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COLEÇÃO ANTROPOLOGIA E CIÊNCIA POLÍTICA

I. Os fornecedores de cana e o 23. Angra I e " melancolia de um" era


Estado intervcncionista Gláucia Oliveira da Silva
Delma Pessanha Neves
2. Devastação e preservação
24. Mudança ideológica par" a qualidade
Miguel Pedro Alves Cardoso
Victor Tumer
ambienta I no Rio de Janeiro 25. Trabalho e residência: estudo
José Augusto Drummond das ocupações de empregada
3. A predação do social doméstica e empregado de cdilicio
Ari de Abreu c Silva a partir de rnigrantes "nordestinos"
4. Assentamento rural: Fernando Cordeiro Barbosa
reforma agrária em migalhas 26. Um percurso da piuturu:
Delrna Pessanha Neves a produção de identidades de artista
5. A antropologia da academia: Lígia Dabul
quando os índios somos nós 27. A Sociologia de Taleott Parsons
Roberto Kant de Lima José Maurício Domingues
6. Jogo de corpo 28. Da anchova ao salário mínimo:
Simoni Lahud Guedes uma ctnogratia sobre injunções
7. A qualidade de vida no Estado do de mudança social em Arruial do Cabo/RJ
Rio de Janeiro Simone Moutinho Prado
Alberto Carlos Almeida 29. Centrais sindicais e sindicatos
8. Pescadores de /taipu no Brasil dos anos 90: o caso Nilcrói
Roberto Kant de Lima Fernando Costa
9. Sendas da transição 30. Antropologia c direitos humanos
Sylvia França Schiavo Regina Reyes Novaes c
10. O pastor peregrino
Amo Vogel
Roberto Kant de Lima
31. Os companheiros - trabalho
DRAMAS, CAMPOS E METÁFORAS
11. Presidencialismo, parlamentarismo e sociabilidade na pesca de /taipu/RJ
e crise politica no Brasil
Alberto Carlos Almeida
Elin.a Gonçalves da Fonte Pessanha
32. Festa do Rosário: icouogralia
Ação simbólica na sociedade humana
12. Um abraço para todos os amigos: c poética de um rito
algumas considerações sobre o tráfico Patrícia de Araújo Brandào Couto
de drogas no Rio de Janeiro 33. Antropologia e direitos humanos 2
Antônio Carlos Rafael Barbosa Roberto Kant de Lima
13. Antropologia - escritos exumados - 1 : 34. Em tempo de conciliação Tradução
espaços circunscritos - tempos soltos Angela Moreira-Leite
L. de Castro Faria 35. Floresta de Sim bolos - aspectos Fabiano Morais
14. Violência e racismo no Rio de Janeiro do ritual Ndembu
Jorge da Silva Victor Tuner
15. Novela e sociedade no Brasil
Loura Graziela Figueiredo
36. A produção da verdade "'15 práticas
judiciárias criminais brasileiras:
Revisão técnica
Fernandes Gomes uma perspectiva untrupolúgica Amo Vogel
16. O Brasil no campo de futebol: de um processo criminal
. estudos antropológicos sobre os Luiz Figueira
significados do futebol brasileiro 37. Ser polícia, ser militar: o curso
Sirnoni Lahud Guedcs de formação na socialização
17. Modcrnidade e tradição: do policial militar •
construção da identidade social 38. Antropologia e Direitos Humanos 3-
dos pescadores de Arruinl do Cabo (RJ) Prêmio ABA/FORO
Rosyan Campos de Caldas Britto Roberto Kant de Lima (Organizador)
18. As redes do suor - a rc produção social 39. Os caminhos do leão:
dos trabalhadores da pesca em Jurujuba uma etnogralia do processo
Luiz Fernando Dias Duarie de cobrança do imposto de renda
19. Escritos exumados - 2: dimensões Gabriela Maria Hilu da Rocha Pinto
do conhecimento antropológico 40. Antropologia - escritos exumados 3-
L. de Castro Faria Lições de um praticante
20. Seringueiros da Amazônia: Luiz de Castro Faria
dramas sociais c O olhar antropológico 41. A vida social das coisas: ~IS mercadorias
Eliane Cantarino O'Dwyer sob uma perspectiva social
21. Práticas acadêmicas e o ensino unlversitârio Arjun Appadurai fdUFF
Paulo Gabricl Hilu da Rocha Pinto
22."00111", "Iluminados" e "Figurões": um EDITORA DA UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
estudo sobre a representação da oratória no
tribunal do Júri do Rio de Janeiro
Alessandra de Andrade Rinaldi
Niterói, 2008
e 1974 by Cornell University Press
Tüulo original: Dramas, fields, and metaphors. Symbolic action in human society.

e 2008 (tradução brasileira) EdUFF - Editora da Universidade Federal F1uminense - Rua Miguel de Frias, 9-
anexo - sobreloja - lcaraí - Niterói - RJ - CEP 24220-900 - Te!.: (21) 2629-5287 - Telefax: (21) 2629-5288.
hup://www.editora.uff.br- E-mail: eduff@Vm.uff.br
sUMÁRIO
É proibida a reprodução total ou parcial desta obra sem autorização expressa da Editora.

Normalização: Caroline Brito


Capa: Majo! Ainã Vogel PRÓLOGO, 9
Edição de texto e revisão técnica: Arno Vogel
Tradução: Fabiano Morais
Editoração eletrônica: Vívian Macedo de Souza
Diagramação: Pâmela Souza
APRESENTAÇÃO, 11
Supervisão gráfica: Káthia M. P. Macedo

CAPÍTULO 1
Catalogação-na-publicação
Dramas sociais e metáforas rituais, 19
1'953 Turner; Victor.

Dramas, campos e metáforas: ação simbólica na sociedade hwnana I Vietor Turner;


Tradução de Fabiano de Morais. Niterôi; Editora da Universidade Federat Flwninense, 2008.
CAPÍTULO 2
Paradigmas religiosos e ação política:
278 p.: ztcm. - (Coleção Antropologia e Ciência Política; 42)
Thomas Becket no Concílio de Northampton, 55
Inclui bibliografias.
ISBN 978-85-228-0419-1
CAPÍTULO 3
I. Antropologia. 2. Simbolismo. 3. Ritual I. Título. 11.Série. Hidalgo: A História enquanto Drama Social, 91
CDD 307.7
CAPÍTULO 4
A palavra dos Dogon, 145
UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
Reitor: Roberto de Souza Salles
Yice-Reitor: Emmanuel Paiva de Andrade CAPÍTULO 5
Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação: Humberto Fernandes Machado
Diretor da EdUFF: Mauro Romero Leal Passos' • Peregrinações como processos sociais, 155
Diretor da Divisão de Editoração e Produção: Ricardo Borges
Diretora da Divisão de Desenvolvimento e Mercado: Luciene Pereira de Moraes
Assessora de Comunicação e Eventos: Ana Paula Campos
CAPÍTULO 6
Passagens, margens e pobreza:
Comissão Editorial
Presidente: Mauro Romero Leal Passos símbolos religiosos da Communitas, 215
Gisálio Cerqueira Filho
Hildele Pereira MeIo
João Luiz Vieira CAPÍTULO 7
Editora filiada à
José Walkimar de Mesquita Carneiro
Lívia Reis
Metáforas da antiestrutura na cultura religiosa, 253
ti .
Márcia Menendes Mona
Maria Laura Martins Costa
Mariângela Rios de Oliveira EdUFF
Vânia Glória Silami Lopes
ILUSTRAÇÕES

DIAGRAMAS
Cronologia do martírio de Becket, 66

Genealogia de Henrique II da Inglaterra, 67

A independência: algumas datas-chave, 96

MAPAS
México: Estado, igreja e centros de peregrinação, 179

Peregrinação para Pandharpur, 181

Chalma: uma rota de peregrinação dos índios otomi, 185

Peregrinação para Ocotlán, 198

Para A1ex e Rory


PRÓLOGO

Muitos antropólogos voltaram, recentemente, a direcionar suas preo-


cupações teóricas e de pesquisa para os símbolos nos processos so-
ciais e culturais, religiosos, míticos, estéticos, políticos e até mesmo
econômicos. É difícil afirmar se este revival é uma resposta tardia
aos progressos em outras disciplinas (psicologia, etologia, filosofia,
lingüística, para citar algumas poucas), ou se ele representa um retor-
no a uma preocupação central após um período de negligência. Em
pesquisas de campo recentes, antropólogos vêm coletando mitos e
rituais no contexto da ação social, e avanços nas técnicas do campo
antropológico produziram dados mais ricos e refinados do que nun-
ca. Assim sendo, estes novos dados provavelmente desafiaram teóri-
cos a providenciar quadros explicativos mais adequados. Sejam quais
forem os motivos, não há como negar a presença de uma curiosidade
renovada em relação aos laços entre cultura, cognição e percepção,
na medida em que esses laços se traduzem em formas simbólicas.
,
Embora tenham surgido recentemente excelentes monografias indi-
viduais e artigos sobre antropologia simbólica ou simbologia compa-
rada, ainda não há um foco ou fórum em comum que possa ser forne-
cido por uma série de livros organizados por tópicos. Esta série se
propõe a preencher esta lacuna. Ela se destina a incluir não somente
monografias de campo e estudos teóricos e comparativos de antropó-
logos, mas também trabalhos de acadêmicos de outras disciplinas,
tanto científicas quanto humanísticas. O surgimento de estudos neste
tipo de fórum encoraja a concorrência, e a concorrência pode produ-
zir novas teorias proveitosas. Portanto, esperamos que esta série seja

9
lima a a de muitos aposentos, proporcionando hospitalidade para os
qu praticam quaisquer disciplinas cuja preocupação com a sirnbologia
ornparada seja séria e criativa. Com demasiada freqüência, por con-
ta de um pedantismo estéril, disciplinas são blindadas contra influên-
cias intelectuais significativas. Todavia, nosso principal objetivo é
trazer ao conhecimento do público trabalhos sobre rituais e mitos
escritos por antropólogos, e nossos leitores encontrarão uma varie- .
dade de abordagens estritamente antropológicas, desde análises for-
mais de sistemas de símbolos até relatos empáticos de rituais
divinatórios e de iniciação. APRESENTAÇÃO
Victor Turner
Universidade de Chicago

"Dramas", "passagens", "ação" e "processos" - estas são as pala-


vras-chave nos títulos dos ensaios deste livro. Acompanham-nas
termos como "metáforas" e "paradigmas". Na realidade, o objetivo
do livro é sondar e descrever as maneiras pelas quais ações sociais
de vários tipos adquirem forma por meio de metáforas e paradigmas
nas cabeças de seus atores (lá colocadas por ensino explícito e ge-
neralização implícita por intermédio da experiência social), e, em
determinadas circunstâncias intensivas, geram formas sem prece-
dentes que legam à História novas metáforas e paradigmas. Em
outras palavras não vejo a dinâmica social como um conjunto de
"performances" produzidas por um "programa", como crêem cer-
tos colegas meus, principalmente os Novos Antropólogos. No caso
da espécie humana, a ação viva jamais pode ser a conseqüência
lógica de qualquer grande plano. Isto não se dá por conta da
inveterada tendência do "livre-arbítrio" humano de resistir ao "bem
manifesto" e à "racional idade manifesta", conforme acreditavam
Dostoievski, Berdyaev, Shestov e outros russos "alienados", e sim
pela estrutura processual da própria ação social. Van Gennep fez
uma notável descoberta quando demonstrou, em seu trabalho com-
parativo sobre ritos de passagem, que a cultura humana tornara-se
ciente de um movimento tripartido no espaço-tempo. Seu foco res-
tringia-se aos rituais, mas seu paradigrna cobre diversos processos
extrarituais. Ele insistia que em todos os movimentos ritualísticos
havia ao menos um momento em que aqueles seres que agiam de
acordo com um script cultural liberavam-se das exigências
normativas, momento este no qual eles estavam, de fato, betwixt and

10 11
b ttween' ucessivas posições em sistemas jurídico-políticos. Neste
vão entre mundos ordenados, quase tudo pode acontecer.
Nc te ínterim da "liminaridade", existe a possibilidade de se ficar de
(ora não somente da sua própria posição social, mas de todas as posi-
ções sociais, e de se formular uma série potencialmente ilimitada de Quando se examinam grandes dimensões de processos sociais, ob-
arranjos sociais alternativos. O fato de este perigo ser reconhecido serva-se uma quase interminável variedade de resultados limitados e
em todas as sociedades toleravelmente ordenadas fica claro na proli- provisórios. Alguns parecem se enquadrar no lado programático da
feração de tabus que cerceiam e constrangem aqueles que escapam escala, outros fogem de articulações estruturais precisas. Mas a prin-
da estrutura normativa durante essas poderosas transições, no caso cipal qualidade da sociedade humana, quando vista processualmen-
das sociedades tribais, ritos de iniciação prolongados e, nas socieda- te, é a capacidade que os indivíduos possuem de, por vezes, ficar de
des industriais, legislação contra aqueles que, utilizam gêneros fora dos modelos, padrões e paradigmas de comportamento e pensa-
"liminóides" tais como a literatura, o cinema e o jornalismo sério mento, os quais são condicionados a aceitar quando crianças e, em
para subverter os axiomas e padrões do Ancien Régime - tanto em raros casos, inovar eles mesmos certos padrões ou aquiescer às ino-
casos gerais quanto particulares. vações. Não há nada de misterioso nessa capacidade se aceitarmos o
Sem a liminaridade, o programa pode de fato determinar a performance. testemunho da biologia evolutiva. Espécies em evolução são adaptá-
Porém, dada a liminaridade, programas prestigiosos podem ser mi- veis e susceptíveis; elas escapam às restrições da programação gené-
nados e muitos outros, alternativos, gerados. O resultado do confron- tica, que condena uma espécie à extinção em condições de mudan-
to entre programas monolíticos, apoiados pelo poder, e suas diversas ças ambientais radicais. Precisamos buscar os processos que
alternativas subversivas é um "campo" sociocultural no qual surgem correspondem, na evolução da ação "cultural" simbólica humana, a
muitas opções, não somente entre Gestalten programáticas, mas tam- essa abertura na evolução biológica. Creio que os encontramos na-
bém entre as partes de diferentes programas. Conforme argumentou quelas formas liminares, ou "liminóides" (revolução pós-industrial)
diversas vezes, meu colega, o crítico de arte Harold Rosenberg, a de ação simbólica, aqueles gêneros de atividades de tempo livre, nos
cultura em qualquer sociedade, em qualquer momento, é mais o des- quais todos os padrões e modelos anteriores sujeitam-se a críticas, e
pojo, ou o "resíduo", de sistemas ideológicos anteriores do que um formulam-se novas formas de se descrever e interpretar a experiên-
sistema em si mesmo, um todo coerente. Todos coerentes odem existir cia sociocultural. A primeira dessas formas se expressa na filosofia e
(porém eles costumam estar dentro de mentes individuais, 2S:'rvezes na ciência, a segunda, na arte e na religião.
na uelas de obsessivos ou aranóicos mas os ~os sociais huma- Este livro preocupa-se tanto com a força quanto com a vitalidade de
nos costumam encontrar sua abertura ara o futuro na variedade de certos "paradigmas radicais", tais como a aceitação do martírio em
suas metáforas referentes ao ue seria a vida boa e na dis uta entre prol de uma causa altruísta - a exemplo dos casos um tanto
seus aradi mas. Se há ordem, ela é raramente ereestabelecida em- contrastantes de Becket e Hidalgo -, e com os dramas sociais em que
grupos e personagens conflitantes tentam afirmar seus próprios
o termo" betwixt and between" funde dois sinônimos - betwixt sendo uma forma paradigmas e esvaziar os de seus oponentes - como nos confrontos
arcaica de between - em uma expressão idiomática que aponta a indeterminação entre Becket e Henrique 11e entre Hidalgo e seus antigos camaradas,
e falta de localização precisa da coisa designada. A ausência de uma expressão os quais, por vários motivos, apoiaram a hegemonia espanhola sobre
equivalente em português, com a possivel exceção do coloquial "nem lá, nem
cá", e a incorporação prática dessa expressão em inglês ao vocabulário da
o México. Também considerei os processos pelos quais os paradigmas
antropologia brasileira, devido ao intenso uso deste texto de Turner, levaram-nos religiosos voltam a ganhar continuamente vitalidade, como no caso
a optar pela manutenção da expressão original. Exemplos de possiveis traduçôes das peregrinações, que fazem com que indivíduos se comprometam
desta expressão são: "aquém e além dos pontos fixos", "entre dois mundos" e
incondicionalmente com os valores de uma determinada fé de tal for-
"entre e entrementes". [N. da Edição].
ma que privações e os desastres imprevisíveis de longas viagens por

I~ 13
questão, porém, minha preocupação com sociedades complexas em
vru ias fronteiras nacionais tornam-se não somente aceitáveis, mas
mutação (Inglaterra do século XII, México do século XIX, Índia medi-
lambem excitantes. Paradigmas religiosos também se mantêm pelo
eval, Europa e Ásia medievais e modernas enquanto palco de proces-
SIII iirncnto periódico de contraparadigmas que, sob certas condições,
sos de peregrinação) aponta na direção de ta formulação.
sao rcabsorvidos pelo paradigma inicial e central. O ensaio "Metáfo-
I as da antiestrutura na cultura religiosa" exemplifica este processo No contexto atual, "campo " ão os domínio culturais abstratos nos
no contexto da cultura indiana. Creio que ele ainda se aplique de quais os paradigma são formulado', e tabelecidos e entram em con-
forma mais abrangente e tenha algo a dizer sobre os ciclos de desen- flito. Tais paradigma con istem em um conjunto de "regras" pelas
volvimento nas religiões européias e chinesas. O que ontem era liminar quais vários tipos de seqüência de ação ocial podem ser geradas,
hoje está estabelecido, o que hoje é periférico torna-se o central de mas que especificam mai adiante quai eqüência devem ser exclu-
amanhã. Não estou defendendo uma visão cíclica e repetitiva do pro- ídas. Os conflitos entre paradigmas originam-se das regras de exclu-
cesso histórico humano. Estou, na verdade, sugerindo que a visão são. 'Arenas" são os palco concreto onde os aradiomas transfor-
cíclica e repetitiva é apenas uma dentre várias alternativas processu- mam-se em metáfora e ímbolos com referência o oder olítico
ais possíveis. No outro extremo, a história pode ser considerada uma ue é mobilizado e no ual há uma rova de for a entre influentes
sucessão de fases únicas e não repetidas, nas quais qualquer movi- ))aladinos de aradi mas. "Dramas sociais" representam o processo
mento para frente é o resultado de inspirações que nada devem ao escalonado dos seus embates. Essas formulações abstratas sustentam
passado. Entre esses pólos, vários níveis de acomodação mútua são os ensaios que formam este livro. Abarquei amplamente a geografia
possíveis. Sugeriria que o que temos considerado como os gêneros e a história, seguindo pela Índia, África, Europa, China e Meso-Amé-
"sérios" de ação simbólica - ritual, mito, tragédia e comédia (no seu rica, desde a sociedade antiga, passando pelo período medieval até
"nas-cimento") - encontram-se profundamente implicados nas vi- os revolucionários tempos modernos. Sei que transgredi as fronteiras
.ões cíclicas e repetitivas do processo social, enquanto os gêneros da competência da minha disciplina em diversas ocasiões. Minha des-
que surgiram desde a Revolução Industrial (as artes e ciências mo- culpa é que considero a humanidade una em essência, embora
dernas), embora menos sérias aos olhos das pessoas comuns (pesqui- multifacetada em suas expressões, criativa e não meramente adaptativa
sa pura, entretenimento, interesses da elite), tiveram um maior po- em suas múltiplas faces. Qualquer estudo sério sobre o homem deve
tencial para mudar a maneira como os homens se relacionam um segui-lo onde quer que ele vá, e levar em conta com seriedade o que
com os outros e o conteúdo de seus relacionamentos. A influência Florian Znaniecki chamou de "coeficiente humanístico", necessário
de tes últimos tem sido mais insidiosa. Porque eles estão fora das are- não somente para que os sistemas socioculturais tenham significado,
nas de produção industrial direta, pois constituem os análogos mas também para que eles existam na participação dos agentes hu-
"Iiminóides" dos fenômenos e processos liminares nas sociedades tribais manos conscientes e nas relações dos homens uns com os outros. É
e agrárias primitivas, seu próprio outsiderhoodl os libera da ação fun- este fator da "consciência" que deveria levar os antropólogos a um
cional direta nas mentes e no comportamento dos membros de uma estudo intensivo de culturas 'letradas complexas, nas quais as mais
sociedade. Ser ator ou audiência é uma atividade opcional= a falta de articuladas vozes conscientes de valores são os poetas, filósofos, dra-
obrigação ou coação por normas externas lhes confere uma qualidade maturgos, romancistas, pintores "liminóides" e afins.
prazerosa que os torna capazes de serem absorvidos mais prontamente
Este livro é forçosamente programático porque transita para além
pela consciência individual. O prazer torna-se então, uma questão crucial
das fronteiras disciplinares. Seus principais defeitos derivam deste
no contexto das mudanças inovadoras. Neste livro, não abordei esta
rromadismo. Pediria, entretanto, a meus colegas que adquirissem as
habilidades humanísticas que lhes possibilitariam viver com mais con-
forto nesses territórios, onde os mestres do pensamento humano e da
A opç o de manter o termo em inglês deve-se ao fato de não haver, em português, arte há muito habitam. Isto se faz necessário caso se queira que um
1II11 quivalente adequado. Outsiderhood é a condição de quem é outsider, isto é,
li, o P rt nce ao contexto social [N. da Edição].
dia uma ciência unificada do homem, uma autêntica antropologia

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I I
venha a tornar-se possível. Não defendo que se abandonem os méto- série. Agradeço a t do eles. Finalmente, gostaria mais uma vez de
dos da ciência comportamental, e sim que eles sejam aplicados ao expres ar minha dívida para com minha esposa, Edie, por sua incom-
comportamento de uma criatura inovadora, liminar, a uma espécie parável ajuda neste livro e em todas as minhas outras publicações.
que tem como membros Homero, Dante e Shakespeare, tanto quanto
Galileu, Newton e Einstein.

Agradecimentos

Quatro destes ensaios foram publicados anteriormente. O autor agra-


dece a John Wiley and Son ("Metáforas da antiestrutura na cultura
religiosa"), primeiramente escrito para Allan Eister (Ed.), Changing
Perspectives in the Scientific Study of Religion, 1974; a Worship 46,
p. 390-412, ago./set. 1972; 46, p. 482-494, out. 1972 ("Passagens,
margens e pobreza: símbolos religiosos da communitas"); para History
of Religions 12, n. 3, p. 191-230, 1973 ("O estudo das peregrinações
como processos sociais") mediante permissão da University of Chi-
cago Press, Copyright © 1973 pela Universidade de Chicago; e para
Social Science Information, v. 7, n. 6, p. 55-61, 1968 (':A. palavra dos
dogon").
A oportunidade de escrever "O estudo das peregrinações como pro-
cessos sociais" me foi proporcionada pelo Lichstern Fund of the
Department of Anthropology e por uma soma em dinheiro da Divi-
são de Ciências Sociais da Universidade de Chicago. Sou muito gra-
to a ambas as fontes de financiamento.
Agradeço ao padre Jorge Serrano-Moreno, S.J., que atuou paciente-
mente como meu assistente de pesquisa durante a coleta de dados no
México. Sua pesquisa foi financiada pela Wenner-Gren Foundation
for Anthropological Research, e estamos ambos em dívida com seu
generoso apoio.
Sinto-me especialmente agradecido por ter contado com os constan-
tes conselhos e estímulo dos meus colegas e alunos do Comitee on
Social thought Pensamento Social e do Departamento de Antropolo-
gia da Universidade de Chicago. Também gostaria de agradecer a
Jerald Brown que, quando aluno de pós-graduação na Universidade
de Cornell, cedeu-me muitas informações valiosas sobre a então
incipiente contracultura. A equipe da Cornell University Press aportou
suas competências à produção deste livro e, na realidade, à de toda a

16 17
CAPÍTULO 1
Dramas sociais e
metáforas rituais I

Neste capítulo, delinearei algumas das influências que levaram às


formulações dos conceitos que desenvolvi no curso do meu trabalho
de campo antropológico, além de considerar como eles podem ser
utilizados na análise de símbolos rituais. Ao sair da experiência da
vida social para a conceitualização e a história intelectual, sigo o ca-
minho de antropólogos de quase todos os lugares. Embora levemos
as teorias para o campo conosco, elas só se tornam relevantes quando
iluminam a realidade social. Além disso, com muita freqüência ten-
demos a descobrir que não é todo o sistema de um teórico que pro-
move essa iluminação, e sim suas idéias dispersas, seus insights reti-
rados do contexto sistêmico e aplicados a dados dispersos. Tais idéi-
as possuem uma virtude própria e podem gerar novas hipóteses. Elas
chegam até a demonstrar como fatos dispersos podem estar sistema-
ticamente interligados! Quando distribuídas aleatoriamente em al-
gum sistema lógico monstruoso, parecem passas nutritivas na massa
celular de bolo intragável. São as intuições - e não o tecido lógico
que as interliga - que tendem a sobreviver na experiência de campo.
Tentarei localizar as fontes de alguns insights que me ajudaram a
compreender meus próprios dados de campo.

Apresentado pela primeira vez no Departamento de Antropologia da Universidade


da Califórnia, em San Diego, outubro de 1971.

19
conceitos que eu gostaria de enfocar são: "drama social", "visão família "nature" (natureza) é cognata da família "gen", generate
processual da sociedade", "antiestrutura social", "multivocalidade" (gerar), genital (genital), general (geral), gender (gênero), genus,
e "polarização de símbolos rituais". Menciono-os em sua ordem de generic (genérico) e da família germânica kind (espécie), kin (famí-
formulação. Todos são impregnados pela idéia de que a vida social lia), kiudred (parentesco). Todos esses termos "fazem referência ime-
humana é a produtora e o produto do tempo, que se torna sua medi- diata c inqucstionável ao mundo orgânico, aos ciclos de vida de
da - uma idéia antiga que encontra ressonância nos trabalhos bas- plantas rgani mos" (p. 3-4), possuindo significados literais e
tante distintos de Karl Marx, Emile Durkheim e Henri Bergson. cmpíri s. P rérn, "quando aplicados a fenômenos sociais e cultu-
Seguindo Znaniecki, o renomado sociólogo polonês, eu já insistia, rai , e sa palavras não são literais. São metafóricas" (p. 4, grifos
antes de fazer trabalho de campo, na qualidade dinâmica das rela- no sos). Portanto, elas podem ser enganadoras, e ainda que cha-
ções sociais e considerava a distinção de Comte entre "estática so- mcrn nossa atenção para algumas propriedades importantes da exis-
cial" e "dinâmica social" - posteriormente elaborada por A. R. tência social, podem bloquear nossa percepção de outras. A metá-
Radcliffe-Brown e outros positivistas - essencialmente enganosa. fora de sistemas sociais e culturais como máquinas, popular desde
O mundo social é um "mundo in becoming" e não "um mundo in Descartes, é igualmente enganadora.
being" (exceto quando "being" for uma descrição dos modelos es- Não me oponho à metáfora aqui. Quero sim dizer que é preciso ser
táticos e atemporais que os homens carregam em suas cabeças) e, cuidadoso na escolha das metáforas-radicais, para que haja potencial
por este motivo, estudos da estrutura social per se são irrelevantes. de fecundidade e adequação. Não só Nisbet, mas também Max Black,
Eles estão ~quivocados na sua premissa básica, pois não existe "ação o filósofo de Cornell, e outros assinalaram como "talvez toda ciência
estática". E por esta razão que também reluto um pouco em usar- deva começar com a metáfora e terminar com a álgebra; e talvez sem
embora acabe por utilizá-los - os termos "comunidade" ou "socie- a metáfora nem sequer houvesse existido álgebra alguma" (BLACK,
dade", pois eles são freqüentemente encarados como conceitos es- 1962, p. 242). Conforme diz Nisbet (1969, p. 4):
táticos. Tal visão viola o fluxo real e a variabilidade da cena social
A metáfora é, em sua definição mais simples, uma maneira de pro-
humana. Aqui, buscaria orientação filosófica, por exemplo, em
ceder do conhecido para o desconhecido [Isso corresponde,
Bergson, em vez de, digamos, em Descartes. curiosamente, à definição Ndembu de um símbolo no ritual]. É uma
Entretanto, estou alerta quanto ao valor da advertência de Robert A. forma de cognição na qual as qualidades que definem uma coisa são
transferidas em um insight instantâneo, quase inconsciente, para al-
Nisbet em Social Chatige in History (1969, p. 3-4) sobre o uso de
guma outra coisa que nos é, graças a sua complexidade ou distância,
"becoming" e conceitos semelhantes, como "crescimento" e "desen- desconhecida. PhiJip Wheelright escreveu que o teste da metáfora
volvimento", que dependem fundamentalmente de metáforas orgâni- essencial não é nenhuma regra de cunho gramatical, mas antes da
cas. Nisbet chamou nossa atenção para toda uma família metafórica qualidade da transformação semântica produzida.
de termos sociológicos e sociofilosóficos, como "gênesis", "cresci-
A metáfora é, na realidade, metamórfica, transformadora. '1\ metáfo-
mento", "desdobramento", "desenvolvimento", de um lado, e "mor-
ra é a maneira que nós temos de efetuar a fusão instantânea de dois
te", "decadência", "degeneração", "patologia", "doença", do outro,
domínios de experiência distintos em uma imagem iluminadora,
os quais remontam originalmente à idéia grega de "physis". Este
icônica e englobadora." (p.4) É provável que tanto os cientistas quanto
termo significa literalmente "crescimento", de, <l>i3-ElÀ
produzir, raiz
os artistas pensem a princípio nessas imagens; a metáfora pode ser a
indo-européia BRU. É o "conceito-chave da ciência grega",
forma do que M. Polanyi chama de "conhecimento tácito."
<l>i3oucTlsignificando "ciência natural", como em fisiologia,
fisiognomonia, e assim por diante. Esta família também deriva do A idéia da sociedade como um "grande animal" ou uma "grande má-
românico e latinizado conceito básico europeu de natureza, a tradu- quina", na formulação vigorosa de James Peacock (1969, p. 173),
ção, ou melhor, má tradução, latina de physis. "Natureza" vem de seria o que Stephen C. Pepper chamou de "metáfora-radical" (1942,
"natus", que significa "nascido", com o significado implícito de p. 38-39). Eis como ele explica o termo:
"inato", "inerente", "imanente", da raiz indo-européia GAN. A

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Em princípio, o método parece ser este: um homem que deseja com- log Kurt Lewin, cuja "teoria do campo" tem sido útil na geração de
preender o mundo procura uma pista para compreendê-Io. Ele hip te es e no estímulo de pesquisas empíricas. Black acha "irônico"
mergulha em alguma área de fatos que são senso-comum e tenta ver
que Lewin
se consegue entender outras áreas através dela. A área original se
torna então sua analogia básica, ou sua metáfora-radical. Ele des- repudiei formalmente qualquer intenção de se usar modelos. "Nós
creve da melhor forma possível as características desta área, ou, se tentamos", diz ele, "evitar o desenvolvimento de modelos elabora-
você preferir, "discrimina sua estrutura". Um lista das suas caracte- dos; em vez disso, buscamos representar as relações dinâmicas entre
rísticas estruturais transforma-se no elenco dos seus conceitos básicos os fatos psicológicos por meio de construções matemáticas num plano
de explicação e descrição (por exemplo, as palavras da família gen, suficiente de generalidade.t'.Bern [prossegue Black], pode-se não
as da família kin, e as da família naturey. Nós os chamamos de um estar considerando modelos específicos; no entanto, qualquer leitor
grupo de categorias (um grupo de classes possivelmente exaustivo dos ensaios de Lewin deve ficar impressionado com o grau em que
dentro do qual todas as coisas podem ser distribuídas) [...] Nos ter- ele utiliza vocabulário originário da teoria física. Encontram-se re-
mos dessas categorias ele estuda todas as outras áreas de fatos não petidas vezes palavras como "campo", "vetor", "espaço-fase",
criticados ou anteriormente criticados. Ele se dedica a interpretar "tensão", "força", "valência", "fronteira", "fluidez" - sintomas cla-
todos os fatos nos termos dessas categorias. Como resultado do im- ros de um arquétipo maciço esperando para ser reconstruído por
pacto destes outros fatos sobre suas categorias, ele pode vir a algum crítico que tenha paciência o suficiente."(BLACK, 1962,
qualificar e reajustar as categorias de modo que um grupo de cate- p.241)
gorias mude e se desenvolva conjuntamente. Uma vez que a analogia
básica ou metáfora-radical normalmente (e provavelmente, pelo
Isto não incomoda Black em se tratando de princípios gerais de um
menos em certa medida, necessariamente) nasce do senso-comum método sólido. Ele acredita que se um arquétipo, mesmo sendo con-
[que é o entendimento normal ou sentimento geral da humanidade, fuso em seus detalhes, for suficientemente rico em termos de poder
porém, para os antropólogos, isto opera em uma cultura específica], de implicação, ele pode se tornar um instrumento especulativo útil.
faz-se necessário um grande refinamento e desenvolvimento de um Se o arquétipo for suficientemente frutífero, especialistas em lógi-
grupo de categorias se se espera que elas se mostrem adequadas
ca e matemáticos serão eventualmente capazes de ordenar o produ-
para uma hipótese de alcance ilimitado. Algumas metáforas-radi-
to. "Sempre haverá técnicos competentes que, nas palavras de
cais mostram-se mais férteis do que outras, possuem um maior poder
de expansão e ajuste. Estas são as que sobrevivem em comparação Lewin, irão construir rodovias por meio das quais veículos aerodi-
com as outras e geram as teorias do mundo relativamente adequadas nâmicos dotados de uma lógica altamente mecanizada, velozes e
(1942, p. 91-92). eficientes, poderão alcançar cada ponto importante em um curso
Black prefere o termo "arquétipo conceitual" a "metáfora-radical" e
estável." (p. 242). Aqui, é claro, temos outra desinibida avalanche
de metáforas.
o define como um "repertório sistemático de idéias por meio do qual
um dado pensador descreve, por extensão analôgica, algum territó- Também Nisbet, assim como Black e Pepper, considera que "siste-
rio ao qual aquelas idéias não se aplicam imediata e literalmente". mas filosóficos complexos podem nascer de premissas metafóricas".
(1962, p. 241) Ele sugere que se quisermos um relato detalhado de Por exemplo, o freudianismo, diz, "teria pouca substância se fosse
um arquétipo em particular, precisamos de uma lista de palavras e privado de suas metáforas" (p. 5) - o complexo de Édipo, modelos
expressões-chave com as afirmações de suas interligações e signifi- topográficos e econômicos, mecanismos de defesa, Eros e Tanatos, e
cados paradigmáticos de cujo elas foram originalmente retiradas. Isto assim por diante. Também o marxismo vê as ordens sociais como
deveria então ser acrescido da análise das maneiras como os signifi- sendo "formadas embrionariamente" nos "úteros" de ordens prece-
cados originais se estendem em seu uso analógico. dentes, sendo cada transição análoga ao "parto" e necessitando da
O exemplo que Black usa para ilustrar a influência de um arquétipo assistência da força "parteira."
no trabalho de um teórico é de excepcional interesse para mim, pois Tanto Black quanto Nisbet admitem a tenacidade e a potência das
este caso teve um efeito profundo nas minhas próprias tentativas de metáforas. Nisbet (1969, p. 6) argumenta que o que usualmente cha-
caracterizar um "campo social." Black examina os escritos do psicó- mamos de revoluções do pensamento são

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com muita freqüência não mais do que a substituição mutacional em lha-se à "visão interativa" de r. A. Richards, ou seja, na metáfora,
certos momentos críticos da história, de uma metáfora-fundadora "temos dois pensamentos sobre coisas diferentes atuando juntos e
por outra na contemplação humana do universo, da sociedade e do
sustentados por uma só palavra ou expressão cujo significado resulta
eu. Relacionar metaforicamente o universo a um organismo em sua
estrutura irá desencadear uma série de derivações; derivações estas de sua interação" (1939, p. 93). Esta visão enfatiza a dinâmica ine-
que se tornam proposições em complexos sistemas filosóficos. Mas rente à metáfora, em vez de meramente comparar os dois pensamen-
quando, como aconteceu no século XVII, o universo passa a ser re- tos, ou considerar que um "substituí" o outro. Os dois pensamentos
lacionado a uma máquina, não apenas a ciência física, mas áreas agem em conjunto, eles "engendram" o pensamento em sua coati-
inteiras da filosofia moral e da psicologia humana são afetadas. vidade.
Creio que seria um exercício interessante estudar as palavras e ex- Black (1962, p. 239) desenvolve a visão interativa em um grupo de
pressões-chave dos grandes arquétipos conceituais ou metáforas fun- afirmações:
dadoras, tanto nos períodos em que elas surgiram, dentro de seu pal-
co social e cultural pleno, quanto em suas subseqüentes expansões e
I. Uma colocação metafórica possui dois sujeitos distintos
modificações em campos de relações sociais em mudança. Esperaria - um sujeito principal e um "subsidiário". Portanto, se
que estas aparecessem nas obras dos pensadores excepcionalmente dissermos - conforme o faz Chamfort em um exemplo
liminares - poetas, escritores, profetas religiosos, "os não-reconheci- citado por Max Black - que "os pobres são os negros da
dos legisladores da humanidade" - logo antes de períodos liminares Europa", "os pobres" é o sujeito principal, e "negros", o
notáveis na história, grandes crises de mudanças na sociedade, pois subsidiário.
estas figuras xamânicas são possuídas pelo espírito da mudança antes
de as mudanças se tornarem visíveis nas arenas públicas. As primei- 2. Estes sujeitos são melhor vistos como "sistemas de coi-
ras formulações ocorrerão sob a forma de símbolos e metáforas sas" ao invés de coisas enquanto elementos. Assim sen-
multivocais - cada qual passível de muitos significados, mas com os do, tanto "pobres" quanto "negros", nesta relação meta-
significados centrais ligados analogicamente aos problemas huma- fórica, são eles mesmos símbolos multivocais, sistemas
nos básicos da época, que podem ser descritos em termos biológicos, semânticos completos que trazem consigo uma série de
idéias, imagens, sentimentos, valores e estereótipos. Os
ou mecanicistas, ou de alguma outra forma - tais símbolos multivocais
componentes de um sistema entram numa relação dinâ-
irão levar à ação dos técnicos do pensamento que desbastam selvas
mica com os componentes do outro.
intelectuais, e então sistemas organizados de conceitos e sinais
unívocos irão substituí-los. A mudança começará, profeticamente, 3. A metáfora funciona aplicando o sujeito principal ao sis-
"com a metáfora e terminará, instrumentalmente, com a álgebra". O tema de "implicações associadas" característico do sujei-
perigo, é claro, é que quanto mais persuasiva for a metáfora-radical, to subsidiário. Na metáfora citada, os "pobres" da Europa
ou arquétipo, maior é a chance de ela se tornar um mito podem ser vistos não somente como uma classe oprimi-
autolegitimador, resguardado da invalidação empírica. Ela permane- da, mas também como se compartilhassem as qualidades
ce como uma fascinante metafísica. Aqui, metáfora-radical opõe-se herdadas e indeléveis da pobreza "natural" atribuída aos
ao que Thomas Kuhn chamou de "paradigma científico", que estimu- negros americanos por brancos racistas. Desta forma, toda
la e legitima a pesquisa empírica, da qual é de fato tanto produto a metáfora é carregada de ironia e provoca uma releitura
quanto produtor. Para Kuhn, os paradigmas são "exemplos aceitos da dos papéis tanto dos pobres (europeus) quanto dos negros
prática científica real- incluindo, ao mesmo tempo, lei, teoria, apli- (americanos). ,
cação e instrumentalização - que oferecem modelos dos quais se ori-
4. Essas "implicações" usualmente consistem em lugares-
ginam tradições coerentes de pesquisa científica" (1962, p. 10) - as-
comuns sobre o sujeito subsidiário, mas podem também,
tronomia copernicana, "dinâmica" aristotélica ou newtoniana, óptica
em alguns casos, consistir em implicações desviantes
ondulatória e outros. Minha visão da estrutura da metáfora asseme-

2 25
cstabelecidas ad hoc pelo autor. Assim, você necessita so- seguindo Wilbert Moore, desde Durkheim, passando por Radcliffe-
mente do conhecimento proverbial para que sua metáfora Brown até Talcott Parsons, tratou de apresentar uma teoria unificada
seja compreendida, não precisando de conhecimento téc- de ordem e mudança baseada em uma metáfora biológica - ele tenta
nico ou especial. Um "modelo científico" é, na verdade, derivar os mecanismos motivacionais de mudança das mesmas con-
uma outra forma de metáfora. Aqui, "o criador deve ter dições dos quais são retirado o conceitos de ordem social. Em ou-
total controle de uma bem urdida teoria", diz Black, "se tras palavras, temos aqui a noção biológica de causa imanente, um
ele quiser fazer mais do que pendurar um quadro atraente princípio de crescimento endógeno, bem como um mecanismo de
em uma fórmula algébrica. Uma complexidade sistemáti- controle homeostático. O simples, como a semente da mostarda, cres-
ca da fonte e do modelo e uma aptidão para o desenvol- ce, tornando-se complexo, através de diversas fases pré-ordenadas.
vimento analógico são essenciais". (1962, p. 239) Existem vários micromecanismos de mudança em cada sistema
5. A metáfora seleciona, enfatiza, suprime e organiza carac- sociocultural específico, assim como na teoria evolutiva moderna eles
terísticas do sujeito principal ao implicar afirmações so- existem nas entidades e colônias biológicas, como tensões, resistên-
bre o mesmo que normalmente se aplicam ao sujeito sub- cias, discrepâncias e desarmonias que são internas e endógenas a elas
sidiário. e oferecem causas motrizes para a mudança. No rocesso social -
entenda-se or" rocesso" a ui a enas o curso eral da a ão social-
Mencionei tudo isto a enas ara a ontar ue existem certos perigos no gual me encontrei, entre os Ndembu da Zâmbia, foi muito útil
inerentes guando consideramos o mundo social "um mundo em devi r" , ]Jensar "biologicamente" sobre os "ciclos de vida das aldeias" e os
se ao invocar a idéia de "devir", você estiver inconscientemente "ciclos domésticos", a "o ri em", "crescimento" e "decadência" de
influenciado ela antiga metáfora de crescimento e decadência orgâ- aldeias, famílias e linhagens, mas não foi tão roveitoso ensar sobre
nica. Devir sugere continuidade genética, crescimento télico, desen- a mudan ãCõiüo aI o imanente na estrutura da sociedade Ndembu,
volvimento cumulativo, progresso etc. Porém, muitos eventos soci- enquanto havia claramente um "vento de mudança", econômica, po-
ais não possuem este caráter "direcional". Aqui, a metáfora p~d~ muito lítica social reli iosa,le aI, e assim or diante, varrendo toda a Africa
bem selecionar, enfatizar, suprimir ou organizar caracterísucas de central e originando-se fora de todas as sociedades aldeãs. Os
relações sociais de acordo com processos de crescimento de plant~s funcionalistas do meu período na África tenderam a pensar na mu-
e animais e, ao fazer isto, nos iludir sobre a natureza do mundo SOCIal dança como "cíclica" e "repetitiva" e no tempo como estrutural e não
humano, sui generis. Não há nada de errado com metáforas ou: mutatis livre. Com a minha convic ão uanto ao caráter dinâmico das rela-
mutandis, com modelos, desde que se esteja ciente dos pengos que ões sociais, eu via movimento tanto uanto estrutura ersistência
se escondem por trás de seu mau uso. Porém, se elas forem con~ide- tanto quanto mudança e, na verdade, persistência en uanto um notá-
radas uma espécie de monstro liminar - conforme eu descrevi em vel as ecto da mudan a. Vi essoas intera indo e dia a ós dia via as
Floresta de Símbolos (1967), cuja combinação de características fa- conse üências de suas intera ões. Comecei então a erceber uma for-
miliares ou não-familiares, ou combinação não-familiar de caracte- ma no rocesso do tem o social. E esta forma era essencialmente
rí ticas familiares nos incita a pensar, nos oferece novas perspectivas f dramática. A ui, minha metáfora e meu modelo eram uma forma
_, é possível sentir-se estimulado por elas; as implicações, su.g~s.tões estética humana, um produto da cultura e não da natureza. Uma for-
e valores auxiliares entrelaçados com seu uso literal nos possibilitam ma cultural era o modelo ara um conceito social científico. Mais
ver um novo assunto de uma nova maneira. uma vez tenho de admitir uma dívida para com Znaniecki (também
/\. metáfora do devir se adequa muito bem, a despeito da aparente estou em dívida com o artigo seminal de Robert Bierstedt, 1968, p.
rixa entre funcionalistas e evolucionistas culturais, à ortodoxia ou 599-601, com relação ao subseqüente resumo de seus pontos de vis-
paradigma estrutural-funcionalista, que gerou o que Kuhn teria cha~ ta) que, como outros pensadores sociais, estava disposto a manter a
ma I de "ciência normal" da antropologia social inglesa quando fUI distinção neokantiana entre dois tipos de sistema - natural e cultural
para campo. Pois o funcionalismo, conforme argumentou Nisbet, - que revelam diferenças não apenas na sua composição e estrutura,

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mas também - c isto é o mais importante - no caráter dos elementos ção intersocietal. Não pensava nela como um tipo universal, mas pes-
qu 'justificam ua coerência. Znaniecki sempre argumentou que sis- quisas subseqüentes - incluindo o trabalho para um ensaio sobre 'An
ternas naturais são objetivamente dados e existem independentemen- Anthropological Approach to the Icelandic Saga" ("Uma abordagem
te da xperiência e atividade dos homens. Sistemas culturais, ao con- antropológica da saga isJandesa"), 1971 - convenceram-me de que
trário, dependem da participação de agentes humanos conscientes e os dramas sociais, com estruturas temporais ou processuais muito
v litivos e das relações continuadas e potencialmente cambiantes dos parecidas com as que detectei no caso dos Ndembu, podem ser isola-
h rnens uns com os outros, não somente quanto ao seu significado, dos para estudo em sociedades de todo tamanho e complexidade. Isto
mas também para sua própria existência. Znaniecki tinha seu próprio é verdade particularmente em situações políticas, e pertence ao que
rótulo para esta diferença. Ele a chamava de "coeficiente humanístico" agora chamo de a dimensão da "estrutura", em oposição àquela da
e foi este conceito que separou nitidamente sua abordagem daquela "communitas" como uma forma genérica de inter-relacionamento
da maioria de seus contemporâneos no cenário americano. Em todas humano. Embora haja também communitas em um estágio do drama
as partes de sua obra, ele enfatizou o papel de agentes ou atores cons- social, conforme espero demonstrar, e talvez a continuidade entre
cientes - uma ênfase que seus oponentes estavam inclinados a criti- suas sucessivas fases seja uma função da communitas.
car como o ponto de vista "subjetivo". Entretanto, são as pessoas Nem todas as unidades processuais são "dramáticas" em sua estrutu-
como objeto da ação de outrem, e não como sujeitos, que se enqua- ra e atmosfera. Muitas estão sob a rubrica do que Raymond Firth
dram em seu critério para dados sociológicos. Dentre as fontes destes chamou de "organização social" e definem-se como "os arranjos de
dados, Znaniecki Iistou as experiências pessoais do sociólogo, tanto
funcionamento da sociedade [...] o processo de ordenamento da ação
originais quanto as vicárias; a observação do sociólogo, tanto direta
e das relações com referência a fins sociais específicos, em termos de
quanto indireta; a experiência pessoal de outrem; e as observações de
ajustes que resultantes do exercício das escolhas de membros da so-
outras pessoas. Esta ênfase sustentou sua utilização de documentos
ciedade" (Essays on Social Organization and Values, 1964, p. 45).
pessoais na pesquisa sociológica. Ainda considero esta abordagem a Entre estas unidades processuais "harmônicas" estariam o que eu cha-
que é mais congenial.
mo de "sociais", empreendimentos sociais de caráter primordialmente
Senti que precisava trazer o "coeficiente humanístico" para meu mo- econômico, como quando um grupo africano moderno decide cons-
delo, se quisesse compreender os processos sociais humanos. Uma truir uma ponte, escola ou estrada, ou quando um grupo polinésio

Ndembu em suas aldeias era sua propensão ao conflito.


era uma ocorrência comum entre grupos de aproximadamente duas
º
das características que mais chamam a atenção na vida social dos
conflito
tradicional, como os Tikopia de Firth, decide preparar turmérico, uma
planta da família do gengibre, para tingimento ritual ou outros pro-
pósitos (FIRTH, 1967, p. 416-464); cada grupo está preocupado com
dúzias e arentes ue constituíssem uma comum a e a ea. e se os resultados dessas decisões no que diz respeito às relações dentro
-- --
manifestava em episódios de irrupção pública de tensão que chamei do grupo ao longo do tempo. Aqui, a escolha individual e as conside-
de "dramas sociais". Os dramas sociais ocorriam no ue Kurt Lewin rações de utilidade são características distintivas.
teria chamado de fases "anarmônicas" do processo social em anda-
Um livro recente de Philip Gulliver (1971), que é uma micro-análise
mento. Quando os interesses e atitudes de gru os e indivíduos encon- de redes sociais (outra metáfora interessante a ser analisada com re-
travam-se em óbvia oposição, os dramas sociais me pareceram cons- ferência a como ela é utilizada pelos antropólogos) em duas peque-
tituir unidades do processo social isoláveis e assíveis de uma descri-
nas comunidades locais entre os povos Ndendeuli do sul da Tanzânia,
ção ormenorizada. Nem todo drama social alcan ava uma resolu ão também representa uma tentativa consciente de descrever processos
lara mas arte SUficiente deles o fez para que e; pudesse formular o dinâmicos ao longo de um período em termos não-dramáticos.
qu então chamei de "forma processual" do drama. À é oca não Gul1iver quis dar atenção especial e maior ênfase ao efeito cumulati-
r> nsava em usar tal "unidade rocessual" - como osteriormente vo de uma série infindável de incidentes, casos e eventos que podem
.harnci o gênero do qual o "drama social" é es écie - numa com ara- ser tão significativos no sentido de afetar e mudar as relações sociais

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quanto o confrontos mais dramáticos. Eventos menores, argumenta
ele, .crvcm para preparar o terreno gradualmente para confrontos
maiore . Gulliver insiste ue deve se restar muita aten ão ao
, ontinuum de intera ão entre um dado ru o de essoas" . 354 .
Adverte ue não devemos "nos co ce n-
Ilito a ponto de negligenciar as igualmente importantes situações de
cooperação - embora essas últimas tendam a ser menos dramáticas" Dramas sociais e empreendimentos sociais - bem como outros tipos
(p. 354). Concordo com Gulliver, embora eu com artilhe da visão de de unidades processuais - representam seqüências de eventos sociais,
Freud de ue os distúrbios do normal e do re ular muitas vezes nos que, vistas respectivamente por um observador, podem ser mostra-
ferecem um maior insi ht sobre o normal do ue o estudo direto. A das como tendo uma estrutura. Esta estrutura "temporal", diferente-
estrutura profunda pode ser revelada pela antiestrutura ou superficial mente da estrutura atemporal (incluindo estruturas "conceituais",
contra-estrutura - termos que discuto no capítulo, "Metáforas da "cognitivas" e "sintáticas") é organizada primeiramente pelas rela-
Antiestrutura". Não darei' seqüência aos interessantes pontos de vis- ções no tempo, ao invés de no espaço, embora, é claro, esquemas
ta de Gulliver sobre formulações tais como action-set, network, cognitivos sejam, eles mesmos, o resultado de um processo mental e
decision making, role playing entre outras. Ele possui uma vigorosa possuam qualidades processuais. Se fôssemos capazes de deter os
erudição sobre estas formulações - mas elas nos afastariam dos nos- processos sociais como se eles fossem um filme e, então, examinás-
sos temas principais. Gulliver (1971, p. 356-357) adverte contra a semos o "still" - as relações sociais coexistentes em uma comunida-
visão, familiar desde Weber, que de -, nós provavelmente descobriríamos que as estruturas temporais
eram incompletas, abertas, não-consumadas. Elas estariam, no máxi-
mo, encaminhando-se para um fim. Mas se tivéssemos os meios da
ficção-científica para penetrar nas mentes dos atores paralisados, sem
dúvida encontraríamos nelas - em praticamente qualquer nível
endopsíquico existente entre a plena clareza da atenção consciente e
os estratos mais escuros do inconsciente - um conjunto de idéias,
f. imagens, conceitos, e assim por diante, que poderíamos rotular de
"estruturas atemporais". Estes são os modelos do que as pessoas "acre-
Entretanto, embora no drama social sejam tomadas decisões de mei-
ditam fazer, dever fazer, ou gostariam de fazer" (RICHARDS, 1939,
os e fins e afiliação social, a ênfase - tanto quanto o interesse - reca-
p. 160). Talvez nos casos individuais estes modelos sejam mais
em redominantemente sobre a lealdade e a obri a ão e dessa for-
fragmentais do que estruturais, mas, se observássemos todo o grupo,
ma, o curso dos eventos pode adquirir uma qualidade trágica. Con-
descobriríamos que as idéias ou normas que faltam em um indivíduo
forme escrevi no meu livro Schism and Continuity (1957), no qual
ou que ele não consegue relacionar de forma sistemática com outras
comecei a examinar o drama social,
idéias, outros indivíduos as possuem ou as têm sistematizadas. Nas
a situação em uma aldeia Ndembu é muito semelhante àquela en- representações coletivas intersubjetivas do grupo, descobriríamos "es-
contrada no drama gregb, testemunhamos o desamparo do indivíduo trutura" e "sistema", "padrões de ações propositadas" e, em níveis
humano diante dos Fados; 'mas, neste caso [e também no caso
mais profundos, "quadros de categorias". Estas estruturas individu-
islandês, como descobri] os Fados são as necessidades do processo
social (p. 94).
ais e de grupo, que as pessoas carregam em suas cabeças e sistemas
nervosos, possuem uma função direcionadora, uma função "ciberné-
tica", na interminável sucessão de eventos sociais, impondo a eles o
As traduções mais comuns para esses termos são: "cenário de ação", "rede",
grau de ordem que possuem e, de fato, dividindo unidades proces-
"tomada de decisões" e "desempenho de papéis". [N. da Edição].

30 31
suai em fases. "Estrutura é a ordem em um sistema", como di se signos, sinais e marcas, verbais ou não-verbais, que as pessoas em-
Marvin Harris. A estrutura de fases do drama social não é produto do pregam para alcançar metas pessoais e do grupo.
instinto, e sim de modelos e metáforas que os atores carregam em Dramas sociais são, ortanto, unidades de rocesso anarmônico ou
suas cabeças. Aqui, não se trata de um caso do "fogo encontrando desarmônico 'l!:lesur em em situações de conflito. Ti icamente eles
sua própria forma", mas da forma fornecendo uma lareira, um tubo e possuem quatro fases de a ãO.Qública_observáveis. Sãoelas:
um registro de chaminé ao fogo. As estruturas são os aspectos mais
estáveis de ação e inter-relacionamento. O que o filósofo John Dewey
chamou de "eventos mais rápidos e irregulares" do processo social
convertem-se em "eventos rítmicos mais lentos e regulares" pelos
,p0-:::1.
..
.\JII'/
l. A ru fura de relações sociais formais, regi das pela nor-
ma, ocorre entre pessoas ou grupos dentro do mesmo sis-
tema de relações sociais, seja uma aldeia, chefatura, es-
efeitos cibernéticas dos modelos estruturais cognitivos e normativos. critório, fábrica, partido ou distrito político, igreja, depar-
Alguns dos "eventos rítmicos regulares" podem ser medidos e ex- tamento de universidade, ou qualquer outro sistema, con-
pressos sob a forma de estatística. Mas, aqui, devemos nos preocupar junto ou campo de interação social durável. Tal ruptura é
primeiramente com a forma, o perfil diacrônico do drama social. sinalizada pelo rompimento público e evidente, ou pelo
.Gostaria de enfatizar o máximo possível que considero esta aborda- descumprimento deliberado de alguma norma crucial que
gem processual decisiva como guia para a compreensão do compor- regule as relações entre as partes. Burlar uma norma deste
tamento social humano. Institui ões reli iosas e le ais, entre outras, tipo é um símbolo claro de dissidência. Em um drama
só deixam de ser feixes de re ras mortas ou frias uando assam a social, não se trata de um crime, embora, formalmente,
s vistas desde o início como fases no processo social, como pa- possa parecer muito com um; é, na realidade, utilizando
drões dinâmicos. Precisamos a render-a ensar nas sociecIa es como os termos de Frederick Bailey, um "estopim simbólico de
"fluindo" continuamente, como uma "perigosa maré ... que nunca pára um confronto ou embate". ~empre algo de altruísta
ou morre ... e quando segurada por um instante, queima a mão", como em uma viola ão simbólica deste ênero e sempre algo
W. H. Auden certa vez colocou. As estruturas formais, supostamente de egoísta em um crime. Uma violação dramática ode
estáticas, somente se tornam visíveis por este fluxo que as energiza, ser praticada por um indivíduo, certamente, mas ele sem-
as aquece até torná-Ias visíveis - para utilizar mais uma metáfora. pre age, ou acredita agir, em nome de outros indivíduos,
estejam eles Cientes disto ou não. Ele se vê a si mesmo
Sua própria estase é o efeito da dinâmica social. Os focos
como um representante, e não como um agente solitário.
organizacionais das estruturas temporais são "metas", os objetos da
ação e do esforço, e não "nódulos", meros pontos de interseção de 2. Após a ruptura de relações sociais formais, regidas pela
linhas de repouso. A estrutura temporal, enquanto em repouso e, por- norma, vem uma fase de crise crescente, durante a qual -
tanto, atemporal, é sempre uma tentativa; sempre há metas alternati- a não ser que a ruptura possa ser rapidamente isolada den-
vas e meios alternativos de alcançá-Ias. Uma vez que os focos são as tro de uma área limitada de interação social- há uma ten-
metas, fatores psicológicos, como vontade, motivação, amplitude de dência de que a ruptura se alargue, ampliando-se até se
atenção, nível de aspiração, e assim por diante, são importantes na tornar tão coextensiva quanto uma clivagem dominante
sua análise; em contraste, nas estruturas atemporais estes fatores não no quadro mais amplo de relações sociais relevantes ao
importam, pois estas estruturas revelam-se já esgotadas, alcançadas, qual as partes conflitantes ou antagônicas pertencem.
ou, alternativamente como axiomas, quadros cognitivos ou normativos Atualmente é comum se falar a respeito disso como a "es-
auto-evidentes aos quais a ação é subseqüente e subordinada. Mais calada da crise". No caso de um drama social envolvendo
uma vez, já que as metas incluem significativamente metas sociais, o duas nações em uma região geográfica, a escalada pode-
estudo de estruturas temporais envolve o estudo do processo comu- ria implicar um movimento progressivo na direção de um
nicativo, incluindo fontes de pressão para se comunicar dentro de e antagonismo no âmbito da divisão mundial entre os cam-
entre grupos. Isto leva inevitavelmente ao estudo dos símbolos, pos comunista e capitalista. Entre os Ndernbu, a fase de

32 33
crise expõe um padrão de intriga faccional corrente den- ou externos. Eles podem abranger desde conselho pes-
tro do grupo, aldeia, vizinhança ou chefatura social rele- oais e mediação ou arbitragem informal até mecanismos
vante, até então oculta e conduzi da de modo privado; e legais e jurídicos formais, e, para solucionar certos tipos
sob ela fica clara a estrutura social Ndembu básica, me- de crises ou legitimar outras formas de resolução, a
nos plástica, mais durável, mas que, ainda assim, muda perforrnance de ritual público. A noção de "escalada" tam-
gradualmente, constituída de relações que possuem um bérrr pode se aplicar a esta fase: em uma sociedade indus-
alto grau de constância e consistência - sustentadas por trial, complexa, por exemplo, os antagonistas podem trans-
padrões normativos estabelecidos no decorrer de regula- ferir uma disputa de uma corte menor para a suprema cor-
ridades profundas de condicionamento, treinamento e ex- te, por intermédio de instâncias judiciais intervenientes.
periência social. Mesmo por debaixo dessas mudanças es- Na Njál's Saga islandesa, a "escalada" caracteriza o con-
truturais cíclicas, outras mudanças na ordenação das rela- junto de dramas que compõe a saga. Ela começa com rup-
ções sociais emergem nos dramas sociais - como, por turas locais simples, crises menores e correções informais,
exemplo, aquelas que resultam da incorporação dos principalmente no nível das comunidades residenciais em
Ndembu na nação da Zâmbia, no mundo da África mo- uma pequena região da Parte Sul da Islândia do século X,
derna, no Terceiro Mundo, e no mundo todo. Discuto bre- que se acumulam a despeito da composição e ajuste tem-
vemente este aspecto no caso dos Karnahasanyi em The porários das reivindicações, até que, finalmente, ocorre
Drums of Affliction (1968). Este segundo estágio, a crise, uma ruptura pública que desencadeia o drama trágico prin-
é sempre um daqueles pontos de inflexão ou momentos cipal: um goõi, ou chefe sacerdote, que é também um bom
de perigo e suspense, quando se revela um verdadeiro es- homem, é desumanamente assassinado 'por seu irmão de
tado de coisas, quando é menos fácil vestir máscaras ou criação, o mais intransigente dos filhos de Njál. A fase de
fingir que não há nada de podre na aldeia. Cada crise pú- crise resultante envolve uma clivagem maior entre fac-
blica possui o que eu agora chamo de características ções que constituem as linhagens e sibs principais (que
liminares, uma vez que se trata de um limiar entre fases significam neste contexto vingança bilateral e grupos de
relativamente estáveis do processo social, embora não seja compensação de sangue) no sul e sudeste da Islândia, de
um "limen" sagrado, cercado por tabus e afastado dos modo que os grupos buscam justiça no Althing e na Quin-
centros da vida pública. Pelo contrário, ele assume seu ta Corte, a assembléia geral dos islandeses. A Saga de
aspecto ameaçador dentro do próprio fórum e, por assim Njál revela de forma implacável como a Islândia não teve
dizer, desafia os representantes da ordem a lidar com ele. condições de produzir uma mecanismo judicial com au-
Não pode ser ignorado ou desprezado. toridade para lidar com uma crise de larga escala, pois,
inevitavelmente, as negociações no Althing caem por ter-
3. Isto nos leva à terceira fase, a ação corretiva. No intuito ra e-há um retorno à crise, uma crise mais aguda e que
de limitar a difusão da crise, certos "mecanismos" de ajuste além disso, só pode ser solucionada pela completa derro-
e regeneração (e aqui tomo emprestada alegremente uma ta e tentativa de aniquilação de um dos grupos. O fato de
metáfora da física), informais ou formais, instituciona- não haver uma nação islandesa embora houvesse uma as-
lizados ou ad hoc, são rapidamente operacionalizados por sembléia geral de islandeses foi representado pela ausên-
membros de liderança ou estruturalmente representativos cia de leis com poder real, o poder de sanções punitivas
do sistema social perturbado. 'Os tipos e a complexidade aplicadas em uníssono pelos líderes de todas as quatro
de tais mecanismos variam de acordo com fatores como a partes. Discuti em outras ocasiões (1971) alguns dos
profundidade e importância social compartilhada da rup- vários motivos históricos, ambientais e culturais pelos
tura, ainclusividade da crise, a natureza do grupo social quais a comunidade islandesa não conseguiu se tornar um
no qual ocorreu a ruptura e o grau de sua autonomia no estado, perdeu sua independência (em 1262) e aceitou a
que se refere a sistemas de relações sociais mais amplos

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soberania norueguesa. Cheguei a estes motivos ao tratar a freqüência sucedia que, após um intervalo de vários ano,
literatura das sagas como uma série de dramas sociais. As uma das aldeias assim formada promovesse um ritual
sagas revelam que as vinditas locais - que podiam ser importante para o qual-membros da 'outra eram expressa-
contidas apenas temporariamente por indivíduos esclare- mente convidados, registrando, desta forma, uma recon-
cidos - geraram forças que, com o passar do tempo, divi- ciliação em um nível diferente de integração política.
diram a Islândia e revelaram a fraqueza de sua política Descrevo um destes rituais, o Chihamba, em Schism and
descentralizada, acéfala. Se você estiver estudando Continuity (1957, p_ 288-317) e como ele funcionou no
mudan as sociais, em ual uer nível social, dou-lhe um sentido de reconciliar a aldeia que o promoveu, Mukanza,
conselho: exa~ cuidadosamente o ue acontece na fase com diversas outras aldeias, incluindo uma formada pela
três, a suposta fase corretiva dos dramas sociais, e fissão de uma das partes que a compunham.
pergunte se a máquina corretiva é ca az de lidar com
crises de modo a restaurar relativamente, o status quo ante, Do pónto de vista do observador científico, a quarta fase - aquela do
ou ao menQS;-"estaurar a paz entre os grupos contendores. clímax- solução ou resultado temporário - é uma oportunidade para
Caso ela seja capaz, pergunte o quão precisamente? E, se se fazer o balanço. Ele pode agora analisar o continuum sincroni-
não, por quê não? É na fase corretiva que tanto as técnicas camente, por assim dizer, neste momento de cessação do drama ten-
pragmáticas quanto a ação simbólica alcançam sua mais do já levado totalmente em consideração o seu caráter temporal re-
plena expressão. Pois aqui, a sociedade, grupo, comuni- presentando-o por meio de construtos apropriados. No caso específi-
dade, associação, ou seja qual for a unidade social, está co de um "campo político", por exemplo, pode-se comparar o
em seu momento mais "autoconsciente" e pode atingir a ordenamento das relações políticas que precederam a disputa pelo
clareza de pensamento de uma pessoa encurralada, lutan- poder que irrompeu em um drama social ebservável com a fase cor-
do pela vida. A regeneração também possui seus traços retiva subseqüente. Provavelmente, conforme Marc Swartz e eu apon-
liminares, sua condição "betwixt and between", e, assim, tamos na introdução de Political Anthropology (1966), o escopo e o
fornece uma réplica e uma crítica distanciada dos eventos
alcance do campo ter-se-ão alterado e o número de suas partes será
que compuseram e levaram à "crise". Esta réplica pode se
diferente, bem como sua magnitude. E o ue é mais im ortante, a
dar no idioma racional de um processo judicial, ou no
natureza e a intensidade das rela ões entre as artes e a estrutura do
idioma metafórico e simbólico de um processo ritual, de-
carn o total, ter-se-ão modificado. Pode-se descobrir ue o osi ões
pendendo da natureza e da gravidade da crise. Quando a
tornaram-se alian as e vice-versa. Rela ões assimétricas Rodem ter-
correção falha, geralmente há uma regressão à crise.
Neste ponto, a força direta pode ser utilizada nas formas
se tornado i ualitárias. Status elevado ode ter-se tornado status bai-
variadas de guerra, revolução, atos intermitentes de xo e vice-versa. O novo oder terá sido canalizado ara o anti o e
violência, repressão ou rebelião. Entretanto, onde a novas e antigas autoridades defenestradas. A roximidade terá se trans-
comunidade perturbada é pequena e relativamente fraca, formado em distância, e vice-versa. Partes anteriormente integradas
em face da autoridade central, a regressão à crise tende a ter-se-ão segmentado; partes anteriormente independentes ter-se-ão
se tornar uma questão de faccionalismo endêmico, fundido. Algumas partes não mais pertencerão ao campo, outras o
pungente e latente, sem a presença de confrontos a udos terão adentrado. Relações institucionalizadas ter-se-ão tornado in-
e abertos, entre partes consistentemente distintas. formais; regularidades sociais ter-se-ão tornado irregularidades. No-
vas normas e regras terão sido geradas durante tentativas de remediar
4. A última fase que ressalto consiste seja na reintegração o conflito; velhas regras terão caído em descrédito e sido abolidas.
do grupo social perturbado ou no reconhecimento e na As bases de sustentação política terão sido alteradas. Alguns compo-
legitimação social do cisma irreparável entre as partes em nentes do campo terão menos sustentação, outros mais, e outros te-
conflito - no caso dos Ndembu, isto frequentemente sig-
rão ainda um novo apoio, enquanto alguns não terão, nenhum.
nifica a separação de uma parte da aldeia das demais. Com
!\. di tribuição dos fatores de legitimidade terá mudado, assim como

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as l nicas utilizadas pelos líderes para conquistar anuência. Estas do que mera historiografia, pois envolve a utilização de sejam quais
mudanças podem ser observadas, averiguadas, registradas e, em al- forem as ferramentas conceituais a nós legadas pela antropologia ocial
un casos, seus indicadores podem até mesmo ser calculados e ex- e cultural. Processualismo é um termo' ue inclui análise dramatistica.
pre ados em termos quantitativos. Análise processual pressupõe análise cultural, assim como pressu-
põe análise estrutural-funcional incluindo mais análise mo o ágíca,
Ainda assim, no decorrer de todas essas mudanças, certas normas e estática com arativa. Ela não ne a nenhuma dessas- análises mas
relações cruciais - e outras aparentemente menos cruciais, até mes- põe a dinâmica em primeiro lugar. Porém, na ordem da a resenta ão
mo triviais e arbitrárias - persistirão. As explicações tanto ara a dos fatos, é uma boa estraté ia a resentar um esbo o sistemático dos
constância uanto ara a mudan a só odem ser encontradas na mi- prIncípios sobre os uais está edificada a estrutura social
nha o inião, ela análise sistemática das unid~des rocessuais e e§.:: institucionalizada e mensurar sua importância, intensidade e varia-
truturas tem orais ela observa ão das fases e dos sistemas ão relativas sob circunstâncias diferentes se ossível com dados
atem orais. Pois cada fase possui suas propriedades específicas, e numéricos ou estatísticos. De certa forma, as atividades sociais das
cada qual deixa sua marca especial nas metáforas e modelos nas ca- quais se extrai uma "estrutura estatística" podem ser caracterizadas
beças dos homens envolvidos uns com os outros no interminável flu- como "processo lento", na medida em que elas tendem a envolver a
xo da existência social. Atendo-me à comparação explícita da estru- repetição regular de certos atos, em contraste com o processo rápido
tura temporal de certos tipos de processos sociais com aquela dos observado, por exemplo, nos dramas sociais, nos quais há uma gran-
dramas de palco, com seus atos e cenas, vi as fases do drama social de parcela de singularidade e arbitrariedade. Tudo está em movimen-
acumulando-se num clímax. Também assinalaria ue, no nível to, mas alguns fluxos sociais movem-se tão lentamente em compara-
lingüístico da "parole", cada fase tem sua rá ria forma e estilo de ção com outros que é como se eles estivessem quase tão fixos e esta-
discurso, sua ró ria retórica, seus ró rios ti os de lin ua ens cionários quanto a paisagem e seus estratos geográficos subjacentes,
e simbolismos não-verbais. Estes variam bastante, é claro, intercul- embora estes também estejam, é claro, para sempre, em fluxo lento.
turalmente e intertemporalmente, porém, eu defendo que sempre exis- Se tivermos dados dis oníveis ara se analisar uma se üência de uni-
tem algumas afinidades genéricas importantes entre os discursos e dades rocessuais cruciais or um eríodo de, di amos, 20 ou 30
linguagens da fase crítica, da fase corretiva e da fase de restauração anos odemos ver mudan as mesmo nos rocessos lentos, mesmo
da paz. A comparação intercultural nunca se dedicou a esta tarefa, nas sociedades encaradas como "cíclicas" ou "esta nantes" ara usar
porque se limitou a formas e estruturas atemporais, aos produtos da os termos favoritos de aI uns investi adores. Porém, não quero apre-
atividade social humana, abstraídos dos processos nos quais eles sur- sentar aqui métodos de estudo de processos sociais - já dei exemplos
gem, e que, uma vez surgidos, canalizam em graus variados. É muito disso em Schism and Continuity (1957), The Drums of Affliction
mais fácil se amparar na muleta "paradigrnática", friamente distanci- (1968b), na análise dos rituais Mukanda em Local-Levei Politics
ada da aborrecida competitividade da vida social. Além disso, uma (1968a), e em vários ensaios. Tenho um interesse permanente por
comparação intercultural deste tipo não pode ser feita até que tenha- esta abordagem, e foi nela que fiz minha primeira tentativa de produ-
mos muito mais estudos de caso detalhados. Uma história de estudo zir um paradigma para a análise de símbolos rituais. Também não
de caso detalhado é a história3 de um único ru o ou comunidade em desejo discutir neste momento a teoria do conflito que obviamente
uma considerável extensão de tem o coletados como uma se üên- influencia minha formulação "drarnatística",
cia de unidades rocessuais de diferentes ti os incluindo os .á men-
cionados dramas atividades e em reendimentos sociais. Isto é mais Em vez disso, prefiro fazer algo bem diferente, tão diferente quanto a
"antiestrutura" o é da "estrutura", embora o processualismo veria os
dois termos como intrinsecamente relacionados, talvez até mesmo
Estudo de caso estendido/detalhado: Refere-se ao chamado "extended-case contraditórios no sentido último, não-dualista. Uma equação mate-
method" variadamente traduzido como "método de estudo de caso estendido", ou mática necessita tanto dos seus sinais de minus, quanto dos de plus,
"detalhado". [N. da Edição].

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d s negativos e dos positivos, de zeros tanto quanto de números: a outro lado da moeda da "coesão", sendo "interesse" o motivo que
equivalência de duas expressões é afirmada por meio de uma fórmu- vincula ou separa estas pessoas, estes homens servis a direitos estru-
la que contém negações. Pode-se dizer que o estruturalismo positivo turais e obrigações, imperativos e lealdades. No entanto, conforme
s mente pode se tornar processualismo ao aceitar o conceito de assinalou Znaniecki, há um vínculo que une as pessoas além e acima
antiestrutura social como operador teórico. Não há nada de realmen- de seus vínculos formais. Assim sendo, não se deve limitar a investi-
te místico nisto. Znaniecki, por exemplo argumentou com referência gação a uma estrutura social em particular, e sim buscar os funda-
ao que ele chamou de "sistemas culturais": mentos de ação na communitas genérica. Este foi o motivo que me
impeliu a começar a pesquisa que até agora resultou apenas em algu-
As pessoas que compartilham certo conjunto de sistemas interliga- mas publicações, sendo uma delas O Processo Ritual (1969). O lei-
dos (e entre estes sistemas geralmente existem também determina- tor não deve pensar que me esqueci da importância da sociologia dos
dos grupos sociais - territoriais, genéticos ou télicos) podem ser mais símbolos. Existem símbolos de estrutura e símbolos de antiestrutura,
ou menos conscientes deste fato, e mais ou menos dispostas a influ- e quero, primeiramente, considerar as bases sociais de ambos. Como
enciarem umas às outras para o benefício de sua civilização comum e Znaniecki, busquei evidências do desenvolvimento de novos ideais
a influenciar esta civilização para seu benefício mútuo. Esta cons- culturais e das tentativas de realizá-los e dos vários modos de com-
ciência e disposição, em se considerando que elas existam, constitu- portamento social que não procediam das propriedades estruturais de
em o vínculo social que une essas pessoas além e acima de qualquer grupos sociais organizados. Encontrei nos dados da arte, literatura,
vínculo social formal que se deve à existência de relações sociais filosofia, pensamento político e jurídico, história, religião compara-
reguladas e grupos sociais organizados. [...] Se o termo "comunida- tiva e documentos similares idéias muito mais sugestivas sobre a
de" está limitado à realidade humanística que abrange tais fenôme- natureza do social do que no trabalho de colegas que fazendo sua
nos, [...] como o desenvolvimento de novos ideais culturais e tentati- "ciência social normal" sob o paradigma do funcionalismo estrutu-
vas de realizá-I os à parte de ações organizadas de grupo, [...] não há ral, prevalecente à época. Estas noções não são sempre colocadas em
dúvida de que uma "comunidade", neste sentido, pode ser estudada referência direta ou óbvia às relações sociais - elas são muitas vezes
cientificamente e que a sociologia é a ciência que deve fazê-lo como metafóricas ou alegóricas -, algumas vezes elas surgem sob a apa-
um dos dados especificamente sociais. (1936, capítulo 3) rência de conceitos ou princípios filosóficos, mas eu as vejo surgi-
Aqui temos o que eu chamaria de "communitas" ou antiestrutura so- rem na experiência da coatividade humana, incluindo as mais pro-
cial (uma vez que se trata de um "vínculo que une [...] pessoas além fundas dentre elas. Por exemplo, tenho, recentemente, prestado aten-
e acima de qualquer vínculo social formal", ou seja, estrutura "posi- ção à idéia de que a distinção familiar feita no zen budismo entre os
tiva"), sendo considerada como objeto de estudo científico respeitá- conceitos de prajiiã (que significa, muito aproximadamente, "intui-
vel. Tenho ficado pasmo, em meu trabalho recente, com a maneira ção") e vijiiêna (muito esquematicamente, "razão" ou "compreensão
pela qual as peregrinações exemplificam estas comunidades discursiva") está arraigada nas experiências sociais contrastantes que
antiestruturais - talvez Znaniecki tenha observado a communitas em descrevi, respectivamente, como "communitas" e "estrutura". Reca-
eu cenário polonês de forma mais vívida no templo montanhoso de pitulando brevemente o argumento de O Processo Ritual, os laços de
Nossa Senhora de Czestochowa, como eu a observei em seu cenário cornmunitas são antiestruturais uma vez que são indiferenciados, igua-
mexicano, na basílica de Nossa Senhora de Guadalupe e, mais recen- litários, diretos, não-racionais (embora não irracionais), relações Eu-
temente, no remoto templo de Nossa Senhora de Knock, no condado Tu ou Nós Essencial, no sentido de Martin Buber. Estrutura é o que
de Mayo, na Irlanda. mantém as pessoas separadas, define suas diferenças e limita suas
ações, incluindo a estrutura social no sentido da antropologia britâni-
De certa forma, o conceito de "drama social" está no âmbito das afir-
ca. A communitas fica mais clara na "liminaridade", um conceito
mações estruturais positivas; ele se atém principalmente às relações
ue eu estendi de seu uso em Lês Rites de Passa e, de Van Genne ,
ntrc a pessoas em sua qualidade de status-papel e entre grupos e
para me referir a quaisquer condições fora das ou nas periferias da
sub rupos enquanto segmentos estruturais. Aqui, "conflito" é o

10 41
vida tidiana, Trata-se com freqüência de uma condi ão sa rada ou fato do prajiiê", um sistema de categorias que derivassem dele seria
p le se tornar sa rada rontamente. Por exem 10 or todo um "artefato do vipiãna", A distinção de Blaise Pascal entre L'espirit
movimentos milenaristas se originam nos períodos em que as socie- de finesse e L'espirit de géometrie pode representar algo semelhante.
dades estão em uma transição liminar entre estruturas sociais dife-
Provavelmente discordaria de Suzuki em alguns aspectos e me
rentes.
alinharia com Durkheim e Znaniecki na busca pela fonte de ambos
om estas distinções em mente, vamos agora voltar nossa atenção os conceitos na experiência social humana, enquanto Suzuki
para o que Suzuki Daisetz Teitaro, talvez o maior erudito em estudos provavelmente os situaria na natureza das coisas. Para ele, communitas
zen escrevendo em inglês, tem a dizer sobre o contraste entre prajiíal e estrutura seriam manifestações particulares de princípios que podem
vijiiêna. Suzuki (1967, p. 66-67) escreve: ser encontrados em todos os lugares, como o Yin e Yang para os
Dividir é uma característica do vijiiãna (compreensão discursiva),
chineses. De fato, pr ajiiê: - intuição - é seu processo de
enquanto no caso de prajiiã (intuição) é o exato oposto. Prajnã é o autoconscientização. Vemo-lo, ainda, identificando prajiiã com o
auto conhecimento do todo, em contraste com vijiiiina, que se ocu- Homem Primordial (gennin) em "suas atividades, espontâneas, de
pa das partes. Prajiiã é um princípio integrador, enquanto vijiiêna criação livre, não-teleológicas" (p. 80); ele também declara que prajiiã
sempre empreende uma análise. O Vijfzãna não pode operar sem ter é "concreto em todos os sentidos do termo [...] [e portanto] a coisa
o prajiiã por trás de si; partes são partes de um todo; as partes ja-
mais dinâmica que pode existir no mundo" (p. 80). Estas (e outras)
mais existem por si mesmas, pois, se assim fosse, não seriam partes
- cessariam mesmo de existir.
características me parecem ser maneiras de se falar sobre as
experiências humanas daquele modo de coatividade que chamei de
Esta "completude" do prajnã lembra a idéia de "comunidade" de communitas.
Znaniecki como a fonte real da interligação de sistemas e subsistemas
culturais e sociais. Estes não podem ser interligados em seu próprio Eu não tinha lido Suzuki, embora já houvesse visto citações de seus
nível, por assim dizer; seria enganoso encontrar a integração deles aí escritos, antes de escrever O Processo Ritual, mas naquele livro, tendo
- o que os une é seu fundamento comum na comunidade viva ou como base experiências e observações no campo, experiência social
communitas. Outras explicações são especiosas e artificiais, por mais como pessoa, leituras das experiências de outrem e os frutos de discus-
engenhosas que sejam, pois a parte jamais poderá se transformar so- sões com outras pessoas, desenvolvi diversas afirmações sobre
communitas que lembram as de Suzuki a respeito deprajiiã. Por exem-
zinha no todo - é necessário algo mais. Suzuki (1967, p. 67) expressa
isto com uma clareza excepcional na seqüência. RIo:communitas é a sociedade ex erimentada ou vista como "comitatus,
comunidade, ou mesmo comunhão de indivíduos iguais, não-estruturada
O praj/lã está sempre buscando a unidade na maior escala possível, ou rudimentarmente estruturada e relativamente indiferenciada" . 96).
de modo que não possa haver, outra unidade para além; portanto,
E também: "communitas é a relação entre indivíduos concretos, histó-
quaisquer expressões ou afirmações que faça estão naturalmente além
da ordem do vijiiêna. O vijiiãna as sujeita à análise intelectual, bus- ricos e idiossincráticos", "um confronto direto, imediato e total entre
cando encontrar algo compreensível de acordo com o seu próprio identidades humanas" . 131-132 . Em outras assa ens eu relaciono
padrão. Mas isto não é possível para vijiiiina pelo motivo óbvio de communitas com espontaneidade e liberdade, e estrutura com obriga-
que prajfzã começa de onde vijtiêna não pode penetrar. Vij/iãna, ção, direito, lei, coação e assim por diante.
sendo o princípio da diferenciação, jamais pode ver prajiiã em sua
unidade, e é por conta da própria natureza de vijiiêna que prajfzã se Mas, embora tivéssemos de incluir no escopo do paradigma "estrutu-
mostra tão desconcertante para ele. ra" muitas características do drama social, além dos outros conceitos
baseados em Kurt Lewin dos quais me vali, para descrever a "cena"
Prajãã, no entender de Suzuki, seria a fonte da "fundação" - ou metá-
Kenneth Burkeana em que os "atores" representam seus "atos" tendo
r ras-radicais, uma vez que estas são eminentemente sintéticas: é so-
determiriados "propósitos" em vista - conceitos tais como "campo",
l rc elas que viiiiêna realizam então seu trabalho de discriminar a es-
"locomoção", "valência positiva e negativa", e outros do gênero.
trutura da metáfora radical. Se você preferir, uma metáfora é um "arte-

I') 43
indu assim, alguns dos seus aspectos escapam para o domínio da O termo antiestrutura possui conotação negativa somente quando visto
anti strutura e até mesmo da communitas. Por exemplo, após demons- da perspectiva da "estrutura". Na sua essência, ele é tão "anti", quan-
trar a variadas estratégias estruturais empregadas pela principal fac- to a "contracultura" americana é meramente "contra". A "estrutura"
ã política da Aldeia Mukanza para evitar que a reivindicação de pode er vista tão legitimamente como "anti", ou pelo menos como
liderança do ambicioso Sandombu vingasse - principalmente a acu- um conjunto de limitações, como o "limite de opacidade" de William
ação de que ele teria assassinado sua mãe classificatória utilizando- Blake. Se estivermos interessados em perguntar algumas das ques-
se de feitiçaria - mostro como, quando estes seus rivais tinham-no tões formuladas nos primórdios da sociologia, e que foram agora
forçado a se exilar, começaram a se afligir, por razões de communitas. relegádas à filosofia da história, como, "Para onde estamos indo?",
Suas consciências começaram a pesar, como geralmente acontece ou «Para onde a sociedade está indo?", ou "Para onde o mundo está
quando as pessoas negam suas experiências de communitas passa- indo?" pode ser interessante ver a estrutura como um limite, ao invés
das. Começaram a pensar: não era ele sangue do sangue deles, nasci- de considerá-Ia um ponto de partida teórico. Os componentes do que
do do mesmo útero (o próprio termo utilizado para um grupo chamei de antiestrutura, como communitas e liminaridade, são as
matrilinear)? Não fizera ele parte de sua vida coletiva? Não contribu- condições de produção para metáforas-radicais, arquétipos
íra para o bem-estar deles, pagando pela educação de seus filhos, conceituais, paradigmas, modelos e assim por diante. Metáforas-ra-
encontrando trabalho para os seus jovens, quando era capataz de uma dicais possuem uma "thusness'vou "thereness" por meio das quais
turma de obras de estrada do governo para o PWD? Seu pedido de muitas estruturas subseqüentes podem ser "desembrulhadas" pela
retorno foi concedido. Um novo infortúnio levou a um novo rito consciência vijiiêna ou l'esprit de géometrie. O que poderia ser mais
divinatório, o qual descobriu, inter alia, que Sandombu não fora cul- positivo do que isto? Pois as metáforas compartilham uma das pro-
pado da feitiçaria de que havia sido acusado, mas que um forasteiro priedades que atribuí aos símbolos. Não estou falando da
causara a morte da mulher. Realizou-se, então, um ritual, pelo qual multivocalidade, da sua capacidade de ressoar entre vários significa-
Sandombu pagou um bode. Ele plantou uma árvore simbolizando a dos de uma só vez, como um acorde na música, embora as metáfo-
unidade da matrilinhagem para com a irmã de sua mãe morta, e ele e ras-radicais sejam multivocais. Estou falando de um certo tipo de
seus principais antagonistas rezaram aí aos espíritos e se reconcilia- polarização do sentido no qual o sujeito subsidiário é, na realidade,
ram. Argila branca em pó, simbolizando os valores básicos da socie- um - universo - profundo de imagens proféticas semivislumbradas,
dade Ndembu -, boa saúde, fertilidade, respeito pelos idosos, cum- e o sujeito principal - o visível, plenamente conhecido (ou que se
primento das obrigações para com os parentes, honestidade e afins, supõe plenamente conhecido) -, no extremo oposto, adquire novos e
em resumo, um símbolo-mestre da estrutura imbuído de communitas surpreendentes contornos e valências do seu companheiro obscuro.
- foi salpieada no chão ao redor da árvore e os diversos tipos de Por outro lado, uma vez que os pólos são "ativos em conjunto", o
parentes presentes foram ungidos com ela. Aqui, claramente, não pre- conhecido joga um pouco mais de luz sobre o desconhecido. Trazê-Io
valeceram o mero interesse próprio ou a letra da lei-mas seu espírito, totalmente para a luz é o trabalho de uma outra fase de liminaridade:
o espírito da communitas. A estrutura sem dúvida está presente, mas aquela do pensamento desprovido de imagens, da conceitualização
ua dissensão é abafada por um grupo de interdependências: aqui, ela em vários níveis de abstração, da dedução, tanto informal quanto
é vista como um meio ou instrumento social, não como um fim em si formal, e da generalização indutiva. A imaginação criativa, a
me ma, e nem tampouco como provedora de metas para competição inventividade ou a inspiração genuína vão além da imaginação espa-
ou dissidência. Pode-se também postular que a coerência de um dra- cial ou de qualquer habilidade para formar metáforas. Não necessa-
ma social concluído é ela mesma a função da communitas. Assim, riamente associam imagens visuais com determinados conceitos e
11mdrama incompleto ou insolúvel manifestaria a falta da communitas. proporções. A imaginação criativa é muito mais rica do que as ima-
Neste caso, o nível básico também não está no consenso no que diz gens; ela não consiste na habilidade de evocar impressões sensoriais
r .spcüo aos valores. O consenso, sendo espontâneo, se baseia na e não se restringe a preencher as lacunas do mapa oferecido pela
couuuunita , não na estrutura. percepção. É chamada de "criativa" porque consiste na habilidade de

II 45
.riur n itos e sistemas conceituais que podem não encontrar ne- apresentar um relato distorcido do homem para com o homem. O que
nh 11 m correspondente nos sentidos (embora possam encontrar algum chamo de liminaridade, o estado de se estar entre participações su-
rr pondente na realidade), e também porque suscita idéias não- cessivas em um meio social dominado por considerações sociais es-
nvencionais. É algo como a visão que tem Suzuki do prajiiã em truturais, sejam elas formalizadas ou não, não é precisamente o mes-
sua pureza. Esta é a obscuridade criativa da liminaridade que cativa mo que communitas, pois consiste antes numa esfera ou domínio de
a formas básicas de vida. São mais do que estruturas lógicas. Creio ação ou pensamento, do que numa modalidade social. De fato, a
que qualquer matemático e qualquer cientista natural concordariam liminaridade pode implicar solidão ao invés de soeiedade, o afasta-
com Mario Bunge que: mento voluntário ou involuntário de um indivíduo de uma matriz
socioestrutural. Pode implicar alienação da existência social em
sem imaginação, sem inventividade, sem a habilidade de conceber
hipóteses e propostas, somente as operações "mecãnicas" poderiam vez de uma participação mais autêntica na mesma. Em O Processo
ser realizadas, ou seja, as manipulações de instrumentos e a aplica- Ritual eu estava mais preocupado com os aspectos sociais da
ção de algoritmos de computação, a arte de calcular com qualquer liminaridade, pois minha ênfase ainda estava na sociedade Ndembu.
espécie de notação. A invenção de hipóteses, a projeção de técnicas A liminaridade ocorre 'na fase intermediária dos ritos de passagem,
e o planejamento de experimentos são casos claros de operações que caracterizam mudanças no status social de um grupo ou de
imaginativas [puramente "liminares"], em oposição a operações
um indivíduo. Tais ritos começam caracteristicamente com o sujeito
"mecânicas". Elas não são operações puramente lógicas. A lógica
sozinha é tão incapaz de levar uma pessoa a novas idéias quanto a
sendo simbolicamente morto ou apartado de relações normais'
gramática sozinha é incapaz de inspirar poemas, e a teoria da har- seculares ou profanas e terminam com um nascimento simbólico ou
monia sozinha é incapaz de inspirar sonatas, A lógica, a gramática e reagregação à sociedade. O período ou fase liminar que se interpõe
a teoria musical nos habilitam a detectar erros formais e boas idéias, está, portanto, betwixt and between as categorias da vida social
bem como desenvolver boas idéias, mas elas não proporcionam, por comum. Tentei, então, ampliar o conceito de liminaridade para que
si próprias, a "substância", a idéia feliz, o novo ponto de vista. (1962,
ele pudesse abranger qualquer condição fora da, ou nas periferias da
p.80)
vida cotidiana, argumentando que havia uma afinidade entre o meio
Isto é a "fulguração da chama que age". Retomando à interpretação no tempo sagrado e o lado de fora no espaço sagrado, já que a
do vocabulário zen.vsegundo Suzuki, o vijiíana sozinho é incapaz de liminaridade entre os Ndembu é uma condição sagrada. E é também
levar uma pessoa a novas idéias. Entretanto, nos mundos social e entre eles que a communitas se torna mais evidente. Os vínculos da
natural, tais como nós os conhecemos, vijiiêna e prajiiã são ambos communitas são, conforme eu disse, antiestruturais, no sentido de
indispensáveis às teorias científicas, poemas, sinfonias, à intuição e que são indiferenciados, igualitários, diretos, não-racionais (embora
ao raciocínio ou à lógica. Na área da criatividade social- onde novas não irracionais), relações Eu-Tu: Na fase liminar dos ritos de passa-
formas sociais e culturais são engendradas - tanto a estrutura quanto gem Ndembu, e em ritos semelhantes ao redor do mundo, a
a communitas, ou tanto o "limitado" quanto o "ilimitado" se fazem communitas é engendrada por humilhação ritual, -desnudamento de
necessários. Ver a "societas" como um processo humano - em vez de signos é insígnias de status pré-liminares, nivelamento ritual-e vários
um sistema atemporal e eterno tendo como modelo um organismo ou tipos de provas e testes, no intuito de mostrar que "homem, tu és pó!"
uma má uina - si nifica ca acitar-nos ara nos concentrar nas rela- N as estruturas sociais hierárquicas, a communitas é simbolicamente
ões ue 'existem em cada onto ·ou em cada nível de manei a afirmada por rituais periódicos, geralmente calendários ou vincula-
plexas e sutis, entre communitas e estrutura. Precisamos descobrir dos aos ciclos agrícola ou pluvial, nos quais o humilde e o poderoso
aborda ens ue rote' am ambas as ar uimodalidades ois ao des- trocam de papéis sociais. Nas sociedades deste tipo, também, e aqui
(ruirmos uma delas, destruímos as duas e somos então forçados a eu começo a extrair meus exemplos da história européia e indiana, a
ideologia religiosa dos poderosos idealiza a humildade, ordens de
Mas não à de Nagarjuna; ele vê a lógica e a intuição como expressões especialistas religiosos levam vidas ascéticas, e, per contra, grupos
ncialmente iguais à única estância adequada com relação ao prajriã, o silêncio. de culto dentre aqueles de baixo status jogam com símbolos de poder

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como Martin Heidegger - do eu social como a "parte inautêntica do
e autoridade. Ao redor do mundo, movimentos milenaristas e
ser humano". Mas, na verdade, eles estão se dirigindo a uma
r vivali ta ,conforme mencionei anteriormente, originam-se em pe-
communita de "indivíduos autênticos" ou tentando livrar estes indi-
rí dos nos quais as sociedades encontram-se numa transição liminar
víduos da estrutura social. Poder-se-ia perguntar qual seria o público
entre grandes ordenamentos das relações socioestruturais. Na segun-
destes pr lííicos porém alienados profetas da incomunicação? Entrar
da metade de O Processo Ritual, ilustro meus exemplos das culturas
ne ta que tão, no entanto, seria divergir do meu tópico principal, que
tradicionais da África, Europa e Ásia com comentários sobre a cultu-
é nsid rar as relações entre drama social, análise processual,
ra moderna, referindo-me brevemente a Leon Tolstoi, Mahatma
antics trutura e o estudo semântico de símbolos rituais.
Gandhi, Bob Dylan e fenômenos atuais como os Vice Lords de Chi-
cago e os Helt's Angels da Califórnia. Em 1970-1971, em Chicago, om considero os símbolos culturais, incluindo os símbolos rituais,
uma série de artigos nossos explorou outros aspectos da communitas mo sendo a origem e o sustentáculo de processos que envolvem
e da liminaridade em conexão com tópicos tais como a corrupção mudanças temporais nas relações sociais, e não como entidades
burocrática na Índia e a tradição hindu de dar presentes (Arjun atem por ais, busquei tratar as propriedades cruciais dos símbolos ri-
Appadurai), os mitos do trapaceiro, comunidades contraculturais tuais como estando envolvidas nestes desenvolvimentos dinâmicos.
(David Kakulski) na África (Robert Pelton), o populismo russo nos Os Símbolos instigam a ação social. A questão que sempre formulo
século XIX (Daniel Kakulski), comunidades contraculturais (David aos dados é: "Como funcionam os símbolos rituais?".
Buchdahl) e símbolo e festividade nos "Evênements de Mai-Juin Do meu ponto de vista, eles condensam várias referências, unindo-as
1968", a rebelião estudantil em Paris (Sherry Turkle). Todas estas em um único campo cognitivo e afetivo. Aqui, indicarei ao leitor
instigantes contribuições continham uma série de símbolos de minha introdução ao Forms of Symbolic Action (1970). Neste senti-
antiestrutura, tanto de liminaridade quanto de communitas. Alan do, os símbolos rituais são "multivocais", susceptíveis de muitos sig-
Shusterman, um estudante de literatura russa, apresentou um artigo nificados, mas seus referentes tendem a se polarizar entre fenômenos
sobre outro tipo de liminaridade. Intitulado "Epilepsia, homens mo- fisiológicos (tais como sangue, órgãos sexuais, coito, nascimento,
ribundos e suicídios: liminaridade e communitas em Dostoievski", morte, catabolismo) e assim por diante e valores normativos de fatos
seu texto mostrou como na tradição cristã, conforme é representada morais (bondade com crianças, reciprocidade, generosidade com pa-
na Rússia de Dostoievski, "a falta de communitas[ ...] cria, ao mesmo rentes, respeito aos idosos, obediência às autoridades políticas etc.).
tempo, uma liminaridade inviável e uma sensação de desespero". Seu Neste pólo de significado "normativo" ou "ideológico" podem-se
argumento estendeu a aplicação do conceito de liminaridade a uma observar referências aos princípios de organização: matrilinearidade,
série de dados que eu mesmo não levara em consideração. No entan- patrilinearidade, realeza, gerontocracia, organização por idade,
to, no que diz respeito a esta questão do contraste entre as liminaridades afiliação por sexo, dentre outros. O drama da ação ritual- o canto, a
da solidão e da communitas, ainda há muito a ser dito. Muitos filóso- dança, a festa, a vestimenta de roupas bizarras, a pintura corporal, o
fos existencialistas, por exemplo, vêem o que eles chamam de "soci- uso de álcool ou alucinógenos dentre outros, ocasiona uma troca en-
edade" como algo nocivo, hostil à natureza autêntica do indivíduo. A tre estes pólos nos quais os referentes biológicos são enobrecidos e
sociedade é o que alguns deles chamam de "reduto da objetividade" os referentes normativos, carregados de significado emocional. Cha-
sendo , portanto 'bantasônica à existência subjetiva do indivíduo. Para mo os referentes biológicos - até onde eles constituam um sistema
encontrar-se e tornar-se ele mesmo, o indivíduo precisa lutar para organizado separado dos referentes normativos - de o "pólo oréctico",
liberar-se do jugo da sociedade. Esta é vista pelo existencialismo como "relativo ao desejo ou apetite, vontade' ou sentimento" pois símbo-
a carcereira do indivíduo, de forma muito semelhante ao pensamento los, sob condições ideais, podem reforçar, naqueles que se lhes ex-
religioso grego, principalmente nos cultos de mistério, via o corpo . põem, a disposição de obedecer a mandamentos morais, manter con-
como carcereiro da alma. Em minha opinião, estes pensadores não venções, pagar dívidas, cumprir obrigações, evitar comportamentos
[oram capazes de fazer a distinção analítica entre communitas e es- ilícitos. Dessa maneira, previne-se ou evita-se a anomie, e cria-se um
trutura; eles parecem estar se referindo à estrutura quando falam -

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'I
d '. Minha visão também divergiria daquela de certo antr pól g .s
m 'i n qual os membros da sociedade não vêem nenhum conflito
lU . .on iderariam a religião como semelhante a um sintoma neuróti-
fundamental entre eles mesmos como indivíduos e a sociedade. Uma 'o )\1 li m mecanismo de defesa cultural. Ambas as abordagens tra-
interpretação simbiótica do indivíduo e da sociedade estabeleceu- se
tam comportamento simbólico, as ações simbólicas, como um
em uas mentes. Tudo isso se encaixaria admiravelmente na idéia de
"cp i f c nô meno ", enquanto eu te.nto. co~férir-lh~ u~ status
Durkheim de que a moralidade é essencialmente um fenômeno
•• ntológico". Daí meu interesse na ríruauzacãonos animais. P~r~a-
ocial. Sugiro, no entanto, que este processo funciona apenas onde já
ne e, é claro, o problema - mencionado por v~nos dos meus cntlc~s
exi te um alto nível de communitas na sociedade que realiza o ritual,
(por exemplo, Charlie Leslie em uma ~erceptlva resenha de O Pro-
no sentido de que se reconhece um vínculo genérico básico sob todas cesso Ritual) - para o qual não posso afirmar ter encontrado qu~lquer
as diferenças e oposições hierárquicas e segmentais. A communitas resposta satisfatória. A questão não é "por que as pessoas contmuam
no ritual só pode ser evocada com facilidade quando existem várias
a criar sistemas de rituais simbólicos em um mundo repleto ~~ pro-
ocasiões fora do ritual nas quais se tenha alcançado a communitas.
cessos secularizantes, mas por que estes sistemas sempre se ennjecern
Também é verdade que, se a communitas pode ser desenvolvida den-
ou se pervertem, e por que as pessoas perdem a fé, gera~ment~ com
tro de um padrão ritual, pode também ser transportada por um tempo
ansiedade, medo e tremor, mas também com uma sensaçao de libera-
para -a vida secular de modo a ajudar a mitigar ou abrandar um pouco
ção e alívio?" (1970, p. 702-704). Aqui, apont~ria para o -?rancle
da rispidez dos conflitos sociais arraigados nos conflitos de interesse
esforço de Emile Durkheim em estabelecer a ~eahdade do objeto de
material ou das discrepâncias no ordenamento das relações sociais.
fé que, do seu ponto de vista, foi semp~e a socleda?e ~la mesma sob
Se, no entanto, um ritual funciona de fato, por qualquer que seja o inúmeros disfarces simbólicos, sem-aceltar o conteúdo l~t~lect~al das
motivo, a troca de qualidades entre os pólos semânticos parece, a religiões tradicionais. Em sua opinião, as religiões tr.acllclO~als ,e~ta~
meu ver, alcançar efeitos genuinamente catárticos, ocasionando, em vam condenadas pelo desenvolvimento do raclOnahsm~ oientifico;
alguns casos, verdadeiras transformações de caráter e de relaciona- ele porém acreditava que sua teoria salvaria o que pare~la e~ta~ des-
mento sociais. Refiro-me, por exemplo, em The Drums of Aftliction truindo ao mostrar que, em última análise, os home~s Jamal~ ldo.la-
(196gb, capo 4-6), à história de estudo de caso estendido de um paci- traram nada que não fosse sua própria socieda?e. Ainda assH~, Ílc.a
ente Ndembu em uma série de rituais curativos, de nome claro que a "religião da sociedade" de Durkheim, tal como a reli-
Kamahasanyi, como ilustração disto. A troca de qualidades torna gião da humanidade" de Auguste Comte, nunc~ exerceu gr~nde ape-
desejável o que é socialmente necessário ao estabelecer uma relação lo sobre as massas da humanidade comum. CIto estes dOIS autor~s
de direitos entre sentimentos involuntários e exigências da estrutura porque ambos sentiram com clareza a nece~sidade de conve:ter rapi-
soci-al. As pessoas são induzidas a querer fazer o que elas precisam damente seu "senso de liberação" em um SIstema moral, ate mesmo
fazer. Neste sentido, a ação ritual assemelha-se ao processo de subli- pseudo-religioso, 9
uma curiosa egolatria. ~qui, creio q~e toda a ues-
mação, e não se estaria dilatando a linguagem indevidamente ao di- tão do simbolismo é muito relevante, aSSIm como o ~ a. qu~stao do
zer que seu comportamento simbólico de fato "cria" a sociedade para que é simbolizado. E aqui também creio .qu~ ~ dlstlllçao entre
propósitos pragmáticos - incluindo no termo sociedade tanto a estru- ommunitas e estrutura social tem uma contribuição a dar.
tura quanto a communitas. Aqui, se deseja significar mais do que a
manifestação de paradigmas cognitivos. Os paradigmas no ritual pos-
suem a função orética de impelir à ação tanto quanto ao pensamento. REFERÊNCIAS
O que venho fazendo com tudo isto talvez seja uma tentativa de ofe-
rccer uma idéia alternativa à daqueles antropólogos que, a despeito 131~ R TEDT Robert. Florian Znaniecki. In: S1LLS, David L. (Ed.).
de todas as denegações, ainda trabalham com o paradigma de lI/I rnationa'l Encyclopedia of the Social Sciences. Nova Yok:
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