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INTRODUÇÃO

“...devo dizer que, se não há diferenças entre os fatos


da história e da ficção, então não faz sentido ser
historiador.”

(Eric Hobsbawm)

Ao recorrer-se à literatura, acadêmica ou jornalística, sobre o

passado do futebol brasileiro, fica a impressão de se estar lendo sempre o

mesmo texto. Em quase todas as produções sobre a história do futebol

brasileiro encontram-se três grandes núcleos narrativos integrados. O

primeiro fala de um refinado esporte chamado Football Association, vindo da

Inglaterra que só as elites praticavam, e que teria chegado ao Brasil graças

às malas de Charles Miller. Filho de ingleses, nascido no Brasil, ao retornar

de seus estudos na Inglaterra trouxera bolas, conhecimento e experiência

sobre o “nobre esporte bretão”. Miller teria sido um pioneiro, divulgando o

esporte entre a colônia inglesa residente em São Paulo e os aristocratas

brasileiros da Paulicéia. No Rio de Janeiro, por seu turno, o divulgador teria

sido, poucos anos mais tarde, Oscar Cox, idealizador e fundador do

Fluminense Football Club, primeiro clube carioca criado para dedicar-se à

prática do Association. Tais descrições se situam numa quase-história que

constrói o mito da fundação do futebol no Brasil. O primeiro núcleo narrativo


reitera: só as elites brancas e aristocráticas tinham acesso a essa prática

esportiva. Portanto, o futebol, em seu início, seria exclusivista e racista, na

medida em que os pretos, mulatos e mestiços, que representavam a maior

parte da população brasileira, eram dele excluídos.

O segundo núcleo elabora-se em torno da face heróica: conta o

processo de luta e resistência dos “excluídos” para apropriarem-se desse

bem cultural. Teria sido nas fábricas têxteis, nos campos de várzea ou nos

terrenos baldios que a parte negra da sociedade brasileira, os “excluídos”,

tiveram acesso ao futebol.

A história do acesso dos “excluídos” ao futebol de fábrica, segundo

as interpretações até hoje formuladas, teria tido os seguintes ingredientes:

os técnicos ingleses (operários qualificados), vindos diretamente da

Inglaterra para trabalhar na Cia. Progresso Industrial, de capital português,

organizaram-se rapidamente para formar um time. Conta-se que a fábrica

teria apoiado a iniciativa, construindo um campo de futebol. Mas, logo surgiu

um problema: o número de ingleses era insuficiente para formar duas

equipes no subúrbio de Bangu. A maioria dos ingleses, residentes no Rio de

Janeiro, trabalhava e residia no centro da cidade. Assim, tiveram que contar

com a participação dos operários brasileiros. Por certo, os operários tinham

o perfil da maioria da população brasileira da época: eram negros, mestiços

e brancos pobres.

Os operários brasileiros teriam sido misturados aos “legítimos”

brancos, os ingleses, para aprender e praticar as artes do esporte bretão.

Mas aprender o quê? Nada, é claro, pois segundo os narradores o futebol já

2
estava no “sangue” afrobrasileiro, estava no sangue do corpo oprimido pela

chibata, mas liberto nas rodas de samba e de capoeira. Desenvolver

habilidades com o corpo teria sido para o negro, segundo os narradores, o

requisito básico para sua sobrevivência no passado escravo e, já no mundo

da liberdade formal, teria encontrado no futebol uma arena naturalmente

adequada para sua expressão.

Com isso os “excluídos” teriam inventado mediante a improvisação e

uma densa experiência corporal, uma nova e sedutora forma de jogar o

rígido esporte bretão, um estilo original cheio de floreios, de dança, de ginga

e de malícia às margens do aristocrático, disciplinado e coletivo jogo inglês.

Tal estilo teria sido renegado durante algum tempo pois, o negro seu

“inventor”, teria sido por muito tempo preterido. Conseqüências do racismo,

dizem os narradores que escreveram ou ainda escrevem sobre futebol.

Entretanto, o estilo renegado não tardaria a emergir como símbolo

do Brasil e dos brasileiros. Os caminhos são rapidamente percorridos nas

narrativas. Com a ampliação da prática do futebol nos centros urbanos sua

popularização tornou-se inevitável, embora esse processo tivesse ocorrido

pela mão de alguns acasos animados por “tensões raciais e de classe”.

Contam as histórias repetidas que o futebol negro invadiu, apesar do

racismo, os fields antes ocupados pelos filhos das famílias de “boa origem”.

Assim, o futebol branco e aristocrático teria sido transformado, pelos pés dos

pretos e mestiços, em esporte nacional.

Tais histórias possuem como pano de fundo os conflitos entre elites

e populares, brancos e negros, amadorismo e profissionalismo, times de

3
subúrbio e times da cidade, numa amálgama na qual é preciso distinguir,

classificar e ordenar importâncias de questões e oposições. Contudo,

domina, nas narrativas sobre o desenvolvimento nacional do futebol, o eixo

constituído pelas tensões raciais, e seria o racismo que explicaria e animaria

o conjunto das oposições. O “pó-de-arroz” do Fluminense, a perseguição ao

negro Manteiga no América, a exploração dos negros no sistema do

amadorismo marrom (semiprofissionalismo ou profissionalismo ilegal), são

núcleos ou mitemas corroborativos da “história oficial” do desenvolvimento

do futebol e do racismo na sociedade brasileira. A mensagem é que o negro,

apesar de inicialmente oprimido e preterido, teria acabado por inventar o

melhor futebol do mundo.

O terceiro núcleo conta as aventuras e desventuras do herói negro

no futebol: o início das conquistas, das façanhas e das reações racistas, as

derrotas e as vitórias sobre o racismo, até o triunfo final do negro na

invenção e valorização do estilo brasileiro. A força desse estilo teria

começado a dar provas do que seria seu futuro pelos pés de Friedenreich no

Campeonato Sul-americano de 1919. Esse mulato, filho de alemão com

negra, teria sido o primeiro ídolo do futebol brasileiro. Depois, o Vasco da

Gama, que representava a colônia portuguesa, com um time formado por

pretos, mulatos e brancos pobres e semi-analfabetos, foi campeão em 1923,

mostrando à elite branca a força daqueles que eram considerados os

“párias”, a “metade inferior” da sociedade. A vitória mestiça teria recebido de

pronto a retaliação “branca”: os times de elite desligaram-se da Liga

Metropolitana dos Desportos Terrestres (METRO), fundando a Associação

4
Metropolitana de Esportes Atléticos (AMEA). A mesma façanha do Vasco

seria conseguida pelo São Cristóvão em 1926 e pelo Bangu em 1933 (ano

no qual o futebol foi profissionalizado). As narrativas enfatizam que os

negros teriam dado prova da força do estilo criado nas “peladas”, nos

campos de várzea e nos terrenos baldios.

O futebol teria se tornado, por volta de 1950, um meio de mobilidade

social e econômica para aqueles que pertenciam à “metade inferior” da

sociedade. Leônidas da Silva e Domingos da Guia são apresentados como

os maiores exemplos de mobilidade social e econômica alcançada por

negros no futebol. Os negros teriam ganhado posições de destaque no

futebol brasileiro. Entretanto, quando se pensava que as tensões raciais

haviam se acalmado, o racismo teria sido reativado com a mítica derrota

para o Uruguai na decisão da Copa de 1950. A Copa de 50 era um palco

excepcional para mostrar ao mundo o afortunado estilo de futebol criado nos

trópicos. Mas, no jogo final, quando todos apontavam o favoritismo

brasileiro, o dionisíaco estilo tropical teria caído por terra. A ativação do

racismo seria revelada ao se escolher como “bodes expiatórios” da derrota

os negros: Barbosa, Bigode e Juvenal.

As narrativas continuam apontando, a partir daí, uma espécie de

conspiração racista que rondaria a formação dos selecionados brasileiros. O

racismo estaria na desconfiança de que pretos e mulatos não teriam o

necessário equilíbrio psicológico em momentos decisivos. Contudo, o

sentimento racista seria mais uma vez superado em 1958: o estilo dançado,

gingado e improvisado do futebol brasileiro seria revelado ao mundo através

5
do preto Pelé e do mulato Garrincha. Porém, as narrativas salientam que,

mesmo na Seleção de 58, teria existido tentativas de embranquecimento da

equipe.

O futebol que nascera nos campos de várzea, na “metade inferior”

da sociedade brasileira, num país pobre e mestiço, afirmar-se-ia diante das

grandes potências. A façanha voltaria a ser realizada nas Copas de 62 e 70.

Pelé, que havia sido declarado Rei do Futebol em 1958, reafirma o vitorioso

e criativo estilo brasileiro na Copa de 70, quando a seleção brasileira sagra-

se tricampeã mundial. Assim, o estilo criado pelos “excluídos” teria cumprido

as funções de integrar racialmente o Brasil e de afirmá-lo frente às grandes

nações.

Os núcleos das narrativas ficam em aberto, como modelos que vão

sendo atualizados, adequando-se às demandas de construção de identidade

e denúncia anti-racista, independente do piso sociológico, histórico ou

antropológico do qual afirmam partir. É necessário ressaltar que “dois

perigos” que se correlacionam, e que teriam rondado o passado do futebol,

continuam presentes na atual literatura sobre o assunto: um é a tentativa de

embranquecimento dos selecionados nacionais e o outro é a “morte” do

estilo brasileiro de futebol. Quase como “constante” ou motor da história,

ambos os perigos explicariam as derrotas e fracassos do futebol brasileiro e,

inversamente, quando superados, também seus sucessos.

Os núcleos narrativos reiteram-se obsessivamente, como se neles

estivesse a essência, o núcleo fundador do processo e, sobretudo, a

exemplaridade que confirma e valida, que faz verdadeira a história contada.

6
Tais núcleos assumem toda a carga explicativa, mais simbólica do que

argumentativamente, sobre o processo de popularização, democratização e

construção do estilo brasileiro de jogar futebol. Foi a repetição quase que

obrigatória desses núcleos, na literatura acadêmica sobre futebol, que deu

origem a este estudo. Por que os diferentes autores, ao tomarem a temática

do futebol, são obsessivamente reiterativos? Por que a estrutura narrativa,

na qual o negro é excluído, cria resistências, enfrenta o preconceito racial,

para depois se afirmar neste espaço cujo resultado é a construção do estilo

nacional de futebol, é sempre a mesma?

O que se encontra nos textos sobre esse assunto, além da repetição

dos núcleos, é a fonte comum. A referência básica, na maioria deles, é o

livro O negro no futebol brasileiro, escrito por Mário Filho, cuja primeira

edição foi publicada em 1947 e a segunda, acrescida de dois novos

capítulos, em 1964.1 Esta última, mais consultada pela facilidade de acesso,

tornou-se manancial inesgotável de dados para os autores que escrevem, a

partir da década de 80, a história do futebol brasileiro. O livro de Mário Filho,

como será demonstrado, tornou-se um bloqueio, por diferentes razões, para

a pesquisa empírica.

A carência de fontes originais de pesquisa sobre o tema pode ser

comprovada pelo número significativo de artigos que têm no NFB2 sua base

empírica. Mas, poder-se-ia perguntar, que problemas haveria em usar Mário

Filho como fonte de fatos e interpretações? O primeiro decorre da

1
A versão de 1964 foi republicada em 1994 pela Editora Firmino, mas por vários problemas esta nova
edição não foi distribuída com eficiência. Como relatou Mário Neto, neto de Mário Filho, em
entrevista concedida em 1997.
2
A partir deste momento utilizarei a abreviatura NFB para referir-me ao livro O negro no futebol

7
legitimação acadêmica que os atuais autores conferem ao livro de Mário

Filho. Ou seja, a legitimidade da obra e a validade de seus dados e

informações não exigem o rigor da crítica. De fato, o NFB não é tomado

positivamente no sentido de refutá-lo ou reforçá-lo. A obra de Mário Filho é

considerada como prova para as interpretações, estabelecidas a priori, sobre

as relações raciais no futebol e na sociedade brasileira.

Pode-se dizer que as novas análises ajustam-se a uma espécie de

denúncia do racismo, que em síntese diz: o racismo no Brasil é, e sempre

foi, tão perverso e violento como em qualquer outro lugar. Assim, “racismo é

racismo”. As denúncias, por sinal legítimas do ponto de vista dos valores

humanitários, soam simplesmente como “politicamente corretas”, sem que

sejam discutidas as questões centrais que interessam à construção do

conhecimento social: O que é o racismo brasileiro? Quais são suas

singularidades? Que tramas históricas podem ser construídas no espaço do

futebol para pensar as relações raciais no Brasil?

A partir desse ponto de vista, identifica-se um segundo problema. Os

novos textos que “bebem” da inesgotável fonte do NFB utilizam-se de dados

e interpretações que sofreram as influências dos anos 30 e 40, marcados

sobretudo pela mentalidade nacionalista e pela esperança da conciliação

racial. As elaborações de Mário Filho não só sofreram a influência do

pensamento de Gilberto Freyre, mas também de um “freyrismo popular”3 que

não é especialmente adequado para o pensamento de que “racismo é

brasileiro.
3
No Capítulo 4 exploro essa temática do freyrismo popular. Freyrismo popular seria a crença de que
no Brasil não existe racismo. Este conceito foi cunhado a partir da inspiração paretiana e das críticas
superficiais e adesões acríticas ao pensamento Gilberto Freyre.

8
racismo”. A visão de Mário Filho, como a de outros intelectuais, artistas e

escritores de sua época, está condicionada pela crença no Brasil que, em

poucos anos, teria passado da escravidão para a integração racial, via

mestiçagem, caldeamento, amálgama ou conciliação. A mensagem que se

poderia extrair dessa visão é a de que tanto o nosso racismo seria diferente

quanto a de que estaríamos superando o racismo, embora os Estados

Unidos, com todo desenvolvimento, não o fizessem. Por esta razão,

seríamos originais, especiais, e teríamos nossa própria história, identidade e

futuro. Diante dessa alternativa de leitura, a utilização da obra de Mário filho

pode ser qualificada como pouco virtuosa, talvez oportunista e, sobretudo,

utilitária, por parte daqueles que se nutrem de seus dados e interpretações

para denunciar o “racismo”.

Questões sobre como contextualizar e relativizar a obra, sobre suas

possibilidades e limitações, parecem não ser significativas, e sequer foram

formuladas pelos consumidores do NFB. Uma fonte, embora pioneira e

significativa, torna-se “a fonte”. Assim, os textos acadêmicos sobre futebol,

salvo raras exceções4, quando muito divulgam reiteradamente a memória do

passado de forma quase circular ou mítica, que remete ao momento

fundador da obra de Mário Filho. As construções sobre racismo, preconceito,

perseguição e superação presentes no NFB são tomadas como dados

históricos, sem que se coloque a possibilidade de tratar-se de uma obra

literária, épica, mitológica ou poética.

4
Para citar uma dessas exceções, aconselho consultar o trabalho de Sousa (1996).

9
Mário Filho foi, segundo o ponto de vista aqui trabalhado, um grande

romancista, interventor e cronista do futebol. Seu texto está mais

preocupado com os detalhes dos pitorescos “causos” que narra, do que com

a verdade positiva ou com a coerência interna, embora declare o contrário.

Os personagens podem, por exemplo, assumir diferentes papéis

dependendo do “causo” ou da generalização que Mário deseja realizar.

Como pretendo demonstrar ao longo deste estudo, Mário Filho construiu um

romance que é um épico do negro no futebol brasileiro, onde os fatos são

lidos, remontados e redescritos como tramas raciais. Isto é, no NFB a

narrativa opera com uma espécie de deslocamento de foco: qualquer

"causo” ou fato serve para colocar em destaque a cisão entre brancos e

negros, a resistência dos últimos aos primeiros e a singular integração

nacional a partir da construção de tramas raciais. A narrativa do NFB forma

a seguinte equação: o futebol, quando branco, era um produto importado;

quando preto e mestiço, torna-se brasileiro.

Mário Filho escolheu o racismo como o “inimigo interno” que

colocaria em risco a unidade nacional. O “inimigo” é, no plano da narrativa

do NFB, derrotado e a nação se realiza. Esse é espírito que alimenta a

narrativa de Mário Filho, e será uma das hipóteses de leitura da obra em

questão.

Diante da problematização, pretendo demonstrar que os novos

textos sobre o desenvolvimento histórico do futebol brasileiro atualizam, na

maioria das vezes, a narrativa do NFB. Os “novos narradores”5 tomam os

5
O termo será utilizado ao longo do texto para referir-se aos autores contemporâneos e pesquisadores
do âmbito acadêmico, que escreveram sobre a relação raça e futebol a partir da década de 80.

10
dados do NFB por empréstimo, sem questioná-los, e sem muita fineza

analítica para atacar “outros inimigos”. Em síntese, afirmam que o negro foi

segregado, humilhado, discriminado no passado do futebol brasileiro; dessa

narrativa pode-se concluir, para o presente, que o Brasil é um país racista.

Deve-se reconhecer, no estilo “politicamente correto”, que nós temos uma

história de racismo, e não de “democracia racial”. A denúncia do racismo e a

luta contra ele continua sendo uma boa causa, aqui e em outras latitudes.

Não é isto o que se põe em questão.

Vários problemas continuam sendo teoricamente relevantes e

socialmente significativos. O primeiro é se, efetivamente, existem ou não

diferenças entre o racismo brasileiro e outras formas de racismo.

Reconhecer o racismo em suas especificidades continua sendo relevante

para a teoria, para entender o curso da história, e significativo também sob o

ponto de vista dos sentimentos, entendimentos e ações dos atores sociais. A

visão universalista, entretanto, parece conduzir a uma dissolução das

diferenças, talvez em nome da “boa ideologia”. O segundo problema é bem

mais específico. Quando o foco passa a ser o futebol, as narrativas “anti-

racistas”, de matriz universalizante, buscam, salientam e elogiam as

encantadoras singularidades do nosso futebol. Em outras palavras, seus

formuladores desejam ser “politicamente corretos” a partir de uma ética

universalista e, ao mesmo tempo, regionalistas ou nacionalistas quando a

questão é o futebol. Por último, a história específica do futebol desaparece,

pois é englobada ou encorpada pelas vicissitudes da gesta moderna da raça

negra, da qual o campo do futebol seria apenas um dos lugares.

11
Dessa forma, o que resulta do casamento da “fonte inesgotável” com

seus “bebedores”? A hipótese a ser demonstrada é que a maior parte das

atuais narrativas acadêmicas sobre futebol, ao nutrirem-se acriticamente dos

dados do NFB, acaba tragada pela força quase mítica da narrativa de Mário

Filho. O resultado é a construção de um “novo” discurso mítico e épico de

exclusão, resistência e afirmação do negro na “velha versão da identidade

nacional”. Na tentetiva de atacar ”outros inimigos”, mas com os mesmos

“dados do NFB”, as atuais narrativas acabam condicionaldas pela

perspectiva do nacionalismo de Mário Filho.

O estudo está organizado em duas partes. A primeira é composta de

uma análise detalhada do NFB e de seu autor. Os três primeiros capítulos

apresentam uma síntese comentada do NFB, em suas duas edições, para

que o leitor tenha uma noção de como Mário Filho constrói suas tramas em

torno da raça e do futebol. Subjaz a hipótese de que a construção de Mário

Filho guarda estreito relacionamento com a estrutura do conto. O quarto

capítulo trata dos vínculos do NFB com o pensamento freyreano. No quinto é

narrada a trajetória de Mário Filho como romancista, interventor e mediador

cultural no campo esportivo.

Na segunda parte do estudo expõe-se como as atuais narrativas

acadêmicas reproduzem e atualizam os mitos e contos presentes na obra de

Mário Filho. No sexto capítulo apresenta-se o modelo teórico utilizado para

analisar a atual produção acadêmica sobre o futebol. No sétimo, mostra-se

como a estrutura da narrativa de Mário Filho se reproduz nas atuais

narrativas acadêmicas sobre o futebol brasileiro. No oitavo capítulo

12
demonstra-se que os núcleos narrativos do NFB, reproduzidos nas atuais

narrativas, deslocam tramas de qualquer natureza para apresentar “provas”

de racismo no futebol. Em outras palavras, a raça e o racismo nessas

narrativas tornam-se o motor da história do futebol brasileiro em todos os

tempos.

13
PRIMEIRA PARTE

MÁRIO FILHO E O NEGRO NO FUTEBOL BRASILEIRO

14
1 - DAS EDIÇÕES E NOTAS AOS LEITORES

A intenção desta parte do estudo é introduzir o leitor no mundo do

futebol construído por Mário Filho em O negro no futebol brasileiro. Ao se ter

em mãos essa obra, é possível reagir como leitor diante de um romance,

talvez histórico, por sinal muito bem escrito, que em frases “redondas”

transmite o que foi ou o que se imagina ter sido o passado do negro no

futebol do Brasil. A linguagem de Mário Filho faz com que o leitor veja a

cena do jogo, a personalidade dos atores e o cenário social. Sua linguagem

é pictórica, quase fotográfica.

Embora possa causar a impressão de se estar diante de um

romance de tipo histórico, onde ficção e fatos se misturam, não seria esta a

interpretação que Mário Filho deu de seu próprio texto. Em 1947, ao

escrever “Nota ao leitor”, uma espécie de introdução ao livro, afirma que sua

obra havia resgatado parte da memória do futebol antes que se perdesse.

Para Mário Filho, o leitor poderia encontrar nas páginas do NFB apenas a

“verdade pura e simples”.6 O livro apareceu parcialmente na coluna diária

“Da Primeira Fila”, de O Globo, desde 1942, sob a forma de crônicas. Mário

Filho, no entanto, diz que se “preparava, sem o saber, é claro, para o

trabalho que aqui está pronto em volume”.7 Temos, assim, a verdade pura e

6
Rodrigues Filho, M. (1964). O negro no futebol brasileiro (2ª edição). Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 402p. O segmento do texto refere-se à “Nota ao leitor”, escrita para a 1ª edição e publicada
também na 2ª edição. Pode-se notar que Mário Filho utiliza verdade num sentido positivista. Aliás,
essa era a tendência do debate na época e ainda é de boa parte da imprensa que acredita apenas
apresentar os “fatos”. Entretanto, como poderemos ver no Capítulo 5, Mário Filho diz que o jornal
deve, se possível, construir fatos, e a notícia para atingir deve ser “quente”, deve ser escrita como um
drama. Os “novos narradores” do futebol parecem acreditar que os dados de Mário Filho são a mais
simples e pura verdade.
7
Idem.

15
simples produzida sem saber. Temos um tipo de produção que apenas faz

sentido para a verdade gerada pela testemunha, não sendo este o caso,

pois Mário Filho não é testemunha de tudo que relata, surgindo daí a

questão sobre o estatuto de seus escritos, independentemente do que ele

afirma sobre os mesmos.

O NFB foi editado pela primeira vez em 1947, pela Pongetti Editores,

constando de quatro capítulos onde o autor descreve como o futebol se

institui para as elites brancas, como se populariza, entremeado pelas

tensões raciais, culturais e econômicas, até tornar-se um meio de ascensão

do negro na sociedade brasileira.8 A obra tem 295 páginas e, segundo

consta no próprio livro, “imprimiram-se 100 exemplares no formato 25x20,

em Papel Holanda, numerados de 1 a 100”, e 20 exemplares numerados de

I a XX, “fora de comércio”. Este dado pode indicar que a primeira edição teve

pouca circulação.9

Na seção de “Notas ao leitor”, Mário Filho explica alguns dos

caminhos tomados durante a construção do texto: a consulta a jornais das

primeiras décadas do século XX foram de pouca valia e suas principais

fontes teriam sido as informações prestadas por alguns personagens que

protagonizaram o futebol desde o seu início, e o álbum de recortes e

fotografias do famoso goleiro Marcos Carneiro Mendonça10.

8
Rodrigues Filho, Mário. (1947). O negro no foot-ball brasileiro (1ª edição). Rio de Janeiro: Irmãos
Pongetti Editores, 295 p. Esta edição é de difícil acesso, mas o leitor pode consultá-la em microfilme
na Biblioteca Nacional-RJ. Agradeço em especial a Lino Castelani Filho, que tendo em seu acervo
esta rara edição, enviou-me uma cópia.
9
A indústria editorial no Brasil já havia crescido bastante e as edições, na época, eram de 1500 a 5000
exemplares por edição. Por esta razão, é estranho que se tenha publicado tão poucos exemplares.
Também era uma prática numerar parte das edições para o ritual da venda com os autógrafos do autor.
10
Marcos Carneiro Mendonça foi goleiro do América e do Fluminense, jogou pela Seleção brasileira e
foi Campeão Sul-americano em 1919. Seu depoimento está gravado no Museu da Imagem do Som

16
Da consulta aos jornais até 1910 Mário afirma que não se retira

muita coisa, na medida em que eles se restringiam a publicar os resultados

dos jogos, o que serviria apenas para fazer estatística dos resultados das

equipes. O futebol só passa a ter mais importância depois de 1910, quando

começam a aparecer algumas crônicas nos jornais, assinadas com as

iniciais do articulista. Assim, o “futebol só interessou às folhas depois de se

tornar paixão do povo”, ainda quando era basicamente um esporte da elite

branca.11

A democratização do futebol para negros, mestiços e brancos - a

“metade inferior” da sociedade - é o tema central da obra, como indicado no

título. Pode-se inferir que o autor entende a democratização como um

processo de participação e apropriação cultural, e também de ascensão

social do negro por meio do futebol. Uma das limitações que o autor diz ter

encontrado na construção do texto foram as fontes documentais, pois a

legislação das entidades esportivas não tocam, “nem de leve, a questão da

raça”.12 Tal legislação limitar-se-ia a levantar barreiras sociais, proibindo que

empregados subalternos (garçons, barbeiros, soldados) jogassem futebol

nos clubes filiados.13 Em função da raridade com que as questões de raça

apareciam nos documentos, o autor afirma que se utilizou muito mais de

depoimentos para reconstituir “a tradição oral” do futebol. Sua avaliação é

(MIS-RJ, 1967). Marcos cita em seu depoimento que emprestou seu álbum de recortes para Mário
Filho por 8 dias, mas este só o teria devolvido três anos depois.
11
NFB (1964), “Nota ao leitor”.
12
Idem, ibidem.
13
Legislação esta de acordo com o código do esporte amador importado junto com o futebol da
Inglaterra. Cf. Mandell (1986, p. 161-62).

17
que a tradição oral foi muito mais rica que os documentos consultados14. A

história que Mário nos conta estaria, assim, baseada fundamentalmente em

fontes orais. Sem desprestigiar o valor dessas fontes, temos que estar

conscientes de suas limitações, quando não controladas adequadamente.

A segunda edição sai em 1964, 17 anos depois, pela Editora

Civilização Brasileira. Nela, Mário Filho parece realizar uma paradoxal

operação que, ao mesmo tempo, relativiza e reforça a visão de “verdade

pura e simples” que declara nas “Notas ao leitor” da 1ª edição”. Em “Nota à

segunda edição”, apresenta os argumentos que o fizeram reeditar o livro e

acrescentar dois novos capítulos, compondo a versão definitiva da obra.

“O negro no futebol brasileiro”, cuja primeira edição estava


esgotada há anos, era um ensaio que, embora insinuasse mais
do que concluísse e procurasse sobretudo fixar o processo15, de
uma forma penosa e longa, enfrentava uma prova a que poucos
livros se submetem em vida” 16

Mário abre, assim, um caminho metodológico para acrescentar parte

da história teria visto passar à frente de seus olhos como cronista esportivo.

O texto, segundo Mário, seria simplesmente ampliado. A ampliação talvez

tenha se dado porque a história não pára e sempre apresenta surpresas. O

NFB seria, ainda assim, verdade “pura e simples”, mesmo depois “que a

derrota do Brasil em 50, no campeonato mundial de futebol, provocou um

14
Mário Filho afirma que tinha à mão documentos sobre a imprensa mais mexeriqueira, que tem
como objeto a vida privada dos jogadores (Vida Esportiva 1916-20, Crítica 1928-30, O Globo, Jornal
dos Sports, O Globo Esportivo). NFB Rodrigues Filho, M, (1964), “Nota ao leitor”.
15
Parece coincidência, mas o argumento utilizado por Mário Filho é o mesmo que Freyre utiliza para
descrever o perfil interpretativo de sua obra: “Procura interpretar e esclarecer o material reunido e
tem, talvez, um rumo ou sentido novo de interpretação; mas quase não conclui. Sugere mais do que
afirma. Revela mais do que sentencia”. (Freyre, 1981, especialmente o Prefácio à primeira edição, de
1936). No decorrer do texto apresentaremos as proximidades entre a narrativa de Mário Filho no NFB
e a teoria de Gilberto Freyre sobre a formação da sociedade brasileira.

18
recrudescimento do racismo. Culpou-se o preto pelo desastre de 16 de

julho”.17 O recrudescimento do racismo não teria, para Mário, invalidado os

capítulos da edição anterior (1947), pois o autor diz apenas narrar um

processo que insinua mais do que conclui.

Vale lembrar que, para o autor, o processo de acesso e

democratização no futebol para o negro foi duro e penoso. Assim, Mário

Filho reitera que a edição de 1947 poderia aparentar, em uma análise

superficial, “uma visão otimista a respeito de uma integração racial que não

se realizara ainda no futebol, [mas] sem dúvida o campo mais vasto que se

abrira para a ascensão social do preto”.18 Deste modo, não teria ocorrido

uma integração racial plena, e a prova seria o recrudescimento do racismo a

partir da derrota para o Uruguai na final da Copa do Mundo de 1950, no

Estádio Maracanã, no dia 16 de julho. Mário Filho combina, assim, racismo e

mobilidade social no futebol. Então, ambigüidades e dualidades parecem

resultar do próprio curso da história. Talvez, mais que optar, seja necessário

aceitar e conviver com ambigüidades de sentidos presentes na obra e no

processo que ela descreve. Contudo, se existem avanços e retrocessos,

como julgar o sentido da história, do racismo no Brasil e da integração do

negro na sociedade?

Mário Filho, ao narrar o recrudescimento do racismo, faz questão de

esclarecer que o processo contraditório que se formou em função da derrota

do Brasil podia ser interpretado como uma espécie de desgosto, de

autoflagelo: o povo, formado em alta proporção por pretos e mulatos, teria

16
NFB (1964), “Nota à segunda edição”.
17
Idem, Ibidem.

19
chamado a si próprio e aos derrotados, principalmente os negros, de sub-

raça.

A contradição do suposto impulso racista torna-se complexa no

texto. O herói da Copa de 50, segundo Mário, teria sido um mulato da equipe

uruguaia, eleito como ídolo, idealizado ou invejado pelos brasileiros após a

derrota de 50: Obdúlio Varela, El Gran Capitán, tornara-se ídolo dos

brasileiros por ser mulato, tal como os heróis do futebol brasileiro de nosso

passado, todos eles mulatos. Esta seria assim a prova de que sua obra teria

resistido ao tempo, não precisando ser alterada, mas apenas aumentada:

“Há de parecer estranho que sem ter que modificar nada que escrevi,

conservando intactas as quatro primeiras partes da primeira edição do ‘O

negro no futebol brasileiro’, a segunda edição surja aumentada e

definitiva.”19

Apesar da expiação sofrida pelos negros brasileiros (Bigode, Juvenal

e Barbosa), a escolha do uruguaio e mulato Obdúlio foi vista por Mário Filho

como prova da permanência da tese de que os nossos heróis sempre foram

idealizados à imagem e semelhança do povo. Mário Filho traça, de acordo

com essa “tese”, inspirada em Gilberto Freyre, uma “genealogia” dos heróis

do futebol brasileiro, todos mulatos e pretos. Vejamos:

“O primeiro se chamava Friendenreich, filho de pai alemão e mãe


preta. Um mulato de olhos verdes. O segundo, Leônidas, filho de
pai português e mãe preta. Um mulato mais para preto, de nariz
arrebitado.

18
Idem, Ibidem.
19
Idem, Ibidem.

20
Quando o Brasil levantou o campeonato mundial da Suécia, em
58, o brasileiro elegeu dois ídolos: o preto Pelé e o mulato
Garrincha. O Negro No Futebol Brasileiro suportara a prova sem
ter de mudar uma linha.

O curioso é que quase o mesmo espaço de tempo separava a


escolha de um ídolo nacional do futebol brasileiro: dezenove anos
entre Friedenreich e Leônidas e vinte entre Leônidas e Pelé e
Garrincha.” 20

A segunda edição viria, assim, apenas acrescida de dois novos

capítulos. No primeiro, demonstraria a cobrança, a pressão e as injustiças

que sofreram os jogadores no período em que o futebol já havia se tornado

um meio de ascensão social. Entretanto, tal pressão, segundo o autor, teria

se dado “sobre o mulato e o preto que envolvem a mistura racial em que se

caldeia o brasileiro”.21 No segundo capítulo, discutiria o ambíguo processo

do racismo brasileiro, que ainda permanecia: alguns negros contribuiriam

para o aumento das barreiras raciais, e outros para varrer tais barreiras.

Assim, ao passo que alguns desejavam “embranquecer”, outros orgulhavam-

se de sua raça. Nesse contexto, o “preto” Pelé tornar-se-ia o maior símbolo

de orgulho da raça. Pelé, com sua imagem e o orgulho de ser filho de pretos,

estaria mais do que nenhum outro auxiliando a “varrer as barreiras raciais”.22

Desta forma, a segunda edição da obra de Mário Filho pode ser encarada

como continuidade do processo onde o negro, apesar da ascensão

conquistada, sofre várias provações e segregações até afirmar um Pelé -

preto que se orgulha de ser preto - como o Rei do Futebol.

20
Ibidem, Idem.
21
Ibidem, Idem.
22
Ibidem, Idem.

21
O NFB, como já vimos, na segunda edição deveria, segundo o autor,

ser considerado apenas um livro ampliado. O esclarecimento de Mário

parece ser seguido ao pé da letra, se considerarmos que quase todas as

citações recentes que esta obra recebe baseiam-se na segunda edição. No

entanto, ao confrontarmos as edições verificamos que não se encontram

totalmente “intactas as quatro primeiras partes da primeira edição”.23

Algumas alterações foram realizadas. Os termos ingleses do futebol foram

aportuguesados, os parágrafos, que eram longos na primeira edição, foram

divididos na segunda. Contudo, se não fosse pela supressão de duas notas

de rodapé e frases do texto original que atesta a crença do autor na

realização total da democracia racial, as alterações formais seriam

insignificantes.24 As supressões tornam-se importantes para entender a

visão otimista de Mário Filho sobre as relações raciais e os erros de

interpretação nos quais esbarram os pesquisadores contemporâneos que se

debruçam apenas sobre a segunda edição. Maiores esclarecimentos sobre

as supressões serão apresentados no Capítulo 2.

O que pretendo levantar é a questão sobre o caráter de “verdade

pura e simples” que Mário Filho confere a sua própria obra. Nos capítulos

seguintes tentarei demonstrar que a narrativa do NFB mais se aproxima do

campo do romance, do conto, do que da história enquanto campo disciplinar.

A análise do NFB será realizada a partir da hipótese de que a obra em

23
Ibidem, Idem.
24
Mário Neto relatou, em entrevista concedida em janeiro de 1997 ao autor deste estudo e à Profª.
Ludmila Mourão, que o avô havia contratado um revisor que atualizaria a linguagem da edição de
1947.

22
questão apresenta uma estrutura semelhante à do conto25 que se articula

com a construção da nacionalidade. A estrutura do conto pode ser resumida

nas seguintes etapas: 1) ao herói impõe-se uma carência ou dano, uma

proibição e o afastamento de sua comunidade; 2) a proibição é transgredida,

o herói nessa etapa é enganado ou humilhado por seus antagonistas; 3) o

herói é submetido a provação, mas algo mágico lhe é doado, auxiliando-o a

superar as adversidades; 4) o herói consegue o triunfo sobre as

adversidades, a carência ou dano inicial são reparados, e assim retorna a

sua comunidade reconhecido pelo seu feito. A continuidade do conto levará

sempre a uma nova imposição de dano, e o herói passará por todas as

etapas subseqüentes. A trajetória do negro, de segregado a incluído no

espaço do futebol, de separado a integrado na comunidade, é acompanhada

em Mário Filho como um conto ou romance que expressa o ideal de nação e

brasilidade. Em outras palavras, o NFB pode ser lido como um discurso de

construção de identidade nacional via futebol, onde o negro, segregado,

discriminado, provado, afirmou-se como herói e construiu um estilo de

futebol que se tornou a expressão da nacionalidade. É necessário destacar

que o herói negro teria operado no futebol uma “revolução” silenciosa, onde

a conquista deu-se, sobretudo a partir de mediações conciliatórias e não

sangrentas, porém não sem sacrifício e humilhações. Por agora basta, mas

considero pertinente recomendar que não se perca esta hipótese de leitura

ao penetrar nos próximos capítulos, onde acompanho a estrutura narrativa

do NFB.

25
A referência básica para pensar o NFB como estrutura do conto foi a obra de Propp (1984). O
estudo de Propp foi uma das referências que Lévi-Strauss utilizou para pensar a estrutura do mito.

23
2 - DOS CAPÍTULOS DA 1ª EDIÇÃO

2.1 – “Raízes do saudosismo”: exclusão, separação e mediações

No primeiro capítulo do NFB, “Raízes do saudosismo”, é descrito o

processo de instauração elitista do futebol até os incipientes passos em

direção à sua democratização. Mário Filho faz questão de enfatizar que no

passado existia uma espécie de separação ou exclusão do negro do futebol.

O futebol dos “saudosistas” era um entretenimento exclusivamente de

brancos. Em seu texto, ser branco se confunde com a idéia de elite. Tanto é

assim que branco, quando não pertencente às elites, vem adjetivado de

pobre.26 O futebol, em seu início, seria branco e elitista - fortemente marcado

pela cultura inglesa presente no Brasil - e o negro segregado e à margem

desta comunidade esportiva. A etapa da imposição do dano e do

afastamento da comunidade é a tônica de “Raízes do saudosismo”, embora

outras etapas da estrutura do conto também apareçam no percurso narrativo

delimitado.

A narrativa do NFB opera com dicotomias e mediações:

Dicotomias: futebol branco e elitista versus futebol negro27, marginal

e excluído; arquibancada - lugar de mulheres, que enfeitavam a paisagem

como uma corbeille de flores, e homens elegantes - versus geral - lugar de

26
A visão de elite de Mário Filho muito se aproxima do conceito de uma classe formada por
proprietários de indústrias ou negócios, funcionários públicos, técnicos, bacharéis, médicos e
comerciantes bem- sucedidos. Elite também significa, nesse contexto, ser aristocrata, estrangeiro bem-
colocado social e economicamente.
27
É importante ressaltar que Mário Filho trabalha com a noção de cor, que se confunde com raça e,
conseqüentemente, com etnia. O que se pode deduzir é que quando Mário Filho está se referindo a
negros ele inclui pretos e mulatos; contudo, por vezes ele utiliza separadamente preto ou mulato,
servindo-se de critérios que adjetivam os diferentes traços fenotípicos e psicológicos. Ver Lambert

24
negros e brancos pobres, local onde se teria acesso apenas à emoção; time

grande versus time pequeno ou time da cidade versus time do subúrbio;

Mediações: caminhos ambíguos e tortuosos pelos quais o preto e o

mulato teriam tido acesso ao futebol: fábrica, terrenos baldios que se

improvisavam em campos e contatos esporádicos entre elite e populares.

De fato, Mário Filho parece entender a dinâmica social a partir de

oposições estruturais que se conciliam em nome da unidade, do

desenvolvimento, da identidade nacional. Entretanto, tal conciliação não se

teria dado sem percalços, sacrifícios e luta.

É na idéia do título “Raízes do saudosismo” que Mário Filho afirma

que o futebol, no passado, era branco, estrangeiro e elitista. Assim, dá pistas

de que chegou indutivamente a essa generalização quando diz: ”O

saudosista sempre branco, nunca preto, dava para desconfiar”.28

O capítulo inicia-se com a frase lapidar “[H]á quem pense que o

futebol do passado é que era bom”.29 A crítica de Mário Filho não se dirige

ao sentimento daqueles que pensam o passado aurático e o presente como

pura degradação. A intenção, desde a primeira linha, é armar um cenário ou

trama para dizer que o passado do futebol não era idílico. O futebol seria,

antes de tudo, segregador. Por isso diz que “de quando em quando a gente

esbarra com um saudosista. Todos brancos, nenhum preto”.30 O saudosista

não seria um reivindicador de qualidades do futebol do passado, mas

apenas um crítico da popularização, um crítico ressentido de um futebol

(1970), especialmente o Capítulo IV; Guimarães (1996).


28
NFB 1964, p. 3.
29
Idem, ibidem.
30
Idem, ibidem.

25
aristocrata e branco que se tornou popular e, conseqüentemente, negro. A

imagem do saudosismo representa separação social, segregação e

preconceito no texto de Mário Filho.

O saudosismo do NFB pode ser lido como segregação e racismo ou

como distinção social. Todavia, distinção social não eqüivale a racismo.

Embora possa existir coexistência empírica, essas atitudes sociais não estão

necessariamente vinculadas. Surge aqui um primeiro ponto que merecerá

destaque mais à frente: Mário Filho desvia o foco do amadorismo, que se

caracteriza como um código de distinção social, para a discussão de

segregação e racismo. Enfatizo que este tipo de operação faz parte da

estrutura narrativa do NFB, que auxiliou a inventar uma tradição.31

Os saudosistas podem ser entendidos como “inimigos” potenciais da

unidade. A existência do saudosismo, no passado, teria impedido a

realização da unidade de raças no futebol e, conseqüentemente,

impossibilitado a unidade nacional.32 O Brasil talvez só fosse Brasil, para

Mário Filho e para os de sua geração, quando pensado como uma

civilização pacífica onde se encontram diferentes raças e culturas. Aliás, isto

já vinha sendo dito de longa data por eminentes pensadores, mediadores

culturais e interventores políticos.33 Assim, o saudosismo seria uma época

31
Sobre a produção de tradição, ver Hobsbawn (1997).
32
Segundo, Hobsbawn, um dos caminhos da construção da nação ou do nacionalismo é a
identificação de inimigos, internos ou externos, para gerar unidade ou agregação. Ver também Boudon
(1990), para quem o individualismo metodológico auxilia a entender a lógica da construção e
afirmação das nações, estados, empresas etc.
33
Se, no passado pós-abolição, a imigração ou as teses de branqueamento caminhavam na direção de
visualizar que tínhamos uma população negra e mestiça, uma raça que arrastava o Brasil para baixo e
por isso devia ser absorvida ou caldeada, a situação parece que começa a se inverter no plano
discursivo de alguns médicos, literatos e intelectuais. Alberto Torres, na década de 1910, Monteiro
Lobato, Miguel Pereira, já haviam descartado a hipótese de que o problema do desenvolvimento do
Brasil era a raça mestiça e os problemas da mestiçagem. Os problemas do Brasil eram sanitários e de

26
do futebol em que a nação estaria cindida: negros de um lado e brancos de

outro.

“Os jogadores claros, bem brancos, havia até louros nos times, ia-se

ver: inglês e alemão. Poucos morenos. Os mulatos e os pretos, uma

raridade, um aqui, outro ali, perdiam-se, nem chamavam atenção”.34 É

importante memorizar essa fotografia, onde o futebol, apesar de ser branco,

também tinha seus pretos e mulatos, ainda que fossem raros como indica

Mário Filho. Entretanto, a raridade no futebol não pode ser tomada prima

facie como sinônimo de racismo ou de segregação racial. Por exemplo, raros

são os descendentes de japoneses que jogam futebol no Brasil, porém eles

não são raros entre os alunos da Unicamp ou da Universidade de São

Paulo. Chamo a atenção para este fato porque alguns autores

contemporâneos transformam a ênfase ou retórica do “futebol branco” em

leitura simplificada de segregação racial. Esta questão será objeto de análise

na segunda parte deste estudo.

Aquilo que Mário Filho carrega nas tintas como problema racial

poderia ser lido, no fundo, como problema de estratificação social? A

resposta parece ser afirmativa, na medida em que as tintas sobre a

segregação racial perdem a coloração em outras partes do texto. É inegável,

principalmente no contexto histórico que se propõe narrar, que os pretos e

mulatos estavam nos últimos degraus da escala social. Mas poder-se-ia

perguntar: os filtros sociais excluíam mulatos e pretos do futebol baseados

exclusivamente no critério racial? Mário responde a esta questão

educação, e as propostas de intervenção eram no sentido de tratar com sanitarismo, educação física e
intelectual a população doente. Cf. Lima & Hochman (1996). Ver também Torres, Alberto (1978).

27
introduzindo o Bangu, que em função da insuficiência de jogadores, teria

lançado mão dos operários brasileiros para formar uma equipe de futebol.35

Assim, o negro, segundo a descrição de Mário Filho, teria acesso ao futebol

em virtude da carência ou da necessidade de jogadores. Que racismo seria

este que, diante da escassez, incorpora os jogadores negros? Se o Bangu,

um dos primeiros clubes de futebol do Brasil, jogava contra o “aristocrático”

Fluminense, parece ficar difícil pensar em simples exclusão racial ou social

na esfera do futebol, quando incorpora jogadores de origem negra. Além do

mais, afirmar racismo neste contexto parece estranho, pois será que os

ingleses de Bangu preferiam jogar futebol a marcar suas diferenças com os

subordinados mulatos e pretos?

Os negros e mulatos no futebol seriam exceções no período em

questão? Parece que não. A narrativa do NFB apresenta outros pretos e

mulatos que teriam jogado futebol nesta fase que se denomina saudosista.

Contudo, o Bangu é apresentado como exceção por Mário Filho. Assim, o

Bangu poderia ter um preto ou mulato como Francisco Carregal, filho de pai

português com mãe preta. Era tecelão, nas palavras de Mário “um simples

tecelão”, e quando integrou o team do Bangu comprou tudo novo, pois não

queria “fazer feio”.36 Lazer era pago, tanto quanto hoje. O esporte, na virada

do século, torna-se um estilo de vida nas metrópoles, onde sua prática nos

clubes cumpria os propósitos de distinção social. Contudo, houve um rápido

processo de expansão e de assimilação do novo estilo de vida por aqueles

34
NFB, 1964, p. 3.
35
Um time da fábrica Progresso Industrial Ltda; criado pelos empregados ingleses e fundado em
1904.
36
NFB, 1964, p. 9.

28
que estavam no degrau mais baixo da estrutura social.37 A própria narrativa

do NFB aponta essa expansão e assimilação, nas oposições entre time

“grande” e “pequeno”, “cidade” e “subúrbio”, “time de branco” e “time de

preto”, por exemplo.

Pode-se observar, no entanto, que Mário Filho carrega as tintas para

afirmar que o futebol saudosista era branco e hábito de inglês, e, por

dedução, segregador e racista. No sentido do reforço, a narrativa discorre

sobre o Paissandu Cricket Club e o Rio Cricket como clubes restritos à

colônia inglesa, representando verdadeiros pedaços da Inglaterra em solo

nacional: “Nos domingos de sol a bandeira inglesa se esticava ao vento,

bem no alto dos mastros”.38 Outra prova de que o futebol era inglês estaria

no fato de que nos jornais da época, na seção de esportes, apareciam

aqueles nomes ingleses, onde os prenomes eram abreviados assim: “C. L.

Robison”, “M. Murray” etc. Mário diz que os “brasileiros acharam bonito (e)

quiseram imitar os ingleses” e um “Horácio da Costa Santos” passou a ser

H. da Costa Santos.39

Ainda para confirmar que o futebol era “made in England”, Mário diz

que jogador que se prezasse, mesmo brasileiro, utilizava os termos

específicos do esporte em bom inglês: foul, man on you, goal kepper, center-

foward, back, winger-left, referre e outros.40 Com estes argumentos nosso

autor vai narrando o futebol branco e inglês na sua primeira fase. A

construção enfática deste cenário implica que, quase logicamente, deverá

37
Sevcenko (1994).
38
NFB, 1964, p. 5.
39
Idem, ibidem.
40
Idem, p. 6.

29
existir um outro no final: o cenário do futebol brasileiro e negro. A passagem

de um a outro é o objeto central da narrativa.

A narrativa de Mário Filho pode ser descrita através da equação: o

futebol quando inglês e branco, excludente; quando brasileiro, includente do

negro. O saudosismo seria assim o cenário da primeira sentença da

equação.41 Tanto é assim que o jogador Sidney Pullen, filho de ingleses

nascido no Brasil, torna-se um personagem que serve como prova para

demonstrar a fase do futebol inglês e branco, que indica um Brasil cindido

pelas diferentes nacionalidades, etnias e classes sociais, que ainda não se

teria realizado como nação. Cabe aqui assinalar que a cisão entre classes,

cultura, etnias e raças, descrita no NFB, parece ter recebido a inspiração do

processo de reeuropeização descrito em Sobrados e mucambos por Gilberto

Freyre. Observe-se a construção de Mário Filho:

“A gente manda para Buenos Aires, num scratch brasileiro, um


jogador do Paissandu: Sidney Pullen. Tinha nascido no Brasil, era
brasileiro. Os argentinos não acreditaram que um brasileiro
tivesse aquele nome bem inglês, aquela cara mais inglesa ainda.
Foi preciso exibir certidão de idade, todos os documentos. Pouco
depois, quando as desconfianças argentinas ainda não tinham se
apagado, Sidney Pullen partiu para Inglaterra como soldado
Inglês.”42

A descrição acima fornece a idéia das tensões que se formam em

torno da nacionalidade, sobretudo em períodos de guerra. Tensão que

parece ter se agudizado em função do papel político e econômico do Império

41
Soares & Lovisolo (1996).
42
NFB, (1964, p. 4).

30
Britânico na 1ª Grande Guerra.43 Se naquele período a tensão do que

significava ser brasileiro já era preocupação dos intelectuais, imagine-se o

que não representaria o titubear de um jogador que seria brasileiro, filho de

ingleses, que parte para a Inglaterra como soldado inglês.44 Um dos

caminhos para construir a nação e a nacionalidade é arrumar os inimigos

internos ou externos.45 No NFB, pode-se intuir que a cisão no espaço do

futebol, entre brancos e pretos e entre nacionalidades, teria sido o inimigo do

passado que retardou a realização da nacionalidade via futebol.

Apesar de ficar marcada a idéia de que ser da elite é ser branco, na

continuidade da narrativa em “Raízes do saudosismo” encontram-se negros

povoando os clubes de elite. Embora tais negros possam ser lidos como

exceções, não se deve esquecer que exceções derrubam hipóteses. Este

dado, por si só, se comparado aos Estados Unidos, já tornaria singular o

relacionamento inter-racial no Brasil. Este parece ser o pano de fundo

comparativo de Mário Filho e dos de sua geração.46 No entanto, o singular é

que os pretos e mulatos que compunham as elites, em “Raízes do

saudosismo”, não seriam “vistos como pretos” e nem julgados pelo critério

racial; pertencer às elites, de alguma forma, embranqueceria o negro.

Assim, futebol seria entretenimento de elites, custava dinheiro, era

caro. Observe-se, como já visto, que mesmo um Francisco Carregal - mulato

e operário da fábrica - havia custeado seu próprio uniforme e equipamento

de jogo. Mário coloca essa situação apenas para indicar que, se o futebol no

43
Pécaut (1990), especialmente a Parte I: Os intelectuais, o povo e a nação.
44
Soares & Lovisolo (1996).
45
Hobsbawm (1990).
46
Skidmore (1976, 1994).

31
Bangu era caro, no Fluminense era mais caro ainda. Pertencer ao

Fluminense não seria próprio das camadas menos favorecidas

economicamente. Era necessário ter a “vida de Oscar Cox, de um Felix

Frias”.47 Isto significaria pertencer às famílias abastadas daquela sociedade,

às “famílias de boa origem”, na linguagem de Mário Filho. 48

O Fluminense é, no contexto do NFB, o emblema da aristocracia no

futebol, mesmo no período em que o clube se resumia a um campo cercado

de terra batida. Nessa direção, o autor estabelece oposição entre as

metades que formavam a sociedade, uma “superior” e outra “inferior”. A

oposição pode ser vista no seguinte cenário: os moleques do Retiro

Guanabara (local de moradia popular na Zona Sul do Rio de Janeiro)

ficavam debruçados nas grades do Fluminense esperando a chance de

chutar as bolas que caíssem fora do campo. Assim, o contato dos populares

com o futebol teria sido marginal. Em contraposição, os meninos de “boa

família” do Colégio Alfredo Gomes, localizado perto do Fluminense, eram

recebidos como jogadores potenciais, e por isso entravam em campo e

experimentavam chutes.

Mário constrói a oposição de classe social e raça, onde, em

determinados momentos da narrativa, classe social engloba raça, ou vice-

versa. Contudo, uma questão poderia ser levantada: como o futebol no

47
NFB (1964, p. 10).
48
Idem, ibidem. O NFB indica o que é ser de “boa origem”. Observe-se a descrição: os jogadores
cariocas que foram a São Paulo, tiveram cada um que desembolsar “cento e trinta mil réis” para
realizar esta aventura esportiva. O futebol era para um pequena parte de brasileiros, “todos homens
feitos, chefes de firmas, empregados de categoria de grandes casas, filhos de papai rico, educados na
Europa, habituados a gastar.

32
Brasil teria-se tornado uma marca tão distintiva de raça se a sociedade

caracterizava-se pela mestiçagem e pela indefinição racial?

Neste sentido, o NFB pode ser analisado em dois planos. No plano

discursivo, ser elite associa-se com branquidade, status social e econômico.

Entretanto, na prática das relações sociais, a idéia de branquidade se

enfraquece em benefício do status sócio-econômico-cultural. Este paradoxo

está claramente marcado no NFB. A “aristocracia brasileira” nele descrita

não é só formada por brancos. Mestiços, que variavam os matizes de cor,

integravam esta mesma “casta” denominada como “aristocracia”. É a partir

deste paradoxo, não explícito conceitualmente, mas descrito na trama, que

Mário Filho introduz a figura de Joaquim Prado.

“Não se tratava de (o Fluminense) só querer branco legítimo.


Ninguém no Fluminense pensava em termos de cor e raça. Se
Joaquim Prado, winger-left do Paulistano, quer dizer, extrema
esquerda, preto, do ramo preto da família Prado, se transferisse
para Rio, seria recebido de braços abertos no Fluminense.
Joaquim Prado era preto, mas de família ilustre, rico, vivia nas
melhores rodas.

Era uma espécie de cônsul carioca. (...)

(...) Por isso, quem ia a São Paulo jogar um match de futebol,


voltava encantado com Joaquim Prado, sem reparar até, que ele
era preto.

E se reparasse era para gostar mais dele. Um verdadeiro lord.


Vestia-se bem, admiravelmente bem. Nada de cores berrantes,
nem mesmo o contraste do branco e preto, tão do agrado do
homem de cor”.49

49
Idem, p. 13.

33
Prado poderia ser lido como exceção e como paradoxo da formação

social brasileira. A descrição acima implica que o critério racial pode ser

afrouxado, caso o negro seja um “igual” do ponto de vista cultural e

econômico, seja “civilizado”, enfim, tenha “embranquecido”. A origem social

e econômica de Prado o embranquecia, ou causava uma espécie de

esquecimento tácito da cor. Joaquim Prado sugere, assim, o paradoxo do

racismo em nossa formação social.

Na história da fundação do Botafogo, outro exemplo dessas

“exceções” aparece na narrativa com o personagem Basílio Viana. Segundo

Mário Filho, era “um mulato cheio de coisas. De roupa cintada, o colete

fantasia enchendo-lhe o peito, sapato de bico fino, salto carrapeta. Falando

seu francês, gabando-se de ter estado no Mackenzie College”,50 Basílio teria

sido idealizador do escudo do Botafogo e membro fundador do clube. Mário

o descreve como um exibicionista e mulherengo, pois gostava de mostrar

adesivos dos hotéis de Paris, fotos e bilhetes de lindas mulheres, “brancas e

louras legítimas”.51 Mário Filho insinua que as histórias de Basílio eram

vistas com desconfiança, mas a veracidade delas pouco importava. O que

interessa na narrativa é o fato de Basílio pertencer à “roda, ao grupo, [ser]

um deles”.52 Basílio e Prado representam a presença de negros que

povoavam os clubes de elite. É verdade que entre Basílio e Prado o autor

estabelece diferenças de comportamento social. Poder-se-ia dizer que Prado

é descrito como mais embranquecido e civilizado, enquanto Basílio é um tipo

nouveau riche. No entanto, ambos são situados como membros da elite.

50
Idem, p. 16.
51
Idem, ibidem.

34
O que representa no NFB ser negro, como Joaquim Prado ou Basílio

Viana? Estes personagens representam mediações da estrutura social

brasileira, onde a mestiçagem teria tido um papel fundamental? Sugerem

que a sociedade brasileira, do ponto de vista racial, foi mais democrática que

outras sociedades, como a dos Estados Unidos? Insinuam que o complexo

processo de relacionamento racial no Brasil tem significativas

particularidades? A narrativa não enuncia respostas precisas para as

questões levantadas, mas pode-se visualizar um quadro de complexidades

na despretensiosa história do NFB; quadro este que é simplificado pelos

novos narradores ou reprodutores de Mário Filho, como poderá ser visto na

segunda parte deste estudo.

O herói negro ainda continua separado da “comunidade” em “Raízes

do saudosismo”, mesmo após Mário Filho apresentar personagens negros

que pertenciam às elites. O “inimigo” - o racismo que teria impedido a

realização da unidade no passado do futebol - deve ser constantemente

lembrado, para que tenha sentido o “triunfo final”. De fato, a separação da

sociedade em duas metades opostas ainda está presente nesta altura do

texto: preto de um lado, branco de outro, seria, para Mário Filho, “[A]

tendência natural das coisas, cada jogador procurava seu meio, indo para

onde estava sua gente. E quando a sua gente não tinha clube, o jeito era

fundar um”.53

Observe-se que a citação anterior está informando que algo estaria

mudando no cenário do “saudosismo”. Fundar um clube não seria mais

52
Idem, ibidem.
53
Idem, p. 14.

35
privilégio das elites, mesmo que a popularização do futebol não impedisse

que os espaços continuassem demarcados. De fato, pode-se notar que

distinção social confunde-se com racismo na narrativa de Mário Filho. Como

já dito, distinção social não eqüivale a racismo. A confusão entre esses

conceitos talvez decorra da maior preocupação de Mário Filho com a

integração nacional do que com a denúncia do racismo. Assim, a falta de

integração, seja de classe ou raça, é que se torna importante no plano da

narrativa.

Mário Filho, a partir do processo de popularização, apresenta em

seu texto outros personagens, por sinal brancos, que estabelecem

mediações nas “zonas de confraternização” – para usar uma expressão de

Freyre – entre as metades “inferior” e “superior” que dividiam a sociedade.

Neste contexto, apresenta o jogador português João Pereira, o P`reira, e o

louro Raul Albuquerque Maranhão. Eles não podem ser considerados

mediadores fundamentais no processo de distensão entre as oposições

raciais, mas apontam para a circulação de brancos da “elite” nos clubes de

“negros”. Observe-se os textos a seguir:

Maranhão:
“Por causa desse chute Raul de Albuquerque Maranhão não
tinha clube fixo. Podia ser o Bangu, com seus ingleses, o crioulo
Manoel Maia, de goal-keeper, atrás dele. Alto, louro, Raul de
Albuquerque Maranhão confundia-se com os ingleses do Bangu.
Ficava bem ao de quem fosse, ingleses do Bangu, brasileiros do
Riachuelo e do Mangueira, brancos, mulatos e pretos se
misturando”. 54 (grifo meu)

54
Idem, p. 18.

36
Pereira:
“Metia a mão no bolso, o dinheiro dele era do clube (...).

Quanto menor o clube, quanto mais preto tivesse no time, melhor


para o Pereira. Ele se desiludira dos brancos. Branco só pobre,
sem dinheiro para uma bola, para um par de chuteiras,
agradecido como o preto, agradecido como ele, quando jogava
na extrema direita e podia bater, descansado, seus corners”.55

Como pode ser visto, com o desenrolar do drama as oposições e

mediações são apresentadas. Isto é, apesar do preconceito e do racismo, ou

da falta de integração, havia locais de proximidade entre brancos e negros.

A “metade superior”, representada pelos clubes de elite, aceitava, no

máximo, que negros e mestiços fossem torcedores, desde que torcessem da

geral.56 “O pessoal do morro podia, no máximo, torcer pelo Fluminense”, diz

Mário Filho.57 Chico Guanabara é um personagem da “geral”. Chico é negro

e malandro de lenço no pescoço, tamanco no pé e navalha no bolso; é um

tipo anterior aos anos 30.58 Qualquer um que falasse qualquer coisa do

Fluminense, lá saía Chico em defesa. Chico era quase um capanga do

Fluminense, mas sabia que o seu lugar era na geral. Era apenas torcedor e

jamais teria pensado em vestir a camisa do Fluminense. Mário, assim, quer

informar que, tal como se dividia a sociedade, se dividia o futebol:

“Pensando bem, até que era bom. Assim se via melhor a


diferença que havia, não entre brancos e pretos, entre clubes.
Clubes de bairros, de subúrbios, da zona sul e da zona norte.

55
Idem, p. 18-9.
56
Geral significa o local em que o custo do ingresso era o mais baixo e onde assistia-se o jogo em pé.
57
NFB (1964, p. 19).
58
Soares (1994); Mattos (1982).

37
Grandes e pequenos, cada um ficando no seu lugar, conservando
as distâncias.

Sem tentar nem se aproximar. Às vezes um ao lado do outro, o


Fluminense e o Guanabara. O Guanabara do morro, da favela, o
Fluminense cá de baixo, do bairro chique. Quem morava na casa
de lata ia para o Guanabara, quem morava no palacete ia para o
Fluminense”(...).

Cada um no seu lugar, até os parentes pobres. A geral de um


lado, a arquibancada59 do outro, no centro o campo, os jogadores
correndo. Correndo mais para quem estava na arquibancada do
que para quem estava na geral.

Tal como num baile, numa festinha, num arrasta pé, os pares
dançando. Gente dentro da sala, olhando, gente de fora da sala,
espreitando, gente fora de casa, na rua, o sereno, espiando.

A geral não era como o sereno, era a cozinha, a copa, o quintal.


Mais para dentro, quase para fora”.60

Mário Filho apresenta espaços esquadrinhados por posições sociais

e raciais que, de certa forma, teriam impedido a realização da unidade em

torno do futebol, e, conseqüentemente, em torno da nação. Mas este tipo de

esquadrinhamento induz a que se pense as separações numa relação de

intimidade e proximidade. Talvez a metáfora da casa tenha relações com a

interpretação freyreana da proximidade entre a casa-grande e a senzala, ou

entre os sobrados e os mucambos. A geral, embora separada da

arquibancada, funcionava como complementaridade, tal como a senzala da

casa grande ou a cozinha do sobrado.

59
NFB (1964, p. 21). Mário Filho comenta que as fitinhas coloridas no chapéu eram um símbolo de
distinção das elites no seio do futebol. O interessante é que ainda que existissem símbolos de
distinção, pois estamos numa metrópole em constante crescimento e as dissimulações de posições
sociais são mais rápidas do que os símbolos de distinção que as novas burguesias criavam ou
importavam. Os estudantes eram hábeis dissimuladores de sua posição social, e no intervalo trocavam
a geral pela arquibancada.

38
Mário desliza sua pena descrevendo personagens e suas

características, que parecem apenas ilustrar sua bela história. Entretanto,

nosso autor acaba por indicar, através desses personagens, que as

separações ou cisões daquela sociedade eram, de alguma forma,

atenuadas. Se o desejo latente da unidade entre brancos, pretos e mulatos

não havia se realizado no tempo do saudosismo, Mário parece apontar para

as características singulares da potencial unidade. Separações, cisões,

distâncias, por um lado, e mediações e continuidades, por outro, faces da

mesma moeda, pareciam coexistir na tendência para a unidade presente nos

modos e modas de separação. De fato, o processo que Mário narra é

mesmo de difícil definição, sendo que a confusão é mais forte do que a

demarcação.

Mário também descreve “zonas de conflito”. Em Bangu criou-se uma

curiosa tradição: se o adversário ganhasse do Bangu em seu campo, não

levava a taça. Os torcedores do Bangu cercavam o barracão onde ficava o

time adversário, apedrejavam o trem, de modo que os jogadores só

voltavam para casa escoltados pela polícia. (Observe-se que o “time inglês”

descrito por Mário parecia, pelo menos por parte de sua torcida, não adotar

o código do fair play ainda hoje desejado pelo esporte educativo e pelo

movimento olímpico.) No meio daquela confusão, o time vencedor nem se

lembrava da taça que havia conquistado, daí teria surgido a tradicional

expressão “ganha mas não leva”.61 Poder-se-ia pensar que o espírito do

holiganismo já estava disseminado entre nós, ou que o espírito do

60
Idem, p. 19.
61
Idem, p. 20-1.

39
“nacionalismo chauvinista” tem no espaço do futebol um local propício para o

seu desenvolvimento. Contudo, é a partir dessas encantadoras histórias ou

causos que nosso autor vai construindo oposições, mediações e

generalizações sobre o futebol e a sociedade. Observe-se a generalização

que Mário realiza após contar o episódio do ganha mas não leva:

“No fundo, luta de classes, sem ninguém se dar por isso, é claro.
Todos levando a coisa mais para a rivalidade entre o clube do
subúrbio e o clube da cidade. Rivalidade que se acentuava de um
lado só, do lado do clube de subúrbio: O clube de subúrbio se
afastando, ficando cada vez mais longe, querendo até se separar.
Separar por quê? Porque se sentia outro clube, outra gente.

E o Bangu tinha os seus ingleses, mais brancos do que os


brasileiros do Botafogo. Tinha os seus ingleses, mas tinha também
os operários, os seus brancos pobres, os seus mulatos, os seus
pretos.

O que distinguia o Bangu, o Botafogo e o Fluminense, era o


operário. O Bangu, time de fábrica, botava operários no time em
igualdade com os mestres ingleses. O Botafogo e o Fluminense só
gente fina”.62

A raça perde centralidade, em verdade desaparece, e as diferenças

de classes são quase que “puras” no episódio. O futebol pode ser visto,

assim, como expressão e possível redutor dos conflitos fundamentais. O

Bangu surge no texto como uma mediação, ou uma antecipação do que

seria o futuro do futebol brasileiro, isto é, integrado e misturado racialmente.

Tensões em torno da vitória, cobrança de ingressos e surgimento de

novos clubes atestam a popularização do futebol. No Rio de Janeiro da belle

époque o futebol viria para ficar, mas só se popularizaria porque tinha algo

62
Idem, p. 21.

40
que o aproximava do povo, era diferente dos outros esportes. Essa

explicação empregada por Mário prepara o terreno para dizer que o futebol

tinha algo “compatível” com a “natureza” do brasileiro. Por exemplo, o remo,

embora mais importante no início do século, não se popularizou. Mas por

que o remo não teria se popularizado? Qual é a explicação fornecida por

Mário Filho?

São vários os argumentos que ele utiliza para justificar o ajuste do

futebol ao Brasil e aos brasileiros. Primeiro, o remo seria um esporte de

pouca interação. Os espectadores ficavam distantes dos remadores, tendo

que observar a competição através de binóculos. Outro aspecto é que a

cultura do remo construía um espaço de interação quase misógino, apesar

de ser considerado um esporte viril.63 O remo, no conjunto da explicações de

Mário Filho, não teria despertado a identificação do homem comum com o

atleta, pois o remador era um ser quase inatingível. “Bastava olhar para um

remador, mesmo vestido, na rua. Vestido destacava-se ainda mais. Todo

mundo raquítico, ele estourando de força; os ombros largos, a cintura fina, o

paletó quase não se fechando, estufando no peito. Via-se logo que era

remador”.64

O jogador de futebol era diferente, pois confundia-se corporalmente

com os homens comuns. O homem comum poderia se ver jogando;

remando, não. Além do mais, futebol era uma atividade que se identificava

63
Idem, p. 27. Mário Filho parece tomar o tema da homossexualidade e misoginia para qualificar o
futebol como um esporte melhor. É engraçada a citação de Bilac, onde o Mário o chama veladamente
de homossexual: “Diante daqueles músculos, daqueles corpos atléticos, Olavo Bilac se transportava
para a Grécia. Inflama-se, não se continha. (...) Já diante de um jogador de futebol, de chuteiras e
meias grossas de lã, de calções afinando no joelho, de camisa de mangas compridas, quase nada de
fora, o poeta da Via Lactéa ficava frio”. Mário diz que os remadores promoviam festas, chamadas

41
com a infância. Homens pulando, correndo atrás de bola, lembrava os jogos

tradicionais de criança. Remar, não. Todos esses argumentos vão na

direção de justificar o futebol como algo mais natural e harmônico com a

imaginada natureza do brasileiro.

Aí estaria a explicação do porquê das crianças se sentirem tão

atraídas pelo futebol. “O futebol se vulgarizava, se alastrava como uma

praga. Qualquer moleque, qualquer preto podia jogar futebol”.65 A

socialização do futebol entre o menino de rua e os filhos de “boa origem” é o

tema que Mário Filho desenvolve no segundo capítulo de seu livro.

Apesar da popularização do futebol, Mário insiste na retórica de que

ainda existia separação entre raças e classes sociais. As oposições são

mantidas: time grande para as elites e time pequeno para os pobres de

todas as origens raciais. O futebol, se não demarcasse essas diferenças,

afastaria as elites do clube grande, e por isso as diferenças ainda seriam

bem demarcadas.66 Supostamente, por esta razão, quando a mistura

começou a acontecer o mulato e o preto seriam perseguidos. Deste cenário

surge a famosa e mitológica história do “pó-de-arroz”.

“O torcedor, sem colarinho e gravata, branco, pobre, mulato,


preto, preferindo o Fluminense, o Botafogo, o Flamengo, ao
Bangu, ao Mangueira, ao Andaraí. Sendo mais clube de gente
fina do que clube de operários.

reco-reco, na garagem, onde a participação feminina era proibida e homens dançavam com homens.
64
Idem, p. 28.
65
Idem, p. 30.
66
Mário Filho diz em nota que “Joaquim Guimarães andou uns meses freqüentando as corridas, meio
desiludido com o futebol. Muito saudosista hoje faz coisa parecida: vai para o Jóquei.” Neste
contexto, o autor se refere ao processo de expansão do futebol que estaria acabando com os símbolos
de distinção social (NFB, 1964, p.39 - Nota 4).

42
O Fluminense, o Botafogo, o Flamengo, também tinham lugar
para ele. Na geral. Da geral ele olhava a arquibancada. Uma
beleza. Assim de moças, com seus vestidos claros, os seus
chapéus floridos.

Tudo como devia ser. Nada de mistura. Valia a pena ser


Fluminense, Botafogo, Flamengo, clube de brancos. Se aparecia
um mulato, num deles, mesmo disfarçado, o branco pobre, o
mulato, o preto da geral eram os primeiros a reparar.

O caso Carlos Alberto, do Fluminense. Tinha vindo do América,


com os Mendonça, Marcos e Luís. Enquanto esteve no América,
jogando no segundo time, quase ninguém reparou que ele era
mulato. Também Carlos Alberto, no América, não quis passar por
branco. No Fluminense foi para o primeiro time, ficou logo em
exposição. Tinha de entrar em campo, correr para o lugar mais
cheio de moças na arquibancada, parar um instante, levantar o
braço, abrir a boca num hip, hip, hurrah.

Era o momento que Carlos Alberto mais temia. Preparava-se


para ele, por isso mesmo, cuidadosamente, enchendo a cara de
pó-de-arroz, ficando quase cinzento. Não podia enganar
ninguém, chamava até mais atenção. O cabelo de escadinha
ficava mais escadinha, emoldurando o rosto, cinzento de tanto
pó-de-arroz.

Quando o Fluminense ia jogar com o América, a torcida de


Campos Sales caía em cima de Carlos Alberto:

- Pó-de-Arroz! Pó-de-Arroz!

A torcida do Fluminense procurava esquecer-se que Carlos


Alberto era mulato. Um bom rapaz, muito fino.

O pai tinha alguma coisa, arranjada batendo fotografias de


formaturas.
As turmas que se formavam, todos os anos, preferiam as
fotografias de Carlos Alberto, pai. Assim o filho entrara nas boas
rodas. Sabia cativar, com aquela macieza de mulato, aquela
delicadeza quase de moça, não precisava encher o rosto de pó-
de-arroz.

43
Era só ele entrar em campo, da geral partiam os gritos de pó de
arroz. Carlos Alberto sem se dar por achado, como se não fosse
com ele, como se fosse com o Fluminense.

E o Pó-de-Arroz acabou passando dele para o Fluminense”.67

A história é meio insólita. Não é esquisito pensar que alguém se

empoasse para jogar futebol? O pó-de-arroz tornou-se a história, ou

fatualidade, para os novos narradores afirmarem que o futebol no início do

século era racista.68 Adiante criticaremos tanto a fatualidade quanto a

interpretação elaborada por Mário Filho e seus reprodutores. Cabe lembrar

que Joaquim Prado e Basílio Viana jogaram futebol no início do século em

clubes de elite, e nem por isso o NFB narra perseguições a esses atletas.

Esta é mais uma prova de que não se pode requerer a coerência longitudinal

da narrativa do NFB. Carlos Alberto seria um exemplo do mulato entrando

num time aristocrático, ou uma prova do racismo?

Mário Filho, após apresentar a branquidade como critério de

inclusão, retrocede, pois a raça é secundarizada na narrativa, em função do

degrau social familiar. Por exemplo, Carlos Alberto e Friedenreich, ambos

mulatos, jogaram pelo time mais elitizado: o Fluminense. Jogaram porque

pertenciam a “boas famílias”? De fato, é quase impossível decidir se eles

67
NFB (1964, p. 43).
68
Observe-se que este insólito comportamento se transforma na própria narrativa de Mário. O
Fluminense reelabora o estigma? Parece tornar-se algo positivo, isto é, pó-de-arroz significa bom
cheiro, e cheirar bem era realmente uma característica dos associados do Fluminense. Segundo Cunha
& Valle (1972), o “epíteto “Pó-de-Arroz” nasceu no dia 13 de maio [de 1914], por ocasião da
partida entre Fluminense e América, quando, pela primeira vez, os ex-americanos que se bandearam
para o tricolor enfrentaram seu antigo clube”(p. 80). Os autores reproduzem a história de que Carlos
Alberto teria empoado o rosto a partir do NFB. Contudo, consultando os jornais da época (O Malho, O
Imparcial, Correio da Manhã, O Paiz), nada se acha sobre a expressão “pó-de-arroz”, ao passo que o
jogo recebe ampla cobertura.

44
são aceitos no Fluminense porque tinham elementos positivos de história

familiar, ou porque eram mulatos e, portanto, embranquecidos, ou por

ambos os motivos, simultaneamente. Talvez a resposta seja: eram admitidos

por serem excelentes jogadores. Será que de alguma forma Mário Filho

enfatiza traços fenotípicos, aos quais os aristocratas do Fluminense não

dariam importância, para poder, assim, construir sua narrativa mitológica de

ascensão do negro e de unidade nacional?

Como conciliar as explicações de Mário Filho? Se Carlos Alberto

teria sido “perseguido” por disfarçar sua “raça”, por que Friedenreich, seu

candidato a herói, apesar de também disfarçar seus traços “negróides”, não

teria sido perseguido?

“O cabelo do Arthur [Friedenreich], bem preto, bem espichado,


brilhava ao sol. Não parecia cabelo dele. Parecia mais cabelo
postiço, colado na cabeça com goma arábica. Ele podia meter a
cabeça na bola. A cabeleira não caía, ficava onde estava. Sem
um fio de cabelo desmanchando. Não era cabelo postiço, era
cabelo não nega. Denunciando o mulato Friedenreich, como o
pó-de-arroz denunciava o mulato Carlos Alberto”.69

O tema da popularização ou vulgarização do futebol está imbricado

com a entrada, limitada porém crescente, de negros e mulatos nos times

aristocráticos. A popularização, por sua vez, está entrelaçada com os novos

sentidos sociais que teria assumido o futebol. Assim, Mário, ao final do

capítulo, começa a apontar mudanças que vão abrasileirando o futebol ou

que vão reduzindo as separações e distâncias entre pretos, mulatos e

brancos.

45
Os saudosistas - pensados como elitistas e racistas - vão perdendo

espaço. “O futebol já não podia ser chamado de inglês. De inglês tinha o

nome... O nome continuou sendo futebol. Futebol soava como um palavra

brasileira... Não precisava de tradução. Fora traduzido, todo mundo sabia o

que era”.70 Observe-se que a construção de Mário funciona como uma

metáfora para falar que o futebol estaria se abrasileirando no

comportamento:

“Era aquilo que tinha escandalizado o velho Cox. O velho Cox


compreendendo o futebol de Oscar Cox, não compreendendo o
futebol de Edwin Cox. Ambos filho dele, brasileiros. Um porém,
jogando o futebol que ele sempre vira jogar, à inglesa. O outro
jogando um futebol diferente, cheio de coisas, um drible para cá,
outro drible para lá. Dribles demais.

Oscar Cox, pesado, lento, meticuloso. Edwin Cox, leve, ligeiro,


brilhante. E quem estava na arquibancada, gostando mais de
Edwin do que de Oscar Cox. O velho Cox viu que não podia fazer
nada. Exceto ir embora... E foi o que ele fez. Deixou o jogo no
meio, parecia que tinha sido insultado. (...)

Para os torcedores brasileiros futebol devia ser jogado assim,


como Edwin Cox jogava. Um futebol mais vistoso, mais bonito,
mais brasileiro.
O velho Cox ficou sozinho, como o único exemplo do orgulho
britânico ofendido. Os outros ingleses, os que jogavam futebol,
trataram de se tornar brasileiros, fazendo letras, dando charles.”71

O futebol brasileiro seria cheio de excessos e improvisações, cheio

de barroquismo. Era produto da vulgarização do futebol, era produto de uma

cultura que combinaria todas as influências para formar o estilo brasileiro.

69
Idem, p. 44.
70
Idem, p.48
71
Idem, ibidem.

46
Mário está dizendo que um inglês como Edwin Cox amolece os quadris e

aprende a ginga brasileira. Aprenderia essa ginga como? Claro que só no

contato com o futebol jogado nos campos improvisados, onde pretos e

mulatos tiveram seu aprendizado sem professor. Dar-se-ia no contato com a

“cultura dos trópicos”, se quisermos pensar em Gilberto Freyre.

Improvisação e acaso são vetores da imagem que Mário Filho

constrói sobre o futebol e sobre o Brasil. É no encontro imprevisível de

diferentes culturas que se constrói o Brasil no pensamento dominante da

intelectualidade nos anos 30. Parece ser sob esse pano de fundo que

explicaria os abrasileiramentos do esporte. A jogada chamada “charles”,

criada por Charles Miller, o introdutor do futebol no Brasil, seria um bom

exemplo de acaso e improvisação:

”O futebol que se jogava na Inglaterra, no original, sem charles.

O charles, porém, salvou-o uma vez. Charles Miller falhou no


golpe de vista, calculou mal a direção da bola, teve que encolher
a perna, chutar de calcanhar. Um furo corrigido com o charles.
Nunca ninguém tinha visto uma jogada daquelas. Mas todo
mundo gritou logo: -Charles! Aí Charles!

Era o nome de Charles Miller, o nome da jogada”.72

Mário, seguindo o rastro dos abrasileiramentos, diz que a jogada

“charles” era brasileira, mas tinha um nome inglês. Por esta razão, “charles”

perdeu o “s” e passou a ser “charle”, menos “pedante”, “mais brasileiro”.73 A

72
Idem, p. 49.
73
Idem, ibidem.

47
busca de abrasileiramentos no futebol por Mário parece perseguir o mesmo

trajeto que Freyre fez para a cultura em geral. Nesta direção, Mário diz que

jogador e público cada vez se identificavam mais. Criar uma jogada, ou

introduzir uma estilização no jogo era a receita do sucesso. Fora assim com

o charles, fora assim com o chute à Maranhão e seria depois com a bicicleta

de Leônidas. E é assim que o NFB vai apresentando a construção de um

estilo. Estilo que surgia do acaso e do improviso, quase como um atributo

natural do brasileiro ou da “força” telúrica dos trópicos.

Mário investe no exibicionismo ou, talvez, na falta de comedimento

como característica brasileira. Vaidade e exibicionismo representam

características do futebol brasileiro na narrativa do NFB. Para isso,

contrapõe o futebol brasileiro ao futebol e comportamento estandardizado do

inglês e pergunta: “Quem não gostava de palmas? O inglês, esquecia-se por

um momento que era inglês, para experimentar aquela coisa gostosa, o

aplauso. Jogando para arquibancada”.74 Mário está dizendo que o inglês se

amolecia nos trópicos, que incorporava o comportamento exibicionista da

forma de jogar futebol à brasileira. Forma inventada por aqueles que

aprenderam futebol sem “professor”. É verdade que qualquer estrangeiro

pode incorporar hábitos e valores de outra cultura. Contudo, o que está aqui

em jogo é a ideologia de que a “força da cultura brasileira” seduz e conquista

a todos. Outro tema que surge como abrasileiramento é a malandragem do

“deixa”, do gol com a mão, além de outras.75

74
Idem, ibidem.
75
Idem, p. 49. “Coisa de brasileiro, querendo ser mais sabido do que os outros. Gritando deixa, o
outro deixava, ele ficava com a bola que não era dele. Marcando um gol com a mão. Sem ninguém
ver”. Mário Filho está se referindo à malandragem como comportamento singular da cultura

48
O futebol já estaria se abrasileirando, mas nem por isso estaria

menos cindido e excludente. Mário retoma o tema da oposição entre brancos

e negros, clubes grandes e pequenos, elite e povo. Os times grandes jamais

se sentiram, neste período, ameaçados pelos times pequenos, diz Mário

Filho. A prova era que os campeonatos eram vencidos sempre pelos

grandes times, nunca pelos pequenos. Sempre por brancos, nunca por

pretos. O Flamengo, em 1914, foi a grande prova; tornando-se campeão

com um time de acadêmicos de medicina, todos brancos. Ficava assim

provado, naquele contexto, a superioridade do branco sobre o preto.

“O futebol não alterava a ordem das coisas, pelo contrário. Onde


se podia encontrar melhor demonstração de que tudo era como
devia ser? O branco superior ao preto. Os ídolos do futebol, todos
brancos. Quando muito morenos.(...)

Cada lugar no escrete tinha dono: branco de boa família. A


superioridade de raça, da raça branca sobre a preta, a
superioridade de classe, da classe alta sobre a classe média, da
classe média sobre a classe baixa. A baixa lá embaixo, a alta lá
em cima, vencendo, tirando campeonatos.”76

Depois desta generalização, que reitera as diferentes

hierarquizações e cisões que pairavam no futebol e na sociedade, Mário

Filho conclui o capítulo preparando o terreno para a construção da unidade.

Retorna com Friedenreich como o símbolo da democratização do futebol e

apresenta Manteiga como persistência do racismo.

Friedenreich é considerado o primeiro grande ídolo do futebol

brasileiro. Foi herói do Campeonato Sul-americano de 1919, marcando o gol

brasileira. Sobre essa “singularidade cultural” ver Soares (1994).

49
da vitória. Mário Filho, entretanto, desvia o foco do feito heróico para a

questão racial. Diz que Friedenreich não se tornara herói por ter marcado

este gol da vitória, mas sobretudo por ser mulato. Apoiando-se em Freyre,

Mário Filho diz que o imaginário popular prefere acariciar um herói ou santo

com barba e cabelo carapinha do que um louro de olhos azuis.77 A

popularidade de Friedenreich e sua transformação em herói se deviam a

essa feliz coincidência: o gol da vitória ter sido marcado por um mulato.

Friedenreich faria assim, mesmo que inconscientemente, o povo descobrir

que “o futebol devia ser de todas as cores, futebol sem classes, tudo

misturado, bem brasileiro”.78 Para Mário, “o chute de Friedenreich teria

aberto o caminho para democratização do futebol brasileiro, democratização

que viria lentamente, mas que não pararia mais, a despeito de tudo”.79 Isto

representa a primeira vitória sobre os inimigos internos, aqueles que não

deixavam realizar a unidade entre raças, classes e nacionalidades. Mário

Filho prepara o caminho para a construção da unidade no futebol, unidade

que pode ser lida como integração da nação ou identidade nacional.

O “Caso Manteiga” é apresentado logo a seguir, como prova de que

o processo de democratização esteve marcado por avanços e retrocessos.

Este jogador, que fora convidado para jogar no América, era negro e soldado

da Marinha. Resistiu inicialmente ao convite, mas acabou aceitando80. Para

o América, “Manteiga no time era a vitória, era o campeonato. O resto, a cor,

76
NFB (1964, p.53).
77
Idem, p. 54. Ver nota de rodapé.
78
Idem, ibidem.
79
Idem, ibidem.
80
Cunha & Valle (1972).

50
a condição social dele não importava”.81 Não importava para alguns, pois a

entrada de Manteiga no time do América teria causado uma verdadeira cisão

entre os associados e alguns jogadores, segundo Mário Filho. Este é outro

caso predileto dos atuais escritores e pesquisadores que garimpam as

“provas” do racismo na história do futebol brasileiro, como veremos no último

capítulo. Contudo, é bom deixar no ar a seguinte questão: as resistências ao

Manteiga seriam de origem racista, ou teriam outra causa?

A narrativa do NFB, no capítulo “Raízes do saudosismo”, funciona

sinteticamente da seguinte maneira: são demarcadas distâncias e

separações entre uma “metade superior” e outra “metade inferior”.

Entretanto, as “zonas de confraternização” entre esses pólos sociais

aparecem como um terreno fértil que poderá realizar a unidade no decorrer

da narrativa. Friedenreich é o início da democratização, e Manteiga a prova

de que o negro ainda teria muitas provações a superar para afirmar-se como

herói nacional.

2.2 - O “campo e a pelada”: socializações de raça

No segundo capítulo, a intenção de Mário Filho é narrar a forma pela

qual as camadas populares se socializaram com o futebol e passaram a

ganhar espaço. Temos, assim, a popularização e socialização do futebol

como momento estratégico da narrativa. A separação entre brancos e

negros ainda é uma tônica neste capítulo, o negro ainda encontra-se

81
NFB (1964, p.55).

51
afastado da comunidade e em situação de “dano”. O texto descreve novos

personagens e renova funções de personagens já citados: pretos e mulatos

ganhando espaço no futebol e sendo, no mesmo movimento, discriminados.

Assim, se Friedenreich abriu as portas para a democratização, os mulatos e

pretos do Vasco, ao quebrarem a hegemonia do futebol branco, foram

perseguidos. “O campo e a pelada”82 estabelece, inicialmente, a separação

entre elites e populares. As elites possuíam o ground ou o field para o

aprendizado do futebol à inglesa, e os populares (população em sua maioria

de negros, mulatos e mestiços) possuíam a pelada ou racha nos terrenos

baldios. Mário inicia o capítulo assim:“[O] Jogador branco tinha de ser,

durante bastante tempo, superior ao preto. Quando o preto começou a

querer a aprender a jogar, o branco já estava formado em futebol. O grande

clube sendo uma espécie de universidade”. 83

A hegemonia branca permaneceria ainda por muito tempo. O time

grande recebia todos os ingleses ou brasileiros que retornavam dos estudos

na Europa. Tais estudantes, além do diploma de bacharel, médico ou

engenheiro, também voltavam formados em futebol, o que fazia do clube de

elite um local de aprendizagem orientada. Em contraposição, os negros não

tinham professor de futebol; seu aprendizado decorria da memorização de

ver do alto dos morros, da geral e de outros espaços, os brancos praticarem

o esporte. A equação, já comentada anteriormente, resulta da seguinte

lógica: a oposição entre elites e populares, entre brancos e negros, parece

82
No sentido de esclarecer a algum não brasileiro que venha a consultar este texto, esclareço que
pelada ou racha significa um jogo de futebol onde o campo de jogo e as regras são improvisadas das
mais diversas maneiras.
83
NFB (1964, p. 59).

52
ser montada para que ao final do processo os desfavorecidos sejam

elevados, e as idéias de unidade, tolerância e reciprocidade apareçam em

torno da construção da nação.

O aprendizado dos populares deu-se de forma rápida, apesar das

portas das grandes “academias de futebol” (Fluminense, Flamengo e

Botafogo) estarem fechadas para eles. O que guardavam na memória, nem

sempre muito fiel, reproduziam nos campos de barro e pedra com bola de

meia. O branco aprendia o futebol na academia, com professor, e o preto e o

mulato aprendiam na “escola pública”, isto é, na rua, sem professor:

“O branco pobre, o mulato, o preto, estabelecendo a diferença


entre o grande e o pequeno clube (...).

O branco dos fields, dos grandes clubes, tendo ainda por cima
um professor, o capitão do time gritando sem parar, em inglês. O
preto das peladas, das ruas, não tendo ninguém.

A única coisa que o ajudava era a intuição...”84

A citação acima estaria denunciando racismo ou distinção social?

Aqui, mais uma vez, observa-se que racismo confunde-se com distinção

social no contexto do NFB. O discurso da exclusividade do branco pode ser

relativizado, pois Joaquim Prado, Basílio Viana, Carlos Alberto e

Friendenreich pertenceram aos clubes de elite.

Quando o futebol “pegou”, os meninos de rua fizeram deste jogo sua

vida, jogavam sem parar e mostravam um novo virtuosismo com a bola

84
Idem, p. 60.

53
naqueles terrenos acidentados. O menino de boa família jogava com todo o

equipamento necessário. “A desvantagem do moleque era enorme. É

verdade que a bola de meia, pequenina, saltando feito bola de borracha, ia

fazer de muito moleque um virtuoso do futebol”.85 Mário ressalta a

desvantagem para mostrar que da escassez, dos limites impostos pela

condição social, se inventou um estilo de jogo superior.

Os moleques de rua eram autodidatas, jogavam aquilo que intuíam

ser futebol, enquanto os meninos de “boa família” jogavam o futebol à

inglesa, aquele aprendido com professor. A partir desta oposição entre a

socialização do menino de “boa família” e os moleques de rua, Mário

introduz uma mediação: a pelada se torna uma “zona de confraternização”.

“Não iam para o colégio, [os moleques] ficavam na rua. Fazendo


inveja aos garotos de boa família que passavam no caminho do
Alfredo Gomes, do Abílio, do Ginásio Nacional. Garotos que
paravam, com vontade de matar a aula, de jogar futebol também.
Alguns não resistiam...

Nesses contatos entre o campo e a pelada os moleques de pé no


chão impressionavam os garotos de boas famílias. Que levavam
para o colégio a notícia de um pretinho que ia ser um grande
jogador de futebol. Só vendo o domínio de bola que ele tinha.

O pretinho crescendo, porém, não ia para o campo, ia para a


pelada, se arrebentar nos arranca-toco...

O garoto de boa família, não. Crescia, tinha um lugar garantido


no Fluminense, no Botafogo, no América. Um lugar à espera
dele. Desde pequeno se acostumara com a chuteira, com a bola
de pneu. Sem desprezar a bola de meia, a bola de borracha”...86

85
Idem, p. 64.
86
Idem, p. 64-5.

54
Nessa mediação, Mário Filho começa a fornecer pistas da

construção do estilo brasileiro de jogar futebol. É no encontro do negro com

o branco, do campo com a pelada, que o futebol brasileiro forma sua

identidade, isto é, existe uma conciliação em busca da unidade das metades

“superior e inferior”. Mediação por sinal muito semelhante à da Casa-grande

& senzala ou dos Sobrados e mucambos.

Os moleques aprendiam sem professor; aprender com professor só

em time de fábrica, como Bangu e Andaraí. O Bangu retorna à narrativa por

ser o primeiro clube a colocar pretos e mulatos em sua equipe e por

apresentar a particularidade de ter ingleses como “professores” de futebol.

Os clubes de subúrbio e de outras fábricas foram surgindo e abrindo as

portas para este esporte que se desenvolvia no espaço da rua. O futebol, em

Bangu, teria se tornado um meio para formar mão-de-obra para a fábrica e

pés habilidosos para o time. Apesar da possível ascensão ou inserção do

negro no mercado de trabalho em Bangu, Mário Filho faz questão de colocar

essa experiência como periférica, pois o futebol seria ainda, por algum

tempo, coisa de branco.

Pode-se notar que, apesar da hegemonia branca no futebol, um

movimento do mulato, do preto e do branco, pertencentes às camadas

populares, vai sendo gestado no decorrer da narrativa. Como o texto

desenvolve-se com idas e voltas, o processo em direção à democratização

fora aberto com “o chute de Friedenreich em 1919”, fato que na narrativa

não indica que o negro fora englobado no espaço do futebol, para usarmos o

conceito de Dumont. Por exemplo, o negro jogando deveria ser muito mais

55
controlado que um branco, e não poderia sequer dar um pontapé, mesmo

sem querer, num branco. Parece intenção do autor indicar que para os

brancos o máximo que se podia aplicar era a lei, ao passo que para os

negros ocorria mais que a simples aplicação da lei. Quando aplicada ao

negro, a lei era sempre acrescida de algum tempero de perversidade e

autoritarismo. O negro deveria saber o “seu lugar”. Além da submissão que

lhe era imposta, ele sempre seria utilizado como bode expiatório nas

derrotas, ou acusado de vender-se. Mesmo neste processo, alguns passos

vão sendo dados em direção à democratização.

Um deles seria a vitória dos operários, negros e brancos, do

Andaraí, sobre os ingleses. Cita Mário Filho, em nota de pé de página: “o

Andaraí [...]tomou o lugar do Rio Cricket na primeira divisão da Liga

Metropolitana em 16”.87 A história é a seguinte: em 1915, o Rio Cricket, por

ter sido o último colocado da primeira divisão, disputou com o Andaraí a

vaga para o campeonato de 16 e perdeu. Isto levou os ingleses a

terminarem com o futebol no clube, pois, como analisa Mário, “não tinha

graça inglês apanhar de preto”.88 Observe-se que o foco é constantemente

colocado na questão racial, pois isto faz parte do jogo da construção de sua

narrativa. O negro é sempre o personagem central.

Mário aponta como outro passo em direção à democratização o

sucesso que Gradim, negro e uruguaio, teria tido durante o Sul-americano

de 1919 no Brasil. Quando Gradim pegava na bola, “o coração de tudo

87
Idem, p. 82.
88
Idem, ibidem.

56
quanto era torcedor brasileiro ficava pequeno”.89 Parar Gradim em campo,

só com pontapé. O reconhecimento de Gradim estaria informando aos

brasileiros, segundo Mário Filho, que “um preto podia ser um grande

jogador”.90 Qualquer jogador negro que jogasse mais ou menos passou a

ser chamado de Gradim e, como o Brasil era composto de uma população

onde a maior parte é mestiça, poder-se-ia ter centenas de “gradins”

espalhados pelo país.91

A necessidade de vencer tornava-se mais importante a cada dia, em

conjunção com o sucesso de Gradim, sendo este outro argumento que

explicaria a democratização. O Botafogo desde 1910 não ganhava

campeonato; o América, desde 1916. Se a seleção do Uruguai tinha um

preto como Gradim, porque os times de elite também não poderiam ter? A

solução seria buscar os bons jogadores além dos limites do bairro, da classe

social e da raça. Botafogo e América foram buscar os “gradins” que estavam

à disposição. O Botafogo contratou Americano, um jogador negro do time do

Andaraí, que não se adaptou e retornou ao antigo clube. O América já tinha

Miranda na equipe e foi buscar outro “gradim”: o Manteiga. Este personagem

aqui retorna à narrativa, para Mário Filho realizar outra generalização.

O América, com Manteiga e Miranda, havia sido vice-campeão em

1921. Manteiga, numa excursão à Bahia, desligou-se do América para ficar

com sua gente, longe do preconceito vivido no América. Miranda continuou

no América, mas não havia jogado todas as partidas do campeonato do ano

seguinte. A partir deste cenário, Mário arma uma nova construção para

89
Idem, p. 107.
90
Idem, ibidem.

57
ratificar sua interpretação que o branco ainda era visto como superior. A

prova era o América, que em 1922, sem Manteiga, levantou o campeonato

do Centenário da Independência. Miranda havia jogado um turno, mas no

returno ficou de fora. Na fotografia do time campeão, Miranda não aparecia.

Para o América, segundo Mário Filho, o que importava era que o quadro da

fotografia do time campeão não tinha Miranda e nem Manteiga (se Manteiga

tinha abandonado o time em 21, não se entende por que Mário Filho diz que

não estava na foto de 1922 como prova da superioridade branca).92 Mais

uma vez, pode-se perceber como Mário Filho desliza suas interpretações

para focalizar o preconceito racial. Neste capítulo, continua a esquadrinhar

oposições, preconceitos e, apesar das novas inserções do negro no âmbito

do futebol, a superioridade branca:

“Mais uma prova de que o futebol era um jogo de branco.


Nenhum clube com um mulato, com um preto no time, tinha sido
campeão de 6 a 22. Só o escrete brasileiro, com Friedenreich.
Friedenreich, porém, tinha pai alemão, não queria ser mulato.
Nem mesmo quando se separou o branco do preto, quando se
quis ver quem jogava mais, o branco ou o preto. Formava-se um
escrete de brancos, um escrete de pretos e mulatos, Friedenreich
não era escalado em nenhum dos dois.

Uma homenagem que se prestava ao autor da vitória do Brasil de


19. Nem branco nem mulato, sem cor, acima dessas coisas”.93

Na citação acima, a narrativa opera com a generalização de que

nenhum time campeão até 1922 teria negro ou mulato nos seus quadros. A

91
Idem, ibidem.
92
Idem, p. 119.
93
Idem, ibidem.

58
única exceção era Friedenreich. Por ser exceção, Mário se vê obrigado a

construir uma interpretação ad hoc sobre Friedenreich. O jogador, no

primeiro capítulo, teria sido elevado à condição de herói, não só pelo seu

feito, mas principalmente por sua condição racial. No entanto, pela

necessidade de operar com a generalização proposta acima, Mário Filho faz

com que Friedenreich perca sua cor. Friedenreich, neste contexto, seria

declarado como herói apenas pelo gol da vitória do Sul-americano de 1919,

e teria sua condição racial estrategicamente esquecida. Observe-se que

Friedenreich e as versões sobre ele se dão em função das necessidades de

Mário Filho construir sua narrativa. Friedenreich passa a ser uma espécie de

personagem mítico que assume vários papéis na estrutura narrativa. Isto

indica, mais uma vez, que não se pode buscar a coerência historiográfica ou

interpretativa do NFB longitudinalmente.

A coerência do NFB se resume aos contextos ou segmentos de

narrativas. Seria como dizer que seus personagens funcionam como

coringas, suas funções são voláteis. O que importa ao autor é ilustrar a

generalização ou a boa “história” que se conta no momento. É muito

provável que essa falta de coerência interna decorra da forma pela qual o

livro foi escrito, pois é produto da reunião de crônicas. Como se sabe, um

cronista tem que ser coerente, no máximo, com o texto da hora. Não se

pode exigir a coerência de suas crônicas ao longo dos anos. As crônicas de

Mário são escritas tendo por base seu ofício, as conversas de bar e sua

excelente imaginação de romancista.94

94
No Capítulo 5 exploro este tema.

59
O NFB narra a dinâmica do futebol sob um ponto de vista em que

Mário Filho se esmera para focalizar a trajetória dramática do negro, que

sofre segregações, preconceitos, e depois é englobado neste espaço social,

tornando-se herói nacional. O preconceito racial também pode ser lido em

função da posição econômica e cultural do indivíduo, preconceito peculiar à

sociedade brasileira. Mário Filho não consegue cunhar um conceito

explicativo que dê conta da complexidade do problema racial, o que, diga-se

de passagem, não parece ser sua intenção. O desejo de narrar mínimos

detalhes, personalidades e histórias de personagens colhidas à mesa dos

cafés, no bate-papo com amigos, acaba por tornar seu texto mais um

sintoma daquilo que se pensava sobre as relações raciais no Brasil do que

uma explicação sobre o racismo. Mário quer, antes de tudo, contar casos ou

contos sobre o esporte predileto de seu amado país. A construção de seu

texto pretende ser uma versão do processo vivido pelo negro no futebol, ora

demarcando o preconceito, ora apresentando as grandes rupturas em

direção à democratização ou à unidade nacional. Diz Mário:

“É verdade que se reconhecia que o mulato e o preto jogavam


tanto quanto o branco. Havia grandes jogadores de cor, mais,
muito mais que antes. Era só ir a uma pelada, ver um jogo de
clube pequeno. E um preto podia jogar no escrete brasileiro,
como Gradim tinha jogado no escrete uruguaio. O Tatu, campeão
sul-americano de 22, não era branco. Bem escuro, o cabelo
grosso, anelado.

Mas os clubes finos nem pensavam nele”.95

95
NFB (1964 p. 119).

60
Ainda que os times grandes não reconhecessem o valor do negro,

Mário informa que algo estaria mudando no futebol “saudosista”. Neste

contexto, a trama é armada para o desfecho do capítulo. O Vasco da Gama

aparece como ruptura da fase branca do futebol, tornando-se o símbolo da

democratização racial no futebol. O Vasco havia vencido o campeonato da

segunda divisão em 1922, subindo em 23 para a primeira divisão. Segundo

o autor, ninguém se importava com a presença do Vasco, porque futebol de

excelência era o dos clubes grandes, os clubes de brancos. “O Vasco, clube

da colônia, seguia a boa tradição portuguesa da mistura” e por isso abrira

as portas àqueles que aprenderam futebol sem professor.96 (Note-se que a

idéia freyreana do português aparece nessa citação.) A vantagem do branco,

daquele futebol aprendido na academia, estava com seus dias contados. O

Vasco compõe seu time com pretos, mulatos e brancos, quase todos semi-

analfabetos, mas diplomados com a bola no pé, e sagra-se campeão. Uma

questão deve ser colocada: o Vasco teria aberto as portas para pretos e

mulatos seguindo a boa tradição da mistura ou a lógica do mercado? Esta

questão será retomada no capítulo final.

O Vasco só não venceu uma das partidas. Podia até começar

perdendo, mas no segundo tempo virava o jogo. A colônia portuguesa se

aglutinava em torno do clube. A vitória do português, do negro e do mestiço,

segundo Mário, provocou um sentimento antilusitano num famoso jogo entre

Vasco e Flamengo durante o campeonato de 1923.97 O Vasco perdeu

aquela batalha; talvez, se tivesse vencido, o campeonato acabasse ali ou o

96
Idem, p. 120.
97
Ribeiro (1989). A autora descreve o processo antilusitano que se instalou no Rio de Janeiro após a

61
jogo terminaria em tragédia; todos se uniram e se armaram contra o Vasco.

Mas foi apenas uma batalha perdida. O negro começava, com a vitória em

23, a ficar mais perto do “processo de igualação”. A vitória do Vasco, ao

sabor da mistura de raças, talvez representasse aquilo que deveria ser a

sociedade brasileira, aquilo que a geração de Mário e de seus amigos, em

especial Freyre, pensavam como o ser e o dever ser para o Brasil.

O Vasco foi campeão com o time daqueles que pertenciam à

“metade inferior” da sociedade. O futebol aprendido na pelada apresenta seu

resultado com a conquista do campeonato. Futebol neste momento passou a

ser sinônimo de Vasco. Essa vitória, de certa forma, representa, no texto de

Mário Filho, a resposta dos marginalizados socialmente - os analfabetos, os

pobres brancos, pretos e mulatos - aos acadêmicos ou brancos de “boa

família”.

“Desaparecera a vantagem de ser de boa família, de ser


estudante, de ser branco. O rapaz de boa família, o estudante, o
branco, tinha de competir, em igualdade de condições, com o pé-
rapado, quase analfabeto, o mulato e o preto para ver quem
jogava melhor.

Era uma verdadeira revolução que se operava no futebol


brasileiro. Restava saber qual seria a reação dos grandes
clubes”.98

A reação dos grandes clubes, que o autor destaca, seria a criação

de uma nova liga de futebol, a AMEA, como protesto à vitória vascaína.99 Aí

Proclamação da República.
98
NFB (1964 p. 128).
99
Idem, p. 132. A AMEA é fundada em 1 de março de 1924.

62
estava a prova do racismo. Diz Mário, já no capítulo seguinte: “[O] que

acontecera em 23 precisava não se repetir mais. Era o que explicava a

AMEA”.100 Depois de deixar transparecer que a questão racial teria motivado

a criação da AMEA e a exclusão do Vasco, o autor começa a inserir detalhes

ou dados que fragilizam a interpretação racial. Por exemplo, o Bangu, que

fora aceito na AMEA e também tinha seus negros. Como Mário explica isso?

Mário instila que a exceção aberta aos operários do Bangu funcionaria como

uma cortina de fumaça para que a AMEA não fosse considerada uma

instituição de castas. Além do mais, diz Mário que os jogadores do Bangu

eram todos operários, e isto não deixaria dúvidas sobre a condição amadora

dos banguenses. Observe-se que a narrativa, quando coloca a ética do

amadorismo como condição de participação, debilita a interpretação em

termos do racismo. Mário Filho realiza essas operações sem a mínima

preocupação sobre suas contradições, e continua narrando. Outros detalhes,

presentes na própria narrativa do NFB, debilitam o poder da interpretação

racista. Retomo os conflitos em torno da criação da AMEA no último

capítulo.

2.3 – “A revolta do preto”: conquistas e ressentimentos

No terceiro capítulo, “A revolta do preto”, Mário trata do contínuo

processo de apropriação do futebol por aqueles pertencentes à “metade

inferior” da sociedade, sem com isso deixar de relatar os avanços e

100
Idem, ibidem.

63
retrocessos em direção à integração e democratização do futebol. A criação

da AMEA, como resistência ao semiprofissionalismo, seria uma tentativa de

excluir o negro do futebol. O efeito da resistência à profissionalização do

futebol acabaria por gerar formas dissimuladas de profissionalismo no

esporte que seriam nomeadas de amadorismo marrom.

Caso se deseje acompanhar o texto a partir do ponto de vista

historiográfico, “A revolta do preto”, eqüivaleria ao período da década de 20

até a profissionalização do futebol em 1933. Neste período, as tensões em

torno da raça são destacadas na narrativa, pois, para se construir a unidade,

a nação (o englobamento do negro à sociedade ou ao futebol), não se pode

deixar de descrever um processo de luta ou embate contra os “inimigos” da

unidade. Aqui se tem o processo de luta e embate do herói.

Os negros e mulatos revelam-se excelentes jogadores e os clubes já

não poderiam deles prescindir. Essa é a tônica da narrativa neste capítulo do

NFB. Assim, a relação começara a inverter-se, e o jogador passara a ser

mais importante que o clube. A vitória do Vasco em 1923 seria a prova e a

resposta da competência de negros e mulatos. Outra resposta seria o São

Cristóvão em 1926, vitorioso por ter apostado na mistura das raças e se

sagrado campeão. É interessante que Mário Filho descreve que essas

equipes sofreram um processo intensivo de treinamento, idéia contrária à

improvisação e naturalidade do jogador brasileiro. Mas a tônica, que constrói

a identidade brasileira, é a de que estas vitórias representam que o bom

futebol não se joga à inglesa ou só com brancos, mas à brasileira, com

pretos, brancos e mulatos. O futebol à brasileira é aquele que incorpora o

64
preto e o mestiço, a pelada, a ginga do samba e da capoeira, sendo esta a

tradição que Mário Filho auxiliaria a inventar. A vitória do futebol negro faz

com que se opere o englobamento das partes que estavam separadas ou

supostamente em conflito.

As revoltas descritas não assumem nenhum tipo de ação coletiva,

indicando apenas trajetórias individuais ou fatos isolados onde conflitos,

explícitos ou não, foram protagonizados por mulatos e pretos no espaço do

jogo ou no campo da remuneração --teoricamente proibida nos marcos do

amadorismo. Um olhar sociológico sobre a narrativa da revolta apenas

indicaria que o negro, ou o jogador em geral, passou a ter maiores cotas de

poder na relação que estabelecia com a elite dirigente do futebol. O

ressentimento também seria uma outra face dessa idéia de revolta na

narrativa.

Segundo nosso autor, a necessidade de se ter bons jogadores

superava as “idealizações raciais” dos clubes de elite. O movimento de

resistência do negro à exploração, neste período de semiprofissionalismo,

indicaria a mudança na correlação de forças. Friedenreich aparece mais

uma vez na narrativa, na condição de “operário” do futebol não-legalizado.

Mário Filho descreve as estratégias de Friedenreich e de outros jogadores

para obter em maior remuneração na fase amadora do futebol.101 A narrativa

não está preocupada com coerência - Friedenreich, na primeira parte do

texto, é descrito como membro da “aristocracia” -, mas apenas com outra

generalização: os jogadores já sabiam de sua importância no mercado e

101
“Corriam os boatos mais desencontrados: Floriano e Friedenreich estavam gripados, queriam
dinheiro para jogar. Renato Pacheco acabou se convencendo que a questão era dinheiro, tanto para

65
exigiam, de forma dissimulada ou não, o pagamento por seus serviços. O

amadorismo marrom, assim descrito, seria neste período uma prática

comum, muito embora alguns jogadores fossem ainda puramente amadores.

O futebol estava tornando-se um mercado de trabalho. Os mecenas

do futebol, para reforçarem seus clubes, ofereciam empregos aos excelentes

jogadores que apareciam numa pelada ou num time de várzea. Na maioria

das vezes, o emprego não era para trabalhar, era para jogar futebol, para se

dedicar exclusivamente ao esporte. Essa forma de inserção no futebol e no

mercado de trabalho gerava uma série de contradições. A AMEA, dominada

pela ideologia do amadorismo, exigia que os jogadores filiados tivessem

emprego ou meio de sustento, o que acabou gerando um efeito não

esperado: emprego para os jogadores, por vezes melhores do que aqueles

que estavam socialmente destinados a ocupar.

Se essa situação podia ser lida como positiva, de outro ponto de

vista podia ser vista como negativa. Por exemplo, quando um jogador se

sentia explorado, nada podia reclamar: afinal de contas, o futebol era

“amador”.

“O pior era que Fausto não podia dizer nada. Para todos os
efeitos era um amador, um empregado do comércio, vivendo do
seu emprego, não jogando futebol por dinheiro e sim por amor ao
clube. Tudo ao contrário: ele jogava futebol por dinheiro e não por
amor ao clube.”102

Floriano, tanto para Friedenreich” NFB (1964, p.155).


102
Idem, p. 191.

66
A camisa do clube não jogava sozinha, precisava de bons jogadores

para vesti-la. Os jogadores, que sobreviviam do futebol, passariam a vestir a

camisa do clube que lhes oferecesse melhores condições de emprego103 e

melhores bichos.104 Mário, para ilustrar essa mudança da correlação de

forças entre o jogador e o clube, apresenta a trajetória de Domingos da Guia

e Leônidas da Silva, ambos negros, que escolheriam o clube onde jogar a

partir da lógica do mercado, ainda na fase do futebol amador. Esses

jogadores eram a resposta dos pretos e mulatos, e emblemas da ascensão

social do negro via futebol.

Mário parece querer apontar que a consciência de negros e mulatos

chegaria ao ponto da insubordinação, como fora o caso do jogador Feitiço

com Washington Luís, Presidente do Brasil. Observemos a descrição:

“Washington Luís descobria, ao mesmo tempo, a força e a beleza


do esporte. Subitamente o jogo pára, não continua, o juiz havia
marcado um pênalti contra os paulistas, os paulistas iam
abandonar o campo. Washington Luís fica sério, dá uma ordem
oficial de gabinete. É a ordem para o jogo continuar, uma ordem
do Presidente da República.(...)

O oficial de gabinete entra em campo debaixo de palmas, vai até


Amílcar e Feitiço. E de cara amarrada dá o recado: - o Presidente
da República ordenava o reinicio do jogo. A resposta de Feitiço,
mulato disfarçado, que nem era capitão do escrete paulista, foi
que o doutor Washington Luís mandava lá em cima - lá encima
sendo a tribuna de honra - cá embaixo - sendo o campo - quem
mandava era ele.

E para mostrar que mandava mesmo, que não era conversa, fez
um sinal e os jogadores paulistas saíram atrás dele.105

103
Aqui se está falando no sentido de inserção no mercado de trabalho formal, não no futebol, que era
para esses jogadores trabalho dissimulado. O futebol deveria ser encarado como simples diversão e
lazer.
104
Prêmios ou gratificações pela vitória. Sobre esta expressão e outras, consultar Feijó (1994).
105
NFB (1964, p.169).

67
Esse caso insólito parece indicar, mais do que revolta ou afirmação

do negro, a sedimentação do ideal republicano e a modernidade. A

separação dos espaços sociais em esferas de relativa autonomia é fruto da

modernidade. A narrativa de Mário Filho, no texto acima, ainda que seja

construída como revolta e resistência do negro, poderia estar informando

que o espírito da República teria entrado no campo do futebol. Esta parece

ser a hipótese de Roberto Da Matta sobre a importância do futebol como

educação do espírito de cidadania.106 Tanto a narrativa de Mário Filho

quanto a de Da Matta estão apenas descentradas dos fatos cotidianos do

futebol brasileiro, onde os privilégios parecem ainda viver em tensão e

conflito com as regras universais do esporte e da sociedade. Todavia, ao

consultar os jornais sobre a final do Campeonato Brasileiro de 1927, entre

cariocas e paulistas, não se encontra a insubordinação descrita por Mário

Filho. Quem liderou o abandono de campo foi Amilcar, capitão do time

paulista, que ao discordar de uma decisão do juiz protestou abandonando o

gramado com mais sete companheiros. Quem solicitou que os jogadores

voltassem a campo foi o Sr. Guilherme Gonçalves, presidente da Associação

Paulista de Futebol, e o Sr. Enio Alves, chefe da delegação paulista, e não

uma ordenança do Presidente da República. O presidente Washington Luís

simplesmente retirou-se do recinto, provavelmente aborrecido com o

incidente.107 O desfecho da insubordinação foi a punição de oito jogadores

106
Da Matta (1982).
107
Correio da Manhã, 13/11/1927, p. 17.

68
paulistas que participaram do protesto.108 Esta é uma demonstração de

como Mário Filho constrói a sua versão dos fatos. Amilcar foi o personagem

central deste conflito, mas, por ser branco, é secundarizado em sua versão,

para tornar Feitiço, negro, o protagonista do incidente.

Outro tipo de resposta ou revolta dos negros e mulatos seria a

agressividade, consciente ou não, que os jogadores passam a ter no

domínio do jogo. Assim, no primeiro e no segundo capítulos, que descrevem

a origem branca e as formas de socialização do futebol, pretos e mulatos,

em campo, deveriam se portar como “damas”, com extremo autocontrole. “A

revolta do preto” significa que, no domínio do jogo, o negro já se sentiria

igualado diante das regras e já não precisaria jogar como dama.

“(...)Aragão de chuteira de bico de aço, quem fosse o louco que


entrasse na área. Aquilo não era futebol, era a vingança do preto
contra o branco. E contra o mulato que se envergonhava de ser
mulato.

Fausto (...) pela revolta que fervia dentro dele, que não o deixava
em paz.(...)Metia o pé nos pretos, iguais a ele, metia o pé nos
brancos, que não eram melhores do que ele, mas que tinham
tudo, enquanto ele não tinha nada.109

A revolta parece funcionar na narrativa como uma espécie de

afirmação da raça negra e das camadas marginalizadas, consideradas pelas

elites como pessoas de segunda categoria. No espaço social destinado ao

lazer e ao entretenimento dos brancos abastados, os negros aparecem e,

108
Idem, ibidem.
109
NFB (1964, p. 188).

69
lentamente, dele se apropriam. Esta seria parte da saga dos negros ou dos

marginalizados na estrutura narrativa.

Assim, brancos precisando de negros para reforçar suas equipes,

negros precisando do futebol para sobreviver, o cenário mudaria

definitivamente. O esporte só era amador na legislação. Com o

desenvolvimento de outros mercados para o futebol profissional, como

Europa e países da América do Sul, o jogador, fosse preto, branco ou

mulato, passaria a poder vender sua habilidade com a bola nos pés. Em

função das contradições geradas pelo amadorismo marrom e da pressão do

mercado externo, que atraía os nossos melhores jogadores, a passagem do

amadorismo para o profissionalismo no Brasil foi inevitável, tal como em

outros países.110

O percurso da narrativa induz a pensar que as conquistas de negros,

mestiços, e dos pobres, independentes da cor, são uma espécie de resposta

à sociedade elitista e racista. A narrativa pode outorgar importância maior ou

menor a um ou outro aspecto, dependendo do contexto e sem muito controle

sobre as relações entre os causos ou crônicas apresentadas.

“A revolta do preto” revela que o futebol dependia dos craques

negros, da mesma forma que estes dependiam do futebol para sobreviver. A

competência do jogador, independente da raça, passa neste período a ser

mais importante do que a origem familiar. “A revolta do preto” assume

diferentes sentidos, da insubordinação ao ressentimento. Mas o importante é

que esta se constitui numa etapa que abriria o caminho para a ascensão

110
Sacher & Palomino (1988).

70
social do negro na narrativa de Mário Filho. Poder-se-ia dizer que a unidade

estava a caminho mas ainda não triunfara, e que os “inimigos” estavam

definhando. O herói tem sempre que passar por obstáculos e desafios para

que a vitória final tenha sentido. Nos “novos narradores”, toda esta narrativa

transforma-se em linguagem sociológica da resistência, sendo que esta

categoria assume uma polissemia incontrolável.

2.4 – “A ascensão social do negro”: a primeira conclusão em 47

O título do último capítulo, da primeira edição “A ascensão social do

negro”, seria a conclusão à qual Mário Filho chegaria em 1947. Este capítulo

seria a resposta à trama montada: o negro excluído do futebol à inglesa no

seu início, assistindo ao jogo da geral, tornara-se, nas décadas de 30 e 40, a

expressão do futebol brasileiro. O negro que jogava “sabendo o seu lugar”,

passaria, neste período, a afirmar-se frente à elite branca. Um encontro

entre Friedenreich e Leônidas da Silva é descrito de forma que parece

confirmar a tese de que o primeiro teria aberto o caminho para

democratização do futebol e o segundo continuaria a saga do negro como

herói. Friedenreich, herói do Sul-americano de 1919, Leônidas da Silva, o

maior ídolo do futebol dos anos 30 e 40. Ambos negros, por isso heróis de

“barba e cabelo carapinha”, à imagem e semelhança do povo brasileiro.111

111
NFB (1964, p. 54). O autor cita Gilberto Freyre (Sobrados e Mucambos), em nota de rodapé.

71
“[O]s pretos estavam por cima”, conjectura Mário Filho em função da

conquista da Copa Rio Branco em 1932.112 O autor reforça essa idéia

citando o texto que José Lins do Rego havia escrito para o prefácio do livro,

A Copa Rio Branco, 32, de autoria do próprio Mário Filho: “Os rapazes que

venceram, em Montevidéu, eram um retrato da nossa democracia racial,

onde Paulinho, filho de família importante, se uniu ao negro Leônidas, ao

mulato Oscarino, ao branco Martim. Tudo feito à boa moda brasileira.”113

Zélins, como era chamado José Lins do Rego, declara

explicitamente a tese da democracia racial, que indica ser o fio condutor dos

“casos” e fatos descritos no NFB. Volta-se à equação: o futebol quando

excludente do negro, era como mais uma peça importada; quando

includente do negro, passou a ser expressão da brasilidade, sendo este o

eixo de construção da narrativa do NFB.

Justamente porque o futebol tornou-se expressão da brasilidade foi

que o negro pôde ascender socialmente. Para isto o autor descreve as

biografias parciais de Domingos da Guia e de Leônidas da Silva, como

exemplos daqueles que se tornaram ídolos do futebol e ascenderam

economicamente. Boa parte do capítulo “A ascensão social do negro” é

gasta narrando a posição social e o status114 atingido por esses jogadores

quando o futebol profissionalizou-se. É importante que nos detenhamos um

pouco nas representações construídas sobre esses jogadores.

112
Idem, p., 214.
113
Idem, ibidem.
114
Em Negro, macumba e futebol, Rosenfeld (1993) diz que Mário Filho confunde mobilidade
econômica com status ou mobilidade social. Por exemplo, pode-se ter mobilidade social sem
necessariamente se ter mobilidade econômica.

72
Domingos da Guia é descrito como um homem de perfil taciturno,

inteligente, elegante, um verdadeiro gentlemam, dentro e fora de campo.115

Domingos é inglês por sua postura sóbria fora do campo e por ser elegante

com a bola, realizando movimentos lentos e precisos. Leônidas é a

expressão do Brasil por seu jeito dionisíaco de ser, socialmente e jogando

futebol. Leônidas representa a criatividade, não possui só um estilo, é

criador de um movimento insólito de chutar a bola de cabeça para baixo, a

bicicleta. Quanto a Domingos, o torcedor o respeitava e admirava, mas

mantinha distância. Seu perfil não admitia muita intimidade, jogava futebol

como quem não estivesse pressionado pelo clima do jogo, era frio e

calculista. Domingos parecia inglês ao estilo de Machado de Assis. Leônidas

seria o contrário, o torcedor batia nas suas costas e puxava assunto.

Leônidas e Domingos seriam os melhores exemplos da pressão que

o mercado externo passou a exercer sobre o mercado interno do futebol.

Pelo perfil de Domingos, Mário Filho entenderia o sucesso que este teria tido

no Uruguai -- o futebol neste país seria o mais inglês da América do Sul. 116

Já Leônidas fora relegado, naquele mesmo país, à condição de reserva,

jogando pelo Peñarol. Leônidas jogava o mais puro e dionisíaco futebol,

enquanto Domingos jogava um futebol com fortes marcas apolíneas. Mas

115
Por exemplo, quando tinha que negociar um contrato com o presidente do Flamengo, chegava na
hora marcada pontualmente, cumprimentava a todos, sentava-se de pernas cruzadas e ficava ouvindo
as propostas. Quando o presidente chegava ao assunto das luvas oferecidas para o contrato, Domingos
levantava-se e solicitava que seu secretário passasse a negociar diretamente com o presidente. Mário
diz que Domingos achava desagradável a discussão de dinheiro, e assim deixava a sós o presidente e
seu secretário até chegarem a um acordo. Pode-se observar que Domingos pareceria muito bem
assumir a posição sagrada do artista que não suja suas mãos com dinheiro, apenas faz sua arte, por
isso possuía seu secretário particular para cuidar das coisas seculares.
116
NFB (1964, p., 243). Mário Filho descreve que, quando Domingos jogava, o público do jogo subia
em média cinco mil pessoas; os jornais locais correspondiam a essa demanda, pois tudo que este
jogador fazia era motivo para ganhar uma página inteira nos jornais uruguaios.

73
não seriam só as marcas dionisíacas o motivo do insucesso de Leônidas no

Uruguai; a explicação estaria em uma espécie de retaliação dos uruguaios,

por ele ter marcado os gols contra o Uruguai na Copa Rio Branco de 32.

Essa é mais uma das belas justificativas mitológicas.

Na mesma linha de construção, justifica-se o sucesso maior de

Leônidas em relação a Domingos da Guia quando ambos retornaram ao

país para vestir a camisa do Flamengo. Leônidas brilharia mais no Brasil, por

ser mais brasileiro. Mário Filho consegue, desta forma, explicar a enorme

popularidade de Leônidas no Brasil, assim como porque se tornou o maior

garoto propaganda da época.117 Mas a maior popularidade de Leônidas não

apagaria o sucesso de Domingos. Mário Filho, depois de descrever

Domingos como um lord inglês ou como Apolo, passa a construir mediações

para mostrar a brasilidade escondida por trás da casca apolínea. Observe-se

as mediações:

Domingos gingava o corpo, mas não se desmanchando todo


como Leônidas. Dançando o samba, jogando futebol. A
sobriedade de Domingos chocava como uma coisa vinda de fora.
Da Inglaterra. Tanto que quando se queria dar uma idéia de
Domingos vinha-se logo com o futebol inglês. O futebol inglês
como a gente imaginava. Pelas anedotas de inglês tão ao gosto
brasileiro. O inglês frio, incomovível.

Anedotas de inglês sendo para Domingos o que Sterne foi para


Machado de Assis. De uma certa forma Domingos foi o Machado
de Assis do futebol brasileiro. Inglês por fora, brasileiro por
dentro. Sobretudo carioca. Quanto mais Domingos se esforçava
para ser inglês, mais Domingos se traía como carioca. Como o
velho Machado. O mulato de pince-nez, de barba de Ministro do
Império, o preto de fala macia, arrastada, com seu passo de

117
O apelido de Leônidas deu nome ao chocolate pelo seu apelido Diamante Negro, chocolate este
que existe até os nossos dias.

74
malandro, de samba de breque. Mais inglês, porém, que os
ingleses brancos que o torcedor conhecia.

Ingleses brancos que, vestindo-se de jogador de futebol,


tratavam, mais do que depressa, de se abrasileirar. Chegando
mesmo a inventar jogadas, feito Leônidas para agradar o público.
O caso de Charles Miller, o charles, sendo o primeiro
brasileirismo em futebol. O avô da bicicleta.118

Com uma só penada o perfil inglês é abrasileirado. Domingos seria

inglês só de aparência, mas não de essência. Mário Filho, no texto acima,

acaba por construir uma “árvore genealógica” do futebol brasileiro, onde o

parentesco ou a “linhagem” entre Charles Miller e Leônidas da Silva se

estabelece via o estilo brasileiro de futebol. O futebol no Brasil já começa a

se abrasileirar com a invenção do “Charles”, ainda quando o futebol era

adjetivado como “inglês”. A influência telúrica e cultural do Brasil se faz sentir

em tudo que aqui chega, seja o futebol, sejam os ingleses. Tudo termina em

samba, assim como os mais ingleses de nossos brasileiros – Machado de

Assis e Domingos da Guia – escondiam no fundo da alma a expressão de

brasilidade. Observe-se que os englobamentos são construídos em nome da

unidade ou da integração nacional.

Esta parte do texto, que era conclusiva na primeira versão em 1947,

tinha por finalidade demonstrar a nova condição social que o futebol

proporcionou aos jogadores negros. A profissionalização do futebol foi

definitiva para a vitória do jogador sobre o clube, do negro sobre a ideologia

da branquidade. O clube já não seria importante pela sua localização, pelo

status e pela linhagem de seus associados; só seria importante se tivesse

118
NFB (1964, p. 243).

75
uma boa equipe. O futebol passa a recrutar os melhores jogadores, fossem

pretos, mulatos ou brancos e, para Mário Filho, melhor seria que fossem

misturados.

O negro realiza, nesta parte da narrativa, sua afirmação final frente à

sociedade branca. Um bom exemplo apresentado foi a briga pública que

Leônidas da Silva travou com o presidente do Flamengo, Gustavo Carvalho.

Segundo Mário Filho, Leônidas levou a melhor. Os diretores do Flamengo

aceitavam que Leônidas fizesse tudo o que quisesse, era um gênio. “Os

cartolas não eram o Flamengo, o Flamengo era Leônidas”.119

Mário terminaria o capítulo “A ascensão social do negro”

apresentando Domingos e Leônidas como símbolos da ascensão social:

“Nenhum jogador tinha subido tão alto quanto esses dois jogadores, negros,

do futebol brasileiro. Já se sabia, porém, até onde podia chegar um artista

da pelota”...120 O capítulo finaliza apresentando um modesto jogador, Zé

Quirino, cujo nome verdadeiro era Emílio Corrêa. Quirino é descrito como

um negro, jogador do Flamengo, que pouco era valorizado, mesmo na

cidade onde nascera, Alfenas. Mas quando sagrou-se campeão pelo

Flamengo a coisa mudou de figura. Foi a Alfenas e teve recepção de

hóspede oficial. “O banqueiro, Osvaldo Costa, outro ilustre de Alfenas, no

centro da mesa, Quirino a sua direita. Todos os dias, pelo Brasil afora, o

futebol fazia isso, botava um Osvaldo Costa ao lado de um Quirino”, teria

assim concluído a primeira edição do NFB em 1947.121

119
Idem, p. 251.
120
Idem, p. 257.
121
Idem, p. 258.

76
Este quarto capítulo, “A ascensão social do negro”, que hoje se lê

basicamente através da segunda edição, induz a pensar que Mário Filho

insinuasse mais do que concluísse, como declarou em “Notas à segunda

edição”. Em nenhuma parte do texto de 1964 Mário afirma que o futebol teria

se democratizado totalmente;122 prova disso teria sido o recrudescimento do

racismo, em 1950, que o levou a escrever dois novos capítulos para a

versão definitiva, em 1964.

Mário Filho, assim, diz ter se colocado com muita cautela a respeito

da trajetória do negro no futebol brasileiro. Pela leitura dos quatro capítulos

iniciais, na versão de 1964, as explicações fornecidas em “Notas à segunda

edição” são coerentes com essa afirmação. Entretanto, na versão original de

1947, no quarto capítulo, fica evidente que Mário Filho teria elevado o negro

à condição de herói e a integração racial teria sido realizada no futebol. Mas,

ao apresentar a segunda edição ampliada, realiza supressões textuais para

quebrar a unidade e depois reconstituí-la.

2.5 - Pequenas omissões e a estratégia de continuação

No quarto capítulo, independente da edição, a ascensão social via

futebol passa a ser tão forte que poder-se-ia até afirmar que Mário Filho vê,

neste espaço e época, a democracia racial realizar-se. Entretanto, o autor,

ao escrever as “Notas à segunda edição”, diz que esta impressão seria fruto

122
Na próxima seção apresento as frases suprimidas por Mário Filho que indicam sua crença na
integração racial total e harmônica.

77
de uma leitura superficial, pois na primeira edição teria feito apenas um

relato processual e não conclusivo. Mas, ao se consultar no original a

primeira edição, vê-se que os argumentos de Mário Filho são falsos, pois na

segunda edição ele retira partes do capítulo “A ascensão social do negro”

que explicitam a integração total do negro no futebol e sua crença na

democracia racial.123 O herói negro, na primeira edição, triunfa frente às

adversidades e provações através na figura de Leônidas e Domingos.

A trama que se arma no capítulo final da primeira edição do épico

negro é a seguinte: jogadores, como Fausto, haviam batalhado muito e

morrido no esquecimento para que Domingos, Leônidas e outros tivessem

ascendido socialmente e pudessem requerer igualdade de tratamento.

Fausto morrera na miséria, mas teria aberto o caminho para outros negros

se afirmarem via futebol. Como Mário Filho concluiu em 1947 (e depois

apagou a parte em negrito em 1964):

“E não se diga que isso é só para um Domingos, para um


Leônidas. É para qualquer jogador, mesmo um Quirino, o
modesto, o humilde Quirino (...)Todos os dias, pelo Brasil afora, o
Foot-ball faz isso, bota um Oswaldo Costa ao lado de um
Quirino.”124(grifo meu)

Neste sentido, as explicações dadas nas “Notas à segunda edição”,

são falsas. O confronto das edições demonstra que os cortes realizados

123
A primeira edição, de 1947, não circula e não é citada nos estudos contemporâneos. Além do mais,
isto ocorre porque Mário Filho afirma que na segunda edição teria mantido intacto o texto de 1947, o
que não é verdade.
124
NFB (1947, p. 294-295). As omissões tornam o caso de Quirino na segunda edição meio fora de
lugar; em outras palavras, não fica clara a função de Quirino no texto. Mas na primeira edição
entende-se claramente que a figura de Quirino funciona como prova da realização da integração racial.

78
representariam a avaliação final sobre as relações raciais no futebol: o

futebol teria realizado a integração racial e o negro de excluído teria se

tornado herói nacional. Observe-se a seguir outras omissões. A parte grifada

foi retirada na segunda edição.

“A torcida do Flamengo andou afastada dos campos uns tempos,


só voltou quando o team, sem Domingos, estava para levantar o
tri-campeonato. Sem Domingos e sem Leônidas. Leônidas no
São Paulo, Domingos no Corinthians, um pensando num
restaurante quando deixasse de jogar foot-ball, o outro
mandando construir casas em Bangu. Nenhum jogador tinha
subido tão alto quanto esses dois negros do foot-ball brasileiro.
Já se sabia, porém até onde podia chegar um artista da pelota,
para usar um termo que ainda sai nos jornais. Branco, mulato ou
preto. Porque em foot-ball não havia o mais leve vislumbre de
racismo. Todos os clubes com seus mulatos e os seus
pretos. (81) Um preto marca um goal, lá vêm os brancos
abraçá-lo, beijá-lo. O goal é de um branco, os mulatos, os
pretos, abraçam, beijam o branco.” 125 (grifo meu)

As omissões das notas de rodapé são fundamentais, observe-se:

“81- Dos quatro mil cento e quarenta jogadores que


passaram pelo Departamento de Assistência Social da
Federação Metropolitana de Foot-ball, durante a temporada
de 45, 60 % eram brancos, 21% mulatos, 2,5 % caboclos e
16,5 % pretos. (relatório de 1945 do Departamento de
Assistência Social da Federação Metropolitana de Foot-ball).
Todos os sessenta e três clubes filiados com brancos,
mulatos e pretos em todos os seus teans, desde o primeiro
até o de juvenis.” 126 (grifo meu)

“82- E quem está na geral, na arquibancada, pertence à


mesma multidão. A paixão do povo tinha que ser como o
povo, de todas as cores, de todas as condições sociais. O
preto igual ao branco, o pobre igual ao rico. O rico paga
mais. Compra uma cadeira numerada, não precisa
125
Idem, p. 293. Texto retirado da primeira edição do NFB.
126
Idem, ibidem.

79
amanhecer no estádio, vai mais tarde, fica na sombra, não
apanha sol na cabeça, mas não pode torcer mais do que o
pobre, nem ser mais feliz na vitória, nem mais desgraçado na
derrota.”127 (grifo meu)

Até aqui, pelas partes e notas suprimidas, vê-se claramente a crença

de Mário Filho na integração racial total. Gilberto Freyre, que escreve o

prefácio do NFB em 1947, não parece acreditar numa integração racial total

e plena. A unidade, em verdade, realiza-se na idealização de Mário Filho,

como elemento de coesão da nação e expressão da identidade nacional.

Sua identificação com o pensamento freyreano não faria do NFB um texto

com o mesmo rigor das obras de Gilberto Freyre.

Essas elaborações explícitas de Mário Filho sobre o poder

democrático do futebol são suprimidas para que os capítulos “A provação do

preto” e “a vez do preto” pudessem ser acrescidos na segunda edição. “A

provação do preto” é o capítulo que aponta novas situações de “dano”

impostas ao negro. “A vez do preto” é a demonstração da afirmação

definitiva do negro no futebol. Desta forma, fica a questão: Mário Filho teria

retirado sua explícita crença na democracia racial para ser coerente com os

novos capítulos, ou teria o autor modificado sua visão sobre o racismo

brasileiro? Acredito que sua crença na democracia racial não tenha se

modificado, e que ele apenas tenha apagado o triunfo final do herói negro

em 1947, impondo-lhe um novo “dano”, para que fosse reerguido na edição

de 1964.

127
Idem, ibidem.

80
3 - DOS CAPÍTULOS DA 2ª EDIÇÃO

3.1 - “A provação do preto”: o retorno das perseguições

No capítulo “A provação do preto” desenrola-se um roteiro que

procura demonstrar que o negro estaria, ainda, em desigualdade. Mário faz

voltar a cena da segregação ou “dano” imposto ao negro num outro nível. Há

uma reafirmação do inimigo interno: o preconceito racial, o racismo.

"A provação do preto" retorna aos anos 40, tentando matizar, e

mesmo apagar, a euforia anunciada através das figuras de Leônidas,

Domingos e Quirino. O novo texto não omite que o negro havia conquistado

um lugar no futebol brasileiro, nem que os grandes clubes possuíam negros

em suas equipes. Apesar disto, crê nosso autor que a preferência pelo

jogador branco não tinha se extinguido, pois em igualdade de condições o

negro ainda seria preterido.

As provas ou sinais de desconfiança sobre o “caráter” do negro

estão bem presentes em sua nova trama. De fato, o que se nota na narrativa

d’“A provação do preto” é a tentativa de exemplificar a tensão ou caminho do

fio da navalha que o negro vivia nos anos 40 e 50. O negro é situado numa

posição de fronteira ou liminaridade, ora visto como integrado, ora como

desintegrado, quer com possibilidades de integração, quer sem elas. A

fragilidade, moral ou psicológica, continuaria a ser imputada ao caráter do

negro, colocando desconfiança sobre seu valor, seu equilíbrio nas decisões

e sobre a retidão de seu caráter moral, susceptível ao suborno.

81
A desconfiança de suborno, no entanto, não incidia só sobre os

negros, pois também se desconfiava do jogador branco. Tal desconfiança

generalizada pautava-se ainda na tensão entre amadorismo e

profissionalismo, mesmo depois do profissionalismo estar legitimado.

Segundo as próprias palavras de Mário Filho, “[C]omo acreditar, porém,

num amor pago, se outros podem pagar mais?”128 Por esta razão, todos

eram alvo de desconfiança, mas os negros seriam um alvo mais visado.

Numa passagem do capítulo, Mário diz que “havia mulatos e pretos

que não se davam ao respeito”, referindo-se aos jogadores que, vivendo de

ordenados incertos e “bichos”129, se ofereciam para “entregar o jogo”.130 Esta

suspeita só é levantada a partir do depoimento de seu amigo João Lira Filho,

quando presidente do Botafogo. Apesar desta história, Mário Filho faz

questão de afirmar que as desconfianças sobre os subornos eram grandes,

mas nunca se provara nada.131

“Nunca se provara nada, mas se falava muito em ganhar o jogo


na quinta-feira, que era o dia de treino da maioria dos clubes.
Havia quem acreditasse piamente em suborno de jogadores.
Principalmente de mulatos e pretos. Quando alguém, num clube,
pensava em assegurar uma vitória metendo a mão no bolso,
aceitava, com absoluta boa fé, a venalidade insinuada de um
mulato ou de um preto. Se lhe propusessem o suborno de um
branco talvez hesitasse ou desistisse até da idéia.”132

128
NFB, (1964), p. 264.
129
A expressão foi definida na Nota 108.
130
NFB, (1964), p. 277.
131
Mário Filho, mais do que um jornalista, era um interventor no campo esportivo, era como um
guardião da imagem do esporte. Discutiremos o perfil de Mário Filho no Capítulo 5.
132
NFB, (1964), p. 278.

82
Ao longo da narrativa aparece a denúncia da ideologia da

branquidade como padrão de superioridade estética, moral e intelectual.

Esta ideologia estaria a tal ponto disseminada que se manifestaria nas

histórias de mulatos e pretos que alisavam ou raspavam o cabelo e/ou

desejavam afinar o nariz (com operação plástica) para dissimular a

negritude.133

A ideologia da branquidade obriga a realizar operações sociais de

branqueamento, isto é, o negro, quando bem sucedido e socialmente aceito,

seria, simbolicamente, embranquecido. Pode-se observar na narrativa do

NFB uma estranha operação, quase psicológica, que se realizava na

dinâmica dos relacionamentos no futebol. Por exemplo: a) os pretos do meu

time não são pretos, ou melhor, não possuem cor que os desqualifiquem,

apenas qualidades; b) os pretos do time adversário são mais pretos e

possuem todos os “defeitos” da raça (feios, desonestos, sem fibra,

fedorentos, além de outros estereótipos). Nota-se, nesse tipo de

comportamento descrito, a existência da dupla moral. O inimigo eleito na

segunda edição do livro torna-se mais sofisticado, não é mais aquele do

preconceito direto ou da cisão entre raças. O inimigo agora é a ideologia da

branquidade, que opera como uma atitude ou sentimento que não deixaria

os negros assumirem-se como negros.

Outra marca das desqualificações imputadas ao negro seria o

desregramento alcoólico, o estereótipo do “negro cachaceiro”.134 Em

contraposição, no capítulo “Raízes do saudosismo”, os ingleses bebendo

133
Idem, p. 280-1.
134
Idem, p. 275.

83
doses de uísque antes dos jogos apenas sugere um traço de identidade,

nunca desregramento. Mário Filho apresenta-nos, mais uma vez, os danos

ou perseguições sofridas pelo negro, cuja tônica é demonstrar as novas

formas de perseguição. Tal perseguiçãogeraria ressentimento e respostas

do preto e do mulato’a ideologia da branquidade. O ressentimento é a marca

dos que se sentem inferiorizados.

Nos dois novos capítulos, as representações freyreanas da

sociedade brasileira não foram abandonadas. O racismo brasileiro é visto

como singular. Ser negro ou branco não requer que se discuta a linhagem,

apenas os traços fenotípicos. A “raça” nos trópicos seria elástica e definir-se-

ia pelos matizes e tons de cor da pele. Observe-se as passagens:

“Qualquer moreno passava por moreno só, isto é, branco, desde


que tivesse cabelo bom, mesmo ondulado ou encaracolado”.135

“Muito mulato passava por branco até na ficha da Federação. O


Departamento Médico não querendo ofender, usando uma
concepção brasileira bem elástica de cor. Quem pudesse passar
no exame, raspando, passava. Em vez de mulato, caboclo. Ou
então, numa generalização mais ampla, moreno.” 136

O texto evidencia a existência da ideologia da branquidade,

apresentando alguns dos mecanismos que operavam na conciliação do

preconceito racial com a realidade da miscigenação. A idéia da Pátria

Morena como um dos caminhos encontrados pelo Brasil para a construção

uma sociedade racialmente mais democrática é uma imagem freyreana. A

135
Idem, p. 261.
136
Idem, p. 283.

84
imagem de uma sociedade miscigenada fica patente na figura de Tintureiro e

seus filhos, os Lima. Daí decorria o pseudônimo de Tintureiro, pois tinha dez

filhos que “iam do preto ao quase louro”.137 Tintureiro era pai de dois

jogadores, ambos chamados de Lima, só que um era preto e discriminado, e

o outro branco e bem aceito. Através dos filhos de Lima fica demonstrado o

preconceito singular de uma sociedade “tingida” (miscigenada) que não

abandonara a ideologia da branquidade. Entretanto, o dever ser do Brasil, ou

do futebol brasileiro, sintetiza-se, para Mário Filho, na família do “Tintureiro”,

na miscigenação, onde as variedades de “cores” ou “raças” estariam

presentes e em convivência harmônica.

Este novo capítulo foi construído instilando ambigüidades e

contradições ainda vividas no futebol. Apesar dos anos 30 terem revelado

Leônidas e Domingos, e o futebol ser o maior meio de ascensão social para

o negro, o racismo não acabara. Não acabara como sabemos apenas na

segunda edição, pois na primeira o racismo era página virada na história. O

negro, assim, ainda estaria em provação. Isso pode ser encarado como

persistência ou reedição, em grau diferenciado, do inimigo que teria

impedido a integração nacional. Se o racismo tivesse sido aplainado, a

ideologia da branquidade ainda permanecia. Assim, “A provação do preto”

termina enunciando a derrota do Brasil em 50, mas deixa a descrição desse

drama para o último capítulo.

137
Idem, p. 264.

85
3.2 – “A vez do preto”: afirmação do negro e do futebol brasileiro

“A vez do preto” inicia-se com a descrição da derrota de 16 de julho

de 1950. O clima de euforia havia tomado conta da nação após vitória do

Brasil sobre a Espanha, no jogo que ficou conhecido como as “Touradas de

Madri”.138 O cálculo apontava que, se o Brasil vencera de goleada Espanha

e Suécia, também venceria o Uruguai, pois os uruguaios haviam empatado

com a Espanha e vencido a Suécia num jogo difícil. A final entre Brasil e

Uruguai passou a ser uma mera formalidade, o Brasil já era o campeão na

véspera. O dia anterior à grande final foi agitado, os jogadores foram

deslocados para o Estádio de São Januário, concederam entrevistas, deram

autógrafos e receberam os políticos que esperavam tirar dividendos da

potencial vitória da seleção. Mário Filho faz questão de dizer que o excesso

de confiança não vinha dos jogadores. A confiança desmedida vinha do

torcedor, vinha do brasileiro, todos estavam ainda embevecidos pela vitória

sobre a Espanha.

Mário Filho, bem ao estilo de narração de um jogo transmitido pelo

rádio, vai descrevendo o fatídico “desastre de 16 de Julho” como um drama,

um velório à italiana.139 Descreve tensões, ações e gols que fizeram a

desgraça nacional. Enfim, detalha o cenário formado antes, durante e depois

do jogo. Os brasileiros esperavam que a goleada sobre a Espanha se

repetisse. No entanto, o primeiro tempo acabou empatado: 0 a 0! No

segundo tempo, o Brasil sairia na frente com um gol de Friaça. Mas o jogo

138
A torcida neste jogo, emocionada com a goleada, cantava a música de Braguinha “Touradas em
Madri”.
139
Sobre as representações da derrota como morte, ver Vogel (1982) e Guedes (1977).

86
continuava. Gigghia, jogador uruguaio, avançou para cima de Bigode (que

jogava particularmente aquele jogo com todo “o fair play do mundo”140),

chegou à linha de fundo e deu a bola para trás nos pés de Schiafino, que

marcou o primeiro gol uruguaio. Baixou o silêncio no Maracanã. Mas o

empate não era o pior dos resultados, pois com ele o Brasil ainda seria

campeão.

Contudo, a desgraça maior estava por vir. Gigghia, em jogada

semelhante à do primeiro gol, penetrou pela lateral, mas ao invés de mandar

para trás, como fizera no gol anterior, chutou e a bola passou entre a trave e

Barbosa. Mário Filho diz que quando o árbitro deu o apito final “o Maracanã

transformou-se no maior velório da face da terra. Todo mundo queria ir

embora, desaparecer... Ouviam-se gritos de viúvas sicilianas.”141

Deste jogo, segundo Mário Filho, sairia um herói: El Gran Capitán

uruguaio Obdúlio Varela. A derrota do Brasil teria supostamente começado

quando El Gran Capitán dera safanões em Bigode - jogador brasileiro

bastante viril, que tinha sido orientado para não reagir às provocações,

segundo as versões - e uma bronca em Gigghia, que viria a crescer muito no

jogo.142 Deste episódio identificou-se como primeiro grande culpado o negro

Bigode, que se intimidou com os safanões de Obdúlio Varela. O segundo

140
Meu pai, que tinha na época deste jogo 26 anos, diz que o Bigode se caracterizava como um
jogador viril, que era conhecido pelos carrinhos e pela capacidade de desarmar o adversário; mas neste
jogo ele teria jogado com a preocupação de não cometer erros disciplinares, e isto teria facilitado o
jogo. Mário Filho diz que o Brasil teria jogado com excesso de fair play: “Bigode obedecera as
ordens terminantes: não podia reagir. Bigode e todos os jogadores brasileiros. Remember 38. Se
levássemos um bofetão, tínhamos era de oferecer a outra face. NFB, 1964, p. 332). Mário está se
referindo ao fato de Domingos da Guia ter cometido um erro crucial na Copa de 38, por revidar uma
provocação.
141
NFB, (1964), p. 335.
142
A história já transformou-se em mito que ganha sempre uma nova versão.Ver capítulo final.

87
grande culpado foi o goleiro Barbosa.143 O terceiro culpado, Juvenal, outro

negro, foi apontado pelo técnico Flávio Costa.

“Assim, três pretos foram escolhidos como bodes expiatórios:

Barbosa, Juvenal, Bigode. Os outros mulatos e pretos ficaram de fora:

Zizinho, Bauer e Jair da Rosa Pinto”.144 O fato de outros negros e mulatos

não terem sido culpabilizados torna pelo menos ambígua a idéia do

recrudescimento do racismo cunhada por Mário Filho. O recrudescimento do

racismo poderia ser relativizado. Porém, a narrativa prossegue tentando

demonstrar que a derrota de “16 de julho” fizera reacender o debate e os

preconceitos em torno da raça. Os brasileiros se acusavam de ser uma sub-

raça, uma raça inferior, uma raça de mestiços. O quadro do recrudescimento

do racismo não está claro, pois uns são acusados, outros esquecidos. O

povo sente-se inferiorizado e ao mesmo tempo elege como herói um

adversário à sua imagem e semelhança. A narrativa apresenta muitas

ambigüidades:

“Era o que dava, segundo os racistas que apareciam aos montes,


botar mais mulatos e pretos do que brancos num escrete
brasileiro. Mas, ao mesmo tempo que se observara esse
recrudescimento de racismo, o brasileiro escolhia um ídolo às
avessas: Obdúlio Varela, mulato uruguaio, de cabelo ruim”.145

O grande herói do jogo teria sido Obdúlio Varela. “E o brasileiro se

esquecia, ou talvez não se esquecesse, pelo contrário, que Obdúlio Varela,

143
Mário Filho, no capítulo “A Provação do Preto”, preparou o terreno, indicando que suspeitas eram
levantadas sobre a capacidade moral e psicológica dos negros, principalmente para ocupar a posição
de goleiro.
144
NFB, (1964), p. 335.
145
Idem, ibidem.

88
era mulato”.146 Retorna a interpretação freyreana: os heróis brasileiros são

de barba e cabelo carapinha. Mário, ao retomar essa interpretação,

consegue tornar ainda mais frágil a idéia do recrudescimento do racismo,

pintada em tons fortes na narrativa.

“Por uma coincidência todo ídolo nacional do futebol brasileiro


tinha sido um mulato. Um mais claro, claro mesmo, de um cinza
desbotado e de olhos verdes: Artur Friedenreich. O outro mais
escuro, quase preto, ou preto, pelo menos na cor que herdara da
mãe. Do pai português apenas lhe ficara o nariz arrebitado. O
cabelo era ruim, como o de Friedenreich que tinha que amansá-lo
toda vez que ia jogar.(...)

Secretamente o admirávamos mais do que tínhamos admirado


a Friedenreich e a Leônidas: porque tinha tudo o que nos faltara
naquela tarde de luto nacional de 16 de julho”.147

Mário indica que se Obdúlio Varela fosse brasileiro seria o novo

herói do nosso futebol, pois o “trono” estava vago desde Leônidas. Teriam

até aparecido grandes jogadores de futebol, alguns mulatos, outros pretos,

mas nenhum tinha se elevado à condição de herói. A derrota de 16 de julho

teria se tornado um empecilho psicológico para o brasileiro escolher um

herói.

De fato, o que fica explícito é que Mário Filho acaba por reacender,

neste contexto, o inimigo que impede a unidade da nação. Como já visto,

Mário Filho suprimiu os parágrafos e notas do texto original sobre o fim do

racismo, para que pudesse, ao atualizar sua “história”, indicar mais uma vez

o risco da cisão ou da quebra de unidade pelo preconceito racial. Na

146
Idem, p. 336.

89
construção das identidades nacionais, o inimigo (interno ou externo) deve

sempre estar vivo para não colocar em risco a quebra da coesão ou

unidade. O recrudescimento do racismo deve ser relativizado e lido, como

dito anteriormente, como uma estratégia da estrutura da narrativa que

anuncia dano, perseguição, injustiça, separação, para depois apresentar a

vitória dos injustiçados e o retorno da unidade. O tema do recrudescimento

do racismo será retomado no capítulo final.

Após a fatídica derrota, a narrativa torna os jogos internacionais,

realizados por times brasileiros, uma questão de afirmação da “raça

brasileira”. A vitória do Vasco sobre o Peñarol do Uruguai, em 1951,

transformou-se numa espécie de vingança e afirmação do futebol

brasileiro.148 Contudo, a tragédia ainda não tinha sido esquecida:

“Não se perdoava 16 de julho. Quem sabe porque, naquela tarde


do desastre, o brasileiro se sentiu, que se sentiu, Barbosa,
Bigode e Juvenal. Os brancos culpando a cor, o que não
adiantava de nada. Culpando também a raça. A começar por
Pedro Álvares Cabral que descobrira o Brasil”.149

Com o início do Pan-americano no Chile, dois anos depois, o Brasil

entraria noutro desafio para reerguer-se da derrota. O treinador da seleção

no Pan, Zezé Moreira, adotava um sistema defensivo, não muito do agrado

do brasileiro. Jogar defensivamente, para o brasileiro, era antifutebol. O

futebol nacional era aquele das “Touradas de Madri”, que fazia o brasileiro

entrar num clima de “embriaguez dionisíaca”, de acordo com as palavras de

147
Idem, ibidem.
148
Idem, p. 343. O jogo foi realizado em 8 de abril de 1951.

90
nosso autor. Zezé Moreira ainda piorou sua imagem depois do empate com

o Paraguai, num Sábado de Aleluia. Mário Filho, no exagero da narrativa, diz

que os postes do Brasil amanheceram com “judas” de Zezé Moreira. O

quadro estava por mudar com o decorrer da competição.

No Pan-americano, o Brasil voltaria a enfrentar o Uruguai. O jogo foi

encarado como um desafio, como uma vingança do Dia da Vergonha. O

Brasil venceu o Uruguai por 4 a 2, mas, segundo Mário Filho, o escore do

jogo não teria tido importância. O que teria importado, nesta vitória, foi a

forma pela qual o Brasil havia vencido.

“E o Brasil ganhou em tudo: no futebol, no pontapé, no safanão,


no bofete. Baixara em Ely do Amparo o espírito do Grande
Capitão. Era preto e fazia questão de mostrar que preto não fugia
da raia. Exagerando um pouco para vingar Barbosa e Bigode.
Para acabar com aquela história de que o preto é que tinha
deitado tudo a perder em 16 de julho de 50. O preto brasileiro,
porque o herói uruguaio fora o mulato Obdúlio Varela.”150

Segundo Mário Filho, a superioridade do futebol dionisíaco não

estaria em dúvida. “A dúvida que existia era outra: a do brasileiro não

agüentar na hora agá”.151 Mas, a vitória no Pan-americano e os safanões

que Ely do Amparo distribuíra nos adversários representariam a reafirmação

do negro. O brasileiro não poderia ser visto como uma raça que na hora

“agá” falhava. O inimigo, reacendido pelo recrudescimento do racismo,

começava a ser vencido.

149
Idem, p. 345-6.
150
Idem, p. 351.
151
Idem, p. 352.

91
Contudo, segundo a descrição épica de Mário Filho, a vitória não era

só dos negros, mas de todos os brasileiros que desejavam afastar o

fantasma da derrota de 50. O exemplo fornecido pelo autor foi o

comportamento de Nilton Santos, que não havia jogado em 50, “mas herdara

o rubor do Dia da Vergonha”:

“O placar estava de quatro a um, faltava apenas um minuto para


acabar o jogo. Mário Américo esticava um dedo, lá longe, para
mostrar que o jogo ia acabar num minuto. Foi quando Nilton
Santos viu dando sopa, perto dele, o autor da vitória uruguaia, em
50: Gigghia.

Podia tomar-lhe a bola, dar-lhe um drible, fazer o que sempre


fazia, fingir que ia para um lado e ir para o outro. Não fez nada
disso: encheu o pé para chutar Gigghia.

Era pênalti. Nilton Santos nem se preocupou. Quatro a um ou


quatro a dois, que diferença fazia? Mas chutara Gigghia. Os
fantasmas uruguaios não iam mais atormentar as meias-noites do
futebol brasileiro.

Foi a vitória que lavou o peito de todo o Brasil. Daí a recepção


aos heróis do Pan-Americano: de campeões do mundo. Maior do
que a dos pracinhas quando voltavam da guerra”.152

Não posso deixar de chamar a atenção para o fato de a narrativa de

Mário Filho transformar uma falta, que resultou num pênalti, em expressão

de vingança nacional. A imaginação de Mário Filho é fantástica, pois

consegue construir drama de algo que parece sem muito significado. O

romancista consegue, com sua arte, transformar o comum, o cotidiano, em

belo ou sublime. “O curioso é que [após o Pan-Americano] o lugar de ídolo

nacional, antes ocupado por Arthur Friedenreich e Leônidas da Silva,

92
continuou vago”.153 Por que não surgiu nenhum candidato a herói depois

deste feito? Mário Filho arma o fato do Pan para matar “dois coelhos com

uma só paulada”. Aproveita para dizer que o brasileiro tem um espírito

antiviolência e prepara o terreno para apresentar o herói que substituiria

Leônidas. O jogo contra o Uruguai no Pan, embora tivesse caráter de

vingança, foi ganho com as mesmas armas que o adversário utilizou em 50.

A vitória no Pan, apenas teria satisfeito o desejo de vingança, mas não teria

convencido o brasileiro. O futebol brasileiro seria eternamente aquele das

“Touradas de Madri”: “Solto em campo, desinibido. Jogando ao som de uma

marcha de carnaval”.154 Assim, a afirmação nacional e a identificação do

herói só poderiam realizar-se caso o triunfo brasileiro tivesse o mesmo peso

da perda da Copa de 50. Por esta razão, Mário Filho tece a rede lentamente

para anunciar o grande triunfo e o herói nas Copas de 58 e 62.

O ídolo deveria confirmar a tese freyreana e representar as “virtudes

brasileiras”: arte, criatividade, improvisação, malandragem e não-violência.

Observe-se que grandes ídolos do futebol brasileiro poderiam ser

classificados como brancos (Telê, Danilo Alvim, Ademir Menezes, Heleno de

Freitas), mas Mário Filho constrói sua narrativa sem perder de vista a

máxima dos santos ou heróis de barba e cabelo carapinha. A identidade

brasileira confunde-se com miscigenação, pois o relacionamento inter-étnico

torna-se o mecanismo explicativo da singularidade e da qualidade do futebol,

do samba e do carnaval. Na narrativa de Mário Filho esse tipo de construção

152
Idem, p. 352-3.
153
Idem, p. 354.
154
Idem, ibidem. Carnaval, samba, futebol são elementos formadores da identidade nacional e, por
extensão, caracterizam o espírito não-belicista ou cordial do brasileiro.

93
é evidente. Por esta razão, o futebol também não poderia prescindir do

negro, que, perseguido, marginalizado, ressentido, mas dotado de um estilo

inigualável, dá os contornos ao estilo futebolístico que se denomina

brasileiro e torna-se medida da identidade nacional.

Mário Filho segue, em “a vez do preto”, afirmando que, apesar da

reabilitação do negro no Pan-americano, o racismo não estaria totalmente

vencido. Continua contando casos de jogadores e treinadores pretos e

mulatos que, em condições de igualdade com brancos, eram preteridos.

Com os jogadores existiria uma particularidade, segundo Mário Filho: “[Se]

era preto e subia, não ficava branco, mas perdia a cor. Por mais preto que

fosse se misturava com os brancos, como se branco fosse”.155 De fato, este

capítulo narra a ideologia da branquidade sem abandonar a interpretação do

singular racismo brasileiro, que se esvai ou se pulveriza diante de um negro

que ocupe uma posição social privilegiada.

A idéia de que o preto perdia a cor é observada em uma pitoresca e

quase jocosa anedota “vivida” por Robson, que, por coincidência ou não,

jogava pelo Fluminense como Carlos Alberto o “pó-de-arroz”. A frase de

Robson, conhecida através do NFB, se eternizou em textos nacionais e

internacionais para falar do racismo no esporte brasileiro: “Eu já fui preto e

sei o que é isso”: 156

155
Idem, p. 358.
156
Alguns dos “novos narradores” lidam com a descrição de Mário Filho, que mais parece uma piada
que indica um tipo singular de racismo, como uma prova do racismo brasileiro sem muita fineza
analítica. Ver como exemplo o livro de Esteves (1977, p. 147).

94
“Uma noite Benício Ferreira Filho levava, no seu Cadillac, Robson
e Orlando, o Pingo de Ouro, para o Fluminense. A rua Soares
Cabral, como sempre mal iluminada.

No volante Benício Ferreira não parava de falar e de rir, satisfeito


da vida. (...)

E com dois jogadores do Fluminense ao lado dele, no banco da


frente, Benício Ferreira Filho se sentia mais feliz. Pode ter sido
culpa da satisfação descuidada dele, da má iluminação da rua
Soares Cabral. E pode ter sido também a cor do casal de pretos,
de roupas escuras, que surgiu, como do chão, ou dentro da noite,
diante do Cadillac.

O preto e a preta, enlaçados, estavam bêbados. Tanto que


ziguezagueavam, lentamente, como se a rua Soares Cabral fosse
deles. Benício Ferreira Filho viu o casal de pretos ainda a tempo.
Enterrou o pé no freio, até o fundo.

O Cadillac parou de estalo. (...) Mas a carroceria foi para frente


antes de vir para trás. Orlando foi projetado fora do banco. Bateu
com a cabeça no parabrisa do Cadillac, quando passou a mão
pela testa um galo estava lá.

Então Orlando teve uma explosão. O mínimo que gritou para o


casal de pretos foi: - “Seus pretos sujos.

E por aí a fora. (...) Orlando enfureceu-se ainda mais. Quem o


acalmou foi Robson:

-Não faz, Orlando. Eu já fui preto e sei o que é isso.”157

Segundo Mário Filho, Robson não se sentia preto, mesmo sabendo

que tinha nascido preto. “Como podia ser preto se pertencia à família do
158
Fluminense?” (Se o argumento vale para Robson, por que não valeu na

época em que descreveu Carlos Alberto?) A descrição do causo Robson

pode indicar, no máximo, a representação da singularidade do racismo

brasileiro.

157
NFB, (1964, p. 358-9).
158
Idem, ibidem.

95
“As posições se invertiam, como se o preto pudesse até olhar de
cima. Bastava que a barreira se rompesse para que o branco se
orgulhasse de passar o braço em volta do ombro do preto. De se
mostrar com ele, na sede do clube, diante dos outros sócios que
não tinham a mesma felicidade, ou nas ruas, despertando inveja
nos passantes”. 159

A excursão realizada à Europa em 1956, como preparação para a

Copa de 58, foi um desastre em termos de resultados, e teria reacendido um

modesto pudor racista. Mário diz que tal pudor funcionou como dissimulação

da péssima campanha do Brasil em Londres. Neste contexto, conta a

suposta gafe do negro Sabará:

“Sabará entrou no salão de chá do Lane Park Hotel de Chinelo,


toalha, macacão, camisa e gorrinho de marinheiro (...)
Era hora dos ingleses ou, melhor, das inglesas, sobretudo das
velhas inglesas. Vendo, de repente, surgir, emoldurado na porta
aberta do salão de chá, aquele preto de macacão e chinelos, as
velhas inglesas deixaram cair as xícaras que seguravam,
religiosamente, nas pontas dos dedos encolhidos, enquanto
levavam à boca a outra mão, livre, para sufocar o grito bem inglês
de repulsa: - Shocking!

Aquele shocking ecoou no Brasil. Como é que o Brasil mandava,


numa representação esportiva, um Sabará? Que é que os
ingleses pensariam de nós?

Os ingleses estavam chocados também. Desde 50 o futebol era o


brasileiro.(...) O futebol brasileiro, era o que se lia na folhas
londrinas, para maior vergonha nossa, tinha tudo de um circo: o
comedor de fogo, o engolidor de espadas, os acrobatas, os
trapezistas, até os palhaços. Só não tinha essa coisa elementar
que era um time.

Nada, portanto, podia trazer o prenúncio do que seria 58 para o


futebol brasileiro. As derrotas colocavam em dúvida, novamente,
a fibra do brasileiro em geral, e do negro em particular.”160
159
Idem, ibidem.
160
Idem, p. 373.

96
Observe-se que a má campanha da seleção brasileira transforma-se

em questão racial na narrativa do NFB. Nos novos capítulos da segunda

edição, Mário Filho arma um clima de tensão em torno da identidade

nacional. O negro, a partir da Copa de 50, viveria todos os problemas de

perseguição, injustiças, preconceito, e só se afirmaria definitivamente com a

vitória na Copa de 1958.

É na figura de Pelé que, definitivamente, se vai demonstrar que o

negro poderia ser negro e ter orgulho de sua raça. A narrativa indicaria Pelé

com mais atributos de nobreza que os heróis anteriores. Friedenreich e

Leônidas da Silva, também negros, se diferenciariam de Pelé por não terem

o mesmo orgulho da cor ou da raça.

De certa forma, vários negros haviam passado pelo futebol

brasileiro, e quando ascendiam socialmente eram embranquecidos. A

ideologia da branquidade indica que a mobilidade social corresponde à

“mobilidade racial”. Entretanto, Pelé, na narrativa, teria ascendido

socialmente sem requerer o embranquecimento.

Copa de 1958. Nela os novos heróis do futebol brasileiro seriam

erguidos. A narrativa inicia-se de forma dramática, com um toque de tensão

e suspense. Mário instila a suspeita de que a intenção da comissão técnica

era jogar com o time mais branco que pudesse, mesmo tendo convocado

97
negros.161 A escalação da equipe brasileira nos primeiros jogos poderia ser

vista como prova do suposto racismo.

A Confederação Brasileira de Desportos, segundo Mário Filho,

pretendia levar o menor número de pretos para a Suécia por dois motivos

básicos. Primeiro, para não levar pretos como Sabará, que denegririam -

palavra claramente racista - a imagem do Brasil. Segundo, porque seguiam

a tese de que os pretos não se adaptariam ao clima nórdico, muito embora o

período da Copa fosse no verão europeu. Mas, apesar dessas “teses”,

pretos e mulatos foram convocados, o que indicaria, segundo Mário, que não

houve racismo.

Foi a “preocupação de embranquecer o escrete” nos primeiros jogos

que teria indicado o suposto racismo. No primeiro jogo, contra a Áustria, o

único negro a ser escalado foi Didi, cujo reserva também era negro. No dizer

e no desdizer, Mário Filho faz o jogo da ambigüidade, da dúvida e do

suspense; o herói não pode triunfar sem provações. A dúvida é criada, pois

a convocação dos jogadores era uma prova do não-racismo, mas, ao

mesmo tempo, a escalação dos primeiros jogos indicava preterimento do

negro. O jogo da narrativa de Mário é realizado ao sabor de interpretações

ambíguas, contradições, sem que perca a fluência e a estética.

Racismo e preconceito ora assumem o foco da narrativa, ora o

fundo. A estrutura da narrativa, até aqui traçada, demonstra que racismo,

preconceito, perseguições são sempre identificados como ameaça que

impede a realização da unidade, a realização da nação via futebol. Isto é, se

161
Observe-se que a ameaça do branqueamento é sempre levantada por Mário Filho. Poder-se-á ver na
segunda parte deste estudo que os “novos narradores” continuam a sugerir este tipo de ameaça.

98
num momento Mário Filho aponta racismo e preconceito, no momento

seguinte o foco se desloca, relativizando o racismo e o preconceito. Por

exemplo, depois de instilar a idéia conspiratória de embranquecimento na

seleção de 58, cria racionalizações que tentam explicar por que Pelé e

Garrincha (ambos qualificados como negros) estavam fora dos primeiros

jogos. Pelé estaria fora por falta de condições físicas e Garrincha fora

retirado do time em função da comissão técnica julgá-lo irresponsável. Num

jogo amistoso, um mês antes da Copa, Garrincha teria driblado toda a

defesa italiana, inclusive o goleiro, mas ao invés de marcar o gol esperou o

beque retornar, deu mais um drible, o beque bateu com a cabeça na trave,

todos riram, e só aí empurrou a bola para o gol. O show proporcionado por

Garrincha teria agradado a todos, menos à comissão técnica, que o retirou

do time por ver naquela cena a prova de sua irresponsabilidade e

imaturidade; enfim, pouca seriedade e profissionalismo.

O jogo contra a Rússia é descrito como o marco da arrancada do

Brasil rumo ao triunfo maior. Segundo Mário Filho, Didi, Nilton Santos e

Belini procuram a comissão técnica para propor a entrada de Garrincha, pois

acreditavam que sem ele não seria possível ganhar a competição. Pelé não

tinha sido escalado por não conseguir jogar dois tempos de treino, mas Didi

convencera Pelé a esforçar-se para treinar dois tempos. Com Garrincha e

Pelé “o escrete tomou quase a feição definitiva, escurecendo”.162 Aqui fica,

mais uma vez, evidenciada a equação de Mário Filho, de que o futebol só é

brasileiro quando se inclui o negro ou se “escurece a equipe”; o Brasil só é

162
NFB (1964, p. 379).

99
expressão do Brasil quando misturado racialmente. Assim, o “futebol de

laboratório da Rússia”, o futebol “científico”, desmanchou-se frente à arte do

futebol brasileiro, arte que nasceu da mistura, do encontro de diferentes

raças, na narrativa do NFB.

O futebol, com sua estética toda especial, expressaria para o mundo

a identidade do brasileiro. Identidade que define-se pela mistura: mistura de

racionalidade e irracionalidade, mistura de Apolo e Dionísio, mistura “do café

com leite”. Diz Mário Filho: “Viu-se então, em pleno esplendor, o melhor e o

mais belo futebol do mundo. O escrete brasileiro, já com a fisionomia

definitiva, ou quase, pois faltava Djalma Santos, o Nariz, amorenado, nem

preto nem branco, café com leite, tornara-se irresistível”.163 O suposto

inimigo, o embranquecimento do time principal em 1958, fora derrotado mais

uma vez.

É neste tipo de construção que se explicaria a vitória do Brasil,

Campeão do Mundo em 1958. A festa no Brasil foi total e acabaria por

revelar os novos heróis do futebol brasileiro. A crônica esportiva européia

havia escolhido Didi como o melhor jogador do mundo. Mas o brasileiro não

o escolheu como o ídolo. Os heróis, os ídolos, eram dois: Pelé e Garrincha.

Pelé fora declarado “Le Roi Pelé” e Garrincha era uma espécie de Charles

Chaplin do futebol. Pelé, preto, Garrincha, mulato, ocupariam o lugar dos

heróis mulatos e pretos deixado por Friedenreich e Leônidas. Mário Filho

constrói, assim, a saga do negro no futebol na tradição dos santos e heróis

de cabelo e barba carapinha.

163
Idem, p. 380.

100
Copa de 62. Mário Filho, depois de apresentar Pelé e Garrincha,

constrói um ideal de herói, comparando-os e hierarquizando-os. A narrativa

passa ao contexto da Copa de 62: Garrincha era tão herói quanto Pelé, mas

não podia ser Rei. Pelé já tinha sido declarado Rei em 58, tanto no exterior

quanto no Brasil.164 Bastava o anúncio de que jogaria “para que qualquer

estádio do mundo se tornasse pequeno”.165 Mas, na Copa de 62, Pelé

machucou-se e “por isso [Garrincha] foi muito mais Pelé, no bi, do que

Garrincha”.166 Assim, Garrincha teria assumido a “coroa” provisoriamente,

mas não dava para Rei: “Faltava-lhe o mínimo de vocação. Talvez se visse

ao espelho, de coroa na cabeça, e se perguntasse, como no samba: - Que

rei sou eu? Era a resposta que dava quando o saudavam como Rei, lá no

Chile”.167

A narrativa constrói um ideal de herói em Pelé, como uma espécie

de retórica da interação cultura-natureza. Pelé é Rei. Garrincha não dava

para ser Rei, pois seria a própria expressão da força selvagem da

natureza.168 Garrincha na narrativa pode ser simbolizado como potencial

inexplorado e inesgotável da natureza. Uma riqueza natural, que poderia se

perder. Pelé, ao contrário, significa o equilíbrio entre cultura e natureza. A

imagem de Pelé representa o ideal de Brasil, o equilíbrio entre Apolo e

Dionísio, enquanto Garrincha seria apenas o Brasil inexplorado e selvagem,

apenas Dionísio. Vejamos a construção de Mário Filho:

164
Idem, p. 393
165
Idem, p. 395.
166
Idem, ibidem.
167
Idem, ibidem
168
A visão da força da natureza em Garrincha afeta a construção de Rui Castro no livro A estrela
solitária (1996).

101
Garrincha
“Era um milagre ele jogar futebol. Nunca tinha saído de Pau
Grande, na Raiz da Serra. Fora lá que aprendera tudo. Como?
Menos nas peladas, onde jogava em qualquer posição, exceto na
ponta direita, do que no mato, onde ia caçar.

Não largava o bodoque. Era o brinquedo mais querido. Dormia


com ele enrolado no pescoço, como um cordão de ouro com uma
medalha de S. Judas Tadeu.

Só se compreende Garrincha identificando-o com o caçador. Ou


melhor com a caça. Foram os passarinhos, as pacas, as gambás
que lhe ensinaram o melhor dele em futebol.

O drible de Garrincha é fuga de bicho ou de passarinho. Mais de


bicho do que de passarinho.(...)

Quantas vezes um bicho o driblara e o jogara no chão, de pernas


para o ar? Garrincha, diante de um marcador, se sentia como
uma paca, um gambá. Não olhava para os olhos do marcador:
olhava para as pernas dele. E de repente fingia que ia. Jogava o
corpo para um lado, anunciando o drible. Não ia, só ia quando o
marcador descambava o corpo para o lado que ele queria. Então
enveredava pelo outro.

Era queda na certa. O marcador perdia o equilíbrio, tentava


retomá-lo, não podia mais e desabava, de pernas para o ar. Nada
mais simples. Tão simples, tão infalível que provocava sempre a
surpresa. Era como se alguém visse uma casca de banana e
levantasse o pé para não pisá-la e a pisasse, infalivelmente” .169

Pelé
“Pelé teve uma escola de futebol. (...)

Dondinho foi o primeiro professor. Embora gostasse de enfeitar


uma jogada, para mostrar que era o Dondinho falado ao filho,
desaconselhava a firula.

-‘Jogue simples, Dico, quanto mais simples melhor ’.

O que em Garrincha é instinto, em Pelé é raciocínio. Não faz uma


jogada que não seja pensada. É pensada de olhos abertos,

169
NFB, (1964 p. 390-1).

102
aqueles olhos de criança, escancarados, descobrindo o mundo.
O campo se descortina diante dele. E as jogadas vão surgindo
em turbilhão. É só escolher uma delas, a melhor. Tem que decidir
rápido, numa fração de segundo. (...)

O que surpreende em Garrincha é a mesmice. Em Pelé é o


contrário. Quando a bola vai para Garrincha todo mundo se
prepara para rir. Olhe-se em volta quando a bola for para Pelé.
Os olhos se iluminam, as bocas se abrem prontas para o
espanto. É como se fôssemos presenciar um mistério se
desvendando.

A bola está entre os dois pés de Pelé. Corre com ela assim. Daí a
perplexidade dos marcadores. Qual é o pé que Pelé vai usar?
Pode usar um ou outro, indiferentemente. E para fazer o que
ninguém prever.”170

Mário Filho constrói as contraposições entre Pelé e Garrincha. O

primeiro reúne as qualidades estéticas, racionais e práticas no seu futebol, e

é um ser moralmente elevado na sua vida pública e privada. Pelé é o maior

herói, para Mário Filho. Ele era de origem familiar humilde, mas teria tido

afeto, carinho e uma sólida base de formação moral. Garrincha não teve na

família bom modelo de moralidade. Era desajustado e desregrado com o

álcool, tal como havia sido seu pai. O futebol de Garrincha era a expressão

da natureza; talvez tivesse a sabedoria da natureza, mas não a

racionalidade, e por isso seria exuberante e antieconômico. Por estas

razões, Pelé se torna Rei, e Garrincha apenas um herói ou “rei transitório”

em 1962.

Mário Filho define o ideal de herói a partir das trajetórias individuais,

do comportamento público e privado e, sobretudo, da raça. Seu ideal de

herói é estético, racional-prático e moral. Pelé seria o equilíbrio; Garrincha, o

103
desajuste. “Pelé era o Rei. Nunca se escolheu melhor ídolo. Ou um Rei para

reinar no futebol. A diferença entre Pelé e Garrincha. Pelé agarrou a coroa e

colocou-a na cabeça. Não para exibi-lá: apenas para que ninguém a

tirasse.”171

Pelé é o produto final d’O negro no futebol brasileiro. Ainda que não

seja dito explicitamente, infere-se que o futebol de Pelé não era preto nem

branco, era híbrido, miscigenado. Pelé é o equilíbrio entre o irracional do

negro (dionisíaco) e o racional do branco (apolíneo), apontado por Gilberto

Freyre no prefácio da primeira edição. Pelé representa a total ascensão do

negro no futebol, mas não teria perdido a cor e nem esquecido a origem.

Pelé jamais quis, na versão de Mário Filho, embranquecer como Robson.

Assumia-se como preto e orgulhava-se de sua família de pretos, passando,

em função de seu orgulho racial, a ser chamado pelos outros jogadores

como o Preto, o Crioulo.

“Assim Pelé cumpria uma missão. A de exaltar a cor de Dondinho


e dona Celeste, de vovó Ambrosina, e de tio Jorge, de Zoca e
Maria Lúcia. Para permitir que os pretos, brasileiros e de todo
mundo, pudessem ser livremente pretos.

Enquanto isto não se realizar, Pelé cresce como uma grande


figura solitária. A do Preto. A do Crioulo, como todos os pretos o
chamam para se acostumarem a ser pretos”172

Pode-se dizer que a narrativa do NFB, vista longitudinalmente, é

uma construção da identidade nacional, via a saga do negro no futebol. O

170
Idem, p.398-9.
171
Idem, p. 392.
172
Idem, p. 402.

104
estilo nacional, para Mário Filho, possuía relação de “parentesco” entre o

futebol mais inglês futebol de Charles Miller e o brasileiríssimo Leônidas da

Silva. Segundo Mário, Charles Miller, por ter inventado o charles173, seria o

avô da bicicleta inventada por Leônidas. O futebol brasileiro seria a

expressão da mistura de brancos, pretos e mulatos nos times de futebol e na

seleção brasileira.

O futebol brasileiro era Garrincha, era Pelé. Garrincha é Dionísio, e

é, assim, parte do Brasil e das influências negras e índias marcadas tanto

em seu futebol quanto em sua personalidade. Pelé é o Brasil, pelo menos o

idealizado, sendo seu futebol a mediação entre Apolo e Dionísio, entre

estética e razão. Seu futebol é híbrido. O Brasil seria Pelé, ou melhor, o

Brasil teria em Pelé aquilo que poderia ter de melhor. Pelé fornece a

referência do dever ser do Brasil. Pelé é, na narrativa, a possibilidade de

afirmação do Brasil negro e do Brasil de várias cores. Aquele Brasil que

quando engloba o negro pode realizar-se como nação.

Até aqui se tentou passar a visão global do NFB, em suas duas

edições, indicando as possíveis articulações deste texto com o pensamento

freyreano, com a construção de identidade nacional e com o gênero literário

do romance, construído a partir da estrutura do conto. Gilberto Freyre, como

já indicado, faz o prefácio do NFB, na primeira edição, o que deixa explícita

a vinculação ou proximidade entre estes dois autores, mesmo nos capítulos

incluídos na segunda edição. A seguir, trabalho as relações entre o

pensamento freyreano e o NFB.

173
Como visto no Capítulo 2, trata-se de uma jogada supostamente criada por Charles Miller, segundo
Mário Filho, que consiste num chute de calcanhar.

105
106
4 - GILBERTO FREYRE E O NEGRO NO FUTEBOL

4.1 - O Prefácio de 47

O NFB foi escrito, como diz o próprio autor, em 1942, na “Primeira

Fila” do jornal O Globo, em um período em que Getúlio Vargas e intelectuais

brasileiros estavam inventando uma tradição positiva ou favorável do que

era ou deveria ser o Brasil.174 Questões sobre a identidade nacional - O que

foi o Brasil? O que somos e qual será o futuro? O que é ser brasileiro? -

estavam na pauta do debate, pelo menos desde a independência do Brasil,

sendo agudizadas no período getulista. A idéia de inferioridade racial -

assentada nos alicerces de Gobineau - não era a crença desses intelectuais

que estavam inventando a nacionalidade nos anos 30. Pelo contrário, a

inferioridade seria o fantasma a se derrotar nas mentalidades que persistiam

com o imaginário do século XIX. Para tanto, intelectuais brasileiros

colocaram-se no terreno do relativismo cultural, pois a descoberta das

diferenças, das singularidades, indicava que o Brasil e seu povo deveriam

descobrir seu próprio caminho.

A partir da Semana de 22, do samba já como expressão da música

brasileira, da publicação de obras que descreviam o ser e o dever ser do

Brasil - Casa-grande & senzala (1933), Sobrados e mucambos (1936) e

Raízes do Brasil (1936) -, podia-se pensar, mais positivamente, os destinos

desta “imensa e rica terra” e de sua gente.175 Aqui fundava-se,

174
Cf. Vianna (1995). Ver também Araújo (1994).
175
Um dos alicerces da identidade brasileira é a representação da grandiosidade territorial e riqueza
do Brasil. Entretanto, desde Alberto Torres pode-se dizer que esta idéia de riqueza da terra é apontada
como falsa, mas a concepção de que o Brasil possui riquezas inesgotáveis é um traço cultural que

107
definitivamente, uma “nova civilização”, para se usar um termo dessa

tradição.

O NFB pode ser visto como mais um dado na configuração daquele

Brasil que inventava sua identidade com base na diferença, na

singularidade. O pano de fundo do NFB é a construção nacional. As cisões

que bloqueavam a vida intelectual, cultural e política do país deveriam ser

superadas em nome da unidade nacional. É no clima da Livraria José

Olympio, ou dos cafés do Rio de Janeiro, que o Brasil e suas coisas são

ditas, discutidas, e algumas escritas e publicadas.176 Dos “cafés”

vislumbram-se os “destinos” da civilização brasileira, os mesmos “cafés”

onde Mário Filho diz ter encontrado seus informantes para escrever as

primeiras linhas do NFB.

Quando publicou o NFB, Mário Filho convivia com poetas,

romancistas e escritores como Manuel Bandeira, José Lins do Rego,

Gilberto Freyre, entre outros. Como pode ser identificado, o livro é uma obra

produzida no clima de se pensar o Brasil. O tema raça, imbricado com o

desenvolvimento da cultura e da economia, ainda protagonizava boa parte

dos debates. O negro, o mulato, o índio e o branco europeu, suas relações e

cruzamentos, eram matéria-prima para se pensar a civilização que já se

instalara ou que ainda deveria surgir nos trópicos.

O texto busca inspiração a partir de um Brasil visto pelas lentes

teóricas de Gilberto Freyre, como já enunciado nos capítulos anteriores. Ao

se abrir o NFB, encontra-se o Prefácio assinado por Gilberto Freyre no ano

chega até nossos dias. A venda da Vale do Rio Doce em 1996 é um bom exemplo desse imaginário de
riqueza inesgotável. Sobre o assunto, ver Oliveira (1990).

108
de 1947. Freyre pode significar várias coisas como prefaciador do livro:

amizade, pretensões de validade e inspiração teórica.177 O tema racial, como

já dito, teria sido tratado em Casa grande & senzala (1933) e Sobrados e

mucambos (1936) como um dos fios de entendimento da formação da

sociedade brasileira. O NFB sofreria claramente a influência dessas obras,

podendo até ser pensado como uma espécie de “Sobrados e mucambos” da

história do negro no futebol, caso se guarde as devidas proporções de rigor

e profundidade.

O NBF tornou-se uma fonte de referência para os estudiosos que

escrevem sobre as relações entre futebol, racismo e identidade. Sua

utilização, contudo, é realizada de forma pouco crítica. O que, de certa

forma, espanta, é que a literatura do futebol que se nutre do NFB não

discute a influência de Freyre sobre o texto. Separar Mario Filho de Freyre,

não coloca o problema das influências e das relações, possivelmente reduz

os problemas daqueles que utilizam cegamente os dados do NFB para

confirmar uma interpretação, politicamente correta, de racismo e resistência

que ainda vigoraria. Ou seja, se tomam os fatos e causos de Mário Filho que

operam como provas da dimensão histórica do racismo, mas excluem-se as

possíveis interpretações de Mário Filho, ao estilo freyreano, no sentido de

superação do racismo. Os novos narradores apenas compartilham com

Mário Filho a visão da construção da identidade via futebol.

O não reconhecimento da relação intelectual entre Freyre e Mário,

ocorre, provavelmente, por verem em Freyre a figura de ideólogo da

176
Sobre o assunto, ver Velloso (1987). Sevcenko (1983-1983).

109
democracia racial. Lidam assim com a imagem “popular do pensamento

freyreano”.178 O “freyrismo popular” pode ser definido, por críticos ou

adeptos, como a idéia de que no Brasil não existe racismo; idéia que não se

pode atribuir a Freyre. Seu engajamento como intelectual e cidadão na luta

contra o racismo e na militância para aprovação da Lei Afonso Arinos (1951)

leva a supor que Freyre acreditava na existência do racismo no Brasil,

embora pudesse pensar na singularidade do racismo brasileiro e em formas

pacíficas de gradual superação.

O objetivo aqui é demonstrar como as categorias freyreanas estão

presentes no texto de Mário Filho. A edição de 1947 não só se nutriu do

pensamento freyreano, como também aderiu a um “freyrismo popular” ao

postular, antecipadamente, que no futebol “não havia mais nem o mais leve

vislumbre de racismo”.179

4.2 - Projetos que se cruzam...

Freyre começa o Prefácio de 47 dizendo que ali se encontrava “um

capítulo valioso da história do futebol no Brasil, que é também uma

contribuição valiosa para a história da sociedade e da cultura brasileira na

sua transição da fase predominantemente urbana”.180 Freyre lê o NFB como

uma história específica do futebol que se insere e se relaciona com uma

177
O prefácio de Gilberto Freyre no NFB será chamado de Prefácio de 47 para efeitos de referência.
178
Defini freyrismo popular na Introdução deste trabalho, Nota 3.
179
NFB, (1947, p. 293). No Capítulo 2 do presente trabalho foi demonstrado como Mário Filho retira
de seu texto a idéia de que o racismo teria acabado no Brasil.
180
Gilberto Freyre in: NFB. (1947, prefácio).

110
configuração histórico-cultural de um Brasil que tornava-se urbano, de um

Brasil que ele próprio havia descrito em Sobrados e mucambos.

As lentes que o guiam para pensar o futebol estão em suas próprias

obras, Casa-grande & senzala (CG&S) e Sobrados e mucambos (SM),

obras germinais de seu pensamento. Entretanto, é bom lembrar que Freyre,

mesmo antes de ter contato com o texto de seu amigo Mário Filho, já teria

dedicado ao futebol alguma atenção. Em 12 de dezembro de 1929, Freyre

publica no periódico A Província, sob o pseudônimo de Jorge Rialto, um

artigo intitulado “Fair Play”. Freyre critica, neste artigo jornalístico, a falta de

esportividade da mocidade brasileira, comentando as agressões ocorridas

em jogos no Rio de Janeiro. Em 1936, na primeira edição de SM, escreve

um significativo parágrafo sobre a ascensão do mulato nos esportes, no

Exército, na Marinha e nas Forças Públicas. No Diário de Pernambuco, em

1938, escreve “Foot-ball mulato”, onde sua linha de argumentação explicaria

o sucesso do futebol brasileiro na Copa de 38 pela forte presença de negros

na equipe que foi à França.181 Freyre refere-se especificamente às

qualidades do futebol brasileiro, que possui “um estilo que amolece em

danças e curvas as áridas técnicas do futebol europeu”.182 Em 1945, Freyre

escreveu Brazil: an interpretation, onde realizou comentários sobre a forma

dançada do brasileiro jogar futebol, forma adquirida pela presença de

elementos de dança africana que estariam entranhados racial e

culturalmente na sociedade brasileira.183 Pode-se identificar que Freyre,

além dos vínculos emocionais com o futebol, o vê como mais um elemento

181
Diário de Pernambuco, 17 jun.1938

111
de agregação à sua perspectiva teórica e ideológica.184 Quando escreve

suas grandes obras, o futebol já é um elemento inteiramente disseminado

em todas as camadas sociais. O futebol vindo da Inglaterra, reelaborado

culturalmente, havia recebido os contornos e as feições da cultura nacional.

No artigo “Foot-ball mulato”, fica evidente que ser brasileiro no

futebol ou em qualquer espaço social eqüivale a admitir a presença do

negro, sobretudo na figura do mulato.185 Observe-se que este pressuposto

está em Freyre e se reproduz no NFB (já identificado nos capítulos

anteriores).

“Um repórter me perguntou anteontem, o que eu achava das


admiráveis performances brasileiras nos campos de Strasburgo e
Bordeaux”.

Respondi ao repórter (...) que uma das condições de nosso


triunfo, este ano, me parecia a coragem, que afinal tivéramos
completa, de mandar à Europa um time fortemente afro-brasileiro.
Brancos, alguns, é certo; mas grande número, pretalhões bem
brasileiros e mulatos ainda mais brasileiros. (...)

O nosso estilo de jogar futebol me parece contrastar com o dos


europeus por um conjunto de qualidades de surpresa, de manha,
de astúcia, de ligeireza e ao mesmo tempo de espontaneidade
individual em que se exprime o mesmo mulatismo de Nilo
Peçanha foi até hoje a melhor afirmação na arte política.

Os nossos passes, os nossos pitu`s, os nossos despistamentos,


os nossos floreios com a bola, o alguma coisa de dança ou
capoeiragem que marca o estilo brasileiro de jogar futebol, que
arredonda e adoça o jogo inventado pelos ingleses e por eles e
por outros europeus jogado tão angulosamente, tudo isso parece
exprimir de modo interessantíssimo para psicólogos e os

182
Idem.
183
Freyre, (1945).
184
Freyre teria acompanhado o desenvolvimento do futebol assim como acompanhou e o viveu
glamour do início do século XX.
185
Cf. Soares e Lovisolo (1996).

112
sociólogos o mulatismo flamboyant e ao mesmo tempo malandro
que está hoje em tudo que é afirmação verdadeira do Brasil.”186

O texto expressa o orgulho pela boa campanha brasileira na Copa

de 1938. Freyre nomeia a campanha de triunfo dos brasileiros, triunfo que

resultou da incorporação maciça de pretos e mulatos na seleção. Para

Freyre, a comissão técnica teve a coragem de colocar na seleção a “cara”

daquele Brasil, preto e mulato, do qual as elites brasileiras tanto se

envergonhavam. E a prova estava ali, onde a parte rejeitada do Brasil

demonstrava seu valor frente às grandes nações. Freyre demarca as nossas

diferenças dos europeus, e com isso estaria inventando ou reforçando as

singularidades que acreditamos ter o futebol brasileiro e o Brasil. É possível

notar que estamos diante de um discurso que tenta descobrir a nação ou o

dever ser da nação - e, de fato, a nação não poderia desconsiderar o

“elemento afro-brasileiro”. Este sentimento de realização da nação via

futebol está estampado nas páginas dos jornais da época.187

O brasileiro é visto como astucioso, manhoso, hábil, ligeiro, isto é,

diante da adversidade dá um jeito. O imaginário que existe por trás desta

construção de identidade é que, magica ou criativamente, descobriríamos

nosso próprio caminho como nação quando aceitássemos o Brasil como ele

é. De certa forma, a construção é quase uma “terapêutica psicológica”, pela

qual o paciente é levado a aceitar-se. Apesar das adversidades, do

complexo de inferioridade e da distância que teríamos dos países

186
“Foot-ball mulato”, Diário de Pernambuco 17 jun.1938
187
Cf. Plínio Labríola, na palestra “Futebol e identidade nacional” realizada no Simpósio “Questões
Culturais do Futebol”, AIESEP- Congresso Mundial, 1997. Rio de Janeiro.

113
desenvolvidos, estávamos diante dos resultados da seleção de 1938,

afirmando o potencial da “civilização mestiça”. Freyre, na busca das

singularidades, inventa, ou apenas reforça, a intuição popular de que

“alguma coisa de dança ou capoeiragem” existia no futebol jogado pelos

brasileiros. Sugere uma espécie de semelhança estética entre futebol,

samba e capoeira. Entretanto, a sugestão se torna, pelo discurso popular ou

intelectual, uma verdade ou uma “essência” da cultura brasileira. A crença

chega a tal ponto que há a pretensão de haver ocorrido uma transferência

da experiência corporal do samba e da capoeira para o futebol brasileiro. Tal

construção está amplamente disseminada no senso comum, e é legitimada

acadêmica ou cientificamente, sem que provas ou argumentos plausíveis

sejam apresentados.188 Pode-se dizer que o devaneio de Feyne sobre o

futebol auxiliou a criar outro campo de aplicação do “freyrismo popular”.

O futebol, se pensado a partir de SM, teria sofrido o mesmo

processo de adaptação que os demais elementos culturais importados. Esse

esporte, elemento da cultura anglo-saxã, tendo se conservado inicialmente

entre estrangeiros e entre as elites de toga, artificial à nossa cultura, não

tardaria a ser amolecido quando o negro e o mulato decidiram encarar a

bola. Essa seria, provavelmente, a interpretação freyreana do futebol no

Brasil que se reproduz no NFB.

Futebol, metrópole, urbanização são marcas de um estilo de vida

que certamente, para Freyre, representariam um processo de continuidade-

descontinuidade da desintegração do sistema patriarcal. Não é à toa que

188
Alguns artigos deste tipo são analisados na segunda parte deste estudo.

114
Freyre escreve, no Prefácio de 47, que o NFB descrevia o Brasil na sua fase

de transição predominantemente urbana, tanto do ponto de vista cultural

quanto do social.

Freyre tinha um projeto de realização pessoal que incidiu na

formação nacional. Era um homem que desejava deixar sua marca no

tempo, mediante o trajeto intelectual que escolheu. Desejava tornar o Brasil

um país que se orgulhasse de suas diferenças, do que tem de melhor. A

miscigenação em larga escala no Brasil, que no passado fora vista como um

empecilho ao progresso e motivo de vergonha, torna-se um desafio para o

pensamento de Freyre.189 Observe suas palavras: [E]ra como se tudo

dependesse de mim e dos de minha geração; da nossa maneira de resolver

questões seculares. E dos problemas brasileiros, nenhum que me

inquietasse tanto como o da miscigenação.190 Seu projeto foi buscar, no mar

de contradições, violências e antagonismos próprios do desenvolvimento do

“novo mundo”, o que era ser brasileiro, isto é, tornar aquilo que era visto

como vergonha e explicação do atraso em motivo de orgulho e identidade.

A separação entre raça e cultura fora um aprendizado que herdara

de Franz Boas. Freyre comenta que “[F]oi (...) Boas que me revelou o negro

e o mulato no seu justo valor -- separados dos traços de raça os efeitos do

ambiente da experiência cultural”.191 A iluminação teórica conseguida nos

Estados Unidos o fez entender a miscigenação como uma marca de

vigorosa experiência cultural que aqui se havia instalado. O vigor da

expressão cultural decorreria justamente do encontro da diversidade de

189
Skidmore (1976; 1994).
190
Freyre (1981, p. xlvii).

115
tradições culturais que se acomodaram e formaram unidade.192 A tensão

racial nos Estados Unidos era, provavelmente, pensada como um elemento

que poderia destruir, no futuro, a unidade. A miscigenação e sua aceitação

no Brasil poderia ser lida como possibilidade de realizar a nação.

A construção da nação deveria partir das tradições culturais, ao

invés de raças, pois Freyre diz concordar com Oswald Spengler quando

afirma ser impossível transportar uma raça de um continente ao outro, o que

demandaria levar a raça com seu meio físico. Os imigrantes, ao se

instalarem em um outro meio físico, diverso daquele de origem, buscam

novas adaptações, ainda que, forçosamente, desejem “recriar o meio de

origem”. O sistema de alimentação é uma das adaptações que teriam

importância no processo de “diferenciação dos traços físicos e mentais dos

descendentes de imigrantes”.193

As debilidades ou deficiências das raças ditas “inferiores” tornam-se

em Freyre um efeito do meio ambiente, do sistema alimentar e educacional,

e não um produto da raça.194 A discussão das potencialidades naturais ou

das deficiências das raças, no sentido biológico, parece ser secundarizada

em favor de se pensar as raças mais histórica e sociologicamente.

Freyre toma a discussão da raça, que é o foco da tradição dos

intelectuais que o precederam, para privilegiar a discussão da experiência

cultural. Uma nova cultura acabou aqui por ser instalar, reunindo o diverso, o

191
Freyre (1992, p. xivii).
192
Idem, p. lii.
193
Idem, ibidem.
194
Araújo (1994) debruça-se sobre essa concepção e chega à seguinte conclusão: a idéia de raça em
Freyre é mais efeito do que uma causa, e isto poderia ser interpretado como uma espécie de
neolamarckismo em Freyre (p. 39-40).

116
múltiplo, o antagônico, fosse na culinária, na política e até no futebol. Sobre

este último aspecto, Freyre felicitava seu amigo Mário Filho por ter detalhado

no futebol mais uma face da cultura brasileira. Face já indicada em seus

textos, que, cronologicamente, antecederam o NFB.

Escravidão, violência, confraternização e miscigenação não são

dados vistos sob um ponto de vista moral, mas apenas como elementos

para pensar a continuidade do processo cultural e, conseqüentemente, o seu

produto.195 Freyre talvez pensasse o Brasil sartreanamente: o passado não

deveria ser julgado; contudo, deveria se saber o que fazer com a herança

dele no presente. Logo, sua preocupação foi pensar o que era “ser

brasileiro” a partir da desintegração da família tutelar (ou patriarcal), com

tudo que tinha de positivo ou negativo. Isto tornaria a mestiçagem, antes

vista como empecilho ao progresso e gerada pela imoralidade do

colonizador, simplesmente um dado que deveria ser equacionado, e ter seus

efeitos observados. Sinteticamente, a miscigenação, para Freyre, seria

produto das seguintes circunstâncias e mecanismos:

a) tanto a violência sexual que o senhor praticava contra a escrava

(que, para Freyre, é uma prática comum e cruel na escravidão) quanto o

encanto que o português sentia pela mulher de pele morena, idealizada pela

cultura moura, haviam contribuído para a larga escala do processo de

miscigenação;

b) o desequilíbrio quantitativo entre mulheres e homens no Brasil

seria outro fator. Criou-se um déficit de mulheres. Este desequilíbrio permitiu

195
Freyre (1978). No prefácio “Pátria morena”, Freyre discute o papel da ciência na intervenção
social. H: Becker é citado por Freyre como uma referência importante para pensar esse papel. Araújo

117
às mulheres negras, sobretudo às de pele mais clara, passar da condição de

escravas à de mulher do senhor-de-engenho, permitindo manipulações que

colaborassem para distender as tensões geradas pelos antagonismos

próprios do sistema escravocrata;

c) o sistema autárquico, quase independente do poder político e

religioso, fez com que a “casa-grande” se aproximasse da “senzala”, via os

excessos de prática sexual, via os gostos de quitutes e comidas bem-

temperadas.

d) a capacidade de plasticidade de adaptação do português, que

faria com que os antagonismos fossem contemporizados.

O efeito dos antagonismos, que se equilibraram em nossa formação

cultural, teria dado a Freyre esperança e positividade sobre o futuro do

Brasil:

“[A] tradição conservadora no Brasil sempre se tem sustentado


do sadismo do mando, disfarçado em “Princípio de Autoridade”
ou “defesa da ordem”. Entre essas duas místicas - a da Ordem e
a da Liberdade, a da Autoridade e a política, precocemente saída
do regime de senhores e escravos. Na verdade, o equilíbrio
continua a ser entre as realidades tradicionais e profundas:
sadistas e masoquistas, senhores e escravos, doutores e
analfabetos, indivíduos de cultura predominantemente européia e
outros de cultura predominantemente africana e ameríndia. E não
sem certas vantagens: as de uma dualidade não de todo
prejudicial à nossa cultura em formação, enriquecida de um lado
pela espontaneidade, pelo frescor da imaginação e emoção do
grande número e, de outro lado, pelo contato, através das elites,
com a ciência, com a técnica e com o pensamento adiantado da
Europa. Talvez em parte alguma se esteja verificando com igual
liberalidade o encontro, a intercomunicação e até a fusão
harmoniosa de tradições diversas, ou antes, antagônicas, de
cultura, como no Brasil. É verdade que o vácuo entre os dois
extremos ainda é enorme; e deficiente a muitos respeitos entre a

(1994) também trabalha essa questão em relação a Freyre.

118
intercomunicação entre duas tradições de cultura. Mas não se
pode acusar de rígido, nem de falta de mobilidade vertical - como
diria Sorokin - o regime brasileiro, em vários sentidos sociais um
dos mais democráticos, flexíveis e plásticos.196

Este trecho de CG&S fornece a idéia de positividade vislumbrada por

Freyre. Também pode-se entender sua concepção de democratização como

processo. Ainda que existissem “vácuos”, enormes distâncias entre povo e

elite, também existia flexibilidade, adaptação e possibilidades de mobilidade.

Freyre toma a mestiçagem, antes vista como problema, como

elemento vigoroso da nossa singularidade cultural. Discorda da crença de

que a mestiçagem e o peso do negro impediriam o desenvolvimento do país,

tomando como contra-exemplo os Estados Unidos.197 Sua experiência com

Estados Unidos dos anos 20, com a cultura e a política no sul ainda muito

hostil e violenta em relação aos negros, tornaram-se uma referência

negativa para pensar positivamente as relações raciais no Brasil. O

parâmetro comparativo para Freyre é: em toda a sua infância e

adolescência, não presenciara a mesma hostilidade e violência contra os

negros que observara nos Estados Unidos. Tal hostilidade colocava em risco

a unidade em torno da nação americana. Aqui, a contemporização dos

antagonismos teria criado um clima de maior tolerância, que auxiliaria o

processo de democratização e de construção da unidade em torno da

nação. O fantasma da desagregação norte-americana, pela intolerância

196
Cf. Freyre (1990, p.52).
197
Este país, por suas semelhanças continentais e por ser uma jovem nação, sempre fora tomado como
referência por intelectuais brasileiros para identificar os motivos de atraso do Brasil (Skidmore, 1994).

119
racial, era uma imagem partilhada com os intelectuais brasileiros de sua

geração.

A mestiçagem nos Estados Unidos teria também ocorrido - para

Freyre, a violência sexual é própria dos regimes escravocratas -, tendo sido,

contudo, fortemente reprimida. A diferença em relação ao Brasil localizava-

se na forma de conviver com a prole mestiça. Nos Estados Unidos, o

sistema de classificação era birracial: branco ou preto. Não existia a figura

do mestiço (mulato ou colored). Isto é, ainda que as características

fenotípicas de um mestiço fossem bem próximas da “raça branca”, este seria

classificado como preto, pois, a hipodescência determina a raça. Tal

separação entre brancos e pretos era legitimada legalmente, na medida em

que o casamento inter-racial era proibido por lei.198

Freyre teria identificado racismo, preconceito e violência sexual no

Brasil. Esse tema aparece descrito explicitamente em CG&S, SM e Ordem e

Progresso. Entretanto, a não-repressão legal aos casamentos inter-raciais, a

flexibilidade e o gosto do português pela mulher de pele morena, além da

carência de mulheres, teria feito da miscigenação um fator de

contemporização de antagonismo.

A contemporização de antagonismos acabou por tornar-se um

modelo para pensar a formação social brasileira. Assim, o rígido e

disciplinado futebol dos anglo-saxões teria amolecido em nossa plástica

cultura. A singularidade brasileira derivaria da contemporização. Mas, quais

antagonismos se equilibram, especificamente, no futebol? O problema é que

198
Skidmore (1976; 1994).

120
este modelo torna-se heurístico para pensar qualquer manifestação cultural

no Brasil, sem que muitas vezes se demonstrasse onde estaria o equilíbrio

de antagonismos. O modelo, que parece muito forte, acaba dando provas de

fragilidade ao buscar verificações em qualquer manifestação cultural.199

Enquanto Freyre e Mário Filho (e os “novos narradores”)

identificavam no excesso de dribles e firulas a singularidade do futebol

brasileiro, os primeiros cronistas de futebol viam nesse comportamento não

um estilo, mas a dificuldade dos brasileiros em entender, traduzir e

internalizar as regras e o espírito coletivo do esporte trazido da Inglaterra.200

Pode-se dizer que a representação de um futebol singular deriva do

“freyrismo popular”, que se expandiu, às vezes, a partir da própria análise

emocional e positiva de Freyre sobre o Brasil, como aparece no artigo “Foot-

ball mulato” de 1938.

Freyre tem que ser encarado como um vigoroso pesquisador. Mas

também como um homem que se maravilhava com a cultura, com o mundo,

com o fazer dos homens.201 A potência descritiva e analítica de Freyre, em

suas obras clássicas, por vezes se dobra, rendendo culto aos argumentos e

detalhes necessários para a formação da nação brasileira. A louvação da

positividade tanto gerou “freyristas populares” como “anti-freyristas

populares”. Freyre acredita que se havia instalado um processo que

denominava de “morenidade”, favorável a não se distinguir diferenças

cromáticas. Do branco amorenado até o preto retinto, todos são chamados

199
Popper (1975).
200
Figueiredo (1918). e Sant’Anna (1918).
201
Em entrevista concedida a Campos (1970), Freyre diz ser um misto de aristocrático ou popular na
forma de pensar e agir, pois o que parece encantá-lo é em última instância, o homem e suas diferentes

121
de moreno. Logo, Freyre diria, em 1970, que este fato favorecia o

desenvolvimento de uma democracia racial que, se já existia, deveria

“tornar-se mais ampla e mais efetiva”.202 A máxima da democracia racial,

para Freyre, não significava ausência de racismo, mas produziu em toda

uma geração de nacionalistas a idéia positiva e irreal de que no Brasil não

existia racismo. Seu nacionalismo pacífico e tolerante, para usar uma

expressão de Roger Bastide, teria influenciado toda uma geração.203

De fato, entre a literatura e a sociologia, Freyre criou uma nova

interpretação do Brasil. Segundo Skidmore, “tornou-se o autor de não-ficção

mais lido no Brasil porque foi capaz de tomar uma das questões que mais

preocupavam a elite brasileira - se a supremacia branca nos Estados Unidos

indicava o caminho único para o desenvolvimento nacional - e virá-la de

ponta -cabeça”.204

A apreciação feita por Skidmore encontra confirmação no

depoimento de Luis Jardim em relação ao papel de Gilberto Freyre para o

Brasil e para sua geração:

“Porque antes dele não tínhamos, rigorosamente (pelo menos


aqui em Pernambuco), o sentido cultural do brasileiro. Quero
dizer, o sentido que nos devia dar um amplo conhecimento de
nós mesmos, com todas as nossas qualidades e defeitos,
aproveitando o que de mais puro e genuinamente brasileiro
escapava aos estudiosos de nossa história e formação social. Foi
sem dúvida graças a sua sensibilidade aguçada pelos estudos e
pelas viagens, que tivemos tão desenvolvido o senso das nossas

manifestações culturais.
202
Idem.
203
Bastide, Roger (1953). “Apresentação de Gilberto Freyre”. Esse texto foi republicado pela Folha
de São Paulo, no suplemento Folhetim, sob o título “Gilberto Freyre (1900-1987)”, em 24 jul. 1987.
O texto faz parte do acervo da Fundação Gilberto Freyre.
204
Cf. Skidmore (1994, p. 42).

122
tradições de cultura, fora do exclusivismo europeu; o gosto pelo
estudo dos nossos hábitos e costumes; das músicas, danças e
ritos de religiões africanas (...) A cada cousa, expressão da nossa
“cultura”, que ia passando despercebida, dava Gilberto Freyre um
interpretação nova, de que resultava um encanto, um interesse,
um sentido especiais. É a sua descoberta da mulata, no novo
sentido que lhe deu. Cantou-a mesmo no seu poema ‘Bahia de
todos os Santos e de quase todos os pecados’ (...) Também é a
do negro e a do mestiço, nas suas possibilidades culturais que
tem procurado salientar do ponto de vista sociológico e histórico-
social (...)”205

Ainda que Freyre fosse um cosmopolita, pode-se notar que seu

relativismo cultural, seu regionalismo, parecem ter tido mais impacto que sua

face universalista ou cosmopolita. De fato, o relativismo cultural é mais útil à

formação dos estados-nações.206 O impacto da produção de Freyre sobre os

brasileiros está exemplificado nessa sentimental citação de Luis Jardim.

Bastide diz que Casa grande & senzala não revolucionou apenas a

sociologia brasileira, mas também teria exercido influência na literatura

romanesca.207 Nesta direção, pode-se dizer que muitos dos romances que

tomam como tema as realidades regionais, as transformações econômicas e

as relações raciais, passam a ter o pensamento de Freyre como fundo.

Bastide cita que os temas regionalistas tratados por José Lins do Rego, por

exemplo, não poderiam ser separados da obra de Gilberto Freyre. Mário

Filho, que também fora influenciado pelas interpretações freyreanas, tivera,

provavelmente, o mesmo sentimento de Luis Jardim, José Lins do Rego e os

de sua geração. De fato, o NFB talvez possa ser lido como subproduto ou

205
In: Freyre, (s.d.); Prefácio, p. 17-19.
206
Berlin, I. (1982), especialmente o capítulo sobre “Herder e o Iluminismo”, p. 133-189.
207
Bastide (1953).

123
como reflexo do pensamento de Freyre, fortemente disseminado na década

de 40.

No Prefácio de 47, o mérito que Freyre confere a Mário Filho poderia

ser pensado com uma espécie de narcisismo. Freyre, em tese, poderia estar

vendo o reflexo de suas idéias nas páginas de Mário Filho. O elogio, assim,

seria do mestre para o discípulo que, através do NFB, assumia, à sua

maneira, a mesma empreitada de construir uma imagem positiva do Brasil.

Freyre, buscando todas as expressões e detalhes culturais que

demonstrassem a singularidade do Brasil. Mário Filho, buscando no futebol,

sobretudo pela influência do negro, as singularidades daquilo que se

acreditava ser o futebol brasileiro. Talvez possamos dizer que ambos tinham

projetos semelhantes para o Brasil, guardadas as diferenças de rigor e

amplidão na produção do conhecimento.

Freyre, com sua sociologia, cria um sentimento de identidade

coletiva “capaz de estimular a criação de um sentimento de comunidade pela

explicitação de laços, até então insuspeitos, entre os diferentes grupos que

compunham a nação”.208 Da sua ciência criou um modelo de pensar e

intervir nas mentalidades sobre o que era o Brasil e a sua cultura. Pode-se

dizer, também, que seu forte impacto, sua máximas positivas sobre o Brasil,

auxiliaram a criar a nação e um “freyrismo popular”.

208
Luis Jardim in: Freyre (s.d.), Prefácio.

124
4.3 - A singularidade da cultura, singularidade do futebol

“O futebol teria numa sociedade como a brasileira, em grande


parte formada de elementos primitivos em sua cultura, (...)
tomasse aqui o caráter particularmente que tomou (...) O
desenvolvimento do futebol, não num esporte igual aos outros,
mas numa verdadeira instituição brasileira, tornou possível a
sublimação de vários elementos irracionais de nossa formação
social e de cultura”.209

Poder-se-ia perguntar: por que o futebol, para Freyre, seria diferente

dos outros esportes? Por que Freyre diz que o futebol toma um caráter

particular, por nossa cultura conter elementos primitivos? Tal singularidade,

visualizada intuída ou simplesmente inventada, talvez possa ser encarada

pelo fato do futebol parecer condensar simbolicamente aqueles elementos

que Freyre entende como cultura vigorosa. Para ele, o vigor cultural só é

conseguido pelo múltiplo, pela variedade, pela diversidade, pela convivência

do diverso, isto é, como um painel colorido. Um mosaico em movimento

talvez represente melhor a idéia de vigor cultural. O futebol seria então

singular, por reunir o diverso, tanto do ponto de vista social e de classe

quanto do racial (pelo que se sabe, a dinâmica de inserção deste esporte

não foi significativamente diferente em outros países).210 Já outros esportes

que por aqui chegaram, entre o final do século XIX e o início do XX, não se

disseminaram pela totalidade daquilo que se poderia denominar de povo

brasileiro. (Inclusive a caça nos moldes ingleses, que Freyre diz ter

209
Gilberto Freyre in: NFB (1947), Prefácio
210
Hobsbawm (1997, p. 298).

125
praticado). Esportes como remo, patinação e outros sempre ficaram restritos

à elite.211 A imagem de que o popular é vigoroso é reiterada no NFB, se

observamos a contraposição, realizada por Mário Filho, entre remo e futebol.


212

Pode-se dizer que o pensamento freyreano pensa a uniformidade, a

totalização de padrões, como exemplo de cultura árida e pouco fértil. É por

esta razão que Freyre ataca o processo de reeuropeização da sociedade

brasileira como uma imposição de padrão. A monocultura latifundiária e

escravocrata, em CG&S, também é vista como um dos males sociais, pela

uniformidade e pela devastação que causou na vegetação natural para

obtenção do lucro fácil. Um dos efeitos da monocultura seria o

“analfabetismo” rápido das novas gerações, que não conheciam sequer o


213
nome das espécies locais. Pode-se, com esses exemplos, entender que

a diversidade dá movimento tanto à natureza quanto à cultura no

pensamento freyreano. Daí decorre o valor e o vigor da miscigenação que se

deu racial e culturalmente no Brasil.

O Brasil se definiria como nação, em processo de formação, no

encontro de raças e de diversas tradições culturais, por vezes antagônicas,

que se acomodaram e aprenderam a viver em equilíbrio.214 Foi este

processo que Freyre resolvera descrever com seus trabalhos, e o futebol

seria apenas um dos elementos do processo de reeuropeização que fora

acomodado na cultura brasileira. Em outros termos, poder-se-ia dizer que

211
Herschmann & Lerner (1993).
212
Bakhtin (1987).
213
Freyre (1992).
214
Araújo (1994) explora o tema dos antagonismos em equilíbrio como uma categoria central no

126
Freyre está sentenciando que não existe cultura pura ou sem influência. No

entanto, sua intenção é apontar para a singularidade dos arranjos culturais

que aqui se formaram.

Tal processo, visualizado por Freyre em seus trabalhos anteriores,

constitui-se numa lente privilegiada para apresentar o NFB no Prefácio de

47:

“A capoeiragem e o samba, por exemplo, estão presentes de tal


forma no estilo brasileiro de jogar futebol que um jogador um
tanto álgido como Domingos, admirável em seu modo de jogar
mas quase sem floreios - os floreios barrocos tão do gosto
brasileiro - um crítico da argúcia de Mário Filho pode dizer que
ele está para o nosso futebol como Machado de Assis para nossa
literatura, isto é, na situação de uma espécie de inglês
desgarrado entre tropicais. Em moderna linguagem sociológica,
na situação de um apolíneo entre dionisíacos. O que não quer
dizer que deixe de haver alguma coisa concentradamente
brasileira no jogo de Domingos como existe alguma coisa de
concentradamente brasileira na literatura de Machado. Apenas há
num e noutro um domínio sobre si mesmos que só os clássicos -
que são, por definição, apolíneos - possuem de modo absoluto ou
quase absoluto, em contraste com os românticos mais livremente
criadores. Mas vá alguém estudar o fundo de Domingos ou a
literatura de Machado que encontrará decerto nas raízes de cada
um, dando-lhes autenticidade, um pouco de samba, um pouco de
molecagem baiana e até um pouco de capoeiragem
pernambucana ou malandragem carioca. Com esses resíduos é
que o futebol brasileiro afastou-se do bem ordenado original
britânico para tornar-se a dança cheia de surpresas irracionais e
de variações dionisíacas que é. A dança dançada baianamente
por um Leônidas; e por um Domingos, com uma impassibilidade
que talvez acuse sugestões ou influências ameríndias sobre sua
personalidade ou sua formação. Mas, de qualquer modo,
dança.215

pensamento freyreano.
215
Gilberto Freyre in: NFB (1947, Prefácio).

127
A diversidade de experiências, as diferentes tradições culturais,

nunca se dissolveriam numa “geleia”. Cada tradição é acomodada e

transformada. A associação que Mário Filho realiza em seu texto entre

futebol e literatura é tomada por Freyre para reforçar sua noção de

acomodação cultural. O futebol de Domingos e a literatura de Machado

seriam marcados fortemente pela influência inglesa, embora, se estudados

ou olhados com atenção, se “encontrará decerto nas raízes de cada um (...),

um pouco de samba, um pouco de molecagem baiana e até um pouco de

capoeiragem pernambucana ou malandragem carioca.216 A cultura brasileira

seria Machado e Domingos, onde as marcas apolíneas se combinam com a

expressão dionisíaca das tradições afro-brasileiras. Pode-se dizer, no

sentido de Boudon, que este é o modelo criado por Freyre para entender a

sociedade brasileira, cuja singularidade estaria nesta forma de conciliar o

diverso, o múltiplo e o antagônico.217 Tal modelo reproduz-se no NFB,

guardadas as devidas proporções, como uma das faces de um “freyrismo

popular” que mais serve à construção da nação e da identidade nacional.

Domingos, Machado de Assis e Leônidas seriam produtos da

miscigenação e exemplares da nova raça que surgiu com uma imensa

variedade fenotípica e cultural. A miscigenação, na figura do mulato, teria

operado a mediação necessária, num ambiente diverso e antagônico, tanto

cultural quanto étnico. E, deste encontro, uma nova forma de cultura e

convivência, uma nova civilização, se formara.

216
Idem, ibidem.
217
Boudon (1990).

128
Freyre diz que nas páginas de Mário Filho poder-se-ia achar o

conflito de duas forças, que adjetivaria como imensas, presentes no

comportamento ou na vida dos brasileiros: a irracionalidade e a

racionalidade, a oposição entre Apolo e Dionísio. Forças que derivariam do

tipo de formação singular “de uma sociedade híbrida, mestiça, cheia de

raízes ameríndias e africanas e não apenas européias”.218 A diversidade de

tradições formaria um verdadeiro “vigor híbrido”, nas palavras de Freyre, que

se acomodaria garantindo o equilíbrio e a unidade da nação.

Façamos uma pequena digressão sobre o pensamento freyreano,

para que se apure mais a noção de cultura. Inicialmente, pode-se dizer que

o autor possui uma dialética própria para entender os antagonismos e

conflitos no Brasil. Não seria uma dialética segundo a qual, dos

antagonismos culturais, raciais e de classe, surgiria uma síntese ou uma

superação no sentido marxista. Não seria nesses termos que pensaria os

antagonismos, pois eles jamais seriam superados, mas apenas aplainados e

conciliados na formação cultural dos trópicos. Cultura que é vigorosa

justamente pelo conflito, onde o racional é obrigado a conviver com as forças

irracionais.219 Conflito do primitivo com o civilizado, do escravo com o

senhor, da natureza com a cultura, de Apolo com Dionisio. Conflito que

nunca resulta em exclusão, mas na manutenção do antagônico, gerando

218
Gilberto Freyre in: NFB (1947, Prefácio).
219
Nesse ponto é interessante que se reveja toda uma tradição de intelectuais contemporâneos, como
Roberto Da Matta e Murilo de Carvalho, quando pensam em conciliar o modelo americano de
cidadania com as singularidades do povo brasileiro, nem sempre bem definidas conceitualmente. Me
inclino mais a crer que a descrição de Freyre e essas propostas de “intervenção intelectual” estão mais
na direção do modelo proposto por Norbert Elias sobre a transição de uma sociedade do “nós” para
uma sociedade do “eu”. As tensões em torno de um patriarcalismo - onde a lei é ditada pela tradição,
pelo familismo e pelo pertencimento - entram em confronto com o modelo contratual de um Estado
baseado no indivído. Ver Elias (1994), especialmente a Parte III-Mudanças na balança nós-eu. (1987).

129
ambigüidade e contradições permanentes. É nesta manutenção que se

forma um equilíbrio entre os diversos antagonismos, que formariam uma

cultura que guardaria as diferentes “essências, naturezas ou tradições”.

O futebol, tal como o samba, seria expressão da cultura. Para

Freyre, os contornos apolíneos do esporte bretão teriam se fundido com

elementos primitivos do samba. O processo inverso também teria ocorrido

com o samba. Um bom exemplo dessa noção de cultura freyreana está no

Prefácio de 47, que se está aqui analisando. Freyre afirma que “o samba

teria se conservado tão particularmente primitivo, africano, que suas

modernas estilizações seriam desconhecidas, com o prejuízo para nossa

cultura e para o seu valor híbrido”, caso não sofresse influência das outras

etnias que formam o Brasil. Aqui fica evidente que o samba, um elemento de

nossa cultura, seria fruto das diferentes tradições que se condensaram neste

gênero musical.220

Freyre provavelmente concordaria com Vinícius de Moraes e Baden

Powell, no “Samba da Bênção”, quando dizem que “o samba nasceu lá na

Bahia /se hoje ele é branco na poesia/ ele é preto demais no coração”. Seria

assim a noção da cultura formada aqui nos trópicos, onde cada raça ou cada

cultura influenciaria as demais, sem perder sua “essência”; o samba seria,

portanto, “preto e branco”, mas também mulato. Se pensarmos na direção

de Hermano Vianna, o samba é uma tradição que o próprio Freyre e outros

intelectuais da sua época ajudaram a inventar.221 Poder-se-ia pensar que o

vigor da cultura viria da mútua influência ou da circularidade entre o popular

220
Vianna (1995).
221
Idem.

130
e o erudito, entre classes, entre brancos, pretos e mestiços. Circularidade da

intelectualidade com a produção de cultura popular, que ajudaria, em última

instância, a descobrir ou inventar o que era ou deveria ser o Brasil e o

brasileiro. A circularidade entre o popular e o erudito está em Freyre, e de

certa forma estava presente na geração de intelectuais dos anos 30.222

Observemos suas próprias palavras sobre esta temática, ao ser entrevistado

por Renato Carneiro Campos:

“E-...Considera-se mais popular do que aristocrata? As duas


coisas podem se conciliar?

GF- Considero-me um misto do que possa ser denominado


popular e do que possa ser considerado aristocrático. Creio que
esse misto está em meu comportamento, na minha vida, na minha
convivência e também na minha obra literária e antropológica - da
antropologia científica à filosófica, incluindo a sociologia. Obras
inseparáveis de minha personalidade (o que pode vir perturbando
sua pureza ou seu purismo científico) e da minha vida. Meu
próprio estilo de escritor literário é um misto de popular - com
emprego de termos plebeus - e de aristocrático - com a projeção,
sobre ele, de valores assimilados de clássicos e de modernos
notáveis pelo que neles é qualidade e até por virtudes
impopulares. Uma contradição.”223

O futebol é visto por Freyre, no Prefácio de 47, como um meio de

canalizar “velhas energias psíquicas e impulsos irracionais do homem

brasileiro, em busca de sublimação” num Brasil que se tornava

essencialmente urbano. No futebol concilia-se e sublima-se os elementos

antagônicos e irracionais presentes em nossa formação cultural, daí

decorrendo a singularidade de nossa cultura. Da conciliação do antagônico e

de sua manutenção em equilíbrio se formaria a unidade nacional. Entretanto,

222
Idem.

131
tal singularidade poderia ser relativizada se pensarmos na direção de Elias,

que vê o esporte como mimeses da guerra ou como sublimação dos

impulsos violentos.224 Para Elias, este fenômeno não se dá só em relação ao

esporte, mas todo processo cultural e político é descrito como uma sucessão

de configurações em direção ao autocontrole ou sublimação dos impulsos

violentos. Elias, tal como Freyre, escreve nos anos 30, mas sua postura

intelectual situa-se mais no plano do universalismo do que do relativismo.

No futebol, a singularidade descrita por Mário Filho seria produto,

segundo Freyre, do amolecimento das características apolíneas do jogo

inglês em contato com os elementos culturais afro-brasileiros. Na conciliação

das características apolíneas com as dionisíacas da cultura afro-brasileira

nasceria o futebol nacional, tal como o samba teria nascido do encontro do

branco com o negro. No encontro realizar-se-ia o nacional. A construção do

futebol nacional pode ser entendida a partir de uma discussão mais

detalhada da categoria da reeuropeização descrita em SM.

4.4 - Processo civilizatório, reeuropeização e contemporização

O futebol representava, na fase em que o Brasil vai se tornando

urbano, o meio de canalização dos “elementos primitivos” presentes em

nossa cultura, onde a aristocracia da casa-grande cede espaço para a

aristocracia dos sobrados. Aristocracia da qual o bacharel, o engenheiro e o

223
Campos (1970).
224
Elias e Dunning (1992).

132
médico - a chamada “aristocracia de toga” - são emblemas. Eles seriam os

principais interventores na política e na construção de um estilo de vida que,

segundo Freyre, é reeuropeizado.

A categoria da reeuropeização do Brasil representa industrialismo,

comércio, burguesia, urbanização e maior grau de coerção de costumes.

Seria uma espécie de processo civilizatório que teria ocorrido no Brasil do

século XIX, onde as “qualidades e condições de vida tão exóticas” teriam

sofrido algum grau de coerção.225 O estilo de vida exótico comportaria uma

singular espécie de hibridização e contemporização, em todos os sentidos.

As tradições culturais (asiática, islâmica, portuguesa, africana,

indígena), apesar de antagônicas, se contemporizavam e formavam um

estilo de vida híbrido, que passa pela culinária, pela arquitetura, pela

religiosidade, pelos costumes e pelo sexo. Como já visto anteriormente, o

sexo entre o senhor e a escrava se dava fosse pelas características

violentas do regime, por necessidade e/ou pela tradição do português

admirar a mulher moura. Muitos dos antagonismos se reduziam com a prole

mestiça que nascia do excesso sexual entre o senhor e a escrava.

Geralmente, a prole mestiça, quando aceita pelo senhor, era singularmente

embranquecida pelas necessidades contingentes de constituir família ou

pela plasticidade do colonizador português. A híbrida formação cultural e

racial, onde o diverso era acomodado, entra em crise com o processo de

reeuropeização que tentaria apagar as diferenças em nome do “padrão

civilizado”. Padrão que, para Freyre, possuía um alto grau de xenofilismo e

225
Freyre (1981, p. 309).

133
inadaptação às características ambientais e culturais. Reeuropeização que

representa, em SM, a tentativa de abafamento ou ruptura da vigorosa e

híbrida cultura que viria desde os tempos coloniais.

Tal processo teria sido iniciado com a vinda da família real para o

Brasil, justamente pelo seu impacto econômico, cultural e político. Freyre

pensa a imposição do padrão não-ibérico como abafamento provisório do

vigor híbrido que imperava na casa-grande e na senzala. Qualquer fato

impactante, do ponto de vista cultural e econômico, pode ser analisado

apenas por seus aspectos positivos ou negativos, mas também pode ser

objeto de uma análise que contemple a ambigüidade e faça pesar na

balança o “saldo” das influências. Metodologicamente, Freyre opta pela

terceira posição, onde o contraditório, o efeito não esperado, o negativo e o

positivo são sempre faces de uma mesma moeda. Entretanto, o resultado

parece sempre pender para o positivo.

O abafamento cultural acinzentaria o colorido. As roupas européias,

escuras e grossas, quentes e inadequadas, passariam a ser o critério de

elegância e civilização. Tudo que era português, africano, muçulmano e

asiático fora desvalorizado por uma cultura da Corte e pelos interesses

econômicos não-ibéricos - interesses que incidiriam para além dos limites do

industrialismo urbano no Brasil do século XIX.226

Freyre afirma que aquela vigorosa comunicação sexual e cultural

sofreu uma interrupção com a reeuropeização. Entretanto, o vigor da

singular hibridização cultural e das raças não havia morrido. Assim, num

226
Idem

134
segundo momento, o acirramento de antagonismos processados pela

reeuropeização é aplainado. As zonas de confraternização e o tipo plástico

de homem e cultura instalados são mais fortes que a xenofilia adotada em

relação à cultura não-ibérica.

A descrição dos efeitos não esperados faz parte da dialética

freyreana. A reeuropeização, que teria num primeiro momento cindido a

sociedade, seria a mesma que auxiliara o processo de desintegração da

sociedade patriarcal. Um dos efeitos positivos seria o aumento de

possibilidades de ascensão do bacharel, branco ou mulato.

Outro efeito positivo teria se dado no campo das idéias, que “trouxe,

em muitos pontos, noções mais exatas do mundo e a da própria natureza

tropical. Uma espontaneidade que a educação portuguesa e clerical fizera

secar no brasileiro”.227 Freyre vê riqueza nessa influência, na medida que

teria quebrado a “monocultura” de “idéias ortodoxamente católicas”.228 A

influência científica e intelectual dos povos não-ibéricos mudaria o panorama

de pouca fertilidade intelectual. “Essa curiosidade, esse gosto, essa alegria

nos foram comunicados nos fins do século XVIII, e através do XIX, pelos

Enciclopedistas e pelos revolucionários franceses e ingleses que aqui

estabeleceram colégios para grande indignação dos padres”.229

Cabe ressaltar que são características do pensamento freyreano: a

idéia do múltiplo, do diverso, de contemporização, de tolerância. Tanto

parece ser assim que até a positividade vislumbrada no campo das idéias,

trazidas pela “Europa não-ibérica”, possui a face negativa quando tais idéias

227
Idem, p. 316.
228
Idem, ibidem.

135
acirram antagonismos e degeneram em violência. Observe-se a passagem

que fundamenta esta argumentação:

“Esses mestres, aqueles Enciclopedistas, fizeram ao brasileiro


um bocado de mal, comunicando-lhe um liberalismo falso; mas
fizeram-lhe também algum bem. Abriram-lhe nova zona de
sensibilidade e de cultura, refazendo um pouco da
espontaneidade intelectual, em tantos pontos abafada, pelo
Santo Ofício, como pelo ensino uniformizador dos padres da
Companhia. Ensino uniformizador útil, utilíssimo à integração
social do Brasil, como já foi acentuado em capítulo anterior; mas
que nos retardou e quase nos feriu de morte a inteligência, a
capacidade de diferenciação, de iniciativa, de crítica, de
criação.”230

Aqui, a idéia do ambíguo, do positivo e do negativo, perfazem o

movimento da dinâmica cultural pensada por Freyre.231 Entretanto, nesta

passagem, aquilo que ele adjetiva como liberalismo falso são as influências

das idéias liberais nas revoltas ou revoluções brasileiras que datam do início

do século XIX. São influências negativas na medida em que aspiram a

rupturas violentas. Talvez Freyre pense que as mudanças devam ser

operadas via continuidade, isto é, a transformação deve ocorrer de forma

natural. A idéia de movimento cultural e mudança, na sua reflexão, se dá via

estética ou via a dinâmica cultural que educaria e construiria uma nova

forma de convivência. Neste sentido, pode-se dizer que a miscigenação e a

figura do mulato surgem como mediadores dos antagonismos do branco e

do preto, como um caminho singular de superar os preconceitos raciais por

229
Idem, ibidem.
230
Idem, ibidem.
231
Cf. Araújo (1994).

136
meios doces.232 Retornando ao NFB, lembremos que Friedenreich e outros

mulatos podem ser lidos como mediadores de excelência dos antagonismos,

no espaço daquele futebol que colocava em oposição raças e classes.

Araújo diz que Freyre não consegue explicitar, com rigor e com

argumentos convincentes, como os antagonismos se reduzem via

mestiçagem em Sobrados e mucambos.233 Acredito que os argumentos

freyreanos, apesar de não convencerem a Araújo, apresentam a mesma

lógica utilizada por Freyre em outras partes de sua obra. Freyre não trabalha

com motores ou determinantes fundamentais do processo social e histórico.

Sua construção da sociedade é quase fotográfica ou pictórica, mas isto não

exclui que mecanismos sejam apontados e seu modelo de antagonismos em

equilíbrio seja mantido.

A partir da imensidão de detalhes que abundam em seu texto - com

preocupações literárias e científicas -, poder-se-ia dizer que Freyre indica

alguns mecanismos. O processo de miscigenação e hibridização da cultura

já estava de tal forma enraizado que não poderia morrer de uma hora para

outra e nem ser excluído por qualquer imposição de padronização. A

reeuropeização poderia ser pensada como uma metáfora. Seria como dizer

que se tinha desviado o curso do rio, que voltou ao seu curso normal quando

acumulou forças. Talvez se esteja indicando que construir artificialmente

uma cultura ou impor uma padronização é uma tarefa difícil, senão quase

impossível quando se tem uma cultura vigorosa. Poder-se-ia pensar, como

Paul Veyne, que uma cultura só necessita de defensores quando está fraca

232
Idem, p. 146-7
233
Idem, p. 176.

137
ou debilitada.234 Assim, a reeuropeização, vista como um dado no processo

cultural, traria apenas novos elementos que se incorporariam àquela forte e

híbrida cultura dos tempos coloniais.

“Com a urbanização do País, ganharam tais antagonismos uma


intensidade nova; o equilíbrio; o equilíbrio entre brancos de
sobrados e pretos, caboclos e pardos livres dos mucambos não
seria o mesmo que entre os brancos das velhas casas-grandes e
os negros das senzalas. É verdade que ao mesmo tempo que se
acentuavam os antagonismos, tornavam-se maiores as
oportunidades de ascensão social, nas cidades, para os escravos
e para os filhos de escravos, que fossem indivíduos dotados de
vocação artística ou intelectual extraordinária ou de qualidades
especiais de atração sexual. E a miscigenação, tão grande nas
cidades como nas fazendas, amaciou, a seu modo, antagonismos
entre extremos.”235

Tal influência faz-se em parte pela nova configuração política e

econômica, que permite a ascensão do bacharel e do artista mulato, com

base em critérios meritocráticos e de competência. É bom lembrar que

muitos mestiços foram tomados pelos senhores-de-engenho como filhos

legítimos e receberam mesma educação de seus filhos fidalgos. Neste

cenário, “o mulato que vinha aos poucos desabrochando em bacharel, em

padre, em doutor, o diploma acadêmico ou o título de capitão de milícias

servindo-lhe como carta de branquidade”.236 Entretanto, a ascensão do

mulato não se dava sem preconceito e sem resistência das elites.237 O

234
Apud Vianna (1995, p. 165).
235
Freyre (1981,p. 153).
236
Idem, p. 308.
237
Não se quer dizer com os argumentos acima que Freyre não veja preconceito e racismo no Brasil.
Claro que existe preconceito e a ideologia de que a “raça” branca é superior. Suas obras CG&S, SM e
Ordem e Progresso mostram com clareza que existe racismo e uma forte ideologia da branquidade
que perpassam as relações entre raças e classes. Porém, o racismo brasileiro difere em grau daquele
visualizado por Freyre nos anos 20, durante seus estudos. A debilidade da raça jamais seria um

138
importante, neste processo, tratando-se do pensamento freyreano, é que as

relações raciais no Brasil pareciam ser menos violentas e diferiam

substancialmente daquelas vistas por ele nos Estados Unidos. Assim, a

reeuropeização assume, na dialética freyreana, mais um efeito contrário,

quando o mulato ascende e socializa-se com os novos padrões culturais.

A acomodação dos antagonismos causados pela reeuropeização

seria parte de um efeito político e econômico. Isto é, a vinda da família real

desloca o poder mais para o centro, poder que migraria num processo

contínuo, não sem resistências, até a instauração do Império. Isto significa

que os senhores-de-engenho teriam perdido, gradativamente, o poder

político e financeiro. A economia desloca-se para as zonas de mineração,

assim como as indústrias, o mercado econômico e o comércio se

concentrariam nos centros urbanos em formação e consolidação. A

centralização do poder incide diretamente no desenvolvimento da vida

urbana, fazendo com que os grandes centros passassem a ser

administrados sob uma perspectiva civilizatória que, ao mesmo tempo,

normatizava padrões para a vida pública e privada, valorizando

especialmente o espaço público. A instauração de uma vida pública, com

suas normas e posturas, faria da rua um espaço civilizatório e abria mais

uma zona de comunicação que, provisoriamente, teria sido abafada pela

reeuropeização. O espaço

“(d)a rua, (d)a praça, (d)a festa de igreja, (d)o mercado, (d)a
escola, (d)o carnaval, todas essas facilidades de comunicação

produto da própria raça, mas sobretudo um produto das condições de alimentação, de meio ambiente e
das relações de produção. Freyre (1992, p. xlviii).

139
entre as classes e de cruzamento entre raças, foram atenuando
os antagonismos de classe e de raça e formando uma média, um
meio termo, uma contemporização mestiçamente brasileira de
estilos de vida, de padrões de cultura e de expressão física e
psicológica de povo” .238

Esses teriam sido alguns dos mecanismos presentes no processo

que faria a reeuropeização amolecer diante do vigor da cultura brasileira. O

modelo que Freyre criou para entender a cultura brasileira torna-se quase

fixo e a-histórico: a variação dos dados históricos não mudaria a matriz que

formaria a identidade brasileira. A matriz da cultura brasileira baseia-se na

combinação do diverso, do antagônico, onde cada nova influência cultural

será incorporada ao painel colorido, sem dissolver-se, e onde cada

contribuição mantém viva sua coloração, mesmo com a reeuropeização ou o

acirramento dos antagonismos de classe e de raça. Segundo Araújo, Freyre,

ao transmitir as profundas mudanças que se operam em SM, no plano dos

costumes, da política, da urbanização, da economia, “parece insistir em nos

dizer que, apesar de tudo, algo subsiste daquela experiência colonial”.239

Pode-se dizer que a amplitude e facilidade do modelo, que dá conta de

qualquer manifestação cultural, talvez tenha sido uma força poderosa para a

formação do “freyrismo popular” e, também, para as reações a ele.

O processo civilizatório, no Prefácio de 47, indica que o futebol

incorpora-se à cultura brasileira como parte daquele controle dos excessos

(reeuropeização) - que se verifica em SM em relação a CG&S - que não

mataria o vigor dionisíaco e irracional daquela sociedade híbrida. O futebol

238
Freyre (1981,p. xlv-xlvi).

140
funcionaria como um meio de sublimação de energias psíquicas de

elementos primitivos de nossa cultura, e também como um meio de

ascensão social do mestiço e do negro. A reeuropeização teria funcionado,

assim como a introdução de um pouco de Apolo em nosso mundo

dionisíaco, e o futebol seria parte deste mundo apolíneo, do europeu não-

ibérico, que se conciliaria com aquilo que havia de irracional em nossa

cultura.

Para Freyre, mesmo antes do futebol, os excessos eram sublimadas

nos “feitos heróicos ou ações admiráveis que o Exército, a Marinha e as

Revoluções mais ou menos patrióticas abriam aos brasileiros brancos e,

principalmente, mestiços ou de cor, mais transbordantes de energias

animais ou de impulsos irracionais”.240 A sociedade brasileira teria

construído meios de sublimação, ou uma espécie de cimento social, onde o

conflito interno de raça e/ou de classe sempre foram de alguma forma

contemporizados.

Cabe lembrar que na primeira edição de SM, em 1936 - portanto,

onze anos antes da publicação do NFB -, o futebol já é visto como um

elemento da cultura nacional e meio de ascensão vertical e horizontal de

negros e mestiços. Os feitos dos esportistas negros e mestiços, assim como

os feitos de intelectuais, literatos e artistas, também negros e mestiços, eram

a prova de que a raça e a mestiçagem não poderiam constituir-se em critério

de qualificação dos brasileiros. Pela tônica da argumentação, como já

ponderei, Freyre lê e vê no NFB parte do processo descrito por ele em SM.

239
Araújo (1994, p. 144).
240
Gilberto Freyre in: NFB (1947, Prefácio).

141
“Observa-se, entretanto, nas gerações mais novas de brasileiros -
gerações menos atingidas por aquela de garantias sociais - a
ascensão do mulato não só mais claro como mais escuro, entre os
atletas, os nadadores, os jogadores de foot-ball, que são hoje, no
Brasil, quase todos mestiços. O mesmo é certo do grosso do
pessoal do Exército, da Marinha, das Forças Públicas e dos
Corpos de Bombeiros: dos seus campeões nos sports, entre os
quais os negros retintos parece que são cada vez mais raros,
embora de modo algum ausentes. Predomina o pardo. O mestiço.
Pardos e mestiços, que vêm enfrentando vantajosamente os
brancos e os pretos nos jogos, nos torneios, nos exercícios
militares.”241

A igualação, via futebol, já estaria ocorrendo na sociedade brasileira

na década de 30. Assim, no Prefácio de 47 Freyre enalteceria o futebol

como um meio privilegiado de ascensão social do negro e do mestiço,

reproduzindo apenas aquilo que já havia comentado em SM:

“Sublimando tanto do que é mais primitivo, mais jovem, mais


elementar, em nossa cultura, era natural que o futebol, no Brasil,
ao engrandecer-se em instituição nacional, engrandecesse
também o negro, o descendente de negro, o mulato, o cafuzo, o
mestiço. E entre os meios mais recentes - isto é, dos últimos vinte
ou trinta anos - de ascensão social do negro ou do mulato ou do
cafuzo no Brasil, nenhum excede, em importância, ao futebol.”242

É na participação de negros e mestiços que se identifica a

incorporação, ao jogo apolíneo, de elementos “irracionais de nossa formação

cultural”, tal como o samba e a capoeira. Freyre entende que os impulsos

irracionais ou dionisíacos devem ser canalizados num sentido positivo e

singular. Se os impulsos não fossem sublimados positivamente eles se

241
O texto foi retirado da 1ª edição de 1936 (p.362). .É interessante que, nas edições posteriores,
Freyre passe a fazer referência a Mário Filho no referido parágrafo.

142
degradariam, como ocorreu, historicamente, com o cangaço ou com os

rabos-de-arraia da capoeiragem, “esportes inteiramente irracionais”.243

Os excessos, antes do futebol, eram canalizados para os quase

esportes rurais dos dias de festa: “as cavalhadas, as corridas atrás de bois,

as caçadas, (...), as noites inteiras de samba ou de dança extenuante, as

largas caminhadas pelos sertões, a caça aos índios ou aos negros fugidos, a

fuga dos negros aos feitores” etc.244 Freyre trabalha com conceitos com

fortes contornos freudianos, onde as expressões culturais funcionam como

meio de canalização de impulsos, ordenando, de alguma maneira, o espaço

social. O futebol, como parte daquele processo civilizatório, teria auxiliado a

equilibrar e a contrapesar os impulsos irracionais de nossa cultura e, ao

mesmo tempo, acabava por construir os caminhos para o negro e o mulato

vislumbrarem possibilidades de ascensão social. O futebol seria um fruto

positivo da reeuropeização, pois

“tornou-se o meio de expressão, moral e socialmente aprovado


pela nossa gente -- pelo Governo, pela Igreja, pela Opinião
Pública, pelo Belo Sexo, pela Imprensa -- de energias psíquicas e
de impulsos irracionais que sem o desenvolvimento do futebol -
ou de algum equivalente de futebol - na verdadeira instituição
nacional que é hoje, entre nós, teriam provavelmente assumido
formas de expressão violentamente contrárias à moralidade
dominante em nosso meio. O cangaceirismo teria provavelmente
evoluído para um como gangsterismo urbano, com São Paulo
degradada numa sub-Chicago de Al Capones ítalo-brasileiros. A
capoeiragem, livre de Sampaio Ferraz, teria, provavelmente
voltado a enfrentar a polícia das cidades sob a forma de conflitos
mais sérios que os antigos valentes dos morros e guardas-civis
das avenidas, agora asfaltadas. O samba teria se conservado tão
particularmente primitivo, africano, irracional que suas modernas

242
Gilberto Freyre in: NFB (1947, Prefácio).
243
Idem, ibidem.
244
Idem, ibidem.

143
estilizações seriam desconhecidas, com prejuízo para nossa
cultura e para seu vigor híbrido. A malandragem também teria se
conservado inteiramente um mal ou uma inconveniência”.245

O futebol anglo-saxão, apolíneo por excelência, tornar-se-ia

brasileiro porque transformou expressões de nossa cultura, que poderiam

ser desagregadoras, em estilo de jogo.246

É esse tipo de lógica que faz com que Freyre, no contexto dos anos

30, cause impacto no meio intelectual e político. Ele indica o curso tomado

pelo Brasil em sua formação social. Aquilo que era visto como desordenado

e negativo, do ponto de vista eurocêntrico, torna-se ordenado e singular. Sua

intenção é mostrar uma interpretação diferente e positiva da sociedade

brasileira. O impacto da formulação freyreana fisgou Mário Filho, levando-o a

escrever a história do negro no futebol. Apesar de Freyre identificar suas

idéias, ou parte delas, no NFB, fato que o leva a prefaciar o livro, não deixou

de indicar sutilmente a fragilidade teórica do texto no Prefácio de 47.

4.5 – NFB: uma obra parassociológica

Identificar proximidades ou afinidades entre o NFB e o pensamento

de Freyre sobre as relações raciais não é novidade alguma. Carlos Heitor

Cony, amigo, crítico e companheiro de jornal de Mário Filho, conjectura,

numa entrevista concedida em 1968, que o NFB

245
Idem, ibidem.
246
Cf. Soares e Lovisolo (1997). Não posso deixar de chamar a atenção sobre as insinuações de Freyre
que, no campo do futebol, muito auxiliaram a criar uma espécie de “freyrismo popular”. Por exemplo,
Joel Rufino dos Santos (1981) assume uma espécie de “freyrismo popular” quando faz deste tipo de

144
“em termos sociológicos [é] uma obra tão importante quanto
Sobrados e Mucambos e CG&S. A obra sociológica de Gilberto
Freyre que estudou a constituição da sociedade brasileira do
ponto de vista rural, tendo em vista que o Brasil ainda é um país
essencialmente agrário [1968]. Se fosse fazer uma analogia da
mesma sociedade urbana encontraria na obra de Mário Filho
(História do Flamengo e o NFB) todos os dados, todo o espaço
para uma sociologia da cidade. A integração do futebol como
elemento de cultura popular. […] E foi através do negro, tal como
na cozinha e na música popular, eu posso dizer, como em todas
obras maiores de nossa arte, não esquecer dos grandes homens
de negros […]. [O] que deu ao futebol o status de cultura
popular.”247

As impressões de Cony, por mais apaixonadas que sejam,

aproximam o NFB e os clássicos textos de Freyre escritos nos anos 30.

Segundo Castro, o NFB seria visto como “uma espécie de ‘Casa Grande &

Senzala’ urbana, um livro equivalente na historiografia racial ao de Gilberto

Freyre”.248

De fato, as proximidades entre Mário Filho e Gilberto Freyre são

várias.249 A primeira semelhança pode ser vista na forma de apresentação

insinuação uma “verdade” que explicaria a expansão do futebol em função da repressão à capoeira.
247
Depoimento no Ciclo da História do Esporte Brasileiro/Homenagem a Mário Filho, Museu da
Imagem e do Som (MIS), Rio de Janeiro,1968.
248
Castro (1992, p. 222). Trata-se de um livro biográfico sobre Nelson Rodrigues, irmão de Mário
Filho.
249
Eram pernambucanos e amigos, tanto assim que se telefonavam semanalmente para que um se
mantivesse informado das coisas não-publicadas do Rio de Janeiro e de Pernambuco; e ambos
possuíam admiração pelas coisas populares. (Depoimento de Mário Neto, neto de Mário Filho, em
entrevista à nós concedida em janeiro de 1997). A paixão pelo popular parece ser uma marca daqueles
homens que pensavam construir o Brasil. O samba, para Freyre, era motivo de admiração, porque
popular, negro e, portanto, brasileiro. Segundo Freyre, o movimento de valorização do negro carioca
se deu por influência de Blaise Cendrars. No Brasil, o reconhecimento ou valorização daquilo que “é
nosso” precisa ser avalizado pelos de “fora” (Vianna,1995). Da mesma forma que Gobineau e Agassis
avaliaram negativamente a miscigenação, parece que se necessita de outro avaliador estrangeiro
(Cendrars) para identificar o que se tem de bom e positivo no Brasil. Vianna interpreta que os
modernistas utilizaram a figura de “conscientizador” de Cendrars tacitamente. O mesmo autor
demonstra que o encontro entre intelectuais e artistas populares, nas primeiras décadas deste século,
fez do samba um dos elementos unificadores da identidade brasileira. Desse encontro e aproximação
entre intelectuais e músicos populares - realmente teria ocorrido um encontro formal, do qual Freyre

145
do texto e na forma de levantamento de dados. Freyre, com rigor

antropológico, trabalhou basicamente com biografias, arquivos de jornal e

outros documentos. Seus estudos sempre tiveram uma forte base empírica.

Sua linguagem empírica é uma marca de sua formação americana. Mário

Filho também trabalhou no NFB, e em outros textos, com relatos biográficos,

evidentemente sem o rigor da formação acadêmica da Freyre. Como

jornalista, sentava nos “cafés” e anotava no seu bloco todas as histórias

daqueles que haviam vivido a primeira fase do futebol. Também

demonstrava constante preocupação com a linguagem sem rebuscamento,

sem barroquismos, que atingisse o povo.250

Noutro nível de proximidade, observa-se a utilização das categorias

freyreanas ao longo do NFB. O capítulo “Raízes do saudosismo”, por

exemplo, muito se assemelha à descrição do processo de reeuropeização

de SM. Este capítulo trata do distanciamento do futebol em relação à cultura

popular, às formas de esquadrinhamento social por raças e classes. Pode-se

dizer que em “Raízes do saudosismo” nota-se claramente a descrição da

reeuropeização que se operou no futebol. As categorias do ressentimento e

da macieza do comportamento mulato são exemplos da proximidade

interpretativa entre as duas obras. O tema dos abrasileiramentos

lingüísticos, trabalhados profundamente em SM, são também descritos no

teria participado - nasce o samba como um gênero de música regional carioca, que se amplia para se
constituir em música nacional. Mário Filho não teria participado daquele encontro que Vianna mapeia
como um dado privilegiado para entender o samba como música nacional. Entretanto, Mário Filho
ajuda a inventar tradições neste espaço e em outros, como pode ser visto no próximo capítulo do
presente estudo.
250
Artigo de Geraldo Romualdo da Silva: “O Mário que bem amou a bola, rosa, criança e riso”.
Jornal dos Sports, 16 set. 1966.

146
NFB em nível mais superficial.251 A categoria da habitação, a partir da

oposição entre a casa-grande e a senzala ou entre os sobrados e os

mucambos, para pensar mediações e intercomunicações de raças e classes

na formação da cultura brasileira, também aparece no NFB. Mário Filho

trabalha com uma oposição semelhante no capítulo “O campo e a pelada”,

apresentando as mediações e intercomunicações entre raças e classes na

formação do estilo brasileiro de futebol.

No NFB visualiza-se o processo de embranquecimento do negro e a

dificuldade de definição racial, como em SM. Para completar a lista de

proximidades entre os autores, o capítulo final de SM, na primeira edição,

tem por título “A ascensão do bacharel e do mulato”. No NFB, o último

capítulo da primeira edição é intitulado “A ascensão social do negro”. De

fato, fica demonstrado que o texto do NFB é organizado por Mário Filho,

provavelmente tendo SM à “beira de sua cabeceira”. Apesar de toda a

proximidade, quando Freyre prefacia o NFB não deixa de apontar limitações

da obra.

Quando escreve o Prefácio de 47, Freyre já é um intelectual e

cientista social reconhecido dentro e fora do Brasil. Mário Filho, ao contrário,

não possui formação acadêmica e é conhecido como jornalista; aprendera a

gostar de literatura no âmbito familiar e no jornal de propriedade de seu pai,

onde produziu seus primeiros ensaios. Freyre era um apaixonado pelas

letras, conhecia quase tudo da literatura brasileira e tinha uma especial

atenção, ou melhor, devoção pelos escritores ingleses. Pode-se dizer que

251
Mário Filho também comenta abrasileiramentos na linguagem do futebol em NFB.

147
Freyre escrevera sua obra num espaço composto de linhas tênues entre

literatura, sociologia e antropologia, mas com rigor da ciência; Mário Filho

fizera seu jornalismo mais perto do romance que da história.

Uma diferença entre Freyre e Mário Filho é evidente. Freyre é um

pensador sistemático. Tem, como já vimos, um projeto para o Brasil e para

seus estudos acadêmicos. Seus estudos principais são convergentes.

CG&S, SM e Ordem e progresso constituem-se em três volumes do estudo

da formação da sociedade brasileira sob o regime patriarcal ou sob a família

tutelar. 252 Freyre faz questão de reiterar que esses estudos se interpenetram

e que todos são de igual importância para entender-se o processo de

formação cultural que analisa.253 Este é um projeto de produção acadêmica

de longa data e obras.254 Por seu lado, Mário Filho não tem um projeto

intelectual tão bem determinado, até porque as circunstâncias de sua vida,

ou melhor, de sua família, não permitiram que se dedicasse à sua vocação

de romancista.

Talvez pelas proximidades, e sobretudo pela diferença de rigor, um

certo tom de elogio recheado de ambigüidades permeie o Prefácio de 47.

Freyre renderia todos os louvores a Mário Filho como escritor “ágil e plástico

(...) é também pesquisador inteligente e pachorrento para quem a história do

futebol em nosso país parece já não ter mistério nenhum”.255 Estendia os

252
“Jazigos e covas rasas” seria para Freyre a obra que concluiria o estudo iniciado por CG&S, mas
que não conseguiu realizar.
253
Cartas do próprio punho sobre o Brasil e o estrangeiro. Numa dessas cartas que escreve para José
Olympio, Freyre reclama que a editora o destaca como o grande autor de CG&S e SM, mas não como
o de Ordem e progresso. Freyre ressalta que esta obra é tão importante quanto as demais para que se
entenda o processo cultural que ele narra.
254
Fica claro que quando escreve o Prefácio de 47 Freyne é um representante de grande expressão da
intelectualidade brasileira em seu próprio país e no exterior.
255
Gilberto Freyre in: NFB (1947,Prefácio).

148
elogios a todos os “Rodrigues”, dizendo não se espantar diante do talento

dessa família. Freyre identifica o NFB como um vigoroso e excelente texto.

Entretanto, nas entrelinhas, indica que a obra deveria ser colocada no seu

devido lugar.

Nesta direção, Freyre diria que “[O] futebol teria numa sociedade

como a brasileira (...) uma importância toda especial que só agora vai sendo

estudada sob critério sociológico ou parassociológico”.256 Nota-se por estas

palavras que Freyre instila uma certa ambigüidade e dúvida sobre o caráter

da obra: sociológica ou parassociológica? Por que a dúvida? Esta questão é

respondida no final do Prefácio de 47, quando Freyre diz que o texto é uma

contribuição sociológica e psicológica da ascensão do negro via futebol;

entretanto, esperava “ver Mário Filho se encaminhar cada vez mais, através

de estudos mais demorados e mais profundos do assunto”.257 Freyre talvez

se coloque como um acadêmico diante de um belo texto que, apesar da

proximidade com sua sociologia, ainda carecia de maiores aprofundamentos

e de rigor. Algo de frágil, do ponto de vista teórico, parece ser identificado

por Freyre. Mas, afinal, não fica bem escrever o prefácio criticando

abertamente o texto. Por esta razão, somente nas entrelinhas do Prefácio de

47 é possível perceber esse tom ambíguo, no qual Freyre insiste que Mário

Filho retome a temática de forma mais profunda e demorada em futuros

estudos.

A partir desta janela aberta por Freyre sobre o caráter do estudo, do

ponto de vista do rigor e da perspectiva disciplinar, reforça-se a hipótese de

256
Idem, ibidem.
257
Idem, ibidem.

149
que o NFB, antes de ser um estudo sociológico, seria um romance. Um

romance com apenas tênues características sociológicas, ou melhor, como

já foi dito, Mário Filho teria apenas se utilizado de algumas categorias

freyreanas para entender romanescamente o processo de exclusão e

inclusão do negro no futebol.

150
5 - MÁRIO FILHO ENTRE A LITERATURA E O ESPORTE

Mário Filho não teria construído um estudo histórico ou sociológico

sobre o negro no futebol brasileiro. Dito positivamente, a construção, a

estrutura ou trama de sua obra está mais próxima do gênero literário, do

romance, do conto ou da história-ficção.258 Nos capítulos anteriores

demonstrou-se que o NFB é um entrelaçado de “fatos”, realizado a partir de

uma estrutura narrativa literária heróica, que se articula à construção do

sentimento de nacionalidade.

O problema é que Mário Filho situou o NFB como uma obra de

história e os “novos narradores” reforçam esse ponto de vista. A recusa

explícita de que a obra seja considerada romance suscita dúvidas, isto é, a

reiteração sobre o caráter da obra, pouco comum em obras de história,

parece indicar que o NFB foi considerado romance por outras pessoas.

No sentido de concluir a primeira parte do estudo, tomo a trajetória

de vida de Mário Filho, como escritor, jornalista e interventor no esporte,

para reforçar a hipótese de que seus escritos mais se aproximam do

romance, da ficção, que da história.

258
Classificar o NFB como romance ou história-ficção não pode ser lido como uma desqualificação.
A classificação também não se deve ao fato de Mário Filho não possuir formação acadêmica de
historiador. A questão não se situa no plano do “formalismo acadêmico”. De maneira alguma se está
dizendo que um romancista não pode escrever uma obra científica, ou vice-versa. Vários cientistas
dedicaram-se a escrever romances.

151
5.1 - O esporte como romance

Mário Filho iniciou sua carreira no jornal de seu pai, na função de

gerente. Era uma função um tanto incômoda para quem pretendia tornar-se

jornalista, e via-se posto a autorizar ou negar vales para aqueles que lhe

deveriam ensinar o ofício. Diz Rui Castro: “[S]eu contato como o mundo

tinha sido aquele vil e triste intermediário, o dinheiro quando, na verdade

Mário Filho só queria saber de outras coisas: literatura, garotas e futebol,

mais ou menos nessa ordem”.259 Assim, a aversão à função de gerente e a

vocação para a literatura fez com que Mário Filho assumisse a página

literária do jornal A Manhã, chamada “Espírito Moderno”.

Na página “Espírito Moderno”, gente famosa do movimento

modernista (Ronald de Carvalho, Agripino Grieco e Orestes Barbosa)

assinava críticas e artigos.260 Castro conjectura que em 1926 “os vapores da

semana de 1922 já tinham se espalhado pelo Brasil” e os modernistas, com

seu estilo de frases curtas, eram referência para jovens escritores. Mário

Filho, inspirado pelo Modernismo, aventurou-se a escrever seus primeiros

contos na página literária. A primeira série de contos que publicou referia-se

a uma garota “moderna” de Copacabana, cujo erotismo dava o tom à

narrativa. Os contos foram posteriormente reunidos na forma de livro, que

recebeu o título Bonecas. Pouco depois, em 1927, publicou outra série de

contos que reuniu no livro Senhorita 1950 e, como diz Castro, “nada devia

parecer mais futuro em 1927 do que o ano de 1950”.261

259
Castro (1992, p. 112).
260
Idem, ibidem.
261
Idem, p. 113.

152
Os livros tiveram uma publicidade estrondosa - afinal, seu pai tinha o

meio publicitário e a gráfica nas mãos. A crítica literária recebeu Mário Filho

com muitos elogios assinados por modernistas famosos, principalmente

aqueles que estavam na folha de pagamento do jornal de seu pai. “E, então,

quando tudo indicava que iria especializar-se como um narrador da futilidade

pubescente, Mário Filho abandonou a página literária (...) e jogou-se por

inteiro na direção da página de esportes...”262 O que teria acontecido a

Mário para abandonar sua primeira grande paixão pela literatura?

Segundo Rui Castro, dois fatos podem explicar a saída de Mário

Filho da página literária: os elogios pouco imparciais da crítica não lhe teriam

dado a devida segurança para legitimá-lo como romancista, e/ou o

casamento com Célia teria amansado as inspirações eróticas de sua

literatura. Leite Lopes imputa outro sentido ao afastamento: talvez Mário

tivesse vislumbrado na página de esportes um espaço de maior autonomia e

de proteção dos virulentos ataques dos inimigos políticos de seu pai.263

Independente do sentido atribuído ao afastamento de Mário Filho da página

literária, chama atenção o fato que ele “renegaria ‘Bonecas’ e ‘Senhorita

1950’ de tal forma que esqueceria” de incluí-los entre os livros publicados.264

Contudo, não se pode desvelar o mistério do ocultamento desses livros e

nem saber ao certo os motivos que o teriam levado a dedicar-se à página de

esportes.

262
Idem, ibidem.
263
Leite Lopes (1994, p. 67).
264
Nas contracapas dos livros de Mário Filho, onde são listadas as obras publicadas, nunca se
encontra menção a Bonecas e Senhorita 1950.

153
A trajetória de Mário Filho, como escritor e jornalista revela que a

literatura nunca foi deixada de lado. Os depoimentos de seus amigos

confirmam que sua paixão pela literatura foi canalizada para o futebol. Pode-

se dizer que o tema das futilidades femininas foi apenas trocado pelo drama

do futebol. O prefácio do seu primeiro livro pobre esporte, Copa Rio Branco,
265
32 , escrito por seu grande amigo José Lins do Rego, confirma a hipótese

de que Mário Filho fez do esporte seu gênero literário:

“Derrotamos os Uruguaios em três jogos épicos. Em 1932 o


Brasil voltava de Montevidéu com a façanha maior de sua vida
esportiva.

Mário Rodrigues Filho resolveu nos contar a história desta


façanha. E escreveu um livro que é como um comentário
biográfico de uma vitória. E nos conta com tanto vigor de
expressão e com tão forte colorido de imagens que às vezes nos
situa no meio dos acontecimentos, como se fôssemos uma
‘torcida’, tomado da paixão do momento. A literatura brasileira
conta assim com o criador de um gênero que é um mestre do
romance e da crônica. Para realizar este gênero o escritor
pôs na sua obra a originalidade de um artista que tudo dá ao
seu tema. Para muita gente não será possível nada de grande
com um assunto vulgar, como este de partida de football. Estes
não se lembram dos jogos olímpicos e nem dos poetas gregos.
Não se lembram de que é o gênio criador, a força da expressão,
a magia da arte que fazem os romancistas, os poetas, os
pintores, os estatutários. A matéria de que eles se servem é
secundário. No caso de Mário Rodrigues Filho, a matéria é a
mais rica, a mais sugestiva. Tomar o homem para tema, fixar a
bravura, a sagacidade, a força, a elegância, o surto das paixões,
a emoção da vitória, a energia dos combates, as dúvidas, os
medos, o amor a terra nativa, tudo isto é uma massa de material
artístico de primeira ordem, e reduzir este material a um
romance verdadeiro, com as alegrias, as lágrimas da vitória
da Copa Rio Branco de 1932, só poderia realizar um homem
com os dotes de escritor de Mário Filho. O que há no mestre da
literatura esportiva é que, ele sendo o narrador dos arrancos das
multidões, das batalhas mais aguerridas, é um escritor sóbrio, de
relevo clássico. A sua frase não se derrama num acesso de

265
Rodrigues Filho M. (1943).

154
torcedor. Pelo contrário, no mais agudo da narração, intervém o
homem que está contando, o narrador que age, como se
estivesse gravando em branco e preto. (...) O mestre Mário
Rodrigues Filho não treme a voz. Quando o ponteiro Jarbas
atravessa o campo na corrida vertiginosa para o goal da vitória, é
como se fosse pisando por cima de nossa carne.”266 (grifos meus)

Mário Filho, segundo Lins do Rego, teria criado um gênero literário: o

romance esportivo. Seu estilo tornaria o jogo de futebol um drama que

levaria o leitor a viver introspectivamente a tensão daquilo que já tinha

conhecimento que sucedera. E, às vezes, o que se lia em sua crônica era

melhor do que aquilo que se tinha ouvido ou visto. O futebol narrado por

Mário superaria a realidade, e a ficção podia ser mais emocionante que o

espetáculo presenciado.

Suas obras subseqüentes comprovam que o futebol tornou-se seu

tema literário. Uma viagem em torno de Pelé é uma biografia-romance.

Mário Filho tinha uma especial admiração por Pelé, que era para ele o maior

símbolo do futebol e do Brasil. Pelé teria lhe dado a alegria de ver o Brasil

sagrar-se campeão do mundo. Cascadura, seu fiel funcionário do Jornal dos

Sports, diz que Mário filho tinha uma preocupação toda especial com Pelé, e

que ninguém podia escrever nada contra ele, pois se escrevesse e fosse

branco, Mário acusava de racista; caso fosse preto, acusava de traidor da

cor.267

No depoimento em homenagem a Mário Filho, realizado no Museu

da Imagem do Som em 1968, nota-se uma espécie de mágoa dos seus

266
José Lins do Rego in: Rodrigues Filho, M. (1943, Prefácio).
267
Depoimento no Ciclo da História do Esporte Brasileiro/Homenagem a Mário Filho, Museu da
Imagem e do Som (MIS), Rio de Janeiro, 1968.

155
amigos em relação a Pelé. Segundo eles, foi uma ingratidão Pelé não ter

mandado um telegrama de condolências pela morte daquele que tanta tinta

havia gastado para imortalizá-lo como herói. Um dos depoentes ainda cita

que Pelé teria reclamado nada haver recebido pelo livro. A suposta

reclamação seria outra ingratidão, pois, segundo seus amigos, Uma viagem

em torno de Pelé é a vida que Pelé gostaria de ter vivido na realidade. 268

De fato, todos os depoentes falam de Mário Filho como um criador

de ficção a partir de histórias e personagens reais. Para Antonio Olinto,

jornalista e critíco literário, os romances de Mário Filho possuem um estilo

entre a ciência e a ficção. Uma viagem em torno de Pelé e Histórias do

Flamengo são obras desse estilo. Alguns textos de Mário Filho, segundo

Olinto, vão para além da ficção, “[E], às vezes, essas histórias reais elas

tinham até conotações sociológicas ou sociais”.269 Seria o caso do NFB, que

narra a atitude preconceituosa da classe média em relação à ascensão do

negro, não em relação ao meio universitário, mas, sobretudo em relação a

um meio social sem muito prestígio: o futebol. Conclui Olinto que a missão

que Mário Filho se impôs “foi [a de] colocar seu romance no futebol”.270

Mário Filho era, sobretudo um romancista. Olinto o comparou, talvez

desmedidamente, aos grandes nomes de nossa literatura. O romance “O

rosto” deveria, segundo Olinto, ser comparado às obras de Manuel Antonio

de Almeida, de Machado de Assis, de Lima Barreto e de Marques Rebelo.271

Diz Olinto: “o primeiro escreveu o tempo do ‘El Rei’, o segundo todo Império

268
Idem.
269
Idem
270
Idem
271
Antonio Olinto in: Rodrigues Filho, M. (1965, prefácio).

156
e o início da República, o terceiro a ‘Nova República’, o quarto o mundo

subumano”.272 Mário Filho em O rosto descreveria a “face” do Rio de Janeiro

a partir do cotidiano de um jornal no início do século.

Considerar Mário Filho um romancista é lugar comum para seus

amigos, colegas e conhecidos. Entretanto, legitimá-lo como importante

romancista parece ter sido a tarefa de seus afetos e do próprio desejo de

Mário Filho. Embora a imagem de Mário Filho como jornalista e homem do

esporte seja a mais forte, os amigos, sobretudo os literatos, procuram

defender a imagem do homem de letras, do romancista. Como lembra

Carlos Heitor Cony, Mário Filho era um excelente prosador, mas sua

trajetória como interventor no campo do esporte talvez tenha

reconhecimento mais significativo do que suas produções literárias. 273.

Nelson Rodrigues, seu irmão, fornece um depoimento ambíguo que

talvez explicite o afã de seus amigos em marcar o perfil de romancista:

“O esporte retardou a sua ação literária, só agora é que Mário


Filho, quando a morte o assassinou, ia começar
verdadeiramente a sua literatura. Eu preferia que ele tivesse
feito menos pelo esporte e mais pela literatura, que era a meu ver
a sua vocação essencial. Mas o fato é que a gente não faz a vida
que quer, são as circunstâncias, são as injunções, que vão
levando a gente etc...

A minha única inveja literária no Brasil é Mário Filho. Mário Filho


deu aos cronistas uma linguagem, pois nós não sabíamos falar. A
turma escrevia de coletes e polainas e Mário Filho nos deu uma
linguagem maravilhosa que ia conquistar multidões. Eu só
lamento que ainda não se tenha feito criticamente a justiça

272
Depoimento no Ciclo da História do Esporte Brasileiro/Homenagem a Mário Filho, Museu da
Imagem e do Som (MIS-1968) op. cit
273
Na contracapa de O rosto (1965) constam as observações de Carlos Heitor Cony.

157
literária a Mário Filho: que foi um maravilhoso prosador. Antes de
tudo depois de tudo e acima de tudo.”274 (grifos meus)

As palavras, ainda que emocionais, indicam o sentimento de

indefinição em caracterizar Mário Filho como um “homem de letras ou do

esporte”. Nelson diz que gostaria “que tivesse feito menos pelo esporte e

mais pela literatura,” que a seu ver seria “sua vocação essencial”. Parece

que o fato de Mário filho ser reconhecido pelo papel de interventor e

construtor de tradições no campo esportivo, e não como um romancista, que

era seu desejo, incomoda seu irmão e seus amigos.

A marca de Mário Filho como interventor no campo esportivo é

patente. Talvez decorra daí o sentimento de Nelson e outros. Marcos

Carneiro Mendonça - famoso goleiro do Fluminense e da seleção campeã do

Sul-americano de 1919 - diz que em 1927 Mário Filho chegou ao Fluminense

querendo se informar sobre o movimento do profissionalismo que ali

nascia.275 Assim, depois de estar informado, abraçou a causa e passou a

militar jornalisticamente a favor da profissionalização do futebol.276

Mário aprendeu com seu pai que um jornal não poderia limitar-se a

cobrir jornalisticamente os eventos. O jornal deveria, se possível, criar

notícias, ser notícia e promover eventos. Foi assim que, nas páginas do O

Globo, foi criado o Fla-Flu e o campeonato de torcidas, oferecendo prêmios

274
Depoimento no Ciclo da História do Esporte Brasileiro/Homenagem a Mário Filho, Museu da
Imagem e do Som (MIS), Rio de Janeiro,1968.
275
Depoimento de Marcos Carneiro Mendonça no Ciclo da História do Esporte Brasileiro, Museu da
Imagem e do Som (MIS), Rio de janeiro, 1967.
276
Jornal dos Sports, 26 mar.1981, p. 13.

158
e medalhas aos torcedores.277 Mário desde cedo revelara-se um gênio

promocional do esporte. Em 1932, promoveu a “Travessia Rio - Santos”,

uma façanha para a época. Fez reunir uma multidão em torno da Lagoa

Rodrigo de Freitas para assistir a uma regata com os renomados remadores

de Cambridge. O Torneio Rio-São Paulo e a Copa Rio são outras de suas

criações. Mas a maior criação no campo esportivo talvez tenha sido os

“Jogos da Primavera”, que, segundo seus amigos, era a sua grande paixão.

Diz Cony:

“Os seus ‘Jogos da Primavera’, invenção sua, são o testemunho


do que era a sua alma. Teve uma atuação, como disse JK,
decisiva no encaminhamento da mocidade brasileira, para o
esporte; principalmente da mulher brasileira. Se hoje estamos
vendo a nossa raça melhorando, vendo a mulher brasileira se
transformando, crescendo e partindo para a vida, e cada vez
mais bonita, mais saudável, devemos isso em grande parte a
Mário Filho, que conseguiu com aquela sua tenacidade, que as
meninas do colégio pudessem desfilar em maiô pelos estádios
naqueles espetáculos grandiosos que foram os ‘Jogos da
Primavera’. Assisti a quase todos”.278

Os “Jogos da Primavera” eram uma promoção só do Jornal dos

Sports. Cascadura conta que Mário costumava dizer que enquanto fosse

vivo ninguém mais os patrocinaria.279 Vários presidentes da República e

autoridades sentaram-se ao lado de Mário Filho para assistir a essa festa.

Muitas das autoridades se dispunham a auxiliá-lo, mas, segundo seus

amigos, sempre recusou qualquer tipo de patrocínio para os Jogos.280 Mário

277
Depoimento no Ciclo da História do Esporte Brasileiro/Homenagem a Mário Filho, Museu da
Imagem e do Som (MIS), Rio de Janeiro,1968; Castro, (1992, p. 132).
278
Idem.
279
Cascadura, já citado, era funcionário do Jornal dos Sports.
280
Conta-se que, num dos “Jogos da Primavera”, o dono da Superball distribuiu panfletos de

159
Filho é descrito como um homem independente e generoso, cuja trajetória

no jornalismo esportivo foi a de desenvolver o esporte sem qualquer vínculo

político-partidário. A imagem de neutralidade sempre foi preservada por

Mário Filho, tanto no campo político quanto no campo esportivo. A

neutralidade chega a tal ponto que Mário Filho morreu deixando dúvidas

sobre para qual time torcia, uns especulando que era para o Flamengo e

outros que eram para o Fluminense.281

Mário pode ter construído uma trajetória ou uma imagem apartidária,

mas não se pode dizer que se mantivesse afastado das elites que definiam

os destinos do esporte, da cultura e do país. De fato, sua proximidade com o

poder é nítida ao se percorrer as fotos dos “Jogos da Primavera”, nas quais

ao seu lado pode-se ver Getúlio Vargas, Jucelino Kubitscheck e outras

autoridades deste porte. Reunia-se constantemente com os dirigentes dos

clubes, com dirigentes esportivos de todos os níveis. Mário foi um mediador

cultural na invenção ou construção da cultura de massa. E, para tal, tanto é

necessário ter sensibilidade para os desejos e aspirações populares, quanto

se deve estar perto daqueles que decidem os destinos da Nação. Enfim,

talvez Mário tivesse buscado no jornalismo esportivo um caminho doce, ou

supostamente neutro, oposto à trajetória do jornalismo político de seu pai.282

As vinculações políticas e o jornalismo agressivo de seu pai

trouxeram muitas dificuldades para os Rodrigues, com o empastelamento do

propaganda da loja e Mário Filho ordenou que os panfletos fossem recolhidos. Castro (1992), p. 224.
281
Pouco importa saber seu time, o que interessa é a postura construída por Mário Filho para mostrar-
se apartidário em qualquer sentido.
282
Esta interpretação está em Leite Lopes (1994) mas também é encontrada em outros depoimentos de
amigos e parentes.

160
jornal A Crítica.283 Mário, aos 19 anos, sem seu pai e sem o jornal, teve que

assumir a responsabilidade por toda a família.284

O Senador Mário Martins, seu antigo sócio no jornal Mundo

Esportivo, diz que, em função dos problemas políticos de seu pai, Mário “não

pôde fazer literatura, não pode fazer política e não pôde se dedicar a

questões sociais”.285 Mário Filho, buscando reerguer a família, “estava dando

ao Brasil caminhos novos no esporte e, sobretudo, na música popular, no

samba e na imprensa”286. Os novos caminhos para o samba abertos por

Mário Filho, segundo Martins, vinculam-se à curta história do jornal Mundo

Esportivo fundado por eles. Voltar a ser proprietário de jornal era a saída

para reerguer a família financeiramente, mas o jornal não emplacou o nono

mês de existência.287 O Mundo Esportivo teria nascido num momento

impróprio para o jornalismo esportivo, no final do campeonato carioca de

1931. Como vender um jornal especializado em esportes se o futebol estava

em recesso? “Carlos Pimentel [, seu jornalista,] - malandro de carteirinha, rei

do Mangue e sem um dente na boca -, teve uma “idéia salvadora”: divulgar o

carnaval no recesso do futebol.288 A idéia de Pimentel foi frutífera. Mário

Filho não só apoiou como inventou o concurso das escolas de samba na

283
Diz Geraldo Romualdo da Silva: “Restando a Mário, aos 19 anos, assumir todas as
consequências pelo que viesse a ocorrer. Inclusive, e principalmente, o pátrio-poder de toda a família
desamparada.Tem origem nesse episódio, de luto e desespero, a permanente e irremovível
incompatibilidade de Mário Filho com a política e os políticos profissionais”.(“Mário Filho, mestre,
lider e criador”. Jornal dos Sports, 26 mar. 1981,p. 13).Ver também depoimento do Ciclo da História
do Esporte Brasileiro/Homengem à Mário Filho, Museu da Imagem e do Som (MIS), Rio de
Janeiro,1968, onde o Senador Mário Martins declara que, Mário Filho foi um gingante que renasceu
das cinzas para reerguer a família - referindo-se a trágica história da morte do pai, do irmão e do
empastelamento do jornal.
284
Depoimento no Ciclo da História do Esporte Brasileiro/Homenagem a Mário Filho, Museu da
Imagem e do Som (MIS), Rio de Janeiro,1968.
285
Idem
286
Idem

161
Praça Onze, bem ao estilo do que ainda vemos hoje. O evento foi um
289
sucesso, sendo no ano seguinte incorporado pela Prefeitura. Segundo

Castro, o Mundo Esportivo cumpriu o seu papel de escolar os brancos

cariocas sobre o fascínio daqueles negros que se fantasiavam e evoluíam

pela rua ao som de instrumentos ainda considerados meio bárbaros, como

surdos, cuícas e tamborins”.290 Desta forma, o Mundo Esportivo sobreviveu

naquele momento impróprio para o esporte inventando caminhos para o

samba tornar-se um gênero de música nacional. Fora um homem que a

literatura havia perdido, mas caso se revisasse seus artigos poder-se-ia ver

que ele havia lançado um estilo literário.291

A intervenção de Mário Filho via máquina jornalística é sua marca

registrada. Pelo Jornal dos Sports criou uma série de eventos e entrou em

grandes campanhas a favor daquilo que julgava ser o desenvolvimento do

esporte nacional. Uma das maiores empreitadas assumidas por Mário Filho

foi a campanha para a construção de um Estádio Municipal para sediar a

Copa de 1950. Não se limitou a fazer campanha escrevendo artigos: foi um

articulador político. Por questões geográficas, defendia-se que o Estádio

Municipal deveria ser construído no coração da cidade, o que correspondia

ao bairro do Maracanã. Carlos Lacerda então deputado pela UDN, porém, se

colocava contra esta localização, pois julgava imoral construir um estádio de

futebol defronte a um hospital cujas obras haviam se tornado intermináveis.

287
Castro (1992, p. 117).
288
Idem, p. 118.
289
Idem, ibidem.
290
Idem, ibidem.
291
Nelson diz que Mário Filho fez a revolução no jornalismo esportivo, levou o esporte para 1ª
página. Em 1927-28, a crônica esportiva estava nas “cavernas”, segundo Nelson.

162
A posição de Lacerda era que o Estádio deveria ser construído em

Jacarepaguá, isto é, para onde a cidade se expandia. Mário respondeu a

Lacerda, não da tribuna, mas das páginas de seu jornal, dizendo que quanto

mais estádios menos hospitais necessitaríamos.292 Mário cooptou políticos e

rachou a bancada da UDN, trazendo Ary Barroso para seu lado, e o

Maracanã foi construído no local idealizado.

Mário era “homem do esporte”, condição que o colocava numa

posição quase suprapartidária ou apolítica. Durante a construção do

Maracanã visitava a obra todos os dias, e parecia estar visitando a obra de

sua própria casa. Do seu gabinete engajou-se na venda das cadeiras

cativas, gastando horas pelo telefone oferecendo-as a amigos ou

conhecidos. Quando morreu, não demorou para que os mesmos amigos

apresentassem o projeto para dar o nome de Mário Filho ao Maracanã.293

A imagem de articulador “neutro” parece ter sido uma estratégia de

sobrevivência oposta à de seu pai. Afirmava que a imprensa sempre teria

mais poderes que o homem comum. Dizia que era preciso ter muito cuidado

com aquilo que se escrevia.294 O excesso de comedimento, em relação a

temas polêmicos, demonstrava que não gostaria de repetir a experiência

negativa que viveu em função do jornalismo agressivo do pai. Adorava o

debate com os amigos, mas tinha o cuidado de só abraçar pelo jornal

causas que favorecessem o engrandecimento do esporte. Dizia: “não se

pode jogar contra o próprio negócio”.295 Acredito que a neutralidade

292
Castro. (1992), p. 226.
293
Idem.
294
Idem.
295
Idem, ibidem. Seus amigos dizem que Mário Filho adorava debater sobre todos os temas, era um

163
assumida pode ser, até certo ponto, entendida como tática: para construir,

havia que renunciar à política.296 Mário Filho, além de um inventor de

tradições, tornara-se um ideólogo do consenso e da promoção do esporte.

Isto que aqui chamo de ideologia, Nelson Rodrigues diz que foi a ética

construída pelo irmão:

“Todos nós temos a vocação do ódio, Mário Filho nunca odiou


ninguém. Tinha certas posições éticas na crônica esportiva, ele
dizia: não se publica nada que desmoralize o esporte, não se
chama um juiz de ladrão. Ele erra tecnicamente. Transforma-se o
roubo em um engano, em erro técnico ou no máximo em
incapacidade do juiz; porque quando se chama o juiz de ladrão
está se traindo a confiança do torcedor, essa é uma coisa
essencial para o desenvolvimento do esporte. Se a imprensa diz
que o juiz é ladrão o torcedor acredita, e aí o esporte
despenca.”297

Segundo Nelson, Mário jamais admitiu publicar os casos de suborno

de jogadores. Nelson insistia que era função do jornal publicar a verdade,

mas Mário retrucava dizendo que não se poderia fazer desacreditar o

esporte pelas exceções, pois para ele o cronista esportivo não deveria

bancar o repórter policial.298

Mário Filho, para sobreviver no jornalismo, tomou o esporte como um

caminho sem grandes confrontos. Na busca da sobrevivência, para si e sua

família, acabou edificando tradições no campo do esporte brasileiro, tendo

também auxiliado a construir o sentimento de identidade nacional. Esta

exercício que gostava de realizar entre amigos.


296
Sobre a função das estratégias de renúncia à política no campo especial da ciência ver Lovisolo
(1995;1996).
297
Depoimento no Ciclo da História do Esporte Brasileiro/Homenagem a Mário Filho, Museu da
Imagem e do Som (MIS), Rio de Janeiro, 1968.
298
Idem

164
absorvente trajetória de intervenção no campo esportivo talvez ofusque sua

imagem como homem de letras, apesar de ter escrito vários livros. Talvez

esta seja a reclamação que Nelson Rodrigues esboçou no apaixonado

depoimento sobre seu irmão.

A imagem de interventor no campo esportivo, para os amigos, não se

opõe à literatura desenvolvida por Mário Filho. Antonio Olinto diz que Mário

teria levado a poesia para o esporte, pois escrevia sobre futebol como se

estivesse na Academia Brasileira de Letras.299 Para Mário, esporte e

literatura eram coisas que se poderiam juntar (talvez pela esfera da arte e da

estética). Olinto diz que fora contratado por Mário para fazer “critica literária

de jogo de futebol”. Antes que Olinto o interrogasse sobre a tarefa, Mário

começou a dar exemplos: compare Ademir Menezes a Proust, o estilo de

Zizinho a Guide - e Olinto diz ter feito 20 crônicas seguindo os conselhos.

Segundo Olinto, Mário Filho foi um conspirador em favor do esporte, vendo

naquela prática uma manifestação da cultura brasileira. Para Mário o gênio

brasileiro estaria tão bem representado em Garrincha como em Machado de

Assis. “Em certos momentos, certas jogadas de Garrincha são melhores que

muitas páginas de Machado. É claro que certas páginas de Machado são

melhores que muitas jogadas de Garrincha”.300

Mário vai da paixão pelo futebol, pelo samba, aos grandes clássicos.

Sua leitura era seleta. Possuía uma biblioteca composta pelas obras

completas de Machado, Eça, Joyce, Spengler, Shakespeare, Tolstoi,

299
Idem
300
Idem

165
Dostoiewski, Flaubert.301 Também cultivou à sua volta intelectuais

brasileiros, de preferência na sua folha de pagamento.302 A circularidade que

se comentou sobre a obra de Freyre, entre o popular e o erudito, também

aparece em Mário Filho. O exemplo da comparação entre futebol e literatura

dá substância ao argumento. A combinação do popular com o erudito foi a

marca daquela geração atuante na construção do Brasil.303

Todos lamentam que a morte tenha pego Mário de surpresa, no

momento em que tinha começado a dedicar-se à literatura. Já havia

publicado o romance O rosto, e seu último livro fora A infância de Portinari,

outra biografia-ficção. Antes da morte, em 1966, preparava-se para escrever

um romance sobre a desgraça da “Gripe Espanhola” no Rio de Janeiro.

Nota-se que antes de morrer Mário Filho teria retomado outros temas para

expressar sua literatura. Talvez tenha retomado o projeto do início da

carreira, do qual não se sabe as causas do abandono.

A vinculação de Mário Filho ao gênero literário do romance é evidente.

Todos os seus livros foram apresentados por grandes romancistas e

escritores brasileiros. A vinculação se expressa no título de seu livro “O

romance do futebol”, de 1949. Mário Filho fora, além de “criador de notícias”,

inventor de tradições e ideólogo do esporte, um romancista. Um romancista

que buscava os heróis, o lado bom e poético do esporte que ajudara a

desenvolver. Como jornalista tinha a fecundidade de um romancista, como

atesta Nelson Rodrigues: “certa ocasião, apenas com o resultado de uma

luta de boxe internacional, Mário Filho teria escrito uma página inteira, onde

301
Geraldo Romualdo da Silva. Jornal dos Sports, 26-03-81, p. 20.
302
Antonio Olinto e José Lins do Rego são exemplos.

166
descrevia detalhadamente todos os rounds da luta”.304 Conclui, com

admiração, Nelson: “Mário era de uma fecundidade apavorante”.305 Tal

fecundidade se traduziria na forma de colher os dados para compor seus

livros. Ao escrever A viagem em torno de Pelé, perguntava se Pelé sonhava.

No livro Copa do Mundo 62, durante a estada no Chile ia à concentração

perguntar o que os jogadores haviam almoçado, se teriam rezado durante a

noite, se tinham sonhado, o que conversavam etc. Todos os detalhes que

recebia eram importantes. Fosse qual fosse a fonte, anotava num bloquinho,

com sua bela caligrafia. Os detalhes e os sentimentos eram importantes

para um jornalista que operava como um romancista. Precisava conhecer os

detalhes para criar a paisagem, para dar o toque dramático às cenas que

escrevia. O leitor teria que mergulhar e ver aquilo que supostamente havia

passado pelos olhos do narrador ou pela imaginação do romancista.306

Um modo detalhista, de escritor conversador e contador de casos,

marcou seu estilo de escrever. Daí surge a concepção de jornalismo que se

303
Ver comentários sobre os modernistas brasileiros em Vianna (1995).
304
Depoimento no Ciclo da História do Esporte Brasileiro/Homenagem a Mário Filho, Museu da
Imagem e do Som (MIS), Rio de Janeiro, 1968.
305
Idem
306
Observe-se o texto retirado do livro Copa do Mundo, 62 para entender o cenário que Mário
constrói. Mário quer apenas relatar a reportagem que Geraldo Romualdo preparava abordando vitória
do Brasil sobre a Thecoslováquia. A novidade daquele jogo era Amarildo substituindo Pelé, que se
machucara. No segmento fica evidente o estilo de romancista e ficcionista: “Geraldo Romualdo da
Silva, enquanto batia com força o teclado da portátil, ouvia o barulho de carnaval no San Martin.
Trancara a porta, depois que Sérgio Gomes e Alfredo Mota Alves, torcedores da Grapette, se tinham
deitado para dormir, enrolados em cobertores. Sérgio Gomes dormia abraçado a uma‘ roley’.
Alfredo Mota Alves segurava ainda um jornal, com a mão estendida para fora da cama, e estava de
olhos fechados.
-Amarildo é bom, bom, bom, bom. - Geraldo Romualdo não sabia se o som das palavras vinha de fora
ou se era ele mesmo que mentalmente repetia a letrinha.
Por isso teclateava com mais força, como se quisesse afundar as letras da portátil. Agora o Brasil
vai, agora ninguém aguenta o Brasil. Foi quando Geraldo Romualdo percebeu uns risonhos. Era
Alfredo Mota Alves que sonhava rindo, ri, ri, ri. A seguir veio o ruído de quem chupa um dente, como
na anedota da valsa. Era Sérgio Gomes. Alfredo Mota Alves fazia ri, ri, ri, Sérgio Gomes
acompanhava chupando o dente.
As teclas da portátil quase saltavam aos golpes dos dedos de Geraldo Romualdo.” (p.178-9)

167
contrapunha àquilo que chamava de “notícia fria”.307 Segundo Geraldo

Romualdo da Silva, Mário Filho sempre sentenciava: “É indispensável por

calor e alma nas notícias. O calor e a alma é que dão autenticidade aos

fatos”.308 Além de ter calor, a linguagem deveria atingir o povo, era o

conselho de Mário Filho.309

Pode-se ler, pelas palavras de Mário Filho citadas por Romualdo, que

sua concepção de jornalismo se aproximaria mais do romance do que de

uma concepção fatual de jornalismo. Seu jornalismo tinha que ser carregado

de drama, tal como as páginas policiais do jornal A Noite, que fizeram tanto

sucesso porque, conforme explicava, suas reportagens vinham “carregadas

de humanismo”.310 Segundo Geraldo Romualdo da Silva, teria sido

“nos bate-papos dos cafés de então, principalmente, nas rodas


cheias do Nice, que Mário Filho caldeou seu inconfundível estilo
de contar histórias em tom de conversa informal, com a
simplicidade nativa do homem que cruza com os nossos
caminhos. Seu segredo estava em não contrariar os fundamentos
do cotidiano”

“-No bate-papo a gente se desarma, fica mais dentro da gente, e


termina falando a linguagem real do povo”.311

Depois de percorrer a trajetória de Mário Filho como interventor e

jornalista no campo esportivo, tendo o esporte como tema de sua literatura

ou de seus romances, pergunta-se: por que o NFB é visto como uma

307
Cf. Jornal dos Sports 16 set. 1966.
308
Idem
309
Luiz Maia, companheiro de jornal, lembra que Mário Filho aconselhava “rastejar” a linguagem
para atingir a todos, sem que com isso se perdesse o estilo. Depoimento no Ciclo da História do
Esporte Brasileiro/Homenagem a Mário Filho, Museu da Imagem e do Som (MIS), Rio de
Janeiro,1968.
310
Idem

168
historiografia do futebol e não como um romance? Em outros termos, por

que se destituem as qualidades literárias do NFB como romance, para

eternizá-lo como uma obra de história? Respondendo antecipadamente a

esta questão, que será melhor explorada nos próximos capítulos, pode-se

afirmar que foi devido principalmente à carência de historiografia básica

sobre o assunto. Se a carência é um dos motivos de encontrarmos,

repetidamente, as histórias do NFB em textos atuais, o outro motivo decorre

da própria mitologização que Mário Filho teria feito de sua obra. Suas

palavras em “Nota ao Leitor”, na primeira edição, já buscavam legitimar o

NFB como um texto que descrevia a dura e linda história do futebol

brasileiro:

“A coleção completa da Vida Esportiva, uma revista que nasceu


em 16 e morreu em 20; a Crítica, de 28 a 30; a do O Globo; a do
Jornal dos Sports; a do Globo Esportivo. Eu preferia, porém, ouvir
dirigentes, jogadores e torcedores. Ouvi centenas deles, de todas
as épocas do futebol brasileiro. Que podia ouvir o próprio não
procurava outro. (...) O material era tanto, e com tamanho
requinte de detalhe, que ficava a dúvida. A dúvida de como eu
conseguiria reuní-lo, catalogá-lo, usá-lo, numa narrativa corrente,
sem um claro, uma interrupção. Eu não me teria valido da
imaginação de romancista que ainda não publicou um
romance? Não, eu não usei a imaginação. Nenhum historiador
teria tido mais cuidado do que eu em selecionar os dados, em
comprovar-lhes a veracidade por averiguações exaustivas.312
(grifo meu)

Mário Filho faz questão de afirmar que não poderia ter utilizado a

imaginação de romancista para escrever o NFB. Romances que diz nunca

ter escrito, nas notas introdutórias do NFB. O que é falso pois ele publicara

311
Idem

169
no início de sua carreira Bonecas e Senhorita 1950, livros que, como foi

visto, eram produto de uma série de contos do início da carreira. Mário Filho

realmente tinha uma imaginação de romancista formada, embora renegasse

os seus primeiros romances. Mário Filho quer afirmar o NFB como um texto

de história se auto-nomeando um historiador rigoroso. Não achamos

nenhum indício para que se explique o porquê do uso de argumentos de

força, que Mário utiliza para legitimar o NFB como uma obra de história.

Seriam estes argumentos uma resposta a alguém, algum tipo de

justificativa? É possível que apenas respondesse às demandas do

pensamento cientificista da época?

O que importa é que, no cruzamento do pessoal com o social, o

historiador romancista superpõe-se, com o domínio do último. Não se está

aqui indicando, pelos argumentos sugeridos, que o NFB não possui valor de

fatualidade histórica. Não é o caso. Entretanto, o que parece é que, apesar

da fatualidade histórica, a narrativa do NFB, para ser estruturada, valeu-se

da imaginação do romancista Mário Filho. Tanto parece ser assim, que a

figura do negro aparece em seu texto como um héroi universal da

construção da idéia de brasilidade, como personagem mítico. Se o romance

inspirou seu jornalismo e sua forma de escrever, o esporte foi o tema central

de seus romances, de sua literatura.

312
NFB (1947, “Nota ao leitor”).

170
SEGUNDA PARTE:

ATUALIZAÇÃO DOS “MITOS” DE MÁRIO FILHO

171
6 - MAPEANDO HIPÓTESES E REFERÊNCIAS ANALÍTICAS

Nesta parte do estudo analisar-se-ão os “novos narradores” que se

nutrem do texto do NFB. O que impera, tanto na produção jornalística quanto

na acadêmica sobre o futebol no Brasil, é uma reiterada repetição do NFB.

6.1 - A fonte e sua legitimação

José Carlos S. B. Meihy, em 1982, apontava que o tema do futebol,

apesar de sua importância enquanto fenômeno de massas, tinha caído no

esquecimento no meio acadêmico. Para o autor, o tema foi trabalhado

basicamente por intelectuais vinculados à prática política ou por cronistas e

literatos do esporte.313 O discurso produzido sobre o futebol no Brasil teria

sido utilizado para reforçar fantasias ideológicas do “espírito do povo”, “úteis

a alguns grupos”, onde a forma dançada e malandra do futebol, ao lado do

samba, da capoeira e da religiosidade, constituíram-se em elementos de

integração e de “unidade nacional”.314 Assim, da mesma maneira que se diz

que o Brasil “é a maior nação católica do mundo, ou que o samba está no

sangue do brasileiro, afirma-se também que este é o país do futebol”.315

313
Meihy (1982).
314
Idem, p 11-2.
315
Idem, p.11.

172
Ainda que não se concorde com a idéia conspiratória e funcionalista

de Meihy, quando conjectura que o futebol e outras expressões culturais

teriam sido “úteis a alguns grupos”, não se pode deixar de concordar que os

atributos “singulares” de nossa cultura formaram, em conjunto com o futebol,

um discurso de unidade, integração e identidade nacional.316

Pode-se dizer que o discurso produzido sobre o futebol brasileiro é

uma tradição inventada, que enfatiza uma ideologia da nacionalidade, no

sentido proposto por Hobsbawm.317 O discurso de construção da

nacionalidade foi-se estruturando no Brasil desde o século XIX e teve seu

auge no período entre as guerras. Mário Filho e seu texto pertencem à

geração que ganhou voz a partir dos anos 30. Buscou no futebol

singularidades ou marcas que identificassem o “ser brasileiro”. A geração de

Mário tinha como tarefa mudar a imagem negativa construída pelos

intelectuais do passado, principalmente por aqueles que viam em nossa

formação racial o motivo do atraso do país.

A geração dos anos 30, com apoio e suporte institucional do Estado

brasileiro, inventou e consolidou uma imagem de nação e um ideal de

brasilidade. De acordo com Hobsbawm, não foi a partir das nações que se

construíram os estados modernos, mas a partir dos estados constituídos é

que se construíram e inventaram nações.318 O estado é anterior à nação.319

316
Deve-se levar em conta que este era um modelo interpretativo bem presente no contexto dos anos
80, na sociedade brasileira. Em vários setores buscou-se os manipuladores. Contudo, como nos alerta
Elias. (1993),“Enquanto as pessoas acreditarem que os acontecimentos são conseqüência de planos e
intenções mais ou menos caprichosos de alguns seres vivos, não podem considerar razoável o
examinar de problemas com base na observação. Se os acontecimentos forem atribuídos a seres
sobrenaturais ou mesmo a seres humanos ‘nobres’, o ‘mistério’ só se pode resolver tendo acesso às
autoridades que conhecem os planos e intenções secretas”. ( 60-1).
317
Hobsbawm (1997).
318
Hobsbawm (1990).

173
No caso brasileiro, pode-se afirmar que Alberto Torres e Oliveira Viana

tinham total convicção de que o Estado tinha por função construir a Nação

ou inventá-la artificialmente.320 O consenso sobre ser o futebol uma

dimensão da identidade cultural no Brasil é hoje amplo e sem

questionamentos. O NFB, como já visto, pode ser lido como um discurso de

construção de identidade nacional via futebol, onde o negro, de isolado,

segregado, discriminado, afirma-se e integra-se mediante a construção de

um estilo de futebol que se torna nacional.

Se Meihy, em 1982, afirmou que o discurso do futebol era

basicamente produzido por jornalistas e políticos que reforçavam o discurso

da integração e da identidade nacional, hoje já existe uma produção

acadêmica, pesquisas e ensaios sobre o assunto. Intelectuais e

pesquisadores, a partir de recortes das diferentes áreas das ciências sociais,

têm publicado, ainda que de forma assistemática, desde a década de 80,

análises sobre o tema.321 A situação não é a mesma de 1982, mas os

estudos ainda não são suficientes sob o ponto de vista do “ceticismo”

científico. Apesar de haver mais estudos, ensaios e teses sobre o futebol,

uma questão parece que ainda não está superada: a ausência de

historiografia e de levantamentos de fontes primárias. A falta de material

historiográfico faz com que os pesquisadores apóiem-se nas poucas fontes

319
Na teorização de Thomas Hobbes, considerado como o filósofo que inicia a teoria moderna sobre a
sociedade e o estado, o problema é a construção do estado, sendo que a temática da nação está
radicalmente ausente de suas reflexões.
320
Torres (1978); Oliveira Vianna (1974).
321
Não existe no Brasil uma linha de pesquisa na área das ciências sociais preocupada exclusivamente
com o fenômeno esportivo no Brasil. As produções são esparsas. O que observamos é que os esportes
geralmente são tomados como objeto de análise lateral a algum grande tema.

174
existentes sobre o futebol. O NFB recebeu e ainda recebe um papel de

destaque nas revisões e reflexões.

Segundo Shirts, é

“conveniente lembrar que a literatura futebolística comum não é


feita por intelectuais ou pesquisadores, com a intenção de
analisar, criticar, muito menos transformar a sociedade, e sim, por
ex-jogadores, técnicos, cronistas, ou seja, ‘membros da
instituição futebolística brasileira’, mais preocupados em
simplesmente narrar, isto é, ‘contar’ a “inocente” história do
futebol. Eis um exemplo: ‘O Negro no Futebol Brasileiro’, escrito
por Mário Filho; um livro pretensamente crítico, que tenciona
estabelecer o futebol em suas relações raciais, brasileiras,
passando pela Revolução de Trinta, pelo Estado Novo, sem
sequer inserir o futebol no quadro político-nacional, embora
mencione os fatos”. 322

Observe-se que a crítica realizada por Shirts parece não ser levada

em consideração. Como já comentei, a segunda edição do NFB tornou-se

um clássico ou um manancial de dados e interpretações.

A ausência de outras fontes talvez tenha sido condicionada pela

leitura construída sobre a obra de Mário Filho. Posta na posição de verdade

absoluta, de fonte primária, talvez tenha desestimulado o interesse pela

crítica histórica. Por outro lado, e sem entrar no mérito da boa qualidade

literária do texto de Mário Filho, sua presença como referencial pode ser

considerada como um indicador da falta de pesquisas sobre o futebol.

Sabemos que o revisionismo no campo da história é constante, sempre se

buscam novas fontes ou releituras, sob outras lentes, dos antigos dados. No

322
Shirts (1982), p. 93.

175
entanto, a história do futebol, que “não apresenta nenhum mistério”323, já foi

escrita por seu narrador oficial, Mário Filho, e aceita pelos “novos

narradores”. O curioso é que o próprio Gilberto Freyre, delicadamente, no

prefácio que escreve em 1947 para o NFB, diz que gostaria ver Mário Filho

se encaminhar para estudos mais demorados, o que não é levado em conta

pelos leitores do NFB. 324

Mário Filho não é colocado em questão por seus consumidores; pelo

contrário, é entronizado como etnógrafo, historiador entre outras

especialidades:

1-“[E]m ‘O Negro no Futebol Brasileiro’, Mário Filho faz uma


verdadeira etnografia da relação do clube de fábrica com a vida
social local dominada pela vida operária no Bairro de Bangu.” 325

2- “Nelson jamais teria o rigor e a preocupação com a pesquisa e


a veracidade histórica de Mário Filho”326

3- ”O Negro no Futebol Brasileiro é uma obra de significativa


importância para a história do futebol brasileiro (talvez a mais
completa fonte historiográfica já levantada sobre nosso futebol) e,
mais que isso, uma contribuição valiosa para a compreensão de
nossa identidade. 327

Os “novos narradores” qualificaram o NFB como clássico da história,

da sociologia do futebol ou das relações raciais no Brasil. A qualificação fica

ao sabor de cada autor.328 O ímpeto em legitimar a obra de Mário Filho

323
Expressão utilizada por Freyre no Prefácio de 47.
324
Ver Capítulo 4 do presente estudo.
325
Leite Lopes (1994, p. 80). A valorização da etnografia é feita pelo antropólogo.
326
Sussekind (1996, p. 83).
327
Gordon Jr. (1995, p. 72).
328
Santos (1981) qualifica o NFB como uma magnífica obra da história do futebol; Caldas, W. (1990)

176
denuncia a carência de fontes acessíveis, a competência literária do autor e

as demandas de formação da identidade nacional. Assim, mesmo com toda

importância dada à obra, poder-se-ia perguntar: que problemas decorrem do

uso NFB? Qual seu estatuto entre os gêneros da escrita?

O NFB pode ser encarado como discurso épico ou como narrativa de

construção da identidade nacional. Mário Filho elege um inimigo que

impedia, no passado, a realização da nação e sua integração. Considera

que o inimigo é o preconceito racial e de classe que existiria no futebol e,

recursivamente, na sociedade brasileira. Assim, quando eliminado o

preconceito, o futebol tornara-se nacional, brasileiro e autêntico.329 Se assim

ocorreu no futebol, por implicação não teria já ocorrido ou iria ocorrer na

sociedade?

O que se está argumentando é que o NFB, numa primeira leitura que

domina as interpretações posteriores, é um texto que adotaria a perspectiva

dos discriminados, dos excluídos e que, quando reconhecidos e integrados,

transformaram o futebol de inglês em nacional. Em última instância, a

perspectiva de Mário Filho é a do nacionalismo de seu tempo. Contudo, os

autores contemporâneos, ao nutrirem-se “dos detalhes”, dos “fatos”, das

“histórias” do NFB, parecem receber o viés desta perspectiva, embora

queiram atacar inimigos supostamente diferentes. Observemos que pensar a

obra de Mário Filho como adotando ou defendendo a posição dos excluídos,

dos discriminados, tem o ar claro e transparente do politicamente correto.

Em contrapartida, isto pode significar um tremendo anacronismo.

Pontapé inicial: memória do futebol brasileiro 1894-1933. São Paulo, IBRASA. p. 46.
329
Ver Capítulo 2; Seção 2.5. deste trabalho.

177
6.2 -Visão de sociedade ou época versus visão informativa

Diz Antonio Candido:

“O romance de tipo realista, arcaico ou moderno, comunica


sempre uma certa visão da sociedade, cujo aspecto e significado
procura traduzir em termos de arte. É mais duvidoso que dê uma
visão informativa, pois geralmente só podemos avaliar a
fidelidade da representação através de comparações com os
dados que tomamos a documentos de outro tipo.”330

O que se pode notar é que o NFB, mais do que a história da

trajetória do negro no futebol brasileiro, deve ser entendido como um texto

que se assemelha mais ao gênero do romance realista. O NFB é uma

narrativa épica do futebol. O caráter de história, hoje conferido a esta obra

pelos pesquisadores do futebol, inicia-se pelos próprios argumentos de

Mário Filho, que diz ter escrito a história fiel dos fatos. Declara se orgulhar

da veracidade da obra, na medida em que não recebeu críticas ou

contestações quando estas histórias foram publicadas. Que contestações

Mário podia esperar receber?

Como lembram os amigos, Mário escrevia a vida que os jogadores

gostariam de levar ou ter vivido, e os elevava à condição de heróis331. Sua

330
Candido (1993, p. 31).
331
Ver Capítulo 5 do presente trabalho.

178
luta sempre fora a favor do enaltecimento do esporte e do atleta, tendo

inventado tradições neste campo. Assim, quem contestaria suas histórias?

Ninguém, evidentemente, pois se ainda hoje as contestações não se

constituem uma tradição no Brasil, em campos considerados mais sérios, no

campo esportivo tais ações são inimagináveis. Os jogadores e dirigentes

esportivos que haviam sido os pioneiros do futebol no Brasil, muitos ainda

vivos nos anos 40, iriam contestar aquele que os colocava acima da

realidade, os endeusava? Seu jornalismo, ao contrário do de seu pai, não

era o da denúncia, mas o da busca de heróis e mitos. Era um jornalismo que

promovia o esporte sem que se ressentisse dos problemas que poderiam

afetar esta atividade social. Não buscava os canalhas nem os corruptos no

meio esportivo. Buscava os heróis. Assim, entende-se o fascínio que o NFB

ainda exerce sobre os “novos narradores”, se aquilo que se valoriza é o

plano da riqueza de detalhes de uma narrativa “demorada”, quando

confrontada com a carência de levantamento de fontes e dados sobre o

assunto.

O problema não reside na mera utilização do NFB, mas como a obra

é utilizada. Caso o NFB fosse trabalhado como um romance, ou como uma

reunião de crônicas que comunicam uma certa visão de sociedade, eu não

teria motivos para escrever esta tese. O problema é que o NFB não é tratado

como um romance ou uma reunião de crônicas, onde fatos e ficção se

misturam. O NFB tem sido utilizado como matéria-prima, como evidência

histórica, que informa como teria se dado a “história” ou as “reais” relações

raciais no futebol brasileiro. Como nos alerta Candido, o romance do tipo

179
realista fornece o clima ou uma certa visão de sociedade que fora traduzido

em termos de arte. Entretanto, para obtermos uma visão informativa, temos

que consultar os documentos e fontes primárias. A atitude dos que têm

fundamentado seus trabalhos no NFB indica ser justamente o contrário, pois

tornaram essa obra o “arquivo oficial” do futebol brasileiro. Mas por que o

NFB tanto encanta aos acadêmicos, aos jornalistas e ao povo em geral?

Qual é a mítica da narrativa?

6.3 - Atualização da narrativa e dos narradores

Sussekind, ao escrever Futebol em dois tempos, acaba por fornecer

a chave para que se entenda por que as narrativas do futebol se atualizam.


332
A partir do modelo proposto por Eco para analisar o Mito do Superman,

Sussekind tenta explicar o porquê da popularização e da atual decadência

do futebol carioca. A adaptação do modelo de Eco é frutífera para que se

entenda o jogo interativo dos atuais estudos de futebol com os dados do

NFB. Não é este o ponto abordado por Sussekind, mas observe-se como

seu modelo adequasse à questão que se está trabalhando.

A interpretação de Sussekind é a seguinte: existe uma correlação ou

afinidade entre a popularização do futebol e a construção de narrativas

sobre este esporte. O presente e o passado do futebol ligam-se através de

332
Sussekind (1996). O livro não pode ser entendido como um texto acadêmico stricto sensu. A
proposta da Coleção Arenas do Rio fornece a justificativa da publicação: “um elenco das expressões
múltiplas que compõem o mosaico cultural de uma cidade que, por vocação, é efervescente e
paradoxal. Provas de sua vitalidade, testemunhos de sua inventividade, marcas de seu pluralismo e,
ao mesmo tempo, de sua originalidade, estas arenas são espaço do coletivo em que se manifestam a
alma -- e a epiderme, por que não? -- de um Rio de Janeiro mítico e ao mesmo tempo exuberante em

180
uma dupla narrativa, que constrói a mitologia do futebol. Uma das narrativas

é “épica”, formada pela história dos feitos heróicos do passado de times e

jogadores, por mitos de “carne e osso”, que se identificam com os clubes, os

quais denominou de “instituições-mitos”. Essa narrativa é a que cria os

vínculos entre gerações. A outra narrativa, a “romântica”, seria aquela que

estimula o consumo instantâneo do espetáculo pela massa. O argumento é

que a narrativa “romanesca” foi construída pelo rádio, meio de comunicação

que contribuiu fundamentalmente para a popularização do futebol. O

“acúmulo do passado do futebol”, lembrado e reiterado pelos narradores

radiofônicos, cronistas, jornalistas e pelas velhas gerações de torcedores,

formaram a “narrativa épica” sobre o futebol e suas instituições. A

articulação das narrativas permite que as novas gerações liguem-se ao

passado heróico de suas “instituições-mitos”, atualizando-as com as

experiências do presente. A decadência do futebol, para Sussekind, vincula-

se ao desaparecimento de uma destas narrativas. Deve-se lembrar que a

construção de mitologia no esporte não é um fenômeno tipicamente

brasileiro, pois a filmografia norte-americana está recheada de obras sobre

os mitos esportivos.333

Vamos a Umberto Eco, para depois entendermos melhor a

adaptação proposta por Sussekind. Eco diz que o Mito do Superman articula

uma narrativa mítica com a narrativa do romance. A narrativa mítica das

antigas civilizações teria por função narrar o já conhecido, o mito “nas suas

sua cotidianidade.” Observe-se que os argumentos indicam que a linha editorial da Coleção cumpre
mais a finalidade de reforçar a identidade carioca do que conhecê-la.
333
Dois filmes exemplificam bem isto que estou comentando: “Cobb”, a história de Ty Cobb, jogador
de beiseball; o outro é “O Campo dos Sonhos”.

181
características eternas e no seu acontecimento irreversível”.334 Os

personagens da narrativa mítica encarnavam alguma lei ou atributo

universal. Os bons narradores faziam “acréscimos e embelezamentos

novelescos”, sem jamais surpreenderem os ouvintes.335 A narrativa do

romance possui uma estrutura diferente, na medida em que desperta o

interesse no leitor justamente pela imprevisibilidade do destino do

personagem. Assim, na articulação das narrativas, Eco explica o fascínio

pelas revistas em quadrinhos:

“A personagem mitológica da estória em quadrinhos encontra-se,


pois, nesta singular situação: ela tem que ser arquétipo, a soma
de determinadas aspirações coletivas, e, portanto, deve,
necessariamente, imobilizar-se numa fixidez emblemática que a
torne facilmente reconhecível (e é o que acontece com a figura
do Superman); mas, como é comerciada no âmbito de uma
produção ‘romanesca’ para um público que consome ‘romances’,
deve submeter-se àquele desenvolvimento característico, como
vimos, da personagem do romance.”336

O Superman deve permanecer inconsumível enquanto mito que

encarna padrões exemplares e valores universais que se fixaram no seu

feito, “e todavia [deve] consumir-se segundo os modos da existência

cotidiana”.337 De fato, como vivemos numa civilização do romance, o mito só

é aceito “porque sua ação se desenvolve no mundo cotidiano e humano da

temporalidade”.338 O paradoxo só se resolve porque a narrativa é construída

sem que haja uma ordem temporal. O leitor, assim, perde a noção e as

334
Eco (1976, p. 248).
335
Idem, p.249.
336
Idem, p. 251.
337
Idem, p. 253.
338
Idem, p. 253.

182
relações da temporalidade, de modo que a massa de estórias fornecem a

ilusão de um contínuo presente.339 O mito e o cotidiano confundem-se.

O Superman, na estrutura da narrativa, é obrigado a encarnar uma

dupla personalidade: a de super-héroi e a de homem comum. Como herói,

sua vida é dedicada à busca da justiça, à proteção, à luta contra as forças do

mal; como Clark Kent, esconde o héroi atrás da aparência de um jornalista

medroso, um pouco embaraçado, como um homem comum.340

Isto, para Sussekind, ocorreria também com os clubes de futebol

(instituições-mitos). O passado das conquistas heróicas e de seus ídolos

seriam atemporais e inconsumíveis. A narrativa épica seria constantemente

revisitada e recontada pelos jornais, cronistas, companheiros de torcida e

parentes. Os clubes de futebol e seus mitos, guardadas as devidas

diferenças e características, assemelhar-se-iam à narrativa das revistas em

quadrinhos, segundo Sussekind. Assim, o futebol teria se popularizado por

ser uma instituição aberta, onde a narrativa épica é constantemente

atualizada. “É como uma baleia gigantesca que pode abrigar sempre novos

jonas no seu interior”, novos jonas que se juntam aos antigos “jonas” da

instituição-mito para atualizá-la.341

Sussekind utiliza o modelo de Eco para inferir sobre variados

problemas que identifica na atividade cultural do futebol no Brasil. A violência

339
Por esta razão, Clark Kent não pode se casar, não pode entrar no mundo da temporalidade.
340
De acordo com Eco (1976), “Narrativamente, a dupla personalidade do Superman tem uma razão
de ser, porque permite articular de modo bastante variado a narração das aventuras do nosso herói,
os equívocos, os lances teatrais, um certo suspense próprio do romance policial. Mas do ponto de
vista mitopoético, o achado chega mesmo a ser sapiente: de fato, Clark Kent personaliza, de modo
bastante típico, o leitor médio torturado por complexos e desprezado pelos seus semelhantes; através
de um accountant qualquer de uma cidade norte-americana qualquer, nutre secretamente a
esperança de que um dia, das vestes da sua atual personalidade, possa florir um super-homem capaz
de resgatar anos de mediocridade”. (p.248)

183
das torcidas, o monopólio da narrativa televisiva em relação ao rádio e o

desaparecimento dos grandes narradores do futebol (Mário Filho, Sandro

Moreira, Nelson Rodrigues), sem o surgimento de outros, estariam fazendo

do futebol mais um elemento da indústria do entretenimento. O mítico

estaria, assim, sendo esquecido, e o presente apenas sendo consumido sem

nenhum caráter aurático ou mágico. O presente estaria se dissociando do

passado. Assim, conclui Sussekind que a narrativa épica tende a

desaparecer em função do esvaziamento dos estádios, da presença da

televisão, da violência e da perda dos “bons narradores”.

A utilização do modelo adaptado por Sussekind para analisar

problemas identificados no futebol atual --problemas que identifico como

parte da narrativa cotidiana do futebol e de novos mitos que se constroem -

parece inadequada. Penso que parte dos problemas identificados por

Sussekind vinculam-se à mentalidade que vê o passado remontado de glória

e riqueza, e o presente como pura degradação e pobreza.342 Sussekind

considerou que as narrativas podem desaparecer e a atividade continuar. O

fenômeno identificado, tanto por Sussekind quanto em qualquer conversa de

botequim, não é uniforme. Por exemplo, na Bahia os estádios atualmente

estão cheios, enquanto que em outros lugares vazios.343 Por outro lado, se o

modelo não é muito adequado para diagnosticar fatos como violência e

esvaziamento dos estádios, ele parece apropriado para se entender em que

grau a narrativa acadêmica sobre o futebol constitui-se em atualização da

narrativa épica. Neste sentido, tomo o modelo adaptado por Sussekind para

341
Sussekind (1996, p. 74).
342
Nisbet (1985).

184
afirmar que: a estrutura narrativa do NFB, atualizada pelos “novos

narradores”, forma uma dupla narrativa que mitifica Mário Filho e seu épico

sobre o negro no futebol brasileiro. Tal afirmação pode ser confirmada pela

análise realizada até aqui, e será reforçada quando desnudar-se a

reprodução do NFB.

6.4 - Questões, motivos e parâmetros ao debate proposto

Sem entrar na seara de uma discussão epistemológica, penso que

uma das tarefas da atividade científica é refletir sobre as formas de

construção do conhecimento. Em última instância, pode-se dizer que a

atividade científica busca a verdade, os argumentos mais plausíveis ou os

mais aproximados da realidade. A isso denominamos, mais ou menos

consensualmente, de ciência. A ciência não é dogmática; aliás, seu dogma é

o poder de autocorrigir-se. O que difere a produção de uma teoria científica

da produção de uma teoria especulativa é a capacidade que a primeira tem

de testar hipóteses com base em provas empíricas, enquanto a segunda

permanece como uma grande idéia. A especulação ou as teorias

metafísicas, no sentido de Popper, possuem lógica na formulação de

argumentos, não possuindo, entretanto, o material empírico e a capacidade

de ser rigorosamente testada. Segundo Gould, as especulações são

interessantes e ganham as páginas da imprensa escrita e falada. Todavia,

não geram ampliações e programas de pesquisa, não podem ser negadas e

343
Refiro-me ao Campeonato Brasileiro de 1997.

185
testadas, permanecem apenas como uma boa e sedutora idéia, até cair no

esquecimento.344 Ao contrário, uma teoria científica deve ser submetida a

testes, podendo ser sustentada, refutada ou ampliada dinamicamente.345 Em

síntese, popperianamente falando, a boa teoria científica traz consigo as

possibilidades de teste ou de refutação.

Com base nessas referências, discuto o tipo de conhecimento

gerado a partir das constantes repetições do NFB. A crítica que encaminho

aos novos narradores pode ser sintetizada pela construção típica que

analiso a seguir. Por exemplo, o samba, a capoeira e a malandragem teriam

sido incorporadas ao futebol brasileiro, isto é, estas expressões culturais

teriam transformado o “rígido futebol inglês” no “plástico e estético futebol

brasileiro”. Tal construção, apesar de sedutora e agradável aos nossos

ouvidos, não resiste à primeira questão que se formule sobre a testabilidade

desse reiterado argumento. Primeiro, porque não existem teorias e

programas de pesquisa, nem no nível do biológico, nem no nível do cultural,

de como as aprendizagens corporais construídas em um tipo de expressão

cultural se transladam para outras expressões. Sem muita pesquisa, os

“novos narradores”, quando formulam este tipo de argumento, apenas estão

construindo ou reforçando um discurso de identidade.

O problema cresce quando essas construções ou hipóteses sobre a

singularidade do futebol brasileiro, se quisermos chamar assim, saem das

páginas jornalísticas e invadem o debate acadêmico em artigos e periódicos

344
Gould (1990), especialmente no Capítulo 28, Gould escreveu um divertido e agudo artigo
explicando os limites e diferenças entre uma teoria científica e uma especulação travestida de
“ciência”. Para isso, tomou as hipóteses que explicam a extinção dos dinossauros da face da Terra.
345
Idem.

186
que reivindicam o qualificativo de cientificidade. Tal reivindicação, talvez

inconsciente, se dá em função do local de onde são emitidas essas vozes,

isto é, a universidade. Mas a simples pergunta “como e por quais

mecanismos os elementos corporais do samba e da capoeira incorporam-se

ao futebol?”, ao invés de ser respondida com argumentos e demonstrações,

será prontamente encarada como ranço do positivismo. Se fazer este tipo de

pergunta é ranço positivista, posso dizer que sinto orgulho de ser positivista,

nestes termos. Não me conformo é com a falta de distinção entre uma

construção sedutora e uma argumentação balizada nos critérios da lógica

científica.

Se fizesse sentido a assimilação entre samba, capoeira e futebol,

poder-se-ia provar que há uma correlação positiva entre ser bom sambista,

capoeirista e jogador de futebol. Isto equivaleria a dizer que todo excelente

jogador de futebol no Brasil deveria ser potencialmente um bom sambista ou

capoeirista. Não é muito estimulante, e até certo ponto sem sentido, formular

uma hipótese desta natureza. Mas “entremos no jogo” e suponhamos que

alguém desejasse comprovar a “teoria SCF” - Samba, Capoeira e Futebol-,

isto é, a ginga da capoeira e do samba teriam se transladado para a

formação do estilo brasileiro de futebol. A “teoria SCF” só poderia ser

fragilmente demonstrada a partir de uma atitude verificacionista (no sentido

da crítica popperiana), onde se recolheriam casos de capoeiristas, sambistas

e jogadores de futebol que teriam se revelado hábeis nestas atividades

culturais. Não seria dificil achar sambistas que fossem exímios jogadores de

futebol, e vice-versa. Neste caso, deveríamos listar os casos de jogadores

187
de futebol que houvessem gravado sambas ou os tivessem composto;

também poderíamos buscar os sambistas que não houvessem seguido a

carreira futebolística, mas tivessem sido exímios jogadores. Por este

método, a cada dia poder-se-ia recolher casos que “reforçariam” a “teoria

SCF”. (Olha aquela jogada de Garrincha como se assemelha os passos do

samba. Olha aquele drible, não é o próprio dos golpes de capoeira? E por aí

iria uma série infindável de exemplos.)346 Isto, que de certa forma parece

fortificar a “teoria SCF”, dá apenas sinais de fragilidade.

Além do mais, o que impressiona é que construções desse tipo são

carregadas de esoterismo, fugindo da discussão em termos de evidências.

Se existe algo em comum entre futebol e samba é o fato de que estas

manifestações culturais foram sedimentadas e inventadas como naturais e

genuinamente brasileiras, a partir da legitimação intelectual e da forte

adesão das camadas populares, sobretudo nos anos 30.347 A adesão ao

projeto governamental de construção da nacionalidade foi intensa.

O problema de formulações tipo “teoria SCF” é que se pode “ver a

teoria ser verificada por observação” em qualquer evidência corroborativa. É

claro que os contra-exemplos não são levados em consideração, sendo

apenas lidos como “exceções que confirmam a regra”.348 Popper, neste

sentido, perguntaria:

346
São exemplos que sintetizam construções que ouço tanto no meio acadêmico quanto no papo de
botequim. Contudo, tal construção pode ser achada claramente na biografia-romance que Rui Castro
(1996) escreveu sobre Garrincha. Castro conjectura que o estilo de jogo de Garrincha viria de sua
ascendência indígena; mais uma construção mitológica. Maurício Murad, sociólogo e diretor do
Núcleo de Estudos do Futebol da UERJ, também faz construções deste tipo na mídia e em seus textos
(1994a,1994b,1996).
347
Vianna (1995).

188
“Mas seriam essas teorias testáveis? Estariam realmente essas
análises mais bem testadas do que, digamos, os horóscopos
freqüentemente ‘verificados’ dos astrólogos? Qual acontecimento,
que se poderia conceber que, aos olhos dos seus aderentes, as
falsificasse? Não eram todos os acontecimentos imagináveis
‘verificações’? Era precisamente esse facto -facto de que análises
batiam sempre certo, de que eram sempre verificadas - que
impressionava seus aderentes.(...)

O método de procurar verificações parecia-me pouco válido -


parecia-me, na verdade, ser o método típico de uma
pseudociência. Apercebi-me da necessidade de se distinguir, tão
claramente quanto possível, de um outro método - o método de
testar uma teoria tão severamente quanto se for capaz -, isto é, o
método da crítica, o método de procurar casos que constituam
falsificação.

O método de procurar verificações não era apenas acrítico:


promovia uma atitude acrítica quer em quem expunha quer em
quem lia. Ameaçava, assim, destruir a atitude da racionalidade,
da argumentação crítica”.349

De certa forma, acredito que estejamos enfiados neste beco em

muitos artigos atualmente escritos sobre futebol. Os cronistas e narradores

épicos de futebol confirmam as mais diferentes proposições ou “teorias”

sobre estilo nacional, racismo ou alienação. Os “novos narradores”, ao

nutrirem-se de tais narrativas - como produção histórica stricto sensu - e se

munirem de modelos teóricos, recebem um duplo condicionamento de

perspectiva. Por um lado, assumem, sem perceber, determinadas

perspectivas dos narradores de um passado épico do futebol; por outro,

tomam qualquer dado fornecidos por esses narradores como verificação dos

modelos teóricos utilizados.

348
“As exceções” são importantes para corrigir, ampliar ou refutar teorias.
349
Popper: A demarcação entre ciência e metafísica, p. 209

189
Geralmente, a atitude metodológica para analisar o futebol das

primeiras décadas deste século tem sido a seguinte: os eventos e “dados”,

pinçados a partir de determinados narradores (basicamente Mário Filho), são

tratados como fonte primária, no sentido de se buscar verificações que

confirmem os modelos teóricos abstratos que explicam problemas e

contradições estruturais da sociedade brasileira. De fato, não se pode

padronizar as tramas e ações humanas apenas a partir dos amplos

condicionantes sócio-históricos. É verdade que as estruturas econômicas,

políticas e ideológicas podem afetar (e sempre afetam), em algum grau, as

ações individuais. Mas o problema é o grau em que afetam as ações. Se

acreditamos que modelos teóricos representam mimeticamente a realidade,

os eventos passam a perder seu valor como questões específicas de estudo

e tornam-se uma mera alegoria que serve para verificar a “verdade” já

sabida. Se é correto o argumento apresentado, pode-se dizer que a

dinâmica de inserção e popularização do futebol tem sido reduzida aos

amplos condicionantes sócio-históricos da formação social-brasileira.350

O futebol, por ser popular, por representar “a alma do povo”, leva os

“novos narradores” a serem mais ou menos críticos em relação ao modo de

produção, segregação, identidade, racismo etc. O grau de crítica (negativa

ou positiva) ao processo de desenvolvimento cultural do futebol no Brasil

varia segundo os modelos teóricos adotados. Entretanto, o foco de interesse

são as produções que tentam conciliar a idéia de segregação com a de

resistência das classes populares (sobretudo dos negros e mestiços), até o

350
Chalhoub (1986,p. 207-8).

190
processo final de apropriação, que resulta na construção do futebol nacional.

De fato, os “novos narradores”, conscientemente ou não, acabam por

reconstruir um discurso de identidade nacional, retomando velhas narrativas

a partir de “novas ou pioneiras problemáticas”.

A hipótese, já apresentada e que proponho demonstrar nesta parte

do estudo, é que “os novos narradores”, baseados no NFB, acabam

atualizando a narrativa da identidade nacional. Em outros termos, pode-se

dizer que a perspectiva de análise do futebol está de certa forma

cristalizada, e o NFB, como a história “fiel dos fatos”, legitimado. O artigo de

Souza, “Gênero e raça: a nação construída pelo futebol brasileiro”, por

outros caminhos, toca diretamente a hipótese aqui formulada e a reforça.351

“Alguns estudiosos do futebol no Brasil constroem também


ficções da nacionalidade, ao torná-lo paradigma de uma ‘Cultura
Brasileira’. Alguns desses estudos tornam-se explicações
hegemônicas ou dominantes, e são apropriados pelo senso
comum na autodefinição do futebol nacional. Não queremos com
isto desmerecer todo o caminho já percorrido nos estudos do
futebol brasileiro. Pelo contrário, tento resgatá-los como grandes
expositores da nação via futebol, pois podemos entender estes
estudos como projetos para a nação brasileira, e toda nação é
também um projeto”.352

A argumentação de Souza indica uma espécie de latência, coisa

comum na atividade científica, em refletir sobre os processos que julgamos

“muito singulares”, “muito particulares” e definidores de nossa cultura. Talvez

a onda de globalização tenha aberto nossos olhos para uma evidência: “não

existe cultura pura”. O processo cultural sempre se deu por trocas, cópias e

351
Souza (1996).

191
reapropriações. Achado que não é novo, pois Veyne identifica que em várias

civilizações houve apropriação, consumo, trocas e mistura com a cultura do

outro.353 O “mito da pureza da cultura” é uma invenção das correntes

romanticistas, é uma invenção dos estados-nações, tal como as doutrinas do

espírito alemão defendidas por Herder.354 Samba, carnaval e futebol no

Brasil seguem a mesma trilha da “autenticidade” defendida pelo Estado,

pelos intelectuais e pelo povo. A autenticidade é “validada” pelos “símbolos

autênticos” da terra e do povo. Por exemplo, a mangueira, árvore trazida da

India, é um dos nossos símbolos nacionais e de nossa mais famosa escola

de samba, a Estação Primeira de Mangueira.355 Com estes argumentos

pode-se entender que o estudo de Souza, e o que aqui se encaminha, fazem

parte de um distanciamento das coisas que gostamos de falar e ouvir sobre

nós mesmos.

Cronistas anteriores a Mário Filho, como AF e LS’A, a que já nos

referimos, apresentam em suas obras publicadas em 1918 uma visão do

futebol significativamente diferente da que será construída pouco depois. Em

suas narrativas é possível observar a grande admiração que tinham pelo

“estilo” do futebol inglês, que qualificavam de disciplinado, coletivo e sério,

entre outros adjetivos, em contraposição aos “excessos” e “invenções” dos

jogadores brasileiros. Figueiredo descreve o futebol brasileiro, em sua

primeira fase, 1902 a 1904, como um jogo:

352
Idem, p. 113
353
Ver conceito de “transculturalismo” formulado por Fernando Ortiz apud Vianna (1995,p. 171-4).
354
Ver Berlin (1982), especialmente o capítulo sobre “Herder e o Iluminismo”.
355
Cf. Hugo R. Lovisolo, “Portugal, Espanha e as nossas razões”. Palestra preferida no Congresso
Luso-Afro-Brasileiro. Rio de Janeiro, IFCS/UFRJ, 2 a 6 de setembro de 1996.

192
“Bem diferente do de hoje. Um back que tivesse ‘shot’ forte, e que
atravessasse o campo, era um estupendo jogador; um ‘forwarde’,
que varava sozinho, por meio de ‘driblings’, a defesa contrária,
era endeuzado; um ‘half’, que dava cabeçadas com esta
exclusiva preocupação era amado por todos (...) Havia outras
extravagâncias originais: certos ‘backs’ – calculem! - percorriam o
campo, de lado a lado, por meio de enganos; (...)

Estas coisas, porém, faziam vibrar as arquibancadas. E as


arquibancadas que lindas que eram! A moda era o football. O
ponto de reunião elegante estava no campo de foot-ball, ou,
melhor, no Velódromo. (...) Não se conhecia estilo de jogo, a
utilidade dos passes, a o permanência nas verdadeiras posições,
e não dava valor à calma, ao método, à disciplina. Para essa
gente pouco se lhe dava que o foot-ball tivesse regras, tivesse
princípios. O que ela apreciava eram as corridas vertiginosas e
eficazes, as piruetas dos ‘goal-keepers.’356

É a descrição negativa de um futebol que agradava às

arquibancadas apenas por uma estética talvez próxima à do circo.357 Esse

futebol de excessos foi visto como produto do desconhecimento, da adoção

de uma moda onde praticava-se aquilo que se imaginava ser o “futebol”. O

futebol, “egocêntrico” para o narrador, era fruto do desconhecimento:

bastava observar os resultados desfavoráveis dos jogos contra as equipes

estrangeiras. Tal descrição é totalmente contrária àquela feita por Mário

sobre a primeira fase, “Raízes do saudosismo”, de estilo rígido, disciplinado,

sem excessos e “sem criatividade”, apolíneo. Tudo indica que o futebol

natural e autêntico, inventado por Mário Filho, era muito malvisto por outros.

Figueiredo afirma que o futebol evoluiu tecnicamente entre 1909-11, para um

jogo mais de equipe, com maior emoção e menos “personalismo”. Após a

356
Figueiredo (1918, p. 77-8).
357
Talvez um certo exibicionismo, enfim, uma estética grotesca, pode ter formado parte do início de
muitos esportes. No beisebol americano há indícios de que essas eram suas características dominantes

193
evolução, ninguém mais iria ao Velódromo para apreciar “vestidos e

chapéus, rizinhos e gestos desenvoltos, mas para examinar o jogo, gozal-o,

saboreal-o”.358 Outros cronistas, segundo Figueiredo, consideravam

erradamente como “o apogeu” a primeira fase do futebol nos anos de 1902 a

1904. Considera Figueiredo tais opiniões pura ficção, pois só na década de

1910 poder-se-ia dizer que o futebol estaria evoluindo.

Na descrição do estilo de jogo de Friedenreich, feita por Leopoldo

Sant’Anna, pode-se visualizar o que era considerado evolução e bom

futebol:

“[Friedenreich] não é jogador egoísta, não abusa do dribling, do


jogo pessoal. Mesmo à porta do Gol, vendo um companheiro
mais bem colocado, não titubeia em passar a bola. É, afinal,
player que não faz jogo para arquibancadas e sim para o
conjunto e com verdadeira perfeição, sendo por isso mesmo, com
toda justiça, considerado o melhor center-forward brasileiro.” 359

Em contrapartida à opinião de Sant’Anna, para Mário Filho

Friedenreich, por ser mulato, teria dado ao povo a possibilidade de

indentificar-se, começando assim a abrasileirar e democratizar o futebol.

Assim, os dois comentaristas, embora admirem a mesma figura, o fazem por

razões diametralmente opostas. Na narrativa de Sant’Anna, em 1918,

Friedenreich aparece como um jogador comedido e que jogava para o

conjunto, isto é, sem excessos, quase um inglês, se usarmos o estereótipo.

Não importa qual narrador possui a verdade ou qual é mais ou menos

até a entrada de jogadores como Ty Cobb. Observemos que também o teatro torna-se crescentemente
“civilizado”, menos participativo e grotesco.
358
Figueredo (1918, p.81).

194
verdadeiro. O significativo é entender que as narrativas e os julgamentos dos

cronistas anteriores a Mário Filho estariam fortemente condicionados pelos

resultados desfavoráveis dos jogos contra as equipes estrangeiras.

Diferentemente, Mário Filho é produto de um momento no qual o futebol

brasileiro já havia se afirmado em termos de resultados. O Brasil, podendo

competir no futebol internacional, deu motivos para que se afirmasse o

sentimento nacional. A geração que vivera intensamente o nacionalismo dos

anos 30 e 40 passou a buscar no futebol brasileiro, e em outras

manifestações, o original e o autêntico. Mário Filho, Gilberto Freyre, José

Lins do Rego e outros faziam parte da geração de nacionalistas. Os

cronistas Sant’Anna e Figueiredo tinham seus olhos voltados para os

padrões ditos desenvolvidos, ancorados nos resultados desfavoráveis que

as equipes brasileiras obtinham contra as estrangeiras. Os resultados

negativos eram explicados pelo estilo de excessos, “nossa marca original”,

que não seguia os padrões do “bom futebol”.

Grande parte dos textos de pesquisadores e intelectuais do meio

acadêmico que atualizam a narrativa do NFB são produzidos sem a devida

crítica ou sem a distância necessária. Os dados, fatos, histórias e estórias

ora são reproduzidos, ora recebem acréscimos. Resumamos mais uma vez

o enredo. Com um pé “empírico” em Mário Filho, os “novos narradores”

tomam as categorias racismo-elitismo para demonstrar, de forma

politicamente correta, o passado que segregou o negro no futebol e na

sociedade brasileira. Depois, contam que o futebol branco e elitista teve que

359
Sant’Anna (1918 p. 42).

195
se dobrar às qualidades do “futebol negro”, que se construiu à margem,

como forma de resistência, vindo a tornar-se nacional. O percurso épico

aparece como evidente: o candidato a herói, o negro, supera as provas para

se tornar o herói nacional.

Se a narrativa de Mário Filho ajusta-se ao ímpeto nacionalista, pode-

se dizer que as atuais narrativas - das pesquisas e dos ensaios acadêmicos

- tentam situar-se numa perspectiva “politicamente correta”. Tal perspectiva,

embora nobre do ponto de vista da luta social por igualdade, declara adotar

a perspectiva histórica ou teórica dos dominados. Se a história dos vitoriosos

acreditava na providência e admitia mitos para legitimar as conquistas, a

perspectiva dos dominados parece trabalhar com uma lógica bastante

semelhante. Ao invés de contar a história da vitória, conta a história das

resistências, das lutas não-explícitas ou explícitas onde os dominados

boicotavam e reagiam aos dominadores. O mito da resistência funciona ou

cria tradições para reparar o imaginário de derrota ou de inferioridade,

supostamente construída pelo dominador. Em suma, as duas perspectivas

servem para construir identidade, coesão, aglutinar forças de grupos,

classes e segmentos.

Mário Filho e os seus atualizadores acadêmicos adotam a

perspectiva dos excluídos, dos dominados e dos marginalizados.360 Sob este

ponto de vista assentam-se as bases do nacionalismo e do populismo,

construindo-se também as perspectivas “politicamente corretas”. A

construção do estado-nação deu-se por englobamento e mitologização do

360
Sem descartar a importância no progresso do conhecimento que teve esta perspectiva,
principalmente em relação à “história dos dominadores”, penso até que ponto a sociologia ou história

196
popular, daquilo que, supostamente, estaria separado ou fora. Da mesma

maneira, com uma lógica semelhante, atua a ética do “politicamente correto”.

A nova ética do politicamente correto, nesta perspectiva, pode ser lida como

referência de uma ultra-autenticidade da cultura, dos valores, dos grupos e

do indivíduo. De fato, se o nacionalismo cimentou-se a partir do

englobamento dos excluídos, o politicamente correto tenta assentar-se a

partir da eliminação de qualquer tipo de exclusão, real ou imaginada.

O problema é que as atuais construções acadêmicas sobre o futebol,

que tentam ser politicamente corretas, parecem não conseguir sair da

perspectiva nacionalista da obra de Mário Filho. O NFB, neste sentido,

tornou-se uma excelente fonte, principalmente por ser escrito com uma certa

lógica englobadora das diferenças. O produto do “casamento da fonte com

os bebedores” é que algumas das atuais narrativas acadêmicas conseguem

construir um discurso mítico de resistência e afirmação, politicamente

correto, na velha versão da identidade nacional. O NFB, para os “novos

narradores”, torna-se fértil, e a equação “o futebol, quando branco, era

inglês, elitista e estrangeiro, quando mais preto e mestiço torna-se mais

brasileiro”, embora com nuanças, volta sempre a ser reeditada.

Para demonstrar a argumentação até aqui encaminhada, a partir de

histórias ou estórias emblemáticas, deve-se ler o NFB através das

repetições das tramas narradas e interpretadas por Mário Filho, nos textos

dos “novos narradores” do singular futebol. Nesse contexto, pode-se afirmar

que existe uma circularidade na invenção da tradição sobre o futebol

dos dominados não se tornou a religião dos ateus.

197
brasileiro. Nessa circularidade, a ordem fatual, as evidências e a pesquisa

de novos dados é deixada de lado.

Observo que o eixo do racismo dá a Mário Filho o critério de

interpretação aplicável para estabelecer o significado de qualquer ação ou

evento. Por exemplo, o uso de gorros e bonés, que era marca da prática

esportiva dos aristocratas ingleses e depois tornou-se símbolo da classe

operária inglesa, serviu a Mário Filho para dizer que os pretos e mulatos os

utilizam para esconder o “cabelo não nega”, apesar de brancos brasileiros e

ingleses também aparecerem nas fotografias utilizando o mesmo adereço,

talvez um símbolo do estilo esportivo de vida.361 Assim, o eixo escolhido de

interpretação é doador de sentido, sem que revele a preocupação legítima

em estabelecer os sentidos das ações. O sentido é dado, jamais

pesquisado. Há, tudo indica, um excesso ou sobre interpretação.

As atuais histórias sobre o racismo, o elitismo e o processo de

resistência e apropriação cultural do futebol pelos negros, construídas a

partir do NFB, serão postas em questão a partir da própria coerência interna

do NFB, de incursões em fontes primárias e da comparação com outras

narrativas realizadas sobre o futebol. Os próprios dados do NFB podem ser

usados para a) demonstrar os desvios de foco de Mário Filho e b) abrir

outras possibilidades de interpretação dos retalhos que a história nos deixa

para armar a colcha do entendimento.

361
Ver Hobsbawm (1997, p. 295) sobre a cultura do boné como símbolo da classe operária.

198
7 - A REPRODUÇÃO DA “EQUAÇÃO DE MÁRIO FILHO”:
FUTEBOL BRANCO, “ESTRANGEIRO”; FUTEBOL NEGRO,
“BRASILEIRO”

Nosso objetivo neste capítulo, é demonstrar como a equação de

Mário Filho está presente nas narrativas acadêmicas contemporâneas.

Selecionou-se, para efeito de análise, textos que se nutrem basicamente dos

dados e interpretações presentes no NFB, para descrever como teria se

desenvolvido o futebol no Brasil.362 Pode-se dizer que existem duas atitudes

diante da narrativa do NFB: uma é tomá-la como uma fonte autorizada, em

todos os sentidos, utilizá-la e atualizá-la reduzindo-lhe a ambigüidade, os

paradoxos e a complexidade. Essa atitude denominei como tipo a. Outra, é

utilizar o NFB com uma atitude de relativa desconfiança e dúvida, mas que,

ao nutrir-se dos dados e interpretações de Mário Filho, acaba tragada pelo

vigor da narrativa. Essa atitude denominei como tipo b. O resultado de

ambas as atitudes é reeditar, em graus diferenciados, a equação de Mário

Filho.

A hipótese é que a equação de Mário Filho, reiterada pelos novos

narradores, reedita a estrutura do conto como “modelo sociológico da

resistência” que descreve exclusão, resistência, conflito e afirmação do

negro, e cujo resultado é a construção do estilo nacional de futebol. Como já

dito, a narrativa do NFB parece tragar aqueles que por ela adentram para

362
Como exemplos da produção acadêmica que toma NFB como a “fonte inesgotável de dados”, serão
analisados os textos de Murad (1994b; 1996; Palestra sobre “Corpo, magia e alienação - o negro no
futebol brasileiro: por uma interpretação sociológica do corpo como representação social” realizada
no Simpósio “Questões culturais do Futebol”- AIESEP, Congresso Mundial, Rio de Janeiro, 1997);
Gordon Jr. (1995; 1996) e Leite Lopes (1994). Outros textos com as mesmas características serão
mencionadas em notas de rodapé e explorados mais detidamente no próximo capítulo.

199
entender a dinâmica do futebol brasileiro. O herói continua a englobar ou

engolfar os estudiosos (novos narradores). O narrador Mário Filho foi

englobado por seu artefato, que continua a fazer o mesmo com aqueles que

dele se aproximam.

200
7.1 - Os exemplares do tipo a

O livro de Maurício Murad Corpo, magia e alienação pode ser

caracterizado como pertencente ao tipo a. As idéias nele veiculadas ou

expostas aparecem em outros textos do mesmo autor que receberão

referências ao longo desta análise. Murad propõe uma periodização para

que se estude o futebol brasileiro como uma forma privilegiada de entender

a nossa sociedade, uma tentativa que deve ser valorizada. Essa

periodização demarca a mesma estrutura do conto: exclusão, resistência-

conflito, afirmação e construção de identidade, e visivelmente é inspira no

NFB. Contudo, Murad encontra um obstáculo não enfrentado por seu

inspirador: os recortes históricos propostos em ordenação cronológica geram

problemas e mais problemas de coerência e consistência conceptual.

Embaraço com que o NFB não se defronta por não se fixar em cortes tão

precisos e, então, poder voltar e mesmo se desdizer, sem, aparentemente,

desdizer-se.

Vejamos a periodização proposta por Murad e estejamos atentos

aos conceitos que se explicitam para cada período:

“1894/1923 - pré-história - elitização e proibição dos negros e


pobres; -1923/1933 - clandestinidade - fase inicial do ingresso de
negros e pobres; -1933/1950 - revolução- democratização e
popularização do futebol; 1950/1970 - consolidação - auge do
futebol brasileiro e conquista do tricampeonato, o 1º na história
mundial; 1970/1990 (Copa da Itália, última conjuntura estudada) -
declínio - retrocesso e “rebranqueamento”, pela subtração de
oportunidade a negros e pobres.” 363

363
Murad, (1994b, p.72).

201
A imagem do período que vai até 1923 é a seguinte: os negros e os

pobres não tinham acesso à prática do futebol. Assim, a primeira fase do

futebol impõe ao negro (representando um personagem universal de uma

raça) uma perda (dano) e uma proibição, isto é, lhe é negada a prática do

futebol e o pertencimento ao estado-nação; ou então essas circunstâncias,

apesar de reais para o autor, não eram politicamente corretas. Tal exclusão

seria a prova de racismo e segregação social no Brasil, e esta parece ser a

lógica de Murad. As outras etapas vão apresentar o processo de luta e

afirmação do negro e do futebol nacional.

Mas observemos que o inimigo está sempre à volta, e logo Murad

aponta que entre 1970 e 1990 a política do “rebranqueamento” volta ao

cenário.364 Isto induz a pensar que a falta de vitórias do Brasil após 1970

teria se dado pela falta ou pela presença de poucos negros na seleção.365

Em 1996, o autor reproduz em outro texto - Futebol e violência no Brasil -

idéias muito semelhantes, que servem para ilustrar a proibição imposta ao

“herói negro” ou a atualização de uma narrativa épica que se confunde com

um discurso politicamente correto, embora por vezes soe como um racismo

invertido:

“Requintado esporte de elite, em seu momento inicial, o ‘violento


esporte bretão’ (...) assumiu irrecusável posição de classe e
produziu na sua origem sua primeira forma de violência
(social e racial), bem como suas primeiras vítimas, quando
chegou ao extremo de ser proibido a negros e pobres, já

364
Idem, ibidem, Ver também Corrêa (1985,p. 31-9).
365
Observo que os resultados dos jogos são interativos, dependem também do nível de jogo dos
adversários. Assim, a explicação de Murad sofre de egocentrismo e racismo às avessas, pois os negros
seriam em essência melhores para o futebol .

202
fortemente discriminados e estigmatizados numa formação social
dominada pelo colonialismo e pelo escravismo, enquanto
constantes estruturais. Agressões verbais e físicas, conflitos
generalizados, exigências de escolarização e emprego fixo,
combate ideológico através de campanhas pela imprensa,
extinção do futebol em diversos clubes do país, etc., foram
estratégias e táticas empregadas pelas elites dominantes, a fim
de evitar o inevitável: a popularização e democratização do
futebol entre nós. E que fique bem claro: estratégias e táticas
violentas. Uma violência histórica, constitutiva, formadora e
fundadora da sociedade brasileira. Que os digam os índios,
negros, pobres e seus descendentes de ontem e de hoje. A
violência, tanto social quanto racial (e de gênero), é uma
constante na estrutura da formação social brasileira. O homem
cordial é tão somente um mito em nossa história. Mais de três
séculos de regime escravista, último país do mundo a abolir a
escravidão, ‘Questão Social’ extremamente perversa.

Racista e elitista nas primeiras décadas, desde sua


implantação no Brasil, o futebol é uma expressiva metáfora das
relações sociais hegemônicas da formação social brasileira.”366
(grifos meus)

Murad leva às últimas conseqüências a equação de Mário Filho:

quando branco e inglês, elitista; quando preto e mestiço, brasileiro” é

“elevada ao quadrado”. A conspiração contra os negros, na narrativa de

Murad, é posta, sem provas, como evidente e explícita, pois as estratégias

contra a democratização do futebol teriam sido elaboradas pelas elites. O

autor induz a que se pense ter havido proibição legal para a prática do

futebol entre os negros, sem apresentar uma prova e sem levar em

consideração que o próprio Mário Filho afirma nunca haver existido

impedimento racial sob o ponto de vista legal. As camadas populares,

fossem pretas ou mulatas, nunca foram impedidas de constituir clubes. Para

participar com seus times dos campeonatos da Liga deveriam, por certo,

203
seguir as imposições do código amadorístico do esporte, como qualquer

clube.

Se Murad julga que seria racismo a razão dos clubes de elite não

aceitarem pobres, negros ou brancos, ele confunde distinção social com

racismo. O clube, como instituição privada, se reserva o direito de admissão,

além de já serem seletivos em termos de valor do título e das taxas de

manutenção. Na verdade, nos clubes das elites, a votação para a aceitação

de um novo membro teria muito mais a ver com o controle da entrada dos

nouveau riches do que com a entrada dos pobres, limitados

economicamente. Assim, o impedimento que existia é semelhante ao que

existe hoje em qualquer clube de elite; por exemplo, não sei se me

aceitariam como sócio do “Jóquei Club”. Os bairros populares, em

contrapartida, formavam seus próprios clubes, aqui no Brasil e em outros

países, e ainda hoje o fazem367.

Murad, com sua “exata” periodização, inventa um drama épico

orientado pelo politicamente correto: o futebol passa, de negado para a parte

negra e pobre da população, a expressão autêntica da cultura brasileira: “A

partir dos anos vinte o futebol foi embrionária e lentamente se popularizando

e se democratizando até tornar-se o maior e mais genuíno ritual da cultura

popular brasileira”.368 Vê-se claramente, na valorização do “genuíno ritual da

cultura popular”, uma visão ultra-romântica, uma versão atualizadora da

identidade nacional. É genuíno, apesar de ser algo importado e

reapropriado, simplesmente porque é popular. Sendo popular, é puro,

366
Murad (1996, p. 90).
367
Sacher & Palomino (1988).

204
verdadeiro e belo. De certa forma, este é um discurso que nós brasileiros

gostamos de ouvir. Este foi o discurso com o qual intelectuais modernistas e

aqueles vinculados ao Estado Novo construíram a identidade brasileira.

Identidade que se fundamenta na geografia e “nas coisas do povo”: no rico e

extenso território verde e amarelo, no samba, no carnaval e no futebol.369

Mas a afirmação do herói, como todo bom drama revolucionário, não

teria se dado sob a égide da cordialidade e da conciliação. Ao contrário, o

processo teria ocorrido sob o clima de embates e conflitos de interesses de

grupos antagônicos.370 Os interesses antagônicos seriam, de um lado, os

“cartolas”, que tencionavam manter a “tradição elitista do futebol”, e do “outro

aqueles que desejavam ‘modernizar’ o jogo, profissionalizando seus atletas

e incorporando em sua prática pobres e negros, preteridos que eram”.371

Se os “cartolas” desejavam manter a tradição elitista, quem eram

“aqueles” que desejariam “modernizar o jogo”? Por que Murad não deixa

claro que os modernizadores eram outros “cartolas” ou dirigentes? O

“embate” a que Murad se refere, pelo que consta no próprio épico de Mário

Filho, não se deu entre os excluídos (os negros e pobres) e os

“segregadores brancos”. Murad não pode apontar nenhum caso de revolta

ou insurreição popular no espaço do futebol em função da segregação de

negros e pobres. Os conflitos que poderia narrar são, no máximo, brigas de

torcidas e conflitos originários no campo do jogo, que decorriam muitas

vezes de problemas internos à dinâmica do jogo ou decorrentes do

368
Murad (1994 , p.72).
369
Oliveira (1980).
370
Murad, (1994a, p. 72).
371
Idem, ibidem.

205
bairrismo, rixas não muito distintas das que se registram na atualidade.372

Parece forçado remeter problemas específicos da dinâmica da competição,

que na maioria das vezes decorrem do sentimento de injustiça ou de rixas

pessoais ou grupais, a problemas estruturais da sociedade de classes. Ao

que tudo indica, em sociedades menos complexas as rixas e conflitos

também estão presentes pelos mais diferentes motivos, como identidades

segmentárias, por exemplo. Como os conflitos nem sempre apresentam

dados que demonstrem as vinculações idealizadas, a explicação é remetida

ao processo de resistência “inconsciente”. Mas não há sinais nem evidências

de que o conflito ao qual Murad se refere seja entre classes ou raças.

Segundo minha leitura dos dados, os conflitos foram internos à própria elite

dirigente.

A omissão, na argumentação de Murad, em qualificar como outros

membros da elite dirigente e econômica aqueles que queriam modernizar o

jogo, oculta a possibilidade de uma interpretação histórica radicalmente

diferente da proposta por ele. Na verdade, dentro das elites dirigentes do

futebol havia uma divisão: os defensores do amadorismo e os defensores do

profissionalismo.373 Uma parte da elite defendia o esporte amadorístico de

berço aristocrático; a outra, o esporte profissional e empresarial vinculado ao

mundo dos negócios.374

Murad opera com a idéia de que os defensores do amadorismo já

poderiam ser encarados, prima facie, como racistas. O amadorismo defendia

372
Figueiredo (1918).
373
A questão é retomada no próximo capítulo.
374
Ver Mandell, (1986), especialmente o Capítulo 7, quando fala dos símbolos de distinção social do
esporte e do amadorismo. Ver também Elias (1993), sobre a comercialização da arte e a

206
que os participantes deveriam ter o seguinte perfil: posição social de

prestígio, emprego fixo ou riqueza e ser alfabetizado. Aqueles vinculados a

empregos subalternos, com recursos financeiros incertos, não poderiam

assumir o compromisso de jogar futebol desinteressadamente. Tentemos

raciocinar como Murad. Sua lógica indica operar da seguinte maneira

(embora não a descreva com dados detalhados, apenas chama isso de

violência histórica, formadora e constitutiva da sociedade brasileira): a) os

negros, em sua maioria, depois de libertos, foram largados num mercado

que exigia o mínimo de qualificação pelas transformações ocorridas na

sociedade brasileira;375 b) ocorreu uma forte imigração européia entre 1850

e as primeiras décadas do século XX;376 c) a maioria dos negros não

possuía qualificação necessária, e por isso a sua vinculação ao mercado

ocorria em funções subalternas; d) assim, a manutenção de uma ética do

esporte amador tentava excluir os negros do espaço do futebol. O

amadorismo funcionaria, portanto, como o mecanismo do racismo das elites

no futebol. De fato, uma conspiração de tal envergadura, seguida de uma

rápida superação do racismo, e seguida de um novo rebranqueamento, é

suspeita para qualquer historiador, positivista ou não.

Se interpretarmos radicalmente a periodização proposta por Murad e

suas argumentações, pode-se pensar que a defesa do esporte amador era

fachada para encobrir a exclusão racial. Portanto, o amadorismo seria uma

conspiração das elites racistas. A discussão do código amador do esporte,

código este que, com o próprio futebol, havia sido “importado” da Inglaterra,

profissionalização do artista.
375
Rosenbalg & Silva 1988.

207
é deslocado, nas análises de Murad, para descrever racismo e segregação

social. Não se pode esquecer que o amadorismo significou, em seu país de

origem, uma das elaborações simbólicas da alta burguesia e da classe

média para distingüir-se das massas, para distinguir fronteiras entre classes

numa sociedade em que os critérios de distinção mais fixos - por

descendência, casamentos, sociabilidade particular e política - estavam

desgastados.377 (A questão do amadorismo será retomada no último

capítulo). Entretanto, este tipo de busca de distinção de classe numa

sociedade, via esporte, é lida por Murad como uma simples estratégia do

racismo e da opressão que teria gerado resistências de classe e raça, que

culminam na construção de um estilo brasileiro de futebol. Surge o problema

de encaixar na “lógica de Murad” os dados contraditórios para a “forte”

hipótese da segregação racial, que confunde ou iguala classe com raça.

Como explicar a participação dos pretos e mulatos, que eram membros dos

clubes de elite, no início do futebol no Brasil?378 E os pretos e mulatos que

ocupavam destaque na vida política, econômica e cultural em nosso país?379

Como se explica que o clube que liderava o movimento profissionalista no

futebol fosse o Fluminense, clube que possui ainda hoje o estereótipo de

elitista e, na época que Murad relata, de racista?380

376
Cf. Seyferth (1995) e Skidmore (1976).
377
Hobsbawm, (1997, p. 310).
378
Mário Filho cita negros que integravam o “futebol aristocrático”, tais como Joaquim Prado e
Basílio Vianna. Ver Capítulo 2.
379
Uma série de negros - ainda que sejam uma minoria em relação à população negra da época - são
descritos ocupando posição social, política e econômica de destaque. Cf. Freyre (1981,1992) e
Skidmore (1974, 1994).
380
Quando o Fluminense é aludido neste contexto, surge uma explicação ad hoc que interpreta que a
adesão deste clube a causa do profissionalismo se devia ao interesse de tornar os jogadores operários,
e assim garantir aos sócios a distinção social.

208
Para o tipo de narrativa épica que Murad constrói é difícil, e mesmo

impossível, reconhecer que a popularização do futebol teria ocorrido em

função da interação entre ações de “poderosos e fracos”. Murad adota a

perspectiva histórica dos oprimidos, que reagiriam sempre sob a forma da

resistência, independentemente das condições que se apresentam para a

ação. Curiosamente, a mudança nas condições econômicas do futebol

deixam de ser consideradas. Seu texto está estruturado pelo espírito anti-

opressão, que, não se sabe bem por que, seria uma propriedade da raça

negra e/ou dos pobres. Sua visão, politicamente correta, baseada na

necessária emancipação dos oprimidos, leva a uma negação dos dados

empíricos e a uma construção bem intencionada, porém pouco explicativa

sobre a história do futebol e dos negros no Brasil. É sedutora, porque diz

como gostaríamos que fossem as coisas. Politicamente falando, usa no

discurso aquilo que o povo gosta de ouvir sobre si mesmo.

A idéia de proibição do futebol para os negros é empiricamente falsa,

tanto no período que Murad denomina pré-história do futebol (conceito

inadequado em termos históricos) quanto em qualquer outro.

Metodologicamente, é inadequada na medida em que engendra a

simplificação da complexidade das relações raciais no contexto que analisa;

além disso a trama racial se constrói desfocando os dados da questão

específica. Isto é, opera com os mesmos desvios de Mário Filho.

A febre do futebol, sua massificação entre operários - a “religião

leiga da classe operária”, no sentido de Hobsbawm - e desocupados, gerou

jogadores virtuosos que se espalhavam pelos terrenos baldios, nos campos

209
de várzea e em outros arredores das grandes cidades. Esta febre irritou

Lima Barreto e Graciliano Ramos381, que viam no futebol o artificialismo da

cultura burguesa importada. A verdade é que desde cedo surgiram clubes de

fábricas, clubes de várzea ou de subúrbio, clubes de imigrantes e clubes das

elites brasileiras endinheiradas ou políticas. Dos praticantes das camadas


382
populares, revelar-se-iam grandes jogadores. A expansão do futebol

acaba por gerar uma interação entre a demanda popular e as elites

dirigentes em favor do profissionalismo, se não quisermos adotar nem o

ponto de vista dos dominadores, nem o ponto de vista dos dominandos ou

oprimidos. Entretanto, como Murad adota a última perspectiva, o processo

socializatório das camadas populares com o futebol é lido como uma arte

natural ou “sócio-histórica”, que teria nascido da experiência de sofrimento

corporal dos negros (e outros marginalizados), que transformaram essa

experiência em “resistência” no espaço do futebol. Assim, desenlaça-se a

narrativa de Murad:

“Ninguém acumulou mais experiência histórica de emprego do


corpo, na realidade brasileira, do que o negro, o que acabou por
se transformar em extraordinário atributo de uma afirmação social
lúdica, não racionalizada. Os ritos da cultura negra (indígena
idem), corporais desde sua ancestralidade mais remota,
marcaram o ethos africano e influenciaram, decisivamente, a
identidade cultural brasileira. (...)

Toda essa história antropológica de utilização do corpo foi


condensada no futebol brasileiro. (...) Indubitavelmente, foi o
jogador negro que imprimiu no futebol brasileiro um estilo próprio

381
Cf. Rodrigues Filho (1995) e Soares & Lovisolo (1997).
382
Rosenfeld (1993). O autor, talvez por estar mais distanciado, é um dos poucos que formula a
hipótese de que os populares, em geral, desenvolveram uma boa habilidade para o futebol em função
da dedicação que empregaram nesta prática esportiva. Desempregados ou sem escola, restava aos
populares jogar futebol o dia inteiro.

210
de magia e arte, diferente das formas arcaicas do jogo de bola,
bem como sua descendência inglesa imediata.

Ao longo de um século de futebol no Brasil, o negro sofreu


profunda discriminação social e racial (...). Mas o contraponto da
opressão é a resistência, e, no caso de nosso futebol, esta,
enfrentando o racismo estrutural, se expressou na envolvente
linguagem de um contracorpo ideológico. Eleito pela chibata
como unidade mínima de submissão, o corpo do negro elegeu a
relação com a bola como manifestação da resistência”.383

Observemos como a análise sociológica é substituída pela

imaginação do romancista, como a narrativa do romance substitui a narrativa

histórica. Não há como refutar nenhuma das proposições de Murad, mas

também não podem ser confirmadas ou testadas. Contudo, a resistência

negra que se teria realizado no espaço do futebol pode ser entendida como

uma expressão do politicamente correto que se coaduna com a perspectiva

da conciliação ou integração da nação. A narrativa está seqüencialmente

montada da seguinte forma: a) ao negro fora negado a entrada e

participação na sociedade, negação fruto do racismo e da violência

estrutural desta sociedade; b) para sobreviver num sistema escravocrata,

onde seu corpo era força de trabalho e objeto de violência e sadismo dos

dominadores, teria acumulado experiência corporal para resistir à violência

do sistema; c) o negro, que fora submisso pela chibata, teria eleito a “bola”

como manifestação de resistência depois da abolição da escravatura; isto é,

a história antropológica do negro na utilização do corpo teria se condensado

no futebol brasileiro, criando um estilo próprio de magia e arte que se

distinguiria da criação original dos ingleses; d) assim, o ethos africano

211
estaria profundamente marcado na identidade cultural brasileira e o futebol

de inglês teria se tornado brasileiro.384

O paradoxo, em Murad, é que não se reconheceu a resistência

enquanto tal; ao contrário, ela foi vista como uma contribuição para a

formação do estilo do futebol brasileiro, imitada e tornada um caminho de

prova da integração. Assim, a gloriosa resistência pode ter tido um efeito

perverso: reconhecida e glorificada, deixou os negros na posição social de

inferioridade, embora alguns se destacassem no futebol. Mais ainda, o negro

apenas pode resistir com a experiência corporal, não havendo lugar, na

narrativa, para o pensar, o agir e o organizar. O elogio do negro em Murad

não seria uma manifestação de racismo, talvez semelhante à de alguns

positivistas que afirmavam que os negros tinham como virtude a

sensibilidade, e os brancos a racionalidade ou inteligência?385

No segmento do romance analisado acima, pode-se identificar duas

cisões ou dois inimigos que impediriam a realização da nação, semelhantes

aos apresentados por Mário Filho. O final da “história” de Murad é também

feliz: os obstáculos são superados, os inimigos são derrotados, o futebol

torna-se brasileiro e popular, tendo o negro como ator central, e o ethos

africano ou negro se confunde com a identidade cultural - termo atual que

esconde o velho nacionalismo. Estamos no melhor dos mundos, ou no

“paraíso da cultura tropical”.

383
Murad (Palestra preferida na AIESEP em 1997. Ver Nota 1 deste capítulo).
384
Se retornamos à periodização realizada por Murad, veremos que uma nova queda, cisão ou
proibição é imposta ao negro: é a ameaça que permanece sempre acesa. Para o autor, o futebol entre
1970 e 1990 teria retrocedido e estaria embranquecendo. Mas o embranquecimento explica o
insucesso da seleção após 1970?
385
Sobre a importância do positivismo e suas representações das relações de raças ver Lovisolo

212
A integração em torno da nação fica ainda mais evidente quando o

herói generoso estende sua criação àqueles que o oprimiram no passado.

Diz Murad386,

“Fausto, Leônidas, Domingos, Waldemar, Petronilho desenharam


este instante inaugural, cujo destaque pictórico é a bicicleta387 .
Entretanto, o negro não exigiu o título de propriedade, nem
requereu certificado de direito autoral deste futebol-arte. O
estilo negro foi socializado, e inúmeros e geniais jogadores
brancos foram fundamentais para sua ampliação, divulgação
e consolidação”. 388 (grifo meu)

7.2 - Os exemplares do tipo b

Gordon Jr. escreve a História social dos negros no futebol brasileiro

dividida em dois artigos: “Primeiro tempo: “Essa Maravilhosa Obra de Arte

Fruto da Mistura”;389e “Segundo tempo: “Eu já fui preto e sei o que é isso”.390

Os textos são classificados como exemplares do tipo b, isto é, tentam

desvelar a construção da identidade brasileira via futebol, mas a reprodução

pouco crítica dos dados do NFB leva o autor a reforçar a identidade

nacional, sem conseguir escapar da narrativa de Mário Filho.

(1992).
386
A construção de Murad em pouco difere da de Mário Filho.
387
Os argentinos, que não se caracterizam, pelo menos no estereótipo que deles fazemos, pela sua
humildade, chamam a bicicleta de “chilena”, termo que significaria um reconhecimento à sua origem.
Se há uma origem chilena, independente da brasileira, e se esse país não tem incidência racial negra, a
análise comparativa levaria a pensar em mitos fundacionais ao invés de referir-se a “eventos” como
realidades históricas.
388
Palestra proferida na AIESEP em 1997 (Ver Nota 1 deste capítulo).
389
Gordon Jr. (1995).
390
Gordon Jr. ( 1996).

213
Gordon Jr. diz que para analisar este processo tomou “como [fonte]

primordial o livro ‘O Negro no Futebol Brasileiro’, de Mário Filho.391 Nos

argumentos introdutórios, justifica a utilização da “fonte primordial”,

reiterando os próprios argumentos que Mário Filho utilizou nas notas

introdutórias do NFB.392 Baseado no NFB, propõe um tipo de periodização

da história do futebol brasileiro, onde novamente o negro é figura central da

narrativa. Praticamente resenhando o NFB, Gordon Jr. propõe três fases

para analisar o lento processo de integração e aceitação dos negros no

futebol brasileiro: a democratizção; a Copa de 50; e o Tricampeonato de

70.393

Segundo Gordon Jr., a incorporação de negros e mulatos ao futebol

se deu no seio de uma ideologia racista: “Discriminação e integração

encontravam suas justificativas sempre nos mesmos termos: perdíamos

porque éramos um povo mestiço (...), vencíamos por éramos um povo

mestiço”.394 A derrota chamava para si os estereótipos racistas ao estilo de

Gobineau e Nina Rodrigues, tais como instabilidade emocional, moralidade

frágil, atributos originários de um povo mestiço com boa porção de sangue

negro. A vitória representava justamente os atributos da mestiçagem: ginga,

malandragem e “dança dionisíaca” (nos termos de Freyre) que se refletiam

no estilo de jogo do brasileiro. Gordon Jr. faz questão de lembrar que os

atributos positivos, apesar de serem formadores da identidade nacional,

faziam parte do estoque de estereótipos racistas em relação à questão da

391
Idem, p. 71.
392
Ver capítulo 1 deste trabalho.
393
O NFB descreve o processo até 1962; Gordon Jr. aproveita para atualizar a narrativa do NFB até
1970 por sua própria conta.

214
mestiçagem.395 Este é o ponto de originalidade e acréscimo que Gordon Jr.

faz a partir do NFB; isto é, acompanha a narração de Mário Filho,

visualizando o processo de integração do negro ao futebol no seio de um

credo racista.

Gordon Jr. enfrenta o problema de ter como exclusiva base de dados

a narrativa do NFB, apesar de apresentar um modelo teórico para analisar a

construção da identidade brasileira via futebol, segundo as tensões raciais.

Suas intenções, da mesma forma que as de Maurício Murad, acabam

tragadas pela força da narrativa de Mário Filho. Mitologiza o NFB,

considerando-o a fonte mais rica da historiografia do futebol; seguindo os

passos do NFB, realizando pequenas articulações, acaba por atualizar mais

uma versão da narrativa épica do negro no futebol brasileiro.

Gordon Jr. não consegue utilizar o NFB apenas como uma visão que

Mário Filho tinha da sociedade, ou como uma interpretação que se ajusta à

mentalidade do nacionalismo. Os estereótipos racistas e seus formuladores

são descritos (Nina Rodrigues, Gobineau), sendo dito, inclusive, que Gilberto

Freyre ainda cedia em suas formulações a alguns desses estereótipos. No

entanto, Mário Filho está isento e acima das formulações que Gordon Jr.

denuncia.396 Parece que no NFB não havia estereótipos racistas, nem a

presença da visão de Gilberto Freyre, à qual Mário Filho tentou ajustar-se.397

394
Gordon Jr. ( 1995, p. 75).
395
Gordon Jr. comenta que esse processo se deu no seio da Fábula da Três Raças, citando Roberto Da
Matta.
396
Gordon Jr. não tece uma crítica à visão de Mário Filho. Entretanto, o NFB está recheado dos
estereótipos que critica.
397
Ver Capítulo 4 deste trabalho.

215
Ao contrário, para Gordon Jr., no NFB estão os exemplos nítidos da

modificação do estatuto do negro no futebol e na sociedade:

“O livro de Mário Filho nos apresenta fatos que constituem um


processo de democratização das relações raciais dentro da
sociedade brasileira, no qual o futebol exerceu um papel de
grande importância. Mas um processo que, não custa repetir,
está longe de seu término”.398

Gordon Jr. entende que a história do futebol irradia os conceitos que

formam a identidade brasileira, mas acaba engolido pela retórica

romanceada do NFB. Os limites entre o que Mário Filho diz ter ocorrido, o

que faz e o que diz, não são estabelecidos. As alegóricas histórias do NFB

são tratadas quase como mimesis da realidade. O resultado final de sua

análise é uma excelente resenha do NFB. Em termos interpretativos, pode-

se afirmar que o produto de seus dois textos é a reedição da equação de

Mário Filho.

Gordon Jr. também propõe uma periodização para a história do

futebol. A primeira fase é nomeada de “Democratização”, onde resenha os

primeiros quatro capítulos do NFB. Descreve as clássicas oposições

estruturais do NFB: time grande versus time pequeno; time de branco versus

time de pretos etc, mas não reflete sobre o sentido que possuem estas

oposições na narrativa do NFB - antropologicamente, sabemos que os

animais totêmicos não servem para comer. Reproduz a generalização

proposta por Mário Filho, de que até 1922 somente os times de brancos, os

times da elite, venciam os campeonatos. Interpreta, tal como Mário Filho,

216
que tais vitórias dos brancos sobre os pretos só teriam servido para justificar

o credo da superioridade racial dos brancos. A afirmação, contudo, para ser

aceita, deveria basear-se na “idéia do embranquecimento” dos times de elite,

que tinham alguns mulatos e pretos, e num “enegrecimento” dos times mais

populares.(que, possivelmente, talvez tivessem mais brancos em suas

fileiras do que se imagina).

Gordon Jr. faz questão de chamar a atenção para o fato de que este

tipo de vitória era apenas fruto das boas condições econômicas e sociais

que gozavam as elites. Desliza pela redução econômica e sociológica.

Contudo, quando descreve o Vasco como um time arrasador, composto por

pretos, mulatos e raros brancos, nenhum tipo de racionalização é oferecida

para explicar a vitória. De fato, as condições econômicas e sociais dos

membros do Vasco deveriam provocar sua derrota. Mas a leitura atenta do

livro de Mário Filho revela que os “pretos, mulatos e brancos pobres” do

Vasco de 1923, do São Cristóvão de 1926 e do Bangu de 1933 foram

exaustivamente treinados. Assim, há também o argumento técnico que se

contrapõe às reduções economicistas ou sociologistas. Gordon Jr., mais

ajustado ao critério da lógica, parece só racionalizar a vitória “branca” para

não cair em contradição com as reduções que realiza. Com isso não estaria

– ainda que inconscientemente – também naturalizando uma imagem de

potência ou dom dos negros para o futebol?

Outro problema analítico que Gordon Jr. assume, a partir da

generalização de Mário Filho de que só os times de brancos venceram até

398
Gordon Jr. (1995, p. 74).

217
1922, é a presença de Friedenreich na seleção campeã em 1919. Como já

evidenciado no segundo capítulo deste estudo, Mário faz de Friedenreich

uma espécie de “coringa” que assume diferentes papéis. Isto é, se a

condição racial é ressaltada no contexto daquilo que chamou de

democratização do futebol brasileiro (Sul-americano de 1919), no contexto

específico da hegemonia branca, Friedenreich “perde sua cor”, deixa de ter

raça.

Gordon Jr., fiel ao NFB, descreve os negros emblemáticos que

teriam sofrido o racismo e o preconceito neste espaço social.399 Diz que a

história de Carlos Alberto -“história do Pó-de-Arroz” - parece folclórica, mas

reafirma que ela reproduz a representação do racismo na sociedade

brasileira (soa como muito politicamente correto). Na linha de descrição da

perseguição e exclusão dos negros, Friedenreich volta e é apresentado

como um corte, um marco rumo à democratização. Vejamos suas palavras:

“Através dele [Friedenreich], uma grande parcela dos torcedores,


e do povo em geral, começou a perceber que o futebol não
precisava ser de uma cor só, nem só da elite. Podemos imaginar
que a importância de Friedenreich se deve ao fato de que ele
marca, talvez, o ponto chave na identificação do futebol com o
ethos nacional. (...) É possivel que, através de Friedenreich esta
relação tenha sido a primeira vez percebida ou sentida pelo
inconsciente brasileiro”. 400

Esta interpretação não inova em relação à de Mário Filho, apesar de

reconhecer e identificar a ideologia da mistura expressa em Friedenreich.

399
O autor comenta que esta história possui um tom folclórico, mas investe em tirar conclusões e
generalizações de dados dos quais parece desconfiar.
400
Gordon Jr.(1995, p. 86).

218
Assim, acaba reproduzindo a saga negra no futebol brasileiro, ou melhor, a

democratização que teria se iniciado com o “gol mulato” no Sul-americano

de 1919. Gordon Jr., apesar de atacar Freyre pelas “beiradas”, quando elege

Friedenreich como “ponto chave na identificação do futebol com o ethos

nacional” está confirmando uma generalização de Mário Filho inspirada no

pensamento freyreano.401 Basta relembrar que, para Mário, a condição de

herói de Friedenreich se dava por sua condição de mulato, e o povo

brasileiro sempre escolhera seus heróis ou santos de barba e cabelo

carapinha.402

Na mesma trilha de Mário Filho, Gordon Jr. descreve a “revolução”

do Vasco campeão em 1923. Tal vitória de mulatos e pretos explicaria a

cisão institucional no futebol do Rio de Janeiro naquela época, em função do

racismo. As tintas são carregadas apenas num eixo explicativo, embora,

mesmo na narrativa do NFB, encontrem-se outros motivos que teriam

provocado a fundação da AMEA, questão que será aprofundada adiante.

Com a saga iniciada por Friedenreich, marcada pela revolução

vascaína e pela ascensão de Domingos e Leônidas - jogadores que marcam

a transição do profissionalismo e a incorporação de negros nos times de elite

-, Gordon Jr. Assim conclui os primeiros 50 anos de futebol. O autor chama a

atenção para as figuras de Domingos e Leônidas, que teriam sido

representadas por José Lins do Rego com uma idealização do fruto da

mistura racial. O contexto de euforia, no qual Lins do Rego enaltece a

401
Idem, p. 75. Diz o autor que as imagens veiculadas por Freyre no Prefácio de 47, além de
possuirem ligação com a identidade nacional, “estavam calcadas nos mais profundos estereótipos
racistas contruídos pelo pensamento racista brasileiro...”
402
NFB (1964, p. 54).

219
mistura, é revelado no prefácio que assina do livro de Mário Filho sobre a

Copa Rio Branco de 1932. É interessante que Gordon Jr. chame a atenção

para o caráter publicista e apologista da mistura racial de Lins do Rego e

não teça nenhum comentário explícito sobre o enaltecimento realizado por

Mário Filho. Gordon Jr. não consegue visualizar, na narrativa do NFB, a

crença na integração total das raças e classes que teria se operado no

futebol.403 Assim, acaba convencido pelos argumentos de Mário Filho de que

só teria descrito um processo, ainda em curso na primeira edição do NFB, e

que por isso acrescentaria mais dois novos capítulos na segunda.

Como Mário Filho “não teria acreditado na democracia racial”,

apenas descrito um processo, Gordon Jr. sugere como segunda fase de

análise a Copa de 50. Descreve, tal como Mário Filho, que a derrota do

Brasil fez com que se reacendesse o racismo. Os “bodes expiatórios” foram

todos negros: Barbosa, Bigode e Juvenal. É interessante que o próprio Mário

Filho descreve que outros negros da mesma seleção teriam ficado isentos

da culpa.404 Gordon Jr. só leva em consideração o foco do recrudescimento

do racismo, esquecendo-se de dar atenção à isenção de culpa concedida a

Zizinho, Bauer e Jair da Rosa Pinto. O recrudescimento se complica ainda

mais se pinçarmos outra construção, na qual Mário Filho diz que o mulato

Obdúlio Varela, de “cabelo ruim”, foi eleito como ídolo às avessas.405 Com

isso Mário Filho conseguia juntar ainda mais peças para confirmar o

pressuposto freyreano dos heróis de barba e cabelo carapinha. (Retomo o

403
Ver Capítulo 3 deste trabalho.
404
NFB (1964, p. 54).
405
Idem, ibidem. Observe-se que o esteriótipo “cabelo ruim”, utilizado por Mário Filho, passa
despercebido aos olhos denunciadores de Gordon Jr.

220
mito do recrudescimento do racismo no último capítulo) Gordon Jr., menos

“dialético”, prefere só apostar na imagem do recrudescimento. O autor ainda

acompanha Mário Filho nas histórias ou estórias sobre as desconfianças que

pairavam sobre a idoneidade moral do negro e sobre a ideologia de

embranquecimento como provas do racismo.

A terceira fase, “a revanche do preto”, que em Mário Filho acaba em

1962, é ampliada por Gordon Jr. até o Tricampeonato Mundial de 1970.

“Na realidade, a segunda edição (ampliada em forma definitiva)


do livro de Mário filho não vai até a conquista do Tri, finalizando
com a Copa do Mundo de 1962. Incluí propositadamente a Copa
de 70 porque acho que ela é o coroamento do processo descrito
por Mário como a revanche do preto.”406

Em 1958, o Brasil torna-se Campeão do Mundo e revela seus heróis,

o preto Pelé e o mulato Garrincha.407 Vence em 62, com esses mesmos

heróis. Para Gordon Jr., a vitória de 1970 seria, de certa forma, o

“coroamento” do processo descrito por Mário Filho. Assim, Gordon Jr.

completa Mário Filho. É patente que pretende desvendar o processo de

construção da identidade nacional via discurso racial que cruza o futebol. O

mergulho que faz na narrativa do NFB, no entanto, acaba por ser mais forte

e determina a perspectiva daquilo que pretende analisar. A narrativa do NFB

determina o argumento de Gordon Jr., que acaba por construir ou reconstruir

a gesta da raça negra. Gordon Jr. legitima academicamante o livro de Mário

406
Gordon Jr. (1995,p. 76 - nota 8).
407
Gordon Jr. aqui comenta que a versão sobre a ameaça de embranquecimento da equipe em 1958 é
contraditória em relação a outras versões. Contudo, não explora o fato de como essa versão surge no
texto de Mário Filho.

221
Filho, lendo-o de uma perspectiva pouco distanciada, mitológica, sem

estabelecer os limites entre história e romance.

“Cabe ainda uma última palavra sobre o livro de Mário Filho. O


Negro no Futebol Brasileiro é um livro rico e interessante, um
relato vivo e minucioso da luta do negro na sociedade brasileira,
dentro de uma esfera particular e significativa - o futebol. Com
ele, Mário Filho deixou um relato objetivo sobre a devida
dimensão do futebol no processo de democratização das
relações raciais no Brasil”.408

Como últimas palavras sobre os textos de Gordon Jr., pode-se dizer

que sua omissão, ou falta de leitura crítica sobre o NFB, acaba por

naturalizar a competência dos negros para o futebol e exagerar as lutas do

negro ou, melhor dizendo, confundir o agir de atores individuais, alguns

negros, com um ator coletivo: o negro. Talvez exista em sua elaboração

elementos recorrentes do politicamente correto: a) afirmar-se alguma

superioridade para a minoria ou grupo escolhido, em algumas dimensões

que se contrapõem à imagem desvalorizante do dominador; b) inventar-se

uma tradição de lutas gloriosas, um história ativa que é contraposta à

história aplainada ou ausente que o dominador elabora; e c) condutas

individuais de resistência ou integração são lidas como formando parte do

sujeito coletivo - neste caso, o negro. Em verdade, sua leitura pode, em

outra perspectiva, a do próprio movimento negro, ser lida como racismo, isto

é, os negros “só dariam para o samba e futebol”, para a estética e as

emoções, ao invés de serem ativos no campo da razão. O que, obviamente,

não é a intenção de Gordon Jr..

222
O artigo de José Sérgio Leite Lopes, “A vitória do futebol que

incorporou a pelada”409, é outro texto que pode ser entendido como do tipo

b. O autor se propõe a analisar o processo de construção social do futebol

como uma “segunda natureza” do brasileiro. Leite Lopes diz ser uma boa

estratégia analisar a biografia de Mário Filho, já que este foi um dos

construtores de tradições nesse campo esportivo. “O livro que publicou

sobre a história do futebol brasileiro (...) deve ser compreendido a partir da

ação que seu autor pôde exercer pessoalmente sobre o desenvolvimento

desse esporte...”410

Nesta direção, toma como fontes o NFB e o substrato da biografia de

Nelson Rodrigues, O anjo pornográfico, escrita por Rui Castro.411 Mário Filho

aparece na biografia como um personagem central na trajetória de seu irmão

Nelson Rodrigues. Contudo, a biografia é a de Nelson, e não a de Mário. A

partir do substrato dessa biografia e do NFB, Leite Lopes se propõe analisar

“a invenção do jornalismo esportivo e a entrada dos negros no futebol” .412 O

autor incorpora, acriticamente, a versão de Rui Castro que talvez mitifique,

via depoimentos de Nelson, o irmão mais querido, Mário Filho, como o

inventor desta modalidade de jornalismo. É bom lembrar que o Correio da

Manhã, nos primeiros anos da década de 10, já promovia torneios e

dedicava significativo espaço ao futebol.413 Isto não quer dizer que se negue

408
Gordon Jr. (1996, p. 77).
409
Leite, Lopes (1994).
410
Idem, p. 65.
411
É questionável, sob o ponto de vista metodológico, pensar Mário a partir de uma biografia
construída para narrar e explicar Nelson. Há um material sobre Mário Filho, formado por entrevistas
feitas com seus amigos e colaboradores, no Museu da Imagem e do Som, por mim já citado. É
evidente que Leite Lopes deveria havê-las escutado e analisado.
412
Leite Lopes (1994, p. 64).
413
Consultar a coleção do Correio da Manhã entre 1911 e 1915.

223
o importante papel de mediador e interventor cultural de Mário Filho, mas

devemos ter o cuidado de não fazer dele, no jornalismo esportivo, o que foi

feito com Charles Miller no futebol.414

A argumentação de Leite Lopes reconhece que o “estilo brasileiro”

de futebol foi naturalizado, e que Mário Filho foi um ator central neste

processo. Mas, apesar de procurar manter-se crítico ou distanciado, Leite

Lopes também cai na equação do futebol: quando branco e inglês,

excludente do negro; quando negro e mestiço, brasileiro. Para o autor, é

evidente o processo de construção social do “futebol nacional”, mas, ao

acompanhar a história do futebol via narrativa do NFB, acaba, também, por

incorporar a versão e interpretação histórica fornecida por Mário Filho.

Reproduz os mitos, versões e interpretações do “inventor de tradições” sem

recorrer a documentos e fontes primárias.

O horizonte da pesquisa continua sendo o NFB. Leite Lopes cria

legitimidades para a obra, dizendo ser esta uma verdadeira etnografia.415 O

414
Poder-se-ia dizer que pouco importa se Charles Miller foi ou não o primeiro a introduzir ou
anunciar esta prática esportiva entre nós. A história da origem é, no mínimo, pouco significativa. Se se
leva em consideração a penetração inglesa no Brasil, em investimentos e recursos humanos, nada mais
fácil de supor que os ingleses trouxeram o futebol e as bolas vendidas pelos comerciantes. Boa parte
das importações, senão a maior, provinha da Inglaterra, tendo o pico entre o final do XIX e início do
XX. Uma forte colônia inglesa gerenciava negócios financeiros e industriais no Brasil. Assim, os
produtos e os hábitos ingleses, o estilo de vida inglês, penetravam o cotidiano das grandes metrópoles.
O tea o’five era um hábito muito comum entre as elites brasileiras ou, se preferir, entre o “leite” local.
Acompanhar um estilo de vida europeu significava, para as elites brasileras, aderir aos marcos da
civilização, do progresso e construir a distinção social, sem contar com o fato que nossas elites se
formavam na Europa não-ibérica, e que Coimbra já havia deixado de ser o pólo de formação de nossa
cultura. Parece mais plausível, diante desses dados, pensar que o futebol e outros esportes surgem no
Brasil numa configuração da formação das metrópoles e de um novo estilo de vida. O processo de
padronização técnica e industrial, os novos ritmos e destrezas impostas ao corpo, as necessidades de
integração de uma massa de imigrantes, a adesão aos estilos de vida considerados civilizados, fizeram
do esporte um elemento adequado a estas novas demandas que se formavam no Rio de Janeiro e São
Paulo. Sevcenko (1994) aponta que o futebol no Brasil teria seguido dois caminhos: “[U]m foi o dos
trabalhadores das estradas de ferro, que deram origem aos times de várzea, o outro foi através dos
clubes ingleses que introduziram o esporte dentre os grupos de elite”(p. 36). Portanto, a questão de ter
sido Charles Miller ou outro que trouxe o futebol para o Brasil é secundária e até certo ponto infantil.
415
Leite Lopes (1994).

224
inesgotável Mário possibilita ver na sua obra tanto a historiografia quanto a

etnografia, embora essas disciplinas tenham sido classicamente

contrapostas no funcionalismo de Malinowski. Ao reproduzir as histórias e

estórias, Leite Lopes não só legitima o NFB como etnografia, mas também

como história stricto sensu. Lembremos que o romance e a história possuem

proximidades além do fato banal do romance contar uma história. Todavia,

como nos alerta Veyne, ambos os gêneros são narrativas, embora guardem

profundas diferenças.416

O romance, antes de tudo, tem compromisso com a estética, com o

arrebatamento do leitor sobre fatos ou estórias que conta. (Isto Mário Filho

faz com suma competência, pois se não fosse assim não teria tantos crentes

ou adeptos.) A história deve ter o compromisso com a verdade, e se permite

ser enfadonha e não cativante. O historiador “não é um colecionador, nem

um esteta; a beleza não lhe interessa, a raridade tampouco. Só a

verdade”.417 Poderíamos estender este compromisso ao produto da

pesquisa de um etnógrafo, embora algumas etnografias sejam escritas para

atingir a emoção do leitor.418 Para Leite Lopes, Mário Filho é um ator

principal na construção do “futebol nacional”, e sua versão sobre o ocorrido

tem o valor de fornecer dados sobre a história do futebol e das relações

raciais. Mas não custa repetir Antônio Candido: se quisermos ter uma visão

informativa, temos que recorrer a fontes primárias, documentos e a outras

416
Veyne, Paul (1995).
417
Idem, p. 15.
418
Cf. Geertz, Capítulo 9. O famoso texto de Geertz sobre a briga de galos em Bali situa-se
claramente como exemplo. Como não nos emocionarmos com a desajeitada fuga do famoso
antropólogo diante da polícia, dos risos e comentários dos nativos e da comunidade estabelecida a
partir do evento?

225
versões de seus contemporâneos. De acordo com Leach, devemos separar

dos relatos os significados dados pelos atores a um determinado ritual de

sua funcionalidade.419 Por exemplo, o relato de um padre sobre a reza de

ação de graças no refeitório de uma universidade pouco indica a

religiosidade dos alunos e professores; talvez apenas signifique, na situação

concreta, que o jantar vai começar. Cabe ao pesquisador organizar e

encaixar os dados para interpretar a situação, e não aos atores sociais.

Descrever a “real” história de Mário Filho, suas rezas de padre do futebol,

não ajuda muito a reconstruir o contexto etnográfico onde estas histórias e

estórias estão descritas.420

Relembremos alguns relatos. Nelson Rodrigues diz que Mário Filho

tinha preocupação em escrever a “frase redonda” e em prosar escrevendo

sobre o futebol. Antonio Olinto diz que Mário Filho queria colocar literatura e

poesia no futebol.421 Assim, se suas intenções eram explícitas e conhecidas,

seu livro não pode poupar o trabalho de levantar fontes primárias. O NFB

deve ser encarado como um romance realista e como um guia privilegiado

para levantar fontes primárias. Contudo, o que se reitera é que a visão

419
Leach, (1983, p. 124).
420
Veyne (1995) diz que as diferentes versões dos eventos vividos por personagens principais do
processo, antes de serem experiências estéticas interessantes, são para o historiador um limite. “Esse
limite é o seguinte: em nenhum caso o que os historiadores chamam evento é apreendido de maneira
direta e completa, mas, sempre, incompleta e literalmente, por documentos ou testemunhos, ou seja,
por tekmeria, por indícios. Ainda que eu tivesse sido contemporâneo e testemunha de Waterloo, ainda
que eu tivesse sido seu princiapl ator, Napoleão em pessoa, teria apenas uma perspectiva sobre o que
os historiadores chamarão de evento de Waterloo (...) minha própria interpretação dos
acontecimentos não seria, talvez, a mesma que a de meus amigos, do meu confessor, do meu
historiador e do meu psicanalista, que poderia ter suas próprias versões sobre a minha decisão e
julgar saber melhor do que eu o que eu desejava. Por essência a história é conhecimento mediante
documentos. Desse modo, a narração histórica situa-se para além de todos os documentos, já que
nenhum deles pode ser o próprio evento; ela não é um documentário em foto montagem e não mostra
o passado vivo ‘como se você estivesse lá’; retomando a útil distinção de G. Genette, ela é digesis e
não mimesis” (p. 12). Veyne mais à frente, comenta que o evento se destaca na uniformidade; é sobre
a diferença que informa a história.

226
transmitida pelo NFB está enviesando a leitura daqueles que se debruçam

sobre seus dados, quando desloca os eventos específicos do futebol para

reforçar e explicar relações ou conceitos de racismo, elitismo e luta de

classes sob a dominância do politicamente correto. 422

Voltemos à questão da reprodução da equação de Mário Filho que

aparece no texto de Leite Lopes:

“O caráter inicial da introdução do futebol no Brasil é o de um


‘produto de importação’ materializado seja por intermédio das
empresas inglesas instaladas no país (com seus engenheiros,
seus técnicos que trazem não somente sua tecnologia mas
também seu estilo de vida, seus lazeres, assim como a moral do
esporte), seja pela mediação indireta dos ingleses exercida
através das viagens da alta burguesia brasileira à Europa, dos
estudos de seus filhos em colégios europeus onde se joga
futebol. Os ‘grandes’ clubes existentes na década de 20,
surgiram, bem no início do século, como lugar de encontro destas
duas tendências.” 423

Depois do comentário que aponta a configuração da introdução do

futebol, o autor passa a reproduzir as descrições do NFB sobre o futebol em

sua primeira fase (branco, inglês e elitista) e suas oposições (já

exaustivamente comentadas):

“Uma diferença social fazia-se sentir nos encontros entre ‘grandes’


e ‘pequenos’ clubes, mas era visto como normal o confronto entre
clubes provenientes das diferentes fontes ‘inglesas’ de introdução
do futebol, de um lado a fonte de elite, ligada ao futebol praticado

421
Ver Capítulo 5 deste trabalho.
422
Leite Lopes (1994, p. 82 - nota 41) reproduz Mário Filho quando diz que a tuberculose de
Monteiro e Fausto, ambos oriundos de equipes de fábricas, era produto e caso - limite do excesso de
atividade, “de abnegação pelo clube-empresa e do desgaste do amadorismo do jogador proletário no
amadorismo”. Sabe-se que a tuberculose refletia uma espécie de quadro epidêmico. Não só pobres
contraíam tuberculose.
423
Idem, p. 69.

227
na escola ou no clube das boas famílias, de outro lado a fonte em
que as classes populares são incluídas pelo viés do futebol
paternalista de empresa. Era entretanto malvista a inclusão de
jogadores de classes populares - e no Brasil a cor da pele é um
indicador de classe - nos “grandes” de “boa família”.424

O Bangu e os times de subúrbio atrapalham a equação de Mário

Filho, e Leite Lopes precisa arrumar argumentos ad hoc para assumi-la.

Assim, opera com as oposições presentes no NFB, dizendo que o futebol na

fábrica surge como uma espécie de paternalismo disciplinador e agregador

dos operários, num esprit de corp.425 Para fazer valer a equação, vê-se

obrigado a realizar (ou manter) um corte entre o time “grande” e o

“pequeno”, onde o futebol branco e inglês se vincula apenas aos clubes

“grandes”, de boa família, ao passo que os outros clubes, os pequenos,

seriam dos pretos e mestiços, dos populares. Poder-se-ia concluir, pelos

dados fornecidos por Leite Lopes, que não teria ocorrido exclusão do preto,

do mulato e do branco pobre do futebol. Os dados apontam, mais uma vez,

que os clubes de elite funcionavam como um elemento de distinção social.

Como Leite Lopes sabe, negros e mulatos (ainda que em minoria)

povoavam os times de elite, segundo os dados e as formulações do NFB.

Assim, ele se vê obrigado, para imputar o sentido de racismo à sua história,

a cunhar o conceito ad hoc de que os jogadores pretos ou mulatos que

integravam as equipes dos clubes de elite eram malvistos. Para dar sentido

a sua narrativa acaba por trabalhar com o chavão segundo o qual no Brasil a

cor da pele é um indicador de classe. O autor, assim, não deixa claro os

424
Idem, p. 69-70.
425
Deve-se lembrar que esta interpretação da função do futebol pelas fábricas no Brasil já estava no

228
motivos pelos quais os jogadores eram malvistos: eram malvistos pela

condição racial ou pela classe social?

A questão não se esclarece no âmbito da narrativa. Racismo aqui

aparece mais uma vez confundido com o conceito de distinção social. Por

exemplo, se eram clubes de elite e aderiam ao amadorismo, a conclusão

lógica é a de que seus sócios deveriam ser os preferidos para formar os

times. Os pobres não eram sócios dos clubes de elite. A única razão para

incluir populares nos times de elite, que não é explicitada por Leite Lopes,

seria a de que fossem muito melhores jogadores que os próprios sócios e

ajudassem, conseqüentemente, a melhorar o desempenho do time. Deve-se

reconhecer que isso podia ser malvisto pelos sócios que financiavam o clube

e queriam jogar ou ver jogar seus amigos. A inclusão podia ser defendida

pelos sócios que colocassem os triunfos do clube acima de quaisquer outros

argumentos. A lógica é banal e não provoca muita surpresa, nem histórica

nem antropológica. Apenas a profissionalização dos times poderia quebrar

os requisitos da lógica amadora. De fato, o problema sociológico não parece

ser explicar a não-entrada de pobres, pretos e mulatos nos times de elite. Na

verdade, o problema de Leite Lopes é explicar, a partir da assunção do

racismo, sua presença.

Ser malvisto não quer dizer, stricto sensu, ser excluído. Leite Lopes,

contudo, não apresenta dados contextuais para entendermos o significado

de “ser malvisto”. Em outros termos, se jogavam nos times não eram

excluídos. As provas de Leite Lopes são retiradas da obra de Mário Filho,

clássico artigo de Rosenfeld (1993).

229
reiterando os emblemáticos exemplos da história do Pó-de-arroz, do caso

Manteiga e de Fausto. (Sobre os dois primeiros me deterei no próximo

capítulo.)

Há uma certa demonstração do óbvio na argumentação de Leite

Lopes. De fato, é universalmente sabido que nas festas das elites os

populares são serviçais e, em alguns romances, penetras dissimulados. Não

parece ser em nada diferente o que pode ter ocorrido nos clubes de futebol,

se pensarmos nas festas dos colunáveis (dos representantes das elites) e

nas festas organizadas pelas camadas populares. Os populares poderiam se

sentir discriminados pelo fato dos colunistas sociais não fazerem coberturta

de suas festas? Este é um fenômeno de estratificação social, mesmo em

uma sociedade de classes que não tenha a complicação do racismo.

Contudo, não há provas para afirmar que o acesso ao “bem cultural futebol”

era negado aos populares, sobretudo quando é relatado que o futebol,

rapidamente, se espalhou entre os populares nos espaços improvisados,

nos campos de várzea e nas fábricas.426 Se nos clubes de fábrica e nos

clubes de subúrbio, os populares, independente de qualquer matiz de pele

(isto não quer dizer que não exista preconceito racial entre os populares),

tinham acesso à prática do futebol, poderemos ler esse dado como

segregação ou racismo?. Os clubes de elite, é óbvio, aceitavam as pessoas

pertencentes às elites econômicas, políticas ou culturais. Entretanto, se a

composição das elites era em geral branca, isto não excluía a presença de

pretos e mulatos, ainda que raros, como seus membros.427 Peço desculpas

426
Sevcenko (1994).
427
Nos primeiros anos da década de 10, a coluna de esportes do Correio da Manhã anuncia o

230
por me estender sobre obviedades, porém a reiteração das mesmas, nas

análises, obrigam à insistência.

Pode-se então notar que a “equação de Mário Filho” deve ser

relativizada, sobretudo se pensarmos nos próprios personagens negros que

Mário Filho descreve no NFB e que estavam inseridos em equipes e clubes

classificados como de elite. Para ser coerente com a equação do futebol

branco, inglês e elitista, Leite opera com o preconceito que ronda qualquer

“festa de elite”. Isto é, os descendentes de negros ou das camadas

populares em geral seriam malvistos (como o exemplo dos penetras nas

festas) quando os times “grandes” os incorporavam às suas equipes de

futebol.

Diz Leite Lopes: “a cor é indicador de classe social”.428 Entretanto, se

olharmos radicalmente para a narrativa de Mário Filho, podemos constatar

justo o contrário: classe seria, no NFB, indicador da cor ou da raça.429

Lembremos que Mário Filho descreve Joaquim Prado como um lord preto,

mas ninguém reparava sua cor; ou, se reparasse, era para admirá-lo mais.

Prado era rico e jogava no Paulistano. Caso viesse residir no Rio de Janeiro

seria recepcionado pelo Fluminense de braços abertos, diz Mário Filho.430

Outros personagens, mulatos e pretos, são aludidos na narrativa do NFB

como participantes desta primeira fase do futebol. Que modalidade de

racismo é essa que aceita jogador negro e ao mesmo tempo o discrimina?

Este seria um tipo de questão que deveria provocar o pesquisador a buscar

surgimento de novos clubes quase como uma febre.


428
Leite Lopes (1994, p. 70).
429
Os dados fornecidos por Guimarães (1997) indicam que o negro ou mulato quando ascendem
socialmente se autoclassificam como morenos.

231
respostas sobre a diferença deste racismo em relação a outros. A tradição

científica procura distinguir, jamais apagar as diferenças.

O código do esporte amador, fundamental para a abordagem da

distinção social, é lido – por dedução, sem dados – como criador de uma

barreira racial.431 Com certeza, ninguém pode ser ingênuo a ponto de crer

que uma sociedade que há pouco deixara de ser escravista, e onde a

ideologia cientificista da hierarquia das raças se popularizou, deixaria de ser

racista da noite para o dia. A questão que não importou no passado, e que

parece não interessar ao presente, talvez por motivos de agregação política,

é a discussão sobre o tipo de racismo que se construiu na sociedade

brasileira. Como se deu a mobilidade social dos negros, ainda que pequena,

dentro de uma mentalidade racista? Este parece ser o ponto interessante, se

colocado em contextos específicos. Por exemplo, o jogador de futebol, ao

ganhar grandes somas de dinheiro, teve mobilidade social, econômica, ou as

duas? Um professor universitário negro tem mais mobilidade social do que

um negro jogador de futebol? A mobilidade econômica e social dos negros

no Brasil, ainda que limitada, dificultou a mobilização dos negros na defesa

de políticas igualitárias? Apesar de serem claras as possibilidades de

mobilidade que se deram no espaço do futebol e na música, comparação e

investimentos nestes poderiam resultar em estudos iluminadores sobre o

racismo no Brasil.

Mas voltemos à questão: é evidente o deslocamento, tanto de Mário

Filho quanto daqueles que se debruçam sobre seus “dados”, quando

430
Sobre o personagem Joaquim Prado, ver o Capítulo 1 deste trabalho.
431
Ver a periodização proposta por Murad.

232
transformam dados sobre distinção social ou hierarquização de classes (que

obviamente atravessavam os clubes de futebol) em puro racismo,

segregação ou perseguição. Este tipo de narrativa lembra mais a “linguagem

dos inimigos”, que tanto auxilia a formar a idéia de nação, do que a

linguagem da pesquisa.

É claro que um pesquisador como Leite Lopes não deixa de

vislumbrar que a nacionalidade é construída, mas sua narrativa, ao

debruçar-se seletivamente nos “fatos e histórias” de Mário Filho, também

acaba por descrever uma narrativa épica do negro que se confunde e auxilia

a construção da identidade nacional.432 A confusão se estabelece,

principalmente quando Leite Lopes, ao resenhar o NFB, não dá conta de

demonstrar os limites entre as tradições inventadas e a invenção de um

estilo de futebol “genuinamente” brasileiro. Em outros termos, Leite não

consegue distinguir os limites entre aquilo que nossos olhos estão

preparados para ver como genuíno e puro futebol brasileiro, e as próprias

socializações provocadas pelas narrativas míticas de nosso futebol. Ele

assume o mito que talvez procurasse analisar.

Leite Lopes confirma a epopéia negra no futebol pelo próprio título

de seu artigo – “A vitória do futebol que incorporou a pelada”. Pode-se

deduzir que o modelo que propõe é o seguinte: a) Os negros foram

malvistos, colocados à margem do futebol de elite e, quase

concomitantemente, aprenderam e criaram um novo estilo de jogo; b) O

estilo de jogo dos negros, que se mostrou vitorioso, foi gradativamente

432
O negro, para Murad, passa a ser usado como uma arma e empresta sua habilidade para representar
a Nação, para representar a parte da Nação que o discriminava.

233
sendo incorporado aos clubes de elite; c) O estilo de jogo que tornou-se

nacional deu-se em conjunto com a profissionalização do futebol, sendo

Mário Filho narrador e publicista a favor da profissionalização; d) o estilo de

jogo foi naturalizado; e) o futebol brasileiro até bem pouco tempo transferia

para todo o mundo a imagem de que aquele jogo teria sido inventado para

eles, os negros.

234
8 - A REPRODUÇÃO DOS NÚCLEOS NARRATIVOS DE
MÁRIO FILHO

Foi demonstrado até aqui como o NFB constitui-se a base para

muitas das atuais reflexões acadêmicas sobre o futebol brasileiro. Neste

capítulo final pretendo evidenciar que alguns dos núcleos narrativos do NFB,

reproduzidos como se fossem dados históricos, não se sustentam para

afirmar a dinâmica de segregação e racismo no futebol brasileiro, nem sua

superação heróica ou mitológica.

Não se está dizendo, contudo, que não existe ou não existiu racismo

no espaço do futebol ou em nossa sociedade. Parece sensato pensar que,

numa sociedade de passado escravocrata, as relações raciais não sejam tão

harmônicas nem estejam pautadas pelos princípios da igualdade e do

reconhecimento das diferenças. A Lei Afonso Arinos em 1951 e mais

recentemente a Lei Caó, provam a preocupação social do legislador em

coibir a segregação e a exclusão. Contudo, no nível ideológico da

sociedade,o reconhecimento da mistura racial como fato, e talvez como

valor, é evidente. Também é evidente, como foi constatado em pesquisa

realizada pela Folha de São Paulo, que há um ideal de morenidade que

perpassa a sociedade brasileira.433

O que estou argumentando é que os núcleos narrativos que são

tomados como provas para explicar racismo e segregação não se

sustentam, não constituem evidências. Os dados que se apresentam são de

433
Folha de São Paulo – Data Folha. (1995).

235
difícil encaixe, parecem não combinar no “quebra-cabeça” interpretativo do

racismo no futebol.

Quando foram analisadas as “evidências” apresentadas por Mário

Filho, observou-se que a trama racista dilui-se ou secundariza-se em sua

própria narrativa. Para aprofundar o tratamento das “evidências” selecionei

três núcleos, amplamente reiterados na literatura acadêmica, para

demonstrar como as peças não se encaixam na trama do racismo no futebol.

Para isso consultei jornais da época e escritos de outros narradores, alguns

contemporâneos a Mário Filho, levantando novos dados e análises para

confrontar com a interpretação dominante sobre o racismo no futebol, dada

como “verdadeira e definitiva”. Os núcleos são os seguintes: 1) o caso do

Pó-de-arroz e do Manteiga; 2) a criação da AMEA como perseguição à

democracia lusitana; 3) e, por último, o recrudescimento do racismo na Copa

de 50.

Tais núcleos narrativos, ou mitos, são utilizados para afirmar, de

forma pouco elaborada, que no Brasil e na história do futebol existiu

segregação, resistência e afirmação do negro no espaço social do futebol.

Esse tipo de reprodução, pela falta de rigor e de análise, acaba apenas

fornecendo uma espécie de atributo universal, via uma narrativa épica, sobre

o comportamento anti-racista que deveríamos ter.

Acredito, como já disse várias vezes, ser justo e legítimo que os

grupos encarados como “minorias” manipulem e construam suas histórias da

forma que desejarem, para aglutinar forças ou formar identidades. A

militância anti-racista ou feminista não deve ser necessariamente regida pelo

236
conhecimento “científico”, pois as experiências negativas com o

“cientificismo” justificaram a desigualdade e a segregação em bases

naturais. As adesões à militância por uma sociedade mais justa e igualitária

podem ser feitas apenas porque julga-se ser o mais justo, belo e

humanitário. Reafirmo, apesar de estarmos vivendo num contexto do

“politicamente correto”, que não se pode reforçar mitos na produção do

conhecimento ou na ciência apenas porque tais mitos são úteis ou

agradáveis aos ouvidos. Talvez estejamos nos confrontando com um novo

cientificismo, que se valida porque procura justificar, cientificamente, os

valores do politicamente correto. O compromisso do pesquisador não é o de

construir mitologias ou identidades. Sua tarefa é entender os processos de

construção social e cultural.

A questão que se está aqui tratando sobre o futebol brasileiro

assemelha-se à do “nascimento virgem” abordada por Edmund Leach.434

Acredito que seja ilustrador relembrar parte da querela que Leach travou

com eminentes antropólogos.435 A questão tratada por Leach era se os

aborígenes australianos ignoravam ou não os fatos da paternidade

fisiológica. Toda uma tradição antropológica afirmava que os aborígenes

desconheciam a conexão entre ato sexual e paternidade fisiológica, isto é,

não correlacionavam o ato sexual com a fecundação, e a gravidez se daria

por uma espécie de fecundação mágica ou divina. Leach, diante dessa

tradição, colocou-se do lado oposto: para ele, os nativos não desconheciam

434
Leach (1993, p. 117-138).
435
A querela travada foi com Clifford Geertz e Melford Spiro.

237
a paternidade fisiológica e sustentar essa hipótese seria o mesmo que

qualificar o nativo de ignorante, infantil, estúpido e supersticioso.436

Acreditar na ignorância da paternidade fisiológica dos nativos só se

sustentaria a partir de uma atitude etnocêntrica, ou da falta de esforço para

analisar as evidências que estão descritas nos próprios relatos que

afirmavam essa ignorância. Acreditar nela implica pensar que os nativos não

podem estruturar seus pensamentos de maneira lógica. Assim, o crítico

Leach sentencia que, entre acreditar na ignorância dos nativos ou na

ingenuidade dos antropólogos, ele prefere a segunda opção.437

Sua opção se dá por várias razões: primeiro, porque os antropólogos

tomaram as evidências fora de contexto. Por exemplo, se uma nativa chega

ao acampamento anunciando sua gravidez portando uma espécie particular

de rã, ou qualquer outro símbolo ritual, os antropólogos, ao invés de

interpretarem a evidência como um sinal de anúncio, a interpretam como

uma causa. Em segundo lugar, caem também no erro de transformar a

descrição de um dogma pelos nativos em conclusões sobre suas atitudes

cognitivas enquanto atores sociais. Diante da atitude metodológica dos

antropólogos, de forma irônica Leach diz entender por que chegaram à

conclusão da “ignorância nativa”. O que os defensores da ignorância não

entenderiam é que os nativos, quando interrogados em contexto ritual,

respondem a partir da lógica das entidades espirituais e divinas. Entretanto,

quando interrogados em contextos seculares, respondem secularmente.

436
Leach (1993, p. 122).
437
Idem, p. 124.

238
Para Leach, o preceito malinowiskiano de que interessam não

apenas as diferenças entre nativos e europeus, mas sobretudo as

semelhanças, deveria ter sido posto em prática também para se pensar a

questão do “nascimento virgem”.

“Encontramos a suposta ignorância da paternidade fisiológica


entre povos que os etnógrafos consideram muito primitivos. Essa
‘ignorância’ é tida como marca do primitivismo. Contrastando com
isso, o nascimento miraculoso de um herói divino ou semidivino é
uma característica da mitologia das ‘mais altas’ civilizações.
Dionísio, filho de Zeus, nasce de uma virgem mortal, Semele, que
mais tarde se torna imortal pela intervenção de seu divino filho.
Jesus, filho de Deus, nasce de uma virgem mortal, Maria,
que...Tais estórias podem ser duplicadas repetidamente. Elas
não indicam ignorância”.438

O ponto que incomodou Leach é que as construções antropológicas

parecem predispostas a aceitar que os “outros povos” acreditam nas versões

do nascimento virgem, enquanto os “civilizados”, se crêem na Virgem Maria,

é porque são devotos. A crítica de Leach torna-se interessante para que se

reflita sobre o significado que se está disposto a dar sobre as evidências que

se tem à mão.

A digressão realizada ilustra o tipo de problema no qual estamos

enfiados. Os reiterados núcleos narrativos do NFB têm sido utilizados para

provar racismo na atual literatura sobre o futebol brasileiro, tal como o

“nascimento virgem” foi prova da “ignorância” dos nativos sobre a

paternidade fisiológica.

438
Idem, p. 125-6.

239
8.1 – “Pó-de-arroz” e Manteiga: “provas” do racismo no futebol?

Dois núcleos narrativos estão no NFB e se reproduzem na atual

literatura do futebol como provas iniciais do racismo no futebol brasileiro: o

caso de Carlos Alberto, o chamado “Pó-de-arroz”, e o do jogador Manteiga.

Sintetizarei os dois núcleos.

Como já vimos, Carlos Alberto era jogador do América e, junto com

outros jogadores, havia se transferido para o Fluminense. Carlos Alberto era

mulato e filho de um famoso fotógrafo de formaturas. O prestígio social do

pai lhe permitia freqüentar as “boas rodas sociais”. Na versão fundadora,

conta Mário Filho que quando Carlos Alberto foi jogar no Fluminense sentiu-

se mais mulato do que no América.439 Sem mencionar nenhuma evidência,

Mário diz que Carlos Alberto, por sentir-se envergonhado, empoou o rosto

para disfarçar sua cor. O disfarce em nada teria adiantado. A torcida

americana começou a chamá-lo de “Pó-de-arroz”. O núcleo é concluído

enigmaticamente por Mário Filho: o pó-de-arroz (prova do racismo) passou

de Carlos Alberto para o Fluminense, pois ser tricolor afinal significava ser

cheiroso, fino e aristocrático.

O caso do jogador Manteiga, também já apresentado, embora

menos famoso é outro núcleo que aparece nos textos contemporâneos junto

com o de Carlos Alberto.440 Manteiga era negro e praça da Marinha, isto é,

pertencia ao mais baixo escalão da instituição. Jogava futebol no campo do

Cais do Porto junto a estivadores, carregadores e pessoal desqualificado. O

América não ganhava campeonato desde 1916 e estava às portas da

240
campanha de 1921. Manteiga era uma opção de reforço, mas para integrar o

América deveria pedir seu desligamento da Marinha, em função dos critérios

amadorísticos. Diz Mário que Manteiga resistiu, mas aceitou ir para o

América (o mesmo clube no qual o mulato Carlos Alberto não era “malvisto”).

Sua ida para o clube pequeno-burguês teria causado uma série de

contratempos. Um dos boatos que corria era que uma tremenda cisão

aconteceria no corpo de associados. Trezentos sócios teriam colocado o

presidente contra a parede: “Manteiga ou nós”. O habilidoso presidente

descobriu rapidamente que a imposição, de fato, não passava de um boato.

Consultou os jogadores do primeiro, do segundo e do terceiro times, e

apenas nove sócios-atletas desligaram-se; a grande maioria posicionou-se

favoravelmente a ter Manteiga como companheiro de equipe. Manteiga

auxiliou o América a realizar uma excelente campanha em 1921, quando foi

vice-campeão. Mas, numa excursão à Bahia, deixou a delegação e ficou por

lá “com sua gente”. Não se pode esquecer que Mário diz que, antes de

Manteiga chegar, outro mulato, o Miranda, já atuava no time do América e

permaneceu após a saída dele.

Segundo a versão fundadora, essa seria mais uma prova do

racismo. Observe-se que, em ambos relatos, Mário Filho atribui sentido às

ações dos atores sem evidência ou sinais que permitam sua construção. Em

nenhum caso trata-se de sentidos declarados pelos atores. Em outros

termos, clara e distintamente, Mário Filho inventa os motivos ou sentidos da

439
NFB (1964).
440
Ver Capítulo 2 deste trabalho.

241
ação, como os romancistas ou como os antropólogos do “nascimento

virgem”.

Os casos Manteiga e “Pó-de-arroz” são “provas” de preconceito

racial velado ou de racismo explícito?

Poder-se-ia dizer que no NFB tais casos revelam mais a presença

da ideologia de branqueamento do que segregação racial. Assim, ser branco

ou preto não se definiria, no contexto da obra, apenas em termos de cor ou

raça, mas sobretudo a partir da cultura e dos modos identificados com a

“civilização européia” (“civilização branca”). Retomo, mais uma vez, o

exemplo de Joaquim Prado, que era preto e visto como um lord, segundo a

descrição de Mário Filho. Talvez tais casos revelem mais a atitude

etnocêntrica das elites, em relação à própria população brasileira, do que

racismo stricto sensu. Do ponto de vista da estrutura interna do NFB, Carlos

Alberto e Manteiga são personagens que representam os percalços que o

“herói negro” teria passado na luta para democratização do futebol.

Entretanto, esses são núcleos prediletos que os “novos narradores”

retiram do NFB para “provar” uma história de racismo e segregação. Mário

Filho, ao contar a “história” de Carlos Alberto, está apresentando o acaso do

surgimento do símbolo do Fluminense: pó-de-arroz. No mesmo contexto,

apresenta outra tradição que se originou com Friedenreich. Ele, para

disfarçar o “cabelo não-nega”, era o último a entrar em campo, por ficar

alisando o cabelo até os últimos instantes. A torcida, quando via

Friedenreich aparecer no gramado, o cobria de palmas. Esse “fato”, segundo

Mário, teria, também ao sabor do acaso, originado a tradição dos jogadores

242
demorarem a sair do vestiário, tal como os astros de música pop do

camarim. Os acasos descritos no NFB lembram os do filme “Forest Gump, o

contador de histórias”, e demonstram a função dos personagens na narrativa

de Mário Filho. Mas não deveriam, diretamente, ser tomados como provas

de racismo pelos “novos narradores” politicamente corretos.441

Contudo, observemos a passagem a seguir para que se demonstre

como as “provas” se enfraquecem a partir da própria narrativa do NFB:

“Outros mulatos tinham jogado futebol. Mulatos e pretos. Tinham


jogado, mais do que antes. Antes ninguém se preocupava com a
cor. A cor não importava. O que importava era o meio.
Friedenreich não era do Ipiranga? Carlos Alberto não era do meio
do Fluminense?

O Fluminense nem prestava atenção na cor de Carlos Alberto.(...)


Carlos Alberto, porém, entrando no Fluminense, sentiu-se mais
mulato. O único mulato num time de brancos.” 442

O racismo, no sentido que os “politicamente-corretos” atribuem ao

“caso do pó-de-arroz”, se enfraquece a partir da própria fonte que utilizam. O

problema de Carlos Alberto seria de auto-estima ou racismo? Se era

racismo, como o Fluminense nem prestava atenção na cor de Carlos

Alberto? Mário Filho imputa sentidos psicológicos e estados anímicos aos

seus personagens, descrevendo em seu romance um “clima” de relativa

tensão em torno da raça e da origem social dos jogadores de futebol Assim,

441
O máximo que se pode extrair da narrativa do NFB sobre o tema racial, além de uma série de
curiosidades, é a presença da ideologia da branquidade que se reflete no seu texto. É bom lembrar que
tal ideologia só é criticada por nosso autor quando acrescenta os dois novos capítulos à segunda
edição. Sua crítica acontece só quando apresenta Pelé, o seu herói ideal, como o preto que se orgulha
de ser preto. Nos capítulos da primeira edição há marcas claras da ideologia de branqueamento, mas
nenhuma crítica é feita. Como sabemos, na primeira edição o autor quer apenas apresentar sua história
de integração e ascensão do negro no futebol.

243
aquilo que o romancista monta para dar sentido à narrativa é tomado pelos

“novos narradores” como dados ou prova do racismo.

No caso Manteiga acontece o mesmo. Mário diz que se criaram

boatos sobre a saída de “trezentos sócios”. Insiste numa espécie de clima

contraditório vivido por aqueles negros “quase mártires” da democratização

do futebol. O sentido é mais uma vez imputado: Manteiga, como negro,

sentia-se deslocado no meio dos associados americanos, mas quando

estava em campo dava tudo pelo América,

“para mostrar que o América vencia um pouco por causa dele. O


jogo acabava, os torcedores da geral entravam em campo,
carregavam Manteiga em triunfo. Era o momento da glória de
Manteiga. Todo mundo gritando América e Manteiga. Até as
moças da arquibancada”.443

De fato, é bem possível que existam mais observações ou relatos

sobre a relação da torcida com Manteiga do que sobre seus sentimentos e

estados psicológicos. Há, sem dúvida, nas próprias palavras de Mário Filho,

uma tremenda relativização do racismo no futebol como comportamento

geral. A coerência interna enfraquece-se ainda mais se pensarmos que

Miranda, também negro, e sem ser rejeitado, jogava na mesma equipe antes

de Manteiga, e Carlos Aberto sete anos antes que eles. Em mais uma

invenção psicológica, Mário diz que Carlos Alberto sentia-se mais

ambientado no América do que no Fluminense. O caso é que Carlos Alberto

442
NFB (1964, p. 45).
443
Idem, p. 113.

244
não se sentiu rejeitado pelo América; o clube é que se sentiu rejeitado por

ele.

O que teria acontecido no América no pequeno espaço de tempo

entre Carlos Alberto e Manteiga? Manteiga fora rejeitado por nove

jogadores-sócios, supostamente racistas, e esses mesmos jogadores não

rejeitaram Miranda, que atuava no clube. Por outro lado, a idéia de que o

Fluminense era considerado um “clube racista” se complica, se pensarmos

que o clube aceitou Carlos Alberto e Friedenreich, ambos mulatos, e

aceitaria, segundo Mário, Joaquim Prado, por ser um “lord” e bem

posicionado na sociedade paulista. Interessante, não?

A forma de construção da narrativa de Mário Filho indica mais uma

vez que seu compromisso não é com a coerência conceptual de racismo,

nem com a verdade da história. Sua preocupação está em descrever seus

“causos”, com floreios e acréscimos novelescos de sentido psicológico, e

assim ir construindo a tradição do futebol brasileiro, vinculada à construção

da nacionalidade e escolhendo como herói o negro.

Ao contrário do que pensam Gordon Jr., Mattos, Leite Lopes, Caldas

e Santos444, para citar alguns dos autores que referem-se ao NFB em seus

trabalhos, não penso que o NFB seja uma obra que fale sobre a história do

futebol e das relações raciais no espaço do futebol. O NFB fala mais sobre a

invenção de tradições, sobre a paixão de Mário Filho pelo futebol e sobre

sua própria percepção das relações raciais. Seu livro reflete um “clima de

época”, e não uma história no sentido stricto do termo.

444
Gordon Jr. (1995; 1996); Mattos (1997); Leite Lopes (1994); Caldas (1990); Santos (1981).

245
Observe-se que os núcleos narrativos se reproduzem acriticamente

ou astutamente nos textos atuais. Tais núcleos narrativos assumiram uma

espécie de estrutura mítica, que se repete com leves acréscimos

novelescos, para encarnar, na versão do politicamente correto, o seguinte

“atributo universal”: “somos culpados pelo racismo do passado e

estejamos atentos para não o sermos no presente”. Mais uma vez, digo

que as intenções são justas e legítimas, mas não devem ser confundidas

com o processo de construção do conhecimento no seio da pesquisa

acadêmica.

8.1.1 - Das reproduções e acréscimos

Sobre o mito do pó-de-arroz, as variações são interessantes. Joel

Rufino dos Santos cita uma espécie de crônica datada de 1912, sem

informar se a crônica é real ou inventada por ele, dizendo que os jogadores

do Fluminense auxiliaram Carlos Alberto a maquiar-se de pó-de-arroz, e

quando tudo parecia ir bem um torcedor do América identificando a farsa e

gritou: “pó-de-arroz”.445 Para afirmar a tese do racismo no início do futebol,

diz o referido autor: “na fase de implantação do futebol entre nós (...) o negro

não teve vez. Para entrar em campo, os mulatos tomavam banho de pó-de-

arroz, como o infeliz do Carlos Alberto que atraiu para o Fluminense o

apelido que conserva até hoje.446 É interessante não se saber a partir de que

dados Santos chegou à generalização de que os mulatos eram obrigados a

445
Santos (1981).
446
Idem, p. 88.

246
empoar-se. Também não se sabe de onde retirou a data de 1912, já que

Carlos Alberto só aparece escalado no time do Fluminense a partir de

1914.447

Um artigo jornalístico publicado na revista Raça Brasil, intitulado

“Driblando o preconceito no futebol”, atualiza o mito do pó-de-arroz, numa

versão próxima à de Joel Rufino dos Santos. Embora não se possa

considerá-lo um texto acadêmico, vale transcrever literalmente uma parte

para que fique demonstrada a proximidade deste tipo de construção com

textos construídos no espaço acadêmico. O articulista diz que oficialmente

os negros podiam dar seus chutes na bola,

“Mas nem tudo que é oficial é aceito. Para não criar embaraços
com seu corpo de associados, o Fluminense, por exemplo,
arranjou um jeito de, literalmente, maquiar os problemas de pele
entre seus jogadores. Antes de entrar em campo, todos os
negros eram submetidos a uma sessão de pó- de- arroz. O
clareamento da pele era condição fundamental para entrar em
campo vestindo a camisa do tricolor carioca. As outras torcidas,
como forma de se vingar do time de Laranjeiras, apelidaram o
clube de Pó- de- Arroz, expressão utilizada até hoje.448

O que se torna interessante - além do irrealismo da invenção, pois

não existe forma de segurar pó-de-arroz sobre a pele num jogo em clima

tropical - é como o mito ganha acréscimos nas novas versões, sem que se

altere a estrutura. O mito continua encantando. O recente livro de Cláudia

Mattos, Cem anos de paixão: uma mitologia carioca no futebol, ao invés de

447
Cf. Coelho Netto (1952, p. 57).
448
Prado (1997, p. 83). Agradeço à revista Raça Brasil por ter me mandado com muita gentileza o
referido artigo.

247
desvelar as mitologias, como anuncia o título, acaba por reproduzi-las como

dados fatuais. 449

Mattos utiliza as “histórias ou mitos” - conceitos que se apresentam

confusos e sem limites precisos em sua análise - sobre os tradicionais

clubes do futebol carioca para interpretar a formação do imaginário carioca,

no Rio da belle époque. Carlos Alberto é para Mattos um exemplo da

experiência negativa do Fluminense com mulatos. Sem esclarecer se o pó-

de-arroz é um mito ou não, a autora reproduz a estrutura geral do mito como

fato, e, tal como Joel Rufino dos Santos, insiste em datar o “caso pó-de-

arroz” de 1912.450 O pitoresco é a articulação da data do pó-de-arroz com a

dissidência do Fluminense, em 1912, que perdera oito jogadores que teriam

formado o time de futebol do Clube de Regatas Flamengo. A autora inventa

que Carlos Alberto representava um reforço para o Fluminense, que perdera

jogadores para o Flamengo. Ao mito a autora acrescenta ou cria o “fato” de

que Carlos Alberto fora retirado do time em função do apelido e dos

incômodos que o pó-de-arroz teria causado para o nobre clube.

O Fluminense, para a referida autora, representa a face carioca de

uma nobreza decadente, que tinha por projeto formar “a nova raça do nosso

Brasil”, cuja origem não deveria ser buscada no negro e no índio. A “nova

449
Mattos (1997). O livro é fruto de uma dissertação de mestrado. A um passo da dúvida, seduzida
pelas míticas histórias do futebol e com pouca pesquisa básica, a autora reproduz as histórias míticas,
mas não as desmonta. Para mim foi uma decepção, na medida em que minha leitura foi justamente
motivada pelo título. Embora com boas idéias gerais, posso dizer que o material empírico utilizado foi
forçado, moldado ou sobreinterpretado.
450
O livro de Paulo Coelho Netto, História do Fluminense (1952), é citado por Mattos. Entretanto, a
autora não esteve atenta à data da transferência de Carlos Alberto, citada no livro que consulta. O livro
de Coelho Netto e outros, além dos jornais da época, datam a transferência do jogador de 1914. Ver
também Cunha & Valle (1972).

248
raça” deveria buscar suas raízes na influência inglesa e francesa nos

trópicos.

Carlos Alberto e Manteiga podem ser lidos como jogadores que

foram associados ou contratados para reforçar times grandes, mas é bom

lembrar que isto ocorreu na fase amadora do futebol. O “caso Manteiga”, na

maioria da vezes, é reproduzido na atual literatura tal como foi relatado por

Mário Filho.451 Talvez por ser menos popularizado receba menos

acréscimos. Mesmo assim, no texto “Racismo no futebol brasileiro” há uma

distorção de leitura da inesgotável fonte do NFB.452 Diz a autora que

“Manteiga só não deixou o América porque o presidente do clube, João dos

Santos, não aceitou um abaixo-assinado de 300 sócios, insuflados pelos

Borges”, que se recusavam a jogar ao lado de negro.453 Na narrativa do NFB

não se encontra o “fato” que a autora deseja encontrar para provar o racismo

no início do futebol. Observemos o que há textualmente no NFB:

“os boatos mais alarmantes corriam em Campo Sales. Um


abaixo-assinado de trezentos sócios: ou ele ou Manteiga. Todos
os jogadores do primeiro e do segundo time estavam com os
Borges, com os Curtis: ou ele ou nós. Coisas inventadas para
assustar João dos Santos.” 454

Fica evidente que Mário Filho está, neste contexto, montando mais

um cenário dramático que ele mesmo afirma ser boato. Corrêa transforma,

por leitura apressada ou oportunista, o boato do “abaixo-assinado” em

451
Santos (1981); Caldas (1990); Gordon Jr. (1995; 1996); Leite Lopes (1994 ).
452
Côrrea (1985).
453
Idem, p. 36.
454
NFB (1964, p. 112-3).

249
documento de racismo explícito. Aqui temos mais uma mostra de como são

construídas as “novas narrativas” sobre o racismo no futebol brasileiro.

Outros autores, como Leite Lopes e Gordon Jr., como já visto,

reproduzem a estrutura do mito do pó-de-arroz e do caso Manteiga na

versão fundadora de Mário Filho, acrescentando-lhe suas construções

“politicamente corretas”. 455

Como elemento de prova, a seguir elaboraremos outras

possibilidades de interpretação dos núcleos narrativos que se transformaram

em mitos racistas.

8.1.2 - Montando o quebra-cabeça

Os casos fundadores do racismo no futebol brasileiro estão

montados a partir de uma frágil argumentação e de uma superficial base de

dados. A fragilidade das teses que podem ser denominadas como

denunciadoras do racismo no futebol permite que, a partir dos mesmos

casos, se construam mitologias anti-racistas sobre clubes ou sobre a

sociedade brasileira. Alguém poderia construir uma “história”, ou melhor,

uma ficção, com certo respaldo na dada “fatualidade” sobre um clube de

aristocratas que tentou vencer o racismo entre os grandes clubes na década

de 10. Façamos um exercício de ficção sobre os casos “Pó-de-arroz” e

Manteiga antes de entrarmos, propriamente, em outras possibilidades de

455
Ver capítulo anterior.

250
interpretação. Tal exercício nos auxiliará a entender a fragilidade da

argumentação e das “provas” sobre os mitos racistas.

8.1.2.1 - O pó-de-arroz da elite contra o racismo

“Um clube construído com todo luxo e com os sócios que


representavam a nata da sociedade carioca tentou vencer a
barreira do preconceito racial no futebol entre os grandes clubes.
Para isso, ainda nos primeiros anos da década de 10, o
Fluminense teria convidado um excelente jogador do América para
jogar no primeiro time. No América, Carlos Alberto, apesar de ser
um craque, jogava no segundo time, talvez por sua condição
racial. Carlos Alberto não era rico, mas estudava em boa escola e
era filho de um famoso fotógrafo da sociedade carioca. O
Fluminense, querendo reforçar sua equipe, convidou Carlos
Alberto para tornar-se jogador do melhor clube de futebol da
época. É verdade que o Fluminense assim iniciava uma guerra
contra uma espécie de racismo camuflado reinante entre os
grandes clubes, isto é, jamais aceitariam qualquer descendente de
negros em sua equipe principal. O Fluminense prezava, antes de
tudo, o desenvolvimento do esporte. O seu progresso material
(com sede, teatro, piscina coberta, instalações para vários
esportes) eqüivalia ao seu desenvolvimento cultural. Carlos
Alberto e os Mendonças, ex-americanos, foram aceitos por todos
no novo clube. Carlos Alberto estreou no time principal do
Fluminense em 1914, fez vários jogos, foi a vários bailes, e tudo ia
bem até enfrentar o seu ex-clube. No primeiro jogo que fez contra
o América, a torcida americana enfurecida não o perdoou;
gritavam desesperadamente provavelmente: traidor, traidor. Como
diz Paulo Coelho Netto, alguém gritou da arquibancada em alto e
bom som: “Mulato pernóstico”. Outros, com espírito de humor
sarcástico e racista, faziam gozações gritando: “aí, mulato, para
virar aristocrata só passando“pó-de-arroz”. O espírito caricato e
humorístico da belle époque carioca era uma marca daquele
tempo e nos acompanha até hoje. Os jogadores do Fluminense
não perderam tempo em responder às provocações. Com senso
de humor, ao término do primeiro tempo de jogo, recorreram às
finas moças, aquelas que formavam um verdadeiro bouquet de
flores com a presença aos campos de futebol, e resolveram pregar
uma “peça” nos provocadores americanos. Munidos com estojos
de maquiagem, emprestados pelas torcedoras do Fluminense, os
jogadores empoaram Carlos Alberto e alguns também se
empoaram. Entraram em campo, correram na direção da torcida,

251
gesticularam fazendo reverências à torcida adversária, tal como
aristocratas na corte, e depois gritaram: Hip, hip, hurrah! Somos
aristocratas sim! Talvez esse humor de fazer piada de si mesmo
vinha do espírito inglês que habitava o Fluminense, tal como o
futebol e o Five o’Clock Tea. A postura anti-racista do Fluminense
continuou. Outro mulato, Friedenreich, também jogou pelo clube a
despeito de todos os preconceitos. A luta pelo desenvolvimento do
esporte sempre foi a primeira meta do clube fundado por Oscar
Cox. Tanto assim que, mesmo depois de lutar anos a fio pela
causa do amadorismo, foi o mesmo Fluminense que liderou a
campanha para profissionalização do futebol, quando viu que o
amadorismo era um empecilho ao desenvolvimento do esporte
brasileiro. Assim, a resposta bem-humorada dos jogadores do
Fluminense acabou dando o símbolo do clube até hoje. É bem
verdade que esse símbolo por muito tempo incomodou os
torcedores do Fluminense, que na época viam o jogo da geral. A
idéia de pó-de-arroz era encarada como uma espécie de
efeminização dos aristocratas, e isso era motivo de chacota entre
os torcedores pertencentes às classes populares”.

8.1.2.2 – Manteiga, exemplo do conservadorismo pequeno-burguês do


América

Quando se pensava que o América já tinha aprendido a lição com


a perda de Carlos Alberto, surge mais uma confusão que geraria
outra cisão interna. O América era um clube formado a partir das
tradicionais famílias tijucanas. Tinham um pouco daquele
comportamento emergente ou nouveau riche. Poder-se-ia definir
como aquele tipo de comportamento que se orgulha de ter
alcançado ascenso econômico e social, que admira os que estão
acima e rejeita e estigmatiza os que estão abaixo. Contudo,
orgulham-se de sua trajetória heróica de ascensão. A Tijuca tem
até hoje a marca da distinção social entre os bairros da zona
norte. Antônio Muniz Duarte, o Manteiga, era um excelente
extrem-direita, pertencia ao quadro da Marinha e integrava a
equipe do Mauá Esporte Clube. Foi convidado por João dos
Santos, presidente do América na época, para integrar a equipe
principal. O América não vencia campeonatos desde 1916. Para
isso Manteiga teria que desligar-se da Marinha, pois a Liga não
aceitava como jogador amador aqueles que trabalhavam em
ocupações domésticas ou subalternas. Manteiga saiu da
Marinha, e algum sócio benemérito do América o colocou em
emprego respeitável. Alguns jogadores, liderados pelos irmãos
Borges e pelos Curtis, se colocaram em contrário à aceitação de
Manteiga como sócio. Quando questionados pelos diretores se

252
seus motivos eram racistas, contra-argumentaram dizendo que
jogavam ao lado de Miranda, um mulato quase preto, e não
tinham nenhum problema com isso. O problema era outro.
Criaram boatos, como relata Mário Filho, de que mais de
trezentos sócios deixariam o América caso Manteiga fosse aceito
como sócio. O problema era outro, diziam os Borges e os Curtis:
Manteiga tinha uma condição social incompatível com o
amadorismo. João dos Santos fez que o bom senso prevalecesse
e Manteiga permanecesse na equipe, dando muitas alegrias à
torcida americana. João dos Santos intuiu que a atitude dos
dissidentes podia ser de preconceito ou de inveja, ou quem sabe
os dois juntos, pois Manteiga chegava ao clube para ser titular no
primeiro time. O preconceito que fizera perder Carlos Alberto não
se repetiria. Os irmãos Curtis e Borges, acompanhados por
outros, formando um grupo de nove ressentidos que jogavam no
primeiro, no segundo e terceiro times do América, procuraram o
Fluminense. Apesar de Manteiga ter dado muitas alegrias (o
América, foi vice-campeão carioca em 1921), deixou o clube
numa excursão à Bahia. Resolveu ficar por lá, onde tinha
familiares, e dizem que reencontrou seu grande amor da
infância, sabe Deus. O importante é que o presidente João dos
Santos, com o apoio de todo o corpo social, não se deixou
influenciar pelos comportamentos discriminadores e ressentidos
ou de inveja daquele grupinho de pequenos burgueses. Ganhar
no futebol já era mais importante, para a sobrevivência dos
clubes, do que as rixas pessoais. O comportamento anti-racista
parece neste caso ter pesado mais que o suposto preconceito
dos Borges e dos Curtis. Manteiga, Miranda, Carlos Alberto,
Friedenreich e outros eram a prova de que a democracia racial já
se estava realizando no futebol brasileiro”.

Ambas as simulações servem para demonstrar que a falta de rigor e

pesquisa podem permitir a construção de novas versões sobre os mesmos

casos, a partir da mesma fonte. Pode-se ver que o quebra-cabeça sobre os

“casos” não consegue se fechar. Demanda, como é praxe, repensar os

dados a partir de hipóteses testáveis, em lugar de inventar novas versões

para os casos.

Sugiro que se analisem casos como estes e outros a partir de

hipóteses testáveis. Deve-se construir hipóteses integradoras. Não se pode

253
separar o futebol brasileiro da configuração abragente que existia no

passado, pois o Football Association já era um elemento cultural

“globalizado” nas primeiras décadas do século XX. Os “casos” descritos

integram-se na discussão mais ampla do amadorismo, ética que orientou a

prática de futebol no Brasil até 1933. Como sabemos, o amadorismo, por

estes casos e por outros, não resistiu ao processo de popularização do

futebol.

Os esportes, e toda uma série de modas e modos de vida

europeizados, chegaram ao Brasil mais fortemente a partir da segunda

metade do XIX. Com o esporte veio a ideologia do amadorismo, que, junto

com os refinados modos europeus, formavam um estilo de vida das elites

educadas nas “altas civilizações”. O amadorismo não foi no Brasil, como no

caso inglês, uma reação das classes altas para conter o avanço da

participação popular nos esportes, cuja prática tradicionalmente

representava no contexto inglês um dos elementos de distinção social.456 Na

Inglaterra, ao mesmo tempo em que o esporte moderno era uma elemento

de distinção, algumas modalidades esportivas teriam se popularizado e se

tornado meio de ascensão social e econômica. Assim, o amadorismo seria

uma reação a esse processo. O código do amadorismo foi baseado nos

seguintes critérios de distinção social: 1) não receber salário, prêmio ou

benefício pecuniário para dedicar-se ao esporte; 2) não ter participado como

profissional em nenhum outro esporte; 3) não exercer profissão subalterna.

456
Mandell (1986, p. 162).

254
Tais critérios definiam a priori a classe social que poderia participar dos

nobres esportes amadores.

No Brasil, o amadorismo não pode ser lido como uma reação das

elites, mas apenas como incorporação dos valores aristocráticos do esporte

que eram socializados com os brasileiros que haviam estudado na Europa.

O amadorismo foi tão importado como as modas e os modos, os uniformes e

implementos esportivos, e os demais hábitos tidos como “civilizados”. Assim,

na medida do possível, os brasileiros tentavam fazer cumprir a ética do

amadorismo, da mesma forma que tentavam adequar a moda européia ao

quente clima brasileiro.457 Os brasileiros arautos da cultura esportiva

tentavam conciliar ações inconciliáveis: desenvolver e ampliar o número de

adeptos da prática esportiva tendo como referência o amadorismo.

A formação ou importação de uma cultura esportiva, que articulava

amadorismo, esporte e formação dos clubes, era realizada pela lógica do

ethos do pertencimento. Os clubes de futebol, pelo menos no Brasil e na

Argentina, foram criados a partir de grupos específicos no momento em que

esses países formavam e consolidavam suas metrópoles. Imigrantes

criavam clubes que agrupavam e reforçavam as “origens”; os moradores de

bairros faziam o mesmo etc. A construção de identidades ou a reconstrução

de nacionalidades tiveram nos clubes um espaço privilegiado de agregação,

socialização e diferenciação.458

O sentimento de pertencer a um clube indica que o membro faz

parte de uma determinada “família”, de uma “pequena nação”. O que, em

457
Freyre (1981).
458
Ver Boudon (1989). O autor cita o trabalho de Eisenstad sobre a integração de imigrantes em Israel

255
outras palavras, significa que o membro deve lealdade ao grupo.459 O

sentimento de lealdade deve ser semelhante ao do soldado que luta por

amor à pátria, tal como um exército não-profissional. Assim, sendo o esporte

mimeses da guerra e local onde as identidades clubísticas afirmam

hegemonia, pode-se dizer que o ethos do amadorismo corresponde à

mesma configuração da formação dos estados-nações.460 Isto é, a fidelidade

que se exigia do atleta associado era semelhante à que se exigia do cidadão

ou do soldado não-profissional. Um trecho do Hino do Fluminense, de

autoria de Coelho Netto, explicita este argumento:

“Ninguém no clube se pertence


A glória aqui não é pessoal
Quem vence em campo é o Fluminense
Que é, como a pátria, um ser ideal
Assim nas justas se congraça
Em torno de um ideal viril
A gente moça, a nova raça
Do nosso Brasil!” 461

Temos no amadorismo a ética que governava o esporte e os clubes.

Tal ética tinha por pressupostos a elitização, quando previa que o amador

não poderia ter emprego subalterno, e o sentimento de pertencimento e

lealdade ao clube, tal como o cidadão à pátria. Talvez seja ilustrativo lembrar

que a lógica dos defensores do amadorismo é semelhante aos argumentos

de Maquiavel sobre a vantagem do exército voluntário em relação ao

exército mercenário. Os argumentos que defendem o voluntarismo e o

(p. 69).
459
Hirschman (1973).
460
Hobsbawn (1990).
461
Coelho Netto (1952).

256
desprendimento como o lugar da virtude parecem nos acompanhar há longa

data, e ainda estão presentes em várias esferas de nossa sociedade.

Os casos “Pó-de-arroz” e Manteiga podem, a partir deste ponto de

vista, ser explicados como efeitos do processo de manutenção da ética

amadora num esporte que se popularizava com uma velocidade espantosa.

A descrição dos percalços do negro no NFB, ou as primeiras “provas do

racismo” no futebol nos “novos narradores” talvez possam ser lidos como

contradições de uma ética incompatível com o processo de popularização do

futebol. Vejamos os encaixes do quebra-cabeças caso a caso.

O “Pó-de-arroz”. Existe plausibilidade no “fato” de um jogador, em

pleno 1914, passar pó-de-arroz no rosto para disfarçar sua condição racial?

A história de alguém que se empoe para jogar futebol parece insólita.

Gordon Jr. diz que o “tom folclórico dessa história é incapaz de esconder a

dura realidade que era ser mulato ou preto na sociedade brasileira da

época”.462 Observe-se que mesmo alguns dos reprodutores de Mário Filho,

que julgam a “história” insólita ou folclórica, a utilizam como prova de

“racismo”. Tal postura, ao invés de elucidar o racismo no espaço do futebol,

acaba folclorizando e enfraquecendo a hipótese racista que tentam

sustentar. Não posso tomar mitos, ritos, ou o acervo de chistes sobre um

povo para provar a “dura realidade” ou a abundância. Não posso tomar a

hipótese do “nascimento virgem” para afirmar “ignorância” dos aborígenes e

“devoção racional” dos ocidentais. No caso “Pó-de-arroz”, como no

Manteiga, a turbulência da manutenção da ética do amadorismo, num

462
Gordon Jr (1995, p.83). Seguindo os critérios do autor ao pé da letra, alguém desavisadamente
poderia concluir que as piadas sobre portugueses traduzem a real inteligência desse povo. No mínimo

257
esporte que se expandia com velocidade, indica mais plausibilidade e

testabilidade.

Vasculhando as histórias dos clubes, descobrimos que a

transferência para o Fluminense de Carlos Alberto Fonseca Neto, “o Pó-de-

arroz”, junto com os irmãos Marcos, Luiz, Henrique e Fábio Carneiro

Mendonça e outros sócios, foi motivada por uma dissidência interna no

América. Tal dissidência foi protagonizada por Alberto Carneiro Mendonça -

presidente do América e pai do famoso goleiro Marcos Carneiro Mendonça -

e Belfort Duarte, diretor técnico e quase uma eminência parda na estrutura

de poder do clube. Do confronto político Belford saiu vitorioso, e os irmãos

Mendonça, solidários ao pai, arrastaram com eles uma série de sócios-

atletas, entre eles, como já visto, Carlos Alberto.

O primeiro confronto entre América e Fluminense, no campeonato de

1914, teria ocorrido no dia 13 de maio, numa quarta-feira, no estádio do

Fluminense, sob uma grande assistência.463 O Malho noticiou o jogo da

seguinte maneira:

“Foi uma verdadeiramente semana de grande entusiasmo


esportivo, (...) talvez a maior sensação, da presente season de
foot-ball, match este jogado entre os primeiros teams do
Fluminense F. C. e do América F. C., para a disputado
campeonato. Perante uma assistência de mais de 6000 pessoas
entraram no bem cuidado field do Fluminense F. C. sito à rua
Guanabara, as duas elevens adversas, representando os seus
respectivos clubes.464

me sentiria ofendido por possuir ascendência portuguesa.


463
Cunha & Valle (1972, p. 80).
464
O Malho, Rio de Janeiro, 23 maio 1924.

258
A referida disputa movimentou a parte da cidade interessada em

futebol, e o jogo terminou empatado em 1 a 1.

Pode-se supor que o jogo deveria ocorrer sob forte tensão, tanto

para o América quanto para os seus ex-jogadores, que se incorporaram ao

Fluminense. Os dissidentes enfrentariam pela primeira vez a camisa que

tinham defendido até 1913, ao passo que os americanos deveriam

demonstrar que a falta deles fora totalmente superada. Novos jogadores

foram integrados ao América. Para aumentar a tensão e a rivalidade, ambos

os times eram apontados como favoritos ao título daquele ano.465 A

responsabilidade de Carlos Alberto é ressaltada pelos jornais, talvez por ter

vindo do segundo time do América e ter ingressado diretamente no primeiro

do Fluminense. O Correio da Manhã, no dia seguinte ao jogo, entre os

comentários sobre a partida diz que Carlos Alberto, emocionado pela

responsabilidade do jogo, cometeu um hands e deu apenas um chute a

gol.466 Nada sobre o uso de pó-de-arroz encontra-se nos principais

periódicos da época, nem mesmo em O Malho, que era um semanário crítico

e humorístico. Teria havido um acordo jornalístico para fazer silêncio sobre

um evento que depois tornar-se-ia tão significativo?

O mais longo e denso comentário sobre o jogo está descrito no

jornal O Imparcial, do qual transcrevo alguns trechos:

“Crianças, moços e velhos, todos pareciam ser impulsionados por


uma mesma fibra, que tanto entusiasmo lhes despertava. Os
torcedores estavam inquietos, pulavam incessantemente e quase

465
Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 13 maio 1914, p. 3.
466
Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 14 maio 1914, p. 3.

259
sempre punham em constante perigo, a integridade física
daqueles que tinham a desventura de lhes ficar a retaguarda. (...)

Nos vários recantos da arquibancada e grupos de sportmen


entregavam-se aos comentários, de vez em quando
entrecortados para dar lugar a estridentes risadas, oriundas,
naturalmente, de alguma malévola piada.

Enfim, era intensa a alegria reinante naquele pitoresco recanto de


sports.”467

A reportagem segue descrevendo os momentos mais significativos

do disputado jogo, que terminou empatado. Elogia a atuação dos jogadores

e diz que quem esteve abaixo do rendimento da equipe do Fluminense foi

Carlos Alberto, que teria se portado com certo medo. Nada, entretanto,

sobre o famoso pó-de-arroz. Observa-se que o articulista indica que as

piadas, as provocações e a euforia deram a tônica do jogo. O jogo pode ter

provocado ressentimento e despeito dos torcedores americanos em relação

aos ex-americanos. Esses jogadores teriam passado para o lado do

“inimigo”, e assim seriam encarados como “desertores”.

Em nenhum dos principais jornais consultados acha-se a indicação

de que Carlos Alberto teria maquiado seu rosto com pó-de-arroz, ou que a

torcida americana havia gritado ou criado o famoso epíteto. Não posso

afirmar que Carlos Alberto jamais teria se maquiado, mas sem provas

também fica difícil sustentar a insólita história. Como já comentei, a única

referência que todos seguem sobre esse “fato” é a do NFB. Entretanto, se

Carlos Alberto de fato passou de fato ou não o pó-de-arroz não me parece

467
O Imparcial, Rio de Janeiro, 14 maio 1924, p. 9.

260
muito importante para fechar o quebra-cabeça. As peças principais são

outras.

Estamos num contexto de valorização da ética do amadorismo,

embora tal ética fosse burlada e desrespeitada no Brasil e em outras partes

do mundo. O sentimento que deveria ter o atleta amador é semelhante ao

sentimento que o soldado deve ter para com sua pátria, isto é, não passar

para o lado do inimigo em nenhuma circunstância e lutar por sua bandeira

sem nenhum interesse pecuniário. Era comum tratar a unidade dos

associados de um clube, como ocorre até os dias de hoje, como “família

americana”, “família tricolor”, “família flamenguista” etc. Essa unidade era tão

forte e evidente que Coelho Netto compara o Fluminense à Pátria Ideal. Os

Mendonças, Carlos Alberto e outros, aos olhos dos americanos, teriam

traído a própria família, seriam desertores da “pátria”. Teriam eles traído o

pacto de honra da fundação do clube em 18 de setembro de 1904: “nunca


468
abandonar o América, mesmo nas maiores crises.” Assim, não é de

admirar que o sentimento de traição tenha sido forte neste primeiro encontro,

principalmente se lembrarmos o contexto em que os clubes foram criados.

Não é estranho se pensarmos que, ainda hoje, quando uma estrela do

futebol profissional transfere-se para um clube encarado como “inimigo”, é

chamado de traidor; mesmo o futebol no Brasil tendo sido profissionalizado

desde a década de 30.

O Imparcial descreve que um clima jocoso e de piadas malévolas

habitava o espírito dos espectadores, a ponto de estourarem nas

468
Cunha & Valle (1972, p. 15).

261
arquibancadas grandes gargalhadas. Provavelmente rixas e provocações

devem ter acirrado os ânimos das torcidas, pois os times eram os favoritos

da temporada. Apesar de Carlos Alberto e seus companheiros já terem

representado o Fluminense em outros jogos, este tinha um caráter especial,

pois era a primeira vez que enfrentariam o antigo clube. O jogo foi realizado

em 13 de maio, dia da Abolição da Escravatura, e Carlos Alberto era o único

descrito como mulato entre os dissidentes. Não tenho dados para afirmar se

Carlos Alberto ou seus companheiros dissidentes, em função das

circunstâncias e características, foram alvo de chacotas durante o jogo.

Apenas diz o jornal que piadas malévolas circularam entre os espectadores.

Diante do exposto, algumas perguntas podem estar no ar. Teria sido Carlos

Alberto o único alvo de piadas malévolas? Que piadas foram essas? Teria

Carlos Alberto se maquiado com pó-de-arroz, ou apenas foi o alvo de piadas

ou agressões dos ressentidos torcedores americanos?

O que importa é que o clima de piadas, injúrias, rixas da torcida,

deva ser explicado, num primeiro nível, pelo sentimento de traição à

lealdade que os americanos sentiam em relação aos dissidentes. Como se

sabe, a emulação esportiva, principalmente entre clubes de futebol, tem

demonstrado ao longo deste século a possibilidade de fazer aflorar

sentimentos chauvinistas próximos ao nacionalismo belicista.469 A torcida

americana e seus dirigentes provavelmente sentiam-se traídos pelos

dissidentes, e os encaravam como soldados desertores. Entretanto, se

Carlos Alberto foi um alvo privilegiado de críticas nesse jogo, talvez o tenha

469
Ver em Murphy, Willians & Dunning (1994) a questão do naciolismo belicista que invadiu as
torcidas organizadas na Europa.

262
sido por ter “embranquecido” ao transferir-se para um clube de perfil

aristocrático. O Fluminense era realmente, pelo seu desenvolvimento

material e cultural, a imagem da aristocracia no esporte da época. Assim,

para se pensar numa hipótese racista temos que considerá-la como um

agravante do sentimento de traição que parece compor a trama. Isto é, as

piadas racistas, caso tenham sido desferidas, estariam num segundo plano

em relação à hipótese dos sentimentos que envolviam o amadorismo nos

clubes de futebol.

Caso tenha existido esse tipo de racismo, isto no máximo

demonstraria a ambigüidade do racismo brasileiro. A cor ou a “condição

racial” serve tanto para qualificar quanto para desqualificar, podendo mesmo

ser esquecida em determinados contextos. Em outras palavras, quando

ascende socialmente o negro pode ser visto como um ser dotado de super

qualidades, pois apesar de tudo lhe ser desfavorável teria conseguido

superar os obstáculos. A raça tanto pode ser lembrada para apontar para a

grande capacidade de superação, quanto pode ser esquecida pela famosa

operação de “embranquecimento social”. O NFB está recheado de

personagens e tramas onde os sentimentos ambíguos e contraditórios sobre

as relações raciais passam pela pena de Mário Filho. O entendimento do

racismo no brasileiro não pode ser simplificado.

Assim, não se pode aceitar o uso do “racismo pó-de-arroz”, com toda

a fragilidade fatual que se demonstrou, para dizer, sob uma perspectiva

moralista e politicamente correta, que no Brasil e no futebol existiu e existe

racismo, como prova o caso de Carlos Alberto. O papel da pesquisa ou do

263
ensaio acadêmico é lançar luz sobre os problemas que colocamos, ao invés

de obscurecê-los com argumentos morais ou mitológicos, mesmo que a

questão a ser desvendada seja de ordem moral. De fato, no caso Carlos

Alberto, a partir dos escassos dados que temos, o racismo surge como uma

especulação secundária em relação à hipótese dos sentimentos de

pertencimento que se associavam ao clube e à ética do amadorismo.

A trama em relação a Manteiga também se encaixa na hipótese dos

sentimentos amadorísticos e de pertencimento ao clube. Entretanto, neste

caso o problema não seria falta de lealdade, mas a entrada de um estranho

que passa a ocupar uma posição de destaque num determinado grupo

fechado. Manteiga, chegando ao América como solução, faz com que se

quebre a unidade interna, mesmo tendo vindo para suprir a “deserção”470 de

Arlindo Corrêa Pacheco, o Borboleta, que havia deixado a equipe

principal.471 A decisão do presidente João dos Santos, de ir buscar Antônio

Muniz Duarte, o Manteiga, causou conflitos entre alguns dos sócios-

jogadores, liderados pelos irmãos Curtis e Borges, e a diretoria do clube.

O motivo específico do conflito, para Mário Filho e para os “novos

narradores”, seria o racismo de algum dos sócios. Entretanto, a hipótese

racista se complica porque Miranda, outro negro, já fazia parte da equipe e

ninguém havia se manifestado contra sua presença. João dos Santos não

teria feito nada excepcional para a época. O Botafogo já havia procurado

um jogador chamado Americano, também negro, do Andarahy, antes que o

470
A deserção é encarada com uma espécie de quebra de lealdade ao grupo. É interessante observar
que retirei a palavra deserção do texto de Cunha & Valle (1972) sobre a história do América. Essa
palavra é utilizada para caracterizar o abandono da tropa pelo soldado.
471
Cunha & Valle (1972).

264
América pensasse em Manteiga;472 Gradin, um negro da seleção uruguaia,

segundo o próprio Mário Filho, fez um tremendo sucesso entre os brasileiros

no Sul-americano jogado aqui em 1919, e o mulato Friedenreich já era o

ídolo do futebol brasileiro. Apesar dos protestos, Manteiga permaneceu no

clube e os Borges e os Curtis saíram. Quando Manteiga saiu do América,

segundo relata Mário Filho e os “novos narradores”, ele teria saído com as

próprias pernas. Como justificar a hipótese racista diante do quadro? Se os

irmão Borges e Curtis tivessem sidos motivados exclusivamente pelo

racismo, poder-se-ia pensar que o racismo em nosso país “não tinha vez”,

pois eles deixaram o clube e Manteiga permaneceu. Neste caso, se estaria

afirmando justamente o contrário do que insistem os denunciadores do

racismo, isto é: no Brasil pode existir racismo, mas o sentimento anti-racista

seria mais forte. Não estou afirmando que não existe racismo no Brasil, mas

apenas que os dados do quebra-cabeça do caso Manteiga não se encaixam

na referida trama, principalmente pela presença do personagem Miranda.

O conflito gerado a partir da contratação de Manteiga talvez decorra

das contradições da manutenção do amadorismo. Está nítido, no caso, que

Manteiga fora contratado como um profissional que tinha que se declarar

amador. Ele teve que deixar a Marinha e entrar naquele esquema

clandestino do profissionalismo: o do amadorismo marrom. Esquema que,

na época, existia em vários clubes. Os clubes conviviam com a dualidade de

472
Cf. Pepe Winkler, B. F. et ali. (1996, p. 26). Este livro sobre a história do Botafogo faz questão de
apresentar breves parágrafos sobre a postura anti-racista do clube em 1906-7, quando o negro
Paulinho de Souza integrava a equipe. A “história do racismo no futebol brasileiro” foi legitimada de
tal forma que faz com que os clubes encarados como racistas busquem dados para afirmar o valor do
anti-racista no seu passado. Se todos começarem a apresentar “provas do pioneirismo anti-racista”,
poderemos pensar: que racismo é este?

265
ter uma boa parte de jogadores remunerados veladamente, como
473
semiprofissionais, e outros não. Os Curtis, os Borges e outros jogadores

provavelmente viam na decisão de trazer Manteiga um desprestígio à “prata

da casa”. Poderiam estar movidos por razões de defesa do amadorismo, já

que fica claro que Manteiga era uma semiprofissional e oriundo de uma

daquelas profissões subalternas rejeitadas pelos critérios do amadorismo.

Da mesma forma, é possível que apenas estivessem motivados pelo

corporativismo, fosse familiar ou não. Em síntese, não tenho dados para

saber se os dissidentes sentiram-se desprestigiados financeiramente pelas

condições de contratação de Manteiga, coisa muito comum em qualquer

empresa, ou porque Manteiga, ao ocupar uma vaga no primeiro time,

desprestigiava a “prata da casa” ou colocava algum de seus afetos em

posição de inferioridade ou desprestígio.

O caso deve ser pensado a partir da representação de que os clubes

eram criados com a imagem de uma grande família. Famílias de prestígio,

cujo sobrenome era mais importante do que o indivíduo, agrupavam-se para

formar os mais importantes clubes. Temos assim, no interior dos clubes,

mais um modelo de sociedade-nós do que um modelo de sociedade-eu, no

sentido de Elias.474 As relações na sociedade-nós são governadas mais

pelos sentimentos de pertencimento e tradição do que pela competência

individual. Os conflitos que se dão em torno do caso Manteiga são uma

espécie de luta entre os defensores da competência e os defensores das

relações de pertencimento. João dos Santos, na condição de presidente,

473
Cf. Correa (1933).
474
Elias (1994).

266
devia saber que o bom futebol representava renda para o clube, e o América

não levantava campeonatos desde 1916. Manteiga, para ele, podia significar

a esperança de vitória. Os Borges e os Curtis podiam se sentir

desprestigiados, fosse sob o ponto de vista financeiro (caso também fossem

falsos amadores), ou porque Manteiga chegava para tirar o lugar de um

daqueles que pertenciam à “família”. Manteiga chegava para integrar o

primeiro time sem começar de baixo, como os outros.

Como visto, o caso Manteiga pode ser entendido a partir de uma

trama que considere a concorrência e o conflito no “seio familiar” e/ou no

mercado do futebol que se formava. Caso tenha existido racismo na trama,

este deve ter ocorrido em nível secundário, tal como no caso de Carlos

Alberto. Miranda e a permanência de Manteiga no time tornam confusa a

idéia racismo no sentido universalizante utilizado pelos politicamente

corretos. Passemos a outro núcleo fundador.

8.2 - A perseguição à democracia lusitana e a criação da AMEA

A democracia vascaína é um núcleo narrativo do NFB que se

reproduz no jornalismo e nas reflexões acadêmicas de Santos, Caldas, Leite

Lopes, Murad, Gordon Jr., Helal e Mattos.475 A sedutora idéia de Mário Filho

- de um time de pretos, mulatos e pobres pertencentes às camadas

populares, que venceu o campeonato carioca de 1923 e que teria causado

uma verdadeira revolução no futebol - conquista a todos. Não tão preto e

475
Santos (1982); Caldas (1990).; Leite Lopes (1994); Murad (1994b; 1996; Palestra AIESEP
realizada em cf. Nota 1 do Capítulo 7, 1997); Gordon Jr. (1995; 1996); Helal (1997); Mattos (1997).

267
mestiço, no entanto, se seguirmos a descrição de Mattos, quando diz que o

time titular foi formado por “três negros, um mulato e sete brancos

pobres”.476 Contudo, o que importa salientar é que um time mestiço vence

quando enfrenta os afortunados brancos - acadêmicos e aristocratas do

Fluminense, Botafogo, América e Flamengo - e a vitória torna-se símbolo

revolucionário da democratização do futebol.

Qual seria a prova da revolução? Onde estaria a ruptura? Mário

Filho para isso apresenta como prova a reação dos brancos e aristocratas

que fundam uma nova liga, a AMEA. A nova instituição, segundo Mário e

novamente sem evidências ou sinais, desejava fazer voltar os bons tempos

do futebol “só para brancos”. Assim, a fundação da AMEA seria um novo

capítulo do drama do racismo ou da “nação cindida”. Contudo, os “novos

narradores” tomam esse núcleo para afirmar a revolução vascaína, a vitória

dos negros e a reação racista na fundação da AMEA. Todos dizem que o

Vasco possui uma bela história, pois teve a coragem de formar um time de

pretos e mestiços e com isso teria supostamente modificado a história do

negro e do próprio Brasil no espaço do futebol. Antônio Pitanga, vereador do

Município do Rio de Janeiro, recentemente declarou na imprensa que

pretende apresentar um projeto de lei para tornar obrigatório o ensino da

história do Vasco nas escolas, embora não se saiba se o projeto pretende

formar novos vascaínos, atacar o racismo ou tem ambos os objetivos. 477

Há intelectuais e pessoas ligadas ao mundo do jornalismo, da arte,

da música, que justificam sua opção como vascaínos a partir dessa bela e

476
Mattos (1997, p. 86).
477
Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 2 nov. 1997, Revista de Domingo, n° 1122, p. 20.

268
sedutora história de democracia e do comportamento anti-racista do clube.

Deixando de lado as diferentes representações positivas sobre a mitologia

do Vasco, que de fato são positivas para construir identidades, tolerância

racial e novos vascaínos, não posso me conformar que tais representações

sejam reproduzidas acriticamente em textos acadêmicos.

Pode-se ver que a narrativa de Mário Filho traga os seus

consumidores, ao quando reproduzem esse núcleo narrativo. Gordon Jr.,

como já visto no capítulo anterior, isenta Mário Filho de vínculos com a

democracia racial e denuncia os supostos estereótipos racistas de Freyre.

Em seu texto, reproduz a idéia da “revolução vascaína” e a reação racista

“na tentativa de conter o avanço de jogadores negros e principalmente a


478
profissionalização” . Gordon Jr. remarca a idéia de resistência ou

perseguição ao herói negro, mas esquece-se de “beber toda a água” da

fonte do NFB. Mário Filho, seguindo as teses freyreanas da flexibilidade, da

adaptação e do potencial para mistura cultural e racial do português, diz que

o “Vasco, clube da colônia, seguia a boa tradição portuguesa da mistura”.479

Os vínculos de Mário Filho com o pensamento freyreano são evidentes, mas

esquecidos, estrategicamente ou não, por Gordon Jr.

Outro autor tragado é Waldenyr Caldas. Seu texto é fiel aos dados e

interpretações do NFB.480 Caldas, tal como os demais consumidores,

também faz questão de legitimar o produtor dos dados que está

consumindo.481 Para legitimar a história do Vasco, diz que “vale a pena citar

478
Gordon Jr. ( 1995, p. 86).
479
NFB (1964, p. 120).
480
Caldas (1990).
481
Ver o Capítulo 6, onde indico as legitimações do NFB.

269
Mário Filho, sem dúvida, o maior conhecedor do futebol brasileiro dessa

época. Extremamente objetivo, o autor nos dá uma noção precisa da

ascensão e perseguição ao Vasco, quando da conquista do campeonato em

1923.482 O autor indica que a perseguição ao Vasco teria se dado em função

de ter incluído audaciosamente “negros e analfabetos desempregados em

seu time”.483 Embarcando na interpretação de Mário Filho, afirma que a

vitória do Vasco faria com que não demorasse a fazer surgir a reação da

elite dirigente do futebol: 484

“O Vasco da Gama deveria pagar, e pagar muito caro, pelo


desafio e audácia cometidos. Por isso mesmo foi drasticamente
punido. Todos os grandes clubes do Rio de Janeiro abandonam a
LMTD-Liga Metropolitana de Desportos Terrestres (1917-1924).
Em seguida, fundam a AMEA - Associação Metropolitana de
Esportes Athléticos e não convidam o Vasco para integrá-la.

Assim, em 1 de março está criada a associação anti-Vasco e


antinegro. Isto porque a nova instituição resolve incluir o Bangu,
um time basicamente formado por operários. Na verdade, uma
artimanha dos grandes clubes contra o Vasco e seus negros.” 485

O que interessa no contexto deste estudo é que Caldas acompanha

Mário Filho irrestritamente. Ele e os demais autores parecem ficar cegos

diante do fato do Bangu ter sido aceito na nova instituição, mesmo

possuindo jogadores-operários, alguns mulatos e outros pretos. Caldas não

considera que o caso Bangu mereceria outras interpretações que

englobassem condutas tão divergentes. Seguindo Mário Filho, prefere uma

482
Caldas (1990, p.46).
483
Idem, ibidem.
484
Idem, p. 45.
485
Idem, ibidem.

270
hipótese ad hoc e conspiratória: a aceitação do Bangu seria uma artimanha

para dissimular o preconceito e o racismo da elite dirigente do futebol. Além

da fragilidade dessa hipótese, emerge a questão: por que um racismo tão

forte deveria dissimular o racismo, e para isso aceitar mulatos e pretos? A

conduta, neste caso, parece ser mais de um racismo vergonhoso e em

retrocesso, do que de um vigoroso e de elite. Caldas, para concluir o drama

épico do negro, tal como Mário Filho afirma que o Vasco teria aberto “as

portas para a verdadeira democratização do futebol brasileiro”. 486

O drama épico do Vasco e do negro, cuja prova do racismo estaria

na fundação da AMEA, mantém a mesma estrutura em todos os

reprodutores de Mário Filho. As poucas variações que recebe este núcleo ou

mito situam-se no plano dos acréscimos novelescos. Por exemplo, Cláudia

Mattos afirma, sem apresentar nenhuma prova, que a AMEA exigiu que o

Vasco retirasse os negros do time. Depois atenua sua afirmação. dizendo

que a AMEA “não proibiu que os negros fossem escalados nos times, mas

criou uma série de regras a serem obedecidas pelos clubes”.487 Entre tais

regras figurava a de que os times só poderiam ser formados por

trabalhadores que não exercessem funções subalternas, e por estudantes.

Como pode ser visto, as provas sobre o racismo em torno da trama da

AMEA não aparecem explicitamente em parte alguma. Mesmo assim, os

“novos narradores” preferem apostar na sedutora interpretação de que todo

este movimento era uma conspiração dos brancos e ricos contra os negros.

486
Idem, p. 47.
487
Mattos (1997, p.87).

271
Vejamos, a partir de uma incursão nos jornais da época, como a

sedutora história se desmonta e o racismo é relativizado. Mais uma vez,

cabe lembrar que não se está dizendo que não existe racismo na sociedade

brasileira ou que nunca existiu um sentimento racista em relação ao Vasco

ou aos pretos e mulatos que praticavam o futebol. Apenas posso afirmar que

os dados que se apresentam como prova de racismo e perseguição ao

Vasco e ao negro não se encaixam coerentemente. Se perseguirmos o

processo de criação da AMEA, através dos jornais da época, pode-se ver

que a trama “racista” debilita-se e torna-se, no máximo, lateral.

8.2.1 - Dissidências na METRO488 e na AMEA489

Os meses de fevereiro, março e abril de 1924 foram agitados para o

futebol carioca. Dizia um jornal da época que o futebol, em período de

recesso, nunca teria vivido tanta movimentação e confusão. Sem que se

busque o exato momento da crise de 1924, pode-se afirmar que os jornais

começam a dar destaque a esse processo a partir de fevereiro.

“A Liga Metropolitana e os Clubes Grandes” era a chamada do jornal

O Paiz, na seção de “Football”, em 14 de fevereiro de 1924. O jornal

posicionava-se criticamente, dizendo que, se aprovada a reforma proposta

pelos grandes clubes, estes passariam a ter poderes quase que absolutos e

a maioria dos clubes ficaria a reboque das decisões dos “grandes”. A

488
METRO – Liga Metropolitana de Desportos Terrestres
489
AMEA – Associação Metropolitana de Esportes Athéticos

272
proposta dos grandes clubes era formar um conselho deliberativo de nove

membros, que seria composto por cinco “representantes dos pequenos,

indicados pelos grandes, e quatro representantes dos quatro clubes que

promoveram a reforma”.490 O novo conselho representaria apenas os

interesses dos quatro grandes (Botafogo, Fluminense, Flamengo e América),

e a representação dos pequenos não seria escolhida por seus iguais.491 O

Correio da Manhã, que também cobria cada passo do processo de

dissidência, publicava em 15 de fevereiro que os “pequenos” não aceitavam

a eliminatória olímpica e nem concordavam que o conselho deliberativo

fosse escolhido pelos grandes.492

A eliminatória olímpica, pelo que se entende nas matérias

jornalísticas, incluía outras modalidades esportivas para definir os clubes

que participariam da série principal no futebol. Ela deveria substituir a

eliminatória baseada no futebol, o que obviamente não interessava aos

clubes pequenos, especializados em futebol. A eliminatória olímpica, apesar

de apresentar o argumento favorável ao desenvolvimento dos esportes em

geral, tinha por intenção reduzir o número de times na série principal. Outro

item da reforma era a constituição de um diretor, o qual teria amplos

poderes, inclusive o de realizar sindicâncias sobre as condições

amadorísticas dos jogadores.

O requisito do projeto de reforma que teria gerado tensão entre os

clubes pequenos e especializados em futebol, era o prazo de 5 anos para

reformularem ou construírem instalações próprias para a prática de futebol e

490
Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 13 fev. 1924.
491
O Paiz, Rio de Janeiro,14 fev. 1924, p.9.

273
outros esportes. O requisito baseava-se no mesmo argumento do

desenvolvimento de uma cultura esportiva.

A queixa dos “grandes” apresentava os seguintes motivos para a

“Reforma na METRO”:493 1) os times pequenos reunidos tinham mais poder

que os grandes; 2) o amadorismo dos atletas era pouco controlado; 3) o

futebol desenvolvia-se desigualmente em relação aos outros esportes; 4) os

grandes clubes teriam realizado grandes esforços para desenvolver os

esportes, construir instalações esportivas e mantê-las, enquanto os

pequenos, sem instalações apropriadas, tinham mais cotas de poder na

METRO apesar de nada terem realizado pelo desenvolvimento da cultura

esportiva. Os grandes clubes tentavam, por meio da Reforma, ganhar mais

cotas de poder dentro da própria METRO. A intenção era tomar as rédeas

do desenvolvimento esportivo carioca.494

Nos dias que se seguiram os jornais publicaram que os clubes

pequenos não aceitaram a proposta dos grandes. No Correio da Manhã a

chamada é: “O Prologo da Scisão”, em cuja matéria fica explícita a

discordância dos clubes pequenos com os critérios de formação do conselho

deliberativo e da eliminatória olímpica.495 O Paiz publica que o Vasco teria se

aliado aos pequenos. O fato do Vasco ser citado como um aliado dos times

pequenos indicava que este clube não era visto pela imprensa como um time

pequeno. O Vasco como clube já possuía tradição nos esportes náuticos, e

492
Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 15 fev. 1924, p.5.
493
Mazzoni (1950).
494
Poder-se-ia dizer que o que acontecia na época possui semelhanças com que ocorre na política
esportiva da Federação Carioca de Futebol atualmente. Na década de 1990 já acompanhamos pelos
jornais a querela que envolve os grandes clubes, com execeção do Vasco, e o presidente dessa
entidade, o Sr. Eduardo Vianna. Os clubes grandes sentem-se prejudicados, comercialmente e em

274
o fato de ter-se sagrado campeão carioca, em 1923, atestava sua grandeza,

apesar de ser iniciante na série principal de futebol. Cabe ressaltar que o

Vasco não discordava da fórmula da eliminatória olímpica e nem do prazo

para construção de instalações. O que incomodava aos dirigentes vascaínos

era não ter os mesmos direitos de discussão e voto que os proponentes da

reforma.

“A Atitude do Vasco da Gama

A diretoria do Clube de Regatas Vasco da Gama, em reunião


conjunta com a comissão delegada, resolveu por unanimidade o
seguinte: Não se conformará com a organização do Conselho
deliberativo, proposta pelos Clubes Botafogo, América, Flamengo
e Fluminenses, por não garantir a mesma, em absoluto, os
direitos dos demais.”496

Outro ponto da discordância vascaína eram os critérios que definiam

a condição amadorística. Sobre esta questão, a diretoria do Vasco afirmou

que no momento oportuno se posicionaria a esse respeito. Qual seria a

posição da diretoria vascaína em relação aos critérios amadorísticos? A

diretoria do Vasco estaria comunicando que era favorável à

profissionalização do futebol? Os jornais não informam com clareza a

posição vascaína, mas pode-se deduzir que o Vasco não via o amadorismo

como algo essencial.

Um articulista do jornal O Paiz, que assinava suas matérias sob o

pseudônimo de Bacharel II, interpretou que os motivos da reforma na

poder decisório, já que são de alguma forma igualados aos pequenos.


495
Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 15 fev. 1924.
496
Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 20 fev. 1924. p.2.

275
METRO eram os seguintes: 1) o Fluminense desejava dominar o esporte; 2)

a desorganização e loucura da administração da METRO forneciam motivos

para reformas; 3) a façanha do novato Vasco, na primeira divisão no futebol,

poderia espalhar-se entre os demais times sem tradição. Bacharel II sugere

que os grandes clubes tinham que punir com leis especiais aquele clube que

ousou vencer os tradicionais clubes cariocas.497 Apesar do articulista do O

Paiz criticar veementemente o “projeto de reforma”, via positivamente a

sindicância sobre a condição amadorística dos jogadores. Observe-se que o

amadorismo era um valor, mesmo para um crítico das reformas na METRO.

Os demais itens da reforma só teriam servido, segundo Bacharel II, para

afastar os demais clubes e os quatro grandes reinarem no cenário

esportivo.498

O mesmo articulista, dias depois, escrevia que os clubes que

estavam pregando a moralidade no desporto e “que criticam os pequenos

clubes, onde (dizem) imperar o profissionalismo, se esquecem dos Bertoni,

Etchegaray499, Zé Macaco, Ary Patusca, Perez etc.”500 O jornalista referia-se

a jogadores dos “clubes reformadores”, de suspeita condição de amadores.

Assim, O Paiz assumia uma posição contrária à reforma da METRO, mesmo

sendo apontado como um jornal conservador na época.

No dia 22 de fevereiro, a cisão no futebol carioca consuma-se. O

periódico anunciava: “Cinco clubes abandonam a entidade carioca”. O

motivo principal da cisão teria sido que os “grandes” foram derrotados no

497
O Paiz, Rio de Janeiro, 16 fev. 1924, p.7.
498
Idem, ibidem.
499
Idem, dias depois o articulista pede desculpas aos leitores, explicando que não referia-se a
Etchegaray, e sim a Betheregaray.

276
item sobre a eliminatória olímpica. Com 21 votos contra 15, seria mantida a

“eliminatória de football”. Segundo o jornal, o Vasco teria votado com os

“grandes”. 501

O Correio da Manhã, por sua vez, assumia uma posição mais

favorável às reformas propostas. Na seção “Correio Sportivo”, em 22 de

fevereiro de 1924, anunciava os motivos que teriam provocado a cisão:

500
Idem, 20 fev. 1924, p.7.
501
Idem, 22 fev. 1924, p. 7.

277
“Football
- O Momento -
Hontem, Hoje e Amanhã
O que resultará da scisão?

A matéria começava dizendo que a METRO deveria ter muito

cuidado com as decisões tomadas, pois estas poderiam afetar a saúde

financeira da instituição. Vê-se claramente que o crítico Correio da Manhã

(na época dirigido pelo bombástico pai de Mário Filho, Mário Rodrigues)

apoiava a causa dos dissidentes, como se pode observar no texto abaixo:

“Os grandes ora afastados da Liga estão senhores de


muitíssimos outros elementos de sucesso. Eles também podem
vencer, não porque sejam apenas grandes e ricos, mas porque,
principalmente, abraçaram uma causa veladamente simpática,
como seja essa restauração moral do nosso nível sportivo. O
football, ultimamente, no Rio, desceu muito no apreço de toda
gente, e uma prova eloqüente dessa afirmação está no fato de
que, via de regra, os clubes cuidavam mais da bilheteria do que
propriamente da cultura sportiva.

Esse detalhe vinha sendo observado e não podia mesmo deixar


de sê-lo, porque cada ano que passava, se notava ao lado do
desprezo pela sorte sportiva o interesse pela sorte financeira.

Do choque desses dois interesses tão distintos, nasceu um mal


estar oculto que pouco e pouco se foi avolumando no espírito de
quem observava as coisas de um ponto de vista elevado”.502

A citação acima informa que a cisão teria sido provocada pela forma

de administração da METRO. A crítica moral aos interesses financeiros

sobrepondo-se aos interesses do desenvolvimento da cultura esportiva, está

no texto citado. A crítica referia-se também à quebra da ética amadorística,

278
já que existia uma prática semiprofissional em curso. A justificativa

apresentada pelos “grandes” para as reformas e para a cisão que

provocaram advinha do fato da METRO ter desenvolvido o futebol em

detrimento dos outros esportes.

Em 27 de fevereiro de 1924, o Vasco recua no embate que teve com

“os reformadores” após se tornarem dissidentes. Noticiou o Correio da

Manhã que no Conselho Deliberativo do Vasco não existiria consenso em

relação aos dissidentes. Em 28 do mesmo mês, publicava um artigo dizendo

que ainda não se havia chegado a um consenso na METRO, apesar de ter

desaparecido “o maior obstáculo para a boa harmonia entre os grandes

clubes e a Liga”.503 O obstáculo era o presidente da METRO, Sr. Agrícola

Bethem, que teria sido afastado do cargo. Agrícola era antipatizado

abertamente pelos dirigentes dos “clubes grandes”, que o consideravam um

populista que prejudicava o desenvolvimento do esporte.

Dentro da METRO, os dissidentes não teriam encontrado o apoio

necessário para realizar as reformas. A saída encontrada foi fundar uma

nova associação nos moldes da “reforma proposta”. Em 29 de fevereiro,

estava fundada a AMEA, mas, como o ano era bissexto, resolveram

oficializar a data da fundação para 1 de março de 1924. As manchetes do

dia anunciavam: “OS DISSIDENTES DO FOOTBALL CARIOCA

FUNDARAM HONTEM A ASSOCIAÇÃO METROPOLITANA DE

ESPORTES ATHLETICOS”.504 Na matéria, o jornal anuncia que a atitude do

Vasco da Gama em relação aos dissidentes, não teria causado boa

502
Correio da Manhã, 22 fev. 1924, p. 5.
503
Idem, 28 fev. 1924, p.2.

279
impressão. A atitude não é esclarecida no âmbito da matéria, mas sabe-se,

pelo desenvolver do processo de dissidência, que além da desigual estrutura

de poder decisório em favor dos grandes na nova liga, outra coisa que

importunava os vascaínos era o item sobre o rígido controle da condição

amadorística dos jogadores.

Tanto parece ser essa uma questão importante que a matéria de 1

de março de 1924 continua assim: “É voz corrente - e nós podemos afirmar

que isso é verdade - que se o Vasco da Gama entrar para a nova entidade,

o que ainda é uma incógnita, o seu time terá que sofrer tais reformas que

dificilmente constituirá o mesmo forte adversário do ano passado”.505 O texto

deixa claro que a nova instituição e suas regras impediriam que o Vasco

continuasse com sua forte equipe. Por que razões? Por possuir negros ou

por possuir uma estrutura semiprofissional? Como já vimos, os reprodutores

de Mário Filho preferem apostar na hipótese racista, isto é, para eles o

racismo era encoberto pelo rigor dos critérios amadorísticos.

O Paiz, no dia da fundação da AMEA, publicava o indicativo do

Conselho Deliberativo do Vasco em aderir à nova liga.506 O conselho

entendia que, em função da cisão, a METRO não representava mais o

esporte carioca. Assim, quatro decisões foram tomadas pelos vascaínos: 1)

a de enviar ofício solicitando seu desligamento da METRO; 2) formar

comissão de três membros para acompanhar e conferir os propósitos da

nova liga em relação ao Vasco; 3) a comissão teria plenos poderes para

filiar-se à nova liga, caso seus propósitos correspondessem às aspirações

504
Idem, 1 mar. 1924, p. 5.
505
Idem, p. 5.

280
do Vasco; 4) ficavam revogadas as disposições em contrário às decisões

tomadas.507 Observe-se, através desta notícia, que o Vasco já estava

disposto a integrar a AMEA. Também fora anunciado que o Andarahy e o

São Cristóvão, além de outros clubes, teriam requisitado o desligamento da

METRO.

Se existia inicialmente uma espécie de crítica aos reformadores da

METRO, pode-se dizer que a AMEA foi fundada recebendo o apoio quase

que total da imprensa ou da sociedade letrada. Quando a AMEA completou

o primeiro mês de existência, depois de uma série de reuniões e acordos,

divulgou seus estatutos, na íntegra, pelo Correio da Manhã. 508

“Os Estatutos da Associação Metropolitana de Esportes Athleticos”

apresentavam como pontos conflitivos os seguintes artigos, que em

conteúdo pouco diferiam dos itens da reforma proposta na METRO. O Artigo

4 do estatuto definia quatro classes de membros da associação: os

fundadores, os efetivos, os especialistas e honorários. Os fundadores eram

os clubes que assinaram a ata de fundação da AMEA, os efetivos eram

aqueles que poderiam preencher os requisitos quanto às instalações e

quanto à prática dos esportes mencionados no parágrafo 4 do Artigo 5

(tênis, atletismo e outros). Os especialistas seriam os clubes dedicados a um

ou dois esportes. O Vasco reivindicava ser um dos membros efetivos,

cumpria o requisito de praticar vários esportes, mas não preenchia o critério

de instalações apropriadas para desenvolver os esportes terrestres.

506
O Paiz, Rio de Janeiro,1 mar. 1924, p 10.
507
Idem, ibidem.
508
Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 29 mar. 1924. O País, publicava, já desde 11 de março de 1924,
uma síntese dos estatutos e regulamentos da AMEA.

281
No Artigo 5, o parágrafo 10 referia-se à forma de inscrição dos

atletas. Os clubes deveriam indicar o nome do atleta por extenso, a

residência atual e a anterior, a profissão que exercia no momento e a que

exercera anteriormente, o local do emprego atual e anterior, bem como os

nomes das pessoas sob cuja direção exercia ou exercera sua profissão.

Além do fornecimento de dados sobre a vida dos atletas, para que se

exercesse o controle da condição amadorística o Artigo 4 indicava que a

diretoria do clube deveria também apresentar detalhes da vida pública e

privada dos seus dirigentes, para que lhes fosse atestada a idoneidade.

Os fundadores da AMEA temiam aberta e claramente a

profissionalização. Observa-se que o estatuto previa um rígido controle

sobre a condição e o status social dos jogadores e diretores dos clubes

associados. O que está em jogo nesses artigos é a vigilância ostensiva da

ética do amadorismo, ética que sempre esteve associada à distinção social e

ao pertencimento desinteressado.

Os grandes clubes dependiam da renda da bilheteria, gerada pelos

jogos de futebol, para saldar seus compromissos, investir na manutenção e

construção de instalações, e para pagar, dissimuladamente, as gratificações

aos seus “amadores”. Lutar pelo controle do amadorismo seria, talvez, uma

forma de controle dos times pequenos e de autocontrole financeiro para os

grandes clubes. A crença em uma sindicância ostensiva, por parte dos

líderes da AMEA, era de poder acabar ou limitar a semiprofissionalização já

em curso. Tal estratégia poderia ser uma espécie de autocontrole para os

próprios clubes grandes, isto é, o controle do amadorismo faria o lucro das

282
bilheterias ser utilizado para o desenvolvimento do esporte e dos clubes, e

não ser desviado para o pagamento de jogadores semiprofissionais. O

futebol poderia voltar a ser um elemento de distinção social. Em

contrapartida, os clubes pequenos e especializados poderiam mais

facilmente se tornar empresas gerenciadoras do futebol profissional. Os

requisitos de instalações e de desenvolvimento de outros esportes ou os

colocava em situação semelhante aos grandes ou os impossibilitava de

participar nos campeonatos da liga. Tirava a possível vantagem da

especialização em futebol.

As tensões em torno da profissionalização não se deram com

exclusividade no cenário carioca e nem no Brasil. Na Argentina, que passou

no mesmo período por conflitos semelhantes, um dos motivos apontados

pelo movimento em favor da profissionalização teria sido a contabilidade dos

clubes, que tinham dificuldades crescentes para dissimular nos balanços

financeiros os pagamentos e gratificações para os falsos amadores.509 O

Botafogo, em 1933, teria, junto com o Flamengo, se recusado a aderir à

profissionalização por afirmar que o clube não tinha condições de sobreviver

ao novo regime. Argumentos de lógica semelhante foram usados ao longo

do ano de 1997 pelos clubes em relação à Lei Pelé. Nos debates sobre a

profissionalização há bastante universalidade e continuidade histórica, pois

repetem-se em contextos que não se caracterizam pela importância da

variável do racismo.

509
Cf. Sacher & Palomino (1988).

283
O cenário de apostas e subornos que rodeava o futebol era claro.

Nesse sentido, o Artigo 10 do Estatuto da AMEA, num de seus parágrafos,

previa que os membros associados deveriam punir seus sócios quando

ficasse provada a tentativa de suborno. O Artigo 9 do estatuto era

certamente um dos pontos mais conflitivos. Fica explícito, em sua

formulação, a intenção de destinar cotas diferenciadas de poder em favor

dos grandes clubes. O membros fundadores e efetivos teriam direito

permanentemente a cinco votos, e mais um voto por esporte praticado,

dentre os regulamentados pela AMEA. Os clubes especialistas teriam

permanentemente um voto, e mais um por esporte praticado. Era clara a

intenção dos estatutos em dar maior poder aos grandes clubes, mas a

maioria dos pequenos clubes, mesmo com poder limitado pela

desproporcionalidade dos votos, gostaria de ficar jogando sem o brilho e

sem as rendas que os grandes clubes proporcionavam.

Diante daquele cenário, vários clubes requisitaram o ingresso na

nova liga. As adesões à AMEA eram noticiadas diariamente: São Cristóvão e

Andarahy teriam sidos aceitos na nova liga, o Helênico A. C. pedia seu

ingresso.510 O conselho deliberativo do Vasco da Gama, logo após a

dissidência na METRO, publicou uma moção de apoio aos clubes

fundadores da AMEA.511 Nessa moção o conselho comenta que parece não

haver sido bem entendida a posição do Vasco. O conteúdo desses “mal-

entendidos” não é esclarecido no corpo da matéria.

510
O Paiz, Rio de Janeiro, 11 mar. 1924.
511
Idem, 9 mar. 1924, p.9.

284
O Imparcial publicava, em 1 de março de 1924, que “Já se fala do

desligamento do Vasco da METRO”512, e que a decisão vascaína era

analisada como mais um agravante da situação da Liga.513

Esse era o panorama que se formava em torno da AMEA: todos os

clubes com relativa importância desejavam pertencer à nova entidade.

Mesmo O Paíz, que via com certa antipatia os reformadores da METRO,

passou a ver a AMEA com “outros olhos”. O aspecto do controle da condição

amadorística recebia do jornal os maiores elogios:

“...para aqueles que se interessam vivamente por um sport sadio e


bem cultivado, [a nova entidade é de] uma importância
extraordinária. Exercer uma vigilância desta ordem é pugnar pelo
engrandecimento moral dos exercícios atléticos. O progresso de
um ramo de atividade esportiva não reside somente na força
material e no dinamismo físico de quem pratica. Não é o ser forte e
pujante que demonstra a superioridade. Longe disto. Em primeiro
plano, constituindo o alicerce seguro, está a moral.”514

O texto continua afirmando que esta decisão da AMEA em conhecer

a idoneidade moral de seus atletas é importante para que se tenha nos

esportes uma fonte pura de desenvolvimento corporal e moral. Os esportes

poderiam voltar aos bons tempos de esportistas cavalheiros e de educação

aprimorada.515 Fica explícito o elemento de distinção social que

acompanhava o movimento de fortalecimento do amadorismo, que estava

por se corroer no cenário do futebol brasileiro.

512
O Imparcial, Rio de Janeiro, 1 mar. 1924, p. 12.
513
O Paiz, Rio de Janeiro, 7 mar. 1924, p. 7.
514
Idem, 12 mar. 1924, p. 7.
515
Idem, ibidem.

285
A AMEA indicava estar consolidada. Havia desistido de formar duas

séries de futebol, como fora previsto inicialmente, com oito clubes cada, e

anunciava uma única série com dez clubes. Esta decisão era uma espécie

de acordo para que todos participassem da divisão superior já no primeiro

ano de fundação. Os dez clubes eram os seguintes: América, Andarahy,

Bangu, Botafogo, Flamengo, Vasco, Fluminense, Helênico, São Cristóvão,

S. C. Brasil.516 Quando tudo parecia caminhar para o apaziguamento dos

ânimos, algumas notícias ambíguas davam a pista de novos conflitos que

estavam por surgir no interior da nova entidade.

O Paiz noticiou, em forma de boato, que um time da Zona Norte

estaria discordando da decisão da AMEA de afastar alguns de seus

jogadores e iria contestá-la.517 O clube não é mencionado, tanto podendo ser

o Vasco, o Andaraí, o São Cristóvão, quanto qualquer outro. Nos dias sete,

oito e nove de abril as coisas começariam a ruir no interior da AMEA. No dia

sete, anunciou-se que a AMEA havia tomado decisões quanto aos dias dos

jogos e quanto ao sistema de eliminatórias para o futuro campeonato. A

decisão mais importante era a seguinte:

“Os clubes fundadores, de acordo com uma deliberação de ontem,


não terão jogos entre eles no sábado [jogando apenas no
domingo], o mesmo não acontecendo quando tiverem um encontro
com quaisquer dos cinco clubes [não-fundadores], que tiveram sua
filiação após a fundação da AMEA.”518

516
Idem, 7 abr. 1924, p. 2.
517
Idem, 6 abr. 1924, p. 10.

286
Tal decisão não foi bem aceita pelos clubes pequenos e nem pela

imprensa em geral.

O crítico Correio da Manhã no dia seguinte publicava matéria com o

título “Vários Erros”, cujo conteúdo dizia respeito à arbitrariedade dos “clubes

grandes” que legislavam em função dos seus interesses financeiros. Na

decisão dos times grandes de só jogarem aos domingos, dias de renda

gorda, e os times pequenos aos sábados, nos dias de renda magra, ficava

evidente o privilégio que os grandes clubes se concediam.

O Paiz publicava, em 9 de abril de 1924, uma matéria sobre o

mesmo assunto com o título “Uma Revolução pouco Feliz”.519 “O Vasco

desliga-se da AMEA” era outra chamada sobre o mesmo assunto que trazia

a posição da diretoria vascaína:

“A diretoria do Vasco da Gama, inteirada pelo seu presidente das


imposições a que estava sujeito o clube, para participar no
campeonato carioca, resolveu enviar a AMEA, um ofício
comunicando que ‘pela dignidade e pelo passado do clube, ele
não podia sujeitar-se a tais imposições, e por isso, deixava de
fazer parte da nova agremiação’. Ficou resolvido que o Vasco da
Gama não cederia em mais nenhum ponto, só voltando para o
seio da AMEA caso lhe fossem concedidas as mesmas regalias
que gozam os fundadores”.520

O Correio da Manhã trazia como manchete principal: “Estourou a

Primeira Bomba-O Andarahy A. C. desfilia-se!”521 No dia seguinte, fazia

circular a notícia que Vasco e Andaraí já haviam definido desfiliar-se da nova

518
Idem, 7 abr. 1924, p.2.
519
Idem, 9 abr. 1924, p. 7.
520
Idem, ibidem.
521
Correio da Manhã, Rio de Janeiro 9 abr. 1924, p.6.

287
entidade. O motivo apresentado pelo Andarahy era que seus jogadores

trabalhavam aos sábados e, com a determinação de terem que jogar nesse

dia, o clube não teria condições de participar.522 Fica evidente, na

justificativa do Andaraí, a utilização de um argumento afinado com a ética do

amadorismo. Entretanto, o que escondia era a discordância de ter sido

empurrado para jogar nos dias de renda minguada.

Para complicar a situação, o Syrio requisitou sua filiação à AMEA e,

conseqüentemente, sua participação no futebol. Como já havia definido uma

série com dez clubes, a comissão organizadora solicitou que o Syrio pedisse

sua filiação e aguardasse o próximo ano para participar da série de futebol.

A essa atitude o Correio da Manhã não poupou críticas e ironias, afirmando

que a “comissão desorganizadora” da AMEA, com essa nova decisão,

passava a desrespeitar lei que ela própria estabelecera, pois o Syrio havia

cumprido todas as exigências legais.523

Os jornais voltaram suas agulhas contra a AMEA. Observe-se os

trechos de um artigo do Correio da Manhã, “Pau que nasce torto”:

“A princípio tivemos, como deve, de resto, toda a gente, a loura


ilusão de que o movimento revolucionário ia melhorar o esporte.

Era legítima a aspiração que a todos dominava, porque na


verdade o football, principalmente o football, ia resvalando por um
mau caminho, ao passo que os outros esportes eram relegados a
um plano secundário, sob o pretexto de que não davam renda.(...)

As doces ilusões que o esporte alimentava desfizeram-se no sopro


das primeiras realizações. Tudo que era uma promessa
transformou-se na expressão do mesmíssimo interesse financeiro
e egoístico que os movia, anos atrás, no meio daqueles que a
522
O Paiz, Rio de Janeiro, 17 abr. 1924, p. 8.
523
Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 10 abr. 1924. p.6.

288
severidade exterior procura agora hostilizar por todos os
modos”.524

No artigo criticou-se a posição da AMEA por advertir o Vasco e o

Andaraí, que não aceitaram as determinações ou imposições da nova

entidade. A revolução da AMEA havia, segundo o articulista, traído seu ideal

de desenvolver todos os esportes e não apenas o futebol. Lembremo-nos

que este teria sido um dos argumentos para sua criação, já que a METRO

apenas concentrava suas atenções sobre o futebol. Entretanto, após as

decisões que garantiriam aos fundadores o privilégio de jogarem aos

domingos, ficou patente, para os analistas da época, que a AMEA não

mudaria o quadro moral do esporte carioca. A fúria contra a AMEA

continuava em outro artigo, no mesmo periódico, no qual o articulista

comentava que os fundadores, com vinte e cinco votos, tomaram a decisão

de jogar apenas no domingo, não restando aos pequenos “ar” para

sobreviver junto aos grandes.525 Os grandes teriam direito a tudo e os outros

a nada, critica o articulista.

Nesse contexto confuso, os boatos mais variados surgiam aqui e

acolá, como se dá sempre em torno dos conflitos onde a moeda corrente é

garantir privilégios. Entre os boatos surgiu um que informava estar o

Botafogo, sócio fundador da AMEA, entre os dissidentes, o qual foi

rapidamente desfeito pela diretoria botafoguense. 526

524
Idem, 17 abr. 1924. p. 8.
525
Idem, 19 abr. 1924, p. 6.
526
Idem, 18 abr. 1924, p. 7.

289
O cenário começa a fica mais claro e a cisão na nova entidade teria

se tornado inevitável. O Paiz, em 16 de abril, anunciava que só agora os

leitores teriam acesso ao conteúdo do ofício que o Vasco havia enviado à

AMEA. Três contrariedades eram ressaltadas no ofício, na seguinte ordem.

A primeira é que o Vasco não aceitaria a posição de inferioridade a ele

imposta em função da falta de infra-estrutura, das deficiências de seu campo

de futebol e da condição modesta de seus associados. A segunda dizia

respeito à rejeição aos privilégios autoconcedidos pelos clubes fundadores

da AMEA e a forma como seria exercido o direito de discussão e voto. A

terceira trata do fato do Vasco não haver aceito o processo de sindicância

realizado sobre as posições sociais ocupadas por seus jogadores, pois o

processo havia se realizado sem um representante do clube e sem direito a

defesa.527 Assim, o Vasco afirmava que só voltaria atrás na decisão de

desligar-se da AMEA caso lhe fossem concedidos os mesmos privilégios

que tinham os fundadores. Observe-se que o “democrático” Vasco não

estava lutando por direitos iguais para todos, queria apenas ser igualado em

poder aos fundadores.

Em 19 de abril, pelo mesmo periódico, a AMEA respondia através de

seu presidente, Arnaldo Guinle, às acusações do Vasco. O presidente da

AMEA contra-argumentou que o Vasco, antes de seu pedido de filiação,

conhecia seus direitos e sua qualidade de sócio estabelecida pelo estatuto.

Arnaldo Guinle dizia que o direito de defesa jamais teria sido negado ao

527
O Paiz, Rio de Janeiro, 16 abr. 1924, p. 8.

290
Vasco ou a qualquer outro clube. Sobre esta questão específica

argumentou:

“Declaramos então que uma vez filiado, o Clube de Regatas


Vasco da Gama entraria com um novo ofício, demonstrando
satisfazerem, os seus jogadores, todas as condições legais do
amadorismo e que, uma vez provada a improcedência da
sindicância feita pela AMEA, as respectivas inscrições seriam
concedidas.

Diremos mais, que se havia, naquele momento, discrepância


entre informações fornecidas por esse clube e a sindicância por
nós realizada, a responsabilidade daí decorrente caía
exclusivamente sobre o C. R. Vasco da Gama, e que, como o
mesmo acontecia com os demais clubes, tornava-se impossível
discutirmos todos esses particulares naquele momento, dada a
exigüidade de tempo que nos separava do início dos
campeonatos oficiais da atual temporada”.528

Na continuidade do ofício, o presidente da AMEA tentou demonstrar

a contradição dos dirigentes vascaínos sobre a condição de amador de seus

jogadores. Arnaldo Guinle declarou que, em certa ocasião, havia dito ao

presidente do Vasco que esperava ver portugueses jogando futebol, já que

era um clube da colônia. A resposta do presidente vascaíno, segundo

Guinle, teria sido que o comércio português, por ser árduo e pesado, não

permitiria que os jogadores deixassem a obrigação para entregar-se aos

jogos da AMEA.529 Fica evidente que os argumentos finais de Guinle,

apresentados publicamente, intencionava provar que o Vasco praticava o

semiprofissionalismo, ou amadorismo marrom. Apresentado o cenário do

conflito, vamos montagem do quebra-cabeça.

528
Idem, 19 abr. 1924, p. 11.
529
Idem, ibidem.

291
8.2.2 – Montando o quebra-cabeça

A seqüência de acontecimentos descritos sobre a cisão na METRO,

a fundação da AMEA e a cisão ocorrida no interior da nova liga, explica-se

também a partir da hipótese da tensão entre amadorismo e popularização do

futebol. Inicialmente deve-se entender os motivos da crise na METRO, para

depois entendermos a fundação e cisão no interior da AMEA.

O futebol já era um esporte popular e de massas no ano de 1924. Os

clubes já não podiam prescindir do prestígio que tinha o futebol, nem do

orçamento que este gerava com a bilheteria dos jogos. O futebol era o

esporte propulsor do desenvolvimento material e de outros esportes nos

clubes. O ano de 1923 tinha apresentado uma surpresa para os grandes

clubes: o Vasco, um novato na liga superior, venceu o campeonato. Para

completar o cenário de surpresas, o Botafogo por pouco teria sido rebaixado

para a segunda divisão.530 Os grandes clubes, por sua tradição e

investimentos, não deviam correr o risco ou ser rebaixados para a segunda

divisão, pois eram eles que faziam do futebol um esporte rentável para

todos. Sair da divisão principal seria uma espécie de morte financeira. Fica

evidente que a popularização do futebol era positiva para todos. Os clubes

grandes não podiam prescindir das rendas do futebol, mas ao mesmo tempo

queriam governar o esporte com base nos valores do amadorismo. No ano

530
NFB (1964).

292
de 1924, os grandes clubes, liderados pelo Fluminense, desejavam mudar a

correlação de forças no interior da METRO.

Com base no critério do desenvolvimento material e da cultura

esportiva, os grandes clubes pleitearam direitos especiais na METRO. Para

isso realizaram um projeto de reforma. Os pontos cruciais do projeto eram:

os clubes grandes, autonomeados de reformadores, reivindicavam mais

cotas de poder no conselho deliberativo da entidade, baseados no critério da

tradição e do desenvolvimento material e esportivo. Os clubes grandes

possuíam infra-estrutura para a prática de vários esportes e eram os

proprietários dos estádios onde se realizavam os principais jogos de futebol.

Neste sentido, a reforma proposta exigia que os chamados times pequenos

tivessem um prazo determinado para construírem infra-estrutura apropriada

para a prática esportiva. Como não podiam correr o risco que o Botafogo

correra em 1923, os grandes apresentaram como outro item da reforma a

eliminatória olímpica como critério de seleção da divisão superior de futebol.

Essa eliminatória deveria levar em conta outras modalidades esportivas, e

não só o futebol. Com esse critério, os grandes clubes, por praticarem vários

esportes, garantiriam a permanência quase que definitivamente na divisão

superior e não correriam o risco de perder a receita gerada pelo futebol.

Contudo, os reformadores colocavam a questão da eliminatória olímpica

como uma forma de desenvolver uma cultura esportiva mais generalizada. O

outro ponto polêmico era o controle sobre a condição amadora dos

jogadores. Era evidente que o Vasco tinha sido campeão com um time de

jogadores profissionais, que, sob a direção do treinador profissional Platero,

293
dedicavam-se exclusivamente ao futebol.531 Na METRO, pela política

populista do Sr. Agrícola Bethem, o controle ostensivo sobre a condição

amadora dos jogadores não era realizado satisfatoriamente.

Os times pequenos, que juntos possuíam a maioria dos votos, não

acataram a proposta da eliminatória olímpica, derrubando-a em plenário;

também não estavam dispostos a abrir mão de suas cotas de poder. Cabe

relembrar que o Vasco, em relação a eliminatória olímpica, teria

acompanhado os reformadores. Sua posição era contrária à sindicância do

amadorismo e à diferenciação qualitativa no direito de discussão e voto. Os

grandes clubes não se conformaram com a derrota e criaram a AMEA. A

lógica de reivindicar diferenças de poder decisório no interior das entidades

esportivas estava baseada no alto investimento em instalações e na cultura

esportiva que desenvolviam. A reivindicação dos “grandes” seguia a lógica

da sociedade brasileira que vivia sob um regime republicano mas tendo o

espírito oligárquico ainda como uma forte marca. Éramos ao mesmo tempo

liberais e discricionários; a opção por posições liberais ou autoritárias dava-

se ao sabor das circunstâncias ou das inclinações de grupos ou pessoas.532

As reformas propostas e a posterior fundação da AMEA representavam uma

posição discricionária em nome do desenvolvimento da cultura esportiva.

Assim, a criação da AMEA teria invertido o jogo nas relações de

poder. Com a saída dos grandes clubes, a METRO, a antiga entidade,

estaria desprestigiada e quase arruinada financeiramente. Os principais

estádios de futebol pertenciam aos grandes clubes; as maiores torcidas, que

531
Isto não quer dizer que os outros clubes não praticavam o amadorismo marrom.
532
Sevcenko (1983, p. 84).

294
engrossavam as rendas, também. Diante deste cenário, apesar dos grandes

clubes terem nas mãos as rédeas da nova entidade, vários outros clubes,

dentre eles Vasco e Andaraí, solicitaram seu ingresso na AMEA.

Os jornais não noticiaram detalhes da negociação para o ingresso de

novos clubes na AMEA, mas nota-se que as negociações estavam em

curso. Uma prova disto é que, inicialmente, o regulamento previa duas séries

de futebol, tendo-se chegado ao acordo de realizar uma única série com os

dez clubes inscritos. Tudo parecia ir bem, até que a comissão organizadora

(formada pelos “grandes”) decidiu que os jogos aos domingos seriam

privilégios (financeiros) garantidos aos sócios-fundadores, aqueles que

tinham assinado a ata de fundação da entidade. A partir daí, uma nova

ruptura surgiu no interior da AMEA.

O Vasco, como já vimos, vem a público para discordar da posição de

inferioridade em que havia sido colocado e rejeitar o processo de sindicância

realizado com seus jogadores. O presidente da AMEA respondeu às

acusações tentando demonstrar que o Vasco conhecia e tinha aceitado os

estatutos da entidade; se tivesse ficado provada a improcedência da

sindicância, a AMEA teria voltado atrás, aceitando as inscrições dos

jogadores vascaínos. Arnaldo Guinle fez questão de ressaltar que a atitude

vascaína provara que seus jogadores eram semiprofissionais. Vasco,

Andaraí e seus aliados retornam à METRO e por ela jogam o campeonato

de 1924.

Pelos dados levantados e pela trama armada, fica difícil aceitar a

hipótese do racismo como motivador de todo o conflito de 1924. Que

295
racismo era esse que aceitava os negros do Bangu e do São Cristóvão?

Como o próprio Mário Filho afirmou, os negros do Bangu, todos operários da

fábrica, tinham como confirmar a condição amadorística. Que “racismo” era

esse que teria acabado no ano seguinte, quando o Vasco integrou a AMEA?

Não se está afirmando que a vitória do Vasco, com os negros de sua equipe,

não possa ter despertado sentimentos, ressentimentos e piadas antilusitanas

e racistas. Pode ter surgido esse clima, mas tais sentimentos não são

explicações convincentes para a crise e para as mudanças no futebol

carioca de 1924.

A hipótese racista não se encaixa na trama descrita. A hipótese da

manutenção da ética do amadorismo em um esporte que teria rapidamente

se popularizado parece explicar melhor os conflitos entre o Vasco e seus

aliados com a AMEA.

A criação da AMEA como prova do racismo consegue no máximo

falar de perseguição, resistência e afirmação do herói negro, coisa que não

difere substancialmente da estrutura do conto ou do mito, sem evidências.

Criar ligas ou desfazer ligas em função de conflitos administrativos não seria

novidade naquele contexto. Tomás Mazzoni, jornalista contemporâneo de

Mário Filho, relata várias cisões internas entidades esportivas de São Paulo

e de outros estados brasileiros.533 Enfim, as entidades esportivas, tanto em

nível regional quanto nacional, sofreram as dificuldades do processo de

533
De acordo com Mazzoni (1950), “A temporada de 1921 registrou um episódio interessante, em
São Paulo, com a revolta dos chamados pequenos clubes contra a APEA”. A ocorrência foi relatada
no anuário da APEA de 1921: "Não tendo sido satisfeita a sua ambição nos estatutos aprovados em
21 de março de 1921, os clubes da Segunda Divisão que de há muito desejavam uma lei que
facultasse o seu acesso à Divisão Superior, pediram demissão em quase sua totalidade, indo contituir
outra entidade esportiva a que deram o nome de Federação Paulista de Desportes” (p. 160).

296
ampliação e consolidação organizacional. Ao que tudo indica, quando uma

unidade organizacional se amplia, tanto seu poder quanto sua fragilidade

também aumentam quase na mesma proporção.534 De fato, no seio de um

esporte popularizado, a manutenção da luta do amadorismo versus

amadorismo e o fato dos grandes clubes reivindicarem mais cotas de poder

são explicações mais plausíveis, mais sensatas, para a crise de 1924, do

que propriamente o racismo.

A discussão do ethos amador fazia parte de uma configuração do

cenário esportivo da época e do cenário de outras esferas de atuação social.

O processo de profissionalizar atividades vinculadas ao âmbito do lazer, da

religião e da política já vinha de longa data. Como já comentado, Maquiavel

descreve as vantagens do exército formado por soldados “amadores” em

relação aos mercenários, na conquista e manutenção dos principados. Na

esfera da política, o debate da “amadorização” versus profissionalização dos

políticos não era novo. A idéia de que o representante político deveria ter

posses para dedicar-se à vida pública sem interesses pecuniários teria sido

uma etapa do “amadorismo aristocrático” em política. Tal etapa, com os

progressivos processos de ampliação do voto e dos partidos, cedeu lugar à

profissionalização do político como forma de ampliação, popularização e

democratização da esfera política. Cabe lembrar que debates sobre

profissionalização ou “amadorização” da atividade política, religiosa e

esportiva ainda estão presentes nas representações correntes. O que se

está argumentando é que os conflitos de 1924 devem ser entendidos como

534
Elias (1994).

297
parte do processo de profissionalização do futebol, ainda que a ética do

amadorismo tivesse uma espécie de estatuto superior.

O estatuto de superioridade do amadorismo no futebol brasileiro não

pode ser separado do ethos esportivo disseminado pelo olimpismo.535 O

ideal amadorístico era um dos valores ingleses que se difundiram com seus

esportes, valor vinculado à educação de gentis-homens. Os brasileiros que

estudaram na Europa, em especial na Inglaterra, trouxeram para o Brasil o

ideal de esporte que aprenderam em seus estudos. A regulamentação do

amadorismo, como vimos, foi uma reação para conter a participação popular

nos esportes tradicionalmente reservados às classes altas inglesas.536 O que

fica claro, se pensarmos com Elias, é que o ideal amadorístico é uma

espécie de reação à pressão que os “de baixo” passavam a exercer sobre os

“de cima”.537 De fato, os “de baixo”, no contexto da sociedade inglesa, já

tinham em alguns esportes mobilidade econômica e social.538

O processo é semelhante ao que ocorreu entre aristocratas e

burgueses. Os aristocratas tinham mais tempo para refinar gostos e

condutas distintivas, enquanto os burgueses, com o pouco tempo que lhes

sobrava do trabalho, imitavam as condutas ditas refinadas como forma de

ascenso social. Esse processo forçou que costumes, antes considerados

“refinados” se tornassem “vulgares”. A reação dos “de cima” diante desse

535
Coubertin teria aprendido os princípios do amadorismo com seu amigo Milligan Sloane, na
Universidade de Princeton, pelo ano de 1893 (cf. Mandell, 1986, p. 210).
536
Idem, p. 162. “En 1866 el Amauter Athletic Club adoptó el reglamento establecido por la
Comisión de Regatas de Henley, que excluía de la competición amateur no sólo al profisional, sino a
todo aquél ‘que sea mecânico, artesano u obrero, o que eté empleado en el servicio doméstico’.
537
Elias (1993, p. 248-262).
538
Mandell (,1986, Capítulo 7).

298
processo era elevar constantemente o patamar de refinamento.539 Elias diz

que as constantes interdependências de classes e grupos sociais faria surgir

um outro panorama quando a “sociedade de corte” foi substituída pelas das

“boas sociedades”:

‘As boas sociedades’ que vieram após a fase de corte


entrelaçaram-se, todas elas, direta ou indiretamente, com a rede
de ocupações profissionais e, mesmo que uma orientação
‘cortesã’ nunca estivesse inteiramente ausente, esta, nem de
longe, exerceu mais a mesma influência. A partir desse momento,
as profissões e o dinheiro passaram a ser as principais fontes de
prestígio, e a arte, o refinamento da conduta social, deixou de ter
para a reputação e o sucesso do indivíduo a importância decisiva
que possuía na sociedade de corte.”540

O amadorismo, a partir deste ponto de vista, era uma espécie de

resíduo aristocrático no âmbito de uma sociedade aburguesada. Os

burgueses talvez tivessem experimentando com o amadorismo a mesma

vivência que sofreram com os símbolos de distinção dos cortesãos.541

Entretanto, o processo de popularização forçou a profissionalização do

esporte e sua conseqüente democratização, se é que se pode usar este

termo. Os conflitos de 1924 tinham como pano de fundo esse contraditório

processo.

Apesar dos “de cima” desejarem manter símbolos de distinção

social, não se pode esquecer que o clima de apostas e dinheiro, que corria

em paralelo às atividades esportivas, justificavam o ideal do amadorismo e

do olimpismo. As apostas e muitos boatos de suborno misturavam-se ao

539
Elias (1993, p. 252).
540
Idem, ibidem.

299
esporte. Os esportes eram e ainda são motivo para boas apostas. Assim, a

ética do amadorismo previa que os esportistas fossem pessoas que

buscassem o auto-aperfeiçoamento atlético sem finalidades pecuniárias.

Portanto, o amadorismo é elitista ou “aristocratizante”, pois supõe que um

empregado subalterno teria mais razões para se corromper que os

detentores de posses, que poderiam teoricamente dedicar-se ao esporte

desinteressadamente. A lógica empregada é semelhante à utilizada por

Maquiavel para defender os exércitos patrióticos, e pelos defensores do voto

censitário.

O controle da condição amadora dos atletas, que os reformadores

da METRO e os criadores da AMEA intencionaram implantar, não era novo.

Encontram-se uma série de exemplos de controle da condição amadorística

no espaço das competições olímpicas nas primeiras décadas do século XX.

Por exemplo, Jim Thorpe perdeu sua medalha olímpica, um ano depois de

havê-la conquistado nos Jogos de Estocolmo, porque descobriu-se que ele

anteriormente teria sido jogador profissional de beisebol.542 O controle era

policial, o atleta tinha que provar e demonstrar suas credenciais de amador.

Ser amador previa que, além de não pertencer às baixas camadas, o atleta

não deveria ter participado na condição de profissional em nenhum outro

esporte.543 Contudo, o controle do amadorismo nunca foi tarefa fácil e nunca

funcionou com eficácia.544

541
Idem, ibidem.
542
Mandell (1986, p. 217).
543
Um bom exemplo do problema do treinador profissional pode ser visto no filme “Carruagens de
Fogo”. No futebol brasileiro, o técnico profissional era um personagem presente desde o início.
544
Mandell (1986, p. 213).

300
O debate sobre amadorismo versus profissionalismo foi um

coadjuvante do processo de difusão e desenvolvimento do futebol no mundo

inteiro. No contexto inglês a polêmica já havia sido resolvida nos últimos

anos do século XIX, quando as ligas profissionais de futebol foram formadas

e ganharam popularidade.545 Na Argentina, país com quem mantínhamos

relações em nível futebolístico desde 1914, os conflitos nas ligas de futebol

eram semelhantes aos nossos.546 Uma das poucas diferenças é que os

argentinos não tinham o problema da raça.

A manutenção do código amador como norte ético do futebol

argentino, e a ampliação da prática desse esporte em todos os bairros e

rincões, teria feito surgir a prática nada singular do “amadorismo marrom”. A

situação do amadorismo marrom tornou-se insustentável, a ponto de ter

produzido a ruptura no interior da Asociación Amauter e feito surgir a Liga

Argentina de Footbal - primeira organização de futebol profissional argentina

- em 1931.547 De fato, o caso das cisões em torno do futebol argentino, que

resultavam sempre na formação de novas instituições, pouco difere do caso

brasileiro. A criação de novas ligas foi, na Argentina e no Brasil, parte de um

processo que resultou na profissionalização do futebol.548

545
Sacher & Palomino (1988, p. 19).
546
Idem, p. 25.
547
Idem, p. 26.
548
A criação da AMEA deve ser vista como uma etapa do processo de profissionalização do futebol.
Estudos mais aprofundados sobre a difusão do futebol em países latinos-americanos devem ser
realizados para que diminuamos um pouco a imagem de hiper-singularidade da cultura e do futebol
brasileiro. A hipótese, sugerida por Scher e Palomino, sobre a demora da profissionalização do futebol
na Argentina, parece servir para o caso brasileiro: na Argentina o futebol desenvolveu-se
organizacionalmente através dos clubes, enquanto nos Estados Unidos a organização e
desenvolvimento dos esportes ocorreu através das empresas privadas. Assim, o esporte norte-
americano teria, desde o início, se profissionalizado como indústria do entretenimento, enquanto o
esporte argentino desenvolveu-se como atividade social nos clubes.

301
A briga em torno da condição do amadorismo na AMEA não pode

assim ser reduzida a uma espécie de dissimulação de intenções racistas. O

debate em torno do amadorismo fazia parte dos debates esportivos no

Brasil. Por exemplo, O Paiz, em 27/02/24, publicava que a Associação

Paulista teria aprovado uma definição para o amadorismo:

“É amador todo aquele que, por prazer ou fim higiênico, se entrega


a prática de desportos em recintos particulares não tendo jamais
por esse fato recebido prêmios ou recompensas em espécie
qualquer que seja sua origem, nem concorrido com profissionais e
que em circunstância alguma tenha sido professor ou auxiliar
assalariado em exercícios físicos.549

Em 6 de março do mesmo ano, esse jornal publicava “A

Remodelação da Federação Internacional de Futebol”, informando que no

Congresso de Paris buscava-se uma definição para o amadorismo e a

posição dos congressistas era de crítica aos países que haviam se

entregado ao profissionalismo. O Imparcial, em 19/02/25, publica que a

decisão da Associação Paulista agira corretamente ao exigir do jogador de

futebol: ter profissão lícita e certa, título de eleitor e provar residência de pelo

menos seis meses na cidade para conquistar o direito de ser inscrito na liga.

Pode-se perceber que o amadorismo no futebol brasileiro nos anos

20 era um valor das elites que administravam o esporte. Nota-se claramente

que a exigência de título eleitoral pela Associação Paulista, numa sociedade

com alta exclusão eleitoral, selecionava claramente os atletas dos setores

médios e altos da sociedade. O requisito de apresentar seis meses de

549
O Paiz, Rio de Janeiro, 27 fev. 1924.

302
residência no local tentava claramente limitar a contratação de jogadores de

outros sítios.

Se pensarmos na configuração mais ampla do esporte, no Brasil e

em outros lugares, a hipótese racista sobre a criação da AMEA debilita-se. O

que se pode observar é que a reforma na METRO, sua cisão e a fundação

da AMEA formaram parte de um processo de profissionalização do futebol.

Se existiu algum tipo de resistência, foi o das elites que iniciaram a crise de

1924. Crise que pode ser lida como contraditória, pois as elites, por

necessidades de garantirem maiores cotas de poder e boas finanças para

seus clubes, desejavam que o futebol fosse ao mesmo tempo popular e

amador. Passemos ao último núcleo narrativo selecionado.

8.3 - O recrudescimento do racismo na Copa de 50

A derrota do Brasil para o Uruguai, na final da Copa de 50, é mais

um núcleo narrativo utilizado como prova do racismo brasileiro. Como já

visto, a “prova do racismo” reside no fato de se ter escolhido como culpados

da derrota Barbosa, Bigode e Juvenal, todos negros. A escolha de três

negros como “bodes expiatórios” seria prova do racismo que ainda não se

havia extinguido no futebol. Este núcleo narrativo foi imortalizado por Mário

Filho e continua vivo nos textos dos “novos narradores”.550

550
Murad (1994b; 1996; Palestra realizada na AIESEP em 1997, cf. Nota 1 do Capítulo 7); cf. Leite

303
O recrudescimento do racismo foi uma estratégia de continuação e

ampliação do NFB. Para acrescentar dois novos capítulos à segunda edição,

Mário Filho coloca o herói negro em nova situação de dano ou perda.

Entretanto, lembremos que para realizar o acréscimo foram suprimidas

partes do texto original onde o herói negro, em 1947, já teria vencido todas

as barreiras raciais e sociais no futebol.551 O desenrolar dos capítulos da

segunda edição, tal como da primeira, segue a estrutura do conto: o herói

negro sofre o dano (Barbosa, Bigode e Juvenal são afastados da

comunidade); o herói passa por desafios e provações (Robson - “Eu já fui

preto e sei o que é isso”; Sabará, no saguão do hotel na Inglaterra; e as

tentativas de embranquecimento dos selecionados brasileiros são no NFB os

exemplos da provação a que os negros teriam sido submetidos); o herói

supera as provações com o recebimento do objeto mágico, afirma-se e

reintegra-se a comunidade (Pelé e Garrincha, com o estilo mágico do

futebol brasileiro, superam todas as barreiras raciais e sociais, o Brasil torna-

se bicampeão, e eles passam a ocupar a galeria dos heróis de barba e

cabelo carapinha). Esta seria a saga que o herói negro percorre nos novos

capítulos do NFB.

A utilização do NFB como um “arquivo do futebol do passado”, tem

levado os estudiosos do futebol a mitologizar esta obra e seu autor.

Observe-se como José Sérgio Leite Lopes, utilizando o núcleo narrativo em

questão, produz equivocadas interpretações sobre a primeira edição do NFB

apenas consultando a segunda:

Lopes (1994) ; Gordon Jr. (1995; 1996); Santos (1981); Guedes (1977).
551
Ver Capítulo 2 deste trabalho.

304
“Na primeira edição de O Negro no Futebol Brasileiro, se seu
quarto capítulo ‘Ascensão Social do Negro’ dá a impressão de um
final feliz a leitores apressados, ele já anuncia ali a possível
persistência do racismo e da autodesvalorização de um povo em
sua maioria mestiço e negro. Há uma antecipação do que ficará
mais claro em seguida: o drama da Copa do Mundo de 1950, a
renovação das tendências racistas no futebol brasileiro durante os
anos 50. Na segunda edição do livro, em 1964, ele pode assinalar
a confirmação histórica de suas teses de inversão de 1958 (Copa
do Mundo ganha na Suécia por um time que derruba os
estereótipos racistas anteriores) e a persistência e a consagração
dos grandes jogadores negros estilistas como Didi, Pelé,
Garrincha e muitos outros...”552

Fica evidente que Leite Lopes, por não ter consultado a primeira

edição, trata o épico do negro construído por Mário Filho como antecipação

histórica. A confirmação das chamadas “teses de inversão”, por Leite Lopes,

apenas atestam a presença da estrutura do conto na narrativa do NFB. A

inversão do quadro de dano, ou “racismo”, deve ser vista como uma etapa

do épico do negro no futebol brasileiro.

Nos núcleos analisados anteriormente, demonstrei que as provas de

racismo não se sustentavam na narrativa do NFB e nem nas narrativas de

seus reprodutores. Naqueles casos a trama era a da tensão e das

contradições entre amadorismo e popularização. Afirmei que os sentimentos

racistas, caso estivessem presentes, seriam secundários e não motores ou

forças determinantes das tramas. A narrativa do NFB, como visto ao longo

do estudo, transforma qualquer fato ou episódio numa trama racial, isto é: o

negro vivendo a segregação, a perseguição, a provação e a superação, até

afirmar-se como herói, explicaria o movimento da “história do futebol

552
Leite Lopes (1994, p. 79).

305
brasileiro”. É nesta linha de argumentação, neste tipo de hipótese negativa,

que se juntam os núcleos narrativos analisados até agora com o núcleo do

recrudescimento do racismo.

Se recorrermos à própria narrativa do NFB, vemos que a idéia do

recrudescimento do racismo perde a força ou secundariza-se. Mário Filho,

depois de afirmar que três negros foram escolhidos como bodes expiatórios,

diz que a equipe tinha outros pretos e mulatos que não foram acusados pela

derrota.553 Mas quando encontramos a reprodução desse núcleo narrativo,

ao estilo do politicamente correto, não se levanta a simples questão de

esclarecer por que a culpa caiu sobre Barbosa, Bigode e Juvenal, e foram

isentados Bauer, Jair da Rosa Pinto e Zizinho.

O óbvio é que os “bodes expiatórios” eram todos jogadores da

defesa brasileira e participaram direta ou indiretamente dos lances dos gols

uruguaios. É do cotidiano do futebol imputar a culpa da derrota nos

defensores e nos goleiros. Da mesma forma que um empate pode

transforma-los em heróis, a derrota pode convertê-los em vilões. No futebol,

o mercado indica as representações sobre os astros do futebol. Assim, os

atacantes e goleadores são em geral mais valorizados do que os defensores

e goleiros. Na história do futebol os goleadores são mais lembrados que os

defensores, salvo raras exceções. A própria narrativa épica do NFB

seleciona seus heróis com base no critério da raça, porém deve-se observar

que todos eles foram atacantes: Friedenreich, Leônidas, Pelé e Garrincha.

553
NFB (1964, p. 335).

306
O retorno do racismo perde a força quando Mário Filho retrocede ao

afirmar que, o povo acusando Barbosa, Juvenal e Bigode, acusava-se a si

mesmo. O povo teria se chamado, e aos jogadores, principalmente os

negros, de sub-raça. O racismo teria, assim, assumido um tom quase

psicológico de “consciência infeliz”, ao estilo hegeliano. Para complicar ainda

mais o recrudescimento do racismo, o povo teria selecionado para herói da

Copa de 50 o mulato Obdúlio Varela, capitão da equipe uruguaia. Naquele

mulato o povo teria identificado o que faltou ao brasileiro para tornar-se

campeão do mundo. Mário constrói mais um herói ao estilo do “santo de

barba e cabelo carapinha”.554 Como já comentado, Obdúlio serve apenas

para afirmar sua inspiração freyreana e dar continuidade à narrativa. Se o

mulato uruguaio foi elevado à condição de herói pelo próprio povo brasileiro,

como entender a acusação a Barbosa, Bigode e Juvenal como prova da

volta do racismo?

O mecanismo do racismo na Copa de 50 fica intrigado se

acompanharmos a seqüência da narrativa. Primeiro, o racismo seleciona

apenas alguns negros do time como culpados e isenta outros; depois, a

acusação racista transforma-se em “consciência infeliz” de um povo que,

culpando os negros, acusava-se a si mesmo como raça inferior; e, para

terminar o complicado quadro descrito, o “racismo sai pela mesma porta em

que entrou neste núcleo narrativo” ao selecionar o mulato Obdúlio Varela

como o herói escolhido pelo brasileiro na Copa de 50. Aqui está mais uma

demonstração da estrutura mítica da narrativa do NFB.

554
Idem.

307
Está evidente que a acusação sofrida por Bigode, Barbosa e Juvenal

não é diferente das acusações que sofrem goleiros e defensores,

independente da raça, quando não conseguem interceptar o adversário.

Acredito que não se precisa de mais argumentos para que se entenda que o

racismo na Copa de 50 significa, no NFB, uma nova queda (dano ou

perseguição) do negro para que depois seja reafirmado como herói nas

vitórias das Copas de 58 e 62. O recrudescimento de racismo só aparece no

NFB e nos seus reprodutores. Nos jornais da época consultados não se

acha nenhuma evidência que suporte tal interpretação. Mas vejamos como

se construiu a interpretação racista acompanhando as crônicas de Mário

Filho pelo seu jornal.

8.3.1 - Montando o quebra-cabeça

Realizei um levantamento das crônicas jornalísticas, nos dias e nos

anos que se seguiram à fatídica derrota, para observar se existiu, por parte

de Mário Filho ou de outros cronistas, expressões racistas ou a denúncia de

sentimentos racistas.555 Deve-se lembrar, antes de responder à questão

enunciada, que Copa do Mundo, ou Olimpíada, são momentos competitivos

que se transformam em meio de auto-afirmação nacional.556 A Copa de 1950

tinha, dessa forma, um caráter todo especial para o brasileiro. A seleção

brasileira, desde a Copa da França, em 1938, já dava sinais da potência de

555
Acompanhei as crônicas de Mário Filho, no Jornal dos Sports de julho de 1950 a agosto de 1954.
556
Hobsbawm (1990, p. 171).

308
seu futebol. Os brasileiros avaliaram a representação brasileira na França

como excelente; só não teriam logrado vitória por problemas de arbitragem.

Lembremos do artigo “Football Mulato”, já citado, que Gilberto Freyre

escreve em elogio à representação brasileira de 38. A Segunda Grande

Guerra causou a interrupção das Copas; a primeira a ser realizada depois da

guerra foi a de 1950. O Brasil, sendo o país sede da Copa, teria a chance de

demonstrar ao mundo sua capacidade de realização. Era, portanto, um

momento de afirmação nacional, de afirmação do Brasil frente ao mundo

desenvolvido.

A construção do Estádio Municipal, o Maracanã, foi o grande

símbolo da época. O maior estádio de futebol do mundo foi erguido num

tempo recorde, e aí estava demonstrada a capacidade técnica e empresarial

do brasileiro. Mário Filho empenhou-se de corpo e alma na tarefa. Colocou

sua máquina jornalística a serviço da formação de uma opinião favorável à

realização da obra; buscou alianças entre políticos adversários, em nome do

Maracanã; acompanhou a construção do estádio como se fosse seu “dono”

ou engenheiro-chefe; levantou recursos, vendendo pessoalmente lugares

cativos no estádio. O empenho de Mário Filho na realização da Copa do

Mundo no Brasil, como proprietário de um jornal esportivo, poderia ser

pensado apenas como interesse financeiro e comercial. Mas sua dedicação

ao evento e a campanha de construção do Maracanã parecem indicar que

seu empenho ia além dos interesses pessoais.

O primeiro argumento que estou introduzindo é que a Copa de 50 foi

um cenário para auto-afirmação nacional e Mário Filho foi um dos

309
protagonistas. O clima de auto-afirmação nacional aumentava na medida em

que a seleção brasileira fazia sucesso na competição. Os brasileiros foram à

loucura quando venceram a Espanha por 5 a 1, o famoso jogo das

“Touradas de Madri”. A manchete do jornal de Mário Filho era a seguinte:

“Maior Vitória do Scratch Brasileiro No Maior Espetáculo do Football

Mundial”.557 Mário Filho escreve uma página inteira sobre os detalhes da

vitória. No sábado que antecedeu a grande final da Copa, a manchete dizia:

“Tudo Preparado Para a Vitória”.558 As vitórias inquestionáveis,

principalmente contra os países europeus, talvez transferissem para o

brasileiro a seguinte representação: “se podemos ser bons no esporte,

poderemos ser em outros setores”. O contexto favorecia que o brasileiro

sentisse orgulho de si mesmo: a seleção dava provas de ser a franca

favorita à conquista do título e o Maracanã era a prova da capacidade de

realização do Brasil.

A legitimidade do futebol brasileiro, nos dias que antecederam a final

da Copa, para ser total necessitava do aval estrangeiro. Mário Filho

apresentava no Jornal dos Sports a opinião dos especialistas estrangeiros:

“Como a Crônica Italiana Vê As Vitórias Brasileiras”.559 A mimesis da guerra,

ou melhor, a busca da afirmação do Brasil frente aos países europeus

também estava estampada no jornal: “foi o maior golpe no prestígio do


560
football espanhol”. Todo o clima auxiliava a formar o sentimento de

557
Jornal dos Sports, Rio de Janeiro, 14 jul. 1950, p.1.
558
Jornal dos Sports, Rio de Janeiro, 15 jul. 1950.
559
Idem, p.3.
560
Idem, ibidem.

310
communitas, de unidade nacional.561 A Rádio Continental convocava a

população pelo jornal:

“HOJE - ÚLTIMA ETAPA CONTRA O URUGUAI


ORDEM DO DIA:
1-CANTAR O HINO NACIONAL AO HASTEAR A BANDEIRA
2-APLAUDIR-TORCER-INCENTIVAR NOSSA SELEÇÃO EM
TODAS AS JOGADAS DURANTE TODO O TEMPO.
VIVA O BRASIL CAMPEÃO DO MUNDO!
OUÇA OS COMANDOS DA CONTINENTAL.”562

Mas, como sabemos, o improvável para os brasileiros aconteceu: o

Brasil perdeu para o Uruguai. Só a vitória poderia corresponder à

expectativa criada. Segundo Guedes, a derrota do Brasil trouxe o sentimento

de morte social. Voltou-se imediatamente ao cotidiano - por exemplo, em O

Globo, “na primeira página (...), apenas um editorial e um cabeçalho, sem

texto nem fotos, em letras médias, no alto da página, não perfazendo 10%

da área disponível”563 - e a unidade foi quebrada, fazendo surgir hierarquias,

divisões internas, buscando-se os culpados.564 Como a morte do futebol

brasileiro não poderia ser aceita, pois isto equivaleria à morte social do

grupo, as racionalizações da derrota espalharam-se por inúmeros artigos e

reportagens. Como Mário Filho havia apostado muitas “fichas” naquele

evento, após a derrota colocou-se a serviço de racionalizar a frustração.

O Jornal dos Sports, em sua primeira publicação após a derrota, veio

recheado de racionalizações. A manchete dizia: “ASSIM É O ESPORTE -

561
Guedes (1977).
562
Jornal dos Sports, Rio de Janeiro, 16 jul. 1950.
563
Idem, p. 57.
564
Idem, ibidem.

311
DECLARA FLÁVIO: NÃO HA NENHUMA DESCULPA A FORMULAR, OS

URUGUAIOS JOGARAM BEM E MERECERAM A VITÓRIA.565 Buscando

apoio para a desgraça, o jornal de Mário Filho dá destaque para Willy Weisl,

descrito como uma reconhecida autoridade européia da crônica esportiva,

que teria dito o seguinte: “Uruguai, campeão mundial, de fato; Mas o Brasil,

melhor team do mundo.566 No mesmo dia, outra matéria dizia que a crônica

italiana considerou a seleção brasileira a mais brilhante do campeonato, e

ainda elogiava a conduta esportiva dos brasileiros.567 A coluna de Mário

Filho nesta edição poderia ser considerada a síntese de uma reação, do

renascimento diante da “morte”:

“A SORTE DO NOSSO FOOTBALL ESTÁ AGORA EM TUAS


MÃOS!

Não brasileiro! Não nos entreguemos. Nem um golpe, o mais


duro que seja, não pode destruir o football brasileiro. Não somos
desfibrados, (o que é que há?)

Tivemos um Fried, um Fausto, um Domingos. Temos em Minas


um celeiro de cracks. Temos no Rio Grande do Sul [...]
Pernambuco fará surgir outros, como Ademir.

Do Brasil todo surgirão cracks que serão dignos daqueles que


nos deram, na raça e na fibra, a vitória de 1919. Apertemos num
abraço amigo e fraterno os nossos cracks. Agora, mais do que
nunca, devemos estar unidos em torno deles. Eles precisam de
teu apoio, da tua coragem, da tua fibra. Para o football
brasileiro, portador de tantas glórias, não decaia. Para não
pararmos. Para darmos mais um passo - um passo além da vice-
liderança. Para a liderança, afinal. E o football brasileiro dará
esse passo se contar contigo torcedor! E pode contar, não pode?”
568
(grifos meus)

565
Jornal dos Sports, Rio de Janeiro, 18 jul. 1950, p.1.
566
Idem, ibidem. Note-se que este texto veio publicado na primeira página.
567
Idem, p. 3.
568
Idem, p.7.

312
No texto aparece a idéia da “falta de fibra”, que deu origem, na

segunda edição do NFB, àquilo que Mário Filho denominou de

“recrudescimento do racismo”. É importante ressaltar que a idéia de “falta de

fibra” não foi qualificada como racismo em nenhum dos artigos escritos por

Mário Filho imediatamente após a Copa de 50.569 O recrudescimento do

racismo, como argumentei anteriormente, foi sua estratégia de continuação

do livro. Entretanto, é interessante que se retome o argumento de que os

esportes, em determinadas competições internacionais, tomam um aspecto

ritual de representação da nação e de toda a sua comunidade de indivíduos.

O conceito de nação traz, entre outras coisas, a representação da etnia, da

raça.570 O que estava em jogo naquela final, além de futebol, era a afirmação

da nacionalidade e, conseqüentemente, as imaginadas etnias ou raças. Se

as vitórias trouxeram a unidade, o sentimento de superioridade, de

realização da nação, a derrota veio como a morte social, trouxe o sentimento

de inferioridade, a “falta de fibra” de todo um povo.571

Do sentimento “somos os melhores do mundo” oscilou-se para o de

“somos os piores do mundo”. Deve-se dizer que a oscilação do

comportamento de onipotência para o de impotência não define

singularidades do brasileiro. Sacher e Palomino dizem que no futebol da

Argentina a palavra crise está presente desde da aparição deste esporte; a

569
Conferi as crônicas assinadas por Mário Filho de julho de 1950 até 1952, e levantei as crônicas que
antecederam a Copa de 1954. Em nenhuma das crônicas que se referiam à Copa de 1950 acha-se
denúncia explícita do recrudescimento do racismo.
570
Hobsbawm (1990).
571
Vogel (1982).

313
idéia de “crise” é um eixo central na história do esporte argentino.572 No país

do tango, o futebol também faz gerar o sentimento de serem os melhores e

os piores do mundo. Se o Brasil viveu o desastre do Maracanã em 50, a

Argentina viveu “el desastre de Suecia” em 58, fazendo fenecer o mito de

“los mejores del mundo” quando perdeu de 6 a 1 para a Checoslováquia.573

De fato, os dados introduzidos sobre a Argentina tornam-se importantes para

que relativizemos a “potente” idéia da singularidade brasileira.

A “falta de fibra” ou “falta de raça” foram “racionalizações” de nossa

derrota, e é óbvio que se o esporte coloca em jogo a auto-representação da

nacionalidade, também coloca em jogo o autoconceito de raça e de etnia.

Cabe lembrar que a falta de fibra que aparece nas crônicas do Jornal dos

Sports refere-se ao brasileiro, e não especificamente aos negros e mulatos

do time. A quebra da unidade ou da “communitas” gerou divisões internas e

a busca dos responsáveis. Quem foram os culpados da derrota?

Mário Filho escreve em sua coluna “A lição da derrota no melhor

momento do football brasileiro”, analisando os motivos de se elegerem os

culpados:

“Eu também senti a derrota como torcedor. Fui, durante os


noventa minutos de jogo, um torcedor. Igual a cada um dos
duzentos mil que encheram o Estádio. Quando jogam dois
clubes, quaisquer que sejam, vejo o match friamente! Como um
estranho!

Não entro na partida, não participo dela. Apesar disso só gosto


de escrever passadas vinte e quatro horas. Depois de rever o
match uma porção de vezes e a cada vez mais friamente. A

572
Sacher & Palomino (1988, p. 97).
573
Idem.

314
memória guardou os lances. Faço-os desfilar quase em câmara
lenta para melhor compreendê-los (...)

Só quando domino o match, quer dizer, quando julgo dominá-lo,


compreendo inteiramente, é que sento a escrever. Sempre
procuro afastar-me de influência. Quem assiste a um match não
pode fugir a certas influências. Por mais que se isole nunca se
está só.(...)

Culpava Bigode, culpava Barbosa, culpava o scratch que


não vencera o match que não podia perder. E o que mais me
revoltava era o fato de ter o scratch brasileiro perdido para um
adversário que normalmente tinha de ser batido.

Diante da indiscutível superioridade do scratch brasileiro o


torcedor não encontrava outra explicação a não ser a falta de
fibra. O torcedor brasileiro não podia acusar os jogadores do
scratch brasileiro de desinteresse.

Eu também participei dessa opinião quando enfrentei a


derrota. Foi preciso que deixasse passar horas, revendo o
match, e o match todo começou na manhã seguinte à grande
vitória contra à Espanha(...).

Para vencer o Uruguai, foi isto que o match da decisão mostrou,


bastaria que Bigode não falhasse duas vezes. Bastaria inclusive,
que Bigode só falhasse num dos goals ou que Barbosa, mesmo
Bigode falhando, não falhasse num dos goals.

Bigode e Barbosa não falharam por falta de fibra. Falharam


porque sentiram demasiadamente a carga da
responsabilidade de dar ao Brasil o título de campeão do
mundo.”574( grifos meus)

As imagens que se apresentam na crônica, quase uma semana após

o Desastre de 16 de julho, são importantes para que se desmistifiquem as

versões criadas sobre os culpados. Como podemos observar, Juvenal não

aparece relacionado entre os culpados. Mário Filho diz entender e

315
solidarizar-se com os torcedores que, diante da superioridade da equipe

brasileira, não podiam apelar para outra explicação a não ser a “falta de

fibra”. Mas conclui dizendo que, depois que distanciou-se do jogo, viu que a

derrota do Brasil teria começado com a vitória arrasadora contra a Espanha.

E as falhas de Bigode e Barbosa não indicavam “falta de fibra”, apenas o

peso da responsabilidade da vitória. De fato, essa leitura formou parte de

uma representação dominante na época, a de que a derrota foi causada pela

euforia da vitória contra a Espanha, que teria tornado os brasileiros

campeões de véspera. Daí viria o peso da responsabilidade de Bigode e

Barbosa.

O fato de Juvenal não ser apontado como vilão, logo após a derrota,

é significativo para entendermos o processo de construção de Mário Filho.

Os jornais apontaram como culpados os jogadores que participaram

diretamente nos lances dos gols sofridos pelo Brasil -1 Bigode e Barbosa - e

o técnico Flávio Costa. É curioso que Flávio Costa tenha sido apontado

como um dos culpados da derrota nos jornais da época e Mário Filho, no

NFB, secundarizar sua “culpa”. Isto é, quando elege os culpados da derrota,

não aponta Flávio Costa; se o fizesse complicaria ainda mais a sua

generalização do “recrudescimento do racismo”, pois outros mulatos e pretos

não foram culpabilizados e Flávio era branco. Mas voltemos a Juvenal.

Como o próprio Mário Filho relata no NFB, a culpa de Juvenal foi imputada

por Flávio Costa.

574
Jornal dos Sports, Rio de Janeiro, 22 jul. 1950, p.5.

316
O que fica claro ao percorrermos suas colunas sobre a derrota de 50

é que Juvenal só viria a aparecer como culpado em abril de 1951, numa

crônica que tinha por título: “Uma nova visão da grande derrota”.575 Nesta

crônica Mário relata uma conversa que tivera com Flávio Costa, que afirmara

que os culpados visíveis teriam sido Barbosa e Bigode, mas a culpa mesmo

seria de Juvenal, que não teria dado cobertura a Bigode. De fato, isto indica

que o Desastre de 50 não foi pensado apenas 24 horas após o jogo, como

dizia Mário Filho ser seu procedimento, mas foi elaborado ao longo dos

anos, até a segunda edição do NFB.

As racionalizações sobre a derrota de 50 foram muitas e variadas.

Uma das mais comentadas é a de que Obdúlio Varela teria intimidado

Bigode com um tapa na cara. Guedes afirma que esta história tornou-se um

mito, pois nada se acha nos jornais da época sobre o fato.576 Esta seria mais

um dimensão da mitologia que se construiu em torno da Copa de 50.

Mário Filho ruminou ou desfilou em sua mente várias

racionalizações. Na crônica chamada “O segredo da vitória dos uruguaios”,

diz que “Os brasileiros foram traídos pelo coração. Os uruguaios foram
577
salvos pelo coração”. O excesso de confiança traiu o coração brasileiro,

mas isto não significava que o brasileiro fosse “menos do que o uruguaio”.

Isto porque o que os uruguaios fizeram aqui os brasileiros fizeram em

Montevidéu”578,referindo-se a vitória brasileira na Copa Roca de 1932. O

575
Idem, 29 abr. 1951, p. 5.
576
Guedes (1977, p. 64).
577
Jornal dos Sports, Rio de Janeiro, 19 jul. 1950, p.8.
578
Idem, ibidem.

317
Brasil também teria vencido o Uruguai, quando este estava em pleno apogeu

após olímpico.579 Mário consola a si e aos seus leitores concluindo a crônica:

“Embora perdêssemos o campeonato do mundo ganhamos o


Estádio que é uma prova da capacidade de realização do
brasileiro, ganhamos a admiração do mundo por termos
realizado o mais brilhante campeonato do mundo de todos
realizados, por termos oferecido aos disputantes do campeonato
do mundo um ambiente de segurança ainda não oferecido em
nenhum outro campeonato do mundo e por termos exibido o
melhor football do mundo. Temos também muitos motivos de
orgulho. Orgulhemo-nos do que orgulharia a qualquer povo do
mundo.”580 (grifo meu)

Observe-se que Mário Filho quer reconstruir o orgulho nacional das

cinzas deixadas por aquela fatídica final de 1950. Ter o maior estádio e o

melhor futebol do mundo, seria motivo de orgulho e prova da capacidade de

realização do brasileiro. É interessante que a campanha promovida por

Mário Filho para a construção do Maracanã não terminou nem depois de

concluída a obra. Em várias outras crônicas, durante anos, enalteceu a

magnífica realização ou atacou os “supostos inimigos do estádio”. Contra os

“inimigos” apresentava estatísticas de público e renda para demonstrar que

o estádio fez desenvolver o futebol. Tinha seu corpo e alma envolvidos no

conjunto do evento da Copa de 50, a derrota o fez sofrer, e por sua coluna

derramava seu sofrimento, consolando a si e aos outros.

Em outras crônicas, Mário insiste que o Brasil teria apenas perdido

uma partida, mas não o conceito. “O Brasil ganhou mais do que perdeu com

a derrota”, mostrou ao mundo que somos um país esportivamente adulto

579
Idem, ibidem.

318
como “uma Inglaterra.”581 Observe-se, no discurso de Mário Filho, a

necessidade constante de buscar referência nos países desenvolvidos para

afirmar a nacionalidade. Noutro trecho desta mesma crônica diz que o

futebol brasileiro consagrou-se definitivamente e tornou-se respeitado

internacionalmente. “Vamos defender o melhor football do mundo que é o

nosso”. Era este o título de outra crônica.582

Mário Filho continuou militando para explicar a derrota de 50 e em

defesa do Maracanã durante algum tempo. Em 1951 escreveu artigos que

se referiam à fatídica derrota: “O adeus do football brasileiro ao 16 de

Julho”;583 “Uma nova visão da grande derrota” (já citado); “Fato indiscutível”:

a superioridade do footbal brasileiro;584 “Vamos esquecer o dia 8 de abril

para lembrar apenas aquele 16 de julho;585 “A vitória que o Vasco precisava

e o Brasil também” (o artigo referia-se à vitória do Vasco sobre o Nacional do

Uruguai).586 Em 1954 é possível encontrar artigos sobre a mesma temática:

“A culpa da vitória” (referindo à influência da vitória sobre a Espanha na final

contra o Uruguai);587 “Antes e depois de 16 de Julho”;588 “A justiça que se

deve fazer aos brasileiros”589 e etc. Além desses artigos, outros foram

publicados sobre a mesma temática durante anos. Entretanto, não se acha

em nenhum deles a denúncia de “recrudescimento do racismo”.

580
Idem, ibidem.
581
Idem, 20 jul. 1950, p.5.
582
Idem, ibidem.
583
Idem, 24 jul. 1951, p. 5.
584
Idem, 25 abr. 1951, p. 5-8.
585
Idem, 15 abr. 1951, p. 5-8.
586
Idem, 10 abr. 1951, p. 5-8.
587
Idem, 11 maio 1954, p. 5.
588
Idem, 25 maio 1951, p. 5.
589
Idem, 29 jun. 1954, p. 6.

319
O que se encontra nos jornais é que ao brasileiro faltou raça, faltou

fibra em 50. Se isso pode ser encarado como prova de racismo, afirmo que

na pelada que jogo com diferentes pessoas, de variadas “cores” ou “raças”,

todos são racistas, pois pede-se indiscriminadamente que se jogue com

“raça”. Se perdemos o jogo, a quebra da unidade do grupo acontece,

buscam-se os culpados e depois as justificativas. Faltou fibra, raça, coração,

sorte ou empenho. Acredito que as categorias “raça” e “fibra” no futebol

ainda demandem mais estudos empíricos para que não façamos

extrapolações espúrias.

Aqui não se está dizendo que as falhas de Barbosa e Bigode não

tenham gerado algum tipo de injúria racista. Seria ingênuo pensar que não.

A nossa experiência da sociedade brasileira indica que existe um tipo de

“racismo envergonhado”, como muito bem adjetivou Ademar Ferreira da

Silva. Conta Ademar, este nosso famoso medalhista, que certa feita, com um

grupo de amigos em São Paulo, na década de 60, foram ao Café Paris. Os

colegas começaram a entrar. Quando chegou a sua vez, o porteiro

perguntou: o Sr. tem reserva? Antes de Ademar responder, um amigo gritou:

Vamos, Ademar! Conta Ademar que então o porteiro o reconheceu e o

reverenciou como atleta; que antes, sem saber quem ele era, o havia

discriminado.590 Este é o tipo de atitude racista envergonhada que Ademar

diz existir no Brasil. Temos aqui outro tipo de tensão em relação aos negros:

quando bem-sucedidos, apesar de todo o handicap negativo que a estrutura

social lhes impõe são admirados, às vezes “embranquecidos”; é como se se

590
Depoimento pessoal prestado em dezembro de 1996.

320
estivesse dizendo: este resistiu à “seleção natural”. Entretanto, quando “mal-

sucedidos”, a raça é utilizada como critério de explicação ou desqualificação.

No Brasil, os negros são ao mesmo tempo admirados por sua condição

racial e rejeitados pelo mesmo critério. Se existiram injúrias racistas apenas

contra Barbosa e Bigode, foram a partir desta perspectiva. Porque falharam

no jogo, a raça pode ter se tornado um desqualificativo; se tivessem

ganhado, a raça seria também enaltecida. O racismo brasileiro deve ser

estudado com mais fineza analítica do que se tem feito em nome do

politicamente correto. Contudo, é importante lembrar que, no “Concurso

Guará”, Bigode e Barbosa estavam, após a Copa, entre os ídolos mais

votados pela população.591

Voltando à questão específica, fica evidente que a interpretação do

“recrudescimento do racismo”, que se espalhou e se reproduziu a partir da

segunda edição do NFB, foi construída por Mário Filho a posteriori, isto é,

anos após a fatídica derrota. A volta do racismo na Copa de 50, para Mário

Filho, funciona como uma nova queda ou dano que o negro sofre, para

depois afirmar-se nas Copas de 58 e 62 como herói nacional. O negro,

quando englobado, a nação realiza-se e o inimigo interno é derrotado. “O

futebol, quando branco, era racista, estrangeiro e elitista; quando negro e

mestiço, brasileiro”.

591
Jornal dos Sports, Rio de Janeiro, 4 ago. 1950. p. 7. Bigode venceu a apuração parcial, com 19.851
votos; Barbosa nesta apuração estava em quinto lugar com 3.990.

321
9 - A MODO DE CONCLUSÃO: OS SANTOS DE BARBA E
CABELO CARAPINHA

A idéia de realizar este estudo iniciou-se quando revisava a literatura

sobre a história do futebol brasileiro. Nessas leituras constatei que o NFB

tornou-se a fonte principal de dados sobre o passado do futebol. A partir daí,

não tive outra alternativa: fui à referida fonte.

Numa primeira leitura, fiquei encantado com o excesso de detalhes e

com a forma de narração. Depois, nas leituras subseqüentes, distanciei-me

e questionei a unanimidade com que a obra é citada. Observei que Mário

Filho teria escrito um épico sobre o futebol brasileiro e sobre o negro, ao

invés de uma obra de história, sociologia ou antropologia, como afirmam

seus fiéis consumidores. Neste sentido, na primeira parte do estudo

demonstrei que o NFB possui uma estrutura narrativa semelhante à do

conto, onde o negro teria sido segregado, humilhado, perseguido, provado

até afirmar-se como o herói construtor do futebol nacional. Futebol e

construção nacional articulam-se no plano da narrativa do NFB. Assim,

racismo, preconceito e cisão entre negros e brancos funcionam, na narrativa

de Mário Filho, como o “inimigo” a ser derrotado para que a nação se realize.

O nacionalismo em Mário Filho tem várias origens: ele foi um homem

do período da construção nacional dos anos 30; teve forte vinculação com

intelectuais que estavam no centro do projeto de construção nacional; teve

uma trajetória de mediador e interventor na construção do esporte nacional;

escreveu sobre o esporte, em especial o futebol, como se estivesse na

Academia de Letras e numa tribuna política construindo a nação. Seu

322
nacionalismo fazia de tudo um desafio para provar a capacidade do Brasil e

do brasileiro frente às grandes nações. Assim, por exemplo, a construção do

Maracanã era racionalizada por ele como um meio para o desenvolvimento

do futebol nacional e como prova da capacidade de realização do brasileiro.

Mário Filho pode ser considerado um ideólogo do esporte que colocou seu

potencial como homem e como romancista a serviço da construção do

esporte nacional.

O nacionalismo “transpira” em sua escrita. Contrapor e comparar

aquilo que denomina ser o brasileiro e seu futebol com aquilo que pensa ser

o inglês, o argentino, o italiano... e seus respectivos “futebóis”, dá a tônica a

sua narrativa. O NFB pode ser lido como uma obra baseada nas relações

entre a afirmação nacional e a afirmação do negro no futebol. Como foi visto,

o NFB é construído a partir da equação: futebol quando branco, estrangeiro;

quando negro e mestiço, brasileiro.

Na segunda parte do estudo, demonstrei que os “novos narradores”,

nutrindo-se dos dados e interpretações do NFB, tentam provar o passado e

o presente do racismo no estilo politicamente correto, e ao mesmo tempo

afirmar a singularidade do futebol brasileiro. A atitude dos “novos

narradores” é verificacionista, no sentido da crítica popperiana. Nela,

qualquer fato, caso ou interpretação de Mário Filho servem para “provar” que

o Brasil foi e é um país racista. As especificidades do racismo no Brasil não

importam aos “novos narradores”, pois “racismo é racismo”. Se o racismo é

tratado por eles a partir de um ponto de vista universal, o mesmo não

acontece com o futebol, que é lido a partir das lentes do relativismo. “Comer

323
o pastel e querer ficar com ele na mão” é um problema de autocontradição

performática, do ponto de vista teórico.592

Se Mário Filho identificou na superação dos inimigos - racismo,

preconceito ou cisão entre negros e brancos - a integração da nação e o

surgimento do futebol nacional, os “novos narradores” apenas desejam

identificar separadamente racismo e singularidade do futebol. Entretanto, ao

nutrirem-se dos dados do NFB acabam tragados pela narrativa de Mário

Filho e condicionados pela perspectiva do seu nacionalismo. Denunciam o

racismo e assumem como anti-racismo o elogio ao negro como construtor do

futebol brasileiro. Acabam, assim, por construir uma gesta moderna da raça

negra no futebol. A tônica da afirmação do negro através do futebol torna-se

tão forte que, poder-se-ia ler tal atitude como um “racismo às avessas” ou

um racismo ao estilo positivista.

Por fim, tentei demonstrar que os núcleos narrativos extraídos do

NFB e utilizados pelos “novos narradores” como “provas” das hipóteses de

racismo, segregação e exclusão, se fragilizam. A própria narrativa do NFB

fornece os sinais da fragilidade da hipótese racista, pois qualquer fato,

qualquer caso é transformado por Mário Filho em trama racial. A incursão

nos jornais da época indicou que outras tramas podem ser montadas a partir

dos casos “Pó-de-arroz”, Manteiga e AMEA. A hipótese da tensão entre

amadorismo e popularização do futebol é mais plausível para explicar tais

casos do que a simples denúncia do racismo na versão do politicamente

592
A metáfora do pastel é utilizada por Hugo Lovisolo em suas aulas.

324
correto. O núcleo do “recrudescimento do racismo”, na Copa de 50, como

ficou demonstrado, foi apenas uma estratégia de continuação do NFB.

Os “novos narradores”, ao beberem da fonte de Mário Filho, não

demarcam suas diferenças. Ao contrário, o NFB torna-se apoio ou mimesis

do passado593 fazendo com que os “novos narradores” dêem continuidade

ao discurso de identidade e integração nacional. Lembremos que Mário

Filho, para dar coerência ao seu romance, tanto supera o racismo quanto o

coloca como ameaça para que a nação se realize. De modo uniforme, os

“novos narradores” desejam denunciar o racismo, mas, ao elogiarem o

futebol negro e mestiço que se tornou nacional, acabam por reafirmar a saga

dos heróis de barba e cabelo carapinha.

2
No entanto, de acordo com Veyne (1995), história é fazer digesis ao invés de mimesis.

325
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