juntos.
— Estamos fazendo muitas coisas juntos ultimamente… — Anthony abre
um pequeno sorriso convencido que me faz sorrir também.
— Deve ser alguma brincadeira do universo nos obrigando a ficar no
caminho um do outro.
— Por mim, tudo bem.
— Certo, o que eu faço, então? — Respiro fundo e levanto o queixo,
como se estivesse me preparando para o que vem a seguir.
— Vá na reunião, descubra o que está acontecendo e, assim que
soubermos mais, tentaremos ajudar o Centro.
— E depois?
— Darei um jeito de colocar meu pai na cadeia, pelo que está fazendo
com a memória de nossa família e por tudo o que fez com minha mãe.
Capítulo 34
“Eu não quero ficar a fim de você se você não me tratar do jeito certo
Veja, eu só posso começar a te ver, se você puder fazer meu coração se
sentir seguro”
Say Ok - Vanessa Hudgens
hego na faculdade cansada por causa das poucas horas de sono que
C
tive, já que fiquei até tarde tentando resolver todas as pendências. Não as
zerei e sei que vou perder mais algumas horas de sono, nos próximos dias,
para colocar tudo em ordem, mas valeu a pena porque, mesmo com o
cansaço físico, sinto minha alma renovada. Não troco essa sensação por
nada.
Benji está animado e não para de falar desde que nos encontramos em
nosso carrinho de café favorito. Não consigo processar nem um terço do que
ele diz enquanto a cafeína entra no meu organismo e começa a fazer efeito,
me deixando mais ligada.
— Você está me escutando?
— Estou? — Faço uma careta culpada. — Não estou, desculpa. Repete
por favor, prometo te dar toda a atenção que você merece.
— Vou no escritório da reitoria depois da aula, para agendar uma reunião
de emergência sobre o festival, vamos tentar usar o campo.
— É uma boa ideia, mais fácil de arranjar público já que estaremos por
aqui. Por que o Thomas não fará isso, já que ele é o líder do grupo?
— Ah, ele tem que cuidar de outras coisas — Benji dá de ombros e
morde os lábios nervoso. — Passou o final de semana correndo atrás de
empresas para fazer o orçamento das reformas do Centro, então…
Então, você não deveria ir sozinho. Não me leve a mal, você é um
—
amor, mas não é muito persuasivo.
— Ouch! — Benji coloca a mão no peito como se tivesse levado um
soco, me fazendo rir.
— Desculpa! — Dou risada e o abraço sem parar de andar. — Leva
alguém com você, alguém tipo o Theo ou o Charlie.
— Na verdade, eu pedi para a Ava ir comigo.
— Benjamin… — Levanto uma sobrancelha em advertência e o solto
devagar, vendo seu rosto ficar levemente vermelho. — Você sabe muito bem
que ela não está interessada, e não é nem por sua causa, ela gosta de mulher!
Isso não vai mudar.
— Eu sei disso, e eu não espero que ela mude ou qualquer coisa do tipo,
já aceitei que ela gosta de mulheres e que nunca ficaria comigo, mas gosto
da companhia dela. Somos bons amigos. — Benji esbarra o ombro em mim,
me fazendo virar em direção ao nosso prédio.
— Vocês são ótimos amigos, o problema é que você fica se iludindo
sozinho já que eu sei que ela não te dá falsas esperanças. Você devia deixar
esse sentimento ir, não dá para ser apaixonado por alguém que nunca vai
gostar de você de volta desse jeito, é tortura. Você parece a Mila, os dois
ficam se apaixonando por pessoas erradas e só se magoando, talvez sejam
almas gêmeas e nem sabem.
— Já te falaram que você é impossível? — Benji dá um gole no seu café
e eu paro de andar antes da escadaria, olhando para ele confusa. — Está tão
preocupada comigo, mas e você, hein? O Charlie gosta bastante de você e
vocês não estão mais juntos? Não faz sentido e ele ficou bem magoado, você
nem ao menos me contou.
— Ah, Benji… Não queria ser eu a pessoa a contar, já que vocês são
amigos há mais tempo e sempre deixei claro que não queria compromisso.
Tudo aconteceu muito rápido e, quando me toquei, todos estavam levando a
gente muito a sério, até as crianças do Centro achavam que estávamos
juntos. Não era isso que eu queria, sabe. — Subo as escadas sem olhar para
ele, é a primeira vez que falamos sobre o “término”, o que quer dizer que
Charlie contou para os outros, ou para alguém, e a fofoca se espalhou. — Ele
é muito legal, gentil, educado e engraçado… Sério, eu gosto muito dele,
muito mesmo, mas não desse jeito. Não o suficiente para aceitar o rumo que,
o que quer que estava acontecendo entre nós dois, estava tomando, sabe?
Vocês eram incríveis juntos, se davam bem, eram engraçados, todos
—
gostavam de ficar perto de vocês… — Benji nega e eu solto uma risada
nasalada. — Você só está enganando a si mesma.
— Acredite, eu não estou. Sei exatamente o que sinto e não tenho como
controlar meu coração. Talvez, em outra vida, Charlie fosse a pessoa perfeita
para mim e eu tenho certeza que meus pais iam amá-lo, e eu seria muito feliz
do lado de alguém como ele, mas nessa realidade… Não é por ele que o meu
coração bate mais forte. — Paro de andar à frente da enorme porta, sem me
importar com os outros alunos desviando de nós para entrar no prédio.
— Isso quer dizer que tem alguém que faz seu coração bater mais forte?
É por isso que você terminou com ele?
Fico quieta. Charlie é uma pessoa que todos sabiam quando estávamos
saindo, já que entrei no seu círculo de amizade e todos gostavam de nós dois,
mas Anthony… Não é como se eu pudesse contar a eles que estou me
apaixonando por um dos “culpados” indiretos de todos os problemas que
estamos enfrentando no grupo nos últimos meses. Eu sei qual é a índole e a
intenção de Anthony, mas os outros não e não cabe a mim mostrar isso a
eles, não quando ele não está nem um pouco disposto a fazer isso agora.
— Podemos não falar sobre isso? — Volto a andar pelo corredor,
puxando minha bolsa pelo ombro e dando um grande gole em meu café.
Talvez ele fosse o mais compreensivo de todos se eu contasse, mas o que
vou falar? Que beijei o Anthony algumas vezes e passei o final de semana
em seu apartamento? Não é o momento de saberem, primeiro pelo Charlie e
segundo por mim. Já está difícil o suficiente que eu consiga abrir meu
coração, quem dirá deixar que os outros saibam o que está acontecendo.
Benji não fala mais nada, vejo-o ajustar a mochila no ombro e seguimos
em silêncio até a sala de aula. Isso é algo que gosto bastante da nossa
amizade, ele não me pressiona e respeita meus limites, seja em assuntos mais
sérios ou não. Nós nos entendemos, talvez mais do que qualquer outra
amizade que eu tenha feito aqui nos últimos meses.
Estou perdida em pensamentos quando passamos pela porta da sala e,
inconscientemente, meus olhos percorrem todo o local até a minha mesa,
fazendo meu coração disparar ao ver quem está ali.
Anthony.
— Volto já — levanto o nariz e escondo o sorriso involuntário.
— Sem brigas — é o que Benji responde e sei que nem me segue quando
vou até o metido arrogante pelo qual estou, cada vez mais, nutrindo
sentimentos.
Quanto mais perto chego, mais convencida a postura de Anthony fica.
Ele cruza as pernas e as coloca no corredor, para impedir minha passagem de
propósito e me obrigar a parar do seu lado. Ah, merda, como eu senti falta
dele nessas horas longe… O que é ridículo, mas impossível de não me sentir
assim quando vejo seu olhar carregado de diversão e satisfação.
— Hoje é segunda — cerro os olhos e cruzo os braços à frente do corpo,
mantendo minha pose de durona do dia a dia. — Você não deveria estar aqui.
— Não? — Anthony coloca a mão no peito e olha ao redor, fingindo
procurar algo. — Achei que o professor Herman fosse meu conselheiro, por
isso tenho direito de assistir às aulas dele.
— Você é impossível — reviro os olhos com um pequeno sorriso no
rosto —, e está sentado no meu lugar!
— Achei que já tivéssemos superado essa discussão… — Seu rosto
carrega uma malícia deliciosa e, porra, minha vontade é de colar sua boca na
minha. Será que ele está com o gosto doce de chá ou das balas de menta que
carrega no bolso? — Como sei o quanto adorou sentar em mim ontem, fique
à vontade… Assim, resolvemos o problema com a mesa.
— Vai ficar falando putaria em português só porque ninguém mais
consegue entender? — Levanto a sobrancelha e ele dá de ombros, se
divertindo.
— Antes a graça era escutar você me xingando, agora é ver você
vermelha porque estou falando, na frente de todo mundo, que estou louco
pra te foder de novo.
— Eu te odeio. — Respondo ainda escondendo o sorriso e sentindo
minha bochecha ficar imediatamente vermelha.
— Não odeia, não. — Anthony sorri convencido por ter acertado em
cheio a minha reação.
— Você é um idiota, nem parece que estava todo romântico e caidinho
por mim, ontem.
— Posso ser romântico e ainda querer te foder, Dias. — Anthony
aproxima um pouco o corpo na minha direção e solto uma pequena risada
sem graça.
Olho ao redor e noto seus amigos prestando atenção em nós dois, o que
me faz enrijecer a postura e tirar o sorriso do rosto, como um mecanismo de
defesa inconsciente. Viro-me para Benji do outro lado da sala e ele também
está prestando atenção com curiosidade, realmente interessado no que quer
que estejamos conversando.
Merda.
Será que o motivo dos seus amigos estarem olhando para nós é porque
ele contou sobre o que está acontecendo entre a gente? Ou eles realmente
estão achando estranha essa interação que está longa demais aos olhos
públicos? É raro passarmos tanto tempo juntos na frente dos outros e só me
toco disso agora, porque quando estamos só nós dois, nossas interações são
completamente naturais.
— Na verdade, eu só queria te irritar, estava guardando o lugar pra
você. Trouxe meu computador com a carga completa, então a tomada no
lugar perfeito pode ser sua.
Esse homem ainda vai me fazer derreter de amor, ou pior… Vai acabar
comigo de uma maneira que será impossível que eu me recomponha depois
dele partir. Estou tão lascada, que parece até brincadeira e, por um milagre,
estou feliz com isso.
A realidade me atinge quando uma garota no meio da sala deixa o
caderno cair no chão, fazendo um barulho grande. Certo, isso não pode
acontecer agora e eu preciso deixar tudo claro, já que não conversamos sobre
antes. Com certeza, é um péssimo momento para isso, mas não vou
conversar com ele por mensagem e nem ignorá-lo o resto da manhã para só
conversarmos de tarde. Já estamos tempo o suficiente conversando, mais
alguns minutos não vão fazer diferença e sempre podemos usar o trabalho
como desculpa.
— Na verdade, acho melhor eu sentar com o Benji, como todos os dias,
porque ninguém sabe de você. E de mim. De nós, na verdade. Não que eu
devesse contar para alguém sobre qualquer coisa que aconteceu, até porque
a vida é minha. E sua, é claro. Sua vida. Ou nossa, enfim. Eu acho que
talvez, agora, não seja um bom momento para ficar perto de você aqui na
faculdade. A gente está começando a fazer os planos para arrecadar
dinheiro para salvar o Centro, como eu te falei, e eles não ficarão nem um
pouco felizes quando souberem que estou saindo com você. Se é que a gente
está saindo. Acho que depois de ontem podemos dizer que estamos saindo,
mas…
— Eu me esqueço que você fala pra caralho quando está nervosa. —
Anthony me interrompe e eu pisco algumas vezes.
Desculpa... — Murmuro e abaixo o olhar para o chão. A segurança
—
foi ralo abaixo no instante em que abri a boca.
— Isso que você está me falando é ridículo, ninguém tem nada a ver com
a sua vida. E daí que você está saindo comigo?
— Anthony… — Suspiro soltando os ombros e olho rapidamente para
Benji, que ainda está nos encarando. — Eles esperam que eu descubra o
plano da empresa com o Centro, como vão agir se descobrirem que saí com
você? E você está com todos os seus planos, se te associarem ainda mais a
mim, sendo da Ordem e com a exposição no jornal por isso… Não sei se é
um bom plano por enquanto.
— Não concordo com nada do que está falando. — Anthony fica sério e
não tira os olhos de mim. — E estou surpreso por, logo você, se preocupar
com isso.
— Só por um tempo?! Até eu pensar em uma maneira de, sei lá,
preparar o terreno e ninguém achar que estou traindo o grupo por dormir
com o inimigo. Isso não quer dizer que quero ficar longe de você, de
maneira alguma. Depois desse final de semana, você meio que tornou isso
impossível para mim e está extremamente difícil não te beijar agora. —
Anthony abre um mini sorriso, quando olho para sua boca, o que acalma um
pouco meu coração. — Mas eu acho que deveríamos manter isso só entre a
gente. Só por algumas semanas, até eu entender o que está acontecendo
comigo e como equilibrar tudo.
— Certo, Dias. Se é isso que você quer, então não tenho muita opção
além de aceitar, já que me afastar está fora de cogitação. Você pode, ao
menos, almoçar comigo hoje antes de irmos para o escritório?
— Eu meio que tenho um compromisso no almoço. — Faço uma careta
culpada e sinto raiva de mim mesma. — Vou almoçar com uma amiga para
ver se a banda que ela trabalha consegue ser a atração principal do festival.
Para chamar mais gente na arrecadação de dinheiro.
— Certo… Então, acho que te vejo no escritório?! — Anthony está
claramente decepcionado e isso aperta meu coração.
— Claro. — Dou um sorriso e vejo o professor entrando na sala, em
seguida sendo parado por uma aluna segurando alguns papéis nas mãos, o
que me dá mais alguns segundos livres. — Tá tudo bem mesmo? Não vai
ficar bravo comigo?
— Está tudo bem, Dias. Você tem a sua vida e eu respeito isso. Mas, se
não estiver no meu escritório hoje, serei obrigado a ir atrás de você, porque
não sei se vou aguentar mais muito tempo longe.
Aperto o sorriso, tentando fingir que não fiquei afetada com ele,
enquanto concordo e começo a me afastar, indo até onde Benji está, mas
troco pequenos olhares com Anthony durante toda a aula.
Capítulo 39
“Eu estou passando por mudanças, mas eu juro que sou o mesmo
Você poderia me mostrar um pouco de paciência pelo caminho?”
Changes - Hayd
Amor.
Sorrio quando leio o apelido, é a forma que mais gosto de ser
chamada por ele. Vindo da boca de outras pessoas, eu ficaria pensando no
significado e de como era inapropriado ele me chamar assim sem nem ser
algo meu. Entretanto, sinto aquela marra gostosa quando ele fala com a voz
debochada de quem não quer magoar, e sim provocar. Por isso que eu me
derreto toda vez que me chama assim.
Fico tímida assim que leio a mensagem. É esse o efeito que ele tem
sobre mim. Anthony MacMillan flerta e eu, imediatamente, fico com as
bochechas quentes e dando sorrisinhos como uma adolescente.
Dou risada com sua última mensagem, porque ele não faz ideia de
que a camiseta que ele gosta é exatamente a que estou usando. Uma camiseta
cinza oversized da faculdade que eu acabei roubando do seu guarda-roupa
depois de sair atrasada do seu apartamento alguns dias atrás.
Marina Dias (23:19) diz:
Já estou com ela.
Segundos depois da mensagem ser lida, meu telefone toca com uma
chamada de Anthony. Estou sorrindo desde o começo da conversa e sei que
isso ficará claro em minha voz, mas não me importo.
— Alô? — Faço-me de desentendida e ele ignora completamente.
— Você roubou minha camiseta? — Sua voz rouca e baixa me faz
morder os lábios.
— Ela não deve ser tão importante assim, já que você demorou quase
uma semana para perceber o desaparecimento. Se quiser de volta, vou pedir
um valor de resgate, mas já deixo claro que ela fica melhor em mim. —
Olho para a camiseta e puxo a gola até meu nariz, sentindo o cheiro dele no
tecido.
— Fica mesmo, e é por esse único motivo que não vou pedi-la de
volta.
— Obrigada. — Dou uma risada baixa e escuto sua respiração calma
do outro lado da chamada. Passo o dedo pela costura da coberta e mordo os
lábios travessa. — E se, por um acaso, eu aparecesse aí… Você usaria o que?
— Só os óculos, o que acha?
Merda… Imaginar o Anthony na minha frente, deitado no sofá, lendo
um livro e não usando nada além dos óculos faz com que eu sinta o pulsar
gostoso que ele causa no meio das minhas pernas.
— Acho que você vai ter que dar um jeito de adiantar o relógio e
voltar logo.
Agora, é sua vez de rir, a risada sincera e prazerosa que solta cada
vez mais.
— O que você está fazendo agora?
— Assistindo um filme… E você?
— Pensando em você, querendo te ver com minha camiseta… — Sua
voz ficou baixa de repente, preguiçosa e carregada de um ronronar gostoso.
Tenho certeza que, se estivéssemos juntos, seus olhos estariam fitando minha
boca.
— Isso é uma alternativa do hétero de “manda foto de agora”? —
Provoco da mesma forma.
— Não, mas se você quiser mandar, não vou reclamar.
Reviro os olhos, mas abro a câmera do celular, tiro uma foto e a
envio.
— Sinto-lhe dizer que essa é toda a sensualidade que estou
esbanjando agora. Cabelo preso, camiseta larga e meia por cima da calça.
Anthony nunca me viu realmente confortável, já que em todas as
vezes que dormi em sua casa eu estava bonitinha, com o cabelo bagunçado
pós sexo, sorriso no rosto e vestindo suas roupas. O que, provavelmente, é o
que ele mais gosta de me ver usando.
— Sexy, principalmente sabendo o que tem por baixo de tanto pano.
— Eu não mereço uma foto também?
O silêncio que segue é sinal de que Anthony está tirando a foto.
Quando o celular vibra no meu rosto, abro a imagem depressa.
— Eu te odeio — murmuro vendo-o com uma camiseta simples,
cabelo bagunçado e óculos na ponta do nariz.
— Só porque eu sou tão gostoso, que te excito com uma foto do meu
rosto? — Ri e escuto o barulho dele se mexendo na cama.
— É, exatamente por isso.
Ficamos em silêncio, sua respiração e o bater forte do meu coração
sendo os únicos sons preenchendo o ambiente. Estou com saudade dele e faz
dois dias que nos vimos pela última vez. Estou perdida, e querendo escutar
meu coração, não minha mente.
— Queria te beijar. — Não consigo controlar as palavras que saem
da minha boca.
— Eu estou louco para te beijar, pra te sentir. Você me invadiu de um
jeito que não consigo te tirar da cabeça, Marina.
— Não fala assim… — Suplico baixo e fecho os olhos. — Eu vou
acabar acreditando.
— Então, acredite, porque eu só queria estar ao seu lado agora,
sentindo o cheiro do seu cabelo e te beijando inteira.
Minha pele se arrepia e meu clítoris pulsa, imaginando seus dedos
segurando meu cabelo e puxando minha cabeça para trás, deixando meu
pescoço livre para sua boca me invadir. Minha respiração fica pesada e um
pequeno gemido escapa dos meus lábios. Tento transformar aquela sensação
em realidade passando a ponta dos meus dedos em minha pele, servindo de
combustível para a respiração pesar ainda mais.
— Nina… — Anthony sussurra meu apelido pela primeira vez, o que
me faz enterrar no sofá em deleite. — O que você está fazendo?
— Imaginando você aqui beijando meu pescoço e me segurando
perto.
— E o que mais eu faria se estivesse aí?
Merda, a pulsação aumenta de uma forma deliciosa e é preciso
umedecer os lábios secos pela respiração pesada.
— Não sei, me diz você… — Provoco.
— Eu ia começar tirando essa sua calça, quero você vestindo só a
minha camiseta. — Anthony ronrona.
— E se eu ficar com frio?
— Então, eu não estaria fazendo meu trabalho direito. — A voz de
Anthony vem grossa, carregada de malícia como se estivesse saindo do
fundo do seu peito. — Eu pretendo te fazer suar toda vez que estiver comigo,
amor. Principalmente quando eu estiver passando minha língua pelo seu
corpo inteiro, até chegar no meio das suas pernas para chupar cada gota que
você derrama por mim.
— Você realmente faz isso muito bem. — Desço minha mão devagar
pela minha barriga, colocando-a dentro da calça, até alcançar minha
calcinha, acariciando-me por cima do tecido.
Agradeço a imaginação fértil, porque meu toque, combinado com o
Anthony me falando tudo o que quer fazer comigo, me excita muito.
— Eu sei, e eu adoro sentir você gozar na minha língua e depois me
beijar com a mesma vontade que te chupei.
Certo, meus dedos agora estão tocando meu clítoris, fazendo
movimentos circulares que, em vez de me aliviarem, apenas me fazem
querer mais. Estou pulsando, louca para sentir meu corpo vibrar de prazer
até se aliviar por culpa dele. Espalho meu líquido, lubrificando toda a região
e aumentando levemente a pressão, só o suficiente para que um gemido
escape dos meus lábios.
— Fala mais — peço levemente ofegante.
— O que você está fazendo, amor? — Anthony pergunta com
diversão e luxúria presente na voz. Ah, o que eu não faria para estar na
frente dele agora? — Está se tocando pensando em mim?
— E se eu estiver? — Mordo os lábios aumentando a velocidade dos
meus movimentos, quero provocá-lo para que sinta o mesmo que estou
sentindo agora.
— Então, você vai me deixar louco, porque estou fazendo o mesmo.
— Se eu estivesse aí, você estaria na minha boca, amor.
O gemido de Anthony é o combustível que eu precisava para
introduzir um dedo dentro de mim, arqueando as costas e sorrindo, os olhos
fechados enquanto me masturbo sem parar.
— Caralho, Nina… Quero tanto te foder agora, sentir seu corpo
quente debaixo do meu, calar essa sua boca com minha língua…
Imagino as mãos de Anthony em mim, assim como o calor de sua
respiração e o gosto do seu beijo. Sou tão fácil para ele, que chega a ser
ridículo. Estou completamente em suas mãos e ele pode fazer o que quiser
comigo, que vou aceitar e pedir por mais. Aumento a velocidade dos meus
movimentos até que meu corpo fica tenso e, em seguida, estremeço, sem
segurar o orgasmo que alcanço, escutando-o falar como quer transar comigo.
— Já falei que te odeio? — Sorrio tentando recuperar a respiração e
largando o corpo no sofá.
— Fala mais, eu adoro te escutar mentindo. — Anthony suspira alto
e ri. — Você acaba comigo, espera um pouco.
Ajeito o corpo no sofá e abraço a almofada que estava debaixo da
minha cabeça, escutando a movimentação de Anthony do outro lado da
linha, o que me faz perceber que ele também gozou, porque está se
limpando. Assim que sua respiração fica mais alta, sinalizando que voltou
para perto de mim, a ficha do que acabou de acontecer começa a cair e fico
vermelha novamente, mas não por tesão.
— A gente transou por telefone… — Passo a mão no rosto com
vergonha. — Eu nunca fiz isso antes.
— Me sinto lisonjeado por ser o seu primeiro — Anthony está com a
voz preguiçosa e imagino-o colocando o braço atrás da cabeça, satisfeito. —
Foi bom para você?
— Foi ótimo, você deveria trabalhar com isso e cobrar por minuto.
Posso deixar uma avaliação para você conseguir mais clientes.
— Você consegue estragar o clima — ele ri alto e suspira mais uma
vez.
— É minha vocação — brinco. — Vai tentar dormir de novo?
Pergunto com medo da resposta, não estou pronta para dizer boa
noite ainda.
— Não, mas eu tive uma ideia… Qual filme você está vendo e em
qual minuto está?
Estico-me para pegar o controle da televisão e poder lhe responder.
Enquanto ele pede para eu esperar, arrumo minha roupa e puxo a coberta
para cima de mim de novo. Poucos minutos depois, uma solicitação de
chamada de vídeo aparece na minha tela e, quando aceito, vejo que está com
o computador no colo, deitado confortavelmente em sua cama com o filme
em posição. Sua bochecha também está corada, contrastando com sua pele e
cabelos claros.
— O que você está fazendo?
— Assistindo um filme com você.
Sorrio, e coloco o celular apoiado estrategicamente na minha frente.
Ele faz o mesmo e assim que diz que está pronto, damos play ao mesmo
tempo, assistindo e conversando sobre o filme. Não sei ao certo em que
momento acabei adormecendo, mas sei que estava sorrindo quando
aconteceu.
Capítulo 43
“Como se apaga uma história assim? Com começo, sem meio, fadado ao
fim
Eu não soube dar o teu lugar e você não teve força pra se apropriar
Do que já era seu, era pra ser seu”
Amor Não Testado - Sandy e Amaro Freitas
Troca de lugar comigo! Não posso mais pisar naquele camarim hoje,
—
por favor. — Olive segura meus braços no instante em que apareço atrás do
palco, os olhos suplicando para que eu aceite seu pedido.
— Você sabe muito bem que eu não posso, tenho que ficar na minha
barraca, pelo menos até pouco tempo antes do show da DownUnder…
— Marina, eu não posso lidar com aquele cara, eu juro que não sou
capaz disso.
— De quem você está falando?
— O baixista idiota, Johnny.
— O baixista lindo que deu em cima de você aquele dia que fomos no
PUB dele, meses atrás? — Levanto uma sobrancelha abrindo um pequeno
sorriso de lado e Olive fica séria imediatamente.
— Ele não é lindo, é um convencido que acha que o universo gira em
volta daquele umbigo que, com certeza, é fedido. E eu não estou nem um
pouco afim de conviver com ele. Era para a Emma fazer isso, mas ela está
resolvendo problemas no bar, e eu achei que podia, mas não posso.
— Eu realmente não posso, desculpa. Mas posso ficar aqui só um
pouquinho, até você arranjar outra pessoa?
— Eu te odeio — Olive solta os ombros cansada e sai andando para
longe.
ei que ela não me odeia de verdade, e só está frustrada com a situação,
S
porque sabe que eu tenho razão. Preciso ficar na minha barraquinha para
arrecadar dinheiro, principalmente porque a minha é uma das únicas que não
tem nenhum gasto para funcionar, irei tirar cartas de tarot para as pessoas.
Arrumei todo o meu pequeno espaço com o que já tinha em casa e meu gasto
total foi apenas o valor de montagem da barraca.
Caminho pela área lateral do palco, passo pelos seguranças contratados e
pelos engenheiros de som, que são alunos do último ano, e vou até a tenda
reservada para os artistas que vão se apresentar no festival. O que me
surpreendeu, quando estávamos negociando com todos os músicos, foi que a
DownUnder, diferente do que eu imaginava, não solicitou nada especial para
colocarmos em seu camarim. Eles estavam interessados só em tocar.
Assim que paro em frente ao camarim, escuto risadas vindo de dentro
do espaço e bato à porta, que se abre segundos depois.
— Você! — Manu arregala os olhos e abre um sorriso grande quando me
vê, me puxando para um abraço em seguida. — Eu ia te mandar uma
mensagem avisando que chegamos.
— Eu! — Dou risada e olho para dentro do camarim por cima do ombro,
sinto minha bochecha ficar levemente corada ao ver todos me encarando.
Além de Matt e a garota do marketing deles, vejo Johnny, Archie e Parker,
músicos da DownUnder. — Vocês vieram muito cedo, não precisavam
chegar até o final do dia!
— Nós sabemos, mas o Johnny insistiu que a gente estivesse aqui desde
o começo. — Matt se aproxima de braços cruzados e assim que Manu me
solta, ele me cumprimenta do jeito brasileiro, com um abraço e um beijo no
rosto.
— É fofo vocês fazerem isso, eu só não sei se vou conseguir entreter
vocês até o horário do show. — Faço uma careta e Manu fecha a porta atrás
de mim. — Só vim checar se está tudo certo e dar um oi, tenho que ficar na
minha barraquinha e trabalhar.
— Não se preocupe, a gente se vira, temos tudo aqui e se precisarmos de
algo, peço para a Olive.
— Perfeito!
— Vocês sabem que é uma merda quando começam a falar em português
perto da gente, porque a gente não entende nada, não sabem? — Archie coça
a cabeça, sem graça.
Eles fazem isso exatamente para não sabermos do que estão falando.
—
— Johnny dá um tapa na cabeça de Archie e se aproxima de mim, pedindo
para segurar minha mão. — É um prazer revê-la, senhorita Dias que não
gosta da DownUnder.
— Em minha defesa, eu não sabia quem você era e depois daquele dia,
eu decidi dar uma chance e escutar a música de vocês sem o PJ. — Observo-
o dar um beijo em minha mão e levantar a sobrancelha curioso com o que
tenho a dizer. — Vocês são bons.
— É claro que somos bons, a quantidade de streams deixa isso claro. —
Johnny dá uma piscadela e eu reviro os olhos sorrindo.
— Ele é sempre assim? — Pergunto, me virando para Manu.
— É pior. — Ela cruza os braços e confirma.
— Escuta, Dias. Sua amiga, Olive. Por que ela me odeia? — Johnny
passa o braço ao redor do meu ombro e me leva para o canto do camarim,
falando baixo. Troco olhares com Manu, mas ela claramente não quer se
envolver, então só se afasta, se jogando no sofá. — Ela me evitou quando fui
dar aula no Centro e não precisa falar nada para eu perceber o quanto quer
me jogar debaixo de um ônibus.
— Eu não faço a menor ideia, talvez porque você seja um pouco
convencido e ela não goste de pessoas assim?
— Não pode ser só isso.
— Eu realmente não sei. — Dou de ombros e ele fica me encarando,
como se tentando descobrir minha mentira, mas como eu realmente não sei,
logo desiste.
— Então, vou descobrir. Volto logo. — Johnny se vira para todos, e bate
continência antes de abrir a porta do camarim e desaparecer para fora do
ambiente.
— Ele vai fazer merda, Matthew. — Parker solta um suspiro cansado e
passa a mão no rosto.
— Eu não vou ficar atrás dele igual uma babá, felizmente essa época já
acabou. — Matt retruca para o guitarrista da banda e eles têm uma conversa
silenciosa. — Merda! Já volto.
Matt se dá por vencido e sai.
— Me diz que essa merda que o Johnny vai fazer não vai comprometer o
show!? — Falo para Manu.
— Pode ficar tranquila, tá tudo sob controle. — Responde com tanta
calma, que é impossível não sentir verdade em sua voz, o que me tranquiliza
um pouco.
— Certo, se precisarem de qualquer coisa, é só chamar alguém da
equipe ou me ligar, estou com o celular no bolso o tempo inteiro. Tá bom?
— Fechado.
Aceno um pequeno tchau para os outros e vou embora. Não vou
conseguir dar atenção total, mas consigo fazer algumas pausas de vez em
quando e ficar de olho neles para a Olive.
Atravesso o espaço do festival e, assim que chego na minha barraquinha,
os portões se abrem e as pessoas começam a entrar. O DJ está tocando uma
música agitada e meu coração bate depressa quando vejo o gramado enorme
encher aos poucos. Se tudo der certo, o Centro será salvo por esse dia, e não
existe nada mais importante no momento do que isso.
Não sinto as horas passarem entre os atendimentos, que faço de maneira
rápida porque, se fizesse uma tiragem completa de tarot para as pessoas, não
conseguiria atender gente o suficiente. Faço apenas uma tiragem simples,
com uma carta que serve de conselho para o que a pessoa está passando no
momento. Pelo valor de 5 libras, em quatro horas de trabalho, tenho a jarra
de dinheiro quase cheia.
É claro que todos os meus amigos vieram me visitar e pediram para eu
ver sobre seus futuros amorosos, sobre algum problema no trabalho ou até
mesmo se vão conseguir terminar a faculdade, que parece infinita. Charlie é
o único que não vem até mim, como já era de se esperar, mas Theo aparece
com seu jeito divertido de sempre e, depois da tiragem, vai encher minha
garrafa de água que já está vazia.
Minha fila parece não terminar nunca, porque uma pessoa atrás da outra
se senta à minha frente, e Theo não volta com a minha água. Deve ter
aparecido algum problema no meio do caminho para ele resolver, inclusive,
não faço ideia de como estou conseguindo passar tantas horas seguidas sem
sair daqui e sem precisar ajudar o pessoal com alguma coisa.
— Meu namorado vai terminar comigo?
Não aguento mais escutar essa pergunta, mas abro um pequeno sorriso e
embaralho meu deck. Em seguida, tiro uma carta e preciso segurar a careta
com a notícia que vou dar.
— Olha, esse é o três de espadas… — A menina abre um sorriso confuso
e preciso morder a bochecha.
— E o que isso significa? — Ela parece ficar preocupada com a minha
reação.
Que você provavelmente vai passar por alguma desilusão, e
—
geralmente a causa é por mentiras, ou términos… Não precisa ser
necessariamente do seu namorado, pode ser algum outro relacionamento que
você mantém com familiares, ou amigos… Mas ela está bem ligada a
traição.
— Eu descobri que ele me traiu na semana passada… — A menina
sussurra se aproximando de mim. — Mas fingi que nada aconteceu, porque
não quero perdê-lo, eu o amo demais.
Meu coração se aperta com a confissão e sinto dó por ela aceitar ficar
nessa posição.
— Você não merece estar ao lado de alguém que não dá valor a
companheira que tem. Você não deveria ter medo de terminar, é ele quem
deveria ter medo de te perder. Não deixe que ele faça maldades com seu
coração, ninguém merece viver com medo e em um relacionamento
inconstante.
— Mas eu não sou nada sem ele.
— É sim, você é muito mais sem ele. Tenho certeza disso.
Falo com tanta firmeza que é difícil não deixar os olhos se encherem de
lágrimas junto com os dela, que apenas concorda e aperta um sorriso triste,
antes de deixar uma nota de 10 libras no pote e se levantar, sumindo pela
multidão.
É uma grande merda quando situações assim acontecem, mas espero que
eu consiga dar um pouquinho de força para mulheres que precisam, que ela
não aceite estar em um relacionamento como o que tem atualmente e que
pare de fechar os olhos para o que aconteceu. Respiro fundo e pego a carta
de volta, colocando-a na pilha com as outras.
— Próximo! — Falo alto e espero alguém aparecer pela barreira de
tecido que coloquei para dar um pouco de privacidade entre a fila e o local
em que estou sentada.
— Você deve ser muito boa, porque essa fila está enorme.
A voz de Anthony chama minha atenção e levanto a cabeça só para
encontrá-lo com as mãos nos bolsos, parado à minha frente. Ele usa a mesma
jaqueta de couro que já vi outras vezes, além de uma calça jeans escura e o
coturno, o que indica que está de moto.
— Ah, é? E por quanto tempo você ficou esperando? — É impossível
não sorrir, principalmente quando ele dá de ombros de forma culpada.
— Não fiquei, paguei o próximo cara para furar fila.
Você pagou? — Levanto uma sobrancelha e cruzo os braços
—
indignada. — Isso é ridículo, você podia ter dado esse dinheiro para mim e
eu ia colocar nesse enorme jarro de doações.
Passo a mão pelo jarro como se fosse a coisa mais preciosa do mundo e
ele revira os olhos sorrindo, então se senta à minha frente.
Homem lindo do caramba.
— Não sabia que você vinha. — Mordo meus lábios, os olhos fixos nos
dele, porque eu simplesmente não consigo não olhá-lo. Estou perdida.
Deveria tirar uma carta para mim, aproveitar o embalo para ver o que o
futuro reserva desse… relacionamento que surgiu entre nós dois. No entanto,
não vou fazer, tenho medo demais da resposta.
— Queria te fazer uma surpresa, e sabia que você estava muito ocupada,
então não quis atrapalhar. — Anthony umedece os lábios, os olhos fixos
nos meus antes de olhar a mesa entre nós. — O que são essas coisas?
— Cristais, para me ajudar a clarear a mente e fazer uma leitura legal.
Aqui tinha um incenso, mas ele acabou de queimar faz um tempo e eu não
quis acender outro porque estou com dor de cabeça pelo cheiro. — Dou uma
pequena risada e continuo explicando, porque sei que ele gosta quando falo
das minhas coisas. — Minha toalha é especial, foi minha tia quem fez e me
presenteou junto com esse deck. Ela escolheu para mim e tenho um valor
sentimental nele.
Mostro as cartas com desenhos lindos de bruxas e deusas em cada carta,
e a toalha preta com a roda do ano sendo pano de fundo para a admiração.
— E como funciona? — Anthony pergunta, ainda observando as
ilustrações.
— Você quer que eu tire uma carta para você? — Levanto a sobrancelha
surpresa e ele dá de ombros.
— Por que não? Assim fico mais tempo aqui.
— Sendo assim e como sei que o senhor MacMillan será muito generoso
com a doação… — Olho para a jarra, a deixa para ele abrir a carteira e
colocar algumas notas lá dentro, o que ele faz. — Vou fazer uma tiragem
mais completa para você. Sobre o que você quer saber?
— Que tal se terei a companhia de uma brasileira para dormir hoje? —
Faz graça com a voz baixa em português, e um arrepio percorre meu corpo.
— Não preciso tirar as cartas para te responder que mal posso esperar
para deitar e dormir feito um bebê assim que tudo isso acabar. Então, a não
ser que você esteja falando de outra brasileira, ou que o seu dormir não
signifique realmente dormir… Dormirá sozinho. — Provoco-o e ele assente.
— Certo, se é só dormir que eu tenho, isso basta. — Anthony se dá por
vencido. — Pergunte então sobre o meu futuro.
— Nada específico?
— Não, só… O que eu posso esperar do meu futuro.
— Certo, senhor MacMillan…
Embaralho bastante as cartas e, diferente das outras tiragens, tiro três
cartas do monte, deixando todas viradas para baixo, para fazer um suspense
do que quer que esteja acontecendo.
— Vou fazer uma tiragem do passado, presente e futuro. Está preparado?
— Sempre.
Sorrio e viro a primeira carta, então respiro fundo me preparando para
fazer a interpretação para Anthony.
— Você teve uma infância difícil, e se sentiu abandonado em muitos
momentos.
— Isso não é uma novidade. — Anthony levanta uma sobrancelha e eu
abro um sorriso amarelo.
— São as cartas que estão dizendo, não eu! — Desviro outra carta e ele a
olha atentamente. — Já no seu presente, estou vendo que você está lidando
com muitas frustrações, vendo vários caminhos à sua frente e, apesar de
saber qual quer seguir, sua lealdade às vezes te impede de continuar adiante.
Anthony não fala nada, apenas continua prestando atenção em mim,
então aceito a deixa para virar a última carta, a do futuro.
— Tá… — Olho bem para a carta e para as outras duas.
— O que foi, o que esse homem significa?
— Esse é o Enforcado, sei que parece ser algo ruim, mas não é, só é
complexo… Ele simboliza que você terá que lidar com um grande sacrifício
por causa de um ideal que você está em busca. Está vendo o pé amarrado?
Quer dizer que a situação tem um jeito de resolver, e ele está com o rosto
tranquilo, porque temos que olhar para o que aparece à nossa frente com
outros olhos, com mais calma para entender tudo da forma correta.
— Então, o que isso tudo quer dizer? — Anthony mantém a sobrancelha
franzida, absorvendo o que lhe falei.
— Não acho que a carta da sua infância tenha saído por coincidência,
muito menos sobre o presente incerto que você está lidando. Acredito que as
cartas estão querendo te falar que, apesar do caminho que você percorreu até
agora e de estar confuso sobre o que fazer daqui em diante… Você
conseguirá chegar em uma decisão satisfatória, porque verá o problema sob
outra perspectiva. Essa carta também significa transição, livre arbítrio,
melhoria, sacrifícios… Acho que foi uma boa tiragem.
— Achei que isso aqui fosse uma bobagem que você inventava para falar
para as pessoas.
— Ah, é mesmo? — Finjo-me de ofendida com sua insinuação. —
Então, você realmente não me conhece nem um pouco.
— Eu te conheço como a palma da minha mão. — Anthony me desafia e
passa a mão no cabelo.
— Me dê ela aqui — estendo a mão pedindo a dele e ele me entrega
desconfiado.
— O que está fazendo?
— Você disse que me conhece com a palma da sua mão, então quero
conhecê-lo também…
Levanto o olhar flertando e depois volto a atenção para sua palma,
passando o dedo devagar por cada linha. Não deveria estar com ele há tanto
tempo na barraca, assim como não deveria tocar sua mão tão delicadamente
em um lugar onde qualquer um pode nos ver, mas sinceramente? Foda-se.
— Olha só, tem um temperamento forte e não se abre para as pessoas
com facilidade. — Levanto o olhar para encontrar com o dele. Seus olhos
azuis estão fixos nos meus e posso não conseguir ver, mas tenho certeza que
ele está arrepiado com o meu toque suave. — Já sua linha da cabeça diz que
você é prático e ligado às regras.
— Você está me descrevendo — fala com a voz baixa. — Isso não é
justo.
— Eu falaria o mesmo, independentemente de te conhecer ou não,
Anthony. — Levanto as sobrancelha e volto a atenção para sua mão, indo
para a terceira linha. — Essa é a linha do coração… Você tem tendência a
amar só uma pessoa, ou um grupo específico, tem equilíbrio emocional, não
age por impulso. Só permanece com alguém quando realmente quer.
— Isso tudo está escrito na minha mão? — Confirmo e vejo um pequeno
sorriso convencido surgir em seu rosto enquanto concorda, nossas mãos
ainda se tocando. — E o que diz a sua?
— Quem sabe um dia eu te conto.
Provoco e, antes que possamos falar qualquer outra coisa, um pigarro
alto chama minha atenção para o lado oposto ao da fila, lado esse que nos dá
visão do resto do festival.
— Theodore pediu para eu te entregar. — Charlie está com o semblante
fechado e minha garrafa de água estendida.
— Ah, obrigada. — Pego a garrafa e vejo que ele olha rapidamente para
Anthony, antes de se virar e se afastar, sem responder.
A presença rápida de Charlie me faz perceber que já estou tempo demais
com Anthony e a fila de pessoas esperando, para terem sua sorte lida, deve
estar grande.
— Preciso voltar ao trabalho…
— Você vai ficar aqui até o fim do dia?
— Não, vou fechar antes do show da DownUnder.
— Ótimo, posso ficar então para assistirmos o show juntos?
Preciso de alguns momentos para pensar na proposta. Anthony estar
aqui, onde todos os meus outros amigos estão, é pedir para que eles
descubram que estou me relacionando com ele. Por outro lado, por que não
posso simplesmente ser feliz com quem eu quiser, se eu sempre deixei tão
claro para todo mundo que não devo nada a ninguém?
— Me encontra na lateral do palco em quarenta minutos.
É tudo o que respondo antes de Anthony sorrir, se levantar e outra
pessoa ocupar o seu lugar.
Capítulo 47
Todos aqui?
—
Thomas olha para o nosso grupo, apenas os membros da Ordem reunidos
na parte de trás do palco, enquanto o resto dos voluntários estão trabalhando
nos últimos momentos do evento. As pessoas estão começando a ir embora e
os técnicos desmontam o que dá.
— Falta a Olive, ela está com a banda. — Emma coloca as mãos na
cintura e, ao lado do namorado, olha para todo o grupo. — Vou chamá-la
pelo rádio.
— Certo, vamos esperar. — Thomas confirma e abaixa o olhar para
alguns papéis em sua mão.
Estou ansiosa, sei disso porque estou apertando as mãos e tenho certeza
que meus dedos estão brancos. Péssimo momento para não estar com minha
bolsa, eu precisava do meu blend de lavanda agora. Qualquer coisa para
afastar essa sensação sufocante que sinto apertar no peito.
Ava dá alguns passos em minha direção e para ao meu lado. Ela cruza os
braços e me olha algumas vezes. É a primeira vez que a vejo sem jeito.
— Então…
— Então… — repito baixo.
— Entendi porque seria complicado.
— É, eu falei. — Sorrio e aperto os lábios. Quero dizer mais alguma
coisa, mas sinto que não preciso tomar a iniciativa agora. Vou responder o
que ela quiser e ver a direção dessa conversa.
Sabe, faz muito sentido. Não sei porque não pensei nele antes.
—
— Provavelmente, porque ele é meu chefe e eu não o suportava? —
Levanto uma sobrancelha e Ava concorda.
— Provavelmente.
Ficamos em silêncio, uma ao lado da outra.
— Ele ao menos é decente? — Sua voz calma e tranquila chega em meu
ouvido como um carinho, o que afasta um pouco do medo que eu estava
sentindo.
— Mais do que decente. Ele é bem incrível, para falar a verdade.
— Então, tá bom.
Ava finalmente me olha. O sorriso que ela aperta não é de pesar e sei que
não carrega nenhum tipo de raiva no corpo. Na verdade, parece que
realmente entende e aceita, desse jeito simples e bruto dela. Minha palavra é
o que basta e, por isso, não insiste.
— Obrigada — falo baixo.
— Está agradecendo por quê?
— Por você não ter me julgado. — Sinto um pouco de vergonha quando
falo em voz alta e ela passa o braço pelo meu ombro, me puxando para perto
em um abraço desajeitado.
— Cada um sabe o que faz da vida, gringa. Se você está feliz, então está
tudo certo. Não cabe a mim apontar o dedo para você, independentemente de
quem ele seja. Só tenha certeza do que está fazendo, porque eu realmente
não quero precisar falar “eu te avisei”, ou qualquer coisa do tipo. Pode ser?
— Eu espero muito que você não precise falar algo assim — faço uma
careta e ela ri.
Benji se aproxima, o que faz com que a gente se solte do abraço, mas
mantenha as mãos dadas. Ele abre a boca algumas vezes, alterna o olhar
entre nós duas, tenta balbuciar algumas palavras, mas logo desiste.
— Não precisa falar nada, eu já sei exatamente o que você vai dizer. —
Dou o primeiro passo da conversa.
— Tá bom.
E me surpreendendo, Benji segura minha mão.
Solto o ar dos meus pulmões devagar, com uma onda de alívio invadindo
meu corpo e relaxando meus ombros. Tenho Benji de um lado e Ava do
outro. Como mágica, a ansiedade me deixa aos poucos. Não estou sozinha e
não sei porque tive tanto medo de ficar. Aperto a mão deles, agradecendo
silenciosamente pelo apoio que estão me dando, e eles me apertam de volta.
sensação se mantém até o olhar de Charlie se encontrar com o meu. É
A
claro que agora ele vai me odiar, não espero nada diferente disso.
— Certo, cheguei! — Olive aparece andando apressada e tira o fone do
ouvido enroscado em seu cabelo, o qual está com uma aparência mais
rebelde do que o normal, provavelmente por causa da correria. Ela passa a
mão pelos fios e o arruma um pouco. — Pode começar.
— Tá, então…
— Fala logo o quanto arrecadamos, Thomas! — Reggie fala mais alto e
Thomas prende o ar. — Para de enrolar!
— Faltou muito? — Theo cruza os braços, já cansado e se preparando
para as más notícias que estão por vir.
— Só um pouco. — Thomas responde e mostra o dedo do meio para
Reggie, que continua apressando nosso líder e mexendo o corpo de um lado
para o outro como uma criança ansiosa.
— Ótimo, se faltou só um pouco a gente consegue arrecadar de outras
formas. — Olive assente confiante.
— Não gente, vocês não estão entendendo. — Emma chama a atenção
com a voz em alerta.
— Temos um outro problema. — Thomas parece procurar as palavras
certas para falar, e isso é preocupante. Ele mantém um sorriso fraco no rosto
e todos começam a falar uns com os outros, já inventando ideias para
arrecadar o que falta. Ava fala sobre pontos de doação na cidade e Benji
balbucia algo sobre uma ONG, mas não consigo capturar exatamente suas
palavras.
— Calem a boca! Vocês não estão vendo que ele tem mais uma coisa
para falar? — Emma engrossa a voz e todos ficam quietos no mesmo
instante, ela não tem costume de falar alto irritada, então esse é o sinal de
que um limite foi passado.
Thomas suspira e levanta um documento, então aperta os lábios e nega
com a cabeça, sem conseguir olhar para cada um de nós.
— O senhor Ward veio aqui no início da tarde e me entregou essa
correspondência, falou que era importante e que não havia aberto.
Entregaram no Centro hoje, no início do dia, e como não tinha ninguém lá, a
vizinha recebeu e enfim, pediu para ele me entregar. Não consegui ver o que
era mais cedo por causa de todo o trabalho e a correria, e…
— O que é Thomas? Fala de uma só vez! — Ava corta o monólogo e
todos os olhares se viram para nós.
homas abre o papel e o segura com força.
T
— “Devido ao perigo iminente da construção, os órgãos responsáveis
decidiram prosseguir com a interdição imediata do imóvel, proibindo assim,
a entrada de terceiros no local que, agora, está sob responsabilidade das
autoridades locais.”
— O que? — Charlie tem a voz mais alta no meio de todas as outras
exclamações.
— Mas que porra é essa? — Ava solta minha mão, anda até Thomas,
pega o papel de sua mão e começa a ler todas as palavras dispostas ali.
— Não temos mais o que fazer, pessoal. — Thomas nega e meus olhos
se enchem de lágrimas.
— Não, deve ter algo, tenho certeza… — Olive está com as mãos na
boca e Reggie afaga suas costas devagar.
— Não tem, Ol… Realmente não tem. Acabou. — Thomas está sem
reação.
É o sonho de uma vida inteira sendo destruído. Tínhamos a esperança de
tudo dar certo. Na verdade, tínhamos certeza que tudo daria certo. Fracassar
não era uma opção, então ninguém consegue realmente acreditar que deu
errado. Perdemos.
A notícia é um balde de água fria, não só no trabalho feito no festival,
que foi jogado no lixo, como também todo o esforço que o grupo tem com o
Centro há anos, muito tempo antes de Thomas herdá-lo. Muitos voluntários
passaram pelo local, muitas famílias, muitos jovens… Se aquele lugar é
importante para mim, que sou voluntária há alguns meses, imagine para o
Thomas, que convive com o projeto, as famílias e as crianças há anos?
— Isso tudo é culpa sua — Charlie está de braços cruzados com o olhar
em cima de mim.
— Minha? — Arregalo os olhos e ele confirma com a cabeça.
— Agora, eu consigo entender o porquê de você demorar tanto para
encontrar qualquer informação. — Charlie atravessa a roda devagar, com
passos preguiçosos em minha direção.
— Do que vocês estão falando? — Thomas franze a sobrancelha
preocupado e se aproxima de nós. Todos se viram para prestar atenção.
— Pelo visto, a lealdade da Dias tem um limite, e um terno muito do
engomadinho. — Charlie praticamente cospe as palavras e olha para
Thomas.
— Você não faz a menor ideia do que está falando, Cooper. —
Também dou um passo para frente, não vou permitir que fale assim comigo.
Ele me olha de cima a baixo com nojo.
O fato de Charlie não conseguir esconder os sentimentos era algo que
eu admirava quando estávamos saindo, porque eu sempre sabia o que ele
estava pensando. Agora, não é nem um pouco legal. Consigo sentir o ódio
escorrendo do seu olhar.
— Todo mundo aqui já sabe que você está fodendo com o responsável de
toda essa merda, Dias!
— Uou! — Pisco algumas vezes, desacreditada na sua reação e levanto o
queixo irritada. — Uma coisa não tem nada a ver com a outra, e seria ótimo
se você pudesse manter o respeito comigo, já que eu sempre fui mais do que
educada com você. Mesmo quando soube das merdas que você tem falado
sobre mim só porque não sabe aceitar um não! Anthony não tem nada a ver
com o que o pai dele faz, estamos trabalhando juntos para…
— Trabalhando ou fodendo?
— Com quem eu fodo não diz respeito a você há muito tempo. Na
verdade, nunca disse respeito, já que nunca fomos nada.
Sinto como se meu corpo estivesse entrando em combustão de uma
forma que há muito tempo eu não sentia. É como acessar uma parte da raiva
que eu demorei tantos anos para controlar no fundo da minha alma. Não ligo
de ser maldosa e deixar claro o status do nosso relacionamento na frente dos
outros. Se ele acha que vou deixá-lo falar a merda que quiser e escutar de
cabeça baixa, ele está errado.
— É? E exatamente desde quando isso está acontecendo? — Charlie
insiste, me desafiando.
— Gente, vamos… Depois vocês conversam em particular — Olive se
aproxima, tentando se colocar entre nós com os olhos assustados.
— Não, eu não tenho nada para esconder. — Falo para Olive e me viro
novamente para Charlie. — Se você está insinuando que eu te traí, não, eu
nunca te “traí”. Nunca tivemos nada sério. Agora, eu não devo satisfações
sobre estar com alguém ou não, isso não diz respeito a ninguém além de
mim e Anthony. Ninguém aqui faz a menor ideia de tudo o que estamos
fazendo para tentar descobrir algo, mas não está ao alcance nem mesmo
dele! Os documentos estão fechados com senha, não tem nada no
departamento dos arquivos e…
Ou ele está enganando a brasileira bobinha para foder não só ela, mas
—
também o projeto e ajudar o pai. Já pensou nisso? Que ele está claramente te
usando e você está deixando? A custo do que?
Não consigo segurar o tapa forte que estalo em seu rosto.
— Você não pode me atacar só porque eu não gostei de você de
volta, Charlie! — Sinto minha mão formigar e Charlie toca sua bochecha,
bem onde lhe bati.
— Chega! — Thomas fala alto, irritado.
Dou um pequeno pulo com o susto e meus olhos se fixam nos de
Charlie que está com a boca levemente aberta, em choque com o que acabou
de acontecer, mas permanece em silêncio.
Todos os olhos estão em nós, e se alguém pensa da mesma forma que
Charlie, não fala. Ele passou de todos os limites de respeito que tínhamos
estabelecido entre nós nos últimos meses, e isso é triste.
— De todos os adjetivos que já usei para te descrever, nunca imaginei
que nojento fosse ser um deles.
Tento falar com a voz calma, porque passei dos meus limites e sei que,
de todas as formas que existem de magoar alguém, a que mais dói é a
indiferença.
— Brigar não adianta nada, nós não podemos nos dar ao luxo disso
agora. — Thomas olha não só para nós, mas para todos os outros, ignorando
o tapa que dei em seu amigo. — Dias, você confia nele?
— É claro que sim, Thomas! Você acha que eu estaria com alguém se
não confiasse na pessoa? Porra, olha tudo o que eu tenho feito pela Ordem e
pelo Centro desde que eu cheguei aqui!
— Não, Dias… Não é isso que ele quis dizer — Emma dá um passo à
frente, preocupada.
— Não! — Levanto a mão para ela, que para de andar. — Sabe, é
realmente muito ridículo ver que vocês desconfiam tanto assim de mim, eu
achava que existisse, sei lá, uma ligação entre nós. Pelo visto me enganei.
Me afasto deles sem olhar para trás, mesmo escutando a voz de Benji me
chamando. Meus olhos estão cheios de lágrimas. Odeio brigar e, sempre que
preciso me posicionar dessa maneira, sinto meu corpo inteiro tremer de
nervoso, principalmente quando sou atacada. Quando é algo menos pessoal,
consigo lidar facilmente, mas quando Charlie falou de Anthony, quando
falou de mim…
ão, eu nunca poderia deixá-lo falar o que quisesse de mim e deixar
N
passar batido.
Vou até a minha barraca, pego minha bolsa que estava escondida debaixo
da mesa e puxo o celular do bolso. Disco o número de Anthony em seguida.
— Você já foi embora? — Pergunto assim que ele atende, o som do
trânsito no fundo.
— Já, achei que você fosse demorar…
— Você não está falando comigo enquanto pilota, não é? — Pergunto
preocupada porque escuto o som de sua moto ligada.
— Estou parado na calçada. Quer que eu te busque?
— Não, você já foi embora, então não tem problema.
— Não estou longe. — Sua voz quase sai abafada com o barulho do
motor da sua moto.
— Não precisa, eu…
— Eles brigaram com você, não é?
Fico em silêncio e volto a chorar. É a segunda vez que choro hoje, mas a
lágrima que escorre de meus olhos agora é de frustração, deslocamento. Não
me arrependo da decisão que tomei ao expor meu relacionamento com
Anthony, só não queria ter que lidar com tudo que aconteceu.
— Me espera aí na frente, já estou chegando.
Anthony desliga e, sem olhar para os lados, caminho rapidamente até o
lado de fora do festival.
Capítulo 49
Marina?
—
A voz de Ava do outro lado da linha me acalma um pouco. Meu maior
medo, no momento, era ela não conseguir me atender, já que, pelo horário,
todos ainda estão na função de desmontar o festival. E eu não estou em
posição de pedir ajuda para qualquer outra pessoa.
— Ei… Será que você pode me ajudar?
— Agora? Tá uma correria absurda aqui e…
— Eu fui presa e preciso de uma advogada.
O silêncio que paira entre nós é alto, se é que isso é possível. Olho ao
meu redor, sem acreditar onde estou. Minhas mãos não estão mais
algemadas, mas percebo os olhos atentos de um policial em mim. Archibald
não deu queixa de roubo, mas foi adiante com a de invasão. Não consigo
deixar de pensar no pobre Harry que me deixou entrar, tenho que fazer algo
para protegê-lo, mas primeiro preciso resolver a enrascada em que me meti.
— Onde você está?
Não sei se é uma coisa boa ou ruim ela simplesmente aceitar minha
resposta. Ela confia no que eu falo e está aqui por mim, e isso é bom, mas
pelo visto é algo que ela já esperava que fosse acontecer em algum
momento, o que é ruim. Tenho me comportado muito bem nos últimos
meses. Tudo para manter meu visto, certo?
— Na New Scotland Yard, eles me deixaram em uma salinha sozinha
enquanto davam entrada nos meus documentos, até que minha advogada
chegasse.
— Estou a caminho, se te interrogarem: você é muda.
— Certo… Não conta pro pessoal, por favor?
— Tá.
Ela desliga e eu preciso de alguns segundos antes de colocar o telefone
de volta no gancho. Que grande merda.
Liguei para Ava porque confio nela e sei que lutará por mim. Quando o
policial vê que terminei, me leva de volta para a sala de antes. Tem uma
mesa, uma cadeira e uma garrafa de água, um tratamento que eu,
sinceramente, não esperava receber, mas não reclamo. Jamais reclamarei.
Por enquanto, aqui o tratamento é muito melhor do que já vi no Brasil.
País de terceiro mundo.
Sabe aquele negócio de: “só brasileiro pode falar mal do Brasil”? Estou
com raiva pelo preconceito com minha nacionalidade, mas o que esperar de
alguém como ele?
Um policial diferente entra no local e senta à minha frente, faz algumas
perguntas, mas eu prefiro me manter em silêncio até que Ava chegue. Depois
de ver que não conseguirá me fazer falar, ele simplesmente desiste e
continua sentado em silêncio.
Olho para o relógio na parede e observo o ponteiro dos segundos dar
voltas e mais voltas. Começo a contar, acompanhando cada tique alto que ele
faz, mas ainda é como se eu estivesse presa em um novo espaço-tempo, mais
devagar do que o normal.
Se passam dez minutos. Trinta. Quarenta. Continuo olhando para o
relógio até que se passam duas horas completas.
Nunca estive tão ansiosa antes e acho que meu corpo entrou em algum
modo de sobrevivência e alerta, porque não tenho nenhuma crise de
ansiedade. No Brasil, só de imaginar ser presa eu já ficava nervosa, e sempre
precisava engolir meus sentimentos, levantar a cabeça e ajudar minha mãe
que já tinha virado amiga dos policiais de nossa cidade. Eles a prendiam só
por protocolo e a soltavam assim que eu aparecia pela porta.
A diferença é que eles a consideram só uma hippie doida que quer
proteger a natureza. Aqui, sou uma imigrante que invadiu uma empresa
gigante.
Levo um susto quando a porta se abre e, atrás de um policial, vejo Ava.
O cabelo trançado preso em um coque alto, a expressão impassível, como se
ninguém pudesse argumentar contra ela. Ninguém pode mesmo.
Você falou alguma coisa?
—
— Não, senhora. — Endireito minha postura e ela confirma.
— A fiança foi paga, minha cliente irá esperar pelo andamento do
julgamento em liberdade. — Ava comunica o policial e, antes que ele possa
falar algo, aponta com a cabeça para a porta, me olhando. — Vamos.
— Minhas coisas estão…
— Vamos!
Não retruco, por mais irritada e cheia de energia que eu esteja. A forma
com que essa mulher consegue amedrontar pessoas é ainda pior do que
quando somos crianças e ficamos com medo, depois de fazermos alguma
merda e sermos pegos.
— Nos vemos em breve, senhorita Dias. — O policial se levanta ao
mesmo tempo que eu e me acompanha.
Não respondo-o e, quando me aproximo de Ava, sinto sua mão tocar meu
braço durante todo o caminho que fazemos até o lado de fora.
— Eles estão com o meu celular, você conseguiu pegar de volta? —
Sussurro e ela confirma, então levanta um saco com minha mochila e minhas
coisas, todas do lado de fora, já que foram reviradas.
Meu celular tem senha, mas sei que eles podem acessar facilmente. Só
consigo torcer para que não tenham vasculhado-o e que todas as fotos ainda
estejam lá.
— Você tem muito o que me explicar. — Sua voz não está mais tão
irritada, mas preocupada.
— Eu vou, eu prometo! Só preciso fazer uma coisa antes…
Ava abre a última porta, em direção à recepção e meus pés param de
andar quando vejo os dois homens conversando no fundo da recepção. Ou
discutindo.
— Você não entendeu ainda que isso tudo é culpa sua? — Charlie
mantém aquele olhar e tom de raiva que usou comigo, mas agora
direcionado ao Anthony.
— Diferente do que você pensa, eu não a controlo, Cooper! — Anthony
rebate, mas não está exaltado, o que parece irritar o ruivo ainda mais. —
Marina faz suas próprias escolhas e se você diz conhecê-la tão bem assim,
saberia disso. Ela faz o que quer e ninguém pode impedir quando coloca
algo na cabeça.
— Eu a conheço muito bem, MacMillan.
O que você está fazendo aqui? — Interrompo o que quer que esteja
—
acontecendo entre eles, e é só quando escutam minha voz que os dois notam
nossa presença.
Charlie arregala os olhos e fica claramente desconfortável. Enquanto
Anthony parece soltar a respiração aliviado em me ver.
— Eu estava com a Ava quando você ligou, achei que…
— Eu quis dizer você, Anthony. O que você está fazendo aqui? — Passo
por Charlie, ignorando o ruivo, e toco no braço de Anthony.
Que merda, ele não deveria ter vindo. E se Archibald estiver de olho
em mim? Eu daria um jeito de falar com ele mais tarde, sem deixar explícito
que ele está envolvido nisso.
— Harry me ligou.
— O segurança do prédio? — Pergunto desacreditada.
— O meu segurança de confiança que viu você sendo escoltada por
policiais e que ficou confuso com o que estava acontecendo. — Anthony me
dá uma bronca suave, mas mesmo assim dói meu coração. É claro que ele
ficou magoado por eu ter feito algo sem avisá-lo. — Ele demorou um pouco
para me ligar, mas pelo visto você já tinha resolvido tudo sozinha.
— Eu ia te ligar, depois…
Sei que ele vê que estou sendo sincera e é por isso que me abraça
forte. Ele está claramente preocupado, sinto seu coração bater forte contra o
meu peito quando seu calor se funde com o meu.
— Que porra que está acontecendo, Nina? — Anthony sussurra em meu
ouvido, para ninguém mais escutar.
— Aqui não, tá? — Respondo ainda nos seus braços e Anthony se afasta
para me olhar, então concorda e pega as coisas da minha mão.
— Vamos sair daqui. — Ava nos interrompe e caminha até a porta.
Charlie a acompanha.
Este é um grupo estranho de pessoas que nunca imaginei caminharem
lado a lado, e nós quatro saímos juntos do prédio. Mesmo que Charlie
estivesse com a Ava quando liguei, não faz sentido nenhum sua presença
com algo relacionado a mim depois da briga que tivemos no festival, e ele
parece estar… Preocupado?!
— Meu apartamento é aqui perto, a gente pode ir para lá. — Ava sugere,
procurando algo em sua bolsa.
— Na verdade, podemos conversar depois? — Sugiro, fazendo com que
ela pare o que está fazendo e me olhe indignada.
Se o problema sou eu, posso ir embora. — Charlie se adianta, com
—
uma insegurança completamente incomum carregada em sua voz. — Ou
então, podemos ir para o apartamento da Ava e conversar. Eu só vim porque
fiquei preocupado com você.
Estou tão confusa com essa mudança de comportamento, que não
consigo processar qualquer coisa para respondê-lo. Pisco algumas vezes,
fitando seus olhos castanhos, que encaram os meus, e posso jurar que ele
pede desculpas em silêncio.
— Nina? — Anthony me chama.
— Eu te ligo amanhã, pode ser? — Viro-me para a Ava, ignorando o que
quer que Charlie esteja tentando fazer.
— Amanhã? Existe algo mais importante agora do que você me explicar
que porra estava fazendo invadindo a Vann? — Ava abaixa a voz no final da
frase e vejo Charlie abrir a boca para acrescentar algo, mas desiste em
seguida.
— Existe, na verdade. Eles me liberaram, não é?
— Eu paguei para você ser liberada. — Anthony fala suavemente. Eu
gosto do fato dele entender quando se posicionar e quando ficar mais na
retaguarda. Ele não vai me forçar a falar algo na frente dos outros, ele não
tentará ter uma conversa particular ali, agora, igual Charlie tem a mania de
fazer.
E eu preciso devolver esse dinheiro para ele. Não vou deixar meu…
Anthony, carregar o peso de ter me tirado da cadeia. Não, isso é demais para
mim.
— Prometo te explicar tudo depois, tá bom? — Seguro na mão de
Anthony e aperto-o.
Nós dois precisamos sair dali, eu preciso pegar meu celular.
Preciso contar tudo para Anthony.
E para o Thomas.
Anthony entende meus sinais e dá alguns passos para trás, indo em
direção onde estacionou.
— Eu não acredito nisso. — Ava solta os ombros cansada.
— Por favor, confie em mim. É a última coisa que eu te peço.
Ava concorda, mesmo demonstrando que não está nem um pouco
satisfeita com isso.
— Obrigada por ter vindo, mesmo. — Volto para lhe dar um abraço
apertado e apresso o passo pela rua, para acompanhar Anthony.
icamos em silêncio durante o trajeto, até que avisto a moto de Anthony
F
no final da rua. Só noto as lágrimas que caem pelo meu rosto quando o sinto
molhado. Permito-me chorar por um momento e, assim que chegamos perto
o suficiente da moto, seco as lágrimas e levanto a cabeça, tentando fingir que
nada aconteceu.
— Para onde vamos? — Anthony para na frente de sua moto e pega o
capacete extra no bagageiro. Quando se vira para me entregar, tomba a
cabeça de lado, me estudando. — Você estava chorando?
— Não… Talvez.
— Nina, estou tentando não te pressionar e te dar espaço, mas… Que
porra está acontecendo? — Anthony pergunta de uma só vez, em português,
para evitar que outra pessoa nos entenda. — Por que você invadiu a Vann
desse jeito, sem me contar?
— Eu precisava fazer alguma coisa e não pensei direito… Errei, mas
não me arrependo. — Dou de ombros, sem me importar com o que
aconteceu. Quero sair daqui logo e tentar encaixar as peças desse quebra-
cabeça. Anthony levanta a sobrancelha, surpreso com minha resposta.
— Não se arrepende? Achei que não agiríamos imprudentemente e que
estávamos contando tudo um para o outro. — Pela primeira vez, desde que
saímos do prédio da polícia, Anthony demonstra uma reação que não é
paciência e compreensão. Na verdade, pela primeira vez em semanas. —
Você tem noção de que foi presa e que vai enfrentar um processo contra o
meu pai? Eu nem sei o que vou fazer para conseguir te livrar dessa.
— Eu sei disso, Anthony! As algemas estavam nos meus pulsos! — Falo
com obviedade e me sinto mal pelo tom de voz que estamos usando um com
o outro. Depois que nos aproximamos, nunca mais brigamos dessa forma.
Pelo menos não de verdade. — Você não precisa fazer nada para mim!
Posso lidar com minha própria merda, é por isso que não te liguei.
— Eu preciso sim, ou você acha que vou conseguir ver a mulher que
amo numa situação dessas e simplesmente deixar pra lá? Deixar que ela
lide “com a própria merda”? — Anthony revira os olhos indignado e dá uns
passos para longe de mim. Por favor, mente perturbada, me diz que eu estou
ficando louca e que ele não acabou de se referir a mim como a mulher que
ama. Eu não sei se estou pronta para lidar com isso agora. — Você consegue
ser insuportável quando quer, Marina. Pensa e planeja demais para, de
repente, fazer o que dá na telha sem pensar em mais ninguém. Foi assim que
você parou na porra do jornal e eu tive que livrar seu nome.
Não é justo você me atacar assim. — Nego, olhando fundo nos seus
—
olhos e me deixando ser tomada pela raiva. — Não depois da porra de dia
que eu tive. Não depois de descobrir que o Centro foi interditado e que
aparentemente a culpa é minha, que estava ocupada demais fodendo você,
em vez de procurar maneiras de ajudar.
— Da onde você tirou isso?
— Foi o que Charlie falou, na frente de todo mundo, depois que Thomas
nos deu a notícia.
— Aquele filho da puta fez o quê? — Anthony fecha os olhos e respira
fundo, vejo-o colocar a língua por dentro da bochecha, tentando controlar
suas emoções, sem muito sucesso. — E teve a cara de pau de aparecer aqui
e tentar me deixar com medo só porque parece um poste laranja idiota.
— É, bom… Talvez ele tenha razão no final das contas. Eu realmente
parei de me arriscar depois que a gente começou a “foder”. Não consigo
agir, porque o tempo inteiro fico pensando que não posso te ferrar por
minha causa e não posso arriscar estragar seus planos… Se você não
tivesse sido esse perfeito idiota que é e se aproximado, eu teria continuado
fazendo tudo, sem me importar com você, mas não… Eu tinha que começar
a me importar com o arrogante metido.
— Então, você não se arrepende de ter sido presa, mas se arrepende de
ter ficado comigo? Legal.
Anthony coloca a mão no bolso e olha para cima. Nós dois ficamos em
silêncio, mas ele não vai embora, assim como eu não vou. É como se
precisássemos desse tempo, para nos acalmar e tentar compreender tudo o
que está acontecendo. Algumas pessoas passam por nós na rua e eu os
observo, até que estejam longe o suficiente.
Respiro fundo e me aproximo dele, que agora está apoiado na moto com
os braços cruzados.
— Não me arrependo de você. Nem um pouco. — Abaixo a voz,
mostrando que não quero mais brigar. Entendo sua frustração, espero que ele
entenda a minha.
— Achei que estávamos juntos nessa, eu podia ter te ajudado. Você me
preocupou pra caralho, Nina. Primeiro, você me liga pedindo para te
buscar, claramente abalada, depois some e, em seguida, recebo uma ligação
falando que você foi presa porque invadiu a Vann? — Anthony segura meu
rosto e respira fundo, voltando ao tom de voz normal. Sem brigas.
— Eu só não queria te envolver na maluquice que decidi fazer sem
pensar direito. Não é justo te ferrar por minha causa.
— Você tem que parar de ficar tentando me proteger assim.
— Eu entrei na sala do seu pai.
Assumo e Anthony arregala os olhos, assustado com a informação que
jogo no seu colo sem preparação nenhuma. A essa altura, ele estava mais
preocupado com a minha prisão, do que no motivo que me fez ser presa em
primeiro lugar.
— Como descobriu a senha?
— Era o aniversário dele. — Assim que conto, o loiro paralisa por um
momento, processando a informação absurda e tenho certeza que está se
achando tão idiota quanto me achei quando juntei os pontos. — Harry me
ajudou a entrar, eu o enganei, falei que tinha que enviar um documento para
você e ele confiou em mim… Não podemos deixá-lo pagar por minha
mentira.
— Vou cuidar disso. — Anthony me tranquiliza e espera
pacientemente pelo resto da história.
— Eu errei a senha uma vez, não sei se Archibald recebeu um alerta,
porque um segurança apareceu por lá, mas consegui me esconder… Achei
os documentos que procurávamos. E eles não eram nada do que a gente
esperava.
— O que você quer dizer com isso? O que você descobriu?
— Precisamos ir até Thomas Edwards.
Capítulo 51
“Eu acho que ele fez isso, mas eu simplesmente não posso provar.”
No Body, No Crime - Taylor Swift
“Algumas pessoas são tão pobres, que tudo que elas têm é dinheiro.”
Not Even The King - Alicia Keys
ue porra é essa?
Q
De tudo o que imaginei que pudesse acontecer, a última era descobrir
que minha mãe tinha um amante. E que ele era o dono do Centro
Educacional de LittleWin.
Nada faz sentido, mas, ao mesmo tempo, algumas peças parecem se
encaixar.
É por isso que meu pai odeia tanto o Centro. Por isso que está há anos
tentando fechar o local e que não temos acesso aos arquivos desse projeto.
Por que Thomas tem memórias do sorriso de minha mãe, quando eu só
consigo me lembrar dela chorando pela nossa casa e tendo momentos raros
de sorrisos para mim?
— Anthony… — A voz da Marina me traz de volta à realidade. Preciso
piscar algumas vezes para que meus olhos voltem a focar e eu consiga olhar
direito para ela. — Você tem certeza?
— Eu reconheço minha mãe, Dias! — Soo mais ríspido do que esperava,
mas é claro que eu tenho certeza, não existe uma realidade em que eu não
reconheça a mulher que me trouxe ao mundo. — Tem mais fotos?
— Tem — ela passa para o lado algumas vezes e dá zoom em uma que
dá para ver claramente seu rosto.
la estava lindíssima. Com o cabelo loiro escuro comprido, o nariz
E
grande arrebitado e a maçã do rosto muito definida, principalmente quando
sorria. Elegante, com a cabeça sempre levantada e segura de tudo o que está
fazendo, como se ninguém pudesse entrar em seu caminho… Uma postura
diferente da que eu via na mansão dos MacMillan.
Meu coração está partido, completamente partido. O que ela tinha na
cabeça?
— Como eles se conheceram? — Pergunto para Thomas.
— Eu realmente não sei, cara. Eu… Eu não fazia a menor ideia de quem
ela era. — Sua voz parece sincera, assim como seu olhar.
Devolvo o celular para a Marina, que mantém os olhos em cima de mim,
e passo a mão no cabelo de forma desajeitada. Não sei o que fazer. Meu
coração está disparado e a sala parece girar. É difícil até mesmo puxar o ar
para meus pulmões.
— Thomas, será que você pode pegar um copo de água? — Escuto a voz
de Nina muito distante, nem parece que ela está ao meu lado.
Eu, que sempre fui mestre em levantar minha máscara e fingir que não
me importo com nada, não sei o que fazer. Não sei o que falar ou como agir.
Nina toca minha mão e me entrega o copo. Praticamente me obriga a
beber, e eu a obedeço. Ou meu corpo obedece, porque não existem forças em
mim para fazer qualquer coisa por conta própria agora.
— Olha para mim — Nina toca meu queixo, e assim que nosso olhar se
encontra, ela respira fundo para que eu a imite.
É claro que eu faço o mesmo movimento que ela, enquanto vejo-a tentar
acalmar meu coração descontrolado.
— Faremos tudo ter sentido, tá bom?
— Ela nunca estava em casa… — Murmuro e ela assente com
compreensão. — E, quando estava, era como… se estivesse presa ali, como
um fantasma.
— Eu sinto muito... Se você quiser ir embora e continuar outro dia, tudo
bem. É muita coisa para assimilar, e… vou respeitar o que você quiser fazer.
— Gente… — Thomas aparece na sala novamente, nos interrompendo
com uma caixa grande nos braços. — Vocês ainda querem dar uma olhada
nas coisas dele?
Não tinha reparado que ele não estava perto da gente, nem que ficamos
alguns minutos respirando em silêncio. O tempo parece andar diferente.
arina olha para mim, esperando para saber qual será minha reação à
M
pergunta. Os dois esperam, não vão passar dos meus limites e estão deixando
isso mais do que claro, o que me surpreende, não achei que Thomas pudesse
ter empatia com os meus sentimentos. Não vou deixar essa oportunidade
passar.
— Já estamos aqui, então não faz sentido parar agora. — Assinto e
Thomas se aproxima, colocando a caixa na mesa de centro à nossa frente.
Conforto Nina quando seus olhos pedem permissão para se afastar e
observo os dois se ajoelhando em frente à caixa.
Parece que meu corpo está aqui, mas meu espírito não. Sinto como se
estivesse vendo a cena de fora, os dois se movendo em câmera lenta
enquanto pegam um álbum de fotos e vários envelopes de diferentes cores. É
muito comum casos de traição entre a alta sociedade, mas nunca, em toda a
minha vida, pensei que minha mãe tinha um amante. Que ela era feliz em
algum lugar, longe de mim.
Não a culpo, só não imaginava.
— São coisas pessoais… — Nina abre um envelope e começa a passar o
olhar pelos documentos. — Recibos de compras, documentos de vacinação,
passaporte, pedidos de comida…
— Eu sabia que não tinha nada importante… — Thomas mexe na caixa
e pega um caderninho. — Aqui, ele documentava todos os livros e filmes
que assistia e escrevia resenhas, olha.
Nina passa o olho rapidamente, mas não demora a pegar mais coisas da
caixa. Vejo um álbum de fotos pequeno e estendo a mão para o objeto. Nina
me entrega sem falar nada.
Ali, consigo ver com mais detalhes o tal homem. Ele não tem nada de
extraordinário, parece só com um cara qualquer, que a gente vê na rua. Usa
óculos redondos, o cabelo escuro precisando de um corte e roupas simples,
jaqueta jeans e tênis. Passo por outras fotos do Centro, algumas em viagens
de pesca. O que estava nebuloso, agora, fica ainda mais real.
Gregory e Evelyn lado a lado.
O braço dele está ao redor do ombro da minha mãe, enquanto ela sorri
largo. Está realmente feliz, dá para ver em seu olhar. E ele também, olhando
para o lado e apontando para frente. Que merda.
A foto seguinte faz meu estômago embrulhar, os dois estão se beijando
no que parece ser um campo aberto.
— Anthony… — Nina me chama mais uma vez e a forma doce com que
fala quase me faz perder a cabeça. Sei que ela está tentando ser
compreensiva e me dar espaço, mas eu só quero…
Eu nem sei o que eu quero.
— São cartas da sua mãe. — Tem vários envelopes com a letra
característica da minha mãe em sua mão. A mesma letra que faz morada na
margem dos livros com anotações que tenho em minha casa. As cartas não
são tão velhas assim, mas noto que estão amareladas pelo tempo. — Se
estiver tudo bem com você, posso abrir?
Não. É o que quero responder. Não quero descobrir nem entender nada.
Não quero me magoar ainda mais e tenho medo do que vou encontrar ali.
— Pode… — Respondo em vez de falar o que realmente quero, porque é
importante. Mereço saber o motivo dela ser uma mulher dentro de casa e
outra nessas fotos.
Não preciso olhar muito dentro de mim para saber que a culpa é do meu
pai e de sua maneira filha da puta de lidar com a vida… Mas é estranho
encarar a verdade dessa forma tão de repente.
— Ela só assinou com o primeiro nome. — Nina aponta, me mostrando
o envelope antes de abri-lo.
— Eu também tenho nojo do meu sobrenome. — Murmuro e mantenho
meus olhos na mulher nervosa à minha frente, consigo ver suas mãos
tremendo suavemente.
Ela está com medo e tentando se manter firme por minha causa.
— Você já leu alguma vez? — Ela pergunta para Thomas, que nega.
— Nunca, achei que fossem… pessoais demais para me meter.
Agradeço internamente por Thomas ter respeitado as palavras íntimas da
minha falecida mãe, mesmo sem saber quem ela era.
— Posso…
— Leia em voz alta, Dias. — Ordeno, não irritado ou de forma bruta. Só
acho que será mais fácil assimilar tudo pela voz dela e não somente em
minha cabeça.
— Certo, bem… — Nina coça a garganta e ajeita o corpo, então respira
fundo, se preparando para começar. — “Greg, cheguei na Itália não tem nem
1 hora e estou louca para voltar para perto de você”. Tem certeza que quer
que eu leia?
Nina pergunta com desconforto e eu confirmo, então se prepara para
continuar.
“Archibald não me olhou durante todo o trajeto, o que é ótimo, mas,
—
nas poucas vezes que nosso olhar se encontrou, senti o peso que sou para ele.
O quanto se arrepende de me ter por perto. Não sei se vou ter forças para
deixar meu filho crescer ao lado de alguém tão deturpado como ele. Quero ir
embora, vem me buscar, por favor. Ou prometa que ainda estará nos
esperando quando eu voltar e estiver longe dessa vida que preciso encenar.”
Ela levanta o olhar para mim, Thomas mantém a cabeça baixa, apenas
escutando em silêncio e sem interromper.
— Tem outra aqui… — Ela abre outro envelope e recomeça. —
“Comecei a ler os livros que você indicou e talvez você tenha razão,
Fitzgerald não é tão ruim assim e estou me encantando por Benjamin Button.
Espero que esteja satisfeito. Suas anotações tornam tudo melhor, e mal posso
esperar para conversarmos sobre isso pessoalmente. Acredite, tenho muito o
que falar.”
E ela continua. São cartas e mais cartas de conversas banais e íntimas,
que não fazem diferença nenhuma para o caso do Centro, mas que me
apresentam mais da mulher que eu tanto amo e que, aparentemente, eu não
conhecia muito bem. Marina não recua, Thomas não interrompe, e assim nós
ficamos até que o silêncio entre uma carta e outra dure tempo demais.
— Algum problema? — Thomas pergunta e eu gostaria de conseguir
olhar o rosto de Nina agora, mas ela está de costas para mim.
— Acho que… encontrei uma coisa. — Responde baixo e vira a carta do
outro lado, passando o olho rapidamente pelas palavras.
Marina coloca o papel no chão e pega a próxima carta, repetindo o
processo freneticamente.
— O que você encontrou? — Movo o corpo para frente, a preocupação
crescente depois do momento de calmaria.
— Eles sabiam! Essa é de alguns anos depois das últimas que li. — Nina
nega e pega uma das cartas de volta. — “Brigamos novamente, ele não quer
que eu saia de casa, porque sabe para onde estou indo. Tenho certeza de que
colocou alguém atrás de mim. Vou dar um jeito de lhe entregar essa carta,
mas peço para que não a responda, não agora. Eu vou até você quando as
coisas se acalmarem por aqui. Só queria ir embora e não voltar mais, deixar
tudo para trás e esquecer que já tive essa vida. Eu não mereço isso, nem
Anthony… Minha conta está bloqueada, não consigo ir ao mercado sem
pedir autorização… Me diz que vamos dar um jeito? Me diz que não vai nos
deixar?”
rocamos olhares, absorvendo as palavras, e Nina passa para a próxima
T
carta, vejo que ela pula algumas linhas, como se não fosse importante para
ler.
— A cronologia não está certa ou estamos com algumas cartas faltando,
ou eles passaram um tempo se falando de outra forma, escutem isso: “Falei
que sabia sobre o que ele estava fazendo e ele me bateu mais uma vez.
Precisei chorar em silêncio para Anthony não ouvir, a babá não estava aqui
para tirá-lo da casa. Archibald falou que eu não vou destruir o nome da
família dele e que, se for preciso, me manterá prisioneira em minha própria
casa. Disse também que vai atrás de nós dois se nos vermos novamente. Se
ele descobrir essa carta… Eu não faço ideia do que ele é capaz, estou com
medo, Greg. Com muito medo. Nunca o vi dessa forma, e é exatamente por
isso que não posso fazer isso com você, com a sua vida. Você não merece
tudo de ruim que me acompanha, e não é justo que eu te coloque nessa
situação. Então, te imploro, não me procure mais. Não tente entrar em
contato. Esqueça que um dia eu existi, mas saiba que toda vez que eu sentir
o cheiro de ovos mexidos de manhã, vou me lembrar de você.”
— Caralho… — Thomas murmura e Nina vai para a próxima, seu
sotaque brasileiro aparecendo mais a cada palavra por causa do nervosismo.
— Essa é de dois meses depois, no início de junho. “Archibald falou que
não se importa comigo, mas sei que vai me matar, tenho certeza disso.
Nunca o vi tão agressivo, tão possesso e com tanto ódio. Gritou e quebrou
coisas, falando que eu não posso tirar Anthony de casa, que não posso
afastar seu único herdeiro dos negócios da família. Que nenhum de nós
estamos livres para partir. Nós não podemos mais ficar aqui e sei que ele vai
atrás de você se eu sumir sozinha, não vou deixar que isso aconteça. Ele quer
ter o controle de tudo. Controle da minha vida, da de Anthony e, agora, da
sua. Nós não temos escolha. As malas estão prontas, vou deixar o Anthony
na minha mãe depois que ele dormir, e amanhã nos encontraremos e o
buscaremos. Vamos recomeçar em algum lugar bem longe daqui, ele nunca
mais poderá nos aterrorizar.”
Dias alterna o olhar entre nós dois, vejo sua respiração pesada e meu
corpo começa a entrar em combustão, memórias voltando à tona em minha
mente. Thomas pega a carta de sua mão e os dois começam a discutir sobre
algo, não consigo entender sobre o que, já que minha mente só consegue
apontar para uma coisa: eu conheço o pai que tenho, o homem horrível que
ele é. Fui ingênuo em não pensar nisso antes, mas agora tudo faz sentido.
la sabia o que estava vindo pela frente e tentou evitar que acontecesse.
E
Ela tentou me tirar dali.
É claro que a culpa era dele. A culpa sempre é dele.
— Fique aqui! — Levanto-me e vou em direção à porta, não posso ficar
nem mais um segundo nesta casa.
— Opa, espera aí! — Nina joga tudo no chão e corre atrás de mim,
segurando meu braço para que fiquemos frente a frente. — Está indo aonde?
— Acabar com tudo isso.
— Eu vou junto.
— Fique. Aqui! — Repito e passo por ela, não quero que se envolva em
confusões pela segunda vez no mesmo dia, ainda mais com ele.
Principalmente com o que acabei de descobrir. Destranco a porta, mas Nina
empurra a madeira para que se feche novamente.
— Não! — Ela se coloca à minha frente, me impedindo de sair, e dá uma
rápida olhada por cima do meu ombro. Olho para trás e Thomas aparece no
corredor, tentando decidir se nos interrompe ou não. — O que é isso? Vai
simplesmente ir embora e me deixar aqui? As coisas não funcionam assim,
não comigo, Anthony.
— Você fez o mesmo mais cedo e agora está brigando comigo porque
não quero que se envolva?
Sigo em português, porque se ela mudou de língua, é para que Thomas
não nos entenda e a gente tenha um pouco de privacidade.
— Fiz porque estava sozinha na hora, você não está sozinho. Você tem a
mim! Não precisa fazer nada sozinho, não era esse nosso combinado? Que
íamos resolver juntos? — Seus olhos castanhos estão grandes e arregalados,
a sobrancelha levantada, tentando me convencer com todas as suas forças. A
franja está bagunçada na testa, tão comprida que quase alcança seus olhos e
é por isso que ela as afasta.
— Eu me lembro desse dia, Nina. Ela me acordou logo no início da noite
e me levou para a casa da minha avó, falou que me buscava no dia seguinte.
Eu só tinha uma mochila comigo. Não entendi o que estava acontecendo,
mas lembro que ela falou que tudo ficaria bem, e então dormi. Minha babá
me acordou pela manhã, falando que eu precisava voltar para casa, que
minha mãe tinha sofrido um acidente.
Sinto meus olhos ardendo com as lágrimas que insistem em se
formar em meus olhos. Eu não quero derramá-las, mas elas caem
inconscientemente, em um misto de indignação e puro ódio.
— Você sabia que ele não chorou nenhum dia, desde que ela
morreu? Que no velório estava agindo como se fosse só mais um de seus
eventos sociais? Que cumprimentou as pessoas, sorriu e nem segurou minha
mão? Que minha babá cuidou de mim e me deixou chorar em seu colo? —
Despejo as lembranças voltando à tona e sei que estou ficando descontrolado
com a verdade aparecendo. — Ele nunca aceitaria que ela tivesse um caso,
ele nunca aceitaria que algo nesse nível vazasse na mídia e afetasse sua
reputação.
— Gente, o que está acontecendo? — Thomas pergunta, mas nós o
ignoramos.
— Até hoje ele finge que ela não existe, e olha a forma que ele trata
minhas avós, as mulheres que sempre estiveram do lado da minha mãe.
Como ele me trata, deixando claro que sou apenas uma obrigação. Você não
entendeu ainda o que aconteceu, Marina?
Tento respirar fundo, mas não consigo. Ela pisca algumas vezes e sei que
entendeu exatamente o que eu quero dizer, apesar de não ter coragem de
falar em voz alta e tornar isso real. Nina nega, indignada com o que estou
insinuando.
— Não, Anthony… Acho que você foi longe demais…
— Como seu tio morreu, Thomas? — Interrompo-a e me viro para o
moreno, depois de ver Marina abraçando o próprio corpo.
— Acidente de carro… — Thomas responde baixo, extremamente
confuso e assustado.
— Minha mãe também.
Meu coração está disparado no peito, sinto que posso matar alguém com
minhas próprias mãos neste momento.
Não qualquer um, mas sim Archibald MacMillan.
— Eu vou com você, isso não é negociável. — Marina abre a porta e sai
para a rua, sem se importar se estou seguindo-a ou não.
Mas eu a sigo, e não faço ideia do que vou fazer, só tenho certeza de
onde estou indo.
Capítulo 53
J ogo o celular no colo e sinto muito por Anthony não estar aqui agora.
Se ele estivesse, as três palavrinhas que quero tanto falar desde que vi uma
arma apontada para ele sairiam da minha boca com muita naturalidade.
Capítulo 57
e esse foi seu primeiro livro do Niverso, espero que tenha gostado o
S
suficiente desse para ler os outros já publicados. Se você já é um imundo: te
vejo no próximo livro!
eijos,
B
Nicole Oliveira
About The Author
Nicole Oliveira
Nicole Oliveira é uma virginiana nascida nos anos 90 que está eternamente
presa nos clássicos de comédia romântica dos anos 2000. O amor pela
literatura começou aos 6 anos quando leu Pippi Meialonga e se estendeu
com a descoberta de Harry Potter. Desde então, ler tornou- se parte de sua
rotina, assim como criar histórias e cenários em sua cabeça. Anos depois, a
vida adulta a afastou do universo literário, mas foi na pandemia que
reencontrou seu aconchego nas páginas.
Mora em São José dos Campos, no interior de São Paulo, já foi
apresentadora de TV, colunista do jornal O Vale e influenciadora digital. Seu
gosto musical está dividido entre o pop punk da sua adolescência, Taylor
Swift e Broadway. Ama tatuagens old school, Tim Burton, Harry Potter e
filmes slasher de procedência duvidosa.
Tem dois gatos antipáticos, dois filhos que sabem que não sai de casa sem o
Kindle na bolsa e um marido que é obrigado a ler tudo o que escreve.
Ah, e é lufana.
@eagoragemeos e @colovariagirl
Books By This Author
Roadie
Para se enquadrar no padrão superprotetor de seu pai, Manuela sempre foi a
filha perfeita e a aluna modelo. Agora, com 23 anos e depois de tanto ver
seus amigos vivendo suas vidas enquanto ela não pode nem ao menos sair de
casa, cansou de sustentar essa imagem tão exaustiva que esperam dela.
A oportunidade perfeita para traçar seu próprio caminho surgiu quando sua
banda favorita, DownUnder, anunciou o retorno aos palcos depois de 10
anos de pausa, com direito a uma pequena turnê no Brasil. Mesmo com
medo, Manu decide que é o momento certo para realizar o sonho de
adolescência e fazer sua primeira loucura, afinal, não deve ser tão difícil
assim perseguir famosos pelo Brasil por algumas semanas. Certo?
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