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UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO”

FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS – MARÍLIA/SP


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

“JÁ É UM VENCEDOR QUEM SABE A DOR DE UMA DERROTA ENFRENTAR”:


Uma análise sociológica da desumanização do jogador de futebol.

Projeto de pesquisa apresentado para o Programa de


Pós-graduação em Ciências Sociais da Faculdade de
Filosofia e Ciências (FFC), da Universidade Estadual
Paulista, como parte dos requisitos para seleção de
doutorado na linha Pensamento Social, Educação e
Políticas Públicas.

MARÍLIA - 2020
Resumo
A partir de um levantamento bibliográfico, leis, cartilhas e reportagens sobre o
futebol, faremos uma contextualização histórica, social, econômica e política do
futebol brasileiro para entendermos o processo de coisificação do jogador de futebol
profissional. Assim, poderemos então, a partir de entrevistas semiestruturadas,
saber o quanto esse processo afeta os jogadores. Num contraponto, destacamos o
técnico e psicólogo Fernando Diniz que acredita que o futebol é uma máquina de
moer gente e se coloca contrário ao sistema atual, buscando fazer um futebol
humanizado. Por meio de observação participante e entrevistas não dirigidas,
tentaremos responder as perguntas: Será Diniz, no Brasil, um precursor de um
futebol humanizado? Qual o seu papel na vida dos jogadores que o tem ou já o
tiveram como técnico? Como o seu posicionamento pode contribuir para termos um
esporte mais humanizado? Esse projeto irá contribuir para levantarmos esse tipo de
debate no meio acadêmico, visto que diante dos estudos na sociologia do futebol
não encontramos nada nesse sentido.

Introdução
Notamos que desde sempre as manifestações culturais estão intimamente
ligadas ao contexto político, econômico e social do país em que estão inseridas.
Elas não são somente um reflexo de determinado momento, mas estão também
inseridas no processo histórico de uma sociedade. Para que possamos entender
essa relação no futebol, é importante fazermos um levantamento histórico do próprio
esporte. Levine em Esporte e Sociedade: o caso do futebol brasileiro (1982) divide a
história em quatro períodos e depois, Rodrigues, em Modernidade, disciplina e
futebol: uma análise sociológica da produção social do jogador de futebol (2004)
acrescenta mais um período, sendo os cinco: a) primeira fase (1894-1904), b) fase
amadora (1905-1933), c) fase do profissionalismo (1933-1950), d) fase do
reconhecimento internacional e da comercialização do futebol (1950-1970) e e)
modernização e comercialização do futebol (1970 aos dias atuais).

Partindo dessa periodização feita por Levine (1982) e Rodrigues (2004)


apresentaremos aqui, de forma sucinta, o contexto que envolve o futebol brasileiro e
também os estudos sociológicos que emergiram nesses contextos.

O futebol no Brasil chega através de Charles Miller, um inglês que traz


consigo, em 1894, alguns aparatos para a prática do esporte na elite paulistana.
Embora alguns relatos sugerem que no Rio de Janeiro o futebol também foi iniciado
nesse período nas fábricas e nos colégios da cidade (PEREIRA, 2000, p.21) é em
1897, com o retorno do inglês Oscar Cox da Suíça, que o esporte é difundido entre
a juventude e organizado como um sistema de regras (RODRIGUES, 2004, p.269).
Além disso, o futebol desponta como um elemento da modernidade, “uma novidade
moderna e elegante” (PEREIRA, 2000, p.16).

Eram nos colégios da elite paulistana e carioca que se concentrava a maior


parte dos futebolistas:

[...] no Brasil foram justamente os colégios que muito cedo se


tornaram as forjas de futebolistas: em escolas como os colégios
militares, o Ginásio Nacional, o Alfredo Gomes, o Abílio, o
Anglo-Brasileiro, o futebol era quase uma matéria obrigatória. A
Igreja Católica, fator de enorme importância, parece não ter
levantado nenhuma objeção. Deve-se até salientar o fato de que
numerosos padres deram impulso decisivo para a difusão do novo
jogo. Uma certa notoriedade conseguiu o padre Manuel Gonzáles,
que deve ter fabricado a primeira bola brasileira de couro cru, para
que seus alunos do Colégio Vicente de Paula (Petrópolis) pudessem
dedicar-se ao esporte (ROSENFELD, 1993, p. 78).
Além dos colégios, o futebol também estava inserido nas fábricas, lugar
onde surgiram os clubes de futebol, como por exemplo o “The Bangu Athletic Club”,
criado em 1904 por funcionários ingleses de uma fábrica de tecidos - denominada
Companhia Progresso Industrial Ltda. - para se divertirem nas horas vagas. A
prática esportiva no clube só foi possível porque a direção da empresa apoiou
oferecendo as camisetas e um terreno para a instalação do campo (ANTUNES,
1994, p.104; FILHO, 1964, p.4)

Contudo, os ingleses do Bangu não conseguiram formar duas


equipes completas para jogarem entre si. Além disso, a localização
de Bangu, um bairro suburbano, e as dificuldades de transporte
desencorajavam seus compatriotas, que trabalhavam em outras
empresas, de irem até lá. A solução foi recorrer aos operários da
tecelagem, que certamente estavam com muita vontade de arriscar
chutes. Assim os trabalhadores tiveram acesso a um jogo até então
exclusivo da colônia inglesa e das camadas sociais mais
favorecidas. Através do Bangu, o futebol começou a se democratizar
no Rio de Janeiro (ANTUNES, 1994, p.104).
Com o início da democratização do futebol, novos operários começaram a
fazer parte de alguns clubes que funcionavam da seguinte forma: o desempenho
profissional, o tempo de serviço na empresa e o comportamento do operário eram
critérios para a escolha do jogador. O jogador-operário escolhido era trocado de
função e recebia um tipo de trabalho mais leve, pois era preciso reservar energias
para o futebol. Os jogadores recebiam ainda a autorização dos diretores da
empresa para saírem mais cedo e para irem aos treinos coletivos (CALDAS 1990,
p.29).

Embora esse tenha sido o início de uma democratização do futebol no Brasil,


o racismo ainda era muito predominante, visto que a seleção brasileira de 1919 foi
formada apenas por jogadores brancos, porque o então presidente Epitácio Pessoa
não aceitava a convocação de jogadores negros (RODRIGUES, 2004, p.272). Mas,
é nesse mesmo período que começa despertar a chamada revolução vascaína, pois
segundo João Manuel Santos (2010) a diretoria do clube Vasco da Gama, tendo
como presidente Francisco Marques da Silva, decidiu que mudaria a lógica do
futebol aceita até aquele momento. Assim, contrataram seis jogadores dos melhores
dois times dos subúrbios cariocas, não se importando com a cor da pele ou com a
condição social em que viviam esses atletas (SANTOS, 2010, p.209).

A revolução vascaína foi fundamental para a popularização do futebol no


Brasil, principalmente quando venceu o campeonato carioca em 1932, com um time
majoritariamente formado por negros e mulatos. Segundo Caldas (1990, p.44), essa
vitória representou “[...] muita humilhação para os times grã-finos, cujos times eram
formados, em sua grande maioria, por jovens estudantes e profissionais de alto
nível da elite carioca”.

Desde 1917, antes mesmo dessa popularização, os clubes já vinham


cobrando ingressos para os jogos, mas poucos jogadores eram pagos e quando
isso acontecia, eram salários irrisórios. Waldenyr Caldas define essa situação como
um semiprofissionalismo de mão única, no qual só os clubes ganhavam. Mas,
segundo ele, a situação começa a mudar quando os jogadores brasileiros começam
a migrar para a Europa e alguns países sul-americanos, lugares nos quais não
exploravam o trabalho desses jogadores, mas, ao contrário, eram reconhecidos e
pagos para jogar (CALDAS, 1994, p.44-45).
Em 1930, o Brasil estava saindo de uma grave crise econômica que afetou o
mundo todo, militares exigiram a renúncia do presidente Washington Luís e
entregaram o país nas mãos de Getúlio Vargas, que assumiu e logo apresentou o
Programa de Reconstrução Nacional.

O próprio Estado, através da sua política trabalhista, iria liquidar com


as pretensões dos cartolas conservadores em manter o amadorismo
no nosso futebol. O item 15 do programa é importante nesse sentido.
Seu texto fala em “instituir o Ministério do Trabalho, destinado a
superintender a questão social, o amparo e a defesa do operariado
urbano e rural”. Estava dando o pontapé inicial para a posterior
regulamentação do futebolista em 1933 (CALDAS,1994, p.45).
Com o governo Vargas (1930-1934) é importante salientar também a
formação de uma identidade nacional. Com o ideário de “país moderno”, Vargas
interveio fortemente em aspectos culturais que pudessem unificar e nacionalizar.
Hermano Vianna em O mistério do samba (1995, p.127) salienta que após a
Revolução de 1930, a movimentação política e cultural parece, sem dúvidas,
“centralizadora e unificadora, nacionalizante e homogeneizadora” a fim de encontrar
traços culturais que fossem aceitos como o que existe de mais “brasileiro” no país.

O futebol não ficou fora disso, a chamada ginga brasileira, uma técnica
futebolística, foi considerada um elemento importante na construção da identidade
nacional. Gilberto Freyre (1945) considera o futebol brasilero a expressão da
mistura das três raças e a ginga dos atletas dentro de campo fundou o estilo próprio
de jogar futebol.

Acaba de se definir de maneira inconfundível um estilo brasileiro de


futebol, e esse estilo é uma expressão a mais do nosso mulatismo
ágil em assimilar, dominar, amolecer em dança, curvas ou em
músicas, as técnicas européias ou norte-americanas mais angulosas
para o nosso gosto: sejam elas de jogo ou de arquitetura. Porque é
um mulatismo o nosso - psicologicamente, ser brasileiro é ser mulato
- inimigo do formalismo apolíneo sendo dionisíaco a seu jeito - o
grande feito mulato (FREYRE, 1945, p.432).
Mas, Franciso Rodrigues (2004, p.276) diz que é preciso olhar criticamente
essas interpretações e que, para o estilo de jogo brasileiro, poderíamos acrescentar
mais dois fatores: o racismo e a má interpretação das regras. Segundo ele, os
negros e mulatos não podiam tocar em jogadores brancos, porque isso poderia
provar agressões, então a necessidade de evitar o contato resultou em dribles e
habilidades baseados na ginga. Em relação à má interpretação das regras
universais do futebol no Brasil, Toledo (2002) defende que, no início, os brasileiros
achavam que o contato corpo a corpo e o tranco fossem irregularidades do jogo
e,para evitar essas infrações, desenvolveram habilidades de dribles que ficaram
conhecidos como o nosso futebol-arte.

Como já dito, esse estilo de jogo ficou conhecido como futebol-arte e então,
adentramos numa breve explicação da diferença entre este último e o futebol-força.
Podemos colocar aqui como futebol brasileiro (futebol-arte) e futebol europeu
(futebol-força), onde o primeiro é marcado pelas categorias: improviso, malandro,
artístico, individual, natureza, dom, habilidade, intuição, artístico e espetáculo;
enquanto o segunda é marcado pelas categorias: racional, eficiência, rigidez,
clássico, força, escola, competitivo, coletivo e aprendizado (DAMO, 2002, p.125).

Nas últimas décadas do século XX, o futebol começa a se modernizar e a ser


comercializado e então o futebol-arte vai dando lugar para o futebol-força, pois é
preciso mais vitórias e, para isso, intensificam a preparação física para que
tenhamos jogadores mais fortes do que habilidosos.

Alguns jornalistas dizem que os primeiros três minutos do jogo entre


Brasil e Rússia, o terceiro do Mundial de 1958, foram os mais
espetaculares da história do futebol. Aquela seleção brasileira foi o
início da passagem do jogo natural, amador, espontâneo, para o
futebol coletivo, organizado, profissional. No entanto, pelo estilo mais
lento e pelos longos espaços entre os setores do campo, era algo
que fazia parte do futebol mais antigo, das décadas de 1930, 1940,
1950 e 1960. A Seleção de 1970, revolucionária para a época, mais
disciplinada taticamente, com um jogo mais veloz e mais preocupada
com a marcação sobre os adversários, foi o início do futebol
moderno de hoje... (TOSTÃO, 2016, p.13).
A modernização do futebol é marcada pelo crescimento de recursos
financeiros no esporte e nos salários dos jogadores, pela ida de jogadores
brasileiros para a o futebol europeu, pelos jogos que agora passavam nas Tv’s e
pelo surgimento do Clube dos Treze, da Lei Zico e da Lei Pelé. (Rodrigues, 2004,
p.277). Nesse processo de modernização, no qual o futebol-arte vai cedendo lugar
para o futebol-força em nome de maior garantia de vitórias, essas duas maneiras de
jogar ainda se misturam durante os jogos, Tostão (2016) comenta:
Chico Buarque escreveu que os europeus eram os donos do campo,
pela organização, distribuição e posicionamento, enquanto os
brasileiros eram os donos da bola, pela habilidade, fantasia e
improvisação. Penso que, em 1970, o Brasil foi prosa e poesia, dono
da bola e do campo, a união perfeita do futebol organizado e
planejado com a improvisação, a fantasia e a técnica.” (TOSTÃO,
2016, p.79)
Outro elemento que marca a modernidade do futebol é a criação dos Centros
de Treinamentos, conhecidos hoje como CTs. Eles surgem como uma maneira de
formar novos jogadores brasileiros com padrões de formação no futebol mundial,
padronizando assim os métodos e as técnicas de jogar. Contavam nesses Centros
de Treinamento com preparadores físicos, fisiologistas, nutricionistas, psicólogos
entre outros profissionais que até então eram desconsiderados no universo
futebolístico (RODRIGUES, 2014, p.280).

Toledo (2002, p.136) define os CTs como laboratórios de formação de atletas


em escala ampliada, buscando a preparação e a competitividade. Laboratórios
esses que formam jogadores para serem negociados internacionalmente, coloca
como características desses jogadores a capacidade que têm em se adaptarem, a
disciplina, a pontualidade, a técnica e a preparação física. Franciso Rodrigues
(2004) acrescenta que essa disciplina está associada ao confinamento que esses
atletas vivem e também às formas de repressão como multas para coibir os atrasos
ou as faltas nos treinos diários, nas palavras dele “os CTs separam os atletas do
mundo exterior. Trata-se de um regime militar adaptado ao futebol” (RODRIGUES,
2004, p.279-280).

Essa disciplina é o que vai moldando o que Florenzano (1998) define como
corpo-máquina. O autor faz uma crítica à essa repressão imposta pela
modernização do futebol, pois o jogador que foge às regras é tido como
jogador-problema.

O atleta que passa a se chocar [...] com os mecanismos que vão


produzir este jogador como um “corpo máquina” e uma peça movida
pela engrenagem do poder, é que começa a ser classificado,
identificado e estigmatizado como jogador-problema. Então, quem é
o jogador-problema? Ele é uma personagem que surge nesse
contexto da modernização, da urgência de produzir este jogador
moderno e que não se submete às exigências impostas pelo novo
modelo. É o cara que não se deixa modelar fisicamente como um
“corpo máquina”, que recusa o comando do técnico, o qual,
supostamente, não pode ser questionado. É o atleta que se desvia
da norma definida para o jogador profissional. Todo um receituário:
não pode beber, não pode fumar, dormir cedo, praticar sexo dentro
de uma determinada regra, enfim, todo um jogo que se desenrola
neste momento.1
Quando o futebol se transforma em empresa com um modelo militar, o
jogador assume o papel de peça dentro de uma máquina. Nesse processo, em que
o jogador é prestador de serviços, não só o seu trabalho, mas também a sua vida é
controlada pelo clube (FLORENZANO, 1998, p.168). Melani e Negrão, em Passe
para a Servidão (1995, p.67), afirmam que quando o atleta se mantém alheio a esse
processo “a força de trabalho é comprada e vendida quase que de maneira
independente de seu proprietário original - [o que] leva à coisificação subjetiva [...]”.
Esse processo faz com que o jogador entenda a sua existência como parte de uma
engrenagem, a peça da máquina, a qual está vinculada aos interesses que não são
os seus.

Os jogadores de futebol não vendem apenas sua força de trabalho, como


qualquer outro trabalhador, mas eles próprios são vendidos e comprados, como
mercadorias. O valor dessas mercadorias não depende apenas da oferta e procura,
mas sim de uma lógica especulativa, pois o mercado futebolístico se tornou um
negócio atraente para investidores. Esse processo que podemos chamar de
coisificação, segundo Damo, é algo que todos os jogadores estão sujeitos, pois
existe um mercado de compra e venda muito bem estruturado (DAMO, 2006, p.58).

Tomando os jogadores aqui como trabalhadores, podemos entender esse


processo partindo do conceito de reificação, também chamada de coisificação, de
Lukács, mesmo que não nos aprofundando aqui nesse projeto, mas com a
pretensão de durante a pesquisa analisar de forma mais minuciosa esse processo.

A coisificação é a estrutura específica que a alienação assume na sociedade


capitalista, onde toda a produção é voltada para o mercado. O “fetichismo da
mercadoria” se dá no momento em que a força de trabalho perde seu caráter social
e toma um caráter de coisa, as relações já não são mais entre homens e sim entre

1
Entrevista de José Paulo Florenzano ao site Ludopédio em 12 de outubro de 2009. Disponível em:
https://www.ludopedio.com.br/entrevistas/jose-paulo-florenzano-parte-2/. Acesso em 18 de setembro
de 2020.
coisas. No futebol podemos perceber isso na venda de jogadores, tomando o
caráter de mercadoria e na combrança excessiva da torcida, como se os jogadores
fossem objetos que precisem entregar sempre os melhores resultados.

No momento em que temos o destino desse jogador/trabalhador controlado


por toda uma sociedade tudo se transforma em valor de troca. Na sociedade
dominada pela mercadoria, temos no trabalho do indivíduo, a reificação. Lukács
afirma que o capitalismo moderno segue na direção de substituir “por relações
racionalmente reificadas as relações originais em que eram mais transparentes as
relações humanas” (LUKÁCS, 1989, p.106).

A coisificação do jogador de futebol faz com que não só dentro desse


mercado ele seja tratado como objeto, mas esse tratamento reflete também na
forma como a sociedade o enxerga e se relaciona com ele. Grande parte de
torcedores, jornalistas esportivos, técnicos, etc. se remetem a esses atletas como
pessoas livre de histórias e subjetividades, como se deixassem de serem humanos
e fossem “apenas” jogadores, como se fossem dissociados de suas humanidades.

Alguns termos como “máquina de gols”, “jogador podrinho”, “jogador cone”,


etc. são utilizados pela mídia ou por torcedores para exaltar ou hostilizar o jogador
de futebol. Por exemplo, em setembro de 2020, a FIFA (Federação Internacional de
Futebol) twittou: “German Cano é uma máquina de gols! O argentino pode se tornar
o primeiro estrangeiro em quase 50 anos a terminar como artilheiro do Campeonato
Brasileiro? ” (FIFA, 06 set. 2020).2

Ainda, no sentido da hostilização de jogadores, precisamos citar que vivemos


numa era imediatista na qual o futebol também está inserido e nela há apenas uma
busca por resultados. Muitas derrotas em campeonatos são motivos de hostilidade
entre torcedores e jogadores. Em setembro de 2020, o Corinthians foi derrotado
pelo Fluminense por 2 a 1 e, na volta para casa, quando chegaram no Aeroporto de

2
Tweet retirado do usuário @FIFAcom em 06 set.2020, 7:54 p.m.
<https://twitter.com/FIFAcom/status/1302741962240544769> Acesso em 20 set.2020.
Guarulhos, foram abordados com xingamentos, intimidação e ameaça de agressão
física.3

Outro fato que mostra a coisificação do jogador de futebol foi na Copa do


Mundo, em 2014, quando o Brasil perdeu por 7 a 1 da Alemanha e, em especial, o
jogador Fred foi veemente vaiado dentro do estádio do Mineirão e chamado de
‘cone’ por grande parte da torcida brasileira nas redes sociais, que estava referindo
ao desempenho do mesmo no jogo. Fred, em entrevista à ESPN (2016)4 revelou:
"Queria entrar num buraco e não sair. Fui vaiado dentro do Mineirão, minha casa,
fiquei muito mal. Pedi 30 dias para o Fluminense, estava psicologicamente abalado”.

Nessa mesma Copa a seleção brasileira foi ridicularizada por “chorar


demais”, Lothar Matthaus, líder da seleção da Alemanha na conquista da Copa do
Mundo em 1990, por exemplo, se referiu a esse comportamento como sinal de
inexperiência e fraqueza:

Não compreendo por que um jogador de futebol chora. Os brasileiros


sempre choram. Se soa o hino, eles choram. Eliminaram o Chile e
choraram. Perderam para a Alemanha e choraram. Eles têm que
mostrar que são homens, que são fortes. Nunca tinha visto nada tão
nefasto como a linguagem corporal dessa equipe.5
Thiago Silva, capitão da seleção de 2014, foi o alvo preferido de críticas e
quanto ao abalo emocional, nessa mesma reportagem rebateu:

Vivi todas emoções possíveis, não via hora de começar, muitos


falam em emoção, às vezes quem não se emociona, não cumpre
seu papel em campo. E eu estudei muito sobre isso e tanto o Senna
quanto o Oscar tinham essa emoção. E comigo não é diferente, eu
choro porque me entrego em campo", disse o zagueiro em entrevista
à Globo.
Esse foi um exemplo muito claro do quanto a sociedade enxerga o jogador de
futebol como duas metades separadas: o jogador e o ser humano, como se o
jogador não pudesse ter sentimentos e muito menos expressá-los.

3
<https://globoesporte.globo.com/futebol/times/corinthians/noticia/noticias-corinthians-protesto-ameac
a-torcedores-jogadores.ghtml> Acesso em 20 set.2020.
4
<http://www.espn.com.br/noticia/567682_chamado-de-cone-fred-desabafa-queria-entrar-num-b
uraco-e-nao-sair> Acesso em 20 set.2020.
5
<https://copadomundo.uol.com.br/noticias/redacao/2014/07/13/astro-alemao-em-1990-critica-excess
o-de-choro-de-brasileiros-na-copa.htm?cmpid=copiaecola> Acesso em 20 set.2020.
Podemos dar luz à essas atitudes com um apontamento de Anatol Rosenfeld (2007,
p.106): “Assim, o futebol leva a uma catarse das massas, a uma descarga do ser
animal (...) e a uma sublimação de tensões que, como se mostrou, contam, no
Brasil, com uma abundância extraordinária de pontos de cristalização e de
condensação”.

Poderíamos citar muitos outros exemplos da objetificação do jogador por


parte da sociedade, mas não teríamos espaço aqui neste projeto, visto que o foco é
buscar nesse meio atores sociais que resgatem a humanidade do mesmo. E, com
alguns levantamentos conseguimos apontar Fernando Diniz, atual técnico do São
Paulo, como um desses atores. Diniz vai na contramão desse sistema de
coisificação do jogador de futebol, ele se incomoda com esse sistema e em diversas
entrevistas se manifesta sobre isso, dizendo que o futebol não é um lugar onde as
pessoas estão em primeiro e nem em segundo plano, além de denunciar que o
futebol é uma máquina de moer gente, principalmente para quem joga.

Fernando Diniz é formado em psicologia e deixa explícita sua luta por um


futebol mais humano. Em entrevista ao canal Os Canalhas, com João Carlos
Albuquerque e Rodrigo Viana, conta sua origem no futebol, as injustiças que
6
presenciou e como isso influenciou nessa sua luta pela humanização no esporte.
Nas suas palavras, é nítida sua preocupação desde o futebol de base, onde até
mesmo as crianças são definidas pelos resultados e não por aquilo que elas são.

Diante disso, o que não encontramos com facilidade são apoiadores de Diniz.
Enquanto o técnico busca um futebol mais humano, é cobrado por resultados e nem
sempre humanização e resultados estão no mesmo ritmo. Numa analogia com a
música, são como notas em compassos com valores de tempos diferentes, elas
podem existir e coexistir, mas cada uma no seu ritmo, mas ambas fazem parte da
música como um todo. Exemplo disso foi a quantidade de críticas que Fernando
Diniz recebeu por escalar Gabriel Sara como titular em vários jogos seguidos e esse
jogador não apresentava o resultado esperado pela torcida. Em coletiva de

6
<https://videos.bol.uol.com.br/video/fernando-diniz-futebol-e-uma-maquina-de-moer-gente-e-causar-
sofrimento-0402CD1B3464C0C16326> Acesso em 20 set.2020.
imprensa em setembro de 2020, após empate de São Paulo e Santos com dois gols
de Gabriel Sara, Diniz coloca:

Todo mundo querendo massacrar o moleque, como se fosse um


jogador pequeno, um jogador menor, e o treinador fosse um idiota
que o coloca pra jogar, e não é nada disso. E não é porque ele fez
os dois gols, é porque ele é bom, se não fosse bom não estava
jogando, passa por esse processo de transição. E assim a gente vai
matando um monte de moleque que poderia ser jogador, a gente vai
matando porque precisa suportar o moedor, o moedor de gente o
tempo todo, porque ele não para, quer sempre o sangue dos outros.7
Dentre muitas outras demonstrações de re(humanização) do jogador por
Fernando Diniz, nos questionamos aqui neste trabalho: será Diniz, no Brasil, um
precursor de um futebol humanizado? Buscaremos, neste percurso, apontar o
quanto a coisificação afeta o jogador de futebol e como tudo isso está ligado aos
aspectos históricos, políticos, econômicos e sociais na sociedade brasileira. Qual o
papel de Diniz na vida dos jogadores que o tem ou já o tiveram como técnico?
Como o seu posicionamento pode contribuir para termos um esporte mais
humanizado?

Portanto, o objetivo dessa pesquisa é entender a relação entre a estrutura


vigente no futebol profissional brasileiro, que coloca o jogador como coisa, e o
técnico e psicólogo Fernando Diniz, que está inserido nesse processo, mas expõe
claramente sua insatisfação e, num “trabalho de formiguinha”, propõe um futebol
mais humanizado no Brasil.

Justificativa
Como apontou Bourdieu (2004), a sociologia do esporte encontra muitos
obstáculos pois, por muito tempo, ela foi desdenhada pelos sociólogos e
desprezada pelos esportistas.
Quando fazemos um levantamento das pesquisas em torno do futebol,
notamos alguns temas mais explorados, sendo eles: a história do futebol, o futebol
como identidade nacional, o futebol enquanto organização, a profissionalização e
modernização do futebol, torcidas organizadas, o uso político desse esporte e o

7
Coletiva de imprensa pós jogo São Paulo e Santos no canal do Youtube do São Paulo:
<https://www.youtube.com/watch?v=qRnRM9bZ0eE&t=947s> Acesso em 20 set.2020.
racismo no futebol. É partindo desses estudos que entenderemos os aspectos
relacionados ao futebol para que assim possamos entender o processo de
coisificação de jogadores profissionais e levantar como contraponto o processo de
(re)humanização desses jogadores, tendo como um expoente desse pensamento de
esporte humanizado o técnico Fernando Diniz.
A importância dessa pesquisa se dá pelo fato de ser um assunto de grande
relevância, visto as consequências da coisificação do ser humano, assunto
praticamente inexistente dentro da sociologia do esporte. Como apontado, os
estudos dessa sociologia se dá prioritariamente no viés cultural e não nas relações
mercantis aqui expostas.

Objetivo Geral

Esse projeto tem como objetivo contextualizar o futebol brasileiro dentro dos
aspectos históricos, sociais, econômicos e políticos para conhecer o processo de
coisificação do jogador profissional de futebol e compreender como discursos e
atitudes de sujeitos diretamente ligados ao futebol podem contribuir para o processo
de (re)humanização do jogador de futebol, ou seja, como construir, a longo prazo,
um esporte humanizado?

Objetivos Específicos

1) Problematizar a situação social do futebol brasileiro a partir do seu processo


de modernização e comercialização e compreender o quanto isso contribuiu
para tornar o jogador um objeto;
2) Mapear os discursos de alguns técnicos brasileiros em coletivas de imprensa;
3) Analisar como discursos no sentido de um esporte humanizado podem
contribuir a longo prazo para a (re)humanização do jogador de futebol;
4) Contribuir para um debate em torno da humanização no futebol brasileiro de
dentro para fora do ambiente acadêmico. Sentido inverso do que temos hoje;

Procedimentos metodológicos
Nos últimos anos, alguns trabalhos merecem atenção e destaque por
apresentarem análises teórico-metodológicas expressivas sobre o futebol brasileiro,
contribuindo para o enriquecimento da produção científica e acadêmica num viés
histórico e cultural. Historiadores e sociólogos, preocupados com os possíveis
diálogos entre futebol, história e sociedade, acabaram por apresentar análises
significativas que nos despertam o interesse e consequentemente nos remetem à
futuras pesquisas.

É partindo dessas pesquisas que buscaremos ir adiante para responder as


questões aqui expostas. As questões serão resolvidas com levantamento de
bibliografias, embora seja um tema novo no ambiente acadêmico. Serão analisadas
as coletivas dadas por técnicos pré-selecionados no percurso do trabalho, para se
entender como eles contribuíram em seus discursos para maior objetificação do
jogador de futebol ou, então, para a (re)humanização dos mesmos.

Sabendo que os fatos sociais não podem ser analisados isoladamente, mas
que precisam ser pensados em meio às influências políticas, econômicas e
culturais, acrescentaremos a observação participante no clube no qual Diniz estará
inserido durante o desenvolvimento da pesquisa, como mais uma técnica de
pesquisa, pois ela possibilita o exame de sentidos de “um grupo, evento ou
indivíduo de um contexto.” (VICTORA; KNAUTH, HASSEN, 2000, p. 63).

Com o técnico Fernando Diniz pretende-se realizar entrevistas não dirigidas,


pois será um estudo exploratório e como Piaget (s/d) já esclareceu, nesse tipo de
pesquisa é preciso “saber observar, [...] não desviar nada, não esgotar nada e, ao
mesmo tempo, saber buscar algo de preciso, ter a cada instante uma hipótese de
trabalho, uma teoria, verdadeira ou falsa, para controlar.". E com os jogadores, que
tem ou já tiveram Diniz como técnico, propomos entrevistas semiestruturadas para
conhecer e compreender o papel de Fernando Diniz no processo de humanização
do jogador.

Atividades e cronograma de execução


Bibliografia consultada

ANTUNES, Fatima Martins Rodrigues Ferreira. O futebol nas fábrica. In: Revista
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