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FUTEBOL BRASILEIRO E O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL


Maureci Moreira de Almeida1
Francisco Xavier Freire Rodrigues2
(Este trabalho conta com o financiamento da FAPEMAT) 3

Resumo:
O presente artigo tem como foco discutir a problemática racial, e a questão do mito da
democracia racial no futebol brasileiro, tendo em vista que a história deste último, bem como outras
expressões da cultura brasileira, também foi e continua sendo marcado pela calamidade provocada
pelo racismo. Foi no futebol, por exemplo, que o mito da democracia racial ganhou força e mais
presença, principalmente nos discursos dos jornalistas e nas crônicas esportivas. Estas últimas nos
parecem que têm como ponto de referência os escritos do jornalista e escritor Mário Rodrigues
Filho que viveu entre 1908 e 1966. Sendo que sua obra é lembrada e citada nos dias de hoje em
artigos, teses e programas esportivos transmitidos pela televisão. Nossas argumentações e o caminho
metodológico adotado neste artigo tem como base o debate ocorrido entres os sociólogos Antonio
Jorge Soares, Ronaldo Helal e o antropólogo César Gordon Jr., em que apresentam uma discussão da
problemática racial no futebol a partir da obra “O negro no futebol brasileiro” de Mario Filho (1947).
Para aprofundar e atualizar essa discussão, usaremos como exemplo ilustrativo o caso ocorrido com
o jogador Grafite em 2005. Assim, tomaremos também como referência o texto do autor Marcel
Diego Tonini “Racismo no futebol brasileiro: revisitando o caso Grafi te/Desábato”, de 2012, em que
destaca a polêmica ocorrida com o referido jogador, vítima do preconceito racial em uma partida de
futebol. Para finalizar este artigo apontaremos algumas considerações sobre o racimo à brasileira.
Palavras-Chave: Futebol. Democracia Racial. Mario Filho.

Résumé:
Cet article se concentre sur l’examen des problèmes raciaux et la question du mythe de la
démocratie raciale dans le football brésilien, considérant que l’histoire du football, ainsi que d’autres
expressions de la culture brésilienne, a été et continue d’être marquée par la calamité causée par le
racism, en particulier dans les discours des journalistes et des chroniques sportives. Cettes dernières
semblent avoir un point de référence les écrits du journaliste et écrivain Mário Rodrigues Filho, qui a
vécu entre 1908 et 1966. Depuis son travail est rappelé et cité aujourd’hui dans des articles, des thèses
et des programmes sportifs réalisée par la télévision. Nos arguments et l’approche méthodologique
adoptée dans cet article est basé sur le débat a eu lieu entre les sociologues Antonio Jorge Soares,
Ronaldo Helal et l’anthropologue Gordon Cesar Jr., qu’ils présentent une analyse sur les questions
raciales dans le football a partir du livre “ Le Noir dans le football brésilien”, écrit par Mario Filho
(1947). Pour approfondir et actualiser cette discussion, nous utiliserons comme exemple le cas qui
impliquant le joueur Grafite en 2005. Ainsi, nous prenons aussi comme référence le texte de l’auteur
Marcel Diego Tonini “ Racismo no futebol brasileiro: revisitando o caso Grafite/Desábato”, de l’année
2012, qui souligne la controverse qui participé le joueur mentionné, victime de préjugés raciaux

1 Mestrando em Estudo de Cultura Contemporânea – ECCO/UFMT. Especialista em Relações Raciais e Educação


na Sociedade Brasileira pelo NEPRE/UFMT e, Bacharel e Licenciado em filosofia pela UFMT. Professor de Filosofia da
rede Estadual de Educação, lotado no CEFAPRO - Pontes e Lacerda/MT. Bolsista da FAPEMAT. Endereço postal: Rua
Rio Grande de Sul, nº 193, Centro, Cep: 78250-000, Pontes e Lacerda-MT. E
2 Doutor em sociologia, professor do departamento de Sociologia e Ciência Política da UFMT. Professor do
Programa de Pós-graduação de Estudos de Cultura Contemporânea – ECCO, do Instituto de Linguagens da UFMT.
Coordenador do Grupo de Trabalho Sociologia do Esporte da Sociedade Brasileira de Sociologia. Endereço postal:
Universidade Federal de Mato Grosso, Departamento de Sociologia e Ciência Política. Av. Fernando Corrêa, S/N, Coxipó
Cep: 78060-900 - Cuiabá, MT.
3 Fundação de amparo à pesquisa do Estado de Mato Grosso.

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dans un match de football. Pour conclure cet article, nous allons faire quelques considérations sur le
racisme brésilien.
Mots-Clés: Football. Démocratie Raciale. Mario Filho.

Introdução
O esporte mais popular do Brasil que arrebanha milhares de torcedores apaixonados aos estádios
e agrega uma multidão de praticantes que buscam lazer e uma maneira de manter a boa forma física é,
sem nenhuma dúvida, o futebol. Mas, infelizmente no futebol brasileiro, esporte tão democrático e uma
das maiores expressões da cultura nacional, também sempre foi marcado pela calamidade do racismo.
Pois assim, ao longo da história do futebol no Brasil foi surgindo uma concepção equivocada das
relações raciais que envolviam seus principais adeptos, tais como jogadores, empresários e jornalistas.
Talvez, pode ter sido assim que no futebol o mito da democracia racial tornou-se mais presente,
fomentado especialmente pelos discursos jornalísticos e pelas crônicas esportivas. Estas últimas têm
como principal referência os escritos do jornalista e escritor Mário Rodrigues Filho (1908-1966),
cuja obra até os dias de hoje é lembrada e citada em artigos, teses acadêmicas e programas esportivos
veiculados pela televisão. Dessa forma, a seguir aprofundaremos a questão do mito da democracia
racial vinculado ao futebol, abordando o debate entre os sociólogos Antonio Jorge Soares, Ronaldo
Helal e o antropólogo César Gordon Jr., em que discutem as perspectivas da obra de Mario Filho
como referência histórica para fomentar a crença de que no futebol haveria menos tensões raciais e
uma democracia racial. Para aprofundar e atualizar essa discussão, usaremos como exemplo o caso
ocorrido com o jogador Grafite em 2005, em que o autor Marcel Diego Tonini em seu artigo intitulado
“Racismo no futebol brasileiro: revisitando o caso Grafi te/Desábato”, de 2012, destaca a polêmica
ocorrida com o referido jogador, vítima do preconceito racial em uma partida de futebol. Ao final de
nosso texto apontaremos algumas considerações sobre o racimo à brasileira.

1. Mario Filho e o racismo no futebol brasileiro

Apesar da complexidade do debate, das discussões e legislações criadas em torno da


problemática racial, como por exemplo as ações afirmativas e a Lei 10.639/2003 que institui o ensino
da História da África e da Cultura Afro-Brasileira, o racismo continua muito presente e ao mesmo
tempo dissimulado na sociedade brasileira. Sendo que o mito e o ideal da democracia racial estão
imiscuídos na cultura e na mentalidade dos brasileiros. Parece-nos assim que é no futebol, como
uma das expressões da cultura brasileira e um gosto nacional, que o aspecto do ideal de democracia
racial está mais perceptível. Evidentemente que tal ideal foi uma construção histórica, com raízes na
formação social e cultural da nação brasileira, mas que ganhou força principalmente nos discursos
de intelectuais como Gilberto Freyre (1900-1987) e jornalistas como Mário Filho (1908-1966).
Mário Filho foi influenciado, segundo o sociólogo Antonio Jorge Soares (1999-2001), pelas ideias de
Gilberto Freyre ao tratar da história do futebol e do racismo no Brasil (SOARES, 1999). Sendo assim,
de acordo com Soares (1999), a história do futebol brasileiro teve uma significativa predominância e
contribuição da narrativa de Mário Filho. Contribuição está, segundo o autor, romanceada e de pouco
valor histórico. Entretanto, para outros autores, como Ronaldo Helal e César Gordon Jr. (1999), há

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sim um valor histórico relevante na obra de Mário Filho que não pode ser desconsiderado.
Dessa maneira, no aspecto das relações raciais, conforme aponta Soares (1999-2001), houve
três momentos narrativos na história do futebol que se integraram para descrever a vinda desse
esporte, de origem inglesa, para as terras brasileiras.

O primeiro momento narra a chegada do futebol e enfatiza a segregação dos


negros e dos pobres, o segundo relata suas lutas e resistências e o terceiro
descreve a democratização, ascensão e afirmação do negro no futebol
(SOARES, 1999, p. 119 [grifos do autor]).

A chegada do futebol ao Brasil marca também, no decorrer do tempo, uma forma narrativa de
representar as relações sociais e raciais atreladas em seu universo. As ciências sociais, de acordo com
Soares (1999), reproduzem esta narrativa justamente por encontrar validade na obra de Mário Filho,
“O Negro no Futebol Brasileiro”, com a primeira edição em 1947, e reproduzido e acrescentado de
mais dois capítulos em 1964 (SOARES, 1999). A obra de Mário Filho, conforme argumenta Soares
(1999), funcionaria

[...] como história mítica que vai sendo atualizada adequando-se às


demandas de construção de identidade e/ou às denúncias antirracistas,
independentemente do piso sociológico, histórico ou antropológico do qual
os textos afirmam partir (SOARES, 1999, p.120).

A histórias contada e narrada por diversa vezes acaba ganhando status de uma verdade. As
narrativas descritas na obra de Mário Filho, de tanto serem repetidas e narradas como verdades,
formam uma estrutura explicativa simbólica, portanto mítica, que exclui os processos argumentativos
que dizem como realmente ocorreu a inserção do futebol no Brasil e sua “[...] popularização,
democratização e construção do estilo brasileiro de jogar futebol” (SOARES, 1999, p.120).
A partir disso colocamos as seguintes questões: a história do futebol e sua disseminação no
Brasil estariam envolta em um mito? E o que compõe um mito? Podemos incialmente, para ensaiar
uma possível tentativa de resposta a estas questões, apontar o que seria, de modo geral, um mito.
Assim, este último é “[...] uma história tradicional largamente conhecida no âmbito da cultura,
que é creditada como uma crença histórica ou quase histórica, e que encarna ou simboliza alguns
valores básicos de uma sociedade” (WATT apud SOARES, 1999, p.120). Desse modo, Soares (1999)
sustenta que em “O Negro no Futebol Brasileiro” há todo um arcabouço mitológico que narra a
consolidação do futebol no país, ressaltando as qualidades dos jogadores, principalmente dos negros.
Nessa construção do mito do futebol brasileiro Mário Filho utilizou, como jornalista e escritor, uma
estratégia de divulgação de suas ideias acerca do futebol, em que afirma:

Antes de sair em livro, O Negro no Futebol Brasileiro teve a mais ampla


divulgação jornalística que se poderia desejar, pois foi publicado diariamente,
durante cinco meses, no O Globo, o jornal de maior circulação da imprensa
brasileira. E não apareceu uma refutação de quem quer que fosse, embora
quase todos os personagens da história do futebol brasileiro estejam vivos,

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tenham lido as páginas reunidas neste volume. O que prova que o que está
aqui é a verdade pura e simples (FILHO, 2003, p. 23[grifos do autor]).

Mário Filho (2003), publica os textos de sua obra no jornal O Globo, como estratégia de
preparar a recepção de seu trabalho junto ao público consumidor de notícias esportivas, mas também
podemos dizer pelo público interessado na cultura brasileira e nas questões raciais.
Parece que o método de Mario Filho deu certo. Nessa perspectiva, Soares (1999) levanta uma
questão importante no aspecto geral da obra de Mário Filho: “[...] mas, poder-se-ia perguntar, que
problemas haveria em usar Mário Filho como fonte de fatos e interpretações da história do futebol
brasileiro?” (SOARES, 1999, p.120).
Conforme a resposta do autor não haveria problema algum se a obra não fosse tratada, no
âmbito das ciências sociais, como quase única referência para abordar a história do futebol brasileiro
(SOARES, 1999). Ainda segundo o autor, a obra em questão tem sido aludida como prova, quase que
inquestionável, nas interpretações e menções sobre as relações raciais no futebol brasileiro e o estilo
nacional peculiar de jogá-lo (SOARES, 1999). Soares (1999), nesse sentido, constata que:

A carência de historiografia sobre o futebol converteu o [Negro no Futebol


Brasileiro] em clássico, na verdade em laboratório de provas, sem passar
pelo rigor da crítica. Um dos sintomas da carência, ou mesmo da ausência
de fontes é o fato de os consumidores do [Negro no Futebol Brasileiro], que
chamo de “novos narradores” construírem legitimações acadêmicas da obra
e de seu autor [...] (SOARES, 1999, p.120 [grifos do autor]).

Soares (1999) nomina de novos narradores os consumidores da obra de Mário Filho, em que
tratam-na como fonte privilegiada e original da história do futebol brasileiro e as relações raciais
implicadas nela.
Desse maneira, o autor inicia, no campo da sociologia do esporte, um debate muito fecundo
entre sociólogos e antropólogos que estudam o futebol e as questões raciais, tecendo uma crítica de
como interpretam “O Negro no Futebol Brasileiro”. Os autores que Soares analisa e aponta como
novos narradores são os antropólogos brasileiros José S. Leite Lopes e Cesar Gordon Jr. (SOARES,
1999). De acordo com o autor, estes antropólogos citam em seus estudos a obra de Mário Filho como
a mais significativa e importante fonte de pesquisa historiográfica sobre o futebol e a democracia
nas relações raciais no Brasil (SOARES, 1999), utilizando-a como fonte verdadeira, completa e
objetiva de todo processo histórico do futebol brasileiro e das relações raciais. Embora, estes novos
narradores procurem também investir contra a ideologia da democracia racial, acabam, de certo modo,
desconsiderando o contexto histórico e social no qual viveu Mário Filho e as influências que recebeu
desse contexto (SOARES, 1999).
A tese essencial de Soares (1999), na qual critica os cientistas sociais ao tratar da origem,
história e das relações raciais no futebol brasileiro, é de que há um discurso politicamente correto na
obra de Mário Filho que continua a ser reproduzido pelos novos narradores. Estes se baseiam em uma
obra que tem um traço romântico e prosador muito forte, já que Mário Filho, como assegura Soares
(1999), tinha uma escrita muito eloquente ao ressaltar as qualidades e os dramas vividos pelos negros

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no futebol brasileiro. Assim, Soares (1999) destaca que:

A pedagogia antirracista e o ataque à idealizada democracia racial brasileira


acabam sendo englobados ou engolfados pela força da narrativa de Mário
Filho sobre a trajetória do herói negro no futebol. Contudo, o futebol não
parece ser o local mais propício para observar o preconceito, a discriminação
e a “segregação” que desejam apresentar os “novos narradores”, na medida
em que eles próprios afirmam ter sido esse esporte um meio privilegiado de
mobilidade social e não somente no Brasil. Ao mesmo tempo, por também
desejarem anunciar o futebol como elemento central da identidade brasileira,
acabam apontando a raça, a miscigenação e o racismo como “causas” da
construção desse sedutor estilo de futebol que encanta a eles próprios e ao
mundo (SOARES, 1999, p.142 [grifos do autor]).

Pode-se perceber que o autor destaca o futebol não como um espaço ou local mais adequado
em que se poderia analisar o preconceito racial no Brasil. E por que não seria? Na visão de Soares
(1999), os novos narradores destacariam que houve, por meio do futebol, toda uma mobilidade
social do negro, e que o futebol também seria um elemento privilegiado na identificação da cultura
brasileira (SOARES, 1999). Certamente que essas alegações dos novos narradores é uma perspectiva
romanceada da problemática racial brasileira. Soares (1999), ao tecer essa crítica inicia, dessa maneira,
um debate que irá ter sua repercussão, sobretudo, entre esses novos narradores.

2. Helal e Gordon Jr.: quatro principais pontos de refutação à tese de Soares

Ronaldo Helal, um dos mais respeitáveis sociólogos do esporte brasileiro, e o antropólogo


Cesar Gordon Jr. respondem ao texto de Soares criticando sua tese, e ressaltam quatro pontos das
argumentações do autor para refutarem.
Assim, Helal e Gordon Jr. (1999) no primeiro ponto destacam a afirmação de Soares “[...]
que Mário Filho não teria construído um estudo histórico ou sociológico sobre o negro no futebol
brasileiro, mas um ‘romance’” (HELAL, GORDON JR. 1999, p. 148 [grifos dos autores]). Em um
segundo ponto, os autores asseveram:

Na medida em que Soares procura desmontar o [Negro no Futebol Brasileiro]


como uma obra histórica, acaba por recusar implicitamente a existência de
fortes tensões raciais dentro do futebol, juntamente com a possibilidade de se
extrair desse universo um conjunto de representações sociais sobre o negro e
sobre a mestiçagem. Mais ainda, Soares expressa uma leitura idiossincrática
do trabalho dos “novos narradores”, a quem acusa de superenfatizar,
como Mário Filho, o tema das relações raciais no futebol. Segundo ele, ao
“denunciar” o racismo no futebol, os “novos narradores” estariam apenas
seguindo os modismos do politicamente correto, que muito bem se adaptariam
às preocupações nacionalistas e integracionistas de Mário Filho (e por isso
se teriam utilizado de sua obra “para ‘provar’ que o Brasil foi e é um país
racista” [Soares 1998: 283, ênfase nossa]) (HELAL, GORDON JR. 1999, p.
152 [grifos do autor]).

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O terceiro ponto enfatizado pelos autores é que:

Não acreditando no texto de Mário Filho como uma obra histórica e


recusando a importância do idioma racialista no futebol, Soares também
rejeita a interpretação segundo a qual o futebol serviu, em alguma medida,
como domínio de “democratização” e ascensão social e econômica de parte
da população negra. Considerando a obra do jornalista como construção
literária de um processo e não como descrição objetiva, Soares cai numa
armadilha e passa a negar a existência do processo em si. Assim o podemos
entender de suas críticas a Gordon (p. 187-195), a quem acusa de ter
acreditado no processo de democratização racial contado por Mário Filho,
ou que “acaba convencido pelos argumentos de Mário Filho de que só teria
descrito um processo” (1998: 193) (HELAL, GORDON JR. 1999, p. 156
[grifos dos autores]).

No quarto e último ponto Helal e Gordon Jr. (HELAL, GORDON JR. 1999) salientam:

Em vários momentos o texto de Soares dá a entender que, uma vez que as


especificidades do futebol brasileiro foram uma “invenção” do discurso
nacionalista, podemos, chegar ao ponto de dizer que essas especificidades
não existem. É fundamental, como faz Soares, perceber que a identidade
nacional é uma construção que o discurso intelectual oficial, o discurso
do Estado - nação, “essencializa”. Porém, o fato de que essa identidade é
ou pode ser uma invenção que tem o Estado-nação por trás não suprime o
fato de que ela é “real” depois de instaurada, de que ela tem uma eficácia
(HELAL, GORDON JR. 1999, p. 159 [grifos dos autores]).

Helal e Gordon Jr. (1999) afirmam que o trabalho de Soares seria, dessa maneira, uma junção
desigual de duas teses. Conforme os autores, a primeira evidência que Soares sustenta é que há um
projeto de nação na obra de Mário Filho. Isso é realizado, de acordo com Helal e Gordon Jr. (1999),
com muito brilhantismo pelo autor ao mostrar que há uma tendência dominante para tal projeto em
“O Negro no Futebol Brasileiro”. Já a segunda tese garante que tudo que está contido na obra do
jornalista Mário Filho seria falso e sem muito valor histórico, pois apenas ressalta o mito em torno
do futebol e seu desenvolvimento em terras brasileiras. E “[...] que em nada [contribuiria] para o
‘conhecimento científico’” (HELAL, GORDON JR. 1999, p. 161 [grifos dos autores]).
Os autores consideram que Soares conduz seus leitores, por meio de seus argumentos,
a conclusões perigosas e apressadas sobre a obra de Mario Filho (HELAL, GORDON JR. 1999).
Estas deduções, conforme expõem Helal e Gordon Jr. (1999), é uma resistência ou mesmo uma
recusa de abordar a obra de Mário Filho do ponto de vista historiográfico pelo autor. Assim, há uma
desconsideração de um discurso racial presente na história do futebol brasileiro que foi substituído
“[...] pela questão do amadorismo x profissionalismo” (HELAL, GORDON JR. 1999, p. 162); certa

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dúvida no afrouxamento das tensões raciais no universo do futebol brasileiro; e, finalmente,

[...] a desconsideração da importância heurística da ideologia da identidade


nacional, que Soares relega a uma “simples construção” da intelectualidade
do Estado Novo, sem retirar daí questões que poderiam ser interessantes, por
exemplo, sobre como essa simbologia se atualiza na prática, como ela pode
ser acionada em determinados contextos e mesmo “assumida” pelos agentes
etc. Portanto, se podemos sem dúvida louvar a primeira tese de Soares, não
podemos subscrever as implicações da segunda (HELAL, GORDON JR.
1999, p. 162 [grifos dos autores]).

Diante dessas críticas em relação à sua tese, Soares suscita um debate interessante em que faz
uma tréplica as análises proferidas pelo sociólogo Ronaldo Helal e pelo antropólogo Cesar Gordon Jr.

3. Os novos narradores e a utilização da obra de Mário Filho como documento histórico

Soares (1999b) inicia sua tréplica reafirmando que os novos narradores praticamente utilizam
a obra de Mário Filho como documento histórico privilegiado, não a contrastando com outras fontes;
tomam os enunciados e análises empíricas de Mário Filho como evidências e de maneira acrítica; a
utilização que Mário Filho fez de fontes, por exemplo, recortadas de jornal, colocam em dúvida a
legitimidade do que diz, e os novos narradores apenas reproduzem isso sem muita parcimônia. Sendo
assim, esses novos narradores acabam ressaltando da obra de Mário Filho um aspecto, que de acordo
com Soares (1999b), enfatiza uma dimensão racial e segregacionista, quando na realidade Mário
Filho discursa a favor de uma integração entre as raças no Brasil (SOARES, 1999b).
Nessa vertente, Soares (1999b) salienta que:

Em nenhum momento, portanto, me “recuso a tratar o [Negro no Futebol


Brasileiro] historiograficamente”. Apenas insisti e insisto que o NFB não
pode ser a única fonte que deveríamos utilizar ou repetir ou parafrasear.
Procurei destacar que necessitamos e devemos ampliar e aprofundar os
levantamentos empíricos no campo da história do futebol, e dos esportes
de modo geral. Estou, portanto, levando a sério os autores que afirmam
que o futebol é um fenômeno importante da vida social, política e cultural
brasileira. Se é importante, não podemos apenas repetir Mário Filho nem
os que o repetem. Nesse sentido, afirmei que os “novos narradores” acabam
reforçando a invenção da tradição realizada por Mário Filho (SOARES,
1999b, p. 167 [grifos do autor]).

Talvez já seja suficiente até aqui a apresentação da resposta que Soares (1999b) dirige aos
seus críticos e interlocutores. Pois ele irá, reiterar a sua tese. Entretanto, é necessário enfatizar a
importância desse debate, sobretudo, no aspecto da proclamada democracia racial que paira como
reflexo no futebol brasileiro e que acaba dissimulando o racismo existente nesse meio. Mas que,

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em um momento ou outro, deixa revelar sua verdadeira face expressando sua força discriminatória
e preconceituosa. Um desses momentos, para trazer um exemplo do que estamos argumentando,
ocorreu no mês de abril de 2005 no que ficou conhecido como o caso Grafite/Desábato (TONINI,
2012). Em uma partida de futebol pela Copa Libertadores da América, entre time o argentino Quilmes
e o brasileiro São Paulo, na cidade de São Paulo, ainda na primeira fase do campeonato (TONINI,
2012). Depois de uma disputa de bola, já nos últimos instantes do primeiro tempo, entre os jogadores
Grafite (Edinaldo Batista Libânio) do São Paulo, e o argentino Arano do Quilmes, o zagueiro Leandro
Desábato vai ao encontro “[...] do atleta são-paulino e, segundo o delegado seccional de polícia, Dejar
Gomes Neto, teria dito a seguinte frase: ‘Negrito de mierda, enfi a la banana en el culo’” (TONINI,
2012, p. 440 [grifos do autor]). Como reação o jogador do São Paulo empurrou o rosto de Desábato e
imediatamente o juiz expulsou tanto Grafite quanto o jogador Arano (TONINI, 2012). Ao final da partida
o “[...] delegado da Polícia Civil, Osvaldo Gonçalves, entrou no gramado do Estádio do Morumbi,
perante todo o público e a imprensa, para dar voz de prisão a Desábato sob a acusação de crime de
injúria com agravante de racismo” (TONINI, 2012, p. 440-441). Desábato saiu diretamente do campo
para uma delegacia e ficou detido por 36 horas.
A repercussão desse fato foi grande. E mesmo durante a partida, de acordo com Tonini (2012),
a TV Globo, por meio de um de seus principais narradores esportivos, Galvão Bueno, ficou reprisando
as imagens lamentando o ocorrido. A imprensa brasileira e também a internacional, principalmente a
da argentina, no dia seguinte reprovou veementemente a atitude das autoridades brasileiras (TONINI,
2012).
Este fato marcou a atual história do futebol brasileiro, sendo até hoje lembrado, quando se
reporta a questão do racismo entre as quatro linhas. Mas, o que se observa desse episódio é a postura,
nem tanto da impressa argentina, mas da impressa brasileira que desqualificou a manifestação do ato
racista declarado pelo jogador do time do Quilmes. Por que a impressa nacional se portou assim?
Quais seriam então os motivos que a levaram a acusar de exagero tanto a denúncia do jogador Grafite
quanto a ação da própria justiça brasileira? Uma hipótese de respostas para estas questões deve
estar relacionada ao fato de que na mentalidade brasileira o mito da democracia racial é algo ainda
muito presente e atuante. Concomitante a isso, o brasileiro tem preconceito de ter preconceito, como
constatou Florestan Fernandes (2007). Pois, conforme este autor, o branco, ou o brasileiro de modo
geral, não trata esta questão abertamente (FLORESTAN, 2007). Há sempre um tabu racial na sociedade
brasileira, que limita as discussões e dificulta uma abordagem do racismo mais direta, prejudicando
o enfrentamento dessa problemática. Com base nesses apontamentos, Florestan Fernandes (2007)
acentua ainda:

[O branco ou o brasileiro de modo geral não tenta] [...] procurar entender


como se manifesta o [preconceito racial] e quais são seus efeitos reais, ele
suscita o perigo da absorção do racismo, ataca as “queixas” dos negros ou
dos mulatos como objetivação desse perigo e culpa os “estrangeiros” por
semelhante “inovação estranha ao caráter brasileiro” (FLORESTAN, 2007,
p. 42-43 [grifos do autor]).

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Torna-se compreensível, à vista disso, a atitude da impressa brasileira ao condenar a denúncia


do jogador são-paulino e a postura da justiça brasileira por processar o argentino Desábato. Na
realidade esta negação do racismo, por parte da imprensa, nos parece que tem suas raízes na crença
do mito da democracia racial. Ao negar o ato racista do jogador argentino a imprensa brasileira vale-
se de um argumento retórico em que defende que no campo de futebol os xingamentos são normais.
Sugerindo que chamar o outro de “macaco” não seria tão grave assim, por se tratar de um jogo de
futebol com um dos maiores adversários do Brasil, a Argentina. Este tipo de argumentação implícita
nas declarações de muitos jornalistas relativizaria a atitude de Desábato. Entretanto, a problemática
racial, e também sua recusa, faz parte da história do Brasil e da forma como os brasileiros se percebem.
Pois, desde o século XIX a todo um movimento constituído que tenta negar e ao mesmo tempo sanar
as questões raciais silenciando e desqualificando suas vítimas. Consciente ou inconscientemente a
imprensa brasileira atual, de modo geral, adota uma postura semelhante.

Considerações Finais

Ao longo deste artigo buscamos abordar, mesmo que brevemente, a história do futebol
brasileiro e relacioná-la com o mito da democracia racial que sempre esteve presente como um
elemento ideológico dominante na sociedade brasileira.
Para finalizarmos nossa discussão, colocamos ainda uma última questão, retomando o caso
ocorrido com o jogador Grafite: por que a manifestação do racismo no futebol, como acontecido com
este jogador, ainda persiste? De acordo com o sociólogo Rodrigues, (2005) valendo-se das concepções
de Pierre Bourdieu (1930-2002) acrescenta que:

Na análise de Bourdieu (1998) acerca da dominação (esta como imposição


de uma ordem simbólica dominante), a relação entre a estrutura social e a
posição ocupada pelos atores sociais no sistema social ganha um destaque
especial. Os dominados são aqueles que têm vozes silenciadas e, às vezes,
nem têm condições de participar ativamente da produção simbólica, pois
são moldados pelas estruturas e valores dominantes (RODRIGUES, 2005,
p. 112).

Ou seja, há uma estrutura de dominação, como uma ordem simbólica hegemônica, que
silencia aqueles atores sociais que são segregados racialmente. Estes atores, no caso dos negros, são
pressionados por essa ordem a permanecerem em uma posição social de subalternidade. Quando os
negros começam a se inserirem na história do futebol ganham visibilidade e acabam branquiados, sendo
cooptados pela lógica dominante. Talvez, por esse motivo, segundo Rodrigues (2007), os jogadores
negros são os que recebem os menores salários. Apesar de que a mídia esportiva corriqueiramente
noticia os altos salários de alguns jogadores negros de futebol. No entanto, a realidade é bem diferente

do que se veicula como verdade (RODRIGUES, 2007). Os jogadores negros do futebol profissional,
como em outros espaços e setores da vida cultural e social brasileira, enfrentam os reflexos da
discriminação racial.

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O mito da democracia racial, portanto, é algo ainda presente em muitos discursos, sobretudo
no campo do esporte e do futebol especialmente. Esse mito reforça o imaginário brasileiro de que
vivemos em um ambiente em que as raças (este termo em sentido analítico (ver Guimarães, 2002))
interagem harmonicamente em um paraíso racial chamado Brasil.
Considerando assim essa perspectiva, o mito e a ideologia da democracia racial estão
incorporados no universo do futebol de forma sutil, e mostram-se profundamente entrelaçados nas
relações sociais desse meio esportivo.

Referências Bibliográficas

FERNANDES, Florestan. O negro no mundo dos brancos. 2. ed. São Paulo: Global, 2007.
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